Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
ESPAÇONAVE ORION
A Patrulha das Estrelas
CORRIDA COM A MORTE
Era verão na Austrália. O coronel McLane encontrava-se acima do lugar pelo qual passava o paralelo quatorze do hemisfério sul. Groote Eylandt jazia sob os raios quase verticais do sol. O silêncio só era interrompido por três tipos de ruído: o ranger da espreguiçadeira, um ruído farfalhante e acordes musicais. McLane estava de licença. Achava-se totalmente descontraído na espreguiçadeira de tubos de aço cromado e lona branca. Tinha um par de óculos escuros diante dos olhos e um aparelho de leitura sobre o joelho. Alguma coisa farfalhava na piscina próxima, e uma voz chamou:
— Querido!
Tamara levantou a cabeça e apoiou-se nos braços. Usava traje de banho de uma só peça, que parecia ser feito de prata líquida.
— Suas geladeiras estão bem cheias, coronel McLane? — perguntou a funcionária do SSG.
— Bastante — disse Cliff.
— Será que por lá existe um pouco de champanha?
Cliff suspeitou de que algo de grave estava para acontecer.
— Sem dúvida — disse laconicamente.
— Ficarei satisfeita com uns três ou quatro litros, querido. Mas vejo-me obrigada a fazer uma exigência. Quero que os cálices de champanha me sejam entregues por você e não por algum desses robôs.
Com um muxoxo, Cliff levantou-se da poltrona de sol articulada e caminhou até a beira da piscina. Olhou para Tamara e murmurou:
— Faz exatamente três dias que estou gozando férias. Não basta que seja perturbado constantemente no estudo de escritos importantes. Agora ainda tenho de fazer o papel de mordomo. O que deseja? Seja precisa!
Tamara sorriu para ele; era um sorriso mais que fingido.
— Quero um cálice de champanha bem gelado — disse Tamara, enfatizando as palavras. — E quero recebê-lo de suas mãos.
— Ainda bem que você está aqui em caráter particular — falou Cliff em tom pouco nítido. — Senão poderia denunciá-la junto a Villa por estar infringindo a norma que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas em serviço — disse e dirigiu-se para o frescor crepuscular do bangalô. Ainda ouviu a voz de Tamara:
— Seu astronauta presunçoso! Nestes poucos dias, Cliff se tornara bem moreno, e ficava alegre ao lembrar-se de que ainda tinha algumas semanas de férias pela frente. Por algum tempo, o pequeno apartamento de Tamara ficou deserto. Os dois passavam o tempo entre banhos de sol e mergulhos na piscina, drinques dispendiosos e conversas infindáveis, além de outras coisas agradáveis. Os tripulantes da Orion VIII estavam espalhados em vários lugares, mas a qualquer momento poderia entrar em contato com eles.
Entrou na cozinha robotizada, abriu a geladeira e pegou uma garrafa de champanha. Depois sacou a rolha e tirou os cálices da prateleira.
Voltou para junto da piscina.
— Que lindo! — disse Tamara. — Vejo que ainda existem cavalheiros.
Cliff sentou-se perto dela e pôs os pés na água fria e deliciosa.
— São poucos — disse, descansando os cálices ao seu lado. Encheu-os pela metade e entregou um deles a Tamara.
— Querido, acho que já o conheço mais ou menos. Vejo que sua aparência é ótima; você está descansando muito bem e adquirindo um bronzeado másculo cada vez mais intenso. Mas há alguma coisa em seu rosto que me perturba.
— O que será? O nariz?
— Que engraçado! Não, não é o nariz — respondeu em tom sério. — O que me preocupa é a expressão pensativa que vejo em seus olhos. Essa expressão sempre surge quando você desconfia de algo.
Cliff levantou a cabeça e contemplou as ondas suaves do Golfo de Carpentaria. As silhuetas de alguns iates a vela interrompiam a superfície azul. De certa maneira, o mar se parecia com o cosmos. Cliff lembrou-se do problema.
— Talvez você tenha razão — disse. — Acontece que eu mesmo não percebi nada. Acabo de ler o relatório oficial do Ministério Para Assuntos Extraterranos. E nesse relatório encontrei alguns dados notáveis. Existem cerca de quatrocentos planetas que foram colonizados no curso dos séculos. Em cada um desses mundos, firmamos o pé de uma forma ou de outra. Evidentemente esse fato exige uma adaptação mental.
— Adaptação mental? Em que sentido? — perguntou Tamara.
— Até a conquista de Marte a humanidade raciocinava em termos globais. Em outras palavras, o pensamento centralizava-se em determinado planeta. Atualmente exige-se que todos os homens pensem em termos galáticos. Afinal, novecentos parsec não são nenhuma brincadeira.
— Você acha que vai haver problemas?
— Tenho certeza absoluta de que vai haver. À medida que o número de planetas colonizados aumenta, crescem as tendências de certos grupos que desejam separar-se de Terra.
— Está pensando em Sahagoon? — perguntou Tamara, tirando o gorro de banho.
Cliff acenou com a cabeça; parecia muito sério.
— Sim, entre outros. Vejo o perigo em termos mais gerais. Nos últimos séculos, Terra urdiu uma rede muito densa. E cada um dos nós dessa rede é muito importante. Basta que um deles se solte para que a rede se desmanche. Existe uma ligação indissolúvel entre cada planeta colonizado e todos os outros. A rede vem sendo controlada a partir de Terra. Provavelmente conseguirei enxergar melhor quando tiver terminado a leitura desse maldito relatório.
Tamara saiu da piscina bem devagar e segurou o cálice com ambas as mãos.
— Agora vou ficar no sol. Farei o possível para não incomodá-lo. Leia isso até o fim; depois discutiremos o assunto. De acordo?
Cliff olhou-a com certa dose de admiração.
— Você não é apenas extraordinariamente bela — disse em tom indeciso. — Além disso traz umas idéias bem inteligentes nessa cabeça notável.
O sorriso que Tamara exibiu desta vez foi sincero.
— ...de vez em quando — completou e voltou a segurar o aparelho de projeção.
O tema da peça em que Cliff McLane estava mergulhando não era puramente casual. Sabia-se que em hipótese alguma um mundo-irmão se voltaria diretamente contra Terra. Esta possuía um estado-maior e centenas de naves espaciais capazes de devastar um planeta numa questão de minutos. E essa perspectiva faria recuar até mesmo as cabeças mais fogosas e obstinadas.
Dali a uma hora o comandante estava lendo o fim do relatório.
Recomendamos que Terra use todos os meios ao seu dispor para evitar que surja uma situação que possa tornar-se perigosa.
Todas as relações externas devem ser submetidas a um controle rígido. O Centro de Computação deve ser aproveitado para, no devido tempo, identificar eventuais fontes de erros. Assim que surgir qualquer divergência, devemos recorrer aos homens mais experientes para removê-la. No presente estágio de nossa expansão, não podemos dar-nos ao luxo de um segundo que seja de descuido. Atenção: O presente relatório é secreto. Só os membros da Frota Espacial podem ter acesso ao mesmo.
Cliff virou a cabeça e começou a falar sem o menor intróito:
— O relatório contém tanta matéria explosiva que bastaria para fazer ir pelos ares uma esfera espacial. Mas, como de costume, não apresentam qualquer prova. Só posso fazer votos de que desta vez os canais administrativos não sejam muito longos. Do contrário ainda estaremos lendo este relatório quando tiver passado o tempo de agir.
— Você acredita que Wamsler e Villa também leram esta peça? — perguntou a meia voz.
Cliff soltou uma risadinha sarcástica.
— Imagino que devem sentir-se muito superiores para ler isso. Só vão começar a gritar quando a destruição de Terra for apenas uma questão de segundos.
As idéias de ambos coincidiam.
— É bem possível — continuou Cliff em tom pensativo — que um perigo imenso se desenvolva bem à nossa vista, e ninguém desconfia.
Recostou-se, pegou a mão de Tamara e tirou os óculos escuros.
Havia um aspecto desagradável nas previsões de Cliff: geralmente tinham fundamento. Até então sempre tivera razão com suas suposições, mas nem por isso se poderia dizer que previa todas as situações. De qualquer maneira, sua paz de espírito ficaria fortemente abalada pelo resto das férias.
Era noite. Cliff e Tamara estavam sentados junto a uma mesa muito farta. Um robô corria ininterruptamente da mesa para a cozinha e vice-versa, a fim de cumprir todos os desejos do casal.
— Você é uma ótima cozinheira, querida — falou Cliff, olhando para o mar.
— Você está enganado! — retrucou Tamara. — Apenas fiz o cardápio. A comida é obra dos robôs.
— De qualquer forma é muito gostosa — disse Cliff.
Tamara confirmou com um aceno de cabeça. Ambos envergavam os uniformes especiais, pois haviam reservado uma mesa no Cassino Starlight.
— Que horas são? — perguntou Tamara.
Antes que Cliff tivesse tempo de olhar para o relógio, o robô disse sem entonação:
— Vinte e uma horas e treze minutos. Seguindo um velho hábito, Cliff disse obrigado e continuou a comer. De repente o robô abriu o olho vermelho, e um sinal piscou de forma alarmante. O alto-falante instalado no corpo do pequeno robô deu um estalido. Uma voz mecânica disse em tom indiferente:
— F.R.E.T. para coronel McLane. Queira chamar imediatamente o nosso número.
Cliff sentiu-se gelado de susto. Deixara o aparelho de comunicação sonora preso à espreguiçadeira, e o sinal deixou de ser ouvido.
— Nem mesmo na hora da comida, durante as férias, a gente tem sossego — resmungou Cliff.
Atirou o guardanapo sobre a mesa e saiu correndo. Atravessou rapidamente a pontezinha estreita e parou diante de um grande videofone. Chamou o número da ante-sala de Wamsler. A tela iluminou-se, mostrando uma ordenança.
— Pois não, comandante.
— Pediram que chamasse — disse Cliff. — Provavelmente as salas de sessão estão novamente inundadas.
A moça obrigou-se a sorrir e disse:
— Não. Tenho um recado para o senhor. Dentro de trinta minutos, haverá uma reunião do Comitê de Defesa. Pedem a presença imediata do senhor e de Miss Jagellovsk.
A tela voltou a escurecer antes de Cliff pronunciar a palavra "férias". Comprimiu o botão, que desligou o contato, e saiu lentamente para o terraço.
— Meu amor — disse. — A dança e a visita ao bar foram canceladas em virtude da ocorrência de neblina na superfície e de tempestades solares.
Tamara endireitou-se na poltrona e fitou-o com uma expressão de incredulidade. Cliff pescou um prato de sobremesa.
— Mal e mal temos tempo para comer. Depois sairemos correndo. Wamsler tem necessidade imediata de nossas pessoas no Comitê de Defesa.
— Você não disse que estamos gozando férias merecidas?
Cliff sacudiu energicamente a cabeça.
— Não tive tempo para isso. Mesmo que resolvêssemos passar nossas férias num planeta situado em Dez/Leste 999, Wamsler nos mandaria buscar. "Pronto para entrar em ação a qualquer momento", é este o seu lema. Tenho vontade de matá-lo.
Cliff descansou o prato vazio sobre a placa traseira do robô e disse laconicamente:
— Retirar a louça e arrumar. Seguiu-se um sinal luminoso a título de confirmação.
— Então, o que vamos fazer? — perguntou Tamara decepcionada.
— Vamos engolir os últimos bocados e depois chamaremos um carro que nos leve aos elevadores. Antes, poderíamos abrir uma enorme cova.
— Uma cova?
— Naturalmente, uma cova — respondeu Cliff em tom amargurado. — Para sepultar nossa boa vida.
Se desconfiassem do que os esperava, eles mesmos se teriam escondido nessa cova. No entanto, chegaram com um atraso de apenas seis minutos e receberam ordem para dirigir-se à sala de sessões. Ao ver os rostos das pessoas reunidas, Cliff compreendeu que ao menos suas férias estavam perdidas. E, também, as de sua tripulação.
A mesa comprida achava-se rodeada de enormes poltronas de couro. Metade delas estava ocupada. Na parede mais ampla da sala, viam-se grandes telas transportáveis de videofone. A projeção da esfera de novecentos parsec emitia um brilho débil, enquanto as linhas que a percorriam desprendiam uma forte luminosidade. Cliff e Tamara hesitaram um pouco e sentaram-se. Um número cada vez maior de pessoas entrava na sala.
Henryk Villa... Lydia van Dyke... Michael Spring-Brauner... Von Wennerstein... Kublai-Krim... Sir Arthur, alguns historiadores, três velhos comandantes de naves espaciais, alguns funcionários do Serviço de Segurança — ao que parecia o quorum da reunião estava completo.
— Façamos votos de que a coisa não saia muito dramática — murmurou McLane e fitou os rostos dos outros participantes.
— Você tem alguma idéia definida? — perguntou Tamara em voz baixa.
— Não; prefiro aguardar a surpresa.
O murmúrio das vozes cessou assim que o Secretário de Estado Von Wennerstein se levantou e lançou um olhar muito expressivo em torno.
— Senhoras e cavalheiros — disse. — Vimo-nos obrigados a convocar esta reunião imediatamente. Acredito que todos tenham lido o relatório distribuído pelo Ministério Para Assuntos Extraterranos. Introduzimos os dados no Centro de Computação, realizamos uma programação e deixamos que a máquina fizesse o trabalho. Tenho os resultados diante de mim.
Cliff e Tamara trocaram um prolongado olhar de entendimento.
— Conheço o relatório — disse Wamsler em voz alta e virou ligeiramente a cabeça, a fim de ver o rosto de Von Wennerstein. — Não sei onde está o problema.
Von Wennerstein assustou-se e respondeu em tom seco:
— Não existe a menor dúvida de que o perigo para Terra tem origem nos planetas jovens, colonizados recentemente. Em comparação com os mundos firmemente integrados, representam pouco menos que a metade.
Kublai-Krim, chefe das Forças Armadas Espaciais pediu a palavra.
— Trata-se de perigos que possam ser solucionados com os meios militares? Afinal, possuímos uma frota.
— Qualquer problema pode ser resolvido por meio da frota — disse Lydia van Dyke em tom áspero — desde que nossa intenção seja arrasar os planetas em cuja colonização gastamos muito dinheiro. Foi isso que o senhor quis dizer, Kublai?
— É claro que não. Mas qual é o problema com os mundos recém-colonizados?
— Vejamos por exemplo o planeta Tareyton. Ali vivem trinta mil colonos. No fundo, a única coisa que têm de fazer é supervisionar as máquinas robotizadas. Acontece que as possibilidades de vida que esse planeta oferece aos colonos são tantas que podem dispensar o comércio com Terra ou com outros mundos. Por isso, poderão perfeitamente tornar-se independentes.
Sir Arthur apontou para a projeção da esfera espacial.
— Fundamos este império. Nunca pensamos em negar a independência a este ou àquele planeta. Como poderíamos, nestas condições, obrigar outros mundos a compartilhar nossas idéias.
— Lembre-se dos extraterranos, Arthur! — advertiu Villa.
Sir Arthur ficou calado por um instante; depois baixou a cabeça e disse:
— O senhor tem razão, coronel Villa.
— Geralmente tenho — murmurou Villa com um sorriso presunçoso.
— Enquanto esses planetas exercerem a independência apenas no terreno econômico, não haverá nada a objetar. Mas precisamos nos garantir de que nos ajudarão quando formos atacados por outras potências. E nunca teremos essa garantia se surgirem grupos que sustentem concepções políticas diferentes.
Wennerstein aquecera-se com sua própria fala.
— Estou percebendo as linhas gerais do seu raciocínio — interveio Villa. — O Governo de Terra não pode dispensar a cooperação dos seus aliados, que são cerca de quatrocentos. Cada planeta é um elo da corrente, e se a colaboração de qualquer um deles falhasse, a corrente se romperia. Será que minha suposição é correta?
O Secretário de Estado fez um gesto afirmativo.
— Sim. É isso mesmo. Vamos aos dados. O Governo de Terra elaborou um programa gigantesco. Todas as naves de nossa frota terão oportunidade de demonstrar seu valor em missões extremamente sérias. Queira distribuir isto.
Cliff pegou a brochura de formato alongado e, examinando a capa, leu duas palavras que o deixaram espantado.
ANO GALÁTICO
— Isto soa muito bem — disse em voz baixa.
Tamara respondeu com um ligeiro sorriso. Ouviram a voz do Secretário de Estado.
— O Governo de Terra proclamou o Ano Galático. Todos os cientistas submetidos ao nosso controle estarão plenamente ocupados. — Apontou para a projeção e seu rosto assumiu uma expressão compenetrada. — As naves terão oportunidade de ficar estacionadas nos pontos-chave. Haverá ainda uma atividade muito intensa no setor da política externa. Todas as fontes de perigo serão mantidas sob observação. Os resultados fornecidos pelo Centro de Computação estão consignados na documentação que acaba de lhes ser entregue. Lembrem-se: o assunto é estritamente sigiloso. Quer dizer alguma coisa, coronel McLane?
Todos os olhos convergiram sobre Cliff, que fez um gesto afirmativo e levantou-se.
— Von Wennerstein, não passo de um comandante de nave espacial insignificante e tolo Apesar disso penso que o compreendi. O senhor permite que eu recapitule as minhas conclusões?
O Secretário de Estado fez um gesto de concordância.
— Cada nave espacial de nossa frota dirigir-se-á a um planeta previamente determinado, com alguns cientistas e talvez alguns funcionários do SSG a bordo. Os planetas foram escolhidos pelo Centro de Computação em função da periculosidade ou do perigo em potencial. Uma vez lá, verificaremos na qualidade de representantes de Terra se está tudo em ordem. Se houver alguma irregularidade, devemos eliminá-la ou ao menos tentar eliminá-la. Cumprida a missão, regressaremos a Terra e nos apresentaremos ao comando. Não é isso?
— Exatamente — disse o Secretário de Estado.
Lydia van Dyke levantou a mão e pediu a palavra.
— Sabemos que o Governo costuma trabalhar devagar, pois a ação que desenvolve costuma ser bastante meticulosa. A operação Ano Galáctico já foi preparada há muito tempo, não é?
— Sim — respondeu o Secretário de Estado. — Reconhecemos o perigo muito antes da chegada dos extraterranos, os frogs.
— E esse Ano Galáctico, quanto tempo durará? Ele se caracterizará pelo tempo de translação do planeta Terra em torno do sol? — perguntou Cliff.
— Isso mesmo — respondeu Von Wennerstein. — Corresponderá exatamente ao ano terrano. A operação durará trezentos e sessenta e cinco dias a partir de amanhã.
— O assunto será levado ao conhecimento do público?
Mais uma vez, o Secretário de Estado confirmou.
— Nossa decisão e os dados precisos só serão tornados públicos quando todas as naves se encontrarem no lugar que lhes tiver sido destinado. Assim teremos mais facilidade em descobrir o motim, antes que algum planeta o tente.
Villa mostrou um sorriso de deboche e disse em voz baixa, porém todos conseguiram entender:
— Acho que isso representa uma excelente idéia de nosso prezado governo.
Ouviram-se risos reprimidos.
— Mais alguma pergunta? — indagou Wennerstein.
— Quem será encarregado da distribuição dos objetivos? — perguntou Lydia van Dyke, general-comandante das Formações Espaciais Rápidas.
— O F.R.E.T. — respondeu Von Wennerstein.
— Quer dizer que é o gabinete de Wamsler — disse Spring-Brauner, empertigando-se na poltrona.
Ao fitar prolongadamente Apoio, apelido de Spring-Brauner, Cliff compreendeu que, mais uma vez, o destino desferira-lhe um golpe. E o instrumento do destino fora o ajudante do marechal Wamsler.
Apesar disso, um sorriso surgiu em seu rosto.
— Até parece que você ainda não compreendeu. Quem escolhe nosso objetivo é Spring-Brauner — cochichou Tamara, bastante espantada.
Cliff inclinou a cabeça para aproximar a boca do ouvido de Tamara.
— Não; apenas estou me lembrando de que Helga Legrelle pertence à nossa tripulação — disse numa alusão ambígua.
Tamara não compreendeu logo.
— E daí? — perguntou em voz baixa.
— Lembro-me de que Apoio cometeu um erro tático ao formular uma proposta de casamento a Helga. Talvez possa tirar proveito desse fato, evidentemente a nosso favor.
— Ficaremos juntos? — perguntou Tamara.
— Não sei. Suponho que sim, pois Spring-Brauner pensa que dessa forma me fará uma desfeita.
A voz potente de Wamsler interrompeu a conversa cochichada.
— Se minha interpretação é correta, o Governo de Terra, juntamente com o Estado-Maior, procederá da seguinte forma: nós, que pertencemos às unidades terranas de exploração espacial, indicaremos os objetivos e enviaremos três naves a cada um deles. Será um cruzador ligeiro, uma nave-laboratório e uma nave de escolta. Os objetivos estão espalhados por todos os quadrantes da esfera espacial. Dez dias após a decolagem, o mais tardar, será proclamado oficialmente o Ano Galático. Depois ficaremos aguardando informações. Assim que alguém note qualquer contratempo, enviaremos uma frota e tentaremos convencer os rebeldes pelos meios pacíficos. As intenções do Governo de Terra são estas, Von Wennerstein?
Wamsler, cuja figura atarracada estava sentada atrás da mesa, fitou o Secretário de Estado.
— Excelente — disse Von Wennerstein. — É exatamente o que queremos. Posso informar o Governo de que as F.R.E.T. estão dispostas a colaborar em toda linha?
— Pode — disse Wamsler.
— Além disso comunique ao Governo que o Serviço de Segurança Galático compreendeu suas tarefas e se empenhará na execução das mesmas — disse o coronel Villa em prosseguimento. — Afinal, o problema não é apenas da frota; também é nosso.
— Obrigado, coronel — disse Von Wennerstein em tom cerimonioso e inclinou o corpo alguns milímetros.
— A assembléia tem mais alguma decisão? — quem formulou a pergunta foi Lydia van Dyke.
— A assembléia decide debandar e distribuir as tarefas — disse Kublai-Krim com uma risada. — A assembléia recorrerá aos seus recursos executivos para informar a todos os comandantes dentro de trinta e seis horas. Os avisos serão expedidos imediatamente e a distribuição será realizada aqui. Isso também diz respeito ao senhor, coronel McLane.
— Já sei — disse Cliff em tom contrariado. — Naturalmente não terão a menor consideração pelos membros da frota que pretendem gozar férias bem merecidas, não é?
— Sinto muito, McLane — resmungou Wamsler. — Para a necessidade não há lei.
— Conheço uma porção de ditados engraçados como este — respondeu Cliff. — Quer dizer que por certos motivos posso considerar minhas férias e as de minha tripulação como suspensas, canceladas e inexistentes?
Villa disse com um sorriso sarcástico, apontando para os homens sentados em torno dele:
— Por que o senhor deveria ter mais sorte que eu e os meus colaboradores?
Cliff acenou com a cabeça e repetiu a pergunta:
— Isso mesmo; por que deveríamos ter melhor sorte?
Os participantes da reunião foram-se levantando um atrás do outro, despediram-se e saíram da sala. Wamsler, Tamara e Cliff foram os últimos; ficaram parados, de pé. Cliff fitou Wamsler com uma expressão repreensiva e sacudiu a cabeça.
— Marechal, por que será que o pior sempre acaba atingindo a mim e à minha tripulação? — perguntou em voz baixa. — Acho que há algum sistema atrás disso. Não é a primeira vez que sou convocado em meio às minhas férias. E minha tripulação também. Não se poderia fazer alguma coisa para evitar isso?
Wamsler fitou-o como se tivesse lâmpadas no lugar dos olhos. Depois de algum tempo apontou para a projeção da esfera espacial.
— Homem! — disse em tom quase solene. — O senhor não tem muitas qualidades, mas posso garantir-lhe que possui uma.
— Qual é? — perguntou Cliff com certa curiosidade.
— Não faço a menor idéia.
Em certas situações, até mesmo um comandante extremamente equilibrado pode cometer um homicídio premeditado. Mas, desta vez, controlou-se como convinha a um coronel e perguntou a meia voz:
— Marechal, acredito que o senhor tem algum motivo para fazer uma observação como esta.
— É claro que tenho — disse Wamsler em voz alta. — Olhe a projeção da esfera espacial e olhe as inúmeras luzes. A esfera está cheia de perigos que nos espreitam, e o senhor só pensa nas suas férias. Será que o senhor ainda é recuperável? Terra está chamando, McLane. Tire o algodão das suas orelhonas e procure ouvir o chamado. E agora faça o favor de não insultar mais as minhas retinas.
"Vá embora. E daqui a trinta e cinco horas e cinqüenta e oito minutos compareça ao meu gabinete juntamente com sua tripulação."
Cliff fez um gesto afirmativo. Sua continência foi de uma correção exagerada.
— O senhor me trata com tamanha bondade, marechal do espaço! — disse.
Pegou a mão de Tamara, saindo resolutamente da pequena sala de sessões. Consumiu em três horas vários copos tomados no bar do cassino para afogar o aborrecimento. E Cliff McLane ainda não sabia qual seria sua tarefa...
O ARRANJO da sala correspondia à importância da cena. Atrás da enorme mesa do gabinete de Wamsler, estava sentado o marechal juntamente com seu ajudante.
Wamsler fitava McLane, e Spring-Brauner não conseguia tirar os olhos de Helga Legrelle. Face a isso, poder-se-ia ter a impressão de que as outras pessoas que se encontravam na sala não tinham a menor importância, o que evidentemente não correspondia à realidade. Lydia van Dyke estava de pé ao lado de Tamara Jagellovsk e de um comandante das Formações Espaciais Rápidas; tratava-se de um homem magro chamado C.O. Erickson. Um silêncio angustiante pesava sobre a cena. Cliff chegou à conclusão de que tudo aquilo não valia a pena, pois fora obrigado a interromper suas férias. Por isso realizou uma investida frontal.
— Senhor Spring-Brauner — disse em voz baixa, mas num tom de voz que infundia pavor — tenho motivo para supor de que o senhor usou toda sua inteligência, que não é pouca, para arranjar uma tarefa bem agradável para a Orion. Estamos reunidos para ouvir sua exposição. Poderia ter a bondade de começar?
Spring-Brauner fez uma expressão indignada.
— Naturalmente — disse, lançando um olhar para o chefe, que esboçara um sorriso inconfundível ao ouvir as palavras de Cliff. Tirou uma fita de plástico colorido de dentro da pasta, colocou-a diante de uma lâmpada e leu.
— Planeta Tareyton — disse. — Cubo espacial Oeste/Seis 039.
Cliff deu de ombros. O planeta e a indicação de distância não lhe diziam nada.
— Não sei o que fazer com isso — disse. — Alguém de vocês conhece esse "negócio"?
Virou o rosto para os quatro membros de sua tripulação, mas apenas encontrou olhares que não diziam nada.
— Não fazemos a menor idéia — disse Hasso Sigbjörnson, o engenheiro de bordo, em tom tranqüilo, abrindo os braços.
— Era o que eu imaginava — disse Spring-Brauner, lançando um olhar tímido para Helga, e prosseguiu em suas explicações:
— O planeta tem trinta mil habitantes. Enviaremos três naves para lá: a Orion VIII, a Hydra II e a Scorpio. O planeta foi colonizado exatamente há vinte anos e, em parte, já foi explorado. Abastece todo o setor espacial que o cerca, correspondente exatamente a dez planetas, com extratos de cereais. Uma boa quantidade dos mesmos é remetida a Terra, que a transforma em outros produtos. Em linhas gerais é só isto. O planeta Tareyton pode sustentar-se sozinho em qualquer tempo; a especialização levada a efeito no mesmo é apenas parcial.
— O que vamos fazer lá?
Estas palavras foram proferidas numa voz incrivelmente rouca e profunda. Cliff virou a cabeça e viu o perfil do rosto de Erickson. O comandante da nave Scorpio mantinha-se tranqüilamente de pé, e dirigiu a pergunta não ao ajudante, mas diretamente a Wamsler.
— Os senhores se manterão em posição de espera...
— ...em órbita — completou Lydia van Dyke.
— ...e aguardarão. McLane, que é o mais arrojado do nosso serviço, dará uma olhada mais de perto. A operação será supervisionada e controlada por Miss Jagellovsk, que permanecerá a bordo da Hydra II. Se houver necessidade de pesquisas científicas, recorrerão aos três cavalheiros que estarão na Scorpio. Entendido?
Cliff sacudiu a cabeça.
— O que devemos observar, marechal? Existe algum ponto de referência?
— Pois é isso — respondeu o chefe da F.R.E.T. — Não temos a menor indicação. Segundo o Centro de Computação, a probabilidade da existência de um fator de perigo é de 74:26, mas não conseguimos descobrir onde está o perigo potencial. O fato de não saber o que está procurando fará com que o senhor enxergue mais claro, McLane.
McLane e Hasso Sigbjörnson trocaram um olhar longo e bastante expressivo.
— Será que o senhor não poderia destacar seu ajudante para acompanhar-nos? — perguntou Hasso com a maior ingenuidade.
Spring-Brauner atirou a cabeça para o alto. O espanto e a incredulidade desenharam-se em seu rosto. Brincou nervosamente com os documentos que se encontravam à sua frente e evitou levantar os olhos acima da tampa da mesa.
— Por quê, Sigbjörnson? — perguntou Wamsler em tom ressentido.
Um sorriso malicioso surgiu no rosto de Cliff, que respondeu no lugar de Hasso:
— Por motivos pessoais, marechal.
O rosto de Spring-Brauner começou a ruborizar-se. A tripulação da Orion constatou o fato com uma satisfação indisfarçável.
— Fale logo, homem! — resmungou Wamsler. — Que motivos pessoais são estes?
Cliff parecia hesitar.
— O caso é o seguinte — principiou. — Vez por outra, uma pessoa adulta sente a necessidade de sociabilizar-se. Procuram conhecer e aprender a estimar uma pessoa do sexo oposto. É exatamente o que acontece no presente caso. O tenente apaixonou-se por certa dama. Essa dama encontra-se neste recinto. Dê uma chance a Spring-Brauner, pois acredito que a dama não lhe dá nenhuma.
Spring-Brauner travou uma luta solitária consigo mesmo, luta que os tripulantes da Orion acompanharam com uma visível satisfação. Wamsler não compreendeu tudo; ao que parecia, custava a chegar à conclusão sobre quem seria a tal dama. Havia três pessoas do sexo feminino no recinto: Tamara, Helga e Lydia. Wamsler tomou uma decisão soberana e resmungou em tom mordaz:
— Este assunto não deve ser tratado aqui. Quer dizer que o senhor não tem qualquer objeção contra a tarefa que lhe foi destinada, McLane?
— Não — apressou-se Cliff a responder. — Até me sinto muito satisfeito em viajar em companhia tão distinta e agradável.
Fez uma mesura para Tamara e Lydia.
— Spring-Brauner lhe fornecerá os detalhes. Façam o favor de olhar para esta tela, senhoras e cavalheiros — disse Wamsler.
Spring-Brauner começou a falar:
— Tareyton é o terceiro planeta do sol que pertence ao mesmo tipo do sol do planeta Terra. Os outros não assumem a menor importância e sua colonização só seria possível em condições extremamente difíceis. O clima de Tareyton é quente e úmido. Uma lua muito grande gravita em torno do planeta. Sua massa é tamanha que causa variações muito acentuadas no nível das águas. As marés são muito pronunciadas, embora os mares do planeta sejam rasos. Vejam as fotografias.
Ao que parecia o tenente recuperara o autocontrole.
As fotografias mostravam o seguinte: um grande planeta sem calotas polares. A parte da superfície que podia ser reconhecida entre as nuvens era bastante estranha.
Parecia que um modelador gigantesco havia feito perfurações de tamanho aproximadamente igual na crosta do planeta. As perfurações constituíam mares gigantescos, e a maior parte do entrelaçado arredondado das terras mergulhava sob as águas por ocasião da maré alta. Nas fotografias, viu-se a gigantesca lua branca subir por trás da curvatura da superfície do planeta e dominar o cenário.
— As povoações são constituídas em grande parte de construções de palafita. O processo de semeadura e colheita é inteiramente robotizado, e as instalações do espaçoporto também são bastante avançadas.
A série seguinte oferecia uma visão da paisagem do planeta, contemplada de altura não superior a um quilômetro. Os tripulantes da Orion viram as praias encurvadas dos mares e as massas de água de contornos arredondados. Em algum ponto na periferia da tela, surgiu uma povoação. Tratava-se de um conjunto circular de construções erguidas sobre estacas e ligadas por estreitas pontes. Era um quadro pacato e agradável. Dava uma impressão moderna e não parecia encerrar o menor fator de perigo.
Uma indústria robotizada com gigantescos tanques esféricos e os respectivos dispositivos de enchimento de vasilhames surgiu no campo de visão. Ainda se viu um dos veículos rápidos de deslizamento em zonas pantanosas que servia à locomoção dos colonos. Seguiram-se as estatísticas de produção, de exportação, o número exato dos habitantes, a densidade populacional e outros dados de interesse relativos a Tareyton.
A lâmina do videofone tornou-se branca; Spring-Brauner acendeu as luzes da sala.
— Estes documentos contêm outros dados e fotografias sobre o planeta, coronel.
Spring-Brauner estendeu os documentos a McLane. Cliff concedeu-lhe um sorriso sarcástico e pegou a caixa.
— Quanto tempo levaremos? De quanto tempo dispomos? — perguntou em tom lacônico.
Wamsler abriu os braços.
— Por que faz essa pergunta a mim? — perguntou.
— Porque o senhor tem o aspecto de uma pessoa que sabe dar respostas às perguntas, marechal — disse Cliff sem o menor respeito. Na presença de Lydia sentia-se um pouco mais seguro.
— Não faço a menor idéia — falou Wamsler. Parecia que a resposta que acabara de dar não o deixava muito satisfeito.
— Como devo interpretar essa resposta? — perguntou Cliff obstinadamente.
— Ora essa! Se dez segundos após o pouso no planeta o senhor tiver descoberto uma série de crimes capitais, terminará mais depressa do que se levar dois anos para descobrir alguma coisa e reunir as provas. Não sei dizer; fique por lá o tempo que julgar necessário.
— Será que meu soldo continuará a ser pago? — perguntou Cliff com um sorriso de deboche.
— Cliff McLane, o senhor está se tornando insolente!
— Não. Apenas adoeço de saudades se tenho que passar um ano inteiro, e até um ano galático, em órbita em torno de Tareyton. Talvez para os tripulantes da Hydra II e da Scorpio a provação não seja tão pesada, mas acontece que eu sou um terrano.
Wamsler teve a sensação desagradável de que os presentes se divertiam à sua custa sem que ele o percebesse. Seu humor, que nas últimas vinte e quatro horas descia constantemente em direção ao ponto crítico, já não era dos melhores; passara o tempo atendendo às tripulações das naves e designando suas tarefas.
— Coronel McLane — disse com a voz rouca. — Pegue sua tripulação formidável e estes dados e decole. Depressa! A Base 104 aguarda a Orion daqui a cinco horas. Espere a Hydra II e a Scorpio fora da atmosfera terrana. E deixe meu ajudante aqui mesmo; preciso dele.
A voz de Wamsler tornava-se cada vez mais forte. Fez uma ligeira pausa e quase chegou a gritar o restante de sua fala.
— Não volte enquanto não tiver neutralizado alguma situação de perigo.
Cliff esforçou-se para continuar sério. Fez continência com uma ênfase exagerada, o que deixou o marechal ainda mais aborrecido, e deu um sinal para sua tripulação. As outras pessoas que se encontravam presentes saíram atrás dele, deixando a sós Wamsler e Spring-Brauner, que pareciam estupefatos e enfurecidos.
— Afinal — observou Spring-Brauner em tom mordaz — o slogan de que McLane é o melhor homem que temos no espaço proveio do senhor, marechal. Portanto, não se admire das atitudes do coronel.
Wamsler fitou a tampa da mesa, virou a cabeça para seu ordenança e disse em tom furioso:
— Selecione os objetivos para as tripulações que deverão comparecer daqui a pouco e deixe de comentários inteligentes. O senhor não está sendo pago para isso.
— Perfeitamente — disse Spring-Brauner e teve a impressão triste de que não só McLane, mas também Wamsler e até Helga Legrelle estavam conspirando contra ele. E essa impressão era correta.
McLane caminhou ao lado do general Van Dyke em direção à mesa reservada. Esforçou-se para ignorar o olhar ciumento de Tamara Jagellovsk.
Cliff parou. Os tripulantes da Orion e Erickson rodearam-no. Tomaram seus lugares.
— Decolaremos daqui a cinco horas — disse em voz alta. — Qual é sua opinião sobre a operação, C.O.?
Erickson, que era um homem de cerca de cinqüenta anos, alto e magro, deu de ombros. Tal qual os tripulantes da Orion, já usava o casaco de bordo com a placa estreita e comprida no peito, cujos pontos e divisões em campos, juntamente com um modelo magnético, atestavam a identidade do portador. Era major.
— Não tenho nenhuma opinião, Cliff — disse C.O. — Isso pode significar qualquer coisa, desde um tédio mortal até uma excitação louca. Sou de opinião que devemos aguardar.
Hasso Sigbjörnson bateu com a colher na xícara e disse:
— Estou ansioso para executar uma tarefa que nos leve a um ambiente normal. Vimos até agora os fanáticos, os hipnotizados, uma poeira mortal... e agora temos pela frente um planeta aquático. E tudo isso acompanhado do péssimo humor de Helga. Será uma experiência inesquecível.
A telegrafista lançou um olhar furioso para Hasso.
— Você não tem motivo para divertir-se à minha custa — disse.
Cliff soltou uma estrondosa gargalhada.
— Ora, Helga, minha filha! — disse em tom contemporizados — Ninguém está rindo de você; todo mundo está rindo de Spring-Brauner.
— Não estou entendendo nada — interveio o general Van Dyke. — O senhor poderia fazer o favor de explicar, McLane?
— O caso é o seguinte — começou Cliff com a maior boa vontade. — Apoio teve a audácia de desejar Helga. Acho impossível que Helga possa dar um passo em falso; por isso, a artilharia de nosso sarcasmo é dirigida contra Spring-Brauner. E o melhor de tudo é que Wamsler nem sabe de que se trata.
— Agora compreendo muita coisa que tem sido um mistério para mim. Mas pergunto-lhe uma coisa, McLane: Spring-Brauner é seu inimigo? — disse C.O.
Cliff fez um gesto afirmativo.
— Conheço-o desde a época do meu exame final. E dali em diante, a luta nunca parou. Mas vamos prosseguir com Tareyton... Gigantescas máquinas robotizadas flutuantes plantam o trigo-arroz no fundo dos mares rasos. As plantas crescem por lá e, quando o cereal está amadurecendo, sobe à superfície e fica exposto aos raios do sol. O vento e as marés tangem o alimento flutuante para dentro das baías e dali para as praias, onde é recolhido, limpo, processado e armazenado em tanques por um processo inteiramente automatizado. Isso não é nenhuma novidade, pois já temos visto coisa igual.
"Mas há um detalhe. Dez planetas e a própria Terra dependem do suprimento pontual de alimentos vindos desse planeta. Os dez planetas exercem atividades altamente especializadas; se os suprimentos falhassem, sua situação se tornaria ao menos crítica. Terra não seria atingida tão fortemente, pois poderia recorrer a outras fontes de suprimento. É possível que este ponto represente um fator de perigo.
— Aos poucos começo a ver a finalidade da operação — observou Atan Shubashi em tom seco, enquanto contemplava Helga Legrelle, cujos dedos pontudos procuravam remover um fio de cabelo da jaqueta dele.
— Agora temos a prova! — disse Helga em tom triunfante. — Shubashi, cuja vida sentimental sempre tem sido um segredo guardado a sete chaves, namora uma moça de cabelos curtos e negros.
Segurou o fio de cabelo entre os dedos, para que todos pudessem vê-lo. Atan disse com um sorriso de desprezo:
— Isso é um engano. Foi a filha do 264. A tripulação da Orion e Tamara Jagellovsk compreenderam.
— Há pouco tempo seu poodle real de número 264 teve uma ninhada de filhotes. E agora Atan deve estar dando mostras de sua habilidade de adestrador — disse Cliff.
— É mais ou menos isso — confirmou Shubashi e sorveu ruidosamente o seu café.
— A uma velocidade normal, que não force demais os propulsores das naves, levaremos cerca de seis dias para chegar a Oeste/Seis 039. Nesses seis dias, teremos tempo para conferenciar sobre todos os detalhes pelo rádio. Sugiro que esvaziemos nossas xícaras e nos encontremos pontualmente, dentro de três horas no máximo, na comporta de pessoas da Base 104. A Orion VIII decolará em primeiro lugar, seguida pela Hydra II, e finalmente o senhor, C.O. Erickson, decolará com a Scorpio. De acordo?
A proposta de Cliff obteve aprovação total. Despediram-se.
Cliff foi ao seu bangalô, ativou as unidades robotizadas que cuidariam da casa até seu regresso e selecionou vários objetos, os colocando numa bolsa de viagem. Não tinha um plano definido, mas alguma coisa lhe dizia que os objetos que devia levar eram estes. Com uma certa melancolia, contemplou as salas sombreadas, sacudiu os ombros e entrou no carro de turbina. Chegou pontualmente à comporta.
Guardando a necessária distância de segurança, as três naves corriam pelo hiperespaço. Haviam realizado o sexto salto. O planeta Tareyton e seu sol ficavam a poucas horas de distância. Cliff Allistair McLane estava sentado em seu camarote a bordo da Orion. Seu status de comandante de nave apenas lhe dera um metro quadrado a mais. Cada lado de seu camarote media poucos centímetros mais que os dos outros membros da tripulação. Até mesmo acima da porta, que podia encolher-se numa fenda da curva do corredor, havia profundas gavetas embutidas. Do lado oposto da porta Cliff saía da parede uma mesinha de escrever. Uma luminária pequeníssima atirava um círculo de luz sobre os documentos que tinha à sua frente. Diante da mesa, havia uma tela de videofone de um metro quadrado. Nela se via a imagem de uma paisagem planetária terrivelmente desoladora. Sempre que levantava os olhos, Cliff via as finas nuvens de areia, tangidas por cima das rochas. Era uma projeção ao vivo proveniente do estoque de fotografias encontradas a bordo.
Cliff sacudiu os ombros e recostou-se na poltrona. À sua frente, encontravam-se fotografias, diagramas, descrições, gráficos, números e estatísticas. Trinta mil homens habitavam Tareyton. E o Centro de Computação vira nesse planeta um fator de perigo altamente suspeito.
O comandante desistiu. No mesmo instante soou à sua esquerda um fraco zumbido. Ligou o intercomunicador de bordo. Helga Legrelle surgiu na tela.
— Tamara Jagellovsk, que se encontra a bordo da Hidra II, quer falar com McLane. Transmitirei a ligação — disse em tom frio.
— Obrigado — disse Cliff e sacudiu a cabeça. O rosto de Tamara surgiu na tela.
— Até onde conseguiu chegar nosso inteligente comandante? — perguntou com um sorriso.
Cliff fez uma careta e respondeu:
— O comandante está tão inteligente quanto antes. Wamsler passou óleo pelas nossas trancas.
Uma ruga vertical surgiu na testa de Tamara.
— O que quer dizer isso?
— Há alguns milênios ainda havia homens que faziam trancas de seus cabelos e as atiravam para a nuca. Enfeitavam-nas com uma fita. Nas trancas colocavam pó, geralmente branco.
— E incrível! — disse Tamara em tom de espanto. — Será que uma coisa dessas realmente chegou a existir?
Cliff fez um gesto afirmativo.
— Sim. Quer dizer que as trancas estavam cheias de pó. Se alguém, dando um tratamento adequado ao cabelo, o embebesse com óleo, causava uma verdadeira devastação em virtude da mistura deste com o pó branco. Foi dali que surgiu o ditado. Sempre que alguém quer fazer um favor a outra pessoa e consegue exatamente o contrário, diz-se que colocou óleo na trança. Wamsler teve a intenção de nos confiar uma missão interessante, mas o resultado foi uma adivinhação que não conduz a nada.
— Como foi que você conheceu esse ditado? — perguntou a camarada.
— Ouvi de alguns intelectuais — disse Cliff. — Você já tem alguma idéia aproveitável?
Tamara sacudiu a cabeça.
— Nenhuma, a não ser chamá-lo. Acho que foi uma boa idéia. Como vamos agir?
— Formalmente — respondeu Cliff.
— Isso quer dizer que pousaremos em Halvorsen e nos identificaremos como representantes de Terra. Faremos questão de sermos convidados e ficaremos com os olhos abertos.
Cliff sorriu para Tamara e acenou violentamente com a cabeça. Seu rosto exprimia sua conhecida força de resolução.
— Não ficaremos apenas com os olhos abertos. As três naves permanecerão em órbita e seus instrumentos rastrearão cada metro quadrado da superfície do planeta.
— Uma pergunta, Cliff. Você acredita que Tareyton está tramando alguma coisa que exigirá nossa intervenção?
— A resposta é muito difícil — disse Cliff para esquivar-se.
— Foi justamente por isso que formulei a pergunta a você e não a Lydia. É uma mulher encantadora para quem a conhece mais de perto.
— Foi o que eu já disse — declarou Cliff. — Acontece que você ainda não tinha um gabarito pessoal que lhe permitisse vencer seus ciúmes gratuitos. Quanto à sua pergunta, apenas posso responder que não sei. Na maioria das vezes, uma desconfiança extremada e uma curiosidade pérfida podem ser muito úteis. Se o planeta estiver escondendo alguma coisa, nós descobriremos. Pretendo pousar lá com Hasso e C.O. Sem você.
— Compreendo. O comandante McLane meterá o nariz em tudo que existe lá embaixo.
— É exatamente o que pretendo fazer. E sentirei quando as coisas começarem a feder.
Tamara riu e fez um gesto com a mão.
— Tomara que em Tareyton não lhe ponham óleo na trança — disse e interrompeu a comunicação.
Cliff começou a reunir os documentos que tinha diante de si e a guardá-los numa caixa. Segurou uma fotografia por algum tempo, pegou o cubo de projeção, ligou-o para a reprodução estereoscópica e enfiou o grosso quadro de plástico para dentro da fenda. Viu uma gigantesca praia recurvada, que se perdia no infinito. Fez a projeção descrever uma curva para a direita. Na parte da frente surgiu um pântano, ou melhor, a paisagem de um delta. Havia muito junco, árvores com raízes aéreas retorcidas e com fios gosmentos nos galhos inferiores. O quadro era encimado pela lua.
Tratava-se de uma gigantesca lâmina branca sem contornos definidos. Seu diâmetro correspondia aproximadamente a seis vezes o da lua terrana. Era a impressão que se oferecia a quem se encontrasse na superfície de Tareyton. No ar, uma fileira de aves aquáticas semelhantes a cisnes deslocava-se, e um grupo de animais de grande porte, que tinham uma vaga semelhança com vacas, surgiu no primeiro plano do quadro.
A paisagem noturna parecia envolta em melancolia. A lua cheia refletia-se em toda parte. As ondas formavam uma estranha chanfradura. Subitamente McLane percebeu que os pêlos do braço se arrepiavam. A visão lhe dava calafrios. Ligou o amplifica-dor. O junco transformou-se numa confusão de grossos caules, que se moviam uns contra os outros, formando um paredão que se interpunha entre o mar e a faixa de terra situada em plano mais elevado. Nos caules via os sinais deixados pela última maré alta, que havia deixado uma coloração peculiar. Uma grande ave negra estava pousada num galho, com o pescoço esticado e o bico bem aberto. Cliff teve a impressão de que ouvia o grito.
Refletiu intensamente. Não pertencia à classe de pessoas que, face à tecnologia e os graves desvios da civilização, se afastaram da natureza e das coisas ligadas à mesma. Seria incapaz de passar dias seguidos nas cavernas da Base 104, tal qual fazia Wamsler. Por isso, teve a impressão de que era capaz de interpretar corretamente o sentido desse quadro.
O planeta apoderava-se dos homens que pisassem nele. Transformavam-se em seres do planeta, ou saíam dentro de poucos dias. Não havia outra alternativa. Aqui não era o homo sapiens que dominava a natureza. Pelo contrário, a beleza selvagem de Tareyton não demorava em dominar o homem. Cliff compreendeu que a vaga suspeita tinha sua razão de ser. Se nesse planeta houvesse pessoas que eram contra Terra, as mesmas não hesitariam em transformar seus desígnios em realidade.
Um sinal estridente soou.
Cliff sabia que era o primeiro aviso. Dali a pouco a Orion VIII, a Hydra II e a Scorpio retornariam ao espaço normal. E quando isso acontecesse, estariam no sistema solar de Tareyton.
Desligou o cubo de projeção, arrumou apressadamente as coisas e subiu para a cabine de comando.
SENTADO na poltrona do comandante, com os largos cintos atados, Cliff viu o planeta crescer na tela central redonda. Atrás da Orion, a Hydra e a Scorpio deslizavam pelo espaço. A única povoação que fazia jus à denominação de cidade ficava perto do equador. Nos outros lugares, os colonos espalhavam-se... Helga Legrelle, cujo humor melhorara, estava lidando nos controles do rádio.
— Consegui a ligação audiovisual — disse, levantando cautelosamente o fone de ouvido. — O cônsul Halvorsen está na linha.
— Passe a ligação — ordenou o comandante.
Ouviu-se um estalo nos alto-falantes e uma tela iluminou-se à frente de Cliff. As lentes dirigiram-se sobre o coronel. Cliff exibiu o célebre rosto impenetrável.
— Aqui fala o coronel McLane, a bordo da Orion — disse.
Pelo canto do olho viu que Helga acionara as teclas da ligação em conferência, sem que ninguém o tivesse pedido. As outras naves poderiam acompanhar o diálogo travado entre Cliff e Halvorsen.
— Meu nome é Halvorsen — disse o homem.
— Meus cumprimentos, cônsul — disse McLane. — Estamos chegando na qualidade de representantes oficiais do governo terrano. Trazemos credenciais e queremos pousar em seu espaçoporto, mas apenas com a nave auxiliar.
— Excelente! — exclamou Halvorsen.
— Finalmente aparece alguma coisa para espantar o tédio.
— Isso parece ser um planeta de aventuras loucas. Vejam só! O vôo para o tédio...
— resmungou Mario de Monti, que se encontrava no lugar destinado à introdução de dados no sistema de computação.
Cliff fez-lhe um sinal para que se calasse. Halvorsen era um homem pequeno e corpulento de cabelo ralo, bigode marcial e roupa desleixada. À primeira vista, Cliff o achou simpático, mas não deixou que seu interlocutor o percebesse.
— Peço o obséquio de nos fornecer um raio vetor — disse. — Inicialmente pousaremos em três; o resto veremos depois. Será que pode arranjar algumas camas de campanha para nós?
Halvorsen parecia ofendido. Apressou-se em responder:
— Faça-me o favor! Afinal, dispomos de casa de hóspedes montada com certo luxo. Estão cordialmente convidados a ocupá-la. Farei realizar uma grande festa.
— Obrigado pelo convite. Devo avisá-lo de que mais duas naves se encontram em minha companhia. As três naves permanecerão em órbita. Pousaremos numa Lancet — Cliff soltou uma risadinha.
O cônsul parecia estranhar aquilo, mas respondeu com um gesto gentil.
— A perspectiva da mudança da rotina deixa-nos entusiasmados. Então, a qualquer hora as naves deverão pousar. Quando poderei esperar o senhor, coronel?
— Dentro de uma hora, aproximadamente. Seguiremos seu raio vetor. Por enquanto, muito obrigado.
Halvorsen fez um sinal e interrompeu a comunicação. Helga Legrelle, que se encontrava junto ao painel de controle de rádio, disse em voz alta:
— Operadora de rádio chamando comandante: o raio vetor foi captado.
— Obrigado — disse McLane e levantou a cabeça.
Viu os olhos de Lydia e C.O. dirigidos sobre ele.
— Quem chefia a expedição sou eu — disse McLane a meia voz. — E quero que Hasso Sigbjörnson e o senhor, C.O., venham comigo a Tareyton. Se chegarmos à conclusão de que o território é tranqüilo, os outros virão posteriormente. De acordo?
— Sim; naturalmente.
— Muito bem. Pegaremos a Lancet I da Orion. C.O. fará o favor de sair pela comporta lateral, num traje espacial leve à prova do espaço. Nós o recolheremos a bordo. A Lancet pousará, aproximadamente, dentro de quinze minutos.
— Está bem, Cliff — disse o comandante da Scorpio e interrompeu a comunicação.
— Leve o rádio de pulso, McLane — recomendou Lydia van Dyke. Cliff fez um gesto afirmativo. Era exatamente o que pretendia fazer.
A outra tela também se apagou. Uma vez desligadas as máquinas, Cliff recostou-se confortavelmente e colocou os pés calçados sobre o painel de controle.
— Meus amigos, a coisa vai começar — disse a meia voz. — Hasso, C.O. e eu procuraremos fazer um pouco de confusão. Ao que parece, o cônsul ficou satisfeito com nossa visita, ou então sabe representar muito bem. Se deixarmos de entrar em contato com vocês, entrem no jogo.
"Se percebermos que não há nada por aqui, gozaremos umas férias. Organizarei um serviço de transporte por Lancets que levará todos os membros da expedição para baixo. Escolhi Hasso para que também tenha uma oportunidade de sair de sua apertada sala de máquinas. Mais alguma pergunta?"
— Não — disse Helga. — Continuarei a pensar se não será melhor que eu case mesmo com Spring-Brauner.
Cliff esboçou um sorriso alegre.
— Se sua decisão for positiva, nós a largaremos em Tareyton.
Helga não respondeu. Comprimiu uma série de botões de seu painel.
— Quanto a mim, conversarei com Tamara e farei o possível para convencê-la de que tenho uma porção de boas qualidades — observou Atan.
Mario não ficou muito satisfeito em ficar de sentinela por ali, mas acabou dando de ombros, pegou o elevador e desceu para a câmara de controle situada junto ao poço de decolagem das Lancets. Hasso e Cliff fizeram um gesto.
— Vamos!
Colocaram os objetos de que precisavam em bolsas feitas de matéria que não deixava passar o ar, fecharam-nas e enfiaram os trajes espaciais leves. Cliff examinou sua arma, colocou no bolso vários pentes de balas de reserva e entrou na abertura redonda do poço de decolagem. A escotilha fechou-se atrás dos dois homens. Dali a alguns minutos, a Lancet foi catapultada para fora da Orion com uma aceleração equivalente a quatro G.
A pseudo-esfera iluminada formada pela Lancet, com as vinte cúpulas redondas na parte superior, afastou-se silenciosamente, descrevendo uma curva fechada, e tomou a direção da Scorpio. Não se notava qualquer emissão de energia. De repente, a comporta redonda abriu-se na parte inferior da nave auxiliar.
Hasso levantou a mão; Cliff viu-o através da lâmina do visor.
— Contato pelo rádio!
C.O. e a tripulação da Lancet comunicavam-se no tráfego radiofônico normal da freqüência da frota.
— Aguardo-os na comporta de emergência.
Ouviu-se a voz de Cliff:
— Dentro de alguns segundos estaremos exatamente acima do senhor. Quando isso acontecer, empurre-se e segure a escada.
A Lancet ia na direção vertical de encontro a Scorpio. Freou e aguardou sobre o círculo bem iluminado da comporta de emergência. Erickson, que envergava um traje espacial amarelo, olhou para cima, empurrou-se levemente com as duas mãos e subiu verticalmente que nem um foguete, penetrando na comporta. O impacto produziu um leve solavanco na Lancet e a voz do homem disse:
— O.K. Pode fechar a comporta, Cliff.
Os dois segmentos fecharam-se simultaneamente: a comporta de emergência da grande nave e a pequena eclusa da nave auxilar. Enquanto Cliff enchia a cabine de mistura atmosférica e assistia a comporta interna abrir-se. O capacete espacial do comandante surgiu no campo de visão. McLane acelerou a Lancet.
— Seguindo o raio vetor, percebo que o mesmo vai quase na vertical em relação à superfície do planeta. Isso quer dizer que as naves se encontram quase diretamente em cima da Grande Laguna.
— Vamos embora para a grande aventura. O que será que nos espera, Cliff? — perguntou Erickson em tom alegre.
— No mínimo é muita água — disse o comandante. — De resto não sei o que nos espera. Deixemos que Halvorsen nos surpreenda.
Embaixo dos três homens, a paisagem estendia-se à luz do sol. Aos poucos, foram distinguindo os detalhes a olho nu.
— Que coisa fantástica! — exclamou Erickson.
Sua observação dizia respeito às margens de dois mares, ou melhor, de dois grandes lagos, que ficavam sob a nave auxiliar. Partindo de uma faixa de terra que na parte mais estreita não tinha mais de dez quilômetros de largura, as margens convexas das duas baías se afastavam até desaparecer em meio à névoa e a distância. Mais adiante, provavelmente num trecho de terra triangular, ficava a cidade. Viam-se as construções de metal leve e as estruturas de plástico e aço brilhando à luz do sol.
— Ali fica o pequeno espaçoporto — disse Hasso, apontando para um campo bem aplainado de cerca de trezentos metros de diâmetro.
E é exatamente ali que vamos pousar — disse Cliff, movendo a alavanca de pilotagem manual. A Lancet aproximou-se de alguns edifícios que se agrupavam em torno da esguia torre de rádio. Já estavam vendo os homens que pareciam aguardá-los.
— É um comitê de recepção! — disse Erickson em tom de espanto. — São nove... doze pessoas.
— Provavelmente são todas as damas de honra existentes em Tareyton — comentou o engenheiro de bordo em tom seco.
Cliff e Erickson soltaram uma risada.
— Nada de textos comprometedores, Hasso! — disse Cliff.
— Desculpe — disse Hasso com um sorriso.
Os suportes de aterrissagem chiaram ao saírem da parte inferior da nave e tocaram o solo. As máquinas foram desligadas e Hasso dispôs-se a abrir o traje espacial.
— Somos amáveis, inofensivos e um tanto curiosos. Que nem um grupo de turistas que não entende nada de coisa alguma
— disse Cliff. — Daqui em diante, nosso papel será este. Entendido?
Erickson dobrou o traje espacial e guardou-o numa das poucas gavetas da pequena nave. Fez um gesto afirmativo.
— Já compreendi sua intenção, coronel
— respondeu Hasso. — Tomara que neste planeta não haja mais ninguém que o compreenda.
— Tomara.
Encontravam-se na cabine da nave, envergando seus uniformes de bordo. As bolsas à prova do espaço estavam junto às botas. No pulso esquerdo os homens traziam o minúsculo aparelho de radiocomunicação. Os cabos das armas saíam dos bolsos, na altura da coxa.
— Pronto! — disse Cliff McLane, falando baixo, mas em tom enfático.
Apertou um botão. O dispositivo automático abriu as duas escotilhas da comporta ao mesmo tempo. A escada de degraus largos foi movimentada pelo dispositivo hidráulico. O motor zumbiu enquanto a mesma descia até tocar o chão. Erickson foi o primeiro a descer; parou na sombra da Lancet. Depois que Cliff e Hasso haviam saído, o primeiro fechou a comporta e a trancou. Agora só poderia ser aberta com uma chave especial, que se encontrava em poder de Cliff.
— Olá! O senhor deve ser o célebre Cliff McLane! — disse uma voz.
Cliff exibiu um sorriso indefinido, virou-se e estendeu a mão. Halvorsen caminhava em sua direção, enquanto o grupo que o acompanhava se aproximava mais devagar. Os dois homens cumprimentaram-se.
— Não sou nenhuma celebridade — objetou Cliff.
— David Halvorsen — disse o cônsul, estendendo a mão a Hasso. Era um homem pequeno, jovial e cheio de vida.
— Hasso Sigbjörnson, engenheiro de bordo — disse Hasso. Olhou em torno e examinou demoradamente as instalações com os olhos semicerrados. O brilho do plástico branco e do aço cromado ofuscava sua visão.
— As instalações daqui são muito boas.
— Mais ou menos — disse Halvorsen enquanto cumprimentava o comandante. — Cavalheiros, permitam que os convide para um drinque de boas-vindas. Minha casa serve ao mesmo tempo de edifício de controle do porto, depósito, residência e local de recepção. É bom que saibam que por aqui não damos tanta importância às questões de etiqueta.
Dirigiram-se para o grupo de doze pessoas que se encontrava entre a Lancet e a casa erguida sobre suportes de aço.
— Isso faz com que desde logo eu simpatize com seu planeta — disse Cliff, enquanto procurava memorizar os nomes das pessoas que estavam sendo apresentadas. Era praticamente inútil, mas havia uma exceção: Titus Veever.
Mesmo nas condições reinantes em Tareyton esse homem devia ser considerado um fenômeno. Por ali não ligavam muito para questões de etiqueta e, ao que parecia, nem para uma porção de outras coisas. Veever era um homem de ombros largos com uma cabeleira negra maltratada e um bigode bem maior que o do cônsul. Sua vestimenta era "notável".
— Venham, cavalheiros, por aqui — ouviu-se a voz retumbante de Halvorsen.
O lugar era ao mesmo tempo o centro da cidade. O campo havia sido construído com gigantescos blocos de espuma de plástico, capaz de resistir mesmo aos raios antigravitacionais de uma nave cargueira inteiramente cheia. Era uma área redonda que media exatamente trezentos e dez metros de diâmetro. Pontilhões e escadas, rampas e faixas penseis com amuradas baixas ligavam os edifícios entre si e estes com o solo. Era uma gigantesca cidade construída na laguna, que oferecia um quadro grotesco já que seu solo era seco.
— Obrigado, Halvorsen — respondeu C.O.
Halvorsen e seus acompanhantes chegaram a uma plataforma bastante extensa. Proporcionava uma visão excelente sobre o campo de pouso e constituía uma espécie de jardim do edifício do consulado. Em gigantescos jarros de plástico, cresciam plantas exóticas cujas folhas tinham o formato de lança e cujas flores exalavam um perfume atordoante.
Uma mesa comprida havia sido preparada.
— Halvorsen — disse Cliff em voz alta. — Agradeço em nome de todos pela gentileza da recepção. É bem verdade que estou aqui na qualidade de representante do governo de Terra, mas isso não me impede de erguer o copo para um brinde.
Halvorsen riu; as pontas de seu bigode tremiam nervosamente. Segurava um copo e distribuía outros de bebidas alcoólicas cujo tamanho não era nada desprezível.
O grupo de colonos cercava os astronautas em semicírculo. Uma brisa de cheiro salgado soprava da praia próxima e mexia nas plantas da plataforma. De algum lugar ouviu-se o zumbido grave produzido por uma máquina pesada.
— O que o trouxe até aqui, McLane? — perguntou o cônsul.
— Foi a curiosidade. Quero ver como funciona a vida nos mundos coloniais de Terra. Como sabe, geralmente a frota costuma operar no espaço vazio. Por isso não perdemos a oportunidade de introduzir outra coloração na monotonia das tarefas que nos são atribuídas.
Halvorsen tomou um grande gole. Hasso fez um gesto de aprovação, segurando o copo quase vazio. Cliff bebia devagar. Aquela bebida tinha um gosto que lhe era estranho. Estranho, mas muito bom.
— O senhor veio com alguma incumbência? — perguntou Veever a meia voz.
— Vim. Terei de apresentar uma descrição minuciosa deste planeta. Terra precisa de dados para seus arquivos.
— Que espécie de dados?
Os olhos do homem de aspecto selvagem exprimiam desconfiança. E essa expressão não desapareceu quando Cliff riu para ele.
— Trata-se principalmente de detalhes ligados às ciências naturais. Teremos de tirar fotografias, para verificar como os edifícios e os produtos da tecnologia se integram no ambiente geral do planeta... se é que se integram.
— Compreendo — disse Titus.
Cliff percebeu que ele compreendia, mas não devia acreditar. Três astronautas para a execução de uma tarefa estritamente limitada era demais. Devia haver outra coisa atrás daquilo. Foram estes os pensamentos de Titus, que se desenharam nitidamente em seu rosto.
— A vida aqui não é fácil, McLane — disse Halvorsen. — Mas alguém que se acostumou a este planeta não quer viver em outro lugar. Tareyton é lindo. Levamos uma vida dura, porém livre. Mas estou esquecendo meus deveres de anfitrião. Permitem que os leve à casa dos hóspedes e lhes mostre seus aposentos?
— Vamos devagar — disse Cliff. — Estou vendo a alguns metros quadrados um bufê de primeira classe, e o senhor quer livrar-se de nós. Ainda é cedo. Afinal, viemos do espaço vazio e estamos com fome.
Deu alguns passos decididos em direção à mesa comprida. Erickson pigarreou e completou a frase:
— Sem falar na sede.
Hasso era um dos amigos mais antigos de Cliff e Erickson compreendeu logo qual era a intenção de McLane. Fazia o papel do astronauta ligeiramente entediado, que se deleitava com as maravilhas deste mundo. E, como se fosse um turista, queria ver, cheirar e tocar tudo. Naquele planeta usava-se uma fala áspera e as gentilezas do cônsul eram um tanto forçadas, mas o bufê realmente era apetitoso. Os três homens avançaram sobre o mesmo, devoraram porções enormes e derramaram a bebida goela abaixo.
Enquanto comiam, bebiam e se entretinham em conversas de astronautas, lançavam olhares curiosos em torno.
As construções eram feitas de peças pré-fabricadas padronizadas, habilmente colocadas lado a lado, ou umas em cima das outras. Do lado oposto do campo, o comandante viu uma série de tanques de diversas cores com uma capacidade muito grande. Descansavam sobre suportes especiais, pois do contrário teriam afundado no solo arenoso.
Examinaram as vias de comunicação. Todas as construções estavam ligadas por pontes, estradas e longas rampas, substituídas às vezes por escadas esguias que subiam ou desciam em linha reta ou em curva. O conjunto dava o aspecto de uma gigantesca rede formada por meios de comunicação e plataformas, ligações e pontos de atracação, que poderiam ser usados quando a maré subisse. E, por cima de tudo, estendia-se o céu com sua coloração intensa: o azul-escuro estava entremeado pelos contornos brancos das nuvens de verão.
— O senhor tem aqui um tempo maravilhoso... e isso de graça, durante o ano inteiro — constatou Hasso Sigbjörnson e desabotoou a gola do uniforme.
— Sim — disse Halvorsen. — Aqui na zona equatorial tudo cresce, floresce e amadurece num tempo recorde. A chuva geralmente cai durante a noite, conforme se deseja. Não conhecemos inverno nem época chuvosa.
— E os senhores sabem destilar uma bebida alcoólica que é uma lenda de tão boa — concluiu Erickson. — Se não fosse astronauta, levaria algumas garrafas. Como é o nome disso?
Halvorsen soltou uma estrondosa gargalhada.
— O que há de engraçado na minha pergunta? — indagou o comandante.
— O nome! — Até Titus Veever estava rindo.
— Por quê?
Halvorsen enxugou as lágrimas que lhe corriam pelo rosto e torceu as pontas do bigode.
— Um dos primeiros colonos deste planeta descobriu a maneira de destilar esta bebida de uma das plantas que crescem aqui. Fez uma onda tremenda em tomo de sua invenção que, quando nos reunimos para examinar os primeiros resultados, obrigamo-lo a tomar um bom copo. Era tão forte que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Por isso a bebida foi batizada com o nome Archer's Tears.
— As lágrimas do senhor Archer — disse Cliff em tom pensativo. — É um nome bem original.
— E uma excelente bebida — disse Erickson, segurando o copo à frente de Veever, para que o mesmo o enchesse.
Cliff, Hasso e C.O. passaram os trinta minutos seguintes devorando o que restava do bufê, tomando quantidades enormes de bebida e soltando uma quantidade — não menor — de bobagens sobre as belezas do planeta. Comentaram a monotonia do serviço na frota espacial, a recepção gentil que lhes estava sendo proporcionada e as aventuras que os esperavam. Finalmente Cliff deu o sinal.
— Cônsul — disse com a língua pesada. — Tenho a impressão de que já falamos e bebemos demais. Poderia ter a gentileza de levar-nos aos nossos aposentos?
Embora não tivesse bebido menos que Cliff, Halvorsen não demonstrava a menor alteração.
— Terei muito prazer, comandante — disse.
Os outros colonos despediram-se. Halvorsen e Veever foram os únicos que ficaram. Só agora Cliff viu que Veever usava no cinto, extraordinariamente largo e de imitação de couro, uma arma de aparência perigosa, que provavelmente funcionava com gás altamente comprimido. Foi o que Cliff concluiu face aos enormes pentes. Veever e Halvorsen apontaram para um edifício largo e baixo, que ficava a uns duzentos metros em linha reta. O cônsul disse:
— É ali, McLane.
Os astronautas não tiveram necessidade de representar; realmente não se sentiam muito seguros das pernas.
Subiram uma escada suave que os levou cerca de vinte metros acima da superfície do solo. Atravessaram uma rampa em curva que dava para a cobertura de uma casa que servia de plataforma. Depois passaram por outras plataformas, que eram entradas de casas, até chegarem ao terraço que se estendia diante da casa de hóspedes. Duas moças jovens e lindas os aguardavam.
— Estes senhores são McLane, Sigbjörnson e C.O. Erickson — disse Halvorsen, fazendo as apresentações. — Esta é a irmã de Titus Veever; seu nome é Elena. Esta moça é Ivy Cerea.
Cliff e seus companheiros cumprimentaram-nas com uma cortesia exagerada.
— Aguardo todos para um pequeno jantar — disse Halvorsen e olhou para o relógio à prova de água. — Daqui a sete horas exatamente.
— Agradecemos antecipadamente e não deixaremos de comparecer — prometeu Cliff.
— O senhor mandará servir Archer's Tears? — perguntou Erickson, recostando-se pesadamente contra a porta.
— À vontade — asseverou o cônsul. — Caso estiverem interessados em caçadas, excursões pelos pântanos ou atividades semelhantes, Titus será o homem que melhor lhes poderá servir.
McLane segurou a mão do barbudo, apertou-a fortemente e respondeu em tom entusiástico:
— Teremos muito prazer. É o que desejamos.
Titus Veever obrigou-se a esboçar um sorriso sombrio e sua irmã, que também tinha cabelos negros e cuja idade devia ser de cerca de vinte e cinco anos, comprimiu a maçaneta eletrônica e abriu a porta. Os três astronautas receberam três quartos grandes que quase chegavam a ser luxuosos, mas evidentemente estavam guarnecidos com os móveis em série produzidos pela cultura colonial terrana. As moças levaram a bagagem para dentro, desejaram um bom repouso e despediram-se.
Uma hora e meia ja se havia passado em Tareyton.
Cliff McLane abriu a borda larga da bolsa, tirou vários aparelhos, colocou uma célula energética num deles e descansou-o. Parecia uma caixa alongada provida de alguns botões e fendas, sob o disfarce de um alto-falante. Cliff fez uma ligação, e uma música ensurdecedora encheu o quarto. Thomas Peter: "Planet of Thousand Seas." Depois de dezessete compassos, Cliff pegou outro aparelho e comprimiu um botão. Um campo de interferência adaptado aos microfones comuns espalhou-se. Qualquer pessoa que procurasse acompanhar a palestra dos astronautas captaria um ruído terrível, que o faria supor que um aparelho de reprodução mal ajustado provocava o ruído.
— C.O. — disse Cliff, quando a pequena tela do videofone se iluminou.
Erickson estava desfazendo a mala espacial e guardava seu conteúdo num armário embutido. Virou-se, e fez um gesto.
Cliff comprimiu outro número da faixa de controle e entrou em contato com Hasso. Este se acomodara numa poltrona baixa e estava esticando as pernas. Piscou para a tela, identificou o sinal de Cliff e levantou-se. Dali a um minuto, estavam reunidos no quarto de Cliff. Este fez um gesto contrariado e apontou para o aparelho de interferência.
— A esta hora devem pensar que somos uns idiotas perfeitos ou então acreditam que existe algo de terrível atrás de nossa aparição. De qualquer maneira, nós os deixamos confusos. Halvorsen parece ser um sujeito amável e inofensivo — comentou McLane.
Hasso cocou a nuca; parecia indeciso.
— Com exceção do comportamento um tanto sombrio de Titus Veever, realmente parece que tudo está calmo em Tareyton. Até agora não notei o menor indício de consciência pouco tranqüila.
Cliff olhou pela janela, contemplando o espaçoporto que se estendia diante dele. Viu uma nave pesada de transportes levantar um sistema de grossas mangueiras e ligá-las. Era uma nave de um dos dez planetas que vinham suprir-se de alimentos em Tareyton. O disco pairava dez metros acima da periferia do lado oposto do campo de pouso.
— Hoje de noite terei uma boa conversa com o cônsul — disse em voz baixa. — Não acredito que Halvorsen esteja metido num projeto de atentado contra Terra.
Erickson esfregou as mãos e objetou:
— Não se esqueça: não sabemos se por aqui, embaixo da superfície, está sendo tramada alguma coisa. Sabemos apenas que o Centro de Computação chegou à conclusão de que este planeta representa um possível fator de risco.
— E a probabilidade é superior a setenta por cento.
Hasso puxou a HM-4 e deixou que voltasse a escorregar para dentro do coldre.
— Vamos aguardar — disse. — Até agora sempre encontramos exatamente aquilo que procurávamos. Vamos esperar até depois do jantar.
Cliff confirmou com um gesto.
— Devíamos dormir um pouco — disse. — As moças nos chamarão.
— Que bom! — respondeu Erickson. — Sempre desejei uma coisa destas.
— Se você vê o sorriso gelado de Elena Veever, vai desejar uma única coisa: dormir de novo — disse Cliff em tom sarcástico.
— Daqui a seis horas e meia nos encontraremos na sala de estar, de uniforme de gala, sem armas e sem rádio de pulso. De acordo? — perguntou Cliff.
Hasso confirmou com um gesto e retirou-se.
— Enquanto não dormir, darei uma olhada pelos arredores com o binóculo — disse Erickson e também se retirou. Cliff desligou o aparelho de reprodução e o emissor de interferência e deitou confortavelmente no leito. Se alguém os observasse ou escutasse, não teria conseguido nada.
Era meia-noite. Cliff estava de pé ao lado de Halvorsen, junto à amurada da plataforma. Atrás dos dois homens havia luzes, homens e música. Viam-se os pratos e os copos. Ali, em meio à noite planetária, reinava o silêncio. O vento salgado voltou a soprar. A curva gigantesca da lua surgiu no horizonte. Cliff estava bem acordado; durante o jantar quase não bebera. Os dois homens seguravam grandes copos redondos e mantinham-se em silêncio. Este silêncio foi rompido por Cliff.
— Conte alguma coisa sobre o trabalho que está sendo feito em Tareyton — pediu a meia voz.
Halvorsen sacudiu os ombros largos.
— Os homens que trabalham por aqui são de um tipo estranho. O senhor já deve ter percebido. Parte deles vem dos dez planetas que se alimentam principalmente com o trigo-arroz. Uma parte menor vem de Terra. Todos são gente muito estranha. Desprezam a tecnologia enquanto apenas a utilizam. São os verdadeiros nativos deste mundo. É um grupo de gente rude, mas adorável para quem os conhece mais de perto. Tive a impressão de ouvir certa desconfiança em suas palavras, coronel.
McLane fitou o rosto do cônsul.
— Não pretendo representar uma peça para o senhor, cônsul Halvorsen — principiou.
O tom extremamente sério fez com que Halvorsen aguçasse o ouvido.
— Pode falar; estou ouvindo — disse em voz baixa.
— Lá em cima estão estacionadas três naves espaciais — disse Cliff. — Uma delas está ocupada com cientistas e a outra com funcionários do Serviço de Segurança. O Centro de Computação constatou que este planeta representa um perigo para a estrutura econômica do Império.
Halvorsen assustou-se.
— Um perigo para o Império — disse em tom pensativo. — Que espécie de perigo?
Cliff esboçou um sorriso.
— Este detalhe não foi apurado pelo Centro de Computação.
Halvorsen virou-se de modo a ver as portas do salão. Além deles, não havia ninguém no terraço que se estendia dez metros acima do espaçoporto e nove metros e meio acima das águas da maré que recuavam lentamente.
— E os senhores vieram para identificar o perigo?
— Viemos verificar se o Centro de Computação cometeu um erro ou não — retificou Cliff.
— E as três naves?
Cliff tomou um pequeno gole de bebida e respondeu:
— As naves permanecerão em órbita e dirigirão sobre o planeta sistemas gigantescos de lentes, câmeras infravermelhas e não sei mais o quê. Esses aparelhos fotografarão cada metro quadrado da superfície do planeta e interpretarão os resultados. E as naves intervirão implacavelmente se notarem alguma coisa ou se eu as chamar.
Halvorsen ficou calado; parecia abalado. Depois de algum tempo, disse:
— Que diabo!
— Realmente — respondeu Cliff. — Esta palavra caracteriza a situação. Permita uma pergunta. O senhor se considera um homem pertencente a Terra ou a este planeta?
Por alguns segundos, reinou um silêncio constrangido.
— Sou o cônsul de Terra — disse Halvorsen em tom formal.
— Isso constitui uma honra para o senhor — respondeu Cliff. — Sou um homem que gosta de eliminar toda e qualquer espécie de ambigüidade. Por isso quero dizer o seguinte.
"Estou aqui para procurar e para encontrar. Não sei o que vou encontrar; e nem o que vou procurar — comentou e prosseguiu: — Bem, ainda não sei exatamente o que vou procurar. Levá-lo-ei pessoalmente, acorrentado ou preso na câmara fria de minha nave, para apresentá-lo no gabinete do coronel Villa, se constatar que o senhor participa de qualquer ato que seja prejudicial a Terra ou ao conjunto das relações econômicas. Ainda está na hora; se tiver alguma coisa desagradável para contar, não encontrará nenhum amigo igual a mim. Amanhã de manhã será tarde, pois então apenas serei o coronel Cliff Allistair McLane. O que é que o senhor sabe, Halvorsen?
Halvorsen sacudiu a cabeça. Não se saberia dizer se a palidez do seu rosto provinha do susto ou dos raios do luar.
— Não sei de nada — disse. — Se descobrir alguma coisa, farei o que estiver ao meu alcance para dar-lhe apoio.
Cliff parecia satisfeito.
— É uma resposta muito clara.
Mais uma vez Cliff tomou uma porção de Archer's Tears.
— Amanhã iniciaremos a busca — disse. — Cruzaremos os pantanais em companhia de Veever e observaremos tudo. Talvez com isso surja alguma idéia.
— O senhor suspeita de Veever? — perguntou o cônsul.
— Suspeitamos de todos e de ninguém; o senhor é uma exceção — respondeu o comandante.
— Se existe algo de verdadeiro no resultado a que chegou o Centro de Computação, os malfeitores em potencial deverão encontrar-se entre os colonos vindos dos dez outros planetas. O que está pensando, McLane?
— Não estou pensando em nada. Estou à procura de pistas; e até agora nunca deixei de encontrá-las quando as procurei. Minha tática consiste em deixar o inimigo nervoso, para fazer com que se traia através de uma reação inadequada.
— Muito bem. Quer dizer que continuaremos a representar os nossos papéis? — perguntou Halvorsen em tom pensativo.
Cliff soltou uma risadinha.
— Isso mesmo. O senhor fará o papel do cônsul abobalhado que não quer saber de nada além da bebida e das caçadas, enquanto nós bancaremos os astronautas ávidos de aventuras, para os quais qualquer planeta é uma área de piquenique.
Halvorsen levantou-se bebeu o conteúdo e atirou o copo para trás.
— O senhor goza de minha confiança integral, coronel — disse em voz baixa. — Amanhã de manhã organizarei uma caçada. Fique com os olhos bem abertos e arranje uma possibilidade de entrar em contato com as naves.
Cliff contemplou a lua, que crescia cada vez mais, mergulhando a fileira recurvada de construções numa luz quase fosforescente.
— Pegue um simples rádio de pulso, desde que o mesmo transmita pela nova faixa da frota. Está garantido contra a escuta indevida. Diga que quer falar com Tamara Jagellovsk em meu nome e diga-lhe que eu lhe contei que ela tem um sinal redondo de cerca de três milímetros de diâmetro na omoplata esquerda. Entendido? Halvorsen sorriu.
— Seus conhecimentos anatômicos são surpreendentes — disse. — Pode estar aqui amanhã às sete da manhã? Mandarei levar roupas de caça à casa de hóspedes.
— Estaremos aqui — prometeu McLane.
Antes de despedir-se e ir ao quarto antes dos companheiros, absorveu o panorama do planeta em sua mente. O cheiro de água, plantas úmidas e sal, a gigantesca lua branca, o junco e a periferia redonda e molhada do espaçoporto, os tanques esféricos debilmente iluminados e as janelas luminosas. Valeria a pena tramar um atentado contra o Império por causa de um planeta como este? Sacudiu os ombros. Não sabia.
Os três planadores de pântano aguardavam entre os suportes de aço da casa de Halvorsen. Eram veículos versáteis semelhantes a barcos e com o formato de uma casca. Estavam ocupados com três cilindros de ar que podiam ser escamoteados. Cada cilindro funcionava através de um motor potente. Um deles era móvel e servia de leme. A parte dianteira tinha o formato de cabine. As instalações técnicas eram simples, mas abundantes. Dois jatos fortes garantiam a locomoção na água ou no pântano. O zumbido dos motores enchia o ar como o ruído de um enxame de insetos enfurecidos. Halvorsen esperava entre os deslizadores; falava ininterruptamente.
— Comandante, o senhor irá com Titus — disse em voz alta. — Os outros cavalheiros poderão ocupar este deslizador. Acho que devem separar-se, pois com isso a aventura será muito maior. Cuide bem dos astronautas, Titus. Entendido?
Veever resmungou algumas palavras incompreensíveis. Hasso, Erickson e Cliff tinham um aspecto bastante estranho. Usavam botas compridas apertadas acima do joelho, calças de linho grosseiro e jaquetas leves e curtas com muitos bolsos. Um cinto largo abrigava os pentes das armas de gases. As facas e outros instrumentos, munições e os mantimentos estavam empilhados nos compartimentos de carga dos barcos.
— Três dias! — disse o cônsul em tom nervoso. — Se acontecer alguma coisa, usem o rádio dos deslizadores. Neste caso, iremos buscá-los com nosso helicóptero.
— Podemos partir? — perguntou Titus em voz alta.
A perspectiva de caçar nos pantanais e impressionar os homens do espaço parecia melhorar consideravelmente sua disposição. Fumava um grosso charuto fedorento.
— Podem. Voltem sãos e salvos — gritou Halvorsen.
— Enquanto isso o senhor pode preparar outra festa — disse Erickson. — Com muito Archer's Tears.
— É o que faremos — prometeu o cônsul.
O primeiro deslizador partiu. Os três cilindros, ocultos sob as chapas de proteção amarelas, giravam vertiginosamente e arrastaram a "casca" para a frente. Um colono dirigia o veículo. Estava sentado numa poltrona de aço, cerca de um metro acima da popa, e movia uma alavanca de finalidade múltipla, que servia para dirigir, acelerar, frear ou girar o barco.
Boa parte das terras, situadas entre as margens redondas dos numerosos mares, ficava em nível mais baixo que as outras terras, motivo por que sempre eram pantanosas. Milhões de animais viviam nesses pantanais. Titus e Cliff pretendiam caçar a vinte quilômetros ao sul da Grande Laguna. Os oceanos do planeta Tareyton continham menos sais e minerais dissolvidos que os mares terranos. Suas margens assumiam importância não apenas para as culturas de trigo-arroz, mas também para a caça. Cliff notou o entusiasmo que se estampava no rosto dos colonos e percebeu que se tratava de um povo de caçadores, não de colhedores de cereais. Esse fato poderia assumir certa relevância.
— Alô! — gritou Erickson, levantando a espingarda de pressão de cano comprido acima da cabeça.
— Boa sorte! — gritou Cliff.
O deslizador que levava Erickson afastou-se. Titus Veever também acelerou. Seguiu quase em linha reta para o sul. Sentado no centro do deslizador, Cliff contemplava a paisagem através dos óculos escuros. Apesar da tensão, sentia uma certa leveza e emoção. Dali a alguns minutos, os juncos fecharam-se atrás deles.
— Atenção — disse Titus. — Vou encolher os cilindros.
Parou o deslizador, e a embarcação sem quilha caiu à água. A área parecia a margem gigantesca de um lago terrano, situado numa área de reserva biológica. Os motores auxiliares zumbiram e colocaram os cilindros pouco acima da borda do deslizador. Ofereciam proteção adicional no caso de colisão. Eram feitos de plástico resistente. Os jatos chiavam e empurravam o barco pela água, através das florestas de junco.
Os dois homens mantinham-se em silêncio. Depois de algum tempo Veever tirou uma garrafa do bolso da jaqueta, sacou a rolha e tomou um bom gole.
— Ei, o senhor! — disse a meia voz.
Cliff virou-se, levantou os braços e pegou a garrafa. Sorriu e também bebeu um gole.
— Isso é bom para o resfriado. O junco é frio e úmido — disse Titus um pouco mais amável.
Não havia a menor dúvida, para ele, os astronautas eram palhaços fáceis de alegrar e ainda mais fáceis de impressionar. A comédia representada por Cliff e seus companheiros fora coroada de pleno êxito.
— Obrigado — disse Cliff, respirando profundamente. A bebida forte parecia queimar sua garganta.
Dali a mais dez minutos a garrafa já estava pela metade. Titus parou o deslizador. Desceu do assento do piloto e sentou ao lado de McLane no banco largo de encosto. O sorriso que cobria seu rosto assumiu uma expressão significativa quando começou a falar:
— O senhor já atirou com uma espingarda de pressão de gás, astronauta?
Cliff esboçou um sorriso encabulado e disse, dando intencionalmente um tom inseguro à voz:
— Sabe de uma coisa. Titus? Acho que não devemos adotar um comportamento tão formalista no interior deste veículo. Passaremos juntos mais de setenta e duas horas, e tenho certeza de que seremos bons companheiros.
Titus fitou-o prolongadamente. Cliff teve a impressão de que havia uma expressão de dúvida em seu olhar. Por fim, fez um gesto afirmativo.
— Está certo — disse. — Seu nome é Cliff, não é?
— Sim, Titus — respondeu Cliff.
— Então; sabe atirar? — perguntou Titus.
— Só com as armas das naves espaciais, as peças de artilharia Overkill e a HM-4 — disse Cliff. — Será que o senhor pode ensinar?
— Isso será indispensável.
A espingarda de pressão pertencente à coleção pessoal do cônsul possuía um cano relativamente longo e um pente pesado embutido na coronha. Além disso, havia um recipiente de alta pressão com gás. O pente carregado de projéteis em forma de agulha ficava diante do botão de acionamento. A coronha era de plástico, pesava bastante e apresentava um enfeite de imitação de madeira. Sobre o cano estava montada uma mira telescópica com um grau enorme de aumento.
— O senhor deve apertar este botão — disse Titus, segurando a espingarda sobre o joelho, enquanto o cano apontava para cima. — Com isso um projétil é injetado na câmara. As agulhas de caça estão impregnadas de veneno paralisante de ação rápida. O animal é imobilizado e fica inconsciente durante vários dias. Dessa forma, a carne não estraga.
Cliff pegou a arma e comprimiu o botão que ficava diante do acionador. Ouviu um forte estalido, Uma das agulhas foi injetada na câmara.
— Continue!
Titus pegou sua arma e apontou com a mesma para uma árvore parecida com um salgueiro, bem à frente do deslizador.
— Aponte bem, acompanhe o alvo na medida do possível e aperte aqui. A força de recuo é mínima.
Cliff levantou-se; o deslizador balançou um pouco.
— Tem algum alvo? — perguntou. Titus enfiou dois dedos sujos na boca e
soltou um assobio estridente e trêmulo.
Duas aves aquáticas negras levantaram vôo a sessenta metros de distância. Bateram violentamente as asas e ganharam altura. Afastaram-se em direção ao leste.
— Procure acertar na ave da frente — disse Titus em tom áspero.
Cliff seguiu o vôo da ave com o cano da arma, fez pontaria e apertou o gatilho. O pássaro que voava à frente estremeceu, perdeu altura e, batendo violentamente as asas, caiu quase na vertical. Cliff virou-se e num espanto surpreendentemente genuíno perguntou:
— Será que é assim?
Uma expressão de espreita inconfundível surgiu no rosto barbudo do colono.
— Ora essa! — disse em tom de espanto. — O senhor sabe blefar!
Cliff sacudiu a cabeça e descansou a arma.
— Palavra de honra, Titus — disse em voz baixa. — Até hoje nunca segurei uma arma deste tipo. Talvez seja porque os homens do espaço recebem um treinamento muito intenso. Não estou blefando. Às vezes, um principiante costuma ter mais sorte que um perito.
Titus sacudiu a cabeça.
— É incrível — disse, voltando ao assento do piloto. — Vamos buscar a ave.
Cliff sentou. O deslizador saiu com um zumbido. Cortava os juncos. Dentro de dois minutos chegaram ao lugar em que a ave de rapina caíra. Cliff fez o deslizador descrever uma curva fechada e parou diante de um torvelinho borbulhento em meio a uma clareira nos juncos.
— Está vendo? — perguntou em voz baixa.
Cliff empurrou os óculos para a testa e procurou enxergar melhor.
— São peixes?
— Sim; peixes de rapina.
Entre algumas moitas de junco e um pedaço de madeira branquicenta e de aspecto estranho, peixes longos e esguios arrancavam e devoravam os restos da ave de rapina. Na sua fúria, pareciam-se com as piranhas terranas, mas eram dourados e traziam grandes manchas azuis em torno dos olhos. A água estava avermelhada e os animais pareciam possuídos de uma fúria tresloucada.
Titus perdeu a superioridade e assumiu um ar sério.
— A primeira regra que o senhor deve seguir em Tareyton é a seguinte: nunca entre na água sem estar protegido. Estas botas forradas são as únicas que resistem aos dentes dos peixes de rapina. Costumamos chamá-los de peixes dentuços. Dentro de poucos segundos, conseguem despedaçar um dedo e mesmo um braço. Durante as primeiras semanas de colonização tivemos alguns casos difíceis para nosso cirurgião. Tome cuidado, Cliff. Não saia do deslizador. E não se esqueça: estas aves negras são selvagens e agressivas como os peixes.
Cliff acenou com a cabeça sem dizer uma palavra e pôs a mão na pistola de pressão de gás que se encontrava no cinto. Titus voltou a apontar sobre o torvelinho espumoso que se tornara menor.
— Sempre que tenha que atirar para dentro da água, lembre-se da refração da luz.
— Pois não.
Os dois homens olharam-se. Desconfiavam um do outro, mas procuravam minimizar esse sentimento. Sabiam que, atrás do aspecto exterior, alguma coisa diferente se escondia. Os três dias seriam passados num jogo cansativo de procurar enxergar através desta "máscara". Cliff pensava em atentados em potencial, enquanto Titus provavelmente tinha seus pensamentos voltados para agentes secretos de Terra.
"Talvez", pensaram os dois, "haja algo de verdade nisso".
Os próximos dias mostrariam.
— O que deseja ver, Cliff? — perguntou Titus depois de algum tempo.
Cliff deu de ombros.
— Quero ver tudo que existe por aqui. Além da caça, estaria muito interessado em conhecer seu trabalho. Sinto-me fascinado por este tipo de cultivo e pela maneira de fazer a colheita.
Titus cuspiu para dentro da água o resto do seu charuto babado e olhou com algum interesse, quando um dentuço pegou uma folha e saiu em ziguezague, seguido furiosamente por alguns exemplares menores de sua raça. Virou o deslizador, olhou ligeiro para o sol e disse em tom arrastado:
— Está bem. Eu o levarei à margem oriental da Laguna Setecentos e Dez.
Cliff franziu a testa e perguntou imediatamente:
— O que vem a ser isso?
O deslizador atravessou a água, levantando uma onda de espuma à sua frente, escorregou por cima de um trecho de pântano malcheiroso e desapareceu num dos braços de água rasa.
— Em Tareyton existem cerca de mil mares desse tipo. Se preferirmos, podemos dizer que o planeta é formado por um único oceano cujos setores são separados por estreitas faixas de terra. Não conseguimos encontrar nomes para os mares, motivo por que começamos a numerá-los. Um dos maiores desses mares, que por algum motivo desconhecido são quase todos circulares, recebeu o nome de Laguna Setecentos e Dez.
— Isso não deixa de ter sua lógica — respondeu Cliff.
Durante uma hora e meia atravessaram a paisagem à velocidade máxima. O calor e o cheiro de água salgada aumentavam constantemente. Cliff começou a transpirar e abriu a camisa fina. O colono dirigia o deslizador com uma segurança de sonâmbulo. Passou em ziguezague entre várias ilhas e desviou-se de troncos flutuantes. Um zumbido vindo da frente aumentava gradativamente.
— Que ruído é este? — perguntou Cliff em voz alta.
— É a colhedeira gigante. Temos que prestar atenção para não cruzarmos o caminho de um dos transportadores robotizados, que não foi programado para este tipo de obstáculo.
Cliff falou alto:
— Isto é com o senhor, Titus.
Titus riu e, enquanto dirigia, acendeu um dos seus charutos fedorentos.
— Quer dirigir um pouco?
— Mais tarde talvez — gritou Cliff e segurou-se, pois a casca de plástico escorregou por uma costa relativamente íngreme.
Dali a alguns minutos, o braço de mar alargou-se e uma coisa, parecida com gramas altas, boiava na água. O deslizador abriu caminho que nem um arado. O braço de mar abriu-se num triângulo, cujo lado mais largo dava para a Laguna Setecentos e Dez.
— Com os demônios!
A voz de Cliff exprimia o espanto que sentia.
— Semeamos e colhemos várias vezes por ano — disse Titus em tom indiferente. — Aquilo cresce sem adubação e sem qualquer espécie de cuidado no fundo da laguna. Quando a planta está madura, a parte mais leve se desprende da raiz e sobe à superfície. O vento e as marés reúnem tudo. E esta "caixa" engole o produto.
A máquina para a qual Titus usara uma expressão tão depreciativa constituía uma instalação como Cliff nunca vira igual. Flutuava sobre certo número de sacos de plástico esféricos e continha uma usina energética e um computador com uma programação bastante extensa. Identificava a mercadoria flutuante, aspirava-a por uma fenda gigantesca e separava o trigo-arroz da água. Depois secava o produto e retirava os grãos das espigas capazes de flutuar. As espigas se pareciam com cachos cheios de pequenos balões. A seguir tinha início um processo bastante complicado.
— Aquilo são os transportadores robotizados — disse Cliff.
Uma máquina negra construída segundo o mesmo princípio do deslizador puxava um gigantesco recipiente de plástico cheio de massa viscosa.
— Isso mesmo; este negócio está arrastando os carboidratos — constatou Titus.
— Como?
O colono explicou. O processamento químico separava os componentes do trigo-arroz. Os hidratos de carbono, que perfaziam cerca de setenta por cento, eram extraídos do resto. A proteína, que chegava a cerca de doze por cento do total, era levada a tanques esféricos através do mesmo processo e dali era bombeada quase que automaticamente. As medições constantes impediam as trocas de materiais e providenciavam as misturas destinadas a evitar variações excessivas na qualidade. As substâncias minerais, cuja participação no total era pouco superior a três por cento, eram carregadas por máquinas menores, e a mesma coisa acontecia com o reduzido teor de gordura. As fibras eram expelidas pelas máquinas, boiavam por algum tempo e iam ao fundo, onde formavam uma espécie de adubo vegetal. O sal obtido no processo também era recolhido em depósito e expedido para vários planetas.
— Como é feita a semeadura? — indagou Cliff.
— Utilizamos máquinas. Um aparelho finca os grãos no fundo do mar — disse Titus.
A programação das numerosas máquinas estava muito bem ajustada. Por vários condutos corriam os diversos alimentos, ou melhor, as variadas substâncias nutritivas trazidas pela água. Cada unidade conhecia apenas seu bocal, ligava-se automaticamente e aguardava o sinal da indicação de complementação do processo, que era inteiramente automático. Após isso as válvulas se fechavam, os robôs deslizavam e flutuavam em direção aos tanques e o processo se repetia dia após dia, ano após ano.
— Com exceção de algumas áreas cobertas de juncos e umas poucas árvores, o planeta foi transformado num campo de cultura aquático — disse Titus num tom que quase chegava a ser de recriminação.
Cliff recostou-se e fitou o colono.
— Ao que parece o senhor não vê nada de interessante nestes processos — disse, esforçando-se para que a pergunta não soasse como uma queixa.
Titus sacudiu a cabeça.
— No início, quando as instalações foram montadas e ajustadas, ainda havia um certo prazer nisso. Agora a coisa está funcionando. E, como o senhor mesmo teve oportunidade de ver, não há nada de interessante nisso.
Cliff sorriu.
— Pode não ser interessante para o senhor, mas acho que é para os planetas que dependem dos mantimentos produzidos aqui — disse a meia voz.
Titus deu de ombros e deu uma cuspidela na água.
— Está bem — murmurou. — Mas o que vamos fazer? Ficar parados, admirar estes idiotas metálicos e viver dizendo: Como isso é fascinante? É o que o senhor quer dizer?
— Ora essa! — disse Cliff, sacudindo a cabeça. — Do funcionamento dessas máquinas, além de outros fatores que influem nas mesmas, como a temperatura e as condições atmosféricas, depende a vida de milhões de seres humanos, que morrerão de fome se isso não funcionar.
— Acontece que isso funciona. Os tecs cuidam disso.
Cliff franziu a testa e perguntou:
— Quem? Não compreendi. O que vêm a ser os tecs?
— São dez mil técnicos vindos de Terra, que vivem conosco — disse Titus. — Halvorsen é um deles.
Uma suspeita foi surgindo na mente de Cliff.
— O que vou dizer pode parecer uma pergunta tola — disse. — Será que estarei certo se disser que cerca de vinte mil colonos deste planeta vêm dos mundos circundantes e uns dez mil de Terra? E estes dez mil não devem ser muito amigos do senhor e de seus companheiros, não é, Titus?
Titus acenou lentamente com a cabeça.
— Isso mesmo. Parece que nos desprezam. Não compreendem que a gente se possa ocupar com outra coisa que não seja o reparo de máquinas. Não são verdadeiros tareys.
Cliff compreendia cada vez melhor. Havia um conflito artificialmente criado, ou resultante das circunstâncias, entre os tecs e os tareys? Esta última palavra designava os verdadeiros nativos de Tareyton, na expressão de Halvorsen.
— Por que será?
— É porque os tecs vêm da Terra. São homens e mulheres arrogantes, para os quais não passamos de loucos.
— E os três astronautas que acabam de pousar no planeta também pertencem a essa classe?
Cliff sabia que, ao formular esta pergunta, mexera numa casa de marimbondos.
— Não é bem isso. O senhor se interessa pela caça; até sabe atirar.
Face aos modos lacônicos do colono, essas palavras representavam o reconhecimento de uma afinidade espiritual. Cliff poderia ficar um tanto convencido, mas suas suspeitas haviam sido atiçadas. Nos próximos três dias, ficaria com os olhos bem abertos.
— Até sei atirar — disse. — E sei fazer mais alguma coisa.
— Bem — retrucou Titus Veever em tom conciliador. — Não leve a coisa para o lado pessoal. O fato é que Terra e este grupo de dez planetas, ou de onze, se incluirmos Tareyton, não têm nada em comum.
— Não têm nada em comum? — perguntou Cliff, falando alto para superar o ruído das turbinas. — Afinal, os habitantes destes planetas são seres humanos que saíram de Terra há alguns séculos, ou mesmo há alguns decênios ou anos. Somos todos irmãos.
O tarey exibiu um sorriso impertinente enquanto respondia:
— Até nas melhores famílias há encrencas.
Cliff não soube o que responder: o colono estava com a razão. Nas melhores famílias ocorrem atritos que podem encontrar seu desfecho em irrupções destrutivas. Agora já sabia em que direção deveria desenvolver suas buscas, e em que termos teria de elaborar seus planos.
— Para onde vamos? — perguntou, segurando-se no deslizador que jogava violentamente.
— Vou mostrar-lhe uma colônia de aves de rapina.
Voltaram na mesma direção de onde tinham vindo. Atrás deles, foi diminuindo o zumbido da enorme máquina que boiava pela beira da laguna, onde procurava, encontrava e preparava alimentos para milhões de seres humanos. Era a máquina colhedeira. Uma entre novecentas e noventa e três. Trazia o número 710.
Cliff Allistair McLane, comandante da Orion VIII e coronel, chefe de uma missão especial da nova Patrulha Espacial, parecia muito pensativo quando o deslizador corria vertiginosamente entre os bosques de junco, aproximando-se da colônia de aves de rapina. O sol de Tareyton dardejava seus raios quase na vertical. O rosto de Cliff estava coberto de suor. Ao lembrar-se das possibilidades que o planeta oferecia em caso de conflito, sentiu um calafrio, apesar do calor.
Estavam nas primeiras horas da manhã. Entre Cliff e Titus realmente se desenvolvera alguma coisa parecida com o companheirismo. Durante a longa viagem para a colônia de aves de rapina, ambos se mantiveram em silêncio. Agora, enquanto estavam comendo, conseguiram aproximar-se mais um pouco. Entre os dois homens estavam estendidas as embalagens com a refeição. Eram conservas de carne que se aqueciam automaticamente quando se abria a tampa. Café preto e forte, que se aquecia pelo mesmo princípio. Uma garrafa de Archer’s Tears. Dois facões foram usados como talheres. Titus mastigava em silêncio, espetando pedaços enormes de queijo sintético. Veever reclinou-se e disse com a voz confusa:
— É uma vida agradável, não é? Cliff sorriu.
— Mais ou menos — disse. — O que me incomoda é o risco que terei de correr se resolver nadar por aqui. E neste momento bem que anseio por um metro cúbico de água fresca.
Titus atirou uma lata quase vazia para a água. No mesmo instante surgiu um dos torvelinhos que já conheciam. Os peixes esguios saltavam para o ar ao tentarem abocanhar um pouco dos restos de comida. Seus corpos emitiam um brilho dourado. Ouviu-se um bater de asas, e uma ave negra caiu do ar que nem uma pedra.
— Quer atirar? — perguntou Titus em tom indiferente.
— Não; prefiro observar.
O pássaro controlou a queda pouco acima da superfície da água, ficou parado por alguns segundos, batendo as asas e finalmente cravou as garras num dos peixes dentuços. O animal defendeu-se: seu corpo tremulava e girava. Procurava morder o pescoço ou as asas do pássaro. A ave de rapina afastou-se vagarosamente. Permaneceu no ar até que o peixe estivesse morto. Depois disso, desenvolvendo um instinto admirável, prendeu o peixe na bifurcação de dois galhos e começou a rasgá-lo em faixas. Cliff já parará de comer; pegou o caneco de plástico com o café.
— Nunca vi uma coisa dessas — disse. Titus fez um gesto.
— Talvez ainda cheguemos a ver estas aves caçarem um boi. É o nome que damos a esse tipo de animal, embora seja um absurdo.
— O quê? As aves chegam a caçar um boi?
Titus tirou um magazine cheio de agulhas do cinto e inseriu-o na arma. Controlou cuidadosamente o funcionamento da espingarda de pressão de gás.
— Isso mesmo. É a quantidade.
Cliff guardou sua parte nas reservas de mantimentos e também se reclinou. A uns duzentos e cinqüenta metros do lugar em que se encontravam, havia um dos raros bosques deste planeta. Ao menos, quinhentas aves de rapina negras estavam sentadas nos ninhos esféricos ou em torno destes. Pareciam flores ou frutos estranhos, pois mal se mexiam sob o intenso calor.
— É o que acabo de dizer. Dezenas de aves se reúnem, escolhem um dos animais parecidos com um boi e atacam-no com os bicos e com as garras. O animal fica nervoso, sai correndo e acaba atravessando os juncos. A seguir, uma das aves lhe arranca os olhos. Quando isso acontece, o fim está próximo. Então, o animal é devorado ainda com vida.
Cliff estremeceu. Tareyton era um planeta selvagem, mas nunca imaginaria que fosse tão selvagem assim. Estava percebendo o erro que ele e seus colegas haviam cometido.
— Ei, está sonhando?
— Estou. Lembrei-me de nossa mãe-terra, quase estéril e livre de perigos, e da vida que levamos por lá.
Um sorriso de desprezo surgiu no rosto de Titus.
— Qual é o tipo de vida que lhe agrada mais? A que estamos levando aqui ou a que levam em Terra?
— Gostaria de misturar os dois estilos de vida, de uma coisa intermediária entre a vida em Terra e a que se leva em Tareyton.
Titus colocou o pesado binóculo diante dos olhos e espiou os ninhos.
— As aves estão muito nervosas — murmurou. — Essa coisa intermediária de que o senhor acaba de falar não existe. Terá que ser Terra ou Tareyton.
— Qual dos dois o senhor escolheu, Titus Veever?
Veever respondeu sem demonstrar a menor comoção, sem modificar a expressão do rosto:
— Minha escolha é cem por cento a favor de Tareyton — depois de uma ligeira pausa acrescentou: — Seria capaz de morrer por Tareyton, segundo acredito.
Cliff acreditou. Também começava a sentir o fascínio deste mundo descontraído.
— As aves estão muito nervosas. Provavelmente nos viram ou ouviram.
Cliff olhou pelo binóculo e viu que as mais robustas entre as aves de rapina se mexiam, abriam os bicos duros e recurvados, limpavam as pernas, abriam e fechavam as asas.
— O que farão essas aves negras?
— Não sei dizer. Quando estão chocando, ficam loucas.
— Será que estão chocando?
— Talvez.
Cliff destravou sua arma manual e voltou a guardá-la. Não gostava de assumir riscos. Subitamente as aves levantaram vôo. Pareciam formar uma nuvem ameaçadora. Afastaram-se em sentido oposto ao em que se encontravam os dois homens, batendo ruidosamente as asas.
— Também nunca vi uma coisa dessas — disse Titus. Cliff seguiu a nuvem com os olhos e os pensamentos dele resumiam-se nestas palavras: A nuvem simbolizava suas idéias. E essas idéias giravam em torno da noção do perigo.
MAIS uma vez, surgiu o quadro que prendia o homem de maneira tão forte. Cliff experimentou-o com os cinco sentidos.
Ouviu os ruídos, cheirou o ar salgado, sentiu a sujeira que cobria seus dedos, o cansaço que lhe doía até os ossos, via a gigantesca lua. Haviam deitado para trás o encosto largo, preparando duas camas. Os dois homens tentaram dormir sob a coberta leve. Cliff dobrara a jaqueta, colocando-a embaixo da cabeça.
— Silêncio! — cochichou Titus. Moveu-se rapidamente e sem o menor ruído, que nem um gato. Cliff ergueu-se e pegou a arma manual.
— O que houve?
Titus passou ligeiro por cima dele, correu sobre a cabine e girou o holofote. Com um estalo, Cliff destravou a arma. Atrás dele, o colono ligou o holofote de proa. A luz branca mergulhou os galhos da árvore numa claridade ofuscante. De repente, ouviu-se um ruído em cima dos dois homens, ruído que Cliff ainda não conhecia. Nunca o ouvira tão nitidamente e tão próximo. Na luz do holofote, o coronel viu uma das aves de rapina, que se precipitava pelos galhos que nem uma flecha. Partia para o ataque com as garras e com o bico. Com um chiado descarregou a pistola de pressão de gases. A ave caiu à água a um metro e meio do barco. Em meio ao ruído das asas e do grasnado das aves, ouviu o grito de Veever.
— Estão atacando! São as aves!
O deslizador descansava na água, ao lado de um tronco de árvore. O espaço vazio que se abria entre a água e a folhagem estava totalmente iluminado. Por entre os galhos, Cliff viu o disco gigantesco da lua, que parecia uma roda imensa a rolar pela linha do horizonte. Diante da lua, a nuvem de aves de rapina encontrava-se em movimento ininterrupto. Girava sempre e algumas destacavam-se do bando, precipitando-se diretamente sobre o deslizador. Mais uma vez, McLane fez pontaria e disparou. O funcionamento da pistola era quase totalmente silencioso; apenas emitia um ligeiro chiado.
— Atire para salvar a vida! — disse Titus.
Soltou a chave do holofote, voltou para o banco largo e ficou de costas para Cliff. As aves caíam por entre os galhos como se fossem pedras, dobravam as asas e atacavam. Titus atirava com a espingarda encostada aos quadris. Atirava ininterruptamente e sempre acertava.
As penas voavam, pancadas eram desferidas com o bico, as garras procuravam cravar-se na carne, e os pássaros emitiam sons roucos. Cliff preferiu não olhar para trás; poderia ser ofuscado. Apontava e atirava, derrubando uma ave de rapina atrás da outra. Tirou a faca e liquidou duas que o atacavam de lado.
Pelo canto do olho, Cliff percebeu que o colono usava uma tática estranha. Atirava na direção das aves quando essas entravam no campo de visão. Quando se aproximavam demais, abatia-as com o cano comprido da arma de pressão. O pântano e a água parecia ferver em torno do deslizador. A espuma sanguinolenta, as penas e os corpos dourados dos peixes uniam-se num torvelinho vertiginoso e mortal.
— Vamos fugir! — exclamou Cliff. Titus tomou impulso, fez girar a coronha de sua arma e num só movimento abateu algumas aves. A arma quase chegou a roçar na cabeça do comandante.
— Bobagem!
Cliff confirmou com um gesto, puxou o dedo e atirou duas vezes em seguida. Duas aves de rapina que pareciam realizar uma dança insensata à luz do holofote caíram inermes sobre a embarcação.
— Por quê? — gritou Cliff.
A arma que segurava na mão estava vazia.
— Aqui estamos protegidos. Por que não está atirando?
Titus atirava com a arma apoiada nos quadris, pôs a mão para a direita e atirou uma pistola para Cliff. Este apanhou-a no ar, girou e liquidou dois atacantes. Depois, houve alguns segundos de sossego.
— Lá fora estaríamos em campo aberto — disse Veever, contemplando Cliff que, numa pressa febril, trocava o magazine e o recipiente de gás da arma vazia. — Até eu nunca vi uma coisa destas.
Duas aves de rapina aproximaram-se e atacaram imediatamente. Cliff liquidou uma delas e Titus a outra.
— Agora já as conhecemos — disse Cliff.
— Devem estar loucas — disse Veever, apontando para a frente.
Cliff olhou para cima.
Diante do círculo claro, o bando ainda pairava no ar. Parecia uma "calça-bombacha": era afunilada e ameaçadora. Subitamente fez-se o silêncio: o bater e o farfalhar das asas nas imediações do deslizador cessara. O quadro continuava a ser ameaçador. Mas os corpos escuros, que se moviam diante deles, pareciam concentrar-se sobre outro objetivo. Titus foi para a parte dianteira do deslizador e desligou o holofote, depois que seu pé empurrara para a água ao menos vinte aves inconscientes.
— Provavelmente hoje de tarde desrespeitamos a distância de segurança — disse Veever. — Pois as aves só costumam atacar isoladamente ou aos pares.
Cliff enxugou o sangue do rosto. Trazia arranhões profundos na testa e ao lado das orelhas.
— Afinal, é a grande aventura — murmurou em tom mordaz. — Não esperava tanto.
Titus soltou uma risadinha e tirou a garrafa de Archer's Tears pela metade que trazia no bolso. Olhou cuidadosamente em torno, não viu nada de suspeito e tirou a rolha da garrafa.
— Fico satisfeito em ver que o senhor tirou algum proveito da excursão, Cliff — disse. — Terá alguma coisa a contar em Terra.
Só agora Cliff notou...
Titus, que era responsável por ele, lutara apenas por sua própria vida, mas pouco se preocupara pela de Cliff. Devia pensar que este saberia cuidar de si, ou então não se importaria se o comandante fosse ferido. As coisas estavam ficando cada vez mais misteriosas.
— Se retornar com vida, terei alguma coisa para relatar — respondeu Cliff em tom lacônico.
Procurou ver o rosto de Titus, mas este manteve a cabeça na sombra. Depois de algum tempo, Veever tomou uma decisão.
— Vamos dar o fora — disse. — Não confio nestes pássaros pretos.
Segurou a pistola, encostou a espingarda ao assento do piloto e subiu ao mesmo. Empurrou cautelosamente os galhos para o lado, ligou as turbinas e girou o deslizador quase em torno de seu próprio eixo. A casca de plástico entrou na água aberta e ganhou velocidade. Veever tomou a direção oeste. Cliff limpou o barco e viu que um cardume de peixes dentuços os seguia. Sempre que uma das aves caía à água, formava-se um torvelinho. A ave era estraçalhada pelos peixes. Diante do disco lunar, ainda girava um grupo. Já era menor e mostrava falhas; muitas haviam sido vitimadas durante os ataques.
— Titus — disse Cliff, segurando a espingarda sobre os joelhos. — O que vamos fazer?
— Procuraremos outro lugar em que possamos dormir — disse o tarey. — Ou será que faz questão absoluta de morrer hoje de noite?
Cliff não sorriu quando respondeu:
— Não quero morrer hoje de noite, nem nos próximos dias. Aonde vamos?
— Para a frente — resmungou Veever. — Por lá existe um bosque denso, cujas raízes mergulham na água. Nesse lugar, provavelmente teremos sossego.
Cliff apontou para a lua e para o bando de aves. Um número cada vez maior concentrava-se sobre um objetivo que ficava próximo ao solo. Ouviu-se um grito agudo; não era a voz de um homem.
— As aves estão caçando um boi — murmurou Titus. — Quer assistir ao espetáculo?
Cliff sacudiu a cabeça e estremeceu.
— Para mim o ataque sofrido por nós já basta.
— Era o que eu imaginava.
O deslizador encontrava-se num canal ladeado por verdadeiras muralhas de junco, nos quais as marés haviam deixado sua marca: faixas reluzentes de umidade e pequenos objetos flutuantes presos aos caules. Ouvia-se apenas o ruído além do canto das duas turbinas e dos gritos agudos vindos da esquerda.
— E assim que um boi muge — disse Titus — quando está sendo atacado pelas aves.
Cliff não respondeu. De uma hora para outra, a caçada transformara-se numa aventura de verdade.
Depois de mais meia hora de viagem, durante a qual eram acompanhados constantemente pelos gritos agudos dos animais semelhantes aos bovinos, chegaram à floresta. Era um conjunto de árvores cujas raízes aéreas formavam um desenho bizarro. Entre a floresta e os juncos havia uma área pantanosa traiçoeira, formando um círculo de cerca de trinta metros de diâmetro. O canal de navegação serpenteava em meio à mesma. Veever ligou o holofote por um instante, executou alguns giros para iluminar a área e prosseguiu na viagem.
— Aqui estaremos seguros — disse. Cliff travou a espingarda e guardou-a.
Tirou as botas compridas e retirou um recipiente de plástico de uma das gavetas de mantimentos. Pôs a mão acima da borda do deslizador, encheu o recipiente de água e derramou-a sobre a parte dianteira do veículo.
— O que está fazendo? — perguntou Veever.
— Se não lavarmos o sangue e as penas, não conseguiremos dormir de tanto fedor — respondeu Cliff. — Além disso, suponho que o cheiro será capaz de atrair aves, insetos e outros bichos.
Titus soltou uma estrondosa gargalhada.
— O senhor é um escoteiro de verdade — murmurou e desligou as turbinas. O deslizador avançava lentamente entre dois troncos e ficou imprensado. Os cilindros de plástico proporcionaram um molejo ao tocarem a casca áspera das raízes aéreas.
— Sim. Sou um escoteiro muito esquisito — respondeu Cliff. — Está ouvindo os gritos?
Veever deixou-se cair sobre o banco que ficava no centro do barco.
— Não sou surdo — respondeu.
— Estão ficando mais fortes — prosseguiu McLane.
— Devem ser as aves que estão tangendo uma manada pelo pântano. Não vejo nada.
Cliff levou dez minutos para remover os sinais do ataque. Limpou as mãos numa toalha de papel. De pé no deslizador, Veever olhou cautelosamente em torno. Não viu nada, mas os gritos ininterruptos caíam sobre os nervos dos dois homens. Cliff respirou profundamente e pôs-se a refletir. Ao que parecia, Titus resolvera ignorar o companheirismo que costuma reinar entre os caçadores. De uma hora para outra, eram dois homens marcados por fortes contrastes no mesmo deslizador: um astronauta de Terra, e um caçador do planeta livre e selvagem de Tareyton. Ao que tudo indicava, Titus resolvera reavivar esse contraste. Para McLane isso, só poderia significar uma coisa: um cuidado constante!
Os gritos vindos da esquerda continuavam, tornavam-se cada vez mais fortes e lancinantes e pareciam aproximar-se. Cliff segurou o cabo da pistola e certificou-se de que o pente estava carregado e o recipiente pressurizado havia sido corretamente introduzido na arma. Já passavam duas horas da meia-noite.
Os acontecimentos e os numerosos quadros das últimas horas desfilaram com lentidão diante de Cliff. Estava à procura de duas coisas: o esclarecimento da situação reinante no deslizador e a solução... Por ali devia haver alguma coisa representando um perigo para Terra.
— Quero fazer-lhe uma pergunta, Titus — disse.
Titus estava estendido a seu lado sobre o banco largo. Também o caçador voltara a calçar as botas de cano comprido, segurava a arma e estava muito descontraído. Os gritos dos bovinos tornaram-se mais fortes e penetrantes.
— Quem costuma supervisionar os tanques e os trabalhos de carga quando chegam as naves?
Cliff ouviu Titus respirar fortemente. Um alarma começou a soar em seu cérebro.
— Por que quer saber disso? — perguntou Titus num tom que parecia tranqüilo demais.
— Porque isso me interessa — respondeu Cliff a meia voz.
— Há alguma coisa que não lhe interesse?
— Estou interessado em tudo — disse Cliff com uma risadinha. — Não há nada que me deixe indiferente. As últimas horas até que foram bem emocionantes, não foram, Titus?
— Hum — resmungou o colono. — Os tanques são vigiados por nós ou pelos tecs.
— Qual é o fator que determina a escolha entre uns e outros?
Titus parecia assustar-se ou estacar.
— Por enquanto depende da situação dos tanques. Aqui na Grande Laguna os tanques são vigiados pelos tecs, enquanto os outros são controlados por nós. É uma porcaria de serviço.
— Hum — fez Cliff. — Acho que os senhores não costumam fazer esse trabalho de graça.
— Não; somos pagos.
— Bem; ao que parece o senhor não se sente muito entusiasmado por esse tipo de trabalho.
— Não; nem um pouco. Não ganhamos muito para abastecer os gordos terranos de alimentos.
Ao menos, o desprezo pelos terranos fora claramente enunciado. Cliff ergueu-se sobre os cotovelos e fitou o rosto de Titus. O colono olhou-o e permaneceu calado.
— Lamento muito — disse Cliff em tom áspero. — Mas não tenho a menor compreensão pela sua atitude.
— Naturalmente; afinal, o senhor é um tec.
Cliff sentou, estendeu a mão e pegou a garrafa. Depois disse com a voz quase abalada:
— Agora, por certo, preciso de um grande gole.
Bebeu uma quantidade regular de Archer’s Tears e fechou cautelosamente a garrafa. Depois disse em voz baixa, mas firme:
— Quer ouvir-me por alguns minutos, Titus?
— Não tenho a menor objeção — resmungou o colono. — Afinal, não posso saltar para o pântano e sair correndo.
— Não diga bobagens.
— Pode começar, astronauta.
— Há muito tempo Terra começou a colonizar planetas situados no setor espacial de novecentos parsec controlado por ela. Pouco importa o que tenha acontecido neste meio tempo: nossos antepassados são todos do planeta Terra. Somos humanos. Quer apreciemos a caça, a astronáutica ou outro tipo de loucura, de certa forma somos irmãos. Não há motivo para desprezar outra pessoa somente porque a mesma não aceita o estilo de vida da gente. Ainda menos, tal fato justifica qualquer tipo de reação maluca. Já vi um planeta colonial cujos chefes seguiam alguma mística idiota: realizar uma tentativa de destruir Terra. Esse fato não se repetirá, sempre que eu tenha conhecimento de outra tentativa e possa impedi-la. O senhor sabe o que quero dizer?
— Não sou nenhum idiota — respondeu Titus em tom contrariado. — Por que resolveu pregar este sermão?
Cliff levantou a cabeça e ouviu que os gritos se tornavam mais fortes. Aproximavam-se do segundo acampamento que haviam montado.
— Porque acredito que apesar dos seus modos extremamente simples o senhor é um homem muito inteligente. E porque suponho que saiba bastante para não se tornar co-autor de atos que podem ser classificados na mesma categoria do atentado a Terra, já referidos por mim.
Titus pôs a mão na arma.
— Será que o senhor suspeita de que estou planejando um atentado contra Terra? — perguntou.
Cliff sacudiu a cabeça; estava muito sério.
— Não — disse. — Não suspeito do senhor, Titus. Apenas quero que o senhor perca a arrogância que costuma demonstrar face aos tecs e a Terra. Valemos tanto quanto o senhor: nem mais, nem menos.
— Arrogância? Nunca afirmei...
— Não afirmou, mas pensou — respondeu Cliff. — Está ouvindo a gritaria?
— Estou. Temos de fazer alguma coisa.
— Qual é a sua sugestão?
Pela terceira vez naquela noite, Cliff sentiu que o perigo se aproximava dele. Vinha pela semi-escuridão, através dos juncos encimados pela gigantesca lua branca. As aves, as suspeitas contra Titus, os bovinos...
— Até agora não tenho nenhuma sugestão.
Cliff levantou-se e destravou a espingarda. Titus subiu no assento do piloto e olhou para a frente. Logo saltou para o chão do deslizador.
— Uma manada está correndo diretamente para cá — cochichou.
— O que podemos fazer? — perguntou Cliff.
— Sairemos do deslizador e nos separaremos. Procuraremos esconder-nos nas árvores.
Saiu rapidamente do veículo e examinou o chão que tinha sob os pés.
— Por que esses pseudo-bois não são atacados pelos peixes dentuços?
Cliff encontrava-se do outro lado do deslizador e ouviu os estalos dos juncos.
— Esses animais possuem córneas que vão dos cascos até a junta superior. Os dentes dos peixes escorregam... Os dentuços só tem uma chance quando os pseudo-bois se vêm obrigados a nadar devagar.
Titus levantou a espingarda e disse em tom insistente:
— Preste Atenção. Andaremos em direções opostas e encontrar-nos-emos do outro lado da floresta. Se o senhor for atacado, atire logo e fuja para as copas das árvores, escolhendo um lugar que os pássaros não possam atingir. Provavelmente a manada passará correndo por nós.
— Está certo.
Cliff caminhou com a maior cautela para o lado esquerdo. Sentiu o chão instável e pouco seguro sob as solas das botas. Ouvia um chiado cada vez que andava pelo charco. Os gritos tornavam-se cada vez mais fortes. Cliff parou e olhou para trás. Encontrava-se a trinta metros do deslizador. Do outro lado do círculo largo que se estendia em torno da floresta, o junco abriu-se. Viu as cabeças de animais de grande porte que corriam em carreira desabalada. A luz da lua iluminava o cenário. O comandante sentiu-se transladado para um passado distante ou para um ambiente místico e estranho. Havia aves de rapina no ar. Numerosas sombras negras perseguiam os pseudo-bois.
— Que diabo! — cochichou Cliff.
Mais ou menos uma dezena de animais de grande porte saíram correndo do junco.
Tinham chifres compridos e pontudos. As pernas esguias dos animais estavam protegidas por uma substância óssea, tinham o aspecto de cabos metálicos. As juntas estavam assinaladas por escamas em forma de anéis superpostos. Os pescoços musculosos sustentavam os crânios com olhos enormes. Esses olhos estavam arregalados pelo pânico. O bater das asas, as pisadas dos cascos, os gritos das aves de rapina e os estalos do junco tornaram-se mais fortes.
A manada correu na direção de Cliff. Este começou a correr. Escorregou, voltou a colocar-se de pé e esforçou-se desesperadamente para não perder nenhuma das armas que trazia consigo. Correu uns cinqüenta metros e foi para o lado, penetrando na floresta. Pegou uma das raízes, levantou-se pela mesma e puxou para cima a espingarda que encontrara nela. Depois subiu na árvore com a velocidade desesperada de uma pessoa perseguida. Os galhos fecharam-se atrás dele. Rasgou as mãos na casca áspera. Pouco abaixo do lugar em que se encontrava, a manada passou trovejando, perseguida pelas aves. Os animais gritavam num tom agudo e queixoso. Cliff afastou um galho e seguiu-os com os olhos. Contornaram a floresta.
Finalmente as aves conseguiram deter o animal que corria à frente dos demais. Duas sombras desprenderam-se da cabeça.
O animal soltou um grito forte que antes parecia um choro. A manada desviou-se para a direita, passou trovejando sobre a faixa de terra e voltou a desaparecer em meio aos juncos. O "boi" atingido gritou e distribuiu coices para todos os lados. O rabo girava que nem uma hélice e o animal distribuía chifradas para todos os lados. Levantou a cabeça e atingiu uma das aves. Finalmente dobrou as pernas dianteiras e rolou para o lado. As aves de rapina precipitaram-se sobre seu corpo. Dentro de poucos segundos, o local transformou-se numa massa turbilhonante. Os pássaros negros o devoraram.
Cliff continuou sentado e refletiu. Depois de algum tempo — talvez uns quinze minutos — arriscou-se a descer da árvore. Colocava o pé no chão e contemplava o esqueleto do animal de lado, quando um ruído muito conhecido atingiu seu ouvido. Os jatos do deslizador estavam sendo ligados. Cliff suspirou aliviado e gritou:
— Aqui, Titus!
O deslizador saiu por entre os troncos, descreveu uma curva e acelerou. À luz do luar, o comandante viu o colono sentado na poltrona do piloto, que acelerava a embarcação. Titus corria em ziguezague pelo canal. Cliff suspeitou de alguma coisa, afastou a idéia e finalmente compreendeu. Quando levantou a espingarda para atirar em Titus, já era tarde. A casca deslizante de plástico passou entre as muralhas de juncos e desapareceu.
— Que bonito! — resmungou Cliff em tom sarcástico.
Titus Veever resolvera deixá-lo para trás. Tinha certeza de que Cliff não teria chances de sobreviver. Cliff teve vontade de esbofetear-se; mas havia assumido o risco e agora só lhe restava ver como conseguiria arranjar-se. Cliff contemplou a lua, como se esperasse que a mesma lhe fornecesse uma resposta detalhada sobre seu destino. Cocou a orelha, travou a pistola e segurou a espingarda com ambas as mãos.
— De qualquer maneira — disse — agora já tenho uma prova cabal de que alguma coisa está acontecendo neste planeta dos mil oceanos. Viva o Centro de Computação.
Caminhou lenta e cautelosamente na direção de onde, segundo acreditava, havia vindo o deslizador. Naquela região, a grande máquina devia estar boiando, e por lá talvez houvesse possibilidade de encontrar socorro.
— Que patife! — disse Cliff em voz alta, ao atingir a floresta de juncos.
Mas logo teve que sorrir. Não sabia por quê, mas admirava Titus Veever. Do ponto de vista tático justificava-se plenamente que o único homem que possuía conhecimentos suficientes para descobrir um projeto de atentado contra Terra fosse largado por ali. Cliff o havia provocado e estava sofrendo as conseqüências. Evidentemente era bastante duvidoso que conseguisse chegar vivo à Laguna Setecentos e Dez. Penetrou na área coberta de juncos.
"Até a margem da laguna são cerca de trinta quilômetros. Trinta mil metros!" pensou admirando-se.
A água, infestada de peixes dentuços que se precipitavam sobre as botas fazia nascer em Cliff o medo de ser devorado por aqueles espécimes de piranhas. Os juncos que se dobravam com um rangido, cortavam o homem com suas folhas afiadas e despejavam insetos que se precipitavam sobre McLane.
Cliff percorreu metro após metro. Sentiu-se ofuscado, sofreu um ataque leve de esgotamento. Foi queimado pelo sol, atirou em dois pássaros que se encontravam menos de dois metros acima de sua cabeça.
Ele ansiava pelo zumbido da máquina. Mas nada!
O dia de Terra e o de Tareyton tinham a mesma duração, apenas com a diferença de alguns minutos. Cliff olhou para o relógio. Eram onze horas da manhã.
— Ao menos poderia ter deixado um pouco de água — disse com os lábios rachados.
Prosseguiu na caminhada. Enquanto pisava nos juncos, no pântano, em canais rasos ou na terra dura, teve tempo de sobra para refletir sobre o problema. O único ponto importante eram os alimentos, que chegavam a onze planetas. Dez deles ficavam nas proximidades, e o outro era Terra. Os diversos extratos do trigo-arroz eram usados em toda parte para a fabricação dos alimentos mais variados. O que poderiam fazer diante dessa constelação de fatos? Envenenar os extratos de alimentos?
Cliff prosseguiu aos tropeços e refletiu sobre o processo. Vinte mil colonos conheciam os outros dez planetas, que eram seu mundo natal. Seria uma vantagem para eles se envenenassem o resto da população? Não.
Também não teriam nenhuma vantagem se os habitantes do outro planeta — de Terra — fossem envenenados, mas a ação produziria um certo efeito. Ninguém teria a idéia de analisar alimentos concentrados ou os extratos vindos de mundos associados. Teriam que intoxicar os onze planetas ou nenhum. Não havia outra alternativa. O raciocínio de Cliff desenvolvera-se em direção errada. Não podia ser isso.
Continuou a caminhar e acreditou estar ouvindo o zumbido da colhedeira. Ou será que já estava delirando? E se envenenassem apenas determinados extratos? Suas idéias fixaram-se neste ponto. Teve de confessar para si mesmo que a palavra veneno admitia uma interpretação bastante ampla. Poderia tratar-se de droga, bactéria ou vírus. Seria uma coisa tão pequena que dificilmente poderia ser descoberta, e tão eficiente que poderia representar um perigo para um planeta. Absurdo!
Antes teria de conhecer as modalidades da distribuição entre as naves que transportavam os produtos para os onze planetas, senão de nada adiantaria quebrar a cabeça. A suposição que fizera era tão complicada e despropositada que não adiantaria insistir nela.
Ou será que adiantaria? Bastaria que uma das estações de tanques ficasse sob o controle total dos tareys.
Cliff continuou cambaleando em meio aos juncos e sob o calor. As horas foram passando. Sentia-se cada vez mais fraco. Só quando o calor diminuiu porque o sol tocou a linha do horizonte, conseguiu respirar melhor.
E agora realmente estava ouvindo o zumbido da máquina.
O RADIO de pulso estava no quarto da casa de hóspedes, desligado, e o rádio maior encontrava-se a bordo do deslizador. A esperança de que os instrumentos das três naves pudessem descobri-lo era bastante desarrazoada. Lá em cima não estariam fitando ininterruptamente as lentes e as imagens das telas infravermelhas. Aqui em meio à selva não passava de um minúsculo ponto móvel.
O sol estava cortado em duas partes pela linha do horizonte e McLane viu que o canal estreito se alargava. O zumbido aumentou, as muralhas de junco recuaram e uma pseudo-desembocadura triangular surgiu diante dele.
— Até que enfim! — enxugou o suor da testa.
Nunca se sentira tão feliz com a visão de uma máquina. Nunca havia caminhado trinta quilômetros pelo junco e pelos pântanos.
— Os robôs não foram programados para serem perturbados por homens — murmurou em voz baixa. — Foi o que Veever disse. Se eu o agarrar, dar-lhe-ei uma surra. Ou então seguro-o e Mario aplica-lhe a sova.
Caminhou lenta e cautelosamente em direção à máquina. O lugar tornava-se cada vez mais fundo e quando se encontrava a poucos metros da máquina já atingia a parte superior das botas. Aqui, nas imediações da colhedeira robotizada, havia pouquíssimos peixes dentuços, ou nenhum. Cliff parou exausto quando segurou um dos cabos.
— Meu amor metálico! — disse em tom carinhoso, acariciando a área morna de uma reentrância. Procurou levantar o corpo, depois de colocar a espingarda em segurança. Chegou ao conjunto complicado de hastes que ficavam junto às válvulas do tanque. O resto foi fácil. Esperou.
Controlou o tempo. Aguardou exatamente durante trinta minutos. Enquanto ia escurecendo, ouviu o som que os cilindros largos de perfis arestosos produziam em meio ao pântano e aos juncos. Viu a máquina de tração que se aproximava do colosso com os holofotes de luz infravermelha acesos. A grande máquina quase chegara a esvaziar a baía, e da fenda que se abria na mesma um acúmulo de plantas trituradas foi despejada na água. O robô de tração descreveu uma curva ampla, inseriu-se num raio direcional e tomou o rumo em que Cliff se encontrava. O envoltório frouxo que arrastava atrás de si foi agarrado por um gancho e os bocais dos canos de enchimento comprimiram-se contra as válvulas. Ouviu-se um estalido no interior do gigante.
— Vamos à Grande Laguna de carona com os hidratos de carbono!
Conseguira; mas a parte mais difícil ainda estava pela frente. Enquanto a maré subia, o envoltório elástico de matéria plástica inflou-se. Quantidades gigantescas de substância líquida foram bombeadas para dentro do recipiente, até que o mesmo ficasse cheio. Cliff deixou-se cair e sentou em cima do recipiente. Prendeu a correia fina da espingarda a um dos laços que provavelmente constituía o ponto de amarração do autômato de limpeza e sentiu a gigantesca "pele" de plástico intumescer-se. A máquina de tração emitiu um zumbido e a viagem teve início.
Apesar do cansaço, Cliff não se sentia aborrecido. Já sabia por onde começar e a alegria de ter escapado vivo do pântano, dos peixes dentuços, dos pseudo-bovinos e das aves de rapina superava todos os outros sentimentos.
Sentado sobre o recipiente de hidrato de carbono, olhava bem para diante e viu as raras luzes da povoação. Já se sentia contente com a expressão que veria em muitos rostos. Chegaria junto aos tanques e faria uma visita ao cônsul Halvorsen.
De repente foi dominado pelo cansaço. Segurou-se desesperadamente e sentiu que o gigantesco recipiente deslizava pelo pântano. O borbulhar da água era um ruído monótono, e o zumbido da máquina também. Cliff adormeceu. Sua salvação era a correia da espingarda que enlaçava seu pulso.
Dali a trinta minutos, acordou. O zumbido e o balanço agradável da máquina cessaram.
— Ei! — disse alguém. — Veja lá que chave você vai puxar.
Cliff lentamente soltou a correia, mas continuou sentado. À sua frente, erguia-se a parede de um dos gigantescos tanques, e um braço de guindaste com uma válvula de bomba "faminta" aproximava-se dele. Sorriu. O ligeiro período de sono já o deixara mais disposto.
— Queiram desculpar — disse em voz alta e admirou-se por falar em tom rouco, como um alto-falante defeituoso. — Poderia informar se me encontro em Grande Laguna?
Se tivesse vindo em cima de um sáurio a surpresa não teria sido maior.
— Há alguém ali! — berrou um dos tecs. — Em cima do tanque de plástico!
Outro gritou em voz alta:
— Suspendam a descarga automática. Cliff sentou na beirada do recipiente, esticou as pernas e disse em voz alta:
— Cuidado; escorregarei pelo lado esquerdo.
Deixou-se cair sobre a convexidade do recipiente e bateu no chão. Os três terranos, limpos e sem barba, inclinaram-se sobre ele. A luz de um conjunto de lâmpadas incidiu sobre ele.
— É um dos astronautas que conhecemos durante a festa realizada em casa de Halvorsen — disse uma voz. Cliff segurava a espingarda e respondeu tranqüilamente.
— Sim, é isso mesmo.
— Como está o senhor! — disse um dos homens.
Aos poucos, o comandante começou a distinguir os rostos.
— Devo estar um tanto cansado — disse Cliff. — Será que os senhores têm algum meio de transportar-me à casa de Halvorsen?
— Infelizmente não. São apenas trezentos e dez metros — disse o capataz que usava sobretudo amarelo.
— Andei trinta quilômetros pelo pântano — Cliff apalpou os joelhos. — Conseguirei vencer mais trezentos metros. Por acaso viram Titus Veever?
— Não — disse um dos terranos. — Onde está ele?
— Eu lhe dou minha nave espacial, se me disser onde está. Tenho uma conta bem grande para ajustar com ele — disse Cliff, respirando com dificuldade.
Afastou os trabalhadores, fitou as luzes da casa de Halvorsen e começou a caminhar. Movia-se como um autômato. Sob seus pés, encontrava-se o espaçoporto.
Conseguiu vencer os trezentos metros.
Também conseguiu subir a escada para a casa de Halvorsen e parou no meio do terraço. Olhou para o relógio.
— Que diabo! — resmungou. — Já passa das nove. Será que ainda posso tocar a campainha?
Resolveu deixar de lado as convenções sociais e colocou o dedo sujo sobre o botão largo. O som estridente da cigarra ajustada numa tonalidade muito alta encheu a casa. Halvorsen levou apenas alguns segundos para chegar à porta. Gritou em tom indignado:
— Por todas as nebulosas, o que está havendo por aqui?
Recuou um passo e a luz da sala iluminou o rosto de McLane. Halvorsen reconheceu o astronauta e balbuciou:
— Coronel McLane!
Cliff soltou a porta. Quase chegou a cair para dentro da sala e mal sentiu os braços de Halvorsen que o seguravam.
— É isso mesmo! — resmungou com a voz confusa.
— De onde vem o senhor? — fungou o cônsul em tom assustado.
Cliff percebeu que sua reação não era fingida. Não saberia dizer se fora produzida pela alegria ou pelo medo.
— Pântano — disse Cliff e deixou-se cair numa das pesadas poltronas.
— Onde está Titus Veever?
— Pântano — voltou a dizer Cliff. A espingarda tombou ruidosamente ao chão, disparando um tiro. Uma agulha perfurou o mapa do planeta pendurado entre a porta e a parede.
— Está morto? — perguntou Halvorsen.
— Claro que não.
— O que aconteceu?
— Titus fugiu — respondeu Cliff e bocejou sem colocar a mão diante da boca. — Fugiu sem levar-me; de propósito.
Halvorsen fitou-o apavorado.
— O senhor andou todo o caminho? Onde estava?
— No pântano — disse Cliff com a voz débil.
Halvorsen sentou por um instante, mas logo se levantou de um salto, como se uma agulha o espetasse. Desapareceu nos fundos da sala. O coronel ouviu o ruído de portas que se abriam e fechavam. Quando o cônsul Halvorsen voltou com uma seringa de pressão e um forte estimulante, Cliff dormia profundamente. Halvorsen desinfetou-lhe o braço, encostou a seringa e acionou a mesma. Depois saiu para trazer um copo gigantesco de suco de frutas com glicose e álcool, além de alguns sanduíches e um gravador.
Quando voltou, Cliff já havia acordado.
— Será que estou em casa de Halvorsen? — perguntou o comandante numa voz surpreendentemente clara. O cansaço havia desaparecido como por encanto. Halvorsen ligou o gravador de fita e respondeu:
— Seja o que for que tenha acontecido, o senhor se encontra em segurança. O que houve, coronel McLane?
Enquanto Cliff comia, bebia e respondia a perguntas, os carretéis de fita giravam. Relatou minuciosamente tudo que se passara desde o momento em que o deslizador partiu. Halvorsen sacudiu a cabeça de espanto.
Alguém acendeu a luz.
Cliff viu Tamara Jagellovsk. Depois de sorrir ligeiramente para ele, Tamara comprimiu o botão do videofone e disse:
— O chefe já acordou. Venham. Sentou na cama ao seu lado, beijou-o e apontou para a janela larga. Cliff ergueu-se ligeiramente e reconheceu a Orion VIII que pairava ao lado da Lancet, pouco acima do espaçoporto. Sabia que durante sua ausência certas coisas haviam tomado curso. A porta abriu-se, e várias pessoas entraram. Lydia van Dyke foi a primeira. Cliff descobriu-se.
— Não tenho culpa de usar esta vestimenta nada elegante — disse em sua defesa.
Atrás de Lydia entraram Mario, Hasso e Erickson, e ainda Helga Legrelle e Halvorsen. Nos rostos deles, desenhava-se o traço de resolução que Cliff, segundo pensava, conhecia e sabia avaliar. Halvorsen foi o primeiro a falar:
— Coronel — disse em tom um tanto embaraçado. — Ao que parece, a coisa é muito séria. O responsável pelo arranjo da caçada sou eu. Chamamos os dois deslizadores pelo rádio e mandamos que retornassem imediatamente. Com Hasso Sigbjörnson e C.O. Erickson não aconteceu nada.
Cliff estendeu a mão e disse em tom categórico:
— Não direi uma única palavra se não me derem imediatamente um copo enorme de Archer's Tears.
Com uma expressão quase insultuosa no rosto, Halvorsen tirou uma garrafa do bolso traseiro da calça, levantou-se e pegou um copo de tamanho considerável num armário embutido. Encheu-o e aproximou-se da cama.
— Permita que chame sua atenção para a norma bem conhecida, segundo a qual o uso do álcool é rigorosamente proibido a qualquer astronauta que se encontre em serviço — disse Tamara Jagellovsk em tom rígido. — Se a norma for infringida, ver-me-ei obrigada a avisar meus superiores.
— As normas não falam na travessia de pântanos durante a qual a morte espreita a gente atrás de cada junco. Avise seus superiores, camarada, avise-os.
Tamara contemplou Cliff enquanto o coronel esvaziava tranqüilamente o copo.
— Muito bem — disse o comandante. — Agora estou disposto a conversar.
Todos os olhares dirigiram-se para ele.
— Antes de mais nada, senhor cônsul, aceite meus sinceros agradecimentos pelo auxílio imediato que me dispensou. Fiquei satisfeito em saber que Erickson e Hasso voltaram sãos e salvos. Notaram algo de anormal?
O comandante da Scorpio sacudiu a cabeça.
— Não percebemos nada, Cliff — disse.
— O colono não demonstrou uma gentileza cativante, mas conseguimos arranjar-nos. Vimos muita coisa e atiramos um bocado.
Hasso levantou a mão e prosseguiu:
— No meu deslizador foi a mesma coisa. Muito sol, muito junco, muitos pássaros; apenas isso.
Cliff resmungou:
— Parece que mais uma vez todas as "gentilezas" concentraram-se sobre minha pessoa. De qualquer maneira, suponho que os vinte mil colonos vindos dos planetas vizinhos estejam planejando ou já tenham iniciado a execução de um atentado contra Terra. Só conheço uma única possibilidade, ou melhor, um único instrumento para a prática do atentado. São os extratos de alimentos. O que acha, cônsul Halvorsen?
Halvorsen acenou com a cabeça.
— Acho que o senhor acertou. Não sei como isso poderia ser feito.
— Pois eu imagino — respondeu Cliff.
— Dispomos dos dados. Alguém sabe se ultimamente houve conflitos políticos ou movimentos de independência em algum dos planetas do grupo de dez?
— Não sei de nada — respondeu Lydia van Dyke. — Descobri os nomes dos dez mundos, mas não sei absolutamente nada sobre sua estruturação política.
— Quais são os nomes? — perguntou Cliff.
— Bem. Não se sabe desde quando usam este nome, de onde provém ou por que o escolheram. Acontece que por qualquer motivo com o qual não conseguimos atinar os dez planetas usam o nome Sistema de Papillon.
Ninguém sabia informar nada sobre esses planetas.
Cliff fez um gesto afirmativo e seu indicador sujo apontou para Helga Legrelle. Depois de algum tempo, disse:
— Comandante à operadora de rádio. Faça o favor de voltar à nave e expeça uma mensagem às F.R.E.T. e ao SSG. Indague sobre os dados relativos aos dez planetas, mencionando meu nome. Tenho fortes suspeitas de que aqui esteja sendo planejado um atentado contra Terra. Diga que respondam por H.S. e D. Quando tiver a resposta, faça o favor de voltar e leia o que Villa e Wamsler tiverem dito ou descoberto.
Helga levantou-se e respondeu:
— Operadora de rádio ao comandante: entendido.
— Por aqui existem quase mil estações desse tipo. Logo, existem cerca de mil conjuntos de tanques e mil campos de pouso. Esses lugares são visitados ininterruptamente por naves espaciais que trazem a tripulação normal de três homens: o comandante, o operador de rádio e o astronavegador. São mais de mil pousos e decolagens. Correto, cônsul?
Cliff dirigira a pergunta a Halvorsen. Este tinha os números exatos na cabeça e respondeu prontamente:
— Ao todo, o número de pousos por conjunto de tanques é superior a vinte. No ano passado, a safra foi tão abundante que houve necessidade de vinte e cinco decolagens e pousos em média. Isso representa perto de vinte e cinco mil naves. Quatro mil delas dirigem-se a Terra. Posso fornecer as quantidades exatas e o número preciso de decolagens, mas...
Cliff interrompeu-o com um gesto.
— Pode deixar — disse. — Suponha que o senhor esteja interessado em contaminar um planeta — digamos Terra. O que faria?
— Procuraria infetar um conjunto de tanques com alguma coisa que despovoaria o planeta — disse Halvorsen.
— Para isso seria necessário que as naves desse planeta, que poderia ser Terra, só se dirigissem a determinadas estações, não é?
— Sem dúvida — concordou Halvorsen. — Para evitar o congestionamento do espaço aéreo e dispensar uma porção de cálculos e problemas administrativos, decidimos que cada nave sempre deve dirigir-se ao mesmo espaçoporto, durante o ano todo. Só em casos excepcionais é encaminhada a outro ponto.
Lydia van Dyke perguntou com sua voz fria:
— Qual seria um caso excepcional, cônsul?
Halvorsen não teve necessidade de refletir.
— Um caso excepcional se verifica quando a safra terminou e alguma nave não consegue encher seus tanques. Nesse caso, dirige-se ao conjunto de tanques mais próximo, ou é encaminhada para outro lugar em que haja extrato em quantidade suficiente.
— Isso acontece muitas vezes? — perguntou Hasso Sigbjörnson.
— Umas cinco vezes por ano. Não deve ser mais; e acontece por acaso. Não se pode estabelecer nenhuma regra que nos permitiria dizer com algumas semanas de antecedência qual é a nave e qual será o planeta de destino.
Lydia van Dyke disse em tom sarcástico:
— Quer dizer que podemos concluir que, por aqui, nenhum cônsul morreu de estafa.
Halvorsen soltou uma risadinha e retrucou:
— Não, mas dois dos meus antecessores enfrentaram um ataque de aves de rapina. Um deles teve um braço amputado. A vida por aqui não é tão suave como a gente gostaria.
Seu bigode tremia nervosamente.
— Não fique zangado — disse Lydia. — Foi apenas uma idéia.
Tamara interveio.
— Também haveria a possibilidade de espalhar um vírus e fornecer antídotos aos planetas que não devem ser atingidos pelo mesmo. Isso seria fácil, uma vez que se sabe qual é o conjunto de tanques onde cada nave recebe sua carga.
Cliff concordou.
— Seria outra possibilidade.
Halvorsen levantou-se de um salto e parou perto da cama do comandante. — Talvez o senhor ache que a possibilidade é complicada e remota, mas parece que descobri uma terceira possibilidade. Tremia de nervosismo.
— Diga logo, senão o senhor acaba "estourando" — disse Tamara.
— Pode-se introduzir o antídoto de qualquer doença nos tanques de determinado planeta ou grupo de planetas. Deixa-se de inserir o antídoto em certos tanques, que podem ser aqueles em que se abastecem as naves destinadas a Terra. Nesse caso, determina-se precisamente quando deverá irromper uma epidemia.
Cliff voltou a recostar-se.
— Temos pouco tempo para descobrir qual das três hipóteses é a verdadeira. Sob o ponto de vista teórico, talvez já seja tarde.
Lydia van Dyke enumerou as hipóteses.
— Primeira: infetar os tanques destinados a certo planeta. Segunda: infetar todos os tanques, fornecendo o antídoto a determinado grupo de planetas. Terceira: introduzir o antídoto num grupo de tanques, colocando os germes diretamente no planeta visado.
— A enumeração é curta, mas no fundo é correta, general — disse Cliff. — Apenas estou aguardando uma hipercomunicação. Depois, pensarei num meio de realizar os controles que se tornam necessários. Estamos equipados para esse tipo de investigação?
— Estamos — disse Erickson em tom decidido.
— Um instante — disse Hasso Sigbjörnson. — É apenas uma idéia. Falamos em germes, bactérias, vírus e outras coisas de menos de um milésimo de milímetro. Não haveria outra coisa sobre a qual deveríamos quebrar a cabeça?
Halvorsen virou-se abruptamente.
— É a única possibilidade de que alguém daqui pode lançar mão. Será que valeria a pena colocar peixes dentuços nas águas terranas? Ou exportar aves de rapina para o planeta Terra, para que as mesmas ataquem naves solitárias? A ameaça só pode residir nessa área microlítica.
— Não deixo de reconhecer este fato — respondeu Hasso.
Cliff sacudiu a cabeça e apoiou-se sobre os cotovelos.
— Só pode ser Terra — disse em tom decidido.
— Por quê?
— Pensem um pouco. Há séculos conseguimos extirpar praticamente todas as enfermidades mais sérias, com exceção do resfriado. Qualquer ataque bacteriológico atingiria Terra, um planeta densamente povoado onde as possibilidades de contágio são inúmeras.
Halvorsen parecia tornar-se ainda menor. Encolheu-se na sua poltrona e murmurou:
— Que diabo, comandante. O senhor tem tanta razão que já começo a temê-lo seriamente.
Lydia van Dyke fez um gesto afirmativo.
— E tudo isso em pleno Ano Galático.
— Cujo começo anunciei oficialmente hoje de manhã pela emissora planetária. Ainda anunciei que as naves espaciais estão aqui por esse motivo. — disse o cônsul.
— Não se aborreça, Halvorsen — murmurou Cliff. — Não pensávamos que as coisas fossem tão graves. Mas... deve ser Helga.
A porta abriu-se. Helga entrou com o rosto muito sério. Aproximou-se da cama, parou e entregou a Cliff uma folha de papel coberta por letras verticais. Cliff agradeceu com um gesto, sorriu ligeiramente, leu o texto e repetiu-o em voz alta.
F.R.E.T. para coronel McLane. Nave Orion VIII. Segundo o relato das instâncias competentes e conforme resposta do Centro de Computação, podemos fornecer as informações que seguem. Exatamente há um ano terrano o Sistema de Papillon procurou separar-se de Terra sob a forma de um bloco econômico. Constituímos uma comissão e submetemos a matéria à votação. As condições econômicas e políticas eram tão confusas que não pudemos concordar com essas pretensões. O Sistema de Papillon voltou a ser incorporado à estrutura terrana. Ass. Wamsler. Fim.
As pessoas reunidas no quarto olharam-se. Cliff exibiu um sorriso feroz e disse em voz alta:
— É o primeiro relatório que recebemos. As informações fornecidas por Villa apenas permitem imaginar como Terra se opõe à dissolução de seu círculo de poder econômico. Diria que se trata de uma ditadura, se não tivesse experimentado pessoalmente o perigo representado pelos extraterranos e outros tipos de ameaças. Acontece que os planetas coloniais não têm a menor idéia de tudo isso.
— Leia logo, comandante! — disse o cônsul.
— Naturalmente — disse Cliff e leu em voz alta:
SSG para Mc Lane. Nave Orion VIII. Há dez meses todos os dirigentes do Sistema de Papillon foram substituídos por terranos leais numa ação-relâmpago secreta. Os responsáveis pelas tendências anárquicas foram deportados para Mura e Tareyton. Precisam de reforços? Villa. Fim.
— Lacônico como sempre — comentou Cliff. — O que foi que você respondeu, Helga, minha filha?
— Por enquanto não estamos precisando de reforços — disse Helga.
Halvorsen falou:
— Estas mensagens esclarecem tudo. Os elementos deportados procuram vingar-se.
— Ainda sinto Mura no estômago — disse McLane. — Nunca me esquecerei dos raios omikron.
— O que vamos fazer? — perguntou Lydia van Dyke em voz baixa. Tamara levantou-se e parou perto de Halvorsen.
— Cônsul, será que o senhor teria uma possibilidade de colher uma amostra de cada um dos conjuntos de tanques que abastecem os planetas do Sistema de Papillon?
Halvorsen passou a mão pelo cabelo; parecia assustado.
— Isso levaria séculos — disse. — É claro que confio nos meus tecs, mas teria de chamar os grupos um por um. Muito tempo se passaria antes que todas estivessem aqui.
— Use todos os recursos de que possa dispor. Apresse a coisa o mais que puder — disse Tamara Jagellovsk em tom suplicante. — O destino de Terra está em jogo.
— Poderiam dar uma ajuda? — perguntou Halvorsen e levantou-se.
— Naturalmente — disse Tamara. — Vamos ao seu escritório para discutir o assunto. As amostras serão trazidas para cá. Mandaremos pousar a nave. Está de acordo, Cliff?
Todos viam que o comandante ansiava por um banho, um barbeador e um bom lanche ou jantar.
— Você é a agente do SSG. Acho que está com a razão.
Tamara e Halvorsen despediram-se. Tinham pressa. Cliff procurou descobrir um meio mais rápido, mas não conseguiu.
— Hasso e C.O. — disse. — Quero pedir-lhes vários favores. Procurem Halvorsen e peçam que entregue a vocês um mapa detalhado de Tareyton.
Os dois levantaram-se e correram atrás de Tamara e do cônsul.
— O que devo fazer, McLane? — perguntou Helga.
— Você terá a gentileza de procurar uma boa alma que me forneça uma refeição bem substancial.
— É uma coisa que eu faço com o maior prazer — respondeu Helga, lamentando que Tamara não estivesse ouvindo.
Lydia van Dyke levantou-se e chegou bem perto da cama. Seus olhos cinzentos examinaram Cliff, que voltou a puxar a coberta até o queixo, franzindo a testa num gesto indagador.
— Acho que o senhor também me poderia atribuir alguma tarefa — disse Lydia.
Cliff conhecia seus modos ásperos, motivo por que não se deixou impressionar pelos mesmos. Fez um gesto de concordância.
— Onde é que eu devo "abrir um buraco"? — perguntou Van Dyke.
Cliff esforçou-se para sorrir.
— Ainda não encontrei Veever — ponderou. — Peço-lhe que organize as análises das diversas amostras, de maneira tal que a demora seja a menor possível. Poderei confiar na senhora?
Cliff fez um gesto de recusa e continuou:
— O disfarce seria inútil. Entre em contato com as naves e dê ordem para que pousem aqui. Não há mais nada a fazer pairando sobre o planeta. E, aqui embaixo, as coisas vão esquentar.
Lydia exibiu um sorriso disfarçado. Tinha trinta e cinco anos de idade. Vez por outra Cliff surpreendia-se ao estabelecer comparações entre ela e Tamara, sem chegar a qualquer resultado. Lydia era pelo menos cinco anos mais jovem que ele. Tinha uma estima extraordinária por Cliff, que a venerava de forma bastante estranha.
— Tomara que o senhor não derreta — disse em tom de advertência.
— Dificilmente. A raiva que sinto por Titus evitará que isso aconteça.
Por fim, Cliff viu-se só. Saiu da cama, procurou e encontrou o banheiro e submeteu-se a um procedimento demorado e complicado. Assustou-se ao ver seu rosto refletido pelo espelho. Estava barbudo, com a pele tostada e uma queimadura de sol no nariz. Os olhos muito afundados nas covas estavam "enfeitados" por quatro arranhões que começavam a cicatrizar. Fez a barba com o máximo de cuidado e acabou junto à mesa farta, posta onde já estavam Helga e Ivy Cerea.
— Isso é formidável — resmungou Cliff e sentou.
Dali a meia hora, sentia-se refeito, e sua disposição de espírito melhorara consideravelmente. Hasso e Erickson entraram na sala. Traziam o mapa e as respectivas informações. Um círculo bastante limitado de terranos, formado por amigos e colaboradores do cônsul Halvorsen, ocupara o edifício e desenvolvia uma atividade febril.
Hasso parou ao lado de Cliff e encheu uma xícara de café.
— A coisa começa a ficar séria — disse em voz baixa.
Cliff fez um gesto afirmativo.
— É verdade. Teremos que realizar um trabalho descomunal. E o trabalho não deixa de ser perigoso, pois não há nada que corra tão depressa como um boato. É de supor que, neste meio tempo, Titus Veever já tenha avisado seus amigos e comparsas. Sem dúvida, já sabe que cheguei até aqui. Como acabo de dizer, não há nada que corra tão depressa como um boato.
Erickson pôs a mão no bolso e tirou a HM-4.
— Cuidarei da Lancet — disse. — Tenho certeza de que, depois, nós três examinaremos os tanques destinados a Terra.
Uma terrível expressão surgiu no rosto de Cliff.
— Você tem mais do que razão, comandante — disse.
Havia um tom perigoso em sua voz.
CLIFF, Hasso e Erickson inclinaram-se sobre o mapa detalhado.
— Há um total de novecentos e noventa e três conjuntos de tanques — disse Cliff mostrando os dados. — Exatamente oitenta são visitados exclusivamente por naves destinadas a Terra. Oitenta vezes vinte e cinco são...
— Duas mil chegadas — disse Hasso.
— O transporte exige naves dotadas de tanques de tamanhos variados, destinados aos hidratos de carbono, à proteína, às substâncias minerais, às suspensões de lipóides e aos sais. São cinco tanques. Em qual deles poderiam ser colocados os germes? — continuou o coronel.
Erickson vestia uma mistura de traje de bordo e de caçador. Era mais prático, pois com a maré alta os tanques ficavam parcialmente submersos.
— Não assumiremos qualquer risco — disse Cliff. — Retiraremos amostras de todos os tanques.
Hasso soltou uma risada de desespero.
— São quatrocentas amostras; cinco em cada conjunto de tanques. Nossos cientistas ficarão felizes. Terão trabalho para alguns meses.
Cliff lançou um olhar de espanto para Hasso.
— Meses? — perguntou, esticando a palavra. Os exames terão de ser realizados dentro de alguns dias. Talvez o acaso nos ajude para que não precisemos colocar todas as amostras embaixo do microscópio.
Erickson parecia cético.
— Como vamos agir, Cliff?
Cliff deu de ombros e apontou para os oitenta círculos que traçara com a caneta hidrográfica em torno dos conjuntos de tanques destinados às naves terranas.
— Agiremos sistematicamente, meu caro — respondeu. — E, mais que tudo, agiremos depressa.
Isso significava que dois grupos de pesquisadores estariam a caminho. Os terranos que trabalhavam no planeta retirariam amostras de cada um dos tanques dos Papillons e as levariam à nave. Cliff, Hasso e Erickson examinariam os tanques destinados aos terranos.
— Quando partiremos? — perguntou Erickson.
Perto deles, estavam exatamente oitenta conjuntos de tubos de ensaio e algumas peças de reserva. A operação era secreta e teria que ser executada depressa. O risco de que houvesse um traidor no grupo não podia ser evitado. As primeiras amostras estavam chegando, assinaladas com o número do conjunto de tanques e contendo cinco tubos de ensaio lacrados. Os cientistas da nave desenvolveram um processo especial, que permitia que os exames fossem realizados sem perda de tempo.
— Tomara que possamos comer antes de partirmos — comentou Hasso num tom de suave recriminação.
— Pois não — disse Cliff. — Ivy cuidará disso.
Erickson sorriu e disse:
— Prometeu que trará minhas garrafas de Archer's Tears.
Os homens riram.
Entre as naves, a residência do cônsul Halvorsen, o quarto de Cliff McLane e a Lancet foi instalada uma comunicação para conferências baseada em aparelhos de videofone. Helga dirigia o tráfego radiofônico, com a assistência do primeiro-oficial. Cliff olhou para o relógio. Faltavam cento e vinte minutos para a decolagem da Lancet. Hasso mostrara-se disposto a pilotar a nave, enquanto agüentasse. Cliff e Erickson recolheriam as amostras. Se necessário, fariam uso das armas. Ouviu-se um zumbido. Cliff executou um giro de noventa graus com sua poltrona, calcou a tecla de resposta e fitou o rosto sério de Halvorsen.
— Comandante McLane — disse o cônsul a meia voz. — Tenho várias notícias. Algumas são boas, outras são más.
Cliff levantou a mão para interromper a conversa de Erickson e Hasso.
— Dê primeiro as notícias boas, Halvorsen — disse, falando depressa.
— Ao todo chegaram amostras de cento e treze dos conjuntos de tanques Papillons. Logo, ainda faltam muitas. Já mandei levar as amostras à nave.
— Se continuarmos assim, a coleta terminará amanhã de noite; ou talvez hoje de madrugada — disse Cliff. — Quais são as notícias más?
— Dos conjuntos de tanques que o senhor terá de visitar com seus tripulantes, uns trinta são controlados pelos tareys. Talvez tenha de contar com alguma reação.
— Era o que eu receava.
— Há outra coisa. Ainda não temos nenhuma informação sobre o paradeiro de Titus Veever. Sua irmã também desapareceu; o senhor já deve ter notado.
— Sim — disse Cliff. — Por falar nisso, o senhor poderia pedir a Ivy Cerea que viesse até aqui com um lanche bem reforçado para três pessoas. E com um cantil...
— ...cheio de Archer's Tears. Era o que eu imaginava. Será providenciado, comandante — Halvorsen fez sinal de que compreendera.
A comunicação foi interrompida, e Helga Legrelle surgiu na linha.
— Cliff — disse em tom exaltado. — Neste instante, nossa operação está sendo iniciada. As primeiras amostras acabam de chegar à nave. Deseja ser mantido constantemente a par?
— Não — disse Cliff. — Chamaremos quando precisarmos de alguma coisa, ou se surgir algum perigo. Desligo.
— Cuidem bem de vocês. Entendeu? Cliff sentiu-se comovido.
— Naturalmente, minha filha — disse. — Como sempre, sairemos disto como heróis envoltos numa auréola. Talvez Wamsler acabe nos dando outra vez um relógio ou uma caixa de uísque autêntico.
— Tenho minhas dúvidas — concluiu a operadora de rádio.
— Vamos dar mais uma olhada no mapa — disse Cliff. — Cada estação emite um sinal de posição característico, e os receptores das naves cargueiras estão ajustadas para o mesmo. Viremos daqui — Cliff desenhou uma seta e traçou uma linha — e nosso primeiro pouso será ali.
Ao lado da respectiva posição indicou um sinal.
— O serviço será seu, Hasso. Não poderá haver nenhuma confusão.
— Faz pouco tempo que sou engenheiro de bordo — disse Hasso, piscando os olhos azuis para Cliff. — É claro que terei meus problemas com essas coisas.
McLane repeliu-o com um gesto.
— Será um serviço infernal, meus amigos — asseverou.
Elaboraram uma rota que previa oitenta pousos, voltaram a recapitular tudo e aguardaram o lanche. Antes que os três homens entrassem resolutamente e cheios de iniciativa na sua Lancet, permitiram-se um enorme gole da excelente bebida que o cônsul Halvorsen lhes mandara.
O círculo de edifícios brancos e reluzentes, que se erguia numa confusão de estacas sobre a superfície luminosa do espaçoporto, captou os primeiros raios. Na linha do horizonte havia uma parede de nuvens, fina e vertical, e o sol ia subindo atrás dela. Três aves de rapina bateram com as asas ao sobrevoarem a Grande Laguna. Dirigiam-se para o sul, para a direção que a Lancet tomaria. Hasso recolheu a escada, ligou toda a aparelhagem e colocou o mapa à sua direita, sobre os aparelhos de radiocomunicação. Depois disso a Lancet ergueu-se sem o menor ruído.
— Objetivo número um — disse Cliff, examinando de uma das cúpulas transparentes a paisagem que despertava. — O conjunto de tanques da Laguna Seiscentos e Setenta.
— Entendido — disse Hasso e acelerou.
A Lancet inclinou-se para a frente, ganhou velocidade e deslocou-se vertiginosamente para o sul, trinta metros acima dos juncos, da água e das árvores bizarras. Os homens mantinham-se em silêncio. Bastante nervosos, examinavam as armas e refletiam sobre suas tarefas. Dali a dez minutos, depois de um vôo veloz, Hasso baixou a Lancet. A nave auxiliar baixou sobre o campo de cerca de setenta metros de diâmetro situado junto aos tanques, que eram cinco. Tal qual o campo espacial de Grande Laguna, compunha-se de blocos de plástico, soldados e apoiados em suportes de metal. A escotilha externa da comporta abriu-se.
— Hasso, você ficará na escada da nave e nos dará cobertura com a HM-4.
Hasso fez um gesto afirmativo. Cliff pegou uma caixinha com tubos de ensaio, enfiou-a no bolso interno da jaqueta e destravou a arma de pressão de gás.
— Vamos — disse em tom enérgico.
— O que querem? — perguntou o colono.
Parecia ser um parente de Titus; a barba e a vestimenta desleixada conferiam-lhe um ar característico.
— Ano Galático! Pertencemos a uma comissão incumbida de serviços de coordenação. Precisamos de amostras dos seus tanques.
O colono pôs as mãos nos quadris e gritou:
— Dê o fora, tec!
Cliff exibiu um sorriso feroz. Sem dizer uma palavra tirou a arma do coldre e apontou diretamente para a barriga do homem.
— O senhor irá por bem ou teremos de usar métodos mais persuasivos? — perguntou em tom indiferente.
O colono lançou-lhe um olhar de perplexidade.
— Mantenha-o sob controle, comandante — disse Cliff.
Erickson tirou a arma de pressão de gás do cinto largo e encostou o cano na altura do estômago do colono.
Cliff correu para o primeiro tanque, abriu a caixinha e levantou o fecho do primeiro tubo de ensaio. Ao lado da torneira havia um pequeno fecho de controle. Cliff pôs o tubo embaixo do jato fino que saiu da abertura, colocou cerca de vinte centímetros cúbicos e voltou a fechar a torneirinha. Arrolhou o tubo de ensaio e arrancou a faixa de lacre. Os produtos químicos entraram em ação e produziram no tubo de ensaio uma vedação à prova de ar. Cliff correu para o segundo tanque. Repetiu o procedimento. Levou exatamente cinco minutos para encher a caixinha com as cinco amostras.
Enquanto Cliff retornava à nave, Erickson retirava-se, andando de costas. O colono fitava-o em silêncio e não fez a menor menção de esboçar qualquer gesto de defesa. Fora tomado de surpresa. Ao chegar embaixo da nave, Erickson fez um disparo de advertência. A agulha penetrou no chão bem perto das botas do colono. Recolheu a escada, fechou a comporta e a Lancet levantou vôo. Cliff pegou uma caneta hidrográfica e desenhou três algarismos sobre a caixinha: 670.
— Já conseguimos a maior parte — asseverou Hasso, enquanto a nave corria em direção ao próximo objetivo. — Só faltam setenta e nove pousos e decolagens.
Cliff olhou para o mapa e murmurou:
— Objetivo número dois. Laguna Seiscentos e Cinqüenta e Nove.
Bem à frente da nave esférica com as cúpulas características de plástico transparente erguia-se a próxima instalação de tanques em meio aos juncos que ladeavam as águas. Cinco gigantescos tanques esféricos repousavam sobre suportes com grandes placas de apoio. Entre os tanques, havia passarelas mecânicas que permitiam aos encarregados cuidarem da aparelhagem sem molhar-se. Ao lado do círculo, uma pequena casa pré-fabricada construída sobre estacas. Para os robôs de transporte fora instalada uma rampa de acesso. Um conjunto de reatores supria de energia a aparelhagem móvel e fornecia a eletricidade para as instalações de rádio e as máquinas. Era tudo. Quase mil estações desse tipo estavam espalhadas pelo planeta de Tareyton.
— Vamos pousar — disse Hasso, depois de ter captado e identificado o raio vetor característico.
Exatamente, dez minutos se haviam passado desde a decolagem em Grande Laguna. Os acontecimentos verificados na primeira estação repetiram-se quase que do mesmo modo.
— Se conseguirmos manter o desempenho atual, poderemos terminar dentro de quatorze horas — resmungou Cliff. — Depois, cairemos de estafa, mas isso não faz mal.
Mais uma vez a Lancet encontrava-se no ar. Corria em direção ao objetivo número três.
Ao meio-dia, mais de seis horas após a decolagem, haviam visitado um total de trinta e cinco estações de tanques.
Por duas vezes, viram-se obrigados a recorrer à violência.
Num dos pousos, foram recebidos a tiros e responderam ao fogo.
Até as quatorze horas tudo correu normalmente. Hasso reclinou-se e disse com a voz cansada:
— Cliff.
McLane tirou rapidamente três recipientes de plástico com café do minúsculo fogão de radar. Dividiu-os pelos amigos e levantou os olhos.
— O que houve, Hasso?
— Hasso espalmou a mão e soltou a direção.
— Não agüento mais.
— Assumo o comando — disse Erickson e empurrou Hasso para fora do assento do piloto. C.O., que era comandante de nave, evidentemente sabia pilotar uma nave auxiliar. Hasso fechou os olhos e sorveu devagar o café. Depois recostou-se no assento do co-piloto.
— É um negócio infernal, Cliff McLane! — falou sorrindo.
Era um sorriso um tanto martirizado, mas confiante. Cliff não respondeu; limitou-se a estender a mão direita com os dedos abertos. Os dedos tremiam de nervosismo e exaustão. Erickson inclinou-se sobre o mapa, olhou para o indicador ótico do sinal de identificação e disse em voz alta:
— Objetivo número trinta e nove. Laguna Trezentos e Vinte e Um.
Dez segundos antes do pouso, Cliff ligou o botão de resposta do videofone. Helga apareceu na tela. A moça arregalou os olhos, contemplou os três homens sem dizer uma palavra e sacudiu a cabeça.
— Até parece que vocês são doentes internados numa clínica de nervos dirigida pelo doutor Sherkoff — comentou. — Preste atenção. Transmitirei a ligação para a outra nave.
A imagem desapareceu e foi substituída por outra. Era um cientista.
— Barcfield! — disse Erickson em tom de espanto. — Tem alguma informação para nós?
Barcfield era bacteriólogo e, evidentemente, fora incumbido desde logo da chefia das duas equipes. Desde a chegada das primeiras amostras, se havia passado um tempo considerável. Os cientistas já deviam ter realizado grande número de exames.
— Tenho. É uma coisa estranha, comandante.
Barcfield estava pálido e parecia tão exausto quanto os três homens que se encontravam na Lancet. Atrás dele, viam-se os gigantescos microscópios, cujo funcionamento era possível devido às instalações de bordo, além de outros cientistas e de uma quantidade enorme de tubos de ensaio bem arrumados.
— Conte logo!
A nave auxiliar pousou e a comporta abriu-se.
— Até agora todas as amostras, com exceção das sedimentações salinas higroscópicas, estavam contaminadas. Positivamente contaminadas.
Três pares de olhos fitaram-no. Os homens mantiveram-se em silêncio. Tiveram a impressão de que poderiam ouvir o bater de seus corações.
— O que foi que encontraram?
— Volto a afirmar: quatro das amostras colhidas em cada estação de tanques estavam cheias de germes. Examinamos todas, num total de duzentas amostras, ou seja, oitocentos preparados. Todos eles continham germes antiamarílicos.
McLane disse com a voz fraca:
— Faça o favor de explicar o sentido da expressão. Não somos cientistas.
Um sorriso tímido surgiu no rosto de Barcfield.
— Pelo que pudemos constatar, estes extratos contêm devoradores de vírus extremamente resistentes. Continuam vivos, mesmo que os extratos sejam submetidos a modificações muito complicadas através de processos químicos e do calor. Os planetas do Sistema de Papillon, por exemplo, poderiam ser contaminados de febre amarela. É verdade que seria uma febre amarela completamente diferente das que conhecemos por experiência. As pessoas que comem os extratos vindos deste planeta não serão atacadas pela febre amarela. O nome correto dos germes antiamarílicos seria germes bacteriófagos, já que devoram vírus ou bactérias. Compreendeu minha exposição?
— Temos motivo para supor que os dez planetas do Sistema de Papillon recebem soros que agem contra a febre amarela. Se de repente as naves passassem a transportar vírus de febre amarela, os habitantes desses dez planetas não sofreriam nada — intercalou Cliff.
Barcfield acenou com a cabeça; parecia satisfeito.
— Vejo que compreendeu, comandante. Agora já pode tirar suas conclusões.
Cliff refletiu alguns segundos; depois disse:
— Pela lógica, as amostras colhidas por nós deveriam ser totalmente neutras, uma vez que se destinam a Terra. Nosso planeta não está protegido contra o vírus da febre amarela. Dali se concluiria que grandes quantidades de vírus de febre amarela serão colocados neste planeta. A doença deverá representar um golpe mortal para Terra.
Mais uma vez, o cientista concordou.
— Correto. É verdade que é um procedimento longo e complicado, mas o mesmo exclui totalmente o perigo para os planetas do Sistema de Papillon. Entendido?
— Entendido — disse Erickson. — Vamos colher o resto das amostras. Precisamos ter certeza absoluta.
— Era o que eu ia recomendar — concluiu o cientista. — Enquanto isso, examinaremos todas as amostras infetadas que pudermos. Não tenham a menor dúvida.
— Acompanhamos a palestra — disse Helga. — Cliff, as coisas estão ruins, não estão?
— Estão — respondeu o comandante. — Muito ruins. Voltaremos ao anoitecer, com um total de oitenta amostras.
Saíram da Lancet.
Mais uma vez a lua mergulhou a paisagem em sua misteriosa luminosidade. Não havia nenhuma luz que indicasse a existência de qualquer pessoa na última das estações de tanques, que correspondia ao objetivo número oitenta daquele dia. Um silêncio arrepiante envolvia tudo; só se ouviam os ruídos produzidos pelos animais. A Lancet, cujas máquinas trabalhavam em ponto morto, estava parada na periferia do campo de pouso. Os três homens afastaram-se dos suportes de aterrissagem. Sentiam fome e estavam cansados.
— Não estou gostando — disse Hasso em voz baixa.
A arma que segurava na mão emitia um brilho ameaçador.
— Está tudo quieto demais — cochichou Erickson. — Até parece que não há ninguém por aqui. Estamos a poucos quilômetros de Grande Laguna, e não há ninguém... Não sei como explicar.
Cliff saiu da sombra da nave auxiliar.
— Suas ponderações são corretas, mas irrelevantes. Precisamos da última amostra.
— Eu lhes darei cobertura — disse Erickson e destravou a espingarda que segurava com ambas as mãos.
Cliff ligou o pesado farol manual e caminhou alguns metros à frente de Hasso com os tubos de ensaio embaixo do braço. Aproximava-se do primeiro dos gigantescos tanques. Não se via nada, e nada se movia.
— Será que abandonaram a estação de tanques? Ou estarão escondidos? — cochichou Hasso em tom nervoso.
— Não sei — murmurou Cliff. Iluminou a torneira de extração de líquido, abriu o primeiro tubo de ensaio e encheu-o até dois terços da altura. Depois, os dois homens foram ao lugar situado embaixo do segundo tanque. Entre o entrelaçado de suportes e placas de apoio havia alguns centímetros de água. De uma hora para outra, o som produzido pelos passos parecia bastante alterado. Era o segundo tanque. Enquanto Cliff enchia o segundo tubo de ensaio, Erickson, que se encontrava embaixo da Lancet, pegou o pesado holofote manual, ligou-o e deixou o feixe de luz . caminhar em todas as direções. Iluminou os dois homens, os juncos, e desligou o holofote. Era tudo silêncio e escuridão. A luz da pequena lanterna fazia um jogo fantasmagórico entre os tanques dois e três. Subitamente Erickson ouviu os passos do comandante e do engenheiro de bordo. A água farfalhou, e de repente ouviu-se um chiado. Nada se moveu.
Bastante nervoso, Erickson mudou a posição da arma. Segurou-a na altura dos quadris e virou-se.
— Comandante! — gritou. — Aconteceu alguma coisa?
— Não.
Cliff e Hasso passaram ao quarto e ao quinto tanque. Erickson viu alguns contornos nítidos por entre a luz e voltou a ouvir o chiado. Foi um som metálico seguido de um assobio pelo ar. Devia ser o ricochete do disparo da arma de pressão de gás. Erickson abaixou-se, levantou o holofote e iluminou a periferia da área livre. Ouviu vagamente os ruídos que Cliff produziu ao tirar a amostra, seguidos pelos passos dos dois homens que caminhavam em sua direção por dentro da água rasa.
— Estão atirando contra vocês — disse Erickson em voz baixa.
Viu Cliff e Hasso diante da esfera gigantesca da lua. Suas silhuetas desenhavam-se nitidamente. E alguém atirava de algum lugar. Devia estar bem oculto. Hasso e Cliff já se encontravam ao lado de Erickson.
— Alguém está atirando contra nós! — disse Erickson em tom insistente. — Rápido! Vamos entrar na nave.
Mais uma vez, ouviu-se o chiado, e antes que cessasse, o ruído da agulha atingindo alguma coisa. Ricocheteou contra a parede da Lancet. Cliff virou-se rapidamente e dirigiu a arma contra os juncos. Puxou o gatilho várias vezes e ouviu o chiado fraco dos gases descomprimidos. Não atingiu nada. Apontara para os juncos, na altura do joelho de um homem que estivesse de pé.
Hasso subia pela escada e desaparecia no interior da nave.
— Vamos! Entre logo — disse Erickson. Este também disparou, rapidamente e sem fazer pontaria. Abaixou-se, atirou a pesada lanterna para Hasso, que a pegou habilmente no ar. Cliff saltou para a escada, colocou as amostras no chão. Quando estava para esticar a mão para ajudar Erickson a subir, ouviu um som diferente.
— Fui atingido. Que diabo! — disse Erickson e foi escorregando da escada. Cliff saltou para o chão. Abaixou-se, ouviu o ricochete junto a sua cabeça e pôs C.O. nas costas. Fungando, cambaleou escada acima. Segurou-se. Hasso decolou num instante. A Lancet ganhou altitude e correu vertiginosamente em direção à Grande Laguna. Cliff baixou o corpo do comandante numa poltrona.
— Está morto? — perguntou Hasso, que não tirava os olhos dos instrumentos e imprimia o desempenho máximo às máquinas.
— Inconsciente — respondeu Cliff. — As agulhas fazem com que os animais menores fiquem inconscientes. Não sabemos que efeitos produzem no homem. Ligue o videofone.
Hasso colocou a nave auxiliar na rota e com um movimento rápido fez a ligação. Helga Legrelle apareceu na tela.
— Alguém atirou contra nós. Erickson foi atingido por um disparo de arma de pressão de gás. Faça o favor de avisar Halvorsen. Peça-lhe que chame um médico. Pousaremos no terraço.
— Será providenciado — disse Helga, virando-se e estabelecendo uma ligação indireta.
Enquanto abria a camisa de Erickson e colocava a mão sobre o coração do major, Cliff ouviu a voz de Halvorsen. Gritou alguma coisa que soava como: "Era só o que faltava. Devemos chamar imediatamente Longjon. Rápido!" Logo se tornou mais tranqüilo.
Helga estabeleceu a ligação direta entre Halvorsen e a Lancet.
A cabeça do cônsul apareceu na tela.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Faz dois minutos — respondeu Cliff. — Foi no último ponto de nossa rota. Qual é o efeito das agulhas?
— Erickson não morrerá — disse Halvorsen. — Mas dentro de cinco minutos contados após o impacto deve receber a injeção com o antídoto. Longjon já se encontra a meu lado, com tudo preparado. Voe mais depressa, Sigbjörnson.
Sem dizer uma palavra, Hasso apontou para a alavanca do acelerador, que estava regulada na última posição. As máquinas emitiam um zumbido desagradável. A Lancet aproximava-se da Grande Laguna à velocidade de quinhentos quilômetros por hora.
— Estamos desenvolvendo a velocidade máxima — disse Cliff. — Neste momento vemos as primeiras luzes da povoação.
Chegaram com um segundo de antecedência. A Lancet passou ruidosamente por cima da nave espacial, correu para a casa do cônsul e freou com uma desaceleração de cinco G. Cliff fora prevenido e amarrara Erickson. Depois a nave auxiliar pousou pesadamente, demoliu a amurada do terraço e, ao tocar a superfície, já havia escamoteado a escada. Longjon precipitou-se para dentro. Percebeu à primeira vista o que havia acontecido e atirou-se sobre Erickson. A seringa pressurizada chiou como se fosse uma arma de gás. Hasso enxugou o suor da testa.
— Foi por pouco, Cliff — disse com um suspiro de alívio.
Alguns homens e várias moças, que pelo aspecto provinham de Terra, entraram na nave e carregaram o comandante para fora. Cliff sabia que ele e Hasso só precisavam de uma coisa: dormir bastante.
— Aquilo que está para vir provavelmente será muito mais crítico, Hasso — disse em tom sério.
De pé a seu lado, Halvorsen fitou-o com uma admiração indisfarçável, misturada com certa timidez.
— Dentro de doze horas, Erickson recuperará plenamente a consciência — disse. — Os irmãos Veever ainda não foram localizados.
Cliff apontou a direção da qual tinham vindo.
— Amanhã poderá enviar uma expedição armada num helicóptero. Tenho certeza quase absoluta de que foram Titus e sua irmã que atiraram contra nós. Deve ter sido Titus que atingiu o comandante, pois é um atirador de primeira. Os ricochetes certamente devem ser debitados a sua irmã.
— Amanhã — disse Halvorsen. — O que vai fazer agora?
Cliff sentiu um cansaço igual ao que o dominara dois dias antes, à mesma hora.
— Vamos fazer três coisas — respondeu. — Voar até a nave, descarregar as amostras e depois dormiremos.
Dali a uma hora, McLane estava deitado na cama. Durante os poucos minutos que se passaram antes de adormecer, refletiu sobre aquilo que havia descoberto e sobre as prováveis conseqüências dos fatos.
"É de se supor", pensou, "que nas oitenta amostras não será encontrado nada. Os homens deportados para cá, que foram os responsáveis pelos movimentos separatistas dos dez planetas, querem vingar-se. Protegerão seus mundos contra os efeitos da agressão que planejaram para Terra. Enquanto nesta, alguns vírus provocariam uma catástrofe, no Sistema de Papillon a população imunizada os absorveria sem problemas."
"Sim", continuou pensando Cliff, "nas oitenta amostras não será encontrado nada."
Mas havia uma verdade terrível. De tão cansado que estava, Cliff McLane era incapaz de raciocinar claramente, e por isso cometeu um engano.
Das dez horas da manhã até as onze, ou seja, durante uma hora inteira, Cliff esforçou-se para espantar o cansaço profundo que invadira seu corpo. Tentou recuperar a capacidade de raciocinar e de reagir com a necessária rapidez. Naquele instante, ainda não poderia imaginar que, dali a três horas, uma decepção terrível o aguardaria. Levantou-se da mesa do café. Comera sozinho, já que os outros participantes da operação estavam superocupados. O zumbido do videofone cortou o silêncio.
Cliff parou e calcou a tecla de resposta.
— McLane — disse laconicamente. Era Halvorsen.
— Arme-se de paciência, comandante — disse. Cliff não saberia dizer se o cônsul anunciaria um desastre ou não. — Enquanto o senhor estava descansando, travamos o primeiro combate neste planeta.
Cliff logo compreendeu.
— Foram os Veever?
— Sim — respondeu o cônsul — pegamo-los junto à estação de tanques em que Erickson foi atingido pelo disparo. C.O. ainda se sente um pouco fraco, mas não sofreu qualquer dano permanente, Será que poderia vir logo até aqui?
— Voarei — asseverou Cliff e desligou. Mario e ele chegaram simultaneamente à plataforma.
— Comandante — disse Mario, apertando a mão de Cliff. — Será que a grande aventura nos pegou?
Um sorriso cobria-lhe o rosto largo.
— Pegou. Mas não é exatamente o que eu queria. Venha comigo.
Uma multidão de colonos estava reunida na enorme sala que ficava junto ao terraço. Pelas vestimentas e pela ausência das barbas marciais percebia-se que eram quase todos terranos. Ninguém falava. No meio da sala havia uma poltrona pesada. Titus Veever estava sentado nela, amarrado com largas correias. Cliff parou como se alguém o segurasse. Caminhou devagar para junto de Titus. Fitaram-se longamente e em silêncio.
— Titus, caro colega de caça e companheiro de luta perigosa — disse Cliff em tom penetrante. — O senhor tem sorte por estar apenas amarrado a essa poltrona. Devo-lhe muita coisa, e prometi a mim mesmo que lhe daria uma sova por causa de sua desonestidade. Que tal?
— Seu tec estúpido! — resmungou Veever.
Cliff fez um sinal para Mario, abriu a grande fivela magnética de seu cinto e entregou-o ao primeiro-oficial. Mario sorriu como quem compreendia.
— Desamarre-o, Halvorsen — disse Cliff.
Halvorsen, muito nervoso, interpôs-se entre o colono e o astronauta.
— Comandante, o senhor não pode... Afinal, este homem...
Cliff afastou-o.
— Na qualidade de chefe da operação ordeno-lhe que desamarre o prisioneiro.
Halvorsen deu-se por vencido. Sacudiu os ombros e fez um sinal para seus subordinados. Estes não disseram nada; desataram os cintos que prendiam Titus. Cliff recuou um passo. Na sala, espalhou-se um silêncio de tensa expectativa. Esse silêncio foi interrompido por Mario de Monti, que tirou a pistola do cinto de Cliff, destravou-a com um estalo e se colocou diante da porta.
— Vamos assistir a uma luta honesta, minha gente.
Veever levantou-se e parou diante da poltrona. Cliff procurou golpear com a esquerda. Veever reagiu com uma rapidez extrema: levantou os braços e reteve a mão esquerda de Cliff. Este puxou o colono para junto de si, e com a direita desferiu um golpe que passaria para a história.
Veever foi atingido em cheio. Foi atirado para trás, caiu na poltrona e o pé desta quebrou-se com o impacto de seu corpo. A violência do soco fez com que Titus rolasse e batesse em cheio contra a parede. A pancada abalou a casa e um enorme quadro com moldura especial soltou-se da parede. Tombou para a frente e quebrou bem na cabeça do colono. Cliff ficou parando, fazendo massagem na mão direita.
— O desempenho fez jus à sua fama, Cliff — disse Mario com um sorriso largo.
Dois homens libertaram Veever da moldura e dos pedaços do quadro e arrastaram-no para o centro da sala. Amarraram suas mãos e ficaram parados em atitude de expectativa. Halvorsen esteve a ponto de dizer alguma coisa, mas foi interrompido por um zumbido.
Alguém manipulou uma chave junto à escrivaninha coberta de tubos de ensaio vazios, pequenos videofones e armas, além de lápis, anotações e xícaras vazias. O grande videofone foi ligado e Helga Legrelle surgiu na tela.
— Quero falar com o comandante McLane — disse em voz alta.
Cliff abriu caminho por entre os circunstantes. O rosto de Helga trazia todos os sinais de pânico. Cliff desconfiou de que havia alguma coisa terrível.
— Vou ligá-lo com Barcfield — disse laconicamente e moveu uma chave. O rosto do cientista encheu a tela.
— McLane, é uma coisa terrível — balbuciou. Parecia que sua voz não obedecia à vontade.
— O que houve?
— Das oitenta amostras, todas foram examinadas, e não existe nenhuma possibilidade de engano, setenta e seis não acusaram nada. São compostas exclusivamente de extratos.
Cliff pensou que o chão iria abrir-se embaixo dele. Na sala só se ouvia a respiração pesada do colono, que parecia recuperar a consciência aos poucos.
— E as quatro restantes? — indagou Cliff.
— As quatro estão infetadas de vírus de febre amarela.
— Meu Deus! — disse Cliff. — Será que não houve algum engano?
O cientista-chefe sacudiu a cabeça sem dizer uma palavra.
— Isso significa que Terra não terá a menor proteção se alguém tiver a idéia de carregar as naves de algum desses dezesseis tanques. Seria a maior catástrofe desde o planeta incandescente que saiu da trajetória. Obrigado, Barcfield.
Barcfield hesitou.
— Para sua informação quero acrescentar que as amostras provêm dos conjuntos de tanques Quinhentos e Trinta, Quinhentos e Trinta e Nove, Seiscentos e Vinte e Um e Setecentos e Três.
Uma pessoa que se encontrava na sala anotou os números.
— É só o que posso informar — disse Barcfield. — O que devemos fazer, comandante?
— Interrompa as análises. Vá dormir e prossiga quando estiver descansado. Depois documente tudo e reúna provas cabais dos fatos. Algum ocupante da nave ficou exposto aos vírus de febre amarela?
— Não. Fizemos vacinas com culturas criadas às pressas. O senhor ainda terá que ser vacinado, McLane.
— Daqui a pouco estarei aí — prometeu Cliff em tom nervoso.
— Ei! — disse alguém com a voz rouca. — Ouça, seu tec estúpido!
Várias cabeças viraram-se. Titus Veever endireitara o corpo um pouco e virou a cabeça de forma a poder fitar McLane com os olhos inchados.
— Quer repetir a dose? — perguntou Cliff em tom gentil.
— O senhor perdeu o jogo, astronauta. Parecia que ali vinha outra surpresa.
— Por quê? — perguntou Cliff.
— Ontem os tareys carregaram quatro naves, que se encontram na rota de Terra. Pousaram junto aos tanques que continham vírus. O senhor perdeu e Terra também.
Cliff ficou calado por segundos.
Depois disse com uma calma que surpreendeu até mesmo Mario, embora o primeiro-oficial conhecesse o poder de autocontrole de Cliff:
— Cônsul Halvorsen.
— Pois não, comandante.
— Leve este homem à câmara fria da Hydra II. É uma ordem. Cuidarei do resto.
Depois segurou Mario pelo ombro e gritou:
— Depressa, Mario. Realizaremos uma decolagem de emergência com a Orion.
Saíram correndo sem despedir-se das pessoas que se encontravam na sala.
Precipitaram-se para dentro do elevador central, comprimiram o botão e foram à parte inferior da nave. O pequeno elevador recolheu-os. Dali a pouco, viram-se na sala de comando. Helga virou-se abruptamente ao ver os dois homens. Manipulava os comandos de comunicação audiovisual.
— O que houve? — cochichou em tom assustado.
— Uma decolagem de alarma. Onde estão Atan e Hasso?
— Atan está no seu camarote, dormindo — disse Helga. — Hasso está com os cientistas.
Cliff foi saindo e gritou:
— Avise Tamara e Van Dyke. Tomarei uma vacina. Halvorsen explicará tudo.
Voltou dali a cinco minutos. Ao lado dele, Hasso atravessou correndo os sessenta metros do espaçoporto. Atan já estava sentado diante das telas. Helga gritou ordens numa sucessão rápida, seguidas de instruções e informações. Hasso desapareceu na sala de máquinas, e Mario já havia programado a rota para Terra.
— Comandante para computação: curso de Terra programado?
— Comandante para sala de máquinas: toda força em todos os conjuntos. Velocidade máxima.
— Entendido.
Hasso, que como de costume surgiu na tela, levantou a mão.
— Comandante para rádio: prepare-se para transmitir uma série de mensagens para Tareyton e para as autoridades terranas.
— Todos os contatos estabelecidos. Livro de bordo funcionando — respondeu Helga.
— Decolar! — disse Cliff.
A Orion VIII subiu, disparou para o céu e afastou-se vertiginosamente. Dali a alguns segundos, durante os quais os neutralizadores de gravidade tiveram que realizar um trabalho titânico, os homens reunidos na casa de Halvorsen ouviram um forte estampido. Isso se deu quando o disco prateado ultrapassou a barreira do som. A nave desapareceu no espaço.
— Estabeleça contato com Tareyton, minha filha — disse Cliff em tom tranqüilo.
Contemplou a tela central redonda. Viu o planeta diminuir e o sol reduzir-se até ficar do tamanho de uma estrela. Dali a alguns minutos, se as máquinas não queimassem, a Orion penetraria no hiperespaço.
— Contato estabelecido. Ligarei as telas.
Helga moveu várias chaves.
— Preste atenção, Halvorsen — disse Cliff, que já se acalmara um pouco. — O senhor já deve ter verificado quando as naves cargueiras decolaram de seu planeta, não é?
Halvorsen esboçou um sorriso forçado.
— Sim, infelizmente — respondeu.
— Por que infelizmente? — perguntou Cliff.
— Porque lamento ter que dar-lhe a informação que segue, McLane. A primeira das quatro naves tem uma vantagem de vinte e duas horas. A última decolou há dez horas. Estamos reunindo uma tripulação que voará para as quatro estações de tanques. Assim que tivermos os resultados, entrarei em contato com o senhor pelo hiper-rádio. Entendido?
— De acordo — disse Cliff. — Não se preocupe. Minha Orion é uma nave muito rápida.
— Acontece que são vinte e duas horas. Isso corresponde a seis zonas de distância.
— Quer fazer o favor de chamar Tamara Jagellovsk?
Halvorsen fez um gesto afirmativo e transferiu a ligação.
— Decolei para interceptar as naves antes que cheguem a Terra — disse Cliff sem o menor intróito. — Tentarei convencer os comandantes a pararem. Além disso, entrarei em contato com Villa e Wamsler. Concluam as investigações e levem Halvorsen e Veever a Terra. Combinado?
— Combinado, Cliff.
Oeste/Seis 039. Uma nave levava cerca de cento e quarenta horas para chegar a Terra. As naves cargueiras eram mais lentas.
"Por isso", assim pensou Mario de Monti no dispositivo de alimentação do computador, "a Orion teria que vencer o percurso em pouco mais de cento e vinte horas para ter uma chance real."
— Faça o favor de chamar Lydia van Dyke.
— General — disse o comandante — farei o possível para convencer as naves a pararem. Se alguma coisa não der certo, poderei contar com seu apoio?
— Pode contar com todo o apoio da minha parte, Cliff — disse Lydia em tom amistoso.
— Muito bem. É possível que tenha que tomar uma medida drástica. Gostaria de ter cobertura.
— No que depender de Tamara e de mim, o senhor pode contar com todo o apoio.
Cliff aproximou os dedos da tecla.
— Obrigado — concluiu.
A tela escureceu. Cliff levantou-se. Parou no centro da sala de comando e disse:
— Daqui a alguns minutos, a nave penetrará no hiperespaço. Atan, faça o favor de permanecer junto às telas. Mario, você cuidará do rádio. Helga tem dormido pouco; rápido, para o camarote. Hasso.
O engenheiro da nave respondeu pelo intercomunicador de bordo.
— Não posso aumentar mais nada, Cliff, senão ficaremos parados no hiperespaço.
— Ainda não entramos nele, Hasso.
— Não, mas daqui a pouco vamos saltar.
— Muito bem. Helga e eu vamos dormir. No momento em que um de vocês se sentir cansado acordará um de nós. A substituição tem de ser imediata. Pelo menos três postos devem ficar constantemente guarnecidos. Ligarei o piloto automático. Tudo entendido?
— Durma tranqüilo, comandante — murmurou Atan. — Cuidaremos da Orion como se fosse uma preciosidade.
Cliff sorriu.
— Muito bem — disse. — Confio em vocês.
A Orion VIII, que era uma das naves espaciais mais velozes de Terra, correu pelo espaço como um fantasma prateado, foi ganhando velocidade e finalmente foi empurrada para o hiperespaço pelas máquinas.
O painel de rádio estava com o autômato de advertência ligado.
'Hasso acompanhava as indicações das máquinas que corriam vertiginosamente. Mario achava-se sentado na poltrona de comando.
Dez horas depois da decolagem: há algum tempo De Monti procurava pesar as chances do empreendimento de Cliff.
"Conseguiria alcançar as outras naves? A Orion ultrapassaria ao menos três delas.
E uma série de mensagens de rádio seria suficiente para advertir os respectivos comandantes. O perigo residia na quarta nave, aquela que decolara em primeiro lugar. Quando os vírus de febre amarela tivessem sido inseridos no processo produtivo, já não haveria como salvar Terra de seu triste destino."
Continuou pensando:
"Nem mesmo os robôs e uma equipe sanitarista trabalhando a toda velocidade conseguiriam vacinar alguns bilhões de homens contra a febre amarela, uma doença há muito extirpada e esquecida. E os que fugissem nas naves levariam os germes para todos os setores do espaço."
Essas idéias fizeram Mario empalidecer. Sentiu um calafrio. Com o canto dos olhos, viu a luz que piscava.
Dirigiu-se imediatamente ao painel de rádio, girou os botões e ligou o hiper-receptor. Ao mesmo tempo, conectou o dispositivo de escrita e pôs o livro de bordo a funcionar. Uma mensagem transmitida por fita começou a ser gravada.
Seu teor era o seguinte:
Aqui fala o planeta Tareyton. Chamamos McLane a bordo da Orion VIII. Nossos comandos descobriram que as tripulações técnicas das quatro naves espaciais foram subjugadas. Os homens já se encontram no consulado, sãos e salvos. Informam que as quatro naves foram guarnecidas por uma tripulação composta de colonos que as levará a Terra. Com isso, o perigo tornou-se ainda maior. Titus Veever, submetido a um inquérito mais rigoroso sob a direção de Tamara, confessou que as tripulações receberam ordem de lançar os estoques na atmosfera terrana. Os cientistas pedem que acrescentemos o seguinte: o vírus da febre amarela não corresponde ao tipo clássico. Trata-se de uma cultura especial que produziu uma bactéria desnaturada. Provavelmente não poderá ser combatida por qualquer dos medicamentos ou soros conhecidos. Assinado. Halvorsen. Decolarei dentro de cinco horas em companhia de Veever e das tripulações libertadas, com destino a Terra. Desligo.
— Virão na Hydra II — murmurou Mario e disse:
— Atan. Leia isto.
Hasso surgiu na tela do videofone.
— Mario, seu rosto merece um estudo. O que está lendo?
— As piores notícias que vi desde o momento em que decolamos de Terra — respondeu Mario. — Deixe suas máquinas em paz por alguns minutos e dê um pulo até aqui.
— Irei logo — disse o engenheiro da nave.
Leram o texto que retratava uma terrível realidade. Repetiram a leitura e decidiram acordar Cliff imediatamente. Caberia a ele decidir o que se deveria fazer.
Havia cinco naves que seguiam a rota de Terra. Quatro delas levavam uma carga mortífera. Seria uma corrida de cujo resultado dependeria a própria existência de Terra. Mario encarregou-se de acordar Cliff.
— Pegarei esta folha e tentarei explicar ao coronel que só há uma possibilidade de aumentar o clima de tensão. Seria o aviso de que a primeira nave pousou ou coisa semelhante.
Hasso sacudiu a cabeça.
— Você tem um humor bastante macabro, meu caro — disse.
Cliff fitou os números, como se os mesmos pudessem produzir algum milagre. 122:25:09:30... Essas cifras indicavam a distância no tempo a partir do momento em que as máquinas da nave foram postas a funcionar. Cento e vinte e duas horas e vinte e cinco minutos: durante esse tempo a Orion VIII correra vertiginosamente pelo espaço, executara saltos pelo hiperespaço e encontrava-se a poucos segundos do momento em que voltaria a ser arremessada para o espaço normal.
— Estamos chegando perto de Terra — disse Cliff. — Ainda temos tempo de transmitir a mensagem. Faça correr a fita, Helga.
Já conhecia o texto do aviso de Halvorsen e ajustara seus planos ao mesmo. A antena da nave irradiou a primeira mensagem pelo hiperespaço. Hasso utilizou todas as reservas energéticas para atingir uma capacidade de transmissão mais alta. O texto foi o seguinte:
Aqui fala o cruzador espacial Orion VIII comandado por McLane. Circunstâncias extraordinárias obrigam-me a expedir a seguinte ordem: é estabelecida uma proibição geral de pouso para toda e qualquer nave. Repito. Uma proibição geral de pouso para toda e qualquer nave. Nenhum veículo espacial poderá penetrar na atmosfera terrana. Meu projetor Overkill será utilizado sem a menor contemplação se constatar qualquer violação desta ordem. Desligo.
O aviso foi transmitido três vezes. Depois Helga desligou. Todas as naves que se encontrassem no hiperespaço, nas proximidades de Terra, haviam captado a mensagem. Dali a alguns segundos, o sol e as estrelas surgiram nas telas da nave. A Orion encontrava-se no espaço normal, a uma unidade astronômica de Terra. Os tripulantes encontravam-se nos seus postos.
Cliff estava sentado em sua poltrona, com os cintos atados, e segurava os controles de pilotagem manual. Cada pessoa que se encontrava a bordo sabia perfeitamente o que tinha que fazer. Hasso reduziu o desempenho da maior parte das máquinas. Com uma satisfação silenciosa, constatou que nem um único bloco se queimara, embora parte dos condutos tivesse sofrido bastante.
— Atan — perguntou Cliff em tom penetrante. — O que está vendo?
As telas de Atan mostravam o setor espacial adjacente a Terra no qual deveria surgir a nave de Tareyton. Se os cálculos de Cliff fossem corretos, e se os colonos quisessem arriscar uma missão suicida, a nave teria que aparecer a qualquer instante.
— Por enquanto nada.
Helga girou a fita para trás e ligou o transmissor para o tráfego de rádio normal. Mais uma vez, as áreas adjacentes a Terra receberam um aviso. As poucas naves da frota que se encontravam nas proximidades souberam interpretar corretamente a informação de McLane. Afinal, conheciam o coronel. Além disso, dali a poucos segundos, o texto seria transmitido para o gabinete de Wamsler. Este ouviu a mensagem, empalideceu e começou a esbravejar.
Os segundos passaram devagar, arrastavam-se, martirizavam os homens...
— Há um contato de ressonância, Cliff.
— Procure verificar se é uma nave cargueira ou um cruzador.
Atan fez suas verificações e, dentro de quinze segundos, constatou sem a menor sombra de dúvida que se tratava de uma nave cargueira vinda de Tareyton. Fez um sinal, e Cliff levantou a cabeça. Fitou os olhos de Mario de Monti, que ocupara seu lugar no posto de artilharia.
— Agiremos conforme o plano — disse Cliff.
— Entendido.
A Orion já se encontrava a menos de uma unidade astronômica de Terra. Acelerou e moveu-se ligeiro em direção ao outro disco. Helga tentou ininterruptamente estabelecer contato radiofônico com a outra nave, mas foi em vão. As naves aproximaram-se. Não havia a menor dúvida de que o destino do cargueiro era Terra. Quando Cliff seguiu uma rota de colisão, não reduziu a velocidade, mas apenas o sentido de deslocamento.
— Vamos atacar — disse Cliff.
A Orion aumentou a velocidade e aproximou-se. Cliff freou e colocou a nave em posição. Mario tinha a nave cargueira na mira. Comprimiu o botão e abriu fogo. Compridos fios brancos de fogo correram em direção à outra nave e esfacelaram o envoltório que abrigava os propulsores. A nave cargueira foi reduzida à imobilidade total. Um raio de tração segurou-a. Vagava no espaço sem a menor capacidade de impulso. Mais dois tiros foram disparados e derreteram as comportas de saída.
— Excelente, Mario — disse Cliff.
A nave cargueira girava inerme sobre a tela redonda. Com exceção das máquinas, o veículo espacial estava intacto. Apenas, não poderia percorrer um metro sequer com seus próprios recursos.
— Foi a número um — disse Mario. — Onde estão as outras?
— Devagar — respondeu Helga em voz alta. — Antes de mais nada teremos que ouvir os gritos de Wamsler. Está no meu receptor. Contato audiovisual por Eos IV.
— Transfira — disse Cliff.
— Marechal Wamsler — gritou McLane, quando este, que gesticulava furiosamente, surgiu na tela. — Ouça primeiro o que tenho que lhe dizer.
— O que está pensando? Comando alfa. Pouse imediatamente.
Nos últimos dias, Cliff tivera que controlar-se demais. Ainda desta vez se controlou. Fitou o rosto de Wamsler, aguardou uma pausa entre os gritos e os comandos e disse em tom tranqüilo:
— Assim que voltar ao normal, discutirei o assunto com o senhor, marechal.
Fez um sinal, e Helga Legrelle interrompeu a comunicação. Cliff conseguiu ignorar as ordens das F.R.E.T. Também conseguiu reduzir à imobilidade as três naves restantes vindas de Tareyton. Rebocou-as para as proximidades de Terra, certificou-se de que nada mais poderia acontecer e depois solicitou formalmente permissão para pousar. Assim que a Orion VIII desceu na Base 104, quinze agentes do SSG prenderam a tripulação.
Cliff ficou trancado por doze horas numa cela solitária. Teve oportunidade de rememorar todos os detalhes do drama. Não se sentia muito bem.
Finalmente vieram buscá-lo. Foi levado ao gabinete de Villa como se fosse um criminoso de alta periculosidade.
Cliff já conhecia este tipo de procedimento. Mas desta vez, sentia-se enojado. Sua equipe estava reunida, sentada em fila a seu lado. À sua frente, Wamsler e Villa estavam entronizados, com Michael Spring-Brauner no centro. O recinto formigava de agentes do SSG.
— Coronel McLane — disse Villa num temível tom de voz — o senhor forçou demais as coisas. Exagerou e não há desculpa sobre os atos premeditados que praticou. Ou será que tem alguma explicação?
O rosto de Cliff assumiu uma expressão fatalista quando respondeu:
— Tenho uma impressão bastante nítida de que a partir de determinada graduação a sensibilidade sadia sofre uma redução acentuada. Por acaso rebocaram as quatro naves cargueiras?
— Foi o que fizemos — disse Villa com um sorriso finório.
— E examinaram o conteúdo dos tanques? — perguntou Cliff. — Afinal, não é totalmente impossível que uma vez tivessem uma boa idéia.
— Nos tanques havia os extratos de Tareyton.
— E esses extratos contêm tantos vírus de febre amarela desnaturados que, com eles, se poderia despovoar metade da Galáxia, coronel — disse Cliff. — Com esta o senhor não contava, não é mesmo? — soltou uma risadinha.
Por alguns segundos, Villa fitou-o com uma expressão de incredulidade. Depois ligou um videofone e pediu às suas equipes que mantivessem os tanques fechados e chamassem um grupo de bacteriólogos. Cliff e seus companheiros ouviram-no.
— Normalmente costuma-se perguntar ao réu qual foi sua intenção ao praticar o ato de que é acusado — ironizou Cliff em tom de recriminação. — É claro que esta regra não se aplica nos recintos em que nos encontramos. O velho McLane agiu por puro prazer quando reduziu uma nave a sucata no interior do cubo espacial terrano. E, antes, procurou voar de Tareyton para cá num tempo recorde porque não tinha outra coisa a fazer.
Depois a raiva apossou-se dele.
— De resto — berrou sem o menor autocontrole — não tenho nenhuma vontade de discutir com os senhores. Exijo que me levem de volta a minha cela. Dentro em breve Lydia, Halvorsen, nosso cônsul em Tareyton, doze astronautas libertados e Tamara deverão pousar aqui. Pergunte a essas pessoas por que vieram para cá. Ainda lhes dou um bom conselho: prestem atenção ao que Halvorsen tem para contar.
Dirigiu-se às sentinelas.
— Vamos! — gritou. — Levem-me de volta. E não me incomodem antes que tudo tenha passado.
Villa fez um sinal para os homens. McLane foi levado para a cela solitária. Adormeceu...
...e acordou.
Ao que parecia, tinha sonhado, e ao menos os sonhos demonstraram-lhe alguma compreensão. Reconciliaram-no com seu destino amargo. Cliff apalpou os dedos doloridos e sonhou que Halvorsen se encontrava diante dele com um copo enorme de Archer's Tears e sorria. Seu bigode tremia nervosamente, que nem os juncos de Grande Laguna.
Abriu os olhos e piscou-os, um tanto confuso. Wamsler e Villa estavam sentados à sua frente.
— Oh, não!
Cliff ergueu-se. Não quis acreditar. Villa e Wamsler seguravam um enorme copo e cheiravam seu conteúdo. Wamsler parecia um tanto embaraçado. Pôs a mão para trás e trouxe um terceiro copo.
— Recomendações de Halvorsen — disse Wamsler em tom alegre e descontraído. — Pediu que lhe entregássemos esta "água da consolação".
— Contou o que aconteceu? — perguntou Cliff, olhando Villa e Wamsler com uma expressão desconfiada.
— Contou — disse Villa e tomou um grande gole. — E deu o devido realce ao papel desempenhado pelo senhor.
Wamsler bateu nas coxas e resmungou:
— Já estou perdendo a paciência com o senhor, McLane. Constantemente fico rastejando para pedir desculpas.
Cliff cheirou a bebida e sorveu um grande gole. Dentro de poucos segundos, dispôs-se a esquecer sua raiva pelas F.R.E.T. e pelo SSG. Cliff sorriu ligeiramente e perguntou:
— Ficou tudo esclarecido?
— Ficou — disse Villa. — Ficamos muitíssimo agradecidos ao senhor. Nosso juízo foi precipitado; a razão estava com o senhor. Empenhei-me pessoalmente junto ao governo terrano e consegui convencê-lo a importar uma grande remessa desta aguardente saborosíssima e presentear o senhor. Mais uma vez, Terra foi salva pelo senhor.
— Foi, sim. Mas nunca teria conseguido se não fosse minha tripulação e o cônsul Halvorsen.
Cliff contemplou os dois homens.
— Quando os vejo tão quietos — disse baixinho e com uma falsa amabilidade na voz — só posso ter pena dos senhores, que ficam sentados aqui embaixo, sem ver a lua branca de Tareyton, as aves negras e os peixes dentuços, sem ouvir o farfalhar dos juncos, sem sentir o cheiro da água salgada. Por isso, nunca compreenderão o quanto um homem como eu ama a liberdade.
— A liberdade de derrubar os tareys com socos ferozes? — perguntou Villa.
Wamsler sorriu.
— Ou a liberdade de embriagar-se vergonhosamente em serviço?
Cliff desistiu. Não adiantava discutir com esses homens numa base racional. Não compreendiam nada. Se não acontecesse um milagre, morreriam nestas "cavernas". Esvaziou o copo e começou a rir.
Em Mais Rápido que a Luz, próxima aventura da Patrulha das Estrelas, a supernave Orion, comandada pelo coronel Mc Lane, vive mais uma emocionante aventura.
Hans Kneifel
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