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CORPOS E ALMAS - P.2 / Van Der Schmeer
CORPOS E ALMAS - P.2 / Van Der Schmeer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CORPOS E ALMAS

Segunda Parte

 

Tranquilizado, Doutreval sorriu. Esvaziou o copo de vinho e, deixando os outros três no átrio, recolheu ao quarto.

Voltou, porém, a ficar preocupado. Sozinho, na poltrona junto da janela aberta, escutando o rumor folgazão da vida nocturna da cidade, pensava em Mariette, que sofria longe, em Angers, a mil quilómetros dali. Sangrava-lhe o coração de pai. Desejaria chamar Vallorge, saltar para o automóvel, partir imediatamente para França. Mas não era fácil. Tinha tanto trabalho a realizar: conferências, discussões... A filha devia fazer o sacrifício de dispensar a sua presença.

Vallorge entrou, e os dois permaneceram calados, frente a frente, um a tentar ler um número do Candide, outro um romance que tinha encontrado. Todavia, não lhes foi possível fixar a atenção. Que iria dizer Van der Blieck, daí a pouco?

Pelas onze e meia bateram à porta. Era Regnoult e Groix, que regressavam dum giro pela cidade. Regnoult contou a aventura do seu companheiro. A horrorosa barba de Groix suscitava em Amsterdão uma desconfiança tremenda. De tal maneira que um holandês, ao vê-lo chegar com aquela floresta de pêlos hirsutos, evocara logo a memória do assassino de mulheres e gritara em brincadeira: «- Olá, Landru!» A isto Groix ripostara com um soco no olho do engraçado, que fora de pernas ao ar. Tiveram de fugir a sete pés, pois os amigos da vítima e os polícias já haviam acudido. Doutreval e Vallorge esqueceram a sua inquietação e sorriram. Neste momento ressoou a campainha do telefone.

- é de Angers - disse Regnoult, que pegara no auscultador.

Doutreval e o genro desceram a toda a pressa, sem tomar o ascensor. Em baixo, a telefonista indicou-lhes o compartimento n.» 3. Para lá se precipitaram.

- Está?

- Aqui Van der Blieck. Senhor doutor, Huot compareceu. Tem sido uma luta pegada. Nada! A parturiente esgota-se. Somos ambos de opinião que seria muito mais simples e rápido, muito menos fatigante para ela confiá-la a um cirurgião.

Doutreval olhou para Vallorge, que segurava outro auscultador. O genro fez um gesto com a mão, que significava : «Pois seja».

- Huot está aqui comigo. Quer que ele lhe fale, senhor doutor?

- Tem alguma coisa a dizer? Alguma explicação a dar? Está a ouvir-me, Huot?

Seguiu-se do outro lado do fio um curto conciliábulo. E ”por fim:

- Não, senhor, não há nada a acrescentar ao que eu já disse - recomeçou a voz longínqua de Van der Blieck.

- Então, que seja!

- Quem escolheram?

Doutreval consultou Vallorge com um olhar.

- Heubel! - gritou, embora contra vontade. - Não! Não! Géraudin! Quero Géraudin.

- Géraudin? Está bem. Ele voltou ontem à noite. Está combinado. Pô-lo-emos ao corrente, senhor doutor. Conte connosco.

- Obrigado.

- E ânimo, senhor doutor! Tudo correrá bem. Em breve daremos boas notícias. Não esteja em cuidado.

Doutreval desligou.

Ao amanhecer, a ambulância da Êgalité parava defronte da casa dos Vallorge. Louis, motorista de Géraudin, acompanhava os enfermeiros. Deitaram cuidadosamente Mariette na maca e assim a transportaram até à ambulância, a qual seguiu em andamento moderado para a clínica de Géraudin. Extenuados, manchados de sangue, Huot e Van der Blieck lavaram as mãos, arranjaram-se um pouco e tomaram uma xícara de café quente. Em seguida meteram-se no automóvel do primeiro e dirigiram-se para a clínica a toda a velocidade.

`a esquina da avenida havia uma taberna. Quando o carro de Huot se aproximava, abriu-se a porta da taberna e irrompeu dali um ébrio, aos tombos. Justamente na altura em que o automóvel virava para sair da avenida, o homem deu um balanço para a frente e, como se mergulhasse, lançou-se sobre o carro. Houve um choque surdo, o som do crânio de encontro ao ferro, e o bêbado rolou no solo.

Huot travara de tal modo que Van der Blieck foi atirado

para diante; a cara bateu no pára-brisas e ele tombou desmaiado, cheio de sangue. Soltando uma praga, Huot precipitou-se para fora do carro, a fim de procurar socorro na taberna.

Já alguns transeuntes acorriam e levantavam o ébrio. O homem tinha fracturado o crânio. à frente do carro aderiam pedaços de massa encefálica. Outras pessoas tiravam a custo do automóvel Van der Blieck, ainda desmaiado e com um profundo golpe na cara desde a testa até ao lábio. Acorriam polícias de todos os lados. Huot pediu-lhes que telefonassem para a Êgalité e para casa de Géraudin enquanto ele prestava os primeiros cuidados a Van der Blieck, que já ia voltando a si.

Conforme dissera Groix, não há operação menos perigosa que uma cesariana. Bastantes operadas a preferem a um parto natural, pois, graças à anestesia, é muito menos doloroso. E a convalescença é rápida. Por isso há inúmeras mulheres que não têm medo nenhum de darem à luz os filhos por meio da cesariana.

Mariette possuía saúde e um coração robusto. Era naturalíssimo que tudo decorresse bem.

No entanto, Géraudin sentia-se enervado. Na véspera, regressara duma peregrinação a Lisieux, onde Valerie quisera levar o filho, na esperança dum milagre, duma cura repentina. E a viagem tinha sido horrível, com o idiota no carro. Depois, fora preciso deixar Henri em La Baule. Géraudin chegara fatigadíssimo, mas já tinha à sua espera, na clínica, dois trabalhadores feridos, a quem era necessário operar de urgência: fractura da bacia num deles, e, no outro, caixa torácica esmagada pela carga dum guindaste. Aquilo fora muito demorado. A seguir, a enfermeira Claim retivera Géraudin para se queixar de Valerie, que, antes da partida, se apoderara do dinheiro da caixa e das contas a enviar aos clientes. Tal facto originara, entre os esposos, uma discussão terrível. Haviam-se deitado tarde. Géraudin, mal adormecera, tornara a despertar, excitado, à meia-noite, e de então em diante esperara a chamada telefónica de Van der Blieck, que já o havia prevenido dessa possibilidade. Quando o telefone se fez ouvir, Géraudin correra à clínica e encontrara tudo em desordem: a sala de operações não fora limpa e conservava vestígios dos trabalhos da véspera. Estava ele a vociferar e a increpar a senhora Claim quando surgiu a ambulância e a notícia do acidente sofrido por Huot e Van der Blieck.

- Lindo começo, não há dúvida! -exclamou o cirurgião.

Felizmente que recebeu também um auxílio inesperado. A Irma Angélique, prevenida por Huot, correra à clínica a oferecer os seus serviços, atendendo à hora matinal a que as coisas se passavam.

- E muito amável da sua parte -disse Géraudin, satisfeito. -Ajudar-me-á juntamente com a senhora Claim e Louis. Vá ver. Creio que eles vêm pelo ascensor, com a senhora Vallorge.

Penetrou na sala de operações, que estava aquecida. De alto a baixo, as paredes eram cobertas de azulejos, e tudo se banhava em claridade azulada, que dava ao ambiente uma sensação estranha. Do tecto vinha um jacto de luz, que não permitia a formação de sombras. A mesa já se encontrava agora preparada, branca e nua, com os seus pedais, estribos, correias, como um complicado instrumento de suplício. Empurrando Mariette num carrinho de rodas, entraram a senhora Claim, a Irmã Angélique, Louis e a enfermeira Rose-Marie. A doente vinha muito pálida, de olhos fechados, cabelos desfeitos e feições marcadas por vinte e quatro horas de sofrimento.

- Coragem, Mariette! - disse Géraudin. - Isto dura pouco tempo, você não terá mais dores, ficará desembaraçada. Não tenha medo. Verá o alívio que vai sentir.

- Que seja depressa, senhor doutor -gemeu ela. Géraudin e a Irma Angélique lavavam as mãos com

álcool, nas cápsulas. A senhora Claim, na mesa coberta duma chapa de vidro, preparava as caixas dos instrumentos necessários. Já o cirurgião, com as mãos desinfectadas, pegava delicadamente na sua bata branca. Assim esterilizado, asséptico, Géraudin tornava-se um ente sagrado, sacerdote duma espécie de religião, que já não podia tocar em nada de impuro e de quem só deviam aproximar-se mãos imaculadas. Apresentou a bata à religiosa, que a segurou pelos ombros e o ajudou a vesti-la, tendo sempre o cuidado de não o roçar com o menor contacto. Em seguida, ela atou-lhe os cordões nas costas e, pegando no barrete branco, enterrou-lho na cabeça, escondendo os cabelos até à testa. Géraudin calçou então os sapatos de lona branca; depois tomou um arremedo de babeiro, colocou-o na cara, como se põem as máscaras, e ficou com o queixo abrigado, assim como a boca e o nariz. Viam-se-lhe só os olhos redondos, vivos, levemente raiados de sangue. Por trás dele a Irmã Angélique havia agarrado os nastros da máscara e dava-lhes um nó. A senhora Claim exibiu uma caixa de níquel, comprida, no fundo da qual havia um par de luvas de borracha muito fina. O cirurgião levantou-as, sem lhes tocar nos dedos, e enfiou-as nas mãos. Ei-lo completo, pronto, armado e equipado de coisas puras e alvas, dos pés à cabeça, e enluvado de negro, o que dava a impressão de ter dedos enormes. Dele não restava senão o olhar, entre a brancura do barrete e da máscara. Aquele atavio de fantasma, a luz azulada e espectral que inundava a sala e dava aos rostos das enfermeiras e de Louis um tom lívido e plúmbeo, o brilho frio do níquel e, sobre a mesa, debaixo do jacto muito claro do cialítico, essa mulher nua que esperava, tudo isso tinha qualquer coisa de irreal e fantástico, um tanto parecido com uma cena da Inquisição.

Géraudin aproximou-se da mesita de vidro. A senhora Claim abriu as caixas de metal, pelo puxador situado a meio da tampa, e apresentou o interior delas ao cirurgião. Géraudin, com a ponta dos dedos enluvados de cauchu preto, buscou nas caixas e escolheu os instrumentos necessários, pequeninas ferramentas brilhantes, feitas para cortar, torcer, esmagar, arrancar, repelir... Com um leve tinido, foi-os depondo um após outro, nas tampas voltadas para cima: pinças, escalpelos, afastadores, valvas, pinças de garra, agulhas, tubos de catgut. A senhora Claim abriu outras caixas, repletas de quadrados de pano azul. Géraudin aproximou-se de Mariette.

A doente fora transportada, para a mesa operatória, por Louis e pela enfermeira Rose-Marie. Estava nua, de braços erguidos, ligados pelos punhos. Louis, abaixo da mesa, acabava de afivelar a correia sólida que a apertava. Dois afastadores agarravam os braços de Mariette, e outros dois faziam o mesmo às coxas; duas prisões de níquel seguravam-na pelos ombros. Ali permanecia ela inerte, com o ventre dilatado, pálida, de olhos cerrados e seios palpitantes, lembrando estranhamente os animais que se atam para a vivissecção. Tinha todo o ar duma vítima infeliz e patética, pronta para o cutelo. Muito calada, descia e levantava as pálpebras. Via-se-lhe bater o coração debaixo das costelas. Louis pegou na máscara do éter.

Havia ao centro da mesa um godé cheio de tintura de iodo e um bocado de algodão ensopado. Com uma pinça, Géraudin segurou no algodão e pincelou o ventre rotundo, tingindo-o duma camada cor de ocre. O cheiro do iodo misturou-se ao do éter. Louis pusera a máscara na cara de Mariette, prendendo-a solidamente por meio de dois anéis, como um acamo. Quando ela respirava, via-se inchar e desinchar a bexiga de porco fixa à máscara. Com os dedos por baixo do maxilar, Louis «luxava» o queixo para impedir que a língua descesse para o fundo da boca.

Géraudin, com um olhar, interrogou a religiosa. Esta, espetando o indicador, abriu a pálpebra de Mariette e poisou o dedo no branco do olho. Mariette não se mexeu. Então a Irmã Angélique fez que sim com a cabeça. Tinham tapado todo o ventre com os lençóis azuis. O cirurgião armou-se de bisturi e assentou-o na epiderme nua, amarela, pincelada de tintura de iodo; e, com um golpe comprido e direito, abriu a pele.

Quase não houve sangue. Aberta, a pele mostrou uma camada de gordura branca, também cortada, sob a qual aparecia a extensão nacarada da aponevrose. Com outro golpe de bisturi, ele fendeu-a.

- Tesoura!

Na tampa voltada, que lhe estendia a Irmã Angélique, Géraudin escolheu uma tesoura. Em dois cortes, um na direcção do púbis, outro para cima, alargou as entranhas, e descobriu parcialmente a membrana fina e amarelada do epiploon, que cobria a massa rósea do intestino. Mais abaixo, arredondava-se um volume globoso, o útero.

Ressumava sangue. Com pinças, Géraudin agarrou os lábios espessos do corte, prendendo ao mesmo tempo a pele e os lençóis azuis que a rodeavam. Aqui e ali sangrava frouxamente uma arteríola, que ele laqueava com uma pinça, deixando-a lá como uma cabeça de alimária, de goela escancarada.

Nesse momento Mariette, mal adormecida ainda, suspirou, mexeu-se. E saiu tudo, a membrana e um grosso feixe de entranhas, que Géraudin reteve, comprimindo com as mãos enluvadas de negro. Fez sinal, e Louis manobrou uma alavanca. A mesa oscilou, ficando Mariette de cabeça para baixo e pés para o ar. Os cabelos, soltos, penderam. A massa do intestino reentrou na barriga e tombou no interior, na direcção do tórax.

Géraudin fez uma inspiração funda, uma espécie de suspiro demorado. E recomeçou o trabalho, com o rosto endurecido por excessiva atenção. Cuidadosamente, foi indicando por meio de pinças eríneas as bordas de peritoneu. Mariette teve uma náusea e o intestino saiu outra vez.

- Pouca sorte! - resmungou Géraudin, de dentes cerrados.

Carregando o cenho, pegou numa gaze esterilizada e aplicou-a ao intestino; com força, com rudeza, empurrou tudo para o abdómen. Os seus dedos abertos rechaçavam as entranhas, enterravam quadrados de pano, em seguida mergulhavam entre as paredes da fenda um afastador para a conservar aberta e manter a bexiga. No fundo dessa brecha enorme aparecia a massa volumosa, dum róseo escuro, distendida e congestionada, do útero, com o feto lá dentro; e, em volta, pinças de toda a espécie, como um bando de caranguejos a morderem a carne, com reflexos de níquel brilhantes e frios, entre os lençóis azuis mosqueados de pequeninas manchas vermelhas. Por um segundo, Géraudin susteve-se, respirou de novo profundamente, num sopro de atleta cansado. Suava. Até aí fora total o silêncio da sala, quente e pesada das exalações do éter.

- Vai bem? - perguntou Géraudin.

- Sim, senhor - respondeu Louis.

As vozes ressoavam de modo singular naquele silêncio espesso.

Louis ergueu um pouco a máscara, pois a bexiga de porco, que deve inchar e desinchar ao ritmo da respiração, já não se enchia bastante. Mariette respirava mal, e fazia-o com lentidão. Louis, na boca aberta, segurou a língua com uma pinça, esticou-a e puxou-a para fora. Em seguida assentou a máscara. A Irmã Angélique, curvada, vigiava aquele rosto de olhos fechados, pendido para baixo. A senhora Claim estava ao pulso.

- Vai tudo bem?

- Tudo bem.

Então Géraudin abriu o útero e o invólucro membranoso, e surgiu a cabeça da criança, redonda, negra, já cabeluda, e encharcada. Viram-se duas mãos pretas, enluvadas de borracha reluzente, avançar por entre os’panos azuis, mergulhar na chaga viva, pegar cautelosa e fortemente nessa cabeça, pelo pescoço, e puxar para cima. Com um rumor brando, som de carne húmida, a criança foi arrancada dali e apareceu toda. No ventre começou a brotar sangue.

O recém-nascido não respirava, mas fazia esgares e estava dum tom violáceo. Géraudin, suando, com as sobrancelhas a pingarem, segurava-o no braço. Apertou o umbigo com duas pinças e mandou à Irma Angélique que o cortasse. Depois entregou-lhe a criança.

- É um rapaz - disse Louis.

A religiosa assentou-lhe duas palmadas rijas no traseiro e, no silêncio da sala, elevou-se um vagido fraco e fanhoso. O nené já respirava.

- Vive!

Apesar do ar de tragédia, estabeleceu-se alegria em volta da mesa ensanguentada, acima daquela carne dolorida, só porque um recém-nascido vivia.

Enrolado que foi o umbigo, a Irma Angélique depôs a criança na toalha desdobrada que lhe estendera Marie-Rose. E a enfermeira levou o pequeno para o quarto contíguo, a fim de o lavar. A religiosa examinou-o rapidamente e comentou:

- Não me parece que resista.

Géraudin não respondeu: estava ocupado com a barriga aberta que tinha à sua frente. Aquilo sangrava bastante. Vasculhando com as pontas dos dedos, tratava de descobrir a causa da hemorragia. Sentia cada vez mais calor, e a Irma Angélique, de contínuo, enxugava-lhe a testa. O seu mal-estar aumentava de minuto para minuto: picadas sobre a nuca, névoa nos olhos, impressão desagradável de viver como num sonho...

«Não há dúvida, vou fraquejar», pensou.

Chamando a si todas as forças, repudiou a obsessão, recalcou o medo, quis apenas entregar-se ao trabalho, a essa brecha escancarada que continuava a sangrar, muito, imensamente, duma forma que ele jamais presenciara! Em geral, as cesarianas não eram assim. Havia algo de anormal. Algum erro? Golpe mal dirigido? Um rasgão?

Pretendia suturar os dois bordos uterinos, unindo-os para estancar a hemorragia. Mas já não via muito claro. E o sangue sempre a banhar tudo...

- Agulhas!

Buscava, tacteava a carne, perdia-se em coisas viscosas, espessas, encarnadas. Primeiro, fazia-se mister enxugar tudo isso, depois tentar descobrir a causa do contratempo.

- Compressas, compressas...

Com as compressas ia estancando o sangue, ensopava panos e panos azuis, que ficavam logo vermelhos. Com toda a sua energia, expulsava a ideia fixa, o terror louco dum desfalecimento. E esse medo criava nele a obsessão, já não pensava em mais nada, já não sabia o que estava a fazer, não via claro, parecia que as mãos chafurdavam em matéria por completo desconhecida. Era incapaz de reflectir, de encadear os pensamentos, de conceber, num instante que fosse, o que devia fazer, apavorado, de espírito vazio, suspenso sobre um abismo, como um orador que emudece de súbito. Dir-se-ia um estudante do primeiro ano, que jamais tivesse metido a mão num ventre aberto. Já não sabia nada, nele só existia o esforço desesperado e impotente para emergir das trevas. Uma ideia única o agitava: «Suspender, repousar, cobrar alento».

Mas isso seria impossível. Os segundos eram preciosos e a hemorragia acentuava-se. Os lençóis azuis tornavam-se sempre tintos, o sangue surgia de todos os lados. Géraudin precipitava os gestos.

- Compressas, compressas, depressa!

Não saía dali. O sangue afluía como uma torrente, alcançava tudo, invadia tudo. Géraudin suava, bufava. As mãos tremiam-lhe. Febril, em movimentos precipitados, enxugava esse sangue, atirava para o chão, em volta do balde, compressas e compressas encharcadas. E aquilo não cessava, o fluxo crescia cada vez mais rápido. Géraudin perdera toda a serenidade, já não era médico, era um homem desvairado cujos ombros vergavam ao peso do fardo e que se desnorteava de pavor. Agora o ventre estava repleto de sangue. E, como Mariette tinha a cabeça descaída, o sangue escorria para o peito, corria entre os seios, banhava os sovacos, desviava-se para a garganta, ia até às orelhas, atingia os cabelos loiros e começava a gotejar no chão, veloz, cada vez mais abundante, fazendo ruído e a poça alastrava e nela os assistentes punham os pés, deixando marcas rubras em redor. Géraudin, então, arrancou as luvas, enfiou as mãos nuas na carne. Mariette teve um estertor, e o cirurgião dirigiu o olhar angustiado para aquele rosto lívido.

- Vai bem?

- Não, senhor - respondeu Louis. Prescindiram do anestésico. Mariette já não respirava.

Dilatava-se a pupila dum olho entreaberto. Géraudin, frenético, remexia o ventre, buscava, palpava... O sangue escorria-lhe entre os dedos, molhava-o até aos punhos. Sufocando, desembaraçou-se da máscara, num gesto brusco, sujou a cara toda de sangue, até ao barrete branco.

- Voltou a si?

- Não, senhor.

- Injecção!

A Irmã Angélique pegou na seringa, deu à operada uma injecção na coxa.

- Mais outra!

Já não se distinguia nada no ventre: só sangue, sangue, sangue que corria por toda a parte, ressudava, fluía, sussurrava, manchava tudo, avermelhava tudo, inundava tudo. E, sobre isso, curvavam-se aqueles quatro entes. Géraudin revolvia, com as mãos trémulas e desvairadas. Mariette voltara a si. No meio do estertor, baixinho, vagarosamente, ela tentava falar, murmurava coisas inarticuladas.

De cabeça perdida, o operador pensou um instante na ablação total. Histerectomia. Depois inventaria qualquer explicação. Tudo, menos permitir que a hemorragia continuasse e triunfasse. Procurou os ligamentos, para colocar pinças nas artérias. Mas não os encontrou, cego como estava.

- Vai-se embora... - sentenciou a religiosa. Géraudin tomou o punho inerte da moribunda. Não

pulsava. «Transfusão, transfusão...» disse ele quase de si para si.

- Transfusão? - repetiu a senhora Claim.

- Um dador? -perguntou Louis. Quer que chame algum?

- Sim - balbuciou Géraudin. - Sim... Não, não! Não vale a pena. Compressas! Pinças!

Procurava nas caixas, em meio do seu frenesi, e espargia sangue em redor. Estavam todos ensanguentados, desde as mãos aos ombros e à cara.

Mariette gemia.

Louco, Géraudin continuava a procurar as coisas, empurrava toda a gente. Arrancou o barrete, voltou a remexer na barriga, enquanto a religiosa preparava uma injecção de cafeína. Louis tacteava debalde o pulso da mulher operada. A senhora Claim, coberta de sangue até aos cotovelos, em vão secava o fluxo inestancável.

- Ela morre! - gritou Louis.

Géraudin largou a pinça, curvou-se sobre a face de Mariette. Morria, a infeliz Mariette. E, uma vez ainda, retomou consciência, por segundos. Olhou esgazeadamente para esse cenário inumano em que ia finar-se, longe de todos os que amara. O seu triste rosto, de cabelos desfeitos, tomava uma cor cerosa. Os olhos viraram-se, tornaram-se brancos. Duas ou três vezes, num sopro quase indistinto, murmurou:

- Pai... Pai...

A cara ficou ainda mais lívida. Lentamente, a boca abriu-se-lhe de par em par, e soltou o último suspiro. Géraudin precipitou-se para a mão dela, que pendia, e apertou-a.

- Está morta... morta...

Perplexos, ali estavam aqueles quatro, cobertos de sangue, enlameados de vermelho dos pés à cabeça, semelhantes a magarefes.

Por toda a parte sangue humano, nos rostos, nos fatos, nas toucas das enfermeiras, na bata, nos sapatos, na máscara e no barrete de Géraudin. Louis tinha-o com abundância no colarinho e nos punhos. Pisava-se sangue, água, sânie, que escorriam da mesa para o chão, onde mergulhavam os cabelos da morta, e cada passo que davam deixava uma nódoa rubra. Um matadouro! E, no meio daquela carnificina, em pé, estúpidos, eles ficavam a olhar, cheios de assombro. Era como se não percebessem nada do que se passara. Não podiam afastar-se daquela mesa, voltavam lá continuamente, pegavam na mão flácida do cadáver, ou tocavam-lhe no coração, ou no branco dos olhos. Não se convenciam de que tudo acabara, assim de modo tão absurdo, tão inexplicável, em dois minutos ; não admitiam que fosse irreparável, que não havia mais nada a fazer.

Ela aí estava, desventrada, de cabeça pendente, com os seios alvos e a cabeça e os cabelos manchados de sangue. Estatelavam-se no chão gotas espessas, uma a uma. Géraudin largara a mão da morta. Ia e vinha na sala, branco como um espectro, sob aquela claridade azulada, e sempre com o ar desvairado. Dir-se-ia um assassino que acabasse de cometer um crime. Sentou-se num tamborete de metal e escondeu a cabeça nas mãos ensanguentadas.

Não dizia palavra. No quarto ao lado, ouviram-se passos, vozes, vagidos de criança que chora.

- Senhor doutor... - murmurou Louis. Géraudin ergueu o rosto sem expressão.

- O quê? - perguntou com voz rouca.

- É preciso... compô-la.

- Ah, sim!...

Levantou-se a custo, deitou em volta um olhar de pessoa que desperta, que retoma consciência duma desgraça pavorosa. Balbuciou:

-Tem razão... tem razão...

Era verdade, necessitavam de «compor» o cadáver, cozê-lo, fazer dele qualquer coisa de apresentável e transportável. Géraudin voltou à mesa, moveu-a e pô-la em posição horizontal. A Irmã Angélique preparava agulhas, fios, crinas. E Géraudin coseu o cadáver, com pontos largos, através de tudo, picando ao acaso, alinhavando por aqui e por ali, à pressa, grosseiramente, como se faria a um velho enxergão rebentado. Trabalho de homem que se estafara, que já estava farto de se cansar por causa daquela morta! Aquilo formava uma espécie de chouriço enorme, com grandes costuras na pele, nos músculos. Parecia o corpo dum animal estripado, que se recoseu para transportar. As minúcias, as precauções, a meticulosa assepsia de ainda há pouco eram substituídas agora por uma brutalidade súbita. Havia desespero e furor na violência, na pressa de semelhante tarefa: desespero de que tantos cuidados, tantas canseiras tivessem redundado nisso! Este final fazia impressionante contraste com o silêncio, a precisão, a limpeza, o rigor quase religioso do começo da operação.

Do outro lado do tabique os vagidos tinham cessado. O nené de Mariette acabava por seu turno de morrer.

Lavaram a morta, que estava horrível, assim coberta de sangue, na barriga, nas coxas, nos braços, na cara, nos belos cabelos loiros onde já havia coágulos espessos. A senhora Claim e a Irmã Angélique, com tampões de algodão molhado, limparam o corpo todo, de alto a baixo. Louis partira no automóvel a fim de levar para casa dos Vallorge o cadáver da criança e, ao mesmo tempo, prevenir discretamente que a mãe estava bastante mal e que era de recear o pior. Deixou a criada e a vigilante preparadas para receberem a «bomba» e regressou à clínica.

Haviam sentado Mariette na mesa. Ali estava ela, nua, branca e esguia, com a grande costura sangrenta no ventre, de pele e fibra unidas por pontos grosseiros. Desdobraram um cobertor de lã, deitaram-lho sobre os ombros, envolveram-na toda, e Louis, pegando-a pelo meio do corpo, transportou-a para o automóvel. Com a cabeça sobre o ombro dele, de cabelos pendentes e braços a baloiçar, parecia abandonar-se àquele que a levava ao colo, como se fosse uma criança fatigada. Louis sentia os cabelos finos e loiros roçarem-lhe pela cara, entrarem-lhe na boca. Achava duro ter de ganhar o pão daquele modo. Pensava nos três filhos, na mulher, no petiz mais novo sempre doente, e amaldiçoava a vida.

Depôs Mariette junto dele, no assento dianteiro. Firmou-a cuidadosamente contra a portinhola, de modo a não tombar nas viragens, apoiou-lhe a cabeça no espaldar do banco e aconchegou-lhe o cobertor ao corpo esguio, nu e branco, como para o preservar do frio. Devagarinho, o carro pôs-se a caminho. Louis conduzia com uma só mão. Com a outra, de quando em quando, repelia o cadáver, que ia escorregando para ele. À porta da cidade, teve de parar. O guarda da alfândega municipal aproximou-se. Louis piscou-lhe o olho, com ar jovial.

- Uma doente...

- Ah! Está bem! - disse o homem.

Devia ter imaginado alguma história escabrosa, qualquer rapariga que houvesse praticado um aborto e que levavam discretamente para casa. Piscou também o olho, com um sorriso brejeiro, afastou-se e deixou passar o automóvel.

Diante da moradia dos Vallorge, Louis deteve-se. Apeou-se, tocou a campainha e voltou atrás para abrir a portinhola da esquerda. Recebeu nos braços o cadáver, que tombara na sua direcção, e transportou-o depressa para dentro, pois já afluíam vizinhos curiosos.

 

Estava Doutreval com Vallorge e Groix no Instituto Profilático de Amsterdão, a acabar a sua conferência perante a assembleia de professores, quando Regnoult, que ficara de sentinela no hotel, chegou de táxi a toda a velocidade. Trazia um telegrama de França. Doutreval desculpou-se, retirou-se para uma salinha contígua ao anfiteatro e, contendo o tremor das mãos, abriu o sobrescrito mal colado. Antes da assinatura de Huot, só havia uma palavra:

«Venham».

Doutreval soltou um suspiro fundo, como o dum animal que se abate, e deu o telegrama a Vallorge. A vista toldava-se-lhe, a testa cobria-se de suor. Foi lentamente sentar-se, e então tudo se escureceu. Sentiu, porém, que se ocupavam dele, que Regnoult lhe queria tirar o colarinho. Num sobressalto de orgulho, repeliu o assistente e exclamou:

- Não!

Levantou-se, a poder de grande esforço, e ali ficou de pé, apoiado à mesa, olhando para Vallorge, que soluçava, sentado, com o lenço na cara.

- Temos de partir já... - murmurou Regnoult.

- Sim... temos.

- O carro...

- Ludovic...

Vallorge ergueu o rosto tumificado.

- Vá depressa... O automóvel... É preciso fazer o pleno...

- E aqueles senhores?

- É verdade - disse Doutreval, com infinita lassidão.

- Ainda há isso...

Suspirou e endireitou-se.

- Bem. Vou acabar.

- Acabar?

- Tem de ser. Vá, Ludovic. Esteja pronto daqui a meia hora e venha cá buscar-me. Nessa altura terei terminado.

Com o olhar, fixou a porta durante uns segundos. Hesitava. Regnoult teve pena dele.

- Apresente uma desculpa, senhor doutor...

- E que hei-de fazer durante esta meia hora? - retorquiu Doutreval. - Não!

Mais pálido que um cadáver, dirigiu-se para a porta, coxeando como nunca.

No anfiteatro, disse duas palavras de justificação e acabou a conferência. Ouvia-se a si próprio como se fosse outra pessoa que falasse. Tinha a impressão de estar embriagado. Vivia num sonho. Ao terminar, rebentou uma salva de aplausos. Então Doutreval levantou a mão e exibiu com gesto lastimoso o papelinho cinzento, o telegrama de França:

- Meus senhores... Peço-vos... A minha filha morreu... A minha filha...

A voz estrangulou-se-lhe na garganta. Sentindo que as lágrimas lhe iam irromper, deu meia volta e retirou-se, no meio da súbita e silenciosa consternação do auditório.

Agora, o automóvel ia a cento e trinta pelas longas estradas de asfalto, negras, sinuosas e luzidias, através de prados férteis sulcados de regos, assinalados por moinhos, onde se viam vacas adormecidas, de joelhos dobrados, e camponesas que voltavam de mungir, com um balde verde e vermelho cheio de leite em cada mão. O carro seguia numa corrida desenfreada. Nas viragens, ouvia-se o guincho dos pneumáticos sobre o asfalto. O motor tinha um ronco surdo, contínuo, que se repercutia de encontro às tílias e às paredes das casas baixas, e que espantava as galinhas e fazia debandar os pintainhos. Doutreval exasperava-se com as paragens frequentes : pontes levadiças, direitos de passagem, tudo vestígios doutras eras. Tinham que pagar meio florim para se poderem servir do caminho. Vallorge carregava no acelerador, o automóvel parecia dar um pulo para a frente, e de novo se ouvia o motor na sua cantilena sussurrante. Passados dez quilómetros, a estrada terminava e chegava-se a um embarcadouro rústicamente construído de tábuas e barrotes carunchosos. Era preciso parar, esperar minutos intermináveis, às vezes meia hora, distrair-se a ver deslizar o Reno, que, lento, vasto, imenso, espalhado entre pauis, ilhotas, superfícies de vegetações aquáticas e grandes espaços de junco, vagueava como em passeio, estendendo-se até ao infinito, ou parava como gigante cabeludo e barbudo estirado molemente entre as terras. Surgiu um barco de rodas. As solenes manobras de atracagem, embarque e desembarque eram feitas sob o comando dum capitão de boné branco, mais grave que um almirante. Depois a velha embarcação, ao som argênteo dum sino melancólico, naquele cenário de várzeas, de brejos e água, ia-se de esguelha, fustigando o rio, contornava ilhas e tufos de canaviais, perdia-se naquele dédalo, sem que nunca se soubesse ao certo se o que estava para além era rio ou mais uma ilhota. Por fim, lá muito ao longe, emergiu do horizonte uma espécie de andaime frágil, um embarcadouro branco sobre estacas pintadas de breu. Por entre a ventania tilintava um sino. Acostaram, desembarcaram no automóvel, puderam finalmente retomar o caminho. Na alfândega houve ainda as lentas formalidades do despacho do carro; em seguida, foi um pneu que rebentou; depois, uma estrada em obras, de que Vallorge forçou a barreira. Viram-se cercados, pouco lhes faltou para se baterem com os calceteiros flamengos, que não compreendiam francês e queriam obrigá-los a recuar. Passaram quase à força através da estrada em reparação. De Antuérpia até à fronteira francesa o caminho foi livre, felizmente. A noite descia, era necessário conduzir à luz dos faróis. Entre Courtrai e Gand, Vallorge, extenuado, teve um desfalecimento nervoso, uma vertigem. Só houve tempo de travar e arrumar o automóvel à direita. Entraram num café solitário e pediram álcool. A mulher compreendia um pouco a língua francesa...

- Não há álcool... Proibido na Bélgica - explicou ela.

Como, porém, notasse a palidez de Vallorge, mandou-os entrar todos quatro na cozinha e deitou em tigelas de café copiosa ração de schnick, fazendo sinal para não se demorarem.

Beberam dum trago aquela espécie de aguardente fortíssima. Vallorge, reanimado, retomou o volante até ao posto fronteiro de Tourcoing. Uma vez chegados aí, Groix, com a cara cheia de cortes por ter feito a barba durante o percurso, e a seco, informou-se junto dos empregados da alfândega. Indicaram-lhe a casa dum motorista de caminhões, que estava de folga nessa ocasião. Foi um dos próprios aduaneiros que, de lanterna na mão, acompanhou Groix até à porta do homem. Era meia-noite. Groix teve de bater umas poucas de vezes antes que o motorista acordasse.

- Angers? Onde é que fica isso? - retorquiu o homem.

- Não se faça de novas! - volveu Groix. - Receberá mil francos se nos conduzir até lá. O automóvel é de boa marca.

- Estarei de volta amanha de manhã? é que tenho de me apresentar às onze horas. Acaba-se-me a folga.

- A essa hora já aqui está, com certeza.

O guarda da alfândega soltou uma risada, logo seguida dum berro. Groix, para o fazer calar, pusera-lhe o pé sobre um calo.

- Oh, desculpe! -disse Groix. - Vamos, rapaz, despacha-te! Terás mil e quinhentos francos. Mas deves estar a caminho dentro de três minutos.

O homem conduzia bem; via-se que tinha longa prática de guiar durante a noite. Furava as trevas sem hesitação. O queixume do motor enchia o espaço. Vallorge, entre Groix e Regnoult, dormia exausto. Doutreval, sentado ao pé do motorista, via correr para ele o fundo negro do caminho, espécie de abismo infinitamente recuado, do qual, de vez em quando, surgia a mancha clara dum muro de quinta ou duma hospedaria. Béthune, Bruay, Abbeville. . Às três horas da manhã, atravessavam Ruão adormecida, passavam o Sena, seguiam pelos bosques até às alturas da margem esquerda. Só faltavam cem quilómetros a percorrer. O homem, silencioso e calmo, conduzia o carro a cento e trinta com a impassibilidade dum autómato. Esquecera tudo, já não pensava em nada, nem na hora nem no prazo da folga: o ruído do motor, a vibração da máquina deviam ter nele efeito de hipnose. A lâmpadazita do quadro iluminava-lhe as mãos de operário, grandes, espessas, gretadas, carregando com todo o seu peso no volante de ebanite, guiando o carro com gestos quase imperceptíveis. Depois de passar Alençon, afrouxou um pouco, tirou da algibeira uma fatia de pão envolvida em papel, desembrulhou-a em parte e pôs-se a comer esse lado da fatia, conservando no resto o papel, a fim de não sujar o pão com os dedos oleosos. Acabado que isso foi, retomou os cento e trinta à hora. Doutreval suspirou. A velocidade, o roncar do motor, o uivar do vento na portinhola haviam-lhe entorpecido o espírito, impedindo-o de pensar.

Surgiu o Maine sob uma claridade acinzentada. No vale e por cima de Angers erravam brumas pálidas no momento em que atravessaram a ponte.

- À esquerda - disse Groix. - Mais à esquerda. Apenas cem metros. Alto! É aqui.

- São sete horas -notou o homem, como se só então retomasse consciência. - Está-se a acabar a folga!

O carro parou defronte da casa de Vallorge. Doutreval apeou-se. Sobre a porta havia um crucifixo de madeira e prata. Aos pés de Cristo tremulava uma fita de crepe negro na brisa da manhã. No meio da sua angústia, Doutreval sentiu um vago espanto. Tinham-se lembrado daquilo!

Quem? Era singular, ele jamais admitira a ideia de que esse símbolo aparecesse de novo à porta da sua família. Quem o encomendara? Dir-se-ia que surgira por si mesmo... Quando a morte passa por uma casa, parece que o respectivo dono já não o é. o professor recordou-se de inúmeros crucifixos semelhantes que ele reverenciara, levando maquinalmente a mão ao chapéu, diante de tantas portas desconhecidas! Tantas dores por certo terríveis que o haviam deixado indiferente, insensível! Daí por diante não tornaria a ver aquele sinal sem lhe acudir à memória, com um baque no coração, a lembrança brutal da dolorosa igualdade, da triste e grande solidariedade que em certos momentos se estabelece entre os homens.

A porta estava entreaberta. Nessa altura chegava um homem; trazia um ramo de rosas brancas, e entrou sem tocar. Atrás dele, Doutreval e Ludovic penetraram em casa de Mariette. Recebeu-os uma mulher desconhecida, que, grave e silenciosa, os conduziu à sala como se faz a um visitante, a um estranho. E Doutreval, na câmara ardente, experimentou a dor mais atroz da sua vida, ao ver, lado a lado, na almofada de renda branca, a cabeça de Mariette e a do seu filhinho.

Velou a filha durante dois dias e duas noites. Só na primeira consentiu que Fabienne, que regressara de Paris, lhe fizesse companhia. Na segunda, por volta das onze horas, sentiu-se vacilar de fadiga. Groix e Regnoult, que também velavam, convenceram-no a subir ao quarto e a estender-se na cama por alguns instantes. Ficariam de vigília até à meia-noite. Depois, Fleurioux e Cassaing, os dois assistentes de Vallorge, viriam substituí-los. Ele podia ir descansar com toda a tranquilidade. Doutreval aquiesceu, foi ao seu aposento e atirou-se vestido e calçado para cima da cama, com ideia de somente repousar o corpo. O sono invadiu-o de súbito e, durante algumas horas, dormiu profundamente. Sonhou então que se encontrava numa grande cidade, num quarto lúgubre de hotel, que o chamavam ao telefone e que uma voz muito nítida lhe dizia :

- Senhor doutor Doutreval, tenha coragem... Houve um pavoroso acidente de automóvel... A sua filha Fabienne morreu...

Doutreval soltou um grito e atirou-se da cama abaixo, às escuras. Acendeu a luz. Tremia ainda pelo horror do

pesadelo. Olhou para o relógio. Duas horas da manhã. Parecia-lhe ouvir ainda: «A sua filha Fabienne morreu...» Era uma impressão tão real, tão intensa e alucinante que não pôde deixar de ir até ao quarto de Fabienne e de entreabrir a porta, para lhe ouvir a respiração. A rapariga dormia. Doutreval sentia-se agora cruelmente vulnerável na pessoa da segunda filha, depois que já não tinha senão essa. E perguntava a si próprio que estranho eu, que subconsciente misterioso e desumano albergamos em nós para que seja possível ter semelhantes sonhos, semelhantes torturas contra nós mesmos!

Às apalpadelas, no escuro, seguiu pelo corredor e chegou à escada. Andava como que ébrio de cansaço e de aflição. Um verdadeiro farrapo humano. Sentia as pálpebras intumescidas. A escada pareceu-lhe fugir debaixo dos pés, como se fosse a dum navio. Chegando a meio, como o joelho fraco se lhe dobrasse bruscamente, saltou um degrau e veio a rolar até baixo, sem que fizesse ao menos um esforço para se agarrar. Ao barulho acudiram Fleurioux e Cassaing, que o encontraram por terra, de olhar atónito. Para o levantarem cada um lhe pegou por um braço: ele, porém, ergueu-se sozinho, afastou-os com um gesto rude e foi, ainda cambaleando, em direcção à camara-ardente. Os outrosdois seguiram-no, ansiosos, prontos a ampará-lo se o vissem ’prestes a cair. Depois de entrar na sala, arrastou uma poltrona para a cabeceira de Mariette, no halo formado pelos dois círios, fechou os olhos e mergulhou em sonolência povoada de pensamentos incoerentes. Fleurioux e Cassaing, perto da janela, à claridade discreta dum candeeirito, puseram-se a jogar às cartas. As palavras cochichadas que eles trocavam, suaves e breves, chegavam incompreensíveis, desconexas, aos ouvidos de Doutreval.

- Três ases... Valete...

- Dama! Joga tu.

Lá fora ia um temporal desfeito. O vento gemia na chaminé e rodava nos corredores como um canzarrão inquieto. Ouvia-se-lhe a voz lamentosa, quase humana, ora aqui, ora ali, nos outros quartos e no sótão. Por vezes, debaixo da porta, semelhava o sopro dum cão que fareja e, penetrando na sala, vergava a luz avermelhada dos círios.

- Sete, oito, nove...

- Vinte e nove, trinta... Ganhei.

De tempos a tempos, os jogadores voltavam-se, lançavam uma olhadela a Doutreval, viam-no aparentemente adormecido e tornavam a pegar nas cartas. E de novo, muito próxima, a voz humana, a imensa voz desolada da tempestade, levava àquele homem acabrunhado um estranho e vago alívio, a impressão duma piedade misteriosa das coisas naquele longo gemido repleto de não sei que desesperado horror.

Fleurioux espreguiçou-se, fez ranger a cadeira, pôs-se de pé e foi consultar o relógio dourado do fogão.

- Falta pouco para as três.

Aproximou-se de Doutreval, em bicos de pés, contemplou-lhe o rosto cansado, as pálpebras descidas, e disse:

- Adormeceu.

E voltou a sentar-se.

- Já não podia mais - comentou Cassaing.

- E com razão.

- Coitado!

Pegou no bule, serviu-se de chá frio, e continuou:

- Sabes ao certo o que se passou com Géraudin?

- Quanto àquele caso? - inquiriu o outro, indicando a morta com um movimento de cabeça.

- Sim...

- Foi uma síncope fatal. Pelo menos é o que se diz.

- Não - volveu Cassaing, baixando a voz. - Posso informar-te melhor. Não foi isso.

- Como sabes?

- Vi. Eu e Groix.

- Viste?

- Sim, senhor.

Observou de soslaio o lente adormecido. Depois, tornando a designar Mariette:

- Abrimo-la.

- Quando?

- A noite passada.

- Palavra?

- Palavra. Estava cheia de sangue. Coágulos enormes. Uma linda hemorragia! Aliás, Groix mostrou-me a causa.

- Oh, diabo! Géraudin!

- E não foi a primeira vez. Já se dizia que ele estará a declinar. Eu, para mim, teria escolhido Flégier.

- Cala-te! - ordenou Fleurioux. - Ele mexeu-se.

Olharam um instante Doutreval.

- é o vento - explicou Cassaing.- As chamas das velas dançam e projectam-lhe sombras pela cara.

Fleurioux, por sua vez, encheu uma xícara de chá, sem rumor. Lá fora o vento continuava na sua lamentação humana, abalando com força as janelas fechadas. Depois aquela voz melancólica afastou-se, decresceu de intensidade, renasceu, algures, na esquina da rua, e morreu num gemido suave e triste, como se, derredor da casa, alguma pobre alma penada tivesse vindo pela última vez carpir-se.

Seguiram-se os trâmites usuais, flores, missa e enterro; o baque sonoro do caixão sobre o carro mortuário, a marcha lenta através da cidade, a descida do pesado ataúde de carvalho para o fundo da cova, com o auxílio de cordas, baloiçando vagarosamente; passos na terra ainda molhada das chuvas nocturnas, pessoas que se inclinavam, curiosas, para ver ainda o caixão de Mariette; depois, um desfile alucinante de gente que vinha manifestar as suas condolências; dezenas de caras que se acaba por não reconhecer, que não nos dizem nada, que passam, passam, uma após outra, passam ainda e sempre, até nos dar a sensação de vertigem. Depois, volta solitária a casa.

À esquina da Praça de Armas, Doutreval, vendo ao longe o carro de Géraudin, que vinha na sua direcção, enfiou pela porta duma loja e escondeu-se. O automóvel, negro e avantajado, passou sempre, a grande velocidade. Doutreval entrou sozinho. Vallorge não regressara, pois devia oferecer fora de casa o frugal almoço obrigatório aos conhecidos que tinham vindo de longe. Por um momento, o pai de Mariette pensou em ir ter com Jeanne e terminar aquele dia abominável na companhia dum ente que o estimava e que talvez encontrasse palavras para adormecer a sua dor, durante uns instantes... Depois, sentiu que isso seria inútil, que Jeanne não o consolaria. Que poderia ela dizer-lhe? Não o compreenderia; ela não sofria, não perdera filha nenhuma... A amante nunca passa de amante... Que pode dizer ou fazer quando nos morreu uma filha, que não é dela? Doutreval penetrou no vestíbulo ressoante, desguarnecido e ainda juncado de flores, como depois duma festa. Que deserta que estava aquela casa tão grande! Nem uma criada, ninguém. Encontravam-se todos no almoço. Onze horas e meia.

E havia ainda tanto tempo a destruir antes de chegar à noite, antes do sono!

Dirigiu-se ao quintal. As galinhas e as pombas acorreram à rede de arame. Tinham fome. Deixavam-nas abandonadas, agora que Mariette não estava lá para tratar delas. Foi à cozinha, voltou com um prato de milho em grão e entrou na capoeira. As pombas voaram-lhe para os ombros, para os braços, para o punho, e até poisaram no prato transbordante. Doutreval afagou-as, enquanto comiam. Não se recordavam já de Mariette. Uma vez que houvesse alguém que lhes trouxesse a refeição, a sua memória obscura não evocaria mais a pobre desaparecida. Não sofreriam, esses seres sem alma; continuariam a viver exactamente como antes, sem que nada lhes faltasse. Doutreval, sem poder explicar porquê, teve um movimento de cólera, lançou de modo brusco, ao chão, o resto do milho, enxotou aqueles animais que não mereciam ternura, que não sabiam o que era a saudade. Saiu dali e regressou a casa.

A sua vontade era ir-se embora. Tinha medo de dar um passo nessas salas tão cheias da presença dela. Mas receava também as ruas, o vazio aterrador das ruas... Fritou um ovo no fogão de gás, esqueceu-o lá e só mais tarde é que deu por isso, quando lhe cheirou a queimado. Aliás, não tinha fome. E acabou por ceder à tentação de se torturar: subiu com passos pesados e foi rever o quarto de Mariette.

Ficou aí muito tempo, a olhar em volta de si, sem tocar em nada. Estava tudo em ordem, limpo, bem arranjado : um quarto como ela sempre desejara. Lentamente, arrastou-se até ao toucador Luís XVI, de espelho alto, onde Mariette se sentava um pouco de lado, para se pentear, de manhã. Doutreval ajoelhou no tapete. Com um gesto maquinal, abriu uma das gavetas. Exalou-se um cheiro suave, um leve perfume, complexo, de coiro da Rússia, de pó de arroz e alfazema, agitando, numa onda de recordações, o pobre coração dilacerado do pai. Aí, cuidadosamente embrulhados em frágeis papéis de seda, estavam objectos pertencentes a Mariette: uma carteira, um saquinho de baile, de crocodilo, algumas golas de rendas de Alençon, luvas de camurça, um ramo de camélias brancas artificiais; e também relíquias, um caracol dos cabelos negros de Fabienne, a aliança da mãe, a braçadeira da primeira comunhão de Michel, numa caixa de cartão...

Doutreval aspirava o odor da alfazema. Nunca mais sentiria, na” pele fresca da filha, aquele perfume discreto, quase imperceptível, misturado ao do sabão e ao da roupa asseada... Jamais a tornaria a ver empoleirada numa cadeira, de toalha envolta na cabeça e cara enfarruscada, a tirar as teias de aranha do tecto, com um vasculho.. Não mais voltaria a ouvir-lhe, ao abrir a porta, a voz juvenil, cheia de sol e de vida, a entoar as suas canções sentimentais...

Continuou a esvaziar as gavetas. Sabonetes de alfazema. .. Um livro de missa... Um caderno cheio de receitas de cozinha, copiadas à mão. As primeiras datavam de longe, de muito longe... A caligrafia era quase infantil. Mariette não teria mais de catorze anos... Fora na altura em que a mãe falecera. Muito cedo arcara com o fardo doméstico... Pensando bem, não tivera existência feliz. Tão nova, a governar a casa! Era com certo receio que, aos sábados, apresentava ao pai a agenda com as despesas da semana. E ele, para verificar as contas, assumia um ar severo. Que parvo! Agora estava morta, a sua filha... Doutreval lembrou-se de repente da jóia que comprara na Holanda para Mariette. Ela não a teria, nunca, e ele jamais voltaria a oferecer uma prenda à filha! Tudo se acabara. Pensou nas pequeninas alegrias que lhe poderia ter dado, no que deveria ter feito para que ela fosse mais feliz e que, afinal, não fizera. Recordou-se dos ralhos, das exigências, de tudo o que reclamara de Mariette, de todos os prazeres permitidos que lhe recusara ou, pelo menos, nunca tivera a ideia de lhe proporcionar; daquele pudor estúpido, absurdo e inexplicável que impede de se ir em qualquer altura para junto da filha, de a sentar nos joelhos, de a beijar, de a acarinhar, só porque ela já é um tanto crescida, porque já se perdeu esse hábito, ou porque já se é velho e demasiado grave e não se ousa manifestar ternura. Ela agora estava morta, a sua filha... Se, ao menos, tivesse podido receber aquela última oferta, se houvesse tido, antes de morrer, essa derradeira alegria... Fazia tanto mal ao pai saber que Mariette jamais possuiria a jóia que ele lhe comprara! Nem se lembrara de lha colocar na mortalha! Doutreval não acreditava em nada, sabia que não havia nada senão podridão, além da morte; contudo, ter-lhe-ia sido grato ver que Mariette partia com a sua jóia nova. Mas já era tarde!

No fundo da gaveta havia uma caixa de cartão. Doutreval abriu-a: era Bluette, velha boneca desconjuntada, a boneca de Mariette. Com os dedos trémulos, tirou-a da caixa, segurou-a nas mãos. E então reviu a filha ainda criança, evocou o dia em que lhe trouxera de Bruxelas essa boneca, dia em que a vira tão feliz, quase louca de alegria! Recordou-se de Mariette com Bluette nos braços, tratando dela, vestindo-a, deitando-a, levando consigo, para toda a parte, aquele bocado de pau em que depunha tanto amor, tanto de si própria, e que não sofria de saudades nem sabia que a sua dona morrera! Ele mesmo se reviu aos vinte anos, casado de fresco, cândido, risonho, cheio de fé e de vida, confiante na beleza da existência e na bondade dos homens, rico das esperanças do futuro... Recordou-se da mulher... E outra vez de Mariette, quando esta tinha um ano de idade, com seus cabelos loiros sedosos e facezitas rosadas. Não lhe saía da memória a criança de olhos claros que ensaiava os primeiros passos, que vacilava, vinha cambaleando através da casa-de-jantar, lhe estendia os braços - a ele rapaz ainda, quase um pequeno.

- Papá, papá-balbuciava Mariette, sorrindo.

Esta evocação acabou de o transtornar. Submergiu-o uma onda de saudades, de remorsos, de sofrimentos, de imagens. Fechou a gaveta, soluçou, e, de joelhos no tapete, com Bluette nas mãos - pedaço de pau insensível - Doutreval pôs-se a chorar, como nunca mais chorara desde criança, agarrando-se com desespero à recordação da filha morta:

- Mariette... Mariette... Mariette...

 

Michel preparava os últimos exames e acabava a sua tese. Desde o fim de Maio que, bruscamente, Mariette deixara de escrever e de o visitar. Tal silêncio começava a inquietar o irmão.

Na sua tese, teria ele de boa vontade utilizado as suas observações acerca de Êvelyne. Domberlé, porém, tirou-lhe isso do pensamento.

- Não é suficientemente clássico. É inútil tentar. Procure outra coisa menos revolucionária.

Michel contentou-se, pois, com um estudo sobre a frequência do ingurgitamento do lobo esquerdo do fígado nos tuberculosos, acompanhado, como sinais característicos, de sensibilidade de estômago, cor avermelhada das unhas e opacidade do pulmão direito. Isto vinha apoiar a afirmação de Domberlé:

«A tuberculose é quase sempre o resultado de fadiga alimentar».

Agora, depois das habituais horas de trabalho no laboratório de Norf, Michel passava quase todo o tempo em Saint-Cyr, junto da mulher, dos tuberculosos e de Domberlé. Era aí que o casal Tillery, e as duas gémeas, o iam visitar de vez em quando, no carro artisticamente pintado de novo pelo próprio Tillery. O esmalte -«o que há de melhor!» afirmava ele, batendo, orgulhoso, com o dedo no guarda-lamas já um tanto amachucado - fora oferta dum droguista, cliente reconhecido.

- E os estofos representam escarlatina que os pequenos duma capelista tiveram e que me custou umas poucas de visitas durante a noite. A mulherzinha cedeu-me o tecido quase de graça. E até mo queria dar de presente!

Tillery sentia-se absolutamente feliz na companhia da mulher e das duas filhas, com todas as suas dificuldades de dinheiro, os seus fins de mês dramáticos, o seu eterno optimismo e o seu bom coração oculto sob um ar perpetuamente chocarreiro. A senhora Tillery criava de modo excelente as duas petizas, mostrando o maior desdém pelos inúmeros conselhos médicos com que o marido a cumulava. Este, aliás, reconhecia-se incapaz de prestar às suas descendentes o mínimo cuidado útil.

- Nem sequer um banho de água morna! - confessava ele a Michel. - Fico com as mãos a tremer! Com mais facilidade eu te abriria o abdómen, do púbis até à garganta, meu caro Doutreval!

- Acredito - dizia o amigo.

Foi também em Saint-Cyr que Michel recebeu uma carta de Belladan, ex-interno da Êgalité. Belladan abandonava a medicina por não poder ganhar assim a vida. Aquele laureado dos concursos, infinitamente mais douto que Tillery, arranjara maneira de dar cabo de cem mil francos e vegetar no mesmo bairro de Angers onde Tillery, o fantasista e despreocupado Tillery, com a sua escassa bagagem de sabedoria, o seu bom humor e o seu conhecimento do «populo», encontrara a prosperidade. Belladan ia entrar nos Seguros Sociais, que lhe garantiam um ordenado certo e onde ele já não teria de tratar de seres humanos mas sim de algarismos, o que é muito mais fácil. Por simples acaso, um trecho da carta rezava assim :

«Desde o falecimento de tua irmã Mariette...»

Foi destarte que Michel soube da morte dela.

Escreveu ao pai. Doutreval não respondeu. Michel teve de pedir a Belladan pormenores daquela morte.

à dor de Michel juntavam-se preocupações de ordem material. Até aí Mariette auxiliara-o muito. Agora faltava-lhe essa ajuda. Esperava trabalhar mais um ano ou dois sob a direcção de Norf e depois conseguir um lugar de médico no sanatório. Mas os seus ganhos de assistente já não bastavam. Êvelyne ia melhorando. E ele tinha de se estabelecer o mais depressa possível, apresentar a tese e arranjar clientela, para se poderem manter.

No sanatório, Domberlé, no meio da incompreensão geral, continuava a sua obra. Os doentes, porém, criavam-lhe uma existência impossível. Uma vez que lhes não dessem carne crua, declaravam que os queriam matar à fome a fim de terem camas vagas. E, assim, fartavam-se de todas as porcarias que os cúmplices do exterior lhes traziam ou lhes eram lançadas por cima dos muros e transmitidas dum pavilhão a outro por incríveis sistemas de cordelinhos. Muitas vezes os que tinham sido internados por favor político - recomendação de deputado, empenho de camarista - chegavam a apresentar queixa ao director. Este, apavorado (porque ele próprio dependia desse camarista ou desse parlamentar) chamava Domberlé, fazia-lhe uma cena, exigia-lhe que voltasse ao regímen «de toda a gente». Além disso, no pavilhão das crianças, Domberlé recusava os purés de ervilhas secas e de feijão, as conservas, o peixe, o doce de frutas ácidas, tudo coisas até aí consagradas pelo uso! Com que direito as repudiava ele? E com que direito reclamava, em sua substituição, queijo, batatas e salada? Esse médico torpedeava todas as reservas do orçamento! Por sua culpa, o déficit ameaçava-os. Era intolerável! No entanto, Domberlé já não discutia. Aos doentes que reclamavam carne e remédios, ele os concedia; só aos que o desejavam é que mandava servir o «seu regímen». Tempo depois, vendo os convivas daquela mesa melhorarem de estado, alguns dos outros deixavam-se convencer, sobretudo quando os atingia crise grave, hemoptises ou escarros sanguinolentos. Aterrados, cediam - obedecendo enfim.

Mas era principalmente sobre as crianças que Domberlé podia agir melhor. Havia-as em grande quantidade. Paris fornecia o sanatório, enviando para ali os resíduos duma civilização devoradora: filhos de pobres, tratados desde o berço com leite adulterado, a que se misturava absinto para os obrigar a dormir, e depois alimentados quase só de pão, vinho e salsichas. De tal maneira que estavam no pavilhão petizes tuberculosos de quatro e cinco anos, aos quais já se tinha feito pneumotórax. Muitos desses garotos vinham dos bairros excêntricos; alguns descendiam de estrangeiros, produtos desses imigrantes que a nossa terra, esterilizada pela irreligião e pelo álcool, se vê obrigada a chamar e que, mal alojados, intoxicados, corrompidos pela vida citadina e altos salários que lhes não aproveitam, dão origem entre nós a rebentos tarados por nossa culpa. Ou então crianças da Assistência Pública. Estavam lá umas vinte dessa proveniência: não tinham família e, tísicos como eram, morriam no sanatório ou voltavam para os asilos da Assistência, se acaso logravam escapar. Para Michel, a partida dessas criaturinhas representava uma dor de alma. Sabia que alguns seriam bem tratados materialmente, pelos cofres públicos; mas os outros, os dos subúrbios, que saíam curados e que, uma vez de volta a casa, reencontravam o picado de carne, o meio litro de vinho e o cinema! Tinha-se a impressão dum imenso esforço inútil quando se havia conseguido melhorar um desses pequenos. Para quê? Quantas vezes, passados meses, eles não regressavam para morrer

A maior estranheza residia no facto de aqueles pobres entes não serem tristes. Não tinham consciência da sua infelicidade. Brincavam, riam e soltavam gritos de alegria como se fossem colegiais em recreio. No entanto, havia ali grande número de abandonados, cujas mães já não os vinham ver ou que se recusavam a levá-los para casa porque tinham agora um amante e esse amante não gostava de crianças.

Apertado entre o ecónomo, o director e os cozinheiros, Domberlé fazia equilíbrios para evitar à pequenada a alimentação incendiária do sanatório e proporcionar-lhe outra mais inofensiva. Do seu bolso, tirava com que comprar um pouco de chocolate; os seus internos e alguns alunos concorriam para que ele adquirisse fruta, especialmente bananas, e até obtinham a cumplicidade do chefe da cozinha, de modo a que este, em segredo, concedesse um suplemento de batatas e salada. A fim de poder cozer os legumes em duas águas e assim os desconcentrar, o velho médico havia transformado em cozinha o quartinho que existe ao fundo de cada pavilhão, onde há fogão de gás, água potável e uma pia, e que em geral se destina a preparar cataplasmas e tisanas.

Para a cura de ar livre e exercícios, os mesmos internos e alunos e também os próprios pequenos tinham feito a limpeza dum terreno vago, servindo-se de ancinhos e de baldes. Com ligaduras, Domberlé mandara arranjar uma espécie de cuecas para os rapazes e calções e corpetes para as pequenas; e encarregara Michel de ir pelas lojas em busca de lotes de velhos chapéus de palha, desses que se vendem a cinco francos a dúzia. A petizada, de torso e pernas ao léu, bronzeada do sol, apresentava o aspecto de grandes cogumelos sarapintados. E Domberlé, contemplando-os, sorria consigo mesmo, satisfeito.

A esses doentinhos tratava ele de aplicar os incomparáveis métodos de exercício natural preconizados por Georges Hébert. Mas, como faltava material, aproveitavam um poste telegráfico para servir de pau de trepar. O tisiólogo ajudava os garotos, empurrando-os pelo traseiro. A corda de nós atiravam-na por cima duma porta aberta, à falta de melhor sustentáculo, e as crianças mantinham-se nela, a pulso, durante dez segundos. O banho de chuveiro fora resolvido por meio duma colecção de baldes e um regador. Era assim que, falho de recursos mas alegre, Domberlé ressuscitava aqueles condenados, operando milagres, só pela acção do ar puro, sol, exercício e alimentos naturais.

No serviço vizinho, as crianças, logo que entravam, começavam o seu martírio sob a agulha e o bisturi. Desde o princípio que os submetiam a uma série de picadas para a reacção cutânea da tuberculina. Dias depois, vacinas contra a difteria e o tétano. Vacinação universal, sem discussão nem exame, quando já tantos médicos punham de sobreaviso a humanidade no que se refere aos perigos da vacina antidiftérica. Ao mesmo tempo obrigavam esses infelizes a meter pela goela abaixo um tubo comprido de borracha e, sem se preocuparem com as convulsões e os esforços para vomitar, aspiravam-lhes líquido do estômago a fim de verificarem se havia bacilos. Bacilos! Sempre a mania dos famosos bacilos, como se eles fossem os responsáveis! E, se os descobriam, todos os meses o suplício recomeçava.

No caso de estes existirem em abundância, decretava-se um pneumotórax. Enfiavam uma agulha entre as costelas do padecente, atravessavam o invólucro externo do pulmão - precisamente o folheto externo da pleura - e insuflavam ar para o pôr em colapso. Se as aderências ligavam o pulmão à pleura e o impediam de colapsar, iniciava-se então novo suplício: deitavam o doente na mesa, insinuavam um estilete oco, o trocarte, nas costelas, e faziam aparecer, na ponta, uma faísca eléctrica destinada a queimar as aderências. Com um segundo trocarte, do tamanho mais ou menos dum lápis, metido igualmente entre as costelas (e na extremidade do qual havia uma lâmpadazinha eléctrica e um jogo de espelhos) observavam a pleura durante a operação. Também às vezes, para comprimir o pulmão, cortavam o nervo que comanda o diafragma ou enfiavam aí uma agulha, com que injectavam álcool, para destruir o nervo. O diafragma, liberto, subia como um baião, empurrando para cima a base pulmonar. Ainda, e finalmente, podia acontecer que demolissem a arquitectura torácica: serravam as costelas, duas, três, quatro, cinco, dum lado ou dos dois lados. O tórax, assim arruinado, deformava-se e descaía, comprimindo o pulmão... Martírio espantoso, devastações horrorosas e muitas vezes inúteis, pois que só se tinha em vista o efeito, o mal localizado, enquanto o estado geral e a alimentação intoxicante continuavam em jogo. Todos ou quase todos os doentes apresentavam tara digestiva: enterite, congestão do fígado, hemorróidas, dispepsia. Mas, do que era preciso tratar em primeiro lugar, os médicos do sanatório, na sua maioria, não se preocupavam senão acessoriamente; aplicavam os ensinamentos da Faculdade, com todo o zelo e toda a convicção. E o pior é que esses ensinamentos estão hoje falseados, pois a medicina oficial, especializando-se, dividiu-se e isolou-se, no que perdeu o sentido da generalidade.

- O que não compreendo - disse Michel um dia - é que lhe não dêem ouvidos nem sigam o seu sistema. Quando vejo fecharem-se lesões tuberculosas, simplesmente por meio de um regímen purificado e bem individualizado, amígdalas desinchadas e adenites a cicatrizarem só pela supressão do excesso de carne e de ácidos, sem drogas, sem injecções nem intervenções cirúrgicas, admiro-me de que, depois de vinte anos, a sua obra não esteja aceita e preconizada em toda a parte.

Domberlé esboçou um sorriso um tanto melancólico.

- É cedo para isso, Doutreval. Vai levar tempo, muito tempo. Serão necessárias ainda centenas de malogros da parte da medicina oficial, inúmeras tentativas novamente abortadas, para então ela perceber que gira em volta dum círculo vicioso e consentir em modificar as suas concepções. .. Só assim se lembrará de que existe outra medicina. Esta é a minha esperança, até a minha convicção, pois a verdade acaba sempre por triunfar. Daqui a uns cinquenta anos, tratarão os doentes dos sanatórios como tratei a sua mulher, Doutreval. Já não estarei cá nessa altura? Que importa? Moisés também não atingiu a terra prometida...

- Cinquenta anos! - exclamou Michel. - Porquê cinquenta anos?

- Você não calcula a força das Bastilhas que temos de tomar de assalto. Na sua maioria, os médicos estão satisfeitos com o que aprenderam. Todos saímos da Faculdade seguros de nós próprios. É lógico. São precisos vinte anos de prática para começarmos a duvidar da nossa ciência. Daí em diante, investiga-se, trabalha-se, fazem-se experiências. Mas, em geral, falta ao médico tempo, dinheiro e, sobretudo, a... sorte que eu tive: ser doente, isto é, dispor dum incomparável campo de estudo. Se os grandes mestres me escutassem, estava o caso garantido, pois a chusma de médicos só pretende seguir na peugada das sumidades. Mas é fatal que ainda durante muito tempo as notabilidades em medicina não me liguem importância nenhuma. Eu não sou nada. Não tenho títulos, nem cátedra, nem dinheiro, nem apoios políticos, nem forças. Estou enterrado na massa anónima.

- E os seus livros?

- Os meus livros! Uma gota de água no dilúvio de publicações! Publicar é o sonho de todos, hoje em dia. Dar à estampa seja o que for, chamar a atenção para a sua pessoa, conseguir celebridade... Nesta enxurrada de livros e revistas, que pode o médico ler? Uma ou duas revistas, quando muito. Obras assinadas por um nome famoso...

- E a Imprensa?

Domberlé, desta vez, riu abertamente.

- Não esteja a brincar, Doutreval. Onde é que nestes tempos se descobriria um director de jornal suficientemente maluco que permitisse a um médico atacar nas suas colunas tudo o que, através da publicidade, enriquece e mantém o dito jornal? Aperitivos, bebidas alcoólicas, tabaco, açúcar, excitantes, conservas, especialidades farmacêuticas, margarinas, confeitos... Pensando bem, o veneno da nossa era reside ali, nessa imprensa subornada, nessas gazetas vendidas às grandes empresas industriais, que se servem disso para empeçonhar o espírito e o corpo das multidões. E depois há a própria multidão, que não veria com bons olhos a condenação completa da sua maneira de agir, de comer, de estar... O homem rejeita, instintivamente, semelhante disciplina. Sem falar das muitas pessoas que perderiam com isso, no aspecto material: as que vivem de envenenar o público, de modo consciente ou inconsciente.

Julga que o público me secundaria? Só forçado, constrangido pela doença, pelo sofrimento, pela ameaça da morte. Um médico que pretende tirar aos homens os seus tóxicos, e reconduzi-los à vida sã, longe das cidades, no quadro familiar; um médico que se dirige às massas deslumbradas por tão sedutoras promessas e lhes fala de abstinência, de renúncia, de sacrifício, de vida sóbria e rústica; que se propõe reduzir-lhes a ração de álcool e de alimentos excitantes, que as quer impedir de se esgotarem e destruírem a si mesmas, que à hora da doença se recusa a receitar drogas violentas, a sufocar o mal e a curar depressa, e, pelo contrário, aconselha remédios naturais e brandos, repouso, desintoxicação lenta, e que, acima de tudo, respeita o esforço de depuração que é a doença... um médico destes seria tido por um asno chapado! Não, Doutreval, não se admire do acolhimento que me fizeram. Era inevitável. Aliás, não é esse o papel do verdadeiro médico? Fazer bem e ver-se desdenhado por isso mesmo. Nunca me esquece o caso de Émile...

- Qual Émile?

- Um homem que consegui ressuscitar. Era empregado do sanatório, no tempo em que eu estava aqui como assistente. Certa manhã, encontrando-me no meu pavilhão, chegam os internos e anunciam-me :

- «O Émile morreu.

- «Morreu?

- «Sim. Foram dar com ele enforcado num dos dormitórios. Vão transportá-lo para o teatro anatómico, a fim de lhe fazerem a autópsia.

«Corro ao dormitório e entro lá ao mesmo tempo que os dois homens que levavam a maca. Mando despir o Émile, molho uma toalha num balde de água fria e desato a fustigar-lhe o peito com o pano encharcado. Estou dez minutos, um quarto de hora nesse trabalho. Os internos observam, riem-se e dizem :

- «Que tolice! Então não vê que ele está morto? Já se fez tudo : tracção da língua, respiração artificial...

«Continuo. Quando já estou a transpirar, peço que me substituam. Em seguida recomeço. A pele de Émile já está esfolada de tantas chicotadas. De repente, a face do meu suicida toma um tom rosado. Émile faz uma careta, espirra, e, num murmúrio confuso de bêbado a quem estão a incomodar, resmunga:

- «Vocês nunca mais acabam de me chatear?

«Foi este o seu único agradecimento. Quanto aos internos, limitaram-se a comentar:

- «Afinal, a síncope não era grave, visto que um pouco de água fresca o reanimou.

«E quanto à administração do hospital, queixou-se amargamente de que tivessem incomodado para nada dois maqueiros, e preveniu-me de que não repetisse a brincadeira. Está-se a rir, Doutreval? Afirmo-lhe que não invento coisa nenhuma. Muitas vezes tenho pensado que esta anedota é a de toda a minha vida. A Providência serviu-se de mim. Permitiu-me que eu curasse com um pouco de água fresca, ar puro e alimentos sãos. Mas ninguém acreditou nisso porque esses meios eram demasiado simples, demasiado naturais, demasiado fáceis e acessíveis a toda a gente. Aqueles a quem eu ameaçava a rotina, a ciência complicada e as indústrias frutuosas e insalubres, nunca me perdoaram. E a humanidade, que eu tentava arrancar ao seu entorpecimento mortal, respondeu-me com injúrias e perguntou, cheia de irritação, quem seria este importuno que a queria impedir de morrer em paz.

Domberlé levava uma estranha existência de reclusão e labor incessante. Levantava-se às sete da manhã, trabalhava nos seus livros e em seguida punha em dia a correspondência. Depois ia ao sanatório e lá fazia o giro quotidiano. Voltava para almoçar, singular refeição composta de salada, trigo cru, trigo cozido, duma mistura espessa de batatas e massa (que a criada nem sempre aquecia devidamente e a que os amigos chamavam sopa de cão) e ainda dum átomo de queijo, duma banana e dum bolinho. Era nessa ocasião que atendia os discípulos, alguns médicos dos arrabaldes que lhe vinham pedir conselho e submeter ao seu critério os casos mais difíceis.

- Senhor doutor, é escusado receitar um pouco de carne à tal pequena. A febre não declina.

- A minha parturiente não se restabelece. Aquelas fendas do seio...

- Tenho um doente que apresenta todos os sintomas da febre de Malta...

- Que acha o meu colega ao regímen que prescrevi a um diabético? Quererá fazer-me o favor de lançar uma vista de olhos às folhas das ementas?

E Domberlé, entre duas garfadas, pegava nos papéis, reflectia um momento e em seguida explicava, corrigia, riscava, aconselhava, comia mais qualquer coisa, limpava a boca e recaía nas suas explanações médicas.

Acabada a refeição, repousava na cama durante uma hora. Depois disso, recebia os clientes, até as cinco da tarde. Uma hora de jardinagem, um jantar em que dominavam legumes verdes, batatas e frutos e Domberlé punha-se ao trabalho, que terminava à meia-noite.

Tinha de ler revistas, seguir os progressos da medicina oficial e ficar ciente das suas descobertas e novas orientações : endocrinologia, vacinas, terapêutica de choque, homeopatia, psicanálise, simpático terapia... Havia já vinte anos que Domberlé via assim surgir teoria após teoria, que gritava alerta, que punha de sobreaviso os doentes e predizia os malogros infalíveis... E quando as «ideias novas», as modas e os entusiasmos passavam, quando nada mais restava do que cinza, outra construção falaz se erguia nas ruínas da precedente, atraindo mais uma vez a atenção de todos e tornando a ocultar a verdade. E Domberlé recomeçava a luta.

Tinha o sanatório, com a incompreensão e estupidez administrativas, e os milagres a realizar sem a ajuda dum único soldo. Tinha a confecção da revista, publicada no propósito de manter contacto com os doentes e onde se encarregava de tudo, desde a redacção dos artigos até à escolha dos caracteres, correcção de provas e parte gráfica. Tinha a reedição dos seus livros, com alterações e emendas. Tinha, enfim, a correspondência avassaladora, extenuante, que o obrigava por vezes a escrever uma noite inteira, sentado na cama, com um cobertor aos ombros e uma prancheta em cima dos joelhos; inúmeras cartas de amigos ou desconhecidos, que sofriam longe e a quem era preciso aconselhar no seu isolamento, no seu terror das injecções e violências da medicina clássica, e a quem ele devia preservar de erros grosseiros, conduzir, guiar durante semanas e até meses seguidos. Com regularidade, enviavam-lhe as ementas da dieta e as suas observações. Domberlé, examinando as curvas da temperatura modificava as dietas, tirava, punha, doseava. Em geral, esses clientes distantes não lhe podiam pagar; limitavam-se (e nem sempre) a incluir a estampilha para a resposta. Domberlé ajudava-os dessa forma, quase diariamente

para não dizer de hora a hora - sustentando-lhes a vida e dulcificando-os na morte. A existência dessas criaturas ficava assim ligada à sua. Quando alguma acabava, a respectiva ficha ia juntar-se a outras; e o que morria hoje serviria, de certa maneira, para salvar alguém, dez anos

depois.

Havia também os que desejavam conselho para casamento, compra de terras, colocação de capitais, testamento, emprego. E colegas médicos que lhe escreviam a pedir informações ou directrizes. Era para estes que estava a escrever uma Arte Médica. Os clientes, por seu lado, reclamavam receitas, ementas, comidas leves e desconcentradas. Domberlé instalava-se na cozinha, doseava os pesos de farinha, açúcar e ovos, para conseguir uma diluição suficiente. Preparava assim, do mesmo modo, um livro para uso dos doentes e uma guia para os amadores de horticultura. No seu quintal, experimentava diferentes plantas para saladas, espécies doces de maçãs e pêras, cerejas e ameixas não ácidas, não desmineralizantes. E, a fim de poder publicar esse livro, passava horas inteiras ao ar livre, a esticar lençóis por trás duma pereira, para fotografar os rebentos, os enxertos, os ramos a podar no Inverno ou no Verão. E essas chapas admiráveis, obtidas à força de habilidade e perseverança com uma velha máquina vulgar, Domberlé passava a noite a revelá-las, no subterrâneo, sem ajudantes e quase sem recursos. Muita gente, admirando-se daquela tenacidade heróica, dizia-lhe:

- Chame um fotógrafo. É mais simples.

Como se fosse rico e pudesse dispor dum fotógrafo durante as quatro estações do ano!

Tudo ele fazia, com meios e apoios irrisórios, improvisando calções de ligaduras para as crianças, utilizando aquela máquina fotográfica que nem numa feira quereriam comprar, e auxiliado apenas por um reformado dos caminhos de ferro, que lhe servia de jardineiro, e um antigo escrevente do pavilhão dos incuráveis, j á-inválido, que vinha no seu carrinho copiar-lhe os manuscritos. Prodígios conseguidos à custa de pequenas economias e de grande força de vontade! Para manter a saúde, Domberlé não descuidava a sua alimentação nem deixava de fazer repouso, ainda que fossem dois ou três minutos -de olhos fechados e pernas estendidas, o que lhe permitia voltar ao trabalho com redobrado vigor.

«Eis um homem que se sacrifica», pensava Michel. «Por quem? Por uma verdade. E fá-lo voluntariamente, a fim de proporcionar maior soma de bens a esta humanidade que lhe recusa os benefícios, que lhe declara a sua repulsa e o seu ódio. Contudo, não desiste. Porquê? Porque é mais difícil resignar-se um homem a matar a verdade do que a aceitar a morte. Quando está convencido daquela, esta não conta para ele. O homem é, decididamente, heróico».

Toda aquela lição viva de coragem, de optimismo, de obstinação e vontade, aquela obra grandiosa edificada desde há quarenta anos por um perpétuo moribundo que ressuscitava constantemente e utilizava a sua fraqueza e enfermidade a favor da saúde dos seus semelhantes, enchia Michel de admiração. Compreendia agora a frase favorita de Domberlé, citando S. Paulo:

«Por mim, comprazo-me na minha fraqueza, pois, quando estou fraco é que sou forte!»

Pobreza, solidão. Dois nomes que, até aí, aos olhos de Michel, como aos de toda a gente, significavam cegueira, erro, impotência e que, para Domberlé, eram a prova e como que a marca visível da protecção divina e da verdade. Um dia, certa mulher veio consultá-lo. Não tinha compreendido nada a respeito do novo regímen alimentar e estava revoltada contra as exigências e sacrifícios que isso comportava. Os dois discutiram (havia às vezes cenas patuscas no consultório de Domberlé) e a mulher exclamara por fim:

- O senhor não passa dum maluco! Está aqui sozinho, sem que ninguém lhe dê razão, e atreve-se a declarar que tem a verdade por seu lado!

Dissera isto e rira-lhe na cara.

- E eu - contava ele a Michel-pensei que era de facto o meu retrato que essa criatura descrevera: estou só, ninguém me secunda. Mas é justamente por desejar a verdade que eu me encontro desacompanhado. É uma prova de que já a tenho. Não será mais sólida a obra realizada desta forma? Quando estamos sós, temos Deus connosco.

Via Deus em tudo. Deus queria o bem e o mal, a provação e a alegria. Para o progresso do homem, tudo concorria, tudo se aproveitava. Nada poderia exasperar tanto o velho clínico como ouvir falar do acaso, da sorte boa ou má.

- Não há acaso! Por trás de tudo o que nos acontece, está uma intenção, há um fim, há Deus. Desculpe falar de mim, mas é quem eu conheço melhor. Pois bem: se eu acreditasse no azar, não teria feito nada, entregar-me-ia ao destino, estaria debaixo da terra há muito tempo. E, comigo, alguns doentes que ajudei a viver, apesar de tudo!

«A má sorte! Tive-a sob todas as formas. Nasci doente, heredo-artrítico, extraordinariamente sensível e clarividente quanto a drogas químicas. Fui operado por grandes cirurgiões, graças ao que pude compreender a inutilidade da intervenção cirúrgica quando não se adopta, depois, alimentação sã e vida sã. Tuberculizei-me, superalimentei-me, experimentei injecções e remédios segundo os mais devastadores métodos clássicos. Tomei certa manhã, por engano, um purgante que me devia matar e que me pôs no caminho da verdade; tive gânglios, que não pude operar devido ao estado do fígado, e tudo isso serviu de me corrigir a dieta e acabou por me curar. Má sorte? Tive a de ser mal visto e mal pago no meu hospital, de ser obrigado a procurar clientela, de editar por mim próprio os livros e a revista; a de ser um morto-vivo, quase amarrado dez anos ao leito, onde escrevia parte da noite em posição incómoda; a de viver com um ovo por mês e uma «sopa de cão», sem tolerar mais nada... Podia encher volumes com a descrição dos meus azares, mas afinal todos se podem escrever só com um único nome: Providência. A Providência maltratou-me, sacudiu-me, tratou-me a pau e, feitas as contas, protegeu-me de maneira milagrosa. Todos os apuros e angústias conduziram à minha salvação e à dos outros. Se eu não me conservasse diante de Deus como uma besta de carga, uma alimária de boa vontade disposta a suportar todos os fardos, se não tivesse aceitado sempre o pior e lutado ferozmente pela verdade, sem cálculo e sem desfalecimento, se me houvesse insurgido, impregnado de ódio, mau humor, aversão, recusa sistemática, revolta contra a existência, inveja, vingança, ambição, orgulho, se acusasse a má sorte e amaldiçoasse a vida, destruiria todos os elos que me uniam à Providência, teria seguido o conselho da mulher de Job: «Amaldiçoa a Deus, e morre!» Amaldiçoando a sorte, rebentaria diabòlicamente e iria reunir-me ao deus da adversidade e do azar: Satanás.

E, com isto, esse débil sempre moribundo e no entanto ainda vivo, punido mas não mortalmente, triste e alegre ao mesmo tempo, pobre e doador de riquezas aos seus semelhantes, esse quê não possuía nada e tinha tudo, irradiava energia, despendia vida. Místico armado de submissão e de constante boa-vontade, sabendo ver o dedo de Deus em todas as circunstâncias da existência, pronto para todos os calvários, indiferente aos prazeres do mundo, cão de guarda da Verdade, Domberlé excedia de mil côvados, na sua simplicidade, o cepticismo elegante e estéril, o intelectualismo brilhante e sem alma dos grandes mestres, dos Heubel, dos Géraudin, dos Suraisne, de todos os lentes ilustres que Michel conhecera, homens sobrecarregados de glória e de ciência, mas falhos da armadura que é a fé robusta na vida, essa certeza da Perfeição, da vitória final do Bem e da Verdade, donde este obscuro médico do sanatório extraía a sua força. Tinha ele a sua maneira pessoal de ver o universo, visão tão simples, tão ampla, tão poderosa que extasiava Michel como uma página do Apocalipse. Duas potências disputavam o mundo, o dia contra a noite, o Bem contra o Mal, uma a propor o bem-estar, a busca dos prazeres, a sensualidade, a divinização dos humanos, o desperdício louco na superprodução sem descanso, a uniformização de toda a gente, das nações, dos sexos, dos domicílios, a promiscuidade das habitações, dos hospitais, da caridade pública-e a outra a apresentar a vida como uma provação preparadora de melhor estádio, que seria merecido pela submissão às leis naturais, por vezes duras, mas sempre úteis e benéficas. E o seu apogeu fora a resignação, o sacrifício, a existência aceita toda inteira, sem escolha nem recusa: trabalho, família, multiplicação da espécie, sobriedade, continência, renúncia... Todavia, por trás deste esforço difícil, e sem que a pedissem ou procurassem, existia a felicidade, a única felicidade terrena, humilde e real que ao homem é dado possuir.

 

Um belo dia, indo visitar Tillery, Michel encontrou em casa do amigo dois dos seus antigos companheiros: Seteuil e Santhanas.

Este último abandonara a homeopatia. Era demasiada a concorrência, havia médicos a mais em Paris: todos os novos queriam fazer vida na capital, quando os campos estavam com tanta falta de clínicos! Moralmente, decaíra bastante; por essa altura, emprestava o seu nome para encobrir a actividade dum curandeiro em voga, espécie de hipnotizador que persuadia os doentes de que estavam restabelecidos. é certo que eles deixavam de sofrer, mas a doença continuava as suas desvastações, mais perigosas ainda depois de encobertas. O referido curandeiro, tendo cumprido a sentença de seis meses de prisão por exercício ilegal da medicina, achara prudente arranjar um «editor responsável». Santhanas foi esse editor. Examinava os doentes na presença do «professor» curandeiro, o qual, deste modo, representava aparentemente o papel de testemunha e de conselheiro, pelo que não podia ser perseguido. Por esse mister de lacaio, Santhanas recebia cem francos diários. Ria-se do caso e gracejava, enquanto relatava tudo isto a Seteuil e Michel, que o ouviam com repugnância. O «mestre», explicou ele, não podia passar sem o seu colaborador, e Santhanas aproveitava-se disso para o explorar. Na verdade, não é fácil encontrar um doutor em medicina que se avilte a este ponto.

Quanto a Seteuil, acabava de perder a mulher e, como casara pelo dote e não por amor, consolava-se com facilidade. O dinheiro ficava-lhe, graças ao filho, criança de poucos meses e herdeiro legal dos haveres maternos.

Quando soube que Michel pensava abrir consultório, falou-lhe de Nord, centro industrial onde prosperava. Falecera havia pouco tempo um velho confrade e deixara um lugar vago. Seteuil antes queria ver esse lugar ocupado por um amigo que por qualquer desconhecido; A terra, muito próxima da fronteira belga, era meio rústica e tinha diversas fábricas, onde se davam frequentes desastres no trabalho. A casa de habitação, sem ser luxuosa, aparentava decência. Michel, interessado, prometeu ir lá ver.

Michel partiu para Nord, onde Seteuil o esperava. O burgo agradou-lhe. Era o arrabalde duma cidade industrial, aglomerado de cinco ou seis fábricas e dalguns bairros operários, no meio de campos de beterrabas, batatas e trigais. De Lille, ia-se até lá facilmente de comboio. A casa do velho facultativo, a quem Michel pensava suceder, ficava longe da povoação, quase no campo, no fim dum extenso caminho plantado de salgueiros. Seteuil afiançava que Michel ganharia ali a sua vida. Para começar, encarregava-se ele de proporcionar ao amigo um trabalho vantajoso a quem inicia a sua carreira: o doutor Becquerel, deputado, pretendia um substituto por alguns meses.

Michel decidiu-se. Foi falar com o senhorio, assinou o contrato de arrendamento e regressou a Paris, a fim de fazer com Eveline os preparativos da sua nova existência.

Na véspera da partida para Nord, dirigiu-se com Eveline a Saint-Cyr, para se despedir de Domberlé e manifestar-lhe a sua gratidão.

- Não -disse o velho mestre-não me agradeça. Espalhe à sua volta a verdade que eu lhe dei a conhecer. Nada mais. E isso não lhe será muito fácil. Verá. Escreva-me nas horas difíceis, peça-me conselho. Eu o guiarei. Tenho muita pena de que se vá embora, Doutreval. Ver-me-ei outra vez sozinho... Já estava habituado à sua companhia. Enfim, é a minha sorte.

- Também eu lastimo, senhor doutor...

- Não lastime nada - atalhou Domberlé. - Solidão e silêncio, eis o meu destino. Você não esqueça, não renegue, não sirva dois senhores, seja por seu turno o que eu quis ser à viva força: o cão de guarda da Verdade. Será aviltado, desprezado, escarnecido, traído. Mas, nas horas de provação, receberá socorros prodigiosos e inexplicáveis, e sentir-se-á consolado, sustido, guiado miraculosamente. Lembre-se disto!

Ergueu a mão, grande e descarnada. Nos olhos ardentes e no rosto barbudo de velho profeta havia uma gravidade, uma solenidade bíblica :

«Até à morte combate pela verdade, e o Senhor combaterá por ti!»

No regresso de Saint-Cyr, Michel foi despedir-se também do professor Norf. Este recebeu-o no vasto laboratório de anatomia patológica, entre as fotografias de ratos e frascos em que maceravam mãos cancerosas. Tal como Domberlé, Norf disse com certa melancolia :

- Evidentemente... Eu já sabia... Era fatal... Mas tenho pena. Você havia de fazer qualquer coisa... Lastimo que parta.

Em vinte anos, nunca o professor se manifestara tanto.

- Também eu lastimo, por sua causa, senhor doutor

- retorquiu Michel.

- Oh! - exclamou Norf. -Já estou acostumado a isto. Não é assim, Vanneau?

Esboçou um sorriso um pouco triste na direcção do seu velho e fiel servente de laboratório.

- Todos os novos me abandonam. Sempre! É preciso viver. De facto, somos muito mal pagos aqui. Eu, como sou maluco, contento-me... A Ciência, a investigação... Minha mulher consentiu em sacrificar-se comigo... Mas, para a gente moça, isto é muito duro... Em todo o caso, é pena... Tinha cá umas ideias de reserva... Coisas que você poderia publicar...

- O senhor doutor as publicará, com certeza. Norf sorriu.

- Eu? Nem cheguei a publicar dez artigos em toda a minha vida, Doutreval. Já há tantas obras vindas a lume! E para quê? Acho que nos devemos calar quando não há nada a dizer de novo. O maior sacrifício dum cientista é o silêncio.

Pela primeira vez, Michel viu o reflexo de secreta comoção no rosto do velho professor; a tristeza dum homem que passou a vida à procura duma verdade científica e. que, não a tendo descoberto, se resigna a imolar a sua vida e a calar-se.

Norf apertou as mãos de Michel, voltou-lhe as costas, instalou-se diante dum microscópio e ali ficou como se se esquecesse da presença do rapaz. Michel deu um abraço ao simpático Vanneau, comovido e lacrimejante, e saiu do laboratório.

Não tornaria a ver o velho professor. Norf receara sempre a velhice, a idade da reforma, que o expulsaria do laboratório, deixando-o, com uma pensão mesquinha, na inactividade, no esquecimento, na solidão - à espera da morte. Essa morte foi-lhe misericordiosa: veio surpreendê-lo em pleno trabalho. Norf tratava de graça, de tempos a tempos, um ou outro dos infelizes que conhecera no hospital. Havia certo canceroso incurável a quem, por caridade, ele ocultara o nome da doença; o homem, porém, arranjou umas economias e foi procurar outro médico. E este, que era novato e ansioso de exibir a sua ciência, não teve mão em si que não dissesse:

- Mas do que você sofre é dum cancro! Os que o têm tratado não passam de criminosos e imbecis!

O doente, ao sair da consulta, comprou um revólver. Na mesma tarde foi em busca de Norf, encontrou-o no laboratório e desfechou-lhe quatro tiros. Norf, atingido na cabeça, tombou sobre o microscópio e morreu em dois minutos. O assassino, detido logo, enforcou-se na prisão uns dias depois.

Louise Norf saiu de Paris e acabou na província, em meio de grandes dificuldades económicas, uma existência dolorosa e inútil. Ao marido, veio outro professor substituir; do antigo restavam alguns ratos velhos, que também não tardaram a morrer dos seus sarcomas, nas gaiolas do laboratório, e pedaços de intestinos cancerosos, nos frascos das prateleiras, além de fotografias de animais atacados de cancros. Destas, ele sempre tivera muito orgulho, em especial uma que apresentava o seguinte letreiro:

Sarcoma do fígado. Norf, 1928.

Nem um folheto, nem um artigo: apenas algumas notas dispersas, que ninguém teria a curiosidade de compulsar. Ou sequer um corante a que ele houvesse ligado o seu nome! A Norf coube a parte mais amarga da ciência, a tarefa negativa: explorar os becos sem saída, para que os outros não perdessem tempo neles. Aliás, se descobrira uma ou outra coisa útil e pessoal, fora demasiado modesto e escrupuloso para que quisesse fazer comunicações, ou demasiado céptico para se entregar a relatórios apressados. Assim, do seu esforço, ninguém jamais saberia absolutamente nada.

Contudo, durante anos, o pensamento de Norf animou o laboratório de anatomia patológica. Vanneau continuava lá. E quando o novo director, que era o professor Gamblin, ou o seu assistente se viam embaraçados perante um diagnóstico difícil, faziam como Michel, recorriam ao velho servente, sem o darem muito a entender.

- Vanneau, quer ver uma coisa? Hem, que lhe parece?

O outro olhava pelo microscópio. E atencioso, consoante o seu hábito, abrigando-se atrás da autoridade do mestre desaparecido, para não humilhar os sucessores, respondia:

- Num caso destes, lembro-me que o doutor Norf dizia: «Estamos em presença dum sarcoma...»

Deste modo era ainda a ciência de Norf que animava o laboratório e que eles iam buscar através do velho Vanneau, estranho depositário da experiência do sábio defunto.

Na manhã ainda fria, coberta de nevoeiro do Estio, dessa leve bruma que, durante a noite, se exala de Paris esbraseada e lhe refresca um pouco a febre, o comboio saiu da estação. Tillery e a mulher haviam acompanhado os amigos até ao último minuto. Sentados agora lado a lado na carruagem, Michel e Êvelyne viam deslizar e desaparecer os prédios sórdidos, as altas construções negras e imundas onde fervilham os sofrimentos das civilizações industriais. Montmartre, lentamente, subia no horizonte. Por cima da névoa, já deslocado e furado por jactos de sol, como fumos errantes sobre um campo de batalha, surgia, tal uma acrópole, o seu templo luminoso e róseo.

A carruagem de terceira classe ia apinhada de gente. Já uma passageira desemalava pão e ovos cozidos, para almoçar. O comboio, num crescendo, adquiria velocidade e corria em direcção a Creil, à Picardia, ao departamento de Nor d.

Michel calava-se, com o coração um tanto oprimido. Outra vez a aventura, o desconhecido e a fixação da vida conjugal, terrível prova da verdadeira e dura existência ao lado um do outro, coisa que ainda não tinham experimentado senão durante alguns dias! Tinha de arranjar clientela, de ganhar o pão quotidiano, desde Janeiro a Dezembro, sem vencimento, sem gratificações, sem ajuda de ninguém, com a saúde ainda débil de Êvelyne a salvaguardar. ..

De través, olhou para a mulher. Ela percebeu, pôs-lhe a mão no braço, sorriu, e Michel achou-se reconfortado. Êvelyne não tinha medo, não; e o marido compreendeu, mais uma vez, como é grande a força adquirida na experiência da miséria.

 

Através do tecido azul do estore filtrou-se uma claridade pálida que deu em cheio na cara de Fabienne. Ainda sonolenta, agitou-se um instante no leito e sentiu o rolar cadenciado e surdo do comboio, o arfar intenso e próximo da locomotiva galgando uma rampa difícil. Estendeu os braços, abriu os olhos, reconheceu o espaço exíguo do seu compartimento de carruagem-cama, onde predominavam metais e oleados, e foi-se recordando de tudo a pouco e pouco. Que horas seriam? Consultou o relógio de pulso, mas estava parado. Devia, no entanto, ser dia já, a avaliar pela luz que a cortina deixava transparecer, longa diagonal de claridade em que dançavam átomos, que girava lentamente, punha em evidência a mesita e o copo de água, a fechadura de cobre, os lençóis - e que, aproximando-se de Fabienne, lhe acariciava a mão e lhe subia pelo braço. O jacto impalpável atingiu-lhe o rosto, brincou por momentos nos cabelos negros despenteados, extinguiu-se, cortado pelo caixilho da janela, e voltou de repente, quando o comboio entrava em nova curva. Num movimento brusco, a rapariga arremessou os lençóis e, vestindo-se à pressa, foi à janela e carregou no mecanismo do estore, que se enrolou de golpe, sem ruído.

Talvez fossem cinco horas. Ó lago de Bourget, solitário e silencioso, encastoado na coroa de montanhas, oferecia a sua taça luminosa, a sua superfície azulada em que os tons da água, do céu e das montanhas se misturavam, com laivos de violeta, ao longo da muralha sombria do Dent du Chat, de oiro e prata mais além, nas bandas de Chambéry. O Sol nascia entre nuvens, deslizando os raios oblíquos pelo meio do nevoeiro matutino, que em farrapos ténues, frágeis, diáfanos se dispersava flutuando sobre as águas. Do muro a pique do castelo, sobre aquela névoa fugidia de vários cambiantes de azul, suspendia-se, hesitante, uma bola enorme de bruma compacta, como uma grande massa de neve retida por milagre lá no alto. Outras nuvens, já mais baixas, impedidas na passagem por montões de pedras, ou por uma árvore, ficavam por ali esfaceladas, depois de largarem pelo caminho os flocos da sua cardada. A luz acariciava as alturas ou punha a descoberto, acolá, um sopé de montanha, ali, uma clareira, nesgas verdes em declive sobre o abismo, com uma cabana minúscula de postigos ainda fechados, mas cuja chaminé já fumegava. Muito perto da linha, corria água sobre calhaus, ondulando ervas aquáticas e vindo morrer quase debaixo das rodas do comboio. No lago não estava ninguém: virginal e selvático, espraiava-se na solidão inviolada e magnífica do amanhecer. Só ao aproximar-se de Aix é que Fabienne descobriu, ao longe, um barco de vela branca, ave enorme e lenta, quase imóvel, que demandava Hautecombe. Não se lobrigava gente a bordo.

- Bourget! Bourget! - murmurava Fabienne, com a face encostada ao vidro da janela.

Saudava o lago como a um amigo velho, um confidente. Desde pequena que vinha passar as férias naquelas margens, e ele, de ano para ano, ia-se-lhe tornando mais querido. Desta vez revia-o numa crise de cansaço e abatimento. Trabalhara muito na casa de saúde. A isso, acrescera o choque brutal da morte de Mariette, a instabilidade do lar, o desgosto sofrido pelo pai, que nos dias seguintes à catástrofe tantas inquietações suscitara pelo seu estado de depressão. Fora preciso vigiá-lo, fazer-lhe constante companhia, tentar o impossível a fim de o distrair e arrancar à sua ideia fixa. Huot e Van der Blieck haviam recomendado à filha:

- Não o perca de vista. Que ele não tenha à mão nenhuma arma.

Doutreval devia meditar qualquer coisa, a crer pelo seu ar aparentemente calmo. Mas, passados quinze dias, decidira-se a reentrar na vida e consentira em acompanhar Fabienne a Aix-les-Bains, por umas semanas. Ela, por seu lado, demorar-se-ia mais tempo. Três meses pelo menos, aconselhara-lhe Huot. Precisava, efectivamente, dum largo período de repouso.

Dois dias depois de chegar, Fabienne foi a pé a Aix, que ficava a dois quilómetros da «Vila Graziela», onde eles habitavam. Fabienne sabia que Olivier Guerran se hospedava sempre no mesmo hotel, e esperava encontrá-lo aí. Ia contente com a ideia de o tornar a ver, e estava convencida de que ele gostaria também de a reencontrar. Mas Guerran acabava de partir para Blois, onde se realizava o congresso anual do seu partido. Embora deixasse o quarto por sua conta, não se sabia ao certo quando regressaria. Fabienne voltou à «Vila Graziela» um tanto descoroçoada.

- Vejo que te interessas bastante pelos teus doentes disse-lhe o pai, em brincadeira.

- Se o tivesse tratado como eu o tratei, não troçava do caso!

- Ora, não faltarão ocasiões de lhe falarmos, em Angers. Aliás, eu também não desgostava de o ver. Para mim é um conhecimento de grande utilidade. Havemos de pensar nisso.

Os Doutreval ocupavam a moradia quase toda, pois os proprietários, o senhor e a senhora Droux, reservavam para si, no Verão, unicamente dois quartos no subsolo; o aluguer do resto constituía para eles o seu mais importante rendimento. Desde criança que Fabienne passava ali temporadas, sob a vigilância maternal da gorda senhora Droux. Sentia-se na «Vila Graziela» como se estivesse em sua casa. Cada recanto do quintal lhe suscitava recordações. Ficava essa moradia situada ao norte de Aix-les-Bains, um pouco além do Petit-Port, à beira da torrente do Sierroz. Rodeava-a um jardinzito vulgar, de arbustos muito tosquiados. Mas, a seguir, havia um campo de luzerna onde cresciam ameixoeiras, pereiras e pessegueiros e, mais adiante, um vasto prado onde pastavam as cabras da senhora Droux, soberba extensão de erva espessa e ondulante, ladeada em todo o comprimento pelo curso rápido e fremente do Sierroz; marginava-a uma fila interminável, compacta e magnífica de choupos altíssimos - tapeçaria de folhagem sumptuosa e palpitante no fundo de granito cor-de-rosa do Mont-Revard.

Fabienne corria atrás das cabras e mungia dois ou três desses animais pérfidos, meigos e caprichosos, de grandes olhos amendoados, castanhos ou cinzentos; ajudava a senhora Droux a fazer os queijos para a provisão de Inverno; virava o feno com o senhor Droux; sulfatava a vinha que, de cada lado do jardim, se estendia em compridos arames, da altura dum homem ; ia lançar uma vista de olhos aos anzóis e às redes discretamente colocadas no Sierroz, às nassas e às garrafas onde o peixe se metia e ficava retido; depois, voltava a casa e ia ao subsolo pedir à senhora Droux uma fatia de queijo e um copo do seu vinho acre. Dirigia-se então ao pomar, ao encontro do senhor Droux. Tirava água do poço, sob o tufo espesso do salgueiro onde zumbia sempre uma nuvem de mosquitos, ia à «colheita» dos ovos, trepava às cerejeiras a fim de encher, para a feira do dia seguinte, um cesto de frutos maduros e, ao mesmo tempo, saciar-se de cerejas sumarentas. Para a recompensar, a senhora Droux oferecia-lhe parte da sua ceia : um prato de sopa à camponesa onde boiavam grossas fatias de pão, um pouco de queijo e um copo de vinho para remate. E Fabienne, uma hora depois, ao entrar na casa-de-jantar, declarava ao pai, com ar melancólico: - é esquisito, mas esta noite não tenho vontade de comer.

Falta de apetite que não a impedia, ao fim duma semana, de recuperar as boas cores e a vivacidade do olhar.

Há sofrimentos que têm de ser suportados até que se atinja a meta de todas as dores. Quem não possuir a consolação da fé, só esgota o sofrimento pelo desgaste da sensibilidade; e então, quando o coração não for mais do que uma chaga e já não reagir às punhaladas da saudade, quando o cérebro extenuado se recusar aos pensamentos e evocações, a matéria acabará por se impor: o padecente lançar-se-á para cima da cama e adormecerá.

Doutreval experimentava essa interminável viagem aos limites da sua infelicidade, até ao país glacial onde cessa o poder da tortura. Era ela desmedidamente longa e atroz. No entanto, sem razão e sem que soubesse porquê, ele não desejava esquivar-se. Poderia fumar, jogar, beber, trabalhar, ler, sair com Fabienne, visitar Granobra, Annecy, Genebra, os centros em que aplicavam o seu método de curarizaçao. Nada disso fazia. Tinha a vaga impressão de que, se fugisse à dor, perderia qualquer coisa de infinitamente precioso, uma espécie de riqueza moral. Não chegava a compreender-se bem.

Nem a própria Fabienne o consolava. Nas horas em que vinha junto dele ou iam ambos passear ao campo, e a rapariga tentava distraí-lo e confortá-lo, dir-se-ia até ser mais viva em Doutreval a sensação de vazio, de saudade. Fabienne bem podia fazer tudo para o entreter: faltava sempre a pessoa de Mariette. As ternuras todas daquela não substituíam a presença da segunda, embora Fabienne se tornasse mais querida e mais preciosa depois da catástrofe. Mas não era nunca sem a lembrança súbita da morta que ele se aproximava da filha sobrevivente.

Por isso é que Doutreval, muitas vezes, preferia divagar sozinho.

No entanto, em certas ocasiões, levava consigo Fabienne nos seus passeios até à montanha. Atravessavam o lago, de barco, e alcançavam o Bourdeau; ou então serviam-se do automóvel que os levava até ao túnel do Dent du Chat. Daí subiam a pé em direcção ao desfiladeiro. Doutreval apoiava-se à bengala: apesar do joelho contuso, não deixara de ser bom andarilho, uma vez que fosse devagar. O caminho, sinuoso, atravessava extensões de pastos magros, terrenos onde a erva secava por falta de água. Aqui e ali havia arbustos e silvado, maciços de cardos e bardanas, vegetação rude queimada pelo sol violento. Não se viam pássaros: era muito elevado para eles, que não gostam da altitude; mas voavam miríades de insectos.

Doutreval e Fabienne sentavam-se no chão. Abaixo deles, a uma distância de quatro mil pés, o lago assemelhava-se a uma esmeralda encastoada na rocha. Do outro lado o Revard, a pique sobre o conjunto variegado de casas e choupanas, erguia a sua muralha fendida. Ao longe, Chambotte escondia o topo entre a névoa suspensa. Com um ramo de espinheiro preso aos dentes, Doutreval aspirava o aroma capitoso da flor agreste e escutava derredor o minúsculo e persistente concerto de milhões de insectos. Cheio de amargura, pensava na ironia desse pulular de vidas inúteis, fermentação nascida sob os raios do Sol, que morreria no Outono e renasceria com a Primavera, sempre buliçoso, vão e absurdo, estranho a todas as aventuras humanas que se desenrolavam à sua volta. Bem podia ele sentir os estragos tremendos que as suas palavras exerciam na alma da filha, mas a verdade é que não resistia à tentação de lhe proclamar o seu horror e desespero diante do espectáculo da vida, tal qual a concebia.

- Fabienne, repara l - dizia então. - O homem desaparecerá do mundo, extinguir-se-á sobre a terra a última consciência, a derradeira testemunha lúcida. Mas estes milhares de bichinhos continuarão, no flanco da montanha, a fazer ecoar a sua música, a acasalarem-se, a prosseguir na sua aventura absurda, que é sempre a mesma, sem modificação nem finalidade, desde o começo do mundo. Já viste no Museu de Aix o molde daquela libélula da era terciária, num pedaço de rocha? É uma libélula absolutamente igual a estas que volteiam aqui, com as suas asas azuis. Porque motivo teimam em viver, no meio da chacina e do horror perpétuos, que constituem a vida? Quantos milhões de séculos sobreviverão ao homem antes da extinção de toda a existência na crosta terrestre? A vida é uma coisa horrível, uma invenção de pesadelo.

E no esplendor da tarde sussurrante, Doutreval citava a Fabienne as carnificinas, as torturas, o drama pavoroso que se esconde na terra onde, estirados, gozamos a chamada doçura da natureza : a fêmea do louva-a-deus que devora o macho enquanto ele a fecunda; a aranha que apanha a mosca, o pompílio que mata a aranha; o cercéris que, com três aguilhoadas, destrói cientificamente os três centros nervosos do bupreste e o leva consigo, para que, mais tarde, a sua larva possa consumir vivo o infeliz insecto paralisado, escolhendo o bocado que deve comer, poupando-lhe com atroz perícia os centros vitais, conservando a vida da sua vítima até à última partícula de carne. O antraz, cujo verme se prende à larva do calicadoma e a suga através da pele, secando-a sabiamente e conservando-a viva até ao fim. O filanto que, assassino da abelha, antes de levar a vítima, lhe espreme o papo, a obriga a vomitar o mel e chupa a língua que a moribunda deitou de fora.

Toda esta carnificina se passa num minúsculo recanto, e a mesma coisa se repete por toda a parte, até ao fundo dos oceanos. E os gérmenes que morrem, os biliões de grãos de pólen, de semente viva que não renascerá, o inimaginável desperdício de vida condenada à morte antes ainda de ter nascido? Estes horrores indignavam Doutreval, faziam-lhe esquecer os princípios da fé, mentirosos e salutares aos seus olhos, que ele quisera ver inculcados em Fabienne.

- Um deus! Que monstro, pois, seria esse, se existisse! Que estranho quadro é a sua criação! Uma chacina geral! Leis ferozes, bárbaras, horrivelmente inumanas: luta pela existência, eliminação dos fracos, vida que se nutre da morte, seres que comem seres e são comidos por eles, dor, sangue, crimes, tudo na sequência deste ciclo infernal! Selecção sem piedade, sem justiça, descendentes a expiarem os erros dos ascendentes, os mesmos castigos a punirem as mesmas faltas, fossem quais fossem as intenções, o equilíbrio universal mantido pela mais cruenta interdestruição das espécies... Se Deus existe, não pode ser senão uma inteligência sem coração, máquina de calcular, espírito matemático, poderoso e monstruoso, para quem a dor não conta e cujo plano gigantesco e inumano não foi feito para ser contemplado e compreendido por entes dotados de sensibilidade. O plano de Deus, plano selvático e grandioso, não deve ter previsto o acordar da consciência humana. O homem, testemunha dotada de coração e de anseios de justiça, há-de ter sido um acidente nesta evolução.

«Vê, pois, minha filha, como é para mim preferível negar a existência de Deus. A uma tal inteligência divina, soberanamente indiferente, impiedosa e má, vale mais ser adepto do nada, crer no acaso, na absurda natureza bruta, estúpida alimária que traria o homem à ilharga, como uma pulga, sem sequer o sentir. Monstro obtuso, surdo e cego, que cria ao acaso, sem ciência, e erra, e depois recomeça, perdendo-se na contradição, desde o plesiosáurio ao micróbio, chacinando, oprimindo, desfazendo, obstinando-se em esforços incoerentes, sem finalidade, mas com a desculpa, ao menos, da inconsciência. Sim, mais vale este nada. Não te parece?

Fabienne não respondia. As palavras do pai queimavam-lhe a alma como um álcool amargo e violento. Tudo se esclareceria se ela pudesse pensar: «Mas perante tudo isso há a minha revolta, a consciência que eu tenho dessa injustiça. E talvez isto é que seja Deus». Todavia, não pensava assim.

Voltavam para casa, vindo pelo lago ou pela estrada. Fabienne ia ter com os Droux, e o pai tornava a sair, dirigindo-se desta vez para Aix, onde ficava até à noite, tentando expulsar de si as ideias obcecantes que o consumiam. Isto, porém, jamais ele conseguia.

- Sim - repetia Doutreval - um deus capaz de tais horrores seria um monstro. Mais vale o nada!

O nada. E então Mariette? Também ela fora só matéria? Quando ele a tinha junto de si, quando a segurava pelos ombros, sentindo no coração o calor da ternura, quando lia nos olhos da filha tamanha devoção, não havia nisso senão aglomerados de matéria? Todo esse amor, toda essa dedicação, esse esforço para o bem que transbordava em Mariette, seria só o nada, a matéria? Ele próprio, Doutreval, aceitava-se como matéria. Conhecia-se, desprezava-se o bastante para saber que nada era. Mas a filha Mariette! Aquela bondade, aquela rectidão, aquela ternura imensa? Seria possível não ser mais que um pouco de matéria, que desaparecera para sempre? Podemos aceitar o nada para nós, mas nunca para aqueles em quem vimos o reflexo do bem e da beleza, e a quem estimámos. E todo esse sofrimento do seu coração paterno? Seria também inútil? Vão e absurdo? Simples reacção química, apenas uma pequena variação no jogo de células corticais do cérebro? Nada mais? Sofrer e saber que a nossa dor é apenas isso! Ciência! Ciência que despoja o homem «até do respeito pelo seu sofrimento», conforme escreveu Jean Rostand. Que maldição para o protoplasma humano, para essa combinação química que é o homem, tornar-se lúcido de repente, adquirir consciência! Porque não ficámos ignorantes da existência própria? Viver como animais, sem saber...

Clima asfixiante da razão, demasiado rude e frígido para o homem! A ciência é como um pináculo. Doutreval, com angústia, começava a perguntar a si mesmo se alguém poderia ali encontrar oxigénio suficiente para viver. «O reino da ciência iniciou como que uma época glaciaria na história espiritual da nossa espécie», diz Jean Rostand, esse ateu desesperado. «Não se demonstrou ainda que a alma do homem, tão friorenta, possa resistir ao clima rigoroso da razão. Talvez que a humanidade, no seu conjunto, seja incapaz de suportar a verdade da ciência. Die frõfiliche Wissenchaft l Nunca Doutreval compreendera tão bem a trágica ironia contida no título de Nietzsche. Descia em direcção ao Bourdeau. Ia buscar o carro e entrava em Aix. Anoitecia. Doutreval, a pé, atravessava a cidade luxuosa e alegre, com a sua multidão cosmopolita, os seus cafés, as suas pastelarias, os seus vendedores de tapetes orientais e os seus antiquários. Pelas grandes avenidas sombreadas de plátanos vetustos de casca ocelada como pele de leopardo, encaminhava-se ele para o Petit-Port. Aí revia o campo, as moradias dispersas entre os vastos jardins plantados de árvores frutíferas. Sobre a alta muralha do Revard o poente projectava a sua luz cor-de-rosa. E, do alto da montanha, desciam lentamente nuvens brancas que, como bolas de neve. ficavam suspensas por milagre a meia encosta da muralha de granito, por cima de Aix. Doutreval olhava com uma espécie de raiva para o esplendor daquela natureza incomparável, sumptuosa e impassível. E uma ideia singularmente revoltante pensar que todas essas magnificências, essa poesia, esses céus, esses poentes continuarão depois da morte do homem e subsistirão ainda milhões de séculos, tão regulares, variados, grandiosos e inúteis, sem que um olhar humano os contemple. Odiosa poesia, ilusória consolação de toda esta beleza, deste esplêndido quadro que terá servido de cenário à mísera e trágica aventura humana e que, muito tempo depois do fim do homem e da sua dor, lhe sobreviverá, frio, sereno, insensível, sem que nada houvesse visto, nada tivesse retido nem sentido da estranha história desta gelatina viva que um dia despertou, pensou, sofreu e morreu num canto perdido do universo, sem razão nem objectivo...

Ao longo da estrada, em frente duma quinta, estacionava uma carroça cheia da palha. Os dois cavalos, fatigados, baixavam o focinho e cheiravam o solo, soprando a poeira. Um deles levantou a cabeça e, num gesto afectuoso, pousou-a no pescoço do companheiro e assim ficaram, imóveis. Doutreval prosseguiu o seu caminho, levando a imagem dolorosa daquele animal que pousava a cabeça no pescoço do seu camarada de infortúnio. Ternura, piedade, amor, estranha afeição dum pouco de matéria por outra matéria! Eis o que é mais terrível ainda do que a inteligência - a consciência!

Esse é que era o maior drama I Não o facto de a matéria se tornar lúcida, mas de poder amar! As pombas de Mariette, os cachorros de que tratava e que, só com três semanas de existência, lhe conheciam a voz e voltavam para ela os olhos ainda leitosos, mal a ouviam falar... Aquele velho cão-d’água que um dia Doutreval levara ao anfiteatro para lhe tirar, vivo, o cérebro e fazer dele um autómato, e que, só porque o professor lhe dera de comer nos últimos três dias, se pusera a lamber-lhe as mãos enquanto Regnoult e o mestre o atavam à mesa da vivissecção... Doutreval sentira-se absurdamente comovido e, estúpida coisa, as lágrimas afloraram-lhe aos olhos.

- Para a vivissecção - dissera aos estudantes - convém amarrar com firmeza os animais, não os ter conhecido antes e também não os fitar como eu acabo de fazer. Regnoult, traga outro cão, solte este eleve-o para a sua casota. Mariette acabara por ficar com o velho cão-d’água. Sim, era esse o drama! Sofrimento e dor na matéria! Aquele cavalo, aquela pobre besta de carga que ainda há pouco, fatigada do seu sofrimento solitário, pousara a cabeça no pescoço do companheiro, quase fizera chorar Doutreval. O professor lembrava-se de Nietzsche, o destruidor, o filósofo do nada, o homem que divinizou o eu e a crueldade impiedosa, que imaginou o super-homem enfim libertado da moral e da piedade, pronto a espezinhar todas as vítimas para satisfazer a sua ambição de poderio, o seu orgulho... Nietzsche que, chegado ao termo lógico da sua terrível concepção niilista do mundo, no limiar da demência, vagueou pelas ruas de Turim alguns dias antes da crise de loucura que o levou a escrever à mãe a última carta de lucidez agonizante: «Mãe, mãe, estou louco...» No meio da sua divagação, o filósofo vê, numa encruzilhada, um cavalo atrelado que suporta, cheio de resignação, as chicotadas dum cocheiro ébrio. E o autor de Para além do bem e do mal, do Crepúsculo dos deuses e do Anticristo, o destruidor da moral, o negador da caridade, da bondade, da ternura, cede à piedade perante o tormento dum cavalo velho, perante a trágica aventura daquilo que ele sabe não ser mais do que matéria, mas que é matéria que se tornou apta ao sofrimento... Atira-se à cabeça do pobre animal, e beija-o, soluçando. Primeiro sinal do desabar dum cérebro na demência? Ou antes derradeira e suprema lucidez do génio que, em vésperas da loucura, concebe em todo o seu horror tudo o que o drama da matéria vivente contém de pavoroso?

Foi Fabienne a primeira pessoa que aconselhou a Doutreval :

- E se voltasse a trabalhar, a pouco e pouco?

Inquietava-se, via perfeitamente quanto o pai andava desgostoso e maçado. Doutreval hesitou. Nem o trabalho o atraía. Uma carta de Regnoult, cheia de recortes de jornais que não poderiam ficar sem resposta, decidiu-o a regressar a Angers, embora contra vontade.

Foi com indiferença que tornou a encontrar Ludovic Vallorge. Entre o genro e o sogro só havia agora uma espécie de mal-estar. Já não tinham nada a dizer um ao outro. Quebrara-se o laço que os unia. Quando estavam juntos invadia-os de modo vago um sentimento confuso de responsabilidade, de culpa. Vallorge anunciou a Doutreval que ia descansar um mês em Biarritz, em casa dos Heubel, e o sogro viu-o partir sem nenhum pesar.

Em Saint-Clément, Regnoult e Groix acolheram o professor com um entusiasmo a que ele não correspondeu. Nem o trabalho o arrancava ao abatimento. Para quê trabalhar? A morte de Mariette abrira-lhe os olhos sobre a vaidade de tudo. Muitas coisas que ele não compreendia outrora, mas que não o impediam de agir, aquela filosofia niilista que, noutros tempos, o não preocupava, impunham-se-lhe agora com todo o seu peso e paralisavam-no. Era como se a morte de Mariette houvesse aumentado essa força de destruição de energias.

«Porque tive filhos?», pensava Doutreval. «Umhomem como eu não devia ter descendência. Quando não se crê em nada e se procura apenas realizar na terra o máximo da nossa vontade de poderio, para quê arranjarmos o estorvo de três filhos? Fraqueza? Cobardia? Concessão da alma à parte animal, a essa necessidade estúpida, primitiva, grosseira, de nos afeiçoarmos, de amar, que temos em nós, como uma tara» ?

A própria força da acção se ressentia, ele bem o notava. Às vezes, em frente dum louco, na altura da experiência, da nova tentativa, Doutreval perguntava a si mesmo :

«Para quê, tudo isto?»

Da única coisa em que até aí acreditava, o seu trabalho, eis que principiava a descrer. Valeria, de facto, a pena restituir àquele demente a razão, a faculdade de sofrer e de compreender a nossa condição humana? Seria isso caridade?

«Se dependesse de mim não ter consciência!», pensava Doutreval. «Que é que eu procuro, em suma, senão deixar de reflectir na minha pessoa, não me preocupar comigo, não ter consciência de nada? Ser apenas máquina de trabalho! Quando venho aqui, ao manicómio, ao laboratório ou ao hospital, quando me fecho no meu gabinete e me ponho a compulsar as fichas, a redigir artigos; quando vou até à casa de Jeanne Chavot e, sem grande desejo, lhe peço um instante de prazer; quando, à noite, me deito na cama e, fatigado, pego ainda num livro, as Memórias entomológicas de Fabre ou um romance policial de Ricarda Hueh ou Agatha Christie - que busco eu senão paralisar em mim a consciência, cloroformizá-la por uma hora? As próprias leituras, a escolha dessas obras não são coisas significativas? Estudos científicos ou então enigmas policiais, em que o coração não toma parte: assim evito despertar a lucidez dolorosa para qualquer episódio muito humano e muito verdadeiro. Tal me acontecia quando era pequeno e me contavam histórias fantásticas... Não será a minha vida, a vida de todos os homens, uma perpétua fuga diante da sinistra realidade da nossa condição miserável? E quero eu despertar a consciência nesse pobre doido! Valerá a pena?

«Pensando bem, para quê tratar e curar, se no homem só existe o homem? Amedicina actual não faz mais do_que poupar_a_ajuda_aos moribundos, favorecer a sobrevivência _e a reprudução dos tarados, impelir a espécie humana para a degenerescência. Em qualquer ninhada de cachorros, conservamos só os fortes. Os espartanos abandonavam no Taígeto os recém-nascidos mal conformados; foi destarte que se seleccionou uma raça vigorosa. A humanidade, hoje, selecciona-se ao contrário. A guerra mata apenas os que são robustos. A medicina conserva os enfezados. Depois das campanhas de Napoleão, a estatura dos franceses baixou, em média, de três centímetros. Na actualidade, as juntas de inspecção isentam cinquenta por cento dos mancebos. Se o homem não passa dum animal, deviam-se-lhe aplicar os métodos da selecção animal».

Ao chegar a esta conclusão, Doutreval detinha-se, hesitante. Não se atrevia a ir tão longe, apesar de tudo. Nessa ideia, embora lógica, há qualquer coisa que nos repugna, pois levar-nos-ia a admitir, por exemplo, a existência de coudelarias humanas, com os melhores machos e fêmeas acasalados para se obterem produtos mais belos. Nenhum legislador iria jamais a tal extremo. E, no entanto, no aspecto estritamente materialista, não seria hipótese que se recusasse. Conflito insolúvel entre o coração e a inteligência, entre a consciência e a razão, e em que nós, contudo, sentimos bem ser a consciência que está do lado da verdade. A nossa Ciência toda, divinizada, não dá resposta a este problema. Será então necessário ao homem, se quiser continuar humano, alguma coisa mais do que a Ciência.

Mas há no trabalho uma parte de hábito, de automatismo, que faz com que nos abandonemos a ele sem propósito de utilidade ou necessidade. Uma vez entregue às suas experiências, entre os alienados, os assistentes, as fichas, Doutreval esquecia as suas dúvidas e angústias, a inutilidade provável do esforço despendido e do próprio êxito. O labor provoca o esquecimento, como a morfina. E ele apegava-se ao trabalho como um morfinómano ao seu estupefaciente, se bem que soubesse não lhe proporcionar senão felicidade ilusória.

Por causa da tal fractura da coluna vertebral, com morte consecutiva, Groix procedera a investigações. A conclusão a que chegara preocupava Doutreval. Em numerosos doentes restabelecidos apareciam, meses depois, dores dorsais que os forçavam a interromper de novo os seus misteres. Verificava-se frequentemente a presença de gibosidade. Na altura do tratamento, nenhuma dor fizera suspeitar desse esmagamento das vértebras. Em compensação, outros pacientes se haviam queixado de violentas dores na espinha, sem que tivessem sofrido qualquer fractura. Não existia nenhum indício que advertisse do perigo na ocasião da experiência.

Naquela semana apareceu na Revue du Pratíden um resumo em meia dúzia de linhas, que Groix mostrou a Doutreval:

«Fractura da coluna vertebral no decurso dum acesso convulsivo provocado pela curarização...

«O doutor Scillerac apresenta um doente tratado pelo curare, o qual, à segunda injecção, teve uma crise bastante violenta. Nos dias seguintes, sentiu um ponto doloroso vertebral. A radiografia indica nítida descalcificação da nona vértebra dorsal, o que decerto o tornava predisposto para aquele género de acidente.

«O autor insiste na pobreza sintomatológica e pensa que só se deve empregar com prudência o método do professor Doutreval».

- Que diz a isto, senhor doutor? - perguntou Groix.

- Coincide com as nossas observações. É o primeiro toque de rebate inquietante.

- Qual!-retorquiu Doutreval.-O paciente estava descalcificado, conforme aqui se vê: «Nítida descalcificação da nona vértebra dorsal». Scillerac é parvo! Experimentar o método nessas condições!

- Não tínhamos dado nenhuma contra-indicação!

- Evidentemente. Não se pode prever tudo. Mas isso não excluía um pouco de prudência. É certo que a curarização, com as suas contracções musculares, não convém aos desmineralizados. Pena é eu não poder estar em toda a parte, não ter um centro bem organizado onde recebesse os médicos e onde eles assistissem a experiências bem preparadas. Tudo se resolveria, se houvesse em Angers um centro de curarização! Entretanto, devo responder a Scillerac.

Dir-se-ia, porém, que os psiquiatras só estavam à espera daquela notícia para desencadearem o ataque. Antes do fim do mês, em três importantes revistas médicas francesas, apareceram artigos idênticos a denunciarem as mesmas complicações e a fazerem as mesmas reservas. Havia quem assinalasse abcessos do pulmão. E Doutreval já recebia cartas de pessoas que relatavam factos análogos ou de gente que se inquietava e pedia explicações concretas. A fractura da coluna era acidental ou frequente? Um por cento de acidentes ainda é admissível. Mas vinte por cento? Venham números! reclamavam as cartas.

Doutreval entregou-se à tarefa exaustiva de rever todos os antigos doentes. Assim era necessário. Groix mostrava-se pessimista, exagerava tudo, fazia estatísticas alarmantes. Durante todo esse mês, Doutreval extenuou-se com trabalho.

Groix chegou à conclusão de que havia quarenta por cento de fracturas da coluna vertebral. Doutreval teimou que eram quatro por cento apenas, recusando-se a levar em linha de conta, nas estatísticas, todos os casos em que existiam sinais de desmineralização. Discutiram uma tarde inteira, antes de enviarem para a Revue du Pratíden o artigo de Doutreval, que Regnoult ainda devia rever.

- Esses números são falsos! - dizia Groix.

- Não são. Visto que os desmineralizados estão excluídos do nosso método, porque os havemos de meter nas estatísticas?

- Nesse caso, apresentemos duas séries. Assim, ao menos, ficarão a saber...

- Você está doido! - exclamou o lente. - Quarenta e três por cento de fracturas! Seria um suicídio.

- Os números estão aqui.

- Os números são feitos para serem interpretados. E basta de discussões. Sou único juiz na matéria. Dê-me os seus apontamentos, Groix, e deixe-me sossegado.

Doutreval acabou o artigo, Regnoult retocou o estilo e, na semana seguinte, veio a resposta na Revue. Groix, nesse dia, foi ao gabinete do professor, com um exemplar da revista na mão, e disse em voz comovida:

- Senhor doutor, peço-lhe desculpa, mas tenho de o deixar.

Doutreval sobressaltou-se.

- Deixar-me!

- Sim, senhor. Saio da Faculdade. Renuncio à carreira do professorado. Penso estabelecer-me como médico na aldeola onde vivem os meus pais.

- Mas que resolução tão singular - observou Doutreval. - Deixar-me, depois de tanto tempo, na altura em que o êxito se aproxima, e em que poderei oferecer-lhe um lugar de evidência no centro que conto abrir... Ora diga-me cá: que aconteceu?

Groix, um pouco pálido, mostrou-lhe a revista.

- Não quero acompanhá-lo neste terreno, senhor doutor.

- Já não crê em mim?

- Acho que não devíamos defender o método com estes processos.

Pronunciou a frase em voz baixa, mas firme. Tornara-se lívido. A cicatriz parecia mais vermelha. A cara de Doutreval afogueou-se, numa onda de rubor.

- Está bem. Adeus, Groix. Não o retenho, mas estou convencido de que lastimará a sua decisão. Adeus.

Doutreval deplorou a partida de Groix. Esse rapaz alto, loiro e jovial, com a sua cicatriz e cabelos sempre despenteados, fora-lhe devotado, salvara-lhe a vida uma vez, e as suas investigações tinham sido preciosas para o êxito do trabalho. Felizmente, ficava Regnoult. E, no fim de contas, Doutreval precisaria mais, daí em diante, das qualidades de estilo, da subtileza e do brilho deste assistente do que das virtudes laboriosas daquele. Apesar da ausência de Groix, tudo havia de correr bem.

Não se enganava. O artigo deu brado e sossegou os partidários de Doutreval. A curarização continuou a ganhar adeptos, a infiltrar-se em toda a parte. A imprensa voltou a mostrar-se favorável. Os jornais parisienses pediram entrevistas a Doutreval, e uma importante firma de cinema propôs impressionar cem metros de película em Saint-Clement para exibir nos documentários o professor Doutreval «a experimentar o seu método, que restitui a razão aos dementes». E Doutreval, depois de certa hesitação, aceitou sem relutância - para bem da causa, segundo afirmou. Numa sessão interminável, durante uma tarde inteira, esteve sob a luz forte dos projectores, diante dum pano esticado entre duas colunas de pasta, com cerca de dois metros de altura. Os operadores ditavam a Doutreval os gestos e até o tom do seu discurso, e queriam a todo o custo torná-lo mais fotogénico, dissimular-lhe a claudicação... Por seu turno, Radio-Paris solicitou-lhe palestras para a T. S. F.

Tudo isto tornava Doutreval optimista.

 

Fabienne ficara sozinha em Aix. Estava, porém, habituada à solidão, pois era assim que passava quase todas as férias : Michel e Mariette só vinham de Agosto a Setembro, e voltavam para a reabertura das aulas. Fabienne, mais débil, nunca pudera frequentar assiduamente o colégio. Houve anos em que, de Maio a Outubro, vivera solitária na «Vila Graziela», sob a bondosa vigilância da senhora Droux. Decidiu-se, pois, a alugar uma barca ligeira e airosa no Petit-Port, comprou rolos de películas fotográficas, fez até Bourdeau e à abadia de Hautecombe cruzeiros aventurosos, e voltou a ser a garota bravia e feliz que era na época dos catorze anos.

o casal Droux e Fabienne nunca faltavam à missa do domingo. A igreja, velha ermida, era bastante pequena. As mulheres arrumavam-se à esquerda, os homens à direita. Fabienne, de longe, observava o senhor Droux, o qual cantava cheio de convicção, em toada muito alta, como todos os outros que o rodeavam. No rumor do cântico, Fabienne distinguia-lhe a voz :

Credo in unum Deum, Pcttrem omnipotentem...

Droux abria amplamente a boca, fitava o sacrário, como se lhe estivesse a falar, e celebrava a glória de Deus com uma segurança, uma franqueza e uma aplicação repletas de ingenuidade. De regresso a casa, parecia contente, feliz, como quem praticou uma boa acção. Ele e a mulher viviam em doce ignorância, longe da ideia do mal. Fabienne, pela primeira vez, deu fé dessa candura. Até aí isso parecera-lhe natural. Mas havia já um ano que aprendera muito da vida.

À sombra do caramanchão coberto de glicínias, Fabienne ouvia os dois velhotes falarem dos vizinhos, da política, do destino, dos vários acontecimentos, para evocarem, em conclusão inevitável, a acção da Providência, os seus sábios desígnios infalíveis. Para eles tudo estava certo, tudo era equitativo. Por toda a parte o dedo de Deus, por toda a parte a recompensa dos justos e a punição dos maus, as vezes retardadas, mas só para que o vencimento da dívida fosse mais exemplar. Desde a infância que Fabienne os conhecia assim, de modo que vivera sem surpresa no meio daquela atmosfera; mas agora olhava-os com espanto, lembrando-se do hospital, da casa de saúde, dos sofrimentos, das desgraças, das mortes imerecidas e inexplicáveis, da tranquila e imprudente imoralidade dos ricos, dessa existência fácil, impura e aceita, que o dinheiro lhes permitia, sem que Fabienne jamais visse o castigo deles ou o seu remorso, nem sequer um pouco de indulgência pelas fraquezas e pecados dos humildes, que outra coisa, aliás, não faziam senão imitá-los em muito menor escala. No entanto, tudo isso existia. O senhor e a senhora Droux ignoravam-no? Como o explicariam? Impertinente, traiçoeira, falsamente cândida, Fabienne, à sombra do caramanchão, observava:

- Todavia, senhora Droux, conheci na casa de saúde um casal de divorciados, e até mais de um, que parecia viver em harmonia, que tinha todo o aspecto de gente feliz. Os dois pares haviam-se trocado, os maridos mudado de mulher, as mulheres de marido. Visitavam-se, davam-se bem. Palavra de honra...

- É extraordinário! - dizia a dona da casa, deixando cair uma carreira de malhas do seu trabalho.

- Não compreendo teu pai - balbuciava o senhor Droux, puxando fumaças precipitadas do cachimbo. Deixar-te num lugar desses...

- Se soubesse Havia coisas piores...

E contava histórias de morfinómanos, de mancebias, de adultérios, de inversões sexuais, de abortos... A senhora Droux mandava-a calar, e o marido, engasgando-se com o fumo, preferia ir regar as couves e as alfaces, a fim de não escutar semelhantes relatos. Fabienne ficava um tanto surpreendida do efeito que produzira. é claro que, no início do seu estágio na casa de saúde, também experimentara impressão semelhante; mas havia já muito tempo que o hábito a embotara. Não mais sentira a náusea dos primeiros dias. A tudo nos acostumamos, por mais monstruoso que seja. Para Fabienne, o horror de tudo isso quase não avultava. O «êxito» obtido assim junto da família Droux deixara-a admirada: não esperara que o resultado fosse tão completo...

Certa manhã a senhora Droux veio chamar Fabienne ao extremo do prado.

- Está cá uma pessoa que te quer falar! Uma visita!

- gritou ela de longe.

Descalça, de forcado na mão e grande chapéu de palha na cabeça, a rapariga acorreu e deu de cara com Guerran.

Este chegara na véspera, soubera que os Doutreval se encontravam ali e apressara-se a visitá-los. Não tardou em conquistar a senhora Droux com as lisonjeiras apreciações que lhe fez aos queijinhos duros e o senhor Droux com a revelação do sabor raro que lhe descobrira no vinho extraído daquelas latadas. Até bebeu leite de cabra acabado de mungir! A dona da casa ficou espantada ao ver um ex-ministro condescender em devorar tantas cerejas, como um simples mortal. Quando ele partiu, à tarde, era já amigo íntimo do casal.

No hotel, Guerran encontrou-se de novo com Julienne e Micheline. O filho ficara em Angers para, na ausência do pai, «dirigir» o escritório, conforme dizia. Julienne passara aquele dia segundo o seu costume, a passear em Aix, visitando lojas de judeus, ourivesarias e salões de chá onde se dança. Comprara um anel de avantajada cornalina, encomendara uma alcatifa e regressara aborrecida com tudo o que vira e desejara sem poder adquirir. Micheline, que a mãe arrastava consigo para toda a parte, maçara-se horrivelmente. Quisera passar a tarde na praia, alugar uma lancha-automóvel e fazer desportos náuticos, mas Julienne não acedera. Havia dois dias que Micheline não recebia carta do noivo. Guerran prometeu à filha levá-la no dia seguinte ao lago. De caminho, passariam pela rua onde ficam as termas e veriam a tal estola de raposas que tanto seduzira Julienne. Esta, como Micheline, perdeu um pouco do seu mau-humor. Depois do jantar, mandou chamar o automóvel do hotel para a conduzir ao casino. Olivier Guerran conseguiu, porém, ficar com a filha, recorrendo à artimanha de se fingir muito interessado pela gola de marta que ela vira no peleiro.

Daí por diante, Guerran foi, duas vezes por semana, cumprimentar os moradores da «Vila Graziela». Saía do hotel, atravessava a cidade, alcançava o Petit-Port e de lá se dirigia para casa dos Droux. O som já familiar da sineta da porta alegrava-o de modo estranho. Às vezes, Fabienne não estava. Fora remar para o lago e só regressaria à noite. Guerran esperava-a, conversava com o senhor Droux, evocando recordações da guerra, de Verdun, onde ambos tinham combatido. E, se bem que nesses dias só visse Fabienne durante uns instantes, Guerran sentia-se contente, tinha a impressão de que passara uma bela tarde. No fundo, o que ele procurava não era a companhia duma rapariga que o tratara bem, com quem ele simpatizava bastante, mas que, apesar de tudo, era ainda uma garota, uma criança... Devia-se antes supor que a sua satisfação provinha daquela calma, daquela paz, daquela simplicidade rústica e da atmosfera acolhedora, sincera, natural, da «Vila Graziela». Mas, quando Fabienne estava presente, tudo lhe parecia ainda mais alegre, mais repousante. Em certas tardes, em vez de ficarem com os Droux, iam os dois de passeio até Tresserve, subiam por uma vereda íngreme, através dos campos e das matas, até ao ponto alto donde descobriam, a seus pés, a límpida esmeralda do lago, as barracas vermelhas e brancas, a multidão liliputiana dos banhistas. Mais longe, as águas tomavam cambiantes de azul-marinho. As margens distantes do Bourdeau, de Hautecombe, com os seus pedaços de verdura, os seus choupos delgados, as suas casas de tectos rasos evocavam, vistas na transparência do ar puro e calmo, o esplendor dos lagos italianos. Junto da pedra erigida à memória de Elvira, Guerran e Fabienne sentavam-se num banco. Ele falava do génio, da glória, de todas as outras coisas vãs. Obcecava-o a ideia da inutilidade, que o deixava triste e pensativo. E ela então dizia:

- É esquisito, no senhor! Tem obtido tudo da vida, tem triunfado, é conhecido, é célebre, foi ministro e há-de voltar a sê-lo... e está triste! Melancólico como um vencido! Não o compreendo, senhor Guerran.

- Olhe, Fabienne, os outros podem ainda ter esperança. Se não conseguiram êxito, resta-lhes ao menos a crença de que valeu a pena lutar. E eu...

- Mas não lhe faltaram prazeres na vida.

- Sim... O prazer de deslumbrar, de causar inveja, de inspirar ódios... Quando penso na mesquinhez das pequeninas satisfações que a gente se esfalfa por obter! Para quem não tem fé, nada vale a pena dum esforço. Nada! Nem dinheiro, nem poder, nem glória, nem sequer sabedoria! Para fazer seja o que for é preciso fé, acreditar que existe outra vida para além desta. Porque então aceitamos a vaidade de tudo, visto que se espera outra coisa, que o nosso objectivo é outro que não o deste mundo E eu, que não tenho crença nenhuma, sinto-me obcecado pela ideia da inutilidade de tudo: trabalho, amigos, família...

- Tem a sua profissão...

- Pois tenho. Mas até o próprio trabalho não é mais que vaidade, Fabienne. É um álcool, um ópio. Seria necessário trabalhar com outra mira que não a de nós próprios... Ter fé...

Contou a história do seu casamento, como conhecera Julienne num café e como se lhe prendera, porque a madrinha mostrara desejo de o ver casado. Guerran falava muitas vezes da senhora de Nouys, da sua ternura e piedade, e da influência que tivera na sua vida.

- Mantinha duas ligações ao mesmo tempo - disse Guerran.-Julienne e uma rapariga que eu cortejava em Paris e que era de boa família e bem educada. Esta é que eu preferia, com quem gostaria de casar. Mas Julienne dera à luz um filho, o meu Charles... Falei nisso à madrinha e ela discutiu o caso comigo. Chegámos à conclusão de que devia sacrificar-me, legalizar a minha situação com Julienne, por causa do pequeno. Concordei, para lhe ser agradável. Mas foi uma loucura, uma grande tolice que me levou a fazer. Não chego a perceber como consenti em tal coisa! Suponho que, graças à minha velha madrinha, todos se imolariam com a maior naturalidade. E durante a guerra? Se soubesse quanto me amparou! Se cumpri todo o meu dever, e talvez um pouco mais, foi devido a ela. Era uma criatura extraordinária. Educara-me a seu modo. Mas, depois do meu casamento, perdemo-nos de vista. Julienne não lhe podia ouvir pronunciar o nome; tinha-lhe ódio, não sei bem porquê... No entanto, devia ser-lhe grata. Calculo que fosse por inveja ou despeito de a ver noutro nível mais alto, demasiado alto... Vivemos como pudemos. Micheline veio ao mundo. Julienne continuou a sugar-me todo o dinheiro que eu ganhava, a discutir, a dar ordens... Ah, a vida conjugal! E sempre a mesma coisa, mais ou menos, em toda a parte. Os casais felizes contam-se pelos dedos. Viu isso na casa de saúde. Por fim arranjei uma amante. Mulher rica, nada estúpida. A ligação durou seis anos. Depois deixei-a, por causa de Micheline, que ia crescendo e a quem minha mulher seria capaz de contar tudo. Por nada queria perder Micheline, tanto mais que Julienne se apossara de Charles. Disse de mim para mim : «Guardarei a pequena. Será só minha». Por isso rompi. Com pena? Alguma, naturalmente. Ela também sentiu, e mais do que eu, suponho. Gostava muito de mim, à sua maneira. À maneira de toda a gente. Quer dizer que se adorava em mim. Charles? Não, não abriu a boca. Eu tinha-o comprado. É isto mesmo: comprado. Um relógio de ouro e licença para fumar. Foi fácil. Compreendíamo-nos. Demais a mais ela era rica, falava em arranjar colocação para Charles, em ajudar-me... Charles sabía-o. Estes factos tornaram-no indulgente. Não é que fizéssemos confidências uns aos outros. Mas há coisas que se adivinham. No fim de contas, os amores dos homens não significam senão desejo de domínio. Egoísmo. Amamos por satisfação própria. Sempre.

- Quase sempre - concordou Fabíenne. Guerran ficou calado uns momentos, olhando ao longe as águas azuladas e calmas, onde um barco de vapor, grande, branco e lento, se dirigia para Hautecombe, sob um penacho de fumo escuro.

- Sabe o que já tenho pensado, Fabienne? - volveu ele por fim. - Devia ter casado com uma pessoa no género da minha velha madrinha. Sim, como a senhora de Nouys. A minha vida seria muito diversa do que é. Sentir-me-ia capaz de agir melhor, até de ser fiel à companheira, contanto que ela fosse semelhante à senhora de Nouys e me dedicasse um amor pouco egoísta, que só pensasse em mim, no meu bem... Então eu estaria disposto a tudo, porque acreditaria nalguma coisa, em alguém! No fundo, devo ser um idealista falhado, que jamais se consolará da sua falta de fé. Crer! Crer seja em que for! Ser pessoa para agarrar numa espingarda e avançar determinadamente para a morte, só porque acredita na verdade duma causa! Na realidade, nunca me senti tão feliz como durante a guerra! É esquisito, não é? Nunca lhe disse que Julienne me foi infiel? Pelo menos uma vez, disso tenho eu a certeza. E talvez noutra ocasião, em Biarritz, enquanto eu estava em Angers, esfalfando-me a trabalhar para ela.

É certo que eu nesse tempo tinha a tal ligação... Recebi uma carta anónima... e nem me incomodei a ir verificar... Mas talvez a Micheline não seja minha filha... Admira-se? Está espantada? Ora repare: os olhos dela não são parecidos com os meus, nem com os de Julienne; e os cabelos, loiros, magníficos? Julienne veio de Biarritz, intempestivamente, apareceu-me em casa a meio da noite. Paixão súbita...’NO dia seguinte, foi-se, partiu de novo... Ficou comigo o tempo necessário para que eu não chegasse a desconfiar... E Micheline nasceria de sete meses... Mas isto não me apoquenta. Não tem importância, afinal...

Guerran teve de voltar a Angers, por três semanas. Aí se encontrou duas vezes com Doutreval. Falaram muito de Fabienne. Doutreval regozijou-se. O outro podia servir-lhe de poderosa alavanca no dia em que se oferecesse oportunidade de realizar o projecto do centro de curarização. Era uma coisa de que Doutreval sentia cada vez mais a premente necessidade. O método por ele descoberto mostrava-se mais delicado do que a princípio supusera; exigia maior prudência, não prescindia de observações prévias nos doentes... Urgia a criação dum centro onde os psiquiatras assistissem aos trabalhos e tomassem parte neles. Faltava, no entanto, o local e o dinheiro, ou seja, o essencial. E durante esse tempo um farsante como Gaffiaux, presidente da Mutualista Operária, construía um hospital faustoso, que iria fazer ruinosa concorrência a todas as casas de saúde do país. E Doutreval pensava:

- Se eu ao menos tivesse a quarta parte do que tem custado esse palácio!

Como Fabienne viera à balha na conversa, o pai ficou a pensar nela e censurou-se de a haver abandonado um pouco. Para se penitenciar, resolveu ir por uns dias a Aix.

Encontrou a rapariga inquieta, melancólica, vagamente triste sem razão. No seu nervosismo, apegou-se ao pai, pediu-lhe que ficasse em Aix até ao fim da estação, propôs-lhe uma viagem aos lagos italianos Como e Garda, que vira uma vez, na sua infância. Doutreval teve de ser áspero, ralhou com a filha, falou-lhe dos trabalhos que o absorviam. Fabienne possuía excesso de leituras romanescas. Devorara Stendhal. E a Chartreuse de Parme, com a sua pintura desenvolta, magnífica e amoral da vida italiana, dera-lhe volta à cabeça.

- Então regressemos a Angers. Leve-me consigo. Quero ajudá-lo na sua tarefa.

- Mais para diante - volveu Doutreval. - Só daqui a seis meses é que precisarei da tua ajuda.

Em seis meses deveria vencer o obstáculo imprevisto que lhe surgira pela frente. Até lá, pouparia a Fabienne o espectáculo das suas dificuldades, dos seus malogros.

Voltou só a Angers e recomeçou as experiências com o auxílio de Regnoult. Nas críticas que lhe haviam dirigido, havia um fundo de verdade inegável: as fracturas da coluna vertebral eram bastante frequentes. Simples questão de aperfeiçoamento, mas deveras delicada. Em primeiro lugar, era indispensável um exame rigoroso dos doentes, antes do tratamento, coisa que Doutreval descurara. Os velhos, os anémicos, os desmineralizados, assim como, ao contrário, os indivíduos de musculatura forte, corriam perigo de fracturas se fossem submetidos àquele método. Os outros todos, durante o tratamento, deviam ser vigiados com regularidade pelos raios X a fim de se revelar a menor complicação surgida. Além disso, Doutreval procurava variar as doses, estabelecendo o mínimo possível para cada caso, o que era, afinal, muito difícil de fixar. Havia doente que ficava insensível a uma injecção de dez centímetros cúbicos; e outro em quem um centímetro bastava para desencadear de súbito uma crise tremenda. Regnoult, por seu lado, estudava outros couvulsivos, ensaiava triazol, azoman, tentava abrandar os esforços musculares com veronal ou gardenal, propunha-se, antes da experiência, fortificar o tecido ósseo do doente por meio de doses maciças de fosfato de cal irradiado. Por então, experimentava uma coisa nova: injectar na coluna vertebral do louco, antes da crise, uma porção de anestésico destinado a paralisar por algumas horas os músculos e impedir as contracções. Mas ainda era cedo para se pronunciar sobre o resultado de qualquer desses ensaios.

Doutreval convencia-se às vezes de que fora um tanto precipitado. A vaidade arrastara-o. Gritara vitória cedo demais. O êxito era menos completo e menos definitivo do que julgara. Havia muitos doentes que não podiam ser tratados sem perigo. Para os outros, o método tinha de ser ainda muito bem revisto. Doutreval estava, é certo, em pleno triunfo, o concerto de louvores e o entusiasmo eram unânimes. Ele, porém, sabia que a sua descoberta não estava isenta de imperfeições. Quando ainda ninguém o suspeitava, já Doutreval andava desconfiado. No fim de contas, não chegaria a curar senão vinte por cento dos seus esquizofrénicos, o que já seria óptima percentagem. Não há nada de absoluto em medicina. Mais não se lhe podia exigir. Contudo, nada disso o satisfazia; não era com isso que ele tinha sonhado.

Guerran voltou sozinho a Aix três dias depois da partida de Doutreval. Julienne e Micheline haviam ficado em Angers, pois a rapariga tinha de reentrar no colégio em Outubro. Estava muito atrasada; só acabaria o liceu no ano seguinte.

Até então, em Aix, Guerran frequentava principalmente o casino e os seus arrabaldes luxuosos, risonhos e mundanos. Fabienne dera-lhe a conhecer Tresserve, indo pelas veredas e caminhos íngremes. Foi ela quem lhe acabou de revelar Aix. Levou Guerran ao mercado. E ele, em cabelo, de calças de flanela e camisa de gola aberta, deliciosamente anónimo, saboreava o requeijão e os bocadinhos que as vendedoras, num golpe habilidoso, cortavam dos queijos para ele provar.

Tudo lhe parecia magnífico, precioso, raro : aves, frutas, ovos... Entusiasmava-o um cacho de uvas emoldurado de parras, ou duas lindas pêras maduras na sua cama de feno seco, ou meio quilo de manteiga pacientemente esculpida com a ponta da faca... Apetecia tudo, largava Fabienne de vez em quando, e vinha carregado de chicória, de estragão, de morangos, com um ramo de ciciamenes, um cabaz de amoras ou um favo com o mel ainda aprisionado, como uma luz líquida, nos alvéolos de cera hexagonais e perfeitos. Aparecia radiante com todas aquelas coisas frescas, perfumadas e silvestres que nunca vemos a vender nas cidades. Então Fabienne erguia as mãos ao céu e ralhava, porque ele não regateara na compra.

Muitas vezes, à volta das suas digressões, desprezava a comida requintada do hotel. Aceitava o convite da senhora Droux, e almoçava, com os moradores da «Vila Graziela», salada de ovos cozidos, um prato de cogumelos acompanhados de echalotas, queijo e pêssegos.

A tarde, iam para o lago, remavam ambos, atravessavam o Bourget de lês a lês, até à base do Dent du Chat. Aí, aos pés da montanha, junto da margem arenosa, ficavam parados a conversar, ao embalo das águas. Guerran, mais uma vez, evocava a sua madrinha, a senhora de Nouys, descrevia-lhe os hábitos, as palavras, os vestidos, a maneira de andar e de viver, e tudo quanto ela fizera pelo afilhado. Tudo isso, àquela hora e naquele cenário, lhe era grato recordar. Mas de repente, num gesto largo, repudiava o passado, encolhia os ombros e dizia:

- Vamos, Fabienne. Vamos colher amoras. Sempre é mais útil.

No último dia o mau tempo apanhou-os em pleno Bourget. Guerran devia regressar a Paris dentro de doze horas. Estava pensativo, calado. Quando o barco chegou a meio do lago, levantou-se bruscamente o vento sudoeste com o seu bafo húmido e quente. Em três minutos tudo aquilo se transformou. Invadiu o céu um bando de nuvens negras, com desconcertante rapidez. A luz tornou-se dum tom de amarelo sujo, depois cor de cinza, lúgubre. à pressa, deram meia volta, remando a toda a força e dirigindo-se para o norte. Uma vez por outra entrava uma onda pela popa, o que tornava o barco mais pesado. O lago já não era senão um tumulto de vagas em todos os sentidos, um caos fuliginoso onde não se distinguia nada. Só tinham para se orientarem o vento que corria de sudoeste para a praia e ajudava os tripulantes ao mesmo tempo que os ameaçava. Quando a embarcação, meio submersa, entrou nas águas calmas do Petit-Port, Guerran enxugou a testa e respirou. Assustara-se, por causa de Fabienne. Saltaram em terra, olharam-se e sorriram no meio do vendaval.

Guerran, pela avenida que margina o lago, quis acompanhar Fabienne até casa. Sobre o asfalto, na folhagem espessa dos plátanos e no lago cinzento e encrespado, caía um aguaceiro. Foram andando debaixo das árvores, donde tombavam gotas pesadas e contínuas. Fabienne, em cabelo, tiritava na sua blusa fina e encharcada. Guerran, que trouxera vestido um impermeável, lançou-lho sobre a cabeça e os ombros, o que a preservou da chuva e do vento. Mas foi a vez de Guerran tremer de frio, pois estava sem chapéu e de camisa de meia-manga. Fabienne arranjou-lhe espaço sob o impermeável e forçou-o a abrigar-se ali o melhor possível. E assim caminharam os dois de braço dado, em passo ligeiro, protegidos pelo impermeável, enquanto a chuva lhes pingava sobre a cabeça e açoitava o lago agitado e coberto de brumas espessas, que passavam como fantasmas. Guerran, a princípio, ria, gracejava, e trauteava marchas que lhes ritmavam os passos. Depois, calou-se, deixou de cantar e de falar, à medida que se aproximavam da «Vila Graziela». Fabienne também não dizia nada. Guerran, de coração oprimido, pensava na sua partida, em tudo o que ia terminar daí a instantes, nessas horas doces passadas à beira do lago e nessa estranha fase da sua vida, que dentro em breve não seria mais que uma bela recordação impregnada de melancolia. Pensava no adeus que Fabienne lhe diria, certamente à porta de casa, sob a catalpa de largas folhas, e sentia um vago desejo de chorar.

A chuva cessara. Guerran saiu de baixo do impermeável e continuou a andar ao lado de Fabienne. Chegaram ao Sierroz. Atravessaram a ponte, voltaram à direita e caminharam ao longo da ribanceira, seguindo por uma vereda que muito apreciavam, entre juncos e canaviais. Bruscamente, Guerran deteve-se. Fabienne, admirada, parou também e olhou para ele.

- Fabienne - disse Guerran, contendo o tremor da voz - vamo-nos separar aqui.

A rapariga não respondeu. Ele prosseguiu :

- Acabou-se... Não a tornarei a ver... Foi para mim uma camarada, uma bela companheira. Não é preciso dizer-lhe quanto bem me fez, que dias agradáveis me proporcionou e que boa recordação levo de si. Agradeço-lhe...

- Também eu - balbuciou Fabienne - também eu... gostei muito de o encontrar aqui, senhor Guerran.

- Sim, bem sei... Mas você é nova, representa a mocidade. Para si, nada disto terá grande importância. Umas férias agradáveis, e pouco mais. Para mim, foi outra coisa. Outra coisa...

Calou-se um instante. Fabienne esperou, silenciosa.

- Muitas vezes lhe falei da minha madrinha - continuou ele. - Contei-lhe os meus pensamentos, os meus pesares e a impressão que eu sempre tinha, ao lembrar-me dela, de haver estragado a vida e a felicidade. Agora, ao deixar esta terra, este monte, este lago, levo comigo a sensação de que, pela segunda vez, estive próximo da felicidade sem a poder atingir, de que tornei a falhar na vida... Digo-lhe tudo isto, muito simplesmente, porque não é possível más interpretações das minhas palavras, porque um abismo nos separa, porque a Fabienne é nova e eu sou velho... Por isso lhe posso falar assim e evocar os meus sonhos na sua presença, o que seria impossível se fôssemos da mesma idade, se, por um capricho do destino, nos encontrássemos aqui há vinte anos,.. Compreende-me, não é verdade? Não a ofendo?

- Não... - murmurou Fabienne, em voz quase imperceptível.

- É uma lamentação, e nada mais. A lamentação dum homem já velho que vê passar diante dele uma juventude cheia de promessas e que, com certa tristeza, diz para si mesmo, recordando-se do passado: «Aquele que tiver por companheira esta criatura será forte e feliz...» Só isto e nada mais. Falo-lhe assim porque me seria penoso, ao partir, não lhe agradecer o bem que me fez.

- O bem?

- Sim. Já se não acredita em nada, o mundo revelou-se-nos hediondo, só encontramos egoísmo, egoísmo de ambição, de dinheiro, egoísmo da família, egoísmo do amor... Perdeu-se a fé em tudo e, de repente, topa-se com uma face humana. Alguém, cuja sinceridade, rectidão e amizade ressuscitam o enigma, que de novo apresenta o problema, todo o problema do nosso destino; esse alguém é a Fabienne. Incutiu-me esperança em qualquer coisa. É preciso perdoar o que eu sou. Se eu a conhecesse mais cedo, se as nossas existências tivessem seguido lado a lado em vez de se cruzarem, eu seria outro homem, por sua causa. Invejo aquele que você há-de escolher, porque o tornará feliz. Quando tiver vontade de duvidar dos homens, evocarei a sua imagem, Fabienne...

Recomeçara a andar, de cabeça baixa, entre os canaviais. A chuva voltara, molhando-o, sem que ele a sentisse. E Fabienne ia também de cabeça pendida e olhos no chão, pensativa...

- Só mais dez passos - disse ele. - Faltam cinco... acabou-se... Adeus, Fabienne... Obrigado... Oxalá seja feliz, que bem o merece... Lembrar-se-á do seu velho amigo Guerran? Eu... eu... nunca mais a esquecerei. Será a mais bela recordação da minha vida... a imagem do que deveria ser o meu destino... Vamos! é altura de nos despedirmos. Um aperto de mão, Fabienne...

Olhava-a bem de frente e sorria-lhe, se bem que um tanto pálido. Fabienne, porém, em vez de lhe estender a mão, tomou-lhe o braço e murmurou:

- Mais uns cem metros... Até à volta do caminho...

- Pois sim! Prolonguemos o suplício - gracejou ele,

heróico.

Voltou a abrigar-se sob o impermeável e assim foram juntos até ao sítio onde a vereda, num rodeio, se embrenhava no prado. Chegados aí, Guerran parou.

- Fabienne, terminou a suspensão da pena.

A voz tremia-lhe, nos olhos transparecia-lhe sofrimento e angústia, mas sorria ainda, corajoso até ao fim. Estendeu-lhe as mãos abertas, duas mãos francas e ardentes... Fabienne agarrou-as e esteve uns instantes imóvel, fitando-o com ar estranho. Depois, puxou-o lentamente para si e apoiou a cabeça no ombro de Guerran, que ficou maravilhado, doido de alegria.

 

Em pleno centro da cidade, a casa do doutor Gaspard Becquerel, deputado por Nord, camarista, médico dos hospitais, apresenta uma fachada imponente. Michel toca a campainha. Uma criada acompanha-o a uma sala moderna, onde há dissonância de mau gosto entre as poltronas de mogno avermelhado estofadas de brocado castanho e o cor-de-rosa vivo das portas e janelas. É a própria senhora Becquerel - mulher baixa e rechonchuda, de mãos plebeias quem, um minuto depois, vem pôr termo ao inventário de Michel.

«Uma antiga cozinheira», dissera Seteuil a Michel. «A maior tolice de Becquerel».

Percebe-se isso logo às primeiras palavras da mulher do médico :

- Ah! O senhor é que é o substituto? Bem, bem. Se pudesse começar amanhã, era uma grande coisa... O Gaspard foi esta manhã para Paris. Tem de comparecer na Câmara. E com um trabalhão aqui! é de a gente ficar maluca! Então até amanhã. Ou pode ser já esta tarde?

- Cheguei há pouco de Paris com minha mulher explica Michel. - Tenho de instalar o meu consultório e algumas visitas a fazer aos colegas...

- Nesse caso, apareça amanhã de manhã. Venha por aqui - diz ela, precedendo-o no corredor.

- Vou-lhe mostrar o consultório de meu marido. Aqui está a chave do armário dos livros...

Interrompe-a um barulho infernal. Soprando numa corneta de madeira, passa a galope um pequeno de dez anos, que dá um encontrão em Michel e empurra a senhora Becquerel de encontro à parede.

- Riri! Riri! - grita ela, tentando dar-lhe um tabefe. Mas o garoto já vai longe e prossegue na sua marcha

triunfal nas profundezas do corredor.

- Cá está o consultório - informa a senhora Becquerel.

- A sala-de-espera é ali ao lado. Os clientes são quase todos operários... O senhor doutor Becquerel -ajunta a mulher como se falasse a um criado - é muito popular. Pois então! Deputado e vereador da Câmara Municipal! Não é preciso perder muito tempo com essa gente. O que eles querem é a sua receitazinha, e quarenta soldos, quando se trata dum acidente de trabalho. Já o previno de que, nas visitas principalmente, os tem de obrigar a pagar logo. Conheço-os de ginjeira, sou eu quem lida com as contas.

- E se não tiverem dinheiro?

- Não lhes passe a receita. Pode fazer a coisa muito simples: não lhes dê a receita sem receber os quinze francos da consulta. Percebeu? Ah, já me ia esquecendo : para os dos seguros sociais, com acidentes de trabalho, passe receitas compridas... Sessenta a oitenta francos... E até cem e cento e vinte.

- Porquê?

- Porque eles lá se entendem com certo farmacêutico do seu conhecimento... Então até amanhã, senhor Morouval.

- Doutreval.

- Ou isso, Doutreval... Até amanhã.

No comboio que o leva para os arredores do centro industrial, Michel começa a perguntar a si mesmo se não teria sido melhor recusar aquele lugar de substituto.

O eléctrico deixa-o no término da linha. No subúrbio, já meio urbanizado, vê-se uma ou outra quinta, prados, e antigas casas de campo escondidas ao fundo da mata. A residência do velho doutor Richebourg, falecido há três meses e a quem Michel veio suceder, fica situada no fim duma azinhaga ladeada de salgueiros. é construção dum só piso, onde todos os quartos se seguem de fio a pavio: cozinha, casa-de-jantar, sala, escritório, iluminados das duas bandas por janelas que, a oriente, dão para o caminho, e, a ocidente, para a antiga horta, cercada duma sebe de espinheiros. Pelas janelas dos quartos descortina-se ao longe a cidade de mil chaminés, que lançam espirais de fumo negro, e, do outro lado, a ondulação dos campos até à fronteira belga, muito próxima; mais além, a planície do país vizinho, matizada de cazinhas de tijolo cor-de-rosa vivo.

A moradia, com o seu quintal, assim isolada e dominando toda aquela terra, tem um encanto muito especial, um tanto selvático. Mas a clientela apreciaria isso?

- O sítio não é mau - dissera Seteuil. - Há muitos operários que vão trabalhar fora... E há também a fábrica de destilação Lavaisne, a moagem Hesdelot, a fábrica de fiação Lausefeld... Tudo isto te proporcionará uma primeira base de trabalho.

Michel, pela azinhaga marginada de salgueiros, entra em casa. Êvelyne está na cozinha, forrando de papéis limpos as prateleiras dos armários. Beija o marido, observa-lhe a expressão, para ver se ele vem contente, e tranquiliza-se: Michel ri, parece satisfeito. E também ele vai arrumar os seus poucos livros em estantes de pinho envernizado que dispôs no escritório, enquanto não possui uma biblioteca como a que tem o colega Seteuil: de madeira de olmo, grande, imponente, cheia de edições raras.

De tarde, Michel inicia as suas visitas de cortesia aos colegas da terra. Primeiro a Rosselet, decano dos médicos do cantão, homem já muito velho, digno e grave, que continua a exercer a clínica apesar dos seus setenta e três anos; não é raro vê-lo, nessa faina, a pé, apoiado à bengala

- por amor da profissão, diz ele, mas na realidade porque precisa de ganhar a vida. Acolhimento cordial e reconfortante, deveras comovedor numa pessoa dessa idade, tão cheia de preocupações.

O doutor Templemars mostra-se menos caloroso. Por muito ânimo que um homem tenha é sempre inquietante ver chegar um novo concorrente, quando já é tão difícil manter-se. Contudo, esforça-se por ser amável. Mas o seu pessimismo reaparece sem que ele o queira :

- Vai encontrar dificuldade em governar a sua vida, tal como nos acontece a nós, que já cá estamos há muito tempo. O hospital e os dispensários roubam-nos a clientela. Até os ricos pretendem tratamento gratuito... Sem falar dos curandeiros, do «feiticeiro» Breuil, que faz mil francos por dia, a hipnotizar os doentes, e do herbanário Maufray, que vende tisanas contra a incontinência de urinas, reumatismo, doenças de senhoras e doenças do sangue... Além destes, temos o boticário da rua Foch, que se tornou radiestesista e trata os clientes suspendendo-lhes um pêndulo por cima da barriga e impingindo-lhes não sei que drogas radioactivas. Não, não falta aqui concorrência! O colega verá.

De passagem, Michel visita os farmacêuticos Vansteger e Massouart. Fiel à recomendação que lhe fizera Domberlé, não se esquece de lhes dar alguns esclarecimentos quanto à redacção das suas receitas. E explica a Vansteger, de acordo com as indicações recebidas de Domberlé:

- Tenho por costume poupar os doentes, medicá-los o menos possível. As minhas receitas vão surpreendê-lo pela modéstia das doses, quantidades que o senhor há-de achar exageradamente pequenas... Peço-lhe que não se admire, que execute assim mesmo as prescrições... No fim de contas, só tem a ganhar com isso, pois que, por igual preço, fornecerá menos quantidade de remédios. Estamos entendidos, não é verdade?

- Sim, senhor - responde o boticário, que parece criatura inteligente. - Aliás, aqui entre nós, não gosto muito desses que abusam do formulário. Pretendo ganhar a vida, mas não a intoxicar os meus semelhantes.

Quanto ao radiestesista Massouart, dá a Michel a impressão dum homem de bem, infelizmente implicado em histórias de pêndulos e de bruxarias. É bastante sincero. Acerca de ondas e varinhas, tenta principiar uma discussão, à qual Michel se esquiva...

No dia seguinte, de manhã, ei-lo em casa do doutor Becquerel, às oito horas. A senhora Becquerel entrega-lhe as chaves da garagem e do automóvel e dá-lhe uma lista de pessoas que precisam de visita urgente. Michel traz para fora o carro - o carro democrático do médico-deputado - e põe-no em movimento.

A primeira doente, uma rapariga de dezassete anos, é operária da fábrica de fiação. Tentou um aborto, de cumplicidade com a mãe. Esta insiste por uma operação imediata. Hospital com a pequena.

Agora uma entorse. Depois bronquite, hérnia estrangulada. Tudo gente miserável, em cubículos sem higiene, naqueles pátios tortuosos do centro da cidade. Camas suspeitas, camisas rotas e sujas, pés imundos... Hospital, hospital, hospital com todos eles. Mais nada a fazer. Nem dinheiro, nem tempo, nem espaço, nada nesses casebres que permita tratar um doente nem que seja durante vinte e quatro horas. Estranha clínica! Quando se começa, não se vê este aspecto da profissão...

Na entrada dos pátios, quando o médico chega, surgem cabeças às portas, figuras esquisitas, em andrajos. Depressa o rodeiam.

- Quem é este gajo?

- Onde é que ele vem meter o nariz?

Michel anuncia, para tranquilizar os circunstantes:

- Sou o substituto do doutor Becquerel.

- Ah! Está bem!

Afastam-se. Deixam-no seguir o seu caminho.

No extremo dum desses agrupamentos de casebres levam-no à presença dum indivíduo completamente bêbado, semimorto, estirado num mar de vómitos. A família reclama a sua entrada no hospital. Michel recusa. Acodem os vizinhos. Daí a pouco está o médico cercado por uma multidão hostil que exige a hospitalização do ébrio. Sobe o tom das vozes. Nos olhares há ameaças evidentes. Cinquenta pessoas que discutem e se excitam umas às outras. Os homens brandem os punhos na cara de Michel. A mulher do outro médico não dera instruções relativas a casos desta ordem. Michel cede, assina a requisição. E o círculo alarga-se, para o deixar sair.

Mais tarde, pensa em telefonar ao hospital.

- A ambulância já partiu, senhor doutor - responde-lhe um empregado. - Mas não tem importância. Obrigado, já compreendi...

- Que vai fazer?

- Ah, esteja sossegado! Despeja-se o homenzinho numa berma, fora da cidade. Estamos habituados a fazer isso.

Pela tarde, no consultório de Becquerel, começa a atender a clientela. Um servente de pedreiro que tem o «punho aberto», um operário que sofre de «rim descaído». Diversos doentes portadores de lesões invisíveis e inverificáveis. Não se contentam senão com uma receita longa, recheada de coisas, unguentos, algodão, flanela. Em seguida irão procurar um farmacêutico sem escrúpulos (bastante conhecido e apontado em toda a região) que lhes dará vinte francos em lugar dos remédios e receberá oitenta francos de reembolso, da companhia de seguros. Terminada a consulta, ficam de mão estendida, admirando-se de o novo médico lhes não dar quarenta soldos. Era este um dos ardis de Becquerel, essa gorjeta destinada a canalizar para o seu consultório todos os sinistrados, toda a clientela das companhias de seguros, à custa das quais ele vivia.

Em seguida vem uma cachopa do povo, acompanhada da mãe. Michel faz rápido exame e participa :

- Segundo todas as probabilidades, contraiu sífilis... De repente, um grito da mãe identifica o responsável :

- Foi Albert!

Discutem em língua estrangeira, durante muito tempo, até que o médico se vê obrigado a empurrá-las delicadamente para fora da sala.

Outros doentes, outros sinistrados, homens, mulheres, humanidade pobre cujo cheiro a suor, por fim, enche o consultório, já de si quente e mal ventilado. Para acabar, uma rapariga de ar atrevido, que quer saber se está grávida. Está.

- Então - diz ela- «vai-mo desmanchar».

- O quê?

- Indicaram-me o doutor Becquerel...

- Não sou eu. Estou a substituí-lo por um mês.

- Co’a breca! Já será tarde! Que maçada!

- Mas sempre lhe digo que ele também não...

- Recusa, visto isso?

- Categoricamente! Ela reflecte um instante.

- E se eu o fizer por mim mesma, ou com a ajuda de alguém, e tiver hemorragia... posso mandá-lo chamar?

- Tenho de tratar todos os que me chamarem.

- Não me denuncia?

- Não sou polícia - volve Michel, ofendido. -Pensarei de si tudo o que eu quiser, mas respeitarei o segredo profissional.

- Está bem. A coisa arranja-se.

Vai-se embora. Depois desta, mais ninguém. Michel leva o dinheiro apurada à senhora Becquerel, que aliás havia contado as vezes que bateram à porta. A sua fiscalização é ostensiva. O médico escapa ao cordelinho que lhe estendera, no vestíbulo, o mesmo Riri Becquerel, na esperança de ver o substituto de seu pai ir de nariz ao chão, e toma um eléctrico para regressar a casa - pois as suas próprias consultas principiam às seis da tarde. De longe descobre, no quintal, Évelyne que o espera. A mulher levanta a mão, mostra três dedos e exclama satisfeita :

- Três clientes! Três!

Três clientes, dele só, que o aguardam no consultório. Aquilo é consolador.

Nessa tarde, entretanto, chega ainda mais um. E um rapaz, que entra com ar agitado e anuncia furioso :

- O senhor disse que eu tinha sífilis!

- Eu?

- Sim, senhor. «Frequento» uma rapariga que o consultou hoje mesmo. É a menina Posnowiec, de família polaca. É ela...

Michel tem uma inspiração.

- Você é o Albert!

- Sou...

- Pois bem, meu amigo, é possível que eu falasse de sífilis, mas não disse, com certeza, donde ela vinha. Aliás, num caso destes, era preferível que você se submetesse a exame médico. Seria da maior prudência.

Enfim, sempre foi mais um cliente...

Nos dias seguintes, vêm muitos visitantes. Um dos primeiros é Lequesnoy, cirurgião da cidade mais próxima. Conversam uns momentos. Depois, aproveitando uma transição :

- A propósito - diz Lequesnoy - como é que nos vamos entender? Em geral, aos confrades que me enviam os seus doentes, dou cinquenta por cento de percentagem sobre todas as operações. Farei o mesmo consigo. Há certos concorrentes, embora raros, que praticam a «martingale». Mas isso expõe muito o médico à tentação.

- Que é a «martingale»?

- Por exemplo, na primeira operação dou-lhe vinte por cento dos meus honorários, quarenta por cento na segunda, sessenta por cento na terceira, oitenta por cento na quarta e a totalidade na quinta operação. Recomeçamos então a série a partir de vinte por cento. É mais estimulante, para os novos... Gostam de chegar depressa aos cem por cento e tratam de arranjar para essa vez uma operação lucrativa. Eu não uso este sistema. Mas poderíamos fazer uma combinação. Ofereço-lhe a crédito o seu automóvel. Pagarei as letras todos os meses, e o colega enviar-me-á os seus clientes de úlceras e pernas fracturadas. Pense no caso... e escolha...

- Vou reflectir e depois lhe direi - responde Michel. Nessa tarde, fala a Seteuil daquela proposta.

- Pede cinquenta por cento - aconselha o amigo: É assim que trabalho com ele. O Roy também é bom operador, mas duma sovinice l Pois não andou com a mania de acabar com a divisão dos seus honorários? A dicotomia é uma incorrecção, dizia ele. Mas a mania não lhe durou muito tempo. Perdeu a clientela e teve de fazer marcha atrás. Trabalha com Lequesnoy, meu caro Doutreval. Quanto a mim, recebo dele uma boa soma todos os meses.

Michel encontra Roy dois dias depois, quando, por acaso, o cirurgião passava de carro junto da casa dele. Um acaso que Roy talvez procurasse. É simpático, esse médico-operador. Alto, moreno, de barbas, perfil árabe... Explica, um tanto constrangido, que não gosta da dicotomia, divisão dos honorários, sistema pouco honesto quando a percentagem do médico excede proporções razoáveis, mas que se vê obrigado a fazer como os outros.

- Aliás - acrescenta ele - compreendo que quem aconselha uma operação, prepara o doente, dá informações ao cirurgião e assiste a tudo, tem o direito de ser pago. Por isso lhe proponho, para começar, uma quantia decente: vinte e cinco por cento dos meus honorários. E, é claro, na conta apresentada ao cliente, porei a nota: «Honorários do doutor Roy e do doutor Doutreval». Assim, ele ficará ciente de que o trabalho do meu colega também está incluído. Para o futuro, poderemos descobrir sistema mais satisfatório. Não lhe dissimulo que esta questão de honorários partilhados me atormenta a consciência. Que pensa da minha proposta?

Michel acha-a justa. Mas, em seguida, Roy desata a falar de certos hábitos que ele tem, no campo da cirurgia, e que inspiram a Michel alguma desconfiança.

Nessa mesma tarde, chamam Michel, urgentemente, a um quarto no segundo andar dum prédio onde está instalada certa casa de pasto. Encontra aí a sua cliente da semana passada, a rapariga que pretendia um «desmancho». Tentou-o sozinha, saiu-se bem da empresa, mas inquieta-a a hemorragia... Com repugnância e cólera, Michel concede-lhe os seus cuidados. E ela depressa se restabelecerá.

A clientela não acorre logo. Apesar de Êvelyne reduzir as despesas ao mínimo, esgota-se o pequenino pecúlio do casal. Becquerel regressa no fim do mês: mais um recurso que desaparece com a cessação daquele lugar de substituto. E Michel é principiante, médico de bairro. As pessoas não têm confiança nele e só lhe batem à porta quando Seteuil, Becquerel, Rosselet e Templemars não estão livres. Ou então quando o caso é urgente e não há tempo para ir a outro lado: um garoto atropelado por um caminhão ou um operário apanhado pela roldana da fábrica de moagem.

Não estão com cerimónias na sua presença. É um médico novo, e modesto. Mostram-se desconfiados e falam, logo depois de três visitas, em consultar um doutor da cidade. Pelos modos, a consideração que têm pelos médicos depende do preço que lhes pagam. Com ele não há contemplações. Por exemplo: um tal Failly, comerciante de carnes verdes, homem que ganha bem, chamou-o por causa duma forte constipação do filho; e como Michel, preocupado, declarasse a sua intenção de vir no dia seguinte, Failly protesta:

- Oh, não vale a pena vir, senhor doutor! Eu telefonarei, se for necessário. Já lhe vamos pagar a sua visita.

No dia seguinte, às onze da noite, campainhada na porta. É Failly, que veio de caminheta.

- Senhor doutor! Venha depressa! O pequeno tem uma tosse esquisita! Se calhar é difteria! Bati em casa do doutor Seteuil, mas ninguém respondeu...

Ou então é a senhora Hesdelot, mulher do moageiro, que manda chamar Michel à uma hora da manhã só porque não consegue dormir... E depois, também durante a noite, é a esposa do industrial Lausefeld, que apanhou lumbago quando tomava banhos de sol. Outras vezes, é uma velha que, sozinha, agoniza nas trevas do quarto húmido e nu, um operário que adoeceu na véspera à noite, uma chusma de gente pobre que hesitou até ao último momento, porque o médico custa dinheiro, e porque esperam sempre poder prescindir do doutor... E quando Michel, depois de passar duas horas da noite a tratar uma dessas míseras criaturas, lhes vê os dedos nodosos e estragados pelo trabalho a procurar os quinze francos da visita no fundo dum porta-moedas ensebado, sente uma espécie de vergonha, finge vasculhar nos bolsos e declara atabalhoadamente:

- Desculpe... Não tenho troco... Paga noutra ocasião ...

Volta para casa. Quatro horas da manhã. Já é muito tarde para tornar a adormecer. Na cozinha, encontra Évelyne a preparar café. Michel resmunga um pouco, mas sente-se contente, apesar de tudo...

Em trinta dias, vinte e duas chamadas durante a noite. Michel vai a pé, ainda ensonado, respirando o ar frio para desentorpecer o espírito, recapitulando tudo a que assistiu de casos urgentes, trágicos. Caminha ao encontro dum drama possível, duma úlcera perfurada, duma apendicite, duma hemorragia... E muitas vezes, mal chega a casa e se deita, a campainha toca de novo, e ele tem de tornar a sair... Nessas ocasiões, é noite perdida; nem vale a pena pensar em dormir, no regresso.

No entanto, a pouco e pouco, cria-se a reputação de Michel:

- É um tipo honesto, tem bom coração, não exige dinheiro pelas consultas, acorre a qualquer hora da noite...

É extraordinário como estas coisas se espalham depressa. Michel não tarda a obter uma clientela magnífica, nocturna, de indigentes. Mas, apesar da afluência, Évelyne vê-se ainda em dificuldades para governar a casa. E Michel, envergonhado, censura-se a si próprio, quando, à noite, conta a sua receita. A senhora Lausefeld parece que, ao melhorar do lumbago, se esqueceu por completo dos honorários que deve ao médico. Os pobres não podem pagar, e os ricos não pensam nisso. Que profissão aborrecida!

Jonkère, carregador da fábrica Lausefeld, vem consultar Michel por se ter magoado na mão com uma ferramenta, e pede quinze dias de descanso. Não há fractura nem inchação, é uma esfoladela sem importância. Michel faz-lhe o penso, mas nega a impossibilidade de trabalho. O homem retira-se descontente. Há-de dizer o pior de Michel, entre o pessoal da fábrica. Na semana seguinte, certa mulher do bairro, que andou em luta com uma vizinha, puxando-se mutuamente os cabelos, exibe na cara uma simples unhada (aliás já antiga) e exige atestado para chamar a sua adversária ao tribunal. É uma cliente, a quem não se pode dizer que não. Todavia, a honestidade triunfa, e Michel sai de dificuldades redigindo um atestado complicadíssimo, onde sob o calão científico se esconde a verdade da história.

O juiz compreende e absolve a ré da queixa. A autora é que não perdoará a Michel e, no bairro, far-lhe-á péssima propaganda. Pouco depois morre o pequeno de Louise Marquez, a primeira parturiente de Michel. Sífilis hereditária. A criança nascera cega, com o fígado enorme. Não havia dúvida nenhuma; contudo, é forçoso calar-se. Segredo profissional. à padeira, ao merceeiro que o interrogam, Michel responde com frases vagas. Marquez e a mulher, por seu lado, põem o médico pelas ruas da amargura, declarando que a culpa foi dele, que ele é que lhes matou o filho!

Guffroy, lavrador dos arredores, chega um dia de automóvel, queixando-se de cólicas atrozes. Apendicite hiperaguda. Guffroy alude ao seu projecto de continuar a trabalhar. Michel indigna-se, dá-lhe a entender que é arriscado, leva-o no carro, quase à força, até à quinta, afim de prevenir a mulher, e depois à casa de saúde deLequesnoy. O homem é operado. Lequesnoy, nessa mesma noite, mostra-lhe numa tina o apêndice cheio de pus. O que não impede que Guffroy, um mês depois, diga a Michel que se alegra com o resultado da operação :

- Eu cá me desenrascaria sem isso! Apre, seis mil francos!

Daudenaerde, negociante de sucata, come muitos mariscos e muito peixe. Certa manhã, crise bastante grave do lado do ventre. Michel aconselha a operação. Daudenaerde recusa, e Michel não pode insistir muito. Sempre há aquela história melindrosa da partilha de honorários com o cirurgião; sabendo-se que o médico recebe a sua parte, o conselho que der torna-se um tanto suspeito. Daudenaerde, por milagre, cura-se sozinho. Algumas semanas depois, Michel encontra o homem muito prazenteiro em casa da merceeira Gaby van Houtten.

- Então, que tal vai isso?

- Muito bem! - responde Daudenaerde, na presença de toda a gente. - Como vê, passou-me tudo.

- Teve sorte.

- Tive sorte? Qual sorte! Sabe o que fiz? Fui consultar o velho Breuil, o feiticeiro de Laneuville. Deu-me óleo de rícino e um pòzinho, para tomar com gema de ovo! E fiquei logo bem. O senhor doutor pode mandar lá os seus doentes, que eles depressa ficarão curados. Quer a morada do Breuil?

E todos desatam a rir,

Guffroy, ao saber daquele caso, lastima mais do que nunca os seis mil francos da sua operação.

Daudenaerde faz tanta propaganda de Breuil que, a seu conselho, um pobre diabo, chamado Toutelong, sentindo dores no ventre, se decide a ir consultar o ilustre curandeiro. Vem fornecido duma purga formidável, toma-a... As quatro da manhã, Michel, acordado com fortes pancadas à porta, chega e verifica o desastre.

- Operação!

Parece esquisito que seja necessário operar assim tão depressa, de repente, por causa de cólicas. A mulher de Toutelong, boa criatura mas um tanto ingénua, vai, com a filha, pedir conselho a Hesdelot, patrão do marido, que lhe falado doutorJacquinet...

Jacquinet, grande celebridade da terra, vem às nove horas. Michel, ao vê-lo, lembra-se do pai: coxeia, como Doutreval. Amputaram-lhe um pé há já alguns anos. É homem de bem, mas bastante vaidoso do seu prestígio. Discute com Michel, não está de acordo com ele. A sua opinião é que o caso não é tão grave como isso, que será preferível esperar... E operar o doente seria um tanto arriscado: Toutelong tem albumina, hipertrofia do coração... Michel submete-se ao parecer do mestre, e resolvem esperar até ver... Toutelong morre.

Uma semana depois, Michel encontra Jacquinet e fala-lhe daquela morte. O outro mostra-se triste e aborrecido.

-Lastimo-diz ele.-Devia ter dado ouvidos ao colega...

Reflecte um momento e acrescenta :

- Contudo, não há dúvida que a operação seria perigosa. Com semelhantes urinas! Bem viu a análise!

Este argumento, porém, não lhe tranquiliza a consciência e ele sente-se infeliz, atormentado por qualquer coisa parecida com o remorso. Era necessário operar, ou não? Convenceu-se, ao examinar Toutelong, de que não seria urgente a operação? Ficou absolutamente convencido? Não se teria deixado levar por um pouco de vaidade, de orgulho, pelo desejo de se exibir como «professor» perante o confrade jovem e toda aquela gente, de provar que não o haviam chamado para nada? Jacquinet é cheio de escrúpulos. Sabe que é um pouco cioso da sua fama. Já lhe tem acontecido (e censura-se por isso) ceder à tentação de demonstrar a sua sabedoria a qualquer médico de bairro. Não fora isso que sucedera desta vez? Michel, que lhe adivinha os sentimentos, bem se esforça por se mostrar cordial e animador. Jacquinet despede-se dele e, coxeando, triste e preocupado, dirige-se para o automóvel. Foi na estação de Leuze que esse médico perdeu um dia o pé. Estava no bufete quando sobreveio o desastre : a setenta quilómetros à hora, o rápido de Bruxelas chocou com um comboio parado. Jacquinet acorreu com a multidão e organizou os socorros. Na locomotiva do rápido, debaixo de cinquenta toneladas de carvão e aço, estava o maquinista, esmagado pelo meio do corpo, cheio de queimaduras. Mas, embora condenado à morte, vivia ainda, e suplicava que acabassem de vez com ele. A custa de esforços incríveis, através de chapas ardentes e despedaçadas, Jacquinet foi de rastos até junto dele com a morfina. E ali ficou ao lado do homem por mais duma hora, de barriga para baixo, quase sufocado pelo óxido de carbono e comprimido pelo entulho. Quando o maquinista sofria muito, dava-lhe uma injecção no único ponto que podia atingir: no punho. De tempos a tempos, desmoronavam-se os destroços, esmagando um pouco mais os dois homens.

- Matem-me! -suplicava o desgraçado.

Isto poupá-lo-ia a torturas inúteis, e Jacquinet poderia retirar-se, salvar a própria vida. Mas um médico não tem o direito de matar. Jacquinet ia dando injecções de morfina e ali ficou, enquanto faziam um buraco na locomotiva, por cima da cabeça deles. Quando chegaram até junto de ambos, o maquinista acabara de expirar. No último minuto, escorregou uma pesada chapa de ferro e o clínico ficou com o pé decepado.

é um homem como os outros. Tem orgulho nos seus títulos, pequeninas vaidades e pequeninas fraquezas. Não desgosta de, quando se lhe apresenta ocasião, fazer sentir o peso da sua sabedoria a um colega principiante. Mas o que o salva é a profissão, a profissão de médico-essa que, bruscamente, de maneira imperativa e brutal, impõe a um homem, que não vale mais que os outros, o dever categórico de se tornar herói.

Évelyne dissera durante toda a semana :

- Se quiseres, iremos no próximo domingo dar um passeio ao campo, até muito longe, perto da Bélgica...

Só gosta disto, aquela flor silvestre: terra, vento, veredas sinuosas que vão ter a velhas quintas... É o seu maior prazer um passeio através dos campos, enquanto ouve, silenciosa, o marido a falar, a fazer grandes projectos de futuro, sempre diferentes... Mas, no domingo seguinte, Michel, que passou a noite em claro, adormece depois do almoço, e Êvelyne não o acorda. O passeio nunca se chega a realizar. Ora é uma criança doente que está com uma tosse muito esquisita e que ele não pode realmente abandonar assim um dia inteiro, ora uma hemorragia estancada há pouco e que pode tornar a vir; ora uma hérnia estrangulada que um velho teimoso não deixa operar. Precisa armar-se de paciência, esperar que o doente reconsidere, estar presente para que, na altura em que o obstinado consentir, enfim, que o salvem, não percam ainda uma hora à procura de médico. O resultado de tudo isto é Michel passar os domingos em casa ou no jardim, a apanhar as folhas secas do Outono, ou a colar papel pintado nas paredes da cozinha para alegrar o domínio de Êvelyne.

Num sábado à tarde, os Daubian mandam chamar Michel. Casal sem filhos, modesto e digno. A mulher, cujo maior desejo é dar à luz, fica de vez em quando grávida, passa três, quatro, cinco meses estirada num sofá, e acaba sempre por ter um mau sucesso. Durante todo esse tempo, o marido é quem faz a comida, arruma a casa e lava a loiça, depois de vir do emprego. Desta vez, a senhora Daubian teve um aborto espontâneo, de quatro meses. Impõe-se uma raspagem, mas os Daubian não consentem nisso. Lequesnoy, prevenido, espera no seu consultório até à tarde, e depois vai, de automóvel, passar o fim de semana na praia. Fica apenas um cirurgião: Roy. Michel, um pouco contra vontade, chama-o, pela primeira vez. Roy chega:

- Raspagem indispensável. Veja lá se convence depressa a sua enferma. Amanhã de manhã vou para Bruxelas, onde tenho de fazer uma conferência no Congresso de Cirurgia. O mais que posso é retardar a minha partida até ao meio-dia.

No domingo ao meio-dia, os Daubian não se decidiram ainda. Michel telefona a Roy.

- Que estupidez! - brada Roy. - E só estou eu aqui! Todos se foram embora! e absolutamente idiota uma teimosia assim!

Diz mais duas ou três frases deste género e conclui:

- Enfim! Tanto pior! Não vou ao Congresso. O dever acima de tudo. Não posso deixar morrer essa mulher. Veja lá se a convence, Doutreval. Já é altura!

As seis da tarde, a senhora Daubian resigna-se à raspagem. Roy opera-a, vigia-a até segunda-feira, e falta ao Congresso. Michel começa a ver Roy sob um aspecto mais simpático.

No Inverno, torna-se indispensável um automóvel.

- Andas sempre à pata - observa Seteuil. - Passas por pelintra, e nunca terás a consideração dos ricos, nem do povo...

- Talvez que uma bicicleta... Seteuil desata a rir.

- Se pretendes arruinar-te, compra uma bicicleta. Assim é que perderás de vez todo o respeito dos outros!

- Rosselet não anda de carro.

- Rosselet é velho. Tem mais de setenta anos. Nessa idade, é natural que a gente não aprecie mexer num carburador. Pode, à vontade, dar-se ares de fazer pedestrianismo por gosto, embora de facto isso não o divirta sempre. Imagina: galmilhar o burgo à cata dos quatro ou cinco clientes de que necessita para não morrer de fome! Mas tu, por que não te entendes com o Lequesnoy? Ele não deseja outra coisa. Pagava-te as letras e tu terias o carro lá para 15 do mês. Também os laboratórios não rejeitam combinações deste género. Podias experimentar.

Por fim Michel encontra na garagem de Souchey um carrinho usado, pelo qual lhe pedem seis mil francos, em seis prestações. De regresso a casa, jáao volante, ei-lo que desfruta uns instantes de satisfação! Êvelyne inspecciona o interior do automóvel, as almofadas, as cortinas, e não diz nada; mas, na segunda-feira seguinte, de manhã, quando Michel chega à antiga cocheira, onde guarda o carro, e abre a portinhola, mal o reconhece. Sobre os estofos dos assentos, agora lavados e sem nódoas, patenteiam-se coberturas de renda, muito brancas, engomadas. Ninguém diria ostentarem-se ali as velhas cortinas do anterior ocupante da casa. No banco de trás alastra-se uma almofada de cetim encarnado, resto dum roupão fora de uso. O chão está guarnecido duma sumptuosa alcatifa, conseguida com pedaços da moqueta esburacada da sala, artisticamente recortados. E nem falta no lugar próprio uma boneca de porcelana, cujo vestido foi feito dum retalho de seda sem préstimo, com aquela habilidade de Évelyne, demonstrada outrora no sanatório, quando se dedicava a trabalhos idênticos. Recordações proveitosas do passado.. .

A instalação do telefone também custa dinheiro. Além disso, Michel tem necessidade de sapatos novos e dum fato. Todas as noites, enquanto ele, na cama, folheia revistas de medicina, a mulher escova-lhe o casaco, passa as calças a ferro, consolida um botão, faz uma ou outra cerzidura invisível. É perita nisso, pois já em tempos se dedicou a esse mister. Em seguida prepara a roupa branca, o colarinho, o lenço, a gravata, engraxa os sapatos, tacteia a espessura das solas, a ver se ainda podem durar... Essa é que é a sua grande preocupação. Michel gasta depressa o calçado. Inquieta-a igualmente a aproximação do frio. O marido tem só um sobretudo de meia estação, muito delgado. E ela combina uma intriga completa com a mulher-a-dias a fim de comprar no Lausefeld, sem que ninguém saiba, três metros duma peça de ratina desfiada nas ourelas e que lá vendem baratíssimo. Falta agora economizar apenas o bastante para o feitio.

- Recomende os nossos produtos à sua clientela dizem os representantes dos laboratórios de especialidades farmacêuticas. - Receite as pílulas Cruchon para o fígado e dar-lhe-emos uma percentagem. Ou então pagar-lhe-emos todos os meses as prestações do automóvel, que nós lhe oferecemos...

- Quer cigarros? Assinaturas de revistas? Deseja poupar as despesas de conservação do seu automóvel? Gostaria de ter o seu nome impresso nos papéis de receitas? Quer um cruzeiro gratuito ao Cap Nord? Uma colecção de selos? Um faqueiro de prata de trinta e seis peças? Tudo isto possuirá se prescreveres supositórios Tonitruol... dizem os outros.

Segundo Seteuil, há laboratórios que publicam nos jornais anúncios deste género : «Precisam-se colaboradores que exerçam medicina». E, aos clínicos necessitados que aceitam essa humilhação, obrigam-nos a assinar um contrato por escrito em que se comprometem a recomendar as drogas desse laboratório, recebendo trinta por cento sobre cada frasco vendido.

- Mas como podem saber se o médico receitou de facto os seus produtos? - pergunta Michel.

_ Oh - responde Seteuil - eles não são tolos! No invólucro de cada frasco vai um papelinho encarnado com os seguintes dizeres : «Envie-nos cinco destas folhas com o nome do seu médico e receberá um frasco gratuito...» Como vês, é o próprio doente que serve de fiscal!

Os directores das casas de saúde vêm falar com Michel:

- Por que motivo nunca nos manda nenhum dos seus doentes? Não perderia nada com isso, meu caro doutor. Que percentagem quer que lhe façamos?

Ou então são as estações termais, os grandes hotéis que tentam persuadir Michel a «empurrar» a clientela na direcção deles, mediante comissão. E há também o director dum sanatório particular que lhe propõe :

- Mande-nos os seus doentes e convocá-lo-ei para conferências, seis vezes por ano. Acha suficiente? Quer dez consultas? A trezentos francos, render-lhe-ia ao todo três mil francos. É pouca coisa... mas, enfim...

E Michel, ao ouvi-lo, pensa nas dificuldades do fim do mês, na fadiga de Eveline. Aquela «pouca coisa» sempre fazia certo arranjo...

Quase junto ao consultório de Templemars, colega de Michel, veio instalar-se novo concorrente. «Holmont, doutor em medicina, especialista das vias respiratórias», anuncia a tabuleta de cobre. É rapaz de boas famílias, que sacrifica trezentos mil francos na sua instalação. Depressa se apodera da escassa clientela de Templemars e dos consulentes mais fiéis de Michel. No consultório dele há raios X, raios ultravioletas, diatermia, toda a espécie de instrumentos polidos, niquelados, cromados, complicados e luzidios que exercem nos doentes irresistível fascinação. Holmont faz-se pagar caro. Sessenta francos cada consulta. Por esse preço, uma pessoa deve ser bem tratada. Sempre é um especialista! E que beleza de consultório! Todo branco, todo esmaltado, semelhante a uma sala de operações... Para mais, ainda há a enfermeira que vem abrir a porta : uma enfermeira de bata branca, touca e longo véu impressionante! Michel perde sucessivamente uma dúzia de clientes até então constantes, os quais se precipitam para o consultório de Holmont e aí se submetem com entusiasmo ao pneumotórax, coisa a que Michel, seguindo as pisadas de Domberlé, tenta poupá-los o mais possível. E porque Holmont pica, corta e injecta sem piedade, acham isso muito bem e comentam :

«Ora cá está um que não tem medo de tratar com energia os doentes! Pede caro, mas é dinheiro bem empregado!»

O boticário Massouart dá agora autênticas consultas nas traseiras do seu estabelecimento e montou um laboratório de produtos radiestésicos. Certas farmácias importantes organizam expedições por todas as aldeias da região, em automóveis - genuína venda ambulante das suas especialidades! Os camponeses esperam a passagem do carro, mandam-no parar, pedem «qualquer coisa para reumatismo ou gota». Há quem chame «senhor doutor» ao motorista, que em tom grave profere conselhos médicos. Isto é assim em toda a França: mais uma concorrência para os clínicos, já tão assoberbados por tantas outras. O herbanário Maufray apregoa novas tisanas contra o reumatismo, publica anúncios nos diários locais, atrai grande quantidade de gente crédula na virtude das plantas. Em Laneuville, o hipnotizador e «endireita» Breuil pratica magia negra, magnetiza os pobres diabos para os convencer da cura...

O doutor Louvier vem de Paris todas as semanas, hospeda-se no hotel, anuncia a sua presença por meio duma publicidade formidável, pica o nariz de duzentas pessoas e regressa à capital, tendo ganhado vinte mil francos em oito dias. Cem francos cada picada. Oitocentos francos uma série de dez picadas. Como a maior parte dos clientes não comparece depois de três sessões, aquilo é vantajoso.

Abriu-se a Feira Comercial, em Lille. Toda a gente se entusiasma com certos aparelhos eléctricos terminados por ampolas de vidro, que espalham, segundo parece, raios ultravioletas. Isso cura tudo, além de conservar a beleza da cútis e a virilidade. Durante semanas, Michel não vê no seu consultório um único reumático. A companhia de electricidade tem de mudar inúmeros contadores na região, a fim de os substituir por outros mais potentes. Aquele furor só passa quando Holmont, que lisonjeia absolutamente o partido político de Becquerel e de Moremon - deputado e presidente da Câmara -obtém deste autorização para abrir mais um dispensário na cidade. Não é necessário, visto já existirem quatro, tantos quantos os partidos políticos; mas Holmont confia em que esse dispensário lhe faça propaganda e lhe acarrete mais clientela; e já tem anunciado em jornais que faz quarenta por cento de desconto aos membros do seu partido, mediante a apresentação do bilhete de filiado.

São esses os piores adversários : o Estado, o Município, com os seus dispensários, hospitais, sanatórios, toda a sua medicina gratuita e socializada, todos os seus asilos, já indispensáveis à miséria humana porque ninguém soube criar a única coisa que poderia tornar inútil o hospital: lares verdadeiros. Agora os ricos também se aproveitam dessas vantagens. O magarefe Failly conduz de automóvel, ao dispensário, o seu rapaz, para que ele receba aí, gratuitamente, soro de cavalo. O moageiro Hesdelot, por ocasião das suas viagens a Paris, vai aos dispensários da capital, onde ninguém o conhece, e consegue radiografias de graça. Toda a gente começa a tomar gosto pelo sistema, ninguém já quer pagar.

Todavia, quando em 1851 os médicos consentiram tratar gratuitamente nos hospitais, não estava na letra da lei nem no seu espírito outra ideia senão a dum rasgo de caridade para com os pobres. Mas quem se lembra disso? O médico tornou-se no instrumento gratuito da beneficência pública e das liberalidades eleitorais.

 

O calor, a viveza, o entusiasmo de Guerran, nesse Outono, quando voltou a Paris, surpreenderam os seus amigos. Foi ele quem, no mês de Dezembro, conduziu o ataque contra o ministério de Dauret e o obrigou a vir a terra.

Géraudin fornecera-lhe as armas. Havia um ano que o cirurgião via escassearem-lhe a pouco e pouco os doentes da sua clínica particular, ao mesmo tempo que verificava, com inquietação, os progressos da enorme policlínica da Mutualista Operária. O presidente desta, um tal Gaffiaux, aventureiro e destemido, sonhava centralizar nessa policlínica aberta ao público todas as intervenções cirúrgicas da região. A ameaça era grande para os médicos cirurgiões.

Tendo-lhes declarado guerra, Gaffiaux acusava-os de usarem, para com os sócios da Mutualista, duma tarifa exagerada. E propunha-se, logo que o seu estabelecimento estivesse concluído, impor, ele, os preços aos cirurgiões, pela tarifa que bem lhe parecesse. E se estes recusassem, chamaria de Paris quatro ou cinco principiantes, os quais não teriam dúvida, mediante ordenado fixo, em realizar todas as operações da policlínica.

Era tenebroso o passado de Gaffiaux. Esse homem audaz, à força de jantares, de liberalidades, de manobras hábeis, apoderara-se da Mutualista Operária. Os respectivos directores estavam todos inscritos no Partido Republicano Social, de que Dauret era chefe e o advogado Rebat (confrade e perigoso concorrente de Guerran) presidente da secção de Maine-et-Loire. A este, Gaffiaux tomou por conselheiro e pagou-lhe com honorários faustosos. Rebat, deliciado, apresentou o seu cliente no partido. Aí, em poucos meses, Gaffiaux conseguiu esmagadora maioria de simpatizantes. O processo que empregava era simples, consistia em obter tudo pelo dinheiro. Foi assim que, mercê da sua situação no Partido Republicano Social, conquistou a presidência da Mutualista Operária, sociedade de socorros mútuos que garante aos seus membros a gratuitidade da assistência médica.

Gaffiaux explorou largamente as vantagens da sua posição. Ao edifício da Mutualista (onde se realizavam as reuniões do partido) acrescentou uma ala completa, onde reservou para si aposentos principescos. Ficou assim a dispor de casa, luz, aquecimento, com todas as despesas pagas, até as do serviço doméstico, e ainda de três automóveis e dois motoristas, o que o não impedia de se reembolsar dos bilhetes de primeira classe, sempre que ia de comboio a Paris, visto que viajava na dupla qualidade de administrador da Mutualista e delegado do partido. Quando se tratou de construir para a dita sociedade um sanatório, depois da famosa policlínica, Gaffiaux, simples particular, vendeu a Gaffiaux, administrador, terrenos que ele comprara por trezentos e vinte e cinco mil francos e que cedeu então, generosamente, por quatro milhões e trezentos mil francos. Evitou a adjudicação pública, aliás obrigatória, escolheu o projecto dum arquitecto que, por acaso, era seu sobrinho e confiou a este a direcção dos trabalhos. Todos os fornecimentos de pedra, cimento, areia, telhas e madeira foram feitos por uma firma de materiais de construção que nessa altura oferecera a Gaffiaux um lugar no seu conselho administrativo.

Houve muitas queixas. Rebat teve a perícia de fazer

com que Gaffiaux passasse incólume por todos aqueles perigos. Em seguida rebentou o escândalo do Banco Emissor Industrial, que o mesmo Gaffiaux administrava. Servira-se desse banco para obter a maioria das acções em diversas empresas metalúrgicas da região, o que, sem grande despesa, o tornou senhor das ditas empresas. Feito isso, suspendera, durante certo tempo, o pagamento dos dividendos e utilizara os lucros em melhoramentos da respectiva aparelhagem. Ora, na Bolsa, descem sempre as acções das companhias que não pagam dividendos. É infalível. Gaffiaux esperou que as acções chegassem a um terço do seu valor, comprou-as prudentemente em pequenas quantidades e, sem nenhuma infracção aparente às leis, ficou sendo proprietário de diversas empresas metalúrgicas da região. Houve, porém, indiscrições e choveram no tribunal novas queixas.

Rebat defendeu Gaffiaux quanto pôde, correu a um lado e outro, andou pelos ministérios, obteve dez vezes prorrogações de prazos. E quando esgotou todas as manhas e viu que o caso ia seguir os seus trâmites forenses, apresentou Gaffiaux a Dauret, chefe do Partido Republicano Social e político experimentado.

Aconteceu que, nessa altura, Dauret se encontrava ameaçado de grandes dificuldades financeiras. Político brilhante e sem dinheiro, casara seis anos antes com uma senhora americana, Rosamond Winham, ex-esposa de Harundson, rei do monopólio norueguês dos fósforos. Da mulher recebera Dauret um dote principesco. «Dauret o dourado», diziam os invejosos, no Parlamento, quando ele, por uns meses, foi ministro das Belas Artes. Nessa altura interessara-se, bruscamente, por uma dançarina, figurante da Ópera, a quem proporcionou rápidos progressos na carreira, de tal modo que a rapariga foi contratada para o papel principal numa fita de grande espavento, a Cavalgada Amorosa. Por infelicidade, a senhora Dauret soube daquele interesse súbito do seu marido pela coreografia nacional e, não compartilhando dessa admiração pela ilustre «vedeta», obteve provas do entusiasmo excessivo de Dauret e requereu segundo divórcio, que foi decretado a seu favor. O mal não era por aí além, mas, nos termos do contrato matrimonial, ele tinha de restituir o dote, ao qual já faltava uma grossa fatia.

Foi nessa ocasião que Rebat lhe apresentou Gaffiaux. Este concorreu com o dinheiro necessário à restituição do dote, e Dauret, reconhecido, falou ao Procurador Geral, que era seu primo. Desta forma Gaffiaux conseguiu dos tribunais novos prazos escandalosos. Em seguida Dauret entrou no conchavo de Barbet, chefe do Centro Democrático, que foi por três dias presidente do Conselho e sobraçou a pasta da Justiça. O ministério, formado numa segunda-feira, caía na quarta, mas houve tempo de arranjar muitas coisas, como, por exemplo, um despacho judicial destinado a favorecer um amigo. Assim se viu Gaffiaux absolvido da acção, por insuficiência de provas, no caso do Banco Emissor Industrial. Pouco depois Dauret foi ministro da Guerra, e Gaffiaux, que em 1914 não passara de cachapim, obteve a Legião de Honra do mérito militar.

Géraudin, com toda a sua paciência, fora compilando estes factos e organizando um processo, que por fim levou a Guerran. Deste modo é que rebentou o escândalo Gaffiaux. Dauret não esperou pela interpelação. Demitiu-se e afastou-se da política, de maneira a facilitar o esquecimento daquela história complicada. Imagine-se o golpe sofrido! Havia amigos que já o visionavam no Eliseu, dentro de cinco ou seis anos.

O novo presidente do Conselho, como era natural, reservou para Guerran uma pasta no seu ministério. Guerran, como de costume, escolheu a da Agricultura.

Na semana seguinte, uma ordem de prisão pôs termo à carreira de Gaffiaux. A Mutualista Operária estava arruinada, o Partido Republicano Social desacreditado na pessoa dos seus chefes. Guerran encarregou-se de «executar» o presidente local, Rebat. Este era, em Angers, o rival mais forte e mais assanhado do novo ministro. Convocado a uma entrevista, compareceu no Ministério da Agricultura, na rua de Varennes, e Guerran recebeu-o sem amenidade. Rebat fazia uma concepção singular do seu papel de conselheiro jurídico : no fundo, só ajudara o seu constituinte a escarnecer da Justiça. Guerran falou do conselho da Ordem dos Advogados, aludiu a uma possível irradiação. O outro fraquejou, choramingou, humilhou-se ao ponto de suplicar. Tinha dois filhos: o rapaz na magistratura, esperançado de vir a ser Procurador Geral da República; a filha devia casar-se no mês seguinte... Alegou a sua boa-fé, a camaradagem.

Guerran teve pena dele, contentou-se com declarar, na austeridade do seu gabinete de ministro, que o considerava um canalha, que nem sequer o tinha por merecedor da publicidade que este escândalo lhe trazia, e que a honra da profissão ficara conspurcada por sua causa. E Rebat, com a maior baixeza, respondeu que se reconhecia um miserável... Mas saiu dali absolvido, embora desonrado.

Guerran achou aquilo tão indigno que não pôde deixar de contar a cena aos filhos e a Julienne, no dia seguinte à noite, quando veio passar o fim de semana em Angers.

Durante todo esse tempo Fabienne, que trabalhava na casa de saúde Êpidauria, não tornara a encontrar-se com Guerran. Sabia só pelos jornais o que se passava. Não ousava sequer telefonar para o ministério. Por três vezes, fora ao Quai aux Fleurs, a casa dele, pedir notícias; mas Guerran não voltara lá, dormia agora na rua de Varennes. Na segunda-feira seguinte soube que ele lhe telefonara, numa ocasião em que ela tinha saído. Foi só então que resolveu ligar para o Ministério da Agricultura. Na lista, os números daquela repartição do Estado iam de 81-51 a 81-97, o que fazia mais de quarenta telefones I Qual devia escolher? Fabienne decidiu-se pelo 81-97 e fechou-se no cubículo.

Acertou na escolha. Uma voz de mulher respondeu-lhe imediatamente :

- Sim, aqui é o Ministério da Agricultura. Deseja falar com o senhor ministro? Da parte da filha do senhor Doutreval? Queira esperar um momento.

E dois minutos depois, a voz sonora de Olivier Guerran:

- Até que enfim! Anda cá depressa! Sim, aqui! Dize o teu nome à entrada. Eu previno o contínuo. Até já!

Instantes depois, um táxi levava Fabienne à rua de Varennes e parava defronte do portão do Ministério.

A rapariga entrou no edifício enorme, seguiu por um corredor, subiu uma escadaria, empurrou uma porta envidraçada e encontrou-se na galeria interminável onde desembocavam as portas duma longa série de escritórios. No chão, uma passadeira espessa e já bastante usada. Aqui e ali, nos vãos das janelas, cadeiras Luís XVI. Luxo oficial e poeirento, na temperatura densa dos caloríferos. Passavam, iam duma ponta a outra, funcionários, chefes de repartição. Em banquetas de tapeçaria bocejava um ou outro do pessoal menor. Através dos vidros embaciados via-se um grande pátio interior, lajeado, triste. Fabienne foi até ao fim da galeria, sem que ninguém a estorvasse. Aí deteve-a um contínuo. Ela declinou o seu nome.

- O senhor ministro está à espera de V. Ex.a - disse o homem. -Faça o favor de me acompanhar.

Precedeu-a até a uma porta, bateu, abriu-a e desviou-se para deixar passar Fabienne.

O gabinete do ministro era uma sala enorme, guarnecida apenas com poltronas, uma secretária e um fogão monumental. As janelas davam para a rua de Varennes. Na parede, por cima da mesa de trabalho, uma tela gigantesca, na sua moldura dourada, ilustrava o pensamento de Sully: «A lavoura e o pasto são as duas riquezas da França».

Guerranestava a escrever. Levantou a cabeça, reconheceu Fabienne e veio ao encontro dela, com o rosto iluminado pelo contentamento.

Durante todo o dia, Fabienne serviu de secretária a Guerran, o qual a pusera defronte duma montanha de cartas e telegramas de felicitações.

- Vais responder a tudo isto. Instala-te a uma das mesas. Chama duas dactilógrafas. Ditarás a uma enquanto a outra escreve à máquina. Adapta as fórmulas consoante se trata de municípios, federações agrícolas, amigos, etc... Aliás, tudo será revisto por um chefe de secção. Sabes que tenho aqui setecentos e cinquenta subordinados? Como é que se pode exigir que um ministro, que não se demora seis meses no cargo, se encarregue de dirigir todo este pessoal! Até já, minha querida. Almoçamos aqui.

Fabienne trabalhou toda a manhã. A uma hora, almoçaram juntos nos aposentos reservados do ministro, atrás dos escritórios, e que davam para o pátio. A refeição decorreu muito alegre. A tarde, Guerran levou Fabienne ao Parlamento, no automóvel ministerial, que arvorava a roseta tricolor. Enquanto Fabienne esperava cá fora, Guerran foi buscar a sua correspondência e deu uma volta pela biblioteca. Depois regressaram ao ministério, às quatro horas. Até à noite, Guerran recebeu gente, telefonou, convocou dírectores-gerais, nomeou o pessoal do seu gabinete, avistou-se com os encarregados de comissões técnicas e com os seus colaboradores na Câmara e no Senado. As oito da noite puderam, enfim, escapulir-se, ir até a um restaurante na Madeleine, e jantar os dois sozinhos. Havia muita gente que reconhecia Guerran’e cochichava em volta deles. Fabienne sentia-se como que estonteada por uma vaidade agradável, deliciosa. Voltaram às onze horas ao ministério, onde, sobre a secretária do ministro, havia ainda duzentos papéis para assinar. Guerran assinou até à uma hora da manhã, e depois levou Fabienne à casa de saúde.

A novidade daquela existência encantava Fabienne, deixando-lhe, no entanto, uma estranha impressão de superficialidade. Guerran passava grande parte do tempo a assinar coisas que não sabia o que eram. Havia também dois dias na semana, quartas e sextas, em que recebia deputados e senadores, os quais vinham reclamar protecção para este ou aquele, pedir favores para aqueloutro, impetrar uma roseta, uma fitinha, a Ordem do Mérito Agrícola... Era preciso acolher a todos cordialmente, mas com imperceptíveis graduações, conforme se tratava de membros do partido, da maioria ou da oposição. Tinha de conceder a todos qualquer coisa, doseando. porém, os favores, e contentar toda a gente satisfazendo em primeiro lugar os amigos. Guerran escutava, discutia, prometia, chamava em presença do deputado ou do senador os seus colaboradores, dava instruções relativas ao caso. Os parlamentares iam se embora contentes. Nos outros dias recebia inúmeras delegações de todos os sindicatos agrícolas da França, vindos ali para protestar contra tarifa, muito elevada, para corte de matas, em Quimper Corentm, ou contra os direitos sobre exportação que prejudicavam o comércio dos queijos em Lohs le-Saumer. Entretanto as sessões da Câmara ocupavam Guerran, muitas vezes, das três as cinco horas, senão até à meia noite. Isto sem falar das reuniões do Conselho de Ministros, das inaugurações, dos discursos dominicais e das visitas à província.

Na correspondência trabalhavam seis secretários uma inundação de requerimentos, reclamações, memoriais e também denúncias anónimas! Em regra respondiam a todas as cartas assinadas Um simples pedido de ocupação agrícola para um soldado da reserva necessitava de resposta ao interessado, aviso ao Ministério da Guerra, cópia junta ao requerimento, inquérito subsequente, resposta daquele ministério e nova carta ao dito militar.

Horas havia em que Fabienne tinha saudades da Épidauria, onde nunca mais voltara. Como não recebia remuneração, considerava-se livre. No meio da agitação estéril do ministério, recordava-se de algum doente da casa de saúde, da acção directa, ignorada e benéfica que tivera sobre ele, à cabeceira do leito...

À noite ia ao cinema com Guerran, e viam, entre os documentários das actualidades, surgir de repente a «figura jovem do Ministro da Agricultura». Fabienne, radiante de satisfação, esquecia tudo outra vez. Jamais lera tantos jornais e com tanta atenção. Apaixonavam-na os relatos das sessões da Câmara.

A noticia de que Guerran fazia parte do novo ministério chegou ao conhecimento de Doutreval quando este se encontrava no escritório de Jeanne Chavot, no Progrès Social. Foi por um telegrama da Havas que o soube sem dúvida a primeira pessoa em Angers. Quase pulou de alegria e durante todo o serão só falou disso a Jeanne.

O acontecimento vinha favorecê-lo em plena batalha. A ideia do centro de curarização que pretendia abrir suscitava obstáculos, parecia nunca chegar a realizar-se. Criticavam o método, e, quando Doutreval replicava que um centro lhe permitiria aperfeiçoá-lo, objectavam com a despesa e com a falta de local e de créditos. Na derrocada de Gaffiaux e da da policlínica, Doutreval viu uma oportunidade de conseguir a satisfação das suas ambições. Se lhe concedessem o edifício da policlínica, e mais quatrocentros mil francos de subsídio, a vitória estaria assegurada.

Agora, tudo dependia de Guerran. Um gesto do ministro, e a coisa estaria feita.

Como chegar a Guerran?

Através de Fabienne? Ela e ele eram bons companheiros, mas não o bastante para que, em nome da filha, Doutreval pudesse solicitar ao político semelhante favor.

Géraudin?

Sim, só Géraudin tinha suficiente influência para reclamar aquilo do ministro.

Passara já quase um ano sobre a morte de Mariette, e desde então Doutreval não se encontrara a sós com Géraudin.

Dir-se-ia que os dois homens se evitavam. Havia, porém, certa inconsciência nessa atitude. Doutreval nunca deixara que os seus pensamentos se demorassem nas circunstâncias daquela morte. Receio de sofrimento? Ou seria vaga consciência dum sentimento de responsabilidade, de culpabilidade, que temia despertar?

No fim da semana seguinte, reuniu-se na Faculdade o conselho escolar. à saída, entre os grupos, Doutreval agarrou no braço de Géraudin, o qual ia acompanhado de Heubel e Gigon.

- Está em casa na próxima quarta-feira? Gostaria de ir visitá-lo, à noite... Tenho um favor a pedir-lhe... Necessito do apoio do seu amigo Guerran.

- Lá o espero na quarta-feira - respondeu Géraudin.

- Estou à sua disposição, meu caro colega.

Doutreval retirou-se contente.

Na quarta-feira foi a casa de Géraudin. O cirurgião recebeu-o no seu consultório. Era a primeira vez que se encontravam sós, face a face. Géraudin veio de mão estendida para o visitante, piscando um pouco os olhos por causa do fumo do charuto. Talvez fosse também por esse motivo que não encarou Doutreval. Havia certa timidez, certo constrangimento na sua maneira de avançar. E esse mesmo embaraço invadiu de repente Doutreval, tornando-o acanhado e balbuciante. Sentiu que o outro pensava na mesma coisa, na defunta... A testa molhou-se-lhe de suor, e ele gaguejou algumas frases desconexas. Foi um momento de terrível mal-estar para ambos, com aquele fantasma entre os dois. Brutalmente, na altura em que pedia a Géraudin a sua ajuda, Doutreval teve a trágica impressão de que renegava a filha, que traía Mariette, que vendia a morta. Sentiu nojo de si mesmo. Isso, porém, durou apenas alguns segundos.

Géraudin prometeu interceder junto de Guerran. Ele e Doutreval iriam falar com o ministro na próxima semana.

Na outra quarta-feira, Doutreval chegava a Paris. Tinha entrevista com Géraudin, no ministério, no dia seguinte de manhã.

Foi buscar Fabienne à casa de saúde, levou-a a jantar ao restaurante e passou parte da noite com ela num cinema dos Campos Elísios, onde ele sabia que os seus trabalhos seriam apresentados. Iniciou-se o espectáculo com uma fita alegre, interpretada pelo maior cómico da nossa época. Seguiram-se os documentários: inauguração de um estádio em Ruão pelo Presidente da República, a moda feminina da próxima Primavera, um combate de pugilismo entre Kid Austein e o famoso preto Joe Stormbow, e, depois, Doutreval em Saint-Clément a observar a crise dum demente, e a apresentação da rumba, nova dança americana. Doutreval saiu de lá um tanto mal disposto e descontente consigo próprio, sem saber ao certo porquê.

Logo no outro dia, ele e Géraudin foram ter com o ministro. Géraudin tinha interesse pessoal em que a pretensão de Doutreval fosse atendida: o Ministério da Saúde Pública projectava retomar a policlínica e obrigar todos os cirurgiões do país a trabalhar ao preço irrisório da tabela dos seguros sociais! A vida já era tão difícil para as clínicas particulares, sem aquela concorrência!

Guerran mostrou-se o mais cordial possível. Prometeu todo o seu apoio. O êxito era certo, disse ele. Obteria, sem dúvida, uma boa subvenção, e faria com que a Prefeitura e o Município concorressem com importantes subsídios. Doutreval retirou-se satisfeitíssimo.

Guerran não faltou à promessa. No mês seguinte, Doutreval tomava posse da enorme e luxuosa policlínica da antiga Mutualista, arruinada porGaffiaux. Concederam-lhe créditos. Começou pela transformação do prédio sob a vigilância de Regnoult. Na altura de Pentecostes, o mais tardar, tudo estaria pronto. O centro de curarização seria inaugurado pelo Ministro da Saúde Pública, segundo prometera Guerran, e ali tratariam oitocentos loucos. Doutreval alcançava o grau supremo do triunfo, apenas sombreado de vez em quando por certa dúvida e inquietação: havia quinze dias que a imprensa médica revelava uma série de abcessos do pulmão nos indivíduos submetidos ao processo de Doutreval.

Géraudin regressara a Angers com Guerran : Paris cansava agora aquele ente infatigável, provocava-lhe dores de cabeça. Além disso, tinha muito que fazer na clínica. Flégier deixara o, instalara-se por sua conta, e Géraudin, por economia, despedira parte do pessoal. A crise era terrível. Como havia muitos desempregados, escasseavam os desastres no trabalho. A clientela burguesa arruinava-se com falências. Os doentes iam-se operar ao hospital, ou desistiam da operação. Cada acção do Banco de França, comprada por vinte e cinco mil francos em 1929, tinha agora a cotação de sete mil. As da Sociedade Geral desciam de três mil para setecentos e cinquenta. Os capitais colocados não rendiam nada a Géraudin. E, ainda por cima, sentia-se envelhecer, o seu talento periclitava. Eis o que mais o afligia. Já não tinha confiança em si próprio. Em plena operação, tomava-o uma vertigem, a vista toldava-se-lhe, a cabeça ficava-lhe como que oca de repente; já nem sabia onde estava nem quem tinha à sua volta. Era como se um buraco negro se abrisse diante dele, onde soçobrava por instantes que pareciam intermináveis. Saía dali estupidificado, incapaz de prosseguir no trabalho, com as mãos trémulas e a vista turva. Tornava-se muito sensível ao cansaço. Qualquer operação demorada lhe inspirava receio, sobretudo quando a realizava de tarde. Sobrevieram-lhe três ou quatro acidentes na clínica. Um dia, no hospital, operou uma doente dum quisto do ligamento largo. No dia seguinte de manhã, descobriu que o ventre da operada estava cheio de urina. No decurso da operação decerto que ele, sem dar por isso, lhe cortara o ureter, estreito canal pouco visível que conduz a urina do rim à bexiga. É um acidente não muito raro: os ureteres são frágeis, basta um movimento desastrado para os cortar. Ás vezes, nestes casos, o cirurgião não diz nada e tenta tornar a unir as duas secções com uma sutura. Infelizmente, quase nunca essas suturas dão resultado. Um ureter é difícil de «colar». E não há nenhum médico que tenha ânimo de confessar a um operado: «Por minha culpa, um dos seus rins tornou-se inútil». Como a sutura falhou e a barriga continuou a encher-se de urina, Géraudin não teve outro remédio senão declarar à doente:

- O seu caso complica-se. Tem agora uma fístula urinária, é preciso tirar-lhe o rim...

Tirou-lho. A doente teve alta e continuou a fazer a sua vida. Mas os estudantes haviam observado; e, antes que a semana acabasse, o hospital inteiro, a Faculdade, os médicos da região sabiam que, pela primeira vez, Géraudin «atamancara» um ureter.

Foi na Maternidade que aconteceu o segundo caso, no decurso duma cesariana, tal como sucedera a Mariette. A criança já estava cá fora, tudo ia bem, à parte o sangue. Numa cesariana a matriz sangra bastante. De repente, Géraudin ficou sem ver nada. Lembrou-se de Mariette Doutreval, e percorreu-lhe a espinha um arrepio. Sentiu a catástrofe iminente, assustou-se e, à pressa, com largas tesouradas, seccionou o colo do útero e extraiu todo o aparelho genital, matriz e anexos, castrando a mulher com receio de a ver esgotar-se em sangue e morrer. Mas um quarto de hora depois, quando voltava de lavar as mãos, encontrou os estudantes de roda do balde, a observarem o volume sangrento e os ovários perfeitamente intactos e sãos. Os rapazes tinham compreendido o que se passara.

Desde então, o declínio foi rápido.

- Géraudin já está velho, já deu o que tinha a dar - diziam todos.

No entanto, era ainda notável. Ficaram-lhe, da grandeza passada, vestígios esplêndidos. Havia ocasiões em que operava com a mesma perícia doutros tempos, com uma ciência anatómica inigualável, dissecando, por assim dizer, plano por plano. Mas, se a operação se prolongava, fatigava-se, sentia-se desnorteado e acabava por ir procurar um apêndice debaixo do fígado! E o pior era o médico do paciente estar a assistir àquilo tudo! Quando via o patrão enervar-se, tornar-se assim febril, Louis dizia-lhe:

- É melhor o senhor doutor descansar um bocadinho.

Ia buscar uma cadeira, um copo de água.

Géraudin sentava-se um instante, bebia um gole e respirava fundo, longe do ente de barriga aberta cuja vida dependia dele. Dissipado o mal-estar, voltava à operação, acabava-a num ápice. Mas são momentos custosos esses em que uma pessoa descansa perante um paciente em plena anestesia e de ventre escancarado. Não se pode desistir a meio duma operação, nem adiá-la para o dia seguinte. Géraudin devia pensar em coisas muito estranhas nesses instantes de repouso, enquanto a enfermeira Claim vigiava o pulso do doente, a fim de prevenir a síncope.

Tornava-se uma ideia fixa, uma obcecação, aquele receio de falhar, de decair. E esse temor provocava a crise, à força de angústia nervosa. Já não fazia uma operação sem interrogar Louis, no automóvel que os conduzia a casa:

- Então, Louis? Acha que tudo decorreu bem, desta vez? Fale francamente.

- Muito bem, senhor doutor. - O médico não disse nada? Não fez nenhuma observação?

- Nenhuma.

- E eu portei-me à altura? Que acha, Louis? Parece-lhe que estou a declinar? Ou não?

- Não, senhor doutor, não está a declinar.

- Não ouve dizer nada de mim na Faculdade ou no hospital? Conservam boa opinião do meu trabalho? Que dizem de mim?

E era preciso que Louis, com pena do patrão, inventasse mentiras para o sossegar.

Se ele sequer fumasse menos! Mas não resistia, andava sempre de charuto na boca. Chegava à noite com dores de cabeça, a garganta ardia-lhe, as orelhas tinham uma cor arroxeada. Valerie proibia-lhe o conhaque e deitava-lhe água no vinho tinto. Contudo, Géraudin, à mesa, ocultava-se atrás do jornal apoiado à garrafa e bebia, à socapa, bons tragos de Borgonha. A vida pesava-lhe, afligia-o a decadência do seu talento; mais valia acabar depressa com aquilo.

Por toda a parte muitas clínicas, muitos cirurgiões. A Faculdade soltava, todos os anos, bandos deles, dezenas de rapazes vorazes, de dentes aguçados, entre os quais os mais audaciosos «dicotomizavam» sem moderação, largavam os honorários em benefício dos médicos que os recomendavam, destruíam a clientela já rarefeita pela crise. Géraudin bem podia descer os seus preços, o público não chegava a saber: o que se sabia é que ele era o grande mestre e ninguém menos abonado ousava pedir-lhe os serviços. Quanto aos ricos, apareciam na clínica, deixavam-se operar e depois diziam:

- Senhor doutor, os tempos estão difíceis; tenho em casa um Picasso, algumas sanguíneas de Boucher, uma tela muito boa de Manet, sóis de Van Gogh... Quer ir escolher o que mais lhe agradar, em pagamento dos seus honorários?

Tudo isso estava muito bem, mas Valerie não escondia o seu desagrado diante daquela galeria de quadros que não lhe aumentavam a conta do banco. Cumulava Géraudin de censuras, tiranizava-o, chamava-lhe inábil, dissipador. Ela própria verificava as receitas e despesas da clinica. Não tardou que entrasse em conflito com a enfermeira-chefe, a quem Géraudin sempre concedera inteira liberdade, da qual, para falar sem rebuço, a senhora Claim se aproveitava razoavelmente. Valerie pôs-se a rever as facturas, os recibos de impostos, as contas dos honorários, os gastos da manutenção da clínica, e teve com a enfermeira disputas tremendas. A senhora Claim, desesperada, tomava ares importantes e deixava às vezes de falar com Géraudin, mostrando a frieza hostil de pessoa ofendida. E Géraudin sofria com isso, agora que tinha necessidade duma atmosfera de amizade, dum ambiente cordial enquanto operava. Às vezes era bastante uma palavra de simpatia, uma incitação da parte de Louis, para que ele se transformasse e reencontrasse o entusiasmo e a fé de outrora, indispensáveis para terminar com brilho qualquer intervenção cirúrgica. Mas Valerie pouco se importava com essa tranquilidade que ao marido era tão precisa I O que ela exigia era a fiscalização dos honorários. Géraudin protestara, mas a mulher havia ripostado assim :

- De que é que vives? Que farias tu sem o rendimento do meu dote? Com que dinheiro pagaste a instalação da tua clínica?

E expedia Louis através da cidade com um maço de contas por cobrar. Onde Géraudin concordara com o preço de cinco mil francos, ela escrevia seis mil. Os tímidos não se atreviam a dizer nada, pagavam, mas depois iam desabafar junto dos amigos, desacreditando o cirurgião. Os violentos recusavam-se a liquidar e mandavam embora o cobrador com palavras pouco lisonjeiras. Louis, de regresso, discutia com a senhora.

Aos médicos, a quem Géraudin prometera vinte e cinco por cento dos seus honorários, Valerie fazia esperar pela percentagem e acabava por só lhes enviar metade da quantia combinada. Todos os dias chegavam à clínica clientes e colegas que vinham reclamar e protestar. Géraudin não ousava explicar-lhes que a culpa fora da mulher, dizia que se enganara e apresentava desculpas. E durante esse tempo Valerie, avara para com o marido e para com toda a gente, diminuía as rações do pessoal (que devia ocultar a carne trazida pelo rapaz do talho) e mandava fazer bolso e doces especiais para esse medonho pequinense chamado Kiki. O animal morreu por essa altura, vítima de mais uma indigestão. Valerie transportou de automóvel, a La Baule, os restos mortais de Kiki e enterrou-os no extremo do parque; depois encomendou para ele um monumento fúnebre de mármore branco, que lhe custou quatro mil francos. Entretanto, o terceiro filho do motorista Louis sofria de nova série de fístulas na tíbia, por falta de bom ar, de sol, de fruta, de alimentos frescos.

Géraudin sentia agora, em Angers, um aborrecimento, uma tristeza perpétua, a nostalgia da sua terra natal, da sua aldeia de Bordelais, da vida simples, rústica, plácida, que fora a dos seus irmãos e a dele mesmo na infância.

- Voltar lá! - suspirava. - Viver longe daqui! Afastar-me da medicina, de operações, de colegas, da clínica, dos alunos, da Faculdade, da luta! Que sonho!

- Abandone tudo, senhor doutor -aconselhava Louis.

- Traspasse a clínica e fuja daqui!

- A senhora não quer, Louis.

De facto, Valerie não queria. Em Angers, era a esposa de Géraudin, o eminente professor; recusava, pois, exilar-se numa aldeola remota, vender com prejuízo a clínica e abandonar ali um ou dois milhões. E assim Géraudin continuava a luta, conhecia por seu turno a vida difícil dos concorrentes, dos cirurgiões que precisam do médico para se manterem, que dependem dele e se tornam seus lacaios. Às vezes Louis, ao conduzir o patrão com um dos três ou quatro médicos necessitados de Angers, para irem ver um doente, ouvia atrás de si estranhas conversas deste teor:

- Há probabilidades de nos sairmos bem? - perguntava Géraudin.

- Hum... - resmungava o médico.

- Enfim, ainda vale a pena operá-lo, ou não?

- Ah, isso vale!

- Até que preço posso pedir? Quatro mil francos?

- Mais...

- Cinco? Sete?

- Oito mil. O pai tem dinheiro. Metade é para mim, já se sabe.

- Oh I - exclamava Géraudin.

E não era raro a discussão continuar no quarto contíguo à sala de operações, a poucos passos do paciente já adormecido.

- Três mil? Quatro mil?

- Cinco. Dois mil e quinhentos são para mim.

- Está doido!

- Dois mil, então. Nem menos um soldo. Disputavam. Louis e a senhora Claim tinham de lhes

fazer sinais, apontar para a porta do vestíbulo, onde a família esperava e podia ouvir... Noutros tempos, Géraudin recusava trabalhar com essa escória da corporação, a quem, aliás, o sindicato dos médicos vigiava. Agora, via-se obrigado a consentir. Mas Géraudin era de temperamento irrascível, conservava ainda o orgulho da sua grandeza passada e, sobretudo, restava-lhe a consciência - uma consciência que, por vezes, despertava com singular energia. Sabia, quando era preciso, mandar passear o colega e descompô-lo sem contemplações. Não queria ser verdadeiramente o lacaio, o instrumento de certos médicos sem escrúpulos. Em certas ocasiões, chamado à cabeceira duma doente, descobria, no útero, o tumor anormal que entenebrecia o diagnóstico.

- Então? - dizia o médico assistente, quando se retiravam para a sala, a fim de conferenciar longe da família.

- Quando operas aquele quisto?

- Não é um quisto - retorquia Géraudin. - É um cancro. é inútil operar.

- Estás maluco!

- Afirmo que é um cancro!

- Deves estar enganado. Conheço a doente, sou o médico da família. Faço empenho na operação. Em qualquer caso, prolongará a vida da enferma, e como é gente de dinheiro...

- Está bem - dizia Géraudin.

Chamava a família à sala e, na sua presença, brutalmente, diante do outro verde de fúria, punha tudo em pratos limpos:

- Eu e o meu colega não estamos de acordo. Ele deseja que eu opere, e eu não sou desse parecer. Tenho a certeza de que se trata dum cancro.

A operação não se realizava. Mas, ao sair dali, havia explicações no carro. Géraudin enfurecia-se:

- Para apanhares três reles notas querias que eu esquartejasse aquela desgraçada! Sabes o que és? Um canalha! Sim, um canalha! Felizmente que são raros os pulhas da tua laia na profissão médica.

O outro ia-se embora e Géraudin acalmava-se, lastimava as suas violências e recuperava o fundo de timidez que se escondia sob a brutalidade. Perguntava então a Louis, cheio de inquietação :

- Fui «muito longe? Que acha, Louis? Mas eu tinha razão, não lhe parece? Tê-lo-ia ofendido?

- Creio bem que sim - respondia o motorista.

- Sim... talvez eu fosse um pouco longe... Que maçada! Que dirá a senhora? Aquele nunca mais me manda clientes... A senhora vai dar por isso... Eu devia ter sido mais brando...

E a história acabava por uma carta cheia de desculpas. Mas, na vez seguinte, Géraudin repetia a cena. Decididamente não se resignava a derramar sangue inútil para salvar Valerie e a sua clínica.

Um dia, apareceu no hospital um homem para ser tratado por Géraudin. Era polícia. No decurso duma captura, atingira-o uma bala de revólver, a qual se alojara na parede do coração. Ninguém pudera extrair o projéctil que, a pouco e pouco, avançara para a cavidade. E agora esse fragmento de aço agitava-se lá dentro, movia-se dum lado para o outro. Em tais ocasiões, o ferido sentia se terrivelmente angustiado e acabava por desmaiar. Mais tarde ou mais cedo morreria daquilo. Como ouvira dizer que Géraudin operara casos semelhantes e que era até um dos inventores da técnica nova que permite abrir o coração dum ente vivo, o polícia desejava ser operado por ele.

Tais intervenções haviam sido uma das coroas de glória de Géraudin. Começava por injectar boa dose dum produto que retarda as pulsações. Depois serrava as costelas, fazia uma abertura larga no peito e punha a nu o coração. Nesse momento, e ainda antes de lhe dar o golpe, já o «recosia», isto é: no músculo cardíaco passava, como uma laçada, um fio que o assistente segurava pelos dois extremos. Em seguida Géraudin, com a mão esquerda, agarrava o coração, esperava que ele palpitasse, e, logo após, apertava-o com força entre os dedos, para retardar o mais possível a pulsação seguinte. Com a mão direita, sob o fio, fazia a incisão, num golpe de bisturi muito rápido, pegava numa pinça, mergulhava-a ali, buscava o estilhaço e trazia-o para fora. No mesmo instante o assistente puxava o fio, que corria como um laço e fechava imediatamente a ferida. Géraudin desapertava a mão esquerda e, sob os seus dedos, a vida refluía nessa palpitação súbita. A operação devia fazer-se assim entre duas pulsações. Para o aperfeiçoamento de tão maravilhosa operação, Géraudin contribuíra bastante.

No caso do polícia tomou ele várias precauções. Em primeiro lugar ordenou que levassem o paciente do hospital para a sua clínica particular a fim de, sob o pretexto de sossego e facilidade no tratamento, o ter longe das vistas dos curiosos. Mas a coisa divulgou-se, e o boato correu na Faculdade, na Égalíté, na cidade.

- Uma bala no coração! O doente de Géraudin tem um projéctil no coração!

Os rivais espiaram-no. Iria ele operar? E fá-lo-ia com êxito?

Géraudin viveu momentos de ansiedade. Operar? Tinha medo de se atrever a isso. Não operar? Mandar o homem a um dos mestres da Faculdade de Paris, com quem colaborara para o aperfeiçoamento do processo? Seria confessar a sua impotência, proclamar-se muito velho, dizer, em suma, aos médicos da terra :

- Enviai os vossos doentes a outro...

Decidiu operar. Fixou uma data, preparou o seu cliente com alguns dias de antecedência. Foi à morgue pedir um cadáver não reclamado pela família a fim de exercitar a mão, familiarizar-se de novo com a técnica respectiva. Julgou-se capaz, seguro de si. Dizia:

- De qualquer maneira, há grande percentagem de mortos nestas intervenções. Não poderão censurar-me em nada, nem eu terei de me recriminar. E foi este homem que o quis, e me escolheu.

Sobretudo, interrogando a sua consciência, Géraudin tinha a certeza de estar em «plena forma». No entanto, vivera alguns dias lúgubres, os dias dum criminoso que sente remorsos. Por fim, mandou tudo à tábua. Teve uma revolta, um belo rasgo. Certa manhã, na presença da enfermeira, de Louis, dos assistentes e do director do serviço, depois de haver examinado o homem, endireitou-se e disse bruscamente:

- Estas coisas já não são para mim. Meu caro amigo, em Paris há o doutor Labriet, um dos meus fiéis camaradas... Esse cirurgião operá-lo-á muito melhor do que eu.

E, depois dum silêncio, ajuntou em voz baixa, com esforço e vergonha:

- Já estou muito velho...

Saiu da sala, no meio do pasmo súbito e geral, com um nó na garganta e lágrimas nos olhos Contudo sentia no fundo da alma uma espécie de alegria, como que um engrandecimento muito maior do que se houvesse feito aquela operação e obtido um êxito triunfal. Compreendia nesse instante toda a nobreza que pode existir na admissão do declínio, na renúncia. Naquele momento, Géraudin roçou pela verdade, tocou com o dedo na libertação. Teve consciência duma glória mais pura, mais verdadeira, indestrutível desta vez, na sinceridade, na aceitação simples e bela da velhice e da morte. Que doçura na confissão pública, no apelo aos outros mais novos, na submissão à lei do destino! Que incomparável auréola derredor duma fronte, reconhecer-se diminuído diante de todos! Mas, depois, Géraudin recuou, embora demasiado tarde. Estava prisioneiro do passado. Tinha muitas invejas à sua volta, muitos ódios, muito dinheiro a ganhar. Sentia-se acorrentado. Valerie, a clínica... Era preciso mentir, dissimular...

Muito discretamente, no seu belíssimo automóvel transformado em ambulância, Géraudin mandou o doente ao professor Labriet, de Paris, que o operou e o conseguiu salvar.

Géraudin esperava que ninguém soubesse de nada. Contudo, houve alguns «amigos» que lhe perguntaram, com um sorrisinho :

- E a tal bala no coração?

Estas insinuações magoavam Géraudin. Quando já não podia mais, chamava o Louis, mandava-o preparar o carro e ia passar três dias a La Baule, junto do filho idiota. Aí, estava sossegado de espírito. Esquecia-se dos seus pesares, ocupava se de Henri, passeava-o, prestava-lhe os seus cuidados, pensando no outro filho, nesse rapazinho inteligente e meigo que ele abandonara e de quem nunca mais soubera. As vezes, o idiota poisava no pai o olhar durante uns segundos, parando por um instante o seu vagido e a sua mímica eterna.

«Dir-se-ia que me reconheceu», pensava Géraudin, perturbado.

E era esta a única consolação.

- Agora percebo por que não nos queres em Paris! disse Julienne Guerran, num sábado em que o ministro viera a Angers. - Parece que não te aborreces lá!

E pôs-lhe diante dos olhos uma notícia do Diable Boiteux, quinzenãrio satírico parisiense.

«...Essa intervenção do nosso simpático Ministro da Agricultura provocou aplausos entusiásticos. Duma tribuna, em especial, ouviram-se palmas calorosas de mãozinhas enluvadas de fio de Escócia... Conhece-se a fidelidade de certa Egéria, muito nova, morena e pálida, ao nosso técnico de questões agrícolas,..»

Não havia maldade naquilo. Era apenas uma sátira, e seria até gentil na sua causticidade se não fosse Julienne...

Guerran limitou-se a encolher os ombros. Mas não evitou a disputa que Julienne preparava há três dias. Mostrara a notícia a Charles e a Micheline, e esta ficara amuada. Apesar de tudo, Guerran voltou sozinho a Paris.

Preveniu então Fabienne.

- Temos de ser prudentes... Minha mulher suspeita de qualquer coisa.

- Ora! - retorquiu a rapariga. - Amas-me?

- Ainda duvidas!

- Nesse caso, que te importa o resto?

- Pode haver escândalo...

- Se me amas como te amo, nenhum escândalo nos mete medo. Gostas de mim?

- Fabienne! Fabienne! - exclamou Guerran, puxando-a para si e abraçando-a. - É por ti que sinto receio... O teu pai... As pessoas das tuas relações...

- Mas se eu gosto de ti, que me interessam os outros? Só te quero a ti!

- E ter-me-ás todo! - volveu Guerran, comovido com aquele grito de ternura, com aquele abandono total. Paciência! Um dia serei livre. Poderei quebrar a cadeia, divorciar-me. Direi adeus a Julienne e deixar-lhe-ei com que viver... Charles terá o meu escritório de advogado, Micheline estará casada... E seremos enfim marido e mulher, minha querida! Poderemos então revelar o nosso amor à vista de todos! Recomeçar contigo uma existência nova, que sonho! Seres a minha companheira, a minha [esposa! Estás a ver? E quem sabe? Um dia, daqui a muito ’tempo (como sinal visível de que agimos bem apesar de tudo, como aprovação do destino e bênção sobre a nossa aventura audaciosa) talvez tenhamos em nosso lar uma criança, um filho nosso, teu e meu...

- Olivier! - murmurou Fabienne, perturbada.

Na quinta-feira seguinte, sem aviso prévio, Julienne chegou a Paris. Por um triz que encontrava Fabienne no ministério. A rapariga teve de se escapulir pela passagem secreta que fica atrás da galeria e liga o gabinete do ministro aos seus aposentos particulares. Foi preciso este vexame para lhe dar, pela primeira vez, a consciência da sua situação triste e vergonhosa. Julienne só deixou o marido no dia seguinte de manhã, a fim de tomar o comboio para Angers, segundo disse. No entanto, às oito da noite, quando ia a pé com Fabienne jantar a um restaurante, Guerran teve a certeza de reconhecer, atrás de si, o vulto furtivo da mulher a espreitá-lo na esquina da rua de Varennes.

Voltou a Angers no fim da semana seguinte, por dois dias, e passou essas quarenta e oito horas em intermináveis discussões, cenas e gritarias com Julienne. Esta prevenira os filhos. Charles andava com uma cara muito esquisita, Micheline continuava amuada. Custou a Guerran convencer a filha de que Julienne disparatava, de que ele era incapaz de semelhante acção. Ainda assim, conseguiu recuperar Micheline antes de tornar a Paris. Era o essencial.

Na tarde do seu regresso, falou com Fabienne e achou que devia adverti-la.

- Desta vez, o caso tornou-se sério. Minha mulher viu-nos juntos. Tive de suportar uma série de cenas melodramáticas... Estou certo de que vamos ser espiados.

- E então?

- Temos de ser prudentes. Talvez possamos espaçar os nossos encontros...

- Espaçar os encontros?

- Sim. Evitar os lugares públicos, vermo-nos mais discretamente...

- Não mudarei a minha forma de proceder!-exclamou Fabienne. - Pouco me ralo com os outros! Não vais estragar a nossa felicidade com essas histórias! Gostas de mim?

- Bem o sabes.

- Então?

Recusava compreender, zangava-se. Guerran não se atreveu a insistir.

Mas por várias vezes, nos dias seguintes, ela própria teve a impressão de que a espiavam e a seguiam. Vinha um velhote atrás da rapariga, e passava à frente com ar constrangido se ela se detinha. Depois foi um rapaz mal vestido que nunca a deixou, desde o Quai aux Fleurs até ao ministério. Havia ocasiões em que à porta dum restaurante reconhecia uma cara que vira durante o dia... Fabienne, vexada e furiosa, não teve outro remédio senão falar do assunto a Olivier.

- Parece-me que ando vigiada.

- Vigiada?

- Com certeza por mandado de tua mulher. Naturalmente pagou a uma agência.

- Está bem - disse Guerran - Eu me encarrego de meter tudo na ordem.

Telefonou para o comando da polícia Apanharam o «investigador» em pleno «trabalho» e souberam qual a agência que o pagava. O director dessa tal agência foi chamado. Combinaram que ele continuaria a mandar relatórios a Julienne, mas ditados por Guerran, do qual receberia cinco mil francos. Guerran conseguiu saber que Julienne ignorava a identidade de Fabienne. Mas daí em diante a rapariga, sempre que saía. tinha constantemente na sua peugada dois polícias de estatura formidável, que lhe faziam uma escolta pouco discreta, contínua e exasperante. Isso durou três dias. Aoquarto dia, enervada ao máximo, Fabienne entrou como um furacão no ministério e discutiu violentamente com Olivier Guerran. Estava farta daquilo, a sua vontade era mandar todos à fava, fazer-se notar, viver a sua vida, custasse o que custasse. Guerran, espantado, cheio de consternação, tentava apaziguá-la, mas só a irritava mais. Fabienne voltava sempre à sua ideia, à mesma pergunta :

- Gostas de mim? Então?

Não é fácil fazer compreender a um ente jovem, independente e irritado, as necessidades da prudência, as manobras, as concessões e as diplomacias que a vida exige. A discussão recomeçou por várias vezes nessa Primavera. Julienne voltou a Paris, e ela própria tentou apanhar aquela desconhecida cuja presença sentia derredor do marido e de quem queria à viva força descobrir a identidade. Guerran começou a ter medo, por Fabienne e por ele mesmo.

Por meados de Junho, o ministério caiu. Guerran quase rejubilou. Sentia-se fatigado. Esperava uma modificação de existência que lhe trouxesse mais segurança e sossego de espírito. Julienne queria que ele regressasse a Angers. Fabienne exigia-lhe que ficasse em Paris. Isto provocou nova cena, em que Guerran se exaltou.

- Em suma, pretendes a minha ruína! - disse ele a Fabienne. - Sou casado, ocupo uma posição de evidência. Um escândalo seria a catástrofe.

- Julgava que me tinhas amor!

- E tenho, mas preciso de viver. Há a família...

- Só pensas em ti! Pois muito bem!

Estiveram uma semana sem se verem. Então Guerran correu à casa de saúde e mandou chamar Fabienne.

- Perdoa-me! Já não posso mais! Sofro muito! Realmente, não tens coração.

- Supões que eu também não sofri? - retorquiu Fabienne.

- Esquece tudo. Perdoa. Vamos partir. Proponho-te irmos ambos a Charente e lá nos demorarmos todo o Verão. Minha mulher vai com os filhos passar as férias em Paris-Plage. Seremos livres, felizes. Como em Aix. Verás! Está combinado? Dá cá um beijo, minha querida Fabienne.

A rapariga pediu ao doutor uma licença de dois meses e entendeu-se com a senhora Haget, mulher dum negociante, a qual estivera durante três semanas na casa de saúde a tratar-se dum aborto espontâneo. A senhora Haget tinha um amante e «compreendia a vida. Ficou combinado que para toda a gente, e até para Doutreval, Fabienne ia veranear com os Haget em Biarritz. Se por acaso Doutreval, numa das suas digressões pela França, chegasse de improviso ao castelo dos Haget, a referida senhora diria que Fabienne partira nesse mesmo dia para Angers na esperança de o ver. E então avisaria Fabienne por telegrama, a fim de que a rapariga fosse imediatamente para casa do pai. Também ’todas as semanas a senhora Haget deitaria no correio os postais e as cartas de Fabienne para Doutreval.

Todas estas vis combinações Fabienne preparava-as com a senhora Haget, à noite, no quarto da enferma. Isto já não lhe repugnava. Sentia-se igual às outras, à força de ter vivido nessa corrupção. Contudo, havia momentos em que voltava a ser consciente, em que lançava, no espaço dum segundo, um olhar lúcido sobre si mesma, sobre isso em que se tornara. Dir-se-ia que vivia um sonho, que nada daquilo era verdade. Aproximava-se do espelho e contemplava demoradamente esse rosto pálido e moreno sob os pesados cabelos negros apertados numa trança, esses olhos pretos, essa face moça, quase infantil, franzina e séria, que era ela própria. Seria possível que por trás daquela cara houvesse tudo aquilo? Que a Fabienne doutros tempos fosse esta, a amante de Guerran, que andava com ele ostensivamente e combinava com a senhora Haget baixas intrigas de adultério e mancebia? Tinha a impressão de viver um pesadelo. Aquilo não era verdade, não era possível!

O telefone chamava-a. Guerran esperava por ela, marcava-lhe entrevista para as oito horas nos Campos Elísios. Vestir-se, tomar um táxi, jantar em restaurante de luxo, ir ao espectáculo... Fabienne, levada outra vez naquele turbilhão, nem tinha tempo de tornar a reflectir.

 

Seteuil anuncia os seus esponsais com Anne-Marie Lausefeld, filha do grande industrial deste apelido. Esplêndido partido para ele, viúvo e já pai dum filho.

Aliás, Seteuil também não é mau partido. Tem bom aspecto, com a sua barba e a testa ampla, que lhe dá um ar de pensador, e ganha muito dinheiro. «Trabalha» com o cirurgião Lequesnoy, que lhe dá cinquenta por cento dos seus honorários. Seteuil, em princípio, é partidário das operações. Um pouco de amigdalite, um pontinho apendicular, e logo recorre a Lequesnoy.

- Não compreendo que se hesite! -diz Seteuil. -é tão simples abrir uma barriga e ver o que lá está!

Surge, porém, uma nuvem a perturbar essa bela calma. Uma tarde, o filho de Seteuil é atacado de cólicas e vómitos. Temperatura nenhuma, ventre flácido... No entanto, o pai lembra se de apendicite, inquieta-se, e chama por Michel, que o tranquiliza.

No dia seguinte, o garoto não está melhor e Holmont vem vê-lo.

- Quanto a mim, acho que o deviam operar. Seja o que for, ficará livre do apêndice.

«Bem se vê que não é teu filho!» pensa Seteuil, furioso.

O velho Rosselet, consultado, emite a sua opinião:

- Não há pressa...

Mas, na manhã do terceiro dia, a febre sobe. Seteuil corre ao telefone para chamar Lequesnoy e, no último instante, hesita. Lequesnoy é bom cirurgião, sim, mas não possui o golpe de vista nem a mão de Roy... Roy é infinitamente mais seguro. E, ao menos, não opera só pelo gosto de operar!

Depois de breve hesitação, é o número de Roy que Seteuil marca no disco negro do telefone.

Roy chega e ausculta o petiz. Seteuil, atrás dele, espera deveras apoquentado. Vê já o filho de barriga cortada, sufocando sob o frasco de éter. Pensa nas síncopes, nas hemorragias, nas infecções, nos longos martírios dos pensos arrancados, dos drenos, dos ganchos de aço enterrados na pele... Oxalá fosfe poupado esse calvário ao seu menino!

- Ele é nervoso - murmura Seteuil. - Tenho medo dumaráqui... Por outro lado, uma anestesia total, sofrendo ele do fígado como sofre... Há tantos riscos! Qual a sua opinião, Roy?

Roy não diz nada, continua a examinar. Por fim, endireita-se e declara:

- Francamente, não vejo necessidade de operação... Respiração profunda sem dor, nenhuma retenção de gases... O miúdo que fique com o seu apêndice. Sempre lhe há de ser útil, digam o que disserem. A febre? Desnutrição. Comece por lhe dar compota de maçã...

Seteuil suspira de alívio. Sente-se felicíssimo, ao saber que o seu rapazinho não sofrerá aquele martírio. O filho restabelece-se. Seteuil, segundo o costume, envia à senhora Roy um soberbo xale da Pérsia, antigo, à laia de honorário. E Roy, um tanto melancólico, vê a mulher pendurar na parede da sala o magnífico xale e pensa que isso não impedirá Seteuil de continuar a mandar os seus clientes a Lequesnoy, tal como antes.

- Que praga, esta coisa da dicotomia! - diz Roy.

De passagem, entrou nessa tarde em casa de Michel. Parece fatigado e um tanto pessimista. Muito trabalho, muita concorrência, muitos impostos. O hospital rouba-lhe toda a clientela. Lequesnoy, com a sua dicotomia, e Romagnol, a sumidade de Lille, com o seu título de professor, apoderam-se do que o hospital deixou. Roy despediu o assistente. Agora, passa grande parte da noite a esterilizar as coisas necessárias para as intervenções do dia seguinte. A mulher serve-lhe de assistente nas operações. E tem sete filhos...

Para essa história da dicotomia surgira-lhe uma ideia. O médico tem direito à sua parte de honorários. É ele que, na altura em que se apresenta o problema de qualquer operação, decide, telefona e assiste. É moralmente responsável. Não há motivo para se lhe negar a remuneração. Roy propõe estabelecer uma tabela, uma tarifa de preços especiais para o médico, conforme a gravidade e iniciativa que ele tem no assunto. A única dificuldade era fixar a tabela. Conseguira isso com a ajuda dalguns colegas. Mas depois de tudo feito, o sindicato reprovara: «Muito complicado, muito discutível...» Na realidade, o médico não ganha o suficiente para prescindir daquele benefício. E é irritante ler artigos contra a dicotomia assinados pelos grandes «pontífices», que podem, sem se prejudicar muito, dar-se ao luxo da honestidade.

- No fundo -diz Roy- não há nada a fazer. Nada. Nem a publicidade das partilhas, nem a fixação dos preços, nem outro sistema qualquer podem impedir o cirurgião de entregar ao médico uma nota de mil, nem o médico de aceitar a referida nota. Neste caso, como nos abortos, nos desastres no trabalho, no repovoamento, e em tudo o que se quiser, a lei não basta. É antes na consciência de cada um que é preciso actuar. Tudo se resume na consciência individual. Estabelecer uma tarifa razoável e depois, principalmente, vigiar o recrutamento e a formação da classe médica, para que saibam respeitar a regra adoptada.

Há já alguns meses que o motorista dos ricos moageiros Hesdelot, de nome Brunei, quebrou o braço com uma volta de manivela. Seteuil, Lequesnoy, sem contar outros médicos, trataram-no sucessivamente, sem que se consolidasse a fractura. Incapaz de ossificar. Lequesnoy, partindo do princípio de que Brunei está desmineralizado, aconselhou pão integral e legumes cozidos em vapor de água, além de lhe ter administrado, de forma simplista, enormes doses de medicamentos com base de calcário. Resultado: foi de mal a pior, como muitas vezes sucede. Por fim, Brunei recorre a Michel Doutreval.

O motorista - e a coisa é frequente - sofre dum sindroma completamente desconhecido dos «clássicos»: desmineralização por hipermineralização. Palidez, lábios gretados, olhos vermelhos, pintas brancas nas unhas, lumbago quase crónico, cárie dentária. Esta criatura enfraquecida já não consegue assimilar os sais minerais. A sobrecarga que lhe impuseram não fez mais do que obstruir o organismo, deixando as células esfomeadas - pois um organismo tão fraco não pode utilizar senão alimentos não ácidos e desconcentrados.

Michel estabeleceu-lhe uma dieta: pequenas doses de trigo cru e cozido, saladas, legumes cozidos em muita água, várias vezes mudada, pão alvo, frutas doces, e interdição absoluta de todos os ácidos. Nesta alimentação desconcentrada e doce, Brunei, melhor do que numa esmagadora sobrecarga mineral, encontra materiais que o seu organismo anémico é capaz de metabolizar. Recalcificação perfeita e muito rápida. Brunei va< com Lequesnoy para radiografar o braço curado. Lequesnoy fica perplexo.

O motorista canta por toda a parte louvores a Michel. Tantos e tão sinceros que os patrões, os Hesdelot, se decidem a chamar, por causa do pai, esse «mèdicozinho». Sem dúvida que os preços dele. tão irrisórios, não inspiram confiança! Mas, quem sabe? É assim, muitas vezes, pelos criados, que se penetra em casa dos ricos...

O velho Hesdelot sofre dum cancro. Já é tarde para operar. Opium et mentiri.

Os Hesdelot estão satisfeitos com Michel. Boa propapanda. Os Lavaisne, riquíssimos fabricantes de licores, também lhe solicitam os serviços. No primeiro dia é natural a comoção. Michel prepara-se com mais cuidado que de costume e, quando dá por si, está a falar um tanto rispidamente a Évelyne a propósito duma nódoa nas luvas de fio de Escócia Demora-se a lustrar os guarda-lamas baços do automóvel. A mulher ajuda-o; como estava a fazer os arranjos da casa, conservou o avental e tem ainda as mãos sujas da pomada de brunir o fogão. Porque será que, ao vê-la assim, Michel sente uma impressão tão desagradável?

O castelo dos Lavaisne pompeia no meio dum parque, atrás da fábrica de destilação. Vestíbulo de mármore. Escadaria majestosa, em dois lanços, e corrimão de ferro dourado. Criadas discretas, de avental e touca. Toda a família Lavaisne está ali: ele, gigante de tez cor de tijolo, grande amador de aguardentes da sua lavra; a mulher, platinada, pintada; a filha, que tem vinte anos, tão pintada como a mãe; e o filho, colegial cheio de borbulhas, fumador de cigarros ingleses. Explicação da chamada: a avó teve uma espécie de ataque de nervos.

Ao subir a escadaria, Michel recorda as normas da civilidade médica, aprendidas na Faculdade: ter cuidado com os tapetes, desconfiar dos soalhos encerados, evitar durante a auscultação as posições muito inclinadas, que podem provocar queda e fazer com que o clínico bata com o nariz no travesseiro. Todas essas preocupações lhe dão um ar estúpido, enquanto se dirige em silêncio para a doente.

Trata-se duma apoplexia. Agita ainda a velha dama, já em coma, um resto de convulsão. Sobressalta-se, bate os pés e as mãos, fica prostrada de novo. Por intervalos, a hemorragia inunda os centros nervosos, um após outro, arrancando lhes um derradeiro espasmo. Mas o coração continua bom, pode resistir semanas... Michel, atento ao exame, esquece-se dos Lavaisne e do seu castelo, de tal modo que, ao endireitar-se, dá de ilharga na mesa de cabeceira repleta de xícaras e bules... E recompõe-se, muito corado.

- Então, senhor doutor?

Não há muito que receitar. E isso é o pior! Nada mais indicado para dar a impressão dum perfeito imbecil.

- Voltarei esta noite -balbucia Michel. -Eu... nós... Veremos esta noite.

Parece incrível como o automòvelzito, junto ao último degrau da escada exterior, tem um ar mesquinho e pré-histórico, com os seus estofos riscados e a boneca barata, ao lado do sumptuoso carro dos Lavaisne, reluzente no seu esmalte preto e nos metais cromados, onde se remira o motorista de bata branca e farda azul.

Obstina-se a viver o que resta da avó Lavaisne. Os Lavaisne andam nervosos. Aborrece-os aquele semicadáver que não acaba de morrer. De mansinho, o grande industrial sugere:

- Não acha uma crueldade, doutor, todos aqueles sofrimentos inúteis? Se uma injecção... A morte rápida seria coisa mais humana, parece-me ! Visto já não haver esperança. ..

A loira senhora Lavaisne e a filha, de rosto pintado e mãos bem cuidadas, são doutra opinião. No próximo sábado haverá baile em casa do moageiro Hesdelot. E elas dizem consigo mesmas:

- Oxalá não morra antes de domingo ! Temos os vestidos encomendados! Está tudo pronto ! Seria um desastre!

Têm tanto medo de não irem ao baile que acabam por pedir uma junta com Seteuil.

Seteuil foi buscar Michel a casa, no seu belo automóvel, que ele inspecciona num último relance de olhos.

- Os pormenores têm muita importância -declara. Antes de entrar na residência dos Lavaisne, escovadela

no fato e nos sapatos. De dentro do carro, Seteuil retira três pares de luvas e escolhe o mais limpo.

- Tenho sempre três pares no automóvel - explica ele. - O mais sujo para os operários. Aquele para o burguês e este, novinho em folha, para as «grandes famílias». Vamos lá, meu caro Doutreval.

À cabeceira da avó, Seteuil deslumbra os Lavaisne e Michel. Tira da maleta uma série de instrumentos : oscilómetro, estetoscópio, níqueis e ebanites; níqueis, sobretudo ! Reclama umas poucas de toalhas. Jamais a orelha sobre a pele nua. Puxa duma caneta de tinta permanente, de oiro.

Que ar douto lhe dá a barba e a calvície nascente ! A receita espanta Michel. Começa, solene e muito à século XVII:

«Aconselhamos à senhora Heurtebise-Lavaisne a seguinte medicação...»

E, mais abaixo, nem uma única especialidade farmacêutica, como toda a gente usa, mas uma lista de prescrições complicadas, cheias de termos latinos, de fórmulas químicas, de abreviaturas cabalísticas, somente inteligíveis para os boticários, e mesmo assim... Qualquer coisa que, com toda a certeza, foi especialmente concebida para uso pessoal e exclusivo da avó dos Lavaisne.

- Nunca passarás da cepa torta! - diz Seteuil a Michel, ao reconduzi-lo no seu automóvel confortável. - é necessário deslumbrar os ricos. Instrumentos metálicos, carros do último modelo! Encher-lhes a vista! Se te convidarem para jantar, chega tarde, ainda que não tenhas nada que fazer. Convém mostrares-te atarefado. E não esquecer a oferta de ramos de flores. Também com os operários não procedes como deve ser. A pequena da senhora Gaby Houtten teve escarlatina, e tu apressaste-te a avisar as autoridades, proclamando aos quatro ventos que era doença infecciosa! Consegues que a mercearia dessa gente seja fechada por um mês. Que idiotice! O que estava indicado era prevenir a mãe, ordenar-lhe que se calasse muito bem calada, que encafuasse a pequena no quarto e dissesse às vizinhas que se tratava duma gripe muito forte. Naturalmente não tornas a ser chamado a casa dessa gente. E Failly, o do talho? Queixa-se de ti. Soube-o pelas criadas. Não lhe compras nada! Pois é preciso comprar a toda a gente. Eu nunca passo defronte da loja do Failly sem dar duas pancadinhas nas peças de carne e gabar a excelência da qualidade. No estanco de Simonet, a mesma história. Ninguém te vê comprar tabaco. Erro grosseiro, meu caro Doutreval! Olha que o proprietário dum estabelecimento destes é capaz de fazer a maior das propagandas. Imagina o caso : mostras-te em público, encontras-te com um operário no estanco ou no botequim, e o homem pensa logo : Cá está um tipo que não se faz fidalgo! Na primeira ocasião, recorrerá aos teus serviços. Bem sei que há regímenes absolutos, dietas rigorosas. .. Álcool, tabaco, gorduras, coisas prejudiciais... Mas, que diabo! Depois de fazeres as tuas proibições, se essa gente não ficar satisfeita, fecha os olhos! Deixa-os comer e beber o que lhes apeteça, e lava daí as tuas mãos. Eu, logo que um sujeito se põe a dizer : Nem sequer uma cachimbada? Nem um copinho de aguardente? Acha que faria muito mal? Compreendo logo e autorizo-o a tomar um copito. Antes de mais, não desagradar ao cliente! Nunca pensaste por que é que os fabricantes de tónicos enriquecem? Porque têm o cuidado de fazer de maneira que as suas drogas saibam bem. Aquilo engole-se como um aperitivo! Toda a gente quer tomar! Até os motoristas que entregam as encomendas ao domicílio: é fatal, às onze horas, em plena estrada, vê-los parar o caminhão, partir o gargalo duma garrafa de qualquer dessas mistelas e absorver o líquido regalados. Depois entregam os cacos ao patrão, para a conta das perdas gerais... Primeiro que tudo, psicologia! Lembra-te disto, Doutreval!

Nessa noite, depois do jantar na cozinha, Michel deixa Évelyne a lavar a loiça e encerra-se no escritório. Acende durante alguns minutos o radiador de gás, abre a pasta das facturas e põe-se a fazer contas. O fim do mês será difícil. Carvão, contribuições... Foi preciso mudar um pneu do automóvel. E, contudo, é absolutamente necessário arranjar criada. A mulher-a-dias não basta, por causa do serviço da porta, dos clientes a introduzir. Évelyne anda com mau parecer. Domberlé, prevenido, gritou-lhes: «Cautela! Sobretudo, nada de fadiga!» Ela ficou débil, evidentemente. Há três noites que dorme bastante mal. Ainda nessa noite Michel velou com a mulher, para não a deixar sozinha, para compartilhar da sua insónia e afastar-lhe do espírito as ideias negras... Sabe que vê tudo pelo lado pior quando não dorme de noite. Por fim, Évelyne adormeceu. Michel esteve acordado ainda muito tempo, embora cheio de cansaço. Não há dúvida que é preciso alguém para ajudar nos trabalhos caseiros.

Michel, debruçado na secretária, observa as somas rabiscadas à pressa. A vida não lhe sorri. Seteuil, nessa manhã, é que lhe apontara o que devia fazer. Deslumbrar os ricos, lisonjear-lhes as manias e as vaidades. Com o povo, abaixar-se até ao nível da vulgaridade, beber com os homens, piscar o olho às mulheres, empregar os termos da plebe, dizer uma facécia, não maçar as pessoas com dietas severas, fazer uma visita à taberna da esquina, exibir-se no estabelecimento de Simonet, ser popular, tecer elogios ao homem do talho pela boa qualidade da carne...

«Nunca chegarei a isso», pensa Michel.

O gás arde com um rumor contínuo. Michel vai fechar um pouco mais a torneira, volta a sentar-se na secretária e prossegue nas suas reflexões. Tem de pagar a luz, a electricidade, o carvão... Que despesa representa tudo isto! É certo que o velho Hesdelot, com o seu cancro, pode ser ainda um grande recurso... Mas os Hesdelot acham que a Michel falta um pouco de energia. Pois se o pai deles continua a viver, é de tentar qualquer coisa, uma operação. .. Por mais duma vez propuseram a Michel, com insistência :

- Doutor, não lhe parece que uma intervenção cirúrgica. ..?

é isto o mais penoso: que a tentação parta dos próprios clientes. Michel hesita, acaba por ficar desnorteado. No fim de contas, quem sabe? A operação é a última probabilidade. Já se têm visto milagres. E os Hesdelot são tão ricos! Não se trata de gente pobre! Michel, de muito boa fé, já não sabe se é necessário operar ou não.

Ter-se-ia enganado Domberlé, o velho mestre? Será certo que a verdade traz em si força de persuasão suficiente para que triunfe? Mas se os homens não a querem i Essas dietas, essas abstinências, essas disciplinas que Michel impõe à sua clientela têm-no prejudicado tanto! Que publicidade ao invés! Fogem dele, correm ao consultório de Seteuil e bebem, deliciados, os vinhos nutritivos que este lhes receita. E os próprios colegas! Isso é que é lamentável: que recusem aprender, que neguem a evidência, que fiquem emparedados nos ensinamentos da Faculdade. São tão numerosos! Nunca a verdade simples e nua triunfará daquela multidão. Não há nada a fazer!

Não seria então melhor agir como os outros? Exercer medicina como toda a gente? Neste momento, a solidão aterra Michel; a solidão, e a pobreza duma vida de verdade, como a de Domberlé.

Desvia de si a pasta das facturas, levanta-se, dá alguns passos e vai sentar-se no divã onde os doentes se colocam para a auscultação. O facto de se sentir incapaz de ganhar tanto dinheiro como Seteuil causa-lhe certa inquietação pelo futuro e uma impressão humilhante de inferioridade. De nada serve dizer: «É porque eu não quero...» O seu orgulho sofre, e ele está pouco convencido de que Seteuil não o ultrapasse, não seja o mais forte, na luta pela vida. Sempre, em certa medida, avaliamos os outros, e a nós próprios, pelo dinheiro que sabemos ganhar. O dinheiro! Para que há-de uma pessoa optar pela honestidade, pela consciência, se nunca chegou a afastar de si a ideia de que é ele o sinal infalível do valor do homem?

«Tenho a consciência por meu lado» -responde Michel a si mesmo. «Escolhi, preferi ser honesto».

Pois sim, mas é esta muitas vezes a desculpa dos fracos. Ocorre-lhe uma lembrança ainda recente, recalcada, combatida, mas que o obceca apesar de tudo. Recorda-se daquela manhã em que os Lavaisne o chamaram. Que grande comoção, nesse dia! E como a simplicidade de Êvelyne, o seu avental e as suas mãos sujas de fuligem lhe pareceram então desagradáveis e humilhantes! Fora a custo que dissimulara a irritação, o mau humor. Isto é, só porque um ricaço o chamara, já renegava tudo!

Êvelyne bate de mansinho à porta. Michel levanta-se do sofá. A mulher entra.

- Estás a trabalhar?

- Sim... estou a fazer contas.

- Se não sentisses frio, apagava o radiador.

- Como quiseres.

Torna a instalar-se à secretária. Êvelyne vai fechar a torneira do gás, e a chama extingue-se numa pequenina explosão. De passagem, lança um olhar à secretária e vê as facturas, todas aquelas contas de que ela pouco entende. Não diz nada, estende-se no divã e põe-se a observar o marido com olhar inquieto. Michel recomeça nos seus cálculos. Êvelyne suspira baixinho e continua a observá-lo. Michel acaba por sentir o peso desse olhar mudo e ansioso de quem não se atreve a perguntar nada e que, no entanto, percebe as coisas. Sente-se comovido, tem dó daquela inquietação silenciosa. Levanta-se, aproxima-se de Êvelyne, afaga-lhe as mãos e beija-a nas pálpebras. Ela retribui-lhe o beijo, um beijo em que põe toda a sua ternura, os seus receios e o seu reconhecimento - reconhecimento de cão fiel, de criatura que teme sempre ser pesada aos outros. Numa voz quase jovial, reconfortante, Michel diz:

- Então, senhora minha esposa? Que tal vai isso?

- Menos mal. E tu, Michel?

- Muito bem, senhora Doutreval.

Ela sorri. Nos seus olhos negros e receosos, de pessoa que sofreu muito, só transparece felicidade. Felicidade e gratidão... E, porque Êvelyne parece feliz, Michel, no meio de todas as suas incertezas e dúvidas, sente no coração uma alegria doce e estranha que não sabe explicar.

O que o fatiga e às vezes oprime deveras é o espectáculo dessa medicina desprovida de princípios gerais, de todos esses infelizes doentes em quem os colegas de Michel, na sua maioria, se limitam a sufocar os sintomas, julgando havê-los curado - ilusão de que os desgraçados compartilham. Na diabetes, só se preocupam com o açúcar, sem ver que ele resulta em especial dos alimentos mal escolhidos. Reduzem-no, então, na dieta, mas não diminuem a quantidade de carne, de álcool, de gorduras, de leite. Assim, o envenenamento do diabético mais se agrava ainda. No entanto, há quem se cure da doença sem deixar de ingerir um pouco de açúcar; o que faz é diminuir a percentagem de carne, peixe e gorduras nas suas refeições. Se se trata de doenças do coração, quantas vezes um laxante ou sumo de frutos doces ou um regímen de descongestão do fígado apazigua uma crise cardíaca, pois foram os venenos da alimentação que a provocaram. Quase sempre, porém, o médico fustiga o coração com injecções de cânfora ou de digitalina. Na sífilis, em geral, ninguém tem a ideia de recorrer às defesas naturais do organismo, esquecendo-se que a injecção subsiste em parte graças às toxinas alimentares. Infecta-se! Injecta-se com frenesi, até que o doente, extenuado, por fim morra. Nem se lembram sequer que um bom regímen permitiria tratamento mais suave. E quanto às crianças! Que quantidade de otites, sinusites, mastoidites, amigdalites tratadas simplesmente por intervenções locais. Raspa-se a garganta, cortam-se as amígdalas, golpeiam-se os cornetos do nariz, arrancam-se os pólipos, trepanam-se as cavidades sinuosas, e crê-se ter feito tudo, sem levar em conta o modo de alimentação defeituoso do doentinho; esse é que devia ter sido modificado.

Na roda de Michel, a ablação dos pólipos e das amígdalas é coisa vulgar; praticam-na em série no hospital. Michel só consegue fazer sorrir os colegas, ou provocar-lhes os protestos, quando afirma que os pólipos e a inflamação das amígdalas se curam por si mesmos, com um bom regímen e vida sã, e que a operação destas últimas não é inofensiva, mas perigosa. A amígdala é um órgão de defesa, de secreção de produtos tóxicos. É o excesso de produtos tóxicos a expulsar que provoca nela a irritação: a inflamação microbiana só aparece como facto secundário. Tirar o órgão e não mudar o regímen é preparar doenças mais graves. Tanto que se começa a perceber que esta operação das amígdalas pode despertar antigos focos de tuberculose e que favorece terrivelmente a mais perigosa de todas as poliomielites: a poliemielite de forma bulbar. Uma coisa é certa: todos os dias Michel vê chegarem ao seu consultório crianças que foram operadas e que sofrem agora de apendicite, de febre e vómitos biliosos e até de tuberculose óssea. Tão evidente é isso que qualquer médico poderá estabelecer relação entre amigdalite e apendicite, relação inexplicável aos olhos de muitos deles!

No entanto, suprimindo as causas, proibindo os ácidos, as carnes tóxicas (caça, porco) o peixe, os remédios, os fortificantes, Michel conseguiu curar, quase sempre, os seus doentinhos, sem os operar, sem os fazer sofrer. Isto é verdadeiro para todas as doenças. Mas os colegas não lhe dão ouvidos! Aflige saber que tamanho erro está tão sólido, tão oficialmente enraizado nos espíritos. E não aflige menos estar de posse da verdade e não a poder impor. É triste pregar no deserto, ver em torno de si a multidão tratar-se às cegas e sofrer, sem utilidade, só por ignorância

- quando seria fácil socorrê-la e salvá-la, se ela quisesse escutar.

A avó Lavaisne deu finalmente a alma ao criador. Já não era sem tempo. Aquela agonia tornava-se pesada à família. Os ricos, quando se deixam materializar pelo bem-estar, suportam com impaciência as mais pequenas contrariedades. Os Hesdelot, por exemplo, arranjaram uma solução para o seu caso. A fim de tratarem do velho canceroso, contrataram uma enfermeira e uma religiosa. Deste modo poupam maçadas, fadigas, sofrimentos em que o coração se arriscaria a deixar-se enternecer.

Para acabar com a sua incerteza, Michel pede uma junta com Roy. Depois do que se passou com a senhora Daubian, principiou a ter confiança nele e envia-lhe todos os seus doentes que tenham de ser operados. Roy é lento, não deslumbra pela rapidez como o grande professor Romagnol, nem pela audácia, como Lequesnoy. Mas o trabalho que faz é clássico, metódico, sério. Os doentes restabelecem-se depressa. E a sua anestesia é feita consoante um processo inventado por um amigo: éter erquente. Assim nunca há congestão pulmonar.

Roy vem examinar o velho Hesdelot.

- E inútil operar. Que morra em paz.

Ao despedir-se de Michel, convidou-o a passar em sua casa a noite do sábado seguinte, com Évelyne. Durante toda a semana, esta não descansou Mas o marido terá o seu sobretudo novo. Só lhe faltam luvas decentes. E ela? Falta lhe tudo!

Limpo com benzina, passado a ferro sob um pano húmido, guarnecido com uma camélia artificial, o fato saia-casaco cinzento ainda pode servir. Michel prometeu o chapéu, um gorrozito de veludo azul-cobalto que tem certa elegância e que só custa cem francos. Por felicidade, Évelyne conservou os sapatos do casamento, bela imitação de pele de lagarto. À luz artificial, aquilo parece «autêntico». As mangas da blusa de tafetá estão estragadas. Évelyne suprime-as. Irá de braços nus e deixar-se-á ficar de casaco, com o pretexto duma constipação. Faltam lhe as meias. Os três pares que possuía acabaram por se danificar, apesar de ela ter o máximo cuidado. Lavava-as logo depois de as descalçar e secava-as ao abrigo do sol, estendidas sobre uma toalha. Há um mês que fazia economias para comprar outras. Mas o marido falou, à mesa, de Daubian, esse velho-rico que empobrecera e se tornara operário, e cuja mulher deseja, a todo o custo, ter filhos... Está à espera de mais um, mau grado a miséria em que vivem. Évelyne foi visitala - e o dinheiro das meias passou a outras mãos. A força de procurar, consegue no entanto descobrir duas meias, estragadas apenas no pé, mas desemparelhadas: uma é mais clara do que a outra. Enfim, não vai maçar mais o marido por causa dum par de meias!

Na ocasião da partida, Michel, no limiar da porta, inspecciona Évelyne com um relance de olhos. Saia e casaco cinzento, sapatos de pele de lagarto, meias de seda, blusa de tafetá cor-de-rosa fechada sobre a garganta franzina por um lindo broche que poderia ser de oiro, chapelinho de veludo azul-cobalto. Michel declara que a mulher está admirável, beija-a e impele-a para dentro do carro.

Roy, alto, barbudo, de olhos negros e perfil árabe, recebe como calha: quem tem quatro rapazes e três filhas não pode estar com grandes cerimónias. Deixa as duas senhoras a fazer o café na cozinha e leva Michel a ver a sua sala de operações, de que tem muito orgulho. Só ele sabe o que todos esses instrumentos aperfeiçoados, esse aparelho de raios X, essas paredes aquecidas lhe custaram de cálculos, de vigílias e sacrifícios Mostra o seu irrigador de soro tépido para as úlceras. Explica as suas «artimanhas», o modo de trabalhar, o fio que emprega, os instrumentos que inventou ou aperfeiçoou, o seu músculo-distensor automático, a sua mesa de elevação e rotação por meio de pedal, para as operações sem assistente. Desarma o aparelho da anestesia por éter quente. Sabe-se que nos países tropicais o éter, estando morno, jamais provoca nos operados congestões pulmonares, as quais, nas nossas latitudes, são um dos grandes perigos da anestesia. Partindo desta ideia, um colega e amigo de Roy imaginou um aparelho de banho-maria para aquecer os vapores do éter antes da sua chegada aos pulmões. Assim, o éter não resfria o doente, age com rapidez, o paciente absorve-o muito pouco e restabelece-se mais depressa sem o risco de complicações pulmonares. Roy utiliza todos os dias esse método.

- Deviam divulgá-lo! - observa Michel. - Tanto você como o seu amigo. Merecem ser conhecidos os seus aparelhos.

- Não há nada a fazer -diz Roy. - Pelo menos no que me respeita. Romagnol tem-me cortado as vazas.

- O professor Romagnol?

- Esse mesmo. Não simpatizamos um com o outro. Isto já vem de longe, e por causa dum músculo elevador do ânus... Está-se a rir? «é a pura verdade. Ele era ainda professor extraordinário e eu preparador de anatomia.

Certa manhã, no anfiteatro, o Morei, que era então o meu mestre, estava a dissecar um cadáver diante dos discípulos, quando Romagnol se aproximou e diz : «Morei, terás para aí um cadáver que me emprestes? Queria treinar-me para uma operação... Morei indica-lhe um. Romagnol começa a prepará-lo e o outro, que o observava, põe-se a rir pelo facto de Romagnol procurar o músculo elevador do ânus e não o encontrar. «Aposto, diz Morei, que qualquer dos meus alunos daria com ele imediatamente». «Essa agora!» volve o primeiro. «Roy!» grita Morei. «Vem cá depressa!» Aproximo-me. «Mostra a Romagnol como é que se descobre o músculo elevador do ânus...» Não era fácil, mas eu tinha prática. Estúpido na minha candura (seduzia-me tanto a ideia de brilhar!) mostro a Romagnol e aos estudantes o famoso músculo. Pois, meu caro, fiquei liquidado. Logo no fim do ano, Romagnol, com uma pergunta de algibeira, chumba-me no exame. Meses depois Morei vai se embora deste mundo, e eu compreendi que valia mais renunciar à carreira de professor. Consegui um pouco de dinheiro e abri consultório. Isso não evitou que encontrasse sempre Romagnol no meu caminho. É lente, tem influência na classe médica. Precisam dele para tudo: para uma condecoração, para colocar um filho, para um empenho... Há médicos da velha guarda que têm fé em mim, que me enviam os seus doentes há muitos anos, mas que me observam depois: «Desculpa, vou deixar-te por um tempo. O meu filho entra na Faculdade, vai ter Romagnol como examinador, preciso de começar a mandar-lhe alguns doentes... Compreendes...» E Romagnol não se põe com delicadezas. Aos filhos dos médicos que não trabalham com ele, diz com toda a sem-cerimónia: «Então o vosso pai não tem nenhum cliente que deva ser operado?»

- Percebe-se agora de onde veio a moda de partilhar os honorários - interrompe Michel.

- Sem dúvida! Aquilo faz contrapeso, torna igual a luta perante o professor. Aí é que reside o problema. E enquanto os professores tiverem direito de exercer clínica, a medicina sofrerá desses inconvenientes.

Fica um momento pensativo, acariciando a barba preta de emir. Depois, com um gesto brusco, exclama :

- Ora! Arranjar-nos-emos sem isso. Vamos tomar café.

Leva Michel pelo braço, e regressam à sala. De caminho, porém, não resiste a repisar o assunto que o obceca.

- O mesmo aconteceu quando apresentei o meu projecto de irrigador. Romagnol presidia à comissão que o devia apreciar. Escutaram com deferência as minhas explicações, e em seguida Romagnol declarou, com um sorriso: «Não é má, não, senhor, a sua maquineta. No entanto, conviria mudar-lhe o aspecto, a forma... Lembra muito as antigas seringas de clisteres...» E a coisa ficou por ali! Nem uma experiência, nem uma simples visita ao meu consultório! Há vinte anos que sou o único a se servir desse aparelho, no meio da indiferença geral. Quanto ao éter quente, descoberta que merecia mais atenção, o mesmo silêncio, o mesmo desconhecimento universal!

- Escreveu sobre esses inventos? Publicou?

- A princípio, sim. Era ingénuo! Descobria qualquer coisa... e punha-me logo a participá-la a toda a gente! Não me davam atenção, riam-se de mim. Ou então serviam-se das minhas invenções, sem dizer nada, em segredo, quando não havia testemunhas... Agora sou mais sabido. Calo-me. Continuo a trabalhar, procuro, inovo, aperfeiçoo. .. Viu os instrumentos, não é verdade? Mas, quanto a publicar, não, pelo menos em França. Não vale a pena. Não tenho cátedra nem discípulos. Tudo se perderá. A teoria não basta, seria necessário ter a quem ensinar. Depois de mim, tudo há-de desaparecer. A não ser que um dos meus filhos... Entre na sala. Raymonde! Raymonde!

Deixa Michel na sala, vai até à cozinha, e volta.

- As senhoras fizeram da cozinha o seu Conselho de Estado e parece-me que se esqueceram das infusões... Que hospitalidade! Enfim, nada de cerimónias! Fuma? Não? Eu também não. Enerva-me, excita-me. Não posso. Por natureza, sou lento, calmo. Aí está a minha força! Acredite que disso resultou tudo quanto procurei e descobri em cirurgia. Poder trabalhar lentamente, deixar o doente sob a acção do éter, sem perigo, aumentar a segurança, tornar inútil a velocidade, suprimir o choque... Romagnol é o contrário. É um cirurgião que opera como no tempo de Napoleão I, quando não tínhamos nem anestesia nem assepsia e se fazia mister ir depressa, despachar-se, porque os segundos eram preciosos. Sob esse aspecto Romagnol é digno de admiração. Se o visse na ablação dum útero! A rapidez é o seu triunfo. Decerto que os meus trabalhos lhe não podiam agradar. Em certa ocasião até esteve quase a aniquilar-me. O tribunal nomeara-o perito numa acção proposta contra mim por uma cliente. O que Romagnol me deslombou com o seu ataque às minhas «inovações perigosas»! Felizmente ganhei o processo, na Relação. De outra maneira seria a reputação perdida. Ver-me-ia obrigado a fechar o consultório. É esse o perigo. Não tenho influência nem apoio oficial. Quando inovo, é por minha conta e risco. Se a coisa provar mal, temos catástrofe! E com que satisfação não cairiam todos em cima de mim!

- Resta-lhe a imprensa, os livros, os artigos...

- Recorro a isso às vezes, mas não em França. Na Bélgica. Lá acolhem-me bem. O pior é essa barreira intelectual que se chama fronteira. Não vêm procurar-me; ora, em cirurgia, é forçoso que se veja. Nos livros não se aprende a técnica, a habilidade... Tudo se há-de perder. E é pena.

«Eu próprio não posso instruir-me como desejava. Gostaria de ver processos novos, assistir a operações. Mas, na Faculdade, estão de ponta comigo. Tenho aí um inimigo poderoso, como sabe. Não me deixam ver nada, não fazem nada de interessante à minha vista. Sinto perfeitamente a hostilidade, quando lá apareço. Noto a frieza. De forma que renuncio a ir.

A senhora Roy, que está a servir café, interrompe:

- Vai aos hospitais de Paris. Mas é longe, custa caro, ocupa tempo...

- Com certeza - replica o marido.

- No entanto - observa Michel - vi muitas vezes, na Faculdade, os mestres chamarem um médico para trabalhar diante deles e dos alunos, e o interrogarem, a fim de se porem mais ao facto...

- Bem sei! Mas nem todos têm essa modéstia, essa grandeza de alma. Porque isso é coisa admirável! Para tal necessita-se sufocar o orgulho e às vezes os interesses pecuniários. Se não se encontra gente dotada de tamanha generosidade, leva-se com a porta na cara. É O meu caso.

De novo acaricia a barba.

- Como vê, Doutreval, é um grande inconveniente esse direito de acumulação, esse costume de os professores exercerem clínica. O professor não é para o público, o seu papel é o de julgar o valor duma terapêutica, duma técnica operatória e de a disseminar entre os alunos. Fora disso, deverá entregar-se de alma e coração aos hospitais. É claro que tal coisa implica maiores vencimentos. Conheci professores de génio, como você conheceu. Norf, por exemplo. Tinham renome mundial, recusavam-se a adquirir clientela, consagravam-se só ao laboratório. Para equilibrar o seu orçamento, um deles teve de dar consultas numa associação de beneficência, outro de passar certidões de óbito, no respectivo posto. Já morreram ambos. Os sucessores têm clientela sua, ganham muito bem a vida. Na imprensa médica, porém, ninguém fala dos seus trabalhos de laboratório!

«Enquanto for permitido a um professor ter clientes, ser-lhe-á precisa muita coragem para dizer aos alunos: «Convidei o doutor X a fazer diante de vós uma operação para a qual ele descobriu uma técnica interessante...» Acho que se deviam facilitar rasgos destes a todos os catedráticos, suprimindo o elemento concorrência. Se não houvesse acumulação, eu teria procurado Romagnol e ele teria examinado os meus inventos, ensaiado, discutido... Não haveria ensejo de me suscitar obstáculos, de me pôr à margem. Mas, enquanto isto durar, não há remédio!

Cofia os pêlos da barba. Nos seus olhos pretos de emir nota-se certa melancolia. Roy contempla os filhos mais velhos, rapazes crescidos, que acabam de entrar na sala e fumam vaidosamente por autorização da mãe, em honra dos convidados. E diz como para si mesmo:

- Enfim, que sei eu? Talvez nem tudo morra comigo... Um destes pode herdar o dom, a habilidade... A esse confiarei a minha obra. Não terei lutado em vão... A riqueza dum homem, como dum povo, está nos seus filhos.

- Quanto a isso, somos bastante ricos! - atalha a senhora Roy. E solta um riso franco, onde não há sombra de amargura.

Michel guardou o carro na garagem. Na cozinha, descalça os sapatos, desfaz o nó da gravata. Êvelyne afadiga-se junto do lavadouro.

- Vai-te deitar-diz Michel.-Já passa das onze horas. Que fazes ainda aí?

- Nada - responde Êvelyne, abrindo a torneira da água fria.

- Esta noite estavas muito bem, sim, senhora. A blusa, o chapelinho...

Ela riposta, sorridente:

- Não tiveste vergonha de mim? Não coraste?

- Queres mais cumprimentos? Não os hás-de ter! Êvelyne ri. Michel dirige-se para a escada, em peúgas,

com os sapatos na mão. Ao passar junto da mulher, dá-lhe um beijo, dizendo:

- Despacha-te. Estás-te a cansar.

Sem responder, ela apressa-se a lavar as meias, as famosas meias de dois tons diferentes. Nem Michel nem ninguém percebeu. Visto isso, poderão servir ainda mais uma ou duas vezes, se necessário for. Outra razão para as poupar. Aperta-as entre os dedos, delicadamente, sem as torcer, e põe-nas a secar na mesa, bem esticadas, entre duas toalhas; depois, sobe a escada para se ir deitar.

 

- Saint-Jean-d’Angely! - anunciou Guerran, erguendo do volante uma das mãos para indicar, no horizonte, a cidade que se elevava além, com as torres brancas geminadas da sua igreja jamais concluída.

Fabienne contemplava e achava bela essa Saintonge molemente escalonada em vales, semeada de matas e vinhedos, entre imensos campos de trigo e de pasto. Estava calor. Banhava a paisagem uma luz violenta, até aos longes húmidos donde se erguia um vapor pálido. No meio dessa ampla perspectiva de terras opulentas e plácidas, Saint-Jean, a pouco e pouco, sobressaía duma ondulação profunda, onde corria o Boutonne, e tinha já, com as suas casas claras de telhados baixos, o aspecto duma cidade provençal.

Parecia a Fabienne que esse aglomerado caminhava para ela. Por fim penetraram numa rua larga, atravessaram uma praça onde havia a nota exótica de palmeiras e encontraram-se em pleno coração da cidade, em ruelas brancas, donde irradiava calor, flanqueadas de estreitos passeios sobre os quais divagavam ociosos. Guerran, para fazer surpresa a Fabienne, seguiu um dédalo de ruazinhas e, bruscamente, parou o carro diante da antiga igreja, esplêndida basílica, enorme, singular, começada há duzentos anos, abandonada em meio durante a Restauração e inacabada decerto para sempre. Fabienne quis apear-se.

Sozinha, contornou o edifício, atingiu a parte correspondente ao altar-mor e daí pôde ver a igreja pelo reverso, mergulhando o olhar no interior. Era uma grande e estranha ruína, intacta, imperfeita, corroída já aqui e ali antes de haver servido, muito branca, muito clara, muito alta, catedral decapitada onde o sol esplendente lançava uma luz ofuscante, luz mediterrânea, festiva, como um templo da Acrópole. Dir-se-ia quase alegre, essa ruína. Nada desse tom acinzentado, dessa patina em que se envolvem Amiens, Reims, Nossa Senhora de Paris. Claridade, alvura, nitidez duma ruína antiga. Mas no meio dessa luz, na pureza desse ar calmo, entre o azul do céu e o branco da pedra, esvoaçavam pesadas aves negras, de asas sonoras, gralhas e corvos que se aninhavam nas abóbadas e que, sem graça, com roucos gritos selváticos, se alavam e perseguiam como grandes sombras naquele cenário luminoso. Fabienne esteve muito tempo a admirá-las. Aquilo parecia-lhe significativo, essas aves das trevas voando à claridade. Que símbolo representariam? Quando voltou ao automóvel, Guerran censurou-a levemente por se haver demorado tanto.

Saíram da cidade pela estrada de Poitiers, percorreram dois quilómetros, tomaram à direita, em Saint-Julien, um caminho estreito através do bosque e foram dar a uma ponte debaixo da qual corriam águas claras e pressurosas.

É o Boutonne - explicou Guerran.

Depois duma volta curta, transpuseram a porta alta e gradeada e entraram no amplo pátio duma residência solarenga, metade quinta, metade castelo, de telhados lisos, janelas de postigos e paredes rebocadas, onde se engatavam parreiras. Contornava o pátio um passeio de saibro, em volta dum tabuleiro de relva em que desabrochavam flores. Diante da porta da casa, duas árvores espessas, duas tílias centenárias, mimoseavam a fachada com a sua sombra fresca. Dum lado e outro do pátio ficavam as granjas, os currais e a morada do caseiro. Passava nesse momento uma criada com duas vasilhas de leite. Ouviam-se mugir vacas não muito longe. À porta da residência apareceu uma velha, que veio dar as boas-vindas aos recém-chegados. Conduziu Fabienne da cozinha à sala, depois aos quartos, grandes e nus, banhados de sombra e caiados de branco, com soalhos rústicos de carvalho encerado, tectos de barrotes e esplêndidos armários antigos, de grandes aldravas de ferro forjado. Fabienne apreciou o cheiro agradável dos lençóis de linho rijo, tecido à mão. Afastou um postigo e viu de alto o parque e os relvados, os maciços de pinheiros, sequoias, cedros, palmeiras, os murinhos baixos de pedra seca sobrecarregados de madressilvas, hera e vinha virgem. Além ficava a horta, depois o pomar, e matas, prados onde pastavam vacas pretas e brancas. No meio de tudo isso, ora a descoberto, prateado como uma serpente ao sol, ora escondido pela copa das árvores, aqui represado no açude dum moinho, ali saltando das pás da roda num referver de espuma, o rio, o Boutonne, prosseguia o seu curso jucundo. Fabienne, com o olhar, mediu a extensão do seu novo domínio, imaginou o campo de descobertas que se lhe ofereciam, e desceu pela escadaria larga e encerada a fim de compartilhar o seu entusiasmo com Olivier Guerran e levá-lo sem demora a colher na horta os ingredientes para uma salada.

Guerran acordava tarde e tomava o café na cama. Fabienne chegava e dizia :

- Não tens vergonha! Perdeste um espectáculo magnífico! Se visses o nevoeiro sobre o rio, esta manhã! E o orvalho era como poeira de prata... Anda daí, vem ajudar-me a apanhar favas...

Guerran, lavado e barbeado, de camisa de rede, calças de flanela, alpargatas e um velho capacete colonial de viseira de mica, ia com Fabienne até à horta, levando o cabaz que ela atafulhava de cenouras, abóboras_ tenras, espargos, ervilhas, alcachofras, favas, alfaces... Às vezes * ficava como que inebriada perante aquela abundância, aquela opulência da terra. No seu vestido branco de pintinhas azuis, com as pernas ao léu e um grande chapéu de palha a sombrear-lhe o rosto ainda um tanto pálido, Fabienne parecia uma rapariga do campo. Esquecera tudo, Angers, Paris, a casa de saúde, as preocupações, as angústias... Pendurava-se no ramo duma ameixoeira para a sacudir e baloiçava-se rindo às gargalhadas. Guerran via moverem-se-lhe sob a pele os músculos finos dos braços juvenis, ouvia-a rir e pensava :

- Se isto pudesse durar sempre!

Voltavam para casa e almoçavam na vasta casa-de-jantar escura e luzidia, deliciosamente fresca, com os seus postigos semicerrados, por onde entrava uma nesga de sol deslumbrante na penumbra do quarto. Em seguida ao almoço, iam ambos para a levada do moinho. Enquanto Guerran pescava, Fabienne, estirada no chão, de barriga para baixo, entretinha-se a buscar relas até ao momento de se banhar. E, depois duma hora de agradável natação na água frígida e movediça do Boutonne, abrigados pela frondosa abóbada de tílias e ébanos, iam os dois pelos campos, seguindo entre sebes, por veredas sinuosas, até à planície doirada, fremente de calor, onde os cereais, secos e imóveis, se curvavam ao peso das espigas naquela atmosfera ardente e flamejante. Fabienne e Guerran só regressavam ao entardecer, ao mesmo tempo que o rebanho da quinta - ondas grisalhas a rebentarem nos caminhos fundos e que alguns cães pretos empurravam com latidos breves. Na cozinha, a criada acendera uma fogueira de lenha, pois, com a bruma, subia do rio um frio húmido. Olivier e Fabienne jantavam lado a lado, à luz das chamas. Dos ramos de tília e de ébano ainda verdes exalava-se um cheiro acre, o odor amargo e silvestre da seiva. Fabienne despejava sobre o lume um cesto cheio de pinhas, e, com estalidos e clarões de incêndio, elevava-se na chaminé uma torrente de chamas. Lá fora, descia a noite. A copa das árvores ia escurecendo de encontro ao veludo azul do céu. Uma vaca soltava mugidos. Numa estrebaria, um cavalo fazia tilintar a corrente. Sentada nos tijolos, muito próxima do braseiro, Fabienne deixava-se aquecer ao máximo, sem receio de ficar queimada Da lareira vinha um rangido constante, regular, monótono: era um grilo, que também se aquecia, como Fabienne, e se mostrava contente. A rapariga lembrava-se do tempo em que era criança. O pai fora em viagem, para muito longe. Ela chorava. E, todas as noites, ouvia a mesma estranha música dum grilo, num buraco_da parede.

- É de bom agoiro - dizia Mariette.

Desde então, Fabienne escutara esperançada a eterna canção do insecto... «Bom agoiro»... Isso significava que o pai ia voltar depressa. De facto, Doutreval regressou mais cedo do que se esperava. Depois desse dia, Fabienne deixara de ouvir o cricri-cricri. O animalzito acabara a sua tarefa; uma vez que a angústia havia terminado, ele não tinha necessidade de incutir esperança... Agora, ao canto da lareira, ei-la atenta à música promissora. Na sua alma despertavam recordações antigas, emoções da infância, e, sem razão, sentia-se invadida de contentamento, de esperanças consoladoras e inexplicáveis.

Duas vezes por semana, Guerran telefonava para Angers e punha-se ao corrente dos negócios por intermédio dos seus secretários. Tudo ia bem. No fim da terceira semana, sem dizer nada a Fabienne, foi a pé até Saint-Jean e, de lá, telefonou para a estação de Paris-Plage, onde veraneava Juliene em companhia de Charles e Micheline. Depois de duas horas de espera obteve a ligação desejada. Reconheceu logo a voz breve da mulher.

- És tu, Julienne?

- Sim, sou eu.

- Como vão os pequenos?

- Bem.

- Sabes que devo chegar aí daqui a dois dias?

- Já não é sem tempo.

- Conto passar uma semana com vocês.

- É a nossa vez, agora.

- O quê?

- Donde falas?

- Donde falo?

- Sim. Onde estás?

- Ah!... Em Angers - disse Guerran, apanhado de surpresa. - Do escritório...

- Charles foi a Angers para te ver. Não estavas lá.

- Estou no meu direito de ir a Paris, visitar os colegas.

- Ah! Ah!

Julienne não contivera uma gargalhada.

- Enfim, agrada-te a minha presença, ou não?

- Tanto me agrada, que vou ao teu encontro.

- Ao meu encontro? - exclamou Guerran.

- Espera por mim. Regresso a Angers. Estarei aí esta noite.

- Esta noite?

- Sim.

- Mas... esta noite não estou. Parto... daqui a pouco.

- Ah! Ah!

Julienne ria de novo. Guerran enfureceu-se :

- Sabes que mais? Deixa-me! Ver-me-ás quando me aprouver. Adeus.

E desligou.

Voltou a pé, por Saint-Julien. Estava indignado. Com uma vergasta, arranjada pelo caminho, ia fustigando ímpiedosamente as ervas. E dizia consigo mesmo:

- Imbecil que fui! é claro que já não vou. Estou aqui tão bem, tão feliz! Que necessidade tenho eu de ir ter com eles? Isto é o resultado de fazer as coisas sem combinar com Fabienne...

Pensou nela, reviu-a com o seu rosto delicado e juvenil e os seus finos braços, evocou a ternura fiel, calorosa, devotada dessa rapariga, e comoveu-se, teve remorsos, apressou o passo a fim de chegar depressa junto dela, como quem corre para um refúgio. Encontrou-a atrás da casa, no parque, a ler à sombra leve e salpicada de luz que davam os pinheiros altos e negros, de troncos esbeltos. Fabienne, ao vê-lo, pôs de parte o livro, levantou-se, veio rapidamente ao seu encontro, e Olivier apertou-a contra o peito, com o coração dilatado por uma alegria misteriosa, sentindo bem quanto ela era jovem e como se lhe entregava tão abandonadamente.

Contudo à noite, perto do lume, recordou-se de Micheline. E participou de repente, mas com prudência:

- Fabienne, é uma grande maçada... Que queres? Tenho de te deixar só, por uns dias...

- Por causa dos teus negócios?

Sem quase pensar, agarrou-se ao pretexto que ela lhe sugeria, aproveitando essa possibilidade de mentir.

- Sim, sim... Telefonei para o meu escritório. Legourdan precisa de mim. Que maçada! Se soubesses como isto me contraria!

- Se é necessário, Olivier... Paciência!

- Custa-me tanto!

- O tempo passa depressa.

- Para ti!

-Ingrato! Ouve, não te peço que me escrevas. Mas todas as noites, depois do teu trabalho, pelas oito, nove horas...

- O quê?

- Às nove, fica só no escritório, sozinho, sem mais ninguém, e pensa em mim durante cinco minutos. Eu, à mesma hora, virei sentar-me aqui e pensarei em ti também. Está combinado?

- Está combinado.

- Verás que teremos menos a impressão de estarmos separados. Sentir-nos-emos, pelo contrário, mais próximos um do outro. Vamos, não faças essa cara triste. Voltarás, estaremos outra vez juntos. Uma semana passa depressa. Visto que é preciso, haja coragem...

Guerran deixou-se consolar.

Através da Normandia, por intermináveis estradas rectas, sombreadas de árvores esplêndidas, o automóvel, a noventa à hora, ia lançado numa corrida sofreada, segura, monótona. Guerran, ao volante, cantarolava velhas árias, marchas conhecidas... Faltava Ruão, depois só Abbeville - e estaria chegado ao seu destino. Nessas canções da mocidade, entoadas a meia voz, dir-se-ia que dava fuga à superabundância de alegria interior que nele havia. Já nem pensava em Fabienne.

Saíra de Saint-Jean-d’Angely na véspera, dormira em Angers e recomeçara a viagem ao amanhecer.

Em Ruão almoçou sobriamente carnes frias e cerveja, num dos cafés que ladeiam os cais do Sena, ao pé da ponte maior. E tornou a partir sem demora. Eram apenas duas horas da tarde. No caminho de Abbeville deu mais velocidade. Em menos de sessenta minutos atingiu Êtaples, transpôs o largo leito arenoso do Ganche e atravessou a floresta de Paris-Plage, com as suas vilas aninhadas entre pinheiros e as largas avenidas onde trotavam cavalos de raça montados por elegantes amazonas. À esquerda, um hotel novo e de luxo, ainda não concluído, ostentava uma série de andaimes sobre chapadas de cimento, ao longo dos quais se agarravam minúsculas formigas humanas. Guerran, ao chegar à praça circular, defronte do casino e do clube, parou. Reconhecera o casino, de que Micheline lhe mostrara um bilhete postal, antes de partir. Sabia que a vila ocupada pela família ficava à mão esquerda. Um guarda, com o ar de polícia inglês, indicou-lhe o caminho. Ali tudo parecia feito para ingleses.

«The Daffodils», a vila arrendada por Julienne, erguia, num fundo de pinheiros e de médãos, em meio de fino relvado, a sua fachada normanda e os seus telhados de pequeninas telhas patinadas. O automóvel penetrou no parque, diante da arcada cheia de rosas que abrigava a porta. Guerran apeou-se. Debaixo da arcada, duma bacia redonda subia um jacto de água entre imitações de rochedos revestidos de plantas aquáticas. No chão, lajes com relva nas junturas. Ao passar no vestíbulo, depois na sala decorada de cor-de-rosa e branco, com belos tapetes e lustres de velas rodeadas de quebra-luzes, Guerran compreendeu por que motivo o arrendamento era de mil francos por mês. Ressoaram passos na escadaria. Julienne e Micheline vinham a descer.

- És tu! - exclamou a mulher.

- Sim, sou eu ! Não me dás um beijo, Micheline? Logo nesse instante, ao ver a filha imóvel e perplexa,

ele sentiu, sem perceber bem porquê, ter perdido todo o terreno que conquistara junto dela nesses últimos dez anos.

Julienne levou-o à casa-de-banho, estreita e baixa, inteiramente recoberta de ladrilhos de vidro espesso, verde-jade. A tina de mármore verde ficava embebida no chão, e para ela corria a água proveniente dum jogo de torneiras invisíveis. Lavado e repousado, Guerran, de roupão, demorou-se a fazer a barba defronte do espelho, ao mesmo tempo que delineava o programa dessa tarde. Precisava pelo menos de meia hora de liberdade, para telegrafar a Fabienne. Escolheu fato de golfe cinzento claro, de xadrez largo, e gravata de seda dum tom vermelho escuro, o que o rejuvenescia e lhe dava ar desportivo. Ao sair para o corredor, encontrou-se com o filho e a nora, que voltavam do ténis e o acompanharam até ao jardim. Julienne não estava lá. A pedido de Guerran, Charles conduziu-o de automóvel até ao correio. Quando vinham da estação, deram de cara com Julienne e Micheline, que os esperavam. Resolveram ir até à praia, a pé.

Julienne deixou os outros à frente. Era inegável que pretendia isolar-se com o marido. Guerran percebeu-o e andou mais depressa.

- Vamos devagar - disse ela. - Deixa-os ir adiante. Quero falar contigo.

- Se pretendes aproveitar-te da minha presença aqui para me estragares estas férias, previno-te já que me vou embora.

- Calhava-te, hem ? - mofou Julienne. - Que boa desculpa para voltares ao sítio donde vieste!

- Não insistas no assunto!

- Mas, afinal, onde estavas?

- Onde muito me apetecia.

- Ah, disso tenho eu a certeza A tua amante é assim tão fascinadora?

- Não sejas idiota!

Caminhavam lado a lado, proferindo todas aquelas frases em voz baixa, com ar calmo, quase sorridente, pois havia à sua volta muitas pessoas, que iam ou regressavam da praia. Vinte metros à frente, Micheline, Charles e Andrée falavam com animação, provavelmente a respeito do pai e da mãe.

- Hei-de conhecê-la, não te inquietes-tornou Julienne.

- Não te aconselho a recomeçares as tuas tentativas.

Julienne fez notar a imprudência de Guerran :

- Ah! Bem me queria parecer! Estavas ao facto! Subornaste a agência!

O marido apertou o passo. Micheline detivera-se para afivelar a sua sandália de sola de cortiça. Os outros dois tinham parado também. Guerran esperava juntar-se ao grupo.

- Para que vais assim a correr? Tens medo?

Sem lhe replicar, o marido andou ainda mais depressa.

- Oh! Não me escapas - sibilou Julienne. -Eu não receio falar! Não serão os meus filhos que mo hão-de impedir. Sou tua mulher! Tenho o direito de saber!

Aquela voz dura fez voltar a cabeça a Micheline e a Charles.

- Peço que te cales! - exclamou Guerran.

- E eu peço-te que me digas donde vieste! Onde estavas quando me telefonaste? Quando Charles foi a Angers não te encontrou lá! Não podes negar diante de Charles!

Julienne conseguira o que havia desejado: a cena na presença dos filhos. Estavam agora os cinco reunidos no passeio, na ruazinha estreita que vai ter à praia. Os traseuntes olhavam-nos ao passar.

- Vim por causa de Micheline - disse Guerran. - Mas se isto é assim, vou-me embora.

- Estão a ver?! - exclamou Julienne. - Vocês estão a ver? Eu é que tinha razão. Ele vai ter com a amante, com aquela desavergonhada! Não pode passar sem ela! Nem sequer um dia! Mal chegou, e já corre a mandar-lhe um telegrama!

Guerran olhou para o filho com ar doloroso. Charles denunciara-o logo. o rapaz, corado até à raiz dos cabelos, baixou a cabeça e pôs-se a contemplar o chão.

- E antes de nada - bradou Julienne - vais-nos dizer... Guerran deu meia volta, deixando-os ali especados, e

voltou sozinho para casa, a largos passos. Entrou, subiu até ao quarto-de-banho e, não vendo ali as malas, seguiu pelo corredor. Num vasto aposento Luís XVI, estava uma criada de avental e touca branca a retirar os fatos das malas, para os arrumar no armário.

- Você é que é a criada de quarto da senhora?

- Sou, sim, senhor.

- Torne a fazer as malas.

A rapariga olhou-o, estupefacta. Olivier reflectiu um momento. Micheline...

- Não, não as faça. Este é o quarto da senhora?

- É, sim, senhor.

- Bem. Leve as minhas malas para outro aposento. Há quarto de hóspedes, aqui?

- Há três.

- Prepare-me um.

- Se o senhor quiser escolher...

- Um qualquer. Tanto faz.

Desceu ao andar de baixo, deixando a rapariga perplexa, e foi sozinho passear nos médãos e nos pinhais.

O que separava da avenida os «Daffodils» era um murinho baixo, de tijolos amarelos e pedras brancas, sobrepujado duma barra de madeira pintada de escarlate. Não havia porta. A alameda de areão desembocava directamente na avenida, contornando um extenso tabuleiro de relva, sempre molhado pela poeira fina dum chuveiro automático que girava devagar. Em alegretes, cresciam roseiras, junquilhos e gerânios, emoldurando a casa duma floração deslumbrante. Os pinheiros verdes escuros formavam à moradia clara um fundo de floresta mediterrânea, sob o céu azul varrido pelo vento do mar. Os passeantes detinham-se um instante para observar aquela residência e imaginar as felizes criaturas que lá moravam. Guerran passava os seus dias isolado. Vagueava pelo bosque, ia ao campo de corridas, ou então alugava um cavalo e trotava ao longo do mar até Merlimont, Stella-Plage; voltava, entrava no casino, errava pelos jardins, bebia limonadas debaixo da pérgula, e assim ia matando o tempo até à hora soturna do jantar. Nos «Daffodils», já ninguém conversava quando ele aparecia. Era um silêncio pesado e brutal que gelava toda a gente. Julienne, pintada, decotada, mais cheia de enfeites do que nunca, dirigia o serviço, dava ordens às criadas. Charles mastigava e engolia, sem desviar os olhos do prato. Micheline debicava, dizia que não tinha apetite e soltava suspiros. Só Andrée, a nora, tentava de vez em quando uma frase indiferente, a que o sogro nem replicava. Tomavam o café, iam ao casino, os filhos dançavam, Julienne arriscava algumas notas na sala de jogo e em seguida ia esquecer as perdas na sala de espectáculos, e Guerran descia ao jardim onde se demorava a fumar. Por volta da meia-noite, regressavam todos cinco, sob luzeiros de estrelas e através do pinhal. Vinha do mar uma brisa fresca e um rumor suave e contínuo. Entravam em casa sem que tivessem proferido uma só palavra. Boas-noites rituais -e Guerran voltava ao seu aposento, o quarto de hóspedes. O que mais exasperava Julienne era essa separação, esse quarto à parte que ele quisera. Até então mantivera-o seguro pelos sentidos; Olivier não resistia à tentação da carne, esquecia tudo quando o prazer se lhe oferecia, e a mulher sempre o reconquistara por esse meio. Mesmo agora, se ela fosse, em certas noites de lassidão, de desespero e de dúvida, bater à porta do quarto em que Guerran, sozinho, torturava o espírito durante a insónia e perguntava a si próprio qual o rumo que devia tomar, sem dúvida que ele não resistiria: o seu coração, o seu pobre coração de homem fraco, sensual e infeliz, ter-se-ia rendido. Abriria a porta, receberia nos braços aquela mulher que era, apesar de tudo, sua esposa, que concebera filhos dele, que em tantas ocasiões lhe trouxera o esquecimento e que sem remorsos, sem angústia, no apaziguamento do regresso à ordem, à vida normal, lhe oferecia de novo o prazer da carne... Mas a ideia dessa humilhação, dessa capitulação, sublevava Julienne num ímpeto de furor e de orgulho desesperado. Não queria ser a primeira a abaixar-se. Ele que viesse! Esperou-o várias noites. Mais do que nunca, tudo em Guerran testemunhava ódio e hostilidade. Durante esse tempo, Julienne mostrou-se ataviada, pintada, cativante. Na sua magra esbelteza, com a tez cor de ocre, cabelos negros, olhos pretos, ardentes, duros, de sobrancelhas arqueadas e espessas, boca rasgada, com dentes fortes e cruéis sob lábios avivados pelo carmim violáceo, tinha uma beleza especial, quase demoníaca, mas cheia de paixão e violência. Esperava reconquistar o marido. Deixava a luz do quarto acesa até bastante tarde, e, para que ele visse do seu aposento a claridade, não descia as gelosias da janela. Por duas ou três vezes, foi de roupão até à porta de Olivier a fim de escutar se este dormia. De propósito, fazia barulho ao passar no corredor. Talvez o marido saísse do quarto... Mas não, Olivier não aparecia. Em certa ocasião foi Charles quem abriu a porta, admirado. Julienne ficou atrapalhada, murmurou qualquer explicação a respeito duma chinela perdida que não conseguia encontrar. Sentia sobre si o olhar surpreso do filho, adivinhava que ele sabia, que percebera tudo. O seu orgulho sangrava, e ela amaldiçoava-se, furiosa, jurava a si mesma ficar daí em diante no quarto. Renunciou à esperança de recuperar o marido, e odiou-o ainda mais desde então.

Pela maneira como Julienne o olhava furtivamente, quando, de manhã, tomavam o café em frente um do outro, na sala-de-jantar branca e doirada em que o sol batia através da leve cortina dos pinheiros, Guerran pressentia o que se passava no espírito da mulher e chegava a ter pena dela.

A mais dura, a mais inacessível era Micheline. No fundo, a rapariga é que incitava o orgulho de Julienne, que obstava à reconciliação ainda possível. O seu amor ferido de menina amimada, ciumenta e inexorável, transformava-se em ódio, em perverso desejo de fazer sofrer o pai. Este, por várias vezes, tentou chamá-la à parte, no jardim, ou surpreendê-la quando estava sozinha a tocar piano na sala - no grande piano de cauda, baixo, enorme, como um estranho sarcófago. Micheline esquivava-se, confusa e ao mesmo tempo energicamente resolvida a fugir, a escapar à explicação. Na véspera duma festa no casino, em que haveria concurso de elegância, corrida de automóveis com obstáculos e batalha de flores, Guerran comprou à filha um broche de platina com uma pérola, de doze mil francos. A rapariga mal lhe agradeceu, lançou um olhar rápido ao estojo e, no dia seguinte, exibiu com alarde o velho alfinete de oiro que datava da sua primeira comunhão.

Havia momentos em que ele pedia abertamente, cansado de estar sozinho, na sua cobardia de ente fraco e desventurado :

- Micheline, eu gostava tanto que viesses comigo! Iríamos pela mata, e conversaríamos. Sabes que temos muito que dizer...

- Nesta ocasião é impossível - respondia a filha, sem hesitar. - Estou à espera de Robert.

Robert Bussy, o noivo, encontrava-se com os pais em Stella Plage, a alguns quilómetros dali. Fora, aliás, por esse motivo que Micheline decidira com a mãe passar o Verão em Paris-Plage.

Guerran saía então sozinho.

Por duas ou três vezes, Andrée assistiu àquelas recusas e viu o sogro partir sem companhia. E, no vestíbulo, juntava-se a Guerran e propunha-lhe em voz baixa:

- O pai gostaria que eu fosse consigo?

- Se quiseres... - respondia ele.

Andrée vestia um casaco leve e ia com o sogro para o pinhal, por caminhos estreitos, através das areias. Guerran sofria com essa forçada caridade que uma estranha dedicava à sua tristeza e solidão. Aqueles passeios não divirtiam Andrée, mas o isolamento do sogro causava-lhe tanta pena! Guerran aceitava a esmola dessa piedade. Embrenhavam-se ambos na mata. Guerran falava, evocava recordações. E acabava sempre em Micheline, no que ela fazia em pequena, na ternura que tinham um pelo outro. Nenhuma dessas velhas histórias deviam interessar muito Andrée, mas Guerran sentia-se aliviado, ao contá-las. Tirava da carteira fotografias antigas: Micheline na escola, Micheline vestida de comungante, Micheline abraçada ao pai, muito risonha... Esta última fotografia, principalmente, absorvia o olhar de Guerran. Fazia-lhe recordar a intimidade, a camaradagem familiar e confiante que existira entre ele e a filha. Esse pedacinho de cartão era como uma testemunha que lhe bradasse :

- Eis como vocês estavam ligados um ao outro. E agora? Ainda vês Micheline agarrar-se assim ao teu pescoço e rir para ti com esta expressão de ternura?

Andrée, por delicadeza, fingia-se interessada, enquanto ele folheava o passado, se obstinava a fazer reviver lembranças doutros tempos e torturava o próprio coração. No fim de contas, a culpa era sua. Agira mal. Fora ele quem primeiro mentira, quem dissimulara, enganara Micheline, obscurecendo aquela transparência, aquela sinceridade que até então reinara entre ambos. Sentia-se culpado. E, sobretudo, sentia que o passado não ressuscitaria mais, que ficara partido para sempre o laço que os unia, que anos e anos de dedicação e sacrifícios jamais conseguiriam restabelecer na sua pureza primitiva essa ternura que houvera entre ele e a filha. Com um suspiro, Guerran tornava a guardar na carteira a imagem desvanecida e dizia a Andrée:

- Nunca se deviam tirar retratos...

Chovia, na última vez que ele foi à mata. Não ousava, com aquele tempo, solicitar a companhia da nora. Protegido com capa de borracha, partiu sozinho e embrenhou-se no pinhal. Através das árvores esguias e ralas a chuva grossa caía na areia seca do chão, que absorvia avidamente a água e ficava logo enxuta. De quando em quando um tufo de agulhas de pinheiro duras e calcinadas cedia, sob os pés, como um tapete estaladiço. Corria um coelho, mostrando o rabinho branco alçado. Vinha do mar uma cortina de névoa, que passava e se dispersava entre as árvores. Guerran andou muito tempo, curvado sob a intempérie, pensando em Andrée, nessa estranha que fora a única pessoa a ter compaixão dele. Evocava a recordação da velha madrinha, a senhora de Nouys. Lembrar-se que ela julgara fazê-lo feliz e pô-lo no bom caminho, incitando-o àquele casamento! Se pudesse vê-lo agora, e presenciar a sua «felicidade»... Porque fora essa a vontade da madrinha? Talvez não tivesse querido só a felicidade do afilhado, mas antes de tudo a decência, o dever... Tudo aquilo era bastante incompreensível!

Afastou-se muito, extraviou-se na mata, voltou em direcção ao mar através de grandes espaços de areia e de gramíneas que a detinham nas suas invasões, e onde, aqui e ali, passava um caminho mal esboçado ou se erguia uma casita ainda inacabada, de janelas vazias e cercada de montes de tijolos e tábuas. Chegou a Paris-Plage fatigado, triste, farto de toda aquela chuva que lhe escorrera tanto tempo pelo corpo. Ao atravessar a praça, viu o edifício dos C. T. T., pequenino, pobre, ainda duma época, não muito distante em que Paris-Plage não passava de simples aldeia; entrou e pediu a sua correspondência, que Legourdan lhe reexpedia para ali, para a posta restante. Havia uma carta de Fabienne.

Sem a abrir, foi com ela no bolso, por estreitas ruelas, sempre debaixo de chuva -mas já transfigurado, já se sentindo outro homem. Era como uma iluminação divina: a verdade, a salvação, a vida, o amor, o futuro estavam lá, em Saint-Julien, no Charente, na casa velha da beira-rio, com Fabienne. E ele reviu-a, suave, bondosa, consoladora, amorável. Essa amava-o por ele só, dava tudo por ele, oferecia-se-lhe sem cálculo, sem pensamento reservado, generosa, desinteressada, magnânima. Num botequim sombrio da rua de Saint-Jean, Olivier leu devagar a carta, aberta sobre uma das pipas de carvalho envernizado, com arcos de níquel, que serviam de mesa aos consumidores. Detinha-se de vez em quando para relancear a vista derredor, a ver se o não observavam, e enxugar os olhos furtivamente. Por felicidade, havia pouca gente a essa hora, e o fundo do botequim era mal iluminado. Guerran reflectia que desde que chegara nunca pensara assim em Fabienne, que nunca evocara a sua lembrança nem unira o seu pensamento ao dela. Fora preciso o excesso de ingratidão da família, a crueldade de Micheline, a caridade, a esmola duma estranha como Andrée, para que ele se revoltasse finalmente, para que se aborrecesse com tanto egoísmo e se voltasse para aquela que era toda amor e sacrifício, que se entregava sem cálculo, que se esquecia de si mesma para só nele pensar, e cujo grito de ternura, de ingénua confiança, o atormentava agora de vago remorso. Guerran levantou-se bruscamente, atirou uma nota ao criado e, debaixo de chuva, dirigiu-se para os «Daffodils».

«Acabou-se! Parto depois de amanhã!» dizia ele consigo

No dia seguinte, Robert Bussy, a irmã e os pais vieram

buscar de carro a família Guerran para uma excursão a Berck, combinada havia algum tempo. Robert parecia muito bem na sua farda de alferes, e Micheline contemplava-o com uma admiração que irritava Guerran. Em Berck, depois de curto passeio na praia, no meio do espectáculo triste de inúmeros tuberculosos estendidos em carrinhos e empurrados por enfermeiras, Guerran sentiu-se farto de tudo aquilo. Deixou-se ficar com Bussy na esplanada dum café, enquanto os outros iam ver o sanatório, os pavilhões de cura, toda aquela estranha cidade de hospitais e clínicas concentradas nesse ponto único, na esperança absurda de que um pouco mais de iodo atmosférico seria o bastante para compensar, sem necessidade do regresso à alimentação mais natural, as devastações do álcool, das conservas e dos produtos químicos de que se nutre a nossa raça. O notário, a meio da conversa, aflorou o assunto do casamento :

- Dentro em pouco, Robert acabará o serviço militar. Micheline está prestes a fazer vinte anos... Acho que é altura de começarmos a pensar nesse casamento... Que diz?

- Sim, podemos tratar disso - respondeu Guerran.

- Por mim, gostaria que Robert se instalasse nestas imediações, ou então em Hardelot. Tenho boas propriedades na região. Três quilómetros de mata à beira-mar. Se arranjássemos capital, faríamos dali uma praia superelegante. Mas, é claro, apoiado por você, pelo seu nome, pelas suas relações...

- Sim, sim, havemos de pensar nisso -retorquiu Guerran, que estava a lembrar-se de Fabienne, da quinta, do rebanho de ovelhas a recolher ao curral, do Boutonne de águas frígidas a desnudar as raízes dos velhos álamos...

- Há trinta anos, fizeram uma experiência. Houve afogados. Parece que, na maré baixa, se produz uma corrente... Patranhas, segundo penso. Afogados em toda a parte os temos, e corrente também existe em Paris-Plage. É questão de vigilância, de balizagem. Talvez a história fosse inventada pelos nossos vizinhos de Hardelot, que temem a concorrência. Se tivéssemos apoio financeiro e político, se se pudesse fazer isto com grandeza, incluindo campos de golfe e de corridas, um aeródromo, casino com jogo (você, Guerran, é quem podia conseguir isso) teríamos logo aqui toda a aristocracia inglesa. Bem sei que há Paris-Plage... Mas já tem muita gente, e com o serviço de caminhetas e férias para operários, é um ar que se lhe dá! Já fizeram muito bem em recusar uma estação de caminho de ferro, o que sempre afasta a afluência da multidão... No entanto, as novas facilidades de aquisição de automóveis não deixarão de fazer sentir os seus malefícios... Os operários, as classes médias, não é preciso mais! O que eu idealizo é uma praia reservada, particular, ligada só a Paris por estrada de automóveis e à Inglaterra pelo serviço aéreo. Uma coisa onde os ricos se sintam como em sua casa, no seu meio... Ou então, nada!

«Amanhã à noite, pensava Guerran, «estarei em Angers. E, depois de amanhã, em Saint-Julien...»

À noite, ao voltar de Berck e ao entrar na sala cor-de-rosa e branca dos «Daffodils», Guerran participou a sua intenção de partir no dia seguinte.

- Amanhã!

Micheline e Charles ergueram a cabeça. Julienne’fechou a telefonia, cortando cerce o lamento duma viola havaiana, vinda através do éter, não se sabe donde.

- Não há razão para ires amanhã.

- São maneiras de ver.

- Então, estás disposto a nos abandonar? Vais ter com ela?

- Com ela?

- Sim, com a tua amante! Não te faças de novas. Guerran, sem responder, dirigiu-se para a porta.

Julienne atravessou-se-lhe no caminho.

- Safas-te! Tens medo! Receias explicações diante de Charles e Micheline. Pois eu não tenho medo duma explicação. E hás-de falar, agora mesmo! Dirás por que razão não recebeste aqui uma única carta, por que é que mandavas guardar a correspondência na posta restante, por que motivo me desprezas e fazes vida à parte. Escutem vocês, Micheline, Charles, escutem o que ele vai inventar para se defender.

- Deixa-me sair - disse Guerran.

Ela, porém, encostou-se à porta. Tinha uma expressão feroz, aterradora, a mesma daquelas ocasiões em que era necessário bater-lhe para a dominar.

- Podes matar-me, mas não sais.

O marido apertou os punhos, conteve-se, foi sentar-se perto da janela, assobiando baixinho.

- Recomeças, pois! - continuou Julienne. - Depois de tudo o- que fizeste! Quantas vezes me enganaste, quantas vezes te perdoei, por causa dos pequenos! Ainda antes de casarmos, já tinhas outra, ao mesmo tempo que eu...

- Cala-te!

- Não me calo! Digo a verdade. Charles era já nascido e tu não querias casar, hesitavas, disposto a abandonar o teu filho. Não é verdade?

Charles e Micheline, em pé, escutavam.

- Foi preciso a tua madrinha te decidir a cumprires o teu dever. Desconfio também que ela foi tua amante. Eras muito capaz disso!

Guerran encolheu os ombros.

- Encolhes os ombros? Ris-te? Dirás que não tenho provas... E da tua última aventura, com Jeannine Bonnier, não tenho provas? Não foste o primeiro a confessá-lo? E o marido dela? Sabia tanto como eu. E a criança que ela teve? Não foi o próprio marido quem declarou que não era o pai?

- Não fales dos filhos, Julienne! Olha que posso também dizer alguma coisa...

- Que coisa?

- Uma coisa terrível. Sabes o que é.

Debaixo do ocre do rosto, Julienne empalideceu. E ripostou em tom de desafio:

- Fala! Não tenho medo.

Ele, porém, limitou-se a fazer um gesto, sem abrir a boca, e ela percebeu que, diante de Charles e Micheline, Olivier se não atreveria a falar: apesar de tudo, tinha piedade da mulher. E, convencida da generosidade do adversário, recomeçou a batalha, embora noutro terreno.

- O caso é que não partirás sem uma explicação.

- Não tenho nada a explicar.

- Hás-de me dizer quem é essa mulher.

- E tu, hás-de começar por me deixar em paz.

- Não queres dizer?

- Não te queres calar?

- Está bem. Hei-de saber. Não me conheces ainda. Antes de oito dias estarei ao facto. Irei procurá-la, farei escândalo. Se quiseres, manda-me prender. Mas obrigar-me a recuar é que não consegues! Ela há-de saber quem eu sou. Queres barulho? Tê-lo-ás. Se for necessário recorrer ao revólver, ao vitríolo, irei até isso. O escândalo não me assusta. E quanto à tua posição, pouco me importa! Vais dar cabo do futuro dos nossos filhos. Lá se perde a carreira de Charles, lá se vai por água-abaixo o casamento de Micheline. É a tua obra!

Micheline pôs-se a chorar. Guerran saltou da poltrona e foi de mão erguida contra Julienne, que não desamparava a porta.

- Tudo por causa dessa bêbada! - prosseguiu a mulher. - Por causa dessa... Ah, que bruto!

A bofetada deixou-a perplexa, por uns segundos. Os olhos chamejaram-lhe. Como ela se lhe atirasse, num ataque súbito, Olivier rechaçou-a com tanta força que Julienne foi cair sobre o móvel da T. S. F. Charles acudiu, segurou o punho do pai.

- Larga-me! -exclamou Guerran.

Num movimento rápido, desembaraçou a mão, e os dois ficaram um minuto em frente um do outro, imóveis. De pé, calada, junto da mãe, a rapariga olhava para Guerran. E este sentiu bruscamente quanto estava só, nesse instante, isolado já no seu adultério, longe deles! Viu bem como formavam um bloco contra ele, como era um estranho, inimigo no meio da família! Baixou a cabeça, deixou Charles silencioso diante da porta, e foi devagar para o lado de Julienne. Micheline cortou-lhe a passagem.

- Tu também! Deixa-me. Não lhe farei mal. Podes ter a certeza, Julienne. Daqui a dias saberás tudo. Darei todas as explicações que exiges. Só peço uma semana. O tempo de arranjar as coisas.

Julienne, petrificada, não dizia palavra.

- Vou-me embora, amanhã de manhã. Ver-nos-emos em Angers e discutiremos as condições da separação. Parece*me que um divórcio... Vai calculando a pensão de que hás-de necessitar. Acabou-se tudo. A minha vida não é convosco.-Mirou os filhos, um após outro, e repetiu : - A minha vida não é convosco.

Pesadamente, dirigiu-se à porta, afastou Charles, com um gesto brando, e saiu.

Guerran havia deliberado partir no dia seguinte pelas nove horas, antes que Julienne se levantasse e antes de tornar a ver as outras pessoas da família. Mas, às oito, a criada bateu-lhe à porta.

- O senhor Bussy acaba de chegar. Diz que precisa de falar com o senhor.

O notário Bussy esperava Guerran na sala. Logo que este entrou, dirigiu-se-lhe de mãos estendidas.

- Que tal vai isso? Não muito bem? Sua mulher telefonou-me ontem à noite, contou-me várias coisas... Desculpe-me. .. Ela parecia tão aflita! Vejamos, meu caro Guerran, um pouco de calina... Nada de precipitações, de escândalos! Na sua situação... Um homem tão eminente...

- Não haverá escândalo - afirmou Guerran.

- Sua mulher falou-me de divórcio...

- É possível que haja.

- Não, não é possível. Um divórcio! Pense em mim, nas minhas relações, na clientela... Olhe que sou o homem de confiança de muitas famílias! Trato com o clero, com o mundo católico... O meu filho não pode casar com a filha dum divorciado. Estava perdido! Nem a minha mulher consentiria. é crente, é fanática! Eu compreendo as coisas. .. Ela é que não. Pense bem, não faça nada no ar. Tudo se arranja. Que diabo, um homem da sua idade! Não será o primeiro que... mas, enfim, ninguém se divorcia por causa disso.

- Vou reflectir - prometeu Guerran. - Veremos. Dir-lhe-ei depois o que resolvi. O principal interessado sou eu, não lhe parece?

- Decerto, decerto,.. Mas pense também na sua filha, neste casamento. Bem, até outra ocasião, meu caro amigo. Estou convencido de que reconsiderará, que seguirá o caminho do bom senso. Até breve, em Angers.

Guerran almoçou à pressa. Antes de sair, se bem que houvesse decidido o contrário, foi ao andar superior falar com Julienne. Era a primeira vez, desde que chegara a Paris-Plage, que entrava no quarto dela. Admirou-se de encontrar aí Micheline e Charles.

Julienne estava ainda na cama, a tomar café e a conversar animadamente. Guerran tirou de cima da mesa uma xícara, serviu-se de café e bebeu um gole.

- Venho despedir-me - disse ele. Ninguém respondeu.

- Mandar-te-ei um cheque de Angers, Julienne. Previne-me, quando tencionares regressar a casa.

- Está bem - volveu ela.

- Veremos... veremos as providências que se hão-de tomar.

- Pela minha parte, já sei quais são.

- Bussy procurou-me...

Ao dizer isto, leu no olhar triunfante da mulher que ela já sabia do facto através da criada. Devia ter combinado aquilo com Bussy.

- E vais-te embora, apesar de tudo?

- Porque não?

- Pois vai. Mas já sabes o que nos espera, a todos. Guerran percebeu onde ela queria chegar. E replicou:

- A todos? Não vejo que o caso interesse senão a ti e a mim...

- Ora não! Desinteressas-te, visto isso, do futuro do teu filho, do casamento da tua filha...

A chantagem ia começar. Guerran preparou-se.

- Não percebo como é que o futuro de Charles...

- Não se preocupem comigo - disse Charles. - Eu me arranjarei sozinho, seja como for.

- Repito que não se trata de...

- Então queres deixar-me e conservar o teu filho? Fica sabendo que Charles me acompanhará. Não há-de abandonar aquela que o criou. Quanto a Micheline...

- Eu trabalharei -declarou esta, com as lágrimas nos olhos.

Guerran, de xícara ainda na mão, olhou assustado para a filha. Ela também! Sentiu-se preso, encadeado, estrangulado. Esses entes iam precipitar-se todos, deliberadamente, no infortúnio, por estupidez, por maldade, para lhe forçarem a decisão, para o tornarem responsável da catástrofe. Até Micheline! A rapariga sabia bem o peso que os seus actos exerciam no ânimo do pai. Ia servir-se, de modo cruel, de toda a ternura que ele lhe dedicava, a fim de o entravar, de o amarrar. Visto que a adorava... Eis uma fraqueza, um defeito na couraça, e por aí lhe enterrariam o punhal. E o pior é que ela fora clarividente, ela ou Julienne. é que ele se sentia vulnerável por esse lado, e o divórcio, essa libertação mal entrevista, parecia-lhe já coisa quimérica, irrealizável, impossível. Teve um gesto de fúria, gesto de violência e de raiva contra si mesmo, por se sentir tão fraco, tão idiota, tão dominado pela afeição. Esmagou nos dedos a porcelana japonesa da xícara vazia, lançou os fragmentos ao chão e saiu batendo com a porta. Cinco minutos depois, o automóvel de Guerran deixava os «Daffodils». Três olhares o seguiram, por trás da cortina de Julienne, enquanto o carro contornava os relvados, rodava lentamente pelo passeio de saibro, para se engolfar na estrada. Guerran nunca se voltou.

Fabienne não compreendeu bem o motivo da comoção que Olivier manifestou, quando se tornaram a encontrar. Pressentiu um drama, uma alteração ocorrida na existência de Guerran durante aqueles dias de ausência. Ele, porém, iludiu as perguntas.

- Estamos longe de todos, somos felizes. Pensemos em nós, minha querida. Pensemos só em ti e em mim.

A vida recomeçou-lhes tranquila, rústica, aprazível, na casa antiga e tão grande da beira-rio. Havia no entanto qualquer coisa que tinha mudado. «Pensemos só em ti e em mim!» Ele bem o queria! Bem desejaria sufocar a memória, os cuidados, a surda obsessão que o torturava. Ainda que se aturdisse, não deixava de compreender que ia a largas passadas para o abismo. Estava emn causa o futuro do seu lar. Consigo próprio, com Julienne, não se inquietava muito. Mas Charles, Micheline... E era este pensamento súbito, agudo, cruel, que o atravessava de repente, às vezes, como uma ponta de lança, no meio dum sorriso, da alegria, dum instante feliz, e que o detinha angustiado, lhe crispava de modo brusco as feições, como o apelo dum mal latente. Fabienne notava a mudança inesperada e brutal no rosto dele, adivinhava-lhe o suspiro reprimido, compreendia a apoquentação secreta. E ela, por sua vez, experimentava uma dor oculta, misto de cólera, de ódio, de orgulho ferido. E empreendeu a luta.

A casa, por todo aquele mês, tornou-se a mansão do riso, do sol, da alegria, da festa. Guerran, da sua infância pobre, conservara gostos populares, saboreava a simplicidade, a esperteza, a franqueza dos camponeses. Fabienne travou relações com os caseiros, com o tio Brun, caçador e pescador entusiasta, com o moleiro Costenoble, que conhecia todos os cantos, do Boutonne onde há peixe, e com o senhorio, de apelido Tillebois, espécie de fidalgo rural que possuía trezentos hectares de terras aráveis e de matas, passava a vida a vigiar os caseiros e os serradores e adivinhava, a uma légua em redor, a toca de certa lebre ou o campo donde, em Setembro, ergueria voo um bando de perdizes novas. Houve boas distracções, no começo. Fabienne, para acompanhar Guerran, arranjou fato de caçadora e espingarda: para ele, esse traje que a desfigurava era já um divertimento. Sem dar ouvidos à sua repugnância em fazer sofrer os animais, chacinou faisões nos bosques, abateu coelhos bravos, que Tillebois levantava pelas orelhas, ainda vivos e ensanguentados, transidos de pavor, para os aniquilar de vez com uma pancada sobre a nuca, abreviando-lhes assim a agonia. Aprendeu a atirar à garça e ao maçarico em pleno voo, ao longo da costa, na maré baixa, entre Rochefort e a Rochela, a escutar, sem desfalecer, o lamento duma ave ferida e agonizante, a agarrá-la pelos pés e a bater-lhe com a cabeça de encontro ao estribo do carro para lhe sufocar a palpitação e o queixume. Acompanhou os homens, de noite, à caça nos charcos. Tillebois construíra, por toda a parte, cabanas confortáveis e escondidas, ao rés das águas, para dali atirar às galinholas, às cercetas, aos patos bravos. E que impressionante essa espera, à alvorada, no meio dos brejos, entre juncos, num silêncio perturbado de vez em quando pelo grito melancólico do chamariz, o pato amarrado por uma perna, que implorava a presença dos seus semelhantes! Quando o bando descia sobre o paul, Fabienne, com tiro rápido, dizimava-o, e recebia na cara penas e sangue; aceitava então, sorrindo, as felicitações de Tillebois e do tio Brun, e via que Olivier se esquecia, entretido como estava. Outra coisa não desejava ela: estava disposta a tudo para o conseguir.

Regressavam cansados, repousavam um pouco, comiam, e depois iam até ao presbitério da aldeia próxima levar uma peça de caça ao padre Bourguin, o qual estava ocupado a cavar batatas na sua terra, por trás do cemitério. Guerran simpatizava muito com o velho cura.

Em suma, levavam uma existência alegre. Sol, flores, música (um aparelho de T. S. F. que funcionava sem descanso) actividade febril no prazer, divertimentos, distracção... Assim que se levantava, Guerran sentia-se preso, dominado, arrastado. Corridas de automóvel até Saint-Jean, regresso com um carregamento de vitualhas, jornais, livros... Ao entrar na quinta, encontravam sempre alguém: o tio Brun, o moleiro ou Tillebois, que chegavam justamente na altura do aperitivo. Fabienne convidava-os com antecedência, provocava essas visitas, retinha um ou outro para almoçar. Comiam na varanda e tomavam o café num canto do parque. Em seguida, Tillebois levava os seus inquilinos a ver os vinhedos ou a serração, onde a máquina de vapor cortava em compridas fatias álamos de cheiro acre. Ou então passeavam de automóvel, visitavam igrejas antigas e tornavam a surpreender o padre Bourguin no seu quintal, por trás do cemitério. Aí, Guerran conversava muito tempo com o velho cura, passeando com ele em volta da igreja isolada e branca - guarda fiel e solitária no meio dos seus mortos. Depois do jantar, na quinta, havia ainda a telefonia, os jornais, as longas conversas ao crepúsculo, debaixo das tílias, com o tio Brun, os caseiros e os criados, os jogos de cartas, os gracejos, a satisfação desse fim de dia repousante para todos aqueles trabalhadores depois da fadiga da terra. Por volta das onze horas, Guerran sentia-se cansado e com vontade de dormir. Ele e Fabienne recolhiam então ao quarto. Mais um dia ganho, mais umas horas em que Olivier não magicara na sua vida. E se ele não adormecia, se Fabienne o ouvia agitar-se ou suspirar, a rapariga aproximava-se, cingia-se-lhe, oferecia-lhe o mais seguro de todos os esquecimentos, a sua mocidade, para que Guerran tombasse em seguida num sono profundo, sem sonhos nem arrependimentos.

Passava ela a vida a imaginar, a combinar, a inventar divertimentos, saídas, ocupações, a fim de Guerran não ter tempo de reflectir, nem de se recordar. Vigiava-o como a uma criança. Em qualquer ocasião, estivessem onde estivessem, perguntava-lhe bruscamente:

- Em que pensas?

Perseguia nele a recordação. As vezes, formava-se um vinco na testa de Guerran, uma ruga que Fabienne bem conhecia, que somente aparecia nos momentos de preocupação, e que ela espiava, que combatia como uma inimiga. A família? Os filhos? A mulher? Fabienne nada receava. Ela era a juventude, o amor. Entrava em luta audaciosa contra aqueles, e dizia de si para si, orgulhosamente :

- Enquanto eu cá estiver não sofrerá! Saberei fazê-lo esquecer.

E a vida de ambos prosseguia assim no meio de inúmeras distracções. Havia, no entanto, momentos em que Fabienne se sentia cansada, em que a acabrunhava o peso do enorme fardo que voluntariamente aceitara. Jamais supusera que o passado fosse tão poderoso, que uma família fosse coisa tão árdua. Havia horas, de noite, em que à força de impor à sua volta o riso e a alegria, ela tinha a impressão de que perdera toda a resistência e todo o poder de irradiar felicidade; instantes em que de bom grado, e com alívio, renunciaria de vez à luta.

Que seria, pois, mais tarde, quando viesse a saciedade? Já o pressentia nas ocasiões em que a energia se esgotava, em que não actuava o ópio da satisfação dos corpos: em certas noites, depois da embriaguez do amor, quando Guerran, fatigado e febril, se estirava ao lado dela na sombra do quarto e se lhe escapava de novo, em espírito, irresistivelmente, afastando-se, evadindo-se, regressando à sua obsessão e àqueles que deixara. Deitado, imóvel, fingia-se adormecido, mas estava de olhos abertos. E Fabienne sabia em que é que ele pensava, sem contudo achar maneira de o evitar. Uns minutos de prazer - eis tudo quanto ela fora capaz de lhe dar, para o fatigar mais ainda e o entristecer, naquela depressão que se substitui às excitações exageradas. Nos dias seguintes a essas noites, Guerran andava sombrio, melancólico. Já nada o arrancava ao seu abatimento. Que seria então, daí a dez anos?

Era um facto, ele fugia-lhe. Lenta, invencivelmente, sem sequer o desejar, Guerran desembaraçava-se da cadeia de Fabienne. Notou a rapariga que o padre Bourguin, dum dia para outro, deixara de os visitar. Teria sabido da irregularidade da situação em que se encontravam? Interrogou Olivier e esse respeito, e este viu-se obrigado a confessar que fizera confidências ao sacerdote, que lhe revelara a verdade quanto à natureza do lar que haviam constituído. Pesava-lhe tanto o silêncio que achara preferível dizer tudo; vencera a necessidade de se abrir com alguém, e fizera-o numa hora de maior acabrunhamento. Já não experimentava satisfação e repouso senão em casa do padre: assim, evadia-se da quinta, uma vez por outra, furtivamente, corria à aldeia, procurava o cura e estava a conversar com ele por muito tempo, falando da família, da mulher, dos filhos, ali nesse cemitério rural perdido no meio do campo, onde se erguiam túmulos senhoriais que as ervas ocultavam e onde se destacava, no fundo vivo do céu azul, a fileira de altos ciprestes sombrios. Branca e atarracada, de fachada românica onde se abriam seteiras, a velha igreja, ao centro, velava pelos seus mortos. Sobrepunha-se-lhe o campanário singelo, frontão esburacado donde pendia o sino. Tudo isto era banhado duma atmosfera luminosa, duma paz infinita, duma calma de eternidade - a igreja dos tempos medievais, as árvores, as sepulturas solitárias, abandonadas em pleno campo, longe aos homens. Tudo parecia simplificado, clarificado e engrandecido. As palavras dever, sacrifício, pronunciadas pelo padre Bourguin e que, noutra altura, fariam despertar o sorriso céptico de Olivier, tomavam então uma espécie de solenidade ingénua e grave, que singularmente comoviam esse pobre coração atormentado. Fabienne dava conta disso, quando ele se evadia assim. E espiava-o, vigiava-o, furiosa, ciumenta, sabendo muito bem que ele não corria ao presbitério senão para falar dos ausentes, da mulher, da filha, rivais de Fabienne. Pressentia toda a alegria dolorosa que o amante encontrava em ressuscitar o passado, esse passado que ela tanto fazia por esquecer. Exasperava-se, chamava em seu auxílio todas as amizades, todas as tentações, punha do seu lado o tio Brun, e Tillebois, dizendo-lhes abertamente:

- Fiquem connosco, ou então levem-no. Ele tem preocupações, inquieta-se. Devem distraí-lo, ajudá-lo...

E toda esta luta era travada com a consciência profunda e surda de o fazer em vão, de estar no campo oposto ao da verdade.

Quando pensava a fundo no caso, Fabienne via bem o que tinha a fazer: ter com ele uma explicação franca, examinar com lucidez e coragem a sua situação, tal qual lha criaram a imprudência, a paixão e a temeridade. Ter tudo em linha de conta : as obrigações dum e doutro para com as respectivas famílias, e os recíprocos deveres, pois que não passavam, em última análise, de dois amancebados. E ponder ar tudo, julgar tudo, escolher uma: solução, a mais sensata, a mais correcta, a mais decente que pudessem e que tivessem a coragem de seguir. Deste modo não haveria mais nada de oculto, de secreto, de misterioso no coração de cada qual; sentir-se-iam purificados, capazes de salvar a última probabilidade de se amarem ainda, pois que a mentira, lenta e certeira, acaba por matar o amor. Só lhes restava a sinceridade, a rectidão, talvez a ideia, mutuamente aceita, de ir cada um para seu lado... Em suma, consentir em expiar o erro e as suas consequências.

- Nunca! - exclamava Fabienne, num sobressalto de cólera, dor e orgulho. - Lutarei. Não hei-de ceder!

E recomeçava a batalha, com um renovo de coragem que depressa se consumia. Vivia na certeza, avolumada dia a dia, de que estava a lutar contra a verdade, contra a ordem e a rectidão; ao passo que as suas rivais Julienne e Micheline, apesar de todos os defeitos, tinham por seu lado a ordem e a verdade. Essas incarnavam o lar, a família. Fabienne representava, neste jogo, a estranha, a aventureira, a intrusa, o fermento de dissociação, de destroço, de ruína, o que a enchia ao mesmo tempo de fúria contra a mulher e a filha de Guerran, de cólera contra Olivier e contra si mesma, dum misto inexprimível de dúvida, desespero e repugnância.

No fim de Setembro, deixaram Saint-Julien.

Ele voltou a Angers, onde os seus trabalhos lhe exigiam a comparência. Ela, depois de passar oito dias com o pai, regressou a Paris e retomou o seu lugar na casa de saúde. Guerran foi visitá-la duas ou três vezes, à pressa. Fabienne esteve doente uns dias e, um pouco antes do Natal, participou ao amante que se encontrava grávida.

Durante este tempo Doutreval continuava a sua campanha.

Ludovic Vallorge tornara a casar, em Julho desse ano. Conhecera Simone Heubel, filha do famoso cirurgião do mesmo apelido, fizera-lhe a corte e fora aceito. O casamento realizara-se com muita simplicidade. Agora Vallorge ocupava-se dum importante laboratório de medicamentos, do qual Heubel era o maior accionista, pois comprara todas as acções da senhora Géraudin. Aí encontrara ele o campo de actividade que mais convinha às suas predilecções.

Em meia dúzia de meses o laboratório duplicou o número de vendas.

Este Vallorge tinha a bossa do comércio. A firma, como muitas outras, publicava uma revista, Lê Móis Medicai. O genro de Heubel deu-lhe logo considerável desenvolvimento, tornou-a ilustrada, assegurou-se da colaboração remunerada de escritores célebres, e decidiu que, em cada semestre, o laboratório lançaria duas especialidades novas para conservar o público atento. Essas especialidades seriam experimentadas por professores no respectivo serviço hospitalar, os quais dariam, no Móis Medicai, o relato dos seus ensaios. Tal processo, assaz espalhado, produz grande efeito nos médicos. Vallorge conseguiu tirar Regnoult a Doutreval, deu-lhe ocupação, e Regnoult imaginou séries de especialidades farmacêuticas sucessivas, valorizadas com nomes e empacotamentos vistosos. Esses produtos, Vallorge dedicava-os em seguida a um pontífice da medicina, a quem pedia um artigo para a revista, e obtinha assim um nome e um apoio que vinham garantir o êxito. Ao fim do semestre o Móis Medicai absorvia quatro toneladas de papel por cada tiragem.

Vallorge preparava mais outros três jornais publicitários, enquanto Regnoult ia à Dinamarca visitar os matadouros e instruir-se quanto aos processos de colheita das glândulas dos animais abatidos, a fim de organizarem Angers um vasto centro de fabrico de produtos opoterápicos.

A deserção de Regnoult tornou maiores os cuidados e a solidão de Doutreval.

Depois de Vallorge, depois de Groix, chegara a vez de Regnoult. Doutreval já não percebia nada. No entanto, estava tacitamente combinado que Regnoult casaria com Fabienne. Porque se esquivara assim tão bruscamente? Tanto mais que Regnoult era o director-adjunto do Centro! Este não estava ainda aberto ao público e já ele ganhava três mil francos por mês. O rapaz dirigia tudo, tinha ali trabalho apaixonante e lugar de grande futuro. Guerran obtivera para o Centro uma subvenção importante do Ministério da Saúde Pública, e a isso acresciam os subsídios dos organismos locais. O edifício estava preparado para o funcionamento, que não devia tardar. E eis que, de repente, Regnoult abandona tudo, o seu posto, Fabienne, a curarização, e entra como técnico no laboratório de Heubel. Por mais que Doutreval repelisse as suspeitas, atormentava-o uma surda inquietação. «Terá medo de qualquer coisa? Desampara o navio em perigo? Duvida do meu método?»

Porque era justo confessar: a curarização encontrava cada vez maiores obstáculos. Não avançava. De toda a parte choviam críticas. O grande psiquiatra da Academia de Medicina, Faubert, condenara o método, apresentando 47 por cento de fracturas nas suas experiências pessoais. Doutreval, embora negasse e discutisse, devia confessar no íntimo que Faubert tinha razão. Os êxitos haviam sido raros. Muitos alienados acabavam o tratamento com a coluna vertebral mais ou menos avariada. Nenhuma das pesquisas de Doutreval ou de Regnoult conseguira impedir aqueles inconvenientes: nem o veronal, nem as preparações cálcicas, nem a raquianestesia. Doutreval tentava reduzir as doses do produto convulsivo injectado. Mas isso também fora um malogro. Ou a crise se verificava, apesar de tudo, e tão violenta como nunca, ou não se produzia, e o doente só conservava a lembrança dum sobressalto, duma expectativa, duma angústia horrível, de tal maneira que se recusava redondamente a nova experiência.

Mas Doutreval não abandonava a luta. Procurava meios mecânicos, posições que impedissem as fracturas: decúbito lateral, posição de cócoras, de «cão de espingarda», emprego dum quadro metálico ao qual ligavam o paciente. Nada disto dava resultado. E os ataques redobravam na imprensa. Falava-se agora, abertamente, de abcessos pulmonares provocados pelo tratamento, começava-se a preconizar novo método, a convulsão pela electricidade, processo que Doutreval desdenhava, criticando-o de forma categórica.

No meio de todas estas flutuações, o Centro concluía-se e, dissessem o que quisessem, era um triunfo tangível, uma resposta esmagadora aos adversários. Entre tantas dificuldades, um só pensamento reconfortava Doutreval e o animava a prosseguir:

- Podem falar, podem protestar: o Centro está aí, e funcionará qualquer dia!

 

- Aqui tens notícias dum velho conhecimento nosso

- diz Michel a Évelyne, mostrando-lhe uma carta recebida de Paris.

- Tillery! - exclama ela, depois de a desdobrar e procurar a assinatura.- Nunca mais tínhamos ouvido falar dele!

O signatário e a mulher vão bem. Tillery, com os seus óculos, torna-se uma das figuras populares do bairro. Tem em vista uma instalação de raios X. A mulher, durante esse tempo, ocupa-se activamente a elaborar mais um herdeiro: um ou dois, declara ele, tornado mais prudente com a história dos dois gémeos. Entretanto, recolheram e adoptaram um pequeno de cinco anos, órfão, cuja mãe fora tratada por Tillery.

«Não posso dizer que seja uma lindeza de criança», prossegue a carta. «Teve tuberculose óssea e mostra na cara traços vermelhos de antigos abcessos. Mas, quando se mete qualquer coisa na cabeça das mulheres... Além disso, eu tinha tratado desse garoto, em vida da mãe». Parece que se quer desculpar, este bom do Tillery. E acrescenta, tentando fingir tristeza: «A medicina obrigou-me a tomar esposa, agora obriga-me a adoptar crianças. Decididamente, é uma profissão que nos traz aventuras singulares!»

Michel deixa a carta a Évelyne, a fim de que a mulher escreva a resposta.

- Vou-lhes mandar também lã branca para o enxoval. Arranja-se isso muito barato na fábrica. Não há dúvida de que Tillery prospera.

- É verdade - volve Michel. - Estranha coisa! Não se trata duma sumidade. Nem tem figura que se imponha, como Seteuil. Lembras-te bem dele, dos óculos muito grandes, do narizinho arrebitado, da cara rechonchuda de nené? E as brincadeiras constantes, as fantasias, as partidas? Um estudante! Estudante de medicina toda a vida. Nada que servisse para garantir o êxito perante a clientela. E, no entanto, é o que vês!

Procura numa rima de jornais postos à disposição dos clientes, na sala-de-espera, e tira uma revista, abre-a e exibe o retrato dum homem de rosto magro e bronzeado, de capacete colonial. Um pouco atrás vê-se a cara juvenil e redonda dum sul-americano, de aspecto semi-selvático.

- O nosso Tillery - explica Michel - é um sujeito a quem aconteceu mais ou menos a aventura do doutor Barataud. Este foi acusado, se bem me recordo, de acabar com a vida da sua companheira. Condenaram-no a trabalhos forçados. Durante o julgamento, todos os pobres do bairro onde ele vivia, todos os desgraçados que ele tratara quiseram testemunhar a seu favor e pedir que o não condenassem. «É o nosso médico, não no-lo tirem», diziam. «Que será de nós se o não tivermos para nos tratar? Temos confiança nele!» Uma vez na Guiana, salvou o pequeno dum dos guardas, tratou outras pessoas, foi estimado por toda a gente. Por fim evadiu-se para Venezuela, onde está agora, a três dias de comboio da cidade mais próxima. Exerce clínica, casou-se com uma indígena, tem dois filhos, é extraordinariamente popular. Se (admitindo por absurdo) o tentassem extraditar, todos os habitantes da região se sublevariam. Eis o que é a nossa profissão, Évelyne. Somos, em especial, os que salvam. Primeiro que tudo é isso que vêem em nós. É um pouco a história de Tillery, decorrida noutro plano. Vê tu agora Belladan, um urso da Faculdade, que sabia dez vezes mais do que todos nós. Pois esse o que consegue é viver à custa da família. E compara-o com Tillery. Tillery vai triunfando porque estabelece entre si e o doente o contacto de homem a homem...

Lança ainda um olhar à carta, e conclui:

- Seja o que for, alegro-me, por causa de Tillery. Mas que profissão singular, Êvelyne!

Deu a ler a carta a Seteuil, a quem o aumento da família de Tillery divertiu imensamente. Seteuil via com prazer aproximar-se a data do seu casamento. Mostrava-se, junto de Anne-Marie Lausefeld, filha mais velha do importante industrial de fiação, o mais galante, o mais delicado dos noivos. Alto, moreno, de barba abundante, voz grave e porte altivo, tinha ele por essa época um aspecto soberbo, apesar da testa cada vez mais desguarnecida de cabelo. E, embora viúvo e com um filho a seu cargo, não era partido que se desprezasse. Aquela união anunciava-se excelente.

Numa quarta-feira em que chegou a casa dos Lausefeld para almoçar com eles, Seteuil encontrou Anne-Marie constipada. Tinha o nariz vermelho e os olhos inchados, e estava cheia de medo que o noivo a achasse feia... Seteuil, por brincadeira, tomou um ar doutoral:

- Oh! Catarro! É grave, muito grave!

- É preciso tratar disto a sério, não é verdade, doutor?

- disse Lausefeld, rindo. - Examine-lhe a garganta e passe-nos uma bela receita...

- Abra a boca, menina - ordenou Seteuil, continuando o gracejo. - Bom. Não há nada deste lado. Uma toalha, fazem favor.

Estendeu a toalha nas costas da rapariga, por cima do decote do vestido, aplicou a orelha, demorou-se... Sem dizer mais nada, retirou a toalha, pô-la no peito de Anne-Marie e auscultou-a ainda. Por fim, endireitou-se:

- Eis a minha receita : uma boa refeição regada com borgonha e uma caixa de pastilhas contra a tosse.

- A primeira parte será executada pontualmente, e já! - replicou Lausefeld. - Só o tempo de lhe oferecermos um aperitivo e vamos para a mesa.

O almoço decorreu animado. Nos três dias que se seguiram àquele, ninguém viu Seteuil. No domingo, Lauseíeld recebeu uma carta dele: desculpava-se, invocava um fatal concurso de circunstâncias impossíveis de revelar, declarava-se preso ao silêncio pelo segredo profissional, e pedia ao industrial que considerasse desfeitos os esponsais. Ninguém, a começar pelos Lausefeld, compreendeu o que se passara. Aquilo causou grande escândalo, e Anne-Marie afligiu-se bastante.

Três semanas depois, os Lausefeld mandaram chamar Michel por causa da filha. A rapariga não tinha apetite e emagrecia, o que se tornava inquietante. Decerto que tudo isso provinha do desgosto. E aquela constipaçãozinha eternizava-se. Michel auscultou Anne-Marie Lausefeld : foco nítido de tuberculose no seu início.

Fora sem dúvida por essa razão que Seteuil desfizera o noivado. Ao auscultar por brincadeira a rapariga, dera logo com aquilo. Mas não dissera nada; passaria por cobarde se soubessem que rompia os esponsais por causa da tuberculose. Prudente, preferira calar-se, abrigando-se por trás do segredo profissional e deixando ao tempo e ao acaso o cuidado de advertir os Lausefeld do mal que a filha sofria.

Às primeiras palavras de Michel, os Lausefeld recordaram-se do incidente e perceberam tudo. Contaram então o caso a Michel, o qual ficou deveras aborrecido.

Anne-Marie não parecia gravemente atingida. Michel estabeleceu um regímen desintoxicante e pôde prometer a cura da rapariga.

Gaspard Becquerel, o médico-deputado a quem Michel servira de substituto quando chegara a Nord, continuava a prosperar. Tinha por sua conta um bando de «angariadores» que levavam ao seu consultório todos os mandriões desejosos de fazer render um desastre no trabalho e as raparigas grávidas que pretendiam «um abortador». Seguro da impunidade, confiante na sua influência política, mostrava quase abertamente o seu desprezo pela lei. No entanto, sucedeu-lhe um percalço. Os Lespagneí, clientes dele, levaram-lhe o filho, garoto de poucos anos, que se ferira na mão ao cair.

- Isso não tem importância! - disse Becquerel.- Basta um curativo.

Os Lespagneí foram duas vezes ao consultório de Becquerel, mas, inquietos por verem a mão do pequeno inchar, deixaram aquele e consultaram Michel. Este abriu a palma da criança e desinfectou-a bem. Durante três meses, o petiz teve de ir quase todos os dias receber curativo a casa de Michel. O tratamento durava ainda quando a companhia de seguros de Lespagneí recebeu a conta do médico-deputado: vinte e três visitas, e cura do doente. Ora a criança ia receber ainda curativo ao consultório de outro médico!

Da companhia mandaram chamar Becquerel. Este desculpou-se, pretextou um erro de nome. Não houve escândalo, mas aquela pôs de reserva o processo para o dia em que Becquerel, no Parlamento, se lembrasse de fazer muito barulho a favor da nacionalização das companhias de seguros...

Becquerel continuou a exibir a sua figura rotunda e a ser na terra uma grande personagem, o amigo do todo poderoso Mooreman, deputado e presidente da Camará Municipal. Quando havia sessão na Assembleia, iam os dois a Paris no comboio da manhã. Chegavam juntos à estação, e Mooreman, carregado de pastas e processos, confiava a Becquerel um dos maços de papéis e dizia-lhe:

- Leia isto no percurso e dê-lhe os retoques necessários.

Separavam-se, subiam para duas carruagens vizinhas, a fim de cada qual dispor duma prateleira e não serem tentados a conversar um com o outro. E, por um dos vidros, via-se Mooreman absorto em áridos estudos, mergulhado na leitura de L’Officiet ou de folhetos de sociologia e de economia política, enquanto na janela seguinte aparecia a cara risonha de Becquerel, por cima de revistas abertas, com gravuras atraentes: Sex-Appeal, La Vie Parisienne...

Becquerel associara-se a Lequesnoy porque este se metera na política e se havia filiado no partido do médico-deputado na esperança de obter a Legião de Honra e, principalmente, de conseguir um lugar de cirurgião para o filho - criatura estúpida, mais apta a manejar a enxada do que o bisturi Por felicidade, o director do Hospital opusera-se com todas as suas forças a tal pretensão. Mas o apoio de Becquerel, grande amigo de Mooreman, arriscava a que a balança pendesse a favor do filho de Lequesnoy.

Templemars também se lançara na política, honestamente, mas de modo desastroso. Tivera a ousadia de se inscrever num partido da direita, e sobretudo de confessar o que fizera. Ficou liquidado. A clientela operária deixou-o dum instante para outro, em massa.

O pobre diabo morria de fome por causa da sua sinceridade. Ainda por cima cometera a imprudência de passar um certificado mal redigido a certo homem que lhe trouxe o filho, criança enfezada que bem demonstrava a negligência da ama que o criava. Templemars, inocentemente, escrevera no certificado: «Enterite crónica devida a poucos cuidados».

Ao sair da casa de Templemars, o pai dirigira-se à ama e dera-lhe uma sova mestra. Prenderam-no e ele exibiu o certificado. Templemars foi chamado à polícia e severamente admoestado. Esta história acabou de o arruinar. Dizia ele que o seu desejo era deixar de vez a medicina, arranjar um lugar de funcionário, e lastimava não poder voltar a’fazer serviço no Exército.

Rosselet, velho e cansado, trôpego duma perna, continuava a percorrer a terra, a visitar os seus três ou quatro doentes quotidianos, a fim de ganhar a vida e a da mulher, sem dar ouvidos às pulsações desesperadas dum coração pronto a ceder por excesso de trabalho. Por compaixão, Michel às vezes chamava-o para uma junta, à cabeceira dalgum pequeno enfermo. Rosselet tratava muito bem de crianças.

Este homem esforçara-se demais na sua profissão. Chegara a economizar, fora rico. A crise, as bancarrotas, as desvalorizações haviam-lhe devastado o capital, como acontecera a todos quantos pouparam os seus haveres. Dum lote de oitocentos mil francos de acções esperava agora obter uns quinze mil francos. Num banco em liquidação tinha o crédito de trezentos e setenta e cinco mil francos, do qual recuperaria, quando muito, uns 3 por cento. Não há possibilidade de fazer boa medicina e especulação cambial ao mesmo tempo. Rosselet, como muitos outros, arruinara-se trabalhando. E ali estava ele, pobre e digno, corajoso, afectando prosperidade, dando-se o ar de ver doentes por desporto, salvando as aparências, maltratando a velha carcaça gasta a fim de se manter, de parecer bem disposto e optimista, como o exige a clientela, mas, no fundo, consumindo-se de angústia, conservando-se alerta, espiando a perna direita que fraquejava cada vez mais, preocupado também com a vista que baixava e com o ouvido que se perdia. O ouvido é indispensável, é o capital dum médico. Que há-de fazer, se não puder auscultar? Esta era a obsessão do velho Rosselet: uma doença, reumatismo ou surdez, que o deixasse impotente, incapaz de ganhar a vida. Que seria de ambos, dele e da mulher? Ela, sobretudo! E se a morte o levasse? Se deixasse a companheira sozinha? Às vezes Rosselet sonhava com a morte simultânea dos dois, morte misericordiosa que não permitisse a nenhum deles ficar solitário neste mundo.

Entretanto, prosseguia na sua faina; fazia ainda várias visitas quotidianas e conseguia os seus oitenta francos, mas à custa de grande esforço, tendo por vezes palpitações tamanhas que o obrigavam a deter-se bruscamente à porta dum quarto, depois da subida da escada, ofegante, com as mãos sobre o peito, para então aparecer ao cliente, afectando um sorriso e sentindo a morte dentro de si.

O médico é um tanto semelhante ao actor no palco. Tem de representar o seu papel até ao fim. Rosselet era como a imagem do futuro, do destino prometido a todos os médicos novos, quando eles por seu turno houvessem consumido a sua mocidade nessa dura batalha, nessa intolerável profissão em que o homem honesto mal ganha o pão de cada dia, nessa carreira em que se morre à míngua depois de ter, durante quarenta anos, acompanhado a miséria, a desventura, todos os horrores da existência humana quando esta se afastou das leis da natureza.

- Bela profissão, apesar de tudo! -dizia Templemars a Michel. - Quando vemos um Rosselet, um Roy, todos os outros, todos esses tipos como tu e eu, esses quarenta mil de França e de Navarra a quem toda a gente entrega a sua carcaça, de mãos e pés atados, e com a venda nos olhos (pois uma consulta é realmente assim); quando vemos tudo isto podemos afirmar que a medicina ainda é uma grande profissão. Em primeiro lugar, não há ninguém que trabalhe mais a crédito do que nós! É já um título de nobreza. E repara que, ainda no caso de haver um desfalecimento moral, o médico se avilta menos do que os outros. Até nisso é modesto. Agarrar-se-á aos seguros, às caixas, ao dinheiro anónimo, muitas vezes com o acordo e a comparticipação do cliente miserável. Associam-se duas misérias! O limite da canalhice, para o médico, é o sofrimento. Poucos o ultrapassam. E não pode deixar de ser assim. Quem é que vê sofrer? Quem é que vê todos os dias da sua maldita vida de cão, lágrimas, dores, sangue, desgraças? Nós, meu caro Doutreval! E é por isso que, nesta nossa corporação, se encontram ainda os tipos mais sérios! Um tratante, nos negócios ou na política, deita a mão à bolsa do semelhante. Nós, o que temos à mão, do nosso semelhante, são os seus sofrimentos. Eis o que nos salva!

- A minha clientela? Ah, sim, aumenta! Tinha três mendigos, agora tenho cinco!

Esta resposta de Tillery muitas vezes Michel a recorda. É um pouco, também, a sua história. Muitos clientes pobres, que lhe são fiéis e que não pagam. Essa mulher, por exemplo, que o chama às oito horas da noite para lancetar um antraz numa nádega do seu menino. Está-se numa cozinha infecta e não há ninguém que segure a perna do pequeno. A mãe tem medo. O pai foi para o cinema, sozinho. Ou então aquela velha Pauline Labuire, que tem setenta e cinco anos e que trata, como a uma criança, o marido paralítico, rabugento, mau e egoísta. A mulher arranjou uma impigem e Michel proíbe-lhe de molhar as mãos, ordem que ela escuta pasmada. Os médicos julgam que é tudo muito fácil! Mas quem há-de lavar a roupa? é a loiça? Quem mudará os lençóis do velho, cheios de urina? A impigem não se há-de curar nunca. O mesmo acontece à senhora Daubian, que se encontra de novo no estado interessante e necessita de repouso. Muito bem. Mas quem há-de fazer a comida, enquanto Daubian está na fábrica? Ou ainda o caso da filha dos Buccinali, emigrados italianos, a qual sofre duma constipação renitente. Michel ausculta-a. Princípio de tuberculose. O quarto é sórdido, com os seus três catres, onde dorme a família toda. Como se há-de fazer medicina, em tais condições? No andar superior vivem húngaros, checos, argelinos, e no outro uma família polaca, os Posnowiec. A mãe trabalha na fábrica de Lausefeld e sofre de metrite, devido à fadiga. As fábricas atacam o ventre da mulher, esterilizam-na; e as que não adoecem, aprendem, ainda assim, a não ter filhos. As pequenas polacas são operárias como a mãe e divertem-se como podem. Na mais velha trata Michel uma sífilis já antiga. Estes infelizes, arrancados à sua terra natal, só vêm para aqui a fim de serem mal alimentados e mal instalados, e deixam-se contaminar por todos os vícios. Que pode fazer um médico de bairro senão lutar sem esperança?

Muitos operários vão trabalhar nas «construções metálicas». É uma fábrica enorme. Salários altos, mas trabalho duro. Todavia, não lhe faltam os empregados, pois o que eles procuram é dinheiro. Para aguentar o serviço, bebe-se um pouco mais de álcool. Aos cinquenta anos, porém, está um homem acabado. O antigo modelados- Berlequin bem o pode dizer. Tem quarenta e oito anos e uma aortite. Já não pode trabalhar ali, mas pensa sempre nisso. Só é feliz na fábrica, e vai duas, três vezes por semana ver os outros trabalharem e matar saudades.

- Qualquer dia posso voltar, não é verdade, senhor doutor.

- Com certeza, Berlequin, com certeza.

Também foi nas «construções metálicas» que se consumiu o atlético e gigantesco Borghère. Cancro do estômago, à força de ingerir o álcool que para ele e para outros destilou Lavaisne. Aquilo dava-lhe forças: quem diria que era tão nocivo? Tanto mais que Lavaisne paga aos jornais para estes dizerem que o álcool faz bem. Borghère importuna igualmente Michel para que o deixe regressar ao trabalho. Se tem quatro filhos! Sempre que Michel lhe faz visita, Borghère pergunta-lhe:

- Então, senhor doutor, posso recomeçar na segundafeira?

- Temos tempo, temos tempo...

- Quinta-feira?

- Não há pressa...

- De segunda a oito dias, nesse caso?

- Tens vontade de rebentar? Não me fales mais nisso. Não assino o atestado. Percebeste?

Borghère não se atreve a replicar. Numa bela manhã, porém, é ele que se apresenta em casa do médico. Vem pálido, receoso.

- Senhor doutor... importa-se de assinar o atestado? Apesar de tudo, recomecei a trabalhar. Não posso estar sem fazer nada.

Tomará mais um pouco de álcool e experimentará a ilusão de poder aguentar com o trabalho.

E essas mulheres que deixam a casa ao abandono, cujos filhos vagueiam pela rua, cujos maridos frequentam as tabernas... enquanto elas adquirem doenças em tarefas superiores às suas forças! E todos esses cafés, e esse tabaco, e os casebres, e as fábricas, e os cinemas, e os jornais, e as tentações duma civilização que destrói o homem e no meio da qual, extraviado, impotente, perdido, o pobre do médico de bairro se debate e luta para conseguir, em vão, levar um pouco de ordem, de saúde, de verdade, a multidões miseráveis e condenadas a recaírem, logo depois de curadas, na sua confrangedora miséria! Ah, não ver senão os ricos! Não tratar senão dos felizes! Poder prescrever tudo sem ter em conta a pobreza! Não saber que existe a miséria! Que tentação!

Ao passar, por acaso, na habitação da velha Pauline Labuire, Michel dá de cara com Évelyne, que ali foi em segredo ajudar a outra a lavar a loiça. Por isso é que a

impigem de Pauline começa a ceder! Ah, Êvelyne não atraiçoa o seu passado: continua-lhe fiel! Salvou-se, mas não aceita o deslumbramento feliz e mentiroso do bem-estar. Poderia evadir-se, esquecer, viver como burguesa, e no entanto recusa-se, fica pessoa do povo, vai lavar os pratos em casa de Pauline. Não procura grandes soluções sociais. Alivia directamente, cura os infortúnios. Que outras façam como ela, e tudo irá bem. E são assim duas lições que Êvelyne, sem o saber, dá a Michel: permanecer firme na dura realidade e esforçar-se por si mesma, sem buscar trabalhos tão desmedidos que a própria amplidão desculpasse aos olhos da gente a nossa impotência e o nosso desânimo.

O ferro-velho Daudenaerde tem um começo de tuberculose. Michel trata-o durante três meses. O homem principiava a melhorar quando, bruscamente, se aborrece, achando muito demorada a cura, e troca Michel pelo curandeiro Breuil. A filha dos Buccinali também adquire melhor aspecto quando os pais, deixando Michel, recorrem aos serviços de Seteuil. Este dá mais espectáculo, com os seus remédios e injecções; vê-se que se interessa! Igualmente a senhora Orlan, que ao médico novo chegara a confessar as taras da família, acaba por o abandonar depois de ter um filho curado... e procura outro facultativo. Quando as pessoas nos revelaram os seus defeitos, nos descreveram as suas misérias físicas e morais, é certo que se tornam nossas inimigas, Odeiam-nos.

A mulher do salsicheiro Verval adoece de repente. Tem quarenta anos. Suspensão das regras, vómitos. Gravidez provável. Surpresa, consternação.

- E então, senhor doutor? Que se há-de fazer? Michel finge que não entende.

- Minha senhora, creio que daqui a seis meses...

- Não pense nisso! Na minha idade? E a minha filha, que tem catorze anos? Que vai pensar a pequena?

Silêncio. Eles insistem. Michel não quer ainda perceber. Acabou-se. Não o tornarão a chamar. Se o cumprimentarem na rua, fá-lo-ão friamente. É claro que a criança dos Verval não chegará a nascer.

Alice Toutelong, viúva dum operário morto de peritonite, pretende vacinar uma filha de três anos. Os jornais, têm falado de garrotilho, e ela está assustada. E, visto que se trata duma simples picadinha... Dois dias depois da vacina volta ela a chamar Michel. A pequena não parece bem. Febre. A coisa dura vinte e quatro horas. Pernas anquilosadas. Rigidez da nuca. No fim da semana a criança está completamente paralítica. Convulsões, vómitos, perda de reflexos, pulso a 140. No décimo dia, estado de coma. A criança retoma consciência, chama duas ou três vezes pela mãe, e morre. Encefalite pós-vacínica. Durante cinco anos Michel sofrerá o remorso daquela morte. No entanto, prevenira a mãe, tentara dissuadi-la da vacina, falara de possíveis acidentes (que apesar da sua frequência ninguém se atreve a revelar) explicara que um regímen são e puro, exercício, ar do campo imunizariam a pequena. Alice Toutelong, hipnotizada por um artigo de jornal, não acreditara senão na picada maravilhosa, e desprezara o resto. Mas vá alguém convencer o povo destas coisas! É forçoso deixar-se caluniar, perder a clientela, e fechar a boca. O maior jugo da profissão é o silêncio. Em certos dias Michel reconhece, no extremo duma rua, a figura de luto de Alice Toutelong. Dá logo meia volta, evita encontrá-la, escapa-se - como se fora o verdadeiro culpado.

Templemars abandona a luta, aceita um lugar de médico nas minas duma companhia hulheira de Valenciennes. Tanto pior! Receberá na enfermaria cento e vinte doentes em cada manhã, quarenta por hora. Um minuto e meio cada doente! O tempo de lhe perguntar: «Onde é que dói?» e de indicar, entre as cento e cinquenta poções admitidas pela companhia, o xarope 74 e as pílulas 17. E depois, acabou-se! Repouso. Segurança. Dois mil francos no fim do mês, casa, luz, aquecimento, Um paraíso! Viva a medicina social! Adeus juventude, reveses, lutas, adeus profissão árdua mas apaixonante, que nos deixa morrer de fome! Adeus, medicina. Templemars vem despedir-se de Michel. Mostra-se contente, muito, muito contente - e parte de súbito, com lágrimas nos olhos.

Rosselet, numa tarde, ao fazer a última visita do dia, não se sente bem. Não diz nada, sobe a escada que conduz ao quarto do seu cliente, detém-se no patamar, comprime o peito com as duas mãos e cai de joelhos. Ali morre num minuto, no campo de batalha, combatendo até ao fim.

A sua velha companheira vende móveis e jóias, e retira-se discretamente, como tantas outras viúvas de médicos, para uma aldeia da Flandres, perto de Hazebrouck, onde ninguém a conhece. Consta que trabalha três horas por dia em casa alheia, a fim de se manter. Roy e alguns colegas enviam-lhe de tempos a tempos uma pequena quantia acompanhada dum bilhete: «Partilha de honorários», como se aquele dinheiro fosse de consultas dadas noutro tempo pelo marido, em comum com eles. Não devemos magoar as pessoas a quem auxiliamos.

Quanto a Michel, a vida não lhe correria muito mal se Êvelyne fosse mais robusta. Ela, porém, fatiga-se muito. Sente necessidade duma criada, mas não têm recursos para tanto. Ainda por cima, Éveiyne está grávida. Há mulheres que desejam filhos com uma vontade e uma coragem que os homens sensatos não chegam a compreender. Vómitos, vertigens. Dieta e cama durante uma semana inteira. Michel torna a passar uma série de dias aflitivos. Doentes em chusma, trabalho esfalfante, casa sem governo : nem refeições convenientes, nem cama feita, nem fatos escovados. Papéis por toda a parte, pratos sujos, restos de comida. Sobre as mesas e aparadores vêem-se em desordem as tigelas de infusões e de caldos da enferma. Os murganhos roem coisas em todos os cantos. Michel deita-se tarde, levanta-se três e quatro vezes por noite, dorme vestido, come batatas frias cinco dias a fio, até elas se cobrirem de bolor. Depois, Éveiyne recupera algumas forças, recomeça a alimentar-se, pode levantar-se da cama e dedicar uma hora aos trabalhos domésticos, entre duas sessões de repouso. E já é uma ressurreição na casa, essa primeira manhã em que ela, ainda pálida e cambaleante, chega à cozinha.

Alguns dias mais tarde, Michel encontra Seteuil, sempre jovial, radiante, optimista, com a sua espessa barba negra e a sua crescente calvície, que lhe vai cada vez melhor e lhe dá um ar muito douto.

- Que tal vai isso? - pergunta Seteuil. - Cansado? Estás com mau parecer. Cautela com as mulheres, ah, ah! Sabes que falaram de ti no estanco, um dia destes? Eu estava lá por acaso, e ouvi o que diziam. Arranjas uma fama deplorável, meu pobre amigo, com essas tuas histórias de trigo cru, trigo cozido, saladas e outras coisas que tais. Daudenaerde contava tudo isso rindo às gargalhadas!

- Ele agora trata-se com o Breuil.

- Que idiota! Mas, enfim, essas dietas que impões só te prejudicam. Devo-te dizer que o Lespagnel... Estavas a tratá-lo do reumatismo?

- Estava...

- Pois foi consultar-me.

- Ah!

- Que é que queres? A mulher maçou-se dos teus legumes cozidos em várias águas, etc, etc. Eu limito-me a darlhe injecções intravenosas de salicilato de sódio. Ele tem boas veias, aquilo vai num instante. É simples, fácil para mim e para o homem. Mudando de assunto, soubeste da novidade?

- Qual novidade?

- Um casamento. Sabes de quem? De teu cunhado, o Ludovic! Sim, o Vallorge! Foi um colega de Angers que me informou há pouco. E não adivinhas com quem casou? Vais ficar banzado! Com o teu antigo flirt. Sim, com Simone Heubel, a filha do professor. Um belo partido! Vallorge há-de ir longe!

Michel separa se de Seteuil e regressa a casa um pouco taciturno. A lembrança de Simone Heubel está ainda muito próxima. Recorda se bem daquela rapariga forte e bonita, do velho castelo de Pruillé, à beira do Mayenne, do extenso parque onde eles corriam juntos, com Mariette e Fabienne. Era uma existência fácil, dourada, unida e feliz que então se lhe oferecia. Luxo, dinheiro, bela carreira de professorado, eis o que ele recusara por amor de Êvelyne... Michel segue, meditabundo, pelo caminho marginado de salgueiros e entra no consultório sem passar pela cozinha. Não sabe bem porquê, mas prefere não ver Êvelyne nesse momento. E naquela mesma tarde a senhora Lavaisne vem consultar Michel, com o pretexto de vagas perturbações no lado do coração. Seteuil já prevenira Michel de que essa dama era um tanto provocante. E talvez por essa razão ele sente certo mal-estar -espécie de nó na garganta e vista toldada

- enquanto a cliente desabotoa o corpete, ao mesmo tempo que olha para o médico com modo esquisito. Michel baixa a cabeça e finge-se entretido a redigir uma receita...

É preciso esperar. Sabe muito bem que uma vez aquela mulher nua, com os seios descaídos, pele manchada de vermelho, ventre marcado pelos sulcos da cinta de elástico, com os sovacos a cheirarem a suor, a vertigem lhe passará, que nada restará, felizmente, senão o espectáculo dum pobre corpo desprovido de encantos e seduções. Mas não deixa de ser, todavia, um momento humilhante e penoso essa expectativa, essa consciência da nossa fraqueza...

Foi sem dúvida por causa disso que, naquela noite, estranhos pensamentos obsidiam Michel enquanto simula ler o jornal, depois do jantar. Seteuil, a história do estanco de tabaco, esse imbecil do Daudenaerde, aquele Lespagnel que o abandona - mais outro! - para se entregar nas mãos de Seteuil... Embora! Ser como Domberlé exige sacrifícios. é como que um suicídio... Será possível ir até ao fim, por aquela senda? E, atrás destes pensamentos, outros acodem : Vallorge e a sua carreira... Simone Heubel... O passado... O que podia ter sido... E, naquela tarde, a senhora Lavaisne... Sente-se -indignado consigo próprio, tem vergonha e, ao mesmo tempo, um obscuro e vago remorso. Serão verdadeiras as amargas palavras do pai? «O amor passa... Não se constrói a vida sobre os alicerces dum amor».

«Terei inutilizado a minha vida?», pensava Michel. «Tê-la-ei sacrificado por nada? Podia ceder à tentação, e, se o houvesse feito, retiraria todo o significado à minha existência e ao meu sacrifício por Évelyne. E estive tão perto de ceder! Mas, afinal, ter-me-ia enganado?»

E, de envolta com esta dúvida e esta angústia, já renascia a tentação, o desejo indestrutível e egoísta, sempre vencido e sempre renascente no coração do homem: salvar o que pudesse ser salvo, construir um pouco de felicidade, nflo ir mais longe no sacrifício...

«Se te enganaste, é tempo ainda... Que mal farias, no fim de contas? Diminuiria essa devoção pela tua companheira? Uma vez que lhe conserves a saúde, o bem-estar, a paz que te comprometeste a garantir... Não poderias simultaneamente fazer a tua vida, ter as tuas satisfações? Já não deste bastante? Futuro, felicidade, bens materiais? Será preciso mais? Todas as alegrias terrenas? Que mal farias se aceitasses de tempos a tempos uma breve satisfação que ela ignoraria e a que tu tens direito? Pensa no remorso que experimentarás quando já for tarde, quando já tiveres recusado tudo e tudo sacrificado inutilmente...»

- Estás aborrecido, Michel?

Michel estremece. Évelyne, que arruma a cozinha, observa-o inquieta. -Não!

- Não lês, não falas. Há qualquer novidade quanto aos Daubian?

- Vai tudo bem.

- E a pequena Francine Ray? Está pior?

- Não, aguenta-se... Porque me fazes essas perguntas?

- Por nada. Pensei... Tinha medo que... Recomeça nas suas lides. A gravidez entorpece-a,

fatíga-a. Respira com dificuldade, tem de parar de vez em quando. Não são os seus doentes que preocupam Michel. é outra coisa. O quê? O dinheiro, sempre o dinheiro. Évelyne não pode remediar isso, já muito tem feito. Mal conserva as forças necessárias para o trabalho da casa. é um fardo que torna mais pesado o fardo do marido. Contudo, fez o que pôde, naquele mês. Receberam os Roy. Era preciso arranjar outras cortinas, para a casa-de-jantar, guardanapos, uma biscoiteira. Évelyne saiu-se menos mal, pois lavou as cortinas da casa-de-jantar (substituindo-as entretanto pelas do quarto-de-dormir), disfarçou as esgarçadelas com entremeio de renda e tornou a colocá-las de molde a esconder nas dobras as partes cerzidas. De retalhos de pano tingidos de azul fez lindos guardanapos de chá, de bainhas abertas à mão. E renunciando ao par de chinelas de que tanto necessitava, comprou uma tenaz de açúcar, de metal dourado. Os Roy partiram encantados. Tudo correra bem e Michel ficou contente.

Na segunda-feira seguinte, dia do seu aniversário, Michel encontrou no prato, ao sentar-se à mesa, o livro que ambicionava... É verdade, a mulher fizera o máximo, e com que perfeição! Ele nada vira, nada adivinhara. Évelyne esperava agora que tudo corresse pelo melhor. Com certeza Michel tem outras preocupações. A criadita namenga que tencionava contratar para o próximo mês? Mas, com o nascimento da criança, aquilo tornava-se imprescindível. Tanta despesa, todavia, A culpa era dela, Évelyne. Censura-se, tem remorsos, esses remorsos que estão sempre prontos a surgir, à primeira dificuldade. «Se não tivesse casado comigo, ele seria feliz. A culpa foi minha». Acaba de enxugar os pratos, dois ao mesmo tempo, um por cima do outro, como lhe ensinaram quando era pequena. Depois empilha-os, cuidadosamente, voltando se de costas para o marido. Há instantes em que se sente o mal-estar dos que estimamos, em que se não pode deixar de dizer que talvez fosse uma felicidade, para os outros, o nosso desaparecimento.

- Então, Évelyne, não te vens deitar?

- Já vou, já vou...

Está sempre de costas, demora-se estranhamente defronte do armário.

- Anda cá - insiste Michel. -Eu?

- Sim. Vem cá.

A mulher volta-se, aproxima-se dele, constrangida, evitando encará-lo.

- Olha para mim.

Puxa-a, ergue-lhe o queixo. E observa, admirado:

- Choraste.

- Não...

- Choraste, sim.

Évelyne apoia a cabeça no peito de Michel e as lágrimas correm-lhe pela cara.

- Évelyne! Que aconteceu? Que te fizeram? Torna a sentar-se, prende-a com os joelhos.

- Estás doente? Tens algum desgosto? Não és feliz? Évelyne, responde-me. Assustas-me.

- Tenho medo - responde ela, a custo, reprimindo o choro. - Não me sinto tranquila.

- Porquê?

- Sei que tens preocupações.

- Preocupações?

- A criada... O parto... O dinheiro que vai ser preciso.

Não adivinhou! Não pressentiu nada! Aliviado, Michel exclama:

- Ora! Dinheiro! Não há-de faltar. Trabalharei. Bem vês que os clientes aparecem, que o meu nome se espalha... Conta os doentes que tive esta semana! E uma junta com Jacquinet. Julgas que não é nada, isto de ser chamado por uma família, eu, novato, ao lado dum consagrado! Com certeza que o doente ouviu dizer bem de mim. Em dez anos, quando virem que estou de posse da verdade, que as minhas curas são duradoiras, que os ponho bons sem recorrer à seringa, sem os encher de remédios, sem os martirizar... nessa altura quantos clientes não terei! Tudo correrá bem, verás, Évelyne.

Põe tanta persuasão no que diz que ele próprio começa a acreditar.

- Acabou-se, sim? Não choras mais? Já não tens receio?

- Tenho sempre...

- De quê?

- De que tu te arrependas... Se não me tivesses conhecido, se não tivesses casado comigo...

Não se ilude aquela que nos ama. Elas conhecem o nosso coração, as nossas tentações, os nossos desfalecimentos. Michel fica uns segundos silencioso, desmascarado. A mulher adivinhara. Como? E o que o envergonha é ser verdade. O coração dói-lhe ao pensar que Évelyne sofre também. Não, não irá mais longe, não a abandonará. Pelo contrário, retoma-a, aceita-a de novo, consente mais uma vez no pesado encargo que assumiu em plena mocidade, e de que não pode nem deve desfazer-se. Seja assim! Irá até ao final, renunciará a tudo. Ainda que não haja amor. Se for preciso ser feliz, mostrar-se-á feliz. Se for necessário calar-se, calar-se-á. Mentirá se convier mentir. Tudo isso, mas que ela esteja contente!

As palavras saem-lhe do coração, palavras que ele rebuscou para a consolar e que, no entanto, lhe parecem extraordinariamente sinceras e verdadeiras :

- Não tenho de que me arrepender, Évelyne. Pensa no que eu seria sem ti. Conheceria Domberlé? Havê-lo-ia compreendido? Não, sem dúvida que não. Foram precisos os teus sofrimentos, foi necessário que te dedicasse amor para chegar à verdade. Alcançar a verdade através do amor, não achas que é uma linda coisa? Demais, tu não sabes o que era a minha mocidade, não sabes de que me salvaste. Se não te encontrasse, que espécie de homem seria eu? Não acreditava em nada. Não tinha nenhum princípio, nenhuma moral. Substituíste tudo, és a minha moral, o meu dever, a minha consciência. Foi decerto para isto que te puseram no meu caminho. Para que eu tivesse um dever! Aos que não crêem, basta devotarem-se a uma criatura. Bem vês que não posso arrepender-me. Vamos, beija-me. Pensa no nosso filho que vai nascer, que nos tornará felizes. Sentes-te melhor? Olha para mim.

Évelyne sorri-lhe ainda chorosa. E diz em voz baixa:

- Muito melhor.

- Beija-me, então.

Beija-o na face, beijo em que põe toda a tristeza, ternura e gratidão que não se atreve a confessar por palavras. E pronto: afastam-se de Michel todas as tentações, todas as sombras. Já não há nele nada de impuro, apenas um sentimento singular de júbilo, algo que não é já, sem dúvida, a paixão das primeiras horas, mas antes paz, certeza de possuir a verdade. Júbilo estranho, puro, elevado, inexplicável. Dir-se-ia que, nesse momento em que ele acaba de aceitar todas as devoções e todos os sacrifícios, começa a nascer um amor novo, purificado, indestrutível, e do qual a pobre paixão humana do início não seria senão pretexto, como uma armadilha preparada ao homem para o forçar a subir mais alto.

Na semana seguinte, Michel recebeu a visita do farmacêutico Vansteger, que veio, acompanhado da mulher, trazer à consulta uma filha de quatro anos. Havia já três anos que lhe martirizavam a pequena, sem a curarem. Vansteger estava farto. Sabe Deus se este farmacêutico acreditava na medicina oficial. Alimentada com leite em pó (desvitalizado por dessecação brutal a 150 graus, acidificada desde o nascimento pelo famoso sumo de laranja que se administra hoje a todas as crianças, a petiza começara por ter enterite, para eliminar o dito sumo de laranja. Um «especialista», consultado, suprimira o leite, mas recomendara soro de leite e, é claro, frutos ácidos. Desnutrição, emagrecimento. Vansteger manda a mulher com a criança a um instituto de Chamonix. Aí, expõem a pequena ao ar livre, à neve, alimentam-na de compotas, frutos ácidos, leite desnatado. Em tal regímen, contrai uma esteomielite do maxilar superior com septicemia. Abrem os focos de supuração e encontram pus que se havia espalhado desde o maxilar até à órbita do olho direito. Vacinas, injecções, transfusão, para a qual a senhora Vansteger deu o sangue. Mas nenhuma alteração quanto à dieta. Levam para Nord uma criança quase moribunda, ameaçada, ainda por cima, de perder o olho direito. Nova operação feita pelo doutor Romagnol. Este abre, encontra o osso do maxilar literalmente necrosado e tira tudo o que pode, tendo sido obrigado a pôr a nu as meninges, pelo lado de baixo. Via-se bater o seio cavernoso da infeliz pequena. Em seguida novo regímen, igualmente tóxico: presunto, carne, peixe, tudo acompanhado de sumo de frutas. De tal maneira que, sem demora, o calcâneo principia gangrenando e a infecção da cara a recidivar. Nova e dupla intervenção, no calcanhar e na cara, a sangue-frio, pois a doente não se encontrava em estado de suportar a anestesia. Operada assim mesmo, depois de trinta minutos de luta contra dois enfermeiros robustos, a criança (que tinha então um ano) fica por três dias agonizante. Depois, apesar de tudo, recomeça a viver. Então obrigam-na a absorver carne e sumo de frutas, o que provoca outra vez supuração e abcessos e finalmente uma osteomielite do osso do braço. É preciso raspar : quarta operação. E quinta operação na cara, dois meses depois, mau grado a série de autovacinas que não serviram de nada. A todo o instante se produzem focos de supuração nas pernas, nos braços, na cara, aliviando o estado humoral mas esgotando e torturando a paciente e revelando o envenenamento e a acidificação alimentares, coisas em que ninguém pensa. Por fim Vansteger renega a medicina da Faculdade, põe na rua a enfermeira especializada que atochava a pequena com miolos, filetes de linguado e presunto, e resolve procurar Michel.

Michel prescreve um regímen sintético, sem carne, sem peixe, sem fruta. Em poucas semanas a mudança é extraordinária: cicatrização das fístulas, suspensão das supurações, desenvolvimento rápido das actividades funcionais. Dentro de meses a criança transforma-se. Vansteger traz a Michel a filha desfigurada pelas cicatrizes profundas das operações, ainda um tanto desmineralizada, mas alegre, contente, cheia de vida. O próprio médico mal pode acreditar.

Em seguida é uma procissão de doentes. Um petiz de dois anos, a quem desde a idade de cinco semanas injectam, sob pretexto duma «wassermann» fracamente positiva, arsenobenzol nas veias cefálicas, atafulhando-o ao mesmo tempo de presunto e de miolos. A dieta vegetariana progressiva restabelece a ordem em dois meses. Depois é uma rapariga intoxicada, atreita a enxaquecas, a qual, por impossibilidade de cura, tencionam submeter à operação do trépano. O especialista Holmont já lhe fez a radiografia do cérebro, para esse efeito. Enfiou-lhe na coluna vertebral uma agulha oca, por onde fez escorrer do cérebro todo o líquido que o banha, e, para substituir este, encheu aquele de ar. Isto permitiu uma fotografia esplêndida. Mas a rapariga esteve quase a enlouquecer. Seguiu-se um pequeno de seis anos, de quem tinham querido saber se a bronquite de que sofria se complicaria ou não de dilatação dos brônquios - o que aliás não devia alterar o tratamento. Duas injecções de morfina-escopolamina. Pulverização de cocaína, por mais duma vez, através dum inalador especial, até ao fundo da laringe, até à traqueia. Nesse momento, introdução, pela boca, dum tubo de metal por onde correu, nos brônquios do desgraçado, cocaína seguida de óleo iodado quente, que invadiu todo o pulmão. Gritos, sufocações, vómitos, queimadura dos tecidos moles do pulmão. O pequeno, agora candidato à tuberculose, ficou com o aspecto dum gaseado da guerra.

E todo este martírio por culpa duma ciência sintomática, que desconhece as verdadeiras causas e a unidade da doença e que trata localmente e brutalmente os males de cada um. Quantas torturas hão-de cessar na terra quando o médico, enfim, compreender! Michel sente um misto de cólera e de piedade infinita quando pensa na singeleza da verdade, de que tão poucos querem saber, e nos sofrimentos inúteis que a medicina acrescenta muita vez aos da doença. Lembra-se de Évelyne, e do filho, e das torturas que esta sabedoria lhes poupará. Revê a pequena do Vansteger, curada, e o pequeno de dois anos a quem picavam nas veias cefálicas, e todos esses inocentes que ele trata, alivia e salva diariamente. Chega então a envergonhar-se das suas negações! Suceda o que suceder, a luta pelo triunfo da verdade merece todos os sacrifícios! Ser solicitado por ela, que enorme favor já não é! Que magnífico destino! Que caridade poderá assemelhar-se a esta? «O bem que se faz aos homens é apenas transitório. As verdades que se lhes deixam são eternas. O próprio Cristo disse ter vindo à terra para «testemunhar a verdade.

Michel sente-se arrebatado por uma fé nova. Lembra-se das últimas palavras de Domberlé: v

«Até à morte combate pela verdade, e o Senhor combaterá por ti!»

Não o assustam as misérias e provações sofridas e por sofrer; quase o fazem rejubilar, sem que se saiba porquê, como se, realmente, atrás dele e a essa hora em que aceita combater até à morte pela verdade, uma grande sombra desconhecida e poderosa lhe tocasse no ombro e o impelisse para a frente. Poucos dias depois chega a resposta de Domberlé, a quem Michel escrevera. É uma dessas cartas em que o velho profeta bíblico proclama num grito a sua fé em Deus, na verdade - a sua fé imensa na Vida!

«Vai tudo bem, Michel. Você está no bom caminho na vida. Sofrer pelos outros, mostrar-lhes a senda da verdade, expiar por eles! Ver-se só, suscitar os insultos ou os risos, passar por doido! Viver dificilmente da sua profissão, deixar-se roubar por aqueles a quem se favorece, suar sangue enquanto outros prosperam, conhecer traições, negações, dúvidas, ingratidão, lágrimas e agonias! Tudo isto faz parte dos nossos mandamentos. Viver dum caldo magro, coçar as chagas, na sua cama de farrapos, com um caco, padecer sem se curar para curar os mais, ver fugir os amigos e parentes, ouvir amaldiçoar Deus - está na ordem das coisas, é a vida! Tudo isso é bom, belo, bem feito. É executar a missão da verdade. Bendito seja o nome de Deus! Ainda que Deus me destruísse, eu confiaria nele! Releia Job, Michel».

Porque será que a certas horas é um moribundo, gasto de sofrimentos e provações, besta de carga do Senhor, quem encontra ainda na sua pobreza as palavras que flagelam, galvanizam, abençoam Deus, proclamam imperecível confiança na vida, nos fazem corar dos nossos cepticismos e nos recordam que com vontade, inteligência e fé em Deus nos podemos salvar e salvar o mundo?

 

Fabienne retomara as suas funções na casa de saúde Épidauria. Sentia-se cansada, doente, incapaz de se encarregar de casos de certa gravidade; por isso solicitara que lhe dessem um serviço menos exaustivo do que o de enfermeira. Estava agora no rés do-chão, empregada na secretaria. Trabalho, sem dúvida, mais leve. Todavia, não era mínima a tarefa da parte administrativa, pois ao lado das operações e da vida médica do estabelecimento, a Épidauria equivalia a um grande hotel em plena actividade, com os seus quartos, roupa, cozinha, restaurante, pessoal, automóveis e correspondência. Mas isso tudo era apenas comércio, questões de dinheiro, e não interessava Fabienne. Demais a mais os seus próprios cuidados a absorviam por completo. Olivier Guerran voltara a Paris depois do Ano Bom, por causa da reabertura do Parlamento. Houve entre os dois uma primeira explicação bastante agreste, a propósito do futuro e das resoluções que deviam tomar. Disputaram quase, fizeram inúteis censuras recíprocas, acabaram por se envergonhar disso e separaram-se reconciliados, sem haverem decidido coisa alguma. Veriam... Convinha esperar mais um tempo... Por agora não podiam fazer nada...

Esperar! Era fácil dizer. Como homem, que é que Olivier arriscava? Fabienne, de regresso à casa de saúde, pôs-se a recordar a entrevista, e fê-lo com surda cólera, acusando-se de cobarde. Devia ter exigido uma decisão, custasse o que custasse! Faltava-lhe, sim, a coragem desde que se tratava de o fazer sofrer. Às vezes experimentava a tentação doce e terrível de não dizer nada, de não mais falar no caso, nunca mais! Que alívio se não tivesse de lhe exigir isto ou aquilo, nem de o forçar a ouvir essas queixas! Que felicidade se pudesse acabar com as querelas, com as ofensas mútuas! Havia a ameaça da criança? Pois bem, não seria sem remédio, no fim de contas. É um facto que só se impõe quando está na vontade dos pais. Ali, na Êpidauria, entregas senhoras elegantes que vinham por uma biopsia, e as raparigas ricas a quem colocavam laminarias, nessa atmosfera de corrupção mundana, aceita com tanta naturalidade, quem não se lembraria de fazer como as outras? Era tão cómodo! Tão rápido! Não seria essa ideia que Fabienne lia no olhar das suas colegas secretárias da casa de saúde?

«Àquela, pensavam, há-de chegar a sua vez, mais tarde ou mais cedo. Ausentar-se-á por dois dias, voltará mais pálida...»

Godefrin, um dos patrões, também adivinhara o estado de Fabienne. Ela bem o via com ar interrogador, mirando-a de soslaio... Por duas ou três vezes deixara escapar uma alusão à saúde da rapariga, ao seu mau semblante. Parecia preocupado. No fundo, tinha pena dela. Por sua vontade, serviria de intermediário entre Fabienne e o pai, o que não agradava à interessada.

Havia ocasiões em que se mostrava resolvida. Dizia de si para si:

«Esta semana é que tem de ser. Não posso esperar mais. Já notaram o meu estado, o meu mau aspecto A criança não deve viver. Não há-de passar de hoje ou amanhã... Que libertação, se se atrevesse a tanto! Umas horas de sofrimento, e o drama finalizaria, não se falava mais no caso! Olivier calava-se, ela também. Não fariam referência ao assunto, entender-se-iam tacitamente. Era como se jamais tivesse havido semelhante ameaça. Sim, que libertação! Ficaria apenas entre ambos, como tantas vezes acontece, uma sombra, um inocente morto, um crime, em suma. Mas quantas pessoas não vivem assim? Calam-se, eis o que fazem. É possível habituar-se a continuar a existência com um compartimento fechado, na alma, uma espécie de sala de cadáveres, como no castelo do Barba Azul, uma profundidade secreta onde se não desce nunca, por causa da infecção... Não havia tanta gente nestas condições, entre a que rodeava Fabienne?

Mas quê? Ser como todo o mundo? Esse amor em que ela acreditara, a que havia sacrificado tudo, iria agora abaixá-lo ao nível duma ligação vulgar, sem grandeza, duma dessas mancebias como ela via tantas, mesquinhas, confrangedoras, feitas de ciúmes, egoísmo, sensualidade e cansaço mútuo inconfessado? Isso causava-lhe revolta, sobressaltos de horror. Imolara tudo àquela paixão: mocidade, virtude, futuro, vida! Não se conformava com a ideia de a ver definhar, perder-se na indiferença e na vulgaridade. Recusava se a admitir que fora vã a generosidade impensada com que se entregara. Custasse o que custasse, queria salvar ainda o que fazia dessa ligação, com as suas tristezas, vergonhas e aflições, uma aventura no entanto corajosa, sincera, cheia de possibilidades de abnegação. Matar a criança seria o fim de tudo, a anulação definitiva. Sem o determinar concretamente, sem sequer o compreender com perfeita clareza, Fabienne, com todas as suas forças, agarrou-se a esta última esperança, onde de modo confuso ela pressentia que restava tudo quanto houvera de belo e de puro no seu amor.

Duas ou três vezes ainda, nas sextas feiras à noite, quando Guerran a vinha buscar à casa de saúde, Fabienne aludiu com timidez ao caso, empregando palavras discretas, como se tivesse medo. Havia nela um misto de cólera e de receio, de exaspero pelo silêncio do amante e de pavor de o aborrecer, de o atormentar. Não experimentava ele já suficiente número de cuidados e angústias? Não a entristecia já tanto o facto de o ver tão sombrio? Para quê estragar os bons momentos que ainda podiam viver juntos? Fabienne esperava sempre que ele reflectisse, que na semana seguinte lhe aparecesse resolvido a um plano completo, que fosse o primeiro a dizer:

- Ora ouve. Tratei de tudo. Vamos fazer isto...

Que alívio não ter que pensar, obedecer apenas, ’como uma criança!

Mas a verdade é que Olivier se calava. Os dias iam passando. E, lentamente, a cólera crescia outra vez em Fabienne, revolta contra a indiferença, a duplicidade, o egoísmo do macho. O homem ria-se no fundo, não era ele que trazia a criança no ventre, que sofreria as dores, que afrontaria os olhares e a vergonha. Nele o futuro não se alterava. Quem sabe se o seu projecto não era esse mesmo, esperar que decorresse o tempo, até que a decisão, a ruptura partissem de Fabienne... Certa sexta-feira, no escritório da casa de saúde, recebeu um telegrama breve de Guerran: não viria buscá-la nessa noite, voltava por três semanas a Angers, onde o chamavam os seus negócios. Fabienne, mesmo defronte das secretárias embasbacadas, rasgou furiosamente o papel. De raiva, as lágrimas rebentaram-lhe. Saiu num ímpeto, correu à tabacaria mais próxima e telefonou a Guerran.

- És tu?

- Sou - respondeu ela com voz dura.

- Alguma novidade?

- Recebi o teu telegrama...

- Ah, sim!... é uma grande maçada, não é?

Não parecia atrapalhado. A coisa não fora feita por mal. Guerran devia ter achado aquilo natural, e isso é que irritava Fabienne, cuja mão se crispava no auscultador.

- Estava com vontade de perguntar...

- O quê?

- Se achas realmente grande maçada...

- Que queres dizer?

- Quero dizer que estou farta! - declarou por fim, com uma voz que a ira tornava trémula. - Começo a perceber. Adivinho o teu jogo. E tudo isso me aborrece. Enerva-me, compreendes?

- Estás louca! Tu... Fabienne...

- Deixa-me em paz! Vais partir, não é verdade?

- Eu devia... Mas se exiges que fique...

- Exijo.

- Está bem, fico - respondeu Guerran, suspirando. Então esta noite? Como de costume?

- Esta noite, não. Imediatamente.

- Precisas falar-me?

- Preciso. Não posso esperar mais.

- Pois seja. Ao meio dia, na praça da Madeleine. Combinado. Defronte do restaurante. Até já.

Ao meio-dia, no passeio, diante dos cafés cheios de gente, Guerran passeava cá e lá, à espera de Fabienne. Chovia, chuva fininha, que envolvia Paris de frio e sombra, esfumava o vulto pesado da igreja e punha o asfalto reluzente. Pelas portas rotativas dos cafés, a multidão precipitava-se para tomar o aperitivo. Na rua deslizavam táxis, com um som de borracha molhada. Debaixo do seu impermeável azul uma florista abrigava o cestinho ainda cheio. Guerran fez-lhe sinal. Entre a névoa cinzenta e fria, desvendava o esplendor primaveril das mimosas amarelas e veludíneas como pintainhos recém-nascidos, ramos de violetas de Parma envoltos em papel prateado, cravos brancos e vermelhos, deslumbrantes. Guerran comprou um ramo de violetas. Em seguida recomeçou a passear, excitado, inquieto, consciente de que estava a chamar a atenção, assim molhado, de cabelos grisalhos e raminho de flores, defronte dos mostruários dos cafés, por onde os clientes o contemplavam enquanto iam tomando anis e vermute. Afastou-se então, atravessou a rua, chegou ao passeio da igreja e pôs-se de novo a passear.

Não havia dúvida: Fabienne supunha que ele levava tudo aquilo em brincadeira. Que se estava nas tintas, que naquela aventura desempenhava o melhor papel, o papel mais fácil. Suspirou, pensando mais uma vez no inferno em que se tornara a sua casa desde que Julienne suspeitava da verdade. E Charles, que fazia causa comum com a mãe, preocupado com o futuro, apreensivo quanto ao consultório de advogado a que se considerava com direito! Sem contar com Micheline, que também se agarrava a Julienne! E o casamento com Robert Bussy, coisa que era necessário fazer triunfar, a todo o custo, antes que rebentasse o escândalo, antes que Fabienne exigisse a solução do seu caso! Bussy não se resolvia a antecipar a data do casamento: o filho estava a acabar o serviço militar e o pai preferia não tomar ainda a deliberação definitiva. De qualquer maneira, precipitar aquela data seria avançar a hora do pagamento do dote. Quando a este, haviam chegado a acordo: oitocentos mil francos. Onde iria Guerran buscar esse capital? E recomeçava a fazer as suas contas: cento e sessenta acções da Companhia dos Cimentos de Mayenne, setenta e cinco do Banco de Crédito Industrial, um maço de fundos públicos herdados da mãe, pobre criatura que se esgotara por conseguir aquelas economias, soldo a soldo, e que acreditara na segurança dos papéis do Estado... Ao todo, uns trezentos mil francos. Junte-se a isso mais uns cem mil que ele encontraria facilmente, rebuscando as gavetas, levantando tudo quanto lhe ficara nos Bancos. Mas o resto? Hipotecar a casa de Angers? Admitamos que renderia cento e cinquenta mil. E os duzentos e cinquenta mil que faltavam? É claro que o dote se paga dentro dum prazo. Quatrocentos mil para principiar? Já não era nada mau. O resto à razão de cem mil por ano. Mas Bussy queria o dinheiro já. O notário dava ao filho seiscentos e cinquenta mil, de contado. Queria interessar o rapaz naquele negócio de terrenos, e para isso precisava de numerário. Sobretudo repugnava a Guerran ter de declarar a Bussy, - ele, advogado ilustre, deputado, ministro:

- Não vejo maneira de dotar a minha filha...

E o pior é que toda a gente, em Angers, conhecia o teor de vida de Guerran, a actividade do seu escritório forense, o dinheiro que ganhava havia já vinte anos...

«O menos que recebi num ano», pensou com amargura, «foram trezentos e cinquenta mil francos. Onde se sumiu tudo isso?»

A culpa evidentemente que era de Julienne. Dele também, um pouco... Assim é a vida, quando os casais não se entendem. A mulher devia possuir, só em jóias, os seus trezentos mil francos. Jóias, muitas delas, que nem chegara a usar. Comprava aquilo por comprar, pelo gosto de ter. E o que ela tinha guardado, em cofrezitos, sem utilidade nenhuma!

«Não vale a pena pedir-lhe que as venda. Seria capaz de se rir de mim, ainda por cima!»

Nessa altura dos seus pensamentos, Guerran estremeceu. Acabava de descobrir, entre os transeuntes, uma rapariga de cabelos pretos, dentro dum impermeável de seda cinzenta e com um chapelinho de feltro molhado.

Fabienne tinha um ar muito sério, o que Olivier logo notou, quando apertaram a mão.

- Que tal vai isso?

- Assim’, assim...

- Lembrei-me que gostavas de violetas...

A rapariga aproximou do nariz, num gesto maquinal, o raminho compacto.

- Então? Que há de novo?

- Eu é que devo fazer essa pergunta - replicou ela.

- Partes para Angers?

- Tenho de ir.

- Sem termos estabelecido nada a respeito do que nos interessa?

Guerran calou-se.

- Responde!

- Há tempo...

-Parece-te? É claro, para ti tudo corre as mil maravilhas. Não há pressa. Pelo contrário. -Oh, filha!

- Pois bem, declaro-te que estou resolvida, que não partirás, que hei-de saber já, já, o que decidiste.

Elevara o tom de voz. Houve gente que se voltou.

- Nada de cenas!- retorquiu ele, irritado. - Ou

então...

Fabienne encarou-o, em ar de desafio.

- Ou então...

- Deixo-te aqui e vou-me embora!

- Gostava de ver!

- Ah, sim?! Pois verás!

Deu meia volta, rápido, e, deixando-a estupefacta no passeio, atravessou a rua com passos furiosos. Cerrava os punhos, de cólera. Atingiu o passeio do outro lado mas, ao chegar defronte do restaurante, parou e olhou para Fabienne -que ficara imóvel, diante da igreja, fitando o chão. Os transeuntes empurravam-na, sem que ela desse por isso. Guerran sentiu então uma piedade súbita, um remorso brutal por aquela infelicidade de que ele era responsável. Não deixava de ser a sua Fabienne! A que o amara mais que tudo, que se lhe entregara com toda a sua mocidade, loucamente, magnanimamente, só para o contentar. Lembrou-se de Aix-les-Bains, de Saintonge; evocou a rapariga com quanto havia nela de beleza, de generosidade, de dedicação. E a ideia do que devia sofrer nesse momento, por sua causa, com a criança que trazia no ventre e com um futuro tenebroso diante de si, tudo por culpa dele - essa ideia, de súbito, pareceu intolerável a Guerran. Afloraram-lhe as lágrimas, que logo enxugou, à vista da multidão. E correu através da rua, chegou junto de Fabienne, que continuava imóvel, e tomou-lhe o braço.

- Fabienne! Fabienne! Minha querida! Peço-te, sejamos razoáveis. Nada de escândalos, nada de cenas diante dos outros. Vamos, segue-me. Almoçaremos, logo que estiveres mais bem disposta. Depois virás comigo a casa, explicar-nos-emos, tudo se arranjará. Anda comigo.

Obrigou-a a andar. Ela deixava-se ir, como um autómato. Entraram no restaurante, onde logo se apressaram ao seu encontro o chefe de mesa e o paquete. Guerran era freguês antigo. Fabienne insistiu em conservar o impermeável e o lenço do pescoço. Tinha frio. Prepararam-lhes a mesinha mais discreta do canto da sala, onde se não esqueceram de colocar a jarra de flores e o candeeirito eléctrico de quebra-luz cor-de-rosa.

- Tens vontade de comer? Vá, faze um esforço. Escolhe o que mais te agradar.

Ela não respondia. Estava lívida, como morta. Guerran indicou ao chefe de mesa o que preferia, ementa delicada em que havia ostras, sopa de rabo de boi, perdiz, omeleta com licor. Com o dedo, chamou o copeiro e, em voz baixa, encomendou os vinhos: Borgonha, Chablis, Beaune, conforme os pratos.

- E não se esqueça de gelar meia garrafa de champanhe.

Ele mesmo servia Fabienne, deitava-lhe o molho nas ostras.

- Vamos, minha filha! Come um pouco. Prova este vinho. Reconforta te. Estás-me a assustar, palavra de honra!

Fabienne continuava a não responder. Calada, ouvia à sua volta o rumor das conversas, o barulho dos talheres, o passo rápido dos criados sobre o tapete. Revia constantemente o instante horrível em que Guerran a abandonara no passeio, à chuva, no meio da multidão. Atrás dela o majestoso chefe de mesa vigiava o serviço. Aquela presença torturava-a. Se desatasse aos soluços, de repente, que iria pensar esse homem? A claridade do candeeiro, embora atenuada pelo quebra-luz róseo, feria-lhe a vista, fatigava-a; resolveu-se, pois, a dar volta ao interruptor. Presto, o criado levantou o prato das ostras de Marennes, a quarenta francos a dúzia, nas quais ela não havia tocado. A manga da casaca roçou o ramo de violetas, que Fabienne depusera sobre a mesa, e fê-lo cair no chão. O rapaz desculpou-se, mas o chefe chamou-o, com um sinal, e disse-lhe qualquer coisa. Continuando a servir, o criado lançava aos dois comensais, de esguelha, um olhar rancoroso.

«Detestas-me e invejas-me», pensara a rapariga. «Julgas que sou feliz».

Nos pratos, a sopa de rabo de boi fumegava. Devagar, Fabienne esmagou o ovo cozido que flutuava ali. O amarelo da gema misturou-se ao oiro do caldo. Incapaz de levar a colher à boca, continuou a movê-la sempre, lentamente. Aquilo repugnava-lhe tanto como as ostras. Guerran seguia esse movimento com os olhos.

- Vê se comes um pouco...

Por fim, ergueu a colher de prata e aproximou-a dos lábios. Então, de repente, sentiu náuseas, julgou que ia desfalecer e, levantando-se num ímpeto, foi-se embora.

- Onde vais? Onde vais?

Não o escutava. Ia já no vestíbulo, quase na porta da rua.

- Ora esta!-exclamou Guerran.-Tragam-me a conta!

- V. Ex.a já acabou?

- Sim... não... Não tem importância. Traga-me a conta depressa.

Pagou, insinuou uma nota na mão do chefe de mesa, outra na mão do copeiro (que se aproximara com ar fingidamente indiferente), deu cem soldos ao paquete, que lhe trouxera o chapéu, e saiu a toda a pressa. Uma vez na rua, desatou a correr. Alcançou Fabienne mesmo à entrada do metropolitano, agarrou-a por um braço, levou-a sem dizer palavra, meteu-se com ela num táxi e ordenou ao motorista:

- Quai aux Fleurs!

Durante o percurso não disseram nada.

Chegados ao seu destino, Guerran obrigou-a a subir à frente, até aos seus aposentos. Fabienne entrou no escritório, tirou o impermeável, o chapéu de feltro encharcado, e sentou-se. Tinha um aspecto digno de dó, com aquelas pálpebras azuladas e rosto consumido, amarelado pela gravidez. Diante daquele infortúnio, que era obra sua, Guerran sentiu-se outra vez dominado pelos remorsos - remorsos que o seu egoísmo de homem teria desconhecido se ela não lhe houvesse aparecido assim. A nossa ferocidade absolve nos dos crimes quando as consequências se nos não patenteiam aos olhos.

- Já não te percebo - disse ele com doçura. - Que te aconteceu no restaurante? Tornaste-me ridículo! Tu em geral tão razoável!

- Peço-te desculpa. Mas não podia mais. Sentia-me de mal a pior. Seria capaz de desmaiar. Deve ser da gravidez...

- Decerto.

Fabienne levantou-se, foi ao espelho do fogão, deu um jeito aos cabelos molhados e passou nas faces a borla de arminho embebida em pó cor-de-rosa. Que erro! pensava Guerran, sempre que a via polvilhar-se daquele tom róseo. Com a sua tez morena, um pó cor de ocre não destoaria tanto. Fabienne devia estar a achar-se feia, pois se mirava ao espelho com ar de cólera.

- Às vezes chego a ser horrenda! - disse com riso amargo.

Num gesto furioso, tornou a guardar a borla no saco de coiro e voltou para junto de Guerran. Os seus olhos secos pareciam despedir chamas. Guerran, meio sentado à borda da secretária, observava-a atentamente.

- Vamos! - disse ela. - Prometeste-me uma explicação.

- Uma explicação?

- Sim. Não comeces a fazer-te desentendido. Tem coragem, ao menos uma vez. Eu tenho-a, e preciso dela mais do que tu. Ainda há pouco, antes de entrarmos no restaurante, declaraste que viríamos aqui para nos explicarmos. Cá estamos. Estou à espera.

- Que queres tu saber?

- As tuas intenções.

Guerran, de olhos baixos, batia sobre a mesa a ponta dum cigarro.

- Que podemos fazer senão...

- Senão?

- Senão esperar- concluiu Guerran.

- Esperar o quê?

- O... nascimento, visto que nem tu nem eu desejaríamos...

- Não desejaríamos o quê?

Fabienne olhava-o fixamente, como se quisesse penetrar-lhe até ao fundo da alma, exigindo de Guerran a expressão integral do seu pensamento.

- Sabes a que me refiro - disse ele. A rapariga soltou uma risada.

-Sim, compreendo-te: «Não desejaríamos fazer desaparecer a criança». É esta a tua resposta completa, não é? Uma recusa que é quase uma proposta! Bem te percebo.

Guerran, de olhos baixos, continuava a bater a ponta do cigarro.

- Visto que, nesse ponto, é «não», que decidiste? insistiu Fabienne.

- Já te disse : esperar, levar-te daqui a alguns meses para um sítio sossegado... Voltarás depois do parto...

- E a criança?

- Arranja-se-lhe uma boa ama...

- E eu? -Tu?

- Sim, eu!

- Mas... não percebo... A vida continuaria... Fabienne, de pé, soltou uma risada aguda.

- Ah! Ah! A vida continuaria! Óptimo! Óptimo! Com que então foi só isso que descobriste, no teu belo egoísmo de homem! Julgas que isto vai prosseguir assim? Que depois de me perderes, de me desonrares, de eu ter um filho teu, a vida continuará, que eu serei sempre para ti uma escrava, que nada se passará, que não deixarás a tua existência tranquila, entre a tua família, sem complicações, até ao momento em que estiveres farto de mim e me abandonares? Julgas realmente que isto será assim?

Fabienne avançava para ele, quase ameaçadora. Guerran pousou a cigarreira, levantou-se, pálido, em frente dela, e fitou-a com dureza.

- Sabes que não gosto de gritos. A mulher-a-dias pode entrar dum instante para outro...

- Pouco me importa! Ao ponto a que cheguei! São essas, então, as tuas promessas? Já não te lembras de Aix-les-Bains, dos nossos passeios, do lago, de tudo o que me dizias? Eras infeliz, contavas-me que tua mulher te atormentava, que teus filhos te exploravam, sentias-te desiludido, cansado de tudo, céptico... Só havias encontrado egoísmo neste mundo. Nunca um amor desinteressado, uma ternura verdadeira. Ah, se tivesses conhecido a sinceridade, a dedicação, a concessão total... Acreditei-te. Vi-te belo e bondoso, desventurado, mais leal, mais generoso, mais digno de lástima do que o eras na realidade. Idealizei sacrificar-me por ti, pela tua felicidade, pela tua ressurreição! Para te provar que no mundo não há só Iegoísmo! E assim fiz. Lembras-te, Olivier? Lembras-te do que me disseste naquele tempo? De tudo o que me prometeste?

Guerran encolheu os ombros.

- Preferias-me a tudo! Amavas-me mais que a ninguém. Para ti, só eu existia! Por minha causa, modificara-se o teu futuro. Era uma nova primavera na tua vida. A tua filha ia-se casar, passarias ao teu filho o escritório de advogado, pedirias um lugar em Marrocos, na Tunísia, ou em qualquer embaixada no estrangeiro... Querias divorciar-te da tua mulher, desse «monstro»... E nós fundaríamos um novo lar, teríamos, ambos, uma existência de mútua devoção, de amor recíproco... E quem sabe? Talvez que um dia, como aprovação do destino, como bênção sobre a nossa aventura audaciosa, como sinal visível de que agimos bem, apesar de tudo, talvez que um dia, em nossa casa, houvesse uma criança, um filho teu e meu... Eis o que tu dizias, Olivier, Olivier!

Fabienne pôs-se a chorar.

- A culpa não é minha - murmurou Guerran, pálido.

- Não é tua?

- Somos sinceros... na ocasião. Eu não podia prever. .. Era sincero...

- Tens sinceridades sucessivas!

- Nem sempre se faz o que queríamos fazer.

- Em suma, só pensaste em ti! Perdeste-me, gozaste a minha juventude, aproveitaste-me, fui para ti um instrumento de prazer. E agora, acabou-se! Repeles-me, abandonas-me. Amaste-me por egoísmo, pensando só na tua pessoa!

- E tu, Fabienne?

- Eu?

- Sim, tu! Também já não te lembras? Essa concessão total, essa existência imolada por amor de mim, só por mim! Ah, eu só tinha encontrado egoísmo neste mundo! E tu ofertavas-me o teu amor desinteressado, abnegação absoluta, o esquecimento de ti mesma! Não te recordas? Minha pobre filha, conseguiste-o muito mal! Em quem pensas, agora, senão em ti própria? Porque pretendes arrancar-me assim aos meus, fazer-me renunciar à minha carreira, destruir meu lar, quebrar os laços que me unem aos filhos? É por mim, ou por ti? Deves concordar que eu tinha razão! No mundo só existe egoísmo. E, afinal, o amor mais belo não passa disto: o choque de dois egoísmos.

- Eu não penso em mim! Então, em quem?

-- No meu filho! Tenho um filho!

- Eu também tenho filhos!

- Filhos de vinte anos! Em idade de se casarem! Não me queiras convencer que eles precisam ainda de ti...

- O meu filho precisa. Não tem experiência bastante para trabalhar só. Sem mim, o escritório não se aguentaria dois anos. Que seria de Charles? E a minha filha tem de se casar! Se eu me divorcio, desfaz-se o casamento dela. E há a questão do dote. Tenho de arranjar oitocentos mil francos. Não é altura de iniciar um divórcio. Trata-se do futuro da minha filha. Portanto, é impossível. Recuso.

A voz tornara-se rouca, dura, quase selvática. Houve um silêncio pesado.

- Nesse caso, é «não»? Sacrificas-me?-disse Fabienne.

- Recusas-te?

- Recuso.

- E por causa dos teus filhos! Por causa deles! Vejo que os preferes a mim. Já te esqueceste do que me disseste a respeito deles? Esqueceste a tua doença, a casa de saúde? Pois eu lembro-me muito bem. O teu filho vinha visitar-te, mas só pensava no dinheiro, no futuro, nos processos, e perguntava-me no corredor: «O meu pai passou bem a noite? E que eu tenho de lhe falar dum assunto de advocacia...» Quem te esgotava as tuas últimas forças e te fazia subir a febre a cada visita? Já não te lembras do que me disseste, por mais duma vez: «Para mim, a paternidade é apenas um dever. A afeição dos filhos é proporcional à necessidade que eles têm de nós...» Sim, tinhas razão. O teu filho...

Guerran tornara a sentar-se na beira da secretária.

- Apesar de tudo, é meu filho -retorquiu, em voz surda.

- E a tua filha, que só via em todo aquele drama, na tua vida em perigo, um obstáculo ao seu casamento! Que ia visitar-te mas só pensava no noivo! Que nunca se demorava porque ele estava à espera, no pátio! Que diligenciava saber, abertamente, sem sequer ter o pudor de disfarçar, se, depois de tu morreres, o dote seria igualmente satisfeito.

- É minha filha, apesar de tudo -repetiu Guerran, em voz baixa.

Fabienne, exasperada, encolheu os ombros.

- Tua filha! Tua filha! Nem sequer tens a certeza de ser tua!

Guerran tornou-se lívido. Levantou-se e aproximou-se de Fabienne.

- O quê...? Que... dizes? - balbuciou.

- Foste tu mesmo que disseste! Guerran passou as mãos pela testa.

- Ah! Fabienne! Fabienne! - murmurou.

Foi sentar-se numa poltrona, perto da janela, e meteu a cabeça entre as mãos.

- Ah! Fabienne! Fabienne... Tu...-repetia ele, como se não pudesse dizer outra coisa.

A rapariga, assustada, envergonhada, ficou imóvel diante dele.

- A culpa foi tua - disse por fim. -Levaste-me a este extremo.

Guerran, porém, calara-se. Com a cabeça entre as mãos, chorava silenciosamente, enquanto Fabienne, especada no mesmo lugar, o olhava, aflita com o que fizera. Daria tudo para resgatar as suas palavras, e sentia-se impotente. Devia lançar-se aos pés de Guerran, suplicar, implorar o seu perdão. Mas um resto de orgulho e de cólera retinha-a ainda, apesar de tudo, na perversa alegria de se vingar até ao fim, de o ver sofrer por seu turno... Nunca julgara que pudesse existir tanto ódio naquele amor.

Estava Fabienne assim hesitante quando Guerran se endireitou, dominando a comoção.

- Pois bem - disse ele, limpando os olhos com o lenço.

- Seja como queres. Casarei contigo. Divorciar-me-ei. Amanhã vou a Angers e informarei Julienne e os filhos da minha decisão. Farei o que puder para assegurar o casamento de Micheline. Charles manter-se-á com o meu escritório... Seremos marido e mulher. Assim o quiseste. Não digas mais nada. Está resolvido. Cala-te. Vai-te embora e deixa-me sozinho. Preciso estar só. Não deves ter mais nada a pedir-me, visto que acedi... Podes estar sossegada. Vai, vai-te embora, volta para a casa de saúde... Regressarei dentro de poucos dias... Agora deixa-me. Não me digas mais nada... Até à vista, Fabienne...

Acompanhou-a até ao patamar e tornou sozinho para dentro, fechando a porta. Fabienne desceu a escada em passo maquinal, com um tumulto de pensamentos a rodopiar-lhe no cérebro. Sem mesmo saber como, encontrou-se na rua e dirigiu-se para a casa de saúde. Revivia a cena, a luta e o desenlace súbito, a vitória total, inesperada, que não lhe causara alegria nenhuma. Pelo contrário, sentia uma espécie de tristeza, a que se misturavam receio e vergonha. Tinha a impressão de se haver desempenhado duma missão terrível. A sua vitória fora, no fundo, uma vitória imoral. Apesar de todas as misérias, ódios e ridículos do lar de Guerran, era um lar que ela acabava de destruir. Fora o agente do mal, o fermento da dissolução, a destruidora. Pela dureza da luta, pelo tom selvático que Guerran mostrara ao falar dos filhos, Fabienne avaliara o poder do adversário vencido, a grandeza daquela força da família que ela tinha reduzido a pó. Sentia agora remorsos e uma vaga inquietação - primeira dúvida em face do seu próprio triunfo. Calculava tudo o que essa força vencida devia guardar de raízes subterrâneas, de vitalidade escondida e persistente; teria de lutar contra ela durante anos e anos seguidos, talvez toda a vida, e nem a sua mocidade nem o seu domínio sobre o amante seriam jamais os vencedores absolutos...

Mais do que isto ainda, algo a fazia sofrer: uma descoberta súbita, uma revelação a respeito de si mesma. Pelas palavras de Guerran, Fabienne, embora tal ideia ferisse o seu orgulho, compreendera de repente que o amara do mesmo modo das outras mulheres, e que essa aventura, esse amor em que ela julgara exceder-se, não fora, afinal, senão um amor igual a tantos outros: o choque de dois egoísmos, segundo a frase amarga de Guerran.

 

De volta a Angers, Guerran tomou as providências necessárias para obter um divórcio rápido. No decurso de algumas cenas entrecortadas de medonhas discussões, chegou finalmente, e com muito custo, a estabelecer um projecto de separação. Guerran deixaria a Julienne o uso e fruição da casa e pagar-lhe-ia uma soma periódica, cujo montante seria fixado mais tarde e lhe proporcionaria um passadio decente. Ao filho cederia o escritório de advogado e a biblioteca, e combinaria com o seu partido político a forma de este encarregar Charles dos negócios que até aí competiam ao pai. O rapaz teria também o contencioso dos bancos mais importantes da praça e os processos dos sindicatos de operários da indústria têxtil e das pedreiras de ardósia. A Guerran, muito poderoso no seio desses sindicatos, bastaria uma palavra sua para transferir a sucessão ao filho.

Faltava Micheline. Guerran chamou Bussy e disse-lhe:

- Resolvi divorciar-me. É facto irrevogável. Mas não se assuste. Como desejo que se realize o casamento-dos nossos filhos e como, por outro lado, faço empenho em que o divórcio seja decretado antes de três meses, vou-lhe propor o seguinte: anteciparemos a data do casamento; fixemo-la, por exemplo, no fim do próximo mês. O seu rapaz ainda não terá então acabado o serviço militar, mas não vejo nisso impedimento grave. Se tivesse seguido a carreira militar, deixaria por esse motivo de constituir família? Alugar-lhe-emos uma bonita casa em Boulogne, pois que o seu quartel é aí. E será nesse recanto que hão-de passar a lua de mel.

- E quanto ao divórcio?

- Requeremo-lo logo a seguir. O casamento da rapariga estará realizado, minha mulher ficará com o futuro” garantido, não haverá escândalo nenhum. Ninguém o poderá censurar por ter consentido nesse enlace. Que importa que, uma vez os nossos filhos casados, eu e minha mulher nos separemos?

- E o dote?

- Entrego quatrocentos mil francos duma vez, e o resto à razão de cem mil francos por ano, com juros de cinco por cento.

- Eu desembolso seiscentos e cinquenta mil - declarou Bussy. - O meu amigo podia fazer o mesmo.

- Não me é possível acrescentar mais um cêntimo. Disputaram algum tempo. Bussy, por duas vezes,

pegou no chapéu para se ir embora. Finalmente, Guerran prometeu mobilar o quarto de dormir e a casa de jantar dos noivos. Robert escolheria os móveis numa das lojas da especialidade mais afamadas de Angers. Estavam de acordo. A data do casamento foi fixada para o mês seguinte. Julienne escolheu advogado; instintivamente, dirigira-se ao inimigo figadal do marido, Rebat. Especialista de assuntos jurídicos de Dauret, enquanto este foi ministro, Rebat não perdoara a Guerran a afronta que dele recebera quando fora chamado à ordem por se haver metido em negócios escabrosos. Neste divórcio viu ele, num relance, uma bela oportunidade de se vingar. Prometeu a Julienne toda a sua assistência. Visto que Olivier Guerran queria o divórcio, Rebat trataria do caso a fundo! A mulher obteria sentença a seu favor e Guerran. seria obrigado a pagar-lhe a mais choruda das pensões de alimentos. Julienne tomou o advogado como seu confidente: compreendera o ódio que ele votava a Guerran e explorou essa particularidade o mais possível, estimulou o outro, envenenou-o por assim dizer. Contava-lhe tudo o que sabia e de que se lembrava, todas as palavras cruéis ouvidas da boca de Olivier, a crítica severa que o marido havia feito ao papel do seu confrade no caso de Dauret - e enfurecía-se com o facto de não ter retido mais coisas na memória, pois nessa época, já distante, o assunto parecera-lhe sem interesse. A inimizade de Rebat cresceu ainda de ponto. Guerran percebia tudo isso, adivinhava o fel que Julienne despejava no seu mandatário só pela maneira frouxa com que Rebat lhe apertava a mão no Tribunal e pelo olhar oblíquo que se esforçava por não encontrar o do adversário...

Tudo isto preenchia as horas de Guerran de cogitações, planos, visitas, discussões e lutas. Sentia-se espicaçado e reagia com violência. Como era de temperamento combativo, a ideia de resistência excitava-o, decuplicava-lhe as forças. Mas de noite, aí pela uma da manhã, acordava às vezes do primeiro sono e já não encontrava repouso. Nesses momentos dir-se-ia que se tornava mais lúcido. Havia desaparecido a febre do dia, o ardor da batalha, e ficava só ante a fria realidade. Entrevia então com terror tudo o que precisava ainda de fazer, media a gravidade do que empreendera, as ruínas que estava prestes a acumular à sua volta, o desabamento do lar, a separação dos filhos, em especial de Micheline, a mediocridade a que condenava Charles e Andrée. E, quanto a ele próprio, adeus consultório de advogado, adeus clientela! Cem mil francos anuais a pagar a Bussy, um novo lar a constituir, uma vida nova a recomeçar inteirinha, com o peso moral e material do passado ainda por liquidar! Nessas ocasiões tinha a impressão nítida, certa, absoluta, de que via claro, de que nunca se desenvencilharia das dificuldades, de que cometia uma loucura e se lançava em estúpidas aventuras sem êxito. E assim ficava acordado até amanhecer, ofegando, agitando-se, encharcado de suor e procurando imaginar o que seria o futuro. De manhã, acabavam-se as meditações, a acção recomeçava.

Soube que Fabienne regressara a Angers. Telefonou-lhe e marcou-lhe entrevista para essa tarde, junto do castelo do Rei Renato. Aí se viram um quarto de hora, sob as espessas torres de pedra cinzenta. Guerran explicou tudo, as precauções tomadas para assegurar o casamento da filha e a situação do filho, o futuro que ele esperava, e expôs as responsabilidades que teria de assumir logo que constituísse novo lar. Demonstrou como se havia de desemaranhar bem dessas dificuldades. O optimismo invadia-o à medida que tentava tranquilizar Fabienne. Mostrou-se confiante, quase alegre. A rapariga escutou-o sem dizer palavra e sem dar um único sinal de censura ou aprovação. Aquela frieza causou admiração a Guerran e melindrou-o um tanto.

Alguns dias depois, Fabienne, sem querer, foi origem duma história penosa. Passou-se esse caso na Êpidauria. Certa manhã, um tal senhor Perceloup trouxe a mulher à casa de saúde. Tratava-se dum mau sucesso com hemorragia. Godefrin, que suspeitava dum aborto provocado, não disse nada, fez a raspagem e retirou os restos da placenta. Mas, decorridos dois dias, a enferma estava com febre alta.

- Com certeza que aquela besta é que fez o aborto disse Godefrin a Fabienne. - E com isso causou uma perfuração!

Mandou chamar o sujeito e declarou-lhe:

- Acho que é necessária uma operação. Temos de abrir a barriga à senhora.

Perceloup, no entanto, recusou com energia.

- De maneira nenhuma quero essa operação - replicou. - E aconselho-o a desistir da ideia.

Antes de se ir embora, foi ter com a mulher a fim de lhe dizer que se negasse a ser operada.

- Como vê - observou Godefrin a Fabienne - foi ele o autor da proeza. Tem medo de que o descubram e prefere que ela morra.

Perceloup saíra da casa de saúde. Ao entardecer, o estado da mulher piorou.

- Estou realmente preocupado - disse Godefrin. Gostaria de falar com o marido. Chame-o cá.

Fabienne dirigiu-se ao escritório e procurou a morada de Perceloup. Este deixara apenas o número do telefone: Gutenberg 199-99. Fabienne fez a ligação.

- Está la? 199-99?

Do outro lado do fio, uma voz feminina respondeu:

- Sim. Com quem deseja falar?

- O senhor Perceloup está?

- Ainda não veio para casa.

- Pode fazer o favor de lhe dizer, logo que ele entre, que venha à casa de saúde Êpidauria?

- À casa de saúde Êpidauria

- Sim, senhora. O doutor quer falar-lhe, acerca do estado da senhora Perceloup. É urgente.

Até às onze da noite ninguém apareceu. Godefrin esperava, furioso.

- Está a brincar connosco! Devo operar ou não? Preciso que ele me autorize! Aquele bruto pouco se rala com a mulher! Telefone para lá outra vez!

Fabienne ligou de novo para o 199-99. E foi a mesma voz que lhe respondeu :

- Menina, a esposa do senhor Perceloup não se encontra nessa casa de saúde. Deve haver engano.

- Como? Pois não é do 199-99? Indicaram-me este número. Não é da casa do senhor Perceloup ?

-é.

- Pode chamá-lo ao telefone?

- Ainda não chegou.

- Então diga-lhe que telefone para cá, assim que ele chegar. Provence, 1804-22. Esperaremos até à meia-noite.

Fabienne depôs o auscultador. Começava a suspeitar de qualquer coisa. Nesse momento, apareceu Godefrin.

- Então? O caso é urgente! Uma questão de minutos...

- Escute, senhor doutor - atalhou Fabienne. - Tenho a impressão de que...

A campainha interrompeu-a.

- Enfim! - bradou Godefrin.

- Sim, é da Épidauria - respondia Fabienne ao aparelho.

- Menina - proferiu a mesma voz feminina de ainda há pouco - disse-me que o estado da senhora Perceloup se agravou?

- Sim, senhora. O marido dela já chegou?

- Não. O meu marido ainda não veio. Eu é que sou a esposa de Perceloup. Compreendo... Percebi tudo... É triste saber que se é traída ao fim de vinte anos de casada...

A voz era lenta e triste. Fabienne depôs o auscultador e ficou aparvalhada, incapaz de dizer fosse o que fosse. Aquele estúpido do Perceloup levara ali a amante e dera o número telefónico do domicílio conjugal. A empregada da casa de saúde acabara de revelar a verdade à esposa atraiçoada.

Pela uma hora da manhã, Godefrin deliberou operar. Bastou dizer-lhe que não conseguira falar com Perceloup para que a doente desse o seu consentimento. Ao abri-la, o médico encontrou, como já o esperava, o útero perfurado, assim como o intestino, em dois pontos, e o ventre cheio de pus. Teve de fazer a ablação do útero.

No dia seguinte, ao meio-dia, apareceu Perceloup, que não sabia de nada, pois não fora nessa noite a casa.

- Com que então também me enganavas a mim observou-lhe a amante.

Esta morreu três dias depois.

Perceloup achou em tudo isto um excelente pretexto para não querer saldar a conta, aliás exagerada, da casa de saúde. Declarou que não pedira aquela segunda intervenção, que Godefrin era responsável, e, finalmente, que não tinha nada de comum com a morta. O médico não o podia denunciar, estava tolhido pelo segredo profissional. Mas Godefrin possuía uma arma :

- Está bem - respondeu ele a Perceloup. - Vou requerer a autópsia. Veremos se a intervenção era ou não legítima, se houve ou não houve perfuração...

Perceloup empalideceu. Não esperava aquela da autópsia reveladora das suas manobras de abortador! Não disse mais nada, limitando-se a tirar a carteira e a assinar um cheque.

- A menina - observou mais tarde Godefrin a Fabienne

- não tem que se atormentar dessa maneira. Não foi por sua culpa que este imbecil deu o número do telefone da própria casa.

- Bem sei, bem sei, senhor doutor.

Mas continuava aflita. A ideia do lar que destruíra tornara-se-lhe uma obsessão. Ouvia sempre a voz cansada e triste da esposa idosa que, em poucas palavras, lhe confessara ao telefone o seu sofrimento. Parecia um aviso supremo que lhe viera assim, à última hora...

Em Angers, todas as manhãs, Guerran recebia montes de facturas novas. Julienne entregara-se ao frenesi da dissipação, aproveitando-se do marido até ao fim, experimentando sem dúvida arruiná-lo, de tal maneira que o divórcio lhe surgisse como uma calamidade e ele preferisse desistir. Entretanto, Guerran dava ao filho o dinheiro necessário para liquidar essas contas; mas Julienne apossava-se da soma e corria logo a fazer outras despesas. Charles não se atrevia a dizer nada. Os fornecedores voltavam a apresentar facturas e Guerran, furioso, declarava que já estavam pagas. Provavam-lhe o contrário. Estas discussões tinham efeito deplorável. Julienne, por esse tempo, recebeu uma colecção de vestidos encomendados, os quais nem chegou a usar, e casacos de peles, e jóias. Mandou pintar e forrar de papel a casa toda, de alto a baixo. O menor protesto de Guerran provocava cenas de tal ordem que ele se viu obrigado a renunciar. Contudo, não lhe era fácil ir prevenir os fornecedores nem declarar por anúncio «que não reconhecia as dívidas contraídas pela mulher!» Até ao casamento de Micheline seria forçoso salvar as aparências, evitar a todo o custo o escândalo. i Depois, depois... Que alívio! Guerran mordia o freio em silêncio, suportava tudo por amor de Micheline, a mais egoísta, a mais cruel das três, agora inteiramente do lado da mãe. Renegara- o. Longe de lhe conceder a sua compaixão ou só a indiferença, encarniçava-se em magoar o pai, em torturá-lo, em aguilhoá-lo com alusões contínuas, ao passo que proporcionava à mãe o carinho e as atenções que iam outrora para ele. Vinte anos de sacrifícios, de resignação, de infelicidade conjugal suportados por causa de Micheline; vinte anos de esforços, da ternura, de vigilância, de solicitude para a salvar e a perservar do mal, para manter a sua confiança, para a guardar pura, garantir o seu futuro e felicidade; vinte anos dessa existência, dessa concessão total a uma filha para depois, friamente, deliberadamente, no momento em que terminou todo o esforço e se lhe conseguiu assegurar uma vida feliz, no momento em que se espera poder, enfim, pensar um pouco em si mesmo, essa filha nos renegar e lançar-se nos braços da inimiga! Que pretendem, pois, de nós, os nossos filhos? Que sejamos santos?

Guerran sabia quanto Micheline era ciumenta. Vira-o já, noutros tempos, quando tivera a sua primeira ligação e se sentira forçado a abandonar a amante por causa dela. Micheline era ainda criança, não tinha a certeza de nada, mas pressentira qualquer coisa. Isso, porém, bastara. Guerran compreendera logo que, se ela soubesse, se adquirisse a certeza, Julienne se aproveitaria das circunstancias para lhe roubar a filha. Fora por causa de Micheline que ele rompera uma ligação, que renunciara a um grande amor. Sofrera bastante, pois amava essa mulher. Depois consolara-se. Procurara o esquecimento nos braços de criaturas de ocasião, quando a vida no lar se lhe tornava insuportável. Por amor de Micheline, Guerran consentira nisto: repelir toda a ternura feminina, fazer o vácuo na sua existência. Contentara-se com relações passageiras, com esses amores rápidos, vis, que se pagam a cem francos. Se Micheline soubesse, que diria ao pai? Tê-lo-ia, sem dúvida, acabrunhado com as manifestações da sua repugnância. Contudo, ela conhecia agora a vida e as exigências do ser animal, sabia que um homem não é mais que um homem. A rapariga estava já em idade de se casar, já não era criança... Que pretendia do pai? Nem o amor das meretrizes nem o amor duma mulher? Havia ocasiões em que Guerran desejava que a filha já estivesse casada, para lhe poder dizer brutalmente:

- Escolhe! Não queres que eu tenha amantes? Preferes para mim as matriculadas, as mulheres que a gente apanha na rua e a quem não se dá nada do nosso coração? O amor que me tens é então amor por ti mesma? é só em ti que pensas? Tens ciúmes do meu carinho a ponto de quereres de mim esse aviltamento, que tu conhecerias e fingirias desconhecer? Entre a prostituta que deixaria só para ti um coração cheio de manchas secretas, e a nova esposa que tomaria um pouco desse coração, conservando-o imaculado, qual preferes tu?

Depois Guerran via a filha infeliz. Adivinhava-lhe pelo aspecto as suas inquietações e tormentos, e o amor paternal impunha-se-lhe de novo. Acusava-se, torturava-se com remorsos. Afinal, se a filha lhe infligia tais crueldades, é porque gostava do pai, à sua maneira, ciumenta, egoísta, orgulhosa. No entanto, tudo isso representava ternura... Micheline retribuía o mal que ele fizera... O seu noivado era também contínuo pretexto para contusões mútuas, e tudo igualmente por culpa de Guerran... Aquele divórcio anunciado quase desfizera o projectado casamento. Por várias vezes, a propósito do dote e seu pagamento, houvera discussões humilhantes. E daí se tornara necessário que Micheline aceitasse a verdade dolorosa, a ideia de que o noivo não lhe tinha grande amor, de que a desposava por dinheiro... Uma tarde, a rapariga entrou em casa a chorar. Não disse nada ao pai, mas este, escutando à porta do quarto, ouviu o que ela contava a Andrée: Bussy, o futuro sogro, aludira com modos desabridos ao próximo divórcio de Guerran e ao dote pago em anuidades. Guerran, cheio de cólera e com pena da filha, teve por um instante a tentação doida de lhe sacrificar tudo, de renunciar ao divórcio e a Fabienne, de se limitar a breves amores duma hora para se vingar de Julienne e satisfazer a carne, e recuperar finalmente o coração triste, ingrato e ciumento de Micheline...

De dois em dois dias via-se obrigado a jantar no restaurante e a dormir num hotel. A vida em casa tornava-se pavorosa. Julienne, talvez aconselhada pelos filhos, fizera um supremo esforço para o reconquistar. As suas garridices e tentativas pueris só inspiravam a Guerran tristeza e piedade. A mulher teve com ele uma derradeira explicação. Disse ao marido que não havia necessidade de se ir embora, que, por consideração pelos filhos, pela família, pelo nome, esse divórcio não seria preciso... Guerran percebeu o que ela queria dizer e não ousava declarar abertamente : que aceitava o menage à trots. Quando Julienne compreendeu que o marido adivinhara o que significava aquela proposta, e que a recusava, a sua raiva já não conheceu limites. Daí por diante, para se livrar dela, Guerran não podia fazer outra coisa senão fugir.

De comum acordo, salvavam ainda as aparências. Continuaram os insípidos passeios domingueiros. Receberam ainda, foram por duas ou três vezes passar a noite a casa dos Heubel, dos Vallorge, compareceram no baile da Prefeitura e nos jantares de Valerie Géraudin. Foi aí que, depois dalguns meses de afastamento, Guerran tornou a ver o seu amigo. Géraudin pareceu-lhe muitíssimo envelhecido, decrépito.

De facto, Géraudin declinava a olhos vistos. Qualquer operação que se anunciasse um pouco demorada afligia-o com dias de antecedência, fazia-o pensar em todos os acidentes possíveis, provocava-lhe cólicas de colegial em vésperas de exame, tornava-o obcecado, inquieto, infeliz. Tudo isto lhe agravava o estado. Quase nem comia, bebia demasiado, fumava constantemente, embrutecia-se, em noites de insónia, a ler os jornais ou a escutar radiotelefonia; até mandara instalar uma no seu escritório, ao pé do divã. Era aí que as criadas às vezes o encontravam adormecido, junto dum aparelho que se esquecera de fechar. Agora, tinha medo de intervir e agia como fazem os cirurgiões sem talento: em vez da ablação duma úlcera, deixava-a no seu lugar sobre a parede do estômago, contentava-se com facilitar a evacuação dos alimentos ligando directamente o estômago ao intestino por meio duma gastro-enterotomia. Já não tocava num cancro do recto: limitava-se a cortar o intestino acima do cancro, ligando-o à parede do ventre por um ânus artificial; as fezes deixavam de passar pelo recto, e o cancro, menos irritado, ou se agravava mais lentamente ou deixava de evoluir. Tudo isto era honesto, lícito, mas, para um Géraudin, que decadência!

Gigon, o todo poderoso secretário da Faculdade, ia-se embora, conseguia a sua aposentação por altura da Páscoa. Com esse primo precioso, Géraudin perdia um apoio essencial. E já não podia operar diante dos estudantes, tornar pública a sua decrepitude. Resolveu, portanto, pedir a reforma de professor e largar a Faculdade no fim do ano lectivo. Deixou de aparecer nas aulas e quase nunca ia ao hospital. Ficou apenas com a Maternidade para não abandonar tudo nem morrer de tédio.

Na clínica, baixou as suas tarifas. Trabalhava agora a preços irrisórios, aceitando operações pela tabela dos Seguros Sociais. Obedecia aos médicos, sem discutir nem se revoltar perante as suas exigências. Sentia-se cansado demais para lutar. Concordava sempre com o preço e com o diagnóstico deles. Era, nas mãos dos outros, um instrumento dócil. Louis escutava às vezes conversas estranhas na antecâmara da sala das operações.

- Não vejo motivo para operarmos -- dizia Géraudin, depois de haver apalpado pela última vez a barriga do

paciente. - Não há ameaça de peritonite...

Mas o médico assistente retorquia, encolerizado:

- Então mandei-o vir cá, pus a família em reboliço, e você agora ia dizer-lhe que o doente não tem nada? Com que cara eu ficava?... Tem de operar o homem!

E Géraudin operava.

Mas nem lhe valia de nada tal submissão; já não o mandavam chamar; os médicos sérios não ousavam entregar nas suas mãos a vida dos doentes, se bem que Géraudin lhes oferecesse percentagem. Era demasiado lento. Os segundos que um operado passa sob a acção de anestesia são preciosos. E, com Géraudin, aquilo nunca mais acabava!

A enfermeira Claim aproveitava-se daquele declínio para impor o seu despotismo ao velho cirurgião e a toda a clínica. Entrara em guerra com a senhora Géraudin. Valerie, desesperada por ver aumentar o déficit, metia o nariz em tudo, verificava todas as contas. A enfermeira, furiosa, vingava-se em Géraudin, tiranizando o desventurado professor. Se ele se demorasse a chegar, de manhã, se não estivesse lá às oito horas, esperava apenas quinze minutos; em seguida a senhora Claim ordenava que fizessem os curativos. Géraudin bem podia chegar um minuto depois e pedir que lhe mostrassem a ferida dum doente: a enfermeira dizia que não, o que estava feito estava feito, não desmanchavam os pensos só por causa dele. Géraudin tinha de aguardar o dia seguinte e ver se, dessa vez, era mais pontual. Quando vinham examinar os seus doentes certos médicos de quem a enfermeira-chefe não gostava, ela fazia-os esperar meia hora, e Géraudin não se atrevia a dizer nada. Custava-lhe mudar de enfermeira, habituara-se àquela e, nas operações, atrapalhar-se-ia com a presença doutra. Era uma preocupação doentia, e a senhora Claim começava a abusar disso. De manhã, o cirurgião precipitava-se para o automóvel como um estudante que tivesse medo de chegar atrasado às aulas.

- Depressa, Louis! Vou apanhar uma descompostura da senhora Claim!

Isto era de molde a afugentar os médicos e os clientes. A derrocada principiava, e o resultado parecia vir a ser catastrófico.

Se vendesse a clínica? Esta ideia sorria a Géraudin. Mas Valerie opunha-se. Perderiam muito dinheiro.

- Ainda tiveste sorte! - declarava ela. - O que seria de ti sem o meu dinheiro, para instalares a clínica?

Ele não via agora outra coisa senão o seu Bordelais, a sua aldeia natal: a casita, uma nesga de quintal, caça, pesca, repouso, paz... Dizia a Louis:

- Na Quaresma, iremos a Bordéus.

- Foi a senhora que resolveu?

- A senhora não quer. Mas...

- Então não iremos a Bordéus - rematava Louis.

- Havemos de ir!

- Não vamos!

E não iam a Bordéus.

Acontecia-lhe pensar no filho, não no idiota, mas no outro, imaginar o que ele faria, como era, se vivia feliz, se sabia o nome do pai e que opinião teria a seu respeito. Géraudin gostaria de o procurar. Não o ousava, contudo. Valerie e a senhora Claim tinham-no sob tutela.

Tudo lhe bulia com os nervos. Irritava-o a alegria dos outros, enfurecia-se com os bailes públicos, as festas populares. Tudo se lhe afigurava loucura. No fundo, tinha inveja da boa disposição em que surpreendia as outras pessoas. Continuava a fumar, e nem tentava pôr cobro a esse vício. Louis observava-lhe:

- Faz mal, senhor doutor, em estar assim a soltar suspiros. Isso dá-lhe cabo da saúde.

- Não sabia que suspirava - respondia o patrão.

- Se continuar dessa maneira, fica neurasténico.

- A neurastenia não existe, Louis. Nós sabemos sempre a razão por que se forma a bílis...

No entanto, o notário e ele conseguiram convencer Valerie a vender a clínica. Encontraram um comprador, e chegaram a fixar 1 preço razoável. À última hora Valerie elevou as suas pretensões em mais duzentos mil francos. O candidato rompeu as negociações e o notário, desanimado, abandonou o caso.

Na maternidade, no hospital, houve queixas, que a administração apaziguou. Tinham dó de Géraudin, não queriam infligir-lhe a humilhação suprema dum despedimento. Ele, porém, sentia que se devia ir embora. Estava incapaz, por exemplo, de fazer uma cesariana até ao fim. Logo que a hemorragia se acentuava, perdia as estribeiras e punha-se a chafurdar à toa. Participou que, na Páscoa, pediria a demissão. No íntimo, perguntava se chegaria mesmo até lá.

Valerie despediu Louis. Fazia-se mister reduzir as despesas e Géraudin podia dispensar um motorista e conduzir ele próprio o carro. Em Louis perdeu Géraudin o seu último aliado, o único que o secundava na ocasião das operações, que o reconfortava, lhe restabelecia a confiança, lhe dava novas forças; o único que se atrevia a enfrentar a senhora Claim, a falar mais alto do que ela, e a pôr entraves às fantasias de Valerie. Esse homem do povo, simples e brutal, fora nestes derradeiros tempos a força do patrão.

Géraudin conduzia mal o automóvel; a vista enfraquecia, os nervos fatigados não lhe obedeciam e ele pensava mais noutras coisas do que no volante. Provocou três choques sucessivos, atropelou uma velha... Daí por diante, como se receasse tomar conta do carro dentro da cidade, começou a fazer a pé o trajecto de casa à clínica, onde chegava extenuado antes ainda de haver procedido a qualquer operação.

Numa das suas últimas operações, na Êgalité, Géraudin foi vítima dum acidente. Tratava-se da vesícula biliar duma rapariga, que tinha aí um abcesso. Géraudin, para estar com a mão mais segura, descansara na véspera. A infecção referida devia-se à presença do bacilo de Elbert, micróbio da febre tifóide Era um caso grave.

Géraudin operou a mulher, rodeado pelos estudantes. Pusera a descoberto o canal colédoco e o cístico e examinava o abcesso prestes a rebentar. Aos estudantes, lembrou qual era o método mais seguro e fê-lo em frases breves, enquanto trabalhava:

-... Estando assim posto a nu, laqueia-se o cístico,

mais ou menos no ponto que vou mostrar... Corta-se. Em seguida tomam-se os vasos da vesícula... Uma pinça! Agarrou os vasos com a pinça, inclinou-se, atento, para ver onde os devia cortar. E de repente, com um estalo de fruto apodrecido, o tumor rebentou. Géraudin recebeu em cheio na cara um jacto de sangue e de pus.

Ninguém se moveu. O risco para Géraudin era terrível. Ou desinfectar-se imediatamente, ou perecer de infecção rápida. Interromper, no entanto, a operação correspondia a deixar morrer a doente. A disciplina ordenava que ninguém tomasse qualquer iniciativa, a’qual pertenceria ao cirurgião.

Este empalidecera. Endireitou-se e circunvagou um olhar perturbado. E esse velho trabalhador, naquele instante, pareceu maior, leu-se-lhe no rosto conspurcado uma curta angústia, uma resolução súbita, e logo um breve clarão de alivio e de esperança Limitou-se a pedir:

- Compressas...

Apresentaram-lhe compressas. Limpou a cara apressado, em especial os olhos, nos quais o pus se introduzira. E, sem se desinfectar, retomou o bisturi, descolou a vesícula, tirou-a sem hemorragia e acabou lindamente a operação, com tanta perícia como jamais se lhe conhecera nos belos tempos da mocidade. Levaram a mulher, que estava salva. Os estudantes cercaram o mestre, apertaram-lhe a mão, trouxeram-lhe anti-sépticos. No meio deste entusiasmo e desta ansiedade, Géraudin, pálido, perguntava a si mesmo, num estranho misto de angústia e de esperança, se a morte o pouparia desta vez.

Poupou-o. Durante oito dias, Géraudin vigiou-se. Nada. Ao fim de dez dias compreendeu que resistira à infecção. A grandeza de morrer como mártir parece que lhe era, decididamente, recusada.

Guerran foi visitar o seu velho amigo num domingo de manhã. Encontrou Géraudin na garagem, estendido debaixo do carro, a arranjar o comando dos travões, cujo copo de lubrificação entupido não deixava passar a massa. Por fim saiu debaixo do estribo, todo emporcalhado, com as mãos oleosas, a cara sulcada de óleo, e peticego por haver partido os óculos de encontro ao veio de transmissão.

Foi talvez esta última humilhação de ter sido surpreendido em tal estado que o decidiu de vez. Logo que Guerran partiu, Géraudin atirou para longe de si a bomba Técalémit e a caixa da massa lubrificante, e entrou em casa. Valerie acabava de se preparar, pois deviam ir, por quatro dias, a La Baule.

- Arranja-te como puderes - declarou ele. - Eu é que não vou. Foi a última vez da minha vida que pus as mãos nesse maldito carro.

Discutiram durante uma hora. Valerie teve de chamar um automóvel de praça, que a levou a ela e às criadas.

Géraudin passou a noite só. Na segunda-feira não comeu nada de manhã, limitando-se ao seu «veneno» na Êgalité, e seguiu logo para La Baule no carro finalmente consertado. Guiou-o mal, teve um percalço e só chegou à noite, cansadíssimo. Perguntou pela mulher, não se sabe para quê. Talvez esperasse dela ainda qualquer coisa, compaixão, palavras de ternura, algo, enfim, que o reconciliasse com a vida. As criadas informaram-no de que a senhora fora jogar ao «bridge» a casa de Miss Jennison, como de costume.

- Está bem - disse Géraudin.

Ficou aquela noite ao lado do filho idiota. Demorou-se até tarde, falando-lhe, tentando fazer-se compreender. Mas Henri era incapaz de compreender fosse o que fosse. Pelas onze horas, a aia, Miss Dorothy, veio buscar o rapaz para o meter na cama. Como sempre, deu-lhe um bocado de chocolate, que ele mastigou com delícia.

- Parece feliz - notou o pai.

- É feliz - confirmou a inglesa.

Géraudin contemplou o filho um momento, e suspirou.

- Tem razão, é feliz, e, pensando bem, não precisa de mim. Absolutamente nada, não é verdade, Miss?

Só muito tempo depois é que ela se recordou destas palavras e do seu significado. Que dever, que obrigação, que pretexto de apego à existência viera Géraudin, no seu desespero, procurar junto do filho, sem que os tivesse encontrado?

Miss Dorothy levou Henri. Géraudin voltou ao seu quarto, onde ouviu telefonia até às duas da manhã. No dia seguinte desceu tarde ao jardim, preparou o carro e perguntou se a mulher dormia ainda. Não dormia, mas mandou dizer que estava fatigada. O marido foi-se embora sem a ter visto.

Quatro dias depois, no sábado de manhã, ao chegar à Faculdade, Doutreval soube que Gigon lhe queria falar.

- Veio de carro? Leve-me então ao comissariado. Estamos sem notícias de Géraudin. Telefonei à mulher e à senhora Claim. Nada sabem. A mulher pediu-me que o procurasse.

O comissário de polícia e dois guardas acompanharam Doutreval e Gigon até ao palacete dos Géraudin. Tocaram muito tempo, sem que ninguém aparecesse. A casa estava fechada e parecia deserta.

Um dos polícias trouxe um serralheiro. Forçada a porta, todos penetraram no vestíbulo. Mas logo se sentiram aliviados. Havia gente na casa. Do escritório vinham sons de música, um tango de ritmo lento e sincopado.

- Ele está - disse Gigon. - Ainda bem!

- Géraudin! - chamou Doutreval. - Ó Géraudin! Apesar da perna claudicante, foi ele o primeiro a chegar

ao escritório. Géraudin estava lá, deitado no sofá, morto havia três dias! Ao lado, sobre a mesita, viam-se dois tubos de gardenal vazios, uma garrafa de champanhe e uma caixa de charutos aberta. O receptor trabalhava.

Trabalhava há trinta e seis horas, e abafara os derradeiros estertores da agonia. Entornara cantos, discursos, informações, concertos, danças, programas recreativos, manifestações de alegria, gargalhadas, fielmente, ininterruptamente, nos ouvidos do cadáver, no silêncio do palacete deserto. E continuava ainda, entoava música de negros, harmonia bárbara, melancólica, ingénua e primitiva, com ritmos de banjo monótono, sons claros de ferrinhos, pancadas breves em tambores, súbitos queixumes quase humanos de saxofone e o acompanhamento surdo, longínquo, triste e velado dum tanta: uma dessas melopeias selváticas em que os pretos do Novo Mundo, talvez sem o saber, puseram o sofrimento do exílio e a saudade do céu natal, e que os homens da América, e depois deles todos os homens do nosso tempo, depressa adoptaram, sem dúvida por terem encontrado aí o eco da sua própria tristeza e do seu tédio, nostalgia de qualquer coisa de que a sua alma vazia e inquieta tem a consciência obscura de haver perdido...

 

Doutreval voltou da casa de Géraudin cheio de melancolia. O triste fim do seu velho amigo, aquele suicídio de homem cansado da vida, que sabe que tudo é vão, que nada é útil, nem sequer o sofrimento, e que só deseja, no fim de tudo, morrer no embrutecimento ditoso dum narcótico e duma garrafa de champanhe, esse triste fim reconduzia Doutreval aos seus próprios cuidados, a esse constante «para quê?» que dia a dia o obcecava mais no meio do trabalho. «No fim de contas», pensava ele, «Géraudin foi lógico, mais lógico do que eu».

A luta ia-se tornando cada vez mais árdua. Havia um ano que em Marrocos, num manicómio de indígenas, se ensaiava a curarização. E, na imprensa marroquina, elevara-se um coro de protestos; os primeiros resultados tinham sido desastrosos. A Paris chegavam recriminações violentas. Certo deputado já se propunha fazer uma interpelação sobre o assunto. O Ministro da Saúde Pública, inquieto, transferira para mais tarde a inauguração do Centro, que estava finalmente concluído e que devia abrir daí a um mês em Angers. Mandaram fazer inquéritos em Rabat e Casabranca, pediram a Doutreval esclarecimentos complementares. Na administração local, o grupo dos adversários de Guerran aproveitava-se disso para suspender, até nova ordem, a subvenção prometida. Doutreval achava necessário obter novamente a intervenção de Guerran. Só ele podia salvar o Centro e garantir a abertura. Que o Centro funcionasse pelo menos seis meses, e Doutreval teria tempo de corrigir os seus erros, encontrar paliativos, atenuar a brutalidade do remédio, recompor a situação. Havia ainda investigações a fazer, outros convulsivos a descobrir, experiências de doses diferentes, mais diluídas. Podia, até, ir ver o tal novo processo de convulsão pela electricidade. Isso repugnava-lhe bastante; sentia por aquele método, e pelos que o tinham inventado (concorrentes, em suma) certa hostilidade insensata que o impedira de estudar e seguir de modo conveniente essa outra terapêutica de choque. Mas ver-se-ia obrigado a estudá-la... Ou melhor ainda, convidaria os seus autores a fazer experiências no Centro... Uma coisa, no entanto, era certa: mesmo com os seus inconvenientes, o método de curarização tinha valor. Apresentava grandes perigos, realmente, mas era razão para o abandonar por completo? Que seria da medicina, das vacinas, dos soros, das injecções intravenosas, dos pneumas e dos cortes de costelas, da anestesia, das ráquis, da malarioterapia e mil coisas semelhantes, se não aceitassem uma percentagem de riscos? Baixar essa percentagem, eis o que se tornava necessário. E, para isso, era preciso que Doutreval pudesse trabalhar à vontade, com sossego, que houvesse um centro, o «Centro de Curarização». Talvez esta designação fosse um pouco prematura, demasiadamente ambiciosa. «Centro de Investigações de Convulsoterapia» seria mais modesto e mais acertado. «Investigações»... Isto permitia erros, retoques, apelos aos confrades, aos investigadores, à tal electro-convulsão... Sim, mas antes de baptizar o centro era preciso fundá-lo. E, para tal, só Guerran...

Entre estas demonstrações de resistência, havia sobretudo um artigo que irritava Doutreval e lhe vinha sempre à memória como uma das piores recordações. Era um estudo publicado no Galeno. A propósito da obra de Doutreval e dos seus trabalhos em Saint-Clément, criticavam não só os resultados como, principalmente, os métodos. O autor do artigo observava que tem limites o direito de se fazerem experiências em seres humanos. E, ainda a propósito dos ensaios de Doutreval, citava o Compêndio de Medicina Católica, de Henri Bon, página 606:

«Ficamos estupefactos ao ver com que candura e inconsciência tantos cientistas se entregam a experiências perigosas e até mortais. O doutor Bongrand, na sua tese A Experiência nos Seres Humanos (Bordéus, 1904-05) assinala 109 grupos de inoculações de doenças praticadas em milhares de indivíduos: sarna, varíola, escarlatina, sífilis, blenorragia, cancro mole, cólera, febre amarela, peste, paludismo, lepra, vermes intestinais, desinteria, cancro, carbúnculo, difteria, febre puerperal, gangrena, tuberculose, tifo, etc., etc. Daí resultaram numerosos casos de morte. Ora tais inoculações foram muitas vezes feitas por criaturas de grande valor, o que prova que a moral se aprende, como a ciência, e que esta não confere aquela nem a dispensa... Notemos de passagem que alguns desses experimentadores foram chamados ao tribunal e condenados».

O autor, depois daquela citação, concluía declarando que as experiências do professor Doutreval eram das que excedem os direitos do médico na pessoa do doente.

Doutreval releu várias vezes o artigo, sempre cheio de cólera. Por fim, deitou-o no cesto dos papéis, encolheu os ombros e resolveu não pensar mais no caso. Este espírito tão lúcido, tão crítico, não se lembrava de que, sensatamente, recusara inocular em Fabienne, quando esta nascera, a primeira vacina antituberculosa (um pouco antes da B. C. G.) que alguns colegas lhe aconselhavam, alegando ser inofensiva e eficaz.

«Pode ser inofensiva!», pensara ele então. «Eu é que não a experimentarei na minha filha!»

Guerran, na terça-feira seguinte, acompanhou o enterro de Géraudin, pegando numa das borlas do caixão. Quando saía do cemitério, alguém lhe tocou no braço. Era Doutreval.

- Posso levá-lo. Tenho o carro aqui perto.

- Se me faz esse favor.. . - retorquiu Guerran. - Vou para o escritório.

Doutreval e Guerran conservaram-se silenciosos durante o trajecto. Tanto um como outro se sentiam demasiadamente preocupados para poderem falar de assuntos triviais e para notarem o mutismo recíproco. Ao separar-se do advogado é que Doutreval se debruçou na portinhola e lhe disse, com mal disfarçado constrangimento:

- Ainda se demora em Angers?

- Pouco tempo. Volto quinta-feira a Paris. Ou talvez amanhã à tarde. Porquê?

- Queria conversar consigo...

- Ah!-exclamou Guerran, em voz um tanto sufocada. - Conversar comigo?

- Sim. Preciso de lhe falar.

- Ah!... Bem... Bem. E é... assunto grave?

- Sim e não. Trata-se dos meus trabalhos. Do Centro...

- Do Centro!

A face de Guerran iluminou-se com uma expressão de alívio, que passou despercebida a Doutreval.

- Pois apareça por cá! - disse ele. - Mas não esta semana, nem na semana que vem... Estarei em Paris... É pena...

- Posso ir a Paris.

- Óptimo. Previna-me de véspera, para eu estar livre. Iremos almoçar a um bom restaurante...

- Conto com o seu apoio...

- As suas ordens, meu caro amigo.

E acrescentou, quase contra-vontade, na esperança insensata de preparar o futuro, as próximas decisões :

- Não posso recusar nada... (a voz tremia-lhe um pouco)... ao pai da minha enfermeira.

- Bem me queria parecer. Muito obrigado. Farei o possível para ela me acompanhar.

Apertaram-se a mão e separaram-se, ambos satisfeitíssimos.

- Telefonaram duas vezes para cá a fim de falar com o senhor doutor -disse o secretário mal o advogado entrou no escritório. - O doutor Rebat...

- Rebat

- Pediu que o senhor doutor lhe telefonasse. Guerran passou ao seu gabinete e marcou no telefone

o número do advogado da mulher.

- Sim, meu caro colega - disse a voz abafada de Rebat

- queria falar consigo. Temos de esclarecer-pormenores, combinar certas coisas que ainda não estão definidas, respeitantes a... essa tal separação... Onde nos poderemos encontrar?

- Pode ser aqui mesmo? - propôs Guerran.

- Preferia... preferia no meu escritório. Compreende, o colega é o adversário da minha constituinte... Não está dentro da regra eu ir a sua casa,.. Em compensação, tenho o direito de o receber no meu consultório jurídico. Supõe-se que veio falar comigo por sua própria iniciativa. ..

Rebat defendia-se, queria apegar-se estritamente às normas profissionais do foro.

- Está combinado - respondeu Guerran.

O advogado de Julienne recebeu-o no seu gabinete, com um misto de excessiva delicadeza e mal disfarçado contentamento. Começara a sua vingança; levá-la-ia até ao fim.

Principiaram pelo assunto da pensão de alimentos. Guerran propôs dois mil e quinhentos francos mensais. Rebat, afectando sempre a maior amabilidade, opinou por cinco mil.

- Sessenta mil por ano!-exclamou Guerran.-E mais cem mil do dote, durante cinco anos? -Numa altura em que deixo a clientela ao meu filho...

- Mas suponho que tem as suas economias, meu caro colega...

Guerran teve de se humilhar, expor a sua situação financeira, beber o cálice até às fezes. Convieram em três mil e quinhentos francos por mês. Julienne ficaria com direito de habitar a casa, coisa em que ela fazia grande empenho. Guerran compreendeu por que motivo a mulher a mandara repintar de alto a baixo. Conselho de Rebat, sem dúvida. À mobília também lhe seria deixada, naturalmente.

- Metade dos móveis, ao menos, pertence-me!

- Que quer, prezado colega? Se está disposto a divorciar-se, tem de correr com as despesas. Não somos nós que desejamos esse divórcio.

- Litigaremos! O tribunal decidirá.

- Ora, ora, colega - volveu Rebat, sorrindo. - Não sou eu quem vai ensinar a uma sumidade do foro que esse divórcio só será decretado se a minha constituinte o ajudar com a sua boa vontade... A propósito, devo preveni-lo que lhe pedirei, antes de proposta a acção, que aceite por escrito as condições que vamos fixar.

- E se eu me recusar a isso?

- Então, em nome da senhora Guerran, contestarei o divórcio e você não o obterá. Não tem, aliás, nada a censurar à minha cliente: nenhuma carta, nenhuma prova de injúria grave...

- Não? Vinte anos de martírio quotidiano já é bastante.

- Isso não conta perante o juiz. Todos os direitos estão do lado da sua mulher. Se ela recusar o divórcio, você não o terá.

- Está bem. Virei assinar o que quiser, na véspera. Rebat, sempre sorridente, acompanhou-o até à rua.

Guerran saiu com as orelhas a escaldar, trémulo de cólera.

Rebat tinha-o bem amarrado. Sabia que Guerran queria a todo o custo o divórcio, e, conservando-o assim preso, esticava a corda o mais que podia, satisfeito com uma dessas vinganças jurídicas longa e cuidadosamente preparadas. Enfim, Guerran cedera. Podia agora considerar-se livre.

Entrou num café e telefonou a Fabienne, ansioso de lhe comunicar a novidade, de assistir à sua alegria. Marcara o número de Doutreval. Foi a rapariga quem atendeu. Reconheceu a voz e disse:

- Podes falar. Estou só.

- Minha querida, tenho uma boa notícia a dar-te. Podemo-nos encontrar esta tarde?

- Sim.

- Às cinco horas como no outro dia? Atrás do castelo?

- Está combinado, às cinco. . - Isso vai bem?

- Muito bem, Olivier. Então até logo.

O dia pareceu longo a Guerran. Às cinco menos um quarto já ele esperava, ao pé das torres maciças.

Reconheceu de longe Fabienne. Vinha com o seu impermeável cinzento, o eterno feltro a sombrear-lhe a cara, e a mala de pele de crocodilo no braço. Mais uma vez Guerran sentiu, ao vê-la tão manifestamente alheia à garridice, aquela habitual irritação, aliás passageira, que tal verificação lhe provocava. Notou ainda, quando a rapariga se aproximou, que empoara as faces muito à pressa, sem esconder de todo a amarelidão da pele e o sombrio das olheiras. E, como das outras vezes, amou-a um pouco menos naquela ocasião. Teve de se estimular, de forçar o contentamento para lhe dizer:

- Minha querida, temos tudo conseguido!

- O quê?

- Falei com Rebat esta manhã e discutimos as condições. Não foi fácil. Mas a coisa arranjou-se. A partir de hoje podemos considerar-nos livres. -Ah!

- Rebat é um patife. Obteve tudo de mim. Começaremos a nossa vida com pesados encargos, mas isso não me assusta! E a ti também não, creio eu.

- O quê?

- Os encargos, as dívidas... Certas dificuldades...

- Ah, não!

- Agora temos o direito de pensar em nós.

- Em nós?

- Só em nós! Temos de procurar um cantinho em Paris, uma casita jeitosa, lá para Auteuil ou nas imediações do parque Monceau... Comprar móveis, preparar a instalação. Quando pensas regressar a Paris?

- Não há pressa, Olivier...

- Achas que sim?

Aquela resposta não lhe agradou. Mas depois compreendeu-a melhor: para ele tudo estava resolvido, era livre. Quanto a ela, ainda não. Faltava o pior. Censurou-se intimamente do seu desagrado. E disse-lhe :

- Sem dúvida que, para ti, ainda há um obstáculo a transpor. Mas tem coragem! Não há motivo para receios. Parece-me melhor seres tu a primeira a falar... ao teu pai.

-Eu?

- Sim... Preparar o terreno... Que dizes? Fabienne não respondeu. Guerran prosseguiu :

- Podias falar discretamente da tua intenção de te casares... Explicar que encontraste alguém, um homem já de certa idade... divorciado infelizmente... mas que ocupa uma situação elevada e que te ama... Teu pai não é pessoa de preconceitos, pois não? Calculo que não se prenda com ninharias doutros tempos... Um espírito desempoeirado como o dele... E, depois de preparado o terreno, poderás dizer que se trata de mim. Nessa altura irei falar com ele. Eu me encarrego de obter a sua concordância. Não vejo dificuldade nenhuma que te deva assustar realmente. é claro que de modo nenhum falaremos do teu... do teu estado. Apressaremos o casamento, vamos logo em seguida para a Córsega, ou para as ilhas de Hyères, a criança nasce lá... Que dizes a isto? Não falas? Tens medo? Receias qualquer coisa?

- Não...

- É esquisito! Não estás com ar de quem se sente feliz! Tiveste alguma contrariedade?

- Não, Olivier, não...

- Querias outra coisa? Achas que não fiz bastante?

- Fizeste o teu dever.

- Então?

- Preciso de dizer-te...

- O quê? Fala!

- Olivier, tenho reflectido durante todo este tempo. Revi o passado, meditei em tudo, considerei tudo... Lembrei-me de Aix-les-Bains, de Paris, deSaint-Julien... Pensei na tua família, na tua mulher, nos teus filhos, em ti. Vi tudo bem visto e compreendi que... que...

- O quê? O quê?

Em voz baixa, sem o fitar, a custo ela concluiu a frase:

- Compreendi que mais valia restituir-te a liberdade. Guerran olhou-a, estupefacto, tão perturbado que

abriu a boca duas ou três vezes sem conseguir articular palavra. Fabienne cobrou alento e continuou:

- Vim aqui para isso. Para te dizer que tudo acabou, que já não quero o teu divórcio, que temos de nos separar para sempre...

- Estás doida! - bradou Guerran.

- Não. Reflecti bastante, e vi que, no fundo, fui desmedidamente orgulhosa... Julguei-me mais forte do que era... Confiei em demasia na juventude, no amor, acreditei que podia lutar contra o passado, contra a família... Comecei o combate... e senti que ficaria vencida. Não se luta contra a família. Separar-te dos filhos, do teu lar, garantir-te o esquecimento, afastar de ti, durante toda a vida, as recordações, as saudades, os remorsos... não me sinto capaz disso, nem me atrevo. Não estou bastante segura da minha força para triunfar nessa batalha.

Guerran não dizia nada. Era-lhe impossível falar. Atordoado, apoiara-se na balaustrada que segue ao comprido dos antigos fossos da fortaleza, e escutava Fabienne, olhando-a com ar de espanto. Tinha a impressão de que estava a sonhar. A rapariga calou-se e Guerran ficou ainda longo tempo sem falar. Dir-se-ia que a compreensão vinha muito devagar, que as ideias caminhavam a custo. Lentamente, surgia nele uma confusão de sentimentos tumultuosos, estranha e dolorosa mistura de estupefacção, cólera, vergonha, orgulho ferido, a que já se juntava, lá muito no fundo, qualquer coisa semelhante ao alívio. Mas, acima de tudo, dominava a violência do orgulho esbofeteado, a necessidade de magoar por seu turno.

- Sempre julguei que me tivesses amor - disse Guerran por fim, com uma risadinha;

- Porque te amo é que escolhi isto - retorquiu Fabienne, docemente.

- Nesse caso, é para salvar o nosso amor que tu me deixas?

- É a única maneira de o salvar.

Guerran levantou a cabeça e olhou para Fabienne, a fim de ver se ela falava a sério.

- Não te compreendo - disse.

E era verdade. Já não falavam a mesma língua.

-- Contudo, é tão claro! - murmurou Fabienne. - Não o sentiste por vezes, Olivier? Aquelas censuras, aquelas injúrias, aquele desejo que tínhamos de nos ofender um ao outro... Até aquelas palavras terríveis que eu te disse no outro dia, a propósito da tua filha, e cuja lembrança me faz corar de vergonha! Tudo isso, porque nos amávamos com egoísmo, porque cada qual amava por amor de si mesmo. Tinhas razão, bem o disseste uma vez: o nosso amor tornava-se igual a todos os outros... Porque nos amávamos, julguei-me no direito de exigir tudo de ti, de querer a concessão total. Ora não foi o que prometi a mim mesma quando me entreguei a ti. Nessa altura, disse comigo : «Quero vê-lo feliz, hei-de lhe provar que no mundo não existe só egoísmo...» Mas, a pouco e pouco, a gente esquece, a exaltação passa, deixamo-nos levar pela vida, pomo-nos a fazer cálculos, habituamo-nos à ideia de que temos certos direitos sobre o outro e, insensivelmente, perdemos de vista o que desejámos a princípio: a felicidade de quem amamos... E, por causa disso, a nossa aventura ia tornar-se numa história banal: o choque de dois egoísmos, como tu mesmo disseste.

- Sim - murmurou Guerran.

- Pois bem, não será essa a nossa história, Olivier! Será mais bela! Deixar-te-á uma recordação diferente. Tu, que não acreditavas em nada, acreditarás em mim. Terás tido ao menos uma vez na vida alguém que te amou por ti mesmo, que só em ti pensou.

- Fabienne!

- Podes ir-te embora sossegado. Aceito tudo.

- E a criança? Tens um filho! -exclamou Guerran com voz estrangulada.

- Deixa-me com a criança. Acabou-se tudo. É o meu destino. Podes abandonar-me sem remorsos.

- Fabienne!

- Não chores! Eu não estou triste! Repara, estou a sorrir, sinto-me contente, apesar de tudo... Tenho a certeza de que o meu quinhão é o melhor! Não deves chorar, Olivier.

Ele, porém, chorava.

- Fabienne! Fabienne!

A rapariga apoiou-se um instante no parapeito de pedra. Respirou fundo, e em seguida, depois de vasculhar na mala, estendeu a Guerran um pacote, dizendo em voz animosa:

- Aqui tens as tuas cartas. Toma-as. Fica com as minhas, como recordação. Para mim, já não têm importância, tudo acabou... Toma, leva estas cartas... Ah! Quanto custa! Adeus! Adeus! Vai-te! Vai-te embora!

Guerran olhou-a durante um momento, com o maço de cartas na mão. De súbito, brutalmente, apertou-a de encontro a si e beijou-lhe a face gelada, com um soluço. Depois repelida e afastou-se em largas passadas. Fabienne viu-o partir, estupefacta, quase inconsciente, e então foi como se um véu se rasgasse e ela visse de repente a tremenda grandeza do seu sacrifício. A sua juventude apavorou-se perante o longo caminho de trevas e solidão que se lhe abria em frente. Estendeu os braços para o amante e chamou, a chorar:

- Olivier...

Mas ele já ia muito longe e não a ouviu.

Afastava-se, rápido, na tarde crepuscular. Voltava à sua antiga existência; tinha a impressão nítida e estranha de regressar ao passado, a essa vida pesada, material, que fora a sua antes de conhecer Fabienne. Nada se modificara. Tudo se mantivera tal como noutros tempos. Ela deixara-o no mesmo ponto em que o encontrara. Simplesmente um pouco mais lúcido quanto à sua infelicidade.

Desceu das alturas da fortaleza em direcção ao Maine. Alcançou o cais, passou pelo bairro popular e sórdido aninhado sob as velhas torres. Iam-se acendendo os bicos de gás. Uma mulher em cabelo parou junto dele e murmurou qualquer coisa. Guerran passou sempre. Mas já muito no íntimo, trémula e confusa, no meio da sua dor e perturbação, despertava a ideia, vergonhosa e doce ao mesmo tempo, de que ele era livre daí para o futuro...

Afrouxou o passo e seguiu pelo cais, mais devagarinho. Na outra margem do Maine, as luzes dos escaparates e dos candeeiros de gás reflectiam-se na água sombria, convergindo para ele em longos reflexos ziguezagueantes. Guerran, quase contra-vontade, deixava-se invadir por pensamentos insidiosos. Aquele divórcio, que não chegaria a realizar-se, o apaziguamento de toda aquela desordem, o regresso à vida normal... E a cara que Rebat faria! E Charles, e Micheline... De novo Guerran analisou em si algo de semelhante a um vago alívio... Pôs-se a respirar fundo o vento tépido e húmido que soprava do Loire e encrespava o Maine. Livre... Sentia-se livre, quase fisicamente...

Apesar de tudo, sobre essa liberdade reconquistada, havia uma sombra, um peso : a solidão, uma lucidez, clara e consciente, da vaidade de tudo, até do que durante tanto tempo fora a razão da sua existência: a ternura da filha, o dever paternal. Naquela aventura, deixara no entanto alguma coisa: a sua ignorância, o resto de optimismo e cegueira que o fazia crer ainda na afeição pura da filha e na possibilidade, para ele, de preencher a sua vida, dedicando-se a Micheline. Agora, até isso lhe aparecia como vaidade; avaliara o vazio absoluto de todas as coisas terrenas, incluindo o amor da filha. A quem se prenderia então para viver? Como conseguiria daí em diante mentir a si próprio, encontrar razões que sufocassem o remorso, esquecer a lembrança já aguda, já intolerável de Fabienne, daquela existência juvenil que ele espezinhara?

Sabia, ou julgava saber, o que é o remorso: o resultado duma acção má cometida sem precauções, sem artifícios que a mascarem e a justifiquem a nossos olhos. Com todas as forças, Guerran procurava desculpar-se: fora Fabienne quem quisera a separação! Se ela não tivesse agido como tola e orgulhosa... Mas eram inúteis os esforços de justificação. Olivier Guerran revia-a, franzina, perdida no seu impermeável muito amplo, com o rosto macilento mal empoado, olheirenta, entregando com ar desesperado o maço de cartas... Neste momento daria tudo para ir ao seu encontro, para a abraçar e beijar, para acarinhara pobre rapariga, tão infeliz e tão corajosa... Pormenores que até aí o irritavam - a tez amarelada, as olheiras, a cor do pó-de-arroz, a fealdade dessa cara de mulher grávida - enterneciam-no agora, suscitavam-lhe lembranças dolorosas. E não tinha ele de suportar essa mágoa atroz toda a sua vida? Livre, sim, mas por que preço! E que faria dessa liberdade odiosa?

Fabienne, pelo menos, conservara alguma coisa: confiança, fé. Afinal, não fora tão doida como parecia, elevando o seu amor acima de todos os egoísmos. Tivera razão, esse era o único modo de salvar tal amor. Daquela aventura pouco edificante, Fabienne evadira-se purificada. Provara a Guerran que o que existe de mais sórdido na alma humana pode ser transformado em esplendor. Conseguiria daí em diante olhar para trás, se não sem mágoa, pelo menos sem remorsos, sem vergonha, com serenidade. Porque Fabienne tinha o direito de se considerar sem dívidas. Pagara tudo! Por ambos! Saíra do drama despojada e ensanguentada. Mas Guerran sentia que esse despojamento consentido equivale muitas vezes a singular riqueza. Sim, daquela aventura ela salvara alguma coisa, a sua própria dor, o seu sacrifício, o pensamento dum rasgo nobre e voluntariamente aceito. Terminara tudo aquilo de modo belo, com grandeza. A grandeza estava do seu lado. Guerran lembrou-se bruscamente, intensamente, do velho rosto triste e bondoso da senhora de Nouys, sua madrinha, e escutou na memória as palavras graves e familiares, outrora obscuras para ele, que ela sempre lhe dizia :

- Dever, sacrifício, renúncia de nós mesmos. ..

Compreendia agora! Tudo se tornara claro! De nada servia negar, tinha de confessar a si próprio que isto talvez fosse o bastante para preencher uma vida: a certeza de ter cumprido o seu dever. Sim, ficara alguma coisa a Fabienne. Por muito absurda-que tal ideia pudesse parecer, Guerran, considerando o futuro que via diante de si, já achava que Fabienne tinha razão: escolhera a parte mais bela.

E fora bem sucedida, a pobre Fabienne. Provavelmente, jamais o saberia. Sofreria nas provações futuras esta chaga incurável, esta suprema punição : a dúvida, a incerteza da utilidade do seu sacrifício. E, no entanto, sem que o soubesse, fora bem sucedida. Por áridos desertos misteriosos, por caminhos e abismos que a fariam recuar de terror se os tivesse conhecido antes, conseguira levar Guerran a prestar pela primeira vez essa obscura Pena, aquela saudade.

 

Ao chegar a casa, Fabienne sentiu-se indisposta, vomitou e teve de se deitar. Mandou dizer ao pai que estava doente. Doutreval foi vê-la ao quarto, não lhe achou nada além da febre, e voltou para o andar de baixo, um tanto inquieto. Havia já algum tempo que Fabienne parecia adoentada. Era preciso tratá-la.

No dia seguinte, cerca’das doze horas, Fabienne quis levantar-se, apesar da fadiga acabrunhadora e dum resto de febre acompanhada de dor de cabeça. Não queria de modo nenhum suscitar a mínima desconfiança ao pai.

Encontrou Doutreval na casa de jantar, beijou-o, evitando-lhe o olhar, e sentou-se à mesa em frente dele. Doutreval, preocupado, falava pouco. Tinha ao lado do talher um monte de cartas que relia de vez em quando com ar agastado. Fabienne aproveitou-se disso para, depois de comer a custo uma folha de alface e um bocadinho de omeleta, passar à criada o prato quase intacto. Só na altura da sobremesa é que Doutreval se libertou das suas reflexões. Havia nesse dia requeijão, coisa que Fabienne muito apreciava. Doutreval serviu-a dum bom quinhão, mas a filha, apesar de todos os esforços, não pôde engolir senão dois ou três bocados.

- Então que é isso? - perguntou Doutreval, observando o prato cheio. -Não te sentes melhor?

- Sinto-me. Vai devagarinho.. .

- Andas pálida, olheirenta... Já não voltarás à clínica Êpidauria, Fabienne. Acabou-se. Cansas-te, eu não quero isso. E qualquer dia iremos consultar um dos meus colegas. Deves ter necessidade dum tratamento glandular.

- Não, não é preciso! - retorquiu Fabienne. - é apenas um pouco de fadiga.

-- Nada de objecções! Ficas agora comigo, e tratas-te com todo o sossego. Achas [que estarás bem disposta no fim da semana?

- Com certeza.

- Ora vejamos. Hoje é quarta-feira. No sábado, ou mesmo na segunda-feira, poderás acompanhar-me a Paris?

- A Paris?

- Sim.

- Decerto que poderei.

- Bem. Nesse caso vou telefonar daqui a pouco a Guerran. Iremos na segunda-feira.

Fabienne tornou-se lívida.

- Pedi-lhe uma entrevista - prosseguiu Doutreval, sem notar a perturbação da filha. - Queria falar-lhe do meu Centro...

Bateu com a mão na pilha de cartas :

- Montes de aborrecimentos... Queria que ele interviesse, que agisse junto do Ministério da Saúde Pública... E gostaria que me acompanhasses ... se puderes, é claro. Tens grande influência em Guerran, ele fala-me da «sua enfermeira» sempre que nos encontramos. A tua presença ajudar-me-á.

Serviu-se dum pouco de requeijão e continuou:

- Iremos ao Ministério, almoçaremos num restaurante com Guerran. E à tarde, se tudo decorrer bem, eu e tu passearemos em Paris e oferecer-te-ei uma bonita recordação, o que tu quiseres... Está combinado?

- Pois sim - murmurou Fabienne.

Num gesto maquinal, enxugou a testa com o guardanapo. Doutreval reparou no gesto.

- Estás tão pálida! Que tens? Sentes-te mal?

- Não me sinto muito bem... O pai levantou-se, inquieto.

- Estende-te, deita-te no sofá.

-- Não vale a pena... Já passou. Empurrou o prato, tentando sorrir:

- Ponto final no requeijão...

Doutreval tornou a sentar-se, mas sem desfitar o rosto da filha,

- Temos de ir consultar Huot num destes dias - disse

ele. __ Assim que viermos de Paris. Não quero que voltes a trabalhar na casa de saúde. Arranjarei as coisas de molde a ficar livre na Páscoa e irmos passar umas férias em Aix O que eu queria era que tudo isto se resolvesse...

Relanceou a vista pelas cartas e suspirou. Seguiu-se um longo silêncio.

- Pai... - murmurou Fabienne. Doutreval, absorto, não ouviu. -Pai...

Doutreval levantou a cabeça.

- Que é, filha?

- Tem grande empenho em...

- Em quê?

- Que eu vá consigo a Paris? Doutreval puxou dum cigarro,

- Tenho, sim - respondeu, acendendo o isqueiro.- Porquê? Aborrece-te? Sentes-te muito cansada?

- Sinto-me.

- Nesse caso, espera-se mais uns dias. E, afinal, posso ir sozinho. Ficarás aqui para te tratares sossegadamente. Então, na Páscoa, raspamo-nos para Aix.

Fabienne suspirou. Doutreval puxou umas fumaças do cigarro, de novo imerso em reflexões. A grande custo, a rapariga prosseguiu:

- Se não se importasse, pai...

- O quê?

- Eu preferia... ir sozinha...

- Para Aix?

- Não quero ir a Aix.

- Podemos ir a outro sítio... Arcachon, Juan-les-Pins...

- Eu queria ir sozinha ...

Doutreval pousou o cigarro no cinzeiro e olhou para a filha.

- Que ideias são essas? Que há?

- Nada...nada...

- Onde pretendes ir?

- Não sei ainda ...

- E não queres que te acompanhe?

- Preferia... a solidão...

- Ah! É o que se chama franqueza!

- Afirmo-lhe, pai - volveu Fabienne, quase a chorar

- que preciso de estar só... Sinto que me faria bem.

- O que tu precisas é duma boa auscultação e de extractos glandulares. Vamos já amanhã consultar o doutor Huot.

- Deixe-me ir ao menos, por algum tempo, viajar,

afastar-me um pouco...

Doutreval encarou-a fixamente, duramente. Fabienne baixou a cabeça. Os olhos molharam-se-lhe. Doutreval levantou-se, aproximou-se da filha e tocou-lhe no ombro.

- Fabienne! Olha para mim.

Ela continuava sentada, de cabeça pendida, a chorar. O pai agarrou-a pelo braço e obrigou-a a pôr-se de pé.

- Que tens? O que há? Que é que me escondes?

- Nada... nada - balbuciou Fabienne. - Peço-lhe

que não me olhe assim...

- Porque choras? Qual o motivo desses caprichos? Desses sonhos de fuga? Porque não queres ir comigo a Paris? Nem a Aix? Responde!

Fabienne manteve-se calada.

- Tens algum namorico? Aqui? Em Paris? A filha não respondia.

- Para onde querias ir em viagem?

- Para qualquer sítio...

- Sozinha?

- Sim, senhor.. .

- Porquê? -- Não sei.

Doutreval sacudiu o braço de. Fabienne.

- Responde! Sou teu pai Com quem te encontravas durante todo este tempo?

- Con ninguém...

- Regnoult... Ele foi-se embora... Não é isso? Não é isso? Não são saudades do rapaz? Quem viste em Paris? De quem trataste? A quem telefonavas? `à tua amiga de colégio, ouvi eu. E a Ludovic. A Guerran, duas vezes...

- Não há nada, pai! - exclamou Fabienne. - Não há

nada

- Há qualquer coisa! E vais dizer tudo. Não se fazem cenas destas por nada. Tens uma aventura? Não? Sim?

é isso? Responde.

Fabienne baixou a cabeça, em sinal afirmativo.

- Ah Bem o sabia - volveu Doutreval. - Bem me queria parecer! E porque não me falaste antes? Não podias fazer como toda a gente? Noivar e casar como as outras? Há algum obstáculo? Dinheiro? Situação? Doença? De quem se trata, afinal? Não é de Regnoult? Porque não dizes quem é? Porque não casa ele contigo? Não quer? Ou és tu que não queres? Quem é? Respondes, ou não? Suponho que não seja homem casado...

Fabienne chorava, sentada, com a cabeça entre as mãos. Não dizia nada. Aquele silêncio assustou o pai.

- Fabienne! Não é casado, pois não?

Ela não respondia. Doutreval compreendeu que adivinhara. Ficou mudo um instante, como que atordoado. Por fim, insistiu:

- Vamos, dize quem é. A mim podes dizer. Como se

chama?

- Olivier Guerran...

Doutreval esperava um choque, mas não daquela natureza.

- Guerran... Guerran... Guerran - gaguejou ele.- Ah! Que infâmia! Sua...

Aquilo era demasiado, era horrível. No entanto, acalentou ainda uma esperança. Talvez que não houvesse nada, que fosse apenas uma quimera de rapariga...

- Há muito tempo que começaste a pensar nele?

- Sim - respondeu Fabienne em voz desfalecida.

- Dois meses? Três meses? Mais?

- Mais.

- Há quanto tempo?

- Ano e meio... Doutreval teve um sobressalto.

- Ano e meio! Mas então... foi grave? Fabienne ficou calada.

- Até onde foram?

- Até onde? - balbuciou ela.

- Sim! Longe?

- Longe...

- Muito longe? Ah, santo Deus! Quanto custa o dever de fazer semelhantes perguntas a uma filha! Responde! Sabes o que quero dizer... Chegaram a...?

Fabienne fez que sim, a chorar, com a cabeça entre as

mãos.

- Desgraçada! - murmurou Doutreval.-Desgraçada! Nunca sofrera tanto, nem sequer quando Mariette falecera.

A ideia de que um homem lhe possuíra a filha, que isso era facto consumado, que já nada havia a fazer àquela mancha irremediável, torturava-o como um ferro em brasa. Cerrou os punhos, de fúria. Compreendia agora a vingança. Olhava para Fabienne, prostrada no sofá, sacudida pelos soluços, e odiava-a profundamente. Se ela morresse nesse instante, não derramaria uma única lágrima. Ser-lhe-ia um alívio físico bater na filha, espancá-la, dar cabo dela. Conteve-se, andou alguns passos e conseguiu recuperar um pouco de serenidade.

- Vamos - disse - acabemos com isto. Foste sua amante! Sua amante! A filha de Doutreval! E agora? Que pensas fazer? Que pensam fazer, ambos?

Fabienne encolheu os ombros, acabrunhada.

- Isso não basta!- bradou ele, furioso.- Não basta fazer de Madalena arrependida, e lacrimejar! É preciso agir! Quais são as tuas ideias? E as dele? Vai divorciar-se? Casar contigo?

- Ele queria...

- Divorciar-se?

- Sim, senhor.

- E então?

- Eu é que não quis.

- Não quiseste? Porquê? Que se te meteu na cabeça? Fala, por amor de Deus!

- Rompi com ele.

Com a mão erguida, pronta a bater, Doutreval ficou imóvel, sem completar o gesto.

- Rompeste?

- É verdade.

- Nesse caso, está tudo acabado!

- Tudo.

Aquilo desarmava-o, deixava-o perplexo. Já não compreendia. Ao acaso, perguntou:

- E porque fizeste semelhante coisa?

- Por nada...

- Qual nada! Não é resposta que se dê! Porque motivo rompeste com ele? Porque não aproveitaste esse divórcio? Porque não me preveniste? Com que fim querias estar só? Hem? Fala!

- Para nada...

- Aonde querias ir sozinha? Era realmente só? Não vale a pena encolheres os ombros. Já me ocultaste tanta coisa! Exijo que respondas!

- Não sei...

- Exijo uma resposta!

- Tinha... tinha necessidade de estar só.

- Porquê? Vem cá!

Agarrou-a pelo pulso, forçou-a a levantar-se.

- Olha para mim!

Puxou-a para a janela, pegou-lhe no queixo, ergueu-lhe a cara, brutalmente, à claridade.

- Tens medo de olhar para mim? Não me pareces com bom aspecto... Esse mal-estar, essas vertigens... Ontem à noite vomitaste. Não te esquives, Fabienne!

A rapariga debatia-se, tentava fugir. O pai segurou-a com toda a força.

- Deixa ver bem essa cara! Manchas na pele... Esses olhos... Hem? Parece que adivinhei. É isso, não é verdade?

Fabienne ocultou o rosto com o braço livre.

- Ah! - murmurou ele.

Repeliu-a com violência e ela foi cair ao lado do sofá, donde se levantou com dificuldade. Se bem que fosse digna de piedade, Doutreval estava sem compaixão, sentia que talvez não resistisse ao desejo de lhe bater. Apontou-lhe o punho fechado.

- Indecente! Desavergonhada! Vai-te embora! Não te quero ver mais aqui. Irás para casa dos Droux. Proíbo-te que me escrevas, que faças seja o que for. Ficarás lá, à espera... Vai-te embora! Imediatamente! Levanta-te daí! Vai-te!

Fabienne pôs-se de pé e, lentamente, passou diante dele, ajustando em volta da cabeça as longas tranças, que se haviam desprendido. Doutreval seguia-a com o olhar, odiando-a como nunca odiara ninguém. Daria tudo para lhe bater.

Sozinho no seu quarto, Jean Doutreval desabafava, abandonava-se à sua ira. Nunca o orgulho sofrera tanto. Queimava-o como fogo a ideia de que Guerran enganara Fabienne, de que possuíra, desonrara a filha dele, Doutrevaj.. E ela aceitara! Consentira! Estava grávida! O caso era irremediável. Fizessem o que fizessem, ela nunca deixaria de ter sido amante de Guerran. Se nesse instante lhe viessem dizer: «tua filha morreu», Doutreyal não sentiria tanto desgosto.

«Amor paternal!» pensava. «Ternura paternal! Que patranha esse culto, esse fervor, essa adoração que votamos a míseros seres de carne e osso, frágeis, egoístas, vis e fracos como todos os outros! Eu finar-me-ia de pesar se Fabienne tivesse morrido ontem... E para mim ela morreu. Se fosse filha doutro, eu diria: «O pai não perdeu grande coisa...» Só quando se trata dos nossos filhos é que temos esta impressão de perda irreparável... Imbecis! Estúpidos adoradores de ídolos miseráveis!»

E Guerran? Onde estava? Que fazia? Quais as suas ideias? Que projectava? Nada, sem dúvida. Nada! Seduz-se uma rapariga pura, estraga-se-lhe a vida, dilacera-se o coração ao pai e fica-se na mesma... Um processo... Doutreval riu em voz alta. Um processo, processo regular e interminável, com todos os matadores, para saciar o ódio ardente, o furor de vingança!

Saiu. Enquanto vagueava por Angers, lembrou-se de que Jeanne Chavot, quando era ainda sua amiga, proferira em duas ou três ocasiões algumas frases veladas, certas alusões a Guerran e a Fabienne... Ela sabia, devia saber qualquer coisa! A vergonha e o furor cegavam Doutreval.

Ao entrar em casa, encontrou a criada no vestíbulo.

- O senhor sente-se doente?- Onde está a menina?

- A menina partiu para Aix, e encarregou-me de dizer ao senhor que o esperava lá,..

- Ah! sim... sim. Meta-me alguma roupa na mala, Léonie. Vou amanhã de manhã a Paris. Você tire do roupeiro o que for necessário e não entre no meu quarto. Tenho dores de cabeça e vou-me deitar.

Entrou no seu aposento e atirou-se para cima da cama. Durante horas e horas, o cérebro exacerbou-se-lhe a ponto de se sentir enlouquecer.

À uma da manhã, extenuado por fadiga nervosa, Doutreval desceu ao laboratório a fim de ir buscar gardenal. Engoliu trinta centigramas, e, nessa altura, lembrou-se de Géraudin.

Acordou tarde, enjoado, mal disposto. Levantou-se.

Uma vertigem forçou-o a deitar-se outra vez. Chamou então pela criada.

- O senhor não vai a Paris?

- Não. Estou doente. Diga ao senhor doutor Lherbier que venha cá.

Às dez horas, chegou Lherbier, que era o novo assistente de Doutreval. Trazia a correspondência, os jornais. O professor recebeu-o deitado e despediu-o logo. Não simpatizava com esse rapaz pouco inteligente e muito adulador. Regnoult também o era, mas mais subtil, mais fino... Percebia-se menos a lisonja. Porque se teria Regnoult ido embora? Saberia qualquer coisa? E quantos outros saberiam? Doutreval sentiu subir-lhe à cara uma onda de calor, um suor de vergonha e de fúria.

No correio recebido, nada de bom. Um artigo sobre a convulsoterapia, mas assinado com o nome dum amigo. Artigo de camaradagem, de complacência. Outro numa revista. Este custara três mil francos a Doutreval. Ao lado desses dois, mais quatro ou cinco, alarmantes. E cartas, pedidos de explicações, alusões à malfadada história de Marrocos...

Doutreval, brutalmente, recaía na sua preocupação, na ameaça sobre a sua obra. Pensou no Centro, na diligência que projectara e se tornara impossível... Não reflectira ainda nisso. De novo lhe subiu à cara uma onda de calor. Foi sem dúvida nesse momento que mais odiou Fabienne.

Tornara a deitar-se. As cartas e jornais haviam resvalado da cama e juncavam o tapete. Estirado, imóvel, com a face cor de cera, Doutreval parecia sossegado. No entanto, o seu espírito era só tumulto e furor.

«Ela que se vá embora! Que desapareça - bradava nele o ódio. «Estragou a minha vida! Comprometeu a obra! A obra! Acabou-se! Já não tenho filha! Ela que fique onde está I Uma obra requer vítimas. Fabienne será uma delas».

Na desumanidade e selvajaria deste sacrifício, Doutreval achou algo de grandeza antiga.

«Ela que se desenvencilhe! Terá dinheiro, um tecto, amigos, os Droux... Não estará sozinha... Não tenho de a lastimar. Foi ela que o quis».

Quanto a ele, permaneceria ali, também só, combatendo.

A obra ainda poderia ser salva. Nada de escândalos. Ninguém saberia nada. O caso não era irremediável.

Passou horas naquela excitação de espírito, deitado no leito, imóvel.

Pelas onze a criada Léonie saiu para ir às compras. Doutreval desceu ao andar de baixo, curvado, apoiando-se à bengala. Sentia o epigastro dolorido, a cabeça oca. A casa deserta tornara-se mais sonora e triste. Por toda a parte havia pó. Doutreval notou o pouco cuidado que davam a tudo aquilo desde a morte de Mariette. Léonie voltou e ele teve vergonha de se arrastar assim como um velho, naquela solidão. Regressou, pois, ao quarto.

- O senhor almoça?

- Não. Arranje-me chá de tília.

Era grande o seu desejo - obcecante e absurdo - de trabalhar, de responder às críticas, de escrever cartas; mas a febre, a fadiga, o esgotamento nervoso toldavam-lhe a vista. Bebeu uns goles da infusão, deitou-se e adormeceu.

Acordou às três horas, extenuado, com amargos de boca. Vomitou bílis. Era o dia de saída de Léonie. Ela, porém, não o queria deixar só. Doutreval convenceu-a a ir, depois de recomendar que lhe fizesse mais chá. Léonie saiu logo depois de Lherbier haver trazido o correio. Novos aborrecimentos. Nenhumas noticias de Fabienne.

«Que se desenvencilhe! Não conte comigo!»

Dominava-o o ódio mais do que nunca. Como lutar, agora que ela o abatera? Ir ao ministério? Que linda figura a sua! Crise de fígado. Tinha doença para oito dias. E com quem iria ao ministério? Quem o recomendaria? Guerran...

«Quando me lembro que tudo se resolveria se eu não estivesse ao facto daquilo! dizia Doutreval, enraivecido. E Guerran saberá alguma coisa?»

Quais seriam as intenções de Guerran?

Conhecia o estado de Fabienne, ela o dissera. Haviam-se explicado, e ele prometera divorciar-se.

«Fabienne tem esse direito! Serei capaz de exigir que se casem!»

Era uma solução, a solução possível! Doutreval magicou muito tempo nessa ideia e depois pô-la de parte. Não evitaria o escândalo, dessa forma. Sabia-se o apoio que o político concedia ao catedrático... Diriam : «Doutreval vendeu a filha».

«Descarada!» exclamou, voltando-se na cama.

Todavia, os escândalos podem-se sufocar. E, ainda que rebentem, esquecem-se a pouco e pouco. Tudo passa... E isso salvaria a situação.

«Ela não quer. Recusou o divórcio dele. E então eu? Que atitude devo tomar? Que papel me cabe? Maldita situação! Que se terá metido na cabeça da pequena? é evidente que não tencionava confessar-me nada. Queria guardar silêncio. E depois? Desembaraçar-se da criança? Escondê-la? Dá-la a uma ama? Ou... não a deixar vir ao mundo? Ela! Fabienne! Idiota que sou! Julgo a sempre rapariga assisada! Deve ter combinado a coisa... Eu não chegaria a saber... E pensar que isto é possível! Pensar que, sem esta revelação, eu podia continuar a ser feliz...»

Por um pouco, teria ignorado tudo. Bastaria uma viagem ou outro pretexto qualquer... Fabienne inventaria uma história e pronto, estava tudo resolvido. Doutreval bem podia repudiar essa ideia, a verdade é que não resistia a censurar-se de haver sido tão lúcido, de ter percebido logo a perturbação da filha. Fora preferível menos perspicácia, maior cegueira! O caso solucionar-se-ia com a máxima facilidade.

Levantou-se para vomitar bílis. Ah, aquele gardenal... Tomou o pulso. Tinha febre, pelo menos 39 graus.

«No entanto, se eu nada soubesse, tudo estaria salvo! Iria visitar Guerran, inocentemente. A coisa arranjar-se-ia...»

Envergou o roupão e tentou escrever uma carta, rever um artigo. Foi impossível. A cabeça andava-lhe à roda. Em seguida veio-lhe outra tentação:

«Escrever a Guerran...»

Guerran não sabia nada do que se passara. Ir lá? Não. Mas escrever, a pedir-lhe que interviesse no caso do Centro. .. Fazer de ignorante...

E depois?

Depois? Nada. Tudo se tornava muito simples, pelo contrário. O espírito febril de Doutreval concebia estes projectos com prodigiosa rapidez. Fabienne que fizesse o que lhe agradasse! O pai não lhe voltaria a falar. Que alívio! Com aquela criança, demais a mais, mancha tão vergonhosa para a rapariga... Mas talvez que não chegasse a nascer... Fabienne devia ter o seu plano. Sim, havia de ser isso... Ele, Doutreval, podia ter oportunidade de lhe pôr no caminho um médico, um médico complacente... Já se sabe, sem dizer quem o mandava. A rapariga ignoraria que fora o pai... e nenhum deles teria de corar, se por acaso se tornassem a ver. Aliás, continuariam separados, ela em Paris, ele em Angers. Deste modo, tudo se facilitava. Ambos se calariam muito bem. E o Centro estaria salvo, a obra resistiria...

«Ah! E vocês todos que julgavam derrotar-me!» Bebeu a infusão, já fria, sentiu náuseas e vomitou-a. Apesar de tudo, ia melhor, com menos febre. Envolveu no pescoço um lenço largo, e desceu. Não havia mais ninguém na casa, que se conservava silenciosa. Saiu ao jardim ainda desolado pelo Inverno. O abrunho bravo, outrora tosquiado em bola, tornara-se livre e lançava para o céu pálido extensos galhos espinhosos. As lâminas verdes dos primeiros lírios surgiam da terra calcada onde apodreciam folhas secas. Tudo aquilo, noutro tempo, fora tão limpo! Mas, desde que Mariette se finara, Léonie despejava, ao comprido da parede, baldes de cascas e cinzas. Doutreval não tinha tempo de se ocupar dessas coisas. A sua obra...

Sentou-se no banco, perto da janela do lado do laboratório. Estava frio, o que ele achou lhe fazia bem. Retiniu na casa a campainha do telefone. Doutreval não se mexeu, fatigado como se encontrava. Haviam de o desculpar com o excesso de trabalho... Na vida, não convém nunca ter um ar de vencido.

Pôs-se de pé e andou. Sentia-se velho. Coxeava bastante. Como aquela casa, assim deserta, era grande l Reparou que no segundo andar havia cortinas rasgadas e poeirentas. Lar de velho solitário... Encostou-se à capoeira e urinou, notando que a urina saía avermelhada. «A solidão bestializa o homem», pensou ao mesmo tempo. Adquirem-se, com o viver só, hábitos egoístas, pouco civilizados. Voltou a sentar-se e cuspiu bílis.

Ao longo da parede produziu-se rumor. Doutreval observou. Debaixo das cilindras ainda desnudas, roçando de leve as folhas secas da vinha-virgem, aproximava-se uma ave. Era Titi, o galo de Mariette. Estava agora muito velho e os rivais batiam-lhe, de maneira que Léonie o deixava à solta no quintal. Aí, a ave levava uma existência à parte, melancólica. Titi chegou-se para Doutreval, fitou o com o seu olho redondo semelhante a um botão de vidro brilhante encastoado na pele rubra, e cantou. Depois, com um pulo ainda ágil. saltou para os joelhos do homem.

No bolso do roupão Doutreval encontrou migalhas de bolacha. Deu-as a Titi, afagou-o e teve a impressão de

estar menos só.

Lembrou-se de Mariette, do tempo em que ela animava tudo, em que os cães latiam e perseguiam os gatos, em que os coelhos, as galinhas e as pombas se precipitavam atrás da dona, e em que Titi, ao vê-la chegar, se empoleirava no cimo da capoeira para a receber com os seus cantos triunfais. Recordou-se também da animação que havia naquele tempo na casa e no jardim, da alegria, da felicidade que a pouco e pouco se tinham retirado dessa moradia. Sentiu-se isolado e ressequido como uma árvore morta. Teve consciência da sua terrível solidão de velho, reduzido a alimentar um galo infeliz, a comover-se com a afeição dum animal... Avaliou a sua própria desventura. De mansinho, com uma derradeira carícia, depôs I Titi no solo, e, metendo a cabeça entre as mãos, desatou a chorar. Dir-se-ia que de repente os olhos se lhe abriam, que via mais claro. Tudo aquilo fora por sua culpa! Aquela solidão era obra sua. O orgulho fizera-o perder Michel, depois Mariette, e agora Fabienne... Discernia de súbito o abismo, e não queria acreditar que tivesse podido aceitar semelhante coisa. Via claramente o que ia fazer: imolar ao orgulho a sua única filha, sacrificar a última felicidade possível que lhe restava para tentar salvar uma obra que, ele bem via agora, não era mais que mentira. Brutalmente, arrancava o véu, despojava o pensamento da bruma acumulada pela soberba, reconhecia que se propusera obrigar a filha a fazer um aborto, pedir para o Centro o apoio do antigo amante de Fabienne e afastá-la, a ela, perdê-la, sacrificá-la. Esta verdade nua e odiosa causou-lhe terror. Sentiu que não lhe seria possível ir até aquele ponto. De súbito, irresistível, invadiu-o uma onda de ternura por Fabienne... Revíu-a a passar à sua frente, magra, abatida, segurando as tranças desfeitas... Viu-a em Aix, sozinha e desesperada, grávida... A garganta apertou-se-lhe e ele sentiu uma piedade ilinitada, um desejo intenso de estar ao pé de Fabienne, de a beijar, de a consolar, de lhe pedir perdão... Acabara-se, não iria mais longe, chegara ao limite. A paixão egoísta não o arrastaria mais para a frente... «Nada existe!» gritava-lhe a razão, furiosa. «Não há nada, não crês em nada, só tu existes, tu só! Nada conta neste mundo senão o teu desejo de domínio, a preocupação da tua pessoa! Sabes muito bem que nada existe além de ti!»

Mas eram inúteis os brados do amor-próprio e da sua vontade niilista: Doutreval não iria mais longe. Sentia-se incapaz disso. Recusava-se a avançar. Capitulava, cedia à ternura humana, à necessidade de amar, à piedade, a um instinto que dominava a razão. Não se resignava ao supremo e bárbaro sacrifício da filha. Era a destruição de toda a sua vida, de todos os seus princípios, de todas as suas afirmações; o aniquilamento da sua obra, a inutilidade de todos os holocaustos até então consentidos... Deixá-lo ser! Chegara o momento em que o orgulho, o eu, lhe exigia a imolação do último filho. Era exigir muito. Doutreval recusou-se. A tirania do eu parecia-lhe pesada, odiosa demais...

Castigo de haver extinguido no céu as luzes da esperança, de ter despojado Cristo da sua realeza, da sua coroa... No mundo sem guia e sem fé, no lugar da divindade rechaçada, eis que o eu se instala e reina como um ídolo cruel e tirânico, monstruoso ao máximo. Deus já não existe, diz o homem. Só existe, pois, o eu, o egoísmo. O eu aparamenta-se com todos os antigos atributos de Deus e revela-se infinitamente mais feroz do que o mais cruel dos deuses. Doutreval recordou-se da frase de Nietzsche: «Disfarcei-me em Deus! É mais cómodo!» É isto, exactamente. E esse eu disfarçado em Deus, revestido da túnica inconsútil e dos despojos do Deus renegado, comanda, tiraniza, martiriza, como jamais fez nenhum deus. Só existe o eu. Sacrificarás, portanto, tudo ao eu. Humanidade, pátria, amizades, família, filhos, piedade, amor, não há sacrifício que o novo senhor te não exija, até ao momento de não poderes mais, até te sentires incapaz de ir mais longe, de satisfazer o culto monstruoso, de chegar ao fim das suas cruéis exigências, de calcar o teu coração em nome do egoísmo. Então gritarás:

- Pedes-me demais!

Doutreval não compreendera esse desabafo do filho, na ocasião da ruptura: «É demais o que exige de mim». Compreendia-o agora, com desespero e remorsos.

Esmagara Michel com o seu desdém. Aplidara-o de fraco, de cobarde. Julgara-se um super-homem. Sacrificara Michel, Mariette... Fora até ao extremo do seu estoicismo cruel. Eis lhe pediam, nesse instante, que sacrificasse Fabienne. E ele, o forte, hesitava, recuava. Entrevira de repente a selvática inumanidade do seu novo ídolo. Percebia que era incapaz de o continuar a satisfazer, e verificava, pela primeira vez, esta coisa espantosa e consoladora: que muito poucos homens conseguiram viver num ateísmo total, ir até às derradeiras consequências do niilismo...

- É demais o que exiges de mim! Era agora a sua vez - ele, o implacável - de fraqueiar, de se sacrificar à ternura, à piedade...

Nietzsche... O cavalo do trem de praça... O beijo na cabeça do pobre animal de trabalho, numa rua de Turim, em véspera do ataque de loucura... Sem dúvida que o rasgo de Doutreval tinha a mesma significação. Ele bem se capacitava de que assim era. Nietzsche, quando se lançara ao pescoço do cavalo, devia ter sentido mais alguma coisa além do horror perante o drama da matéria tornada capaz de sofrimento: uma revolta, uma recusa... Da alma do semilouco de génio subira um grito semelhante ao de Michel:

- É demais o que exiges de mim!

Mesma recusa de ir até ao extremo da crueldade lógica. Rasgo igual ao dum homem que, como Doutreval, desafiara o egoísmo e, apavorado ante o abismo de imunidade que se lhe abria, recua também e se entrega a uma piedade absurda, à incompreensível piedade que, no derradeiro momento, no limiar da loucura, o salva sem dúvida para a Eternidade.

Pelos passeios do jardim triste e abandonado seguia agora um homem cabisbaixo, apoiando-se à bengala, arrastando a perna - e atrás dele um galo velho, de penas caídas... Rememorava todos os sacrifícios feitos ao ídolo, ao único e monstruoso amor, o de si próprio, e verificava quanto a sua vida fora um lamentável malogro. No fundo, não vivera senão para si mesmo. Os filhos, amara-os por amor de si. Se os educara, tinha sido para os associar à sua obra e vê-los gravitar em torno da sua pessoa. A felicidade deles sempre a considerara dependente da sua. A Michel impusera a sua concepção niilista do mundo; quisera-o mais forte ainda do que ele, Doutreval. E, quando Michel fraquejara, o pai apressara-se a expulsá-lo, sem medir o que exigia do rapaz, sem pensar que o próprio progenitor ia fraquejar também, mais tarde, diante da inumanidade da sua filosofia. A obra que preparava desejava-a para a sua glória. Decerto que também entrara nisso o desejo de salvar os homens, mas o que dominava era o sonho da celebridade, a satisfação das ambições, do orgulho. Impuro, pois, na essência, o gérmen da sua acção. E toda essa acção ficara corrompida. Fora por orgulho que se recusara a conhecer os trabalhos de certos concorrentes e se afastara dos alunos e dos assistentes cuja inteligência e cuja iniciativa o podiam afrontar. Fora para satisfazer esse orgulho que explorara Regnoult e o seu estilo elegante, a sua arte de apresentar determinado assunto; Groix e o seu ardor no trabalho, a sua imaginação e faculdades inventivas. Groix e a cicatriz... A garrafa que o atingira na cara e que se destinava ao professor... E quem tivera a ideia do curare? Groix. Pois à última hora Doutreval havia-o afastado, prescindira da sua assinatura na comunicação à Academia de Medicina. Que era isso senão um roubo? O orgulho sufocara a consciência, o senso moral, a humanidade. Houvera momentos em que, por intuição, Doutreval sentira estar em erro. Perante o espectáculo das crises provocadas pelo convulsivo, perante esses infelizes loucos tetanizados, que partiam os ossos nos espasmos, algumas vezes Doutreval, tomado de horror, hesitara, pressentira que ia longe demais, que há limites impostos ao direito de fazer experiências num ser humano. Mas passara sempre por cima disso, sufocando a voz da consciência. Porquê? Porque desejava, no fim de contas, mais alguma coisa do que salvar os seus semelhantes: queria a sua satisfação, a apoteose da sua pessoa. Lembrou-se do cinema, da sua própria imagem a tratar dum alienado, naquele documentário em que ele aparecia depois dum combate de soco e antes duma dança de pretos. Aquilo produzira-lhe horrível impressão de mal-estar, de repugnância. Porquê? Porque no fundo, sem o confessar, compreendera que havia nesse cabotinismo, nessa apresentação dum doido em plena convulsão epiléptica provocada, uma profanação sacrílega do infortúnio humano posto ao serviço da vaidade. Propaganda, artigos solicitados aos amigos, artigos pagos aos directores de revistas necessitadas de auxílio... E esse alívio secreto e vil quando Groix, testemunha demasiadamente lúcida, se fora embora.. . Demasiadamente lúcido! Fizera o julgamento da obra, e julgara também o autor, em Amsterdão, naquela noite em que Doutreval hesitava, na escolha do operador de Mariette, entre Heubel e Géraudin. Groix descortinara tudo na alma do seu mestre. E tornara a abrir a morta, surpreendera a verdade. Doutreval sabia-o. Sabia-o desde a hora sinistra em que, à cabeceira do leito fúnebre da filha, ouvira, meio ensonado, Cassaing dizer a Fleurioux: «Abriram-na outra vez e Groix mostrou-me o golpe». Depois disso jamais Doutreval se mantivera à vontade diante do seu assistente.

«Porque escolhi Géraudin?» pensava ele. «Sabia-o em declínio, não ignorava os incidentes ocorridos na clínica particular... Mas precisava de Géraudin, menti a mim mesmo, quis iludir-me. Sacrifiquei Mariette. E voltei a sacrificá-la um ano depois da sua morte quando fui procurar Géraudin e pedir-lhe os seus bons ofícios em favor do Centro. Ambos nos compenetrámos da nossa falsa situação. E no entanto, se não fosse agora este drama de Fabienne, eu teria esquecido tudo, não me recordaria de nada, jamais teria pensado no caso».

Memória, inteligência, razão, altas faculdades da alma de que nos orgulhamos e que giram ao sabor do orgulho! «E Fabienne... O que lhe acontece é também por minha culpa. Quis associá-la à obra. Enviei-a a Paris para se treinar. Não hesitei em a afastar de mim, em mergulhá-la num meio corrompido. Era preciso que assim fosse, ela devia ser a minha colaboradora. Depois, quando a obra se mostrou frágil, deixei Fabienne em Paris, contra sua vontade. Conservei-a longe. Não convinha que ela visse as minhas indecisões. Não queria sofrer diante dela a humilhação de confessar os malogros e as dificuldades. Foi por isso que a não autorizei a vir nesse momento em que a «rapariga, sem dúvida, fraquejava, em que tinha necessidade de mim, do lar, e me pedia licença para regressar a Angers... Disse-lhe que não. Fiz pior. Favoreci a sua amizade com Guerran. Lisonjeava-me, podia ser útil. Cá está o que havia no fundo da minha alma!

«Ei-la desonrada. E que me atrevi a imaginar ainda? Que tentação havia ainda dentro de mim? Não dizer nada... Vender a filha, em nome da obra a manter, em nome do ignóbil orgulho a salvar... Continuarei a chamar a isto heroísmo, grandeza?»

Sozinho, de pé, apoiado à bengala, na tarde declinante, Doutreval reviu a sua vida e, pela primeira vez, julgou-se a si próprio.

«Um génio! Um grande homem! Um sábio! Uma glória! Que é tudo isso senão vazio, presunção, mentira, baixeza, roubos, crimes? E sem sequer darmos portal! Sem o sabermos! Ah, vaidade, vaidade!»

Doía-lhe o estômago. Regurgitou fel. Subiu-lhe à boca uma onda de bílis, onda amarga que ele cuspiu furiosamente, com uma careta, como se houvesse vomitado o asco de si mesmo.

 

Havia quatro dias que Fabienne se encontrava ein Aix, na «Vila Graziela», à beira do Sierroz. Não dissera nada aos seus velhos amigos Droux. À senhora Droux, que a achara com mau parecer, falara somente duma anemia, contraída no Inverno, e cuja convalescença requeria certo repouso. Contudo, os Droux andavam preocupados. Fabienne já não ria, já não contava histórias, não se entretinha no pomar, como noutros tempos...

No domingo, cerca das duas horas, Fabienne foi, como sempre fazia, até à estrada de Aix, ao encontro do carteiro. Este não trazia nada para ela. A rapariga voltou para trás e, depois de avisar os Droux, seguiu pelo caminho íngreme que domina o lago e conduz à aldeia de Saint-Innocent. Dois quilómetros além de Brison, existia uma fábrica onde fiavam pêlo de coelho. Fabienne queria comprar alguns novelos de lã angora para se distrair a fazer malha. Essa ocupação abreviar-lhe-ia as horas.

Como ia a andar devagarinho, era já tarde quando regressou por Brison e Saint-Innocent com o seu pacote de novelos. Tomou de novo o caminho sinuoso que sobe e desce em direcção a Aix, por entre vinhas e campos já aveludados pelos primeiros rebentos de aveia e de trigo. Por trás do Dent du Chat afandava-se um sol pálido. As montanhas longínquas mantinham a alvura da neve. Nem uma barca no lago imóvel, nem um pássaro. Aquela imensidade de água calma ao entardecer tinha estranha melancolia.

Antes de chegar a um grupo de moradias pomposas que se enfileiram na colina entre Saint-Innocent e o Sierroz, Fabienne saiu da estrada e voltou à esquerda, não só para encurtar caminho como porque preferia ir por sendas mais selváticas. Seguira por uma vereda marginada de sarças, entre veigas plantadas de choupos. Sentara-se uns minutos no tronco de álamo abatido no Outono precedente e dirigia-se para casa quando, ao longe, na volta do caminho, viu alguém vir ao seu encontro: um homem alto, de chapéu de feltro verde, envolto num comprido impermeável, e que, ao andar, se apoiava numa bengala grossa. Reconheceu o pai.

Já não ousou erguer os olhos, nem se atreveu a deter-se. No entanto, parecia que uns dedos fortes lhe apertavam o coração. Continuou, porém, a avançar, com a vista enevoada, a respiração ofegante e quase a desfalecer, até que se encontrou a pouca distância. Levantou, então, a cabeça e olhou para ele.

Causou-lhe estranha impressão o aspecto do pai. Mal o reconheceu. Estava mudado. Já não era o mesmo homem. Mais velho, fatigado, como se consumido. Fabienne não lhe descobria nas feições aquele esforço, aquela tensão perpétua que as tornava duras. Dir-se-ia que se abandonava à lassidão e que a sua verdadeira cara aparecia pela primeira vez. Toda esta impressão foi tão repentina como dominante. O olhar, sobretudo, não era o que ela esperava. Nem ódio, nem severidade; apenas depressão e tristeza. Fabienne sentiu-se confrangida. Tudo aquilo era obra dela. Em quatro dias!

- Boa tarde, Fabienne - disse Doutreval.

- Boa tarde, pai - balbuciou a rapariga.

- Não me dás um beijo?

Baixava para Fabienne o corpo alto. A filha beijou-o

na face, quase com receio.

- Cheguei há pouco a casa dos Droux. Disseram-me que tinhas ido a Brison, e vim ao teu encontro... Que sossego há aqui! Que tranquilidade!

Seguiam agora os dois lado a lado, por entre silvas e

choupos abatidos.

- Estás melhor?

- Estou...

- Tens repousado?

- Tenho, sim, senhor.

- Queres que conversemos a sério? Que examinemos

ambos a situação?

De novo ela sentiu o coração deixar de bater. Mas era

preciso ter coragem...

- Se o pai quiser... - retorquiu em voz sufocada. Doutreval olhou-a de esguelha. Viu-a oprimida, crispada num esforço desesperado para dominar o terror, e teve infinita piedade dela. Não soube, porém, como exprimir-lhe a sua pena. Doutreval nunca fora pessoa terna. Limitou-se, pois, a suspender no braço esquerdo a bengala de castão curvo e a pousar a mão no ombro da filha. Enquanto caminhava, apoiava-se nesta. Fabienne ficou tão comovida com isso que teve vontade de chorar. Parecia que ele lhe confessava assim a sua fraqueza, a sua fadiga, que lhe dava a entender que necessitava dela... A mão do pai sobre o ombro! Nunca Fabienne sentira como nesse momento o valor daquela doçura. E tudo era mais fácil agora. Tanto para ela como para ele. Doutreval também assim o entendeu.

- Reflecti, Fabienne. Examinei bem a nossa situação, encarei a questão sob todos os aspectos, e cheguei às seguintes conclusões: É inútil insistir no que tu sabes tão bem como eu. Essa aventura foi um desastre para ti e para mim. Eras o meu último filho, o único que me restava. A minha filha ”mais nova... Tua mãe morreu quando vieste ao mundo. .. Tudo isso te tornava mais querida a meus olhos. Ambicionei grandes coisas para ti... fiz castelos no ar... Tudo desabou. É duro. E a minha obra também se desmoronou. Eu precisava de Guerran para a salvar. Agora, acabou-se. Devo dizer-te tudo, Fabienne...

confessar-te tudo: por um momento, pensei em sacrificar-te.

Sim... Pensei em preservar a minha obra, em manter-me...

Falar com Guerran, ou pelo menos escrever-lhe, fingir não saber nada, reclamar o seu apoio, sufocar o caso de Marrocos, salvar o Centro.. . Tudo isto era possível. Quanto a ti, podia conservar-te afastada. E a criança... essa criança... Sabes que existem meios para evitar o nascimento dum filho.. Pois eu pensei nisso, Fabienne. Não te diria nada, arranjaria as coisas de modo a não parecer que a ideia partira de mim... Fingiria acreditar num acidente... Assim, Guerran salvar-me-ia... Eis até onde me atrevi a ir, Fabienne. Quero que tu o saibas. Fabienne esboçou um gesto. Doutreval continuou :

- Mas não me foi possível agir como pensara. Não sei porquê. Não é lógico! Se não creio em nada!... Desconfio que perdemos a força de vontade quando envelhecemos... Seja como for, não posso ir mais longe. Assim, resolvi abandonar tudo. Os meus trabalhos...

Fabienne levantou a cabeça e olhou para Doutreval.

- Os seus trabalhos... - murmurou ela.

- Sim. De facto, é duro. Mas, no fundo, eu já estava em erro, na mentira. E é provável que me enterrasse cada vez mais... Não podes compreender.- Pensando bem, é preferível desistir de tudo. Poupo-me a um calvário. Essa punição de sobreviver à obra, de ficar como tantos outros agarrado ao sistema, único a acreditar ainda nele, no meio dum pequeno cenáculo de oportunistas e bajuladores que fingem admirar-nos... Ser como um desses velhos imbecis a quem, por um resto de deferência, só esperam a morte para enterrar com eles as suas teorias... Não, não quero isso! Desisto de tudo! Não digas nada, já é tarde! Mandei ontem um artigo que equivale a uma retractação. No ministério, dei explicações, reconheci o meu erro. E Gigon já tem em seu poder o meu pedido de aposentação. Deixo de ser professor. Acabou-se!

Caminharam em silêncio uns instantes, lado a lado, de cabeça baixa, pela vereda estreita, cujos silvados se agarravam e se desprendiam do impermeável de Doutreval com um sussurro áspero.

- Porque fez isso? - perguntou Fabienne em voz baixa.

- Era necessário, filha. Quando nos enganámos, nos comprometemos e obstinámos como eu, não há outra coisa a fazer senão confessar o erro, e depois calar a boca e desaparecer. E, de qualquer maneira, contigo, com a tua história, já não seria possível viver lá... O escândalo, compreendes?

Porque também tu vais pagar, minha pobre pequena. Não é um futuro risonho que eu te trago... Tens coragem?

- Tenho - murmurou Fabienne.

- Pois bem, penso instalar-me aqui, aqui mesmo. Liquido os nossos haveres em Angers, e venho para cá viver contigo, definitivamente. Arranjarei alguma clientela... Soube que morreu o facultativo de Brison, e parece-me que o poderei substituir. Serei médico rural... Ainda tenho solidez para tanto... Visitarei os meus doentes, darei algumas consultas... Talvez que durante o Verão apareçam clientes de Aix... Com a minha reforma, o que tenho de rendimentos e o que hei-de ganhar, poderemos viver. E tu, Fabienne, governarás a casa... e criarás o teu filho... Bem sei que não é um futuro brilhante, minha pobre filha... Mas é o que está do lado da verdade, da razão. Aceitei. É preciso que te submetas também. E o pior é tudo ser por minha culpa. Vais pagar por mim! é o que mais me custa a suportar Ter escolhido isto para ti! Eu, teu pai! Mas cheguei à conclusão de que é a única possibilidade que te resta para não desesperares do futuro... Choras... Compreendo-te, minha pobre filha! Peço-te que me perdoes...

Puxou do lenço e enxugou os olhos. Fabienne lançou-

-se-lhe ao pescoço.

- Pai, Pai! Não chore! Sinto-me feliz Não esperava isto Eu é que lhe peço perdão O pai é bom Tão bom’.

- Bom.

Doutreval esboçou um sorriso triste.

- Bom? Não, minha filha. Não sou bom. Quando se pensa em coisas como aquelas em que eu pensei, quando se tem na vida as tentações e as acções más que eu tenho na minha, não se é bom...

- O pai não se conhece! Sim, é bondoso! Calunia-se! Lembre-se daqueles a quem se devotou, dos seus doentes, de quanto se esforçou por eles, de todos aqueles a quem tratou e curou...

- Por ambição, por orgulho...

- Recorda-se daquele cão velho, do Tom, que o pai devia dissecar em frente dos estudantes? Ele lambeu-lhe as mãos, e o pai comoveu-se, mandou-o desamarrar e levar a Mariette... Bem vê que é bondoso!

Doutreval encolheu os ombros.

- Fraquezas...

- E as suas crianças, os seus miúdos, no manicómio... Já não se lembra como os estimava, e o desgosto que teve quando a pequena idiota morreu... Ela começava a reconhecê-lo... Tocava-lhe na cara com as mãos... Eu sentia medo... O pai deixava-a acarinhá-la... Tinha-lhe amizade, chorou quando ela morreu... E aquela mulher, empregada numa fábrica, que lhe trouxe o filho doido para que o curasse Já não se recorda? Havia cinco anos que tentavam em vão curá-lo. Tinha já experimentado tudo, passara por todas as mãos de psiquiatras... O pai estava com receio... Todos os seus adversários o espreitavam... Se falhasse, o malogro seria público. Uma catástrofe para si! E o caso parecia quase incurável. Esperavam de si um milagre. Hesitou durante dois dias, lembra-se? E depois aceitou, recebeu o rapaz em Saint-Clement. Arriscou tudo, o seu nome, a sua reputação, o seu método, tudo, para não deixar sem socorro alguém que contara consigo. Ele saiu curado, retomou o trabalho... Foi isto que o pai fez! Bem vê quanto é bondoso! Bem vê!

- Ah! - suspirou Doutreval.

Sufocava. Sentou-se no tronco dum álamo, puxou do lenço e pôs-se a chorar. As palavras da filha eram um bálsamo na sua infelicidade. Uma das maiores alegrias que um homem pode conhecer é encontrar no passado a recordação dum rasgo de bondade brotado do fundo da alma, realizado quase inconscientemente, rasgo de pura bondade, que o force a acreditar no bem. E para lá do bem, quer o saibamos ou não, está sempre Deus. Porque o homem só pode amar a si próprio ou a Deus. Só existem dois amores.

 

O filho de Évelyne não chegará a nascer. Aos três meses e meio, tem ela um mau sucesso. Devem ter ficado restos de placenta. A febre sobe, Roy. aconselha uma raspagem. Dia angustioso. `a tarde, Roy leva Évelyne de automóvel para a sua clínica.

Na ocasião em que Michel se prepara para ir com ela, chamam-no de casa de Berlequin, o velho operário cardíaco. A nora esta muito mal.

Michel apressa-se, chega a uma casa em que todos choram. A mulher morreu há poucos minutos, nos braços da parteira, durante o parto. O filho de Berlequin faleceu há três meses. Só restava ao casal de velhos a nora e a esperança daquele nascimento...

E a criança ainda vive, move-se ainda naquele cadáver Michel reclama tijolos quentes, botijas, envolve a defunta em cobertores de lã e corre a telefonar a Roy.

Roy estava pronto a operar Évelyne. Michel explica o que pretende: cesariana post-mortem. Sete minutos depois, o cirurgião aparece com um enfermeiro. Não dizem nada, sobem ao quarto, enfiam as batas, empurram para a escada os Berlequin, a parteira e demais pessoas que ali estão. Com o ouvido no buraco da fechadura, a merceeira Gaby Houten escuta com horror as breves palavras de Roy ao seu ajudante:

- Atenção, Gérard. As precauções habituais. Faz-se

de conta que está viva. Nunca se sabe...

Depois, silêncio. Tinir de instrumentos de aço, uma exclamação de Roy, uma ordem :

- Catgut, Doutreval. Vamos ao cordão. Pronto! i E, no silêncio, um queixume súbito, um grito trémulo de boneca velha, que faz estremecer todos de medo e de esperança ao mesmo tempo.

Michel abre a porta e chama pela parteira:

- Faça favor, senhora Maufray... Mas toda a gente se precipita. Todos querem ver o milagre. Empurram a senhora Maufray e contemplam com espanto, em volta da defunta de barriga aberta, três magarefes manchados de sangue que, com ar satisfeito, exibem

um recém-nascido.

- E agora - diz Roy - corro à clínica a fim de operar

tua mulher. E tu que vais fazer?

Michel hesita um segundo. Não pode ir-se embora. A criança é débil, pouco apta a resistir. Michel tem de ficar junto dela. Custa-lhe, mas é o seu dever.

- Eu fico... Vai depressa, e faze o que puderes. Confio-ta.

Roy fita-o, aperta-lhe a mão e retira-se. Até às dez da noite, Michel aquece flanelas, trata do nené, desperta duma síncope o velho Berlequin, cujo coração se ressentiu das comoções. De tempos a tempos, no meio de tudo aquilo, pensa em Évelyne... Às dez horas, dá por terminado o seu trabalho: a criança vai bem, os Berlequin estão mais serenos.

- Agora - declarou Michel - deixo-os e vou ver minha

mulher.

- A sua mulher?

- Sim. O meu colega Roy está a operá-la...

- Ah, senhor doutor!-exclama a velha Berlequin com lágrimas nos olhos. - Bonita acção. Bonita acção...

Michel não a ouve. Já está no carro. Enfim, ten o direito de pensar em si, em Évelyne. Encontra a mulher acordada num quarto da clínica.

- Tudo decorreu bem, tudo vai bem - diz Roy.

O caso fez grande barulho na terra. Nunca se vira uma coisa daquelas, retirar uma criança duma defunta. Toda a gente quis ver o nené dos Berlequin. A reputação de Michel aumentou considerãvelmente. Agora, aparecem-lhe clientes vindos de longe. E regressam antigos doentes, arrependidos de o terem deixado. Os Buccinali trazem-lhe, um tanto constrangidos, a filha tuberculosa que as injecções de Seteuil não conseguiram curar. A rapariga já não tem forças, o pulmão está inteiramente tomado. É preciso ver tudo de novo, recomeçar do princípio, com uma doente mais fatigada, mais atingida que há seis meses. Em seguida é Daudenaerde, o tal negociante de sucata, que vem confessar o seu erro, dizer que o feiticeiro Breuil não o curou desta vez. Daudenaerde está pronto. Acabou de se queimar. E também com ele é preciso recomeçar a batalha, mentindo, reconfortando-o, contentando-se com prolongar-lhe a vida por mais um mês, uma semana, um dia. .. é isto que entusiasma, que apaixona : a luta contra o erro, o combate contra a morte. Primeiro, não é possível ver as coisas em abstracto. Trata-se sempre dum ser humano, duma vida, dum lar, do sofrimento dum semelhante. Deixa-se sempre o coração tomar parte era tudo isso... E, por mais calejado que se esteja, quando há um petiz com uma bronco-pneumonia e que esta envereda por mau caminho, o médico entra em casa preocupado e diz à mulher: - O «meu pequeno não vai bem. . .

Janta mal, lê o jornal sem lhe dar atenção, adormece

: tarde. E assim até ao dia em que o doentinho se cura - ou : morre. Porque a morte, para o clínico, também é uma libertação. Fez o que pôde para restabelecer o equilíbrio. Não o conseguiu. Pronto, há que pensar nos outros.E segue adiante.

Mas, enquanto há vida, trava-se a luta, ainda que se tenha a certeza da derrota, pois resta sempre a suprema consolação de aliviar, de apaziguar, de impedir as torturas inúteis. Há dezoito meses que Michel vai alentando a mãe dos Letilleul, pobre velha que tem um cancro no seio. Mandou que a operassem. Mais um ano de vida. Depois, uma recidiva. Metástases da pleura, da espinal-medula. Michel viu-se obrigado a recorrer à morfina. Como as dores aumentassem, foi preciso avolumar as doses e adicionar escopolamina. E de novo aumentar as doses, a pouco e pouco, e experimentar outros unguentos, outras pomadas. .. Tudo isso sem esquecer as dietas, que tanto influem no estado geral e que muitos médicos desdenham, julgando-as inúteis. Esses cuidados aliviam a pobre velha, a qual vê agora Michel com outros olhos. É por quem chama quando se sente mais aflita, e é quem lhe faz desaparecer as dores. Para ela, Michel é uma espécie de enviado de Deus.

São sempre tristes, os cancerosos. Os tísicos, em geral, mostram mais alegria. Vêem tudo cor-de-rosa, especialmente fora dos sanatórios. Michel trata já há algum tempo a pequena Francine Ray, filha do relojoeiro. Ela declina, vai piorando lentamente. Mas não dá por isso. Certa manhã, declara muito orgulhosa, à chegada de Michel:

- Senhor doutor, pude ir a pé até à igreja! É bom, não acha?

- Magnífico! - diz Michel. - Bravo !

Não se lembra de que, três meses antes, ainda assistia à missa solene. E na Primavera próxima, se ainda for viva, a pequena Francine Ray dirá com o mesmo ingénuo orgulho:

- Senhor doutor, pude dar três voltas à roda da mesa! E Michel responderá de novo :

- Bravo!

Estava noiva, devia casar-se em breve. Michel teve de o impedir, de retardar o casamento, mas sem que ela pudesse adivinhar a razão. Outra batalha para ganhar tempo, para que a verdade penetre a pouco e pouco, na pobre alma, devagarinho, sem a ferir muito...

- é melhor esperar um pouco. à cautela, adie isso para o Natal...

E, chegado ao Natal, disse :

- Na Páscoa... E na Páscoa:

- No Pentecostes...

Sabe muito bem que, na altura do Pentecostes, Francine já terá morrido ou estará tão mal que ela mesma compreenderá. Ou então, nesse meio tempo, o noivo perceberá a verdade e romperá os esponsais. É quase sempre assim que estes casos terminam. Os pobres seres humanos não têm o heroísmo dos santos. Assim deve ter acontecido com Francine. Há algum tempo que o noivo já não aparece e a rapariga deixou de falar do casamento. Perdeu um pouco a alegria. Lentamente, golpe hoje, golpe amanhã, a verdade vai penetrando nela...

Ainda bem que ao lado deste caso há a petiza dos Buccinali, a qual tem melhorado, e a filha dos industriais de fiação, os Lausefeld. Essa, de nome Anne Marie, restabelecer-se-á daqui a um ano, graças ao regímen dietético prescrito por Michel. Os pais estão deveras estupefactos.

- No fim de contas - dizem eles - mais vale possuir um pouco de verdade do que muito dinheiro!

Quanto à velha Pauline Labuire, acentuam-se-lhe as melhoras da impigem, mercê do auxílio de Êvelyne tanto que já pode voltar a ocupar-se do marido paralítico. Este nunca mais se levantou, faz as suas necessidades na cama, e a mulher precisa de lavar, por dia, quatro lençóis, depois de vir dos seus afazeres na rua. Ao menos está capaz de tornar a molhar as mãos! Uma vez feita a lavagem da roupa, tem ainda de ler o jornal ao homem, pois que ele não vê bem; ou de jogar às cartas, para o entreter. o mais engraçado é que Pauline não se queixa; quem se queixa é a família, irmãos, irmãs, sobrinhos, os quais há muito deixaram de a ajudar e agora acham que o doente está a durar demais para «a pobre da mulher já tão cansada!» É sempre assim, por toda a parte. Os que fazem menos são os que se lamentam mais. Ela, Pauline Labuire, é que achará ainda cedo quando chegar o último momento do seu companheiro egoísta, caquético e repugnante.

Delabry, empregado subalterno dum banco, manda chamar Michel. Cólicas atrozes desde a véspera. Aquilo começou por uma dor aguda do lado direito. Peritonite.

Já é tarde para operar. Ventre duro, inchado, pulso muito fraco, cianose. Aliás, Delabry não quer operação. Sente-se acabado. Mas tem mulher e dois filhos,.. Michel chama Roy.

Depois do exame, Roy, a sós com Michel, resmunga um pouco.

- Exageras, meu caro. Ele está na última. Vai-me ficar nas mãos à primeira baforada de anestésico. Não vês como está azulado o pulso? E o coração?

- De acordo. Mas se ainda resta uma possibilidade...

- Diz uma coisa dessas a Lequesnoy e verás se ele opera!

- Por isso mesmo é que te chamei.

- Hum, hum - resmunga o cirurgião. - Não és de meias medidas... Escuta - acaba por dizer. - Eu opero-o, mas não o adormeço. Só um pouco de morfina. Não quero que morra na mesa... Mas o desgraçado não vai gostar da brincadeira! E quanto às consequências operatórias, lavo daí as minhas mãos. Serás tu o responsável! Agora entende-te com ele, explica-lhe tudo isto, e convence-o, se puderes!

Eis o mais difícil. Michel bem o sabe... Volta para junto do doente.

- Ora muito bem, senhor Delabry. Vamos operá-lo...

- Não quero! Prefiro morrer. Já sofri muito...

- Lembre-se de que tem dois filhos, que tem mulher... O homem chora, hesita.

- é coisa que não levará mais duma hora - insiste Michel. - O único inconveniente é o senhor estar tão fraco; não o podemos adormecer...

- Então, não - volve Delabry. - Não! Já sofri muito. Deixe-me morrer em paz, senhor doutor. Por piedade...

Mas o médico tem de sufocar ante si mesmo essa piedade invocada; tem de se fazer cruel, de torturar o desgraçado que vai decerto morrer na mesa operatória, depois de dores atrozes. Recalca a sua compaixão, que também no íntimo lhe segreda: «Deixa-o morrer em paz!» E tudo porque resta uma ínfima probabilidade de salvação e porque a verdadeira piedade, a piedade inteligente, deve por vezes exibir a máscara mais dura e impiedosa e saber calar a voz do coração.

Delabry acaba por dizer, já sem forças:

- Está bem, senhor doutor. Confio em si. Vamos a isso... Levam-no para a casa de saúde. Roy limita-se a dar-lhe uma injecção de morfina e opera o homem a sangue-frio. Michel assiste a todo aquele sofrimento do infeliz, vê, sem dizer nada, o supliciado a morder um lenço, com um gemido surdo... É cena que médico algum jamais esquece! O cirurgião retira do ventre dois litros de pus e de sangue.

Delabry sobrevive. Resistiu bem ao choque. Roy mostra-se admirado com o facto. A tortura prolonga-se. Todo o comprimento da incisão se esfacela e apodrece. Há agora uma brecha da largura de três dedos, por onde, durante semanas, o intestino sai. Roy vê-se deveras atrapalhado para conter, para fazer recuar esse intestino. Cada penso leva duas horas, duas horas de martírio para o pobre homem. O cirurgião entusiasma-se por aquele caso. Delabry viverá.

Roy é extraordinário nessas ocasiões. Resmunga um pouco, mas nunca recusa. Opera sempre, ainda que as possibilidades de êxito sejam ínfimas.

Isto, aliás, prejudica-o bastante. Em certos casos de cancro do recto, por exemplo, existem duas soluções : operar (e o doente tem duas probabilidades sobre três de morrer) ou não operar, e o doente morre com certeza. Lequesnoy nunca opera. Roy opera sempre. E o resultado é as pessoas dizerem, sem atender às circunstâncias:

- Morre muito mais gente às mãos de Roy do que nas de Lequesnoy!

Para o cirurgião, existe um meio infalível de adquirir fama rápida e clientela de primeira ordem : operar só nos casos fáceis. Quanto ao resto, é só dizer: «Não toquemos nisso, há cancro...» Já se têm visto antigos facultativos tornarem-se cirurgiões de um dia para outro e conseguirem daquele modo certos triunfos.

Michel, uma vez por outra, encontra Delabry na rua: um Delabry curado, sorridente, que o saúda com uma piscadela de olho em que se denunciam muitas coisas. O que ele não sabe, este homem, é que Michel esteve quase a deixá-lo morrer, por piedade. Talvez seja isto o mais penoso da profissão, e não o egoísmo, cobardia e baixeza que se tornam aliados do sofrimento e da morte; nem o estanqueiro que nega autorização para que lhe operem a mulher, pelo facto de não querer despender cinco mil francos; nem os filhos da senhora Scrive, que estão de mal com a mãe e não perdoam a Michel tê-la salvado duma apoplexia; nem o hortaliceiro Verfaille, que se recusa a tomar criada e obriga a mulher, em plena crise cardíaca, a atender os fregueses. Michel chegara precisamente a tempo de mandar outra vez a desgraçada para a cama e de ameaçar Verfaille com a prisão. São em maior número do que se julga, essas casas onde o médico têm de elevar a voz e tomar o partido da vítima. Mas o mais desagradável de tudo é o caso de Delabry: o doente na última extremidade, cansado de sofrer, e com quem se tem de ser impiedoso, por amor dele mesmo, visto restar-lhe ainda uma probabilidade pequeníssima de se salvar. Nessas noites, ao regressar a casa depois de combates deste género, Michel sente-se fatigado e triste. Mas ninguém pensa que o médico pode estar exausto de assumir assim o fardo dos outros e a responsabilidade dos erros, fraquezas, e até os crimes dos mais - todas as misérias que o público descarrega nele, sem reflectir, sem hesitar, só porque se trata do médico! É, na verdade, uma pessoacansada essa que, à noite, vem procurar refúgio junto de Êvelyne; então, melhor do que noutros momentos, Michel compreende por que foi concedido ao homem o favor de merecer a ternura da mulher. E é nessas ocasiões que ele avalia, com assombro, quão grande é a solidão, o sacrifício dum padre.

Abortos em série. Primeiro, um incidente na família

Marquez: aborto espontâneo de seis meses. Os Marquez são sifilíticos. Expulsão de massa informe, gelatinosa, espécie de medusa viscosa, com pedaços, lá dentro, de humanidade, que subsistem. Baptizado rápido sobre aquela geleia repugnante.

- Se possuis alma humana, eu te baptizo...

Em seguida, sucessão de abortos verdadeiros, voluntários, provocados, abortos do sábado à noite, perpetrados entre marido e mulher na ideia de deixar a esta todo o dia de domingo para se restabelecer e poder voltar na segunda-feira ao trabalho.

Num sábado de manhã, certa bisbilhoteira, ao sair dum dos casebres desses aglomerados sórdidos, dá de cara com Michel e chama-o.

- Senhor doutor - diz com ar misterioso - tenho uma coisa para lhe contar. Aqui entre nós, é claro. Conhece a minha vizinha, a Merchant?

- Que tem ela?

- Desconfio que está grávida.

- Ah!

- Pois é verdade. Há três meses que lhe falta o incómodo.

- Participou-lho?

- Ah, não! Pelo contrário, faz segredo. Mas eu vejo pela roupa que põe a secar. O senhor doutor pode ter a certeza de que a mulher se vai desfazer daquilo...

- Parece-lhe?

- É como lhe digo. E talvez hoje mesmo. Segunda-feira é dia santo, de maneira que tem mais um dia para repousar. Notei que ela varreu os degraus da porta ontem à noite em vez de ser hoje, para ganhar tempo...

- Está bem - responde Michel - não posso fazer nada e a senhora também não. Deixemo-nos de indiscrições. Não somos da Justiça.

Todavia, a criatura previra certo. Na quarta-feira seguinte os Merchant mandam chamar Michel. A mulher não confessa o que fez, queixa-se apenas de dores no ventre. Exame. O aborto não teve êxito, mas o útero está perfurado. Hemorragia interna.

- Desconfio - diz Michel ao marido - que a sua mulher tem qualquer ferida que sangra, lá dentro...

Não chegou a haver aborto. O médico tem de pesar as palavras. Aliás, o marido compreende perfeitamente e confirma, com ar grave:

- Creio que deve ser isso, senhor doutor. Operação. A mulher, cardíaca, morre sob o escalpelo de Roy, consternado. Mais um cadáver, do qual o pobre cirurgião arrostará com a responsabilidade, aos olhos dos outros. E, perante a defunta, o marido faz a Roy uma cena trágica, apodando-o de assassino! O cirurgião, que é tímido - apesar da espessa barba e do imponente tipo de muçulmano - sente-se deveras infeliz e não responde nada. Outra factura que não ousará apresentar e que irá para o rol das perdas gerais.

E a série continua durante um mês inteiro, sem que se saiba porquê. Todas essas mulheres trabalham na fábrica de Lausefeld. A fábrica, para a mulher, é a grande escola do aborto. É lá que se esquece a moral e que se aprendem os truques. Nas vésperas dos dias santificados, pela Páscoa, Ascensão, Pentecostes, é uma verdadeira epidemia. Uma agulha de malha - e avante! Enfia-se a agulha no útero, sente-se certa resistência, e diz-se :

- É o feto!

Carrega-se, e pronto! Matriz perfurada e muitas vezes

o intestino, ao mesmo tempo.

À força de ver, Michel já reconhece, de modo infalível, se a habilidade foi do marido ou da mulher. Quando é esta, fá-lo segurando a agulha com a mão direita e a perfuração é à esquerda. Sendo o marido, perfuração à direita. Contudo, há ainda que desconfiar, quando se observa. Há umas ladinas, antigas frequentadoras do hospital, que soltam um grito quando o médico introduz o histerómefro e fingem que a perfuração se produziu nessa altura. Outras vezes Michel encontra, no útero, um gancho de cabelo, um bocado de arame...

- Que vem a ser isto?

- Olhe, ia-me sentar e caí em cima dessa coisa... tenta explicar a mulher.

Ou então cala-se. Para quê mentir? O médico sabe muito bem que não vale a pena. Michel ralha, vocifera, trata de assustar. E, no fim, não há remédio senão proceder ao tratamento. Segredo profissional. Em boa verdade, a culpa é da fábrica, e do Estado, que se desinteressou da moral. De tempos a tempos, uma dessas mulheres morre. O viúvo torna a casar, e a história recomeça. E aquela rapariga que, num sábado à noite, entra em casa doente... A mãe não sabe nada, propõe tisanas e injecções, inquieta-se quando Michel fala de hospital e de intervenção cirúrgica. Outras vezes está ao corrente do que se passa. Percebe-se logo, se é a primeira a lembrar a operação.

Nas famílias burguesas as pessoas são mais discretas. A senhora Verval, dona da salsicharia, chamou Michel o ano passado, por se encontrar grávida. Depois nunca mais se falou do caso. Tempos depois Verval pede a comparência do médico, com urgência. Não há crianças na casa, mas também não se dão por achados, nem o marido nem a mulher. Limitam-se a evitar alusões ao assunto. A senhora Failly, casada com o homem do talho, tem um aborto de quatro meses. Michel, mais uma vez, trata-a sem dizer nada. Findas as visitas, mal escondem a satisfação de se terem desembaraçado do feto e de haverem intrujado o médico. Na mesma semana, chamada urgente da parte dos Lavaisne. A menina, que tem vinte anos e é muito moderna, está com uma hemorragia inexplicável. Os pais mostram-se inquietos, em especial a loira senhora Lavaisne que, apesar de ter amantes, não desconfia da filha. Michel ocupa-se da doente, em silêncio, diante da família; mas, quando se encontra só com ela, diz-lhe o que tem a dizer. A pequena chora, alega que a culpa não foi sua, que a liberdade, mesmo para uma rapariga «moderna», é um fardo um tanto pesado... Já está curada, o médico vai deixar de vir quando o irmão, Robert, que é estudante, o chama de passagem, discretamente, e lhe comunica:

- Senhor doutor, preciso de o consultar. Irei esta noite a sua casa. Mas não diga nada a meus pais.

O rapaz aparece e finge que vem «por causa dum camarada, que não se sente bem».

Michel põe-no à vontade, inspira-lhe confiança e responde :

- Bem sei quem é. Não está longe... está aqui à minha frente. Vamos lá, tenha coragem, conte-me o seu caso, e depois examiná-lo-ei.

O rapaz contraiu sífilis. Quem mandou ao município consentir na instalação de bordéis mesmo defronte do liceu?

Michel aborrece-se com a história. Segredo profissional. Mas como há-de o pequeno Lavaisne, com dezassete anos, tratar-se sozinho da sífilis, seguir um regímen sério de desintoxicação, fazer os curativos locais? Além disso, há a possibilidade de contaminação, na família, no liceu. Deverá o médico prevenir os pais? Robert tem confiança nele, pede-lhe que se cale, invoca a honra, declara-lhe:

- Se os meus pais souberem, senhor doutor, suicido-me!

Sabe-se lá de que é capaz um rapazola destes! Michel fala de rectidão, de lealdade, de obrigações - a uma pessoa que nunca escutara até aí a menor lição de moral Mas é extraordinário como, nesta juventude gangrenada, perduram ainda restos de generosidade. A ideia de que pode contagiar os colegas, a irmã, a mãe, faz hesitar Robert Lavaisne. Chora, consente. Michel irá pessoalmente explicar as coisas ao pai.

No seu escritório, o importante Lavaisne, gigante de tez avermelhada, muito dado aos desportos e aos bons vinhos, escuta Michel com espanto. O seu pequeno Robert, que ainda não tem dezassete anos, com sífilis! O homem chora, confessa a sua infelicidade: a desunião do lar, as mulheres que ele mantém e lhe estragam a vida... Diz, como Lausefeld:

- Dinheiro! Que patranha! Que porcaria! Pensar que a gente se mata por causa disso! Foi a origem da minha desgraça!

Não sabe que a mulher o atraiçoa e que a filha fez um aborto. Lavaisne, aliás, tem razão, percebe bem donde parte o mal: de todo esse dinheiro ganho a destilar álcool e a envenenar o povo, e que permitiu à família vida ociosa e luxuosa demais.

Estes casos de sífilis são bastante maçadores. Quanta diplomacia, quantas astúcias e mentiras necessárias! Vem um homem consultar Michel. Exibe uma borbulha suspeita.

- Você é casado?

- Sou, sim, senhor - responde o cliente.

- Enganou a sua mulher.

- Não, senhor.

- Ora, ora!

- Juro que não.

Michèl cala-se, reflecte. Tem de evitar o drama.

- Traga-me cá a sua mulher. Quero examiná-la também.

Aparece ela no dia seguinte, não muito satisfeita. Michel examina-a. Sífilis. E os acidentes são mais antigos. Foi ela quem contaminou o marido. Na presença deste, Michel interroga-a:

- Por acaso a senhora viajou de comboio, este ano ou no ano passado?

- Não, senhor.

Ela não compreende. É preciso insistir.

- Não esteve no lavabo dalgum hotel? Não se serviu de qualquer toalha pouco limpa? O contágio pode ter vindo daí.

A mulher compreende de súbito, percebe que Michel a quer salvar. Fita-o. Trocam um olhar de entendimento.

- Ah, meu Deus!-balbucia ela.-Agora me lembro... Em Agosto, fomos a Paris... três dias... Recordas-te, Adrien?

- É verdade! -confirma o marido. -Não há dúvida... Ora que sensaboria!

Não desconfiou de nada. A sua felicidade está salva. Michel tratará de ambos.

Mas, na maior parte das vezes, é uma esposa que se apresenta, envergonhada, no consultório de Michel. Prurido... A mulher está constrangida, vermelha até à raiz dos cabelos. Percebe-se que é honesta. Michel interroga-a docemente:

- Vive bem com o seu marido? Não sai sozinha? A senhora não... Desculpe ser brutal, não engana o seu marido?

- Oh, senhor doutor!

- Bem, bem, estou a ver que não... Pois, minha senhora, tem de me trazer cá o seu marido.

O homem comparece um ou dois dias depois, assume logo de entrada ares importantes :

- Senhor doutor, parece que declarou a minha mulher...

- Perdão, perdão - interrompeu Michel. - Falemos primeiro do senhor. Onde apanhou sífilis?

Desaparece toda a altivez do marido. O homem perturba-se, hesita, confessa, pede conselho. Ele e Michel encaram a situação, como amigos. Que hão-de dizer à mulher? Podiam falar-lhe dum avô qualquer que houvesse legado aquilo... Encontra-se sempre nas famílias algum velho pândego cuja memória ficou tristemente célebre. Esse servirá de bode expiatório, será o responsável de tudo... E quando, por um acaso extraordinário, não existe essa personagem histórica, chama-se a mulher e diz-se-lhe que foi ela quem se infectou, bebendo num copo mal limpo. Eis como contaminou o marido. A infeliz fica consternada. Chora. O homem, generoso, consola-a como pode. Mais um lar salvo.

A filha do estanqueiro Simonet teve um nado-morto de oito meses. Acabava de regressar de Paris-claro, ninguém vira nada. Ali também há dinheiro a mais. Os Simonet queriam «salvar a honra», como eles dizem. Foi um amigo íntimo quem os aconselhou : - façam constar que é um feto de cincomeses.assim, não haverá enterro…. Não haverá escândalo…. Cinco meses…. É muito simples. Não implica formalidades de registo de nascimento ou de óbito, nem a despesa de funeral, o silêncio para hoje, o esquecimento para amanhã. Os simonet apresentam a Michelo cadáver do néné, como se fosse um feto de cinco meses. O cadáver, porém, não se encontra macerado. Está completo, formado, de tamanho normal…Michel recusa entrar nesta conspiração, exercer influência no médico do registo civil.renuncia aos     Simonet que eram no entanto, bons clientes desde algum tempo. Eles Nem sequer lhe pedem segredo. É preciso, defacto, que o médico goze ainda de consideração, para que nunca ninguém pense em dizer-lhe:senhor doutor, peço-lhe que observe o segredo profissional. Sabem perfeitamente que isso é inútil,que o segredo será sempre guardado. os simonet mandam chamar BEcquerel. Este assinará tudo o que quiserem. A gente faz o que pode, mas não se pode muito. –diz Roy- o povo não quer filhos, e o povo é que manda. Nada mais fácil que a repressão do aborto, mas os poderes públicos não a querem,porque o eleitor não a deseja. Sofremos de um sistema eleitoral mal concebido em que o escol é o escol do povo. Como o das classes superiores não tem possibilidades de se pronunciar. Havia aqui um pouco antes da tua chegada uma mulher séria, que denuncioucerta abortadeira. Quando soube disso, a multidão foi-lhe fazer arruaça à porta. - desta última?

- não,da denunciante. Quase que a linchavam. Teve de deixar a terra! Eu próprio também pretendi ser rigoroso. conheço-as a todas, essas velhas que chafurdam no útero das que têm a menstruação atrasada. uma a uma, foram elas visitadas a meu pedido por um polícia à paisana. O homemchegava lá, aludia à gravidez inoportuna da esposa solicitava os serviços da criatura, todas aceitavam. Consegui reunir um processo volumoso. em seguida apresentei queixa ao tribunal com esses papeis. Sabes o que aconteceu? Nada. O tribunal não levou aquilo por diante, pôs-lhe uma pedra em cima, pela razão, disseram, de que não houvera começo de execução do crime. Ora aí tens. A verdade é que o tribunal se submete às ordens do governo e o governo está às ordens dos eleitores. Se em França houvesse uma sombra de autoridade, permitir-se-ia a venda livre dos inúmeros artigos destinados a evitar a concepção, os quais se vendem sem receita médica. Lê os jornais, Doutreval. Vê os reclamos impunemente exibidos, as clínicas para doenças de senhoras, as drogas que garantem o regresso do mênstruo, os laboratórios que certificam que uma mulher está grávida antes do segundo mês, enquanto ainda é tempo…. Umma publicidade cínica e ostensiva!conheces aquela especialidade farmacêutica anunciada de um modo simbólico, uma cegonha de bico acamado.na França diz-se que as cegonhas trazem as crianças no bico. A figuração era clara. Protestei. Obtive a proibição desse anúncio, o produto continua a vender-se sem rebuço em todas as farmácias. Consomem-se na região de Lille setecentas mil dozes de drogas abortivas. Sem contar as especialidades.para totalizar, multiplica o número por dois. ninguém acredita que nestes sítios existehoje um milhão e meio de mulheres cujas regras sejam difíceis não. Três quartas partes disto servem para abortos. Aliás, meu caro, os nomes desses remédios estão de tal modo espalhados que alguns dos nossos colegas são os primeiros a receitá-los às senhoras que os procuram, com a ideia mais ou menos confessada de se desfazerem do feto. É inofensivo…. Já se sabe, de modo que a mulher sai de lá contente, e não chega a abortar. Se o médico lhes não houvesse passado a receita,elas teriam comprado por si mesmas a droga e tomado uma doze dez vezes maior o que traria como connsequência o desejado aborto. Eis ao que chegámos.graças a tudo isto, a França em 1980estará reduzida a vinte cinco milhões de habitantes. Se não se aceitar o voto familiar, o voto plural ou, pelo menos um sistema eleitoral que dê aos escóis de todas as classes voz preponderante, se não regressarmos à religião, à moral, o governo dos melhores operários, burgueses e donos das terras podes crer que ficamos liquidados.

-bem sei, diz LAUSEFELD, quando Michel, ao visitar Anne Marie, lhe fala daquele assunto.a questão das fábricas, da mãe operária, uma calamidade, realmente; origem, com laicismo e a promiscuidade, do nosso baixo índice demográfico. Mas não somos os únicos responsáveis. Não acha que o Estado devia ter uma política de imigração? Repare onde alojamos os nossos operários, polacos, checos, italianos, argelinos: em quartos de aluguer, mobilados, um por cada família. É o bastante para os corromper assim que chegam e estragar-lhes o sangue novo e são que eles nos poderiam transfundir se fizéssemos uma selecção à entrada. Seriam precisos bons alojamentos, bairros operários em pleno campo, longe da fábrica, com serviço de caminhetas. Nós, industriais, já pensámos nisso. Não quiseram. Quem é que não quis? Mooreman, Becquerel, os senhores da Câmara Municipal, E os eleitores que eles perdiam! Faz lá ideia Preferiram construir no centro da cidade uma colecção de prédios enormes, com divisões exíguas e insalubres, onde cada janela representa mais um voto nas eleições, mas, é claro, onde nunca haverá nascimentos! Está a ver a comodidade que seria terem umas poucas de crianças num só aposento! Conhece os nossos casebres, aqueles barracões infectos. Quis comprar um lote deles e mandá-los demolir. Não me concederam autorização, porque há um camarista que tem um botequim nesse bairro... e eu dispersaria a clientela. .. Tive de desistir e limitar-me a mandar calcetar os quintais, a instalar água potável e a distribuir vasos com plantas... Diga-se de passagem que dezoito dos nossos camaristas têm botequins por sua conta. Reina atavernocracia, doutor. Ela dará cabo de nós.

Em compensação, existe a senhora Daubian, que ficou outra vez grávida, passou nove meses estendida numa cadeira e deu à luz um menino, assistida por Michel. Não tem dinheiro e trabalha como carregador na fábrica, esse Daubian, que já foi rico, esse descendente de boas famílias, que lava a loiça pela mulher, ao chegar a casa. E, contudo, que alegria quando se realiza enfim o seu desejo de ter um filho, depois de tantos anos de expectativa e de sofrimentos voluntariamente suportados! E Êvelyne, já restabelecida do mau sucesso e que, de novo, espera um nené para o fim do Verão! E os Dauvillé, casal de operários: a mulher teve um filho no sábado passado. São ambos antigos «jocistas»: coragem, amor e falta de dinheiro. O parto foi difícil. Dauvillé, aflito, atormentado, não deixou a mulher um só instante. Agarrava-lhe nas mãos, enxugava-lhe a testa, consolava-a, tentava sossegá-la quando ela soltava gritos, trazia-lhe café, dava-lhe vinagre a cheirar e proferia palavras tão meigas, tão enternecedoras que, por um momento, os olhos de Michel se humedeceram. Lares assim, onde o amor subsiste, resgatam tudo... Nessa manhã, quando Michel chegou a casa dos Dauvillé, encontrou o operário sentado numa cadeira baixa com o seu menino sobre os joelhos, ocupado a pôr-lhe os cueiros: agia com tanto cuidado e delicadeza como se fosse mulher. Levantou-se à chegada de Michel, e ali ficou, de pé, magro, franzino, com o seu velho boné na cabeça. Com a mão direita, segurava na criança pelo traseiro, e mantinha-a de encontro ao peito com a mão esquerda espalmada sobre os cueiros talhados dum lençol - mão grande, escura, forte, que parecia de alguém mais sólido que ele, calejada pelo trabalho, rugosa nas articulações, de unhas curtas, fendidas, estragadas... O homem tinha um ar feliz e sorria para Michel, com a carinha do filho encostada à sua. Havia nessa paternidade simples e satisfeita algo de grandioso. Durante todo o dia, Michel recordou-se da imagem daquele São José trigueiro e contente, a apresentar com a mão forte o seu menino ao mundo. Lembrança consoladora, que impõe nova confiança no futuro... Ainda existem na terra mais homens de boa vontade do que seria preciso para nos salvarmos!

O corpulento Lavaisne, industrial de aguardentes, morreu - oficialmente, duma apoplexia. Certa noite, a mulher chamou Michel ao telefone.

- Venha depressa, senhor doutor. Meu marido teve uma congestão. Não, não foi em casa. Na rua Louis-Blanc.

Nesta rua habita a amante de Lavaisne, a qual lhe meteu na cabeça uma bala de revólver. Casa em desordem, sangue desde’o vestíbulo até aos quartos. Michel chega a tempo de arrancar das mãos de Robert - o infeliz estudante sifilítico - a amante do pai, que ele queria estrangular. A senhora Lavaisne e a filha rebuscam as gavetas. No primeiro andar, sobre a cama de colcha de seda amarela, tingida de vermelho, agoniza o colosso.

à cabeceira um padre segura-lhe a mão, interroga-o em voz baixa, ao ouvido. Deve estar a perguntar-lhe:

- Envenenou os outros para enriquecer? Ganhou mal o seu dinheiro? Empregou-o mal?

O industrial não pode falar. Por instantes, aperta a mão do sacerdote, o que parece querer dizer sim. Minutos depois, morre.

Enquanto Michel redige a certidão de óbito, a senhora Lavaisne e a filha percorrem, à vontade, todas as dependências da casa da rival. Esvaziam as secretárias, verificam os papéis e as facturas, buscam um possível testamento. Encontram os recibos do aluguer do prédio, da compra da mobília; está tudo em nome de Lavaisne, de modo que podem vender outra vez os móveis. Michel, depois de muita hesitação, decide-se a alterar a fórmula consagrada «morte natural» e a escrever simplesmente que morreu no dia tantos de tal... Todavia, a coisa tinha os seus inconvenientes. A omissão de «morte natural» não iria levantar suspeitas? Mas incluir isso na certidão seria uma falsidade, que os tribunais podiam vir a conhecer. Nem sempre é fácil salvaguardar o segredo profissional.

Com essas histórias de certidões, Gaspard Becquerel arranjou uma complicação para si. Os Simonet mandaram-no chamar, logo depois de Michel se ir embora, e Becquerel concordou facilmente em atestar que a menina Simonet tivera um nado-morto de cinco meses. Mas a Administração do Concelho tem o seu médico, e este lembrou-se de verificar o caso. Reconheceu um feto de oito meses. Não foi muito fácil a Becquerel sufocar essa questão, sobretudo porque já estivera implicado na história duma fractura, de que ainda falavam no sindicato dos médicos. Tiriez, facultativo da companhia de seguros «A Solidariedade», ao rever os processos, topara com a fotografia da fractura duma perna, tão nítida, tão bem feita, que lhe suscitou desconfiança. Por acaso, fora Becquerel quem tratara do sinistrado. Tendo convocado o colega, Tiriez falou-lhe desta maneira.

- Esta fractura é realmente esplêndida. Plus belle que nature.

- Não percebo...

- É capaz de me trazer a chapa fotográfica original?

Dou-lhe um prazo de dois dias. Seremos discretos. Mas se, findas as quarenta e oito horas, eu não tiver em meu poder a chapa, o Delegado receberá uma participação em forma... Horas depois Becquerel trazia a chapa. Precisamente ao meio, na altura do osso, um traço vigoroso de lápis simulava a famosa fractura inexistente.

- O imbecil do meu enfermeiro... -tentou explicar Becquerel.

Não houve seguimento. «A Solidariedade» limitou-se a guardar a chapa com os restantes documentos, no cofre forte, conforme já fizera a outros processos duvidosos. Becquerel é deputado. E convém à «Solidariedade» ter o maior número possível de trunfos para o caso de certos partidos políticos apresentarem no Parlamento qualquer proposta de nacionalização das companhias de seguros...

Um caso de difteria. Outro. Terceiro. Roy e Holmont verificam outros ainda. Todos os pequenos atacados da doença frequentam a escola Louise-Michel, na cidade vizinha, administrada por Becquerel e Mooreman. Michel e Roy procuram este último, que é deputado e presidente da Câmara.

- Senhor presidente, seria de grande prudência fechar a escola.

- Está bem - responde Mooreman, impressionado. Falarei com os meus colegas. Aliás, é do regulamento.

Mas a Câmara não é dessa opinião. Deixem lá o regulamento! Não há coisa que indisponha mais os operários, os eleitores, como o facto de encerrar uma escola. Os pequenos começam a vadiar pelas ruas, arreliara as mães, tomam-lhes tempo, impedem-nas de ir à fábrica. A seis meses das eleições, não se pode fazer uma coisa dessas! Os vereadores opõem-se como um só homem.

- Que se há-de fazer? - diz Mooreman.

- Vacinar! - propõe Becquerel. - Vacina obrigatória para todas as crianças em idade escolar.

Entusiasmo. A vacinação está aprovada por aqueles que, no concelho, são senhores absolutos da saúde pública. Ora nem Becquerel nem Mooreman sabem que a vacina jamais confere imunidade certa, que só principia a ser eficaz oito dias depois da inoculação, e, sobretudo, que durante essa semana a criança vacinada fica particularmente sensível aos riscos do contágio. Se, nesse período, ela for contaminada, nenhuma vacina a poderá salvar.

é medonho o mês que se segue. Epidemia diftérica. Michel passa quatro noites consecutivas à cabeceira dos petizes moribundos. Tosse, febre, sufocações, crises de asfixia. Depois os pés gelam. O frio alcança a barriga das pernas, os joelhos, as coxas, o ventre, o coração. E nada que o evite! Nem o próprio soro actua, esse meio brutal e desesperado a que Michel ten, por fim,-de recorrer. Não produzem efeito quatrocentos centímetros cúbicos de soro injectados a um dos doentinhos. E todos esses pequenos sabem quais os seus camaradas que foram atingidos e quais os que já morreram. Assim, dizem a Michel que vão morrer também. Michel corre, luta, bate-se, mente, consola, reconforta, arrisca a vida, leva para casa, todas as noites, uma possibilidade de contágio, que seria mortal a Évelyne, e vê finarem-se, uma após outra, crianças de oito, nove anos, nos braços das mães semiloucas, sem poder acudir-lhes, sem ter o direito de acusar os responsáveis.

Um pouco antes do dia de Todos os Santos, Mooreman manda chamar Michel por causa do filho, Jean, rapaz de vinte anos. Era Becquerel que o havia tratado até aí. Mooreman tinha grande confiança no seu amigo. Mas Becquerel não deixará de ser culpado na morte do filho de Mooreman. O rapaz é tuberculoso e Becquerel tratava-o com pastilhas e xaropes. Consultado sobre a oportunidade duma análise da expectoração, o médico declarara:

- Ainda não chegámos a esse extremo. Aliás, o doente não corre nenhum perigo.

No entanto, o pai acabou por se alarmar perante o declínio do rapaz. Chamou Jacquinet e pediu-lhe que dissesse a verdade.

-- É assunto liquidado - respondeu este. - O seu filho não chegará à Primavera.

Não se sabe que palavras trocaram entre si Mooreman e Becquerel. Ocaso é que já não os vêem tomar juntos o comboio de Paris. Jacquinet prescreveu, entretanto, um tratamento qualquer. Mas nessa altura sugeriram a Mooreman:

- Chame Doutreval. Ele não é parvo, com o tal sistema das dietas e da higiene minuciosa...

O deputado pediu a opinião de Jacquinet. Este, que tem atendido de graça certos doentes de Michel, que perde dias de trabalho para dar consultas a pessoas que não lhe podem pagar, não deixou contudo de esboçar um gesto de desagrado excusável. E ripostou, com certa superioridade:

- Doutreval? Ora! Médico de bairro, com alguma prática, evidentemente...

Todavia, porque convém ser leal, acrescentou:

- Em todo o caso, você não perde nada com isso. E o método dele tem coisas boas. Chame-o.

Jacquinet, porém, não deixara de ser clarividente. O rapaz está condenado.

- Conserve-mo ainda um ano, doutor! - suplica Mooreman. - Faça com que ele viva um ano mais!

Chora. É apenas um homem digno de dó, cujo filho vai morrer. Michel, comovido, promete. Experimentará. Lutará. Nova responsabilidade, bastante pesada, nova batalha contra a morte, com a certeza da derrota final; mas não desanima. Assim é a grandeza da profissão: combater até ao último sopro de vida, mesmo sem esperança, com a satisfação e o orgulho de ter poupado sofrimentos, dulcificado horas que seriam cruciantes, preparado uma doce e pacífica morte...

Nessa manhã, muito cedo, o marceneiro Wilder vem chamar Michel, com urgência. Michel corre a casa dos Wilder sem sequer se ter lavado. O pequeno deles tem convulsões. é bastante dramático, sem ser grave. Os pais perderam a cabeça. Michel tira o casaco, acende o fogão, aquece água, prepara tachos, flanelas, toalhas. Depois despe a criança, conserva-a sobre os joelhos e aplica-lhe panos molhados em água fervente. Em seguida, banho completo. O pequeno vomita no colete de Michel quaisquer porcarias, sossega e adormece. Às seis horas, patinhando as poças de água, o carvão e a cinza espalhada, e dando pontapés nos utensílios de cozinha negros de fuligem, Michel, em camisa, de mangas arregaçadas e contente, depõe enfim no berço a criança adormecida e declara, limpando a cara:

- Creio que está salvo.

A mãe chora, agradece, torna a chorar, e resolve fazer café. O pai assoa-se. Michel faz o seu sermão, semeia algumas verdades, bebe um café intragável, lava as mãos e veste o casaco sobre o colete emporcalhado. Que dirá Évelyne?

- E agora, senhor doutor, quanto é que lhe devemos?

- pergunta o homem.

Michel conhece Wilder: é um pobre diabo, duas vezes sinistrado, uma atrás da outra.

- Uma visita, Wilder. Quinze francos.

Michel regressa a casa. São quase sete horas. Muito tarde para se deitar. É-lhe sempre agradável, nesses momentos de fadiga, encontrar Évelyne levantada, à espera dele. Censura-a um pouco, mas no fundo sente-se contente por tê-la a seu lado, ouvi-la pairar enquanto lhe prepara o café, as fatias de pão com manteiga, a água quente para a barba, a toalha seca, a roupa limpa...

E começa o dia de Michel, o seu dia de médico de bairro, segundo a frase humilhante de Jacquinet. Durante toda a manhã, visitas. Ao meio-dia, hora do almoço, chega de Arras, em caminheta, uma velha aleijada que Michel tem de examinar no próprio veículo. Refeição abreviada. Da uma às quatro da tarde, no exíguo consultório que, por fim, já cheira a suor, ele vê doentes e doentes.

As quatro horas, fatigado, com a cabeça pesada, Michel sai uns minutos para respirar o ar puro do jardim e fazer um pouco de companhia a Évelyne, a quem a nova gravidez força ao repouso. Depois, como é sábado, vai ao seu giro hebdomadário, visitar os que estão condenados. Consulta a agenda de capa de oleado preto, onde se encontram assentes os nomes de todos os doentes que morrerão dentro de dois meses. Borghère, em primeiro lugar. Michel vai vê-lo, ausculta-o, modifica pequeninas coisas no regímen. Dá uma palmada amigável no torso peludo e descarnado, palmada optimista, familiar, mentirosa, amiga... Borghère sorri,,reconfortado para toda a semana.

Cinco minutos em casa dos Labuire. Sentada junto da cama do seu paralítico, a velha Pauline joga à bisca com o marido. Labuire já não vê bem. Os dedos mortos deixam cair as cartas. Pragueja. Paciente, a velha Pauline reúne o jogo, coloca-lhe uma a uma as cartas nos dedos, recomeça a partida. Desculpa-se, envergonhada, à chegada de Michel.

- Não é por prazer, senhor doutor. Tenho tanta roupa para lavar... Mas ele, coitadinho, só se distrai com isto...

Maria Van Meulen tem cinquenta anos. Paralisia geral. Está doida, mas o marido, Victor, não quer que ela entre no manicómio. E como a louca se tornou furiosa, ele atou-a à cama e pôs em volta do leito uma barricada de tábuas. É o marido que a lava, que a trata... Para a alimentar, sobe para cima da cama, ajoelha-se sobre a mulher, mantém-na entre as coxas, mastiga um bocado de pão e retira da boca essa massa que ele obriga a doida a engolir, enquanto ela pragueja e se esforça por lhe bater. Há dois anos que o homem a faz viver assim.

- Então, Victor? Ainda não se decidiu pelo manicómio?

- Oh, não, senhor doutor! Ficava tão desgostosa! Há ocasiões em que me reconhece, tenho a certeza...

Uma visita a Daudenaerde, outra ao comissariado da polícia para verificar a morte duma rapariga que foi trucidada por um ónibus e cujo fígado irrompe do ventre como um enorme cogumelo acastanhado, e Michel volta para casa. Seis horas da tarde. .. A ideia dum pouco de repouso no jardim em companhia de Bvelyne fá-lo acelerar o automóvel.

À porta da residência, no fim da alameda de salgueiros, está alguém a tocar a campainha. Michel apeia-se do carro. É o pai de Francine Ray, a pequena tuberculosa.

- Desculpe incomodá-lo, senhor doutor. é por causa da minha filha... Ela quer vê-lo...

Justifica-se, atrapalhado, com ar comprometido.

- Bem sei que não vale a pena, que já não pode fazer nada pela rapariga... Mas é o fim, senhor doutor. Já se chamou o padre, ela está a morrer... E como a tratou sempre tão bem e ela gostava muito de si... A pequena disse-me assim: «Pai, eu desejava tanto ver mais uma vez o senhor doutor.. > Por isso é que me atrevi a vir cá. Sabe o que são caprichos de doentes, senhor doutor... Tem de perdoar...

- Já lá vou.

Michel entra no jardim.

- Minha pobre Évelyne, não é ainda esta tarde que estaremos os dois muito sossegados...

Ela suspira, sorri.

- Que se há-de fazer! São ossos de ofício... Michel torna a entrar no automóvel. Não consegue,

porém, arrancar e resolve ir a pé.

O pai de Francine falou verdade. A pequena Francine Ray vai morrer. No entanto, reconhece ainda Michel. Sorri-lhe e diz em voz sumida:

- Senhor Doutreval, já não passo de hoje... Quis agradecer-lhe... Foi sempre tão bom para mim...

Nesse momento, não o chama «senhor doutor». é o «senhor Doutreval», um amigo. Faz parte da família. A moça pede um copo para ele, quer que Michel tome um pouco de champanhe. Indica-lhe uma flor, que está sobre a mesa de cabeceira e suplica-lhe que a guarde como recordação... Era um tanto romântica... Dezanove anos... A pouco e pouco, perde a noção das coisas. Ela própria o sente, tem medo...

- Senhor Doutreval... Por favor... fique ao pé de mim... Não me deixe sozinha...

E Michel fica, ao lado do pai e da mãe, à cabeceira da pobre rapariga. Esta agarra-lhe na mão, sente-se mais tranquila. .. Lentamente, mergulha na inconsciência. De vez em quando, reabre os olhos, uns olhos encovados e ansiosos, vê Michel debruçado para ela, com o pai e a mãe, e o seu terror dissipa-se. Até ao fim, Michel ajuda-a a morrer. A pequena Francine depositou nele uma confiança tão grande, tão ingénua e tão bela que, só pelo facto de o saber a seu lado, entrará nas trevas com menos pavor - como se, até na própria morte, aquele que na terra foi o seu médico e lhe dulcificou o sofrimento a pudesse ainda proteger.

É já tarde quando Michel deixa a defunta e regressa a casa. Ardem-lhe os olhos, ainda um pouco vermelhos. Aí vai ele, fatigado, através daquele bairro operário, correspondendo num gesto maquinal ao cumprimento das mulheres que estão sentadas à porta a tomar um pouco de fresco.

- Boa noite, senhor doutor! Boa noite! é Michel Doutreval que vai a passar, o médico de todos eles, más, o melhor dos facultativos... Muitas vezes não lhe pagam, mas têm-no em grande consideração. Não há outro como ele. Sorriem-lhe, mandam os garotos cumprimentá-lo, detêm-no para lhe falar e lhe pedir conselho. A capelista da rua Louis-Blanc, a quem, o ano passado, Michel persuadiu fosse a própria a amamentar o nené, chama-o para lhe mostrar, com orgulho, o traseirinho rechonchudo do filho. Michel olha e admira. De facto, é um traseirinho magnífico! A mulher de Borghère, que mora ao lado, aproveita a ocasião para lhe pedir receitas de cozinha. Não sabe como há-de fazer para o doente um guisado sem banha nem manteiga. Michel aconselha-lhe óleo de amendoim. Mais adiante, os Letilleul, à porta da taberna, anunciam-lhe de longe:

- Já traspassámos o botequim, senhor doutor! Havia seis meses que tinham por sua conta aquela taberna. Mas o casal sentia-se doente, os filhos vadiavam pelas ruas, as refeições nunca estavam prontas, deitavam-se tarde... Acabaram por dar ouvidos a Michel. Mais além, sentada numa cadeira baixa, a amamentar o seu menino, estava Hélène, a mãe-solteira, a tal que fora pedir a Michel um aborto e que, depois de chorar no consultório como uma Madalena, acedera a conservar a criança.

Michel passa junto daqueles casebres donde se evola cheiro a refogado. «Médico de bairro...» Repete a si mesmo as palavras de Jacquinet, e já não acha ofensiva nem vexatória essa designação. Pois seja, médico de bairro! Um homem que anda de manhã à noite, que renuncia a passeios por causa dum doente que piorou e pode precisar dele, que tem na sua agenda uma lista interminável de nomes de pobres diabos que ele tratou, que jamais lhe pagarão e que Michel voltará a tratar, fingindo-se tão esquecido como eles. Um discípulo de Domberlé, homem que semeia a verdade, que obriga os Letilleul a se desfazerem do botequim onde estragavam a vida familiar, que descobre lugar no campo para uma petiza tuberculosa, que decide os Lausefeld à empregarem menos quantidade de mulheres na fábrica e que arrosta constantemente com o fardo dos outros; homem a quem procuram para revelar taras, adultérios, sífilis, abortos, assassínios, pois que ele é o médico e pode, visto isso, encarregar-se de todas as misérias e de todos os erros de que se descartam sem hesitação e sem consciência; homem que sacrifica uma tarde por semana, sem mais proveito do que estar junto de Borghère e de Daudenaerde, só porque esses clientes vão morrer; que reconforta uma solteira tornada mãe, come um prato de sopa em companhia dum operário, para o não melindrar, passa uma noite ao lado das parturientes, faz curativos a um garoto doente, dá-lhe banhos, suja o seu melhor fato... E, quando lhe perguntam o preço, esse homem responde, com secreto orgulho :

- Uma visita. Quinze francos!

Todos os dias tem ele de se apresentar nas casas de onde os outros fogem, dos diftéricos, dos que têm tosse convulsa, dos sifilíticos, dos tifosos, dos tísicos; tem de aceitar diariamente, para si e para o seu lar, riscos de contágio mortais, sem que esses a quem trata se admirem e se lembrem de lhe agradecer. Pois se é médico! Médico de bairro

Ultrapassadas as últimas habitações do arrabalde, Michel volta para casa através do campo silencioso. A aragem bole de leve as folhas das árvores. No crepúsculo já. denso voam morcegos. Michel evoca Francine Ray e os olhos marejam-se-lhe de novo. Que ao menos Évelyne não perceba que ele chorou! Inquietar-se-ia, haveria de o observar toda a noite, às ocultas, sem nada lhe dizer. Évelyne está sempre apreensiva. No íntimo, não se considera ainda segura e há ocasiões em que se recrimina por ter sido um obstáculo a Michel, talvez a causa da sua mediocridade... Mediocridade é possível, aos olhos dos homens. Pouco dinheiro, trabalho árduo, mulher doente... Sobressalta-o a ideia do próximo parto de Évelyne. Se soubessem que podia ter casado com Simone Heubel, viver ao lado duma companheira robusta, numa existência de luxo, de honrarias, de facilidades! Então é que, aos olhos dos homens, surgiria como um verdadeiro insensato... Sim, Évelyne trouxe-lhe a mediocridade; mas nesse momento, caminhando só através do campo, ainda impressionado pela morte de Francine, Michel, com estranha lucidez, sente que tem vivido com forme a verdade, que deve a Évelyne a alegria, a única alegria acessível ao homem. Foram as desgraças de Évelyne, a sua doença e as suas dificuldades, que lhe fizeram compreender Domberlé; que lhe deram, com as chaves da saúde e da sabedoria, o poder inestimável de aliviar e de curar. Depois de Domberlé, ela serviu, por sua vez, de. exemplo a ele e aos outros. O esplendor da verdade só lhe foi concedido graças a Évelyne. e que mais belo destino, esse de viver por amor da verdade?

Da caridade, também. Évelyne salvou em Michel o que há de melhor no homem, o coração. Foi através dela que se livrou das mentiras do dinheiro, que conheceu a vida na sua realidade, que se aproximou da dor e da pobreza, na sua fealdade desesperada; levando-o ao sofrimento, fizera dele um homem. Foi através de Évelyne que Michel aprendeu a amar o seu semelhante, para além das vilanias humanas; que os seres se lhe revelaram em toda a sua grandeza, no meio dos andrajos e da vérmina, e os soube ver na única forma que não ilude : como um solo bravio onde se pode semear a verdade. E foi a Évelyne que ficou devendo a sua recompensa-a popularidade humilde, o sorriso e as saudações dos garotos da rua, a quem curou do sarampo; e algumas vezes, como à cabeceira de Francine, uma dessas comoções breves, pungentes e magníficas, cuja lembrança o há-de reconfortar pela vida fora. Nada disso teria Michel conhecido se não fosse Évelyne. Deve-lhe tudo; ela guardou, preservou nele a faculdade de se comover, de se consagrar a alguém, de estimar. Foi a sua moral e a sua consciência; salvou-lhe a mocidade.

é noite, e Michel segue pelo caminho ladeado de salgueiros enquanto evoca esse rosto bendito. A gratidão e a ternura enchem-lhe o coração. Inconscientemente, apressa o passo: gostaria de já estar junto dela e de lhe dizer o que sente. O amor é isso. Para além das dúvidas, das fadigas, dos desânimos, das tentações, das horas de desespero, em que julgou não amar, em que supôs ter feito uma loucura (segundo o conceito dos homens): para além disso tudo brilhou aos seus olhos uma claridade nova e resplandecente. Foi necessário renunciar, abdicar das ambições, do orgulho, da esperança de ser feliz, aceitar a pobreza, a fealdade, a doença, a morte. Dia a dia, à custa de suor e de lágrimas, foi preciso suster Évelyne e dar-lhe vida. Ela viveu devido a esse sacrifício. Michel concedeu-lhe a própria força, a própria substância vital. Sabê-la contente, garantir-lhe uma tarde de repouso, uma noite sossegada, fazê-la sorrir, acalmar-lhe um sofrimento, afastar uma recordação má ou dulcificá-la, trazê-la distraída, consolá-la, educá-la, eis a única alegria que Michel havia solicitado. Como preconizava Domberlé, viveu tal um místico, aceitou esse papel insensato de levar a cruz duma infeliz, de expiar com ela os pecados da humanidade. E eis que o milagre se realiza. No dia em que consentiu ver morrer o próprio amor, em que não pediu mais nada e nada esperou de Évelyne, em que se lhe votou sem exigir recompensa, sem o menor cálculo ou esperança, surgiu um amor novo, depurado, triunfante, indestrutível, liberto das servidões do egoísmo. Ele, que renunciara ao universo, que quisera limitar o seu horizonte e a sua vida ao pobre rosto duma criatura fugidia e votada à morte, pôde encontrar nessa privação todos os entusiasmos, esplendores, comoções e alegrias que o universo inteiro seria capaz de lhe ofertar.

Tudo se merece, é bem de crer. Verdade, graça, génio. E até o amor. O amor do homem e da mulher não será pois, também, como o resto da vida humana, o símbolo, o reflexo duma grande obra de resgate? É por isso que o amor tem esta exigência e esta promessa:

- Renuncia a ti mesmo, e encontrar-me-ás.

Fez-se mister que o marido de Êvelyne renunciasse, se despojasse do egoísmo e, como querem as Escrituras, se sacrificasse por aquela com quem casou. Resgatou-se. E hoje, purificado de tudo quanto lhe restava de material e terreno, ama com outra e indestrutível ternura e pode declarar ao ente querido:

- Ano-te! Amo-te acima das tristezas e misérias da tua humanidade, das tuas fraquezas e provações, ou até por elas, pela renúncia, dependência, sofrimento, suor e lágrimas que me custaste!

 

No fim de Setembro de 1938, Michel foi chamado, com a sua classe, ]na altura da mobilização parcial que precedeu a entrevista de Munique.

Partiu com antecedência de doze horas. Tinha de passar em Paris, e não queria deixar de se despedir do mestre a quem Êvelyne devia a saúde, e ele a revelação da verdade.

Encontrou Dotnberlé na sua casa de Saint-Cyr, onde o velho médico, depois que deixara o sanatório, dava consultas diárias. Domberlé, agora, muito cansado e meio enfermo depois duma queda que lhe ofendera a espinha dorsal, já não saía e usava um colete de coiro e de ferro.

- Mas tudo isto me é útil! - disse ele. - Fiquei a saber o que é a velhice. Faltava-me ainda esta experiência...

Falaram da guerra. Domberlé não acreditava nela. Era desses que, embora percebendo as causas do mal e profetizando castigos para breve, não chegam a aceitar o horror do futuro que entrevêem.

- Não - disse ele - não é possível. Espero um milagre. Seria uma coisa pavorosa!

- Mas não é impunemente que abordamos assim o abismo - objectou Michel. - E bem vê que nos aproximamos cada vez mais. A França tornou-se mais fraca; existência muito fácil, egoísmo desenfreado, concepção materialista de vida espalhada por todo o povo, trabalho de mulheres na fábrica, vida das cidades, tabernas, decréscimo da natalidade, tudo isso causou mais estragos do que se pode imaginar.

- A França é uma doente com as imunidades naturais enfraquecidas -murmurou Domberlé.-Vítima designada para grave enfermidade, revolução ou agressão armada... O corpo social reage como um organismo individual...

Reflectiu um instante e em seguida abanou a cabeça.

- A guerra! Pobre país! Pobre povo! Pobre França!

- De facto - concordou Michel. - Mas eu não encaro senão a possibilidade duma vitória. E para nós, moralmente, a vitória já será um desastre. Que orgulho, que frenesi de gozo, que libertação dos nossos piores instintos... Seria quase preciso que a vitória nos deixasse exangues para não nos levar à decadência fulminante.

- Qualquer que seja a nossa vitória, Doutreval, qualquer que seja o fim desta guerra, no futuro da nossa civilização está inscrita a decadência, se não reformarmos de alto a baixo o nosso teor de vida. Acabada a guerra e pensadas as feridas (o que será rápido, graças ao industrialismo) em que se tornarão os povos?

- Creio - respondeu Michel - que hão-de conhecer horas de opulência e de facilidade, o que eles chamam bem-estar: semana de trinta ou vinte e quatro horas, automóvel para todos, férias, profusão de alimentos, distracções, prazeres, coisas de que nem fazemos ideia! Libertas de obstáculos monetários, aduaneiros e psicológicos, as nações, pela liberdade das trocas e predomínio das máquinas, vão ascender à abundância. Isso durará cinquenta, cem anos...

- Exactamente. E a sequência você sabe-a tanto como eu: assistiremos então a uma aterradora degenerescência da raça branca, dos povos civilizados. A abundância sem censura é a morte dos povos e das civilizações.

- Entretanto, em si mesmos, a abundância e o «descanso são um bem.

- Mas elevados pelo homem ao nível da sua cultura. Ora até aqui ele só os utilizou como instrumento de satisfações grosseiras. Não há dúvida. O maior perigo que ameaça a raça branca não é a revolução nem a guerra. É o domínio das máquinas, a ociosidade, a facilidade, a superabundância. Sirva de exemplo o facto de uma nação, a mais notável de todas, deperecer por haver querido pão sazonado sob outros climas, e legiões mercenárias, e jogos de circo. A vida das cidades, o trabalho sedentário e malsão das fábricas, as diversões embrutecedoras, a alimentação artificial, química, industrial, ou fortemente concentrada e excitante, o excesso de carne, de açúcar, de álcool, de tabaco, de café, de conservas e de produtos farmacêuticos, todo esse modo de vida que não foi feito para o homem provocará de forma irremediável o declínio rápido pelo artritismo. Nada o impedirá, nem vacinas, nem soros, nem remédios específicos, nem sanatórios. E nessa altura, por mais bela que tenha sido a nossa civilização europeia, ela afundar-se-á depressa, deixando uma lacuna maior do que essa que deixou Roma. Julga que exagero?

- Não, senhor. O que eu acho é tudo isso muito sombrio.

- Seria muito sombrio se, como é de regra, não prevalecesse o melhor.

- Tem razão. Não posso crer que se malogre todo o esforço da inteligência para se evadir da animalidade, para melhorar a sua condição terrestre e aproveitar-se devidamente, como é justo, das forças da natureza. Não será para isso que os sábios vêm penando desde há tantos séculos i

- De acordo - volveu Domberlé. - Chegaremos a utilizar o dom real da ciência, e graças à medicina, quando esta se desembaraçar das suas aberrações e tiver o cuidado de tornar a pôr o homem em plena natureza. Levará muito tempo? Talvez não. Em todo o caso, está escrito. A verdade triunfa sempre.

- A medicina de amanhã tem perante si esplêndida missão - corroborou Michel.

- Tem, meu amigo: compreender os erros, fugir à multiplicidade das doenças e do sintomatismo, regressar a uma noção unitária, geral, humoral da saúde e da doença.

E lutar por esclarecer os homens, instruí-los desde a infância sobre as causas reais dos nossos males, sobre as leis que regem o ser humano, sobre a necessidade duma alimentação baseada em cereais e frutas, à qual, fisiològicamente, ele está adaptado. Sem dúvida que o legislador deve ajudar...

- Para isso exigem-se grandes modificações no sistema actual do sufrágio, pretensamente universal - objectou Michel. - Esta aparência de governo pelo povo é na realidade um instrumento de escravidão nas mãos dalgumas minorias poderosas. Conviria que os escóis (não falo só dos do dinheiro e da cultura, mas também do trabalho) tivessem voz e fossem escutados. Entregue a si mesma, a pobre massa popular evita, por instinto, o esforço, segue os pregadores que a envenenam para a explorar, acenando-lhe com facilidades e gozos materiais.

- Diz muito bem - concordou Domberlé. -Impõe-se a preeminência da nata das sociedades, seja de que classe for. Por toda a parte se encontram pessoas de bom senso, capazes de compreenderem as justas regras da vida. É difícil distingui-las? Decerto. Mas tudo se resume em achar um meio de avaliar o indivíduo pelo seu valor moral e dar-lhe, além da consideração que tem dentro da sua classe social, uma parte dos direitos políticos inerentes a esse valor.

- Poder-se-iam utilizar os «sinais exteriores» -sugeriu Michel.

- Com certeza! A família, a qualidade profissional, a actividade altruísta... Assim apoiado no verdadeiro escol, o legislador podia auxiliar prodigiosamente o esforço da medicina que se instruísse de todas as leis de ordem individual, favorecer o género de vida mais salutar à comunidade, orientar o labor, o repouso, a alimentação de todos... Adeus, meu caro Doutreval. Tornar-nos-emos a ver. Em todo o caso, se não nos encontrarmos mais na terra, aí ficam estas profecias... Oxalá a medicina compreenda a sua missão e torne a descobrir, com a verdade, esse destino único que lhe está hoje apontado. Em menos dum século terá ela de salvar a raça branca, a nossa civilização, a maravilhosa floração intelectual, moral, religiosa de dois mil anos de humanismo e de cristandade.

Michel, ao aproximar-se da estação de Leste no dia seguinte de manhã, para tomar o comboio de Châlonssur-Marne, teve a fortuna dum encontro feliz. No meio duma turba tumultuosa de mobilizados, de mulheres, de crianças, apareceu um tenente em uniforme de caqui, em cuja gola se ostentava um caduceu. Sorridente, o oficial bateu-lhe no ombro e Michel reconheceu Belladan, seu antigo colega da Faculdade e agora inspector geral dos Serviços Sociais. Como ia também para Châlons, reunir-se ao seu regimento, e partia de automóvel, convidou o amigo a acompanhá-lo.

Michel fez assim o percurso em carro, ao lado de Belladan. Falaram de Tillery, de Seteuil, de Santhanas, dos professores, da Faculdade - e o trajecto pareceu-lhes curto. Estavam em Châlons um pouco antes do meio-dia. Enchia as ruas e os largos uma incrível torrente de homens, fardados e à paisana, caminhões, ambulâncias, automóveis, verdadeira agitação dum formigueiro em reboliço. Através deste tumulto, Belladan conduziu Michel até à secretaria do hospital militar, onde o deixou.

Foram logo cumpridas as primeiras formalidades rituais. Em seguida, Michel foi apresentar-se ao tenente-coronel Marchelier, sob cujas ordens devia trabalhar. Marchelier, médico militar, jovial, barbudo, de tez bronzeada por dez anos de colónias, mandou Michel vigiar o trabalho das enfermeiras ocupadas na desinfecção das salas de cirurgia. Foi aí que o novo mobilizado esteve, toda a tarde, a dirigir o pessoal.

Seriam umas sete horas da tarde. Anoitecera e tinham já desde muito tempo vedado as janelas e acendido a electricidade quando, do corredor, uma voz estridente chamou por Michel.

- Doutreval! Doutreval! Onde estará ele metido? Michel reconheceu o tenente-coronel Marchelier.

- Diga-me cá, meu rapaz, você é de Angers? Bom. Vá a toda a velocidade ao pavilhão de Dupuytren. Está lá uma pessoa que lhe deseja falar.

Michel apressou-se a despir a bata, enfiou o dólman e embrenhou-se nas trevas. A noite estava muito escura. Através dos pátios, corriam sombras, chocavam umas com as outras na escuridão e praguejavam... Aqui e ali um vago ponto azul indicava um lampeão tapado. Depois de muitas apalpadelas, voltas, desvios e encontrões, Michel, conduzido por um soldado que, por acaso, possuía uma lanterna de algibeira, chegou ao pavilhão indicado. Entrou, seguiu pelo corredor e encontrou-se na sala do rés-do-chão, fortemente iluminada. Havia ali duas filas de camas vazias com lençóis limpos e bem esticados. Cá e lá, andavam enfermeiros com ar atarefado. Ao fundo da casa, de costas voltadas para a porta, um oficial, alto, delgado, de cabelos abundantes e todos brancos, mas de aspecto ainda novo, esbelto no seu dólman azul de gola cor de vinho, dava instruções, apontando com uma bengala de junco anilhada de ouro para as camas que deviam ser retiradas a fim de se abrir uma passagem. Depois apoiou-se com tanta naturalidade à bengala, que mal se diria fazê-lo para disfarçar um defeito da perna. Aproximou-se. O rosto comprido, um tanto enrugado e envelhecido, estava singularmente pálido. Para sorrir a Michel, fazia um esforço que lhe contraía as feições de modo quase doloroso.

- Viva, Michel!

Devia ter havido grande mudança na vida de Jean Doutreval, uma alteração de ordem moral muito forte para que ele viesse ao encontro do filho, tomando assim a iniciativa da reconciliação. Michel sentiu-se comovido até às lágrimas à ideia da humilhação a que o pai se submetia. O seu desejo foi avançar e abraçá-lo; mas não se atreveu e contentou-se com apertar com força a mão que Doutreval lhe estendia.

- Soube que tinhas chegado - disse o pai com aquela voz enrouquecida que tinha nos momentos em que procurava dominar a comoção. - Pedi a Marchelier que te mandasse chamar. Numa hora destas, bem vês, é agradável a gente tornar a encontrar-se...

- Se eu tivesse sabido - replicou Michel - seria o primeiro a... Mas estava longe de supor...

-Que me encontrava aqui? Pois agora não podes duvidar! Retomei o serviço há três dias. Nas circunstâncias em que estamos pensei que poderiam necessitar de mim...

A voz clareara-se-lhe. Doutreval conseguira recuperar a naturalidade, e sorria.

- Telegrafei ao meu velho amigo Marchelier, que me arranjou logo trabalho aqui, apesar do estado da minha perna. Isto não impedirá que eu trate das dos outros... E tu?

- Também fui mobilizado.

- Sim, sim, bem vejo. Mas ainda não posso acreditar que haja guerra.

- Nunca mais lhe escrevi - disse Michel, com certo embaraço. - Tive receio... de que levasse a mal... depois do desgosto que lhe dei...

- E eu também não me atrevia, com medo que não me respondesses, que não me tivesses perdoado. Receei maiores apoquentações.. . Depois da tua partida aconteceram tantas coisas tristes...

Esboçou um vago sorriso, com que pretendeu animar-se, e prosseguiu:

- Considerava-me culpado para contigo. Fabienne incitava-me a escrever-te. Mas nunca tive coragem... Enfim, o mal está remediado agora, Michel! Voltaremos a conversar. Estás livre, esta noite? Queres que peça a Marchelier que te dispense? Gostava que passássemos uns momentos juntos. ..

-Já acabei o que tinha a fazer, pai. Estou livre por hoje.

- Óptimo.

Ergueu o braço, consultou o relógio de pulso e acrescentou :

- Sete horas. Vamos sair e, se é do teu agrado, jantamos juntos. Espera-me um segundo.

Foi dar instruções aos enfermeiros e, voltando para o lado do filho, encaminhou-o até à porta. -- Passa à frente. Tens carro?

- Não, senhor.

- É pena. Estou cansado.

Saíram ambos, desceram no escuro os degraus de pedra que conduziam ao pátio.

- Onde jantamos? - perguntou o pai. -- Onde quiser.

- Nesse caso, vamos ao melhor hotel de Chalons. Que noite de breu!

Nas trevas, tinham seguido a custo o muro que contornava o pátio. Uma vez fora do hospital, dirigiram-se para o centro da cidade, entre as sombras que os envolviam e lhes dificultavam o passo. De vez em quando, a inútil e funerária estrelinha azul dum bico de gás disfarçado. Aos tropeções, deixaram o passeio, chapinharam em poças de água. Defronte deles surgiu bruscamente um automóvel de faróis apagados, quase invisível. A multidão das ruas compunha-se de tudo: civis, soldados, oficiais, enfermeiras, grupos de bêbados, famílias inteiras que arrastavam a sua angústia através da vida da cidade, incapazes de dormir, procurando notícias, buscando uma razão para ainda terem esperança. Todos erravam lugubremente e se esbarravam entre o negrume. Abriu-se uma porta, que projectou na escuridão uma claridade suja, oferecendo, por segundos, o espectáculo duma taberna cheia de homens fardados, uns em bancos, outros de pé, acotovelando-se, comendo, bebendo, fumando, em meio de espessa nuvem e de indescritível burburinho. Depois a porta fechou-se, as trevas cá fora adensaram-se, cortadas, de espaço a espaço, pelo relâmpago débil e breve duma lanterna de algibeira que iluminava o tumulto daquelas sombras a se chocarem confusas na obscuridade sinistra, ponteada de luzeiros azulados. Aqui e ali, os cinemas abriam goelas de cavernas, onde o povo se precipitava; por instantes, ouviam-se risos no fundo daqueles abismos. O homem tem necessidade de esquecimento.

No largo principal, Doutreval, precedendo Michel, abriu dificilmente caminho entre a multidão que, às portas dos restaurantes, esperava a sua vez de entrar. Assim conseguiu ir até ao hotel, em cuja porta tiveram de transpor uma armação de tapumes. De repente viram-se numa sala de paredes altas, branca e iluminada, com espelhos, lustres, cristais, toalhas: alegria surpreendente após as trevas do exterior. Em grupos, jantavam oficiais de caqui, aviadores de uniforme azul escuro... Serviam-nos à pressa criados que não tinham mãos a medir. Doutreval e Michel comeram mal e com forçada rapidez, sem sequer se inteirarem bem do que lhes punham no prato. Tempos de guerra! Em volta, não se falava de outro assunto. Doutreval esperava ainda outro milagre, nnão se conformava em crer naquele horror. Depois dessa refeição sumária, levantaram-se logo para dar lugar a novos clientes e voltaram para a rua, tacteando nas trevas, este atrás daquele, a caminho do hospital. Para não se perderem, no meio daquela confusão de criaturas que vagueavam na cegueira da noite, era-lhes necessário não se afastarem um palmo um do outro. Chegaram por fim ao seu destino, meteram-se pelos compridos corredores brancos mal iluminados por lâmpadas encapuzadas e subiram ao terceiro andar.

- é aqui a minha guarita - disse Doutreval, empurrando uma porta.

Havia alguns livros à cabeceira do leito de campanha. No chão, um par de botas lustrosas. Ornava a prateleira do radiador a fotografia de Mariette emoldurada de vidro. Sobre uma cadeira viam-se camisas empilhadas, colarinhos engomados e outras roupas, à espera que o impedido viesse arrumá-las. Nessa ordem, nesse cuidado, revelava-se o espírito metódico e elegante de Doutreval. Sentia-se que já tinha organizado ali a sua vida. Na borda da janela estava um inexplicável caozito de pelúcia, brinquedo novo em folha, ainda com o rótulo do preço. Michel admirou-se, mas não disse nada.

- Senta-te.

Doutreval sentou-se também, defronte do filho, sobre a cama. Estendeu a perna, para a descansar, e disse ao rapaz:

- Estou contente por te haver encontrado.

- Eu não menos - respondeu Michel. Olharam-se um instante, em silêncio, considerando

todo aquele passado que tinham vivido, um sem o outro, e que na actualidade os separava. Era uma prova dolorosa. Bem podem duas pessoas compreender-se e estimar-se, reconhecendo os erros recíprocos: os golpes que mutuamente se deram não foram por completo esquecidos. Não doem, cicatrizaram, mas é no coração que eles se reflectem agora. E a vida é muito curta para que haja tempo de fazer reflorir o sentimento que morreu.

Doutreval rebuscou devagar nos bolsos, em busca dum cigarro.

- Onde estás ao presente? Que fazes?

- Em Nord. E o pai?

- Em Brison, perto de Aix. Fica próximo da casa dos Droux. Lembras-te dessa aldeia?

- Então foi viver para lá? Aposentou-se?

- Era necessário sair de Angers... Sabes que ela morreu - acrescentou, fazendo com a cabeça um gesto em direcção à fotografia.

- Sim, disseram-me.

- Continuei a trabalhar, a fazer investigações. Malogrou-se tudo! Percebi, tarde demais, que me enganara.

- Mas era assim forçoso abandonar a terra?

- Era. Comprometi-me demasiadamente. Só me restava calar-me e desaparecer.

- Uma vida inteira sacrificada!

- Que queres? Talvez fique alguma coisa dos meus esforços. Descobrirão outros métodos. Fala-se dum processo eléctrico. é possível, embora eu, de certo modo, já não acredite nessa terapêutica de choque, brutal em excesso. Enfim, isso competirá aos que me sucederem. A mim queres crer? - toda a minha obra não inspira mais do que repulsão, quase vergonha. Desconheci os escrúpulos da personalidade. Abusei do direito que tinha de experimentar em seres humanos...

- De boa fé, pai!

- A boa fé não é suficiente. Não é em nós que podemos encontrar normas de procedimento. Não nos fiemos em nós mesmos é fácil a gente iludir-se. Chama-se Ciência ao que é apenas orgulho. Nem a própria Ciência é um deus que possa dar resposta a tudo. Em nome dela, eu teria o direito de continuar com as minhas experiências, torturando os pobres loucos. Há perguntas ante as quais a Ciência permanece muda. Ao seu lado temos necessidade doutra coisa. A moral... - concluiu em voz baixa, como já arrependido.- E o pior - continuou - é que tudo isso me fez esquecer o resto. O próprio trabalho, Michel, pode ser egoísmo! Abandonei Fabienne. Deixei-a muito entregue a si mesma. Em suma... Não te falaram de nada?

- Não, senhor.

- Ela foi... teve... Enfim, tem um filho. Um pequeno. Foi por isso que parti.

- Fabienne! Oh, pai!

- Por minha culpa - murmurou Doutreval.

Em poucas palavras, ditas a medo, explicou o drama. Michel viu bem quanto o pai sofria com isso. No entanto, Doutreval não ocultou coisa nenhuma, nem o nome detestado de Guerran.

- E agora vivem nessa aldeia?

- É verdade. Exerço clínica. Dou consultas aos veraneantes de Aix. Fabienne toma conta da casa. Aos domingos vamos a casa dos Droux. Como vês, renunciei. - De facto, havia nele algo de mudado.

- E é feliz, apesar de tudo?

- Sim, Michel, bastante feliz. Sentia-me liberto de tudo.

Cria ter já tudo visto e conhecido, apreciado a inutilidade de todas as coisas: humanidade, família, dinheiro, honrarias, filhos... Considerava-me incapaz de me interessar fosse pelo que fosse, de me apegar ao que quer que houvesse. Depois (indicou o brinquedo, com o olhar) apareceu-me um netinho. E eis que este coração, que eu julgava morto, recomeça a bater por causa do miúdo... Voltei a viver. Meneou a cabeça, ficou uns momentos pensativo, com um vago sorriso nos lábios, distraído.

- E tu? - volveu dai a pouco. - Que tal? Tens tido sorte?

- Tudo me tem corrido bem.

- Que fizeste depois que... que...

- Casei. Acabei o curso. Houve um médico, já velho, que deu cura à minha mulher. Agora estou instalado em Nbrd.

- Já sabia de tudo. E estás contente?

- Muito. Sou médico de bairro. Cá me arranjo. Tenho um filho, um rapagão. Évelyne... minha mulher... espera outro. Trabalhamos. Não somos ricos, mas felizes.

Michel reflectiu um segundo, e continuou :

- Enfim, não é o que os outros chamam felicidade. Mas creio poder afirmar que somos felizes.

- De maneira que a vida não te desiludiu... De novo Michel reflectiu, hesitante.

- Não, senhor, não tive desilusões.

- Enganei-me. Não sofreste como eu - observou Doutreval.

- É certo que sofri com ela, e por ela. Mas, apesar de tudo... e por causa disso mesmo... talvez... Sim, por causa disso mesmo é que tenho sido feliz.

- Compreendo - murmurou Doutreval.

Ficou mais uma vez pensativo. Em seguida, lentamente, confessou :

- Acho inexplicável! Que possa alguém perder-se por outrem... e que lucre com o facto! O amor... É todo o mistério da existência. Aceitar perder-se e ganhar com o caso! Era a única coisa que me podia levar a crer... No fundo, talvez tenhas escolhido o melhor quinhão...

Jamais Doutreval fora tão longe.

- Queres ir a Aix? -recomeçou. - De tempos a tempos... gostava que nos encontrássemos... Preciso de conhecer os teus filhos. Perdemos já tanto tempo! é espantoso, não achas, isto de ter só uma vida, e perceber que ela passou como um relâmpago, sem a havermos aproveitado! Suspirou. De súbito, pôs-se de pé.

- Basta de tristezas! - prosseguiu. -São dez horas. Boa noite, Michel. Não, não há-de haver guerra. Dá-me notícias tuas, logo que regresses a casa. E vocês têm de ir a Aix, no Verão, durante as férias. Está combinado?

Acompanhou o filho até ao patamar.

- Não desço, por causa da perna. Não, amanhã não. Parto para Mourmelon, a fim de organizar uns serviços. Ver-nos-emos só nas férias... ou na guerra.

E, após ter meditado um pouco, rematou com voz surda:

- Se sempre houver guerra, dá-me sem demora o número do teu regimento, o nome do coronel, para que me previnam logo... se houver qualquer fatalidade... Mas não haverá guerra. Adeus, filho.

Estendeu a Michel a face dura onde a barba picava um pouco, e beijou-o também, rapidamente. Depois deu meia volta e afastou-se, coxeando, pelo corredor escuro, de regresso ao quarto, sem nunca se voltar para trás.

Foi o clamor dum bando de ébrios que anunciou a Michel, no dia seguinte de manhã, a grande novidade :

- Paz! Paz!

- Viva Daladier! Viva Chamberlain!

- Vamos festejar a paz!

Michel abriu a janela do gabinete onde trabalhava. Na rua, viu um grupo de homens, aos ziguezagues, gesticulando, a brandirem garrafas. Foram esses bêbados que deambulavam através da cidade quem lhe deu a saber que a guerra havia sido evitada.

No mesmo dia, ao anoitecer, Michel regressou a Nord, numa caminheta militar. O coronel Marchelier, tendo de enviar ajudantes a Lille e a toda a região da fronteira franco-belga, aproveitou a circunstância para encarregar Michel duma missão.

- Estará perto de casa quando o desmobilizarem acrescentou. - Felizardo!

A estrada, desimpedida até Cambrai, começou, passada esta cidade, a obstruir-se de comboios e comboios de carros que, até Douai e quase até Lille, forçaram a caminheta a ir vagarosamente atrás de caravanas intermináveis : pesados caminhões com toldos encerados, cheios de caixas de obuses e munições; canhões rebocados por tractores, ambulâncias, furgões de abastecimento, automóveis-lagartas, autometralhadoras, carros blindados, tudo isso num andamento uniforme e monótono, no meio do roncar dos motores, do ribombo surdo dos Diesels, do fragor das correntes, do estrépito das lagartas de aço sobre o pavimento. Era como um imenso rio de metal. Mesmo à frente da caminheta, Michel via arrastar-se, lento, pesado e robusto como um paquiderme, um gigantesco carro blindado repleto de chapas enormes - animal cego e maciço, conduzido por homens invisíveis. Apenas ao alto, no vértice de tudo aquilo, surgia a cabeça dum soldado que furara o toldo e exibia o seu capacete metálico. Lá do cimo, dominava os carros, a estrada, a multidão alinhada e silenciosa. Ao vê-lo passar assim, prisioneiro da blindagem, ansioso sem dúvida, a olhar para a distância, além da névoa azul e espessa que se erguia de tantas rodas - dir-se-ia estar-se a contemplar a própria face trágica, de carne e de ferro, da guerra!

A guerra! Ela se afastava, sinistra nuvem negra... Mas a sombra ficava pelos caminhos, nesse longo comboio, nesses homens ainda no ímpeto do avanço e que não se sustinham, nas caras daquela multidão oprimida, consternada, muda, que via deslizar esse rio de metal e se lembrava de invasões e devastações, depois duma semana de agonia, e não acreditava que a mão vigorosa que lhe apertara o coração houvesse enfim afrouxado.

Um pouco antes de Lille, a caminheta de Michel pôde escapar-se ao engarrafamento e correr em liberdade.

Os enfermeiros deviam ir até Dunquerque. Michel ficaria no sanatório de Saint-Jans-Cappelle, na falda do Monte Negro. Por causa dele, o carro fez um desvio e deixou-o no sopé do monte.

Ei-lo a subir agora o caminho íngreme que leva até ao pináculo. Jamais outro país lhe parecera tão belo, jamais encontrara terra, pelo Outono, mais serena do que esse recanto da Flandres, verde e ruivo, perdido entre florestas. Pinheiros sombrios dominavam o flanco avermelhado e cheio de barrancos dum areeiro. Algures, com um rumor igual e brando, deslizava um regatinho. Num relâmpago, uma lebre atravessou o caminho e desapareceu num buraco do valado. À direita, numa volta, o cemitério militar, inaugurado em 1914, alinhava no relvado extraordinariamente fresco as suas filas de lajes todas brancas, sepulturas de soldados, tão limpas, tão elegantes no meio daquela imensidade tranquila que o próprio pensamento da morte se atenuava muito. Ouvia-se mugir uma vaca. De Saint-Jans-Cappelle subia o apelo melancólico dum sino, na calma silenciosa. Depois da ameaça pavorosa da guerra, havia nesses campos, entre aquela doçura outonal, como que uma promessa magnífica e enternecedora de fecundidade, de alegria e de paz.

Dentro de poucos dias, Michel tornaria a ver a terreola, as caras familiares, os operários, as mulheres, as crianças. Ouviria vozes conhecidas:

- Viva, senhor doutor, com que então de volta!

Tornaria a contemplar o sítio onde, no meio de árvores, se ergue o velho telhado pontiagudo da sua casa; e o caminho ladeado de salgueiros, de folhagem verde e argêntea; e, sem dúvida, à entrada, de pé, uma delicada forma branca, a dar a mão a uma criança ainda vacilante nas perninhas curtas e rechonchudas. Adorado rosto frágil, tímida figura ansiosa a procurar com os olhos, na estrada, ao longe, a ver se chega enfim a silhueta desejada...

Êvelyne! Uma vez mais, num impulso de todo o seu ser, Michel dirige o pensamento para aquela a quem ama, e avalia tudo quanto lhe deve. Ela o remodelou e o reformou, recriando-o. Lembra-se do que era, antes de a conhecer; e do que ela fez do homem em quem depositou confiança, porque o viu, no fundo, melhor e mais belo do que era na realidade. Fora bem isso, fora no homem que ela ideara que ele havia querido tornar-se. Michel pode agora dizer-lhe:

- Trago-te o coração que tu moldaste, o ser que é obra tua.

Somos sempre assim, um pouco: filho da mulher que amamos. A missão da mulher é de recriar o homem.

Bela vida, belo destino na terra, esse de ter encontrado a verdade no amor. «Escolheste o melhor quinhão...» Michel repete as últimas palavras, o adeus um tanto triste do pai. E diz consigo mesmo que este falara com acerto. Escolheu o melhor quinhão. «Amor e renúncia de si próprio». Frase mestra da vida! É inexplicável, e exige Deus. «Que possa alguém perder-se por outrem e que lucre com isso! Era a única coisa que me podia levar a crer...» Doutreval tinha razão. Expulso, pelo homem, da terra e do céu, Deus estabelecera o seu último refúgio, inviolável, no coração do homem.

«Amados, amemo-nos uns aos outros, porque o amor é de Deus: e todo o que ama é nascido de Deus e conhece Deus. Deus é o amor».

E isso que queria dizer S. João. Eis em todo o seu esplendor e amplitude desmedida a mensagem do velho apóstolo dirigida ao coração terno, e que a doce Mariette, outrora, ensinava a Michel pequenino. E, quando o fazia, mostrava às vezes no rosto uma comoção de que ele dava conta mas que não compreendia. Aquele que ama vive em Deus!

Ele também, Michel, não acreditava em nada. Ele também, como o pai, negava à vida qualquer significado e qualquer objectivo. E, por ter amado uma vítima (em razão da sua miséria, por haver tido piedade dela e consentido em partilhar das suas lágrimas, das suas privações, da sua pobreza, eis que por trás do querido rosto triste e sofredor do ente amado transparece Outro Rosto! Eis que por trás de Êvelyne e do amor generoso da criatura dolorosa resplandece e o amor de Deus

Não há senão duas espécies de amor. O amor de si próprio ou o amor das outras criaturas viventes. Aquém do amor de si próprio há o sofrimento e o mal; além do amor do próximo há o Bem, há Deus. Cada vez que o homem ama para além de si mesmo pratica, conscientemente ou não, um acto de fé em Deus. Só existem duas formas de amor; o o amor de si mesmo e o amor de Deus.

 

                                                                                Van Der Schmeer  

 

                      

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