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Series & Trilogias Literarias
CORRENTEZAS DA MALDADE Michael ConnellyAcho que talvez eu saiba apenas uma coisa neste mundo. Uma única coisa. Que a verdade não liberta. Não como eu ouvia e como eu mesmo disse um número incontável de vezes em salas minúsculas e celas de cadeias, insistindo para que homens arrasados me confessassem seus pecados. Menti para eles, enganei-os. A verdade não irá salvá-lo nem juntar os seus pedaços. Ela não permite que você se levante acima da carga de mentiras, segredos e feridas do seu coração. As verdades que descobri me seguravam como correntes em um quarto escuro, um submundo de fantasmas e vítimas rastejando à minha volta, como serpentes. Um local onde a verdade não é algo para se contemplar ou se admirar. Um local onde o mal espreita. Onde bafeja dentro de sua boca, do seu nariz, até que você não consiga escapar. Isto é o que sei. A única coisa de que tenho certeza.
Eu sabia disso no dia em que aceitei o caso que me levaria aos estreitos. Sabia que a missão de minha vida sempre haveria de me levar a lugares onde o mal espreita, onde a verdade que eu possa encontrar será sempre uma coisa horrível. E, ainda assim, eu insistia sem cessar. E continuava a insistir, sem estar pronto para o momento em que o mal sairia de seu covil. Quando me agarraria como se eu fosse um animal e me levaria para o fundo da água negra.
Capítulo 1
Ela estava no escuro, flutuando em um mar negro, o céu sem estrelas lá em cima. Não podia ouvir nem ver nada. Era um momento absolutamente sem luz, mas Rachel Walling abriu os olhos.
Fixou a vista no teto. Ouviu o sopro do vento lá fora e os galhos da azaleia arranhando a janela. Não saberia dizer se fora aquele barulho no vidro ou algum outro que a tinha acordado. Foi quando o celular tocou. Rachel não se assustou. Calmamente, estendeu a mão para a mesinha de cabeceira. Levou o aparelho ao ouvido e já estava totalmente alerta quando atendeu, sem que a voz desse qualquer indicação de sono.
- Agente Walling - disse.
- Rachel? É Cherie Dei.
Rachel percebeu imediatamente que não era um telefonema de Rez. Cherie Dei significava Quantico. Fazia quatro anos desde a última vez. Rachel ficara esperando.
- Onde você está, Rachel?
- Em casa. Onde acha que eu poderia estar?
- Sei que você cobre um grande território agora. Pensei que talvez...
- Estou em Rapid City, Cherie. O que é?
A resposta veio após um longo momento de silêncio.
- Ele ressurgiu. Está de volta.
Rachel sentiu que um punho invisível socava seu peito e por lá ficava. Sua memória evocou lembranças e imagens. Coisas ruins. Fechou os olhos. Cherie Dei não precisava dizer o nome. Rachel sabia que era Backus. O Poeta havia ressurgido. Exatamente como sabiam que aconteceria. Como uma infecção virulenta que se move pelo corpo, sem se manifestar durante anos, e que depois rompe a pele como um lembrete de sua feiura.
- Diga.
- Três dias atrás recebemos algo em Quantico. Um pacote chegou pelo correio. O pacote continha...
- Três dias? Vocês deixaram passar três...
- Não esperamos nada. Apenas fomos cuidadosos. Era endereçado a você. Às Ciências Comportamentais. A sala do correio nos trouxe e nós mandamos passar no raio-X antes de abrir com cuidado.
- E o que havia nele?
- Um GPS.
Um sistema de leitura de posicionamento global. Coordenadas de longitude e latitude. Rachel tinha encontrado um GPS em um caso no ano anterior. Um rapto ocorrido nas Badlands, onde uma mulher desaparecida marcara sua trilha com um GPS de mão. Encontraram o aparelho na mochila da mulher e traçaram seus passos de volta ao acampamento onde ela conhecera o homem que a seguira. Chegaram tarde demais para salvá-la, mas nunca teriam chegado se não fosse o GPS.
- O que havia nele?
Rachel sentou-se e jogou as pernas para o lado de fora da cama. Colocou a mão livre sobre a barriga e fechou-a como uma flor morta. Aguardou e logo Cherie Dei continuou. Rachel lembrava-se dela em seus tempos de novata, quando era apenas uma observadora e aprendiz designada para trabalhar sob sua orientação na equipe de atendimento de emergências, segundo o programa de treinamento do Bureau. Dez anos e muitos casos depois haviam deixado sulcos profundos em sua voz. Cherie Dei deixara de ser novata e não precisava mais de orientação.
- Havia um único ponto marcado no registro. O Mojave. Na Califórnia, junto à fronteira com Nevada. Voamos para lá ontem, e usamos equipamentos de imagens dotados de sensores térmicos e detectores de gás. No fim da jornada de ontem encontramos o primeiro corpo, Rachel.
- De quem é?
- Ainda não sabemos. É antigo. Estava lá há muito tempo. É só o começo. O trabalho de escavação é lento.
- Você disse o primeiro corpo. Quantos são?
- Até a hora em que saí de lá, eram quatro. Mas acreditamos que haja mais.
- Causa da morte?
- Cedo demais para dizer.
Rachel ficou em silêncio enquanto pensava no que acabara de ouvir. As primeiras perguntas que passaram pelos seus filtros foram: por que lá e por que agora?
- Rachel, não estou telefonando só para contar isso. A verdade é que o Poeta está de volta e nós queremos você aqui.
Rachel assentiu com a cabeça. Claro que iria para lá.
- Cherie?
- O quê?
- Por que vocês acham que foi ele quem mandou o pacote?
- Nós não achamos. Nós sabemos. Há pouco tempo, reconhecemos uma digital colhida no GPS. Ele substituiu as baterias e nós conseguimos a impressão de um polegar em uma delas. Robert Backus. É ele. Está de volta.
Rachel abriu o punho vagarosamente e estudou sua mão. Imóvel, como a de uma estátua. O pavor que sentira um momento atrás começava a mudar. Podia admitir para si própria, para ninguém mais. Era capaz de sentir a vida fluir novamente no seu sangue, fazendo com que ficasse mais escuro. Quase preto. Tinha esperado aquele telefonema. Dormia todas as noites com o celular perto do ouvido. Sim, era parte do trabalho. As ligações de fora. Mas aquele era o único telefonema pelo qual, na verdade, ela esperava.
- Você pode batizar os pontos que registra no GPS - disse Dei, quebrando o silêncio. - Até doze caracteres com espaços. Ele chamou esse ponto de "Hello Rachel". Um encaixe perfeito. Acho que ele ainda tem algo para você. É como se a estivesse desafiando, deve ser algum tipo de plano.
A memória de Rachel evocou a imagem de um homem atravessando um vidro e caindo de costas na escuridão. Desaparecendo nas trevas.
- Estou a caminho - disse ela.
- Estamos conduzindo as operações a partir do escritório de Las Vegas. De lá será mais fácil preservar o sigilo. Tenha cuidado, Rachel. Não sabemos o que ele tem em mente com isso, entende?
- Pode deixar. Eu sempre me cuido.
- Telefone dando os detalhes que vou pegar você.
- Pode deixar - ela repetiu.
Rachel apertou a tecla que desconectava a ligação. Esticou a mão para a mesinha de cabeceira e desligou a luz. Por um momento se lembrou do sonho, da imobilidade da água e do céu lá em cima, dois espelhos negros refletindo um ao outro. E ela no meio, flutuando.
Capítulo 2
Graciela McCaleb esperava ao lado do carro, diante da minha casa em Los Angeles, quando cheguei. Ela havia aparecido na hora marcada para o nosso encontro, mas eu não. Parei rapidamente na vaga coberta e saltei para cumprimentá-la. Não parecia zangada comigo. Parecia aceitar meu atraso como algo normal.
- Graciela, sinto muito pelo atraso. Fiquei retido no tráfego da manhã.
- Tudo bem. Até que gostei. É tão calmo aqui.
Usei minha chave para destrancar a porta. Quando a empurrei, ela ficou presa por parte da correspondência que estava no chão, do lado de dentro. Tive que me abaixar e enfiar a mão por trás da porta, a fim de liberar os envelopes e poder abri-la.
Fiquei de pé, voltei-me para Graciela e fiz um gesto indicando a sala. Ela se adiantou e entrou na casa. Não sorri, tendo em vista as circunstâncias. Nosso último encontro tinha sido no funeral. Parecia apenas um pouco melhor agora, mas a dor ainda estava presente nos olhos e nos cantos de sua boca.
Quando passou ao meu lado no apertado hall de entrada, senti o perfume adocicado de laranja. O perfume me fez lembrar do funeral, de quando apertei suas mãos nas minhas, disse o quanto sentia pela sua perda e ofereci minha ajuda para o que precisasse. Ela estava de preto naquela ocasião, mas hoje o vestido era de verão, estampado com flores, e combinava mais com o perfume.
Disse para que se sentasse no sofá. Perguntei se queria beber alguma coisa, embora soubesse que não tinha nada para servir, com exceção de algumas cervejas na geladeira e água da torneira.
- Estou bem, Sr. Bosch. Obrigada.
- Por favor, apenas Harry. Ninguém me chama de Sr. Bosch.
Ensaiei um sorriso, mas não funcionou. Não sei por que imaginei que fosse fazer efeito. Ela havia sofrido muito na vida. Eu vira o filme. E agora essa última tragédia. Sentei-me na cadeira diante do sofá e esperei. Ela pigarreou antes de falar.
- Deve estar querendo saber por que precisei falar com você. Não fui muito clara ao telefone.
- Tudo bem - falei. - Mas você realmente me deixou curioso. Tem alguma coisa errada? O que posso fazer por você?
Ela balançou a cabeça e olhou para as mãos, que seguravam uma bolsinha de contas pretas pousada no colo. Parecia algo comprado para o funeral.
- Tem alguma coisa muito errada e eu não sei a quem pedir ajuda. Tenho conhecimento de muitas coisas, porque Terry me contava... Quer dizer, refiro-me a como são as coisas na verdade, como funcionam... por isso não posso procurar a polícia. Ainda não. Além disso, a polícia irá me procurar em breve. Suponho. Mas até lá preciso de alguém em quem possa confiar, que me ajude. Posso pagar.
Inclinando-me para a frente, pus os cotovelos sobre os joelhos e uni as mãos. Eu só a vira uma única vez - no funeral. Seu marido e eu tínhamos sido íntimos, mas não nos últimos anos, e agora era tarde demais. Eu não sabia de onde vinha a confiança de que ela falara.
- O que Terry lhe falou que a fez confiar em mim, me escolher? Você e eu realmente não nos conhecemos, Graciela.
Ela assentiu como se eu tivesse feito uma pergunta e uma avaliação justas.
- Houve um tempo no nosso casamento em que Terry me contava tudo sobre todas as coisas. Ele me falou sobre o último caso em que vocês trabalharam juntos. Contou o que aconteceu e como vocês salvaram a vida um do outro. No barco. Foi isso que me fez pensar que posso confiar em você.
Fiz que sim com a cabeça.
- Uma vez ele me disse algo a seu respeito que sempre lembro - acrescentou. - Ele me disse que havia coisas a seu respeito de que não gostava e com que não concordava. Acho que se referia ao modo como você faz as coisas. Mas afirmou que, no fim das contas, considerando todos os policiais que conhecera e com quem atuara, se tivesse que escolher alguém para trabalhar junto com ele num caso de homicídio, esse alguém seria você. Numa boa. Disse que o escolheria por que você não desiste.
Senti um aperto nos olhos. Era quase como se eu pudesse ouvir Terry McCaleb falando. Fiz uma pergunta sabendo de antemão a resposta.
- O que você quer que eu faça?
- Que investigue a morte dele.
Capítulo 3
Embora soubesse que eu iria atendê-la, o pedido de Graciela McCaleb me deixou paralisado. Terry McCaleb morrera em seu barco um mês atrás. Eu lera a notícia no Las Vegas Sun. O fato fora noticiado por causa do filme. Agente do FBI recebe transplante de coração e depois descobre o assassino do doador. Uma história que Hollywood tinha aproveitado, com Clint Eastwood desempenhando o papel principal, embora tivesse uns vinte anos mais que Terry. O filme fez um sucesso modesto, na melhor das hipóteses, mas ainda assim deu a Terry o tipo de notoriedade que lhe garantiu aparecer nos obituários de todo o país. Certa manhã, eu tinha acabado de voltar para o meu apartamento próximo à rua principal de Las Vegas, quando peguei o Sun. A morte de Terry aparecia em uma pequena matéria no fim do primeiro caderno.
Um profundo tremor me atravessou quando li aquilo. Fiquei surpreso, mas não muito. Terry sempre me pareceu já ter ultrapassado a cota de vida que lhe cabia. Mas não havia nada de suspeito naquilo que eu lera ou no que soube quando fui à Catalina para o serviço fúnebre. Tinha sido seu coração - o coração novo - que falhara. Ele havia lhe dado seis bons anos, mais que a média nacional para transplantados, quando sucumbiu aos mesmos fatores que haviam destruído o coração original.
- Não entendo - falei para Graciela. - Ele estava no barco, numa excursão fretada e teve um colapso. Disseram... que foi o coração.
- Sim, foi coração - disse ela -, mas surgiu algo novo. E eu quero que você examine. Sei que você se aposentou da polícia, mas Terry e eu vimos no noticiário o que aconteceu aqui no ano passado.
Seu olhar percorreu a sala e ela fez um gesto com as mãos. Referia-se ao que acontecera na minha casa, um ano antes, quando a primeira investigação pós-aposentadoria teve um desfecho péssimo e muito sangrento.
- Sei que você ainda examina tudo - disse ela. - Terry também era assim. Não deixava passar nada. Alguns de vocês são desse jeito. Quando vimos a notícia do que aconteceu aqui, Terry disse que procuraria você se tivesse que escolher alguém. Acho que ele estava querendo me dizer que se algum dia lhe acontecesse alguma coisa, eu deveria procurar você.
Assenti com a cabeça e olhei para o chão.
- Fale o que aconteceu e eu lhe direi o que posso fazer.
- Você tem um vínculo com ele, sabia?
Balancei a cabeça de novo.
- Diga.
Ela pigarreou. Deslizou para a beirada do sofá e começou a contar sua história.
- Sou enfermeira. Não sei se você viu, mas no filme eles me colocaram como garçonete. Não está certo. Sou enfermeira. Tenho noção de medicina. Sei tudo sobre hospitais.
Concordei com um gesto de cabeça e não disse nada para não interrompê-la.
- O legista fez uma necropsia em Terry. Não havia sinais de que tivesse acontecido algo de estranho, mas decidiram fazer a necropsia a pedido do Dr. Hansen, o cardiologista de Terry, porque ele queria ver se descobriam o que tinha dado errado.
- Sei. E o que descobriram?
- Nada. Quer dizer, nada de criminoso. O coração simplesmente parou de bater... e ele morreu. Acontece. A necropsia mostrou que os músculos da parede do coração estavam afinando, se estreitando. Cardiomiopatia. O corpo estava rejeitando o coração. Coletaram as amostras de sangue normais e pronto. Foi liberado para mim. Quer dizer, o corpo dele. Terry não queria ser enterrado, sempre me dizia isso. Então, ele foi cremado no Griffin and Reeves e, depois do funeral, Buddy levou a mim e as crianças para o barco e fizemos o que Terry pedira. Nós o largamos lá. No mar. Foi absolutamente privado, só nós. Foi bonito.
- Quem é Buddy?
- Oh, o homem com quem Terry trabalhava no negócio de fretamento do barco. Seu sócio.
- Certo. Eu me lembro.
Fiz que sim e tentei repassar a história dela, procurando a ligação, a razão pela qual tinha vindo me ver.
- O exame de sangue feito na necropsia - falei. - O que encontraram?
Ela balançou a cabeça.
- A questão é o que não encontraram.
- O quê?
- Você deve se lembrar que Terry tomava uma tonelada de remédios. Todos os dias, pílula após pílula, gota após gota. Era o que o mantinha vivo... quer dizer, até o fim. Por isso, o exame de sangue era um papel com uma página e meia de comprimento.
- O legista o mandou para você?
- Não, para o Dr. Hansen. Ele me falou a respeito. E disse que estava telefonando porque algumas coisas faltavam no exame. CellCept e Prograf. Não apareceram no sangue quando ele morreu.
- E eram importantes.
Ela balançou a cabeça.
- Exatamente. Ele tomava sete cápsulas de Prograf todos os dias. CellCept duas vezes por dia. Eram seus remédios principais. Os que mantinham o coração seguro.
- E sem eles Terry morreria?
- Em três ou quatro dias. Rapidamente surgiria um quadro de insuficiência cardíaca. Foi exatamente o que aconteceu.
- Por que ele parou de tomar esses dois remédios?
- Ele não parou; e é por isso que preciso de você. Alguém adulterou os remédios e o matou.
Processei mais uma vez todas aquelas informações.
- Primeiro, me diga como você tinha certeza de que ele estava tomando os remédios.
- Porque vi, Buddy viu e até mesmo o homem que fretou o barco na última viagem disse que o viu tomando os remédios. Perguntei a eles. Olha, eu já disse, sou enfermeira. Se ele não estivesse tomando os remédios, eu teria notado.
- Certo. Então você está dizendo que Terry tomava as pílulas, só que na verdade não eram as pílulas dele. Alguém as tinha sabotado. E como você pode afirmar isso?
Sua linguagem corporal indicou frustração. Eu não estava dando os saltos lógicos que ela achava que eu deveria dar.
- Me deixa explicar - disse ela. - Uma semana depois do funeral, antes de saber qualquer coisa a respeito de tudo isso, comecei a tentar fazer com que as coisas voltassem ao normal e esvaziei o armário onde Terry guardava todos os remédios. Você entende, são muito, muito caros. Eu não queria que fossem desperdiçados. Há gente que mal pode pagar por eles. Nós mal podíamos pagar por eles. O seguro de Terry acabara e nós precisávamos do Medi-Cal e do Medicaid para pagar os remédios.
- Então você doou os remédios?
- Sim. É uma tradição entre os transplantados. Quando alguém...
Ela baixou os olhos.
- Eu entendo - falei. - Vocês devolvem tudo.
- Sim. Pra ajudar os outros. Tudo é tão caro. E Terry tinha um suprimento para pelo menos nove semanas. Valeria milhares de dólares.
- Compreendo.
- Então, peguei a barca e levei tudo para o hospital. Todos me agradeceram e eu achei que tinha acabado. Tenho dois filhos, Sr. Bosch. Por mais difícil que seja, eu tenho que continuar vivendo. Pelo bem deles.
Pensei na filha. Eu não a conhecia, mas Terry me falara a seu respeito. Ele me disse seu nome e explicou por que o havia escolhido. Gostaria de saber se Graciela conhecia a história.
- Você contou isso ao Dr. Hansen? - perguntei. - Se alguém adulterou as pílulas você teria que avisar...
Ela sacudiu a cabeça.
- Há um procedimento padrão. Todas as caixas são examinadas. Você sabe, os lacres dos frascos, as datas de validade, a numeração dos lotes e assim por diante. Nada apareceu. Nada tinha sido adulterado. Nada do que levei até eles, pelo menos.
- E aí?
Ela chegou mais para perto da beirada do sofá. Hora da revelação.
- No barco. As caixas abertas que eu não tinha doado porque eles não aceitam. Protocolo do hospital.
- Você descobriu que foram adulteradas?
- Havia ainda doses para mais um dia de Prograf e dois de CellCept nos frascos. Coloquei tudo num saco plástico e levei para a clínica Avalon. Já trabalhei lá. Inventei uma história. Falei que uma amiga tinha encontrado as cápsulas no bolso do filho quando foi lavar a roupa. Ela queria saber o que ele andava tomando. O laboratório da clínica fez os testes e as cápsulas, todas elas, eram inócuas. Tinham sido enchidas com um pó branco. Cartilagem de tubarão em pó, na verdade. Vendida em lojas de produtos naturais e pela internet. Supostamente serve como tratamento homeopático para câncer. É facilmente digerível e delicado. Dentro da cápsula, Terry nunca encontraria diferença no sabor.
Ela tirou da bolsinha um envelope dobrado que me passou. Continha duas cápsulas. Eram brancas com uma inscrição em letras pequenas cor-de-rosa na lateral.
- O que você está dizendo, Graciela, é que durante o último fretamento do barco Terry tomava pílulas que pensava que o estariam mantendo vivo, mas que na verdade de nada adiantavam. De certo modo, elas o estavam matando.
- Exatamente.
- De onde vieram essas pílulas?
- Os frascos vieram da farmácia do hospital. Mas a substituição pode ter sido feita em qualquer lugar.
Ela fez uma pausa, concedendo-me algum tempo para registrar devidamente aquela informação.
- O que o Dr. Hansen vai fazer?
- Ele disse não ter escolha. Se a adulteração aconteceu no hospital, ele precisa saber. Outros pacientes podem estar correndo perigo.
- Não é provável. Você falou que dois medicamentos diferentes foram adulterados. Isso significa que provavelmente aconteceu fora do hospital. Aconteceu quando já estavam em poder de Terry.
- Eu sei. Foi o que ele disse. Ele me falou que ia denunciar o fato às autoridades. Era sua obrigação. Mas eu não sei que autoridade será ou o que vai acontecer. O hospital é em Los Angeles e Terry morreu dentro do seu barco, a cerca de 15 quilômetros da costa de San Diego. Não sei quem seria...
- O caso provavelmente cai primeiro na jurisdição da Guarda Costeira e depois é transferido para o FBI. Mas somente após alguns dias. Você poderia perfeitamente dar sequência ao processo se entrasse em contato com o Bureau agora. Não entendo porque está falando comigo e não com eles.
- Não posso. Pelo menos por enquanto.
- Por que não? Claro que pode. Você não deveria ter vindo me procurar. Vá ao Bureau com as informações que você tem. Conte às pessoas com quem ele trabalhou. Eles vão investigar, Graciela. Sei que vão.
Ela se levantou, foi até a porta de correr e contemplou o desfiladeiro. Era um daqueles dias em que a neblina está tão densa que pode ser cortada à faca.
- Você foi detetive. Pense nisso. Alguém matou Terry. Pode não ter sido uma adulteração aleatória... não em se tratando de dois remédios diferentes em dois frascos também diferentes. Foi intencional. Assim, a pergunta a ser feita é: quem tinha acesso aos medicamentos? Eles virão logo atrás de mim e podem achar que não precisam ir adiante. Tenho dois filhos. Não posso me arriscar. - Ela se virou e me encarou. - E não fui eu.
- Qual seria o motivo?
- Dinheiro em primeiro lugar. Existe um seguro de vida do tempo em que ele trabalhava no Bureau.
- Em primeiro lugar? Haveria mais coisas?
Ela baixou os olhos para o chão.
- Eu amava meu marido. Mas estávamos tendo problemas. Ele dormiu no barco nas últimas semanas. Provavelmente por isso aceitou participar daquele fretamento mais longo. A maior parte do tempo só fazia excursões que duravam menos de um dia.
- Quais eram os problemas, Graciela? Se for aceitar o caso, tenho que saber.
Ela encolheu os ombros como se não soubesse o que dizer, mas depois respondeu.
- Nós morávamos em uma ilha e eu não aguentava mais. Não me parecia um grande segredo minha vontade de nos mudarmos para o continente. O problema é que o trabalho dele no Bureau o deixara com medo por causa dos nossos filhos. Com medo do mundo. Queria proteger nossos filhos do mundo. Eu não. Eu queria que eles vissem o mundo e se preparassem para ele.
- Só?
- Havia outras coisas. Eu não gostava que ele ainda estivesse trabalhando em casos.
Eu me levantei e me aproximei dela. Abri a porta para arejar um pouco a sala. Só então percebi que devia ter feito aquilo logo que entramos. O lugar cheirava a azedo. Eu estivera fora por duas semanas.
- Que casos?
- Ele era como você. Assombrado pelos que conseguiram escapar. Tinha arquivos, caixas de arquivos, lá no barco.
Eu estivera no barco muito tempo atrás. Havia uma cabine na proa que McCaleb convertera em escritório. Lembro-me de ter visto as caixas de arquivos no beliche de cima.
- Durante muito tempo ele tentou esconder isso de mim, mas depois ficou tão óbvio que deixamos de fingir. Nos últimos meses, Terry ia muito ao continente. Quando não tinha fretamentos. Discutíamos a esse respeito e ele dizia que era algo que não podia deixar passar.
- Era um caso só ou mais que um?
- Não sei. Ele nunca me disse exatamente em que estava trabalhando e eu nunca perguntei. Não me interessava. Eu só queria que ele parasse. Que passasse mais tempo com os filhos. E não com aquela gente.
- Aquela gente?
- As pessoas que o fascinavam tanto. Os assassinos e suas vítimas. As suas famílias. Terry era obcecado. Às vezes, penso que aquelas pessoas eram mais importantes para ele que nós.
Ela disse isso com os olhos fixos no desfiladeiro. A porta aberta deixava o barulho do trânsito entrar. A rodovia lá embaixo soava como uma ovação distante em um tipo de arena onde os jogos nunca terminavam. Abri inteiramente a porta e saí para o deque. Olhei a vegetação lá embaixo e pensei na luta de vida e morte que tivera lugar ali um ano antes. Eu sobrevivera para descobrir que, da mesma forma que Terry McCaleb, eu era pai. De lá para cá, aprendi a encontrar nos olhos de minha filha o que Terry uma vez me disse haver encontrado nos da sua. Eu sabia o que procurar porque ele tinha me explicado. E eu devia algo a ele por isso.
Graciela foi atrás de mim.
- Você vai fazer o que eu pedi? Acredito no que meu marido disse a seu respeito. Acredito que você possa ajudar a mim e a Terry.
E talvez ajudar a mim mesmo. Foi o que pensei, mas não falei. Fiquei olhando a rodovia lá embaixo e vi o sol refletido nos para-brisas dos carros atravessando o desfiladeiro. Era como se mil olhos brilhantes e prateados estivessem me observando.
- Sim - respondi. - Farei o que você pediu.
Capítulo 4
Minha primeira entrevista foi nas docas da marina Cabrillo em San Pedro. Sempre gostei de ir ali, mas raramente o fazia. Não sei por quê. É como uma dessas coisas que você esquece, até que faz de novo e só então se lembra que gosta. A primeira vez que fui lá, era um fugitivo de 16 anos de idade. Passava os dias nas docas sendo tatuado e vendo os barcos de pesca de atum atracarem. Passava as noites dormindo em um rebocador chamado Rosebud. Até que o capitão do porto me pegou e fui mandado de volta para o serviço social, com as palavras Hold Fast tatuadas nos nós dos dedos.
A marina Cabrillo era mais nova do que eu me lembrava. Aquelas não eram as docas de trabalho onde eu chegara tantos anos antes. A marina agora era destinada a embarcações de lazer. Os mastros de uma centena de barcos à vela apareciam por trás de seus portões como uma floresta após uma queimada. Depois deles vinham fileiras de iates a motor, muitos valendo milhões de dólares.
Outros não. O barco de Buddy Lockridge não era um castelo flutuante. Lockridge, que Graciela McCaleb me disse ter sido sócio do marido nos fretamentos e seu maior amigo no fim da vida, morava em um veleiro de 32 pés que parecia ter o conteúdo de um barco do dobro do tamanho no convés. Parecia um ferro-velho, não pelo barco em si, mas pelo modo como era tratado. Se Lockridge morasse numa casa, teria carros sobre cavaletes no quintal e imensas pilhas de jornal velho na varanda.
- E aí - disse Lockridge quando saltou do barco e pisou no cais. - Graciela comentou que você está examinando a morte de Terry. É coisa de seguro ou algo assim?
- Sim, pode ser.
- Você é detetive particular ou algo assim?
- Algo assim.
Ele pediu uma identidade e eu mostrei a cópia plastificada da licença que usava na carteira e que tinham me enviado de Sacramento. Ele ergueu uma sobrancelha inquisidora ao ler meu nome.
- Hieronymus Bosch. Como aquele pintor maluco, não é?
Era raro alguém reconhecer meu nome. Isto me disse algo a respeito de Buddy Lockridge.
- Alguns dizem que era maluco. Outros dizem que previu acuradamente o futuro.
A licença pareceu apaziguá-lo e Buddy disse que podíamos conversar no seu barco ou caminhar até a loja e tomar uma xícara de café. Eu pretendia dar uma olhada na sua casa e no barco - estratégia investigativa básica -, mas não queria ser óbvio demais e por isso falei que preferia fazer uso de um pouco de cafeína.
A loja era de artigos marítimos e ficava a cinco minutos a pé do cais. Fomos conversando banalidades enquanto caminhávamos e, na maior parte do tempo, ouvi Buddy se queixar da maneira como fora retratado no filme inspirado no transplante cardíaco de McCaleb e em sua busca pelo assassino do doador.
- Pagaram a você, não pagaram? - perguntei quando ele parou de falar.
- Pagaram, mas não é esse o problema.
- É sim. Deposite o dinheiro no banco e esqueça o resto. Foi só um filme.
Havia algumas mesas e bancos do lado de fora da loja, e lá tomamos o nosso café. Lockridge começou a fazer perguntas antes que eu tivesse a chance. Deixei que falasse à vontade durante algum tempo. Ele me parecia uma peça muito importante da investigação, pois, além de conhecer Terry McCaleb, era uma das duas testemunhas da sua morte. Queria que se sentisse à vontade comigo, por isso deixei que fosse perguntando.
- Então, qual é o seu pedigree? - perguntou. - Você foi tira?
- Quase trinta anos. No Departamento de Polícia de Los Angeles. A metade do tempo trabalhando com homicídios.
- Assassinos, hein? Você conheceu o Terror?
- O quê?
- Quero dizer, Terry. Eu o chamava de Terror.
- Como assim?
- Sei lá. Chamava. Dou apelidos a todo mundo. Terry viu em primeira mão o terror do mundo. Sabe como é? Eu o chamava de Terror.
- E eu? Qual vai ser o meu apelido?
- Você...
Ele me olhou como um escultor avaliando um bloco de granito.
- Hum, você é o "Mala" Harry.
- Como assim?
- Por que é meio amarrotado. Como se vivesse com suas coisas dentro de uma mala.
Balancei a cabeça, assentindo.
- Muito bom.
- Então, você conheceu Terry?
- Sim, conheci. Trabalhamos juntos em alguns casos quando ele estava no Bureau, e em mais um depois que recebeu o coração novo.
Ele estalou os dedos e apontou para mim.
- Agora me lembro, você era o tira. Era você quem estava aqui naquela noite, no barco dele, quando os dois pistoleiros apareceram para matá-lo. Você o salvou e depois ele se virou e salvou você.
Eu assenti.
- Está certo. Agora posso lhe fazer umas perguntas, Buddy?
Ele levantou as mãos abertas, indicando que estava disponível e que nada tinha a esconder.
- Oh, claro, meu amigo. Não tenho um microfone escondido, sabe?
Puxei meu bloco e o coloquei em cima da mesa.
- Obrigado. Vamos começar pelo último fretamento. Fale-me a respeito.
- Bem, o que você quer saber?
- Tudo.
Lockridge deixou escapar o ar dos pulmões.
- Esta é uma tarefa difícil - comentou.
Mas começou a narrar a história. O que inicialmente me contou se ajustava nos mínimos detalhes ao que eu tinha lido nos jornais de Las Vegas e no que tinha sabido durante o funeral. McCaleb e Lockridge tinham saído em um fretamento de quatro dias e três noites, levando uma pessoa à costa da Baja Califórnia para pescar marlim. Ao retornar ao porto de Avalon, em Catalina, no quarto dia, McCaleb teve um colapso ao leme do barco. Estavam a cerca de 13 quilômetros da costa, a meio caminho entre San Diego e Los Angeles. Foi feito um pedido de socorro pelo rádio à Guarda Costeira, que enviou um helicóptero de resgate. McCaleb foi transportado para um hospital em Long Beach, onde foi declarado morto na chegada.
Quando ele terminou, balancei a cabeça para sinalizar que tudo o que dissera batia com o que eu já sabia.
- Você chegou a ver quando ele teve o colapso?
- Não, na verdade não. Mas senti.
- Como assim?
- Bem, ele estava em cima, operando o leme. Eu estava embaixo, com o nosso cliente. Seguíamos no rumo norte, voltando para casa. O cliente já tinha pescado o suficiente, de modo que não estávamos nem puxando a linha. Terry seguia o mais rápido possível, fazendo talvez 25 nós. Assim, eu e Otto, o cara que fretou o barco, estávamos na cabine e o barco de repente fez uma curva de noventa graus a oeste, para o mar aberto. Eu sabia que aquilo não estava nos planos e subi a escada, meti a cabeça lá em cima e vi Terry meio curvado sobre o leme. Tivera um colapso. Aproximei-me e vi que ainda estava vivo, cara, mas desmaiado.
- O que você fez?
- Bem, já fui salva-vidas. Praia de Venice. Não esqueci os procedimentos de salvamento, ressuscitação cardiopulmonar. Fui acudir Terry e pedi que Otto assumisse o controle do barco e entrasse em contato com a Guarda Costeira. Não consegui reanimar Terry, mas ainda estava metendo ar para dentro dele quando o helicóptero apareceu, mas, ainda assim, não chegou rápido o suficiente.
Escrevi algo no meu bloco de notas. Não porque fosse importante, mas porque eu queria que Lockridge soubesse que eu o levava a sério, e tudo o que ele considerava importante também era importante para mim.
- Quanto tempo eles levaram para chegar?
- Uns vinte, 25 minutos. Não sei exatamente, mas parece uma eternidade quando você está tentando fazer com que uma pessoa continue respirando.
- Com certeza. Todos disseram que você fez o melhor que pôde. Mas então Terry não chegou a dizer nada. Só desabou sobre o leme.
- Exatamente.
- Então qual foi a última coisa que ele lhe disse?
Lockridge começou a roer a unha de um dos seus polegares enquanto tentava se lembrar.
- Boa pergunta. Acho que foi quando ele chegou na grade da cabine e gritou que chegaríamos em casa ao pôr do sol.
- E isso foi quanto tempo antes de ele sofrer o colapso?
- Talvez meia hora, talvez um pouco mais.
- Ele parecia bem?
- Sem dúvida, parecia o Terror de sempre, sabe? Ninguém poderia adivinhar o que ia acontecer.
- E vocês já estavam no barco há quatro dias seguidos, certo?
- Exatamente. Amontoados, para falar a verdade, porque o cliente ficou com a cabine de dormir. Eu e Terry dormíamos na cabine dianteira.
- Durante esse tempo você viu Terry tomar seus remédios? Você sabe, as pílulas.
Lockridge balançou a cabeça enfaticamente.
- Oh, sim, ele tomava suas pílulas a toda hora. De manhã e de noite. Todos os dias. Estivemos em uma porção de fretamentos juntos. Era um ritual... ele acertava o relógio pela hora dos remédios. Nunca falhava. Como não falhou também nessa viagem.
Fiz algumas anotações só para ficar em silêncio para que Lockridge continuasse falando. Mas não continuou.
- Ele disse alguma coisa sobre o gosto delas ser diferente ou sobre ter se sentido diferente depois de tomá-las?
- É disso que se trata? Vocês estão tentando dizer que Terry tomou as pílulas erradas para não terem que pagar o seguro. Se eu soubesse, não teria concordado em falar com você.
Ele começou a se levantar do banco. Adiantei-me e segurei seu braço.
- Senta aí, Buddy. Não é nada disso. Eu não trabalho para a companhia de seguro.
Ele se deixou cair sentado pesadamente e olhou para o local do braço onde eu pegara.
- Então de que se trata?
- Você já sabe o que é. Só estou me assegurando de que a morte de Terry foi o que pareceu ser.
- Pareceu?
Percebi que tinha feito uma escolha infeliz de palavras.
- O que estou tentando dizer é que quero me certificar de que ninguém ajudou no que aconteceu.
Lockridge me estudou por um longo momento e balançou a cabeça vagarosamente.
- Algo como as pílulas terem sido adulteradas ou contaminadas?
- Talvez.
Lockridge cerrou os dentes com determinação. Parecia sincero.
- Você precisa de ajuda?
- Talvez venha a precisar, sim. Vou até Catalina amanhã de manhã. Preciso dar uma olhada no barco. Você pode me encontrar lá?
- Claro.
Ele parecia empolgado e logo vi que ia chegar a hora em que eu precisaria pôr uma pedra naquilo, mas por ora queria sua total colaboração.
- Ótimo. Agora deixa eu lhe fazer umas perguntas. Fale-me sobre o último cliente. Vocês já conheciam o tal Otto?
- Oh, sim, saíamos com o Otto umas duas vezes por ano. Ele mora na ilha, e esta é a única razão pela qual o fretamento foi de mais de um dia. Entende, era esse o problema com o nosso negócio, mas Terror não se importava. Ele ficava satisfeito em ficar sentado ali naquele pequeno porto e esperar fretamentos de meio dia.
- Espera um segundo, Buddy. De que você está falando?
- Estou falando sobre Terry manter o barco na ilha. O que conseguíamos lá eram pessoas que estavam visitando Catalina e que queriam fazer uma pescaria de poucas horas. Não arranjávamos fretamentos grandes. Os trabalhos de três, quatro, cinco dias são os que dão bom dinheiro. Otto era uma exceção, pois morava na ilha e queria ir pescar na costa do México umas duas vezes por ano e molhar o biscoito no processo.
Lockridge estava me proporcionando mais informações e abordagens para interrogatório do que eu era capaz de manejar naquele instante. Fiquei com McCaleb, mas com toda a certeza voltaria para Otto, o cliente do último fretamento.
- Você está dizendo que Terry ficava satisfeito com trabalhos inexpressivos.
- Exatamente. Eu vivia dizendo a ele para transferir a empresa para o continente, publicar uns anúncios e conseguir trabalho sério. Mas ele não queria.
- Você alguma vez perguntou o motivo?
- Claro, ele queria permanecer na ilha. Não queria ficar afastado da família o tempo todo. E queria tempo para trabalhar em seus arquivos.
- Você se refere aos seus casos antigos?
- É, e também uns novos.
- Que casos novos?
- Sei lá. Ele sempre recortava matéria de jornais e colava em pastas, dava telefonemas, coisas assim.
- No barco?
- É, no barco. Graciela não deixava que ele fizesse isso em casa. Foi ele quem me disse que ela não gostava que fizesse aquilo. Ele ficou obcecado com alguma coisa e Graciela terminou dizendo para que ficasse no barco até se curar.
- Foi ele quem lhe contou isso?
- Não precisava.
- Você se lembra de algum caso ou arquivo no qual ele tivesse interessado ultimamente?
- Não, ele não me incluía mais nesse troço. Eu o ajudei no caso do coração e depois ele meio que me deixou de fora.
- Isto o incomodou?
- Na verdade, não. Quer dizer, eu estava disposto a ajudar. Caçar bandidos é mais interessante do que pescar, mas eu sabia que aquele era o mundo dele, não o meu.
Aquilo me pareceu uma resposta decorada, como se estivesse repetindo uma explicação que McCaleb lhe dera um dia. Decidi parar neste ponto, mas sabia que era um assunto ao qual voltaria com ele.
- Certo, vamos voltar ao Otto. Vocês pescaram com ele quantas vezes?
- Aquela foi a nossa terceira... não, quarta viagem.
- Sempre para o México?
- Quase sempre.
- O que ele faz para ter dinheiro que banque isso?
- É aposentado. Pensa que é Zane Grey e quer fazer pescaria esportiva, pegar um marlim negro e pendurar na parede. Tem dinheiro para arcar com os custos. Ele me disse que trabalhava como vendedor, mas nunca perguntei o que vendia.
- Aposentado? Qual é a idade dele?
- Não sei, sessenta e tanto.
- Onde foi que se aposentou?
- Logo do outro lado do canal. Long Beach, eu acho.
- O que você quis dizer um minuto atrás quando falou que ele gostava de ir pescar e de molhar o biscoito?
- Exatamente o que falei. Nós o levávamos para pescar e, quando parávamos em Cabo, ele sempre tinha algo por fora.
- Então todas as noites vocês atracavam num porto, sempre no Cabo.
- As duas primeiras noites no Cabo e a terceira já em San Diego.
- Quem escolheu os lugares?
- Bem, Otto escolheu o Cabo, e San Diego era exatamente na metade do caminho de volta. Nós sempre voltamos mais devagar.
- O que aconteceu no Cabo com Otto?
- Eu lhe falei, ele tinha uma parada qualquer por lá. Nas duas noites se arrumou todo e foi à cidade. Acho que devia estar se encontrando com uma señorita por lá. Deu alguns telefonemas no seu celular.
- Ele é casado?
- Até onde eu saiba, sim. Deve ser por isso que gostava dos fretamentos de quatro dias. A mulher devia pensar que ele estava pescando. Ela provavelmente não sabia sobre as paradas no Cabo para uma Margarita... e não estou falando da bebida.
- E o que me diz do Terry, ele desceu também?
A resposta veio sem hesitação.
- De jeito nenhum. Terry não tinha nada a ver com isso e nunca desembarcava. Não chegava sequer a pisar no cais.
- Como conseguia?
- Sei lá. Dizia apenas que não tinha necessidade. Talvez por superstição.
- Como assim?
- Você sabe, o capitão permanece no navio, esse tipo de coisa.
- E você?
- A maior parte do tempo eu ficava com Terry e o barco. De vez em quando, ia à cidade para um dos bares ou qualquer coisa.
- E na última viagem?
- Não, permaneci a bordo. Estava meio cansado.
- Quer dizer então que na última viagem Terry não chegou a saltar do barco?
- Exatamente.
- E ninguém, exceto você, Otto e ele, esteve no barco, certo?
- Exa... bem, não exatamente.
- Como assim? Quem esteve no barco?
- Na segunda noite, entrando no Cabo, fomos parados pelos federales. A Guarda Costeira Mexicana. Dois sujeitos subiram no nosso barco e fizeram uma inspeção que durou alguns minutos.
- Por quê?
- Uma espécie de rotina. De vez em quando eles pedem para parar, fazem com que você pague uma pequena tarifa e depois o liberam.
- Suborno?
- Suborno, propina, mordida, como queira.
- E foi isto que aconteceu?
- É, foi. Terry deu a eles cinquenta pratas quando estavam no salão e eles dividiram entre si. Tudo muito rápido.
- Eles revistaram o barco? Chegaram a ver os remédios de Terry?
- Não, não chegou a tanto. É para isso exatamente que serve a propina, para evitar todas essas coisas.
Dei-me conta de que não estava tomando notas. Grande parte daquela informação era nova e valia a pena ser trabalhada depois, mas senti que já tinha o suficiente para o momento. Preferi digerir o que tinha para depois voltar. Tinha a impressão de que Buddy Lockridge me daria o tempo de que eu precisasse, desde que eu o fizesse se sentir um elemento importante na investigação. Perguntei os nomes exatos e a localização das marinas onde tinham atracado para passar a noite na viagem com Otto e me dei ao trabalho de registrar a informação no bloco. Depois confirmei nosso encontro no barco de McCaleb na manhã seguinte. Falei que ia atravessar na primeira barca e ele me disse que também seguiria nela. Aí então o deixei, porque ele me disse que voltaria à loja para fazer umas compras.
Quando jogamos os copos descartáveis no lixo, ele me desejou boa sorte na investigação.
- Não sei o que você vai encontrar. Não sei se existe alguma coisa para ser encontrada, mas se alguém interferiu no destino de Terry, quero que você pegue esse sujeito, seja quem for. Entende o que estou dizendo?
- Sim, Buddy, acho que entendo o que você está dizendo. Eu o vejo amanhã.
- Estarei lá.
Capítulo 5
Naquela noite, minha filha, de Las Vegas, pediu que eu lhe contasse uma história pelo telefone. Com apenas cinco anos de idade, estava sempre querendo que eu cantasse para ela ou lhe contasse histórias. Eu tinha mais histórias que canções dentro de mim. Maddie tinha um gato preto muito feio chamado Sem Nome e gostava que eu inventasse histórias cheias de grandes perigos e atos de coragem que terminavam com Sem Nome resolvendo o mistério ou encontrando um animalzinho ou criança perdida, ou então dando uma lição num bandido.
Contei uma história rapidinha sobre Sem Nome encontrando um gato perdido chamado Cielo Azul. Ela gostou e pediu outra, mas eu disse que era tarde e que eu precisava ir. Aí então, sem hesitar, ela me perguntou se o Burger King e a Dairy Queen eram casados. Sorri, maravilhado ao ver como sua cabecinha funcionava. Respondi que sim, eram casados, e ela me perguntou se eram felizes.
Você pode se tornar uma pessoa afastada deste mundo, perdida. Pode acreditar que vive permanentemente fora dos padrões. Mas a inocência de uma criança o trará de volta e lhe dará o escudo de felicidade com que você se protegerá. Aprendi isto tarde na vida, mas não muito tarde. Nunca é tarde demais. Magoava-me pensar nas coisas que ela aprenderia sobre o mundo. Tudo que eu sabia era que não queria lhe ensinar nada. Sentia-me maculado pelas trilhas que percorrera na vida e pelas coisas que sabia. Não queria que ela tivesse nada do que eu tinha. Pelo contrário, só fazia questão de que ela me ensinasse.
Por isso disse sim, que o Burger King e a Dairy Queen eram felizes e levavam juntos uma vida maravilhosa. Fazia questão que ela tivesse suas histórias e contos de fadas enquanto ainda acreditava. Porque muito em breve, eu tinha certeza, eles lhe seriam retirados.
Depois que disse boa-noite para minha filha e desliguei o telefone, senti-me solitário e deslocado. Acabara de voltar de um período de duas semanas com ela. E Maddie se acostumara a me ver, da mesma forma que eu me acostumara a vê-la. Eu a pegava na escola, ia vê-la na aula de natação e fiz jantar para ela algumas vezes no pequeno conjugado que aluguei perto do aeroporto. À noite, enquanto a mãe jogava pôquer nos cassinos, eu a levava para casa e a punha na cama, deixando-a aos cuidados da babá que dormia em minha casa.
Fui uma novidade na vida dela. Durante seus primeiros quatro anos ela nunca ouviu falar de mim nem eu dela. Aí residia a beleza e a dificuldade do nosso relacionamento. Fui atingido por uma paternidade súbita, mas tirei proveito disso e fiz o melhor que pude. Maddie, de repente, tinha outro protetor, que surgiu em sua vida para desaparecer logo depois. Um abraço extra e um beijo no topo da cabeça. Mas ela sabia também que aquele homem, que de repente entrara em sua vida, estava causando muita dor e lágrimas à mãe dela. Eleanor e eu tínhamos tentado conservar nossas discussões e insultos muitas vezes ásperos longe da menina, mas às vezes as paredes são demasiado finas e as crianças, isto eu estava aprendendo, são os melhores detetives. Interpretam de maneira primorosa as vibrações da alma.
Eleanor Wish escondera de mim o segredo supremo. Uma filha. No dia em que finalmente me apresentou Maddie pensei que estava tudo certo no mundo. No meu mundo, pelo menos. Vi minha salvação nos olhos escuros de minha filha, meus próprios olhos. O que não vi naquele dia foram as fissuras. As rachaduras sob a superfície. E eram profundas. O dia mais feliz da minha vida ia resultar em alguns dos dias mais amargurados. Dias em que eu não conseguiria deixar de pensar no segredo e naquilo que me fora negado por tantos anos. Embora, em certo instante, tivesse imaginado possuir tudo o que podia desejar da vida, logo descobri não ter forças suficientes para, em troca do que me tinha sido dado, conviver com a traição escondida.
Homens melhores que eu conseguiriam. Eu não. Deixei a casa de Eleanor e Maddie. Minha casa em Las Vegas passou a ser um conjugado em frente à área exclusiva do hangar do aeroporto, onde jogadores milionários e bilionários estacionavam seus jatos particulares e de onde eram levados por limusines silenciosas até os cassinos. Tenho agora um pé em Las Vegas enquanto o outro permanece aqui em Los Angeles, de onde não sou capaz de sair em definitivo, não sem morrer.
Depois de dizer boa-noite, minha filha passou o telefone para a mãe, que estava em casa em uma de suas raras noites de folga. Nosso relacionamento estava mais tenso do que nunca. Estávamos em conflito por causa de Maddie. Eu não queria que ela crescesse com uma mãe que trabalhava todas as noites em cassinos. Não a queria jantando no Burger King. E também não queria que aprendesse a viver em uma cidade que exibe orgulhosamente seus pecados.
Mas eu não estava em posição de mudar as coisas. Sei que corro o risco de parecer ridículo, pois moro em um lugar onde o crime e o caos convivem nas proximidades e o veneno está literalmente suspenso no ar, mas não gosto da ideia de minha filha crescendo em Las Vegas. Vejo isso como a sutil diferença entre o amor e o desejo. Los Angeles é um lugar que opera com base na esperança, e ainda há algo de puro nisso. Ajuda a gente a ver através da poeira. Vegas é diferente. Para mim, Vegas opera com base no desejo, e no fim dessa estrada reside o sofrimento. Não quero isso para minha filha. Não quero nem para a mãe dela. Estou disposto a esperar, mas não tanto. À medida que vou passando tempo com minha filha e a conhecendo melhor e a amando mais, minha vontade se esgarça no meio como uma escada de cordas que atravessa um abismo profundo.
Quando Maddie passou o telefone de volta para a mãe, nenhum de nós dois tinha muito o que falar, e por isso não falamos. Eu só disse que avisaria a Maddie a próxima vez que pudesse ir lá e pronto. Desliguei o telefone sentindo uma dor por dentro a que não estava acostumado. Não era a dor da solidão ou do vazio. Esta eu conhecia e aprendera a conviver com ela. Era a dor que vem junto com o medo do que o futuro possa reservar para alguém tão precioso, por quem você daria a vida sem hesitação.
Capítulo 6
A primeira barca me levou para Catalina às 9h30 da manhã seguinte. Telefonei para Graciela McCaleb pelo meu celular durante a travessia, que por isso me esperava no cais. Era um dia ensolarado e claro e eu podia sentir a diferença no ar límpido. Graciela sorriu para mim quando me aproximei do portão onde as pessoas aguardavam viajantes que vinham nos barcos.
- Bom-dia. Obrigada por vir.
- Sem problema. Obrigado por ter vindo me esperar.
Imaginei que Buddy Lockridge pudesse estar com ela. Não o tinha visto na barca e pensei que talvez tivesse atravessado para a ilha na noite anterior.
- Buddy ainda não veio?
- Não. Ele vem?
- Eu queria examinar as coisas no barco com ele. Disse que viria na primeira barca, mas não apareceu.
- Bem, são duas barcas em operação. A próxima chegará em 45 minutos. Buddy provavelmente vem nela. O que você gostaria de fazer primeiro?
- Quero ir para o barco, começar lá.
Caminhamos até o cais das embarcações de serviço da marina e pegamos um barco inflável com um motorzinho de um cavalo para ir até a enseada onde os iates ficavam alinhados em fileiras, atracados a boias de ancoragem e se movendo harmoniosamente ao sabor da correnteza. O barco de Terry, que se chamava The Following Sea, era o segundo da segunda fila. Uma sensação ameaçadora me invadiu quando nos aproximamos e batemos na parte arredondada do casco que protege, na parte de trás da embarcação, a hélice e o leme. Naquele barco, Terry morrera. Terry, meu amigo e marido de Graciela. Costumava ser um dos truques da profissão encontrar ou forçar uma possível conexão emocional com o caso em que eu estivesse trabalhando. Ajudava a manter o fogo do entusiasmo aceso e me dava aquele algo mais necessário para ir onde tivesse que ir, fazer o que tivesse que fazer. Naquele caso eu sabia que não ia precisar de nada disso. Nenhuma elaboração seria necessária. Já era parte do trato. A maior parte, por sinal.
Vi o nome do barco, pintado com letras pretas ao longo da proa, e me lembrei de como Terry tinha me explicado aquele nome. Ele disse que following sea era a onda contra a qual você tem que ficar de olho. A que pega você no seu ponto cego, que o atinge por trás. Uma boa filosofia. Eu precisava descobrir agora por que Terry não vira a onda que o atingira e que tinha aparecido nas suas costas.
Meio desequilibrado, saltei do bote inflável e subi no convés de ré. Abaixei-me para pegar a corda com que amarraria o bote, mas Graciela me deteve.
- Não vou subir - disse ela.
Ela sacudiu a cabeça como que para desencorajar qualquer insistência de minha parte e me entregou um molho de chaves. Peguei-as e balancei a cabeça.
- Simplesmente não quero subir aí - disse ela. - A vez em que fui recolher os remédios foi suficiente.
- Eu entendo.
- Deste modo, o barco inflável estará no cais à disposição de Buddy se ele aparecer.
- Se?
- Ele nem sempre é confiável. Pelo menos é o que Terry costumava dizer.
- E se ele não aparecer, o que eu faço?
- Oh, tome um táxi-lancha. Passam mais ou menos de 15 em 15 minutos. Você não terá problema. Pode cobrar de mim. O que me lembra de que ainda não conversamos sobre a questão do seu pagamento.
Era algo que Graciela precisava falar, só para ter certeza, mas ela sabia e eu sabia que aquele não era um trabalho a ser pago.
- Não será necessário - respondi. - Se eu fizer isso, só tem uma coisa que vou querer em troca.
- E o que é?
- Terry uma vez me falou sobre a filha de vocês. Disse que os dois escolheram o nome de Cielo Azul.
- Exatamente. Foi Terry quem escolheu o nome.
- Ele algum dia lhe contou a razão?
- Só disse que gostava. Que tinha conhecido uma garota chamada Cielo Azul.
Balancei a cabeça.
- O que vou querer como pagamento por fazer isto é conhecê-la um dia... quer dizer, quando tudo estiver acabado.
Graciela fez uma pausa. Depois sinalizou sua aprovação.
- Ela é um amor. Você vai gostar de conhecê-la.
- Tenho certeza de que vou.
- Harry, você a conheceu? A garota chamada Cielo Azul que Terry conheceu?
Olhei para ela por um momento e assenti.
- Sim, pode-se dizer que eu a conheci. Um dia, se você quiser, eu lhe falarei sobre ela.
Ela fez que sim e começou a afastar o barco. Ajudei empurrando com o pé.
- A chave pequena abre a porta do salão - disse ela. - O resto você conseguirá descobrir sozinho. Espero que encontre algo que ajude.
Concordei, empunhando as chaves como se fossem abrir todas as portas fechadas que eu encontrasse na vida. Fiquei observando Graciela voltar para o cais e só depois pulei a amurada da popa e entrei na cabine.
Uma espécie de senso de dever me fez subir até a torre de comando antes de entrar no barco. Tirei a capa de lona de cima da estação de controle e fiquei parado por um momento ao lado do leme e do banco, visualizando a história que Buddy Lockridge me contara sobre Terry ter sofrido um colapso ali. De certa forma, parecia apropriado um homem como ele ter um colapso ao leme, embora também parecesse totalmente errado, tendo em vista tudo o que eu sabia agora. Pus a mão no topo da cadeira, como se descansasse no ombro de alguém. Decidi que encontraria as respostas de todas as perguntas antes que terminasse ali.
A chavinha cromada presa no anel que Graciela tinha me dado abriu a porta espelhada de correr que dava acesso ao interior do barco. Deixei-a aberta para arejar. Havia um cheiro de podre lá dentro, misturado com a maresia. Atribui-o às varas de pescar e molinetes guardadas em racks no teto e às iscas artificiais ainda montadas. Não deviam ter sido lavados apropriadamente depois da última excursão. Não houvera tempo. Também não tinha havido uma razão.
Eu queria descer para a cabine, onde sabia que Terry guardava todos os arquivos, mas decidi fazer essa incursão por último. Ia começar pelo salão e depois desceria.
O salão tinha um desenho funcional, com um sofá, uma cadeira e uma mesa baixa do lado direito, que dava para uma mesa de mapas construída atrás do banco do leme interno. Do lado oposto ficava uma cabine em estilo de reservado de restaurante, forrada de couro vermelho acolchoado. Um aparelho de televisão ficava trancado em uma repartição que separava o reservado da copa, e depois havia uma pequena escada que eu sabia que dava nas cabines dianteiras, e um banheiro.
O salão estava arrumado e limpo. Fiquei ali parado, observando tudo por meio minuto, antes de começar a abrir as gavetas da escrivaninha. Era onde McCaleb guardava a papelada referente ao negócio de fretamento do barco para pescarias. Encontrei uma lista de clientes e um calendário para reservas. Havia também registros dos depósitos efetuados pela Visa e MasterCard, cujos cartões ele, evidentemente, aceitava dos clientes. O negócio tinha uma conta de banco e havia também um talão de cheques na gaveta. Verifiquei o canhoto e vi que quase tudo o que entrava voltava a sair para cobrir as despesas de combustível, ancoragem e também suprimentos de pesca e outros. Não havia registro de depósitos em dinheiro, o que me fez concluir que, para ser lucrativo, o negócio dependeria dos pagamentos em espécie efetuados pelos clientes e que não eram registrados, de acordo com o seu volume.
Na gaveta de baixo havia um arquivo de cheques sem fundo. Não eram muitos e espalhavam-se bastante no tempo, nenhum tão grande que pudesse danificar seriamente o negócio.
Reparei que no talão de cheques e na maior parte dos registros comerciais os nomes que apareciam listados como operadores da empresa eram os de Graciela ou de Buddy Lockridge. Eu sabia que isto aconteceu porque, como Graciela me contara, Terry era seriamente limitado no que dizia respeito ao que podia ganhar oficialmente. Se ultrapassasse determinado nível - que era assustadoramente baixo - deixava de ser elegível para receber assistência médica estadual e federal. E, se perdesse essa assistência, precisaria pagar as despesas médicas com o próprio dinheiro - caminho rápido para a falência pessoal de um transplantado cardíaco.
No arquivo de cheques devolvidos encontrei também a cópia de um relatório do xerife que nada tinha a ver com parte financeira. Tratava-se de um incidente ocorrido dois meses atrás que apontava para um roubo acontecido no Following Sea. O queixoso era Buddy Lockridge e o sumário indicava que a única coisa que fora levada do barco tinha sido um GPS manual. Seu valor fora declarado como de trezentos dólares e o modelo era listado como Gulliver 100. Uma nota anexada posteriormente dizia que o queixoso não poderia fornecer o número de série do aparelho desaparecido por tê-lo ganhado em um jogo de pôquer de uma pessoa que não era capaz de identificar, e ele nunca se dera ao trabalho de escrever o número de registro em lugar seguro.
Depois de verificar rapidamente todas as gavetas no posto de comando, voltei aos arquivos dos clientes e comecei a estudá-los detidamente, examinando com todo o cuidado cada cliente de McCaleb e Lockridge nas seis semanas que antecederam a morte de Terry. Nenhum dos nomes chamou minha atenção como curioso ou suspeito, da mesma forma que não havia anotações feitas por Terry ou Buddy que levantassem minha curiosidade ou desconfiança. Ainda assim, peguei um bloquinho no bolso de trás do meu jeans azul e escrevi uma lista onde aparecia o nome de cada cliente, o número de pessoas no grupo e a data do fretamento. Isto feito, pude ver que os negócios não eram nem um pouco regulares. Uma boa semana era aquela em que apareciam três ou quatro fretamentos de meia jornada. Houve uma semana sem que fosse fechado um único negócio e uma outra em que houve apenas um. Comecei e entender o ponto de vista de Buddy sobre a necessidade de transferir o negócio para o continente a fim de aumentar a frequência e a duração das reservas de fretamento. McCaleb dirigia o negócio como um hobby e esta não era a melhor maneira de fazê-lo florescer.
Eu sabia, claro, porque Terry agia desse modo. Tinha outro hobby - se quiserem chamar assim - e precisava de tempo para se dedicar a ele. Eu estava guardando os arquivos nas gavetas, com a intenção de ir para a proa a fim de explorar o outro hobby de Terry, quando ouvi a porta do salão deslizar às minhas costas.
Era Buddy Lockridge, que chegara sem que eu ouvisse o barulho do motorzinho do barco inflável ou sentisse a batida dele na popa. Também não senti o peso considerável de Buddy quando ele subiu a bordo.
- Bom-dia - cumprimentou ele. - Desculpe pelo atraso.
- Tudo bem. Tenho muita coisa para olhar aqui dentro.
- Encontrou algo interessante?
- Na verdade, não. Vou descer agora para ver os arquivos pessoais dele.
- Legal. Eu ajudo.
- Na verdade, Buddy, você pode ajudar telefonando para o último homem que fretou o barco.
Consultei o último nome escrito no meu bloco.
- Otto Woodall. Você poderia ligar para ele em meu nome e perguntar se eu poderia vê-lo hoje de tarde?
- Só isso? Você pediu que eu viesse aqui só para dar um telefonema?
- Não, tenho perguntas a lhe fazer. Preciso de você por aqui. Só não acho que deva examinar estes arquivos aqui embaixo. Ainda não.
A minha impressão era de que ele provavelmente já examinara aquelas pastas na caixa. Mas o tratava daquele modo propositalmente. Tinha que mantê-lo próximo e distante ao mesmo tempo. Até que eu o tivesse inocentado e me considerasse satisfeito. Sim, ele era sócio de Terry McCaleb e merecia crédito pelos seus esforços para salvar o amigo ferido, mas eu já vira muitas coisas estranhas na minha vida. Naquele momento, eu não tinha suspeitos, o que significava que, tinha de suspeitar de todo mundo.
- Dê o telefonema e depois desça para me ver.
Deixei Buddy ali e desci o curto lance de degraus que levava à parte mais baixa do barco. Eu estivera ali antes e conhecia a planta. As duas portas do lado esquerdo do corredor davam na proa e num armário de suprimentos. Direto em frente era a porta da cabine pequena da proa. A porta da direita dava na cabine principal, o lugar onde eu teria sido morto quatro anos atrás se Terry McCaleb não tivesse apontado sua arma e atirado no homem prestes a me emboscar. Isso ocorrera momentos depois de eu salvar McCaleb de fim semelhante.
Chequei o revestimento de madeira do corredor onde me lembrava que dois dos tiros de McCaleb tinham estilhaçado a madeira. A superfície tinha uma grossa camada de verniz, mas eu podia dizer que era madeira nova.
As prateleiras do depósito estavam vazias e o banheiro limpo. O respiradouro no alto vinha do convés dianteiro superior. Abri a porta da cabine principal, dei uma olhadela e decidi deixar para depois. Fui até a cabine da frente e, para abrir a porta, tive que usar uma das chaves que Graciela me dera.
A cabine era como eu me lembrava. Dois conjuntos de beliches em "V" em cada lado, seguindo a linha da proa. Os beliches da esquerda ainda funcionavam segundo sua destinação original, com os colchonetes enrolados e presos com cordas elásticas. Mas no conjunto da direita o beliche inferior não tinha colchão e fora convertido em escrivaninha. O superior tinha quatro caixas de papelão para arquivos de papel dispostas lado a lado.
Os casos de McCaleb. Olhei para eles por um longo e solene momento. Se alguém o tinha assassinado, eu acreditava que encontraria o assassino ali.
- Hoje a qualquer hora.
Quase dei um pulo. Era Lockridge de pé às minhas costas. Mais uma vez eu não ouvira ou sentira sua aproximação. Ele sorria porque gostava de me assustar.
- Ótimo - comentei. - Talvez depois do almoço possamos dar um pulo lá. De qualquer modo, vai estar mesmo na hora de fazer uma pausa nisso aqui.
Abaixei os olhos para a escrivaninha e vi o laptop branco com o símbolo facilmente reconhecível da maçã mordida. Estendi o braço e o abri, inseguro.
- Da última vez em que estive aqui, o laptop era outro.
- É verdade - confirmou Lockridge. - Ele trocou por causa dos gráficos. Terry estava mexendo com fotografia digital e coisas assim.
Sem minha ordem ou aprovação, Lockridge adiantou-se e apertou um botão branco. O computador começou a zumbir e depois a tela negra ficou cheia de luz.
- Que tipo de fotografia? - perguntei.
- Oh, sabe como é, a maior parte troço de amador. Filhos, pores do sol e coisas do gênero. Começou com os clientes. Começamos tirando fotografias deles com os peixes que pescavam, seus troféus, entende? Terry podia descer e imprimir em tamanho grande, papel brilhante. Tem uma caixa de molduras baratinhas em algum lugar por aí. O cliente pega um peixe, ganha uma foto emoldurada. Parte da transação. Deu muito certo. As gorjetas que recebíamos cresceram bastante com isso.
O computador terminou a inicialização. A tela era um céu azul claro que me fez pensar na filha de McCaleb. Diversos ícones podiam ser vistos espalhados pela tela. Notei imediatamente que um deles era uma pasta de arquivos. Sob ele via-se a palavra PERFIS. Eu sabia que aquela era a pasta que eu queria abrir. Na parte inferior da tela havia um ícone com a forma de uma câmera diante da foto de uma palmeira. Como tínhamos acabado de falar em fotografia, apontei para ele.
- É ali que estão as fotos? - perguntei.
- Exatamente - respondeu Lockridge.
Mais uma vez ele se moveu sem que eu pedisse. Colocou o dedo em cima de um pequeno quadrado na parte central do teclado e deslocou o cursor até o ícone da câmera. Depois usou o polegar para clicar num botão debaixo do quadrado e a tela rapidamente mostrou uma imagem nova. Lockridge parecia à vontade com o computador e isto suscitou imediatamente as perguntas clássicas do por quê e como. Terry McCaleb permitia que Lockridge tivesse acesso ao computador - afinal, estavam juntos no negócio - ou aquilo era algo em que Lockridge se tornara eficiente sem o conhecimento do seu parceiro?
Na tela abriu-se uma janela debaixo do cabeçalho iPhoto. Dentro dela havia diversas pastas listadas. A maioria era designada por datas, geralmente criadas há poucas semanas ou um mês. Uma das pastas era intitulada simplesmente MAIL CALL.
- Aqui vamos nós - disse Lockridge. - Quer ver isso? São clientes e peixes.
- Tudo bem, mostre-me algumas das fotos mais recentes.
Lockridge clicou numa pasta com a data de apenas uma semana antes da data da morte de McCaleb. A pasta se abriu e mostrou algumas dezenas de fotos listadas por datas. Lockridge clicou na mais recente. Poucos segundos depois, uma foto se abriu na tela. Mostrava um homem e uma mulher, ambos queimadíssimos de sol e sorrindo, ao mesmo tempo em que seguravam um peixe marrom horrivelmente feio.
- O halibute da baía de Santa Mônica - explicou Buddy. - O maior dos linguados.
- Quem são eles?
- Um, eles eram de... Minnesota, acho eu. É, de St. Paul. E não acho que fossem casados. Quer dizer, eram casados, mas não um com o outro. Estavam hospedados na ilha. Juntos. Foi o último fretamento antes da viagem para Baja. Os retratos dessa viagem ainda devem estar na câmera.
- Onde está a câmera?
- Devia estar aqui. Se não estiver, provavelmente Graciela pegou.
Ele clicou em cima de uma seta virada para a esquerda acima da foto. Logo outra foto apareceu, o mesmo casal e o mesmo peixe. Lockridge continuou clicando e acabou por chegar em um outro cliente e seu troféu, um peixe claro, meio rosado, com cerca de trinta centímetros de comprimento.
- Robalo branco - informou Lockridge. - Bom peixe.
Ele continuou clicando, mostrando uma procissão de pescadores e suas presas. Todos pareciam felizes, alguns tinham inclusive o olhar vidrado típico do álcool. Lockridge nomeou todos os peixes, mas nem todos os clientes. Alguns classificou como tendo dado boas gorjetas e outros não, e ficou nisso.
Por fim, ele chegou num homem com um sorriso deleitado no rosto ao levantar um robalo pequeno. Lockridge praguejou.
- O que houve? - perguntei.
- É o filho da mãe que levou a droga da minha caixa de peixe.
- Que caixa é essa?
- Meu GPS. Esse é o cara que o roubou.
Capítulo 7
Backus permaneceu no mínimo trinta metros atrás dela. Mesmo no apinhado aeroporto de Chicago, ele sabia que Rachel Walling estaria no que costumavam chamar, em seu tempo de Bureau, de "Alerta Seis". Vigiando as costas - o Seis - e sempre procurando ver se alguém a seguia. Tinha sido bastante difícil viajar com ela até agora. O avião de Dakota do Sul era pequeno e tinha menos que quarenta pessoas a bordo. A designação aleatória das poltronas o pusera apenas a duas fileiras dela. Tão perto que na verdade podia sentir seu cheiro - o cheiro por trás do perfume e da maquiagem. O cheiro que os cães seriam capazes de seguir.
Era embriagador, estar assim tão perto e ao mesmo tempo separado por tão longa distância. O tempo todo ele queria se virar e olhar para ela, talvez vislumbrar seu rosto entre as poltronas, ver o que estava fazendo. Mas não se atreveu. Precisava aguardar o momento propício. Sabia que coisas boas acontecem aos que planejam cuidadosamente e depois esperam. Este era o ponto, o segredo. A escuridão aguarda. Todas as coisas se dirigem para o escuro.
Seguiu-a por metade do terminal da American Airlines até que ela se sentou junto ao portão K9. Estava vazio. Não havia viajantes esperando ali. Não havia empregados da American atrás do balcão prontos para operar os computadores e checar as passagens. Tanto ela quanto ele estavam adiantados. O voo para Las Vegas ainda demorou mais de duas horas para sair do portão K9. Backus sabia disso porque também estava no voo para Las Vegas. De certo modo ele era o anjo da guarda de Rachel Walling, uma escolta silenciosa que a acompanharia até que alcançasse seu destino final.
Backus passou pelo portão, tomando cuidado para não ser óbvio ao olhar para ela, mas curioso para ver como Rachel passaria o tempo de espera até o próximo voo. Enganchou a tira da bolsa grande de couro no ombro direito para que, se por acaso Rachel levantasse o olhar para ele, seus olhos fossem atraídos para a bolsa, e não para seu rosto. Aliás, não estava preocupado em ser reconhecido por ser quem era. Toda a dor que sentira e as cirurgias a que se submetera resolviam esta parte. Mas ela poderia reconhecê-lo do voo de Rapid City. E ele não queria isso. Não queria que ficasse desconfiada.
Seu coração pulou dentro do peito como um bebê chutando debaixo de um cobertor quando ele lhe dirigiu um olhar furtivo ao passar. De cabeça baixa, ela lia um livro. Era um exemplar velho e usado, com uma profusão de adesivos Post-its amarelos colados em suas páginas. Mas Backus reconheceu o desenho da capa e o título. O Poeta. Ela estava lendo a seu respeito!
Passou por ela antes que ela pudesse sentir que alguém a olhava e levantasse a cabeça. Atravessou outros dois portões e entrou no banheiro. Uma vez lá dentro, fechou-se em um dos reservados. Pendurou a bolsa no gancho da porta e rapidamente começou a trabalhar. Fora com o chapéu de caubói e o colete. Sentou-se no toalete e tirou as botas também.
Em cinco minutos, Backus transformou-se de caubói de Dakota do Sul em jogador de Las Vegas. Vestiu as roupas de seda. Acrescentou os ouros. Pôs o brinco e os óculos de sol. Prendeu o chamativo celular cromado no cinto, mesmo que não fosse receber chamadas nem telefonar para ninguém. De dentro da bolsa tirou outra bolsa, muito menor e decorada com a figura do leão da Metro.
Os componentes da primeira fantasia foram empurrados para dentro da bolsa da MGM e ele saiu do reservado com a bolsa a tiracolo.
Backus foi até a pia lavar as mãos. Admirava a si próprio pelos preparativos realizados. O planejamento meticuloso e a atenção aos pequenos detalhes o tinham transformado em quem era hoje, feito dele um sucesso na sua especialidade.
Por um momento, pensou no que o esperava. Ia levar Rachel Walling a um passeio. Ao final Rachel conheceria as profundezas da escuridão. A sua escuridão. Pagaria pelo que lhe tinha feito.
Sentiu que começava a ter uma ereção. Deixou a pia e tornou a entrar em um dos reservados. Tentou mudar os pensamentos. Prestou atenção nos outros viajantes entrando no toalete, aliviando-se, lavando-se. Um homem falava ao telefone celular ao mesmo tempo em que defecava no reservado ao lado. O lugar todo fedia horrivelmente. Mas tudo bem. Cheirava como o túnel onde tinha renascido em sangue e na escuridão tanto tempo atrás. Se ao menos eles soubessem quem estava ali.
Momentaneamente, teve a visão de um céu escuro e sem estrelas. Estava caindo para trás, abanando os braços, as asas inúteis e implumes de um filhote de pássaro empurrado para fora do ninho.
Mas sobrevivera e aprendera a voar.
Backus começou a rir e usou o pé para dar descarga, abafando o som do riso.
- Vão se foder vocês todos - murmurou.
Esperou que a ereção baixasse, imaginando qual teria sido sua causa e sorriu. Conhecia muito bem a si próprio. No fim era sempre a mesma coisa. Havia uma diferença insignificante entre poder, sexo e realização no que dizia respeito aos espaços estreitos entre as sinapses da massa cinzenta do cérebro. Nesses espaços tudo vinha a dar na mesma.
Quando estava pronto, deu descarga de novo, tendo o cuidado de usar o sapato, e saiu do reservado. Lavou novamente as mãos e examinou sua aparência no espelho. Sorriu. Era um novo homem. Rachel não o reconheceria. Ninguém o reconheceria. Sentindo-se confiante, abriu o fecho da bolsa MGM e verificou a câmera digital. Estava lá e pronta para funcionar. Decidiu que correria o risco de tirar algumas fotos de Rachel. Só algumas lembranças, umas poucas fotos secretas que pudesse admirar e desfrutar quando tudo tivesse acabado.
Capítulo 8
A caixa de peixe. A menção que Buddy fez a ela trouxe-me à lembrança o relatório do xerife na gaveta do posto de comando.
- Eu ia mesmo perguntar a você sobre isso. Você diz que esse sujeito roubou seu GPS?
- Filho da mãe farsante, tenho certeza de que foi ele. Saiu conosco, logo depois vimos que meu GPS tinha sumido e ele começou um negócio de fretamento de barcos no istmo. Certo como dois mais dois são quatro. Há tempos que penso em fazer uma visitinha a ele.
Tive problema para compreender onde ele estava querendo chegar com aquela história. Pedi que me explicasse aquilo em língua de gente, já que eu não era capaz de distinguir uma licença de pesca de uma sopa de peixe.
- O negócio é o seguinte - disse ele. - Aquela caixinha preta tinha todos os nossos melhores locais de pesca. Nossos pesqueiros, cara. Não só eles, tinha também os pontos marcados pelo outro guia de pescarias de quem ganhei o GPS, em um jogo de pôquer. O valor declarado não era pelo aparelho, mas pelo que ele continha. O tal sujeito estava apostando seus doze melhores pesqueiros e eu ganhei com a porra de uma full house.
- Tudo bem - falei. - Já entendi. Seu valor eram as coordenadas dos pesqueiros nele registradas, não o aparelho em si.
- Exatamente. Essas coisas custam uns duzentos dólares, mais ou menos. Mas os pesqueiros só são conhecidos após anos de trabalho, muita habilidade e experiência.
Apontei para a foto na tela do computador.
- E esse sujeito aparece, leva o GPS cheio de informações e depois abre seu próprio negócio, usando não só a sua experiência como a do antigo dono do aparelho.
- Como falei, vou fazer uma visita a ele um dia desses - ele garantiu.
- Onde é o istmo? - perguntei.
- Do outro lado, onde a ilha se estreita formando um oito.
- Você declarou ao departamento do xerife que acha que foi ele quem roubou o GPS?
- A princípio, não porque não sabíamos, entende? Quando descobrimos o sumiço do GPS achamos que talvez alguns garotos tivessem subido a bordo uma noite e levado tudo o que estava à mostra. Pelo que ouço dizer, é um bocado chato ser criado na ilha. Pergunte a Graciela a respeito de Raymond, o garoto está ficando louco. Assim, de qualquer maneira, nós fizemos um relatório e pronto. Aí eu vi, uma semana depois, um anúncio em Fish Tales. Era um novo serviço de fretamento de barcos e guia de pescaria, saindo do istmo, e tinha uma foto do sujeito. Eu vi e disse "conheço esse cara", e somei dois mais dois. Ele roubou meu GPS.
- Aí você contou ao xerife?
- Contei. Liguei para o gabinete dele e contei que era aquele o sujeito. Não ficaram muito empolgados. Telefonei de novo na semana seguinte e me disseram que tinham conversado com o sujeito... por telefone. Não se deram sequer ao trabalho de ir falar com ele cara a cara. Ele negou, claro, e a polícia deu como encerrado.
- Qual é o nome do sujeito?
- Robert Finder. O serviço é chamado de Isthmus Charters. No anúncio ele se autodenomina Robert "Fish" Finder. Uma ova. Devia ser "Ladrão de Peixe".
Olhei para a foto na tela e me perguntei se aquilo teria algum significado para a minha investigação. Poderia o GPS desaparecido estar no centro dos acontecimentos que causaram a morte de Terry McCaleb? Parecia improvável. A ideia de que alguém roubasse a localização exata dos pesqueiros de um competidor era compreensível. Mas se engajar em uma trama complicada para também matar esse competidor me parecia além do limite da razão. Representava a necessidade de um plano e de uma execução sem dúvida alguma incrivelmente complicados da parte de Finder. Da parte de qualquer pessoa.
Lockridge pareceu ler meus pensamentos.
- Ei, você acha que esse safado pode ter tido alguma coisa a ver com a morte de Terror?
Olhei para ele por um instante, vendo que a ideia de que Lockridge estivesse envolvido com a morte de McCaleb como um recurso para ganhar o controle e a locação do negócio do fretamento do barco para pescarias e do próprio barco era uma teoria muito mais verossímil.
- Não sei - respondi. - Mas provavelmente vou verificar.
- Diga-me se precisar de companhia.
- Claro. Mas escuta, percebi, graças ao relatório do xerife, que o GPS foi o único objeto que vocês deram falta. É isso mesmo? Não descobriram mais coisas desaparecidas?
- Só o GPS. Foi por isso que eu e Terry achamos tão estranho no princípio. Até percebermos que tinha sido Finder.
- Terry também achou que tivesse sido ele?
- Ele estava chegando a essa conclusão. E, quem mais poderia ter sido, hein?
A pergunta tinha seu mérito, mas não me parecia prioritária por ora. Apontei para a tela do laptop e disse a Lockridge para continuar abrindo os arquivos de fotos. Foi o que ele fez, e a procissão dos felizes pescadores teve seguimento.
Deparamo-nos com mais uma curiosidade na série de fotos. Lockridge chegou a um conjunto de seis imagens de um homem cujo rosto não era mostrado claramente a princípio. Nos três instantâneos iniciais ele posou segurando um peixe brilhantemente colorido na direção da câmera. Mas sempre segurando o peixe alto demais, obscurecendo quase todo o seu rosto. Em todos eles, seus óculos escuros apareciam logo acima da escama dorsal do peixe, que parecia ser o mesmo em todas as fotos. Presumi que o fotógrafo talvez tivesse tentado repetidamente obter uma foto que incluísse o rosto do pescador. Mas sem sucesso.
- Quem tirou essas?
- Terror. Eu não estava presente desta vez.
Alguma coisa no homem, ou talvez no modo como evitava a câmera, fez McCaleb desconfiar. O que parecia óbvio. As três fotos seguintes tinham sido tiradas sem que o homem tomasse conhecimento. As primeiras duas foram tomadas dentro do salão, visando a cabine, onde o pescador se apoiava na amurada direita. Como os vidros das janelas do salão tinham sido revestidos de película espelhada, o homem não teria visto ou sabido que McCaleb o havia fotografado.
A primeira das duas fotos era de perfil. A seguinte fora tirada de frente. Pondo-se de lado o cenário, era possível dizer que McCaleb instintivamente fizera fotos como as tiradas nas delegacias policiais para identificar presos, o que era outra confirmação de suas suspeitas. No entanto, a fisionomia do homem continuava obscura. Ele usava uma barba cheia, castanha, começando a ficar grisalha, óculos de sol com lentes grandes e um boné azul dos Los Angeles Dodgers. O pouco que podia ser visto do seu cabelo parecia ser cortado rente e ter a mesma coloração da barba. Usava um brinco dourado em forma de argola na orelha direita.
Na foto de perfil, seus olhos eram enrugados e contraídos, naturalmente escondidos mesmo com os óculos escuros. Usava uma calça jeans azul e uma camiseta branca simples sob uma jaqueta Levi’s.
A sexta foto, a última na sequência, foi tirada depois que terminou a pescaria, evidentemente com a ajuda de uma teleobjetiva. Mostrava o homem andando no cais de Avalon, o que tudo indica, depois de desembarcar do The Following Sea. Seu rosto estava voltado ligeiramente para a câmera, embora não chegasse a ser uma foto de perfil. Mas fiquei na dúvida se ele não teria continuado a se virar ou se tinha visto McCaleb e sua câmera.
- E este sujeito aqui? - perguntei. - Fale-me sobre ele.
- Não posso - respondeu Lockridge. - Já lhe falei que não estava lá. Esse foi um que Terry pegou no meio do caminho. Não fez reserva. O sujeito simplesmente apareceu no táxi-lancha numa hora em que Terry estava a bordo e pediu para fazer uma pescaria. Pagou a taxa mínima, meio dia. Queria sair imediatamente e eu estava no continente. Terry não pôde me esperar e saiu sozinho. E sair sozinho é um pé no saco. Mas pegaram uma bela cavala. Nada mal.
- Ele falou a respeito desse sujeito depois?
- Não, na verdade, não. Só disse que a pescaria durou menos que meia jornada. Quis ir embora depois de duas horas, mais ou menos. E foi.
- Terry disparou um alerta. Tirou seis fotos, três enquanto o sujeito não estava olhando. Tem certeza de que não falou nada a respeito?
- Já disse, não comigo. Mas Terry guardava muita coisa para si próprio.
- Você sabe o nome dele?
- Não, mas tenho certeza de que Terry escreveu qualquer coisa no diário. Quer que eu vá ver?
- Quero. E gostaria também de saber a data exata e como foi efetuado o pagamento. Mas primeiro, pode imprimir essas fotos?
- Todas as seis? Vai demorar um pouco.
- Na verdade, todas as seis e mais uma de Finder, já que estamos com a mão na massa. Não se preocupe com a demora. Eu tenho tempo.
- Não creio que você vá precisar de molduras.
- Não, Buddy. Não vai ser necessário. Bastam as fotos.
Recuei quando Buddy sentou-se no banco estofado diante do computador. Ele ligou a impressora que ficava ao lado, carregou-a com papel fotográfico e, com perícia, providenciou os comandos necessários para enviar as fotos à impressora. Mais uma vez, reparei quão facilmente ele operava o equipamento. A minha sensação era de que não havia nenhum conteúdo do laptop com o qual não estivesse familiarizado. O mesmo devia ser verdadeiro para as caixas de arquivos no beliche acima de nós.
- Pronto - disse ele ao se levantar. - Vai levar cerca de um minuto para cada uma. E elas saem um pouco pegajosas. Pode ser preciso espalhá-las até que sequem por completo. Vou subir e ver o que o diário de bordo diz a respeito do seu homem misterioso.
Quando Buddy saiu eu me sentei no banco. Eu o tinha observado usando os arquivos de fotos e aprendia depressa. Voltei à lista principal e dei um duplo clique na pasta denominada MAIL CALL. Abriu-se uma janela contendo 36 fotos pequenas. Cliquei na primeira e ela foi ampliada. Mostrava Graciela empurrando um carrinho com uma garotinha dormindo dentro dele. Cielo Azul. A filha de Terry. O cenário parecia ser o de um shopping. A foto era similar às que ele tirara do homem misterioso, pois também dava a impressão de que Graciela não sabia que estava sendo fotografada.
Virei-me e dei uma olhada pela abertura da porta, na direção dos degraus do salão. Nem sinal de Lockridge. Levantei-me, entrei rapidamente no corredor e esgueirei-me pela porta aberta do banheiro. Comprimi o corpo de encontro à parede, esperando. Em pouco tempo, Lockridge surgiu, carregando o livro de registro. Movia-se lentamente para não fazer barulho. Deixei que passasse e fui atrás. Ia entrar na cabine dianteira pronto para me assustar novamente com a sua súbita aparição.
Mas foi Lockridge quem se assustou ao perceber que eu não estava lá dentro. Quando se virou, deu comigo imediatamente atrás dele.
- Você gosta de esgueirar-se atrás das pessoas, não é mesmo, Buddy?
- Oh, não, quer dizer... Eu só estava...
- Não faça isso comigo, certo? O que diz aí no livro?
Seu rosto ficou vermelho por baixo do bronzeado permanente de pescador. Mas eu tinha lhe dado uma deixa e ele rapidamente a usou.
- Terry registrou o nome do homem, mas foi só. Diz assim, "Jordan Shandy, meia jornada". Mais nada.
Ele abriu o livro e virou-o para que eu visse o lançamento.
- E quanto ao pagamento? Quanto custa meia jornada, afinal?
- Meia jornada, trezentos; o dia inteiro, quinhentos. Verifiquei o registro de lançamentos dos cartões de crédito e não havia nada. Nos depósitos em cheque também não. Isto significa que ele pagou em dinheiro vivo.
- Quando? Presumo que os lançamentos sejam efetuados na sequência, por data.
- E são. A pescaria foi contratada no dia 13 de fevereiro. Ei, sexta-feira, 13. Acha que foi intencional?
- Quem sabe? Foi antes ou depois da pescaria de Finder?
Lockridge arriou o livro de registro em cima da mesa para que nós dois pudéssemos consultá-lo. Correu o dedo pela lista de clientes e deteve-se em Finder.
- Finder foi uma semana depois. Fretou o barco no dia 19 de fevereiro.
- E qual é a data do registro de ocorrência do roubo?
- Merda, vou ter que voltar lá.
Ele saiu e ouvi-o galgando a escada. Tirei a primeira foto da impressora e coloquei em cima da mesa. Era de Jordan Shandy escondendo o rosto com os óculos escuros e o peixe. Fiquei examinando aquela foto até que Lockridge voltou. Desta vez não tentou me pegar de surpresa.
- Registramos o roubo no dia 22.
Assenti. Cinco semanas antes da morte de McCaleb. Escrevi todas as datas de que estávamos falando no meu bloco. Não tinha certeza se teriam algum significado.
- Tudo bem - falei. - Quer fazer mais uma coisa para mim, Buddy?
- Claro. O que é?
- Quero que você suba e tire aqueles caniços que estão pendurados no teto para lavar bem lavados. Não creio que isso tenha sido feito após a última viagem. Eles estão fazendo o barco feder e acho que vou ter que trabalhar aqui por mais alguns dias. Ia me ajudar um bocado.
- Você quer que eu suba lá e lave os caniços.
Ele disse aquilo como uma declaração, um ensaio sobre insulto e desapontamento. Levantei o olhar da foto para o rosto dele.
- Exatamente. Ajudaria um bocado. Vou terminar com as fotos e depois a gente pode visitar Otto Woodall.
- Como queira.
Ele saiu derrotado e o ouvi subir com dificuldade os degraus, tão sonoramente quanto fora silencioso antes. Tirei a segunda foto da impressora e a coloquei ao lado da primeira. Peguei uma caneta preta numa caneca que estava em cima da mesa e escrevi o nome na margem branca inferior: Jordan Shandy.
Novamente sentado, tornei a voltar minha atenção para o computador e para a foto de Graciela e sua filha. Cliquei na seta ao lado e a foto seguinte apareceu. Mais uma vez fora tirada dentro de um shopping. Esta fora tirada ainda mais de longe e apresentava uma granulação deficiente. Nela havia também um menino seguindo Graciela. O filho, concluí. O filho adotado.
Todos da família estavam na foto, menos Terry. Teria sido ele o fotógrafo? Caso afirmativo, por que tanta distância? Cliquei na foto de novo e depois continuei vendo as outras. Quase todas tinham sido tiradas dentro do shopping e de longe. Em nenhuma havia um dos membros da família olhando para a câmera ou reconhecendo sua existência com um gesto. Depois de 28 desse tipo, o cenário mudou e a família passou a aparecer na barca para Catalina. Iam para casa e o fotógrafo estava lá, junto deles.
Havia apenas quatro fotos naquela sequência. Em cada uma delas, Graciela aparecia sentada no centro da parte traseira da cabine principal da barca, entre o menino e a menina. O fotógrafo se posicionara na frente, a diversas fileiras de poltronas de distância. Se Graciela tivesse notado, provavelmente não teria percebido que era o alvo da câmera daquele homem e o teria encarado como sendo mais um turista se dirigindo a Catalina.
As duas últimas fotos da série de 36 pareciam deslocadas em relação às demais, como se fizessem parte de um projeto diferente. A primeira era de uma placa verde dessas usadas nas rodovias. Ampliei-a e vi que tinha sido tirada através do para-brisa de um carro. Pude ver a moldura do para-brisa, parte do painel e um adesivo qualquer no canto do vidro. Parte da mão do fotógrafo, descansando no volante na posição onze horas, aparecia também.
A placa se destacava de encontro à árida paisagem de um deserto, e dizia:
ESTRADA ZZYZX
1,6 km
Eu conhecia a estrada. Ou, mais exatamente, conhecia a placa. Qualquer pessoa de Los Angeles que fizesse a viagem por terra entre L.A. e Las Vegas com a frequência que eu fazia conheceria aquela placa. Quase que na metade do caminho da via expressa 15, ficava a saída da estrada Zzyzx, reconhecível nem que fosse apenas pelo nome singular. Era no Mojave e parecia ser uma estrada que dava no nada. Nenhuma bomba de gasolina, nenhuma parada para descansar. No fim do alfabeto ficava o fim do mundo.
A última foto era igualmente intrigante. Ampliei-a e vi que se tratava de uma estranha natureza morta. Ao centro do enquadramento via-se um velho barco - os rebites das pranchas de madeira estavam à mostra e sua tinta amarela descascava sob o sol causticante. O barco estava pousado sobre o terreno rochoso do deserto, a quilômetros de distância de qualquer água na qual pudesse flutuar. Um barco à deriva em um mar de areia. Se havia um significado específico naquela composição, eu não pude perceber.
Seguindo o procedimento que eu vira Lockridge usar, imprimi duas fotos do deserto e depois voltei a estudar as outras a fim de escolher quais deveria imprimir. No final, mandei imprimir duas da barca e duas do shopping. Enquanto esperava, ampliei diversos instantâneos na esperança de ver algum pequeno detalhe que identificasse o shopping em que Graciela e os filhos se encontravam. Eu sabia que podia simplesmente perguntar a ela. Mas não tinha certeza se queria perguntar.
Nas fotos, consegui identificar sacolas de compras carregadas por várias pessoas que tinham saído de lojas como Nordstrom, Saks Fifth Avenue e Barnes & Noble. Em um dos instantâneos, a família atravessava uma praça de alimentação que incluía as franquias de Cinnabon e Hot Dog on a Stick. Registrei tudo no meu bloco, sabendo que com aqueles cinco nomes eu provavelmente seria capaz de determinar em que shopping as fotos tinham sido tiradas, se eu decidisse que era necessário conhecer esta informação e não quisesse perguntar a Graciela. Esta era uma questão ainda em aberto. Eu não queria alarmá-la, a menos que fosse necessário. Dizer-lhe que tinha sido seguida, em companhia de sua família - e possivelmente por alguém com uma estranha ligação com seu marido - podia não ser a melhor alternativa. Pelo menos a princípio.
Essa ligação tornou-se ainda mais estranha e alarmante quando a impressora finalmente ejetou uma das fotos que eu escolhera da sequência do shopping. Nela, a família caminhava em frente à livraria Barnes & Noble. A foto tinha sido tirada do outro lado do shopping, mas o ângulo era quase perpendicular à frente da livraria. A vitrine da loja captara um vago reflexo do fotógrafo. Eu não vira na tela do monitor, mas lá estava na foto impressa.
A imagem do fotógrafo era muito pequena e indistinta de encontro ao anúncio atrás da vitrine - a foto em tamanho natural de um homem vestindo um kilt, de pé e cercado por pilhas de livros com um cartaz que dizia IAN RANKIN AQUI HOJE! Percebi então que eu podia usar aquele anúncio para definir o dia exato que as fotos de Graciela e seus filhos tinham sido tiradas. Bastava ligar para a loja e descobrir quando Ian Rankin estivera lá. Só que o anúncio também ajudava a esconder o fotógrafo de mim.
Voltei para o computador, encontrei a foto entre as miniaturas e a ampliei. Fiquei olhando, percebendo que não sabia o que fazer.
Buddy estava na cabine, usando uma mangueira ligada à torneira da amurada para lavar os oito caniços e molinetes encostados na popa. Eu disse a ele para fechar a água e voltar para o escritório. Buddy fez o que pedi sem dizer uma palavra. Outra vez no escritório, indiquei o banco a ele, inclinei-me por cima do seu ombro e assinalei a área do reflexo do fotógrafo na tela.
- Isto aqui pode ser ampliado? Quero ver melhor esta área.
- Pode, mas você perde um bocado de definição. É digital, entende? Você tem o que aparece.
Não entendi o que ele falou. Limitei-me a pedir que fizesse a ampliação. Buddy utilizou alguns dos botões quadrados que apareciam ao longo do topo da moldura e começou a ampliar e a reposicionar a foto de modo que a área do reflexo permanecesse na tela. Em pouco tempo, me disse que tinha maximizado a ampliação. Cheguei mais perto. A imagem estava ainda mais nebulosa. Nem mesmo as palavras em cima do kilt do autor eram nítidas.
- Não dá para melhorar?
- Aí vai diminuir de novo. Claro, eu...
- Não, eu queria que ficasse com mais foco.
- Não dá, cara, é isso aí. Você tem o que aparece na foto.
- Certo, então imprima. Quando imprimi, da primeira vez, ficou mais nítida. Pode ser que aconteça o mesmo agora.
Lockridge deu os comandos necessários e passei um minuto desagradável esperando.
- De que se trata, afinal? - perguntou Buddy.
- A imagem refletida do fotógrafo.
- Oh. Quer dizer então que não era Terry?
- Não, acho que não. Acho que alguém tirou fotos de sua família e mandou para ele. Uma espécie de mensagem. Alguma vez ele mencionou isso?
- Não.
Eu quis ver se Buddy deixava escapar alguma coisa.
- Quando você notou pela primeira vez esse arquivo no computador?
- Não sei. Deve ter sido... Na verdade, só fui ver na primeira vez em que você esteve aqui.
- Buddy, não queira me enganar. Vi que você opera este computador como se fosse seu desde os tempos de escola. Sei que você o operava quando Terry não estava por perto. Provavelmente ele sabia. E não se importava. Como eu também não dou a mínima. Só quero que me diga quando foi a primeira vez em que viu esse arquivo.
Ele deixou passar alguns minutos enquanto pensava a respeito.
- A primeira vez que vi foi um mês antes de ele morrer. Mas se o que você quer perguntar é quando Terry viu, então tudo o que precisa fazer é olhar no arquivo e ver quando foi criado.
- Então faça isso, Buddy.
Lockridge voltou a assumir o comando do teclado e foi atrás do histórico do arquivo. Em poucos segundos tinha a resposta.
- Vinte e sete de fevereiro - disse ele. - Quando o arquivo foi criado.
- Ótimo, excelente. Agora, supondo que não tenham sido tiradas por Terry, como podem ter vindo parar no computador dele?
- Bem, há alguns modos. Ele pode ter recebido as fotos anexadas a um e-mail e baixou-as. Alguém pode ter pegado a câmera dele, tirado os retratos e depois Terry descobriu e fez o download para o seu computador. Em uma terceira hipótese, alguém simplesmente enviou um chip com as fotos diretamente da câmera que fez os retratos ou então um CD com as fotos. Este seria provavelmente o modo mais difícil de rastrear.
- Terry tinha conexão para enviar ou receber e-mails daqui?
- Não, tinha que ser de casa. O barco não tem telefone fixo. Eu disse a ele para comprar um desses modens de celular que funciona sem fio, como daquele comercial em que o sujeito está sentado no meio de um campo. Mas Terry nunca se interessou.
A impressora ejetou a foto e eu a peguei antes de Buddy. Mas depois a coloquei em cima da mesa para que nós dois pudéssemos vê-la. O reflexo era indistinto e obscuro, mas ainda assim mais reconhecível impresso do que na tela do computador. Pude ver agora que o fotógrafo segurava a câmera diante do rosto, escondendo-o por completo. Mas fui capaz de identificar as letras L e A sobrepostas, características da logomarca dos Los Angeles Dodgers. O fotógrafo estava usando um boné de beisebol.
Em qualquer dia do ano é possível que haja cinquenta mil pessoas usando bonés dos Dodgers nesta cidade, não sei dizer ao certo. Mas o que sei é que não acredito em coincidências. Nunca acreditei e jamais acreditarei. Olhei para o reflexo sombrio do fotógrafo e meu palpite repentino foi de que aquele era o homem misterioso. Jordan Shandy.
Lockridge viu o mesmo que eu.
- Droga! - exclamou. - É ele, não é? Acho que é o tal Shandy.
- É - concordei. - Também acho.
Pus a foto de Shandy segurando o peixe ao lado. Não havia como comparar com precisão, mas nada me faria mudar de ideia. Não era possível ter certeza, mas eu tinha. O homem que aparecera sem aviso para fretar o barco de Terry McCaleb também tinha seguido e fotografado a família dele.
O que eu não sabia era onde McCaleb obtivera aquelas fotos e se ele tinha chegado à mesma conclusão que eu.
Comecei a empilhar todas as fotos que imprimira, o tempo todo tentando ver se descobria alguma conexão lógica. Mas nada. Eu ainda não tinha um quadro geral. Só uns poucos fragmentos. Meus instintos me diziam que McCaleb fora enganado de alguma forma. Fotos de sua família tinham chegado junto a um e-mail, um chip ou um CD. E as duas últimas fotos eram a chave. As primeiras 34, a isca. As duas últimas escondiam o anzol.
A mensagem me parecia óbvia. O fotógrafo queria atrair McCaleb para o deserto. Para a estrada Zzyzx.
Capítulo 9
Rachel Walling desceu pela escada rolante para a imensa área de bagagens do aeroporto de Las Vegas, o McCarran International. Ela viera de Dakota do Sul apenas com a bagagem de mão, mas o aeroporto era projetado de modo que todos os passageiros tivessem que passar por ali. Lá embaixo, junto à escada rolante, havia uma multidão de pessoas esperando. Motoristas de limusines erguiam placas com os nomes de seus clientes, outros simplesmente levantavam cartazes, que anunciavam os nomes de hotéis, cassinos ou empresas de turismo. O barulho dissonante que se levantava daquela babel a assaltou enquanto descia. Nada parecido com o aeroporto onde tinha começado a viagem naquela manhã.
Cherie Dei ia esperá-la. Rachel não via sua colega de FBI há quatro anos e, mesmo assim, aquele fora apenas um breve encontro em Amsterdã. Já tinham se passado oito anos desde que passara realmente algum tempo com ela e não podia afirmar que a reconheceria ou se seria reconhecida.
Não tinha importância. Enquanto passava em revista o mar de rostos e placas, uma delas chamou-lhe a atenção.
BOB BACKUS
A mulher que a segurava sorria para ela. Certamente era sua ideia de piada. Rachel se aproximou, sem retribuir o sorriso.
Cherie Dei usava o cabelo castanho avermelhado preso num rabo de cavalo. Era uma mulher atraente e elegante, com um sorriso bom e, muita luz nos olhos. Rachel achou que parecia mais a mãe de dois garotos que estudavam em uma escola católica do que uma caçadora de assassino em série.
Dei estendeu a mão. As duas se cumprimentaram e Dei ofereceu-lhe o cartaz.
- Eu sei, piada de mau gosto, mas sabia também que ia atrair sua atenção.
- E atraiu mesmo.
- Esperou muito tempo em Chicago?
- Algumas horas. Não há muita escolha para quem vem de Rapid City. Denver ou Chicago. Prefiro a comida do O’Hare.
- Você tem malas?
- Não, só esta. Podemos ir.
Rachel só trouxera uma mala - uma bolsa de lona grossa, tamanho médio. Trouxera apenas algumas mudas de roupa. Dei indicou uma parede de portas de vidro e elas seguiram para lá.
- Fizemos uma reserva para você onde todos nós estamos hospedados, no Embassy Suites. Quase não conseguimos, mas houve um cancelamento de última hora. A cidade está cheia de gente que veio para a luta.
- Que luta?
- Não sei. Um dessas lutas de boxe de peso pesados ou de júnior meio pesados em um dos cassinos. Não sei direito. Só sei que é a razão pela qual a cidade está repleta.
Rachel sabia que Cherie estava falando tanto porque estava nervosa. Não sabia a razão do nervosismo, se havia acontecido alguma coisa ou se era simplesmente porque ela, Rachel, tinha que ser levada com todo cuidado naquela situação.
- Se quiser, podemos ir para o hotel para que você se instale. Vai dar inclusive para descansar um pouco. Há uma reunião mais tarde no escritório local. Você poderia começar por lá se...
- Não. Prefiro ir para a cena do crime.
Elas passaram pelas portas automáticas e Rachel sentiu o ar seco de Nevada. Não estava tão quente como esperara e tinha se preparado. O ar era frio e revigorante, mesmo sob a luz direta do sol. Tirou os óculos de sol e decidiu que a jaqueta que usara no aeroporto de Dakota do Sul seria necessária ali. Estava na bolsa.
- Rachel, a cena é a duas horas daqui. Tem certeza que você...
- Sim, leve-me lá. Gostaria de começar lá.
- Começar o quê?
- Não sei. Começar o que ele espera que eu comece.
Aquilo pareceu dar a Dei uma pausa. Não disse nada. As duas entraram no estacionamento coberto e encontraram o carro - um Crown Vic oficial tão sujo que parecia camuflado para ação no deserto.
Assim que ganharam a estrada, Dei pegou um telefone celular e fez uma ligação. Rachel a ouviu falar com alguém - provavelmente seu chefe, parceiro ou supervisor da cena do crime - que tinha apanhado o pacote e ia levá-lo para a cena. Houve uma longa pausa durante a qual a pessoa para quem ligara respondeu. Até que, por fim, despediu-se e desligou.
- Você está autorizada na cena, Rachel, mas tem que se manter de fora. Está aqui como observadora, certo?
- De que você está falando? Sou agente do FBI, igual a você.
- Mas não trabalha mais na Unidade de Ciências Comportamentais. Este caso não é seu.
- Você está dizendo então que só estou aqui porque Backus me quer, não o Bureau.
- Rachel, vamos tentar ter um começo melhor aqui do que em Am...
- Apareceu alguma novidade até agora, até hoje?
- Chegamos a dez corpos. Eles pensam que vai parar por aí. Pelo menos nesse lugar.
- Identidades?
- Estão chegando lá. O que temos até agora ainda é experimental, mas já estão montando o quebra-cabeça.
- Brass Doran está na cena?
- Não, ela trabalha em Quantico. Tem muito...
- Ela devia estar aqui. Vocês não sabem o que temos aqui? Ela...
- Calma, Rachel, vamos com calma, sim? Vamos acertar uma coisa de uma vez por todas. Sou eu a agente encarregada do caso, certo? Você não vai dirigir esta investigação. E não vai dar certo se você confundir as estações.
- Mas Backus está falando comigo. Ele me chamou.
- E é por isso que você está aqui. Mas não para dar as ordens, Rachel. Vai ter que ficar de lado e observar. E eu tenho que lhe dizer que não gosto de como isto começou. Isto não é "Conduzindo Miss Rachel". Você foi minha orientadora, sim, mas há dez anos. Estou agora na Unidade de Ciências Comportamentais há mais tempo do que você passou lá e tenho um acervo de casos maior que o seu. Então, não queira me dar ordens e não banque minha orientadora ou minha mãe.
A princípio Rachel nada disse e, depois simplesmente pediu a Dei que encostasse o carro para que ela pudesse pegar a jaqueta que estava dentro da bolsa de viagem, na mala. Dei parou na Travel America da Blue Diamond Road e abriu a mala.
Quando Rachel voltou para o carro estava usando um casaco preto folgado, impermeável, de feitio masculino. Dei nada disse a respeito.
- Obrigada - disse Rachel. - E você tem razão. Peço desculpas. Acho que você fica como sou agora quando descobre que seu chefe... e mentor... é o mal que perseguiu toda a sua vida. E ainda a punem por isso.
- Eu entendo, Rachel. Mas não foi só o Backus. Foi um monte de coisas. O repórter e algumas das escolhas que você fez. Há quem diga que você teve sorte de ainda ter um emprego depois de tudo aquilo.
Rachel sentiu o rosto em fogo. Cherie Dei estava lembrando a ela que era uma das vergonhas do Bureau. Inclusive entre seus pares. Inclusive perante a agente de quem tinha sido supervisora. Tinha dormido com o repórter que trabalhava no seu caso. Para ficarmos apenas nas informações básicas. Não importava que o repórter fosse, na realidade, uma parte do caso, que trabalhasse ao lado de Rachel 24 horas por dia. A versão resumida sempre seria a história que os agentes ouviam e que comentavam. Um repórter. Haveria algo pior no comportamento de uma agente, no descumprimento da etiqueta do Bureau? Talvez um espião ou um mafioso, no máximo.
- Cinco anos em Dakota do Norte seguidos de uma promoção para Dakota do Sul - disse ela, baixinho. - É, tive sorte, sim.
- Olha, eu sei que você pagou o preço. Meu ponto é que você precisa saber qual é o seu lugar aqui. Use um pouco de astúcia. Tem muita gente de olho neste caso. Se você não cometer mais infrações, talvez cancelem sua punição.
- Entendido.
- Ótimo.
Rachel enfiou a mão na lateral do banco e ajustou-o para poder reclinar.
- Quanto tempo de viagem, você falou?
- Cerca de duas horas. Temos usado, na maior parte das vezes, helicópteros a partir do aeroporto de Nellis. Economiza muito tempo.
- Não chama muita atenção?
Ela se referia à mídia, se a notícia da investigação no deserto já vazara.
- Tivemos alguns problemas, mas até agora está dando para segurar. A cena é na Califórnia e nós estamos operando a partir de Nevada. Penso que isto tem ajudado a manter a porta fechada. Para ser sincera, há algumas pessoas preocupadas com você agora.
Rachel pensou por um momento em Jack McEvoy, o repórter.
- Ninguém precisava se preocupar - disse ela. - Nem sei por onde ele anda.
- Bem, se finalmente esta investigação alcançar o radar da imprensa, pode ter certeza de que vai vê-lo. Ele escreveu um best seller sobre a primeira rodada. Garanto como voltará para a sequência.
Rachel pensou no livro que viera lendo no avião e que agora estava na sua mala. Não tinha certeza se era o autor ou o assunto que a fizera lê-lo tantas vezes.
- Provavelmente.
Deixou a conversa morrer neste ponto, ajeitou a jaqueta em torno dos ombros e cruzou os braços. Estava cansada, não tendo dormido desde que recebera o telefonema de Dei.
Encostou a cabeça no vidro da janela e em muito pouco tempo caiu no sono. Seu sonho de escuridão retornou. Só que desta vez não estava sozinha. Não podia ver ninguém porque só era capaz de enxergar a escuridão, mas sentia a presença de outra pessoa. Havia alguém por perto, mas não obrigatoriamente com ela. Moveu-se e virou para o lado, tentando descobrir de quem se tratava. Levantou os braços mas suas mãos não tocaram em nada.
Rachel ouviu um gemido e aí percebeu que era sua própria voz vindo do fundo da garganta. Então foi agarrada. Alguma coisa a prendia e a sacudia com muita força.
Rachel abriu os olhos. Viu a rodovia voando à sua frente através do para-brisa. Cherie Dei largou sua jaqueta.
- Você está bem? Chegamos.
Rachel leu na placa rodoviária verde que passou.
ESTRADA ZZYZX
1,6 km
Endireitou-se no banco, verificou o relógio e viu que tinha dormido mais de noventa minutos. Sentiu o pescoço duro e dolorido de ter ficado tanto tempo apoiado na janela. Começou a massageá-lo, enfiando a ponta dos dedos fundo no músculo.
- Você está bem? - perguntou Dei de novo. - Parecia que você estava tendo um pesadelo.
- Estou ótima. O que foi que eu disse?
- Nada. Só ficou gemendo. Acho que você estava fugindo de alguma coisa ou que alguma coisa a havia agarrado.
Dei acionou a seta e virou na pista de saída. A estrada Zzyzx parecia estar no meio do nada. Na parte elevada da saída nada, sequer um posto de gasolina ou uma estrutura abandonada. Não havia razão visível nem para a saída nem para a estrada.
- Chegamos.
Dei virou à esquerda e seguiu pelo viaduto que atravessava a autoestrada. Uma vez fora do viaduto, a estrada desaparecia em uma trilha sem pavimentação que seguia para o sul no rumo da depressão plana do Mojave. A paisagem era desolada. O branco exagerado da superfície da planície parecia neve à distância. As iúcas erguiam os dedos ossudos na direção do céu e as plantas menores forçavam caminho por entre as pedras. Era uma natureza morta. Rachel não tinha ideia de que tipo de vida animal poderia sobreviver em lugar tão árido.
Passaram por uma placa que dizia que estavam se dirigindo a Soda Springs e depois a estrada fez uma curva e Rachel pôde ver, de repente, as barracas brancas e trailers, vans e outras viaturas mais adiante. Era visível também um helicóptero militar pintado de verde, as lâminas paradas, estacionado à esquerda do acampamento. Mais à frente, havia um complexo de pequenas edificações construídas na base das elevações. Parecia um motel de beira de estrada, mas não havia placas nem estrada de acesso.
- Que lugar é aquele? - perguntou Rachel.
- O nome é Zzyzx - respondeu Dei, pronunciando zie-zix. - Tanto quanto posso lhe dizer, o cu do mundo. Um desses pregadores radiofônicos construiu e batizou aquilo sessenta anos atrás. Conseguiu controlar a terra prometendo ao governo que realizaria prospecções. Pagou a beberrões das favelas de Los Angeles para fazer as prospecções enquanto ia para o microfone da rádio conclamar os fiéis a virem para cá a fim de se banharem nas águas da fonte e se entupirem com a água mineral que ele engarrafava. O Departamento de Terras Públicas do Ministério do Interior, o Bureau of Land Management, precisou de 25 anos para se livrar dele. O lugar foi entregue à universidade estadual com a finalidade de possibilitar estudos do deserto.
- Por que aqui? Por que Backus enterrou os corpos aqui?
- Até onde pudemos entender, escolheu este local por se tratar de terreno federal. Ele queria se assegurar de que nós, isto é, você, provavelmente, trabalhássemos no caso. Se era o que queria, conseguiu. É uma escavação de grande porte. Tivemos que trazer geradores, abrigos, comida, água, tudo.
Rachel nada disse. Estudava tudo o que tinha diante dos olhos, desde a cena do crime até o horizonte distante de montanhas cinzentas que delimitavam a depressão do Mojave. Não concordava com a opinião de Dei. Já vira a costa da Irlanda ser descrita como sendo de uma beleza terrível. Achava que o deserto, com sua árida paisagem lunar, era, a seu modo, belo também. Tinha uma beleza áspera. Perigosa. Nunca passara muito tempo no deserto, mas a temporada nas Dakotas lhe ensinara a apreciar lugares áridos, paisagens vazias, em que as pessoas eram intrusas. Este era o seu segredo. Rachel tivera o que o Bureau chamava de "transferência de sacrifício", cuja intenção fora desgastá-la e fazer com que desistisse. Mas ela os vencera em seu próprio jogo. Poderia permanecer lá para sempre. Não desistiria.
Dei reduziu a marcha quando se aproximaram de uma barreira instalada uns cem metros antes das barracas. Um homem de macacão azul com as letras brancas FBI na parte de cima estava de pé sob uma barraca com os lados abertos. O vento do deserto ameaçava arrancá-la das amarras, do mesmo modo como despenteara totalmente o agente.
Dei abaixou o vidro. Não se deu ao trabalho de dizer o próprio nome ou mostrar a identidade. Era da casa. Deu ao homem o nome de Rachel e ele a identificou como "agente visitante", seja lá o que isso quisesse dizer.
- Ela foi liberada pelo Agente Alpert? - perguntou o agente, a voz tão seca e insípida como o deserto às suas costas.
- Foi.
- Tudo bem, então. Só vou precisar das credenciais dela.
Rachel entregou a identidade. O agente anotou o número de série e devolveu.
- De Quantico?
- Não, Dakota do Sul.
O olhar que ele lhe dirigiu deixou claro que sabia que Rachel era uma incompetente.
- Divirta-se - disse quando se virou para voltar para debaixo da barraca.
Dei deslocou o carro, fechando a janela e deixando o agente em meio a uma nuvem de poeira.
- Ele é do escritório de Vegas - ela explicou. - O pessoal de lá não está muito feliz com o rumo dos acontecimentos, desempenhando posição secundária.
- E qual é a novidade nisso?
- É isso o que quero dizer.
- Alpert é o encarregado?
- Ele mesmo.
- Como ele é?
- Bem, você se lembra de sua teoria sobre os agentes serem ou morfos ou empáticos?
- Lembro.
- Ele é um morfo.
Rachel assentiu.
Elas chegaram a um pequeno cartaz preso a um galho de iúca. O cartaz que dizia VEÍCULOS e tinha uma seta apontando para a direita. Dei fez a curva e foram estacionar na última vaga de uma fila de quatro Crown Vics igualmente imundos.
- E você? - perguntou Rachel. - Em que você se transformou?
Dei não respondeu.
- Você está preparada? - ela perguntou a Rachel, em vez de responder.
- Totalmente. Há quatro anos espero uma nova chance com ele. É aqui que ela começa.
Abriu a porta do carro e saltou na brilhante luz do sol do deserto. Sentia-se em casa.
Capítulo 10
Backus seguiu-as quando desceram a rampa de saída, mantendo uma distância segura. Atravessou o viaduto e acionou a seta para voltar na direção oposta. Se elas estivessem olhando pelo retrovisor, o carro de Backus pareceria somente estar fazendo o retorno para Vegas.
Antes de voltar à autoestrada, ele observou o carro do FBI abandonar a rodovia pavimentada e seguir pelo deserto na direção do sítio. Seu sítio. Uma nuvem branca subiu atrás do carro. Era possível ver as barracas brancas à distância. Foi invadido por uma esmagadora sensação de realização. O sítio, a cena do crime, era uma cidade construída por ele. Uma cidade de ossos. Os agentes eram como formigas entre pedaços de vidro. Viviam e trabalhavam num mundo criado por ele, seguindo, sem saber, as suas ordens.
Gostaria de poder se aproximar mais, de poder ver em detalhe o horror que gravava em seus rostos, mas sabia que o risco era demasiado grande.
E tinha outras coisas a fazer. Meteu o pé no acelerador e voltou na direção da cidade do pecado. Tinha que se assegurar de que tudo estava pronto e de que as coisas tinham sido preparadas.
Enquanto dirigia, sentiu uma leve pontada de melancolia. Imaginou que seria por ter sido obrigado a deixar Rachel para trás, no deserto. Respirou fundo e tentou exorcizar o sentimento. Sabia que não se passaria muito tempo antes de estar novamente perto dela.
Após um momento, sorriu da lembrança de ter visto seu nome no cartaz exibido pela mulher que fora ao encontro de Rachel no aeroporto. Uma piadinha para uso interno e exclusivo entre duas agentes. Backus reconheceu quem fora esperar Rachel. Agente Cherie Dei. Rachel fora mentora dela, da mesma forma que ele fora mentor de Rachel. Isto significava que alguns dos seus insights especiais tinham sido passados através de Rachel para a nova geração. Ele gostou disso. Gostaria de saber qual teria sido a reação de Cherie Dei se ele tivesse aparecido diante dela e de seu cartaz idiota ao pé da escada rolante e dissesse: "Obrigado por ter vindo me esperar."
Olhou através da janela do carro a planície árida do deserto. Acreditava que era verdadeiramente bela, e tornada ainda mais bela pelas coisas que plantara na areia e na rocha.
Pensou nisso e, em pouco tempo, a pressão no peito cedeu e ele se sentiu maravilhoso de novo. Checou o retrovisor à procura de trailers e nada viu de suspeito. Em seguida examinou a própria imagem e, mais uma vez, admirou-se com o trabalho do cirurgião. Sorriu para si próprio.
Capítulo 11
Ao se aproximarem das barracas, Rachel Walling começou a sentir o cheiro da cena do crime. O inconfundível odor de carne putrefata era carregado pelo vento que varria o acampamento, inflava as barracas e se movia de novo. Passou a respirar pela boca, perseguida pelo conhecimento que não gostaria de ter, de que a sensação de cheiro ocorre quando partículas minúsculas atingem os sensores existentes nas passagens nasais. Ou seja, se você sente o cheiro de carne podre é porque está respirando carne podre.
Havia três pequenas barracas quadradas mais perto do sítio. Não eram do tipo usado para acampamento. Eram barracas de postos de comando de campanha com as laterais retas até dois metros e meio. Atrás dessas três barracas havia uma outra retangular e maior. Rachel notou que todas tinham abas abertas na parte de cima. Por isso, sabia que em todas estavam sendo realizadas escavações para o resgate de cadáveres. Os respiradouros destinavam-se a deixar que um pouco do calor e do mau cheiro escapassem.
O barulho sobrepunha-se a tudo. Havia pelo menos dois poderosos geradores movidos à gasolina fornecendo energia. Havia também dois trailers grandes estacionados à esquerda das barracas com seus sistemas de ar-condicionado ligados.
- Vamos primeiro lá - disse Cherie Dei, apontando para um dos trailers. - Randal geralmente está ali.
O trailer se parecia com qualquer um dos que Rachel vira na estrada, os chamados RV - veículos recreacionais. Este era do modelo chamado "Open Road" e tinha placa do Arizona. Dei bateu na porta e abriu sem esperar resposta. Elas subiram e entraram. Por dentro, o veículo não era destinado a acampamentos ou viagens de recreio. As divisórias e os confortos domésticos tinham sido removidos. O que havia era um aposento comprido com quatro mesas de dobrar e muitas cadeiras. Na parte de trás, havia um balcão com toda a parafernália usual de escritórios - computador, fax, copiadora e máquina de café. Duas das mesas estavam cobertas de papelada. Na terceira, sem ter nada a ver com o objetivo do veículo e o restante do cenário, havia uma grande tigela de frutas. A mesa do almoço, imaginou Rachel. Até mesmo em um sítio de enterramentos em massa você tem que almoçar. Na quarta mesa havia um homem falando ao celular, com um laptop aberto à frente.
- Sente-se - sugeriu Dei. - Apresento você assim que ele desligar.
Rachel sentou-se à mesa do almoço e deu uma fungada preventiva. O sistema de renovação de ar do RV estava ligado na função Reciclar e o odor oriundo da escavação não podia ser percebido. Não era de admirar que o homem permanecesse ali dentro. Ela deu uma olhada nas frutas e pensou em pegar um cacho de uvas, só para manter elevado o nível de sua energia, mas desistiu.
- Pode pegar - disse Dei, percebendo o que ela pensara.
- Não, obrigada, estou bem.
- Fique à vontade.
Dei estendeu a mão e pegou um cacho de uvas e Rachel sentiu que fizera papel de tola. O homem do celular, que ela presumia fosse o agente Alpert, falava baixo demais para ser ouvido - o que provavelmente seria verdadeiro também para seu interlocutor. Rachel reparou que a parede comprida que seguia ao longo do lado esquerdo do trailer era coberta de fotos das escavações. Desviou o olhar. Não queria estudar as fotografias enquanto não tivesse estado nas barracas. Virou-se e olhou pela janela mais próxima. Dali podia ver a depressão do deserto e a linha de crista das elevações que a delimitavam. Perguntou-se por um instante se aquela visão teria algum significado em especial. Se Backus tinha escolhido o local por causa da paisagem, e, neste caso, o que isto queria dizer.
Quando Dei virou de costas, Rachel pegou umas uvas e colocou três de uma vez na boca. No mesmo instante, o homem fechou o celular, levantou-se da mesa e aproximou-se com a mão estendida.
- Randal Alpert, agente especial encarregado. É uma satisfação ter você aqui conosco.
Rachel apertou a mão dele, mas teve que esperar engolir as uvas para poder falar.
- Prazer em conhecê-lo. É verdade que em circunstâncias não muito agradáveis.
- É verdade. Mas dá só uma olhada na paisagem. Dá de dez a zero na parede de tijolo que tenho lá em Quantico. E pelo menos estamos aqui no fim de abril e não de agosto. O calor aí seria de matar.
Ele era o novo Bob Backus. Chefiando o serviço em Quantico, mas saindo da sala para trabalhar nos casos maiores, e este, certamente, era um dos grandes. Rachel decidiu que não gostava dele e que Cherie Dei tinha razão quando o definira como um morfo.
Rachel sempre achara que os agentes da Unidade de Ciências Comportamentais eram de dois tipos. O primeiro ela chamava de "morfos". Eram agentes muito parecidos com os homens e mulheres que caçavam. Capazes de afastar tudo que pudesse impedi-los de chegar a eles. Podiam seguir - como um assassino serial - de caso em caso, sem se deixar arrastar por todo o horror e culpa e conhecimento da verdadeira natureza do mal. Ela os chamava de "morfos" porque eram agentes capazes de suportar esse fardo e, de algum modo, "metamorfoseá-lo" em outra coisa. Assim, a visão de uma escavação destinada a desenterrar vários cadáveres tornava-se uma visão melhor do que qualquer coisa em Quantico.
O segundo tipo Rachel chamava de "empáticos" porque assimilavam todo o horror que cercava seu trabalho e o conservavam. Ele passava a ser a fogueira em que se aqueciam. Usavam-no para se ligarem e se motivarem, para cumprirem a missão. Para Rachel, eram os melhores agentes porque seriam capazes de ultrapassar os próprios limites a fim de pegar o bandido e resolver o caso.
Certamente era mais saudável ser um "morfo". Ser capaz de seguir adiante sem bagagem. As paredes da unidade eram assombradas pelos fantasmas dos "empáticos", agentes que não tinham conseguido cobrir a distância requerida, para os quais o fardo se tornara demasiadamente pesado. Agentes como Janet Newcomb, que se matara com um tiro na boca, Jon Fenton, que entrara com o carro no pilar de uma ponte, e Terry McCaleb, que literalmente dera o coração pelo trabalho. Rachel se lembrava deles todos e, acima de tudo, de Bob Backus, o "morfo" insuperável, o agente que era ao mesmo tempo caçador e presa.
- Eu estava falando com Brass Doran - explicou Alpert -, que pediu para lhe dizer oi.
- Ela voltou para Quantico?
- Voltou. Brass está com fobia de lugares abertos e não quer sair nunca. Ficou organizando as coisas para nós na ponta de lá. Agora, Agente Walling, sei que você conhece os procedimentos. Temos aqui uma situação delicada. Temos prazer em tê-la conosco, mas sua posição é estritamente de observadora e possivelmente de testemunha.
Rachel não gostou de vê-lo tão formal. Era uma maneira de mantê-la fora do círculo.
- Testemunha?
- Você talvez possa nos dar algumas ideias. Você conhece esse sujeito. A maioria de nós estava na rua caçando ladrões de bancos quando aconteceu o problema com Backus. Entrei para a unidade logo depois do seu acontecimento. Depois que o ERP varreu tudo. A Cherie é uma das poucas pessoas que ainda restam daquele tempo.
- Meu acontecimento?
- Você sabe o que eu quis dizer. Você e Backus...
- Posso ir olhar a escavação agora? Eu gostaria de ver o que vocês conseguiram.
- Bem, a Cherie levará você lá num segundo. Não temos muito o que ver exceto as carcaças de hoje.
"Falando como um verdadeiro morfo", pensou Rachel. Virou-se para Dei e os olhares de ambas concordaram com o diagnóstico Morfo.
- Mas antes preciso falar uma coisa com você.
Rachel sabia o que estava por vir, mas deixou que Alpert dissesse a sua fala. Ele se deslocou para a parte da frente do trailer e apontou através do para-brisa para o deserto. Rachel seguiu a direção indicada por ele mas não pôde ver outra coisa que não a linha de montanhas no horizonte.
- Bem, você não pode mesmo ver deste ângulo - disse Alpert -, mas estendemos no chão lá adiante um grande cartaz onde se lê, em letras gigantescas, FILMANDO - PROIBIDOS SOBREVOOS, SILÊNCIO. É para quem possa sentir curiosidade em relação a tantas barracas e viaturas. Grande ideia, não é mesmo? O pessoal pensa que é uma filmagem em locação. Ajuda a manter essa gente afastada.
- E o que você quer dizer com isso?
- Quero dizer que nós jogamos um cobertor grosso em cima de tudo isso. Ninguém sabe o que está acontecendo e eu quero manter desse jeito.
- Você está sugerindo que eu seja uma informante da imprensa?
- Não, não estou sugerindo isso. Estou lhe dizendo a mesma coisa que digo para todo mundo que vem aqui. Não quero que isso apareça na mídia. Quero controlar os acontecimentos desta vez. Entendido?
É mais uma recomendação do comando do Bureau ou o ERP - Escritório de Responsabilidade Profissional - do que sua, ela pensou. As revelações de Backus quase dizimaram as fileiras e a reputação da Unidade de Ciências Comportamentais da última vez, para não mencionar o colossal fiasco de relações públicas que recaiu sobre o Bureau como um todo. Agora, com o ataque terrorista às torres do World Trade Center em 11 de setembro, e a competição do Bureau com a agência encarregada da segurança interna, a Homeland Security, tanto por recursos financeiros quanto pelas manchetes, o foco da mídia em um agente assassino enlouquecido não era o que o comando do Bureau ou o ERP tinham em mente. Especialmente quando o público em geral fora levado a crer que o agente assassino enlouquecido estava morto há muito tempo.
- Eu entendo - disse Rachel, com frieza. - Você não terá que se preocupar comigo. Posso ir agora?
- Mais uma coisa.
Ele hesitou. Fosse o que fosse, tratava-se de assunto delicado.
- Nem todo mundo envolvido com esta investigação tem conhecimento da conexão com Robert Backus. A coisa está na base de só saber quem "precisa saber" e eu quero manter assim.
- O que está querendo dizer? As pessoas trabalhando aí fora não sabem que foi Backus quem fez isso? Pois elas deviam...
- Agente Walling, esta investigação não é sua. Não tente dar ordens. Você foi trazida para observar e ajudar, mantenha-se desta forma. Não sabemos ao certo se foi Backus e, enquanto não soubermos...
- Certo. Suas digitais só estavam espalhadas por todo o GPS e seu MO, modus operandi, pode ser reconhecido em tudo mais.
- Cherie não devia ter lhe falado sobre as digitais, e no que diz respeito ao MO, não há nada que se possa afirmar.
- Só porque ela não devia ter me falado, não quer dizer que não seja assim. Você não vai conseguir encobrir a verdade, agente Alpert.
Alpert deu uma risada de frustração.
- Quem falou em encobrir a verdade? Olha só, tudo o que estamos fazendo agora é controlar as informações. Há uma data certa para que sejam revelados os dados. É só isto que vou lhe dizer. Sua presença aqui por si só já é bastante reveladora, certo? Só não quero que você decida o que revelar e para quem revelar. É minha obrigação. Entendido?
Rachel balançou a cabeça sem convicção, ao mesmo tempo em que dirigia um olhar a Dei.
- Perfeitamente.
- Ótimo. Então, Cherie, pode levá-la. Faça um giro turístico com ela.
As duas deixaram o trailer e Dei conduziu Rachel para a primeira barraca.
- Você certamente agradou a ele - disse para Rachel quando começaram a caminhada.
- É engraçado. Algumas coisas nunca mudam. Acho que talvez seja impossível a burocracia evoluir, aprender alguma coisa com os próprios erros. De qualquer forma, deixa para lá. O que temos aqui?
- Até aqui temos oito sacos e gás indicando mais dois. Ainda não chegamos neles. A clássica pirâmide invertida.
Rachel conhecia o jargão. Ela própria inventara parte dele. Dei estava dizendo que oito corpos já tinham sido recuperados e que as leituras das sondagens de gás indicavam que ainda havia dois corpos enterrados aguardando escavação. A história trágica criou dados de onde eram formados modelos de comportamento. Já tinha sido visto antes, um assassino que retorna com as vítimas para o mesmo local de sepultamento e segue um padrão, os enterros mais recentes irradiando-se do original em forma de uma pirâmide invertida ou de um "V". Era este o caso ali, com Backus, intencional ou inconscientemente, seguindo um padrão baseado nos dados que acumulara enquanto agente.
- Deixa eu lhe perguntar uma coisa - disse Rachel. - Ele estava falando com a Brass Doran ao telefone lá dentro do trailer. Ela deve saber a respeito da conexão com Backus, certo?
- Sim, ela sabe. Foi Brass quem encontrou as digitais no pacote.
Rachel balançou a cabeça. Tinha pelo menos uma aliada em quem podia confiar e que estava por dentro do que acontecia.
Chegaram na barraca e Dei puxou para trás a aba da entrada. Rachel entrou primeiro. Como a aba do teto destinada a ventilação estava aberta o interior da barraca não era muito escuro. Apenas sombrio. Os olhos de Rachel ajustaram-se imediatamente e ela viu um grande buraco retangular no centro da barraca. Não havia pilha de entulho. Ela presumiu que a terra, pedra e areia removidas da sepultura tinham sido enviadas para filtragem e análise em Quantico ou no laboratório de campanha.
- O primeiro sítio é onde se encontram as anomalias - disse Dei. - Os outros são sepulturas normais.
- Quais são as anomalias?
- A leitura registrada no GPS conduziu a este local. Quando o nosso pessoal chegou aqui encontrou a anomalia número um: um barco. Era...
- Um barco? Aqui no deserto?
- Lembra daquele pregador de que lhe contei, o que construiu este lugar? Ele cavou um canal para conduzir a água da nascente. Imaginamos que o barco seja explicado pela existência do canal. Bom, estava aqui há décadas. De qualquer modo, nós o deslocamos, instalamos uma sonda e começamos a cavar. A anomalia número dois é que o túmulo continha as duas primeiras vítimas. Todas as outras sepulturas são individuais.
- Essas duas primeiras vítimas, foram enterradas ao mesmo tempo?
- Foram. Uma em cima da outra. Mas uma foi embrulhada em plástico e estava morta há mais tempo que a outra. Sete meses de diferença, imaginamos.
- Então ele segurou um corpo por algum tempo. Embrulhado, para preservar com segurança. E quando teve o segundo corpo percebeu que tinha que tomar alguma providência e veio para o deserto a fim de enterrar os dois ao mesmo tempo. Usou o barco para assinalar o local. Como uma espécie de lápide mortuária e em seu próprio benefício, porque sabia que voltaria com mais.
- Talvez. Mas por que precisaria do barco se tinha o GPS? - retrucou Dei.
Rachel concordou e sentiu uma carga de adrenalina no sangue. O livre debate sempre fora a melhor parte do seu trabalho.
- O GPS veio depois. Recentemente. E foi só para nós.
- Nós?
- Você. O Bureau. Eu.
Rachel aproximou-se um pouco e olhou para o fundo do buraco. Não era profundo, especialmente para dois corpos. Parou de respirar pela boca e inalou o ar fétido pelas narinas. Queria se lembrar daquilo.
- Identidades?
- Nada oficial. Nenhum contacto com os parentes ainda. Mas nós sabemos quem são alguns deles. Cinco pelo menos. O primeiro foi há três anos. O segundo, sete meses depois.
- Vocês já construíram um ciclo?
- Sim. Cerca de oito por cento de redução. Achamos que os últimos dois nos levarão para novembro.
Significando que os intervalos entre as mortes iam sendo reduzidos oito por cento a partir do período inicial de sete meses entre as mortes um e dois. Outro detalhe familiar. O intervalo decrescente era comum nesse tipo de crime, um sintoma da redução do controle dos instintos do assassino ao mesmo tempo em que vê aumentar a sua invencibilidade. Você se safa com o primeiro e o segundo é mais fácil, e mais cedo. E assim por diante.
- Acho que isto o classifica como estando atrasado - disse Rachel.
- Supostamente.
- Supostamente?
- Por favor, Rachel, estamos tratando de Backus. Ele sabe o que nós sabemos. Está brincando conosco. É como Amsterdã. Ele sumiu antes mesmo que o reconhecêssemos. Mesma coisa aqui. Ele já saiu. Quer dizer, por que nos mandar o GPS se não tivesse saído. Ele já caiu fora. Não está atrasado coisa nenhuma e, na verdade, não vai voltar mais. Está em alguma parte rindo de nós, observando-nos enquanto seguimos nossos modelos e rotinas, sabendo que não chegaremos mais perto dele que da última vez.
Rachel balançou a cabeça. Sabia que Dei estava com a razão, mas decidiu ser otimista.
- Ele tem que ter cometido algum erro. O que me diz do GPS? Alguma coisa?
- Estamos trabalhando nele, evidentemente. Brass está trabalhando nele.
- E o que mais?
- Você, Rachel.
Rachel nada disse, mais uma vez Cherie Dei tinha razão. Backus estava encenando algo. Sua mensagem obscura, mas assim mesmo direta, para Rachel tornava isto evidente. Ele queria que ela estivesse ali, queria que ela fizesse parte do jogo. Mas de que se tratava? O que o Poeta desejava?
Da mesma forma que Rachel fora a orientadora de Dei, Backus a tinha orientado. Fora um bom professor. Em retrospectiva, melhor que ela ou qualquer outra pessoa podiam ter imaginado. Rachel fora orientada ao mesmo tempo por agente e assassino, caçador e presa, uma combinação única nos anais do crime e castigo. Rachel sempre se lembrava do comentário feito por Backus uma noite quando subiam a escada do porão de Quantico, depois de darem por encerrado o expediente na unidade.
- Tudo somado, eu acho que isso é papo-furado. Não podemos imaginar como as pessoas vão agir. Só podemos reagir. E, no final do dia, isso significa que somos basicamente inúteis. Geramos boas manchetes e Hollywood faz bons filmes a nosso respeito, mas nada além disso.
Rachel era novata na unidade nessa época. Estava cheia de ideais, planos e fé. Passou os trinta minutos seguintes tentando demover Backus dessa crença. Agora sentia vergonha do esforço que fizera e das coisas que tinha dito para um homem que, mais tarde, descobriria ser um assassino.
- Posso ir nas outras barracas agora? - perguntou Rachel.
- Claro - respondeu Dei. - Como você quiser.
Capítulo 12
Era tarde e as baterias do barco começavam a dar sinal de cansaço. As luzes na cabine da frente tinham a intensidade reduzida constantemente. Ou pelo menos assim me parecia. Talvez meus olhos estivessem fechando. Eu passara sete horas lendo documentos retirados das caixas que estavam na parte de cima do beliche. Enchi meu bloco de anotações até a última página, fechei-o e voltei ao princípio.
A entrevista da tarde tinha sido rotineira, se não inútil. O último cliente de Terry McCaleb fora um homem chamado Otto Woodall, que morava em um edifício luxuoso atrás do lendário edifício do cassino Avalon. Conversei com ele por uma hora, obtendo a mesma história que conseguira com Buddy Lockridge. Woodall, de 66 anos de idade, confirmou todos os aspectos da viagem que eram do meu interesse. Disse que deixara o barco quando atracaram no México e que passara o tempo com mulheres que conhecia lá. Não ficou envergonhado ou sem graça. Sua mulher fora ao continente fazer compras e ele, aparentemente, não se incomodou em abrir o jogo. Disse-me que tinha se aposentado do trabalho, não da vida. Que um homem ainda tinha suas necessidades. Deixei de lado essa linha de questionamento e concentrei-me nos últimos momentos da vida de McCaleb.
As observações e reminiscências de Woodall refletiam as de Buddy em todos os detalhes importantes. Woodall também confirmou que, pelo menos em dois instantes específicos da viagem, ele viu McCaleb tomar seus medicamentos, engolindo as pílulas e líquidos com suco de laranja em cada uma dessas duas vezes.
Tomei notas, mas sabia que não seriam necessárias. Após uma hora, agradeci a Woodall pelo tempo que reservara para mim e deixei-o com a paisagem da baía de Santa Mônica e a camada de neblina e fumaça que se levantava além dela no continente.
Buddy Lockridge esperava por mim na frente, em um carrinho de golfe que eu tinha alugado. Ainda estava emburrado por causa da minha decisão de último minuto de entrevistar Woodall sem ele. Acusou-me de usá-lo para conseguir a entrevista com Woodall. Ele tinha razão, mas suas queixas e preocupações passavam muito longe de mim.
Voltamos silenciosamente para o píer e eu devolvi o carrinho. Disse a Buddy que ele podia ir para casa porque eu estaria ocupado lendo arquivos o resto do dia e que a leitura entraria pela noite. Ofereceu-se humildemente para ajudar, mas eu falei que ele já tinha ajudado bastante. Fiquei olhando enquanto ele se dirigia para o cais das barcas de cabeça baixa. Ainda não tinha certeza a respeito de Buddy Lockridge. Só sabia que tinha que pensar um pouco a respeito dele.
Sem querer ficar andando de um lado para o outro com o barco inflável, tomei um táxi-lancha para voltar ao The Following Sea. Conduzi uma rápida busca no camarote principal - sem encontrar nada digno de nota - e passei para a cabine da frente.
Notei que Terry tinha um aparelho de CD no escritório convertido. Sua pequena coleção de música era basicamente de blues e rock dos anos 1970. Botei para tocar o CD mais recente de Lucinda Williams, chamado World Without Tears, e gostei tanto que deixei repetindo nas seis horas seguintes. A mulher tinha longas viagens em sua voz e eu gostava disso. Quando a corrente elétrica do barco começou a fraquejar e eu desliguei o aparelho, tinha decorado inconscientemente as letras de pelo menos três canções, que eu poderia cantar para minha filha na próxima vez em que a pusesse para dormir.
De volta ao escritório convertido de McCaleb, a primeira coisa que fiz foi voltar ao seu computador e abrir a pasta intitulada PERFIS.
Apareceu uma lista de seis arquivos diferentes, todos classificados por datas dos dois anos anteriores. Fui abrindo um por um, em ordem cronológica, e descobri que eram referentes a perfis suspeitos em casos de homicídio. Escritos na linguagem clínica e sem adornos dos profissionais dos laboratórios forenses, cada um deles extraía conclusões sobre um assassino com base em detalhes específicos das cenas dos crimes. Ficava claro, através desses detalhes, que McCaleb fizera mais que apenas ler artigos de jornal. Era óbvio que tivera acesso integral às cenas dos crimes - em pessoa ou, mais provavelmente, através de fotos, fitas e anotações de investigadores. Para mim, ficou também absolutamente claro que não se tratavam de exercícios feitos aleatoriamente por um antigo profissional que perdera o emprego de preparar perfis de assassinos e queria se manter em forma. Aquilo ali era trabalho realizado por um profissional convidado. Os casos eram todos da jurisdição de pequenos departamentos de polícia da costa oeste. Meu palpite era que McCaleb tomara conhecimento de cada caso através do noticiário ou outros meios e simplesmente se apresentara como voluntário para ajudar a polícia. Oferta aceita, provavelmente lhe mandavam informações sobre a cena do crime e aí ele se punha a trabalhar, analisando os dados disponíveis e traçando o perfil do assassino. Eu gostaria de saber se a sua notoriedade ajudava ou atrapalhava quando ele oferecia seus talentos. Quantas vezes teria sido recusado para ser aceito aquelas seis vezes?
Uma vez aceito, provavelmente trabalhava cada caso sentado diante daquela mesma mesa onde eu me encontrava, sem jamais deixar o barco. Ou sem saber que sua mulher tinha conhecimento detalhado do que estava fazendo.
Mas eu podia afirmar que cada um daqueles perfis exigira uma grande quantidade de tempo e atenção. Começava a entender cada vez mais o que Graciela dissera que se tornara um problema no casamento deles. Terry não soubera separar as coisas. Não conseguia se livrar do trabalho. Aquele trabalho era um testemunho não apenas à sua dedicação à sua missão como investigador como também a seus pontos cegos como marido e pai.
Os seis perfis vinham de casos em Scottsdale, Arizona; Henderson, Nevada; e de quatro cidades da Califórnia, La Jolla, Laguna Beach, Salinas e San Mateo, Dois eram assassinatos de crianças e os outros quatro assassinatos sexuais envolvendo três mulheres e uma vítima do sexo masculino. McCaleb não traçou limites entre eles. Era claro que se tratava de cinco casos separados que haviam atraído sua atenção nos últimos dois anos. Não encontrei qualquer indicação em nenhum dos arquivos de que o trabalho de Terry tivesse sido útil ou de que qualquer um dos casos tivesse sido resolvido. Copiei os dados básicos de cada um em meu bloco pensando em verificar mais tarde, com as respectivas polícias, o status de cada investigação. Era uma possibilidade remota, mas ainda assim era possível que um daqueles perfis tivesse causado a morte de McCaleb. Não chegava a ser uma prioridade, mas eu teria que verificar aquilo mais tarde.
Encerrando por ora o expediente com o computador, dirigi minha atenção para as caixas de arquivos guardadas na parte superior do beliche. Baixei uma por uma, até que não houvesse mais espaço no chão do camarote, e descobri que continham uma mistura de arquivos de casos resolvidos e casos não resolvidos. Gastei a primeira hora separando os casos não resolvidos, acreditando que, se a morte de Terry tinha alguma relação com um caso policial, era mais provável que se tratasse de um caso em que o suspeito ainda estivesse à solta. Não havia razão para que ele estivesse trabalhando ou revendo um caso arquivado.
A leitura era fascinante. Muitos dos arquivos eram referentes a casos com os quais eu estava familiarizado ou em que chegara inclusive a tomar parte. Não eram arquivos empoeirados pelo tempo. Tive a nítida impressão de que os casos em aberto se encontravam em uma rotação interminável. De tempos em tempos, McCaleb os pegava e repensava as investigações, os suspeitos, as cenas de crime, as possibilidades. Ligava para investigadores, técnicos de laboratório e até mesmo testemunhas. Tudo isso ficou muito claro por conta do hábito de McCaleb de usar a parte interna da pasta do arquivo para fazer as anotações, registrando os passos que dava e detalhando meticulosamente cada entrada.
A partir desses dados eu podia dizer que McCaleb tinha trabalhado em muitos casos de uma só vez. E ficou claro que ele tinha uma fonte de informações no FBI e no setor de Ciências Comportamentais, em Quantico. Passei uma hora lendo o gordo arquivo que acumulara sobre o Poeta, um dos mais notórios, se não embaraçosos, casos de assassinos em série dos anais do FBI. O Poeta foi um assassino que mais tarde descobriu-se ser o agente do FBI, chefe de uma equipe que, em essência, perseguia a si próprio. Um escândalo que abalou o Bureau e a sua badalada Seção de Ciências Comportamentais, há oito anos. O agente, Robert Backus, escolheu detetives da seção de homicídios como suas vítimas, deixando notas de suicídio que continham versos de poemas de Edgar Allan Poe. Matou oito homens em todo o país em um período de três anos até um repórter descobrir que os suicídios eram falsos, e a caçada teve início. Backus foi revelado e baleado por uma agente em Los Angeles. Nessa época, ele supostamente elegera como alvo um detetive da seção de homicídios na divisão de Hollywood da polícia de Los Angeles. Tratava-se da minha seção. E o alvo, Ed Thomas, era meu colega. A conexão era minha. Lembro-me de ter tomado um interesse muito pessoal pelo Poeta.
Agora estava lendo o lado de dentro da história. Oficialmente, o caso tinha sido fechado pelo Bureau. Mas o boato que corria era de que Backus conseguira escapar. Depois de ter sido baleado, Backus inicialmente fugira pelo sistema de túneis que corria por baixo da cidade de Los Angeles, destinado a captar água da chuva. Seis semanas mais tarde, um corpo foi encontrado com um buraco de bala no local certo, mas sua decomposição tornou impossível a identificação e a comparação das digitais. Animais à procura de alimentos - foi reportado na época - desapareceram com diversas partes do seu corpo, inclusive o maxilar inferior e os únicos dentes que poderiam ter sido usados para identificação através dos registros odontológicos. Backus também desaparecera, convenientemente, sem deixar amostras de seu DNA. Assim, eles tinham o corpo com o buraco de bala, mas nada para comparar. Ou assim disseram. O Bureau rapidamente declarou Backus presumivelmente morto e o caso foi encerrado, no mínimo para proporcionar um fim rápido à humilhação sofrida pela agência nas mãos de um dos seus.
Mas os registros que McCaleb acumulara desde então confirmavam que o folclore era verdadeiro. Backus ainda estava vivo e à solta. Em algum lugar. Quatro anos antes ele emergira na Holanda. De acordo com boletins confidenciais do FBI fornecidos por fontes do Bureau a McCaleb, um assassino tirou a vida de cinco homens durante um período de dois anos em Amsterdã. Todas as vítimas eram visitantes estrangeiros que haviam desaparecido após se arriscarem no bairro da prostituição da cidade. Cada um deles foi encontrado estrangulado e boiando no rio Amstel. O que conectou as mortes a Backus foram os bilhetes enviados à autoridade local nos quais o autor assumia a responsabilidade pelas mortes e pedia que o FBI fosse chamado para trabalhar no caso. A pessoa que escrevera os bilhetes pedia especificamente que fosse mandada a agente Rachel Walling, que tinha atirado em Robert Backus quatro anos antes. A polícia holandesa convidou o FBI para acompanhar o caso extraoficialmente. O remetente assinara cada bilhete simplesmente como "O Poeta". A análise grafológica levada a cabo pelo FBI indicara - não conclusivamente - que o autor não era um assassino qualquer tentando se fazer passar pelo notório Robert Backus, mas sim o Backus propriamente dito.
Claro que quando o Bureau, as autoridades locais e a própria Rachel Walling foram mobilizados em Amsterdã, o assassino já tinha desaparecido havia muito tempo. E desde então não se ouvira mais falar em Robert Backus - ao menos entre as fontes de McCaleb.
Recoloquei o grosso arquivo em uma das caixas e segui adiante. Logo descobri que McCaleb não se limitava a trabalhar em casos antigos. Na verdade, qualquer coisa que atraísse seu interesse era objeto de sua atenção e talento. Havia dezenas de pastas que continham apenas uma única matéria de jornal com algumas anotações feitas na aba da própria pasta. Alguns casos eram de grande notoriedade, outros obscuros. Havia um arquivo de recortes de jornal sobre o caso de Laci Peterson, o desaparecimento de uma mulher grávida na região central da Califórnia dois anos antes, em plena véspera de Natal. O caso atraíra a atenção da mídia e do público durante longo período, particularmente depois que seu corpo desmembrado foi encontrado na baía onde o marido tinha dito aos investigadores que estava pescando quando ela desaparecera. Um registro na aba da pasta datado de antes do corpo ser encontrado dizia: "Definitivamente morta - na água." Outra anotação com data anterior à prisão do marido dizia: "Há outra mulher."
Havia também uma pasta com anotações aparentemente proféticas sobre Elizabeth Smart, uma criança sequestrada no Utah que foi encontrada e devolvida depois de quase um ano. Ele escreveu corretamente "viva" sob uma foto da menina em um dos recortes de jornal.
McCaleb também fez um estudo não oficial do caso Robert Blake, o Baretta. O antigo astro do cinema e da televisão foi acusado de matar sua mulher em um outro caso de grande notoriedade. As anotações feitas por McCaleb eram intuitivas e pertinentes, e acabaram se mostrando corretas quando o caso foi submetido aos tribunais.
Tive que perguntar a mim mesmo se era possível as anotações de McCaleb terem sido pré-datadas, usando informações obtidas na imprensa e fazendo parecer que ele previra determinados aspectos ou características dos suspeitos graças ao seu trabalho, quando na verdade não fora assim. Embora tudo fosse possível, pareceu-me inteiramente dissociado da realidade pensar que McCaleb teria feito uma coisa dessas. Não conseguia ver uma razão para que ele cometesse um crime tão discreto e autodestrutivo. Acreditei que o trabalho fosse verdadeiro e realizado por ele.
Uma pasta que encontrei continha matérias sobre a nova esquadra da polícia de Los Angeles encarregada de casos não resolvidos. Nela tinham sido anotados os nomes e os telefones celulares dos quatro detetives designados para integrá-la. Terry, obviamente, conseguira fazer a ligação entre a polícia de Los Angeles e o FBI, se tinha os celulares deles. Eu sabia muito bem que os números dos celulares de detetives não são dados a qualquer um.
Um dos quatro detetives eu conhecia. Tim Marcia trabalhara na divisão de Hollywood, integrando a unidade de homicídios. Sabia que era tarde, mas policiais esperam receber telefonemas tardios. Peguei meu celular e liguei para o número que McCaleb tinha escrito. Marcia atendeu prontamente. Identifiquei-me, cumpri o ritual das delicadezas do tipo há-quanto-tempo-não-vejo-você e expliquei que estava telefonando por causa de Terry McCaleb. Não menti, mas não disse que estava trabalhando na investigação de um homicídio. Falei que estava organizando os arquivos de McCaleb para a mulher e tinha dado com o nome e o número do celular dele, Tim Marcia. E que havia ficado simplesmente curioso sobre qual teria sido o relacionamento entre eles.
- Harry, você trabalhou em alguns casos antigos não resolvidos no seu tempo, não foi? O que aconteceu na sua casa no ano passado teve origem num caso desses, certo?
- Certo.
- Então você sabe como funciona. Às vezes você se agarra em detalhes mínimos e aceita qualquer ajuda que consiga. Terry me telefonou um dia e ofereceu seus serviços. Não em um caso específico. Penso que ele tinha visto uma matéria no Times sobre a nova unidade e, basicamente, disse que se eu um dia precisasse dele para trabalhar em um perfil, ele estaria à minha disposição. Ele era um dos bons. Lamentei profundamente quando tomei conhecimento do que aconteceu. Minha intenção era ir à Catalina para os serviços religiosos, mas apareceu um monte de coisas.
- Sempre aparece. Você chegou a se utilizar da oferta dele?
- Mais ou menos. Não só eu, mas também dois outros sujeitos daqui. Você sabe como é. O departamento não tem um especialista em perfis, e depender do Bureau ou de Quantico pode significar uma espera de meses. Ele era um cara que sabia o que fazia e que não queria nada em troca. Só queria trabalhar. Por isso nós o usamos. Passamos algumas coisas para ele.
- Como foi que ele se saiu?
- Bem. Estávamos trabalhando em um caso novo que era interessante. Quando o novo chefe montou nossa equipe, começamos a passar em revista os crimes não resolvidos. Estabelecemos uma ligação entre seis casos... corpos encontrados no Vale. Tinham alguns aspectos similares, mas nunca haviam sido conectados. Fizemos uma cópia do que tínhamos em nossos arquivos e mandamos para o Terry. Ele confirmou. Fez a conexão através do que chamou de "semelhanças psicológicas". Atributos psicológicos comuns. Continuamos trabalhando nisso, mas pelo menos agora sabemos o que temos em mãos. Estamos na pista, é o que eu quero dizer. Não posso garantir que estaríamos onde estamos agora se Terry não tivesse nos ajudado.
- Ótimo, fico feliz de saber que ele pôde ajudar. Contarei à mulher dele e tenho certeza de que ela vai gostar de saber disso.
- Muito bem. Quer dizer então, Harry, que você vai voltar?
Esperava que ele me perguntasse o que eu estava fazendo com a documentação de McCaleb, não se eu ia voltar para o departamento.
- De que você está falando?
- Você soube da carência de três anos que o chefe instituiu?
- Não, de que se trata?
- Ele sabe que perdemos muitos profissionais talentosos nos últimos anos. Com tantos escândalos e sei lá mais o quê, os policiais mais qualificados resolveram cair fora. Assim, ele resolveu abrir a porta para o pessoal voltar. Se você quiser voltar antes que se passem três anos da data da aposentadoria, e for aceito, pode ser readmitido sem ter que cursar de novo a academia. Perfeito para velhinhos como você.
Eu pude ouvir o sorriso na voz dele.
- Três anos, hein?
- Quanto tempo se passou no seu caso, dois anos e meio?
- Por aí.
- Bem, aí está. Pense no caso. Podíamos usá-lo nos casos sem solução. Temos sete mil e tantos em aberto. Aproveita, cara.
Não falei nada. De repente, fui assaltado pela ideia de voltar. E naquele momento não consegui enxergar as desvantagens. Só pensei em como seria bom ter o crachá de novo.
- Mas talvez você esteja se divertindo bastante na aposentadoria. Precisa de mais alguma coisa, Harry?
- Bem, não, era só isso. Obrigado, cara. Fico muito grato.
- Disponha sempre que precisar. E pense no plano dos três anos. Podíamos usar seus serviços, quer esteja aqui, de volta a Hollywood, ou onde for.
- Certo, obrigado. Talvez eu aproveite a chance. Vou pensar no caso.
Encerrei a ligação e permaneci ali, sentado, cercado pelas obsessões de outro homem, mas pensando na minha própria. Pensei em voltar. Pensei em cerca de sete mil vozes clamando da tumba sem resposta. Um número maior que as estrelas que você vê no céu à noite.
Meu telefone soou enquanto estava ainda na minha mão, o que me tirou do devaneio. Atendi na esperança de ser Tim Marcia ligando de volta para dizer que a história dos três anos era piada. Mas era Graciela.
- Posso ver luzes no barco - disse ela. - Você ainda está aí?
- É, ainda estou aqui.
- Por que tão tarde, Harry? Você perdeu a última barca.
- Eu não ia voltar mesmo hoje à noite. Ia ficar para terminar aqui. Talvez volte amanhã. Pode ser que eu apareça para falar com você.
- Ótimo. Não vou trabalhar amanhã. Tenho que fazer as malas.
- Fazer as malas?
- Vamos nos mudar amanhã para o continente. Vamos morar em Northridge. Consegui ser readmitida no meu velho emprego, na emergência do Holy Cross.
- Raymond é um dos motivos da mudança?
- Raymond? Como assim?
- Imaginei que pudesse haver problemas com o menino. Soube que ele não gostava de morar na ilha.
- Raymond não tem muitos amigos. Não se adaptou bem. Mas a mudança não é por causa dele. Eu quero voltar. Já queria antes da morte de Terry. Eu falei isso com você.
- Sim, eu sei.
Ela mudou de assunto.
- Você precisa de alguma coisa? Arranjou alguma coisa para comer?
- Encontrei algumas coisas na cozinha do barco. Estou bem.
Ela deixou escapar um gemido de repugnância.
- Deve estar tudo velho. Verifique as datas de validade antes de comer qualquer coisa.
- Pode deixar.
Ela hesitou e por fim fez a pergunta que fora a razão do seu telefonema.
- Já encontrou alguma coisa?
- Encontrei umas coisas que me deixaram curioso. Mas nada de particularmente importante.
Pensei no homem com o boné dos Dodgers. Ele certamente era importante para mim, mas ainda não queria tratar desse assunto com Graciela. Queria saber mais antes de falar com ela a respeito dele.
- Certo - disse ela. - Mas me mantenha informada, tá?
- Combinado.
- Tudo bem, Harry. Falo com você amanhã. Você vai dormir em um hotel ou no barco?
- No barco, eu acho. Se você não tiver nada contra.
- Por mim tudo bem. Faça o que quiser.
- Tudo bem. Posso lhe perguntar uma coisa?
- Claro, o que é?
- Você falou em fazer as malas e fiquei curioso a respeito de uma coisa. Com que frequência você vai ao continente? Sabe como é, fazer compras, ir a um restaurante ou visitar a família?
- Geralmente uma vez por mês. A menos que apareça alguma coisa específica e eu precise ir.
- Você leva as crianças?
- Geralmente levo. Quero que se habituem. Quem cresce em uma ilha onde há carrinhos de golfe ao invés de automóveis e onde todo mundo conhece todo mundo, pode se sentir estranho quando, de repente, se muda para o continente. Tento fazer com que se acostumem.
- Acho que é inteligente da sua parte. Qual é o shopping mais próximo das barcas?
- Não sei qual é o mais próximo, mas sempre vou ao Promenade. É rapidinho pela 405. Sei que há shoppings mais próximos, como o Fox Hills, por exemplo, mas gosto do Promenade. Gosto das lojas que tem lá e é fácil. Às vezes encontro amigas do Valley, e este é um bom ponto intermediário para todas nós.
E fácil de ser seguida, pensei, sem falar.
- Ótimo - eu disse, sem saber ao certo o que seria ótimo. - Uma outra coisa, estou ficando sem luz. Baterias, acho eu. Tem algum interruptor que eu deva acionar para recarregar ou como é que se faz isso?
- Você não perguntou a Buddy?
- Não, eu não sabia que ia ficar sem luz quando estava com ele.
- Oh, Harry, não sei direito. Há um gerador que carrega as baterias. Mas nem sei ao certo onde fica.
- Tudo bem, não precisa se preocupar. Posso ligar para Buddy. Vou ter que desligar, Graciela. Tenho que voltar ao trabalho enquanto ainda resta um pouco de luz.
Desliguei e escrevi o nome do shopping no meu bloco de anotações, depois saí e fui apagando todas as lâmpadas, menos a do camarote da frente, em um esforço para conservar energia. Depois liguei para Buddy pelo celular e ele atendeu com voz de sono.
- Ei, Buddy, acorde. Aqui é Harry Bosch.
- Quem? Oh. O que você quer?
- Preciso de sua ajuda. Existe um gerador ou qualquer coisa assim neste barco para me fornecer um pouco de luz? As baterias estão morrendo.
- Cara, não deixa elas se esgotarem totalmente. Vai acabar com elas.
- Então o que eu faço?
- Você vai ter que acionar os Volvos com a manivela, cara, e depois ligar o gerador. Já é quase meia-noite. Os sujeitos que estão dormindo nos barcos ao lado não vão gostar nem um pouco do barulho.
- Está bem, esquece. Mas amanhã de manhã vou ter que fazer mesmo, como é que eu faço, uso uma chave?
- É, como num carro. Vá até o leme, no salão, insira as chaves e gire para a posição ON. Em cima de cada chave fica a alavanca da ignição com duas posições. Empurre-a para cima e ela deve começar a trabalhar na mesma hora... a menos que você tenha esgotado toda a carga.
- Tudo bem, eu resolvo. Você tem alguma lanterna aqui?
- Tenho uma na copa, outra em cima da mesa dos mapas e uma no camarote principal, na gaveta à esquerda da cama. Tem também um lampião no armário de baixo da copa. Mas você não vai querer usá-lo no camarote. O cheiro do querosene vai ficar intolerável e você pode sufocar e morrer. Aí haverá outro mistério para se resolver.
A última frase foi pronunciada com um tom de desprezo. Deixei passar.
- Obrigado, Buddy. Depois falo com você.
- Tudo bem. Boa-noite.
Desliguei e saí procurando as lanternas, voltando com uma pequena do camarote principal e uma grande que apanhei na copa. Pus a grande em cima da mesa e acendi. Depois apaguei as luzes do camarote. A luz era refletida pelo teto baixo e se espalhava. Nada mau. Somando aquela luz com a da lanterna de mão eu ainda conseguiria fazer algum trabalho.
Eu tinha menos que meia caixa de pastas para examinar e queria terminar antes de decidir onde dormir. Aquelas pastas eram todas finas, meras adições mais recentes à coleção de McCaleb, e dava para ver que a maioria continha pouco mais que um recorte de jornal e talvez algumas anotações.
Abaixei-me e peguei uma aleatoriamente. Eu devia ter ido jogar dados em Vegas. Porque a pasta que peguei foi, disparado, a vencedora. Dirigiu minha investigação. Me pôs no caminho certo.
Capítulo 13
A etiqueta da pasta dizia simplesmente SEIS DESAPARECIDOS. Dentro, um único recorte do Los Angeles Times, diversas anotações datadas e nomes e números de telefone escritos na aba interna, como era da rotina de McCaleb. Senti que a pasta era importante antes mesmo de ler a história ou compreender o significado de algumas anotações. Foram as datas que desencadearam esta reação. McCaleb fizera seus registros em quatro oportunidades diferentes, começando a 7 de janeiro e terminando a 28 de fevereiro do ano em curso. Um mês depois, a 31 de março, ele estaria morto. Aquelas anotações eram as mais recentes que encontrei em qualquer das pastas que examinara. Eu sabia que estava olhando para o que devia ter sido o último trabalho de Terry. Seu último caso e obsessão. Ainda havia outras pastas para ver, mas com aquela tive o pressentimento e me deixei levar.
A matéria tinha sido escrita por uma repórter que eu conhecia. Keisha Russell trabalhava na seção policial do Times há pelo menos dez anos e era boa no que fazia. E também era exata e honesta. Cumprira à risca todos os acordos que eu fizera com ela nos anos em que trabalhei na polícia e fez questão absoluta de jogar limpo comigo no ano passado, quando eu já não estava mais na ativa e as coisas não deram certo no meu primeiro caso privado.
Para resumir, eu me sentia confortável tomando qualquer coisa que ela escrevesse como fato. Comecei a ler.
EM BUSCA DO ELO PERDIDO
O DESAPARECIMENTO DE MAIS DOIS HOMENS, ESTES DE LOS ANGELES, ESTARIA RELACIONADO COM O DOS OUTROS QUATRO, TODOS EM NEVADA?
por Keisha Russell
Articulista do Times
Os misteriosos desaparecimentos de pelo menos seis homens, inclusive dois de Los Angeles, de centros de jogo em Nevada, fizeram com que os investigadores procurassem um elo perdido.
Detetives da Polícia Metropolitana de Las Vegas disseram na terça-feira que, ainda que os homens não se conhecessem, viessem de cidades e tivessem antecedentes marcadamente diferentes, a existência de atributos comuns entre eles podia ser a chave do mistério.
Os homens, cujas idades variavam de 29 a 61 anos, tiveram seu desaparecimento participado pelas famílias nos últimos três anos. Quatro deles foram vistos pela última vez em Las Vegas, onde a polícia lidera as investigações, e dois desapareceram durante viagens a Laughlin e Primm. Nenhum deles deixou qualquer indicação em seus quartos de hotel, automóveis ou casas quanto ao local para onde iriam ou sobre o que lhes aconteceria.
"A esta altura trata-se de um mistério total", disse o detetive Todd Ritz da unidade de desaparecidos da Polícia Metropolitana de Vegas. "As pessoas desaparecem daqui e de outros lugares o tempo todo. Mas geralmente aparecem mais tarde, mortas ou vivas. E geralmente há uma explicação. Neste caso não há nada. Apenas um enorme vazio."
Mas Ritz e outros detetives têm certeza de que deve haver uma explicação e contam com a ajuda da população para descobri-la. Na última semana, detetives de Las Vegas, Laughlin e Primm, reuniram-se nos escritórios da Polícia Metropolitana de Vegas a fim de comparar anotações e estabelecer uma estratégia investigativa. Também tornaram públicas diversas informações sobre o caso, na esperança de que as fotografias dos homens e suas histórias estimulassem o aparecimento de novas informações. Na terça-feira, uma semana depois, Ritz informou que não recebera muita coisa em termos de informações úteis.
"Tem de haver alguém que saiba de alguma coisa, tenha visto ou ouvido algo", disse Ritz pelo telefone. "Seis sujeitos não desaparecem sem que ninguém saiba de nada. Precisamos que esse alguém se apresente."
Como disse Ritz, são numerosos os casos de desaparecidos. O fato de que esses seis homens tenham ido a Nevada em busca de prazer ou a negócios é que torna diferente este caso.
A publicidade chegou numa época em que Las Vegas mais uma vez redefine sua imagem. Longe se foi a estratégia de marketing que rotulava a cidade como um destino para toda a família. O pecado está de volta. Nos últimos três anos, numerosas casas noturnas apresentando dançarinas nuas ou parcialmente nuas foram licenciadas e muitos dos cassinos da lendária cidade do jogo produziram shows de nudismo e com temática exclusivamente adulta. Enormes anúncios utilizando nus foram montados e atraíram a ira de alguns ativistas da comunidade. Tudo isso ajudou a mudar a natureza da cidade. Mais uma vez ela vem sendo anunciada como playground para adultos na base de deixar-as-crianças-em-casa.
Como sugerem os recentes conflitos gerados pelos novos anúncios, a mudança não foi bem aceita por todo mundo e muitos especulam que o desaparecimento dos viajantes pode estar, indiretamente, ligado ao retorno da região à atmosfera de vale-tudo.
"Vamos encarar os fatos", disse Ernie Gelson, colunista do Las Vegas Sun, "tentaram a abordagem familiar e não funcionou. A cidade está retornando ao que dá certo. E o que dá certo é o que fatura. Agora, qual é o elo perdido que conecta esses seis sujeitos? Não sei. Talvez nunca venhamos a saber."
Ainda assim, Gelson preferiu não tirar conclusões precipitadas que ligassem os homens desaparecidos à mudança da imagem de Las Vegas.
"Em primeiro lugar, é bom não se esquecer de que nem todos desapareceram em Las Vegas", disse ele. "E em segundo lugar, não há fatos suficientes para fundamentar qualquer teoria, no momento. Acho que devemos nos sentar e deixar o mistério se resolver sozinho antes de aderirmos a qualquer movimento."
Os homens desaparecidos são:
- Gordon Stansley, 41 anos, de Los Angeles, desaparecido desde 17 de maio de 2001. Hospedou-se no Mandalay Bay Resort and Casino, em Las Vegas, mas nunca dormiu na sua cama e sua mala não chegou a ser desfeita. Casado com dois filhos.
- John Edward Dunn, 39 anos, de Ottawa, Canadá, que vinha dirigindo um trailer desde a sua cidade a fim de passar as férias em Los Angeles. Não chegou a atingir seu destino, que era a casa do irmão em Granada Hills. O veículo que Dunn dirigia, de dez metros de comprimento, foi encontrado no dia 29 de dezembro de 2001 em um parque de estacionamento para trailers, em Laughlin. Isto aconteceu vinte dias depois da data em que era esperado em Granada Hills.
- Lloyd Rockland, 61 anos, desapareceu de Las Vegas no dia 17 de junho de 2002. Seu avião, oriundo de Atlanta, chegou às onze horas da manhã no aeroporto internacional McCarran. Pegou um carro de aluguel da Hertz, mas não chegou a se hospedar no MGM Grand, onde tinha feito reserva. Seu carro foi devolvido às duas horas da tarde do dia seguinte no próprio aeroporto, mas ninguém parece se lembrar do pai de quatro filhos e avô de três crianças que o teria devolvido.
- Fenton Weeks, 29 anos, de Dallas, Texas, foi considerado como desaparecido no dia 25 de janeiro de 2003, quando não voltou de uma viagem de negócios a Las Vegas. A polícia determinou que hospedou-se no Golden Nugget, no centro de Las Vegas, e compareceu ao primeiro dia de exposição eletrônica que teve lugar no Centro de Convenção de Las Vegas, mas não apareceu nos segundo e terceiro dias. Desaparecimento participado pela esposa. Não tem filhos.
- Joseph O’Leary, 55 anos, de Berwyn, Pensilvânia, desapareceu no dia 15 de maio do ano passado do Bellagio, onde estava hospedado com a esposa. Alice O’Leary deixou o marido no cassino jogando vinte e um enquanto foi passar o dia no spa. Algumas horas mais tarde o marido não retornou à suíte do casal. O’Leary, corretor da bolsa, teve o seu desaparecimento relatado no dia seguinte.
- Rogers Eberle, 40 anos, de Los Angeles, desapareceu a 1º de novembro, durante uma dispensa de 24 horas do seu trabalho como designer gráfico para os estúdios Disney, em Burbank. Seu carro foi encontrado no estacionamento ao lado do cassino Buffalo Bill, em Primm, Nevada, logo do outro lado da fronteira com a Califórnia, na via expressa interestadual 15.
A polícia diz que há poucos indícios úteis à investigação. A locadora de carros utilizada por Rockland talvez seja a melhor pista. O carro foi devolvido 27 horas após ter sido retirado por ele, tendo rodado 205 quilômetros durante esse período, segundo os registros da Hertz. Quem quer que o tenha devolvido no aeroporto, o deixou lá sem esperar recibo ou sem falar com qualquer atendente da locadora.
Os 205 quilômetros chamam a atenção de Ritz e de outros detetives.
"É uma quilometragem muito alta", disse o detetive Peter Echerd, parceiro de Ritz. "Esse carro pode ter ido a muitos lugares. Imaginando-se que tenha rodado 102,5 quilômetros de ida, e outro tanto de volta, tem-se um enorme círculo para cobrir."
Mesmo assim, os investigadores estão tentando fazer exatamente isso, na esperança de que seus esforços revelem uma pista que reduza o tamanho desse círculo e que os ajude a encontrar respostas para as famílias dos seis homens desaparecidos.
"É duro", comentou Ritz. "Todos esses sujeitos têm famílias, e estamos fazendo o melhor de que somos capazes por elas. Mas no momento temos muitas perguntas e nenhuma resposta."
Era um belo artigo, uma excelente demonstração do método que era uma verdadeira assinatura do Times, o método de descobrir um significado maior para a história do que a história propriamente dita. Neste caso, era a teoria de que o desaparecimento dos seis homens podia ser considerado um dos sintomas da mais recente alteração do perfil de Las Vegas para um playground adulto. Fez com que eu me lembrasse do tempo em que estava trabalhando em um caso no qual um homem cortou as linhas hidráulicas de um elevador, fazendo um Cadillac de três toneladas arriar e esmagar seu sócio de muitos anos. Um repórter do Times foi me ouvir querendo os detalhes para escrever a matéria e me perguntou se o assassinato não seria sinal de um período de dificuldades econômicas no qual os problemas financeiros fazem com que sócios se virem contra sócios. Eu disse que não, que era indicativo de um cara não gostar que o sócio transe com sua mulher.
Implicações maiores à parte, a história tinha sido plantada, sem dúvida nenhuma. Eu fizera a mesma coisa com a mesma repórter no meu tempo. Ritz estava lançando uma isca em busca de informações. Como metade dos homens desaparecidos era de Los Angeles ou seguiria para esta cidade, por que não chamar o Los Angeles Times, plantar uma história com o repórter de polícia e ver o que aparecia?
Um dos que apareceu foi Terry McCaleb. Ele obviamente leu a matéria no dia 7 de janeiro, o dia em que foi publicada, porque seu primeiro conjunto de anotações feitas na aba da pasta tinha essa data. Quanto às anotações propriamente ditas, eram lacônicas e enigmáticas. No topo da aba da pasta, o nome Ritz e um número de telefone com o código de área 702. Mais abaixo, McCaleb escrevera:
7/1-
44 média
41 - 39 - 40
encontrar convergência
interrupção do ciclo - há mais
carro - 328
teoria do triângulo?
1 ponto dá 3
DD - verificar o deserto
9/1-
Telefonar de novo - png
2/2
Hinton - 702 259-4050
n/c story?
28/2
Zzyzx - possível? Como?
quilômetros
Escritos ao longo da borda lateral da pasta, havia mais dois números telefônicos com o código de área 702. Ambos seguidos pelo nome William Bing.
Reli as anotações e dei outra olhada no recorte. Pela primeira vez notei que McCaleb tinha feito dois círculos no artigo do jornal, na menção dos 205 quilômetros que se descobriu terem sido rodados pelo carro alugado e a palavra "círculo" que aparecia no comentário sobre a área que delimitava a na investigação ter um raio de 102,5 quilômetros. Eu não sabia por que ele assinalara essas duas coisas, mas também não sabia o significado da maior parte das suas anotações. Eu tinha gasto mais de sete horas lendo os documentos de McCaleb. Vira anotação por anotação em todas as pastas. O ex-agente usava uma estenografia de sua própria invenção, mas que era decifrável porque, às vezes, ele preferia escrever por extenso o que em outras oportunidades abreviava.
Imediatamente reconhecível para mim foi o que ele queria dizer por "DD". Significava "definitivamente defunto", uma classificação e conclusão que McCaleb fez sobre a grande maioria dos casos de desaparecidos que reviu. Também foi fácil de decifrar "png", ou persona non grata, significando que a oferta feita por ele para ajudar com a investigação não tinha sido bem recebida ou nem chegara a se recebida.
McCaleb também descobrira algum significado na idade dos homens desaparecidos. Calculou a média de idades e depois destacou três das vítimas porque tinham menos de dois anos de diferença nas idades e eram muito próximas da média. Aquelas me pareceram anotações relativas a um perfil das vítimas, mas não havia nenhum perfil nas pastas e eu não sabia se McCaleb tinha ultrapassado o estágio das anotações.
A referência a "encontrar convergência" parecia também fazer parte desse perfil. McCaleb devia estar se referindo a um ponto comum na geografia ou no estilo de vida dos seis desaparecidos. Na época em que o detetive de Los Angeles conseguira fazer publicar aquele artigo no Times, McCaleb estava operando na crença de que tinha que haver uma conexão entre aqueles homens. Sim, eles provinham de lugares tão distantes quanto Ottawa e Los Angeles e não se conheciam, mas de algum modo devia haver um ponto em comum entre eles.
"Interrupção do ciclo." Nunca suspeitei que fosse uma referência à frequência dos desaparecimentos. Se alguém havia sequestrado e matado aqueles homens, como McCaleb acreditava, seria possível reconhecer um ciclo de tempo. Assassinos seriais operam desse modo em muitos casos, com violentos impulsos psicossexuais se avolumando e regredindo após uma morte. McCaleb aparentemente deduzira a existência de um ciclo e encontrara furos nos fatos que eram de conhecimento público - ou seja, faltavam vítimas. Ele acreditava que havia mais de seis homens desaparecidos.
O que mais me intrigou foram as anotações "teoria do triângulo" com "1 ponto dá 3" logo abaixo. Coisas que eu não vira nos demais arquivos e não sabia que significado podiam ter. A anotação tinha a ver com o carro e com os 205 quilômetros rodados. Mas quanto mais eu quebrava a cabeça com isso, mais intrigado ficava. Era um código para algo que eu não conhecia. Aquilo me irritava, mas não havia nada que eu pudesse fazer àquela altura.
A anotação de 9 de janeiro era uma referência a um telefonema dado por Ritz. McCaleb provavelmente tinha ligado e deixado um recado, e o detetive de Las Vegas telefonara de volta, ouvira sua proposta e talvez também o perfil que ele levantara e dissera que não estava interessado. O que não era de espantar. O FBI frequentemente era indesejado pela polícia local. O choque de egos entre federais e locais fazia parte da rotina do trabalho. Era provável que um homem do Bureau aposentado não viesse a ser tratado diferentemente. Terry McCaleb era persona non grata.
Isto poderia ter encerrado aquele arquivo e aquele caso, mas depois vinha a anotação de 2 de fevereiro. Um nome e um número. Abri meu celular e liguei para lá, sem me importar com o adiantado da hora. Que poderia ser cedo, dependendo do ponto de vista. Ouvi a gravação de uma voz feminina.
"Aqui é Cindy Hinton do Las Vegas Sun. Não posso atender agora, mas sua ligação é muito importante para mim. Por favor, deixe nome e número e eu ligo de volta assim que possível. Muito obrigada."
Houve um sinal eletrônico e eu hesitei, sem saber ao certo se já queria fazer contacto. Mas fui em frente.
- Hã, sim, meu nome é Harry Bosch. Sou um investigador de Los Angeles e quero falar com você a respeito de Terry McCaleb.
Deixei o meu número e fechei o celular, ainda sem ter certeza de ter dado um lance certo, mas achando que um recado lacônico e enigmático era a melhor solução. Talvez assim ela, curiosa, ligasse de volta.
A última referência nas anotações era a mais intrigante de todas. McCaleb escrevera "Zzyzx" e depois perguntara se era possível e, se fosse, como. Tinha que ser uma referência à estrada Zzyzx. Tratava-se de um salto. Um salto gigantesco. McCaleb recebera fotos de alguém que tinha observado e fotografado sua família. Essa mesma pessoa tirara fotos da Zzyzx, uma estrada perto da fronteira entre os estados da Califórnia e de Nevada. De algum modo, ele vira a possibilidade de uma ligação e estava se perguntando se um mistério podia ser conectado ao outro. Teria ele desencadeado alguma coisa telefonando à Polícia Metropolitana de Vegas e se oferecendo para ajudar com o caso dos homens desaparecidos? Ser capaz de dar o salto só com essas perguntas era impossível. Faltava-me a ponte, o detalhe que tornara possível o salto. McCaleb deve ter sabido alguma coisa que não estava anotada, mas que fizera com que a possibilidade do vínculo lhe parecesse real.
As últimas anotações a verificar eram os dois telefones de Las Vegas escritos na aba da pasta junto ao nome William Bing. Abri meu celular de novo e disquei o primeiro. Atendeu uma voz gravada dizendo que eu tinha ligado para o Mandalay Bay Resort and Casino. Desliguei quando a voz começou a listar as opções à minha disposição.
O segundo número era seguido por um nome. Digitei-o, preparado para acordar William Bing e perguntar sobre sua ligação com Terry McCaleb. Mas, após diversos toques, quem atendeu foi uma voz de mulher que disse:
- Las Vegas Memorial Medical Center, com quem gostaria de falar?
Eu não esperava por aquilo. Para ganhar tempo e pensar no que fazer, perguntei qual a localização do hospital. Quando ela terminou de me dar o endereço da Blue Diamond Road eu tinha conseguido inventar uma pergunta válida.
- Vocês têm aí um médico chamado William Bing?
Após um instante, a resposta veio, negativa.
- Algum empregado com esse nome?
- Não, senhor, não temos.
- E um paciente?
Mais outra pausa, enquanto ela consultava o computador.
- Não, atualmente não.
- Já tiveram aí um paciente chamado William Bing?
- Não tenho acesso a esse tipo de informação, senhor.
Agradeci e desliguei.
Fiquei pensando nos dois últimos números nas anotações de McCaleb por longo tempo. Minhas conclusões foram simples. Terry McCaleb era um paciente de transplante de coração. Se ele fosse viajar para outra cidade precisava saber onde ir e a quem procurar caso houvesse alguma emergência ou problema médico. Meu palpite é que ele conseguira com o serviço de informações aqueles dois números que anotara na pasta. Depois fez uma reserva no Mandalay Bay e entrou em contacto com um hospital local, por precaução. O fato de não haver um William Bing no corpo médico do Las Vegas Memorial não queria dizer que ele não pudesse ser um cardiologista que cuidava de seus pacientes lá.
Abri o celular, chequei a hora na tela e telefonei assim mesmo para Graciela. Ela respondeu prontamente, com a voz alerta, embora eu pudesse dizer que estava dormindo.
- Graciela, desculpe por ligar tão tarde. Tenho mais algumas perguntas.
- Posso responder amanhã?
- Basta que me diga se Terry foi a Las Vegas menos de um mês antes de morrer?
- Las Vegas? Não sei. Por quê?
- Como assim, você não sabe? Ele era seu marido.
- Já lhe falei, nós estávamos... separados. Ele estava vivendo no barco. Sei que ele foi ao continente algumas vezes, mas se de lá foi para Vegas eu não teria como saber, a menos que me dissesse, e ele não me disse.
- E as faturas do cartão de crédito e contas do celular, as retiradas de dinheiro em bancos 24 horas, coisas assim?
- Paguei, mas não me lembro de nada desse tipo, nem de hotel ou algo assim.
- Você ainda tem essas contas?
- Claro. Estão aqui em casa, não sei onde. Provavelmente já foram embaladas para a mudança.
- Encontre-as e irei buscá-las de manhã.
- Já estou deitada.
- Então encontre-as de manhã cedo. Primeira coisa. É importante, Graciela.
- Tá bom. Pode deixar. E olhe, o que posso lhe dizer é que, geralmente, se Terry ia ao continente, ia de barco para ter onde dormir enquanto estivesse lá. Se ia ao continente e não era para ficar em Los Angeles ou se ia se internar no Cedars, para exames ou algo assim, atravessava de barca, pois de outro modo gastaria muito dinheiro em combustível para o barco.
- Certo.
- Bem, houve uma viagem no último mês. Acho que ele esteve fora uns três dias. Sim, três dias, duas noites. Ele foi de barca. O que significa que ia atravessar e depois seguir para um outro lugar ou que ia para o hospital. Tenho certeza de que não foi para o hospital. Acho que ele teria me dito e, de qualquer modo, eu conheço todo mundo na cardiologia do Cedars. Teriam me dito que ele fora lá e o que estava acontecendo. Eu tinha aquilo lá grampeado.
- Oh, Graciela, maravilha. Isso ajuda muito. Você se lembra exatamente quando foi isso?
- Exatamente, não. Foi no fim de fevereiro, eu acho. Talvez nos dois primeiros dias de março. Lembro de que era época de pagar contas. Telefonei para o celular dele para falar de dinheiro e ele me disse que estava no continente. Não falou onde. Só disse que estava no continente e que voltaria em dois dias. Percebi que estava dirigindo enquanto nós falávamos. E sei que não tinha atravessado de barco porque eu estava na sacada olhando para ele enquanto falava.
- Você se lembra do motivo pelo qual telefonou para ele?
- Sim, nós tínhamos contas para pagar e eu não sabia se ele tinha algo no barco relativo a fevereiro. As contas do cartão de crédito eram enviadas diretamente para cá, mas Terry tinha o péssimo hábito de receber dos clientes e andar com cheques nominais e dinheiro em espécie na carteira. Quando ele morreu, e me deram sua carteira, encontrei três cheques no valor de novecentos dólares que estavam com ele fazia duas semanas. Terry não era muito bom nos negócios.
Graciela pronunciou a frase como se estivesse se referindo a uma das agradáveis e divertidas qualidades do marido, embora eu tivesse certeza absoluta de que, com ele vivo, ela não riria desses esquecimentos.
- Mais duas coisas - falei. - Você sabe se ele tinha o hábito de entrar em contacto com hospitais nas cidades que visitava? Em outras palavras, se ele fosse a Las Vegas levaria o contato de um hospital local, para o caso de precisar de algo?
Houve uma pausa antes dela responder.
- Não, não parece o tipo de coisa que ele faria. Você está me dizendo que ele fez isso?
- Não sei. Encontrei o número de um telefone em uma das pastas. E um nome. O número era do Vegas Memorial e estou tentando descobrir que motivo ele teria para ligar para lá.
- O Vegas Memorial realmente tem um programa de transplantes, sei que tem. Mas não sei por que razão ele ligaria para lá.
- O que me diz do nome William Bing, significa alguma coisa? Poderia ser um médico a quem ele tivesse sido recomendado?
- Não sei... alguma coisa nesse nome me é familiar, mas não sei exatamente o quê. Pode ser um médico. Talvez por isso já tenha ouvido esse nome.
Aguardei um momento para ver se ela se lembrava, mas nada. Continuei insistindo.
- Só uma última coisa, onde está o carro de Terry?
- Deve estar em Cabrillo, na marina. É um jipe Cherokee velho. Tem uma chave no molho que dei para você. Buddy também tem uma chave porque o usa às vezes. Na verdade, Buddy toma conta dele para nós. Quer dizer, para mim, agora.
- Certo, vou verificar isso amanhã de manhã, e por isso vou precisar ficar com a chave. Sabe quando é a travessia da primeira barca?
- Nunca antes das 9h15.
- Podemos então nos encontrar às sete e meia ou às oito na sua casa? Quero pegar aquelas contas e também lhe mostrar umas coisas. Não leva muito tempo, e depois eu pego a primeira barca.
- Bem, então pode ser às oito? Já devo estar de volta. Geralmente vou andando com Raymond até a escola e depois levo Cici para a creche.
- Sem problema. Vejo você às oito.
Terminamos a conversa e eu imediatamente chamei Buddy Lockridge de novo, despertando-o mais uma vez.
- Buddy, sou eu de novo.
Ele gemeu.
- Terry foi a Las Vegas no mês antes de sua morte? Tipo mais ou menos a primeiro de março?
- Não sei, cara - respondeu, com voz de cansaço e aborrecimento. - Como poderia? Não me lembro nem do que eu fiz no dia primeiro de março!
- Pense, Buddy. Ele fez uma viagem por terra nessa época. Não atravessou de barco. Onde terá ido? Ele lhe falou algo a respeito?
- Não me falou nada. Mas agora me lembro da viagem, pois o jipe voltou mais sujo do que nunca. Estava coberto de sal ou algo parecido. E eu fiquei com a missão de lavá-lo.
- Você perguntou a ele o que era?
- Perguntei, perguntei sim. "Onde foi que você andou, fazendo trilhas no mato?", e ele me disse que sim, algo do gênero.
- Só?
- Foi tudo o que ele disse. E eu lavei o carro.
- E o lado de dentro? Você limpou também?
- Não, só estou falando do exterior. Levei ao lava-jato em Pedro e mandei pulverizar. Foi tudo o que fiz.
Balancei a cabeça enquanto concluía que tinha obtido tudo o que precisava de Lockridge. Por enquanto.
- Você vai estar por aí amanhã?
- Vou, estou sempre por aqui atualmente. Não tenho aonde ir.
- Está bem. Então vejo você amanhã.
Depois de terminar a conversa com Buddy fiz mais uma ligação, desta vez digitando o número que McCaleb escrevera no topo da aba da pasta, depois do nome de Ritz, o detetive citado no artigo do Times.
O telefonema foi atendido por uma fita anunciando que a unidade de Desaparecidos da Polícia de Vegas funcionava de oito horas da manhã às quatro da tarde, de segunda a sexta-feira. A mensagem avisava que em caso de emergência a pessoa devia desligar e discar 911.
Desliguei. Era tarde e eu tinha o que fazer de manhã cedo, mas sabia que não ia conseguir dormir imediatamente. Estava tão ligado que sabia que o sono não era uma opção. Ainda não.
Eu estava isolado em um barco com duas lanternas, mas ainda havia trabalho para fazer. Abri meu bloco de anotações e comecei a elaborar um registro cronológico de datas e horas de fatos acontecidos nas semanas e meses que antecederam a morte de Terry McCaleb. Pus tudo junto na mesma página, o que era importante e o que não era, as conexões verdadeiras e as imaginadas. Assim como a experiência tinha me ensinado a lidar com o sono e com longos períodos de tempo sem dormir, eu sabia que os detalhes eram importantes. A resposta está sempre nos detalhes. O que é aparentemente desimportante agora, terá uma importância incrível mais tarde. O que é enigmático e desconectado agora, torna-se a lupa através da qual as coisas depois se tornam claras.
Capítulo 14
Sempre é possível dizer quem são os moradores locais. São aqueles que se sentam do lado de dentro e fazem palavras cruzadas enquanto a barca faz a travessia de noventa minutos. Os turistas geralmente vão no convés ou reunidos na proa ou na popa com suas câmeras e aproveitam para se despedir da ilha enquanto ela vai desaparecendo na névoa que fica para trás. Na primeira barca da manhã seguinte eu me sentei no lado de dentro com os locais. Só que minhas palavras cruzadas eram de outro tipo. Sentei-me com a pasta em que Terry McCaleb tinha feito suas anotações do caso aberta no meu colo. Tinha comigo também a cronologia em que trabalhara na noite anterior. Estudei-a, esperando memorizar tanto quanto pudesse. Um pronto comando dos detalhes de um caso é necessário para o sucesso de uma investigação.
7 de jan. - McCaleb lê notícia sobre homens desaparecidos em Nevada, liga para polícia de Vegas
9 de jan. - Polícia de Vegas não se interessa
2 de fev. - Hinton, Vegas Sun. Quem ligou para quem?
13 de fev. - Jordan Shandy, frete meia jornada
19 de fev. - Frete Finder
22 de fev. - GPS roubado/xerife
1º (?) de mar. - McCaleb no continente por um período de três dias
28 de mar. - Último frete. McCaleb no The Following Sea com remédios
31 de mar. - McCaleb morre
Acrescentei agora o que descobrira uma hora atrás com Graciela. A mesma fatura do cartão de crédito que eu pedira, preocupado com os deslocamentos do seu marido, trazia também as compras dela. Uma, debitada no cartão Visa, se referia a compra na loja de departamentos Nordstrom, no dia 21 de fevereiro. Quando perguntei o que era, Graciela disse que tinha feito aquela compra no Promenade. Indaguei se havia voltado lá desde então e ela me disse que não.
Quando acrescentei essa data na cronologia, notei que se tratava da véspera em que o GPS fora dado como roubado do The Following Sea. Em outras palavras, era bem provável que fosse o mesmo dia em que fora roubado. O fotógrafo furtivo estivera na barca com Graciela quando ela voltava para a ilha. Teria sido ele quem se esgueirara para dentro do barco naquela noite e levara o GPS? Assim sendo, por quê? E poderia ter sido também esta a noite em que o remédio de Terry McCaleb fora trocado por um pó sem valor, as cápsulas verdadeiras trocadas por falsas?
Circulei as letras GPS na cronologia. Qual era o significado desse aparelho e desse roubo? Perguntei-me se não estaria atribuindo ênfase demais àquilo. Talvez a teoria de Buddy Lockridge fosse correta, e o GPS tenha sido simplesmente roubado por Finder, um competidor. Talvez não passasse disso, mas a proximidade da foto de Graciela tirada às escondidas no shopping me fazia pensar de outro modo. Meus instintos me diziam que tinha que haver uma conexão. Eu simplesmente ainda não atinara com ela.
A despeito disso, senti-me como se estivesse me aproximando de algo. A cronologia foi muito útil, permitindo que eu visse as conexões e ligações temporais das coisas. Havia ainda mais coisas a acrescentar e eu me lembrei que pretendia dar uns telefonemas para Las Vegas. Abri o celular e verifiquei a bateria. Eu não tinha conseguido recarregá-la no barco e agora estava ficando sem carga. Talvez tivesse mais um último telefonema para dar antes que ela acabasse. Digitei o número da unidade de Desaparecidos da polícia de Las Vegas. Fui atendido e pedi para falar com o detetive Ritz. Puseram-me para esperar por quase três minutos, tempo durante o qual o telefone começou a sinalizar a todo instante que a bateria estava acabando.
- Aqui é o detetive Ritz, como posso ajudá-lo?
- Detetive, meu nome é Bosch. Sou aposentado da polícia de Los Angeles. Trabalhei em homicídios, quase sempre. Estou fazendo um favor para uma pessoa amiga. O marido dela faleceu no mês passado e eu estou mais ou menos arrumando as coisas. Encontrei uma pasta com o seu nome e número do telefone e um artigo de jornal com um de seus casos.
- Que caso?
- O dos seis homens desaparecidos.
- E qual era o nome do marido de sua amiga?
- Terry McCaleb. Ele era aposentado do FBI. Trabalhou...
- Oh, ele.
- Você o conhecia?
- Falei com ele pelo telefone uma vez. O que não me qualifica como o tendo conhecido.
- Vocês falaram sobre os homens desaparecidos?
- Olha, como foi mesmo que você disse que se chamava?
- Harry Bosch.
- Bem, olha só, Harry Bosch, eu não conheço você e não sei o que você está fazendo, mas geralmente não costumo falar sobre casos em aberto ao telefone com estranhos.
- Eu podia ir aí falar com você pessoalmente.
- O que não mudaria as coisas.
- Você sabe que ele morreu, não sabe?
- McCaleb? Eu soube que ele teve um ataque do coração quando estava em mar aberto no seu barco e não puderam atendê-lo a tempo. Achei idiota. O que um cara transplantado do coração vai fazer a quarenta quilômetros da costa no meio do nada?
- Ganhando a vida, acho eu. Olha, surgiram algumas coisas a respeito daquilo e eu estou checando o que Terry estava fazendo. A ideia é ver se ele atraiu a atenção de alguém, se entende o que quer dizer. Tudo o que eu quero...
- Olha, na verdade, eu não entendo o que você quer dizer. Você está se referindo a vudu? Alguém fez uma bruxaria e ele teve um ataque do coração? Estou meio ocupado aqui, Bosch. Ocupado demais para essa bobagem. Vocês, aposentados, pensam que nós, trabalhadores braçais, temos todo o tempo do mundo para vocês e suas teorias de magia negra sem a menor possibilidade de sucesso. Mas não temos.
- Foi isso que você lhe disse quando ele telefonou? Não quis ouvir a teoria dele ou o perfil que ele levantou do caso? Chamou de vudu?
- Olha aqui, cara, de que adianta um perfil? Essas coisas não reduzem as alternativas possíveis merda nenhuma. São papo-furado e foi isso que eu disse a ele e...
A voz dele foi interrompida pelo bip de advertência do meu telefone.
- O que foi isso? - ele quis saber. - Você está gravando o telefonema?
- Não, é o aviso de bateria fraca do meu telefone. Terry não foi aí conversar pessoalmente com você?
- Não, acho que ele preferiu procurar o jornal. Típico gesto de federal.
- Houve alguma matéria sobre a abordagem dele no Sun?
- Eu diria que não. Acho que eles também acharam que a teoria de Terry era uma merda.
Ritz acabara de revelar uma inverdade. Se ele achava que a teoria de McCaleb era uma merda, era preciso que a tivesse ouvido. Para mim, ele discutira o caso com McCaleb, possivelmente em profundidade.
- Só mais uma última pergunta e depois eu o deixo em paz. Terry mencionou alguma coisa a respeito de uma teoria do triângulo? Algo sobre um ponto dando três? Isso faz algum sentido para você?
A risada que ouvi pelo telefone não foi nada agradável. Não foi sequer bem-humorada.
- Aí já são três perguntas, Bosch. Três perguntas, três lados de um triângulo, três tentativas e você está...
A bateria acabou e o telefone emudeceu.
- Fora - falei, completando a fala de Ritz.
Ele não ia mesmo responder à minha pergunta. Fechei o telefone e o larguei de volta no bolso. Eu tinha um carregador no carro e estaria com o aparelho funcionando de novo assim que atravessássemos a baía de Santa Mônica. Ainda precisava falar com a repórter do Sun, mas eu duvidava que teria outra conversa com Ritz.
Levantei-me e fui para a popa a fim de aproveitar o ar fresco da manhã. Catalina já ficara muito longe, uma rocha irregular cinzenta destacando-se no meio da névoa. Tínhamos passado da metade do caminho. Ouvi uma garotinha exclamar "Olha lá!" muito alto para sua mãe e segui a direção que ela apontava. Era um grupo de golfinhos que vinham seguindo a esteira da barca. Devia haver uns vinte golfinhos, e logo a popa ficou cheia de gente munida de câmeras. Acho que até mesmo alguns dos locais foram dar uma olhada. Os golfinhos eram lindos, sua pele cinzenta brilhando feito plástico à luz do sol da manhã. Fiquei na dúvida se eles estariam apenas se divertindo ou se teriam confundido a barca com uma traineira de pesca, quando sempre haveria a possibilidade de se alimentar com os restos da pescaria.
Em pouco tempo, o espetáculo não mais conseguiu atrair a atenção de todo mundo e os passageiros voltaram às posições. A garotinha que dera o alarme continuou na amurada, atenta, e eu também, até que os golfinhos finalmente abandonaram a esteira da barca e desapareceram no mar azul, quase negro.
Entrei e peguei de novo a pasta de McCaleb. Reli tudo o que ele e eu tínhamos escrito. Não tive nenhuma ideia nova. Examinei então todas as fotos que eu imprimira na noite anterior. Eu mostrara as fotos do homem chamado Jordan Shandy à Graciela, mas ela não o reconheceu e fez mais perguntas do que deu respostas, perguntas que eu ainda não queria nem tentar responder.
Em seguida foi a vez de estudar os registros do cartão de crédito e do telefone. Eu já tinha visto aquilo na presença de Graciela, mas queria verificar mais detalhadamente. Concentrei-me sobretudo no fim de fevereiro e início de março, quando Graciela tinha certeza de que o marido havia estado no continente. Mas não havia compra com cartão de crédito ou telefonema feito com o celular que dessem qualquer indicação de onde ele se encontrava, muito menos Los Angeles ou Las Vegas. Era quase como se ele não tivesse desejado deixar rastro.
Meia hora mais tarde a barca atracou no porto de Los Angeles ao lado do Queen Mary, um navio atracado permanentemente e que tinha sido transformado em hotel e centro de convenções. Enquanto eu atravessava o estacionamento para pegar o meu carro ouvi um grito agudo e me virei para ver uma mulher pendurada em uma corda elástica de bungee jumping presa a uma plataforma montada na popa do Queen Mary. Tinha ambos os braços presos aos lados do corpo e vi que não gritara por medo ou descarga de adrenalina mas sim, porque sua camiseta parecia ameaçar cair pelos ombros e cabeça abaixo, expondo-a aos olhos da multidão que se alinhava na amurada do navio.
Virei-me de novo e continuei andando até meu carro, um utilitário esportivo Mercedes-Benz, do tipo que muita gente afirma que ajuda a manter os terroristas em ação. Não me envolvo nesses debates, mas sei que as pessoas que vão a programas de entrevistas na televisão falar essas coisas geralmente se deslocam em limusines de carroceria estendida. Assim que entrei no carro e dei a partida, pluguei o telefone no carregador e esperei que ele voltasse à vida. Quando isto aconteceu, verifiquei que tinha recebido duas mensagens durante os 45 minutos em que o telefone tinha ficado fora do ar.
A primeira fora de minha antiga parceira Kizmin Rider, atualmente a encarregada das tarefas administrativas e de planejamento do gabinete do chefe de polícia. Kizmin não deixou recado, só um pedido para que eu ligasse para ela. O que era curioso porque não nos falávamos há mais de um ano e a nossa conversa não tinha sido muito agradável. Seu costumeiro cartão de Natal viera apenas com sua assinatura, e não com a mensagem cordial de sempre, prometendo que em breve nos encontraríamos. Anotei seu número direto - pelo menos eu ainda fazia jus a isso - e salvei a mensagem.
A outra era de Cindy Hinton, a jornalista do Sun. Ela estava simplesmente retornando minha ligação. Dei a partida no Mercedes e segui na direção da via expressa para que pudesse depois descer na saída de San Pedro e pegar o jipe de Terry McCaleb na marina Cabrillo. Liguei para Hinton no caminho e ela atendeu prontamente.
- Sim, telefonei para falar de Terry McCaleb - eu disse. - Estou tentando refazer os movimentos dele nos seus últimos dois meses de vida. Presumo que você tomou conhecimento do falecimento dele. Lembro-me de que o Sun publicou um obituário.
- Sim, eu sabia. Você disse no seu recado de ontem que era um investigador. Trabalha para qual agência?
- Na verdade, eu sou um detetive particular licenciado pelo estado. Mas fui policial por quase trinta anos.
- Seu interesse tem alguma ligação com o caso das pessoas desaparecidas?
- De que maneira?
- Eu não sei. Foi você quem ligou para mim. Não entendo o que deseja.
- Bem, deixa que eu lhe faça uma pergunta. Em primeiro lugar, sei, através do detetive Ritz da Polícia Metropolitana, que Terry havia se interessado pelo caso das pessoas desaparecidas. Ele estudou os fatos de que teve conhecimento e chamou o detetive Ritz oferecendo seu tempo e perícia para trabalhar no caso e proporcionar teorias investigativas. Está me acompanhando até agora?
- Estou. Eu conheço toda essa história.
- Tudo bem, excelente. A oferta de Terry para Ritz e a Polícia Metropolitana de Las Vegas foi rejeitada. A minha pergunta é: o que aconteceu em seguida? Ele telefonou para você? Você telefonou para ele? Você escreveu uma matéria dizendo que ele estava investigando o caso?
- E por que você quer saber essas coisas?
- Desculpe, espere um minuto.
Percebi que não devia ter ligado para Hinton enquanto estava dirigindo. Devia ter previsto que ela seria cautelosa comigo e imaginado que o telefonema exigiria toda a minha atenção. Dei uma olhada nos espelhos e cortei duas pistas para a direita a fim de descer numa saída. Não cheguei a ler a placa e não sabia aonde estava indo. Vi-me em uma área industrial onde depósitos e garagens de caminhões se sucediam uns após outros. Fui parar atrás de um cavalo mecânico estacionado em frente às portas abertas da garagem de um armazém.
- Olha, sinto muito, já posso falar de novo. Você me perguntou por que eu queria saber aquelas coisas. Pois bem, Terry McCaleb era meu amigo. E estou recolhendo algumas das coisas em que estava trabalhando. Quero terminar o trabalho dele.
- A impressão que dá é que existe algo mais, algo que você não está me contando.
Pensei por um instante em como lidar com aquilo. Dar uma informação a uma repórter, especialmente a uma repórter desconhecida, era um negócio arriscado. Podia ter efeito contrário, bastante prejudicial. Precisava imaginar um modo de dar a ela o que precisava para poder me ajudar, mas depois precisava retirar tudo.
- Oi? Você ainda está aí?
- Oh, sim. Diga-me uma coisa, podemos conversar confidencialmente?
- Confidencialmente? Mas não estamos falando nada!
- Eu sei. Mas eu vou lhe dizer algo se puder ser em caráter confidencial. Ou seja, você não pode usar.
- Claro, tudo bem, como queira. Mas você poderia fazer o favor de ir logo ao ponto porque ainda preciso escrever uma matéria hoje de manhã?
- Terry McCaleb foi assassinado.
- Ah, não, não foi não. Eu li o artigo. Ele teve um ataque do coração. McCaleb passou por um transplante cardíaco há seis anos. Ele...
- Eu sei o que foi publicado, e estou lhe dizendo que é mentira. E vai ser provado que publicaram uma notícia errada. Estou tentando encontrar quem o matou. Agora você pode me dizer se publicou alguma matéria em que citava o nome dele?
Ela pareceu exasperada quando respondeu.
- Sim. Escrevi uma matéria em que ele aparecia. Tipo um parágrafo ou dois.
- Só um parágrafo? O que dizia?
- Era uma sequência da minha história sobre os homens desaparecidos. Foi uma sequência para ver o que aparecia. Sabe como é, se apareciam pistas novas, essas coisas. McCaleb foi mencionado, é só. Eu disse que ele se apresentara oferecendo ajuda e uma teoria, mas a polícia dissera que não. Valeu a pena aproveitar porque a matéria estava muito pobre e ele era mais ou menos famoso por causa do filme, de Clint Eastwood e tudo mais. Isso responde à sua pergunta?
- Quer dizer então que ele não telefonou para você?
- Tecnicamente falando, sim, telefonou. Consegui o número dele com o Ritz e telefonei. Deixei um recado e ele me ligou de volta. Assim, tecnicamente falando, ele me telefonou, se é o que você queria saber. O que acha que aconteceu com ele, afinal?
- Terry lhe contou qual era a teoria que ofereceu a Ritz, e que não foi aceita?
- Não, ele disse que não queria comentar e me pediu para não publicar seu nome. Falei com meu editor e decidimos incluir o nome dele na matéria. Como falei, Terry McCaleb era um nome famoso.
- Terry soube que você pôs o nome dele na história?
- Não sei. Não falei com ele de novo.
- Nessa conversa que vocês dois tiveram, ele falou alguma coisa sobre uma teoria do triângulo?
- Teoria do triângulo? Não, não falou. Agora que eu respondi suas perguntas, você vai responder as minhas. Quem diz que ele foi assassinado? É oficial?
Era hora de recuar. Eu precisava detê-la imediatamente, assegurar-me de que desligaria e, na mesma hora, começaria a dar telefonemas procurando checar a minha história.
- Bem, na verdade, não...
- Na verdade não? Você está... bem, o que exatamente faz com que você diga que ele foi assassinado?
- Bem, ele estava em perfeita forma e tinha o coração de uma pessoa jovem no peito.
- E o que você me diz sobre rejeição do coração transplantado e infecção? Podem ter sido mil coisas diferentes... a menos... você tem alguma descoberta oficial a esse respeito, confirmando ou não? Há alguma investigação oficial?
- Não. Seria a mesma coisa que pedir à CIA para investigar o assassinato de Kennedy. O terceiro. Seria só um encobrimento da verdade.
- De que você está falando? O terceiro o quê?
- O terceiro Kennedy. O filho. John-John. Você acha que o avião simplesmente mergulhou no mar como disseram? Três testemunhas em New Jersey viram homens carregando os corpos para dentro do aparelho antes que ele levantasse voo. Todas as testemunhas desapareceram também. Fazia parte da teoria do triângulo e aí...
- Obrigada, senhor, muito obrigada por telefonar. Mas estou absolutamente sem tempo e preciso...
Ela desligou antes de terminar a frase. Sorri. Achei que estava a salvo e me senti particularmente orgulhoso de minha criatividade. Virei-me para o banco do passageiro e peguei a pasta. Abri e dei uma olhada na cronologia. Terry tinha registrado a conversa com Hinton no dia 2 de fevereiro. A matéria certamente fora publicada um ou dois dias depois. Assim que eu fosse a uma biblioteca dotada de computador poderia ler a matéria e teria a data exata e a transcrição fiel do que fora escrito a respeito de McCaleb.
Por ora, inseri a publicação da matéria no dia 3 de fevereiro. Estudei o que eu tinha por alguns momentos e comecei a pôr em ordem a minha teoria:
McCaleb vê no Los Angeles Times do dia 7 de janeiro a matéria sobre os homens desaparecidos. Fica interessado. Enxerga algo que os policiais não viram ou interpretaram erradamente. Formula uma teoria e liga para Ritz, da Polícia Metropolitana de Las Vegas, dois dias mais tarde. Ritz não lhe dá atenção mas menciona seu nome a Hinton, que executa sua própria investigação. Afinal, é útil para Ritz manter a história circulando na imprensa, e o nome de um investigador "célebre" deve ajudar.
A matéria de Hinton com a menção ao nome de McCaleb sai no Sun na primeira semana de fevereiro. Menos que duas semanas depois - 13 de fevereiro - McCaleb está sozinho no seu barco quando Jordan Shandy aparece num táxi-lancha e contrata uma pescaria de meia jornada. McCaleb fica desconfiado do homem durante a pescaria e, furtivamente, tira retratos dele. Uma semana mais tarde, Shandy está no shopping Promenade seguindo a família de McCaleb e tirando fotos, escondido - assim como McCaleb fizera com ele. Na mesma noite, alguém rouba o GPS de dentro do barco e possivelmente falsifica o remédio de McCaleb.
Em 27 de fevereiro, McCaleb recebeu as fotos de sua família no shopping. Nem a origem nem o método usado para a remessa das fotos são conhecidos até hoje, mas a data é documentada no registro de abertura do arquivo que guarda as fotos no seu computador. Apenas dois dias depois ele deixa a ilha de Catalina e segue para o continente. O destino é desconhecido, mas o carro volta imundo, como se tivesse percorrido estradas de terra. Há também registros de telefonemas dele para um hospital em Las Vegas e para o Mandalay Bay Resort, uma das últimas localizações conhecidas de um dos homens desaparecidos.
As possibilidades e interpretações eram inúmeras. Meu palpite era que tudo desembocaria nas fotos. Por tê-las visto, McCaleb decidira ir ao continente. Seu carro devia ter voltado imundo após três dias por ter ido ao deserto na estrada Zzyzx. Ele engolira a isca, conscientemente ou não, e fora ao deserto.
Consultei minha cronologia de novo e conclui que a menção ao nome de McCaleb na matéria do Sun tinha originado uma reação. Shandy estava, de algum modo, envolvido com os desaparecimentos. Neste caso, ele provavelmente acompanhava o que saía na mídia a fim de se inteirar de possíveis atualizações da investigação. Quando viu o nome de McCaleb na matéria que dava sequência à primeira notícia sobre os homens desaparecidos, foi à Catalina. Uma vez no barco, naquela manhã, durante a pescaria fretada de quatro horas, ele podia ter visto McCaleb tomando seus remédios, reparado nas cápsulas e bolado um plano para eliminar a ameaça.
Isto ainda deixava sem solução o tal roubo do GPS, e porque tinha sido levado a cabo em um assalto ao barco realizado no dia 21 de fevereiro. Eu acreditava agora que tinha sido meramente uma ação diversionária. Shandy não podia ter certeza de que sua entrada no barco para substituir as cápsulas de McCaleb passaria despercebida. Por isso pegara o aparelho de GPS a fim de que ele não tivesse dúvidas sobre as intenções do intruso, caso fosse descoberto o assalto.
A grande dúvida era por que McCaleb fora visto como ameaça, já que a sua teoria do triângulo não fora revelada pela matéria do Sun. Eu não saberia dizer. Em minha opinião, era possível que ele não fosse visto como ameaça, mas apenas como uma celebridade que Shandy sentiu prazer superar, matando-o. Tratava-se de uma das incógnitas.
E também uma das contradições. Minha teoria certamente tinha contradições. Se os primeiros seis homens tinham desaparecido sem um traço, por que McCaleb fora morto de um jeito tal que podia revelar a verdade? Incongruente. Minha única resposta era que, se McCaleb, simplesmente desaparecesse, uma nova investigação teria início e talvez fosse dado um segundo olhar na sua visão e teoria do caso dos homens desaparecidos. Shandy não podia tolerar uma coisa dessas, e por isso McCaleb foi eliminado de um modo que fosse capaz de passar por natural ou acidental, sem aparecer no radar das suspeitas policiais.
Minha teoria era baseada em especulações e isso me deixava desconfortável. Nos tempos em que eu era portador de um crachá, confiar em especulações era como pôr areia no tanque de gasolina. A estrada da ruína. Senti-me sem graça ao ver a facilidade com que me deixara levar a construir teorias fundadas em interpretações e especulações ao invés de fatos concretos. E decidi pôr de lado as teorias e voltar a me concentrar nos fatos. Eu sabia que a estrada Zzyzx e o deserto eram reais e que faziam parte da cadeia de fatos. Tinha as fotos para provar. Eu não sabia se Terry McCaleb tinha mesmo ido lá ou o que poderia ter encontrado, se é que encontrara algo. Mas agora sabia que eu iria até lá. E isso também era um fato.
Capítulo 15
Buddy Lockridge estava esperando no estacionamento da marina Cabrillo quando cheguei lá. Eu tinha ligado antes e dito que estava a caminho, e com muita pressa. Meu plano de engajá-lo em uma discussão seria adiado. Falei que queria resolver rapidamente a questão do Cherokee de McCaleb e seguir adiante. Sabia que meu destino era, encontrasse ou não alguma coisa no carro, o deserto e Las Vegas.
- Por que tanta pressa? - perguntou ele quando estacionei e saltei do carro.
- Rapidez - respondi. - O principal em uma investigação é manter a velocidade ao máximo. Você reduz a marcha... e não chega. Não quero isso.
Antes de devolver as chaves do barco para Graciela, retirei a do Cherokee do chaveiro. Usei-a para abrir a porta do motorista. Inclinei a cabeça lá dentro e comecei a fazer uma observação geral do carro antes de entrar.
- Aonde você vai? - perguntou Lockridge às minhas costas.
- São Francisco - menti, só para ver se obtinha uma reação.
- São Francisco? O que tem lá?
- Não sei. Mas acho que ele foi para lá na última viagem.
- Deve ter ido pela estrada de terra.
- Talvez.
Não havia nada a vista no Cherokee que me fizesse mudar de ideia. O carro estava limpo. Com um odor levemente azedo, como se as janelas tivessem ficado abertas durante uma pancada de chuva. Abri o compartimento entre os dois bancos da frente e encontrei dois pares de óculos de sol, um pacote de goma de mascar de hortelã e um bonequinho plástico de brinquedo. Entreguei-o a Lockridge pela porta nas minhas costas.
- Você deixou seu super-herói aqui, Buddy.
Ele não pegou.
- Engraçado. Isso é do McDonald’s. Não tem nenhum lá na ilha, por isso a primeira coisa que fazem aqui é levar a criançada ao McDonald’s. É que nem crack, cara. Os garotos são contagiados pela batata frita e aquelas merdas todas ainda pequenos e ficam viciados pelo resto da vida.
- Há coisas piores.
Pus o herói de plástico de volta no compartimento e fechei. Inclinei-me um pouco mais para poder alcançar o porta-luvas.
- Ei, quer que eu vá com você? Talvez eu possa ajudar.
- Não, tudo bem, Buddy. Vou seguir viagem daqui mesmo.
- Droga, posso me aprontar em cinco minutos. Quer dizer, basta botar umas roupas na mala.
O porta-luvas continha outro bonequinho de plástico e o manual do carro. Havia também uma caixa contendo um audio-book chamado The Tin Collectors. Nada mais. Aquela parada ali estava sendo um fracasso. A única coisa que eu estava conseguindo era ver Buddy forçar a barra para ser meu parceiro. Recuei para fora do carro e me endireitei. Olhei para Lockridge.
- Não, obrigado, Buddy. Estou trabalhando nisso sozinho.
- Mas, eu ajudava o Terry, cara. Não era como no filme, onde me fizeram parecer um chato que...
- Eu sei, eu sei, Buddy. Você já me contou tudo isso. Não tem nada a ver. É que eu trabalho sozinho, mais nada. Mesmo com a polícia. Era assim que eu era, é assim que sou.
Lembrei-me de uma coisa e voltei a me inclinar dentro do carro, checando o para-brisa do lado do passageiro, para ver se encontrava um adesivo como o que vira na foto da estrada Zzyzx no computador de McCaleb. Não havia adesivo nem nada no canto inferior do para-brisa. Outra confirmação de que McCaleb não havia tirado a foto.
Recuei outra vez, dei a volta em torno do carro e abri a tampa de trás. O compartimento de carga estava vazio, exceto por um travesseiro com a forma de um personagem de desenho animado chamado Bob Esponja. Reconheci porque minha filha era fã do Bob Esponja e eu gostava de assistir com ela. Devia ser um sucesso também na casa de McCaleb.
Abri então uma das portas de trás e examinei o compartimento de passageiros. Mais uma vez, tudo limpo, mas notei, enfiado no porta-revista que ficava nas costas do banco do passageiro da frente, um guia rodoviário que podia ser alcançado pelo motorista enquanto dirigia. Peguei o guia e o folheei, com cuidado para não deixar Buddy ver o que estava fazendo.
Na página que mostrava a parte sul do estado de Nevada, notei que o mapa incluía trechos dos estados contíguos. Na Califórnia, perto do canto sudoeste de Nevada, alguém desenhara um círculo em torno da Área de Preservação do Mojave. E na margem direita do mapa tinham sido rabiscados diversos números a tinta, um acima do outro, e depois somados. A soma era 86. Abaixo do número fora escrito: "Na verdade - 92."
- O que é isso? - perguntou Lockridge, me olhando pela porta do outro lado do carro.
Fechei o guia e joguei em cima do banco.
- Nada. Parece que ele escreveu algumas indicações para uma de suas viagens, ou algo assim.
Mais uma vez inclinei-me para dentro do carro e, desta vez, me abaixei para poder dar uma olhada debaixo do banco do passageiro. Vi mais brinquedos do McDonald’s, velhas embalagens de comida e outros restos. Nada que valesse a pena. Levantei-me e dei a volta, pedindo a Buddy para recuar a fim de que eu pudesse fazer a mesma coisa com o banco do motorista.
Achei mais lixo, mas notei também diversas bolas de papel amassadas. Enfiei a mão e as apanhei, para ver do que se tratavam. A primeira que desdobrei e alisei era um recibo de cartão de crédito relativo ao abastecimento de gasolina em Long Beach. Datada de quase um ano atrás.
- Você não olha debaixo dos bancos quando limpa o carro, Buddy?
- Nunca pedem - retrucou, na defensiva. - Além disso, na verdade, eu só cuido da carroceria.
- Entendo.
Comecei a desamassar as outras bolas de papel. Não esperava encontrar nada que me ajudasse. Já tinha revisto os recibos do cartão de crédito e sabia que não havia compras que eu pudesse usar para identificar a localização de McCaleb na sua viagem de três dias. Mas a regra é ser meticuloso, sempre.
Havia diversos recibos de compras locais. Isto incluía compras de comida efetuadas no Safeway e equipamento de pesca em uma loja especializada de San Pedro. Havia um recibo de extrato de ginseng comprado em uma loja de produtos naturais chamada BetterFit e um recibo de uma livraria de Westwood, de um audio-book chamado Looking for Chet Baker. Nunca tinha ouvido falar nesse livro, mas sabia quem era Chet Baker e decidi verificar aquilo quando tivesse tempo para ler ou ouvir um livro.
A regra da meticulosidade deu frutos na quinta bola de papel. Tratava-se de um recibo dado por uma parada de caminhões em Las Vegas chamada Travel America, localizada na Blue Diamond Road, a mesma rua do Vegas Memorial. A data da transação era 2 de março. A notinha registrava a compra de dezesseis galões de gasolina, meio litro de Gatorade e uma edição gravada em fita de The Tin Collectors.
Este recibo colocava McCaleb em Las Vegas durante sua viagem de três dias. Significava outra confirmação daquilo que eu achava que já sabia. Mesmo assim, minha dosagem de adrenalina subiu. A vontade que tive foi de seguir adiante, não deixar cair a velocidade do caso.
- Encontrou alguma coisa? - quis saber Lockridge.
Amarrotei o recibo e joguei no chão do carro, junto com os demais.
- Na verdade, não - respondi. - Dá para ver que Terry era um grande fã de audio-books. O que eu não sabia.
- É, ele ouvia muito. No barco, quando estava no leme. Geralmente com os fones de ouvido.
Voltei para o carro e peguei o guia rodoviário que deixara em cima do banco.
- Vou pegar emprestado - falei. - Não acredito que Graciela vá a alguma parte em que venha a precisar disso.
Não esperei a aprovação de Buddy. Fechei a porta do passageiro, torcendo para que ele estivesse acreditando na minha representação. Em seguida fechei a porta do motorista e tranquei o carro.
- É isso aí, Buddy. Estou caindo fora. Vai estar perto do seu telefone se aparecer alguma coisa e eu precisar de você?
- Evidente, cara, estamos aí. É um celular, de qualquer maneira.
- Está bem então, se cuida.
Apertei a mão dele e dirigi-me para meu Mercedes preto, já esperando que Buddy me seguisse. Mas não, ele desistiu. Ao sair do estacionamento, ainda o vi pelo retrovisor, parado junto ao Cherokee, observando a minha saída.
Peguei a estrada 710 até a 10, que representava o acesso à rodovia 15. Daí em diante era praticamente uma reta para sair da região do smog, entrar no Mojave e finalmente chegar em Las Vegas. Eu havia feito essa viagem duas ou três vezes por mês no último ano, e sempre gostava. Muito legal a aridez do deserto. Talvez eu sentisse nela o que Terry McCaleb sentia ao morar em uma ilha. Sensação de distância de toda sordidez, de toda maldade. Enquanto dirigia eu sentia as pressões desaparecerem, como se as moléculas do meu corpo se expandissem e aumentasse o espaço entre elas. Podia não ser mais que um quase nada, mas esse espaço mínimo era suficiente para fazer a diferença.
Desta vez, contudo, senti-me diferente; era como se a maldade estivesse na minha frente, esperando por mim no deserto.
Eu estava dirigindo no automático, deixando os fatos do caso rodarem dentro da minha cabeça, quando o celular tocou. Pelo meu palpite, seria Buddy Lockridge fazendo um apelo final para ser incluído na investigação, mas era Kiz Rider. Eu tinha me esquecido de telefonar para ela.
- Como é, Harry, será que não mereço nem uma ligação de volta?
- Desculpe, Kiz, eu ia telefonar para você. Mas tive uma manhã cheia e esqueci.
- Manhã cheia? Você supostamente está aposentado. Não está andando por aí às voltas com outro caso, está?
- Na verdade, estou indo de carro para Vegas. E provavelmente vou perder o sinal do meu celular daqui a pouco. De que se trata?
- Bem, encontrei Tim Marcia hoje de manhã, na hora do café. Ele me disse que vocês dois conversaram recentemente.
- É, foi ontem. Isso tem a ver com aquele negócio da carência de três anos de que você me falou?
- Certamente que sim, Harry. Já pensou a respeito?
- Só tomei conhecimento ontem. Ainda não tive tempo para pensar.
- Pois acho que devia, Harry. Precisamos de você aqui.
- É muito bom ouvir essas palavras, especialmente vindas de você. Pensei que me considerasse PNG.
- PNG?
- Persona non grata.
- Deixa disso. Não há nada que um período de esfriamento não cure. Falando sério, você seria muito útil aqui. Provavelmente poderia trabalhar com a unidade de Tim, se quisesse.
- Se eu quisesse? Kiz, você faz pensar que tudo o que tenho a fazer é entrar aí como quem não quer nada e assinar na linha pontilhada. Acha que todo mundo no prédio vai me dar as boas vindas, que as pessoas irão se alinhar no corredor do sexto andar, jogando arroz ou algo assim, enquanto me dirijo ao gabinete do chefe?
- Você está se referindo ao Irving? Cortaram as asas dele. Agora chefia o departamento de planejamento futuro. Estou telefonando para lhe dizer, Harry, que, se você quiser, você volta. Simples assim. Depois que falei com o Tim, subi até o sexto andar e tive meu costumeiro papo matinal com o chefe. Ele conhece você. Conhece o seu trabalho.
- Não sei como pode conhecer meu trabalho, Kiz, se eu já tinha saído quando ele foi trazido de Nova York, ou Boston, ou de onde quer que o tiraram.
- Ele conhece porque eu contei, Harry. Olha, não vamos discutir por causa disso, está bem? Tudo o que estou dizendo é que você devia pensar na possibilidade. O relógio continua funcionando e é bom que pense nisso para não esgotar os três anos da carência. Você podia nos ajudar, ajudar a cidade e talvez até a si próprio, dependendo de onde estiver no mundo.
Esta última parte levantava uma boa pergunta. Onde é que eu estava neste mundo? Pensei nisso por um longo momento antes de responder.
- Certo, Kiz, tudo bem, eu lhe agradeço muito. Muito obrigado também por ter dado uma palavrinha a meu favor com o chefe. Me diga uma coisa, quando foi que se livraram do Irving? Não cheguei a saber.
- Foi há alguns meses. Acredito que o chefe pensou que ele estava metido em coisa demais e o colocou num desvio.
Não pude deixar de sorrir. Não porque o subchefe Irvin Irving sempre me trouxera debaixo do seu tacão, mas porque eu sabia que um homem como ele não ia deixar ninguém colocá-lo em um desvio, como Kiz dissera.
- O homem carrega todos os seus segredos - falei.
- Eu sei. Estamos esperando pelo próximo passo dele. Vai nos encontrar preparados.
- Boa sorte para você.
- Obrigada. Então, Harry, o que vai ser?
- Nossa, você quer minha resposta agora? Eu achava que você tinha acabado de me dizer para pensar.
- Um cara como você sempre sabe a resposta.
Sorri de novo, mas não respondi. Ela estava perdendo seu tempo trabalhando na área administrativa. Devia voltar para homicídios. Sabia ler o pensamento dos outros melhor do que qualquer pessoa que já tivesse trabalhado comigo.
- Harry, você se lembra do que me disse quando fui designada para trabalhar como sua parceira?
- Mastigue bem a comida, escove os dentes após as refeições?
- Estou falando sério.
- Não me lembro, fala aí.
- Ou todo mundo tem importância ou ninguém tem.
Balancei a cabeça e fiquei quieto por um momento.
- Você se lembra?
- É, eu me lembro.
- Palavras que orientam uma vida.
- Acho que sim.
- Bem, lembre-se disso enquanto estiver pensando sobre a sua volta.
- Se eu voltar, vou precisar de uma pessoa para trabalhar ao meu lado.
- O quê, Harry? O sinal está ficando fraco.
- Vou precisar de uma parceira.
Houve uma pausa e eu achei que ela estava sorrindo também.
- É uma possibilidade. Você...
A voz dela estava falhando. Mas eu acho que sei o que ela quis dizer.
- Acho que você sente tanta falta do trabalho na homicídios quanto eu.
- Harry, você está entrando na zona de sombra. Liga para mim quando... Não leve muito tempo.
- Está bem, Kiz, eu vou ligar avisando.
Eu ainda sorria depois de desligar o telefone. Não há nada como ser desejado ou bem-vindo. Ser valorizado.
Mas tinha também a ideia de ser dono de um crachá novamente, a fim de fazer o que eu tinha que fazer. Pensei em Ritz na Polícia Metropolitana de Las Vegas, e em como me tratara. Como eu tinha de lutar para chamar a atenção e conseguir a ajuda de algumas pessoas. Claro que essas coisas iam desaparecer se eu voltasse para a polícia. Nos últimos dois anos eu aprendi que o crachá não faz o homem, mas com toda a certeza facilita à beça o trabalho. E para mim era mais que um trabalho. Eu sabia que, com ou sem crachá, havia uma única coisa na terra que eu podia e devia fazer. Eu tinha uma missão na vida, exatamente como Terry McCaleb. Ter passado o dia anterior no seu museu de horrores flutuante, estudando seus casos e sua dedicação à missão, me fez perceber o que era importante e o que eu precisava fazer. Ao morrer, meu parceiro silencioso podia ter me salvado.
Após quarenta minutos ruminando sobre meu futuro e considerando minhas alternativas, cheguei à placa que vira na foto arquivada no computador de Terry.
ESTRADA ZZYZX
1,6 km
Não era exatamente como na foto. Dava para dizer por causa do horizonte que aparecia ao fundo. A foto tinha sido tirada da direção contrária, por alguém que se dirigia a Los Angeles vindo de Vegas. Mesmo assim, senti um sobressalto de antecipação. Tudo o que eu vira, lera ou ouvira desde que Graciela McCaleb me procurara tinha me levado àquele lugar. Liguei a seta e saí da rodovia.
Capítulo 16
No meio da manhã do dia seguinte ao da chegada de Rachel Walling, os agentes designados ao que tinha sido batizado de "caso da estrada Zzyzx" se reuniram fisicamente e por telefone na sala do terceiro andar do edifício John Lawrence Bailey, em Las Vegas. Era uma sala sem janelas e mal ventilada. Uma fotografia do agente Bailey, morto durante um roubo de banco, vinte anos antes, presidia os trabalhos.
Os agentes presentes estavam sentados atrás de mesas enfileiradas, voltados para a parte da frente da sala. Lá na frente estava Randal Alpert, juntamente com um aparelho de televisão capaz de receber e transmitir sinais, conectado por fone e câmera a outra sala semelhante àquela situada em Quantico, na Virginia. Na tela, aparecia a agente Brasilia Doran, aguardando a hora em que faria seu relato. Rachel se instalara na segunda fila de mesas, sozinha, tentando demonstrar que conhecia seu lugar ali.
Alpert deu início à reunião apresentando cortesmente os presentes. Rachel pensou que aquilo fosse uma delicadeza devida a ela, mas logo percebeu que nem todo mundo ali sentado ou presente na videoconferência com Quantico conhecia todos os demais.
Alpert primeiro identificou Brasilia Doran, também conhecida como Brass, ao vivo de Quantico onde gerenciava a conferência e a organização das informações e agia como ligação do laboratório nacional. Em seguida pediu a todos os presentes que se identificassem, indicando especialidade ou cargo. Em primeiro lugar foi Cherie Dei, que disse ser a agente encarregada do caso. A seguir seu parceiro, Tom Zigo. Depois foi John Cates, agente representante do escritório local e a única pessoa na sala que não era branca.
Os outros quatro eram técnicos, e Rachel vira e conhecera dois deles na véspera, quando fora ao sítio dos enterramentos. Eles eram a antropóloga forense chamada Greta Coxe, encarregada das escavações, dois médicos legistas chamados Harvey Richards e Douglas Sundeen, e Mary Pond, especialista em cena de crime. Ed Gunning, outro agente da Unidade de Ciências Comportamentais, em Quantico, também se apresentou e, por último, Rachel.
- Agente Rachel Walling - disse ela. - Encarregada do escritório de Rapid City. Trabalhava anteriormente na Unidade de Ciências Comportamentais. Tenho alguma... familiaridade com um caso semelhante.
- Obrigado, Rachel - apressou-se a dizer Alpert, como se imaginasse que Rachel fosse mencionar Robert Backus.
O que deixou claro a Rachel que algumas pessoas presentes não tinham sido informadas do fato mais importante do caso. Seu palpite era que uma dessas pessoas fosse John Cates, o agente simbólico do escritório de campo local. Não saberia dizer se alguém na equipe de técnicos, ou mesmo todos, também estaria por fora.
- Vamos começar com os científicos - continuou Alpert. - Antes de mais nada, Brass. Alguma notícia daí?
- Não na parte de ciência. Acho que o seu pessoal de cena de crime tem tudo aí. Olá, Rachel. Quanto tempo.
- Olá, Brass - respondeu Rachel, baixinho. - Tempo demais.
Ela olhou para a tela e seus olhos se encontraram. Rachel se deu conta de que provavelmente tinham se passado oito anos desde a última vez em que vira Brasilia Doran. Ela parecia fatigada, a boca e os olhos caídos, o cabelo curto sugerindo que não gastava muito tempo com ele. Era uma empática, Rachel sabia, e os anos estavam cobrando seu tributo.
- Você está bem - disse Doran. - Acho que o ar fresco e a vida no campo fazem bem a você.
Alpert interveio e salvou Rachel de ter que formular um falso elogio em troca.
- Greta, Harvey, quem quer começar? - perguntou ele, acelerando o ritmo da videoconferência.
- Acho que sou eu, já que tudo começa com a escavação - disse Greta Coxe. - Às sete horas da noite de ontem, tínhamos desenterrado totalmente oito corpos, e eles estão em Nellis. Esta tarde, quando voltarmos para lá, começaremos a trabalhar com o número nove. O que vimos nas primeiras escavações vem se confirmando com as mais recentes. Os sacos plásticos em cada ocorrência e o...
- Greta, seja mais específica - interrompeu Alpert. - Vamos ser mais descritivos. Como se estivéssemos falando para uma plateia totalmente desinformada. Não deixe nada de fora.
A não ser quando se trate de mencionar Robert Backus, pensou Rachel.
- Certo, claro - concordou Coxe. - Bem, todos os oito corpos desenterrados e exumados até agora estavam totalmente vestidos. A decomposição é extensa. Mãos e pés presos por fita adesiva. Todos têm sacos plásticos envolvendo as cabeças, sacos estes presos também com fita em torno do pescoço. Não há variações nesta metodologia, mesmo entre as vítimas de número um e dois. O que é raro.
No final do dia anterior, Rachel vira as fotos. Ela voltara para o trailer de comando e dera uma olhada na parede de fotografias. Pareceu-lhe evidente que todos os homens tinham sido sufocados. Os sacos não eram de plástico transparente, mas mesmo opacos deixavam ver as feições das vítimas e as bocas escancaradas procurando o ar que não chegaria. Fizeram com que ela se lembrasse das fotos do tempo de guerra, corpos desenterrados de covas coletivas na Iugoslávia ou no Iraque.
- Por que isso é raro? - indagou Alpert.
- Porque, novamente, acompanhamos um planejamento das mortes que vai evoluindo. Como não tenho palavra melhor, eu diria que os assassinatos vão sendo melhorados. O nosso criminoso desconhecido deveria ir aprendendo a agir melhor com cada vítima. É o que se vê geralmente nos dados de que dispomos.
Rachel notou, pela ênfase que Coxe dera à palavra "desconhecido", que ela devia estar fora do círculo daqueles que sabiam que o criminoso era muitíssimo conhecido do FBI.
- Muito bem, quer dizer que a metodologia já estava estabelecida desde o primeiro dia - comentou Alpert. - Mais alguma coisa, Greta?
- Gostaria de dizer apenas que provavelmente terminaremos a escavação depois de amanhã. A menos que tenhamos outro positivo com as sondas.
- Ainda estamos sondando?
- Sim, quando temos tempo. Mas já percorremos vinte metros com as sondas a partir do último positivo e não obtivemos nada. Tivemos também outro sobrevoo a partir de Nellis ontem à noite. Nada de novo nas imagens térmicas. Assim, sentimo-nos bem à vontade em dizer que devemos ter desenterrado todos.
- Graças a Deus. Harvey? O que você tem para nós?
Harvey Richards limpou a garganta e inclinou-se um pouco para a frente, para que sua voz pudesse ser captada pelos microfones, onde quer que estivessem.
- Greta está certa, estamos com todos os oito escavados até agora no necrotério de Nellis. O sigilo está sendo mantido. Acho que as pessoas estão pensando que estamos trazendo alienígenas vitimados pela queda de um disco voador no deserto. É assim que tem início uma lenda urbana, pessoal.
Só Alpert arriscou um sorriso. Richards continuou.
- Já realizamos necropsias completas em quatro corpos, e os exames iniciais nos outros. Acompanhando o que a Greta falou, também não estamos encontrando diferenças significativas de corpo para corpo. Esse cara é um robô. Não varia nada. É quase como se as mortes em si não tivessem importância. Talvez seja a caçada que estimule o sujeito. Ou então, as mortes fazem parte de um plano maior, que ainda não conhecemos.
Rachel encarou Alpert, dirigindo-lhe um olhar significativo. Detestava ver aquela gente trabalhando no caso sem saber nada. Mas sabia que se dissesse alguma coisa seria prontamente posta para fora. E não queria isso.
- Alguma pergunta, Rachel?
Ela foi apanhada de surpresa. Hesitou.
- Por que os corpos estão sendo levados para Nellis, e não para cá ou Los Angeles?
Ela sabia qual era a resposta antes de formular a pergunta, mas precisava dizer alguma coisa.
- É mais fácil conservar o sigilo deste modo. Os militares sabem guardar segredo.
O tom de voz dele sugeria uma pergunta final formulada em silêncio: E você, sabe? Alpert dirigiu o olhar novamente para Richards.
- Doutor, continue.
Rachel reparou na diferença sutil. Alpert chamara Richards de doutor, enquanto que se dirigira a Greta Coxe simplesmente pelo primeiro nome. Um traço de caráter. Ou ele tinha problema com mulheres em posição de poder e conhecimento ou não respeitava a ciência da antropologia. Seu palpite era de que se tratava da primeira hipótese.
- Bem, estamos considerando que a asfixia seja a causa da morte desses corpos - disse Richards. - É bastante óbvio, tendo em vista o que temos em mãos. Não resta muito em que se trabalhar na maioria das vítimas, mas com o pouco que dispomos estamos tentando encontrar outros ferimentos. O criminoso subjuga a vítima de algum modo, prende os pulsos e tornozelos com fita adesiva e depois coloca o saco plástico na cabeça. Consideramos significativa a colocação de uma fita adesiva também ao redor do pescoço. É um indicativo de morte lenta. Ou seja, o criminoso não permanece segurando o saco no lugar. Ele age sem pressa, enfia o saco na cabeça da vítima, passa a fita adesiva no pescoço e pode recuar para observar.
- Doutor? - perguntou Rachel. - A fita foi aplicada pela frente ou por trás?
- As pontas se encontram na nuca, indicando para mim que o saco pode ter sido enfiado por trás, com a vítima sentada, e depois fixado no pescoço com a fita.
- Quer dizer então que o criminoso pode ter sentido vergonha ou receio de encarar suas vítimas enquanto agia.
- É bem possível.
- Como estamos nos saindo com as identificações?
Richards olhou para Sundeen, que assumiu as explicações.
- Até agora só os cinco que foram incluídos na investigação de Las Vegas. Presumimos que o sexto deste grupo será um das duas escavações finais. Quanto aos outros, até agora não temos nada. Não dispomos de digitais em condições... despachamos as roupas, ou o que resta delas, para Quantico, e talvez Brass já tenha uma posição nova a respeito. Enquanto isso nós...
- Não, nenhuma novidade - disse Brass Doran da tela da televisão.
- Tudo bem - continuou Sundeen. - Os dados odontológicos estão entrando no computador hoje. Talvez tenhamos um positivo por aí. Fora isso, limitamo-nos a esperar que aconteça algo.
Ele balançou a cabeça, assinalando o término do seu relatório. Alpert reassumiu o comando.
- Quero ouvir Brass no fim, por isso vamos tratar do solo.
Solo era com Mary Pond.
- Nós peneiramos todos os sítios escavados e não achamos nada, exceto uma peça encontrada ontem que é empolgante. Na escavação número sete, encontramos uma barra de goma de mascar embrulhada. Juicy Fruit, segundo o que estava escrito na embalagem. Estava a 60 ou 75 centímetros numa cova de um metro. Por isso, realmente acreditamos que tenha alguma relação com o caso, e pode ser importante.
- Mordida? - perguntou Alpert.
- Sim, temos uma mordida. Ainda não sabemos tudo, mas parece que temos três boas impressões. Embalei e enviei para o Brass.
- Sim, está aqui - disse Doran, da televisão. - Chegou esta manhã. Já estamos investigando, mas ainda não descobrimos nada. Talvez mais tarde, ainda hoje. Acredito que sim. Pelo que vi, acho que temos ao menos três dentes, talvez até o DNA.
- E pode ser tudo de que precisamos - disse Alpert, animado.
Ainda que se lembrasse da mania que Bob Backus tinha de mascar Juicy Fruit, Rachel não se sentiu empolgada. Goma de mascar numa cova era bom demais para ser verdade. Não havia como Backus deixar uma prova tão importante para trás sem querer. Ele era bom demais, tanto como assassino quanto como agente. Não podia, contudo, expressar sua descrença na reunião, por causa do seu acordo com Alpert de não mencionar o nome de Backus diante dos outros agentes.
- Só pode ser um indício plantado - ela disse.
Alpert encarou-a por um momento, avaliando o risco que correria ao perguntar o por quê.
- Um indício falso. Por que diz isso, Rachel?
- Porque não consigo imaginar por que esse cara, ao enterrar um corpo no meio do nada, provavelmente no meio da noite, gastaria tempo arriando a pá, tirando a goma de mascar da boca e embrulhando no invólucro, que ele teve que pegar no bolso e jogar no chão. Acho que se ele estivesse mascando, simplesmente cuspiria. Mas eu não acredito. Acho que pegou a goma em algum lugar, levou para a cova e largou lá dentro para que perdêssemos tempo com ela depois que decidiu nos levar aos corpos com o truque do GPS.
Rachel deu uma olhada em torno. Atraíra a atenção de todos, mas podia sentir que era mais uma questão de curiosidade do que respeito. O silêncio foi quebrado pela televisão.
- Penso que Rachel deve estar certa - disse Doran. - Temos sido manipulados desde o primeiro dia neste caso. Por que não com a goma de mascar? Seria um erro inacreditável para uma ação tão bem planejada.
Rachel notou que Doran piscava para ela.
- Um pedaço de goma de mascar, um erro, em oito covas? - perguntou Gunning, um dos agentes de Quantico. - Não creio que seja tão improvável assim. Todos nós sabemos que ninguém jamais cometeu o crime perfeito. Sim, há quem consiga se safar, mas todos cometem enganos.
- Bem - disse Alpert -, vamos esperar para ver o que conseguimos com isso antes de tirar conclusões precipitadas de um jeito ou de outro. Mary, mais alguma coisa?
- Por ora, não.
- Passemos então ao agente Cates, para ver como os locais estão se saindo com a identificação.
Cates abriu uma pasta de couro na mesa à sua frente. Continha um bloco de papel ofício com anotações. Aquela pasta tão cara para um bloco de anotações básico demonstrava a Rachel que ele era muito orgulhoso do seu trabalho e do que fazia. Ou isso ou a pessoa que lhe dera a pasta de couro nutria esses sentimentos. Fosse como fosse, fez com que Rachel gostasse imediatamente dele e também fez com que sentisse que há muito tempo não tinha esse tipo de orgulho do Bureau ou do que fazia.
- Bem, nós começamos fuçando a Polícia Metropolitana de Vegas na Divisão de Desaparecidos. Levamos a desvantagem da necessidade de sigilo, e por isso não podemos ir entrando lá e metendo o pé na porta. Só fizemos contacto e dissemos que estávamos interessados pela questão das fronteiras estaduais... vítimas de vários estados e até mesmo de outro país. Isso nos deu acesso, mas não queremos mostrar as cartas que temos na mão forçando a barra. Assim, temos o compromisso de nos sentar com eles ainda hoje, logo mais. Uma vez que estivermos pisando em terreno firme, por assim dizer, vamos rastrear os desaparecidos e procurar um denominador comum. Sem esquecer que o pessoal da Metropolitana trabalhou nisso por diversas semanas e, pelo que sabemos, não têm merda nenhuma.
- Agente Cates - recriminou Alpert. - Estamos gravando.
- Oh, desculpe minha linguagem. Eles não têm coisa alguma, foi o que eu quis dizer.
- Muito bom, agente Cates. Mantenha-me informado.
Seguiu-se um silêncio pesado. Alpert continuou a sorrir calorosamente para Cates até que o agente local captou a mensagem.
- Ah, sim, você quer que eu saia?
- Quero você lá fora, trabalhando com essas vítimas - respondeu Alpert. - Não adianta perder tempo aqui dentro nos ouvindo remover essa história sem chegarmos a parte alguma.
- Tudo bem.
Cates se levantou. Se fosse um homem branco, a vergonha que sentia seria melhor reconhecível no seu rosto.
- Muito obrigado, agente Cates - disse Alpert às costas dele quando passava pela porta.
Alpert voltou sua atenção para a mesa.
- Acho que Mary, Greta, Harvey e Doug também podem ser dispensados. Precisamos de vocês de volta às trincheiras, lamento. Sem trocadilho.
Lá estava aquele sorriso administrativo de novo.
- Na verdade - disse Mary Pond -, eu gostaria de ficar e ouvir o que Brass tem a dizer. Pode me ajudar no trabalho de campo.
Alpert cortou o sorriso ante o desafio.
- Não - disse com firmeza. - Não será necessário.
Um silêncio contrafeito envolveu a sala até ser finalmente interrompido pelos ruídos das cadeiras dos técnicos sendo empurradas para longe das respectivas mesas. Os quatro se levantaram e saíram da sala sem falar. Foi doloroso para Rachel assistir àquilo. A arrogância incontrolável do pessoal em posições de mando era endêmica no Bureau. Nunca mudaria.
- Agora, onde estávamos mesmo? - disse Alpert, como se não tivesse acabado de fazer nada com cinco boas pessoas. - Brass, sua vez. Você foi convocada por causa do barco, da fita, dos sacos, das roupas e do aparelho de GPS, e agora a goma de mascar, que todos nós sabemos que não nos levará a parte alguma, graças aos bons ofícios da agente Walling.
Ele disse a palavra agente como sinônimo de idiota. Rachel levantou as mãos em sinal de que se rendia.
- Lamento, mas eu não tinha noção de que metade da equipe nada sabe sobre o suspeito. Engraçado, quando eu era da Comportamentais nunca procedíamos assim. Associávamos informações e conhecimento. Não separávamos uma coisa da outra.
- Você se refere ao tempo em que trabalhava para o homem que estamos procurando agora?
- Olha, agente Alpert, se está tentando me envenenar com o que houve, é melhor...
- Este é um caso classificado, agente Walling. É só isso que estou tentando lhe passar o tempo todo. Como já falei antes, é só na base do "precisa saber".
- Evidente.
Albert deu-lhe as costas, como se a estivesse apagando da memória, e olhou para a tela da televisão.
- Brass, pode começar, por favor?
Alpert fez questão de se colocar entre Rachel e a tela, a fim de marcar sua posição como elemento de fora no caso.
- Bem - disse Doran -, tenho algo significativo e... bem, estranho, para começar. Já falei com vocês sobre o barco ontem. A análise inicial das digitais das superfícies externas voltou negativa. O barco esteve a mercê dos elementos quem sabe por quanto tempo. Resolvemos então tomar outra providência. O agente Alpert aprovou o desmanche da evidência, o que foi feito num hangar de Nellis, na noite passada. No barco há locais próprios para se meter a mão... orifícios pelos quais os homens seguravam a embarcação para deslocá-la. O nosso barco foi um salva-vidas da Marinha, construído na década de 30 e provavelmente vendido como sucata depois da Segunda Guerra Mundial.
Enquanto Doran falava, Dei abriu uma pasta e puxou uma foto do barco, que levantou para Rachel examinar, já que ela nunca chegara realmente a vê-lo. Ele já estava em Nellis na hora em que chegara ao sítio das escavações. Era espantoso que o Bureau reunisse tantas informações sobre um barco perdido no meio do deserto, mas tão poucas sobre o crime ao qual ele estava ligado.
- Não tivemos acesso ao interior de tais orifícios em nossa primeira análise. Quando desmontamos é que pudemos examinar a parte de dentro. Foi a nossa sorte, porque era uma região que ficava protegida dos elementos na maior parte do tempo.
- E...? - perguntou Alpert, impaciente. Era evidente que não estava interessado na viagem, mas tão somente no destino.
- Conseguimos duas digitais no orifício a bombordo da proa. Esta manhã, cotejamos as impressões encontradas com o que temos em nossos bancos de dados e conseguimos um afirmativo quase que imediatamente. Pode parecer estranho, mas as impressões eram de Terry McCaleb.
- Como pode? - perguntou Dei.
Alpert nada disse. Ele manteve o olhar fixo na mesa à sua frente. Rachel também permaneceu sentada, em silêncio, o cérebro trabalhando a toda para se atualizar e processar aquela informação.
- Em algum ponto ele pôs a mão naquele buraco. Só assim as impressões digitais dele poderiam parar ali.
- Mas ele está morto - disse Alpert.
- O quê? - exclamou Rachel.
Todo mundo dentro da sala se virou e encarou Rachel. Dei balançou a cabeça vagarosamente.
- Há mais ou menos um mês. De ataque do coração. Imagino que as novidades não têm chegado a Dakota do Sul.
A voz de Doran veio do alto-falante.
- Rachel, desculpe. Eu devia ter comunicado a você, mas fiquei muito abalada e segui direto para a Califórnia. Sinto muito. Eu devia ter falado com você.
Rachel baixou os olhos para as mãos. Terry McCaleb fora seu amigo e colega. Era um dos empáticos. Foi invadida por uma sensação de perda profunda e súbita, a despeito do fato de não falar com ele há muitos anos. As experiências que tinham compartilhado os havia unido por toda a vida, e agora a vida dele acabara.
- Está bem, pessoal, vamos fazer uma pausa - disse Alpert. - Em quinze minutos todo mundo de volta. Brass, você pode fazer a ligação?
- Posso sim. Tenho mais o que relatar.
- Falo com você então.
Todos saíram para pegar café ou usar os banheiros. Para deixar Rachel sozinha.
- Você está bem, agente Walling? - perguntou Alpert.
Ela o encarou. A última coisa que queria era ser consolada por ele.
- Estou bem - disse, desviando o olhar para a tela da TV.
Capítulo 17
Rachel permaneceu sozinha na sala de conferências. O choque inicial deu lugar a uma sensação de culpa que a atingiu em cheio, como a onda que batizara o barco de Terry McCaleb, a que pega você no seu ponto cego, que atinge a pessoa por trás. Ele tentara durante anos entrar em contacto com ela. Rachel recebera as mensagens, mas nunca respondera. Mandara-lhe um cartão e um bilhete quando ele estava no hospital se recuperando do transplante. Isso fora há cinco ou seis anos, não conseguia se lembrar. Lembrava-se especificamente de ter decidido não escrever seu endereço pessoal no envelope para resposta. Na ocasião, dissera a si própria que fazia aquilo porque não ficaria em Minot por muito tempo. Mas sabia na ocasião, da mesma forma como sabia agora, que não queria estabelecer a ligação. Não queria tomar conhecimento de perguntas sobre as escolhas que fizera. Não queria esse vínculo com o passado.
Agora não tinha mais com que se preocupar, o vínculo se fora para sempre.
A porta se abriu e Cherie Dei deu uma olhada.
- Rachel, quer uma garrafa d’água?
- Claro, seria ótimo. Muito obrigada.
- Lenço de papel?
- Não, tudo bem. Não estou chorando.
- Volto já.
Dei fechou a porta.
- Eu não choro - disse Rachel para ninguém.
Pôs os cotovelos em cima da mesa, as mãos sobre o rosto. Na escuridão, viu uma lembrança. Ela e Terry trabalhando em um caso. Não eram parceiros, mas Backus os pusera juntos nesse caso. Era uma análise de cena de crime. Um caso terrível. Mãe e filha amarradas e jogadas na água, a garota apertando um crucifixo com tanta força que deixou a marca completa na sua mão. A marca ainda estava lá quando os corpos foram encontrados. Terry estava trabalhando com as fotos e ela fora à cafeteria pegar um café. Quando voltou, podia garantir que ele estivera chorando. Foi quando soube que ele era um empático, era da sua espécie.
Dei voltou, entrou na sala e pôs uma garrafa de água mineral e um copo plástico na frente dela.
- Você está bem?
- Estou, pode deixar. Obrigada pela água.
- Foi um choque e tanto. Eu, na verdade, não cheguei a conhecê-lo e mesmo assim me atingiu em cheio quando a notícia se espalhou.
Rachel limitou-se a balançar a cabeça. Não queria falar naquilo. O telefone com viva voz tocou e Rachel atendeu, antecipando-se a Dei. Pegou o aparelho sem pressionar o botão para teleconferências. Deste modo poderia falar em particular com Brass Doran - pelo menos o lado dela não seria ouvido.
- Brass?
- Rachel, oi, sinto muitíssimo que eu...
- Tudo bem. Não é sua obrigação me manter informada de nada.
- Eu sei, mas isto eu tinha que ter lhe contado.
- Devia estar em um dos boletins e eu não li. Só é estranho descobrir agora, deste jeito.
- Eu sei. Sinto muito.
- E então, você foi ao funeral?
- Ao serviço religioso, sim. Foi lá na ilha onde ele morava. Catalina. Muito lindo e muito triste.
- Foi muita gente?
- Não, não muita. O acesso é meio difícil. Tem que pegar uma barca. Havia um punhado de agentes, alguns policiais, família e amigos. Clint Eastwood esteve lá. Acho que foi no helicóptero particular.
A porta se abriu e Alpert entrou. Parecia renovado, como se tivesse respirado oxigênio puro durante o intervalo. Os outros dois agentes, Zigo e Gunning, seguiram-no e se sentaram.
- Estamos prontos para começar - disse Rachel a Doran. - Tenho que pôr você na tela agora.
- Certo, Rachel. Conversamos mais tarde.
Rachel passou o aparelho para Alpert, que acionou o dispositivo para teleconferência. Doran surgiu na tela, parecendo mais cansada do que antes.
- Tudo bem - disse Alpert. - Prontos para continuar?
Depois que se passou um minuto e ninguém disse nada, ele continuou.
- Está bem, Doran, o que significam então essas digitais encontradas no barco?
- Que precisamos descobrir quando e por quê McCaleb esteve no deserto antes de morrer - disse Dei.
- E também que devemos ir a Los Angeles e dar uma olhada na morte dele - acrescentou Gunning. - Para nos assegurar de que o ataque de coração foi um ataque do coração.
- Concordo, mas há um problema - disse Doran. - Ele foi cremado.
- Que droga - disse Gunning.
- Houve uma necropsia? - perguntou Alpert. - Retiraram sangue e tecidos?
- Não sei - respondeu Doran. - Tudo o que sei é que ele foi cremado. Peguei um avião para assistir aos serviços. A família jogou as cinzas no mar por cima da amurada do barco.
Alpert correu com o olhar os semblantes das pessoas presentes na sala e deteve-se na de Gunning.
- Ed, fica por sua conta. Vai até lá para ver o que é possível fazer. Rápido. Eu ligo para o escritório local e digo para que lhe deem as pessoas que você precisar. E, pelo amor de Deus, fique longe da imprensa. McCaleb era uma espécie de celebridade por causa do filme. Se a imprensa sentir o cheiro do que buscamos, ficaremos num mato sem cachorro.
- Entendi.
- Outras ideias? Sugestões?
Ninguém disse nada a princípio. Depois Rachel pigarreou e disse:
- Você sabe, Backus foi mentor de Terry também.
Seguiu-se uma pausa, quebrada por Doran.
- É verdade.
- Quando deram início ao programa de supervisão pessoal, Terry foi o primeiro que Backus escolheu. Eu fui escolhida a seguir.
- E qual é o significado disso para nós agora? - quis saber Alpert.
Rachel encolheu os ombros.
- Quem sabe? Mas Backus me chamou com o GPS. Talvez tenha convocado Terry antes de mim.
Todo mundo parou por um momento para pensar nisso.
- Quer dizer, por que estou aqui? Por que ele me mandou o pacote mesmo sabendo que não estou mais na unidade de Ciências Comportamentais? Há alguma razão. Backus tem algum tipo de plano. Talvez Terry fosse a primeira parte desse plano.
Alpert balançou a cabeça vagarosamente, concordando.
- Acho que este é um ângulo em que nunca tínhamos pensado.
- Ele podia estar vigiando a Rachel - sugeriu Doran.
- Bem, não vamos dar passos maiores que nossas pernas - disse Alpert. - Fiquemos com os fatos. Agente Walling, quero que você tenha todo o cuidado possível, claro. Mas vamos checar a situação de McCaleb e ver o que conseguimos descobrir antes de prosseguirmos precipitadamente. Até lá, Brass, o que mais você tem para nós?
Todos aguardaram enquanto Doran olhava para baixo e para fora do alcance da câmera e, aparentemente, se desligava da história de McCaleb para retornar ao resto das provas.
- Temos algo que pode ser associado a McCaleb. Mas deixem que eu trate antes do que consta da minha lista. Começamos agora a examinar a fita e os sacos plásticos recuperados com os corpos. Em mais um dia terei um relatório para vocês. Quanto às roupas, elas provavelmente permanecerão na sala de secagem por mais uma semana antes de estarem prontas para a análise. Nada aí, então. Já falamos sobre a goma de mascar. Poremos o perfil dentário no banco de dados até o fim do dia. O que nos deixa o GPS.
Rachel notou que todo mundo na sala olhava atentamente para a tela da televisão. Era como se Doran estivesse ali com eles.
- Estamos tendo um bom progresso aqui. Pelo número de série, rastreamos a origem do GPS como sendo a loja de artigos esportivos chamada Big Five, situada em Long Beach, Califórnia. Agentes do escritório de Los Angeles foram ontem à loja e obtiveram um registro de vendas mostrando a compra daquele modelo, que se chama Gulliver Cem, por um homem chamado Aubrey Snow. Acontece que o Sr. Snow é um guia de pescaria e estava embarcado ontem. À noite, quando finalmente voltou para o cais, foi interrogado extensamente sobre o Gulliver. Contou-nos que perdeu o aparelho há cerca de onze meses em um jogo de pôquer com diversos outros guias. Era valioso, porque à época tinha uma série de marcações correspondentes a seus pesqueiros favoritos ou mais produtivos ao longo da costa sul da Califórnia e México.
- Ele nos passou o nome do cara que ganhou o GPS? - perguntou Alpert rapidamente.
- Lamentavelmente, não. Foi um jogo improvisado. Fazia tempo ruim e os negócios andavam devagar. Inúmeros guias tinham ficado em terra e se reuniam quase todas as noites para jogar cartas. Noites diferentes, jogadores diferentes. Muita bebida. O Sr. Snow não foi capaz de se lembrar de um nome ou qualquer coisa sobre o homem que ganhou o GPS. Não acredita que ele seja da marina onde guarda seu barco porque nunca mais o viu. O nosso escritório local tinha um encontro marcado com Snow e um desenhista hoje, para tentar produzir um retrato falado do tal sujeito de sorte. Mesmo que consigam um bom retrato, é bom lembrar que aquela área tem marinas e barcos de pesca para fretar por toda parte. E já fui informada de que eles só dispõem de dois agentes para trabalhar nisso.
- Basta um telefonema para alterar isso - prometeu Alpert. - Quando ligar para Ed falando dessa coisa do McCaleb, vou conseguir aumentar o efetivo. O negócio é procurar diretamente Rusty Havershaw.
Rachel conhecia o nome, Havershaw era o agente especial encarregado do escritório de campo de Los Angeles.
- Será uma mão na roda - aprovou Doran.
- Você diz que isso tem uma ligação com McCaleb. Como?
- Bem, você viu o filme?
- Na verdade, não. Não tive oportunidade.
- Bem, McCaleb tinha um negócio de fretamento para pescarias baseado na ilha de Catalina. Não sei qual era o grau de ligação dele com a comunidade local, mas há uma possibilidade de que conhecesse alguns dos guias nos jogos de pôquer.
- Entendo. Pode ser meio forçado, mas é possível. Ed, leve isso em conta.
- Deixa comigo.
Bateram à porta, mas Alpert ignorou. Cherie Dei se levantou para atender. Rachel viu que se tratava do agente Cates. Ele sussurrou algo para ela.
- Mais alguma coisa, Brass? - indagou Alpert.
- Por ora, não. Acho que precisamos mudar o nosso foco para Los Angeles e descobrir...
- Perdão - disse Dei, trazendo Cates para dentro da sala. - Ouçam isto.
Cates fez um gesto com as mãos sinalizando que aquilo não teria importância.
- Bem, eu acabo de receber uma ligação de um dos postos de controle localizados no sítio das escavações. Detiveram um homem que simplesmente chegou lá dirigindo seu carro. É um detetive particular de Los Angeles e seu nome é Huhromibus Bosch. Ele...
- Você quer dizer Hieronymus Bosch? Como o pintor?
- Exatamente. Não sei nada do pintor, mas o nome que o companheiro de lá falou é esse mesmo. De qualquer forma, o negócio é o seguinte. Puseram o tal Bosch num dos trailers e fizeram uma pesquisa no seu carro sem que ele soubesse. Ele tinha uma pasta de documentos no banco da frente. Com anotações e papéis diversos, mas também com fotografias. Uma das fotos é do barco.
- Você está se referindo ao barco encontrado no deserto? - perguntou Alpert.
- Isso, o barco que marcou a primeira cova. Havia também um artigo com a notícia sobre seis homens desaparecidos.
Alpert olhou para os demais por um momento, antes de falar.
- Cherie e Tom, entrem em ligação com Nellis e façam com que preparem um helicóptero - disse por fim. - Agora! E levem a agente Walling com vocês.
Capítulo 18
Puseram-me em um trailer e me disseram para ficar à vontade. Havia uma cozinha e uma mesa e uma área de estar. A vista que se tinha pela janela era a lateral de outro trailer. O ar-condicionado ligado deixava quase todo o fedor do lado de fora. Quando fiz perguntas, não me responderam. Disseram que outros agentes viriam logo para falar comigo.
Uma hora se passou, o que me deu tempo para pensar no que eu havia tropeçado. Não havia dúvida de que aquilo ali era um sítio de recuperação de corpos. O cheiro, aquele cheiro inconfundível, estava no ar. Além disso, eu vira duas vans descaracterizadas e sem janelas nas laterais ou na parte de trás. Rabecões. E era evidente que havia mais de um corpo para ser transportado.
Na marca dos noventa minutos eu estava sentado no sofá lendo uma revista do FBI intitulada Bulletin de um mês atrás que eu pegara em uma das mesinhas de centro. Ouvi um helicóptero sobrevoar o meu trailer, e logo em seguida as turbinas foram desaceleradas e desligadas depois da aterrissagem. Cinco minutos depois, a porta do trailer se abriu e entraram os agentes que eu estava esperando. Duas mulheres e um homem. Uma das mulheres eu reconheci imediatamente, mas não consegui lembrar de onde. Devia ter uns trinta e muitos anos, era alta e bonita, de cabelos escuros. Havia uma insensibilidade em seus olhos, que eu também vira antes. Sendo uma agente, podia ter estado em um monte de lugares onde nossos caminhos tinham se cruzado.
- Sr. Bosch? - disse a outra mulher, a encarregada. - Sou a agente especial Cherie Dei. Este é meu parceiro, Tom Zigo, e esta é a agente Walling. Muito obrigada por ter nos esperado.
- Oh, eu tinha alternativa? Não sabia.
- Claro que tinha. Espero que não tenham lhe dito que era obrigado a ficar.
Ela sorriu sem sinceridade. Decidi não discutir para evitar um mau começo.
- O senhor se incomoda se passarmos para a cozinha? - perguntou Dei. - Será mais confortável se conversarmos sentados à mesa.
Dei de ombros, como se não tivesse importância, mas sabia que tinha. Os três iam me fazer sentar de um modo tal que eu ficaria encurralado, com um deles sentado à minha frente e os outros dois um de cada lado. Levantei e escolhi a cadeira em que sabia que iam querer que eu me sentasse, onde minhas costas ficavam viradas para a parede.
- E então - disse Dei, depois de se sentar à minha frente -, o que o trouxe ao deserto, Sr. Bosch?
Outra vez encolhi os ombros. Estava ficando bom nisso.
- Estava a caminho de Vegas e saí da estrada para cuidar de um negócio.
- Que tipo de negócio?
Sorri.
- Tive que urinar, agente Dei.
Agora ela sorriu.
- Oh, e aí, inteiramente por acaso, o senhor tropeçou no nosso pequeno posto avançado aqui.
- Mais ou menos isso.
- Mais ou menos isso.
- Difícil não enxergar o posto. Quantos corpos vocês já desenterraram?
- O que o faz perguntar isso? Quem disse alguma coisa a respeito de corpos?
Sorri e balancei a cabeça. Ela ia querer jogar duro o tempo todo.
- O senhor se incomoda se dermos uma olhada dentro do seu carro, Sr. Bosch? - perguntou ela.
- Acho que provavelmente vocês já olharam.
- E o que faz pensar assim?
- Fui tira em Los Angeles e já trabalhei com o FBI.
- Quer dizer então que sabe tudo.
- Vamos colocar da seguinte forma. Eu sei o cheiro que tem uma escavação para desenterrar corpos e sei que vocês examinaram meu carro. Só quer a minha permissão agora para tirar o seu da reta. Não vou dar mole. Fiquem longe do meu carro.
Olhei para Zigo e depois para Walling. Foi quando me lembrei de onde a conhecia e um monte de perguntas surgiu na minha cabeça.
- Estou me lembrando agora - falei. - Você é Rachel, certo?
- Perdão?
- Nós já nos encontramos uma vez. Muito tempo atrás, em Los Angeles. Divisão de Hollywood. Você tinha acabado de sair de Quantico. Estava caçando o Poeta e pensou que um dos caras do efetivo da divisão era o próximo alvo. E o tempo todo você estava ali, ao lado dele.
- Você trabalhava em homicídios?
- Certo.
- Como vai Ed Thomas?
- Como eu, aposentou-se. Mas abriu uma livraria em Orange. Vende romances de mistério, se é que você pode acreditar.
- Posso.
- Foi você quem atirou em Backus, certo? Na casa da colina.
Ela não respondeu. Seus olhos foram dos meus para a agente Dei. Havia ali uma coisa que não entendi. Walling desempenhava o papel menos importante, mas obviamente devia ter ascendência sobre Dei e o parceiro dela, Zigo. Mas logo me dei conta do que certamente acontecera. Ela provavelmente tinha sido rebaixada um ou dois pontos na escala por conta do escândalo que se seguiu à investigação do Poeta.
Uma coisa levava à outra. Dei um tiro no escuro.
- Isso foi muito tempo atrás - falei. - Antes mesmo de Amsterdã.
Os olhos de Walling faiscaram por um segundo e eu soube que atingira o alvo.
- Como sabe a respeito de Amsterdã? - apressou-se a perguntar Dei.
Olhei para ela. Executei o sacudir de ombros mais uma vez como resposta.
- Eu apenas sei, acho. Não é isso de que estamos tratando aqui? O trabalho do Poeta lá fora? Ele voltou, certo?
Dei olhou para Zigo e indicou-lhe a porta. Ele se levantou e abandonou o trailer. Ela então inclinou-se para a frente para que eu não entendesse mal a seriedade da situação e de suas palavras.
- Nós queremos saber o que está fazendo aqui, Sr. Bosch. E o senhor não vai a parte alguma enquanto não obtivermos o que queremos.
Imitei a postura dela, inclinando-me para a frente também. Nossos rostos ficaram a meio metro de distância.
- O seu cara lá do posto de verificação pegou minha licença. Tenho certeza de que você já a examinou e sabe o que faço. Estou trabalhando num caso. E é estritamente confidencial.
Zigo retornou. Ele era baixo e troncudo, devia ter passado raspando pelas exigências do regulamento. Tinha o cabelo cortado curto como o dos militares. Carregava a pasta de Terry McCaleb sobre os homens desaparecidos. Eu sabia que dentro dela estavam as fotos que eu imprimira a partir do que encontrei no computador de Terry. Ele deixou a pasta em cima da mesa, na frente de Dei, e ela a abriu. A foto do velho barco vinha por cima. A agente do FBI pegou-a e a empurrou para o meu lado.
- Onde conseguiu isto?
- É confidencial.
- Para quem está trabalhando?
- É confidencial.
Ela deu uma olhada rápida nas fotos e chegou na que Terry tirara secretamente de Shandy. Levantou-a para mim.
- Quem é este aqui?
- Não sei ao certo, mas imagino que se trata do há muito desaparecido Robert Backus.
- O quê? - exclamou Walling.
Ela levantou-se e tirou a foto das mãos de Dei. Observei seus olhos subirem e descerem enquanto a examinava.
- Jesus Cristo! - murmurou.
Levantou-se e dirigiu-se com a foto para a bancada da pia. Arriou-a e estudou mais um pouco.
- Rachel? - exclamou Dei. - Não diga mais nada.
Dei voltou a se concentrar na pasta. Espalhou as outras fotos de Shandy em cima da mesa e depois olhou para mim. Havia fogo em seus olhos agora.
- Onde tirou essas fotos?
- Não tirei.
- Quem tirou? E não diga de novo que é confidencial, Bosch, ou vai terminar em um buraco negro e fundo até que deixe de ser confidencial. Esta é sua última chance.
Já estive em um dos buracos fundos do FBI e sabia que, se fosse obrigado, eu seria capaz de resistir. Mas, na verdade, eu queria ajudar. Sabia que tinha o dever de ajudar. Só tinha que equilibrar essa vontade de ajudar com o que fosse o melhor lance em benefício de Graciela McCaleb. Eu tinha uma cliente e era obrigado a protegê-la.
- Vou lhe dizer uma coisa - falei. - Eu quero ajudar. E quero que você me ajude. Permita que eu dê um telefonema para ver se consigo ser liberado da obrigação de manter a confidencialidade. Que tal?
- Você precisa de um telefone?
- Eu tenho um. Só não sei se vai funcionar aqui.
- Vai. Nós instalamos uma repetidora.
- Ótimo. Vocês pensam em tudo.
- Dê seu telefonema.
- Preciso que seja em particular.
- Então nós o deixaremos aqui. Cinco minutos, Sr. Bosch.
O tratamento voltou a ser "senhor" Bosch. O que representava uma melhoria.
- Na verdade, eu preferia que vocês ficassem aqui enquanto eu ia dar uma caminhada pelo deserto. Seria mais privado assim.
- Como queira. Dê logo o seu telefonema.
Deixei Rachel de pé junto à bancada da cozinha examinando a foto e Dei sentada à mesa, concentrada na pasta. Saí escoltado do trailer e ganhei o deserto perto do improvisado equipamento de pouso do helicóptero. Zigo parou e me deixou continuar andando sozinho. Acendeu um cigarro e continuou de olho em mim. Saquei o celular e chequei a tela que mostrava minhas últimas dez chamadas. Escolhi o número de Buddy Lockridge e disquei. Sabia que tinha uma boa chance de conseguir falar com ele porque seu telefone era celular.
- Oi?
Não parecia ser ele.
- Buddy?
- Sim, quem é?
- Bosch, onde você está?
- Na cama, cara. Você sempre me liga quando estou na cama.
Olhei meu relógio. Passava de meio-dia.
- Bem, levante-se. Estou pondo você para trabalhar.
Sua voz imediatamente denunciou um novo estado de espírito.
- Estou de pé. O que você quer que eu faça?
Rapidamente tentei formular um plano. Por um lado sentia-me aborrecido por não ter trazido o computador de McCaleb, mas por outro eu sabia que, se o tivesse trazido, ele agora estaria nas mãos do Bureau, sem utilidade para mim.
- Preciso que você vá ao The Following Sea o mais rápido possível. Na verdade, pegue um helicóptero e eu reembolso. Só quero que vá logo e suba no barco.
- Sem problema. E depois?
- Ligue o computador de Terry e abra o arquivo de fotografias. Imprima as fotos de frente e de lado de Shandy. Pode fazer isso?
- Posso, mas eu achava que você já tinha impresso...
- Eu sei, Buddy, mas preciso que você repita o que fiz. Imprima as fotos de Shandy, depois vá até os arquivos de cima. Esqueci qual deles tem um arquivo sobre um cara chamado Robert Backus. É...
- O Poeta... sim, eu sei qual é.
Claro que você sabe, eu quase disse.
- Excelente. Pegue esse arquivo e as fotos e traga para Las Vegas.
- Vegas? Pensei que você estivesse em São Francisco.
Por um momento aquilo me confundiu, mas logo me lembrei que tinha mentido para ele para tirá-lo do meu rastro.
- Mudei de ideia. Traga tudo para Las Vegas, hospede-se em um hotel e aguarde meu chamado. Assegure-se de que seu telefone esteja carregado. Mas não me ligue. Deixa que eu telefono para você.
- Por que não vou poder telefonar para você quando chegar?
- Porque em mais vinte minutos pode ser que eu não tenha mais este celular. Mexa-se, Buddy!
- Você vai pagar tudo, não vai?
- Vou pagar, claro. Vou pagar também pelo seu tempo. O tempo já está correndo, Buddy, de modo que é melhor ir andando.
- Está bem, deixa comigo. Sabe, tem uma barca daqui a vinte minutos. Eu podia pegar essa barca e economizar um bocado de dinheiro para você.
- Pegue o helicóptero. Vai gastar uma hora menos que a barca. E eu preciso dessa hora.
- Certo, homem, fui.
- Buddy? Não diga a ninguém aonde está indo e o que vai fazer.
- Falou.
Ele desligou e eu chequei Zigo antes de desconectar. Ele agora estava de óculos escuros, mas parecia que me observava. Fingi que tinha perdido o sinal e gritei alô diversas vezes ao telefone. Depois fechei, reabri e digitei o número de Graciela. Minha sorte continuou de pé. Ela estava em casa e atendeu.
- Graciela, é o Harry. Estão acontecendo algumas coisas e eu preciso de sua permissão para falar com o FBI sobre a morte de Terry e a minha investigação.
- O FBI? Harry, eu lhe disse que não podia procurá-los enquanto não...
- Eu não os procurei. Eles é que vieram para cima de mim. Estou no meio do deserto, Graciela. As coisas que encontrei no escritório de Terry me trouxeram aqui e quando cheguei já encontrei o FBI. Acho que é seguro falar. Acho que a pessoa que estão procurando é a mesma que fez mal a ele. Não penso que isto vá causar prejuízos a você. Estou convencido de que devo falar com eles, dizer-lhes o que consegui. Pode ser que ajude a pegar o sujeito.
- Quem é?
- Robert Backus. Conhece este nome? Terry o mencionou para você?
Um intervalo enquanto ela pensava.
- Acho que não. Quem é?
- Um sujeito com quem Terry trabalhou.
- Agente?
- Sim. Um que chamavam de Poeta. Já ouviu Terry alguma vez falar no Poeta?
- Já, muito tempo atrás. Ou seja, três, quatro anos. Lembro-me de que ele estava furioso, porque eu acho que o tal Poeta devia estar morto, mas ao que parece não estava. Algo assim.
Devia ter sido na época em que Backus aparentemente reaparecera em Amsterdã. Terry devia ter conseguido acessar os arquivos internos da investigação.
- Nada desde esse tempo?
- Oh, não consigo me lembrar de nada.
- Tudo bem, Graciela. E então, o que você acha? Não posso falar com eles a menos que você permita. Eu penso que está bem.
- Pois vá em frente, se acha que vai ajudar.
- Significa que eles vão aparecer aí em breve. Agentes do FBI. Provavelmente levarão The Following Sea para terra firme a fim de ser examinado.
- Para quê?
- Busca de evidências. Esse sujeito esteve a bordo. Primeiro como cliente e depois voltou às escondidas. Foi quando trocou os remédios.
- Oh.
- E provavelmente também irão à sua casa. Vão querer conversar com você. Seja franca, Graciela. Conte tudo. Não esconda nada e tudo vai dar certo.
- Tem certeza, Harry?
- Tenho, sim. Então, concorda?
- Concordo.
Despedimo-nos e desligamos. Enquanto caminhava de volta na direção onde se encontrava Zigo, abri o telefone de novo e digitei o número da minha casa. Desliguei em seguida e repeti a operação mais nove vezes, apagando qualquer registro em meu aparelho dos telefonemas para Buddy Lockridge e Graciela McCaleb. Se as coisas saíssem mal no trailer e Dei quisesse saber para quem eu telefonara, não seria fácil para ela. Não conseguiria nada através do meu celular. Teria que bater na porta da companhia telefônica com um mandado judicial.
Quando me aproximei, Zigo viu o que eu estava fazendo. Sorriu e sacudiu a cabeça.
- Sabe, Bosch, se quiséssemos seus números, teríamos pegado no ar.
- É mesmo?
- É mesmo, se a gente quisesse.
- Uau, vocês são realmente uns caras da pesada, não são?
Zigo me olhou por cima dos óculos escuros.
- Não seja idiota, Bosch. Fica cansativo após algum tempo.
- Você que o diga.
Capítulo 19
Zigo me escoltou de volta sem uma palavra. A agente Dei esperava sentada a mesa. Rachel Walling permanecia de pé junto da bancada. Eu me sentei calmamente e olhei para Dei.
- Então? - perguntou ela, num tom de voz agradável.
- Tudo bem. Fui autorizado a falar com você. Mas não vou falar sozinho. Vai ser uma troca. Eu respondo às suas perguntas e você responde às minhas.
Ela sacudiu a cabeça.
- Ei, não é assim que funciona. Isto é uma investigação do FBI. Não trocamos informações com amadores.
- Você está dizendo que sou amador? Eu lhe trago a foto de Robert Backus, desaparecido há tanto tempo, e ainda sou o amador?
Percebi um movimento e olhei para Rachel. Ela levara a mão ao rosto para esconder um sorriso. Quando viu que eu olhava, virou-se para a bancada e fingiu que estudava de novo a foto de Backus.
- Nós nem sequer sabemos se é mesmo Backus - retrucou Dei. - É a foto de um cara de barba, chapéu e óculos escuros. Pode ser qualquer um.
- E pode ser também o cara que supostamente está morto, mas que de algum modo deu um jeito de matar cinco homens em Amsterdã alguns anos atrás e agora, bem, seis homens aqui. Ou o número excede os seis listados na matéria do jornal?
Dei me dirigiu um sorriso tenso e desagradável.
- Olha, você pode estar se impressionando com tudo isso, mas nós ainda não estamos impressionados. Tudo ainda se resume ao seguinte: você quer sair daqui, então comece a falar conosco. Já tem a sua permissão. Sugiro que comece dizendo o nome do seu cliente.
Recostei-me na cadeira. Ela era uma fortaleza que eu não sabia como assaltar. Mas ao menos eu conseguira aquele sorriso de Rachel Walling. Aquele sorriso me dizia que talvez eu conseguisse ultrapassar a barricada do FBI com ela mais tarde.
- Minha cliente é Graciela McCaleb. Mulher de Terry McCaleb. Quer dizer, viúva.
Dei pestanejou, mas recuperou-se rapidamente da surpresa. Ou não seria surpresa. Talvez uma espécie de confirmação.
- E por que ela o contratou?
- Porque alguém fez uma troca nos remédios do seu marido e o matou.
Isto causou um silêncio momentâneo. Vagarosamente, Rachel afastou-se da bancada e voltou para sua cadeira. Com poucas perguntas e quase nenhuma orientação de Dei eu contei a história de como fora chamado por Graciela, os detalhes dos medicamentos adulterados de seu marido e minha investigação, até o ponto em que chegara ao deserto. Comecei a acreditar que não os estava surpreendendo com coisa alguma. Ao contrário, eu parecia estar confirmando algo ou, no mínimo, contando uma história da qual eles já conheciam alguns trechos. Quando terminei, Dei dirigiu-me algumas perguntas que procuravam esclarecer meus movimentos. Zigo e Walling nada perguntaram.
- É - disse Dei, depois que a narrativa terminou. - Essa história é bem interessante. Um bocado de informação. Por que agora você não a contextualiza para nós? O que tudo isso significa para você?
- Você é que pergunta? Pensei que isso fosse o trabalho de Quantico, jogar tudo dentro do liquidificador e extrair um perfil do caso e todas as respostas.
- Não se preocupe, é o que faremos. Mas eu gostaria de saber qual é o seu ponto de vista.
- Bem - eu disse, mas não fui adiante. Estava tentando misturar tudo eu próprio e bater no meu liquidificador, acrescentando Robert Backus como o mais novo ingrediente.
- Bem, o quê?
- Desculpe, eu só estava querendo assimilar tudo.
- Basta nos dizer o que está pensando.
- Alguém aqui conheceu Terry McCaleb?
- Todos nós conhecemos. O que isso tem a ver...
- Quero saber se alguém aqui presente conheceu realmente Terry McCaleb.
- Eu - disse Rachel. - Trabalhamos juntos em alguns casos. Mas nunca mais entrei em contacto com ele. E só hoje vim a saber que tinha morrido.
- Bem, vocês saberão, uma vez que examinem sua casa, seu barco e tudo mais, que ele ainda trabalhava. Não podia abandonar tudo. Continuou trabalhando não só em alguns dos seus casos antigos que tinham ficado sem solução, como também em casos novos. Ele lia os jornais e assistia a televisão. Telefonava para policiais em casos que o tinham interessado e oferecia-se para ajudar.
- E foi por isto que o mataram? - perguntou Dei.
Balancei a cabeça afirmativamente.
- É possível. Na minha opinião. Em janeiro o L.A. Times deu aquela história que aparece no arquivo que vocês têm aí. Terry leu e ficou interessado. Telefonou para a Polícia Metropolitana de Las Vegas. Não se interessaram. Mas nem por isso deixaram de citar o nome dele no jornal local quando publicaram uma sequência da matéria sobre os homens desaparecidos.
- Quando foi isso?
- Começo de fevereiro. Tenho certeza de que vocês podem checar. De qualquer forma, essa matéria, o nome de Terry nessa matéria, atraiu o Poeta para ele.
- Olha, não estamos confirmando nada a respeito do Poeta. Você entende isso?
- Claro, como queiram. Podem considerar a coisa toda tão hipotética quanto queiram.
- Prossiga.
- Alguém estava sequestrando aqueles homens... e, sabemos agora, enterrando-os no deserto. Como todos os bons assassinos em série ele ficava de olho na mídia, para ver se alguém somava dois mais dois e se aproximava. Ele vê a reportagem que dá o nome de McCaleb. É um antigo colega. Meu palpite é que ele já conhecia McCaleb. Em Quantico, antes de Terry sair para instalar o posto avançado de Ciências Comportamentais em Los Angeles. Antes de ele ter o problema no coração.
- Na verdade, Terry foi o primeiro agente que Backus supervisionou na unidade - disse Walling.
Dei olhou para ela como se tivesse traído a confiança de alguém. Walling ignorou-a e eu gostei disso.
- É isso aí - falei. - Backus vê o nome no jornal e uma ou duas coisas acontecem. Tomou aquilo como um desafio, ou sabia que McCaleb era implacável e ia insistir, apesar da aparente falta de interesse nele demonstrada pela Polícia Metropolitana de Las Vegas.
- Aí ele sai à cata de McCaleb - sugeriu Dei.
- Certo.
- E teve de eliminá-lo de um modo que não levantasse questionamentos - acrescentou Rachel.
- Certo.
Olhei para Zigo. Estava na hora dele entrar no jogo, mas nada disse.
- Então ele foi fazer uma investigação - continuei. - Tinha barba, chapéu, óculos escuros e provavelmente uma cirurgia plástica para ajudar. Fretou o barco de Terry com ele no comando para fazer uma pescaria.
- E Terry não sabia que era ele - adicionou Rachel.
- Terry ficou desconfiado de alguma coisa, mas não sei ao certo de quê. Essas fotos fazem parte de uma série. Terry sabia que aquele cara estava a fim de algo e tirou fotos extras. Penso que se ele soubesse que se tratava de Backus teria feito alguma coisa. Como não fez, acho que não sabia ao certo o que tinha em mãos ou quem era o sujeito.
Olhei para Rachel.
- Você examinou a foto. Pode dizer se é ele? Quer dizer, hipoteticamente falando.
- Não posso dizer, hipoteticamente ou não. Não dá para ver os olhos ou um pedaço suficiente do seu rosto. Se é ele, foi operado. O nariz está diferente. E também as maçãs do rosto.
- Facilmente alteráveis - falei. - Apareça em Los Angeles um dia. Levo você para visitar um sujeito que conheço em Hollywood que opera o pessoal que trabalha como escort. Ele tem umas fotos tipo antes e depois que fazem com que você saia por aí elogiando as maravilhas da ciência médica.
- Com certeza - disse Dei, muito embora eu estivesse falando com Rachel. - E depois? Quando ele troca os remédios de McCaleb?
Tive vontade de consultar minha cronologia, mas meu bloco de notas estava no bolso do casaco. Eles ainda não tinham me revistado, então não quis chamar a atenção para o bloco, talvez conseguisse sair dali com ele.
- Cerca de duas semanas depois, invadiram o barco de Terry. Quem quer que tenha sido, levou um GPS, mas penso que tenha levado apenas para disfarçar caso Terry percebesse que alguém... o que é?
Eu tinha observado a reação dos três agentes. O GPS significava alguma coisa.
- Que tipo de GPS? - perguntou Rachel.
- Rachel - interveio Dei -, você é uma observadora, lembra?
- Um Gulliver - respondi. - Não me lembro do modelo exato. O relatório do xerife está no barco. Na verdade não era de Terry e sim do seu sócio.
- Sabe o nome do sócio? - quis saber Dei.
- Sei, é Buddy Lockridge. Não se lembra do filme?
- Não vi o filme. Sabe mais alguma coisa da história do aparelho de GPS?
- Buddy me disse que ganhou em um jogo de pôquer. Tinha um monte de bons pesqueiros marcados. Ele ficou furioso quando foi roubado justamente por isso e pensou que tivesse sido roubado por outro guia de pesca.
Pela reação dos três, eu podia afirmar que estava acertando cada arremesso. O GPS era importante. Não fora apanhado simplesmente para servir de disfarce. Eu tinha me enganado. Levei um minuto, mas montei o quebra-cabeça.
- Entendi - falei. - Foi assim que vocês encontraram o lugar, não foi? Backus mandou para vocês o GPS com este lugar marcado. Conduziu vocês até aqui do mesmo modo como fez com Terry.
- Não estamos falando de nós - disse Dei. - Estamos falando de você.
Mas eu dei uma olhada para Rachel e vi a confirmação nos seus olhos. Saltei para a conclusão seguinte: o GPS tinha sido enviado para ela. Era este o motivo pelo qual se encontrava ali como observadora. Backus a convocara, do mesmo modo como convocara Terry.
- Você disse que Terry foi o primeiro agente que Backus supervisionou na unidade. Quem foi o segundo?
- Vamos seguir em frente - disse Dei.
Rachel não respondeu, mas me dirigiu o frágil sorriso que ficava tão triste combinado com aqueles olhos mortos. Estava me dizendo que eu acertara. Fora ela quem sucedera Terry McCaleb no programa de aconselhamento profissional.
- Espero que estejam tomando as precauções apropriadas - falei baixinho.
Dei abriu a pasta-arquivo em cima da mesa.
- Isto, na verdade, não é da sua conta - disse ela. - Agora, há algumas coisas aqui nas suas anotações que eu quero que me esclareça. Antes de mais nada, quem é William Bing?
Olhei para Dei. Ela pensava que a pasta e as anotações fossem minhas.
- Não sei. Um nome que encontrei por aí.
- Onde?
- Acho que Terry anotou. Não descobri quem seja.
- E esta referência à teoria do triângulo, o que significa?
- O que significa para você?
- Sr. Bosch, não me aborreça. Não banque o espertinho.
- Cherie? - interveio Rachel.
- O quê?
- Acho que essas anotações provavelmente são de Terry.
Dei examinou a pasta e percebeu que Rachel tinha razão. Dirigi um olhar a Rachel como se eu estivesse magoado por ela ter me delatado. Dei fechou a pasta abruptamente.
- Certo. Naturalmente.
Ela me encarou.
- Sabe o que isso significa?
- Não, mas acho que você vai me dizer.
- Significa que assumimos o caso a partir daqui. Pode voltar para Los Angeles agora.
- Não vou para Los Angeles. Vou para Las Vegas. Tenho casa lá.
- Pode ir para onde quiser, mas fique longe desta investigação. Estamos assumindo oficialmente.
- Você sabe que não trabalho para nenhum departamento de polícia, agente Dei. Você não pode assumir nada que esteja comigo a menos que eu queira. Sou um operador privado. Ajo por conta própria.
Ela balançou a cabeça como se estivesse compreendendo a minha situação.
- Tudo bem, Sr. Bosch, vamos falar com a sua empregadora ainda hoje e o senhor estará desempregado antes do pôr do sol.
- Só estou tentando ganhar a vida.
- Eu só estou tentando pegar um assassino. Assim sendo, entenda, os seus serviços não mais são requeridos. Fique longe. O senhor está fora. Acabou. Posso ser mais clara?
- Será que pode colocar isso por escrito?
- Sabe de uma coisa, acho que o senhor deve dar o fora daqui e ir para casa enquanto ainda pode. Tom, pode dar ao Sr. Bosch sua licença e as chaves e acompanhá-lo até o carro?
- Com prazer - disse Zigo, e estas foram as primeiras palavras que pronunciou dentro do trailer.
Estiquei a mão para pegar a pasta, mas ela puxou-a para fora do meu alcance.
- E ficaremos com isto.
- Claro. Feliz caçada, agente Dei.
- Muito obrigada.
Segui Zigo na direção da porta. Olhei para trás e acenei com um gesto de cabeça para Rachel, e ela fez o mesmo para mim. Acho que vi um traço de luz entrar em seus olhos.
Capítulo 20
Os três agentes ainda conversavam sobre Bosch quando o helicóptero levantou voo, afastando-se do solo do deserto e dando início à viagem de quarenta minutos de volta para Las Vegas. Os três usavam fones de ouvido, de modo que podiam se comunicar uns com os outros mesmo com todo o barulho do rotor. Dei permanecia claramente aborrecida com o detetive particular e Rachel achou que a outra talvez sentisse que ele levara, de algum modo, vantagem sobre ela. Quanto a Rachel, permanecia bem-humorada. Sabia que aquela não fora a última vez que tinham visto Bosch. O olhar dele era de quem já tinha visto de tudo, e aquele aceno no final lhe disse que ele não ia simplesmente levantar acampamento e ir embora.
- E a teoria do triângulo? - indagou Dei.
Rachel esperou que Zigo dissesse qualquer coisa, mas como sempre, ele não abriu a boca.
- Acho que Terry provavelmente tinha encontrado alguma coisa - disse ela. - Alguém devia trabalhar nisso.
- No momento, não sei se temos efetivo para andar atrás de tudo isto aqui. Vou perguntar a Brass se ela dispõe de alguém. E este William Bing... esse nome ainda não tinha surgido.
- Meu palpite é que se trata de um médico. Terry estava vindo para cá e provavelmente queria ter a quem recorrer para o caso de alguma coisa dar errado.
- Rachel, quando voltarmos, será que você podia dar uma olhada? Sei o que Alpert disse, que você é só uma observadora, mas se isto é apenas uma ponta solta será bom que amarremos.
- Sem problema. Posso fazer o trabalho do meu quarto de hotel se você não quiser que ele me veja trabalhando em um dos seus telefones.
- Não, fique no escritório. Se Alpert não a vir vai ficar especulando no que estará metida.
Dei, que estava no banco dianteiro do passageiro, virou-se e olhou para Rachel, sentada atrás do piloto.
- O que se passou entre vocês dois, afinal?
- Como assim?
- Você sabe do que estou falando. Você e Bosch. Todos aqueles olhares, os sorrisos. "Espero que estejam tomando as precauções apropriadas." O que foi aquilo, Rachel?
- Olha, ele estava em situação de inferioridade, certo? É natural que tivesse escolhido um de nós para seduzir. Consta do manual de técnicas de entrevista e tendências. Dê uma olhada quando tiver tempo.
- E você? Também estava querendo cair nas boas graças dele? Também está no manual?
Rachel sacudiu a cabeça como se quisesse encerrar a discussão de uma vez por todas.
- Eu apenas gosto do estilo dele. Comporta-se como se ainda estivesse na ativa, sabe como é? Como se ainda tivesse direito a um crachá. Não cedeu para nós, e eu acho que isso é legal.
- Você está isolada na roça há tempo demais, Rachel, ou não diria isso. Não gostamos de pessoas que nos enfrentam de igual para igual.
- É possível.
- Então você pensa que ele vai ser um problema?
- Definitivamente - disse Zigo.
- Provavelmente - acrescentou Rachel.
Dei sacudiu a cabeça.
- Não tenho gente para tudo isso. Não posso gastar meu tempo observando esse sujeito.
- Quer que eu fique de olho nele? - perguntou Rachel.
- Você está se apresentando como voluntária?
- Estou procurando o que fazer. Sim, sou voluntária.
- Você sabe, antes do 11 de Setembro e da Secretaria de Segurança do Interior, nós costumávamos conseguir tudo o que precisássemos. Caçar assassinos em série era a melhor mídia que o Bureau conseguia. Agora, são os terroristas sete dias por semana e 24 horas por dia, sem direito sequer a horas extras.
Rachel reparou como Dei se esforçava para não dizer se queria ou não que ela controlasse as atividades de Bosch. Um belo modo de poder negar se algo saísse errado. Decidiu que logo que voltasse para o escritório do Bureau em Las Vegas teria uma conversa a sós com ela e faria com que verificasse se Bosch tinha realmente uma casa na cidade. Tentaria descobrir o que ele estava querendo e ficaria de olho, sem exageros.
Estava contemplando pela janela a fita preta de asfalto que cortava o deserto lá embaixo. O helicóptero seguia a fita na volta para a cidade. No mesmo instante, viu um veículo utilitário esportivo Mercedes-Benz preto seguindo na mesma direção. Estava sujo por ter andando na areia do deserto. Era Bosch a caminho de Vegas. Rachel notou que havia um desenho no teto do carro. Ele tinha usado um trapo ou algo assim para desenhar uma cara redonda sorridente na poeira branca. O desenho a fez sorrir também.
A voz de Dei surgiu pelos fones de ouvido.
- O que é, Rachel? Por que está sorrindo?
- Nada. Só estou pensando numa coisa.
- É, eu adoraria ser capaz de sorrir sabendo que pode haver um agente maluco esperando em algum lugar para enfiar um saco plástico na minha cabeça.
Rachel olhou para Dei, aborrecida com uma observação tão sarcástica e brutal. Dei, aparentemente, percebeu algo em seu olhar.
- Desculpe. Só acho que você devia começar a encarar isso tudo com mais seriedade.
Rachel a encarou até que Dei teve que desviar os olhos.
- Você pensa mesmo que não estou levando isso a sério?
- Sei que está. Eu não devia ter falado nada.
Rachel olhou para a I-15 lá embaixo. Tinham passado o Mercedes preto há muito tempo. Bosch desaparecera, muito atrás deles.
Ela estudou o terreno por algum tempo. Era tão diferente e ao mesmo tempo tão igual. Uma paisagem lunar de pedra e areia. Sabia que era cheia de vida, mas que toda a vida ali contida estava escondida. Os predadores ficavam embaixo da terra, esperando para saírem à noite.
- Senhoras e senhores - era a voz do piloto nos fones de ouvido. - Mudem para o canal três para que possam atender um telefonema.
Rachel teve que tirar o fone de ouvido para ver como mudava de frequência, o que fez pensando que o design do equipamento era burro. Quando o recolocou, ouviu a voz de Brass Doran. Rachel se lembrava de que ela falava depressa, em rajadas, sempre que acontecia algo importante.
- ... cento de certeza. Definitivamente veio dele.
- O quê? - exclamou Rachel. - Não pude ouvir.
- Brass - pediu Dei - Comece de novo.
- Eu disse que obtivemos um positivo da marca da mordida. Com a goma de mascar. É um positivo com 95% de certeza, o que é uma das maiores percentagens que já vi.
- Quem? - perguntou Rachel.
- Rach, você vai adorar isso. Ted Bundy. Aquela goma foi mascada por Ted Bundy.
- Impossível - disse Dei. - Para começar, Bundy morreu há anos, muito tempo antes de qualquer daqueles homens ter desaparecido. E nunca se soube que tenha ido a Nevada ou a Califórnia, ou que tenha atacado homens. Há algum erro aí. Ou é uma leitura errada ou...
- Passamos duas vezes na base de dados. Nas duas veio o nome de Bundy.
- Não - disse Rachel. - Está certo.
Dei virou-se e olhou para ela. Rachel estava pensando em Bundy. O insuperável assassino em série. Bonito, elegante e perverso. Mordedor também. O único que realmente a assustara. Dos outros sentia apenas aversão e repugnância.
- Como sabe que está certo, Rachel?
- Eu só sei. Vinte e cinco anos atrás Backus ajudou a montar a base de dados VICAP, o Programa de Apreensão de Criminosos Violentos. Brass se lembra. Nos oito anos seguintes, os dados foram coletados. Agentes da unidade entrevistaram todos os assassinos em série e estupradores encarcerados no país. Isso foi antes de minha chegada, mas mesmo depois, quando eu já estava lá, continuamos fazendo entrevistas e acrescentando os dados obtidos à base. Bundy foi entrevistado diversas vezes. A maioria das vezes por Bob. Pouco antes de sua execução ele chamou Bob a Raiford e Bob me levou junto. Passamos três dias o entrevistando. Lembro-me de que Ted vivia pedindo goma de mascar a Bob. Era Juicy Fruit. Era a que Bob mascava.
- E aí, Ted cuspia a goma na mão de Bob? - perguntou Zigo, incrédulo.
- Não, ele cuspia na lata de lixo. Nós o entrevistamos no escritório do capitão da ala da morte. Havia uma lata de lixo. Quando terminávamos, no fim do dia, Bundy era levado embora. Muitas vezes Bob ficava sozinho naquela sala. Ele podia simplesmente recolher a goma da lata.
- Você está querendo dizer que Bob meio que guardou a goma mascada por Ted Bundy para que pudesse largar dentro de uma dessas covas tantos anos depois?
- Estou dizendo que ele tirou a goma de dentro da prisão, sabendo que tinha nela as marcas dos dentes de Ted Bundy. Talvez fosse apenas um souvenir, naquele tempo. Mas tornou-se outra coisa mais tarde. Alguma coisa feita para nos ridicularizar.
- E onde ele guardou a goma, na geladeira?
- Talvez. É onde eu guardaria.
Dei virou-se para a frente no seu banco.
- O que você acha, Brass? - perguntou.
- Acho que eu deveria ter pensado nisso. Rachel pode ter percebido algo. Acho que Bob e Ted na verdade se entendiam. Bob foi diversas vezes falar com ele, inclusive sozinho. Podia ter apanhado a goma em qualquer uma dessas ocasiões.
Rachel viu que Dei balançava a cabeça em sinal de concordância.
Zigo limpou a garganta antes de falar.
- Quer dizer então que isso terá sido apenas uma outra maneira dele sair do buraco para nos dizer que cometeu esses assassinatos e mostrar-nos como agiu com inteligência. Para fazer pouco de nós. Primeiro o GPS com as digitais e agora o chiclete.
- É mais ou menos o que eu diria - concordou Brass Doran.
Não é tão simples assim, Rachel sabia. Inconscientemente, ela sacudiu a cabeça, e Zigo, sentado ao seu lado, percebeu.
- Você discorda, agente Walling?
Zigo devia ter frequentado o curso Randal Alpert para criar e aperfeiçoar os relacionamentos com os colegas de profissão.
- Só não acho que seja tão simples assim. Você está vendo a coisa do ângulo errado. Lembre-se de que o GPS e as impressões digitais chegaram às nossas mãos primeiro, mas a goma foi colocada na cova antes. Antes que houvesse qualquer ligação direta com Robert Backus.
- Se é este o caso, o que ele estava fazendo? - perguntou Cherie.
- Não sei. Não tenho a resposta. Só estou dizendo que a esta altura dos acontecimentos não devemos imaginar que conhecemos o plano ou mesmo a sequência em que ele devia se desenrolar.
- Rachel, você sabe que sempre mantemos a mente aberta para todo o tipo de coisa. Consideramos as coisas do modo como aparecem e nunca paramos de examiná-las de todos os ângulos.
Aquilo mais parecia uma frase colada na parede do escritório de informações ao público em Quantico, onde os agentes sempre tinham políticas e normas de procedimento para transmitir por telefone aos repórteres. Rachel decidiu recuar, não querendo se complicar com Dei por causa daquilo. Tinha que tomar cuidado para não abusar da sua hospitalidade e sentiu que estava se aproximando desse ponto com a antiga aluna.
- Sim, eu sei - concordou.
- E então, Brass, mais alguma novidade? - perguntou Dei.
- É só. Mais que o suficiente.
- Então está bem. A gente se fala na próxima.
Ela quis dizer na próxima videoconferência. Doran disse adeus e interrompeu a ligação. A linha permaneceu em silêncio enquanto o helicóptero cruzava a fronteira entre a paisagem agreste do deserto e o início das construções de Las Vegas. Rachel apreciou a mudança, sabendo que se tratava apenas da troca de um deserto por outro. Lá embaixo, sob os telhados de cerâmica e cascalho, os predadores ainda esperavam para sair à noite. E encontrar suas vítimas.
Capítulo 21
O motel chamado Executive Extended Stay ficava afastado da extremidade sul da Strip, a rua principal de Las Vegas. Não tinha luzes de néon brilhando na frente. Não tinha cassino nem show. Na verdade, nenhum executivo se hospedava ali. Tratava-se de um lugar habitado pelos integrantes da periferia da sociedade de Las Vegas: jogadores viciados, assassinos, contraventores, profissionais do sexo, gente que não pode ir embora, mas também não pode lançar raízes em caráter permanente.
Pessoas como eu. Com frequência, quando você encontra um outro morador do Duplo X, como os veteranos chamam o lugar, ele lhe pergunta há quanto tempo está lá e por quanto mais vai ficar, como se estivesse contando tempo em uma cadeia. Acredito que muitos dos residentes do motel tenham passado algum tempo presos e escolhi o Duplo X por duas razões. A primeira é que ainda devia uma hipoteca em Los Angeles e não podia me dar ao luxo de dormir em um lugar como o Bellagio, o Mandalay Bay ou mesmo o Riviera. A segunda é que não queria me sentir confortável em Las Vegas. Fazia questão de não me sentir ajustado ali. Porque eu sabia que quando chegasse a hora de ir embora, era girar a chave na fechadura e dar o fora.
Cheguei a Vegas antes das três horas e sabia que minha filha já tinha voltado da creche e eu podia ir à casa da minha ex-mulher para vê-la. Eu queria ir, mas também queria esperar. Buddy Lockridge estava vindo e eu tinha o que fazer. O FBI me deixara sair do trailer com o meu bloco de anotações no bolso e o guia rodoviário de Terry McCaleb no carro. Queria dar bom uso às duas coisas antes que a agente Dei pudesse perceber seu erro e viesse atrás de mim. Eu queria ver se conseguia planejar o próximo passo antes dela.
Entrei no Duplo X e estacionei na minha vaga habitual, perto da cerca que separava o motel das baias dos jatos particulares na pista do aeroporto McCarran. Notei que o Gulfstream 9, que estava parado ali quando deixei Las Vegas três manhãs antes, ainda se encontrava no mesmo lugar. Havia também outro jato, menor, mas vistoso, pintado de preto luzidio, parado ao lado. Eu não sabia que tipo de jato era. Só que recendia a dinheiro. Saltei e subi a escada até o quarto e sala no segundo andar. Era limpo e funcional e eu tentava passar nele apenas o tempo necessário. A melhor coisa ali era a sacada da sala. Nos folhetos de propaganda existentes no escritório onde eram concretizadas as locações, era chamada de sacada para fumar. O espaço era pequeno demais para comportar uma cadeira. Mas dava perfeitamente para ficar ali de pé, debruçado na grade extra-alta e observar o movimento dos jatos dos bilionários. Era o que eu fazia constantemente, chegando inclusive a querer não ter deixado de fumar. Muitas vezes um dos moradores dos apartamentos vizinhos ia fumar na respectiva sacada enquanto eu estava na minha. De um lado, o vizinho era um contador de cartas - ou seja, o jogador que rastreia a saída de cartas de valor alto comparadas com as de valor baixo, de modo a obter vantagem em futuras mãos. Do outro lado, a vizinha era uma mulher que se sustentava com recursos de origem indeterminada. Minhas conversas com eles eram superficiais. Ninguém queria fazer ou responder a muitas perguntas naquele lugar.
As duas últimas edições do Sun estavam em cima do surrado capacho de borracha do lado de fora da minha porta. Eu não tinha cancelado a assinatura porque sabia que a vizinha gostava de ler o jornal, que depois dobrava de novo e recolocava no saco plástico. Ela não sabia que eu sabia disso.
Dentro de casa, larguei os jornais no chão e pus o guia rodoviário de McCaleb em cima da mesa da sala de jantar. Tirei o bloco de anotações do bolso e coloquei ali também. Depois abri a porta de correr só para arejar um pouco. Quem tinha morado ali antes de mim não usava a sacada para fumar e tudo tinha um ranço permanente de nicotina.
Depois de ligar o carregador do meu telefone em uma tomada da sala, liguei para Buddy Lockridge, mas caiu na caixa postal. Desliguei antes de ter que deixar uma mensagem. A seguir, telefonei para Graciela McCaleb e perguntei se o FBI já tinha aparecido.
- Acabaram de sair. Examinaram um monte de coisas aqui dentro e foram em direção ao barco. Você tinha razão, vão querer levar o barco. Não sei quando o terei de volta.
- Viu Buddy por aí hoje?
- Buddy? Não, ele deveria aparecer aqui?
- Não, só estava supondo.
- Você ainda está com o FBI?
- Não, eles me soltaram duas horas atrás. Estou em minha casa, em Vegas. Vou continuar trabalhando no caso, Graciela.
- Por quê? Parece... os agentes me disseram que a investigação agora passou a ser prioritária. Eles acham que o tal agente mudou os remédios de Terry. Backus.
O que ela estava perguntando era o que eu podia fazer que os augustos poderes do FBI não poderiam. A resposta, lógico, era nada. Mas me lembrei do que Terry havia dito a Graciela a meu respeito. Que ele ia me querer no caso se alguma coisa lhe acontecesse. Aquilo me impedia de desistir.
- Porque é o que Terry queria - expliquei. - Mas não se preocupe, se eu descobrir algo que o Bureau não tenha, darei a eles. Como hoje. Não estou a fim de competir. Só estou trabalhando no caso, Graciela.
- Tudo bem.
- Mas você sabe que não deve contar nada, mesmo que perguntem. Pode ser que não gostem.
- Eu sei.
- Muito obrigado, Graciela. Eu telefono se aparecer algo.
- Muito obrigada, Harry. Boa sorte.
- Provavelmente vou precisar.
Depois de desligar, tentei Buddy Lockridge mais uma vez e novamente só consegui a caixa postal. Talvez estivesse em um avião com o celular desligado. Bem, pelo menos torci para que fosse isso. Torci para que ele tivesse subido a bordo do barco e saído antes que os agentes do Bureau o vissem. Larguei o telefone e fui até a geladeira. Fiz um sanduíche rápido de queijo fundido e pão de forma branco. Sempre tinha ambos na geladeira para o caso de minha filha querer um sanduíche quente quando me visitasse. Era um dos seus favoritos. Pulei a parte da torradeira e fiquei parado diante da bancada, comendo rapidamente o sanduíche sem gosto para encher o vazio no meu estômago. Depois sentei-me à mesa e abri o bloco de anotações em uma página em branco. Usei uns exercícios de autorrelaxamento que aprendi anos atrás em uma classe de hipnose. Na minha mente, vi um quadro de giz em branco. Pouco tempo depois peguei o giz e comecei a escrever com letras brancas ao longo da superfície negra do quadro. Da melhor forma que consegui, recriei as anotações de Terry McCaleb que estavam no arquivo dos homens desaparecidos - as anotações que o FBI tirara. Quando já tinha escrito no quadro tanto quanto consegui me lembrar, comecei a escrever no meu bloco. Acho que consegui quase tudo, exceto pelos números de telefone, o que não me incomodou, porque poderia recuperá-los com simples ligações para o serviço de informação da telefônica.
Pela porta aberta da sacada ouvi o guincho agudo dos motores a jato. Outro avião estava estacionado lá fora. Os motores foram apagados e tudo ficou em silêncio de novo.
Abri o guia rodoviário de McCaleb. Chequei cada detalhe e só encontrei os rabiscos na página ilustrando a parte sul de Nevada e seções contíguas dos estados da Califórnia e do Arizona. Mais uma vez olhei para o que McCaleb fizera. Ele tinha feito um círculo em torno da Área de Preservação do Mojave, o que, eu sabia, incluía a estrada Zzyzx e a localização do sítio de escavação de corpos do FBI. Na margem externa do mapa, Terry escrevera uma coluna de números e acrescentara a eles 54. Por baixo riscara uma linha e escrevera: "Real - 58."
Meu palpite era de que aqueles números correspondiam a quilômetros. Dei uma olhada no mapa e vi que nele constavam as distâncias a percorrer em todas as rodovias mais importantes. Em questão de segundos, encontrei os números que apareciam na coluna que McCaleb escrevera na margem da página. Ele tinha acrescentado a distância entre Las Vegas e um ponto da I-15, no meio do Mojave. A estrada Zzyzx era pequena e desimportante demais para aparecer com nome no mapa. Mas acho que ela era o ponto da 15 a partir do qual McCaleb começara a somar a quilometragem.
Escrevi e somei os números no meu bloco. McCaleb acertara - 54 quilômetros, de acordo com o mapa. Mas depois discordara ou traçara uma rota diferente, chegando ao total de 58 quilômetros. Ele devia ter percorrido essa rota pessoalmente e obtivera no seu hodômetro uma contagem diferente da do mapa. Esta diferença provavelmente ocorrera porque ele devia ter em Las Vegas uma destinação específica. As quilometragens do mapa podiam ter usado um diferente ponto final na cidade.
O destino de McCaleb me era desconhecido. Não tinha ideia de quando as marcações no mapa foram feitas ou se estariam de algum modo ligadas ao caso. Mas achava que eram sim ligadas ao caso porque ele começava a contagem na estrada Zzyzx. Não podia ser coincidência. Não há coincidências.
Ouvi uma tosse vinda da sacada. Sabia que era a vizinha fumando. Eu a considerava muito curiosa e, de certo modo, fazia questão de ficar de olho nela sempre que eu estava no Duplo X. Ela não fumava muito e parecia só ir à sacada quando um jato privado aproximava-se da área de estacionamento. Claro, algumas pessoas gostam de observar aviões. Mas eu achava que ela observava por estar a fim de alguma coisa, o que me deixava ainda mais curioso. Na minha imaginação, podia estar identificando incautos para os cassinos ou talvez para outros jogadores.
Levantei-me e fui para a minha sacada. Quando atravessei a porta, olhei para a direita e vi que a vizinha jogava qualquer coisa para dentro do apartamento. Alguma coisa que ela não queria que eu visse.
- Como vai, Jane?
- Tudo bem, Harry. Não tenho visto você nos últimos tempos.
- Passei uns dias fora. O que temos aí embaixo?
Desviei os olhos das baias dos aviões para a pista de asfalto. Outro jato preto lustroso tinha estacionado ao lado do seu gêmeo. Uma limusine igualmente preta aguardava perto da escada. Um homem de terno, óculos de sol e um turbante marrom ia saltando do aparelho. Percebi que estava arruinando o serviço de vigilância de Jane, se o objeto que havia jogado para dentro ao me ver fora uma câmera ou um binóculo.
- O sultão do swing - falei, só para dizer qualquer coisa.
- Provavelmente.
Ela deu uma tragada no cigarro e tossiu de novo. Eu sabia que Jane não era uma fumante. Fumava só para que parecesse mais plausível ficar na sacada tomando conta de homens ricos e seus aviões. Também não tinha olhos castanhos - eu a vira na sacada em um dia em que se esquecera de colocar as lentes de contacto coloridas - e o preto do seu cabelo provavelmente tampouco devia ser a cor verdadeira.
Eu gostaria de perguntar qual era a dela, qual era a jogada ou o conto do vigário ou esquema em que estava metida. Mas gostava também das nossas conversas de sacada e, de qualquer modo, eu não era mais tira. E a verdade era que se Jane - eu não sabia seu sobrenome - estava no ramo de separar os homens ricos de suas riquezas, eu não tinha como reclamar. Toda Las Vegas fora construída com base no mesmo princípio. Você rola o dado na cidade do desejo e obtém o que merece.
Eu sentia alguma coisa de intrinsecamente boa nela. Danificada, talvez, mas boa. Uma vez, quando levei minha filha ao apartamento, nós esbarramos em Jane na escada e ela parou para falar com Maddie. Na manhã seguinte, encontrei um boneco de pelúcia em forma de pantera em cima do capacho, do lado do meu jornal.
- Como vai sua filha? - perguntou Jane, como se lesse meus pensamentos.
- Está bem. Noite dessas, me perguntou se o Burger King e a Dairy Queen eram casados.
Jane sorriu e mais uma vez eu vi tristeza em seus olhos. Sabia que tinha a ver com crianças. Perguntei algo que vinha pensando há muito tempo.
- Você tem filhos?
- Uma. Um pouco mais velha que a sua. Não estou mais com ela. Mora na França.
Foi tudo o que disse e deixei estar assim, sentindo-me culpado pelo que eu tinha na minha vida e porque eu sabia, antes de fazer a pergunta, que estaria fustigando a dor que a machucava tanto. Mas a minha indagação estimulou-a a fazer a pergunta que provavelmente vinha ruminando há muito tempo.
- Você é tira, Harry?
Sacudi a cabeça.
- Fui. Em Los Angeles. Como soube?
- Palpite. Acho que foi o jeito como vi você andando com sua filha até o carro. Como se estivesse pronto para avançar em cima de qualquer coisa que se movesse. Qualquer coisa de ruim.
Dei de ombros. Tinha me reconhecido.
- Achei aquilo legal - acrescentou ela. - O que você faz agora?
- Na verdade, nada. Ainda estou pensando, sabe.
- Sei.
De repente, estávamos nos tornando mais do que simples vizinhos jogando conversa fora.
- E você? - perguntei.
- Eu? Eu só estou esperando uma coisa.
E ficou por aí. Eu sabia que era o fim da linha naquela direção. Desviei os olhos e vi outro sultão ou sheik começar a descer a escada do jato. O motorista da limusine aguardava, com a porta aberta. Pareceu-me que ele tinha algo debaixo do paletó, algo que poderia sacar se a situação se agravasse. Olhei de novo para Jane.
- Até mais, Jane.
- Até, Harry. Diga oi a ela por mim.
- Direi. Se cuida.
- Você também.
De volta a sala tentei ligar para Buddy Lockridge mais uma vez e tive o mesmo resultado. Nada. Peguei a caneta e bati com ela impacientemente no meu bloco. A essa altura ele já deveria estar atendendo. Eu não me sentia preocupado. Estava ficando aborrecido. Os relatórios sobre Buddy diziam que ele não era de confiança. O que era uma coisa para a qual eu não dispunha de tempo.
Levantei-me, fui até a cozinha minúscula e peguei uma cerveja no frigobar que ficava debaixo da bancada. Havia um abridor de garrafas no batente da porta. Abri a garrafa e tomei um longo gole. A cerveja atravessou a poeira do deserto e teve um sabor muito bom ao descer. Achei que eu merecia.
Fui até a porta da sacada mas não saí. Não queria me intrometer de novo na vida de Jane. Permanecendo na sala, dei uma olhada lá para fora e vi que a limusine tinha ido embora e o jato fora totalmente trancado. Meti a cabeça para fora e examinei a sacada de Jane. Tinha ido embora. Notei que no cinzeiro equilibrado em cima da grade ela havia esmagado o cigarro fumado pouco mais da metade. Alguém devia lhe dizer que aquilo era uma pista muito significativa.
Poucos minutos depois a cerveja acabara e eu estava de volta à sala, estudando minhas anotações e o guia rodoviário de McCaleb. Sabia que eu tinha deixado passar alguma coisa que não conseguia descobrir o que era. Estava ali, bem ao meu alcance, mas eu não era capaz de saber do que se tratava.
Meu celular tocou. Finalmente era Buddy Lockridge.
- Você telefonou para mim? - perguntou Buddy.
- Telefonei. Mas falei com você para não ligar para o meu celular.
- Eu sei, mas você acabou de me ligar. Achei que significava que estava tudo safo.
- E se não tivesse sido eu?
- Eu tenho identificador de chamadas. Sabia que era você.
- Sim, mas como sabia que era eu? E se fosse outra pessoa com o meu telefone?
- Oh.
- É, é mesmo para dizer "oh", Buddy. Olha, se vai trabalhar para mim tem que ouvir o que falo.
- Está certo, está certo, eu compreendo.
- Ótimo. Onde você está?
- Vegas, cara. Como você falou.
- Pegou os troços no barco?
- Peguei.
- E o FBI?
- Nada de FBI, cara. Tudo correu bem.
- Onde você está agora?
Enquanto falava notei algo nas minhas anotações e me lembrei de outra coisa a respeito da história que saiu no Times sobre os homens desaparecidos. Mais ainda, lembrei-me também do círculo que Terry desenhara no recorte do jornal.
- Estou no B - disse Lockridge.
- O B? Onde fica o B?
- O grande B, cara.
- Buddy, o que você está dizendo? Onde você está?
Ele murmurou sua resposta.
- Pensei que tudo estivesse codificado, cara. Tipo eles podem estar escutando.
- Buddy, não ligo a mínima se estiverem escutando. Abandone o código. O que significa o grande B?
- O Bellagio. Um código simples, mano.
- Um código simples para uma mente simples. Você está me dizendo que se hospedou no Bellagio para botar na minha conta?
- Isso.
- Pois dê o fora daí.
- Como assim? Acabo de chegar.
- Não vou pagar a conta do Bellagio. Caia fora, venha para cá e alugue um quarto no motel onde estou. Se eu pudesse pagar sua estada no Bellagio, eu mesmo iria para lá.
- Nenhuma despesa, hein?
- Nenhuma.
- Está certo. Onde você está?
Dei o nome e o endereço do Duplo X e na mesma hora ele viu que eu estava na periferia.
- Tem pay-per-view aí?
- Merda nenhuma. Venha para cá.
- Bem, olha, já estou hospedado aqui. Eles não vão devolver o meu dinheiro. Já debitaram do meu cartão e eu até já caguei no toalete. Você sabe que isso implica ter ocupado o quarto. Vou ficar uma noite aqui e amanhã vou para aí.
Vai ser só uma noite, pensei, mas não falei nada.
- Tudo o que ultrapassar essa despesa vai sair do seu pagamento, cara. Eu não mandei você se hospedar no hotel mais caro de Las Vegas.
- Está certo, está certo, pode debitar do meu pagamento, se quiser. Que seja, eu não me incomodo.
- Está bem, vou debitar. Você está de carro?
- Não, peguei um táxi.
- Então pegue o elevador, desça, pegue outro táxi e traga aquelas coisas para mim aqui.
- Posso fazer uma massagem antes?
- Buddy, pelo amor de Deus, se você não...
- Estou brincando, cara, estou brincando! Não sabe aguentar uma piada, Harry? Estou a caminho.
- Ótimo. Estou aguardando.
Desliguei sem me despedir e imediatamente procurei esquecer a conversa. Estava empolgado. Segui em frente. Eu achava que tinha, inexplicavelmente, resolvido um dos mistérios. Examinei a minha recriação das anotações de McCaleb e uma linha em particular:
Teoria do triângulo? 1 ponto dá 3
Na matéria do jornal ele traçara uma circunferência em torno da palavra círculo na declaração do detetive da Polícia Metropolitana de Las Vegas sobre a quilometragem do carro alugado por um dos homens desaparecidos, dando aos investigadores uma ampla área circular na qual deveriam procurar as pistas que dissessem o que acontecera a ele.
Eu acreditava agora que McCaleb tivesse assinalado a palavra porque achara que estava errada. A zona a ser vasculhada não era um círculo, e sim um triângulo, significando que a quilometragem do carro alugado formava os três lados do triângulo. O ponto um era o aeroporto, a origem. O sujeito pegara o carro e dirigira até o ponto dois. O ponto dois era o local onde seu caminho cruzava com o do criminoso que o sequestrou. E o ponto três era o lugar onde o sequestrador abatera sua vítima. Depois disso, o carro foi levado de volta ao ponto um, completando o triângulo.
Quando McCaleb escrevera suas notas não sabia a respeito da estrada Zzyzx. Ele tinha só um ponto - a locadora no aeroporto. Por isso escrevera "um ponto dá três", porque sabia que se um outro ponto do triângulo fosse identificado, levaria também ao ponto remanescente.
- Mais um ponto do triângulo significa que podemos definir todos os três - falei em voz alta, traduzindo a nota de McCaleb.
Levantei-me e comecei a andar de um lado para o outro. Animado, eu acreditava que estava chegando perto. Era verdade que o sequestrador podia ter feito qualquer número de paradas com o carro, inutilizando a teoria do triângulo. Mas se não tivesse parado, se tivesse evitado distrações e resolvido o problema que tinha em mãos, a teoria do triângulo fechava. Sua perfeição, contudo, continha sua fraqueza. Ela faria da estrada Zzyzx o ponto três do triângulo porque fora a última parada do carro antes que fosse devolvido ao aeroporto. O que deixaria o ponto dois como o desconhecido remanescente. A interseção. O lugar onde predador e caça se encontraram. Sua localização não era conhecida no momento, mas graças a meu parceiro silencioso eu sabia como encontrá-la.
Capítulo 22
Backus viu Rachel sair do estacionamento lateral do edifício do FBI dirigindo um Crown Victoria azul-escuro. Ela virou à esquerda na Charleston e seguiu na direção do Las Vegas Boulevard. Ele deixou-se ficar para trás. Estava sentado ao volante de um Ford Mustang 1997 com placa de Utah. Tirara o carro de um homem chamado Elijah Willows, que não precisava mais dele. Seus olhos deixaram o carro de Rachel e voltaram a se concentrar na rua, alerta atrás de movimentos.
Um Grand Am com dois homens saiu do prédio de escritórios ao lado do edifício do FBI e entrou na corrente de trânsito, seguindo na mesma direção do carro de Rachel.
- Aí está o número um - murmurou Backus, sem se dirigir a ninguém em particular.
Esperou um pouco e depois observou um utilitário esportivo azul-marinho com antenas triplas sair do estacionamento do FBI e virar à direita na Charleston, indo na direção oposta à de Rachel. Outro Grand Am saiu atrás dele e seguiu.
- E lá estão o dois e o três.
Backus sabia que aquilo era a chamada "vigilância panorâmica". Um carro devia manter uma vigilância descuidada enquanto o alvo era rastreado por satélite. Rachel, soubesse ou não, recebera um carro equipado com um transponder, ou seja, um aparelho emissor-receptor que responde automaticamente a uma mensagem de identificação.
Tudo aquilo estava ótimo para Backus. Ele sabia que ainda assim podia segui-la. Só precisava seguir o carro que a seguia para obter o mesmo resultado.
Ele deu a partida no Mustang. Antes de entrar na Charleston para emparelhar com o Grand Am que seguia Rachel, abriu o porta-luvas. Vestia luvas de látex, dessas usadas em procedimentos cirúrgicos, só que de tamanho pequeno, para que não fossem perceptíveis à distância.
Backus sorriu. Dentro do porta-luvas havia uma pequena arma de dois tiros perfeita para ser carregada num colete e que complementaria lindamente a última arma que lhe restava. Sabia que tinha avaliado Elijah Willows corretamente quando o vira saindo do Slots-o-Fun. Não só ele era o que Backus vinha procurando no que dizia respeito ao físico - tamanho e compleição - como também pressentira nele uma espécie de desapego. Era o tipo do sujeito que morava sozinho e no limite. A arma do porta-luvas parecia confirmar isso. Deu a Backus confiança na escolha que fizera.
Meteu o pé no acelerador e virou na Charleston. Fez isso de propósito. Sabia que havia a possibilidade remota da existência de um quarto carro, um trailer, o carro que considerassem como o menos suspeito, pilotado por alguém que atraia audaciosamente a atenção para si.
Capítulo 23
No fim, tudo se resumia à geometria básica do ensino médio. Eu tinha dois dos três pontos de um triângulo e precisava do terceiro. O tipo da coisa simples e ao mesmo tempo difícil. Para obter o ponto que faltava eu tinha as distâncias totais dos três lados do triângulo para trabalhar. Sentei-me, abri meu bloco numa página nova e fui trabalhar com o mapa de McCaleb.
Eu me lembrava de ter visto no artigo do Times que a distância total registrada no carro de um dos homens desaparecidos era de 205 quilômetros. Segundo o que eu acreditava que fosse a teoria de McCaleb, esse número equivaleria ao total dos três lados do triângulo. Sabia, graças às anotações na página do mapa, que um lado do triângulo - Zzyzx ao aeroporto de Vegas - media 58 quilômetros. Os outros 147 quilômetros correspondiam aos dois lados remanescentes. Esse número podia ser dividido em uma variedade de maneiras, colocando o ponto do triângulo que faltava em uma miríade de possíveis posições no mapa. O que eu precisava era de um equipamento especial de navegação para determinar as coordenadas do triângulo com precisão, mas tinha que me virar com o que dispunha.
De acordo com a legenda do mapa, um centímetro equivalia a 12,5 quilômetros de terreno. Peguei minha carteira e removi a carteira de motorista. Levando um dos seus lados menores para junto da legenda consegui determinar que ele equivalia a 62,5 quilômetros. Trabalhando com esse gabarito compus diversos triângulos que correspondiam aos restantes 147 quilômetros de estrada. Localizei pontos tanto acima quanto abaixo da linha básica que havia traçado da estrada Zzyzx até Las Vegas. Gastei vinte minutos trabalhando as possibilidades, guardando os limites para o terceiro ponto possível do triângulo ao sul no Arizona, altura do Grand Canyon, e ao norte, nos terrenos destinados aos exercícios de tiro e bombardeio sob o comando e restrições da base aérea de Nellis. Em pouco tempo me senti frustrado, percebendo que as possibilidades eram inumeráveis e que eu já podia ter identificado o ponto sem ter me dado conta.
Levantei-me e fui pegar outra cerveja na geladeira. Ainda aborrecido comigo mesmo, abri o celular e liguei para Buddy Lockridge. A ligação caiu direto na caixa postal sem que ele atendesse.
- Buddy, onde você se meteu?
Fechei o telefone com brutalidade. Não é que eu precisasse de Buddy naquele instante, só precisava berrar com alguém e ele era um alvo fácil.
Fui até a sacada e procurei Jane. Ela não estava lá e me senti um tanto desapontado. Jane era um mistério e eu gostava de conversar com ela. Meus olhos se desviaram para o pátio de estacionamento dos aviões, com dois jatos próximos da cerca, e deram com o vulto de um homem de pé no canto mais afastado. Tinha na cabeça um boné preto de pala com umas letras douradas que não consegui ler. Barbeado, usava óculos de lentes espelhadas e camisa branca. Sua metade inferior estava escondida de mim pelo carro atrás do qual ele se encontrava. Tive a impressão de que me olhava diretamente.
O homem do boné não se moveu por pelo menos dois minutos e tampouco eu. Senti-me tentado a deixar o apartamento e descer até o pátio, mas fiquei com medo dele desaparecer se o perdesse de vista por alguns segundos que fossem.
Ficamos nos encarando até que ele subitamente mudou de posição e atravessou o pátio. Quando saiu de trás do carro, vi que usava bermudas pretas e um cinto de equipamentos. Só então pude ler a palavra SEGURANÇA na sua camiseta e percebi que, aparentemente, trabalhava para o Duplo X. Ele entrou na passagem que separava os dois edifícios que compunham o Duplo X e desapareceu de minha vista.
Deixei passar. Era a primeira vez que eu tinha visto um segurança em ação em plena luz do dia, mas ainda assim não achei que fosse um tipo suspeito. Examinei a sacada do apartamento do lado novamente em busca de Jane, mas não havia sinal dela - e voltei para a mesa da salinha.
Desta vez, minha abordagem geométrica foi diferente. Ignorei a quilometragem e limitei-me a olhar para o mapa. Meu exercício anterior me dera a ideia geral de quanto eu poderia esticar meu triângulo no mapa em largura e distância. Comecei agora a estudar as estradas secundárias e cidadezinhas existentes nessa zona. Cada vez que uma locação me interessava eu media as distâncias para ver se o triângulo resultante teria aproximadamente 205 quilômetros de perímetro.
Tinha medido cerca de doze locações, não conseguindo uma aproximação razoável quando me deparei com uma cidadezinha ao norte da linha básica e que era tão pequena que aparecia apenas sob a forma de um pontinho preto, a menor representação populacional na legenda do mapa. Era um vilarejo chamado Clear. Eu conhecia aquele lugar e, de repente, fiquei empolgado. Em um momento de pura intuição, soube que aquilo se ajustava ao perfil do Poeta.
Usando minha carteira de motorista, medi as distâncias. Clear ficava a aproximadamente 50 quilômetros ao norte de Las Vegas, na rodovia denominada Blue Diamond. Seguiam-se aproximadamente 94 quilômetros em rotas rurais espalhadas pela fronteira da Califórnia e descendo pelo Sandy Valley até a rodovia 15 e o terceiro ponto do triângulo, na Zzyzx. Adicionando à linha de base a quilometragem entre Zzyzx e o aeroporto em Vegas, eu tinha um triângulo de aproximadamente 201 quilômetros, apenas 4 quilômetros a menos que a quilometragem total registrada no hodômetro do carro alugado por um dos homens desaparecidos.
O sangue começou a bombear com força em minhas veias. Clear, Nevada. Nunca tinha estado lá, mas sabia que era uma cidadezinha de bordéis e de serviços comunitários e outros gerados por esse tipo de negócio. Eu sabia disso porque em mais de uma ocasião em minha carreira de policial eu rastreara suspeitos até Clear, Nevada. Em mais de uma ocasião, um suspeito que se rendera voluntariamente a mim em Los Angeles confessou ter passado suas últimas noites de liberdade com as damas de Clear, Nevada.
Era o tipo do lugar aonde os homens iam sigilosamente, tomando cuidado para não deixar uma trilha que os denunciasse por terem mergulhado em tão obscuros valores morais. Homens casados. Homens bem-sucedidos ou piedosos, voltados à religião. Algo bem parecido com o bairro da luz vermelha de Amsterdã, um lugar aonde o Poeta, de outra feita, tinha encontrado suas vítimas.
O trabalho de policial não pode resumir-se a seguir o instinto e os palpites. Você vive e morre pelas provas e fatos concretos. Não há como negar isso. Mas é o seu instinto que, com frequência, coloca diante de seus olhos coisas cruciais e depois gruda uma na outra como se tivessem cola. E eu agora estava seguindo meu instinto. Tinha um palpite a respeito de Clear. Sabia que, se quisesse, podia ficar ali sentado por horas a fio plotando triângulos e pontos no mapa. Mas o triângulo que eu desenhara com a cidadezinha de Clear no topo era o que me deixava imobilizado, ao mesmo tempo em que fazia a adrenalina circular ruidosamente no meu sangue. Acreditei ter desenhado o triângulo de McCaleb. Não, mais que acreditar, eu sabia disso. Meu sócio silencioso. Orientado por suas anotações enigmáticas, eu agora sabia aonde estava indo. Usando minha carteira de motorista como régua, acrescentei duas linhas ao mapa, completando o triângulo, e me levantei.
O relógio na parede da cozinha dizia que eram quase cinco horas. Tarde demais para pegar o carro e cair na estrada. Chegaria quase com a noite escura e eu não queria isso - podia ser perigoso. Rapidamente formulei um plano para sair de madrugada e ter assim quase um dia inteiro para fazer o que eu precisava fazer em Clear.
Estava pensando no que ia precisar para a viagem quando uma batida na porta me assustou, mesmo que eu estivesse esperando por ela. Fui abrir e deixar que Buddy Lockridge entrasse.
Capítulo 24
Harry Bosch abriu a porta e Rachel viu logo que ele estava furioso e ia dizer qualquer coisa quando a viu e se conteve. O suficiente para Rachel perceber que ele estava esperando alguém e que esse alguém estava atrasado.
- Agente Walling.
- Esperando alguém?
- Bem, na verdade, não.
Ela viu que os olhos dele fizeram uma rápida inspeção no estacionamento dos fundos.
- Posso entrar?
- Claro, desculpe, entre.
Ele recuou e segurou a porta. Ela entrou num triste apartamento conjugado, escassamente mobiliado e pintado em cores deprimentes. À esquerda, uma mesa dos anos 1960 sobre a qual havia uma garrafa de cerveja, um bloco de anotações e um atlas rodoviário aberto no estado de Nevada.
Bosch adiantou-se rapidamente para a mesa e fechou o atlas e o bloco, pondo um em cima do outro. Só então notou que sua carteira de motorista também estava em cima da mesa.
- O que a traz a este confortável apartamento? - perguntou.
- Apenas ver o que você está querendo - disse ela, procurando deixar qualquer traço de suspeita fora de sua voz. - Espero que não tenha achado o nosso trailer de boas vindas muito difícil.
- De jeito nenhum. Faz parte.
- Tenho certeza que sim.
- Como me encontrou?
Ela adiantou-se um pouco mais na sala.
- Você paga o aluguel disto aqui com o cartão de crédito.
Bosch concordou com um gesto de cabeça, mas não pareceu surpreso pela rapidez ou legitimidade questionável daquela visita. Rachel seguiu adiante, indicando com um gesto o guia rodoviário que estava em cima da mesa.
- Uma viagem rodoviária, sim.
- Para onde?
- Ainda não sei ao certo.
Ela sorriu e virou-se para a porta aberta da sacada. Viu lá fora, no pátio do aeroporto, logo depois do estacionamento do motel, um jato de aparência dispendiosa pintado de preto.
- De acordo com os registros do seu cartão de crédito você mantém um apartamento alugado aqui há quase nove meses. Ora presente, ora ausente, mas a maior parte do tempo presente.
- É, me deram um bom desconto por causa do prazo longo. Resulta em algo como vinte pratas, mais ou menos, por dia.
- O que provavelmente ainda é caro.
Ele se virou e examinou o local onde se encontrava, como se fosse pela primeira vez.
- É verdade.
Ainda estavam de pé. Rachel sabia que ele não queria que ela se sentasse ou ficasse por causa do visitante que estava esperando. Decidiu forçar a barra e sentou no sofá puído sem ser convidada.
- Por que está aqui há nove meses? - perguntou.
Ele puxou uma das cadeiras que guarneciam a mesa e sentou-se, de frente para o sofá.
- Não tem nada a ver com tudo isso, se é o que deseja saber.
- Não, acho que não tem mesmo nada a ver. É que sou curiosa, mais nada. Você não me parece ser um jogador. Quer dizer, desses que apostam dinheiro. E este motel tem cara de ser um dos preferidos entre os jogadores barras-pesadas.
Ele fez que sim.
- E é mesmo. Jogo e outros vícios. Estou aqui porque minha filha mora em Las Vegas. Com a mãe. Venho tentando conhecê-la. Acho que posso dizer que ela é o meu vício.
- Que idade tem?
- Vai fazer seis anos em breve.
- Legal. A mãe é Eleanor Wish, a antiga agente do FBI?
- Ela mesmo. Como posso ajudá-la, agente Walling?
Ela sorriu. Gostava de Bosch. Ele ia direto ao ponto. Aparentemente não deixava nada nem ninguém intimidá-lo. Gostaria de saber a origem desse destemor. Do fato de portar uma identidade de policial ou de carregar outro tipo de bagagem?
- Para começar, pode me chamar de Rachel. Mas acho que, na verdade, sou eu que posso ajudar você. Você queria entrar em contacto comigo, não queria?
Ele deu uma risada que nada tinha a ver com bom humor.
- De que você está falando?
- Do interrogatório. Seu jeitão, os sorrisos, os meneios, tudo aquilo. Você me escolheu para sua amiguinha lá no trailer. Tentou estabelecer uma conexão. Tentou mesmo modificar o jogo, transformar uma contagem de três contra um em dois contra dois.
Bosch deu de ombros e olhou pela sacada.
- Foi uma espécie de tiro no escuro. Eu... eu não sei, tive a impressão de que você não estava tendo um tratamento justo, é só. E acho que sei como é isso.
- Faz oito anos que não tenho um tratamento justo da parte do Bureau.
Ele a encarou.
- Tudo por causa do Backus?
- Isso e outras coisas. Cometi alguns erros e o Bureau nunca se esquece.
- Também sei o que é isso.
Ele se levantou.
- Vou beber uma cerveja - disse. - Quer uma também ou é uma visita de trabalho?
- Aceito, trabalho ou não.
Ele se levantou, pegou a garrafa aberta que estava em cima da mesa e foi para a quitinete. Pôs a garrafa dentro da pia e pegou duas outras na geladeira. Abriu e voltou para a sala. Rachel sabia que tinha que se manter alerta e ter cuidado. Era muito tênue a linha que separava quem fazia o quê numa situação daquelas.
- O apartamento vem com copos no armário, mas eu não confiaria neles.
- A garrafa vai bem.
Rachel pegou a sua e fez menção de cumprimentá-lo, batendo na dele. Em seguida tomou um gole curto. Sierra Nevada, excelente. Sabia que ele a observava para ver se realmente estava bebendo. Enxugou a boca com as costas da mão, mesmo que achasse que não precisava.
- Saborosa.
- Com certeza. Então, qual é a parte que estão lhe dando? Ou você só tem que ficar por perto e guardar silêncio... como o agente Zigo?
Rachel deu uma risada.
- É, acho que ainda não o ouvi pronunciar uma frase completa. Mas também só estou aqui há dois dias. Basicamente, eles me trouxeram por não terem muita escolha. Tenho uma história vivida com Bob Backus e o GPS foi enviado para mim em Quantico, muito embora eu não ponha os pés lá há oito anos. Como você percebeu no trailer, tudo isso pode ser sobre mim. Sendo ou não sendo, de qualquer maneira, me põe em cena.
- E de onde a trouxeram?
- Rapid City.
Bosch fez uma careta.
- Não, Rapid City é legal - disse ela. - Antes foi Minot, Dakota do Norte. No escritório de um único agente. Verões quentes e curtos e invernos longos e muito frios.
- É dose. Em Los Angeles, o que fazem quando querem se livrar de alguém é dar o que chamam de "terapia rodoviária", ou seja, transferem a pessoa para a divisão mais distante do local onde ela mora de modo que precise enfrentar o trânsito todo dia. Depois de alguns anos passando mais de duas horas na estrada o cara desiste e devolve o crachá.
- Foi o que aconteceu com você?
- Não, mas você provavelmente sabe o que aconteceu comigo.
Em vez de responder, ela mudou rapidamente de assunto.
- No Bureau eles têm todo o país à sua disposição. Não chamam de terapia rodoviária e sim de "transferência adversa". Mandam você para um lugar aonde ninguém quer ir. E há uma porção de lugares desses, onde podem enterrar um agente se assim o desejarem. Em Minot tudo gira em torno da reserva, e o pessoal de lá não pega leve quando se é do FBI. Rapid City representou uma pequena melhora. Pelo menos há outros agentes no escritório. Meus companheiros de exílio. Na verdade, temos uma boa vida lá, porque não tem pressão. Entende o que falo?
- Entendo. Há quanto tempo está em Rapid City?
- Oito anos ao todo.
- Nossa!
Rachel fez um gesto desdenhoso, como se aquilo tudo fosse coisa passageira. Estava empenhada em atraí-lo. Revelar-se faria com que Harry confiasse nela. Queria a sua confiança.
- Diga-me - pediu ele. - Foi por você ter sido a mensageira? Porque atirou em Backus? Ou porque ele escapou?
- Tudo isso e outras coisas. Relacionar-se com o inimigo, mascar chiclete na aula, o de sempre.
Ele balançou a cabeça.
- Por que simplesmente não deu o fora, Rachel?
- Bem, Harry, porque eu não queria que eles saíssem ganhando.
Ele balançou a cabeça de novo e ela pôde ver um brilho em seus olhos. Tinha conseguido estabelecer uma conexão com aquela resposta. Sabia, tinha certeza e experimentou uma sensação boa.
- Posso lhe dizer uma coisa confidencialmente, Harry?
- Claro.
- Minha missão atual é ficar de olho em você.
- Em mim? Por quê? Não sei se você prestou atenção ao que foi dito no trailer, mas fui chutado do caso.
- Sim, e sou capaz de apostar como você fez as malas e desistiu.
Ela virou-se e olhou na direção da mesa, para o guia rodoviário e o bloco de notas. Depois voltou-se de novo para ele e falou em tom severo mas moderado.
- Minha missão é vigiar você e agir com dureza se chegar perto da investigação do Bureau.
- Olha, agente Walling, não acredito...
- Não me venha agora apelar com um tratamento formal.
- Certo, Rachel. Se isto é algum tipo de ameaça, tudo bem, mensagem recebida. Eu entendo. Mas não acredito que você...
- Não o estou ameaçando. Estou aqui para lhe dizer que não planejo cumprir minha missão.
Ele parou e a estudou por um momento.
- Como assim?
- O que quero dizer é que já investiguei você. Tinha razão quando falou que eu sabia o que tinha lhe acontecido. Sei que tipo de policial você foi. Sei o que aconteceu entre você e o Bureau no passado. Sei tudo e sei que você é mais do que se pode ver a olho nu. E o meu palpite é que você está a fim de alguma coisa, que só nos contou o necessário para sair daquele trailer inteiro.
Ela parou e esperou até que ele finalmente respondeu.
- Puxa vida, se isso foi um elogio, eu aceito. Mas o que você quer?
- Acontece que eu também tenho uma história. E não vou ficar na lateral do campo enquanto eles correm atrás de Backus e me deixam fazendo café no escritório do Bureau. Não mesmo. Quero chegar lá em primeiro lugar e, como estamos na cidade das apostas, minha aposta é em você.
Bosch não se moveu nem disse nada por longo tempo. Rachel ficou observando seus olhos escuros enquanto ele processava o que acabara de ouvir. Sabia que estava correndo um risco inacreditável com ele. Mas oito anos trabalhando na região da Dakota do Norte conhecida como Badlands tinham feito com que visse os riscos de maneira muito diferente do tempo em que se encontrava em Quantico.
- Deixa eu lhe perguntar uma coisa - disse ele, finalmente. - Por que você não está em um quarto de hotel com dois guardas na porta? Sabe como é, para o caso de Backus aparecer. Como você disse, tudo isso pode ser por sua causa. Primeiro Terry McCaleb, depois você.
Ela sacudiu a cabeça, desconsiderando a sugestão dele.
- Porque talvez estejam me usando. Talvez eu seja a isca.
- E eles estão?
Ela encolheu os ombros.
- Não sei. Não estou inteirada de tudo que diz respeito a esta investigação. Seja como for, não interessa. Se ele estiver vindo me pegar, que venha. Não vou me esconder em um quarto de hotel. Não enquanto ele estiver por aí, à solta, e enquanto eu tiver meus amigos Sig e Glock comigo.
- Oh, uma agente com duas armas. Interessante. A maior parte dos policiais que conheci com duas armas tinha um pouco de testosterona em excesso para lidar com tantas balas extras. Não gostei de trabalhar com eles.
Ele falou com o que se poderia chamar de um sorriso escondido na voz. Rachel viu que ele estava quase aderindo.
- Não carrego as duas ao mesmo tempo. Uma no serviço, a outra fora. E você está tentando mudar de assunto.
- Que é?
- Seu próximo passo. Olha, você sabe como falam nos filmes? Podemos fazer isso do jeito mais difícil ou...
- Dar com o catálogo telefônico na sua cara.
- Exatamente. Você está trabalhando sozinho, remando contra a maré, mas obviamente tem bons instintos e tudo indica que sabe de coisas que ainda não sabemos. Por que não trabalhamos juntos?
- E o que vai acontecer quando a agente Dei e o resto do FBI tomarem conhecimento?
- Eu assumo o risco, aguento o tombo. Mas o que vão fazer comigo? Mandar de volta para Minot? Grande coisa.
Ele balançou a cabeça, concordando. Ela o examinou, tentando ver se enxergava através daqueles olhos negros para ver como sua mente trabalhava. Sua aposta em Bosch era que ele punha a solução do caso acima da vaidade e das coisas menores. Achou que ia avaliar minuciosamente a proposta e terminar sabendo que aquele era o melhor caminho.
Por fim, Harry balançou a cabeça de novo e falou.
- O que vai fazer amanhã de manhã?
- Vigiar você. Por quê?
- Onde está hospedada?
- No Embassy Suites, perto de Harmon.
- Pego você às oito.
- E aonde vamos?
- Ao topo do triângulo.
- Como assim? Aonde?
- Explico amanhã. Acho que posso confiar em você, Rachel. Mas vamos dar um passo de cada vez. Vai comigo?
- Está bem, Bosch, vou com você.
- Resolveu me tratar com formalidade agora?
- Foi sem querer. Não quero ser formal com você.
Ela sorriu e viu que ele tentava decifrar seu sorriso.
- Está bem, então nos vemos amanhã. Tenho que me preparar agora para ver minha filha.
Ele se levantou e ela o seguiu. Tomou mais um gole da cerveja e deixou a lata meio vazia em cima da mesa.
- Oito horas amanhã - disse ela. - Você me pega?
- Pego.
- Tem certeza de que não quer que eu dirija? Tio Sam pagando a gasolina?
- Está certo. Você consegue arranjar fotos dos homens desaparecidos? Eu tinha no recorte de jornal, mas a agente Dei me tomou.
- Vou ver o que posso fazer. Deve haver uma meia dúzia cuja falta não será sentida no escritório.
- Outra coisa. Não se esqueça de trazer seus dois amigos.
- Que amigos?
- Sig e Glock.
Ela sorriu e balançou a cabeça para ele.
- Você não pode andar armado agora, pode? Isto é, legalmente.
- Não, não posso. Não ando.
- Deve se sentir nu.
- É, pode-se dizer isso.
Ela lhe dirigiu outro sorriso.
- Bem, não vou lhe dar uma arma, Harry. De jeito nenhum.
Ele deu de ombros.
- Tive que pedir.
Ele abriu a porta e ela saiu. Depois que fechou, ela desceu os degraus que davam no estacionamento e olhou para trás. Gostaria de saber se ele a estaria observando pelo olho mágico. Entrou no Crown Vic que apanhara no pool de carros. Sabia que estava no limite de arranjar um problemão. O que revelara a Bosch e concordara em fazer no dia seguinte lhe garantia o estágio final de destruição de sua carreira se as coisas desandassem. Mas não se importava. Aquela era a cidade do jogo. Confiava em Bosch e confiava em si própria. Não deixaria que eles vencessem.
Quando recuou o Crown Vic, notou que um táxi parava no estacionamento do motel. Um homem gorducho com o cabelo descorado pelo sol e uma camisa havaiana berrante saltou e estudou os números das portas. Carregava um envelope grosso ou uma pasta de papéis que dava a impressão de ser amarelada e velha. Rachel viu que ele subia atleticamente os degraus e se encaminhava para o 22, onde estava Bosch. A porta se abriu antes que ele tivesse tempo de bater.
Rachel recuou e saiu do estacionamento pegando a Koval. Contornou o quarteirão e estacionou em um ponto de onde tinha uma boa visão das duas saídas do estacionamento do lamentável motel de Bosch. Tinha certeza de que Harry Bosch estava a fim de alguma coisa e ia descobrir o que era.
Capítulo 25
Backus conseguiu ver apenas de relance o homem que atendeu a porta quando Rachel Walling bateu, mas achou que o reconhecia de muitos anos atrás. Sentiu o pulso bater mais rápido. Se estava certo a respeito do sujeito do quarto 22, o valor das apostas aumentava consideravelmente.
Estudou o motel e sua localização. Tinha localizado os três carros de vigilância do Bureau. Um dos agentes fora destacado e estava na Koval, sentado em um banco destinado a quem esperava um ônibus. Parecia deslocado, de terno cinzento e supostamente esperando um ônibus, mas o estilo do FBI é esse.
Isso deixava o motel livre para Backus se movimentar. O prédio tinha a forma de um L, com estacionamento em todos os lados. Backus viu que, se fosse para o outro lado do edifício, poderia ver novamente o homem com quem Rachel se encontrava olhando através de uma janela dos fundos ou de uma sacada.
Decidiu não se arriscar deslocando o carro do estacionamento da frente para o de trás. Podia chamar a atenção do sujeito sentado no banco do outro lado da rua. Preferiu abrir uma fresta suficiente para escapulir do carro. A luz interna estava apagada, de modo que não havia perigo de ser exposto. Meio abaixado, andou de lado entre dois outros carros, e endireitou-se, enfiando o boné na cabeça e puxando a viseira para baixo. O boné tinha quatro letras estampadas: UNLV - Universidade de Nevada em Las Vegas.
Backus avançou pela passagem coberta do andar térreo do motel de dois andares. Passou pelas máquinas de refrigerantes e balas, saiu do outro lado e pôs-se a atravessar o estacionamento como que procurando seu carro. Levantou os olhos para a sacada iluminada que acreditava corresponder à porta do quarto 22, onde tinha visto Rachel entrar. Reparou que a porta de deslizar estava aberta.
Sempre olhando para os lados, como se estivesse a procurar o carro, Backus viu que o agente, de onde estava sentado, não tinha um ângulo que lhe possibilitasse ver o estacionamento. Ninguém o vigiava dali. Moveu-se fortuitamente para uma posição diretamente embaixo da sacada do quarto 22 e procurou ouvir qualquer coisa que escapasse lá de cima pela porta aberta. Ouvia a voz de Rachel, mas não conseguia distinguir o que ela falava, até que ouviu muito claramente ela dizer: "Deve se sentir nu."
Aquilo o confundiu e intrigou. Chegou a pensar na possibilidade de subir para o segundo andar para poder ouvir a conversa que se desenrolava no quarto 22, mas o barulho de uma porta se fechando o fez mudar de ideia. Imaginou que Rachel acabara de sair e escondeu-se atrás de uma máquina de Coca-Cola quando ouviu o motor de um carro sendo ligado. Esperou, atento. Percebeu o som de outro automóvel entrando no estacionamento. Saiu de trás da máquina de Coca-cola e foi para o canto de onde podia ver o que se passava no estacionamento da frente. Um homem estava saltando do táxi e Backus o reconheceu também. Era o sócio de Terry McCaleb na empresa de fretamento do barco. Não tinha dúvida. Backus sentiu-se como se tivesse esbarrado em um tesouro de intriga e mistério. O que Rachel estava querendo? Como tinha se relacionado com o sócio de McCaleb tão rapidamente? E o que estava fazendo ali o policial de Los Angeles?
Atrás do táxi, viu o Crown Victoria de Rachel ganhar a rua e se afastar. Aguardou um momento e viu um dos Grand Am parar, pegar o homem do banco do ponto de ônibus e depois ir embora. Arriou de novo a viseira do gorro e caminhou na direção do seu carro.
Capítulo 26
Fiquei olhando pelo olho mágico, pensando na agente Walling, admirado de ver como a brutalidade do FBI e das Dakotas não lhe tinham roubado o entusiasmo e o senso de humor. Gostei do seu jeitão e senti que havia uma ligação entre nós. Pensava que seria capaz de confiar nela, ao mesmo tempo em que sabia que fora manipulado por uma profissional. Tinha certeza de que não me contara tudo o que planejava, ninguém faz isso, mas me dissera o bastante. Queríamos a mesma coisa, talvez por razões diferentes. Mas não ia mudar de ideia sobre levá-la comigo na manhã seguinte.
O campo de visão do olho mágico de repente foi preenchido pela imagem côncava de Buddy Lockridge. Abri a porta antes que ele pudesse bater e rapidamente o puxei para dentro. Fiquei imaginando se Walling o vira ao sair.
- Na hora certa, Buddy. Alguém falou com você ou o deteve aí fora?
- Onde, aqui?
- É, aqui.
- Não, acabo de saltar do táxi.
- Ótimo, então por onde você andou?
Ele explicou seu atraso dizendo que não havia táxis no Bellagio, história em que não acreditei. Vi um dos bolsos da sua calça jeans saliente quando tirei de suas mãos as duas pastas que carregava.
- Mentira, Buddy. Pode ser difícil achar táxis nesta cidade, mas não no Bellagio. Sempre tem táxis lá.
Estendi o braço e dei um tapa no bolso cheio.
- Parou para jogar, não foi? Está com o bolso cheio de fichas.
- Olha, parei para duas tentativas rápidas no vinte e um antes de vir. E tive sorte, cara. Olha só para isso.
Ele enfiou a mão no bolso e pegou um punhado de fichas de cinco dólares.
- Estava tudo dando certo e não se pode abandonar a boa sorte.
- Muito bom. Vai ajudar você a pagar pelo quarto.
Buddy examinou meu conjugado, avaliando tudo. Pela sacada aberta entrava o barulho do trânsito e dos jatos.
- Com satisfação - disse ele. - Não vou ficar aqui.
Quase dei uma risada, considerando o que eu tinha visto no seu barco.
- Bem, Buddy. Pode ficar onde bem entender, porque não vou mais precisar de você aqui. Obrigado por trazer as pastas.
Ele arregalou os olhos.
- O quê?
- Tenho um novo sócio. O FBI. Assim, pode voltar para Los Angeles quando quiser ou jogar vinte e um até poder comprar o Bellagio. Pago sua passagem aérea, como falei, e o voo de helicóptero até a ilha, além de quarenta pratas pelo quarto. Que é a diária aqui no meu motel.
Levantei as pastas.
- Dou duas de cem pelo tempo que gastou para pegar isso e me trazer aqui.
- De jeito nenhum, cara. Fiz essa viagem até aqui, cara. Ainda posso ajudar. Já trabalhei com os agentes antes, quando eu e o Terry trabalhamos num negócio.
- Isso foi naquele tempo, Buddy. Agora é agora. Vamos lá. Eu lhe dou uma carona de volta para o seu hotel. Soube que os táxis andam escassos e, de qualquer maneira, tenho que ir naquela direção.
Depois de fechar o acesso para a sacada saí com ele do apartamento e tranquei a porta. Levei as pastas para ler mais tarde. Enquanto descíamos a escada para o estacionamento procurei o tal segurança, mas não o vi. Procurei também encontrar Rachel Walling e tampouco a vi. Mas vi minha vizinha Jane pondo uma caixa de sapatos na mala de um carro, um Monte Carlo branco. Do meu ângulo de visão, reparei que a mala estava cheia de caixas maiores.
- Você estará melhor comigo - disse Buddy, ainda em tom de protesto. - Não pode confiar no Bureau, cara. Terry trabalhava lá e também não confiava naquela gente.
- Eu sei, Buddy. Faz trinta anos que tenho negócios com o FBI.
Ele limitou-se a sacudir a cabeça. Vi Jane entrar no carro e dar marcha a ré. Perguntei-me se não seria a última vez que a via. Desconfiava de que o fato de ter lhe revelado meu passado de tira talvez a tivesse assustado e feito com que ela resolvesse dar o fora. Podia ser que tivesse ouvido parte de minha conversa com a agente Walling através das paredes finas que nos separavam.
Os comentários de Buddy sobre o Bureau me fizeram lembrar de algo.
- Sabe, Buddy, eles vão querer conversar com você quando voltar para lá.
- Conversar sobre o quê?
- Sobre seu GPS. Eles o encontraram.
- Uau, maravilha! Quer dizer então que não foi o Finder? Foi o Shandy?
- Acho que sim. Mas a notícia não é tão boa assim, Buddy.
- Como não?
Abri o Mercedes e nós entramos. Olhei para Buddy enquanto dava a partida no motor.
- Todos os seus pontos foram deletados. Só há um ponto agora e você não pescará peixe algum lá.
- Droga! Eu devia ter visto logo!
- De qualquer modo, eles vão perguntar tudo sobre o GPS e sobre Terry e sobre o último fretamento. Exatamente como eu fiz.
- Quer dizer então que você está disparado na frente deles. Você é demais, Harry.
- Não mesmo.
Eu sabia o que vinha a seguir. Buddy virou-se no seu banco e inclinou o corpo na minha direção.
- Leve-me com você, Harry. Estou lhe dizendo que posso ajudar. Sou inteligente. Entendo as coisas.
- Ponha o cinto de segurança, Buddy!
Engrenei a ré e acelerei antes que ele tivesse a chance de apertar o cinto, e Buddy quase bateu no painel.
Seguimos para o centro e, já na Strip, reduzi a marcha perto do Bellagio. Era o começo da noite, as calçadas começavam a esfriar e a se encher de gente. Os carrinhos elétricos suspensos e as calçadas começavam a ficar cheias. O néon de cada fachada na rua iluminava o lusco-fusco como um brilhante pôr do sol. Quase. Buddy continuou a me pressionar para fazer parte da investigação, mas eu ia aparando os golpes. Depois que paramos em torno do imenso chafariz da frente e debaixo do gigantesco pórtico de entrada do cassino, eu disse ao manobrista que só íamos pegar uma pessoa e ele me orientou para encostar no meio-fio, dizendo para não saltar do carro.
- Quem vamos apanhar? - quis saber Buddy.
- Ninguém. Foi só uma desculpa. Vou lhe dizer uma coisa, quer trabalhar comigo, Buddy? Então fique aqui no carro por uns minutos para que não o reboquem. Preciso entrar aí correndo, mas muito depressa mesmo.
- Para quê?
- Para ver se uma pessoa está hospedada aí.
- Quem?
Saltei do carro e fechei a porta sem responder, porque sabia que com Buddy cada resposta leva a outra pergunta e mais outra e eu não tinha tempo para isso.
Eu conhecia o Bellagio como conhecia cada curva da Mulholland Drive. Era ali que Eleanor Wish, minha ex-esposa, ganhava a vida e onde eu a tinha visto trabalhando em mais de uma ocasião. Avancei rapidamente pelo cassino luxuoso, contornei as máquinas caça-níqueis e entrei na sala de pôquer.
Havia apenas duas mesas de jogo em funcionamento. Era muito cedo. Examinei rapidamente os trezes jogadores e não vi Eleanor. Chequei o podium e vi que o gerente de mesas era um homem que eu conhecia de vir ali com Eleanor e depois ficar observando-a jogar. Aproximei-me dele.
- Freddy, qual é o agito?
- Muito rabo se agitando por aqui esta noite.
- Isso é bom. Só assim você tem para onde olhar.
- Não me queixo.
- Sabe se a Eleanor vem?
Eleanor tinha o hábito de avisar aos gerentes de mesa se tencionava ir e jogar em uma noite determinada. Às vezes eles reservavam lugares em mesas de gente que jogava pesado ou de jogadores muito habilidosos. Em outras, ocasiões organizavam jogos privados. De certo modo, minha ex era uma atração secreta de Vegas. Uma mulher fascinante e excelente no jogo de pôquer.
Ela representava um desafio para certo tipo de homens e os cassinos espertos sabiam disso e jogavam de acordo. Eleanor era sempre bem tratada no Bellagio. Se precisasse de alguma coisa - de um drinque na suíte à remoção de um jogador rude de uma mesa - ela conseguia. Sem perguntas. E era esse o motivo pelo qual jogava aqui nas noites em que jogava.
- É, ela vem sim - disse Freddy. - Não tenho nada para ela agora, mas ela vem aí.
Esperei um pouco antes de mandar outra pergunta. Tinha que agir com sutileza. Encostei-me na grade e fiquei observando o dealer na mesa da variedade de pôquer conhecida como texas hold’em dando a última mão de um jogo, as cartas deslizando no feltro azul como suaves murmúrios. Cinco pessoas tinham conseguido ir até o fim. Observei atentamente dois rostos quando olharam sua última carta. Procurava distinguir sinais que os denunciassem, mas não vi nada.
Eleanor tinha me dito uma vez que os verdadeiros jogadores chamam a última carta na variedade hold’em de "rio", porque lhes dá vida ou acaba logo com ela. Se você conseguiu chegar na última carta, a sétima, tudo o que ganhou antes vai estar montado nela.
Três dos cinco jogadores desistiram de imediato. Os dois remanescentes balançaram entre apostar ou não, e um dos homens que eu tinha observado levou o bolo com uma trinca de sete.
- A que horas ela disse que vinha? - perguntei a Freddy.
- Hum, ela disse a hora de sempre. Por volta de oito.
A despeito de minha tentativa de parecer natural, eu podia ver que Freddy se mostrava hesitante, sabendo que sua lealdade devia ser dirigida a Eleanor e não a seu ex-marido. Eu tinha conseguido o que queria, por isso agradeci e fui embora. Eleanor estava planejando pôr a filha para dormir e depois vir trabalhar. Maddie ficaria com a babá, que dormia em casa tomando conta dela.
Quando retornei à entrada do cassino, meu carro estava vazio. Olhei em torno procurando Buddy e o vi conversando com um dos manobristas. Gritei seu nome e acenei adeus. Mas ele veio correndo e me pegou na porta do Mercedes.
- Já vai?
- Já, eu lhe falei. Ia entrar só por um minuto. Obrigado por ter ficado com o carro conforme pedi.
Ele não percebeu a indireta.
- Não tem problema - disse. - Encontrou o cara?
- Encontrou quem?
- Quem quer que seja que você tenha ido ver lá dentro.
- Encontrei sim, Buddy, eu o encontrei. Vejo você...
- Vamos lá, cara, vamos trabalhar juntos. Terry era meu amigo também.
Isso me proporcionou uma pausa.
- Buddy, eu compreendo. Mas o melhor que você pode fazer agora, se quer mesmo fazer algo por Terry, é voltar para casa, esperar que os agentes apareçam e contar a eles tudo o que sabe. Não esconda nada.
- Conto inclusive que você me mandou ir ao barco roubar a pasta e apanhar as fotos?
Agora ele estava tentando me provocar porque finalmente compreendera que estava fora.
- Não me importo se você contar a eles - falei. - Eu já lhe disse que estou trabalhando com o FBI. Vão saber de tudo antes que consiga se aproximar deles. Mas só para você entender direito, não lhe falei para roubar nada. Trabalho para a Graciela. O barco, e tudo o que se encontra dentro dele, pertence a ela. Inclusive arquivos e fotografias.
Finquei meu dedo com força no peito dele.
- Entendeu, Buddy?
Ele recuou, fisicamente.
- Entendi. Eu só estava querendo...
- Excelente.
Estendi a mão e nós nos despedimos, mas não havia nada de agradável naquele aperto de mãos.
- Te vejo mais tarde, Buddy.
Ele largou minha mão, entrei e fechei a porta. Liguei o motor e me afastei. Pelo espelho, vi que ele entrava pela porta giratória e soube que perderia todo o seu dinheiro antes que a noite terminasse. E o pior é que ele estava certo quando disse que nunca se deve afastar da sorte.
O relógio do painel me disse que Eleanor não estaria saindo de casa para uma noite de trabalho no cassino em menos de noventa minutos. Podia ir direto para lá, mas sabia que era melhor esperar. Queria ver minha filha, não minha ex-mulher. Para seu eterno crédito, Eleanor fora boa o suficiente para me permitir plenos direitos de visita enquanto ela estivesse trabalhando. Isso não seria problema. E eu não me importava se Maddie estava ou não acordada. Eu só queria vê-la, ouvir sua respiração e tocar no seu cabelo. O fato é que toda vez que meu caminho se cruzava com o de Eleanor nós parecíamos derrapar, e a raiva que um sentia do outro passava a nos dominar. Eu sabia que era melhor assim, ir quando ela não estivesse em casa.
Eu podia ter voltado ao Duplo X e passado uma hora lendo o arquivo do Poeta, mas preferi dar uma volta de carro. A Paradise Road era muito menos congestionada que a Strip. Sempre é. Peguei a Harmon, virei para o norte e quase imediatamente entrei no estacionamento do hotel Embassy Suites. Imaginei que Rachel Walling pudesse querer tomar um café e ganhar uma explicação mais completa da excursão do dia seguinte. Atravessei toda a área procurando um carro do Bureau que fosse óbvio para mim por causa das calotas baratas e placas do governo, mas não vi nenhum. Peguei o celular, liguei para informações e pedi o número do Embassy Suites. Telefonei para lá, pedi o apartamento de Rachel Walling e me ligaram para o ramal. O telefone tocou repetidamente, mas ninguém atendeu. Desliguei e pensei por um momento. Em seguida abri de novo meu aparelho e liguei para o número do celular que ela me dera. A resposta foi pronta.
- Ei, aqui é o Bosch, está fazendo o quê? - falei, o mais naturalmente que consegui.
- Nada, estou de bobeira.
- Você está no hotel?
- Estou, por que, aconteceu alguma coisa?
- Nada, só pensei que você pudesse estar a fim de tomar um café ou alguma coisa. Estou na rua e tenho algum tempo para matar. Podia estar aí no seu hotel em dois minutos.
- Obrigada, mas acho que vou ficar por aqui hoje à noite.
Claro que não pode sair, pensei. Nem mesmo está no hotel.
- Estou meio desorientada por causa do voo longo, para dizer a verdade. Sempre me ataca no segundo dia. Além do mais, amanhã os trabalhos começam cedo.
- Eu entendo.
- Não, não é que eu não queira. Talvez amanhã, sim?
- Está bem. Ainda estamos fechados para as oito?
- Estarei na porta do hotel.
Desligamos e senti o primeiro peso da dúvida no meu estômago. Ela estava maquinando qualquer coisa, me manipulando de algum modo.
Mas depois tentei descartar essa sensação. A missão de Rachel Walling era ficar de olho em mim. Ela fora sincera em relação a isto. Talvez eu estivesse enganado agora.
Dei outra volta em torno do estacionamento, procurando um Crown Vic ou um LTD, mas nada. Saí rapidamente e voltei para a Paradise. Quando cheguei no Flamingo dobrei a oeste. Atravessei a Strip e peguei a rodovia. Parei no estacionamento de uma churrascaria perto do Palms, o cassino frequentado por muitos dos nativos porque não ficava na rua principal e atraía montes de celebridades. Na última vez em que eu e Eleanor conversamos civilizadamente ela me contou que estava pensando em trocar o Bellagio pelo Palms. O Bellagio ainda era o lugar para onde ia o dinheiro, mas a maior parte em vinte e um, pai gow e dados. Pôquer era um jogo diferente, o único onde não se joga contra a casa. Ela ouvira o boato de que todas as celebridades que vinham de Los Angeles para o Palms estavam jogando pôquer e perdendo montes de dinheiro no aprendizado.
Pedi o bife chamado New York Strip com batata assada. A garçonete tentou me convencer a não pedir médio para bem passado, mas permaneci firme. No lugar em que fui criado nunca comi qualquer carne que fosse rosada no meio e não ia começar a gostar disso agora. Depois que ela levou o pedido para a cozinha, me lembrei de uma cozinha do exército onde passei uma temporada, em Fort Benning. Havia carcaças completas cozinhando até ficarem cinzentas de tão cozidas, em doze enormes panelões. Um sujeito armado de uma pá retirava óleo da superfície de um deles e jogava em uma tina. A cozinha tinha o pior cheiro que já senti na minha vida, até que entrei em um túnel poucos meses mais tarde e rastejei onde os vietcongues escondiam dos estatísticos do exército os seus mortos.
Abri o arquivo do Poeta e já começava a realizar uma leitura meticulosa quando meu celular soou. Atendi sem ver no visor quem era.
- Alô?
- Oi, Harry, aqui é a Rachel. Você ainda quer tomar aquele café? Mudei de ideia.
Meu palpite é que ela fora depressa para o Embassy Suites a fim de poder estar lá e não ser apanhada em uma mentira.
- Pena, mas acabo de pedir meu jantar do outro lado da cidade.
- Merda, desculpe. Bem, isso me servirá de lição. Sozinho?
- Sozinho. Tenho trabalho para fazer aqui.
- Sei como é. Janto sozinha praticamente todas as noites.
- Eu também. Quando janto.
- Mesmo? E sua filha?
Eu já não me sentia à vontade ou confiante quando conversava com ela. Não sabia o que estava fazendo. E não sentia vontade de contar minha triste história conjugal ou paternal.
- Ei, olha só. Tem uma pessoa aqui me olhando feio. Acho que falar ao celular é contra o regulamento.
- Bem, não queremos violar o regulamento. Vejo você amanhã às oito.
- Certo, Eleanor. Até lá.
Já ia fechar o telefone quando ouvi sua voz.
- Harry?
- O quê?
- Não sou a Eleanor.
- O quê?
- Você acaba de me chamar de Eleanor.
- Oh, foi sem querer. Desculpe.
- Eu faço você se lembrar dela?
- Talvez. Mais ou menos. Não a Eleanor de agora, mas a dos velhos tempos.
- Ah, sim. Espero que não seja de tempos tão velhos.
Referia-se a quando Eleanor caíra em desgraça no Bureau. Uma queda tão violenta que até mesmo uma transferência para Minot foi considerada fora de questão.
- Vejo você amanhã, Rachel.
- Boa-noite, Harry.
Fechei o telefone e pensei no erro que cometera. Tinha sido obra e graça do meu subconsciente, era evidente. Não quis pensar nisso. Preferi me retirar para dentro do arquivo que tinha diante de meus olhos. Sabia que seria mais confortável estudar o sangue e a loucura de uma outra pessoa, em outra época.
Capítulo 27
Às oito e meia da noite, bati na porta da casa de Eleanor Wish e Marisol, a salvadorenha que morava lá e tomava conta da minha filha, atendeu. O rosto de Marisol era bondoso, mas cansado, e embora não tivesse muito mais que cinquenta anos parecia muito mais velha. Sua história de sobrevivência era devastadora e sempre que eu pensava nela me sentia um felizardo pela minha própria história. Desde o primeiro dia, quando eu aparecera inesperadamente na casa e descobrira que tinha uma filha, Marisol me tratara bondosamente. Nunca me vira como uma ameaça e sempre fora completamente cordial e respeitosa de minha posição tanto de pai quanto de uma pessoa de fora. Ela recuou e me deixou entrar.
- Ela está dormindo - disse.
Exibi a pasta que estava carregando.
- Tudo bem. Tenho trabalho. Só quero me sentar do lado dela por algum tempo. Como vai, Marisol?
- Oh, estou bem.
- Eleanor foi para o cassino?
- Sim, ela foi.
- E como Maddie esteve hoje?
- Maddie, ela é garota boa. Ela brinca.
Marisol sempre mantinha seus relatórios dentro de um mínimo de palavras. Eu já tentara falar em espanhol com ela, achando que o motivo pelo qual falava tão pouco eram seus limitados talentos linguísticos. Mas ela falou pouca coisa a mais no seu idioma natal, preferindo conservar seus relatos sobre a vida e atividades da minha filha a pouquíssimas palavras em qualquer língua.
- Está certo, muito obrigado - agradeci. - Se quiser se deitar, pode deixar que saio mais tarde e verifico se a porta ficou trancada.
Eu não tinha a chave da casa, mas a porta da frente trancava quando batia.
- Sim, está certo.
Concordei com um gesto de cabeça e segui pelo corredor à esquerda. Entrei no quarto de Maddie e fechei a porta. Uma luzinha acesa na parede mais distante lançava um brilho azulado em todo o quarto. Avancei até o lado da cama e acendi a luz da mesinha de cabeceira. Sabia, por experiência própria, que Maddie não acordaria. Os sonhos de uma menina de cinco anos são tão profundos que tive a impressão de que ela poderia dormir mesmo que estivesse passando a final do campeonato de basquete na televisão ou durante um terremoto de cinco pontos na escala Richter.
A luz revelou um ninho de cabelos castanhos entrelaçados sobre o travesseiro. Seu rosto estava virado na direção contrária ao lado onde eu me encontrava. Afastei os cachos que lhe cobriam o rostinho, abaixei-me e a beijei na bochecha. Virei a cabeça de lado para que meu ouvido ficasse mais perto dela. Tentei ouvir o som de sua respiração e fui recompensado. Um momento passageiro de medo infundado foi vencido.
Adiantei-me até a mesa e desliguei a babá eletrônica, cujo receptor eu sabia que estava na sala de televisão ou no quarto de Marisol. Não havia necessidade daquilo agora. Eu estava ali.
Maddie dormia em uma cama mais larga que o normal, com uma coberta estampada com todo o tipo de felinos. Com seu corpinho ocupando uma superfície tão pequena da cama, havia bastante espaço para eu recostar no segundo travesseiro apoiado na cabeceira e me colocar ao lado dela. Enfiei a mão sob as cobertas e coloquei-a delicadamente em suas costas. Esperei, sem me mover, até sentir a subida e descida de sua respiração. Com a outra mão abri a pasta do Poeta e comecei a ler.
Durante o jantar eu conseguira ler quase tudo, o que incluía o perfil do suspeito escrito em parte pela agente Rachel Walling, assim como relatórios de investigações e fotos de cenas de crime acumuladas durante a investigação e enquanto o Bureau rastreava o assassino apelidado de Poeta por todo o país. Aquilo acontecera oito anos atrás, quando o Poeta matou oito detetives da Homicídios, viajando do leste para oeste, até que sua fuga fosse interrompida em Los Angeles.
Agora, com minha filha dormindo ao meu lado, comecei pelos relatórios feitos depois que o agente especial Robert Backus, do FBI, fora identificado como suspeito. Depois disso, ele fora baleado por Rachel Walling e desaparecera.
O sumário da necropsia de um corpo encontrado por um inspetor do Departamento de Água e Luz em um túnel de águas pluviais fora incluído naquela pasta. O corpo tinha sido encontrado quase três meses depois de Backus ser baleado e cair pela janela de uma casa perto do canyon, desaparecendo na escuridão e no mato lá embaixo. As credenciais do FBI e um crachá pertencente a Robert Backus foram encontrados no corpo. A roupa deteriorada também era dele - um terno feito à mão para Backus na Itália quando ele fora mandado lá para dar uma consultoria na investigação de um assassino em série em Milão.
A identificação científica do corpo, no entanto, foi inconclusiva. Os despojos encontravam-se quase totalmente decompostos, tornando impossível a análise das digitais. E havia partes do corpo faltando, presumivelmente levadas por ratos e outros animais que habitam os túneis da rede de esgotos. Toda a mandíbula inferior e parte da superior estavam faltando, impedindo uma comparação com os registros odontológicos pertencentes a Robert Backus.
Tampouco a causa da morte pôde ser determinada, embora um ferimento causado por um tiro de pistola houvesse sido encontrado na parte superior do abdome - região onde a agente Rachel Walling declarara ter visto a bala pegar - e uma costela estivesse fraturada, possivelmente devido à força da bala. Nenhum fragmento de bala foi recuperado, sugerindo que o ferimento perfurara o corpo de um lado a outro e, dessa forma, não foi possível comparar com uma bala disparada pela arma da agente Walling.
Nenhuma comparação ou identificação de DNA foi feita. Após o tiro - quando se pensou que Backus ainda podia estar vivo e fugindo - os agentes baixaram na casa e no escritório dele. Mas estavam em busca de provas dos crimes que cometera e de indícios que pudessem esclarecer seus motivos. Não se preocupavam com a possibilidade de que um dia poderiam ter que identificar seus restos putrefatos. Em uma gafe que deixaria a investigação marcada para sempre e o Bureau mais tarde aberto a acusações de descumprimento do dever e encobrimento da verdade e, jamais foram coletados quaisquer elementos que contivessem o DNA de Backus - cabelo e pele do ralo do chuveiro, saliva da escova de dentes, pedaços de unha cortada, caspa e cabelo das costas da cadeira do escritório. Três meses depois, quando o corpo foi encontrado no túnel, era tarde demais. Não havia mais nenhum desses elementos ou, se existissem, já tinham sido comprometidos. O prédio onde Backus tinha um apartamento foi misteriosamente incendiado por completo três semanas depois que o Bureau o examinara. E a sala de Backus fora completamente renovada e redecorada pelo agente que a herdara, um tal Randal Alpert, que assumiu a posição dele na unidade de Ciências Comportamentais.
A busca de uma amostra de sangue de Backus mostrou ser inútil e, mais uma vez, vergonhosa para o Bureau. Quando a agente Walling atirou nele na casa de Los Angeles, uma pequena quantidade de sangue caiu no chão. Foi coletada uma amostra, que acabou sendo inadvertidamente destruída no laboratório de Los Angeles ao ser jogada fora junto com o lixo médico.
A procura de uma outra amostra do sangue de Backus que pudesse ter resultado de algum exame médico ou de uma doação feita por ele também não deu em nada. Graças a um planejamento minucioso, sorte e incompetência burocrática, Backus desaparecera sem deixar nenhuma pista para trás.
A descoberta do corpo no túnel de drenagem encerrou oficialmente as buscas por Backus. Embora nunca tivesse sido feita a confirmação científica da identidade do corpo encontrado, as credenciais, o crachá e o terno italiano bastaram para a direção do Bureau anunciar o encerramento de um caso que fora largamente explorado pela mídia e que prejudicara severamente a imagem já maculada do FBI.
Nesse meio tempo, contudo, continuou a ser realizada uma discreta investigação do background psicológico do agente assassino. Eram os relatórios que eu estava lendo agora. Conduzida pela seção de Ciências Comportamentais - a mesma unidade em que ele trabalhava -, a investigação parecia mais preocupada com a questão dos motivos que ele tinha para fazer o que fez ao invés de procurar descobrir como fora capaz de fazer tudo aquilo sob o nariz dos maiores peritos do campo dos crimes de morte. Esta diretriz investigativa tinha sido provavelmente uma medida de proteção. Investigava-se o suspeito, não o sistema. A pasta estava repleta de relatórios de investigações sobre a primeira infância, a adolescência e sobre o modo como Backus fora criado. Não obstante o grande número de observações sucintas, especulações e sumários, havia muito pouco ali de real interesse. Apenas alguns fios do tecido complexo de sua personalidade. Ele permanecia um enigma; sua patologia, um segredo. Nem os melhores e mais inteligentes conseguiram decifrar o caso de Robert Backus.
Fiz uma seleção dos aspectos mais importantes. Backus era filho de um pai perfeccionista - nada menos que um agente condecorado do FBI - e de uma mãe que não chegou a conhecer. O pai foi acusado de ter sido violento com o menino, possivelmente culpando-o pela mãe ter abandonado a família, e tê-lo punido severamente por infrações que incluíam molhar a cama e maltratar animais de estimação da vizinhança. Um relatório veio de um colega da sétima série que disse que Robert Backus uma vez lhe confidenciou que quando era pequeno seu pai o punira por ter molhado a cama, algemando-o ao cabide de toalhas do boxe do banheiro. Outro antigo colega declarou que Backus uma vez contara ter dormido seguidamente com um travesseiro e um cobertor na banheira, temendo a punição que poderia acontecer se urinasse na cama de novo. Um vizinho do tempo de criança contou que Backus tinha sido suspeito de haver matado um Dachshund cortando o cãozinho em dois e largando o resto em um terreno baldio.
Quando adulto, Backus mostrou tendências obsessivo-compulsivas. Tinha fixação por limpeza e ordem. Muitos relatos a respeito vieram de companheiros das Ciências Comportamentais. Backus era conhecido em sua unidade por atrasar em muitos minutos as reuniões agendadas enquanto lavava as mãos. Ninguém jamais o viu comer nada além de um sanduíche de queijo. Todos os dias, um sanduíche de queijo. Também mascava chiclete compulsivamente e não media esforços para não ficar sem os Juicy Fruit de que gostava. Um agente descreveu sua mastigação como "medida", acreditando que Backus talvez contasse o número de vezes que cada tablete era mastigado e que, quando um certo número fosse atingido, o tablete seria retirado e substituído por um novo.
Havia o relatório de uma entrevista com uma antiga noiva. Ela contou ao agente que a entrevistara que Backus exigia que ela se banhasse frequente e extensamente, em particular antes e depois de fazerem amor. Ela disse que quando estavam procurando casa onde morar depois do casamento, Backus disse que ia querer um quarto e um banheiro privativos. Ela cancelou o casamento e terminou o noivado após ter sido chamada de relaxada quando, em sua própria sala, livrou-se dos sapatos de salto alto chutando-os para longe.
Os relatórios não passavam de vislumbres de uma psique prejudicada. Não eram, na verdade, indícios que alavancassem a investigação. Quaisquer que fossem os hábitos estranhos de Backus, não explicavam totalmente porque ele começara a matar pessoas. Milhares de pessoas sofrem de desordem obsessivo-compulsiva em suas formas brandas ou severas e não acrescentam assassinatos à sua lista de tiques. Milhares de pessoas são maltratadas quando crianças, mas nem todas se transformam em agressoras.
McCaleb obtivera um número muito menor de relatórios quando do reaparecimento, quatro anos mais tarde, do Poeta - Backus - em Amsterdã. Tudo o que havia era um relatório resumido em nove páginas contendo os fatos dos crimes e as descrições das descobertas de laboratório. Eu tinha passado por cima deste relatório antes, mas agora o li detidamente e encontrei nele aspectos que se relacionavam com a teoria que estava formulando sobre a cidadezinha de Clear.
Em Amsterdã, as cinco vítimas conhecidas eram homens que faziam turismo sozinhos. Isto os colocava dentro do mesmo perfil que as vítimas enterradas em Zzyzx, com a exceção de um homem que estava em Las Vegas com a mulher, mas longe na ocasião, porque ela passou o dia no spa do hotel. Em Amsterdã, os homens foram vistos pela última vez na zona chamada de Rosse Buurt, onde a prostituição legalizada é praticada em quartinhos que ficam atrás de vitrinas emolduradas por luzes de néon onde mulheres em roupas provocativas se oferecem aos passantes. Em dois dos incidentes os investigadores localizaram prostitutas que relataram ter estado com as vítimas na noite anterior àquela em que seus corpos foram encontrados flutuando no rio Amstel, ao lado.
Embora os corpos fossem encontrados em diferentes pontos do rio, os relatórios diziam que o ponto de entrada na água para todas as cinco vítimas devia ter sido a área em torno da Six House, edificação pertencente a uma família importante na história da cidade. Achei isso interessante, em parte porque Six House e Zzyzx soavam de forma parecida aos meus ouvidos. Mas também por causa da questão de saber se o assassino teria escolhido a Six House de forma aleatória ou se numa tentativa de exibir seus crimes para a autoridade, escolhendo para isto uma estrutura que a simbolizava.
Os detetives holandeses não conseguiram ir muito longe na investigação. Nunca encontraram o mecanismo pelo qual o assassino conseguia as vítimas, as controlava e matava. Backus nunca teria feito aparecer um único ponto na tela do seu radar de suspeitos se ele próprio não tivesse querido ser notado. Foi ele quem mandou à polícia bilhetes que pediam por Rachel Walling e que denunciaram sua identidade. Os bilhetes, de acordo com o relatório, continham informações sobre as vítimas e os crimes que, aparentemente, só podiam ser do conhecimento do próprio criminoso. Um deles continha o passaporte da última vítima.
Achei óbvia a conexão entre Rosse Buurt e Clear. Eram dois lugares onde sexo era legalmente trocado por dinheiro. Mais importante ainda, eram lugares onde eu imaginava que os homens fossem sem contar aos outros, onde podiam inclusive tomar medidas para não deixar rastro. De certo modo, isso os tornava alvos perfeitos para um assassino e vítimas perfeitas. Adicionava um grau extra de segurança ao assassino.
Terminei o exame do arquivo que McCaleb organizara sobre o Poeta e, na esperança de ter deixado passar alguma coisa, talvez um detalhe que ajudasse a focalizar todo o quadro, recomecei. Às vezes acontece assim. Um detalhe que não se vê ou que é mal interpretado torna-se a chave de todo o quebra-cabeça.
Mas não achei esse tal detalhe na segunda vez e logo os relatórios começaram a parecer apenas repetitivos e tediosos. Fiquei cansado e terminei pensando no garoto algemado ao chuveiro. A cena não saía da minha cabeça e eu me senti mal por causa do garoto e furioso com o pai que tinha feito isso e com a mãe que nunca se importou o suficiente para tomar conhecimento do que ocorria.
Eu estava com pena de um assassino? Acho que não. Backus pegara as torturas que sofrera e as transformara em outra coisa e depois as lançara no mundo. Eu tinha uma certa compreensão do processo e sentia pena do garoto que ele fora. Mas nada sentia pelo Backus adulto, a não ser uma fria determinação de caçá-lo e fazer com que pagasse pelo que fizera.
Capítulo 28
O lugar fedia horrivelmente, mas Backus sabia que podia conviver com aquilo. Eram as moscas que mais o enojavam. Estavam por toda a parte, vivas e mortas. Carregando germes, doença e sujeira. Encolhido ali, debaixo do cobertor, os joelhos encolhidos, podia ouvi-las zumbindo na escuridão, voando às cegas, batendo nas telas e nas paredes, fazendo pequenos ruídos. Estavam lá fora, em toda parte. Sabia que devia ter previsto que viriam, que faziam parte do plano.
Tentou bloquear o barulho que faziam. Tentou pensar e se concentrar no plano. Era seu último dia ali. Chegara a hora de se pôr em movimento. Hora de mostrar a eles. Quisera poder ficar para ver, testemunhar tudo. Mas sabia que tinha muito o que fazer.
Parou de respirar. Podia senti-las agora. As moscas o encontraram e tinham pousado no cobertor, à procura de uma maneira de entrar, de um jeito de chegar nele. Ele lhes dera vida, mas agora elas queriam devorá-lo.
Sua risada irrompeu bruscamente de sob o cobertor e as moscas levantaram voo, dispersas. Ele percebeu que não era diferente das moscas. Ele também tinha se voltado contra quem lhe dera vida. Riu de novo e sentiu que havia engolido algo.
- Aaaggh!
Teve ânsias de vômito. Tossiu. Tentou tirar o que engolira. Uma mosca. Uma mosca descera pela sua garganta.
Backus deu um pulo e quase tropeçou quando se levantou. Correu para a porta e se lançou do lado de fora, no meio da noite escura. Meteu o dedo na garganta até que tudo subiu e saiu. Ajoelhou-se, começou a vomitar e cuspiu. Depois puxou a lanterna e estudou o vômito com a ajuda do facho de luz. Viu a mosca no meio da bile amarelo-esverdeada. Ainda estava viva, asas e pernas chafurdando no pântano da descarga humana.
Backus pôs-se de pé. Pisou na mosca e balançou a cabeça cumprimentando a si próprio. Esfregou a sola do sapato na terra vermelha. Olhou para a silhueta da rocha que aflorava uns trinta metros acima dele. Àquela hora, ela bloqueava a lua. Mas tudo bem. Fazia com que as estrelas brilhassem mais.
Capítulo 29
Pus de lado a pasta volumosa e examinei o rosto de minha filha. Gostaria de saber com que estaria sonhando. Tinha experimentado tão poucas coisas em sua vida, o que poderia inspirar os seus sonhos? Tinha certeza de que havia apenas coisas boas esperando por ela no mundo secreto dos sonhos e gostaria que fosse assim para sempre.
Fui me sentindo cansado e logo cerrei os olhos para descansar por uns minutos. Em pouco tempo, também sonhei. No meu sonho, contudo, havia vultos sombrios e vozes raivosas, movimentos súbitos e abruptos na escuridão. Eu não sabia onde me encontrava ou para onde ia. E de repente fui agarrado por mãos invisíveis que me trouxeram de volta à luz.
- Harry, o que você está fazendo?
Abri os olhos e lá estava Eleanor, puxando a gola do meu paletó.
- Ei... Eleanor... Que é isso?
Por alguma razão, tentei sorrir para ela, mas ainda estava muito desorientado para saber por quê.
- O que você está fazendo? Olhe para isso espalhado pelo chão.
Comecei a registrar que ela estava com raiva. Endireitei-me e olhei por cima da beirada da cama. O arquivo do Poeta tinha caído e se espalhado pelo chão. Havia fotos de cenas de crime espalhadas por toda parte. As mais destacadas eram as três de um detetive da polícia de Denver que Backus tinha matado em um carro. A parte de trás da cabeça dele fora removida e havia sangue e tecido cerebral espalhados pelo banco. Havia também fotos de corpos flutuando em canais e de um outro detetive cuja cabeça fora arrancada a tiros de escopeta.
- Oh, merda!
- Você não pode fazer isso! - exclamou Eleanor. - E se ela acordasse e visse? Ia ter pesadelos pelo resto da vida.
- Ela vai acordar se você não falar baixo, Eleanor. Desculpe, sim? Não tive intenção de cair no sono.
Deslizei para fora da cama, me ajoelhei no chão e juntei rapidamente a papelada e as fotos. Enquanto fazia isso, verifiquei o relógio e vi que já eram quase cinco da manhã. Tinha dormido por horas. Não era de admirar que me sentisse tão estonteado.
A hora também me informou que Eleanor tinha voltado para casa tarde. Ela não costumava jogar por tanto tempo. Provavelmente isso queria dizer que tivera uma noite ruim e tentara recuperar o que perdera, uma péssima estratégia de jogo. Levantei-me quando acabei de refazer a pasta do Poeta.
- Sinto muito - desculpei-me de novo.
- Droga, não é isso que preciso encontrar em casa quando chego do trabalho.
Nada falei. Sabia que era uma situação em que eu não podia vencer. Virei-me e olhei de novo para a cama. Maddie ainda dormia, com os cachos castanhos novamente sobre seu rostinho. Esperava que o silêncio ensurdecedor da raiva que seus pais sentiam um do outro não a acordasse.
Eleanor saiu do quarto em passos rápidos e eu logo a segui. Encontrei-a na cozinha, encostada na bancada, com os braços cruzados com força na frente do corpo.
- A noite foi ruim?
- Não ponha a culpa da minha reação no tipo de noite que tive.
Levantei as mãos em sinal de rendição.
- Nada disso. Estou culpando a mim mesmo. Fui eu que estraguei tudo. Só queria me sentar ao lado dela por algum tempo e caí no sono.
- Talvez você não devesse fazer mais isso.
- O que, vir visitá-la à noite?
- Não sei.
Ela pegou na geladeira uma garrafa de água mineral. Serviu um copo e me passou a garrafa. Eu disse que não queria.
- De que se trata essa pasta afinal? - ela quis saber. - Está trabalhando em um caso aqui?
- Estou. Um assassinato. Começou em Los Angeles e veio para cá. Tenho que ir para o deserto hoje.
- Muito conveniente para você. No meio do caminho dá uma passada aqui e assusta sua filha.
- Deixa disso, Eleanor, foi uma estupidez e eu sou um idiota, mas pelo menos ela não viu nada.
- Mas podia ter visto. Talvez tenha visto. Talvez tenha acordado e visto aquelas fotografias horrorosas e voltado a dormir. Provavelmente está tendo um pesadelo horrível.
- Olha, ela não se mexeu a noite toda. Posso garantir. Dorme a sono solto. Não vai acontecer de novo, será que não podemos esquecer o assunto?
- Claro. Excelente.
- Olha, Eleanor, por que não me fala sobre a sua noite?
- Não, eu não quero falar nisso. Só quero me jogar na cama.
- Vou lhe contar uma coisa então.
- O que é?
Eu não tinha planejado tratar daquele assunto, mas a coisa foi se desenrolando como uma bola de neve e eu sabia que precisava falar com ela.
- Estou pensando em voltar para o meu trabalho.
- Como assim, este caso?
- Não, a polícia. O LAPD tem um programa. O pessoal antigo como eu pode voltar. Querem gente com experiência. Se eu voltar agora não terei que cursar de novo a academia.
Ela tomou um gole comprido de água e não respondeu.
- O que acha, Eleanor?
Ela encolheu os ombros, como que dizendo que não se importava.
- Faça o que quiser, Harry. Mas você não vai ver tanto a sua filha. Vai se envolver com casos e... sabe como são essas coisas.
Fiz que sim.
- Talvez.
- E talvez não tenha importância. Ela não teve você ao lado a maior parte de sua vida.
- Por culpa de quem?
- Olha, não vamos voltar a esse velho problema.
- Se eu soubesse da existência dela eu teria estado aqui. Eu não sabia.
- Eu sei, eu sei. Sou eu a culpada. É tudo culpa minha.
- Eu não estou dizendo isso. Estou...
- Sei o que você está dizendo. Nem precisa falar nada.
Nós dois ficamos quietos por um momento, deixando a raiva esfriar. Olhei para o chão.
- Talvez ela pudesse ir para lá também - falei.
- Do que você está falando?
- Já conversamos a este respeito. Sobre este lugar. Sobre ser criada em Las Vegas.
Ela sacudiu a cabeça muito deliberadamente.
- Não mudei de ideia a esse respeito. O que você acha? Que vai criá-la sozinho? Você, com seus chamados no meio da noite, longas horas de trabalho, longas investigações, armas dentro de casa, fotos de cenas de crime espalhadas pelo chão. É isso que quer para ela? Acha que é melhor que Vegas?
- Não, eu estava pensando que você podia ir junto também.
- Esquece, Harry. Não vou falar de novo a este respeito. Vou ficar aqui e Madeline também. Você pode tomar a decisão que for melhor para você, mas não decida nada pensando em mim e na Maddie.
Antes que eu pudesse responder, Marisol entrou na cozinha, os olhos amarrotados de sono. Usava um roupão de banho branco com a palavra Bellagio bordada no bolso.
- Muito alto - ela reclamou.
- Tem razão - concordou Eleanor. - Sinto muito.
Marisol pegou uma garrafa de água na geladeira, serviu um copo e guardou a garrafa. Deixou a cozinha sem dar uma palavra.
- Acho que você devia ir embora - disse Eleanor para mim. - Estou cansada demais para falar sobre isso agora.
- Está certo. Só vou dar uma olhada nela e dizer adeus.
- Não vá acordá-la.
- De jeito nenhum.
Voltei ao quarto de minha filha. Tínhamos deixado a luz acesa. Sentei-me na cama ao lado dela, só que mais perto, e limitei-me a observá-la. Por fim, afastei o cabelo do seu rosto e beijei-a. Senti o perfume do xampu de bebê no seu cabelo, beijei-a de novo e murmurei boa-noite. Desliguei a luz do abajur e fiquei sentado por mais uns minutos, observando e esperando. Esperando o quê, não sei dizer. Acho que talvez esperasse que Eleanor entrasse no quarto de uma hora para outra e se sentasse na cama, achando que talvez pudéssemos observar juntos nossa filha adormecida.
Após algum tempo me levantei e acionei a babá eletrônica de novo e fui embora. A casa estava silenciosa quando me dirigi para a porta da frente. Não vi Eleanor. Ela fora dormir, sem precisar me ver de novo. Puxei a porta e certifiquei-me de que fora trancada.
O estrépito do trinco fechando ricocheteou através de mim como uma bala de pistola caindo no chão.
Capítulo 30
Às oito da manhã eu estava em meu Mercedes na frente da entrada do Embassy Suites, na Paradise Road. Tinha comprado dois cafés grandes no Starbucks e um saco de donuts. Acabara de tomar banho e trocar a roupa com que dormira. Abasteci o carro e saquei o meu limite no banco 24 horas. Estava pronto para um dia no deserto, mas Rachel Walling não apareceu nas portas de vidro. Depois de esperar cinco minutos, eu já ia telefonar quando meu telefone tocou. Era ela.
- Me dá cinco minutos.
- Onde você está?
- Tive que ir ao escritório do FBI para uma reunião. Estou voltando.
- Reunião de quê?
- Conto quando chegar aí. Estou descendo a Paradise.
- Está bem.
Fechei o telefone e esperei, olhando para o anúncio de um show que estava sendo encenado no Riviera colado no vidro de trás do táxi que esperava na frente do meu carro. Mostrava os traseiros lindamente proporcionados de uma dezena de mulheres de pé, lado a lado, e nuas. Fez-me pensar na natureza mutante de Las Vegas e do que tinha sido mencionado no artigo do jornal sobre os homens desaparecidos. Pensei em todas as pessoas que visitavam a cidade para divertir a família só para se ver diante daquele e de tantos milhares de anúncios parecidos depois que chegavam.
Um carro oficial básico - Ford Crown Victoria - estacionou perto de mim vindo da direção oposta, e Rachel abaixou o vidro.
- Quer que eu dirija?
- Eu quero dirigir - respondi, pensando que assim teria um mínimo de controle sobre os acontecimentos.
Ela não discutiu. Deixou o Crown Victoria numa vaga e entrou no meu carro.
Mantive o carro parado.
- Vai beber os dois cafés? - ela me perguntou.
- Não, um é para você. O açúcar está no saquinho. Não tinham creme para viagem.
- Não uso creme.
Ela levantou a tampa de um dos copos e bebeu. Fiquei olhando em frente, pelo para-brisa, e chequei o retrovisor. E aguardei.
- Bem - disse ela, finalmente -, vamos?
- Não sei. Acho que precisamos conversar primeiro.
- Sobre o quê?
- Sobre o que está acontecendo.
- Como assim?
- O que você estava fazendo no escritório do FBI tão cedo? O que está acontecendo, agente Walling?
Ela suspirou, aborrecida.
- Olha, Harry, você está esquecendo uma coisa. Esta investigação é de alta importância para o Bureau. Pode-se dizer que até o diretor está diretamente envolvido.
- E?
- E quando ele quer um briefing às dez da manhã, isso significa que os agentes que trabalham na sede, em Quantico, e espalhados no campo devem estar reunidos uma hora antes para combinar o que vamos dizer a ele, para que ninguém seja culpado de consequências indesejadas.
Balancei a cabeça. Agora tinha entendido.
- E nove horas da manhã em Quantico, Virginia, quer dizer seis horas em Las Vegas, Nevada - falei.
- É isso aí.
- E o que aconteceu na reunião das dez? O que vocês disseram ao diretor? - perguntei.
- Isso é problema do FBI. - Olhei para ela e fui recebido por um sorriso. - Mas vou lhe contar porque você também está prestes a me contar todos os seus segredos. O diretor vai fazer um pronunciamento público. É arriscado demais manter o assunto reservado. Vai parecer que a intenção era acobertar algo se isso mais tarde sair do controle. É uma questão de aproveitar o momento, Harry.
Engrenei o carro e avancei na direção da saída do estacionamento. Já tinha traçado a minha rota. Flamingo até a 15 e depois um desvio rápido até a Blue Diamond. Daí em diante, uma reta só para o norte até Clear.
- O que ele vai dizer?
- Vai dar uma entrevista coletiva hoje de tarde. Vai informar que Backus aparentemente está vivo e que o estamos procurando. Vai exibir a foto que Terry McCaleb tirou do homem que dizia se chamar Shandy.
- Já investigaram isso?
- Já. Ainda não há nada a respeito de Shandy, que pode ter sido apenas um nome que ele deu a Terry. Mas a análise fotográfica e a comparação das fotos que Terry tirou e as que temos de Backus estão sendo realizadas enquanto estamos conversando. O relatório inicial é de que vai bater, era Backus.
- E Terry não o reconheceu.
- Bem, evidentemente ele reconheceu alguma coisa. Se tirou as fotos é porque havia alguma suspeita. Mas o sujeito tinha barba, chapéu e óculos. O analista falou que ele também mudou o nariz e os dentes e que talvez tenha feito implantes nas bochechas. Há inúmeras coisas que pode ter feito, inclusive uma cirurgia para mudar a voz. Examinei as fotos e não tive certeza de nada, e olha que trabalhei diretamente com Backus durante cinco anos, mais tempo do que Terry. Ele foi transferido para Los Angeles a fim de guarnecer o posto avançado da divisão de Ciências Comportamentais.
- Alguma ideia de onde ele conseguiu que tudo isso fosse feito?
- Temos quase certeza de que sabemos. Há cerca de seis anos, os corpos de um cirurgião plástico e sua esposa foram encontrados na casa deles, em Praga, casa essa que tinha sido inteiramente queimada. Funcionava um centro cirúrgico na casa e o cirurgião tinha um prontuário nos arquivos da Interpol. A esposa funcionava como enfermeira dele. Suspeitava-se de que fosse especializado em mudar feições por um certo preço. A teoria era a de que alguém que ele operara tinha matado tanto o médico quanto a mulher para apagar seu rastro. Todos os registros das operações realizadas foram perdidos no incêndio. Que foi classificado como criminoso.
- O que liga Backus a ele?
- Com certeza absoluta, nada. Mas como você pode imaginar, tudo o que Backus fez ou tocou como agente foi examinado e reexaminado. Ele deu muitas consultorias no exterior, fazia parte do mecanismo de construção de imagem do FBI. Foi a lugares como Polônia, Iugoslávia, Itália, França e outros.
- Esteve em Praga?
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Foi à Praga como consultor de um caso. Mulheres jovens que desapareciam e terminavam dentro de um rio. Prostitutas. O médico, o tal cirurgião que alterava fisionomias, foi interrogado porque tinha aplicado silicone para aumentar os seios de três das vítimas. Backus esteve lá e ajudou a interrogar o médico.
- E aí ele poderia ter sido informado dessa outra linha de trabalho do homem.
- Exatamente. Nosso palpite é de que ele soube e depois foi lá se submeter à cirurgia.
- Isso não seria muito fácil. Seu rosto verdadeiro aparecia nas primeiras páginas de tudo quanto era jornal e revista naquele tempo.
- Olha, Bob Backus é um assassino psicopata, mas é um psicopata muito inteligente. Não levando em conta os personagens de ficção, ninguém foi mais esperto do que ele. Nem Bundy. Temos que presumir que tinha um plano de fuga preparado desde o princípio. Desde o primeiro dia. Quando fiz com que caísse daquela janela oito anos atrás, ele já devia ter um plano de fuga formulado. Estou me referindo a dinheiro, identidades, o que quer que fosse necessário para se reinventar e sumir. Imaginamos que de Los Angeles ele voltou para a Costa Leste e de lá seguiu para a Europa.
- Inclusive incendiou o apartamento onde morava - lembrei.
- Certo, e lhe demos o crédito por isso, o que o coloca na Virginia três semanas depois que atirei nele em Los Angeles. Foi uma jogada esperta. Incendiou a casa e foi para a Europa, onde iria descansar um pouco, mudar de cara e começar de novo.
- Amsterdã.
Ela concordou, com um gesto de cabeça.
- A primeira morte na Europa ocorreu sete meses depois que o cirurgião plástico foi incendiado em Praga.
Balancei a cabeça. Aquilo tudo parecia se ajustar. Aí me lembrei de algo.
- Como o diretor vai anunciar que Backus está vivo quando quatro anos atrás vocês o apanharam em Amsterdã?
- Ele tem plenas condições para apresentar desmentidos. Em primeiro lugar, e mais importante, o evento anterior se passou na gestão de outro diretor. Assim, pode atribuir o que for preciso a seu antecessor. É uma tradição do FBI. Mas, realisticamente, o que houve se passou em outro país e resultou de uma investigação que não foi conduzida por nós. E que nunca foi confirmada de modo inteiramente positivo. Tínhamos a análise grafológica, mas, na verdade, era só o que tínhamos, e grafologia nem chega perto de impressões digitais e reconhecimento de DNA em termos de precisão. Assim, o diretor pode simplesmente dizer que não era absolutamente certo que fosse Backus em Amsterdã. Seja como for, está a salvo. Só tem que se preocupar com o aqui e agora.
- Administrar o momento.
- Sempre tem um cara sobrando em todo lugar. Inclusive no FBI.
- E vocês, vão cooperar com a coletiva dele?
- Não. Nós pedimos uma semana. Ele nos deu o dia. Ele vai dar a entrevista às seis da tarde, hora da Costa Leste.
- Como se fosse acontecer alguma coisa hoje.
- É, nós sabemos. Estamos ferrados.
- Backus provavelmente vai submergir, mudar de rosto novamente e aparecer só em mais quatro anos.
- É, mas o diretor não vai sair chamuscado. Está a salvo.
Ficamos em silêncio por uns momentos, pensando naquilo. Eu podia compreender a decisão do diretor, que certamente mais ajudava a ele próprio que a investigação.
Estávamos na 15 e comecei a desviar o carro para pegar a saída que dava na rodovia Blue Diamond.
- O que aconteceu às nove da manhã, antes da videoconferência com o diretor?
- A costumeira chamada circular. Atualizar todos os agentes.
- E?
- Não há muita novidade. Só umas poucas coisas. Falamos basicamente sobre você. Estou contando com você, Harry.
- Para quê?
- Para uma nova pista aqui.
- Eles sabem que estamos juntos ou continuam esperando que você tome conta de mim?
- Acho que preferem a segunda hipótese. Na verdade, sei que preferem. Mas seria monótono e, além do mais, como eu disse, o que vão fazer se descobrirem que estou no mesmo barco que você, me mandar de volta para Minot? Grande coisa, começo a gostar de lá.
- Minot pode até não ser péssimo, mas talvez mandem você para outro lugar. Eles não têm filiais em Guam e lugares assim?
- Sim, mas tudo é relativo. Ouvi dizer que Guam não é tão ruim... tem possibilidades no que diz respeito a terrorismo, que está na moda e é o objeto de desejo de todos.
- O que foi dito a meu respeito na reunião?
- Foi mais sobre mim, já que você é minha missão. Eu disse a eles que fiz uma verificação em nosso escritório de Los Angeles e consegui seu pedigree. Falei isso e disse que você saiu de circulação no ano passado.
- Como assim, que me aposentei?
- Não, Segurança Interna, a Homeland Security. Você entrou em conflito com eles, saiu de circulação e voltou ao trabalho. Isso impressionou Cherie Dei. Deixou-a disposta a lhe dar mais linha.
Na verdade, eu vinha me perguntando por que a agente Dei simplesmente não me dava um aperto de verdade.
- E as anotações de Terry McCaleb? - perguntei.
- O que tem elas?
- Cérebros melhores que o meu foram trabalhar com elas. O que descobriram? O que disseram sobre a "teoria do triângulo"?
- É um padrão estabelecido com assassinos seriais que eles cometem e que chamamos de crimes triangulares. Vemos isso com frequência. Quer dizer, a vítima pode ser rastreada através dos três pontos de um triângulo. O ponto de origem ou de entrada, a casa delas ou, neste caso, o aeroporto. Depois vem o que chamamos de ponto da caça, o lugar onde criminoso e vítima entram em contacto, onde se cruzam. Por último vem o ponto do descarte. No caso dos seriais, os três pontos nunca são os mesmos, porque alterá-los é a melhor maneira de evitar que sejam descobertos. Foi o que Terry viu quando leu a notícia no jornal. Ele a assinalou porque o cara da Polícia Metropolitana estava tomando a direção errada. Não estava pensando em triângulo e sim em círculo.
- Quer dizer então que o Bureau agora está trabalhando em cima da teoria do triângulo?
- Claro. Mas algumas coisas tomam tempo. Neste exato momento, a ênfase maior está sendo atribuída à análise da cena do crime. Mas temos gente em Quantico trabalhando no triângulo. O FBI é eficiente, mesmo que às vezes seja lento, Harry. Tenho certeza de que você sabe disso.
- Sem dúvida.
- É uma corrida da lebre com a tartaruga. Nós somos a tartaruga e você a lebre.
- Como assim?
- Você se desloca mais rapidamente que nós, Harry. Algo me diz que você usou a teoria do triângulo ao estudar o caso e agora está arriscando uma tacada no ponto que estava faltando. O da caça.
Assenti. Se eu estava ou não sendo usado não me importava. Eles haviam permitido que eu continuasse na caçada e era isso que tinha importância para mim.
- Você começa com o aeroporto e termina com Zzyzx. Resta um ponto, a interseção do predador com a caça, e eu acho que nós temos esse ponto. E estamos indo para lá agora.
- Então me diz qual é.
- Primeiro me diz mais uma coisa sobre as anotações de Terry McCaleb.
- Acho que eu já lhe disse tudo. Ainda estão sendo analisadas.
- William Bing, quem é?
Ela hesitou apenas por um instante.
- Um beco sem saída, não leva a nada.
- Como assim?
- William Bing é um transplantado do coração que se encontrava no Vegas Memorial sendo submetido a um check-up e alguns testes. Pensamos que Terry o conhecia e o visitou no hospital.
- Seu pessoal já falou com Bing?
- Ainda não. Estamos tentando levantar seu paradeiro.
- Parece estranho.
- O quê? Ele visitar o cara?
- Não, isso não. Refiro-me a ele ter escrito o nome na pasta mesmo não tendo relação com o caso.
- Terry tomava nota de tudo. É bastante óbvio para quem vê seus documentos que ele era minucioso. Se vinha trabalhar aqui, talvez tenha escrito o nome de Bing e o número do hospital no arquivo do caso para não se esquecer de visitá-lo ou telefonar para ele. Pode ter havido um monte de razões.
Não falei nada. Ainda tinha dificuldade para engolir aquilo.
- Como ele conheceu o cara?
- Não sabemos. Talvez o filme. Ele recebeu centenas de cartas de transplantados depois que o filme foi lançado. Terry passou a ser uma espécie de herói para um monte de gente que se encontrava no mesmo barco que ele.
Enquanto seguíamos rumo ao norte pela Blue Diamond, vi uma placa anunciando uma parada de caminhões da Travel America e me lembrei do recibo que encontrara no carro de Terry McCaleb. Entrei, embora tivesse abastecido o Mercedes logo depois de ter deixado a casa de Eleanor naquela manhã. Parei o carro e dei uma olhada no complexo destinado a viajantes.
- O que é? Precisa de gasolina?
- Não, está tudo bem. É só que... McCaleb esteve aqui.
- Como assim? Você recebeu alguma mensagem do além?
- Não, encontrei um recibo no carro dele. Queria saber se isso significa que McCaleb foi a Clear.
- Aonde?
- Clear, a cidade de Clear. É para lá que vamos.
- Bem, só vamos saber se formos lá fazer algumas perguntas.
Concordei, retornei com o carro para a Blue Diamond, tomei a pista norte e, no caminho, contei a Rachel a minha ideia sobre a teoria do triângulo. Ou seja, como via o triângulo de McCaleb e como Clear se ajustava nele. Posso afirmar que atraí seu interesse. Diria até que me pareceu empolgada. Concordou com meu ponto de vista sobre as vítimas e como e porque tinham sido escolhidas. E afirmou que refletia a vitimologia - sua palavra - de Amsterdã.
Discutimos o assunto durante uma hora e ficamos em silêncio quando começamos a nos aproximar. A paisagem árida e acidentada foi cedendo lugar a sinais de povoação e começamos a ver os cartazes anunciando os bordéis que nos esperavam logo à frente.
- Você já esteve em algum desses? - quis saber Rachel.
- Não.
Pensei nas barracas das prostitutas no Vietnã, que eram toleradas pelo exército e denominadas por nós, soldados, de steam-and-cream, mas não falei nada.
- Não falei como cliente, mas como policial.
- A resposta continua sendo não. Mas segui algumas pessoas até esses bordéis, rastreando a utilização de cartões de créditos e outros recursos assim. Não vamos encontrar ninguém ansioso por colaborar, posso afirmar. Pelo menos nunca encontrei pelo telefone. Até mesmo o xerife local não passa de uma piada. O estado recolhe impostos dessas espeluncas e a maior parte do dinheiro fica com o município.
- Entendi. Então, como vamos fazer?
Quase sorrindo porque Rachel tinha usado o pronome no plural, devolvi a pergunta.
- Não sei - respondeu ela. - Acho que vamos simplesmente entrando pela porta da frente.
Querendo dizer que devíamos jogar limpo e só fazer nossas perguntas. Eu não tinha certeza se seria a maneira certa, mas era ela quem tinha o crachá oficial, não eu.
Passamos pela cidade de Pahrump e em mais uns quinze minutos chegamos a um cruzamento onde havia um cartaz com a palavra CLEAR e uma seta para a esquerda. Virei e logo o asfalto cedeu lugar a uma estrada de cascalho que fez subir uma coluna de poeira da parte de baixo do carro. A cidade de Clear podia nos ver chegando a quilômetros de distância.
Quer dizer, se estivesse querendo nos ver. Mas a cidade de Clear, Nevada, acabou se mostrando pouco mais que um estacionamento de trailers. A estrada de cascalho nos levou a outra encruzilhada e a outro cartaz com uma seta. Viramos novamente para o norte e logo chegamos a uma clareira onde estava um trailer velho e enferrujado. Um cartaz estendido em toda a extensão da parte de cima do trailer dizia BEM-VINDO A CLEAR. BAR ABERTO. QUARTOS PARA ALUGAR. Não havia carros estacionados no terreno em frente ao bar.
Passei pelo trailer de boas-vindas e a nova estrada fez uma curva para atingir um bairro de trailers assando como latas de cervejas ao sol. Poucos estavam em melhor forma que o primeiro. Terminamos por passar diante de uma estrutura permanente que parecia ser tanto a prefeitura quanto o local onde se situava a fonte que dera nome à cidade, continuamos em frente e fomos recompensados por uma nova seta em outra placa, que dizia simplesmente BORDÉIS.
Nevada licencia mais de trinta bordéis em todo o território do estado. Nesses lugares a prostituição é legal, controlada e monitorada. Encontramos três desses negócios licenciados pelo estado no fim da estrada em Clear. A estrada de cascalho ganhou largura e transformou-se em uma grande área de manobra onde três bordéis esperavam a freguesia. Chamavam-se respectivamente A Varanda de Sheila, O Rancho de Tawny e a Casa Sublime de Miss Delilah.
- Legal - comentou Rachel, enquanto analisava a paisagem. - Por que será que têm nomes de mulheres, como se fossem realmente propriedades de mulheres?
- Agora você me pegou. Mas talvez uma casa chamada A Varanda do Senhor Dave não seria muito atraente para a freguesia masculina.
Rachel sorriu.
- Você tem razão. Acho que foi uma solução esperta. Batize um lugar de degradação e escravidão feminina com um nome de mulher e não vai soar tão mal, certo? Faz parte do pacote.
- Escravidão? Que eu saiba essas mulheres são todas voluntárias. Algumas supostamente são donas de casa que vieram de Vegas.
- Se acredita nisso, Bosch, você é ingênuo. Só porque você pode ir e vir não quer dizer que não é escravo.
Balancei a cabeça pensativamente, sem querer entrar em discussão com ela porque sabia que acabaria tendo de examinar e questionar coisas do meu próprio passado.
Rachel também parecia querer deixar as coisas do jeito que estavam.
- E então, com qual delas você quer começar? - perguntou ela.
Encostei o carro na frente do Rancho de Tawny. Não parecia nada com um rancho. Tratava-se de um conglomerado de três ou quatro trailers interligados por passarelas cobertas. Olhei para a esquerda e vi que a Varanda de Sheila era similar em projeto e configuração e não tinha varanda. O de Miss Delilah, à minha direita, era igual, e tive a nítida impressão de que os três bordéis aparentemente separados não eram competidores e sim ramos da mesma árvore.
- Não sei - respondi. - Acho que talvez seja o caso de escolher na base do uni-duni-tê.
Rachel começou a abrir sua porta.
- Espere um segundo - falei. - Tenho isto aqui.
Passei-lhe as fotos que Buddy Lockridge trouxera para Vegas na véspera. Rachel abriu e viu os retratos de frente e de lado do homem conhecido como Shandy, mas que se presumia fosse Robert Backus.
- Nem vou perguntar onde você conseguiu isso.
- Ótimo. Mas leve-as. Terão mais peso nas suas mãos, já que você tem o crachá.
- Por enquanto.
- Trouxe as fotos dos homens desaparecidos?
- Trouxe.
- Ótimo.
Ela pegou a pasta de fotos e saltou. Fiz o mesmo. Contornamos a frente do carro e paramos, avaliando os três bordéis de novo. Havia um pequeno número de carros estacionados na frente deles. Havia também quatro Harleys de motor flathead enfileiradas na frente da Casa Sublime de Miss Delilah. Pintada com aerógrafo no tanque de gasolina de uma das Harleys, uma caveira fumava um baseado, com um anel de fumaça formando um halo sobre ela.
- Vamos deixar a Delilah por último - falei. - Talvez tenhamos sorte antes de precisarmos ir lá.
- É, as motos. A gangue dos Road Saints. Eu diria para não acordarmos os cães adormecidos.
- Para mim está ótimo.
À frente, Rachel seguiu em direção à porta dianteira do trailer de Sheila. Não esperou por mim porque sabia que eu estaria na sua cola.
Capítulo 31
Dentro do trailer fomos recebidos por uma densa nuvem de perfume enjoativamente doce misturado com excesso de incenso. Fomos recebidos também por uma mulher sorridente metida em um quimono roxo, que não aparentou sentir-se nem um pouco surpreendida ou desconcertada pela ideia de um casal entrando no bordel. Mas o sorriso desapareceu e seus lábios assumiram a forma de uma linha tão reta e aguçada quanto a lâmina de uma guilhotina quando viu as credenciais do FBI exibidas por Rachel.
- Tudo bem - disse ela, com um tom falsamente agradável na voz. - Agora me mostra o mandado.
- Não tem mandado hoje - retorquiu Rachel, com calma. - Só gostaríamos de fazer umas perguntas.
- Não tenho que falar nada a menos que você tenha uma ordem do tribunal. Meu negócio aqui é legal e completamente licenciado.
Notei duas mulheres vestidas com lingeries tiradas de uma página da Victoria’s Secret sentadas em um sofá próximo. Assistiam a uma novela na televisão e pareciam desinteressadas da escaramuça verbal que se desenvolvia à porta da frente. Ambas eram de certa forma atraentes, mas com visíveis traços de desgaste em torno dos olhos e bocas. A cena subitamente me fez lembrar de minha mãe e algumas de suas amigas. Do modo como me olhavam quando eu era menino e as observava se aprontando para saírem de noite e trabalhar. Logo me senti extremamente desconfortável naquele lugar e tive vontade de ir embora. Cheguei inclusive a esperar que a mulher do quimono roxo tivesse êxito em nos mandar embora.
- Ninguém está duvidando da legalidade da sua operação - afirmou Rachel. - Nós só precisamos fazer umas poucas perguntas a você e a suas... funcionárias, depois vamos embora.
- Consiga a ordem do tribunal e teremos o maior prazer em atendê-la.
- Você é a Sheila?
- Pode me chamar assim. Pode me chamar do que quiser desde que seja para se despedir.
Rachel levantou o valor da aposta fazendo a sua voz de não-venha-me-encher-a-paciência.
- Se eu for pedir o tal mandado, primeiro vou pedir uma unidade do xerife para que fique estacionada na frente do seu trailer até que eu volte. Você pode ter uma operação legal aqui, Sheila, mas qual das três casas os fregueses vão escolher quando virem o carro da polícia na frente do seu? Imagino que eu vá levar duas horas até Las Vegas, algumas horas esperando lá para falar com o juiz e mais duas horas de volta. Meu expediente termina às cinco, de modo que provavelmente só volto amanhã. Está bom para você?
Sheila contra-atacou curto e grosso:
- Se ligar para o xerife, peça para mandar o Dennis ou o Tommy. Eles conhecem muito bem o lugar e também são clientes.
Sheila dirigiu um sorriso forçado para Rachel e sustentou sua posição. Pagara para ver, e Rachel não tinha cartas decentes para mostrar. As duas simplesmente ficaram se encarando enquanto os segundos passavam. Eu já ia intervir e dizer qualquer coisa quando uma das mulheres do sofá me atropelou:
- Ei - falou a que se encontrava mais perto de nós. - Vamos acabar logo com isso.
Rachel rompeu o contacto visual com Sheila e olhou para a mulher do sofá. Aí então ela cedeu, mas sua raiva mal ficou escondida sob a superfície. Não saberia ao certo se havia outro modo de administrar aquilo depois que Sheila avançara contra nós, mas para mim ficara perfeitamente claro que toda aquela encenação e ameaças não nos levariam a parte alguma.
Instalados no pequeno escritório de Sheila, entrevistamos as mulheres uma a uma, começando com Sheila e terminando com as duas que estavam trabalhando quando entramos no estabelecimento. Rachel não me apresentou a ninguém, de modo que o problema do que eu fazia ali nunca chegou a ser levantado. As mulheres não puderam ou não quiseram identificar qualquer dos desaparecidos que tinham acabado enterrados em Zzyzx e o mesmo aconteceu com as fotos de Shandy no barco de McCaleb.
No final de meia hora, estávamos fora dali sem nada para mostrar exceto uma dor de cabeça causada por intoxicação de incenso no meu caso e marcas de cansaço na fisionomia de Rachel.
- Nojento - disse ela, quando percorremos a calçada cor de rosa na direção do meu carro.
- O quê?
- Aquele lugar. Não sei como alguém pode fazer isso.
- Pensei que você tivesse dito que eram escravas.
- Olha, não faz parte das suas funções ficar jogando na minha cara o que falo.
- Sem dúvida.
- Por que você está tão irritado? Lá dentro, não disse nada para ela. Grande ajuda!
- Porque eu não teria feito daquele jeito. Dois minutos dentro daquele lugar e eu sabia que não íamos conseguir nada.
- Oh, e você conseguiria.
- Não estou dizendo isso. Eu lhe falei, esses lugares são como rochas. Difícil tirar água. E convocar o xerife era definitivamente o pior caminho. Posso garantir que metade do salário mensal dele vem dos bordéis que funcionam no seu território.
- Então você só quer criticar sem oferecer nenhuma solução.
- Olha, Rachel, aponta sua arma para outro. Não é comigo que você tem que ficar furiosa, certo? Se você quiser tentar algo diferente na próxima posso experimentar.
- Vá em frente.
- Está bem, então me dê as fotos e espere no carro.
- Como assim, esperar no carro? Eu vou junto.
- Não é hora nem lugar de pompa e circunstância, Rachel. Eu devia ter percebido quando a convidei. Mas não pensei que você ia meter seu crachá pela goela das pessoas logo de cara.
- Você vai entrar e usar de finesse?
- Nada disso. Só vou usar o jeito antigo.
- Tirando a roupa?
- Não, abrindo a carteira.
- O FBI não compra informações de testemunhas em potencial.
- Exatamente. Mas eu não sou o FBI. Se eu encontrar uma testemunha desse jeito, o FBI não terá que pagar nada.
Pus a mão nas costas dela e, gentilmente, empurrei-a na direção do Mercedes. Dei-lhe as chaves.
- Ligue o ar-condicionado. Seja como for, não vai demorar muito.
Enrolei a pasta com as fotos e enfiei no bolso de trás, por baixo do paletó.
A calçada que levava à porta do Rancho de Tawny também era de cimento cor de rosa, e eu estava começando a ver como aquilo era adequado. As mulheres que tínhamos encontrado no bordel da Sheila eram pessoas duras, nada sentimentais e, além de insolentes, difíceis de controlar. Rachel não era diferente. Eu estava começando a me sentir como se tivesse os pés enfiados em baldes de cimento rosa.
Toquei a campainha da porta e fui atendido por uma mulher que usava uma calça jeans azul cortada e uma camiseta sem mangas que mal continha os seios com quase toda certeza aumentados cirurgicamente.
- Entre. Eu sou Tammy.
- Obrigado.
Vi-me na sala da frente do trailer, onde havia dois sofás de frente um para o outro em paredes opostas. Havia três mulheres sentadas neles e todas me olhavam com sorrisos muito ensaiados.
- Essas são Georgette, Gloria e Mecca - disse Tammy. - E eu sou a Tammy. Pode escolher qualquer uma de nós ou esperar a Tawny, que está com um cliente.
Avaliei Tammy. Parecia a mais ansiosa. Era pequena, pesada e tinha cabelo castanho curto. Seria considerada atraente por muitos homens, mas não por mim. Eu disse tudo bem e ela me levou para trás por um corredor que virava à direita e dava em outro trailer. Havia três quartos privados à esquerda e ela escolheu o terceiro, que abriu com uma chave. Entrou e fechou a porta, mas não trancou. Mal dava para ficar de pé ali, porque uma cama enorme tomava a maior parte do espaço.
Tammy sentou-se na cama e bateu com a palma da mão no local ao lado. Sentei-me e ela esticou a mão para uma estante repleta de romances de mistério cheios de orelhas de tão lidos e relidos, pegou um que parecia um cardápio de restaurante e me deu. Era um prospecto fino com uma caricatura na frente. Mostrava uma mulher nua, de quatro, virada para trás e piscando para o homem que acabava de penetrá-la. O homem também estava nu, exceto por um chapéu de caubói e pelos revólveres na cintura. Uma das mãos dele levantada segurava um laço. A corda erguia-se acima do casal e formava as palavras O Rancho de Tawny.
- Você pode levar como lembrança uma camiseta com esse desenho - informou. - Vinte pratas.
- Ótimo - exclamei, abrindo o prospecto.
Acabou que era mesmo uma espécie de cardápio, personalizado para Tawny. Continha uma folha de papel com duas colunas. Uma listava os atos sexuais que ela estava disposta a executar e a duração das sessões individuais, enquanto a outra coluna tinha os preços que tais serviços custariam ao freguês. Após dois dos atos sexuais listados havia asteriscos. Mais embaixo era explicado que um asterisco denotava uma especialidade pessoal.
- Muito bem - falei, olho fixo nas colunas -, acho que eu talvez precise de um tradutor para entender umas coisinhas aqui.
- Eu ajudo. O quê, por exemplo?
- Quanto custa só falar?
- Como assim, falar sacanagem com você? Ou você falar comigo?
- Não, só falar. Quero lhe fazer umas perguntas sobre um sujeito que estou procurando. Ele é desta região.
A postura de Tawny mudou por completo. Sentou-se direito e ao fazê-lo colocou alguns centímetros a mais entre nós, o que foi ótimo, porque seu perfume começava a cauterizar o revestimento interno de minhas narinas, já queimadas pelo incenso.
- Acho que é melhor você falar com a Tawny quando ela terminar.
- Quero falar com você, Tammy. Tenho duzentos dólares por cinco minutos. Dobro se você me der uma indicação que me permita chegar nesse sujeito.
Ela hesitou como se estivesse avaliando a minha proposta. Duzentas pratas não cobriam uma hora de trabalho, mas eu tinha a impressão de que os preços do cardápio eram negociáveis e, além do mais, não havia ninguém esperando em fila no cimento cor de rosa para entrar ali.
- Alguém aqui vai ficar com o meu dinheiro - falei. - Pode muito bem ser você.
- Está bem, mas tem que ser depressa. Se a Tawny descobrir, vai botar você para fora e me colocar no fim da fila.
Agora eu entendia. Ela me atendera na entrada porque estava na sua vez. Eu podia ter escolhido qualquer uma das mulheres sentadas no sofá, mas, pelo direito, o primeiro tiro era dela.
Enfiei a mão no bolso e dei a ela cem dólares. Conservei os outros cem na mão enquanto abria a pasta das fotos. Rachel cometera o erro de perguntar às mulheres do bordel de Sheila se reconheciam alguns dos homens das fotos. Isso porque não tinha a confiança que eu tinha. Eu estava muito mais seguro de minha teoria que ela e não cometi o mesmo erro com Tammy.
A primeira foto que lhe mostrei foi a de Shandy de frente, tirada no barco de McCaleb.
- Quando foi a última vez em que o viu aqui? - perguntei.
Tammy olhou para a foto por um longo momento. Não pegou da minha mão, embora eu a tivesse oferecido. Depois do que pareceu um momento interminável, quando eu já estava pensando que a porta iria se abrir e a mulher chamada Tawny ia me expulsar dali, ela finalmente falou.
- Não sei... no mínimo um mês, talvez mais. Ele não tem aparecido.
Tive ímpetos de subir na cama e pular, mas mantive a calma. Queria que acreditasse que eu sabia tudo o que estava me contando. Ela se sentiria mais confortável assim e seria mais acessível.
- Você se lembra de onde o viu?
- Logo aí na frente. Acompanhei um cliente para me despedir dele e Tom estava aí fora esperando.
- Sei. E ele lhe disse alguma coisa?
- Não, ele nunca diz nada. Na realidade, ele nem me conhece.
- Então o que aconteceu?
- Não aconteceu nada. Meu cara entrou no carro e eles foram embora.
Eu começava a visualizar um quadro. Tom tinha um carro. Ele era um motorista.
- Quem o chamou? Foi você ou o cliente?
- Provavelmente foi Tawny. Eu na verdade não me lembro.
- Porque é sempre assim.
- É.
- Mas ele não aparece, digamos, há um mês?
- É. Talvez mais. Isso não é uma pista suficiente? Quer dizer, o que você quer?
- Duas coisas. Sabe qual é o sobrenome de Tom?
- Não.
- Sei, então como alguém consegue falar com ele se precisar de um carro?
- Telefona para ele, eu acho.
- Você pode me dar o telefone dele?
- Basta ir ao bar, é de lá que o chamamos. Não sei o número de cor. Está lá junto do telefone em frente.
- O bar, tudo bem.
Ainda não dei o dinheiro para ela.
- Uma última coisa.
- Você vive dizendo que é a última coisa.
- Eu sei, mas agora é para valer.
Mostrei a ela o pacote com seis fotos que Rachel trouxera dos homens desaparecidos. Eram fotos melhores e muito mais nítidas do que as que tinham sido publicadas junto com o artigo do jornal. Eram coloridas e tinham sido dadas à Polícia Metropolitana de Las Vegas pelas famílias deles e depois passadas, como cortesia, para o FBI.
- Algum destes caras foi seu cliente?
- Olha aqui, meu senhor, não falamos sobre clientes. Aqui nós somos muito discretas e não revelamos esse tipo de informação.
- Eles estão mortos, Tammy. Não tem importância.
Seus olhos se arregalaram e ela abaixou a cabeça para examinar as fotos que eu segurava. Desta vez ela as pegou e examinou-as como se estudasse cartas de baralho. Eu podia ver pelo jeito como seus olhos cintilaram que ela recebera um ás.
- O que é?
- Bem, esta me faz lembrar de um cara que esteve aqui. Esteve com Mecca, eu acho. Você podia perguntar a ela.
Ouvi uma buzina tocar duas vezes. Sabia que era do meu carro. Rachel estava ficando impaciente.
- Vá pegar Mecca e a traga para cá. Darei o resto do dinheiro para você quando voltar. Diga que também há um pouco de dinheiro para ela. Não explique do que se trata. Basta falar que quero duas garotas ao mesmo tempo.
- Está bem, mas chega. Agora você me paga.
- Vou pagar.
Ela saiu e me sentei na cama olhando em torno enquanto esperava. As paredes eram forradas com imitação de cerejeira. Havia uma única janela com uma cortina de babados. Inclinei-me sobre a cama e abri a cortina. Via-se apenas o deserto. Era como se a cama e o trailer estivessem estacionados na lua.
A porta se abriu e me virei, pronto para dar a Tammy o resto do dinheiro dela e pegar no bolso a parte que caberia a Mecca. Mas não foram duas mulheres que apareceram na porta e sim dois homens. Enormes, por sinal - cada um maior que o outro -, e tinham os braços, por baixo das camisetas pretas, completamente ilustrados com tatuagens típicas do tempo passado atrás das grades. No bíceps do maior havia uma caveira com um halo em cima, e isso me disse de quem se tratavam.
- O que há, doutor? - perguntou ele.
- Você deve ser a Tawny - retruquei.
Sem uma palavra, ele esticou os braços, agarrou meu paletó, puxou-me de cima da cama e me jogou para os braços do seu parceiro, que estavam à minha espera. Este me atirou pelo corredor na direção contrária a que eu usara para entrar. Só então me dei conta de que a buzinada de Rachel tinha sido um aviso, não um sinal de sua impaciência. Eu estava desejando que tivesse entendido melhor o sinal dado por Rachel quando os dois esteroides, o Grande e o Pequeno, me empurraram por uma porta situada nos fundos e fui cair no solo pedregoso do deserto.
Fiquei de quatro e estava me levantando quando um deles pôs a bota no meu quadril e me empurrou de novo. Mais uma vez, tentei me levantar e desta vez eles deixaram.
- Eu perguntei o que havia, doutor. Você tem negócios por aqui?
- Eu só estava fazendo umas perguntas e estava disposto a pagar pelas respostas. Não pensei que isso fosse um problema.
- Pois bem, companheiro, acontece que é um problema.
Eles estavam avançando para cima de mim, o grandalhão primeiro. Eu recuava um passo para cada passo que eles davam em frente. O pior é que tive a péssima impressão de que isso era exatamente o que eles queriam. Os dois estavam me empurrando para alguma coisa, talvez um buraco no chão ali na areia e pedras.
- Quem é você, moleque?
- Sou um detetive particular de Los Angeles. Estou procurando um homem desaparecido, mais nada.
- É, mas quem vem aqui não está a fim de ser encontrado.
- Compreendo isso agora. Vou dar o fora e vocês não precisam...
- Com licença.
Todos nós paramos. Era a voz de Rachel. O grandalhão virou de costas na direção do trailer e seu ombro abaixou alguns centímetros. Pude ver Rachel saindo pela porta dos fundos do trailer. Tinha as mãos ao lado do corpo.
- O que há, você trouxe a sua mãe? - perguntou Grande Esteroide.
- Algo assim.
Enquanto ele olhava para Rachel juntei as duas mãos e dei-lhe um golpe na nuca com toda força. Ele foi lançado para frente e bateu no parceiro. Mas foi só um ataque de surpresa. Ele não caiu no chão. Girou na minha direção e avançou, agitando os punhos como duas marretas gêmeas. Vi Rachel enfiar a mão debaixo da jaqueta e puxá-la para trás a fim de pegar sua arma. A mão, contudo, ficou momentaneamente presa no tecido e ela custou a sacar.
- Parem! - ela gritou.
Mas os irmãos Esteroides não se detiveram. Esquivei-me do primeiro golpe do grandalhão, mergulhando sob ele, mas quando me levantei fiquei bem na frente do irmão menor, que me agarrou num abraço de urso e me levantou do chão. Por alguma razão, notei nesta hora que havia mulheres olhando a cena das três janelas dos fundos do trailer, que ficavam mais atrás. Eu conseguira atrair uma audiência para assistir a minha destruição.
Meus braços ficaram presos sob o abraço do meu atacante, eu sentia uma severa pressão na coluna, ao mesmo tempo que o ar desaparecia dos meus pulmões. Justo neste instante, Rachel finalmente libertou a arma e deu dois tiros para o alto.
Fui largado no chão e vi Rachel afastar-se do trailer, andando de lado para se assegurar de que ninguém a seguia.
- FBI! - gritou. - No chão. Todos dois no chão!
Os grandalhões obedeceram. Assim que consegui respirar eu me levantei. Tentei limpar um pouco a terra da minha roupa, mas só consegui espalhar mais. Olhei para Rachel e balancei a cabeça. Ela manteve distância dos homens deitados no chão e fez com o dedo um sinal para que eu me aproximasse.
- O que aconteceu?
- Eu estava entrevistando uma das mulheres e pedi que ela buscasse outra. Aí esses caras apareceram e me arrastaram para cá. Obrigado pelo aviso.
- Eu tentei avisar você. Eu buzinei.
- Eu sei, Rachel. Vai com calma. Por isso estou agradecendo. Eu é que interpretei mal seu aviso.
- E então, o que fazemos?
- Estes dois sujeitos não me interessam. Pode soltá-los. Mas há duas mulheres lá dentro, Tammy e Mecca, que precisamos levar. Uma conhece Shandy e a outra eu acho que pode identificar um dos desaparecidos como seu cliente.
Rachel avaliou o que acabara de ouvir e, lentamente, assentiu com um gesto de cabeça.
- Ótimo. Shandy é freguês?
- Não, é uma espécie de motorista. Precisamos ir até o bar e fazer umas perguntas por lá.
- Então não podemos libertar estes dois caras. Podem ir se encontrar conosco lá de novo. Além do mais, havia quatro motos quando chegamos. Onde estão as outras duas?
- Não sei.
- Ei, o que há? - gritou Grande Esteroide. - Estamos comendo areia!
Rachel aproximou-se dos dois.
- Tudo bem, podem se levantar.
Ela esperou até que os dois estivessem de pé e encarando-a com olhos malevolentes. Abaixou a arma e falou calmamente com eles, como se aquela fosse sua maneira de conhecer as pessoas.
- De onde vocês são?
- Por quê?
- Por quê? Porque estou tentando conhecer vocês. Preciso decidir se os prendo ou não.
- Prender por quê? Foi ele quem começou.
- Não foi o que vi. Vi dois homens grandalhões batendo em um homem menor.
- Ele estava passando dos limites.
- Pelo que sei, isso não é uma justificativa válida para se agredir ninguém. Se quiserem ver se estou enganada então...
- Pahrump.
- Como é?
- Pahrump.
- E vocês são os donos disto aqui?
- Não, somos apenas seguranças.
- Entendo. Bem, vou lhes dizer uma coisa. Se vocês acharem os outros dois cujas motos estão lá na frente e voltarem para Pahrump, vou esquecer o que houve.
- Não é justo. Ele estava lá dentro perguntando...
- Eu sou o FBI. Não estou interessada no que é justo. É pegar ou largar.
Após um momento, o grandalhão mexeu-se e saiu andando na direção do trailer. O menor o seguiu.
- Aonde estão indo? - gritou Rachel.
- Estamos indo embora. Como você nos disse.
- Ótimo. Não se esqueçam dos capacetes, cavalheiros.
Sem olhar para trás, o maior dos dois levantou um braço musculoso e mostrou o dedo médio esticado sem parar de andar. O menor viu e fez o mesmo.
Rachel olhou para mim e disse:
- Espero que funcione.
Capítulo 32
As mulheres sentadas no banco de trás estavam furiosas, mas Rachel não se importou. Aquilo era o mais perto que já estivera - que qualquer pessoa estivera - de Backus desde a noite em Los Angeles. A noite em que o vira cair de costas através da vidraça para mergulhar no vazio que pareceu engolir qualquer resquício dele.
Até agora. E a última coisa que ela ia deixar que a aborrecesse eram os protestos de duas prostitutas no banco de trás do carro de Bosch. Na verdade, a única coisa que a incomodava fora sua decisão de deixar que Bosch dirigisse. Eles agora tinham duas prisioneiras e as transportavam em um carro particular. Era uma questão de segurança, e ela não estava certa sobre como iam conduzir a incursão ao bar.
- Sei o que vamos fazer - disse Bosch, quando conduziu o Mercedes para longe dos três bordéis no fim da estrada.
- Também sei - retrucou Rachel. - Você fica com elas enquanto eu entro.
- Não, não vai dar certo. Você vai precisar de apoio. Acabamos de ver que não devemos nos separar.
- Então o quê?
- Aciono o trinco elétrico que tranca as portas de trás. Elas não serão capazes de abrir.
- E o que vai impedi-las de pular para o banco da frente e darem o fora?
- Mas aonde elas iriam? Não têm escolha, certo, senhoras?
Ele olhou para trás pelo espelho retrovisor.
- Vá se foder - respondeu Mecca. - Não podem fazer isso. Não fomos nós que cometemos os crimes.
- Na verdade, como expliquei antes, podemos sim - retrucou Rachel, entediada. - Vocês foram detidas sob custódia federal como testemunhas materiais em uma investigação criminal. Serão interrogadas formalmente e depois liberadas.
- Bem, então vamos rápido com isso, para acabar logo.
Rachel ficou surpresa ao saber, quando viu a licença de motorista da mulher, que seu nome era realmente Mecca. Mecca McIntyre. Que nome.
- Bem, Mecca, isso não podemos. Também já expliquei.
Bosch entrou no estacionamento recoberto de cascalho diante do bar. Não havia outros carros. Abaixou todos os vidros uns dois centímetros e desligou o motor.
- Vou acionar o alarme - disse ele. - Se passarem para o banco da frente e abrirem a porta, o alarme vai soar. Nós então saímos e vamos atrás de vocês. Então, não se deem ao trabalho, entenderam? Não vamos demorar.
Rachel saltou e fechou a porta. Checou novamente o celular e viu que ainda não tinha sinal. Bosch também verificou o dele e sacudiu a cabeça. Ela decidiu que ia assumir o comando do telefone do bar, se houvesse, e ligar para o escritório de Las Vegas do FBI a fim de relatar o que tinha. Esperava que Cherie Dei ficasse ao mesmo tempo muito zangada e muito satisfeita.
- A propósito - disse Bosch, quando chegaram na rampa que dava na porta do trailer -, você leva um carregador extra para a sua Sig?
- Claro.
- Onde, no cinto?
- Exatamente, por quê?
- Nada. É que eu vi lá atrás do trailer que a sua mão meio que ficou presa na jaqueta.
- Não ficou presa. Eu só... aonde quer chegar?
- Lugar nenhum. Eu só ia dizer que sempre carreguei minha munição extra no bolso da jaqueta. Dava um certo peso, sabe. Assim, quando tinha que sacar, o peso extra ajudava, e a fazenda não prendia.
- Obrigada pela dica - ela disse, sem se perturbar. - Podemos nos concentrar nisso agora?
- Claro, Rachel. Você assume agora?
- Se você não se importa.
- Em absoluto.
Harry subiu a rampa atrás dela. Rachel imaginou ter visto um sorriso no rosto dele refletido no vidro da porta do trailer. Que, quando foi aberta, fez soar uma sineta para anunciar a chegada dos dois.
O salão do bar em que entraram era pequeno e estava vazio. À direita deles havia uma mesa de sinuca, o feltro verde desbotado pelo tempo e manchado pela bebida derramada. Era uma mesa pequena, mas ainda assim não tinha espaço suficiente à sua volta, não permitindo que os jogadores segurassem o taco inteiramente à vontade.
À esquerda da porta havia um bar com seis banquinhos, três prateleiras cheias de copos e uma outra para as bebidas por trás. Não havia ninguém no bar, mas antes que Rachel ou Bosch pudessem chamar alguém, a cortina preta instalada à esquerda do bar abriu-se e de lá saiu um homem, os olhos enrugados de sono, embora fosse quase meio-dia.
- Desejam algo? Meio cedo, não é?
Rachel golpeou-o com sua identidade, o que pareceu abrir mais um pouquinho seus olhos. Ele devia ter pouco mais que sessenta anos, embora essa estimativa talvez fosse distorcida pelo cabelo de quem acabara de acordar sem se pentear e tinha a barba meio branca por fazer.
Ele balançou a cabeça como se tivesse terminado de resolver um tipo qualquer de mistério.
- Então você é a irmã, certo? - perguntou.
- Como?
- Você é a irmã de Tom, certo? Ele disse que você talvez aparecesse.
- Tom quem?
- Tom Walling. Quem você pensou que fosse?
- Estamos procurando um homem chamado Tom que transporta fregueses dos bordéis. É esse o Tom Walling?
- É o que estou dizendo. Tom Walling era meu motorista. Disse que um dia sua irmã podia aparecer procurando por ele. Só que nunca falou que ela era agente do FBI.
Rachel assentiu, tentando esconder o abalo. Não era necessariamente a surpresa que a atingira, e sim a audácia e o significado mais profundo, a magnitude do plano de Backus.
- Qual é o seu nome, senhor?
- Billings Rett. Sou dono do bar e também o prefeito.
- O prefeito de Clear.
- Exatamente.
Rachel sentiu que batiam no seu braço, olhou para baixo e viu a pasta que continha as fotos. Bosch a estava dando para ela, mas permanecendo na sombra. Parecia saber que as coisas de repente tinham mudado por completo. Aquilo agora era mais com ela do que com Terry McCaleb, ou mesmo ele próprio, Bosch. Ela pegou a pasta e retirou uma das fotos que McCaleb tirara do cliente de pescarias que se dera a conhecer como Jordan Shandy. Mostrou-a a Billings Rett.
Ele levou apenas alguns segundos examinando a foto.
- Isso mesmo, é ele sim. Inclusive o gorro dos Dodgers. Nós assistimos a todos os jogos aqui na parabólica e Tom era Dodgers roxo.
- Ele dirigia um carro para você?
- O único carro. A prefeitura aqui é coisa pequena.
- Ele lhe disse que a irmã ia aparecer aqui?
- Não, disse que talvez aparecesse. E me deu algo.
Ele se virou e procurou nas prateleiras atrás do bar. Viu o que procurava e estendeu a mão para a prateleira de cima. Pegou um envelope que entregou a Rachel. A saída do envelope deixou um retângulo de limpeza na poeira do vidro da prateleira. Estava ali já fazia um bocado de tempo.
O nome de Rachel aparecia completo no sobrescrito. Ela virou o corpo ligeiramente como se quisesse esconder o envelope de Bosch e começou a abri-lo.
- Rachel - disse Bosch -, você não deveria examiná-lo primeiro?
- Não tem importância. Sei que é dele.
Ela rasgou o envelope, puxou um cartão grande e passou a ler o bilhete manuscrito que havia nele.
Cara Rachel,
Se, como espero, você for a primeira a ler isto, então fui um bom professor. Espero que esteja gozando de boa saúde e disposição. Acima de tudo, espero que isto signifique que você sobreviveu ao exílio dentro do Bureau e que agora voltou ao topo. Minha esperança é de que quem tirou o que era seu possa lhe devolver. Nunca foi minha intenção, Rachel, prejudicá-la. E é a minha intenção agora, com meu último ato, salvá-la.
Adeus, Rachel.
R.
Ela releu rapidamente o bilhete e passou o cartão por cima do ombro para Bosch. Enquanto ele lia, ela continuou com Billings Rett.
- Quando ele lhe deu este envelope e o que disse exatamente?
- Foi há cerca de um mês, mais uns dias menos uns dias, e foi quando ele me disse que ia embora. Pagou o aluguel, disse que queria conservar o lugar, me deu o cartão e disse que era para sua irmã, que talvez aparecesse procurando por ele. E agora você está aqui.
- Não sou irmã dele - disparou Rachel. - Quando foi que ele apareceu aqui em Clear?
- Difícil dizer ao certo, três ou quatro anos atrás.
- Por que ele veio para cá?
- Sei lá. Por que as pessoas vão para Nova York? Todo mundo tem suas razões. Ele não compartilhou comigo as dele.
- Como chegou a ser seu motorista?
- Um dia estava aqui dando umas tacadas e perguntei se ele aceitava um trabalho. Disse que não se incomodava e a coisa começou aí. Não é um emprego de tempo integral. Só quando temos um chamado de alguém querendo um carro. A maior parte das pessoas vem para cá dirigindo os próprios carros.
- E nessa ocasião, há três ou quatro anos, ele lhe disse que se chamava Tom Walling?
- Não, ele me disse o nome quando alugou o trailer de mim. Foi quando chegou aqui.
- E o que me diz de um mês atrás? Você falou que ele pagou o aluguel e foi embora?
- Sim, ele disse que voltava e queria reservar o trailer. Pagou o aluguel até agosto. Mas foi viajar e nunca mais ouvi falar nele.
Do lado de fora do trailer soou um alarme. O Mercedes. Rachel virou-se para Bosch mas ele já estava se dirigindo para a porta.
- Eu vou - disse ele.
Bosch saiu porta afora, deixando Rachel sozinha com Rett. Ela o encarou.
- Tom Walling alguma vez disse de onde tinha vindo?
- Não, nunca falou nada. Aliás, ele não era de falar muito.
- E você nunca perguntou.
- Meu bem, não se faz perguntas em um lugar como este. As pessoas que vêm para cá não gostam de responder a perguntas. Tom, ele gostava de dirigir e ganhar uns cobres aqui e ali e depois vir jogar sinuca sozinho. Não bebia, só mascava goma. Nunca se metia com as putas e nunca se atrasou para pegar um freguês. O que era ótimo para mim. O sujeito que dirige para mim agora está sempre...
- Não me importo com o sujeito que dirige para você agora.
A campainha da porta tocou atrás dela e Rachel virou-se a tempo de ver Bosch entrando. Ele balançou a cabeça, querendo dizer que estava tudo bem.
- Elas tentaram a porta. Acho que a tranca não está funcionando direito.
Ela assentiu e voltou a atenção para Rett, o orgulhoso prefeito de uma cidade-bordel.
- Sr. Rett? - perguntou ela. - Onde fica o trailer de Tom Walling?
- Ele pegou o de solteiro, na ponta oeste da cidade.
Rett sorriu, revelando um dente podre na frente do maxilar inferior.
- Tom gostava de ficar fora da cidade. Disse que não gostava de toda essa animação que tem por aqui. Por isso eu o acomodei lá fora, atrás da pedra do Titanic.
- Pedra do Titanic?
- Você vai saber quando chegar lá... se é que viu o filme. Um desses alpinistas modernos que aparecem por aqui a designou assim também. Você vai ver. Basta pegar a estrada atrás do bar, seguir para oeste e estará lá. Procure o navio afundando.
Capítulo 33
Eu estava com as duas mulheres no Mercedes, ar-condicionado ligado, esperando que elas esfriassem. Rachel continuava no bar ao telefone, falando com Cherie Dei e coordenando a vinda de reforços. Meu palpite era que em pouco tempo os agentes desceriam do céu em helicópteros, baixando em força na cidadezinha de Clear, Nevada. A trilha estava fresca. Eles estavam próximos.
Tentei conversar com as duas garotas - era difícil pensar nelas como mulheres a despeito do que faziam para ganhar a vida e mesmo que tivessem idade suficiente. Provavelmente sabiam tudo o que havia para saber a respeito dos homens, mas não pareciam saber coisa alguma sobre o mundo. Na minha cabeça, eram apenas garotas que tinham seguido caminhos errados ou haviam sido privadas da condição de mulheres adultas. Começava a compreender o que Rachel dissera antes sobre escravidão.
- Tom Walling aparecia no trailer e contratava alguma das garotas? - perguntei.
- Não que eu saiba - respondeu Tammy.
- Alguém me disse que provavelmente ele era bicha ou algo assim - acrescentou Mecca.
- Porquê?
- Porque vivia como um eremita ou algo assim - respondeu Mecca. - E não queria saber de xoxota mesmo que a Tawny tivesse oferecido a ele por conta da casa, como fazia com os outros motoristas.
- Há muitos motoristas?
- Ele era o único daqui mesmo - apressou-se a dizer Tammy, aparentemente não gostando de ver Mecca na liderança. - Os outros vêm de Las Vegas. Alguns trabalham para os cassinos.
- Se há motoristas em Las Vegas, como é que pode alguém contratar Tom aqui para ele ir lá buscar a pessoa?
- Ninguém fazia isso - disse Mecca.
- Às vezes fazia sim - corrigiu Tammy.
- Bem, às vezes. Os idiotas. Mas na maior parte das vezes a gente chamava Tom quando alguém saía do esquema e ficava mais um tempo ou alugava um dos trailers do Velho Billings e depois precisava de condução para voltar porque a sua fora embora havia muito tempo. Os carros dos cassinos não esperam toda a vida. A menos que você seja um desses caras que jogam muito dinheiro, só que aí, provavelmente...
- Provavelmente o quê?
- Para começar, não teriam vindo a Clear.
- Tem garotas mais bonitas em Pahrump - disse Tammy, com indiferença, como se estivesse tratando estritamente de uma desvantagem comercial, não de algo que a incomodava pessoalmente.
- E é um pouco mais perto e a xoxota é mais cara - disse Mecca. - Por isso o que temos aqui em Clear é o consumidor preocupado com o próprio bolso.
Declaração digna de uma verdadeira especialista em marketing. Tentei repor a conversa nos trilhos.
- Quer dizer então que Tom Walling levava os clientes de volta para Las Vegas ou para qualquer que fosse o lugar de onde vinham.
- Certo.
- Certo.
- E esses caras, esses clientes, podiam ser totalmente anônimos. Vocês não checam identidades, correto? Os clientes podem usar o nome que bem entenderem.
- Exatamente. Fora os que aparentam ter menos de 21 anos.
- Certo. Verificamos a identidade dos mais jovens.
Dava para entender como podia ter sido, como Backus podia ter escolhido suas vítimas entre os clientes do bordel. Se achasse que tinham tomado medidas para preservar suas identidades e manter em segredo a excursão feita a Clear, eles haviam, inadvertidamente, se tornado vítimas perfeitas. O que também tinha a ver com o que se sabia sobre os demônios que desencadeavam sua orgia assassina. O perfil levantado do Poeta indicava que a patologia de Backus guardava estreito envolvimento com a sua relação com o pai, um homem que, por fora, tinha a imagem exaltada de agente do FBI, herói e do homem de bem, mas que, na verdade, abusara do filho e da esposa, obrigando-a a fugir de casa. Impossibilitado de fugir, não restara outra coisa a Backus senão recolher-se a um mundo de fantasias que envolviam o assassinato do homem que o maltratara.
Percebi que algo não batia. Lloyd Rockland, a vítima que tinha alugado um carro. Como se ajustava ao esquema se não precisava de motorista?
Abri a pasta que Rachel deixara no carro e peguei a foto de Rockland. Mostrei às duas mulheres.
- Este cara aqui, alguma de vocês o reconhece? O nome dele era Lloyd.
- Era? - estranhou Mecca.
- Era, sim. Lloyd Rockland. Está morto. Vocês o reconhecem?
Nenhuma das duas reconheceu Lloyd. Eu sabia que era um tiro no escuro com pouquíssimas chances. Rockland desaparecera em 2002. Tentei pensar em uma explicação que justificasse o enquadramento dele na teoria.
- Vocês servem álcool aqui, não servem?
- Se o cliente quiser, nós providenciamos - respondeu Mecca. - Temos licença para vender bebidas.
- Certo, e o que acontece quando o sujeito vem de Vegas para cá em seu carro e fica bêbado demais para voltar para casa?
- O prefeito resolve. Manda o motorista levá-lo no seu carro. Depois volta em um dos carros do cassino ou algo assim. Funciona.
Balancei a cabeça, satisfeito. Ajustava-se à minha teoria. Rockland podia ter tomado um porre, tendo que ser levado de volta pelo motorista, Backus. Só que não fora levado para Las Vegas. Eu sabia que teria de pedir a Rachel para verificar se os despojos identificados como de Rockland continham alto teor alcoólico. Seria mais uma confirmação.
- Senhor, nós vamos ter que ficar aqui o dia inteiro? - quis saber Mecca.
- Não sei - respondi, olhando para a porta do trailer.
Rachel tentou manter a voz baixa porque Billings Rett estava na outra ponta do bar fazendo de conta que resolvia uma palavra cruzada, mas, na verdade, tentava ouvir e compreender tudo o que ela dizia e que pudesse ser ouvido pelo telefone.
- Para que horas está prevista a chegada?
- Estaremos no ar em vinte minutos e depois serão outros vinte para chegar aí - disse Cherie Dei. - Tenha paciência, Rachel.
- Deixa comigo.
- E Rachel, eu conheço você. Sei o que vai querer fazer. Mantenha-se longe do trailer do suspeito até que possamos chegar aí com uma equipe de resgate. Deixa que façam seu trabalho.
Rachel quase disse a Dei que, na verdade, ela não a conhecia, que ainda não tinha conseguido compreender nada a seu respeito. Mas ficou quieta.
- Deixa comigo - foi o que disse.
- E o Bosch? - perguntou Dei a seguir.
- O que tem ele?
- Quero que ele fique afastado disso.
- Vai ser meio difícil, já que foi ele quem encontrou o lugar. Tudo isso é por causa dele.
- Eu entendo, mas teríamos chegado lá com o tempo. Sempre chegamos. Agradeceremos a ele mas teremos que afastá-lo.
- Bem, você vai ter que lhe dizer isso.
- Direi. Então, estamos combinadas? Tenho que ir para o aeroporto.
- Tudo combinado. Vejo você em uma hora.
- Rachel, uma última coisa, por que você não foi dirigindo para aí?
- O palpite era de Bosch, ele queria dirigir. Que diferença faz?
- Você deu a ele o controle da situação, só isso.
- Você diz isso agora, depois do fato consumado. Nós pensamos que íamos conseguir uma pista dos homens desaparecidos, não sermos levados a...
- Tudo bem, Rachel. Eu não devia ter tocado nisto. Tenho que ir.
Dei desligou. Rachel não pôde fazer o mesmo porque seu telefone era instalado na parede dos fundos e o fio passava por cima do balcão do bar. Levantou-o na direção de Rett, que deixou o lápis das palavras cruzadas em cima da mesa e se aproximou. Ele pegou o aparelho e desligou.
- Muito obrigada, Sr. Rett. Dentro de mais ou menos uma hora helicópteros aterrizarão aqui. Provavelmente bem em frente deste trailer. Agentes vão querer falar com o senhor. Mais formalmente do que eu. E devem querer falar com muita gente na sua cidade.
- Não é bom para os negócios.
- Provavelmente não, mas quanto mais depressa as pessoas cooperarem, mais depressa eles darão o fora daqui.
Ela não mencionou a horda de jornalistas que também deveria descer sobre Clear uma vez que fosse revelado publicamente que a pequena cidade-bordel no meio do deserto era o local onde o Poeta se enfurnara em todos aqueles anos e escolhera suas vítimas mais recentes.
- Se os agentes perguntarem onde estou, diga que fui até o trailer de Tom Walling, sim?
- Tive a impressão de que lhe disseram para não ir lá.
- Sr. Rett, diga apenas o que pedi.
- Pode deixar.
- A propósito, o senhor esteve lá depois que ele lhe disse que ia se afastar durante algum tempo?
- Não, não consegui. Ele pagou o aluguel e não achei que fosse da minha conta ir meter o nariz onde não era chamado. Não é assim que somos aqui em Clear.
Rachel balançou a cabeça.
- Certo, Sr. Rett, muito obrigada pela sua cooperação.
Ele deu de ombros, como se quisesse dizer que não tivera alternativa ou que sua cooperação fora mínima. Rachel virou as costas para o balcão e dirigiu-se para a saída. Mas ao chegar na porta hesitou. Meteu a mão dentro da jaqueta e pegou o carregador extra da Sig Sauer que levava no cinto. Avaliou seu peso e colocou-o no bolso da jaqueta. Só então saiu e embarcou no Mercedes, ao lado de Bosch.
- E então - perguntou ele -, a agente Dei está furiosa?
- De jeito nenhum. Acabamos de avançar enormemente a investigação do caso, como poderia ficar furiosa?
- Não sei. Algumas pessoas têm a capacidade de se zangar não importa o que você lhes dê.
- Vamos ficar aqui o dia inteiro? - perguntou Mecca, do banco de trás.
Rachel virou-se para encarar as duas mulheres.
- Vamos até o extremo oeste para examinar um trailer. Vocês podem ir conosco e esperar no carro ou podem ficar esperando no bar. Há mais agentes a caminho. Provavelmente vocês poderão prestar seus depoimentos aqui mesmo, sem ter que ir a Las Vegas.
- Graças a Deus - exclamou Mecca. - Vou esperar aqui.
- Eu também - aderiu Tammy.
Bosch deixou que saltassem.
- Esperem aqui - exclamou Rachel. - Se voltarem para o seu trailer ou forem a alguma outra parte não irão longe e só servirá para chatear o pessoal.
As duas não agradeceram o aviso. Rachel observou-as seguirem em frente e entrarem no bar. Bosch retomou seu lugar e engrenou a ré.
- Tem certeza disso? - perguntou ele. - Meu palpite é que a agente Dei lhe disse para esperar os reforços chegarem.
- Ela também disse que uma das primeiras coisas que deveria fazer era mandar você embora. Quer esperá-la ou prefere ver o trailer?
- Não se preocupe, vou ver o trailer. Não sou eu que estou com a carreira em perigo.
- É a que eu tenho.
Seguimos a estrada de terra que Billings Rett tinha nos dito para seguir. Ela rumava para oeste a partir de Clear e subia por uns dois quilômetros uma elevação suave até que se nivelava e fazia uma curva atrás de uma pedra avermelhada que era exatamente como Rett descrevera. Lembrava a popa do Titanic quando saiu da água em um ângulo de sessenta graus para depois mergulhar no oceano. Segundo o filme, pelo menos. O tal alpinista a que ele se referira galgara o ponto culminante e usara tinta branca para garatujar "Titanic" na superfície da pedra.
Não nos detivemos para apreciar a rocha ou a pintura. Contornei-a com o Mercedes e logo cheguei a uma clareira onde havia um trailer assentado sobre blocos de concreto, o esqueleto de um carro com os quatro pneus vazios ao lado do trailer e um latão de óleo usado para queimar lixo nas proximidades. Do outro lado, via-se um grande tanque de combustível e um gerador.
Pensando em preservar possíveis evidências da cena do crime, parei antes da clareira e desliguei o motor. Notei que o gerador estava parado. De algum modo, o silêncio que envolvia toda a cena parecia agourento. Tive a sensação perfeita de que acabara de chegar ao fim do mundo, um lugar de escuridão. Perguntei-me se fora para ali que Backus levara suas vítimas, se aquele fora o fim do mundo para elas. Provavelmente, conclui. Era um lugar onde o Mal se encontrava à espreita.
Rachel rompeu o silêncio.
- Bem, viemos aqui para ficar olhando de longe ou vamos investigar?
- Estava esperando para ver o que você faria.
Ela abriu a sua porta e eu a minha. Saltamos e andamos até a frente do carro. Foi então que notei as janelas do trailer abertas, o que não era lógico de se esperar de uma pessoa que estivesse se ausentando do lugar onde morava por um longo período de tempo. Depois deste reconhecimento, veio o odor.
- Está sentindo o cheiro?
Ela assentiu com a cabeça. A morte estava no ar. Muito pior, muito mais forte que em Zzyzx. Instintivamente, eu soube que não iríamos encontrar enterrados ali os segredos do assassino. Não desta vez. Havia um corpo naquele trailer - pelo menos um - decompondo-se ao ar livre.
- Com meu último ato - disse Rachel.
- O quê?
- O cartão. O que ele escreveu no cartão.
Assenti. Ela estava pensando em suicídio.
- Você acha?
- Não sei. Vamos verificar.
Avançamos vagarosamente, sem dizer uma palavra. O fedor ficava cada vez mais forte e nós dois sabíamos que aquele morto, fosse quem fosse, já estava ali há muito tempo.
Afastei-me de Rachel e andei até as janelas que ficavam à esquerda da porta do trailer. Com as mãos em concha sobre a tela, tentei distinguir alguma coisa na escuridão do lado de dentro. O contacto das minhas mãos serviu de alarme para as moscas, que se lançaram contra a tela como se o que houvesse lá dentro e o próprio cheiro fosse demasiado até mesmo para elas.
Não havia cortina, mas eu não tinha uma boa visão do ângulo em que me encontrava - pelo menos não via um corpo ou tampouco uma indicação de corpo. Parecia uma pequena área de estar, com um sofá e uma cadeira. Havia uma mesa com duas pilhas de livros de capa dura em cima. Atrás da cadeira era possível ver uma estante com as prateleiras cheias de livros.
- Nada - falei.
Recuei um pouco e avaliei a extensão do trailer. Vi os olhos de Rachel focados na porta e na maçaneta. Alguma coisa me bateu, algo que não se ajustava.
- Rachel, por que ele deixou aquele bilhete para você no bar?
- O quê?
- O bilhete. Ele deixou no bar. Por que lá? Por que não aqui?
- Acho que queria ter certeza de que eu ia receber.
- Mas se não tivesse deixado lá você ainda assim teria subido e o encontraria aqui.
Ela sacudiu a cabeça.
- O que você está querendo dizer? Não estou...
- Não mexa na porta, Rachel. Vamos esperar.
- De que você está falando?
- Não gosto disso.
- Por que não contorna o trailer e vê se lá atrás tem alguma janela de onde possa ver alguma coisa do lado de dentro?
- Está bem, eu vou. Mas espera aí.
Ela não me respondeu. Contornei o trailer pelo lado esquerdo, passei por cima do engate e fui para o outro lado. Mas aí dei uma parada e fui olhar no latão de lixo.
Ele estava cheio até um terço com restos chamuscados de lixo. Peguei no chão um cabo de vassoura queimado de um lado e enfiei nas cinzas do interior do latão, como tinha certeza de que Backus fizera enquanto o lixo ardia, a fim de se assegurar de que tudo pegava fogo.
A impressão que tive foi de que ali haviam sido queimados basicamente papéis e livros. Nada que fosse possível reconhecer, até que dei com um cartão de crédito escurecido e meio derretido. Impossível dizer exatamente do que se tratava, mas os técnicos do laboratório podiam ser capazes de ligar aquilo a alguma das vítimas. Mergulhei o cabo de vassoura mais fundo e vi pedaços de plástico preto derretido. Notei então um livro que fora inteiramente queimado do lado de fora, mas que ainda apresentava algumas páginas intactas por dentro. Levantei-o com a ponta dos dedos e abri-o cautelosamente. Dava a impressão de ser poesia, embora fosse difícil ter certeza, já que todas as páginas estavam parcialmente incineradas. Entre duas páginas, encontrei um recibo meio queimado do livro. No topo dizia "Book Car", mas o resto não podia ser lido.
- Bosch? Onde está você?
Era Rachel. Eu não me encontrava no seu campo de visão. Coloquei o livro de volta no latão e larguei junto a vassoura. Depois voltei para a lateral do trailer e vi outra janela aberta.
- Espera um segundo.
Rachel esperou. Estava ficando impaciente. Ouvia ao longe o barulho dos helicópteros atravessando o deserto. Aquilo significava que sua oportunidade estava por acabar. Seria afastada e possivelmente punida pelo modo como administrara a presença de Bosch.
Ela olhou para a maçaneta da porta. Pensou em Backus e se aquele seria mesmo seu último ato. Quatro anos no deserto teriam sido suficientes? Teria ele matado Terry McCaleb e mandado o GPS para ela só para conduzi-la àquele lugar? Pensou no bilhete que lhe deixara, dizendo ter sido um bom professor. Uma onda de ódio foi subindo dentro dela, um ódio tal que a fez querer abrir a porta e...
- Temos um corpo!
Era Bosch, chamando do outro lado do trailer.
- O quê? Onde?
- Venha cá. Estou vendo. Há uma cama e vejo um corpo. Morto há dois, três dias. Não consigo ver o rosto.
- Mais alguma coisa?
Rachel aguardou. Ele não disse nada. Rachel pôs a mão na maçaneta, que girou.
- A porta não está trancada.
- Rachel, não abra! - exclamou Bosch. - Acho que... acho que sinto um cheiro de gás. Existe algo além do corpo. Alguma coisa além do óbvio. Por trás de tudo.
Rachel hesitou, mas girou inteiramente a maçaneta e abriu a porta uns dois centímetros.
Nada aconteceu.
Puxou vagarosamente a porta até que a abriu por completo. Nada aconteceu. As moscas viram a abertura e passaram zumbindo por ela em direção à luz. Rachel afastou-as dos olhos, abanando a mão.
- Bosch, estou entrando.
Ela entrou no trailer. Mais moscas. Moscas por toda a parte. O odor a atingiu totalmente, invadindo-a e retorcendo seu estômago.
Os olhos de Rachel adaptaram-se à obscuridade e ela viu as fotos. Estavam empilhadas sobre as mesas e presas nas paredes e na geladeira. Fotos das vítimas, vivas e mortas, chorosas, súplices, patéticas. A mesa da cozinha do trailer fora transformada em uma estação de trabalho. Havia um laptop conectado a uma impressora de um lado e três pilhas separadas de fotos. Ela pegou a pilha maior e pôs-se a folhear, identificando em algumas os desaparecidos cujas fotos os levaram a Clear. Mas não eram retratos de família. Estas eram fotos do assassino e suas vítimas. Nela apareciam homens cujos olhos suplicavam para a câmera, pedindo perdão e misericórdia. Rachel notou que todas tinham sido feitas de cima para baixo, com o fotógrafo - Backus - na posição dominante, focalizando a câmera em suas vítimas enquanto elas rezavam e suplicavam por suas vidas.
Quando não aguentou mais, Rachel pôs as fotos de volta na mesa e pegou a segunda pilha. Esta era menor e mostrava principalmente uma mulher e duas crianças caminhando em um shopping. Largou-as e já estava prestes a pegar a terceira pilha quando Bosch entrou no trailer.
- Rachel, o que estamos fazendo?
- Não se preocupe. Temos cinco, talvez dez minutos. Saímos assim que ouvirmos os helicópteros e aí deixamos a equipe de recuperação de provas assumir. Eu só queria ver se...
- Não estou falando em passar a perna em outros agentes. Não gosto disto... a porta ter sido deixado aberta. Alguma coisa não está...
Ele interrompeu-se quando deu a primeira olhada nas fotos.
Ela se voltou outra vez para a mesa e levantou a câmera que estava em cima da última pilha de fotos. Viu um retrato de si própria. Levou um momento para se dar conta do local onde tinha sido fotografada.
- Ele estava comigo o tempo todo - disse.
- De que você está falando?
- Este é o aeroporto de O’Hare, em Chicago, onde fiz uma parada. Backus estava lá me vigiando.
Ela deu uma olhada rápida nas fotos. Havia seis, todas dela no dia em que viajara. A última a mostrava em companhia de Cherie Dei, as duas se cumprimentando no saguão onde ficava o carrossel de bagagens. Cherie segurando ao lado do corpo o cartaz que dizia BOB BACKUS.
- Ele estava me vigiando.
- Como vigiou Terry.
Bosch aproximou-se da bandeja da impressora e usou um dedo de cada mão para levantar uma foto pelas bordas sem deixar digitais. Parecia ser a última imagem que Backus imprimira. Mostrava a fachada de uma casa de dois andares sem nada que a distinguisse em particular. Na entrada para carros, havia uma caminhonete. Um velho de pé ao lado da porta do motorista olhava para um chaveiro como se procurasse uma chave para abrir o carro.
Bosch mostrou a foto para Rachel.
- Quem é?
Ela examinou a foto por um longo momento.
- Não sei.
- A casa?
- Nunca vi antes.
Bosch recolocou a foto cuidadosamente na bandeja de modo que viesse a ser encontrada na posição original pela equipe de evidências.
Rachel deslocou-se por trás dele e desceu o corredor na direção de uma porta fechada. Antes de chegar lá, deu um passo dentro do banheiro, cuja porta se encontrava aberta. Estava limpo, exceto pelas moscas mortas que cobriam todas as superfícies. Na banheira havia dois travesseiros e um cobertor arrumados para dormir. Lembrou-se das informações colhidas a respeito de Backus e sentiu uma repulsão física crescendo dentro do peito.
Saiu do banheiro e continuou na direção da porta fechada no fim do corredor.
- Foi ali que você viu o corpo?
Ele virou-se e a viu se aproximando da porta.
- Rachel...
Rachel não parou. Girou a maçaneta e abriu a porta, puxando-a. Ouviu um nítido ruído metálico, que meu cérebro não associou com fechaduras. Ela se deteve e ficou imobilizada.
- Harry?
Comecei a me deslocar na direção dela.
- Que é?
- Harry!
Ela se virou para mim nos limites apertados do corredor forrado de compensado. Olhei para além do seu rosto e vi o corpo na cama. Um homem deitado de costas, chapéu de caubói preto sobre a cabeça para bloquear a visão do rosto. Pistola na mão direita. Ferimento de bala na parte superior esquerda do peito.
As moscas zumbiam à nossa volta. Ouvi um ruído alto, sibilante, forcei a passagem por ela e vi o estopim no chão, queimando. Tratava-se de um dispositivo químico, uma trança de fios tratados com agentes químicos que queimariam, até mesmo debaixo d’água.
O processo químico se desenvolvia com rapidez. Não podíamos interrompê-lo. Havia talvez um metro e vinte daquele emaranhado de fios enrolados no chão, desaparecendo debaixo da cama. Rachel abaixou-se para puxá-lo.
- Não faça isso! Pode fazer com que detone mais depressa. Não há nada que possamos fazer. Temos que dar o fora!
- Não! Não podemos perder a cena do crime! Precisamos...
- Rachel, não temos tempo! Vá! Corra! Agora!
Empurrei-a de volta pelo corredor e bloqueei qualquer possível tentativa de retorno com meu corpo. Comecei a me deslocar de costas, os olhos fixos no corpo em cima da cama. Quando pensei que Rachel tinha desistido, virei-me e lá estava ela me esperando. Ela me empurrou.
- Precisamos do DNA! - gritou.
Vi-a entrar no quarto e pular por cima da cama. Agarrou o chapéu do morto, revelando seu rosto deformado e cinzento por causa da decomposição. Recuou logo em seguida e correu para a porta.
Até mesmo naquele momento admirei seu raciocínio e o que fizera. A parte de dentro da aba do chapéu com toda a certeza conteria células da pele que teriam o DNA do corpo. Passou por mim carregando o chapéu e começou a correr para a porta. Desviei os olhos e vi que o ponto de combustão do estopim estava desaparecendo sob a cama. Disparei atrás dela.
- Era ele? - gritou Rachel por cima do ombro.
Eu sabia o que queria saber: o cadáver em cima da cama era do homem que aparecera no barco de Terry McCaleb? Era Backus?
- Não sei. Corre! Vamos! Corre!
Atingi a porta dois segundos depois de Rachel. Ela já pisava no solo arenoso do deserto, voando na direção da pedra do Titanic. Fui atrás. Eu devia ter dado talvez cinco passadas quando a explosão sacudiu o ar atrás de mim. Fui atingido com toda a força da concussão ensurdecedora e lançado ao chão. Lembrei-me dos rolamentos que tanto praticara no exército e com isso ganhei mais alguns metros de distância da explosão.
O tempo ficou desarticulado e vagaroso. Um momento eu estava correndo. O momento seguinte eu estava de quatro, olhos abertos, tentando levantar a cabeça. Alguma coisa eclipsou momentaneamente o sol e eu consegui olhar para cima e ver a casca do trailer a uns dez metros no ar em cima de mim. Tinha paredes e telhados intactos. Me deu a impressão de ter flutuado e ficado quase preso lá em cima. Mas logo veio caindo e despencou estrondosamente no chão a uns dez metros à minha frente, as laterais de alumínio estilhaçadas, cortantes como navalhas. O barulho ao tocar no solo foi de uma colisão de cinco carros.
Chequei o céu para ver se tinha mais e vi que estava limpo. Olhei para a localização original do trailer, atrás de mim, e vi um fogo intenso e uma densa massa de fumaça negra subindo ao céu como uma onda em movimento. Nada era reconhecível na estrutura de sustentação do trailer. Tudo tinha sido consumido pela explosão e pelo fogo. A cama e o corpo tinham desaparecido. Backus planejara sua saída com perfeição.
Pus-me de pé, ainda instável, porque meus tímpanos vibravam e meu equilíbrio estava desligado. Tinha a impressão de andar em um túnel com trens velozes passando por mim em ambos os lados. Tive vontade de levar as mãos aos ouvidos, mas sabia que não adiantava. O barulho reverberava vindo de dentro.
Rachel estava a poucos passos de mim antes da explosão mas agora não conseguia vê-la. Tropecei no meio da fumaça de um lado para o outro e comecei a pensar que ela talvez estivesse embaixo da casca do trailer.
Finalmente encontrei-a no chão, à esquerda dos escombros do trailer. Estava deitada, imóvel, em cima da terra e das pedras. O chapéu preto jazia no chão ao seu lado, como um símbolo da morte. Movi-me o mais depressa que pude para o lado dela.
- Rachel?
Apoiei-me nas mãos e joelhos para examiná-la, primeiro sem tocar nela. Estava de bruços e o cabelo caído para a frente me impedia de ver seus olhos. De repente me lembrei de minha filha, de como eu costumava afastar delicadamente o cabelo dela para trás. Ao repetir o gesto, notei que havia sangue no dorso da minha mão e pela primeira vez percebi que tinha sofrido pequenos ferimentos. Decidi que ia me preocupar com isso mais tarde.
- Rachel?
Impossível dizer se respirava ou não. Meus sentidos aparentemente funcionavam segundo a teoria do dominó. Com a audição perdida no mínimo temporariamente, a coordenação dos demais sentidos também se fora. Dei um tapinha no seu rosto.
- Vamos, Rachel, acorde.
Não queria virá-la, com medo de agravar possíveis ferimentos que não tinha visto. Dei outro tapinha no rosto, desta vez com mais força. Pus a mão nas suas costas, na esperança de poder sentir o levantar e abaixar da respiração, como acontecia com minha filha.
Nada. Encostei o ouvido nas suas costas, mas achei ridículo, tendo em vista minha condição. Meu instinto queria movimentar-se adiante da lógica. Começava a pensar que não teria outra alternativa que não virá-la de costas quando vi os dedos de sua mão direita se contraírem.
De repente, ela levantou o rosto do chão e gemeu. Um gemido tão alto que consegui ouvir.
- Rachel, você está bem?
- Eu... eu... há provas no trailer. Precisamos delas.
- Rachel, não existe mais trailer. Acabou.
Ela se esforçou para se virar e sentar. Arregalou os olhos ante a visão dos escombros incandescentes daquilo que tinha sido o trailer. Pude ver que suas pupilas estavam dilatadas. Sofrera uma concussão cerebral.
- O que você fez? - perguntou, em tom acusatório.
- Não fui eu. O trailer estava preparado para explodir. Quando você abriu a porta do quarto...
- Oh.
Ela girou a cabeça para trás e para frente como se estivesse sentindo câimbras no pescoço. Foi quando viu o chapéu preto de caubói ao seu lado.
- O que é isso?
- O chapéu dele. Você o pegou antes de sair.
- DNA?
- Espero que sim, embora não esteja seguro quanto à utilidade que terá.
Ela olhou de novo para a base do trailer em chamas. Estávamos perto demais. Eu podia sentir o calor do fogo. Mas ainda assim não me sentia seguro se ela deveria se mover.
- Rachel, por que não se deita? Acho que você teve uma concussão. Talvez tenha sofrido outros ferimentos.
- É, acho que é uma boa ideia.
Ela deitou a cabeça no chão e olhou para o céu. Decidi que afinal aquela não era uma má posição e fiz o mesmo. Era como se estivéssemos na praia ou algo assim. Se fosse de noite, teríamos contado as estrelas.
Antes que pudesse ouvi-los, senti a aproximação dos helicópteros. Uma vibração profunda no meu peito me fez olhar para o céu do sul e vi os dois helicópteros da força aérea aproximando-se do topo da pedra do Titanic. Debilmente levantei o braço e acenei para que viessem.
Capítulo 34
- O que diabos aconteceu lá?
O rosto do agente especial Randal Alpert estava rígido e quase roxo. Esperava por eles no hangar de Nellis quando o helicóptero aterrissou. Seus instintos políticos aparentemente tinham lhe dito para não ir pessoalmente à cena. Fora o preço que pagara para conseguir se distanciar das consequências involuntárias resultantes da explosão ocorrida no deserto e que possivelmente alcançariam Washington.
Rachel Walling e Cherie Dei, de pé no imenso hangar, se preparavam para o ataque violento de Alpert. Rachel não respondeu à sua pergunta por que pensou que era apenas o preâmbulo de uma arenga para um cansativo destampatório. E ela estava reagindo lentamente, a cabeça ainda um pouco tonta por causa da explosão.
- Agente Walling, eu lhe fiz uma pergunta!
- Ele tinha preparado o trailer para explodir - disse Cherie Dei. - Sabia que ela...
- Perguntei a ela, não a você - berrou Alpert. - Quero que a agente Walling me diga exatamente porque não foi capaz de obedecer às ordens e como aconteceu essa merda toda ao ponto de ser impossível um reconhecimento.
Rachel ergueu as mãos com as palmas para cima indicando que não havia nada que pudesse ter feito a respeito do acontecido.
- Nós íamos esperar a equipe de resgate - disse ela. - Segundo as instruções da agente Dei. Estávamos na periferia da locação quando percebemos que o cheiro denunciava a existência de um corpo ali. Pensamos que talvez houvesse alguém vivo lá dentro. Alguém ferido.
- E tiveram essa ideia simplesmente porque sentiram o fedor de um cadáver?
- Bosch pensou ter ouvido alguma coisa.
- Oh, lá vamos nós apelar novamente para a velha desculpa do pedido de socorro.
- Não, ele ouviu qualquer coisa sim. Mas foi o vento, eu acho. Lá o vento amplifica tudo. As janelas, que foram deixadas abertas, devem ter causado o som que ele ouviu.
- E você? Ouviu também?
- Não, eu não ouvi.
Alpert olhou para Dei e depois para Rachel de novo. Ela podia sentir o olhar dele atravessando-a. Mas a desculpa era boa e não ia pestanejar. Ela e Bosch tinham combinado tudo. Ele estava fora do alcance de Alpert. Se Rachel tivesse reagido ao alarme dado por Bosch não podia ser acusada de nada. Alpert podia vociferar e se queixar, nada além disso.
- Você sabe qual é o problema da sua história? É a primeira palavra: nós. Você disse nós. Você recebeu a missão de ficar de olho em Bosch, não de se juntar a ele na investigação. Não de pegar uma carona no carro dele e vir para cá. E tampouco de interrogar testemunhas e entrar junto com ele naquele trailer.
- Eu compreendo, mas, dadas as circunstâncias, decidi que seria no melhor interesse da investigação somarmos nossos conhecimentos e recursos. Para ser franca, agente Alpert, foi Bosch quem encontrou este lugar. Não teríamos o que temos agora se não fosse ele.
- Não se iluda, agente Walling. Nós teríamos chegado aqui.
- Eu sei. Mas a rapidez era um fator importante. Você mesmo disse depois do briefing matinal. O diretor ia dar uma entrevista coletiva. Minha intenção era conseguir que ele tivesse o máximo de informações que fosse possível.
- Bem, esqueça isso por ora. Agora nós não sabemos o que temos. Ele adiou a entrevista e nos deu até o meio-dia de amanhã para avaliar o que dispomos aqui.
Cherie Dei pigarreou e arriscou nova intervenção.
- Impossível - disse ela. - Lá só temos um corpo carbonizado aos pedaços. Estão usando sacos múltiplos para retirá-lo. A identificação e a causa da morte vão levar semanas, se isso for possível. Por sorte, parece que a agente Walling foi capaz de obter uma amostra de DNA do corpo e isso pode acelerar as coisas, mas não temos como fazer a comparação. Nós...
- Talvez você não tenha escutado o que falei há pouco - interrompeu-a Alpert -, nós não temos semanas. Temos menos de 24 horas.
Alpert virou as costas para elas e pôs as mãos nas cadeiras, adotando uma pose que demonstrava o fardo que pesava sobre seus ombros por ser o único agente inteligente e sábio que restava no planeta.
- Então deixa que a gente volte para lá - sugeriu Rachel. - Talvez possamos encontrar no meio dos escombros algo que...
- Não! - gritou Alpert.
Ele se virou de novo para encará-las.
- Não será preciso, agente Walling. Vocês já fizeram o bastante.
- Conheço Backus e conheço o caso. Eu devia estar lá.
- Eu decido quem deve ou não estar lá. Quero que você volte para o escritório de campo do Bureau e comece a trabalhar na burocracia referente a esse fiasco. Quero toda a papelada em cima da minha mesa às oito horas da manhã. Quero uma relação detalhada de tudo que você viu dentro daquele trailer.
Alpert esperou para ver se ela ia contestar a ordem. Rachel permaneceu em silêncio, o que, aparentemente, o deixou satisfeito.
- Agora, toda a mídia está em cima. O que vamos dar a eles sem revelar nenhum segredo importante e também sem atrapalhar o que o diretor dirá amanhã?
Dei deu de ombros.
- Nada. Diga que o diretor vai falar amanhã, fim de papo.
- Não vai funcionar. Temos que dar a eles alguma coisa.
- Não dê Backus - interveio Rachel. - Diga que os agentes queriam falar com um homem chamado Thomas Walling acerca de um caso de pessoas desaparecidas. Mas Walling tinha enchido seu trailer de armadilhas e ele explodiu quando os agentes entraram.
Alpert concordou, satisfeito.
- E Bosch?
- Eu o deixaria de fora. Não temos nenhum controle sobre ele. Se um repórter o encontrar ele pode contar tudo.
- E o corpo. Dizemos que era de Walling?
- Dizemos que não sabemos porque não sabemos. A identificação demora e coisa e tal. Deve ser o bastante.
- Se os repórteres forem bater nos bordéis vão conseguir toda a história.
- Não, não vão. Nós nunca contamos a ninguém a história completa.
- A propósito, o que aconteceu a Bosch?
Foi Dei quem respondeu.
- Tomei o depoimento dele e o liberei. A última vez que o vi estava voltando para Vegas no seu carro.
- Ele vai guardar silêncio?
Dei olhou para Rachel e depois encarou Alpert.
- Vamos dizer que ele não vai procurar ninguém para falar a respeito do que houve. E enquanto mantivermos o nome dele de fora, não haverá razão para alguém ir à sua procura.
Alpert balançou a cabeça, concordando. Enfiou a mão em um dos bolsos e pegou um celular.
- Quando terminar aqui, tenho que ligar para Washington. E o que diz o seu instinto: aquele corpo no trailer era de Backus?
Rachel hesitou, sem querer responder primeiro.
- A esta altura, não há como dizer - interveio Dei. - Se você está querendo saber se deve dizer ao diretor que o pegamos, minha resposta neste momento é não, não diga isso ao diretor. O corpo no trailer pode ser de qualquer pessoa. Pelo que sabemos foi a décima primeira vítima e talvez nunca cheguemos a descobrir quem era. Um mero cliente dos bordéis que foi interceptado por Backus.
Alpert olhou para Rachel, esperando que ela se manifestasse.
- O estopim - ela disse.
- O que tem?
- Era comprido. Como se ele quisesse que eu visse o corpo, mas não chegasse muito perto. Também queria que eu desse o fora dali.
- E?
- Em cima do corpo havia um chapéu preto de caubói. Lembro-me de que havia um homem no avião em que vim de Rapid City que tinha um chapéu preto de caubói.
- Pelo amor de Deus, você estava vindo da Dakota do Sul. Não é um lugar onde todo mundo usa chapéu de caubói?
- Mas ele estava lá, comigo. Penso que tudo isso foi uma armação. O bilhete no bar, o estopim comprido, as fotos no trailer e o chapéu preto. Backus queria que eu saísse de lá a tempo de contar ao mundo que ele está morto.
Alpert não respondeu. Olhou para o telefone que tinha nas mãos.
- Tem muita coisa que ainda não sabemos, Randal - arriscou Dei.
Ele guardou o telefone de novo no bolso.
- Muito bem. Agente Dei, seu carro está aí?
- Sim.
- Leve a agente Walling para o escritório de campo agora.
Elas foram dispensadas, mas não antes de Alpert olhar para Rachel e fazer mais uma careta para ela.
- Lembre-se, agente Walling. Em cima da minha mesa, às oito.
- Falou - disse Rachel.
Capítulo 35
Foi Eleanor Wish quem atendeu quando bati à porta, o que me surpreendeu. Ela recuou para me deixar passar.
- Não me olhe desse jeito, Harry - disse ela. - Você acha que nunca estou aqui e que trabalho todas as noites e a deixo com Marisol. Nada disso. Trabalho três ou quatro noites por semana e geralmente é só.
Levantei as mãos em sinal de rendição e ela viu a atadura em torno da palma da mão direita.
- O que aconteceu com você?
- Me cortei num pedaço de metal.
- Que metal?
- É uma história longa.
- Aquele troço no deserto hoje?
Assenti.
- Eu devia ter visto logo. Vai atrapalhar o saxofone?
Entediado com a aposentadoria, eu começara a ter aulas de saxofone com um músico de jazz aposentado que conhecera num caso policial. Uma noite, quando as coisas corriam bem entre Eleanor e mim, eu levara o instrumento e tocara uma melodia chamada "Lullaby". Eleanor gostara.
- Na verdade, não tenho tocado mesmo.
- Como?
Não quis lhe dizer que meu professor morrera e que a música saíra de minha vida por algum tempo.
- Meu professor queria que eu mudasse do sax alto para o tenor... a uns quinze ou vinte quilômetros dele.
Eleanor sorriu com a piada sem graça e deixamos ficar por isso mesmo. Fui andando atrás dela pela casa e estávamos agora na cozinha, onde em cima da mesa - que na verdade era uma mesa de pôquer forrada de feltro - viam-se, graças a Maddie, manchas de leite e cereais. Eleanor tinha dado cartas para seis pessoas, a fim de praticar. Sentou-se e começou a recolhê-las.
- Não permita que eu a interrompa - falei. - Só passei para ver se podia pôr Maddie na cama. Onde ela está?
- Marisol está lhe dando um banho. Mas eu estava pensando em pô-la para dormir. Trabalhei nas últimas três noites.
- Oh, tudo bem. Só vou dizer oi então. E adeus. Vou pegar o carro para voltar de noite.
- Então por que não a põe na cama você mesmo? Comprei um livro novo para ler para ela. Está ali em cima da bancada.
- Não, Eleanor. Só quero vê-la porque não sei quando volto.
- Ainda está trabalhando num caso?
- Não, aquilo meio que terminou hoje.
- O noticiário da televisão não deu muitas explicações. De que se trata?
- É uma história longa.
Eu não estava disposto a contar tudo mais uma vez. Caminhei até a bancada da copa para dar uma olhada no livro que ela comprara. Era chamado O grande dia de Billy e mostrava na capa um macaco no lugar mais alto do pódio de uma cerimônia de premiação semelhante às das Olimpíadas. Uma medalha de ouro estava sendo colocada em torno do pescoço dele. Um leão recebera a de prata e o elefante a de bronze.
- Vai voltar a trabalhar na polícia?
Eu ia abrir o livro, mas desisti, coloquei-o onde se encontrava e olhei para Eleanor.
- Ainda não decidi, mas as coisas estão se encaminhando nesse sentido.
Ela assentiu, como se fosse uma coisa resolvida.
- Alguma ideia nova sua a este respeito? - perguntei.
- Não, Harry. Quero que você faça o que tiver vontade.
Eu gostaria de saber o motivo pelo qual sempre desconfiamos quando as pessoas nos dizem o que queremos ouvir. Será que Eleanor queria mesmo que eu fizesse o que tinha vontade? Ou seria seu modo de solapar tudo?
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, minha filha entrou na cozinha e parou na posição de sentido. Vestia um pijama listrado em azul e laranja e o cabelo escuro molhado estava penteado para trás.
- Apresentando-se uma garotinha - disse ela.
Eleanor e eu sorrimos e, braços abertos, oferecemo-nos mutuamente para abraçá-la. Maddie foi para a mãe primeiro, o que estava certo para mim, mas foi um pouco como quando você estende a mão para alguém apertar e a pessoa não vê ou simplesmente ignora. Abaixei os braços e, após um momento, Eleanor me salvou.
- Vá dar um abração no papai.
Maddie veio e eu a levantei. Não pesava mais que vinte quilos. É uma coisa espantosa ser capaz de cingir nos braços tudo aquilo que é importante para você. Ela encostou a cabeça no meu peito e não me importei que molhasse minha camisa com seus cabelos. Não vi o menor problema.
- Como vai o meu bebê?
- Estou bem. Desenhei você hoje.
- É mesmo? Posso ver?
- Me bota no chão.
Fiz o que ela mandou e Maddie saiu correndo da cozinha, os pezinhos descalços batendo ruidosamente no piso de cerâmica no caminho do quarto de brinquedos. Olhei para Eleanor e sorri. Nós dois conhecíamos o segredo. Não importava o que sentíssemos ou não um pelo outro, sempre teríamos Madeline e isso talvez fosse o bastante.
O barulho dos pezinhos correndo pôde ser ouvido de novo e logo ela estava de volta na cozinha rebocando um pedaço de papel que mantinha no alto como uma pipa. Peguei-o e o examinei. Mostrava a figura de um homem com bigode e olhos escuros, ambas as mãos estendidas e empunhando uma arma com uma delas. Do outro lado da página havia uma outra figura de homem, esta desenhada em tons de laranja e vermelho e com as sobrancelhas espessas e negras em V, para indicar que era o bandido.
Agachei-me para ficar da altura de minha filha e olhar o desenho com ela.
- Esse com a arma sou eu?
- Sim, porque você era da polícia.
Assenti. Ela havia dito aquilo de forma doce.
- E quem é o malvado?
Ela apontou o dedinho para a outra figura no desenho.
- O Sr. Demônio.
Sorri.
- E quem é o Sr. Demônio?
- Um lutador. Mamãe diz que você luta com demônios e ele é o chefe de todos.
- Entendo.
Olhei por cima da cabeça dela para Eleanor e sorri. Nada me irritava. Eu estava simplesmente apaixonado pela minha filha e o modo como via o mundo. A maneira literal como entendia tudo. Eu sabia que não ia durar muito e por isso guardava cada momento como aquele.
- Posso ficar com esse desenho?
- Por quê?
- Porque é bonito e porque quero guardar para sempre. Vou ter que viajar uns tempos e quero olhar para ele o tempo todo. Vai fazer com que eu me lembre de você.
- Aonde você vai?
- Voltar para o lugar que chamam de Cidade dos Anjos.
Ela sorriu.
- Isso é bobagem. Não se podem ver anjos.
- Eu sei. Mas olha, mamãe trouxe um livro novo para ler para você sobre um macaco chamado Billy. Então, vou dizer boa-noite agora. Volto assim que puder. Está bem?
- Está bem, papai.
Beijei-a em ambas as faces e a abracei com força. Depois a beijei no topo da cabeça e deixei que se fosse. Levantei-me com o meu desenho e entreguei-lhe o livro que Eleanor ia ler para ela.
- Marisol? - Eleanor chamou.
Marisol apareceu em questão de segundos, como se estivesse esperando o chamado na sala ao lado. Sorri e cumprimentei-a enquanto ela recebia suas instruções.
- Por que você não põe Maddie na cama? Vou logo para lá, depois de me despedir do pai dela.
Vi minha filha sair com a babá.
- Sinto muito por aquilo - desculpou-se Eleanor.
- O quê, o desenho? Não se preocupe. Adorei. Vai para a minha geladeira.
- Eu simplesmente não sei como Maddie imaginou aquilo. Não falei diretamente com ela que você luta com demônios. Deve ter me ouvido ao telefone ou algo assim.
De algum modo, eu teria gostado mais de saber o que ela dissera diretamente para a nossa filha. A ideia de Eleanor falando sobre mim naqueles termos com outra pessoa - alguém que não mencionou por ora - me incomodou. Tentei não demonstrar.
- Tudo bem - falei. - Olha, veja da seguinte maneira, quando ela estiver na escola e as outras crianças disserem que o pai é advogado, bombeiro, médico ou qualquer outra coisa, ela vai ter uma carta de maior valor. Vai dizer que o pai combate demônios.
Eleanor riu, mas interrompeu-se quando pensou em algo.
- Gostaria de saber o que ela diz que a mãe faz.
Como eu não saberia responder, mudei de assunto.
- Adoro a visão que ela tem do mundo, despida de significados mais profundos - comentei, contemplando o desenho de novo. - É uma coisa muito inocente, sabe?
- Sei. Também amo isso. Mas posso compreender se você não quiser que ela pense que sai por aí lutando literalmente com demônios. Por que não lhe explicou?
Sacudi a cabeça e pensei numa história.
- Quando eu era garoto e ainda morava com minha mãe, houve um tempo em que ela teve um carro. Era um Plymouth Belvedere, duas cores, com transmissão automática do tipo push-button. Acho que o advogado dela deu para que o usasse. Por uns dois anos. De qualquer modo, ela de repente decidiu que queria fazer um passeio longo, nas férias. E assim pusemos nossas coisas no carro e lá fomos nós, somente eu e ela.
"Enfim, em algum ponto do sul, não lembro onde, paramos para pôr gasolina e havia dois bebedouros do lado do posto. E cartazes, sabe como é. Um dizia BRANCO e o outro DE COR. Claro que fiz questão de ir neste último porque eu queria ver de que cor a água era. Antes de chegar a fazer o que eu queria, minha mãe me arrancou de lá e me explicou mais ou menos o que acontecia. Eu me lembro disso até hoje e meio que preferia que ela tivesse me deixado ver a água sem ter explicado nada."
Eleanor sorriu da minha história.
- Quantos anos você tinha?
- Não sei. Talvez uns oito.
Ela se levantou e se aproximou de mim. Beijou-me no rosto e eu deixei. Passei o braço frouxamente pela sua cintura.
- Boa sorte com seus demônios, Harry.
- É.
- E se algum dia mudar de ideia sobre as coisas, estarei aqui. Estaremos aqui.
Assenti.
- Ela vai mudar a sua opinião, Eleanor. Espere e verá.
Eleanor sorriu, mas um sorriso triste, e acariciou delicadamente meu queixo.
- Não se esqueça de deixar a porta trancada quando sair.
- Como sempre.
Larguei-a e a fiquei observando dirigir-se para fora da cozinha. Depois baixei os olhos para o desenho do homem lutando com o demônio. No desenho, minha filha pusera um sorriso no meu rosto.
Capítulo 36
Antes de subir para o meu apartamento no Duplo X parei no escritório e avisei ao senhor Gupta, o gerente noturno, que iria embora. Ele me disse que, como eu vinha pagando numa base semanal, meu cartão de crédito já debitara o valor da semana toda. Falei que não tinha importância, que ia embora assim mesmo. Disse que ia deixar a chave na mesa da copa depois de recolher minhas coisas. Já ia saindo quando, após alguma hesitação, perguntei-lhe sobre minha vizinha Jane.
- Sim, ela foi embora também. Mesma coisa.
- Como assim, mesma coisa?
- Cobramos dela uma semana, mas ela não ficou a semana inteira.
- Ei, você se incomoda de me dizer qual era o nome completo dela? Nunca cheguei a saber.
- Jane Davis. Você gostava dela?
- Ela era legal. Conversávamos nas sacadas. Não cheguei a me despedir. Ela não deixou endereço para correspondência nem nada, deixou?
Gupta sorriu do meu interesse. Ele tinha gengivas muito rosadas para uma pessoa de pele tão escura.
- Não deixou endereço - disse ele.
Fiz um gesto para agradecer a informação que ele me dera, deixei o escritório, subi a escada e desci o passadiço até meu quarto.
Levei menos de cinco minutos para reunir minhas coisas. Tinha algumas camisas e calças penduradas em cabides. Tirei do armário a mesma caixa em que levara tudo, enchi com o resto de meus pertences e uns brinquedos que conservava em casa por causa de Maddie. Buddy Lockridge estivera perto, me chamando de "Mala" Harry, mas "Caixa de Cerveja" Harry teria sido mais preciso.
Antes de sair, examinei a geladeira e vi que restara uma garrafa de cerveja. Peguei a garrafa e abri. Imaginei que uma cervejinha para a viagem não haveria de me fazer mal. Já fizera pior no passado antes de cair na estrada. Pensei em fazer outro sanduíche de queijo, mas desisti quando me lembrei da mania que Backus tinha de comer sanduíches de queijo quente todos os dias em Quantico. Fui até a sacada para ver pela última vez os jatos dos ricaços. Era uma noite fresca e revigorante. As luzes azuis da pista distante cintilavam como safiras.
Os dois jatos negros tinham desaparecido, seus proprietários eram rápidos ganhadores ou perdedores. O grande Gulfstream permanecia no lugar, capas vermelhas protegendo as tomadas de ar dos motores a jato. Gostaria de saber que relação os jatos poderiam ter tido com Jane Davis e sua estada no Duplo X.
Dei uma olhada na sacada vazia de Jane, a cerca de um metro de distância da minha. O cinzeiro ainda estava em cima da grade, cheio pela metade de pontas de cigarros meio fumadas. Ainda não tinham limpado o apartamento dela.
O que me deu uma ideia. Olhei em torno e para baixo, no estacionamento. Não vi qualquer movimento, exceto na Koval, onde o trânsito tinha se detido no sinal vermelho. Não vi sinal do segurança noturno ou de quem quer que fosse no estacionamento. Subi rapidamente na minha grade e já ia passar para a do apartamento ao lado quando ouvi que batiam à minha porta. Desci rapidamente, voltei e atendi.
Era Rachel Walling.
- Rachel? Olá. Algo de errado?
- Não. Nada que pegar Backus não cure. Posso entrar?
- Claro.
Recuei para deixá-la entrar. Ela viu a caixa com as minhas coisas. Falei primeiro.
- Como foi hoje, depois que voltou para a cidade?
- Bem, tive que ouvir a habitual descompostura do agente especial chefe.
- Pôs toda a culpa em mim?
- Como planejado. Ele bufou e criou caso, mas o que podia fazer? Não quero falar sobre ele agora.
- Então o quê?
- Bem, para começar, você tem outra dessa aí?
Ela se referia à cerveja.
- Na verdade, não. Eu estava terminando esta aqui e ia me mandar.
- Então tive sorte de pegar você aqui.
- Quer rachar? Pego um copo para você.
- Você disse que não confiava nos copos.
- Bem, posso lavar...
Ela estendeu a mão para a garrafa e tomou um gole. Quando devolveu, seus olhos se mantiveram fixos nos meus. Por fim, virou-se e apontou para a caixa.
- Quer dizer então que você vai embora.
- É, de volta a Los Angeles por algum tempo.
- Vai sentir falta de sua filha, eu acho.
- Muita.
- Vai voltar para vê-la?
- Sempre que for possível.
- Legal. Mais alguma coisa?
- Como assim? - perguntei, embora achasse que sabia o que ela tinha querido dizer.
- Vai voltar por mais alguma coisa?
- Não, só minha filha.
Ficamos ali parados olhando um para o outro por longo tempo. Levantei a cerveja oferecendo-a, mas ela se aproximou mesmo foi de mim. Beijou-me na boca e rapidamente nos abraçamos.
Sei que teve a ver com o que aconteceu no trailer, com o fato de quase termos morrido no deserto, nos deslocarmos para a cama, agarrados com força um ao outro, eu largar a garrafa de cerveja em cima da mesa para poder usar as duas mãos enquanto tirávamos as roupas um do outro.
Caímos na cama e fizemos amor como dois sobreviventes. Rápido e, até certo ponto, brutal - de ambas as partes. Acima de tudo, satisfez o impulso primitivo de combater a morte com a vida.
Quando terminou, estávamos entrelaçados em cima das cobertas da cama, ela por cima de mim, meus dedos ainda enroscados em seu cabelo.
Ela debruçou-se para a esquerda e esticou a mão para pegar a cerveja, derrubando-a em primeiro lugar e derramando quase tudo o que restara em cima da mesa de cabeceira e no chão.
- Lá se foi o dinheiro que dei como depósito no motel - falei.
Restara na garrafa uma quantidade suficiente para Rachel tomar um gole e passar para mim.
- Isto foi por hoje - ela disse enquanto eu bebia.
Dei a Rachel o resto.
- Como assim?
- Depois do que aconteceu lá no deserto, tínhamos que fazer isso.
- Com certeza.
- Tesão de gladiador. Foi por isso que vim aqui. Para pegar você.
Sorri, pensando em uma piada de gladiador de um filme antigo de que gostei. Mas nada disse e provavelmente ela pensou que eu estivesse achando graça de suas palavras. Abaixou-se e encostou a cabeça no meu peito. Segurei um pouco do seu cabelo, mais delicadamente agora, para examinar as pontas chamuscadas. Depois desci as mãos e esfreguei suas costas, pensando que era estranho estarmos sendo tão delicados um com o outro, momentos depois de termos sido gladiadores.
- Não imagino que esteja interessado em abrir uma filial da sua firma de investigações particulares na Dakota do Sul, está?
Sorri e sufoquei uma risada no meu peito.
- Que tal na Dakota do Norte? - ela perguntou. - Talvez eu volte para lá.
- Você precisa ter uma matriz para abrir uma filial.
Ela me deu um soquinho no peito.
- Eu achava que não.
Mudei a posição do corpo para sair debaixo dela. Rachel gemeu, mas continuou em cima de mim.
- Isso quer dizer que você quer que eu saia, me levante e dê o fora?
- Não, Rachel, em absoluto.
Olhei por cima do ombro dela e vi que a porta estava destrancada. Imaginei o senhor Gupta subindo para ver se eu já tinha ido embora e encontrando o monstro de duas costas na cama de um apartamento supostamente vazio. Sorri. Não me importava.
Ela levantou o rosto para me encarar.
- O que é?
- Nada. Deixamos a porta destrancada. Alguém pode entrar.
- Você deixou a porta destrancada. Isto aqui é a sua casa.
Beijei-a, dando-me conta de que não lhe tinha beijado os lábios durante todo o tempo em que fizemos amor. Outra coisa estranha.
- Sabe de uma coisa, Bosch?
- O quê?
- Você é bom nisso.
Sorri e agradeci. A mulher pode jogar essa carta a qualquer momento e sempre irá obter a mesma reação.
- Falo sério.
Ela cravou as unhas no meu peito para sublinhar seu argumento. Com um braço, eu a segurei com força junto de mim e rolamos. Imaginava que eu teria pelo menos uns dez anos mais que ela, mas isto não me preocupou. Beijei-a novamente e, recolhendo minha roupa do chão, fui até a porta trancá-la.
- Deve haver pelo menos uma toalha limpa - falei. - Você pode usar.
Ela insistiu que eu fosse o primeiro a tomar banho e fui. Depois, quando ela entrou no chuveiro, fui até a Koval e comprei duas cervejas em uma loja de conveniência. Estabeleci o limite em duas garrafas porque ia dirigir de noite e não queria que o álcool reduzisse minha velocidade. Estava sentado na copa quando ela saiu do banheiro inteiramente vestida. Sorriu ao ver as duas garrafas.
- Eu sabia que você seria prestativo.
Rachel se sentou e brindamos batendo as garrafas.
- Ao tesão de gladiador - ela disse.
Bebemos e ficamos em silêncio por uns momentos. Eu tentava avaliar o que a última hora significara para mim e para nós.
- Em que está pensando? - ela quis saber.
- Em como isto pode ficar complicado.
- Não precisa. Podemos simplesmente ver o que acontece.
Não me pareceu a mesma voz que me convidou para abrir uma filial nas Dakotas.
- Tudo bem.
- É melhor eu ir andando.
- Para onde?
- Voltar para o escritório de campo, eu acho. Ver o que está acontecendo.
- Você soube o que aconteceu com o latão de queimar lixo depois da explosão? Esqueci de olhar.
- Não, por quê?
- Dei uma espiada dentro dele quando chegamos lá. Coisa rápida. Tive a impressão de que ele andou queimando cartões de crédito, talvez identidades.
- Das vítimas?
- Provavelmente. Queimou livros ali também.
- Livros? Por que acha que ele faria isso?
- Não sei, mas é estranho. Dentro do trailer ele tinha livros espalhados por toda a parte. Assim sendo, queimou uns e outros não. Parece estranho.
- Bem, se restou alguma coisa dentro do latão, a equipe que vai trabalhar na cena do crime irá examinar. Por que não falou nisso, quando o interrogaram?
- Porque minha cabeça estava zunindo e eu meio que esqueci.
- Perda de memória recente associada à concussão.
- Não tive concussão.
- Refiro-me à onda sísmica da explosão. Você poderia dizer quais eram os livros?
- Não, não. Não tive tempo. Eu peguei um deles. Foi o menos queimado que pude ver. Parecia de poesia. Eu acho.
Ela me olhou e balançou a cabeça, mas não disse nada.
- O que não entendo é porque queimou os livros. Prepara tudo para explodir inteiramente o trailer, mas perde tempo para sair e ir lá fora queimar uns livros. Quase como se...
Parei de falar e tentei montar o quebra-cabeça.
- Quase como o quê, Harry?
- Não sei. Como se não quisesse se arriscar, deixando por conta da explosão do trailer. Como se quisesse se assegurar de que os livros seriam destruídos.
- Você está presumindo que as duas coisas são simultâneas. Ele pode ter queimado os livros seis meses atrás ou algo assim. Você não pode simplesmente conectar a queima dos livros com a explosão do trailer.
Concordei. Ela estava certa, mas a incongruência que eu detectara ainda me incomodava.
- O livro que peguei estava mais para o topo - falei. - Foi queimado da última vez em que o latão foi usado. Havia também um recibo dentro dele. Meio queimado. Mas talvez possam rastreá-lo.
- Vou ver quando voltar. Mas não me lembro de ter visto o latão depois da explosão.
Dei de ombros.
- Nem eu.
Ela se levantou e eu também.
- Tem uma coisa mais - falei, enfiando a mão no bolso de dentro do meu paletó. Peguei a foto e entreguei a ela.
- Devo ter pegado quando entrei no trailer e depois esqueci. Encontrei no meu bolso.
Era a foto que eu tinha apanhado na bandeja da impressora. A casa de dois andares com o velho e a caminhonete na frente.
- Maravilha, Harry. Como vou explicar isso?
- Não sei, mas imaginei que você ia querer tentar identificar o lugar ou o velho.
- Que diferença faz agora?
- Deixa disso, Rachel, você sabe que não acabou.
- Não, eu não sei disso.
Aborreceu-me ela não poder falar comigo depois de termos sido tão íntimos apenas uns poucos minutos antes.
- Está bem.
Peguei minha caixa e a roupa dos cabides.
- Espera um minuto, Harry. Você vai simplesmente saindo assim? O que quis dizer ao falar que não acabou?
- Que nós dois sabemos que não era Backus lá dentro. Se você e o Bureau não estão interessados nisso, tudo bem. Mas não venha querer me enganar, Rachel. Não depois do que passamos hoje, e não depois do que acabamos de fazer.
Ela afrouxou.
- Olha, Harry, está fora do meu alcance, certo? Por ora estamos aguardando a palavra do laboratório. A posição oficial do Bureau provavelmente não será formulada até amanhã, quando o diretor der a entrevista coletiva.
- Não estou interessado na posição oficial do Bureau. Eu estava falando com você.
- Harry, o que você quer que eu diga?
- Quero que você diga que vai pegar esse cara não importa o que o seu diretor diga amanhã.
Dirigi-me para a porta e ela me seguiu. Saímos do apartamento e ela fechou a porta para mim.
- Onde está seu carro? - perguntei. - Vou andando com você até lá.
Ela apontou a direção e nós descemos a escada e seguimos para o local onde deixara o carro, estacionado perto do escritório. Depois que abriu a porta, nós nos viramos e ficamos de frente um para o outro.
- Quero pegar esse cara - disse ela. - Mais do que você possa imaginar.
- Certo, ótimo. Vou manter contato.
- Bem, o que você vai fazer?
- Não sei. Quando souber, aviso.
- Tudo bem. Até a próxima, Bosch.
- Adeus, Rachel.
Ela me beijou e entrou no carro. Caminhei até o meu, passando entre os dois prédios que compunham o Duplo X para atingir o outro estacionamento. Tinha plena certeza de que aquela não seria a última vez que eu veria Rachel Walling.
Capítulo 37
Na saída da cidade eu podia ter evitado o trânsito da Strip, mas decidi que não. Achei que as luzes poderiam me animar. Eu sabia que estava deixando para trás minha filha. Sabia que estava indo a Los Angeles para me reintegrar ao departamento de polícia. Eu veria minha filha de novo, mas não seria capaz de gastar com ela o tipo de tempo que eu precisava e queria. Eu ia me juntar às deprimentes legiões de pais de fins de semana, os homens que têm que comprimir amor e obrigações paternas de modo a que caibam nas 24 horas que têm direito a ficar com os filhos. Só de pensar nisso surgiu dentro do meu peito um abismo de angústia tão medonho e sombrio que nem um bilhão de quilowatts poderia iluminar. Não havia dúvidas de que eu estava deixando Las Vegas como um perdedor.
Quando ultrapassei as luzes e os limites da cidade, o trânsito ficou esparso e os céus carregados. Tentei ignorar a depressão em que minha escolha me colocara. Preferi ir trabalhando no caso enquanto dirigia, seguindo a lógica dos movimentos a partir da perspectiva de Backus, triturando cada detalhe até que a história toda fosse simples poeira e só me restasse uma pergunta sem resposta. Usei o mesmo ponto de vista do Bureau. Backus, tendo adotado o nome de Tom Walling, passara a viver em Clear e a matar os clientes que pegava nos bordéis. Operou com impunidade anos a fio porque escolhia as vítimas perfeitas. Até que os números passaram a agir contra ele e investigadores de Vegas começaram a perceber um padrão e organizaram uma lista com o nome de seis desaparecidos. Backus provavelmente sabia que era uma questão de tempo até a conexão ser estendida à cidadezinha de Clear. Provavelmente soube que esse tempo seria ainda menor quando viu o nome de Terry McCaleb no jornal. Talvez McCaleb tivesse, inclusive, ido a Clear. Quem sabe? A maior parte das respostas morrera com McCaleb e depois dentro do trailer que explodira no deserto.
Era enorme o número de pontos desconhecidos na história. Mas o que parecia evidente dentro daquela perspectiva era que Backus tinha encerrado as operações ali. Fez planos para encerrar a temporada no deserto em uma explosão gloriosa - para anular seus dois protegidos, McCaleb e Rachel, com uma patológica exibição de mestria, e deixar para trás, no trailer, um corpo calcinado e destruído que deixaria sem resposta a questão dele estar vivo ou morto. Tanto Saddam Hussein quanto Osama bin Laden tinham, recentemente, conseguido excelente milhagem deixando para trás a mesma pergunta. Talvez Backus se visse fazendo companhia a eles no mesmo palco.
Os livros dentro do latão eram o detalhe que mais me incomodava. A despeito de Rachel ter feito pouco deles por causa das circunstâncias em que tinham sido queimados serem desconhecidas, ainda me pareciam ser uma importante peça de investigação. Quisera ter passado mais tempo estudando o livro que pegara, talvez mesmo identificando-o. O livro queimado daria uma indicação de uma parte do plano do Poeta da qual ninguém ainda tinha conhecimento.
Lembrando do pedaço de recibo que eu vira no livro, abri o celular, verifiquei se tinha sinal e liguei para o serviço de informações de Las Vegas. Perguntei se havia na listagem de negócios uma loja chamada Book Car e a telefonista me disse que não. Eu já ia desligar quando ela acrescentou que, no entanto, havia uma loja chamada Book Caravan na Industry Road. Eu disse a ela que tentasse essa loja e ela transferiu minha ligação para lá.
Achei que a loja estaria fechada porque já era tarde. Se fosse atendido por uma secretária eletrônica, ia deixar um recado pedindo que o dono me ligasse na manhã seguinte. Mas o telefonema foi atendido após dois toques por uma voz brusca.
- Vocês estão abertos?
- Vinte e quatro horas. Como posso ajudá-lo?
Dava para fazer uma ideia do tipo de loja que aquilo devia ser pela hora. De qualquer modo, resolvi arriscar.
- Vocês não vendem aí livros de poesia, vendem?
O homem grosseiro riu.
- Muito engraçado - disse. - Era uma vez um homem de Timbuktu que rimava poesia com tomar no cu.
Ele riu de novo e desligou na minha cara. Fechei o telefone e tive que rir com o seu talento para fazer versos de improviso.
Book Caravan parecia um beco sem saída, mas eu telefonaria para Rachel de manhã e lhe diria que valia a pena investigar a possível ligação da loja com Backus.
Um sinal verde surgiu no meio da escuridão e entrou no facho dos meus faróis.
ESTRADA ZZYZX
1,6 km
Pensei em virar ali e, mesmo na escuridão, seguir pela acidentada estrada no deserto. Talvez ainda houvesse uma equipe de técnicos trabalhando no local dos enterramentos. Mas de que adiantaria seguir por aquela estrada senão para me encontrar com os fantasmas dos mortos? O quilômetro veio e passou e eu segui direto, deixando em paz os fantasmas.
A cerveja e meia que eu tomara com Rachel comprovou ser um erro. Em Victorville eu já me sentia fatigado, como resultado de pensar demais depois de um pouco de álcool. Encostei o carro para tomar um café em um McDonald’s que ficava aberto até tarde e que fora construído de modo a parecer uma estação ferroviária. Comprei dois cafés e dois biscoitos doces e me sentei na cabine de um vagão antigo lendo a pasta organizada por Terry McCaleb sobre a investigação do Poeta. Eu já começava a saber de cor a ordem dos relatórios e respectivos resumos.
Depois de uma xícara de café, não tinha chegado à nenhuma conclusão e fechei a pasta. Precisava de algo novo. Eu precisava deixar tudo de lado e esperar e acreditar que o Bureau faria seu trabalho direito ou então encontrar um novo ângulo para mim.
Não sou contra o Bureau. Vejo o FBI como o mais completo, melhor equipado e mais implacável órgão do mundo destinado a assegurar o cumprimento das leis. Seus problemas residem no tamanho e nos muitos problemas de comunicação entre os departamentos, divisões, seções e assim por diante, até chegar aos próprios agentes. Foi preciso uma catástrofe como a de 11 de setembro para tornar claro para o mundo o que a maioria das pessoas do ramo, inclusive os próprios agentes do FBI, já sabiam.
Como instituição, o FBI leva muito a sério sua reputação e atribui também um peso enorme à política, o que vem dos tempos do próprio J. Edgar Hoover. Eleanor Wish conheceu um agente que trabalhara na sede do FBI em Washington no tempo em que J. Edgar reinava. Ele contava que havia uma determinação tácita para que, se um agente estivesse no elevador e o diretor entrasse, esse agente não só estava proibido de se dirigir a ele ou mesmo cumprimentá-lo, como deveria descer imediatamente para que o grande homem pudesse viajar sozinho e refletir sobre suas grandes responsabilidades. Nunca me esqueci dessa história por algum motivo. Talvez por ilustrar com perfeição a arrogância do FBI.
No final das contas, o que eu não queria era telefonar para Graciela McCaleb para lhe dizer que o assassino do marido ainda estava à solta e que o FBI cuidaria de tudo. Eu ainda queria resolver o caso. Ainda devia isso a ela e a Terry e sempre pago o que devo.
De volta à estrada, e com o café e o açúcar me fazendo funcionar de novo, segui direto para a Cidade dos Anjos. Quando cheguei à rodovia 10, a chuva caiu e com ela caiu muito a velocidade. O tráfego passou a se arrastar. Liguei o rádio na KFWB e descobri que chovera o dia inteiro e que não era esperado que a chuva fosse parar antes do fim da semana. Houve uma reportagem ao vivo de Topanga Canyon, onde os residentes empilhavam sacos de areia diante das portas e das garagens das casas, esperando pelo pior. Deslizamentos de barreiras e inundações eram os perigos. Os incêndios catastróficos que tinham varrido as colinas no ano passado deixaram pouca vegetação para conter a água da chuva ou os deslizamentos do solo. Tudo estava arriando.
Eu sabia que a chuva ia representar uma hora a mais para chegar em casa. Consultei o relógio. Passava um pouco da meia-noite. Tinha planejado telefonar para Kiz Rider quando chegasse, mas cheguei à conclusão de que seria muito tarde. Abri o telefone e liguei para ela em sua casa.
- Kiz, é o Harry. Tá acordada?
- Claro, Harry. Não consigo dormir quando chove.
- Entendo o que você diz.
- Então, qual é a boa notícia?
- Ou todo mundo tem importância ou ninguém tem.
- E isso significa o quê?
- Que eu estou dentro se você também estiver.
- Deixa disso, Harry, não ponha a responsabilidade em cima de mim.
- Estou dentro se você estiver - repeti.
- Vamos lá, Harry, você sabe que já estou dentro.
- Você sabe o que quero dizer. Esta é a sua salvação, Kiz. Fomos postos no acostamento. Nós dois. Você e eu sabemos o que deveríamos estar fazendo. É hora de retornar.
Aguardei. Houve um longo período de silêncio da parte dela, que finalmente falou.
- Isso vai aborrecer o homem. Ele me responsabilizou por uma porção de coisas.
- Se ele é o homem que você diz que é, vai compreender. Vai entender. Você será capaz de fazer com que ele entenda.
Mais silêncio.
- Tá bom, Harry. Eu topo.
- Certo, então. Vou até lá amanhã para assinar os papéis.
- Certo, Harry. Nos vemos lá.
- Você sabia que eu ia telefonar, não sabia?
- Ponha da seguinte forma. Os papéis que você tem que preencher estão aqui na minha mesa.
- Você sempre foi inteligente demais para mim.
- Falei sério quando disse que precisávamos de você. Este é o ponto principal. Mas também sempre achei que você não ia durar muito tempo aí fora sozinho. Conheço caras que devolveram a identidade e mudaram de vida: foram vender imóveis, carros, aparelhos elétricos, até mesmo livros. Deu certo para a maioria. Mas você não, Harry. Imaginei que você sabia disso também.
Não falei nada. Continuei olhando fixamente para a escuridão, para além do alcance dos meus faróis. Alguma coisa que Kiz dissera provocou a avalanche.
- Harry, você está me ouvindo?
- Estou, Kiz, é que você acaba de dizer livros. Você conhece um cara que se aposentou e foi vender livros. É o Ed Thomas?
- É. Ele entrou com o requerimento de aposentadoria cerca de seis meses antes que eu começasse a trabalhar em Hollywood. Depois que saiu, Ed abriu uma livraria em Orange.
- Eu sei. Você já esteve lá?
- Já, quando ele conseguiu que Dean Koontz fizesse uma sessão de autógrafos lá. Vi no jornal. Dean Koontz é meu autor favorito e não costuma dar sessões de autógrafos em muitos lugares. Assim, fui lá. Tinha uma fila na calçada e lá dentro, mas, assim que me viu, Ed me levou para a frente, me apresentou a Koontz e ele autografou meu livro. Na verdade, foi bastante embaraçoso.
- Qual era o nome?
- Hã... Acho que Estranhas rodovias.
Fiquei decepcionado. Tinha achado que estava prestes a descobrir uma ligação com o meu caso.
- Não, na verdade foi depois desse - corrigiu Kiz. - O livro era Sobrevivente único... a história do desastre de avião.
Só então percebi o que ela estava dizendo e como tínhamos nos confundido.
- Não, Kiz, qual é o nome da livraria do Ed?
- Oh, sim, é chamada Book Carnival. Acho que o nome já era esse quando ele comprou. De outro modo, acho que ele teria dado um nome diferente, algo mais misterioso, já que ele praticamente só vende livros de mistério.
Book Car, Book Carnival. Involuntariamente apertei mais fundo o pedal do acelerador.
- Kiz, tenho que ir. Falo com você mais tarde.
Fechei o telefone sem esperar pela despedida dela. Dividindo meu olhar entre a estrada e o visor do telefone, fiz rolar a lista dos telefonemas mais recentes recebidos e apertei o botão do Send quando o número do celular de Rachel Walling ficou iluminado. Ela atendeu antes que eu ouvisse o toque.
- Rachel, é o Harry. Desculpe telefonar tão tarde, mas é importante.
- Estou no meio de algo - ela murmurou.
- Você ainda está no escritório de campo?
- Exatamente.
Tentei pensar o que a manteria acordada depois da meia-noite em um dia que havia começado tão cedo.
- É o latão de lixo? O livro queimado?
- Não, ainda não chegamos lá. É outra coisa. Tenho que desligar.
Sua voz estava sombria e, pelo fato de não ter usado meu nome, tive a ideia de que havia outros agentes presentes. O que quer que fosse, não podia ser boa coisa.
- Rachel, escuta. Tenho algo aqui. Você tem que vir a Los Angeles.
O tom de voz dela mudou. Acho que pôde perceber, pela urgência nas minhas palavras, que aquilo era muito sério.
- O que é?
- Sei qual será o próximo passo do Poeta.
Capítulo 38
- Vou ter que chamar você de volta.
Rachel fechou o telefone e o guardou no bolso de dentro da jaqueta. As últimas palavras de Bosch ecoavam na sua cabeça.
- Agente Walling, eu ficaria muito agradecido se você pudesse não se desviar de nossa conversa.
Ela levantou os olhos para Alpert.
- Desculpe.
Ela voltou a atenção novamente para a tela do sistema de telecomunicações onde o rosto de Brass Doran aparecia maior que na realidade. Brass sorria.
- Agente Doran, continue - disse Alpert.
- Na verdade, já terminei. É só o que temos por ora. Podemos confirmar que Robert Backus esteve naquele trailer. Não podemos confirmar que ele estava lá dentro quando explodiu.
- E o DNA?
- A amostra de DNA recolhida pela agente Walling com grande risco, se me permitem lembrar, e mais tarde pela equipe de técnicos que vasculhou o local, só terá utilidade se tivermos algo com que compará-la. Quer dizer, se pudermos encontrar uma fonte do DNA de Robert Backus. Ou para identificar o corpo que se encontrava no trailer como sendo de outra pessoa.
- E os pais dele? Não podemos obter o DNA dele a partir...
- Já tentamos seguir por esta rota antes. O pai morreu e foi cremado numa época em que não pensávamos nisso, que a ciência não tinha alcançado esse estágio, e sua mãe nunca foi localizada. Há quem pense que ela possa ter sido sua primeira vítima. Desapareceu alguns anos atrás sem deixar rastro, como se costuma dizer.
- Esse sujeito pensou em tudo.
- No caso da mãe, é mais provável que tenha sido como uma vingança por tê-lo abandonado. É difícil acreditar que ele tenha feito algo apenas para impedir que mais tarde se extraísse o DNA.
- Tudo o que eu quis dizer foi que estamos verdadeiramente ferrados.
- Sinto muito, Randal, mas a ciência só pode ir até aí.
- Eu sei disso, agente Doran. Você pode me dizer alguma outra coisa? Algo de novo?
- Acho que não.
- Excelente. Então eu vou dizer ao diretor exatamente isso. Que nós sabemos que Backus esteve no trailer, que temos provas laboratoriais e relatos de testemunhas neste sentido. Mas por ora não podemos dar o passo seguinte e dizer que ele está morto e que já vai tarde.
- Não há como convencer o diretor para ficar quieto e nos dar mais tempo para costurar as pontas que ainda estão soltas? Pelo bem da investigação?
Rachel quase riu. Sabia que o bem da investigação sempre ocuparia um lugar secundário junto às considerações políticas no Hoover Building, em Washington.
- Já tentei - disse Alpert. - A resposta é não. Há muita coisa em jogo. O assunto deixou de ser sigiloso graças à explosão no deserto. Se era o Backus que estava lá e foi pelos ares na explosão, ótimo, um dia conseguiremos confirmar isso e tudo correrá bem. Se não era Backus quem estava lá e ele tem outros crimes em mente, o diretor tem que assumir isto agora ou as consequências poderão ser fatais. Assim, ele vai apelar para o que sabemos agora: Backus esteve lá, Backus é o suspeito da autoria dos crimes no deserto, Backus pode ou não estar morto. Não há como dissuadi-lo de fazer isso.
Alpert tinha olhado para Rachel quando disse que o assunto deixara de ser sigiloso, como se a responsabilizasse por tudo. Ela pensou em revelar o que Bosch acabara de lhe dizer, mas desistiu na mesma hora. Ainda não. Não enquanto não soubesse mais detalhes.
- Tudo bem, pessoal, acabou - anunciou Alpert abruptamente. - Brass, vemos você na tela grande amanhã de manhã. Agente Walling, pode permanecer na sala por um instante?
- Sim?
- Seu trabalho aqui acabou.
- Como assim?
- Você terminou aqui. Volte para o seu hotel e faça as malas.
- Ainda há muito que fazer. Eu quero...
- Não me interessa o que você quer. Eu quero você fora daqui. Você atrapalhou a investigação desde o instante em que chegou. Amanhã de manhã eu quero você a bordo do primeiro avião que volte para o lugar de onde veio. Entendeu?
- Você está cometendo um erro. Eu devia fazer parte da...
- Você é que está cometendo um erro discutindo comigo. Não posso falar com mais clareza. Quero você fora daqui. Entregue sua papelada e entre num avião.
Ela sustentou seu olhar, tentando comunicar toda a raiva que sentia. Alpert levantou a mão como que para repelir alguma coisa.
- Cuidado com o que vai dizer. Você pode estar mordendo o seu próprio rabo.
Rachel engoliu a raiva e falou com a voz calma e controlada.
- Não vou a parte alguma.
Os olhos de Alpert deram a impressão que iam saltar das órbitas. Ele se virou e com um gesto mandou que Dei saísse da sala. Depois virou-se para Rachel e esperou pelo barulho da porta sendo fechada.
- Como é que é? O que você acabou de dizer?
- Eu disse que não vou a parte alguma. Vou continuar neste caso. Porque se você me puser em um avião eu não voltarei para a Dakota do Sul. Vou diretamente para a Divisão de Responsabilidade Profissional na sede do Bureau, em Washington, apresentar queixa contra você.
- Com que motivo? De que você vai se queixar?
- Você me usou como isca desde o princípio. Sem o meu conhecimento ou consentimento.
- Você não sabe o que está falando. Vá em frente. Apresente queixa. Vai ser mandada de volta para as Badlands e passar mais uns dez anos por lá.
- Cherie cometeu um erro e você também. Quando telefonei de Clear, ela me perguntou por que tínhamos ido no carro de Bosch. Lá no hangar você falou a mesma coisa. Vocês sabiam que eu tinha ido para lá no carro de Bosch. Comecei a pensar a respeito disso e depois descobri a explicação. Vocês puseram um sinalizador de GPS no meu carro. Examinei a parte de baixo hoje e achei. Equipamento padronizado do Bureau, ainda com a etiqueta em cima. Haverá certamente o registro de quem o pegou no almoxarifado.
- Não tenho a menor ideia de que você está falando.
- Bem, tenho certeza de que o pessoal da DRP será capaz de descobrir o que houve. Meu palpite é que Cherie os ajudará. Quer dizer, se eu fosse ela, não vincularia minha carreira a você. Eu diria a verdade. Que você me trouxe para cá como isca, que você achava que eu faria com que Backus saísse da toca. Aposto como manteve uma equipe me seguindo o tempo todo. E haverá um registro disso também. E o que me diz do meu telefone e do quarto do hotel? Você os grampeou?
Rachel viu que os olhos de Alpert mudaram. Ele passou a olhar para dentro de si próprio, sua mente não mais consumida pelas acusações dela, mas sim pelas consequências futuras de uma queixa de comportamento antiético e a consequente investigação. Viu que ele antevia a própria condenação. Um agente grampeando e seguindo outro agente, usando uma colega como isca involuntária em um jogo arriscadíssimo. No clima atual de escrutínio pela mídia e fuga de qualquer controvérsia da parte do Bureau, o que fizera não se sustentaria. Seria ele quem seria derrubado, não ela. E seria liquidado rápida e silenciosamente. Com sorte, talvez terminasse trabalhando lado a lado com Rachel no escritório de Rapid City.
- As Badlands são realmente lindas no verão - disse ela.
Rachel se levantou e dirigiu-se para a porta.
- Agente Walling? - disse Alpert para as suas costas. - Espera um segundo.
Capítulo 39
O avião de Rachel aterrissou em Burbank com meia hora de atraso por causa da chuva e do vento. A chuva não cedera um instante durante toda a noite e envolvia tudo em uma mortalha cinzenta. O tipo de chuva que paralisava a cidade. O trânsito se arrastava em cada rua e avenida. As ruas não são construídas para tanta água, tampouco a cidade. Pela madrugada, as galerias de escoamento pluvial transbordavam, os túneis tinham atingido o limite de sua capacidade e a vazão das águas transformara o rio Los Angeles em uma corredeira que fazia rugir com um barulho estrondoso o canal de paredes de concreto que serpenteava por toda a cidade a caminho do mar. Era uma água escura, carregando as cinzas dos incêndios que tinham enegrecido as colinas um ano antes. Havia uma obscuridade de fim de mundo em tudo aquilo. Primeiro a cidade fora posta à prova pelo fogo, e agora pela chuva. Morando em Los Angeles, você às vezes se sente como se estivesse ao lado do demônio, rumando para o apocalipse. As pessoas que vi naquela manhã tinham no rosto a expressão de quem indagava o que viria a seguir. Terremoto? Tsunami? Ou talvez um desastre causado pela própria mão do homem? Cerca de uma década atrás, o fogo e a chuva tinham sido os arautos de um cataclismo tanto tectônico quanto social na Cidade dos Anjos. Não creio que um único habitante pudesse duvidar que isso podia acontecer de novo. Se estamos condenados a repetir nossas loucuras e erros, é fácil acreditar que a natureza possa funcionar seguindo os mesmos ciclos de acertos e erros.
Pensava nisso enquanto esperava por Rachel estacionado no meio-fio diante do terminal. A chuva fustigava o para-brisa, deixando-o translúcido, mas embaçado. O vento chegava a balançar o carro nas suas molas. Pensei também na questão de me reincorporar à polícia, já adivinhando que me decidiria favoravelmente e me perguntando se estaria repetindo uma loucura ou aproveitando a graça de uma segunda oportunidade.
Não vi Rachel na chuva senão quando bateu na janela do banco do passageiro. Em seguida ela abriu a porta de trás e jogou a mala dentro do carro. Usava uma parca verde com o capuz levantado, que devia ser excelente para enfrentar a inclemência dos elementos nas Dakotas, mas que parecia exageradamente grande ali em Los Angeles.
- É melhor que seja uma boa ideia, Bosch - disse ela, quando subiu e se sentou, molhando todo o banco do carona. Não demonstrou qualquer sinal exterior de afeição, e eu tampouco. Era uma das coisas que tínhamos combinado pelo telefone. Agiríamos como profissionais até esgotarmos as possibilidades do meu palpite.
- Por que, você tem alternativas?
- Não, é só porque acabo de arriscar tudo o que tenho com Alpert. Posso ser mandada de volta para Dakota do Sul pelo resto da vida para, onde, por sinal, o tempo talvez esteja melhor do que aqui.
- Ora, seja bem-vinda a Los Angeles.
- Pensei que estivesse em Burbank.
- Tecnicamente.
Depois que saímos do aeroporto, desci a rodovia 134 e segui para o leste até a 5. Graças à chuva e ao movimento intenso do pessoal que ia trabalhar de manhã, nosso progresso foi muito lento. Quando contornamos o Griffith Park para seguir rumo ao sul, eu ainda não queria me preocupar com a passagem do tempo, mas estava chegando perto.
Rodamos em silêncio por longo tempo porque as condições difíceis causadas pela mistura da chuva com o trânsito tornavam a atividade de dirigir muito intensa, provavelmente mais ainda porque Rachel tinha que permanecer sentada sem ter o que dizer, enquanto eu tinha o controle do volante. Finalmente ela falou, nem que tenha sido só para descarregar um pouco a tensão acumulada no interior do carro.
- Como é, vai me contar seu grande plano?
- Não é plano, é só palpite.
- Não, você disse que sabia qual era o próximo passo dele, Bosch.
Notei que desde que tínhamos feito amor no meu quarto e sala de Las Vegas ela começara a me chamar pelo sobrenome. Não saberia dizer se isso fazia parte do acordo de agirmos como profissionais ou se era alguma forma de carinho inverso, chamar alguém com quem teve a maior das intimidades pelo nome menos íntimo.
- Eu tinha que convencê-la a vir, Rachel.
- Muito bem, então deu certo. Eu estou aqui. Pode me contar.
- É o Poeta que tem o grande plano. Backus.
- O que ele vai fazer?
- Lembra dos livros de que lhe falei ontem, os que estavam dentro do latão e o que peguei?
- Lembro.
- Acho que descobri o seu significado.
Falei a ela sobre o recibo parcialmente queimado que eu vira e como descobri que Book Car queria dizer na verdade Book Carnival, a livraria dirigida pelo detetive aposentado Ed Thomas, o último alvo do Poeta oito anos atrás.
- Você pensa então que, por causa deste livro no latão de lixo, ele está aqui e que vai levar a cabo o assassinato que o impedimos de cometer há oito anos?
- Exatamente.
- É o que se pode chamar de interpretação forçada, Bosch. Gostaria que você tivesse me dito isso antes que eu pusesse o meu na reta pegando um avião e vindo para cá.
- Não existem coincidências, especialmente como esta.
- Certo, conte-me a história toda então. Dê-me o perfil. Conte-me o grande plano do Poeta.
- Bem, este é o trabalho do Bureau, traçar o perfil de crimes e criminosos. Não vou fazer isso. Mas eis o que penso que ele está fazendo. Penso que o trailer e a explosão foram montados de modo a parecer um grand finale. Depois, assim que o diretor do FBI se instalar diante das câmeras de televisão e disser que pensa que pegou o Poeta, o Poeta vai e mata Ed Thomas. O simbolismo seria perfeito. O grande gesto, o derradeiro vão-se-foder. Xeque-mate, Rachel. Enquanto o FBI se autoelogia, ele aparece, bem no nariz de todos, e mata o sujeito que foi salvo da última vez.
- E por que os livros estão dentro do latão? Como os livros se ajustam à história?
- Acho que eram livros que ele comprou de Ed Thomas. Que ele comprou na Book Carnival pelo correio ou mesmo pessoalmente. Talvez estivessem marcados de alguma maneira e pudessem ser rastreados até a loja. Como ele não queria isso, queimou tudo. Não podia correr o risco de os livros sobreviverem à explosão do trailer. Mas aí, por outro lado, depois que Ed Thomas tivesse sido assassinado e Backus sumido, os agentes encontrariam a conexão com a loja e começariam a ver há quanto tempo ele tinha planejado tudo. Ajudaria a provar sua genialidade. É o que ele quer, certo? Quer dizer, você é a especialista em montar perfis, histórias lógicas. Diga-me se estou enganado.
- Eu era especialista. Atualmente o que faço é solucionar crimes ocorridos nas reservas indígenas das Dakotas.
O trânsito começou a ficar mais aberto quando passamos do centro da cidade, as torres do distrito financeiro escondidas na neblina. Sempre achei que a cidade na chuva era uma visão perturbadora, assombrada. Havia qualquer coisa de agourento naquilo que me deprimia, que me fazia sentir como se uma entidade maligna tivesse à solta no mundo.
- Só tem um problema com a sua história, Bosch.
- O quê?
- O diretor do FBI vai dar uma entrevista coletiva hoje, mas não vai dizer que pegamos o Poeta. Exatamente como você, não acreditamos que Backus estivesse naquele trailer.
- Mas Backus não sabe disso. Vai assistir na CNN como todo mundo. E não mudará de planos. De um jeito ou de outro, eu digo que ele mata Ed Thomas hoje. De um jeito ou de outro, ele prova a sua teoria: "Sou melhor e mais inteligente que vocês."
Ela assentiu e pensou por um instante no que acabara de ouvir.
- Tudo bem - disse, finalmente. - E se eu acreditar? Qual é a nossa jogada? Você já ligou para o Ed Thomas?
- Não sei ainda o que vamos fazer e não liguei para o Ed. Estamos seguindo para a loja dele. Fica em Orange e abre às onze. Telefonei e consegui o horário numa gravação da secretária eletrônica.
- Por que na loja? Backus matou todos os outros policiais em suas casas e um no carro.
- Porque, no momento, não sei onde ele mora e por causa do livro. Meu palpite é que o Backus dará o bote na livraria. Se eu estiver errado, e Ed não aparecer na loja, então a gente descobre onde ele mora e vai até lá.
Rachel balançou a cabeça em concordância com o plano.
- Foram escritos três livros sobre o caso do Poeta. Li cada um deles e em todos havia um pós-escrito sobre os personagens. Diziam que Thomas se aposentara e abrira uma livraria. Acho que um inclusive chegou a dar o nome da livraria.
- Você tem razão.
Ela deu uma olhada no relógio.
- Vamos chegar antes dele abrir?
- Vamos. Marcaram hora para a coletiva do diretor do FBI?
- Três da tarde, hora de Washington.
Consultei o relógio do painel. Dez da manhã. Tínhamos uma hora antes de Ed Thomas abrir a livraria e duas horas até a entrevista. Se minha teoria e meu palpite estivessem certos, estaríamos na presença do Poeta muito breve. Eu estava pronto e eletrizado. Sentia a octanagem altíssima circulando no meu sangue. Por força do velho hábito, tirei a mão do volante e chequei o coldre no quadril, onde tinha a minha Glock 27. Eu não tinha autorização legal para portar armas e se terminasse usando-a poderia haver encrenca - do tipo que impediria meu retorno ao departamento.
Mas, às vezes, o risco que você enfrenta impõe os outros riscos que você deve correr. E meu palpite era que esta ia ser uma destas ocasiões.
Capítulo 40
A chuva dificultava a observação da loja. Se tivéssemos deixado os limpadores de para-brisa ligados, estaríamos nos entregando de mão beijada. Assim, tivemos que tentar enxergar através da quase nenhuma visibilidade do para-brisa castigado pela chuva.
Tínhamos parado no estacionamento de um centro comercial no Tustin Boulevard, na cidade de Orange, no qual as lojas eram dispostas uma do lado da outra. A livraria Book Carnival ficava entre uma loja de discos de rock e o que parecia ser uma loja vaga. Três portas depois ficava uma loja de armas.
Havia uma única entrada para o público. Antes de assumirmos nossa posição na frente, tínhamos dado uma volta de carro pela parte de trás e visto uma porta com o nome da loja, uma campainha e um cartaz que dizia TOQUE A CAMPAINHA PARA ENTREGAS.
Em um mundo perfeito, teríamos nos instalado tanto na frente quanto nos fundos com um mínimo de quatro pessoas. Backus podia vir se fazendo passar por cliente, pela porta da frente, ou por entregador, pela porta dos fundos. Mas naquele dia nada era perfeito neste mundo. Chovia e éramos só nós dois. Estacionamos o Mercedes a uma distância que dava para observar com segurança a frente da loja, mas que, ao mesmo tempo, fosse perto o bastante para agir se houvesse necessidade.
O balcão da frente e a caixa ficavam logo atrás da vitrina da Book Carnival, o que trabalhava em nosso favor. Logo depois, o vimos abrir a loja e tomar posição atrás do balcão. Acionou o mecanismo eletrônico da caixa registradora e deu alguns telefonemas. Mesmo com a chuva e tendo o para-brisa embaçado, podíamos tê-lo sob nossas vistas desde que ele se mantivesse diante da caixa. Eram os fundos da loja atrás dele que desapareciam na obscuridade. Nas ocasiões em que abandonava o posto e caminhava na direção das prateleiras e vitrinas de trás, nós o perdíamos de vista e a dolorosa sensação de pânico se apoderava de nós.
No caminho, Rachel me contou sobre a descoberta do dispositivo sinalizador de GPS debaixo do seu carro e a confirmação de que fora usada pelos colegas como isca involuntária e inconsciente para Backus. E agora estávamos ali, sentados, observando um antigo colega meu, de certo modo fazendo dele uma outra isca. Aquilo não me agradava. Tive ímpetos de procurar Ed e contar-lhe que ele era o centro das atenções, que devia tirar férias, dar o fora da cidade. Mas não fui porque sabia que Backus estava de olho em Thomas e qualquer desvio da normalidade poderia fazer com que perdêssemos a chance de pegá-lo. Assim, Rachel e eu insistimos em nos comportar daquela maneira egoísta com a vida de Ed Thomas, e eu sabia que no futuro teria que lidar com essa culpa. A única questão era, dependendo de como corressem as coisas, quanta culpa seria.
Os primeiros dois fregueses do dia foram mulheres. Chegaram logo depois que Thomas tinha destrancado a porta da frente. E enquanto circulavam pela loja, um homem parou o carro na frente, saltou e entrou também. Era jovem demais para ser Backus, por isso não entramos em alerta geral. Ele saiu depressa e sem comprar nada. Depois, quando as duas mulheres saíram, sobraçando suas sacas de livros, saltei do Mercedes e corri até a marquise da loja de armas.
Rachel e eu tínhamos decidido não trazer Thomas para dentro de nossa investigação, mas isso não me impediria de entrar na loja dele em uma missão de reconhecimento. Decidimos que eu iria vê-lo com uma história para servir de desculpa, me daria a reconhecer despreocupadamente e veria se por acaso já tinha pensado que podia estar sendo observado. Deste modo, assim que os primeiros clientes do dias entraram e saíram, fui em frente.
Primeiro entrei na loja de armas, já que ficava mais perto de onde tínhamos estacionado e teria parecido estranho a quem estivesse observando o shopping que eu fosse diretamente à livraria na outra ponta. Dei uma olhada superficial nas armas reluzentes expostas no balcão de vidro e depois nos alvos presos à parede dos fundos. Tinham as silhuetas costumeiras, mas também versões com as caras de Osama bin Laden e Saddam Hussein. Meu palpite é que estas eram as campeãs de vendagem.
Quando um homem atrás do balcão perguntou se eu precisava de ajuda eu disse que só estava dando uma olhada e saí da loja logo depois. Dirigi-me então para a Book Carnival, parando primeiro para verificar a loja vazia ao lado. Através do vidro, pude ver caixas marcadas com o que me pareceu ser títulos de livros. Percebi que Thomas devia estar aproveitando o espaço vazio para armazenar livros. Havia um cartaz de ALUGA-SE e um número de telefone, que guardei na memória para o caso de uma possível necessidade futura.
Quando entrei na Book Carnival, encontrei Ed Thomas atrás do balcão. Sorri e ele sorriu de volta em sinal de reconhecimento, mas pude ver que levou alguns segundos para identificar o rosto que reconhecera.
- Harry Bosch - disse, ao me identificar.
- Ei, Ed, como vai?
Apertamos as mãos e vi nos olhos dele, por trás dos óculos, um calor que me agradou. Eu tinha certeza absoluta de que não o via desde o seu jantar de despedida no Sportsman’s Lodge, no Vale, seis ou sete anos atrás. Havia mais cabelos brancos do que não brancos na sua cabeça. Mas ainda era alto e magro, exatamente como me lembrava dele no trabalho. Tinha uma tendência nas cenas de crime para segurar o bloco de anotações muito alto e perto dos olhos quando escrevia. Isso porque seus óculos estavam sempre uma ou duas receitas atrasados. A pose com os braços levantados conseguiu para ele o apelido de Louva-a-deus entre o pessoal que trabalhava com homicídios. Engraçado como de repente me lembrei daquilo agora. Lembrei também que o convite para a sua festa de aposentadoria era ilustrado por uma caricatura de Ed vestido de super-herói, com uma capa, uma máscara e um L grande no peito.
- Como vai o negócio da venda de livros?
- Vai bem, Harry. O que o traz aqui, tão longe da cidade grande e má? Soube que se aposentou há dois anos.
- É verdade. Mas estou pensando em voltar.
- Sente falta?
- Mais ou menos. Vamos ver o que acontece.
Ed pareceu surpreso e vi então que ele não tinha sentido falta de nada no seu trabalho. Sempre gostara muito de ler, a ponto de manter uma caixa de livros na mala do carro para ler em missões de vigilância e quando era obrigado a ficar ouvindo grampos. Agora tinha sua pensão e sua livraria e estava se saindo bem, sem o lado desagradável do antigo emprego.
- Você está só passando por aqui?
- Não, na verdade não, vim aqui com uma razão específica. Você se lembra de minha antiga parceira, Kiz Rider?
- Claro, claro, ela já esteve aqui comigo.
- Exatamente. Ele me deu uma ajuda e eu queria lhe dar um presentinho. Lembro-me de que uma vez ela me disse que a sua loja era o único lugar por aqui onde se podia conseguir um livro autografado por um escritor chamado Dean Koontz. E eu estava pensando que se você tivesse um desses eu ia querer.
- É possível que tenha sobrado alguma coisa lá no depósito. Preciso ver. Essas coisas saem depressa, mas geralmente deixo uns escondidos.
Ele me deixou sozinho no balcão e caminhou até uma porta nos fundos da loja que parecia levar a um depósito. Presumi que a porta destinada à entrega de encomendas fosse lá. Aproveitei quando ele saiu para me debruçar sobre o balcão e dar uma olhada no que havia embaixo dele. Vi um pequeno monitor de vídeo com a tela dividida em quatro segmentos, cada um correspondendo aos ângulos cobertos pelas câmeras: a área da caixa registradora, em que eu aparecia debruçado por cima do balcão, uma visão da loja no sentido do comprimento, um ângulo mais fechado pegando um grupo de prateleiras e o depósito de livros no fundo, onde pude ver Thomas olhando para um monitor semelhante instalado em cima de uma prateleira.
Percebi que ele estava me vendo ali, espiando por cima do seu balcão. Endireitei-me, tentando inventar rapidamente uma explicação. Poucos momentos depois ele voltava carregando um livro.
- Encontrou o que estava procurando, Harry?
- O quê? Ah, sim, estava querendo saber se você tem alguma proteção aqui, tendo sido policial e tudo. Algum dia já se preocupou com a possibilidade de aparecer por aqui alguém que o conheceu nos tempos de policial?
- Tomo minhas precauções, Harry. Não se preocupe.
Balancei a cabeça.
- Bom saber. É esse o livro?
- É, será que ela já tem? Saiu no ano passado.
Ele me mostrou um livro chamado O rosto. Eu não sabia se Kiz o tinha ou não, mas ia comprar de qualquer jeito.
- Não sei. Tem o autógrafo dele?
- Claro. Está datado e assinado.
- Legal, eu levo.
Enquanto ele registrava a venda, tentei engrenar um papo-furado que na verdade destinava-se a coletar informações.
- Vi que você tem toda a loja coberta por câmeras de vídeo. O que parece um pouco exagerado para uma livraria.
- Você não vai acreditar, mas as pessoas roubam livros. E também tenho uma seção de itens raros lá nos fundos... coisas caras de coleções que compro e vendo. A câmera que cobre aquele lado pegou um garoto ainda hoje de manhã tentando enfiar um exemplar de Nick’s Trip dentro das calças. Os primeiros livros de Pelecanos são difíceis de encontrar. Representaria uma perda de mais ou menos setecentos dólares para mim.
Pareceu-me uma desmedida soma de dinheiro por um único livro. Eu nunca tinha ouvido falar desse livro mas adivinhei que teria uns cinquenta ou cem anos de publicado.
- Chamou a polícia?
- Não. Só dei um chute no rabo do garoto e falei que se ele voltasse aqui eu chamava a polícia.
- Você é um cara legal, Ed. E deve ter amolecido um pouco depois que se aposentou. Não creio que o Louva-a-deus fosse deixar o garoto sair incólume.
Entreguei-lhe duas de vinte e ele me deu o troco.
- Essa de Louva-a-deus é coisa muito antiga. E minha mulher não acha que eu seja tão suave. Obrigado, Harry. E dá minhas lembranças a Kiz.
- Pode deixar. Você já encontrou alguém daquele tempo?
Eu ainda não queria sair. O que me interessava mesmo era obter mais informações e por isso continuei a puxar conversa. Olhei por cima da cabeça dele e localizei uma espécie de cúpula pequena que abrigava duas câmeras de vídeo. Ela era montada perto do teto, com uma das lentes virada para a caixa registradora e a outra pegado a loja no sentido do comprimento. Havia uma luzinha vermelha piscando na sua base e pude ver um pequeno cabo preto saindo do estojo protetor da câmera e subindo para o teto. Enquanto Thomas respondia à minha pergunta, fiquei pensando na possibilidade de Backus ter ido na loja e sido filmado por uma das câmeras de vigilância.
- Não - respondeu Thomas. - Eu meio que deixei tudo aquilo para trás. Você diz que sente falta, Harry, mas eu não sinto falta de absolutamente nada. Com sinceridade.
Assenti, querendo dar a impressão de que compreendia, mas na verdade não conseguia entender. Thomas fora bom policial e bom detetive. Fazia o trabalho com o coração, o que era uma das razões pela qual o Poeta o visara. Estava sendo insincero. Não podia acreditar no que dizia.
- Isso é bom - eu disse. - Ei, você tem aí a gravação do tal garoto que pôs daqui para fora hoje de manhã? Eu gostaria de ver como ele tentou roubar você.
- Não, só tenho as imagens ao vivo. Tenho as câmeras à vista e um adesivo na porta com o aviso. A intenção é que funcione como um intimidador, mas algumas pessoas são burras. Dotar o sistema com um gravador é caro demais e a manutenção seria um pé no saco. Só tenho as imagens ao vivo.
- Entendo.
- Olha, se a Kiz tiver o livro você me devolve. Sempre posso vendê-lo.
- Não, está ótimo. Se ela já tiver eu fico com ele.
- Harry, quando foi a última vez em que você leu um livro?
- Li um livro sobre Art Pepper há uns dois meses - respondi, indignado. - Ele e a mulher escreveram juntos pouco antes dele morrer.
- Não ficção?
- É, vida real.
- Estou falando de romances. Quando foi a última vez que você leu um?
Encolhi os ombros. Não me lembrava.
- É o que eu pensava - disse Thomas. - Se ela não quiser, traga o livro de volta que o venderei para uma pessoa que o lerá.
- Está bem, Ed, obrigado.
- Tenha cuidado aí fora, Harry.
- Pode deixar. Você também.
Eu estava me encaminhando para a porta quando as peças do quebra-cabeça se ajustaram - o que Thomas me dissera e o que eu sabia acerca do caso. Estalei os dedos e agi como se tivesse acabado de lembrar algo. Virei-me para Thomas.
- Ei, eu tenho um amigo que mora num grotão em Nevada mas diz que é seu cliente. Você vende pelo correio?
- Claro. Qual é o nome dele?
- Tom Walling. Mora lá para cima, em Clear.
Thomas balançou a cabeça, mas com um ar não muito feliz.
- Ele é seu amigo?
Achei que eu podia ter chegado onde queria.
- Bem, pode-se dizer que é apenas um conhecido.
- Bem, ele me deve dinheiro.
- É mesmo? O que aconteceu?
- É uma longa história. Mas eu lhe vendi alguns livros de uma coleção que estava sob meus cuidados e ele pagou muito pontualmente. Pagou com uma ordem de pagamento e tudo correu bem. Assim, quando quis mais livros, eu expedi antes de receber uma nova ordem. Grande erro. Já se passaram três meses e até agora não recebi um centavo dele. Se você vir de novo esse seu conhecido, diga que eu quero meu dinheiro.
- Pode deixar, Ed. Que droga... eu não sabia que o cara era um vigarista. Que livros ele comprou?
- O homem gosta de Poe, por isso eu lhe vendi alguns livros da coleção Rodway. Antigos. Livros muito bacanas. Depois ele encomendou mais quando chegou outra coleção. E não pagou.
Meu coração batia a toda velocidade. O que Thomas estava me dizendo era a confirmação de que Backus estava no jogo, de alguma forma. Eu quis interromper a farsa neste ponto e dizer a Thomas o que estava acontecendo e que ele se encontrava em perigo, mas me controlei. Tinha primeiro que falar com Rachel e formular um plano adequado.
- Acho que vi esses livros na casa dele - falei. - Poesia, não é?
- A maioria, sim. Ele realmente não era interessado em contos.
- Os livros tinham o nome do colecionador original? Rodman?
- Não, Rodway. E sim, eles tinham o ex-libris de Rodway colado neles. O que fazia cair o preço, mas seu amigo queria os livros.
Assenti com um gesto de cabeça. Via minha teoria se concretizando. Agora já era mais do que teoria.
- Harry, você está realmente a fim de quê?
Olhei para Thomas.
- Como assim?
- Não sei... Você está fazendo um monte de perguntas...
O toque alto de uma campainha soou no fundo da loja, interrompendo Thomas.
- Não se preocupe, Harry - disse ele. - São mais livros. Preciso receber uma entrega.
- Oh.
- Vejo você mais tarde.
- Tudo bem.
Fiquei olhando Ed abandonar a área do balcão e se dirigir para os fundos. Chequei o relógio. Era meio-dia. O diretor estava prestes a aparecer diante das câmeras para falar sobre a explosão no deserto e dizer que se tratava da obra de um criminoso conhecido como o Poeta. Seria esse o momento que Backus escolheria para atingir Thomas? Minha garganta e meu peito se contraíam como se o ar tivesse sido sugado do ambiente. Assim que ele passou pela porta do depósito voltei para junto do balcão e me debrucei para ver o monitor. Sabia que se Thomas checasse o monitor do depósito veria que eu não saíra, mas estava contando com que ele tivesse ido direto para a porta.
Pelo canto da tela em que aparecia o depósito vi Thomas aproximar o rosto da porta dos fundos e olhar pelo olho mágico. Evidentemente, sem se alarmar com o que viu, acionou o trinco para abrir a porta. Fiquei olhando atentamente para a tela, mesmo que a imagem fosse muito pequena e eu a estivesse vendo de cabeça para baixo.
Thomas recuou para dar espaço e um homem entrou. Usava camisa escura e bermuda combinando. Carregava duas caixas, uma empilhada em cima da outra, e Thomas indicou-lhe uma mesa para depositá-las. O entregador arriou as duas caixas, pegou uma fatura que estava presa na parte de cima e apresentou-a para Thomas pedindo que assinasse um recibo.
Tudo parecia certo. Era uma entrega de rotina. Saí rapidamente do balcão e fui para a porta. Quando a abri, ouvi um carrilhão eletrônico soar mas não me preocupei. Voltei para o Mercedes correndo debaixo da chuva, depois de proteger o livro autografado sob a capa impermeável.
- O que foi aquilo de se deitar por cima do balcão daquele jeito? - perguntou Rachel assim que me sentei detrás do volante outra vez.
- Ele tem um sistema de vigilância de segurança. Houve uma entrega e quis me assegurar de que não era uma farsa antes de sair. Passam das três horas em Washington.
- Eu sei. O que você descobriu com ele, ou só esteve lá para comprar um livro?
- Descobri muita coisa. Tom Walling é cliente dele. Ou era, até que deixou de pagar uma encomenda de livros de Edgar Allan Poe. Ordem de pagamento, como pensávamos. Thomas nunca o viu, só expediu os livros para Nevada.
Rachel endireitou-se no banco.
- Você está brincando?
- Não. Os livros eram da coleção de um sujeito, que Ed estava vendendo. Assim sendo, eram marcados e, por conseguinte, fáceis de serem rastreados. Motivo pelo qual Backus os queimou no latão de lixo. Não podia arriscar que sobrevivessem à explosão intactos e fossem rastreados até Ed Thomas.
- Por quê?
- Porque ele definitivamente está em ação. Tem que estar preparando algo para pegar Thomas.
Liguei o motor do carro.
- Onde está indo?
- Dar a volta no quarteirão, para me assegurar quanto a essa entrega. E é bom mudar de lugar de vez em quando.
- Ah, agora está me dando lições de vigilância!
Sem responder, contornei o centro comercial e vi o furgão marrom do UPS estacionado perto da porta aberta dos fundos da Book Carnival. Seguimos adiante e durante aquele breve instante em que vislumbrei a parte de trás da viatura e a porta aberta da livraria, vi o entregador lutando para subir pela rampa com diversas caixas. São devoluções, imaginei, dirigindo em frente sem hesitação.
- Ele é legítimo - disse Rachel.
- É.
- Você não deixou transparecer nada com Thomas, deixou?
- Não. Ele ficou desconfiado, mas fui salvo pelo gongo. Queria falar com você primeiro. Penso que temos que trazê-lo para o jogo.
- Harry, já falamos sobre isso. Se nós nos abrirmos, ele pode mudar sua rotina e atitude e atrapalhar tudo. Se Backus estiver de olho, qualquer mudança mínima pode ser fatal.
- E se não o alertarmos e isto sair errado, então nós...
Não completei a frase. Já tínhamos discutido essa questão duas vezes, cada um de nós defendendo alternadamente o lado contrário. Tratava-se de uma clássica contradição de intenções. Asseguramos a segurança de Thomas ao risco de perdermos Backus? Ou arriscamos a segurança de Thomas para termos certeza de que chegaríamos perto de Backus? Dizia respeito aos meios necessários para atingir uma determinada finalidade, e nenhum de nós ficaria feliz fosse qual fosse a decisão que tomássemos.
- Acho que isso quer dizer que não podemos deixar que nada saia errado - disse ela.
- Exato. E o que me diz de pedir reforços?
- Acho que também é arriscado demais. Quanto mais gente nós trouxermos para cá, maior a chance de revelarmos a nossa estratégia.
Aquiesci. Rachel tinha razão. Encontrei uma vaga no outro lado do estacionamento em relação ao ponto em que tínhamos parado para observar antes. Mas eu não estava me enganando. Com os automóveis que estavam ali parados no estacionamento do centro comercial no meio de um dia útil chuvoso, nós éramos perceptíveis. Comecei a pensar que talvez fôssemos como as câmeras de vigilância de Ed Thomas. Estritamente um elemento dissuasor. Talvez Backus nos tivesse visto e desistido de seguir adiante com seu plano. Por ora.
- Freguês - disse Rachel.
Dei uma olhada no outro lado do estacionamento e vi uma mulher se aproximando da livraria. Ela me pareceu familiar e depois me lembrei de tê-la visto no Sportsman’s Lodge.
- É a mulher dele. Encontrei-a uma vez. Acho que o nome dela é Pat.
- Acha que está levando o almoço dele?
- Talvez. Ou talvez trabalhe aí.
Observamos durante algum tempo, mas não houve sinal de Thomas ou de sua mulher na parte da frente da loja. Fiquei preocupado, saquei o celular e liguei para a loja, na esperança de forçá-los a ir para o balcão da frente, onde ficava o telefone.
Mas uma mulher atendeu prontamente sem que ninguém aparecesse. Desliguei depressa.
- Deve haver uma extensão no depósito.
- Quem atendeu?
- A esposa.
- Devo ir até lá?
- Não. Se Backus estiver vigiando irá reconhecê-la. Você não pode ser vista.
- Está bem, então o quê?
- Então nada. Eles provavelmente estão sentados na mesa que vi no depósito, fazendo um lanche. Seja paciente.
- Não quero ser paciente. Não gosto de ficar sentada sem...
Ela se deteve quando vimos Ed Thomas sair pela porta da frente da loja. Usava uma capa de chuva e carregava um guarda-chuva e uma pasta. Entrou no carro em que o tínhamos visto chegar pela manhã, um Ford Explorer verde. Pela vitrina da livraria vi sua mulher sentar-se no banco que ficava atrás do balcão.
- E aqui vamos nós.
- Onde ele estará indo?
- Talvez esteja indo pegar o lanche.
- Não com uma pasta. Ficamos com ele, certo?
Dei a partida no motor.
- Certo.
Vimos Thomas tirar o carro de uma vaga, sair do estacionamento e virar à direita no Tustin Boulevard. Depois que o Ford Explorer foi absorvido pelo trânsito, eu saí também e o segui no meio da chuva. Peguei o celular e liguei para a livraria. A mulher de Ed Thomas atendeu.
- Oi, Ed está?
- Não, ele não está. Posso ajudá-lo?
- Quem está falando... é Pat?
- Sim, é. Quem fala?
- Bill Gilbert. Acho que nos conhecemos no Sportsman’s Lodge algum tempo atrás. Trabalhei com Ed no departamento. Eu ia passar pela área e pensei em dar uma passada na loja. Ele ainda volta hoje?
- É difícil de dizer. Ele saiu para fazer uma avaliação e pode levar o resto do dia. Com essa chuva toda e a distância que vai ter que percorrer.
- Uma avaliação? Como assim?
- Uma coleção de livros. Alguém quer vender uma coleção e Ed acaba de sair para ver se vale a pena. É lá para as bandas do vale de San Fernando e, pelo que entendi, trata-se de uma coleção grande. Ele me disse que provavelmente vou fechar a loja hoje.
- Tem a ver com a coleção Rodway? Ele me falou sobre ela a última vez que conversamos.
- Não, essa já foi quase toda vendida. É um homem chamado Charles Turrentine, que tem para mais de seis mil livros.
- Uau, é muita coisa.
- É um colecionador conhecido, mas acho que precisa de dinheiro porque disse a Ed que quer vender tudo.
- Estranho. Um cara passa um tempão colecionando livros e depois vende.
- A gente vê isso acontecer.
- Bem Pat, não vou continuar tomando o seu tempo. Falo com o Ed na próxima vez.
- Como foi mesmo que você disse que se chamava?
- Tom Gilbert. Bye-bye.
Fechei o celular.
- Você se chamava Bill Gilbert no princípio da conversa.
- Opa.
Relatei a conversa para Rachel e depois liguei para Informações do código de área 818, mas não havia nenhum Charles Turrentine listado. Perguntei a Rachel se ela não conhecia alguém no escritório do FBI de Los Angeles que pudesse conseguir o endereço de Turrentine e talvez um telefone não listado.
- Você não tem ninguém na polícia de Los Angeles que possa ajudar?
- No momento, acho que já usei todos os favores que eles me deviam. Além do mais, sou um intruso. E você não.
- Não sei nada disso.
Ela puxou o celular e deu início as suas tentativas enquanto eu me concentrava nas luzes traseiras do Ford Explorer de Thomas, apenas a cinquenta metros de mim na rodovia 22. Ele tinha que fazer uma escolha um pouco mais adiante. Podia virar para o norte na 5 e atravessar o centro de Los Angeles, ou podia seguir em frente e pegar depois a 405 norte. As duas rotas o levariam para o vale de San Fernando.
Rachel conseguiu uma ligação de volta em cinco minutos com a informação que pedira.
- Ele mora na Valerio Street, em Canoga Park. Sabe onde fica isso?
- Sei onde fica Canoga Park. A Valerio corta todo o vale no sentido leste-oeste. Conseguiu um número telefônico?
Ela respondeu teclando o número no seu celular. Depois levou-o ao ouvido e esperou. Depois de trinta segundos, fechou o telefone.
- Não atendem. Caiu na secretária.
Seguimos em silêncio enquanto pensávamos nisso.
Thomas passou pela saída da 5 norte e seguiu na direção da 405. Eu sabia que ele ia virar para o norte e entrar no vale pelo Passo Sepulveda. Debaixo daquela chuva, estávamos falando em qualquer coisa como uma hora de estrada. Com sorte.
- Não o perca de vista, Bosch - disse Rachel, baixinho.
Eu sabia o que ela queria dizer. Estava me dizendo que sentia as vibrações, que achava que tínhamos chegado ao fim. Que acreditava que Ed Thomas estava nos levando ao Poeta. Assenti, porque sentia a mesma coisa, quase que como um zumbido no centro do meu peito. Eu sabia, sem realmente saber, que estávamos lá.
- Não se preocupe - garanti. - Não vou perder.
Capítulo 41
A chuva estava começando a irritar Rachel. Sua implacabilidade. Nunca cessava. Nunca fazia uma pausa. Jorrava em cima do para-brisa em uma torrente que se sobrepunha à ação dos limpadores. Tudo absolutamente embaçado. Havia carros parando no acostamento, de ambos os lados. Relâmpagos estalavam a oeste, em algum ponto sobre o oceano Pacífico. Passaram por acidentes e mais acidentes, o que deixou Rachel ainda mais nervosa. Se fossem detidos por um acidente e perdessem Thomas de vista, carregariam uma tremenda culpa pelo que lhe acontecesse.
Rachel tinha medo de que se tirasse os olhos do brilho vermelho das lanternas do Explorer de Thomas, fossem perdê-lo em meio a um mar de luzes vermelhas. Bosch pareceu adivinhar o que pensava.
- Calma - disse ele. - Não vou perdê-lo. E mesmo que perdesse, nós sabemos onde está indo.
- Não, não sabemos. Nós só sabemos onde Turrentine mora. O que não significa que os livros estão lá. Seis mil livros? Quem guarda seis mil livros em casa? Provavelmente estão em um depósito em outro lugar.
Rachel viu que Bosch segurava o volante com mais força e aumentava mais um pouco a velocidade, chegando mais perto de Thomas.
- Você não tinha pensado nisso, tinha?
- Não, para falar a verdade, não.
- Então não o perca.
- Já falei que não vou perder.
- Eu sei. É que repetir me ajuda.
Ela fez um gesto na direção do para-brisa.
- Com que frequência cai um temporal como este?
- Quase nunca - respondeu Bosch. - Disseram no noticiário de hoje que é a tempestade do século. É como se tivesse algo de errado, como se alguma coisa tivesse quebrado. Em Malibu, a erosão das águas está provavelmente atingindo os canyons. Deslizamentos nas Palisades. E o rio provavelmente transbordou em ambas as margens. No ano passado tivemos os incêndios. Este ano talvez venha a ser a chuva. De um jeito ou de outro há sempre alguma coisa. É como você tivesse que passar num teste, ou algo assim.
Ele ligou o rádio em busca de um boletim meteorológico. Mas Rachel imediatamente estendeu o braço, desligou e apontou para um ponto à frente do para-brisa.
- Concentre-se na direção - ordenou ela. - Não ligo a mínima para o boletim do tempo.
- Certo.
- Aproxime-se mais. Não faz mal se ficar grudado na traseira dele. Não será capaz de enxergar você com tanta chuva.
- Se fico atrás dele, e posso bater no Explorer, aí então o que a gente diz?
- Só não quero que...
- O perca de vista. Já sei... Já sei.
A meia hora seguinte decorreu sem que dissessem uma só palavra. A rodovia foi ganhando altura para ultrapassar as montanhas. Rachel viu lá em cima uma estrutura enorme que mais parecia uma espécie de castelo pós-moderno naquela atmosfera sombria e cinzenta e Bosch lhe disse que era o museu Getty.
Ao descerem para o fundo do vale ela viu o carro de Thomas sinalizando que ia virar. Bosch passou para a pista da direita, três carros atrás.
- Ele vai sair da rodovia. Estamos quase lá.
- Você se refere ao Canoga Park?
- É isso aí. Depois vai rumo oeste e em seguida para o norte de novo, em ruas asfaltadas.
Bosch silenciou novamente quando se concentrou na direção e em seguir Thomas. Em mais quinze minutos, o pisca do Explorer foi acionado de novo e Thomas saiu na DeSoto Avenue e rumou para o norte. Bosch e Walling foram atrás, mas desta vez sem a proteção de outros carros.
Na DeSoto, Thomas quase que imediatamente encostou no meio-fio de uma área de estacionamento e Bosch teve que passar direto por ele para não tornar a vigilância demasiado evidente.
- Deve estar consultando um mapa ou anotações - sugeriu Rachel. - A luz de dentro do carro está acesa e ele está de cabeça baixa.
- Certo.
Bosch entrou num posto de gasolina, circulou em torno das bombas e voltou para a rua. Fez uma pausa antes de virar, olhando para a esquerda, onde se encontrava o Explorer de Thomas. Esperou, e, após meio minuto, Thomas retomou seu trajeto. Bosch esperou que passasse, segurando o celular na altura do rosto de modo a impedir que o visse, no caso de Thomas estar olhando e poder enxergar através da chuva. Deixou passar outro carro e foi atrás.
- Ele deve estar perto - arriscou Rachel.
- É possível.
Mas Thomas seguiu por mais alguns quarteirões antes de virar à direita. Bosch reduziu a marcha antes de fazer o mesmo.
- Valerio - disse Rachel, lendo a placa na rua. - É aqui.
Quando Bosch fez a curva ela viu as luzes do freio do carro de Thomas se acenderem. Ele parou no meio da rua, três quarteirões à frente.
Rapidamente, Bosch encostou no meio-fio atrás de um carro.
- A luz do veículo está acesa - disse Rachel. - Acho que ele está estudando o mapa de novo.
- O rio - disse Bosch.
- O quê?
- Eu lhe disse que a Valerio corta o vale todo. Mas o rio também corta. Ele deve estar vendo se descobre um modo de contornar o rio. O rio corta todas estas ruas aqui. Ele deve ter que ir para o outro lado da Valerio.
- Não vejo nenhum rio aqui. Vejo uma cerca e concreto.
- Não é o que você consideraria um rio. Provavelmente é o Aliso ou o canal do Brown’s Canyon. Que vai dar no rio.
Eles esperaram. Thomas não se moveu.
- O rio costumava transbordar em temporais como este. Inundava cerca de um terço da cidade. Por isso, tentaram controlá-lo. Contê-lo. Alguém teve a ideia de capturá-lo em pedra, prendê-lo no concreto. Foi o que fizeram e depois disso as casas de todos ficaram supostamente seguras.
- Acho que é o que chamam de progresso.
Bosch fez que sim e recolocou as mãos com força no volante.
- Ele está andando.
Thomas virou à esquerda e, assim que seu carro desapareceu, Bosch desencostou do meio-fio e foi atrás. Thomas foi no rumo norte até Saticoy, depois virou para a direita. Cruzou uma ponte que atravessava o leito canalizado do rio. Lá de cima Rachel deu uma olhada na forte torrente de água que avançava pelo canal de concreto.
- Uau, e eu achava que estava morando em Rapid City, a cidade da corredeira.
Bosch não respondeu. Thomas virou para o sul na Mason e voltou na direção contrária. Só que agora estava do outro lado do canal. Mais um pouco e virou de novo na Valerio.
- Vai ser outro beco sem saída - antecipou Bosch.
Ele ficou na Mason e passou pela Valerio. Rachel conseguiu ver, apesar da chuva, que Thomas tinha parado na entrada de carros de uma casa grande de dois andares, que era uma das cinco casas daquela rua sem saída.
- Ele parou ali na frente de uma garagem - disse ela. - Está lá. Jesus, é a casa!
- Que casa?
- A que aparece na foto que estava no trailer. Backus estava tão seguro de si que nos deixou uma maldita foto.
Bosch estacionou. No ponto onde se encontravam, não eram vistos pelas casas da Valerio. Todas elas estavam às escuras.
- Deve ter havido um corte no fornecimento da energia.
- Debaixo do seu banco tem uma lanterna. Pegue.
Rachel abaixou-se para pegar a lanterna.
- E você?
- Vou ficar bem. Vamos.
Rachel começou a abrir a sua porta, virou-se e olhou para Bosch. Quis dizer algo mas hesitou.
- O quê? - perguntou ele. - Para eu ter cuidado? Não se preocupe, vou ter.
- Sim, na verdade, sim, tenha cuidado. Mas o que eu ia dizer é que a minha segunda arma está na bolsa. Você...
- Obrigado, Rachel, mas desta vez eu trouxe a minha.
Ela assentiu.
- Eu devia ter imaginado. E o que você pensa a respeito de reforços agora?
- Chame, se quiser. Mas não vou esperar. Vou lá agora.
A chuva fria me pegou no rosto e no pescoço na hora em que saltei do Mercedes. Levantei a gola do paletó e comecei a andar na direção da Valerio. Rachel aproximou-se e pôs-se a caminhar ao meu lado sem dizer uma palavra. Quando chegamos na esquina usamos o muro da casa como proteção e examinamos o beco e a casa escura onde Thomas estacionara o carro. Não havia sinal dele ou de nenhuma outra pessoa. Todas as janelas da fachada estavam escuras. No entanto, mesmo naquela escuridão, eu podia afirmar que Rachel estava certa. Era a casa cuja foto Backus deixara para nós.
Eu ouvia, mas não via, o rio escondido atrás das casas. A fúria de sua força, porém, era quase palpável, mesmo à distância. Em temporais assim a cidade se lavava, despejando-se nas superfícies lisas do canal de concreto. O rio serpenteia pelo vale e contorna os morros em seu avanço para a cidade. E dali segue para oeste, no rumo do mar.
Não passava de um fio de água a maior parte do ano. Uma piada municipal. Mas um temporal acordaria a cobra e lhe daria força. Ele se tornava então a sarjeta da cidade, milhões e milhões de galões batendo de encontro às suas grossas paredes de pedra, toneladas de água enfurecida querendo saltar fora, deslocando-se com um ímpeto terrível. Lembro-me de um menino que foi levado pelas águas quando eu ainda era garoto. Não o conhecia, só de nome. Pois quatro décadas mais tarde ainda me lembro do seu nome. Billy Kinsey estava brincando às margens do rio. Escorregou e em um momento desapareceu. Encontraram seu corpo em um viaduto a vinte quilômetros dali.
Minha mãe costumava dizer desde cedo, sempre que chovia...
- Fique longe dos estreitos.
- O quê? - murmurou Rachel.
- Eu estava pensando no rio. Preso entre aquelas paredes. Quando eu era garoto, a gente chamava aquilo de "estreitos". Quando chove desta maneira a água se move velozmente. É mortal. Quando chove, você tem que ficar longe dos estreitos.
- Mas estamos indo para a casa.
- O que dá no mesmo, Rachel. Tenha cuidado. Fique longe dos estreitos.
Ela olhou para mim. Pareceu compreender o que eu queria dizer.
- Certo, Bosch.
- Que tal você ir pela frente e eu por trás?
- Afirmativo.
- Esteja pronta para tudo.
- Você também.
O nosso alvo ficava a três casas de distância. Caminhamos rapidamente ao longo do muro que cercava a primeira delas e depois cortamos a entrada de carros da segunda. Ladeamos as frentes de mais duas e chegamos naquela em que o carro de Thomas estava parado. Rachel balançou a cabeça para mim pela última vez e nos separamos, ambos sacando as armas simultaneamente. Rachel deslocou-se para a frente enquanto comecei a descer o caminho de carros que dava nos fundos. A escuridão e o barulho da chuva e das águas do canal me davam proteção visual e sonora. O caminho de carros também era delimitado por buganvílias bojudas que já estavam sem serem podadas ou tratadas há algum tempo. Mas, com a casa por trás das janelas às escuras, poderia haver alguém me observando e eu não saberia.
O quintal estava inundado. No meio do enorme charco apareciam os dois cavaletes da estrutura de um balanço, sem o balanço. Atrás ficava uma cerca de um metro e oitenta de altura que separava a propriedade do canal que represava o rio. Eu podia ver que a água estava quase atingindo o topo do muro e passava ao lado com uma violência absurda. A inundação era certa ao final do dia. Mais para cima, onde a calha era mais rasa, o rio provavelmente já transbordara.
Voltei a atenção novamente para a casa. Havia uma varanda em toda a extensão da parede de trás. Não havia calhas e goteiras no telhado e a água da chuva caía torrencialmente, com tanta força que obscurecia tudo. Backus podia estar sentado numa cadeira de balanço na varanda que eu não o teria visto. A fileira de buganvílias seguia até a grade da varanda. Mergulhei abaixo da linha de visão e me desloquei rapidamente até a escadinha. Subi os três degraus com uma única passada e me vi fora da chuva. Meus olhos e ouvidos levaram um momento para se ajustar e foi aí que vi. Havia um sofá branco de cana da índia no lado direito da varanda. Em cima dele, uma manta cobria uma inconfundível forma humana sentada com o tronco na vertical, mas tombada sobre o braço esquerdo. Agachando-me, cheguei mais para perto e peguei uma ponta da manta no chão. Lentamente, fui descobrindo a forma.
Era um velho. Parecia estar morto pelo menos há um dia. O mau cheiro começava. Tinha os olhos abertos e a pele da cor de uma parede branca em uma sala para fumantes. Uma algema plástica de pressão tinha sido passada - apertada demais - em torno do seu pescoço. Devia ser Charles Turrentine. Presumi também que devia ser o velho que aparecia na foto tirada por Backus. Tinha sido assassinado e largado ali na varanda, como uma pilha de jornais velhos. Não passara de um meio para o Poeta atingir seus fins.
Levantei minha Glock e dirigi-me para a porta dos fundos. Queria alertar Rachel, mas não havia como fazê-lo sem revelar minha posição e, possivelmente, comprometer a dela. Só me restava seguir em frente. Penetrando cada vez mais fundo na escuridão daquele lugar até que esbarrasse nela ou em Backus.
A porta estava trancada. Decidi dar a volta, me encontrar com Rachel na frente. Mas, ao virar, meus olhos caíram de novo no corpo e me ocorreu uma possibilidade. Fui até o sofá e apalpei os bolsos do velho. E fui recompensado. Ouvi o tilintar de chaves.
Rachel estava cercada de livros. Pilhas e mais pilhas de livros forravam as paredes do corredor. Parada, arma em uma das mãos e lanterna na outra, examinou a sala de estar à sua direita. Mais livros. As prateleiras revestiam cada parede e cada prateleira estava cheia ao máximo da sua capacidade. Havia livros empilhados em cima da mesinha de centro, e nas mesinhas ao lado dos sofás e em toda superfície horizontal. De algum modo, o lugar parecia assombrado. Não era um lugar de vida, mas sim de ruína e trevas onde as traças comiam as palavras dos autores.
Tentou continuar andando, sem ligar para o medo cada vez maior que sentia. Indecisa, pensou em voltar e dar o fora antes de ser descoberta. Mas aí ouviu as vozes e soube que tinha que continuar.
- Onde está o Charles?
- Eu mandei você sentar.
As palavras lhe chegaram vindas de uma direção desconhecida. O barulho da chuva caindo, a turbulência do rio próximo e os livros empilhados pela casa toda se combinavam para camuflar a origem dos sons. Ouvia as vozes mas não era capaz de dizer de onde vinham.
Mais sons e vozes chegaram até ela. Murmúrios em sua maior parte, e, de vez em quando, uma palavra reconhecível, esculpida em raiva ou medo.
- Você pensou...
Ela se abaixou e deixou a lanterna no chão. Não a usara ainda e não podia se arriscar agora. Seguiu para a parte mais escura do corredor. Já tinha checado os cômodos da frente e sabia que as vozes vinham de um ponto mais distante.
O corredor dava num vestíbulo no qual se abriam portas em três direções diferentes. Quando chegou lá, ouviu as vozes de dois homens e achou que vinham de algum ponto à sua direita.
- Escreve!
- Não consigo enxergar!
Barulho de um estalido. Barulho de qualquer coisa sendo rasgada. Cortinas sendo puxadas.
- Pronto, está enxergando agora? Vai escrever ou eu acabo com tudo agora?
- Está bem! Está bem!
- Exatamente como eu digo. Era uma meia-noite lúgubre...
Ela sabia do que se tratava. Reconhecia as palavras de Edgar Allan Poe. E sabia também que era Backus, embora a voz fosse diferente. Ele estava usando a poesia de novo, recriando o crime que tinha sido impedido de cometer tanto tempo atrás. Bosch estava certo.
Ela entrou no aposento à direita e viu que estava vazio. Havia uma mesa de bilhar no meio e cada centímetro de sua superfície tomado por mais pilhas de livros. Entendeu o que Backus tinha feito. Atraíra Ed Thomas para ali porque o morador da casa - Charles Turrentine - era um colecionador. Sabia que Thomas iria por causa da coleção.
Começou a se virar a fim de bater em retirada e verificar a outra porta, mas antes que pudesse se deslocar alguns centímetros, sentiu o frio do metal da boca de uma arma contra o seu pescoço.
- Olá, Rachel - disse Robert Backus, com sua voz modificada cirurgicamente. - Que surpresa vê-la aqui.
Ela ficou imóvel e naquele instante soube que ele não poderia ser manipulado de modo algum, que ele conhecia todas as jogadas e todos os ângulos. Sabia que só tinha uma chance. Bosch.
- Olá, Bob. Faz muito tempo.
- Sim, faz. Você gostaria de deixar sua arma aqui e se juntar a mim na biblioteca?
Rachel pôs a Sig em cima de uma das pilhas que estavam sob a mesa de bilhar.
- Eu meio que pensava que a casa toda fosse uma biblioteca, Bob.
Backus não respondeu. Rachel sentiu que ele agarrava a parte de trás do seu colarinho, comprimia a arma contra sua coluna e a empurrava na direção em que queria que fosse. Saíram daquela sala e entraram na próxima, que era uma sala pequena com duas cadeiras de madeira de espaldar alto dispostas de modo a ficarem de frente para uma grande lareira de pedra. O fogo não estava aceso e Rachel podia ouvir o barulho da chuva gotejando por dentro da chaminé e criando uma poça. As janelas dos dois lados da lareira também estavam sendo varridas pela chuva, que as deixava translúcidas.
- Por acaso temos o número exato de cadeiras - disse Backus. - Sente-se, sim?
Ele a puxou bruscamente em torno de uma das cadeiras e empurrou-a, forçando-a a sentar. Revistou-a rapidamente em busca de outras armas e depois recuou e deixou cair algo no seu colo. Rachel olhou para a outra cadeira e viu Ed Thomas. Ele ainda estava vivo. Tinha os pulsos presos aos braços da cadeira por algemas plásticas de pressão. Duas outras tinham sido presas uma na outra e usadas para prender seu pescoço ao encosto da cadeira. Ele fora amordaçado com um guardanapo de pano e seu rosto estava excessivamente vermelho com o esforço e a falta de oxigênio.
- Bob, pode parar com isso - disse Rachel. - Já provou o que queria. Não precisa...
- Ponha a algema em torno do seu punho direito e prenda-o ao braço da cadeira.
- Bob, por favor. Deixa...
- Anda!
Ela passou a algema de plástico em torno do braço da cadeira e do seu punho. Em seguida, puxou a ponta por dentro do fecho.
- Com força, mas não com força demais. Não quero deixar marca.
Quando terminou, ele mandou que pusesse o braço livre em cima do outro descanso da cadeira. Depois chegou para perto e segurou o braço dela no lugar enquanto o prendia com outra algema. Ao terminar, recuou para admirar seu trabalho.
- Aí está.
- Bob, fizemos um monte de trabalhos bons juntos. Por que está fazendo isso?
Ele olhou para ela e sorriu.
- Não sei. Mas falaremos sobre isso mais tarde. Tenho que terminar com o detetive Thomas. Faz muito tempo para nós dois, eu e ele. E pense só nisso, Rachel, você vai ver. Que rara oportunidade para você.
Backus voltou-se para Thomas, adiantou-se e arrancou-lhe a mordaça. Em seguida meteu a mão no próprio bolso e pegou um canivete. Abriu o canivete e, com um rápido movimento, cortou a algema que prendia o braço direito de Thomas à cadeira.
- Agora, onde é que nós estávamos, detetive Thomas? Linha três, acredito.
- Acho que é mais o fim da linha.
Rachel reconheceu a voz de Bosch à sua retaguarda, mas, quando se virou para olhar para ele, o encosto era alto demais.
Empunhei a arma com firmeza, tentando imaginar qual seria o melhor meio de lidar com ele.
- Harry - exclamou Rachel calmamente. - Ele tem uma arma na mão esquerda e um canivete na direita. Ele é destro.
Apontei a arma com segurança e pedi que ele largasse suas armas. Obedeceu sem hesitar. O que me obrigou a fazer uma pausa, achando que estava passando demasiado depressa para o plano B. Haveria outra arma? Outro assassino na casa?
- Rachel, Ed, vocês estão bem?
- Estamos ótimos - respondeu Rachel. - Ponha-o deitado no chão, Harry. Ele tem algemas de plástico no bolso.
- Rachel, onde está sua arma?
- No outro quarto. Deite-o no chão, Harry.
Dei mais um passo para dentro do cômodo em que eles se encontravam e parei para estudar Backus. Ele tinha mudado de novo. Não se parecia mais com o homem que dissera se chamar Shandy. Sem barba, sem gorro sobre o cabelo grisalho. Tinha escanhoado a cabeça e o rosto. Sua aparência era completamente diferente.
Dei mais um passo, mas parei de novo. De repente me lembrei de Terry McCaleb e sua mulher, filha e filho adotivo. Pensei na missão perdida. Quantos bandidos iriam andar pelo mundo a fazer o que bem entendessem porque Terry fora assassinado? Um ódio tão violento quanto o rio cresceu dentro de mim. Eu não queria pôr Backus deitado no chão, algemá-lo e mandar que um carro da polícia o levasse para uma vida de celebridade, cheia de atenção e fascinação, mesmo que atrás das grades. Eu queria privá-lo de tudo o que ele tirara de meu amigo e de todos os outros.
- Você matou meu amigo - falei. - Por isso você...
- Harry, não - pediu Rachel.
- Desculpe - disse Backus -, mas tenho andado meio ocupado. Quem poderá ser esse seu amigo?
- Terry McCaleb. Ele era seu amigo também, e você...
- Na verdade, eu queria mesmo dar um jeito em Terry. Sim, ele tinha o potencial para se tornar uma pedra no meu sapato. Mas eu...
- Cale a boca, Bob! - gritou Rachel. - Você não merecia sequer engraxar os sapatos de Terry! Harry, isso é perigoso demais. Ponha-o no chão! Agora!
Contive minha raiva e concentrei-me no que tinha diante de mim. Terry McCaleb desapareceu nas trevas. Dei um passo na direção de Backus, pensando no que Rachel estava me dizendo. Ponha-o no chão? Ela queria que eu atirasse nele?
Dei mais dois passos.
- Para o chão! - ordenei. - Longe das armas.
- Como queira.
Ele se virou para afastar-se do lugar onde deixara cair as armas e escolheu um lugar para deitar.
- Se não se importa, tem uma poça aqui. A água escorreu da lareira.
Sem esperar minha resposta, ele deu um passo na direção da janela. E, de repente, eu vi. Soube o que ia acontecer.
- Backus, não!
Mas minhas palavras não o detiveram. Ele tomou impulso e mergulhou de cabeça na janela. Uma estrutura enfraquecida por anos e anos de sol e chuva como aquela cedeu tão facilmente como uma dessas janelas de filme de cinema. A madeira estilhaçou-se, assim como o vidro, quando seu corpo passou. Rapidamente, corri para a abertura e vi o clarão do tiro desfechado pela segunda arma de Backus. Plano B.
Dois rápidos estalidos e ouvi as balas passarem zunindo e atingirem o teto acima e atrás de mim. Mergulhei atrás da parede e disparei duas vezes seguidas sem fazer pontaria. Depois me atirei no chão, rastejei por debaixo da janela e me levantei do outro lado. Olhei para fora e Backus tinha desaparecido. Vi no chão uma pequena pistola derringer de dois tiros. Ele agora estaria desarmado, a menos que houvesse um plano C.
- Harry, o canivete - exclamou Rachel às minhas costas. - Solte-me!
Peguei o canivete no chão e rapidamente cortei-lhe as algemas. O plástico era cortado com facilidade. Virei-me depois para Thomas e pus o canivete na sua mão direita para que ele pudesse se libertar.
- Sinto muito, Ed - desculpei-me.
Eu poderia fazer o resto do pedido de desculpas mais tarde. Voltei-me de novo para Rachel, que estava na janela, tentando ver se distinguia alguma coisa na escuridão. Ela havia apanhado a arma de Backus.
- Está vendo ele?
Fui me juntar a ela. Trinta metros à esquerda passava o rio. Justo na hora em que olhei uma árvore inteira, um carvalho, passou carregada pela correnteza. Depois houve movimento. Vimos Backus pular de trás da proteção de uma buganvília e começar a escalar a cerca que mantinha as pessoas longe do rio. Ele já estava chegando ao topo quando Rachel levantou a arma e disparou rapidamente dois tiros. Backus caiu do outro lado da cerca, na faixa de cascalho mais próxima do canal. Mas logo se pôs de pé e começou a correr. Rachel errara.
- Ele não pode atravessar o rio - falei. - Está confinado do lado de cá. Com certeza quer ir para a ponte de Saticoy.
Eu sabia que se Backus conseguisse chegar à ponte nós o perderíamos. Ele podia atravessar e desaparecer na margem oeste do canal ou no bairro comercial perto de DeSoto.
- Eu vou a pé daqui - disse Rachel. - De carro você vai mais depressa. A gente pega ele na ponte.
- Falou.
Dirigi-me para a porta, preparando-me para correr na chuva. Peguei o celular no bolso e joguei para Thomas.
- Ed - gritei, por cima do ombro -, chame a polícia. Arranje uns reforços para nós.
Capítulo 42
Rachel ejetou o carregador da pistola de Backus e descobriu que só faltavam as duas balas dos tiros que dera. Recolocou-o no lugar com um gesto brusco e foi para a janela.
- Quer que eu vá com você? - perguntou Ed Thomas às suas costas.
Ela se virou. Ele tinha cortado as algemas e se libertado. Estava de pé, canivete na mão e pronto para agir.
- Faça o que Harry disse. Peça reforços.
Ela pisou no peitoril e pulou na chuva. Moveu-se rapidamente ao longo das buganvílias até encontrar uma abertura que lhe permitisse chegar na cerca. Pôs a arma de Backus no coldre e galgou a cerca, prendendo e rasgando a manga da jaqueta no topo. Pulou na faixa de brita a meio metro da beirada. Olhou por cima e viu que a água estava apenas a um metro de transbordar. Batia com força de encontro ao concreto, criando o estrondoso som da morte. Desviou os olhos para um ponto mais distante e viu Backus correndo, a meio caminho da ponte de Saticoy. Levantou-se e começou a correr. Disparou um tiro para o ar, querendo que ele pensasse no que vinha correndo atrás, e não no que teria pela frente na ponte.
O Mercedes derrapou e bateu no meio-fio da ponte. Saltei, sem me dar ao trabalho de desligar o motor, e corri para a amurada. Vi Rachel correndo na minha direção, pistola para cima, no acostamento do canal. Mas não vi Backus.
Recuei um pouco e olhei em todas as direções, mas ainda não consegui vê-lo. Achava que seria impossível que ele tivesse atingido a ponte antes de mim. Corri para o portão que permitia o acesso ao acostamento do canal. Estava trancado, mas dava para ver que o acostamento prosseguia sob a ponte. Era a única alternativa. Backus tinha que estar escondido debaixo dela.
Rapidamente pulei o portão e cai no piso de cascalho. Arma apontada em ambas as mãos, lá fui eu para a abertura debaixo da ponte. Abaixei-me e mergulhei na escuridão.
O barulho da torrente furiosa de água ecoava muito alto debaixo da ponte, cuja parte inferior do tabuleiro era segmentada por quatro grandes suportes de concreto. Backus podia facilmente ter se escondido atrás de qualquer um deles.
- Backus! Se você quiser viver, saia! Agora!
Nada. Apenas o ruído da água. Depois ouvi o som distante de uma voz e me virei para ver Rachel. Ela ainda estava a cem metros de distância. Gritava, mas suas palavras se perdiam sob o barulho da água.
Backus encolheu-se na escuridão. Tentou evitar todas as emoções e concentrar-se no momento. Já tinha estado assim. Encurralado no escuro. Tinha sobrevivido antes e sobreviveria agora. O importante era concentrar-se no momento, retirar suas forças da escuridão.
Ouviu seu perseguidor chamá-lo. Estava perto agora. Ele tinha a arma, mas Backus tinha a escuridão. A escuridão sempre estivera do seu lado. Grudou-se no concreto e desejou desaparecer no escuro. Seria paciente e efetuaria seu lance quando fosse a hora certa.
Dei as costas para a figura distante de Rachel e me concentrei em transpor a ponte. Adiantei-me, ficando o mais longe que pude dos suportes de concreto sem cair no canal. Passei pelas primeiros dois e olhei para trás. Rachel estava a cinquenta metros agora e começou a gesticular com o braço esquerdo, mas não compreendi o que queria dizer o sinal que fazia repetidamente.
De repente percebi meu erro. Eu tinha deixado as chaves na ignição. Backus podia subir pelo outro lado da ponte e pegar o carro.
Comecei a correr, na esperança de me antecipar e chegar a tempo de dar um tiro nos pneus. Mas estava enganado a respeito do carro. Quando passei pelo terceiro suporte de concreto, Backus subitamente saltou em cima de mim, atingindo-me solidamente com o ombro. Caí de costas com ele por cima de mim, deslizando em cima do cascalho na direção da beira do canal de concreto.
Ele lutou pela minha arma, usando ambas as mãos para arrancá-la. Em um segundo eu soube que se ele a pegasse tudo estaria acabado, que ele me mataria e depois Rachel. Backus não podia pegar a arma.
Ele largou o cotovelo esquerdo com toda a força no meu queixo e eu senti que minha empunhadura enfraquecia. Disparei duas vezes, esperando pegar um dedo ou a palma da sua mão. Ele ganiu de dor, mas senti que a pressão que fazia aumentava, estimulada agora pela dor e pela fúria cega.
O sangue de Backus começou a escorrer para o meu punho e ajudou a reduzir minha força. Eu ia perder a arma. Tinha certeza absoluta. Ele estava por cima de mim e tinha uma força animal. Minha empunhadura escorregava. Eu podia tentar me segurar por mais alguns segundos até que Rachel chegasse, mas aí ela poderia estar correndo para uma armadilha mortal.
Escolhi a única alternativa que me restava. Enterrei os calcanhares no cascalho e flexionei o corpo para cima. Meus ombros deslizaram por cima da beirada de concreto. Enterrei de novo os calcanhares e repeti a operação. Desta vez foi o suficiente. Backus pareceu subitamente perceber a situação. Deixou de lado a arma e tentou agarrar-se. Mas era tarde demais para ele também.
Rachel viu os dois homens quando ela estava apenas a alguns metros de distância. Gritou "Não!" como se seu grito pudesse detê-los. Chegou ao local da queda, olhou para baixo e não viu nada. Depois correu ao longo da orla e saiu de debaixo da ponte. Continuou sem ver nada.
Foi então que viu Bosch emergir e sacudir a cabeça como se quisesse checar sua posição. Lutava com alguma coisa debaixo da água e depois ela percebeu que era a capa de chuva. Tentava tirá-la.
Vasculhou o rio com o olhar mas não viu a cabeça calva de Backus em parte alguma. Olhou de novo para Bosch, que ia sendo levado para longe, e viu que ele, sem tirar os olhos dela, levantou um braço de dentro da água e apontou. Ela seguiu o gesto e viu o Mercedes parado em cima da ponte. Ao se dar conta de que os limpadores de para-brisa ainda funcionavam, ela soube que a chave ainda se encontrava na ignição.
Saiu correndo.
A água estava fria, mais fria do que eu tinha imaginado. E ainda me sentia fraco por causa da briga com Backus. Sentia-me pesado e achava difícil manter o rosto virado para cima e fora da água. A água parecia um ser vivo, como se me agarrasse e me puxasse para baixo.
Minha arma desaparecera e não havia sinal de Backus. Abri os braços e tentei manobrar o corpo para que eu pudesse simplesmente ir flutuando na correnteza ate que me voltassem as forças e eu pudesse tentar algo ou Rachel arranjasse ajuda.
Lembrei do garoto que caíra no rio tantos anos antes. Bombeiros, policiais, até mesmo gente comum que passava, todos tentaram salvá-lo, jogando mangueiras, escadas e cordas. Mas todos erraram e ele afundou. No fim, tudo acaba afundando nos estreitos.
Tentei não pensar nisso. Tentei não entrar em pânico. Virei as palmas das mãos para baixo e tive a impressão de que conseguia manter melhor minha cabeça fora da água. Aumentou minha velocidade, mas conservou minha cabeça do lado de fora. E aquilo aumentou minha confiança. Comecei a pensar que talvez conseguisse me salvar. Por algum tempo. Tudo dependia de quando o socorro me alcançasse. Examinei o céu. Nada de helicópteros. Nada de bombeiros. Nenhum socorro ainda. Só o vazio cinzento lá em cima e a chuva que caía sem parar.
A telefonista do 911 disse a Rachel para ficar na linha, mas ela não podia dirigir depressa e em segurança com o fone no ouvido. Largou o celular no banco do carona sem desligar. Quando parou no sinal seguinte, freou tão bruscamente que o aparelho foi arremessado no chão bem longe do seu alcance. Não se importou. Descia velozmente a rua, checando cada interseção à esquerda em busca da próxima ponte que atravessasse o canal. Quando finalmente viu uma, entrou e parou o Mercedes em uma das pistas. Saltou e foi até a grade.
Nem Bosch nem Backus estavam à vista. Rachel pensou que podia ter chegado à frente deles. Atravessou a rua correndo, indiferente à buzinada que ganhou de um motorista, e se debruçou na grade do lado oposto.
Estudou a superfície agitada e turva por um longo momento e então viu Bosch. Sua cabeça acima da superfície e inclinada para trás, o rosto virado para o céu. Entrou em pânico. Ele ainda estaria vivo? Ou tinha morrido afogado e seu corpo estava simplesmente sendo levado pela torrente? Aí então, quase que com a mesma rapidez que o medo se apoderara do seu coração, viu Bosch sacudir a cabeça, do jeito como costumam fazer os nadadores para se livrar do cabelo e da água nos olhos. Ele estava vivo e talvez a uns cem metros da ponte. Podia ver que lutava para mudar sua posição na correnteza. Ela se debruçou mais e olhou para trás. Descobriu o que Bosch estava fazendo. Queria tentar se segurar em uma das vigas que sustentavam a ponte. Se conseguisse se agarrar, poderia ser retirado e salvo ali mesmo.
Rachel correu de volta ao carro e abriu a mala, querendo ver se encontrava algo que pudesse ajudar. Via sua mala e quase nada mais. Tirou a mala, jogou no chão de qualquer maneira e levantou o carpete da forração. Alguém parou atrás do Mercedes e começou a buzinar. Ela nem sequer se virou para ver de que se tratava.
Bati no pilar do meio da ponte com tanta força que perdi todo o fôlego e tive a impressão de que havia quebrado quatro ou cinco costelas. Mas me segurei. Sabia que aquela era a minha chance. Agarrei-me com tudo que me restava.
A água tinha garras. Podia senti-las quando passavam por mim. Milhares de garras me puxando, me agarrando, tentando me levar de volta para a torrente escura. A água batia em mim e subia no meu rosto. Abraçado ao pilar, tentei erguer um pouco o corpo na escorregadia superfície do concreto, mas sempre que ganhava alguns centímetros, as garras me puxavam de volta para baixo. Rapidamente aprendi que o melhor que podia fazer era me segurar. E aguardar.
Ali, abraçado ao concreto, pensei na minha filha. Imaginei-a insistindo comigo para que eu me segurasse, dizendo que eu tinha que me salvar por causa dela. Dizendo que não importava o que eu era ou o que fizesse, ela ainda precisava de mim. Mesmo sabendo que era ilusão, encontrei conforto naquilo. E força com que me segurar.
Havia ferramentas e um pneu sobressalente no respectivo compartimento, nada que servisse. Foi quando vi, debaixo do pneu, através dos orifícios do desenho da roda, cabos vermelhos e pretos. Cabos jumper.
Rachel enfiou os dedos nos buracos da roda e puxou-a com força para cima. Era uma roda grande, pesada e sem jeito de segurar, mas ela não se deixou vencer. Conseguiu arrancá-la e jogar para fora da mala, na rua. Aí pegou os cabos e atravessou correndo de volta para o outro lado, fazendo com que um carro derrapasse de lado quando o motorista freou para não atropelá-la.
Uma vez diante da amurada, a princípio ela não viu Bosch. Depois olhou para baixo e o viu agarrado numa das vigas, a água refluindo sobre seu corpo. Suas mãos e dedos estavam arranhados e ensanguentados. Olhava para ela e tinha o que Rachel pensou que talvez fosse um pequeno sorriso no rosto, quase como se estivesse lhe dizendo que ia ficar bem.
Sem saber ao certo como ia completar o resgate, ela deixou cair uma das pontas dos cabos sobre a amurada. Eram curtos demais.
- Merda!
Sabia que tinha que transpor a amurada. Havia um cano que passava ao longo da lateral da ponte. Se pudesse descer e ficar de pé em cima dele poderia abaixar os cabos mais um metro e meio, o que talvez fosse suficiente.
- Moça, você está bem?
Ela virou-se. Era um homem de guarda-chuva que vinha atravessando a ponte.
- Tem um homem lá embaixo no rio. Ligue para 911. Tem um celular? Ligue para 911.
O homem começou a puxar um celular do bolso do paletó. Rachel virou-se para a amurada e começou a galgá-la.
Esta foi a parte fácil. Passar para o outro lado e descer até o cano era a manobra arriscada. Passou os cabos em torno do pescoço e, devagar, desceu um pé até o cano e depois o outro. Depois deslizou para baixo com uma perna, e em seguida a outra. Ficou montada a cavalo no cano.
Desta vez, sabia que o cabo chegaria ao alcance de Bosch. Começou a abaixá-lo e ele logo o pegou. Mas, justo neste instante, apareceu um borrão de cor na água e Bosch foi atingido por alguma coisa e obrigado a largar a viga. Rachel percebeu que fora Backus, morto ou vivo, que batera nele.
Ela não estava preparada para aquilo. Quando Bosch foi obrigado a largar a viga, continuou se segurando no cabo. Mas seu peso, acrescido ao de Backus e à força da correnteza foram demais para ela. A ponta do cabo que segurava foi arrancada de suas mãos e caiu para dentro da água, debaixo da ponte.
- Eles estão vindo! Já estão vindo!
Era o homem de guarda-chuva no topo da amurada.
- Tarde demais - disse ela. - Ele se foi.
Eu estava fraco, mas Backus estava ainda mais. Eu podia afirmar que ele não tinha a mesma força que empregara no confronto à margem do rio. Ele me soltara da ponte porque eu não o vira e batera em mim com toda a força. Mas agora ele me agarrava com o desespero dos afogados, querendo se segurar de qualquer maneira.
Rolamos pela água, indo para o fundo. Tentei abrir os olhos, mas a água era escura demais para enxergar alguma coisa. Puxei-o com toda força para o leito de concreto e me desloquei para detrás dele. Passei o cabo que ainda segurava em torno do seu pescoço uma porção de vezes, até que soltou as mãos para tentar se libertar. Meus pulmões ardiam. Eu precisava de ar. Empurrei-o para longe a fim de subir à superfície. Quando nos separamos, ele fez uma última tentativa para agarrar meus tornozelos, mas consegui chutá-lo e me libertar.
Nos últimos momentos Backus viu o pai. Há tanto tempo morto e cremado, ele lhe apareceu vivo. Tinha o mesmo par de olhos inflexíveis de que Backus nunca se esquecera. Trazia uma das mãos nas costas, como que a esconder algo. A outra chamava o filho, mandando que se adiantasse. Que fosse para casa.
Backus sorriu e deu uma risada. A água invadiu seus pulmões. Ele não entrou em pânico. Recebeu aquilo com prazer. Sabia que ia nascer de novo. Que voltaria. Sabia que o mal nunca pode ser vencido. Limitou-se a mudar de um lugar para outro e esperar.
Voltei à superfície e aspirei todo o ar que pude. Dei um giro dentro da água procurando Backus, mas ele desaparecera. Eu estava livre dele, mas não da água. Sentia-me exausto. Meus braços estavam tão pesados que mal conseguia levantá-los até a superfície. Pensei no menino de novo, em como ele devia ter se sentido apavorado, completamente sozinho e com todas aquelas garras o puxando.
Mais adiante a correnteza ia se despejar dentro do canal do rio principal. Eu me encontrava a cinquenta metros de distância e sabia que lá era mais largo e que, mesmo sendo mais raso, a violência da água era maior. Mas as paredes de concreto apresentavam um declive no canal principal, formando rampas, o que talvez possibilitasse a minha saída se, de alguma maneira, eu conseguisse reduzir a velocidade e encontrasse um ponto onde pudesse me agarrar.
Decidi que me deslocaria o mais perto do paredão, sem me deixar arrastar pela correnteza, mas logo em seguida vi uma salvação mais imediata. O carvalho que eu tinha visto da janela da casa de Turrentine estava a uns cem metros de mim no rio. Devia ter ficado preso na ponte ou em uma parte mais rasa, e eu tinha que me agarrar nele.
Usando minhas últimas reservas de força, comecei a nadar a favor da correnteza, pegando logo velocidade na direção da árvore. Sabia que ela seria o meu barco. E, se fosse preciso, iria agarrado nela até o oceano Pacífico.
Rachel perdeu o rio. O desenho das ruas a levaram cada vez mais para longe e logo ela o havia perdido e não conseguia voltar. Havia uma tela de GPS no painel do Mercedes, mas ela não sabia como usá-la e, de qualquer modo, duvidava que conseguiria uma conexão decente com o satélite com aquele tempo. Encostou o carro e bateu, furiosa, com a palma da mão no volante. Sentia-se como se estivesse desertando de Harry, que ele estivesse se afogando por culpa sua.
Foi quando ouviu o helicóptero. Voava baixo e movia-se depressa. Inclinou-se para vê-lo através do para-brisa. Não viu nada. Saltou na chuva e rodou de um lado para outro na rua olhando. Continuava ouvindo, mas não conseguia ver.
Tinha que ser o resgate, pensou. Com aquele tempo, quem mais estaria voando? Concentrou-se na direção de onde achava que vinha o som e pulou de volta no Mercedes. Virou na primeira à direita e começou a seguir o motor do helicóptero. Dirigia com o vidro aberto, a chuva entrando, mas sem se importar. Continuava a ouvir o helicóptero à distância.
Depois de pouco tempo, ela o viu. Voava em círculos mais adiante, à direita. Continuou em frente e quando chegou no boulevard Reseda virou à direita de novo, aí viu que na verdade eram dois aparelhos, um voando baixo e o outro mais acima. Ambos eram vermelhos com letras brancas nas laterais. Estavam marcados LAFD - Corpo de Bombeiros de Los Angeles.
Havia uma ponte adiante e Rachel pôde ver carros parados e pessoas na chuva, correndo para a amurada. Todas olhavam qualquer coisa no rio.
Ela deixou o carro parado no meio do engarrafamento e fez o mesmo. Correu para a amurada a tempo de ver o resgate. Bosch, metido em um equipamento amarelo de segurança, estava sendo erguido por um cabo de cima de uma árvore que ficara presa no pedaço mais raso, onde o rio se alargava para cinquenta metros.
Enquanto era içado para o helicóptero, Bosch olhou para baixo, examinando a correnteza furiosa debaixo dele. Em pouco tempo a árvore se soltou e caiu nas corredeiras. Pegou velocidade e passou debaixo da ponte, os galhos batendo de encontro aos pilares de sustentação e se partindo.
Rachel viu os salvadores levarem Bosch para dentro do helicóptero e só desviou os olhos quando o viu em segurança e o aparelho começou a se inclinar e afastar-se. Só neste momento algumas das outras pessoas que se encontravam na ponte começaram a gritar e a apontar para um ponto no rio. Ela olhou e viu que se tratava de outro homem na água. Mas para aquele não havia socorro possível. Ele flutuava de cabeça para baixo, os braços soltos e o corpo largado. Cabos pretos e vermelhos estavam enrolados no seu corpo e pescoço. O crânio escanhoado lembrava uma bola que alguma criança pudesse ter perdido no rio, a oscilar na correnteza.
O segundo helicóptero seguiu o corpo lá de cima, esperando que ele ficasse preso em alguma coisa, como acontecera com a árvore, para arriscar uma operação de resgate. Desta vez não havia pressa.
Quando a correnteza engrossava para passar entre os pilares da ponte, a fluida viagem do corpo foi perturbada e ele virou ao contrário. Naquele segundo, Rachel pôde ver de relance o rosto de Backus. Seus olhos estavam abertos debaixo da água. Mas a ela pareceu que ele a estivesse fitando diretamente antes de sumir debaixo da ponte.
Muitos anos atrás, quando estava no Exército e servi no Vietnã, fui ferido em um túnel. Meus companheiros me tiraram de lá e me puseram dentro de um helicóptero que voltava ao acampamento. Lembro-me de que quando o aparelho ganhou altura, me levando para longe do perigo, experimentei um tal entusiasmo que obscureceu por completo a dor do meu ferimento e a exaustão que sentia.
Foi igual naquele dia ali no rio. Um caso de déjà-vu completo, diriam os entendidos. Eu consegui. Tinha sobrevivido. Estava fora de perigo. Sorria quando um bombeiro de capacete passou um cobertor em torno de mim.
- Estamos levando você para a USC para que o examinem - ele gritou, para ser ouvido com todo o barulho do rotor e da chuva. - Devemos chegar em dez minutos.
Ele me fez um sinal de OK que respondi com outro, notando que meus dedos estavam azulados e que eu tremia com algo mais que frio.
- Sinto muito pelo seu amigo - gritou o bombeiro.
Vi que ele estava olhando através de um painel de vidro na parte inferior da porta que acabara de fechar. Inclinei-me para olhar e vi Backus lá embaixo, na água. Estava virado para cima e se movia languidamente na correnteza.
- Eu não sinto - falei, mas não alto o bastante para ser ouvido.
Recostei-me no assento de dobrar em que tinham me colocado. Fechei os olhos e balancei a cabeça, cumprimentando a imagem que eu evocara de meu silencioso parceiro, Terry McCaleb, sorrindo de pé na proa do seu barco.
Capítulo 43
O tempo clareou dois dias depois e a cidade começou a secar e a sair para as ruas. Tinha havido deslizamentos em Malibu e Topanga. A rodovia que acompanhava o litoral seria reduzida a duas pistas por algum tempo. Nas colinas de Hollywood ocorreram inundações nas ruas mais baixas. Uma casa na Fareholm Drive se soltara e fora levada pelas águas para o meio da rua, deixando uma idosa estrela do cinema sem lar. Duas mortes foram atribuídas ao temporal - um golfista que, inexplicavelmente, decidira jogar uns buracos e foi atingido por um raio ao levantar o taco, e Robert Backus, o assassino em série foragido. O Poeta estava morto, disseram as manchetes e os âncoras. O corpo de Backus foi pescado do rio na represa de Sepulveda. Causa da morte: afogamento.
O mar se acalmou também, e peguei uma barca pela manhã para ir ver Graciela McCaleb, em Catalina. Aluguei um carrinho de golfe e fui até a casa dela, que me recebeu com toda sua família. Conheci Raymond, o filho adotado, e Cielo, a garota sobre a qual Terry me falara. Ao vê-la senti falta de minha filha e me lembrei que muito breve teria uma nova vulnerabilidade em minha vida.
A casa estava cheia de caixas e Graciela explicou que a tempestade adiara sua mudança para o continente. Em mais um dia, suas coisas seriam levadas para uma barcaça e de lá para o porto, onde um caminhão de mudança estaria esperando. Complicado e dispendioso, mas não se arrependia. Queria deixar a ilha e as lembranças que ela continha.
Fomos nos sentar à mesa que havia na varanda para que pudéssemos conversar sem que as crianças ouvissem. Era um belo lugar, com uma vista geral do porto de Avalon. O que tornava difícil acreditar que Graciela quisesse ir embora. Vi o barco de Terry, o Following Sea, atracado no porto e notei que havia alguém na popa e que uma das portinholas do convés estava aberta.
- É Buddy quem está lá?
- É, ele está se preparando para sair com o barco. O FBI o trouxe ontem sem avisar. Se tivessem avisado, eu diria que o deixassem em Cabrillo. Agora Buddy vai ter que levá-lo para lá.
- O que ele vai fazer com o barco?
- Vai tocar o negócio. Vai continuar fazendo fretamentos para pescaria e me pagar o aluguel do barco.
Balancei a cabeça, concordando. Pareceu-me um plano decente.
- Vender o barco não seria tão compensador assim. E, eu não sei, Terry trabalhou tão duro nesse barco. Pareceu-me errado vendê-lo para um estranho.
- Eu compreendo.
- Sabe, você provavelmente pode conseguir uma carona de volta com Buddy, em vez de esperar a barca. Se quiser. Se não estiver farto do Buddy.
- Não, o Buddy é legal. Gosto do Buddy.
Ficamos sentados em silêncio por longo tempo. Não senti que precisasse explicar coisa alguma do caso a ela. Tínhamos nos falado pelo telefone - porque fiz questão de explicar as coisas antes que a mídia divulgasse - e depois a história saíra em todos os jornais e na televisão. Graciela conhecia os detalhes, grandes e pequenos. Restara pouca coisa para dizer, mas achei que precisava visitá-la uma última vez. Tudo tinha começado com ela. Eu imaginava que devia terminar também com ela.
- Muito obrigada pelo que fez - disse Graciela. - Você está bem?
- Ótimo. Só uns arranhões e machucados do rio. Foi um passeio louco.
Sorri. Os únicos ferimentos visíveis que eu tinha eram uns arranhões nas mãos e outro acima da sobrancelha esquerda.
- Mas eu lhe agradeço muito por ter me chamado. Fico satisfeito com a chance que tive. Foi por isso que vim, para agradecer e lhe desejar boa sorte com tudo.
A porta de correr abriu-se e a garotinha saiu carregando um livro.
- Mamãe, lê para mim agora?
- Agora estou conversando com o Sr. Bosch, que veio nos visitar. Daqui a pouco, está bem?
- Não, quero que você leia agora.
Pela carinha da menina, parecia uma questão de vida ou morte. Seu rosto se contraiu todo, prestes a chorar.
- Tudo bem - falei. - A minha é assim também. Faça o que ela pede.
- É seu livro favorito. Terry costumava ler para ela quase toda noite.
Graciela pegou a menina no colo e levantou o livro para ler. Vi que se tratava do mesmo que Eleanor dera para minha filha, O grande dia de Billy, com o macaco recebendo a medalha de ouro na capa. O exemplar de Cielo estava com as bordas das páginas levantadas de tanto ser lido e relido. A capa tinha rasgado em dois lugares e fora colada com fita gomada.
Graciela abriu e começou a ler.
- "Em um lindo dia de verão, a olimpíada dos animais de circo foi realizada sob a grande lona, em Ringlingville. Todos os animais foram dispensados de trabalhar nos respectivos circos e tiveram licença para competir nas muitas provas."
Notei que Graciela mudara a voz e estava lendo com um tom de entusiasmo e antecipação.
- "Todos os animais fizeram uma fila diante do quadro de avisos que ficava do lado de fora do escritório do Sr. Farnsworth. Nesse quadro havia a lista das provas que seriam disputadas. Havia corridas, revezamentos e muitas outras. Os animais grandes se acotovelaram perto do quadro e taparam a visão dos outros, que não conseguiam ler nada. Um macaquinho chamado Billy Bing espremeu-se entre as pernas de um elefante e subiu pela sua tromba, para poder ver a lista. Billy Bing sorriu quando finalmente leu a relação das provas. Havia uma chamada cem metros rasos e ele sabia que era muito bom em corridas curtas."
Não ouvi o resto da história. Levantei-me, fui até a grade da varanda e dei uma olhada no porto. Mas também não enxergava o que tinha diante de meus olhos. Minha cabeça estava atarefada demais para o mundo exterior. Senti-me inundado de ideias e emoções. De repente, tinha descoberto que William Bing, o nome que Terry McCaleb rabiscara na aba da sua pasta, pertencia a um macaco. E subitamente soube que a história não terminara, de jeito nenhum.
Capítulo 44
Rachel veio me ver na minha casa mais tarde, naquele dia mesmo. Eu tinha acabado de entrar, depois de preencher os formulários com Kiz Rider, no Parker Center, e estava ouvindo uma mensagem deixada na minha secretária eletrônica por Ed Thomas. Ele me agradecia por tê-lo salvado, quando, na verdade, era eu quem lhe devia uma desculpa por não avisá-lo logo de início. Eu estava me sentindo culpado e pensava em ligar para a livraria quando Rachel bateu. Convidei-a para entrar e fomos para o terraço dos fundos.
- Uau, que linda vista.
- É, eu gosto.
Apontei para a esquerda, onde um pequeno canal podia ser visto atrás dos estúdios de som da Warner Brothers.
- Lá está o poderoso rio Los Angeles.
Ela conseguiu vê-lo, após algum esforço.
- Os estreitos. Parece bem fraquinho agora.
- Está repousando. Na próxima tempestade, ele voltará.
- Como está se sentindo, Harry?
- Bem melhor. Andei dormindo um bocado. Estou surpreso de ver que ainda está na cidade.
- Tirei uns dias de licença. Na verdade estou procurando apartamento.
- Mesmo?
Virei-me de costas para a grade de modo a olhar só para ela.
- Estou bastante segura de que essa coisa toda será meu bilhete de saída de Dakota do Sul. Não sei aonde vão me colocar, mas vou pedir para ficar em Los Angeles. Ou ia pedir, até que vi alguns apartamentos por aí. Em Rapid City, eu pagava 550 por um lugar realmente legal e seguro.
- Posso encontrar um pelo mesmo preço, mas você provavelmente não vai gostar da localização. E você provavelmente teria que aprender outro idioma também.
- Não, obrigada. Estou cuidando disso. E então, o que tem feito?
- Acabo de voltar de Parker Center. Entrei com meus papéis. Vou voltar para o velho emprego.
- Então acho que nossa história termina aqui. Soube que o FBI e a polícia de Los Angeles não se falam.
- É, parece que há um muro no meio. Mas todo mundo sabe que, de vez em quando, o derrubam. Tenho amigos no Bureau. Acredite ou não.
- Eu acredito, Harry.
Notei que ela voltara a me chamar pelo primeiro nome. Gostaria de saber se isso significava que o nosso relacionamento terminara mesmo.
- E então - falei -, quando você soube sobre McCaleb?
- Como assim? Soube o quê?
- Quando você soube que não foi Backus que o matou? Que foi ele quem se matou.
Ela se apoiou na grade com ambas as mãos e olhou lá para baixo, para o arroio. Mas na verdade não estava olhando para nada.
- Harry, de que você está falando?
- Descobri quem é William Bing. Um macaco das páginas do livro de histórias favorito da filha dele.
- É mesmo? E o que significa isso?
- Significa que ele se registrou no hospital de Vegas com nome falso. Ele tinha algo errado, Rachel. Algo dentro dele.
Toquei no centro do meu peito.
- Talvez estivesse investigando o caso, talvez não. Mas sabia que algo estava errado, foi ao hospital fazer um exame e guardou silêncio. Não queria que sua esposa e sua família soubessem. E assim eles o examinaram e lhe deram a má notícia. Seu segundo coração ia ter o mesmo fim do primeiro. Cardio... mio... qualquer que seja o nome. Resumindo, Terry McCaleb estava morrendo. Precisava de outro coração ou ia morrer.
Rachel sacudiu a cabeça, como se eu fosse um idiota.
- Não sei como você acha que sabe de tudo isso mas não é possível...
- Olha, eu sei o que eu sei. E eu sei que ele já tinha torrado todo o seguro médico e, se fosse entrar na fila para um novo coração, a família perderia tudo, casa, barco, tudo. Tudo seria trocado por outro coração.
Fiz uma pausa e prossegui tranquilo e sereno.
- Terry não queria isso. E também não queria que sua família o visse definhar e morrer, tendo que recorrer aos serviços públicos. Também não gostava da ideia de que uma outra pessoa tivesse que morrer para ele poder viver. Já tinha passado por isso também.
Parei para ver se ela ia protestar de novo e tentar me dissuadir. Permaneceu em silêncio desta vez.
- As únicas coisas que lhe haviam restado eram o seguro de vida e a pensão. Ele queria deixar ambos intactos para a família. Então, foi o próprio Terry quem trocou as pílulas. Tem um recibo de uma loja de comidas naturais debaixo do banco do carro dele. Telefonei para lá hoje de manhã para ver se vendem cartilagem de tubarão em pó. Vendem. Ele modificou suas pílulas e simplesmente continuou a tomá-las. Imaginou que quanto mais tempo se exibisse tomando-as, menos possibilidade de necropsia haveria e tudo daria certo.
- Mas não deu, não é?
- Não, mas ele tinha um plano de emergência. Por isso esperou um fretamento para mais longe. Queria morrer no barco. Queria que fosse em águas sob jurisdição federal. Sua esperança era que, se alguma coisa acontecesse, os amigos do Bureau resolveriam. O único problema do grande plano de Terry foi que ele não tinha ideia a respeito do Poeta. Não tinha ideia de que sua mulher iria me procurar ou de que algumas palavras rabiscadas numa pasta levassem a tudo que aconteceu.
Sacudi a cabeça.
- Eu devia ter visto logo - prossegui. - A troca do medicamento não era do estilo de Backus. Complicado demais. As coisas muito complexas geralmente são obra de alguém de dentro.
- E o que me diz da ameaça à família dele? Sabendo ou não que se tratava de Backus, Terry descobriu que alguém ameaçava sua família. Tirou aquelas fotos... alguém seguindo a mulher e as crianças. Você está querendo dizer que ele tirou o time de campo e deixou a família sozinha? Esse não é o Terry McCaleb que conheci.
- Talvez pensasse que estava acabando com o risco. Que a ameaça à sua família na verdade fosse voltada para ele. Assim, se morresse, a ameaça morreria junto com ele.
Rachel balançou a cabeça, mas não foi uma confirmação.
- No mínimo, a sua sequência de fatos é interessante, Harry, concedo isso a você. Mas o que o faz pensar que sabemos, que eu sei tudo isso?
- Ora, você sabe como é. O modo como você desconsiderou minhas perguntas sobre William Bing, por exemplo. Mas também pelo que você fez naquela casa no outro dia. Quando eu tinha a pistola apontada para Backus, ele ia dizer algo sobre Terry e você o interrompeu. Acho que ele estava prestes a dizer que não tinha matado Terry.
- Oh, sim, um assassino negando ter matado uma de suas vítimas. Algo muito raro.
Seu sarcasmo pareceu-me defensivo.
- Desta vez sim. Ele não estava mais escondendo nada. Já tinha se exposto e assumiria o que tivesse que assumir. Você sabia disso e por este motivo o interrompeu. Sabia que ele ia negar.
Ela afastou-se da grade e parou na minha frente.
- Está certo, Harry. Você pensa que resolveu tudo. Você encontrou um triste suicídio menor escondido no meio dos assassinatos. O que vai fazer com isso? Vai pôr a boca no trombone e contar para todo o mundo? A única coisa que ia conseguir seria tirar o dinheiro da família. É isso que você quer? Talvez consiga ganhar uma recompensa pela denúncia.
Agora foi a minha vez de me desviar dela e me apoiar na grade.
- Não, eu não quero isso. Só não quero que mintam para mim.
- Ah, entendi. Na verdade não se trata do Terry. É sobre você e eu, certo?
- Não sei ao certo, Rachel.
- Bem, quando souber, quando tiver acertado tudo na sua cabeça, me conta, está certo?
Ela subitamente se aproximou de mim e me beijou intensamente no rosto.
- Adeus, Bosch. Talvez eu o encontre por aí, se for mesmo transferida.
Não me virei para vê-la ir embora. Fiquei ouvindo suas passadas furiosas cruzando o deque e depois o chão de madeira do lado de dentro. E escutei a porta da frente bater com uma inexorabilidade que reverberou dentro de mim. Como aquela bala de pistola caindo no chão de quando passei o trinco na porta da casa de Eleanor.
Capítulo 45
Fiquei na varanda, cotovelos sobre a grade, por longo tempo depois que Rachel saiu. Meu palpite é que eu jamais a veria de novo, quer ela se transferisse ou não para Los Angeles. Senti um vazio. Senti que alguma coisa boa me fora tirada antes que eu realmente soubesse o quão boa poderia ser.
Tentei tirá-la da minha mente por algum tempo. E Terry McCaleb também. Olhei para a cidade lá fora e pensei em quanto ela era linda. A chuva tinha lavado o céu e eu podia enxergar até as montanhas de San Gabriel e os picos cobertos de neve mais além. O ar parecia tão limpo e puro quanto o ar respirado pelos índios tongva e os padres, tantos anos antes. Vi o que eles tinham visto lá. Era o tipo do dia a partir do qual você sente que pode construir um futuro.
Michael Connelly
O melhor da literatura para todos os gostos e idades