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Estava sentado na cama a beber café quente quando a enfermeira entrou no quarto. A rapariga inglesa com as mamas grandes. Ficou logo muito ocupada com o reposteiro
da janela, puxando-o bem para trás para deixar entrar mais luz no quarto.
- Bom dia, Sr. Perino - disse.
- Bom dia, irmã - respondi.
- Hoje é que é o grande dia, não é verdade? - sorriu.
- Pois, pois.
- O Dr. Hans deve estar a chegar - disse.
De repente, tive vontade de urinar. Pus os pés para fora da cama. A enfermeira tirou-me da mão a chávena do café. Fui à casa de banho. Nem me dei ao trabalho de fechar a porta. Depois de ter passado ali um mês, perdera a noção de privacidade.
A água jorrou-me do corpo com uma força tranquilizadora. Quando acabei, voltei-me para o lavatório, para lavar as mãos. As ligaduras brancas que me cobriam o rosto ficaram a olhar-me do espelho. Perguntei a mim mesmo qual seria o meu aspecto sob elas. Também não tardaria a saber. Nessa altura, um 'pensamento cómico atravessou-me o espírito.
Se tivesse comichão no rabo, seria que ia coçar a cara?
Quando voltei para o quarto, ela estava à espera com uma seringa na mão. Estaquei.
- Para que é isso?
- Ordens do Dr. Hans. Um tranquilizante fraquinho. O Dr. Hans
gosta que os doentes estejam descontraídos quando lhes tira as ligaduras.
- Mas eu estou calmo.
- Eu sei - respondeu. - Mas, de qualquer maneira, vamos dar a injecção. O doutor sente-se melhor assim. Deixe cá ver o braço.
.....
Era uma boa profissional. Apenas senti uma alfinetada ligeira quando ela me tocou. Levou-me até à cadeira que estava ao pé da janela.
- Vamos, agora sente-se e deixe-me pô-lo bem e confortável. Sentei-me e ela enrolou-me em volta das pernas um cobertor leve,
ao mesmo tempo que mexia uma almofada e ma punha atrás da cabeça.
- Agora descanse um bocado - disse, dirigindo-se para a porta -, daqui a bocado já cá estamos.
Acenei com a cabeça e a enfermeira saiu. Voltei-me para a janela. O sol jorrava abundante sobre a neve estival que cobria os picos dos Alpes. Vi passar um homem
com o trajo típico tirolês. Um pensamento louco atravessou-me a ideia.
- Sabes fazer yodel, Ângelo?
- Claro que sei fazer yodel, Ângelo - respondi a mim mesmo. Não é um facto que todos os italianos sabem fazer yodel?
Pus-me a dormitar.
Tinha oito anos de idade quando o conheci. Foi em 1939, num pequeno parque onde a ama costumava levar-me a brincar. Pedalava no carro de corrida em miniatura que
o meu avô me tinha dado como prenda de anos. Tinha-o mandado fazer especialmente em Itália. Com as tiras de couro do capot, os faróis eléctricos que funcionavam
mesmo, era uma réplica exacta do Bugatti tipo 59 que bateu o recorde das Brooklands em 1936. Nem sequer lhe faltava a insígnia oval do Bugatti no radiador.
Ia a pedalar como doido pelo caminho fora quando os vi à minha frente. A enfermeira alta a empurrar o homem na cadeirinha de rodas. Abrandei e toquei a buzina.
A enfermeira olhou para trás, por cima do ombro, e deslocou a cadeira ligeiramente para a direita.
Encostei à esquerda e comecei a ultrapassá-la, mas naquele sítio havia uma ligeira inclinação e, por mais que eu pedalasse, apenas conseguia manter-me ao lado deles.
O homem da cadeira de rodas foi o primeiro a falar.
- É uma bela máquina, essa que aí tens, meu filho.
Olhei para ele, sem deixar de pedalar com quantas forças tinha. Tinham-me dito que não falasse com desconhecidos, mas este parecia ser uma pessoa como deve ser.
- Não é uma máquina - respondi. - É um Bugatti.
- Estou a ver - disse o homem.
- Não há carro mais rápido na estrada - acrescentei.
- Mas não nas subidas - disse o homem.Eu continuava a pedalar com todas as minhas forças, mas já estava a perder o fôlego.
- Estamos numa encosta.
- Foi isso mesmo que eu disse - atalhou o homem-, são óptimos em estrada plana, mas, se encontram uma pequena inclinação, não têm recursos para ela.
Não respondi. Tinha que poupar as energias para continuar a pedalar.
- Há um banco já aí adiante - disse o homem. - Sai da estrada para darmos uma vista de olhos a essa máquina. Talvez se possa fazer alguma coisa.
Foi com grande satisfação que fiz o que ele me disse. Estava sem fôlego. Consegui aproximar-me do banco e ficar à frente dele. A enfermeira pôs a cadeira de lado.
Eu saí do carro.
Gianno, que nos acompanhava sempre quando eu ia com a ama para o parque, aproximou-se a correr.
- Aconteceu alguma coisa, Ângelo?
Abanei a cabeça.
Gianno olhou para o homem da cadeirinha de rodas. Não disseram palavra, mas qualquer coisa pareceu passar entre eles e Gianno sorriu.
- Claro - disse.
O homem inclinou-se sobre a parte lateral da cadeira e ficou a olhar para o interior do carro. Estendeu o braço e levantou o assento, deixando à mostra a engrenagem
e a corrente.
-Quer que abra o capot? - perguntei.
- Acho que não é preciso - respondeu, deixando cair novamente o assento na posição inicial.
-'O senhor é mecânico? - perguntei.
Quando me olhou, vi-lhe no rosto uma expressão de sobressalto. Essa expressão apagou-se rapidamente.
- Sim, acho que se pode dizer que sou - respondeu. - De qualquer maneira, era isso que eu era.
- Pode-se fazer alguma coisa? - perguntei.
- Acho que sim. - Levantou os olhos para a enfermeira. - Pode dar-me o meu livro de notas, Miss Hamilton?
Em silêncio, a enfermeira estendeu-lhe um caderno de apontamentos, simples, de capa dura, muito semelhante aos que eu usava na escola. O homem tirou uma caneta da
algibeira e, sempre a olhar para o Bugatti, pôs-se a desenhar rapidamente.
Dei a volta à cadeira e fiquei a olhar para o caderno. Aquilo parecia uma combinação estranha de rodas e correntes e riscos.
- O que é isso? - perguntei.
- Engrenagens variáveis. - Viu a expressão parada na minha cara.-Não tem importância - acrescentou.-Dá resultado, vais ver.
Acabou o desenho e estendeu novamente o caderno à enfermeira.
- Como é que te chamas?
- Ângelo.
- Pois bem, Ângelo, se quiseres vir aqui ter comigo depois de amanhã, mais ou menos a esta hora, tenho uma surpresa para ti.
. Olhei para Gianno. Fez que sim com a cabeça, em silêncio.
- Está bem, eu posso vir -''respondi.
- Óptimo. - Voltou-se para a enfermeira. - Agora, vamos para casa, Miss Hamilton. Temos que fazer.
Cheguei mais cedo. Mas ele também. Quando me viu, sorriu.
- Bom dia, Ângelo.
- Bom dia, senhor - disse. - Bom dia, Miss Hamilton.
Ela fungou.
- Bom dia.
Tinha a sensação de que não gostava de mim.
Voltei-me novamente para ele.
- Disse que ia trazer uma surpresa para mim.
- Paciência, meu rapaz. Está a chegar.
Segui a direcção do olhar dele. Dois homens, vestidos com fatos-macaco brancos, vinham pelo caminho acima, trazendo uma enorme caixa de madeira. Atrás deles, vinha
outro homem com uma caixa de ferramentas.
- Aqui - chamou o meu amigo da cadeirinha de rodas. Os outros pousaram a caixa à frente dele. - Está tudo pronto? - perguntou ao homem que trazia
a caixa das ferramentas.
- Tudo conforme mandou - respondeu o homem. - Limitei-me a tomar a liberdade de deixar uma folga de dez milímetros na fixação do eixo, para o caso
de termos que fazer algum ajuste.
O meu amigo riu.
- Continua a não confiar no meu golpe de vista, pois não, Duncan?
- Não vale a pena arriscar, Sr. Hardeman - respondeu Duncan. - E onde é que está o carro que é para arranjar?
- Está aqui mesmo - disse, empurrando-o para a frente deles.
Duncan ficou a olhar para o carro.
- É um belo automóvel.
- É um Bugatti - disse-lhe. - O meu avô mandou-o fazer em Itália, especialmente para mim.
- Os italianos fazem belos carros - disse Duncan. - Mas não percebem nada de engenharia. - Voltou-se para os outros dois. - Bom, rapazes, mãos ao
trabalho.
Pela primeira vez, vi as inscrições que traziam na parte de trás dos fatos-macaco. Bethlehem Motors. Trabalharam rapidamente, com uma eficiência que era feita de
prática. Duas cavilhas soltavam os lados e a parte de cima do caixote do fundo do mesmo, transfor- mando-os, assim, numa bancada em cima da qual puseram o meu carro.
Os dois mecânicos lançaram mãos ao trabalho. Olhei para o chão, onde o caixote aberto deixava ver uma estrutura retangular, de aço, cheia de engrenagens, correntes
e rodas.
- O que é isso? - perguntei.
- É um chassis novo - respondeu o meu amigo. - Foi muito mais fácil'construir o conjunto completo na oficina, já com tudo o que era necessário, em
vez de estar a desmontar o teu.
Fiquei calado. Naquela altura já os dois homens tinham levantado a carroçaria do meu carro do respectivo châssis e estavam a começar a trabalhar nas rodas. Passados
alguns minutos, tinham o novo châssis em cima do caixote e estavam a montar nele as minhas rodas. Em menos de dez minutos, a carroçaria do Bugatti tinha sido montada
no novo châssis. Os homens deram um passo para trás.
O Sr. Duncan aproximou-se e olhou lá para dentro. Mexeu aqui e ali, empurrando uma coisa, depois outra. Passados momentos, recuou.
- Pareceu-me que está tudo bem - disse.
O meu amigo sorriu.
- Precisou dos dez milímetros?
- Não, senhor - disse Duncan. Fez um aceno para os dois homens.
Eles levantaram o carro e puseram-no no chão. Olhei para ele e, depois, para o meu amigo.
- Vá, Ângelo, mete-te lá dentro.
Trepei para dentro do carro e ele puxou a cadeira de rodas para junto do Bugatti.
- Há umas quantas novidades que te quero mostrar antes de te pores em marcha - disse. - Vês essa alavanca aí ao pé da tua mão direita?
- Vejo, sim senhor.
- Põe a mão em cima dela. - Fiz o que ele me disse. - A alavanca desloca-se para a frente e para trás e, quando está a meio, pode mexer-se para os
lados e depois novamente para a frente. Experimenta.
Fiz deslocar a alavanca para a frente e para trás, depois para o meio e de lado para a frente. Levantei os olhos para a cadeira de rodas. Alguma coisa naquilo que
tinha feito começou de repente a tomar sentido aos meus olhos.
Ele leu-o no meu rosto.
- Sabes para que serve isso, Ângelo?
- Sim, senhor - respondi. - Alta velocidade, baixa velocidade e marcha atrás.
- Muito bem. Mas ainda fiz mais uma coisa. Pus-te um contra- pedal nas rodas de trás. Para abrandar ou parar, basta inverter a impulsão dos pedais,
como se faz com as bicicletas. Entendes?
Fiz que sim com a cabeça.
- Óptimo - disse. - Experimenta lá. Mas tem cuidado. Anda muito mais depressa do que dantes.
- Sim senhor - disse.
Cuidadosamente desci a encosta, para ver como funcionava e experimentar os travões. Cada vez que eu largava os travões, o carro avançava um pouco mais depressa,
depois, eu tocava de novo nos travões e ele abrandava. Quando cheguei ao fim da descida, dei a volta usando a marcha atrás e indo, depois, em frente. Subi a ladeira
quase com a mesma facilidade com que a desci. Parei em frente deles.
- Está óptimo!
Saí do carro e encaminhei-me para o meu amigo.
- Muito obrigado - estendi-lhe a mão.
Ele apertou-ma.
- Tive muito gosto, Ângelo.-Sorriu. - Agora tem cuidado. Tens um carro muito veloz.
- Não há problema-disse. - Vou ser piloto de carros de corrida, quando crescer.
Os homens tinham estado ocupados a meter no caixote todos os pedacitos de ferro-velho. Puseram-se a descer o caminho e o Sr. Dun- can veio ter connosco.
Estendeu uma folha de papel ao meu amigo.
- Desculpe incomodá-lo, mas precisava que assinasse isto.
O meu amigo pegou no papel.
- O que é?
- É um novo sistema. Em duplicado. É uma folha de obra. Ele também mandou perguntar a que departamento é que deve debitar isto?
O meu amigo sorriu, quase como se fosse eu próprio.
- Carro experimental.
Duncan riu-se.
- Sim, senhor.
O meu amigo assinou o papel e Duncan afastou-se. Chamei-o.
- Obrigado, Sr. Duncan.
Duncan olhou para mim com ar severo.
- De nada, rapaz. Mas não te esqueças de que, embora estejas a guiar um Bugatti, o motor é da Bethlehem Motors, graças ali ao Sr. Hardeman.
- Não me vou esquecer - respondi. - Fiquei a vê-lo descer rapidamente o caminho em direcção aos outros homens e, depois, voltei-me de novo para o
meu amigo.
- O seu nome é Sr. Hardeman?
Fez que sim com a cabeça.
- O senhor é muito simpático-disse. *
- Há pessoas que não são dessa opinião.
- Se fosse a si, não lhes ligava - respondi. - Também há muita gente que pensa o mesmo do meu avô, mas ele é muito simpático e eu gosto dele.
Ficou calado.
A voz da enfermeira fez-se ouvir por detrás de mim.
- São horas de irmos andando, Sr. Hardeman.
- Só um momento, Miss Hamilton - disse.-Que idade tens tu, Ângelo?
- Oito.
- Tenho um neto que tem só mais dois anos do que tu. Tem dez.
- Talvez eu possa brincar com ele algum dia. Deixava-o guiar o meu carro.
- Não me parece -disse o Sr. Hardeman.- Ele está num colégio.
Ouvi novamente a voz da enfermeira.
- Está a fazer-se tarde, Sr. Hardeman.
Ele fez uma careta.
- As pessoas que tomam conta de nós são sempre assim, Sr. Hardeman - disse. - A ama também anda sempre atrás de mim, se não é uma coisa é outra.
- Deve ser isso.
- Já me disseram que, para o ano, quando eu crescer, já não preciso de ama. Porque é que o senhor anda com uma?
- Eu não posso andar - respondeu -, preciso de alguém que me ajude a mexer-me de um lado para o outro.
-Teve algum desastre?
Sacudiu a cabeça.
- Estive doente.
- Quando é que melhora?
- Nunca mais vou poder andar - respondeu.
Fiquei um momento em silêncio.- Como é que sabe? O neu pai diz que todos os dias acontecem milagres. E o meu pai sabe. Ele é médico. - Tive uma ideia. - Talvez
ele pudesse vir vê-lo. É muito bom médico.
- Tenho a certeza de que é, Ângelo - disse o Sr. Hardeman numa voz cheia de amabilidade. - Mas, por agora, estou farto de médicos. - Fez um gesto
em direcção à enfermeira. - Além disso, vou para a Florida este fim-de-semana e só volto daqui a muito tempo.-Estendeu-me a mão. - Adeus, Ângelo.
Fiquei a agarrar-lhe a mão, sem querer largá-la. Todas as pessoas de quem eu gostava tinham que se ir embora. Primeiro, o avô, agora, o Sr. Hardeman.
- Quando voltar, vemo-nos?
Fez que sim com a cabeça.
Continuei a agarrar-lhe <a mão.
- Eu venho ao parque todos os domingos a esta hora, à sua procura.
- No primeiro domingo depois de voltar, venho aqui - disse.
Soltei-lhe a mão.
- É uma promessa.
Fiquei a ver a enfermeira empurrá-lo pelo caminho abaixo, até os perder de vista e, depois, neti-me novamente no carro. Só passados quase vinte anos é que vim a
saber exactamente em que trabalhos se metera para me proporcionar aquela surpresa.
Estava eu no gabinete de Duncan no sector de Design e Engenharia, passando em revista o" carro que devia ir testar no dia seguinte, quando, de repente, o velho Engenheiro
se voltou para mim.
- Lembra-se daquele Bugatti que o L. H. Primeiro nos mandou preparar para si quando você era miúdo?
- Como é que eu me podia esquecer de uma coisa dessas? - respondi.
E era bem verdade. A partir daquele momento eu não via outra coisa a não ser automóveis. i nada mais contava.
- Alguma' vez pensou quanto é que aquilo poderia ter custado?
- Para dizer a verdade,, não.
- Ainda tenho a folha de obra original, assinada por ele. Guar- dei-a como recordação. - Abriu a gaveta do meio da secretária, tirou de lá a folha
e estendeu-ma. - Sabia que ele interrompeu o trabalho dos departamentos de Desig e Engenharia e de Fabrico e os pôs, durante vinte e quatro horas seguidas, a tratar
do seu carro?
- Não sabia - respondi. Olhei para o papel que tinha na mão. "Chassis Experimental" dizia a nota de débito. Encomendado por L. H. Primeiro. $347,51.
Senti tocarem-me ao de leve no ombro e abri os olhos. Era a enfermeira inglesa.
- Está aqui o Dr. Hans.
Voltei a cadeira. Ele estava ali, de pé, com os óculos a brilhar, como de costume, com os seus seis lacaios atrás dele.
- Bom dia, Sr. Perino - disse. - Como é que se sente? Tem dores?
- Não, doutor. Só dói quando me rio.
Recusou-se a sorrir. Fez um gesto em direcção à enfermeira e ela aproximou uma mesa coberta de instrumentos de aço reluzentes.
- Agora é que vamos ver se correu tudo bem - disse no seu tom murmurado habitual.
Fiquei a olhar para a mesa, fascinado. Quase me sentia hipnotizado pelos instrumentos reluzentes. Vi-o pegar num deles, com uma lâmina curta. Tinha chegado o momento.
Quantas pessoas, ao longo da sua vida, têm a oportunidade de ficar com uma cara nova?
CAPÍTULO 2
Tudo começou em Maio depois das 500 milhas de Indianápolis. O animal ardeu-me na quadragésima segunda volta e fez-me parar. Não precisei de olhar para a cara do
chefe de pista para perceber que estava feito. Saí sem sequer esperar pelo final.
Só quando cheguei ao motel e abri a porta do meu quarto é que me dei conta de que tinha deixado Cindy no autódromo. Tinha-me esquecido completamente dela.
Abri o pequeno frigorífico, parti alguns cubos de gelo e despejei-lhes por cima um pouco de uísque canadiano. Sorvendo a bebida, lentamente, dirigi-me ao quarto
de banho e pus a água quente a correr para a banheira e, depois, voltei ao quarto e liguei o rádio. Procurei os relatos das corridas. A TV não funcionava num raio
de setenta quilómetros.
Ouviu-se a voz do locutor.
- Andretti e Gurney; primeiro e segundo na octogésima quarta volta. Uma verdadeira batalha de gigantes... - desliguei. Era assim desde o princípio da corrida.
Acabei a bebida, pousei o copo em cima do frigorífico e voltei para o quarto de banho. Abri a torneira da água fria e liguei a bomba giratória portátil Jacuzzi.
Fiquei a ver as nuvens de vapor que saíam
da água em movimento enquanto me despia. Quando me meti na água quente, já a casa de banho estava cheia de vapor.
Recostei a cabeça na banheira e deixei a água revolta afastar-me dos ossos todas as dores. Comprimi as entranhas e fechei os olhos. Aconteceu outra vez. Como sempre
acontecia todas as vezes que fechava os olhos nos últimos cinco anos.
Vi a primeira língua de fogo subir do motor de encontro ao pára- brisas. Abrandei para entrar na curva e lutei com o volante. A parede enorme apareceu-me em frente
da cara e embatemos a duzentos e vinte quilómetros por hora. O animal galgou, de nariz, e ficámos suspensos um momento, enquanto eu olhava para as bancadas ululantes.
Depois, as chamas subiram e mergulhámos nelas. Encheu-me as narinas o cheiro doce e enjoativo da minha carne queimada e do cabelo chamuscado. Ouvia-me a mim próprio
gritar à distância.
Abri os olhos e tudo desapareceu. Estava de novo na banheira, com a Jacuzzi a cantar a sua canção suavizante. Lentamente, fechei outra vez os olhos.
Desta vez tudo correu bem. Flutuei na água.
O telefone começou a tocar. Os motéis modernos têm tudo. Estendi a mão por cima da retrete e tirei o telefone da parede.
- Sr. Perino? - era a voz cadenciada da telefonista da interurbana.
- Sim.
- O Sr. Loren Hardeman ao telefone. Só um momento, por favor.
Ouvi o estalido e ele apareceu em linha.
- Ângelo, como é que tu estás? - havia na voz dele um interesse sincero.
- Estou óptimo, Número Um. E o senhor?
- Bem. riu-se.-Sinto-me como um rapaz de oitenta e cinco.
Ri-me. Tinha feito noventa e um no seu último aniversário.
- Que raio de barulho é esse? - perguntou. - Parece que vais a descer as Cataratas do Niagara dentro de uma barrica. Mal consigo ouvir-te.
Estendi a mão e desliguei a Jacuzzi. O ruído desapareceu.
- Está melhor assim?
- Muito melhor - respondeu. - Tenho estado a ver televisão e vi-te sair da pista. Que é que aconteceu?
- As válvulas queimaram-se.
- Onde é que vais a seguir?
- Não sei - respondi. - A única coisa que está confirmada é Watkins Glen. Mas isso é só lá para o Outono. - Ouvi a porta de fora abrir-se e os passos
de Cindy dirigiram-se para a casa de banho. Levantei os olhos e vi-a à porta. - Pensei em ir até à Europa no Verão e tentar qualquer coisa por lá.
O rosto dela não tinha qualquer expressão. Voltou as costas e dirigiu-se para o outro quarto.
- Não faças isso - disse ele. - Não vale a pena. Vais-te matar.
Ouvi bater a porta do frigorífico e o gelo tilintar dentro dos
copos. Ela voltou com dois canadianos com gelo. Passou-me um dos copos e, depois, baixou a tampa da retrete e sentou-se. Pôs-se a beber.
- Não me vou nada matar - respondi.
A voz dele era inexpressiva.
- Sai. Já perdeste as tuas capacidades.
-'Foi só uma maré de azar. " *
- Não me venhas com essas conversas - respondeu. - Estive a ver-te na TV. Lembro-me de quando não falhavas uma única curva. Nesta última volta, antes
de te despistares, deixaste um buraco que cabia lá o exército do Coxey.
Fiquei em silêncio. Bebi uma golada.
A voz dele tornou-se branda.
- Ouve, não é grave. Tiveste temporadas muito boas. Em 63 foste o condutor número dois no mundo inteiro. Terias sido o número um em 64 se não tivesses
galgado aquele muro em Sebring e ficado estendido um ano inteiro.
Sabia muito bem do que é que ele estava a falar. Provavam-no os meus pesadelos.
- Acho que cinco anos chegam para provares a ti próprio que já não consegues.
- E que é que acha que eu devo fazer? - perguntei sarcástico. - Entrar para o Mundo do Desporto como comentador?
A voz dele tomou uma nota de aspereza.
- Não fales assim comigo, meu rapazola. O teu problema é nunca teres crescido. Eu não devia era ter reforçado aquele teu carro de miúdo. Ainda não
paraste de brincar com ele.
- Desculpe. - Eu não tinha o direito de despejar sobre ele a frustração que sentia contra mim próprio.
- Estou em Palm Beach - disse. -Quero que venhas aqui passar uns dias comigo.
- Para quê?
- Não sei. - Pela maneira como falou, percebi que estava a mentir com quantos dentes tinha na boca. Talvez os dentes nem fossem dele. - É só para
falarmos.
Fiquei um momento a pensar.
- Okay.
- Óptimo - disse. - Vens sozinho? Tenho que prevenir a governanta.Olhei para Cindy.
- Ainda não sei.
Soltou uma risada.
- Se é bonita, trá-la. Aqui não há muito que ver, a não ser o mar e a areia.
Desligou. Cindy tirou-me o telefone da mão e pendurou-o novamente na parede. Pus-me de pé e ela passou-me uma toalha. Depois, pegou no meu copo e dirigiu-se para
o outro quarto.
Sequei-me e, amarrando a toalha em volta da cintura, fui atrás dela. O meu copo estava em cima da mesa e a rapariga estava no chão, às voltas com o gravador de quatro
pistas. Bebi mais uma golada e fiquei a observá-la.
Estava a pôr as bobinas em caixas e a marcá-las. Cindy era activada pelo ruído dos motores. Algumas raparigas reagem a um vibrador, ela a única coisa de que precisava
era de barulho. Bastava sentá-la no carro, ligar o motor e, depois, pôr-lhe a mão na cona e vinha-se de lá com a mão cheia de mel.
- Conseguiste alguma coisa capaz? - perguntei.
- Alguma. - Não olhou para mim. - Está acabado?
- Porquê? Só porque me esqueci de te ir buscar?
Voltou-se.
- Não é disso que eu estou a falar - disse com voz inexpressiva. - O Fearless diz que o que se fala nas pistas é que tu vais deixar.
Fearless Peerless era um dos condutores auxiliares da equipa J. C. Trabalhava principalmente nos atalhos tentando abrir caminho para as grandes vias. Tentei afastar
da minha voz o travo do ciúme.
- Vieste com o Fearless?
- Sim.
- Andas de olho nele?
- Ele é que anda de olho em mim.
E era verdade. Também não era o único e eu sabia-o. Cindy era qualquer coisa de especial.
Comecei a sentir calor nos tomates.
-'Liga o gravador.
Ficou um momento a olhar para mim, depois, em silêncio, pôs o gravador em cima de uma mesa pequena aos pés da cama. Depois, com ares de especialista, instalou os
quatro amplificadores, dois de cada lado da cama e ligou os respectivos fios. Em seguida, olhou para mim.
- Põe a bobina grande, aquela que fizeste em Daytona, no ano passado.
Tirou a fita da caixa e instalou-a na máquina. Depois, voltou-se para mim.
Naquela altura já a minha erecção tinha transformado a toalha que trazia em volta da cintura numa autêntica tenda.
- Despe-te.
Ela tirou a roupa e estendeu-se em cima da cama, sem tirar os olhos de mim. Continuava a não dizer palavra.
Estendi a mão e liguei o gravador. Ouviu-se o roçar da fita e, logo a seguir, os ruídos da multidão. De repente, foi uma explosão de som quando os motores começaram
a roncar. A corrida tinha começado.
Subi para a cama e fiquei de pé por cima dela. Tinha os lábios ligeiramente afastados e mal parecia respirar quando a forma rosada da língua lhe apareceu entre os
dentes brancos. Toda ela era ouro e castanho de mel, à excepção da estreita faixa branca em volta dos seios pequenos e cheios e o triângulo das coxas e das pernas.
O coral rosado dos mamilos desabrochou em direcção a mim e a penugem macia que tinha entre as pernas começou a brilhar em minúsculos diamantes.
Avancei sobre a cama e meti-lhe os pés por debaixo das axilas, até que os ombros dela ficaram apoiados nos meus pés. Nessa altura arranquei a toalha.
O órgão entumescido bateu-me de encontro à barriga. Fiquei parado sobre o rosto dela. Olhava-me fixamente. Não me mexi.
De repente, soltou um gemido, estendeu o braço e agarrou-me o sexo. Puxou-me em direcção à boca dela, sorvendo e fazendo ruídos fundos na garganta. Caí de joelhos
sobre a cara dela, mexendo o corpo com as contorções e sacudidelas das coxas da rapariga que estavam por detrás de mim.
Senti-lhe a língua lamber-me as bolas e, depois, avançar por baixo de mim, procurando-me os segredos do ânus. E não parava de me segurar a cabeça do sexo, com uma
das mãos, deslocando-a como se fosse uma alavanca de mudanças, para me pôr em posição.
Murmurou numa voz abafada.
- Deixa-me pôr em cima de ti.
Rolei até ficar de lado e, depois, de costas. Sem me largar o sexo, trepou para cima de mim e, lentamente, foi-se deixando cair sobre ele. Foi como se o mergulhasse
num tanque de óleo a ferver.
- Oh, meu Deus. gemeu, balançando-se lentamente para trás e para a frente em cima de mim, esfregando o clitóris de encontro à aresta do meu púbis.
O ronco dos motores de corrida começou a passar de um amplificador para outro em volta da cama, enchendo o quarto com a violência explosiva do som e ela movia-se
acompanhando-lhe o ritmo, atingindo um novo clímax cada vez que se completava um ciclo em volta da pista. Sentia-lhe o combustível da excitação escorrer-me pelos
testículos e por baixo do meu corpo.
Depois, começou a soltar uma espécie de gemidos e gritos no frenesi da paixão. Abanava a cabeça ferozmente de um lado para o outro, soltando os cabelos como uma
ventoinha constante. Então, começou a bater com o corpo no meu. Cada vez com mais força. Arqueei o corpo de encontro ao dela.
- É bom - murmurou. - É tão bom.
Estendi os braços para cima por detrás dela. Quando começou a descer outra vez de encontro a mim, dei-lhe uma palmada com força, com uma mão em cada uma das nádegas.
Ela embateu em mim e voltou para trás. Dei-lhe nova palmada e continuei, seguindo-lhe o ritmo dos movimentos.
Ela começou a trepar muros, os gemidos tornaram-se gritos de dor e êxtase. O rugir dos motores ao aproximar-se da linha final começou a subir, quase lhe abafando
a voz.
De repente, Carl Yarborough atravessou a meta no seu Merc Sessenta e oito a duzentos e trinta quilómetros por hora e ela atingiu o seu orgasmo final, afogando-me
na torrente dos seus sucos.
Ficou um momento em equilíbrio no meu sexo, com o olhar vidrado e distante, depois, lentamente, dobrou-se e escorregou de cima de mim.
Ficou muito quieta, a respiração a tomar, pouco a pouco, um ritmo normal, os olhos abertos, pousados nos meus.
- Foi uma loucura - murmurou.
Limitei-me a olhar para ela.
Pôs-me a mão no sexo. Os olhos abriram-se-lhe ligeiramente, de surpresa. Começou a acariciá-lo, suavemente.
- Ainda está rijo-'murmurou.-Tu és fantástico.
Continuei a não dizer palavra. Não valia a pena dizer-lhe que
não me tinha acontecido nada.
Deslizou para baixo, beijou-me e meteu-me na boca. Passados momentos, levantou a cabeça.
- Estás todo coberto comigo.
Fiz que sim com a cabeça.
Beijou-me a cabeça do pénis e tentou abrir-lhe a ponta com a língua. Voltou a cara e, apertando-me o sexo de encontro à face, falou suavemente.
- Onde é que alguma vez eu poderei arranjar um homem como tu?
Pus-lhe a mão nos cabelos e voltei-lhe a cara para mim.
- Tu andas com o Fearless? - perguntei.
- Responde tu primeiro - disse. - Vais deixar as corridas?
Não hesitei.
- Vou.
Ela hesitou. Não posso deixar de o dizer. - Então eu vou passar a andar com o Fearless. E foi assim que tudo acabou. Sem mais.
CAPÍTULO 3
O calor molhado do aeroporto de West Palm Beach já me atravessava a camisa quando cheguei junto ao balcão da Hertz. Puxei do meu cartão de crédito ilimitado e empurrei-o
em direcção à rapariga.
Ficou a olhar para o cartão antes de olhar para mim. Depois, a expressão dela mudou.
- O Ângelo Perino? - perguntou, respeitosamente.
Fiz que sim com a cabeça.
- Estive a vê-lo na TV no outro dia. Foi uma pena o seu carro ter ardido.
- Coisas que acontecem - respondi.
- Era ainda uma criança quando o meu pai me levou a mim e ao meu irmão a Sebring, daquela vez que o senhor galgou o muro. Até chorei. Levei a semana
toda a rezar por si até saber que estava fora de perigo.
Tinha aquele toque da Hertz. Bem americana.
- Que idade tinha nessa altura? - perguntei.
- Dezasseis.
Olhei outra vez para ela. Tinha o bronzeado típido de uma terra de laranjas e de sol e já era maior.
- Estou em dívida para consigo, por causa dessas orações - disse. - Talvez pudéssemos jantar juntos.
- Tenho um encontro esta noite - respondeu -, mas posso desmarcá-lo.
- Não, não faça isso - disse rapidamente. - Não quero interferir com os seus planos. Pode ficar para amanhã.
- Okay - respondeu. Escreveu qualquer coisa numa folha de papel e empurrou-o em direcção a mim. -É o meu nome e número de telefone. Encontra-me aqui
antes das cinco e aí depois das cinco.
Olhei de relance. Podia ter adivinhado. Até o nome dela era de um país de laranjas e sol.
- Okay, Melissa -disse.- Eu telefono-lhe. E agora, que tal um carro?
- Temos um Shelby GT Mustang e um Mach Um. Ri-me.
- Não vou para nenhuma corrida. Tem aí alguma coisa que seja descapotável? Quero o sol na cara.
Verificou na lista.
- Que tal um LTD descapotável?
- Estupendo.
A rapariga começou a preencher o impresso.
- Onde é que está hospedado?
Em casa de Hardeman.
- Por quanto tempo precisa do carro?
- Uns dias. Não sei.
- Deixo a data em aberto. - A rapariga tomou um ar embaraçado. - Pode emprestar-me a carta de condução? É por causa da ficha.
Ri-me e empurrei-a para ela. Copiou o número e devolveu-ma. Depois, pegou no telefone e começou a falar.
- LTD descapotável, Jack - disse. - Serviço super. É para um VIP. - Pousou o telefone. - Dê-nos uns dez minutos.
- Esteja à vontade, Melissa - respondi.
Apareceu outro cliente e eu fui até ao passeio e acendi um cigarro. Despi o casaco e pu-lo por cima do braço. Fazia calor.
Voltei-me e olhei novamente para a rapariga. Gostava da maneira como ela se mexia. A maneira como os seios se lhe comprimiam de encontro ao uniforme justo. Por ali
havia mais para ver do que o velho pensava. O problema era ele não poder ir ao encontro das coisas.
Aliás, quando se aluga um Hertz, não se aluga apenas um carro, aluga-se uma companhia.
Parei em frente dos portões de ferro electrificados e carreguei no botão de sinalização que ficava ao lado. Enquanto esperava que uma voz me respondesse, fui lendo
o aviso afixado no portão.
PROPRIEDADE PRIVADA PROIBIDA A ENTRADA PERIGO! PATRULHA DE CÃES DE GUARDA!
OS SOBREVIVENTES SERÃO PROCESSADOS
Ri-me. Aquilo não me parecia convincente. Mas mudei rapidamente de ideias. Mal acabara de ler o letreiro, vi dois gigantescos pastores belgas do lado de dentro do
portão, abanando as caudas de forma enganadora.
A voz veio do intercomunicador por cima da campainha.
- Quem é?
- O Sr. Perino.
Houve uma pausa.
- Estávamos à sua espera, Sr. Perino. Pode atravessar o portão com o carro. Não saia para o fechar, é automático. Não saia do carro, repito, não saia
do carro enquanto não estiver em frente da casa e não conduza com o braço pendurado fora da janela.
A voz desapareceu com um estalido e os portões rolaram, fechando-se de novo.
Os cães continuavam à entrada, à minha espera. Pus o carro em movimento, lentamente e eles puseram-se de lado, para me deixar passar, depois começaram a correr,
em silêncio, ao lado do carro, enquanto eu avançava pelo caminho.
De vez em quando, eu olhava para eles e eles olhavam para mim e continuava no meu caminho. Fiz uma curva e, escondida por detrás das árvores, estava a fachada da
casa. De pé, nos degraus, viam-se um homem e uma mulher. Parei o carro.
O homem levou um assobio aos lábios e soprou. Não ouvi nada, mas os cães ouviram. Estacaram e ficaram a ver-me sair do carro.
- Por favor, fique aí um momento e deixe os cães cheirá-lo, Sr. Perino -disse o homem. - Assim, ficam a conhecê-lo e, depois, já não o incomodam.
Fiquei imóvel enquanto ele levava, de novo, o assobio à boca. Os cães aproximaram-se de mim a correr, abanando a cauda. Cheiraram-me os sapatos e, depois, as mãos.
Passados momentos deixaram-me e aproximaram-se do carro. Em menos de um minuto, regaram-me as quatro rodas e foram-se embora satisfeitos.
O homem veio em direcção a mim.
- O meu nome é Donald. Permita-me que lhe leve as malas.
- É só uma - disse. - Está no assento de trás. - Voltei-me em direcção a casa.
A mulher sorriu-me. Devia andar pelos cinquenta, tinha o cabelo grisalho puxado para trás, com ar austero e quase não usava maquilhagem. Vestia um fato preto, simples,
estilo alfaiate.
- Eu sou a Sr.a Craddock. Secretária do Sr. Hardeman.
- Muito prazer - respondi.
- O Sr. Hardeman pede desculpa por não ter vindo recebê-lo, mas é a hora da sesta. Pede-lhe que vá ter com ele à biblioteca às cinco, para tomarem
uma bebida. O jantar é às seis e meia em ponto. Comemos cedo porque o Sr. Hardeman recolhe às nove.
- Para mim está óptimo.
- O Donald vai mostrar-lhe o seu quarto - disse, encaminhando-me para dentro de casa. - Pode refrescar-se um pouco. Se lhe apetecer nadar, há uma
piscina do lado do oceano e nas cabanas encontra vários calções de banho.
- Obrigado, mas acho que vou seguir o exemplo do Número Um. Estou um bocado cansado.
Ela fez um aceno com a cabeça e afastou-se, enquanto eu seguia escada acima, atrás de Donald, em direcção ao meu quarto. Entrei no quarto de banho para lavar a cara
e quando saí a mala estava desfeita, a cama aberta, as cortinas corridas e um dos meus pijamas estava estendido em cima da cama.
Aceitei a sugestão e despi-me. Dentro de dez minutos estava a dormir.
Quando desci as escadas, ele estava à espera na biblioteca. Estendeu-me a mão.
- Ângelo.
Apertei-lhe a mão. A pressão era firme.
-Número Um.
Sorriu. A voz dele tinha um tom reprovador.
- Não sei se gosto lá muito disso. Sinto-me como um velho chefe da Mafia.
- De maneira nenhuma. - Ri-me.-Se as histórias que tenho ouvido acerca do meu avô forem nem que seja meio verdadeiras, ele é que era chefe da Mafia
e nunca ouvi ninguém chamar-lhe Número Um.
- Vem aqui para o pé da janela e deixa-me olhar para ti.
Segui a cadeira de rodas até à grande janela de sacada que abria para um terraço que deitava para o mar e voltei-me para ele. Ficou a observar-me o rosto.
- Não estás nada bonito, quanto a isso não há dúvidas.
- Eu também nunca disse que o era - respondi.
- Temos que fazer qualquer coisa quanto a essas cicatrizes das queimaduras, se é que vens trabalhar para mim - disse. - Não podes andar por aí a meter
medo às criancinhas.
- Espere aí - atalhei.- Quem é que disse que eu ia trabalhar para si?
Olhou-me com ar astuto.
- Estás aqui, não estás? Ou pensavas que eu te tinha convidado para vires aqui só para passar o tempo?
Não respondi.
- Estou velho - continuou -, e tenho os meus planos, mas não tenho tempo a perder. - Fez rodar novamente a cadeira para o interior do compartimento.
- Arranja uma bebida para ti e, depois, senta-te-disse. - Fico com o pescoço a doer de estar a olhar para ti.
Dirigi-me ao aparador e servi-me de um Crown Royai com gelo. Ficou a olhar-me com avidez enquanto me sentava e provava a bebida.
- Raios me partam!-disse. - Quem me dera poder beber um também. - Depois, riu-se. - Lembro-me de uma altura, lá para 1903 ou 1904, em que Charles
Sorensen tinha acabado de me dar emprego na Ford, na construção do modelo K e o Sr. Ford apareceu por lá, porque nessa altura fazia questão de entrevistar pessoalmente
todos os homens que eram contratados de novo.
- Você bebe? - perguntou.
- Sim - respondi.
- Fuma?
- Sim.
O Sr. Ford ficou silencioso. Limitou-se a olhar fixamente para mim. Passados momentos, comecei a sentir-me pouco à vontade e tive necessidade de dizer qualquer coisa.
- Mas não ando por aí com mulheres, Sr. Ford - atirei-lhe -, sou. casado.
Ficou mais um momento a olhar para mim, depois deu meia volta e afastou-se sem dizer palavra. Dez minutos depois, Charlie veio cá abaixo e despediu-me. Tinha-me
contratado naquela mesma manhã.
Acho que ele viu a expressão da minha cara. Estava espantado. Com mulher e um filho a caminho, creio que sentiu pena de mim.
"- Vá à Dodge Brothers e diga-lhes que fui eu que o mandei", disse. "Com certeza que lhe arranjam emprego." Ia para se afastar, mas depois ainda se voltou para mim.
"-Sabe, Hardeman" - disse, "-O Sr. Ford não tem vícios. Absolutamente nenhuns."
Mas aí é que ele estava enganado. O Sr. Ford tinha um vício imperdoável. Era intolerante.
Levei novamente a minha bebida à boca. Não disse nada.
Os olhos dele fixaram-se nos meus.
- Quero que venhas trabalhar para mim.
- Para fazer o quê? - perguntei. - Já não conseguiria ser feliz como piloto de ensaio.
- Eu também não falei nisso - disse. - Tenho outros planos. E são em grande. - A voz dele transformou-se num murmúrio confidencial.- Quero construir
um novo carro!
Acho que a boca se me abriu de espanto.
-Quer o quê?!
- Ouviste o que eu te disse! - atalhou. - Um novo carro. Completamente novo, de uma ponta à outra. Diferente de tudo quanto se construiu até agora.
- Já falou nisso a alguém? - perguntei. - Ao L. H. Terceiro?
- Não preciso de falar nesse assunto a ninguém - disse, teimoso. - Continuo a votar oitenta por cento das acções da companhia.-
Empurrou a cadeira para mais perto de mim.-Sobretudo, não me interessa falar com o meu neto.
que é que espera que eu faça?
- Que me tires deste raio desta cadeira - disse.-Espero que te transformes nas minhas pernas.
CAPÍTULO 4
Ele ainda continuava a falar quando fomos jantar. Sentámo-nos a uma mesa pequena e a refeição foi simples. Salada, costeletas de cordeiro e um legume, vinho para
mim, um copo de leite para ele. O vinho era bom, um Mouton Rotschild'51 e o mesmo acontecia com o leite. Walker Gordon completo.
- O alvo é o Salão Automóvel de Nova Iorque na Primavera de 72, o que nos deixa três anos.
Olhei para ele.
Riu-se.
- Sei o que estás a pensar. Que eu tenho noventa e um anos. Não te preocupes. Hei-de chegar aos cem.
- Não vai ser fácil - disse.
- Nada é fácil - respondeu. - Mas já consegui chegar até aqui.
Ri-me.
- Não é disso que estou a falar. Estou convencido de que vai chegar aos cento e cinquenta. Estou a falar do novo carro.
- Há muito tempo que ando a pensar nisso - disse. -Há trinta anos que os deixei amarrarem-me a esta cadeira. E está tudo errado. Nunca devia ter consentido
numa coisa dessas.
"Antes da guerra, tínhamos quase quinze por cento do mercado. Agora temos dois por cento. Até mesmo aquela poircaria da Volkswagen vende mais carros do que nós.
E ainda não fica por aí. Vêm aí os japoneses. Acabam connosco todos. Aqueles malandros vão engolir o mundo inteiro. Vão aparecer com preços mais baixos e vender
mais do que todos nós juntos.
"Este ano e no que vem, as companhias americanas vão deitar cá para fora os seus subcompactos. Mas não lhes vai servir de nada. Claro que vão vender carros. Mas
não vão roubar as vendas aos estrangeiros, vão roubá-las a eles próprios e reduzir o volume total do seu preço unitário.
"A única resposta é um carro completamente novo. Construído de uma maneira nova. Numa linha de produção completamente automática, electrónica. Lembro-me de que,
quando o Ford apareceu com o seu Modelo T, pôs o mundo em fogo. Por uma única razão. Ford tinha uma ideia melhor. Mas foi a única ideia que tiveram desde sempre.
A partir daí têm andado com o nariz colado à General Motors. E o mesmo tem feito o resto da indústria. Incluindo nós.
- É uma boa tarefa.
- Mas pode ser feita - disse. - Não gosto de fazer nada a perder dinheiro. Eu sou dos que ganham. Sempre fui.
- Eu leio os relatórios anuais - disse. - A Bethlehem ganha dinheiro. Ganha sempre.
- Mas não em automóveis - ripostou. - Eles representam apenas trinta por cento do nosso lucro bruto. A secção de acessórios contribui com cinquenta
e sete por cento e o resto vem do fabrico de peças para outras companhias. É a maneira de garantirem a nossa permanência neste negócio. Têm medo das medidas anti-trust
e monopólio. Neste momento, setenta por cento do nosso espaço de produção é usado para esse fim e não para fazer automóveis.
- Não sabia - respondi.
- Muito poucas pessoas sabem. Tudo começou durante a guerra. A Ford, a GM e a Chrysler apanharam todas as encomendas grandes. L. H. Segundo concentrou-se
nos outros campos. Quando a guerra acabou, as outras companhias estavam prontas para retomar a produção em larga escala; nós não.
Mas estávamos equipados para entrar no campo dos acessórios e não posso deixar de dizer que ele fez excelente trabalho. Rende-nos mais de quarenta milhões por ano.
Só que a mim não me diz nada. Não são automóveis.
Recostei-me na cadeira e olhei para ele.
- E o Número Três?
- É um bom rapaz - respondeu o Número Um.-Mas a única coisa que lhe interessa são os lucros. Pouco lhe interessa donde vêm, televisões, frigoríficos
ou carros. É tudo o mesmo. Às vezes chego a pensar que, se não fosse para não me dar esse desgosto, já há muito tempo que tinha abandonado a indústria automóvel.
- E como é que lhe vai dizer?
- Não digo coisa nenhuma - respondeu. - Pelo menos, enquanto não tivermos tudo pronto.
- Não vai conseguir guardar segredo - respondi. - Pelo menos, neste nosso mundo. Logo que eu começar a trabalhar percebem tudo.
Sorriu.
- Nós dizemos-lhes uma coisa diferente.
- O quê, por exemplo?-
Toda a gente sabe aquilo que tu fazes. És piloto de carros de corrida. Mas não sabem o que é que eu faço. Nem que tens o curso da M1T de engenharia
e desenho de automóveis. Nem que, há uns anos atrás, John Duncan te quis contratar para tomares conta do departamento quando ele se reformasse.
- Damos-te um título, vice-presidente para projectos especiais e, depois, fazemos constar que vamos dedicar-nos à organização de equipas de corrida
patrocinadas pela fábrica. Isso já deve dar fumarada que chegue.
Donald entrou.
- Está na hora, Sr. Hardeman.
Número Um olhou para o relógio e, depois, olhou novamente para mim.
- Continuamos a conversa ao pequeno-almoço - disse.
Pus-me de pé.
- Está certo, Número Um.
- Boa noite - respondeu.
Fiquei a ver Donald empurrar a cadeira de rodas para fora da sala e, depois, sentei-me outra vez. Acendi um cigarro e olhei para o relógio. Eram oito e meia e não
tinha sono nenhum. Aquela sesta da tarde tinha-me feito perder o sono. Levado por um pressentimento, telefonei à rapariga da Hertz.
Foi uma voz de homem que atendeu.
- A Melissa está? - perguntei.
A voz tinha aquele tom defensivo tipicamente paternal.
- Quem é que fala?
- Ângelo Perino.
O nome produziu um certo efeito.
- Vou chamá-la, Sr. Perino.
Afastou-se do telefone e ouvi-o gritar.
- Melissa! O Sr. Perino ao telefone!
Depois, falou novamente para mim.
- A Melissa já me tinha dito que o senhor estava por cá. Espero vir a ter a oportunidade de o conhecer. Sou um grande admirador seu.
- Espero que sim, obrigado - respondi.
Ouvi o telefone passar para outras mãos. A voz dela estava tão cheia daquele tom de graça meridional que dava para bloquear a linha.
- Sr. Perino, que surpresa.
- Foi um pressentimento - respondi. - Não tinha um encontro marcado?
- Cancelei-o - respondeu. - Ele é um maçador.
- Quer vir sair? - perguntei.
- Adorava - respondeu e percebi que o pai não estava muito longe.
- Onde é que nos podemos encontrar?
- Conhece Palm Beach?
- Para dizer a verdade, não. Sei como é que se vem do aeroporto até aqui. Mas mais nada.
- Então, talvez seja melhor eu ir aí buscá-lo - disse a rapariga.
- Boa ideia - respondi. - Quanto tempo?
- Uma meia hora, está bem?
- Óptimo - disse.
Quando desliguei, vi Donald a uma distância respeitosa.
- Precisa de alguma coisa, Sr. Perino?
- Tem brande?
- Sim, claro. - Havia na voz dele um certo tom de reprovação. - Quer que lho sirva na biblioteca?
Fiz que sim com a cabeça e ele seguiu-me até lá. Despejou o brande num balão e estendeu-mo, fazendo-o rodar suavemente.
- Obrigado, Donald. - De repente lembrei-me dos cães. - Vêm cá buscar-me dentro de uma meia hora, pode fazer qualquer coisa em relação aos cães?
- Eu trato disso. Vai precisar do seu carro, Sr. Perino?
- Não, não creio.
Tirou uma chave da algibeira e estendeu-ma.
- Dá para o portão e para a porta de entrada. Pode deixá-la na mesinha da entrada quando voltar.
- Obrigado, Donald.
- De nada, Sr. Perino - disse e saiu da sala.
Afundei-me numa das cadeiras de couro antigas e fui bebendo o brande até ouvir o roncar de um carro que se aproximava de casa. Saí no momento em que ela parava.
Evidentemente que tinha trazido o Mach Um.
Desci os degraus e abri a porta do carro.
- Não demorou.
- Serviço super. - Sorriu.-Quer guiar?
Sacudi a cabeça e sentei-me no assento ao lado do condutor.
- Não, estou bem assim.
Inclinei-me e beijei-a na cara. Depois, recostei-me e apertei o cinto.
- Está nervoso?
- Ná. É o hábito.
- Que é que lhe apetece fazer?
Olhou para ela.
Vamos para qualquer sítio foder.
A voz dela encheu-se de um tom de doce reprovação.
- Oh, Sr. Perino!
- Pronto, está bem, se quer tomar esse tom formal, que é que lhe apetece fazer?
- Conheço um sítio deliciosamente romântico, na praia, onde podemos beber, conversar e dançar.
- Por mim, acho óptimo.
- Assim está bem, Ângelo - sorriu.
Sorri-lhe também.
- Depois, podemos ir para um sítio qualquer foder.
Pôs o carro em andamento e meteu pelo caminho como se fosse em direcção à meta de um Grand Prix. Porque seria que cada vez que eu me metia num carro alguém tinha
que me provar que sabia guiar a toda a velocidade? Fechei os olhos e comecei a rezar.
CAPÍTULO 5
Acordei ao som do telefone. Gemi sentindo o martelar dentro da cabeça. Aquele sítio deliciosamente romântico onde ela me tinha levado na noite anterior-não era propriamente
delicioso. As bebidas tinham água, não se podia falar com a berraria do rock estimulado a droga e a pista de dança estava mais apinhada do que a auto-estrada de
Edsel Ford à hora de ponta.
- O Sr. Hardeman deseja falar-lhe, Sr. Perino -disse a voz de Donald ao telefone.
- Eu desço já.
- É o Sr. Hardeman mais novo - disse rapidamente. - Está a falar de Detroit.
De repente, fiquei acordado de todo. E o Número Um a pensar que havia segredos. Perguntei a mim mesmo quem é que teria feito o relatório, Donald ou a secretária.
- Pode ligar.
- Sr. Perino? - era uma voz de rapariga.
- Sim.
- Só um momento, vou ligar ao Sr. Hardeman.
Olhei para o relógio. Oito e meia. Em Detroit, era uma hora mais cedo. E ele já estava no escritório.
- Ângelo. - A voz dele era cordial. - Há quanto tempo.
- É verdade - respondi.
- Estou tão contente por saber que foi visitar o avô. O Número Um sempre gostou muito de si.
- E eu dele - respondi.
- Às vezes penso que ele passa tempo de mais aí sozinho. - A voz dele mostrou uma certa preocupação.-Como é que o achou?
- Com a mesma garra de sempre -disse. -Não me parece que tenha mudado ao longo dos trinta anos que eu já o conheço.
- Ainda bem. Alegra-me muito ouvi-lo dizer isso. Chegam-nos aqui toda a espécie de histórias.
- Que histórias?
- Você sabe, o costume. Coisas da velhice.
- Não tem que se preocupar - respondi. - Ele sabe muito bem o que faz.
- É um alívio para mim-disse.-Tenho andado a pensar em ir até lá, mas você sabe como é. O tempo nunca chega para nada.
- Compreendo muito bem. *
- Fala-se que você vai deixar de correr - disse.
- É o que o Número Um está a tentar convencer-me a fazer.
- Faz bem em lhe dar ouvidos - respondeu. - E se tomar alguma decisão, venha até cá falar comigo. Temos sempre lugar para si.
Sorri para comigo mesmo. Com toda a eficácia, tinha-me dado a entender quem é que mandava,
- Obrigado - respondi.
- De nada. A minha missão está cumprida. Até depois.
- Até depois.
Pousei o auscultador e peguei num cigarro. Ouviu-se uma pancada na porta.
- Entre - respondi.
A porta abriu-se e Número Um entrou na sua cadeira de rodas, seguido de Donald, que trazia um tabuleiro. Donald pôs o tabuleiro em cima da cama e destapou-o. Havia
sumo de laranja, torradas e café.
- Como é que deseja os seus ovos, Sr. Perino? - perguntou.
- Não quero mais nada, obrigado - disse.-Isto chega perfeitamente.
Saiu do quarto e Número Um aproximou a cadeira da cama. Peguei no café e bebi um golo. Senti-me melhor.
- Então? - perguntou.
- Bom café - respondi.
- Eu sei que é bom café - disse irritado. - Que é que disse o meu neto?
Bebi mais um golo de café.
- Disse que o senhor passava aqui tempo de mais sozinho e queria saber como é que estava.
- E que é que lhe disseste?
- Disse-lhe que o senhor não estava bom da cabeça-respondi-, que tinha tido a ideia louca de construir um modelo novo de carro.
Ele estava quase a zangar-se mas, de repente, largou a rir. Ri com ele e, de repente, parecíamos dois miúdos a pregar uma partida ao professor.
- Quase tenho pena que não lhe tivesses dito - afirmou. - Adorava ter visto a cara dele.
- Tinha pintado a manta - respondi.
O Número Um parou de sorrir.
- Que é que tu pensas?
-De quê?
- De mim. - Falou devagar, cautelosamente, quase como se sentisse relutância em obter uma resposta. - Achas que aquilo que eu quero fazer é o sonho
louco de um velho?
Olhei para ele.
-Se é, é porque o mundo todo está louco. E o nosso negócio não passa de uma loucura. Um carro melhor não pode deixar de ser o sonho de todos.
- Na noite passada pensei muito naquilo que tu disseste. Não vai ser fácil.
Não respondi. Limitei-me a beber mais um pouco de café.
- Vai ser preciso muito dinheiro. A GM vai meter, pelo menos, uns trezentos milhões de dólares no seu novo subcompacto: a Ford vai gastar menos porque
estão apenas a fazer uma reconversão do seu modelo britânico para o mercado americano e vão importar os motores de Inglaterra e da Alemanha. E, mesmo assim, vai
custar-lhes à volta de uns duzentos milhões. - Olhou para mim. - Na minha ideia, é o mínimo que nós vamos precisar.
- E a Bethlehem tem assim tanto dinheiro? - perguntei.
- Mesmo que tivesse - respondeu -, nunca conseguiria fazer que o meu neto entrasse na jogada. E é ele quem manobra o conselho de administração.
Ficámos um grande bocado em silêncio. Servi-me de mais café.
Ele soltou um suspiro pesado.
- Talvez fosse melhor pormos uma pedra no assunto. Afinal, talvez não passe do sonho de um velho tonto.
Pareceu começar a fechar-se dentro de si mesmo, ali diante dos meus olhos. Parece-me que só nesse momento é que eu compreendi até que ponto eu estava pessoalmente
implicado.
- Há uma maneira - disse eu.
Olhou para mim.
- Não vai ser agradável e cada passo que der vai ser uma luta.
- Tem sido assim toda a minha vida - disse.
- E vai querer dizer que terá que sair de Detroit.
- Não-compreendo - disse.
- É uma volta completa. Venda a companhia de acessórios. Disse que dá um lucro de quarenta milhões por ano. Pode vendê-la, pelo menos, por dez vezes
esse valor. Quatrocentos milhões. Só os seus oitenta por cento vão buscar trezentos e vinte milhões.
- Os meus votos é que são oitenta por cento -disse-, mas só me pertencem quarenta e um por cento das acções. Os outros trinta e nove por cento pertencem
à Fundação Hardeman.
- Quarenta e um por cento são cento e sessenta e quatro milhões. Não deve ser muito difícil arranjar o resto. Nessa altura muda a divisão automóvel.
- Para onde?
- Para a Califórnia. Estado de Washington. Estão a Abarrotar de instalações para a montagem de aeronaves. E todos esses espaços se vão tornar inúteis
com as medidas restritivas que vão aparecer nos próximos anos. Não vai ser difícil transformá-los em linhas de montagem para automóveis. Já têm o espaço e o pessoal
habilitado.
Olhou para mim.
- Era capaz de resultar.
- Eu sei muito bem que resulta - respondi confiante.
- E quem é que ia comprar a empresa de acessórios?
- Conheço uma série de companhias que lhe deitavam logo a mão. Mas o que lhe ia acontecer era que ficava com pouco dinheiro e uma data de papel -
disse.-Só há uma maneira de fazer uma operação dessas. É vender ao público. E talvez, ao mesmo tempo, vender um bocadinho à empresa automóvel e arranjar o dinheiro
que nos falta.
- Mas isso implica ir até Wall Street - disse.
Fiz que sim com a cabeça.
- Nunca tive confiança neles - disse desconfiado. - Metem-se demasiado naquilo que nós fazemos.
- Mas é lá que está o dinheiro - respondi.
- Não sei lidar com eles - disse. - Não falamos a mesma língua.
- É para isso que precisa de mim. Eu traduzo-lhe tudo.
Ficou a olhar para mim um grande bocado. Depois, devagarinho, começou a sorrir.
- Não sei porque é que estou tão preocupado - disse. - Quando comecei, era pobre. E, aconteça o que acontecer, fui pobre durante muito mais tempo
no princípio do que aquilo que hei-de ser no fim. - Virou a cadeira e encaminhou-a para a porta. Eu saí da cama e fui abri-la.
Número Um levantou os olhos para mim.
- Tenho estado a pensar como é que o meu neto sabia que tu estavas cá.
- Não sei - respondi. - Tem tanto pessoal.
- Aquela rapariga com quem saíste ontem à noite. Donde é que ela veio?
- Hertz - Raparigas sem Condutor.
- Tu ainda és mais doido do que eu - disse, fazendo rolar a cadeira em direcção ao vestíbulo.
CAPÍTULO 6
O avião depôs-me em Detroit às seis da tarde e às sete estava em casa. Gianno abriu a porta e imediatamente me envolveu num abraço de urso.
- Signoraí! Signorat! - gritou, esquecendo-se do inglês. - Dot- tore! O Ângelo chegou!
A minha mãe veio a voar pelas escadas abaixo. Já vinha a chorar antes de chegar ao patamar do meio. Corri pela escada acima em direcção a ela e abracei-a.
- Mamma.
- Ângelo, Ângelo! Tu estás bem? - A voz dela era cheia de ansiedade.
- Estou óptimo, Mamma. Óptimo.
- Eu vi o fumo que saía do teu carro - disse.
- Aquilo não foi nada.
- Tens a certeza?
- Claro. - Beijei-a. - Está linda, como sempre.
- Ângelo, dizes coisas tão tontas. Como é que uma mulher de sessenta anos pode ser linda? - Estava a começar a sorrir.
Ri-me.
- Sessenta e um. E continua linda. Aliás eu devia saber. A melhor amiga de qualquer homem é sempre a mãe.
- Pára lá com as brincadeiras, Ângelo - disse. - Um dia hás-de encontrar uma rapariga que seja verdadeiramente linda.
- Nunca. Já não se fazem raparigas como a mãe.
- Ângelo. - A voz do meu pai veio da porta do estúdio que dava para a sala de entrada.
Voltei-me para olhar para ele. Os cabelos grisalhos que encimavam o rosto magro de patrício eram a única coisa que se tinha modificado desde que eu era rapazinho.
Corri pelas escadas abaixo.
Ele ficou no mesmo sítio, muito quieto, de mão estendida. Empurrei-lhe a mão para o lado e abracei-o.
- Papá!
Abraçou-me também e beijámo-nos. Havia lágrimas nos olhos dele também.
- Como é que tens passado, Ângelo?
- óptimo, papá, óptimo.-Olhei-o nos olhos.-Tem estado a trabalhar de mais.
- Não propriamente -disse.- Tenho estado a reduzir depois que tive o ataque.
- Bem pode - respondi. - Onde é que já se viu um médico de Grosse Pointe a atender chamadas a qualquer hora da noite?
- Já não faço nada disso. Tenho um jovem assistente que faz as visitas nocturnas.
Ficámos um momento em silêncio. Sabia o que ele*estava a pensar.
Eu é que devia ter sido o tal assistente. Tinha sido sempre o sonho dele que eu lhe seguisse os passos e fosse exercer a seu lado. Mas não foi assim que as coisas
se passaram. Os meus interesses estavam noutro sítio. Nunca se referiu à decepção que tivera, mas eu sabia que ela era real.
- Devias ter-nos dito que vinhas, Ângelo - disse a minha mãe em tom de censura. - Teríamos feito um jantar especial.
- Quer dizer que não há nada em casa que se coma? - Ri.
- Há sempre qualquer coisa - respondeu.
À mesa, durante o jantar, contei-lhes a novidade. Gianno tinha acabado de servir o café. Expresso. Quente, espesso e pesado. Pus-lhe duas colheres de açúcar e bebi
um pouco. Olhei para eles.
- Vou deixar de correr - disse.
Por momentos, fez-se um silêncio completo. Depois, a minha mãe começou a chorar.
- Porque é que está a chorar? - perguntei-lhe. - Pensei que ia ficar satisfeita. Sempre desejou que eu mudasse de ideias.
- É por isso que estou a chorar.
O meu pai tomou uma atitude mais prática.
- E que é que vais fazer?
- Vou trabalhar para a Bethlehem Motors. O Número Um quer fazer de mim vice-presidente com a incumbência dos projectos especiais.
- E que é que isso quer dizer? - perguntou a minha mãe.
- Bem - respondi.-Tratar de problemas. Coisas assim.
- E isso quer dizer que vais ficar aqui, em Detroit? - perguntou.
- Em parte - respondi. - Este trabalho vai-me obrigar a andar de um lado para o outro.
- Vou mandar decorar, de novo, o teu quarto- disse.
- Nada de precipitações, Mamma - atalhou o meu pai. - Provavelmente, o Ângelo quer ter uma casa dele. Já não é nenhum rapazinho.
- É verdade, Ângelo? - perguntou a minha mãe.
Não consegui suportar a expressão do olhar dela.
- Para que é que eu havia de querer outra casa, se a minha casa é aqui?
- Amanhã já falo com o pintor - disse. - Tens que me dizer quais são as cores de que gostas, Ângelo.
- Escolha as cores por mim, Mamma. - Voltei-me para o meu pai. - Tenho que ver se arranjo a cara. Vou ter que falar com uma data de gente e não quero
ter que estar preocupado por causa disso. Lembro-me de que, uma vez, me falou num médico que era o melhor que havia para isso.
O meu pai fez que sim com a cabeça.
- Ernest Hans. Está na Suíça.
- É esse mesmo. Acha que ele consegue fazer alguma coisa?
O meu pai olhou para mim.
- Não vai ser fácil. Mas, se alguém conseguir alguma coisa, é ele com certeza.
Sabia o que ele queria dizer. Não era só o nariz que tinha sido partido uma série de vezes, ou mesmo o malar que tinha ficado achatado e esmagado. Era a mancha branca
das cicatrizes de queimaduras, nas faces e na testa.
- Pode fazer-me a marcação?
- Quando é que queres ir? - perguntou.
- Logo que ele puder receber-me.
Dois dias mais tarde, eu ia no avião para Genebra.
O Dr. Hans levantou a última compressa de gaze que eu tinha na cara e pô-la em cima do tabuleiro. Inclinou-se para a frente e ficou a observar-me o rosto de muito
perto.
- Vire a cabeça para um lado e para o outro.
Fiz o que ele me disse. Primeiro, para a direita. Depois, para a esquerda.
- Sorria - disse-me.
Sorri. Sentia a cara rígida.
Ele acenou com a cabeça.
- Nada mal. Não fizemos muito mau trabalho, afinal.
- Parabéns.
- Obrigado - respondeu muito sério. Levantou-se da cadeira que estava à minha frente e na qual se tinha sentado. -Vai ter que
ficar aqui cerca de mais uma semana, até a vermelhidão desaparecer. Não há razão para preocupações. É perfeitamente normal. Tive que aplanar a pele primitiva do
rosto para ela crescer de novo com a parte enxertada.
Fiz que sim com a cabeça. Depois de quatro operações em dez semanas, uma semana a mais ou a menos não significava nada.
Ele ia para sair e, depois, voltou atrás.
-A propósito - acrescentou, como se fosse uma ideia que lhe ocorresse naquele momento -, pode ver-se ao espelho, se quiser.
Eu vejo - respondi. - Obrigado. - Mas não fiz qualquer movimento para sair da cadeira. Por estranho que parecesse não tinha pressa nenhuma de olhar para mim. '
O médico ficou parado um momento, depois, quando viu que eu não saía da cadeira, fez um gesto com a cabeça e saiu do quarto, seguido pelos seis lacaios.
Continuei sentado, a ver a enfermeira inglesa limpar os instrumentos cirúrgicos que estavam no tabuleiro e pôr as ligaduras num recipiente destinado ao lixo. Não
olhou deliberadamente para mim, mas reparei que, de vez em quando, me observava pelo canto do olho.
Peguei-lhe na mão quando ela passou de novo à minha frente e fi-la voltar para mim.
- Que é que lhe parece, Sr.ª Enfermeira? - perguntei. - Está assim tão mal?
- De maneira nenhuma, Sr. Perino - respondeu rapidamente. - Eu é que nunca o tinha visto antes dos desastres. Vi-o quando entrou e a transformação
é notável. Tem um rosto interessante, quase se pode dizer que é bonito.
Ri-me.
-? Nunca fui bonito.
- Veja por si próprio - disse.
Levantei-me da cadeira e fui até à casa de banho. Havia um espelho por cima do lavatório. Olhei para ele.
Por momentos, senti o que era ser Dorian Gray e não envelhecer. Era quase a mesma cara que tinha aos vinte e cinco anos. Quase. Mas havia umas diferenças subtis.
O nariz era mais fino, mais aquilino. O médico tinha-lhe tirado a originalidade italiana. Os malares estavam ligeiramente mais altos, o que me tornava o rosto mais
magro e mais comprido e o queixo mais quadrado. As arestas de carne esponjosa que tinham sobressaído por debaixo dos sobrolhos quando estes abriram tinham desaparecido.
O mesmo acontecera com as cicatrizes brancas das queimaduras e a minha pele estava rosada, nova, reluzente como a de um bebé. Só os olhos pareciam errados naquela
cara.Os olhos eram velhos. Eram olhos com trinta e oito anos. Não tinham mudado. Não os tinham feito ficar mais novos para condizer com o resto da cara. Continuavam
a mostrar o sofrimento, o brilho do sol e as luzes de milhares de estradas diferentes.
Reflectida no espelho, vi a enfermeira de pé, à porta, atrás de mim. Voltei-me para ela e estendi-lhe a mão.
- Sr.a Enfermeira.
Aproximou-se rapidamente. A voz dela traía-lhe a preocupação.
- Sente-se bem, Sr. Perino?
- Quer ter a bondade de me dar um beijo?
A rapariga ficou um momento a olhar-me nos olhos, depois, fez que sim com a cabeça. Veio até junto de mim e, segurando-me o rosto com as mãos, voltou-o para baixo
em direcção a ela. Beijou-me.
Primeiro na testa, depois em cada um dos malares, depois em cada face e, por fim, na boca. Senti irradiarem dela generosidade e ternura. Levantei a cara.
Havia lágrimas aos cantos dos olhos dela e os lábios tremiam-lhe.
- Fi-lo sentir melhor, Sr. Perino? - perguntou, numa voz cheia de suavidade.
- Sim, Sr.ª Enfermeira -disse.- Muito obrigado.
Era verdade que me tinha feito sentir muito melhor.
CAPÍTULO 7
-
Vai ser caro - disse Loren Hardeman III, em tom pesado. Eu estava sentado do outro lado da secretária, a olhar para ele. Era dois anos mais velho do que eu, mas
parecia muito mais velho. Talvez fosse por estar metido num escritório.
O gabinete era de estilo antiquado, todo forrado a madeira escura e pesada, com as cadeiras e os sofás de couro negro e, nas paredes, gravuras de corridas de automóveis,
antigas e desbotadas. Mas era O Escritório. Tinha sido do avô, depois, do pai e agora era dele. Era o escritório do homem que dirigia a Bethlehem Motors.
Tinha o aspecto de um homem que começava a ganhar peso, mas que lutava para o evitar. Tinha o aspecto pesado de um jovem sobre cujos ombros a responsabilidade se
instalara bem cedo. Nem o sorriso nem os olhos dele mostravam qualquer alegria. Talvez nunca tivesse tido tempo para isso.
Aos vinte e um anos, tinha sido eleito vice-presidente da Bethlehem Motors, no mesmo ano em que casara com a rapariga certa, Alicia Grinwold, filha do Sr. e da Sr.?
Randall Grinwold de Grosse Pointe, Southampton e Palm Beach. O Sr. Grinwold era, nessa altura, vice-presidente da secção de compras da General Motors.
Tudo se seguiu na devida ordem. Alicia deu à luz uma filha; o Número Dois morreu; ele foi eleito presidente no lugar do pai; Bethlehem Motors recebeu o maior contrato
de peças que a GM jamais passou a uma empresa concorrente; e ele celebrou o seu vigésimo terceiro aniversário.
Entretanto, já lá iam dezassete anos e os jornais de Detroit sentiam orgulho na sua terceira geração. Muitos artigos se escreveram sobre os seus dois meninos prodígios,
Henry Ford II e Loren Har- deman III. Tinha surgido quais paladinos armados com o aço cromado dos seus automóveis reluzentes, prontos a lufar pelo seu soberano de
quatro rodas.
- Muito caro - acrescentou Loren no silêncio pesado do escritório.
Não respondi. Peguei num cigarro e acendi-o. O fumo subiu em rolos no ar tranquilo.
Loren carregou no interruptor do intercomunicador que tinha em cima da secretária.
- Peça ao Bancroft e ao Weyman que venham até cá, se estiverem disponíveis - disse.
Não estava a tornar-me a coisa nada fácil. John Bancroft não ia pôr problemas. Estava ligado às vendas e o meu plano só podia trazer-lhe benefícios. Mas Dan Weyman
era outra coisa. Weyman representava as Finanças e, para ele, tudo aquilo que pudesse custar dinheiro era coisa excomungada. O valor que a coisa em si pudesse ter
não contava. Só se separava do dinheiro à força.
Entraram no escritório e puseram-se com as balelas habituais, muito-prazer-em-vê-lo-por-cá, etc., etc. Depois instalaram-se em cadeiras e ficaram a olhar para o
patrão com ar de expectativa.
Loren não gastou tempo com palavras inúteis.
- O avô quer meter-nos em corridas. Sugeriu que o Ângelo ficasse à frente do projecto.
Ficaram à espera de uma pista. Loren não os decepcionou.
- Não sei se essa época não estará já ultrapassada. Agora que a segurança e a ecologia se tornaram factores cada vez mais prementes, acho que o problema
da potência tende a perder a relevância. E, além disso, temos o problema dos custos, que têm ido por aí acima. Ford já anunciou que vai desistir. A Chevy está a
fazer restrições. A Dodge continua, mas só enquanto os contratos vigentes não tiverem acabado. Pensei em os convocar para virem até aqui e, juntos, pensarmos no
caso.
Bancroft foi o primeiro a falar. A sua voz sonora de vendedor ecoou na sala.
- Não vejo em que é que isso nos pudesse prejudicar. Um bocado de animação não nos fazia mal nenhum. Todos os revendedores se queixam da nossa falta
de atractivos. - De repente, a voz dele começou a perder a convicção, enquanto se apercebia de que talvez estivesse a seguir a pista errada.
Dan Weyman prosseguiu num tom brando.
- Há dois aspectos a considerar. Não há dúvida de que um esforço válido no sentido das corridas nos poderia dar um bom contributo. Mas há que sopesar
o custo em relação aos benefícios. - Olhou para mim. - Qual é o seu cálculo?
- A frota mínima seriam três carros - disse. - Fórmula Três. Já não digo Um nem Dois. Não temos nenhum carro standard que aguentasse a competição,
por isso teríamos de recorrer a protótipos. Acho que, incluindo pessoal, desenho e a parte de engenharia, chegamos a um preço de cem mil por carro. Isto para os
primeiros três, a partir daí, o custo diminuiria progressivamente.
Weyman fez que sim com a cabeça.
- Neste momento, estamos a vender um pouco mais de duzentos mil carros por ano e perdemos cerca de cento e quarenta dólares em cada. Este projecto
viria agravar o nosso prejuízo em um dólar e meio por carro. - Olhou para Bancroft. - Isso significa que você teria de vender, pelo menos, mais trinta mil carros,
só para manter o prejuízo unitário dentro do nível actual. Acha que consegue?
Bancroft tinha uma tal fome de venda, que era quase visível a maneira como lhes tomava o gosto.
- Acho que há uma possibilidade. -Depois, acrescentou a inevitável constante de Detroit. - Desde que a economia não vá por água abaixo.
Olhei para Weyman.
- Quantas unidades teria de vender para não ter prejuízo?
- Trezentas mil - disse rapidamente. - O que representa um aumento de cinquenta por cento sobre o nosso volume de vendas actual. Uma vez esse número
ultrapassado, entramos na coluna dos ganhos.
- Não me parece muito difícil - disse, dando-lhe a alfinetada. - A Volkswagen vende mais do que isso.
- A Volks não trabalha com uma linha completa - respondeu. - Nós temos de cobrir todo o mercado americano para não ficarmos atrás da concorrência.
Não respondi. Aquilo era conversa fiada. A única razão para uma linha completa de fabrico era a de protegerem a sua própria secção de peças.
Loren mantivera-se silencioso durante a nossa conversa. Naquele momento, falou. A julgar pelo tom da voz, compreendi que a decisão dele estava tomada.
- Acho que vamos tentar. Tenho um grande respeito pelo meu avô. Além disso, no ponto em que estamos, não faz muita diferença um dólar a mais ou a
menos em cada unidade. E, quem sabe, com a Ford e a GM fora de jogo, talvez consigamos agarrar alguns troféus.
Pôs-se de pé.
- Dan, encarregue-se dos pormenores. Instale o Ângelo num gabinete e providencie para que lhe seja prestada toda a assistência de que ele precisar.
- Olhou para mim. - Ângefo, trate com o Dan de tudo o que disser respeito a despesas, tudo o mais trate comigo.
- Obrigado, Loren - respondi e a reunião terminou.
Seguíamos ao longo do corredor.
- Como é que está o Número Um? - perguntou Bancroft.
- Está óptimo - respondi.
- Tem-se falado muito por aí que ele não está lá muito bem. Coisas da idade, compreende?
- Se ele não está bem, então estamos todos muito mal - disse. - O espírito dele está mais vivo do que nunca.
- Alegro-me em ouvir isso - disse Bancroft e eu vi que estava a ser sincero. - Era um verdadeiro homem de automóveis.
- E ainda é.
- O meu gabinete é este aqui - disse Dan. - Entre que já podemos pôr tudo em ordem.
Combinei almoçar com Bancroft no princípio da semana seguinte e entrei para o gabinete de Dan. Era simples, funcional e moderno, como competia a um vice-presidente
da secção financeira.
Dan contornou a secretária e sentou-se. Sentei-me em frente
dele.
- Se a memória não me falha, já trabalhou para nós, em tempos - disse.
Fiz que sim com a cabeça. Ele sabia muito bem que era assim.
Pegou no telefone e pediu o meu processo. Tinha tudo sob controlo apertado. Em dois minutos, o dossier estava em cima da mesa dele, embora já tivessem passado doze
anos sobre a data do meu último emprego na firma. Abriu-o e ficou a olhar. A voz dele denotou surpresa.
- Sabia que ainda tem dinheiro a receber sobre o seu fundo de pensão?
Não sabia, mas de qualquer maneira fiz que sim com a cabeça.
- O dinheiro não me estava propriamente a fazer falta - disse
- Achei que estava em boas mãos.
- Já pensou na questão da remuneração? - perguntou.
- Não se falou nisso.
- Vou falar no assunto ao Loren - disse. - Quer fazer alguma sugestão?
- Nada. O que ele disser está bem para mim.
- E já pensaram no título?
- O Número Um sugeriu vice-presidente para projectos especiais.
- Tenho que discutir isso com o Loren - disse.
Acenei a cabeça em sinal de compreensão.
Ele ficou uns momentos a olhar para o meu dossier, depois, fechou-o e levantou os olhos para mim.
- Acho que não preciso de mais nada. - Pôs-se de pé. - Vamos até à secção de Desenho e Engenharia, para ver se lhe conseguimos arranjar um gabinete
em condições.
- Não se preocupe muito com isso -disse.- Não tenciono passar muito tempo lá dentro.
CAPITULO 8
As frustrações começaram a acumular-se. Não precisei de um cão polícia para sentir que todos estavam de sobreaviso. Era-me prestada toda a colaboração que eu pedia,
mas tudo levava o dobro do tempo. Seis semanas depois, ainda eu estava no meu gabinete a tentar conseguir que a secção de Engenharia me pusesse cá fora três motores
Sundancer. O Sundancer era o máximo na sua linha de produção.
Finalmente, peguei no telefone e liguei para o Número Um.
- Estou encurralado - disse-lhe.
Soltou uma risada.
- Tens pela frente verdadeiros profissionais, meu rapaz. Ao pé deles, esses condutorzinhos de carros de criança com quem tu costumavas brincar não
passam de verdadeiros amadores.
Não pude deixar de me rir. Estava absolutamente certo.
- Que é -que vais fazer? - perguntou.
- Só quero que me dê autorização para fazer as coisas à minha maneira.
- Força. Foi para isso que eu te chamei.
A chamada seguinte foi para Weyman.
- Sigo amanhã para a Costa.
Mostrou-se muito espantado.
- Mas os motores ainda não estão prontos.
- Não posso esperar. Se não começo a organizar agora as tripulações e os condutores para o ano que vem, podemos muito bem vir a ter os carros e mais
nada.
- E as modificações?-perguntou.
- O Carradine, da Engenharia, já tem tudo planeado. Logo que tenha os motores, pode começar.
- E a carroçaria?
- A secção de Desenho já tem o trabalho em mãos. Já dei a minha aprovação ao projecto e eles dizem-me que estão agora à espera de aprovação da secção
financeira. - Foi um verdadeiro tiro.
- Ainda não passou nada pela minha mão.
- Há-de passar - disse.
- Quanto tempo vai ficar fora?
- Duas ou três semanas - respondi. - Logo que voltar, entro em contacto consigo.
Pousei o telefone e fiquei à espera. Passados dois minutos, exactamente, o telefone tocou. Era Loren III. Era a primeira vez que falava com ele desde o dia da minha
chegada. Estava sempre em reunião e demasiado ocupado para ligar mais tarde.
- Ando há tempos para ligar para si -disse-, mas tenho estado muito preso. Como é que vão as coisas?
- Não me posso queixar. Com um pouco de sorte podemos pôr o nosso primeiro carro na pista na Primavera.
- Isso é bom. - Seguiu-se uma pausa. - A propósito, temos umas pessoas a jantar esta noite e a Alicia pensou que seria agradável se você pudesse vir.
- Acho óptimo - disse. - A que horas?
- Cocktails às sete, jantar às oito e meia. Smoking.
- Não tenho.
- Então, fato escuro. A Alicia gosta de jantares formais.
A chamada seguinte foi de Carradine, da Engenharia. A voz dele denotava excitação.
- O que foi que você lhes fez? Acabo de ser informado de que teremos os motores amanhã. Vão tirá-los especialmente para nós.
- Quando lhe chegarem à mão, vá para a frente - disse. - Vou para a Califórnia amanhã e lá para o fim da semana entro em contacto consigo.
A chamada seguinte foi da secção de Desenho.
- Acabámos de receber a aprovação da secção financeira, só que nos cortaram vinte por cento.
- Construa na mesma.
A voz de Joe Huff denotava espanto.
Essa não parece sua, Ângelo. Não podemos construir nada daquilo por menos vinte por cento.
- Já alguma vez ouviu falar em ultrapassar um orçamento? Construa na mesma. Eu assumo a responsabilidade.
Saí cedo do escritório, sentindo-me muito melhor do que me vinha sentindo nas últimas semanas. A fumarada já estava no ar, agora podia prosseguir com os meus verdadeiros
objectivos.
Fui o primeiro a chegar. A casa dos Hardeman ficava apenas a quatro quarteirões do escritório. O mordomo fez-me entrar para a sala de estar e meteu-me uma bebida
na mão. Ainda estava a acabar de me sentar, quando uma rapariga alta apareceu à porta.
- Olá - disse. - Cheguei cedo de mais?
Pus-me novamente de pé.
- No que me diz respeito, não.
Ela riu-se e entrou. O riso dela tinha um ressoar quente e gutural. Estendeu-me a mão.
- Sou Roberta Ayres, hóspede da Alicia.
- Ângelo Perino.
Deixou a mão dela na minha uns momentos,
- O corredor? - A voz dela denotava espanto.
- Ex-corredor - disse.
- Mas... - Lembrou-se da mão e retirou-a.
Sorri. Já tinha começado a habituar-me.
- Mandei arranjar a cara.
- Desculpe - disse rapidamente. - Não quis ser mal educada. Mas é que já o vi correr, muitas vezes.
- Não há problema - respondi.
O mordomo entrou na sala.
- Que é que posso servir-lhe, Lady Ayres?
O nome fez-me lembrar alguma coisa. O marido dela era um corredor amador, muito bom, que tinha pago o seu tributo ao sair de um ângulo em Nurburgring, havia alguns
anos.
- Um martini muito seco, simples - disse.
- Peço que me desculpe - disse-lhe. - Devia ter reconhecido o nome. O seu marido era um excelente condutor, Lady Ayres.
- É muito amável da sua parte, mas o grande problema do John é que ele nunca foi tão bom condutor como pensava que era.
- E quem se pode gabar de o ser? - perguntei.
Riu-se e o mordomo pôs-lhe a bebida na mão. Ergueu o copo.
- Aos carros velozes.
- Está certo - respondi. Bebemos.
- Que é que faz agora?
- Vou meter a Bethlehem nas pistas de corridas.
- Deve ser interessante - respondeu com delicadeza.
- É mesmo.
Olhou para mim com ar curioso.
- Você não fala lá muito, pois não?
Sorri.
- Depende.
- Está a ver o que eu quero dizer? - Riu. - Responde à maior parte das minhas perguntas com duas palavras.
- Não tinha dado por isso. - Depois, larguei a rir. - Agora foram quatro palavras. "?
Loren entrou quando ainda estávamos a rir.
- Vejo que já se conhecem.
- Neste momento já somos velhos amigos - disse a rapariga.
Uma expressão estranha passou nos olhos dele. Antes que pudesse
identificá-la, já tinha desaparecido. Inclinou-se e beijou-a na cara.
- Você está encantadora, Bobbie.
- Obrigada, Loren. - A mão roçou pela dele ao de leve. - Mas devo dizer que você também está muito elegante.
- Gosta? - Teve um sorriso de satisfação. - Mandei-o fazer naquele alfaiate de Londres em que você me falou.
- Um espanto - disse ela.
E, nessa altura, tudo começou a fazer sentido. Talvez ainda houvesse esperança para Loren. Pelo menos, via-se que tinha outras preocupações além dos negócios.
Alicia desceu. Aproximei-me e beijei-a na cara.
- Oh tu, aí - disse.
- Oh tu, aí - respondeu e ambos largámos a rir.
Loren e Lady Ayres olhavam para nós.
- É uma piada particular - expliquei.
- O Ângelo e eu andámos no liceu juntos -acrescentou Alicia. - E era assim que nos dirigíamos uns aos outros. Mas eu disse-lhe que não respondia,
a menos que me chamasse pelo nome.
- E depois como é que ele te chamou? - perguntou Lady Ayres.
- Oh tu, Alicia - respondeu. Todos nos rimos. - Parece que já foi há tanto tempo.
- Não mudaste assim tanto, Alicia - disse-lhe.
Sorriu.
- Não precisas de me lisonjear, Ângelo. A minha filha tem dezassete anos.
Os outros convidados começaram a chegar. E a coisa transformou-se num jantar íntimo de Grosse Pointe. Do tipo jovens-figuras-proeminentes-da-sociedade-de-Detroit.
A conversa foi igualmente típica. Impostos. Interferência do Governo na produção. A nova ênfase dada à segurança e à ecologia, e o seu apóstolo, Ralph Nader, também
estiveram presentes para receber a sua dose de condenação.
- Não negamos a sua necessidade - disse Loren -, mas rejeitamos a maneira como nos querem transformar nos maus da fita. O público esquece, de maneira
muito conveniente, que foram eles que quiseram mais potência e mais velocidade. Nós limitámo-nos a corresponder a essa procura. Mesmo agora, apesar do choro e das
lamentações, se lhes for dado a escolher entre um carro mais veloz e outro mais lento, concebido com maiores preocupações ecológicas, e dentro da mesma linha de
preços, eles não deixarão de escolher o mais rápido.
- E que é que vai acontecer? - perguntou alguém.
- Mais regulamentações por parte do governo - respondeu Loren.- Mais problemas para nós. Os custos vão ser tremendos e, se não pudermos transferi-los
para o consumidor, é bem possível que sejamos empurrados para fora da indústria automóvel.
No entanto, não parecia muito preocupado com esse facto e a conversa desviou-se para o conflito de gerações e o abuso da droga nas escolas. E então todos tiveram
a oportunidade de contar as suas histórias preferidas acerca dos filhos.
Não podia contribuir com grande coisa, por isso passei a maior parte do tempo a abanar a cabeça e a ouvir. Uma vez, quando deitei uma olhadela para Lady Ayres, do
outro lado da mesa, dei com ela a observar-me, com um brilho divertido no olhar. Era uma mulher com um espírito muito vivo.
Mas não tinha medido toda a vivacidade do espírito dela, até ao momento em que parou ao lado do meu assento, no avião, no dia seguinte. Tinha pedido uma sala para
poder espalhar os meus papéis em cima da mesa e trabalhar durante a viagem. Pus-me de pé.
- Lady Ayres, que agradável surpresa!
O mesmo brilho divertido que eu tinha visto nos olhos dela na noite anterior reapareceu.
- É mesmo, Sr. Perino? -perguntou, sentando-se ao meu lado. - Então, porque é que teve tanto cuidado em me dizer exactamente em que voo é que ia viajar?
Ri-me.
- Lady ou não, pensei que tinha que haver um limite. Tinha que haver qualquer coisa de humano em si.
Estendi a mão por detrás do assento dela, tirei o cartão de reserva e dei-lho.
Quando viu o nome dela no cartão, olhou para mim.
- É muito seguro de si, não é, Sr. Perino?
Já é tempo de me tratar por Ângelo.
- Ângelo -disse suavemente, experimentando a palavra com a língua-, Ângelo. É um nome muito bonito.
Peguei na mão dela.
- Vamos até ao fim do caminho - disse.
As portas fecharam-se ruidosamente e o avião começou a afastar-se da porta de embarque. Alguns minutos mais tarde, rolávamos pela pista e, depois, levantámos voo.
Ela olhou através da janela para Detroit, durante uns momentos, e novamente para mim.
-É como sair de uma prisão - disse. - Como é que as pessoas podem viver num raio de uma cidade tão chata? "
CAPITULO 9
Havia um telex à minha espera no Fermont Hotel, logo que me dirigi à recepção. Era de Loren.
SOUBE LADY AYRES SEGUIU MESMO VOO SÃO FRANCISCO. AGRADEÇO
TODA GENTILEZA E AUXÍLIO POSSA PRESTAR-LHE. SAUDAÇÕES.
L. H. III
Fiz um sorriso ambíguo e passei-lho. Depois, voltei-me de novo para o recepcionista e assinei o meu nome.
O empregado olhou para a assinatura e, em seguida, para o registo dos quartos.
- A sua suite está pronta, Sr. Perino. Fica na torre nova.
- Obrigado - disse.
Depois, chamou um rapazito.
- Acompanha o Sr. e a Sr.ª Perino ao 2112, por favor. -Sor- riu-me. - Espero que a estada lhe agrade, Sr. Perino.
Seguimos o rapaz ao longo do corredor comprido até aos elevadores da Torre. Quando entrámos para o elevador, ela ainda levava o telex na mão. Depois, estendeu-mo,
em silêncio.
Não falámos enquanto não ficámos a sós no quarto.
- Como é que acha que ele soube?
- A Gestapo de Detroit - respondi. - Todas as companhias têm uma. Não gostam de segredos.
- E eu não gostei da intromissão -disse. - Não é nada com eles para onde é que eu vou ou o que é que faço.
- Devia sentir-se lisonjeada. Este tipo de tratamento está geralmente reservado às pessoas que são importantes para o negócio.
- E que é que isso tem a ver comigo?
- Vamos lá, Bobbie. Eu vi a maneira como o Loren olhava para si. Ele está interessado.
- Todos os americanos estão. Viúva, jovem e loura, essa porcaria toda. Porque é que ele há-de ser diferente?
- Porque é Loren Hardeman III, só por isso. E os reis estão acima dessas coisas.
- Só na América - disse. - Nós os ingleses sabemos como é.
Fui à secretária e peguei num impresso de telegrama. O rapaz
trouxe as malas enquanto eu estava a escrever. Pô-las no quarto. Fiz-lhe sinal que esperasse enquanto eu acabava de escrever.
- Veja isto - disse, estendendo-lhe o impresso.
Baixou os olhos para ele.
HARDEMAN III, BETHMO, DETROIT
RECEBI INSTRUÇÕES, TUDO SOB CONTROLO. SAUDAÇÕES
PERINO
Sorria quando me devolveu o impresso. Dei-o ao rapaz juntamente com a gorgeta. Ele saiu fechando a porta.
O telefone tocou logo a seguir. Era Arnold Zicker, mais conhecido como o tubarão das fusões de empresas. Era responsável pela efectivação de mais fusões e aquisições
do que qualquer outro homem nos Estados Unidos.
- Combinei jantar com o Tony Rourke - disse. - Às oito e meia está bem?
- Okay - respondi. - Onde?
- Pode ser no hotel - disse. - É mais fácil.
Zicker era também o homem mais barato do mundo. Se comêssemos no hotel, era natural que mandasse pôr a despesa na minha conta.
- Okay -respondi. Pousei o telefone e levantei os olhos para ela. - Jantar às oito e meia?
Fez que sim com a cabeça.
- Tem alguma coisa especial a fazer até essa altura?
-'Não.
- Então, vamos para a cama, foder. Não pensa que eu me meti no avião só para vir aqui jantar?
Foi lindo. Verdadeiramente lindo. Acho que ambos ficámos surpreendidos e, depois, mesmo um bocadinho abalados com o profundo impacte emocional.
Continuámos agarrados depois de consumida a paixão. Não tinha vontade de a deixar. Sentia-a tremer. A carne dela era a minha carne.
- Olá - disse eu, ainda tentando compreender. - O que foi que aconteceu?
Os braços dela apertaram-se mais em volta do meu pescoço, segurando-me a cara junto dela.
- As estrelas caíram aqui dentro - murmurou.
Fiquei silencioso.
- Precisava de ti - disse. - Nem sabes quanto.
Pus-lhe o dedo sobre os lábios.
- Falas de mais. *
Mordiscou-me o dedo.
- As mulheres falam sempre de mais - disse. - É porque nunca sabem o que hão-de dizer depois.
Encostei a cara ao ombro dela.
Voltou a cabeça para olhar para mim.
- Não sei porquê, mas eu sabia que ia ser assim connosco.
- Não comeces a ficar sentimental - disse. - Não é nada britânico.
- Que é que eu terei que dizer para tu compreenderes que não é sempre assim? - perguntou, quase zangada.
Sorri-lhe.
- E o que é que te faz pensar que eu não sei? Ainda estou dentro de ti, não estou? Geralmente, nesta altura já eu estou fora da cama, a lavar-me.
- Eu lavo-te - disse. - Com os meus próprios sucos. Afogo-to.
Nesse momento, o telefone tocou. Estendi o braç> por cima
dela e atendi. Era Loren.
- Acabei de receber o seu telegrama - disse.
- Óptimo.
- Está tudo bem? Onde é que ela está?
- Aqui mesmo. Eu passo-lhe o telefone. - Meti-lhe o auscultador na mão.
- Estou óptima, Loren - disse. - Não, palavra, está tudo bem... Foi óptimo, mas já os tinha maçado de mais... Está bem, obrigada... Vou ficar umas
semanas aqui na Costa e, depois, naturalmente, volto pelo Polo para Londres... íamos agora mesmo sair para jantar... Dá muitas saudades à Alicia... Adeus.
Pôs o auscultador novamente no descanso e empurrou-me para fora dela. Rolei de costas e ela sentou-se, ficando a olhar para mim.
- És mesmo um patife - disse.
Depois, largámos os dois a rir.Estavam sentados no bar quando entrámos na sala de cocktails. Ficaram de olhos esbugalhados quando a viram. Não há como uma rapariga
inglesa parausar uma micromini. As pernas dela parecia que nunca mais acabavam.
Arnold deslizou do banco alto e ficou de pé.
- Tony Rourke, Ângelo Perino.
Rourke era um irlandês enorme, escuro, com uma cara estrábica de condutor. Gostei logo dele. Apertámos as mãos.
Apresentei-a e eles afastaram-se para a deixar instalar. Toda a conversa parou, por momentos, enquanto ela subia para o banco do bar. Era uma coisa que valia a pena
ver. Depois, mandámos vir as bebidas.
Deixei passar exactamente cinco minutos para os gracejos do costume e, depois, entrei a fundo. Olhei para Rourke.
- O Arnold disse-me que você é capaz de ter as instalações que me interessam.
- É possível - respondeu cauteloso.
- É um facto - atalhou Arnold entusiástico. - Dezoito mil acres numa área industrial do melhor, dois mil com hangares que lhe podiam servir exactamente
para o que pretende, o resto pode ir sendo feito à medida das necessidades. Inclui também cerca de uma milha de costa e tem carris de ferro mesmo lá dentro.
Ignorei-o. Ele era o vendedor.
- Não compreendo - disse para Rourke. - Porque é que quer largar isso?
- Quer que seja franco?
Fiz que sim com a cabeça.
- Não há futuro - disse.
Fiquei silencioso.
- Está bem à vista - disse. - Com os cortes que estão para vir em relação à defesa, nós vamos ser os primeiros a desaparecer.
- Que é que o leva a pensar assim? -perguntei.-Vão continuar a precisar de helicópteros. - Era a linha principal deles.
- Mas nada que se pareça em quantidade - disse. -Enquanto os meninos lá do alto estiverem ocupados com outros projectos, tudo bem. A Boeing com os
seus sete-quarenta-e-sete; os dez-onze da Lockheed; os SST que nunca poderão ser aprovados pelo Congresso. É fácil pouparem-nos a nós e caírem em cima deles. E não
podem deixar de o fazer. No caso deles, têm mais que proteger. Mais pessoal, mais capital.
-E que tal a aplicação comercial dos vossos aviões?
- Não pense nisso. O mercado está fechado. Além disso, o nosso helicóptero não dá. Foi concebido como uma máquina de guerra. - Levou a bebida à boca.
- Já fomos avisados de que não nos renovam o contrato para o próximo ano.
- Agradeço-lhe o que acaba de me dizer -disse, olhando-o nos olhos. - Está ser muito honesto.
Sorriu.
- Foi isso que pediu, foi isso que lhe dei. Além disso, não lhe disse nada que não pudesse descobrir por si mesmo, se começasse a informar-se por
aí.
- Obrigado na mesma - respondi. - Poupou-me uma data de tempo e chatices. Tem aí consigo os planos e as informações todas?
- Estão aqui - disse, apontando para uma pasta que estava no chão aos pés dele. "
- Óptimo - acrescentei. - Vamos jantar e, depois, podemos ir lá para cima e ver tudo isso.
Já passava das três da manhã quando eles saíram da suite.
- Tenho um avião no aeroporto para o levar à fábrica, quando quiser - disse Rourke.
- Obrigado. Amanhã digo-lhe qualquer coisa.
John Duncan devia chegar num avião da manhã. Tinha-se reformado da Bethlehem havia quatro anos, quando atingiu os sessenta. Era o único além de mim a quem o Número
Um confiou os seus projectos.
- O John Duncan é para mim o mesmo que o Charles Sorensen era para o Henry Ford - dissera. - Não há nada no sector da Produção que ele não consiga
fazer.
- Mas ele está reformado - tinha-lhe dito.
- O que não quer dizer que não volte - disse o Número Um num tom cheio de confiança. - Ou eu não conheço o John ou ele está a morrer de tédio a trabalhar
sozinho lá na garagem por detrás da casa dele naquele seu motor a gasolina com turbina.
E o Número Um tinha razão. A única coisa que John Duncan queria saber era quando íamos começar.
A porta fechou-se atrás deles. Voltei para dentro e preparei uma bebida. Empurrei uma pilha de papéis para o lado e afundei-me no sofá.
- Já se foram? - A voz dela vinha da porta que dava para o quarto.
Levantei os olhos. Trazia um cafetã de algodão brilhante que aderia a todas as promessas que tinha por baixo. Fiz que sim com a cabeça.
- Adormeci - disse a rapariga. - Mas ouvia o ruído das vozes. Que horas são?
Olhei para o relógio.
- Três e vinte.
Preparou um gim tónico e sentou-se na cadeira em frente de mim.
- Não faz sentido -disse. - Não é preciso tanta coisa só para construir uns carros de corrida, pois não?
Sacudi a cabeça.
- Tu estás metido noutra coisa qualquer, não estás. Fiz que sim com a cabeça.
Ela hesitou.
- O Loren sabe do que se trata?
- Não.
Ficou um momento em silêncio enquanto bebia o gim tónico.
- Não te sentes preocupado? - perguntou por fim.
- Com quê?
- Comigo - disse -, com o que eu lhe possa dizer.
- Não.
- E porquê? Não sabes nada a meu respeito.
- Sei o suficiente - disse. Pus-me de pé, juntei um pouco mais de uísque canadiano à minha bebida e, depois, voltei-me de novo para ela. - Além de
seres uma das conas mais formidáveis do mundo, também penso que és uma verdadeira senhora.
Ficou muito calada e, em seguida, passou a língua pelos lábios.
- Amo-te - disse.
- Também sei isso - respondi. E sorri.
Ela atirou-me com a bebida que tinha na mão e foi para a cama. Também desta vez foi lindo.
CAPÍTULO 10
Aproximou-se por detrás de mim enquanto me estava a barbear. Ouvi-lhe a voz por cima do zumbido da máquina eléctrica.
- Na noite passada gritaste quando estavas a dormir - disse. - Sentaste-te na cama, tapaste a cara com as mãos e gritaste.
Olhei-a no espelho.
- Desculpa.
- A princípio fiquei sem saber o que havia de fazer - continuou. - Depois, abracei-te e adormeceste outra vez.
- Não me lembro - disse, pousando a máquina de barbear. Mas não era verdade. O sonho nunca me abandonava. A dormir ou acordado. Espalhei um pouco
de loção na cara.
- O que é, Ângelo? - perguntou. - É por isso que os teus olhos nunca sorriem?
- O que é, é que eu morri - disse. - Há quem tenha a sorte de ficar morto depois de ter pago a passagem. Eu não fiquei.
De repente, o rosto dela desapareceu do espelho. Já demasiado tarde, lembrei-me do marido. Fui atrás dela até ao quarto. Estava parada em frente da janela, a olhar
para São Francisco. Passei-lhe os braços em volta do corpo e fi-la voltar para mim.
- Não quis dizer aquilo que pode ter parecido - disse.
Encostou a cabeça ao meu peito. Senti-lhe a face húmida.
- Quiseste sim. E o que é horrível é que eu compreendo e não posso fazer nada.
- Estás a fazer muito -disse.- És linda.
De repente, ficou zangada. Afastou-se dos meus braços.
- Que é que se passa com vocês? - gritou. - John era a mesma coisa. Não há ninguém, nada, que vos consiga tocar? Não existe dentro de vocês mais nada a não ser esse
vosso desejo louco de se destruírem estupidamente de encontro a uma parede qualquer?
- Okay - respondi.
- Okay, o quê? - atalhou.
- Isso já eu fiz - respondi. - Que é que há de novo?
Ficou um momento a olhar para mim, depois, passada a zanga,
lançou-se-me novamente nos braços. Senti-lhe o corpo tremer de encontro a mim.
- Desculpa, Ângelo - murmurou.- Eu não tinha o direito...
Pus-lhe um dedo nos lábios.
- Tens todos os direitos - disse -, desde que o faças com carinho.
O Fan jet Falcon estava pousado na pista no meio dos 747 e dos 707, à espera de que lhe fosse dada ordem para levantar voo, como um pardal no meio de um bando de
águias. O piloto voltou a cabeça para nós.
- Já não falta muito. Estamos em quarto lugar.
Olhei para John Duncan. Tinha o rosto sombrio e crispado. Detestava voar e, ao ver aquele avião, quase tinha chamado um táxi. Passei os olhos por cima dele e sorri
para Bobbie.
- Está confortável, John?
Não sorriu. A conversa não ia fazer com que ele passasse a gostar daquilo. Não disse nada até que tomámos a nossa posição na pista, à espera de ordem para levantar
voo. Nessa altura olhou para mim.
- Se não te importas, Ângelo - disse -, eu volto de comboio. Soltei uma risada sonora. Não tinha mudado com os anos.Talvez tivesse o cabelo um pouco
mais ralo, mas as mãos e os olhos continuavam rápidos e seguros. A mim, continuava a parecer-me o mesmo homem que tinha arranjado o meu carro no parque, havia trinta
anos.
O avião aterrou na pista da fábrica. Tony Rourke estava à nossa espera. Apresentei-os.
- Tomei a liberdade de lhes reservar um hotel perto daqui - disse. - Segundo os meus cálculos, vão precisar de, pelo menos, dois dias para visitar
completamente as instalações.
Como se viu depois, a ideia dos dois dias pecou por excessivo optimismo. Ficámos lá cerca de uma semana. E sem John Duncan ter-me-ia visto perdido. Começava a compreender
porque é que o Número Um tinha tanta fé nele. Não havia nada que lhe escapasse. Até a profundidade do canal no rio que levava às nossas docas, caso alguma vez quiséssemos
fazer acostar lá cargueiros maiores.
No fim da semana estava sentado com ele no quarto do hotel, com as fotocópias das instalações à nossa frente. Bobbie pôs as bebidas diante de nós e voltou para o
quarto.
- Que é que acha? - perguntei.
- Pode servir - disse. - A fábrica de montagem principal teria que ser consideravelmente aumentada para se conseguir um máximo de eficiência na produção,
mas não há nenhuma razão que o impeça. Há espaço suficiente. Os edifícios da pré-montagem estão bem situados e com um simples aumento de sete mil metros quadrados
devem ficar perfeitos. Só há uma coisa que me preocupa.
- O que é?
- O aço - disse. - Não conheço as fábricas da Costa Oeste. Podem, não ter capacidade para nos abastecer. E se tivermos que fazer vir os carregamentos
da Costa Leste, estaremos falidos antes mesmo de começarmos. Preferiria que tivéssemos uma fábrica própria. Aí é que a GM e a Ford nos estavam continuamente a pôr
fora de jogo. Punham os seus carros no mercado enquanto nós ficávamos à espera do aço.
- Havemos de pensar nisso - respondi. - Há mais alguma coisa?
Sacudiu a cabeça.
- Nada que me ocorra, de momento.
- Faz alguma ideia do que custaria a reconversão das instalações?
- Sem fazer a mínima ideia do tipo de carro que vamos construir? Não. i
- Ouvi dizer que a Ford instalou uma nova fábrica para produzir o seu novo modelo compacto. Sabe a quanto monta o investimento?
- Ouvi falar em cem milhões de dólares.
- Acha que precisamos de outro tanto?
- Talvez - respondeu. - Eu preferiria pôr uma equipa da engenharia de preços a tratar do assunto. Não me agrada deitar-me a adivinhar.
- E quanto tempo levaria essa equipa?
- Três, quatro meses.
- É muito tempo -disse.- Se resolvermos optar por esta fábrica, temos que nos decidir já. Não consigo fazê-los esperar tanto tempo.
- Isso é consigo - disse. Pôs-se a sorrir. - Faz-me lembrar o Número Um. Ele também nunca conseguiu esperar pelos números.
- Acha que a coisa vale os seis milhões que o Rourke está a pedir?
- Mandou fazer alguma avaliação?
- Sim -respondi.- Duas. Uma foi a dez milhões, a outra nove mil e seiscentos.
- Que é que o Rourke pensa fazer quando acabar o contrato?
- Vender.
- Não vai arranjar comprador para tudo. Vai ter que dividir em parcelas. Demora-lhe uma eternidade. - Ficou um momento a pensar. - Depende da fome
que ele tiver.
- Não sei - disse. - Ele não deve estar mal.
- Andei a ver aquilo tudo por lá - disse. - E fiquei com um grande respeito por ele. Dava um espantoso homem de produção no ramo automóvel, caso estivesse
interessado.
- Que é que está a dizer? - perguntei.
- Porque é que não o experimenta por esse lado? --sugeriu com ar arguto. - Depois de trabalhar dois anos comigo seria o melhor neste campo. E eu não
estou a ficar mais novo.
Tinha hora marcada para as três. Entrei no gabinete dele. Gostei do aspecto. Nada de rococós. Era um gabinete de trabalho. Das janelas via as instalações todas.
Fez um gesto com a mão em direcção a uma cadeira.
- Quer tomar uma bebida?
- Não, obrigado - respondi.
Acendeu um cigarro.
- Que é que acha?
- Acho que lhe podia apresentar uma longa lista de motivos pelos quais não vou comprar a sua fábrica - respondi. - Mas não creio que isso seja importante,
não acha?
Ficou um momento silencioso. Depois, abanou a cabeça, afirmativamente.
- Concordo consigo. As razões não são importantes. -Inalou o fumo do cigarro. - De certa maneira, sinto-me aliviado. Praticamente fui eu que construí
tudo isto com as minhas mãos. É natural que não me desligue assim. Afinal, o capitão deve ir para o fundo com o seu próprio navio.
- Não - respondi. - Isso é uma tirada romântica. Um capitão que seja esperto arranja mas é outro navio.
- E para onde é que eu me hei-de virar? -perguntou. - Vou trabalhar outra vez para a Bell? Sikorsky? Nem pensar. Há demasiado tempo que trabalho por
conta própria. Além disso, o helicóptero não vai longe. É demasiado especializado.
- E já pensou em automóveis? -perguntei.- Estão por toda a parte.
- Deve estar a brincar! - disse. - Que raio é que eu sei de automóveis?
- Não há assim uma diferença tão grande entre construir um carro ou um avião - disse. - Só que os carros constroem-se em muito maior número.
Ficou silencioso.
- O John Duncan diz que, em dois anos, consegue fazer de si o melhor neste ramo - disse. - E se conhece aquele finório daquele escocês tão bem como
eu, não vai pensar que ele diz as coisas de ânimo leve. Se ele pensa que você consegue, é porque consegue. Não há mais nada a dizer.
- E que é que eu faço com isto?-perguntou, acenando com a mão em direcção às janelas.
- Venda.
- A quem? Levava pelo menos cinco anos para vender isto aos bocados.
- Não estava a falar da fábrica - disse. - Venda mas é a companhia.
- E quem é que a comprava? Uma companhia que está à beira de perder o negócio? Quando chegassem a liquidar todo o activo, era uma sorte que lhes restasse
um milhão de dólares.
- É exactamente esse o número que tenho na ideia - disse. - Isto com a condição de você concordar em vir trabalhar para nós com um contrato por sete
anos.
Começou a rir e estendeu-me a mão.
- Sabe, acho que vou gostar de trabalhar consigo.
Apertei-lhe a mão.
- Que é que o leva a pensar isso?
- É que você é um autêntico ferrete - disse.
- De que é que se queixa? - Ri. - Acabo de o fazer milionário.
- E quem é que se está a queixar? -perguntou. Tirou uma garrafa da gaveta de baixo. - Que é que se segue?
Fiquei a vê-lo servir as bebidas.
- O John Duncan já vai a caminho de Detroit para arranjar uma equipa que organize as despesas. Daqui a uma semana está de volta.
- Óptimo - respondeu, passando-me uma bebida. - E agora que a companhia é sua, que tal algum dinheiro para a pormos a funcionar? No fim deste mês
há cerca de duzentos mil a pagar aos bancos.
-Ja mandei as suas folhas de balanço aos nossos contabilistas com instruções para se porem em campo e organizarem as coisas.
- Parece-me que você pensou em tudo, excepto numa coisa - disse. - Que é que quer que eu faça enquanto tudo isso se processa?
- Você vai-se pôr em campo para nos comprar uma fábrica de aço - disse. - E que seja suficientemente grande para nos dar o aço suficiente para, pelo
menos, duzentos e cinquenta mil carros no primeiro ano de produção e ainda suficientemente próxima para não nos arruinarmos a transportar o aço para aqui. -Provei
a bebida. - Mais uma coisa. É melhor arranjar um stock de uísque canadiano. Agora estamos a tratar de automóveis.
CAPÍTULO II
Arnold entrou como um pé-de-vento pela minha suite no Fer- mont, com os olhos injectados de sangue.
- Você ludibriou-me numa comissão de novecentos mil dólares - gritou. - Foi negociar a coisa por detrás das minhas costas.
Sorri-lhe.
- Acalme-se, se não ainda arranja um problema de coração.
- Vou levá-lo a tribunal! -gritou. - Ponho-lhe um processo que o deixo sem um tostão!
- Boa ideia - disse. - Gostaria de o levar ao banco das testemunhas e fazê-lo contar a toda a gente, nas suas próprias palavras, que tentou levar-me
à certa em seis milhões de dólares, quando sabia que a companhia estava praticamente falida.
Ficou a olhar para mim.
- Você não era capaz de fazer uma coisa dessas? - A voz dele estava sob o efeito do choque.- Por que não? Você anda a safar-se com
os seus crimes há tanto tempo que já pensa que isso é seu privilégio. Não creio que fosse muito difícil levar o SEC e o Congresso a lançar um inquérito aos dinheiros
que você sonegou a sociedades anónimas e aos seus accionistas.
Ficou um momento em silêncio. A voz dele desceu duas oitavas.
Que é que você quer que eu faça? Que aceite uma porcaria de uma comissão de quinze por cento sobre um milhão de dólares?
- Ná!
- Logo vi que você havia de compreender o meu ponto de vista. Isso não seria justo.
- Tem razão - respondi.
- E que é que você acha que seria justo?
- Cinco por cento - respondi.
Ficou rubro e perdeu a fala. Passado um bocado recuperou a voz.
- Isso é merda de galinha. Não dou dois passos por uma importância dessas. Para isso mais vale não receber nada.
- Ainda melhor - respondi.
- Não faço esse tipo de negócios - disse. - Tenho de defender a minha reputação.
Ri-me.
- Também não tenho objecções a isso. Mas eu estava só a começar. Há outras coisas em que acho que podíamos trabalhar juntos, mas se é isso que quer...
Não me deixou acabar.
- Eu não disse que não aceitava. Afinal, há coisas mais importantes do que o dinheiro. As relações entre as pessoas, por exemplo.
- Você tem toda a razão, Arnold.
- Sinto-me satisfeito por o assunto estar resolvido - disse. - Mando a conta ao Weyman da Bethlehem?
- Não - disse. - Mande-a em meu nome, ao cuidado do Banco Nacional de Detroit.
- Porquê em seu nome? - perguntou. - Não está a trabalhar para a Bethlehem?
Sacudi a cabeça.
- Que é que o levou a pensar uma coisa dessas? Desta vez, estou por minha conta. A única coisa que eu tenho que fazer para a Bethlehem é organizar-lhes
uma equipa de corredores.
Ficou a pensar. Vi que não me acreditava.
- Okay -disse-, eu entro no jogo. Que mais é que tinha na ideia?
- Preciso de uma fábrica de aço na Costa Ocidental - disse. - Ponha-se em contacto com o Tony Rourke. Ele vai trabalhar comigo e explica-lhe o que
eu preciso.
Pedi uma chamada para o Número Um logo que Arnold saiu.
- Onde é que tens andado? -A voz dele chegava até mim através da distância com um vago zumbido. - Não tive notícias tuas durante toda a semana.
Dei-lhe todas as novidades.
- Estás a andar depressa - disse, por fim, quando eu acabei.
- Apanhei um reboque - disse.
- Já tiveste notícias de Detroit? - perguntou.
- Nada - respondi. - Mas creio que vão tardar. O Arnold Zicker acaba de sair daqui. Parece que estava convencido de que eu estava a trabalhar para
a Bethlehem. Pus-lhe os pontos nos is. Disse-lhe que estava por minha conta.
- E achas que ele acreditou?
- Não. É por isso que estou à espera de notícias. Ele não deixa de ir fazer a sua própria investigação em Detroit. Não aguenta ficar por fora do acontecimento.
- Como é que tens feito quanto a finanças? - perguntou o Número Um.
- Tenho usado o meu próprio dinheiro. O senhor não era o único avô rico de Grosse Pointe.
Riu-se.
- Não se pode dizer que seja um bom negócio da tua parte. E se eu não entro com o dinheiro?
- Tenho que correr os meus próprios riscos. O meu avô dizia que o senhor era o melhor risco de Detroit. Que era o único homem que pagava ao seu contrabandista
de uísque o mesmo preço como se o negócio fosse legal.
- Levaste-me à certa, agora tenho vergonha de te ludibriar - riu-se -, com quanto é que já entraste?
- Cerca de dois milhões, até este momento - respondi. - Um milhão na compra e cerca de outro milhão para despesas nos próximos meses.
- Aceitas um milhão em dinheiro e outro milhão em certificados da BMC?
- Negócio feito - respondi.
- Amanhã de manhã estará tudo no teu banco -disse. - Para onde é que vais a seguir?
- Riverside, Califórnia - respondi -, para contratar uns tantos condutores e, depois, Nova Iorque. Tenho um encontro marcado com Len Forman por causa
dos títulos.
Ficou um momento em silêncio.
- Põe Riverside de lado. Acho que já fomos demasiado longe para nos preocuparmos com disfarces. É melhor seguires directamente para Nova Iorque. Quero
adiantar tudo o mais possível antes
de eles nos apanharem.
okay - respondi. - Mas acho que era a altura de eu ligar para o Loren e dizer-lhe que desisto. Não me importo de entrar numa jogada, mas não gosto de fazer batota.
Eu disse-lhe que ia arranjar uma equipa de corrida.
- Não vais fazer nada disso! - A voz dele era severa. - Deixa o Loren comigo. Além disso, não estás convencido de que ele acreditou minimamente na
tua história?
Não respondi.
- Fica de bico calado e vai para Nova Iorque - disse.
- Okay. Ele será seu neto, mas, mesmo assim, a coisa não me agrada.
- Também não te estou a pedir a tua aprovação - atalhou. - Limita-te a fazer o que tens a fazer!
O telefone morreu-me na mão e eu pousei-o no descanso. Preparei uma bebida e fui até ao quarto.
Estava estendida na cama a folhear uma revista. Levantou os olhos.
- Acabou a reunião?
Fiz que sim com a cabeça.
- Está tudo bem?
- Tudo bem. -Bebi um golo. O uísque sabia bem.- Houve uma alteração.
- Oh?
- Já não vamos a Riverside.
- Não tenho pena nenhuma - disse. - Não me importava nada de não voltar a ver uma pista de corridas.
- Vamos para Nova Iorque.
- Quando?
- Se fizermos já as malas, podemos apanhar o avião das dez e quarenta e cinco e chegamos a Nova Iorque de manhã.
- E se não apanharmos esse?
- Saímos de manhã. Mas perco um dia.
- E isso é importante?
- Podia vir a ser.
- Então, temos que nos despachar - disse, saindo da cama. Vi-a tirar o roupão e dirigir-se ao armário, nua, para ir buscar
um vestido.
- Ah, que se lixe - disse. - Volta para a cama.
Não conseguia pensar em nada mais estúpido do que passar a noite num avião.
CAPÍTULO 12
Não posso deixar de dizer uma coisa em abono de Lady Ayres. Lady ou não Lady, a verdade é que comia como um estivador. Fiquei a vê-la dar cabo do pequeno-almoço:
sumo, panquecas que lhe enchiam o prato, com ovos e salsichas, torradas, doce de laranja e chá. Entretanto, eu não parava de encher a minha chávena de café, para
arranjar coragem para enfrentar o dia.
- Vocês os americanos tomam uns pequenos-almoços monumentais - disse, entre duas garfadas. - É óptimo.
Fiz que sim com a cabeça. Era bem verdade, pensei, enquanto me servia da quarta chávena de café. O telefone tocou e eu atendi.
- Sr. Carroll, da recepção - identificou-se a voz. - Desculpe incomodá-lo, Sr. Perino.
- Não tem importância, Sr. Carroll.
A voz baixou um pouco.
- Tenho aqui uma chamada interurbana para Lady Ayres. É de Detroit e pensei que talvez fosse melhor pedir-lhe autorização antes de ligar.
Tapei o bocal com a mão.
- Quem é que sabe em Detroit que estás aqui?
- A única pessoa a quem eu disse foi ao Loren - respondeu.
Uma vez que o nome dela não figurava no livro dos hóspedes,
queria dizer que tínhamos os serviços secretos em acção. Falei novamente para o aparelho.
- O senhor é uma pessoa de inteligência e discreção notórias. Queira ligar a chamada.
- Muito obrigado, Sr. Perino. - Percebi que tinha ficado satisfeito porque a voz dele tomou aquele tom de homem-para-homem. - Se quiser fazer o favor
de desligar, eu digo à telefonista que passe a chamada.
Pousei o auscultador e empurrei o telefone em direcção a ela. Passados momentos, tocou.
- Alô - disse. Ouviu-se uma restolhada ligeira. - Loren, que bom ter telefonado... Não, não é muito cedo. Estava a tomar o pequeno-almoço.
A voz dele ecoou vagamente ao telefone. Ela ficou um momento à escuta, depois cobrindo o bocal com a mão, sussurrou para mim.
- Diz que vem a Palm Springs fazer um fim-de-semana prolongado para apanhar sol e jogar golfe e quer que eu lhe faça companhia.
Sorri. Afinal o Loren tinha tomates. Perguntei a mim mesmo se teria acabado de os descobrir.
- Diz-lhe que estás de partida para o Havai, hoje mesmo.
Fez que sim com a cabeça.
- Que azar danado, Loren. Adorava vê-lo, mas tenho tudo preparado para ir para o Havai. Nunca lá estive, sabe, e é um sítio que sempre me despertou
grande curiosidade.
A voz dele ecoou outra vez ao telefone. Ela tapou de novo o bocal.
- Diz que ainda é melhor. Que conhece uns sítios maravilhosos nas ilhas exteriores. Que é que eu faço?
Fiquei um momento a pensar. Não era a maior desgraça do mundo. Pelo menos, ia afastá-lo de Detroit e quanto mais tempo ele ficasse fora, mais hipóteses nós tínhamos
de nos organizarmos. Sorri-lhe.
- Acho que vais ter que ir para o Havai.
Ela falou mais alguns momentos ao telefone e, depois, desligou. Em silêncio, pegou num cigarro. Cheguei-lhe o lume. Inalou profundamente, sem nunca desviar os olhos
dos meus. Por fim, deitou fora o fumo.
- Não sei se gosto disto.
- Porque não? - perguntei. - Não é todos os dias que uma rapariga tem a possibilidade de ir ao Hawai.
- Não é disso que estou a falar e tu sabe-lo bem - atalhou. - É da tua atitude. Dispões de mim como se eu fosse uma prostituta qualquer que tu tivesses
ido buscar.
Sorri-lhe.
- Parece-me já ter lido em qualquer sítio que um inglês, uma vez, disse que era a única forma de tratar uma senhora.
Ela não sorriu.
- Realmente não sentes nada em relação a mim.
- Não digas isso. Não te amaria metade do que amo, minha querida, se não amasse mais a honra.
- Acaba-me com as citações - disse, aborrecida. - Que é que a honra tem a ver com isto?
- A minha atitude parece-me muito honrosa - respondi. - Sacrificar-me por um amigo. Noblesse oblige. Afinal, devo-lhe alguma coisa. Se não fosse ele,
nunca nos teríamos conhecido.
Ela olhou-me bem nos olhos.
- Dá-te jeito que ele se afaste, não dá?
- É um facto - respondi com simplicidade.
- E se ele se apaixona por mim?
- O problema é dele.
- E se eu me apaixono por ele?
- O problema é teu.
- És mesmo um merda - disse. Preparei-me para me pôr de pé. - Espera aí. Onde é que vais? - perguntou.
- Vou-me vestir - respondi. - Tenho que apanhar um avião às dez horas.
- Não vais a lado nenhum, por agora - disse com firmeza. - Só tenho que me encontrar com ele no aeroporto às sete da tarde. Agora que sabes que estás
livre dele, podes perder mais um dia.
- Para quê? - perguntei.
Levantou os olhos para mim.
- Para eu te foder até caíres. Foder-te até não teres nada dentro de ti, nem sequer a medula. Tanto, que é uma sorte se conseguires levantá-lo daqui
a um mês.
Ri-me e deixei-me cair outra vez na cadeira. Estendi a mão para o telefone.
- Para quem é que vais telefonar? - perguntou, desconfiada.
- Serviço de pequenos-almoços - disse. De repente, tinha tido o pressentimento de que ia precisar de um bom pequeno-almoço.
Fui com ela para o aeroporto, embora o meu avião só saísse duas horas mais tarde. Fiz a entrega das minhas bagagens para o voo respectivo e, depois, acompanhei-a
à sala de espera da United, de Detroit. Chegámos lá cerca de um quarto de hora antes da chegada do avião.
- Temos tempo para uma bebida rápida - disse, encaminhando-a para o bar mais próximo.
A empregada pôs as bebidas à nossa frente e afastou-se. Levantei o copo.
- Saúde.
Ela mal tocou no martini.
Olhei-a. Tinha-se mantido em silêncio durante todo o caminho.
- Levanta a cabeça - disse. - A coisa não é assim tão má. A luz era fraca e eu mal conseguia ver-lhe os olhos sob a aba
larga do chapéu de feltro macio.
- Estou preocupada contigo - disse.
- Eu fico bem.
- Tens a certeza?
- Tenho sim.
Levou o copo aos lábios e pousou-o de novo, sem provar a bebida.
- Voltamos a ver-nos? Fiz que sim com a cabeça.
- Quando?
- Quando voltares.
- Onde é que eu te posso encontrar?
- Por aí. Eu encontro-te.
A voz mecânica veio dos altifalantes instalados no tecto.
- Linhas Aéreas United, voo 271 de Detroit acaba de chegar.
- Isto é contigo - disse. Acabei a minha bebida e pusemo-nos de pé. Ela não tocou no martini.
Saímos da escuridão para as luzes fluorescentes do terminal com o seu milhão de watts. Fiquei parado.
- Espero que te divirtas.
Levantou os olhos para mim. Falou com voz suave.
- Não te deixes apanhar na jogada. Há outras maneiras de ir ao encontro da morte, além de trepar a parede.
- Podes ficar descansada -respondi. Inclinei-me e beijei-a ao de leve nos lábios. - Adeus.
Mal lhe senti os lábios mexerem-se debaixo dos meus.
- Adeus.
Afastou-se uns três passos e, depois, voltou-se de repente e lançou-se-me nos braços. A boca dela esmagou-se faminta de encontro à minha.
- Não me deixes, Ângelo - gritou. - Eu amo-te.
Por momentos, estive à beira de ouvir a música, mas o rufar dos tambores foi mais alto.
- Não te estou a deixar - respondi e suavemente afastei os braços dela do meu pescoço e pus-lhos ao lado do corpo.
Não disse mais nada. Desta vez seguiu sempre em frente. Fiquei parado, a olhar para ela, até que chegou à porta de saída dos passageiros. Loren tinha sido dos primeiros
a desembarcar. Era um homem alto e a aba descaída do seu chapéu de feltro cinzento de Detroit sobressaía no meio dos outros passageiros.
Um sorriso rasgou-lhe a cara quando a viu. Aproximou-se apressado, tirando o chapéu com uma das mãos e estendendo-lhe a outra. Trocaram um aperto de mão quase formal
e, depois, ele inclinou-se, desajeitadamente, e beijou-a na cara.
Voltei-me e subi para a passadeira rolante que levava ao terminal principal e ao meu voo. Só uma vez é que olhei para trás.
Iam a caminho do bar donde acabáramos de sair. Tinha posto uma mão no braço dela, como se estivesse a segurar um cabaz com ovos, ao mesmo tempo que ia falando e
olhando para ela.
O milhão de watts fluorescentes começou a queimar-me os olhos e parei de olhar. Quase não podia esperar para chegar ao fim da passadeira e dirigi-me logo ao bar
mais próximo.
Faltavam duas horas para o meu voo e, quando me dirigi para bordo, estava desfeito. Não exteriormente, a cair de bêbado, mas por dentro, estava triste e vazio.
Deixei-me cair no meu lugar e apertei o cinto. Recostei-me e fechei os olhos.
- Sente-se confortável? -perguntou a hospedeira.- Deseja alguma coisa?
Abri os olhos e contemplei-lhe o sorriso profissional.
- Sim - disse. - Arranje-me um uísque canadiano duplo, com gelo, logo que levantarmos voo e umas vendas para os olhos. Depois, não me chame para nada.
Não quero hors-d'oeuvres, nem jantar, nem cinema, nada. Quero dormir até chegarmos a Nova Iorque.
- Sim, senhor - respondeu.
Mas não serviu de nada. Nem o uísque, nem as vendas. Embora fosse com elas postas e não tivesse aberto os olhos durante toda a viagem, não dormi.
Apenas conseguia ouvir a voz dela ao meu ouvido, apenas via a expressão da cara dela quando se afastou de mim.
Senti-me satisfeito quando o avião finalmente aterrou em Nova Iorque e pude abrir os olhos. A coisa estava a ser muito pesada.
CAPÍTULO 13
Foi três dias mais tarde; estávamos sentados no relvado que deitava para a piscina e para a praia privativa, com as suas areias brancas que desciam até à água.
- O Inverno está a chegar - disse o Número Um.
- Ainda faz calor - respondi.
- Para mim já não. Todos os anos penso em ir cada vez mais para o sul. Talvez Nassau ou as Virgínias. À medida que vou envelhecendo, os meus ossos
parece que pressentem a chegada do frio.
Voltei a cabeça para olhar para ele. Estava sentado na cadeira, com as pernas enroladas na inevitável manta, o olhar perdido no mar.
- Que é que se sente quando se envelhece, Número Um? - perguntei.
Não desviou os olhos das cristas brancas das ondas.
- É uma coisa que eu odeio - disse sem pôr nas palavras nenhuma ênfase especial. - Sobretudo porque é uma chatice. Todas as coisas parecem passar-nos
ao lado e descobrimos que já não somos tão importantes como julgávamos. O mundo continua a girar e acabamos por nos absorver no único jogo que nos resta. Uma ambição
estúpida: 12.01 da manhã.
- 12.01 da manhã? -perguntei.- O que é isso?
- Amanhã de manhã - disse, voltando-se para mim. - O jogo da sobrevivência. Só que não sabemos para quê. Amanhã não é mais do que a repetição exacta
de hoje. Só que com mais intensidade.
- Se é assim, porque é que se meteu nisto tudo?
- Porque, ao menos uma vez antes de morrer, quero que alguma coisa seja mais importante para mim do que 12.01 da manhã. - Pôs-se novamente a olhar
para o oceano. - Acho que não me dei bem conta do que estava a acontecer até ao ano passado, quando Elisabeth veio aqui passar uns dias. Conhece-la?
Elisabeth era a filha de Loren.
- Nunca a vi.
- Tinha dezasseis anos nessa altura - disse. - E, de repente, ela fez o tempo recuar para mim. Betsy, o Verão passado, tinha exactamente a mesma idade
do que a bisavó dela quando eu a conheci. O tempo faz partidas engraçadas às pessoas, salta umas quantas gerações e, depois, revive. Durante aqueles breves dias
fui jovem outra vez.
Não falei.
- Levantava-me de manhã cedo e ficava a vê-la nadar na piscina. Uma manhã, o tempo estava tão magnífico que ela deixou cair o fato de banho ao lado
da piscina e mergulhou na água. Fiquei a olhá-la, até que toda aquela exuberância e juventude me encheram os olhos de lágrimas. Foi então que compreendi o que me
tinha acontecido. Muitas coisas tinham passado por mim, sem que eu me sentisse suficientemente envolvido em nenhuma delas para deitar uma lágrima.
"O meu mundo passara a ser o meu próprio corpo. O meu corpo, a minha concha, a prisão na qual tinha que cumprir o meu tempo, E isso estava profundamente errado.
Porque uma prisão é uma coisa da qual se deve tentar fugir. Estava a fazer exactamente o contrário. A minha única preocupação era arranjar maneiras de passar cada
vez mais tempo dentro dela. Naquele momento exacto compreendi o que tinha que fazer.
"Despir-me e saltar uma vez mais para dentro da piscina. Há mais de trinta anos que estava sentado nesta cadeira, a pensar que estava vivo, quando estava verdadeiramente
morto. Mas não ia continuar morto. Ainda me restava alguma coisa, alguma coisa que eu podia fazer. Construir um carro para Betsy, tal como tinha construído um para
a bisavó dela.
"Quando Betsy veio da piscina e nos sentámos à mesa do pequeno-almoço, disse-lhe o que ia fazer. Ela deu um salto e deitou-me os braços ao pescoço. Sabes o que ela
disse?
Sacudi a cabeça.
- Bisavô, isso seria a coisa mais bestial que alguém podia fazer por mim!
Ficou silencioso.
- Depois de ela se ter ido embora, telefonei ao Loren. Ele pensou que era uma ideia muito bonita. Mas pouco prática. Economicamente, a nossa estrutura
de lucro estava estabilizada; a construção de um novo carro podia abalar essa estrutura. Do ponto de vista físico, não tínhamos espaço; mais de setenta por cento
eram utilizados por outros tipos de manufactura. Mas fi-lo prometer que ia estudar a questão.
- E ele estudou?
- Não sei. Se o fez, nunca me disse nada. Ao fim de algum tempo, compreendi que, se queria levar o projecto por diante, teria que arranjar alguém
que o fizesse por mim. Foi por isso que te fui bater à porta.
- Porquê eu?
- Porque os automóveis são a tua vida, tal como têm sido a minha. Fiquei a saber isso desde aquele dia no parque e também fiquei a saber que era apenas
uma questão de tempo até que pusesses de parte os brinquedos e te metesses num empreendimento como o que temos agora em mãos.
- Okay, aqui me tem -sorri. - Mas ainda temos o Loren.
Surgiu-lhe no rosto uma expressão de espanto.
- Isso é que eu não percebo de todo. Sei que o Loren não é estúpido. Já há muito tempo que ele deve ter percebido o que nós andamos a fazer. Mas ainda
não disse palavra.
- Loren tem outras preocupações - disse.
- Que preocupações? Uma coisa que o Loren nunca faz é desviar os olhos do trabalho.
- Mas desta vez desviou.
-? Que raio! Estás a ficar misterioso - atalhou. - Se sabes alguma coisa que eu não sei, diz.
- Loren anda envolvido num romance - respondi. - Neste preciso momento, está no Hawai.
- Como é que sabes isso? -perguntou abrupto.- Telefonei para casa e para o escritório, ninguém sabe onde é que ele está.
Ri-me.
- Eu fiz praticamente tudo, excepto enfiar a rapariga no avião com ele.
Resumidamente, contei-lhe a história e, quando acabei, ele começou a sorrir.
- Óptimo - disse. - Já tinha perguntado a mim mesmo se ele seria humano. Talvez ainda haja alguma esperança para ele.
Pus-me de pé.
- Acho que vou lá dentro ver como é que os rapazes se estão a arranjar com as contas.
Deixei-o sentado no mesmo sítio, a olhar para o oceano, dirigi-me a casa e fui direito à biblioteca. Apesar das janelas abertas, havia sempre nuvens de fumo azul
dos cigarros flutuando no ar por cima da mesa em volta da qual estavam reunidos os contabilistas. A uma ponta da mesa, estava Len Forman,,um dos principais sócios
da Danville, Reynolds e Firestone, em representação dos accionistas, e na outra ponta, Artur Roberts, proeminente advogado de Nova Iorque, do foro empresarial, que
tínhamos contratado como nosso conselheiro. A coisa de que eu mais gostava no Artie era que ele não tinha medo da luta e todos nós sabíamos que as coisas não iam
deslizar com a leveza de uma valsa.
- Em que ponto estamos? - perguntei.
- Está quase tudo pronto - disse Artie. - Acho que já podemos conversar.
- Vou chamar o Número Um - disse.
- Não faça isso - disse Artie rapidamente. - Nós vamos consigo. Depois de passar três dias fechados nesta sala, um pouco de ar fresco não nos fazia
mal nenhum.
- Eu ainda tenho que ultimar umas coisas - disse Len. - Vão andando, que eu já lá vou ter.
Voltámos para junto da piscina. O Número Um continuava a olhar para o oceano. Voltou a cabeça quando ouviu os nossos passos. Foi direito ao assunto.
- Que é que acha, Sr. Roberts. É possível?
- Sim, a coisa pode fazer-se, Sr. Hardeman -disse Artie. - Mas acho que devíamos examinar os vários caminhos possíveis para alcançarmos os nossos
fins.
- Explique-se - disse Número Um, lacónico. - Mas não se esqueça de o fazer com toda a simplicidade. Eu não passo de um mecânico, não sou advogado,
nem contabilista.
- Vou tentar - disse Artie com um sorriso. Sabia tão bem como eu que o Número Um já tinha planeado tudo na cabeça dele, muito antes de qualquer de
nós ter pegado no assunto. - Há várias hipóteses. Uma é pegar na companhia toda como sociedade anónima. Parece-me que isto seria possível sem grandes desvantagens
quanto a impostos. Outra seria separar as secções de acessórios e manufactura da parte principal da empresa e vendê-las ou transformá-las em sociedades anónimas.
A terceira seria o contrário das outras duas, separar a secção de automóveis e torná-la numa sociedade anónima. Dada a sua estrutura não lucrativa, esta hipótese
torna-se a menos atraente.
- E acha que vamos conseguir realizar o capital de que precisamos? - perguntou Número Um.
- Não vejo por que não - disse Artie. - Independentemente do plano que adoptarmos. - Voltou-se para Forman que tinha chegado precisamente no momento
em que a pergunta foi feita.
- Que é que acha, Len?
Forman fez que sim com a cabeça.
- Não há nenhum problema. Deve ser a proposta mais comercial a aparecer no mercado desde que a Ford se tornou numa sociedade anónima.
- Qual é a estratégia que recomenda?
- A primeira - disse Artie rapidamente. - Transformar toda a companhia numa sociedade anónima. *
- Concorda? - disse Número Um, voltando-se para Forman.
- Inteiramente - disse, acenando com a cabeça. - Seria a proposta mais atraente.
- As suas razões são as mesmas? - perguntou Número Um a Artie.
- Não propriamente - disse Artie.- Não vejo por que é que há-de ter que renunciar à sua parte nas áreas mais rendosas da sua companhia para fazer
o que pretende. Acho que, se seguirmos a fórmula do Ford, pode ficar com o bolo e comê-lo ao mesmo tempo.
Número Um voltou-se e olhou outra vez para o mp. Ficou um momento em silêncio. Depois, respirou fundo e voltou-se novamente para mim.
- Quando é que pensas que o meu neto estará de volta a Detroit?
- Durante a próxima semana.
- Acho que devíamos ir até lá falar com ele - disse. - Talvez eu tenha tido, desde sempre, uma ideia errada a seu respeito. Acho que lhe devo dar
a oportunidade de tomar uma decisão.
- Está certo-respondi.
- Vou pedir à Sr.ª Craddock que telefone para o escritório e marque uma reunião na minha casa de Grosse Pointe, na quarta-feira à noite. - Começou
a fazer rodar a cadeira em direcção a casa. Donald apareceu misteriosamente e começou a empurrá-lo. Número Um olhou para nós. - Venham, meus senhores, deixem-me
oferecer-lhes uma bebida.
Seguimos a cadeira. Forman perguntou:
- Já pensou no tipo de carro que quer construir, Sr. Hardeman?
Número Um riu-se.
- Um carro que ande, espero bem.
Forman continuou com toda a delicadeza.
- Estou a referir-me ao desenho.
- Estamos apenas a começar - disse Número Um. - O desenho de automóveis é uma arte muito complicada. Uma arte. É exactamente isso. Uma arte moderna
e funcional. Uma colagem primária da nossa sociedade tecnocrata. Nem mais nem menos do que isso, meus senhores. O modelo T do Henry Ford não devia estar na Smithsoniana.
Um lugar mais adequado para ele seria o Metropolitan Museum of Art.
- Já escolheu o nome para o carro, Sr. Hardeman? -perguntou Artie. - Segundo creio, os nomes são muito importantes.
- São. E eu já fiz a minha escolha. - Olhou para mim e sorriu com ar cúmplice. - Betsy. É assim que lhe vamos chamar. Betsy.
CAPÍTULO 14
Deixei Artie e Len no aeroporto para apanharem o avião do fim da tarde para Nova Iorque e, quando saí do terminal, Hertz- Raparigas sem Condutor estava de pé ao
lado do meu carro.
- Estou decepcionada consigo, Ângelo - disse, na sua voz de mel-e-laranjas. - Há já três dias que voltou e ainda não me telefonou.
- Peço que me desculpe, Melissa, mas tenho tido muito que fazer.
Fez beicinho.
- E eu a pensar que você estava interessado.
- E estou, Melissa - respondi. - E estou.
- Nesse caso, que tal esta noite? Quer dizer, se não estiver ocupado.
- Calha lindamente - disse. - Mas nada de sítios como da última vez. Levei três dias para recuperar o ouvido. Não conhece nenhum motel agradável e
sossegado onde pudéssemos apenas estar juntos?
Veio-me outra vez com a trampa do "Sr. Perino".
- Sr. Perino, isto é uma terra pequena e uma rapariga tem que ter cuidado com a sua própria reputação. Talvez pudéssemos ir dar uma volta no carro,
tranquilamente.
Lembrei-me da maneira como ela guiava e sacudi a cabeça.
- Não, muito obrigado. Além disso, já não tenho idade para foder no banco de trás de um automóvel. - Dei a volta ao descapotável e sentei-me ao volante.
- Até um dia destes, Melissa.
- Não, Ângelo -disse.- Espere um momento. - A voz dela tornou-se mais baixa enquanto se inclinava sobre a porta do carro, dando-me uma bela perspectiva
de duas laranjinhas maduras que se lhe comprimiam de encontro à blusa.
- Tenho de preparar as coisas -sussurrou-, digo aos meus pais que vou passar a noite com uma amiga que tem uma casita a norte da cidade. Ela não está
cá e deixou-me a chave.
- Isso já é outra coisa.
Tinha outra vez o Mach Um quando me veio buscar. Saiu do carro quando eu desci as escadas.
- Guie você.
- Okay.
Sentei-me atrás do volante. Apertei o cinto e olhei para ela. Fez o mesmo. Dirigimo-nos para a estrada.
- Volte à direita - disse. - Há um supermercado a cerca de um quilómetro daqui.
Voltei o carro para a estrada e, sem fazer qualquer mudança, pus o motor a rodar, até o indicador quase atingir a linha vermelha no velocímetro. Carreguei com toda
a força no travão e fiz uma paragem abrupta em frente do supermercado. Olhei para ela.
Tinha os olhos semicerrados e sorvia o ar com a boca aberta. Tinha também as pernas abertas. Estendi o braço e meti-lhe a mão por debaixo do vestido. Tinha as cuecas
encharcadas. A velocidade era o máximo para ela. Estremeceu.
- Que é que bebes? - perguntei-lhe.
Fechou os joelhos por cima da minha mão.
- Champanhe - disse. -: Champanhe francês. Mas que seja bom e esteja bem fresco.
- Okay. Devolve-me a minha mão que eu vou buscá-lo.
Voltei com três garrafas de Cordon Rouge. Mostrei-lhas.
- Está bem assim?
Ela fez que sim com a cabeça. Meti-me no carro e saímos para a estrada.
- Tu guias mesmo a valer, não guias?-disse numa voz meio rouca.
- Lá isso é verdade.
Carreguei com o pé no acelerador. Sabia o que ela queria. Por sorte minha, não havia polícias na estrada. Acho que fizemos os dez quilómetros que nos separavam da
casita em menos de seis minutos.
Era uma construção exactamente igual a muitas outras que se encontravam ao longo de uma pequena estrada, a quinhentos metros da auto-estrada. Meti por um caminho
que ela me indicou e parei debaixo de um abrigo para carros. Desliguei o motor e olhei para ela.
Tinha os olhos brilhantes.
- Puseste-me fora de mim.
Não falei.
- Lembras-te daquela ocasião em que estavas a ultrapassar três carros e aquele outro carro veio pela estrada acima em direcção a nós?
Fiz que sim com a cabeça.
- Olhei para o velocímetro. Ias a cento e vinte. Quando meteste pelo carreiro, vim-me com tanta força que quase me mijei. Depois disso continuei a
vir-me, sem conseguir parar, durante quase um minuto.
- Espero que te tenha ficado alguma coisa - disse.
Riu-se.
- Isto nunca seca - respondeu e saiu do carro. Estendeu o braço por detrás do assento dela e tirou um pequeno saco de voo. Peguei no champanhe e fui
atrás dela para dentro de casa.
Melissa correu a casa toda, fechando as persianas e correndo os reposteiros, antes de me deixar acender as luzes.
- A minha amiga está sempre a queixar-se da bisbilhotice dos vizinhos - explicou.
- É agradável saber que há alguém que se importa connosco - disse.
Abriu o saco de voo.
- Tenho de pendurar o vestido para amanhã, para não se amachucar. - Foi pôr o vestido no armário e voltou.
- Fumas?
- Às vezes.
- Óptimo - disse. - Tenho uma erva óptima. - Puxou de um saquinho de celofane e de uma embalagem de papel Zig Zag e pô-los em cima da mesa. - Gostas
de poppers?
- É divertido.
- Há um caixeiro-viajante que me traz uma lata cada vez que passa por cá. Estes são frescos. Deu-mos hoje.
- Que mais quero eu? - Estendi o braço para a agarrar, mas ela fugia-me.
- Não sejas tão apressado - disse. - Abre uma garrafa de champanhe enquanto eu tomo um duche num instante. Sinto-me toda pegajosa.
Olhei para ela. Se se tinha vindo pelo menos metade das vezes que tinha dito, devia estar como um boião de cola.
- Okay - respondi.
Tirou um saco de papel de dentro do saco de voo e deu-mo. Estava gelado. Olhei-a com ar interrogador.
- São bifes - explicou. - Podemos ter fome, mais tarde.
Ri-me e dei-lhe uma palmada no rabo.
- Vai lá tomar o duche.
Ela pensava em tudo.
Hertz - Raparigas sem Condutor estava a trepar um muro. Duas fumaças e um popper quando atingiu o primeiro orgasmo e ei-la numa viagem sem regresso. Eu estava com
a cabeça entre as pernas dela. Melissa puxava-me pelos cabelos, tentando meter-me a cara dentro dela. Havia uma coisa em que tinha razão. Nunca secava.
De repente, afastou-me com as mãos. ,
- Não vais pensar que eu sou horrorosa? - perguntou.
Sacudi a cabeça.
- Quero que te venhas na minha boca - disse.
- Posso começar por outro lado?
- Sim -disse-, mas quero que te venhas na minha boca.
Fi-la rolar sobre si própria e entrei por detrás. Ela estendeu as
mãos por baixo do corpo, agarrou-me os tomates e apertou-os.
- Oh, meu Deus! - disse. - Estão tão cheios e tão pesados.
Senti aquilo começar a subir. Ela também. Afastou-se de mim
e deu a volta, agarrando-me com a boca. O esperma começou a jorrar e ela sorveu-o, fazendo ruídos com a boca, espremendo e mugindo-me os testículos, mesmo depois
de já estarem completamente vazios. Fiquei estendido, esgotado, exausto.
- Foi óptimo - disse a rapariga. - Sabes a creme, doce e grosso.
Ainda estava agarrada a mim, a brincar comigo.
- Tens vontade de ir mijar? - perguntou.
- Já que me lembraste, acho que sim. - Saí da cama.
Ela foi atrás de mim para a casa de banho.
- Deixa-me segurar-to.
Olhei para ela.
- À vontade.
Pôs-se atrás de mim e fez pontaria para dentro do recipiente, mas não acertou e fez cair tudo por cima do assento.
- É exactamente o que eu pensava -disse.- As mulheres não sabem como é que se mija.
- Deixa-me experimentar - respondeu trepando para a banheira que ficava ao lado da retrete. Depois segurou-mo. Desta vez acertou a pontaria.
Olhei para a cara dela. Tinha uma expressão de concentração elevada que nunca lhe tinha visto antes. Uma fascinação quase infantil. Levantou a cara para mim. Quase
como se estivesse num estado de encantamento, interceptou o líquido com a mão que tinha livre. Bruscamente, voltou-o para ela.
Parei surpreendido.
Ela puxou-me pelo sexo, zangada.
- Não páres! - gritou. - É óptimo. Banha-me toda.
- Cada um tem os seus gostos. - respondi. Se era aquilo que ela queria, quem era eu para dizer que não?
Foi uma noite desenfreada, louca. E para cúmulo, ela era do tipo de gritar. O que só servia para provar que a amiga dela era uma mentirosa. Se os vizinhos fossem
realmente metediços, teriam chamado a polícia.
Eram sete da manhã quando me deixou em frente de casa. Estendeu-me a mão quase com formalidade.
- Obrigada, Ângelo -disse.- Foi a noite mais bonita e mais romântica da minha vida.
Não pude fazer outra coisa a não ser concordar com ela. Afastou-se. Subi os degraus e entrei em casa. Donald veio ao meu encontro.
- Uma senhora, de nome Lady Ayres, tentou entrar em contacto com o senhor várias vezes, na noite passada - disse. - Deixou um número. Diz que é muito
importante.
- Donde é que ela estava a falar? - perguntei.
- Nova Iorque -respondeu. - Quer que tente ligar para ela?
- Sim, por favor - respondi e segui-o até à biblioteca. Havia uma cafeteira com café em cima da mesa. Enchi uma chávena enquanto esperava. Momentos
depois, ele fez-me um sinal. Peguei no telefone que estava ao pé de mim.
- Alô.
- Ângelo - a voz dela era muito tensa. - Tenho que falar contigo... Já.
- Que é que é que estás a fazer em Nova Iorque? >-perguntei.- Julgava...
- A Alicia sabe que eu o Loren estivemos juntos - disse. - Do escritório andavam à procura dele e fizeram o disparate de lhe dizer.
- Porque <é que o escritório queria falar com ele?
- Era qualquer coisa que tinha que ver contigo. Ele não disse grande coisa, mas estava muito zangado e disse que ainda podias acabar na cadeia. Nessa
altura, a Alicia telefonou e ele contou-lhe tudo.
- O idiota!
- Não é lá muito subtil - disse. - Para ele é uma questão de honra. Agora, quer casar comigo.
- Onde é que ele está?
- Em Detroit. Tenho que falar contigo. Posso ir ter contigo aí?
- Não. Eu vou ter contigo a Nova Iorque. Onde é que estás hospedada?
- No Waldorf - respondeu.
- Esta tarde estou aí.
A voz dela pareceu aliviada.
- Eu amo-te, Ângelo.
- Adeus, minha querida - disse. O Número Um estava à porta.
- Quem era? - perguntou.
- A rapariga em que lhe falei - respondi. - A merda acertou na ventoinha. O Loren vai-nos cair em cima.
Isso já eu sei - disse o Número Um com' ar irritado. - Já falei com ele. Mas aconteceu mais qualquer coisa.
- Sim - disse. - A Alicia apanhou-o com a rapariga. E ele quer o divórcio.
- Santo Deus - disse Número Um. - Aquele rapaz nunca mais cresce.
CAPÍTULO 15
- Não sei que diabo é que eu estou a fazer aqui - disse a rapariga, andando de um lado para o outro na imensa sala de estar da suite da Bethlehem
Motors nas Torres do Waldorf. - Aconteceu tudo tão depressa.
Continuei sentado na cadeira a olhar para ela. Levei a minha bebida aos lábios, sem falar.
- Vai para a suite da companhia, no Waldorf -disse de-, e espera lá até teres notícias minhas. Não te preocupes.
Parou de andar de um lado para o outro e ficou a olhar para mim.
- Só no momento em que me meti no avião para Nova Iorque é que pensei naquilo que ele tinha dito. Não havia razão para preocupações. Não tinha acontecido
nada entre nós.
Continuei a não dizer nada.
- Tu não acreditas em mim, pois não? - perguntou.
- Claro que acredito em ti.
- Não tens ar nenhum disso.
- Chega aqui - disse.
Ela atravessou a sala e ficou de pé à minha frente. Inclinei-me na cadeira e beijei-a mesmo <no sítio em que as pernas se bifurcam. Depois, levantei os olhos para
ela.- E agora, já acreditas que acredito em ti?
Um meio sorriso apareceu-lhe nos lábios.
- Isso é uma pergunta muito complicada. Tu és louco.
- Nnn-nnn - respondi. - Agora acalma-te e conta-me exactamente o que aconteceu. O que pode não ter sido nada para ti, pode ter sido uma coisa muito
diferente para ele. Não te esqueças de que estamos a falar de um tipo muito honesto.
- Isso é verdade -disse.- Há nele uma ingenuidade de rapazinho que eu, a princípio, julguei que era fita. Mas não era. Ele é mesmo assim.
- Ficaram na mesma suite?
- Não - respondeu. - As nossas suites ficavam ao lado uma da outra.
- Porta de ligação?
- Sim. Mas ele nunca entrou sem bater primeiro, embora a porta estivesse sempre aberta. Nunca me deu um beijo de boas noites sem primeiro pedir licença.
E nunca mencionou que estava apaixonado por mim antes de ter falado com a Alicia.
- Mas deve ter mostrado qualquer coisa.
- Claro que mostrou - disse. - Havia todos os indícios. Flores todos os dias. A maneira como ele olhava para mim com aqueles grandes olhos redondos,
a maneira acidental como me tocava constantemente na mão, estás a ver o que eu quero dizer. Achei tudo aquilo encantador, mas não o tomei a sério. Como é que se
podia? Tudo aquilo era tão vitoriano.
-• Se tudo se passava com tanta decência, como é que a Alicia chegou a ti?
- Exactamente por tudo ser tão decente, como tu dizes -respondeu. - E isso é que é o mais estúpido no meio desta história toda. A chamada da Alicia
veio enquanto estávamos a tomar uma bebida na minha suite. Se tivéssemos ficado na mesma suite, eu nunca teria atendido o telefone. Assim, nem pensei. Ela reconheceu
imediatamente a minha voz.
- Isso foi antes ou depois de ele falar para o escritório?
- Antes. Aliás foi por causa disso que ela telefonou. Para saber se ele queria que dissesse no escritório onde o podiam encontrar.
- Oh, céus - disse. - Isso não é ser honesto, é ser estúpido. É preciso um jeito especial para um homem dizer à mulher para onde vai, especialmente
se vai viajar com outra mulher. Ele queria era ser apanhado.
- Achas?
- Que mais é que se pode achar? - Olhei para ela. - Percebi que ele estava interessado em ti logo na primeira noite em que nos conhecemos naquele
jantar em casa deles. A Alicia não é cega. Também deve ter dado por isso.
Ela ficou um momento a pensar.
- Claro, que estupidez a minha. Tinha que ser isso.
Sorri-lhe.
- Partes sempre do princípio de que os homens perdem a cabeça contigo.
- Mas porque é que ele nunca me disse nada?
- Talvez tivesse medo que o recusasses - respondi. - Quem é que pode saber?
- Que é que eu hei-de fazer? -perguntou^- Não preciso de toda essa merde.
Uma campainhazinha começou a tocar dentro da minha cabeça. Porquê aquela mudança repentina de linguagem? Antes ela não tinha hesitado em usar o inglês.
- Qual merda? - perguntei.
- Ora - respondeu. Pela primeira vez mostrou-se vaga. - Tudo isto. O divórcio dele para o ano.
- Para o ano?
- Sim, ele não quer divorciar-se antes do debut da Elisabeth em Setembro. Não quer estragar-lhe isso por nada neste mundo.
- Parece que ele planeou tudo meticulosamente -comentei.- E quer que tu esperes?
Fez que sim com a cabeça.
Senti que as engrenagens começavam a ir ao seu lugar. Lentamente, larguei a embraiagem.
- Okay, Bobbie, acabou-se a brincadeira - disse. - Vamos à verdade nua e crua. Há quanto tempo é que andas atrás dele?
Ficou um momento a olhar para mim.
- Tu és horrível.
- É uma questão de prática - respondi. - A verdade. Há quanto tempo?
Hesitou.
- Dois anos.
- Porquê tanto tempo? Porque é que não o agarraste pura e simplesmente pelo sexo?
- Tê-lo-ia assustado - disse. - Tinha que fazer a parte da grande senhora.
- És capaz de ter razão.
- Não estás zangado comigo?
- Porque é que havia de estar? Só te conheço há umas semanas. - Peguei num cigarro. - Não percebo qual é o teu problema. Conseguiste aquilo que querias.
Olhou-me nos olhos.
- Mas não estava a contar apaixonar-me por ti.
- E que diferença é que isso faz?
Não quero perder-te.
- Não perdes. - Sorri. - Um bocadinho de adultério não me incomoda nada. Torna até a coisa um pouco mais divertida.
- Podias pedir-me que casasse contigo, meu malandro - disse. - Só por uma questão de delicadeza.
- Nem pensar. - Sorri. - Podias aceitar. E onde é que isso nos levava? A nenhum sítio que nós quiséssemos.
- Então que é que eu faço? Espero aqui por eles?
- Não, isso seria um erro - disse. - Tens que fazer com que ele vá atrás de ti. Não o faças sentir que te tem prisioneira e à disposição dele. Mete-te
no avião para Londres esta noite.
- És capaz de ter razão - disse, pensativa. - E que é que eu lhe digo?
- Enche-te de nobreza. Diz-lhe que vais para fora do país porque não queres causar-lhe problemas, que o respeitas demasiado para permitir que isso
aconteça. Isso deve criar nele o sentimento de culpa conveniente.
Ficou a olhar para mim.
- Última tentativa - disse. - Já que tu não me pedes, peço-te eu a ti. Queres casar comigo?
- Não.
Os olhos encheram-se-lhe, repentinamente, de lágrimas. Estendi-lhe os braços e ela veio refugiar-se neles.
- Eu sabia que isto ia acontecer - chorou. - Eu tentei expli- car-te no aeroporto de São Francisco. Porque é que me deixaste ir?
- Não tinha outra alternativa. Ambos tínhamos assumido já os nossos compromissos.
A voz dela soava abafada de encontro ao meu peito.
- Leva-me para a cama. Por favor.
Nada daquilo fazia sentido. Tudo tinha mudado, mas nada tinha mudado. Foi lindo mais uma vez.
Fomos directamente da cama para o aeroporto. Meti-a no avião para Londres e, depois, apanhei o último voo da tarde para Detroit.
Estávamos sentados no estúdio na mansão dos Hardeman em Grosse Pointe, em volta de uma pequena mesa de madeira, antiga, com uma forma bizarra, cuja superfície mostrava
as queimaduras de muitas reuniões semelhantes. Éramos quatro! Loren, Dan Wey- man, o Número Um e eu.
Tinham-se mantido em silêncio enquanto o Número Um lhes explicava cuidadosamente os seus planos. Agora ele tinha acabado e aguardava resposta. Esta não se fez esperar.
- Lamento muito, avô - disse Loren. - Mas não podemos permitir uma coisa dessas. O risco é demasiado grande. Não podemos dar-nos ao luxo de jogar
o futuro da companhia num só carro.
Número Um atacou com rispidez.
- E como é que pensas que esta companhia se formou? Baseada nessa mesma ideia. O futuro de um carro.
- Agora os tempos são outros -disse Loren.- A economia é diferente. A diversificação tem sido a salvação da nossa companhia.
- Não estou a pôr em causa o valor dos outros departamentos - disse Número Um. - Mas não concordo que esteja neles a salvação da nossa companhia.
Pelo contrário, eles já quase nos custaram a nossa companhia. Quase abandonámos o negócio automóvel. Agora é a cauda que faz abanar o cão.
- A situação modificou-se nestes últimos trinta anos, desde que o avô deixou de dirigir a companhia - disse Loren, teimoso. - Os últimos carros americanos
novos que apareceram no mercado foram o Henry /. e o Edsel. E veja o que lhes aconteceu. O Kaiser perdeu o negócio e o Edsel quase foi o fim da Ford.
- O Kaiser teria conseguido, se persistisse, mas não era um homem da indústria automóvel -disse o Número Um. - E o Edsel não impediu a Ford de continuar.
Estão com uma dimensão que nunca tiveram. Para o ano vão pôr cá fora os subcompactos. Achas que fariam isso se pensassem que iam perder dinheiro?
- Não podem fazer outra coisa -disse Loren.- Têm que ir ao encontro da concorrência estrangeira. Nós não. Estamos satisfeitos com o que estamos a
fazer.
- Tu talvez estejas, eu não - disse o Número Um. - Não me agrada ser parente afastado num negócio em que costumávamos pertencer ao tronco principal
da família. - Olhou para mim e, depois, novamente para Loren. - Se essa é a tua atitude, não vejo qualquer razão para continuarmos ligados à indústria automóvel.
- Pode muito bem ser que para o ano já não estejamos - disse Loren num tom cheio de naturalidade. - Por já não podermos dar-nos a esse luxo.
- Para abandonarmos o negócio automóvel só passando por cima do meu cadáver - disse Número Um numa voz fria.
Loren ficou silencioso. Não estava com bom aspecto. Tinha uns círculos azulados por baixo dos olhos e a cara empapada e vincada pela falta de descanso. Por momentos,
senti pena dele. Devia estar a ter problemas de todos os lados. Em casa, no escritório. As palavras que proferiu a seguir acabaram-me com tal sentimento. Olhou bem
de frente para o avô e falou-lhe numa voz igualmente fria. Era quase como se não houvesse mais ninguém na sala a não ser eles dois.
- Numa reunião extraordinária do conselho de administração, que teve lugar ontem, foram aprovadas três moções.
"Primeiro, a demissão imediata de Ângelo Perino de vice-presidente da companhia.
"Segundo, a instauração de um processo criminal contra o Sr. Perino por ter envolvido a empresa em determinadas despesas sem a devida autorização.
"Terceiro, que seja solicitada aos tribunais do Estado de Michi- gão a nomeação de um depositário para as suas acções desta empresa, até à data em que seja possível
determinar que se encontra absolutamente capaz e responsável pelos seus actos.
Número Um permaneceu silencioso. Os olhos dele nunca se afastaram do rosto de Loren. Suspirou.
- É assim que queres levar as coisas?
Loren fez que sim com a cabeça. Pôs-se de pé.
- Vamos, Dan. A reunião terminou.
- Ainda não. -A voz do Número Um era calma. Empurrou uma folha de papel por cima da mesa em direcção a Loren. - Lê
isso.
Loren olhou para o papel. O rosto dele empalideceu, ficou ainda mais cavado do que estava.
- Não pode fazer uma coisa dessas!
- Já a fiz - disse Número Um. - Tudo legal e como deve ser. Até tem o selo do Conselho Empresarial do Estado de Michigão a autenticá-lo. Na minha
qualidade de accionista maioritário, com direito a votar oitenta por cento das acções da companhia, tenho poderes para demitir todo e qualquer administrador com
ou sem justa causa. E foi isso que fiz. A reunião extraordinária que fizeram ontem não lhes serviu de nada. Estão todos demitidos desde segunda- -feira.
Loren não se mexeu.
- É melhor sentares-te, meu rapaz -disse Número Um com voz branda.
Loren não se mexeu.
A voz do Número Um continuava cheia de brandura.
- Tens dois caminhos a escolher. Podes ir-te embora e podes ficar. O teu pai e eu nem sempre estávamos de acordo, mas continuámos sempre juntos.
Lentamente, Loren sentou-se. Sempre sem dizer palavra.
Número Um fez que sim com a cabeça.
- Assim é melhor - disse. - Agora já podemos tratar realmente daquilo que nos levou a fazer esta reunião. A construção de um novo carro. Prometi à tua filha que
havia de construir um novo carro e vou cumprir a minha promessa!
Olhei para Loren, sentado do outro lado da mesa. Teria preferido que ele dissesse qualquer coisa. Depois, os meus olhos cruzaram-se com os dele e percebi que tinha
razão.
Independentemente do que Número Um pudesse pensar, a guerra estava apenas no princípio.
LIVRO 2
1970
CAPÍTULO 1
Acordou, como de costume, alguns minutos antes de o despertador tocar. Ficou estendido na cama, a observar os números vagamente iluminados do rádio e relógio digital
que se encaminhavam inexoravelmente para a hora em que iam ligar a música. Como de costume, desligou o botão mesmo antes de o som se fazer ouvir: 6 da manhã.
Em silêncio, fez rodar os pés para fora da cama, procurando as pantufas que estavam no chão: pegou no roupão e encaminhou-se, sempre em silêncio, para a casa de
banho. Fechou a porta antes de acender a luz, para não acordar a mulher. Procurou um cigarro na prateleira por baixo do espelho, acendeu-o e sentou-se na retrete.
Três cigarros mais tarde, continuava a não ter acontecido nada e estava a pensar se devia pegar num quarto, quando a voz da mulher lhe veio através da porta.
- Dan?
-? Sim - respondeu.
- Que tal?
- Nada - resmungou pondo-se de pé e amarrando novamente as calças do pijama na cintura. Abriu a porta.
- O médico não sabe o que diz.
- Isso sabe - respondeu ela, estendendo a mão para o telefone e carregando no botão do circuito interno.
- Mamie, já estamos acordados. -Depois voltou-se para ele. - Estás mas é demasiado tenso. Tens que te descontrair.
- Descontraído estou eu -foi a resposta.- As minhas tensões não têm nada a ver com isto. Estou é com prisão de ventre, mais nada. Sempre tive prisão
de ventre. Desde miúdo. Mas nessa altura não havia médicos de luxo que tratavam as pessoas com psicanálise; davam-nos um laxante e mandavam-nos ao toilette mais
próximo.
- Não sejas grosseiro - disse a mulher.
- Eu não sou grosseiro. Só o que eu quero é fazer funcionar os intestinos. Onde é que está o Ex-Lax?
- Deitei-o fora. Tomar Ex-Lax todos os dias é a pior coisa que podes fazer. Não te deixa funcionar normalmente.
- Então arranja-me outro -atalhou. - Eu não funciono normalmente, depois de vinte e um anos de vida de casados já podias ter percebido isso. - Voltou
para a casa de banho e atirou com a porta.
Mamie entrou no quarto com o tabuleiro do pequeno-almoço. Colocou-o em cima da cama, sobre as pernas de Jane Weyman.
- Bom dia, siôra Weyman - disse, com um enorme sorriso no rosto escuro. Deitou uma olhadela para a porta da casa de banho, que estava fechada. - Como
é que está hoje o siô Weyman?
Jane encolheu os ombros. Destapou as torradas.
- Na mesma.
- Pobezinho- disse Mamie com simpatia. - Não sei porque é que ele não me deixa arranjar-lhe um bocado de aveia para comer de manhã. Não há nada como
a aveia para pôr a máquina em funcionamento.
- Sabes como ele é- disse Jane, enquanto espalhava generosamente a compota sobre uma torrada. - Não toma mais nada a não ser café.
- Isso só faz é azedar-lhe o estômago - respondeu Mamie. Depois, encaminhou-se para a porta. - Conte-lhe que eu disse que a aveia o põe bom.
Fechou a porta no momento em que o telefone começava a tocar. Jane levantou o auscultador.
- Alô - disse aborrecida. Mas mudou rapidamente de tom. - Não, Loren, não tem importância nenhuma. (Estou acordada, a tomar o pequeno-almoço. Eu chamo
o Dan.
Não foi preciso chamá-lo. Ele abriu a porta e espreitou cá para fora, com a cara meio coberta de sabão.
- Quem é?
- O Loren - respondeu tapando o bocal com a mão. - Porque é que ele telefonou tão cedo?
Não respondeu. Atravessou o quarto e tirou-lhe o telefone da mão. Quando o encostou à cara, o sabão passou para o auscultador.
- Bom dia, Loren.-'Limpou o telefone com a mão que tinha livre. - Que tal a viagem?
A voz de Loren era calma.
- Foi boa. Mas cheguei três horas atrasado. Estava a pensar se você poderia vir até cá tomar o pequeno-almoço e pôr-me ao corrente de tudo antes da
reunião desta manhã?
- Dentro de vinte minutos estou aí - disse Dan. Desligou o telefone. - O Loren quer que eu vá tomar o pequeno-almoço com ele - disse para Jane. -
Há uma reunião do conselho de administração esta manhã e ele quer que eu o ponha em dia.
- Se ele ficasse quieto e desse atenção aos negócios, em vez de andar pela Europa a correr atrás da prostituta inglesa que ele arranjou - disse Jane
-, talvez não precisasse de te incomodar às seis da manhã.
- O melhor é parares de dizer essas coisas-• disse Dan-, um destes dias vais ter que a aceitar como Sr.a Hardeman. E, nessa altura, que é que fazes?
"?>
*
- Exactamente o que estou a fazer agora - disse Jane. - Ignoro-a. Pobre Alicia. Depois de tudo o que ela tem passado.
- Pobre Alicia - imitou Dan. - A pobre Alicia vai receber seis milhões de dólares como compensação pelos seus sofrimentos. Não tenho pena nenhuma
dela.
- Eu tenho'-disse Jane. - Não há dinheiro no mundo que chegue para a compensar do que ela está a passar.
- Pelo menos, nunca mais vou ter que ir jantar de smoking - disse Dan voltando para a casa de banho. Acabou rapidamente de se barbear, saiu e começou
a vestir-se. - Liga o rádio para ouvir a informação sobre o trânsito.
Jane esticou-se e carregou no botão. Um rock ruidoso encheu o quarto. Baixou o volume de som.
- Às vezes penso que nunca devias ter saído da Ford quando o Mac foi para Washington. Lá, pelo menos, ninguém te maçava logo de manhã cedo e os teus
intestinos não funcionavam tão mal como agora.
Não respondeu. Estava ocupado a meter a camisa para dentro das calças. O fecho éclair apanhou a fralda da camisa.
- Raios parta! - murmurou enquanto tentava libertá-la.
- Quem sabe? - perguntou a mulher. - Talvez agora já tivesses chegado a presidente.
- Nem sonhar. Nunca fui um dos favoritos do Arjay. Ele mantinha-me bem no fim da lista. Além disso ele não se safou. O Ford gosta de homens de automóveis.
Por isso é que o Knudsen lá está agora.
- Aqui também nunca hás-de chegar a presidente - disse. - Apesar das promessas do Loren. Especialmente agora que a Mafia se instalou por lá.
- Jane, tu falas de mais - disse. - Quantas vezes é que eu tenho de repetir que o Perino não tem nada a ver com a Mafia?
- Toda a gente sabe que o avô dele estava ligado a essa gente - continuou. - O meu avô costumava vender-lhe as camionetas que traziam o uísque do
Canadá.
- Sim, o teu avô era também um dos melhores clientes dele - disse Dan. - A julgar pelo que ele costumava beber, era capaz de apostar que o velho Perino
nunca teve que pagar um tostão em dinheiro por nenhum camião. Além disso, são coisas que não têm nada a ver com o Ângelo.
- Estás a defendê-lo - disse num tom de acusação -, afinal trata-se do homem que se tornou vice-presidente executivo em vez de ti.
- Eu não estou a defendê-lo, Jane - disse, cansado. - E o que ele é, é VP executivo da secção de automóveis, mais nada, não da companhia toda. Eu
é que sou o vice-presidente mais categorizado.
- Mas ele não tem que te prestar contas a ti, como todos os outros, pois não?
- Não. Ele é directamente responsável perante o conselho de administração. Nem ao Loren ele tem que prestar contas.
- Aquele velho horrível - disse a mulher. - É tudo culpa dele. Porque é que ele não ficou na Florida, como devia?
Ia a responder, mas calou-se quando a rádio começou a transmitir a informação sobre o trânsito.
- Aqui WJR e a informação das seis e meia sobre o trânsito. - A voz do locutor era tão sincopada e áspera como a própria música. - Em todas as vias
rápidas o tráfego processa-se ligeiro a moderado em todas as direcções, exceptuando uma ligeira demora na Via Industrial na área de River Rouge, onde o trânsito
habitual está a atrasar um pouco as coisas. EU Dez, Woodward Avenue, directamente até ao centro de Detroit, sem trânsito.
- Podes apagar - disse.
Ela carregou no botão e a voz desapareceu.
- Que é que vai acontecer? - perguntou. - Diz-se por toda a parte que o velho vai fazer o Perino presidente da companhia.
- É possível. Mas não é provável que seja para já, o Perino ainda tem que dar provas de si próprio. Especialmente agora que estão a planear transformar
a empresa numa sociedade anónima. Até o velho sabe isso. Entretanto, o Loren e eu continuamos a dirigir o único lado do negócio que dá dinheiro e as coisas cada
vez correm melhor.
Acabou de apertar a gravata e enfiou o casaco.
- Vou-me embora. Vejo-te logo à noite. - Inclinou-se por cima da cama e beijou-a na cara.
- Vê lá se consegues chegar a casa antes das oito - disse. - O jantar é roast-beef e eu não gosto dele em cinzas.
O marido fez que sim com a cabeça e dirigiu-se para a porta. Antes de sair, olhou uma vez mais para ela.
- Não te esqueças de comprar o Ex-Lax - disse. - Acho que três dias já chegam para esperar que a psicologia dê os seus efeitos.
Jane esperou até ouvir o carro afastar-se e, depois, tirou o tabuleiro de cima da cama e pô-lo no chão. Pegou no telefone e carregou no intercomunicador.
Mamie respondeu:
- Sim, minha siôra.
-• Eu vou dormir mais um bocadinho - disse. - Acorda-me às nove. Não quero chegar atrasada à lição de ténis." *
Desligou o telefone e apagou a luz. Sorriu ligeiramente enquanto se recostava na almofada. O novo professor de ténis lá do clube era uma delícia. A maneira como
encostava ao dela o corpo magro, pela parte de trás, segurando-lhe no braço, para corrigir a posição da mão, causava-lhe arrepios.
O sussurrar sereno do motor de 275 cavalos, por baixo do capot do Sundancer negro e conservador, fê-lo sentir mais calmo enquanto virava para a pequena estrada que
levava à EU 10. Olhou para ambos os lados quando se aproximou da auto-estrada. Não havia trânsito. Entrou na estrada que levava ao centro de Detroit. Ia seguir pela
Woodward Avenue até à Edsel Ford Freeway e, depois, tomava a direcção de Grosse Pointe. Com um bocado de sorte, o trajecto não lhe devia levar mais de vinte minutos.
O Sundancer correspondeu com um surto de força perfeitamente satisfatório à pressão do pé de Dan sobre o acelerador.
Loren estava à espera dele na sala do pequeno-almoço.
- Desculpe o atraso - disse.
- Não tem importância - disse Loren. - Aproveitei para me pôr em dia com o que tem estado a acontecer por cá. - Fez um gesto em direcção a uma pilha
de números atrasados do Automotive News que estava no chão ao lado dele.
- Nada de especial - disse Dan. - Tudo indica que os sub- compactos devem aparecer lá para o Outono. Têm os olhos postos no Gremlin, mas não porque
acreditem que se vai passar alguma coisa antes de o Pinto e o Vega estarem cá fora.
Pôs-se a estudar Loren. Estava com bom aspecto. Tinha havido uma altura, não muitos meses atrás, em que Loren parecia estar metido numa máquina de torcer. Mas aparentemente
isso tinha passado. Agora, dava a impressão de ser um homem que estava a aguardar aquilo que sabia que iria acontecer. Sentou-se.
- Tenho boas notícias - disse Loren. - Fechei o negócio com a Alemanha Ocidental.
- Parabéns - Dan sorriu.
- Estão prontos para começar a fabricar imediatamente. A linha completa. Frigoríficos, arcas, televisões. Isso abre-nos todo o mercado numa base competitiva.
- E vai traduzir-se num aumento de lucros de mais de dois milhões de dólares ainda este ano -disse entusiasticamente Dan. - Em três anos devemos conseguir
aumentar esse número para quinze milhões.
Loren fez que sim com a cabeça.
- Isto quer dizer que você vai ter que ir até lá para o próximo mês para pôr tudo nos devidos termos. Também lhes prometi uma equipa de engenharia
completa, para treinar o pessoal deles.
- Não há problema - disse Dan. Esfregou as mãos. - Isso vai ser uma boa notícia para a reunião desta tarde. Até aqui, a única coisa que têm tido são
aprovações para movimentos de fundos. E o dinheiro começa a voar como uma sonda lunar.
- Não me parece que o conselho de administração esteja muito preocupado com isso - disse Loren.
Dan fez que sim com a cabeça. Sabia o que Loren queria dizer. Os novos administradores que representavam os bancos e as firmas subscritoras que lhes tinham feito
o adiantamento de fundos concordavam com todas as sugestões feitas pelo Número Um.
- É estranho - continuou Loren num tom quase de espanto.
- Aqui estamos nós a ganhar dinheiro, mas a única coisa com que eles se preocupam é com um carro novo que, na melhor das hipóteses, é sempre uma jogada
perigosa. Sabe que, mesmo na Europa, era sobre essa questão que a maior parte deles queria falar? O carro novo. Parece que todos querem entrar nisso.
- E que é que lhes diz?-perguntou Dan.
- Tomo um ar de mistério e digo-lhes que, na devida altura, falo com eles. Seria absolutamente ridículo eu contar-lhes a verdade. Isto é, que na realidade
não sei mais do que eles. - Fez uma pausa.
- A propósito, que é que se passa?
- Já terminou as modificações nos três carros de corrida - disse Dan. - Mas isso foi há semanas. - Desde aí, não soube mais nada.
- E o carro novo?
- Nem uma palavra - disse Dan.-Talvez se consiga saber alguma coisa na reunião de hoje. Pedem-nos que aprovemos a mudança do departamento de desenho
e engenharia automóvel para a Costa.
-E quando é que ele quer fazer isso?
- Para o mês que vem. Diz que a nova fábrica vai ficar pronta nessa altura.
- O meu avô vai à reunião?
- Estamos a contar com ele. Aparece sempre quando há qualquer assunto relacionado com o novo carro.
Interrompeu-os uma voz vinda da porta.
- Posso entrar, papá?
Loren levantou os olhos. O rosto dele, que até ali estivera muito sério, descontraiu-se.
- Claro, Betsy.
Ela entrou, inclinou-se sobre a cadeira do pai e beijou-o na cara.
- Fez boa viagem?
Loren fez que sim com a cabeça. A rapariga voltou-se para Dan.
- Bom dia, Sr. Weyman.
Depois, voltou-se novamente para o pai, sem esperar pela resposta de Dan. A voz dela tinha um tom curiosamente reprovador.
- Não me disse que iam lançar um Sundancer Super Sport.
Loren ficou espantado.
- Um quê?
- Um supercarro. Está a ver, um carro super-rápido.
Loren olhou para Dan. Não disseram palavra.
- Não precisam de estar para aí com esses mistérios todos comigo - disse. - Afinal, eu faço parte da família. Não ia falar nisso a ninguém.
Os dois homens continuaram silenciosos.
Betsy estendeu o braço por cima da mesa e encheu uma chávena de café. Depois, dirigiu-se novamente para a porta, com a chávena na mão.
- Okay, se não querem, não digam nada, mas vi um ontem à noite na Woodward Avenue. E sabe uma coisa, papá?
Loren sacudiu a cabeça.
A rapariga teve um sorriso cheio de orgulho.
- Ultrapassava tudo o que lhe aparecia pela frente.
CAPÍTULO 2
Loren baixou os olhos para o relatório.
- Tem a certeza desses números?
Bancroft abanou com a cabeça, vigorosamente.
- O departamento de cálculo de custos controlou-os todos. Dan diz que é impossível falharmos. Tenho encomendas firmes para três mil carros. São dois
milhões limpos para nós. Garantidos. Os agentes estão ansiosos pelo carro.
- As notícias espalham-se depressa neste negócio - disse Loren.
- O carro tem andado todas as noites na Woodward Avenue desde há três semanas. Nesta altura, já todos esses tipos que andam para aí em autênticas
carroças estão a morrer por lhe pôr as mãos.
- E que é que diz o Ângelo?
- Que não os fez para o mercado. Que são apenas carros de ensaio. Mais nada. - Bancroft respirou fundo. - Mas, palavra de honra, é a primeira vez em dez anos
que os agentes andam atrás de nós, em vez de sermos nós a andar atrás deles. Até o Sr. Sparks, da Super Car Mart de Chicago já falou para mim. Está disposto a aceitá-los,
com uma garantia de noventa quilómetros, para não perder as regalias da Dodge. A coisa chega a esse ponto.
-Gostava de ver um-disse Loren. - A única coisa que vi até agora foram os desenhos.
- Isso é fácil - disse Bancroft. - Um deles está agora mesmo a ser experimentado na pista de ensaio, a caminho dos oitenta mil quilómetros.
Loren pôs-se de pé.
- Vamos. - Carregou no botão do intercomunicador. - Ligue para o Dan Weyman e diga-lhe que vamos todos até à pista de ensaio.
Estava um dia cinzento com nuvens altas e, de tempos a tempos, lufadas de vento e aguaceiros. A pista ficava para além de Willow Run Airport, a sudoeste da cidade
e levaram quarenta e cinco minutos a lá chegar pela Via Rápida Industrial. Saíram da auto-estrada e seguiram durante cinco minutos por uma outra estrada cheia de
curvas, acabando por ir parar em frente de uma vedação de arame por detrás da qual uma sebe de ciprestes muito juntos impedia toda e qualquer visibilidade.
O guarda de segurança saiu da sua guarita, em frente do portão. Outro guarda observava-os, curiosamente, do interior da guarita.
Loren olhou para o homem quando ele se aproximou do carro. Não trazia o uniforme cinzento habitual da sua força de segurança. Em vez disso, traziam o uniforme azul-escuro
e o cinturão S Browne da agência Burns.
- Meus senhores - dirigiu-se-lhes uma voz agradável. Bancroft baixou o vidro da janela e inclinou-se para fora, do
assento do condutor.
- Eu sou o Sr. Bancroft. O Sr. Hardeman e o Sr. Weyman.
O guarda fez um aceno cheio de delicadeza.
- Muito prazer, meus senhores. - Não se mexeu.
Bancroft olhou para ele, irritado.
- Bem, não fique aí parado, homem. Deixe-nos entrar.
O guarda, por sua vez, olhou para ele, imperturbável.
- Trazem passe?
Bancroft ultrapassou o seu ponto de ebulição, que já de si era usualmente baixo.
- Mas para que raio é que nós precisamos de passe? - gritou. - O Sr. Hardeman é presidente da companhia e nós somos vice-presidentes!
- Peço muita desculpa, meus senhores - disse o guarda numa voz inalterável. - Pouco me importa que sejam Jesus Cristo, Deus e Moisés, aqui é que não
entram sem um passe assinado pelo Sr. Perino ou pelo Sr. Duncan. Foram essas as ordens que recebi. - E encaminhou-se novamente para a guarita.
Loren saiu do carro.
- Guarda - chamou.
O guarda voltou-se para ele.
* - Faz favor?
- Estão cá o Sr. Perino ou o Sr. Duncan?
O guarda fez que sim com a cabeça.
- Está cá o Sr. Duncan.
- É capaz de fazer o favor de ligar para ele e dizer-lhe que nós estamos aqui e gostaríamos de entrar? -A voz de Loren era amena, mas o tom era o
de uma ordem.
O guarda ficou um momento a estudá-lo, depois fez que sim com a cabeça. Sem dizer nada, entrou para a guarita e pegou no telefone. Disse qualquer coisa para o aparelho
e voltou a pousá-lo. Sem sair da guarita, ficou lá dentro a observá-los pelo vidro da janela.
Loren pegou num cigarro e acendeu-o. Bancroft e Dan saíram do carro e ficaram ao lado dele.
- Por que razão é que temos aqui homens da Burns em vez de pormos cá seguranças dos nossos?
- O Ângelo não confia neles - respondeu Dan. - Disse que se lembrava de que, quando estava a testar o nosso seis cilindros com refrigeração a ar,
a Chevy recebeu os planos quase antes de nós.
- O Ângelo não confia em ninguém, a não ser nos engenheiros, nos mecânicos e nos condutores - acrescentou Bancroft. Olhou para cima. - Onde raio estará
o Duncan?
Dirigiu-se à guarita.
- Falou com ele?-perguntou ao guarda.- Não, senhor - respondeu o guarda.-Ele estava no carro com o condutor. Mas disseram-me que lhe
iam dar o recado.
- Santo Deus!-Bancroft puxou de um charuto da algibeira, espetou-o na boca e, chupando-o sem o acender, voltou para o pé deles.
Começou a chuviscar e meteram-se outra vez no carro. Ficaram ali, sentados, sem dizer palavra. Só passados dez minutos é que apareceu um carro do lado de dentro
da vedação e John Duncan saiu dele. Fez um sinal ao guarda que estava no interior e o portão abriu-se. Dirigiu-se para o carro deles.
- Desculpem a demora - disse-, mas não os esperava.
- Não há problema, John - disse Loren. - Ouvi falar tanto no carro que resolvi, de repente, dar cá um salto para ver.
Duncan sorriu.
- Estou satisfeito por ter podido vir. Venham atrás de mim.
Seguiram-no pelo caminho que levava às pistas. Duncan meteu
o carro num recanto destinado a estacionamento e eles pararam ao lado dele. Saíram.
- Vamos até à garagem - disse. - Lá não nos molhamos.
Foram atrás dele até à garagem, sob a chuva ligeira. Estava
situada no meio do espaço oval destinado às pistas. Alguns homens estavam sentados a uma mesa, a jogar cartas, uma rapariga estava enroscada num sofá a ler um livro
de bolso.
- Os homens são mecânicos - explicou Duncan. - A rapariga é um dos nossos condutores de teste.
Bancroft olhou para a rapariga com ar apreciador.
- Tinha a certeza de que o Ângelo havia de fazer as coisas da melhor maneira.
A voz de Duncan não mostrou qualquer expressão.
- Cinquenta por cento dos condutores são mulheres e muito poucos carros são comprados sem a sua aprovação. A ideia do Ângelo é conhecer o ponto de
vista delas.
- Aquela rapariga marca os seus próprios pontos--disse Bancroft.
- É uma condutora de primeira - replicou Duncan.
- Onde é que está o carro? - perguntou Loren.
Duncan dirigiu-se ao quadro electrónico e carregou num botão. As luzes acenderam-se.
- Está precisamente a passar o ponto de controlo número três, na extremidade da pista. - Carregou noutro botão. No visor começaram a aparecer números.
- Está a passar na curva apertada, a cento e quinze quilómetros por hora. - Os números começaram a baixar rapidamente. - Desceu para noventa, agora, oitenta e cinco
ao entrar na serpentina.
Voltou-se para eles.
- Olhem para o écran. Quando sair da serpentina para a recta, deve passar aqui já a duzentos e oitenta.
Ficaram a olhar, fascinados. De repente, os números começaram a subir rapidamente. Numa questão de segundos, parecia que já tinham passado dos duzentos e cinquenta
e continuavam a subir. Começavam já a ouvir, à distância, o roncar suave do motor.
O ronco foi-se tornando mais forte e eles dirigiram-se à porta da garagem para ver melhor o exterior. À distância, os faróis brancos faiscaram por entre a chuva
fraca. Quase sem darem por isso, as luzes brancas tornaram-se ofuscantes e o carro disparou pela frente deles, arrastando a luz como uma sombria visão espectral
e desapareceu pista fora.
- Trezentos e três vírgula seis oito sete - disse a voz de Duncan junto ao visor.
- A que velocidade chega?-perguntou Loren, caminhando novamente para junto dele.
- Já o fizemos dar os trezentos e quarenta-disse Duncan-, mas a pista está molhada e eu disse-lhes que não passassem dos duzentos e noventa.
- Quantos quilómetros já rodaram?
- Sessenta e oito mil. Aos setenta trazemo-lo para dentro, faze-mos-lhe a estação de serviço e pomo-lo de novo a rodar.
- O motor está-se a aguentar bem?
- Muito bem. Só as alterações normais, apesar de lhe termos aumentado a potência. Melhor do que eu pensava. Todos os dados são positivos.
- Gostava de ver o carro - disse Loren.
- Eu chamo-o - disse Duncan. Carregou noutro botão do painel. Uma luz amarela começou a brilhar numa pequena torre do lado de fora da garagem, ao
mesmo tempo que se punha a girar lançando sombras douradas nas janelas. Inclinou-se sobre o microfone instalado no painel.
- Duncan para Peerless, Duncan para Peerless. Terminei.
Ouviu-se o som ligeiro da electricidade estática.
- Peerless para Duncan. Estou a recebê-lo. Terminei.
- Deixe-o arrefecer e traga-o até aqui. Terminei.
- Algum problema? - a voz do condutor parecia aborrecida. - Aqui parece tudo bem. Terminei.
-Não há qualquer problema - disse Duncan. - Trá-lo só até aqui. Terminei, vou desligar.
- Roger, terminei, vou desligar.-Ouviu-se um estalido e a voz desapareceu.
Duncan carregou noutro botão e o visor tornou-se negro. Encaminhou-se para a porta da garagem. Seguiram-no precisamente quando o carro ia a passar. Já estava a abrandar.
- Na próxima volta, vem para cá - explicou Duncan.
Loren fez um gesto em direcção à aparelhagem de controlo.
- Não sabia que tínhamos uma coisa dessas.
- Foi ideia do Ângelo - disse Duncan. - A ideia veio-lhe dos voos espaciais e mandou-o construir pela gente do Rourke, lá na Costa. Saiu tão bom que
estamos agora a construí-los para a GM, para a Ford e para a Chrysler e estamos a receber encomendas do mundo inteiro.
O carro parou no momento em que a chuva deixou de cair. Encaminharam-se para junto dele.
Loren pôs-se a estudar o carro. Era o Sundancer clássico, de duas portas, tejadilho duro. Quanto a isso não havia dúvidas. Mas havia diferenças subtis. O capot dianteiro
tinha uma ligeira inclinação em direcção aos faróis e a janela traseira, quase quadrada, tinha-se tornado mais suave e arredondada, descendo ligeiramente em direcção
à mala, o que dava ao carro um toque nitidamente europeu.
O condutor saiu. Deslocava-se com rigidez dentro do fato à prova de fogo e, enquanto se aproximava deles, fez saltar a tira que lhe prendia o capacete antichoque
debaixo do queixo.
- Okay - disse num tom de desafio. -Qual foi o erro que eu cometi?
- Nenhum - disse Duncan.- Aqui o Sr. Hardeman é que queria ver o carro.
O condutor soltou um suspiro de alívio. Tirou da algibeira um maço de cigarros.
- Nesse caso, não se importa que vá beber uma chávena de café?
Duncan sacudiu a cabeça. O condutor encaminhou-se para a garagem.
Loren olhou para o interior do carro. O tablier estava coberto de instrumentos de todos os tipos. Voltou os olhos para Duncan.
- Que é que você fez ao carro?
Duncan aproximou-se dele.
- Os instrumentos especiais que aí se vê são todos sensores acopulados que transmitem informações ao nosso painel de controlo. Fusemos-lhe dois Webers
de quatro cilindros e grande diâmetro, um tubo novo e abrimos o orifício dos cilindros, o que nos dá uma compressão de onze por um e lhe aumenta a capacidade para
trezentos e quarenta cavalos. A carroçaria é em fibra de vidro aplicada sobre uma rede de fio de aço, suspensa à frente e atrás em barras redondas num châssis tubular,
baseada num princípio de suspensão destinado a absorver o choque.
- E que é que isso quer dizer, exactamente? - perguntou Loren.
- Que quanto mais forte for a pancada, maior é a resistência ao impacte - replicou Duncan. - É o mesmo princípio das pontes suspensas, quanto maior
é o peso, melhor se aguentam. Combina, assim, a segurança com a leveza e a economia. Este carro pesa menos trezentos e trinta e cinco quilos do que o Sundancer corrente,
com o mesmo equipamento e o preço de custo da carroçaria é de cinquenta por cento menos. - Duncan puxou de um cigarro e acendeu-o. - Claro que o carro ainda podia
ser mais leve, mas tivemos de reforçar o eixo e o veio da direcção para aguentar a potência.
- E que tal é o andamento? - perguntou Loren.
Duncan olhou para ele.
- Porque é que não vai dar uma volta pela pista e não vê por si próprio?
Loren olhou em volta da mesa. A reunião do conselho de administração estava quase terminada e tudo se passara tranquilamente, quase numa rotina. Tinha havido grandes
demonstrações de satisfação a propósito do acordo com a Alemanha Ocidental e ele sentia-se banhado numa aura de louvor. Até o Número Um, sentado numa cadeira de
rodas à cabeceira da mesa, se tinha mostrado profundamente impressionado.
O último ponto da agenda estava agora na mesa. A aprovação da mudança dos departamentos de Desenho e Engenharia para a Costa. Loren voltou a página.
- Meus senhores - disse -, todos têm o ponto número vinte e um à vossa frente, em cima da mesa, e antes de o abordarmos gostava de dizer algumas palavras.
Antes de continuar, aguardou o assentimento tácito de todos.
- Em primeiro lugar, acho que a administração devia louvar o Sr. Perino pelo trabalho fantástico realizado com os carros experimentais. Como já é
do vosso conhecimento, converteu três Sundancer perfeitamente convencionais em máquinas de alta competição. Aquilo que talvez não saibam, porque ele também não fez
referência ao facto, provavelmente devido à sua modéstia, é que ele apresentou assim um dos carros mais interessantes que a Bethlehem jamais teve a sorte de produzir.
E eu sei do que estou a falar, meus senhores, porque, esta manhã, tive o prazer de conduzir um desses carros. Os meus parabéns, Sr. Perino.
- Muito obrigado, Sr. Hardeman. - A voz do Ângelo era delicada, mas fria.
Loren esperou que o murmúrio que se espalhara em volta da mesa abrandasse.
- Provavelmente nenhum de nós aqui presentes compreendeu o potencial deste carro. O mais extraordinário é que foi esta manhã, que o facto me chamou
a atenção, através da minha filha mais nova, que viu um dos carros em Woodward Avenue, na outra noite, quando, para usar as palavras dela, "ultrapassava tudo o que
lhe aparecia pela frente!".
Aguardou novamente que o murmúrio de satisfação se dissipasse.
- A outra notícia interessante vem-nos do Sr. Bancroft. Informa-me este senhor que estava a ser assediado pelos agentes de vendas que pretendem entregas imediatas
destes carros, para os quais já têm três mil encomendas firmes, que acidentalmente nos trazem três milhões de dólares de lucro líquido adicional e que acha que podemos,
sem esforço, vender dez mil carros deste modelo no decorrer do ano.
Espalhou-se um sorriso generalizado em volta da mesa. Loren avançou.
- Proponho, portanto, que acrescentemos à nossa agenda, juntamente com o ponto da ordem do dia que temos em cima da mesa, a aprovação deste conselho
para que se comece a produção imediata do Sundancer SS e se tire partido desta possibilidade particularmente interessante.
Houve um acenar de cabeças quase imediato.
- Só um minuto, meus senhores. - A voz de Ângelo continuava fria e impessoal. - Não creio que devêssemos comercializar estes carros.
Os administradores tomaram um ar de espanto. Um deles, presidente de um banco de Detroit, interrogou-o.
- Porque não, Sr. Perino? Tenho conhecimentos de que o mercado dos carros super tem sido muito lucrativo para a Dodge, a Chevy e a American Motors.
Ângelo olhou-o sem qualquer expressão.
- Há várias razões. Uma, porque o carro de ensaio, tal como se encontra, não pode ser comercializado por exceder os níveis de emissão. Se o ajustássemos
aos níveis permitidos, resultaria daí uma perda de potência considerável, de forma que o seu rendimento deixaria de atingir os valores do carro de ensaio.
Weyman tomou a palavra.
- Quer dizer que, nesse caso, o carro não atingiria aquilo que vulgarmente se aceita como sendo os valores de um carro super?
- Não há um padrão para os carros super, Sr. Weyman - disse Ângelo secamente. - Em resposta à sua pergunta, digo-lhe sim e não. Sim, o seu rendimento
será superior ao do Sundancer convencional; não, não estará à altura do de um Hemi ou de um Mopar. - Olhou para a outra ponta da mesa em direcção a Loren. - Mas
mesmo esse não é o ponto mais importante. Estamos em vias de nos lançar a construir um carro novo. Um carro que nos permitirá recuperar uma posição sólida na indústria
automóvel. Um carro especializado, um carro super, por muito atraente que possa ser, não é a resposta que se procura. O mercado é limitado e a minha opinião pessoal
é que ele tende a tornar-se ainda mais limitado deveio às restrições sérias resultantes das medidas de carácter ecológico prestes a serem adoptadas com força de
lei. Por alguns dólares de lucro, meus senhores, não me parece que se deva arriscar a boa vontade de um futuro mercado, consciente, para o qual estamos a trabalhar.
"Eu pessoalmente, talvez mais do que qualquer outra pessoa aqui presente, tenho o prazer dos carros potentes, mas não é esse o nosso negócio. O que pretendemos é
construir um carro para as massas, não para os amantes da velocidade. Parece-me que procurar a imagem de um carro concebido para as altas velocidades é errado neste
momento. Isso devia ter acontecido há sete anos atrás. Hoje está fora de propósito.
O banqueiro falou novamente. Olhou para o Número Um.
- Quer dar-nos a sua opinião sobre o assunto, Sr. Hardeman?
O rosto do Número Um mantinha-se impenetrável. Estivera a
rabiscar num bloco enquanto Ângelo falava. Levantou os olhos.
- Acho que devemos construir o carro - disse, calmamente.
O voto do conselho de administração foi de dezasseis a favor
da proposta, um contra. A reunião acabou poucos minutos depois e os participantes começaram a sair da sala em grupos.
Ângelo tinha acabado de repor os seus papéis no arquivo quando o Número Um o chamou. Levantou os olhos para ele.
- Diga, se faz favor.
- Espera um momento - disse o velho.
Ângelo fez que sim com a cabeça, silenciosamente.
Por fim, ficaram sós na sala. O Número Um empurrou a cadeira na direcção de Ângelo.
- Sabes que eu estava de acordo contigo, não sabes?
- Era o que eu julgava - disse Ângelo.
- Devo-te uma explicação sobre as razões que me levaram a votar contra ti - disse o velho.
- Não me deve nada. O senhor é o patrão.- Houve uma altura - a voz dele soava quase como se estivesse a pensar em voz alta - em que
as pessoas diziam que eu tinha destruído o pai do Loren, contrariando todas as decisões dele. E que isso teria acabado por ser a causa da sua morte.
Ângelo ficou silencioso. Conhecia as histórias.
O velho levantou os olhos para o rosto de Ângelo.
-Não podia fazer com que a história recomeçasse outra vez, não achas?
Ângelo respirou fundo.
- Não, acho que não.
Mas, mais tarde, quando voltou para o seu gabinete, perguntava a si próprio se o Número Um lhe teria realmente dito a verdade.
CAPÍTULO 3
Acordou sobressaltado. Os sons distantes da orquestra que tocava lá em baixo na enorme sala de baile entravam pela janela aberta com a aragem daquela noite quente
de Junho. Sentou-se na cama, soltando um grunhido involuntário, quando uma dor repentina e aguda lhe lacerou as têmporas.
- Santo Deus! - exclamou quase em voz alta, falando consigo próprio. - Não pode ser da bebida, também não bebi assim tanto e o Perino disse-me que era do bom.
Saltou da cama e dirigiu-se descalço para a casa de banho. O mármore da casa de banho estava frio e voltou atrás a buscar as pantufas. Abriu a torneira e molhou
a cara. A dor de cabeça começou a abrandar e ficou a olhar-se no espelho. Pouco a pouco, o dia passado começou a voltar-lhe à memória.
Tinha começado com o casamento em Santo Estêvão ao meio- dia, tendo-se seguido a recepção nos jardins da mansão dos Har- deman, das duas até às cinco. Depois, todos
tinham começado a debandar. Mas a festa ainda não tinha acabado. Iam apenas a casa, descansar e mudar de roupa. O grande baile do casamento ia começar às oito da
noite.
Lembrava-se de ter ido ao primeiro andar e de ter tirado o casaco. Mais nada. Não se lembrava de se ter despido, mas a verdade é que estava em pijama e tinha uma
muda de roupa completa preparada para vestir. Esfregou o queixo enquanto reflectia. Não faria mal nenhum se se barbeasse de novo.
Pegou na bacia da barba, que tinha gravada a ouro a imagem do primeiro Sundancer que construíra, em 1911, e começou a remexer lá dentro com o pincel, fazendo subir
uma abundante espuma branca. Lentamente aplicou a espuma na cara e, depois, fê-la penetrar na pele, massajando com os dedos fortes e firmes. Aplicou, em seguida,
uma nova camada de espuma quente por cima da primeira e, tirando do estojo a navalha direita, de punho de marfim, começou a passá-la suavemente na tira de couro
que estava pendurada na parede, ao lado do espelho. Passados momentos, estava pronto para fazer a barba.
Começou por baixo do queixo. Golpes breves e suaves, a partir do pescoço. Sorriu para si próprio. A navalha estava perfeita. Em seguida, com todo o cuidado, começou
a fazê-la deslizar pelos lados da cara, em direcção ao queixo, depois, lateralmente por cima do lábio superior, em direcção à face. Com suavidade.
. Com o mesmo cuidado com que tinha afiado a navalha, passou-a por água, secou-a e pô-la de novo no estojo. Depois, meteu-se no duche e abriu a água com toda a força.
Primeiro quente, depois fria, até estar completamente acordado e sentir a pele vibrar. Saiu do duche, enrolou-se numa toalha áspera e esfregou-se vigorosamente.
As vibrações da própria pele aqueciam-no.
Começou a pensar em Loren Júnior e na noiva deste. Lembrou-se que também eles tinham ido para cima, para mudar de roupa e pôs-se a pensar se teriam esperado. Depois,
pensou no filho, o rapaz estudioso, tranquilo, meigo, tão diferente dele próprio que chegava a perguntar a si mesmo como é que pudera ter um filho assim. Claro que
o Júnior era capaz de esperar. Mas a noiva. Essa era outra coisa.
A rapariga era mórmon. E ele conhecia os Mórmones. Não se importavam nada de compartilhar um marido com várias outras mulheres e a única ocasião em que brigavam
era quando uma delas falhava a sua vez de ir para a cama com ele. Não gostavam de ser prejudicadas na sua parte.
Não era ele que as ia censurar. Também não gostava que o prejudicassem naquilo que lhe era devido. Especialmente sendo Elisabeth, desde sempre, uma mulher tão frágil,
condição essa que ainda se agravara depois do nascimento de Loren. Sabia que era um homem corpulento e tentava ser meigo com ela, mas Elisabeth era tão pequena que
ele sabia que a magoava, embora mordesse os lábios para não gritar cada vez que o marido penetrava nela. Via-lhe o sofrimento no olhar.
De certa maneira, era bom o Júnior não ser tão grande como ele, embora lhe parecesse que isso não teria muita importância para a mulher que tinha arranjado, Sally.
Era uma rapariga forte, ainda que não passasse de uma magrizela no sentido moderno da palavra. Mesmo assim, tinha um busto volumoso e as ancas largas, por mais dietas
que fizesse para se manter em forma. Provavelmente, era capaz de receber tudo o que o Júnior tinha para lhe dar e ainda alguma coisa mais. Esperava bem que o Júnior
fosse homem suficiente para ela. Nessa altura, sentiu o calor invadir-lhe as nádegas e largou a rir. Não havia dúvida de que era um velho devasso para estar a ter
tais pensamentos a propósito da mulher do filho. Mas também não era assim tão velho. Fazia quarenta e sete anos no próximo dia 20 de Junho de 1925.
Atirou a toalha para o chão, descuidadamente, e encaminhou-se para o quarto. Tirou de uma gaveta as ceroulas e camisola interior e enfiou-as, começando logo a abotoar
os botões da frente assim que meteu os braços nas mangas. Um par de meias de seda pretas estavam cuidadosamente dobradas e pousadas na parte superior dos sapatos
pretos de pele. Enfiou-as e apertou bem as ligas. Depois, estendeu a mão para a camisa de peitilho duro, acabada de engomar que estava estendida por cima de um dos
dois cabides manequim, de madeira, que tinha ao lado do armário.
O linho fez o seu ruído característico enquanto vestia a camisa. Dirigiu-se ao toucador e pegou nas abotoaduras de diamante, começando a fechar com elas a frente
da camisa. Enfiou nas mangas os botões de punho a condizer e pegou no botão do colarinho, de ouro. Não era uma tarefa fácil. Em menos de um momento, estava todo
congestionado e tinha quebrado o colarinho. Furioso atirou com ele para o lado e tirou outro da gaveta. Com o colarinho na mão, dirigiu-se ao quarto de Elisabeth.
Parou à porta. A mulher não estava lá. Só a jovem costureira que tinha vindo de Paris para fazer os vestidos para a ocasião.
Estava de joelhos, de costas para ele, no chão, em frente do seu manequim de modista, a pregar alfinetes na dobra de uma saia. Cantarolava baixinho para si própria
enquanto trabalhava. De repente, teve consciência da presença dele e parou de cantar. Olhou para trás, sem se pôr de pé e, depois, levantou-se rapidamente, com os
olhos postos na cara dele.
Os olhos dela eram de um azul-escuro, de um tom quase púrpura que se destacava de encontro à pele muito branca, rodeada pelos cabelos negros e pesados, apanhados
num carrapito na parte de trás da cabeça. Ficou a olhá-la como se a estivesse a ver pela primeira vez. Tinha uns olhos profundos e límpidos e uma luz secreta parecia
espreitar furtivamente na sua profundidade.
Passado um momento, ele conseguiu falar, numa voz que soou áspera e estranha aos seus próprios ouvidos.
- Onde está a Sr.a Hardeman?
A rapariga baixou os olhos.
- Está lá em baixo, Monsieur. - A voz dela era baixa e tinha apenas um leve sotaque. - Está a receber os convidados.
- Que horas são?
- São quase nove horas, Monsieur.
- Raios parta!-praguejou. - Porque é que ninguém me foi acordar?
- Acho que a Madame tentou - disse, levantando novamente os olhos-, mas não conseguiu, como é que se diz, acordar o senhor?
Voltou para o quarto dele, às voltas com o botão. De repente, foi outra vez ter com ela.
- Não consigo apertar esta porcaria.
- Talvez eu o possa ajudar, Monsieur - disse, dirigindo-se para ele.
Pôs-lhe o botão na palma da mão estendida, A rapariga esticou-se para lhe chegar ao colarinho.
- É muito alto, Monsieur. Vai ter que se dobrar um bocadinho.
Inclinou-se. Por momentos, os olhos dela cruzaram-se com os
seus, depois, desviaram-se. Com os dedos leves e firmes, fez entrar o botão na parte de trás do colarinho. Depois, tentou acertar a parte da frente do colarinho
com a camisa. Não conseguiu.
Olhou mais de perto e riu-se.
- Não admira que não conseguisse pôr o botão - disse. - Tem a camisa mal abotoada.
Tacteou a camisa. A rapariga tinha razão. Tinha trocado uma
casa.
- Desculpe - murmurou, enquanto tentava, desajeitadamente desabotoar a camisa.
- Deixe que eu desabotoo, Monsieur - disse. Chegou-lhe o aroma vago do perfume dela, enquanto lhe percorria com os dedos a frente da camisa, tentando
acertar os botões.
À medida que os dedos dela se iam aproximando dos botões do fundo, começou a sentir a onda violenta de calor nos quadris. Sentiu que o rosto se lhe congestionava.
Percebeu que ela notava o que lhe estava a acontecer, embora não desse qualquer sinal. Sentiu que tinha que dizer qualquer coisa.
- Como é que se chama? - perguntou desajeitadamente.
- Roxanne, Monsieur-respondeu, sem levantar os olhos. Estava no terceiro botão a contar do fim e quase a passar para o segundo.
Sentiu aumentar a pressão de encontro às ceroulas. Um olhar rápido para baixo revelou-lhe os seus mais profundos receios. A protuberância de encontro à roupa interior
era inconfundível. Curvou as ancas para trás, afastando-as das mãos dela, tentando não lhe tocar. A posição era incómoda e, ao mesmo tempo, inútil. Quando os dedos
da rapariga chegaram ao último botão, já o pénis entumes- cido lhe batia de encontro à camisa.De repente, ela parou e levantou os olhos para a cara dele. Não levantou
as mãos, ficou com os olhos muito abertos. Abriu ligeiramente a boca, como que para conter a respiração, mas não disse palavra.
Ficou a olhá-la nos olhos. Passado um momento, falou.
- Quanto?
Os olhos dela nem pestanejaram.
- Gostava de ficar cá e abrir uma pequena loja, Monsieur. Não há nada para mim em Paris.
- Pode contar com isso - disse em voz rouca.
Ela pareceu fazer um aceno ligeiro e, lentamente, caiu de joelhos à frente dele. Suavemente, abriu-lhe as ceroulas com os dedos, fazendo-o saltar para ela como um
leão zangado saindo da jaula. Cuidadosamente, puxou-lhe o prepúcio para trás, expondo-lhe a glande vermelha e pegou-lhe com ambas as mãos, uma atrás da outra, como
se estivesse a agarrar um bastão de basebol. Ficou a olhá-lo maravilhada.
" - C'est formidable. Un vrai canon.
Ele soltou um riso fundo, vindo do peito. Não conhecia o significado das palavras, mas reconheceu o tom. Não era a primeira vez que o ouvia na voz de uma mulher
quando o via pela primeira vez.
- Você é francesa, não é?-perguntou.
Fez que sim com a cabeça.
- Então tome-o à francesa.
Ela abriu muito a boca e pôs-lha em cima. Sentiu-lhe a agudeza minúscula dos dentes na glande inflamada e, na sua excitação, enterrou-lhe as mãos no chignon e esmagou-se-lhe
de encontro à boca.
A rapariga, sufocada, tossiu. Segurou-a um momento e, depois, deixou-a afastar-se. Ficou a olhá-lo, já não muito segura de si, a respiração a arranhar-lhe a garganta.
- Dispa-se -? disse ele.
Desviou-lhe os olhos do rosto para o pénis,'direito como um pau. Não se mexeu.
- Dispa-se - disse com voz rouca -, se não arranco-lhe a roupa.
Mexia-se devagar, como que hipnotizada, sem desviar os olhos do pénis. O vestido caiu-lhe dos ombros, pondo a descoberto os seios redondos e cheios, com os mamilos,
cor de ameixa, entumescidos. Quase preguiçosamente começou a sair de dentro do vestido.
Zangado, deu um puxão à camisa. As abotoaduras e os botões foram arrancados, voando à toa pelo quarto. Atirou a camisa para o lado e arrancou as ceroulas. Nu, parecia-se
mais com um animal
do que antes. Os ombros, o peito e a barriga estavam cobertos de cabelo do meio do qual surgia a erecção maciça.
A rapariga sentiu uma fraqueza nos joelhos quando se preparou para tirar as meias e teria caído se ele, de repente, não a segurasse. O contacto no braço dela era
quente e fê-la sentir o fogo percorrer-lhe o corpo, do qual começou a jorrar uma humidade.
Pôs-lhe as mãos por baixo das axilas e fê-la sair nua de dentro dos sapatos, segurando-a no ar por cima do próprio corpo. Riu-se com uma satisfação que lhe vinha
de bem fundo.
Quase desmaiou, quando baixou os olhos para ele. Lentamente começou a baixá-la sobre si mesmo. As pernas dela levantaram-se, indo rodear-lhe a cintura no momento
em que ele começou a penetrá-la. A respiração dela prendia-se-lhe na garganta. Era como se um gigante de aço incandescente estivesse a entrar-lhe pelas partes vitais.
Começou a gemer enquanto ele a abria e lhe penetrava cada vez mais alto no corpo, passando-lhe o útero, o estômago, por baixo do coração, até à garganta. Arquejava
como uma cadela com o cio. Mas não podia respirar de outra maneira. Agarrou-se a ele, sentindo uma fraqueza súbita.
Como se ela não tivesse peso, atravessou o quarto com o corpo da rapariga enrolado em volta do seu. Parou ao lado da cama da mulher e, com uma das mãos, atirou para
o chão a colcha de setim. Ficou um momento parado, depois, de repente, arrancou-a dele e atirou-a para cima da cama.
Ficou a olhar para ele, em estado de choque, ainda com as pernas abertas e puxadas para trás, os joelhos quase a tocarem-lhe na barriga. Sentia-se vazia, quase oca,
como se ele lhe tivesse tirado tudo o que tinha dentro, ao sair dela.
Ele inclinou-se por cima da rapariga, como um animal gigantesco, tapando a luz, até que ela não via mais nada. As mãos dele estenderam-se e cada uma agarrou um dos
peitos roliços, como se quisesse arrancar-lhos do corpo. Ela gemeu de dor e contorceu-se, enquanto a pélvis, de repente, se erguia e avançava para ele. Nessa altura,
penetrou-a de novo.
- Mon Dieu! - gritou, enquanto as lágrimas lhe saltavam dos olhos. - Mon Dieu! - Teve o clímace quase antes de ele estar completamente dentro dela. E, depois, não
pôde controlá-los mais, um após outro, enquanto ele balançava o corpo de encontro ao dela com a força de uma prensa gigantesca que tinha visto trabalhar na fábrica
quando a visitara na véspera. De certa maneira, sentia-se confusa. O homem e a máquina eram um só e a força era diferente de qualquer outra coisa que ela tinha conhecido
antes. E, por fim, quando os orgasmos sucessivos lhe tinham transformado o corpo numa chamazinha quase extinta e já não podia aguentar mais, gritou-lhe em francês:
- Tira o teu prazer de mim! Tira o teu prazer de mim! Depressa, antes que eu morra!
Um brado saiu-lhe do fundo da garganta e as mãos dele apertaram-lhe mais os seios. Ela quase gritou e agarrou-lhe com as mãos os cabelos do peito. E então todo o
peso dele pareceu cair-lhe em cima, a ponto de não a deixar respirar e sentiu-lhe o jacto quente do esperma transformar-lhe o interior num caudal de lava quente.
E deu consigo própria a entrar em novo clímace.
- C'est pas possible! - murmurou ao ouvido dele, agora imóvel, deitado em cima dela. Fechou os olhos, ao mesmo tempo que o sentia ficar mole e mais
pequeno. Sorriu para consigo mesma. A mulher era sempre a vencedora. O homem só momentaneamente era o mais forte.
Ele pôs-se de pé.
- Tenho que me vestir - disse-, antes que venham cá acima à minha procura.
- Sim - respondeu -, eu ajudo-o.
Mas o que nenhum deles sabia era que tinham sido vistos. Pela noiva recém-casada que pensara que havia de ter graça ser ela a acordar o sogro e a levá-lo para baixo,
para a festa que ele próprio organizara.
CAPÍTULO 4
Sally Hardeman fechou a porta atrás dela, sem fazer barulho e avançou para o corredor. De repente, sentia as pernas demasiado fracas para poderem com o corpo e encostou-se
de encontro à porta, tentando controlar a tremura. Respirou fundo, enquanto procurava um cigarro na pequenina bolsa de noite. Acendeu-o e aspirou profundamente o
fumo até aos pulmões. Agora já não importava que a vissem fumar. Fosse como fosse, deixara de ser importante. Pelo menos, depois do que tinha visto.
Era verdade. As histórias que lhe tinham contado. Eram todas verdadeiras. Agora, acreditava em todas elas. Mesmo aquela que a sua amiga mais íntima lhe tinha contado,
acerca de como uma noite, num jantar muito formal na mansão dos Hardeman, tinha sentido uma mão deslizar-lhe pelas costas por baixo da blusa larga. Quase antes de
ter tempo de se dar conta do toque, tinham-lhe desabotoado o soutien e a mão tinha dado a volta, acariciando-a e fechando-se-lhe sobre o peito nu.Quase tinha gritado
em voz alta e voltara-se, zangada, para o homem que estava sentado ao lado dela, antes de se lembrar de quem se tratava. Loren Hardeman. Nem sequer estava a olhar
para ela, tinha a cara voltada para o outro lado e falava com a mulher que tinha à esquerda.
Apenas o seu braço direito estava ali, atrás da cadeira e sob a blusa. Olhou à roda da mesa. Todos pareciam muito ocupados com a sua própria conversa. Até a Sr.a
Hardeman, sentada quase em diagonal do outro lado da mesa, falava com o vizinho. Foi com um sentimento de choque que compreendeu que ninguém parecia notar o movimento
ligeiramente ondeante da blusa enquanto a mão dele, por baixo, lhe rodeava e acariciava o seio.
- Que é que tu fizeste? - perguntou Sally.
A amiga tinha olhado para ela com uma expressão cheia de uma curiosa sensatez.
- Nada - tinha respondido com toda a naturalidade. -Se ninguém via o que estava a acontecer ou, pelo menos, fingia não ver, quem era eu para ir levantar
problemas? Afinal, tratava-se de Loren Hardeman. - Depois, tinha soltado uma risadinha. - Quando olhei em volta da mesa e pensei como todos eles eram estúpidos em
não ver o que estava a acontecer, comecei a gozar a situação.
- Não é possível! - disse Sally de um sopro.
- Sim - tinha insistido a rapariga. - Havia qualquer coisa no contacto da mão dele que era muito excitante.
- E depois que é que fizeste? - tinha perguntado Sally.
A amiga tinha sorrido.
- Quando o jantar acabou, fui à casa de banho e abotoei o soutien.
Aquela história terminava ali, mas havia outras. Agora, Sally acreditava-as todas. Puxou novamente pelo cigarro, mas as pernas continuavam a recusar-se a deixar
de tremer. Esperava que ninguém aparecesse no corredor e a visse naquele estado.
Ao chegar lá acima tinha batido devagarinho à porta.
- Papá Hardeman - tinha chamado suavemente.
Não obtivera resposta.
Tinha batido e chamado outra vez, depois, pensando que ainda estivesse a dormir, tentou abrir a porta. Esta deslizou, silenciosamente, e ela entrou.
- Papá Hardeman - chamou novamente em voz suave antes de ver a cama vazia e de notar a luz que vinha através da porta da casa de banho.
Tinha-se voltado para sair quando o reflexo no grande espelho que havia por cima da cómoda na parede do fundo a deixou pasmada. No espelho, viu, através da porta
aberta, o quarto da sogra e a silhueta de duas figuras nuas.
O sogro segurava no ar uma rapariga nua, por cima dele. Começou a rir-se e o som parecia rolar dentro do quarto enquanto baixava a rapariga. A rapariga soltou um
grito e começou a gemer enquanto ele desaparecia dentro dela.
Só quando ele começou a atravessar o quarto, com as pernas da rapariga enroladas em volta da cintura, acabando por desaparecer do espelho é que Sally conseguiu mexer-se.
Ouviu-se o estalido de protesto das molas da cama, depois um grito, quase de dor, e o espelho ficou vazio. Rapidamente, Sally deslizou para fora do quarto.
O cigarro estava meio acabado e percebeu que estava a recuperar o autodomínio. Então sentiu que estava a ficar zangada, quase como se tivesse sentido uma estranha
forma de violação pessoal. Uma dor começou a espalhar-se-lhe nos quadris, acompanhada de um mal-estar quente e latejante. Ele não tinha qualquer semelhança com um
homem, era um animal, não apenas pelo seu aspecto, todo coberto de cabelo, com as partes enormes inchadas, mas também pela sua maneira brutal, indiferente a todas
as sensibilidades.
Começou a sentir-se melhor. A irritação tinha-a ajudado. Que sorte o Loren não se parecer nada com o pai. Bom, atencioso e meigo. Até naquela tarde, quando tinham
subido ao seu primeiro quarto de dormir comum para descansarem para o baile da noite.
Ela não sabia o que esperar. Mas ele tinha-se limitado a beijá-la suavemente e a dizer-lhe que se estendesse na cama e descansasse até serem horas de se arranjar.
Depois, tinha-se estendido ao lado dela e fechado os olhos. Dentro de momentos, o seu respirar brando deu-lhe a entender que ele dormia. Não conseguiu adormecer
logo de seguida; ficou ali deitada a observar-lhe o rosto tranquilo e, passado um momento, adormeceu também.
Deitou o cigarro num pote alto que havia no corredor e dirigi u-se para a escada, no momento em que a porta do quarto do sogro se abriu e ele apareceu.
- Sally - disse, numa voz calma, como se nada tivesse acontecido. - Porque é que não está lá em baixo na festa? Afinal de contas, é em sua honra.
Sentiu-se corar.
- Para dizer a verdade-respondeu-, ia agora mesmo chamá-lo. Os convidados estavam a começar a perguntar o que era feito de si.
Olhou para ela um momento, em silêncio, depois sorriu.
- Foi uma ideia muito simpática - disse, pegando-lhe no braço. - Não podemos decepcioná-los, vamos.
As pernas da rapariga começaram outra vez a tremer quando ele lhe tocou e tropeçou ligeiramente quando tomaram a direcção dos degraus. Ele parou e ficou a olhá-la.
- Está toda a tremer. Sente-se bem?
Sentiu outra vez aquela dor quente e latejeante dentro dela. Não conseguia olhá-lo nos olhos.
- Estou óptima. - Riu-se, com um certo esforço. - Bom, para uma rapariga, o dia do casamento não é um dia como outro qualquer.
Elisabeth levantou os olhos e viu-os descer a escadaria imponente. Os cabelos ruivos de Loren começavam a mostrar alguns fios brancos, mas o rosto continuava tão
jovem e cheio de força como no dia em que se tinham conhecido. Sentiu qualquer coisa estremecer dentro dela quando viu a cabeça loura de Sally voltar-se para Loren.
Loren e ela costumavam ser assim. Ao princípio, parecia que se estavam sempre a rir.
Mas isso tinha mudado logo que chegaram a Detroit. Em Beth- lehem, Loren fora sempre divertido, nunca estava sério, tinha sempre uma piada e uma palavra agradável
para toda a gente. Depois, entrara para a indústria automóvel e tudo tinha mudado.
Tinha havido os primeiros empregos na Peerless e na Maxwell, depois, na Ford, que acabou quase antes de começar e, por fim, na Dodge Brothers, altura em que nascera
o Júnior, em 1901, primeiro ano em que Loren lá estivera. Tinha ficado quase nove anos com os Dodge, até que surgiu um desentendimento. O problema era que Loren
queria construir um carro melhor, que viria a custar ligeiramente mais do que o carro tipo de preço médio que se fazia na altura e os irmãos Dodge não estavam minimamente
interessados. Ainda estavam furiosos com Ford e a única coisa que pretendiam era fazer-lhe concorrência.
Em vão, Loren tinha argumentado com eles. O modelo T era imbatível. Não havia nada que se pudesse construir que lhe fizesse sombra no seu tempo. Previa, e com toda
a justiça, que o modelo T, que apareceu no mercado pela primeira vez em 1908, ia abalar o país. E tinha razão. Em menos de dois anos, a Ford estava a produzir quase
cinquenta por cento dos carros americanos e Loren tinha abandonado a Dodge Brothers.No entanto, havia mercado para um bom carro de preço médio e Loren visou directamente
nesse sentido. Em 1911, o primeiro Sundancer apareceu nas ruas de Detroit. E a partir daí, nenhum dos carros de preço médio conseguiu sequer aproximar-se da sua
popularidade. Nem o Buick, nem o Leland, nem o Oldsmobile. Não eram sequer feitos na mesma liga e quase do dia para a noite, segundo parecia, a Bethlehem Motors
tinha-se tornado numa grande empresa e Loren tinha perdido o dom do riso.
Mas, naquela ocasião, estava a sorrir e havia qualquer coisa no rosto dele que o fazia parecer outra vez jovem. A orquestra irrompeu numa valsa e Loren estendeu
os braços. Sally lançou-se neles e começaram a dançar.
Os olhos de Elisabeth encheram-se de lágrimas. Ele parecia tão jovem, tão forte, tão cheio de vitalidade, que, quem não soubesse, havia de julgar que era ele o noivo
e não o filho. Júnior aproximou-se do par que dançava e, com uma vénia, Loren entregou Sally ao marido. Depois, voltou-se e foi ter com ela.
Beijou-a na cara.
- Está uma linda festa, mãe.
Elisabeth olhou para ele.
- Como é que te sentes, pai?
Fez um sorriso um tanto atrapalhado.
- Acho que estou um bocado embriagado. Tenho que aprender a beber este uísque falsificado.
O mordomo aproximou-se deles. Baixou discretamente a voz.
- Está tudo pronto.
Loren acenou com a cabeça. Voltou-se para Elisabeth.
- Achas que pode ser agora, mãe?
Elisabeth fez-lhe sinal que sim e ele pegou-lhe no braço e conduziu-a para o meio da pista de dança. Levantou as duas mãos e a música parou.
- Meus senhores e minhas senhoras - a voz dele ecoou em todos os cantos da enorme sala de baile -, como todos sabem, esta é uma ocasião muito especial
para a mãe e para mim. Não é todos os dias que o nosso filho arranja uma noiva e, especialmente, uma noiva tão bonita.
Uma onda de riso e um aplauso generalizado encheram a sala.
- Loren e Sally - chamou. - Venham aqui à pista, para as pessoas poderem vê-los bem.
Júnior sorria e ela estava toda corada quando foram colocar-se ao lado dos pais dele. Júnior ficou ao lado do pai, magro, direito e tão alto como ele, mas sem a
grandeza do homem mais velho.
- Estamos em Detroit - disse Loren, na sua voz forte. - E que melhor presente se pode dar a dois recém-casados do que um carro novinho em folha? É
assim que se fazem as coisas em Detroit, não é verdade?
Um brado de aprovação foi a resposta dos convidados. Loren sorriu e levantou as mãos a pedir silêncio. Voltou-se para o filho.
- Portanto, Loren, aqui está a surpresa que eu tenho para ti e para a tua noiva. Um carro novinho em folha. Novo desde o amortecedor da frente ao de trás,
desde o tejadilho à parte de baixo dos pneus. O teu carro. Chamámos-lhe Loren Dois e, para o próximo ano, ele estará à venda em todos os agentes da Bethlehem, pelo
país inteiro.
A orquestra rompeu a tocar uma marcha popular de Sousa enquanto as portas envidraçadas que davam para o jardim se abriam. Ouviu-se o som tranquilo de um motor potente
e o automóvel entrou na sala de baile. A multidão abriu alas e o motorista, cuidadosamente, seguiu até ao meio da sala e parou em frente dos Hardeman.
Um murmúrio de aprovação saiu do meio das pessoas e começaram a comprimir-se para ver melhor o carro. Era gente de Detroit e, para eles, não havia nada mais importante.
E este carro era importante. Quanto a isso, não havia dúvidas. A limousine cor de vinho e preta era, sem dúvida, um dos carros mais importantes que jamais se tinham
visto naquela cidade de automóveis.
Pararam, notando de repente que o compartimento traseiro, atrás do motorista, estava completamente cheio com o que pareciam ser milhares de folhas de papel verde
e dourado. Loren levantou a mão e todos olharam para ele.
- Suponho que estão todos a tentar adivinhar o que é que está na parte de trás do carro?
Não esperou que lhe respondessem. Encaminhou-se para a porta do carro e abriu-a. As folhas de papel caíram para fora como se tivessem sido sopradas. Pegou numa delas
e ergueu-a acima da cabeça, voltada para a multidão. A voz dele ressoou sobre o silêncio repentino.
- Cada uma destas folhas de papel representa uma acção da Bethlehem Motor Company e, dentro deste carro, há cem mil. Cada uma delas em nome do meu
filho, Loren Hardeman, Jr. Estas cem mil acções representam dez por cento da minha companhia e os meus contabilistas dizem-me que o seu valor anda entre os vinte
e os trinta milhões de dólares.
Voltou-se para o filho.
- E isso, Loren, é apenas uma pequena amostra de todo o amor e afeição que eu e a tua mãe temos por ti.
. Júnior ficou um momento parado, com o rosto pálido. Tentou falar, mas não lhe saiu qualquer palavra. Em silêncio, agarrou na mão do pai e, depois, voltou-se para
a mãe e beijou-a.
No mesmo instante, Loren inclinou-se e beijou a nora. Uma expressão de sobressalto surgiu nos olhos dela e sentiu, de novo, as pernas a tremer. Pôs uma mão no braço
dele para se segurar e, depois, voltou-se para beijar a sogra.
Os convidados aplaudiam freneticamente e começaram a rodeá-los, felicitando-os e desejando-lhes felicidades. Foi um verdadeiro pandemônio.
Numa sala por detrás da sala de baile, um repórter do Detroit Free Press estava atarefado a rabiscar as suas notas. O cabeçalho para o dia seguinte era, ao mesmo
tempo, uma pergunta e uma afirmação. 1
E QUANDO HENRY DEU A EDSEL UM MILHÃO EM OURO COMO PRESENTE DE CASAMENTO PENSOU QUE JÁ ERA ALGUMA COISA?
CAPÍTULO 5
Os sons vagos de Três da Manhã, vindos da sala de baile, chegavam à biblioteca da mansão Hardeman, onde tinha sido armado um bar para os homens que queriam beber
qualquer coisa mais forte, longe da pista de dança. No baile só se servia champanhe.
Loren estava de pé no bar, com o pé no varão, segurando um copo de uísque. Tinha o rosto congestionado e coberto de transpiração e estava no meio de um pequeno círculo
de homens.
- O carro fechado vai ser o carro do futuro - disse. - Reparem no que eu lhes digo. Nos próximos dez ou quinze anos, o carro de turismo aberto, tal
como nós o conhecemos, vai desaparecer. As pessoas devem estar fartas de passar frio <no Inverno, de ficar encharcadas com a chuva e de torrar com o sol. Um dia,
os carros vão mesmo ter ar condicionado, da mesma maneira que já começam a ter aquecimento.
- Mas, nessa altura, vão deixar de sentir que estão a conduzir - disse um dos homens.
- E depois? - retorquiu Loren. - A ideia é viajar confortavelmente. E isso é que é o mais importante. Quanto mais suave for a viagem, mais clientes
terá o carro. Esperem só que o Loren Dois apareça no mercado, no próximo ano, e vão ver que eu sei o que estou a dizer.
O mesmo homem disse, em tom de dúvida:
- Mil e setecentos dólares é muito dinheiro.
- Eles pagam-nos - disse Loren, confiante. - O público americano sabe o que quer. Estão sempre dispostos a pagar um pouco mais por um artigo de qualidade.
- Fizeram alguma oferta pela Dodge Brothers? - perguntou outro homem.
Loren sacudiu a cabeça.
- Isso não é para mim. Não tenciono fazer concorrência à Dodge e à Chevy. Sou muito mais mediano.
-- Ouvi dizer que a GM ofereceu cento e quarenta e seis milhões- disse o primeiro homem.
- São uns idiotas chapados - disse Loren.
- Quer dizer que é de mais?
Loren sacudiu a cabeça.
- É de menos. Não conseguem nada. Sei de uma casa de Wall Street que apresentou uma oferta mais alta - voltou-se para os dois homens que estavam atrás
dele. - Olhe, Walter - disse para o mais alto. - Você é que devia comprar a Dodge. Completava-lhe a sua linha e, depois, já podia fazer frente à GM.
Walter Chrysler sorriu.
- Já me debrucei sobre a questão. Mas ainda não estou preparado. Ainda tenho as mãos cheias com o Maxwell. Talvez daqui a uns anos.
- Se a Wall Street chega a pôr a mão no assunto, já vai ser demasiado tarde. Talvez daqui a uns anos. Sabe como é que aqueles meninos trabalham.
Chrysler sorriu de novo.
- Eu posso esperar, Loren. A Wall Street pode saber vender acções e obrigações, mas dirigir uma firma automóvel é um jogo completamente diferente.
Vão acabar por descobrir isso. Nessa altura, pode ser que eu já esteja preparado.
Um mordomo abriu as duas portas maciças da biblioteca, que os tinham isolado do resto da casa e os sons do fim da festa invadiram a sala. Rapidamente os homens acabaram
as suas bebidas e saíram para ir procurar as mulheres e fazer as despedidas. Daí a pouco, Loren estava no meio da sala, sozinho com o barman. Acabara de se servir
de mais uma bebida quando Júnior e Sally entraram.
Ergueu o copo.
- Aos noivos - disse. E engoliu o uísque puro. - Foi uma grande festa - acrescentou. - Uma grande festa.
Júnior riu-se.
- Lá isso foi, pai.
Loren olhou para ele.
- Onde está a tua mãe?
- Já foi para cima - disse Júnior rapidamente. - Pediu-nos que viéssemos ter consigo para lhe dizer. Estava muito cansada.
Loren não disse nada. Fez sinal para que lhe servissem outra bebida. O barman encheu-lhe novamente o copo.
- Façam-me companhia - disse.
- Não, pai, obrigado - disse Júnior. - Acho que também vamos para cima. Foi um dia comprido.
Loren soltou uma risada entendida.
-- Não podem esperar, não é? Julgava que já tinham aproveitado a hora do descanso, hoje à tarde.
Uma visão rápida do corpo nu e peludo que tinha visto no espelho atravessou o espírito de Sally. A voz dela encheu-se de indignação.
-Papá Hardeman! Como é que pode dizer uma coisa dessas?
Loren riu-se com ar satisfeito.
- Não sou assim tão velho que não saiba o que se passa na ideia dos jovens. - Pôs as mãos nos ombros dela, fê-la dar uma volta e empurrou-a na direcção
da porta com uma palmada no traseiro. -' Vamos, vai andando e prepara-te para o teu marido. Eu ainda quero falar com ele uns momentos, prometo que não o demoro.
Sally saiu da biblioteca, com o nariz no ar. Loren ficou a olhar para ela com ar apreciador e, depois, voltou-se para o filho.
- Tens ali um belo pedaço de mulher, Júnior - disse-, espero que o saibas.
- Eu sei, pai - disse Júnior calmamente.
Loren deu-lhe uma palmada no ombro.
- Vamos, toma qualquer coisa.
Júnior hesitou um momento.
- Vou tomar um brande - disse para o barman.
- Brande!-berrou Loren. - Que raio de bebida de maricas é essa? Toma uma bebida a sério. Barman, dá-lhe um uísque.
A bebida foi posta em frente de Júnior.
- De que é que me querias falar, pai?
- A mãe disse-me que tu e a Sally estão a pensar em comprar uma casa lá para Ann Arbor- disse Loren.
Júnior fez que sim com a cabeça.
- Gostamos daquilo por lá.
- E qual é o defeito de Grosse Pointe?-perguntou Loren.
- Posso comprar-lhes a casa Sanders. Ou, se não gostarem dessa, qualquer outra que lhes agrade.
- A Sally e eu gostamos do campo, pai - replicou Júnior.
- Pensámos arranjar uma propriedade com bastante espaço e com área para ter uns cavalos, uma coisa assim.
- Cavalos! - explodiu Loren. - Que raio é que tu tens a ver com cavalos? Nós estamos ligados mas é à indústria automóvel!
- A Sally e eu gostamos de montar - a voz de Júnior tomou um tom ligeiramente defensivo. - Não creio que nos possam criticar por causa disso.
- Também ninguém os está a criticar - disse Loren rapidamente. - Mas Ann Arbor fica em casa do diabo. Não vão ter ninguém com quem falar durante os
fins-de-semana. Não há por lá ninguém ligado aos automóveis. Que tal Bloomfield Hills? Pelo menos aí há pessoas que vocês conhecem.
- É precisamente isso, pai - explicou Júnior, teimoso. - O que nós queremos é estar sozinhos.
Loren bebeu o seu uísque e pediu outro.
- Ouve, filho - disse num tom carregado-, a partir do princípio do ano, passas a ser vice-presidente da companhia, daqui a uns anos serás o presidente.
Não quero ficar a trabalhar para sempre e acho que a tua mãe e eu temos o direito de folgar um bocado. Quando tiveres uma responsabilidade dessas, tens que viver
num sítio onde as pessoas te possam encontrar rapidamente. Não é lá num sítio qualquer em casa do diabo, onde as pessoas não conseguem entrar em contacto contigo.
- Ann Arbor não é em casa do diabo - Respondeu Júnior. - Fica a pouco mais de uma hora daqui.
Loren ficou um momento em silêncio. Olhou em volta.
- Olha, filho, se não fosse por causa da tua mãe, eu nem sequer vivia aqui. Talvez ainda um dia eu construa um edifício só para os escritórios, lá
na fábrica, e no último andar faça um apartamento.
Júnior sorriu.
- É uma maneira de estar em cima do acontecimento.
Loren olhou para ele e depois riu-se.
- Okay, filho, faz o que quiseres. Mas repara no que eu te digo, não tarda muito que andes à procura de casa aqui mais perto.
- É possível, pai. Vamos ver.
O pai empurrou-o ligeiramente pelo ombro.
- Okay, Loren. Vai para cima. Não é bom deixar a noiva à espera na noite do casamento.
Júnior fez que sim com a cabeça e voltou-se, mas depois parou e aproximou-se novamente do pai.
- Pai.
- O que é, Loren?
O jovem sorriu. Loren sentiu qualquer coisa apertar-se dentro dele, viu a mulher naquele sorriso. Quase a mesma suavidade.
- Obrigado, pai, obrigado' por tudo.
- Vá, vai-te embora - disse Loren com brusquidão. - Tens a tua noiva à espera. - Depois voltou-se para o bar, para o filho não ver as lágrimas que,
de repente, lhe encheram os olhos.
- Boa noite, pai.
- Boa noite, filho.
Ficou a ouvir os passos dele afastarem-se e quando o som desapareceu, tomou a sua bebida. O uísque de Loren tinha ficado em cima do balcão do bar, intacto. Ficou
um momento a olhá-lo e, depois, puxou do relógio de bolso de ouro maciço e abriu-o. A fotografia de Elisabeth e Júnior, tirada há muitos anos, ficou a olhar para
ele. Eram quatro da manhã. Soltou um suspiro.
Fechou o relógio e pô-lo novamente na algibeira. Saiu da biblioteca, devagar, e atravessou a casa até à sala de baile. Tudo parecia estranhamente silencioso e vazio,
agora que as pessoas se tinham ido embora e havia apenas alguns criados espalhados a atender às últimas tarefas da noite.
Foi até às portas envidraçadas que abriam para o jardim. O Loren Dois estava no terraço, escuro e belo à luz pálida da Lua. Lentamente, aproximou-se do carro e rodeou-o.
Era uma beleza, fosse donde fosse que se olhasse para ele.
Abriu a porta do condutor e entrou. Instalou-se confortavelmente nas almofadas e pôs as mãos no volante. Mesmo sem o motor a trabalhar, sentia-o vivo e forte. Perguntava
a si próprio se Júnior sentiria o mesmo que ele em relação ao carro.
Mas mesmo enquanto formulava a pergunta já sabia a resposta. Não, Júnior não sentia o mesmo. Para Júnior não era o carro em si, era apenas o negócio em que se encontrara
inserido pelo nascimento. Talvez, um dia, viesse a sentir como ele. Júnior nunca tinha construído um carro com as suas próprias mãos. Talvez fosse por isso.
Inclinou-se para a frente, deitou a cabeça nos braços, em cima do volante e fechou os olhos. Invadiu-o um cansaço especial.
- Loren -murmurou, em parte para si próprio-, não percebeste? Não eram as acções, não era o dinheiro. Era o carro. O carro é que eu te queria dar. Foi por isso que
lhe chamei Loren Dois.
Adormeceu.
Sally estava nua por baixo dos lençóis, no quarto escuro, quando ele saiu da casa de banho. Ficou de pé, ao lado da cama, a olhar para ela enquanto abotoava o botão
de cima do pijama.
- Sally - murmurou.
- O que é, Loren?
Ajoelhou ao lado da cama, com a cara à altura da dela.
- Amo-te, Sally.
Ela voltou-se e passou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Eu também te amo. Loren beijou-a suavemente.
- Hei-de amar-te sempre.
Sally fechou os olhos, apertando mais os braços em volta dele, puxando-o para ela. Beijaram-se de novo. Ele levantou a cabeça.
- Eu sei que deves estar muito cansada...
A mulher pôs-lhe um dedo nos lábios e, depois, puxou-lhe a cabeça para o peito, deixando-o sentir-lhe a nudez. A respiração dele tornou-se ruidosa e comprimiu-lhe
a boca em volta do mamilo. Sally sentiu invadi-la uma onda de calor e fechou os olhos.
A visão de um corpo gigantesco, cabeludo e nu, assaltou o écran das suas pálpebras cerradas e fê-la atingir o clímace mesmo antes de o marido ter entrado nela.
Foi nesse momento que compreendeu que o sogro se lhe tinha apoderado do corpo e se metera entre ambos na noite do casamento.
CAPÍTULO 6
Lutou para sair da dor imensa e conseguiu abrir os olhos. Primeiro, viu tudo turvo, depois, a vista aclarou-se-lhe ao focar o rosto do médico que se inclinava sobre
ela. Quando se endireitou, viu atrás dele a enfermeira e Loren.
Loren tinha um aspecto cansado, como se tivesse estado acordado toda a noite. O médico recuou e Loren avançou para junto dela. Parecia tão alto, ali de pé, ao lado
da cama. Tão alto e tão forte.
Elisabeth tentou sorrir-lhe.
- Loren.
A voz dele era suave.
- O que é, Elisabeth?
- Afinal as férias ficaram estragadas, não foi? - murmurou.
O marido pegou-lhe na mão.
- Temos tempo de ter férias. Quando estiveres boa.
Não respondeu. Tinham-se acabado as férias. Para ela não haveria mais férias. Mas não precisava dizê-lo. Loren sabia-o tão bem como ela.
- Tiveste notícias dos pequenos? - perguntou.
- Falei com o Júnior pelo telefone. Ele queria vir até cá, mas eu disse-lhe que não fizesse isso. A Sally está quase no fim do tempo.
- Óptimo - murmurou. - Agora tem que estar ao pé da mulher. Principalmente, depois de terem esperado tanto tempo para terem o primeiro filho.
- Não esperaram assim tanto tempo.
- Já quase há quatro anos que estão casados - respondeu. - Já começava a pensar que nunca mais ia ser avó.
- E que é que há de tão importante em ser avô ou avó? - perguntou. - Não me sinto avô.
A mulher sorriu. E não tinha ar de avô. Com cinquenta e um anos era ainda um homem novo. Grande, largo, viril. Estuante de força.
Elisabeth voltou os olhos para a janela. Lá fora, o sol brilhante da Florida caía de um céu azul transparente e a brisa agitava suavemente os ramos das palmeiras
que balançavam ao vento.
- Está bom, lá fora? - perguntou.
- Sim - respondeu Loren-, está um dia lindo.
Os olhos dela continuavam pregados na janela.
- Gosto muito disto aqui. Não quero voltar para Detroit, Loren.
- Não temos pressa - disse. - Primeiro, põe-te boa...
Voltou a cara para ele, olhando-o fixamente.
- Sabes muito bem o que eu quero dizer, Loren. Depois. Quero ficar aqui.
Não disse palavra.
Ela apertou-lhe a mão.
- Desculpa, Loren.
A voz dele era rouca.
- Não há nada a desculpar.
- Há, sim - disse rapidamente. Tinha tanta coisa para lhe dizer e nunca tinha conseguido fazê-lo antes. Mas agora tudo era nítido. Os triunfos, os
falhanços, o riso, o sofrimento. Havia tanta coisa que tinham compartilhado e tantas outras coisas que poderiam ter compartilhado, mas não o tinham feito. Via tudo
agora. -Nunca fui suficientemente mulher para ti - murmurou.-Não que eu não o quisesse ser. Mas não podia. Percebeste isso, não percebeste? Que eu queria ser de
outra maneira.
- Estás a falar como uma tolinha - disse com aspereza. - Sempre foste uma boa esposa, a única esposa que eu sempre quis.
- Loren, eu sei que fui uma boa esposa - sorriu, com um ar quase reprovador. - Mas não era disso que eu estava a falar.
Ele ficou silencioso.
- Queria que soubesses que nunca te levei a mal por causa das outras. Sabia do que é que tu precisavas e, de uma certa maneira, sentia-me contente
que o pudesses ter. O meu único desgosto era que eu, que queria dar-te tudo, não conseguisse encontrar em mim aquilo de que tu precisavas.
- Tu deste-me mais do que qualquer mulher jamais deu a um homem, mais do que qualquer outra mulher jamais me deu - disse muito a sério. - Nunca falhaste
ao meu lado. Eu é que, talvez, te tenha falhado a ti. Mas a verdade é que te amo. Sempre te amei. Tu acreditas nisso, não acreditas, Elisabeth?
Ficou um momento a olhá-lo nos olhos e, depois, fez um ligeiro aceno de cabeça.
- E eu sempre te amei, Loren-murmurou.- Desde o momento em que entrei na tua lojazinha de bicicletas em Bethlehem, já lá vai tanto tempo.
As mãos deles apertaram-se e as recordações brotaram vivas e presentes entre os dois.
Tinha sido num domingo de Verão quente, em Bethlehem; as grandes fábricas de aço tinham apagado as fornalhas sábado à noite e das chaminés apenas saíam uns leves
farrapos de fumo cinzento. O sol brilhava alto quando Elisabeth saiu com a bicicleta à mão pela porta lateral da casa, para ir encontrar-se com uma amiga.
O cesto que levava preso ao guiador estava cheio de coisas boas para o piquenique que tinham planeado. Não tinha dito à mãe, mas iam também dois rapazes. A mãe era
muito severa nessas coisas. Antes de a deixar andar com qualquer rapaz, ele tinha que vir lá a casa primeiro, para uma inspecção e quando a cerimónia acabava, tinham-no
feito sentir tão mal que Elisabeth, em geral, não voltava a pôr-lhe a vista em cima. Agora, já sabia o que tinha a fazer. Os rapazes iam encontrar-se com elas no
extremo da cidade, onde não havia qualquer hipótese de os pais os verem.
A amiga estava à espera dela, igualmente com um cesto bem aviado preso ao guiador da bicicleta. Puseram-se a caminho, com as abas largas dos chapéus a abanar com
a brisa e a puxarem as fitas que levavam amarradas debaixo do queixo.
Iam tagarelando enquanto rolavam pelas estradas sossegadas. Ainda era de manhã cedo e não havia muito trânsito. As carruagens começavam a sair mais tarde, mais perto
da hora dos serviços religiosos. Nessa altura, as ruas iam encher-se e ia ser difícil passar, pois cada condutor tentava fazer bonitos com o seu cavalo.
O problema surgiu a dois quarteirões de casa, quando deixaram o empedrado e meteram por uma estrada de terra batida. Elisabeth não viu o sulco fundo das rodas de
um carro, mesmo ao lado da estrada e a bicicleta tombou, espalhando pelo chão os mantimentos para o piquenique.
- Magoaste-te? - perguntou a amiga, parando.
Elisabeth sacudiu a cabeça.
- Não - pôs-se de pé e começou a sacudir o vestido. Não tinha sido nada de importância.
- Ajuda-me a apanhar isto.
Começou novamente a pôr a comida no cesto metálico e, então, reparou na roda da frente da bicicleta.
- Oh, não! - gemeu desolada.
A roda estava toda torcida. Não havia hipótese de andar com a bicicleta assim.
- E agora que é que vamos fazer? - perguntou. Era domingo, as oficinas estavam fechadas. - Para mim, acabou-se o piquenique.O melhor que tenho a fazer
é voltar para casa.
A amiga disse rapidamente:
- Eu sei onde é que podes mandar arranjar a bicicleta. - Apanhou a última das sanduíches embrulhadas. - O meu primo alugou, há pouco tempo, um barracão
velho que tem na parte de trás da casa a um rapaz que arranja bicicletas. Ele está lá sempre. Até mesmo aos domingos. Está a trabalhar num invento qualquer.
Vinte minutos depois, estavam no barracão que ficava por detrás da casa. Quando se aproximaram viram a porta aberta. Lá dentro, ouviram um homem cantar numa voz
sonora e desafinada. A canção vinha misturada com o som de um martelo a bater em metal. Bateram na porta aberta do celeiro. Ao que parecia ninguém as ouviu, porque
o canto e as pancadas continuaram sem interrupção.
- Está aqui alguém? - chamou Elisabeth.
A voz parou de cantar e as marteladas pararam também. Passados momentos, uma voz veio do interior.
- Ninguém. Só uns ratinhos do campo.
- E os ratinhos do campo sabem arranjar bicicletas?-perguntou Elisabeth em resposta.
Fez-se silêncio e um jovem saiu da escuridão. Era alto e largo e coberto até ao peito, que trazia nu, com cabelo claro de um vermelho-ouro. Ficou a olhar para elas,
com os olhos meio cerrados por causa do sol. Depois, sorriu. Era um sorriso afável, cheio de sabedoria masculina.
- Em que é que posso servi-las, minhas senhoras?
- Primeiro pode ir vestir uma camisa - disse Elisabeth - e, quando estiver vestido como deve ser, pode arranjar-me a roda da bicicleta.
Loren olhou para a bicicleta durante alguns momentos e, depois, olhou novamente para ela. Ficou silencioso, com os olhos postos nela.
Elisabeth sentiu a cor subir-lhe ao rosto.
- E veja se não demora o dia inteiro!-disse com aspereza. - Não vê que vamos para um piquenique?
O rapaz fez que sim com a cabeça, quase como se não estivesse a ouvi-la e desapareceu no barracão. Passados momentos, o cantarolar desafinado e o martelar recomeçaram.
Cinco minutos depois de ter esperado, em vão, que o jovem aparecesse de novo, Elisabeth aproximou-se da porta do barracão e espreitou lá para dentro. Na parte de
trás, havia uma forja com uma fogueira e o jovem estava à frente dela, balançando o martelo de encontro a uma peça de metal colocada num torno.
- Rapaz! - chamou.
O martelo ficou parado no ar. O jovem voltou-se.
- Faz favor de dizer.
- Vai arranjar a minha bicicleta ou não? - perguntou.
A resposta foi pronta.
- Não senhor.
- Porque não?
- Porque ainda não me disse com quem vai fazer esse piquenique.
- Você tem um descaramento! -atalhou.- Que é que tem a ver com isso?
Ele pousou cuidadosamente o martelo em cima de um banco e caminhou em direcção a ela.
- Acho que o homem com quem se vai casar tem todo o direito de saber com quem vai fazer esse piquenique.
Levantou os olhos para a cara dele e qualquer coisa na sua expressão a deixou sem força nas pernas. Pôs uma mão na porta para se segurar.
- Você? - disse meio sufocada. - Isso é uma patetice. Nem sequer sei o seu nome.
-Loren Hardeman, minha senhora - sorriu. - E o seu?
- Elisabeth Frazer - respondeu. De certa forma, o facto de dizer o nome pareceu dar-lhe forças. -E agora vai arranjar a minha bicicleta?
- Não, Elisabeth - respondeu calmamente. - Que espécie de homem seria eu se arranjasse a bicicleta para a minha rapariga ir fazer um piquenique com
outro homem?
- Mas eu não sou a sua rapariga!-protestou.
- Então, não tardará a sê-lo - disse calmamente. Estendeu o braço e pegou-lhe na mão.
Voltou a sentir a mesma fraqueza.
- Mas... os meus pais...-disse numa voz confusa. - O senhor não... eles não... o conhecem.
Não respondeu. Sem lhe largar a mão, continuou a olhar para ela.
A rapariga baixou os olhos.
- Sr. Hardeman - disse, em voz fraca, sem levantar os olhos do chão -, é capaz de me arranjar a minha bicicleta?
Continuou a não responder.
Ela não levantou os olhos. A voz tornou-se-lhe ainda mais fraca.
- Peço desculpa por ter sido desagradável para si ao princípio, Sr. Hardeman.
- Loren - disse ele. - É melhor que se vá habituando ao nome. Não sou do tipo antiquado que acha que as mulheres o devem tratar pelo apelido.
Elisabeth levantou os olhos para ele. De repente, sorriu.
- Loren - disse em tom de experiência, como se quisesse ver como é que se sentia ao pronunciá-lo.
- Assim é melhor - disse, sorrindo-lhe também. Largou-lhe a mão. - Agora, espere aí um bocadinho.
Encaminhou-se para a parte de trás do barracão.
- Onde é que vai? - perguntou a rapariga.
- Lavar-me e pôr uma camisa limpa - respondeu. - Sim, que um homem deve procurar parecer o melhor possível quando é apresentado aos futuros sogros.
- Agora? - perguntou com voz incrédula. - Já?
- Claro - respondeu por cima do ombro. - Não sou dos que acreditam em noivados prolongados.
Mas ainda teve que esperar perto de dois anos antes de casarem. Isso só veio a acontecer em Março de 1900 porque os pais dela não quiseram que se casasse antes dos
dezoito anos. E, enquanto aguardavam, ele construiu o seu primeiro automóvel.
Não era propriamente um automóvel. Era mais um quadriciclo, com umas estranhas rodas de bicicleta e pneus e châssis fino. Andava o suficiente para se fazer expulsar
das ruas principais de Bethlehem por causar perturbação, mas não o suficiente para o satisfazer.
Ainda tinha muito que aprender e ele sabia-o. Só havia um sítio onde podia aprender o que lhe faltava. Detroit. Havia lá mais construtores de automóveis do que em
qualquer outro lugar dos Estados Unidos. Henry Ford. Ranson E. Olds. Billy Durant, Charles Nash, Walter Chrysler, Henry Leland, os irmãos Dodge. Estes homens eram
os seus heróis e os seus deuses. E foi para se prostrar a seus pés e aprender que, uma semana depois do casamento, ele e a noiva, já grávida embora sem o saber,
se mudaram para Detroit.
A recordação estava ainda bem viva dentro dele. Olhou pela janela para o sol e para as palmeiras que balançavam.
- Estava um dia assim - disse. - Um domingo maravilhoso. -i Sim -murmurou. - E sinto-me grata por isso. Foi o primeiro
de muitos domingos maravilhosos que passámos juntos.
- Ainda havemos de ter mais - disse, voltando-se para ela. - Põe-te boa e depois... - Interrompeu-se de repente.-Elisabeth!
Para ela, não ia haver mais domingos maravilhosos.
CAPÍTULO 7
A voz de Júnior não traduzia qualquer emoção, enquanto os números lhe saíam da boca como de uma máquina de calcular.
- O relatório de 1928 parece bom - disse. - Os carros de passageiros Sundancer, em todos os seus modelos, ultrapassaram as quatrocentas e vinte mil
unidades, oitenta por cento correspondem aos modelos mais caros, sobretudo carros fechados. Venderam-se acessórios e extras para mais de sessenta por cento das unidades.
A divisão de camiões também sofreu um aumento substancial, que foi até aos vinte e um por cento a mais que o ano passado, o que representa quarenta e uma mil unidades.
A única linha que não mostrou qualquer aumento foi o Loren Dois. Aí tivemos dificuldade em nos aguentar e, se não fosse a liberalização das condições de crédito
ao consumidor e as nossas próprias garantias em relação aos agentes, teria havido um retrocesso. Assim, conseguimos equilibrar-nos com trinta e quatro mil unidades.
É a única secção em que estamos a perder dinheiro. Quando o carro chega às mãos do consumidor, já baixámos cerca de quatrocentos e dez dólares por unidade.
Loren tirou um pesado Havana da secretária e ficou a brincar com ele. Devagar, cortou-lhe a ponta e, depois, aspirou-lhe o aroma. Era agradável. Acendeu um fósforo,
tostou-lhe cuidadosamente a ponta e, em seguida, pô-lo na boca e chegou-lhe o fogo. Passados momentos, expeliu uma nuvem de fumo azul que se enrolou por cima da
sua cabeça, enquanto subia em direcção ao tecto.
Empurrou a caixa em direcção ao filho.
- Tira um.
Júnior sacudiu a cabeça.
Loren inalou de novo, bem fundo e, depois, expeliu o fumo.
- Só há duas coisas que podem levar um homem a usar perfume- disse. - Uma é se o fizerem cheirar a um bom Havana, outra se o fizerem cheirar a sexo
de mulher.
Júnior continuou sério.
- Os agentes também não gostam do Loren Dois. O seu maior argumento é que, uma vez o carro vendido, está o negócio acabado.
Loren olhou-o com ar astuto.
- Queres dizer que eles se queixam de que o carro é bom de mais?
- Não foi isso que eu disse - atalhou Júnior. - Mas talvez seja esse o caso. A maior parte dos carros precisa de mudar o óleo de mil em mil quilómetros,
o Loren Dois só ao fim de quatro mil. O mesmo acontece com os ajustes de travões. O Loren é o único carro que existe, neste momento, na estrada com travões auto-reguláveis.
- Estás a sugerir que pioremos a qualidade do carro? - perguntou o pai.- Não estou a sugerir nada - disse Júnior. - Estou só a chamar-lhe
a atenção para o facto, porque acho que devíamos fazer qualquer coisa quanto a isso. Estamos a perder quase catorze milhões por ano.
Loren ficou a estudar a fina cinza parda na ponta do Havana.
- É o melhor carro que eu já construí - disse. - Aposto o que quiseres em como é o melhor carro que anda na estrada, hoje em dia.
- Ninguém contesta esse facto - disse Júnior com toda a calma. - Mas estamos é a falar de dinheiro. As pessoas compram preço, não qualidade. Dêem-lhes
um carro grande, de qualidade média, a um preço médio ou um carro de tamanho médio e de grande qualidade pelo mesmo preço e eles escolhem sempre o carro maior. A
Buick, Olds, Chrysler, a Hudson, provam-no todos os dias. Estão a caminhar numa direcção diferente da nossa.
Loren baixou novamente os olhos para o charuto.
- Que é que sugeres?
- O mercado dos frigoríficos e fogões eléctricos está a desenvolver-se, de dia para dia - disse Júnior. - Tenho uma hipótese de comprar uma pequena
companhia que produz uma linha muito comercial e que está em apuros. Precisam de capital para se expandir e não conseguem arranjá-lo. Acho que podemos instalá-los
na fábrica dos Loren e acabamos por ganhar uma data de dinheiro.
- Nada poderá substituir as geladeiras - disse Loren. - Já alguma vez cheiraste alguma coisa saída desses frigoríficos eléctricos?
- Isso era há anos - disse Júnior. - Agora é diferente. A General Electric, a Nash, até a General Motors, estão todos nessa linha. É a grande novidade.
- E o Loren Dois? - perguntou o pai.
Júnior olhou para ele.
- Pomo-lo de lado. Perdemos a jogada e o melhor será admitirmos o facto.
Loren pôs o charuto cuidadosamente numa bandeja que estava em cima da mesa. Levantou-se da cadeira e encaminhou-se para a janela do seu gabinete. Para todos os lados
onde olhava havia actividade.
Na extremidade da fábrica, um comboio punha-se em marcha, devagar, arrastando vagões abertos cheios de automóveis. Do lado do rio, um cargueiro estava a descarregar
carvão para encher as fornalhas da fábrica de refinação, perto das docas. As linhas de montagem, longas como túneis trepidavam de actividade, enquanto as matérias-
primas entravam por uma extremidade e saíam pela outra sob a forma de automóveis. E, por cima de tudo aquilo, pairava o pesado manto de fumo cinzento chamado indústria.
- Não - disse por fim, sem se voltar.-Continuamos a construir o Loren Dois. Havemos de arranjar maneira de o fazer ir em frente. Não posso acreditar
que, no meio da maior prosperidade que este país jamais conheceu, um carro de qualidade não se venda. Lembra-te do que disse o presidente - dois carros em cada garagem,
duas galinhas em cada panela. E o Sr. Hoover sabe o que está a dizer. Depende de nós fazer com que, neste ano do Senhor de 1929, um desses dois carros em cada garagem
seja nosso.
Júnior ficou um momento em silêncio.
- Então, temos que fazer qualquer coisa para lhe diminuir o custo. Com os valores actuais, quanto mais carros vendemos, mais dinheiro perdemos.
Loren voltou as costas à janela.
- Vamos já começar a tratar disso. Diz àquele tipo novo da engenharia de produção que venha cá acima falar comigo.*Gosto do espírito dele.
-? Está a falar do John Duncan?
- É esse mesmo - disse Loren. - Tirei-o ao Charlie Sorenson da Ford. Vamos pô-lo na linha de produção do Loren. Vamos ver o que é que ele arranja.
- O Bannigan vai ficar zangado - disse o Júnior.
Bannigan era o engenheiro chefe da produção e dirigia o departamento.
- É pena-disse Loren. - Pagamos o trabalho, não o mau feitio.
- Ele pode acabar por se ir embora-disse Júnior.-Tem a tal oferta da Chrysler.
- Óptimo - disse Loren. - Nesse caso não o deixes hesitar. Diz-lhe que aceite a oferta.
- E se ele não aceitar?
- Já és presidente da companhia, despede-o e pronto - disse Loren. - Estou farto de o ouvir dizer-me porque é que as coisas não podem ser feitas.
Quero alguém que as faça.
- Okay - disse Júnior. - É tudo?
- Sim - respondeu Loren. Mudou o tom da voz.-Como é que está o meu neto?
Júnior sorriu o seu primeiro sorriso de toda a reunião.
- Está a crescer. Devia vê-lo. Já pesa quase cinco quilos e meio e ainda tem só dois meses e meio. Pensamos que ele vai ser grande como o senhor.
Loren retribuiu-lhe o sorriso.
- Acho óptimo. Estou capaz de ir até lá uma destas manhãs.
- Sim, apareça - disse Júnior. - A Sally também vai gostar muito de o ver.
- Como é que ela está?
- Óptima. Já emagreceu outra vez, mas continua a queixar-se de que está gorda.
ier,- Não lhe dês tempo para se refazer -riu Loren. - Arranja outro já a seguir. E, desta vez, que seja uma rapariga. Era engraçado dar-lhe o nome
da tua mãe.
- Não sei. A Sally teve problemas com este.
- Mas ela está bem, não? - perguntou Loren rapidamente. - Não tem nenhum problema?
- Está óptima - respondeu Júnior.
- Então, não lhe dês atenção, meu filho. As mulheres têm que ter sempre qualquer coisa para se queixarem. Faz o que tens a fazer e logo descobres
que ela vai deixar de se queixar.
- Vamos a ver - a voz de Júnior era impessoal. Preparou-se para sair. O pai chamou-o.
- Sim?
- Essa firma das geleiras de que estavas a falar. Achas, de verdade, que é bom negócio?
- Acho.
- Então, compra-a.
Júnior olhou para ele.
- E onde é que a vamos pôr? Eu tinha pensado nas instalações do Loren.
- Chega aqui - disse Loren. Foi até à janela e abriu-a. O rugir da fábrica encheu o gabinete. Inclinou-se para fora da janela e apontou.
- Que tal ali, naquele sítio?
Júnior deitou a cabeça fora da janela e olhou.
- Aquilo é o armazém velho.
Loren fez que sim com a cabeça.
- E são também nove mil metros quadrados de espaço de produção que não estão a servir para nada a não ser juntar pó e ferrugem.
- Mas também é ali que nós guardamos as peças e os conjuntos para substituição-disse Júnior.
- Desembaraça-te de tudo isso - disse Loren. -Para que diabo arranjámos nós depósitos de peças regionais espalhados por todo o país, se vamos guardar
essa lixeira toda no nosso próprio pátio? - Encaminhou-se novamente para a secretária e pegou no charuto. Sentiu-lhe o aroma com uma satisfação visível. - Manda
tudo isso para os armazéns locais e explica-lhes que lhes estamos a fazer um grande favor. Em vez dos dez dias habituais ou do dia dez de cada mês, só têm que nos
pagar ao fim de noventa dias.
- Isso não é justo e o pai sabe-o bem. Eles nunca venderão nem imetade daquilo.
Loren acendeu novamente o charuto e puxou o fumo.
- E quem é que falou de ser ou não justo? Empurra isso tudo para eles, tal como eles empurram as coisas para nós quando podem. Há uma coisa que tens
que aprender e será melhor que a aprendas bem. Uma coisa que não existe é um negociante de carros honesto. São os descendentes directos do velho ladrão de cavalos.
Estão prontos a roubar a quem quer que seja que lhes dê a oportunidade. A ti, a mim, aos clientes, até mesmo às próprias mães. Ninguém os ouviu chorar quando nos
levaram mais duzentos dólares por carro sobre o Loren Dois, quando sabiam que estavam a perder, nessa altura, mais de duzentos dólares por unidade. Não, prometeram
passar a diferença para o comprador. Mas nós sabemos como é. Ficaram foi com o dinheiro para eles. Por isso, não deves ter pena deles. Poupa os teus sentimentos
para aquilo que valer a pena. Para nós.
Júnior ficou um momento silencioso.
- Não sei, não consigo acreditar que sejam todos assim tão maus.
Loren riu-se.
- Já conheceste algum negociante de automóveis que fosse pobre?
Júnior não respondeu.
- Olha, vou fazer-te uma oferta -disse Loren.-Pega numa lanterna e vai, como Diógenes, à procura de um negociante de carros honesto. Um só, não é
preciso mais. E quando o encontrares, traz-mo aqui que eu dou-te, todo o resto do stock de acções desta companhia e retiro-me do negócio!
- Mais alguma coisa, Sr. Hardeman? - perguntou a secretária.
Júnior sacudiu a cabeça, com ar cansado.
- Acho que é tudo, Miss Fisher.
Ficou a vê-la juntar os papéis e sair do gabinete. A porta fechou-se atrás dela com um cuidado cheio de respeito. Júnior recostou-se na cadeira e fechou os olhos.
Parecia que os pormenores não tinham fim. Era sempre uma surpresa para ele ver tudo quanto o pai sabia acerca do que se passava dentro do negócio, sem que parecesse
fazer qualquer esforço para isso. Ele estafava-se para se manter ao corrente dos pequenos assuntos do dia-a-dia, quanto mais se fosse a direcção geral da companhia.
Naquele momento, convir-lhe-ia ter um vice-presidente administrativo, só para que as coisas corressem sem sobressaltos. Mas o pai era contra a ideia.
- A única maneira de dirigir um negócio é sermos nós próprios a dirigi-lo - disse, quando Júnior lhe pediu autorização para contratar alguém que o
ajudasse. - Assim, toda a gente sabe quem é o patrão. Procedi sempre assim durante toda a minha vida e deu resultado.
Não serviu de nada Júnior explicar-lhe que os tempos eram outros e que as exigências eram maiores. A palavra final do pai sobre o assunto foi que não o tinha feito
presidente da companhia para poder livrar-se de responsabilidades. Que não estava disposto a ir-se embora e deixar o negócio nas mãos de estranhos. E que a única
razão que o fazia sentir-se seguro quanto à sua ida para a Europa em Maio, para as primeiras férias que jamais tivera em toda a vida, era porque deixava tudo entregue
ao filho.
Júnior tinha-o escutado com uma espécie de cepticismo interior. Já tinha ouvido aquelas histórias todas. Só acreditava quando o pai estivesse dentro do barco. Puxou
do relógio e olhou para ele.
Eram nove e quarenta e cinco. Estendeu a mão para o telefone. Respondeu-lhe a secretária.
- É capaz de me ligar para a Sr.a Hardeman?
Ouviu-se um zumbido na linha e, um momento depois, Sally respondeu.
- Alô.
- Olá, querida - disse. - Desculpa, mas não me tinha dado conta de que era tão tarde. Espero que não tenhas ficado à minha espera para jantar.
Sally respondeu com frieza.
- Quando vi que eram oito horas e tu não dizias nada, calculei que estivesses ocupado e comi qualquer coisa.
- Óptimo - respondeu. - Como é que está o bebé?
- Está bem.
- Olha, já é tarde - disse. - Hoje não me sinto com coragem para ainda ir guiar uma hora até casa. Sobretudo quando tenho já uma reunião marcada,
aqui, amanhã, às sete da manhã. Importas-te que eu fique no clube?
Houve uma ligeiríssima hesitação na voz dela.
- Não, se estás assim tão cansado.
- Amanhã vou para casa cedo - prometeu.
- Okay - disse. - Vê se descansas bem.
-'Tu também. Boa noite, querida.
Um estalido deu-lhe a entender que Sally tinha desligado. Lentamente pousou o telefone. Tinha ficado zangada. Ele sabia. Era a segunda vez naquela semana que ficava
na cidade. O pai tinha razão. Aquela ideia de irem viver para Ann Arbor tinha sido um engano. No próximo fim-de-semana ia ter uma grande conversa com Sally sobre
a possibilidade de se mudarem para Grosse Pointe.
Pegou outra vez no telefone.- Ligue-me para o clube - disse à secretária.-Diga-lhes que vou lá ficar e o Samuel que espere por mim. Quero uma massagem
antes de me deitar.
Começou a sentir-se melhor, quase mesmo antes de pousar o telefone. Era isso. Um jantar leve e, depois, um banho quente e relaxante. Depois, punha-se em cima da
cama, nu, e Samuel vinha com a sua mistura de óleos suavizantes e álcool. As tensões iam deixá-lo quase ao primeiro toque das mãos dele e a languidez ia invadi-lo.
Quando o massagista se fosse embora, já estaria meio adormecido. Um sono profundo, calmo, sem sonhos.
, Sally pousou o telefone e voltou para a sala de estar. Loren, que estava sentado no sofá, levantou os olhos para ela.
- Há algum problema?
Sacudiu a cabeça.
- Era o Júnior. Vai ficar no clube esta noite. Está demasiado cansado para vir para casa.
- Disseste-lhe que eu estava cá?
- Não - respondeu. - O resultado era o mesmo. - Tirou outro copo da mesa que estava à frente dele. -- Deixe-me preparar-lhe outra bebida.
- Já agora, arranja uma também para ti - disse Loren. - Estás com ar de quem precisa de tomar qualquer coisa.
- Não posso beber - disse - enquanto não desmamar o bebé. - Estendeu-lhe um copo. - Descanse um bocado e esteja à sua vontade enquanto vou dar a mamada
das dez ao seu neto. Não demoro.
Loren pôs-se de pé.
-Eu vou contigo.
Ela deitou-lhe um olhar especial, mas não respondeu. Loren subiu atrás dela até ao quarto do bebé. Uma lampadazinha minúscula brilhava a um canto do quarto, espalhando
uma vaga luz amarela por detrás do berço.
Avançaram em silêncio e ficaram a olhar para o bebé. Estava a dormir com os olhos muito fechados. Sally estendeu os braços e levantou-o. Quase imediatamente, a criança
começou a chorar.
- Está com fome - murmurou, avançando rapidamente para uma cadeira e sentando-se. Estava na sombra, com as costas voltadas para a luz. Ouviu-lhe o
sussurrar do fato e depois, abruptamente, o choro parou e foi substituído pelos estalidos que o bebé fazia com a boca enquanto mamava.
Sally levantou os olhos para ele. Os olhos de Loren brilhavam como os de um animal sob o reflexo da luz amarela. Havia no rosto dele uma expressão de uma estranha
intensidade.
- Não vejo nada - disse.
Voltou-se na cadeira, devagar, até que tanto ela como o bebé ficaram banhados pela luz suave. Ouviu-lhe os passos e, quando olhou para cima, viu-o inclinado sobre
ambos.
- Meu Deus! -disse em voz baixa. - Como isso é belo!
Uma humidade quente percorreu-lhe o corpo e, de repente, sentiu-se furiosa.
- Bem podia tentar explicar isso ao seu filho.
Não respondeu. Em vez disso, pôs-lhe a mão no ombro nu e apertou, como que a instilar-lhe confiança.
Sobressaltada, ela olhou-lhe para a cara um momento, depois, voltou-se e beijou-lhe a mão. As lágrimas brotaram-lhe dos olhos e rolaram-lhe pelas faces, indo cair
na mão dele. Encostou a cara de encontro a ele.
- Desculpe, papá Hardeman - murmurou.
Com a mão que tinha livre acariciou-lhe suavemente o cabelo.
- Não tem importância, minha filha - disse suavemente. - Eu compreendo.
- Compreende? - murmurou num tom quase selvagem.-Ele é muito diferente de si. É frio, guarda tudo dentro dele, fechado, inacessível a todos. - Levantou
os olhos para ele. - Eu não sou nada assim. Eu...
Pôs-lhe um dedo sobre os lábios, fazendo-a calar.
- Eu disse que compreendia.
Olhou para ele sem dizer nada. Sentia uma força que emanava dele e a envolvia e compreendeu que ele sentia o mesmo que ela.
- É assim tão grave?
Loren sacudiu a cabeça.
- Eu vi-o com aquela mulher, na noite do meu casamento - disse.
- Eu sei - respondeu. - Vi-o nos teus olhos.
- E porque é que aquilo estava certo e isto está errado?
Sacudiu novamente a cabeça, devagar.
- A ocasião. Não é a ocasião certa. - Olhou para a criança que estava ao peito. - Tens coisas mais importantes a fazer.
A velha ira irracional apoderou-se dela. Porque é que ele havia de se mostrar sempre tão senhor de si, tão certo?
- Sou uma idiota-disse, amargamente. - Uma idiota chapada.
- Não, isso é que não és - disse com um sorriso. - És apenas uma mulher nova, normal e saudável, cujo marido está a merecer um bom pontapé no traseiro
por não estar a dar a atenção devida ao seu trabalho de casa. - Tomou a direcção da porta. - E talvez seja eu o homem que se vai encarregar disso.
- Não - disse. - Não se meta nisso. De si só quero uma coisa.
. - O que é? - perguntou.
Levantou-se da cadeira e pôs novamente o bebé no berço. Com todo o cuidado, compôs as cobertas em volta da criança adormecida e, depois, voltou-se para ele. Foi-se
aproximando, enquanto abotoava os botões da blusa. Parou mesmo em frente dele e levantou os olhos.
- Previna-me, quando for a ocasião.
Os músculos da cara dele pareceram deslocar-se todos para formar linhas direitas e angulares. Via-lhe uma veia palpitar na têmpora. As mãos dele estenderam-se de
repente agarraram-lhe os seios. Sentiu o leite escorrer, empapar a blusa e passar para as palmas da mão dele.
A voz de Loren soou zangada.
- Puta! Não podias esperar, não é?
- Não, não podia - disse, quase calmamente. Pôs as mãos nele e sentiu-lhe a força estuante. Pareceu-lhe que as próprias entranhas se lhe transformavam
num líquido efervescente. As pernas cederam-lhe e cambaleou de encontro a ele.
- O meu quarto é ali, por aquela porta - conseguiu dizer, ofegante.
Pegou nela ao colo e levou-a para o outro quarto. Com uma das mãos, fechou a porta sem fazer barulho e levou-a até junto da cama. Ela deixou-se cair e ficou a vê-lo
despir-se. Estendeu-se até ao outro lado da cama e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira.
Loren já estava quase nu.
- De que é que tu estás à espera?-'perguntou frenético. - Despe o vestido!
Ela sacudiu a cabeça, sem falar e sem tirar os olhos dele, enquanto as ceroulas caíam para o chão e se aproximava dela. Olhou-o no rosto.
-'Arranca-mo tu-disse-, como fizeste ao daquela outra rapariga.
Num momento, o vestido ficou às tiras e Loren ajoelhou à frente de Sally. Empurrou-lhe as pernas para trás e para o lado e começou a descer para dentro dela.
Sally enfiou o punho meio cerrado pela boca dentro, para não gritar.
- Oh, meu Deus! Meu Deus!
Foi tomada de paroxismos sucessivos, orgasmo após orgasmo, até ficar exausta. Fechou muito os olhos, e desta vez, foi a rapariga que tinha visto no espelho.
CAPÍTULO 8
Acordou alguns minutos antes de dar a mamada das duas da manhã ao bebé. Loren dormia de barriga para baixo, com um braço atravessado em cima da almofada, protegendo-lhe
os olhos da lâmpada nocturna, as pernas compridas esticadas pela cama fora e os pés desajeitadamente pendurados para fora dos pés da cama. Assim de perto, não parecia
tão cabeludo como ela pensava. O corpo estava mas era coberto com uma penugem fina e macia de um louro-avermelhado, através da qual se via a brancura da pele.
Com todo o cuidado para não o acordar, saiu da cama. O movimento fez com que tomasse repentinamente consciência do próprio corpo. Sentia todas as células cheias,
quase a rebentar, vivas, ricas, completas. "Então é assim", pensou maravilhada.
Silenciosamente, enfiou um roupão e dirigiu-se para o quarto do bebé, fechando a porta atrás dela. Ficou um momento inclinada sobre o berço, a olhar para a criança
adormecida. Pela primeira vez, tudo lhe parecia fazer sentido. Ele já não era apenas um bebé. Era um homem criança e um dia havia de ser grande e forte e havia de
encher uma mulher, tal como outro homem acabara de a encher a ela.
Os seios começaram a doer-lhe. Tocou-os e, em seguida, foi à cómoda e virou o biberão já preparado e quente de dentro do termo. Verificou a temperatura do liquido
nas costas da mão. Estava à temperatura certa. Tirou o bebé do berço, sentou-se numa cadeira e deu-lhe a tetina de borracha.
A criança sugou um pouco e cuspiu-o fora. Chorou em sinal de protesto.
- Shh - sussurrou com brandura, introduzindo-lhe novamente a tetina na boca. - Tens de te habituar.
Ele pareceu compreender porque começou a chupar, esfomeado. Sally inclinou-se e beijou-lhe o rosto, repentinamente coberto de suor.
- Homem criança - murmurou. Nunca sentira por ele um amor tão forte como naquele momento.
Ouviu a porta abrir-se atrás dela e, quando olhou para cima, Loren estava de pé, inclinado sobre eles. Tinha o corpo nu e bronzeado sob a luz amarela e o forte cheiro
masculino que emanava causticava-lhe as narinas.
- Porquê o biberão? - perguntou, passado um momento.
- Tu não deixaste nada para ele - respondeu simplesmente.
Não disse nada.
- Não tem importância - acrescentou. - De qualquer maneira, está a ser desmamado.
Ele acenou com a cabeça, sem falar e, depois, foi novamente para o outro quarto. Sally olhou para o bebé. O biberão estava meio vazio, era a altura de o fazer arrotar.
Quando voltou para o quarto, ele estava sentado à beira da cama, a fumar um cigarro. Olhou-a, com ar interrogador quando fechou a porta atrás de si.
- Adormeceu logo - disse.
- É uma rica vida - sorriu.-Não tem mais nada que fazer a não ser comer e dormir. - Pôs-se de pé.-São horas de ir andando.
- Não.
Olhou-a.
Já fomos suficientemente loucos - disse passado um momento. - A minha obrigação é sair daqui e fazer com que isto nunca mais volte a acontecer.
- Quero que fiques.
-'Ainda és mais louca do que eu.
- Não, não sou - disse com firmeza. - Julgavas que eu te podia deixar ir embora, agora que me ensinaste o que é realmente ser mulher? O que é realmente
ser amada?
- Fodida, queres dizer - atalhou com frieza. - Não é a mesma coisa.
- Talvez não seja, para ti - respondeu -, mas, para mim, é. Eu amo-te.
- Uma boa foda e ficas apaixonada? - perguntou sarcástico.
- E não é razão suficiente? - ripostou. - Podia ter chegado ao fim da minha vida sem saber quanto era capaz de sentir.
Ficou silencioso.
- Olha - disse Sally rapidamente, com as palavras a saírem-lhe quase umas por cima das outras. - Eu sei que não vai haver mais nada para além desta
noite. Que isto não voltará a acontecer. Mas amanhã ainda não chegou, esta noite ainda não está acabada e eu não quero perder-lhe nem um segundo.
Sentiu a agitação nas nádegas e compreendeu pela expressão dos olhos dela que se apercebera disso. Subitamente furioso por se ter traído, disse em voz rouca:
- Não podemos ficar neste quarto. Os criados...
- Vais ficar no quarto do Loren - respondeu. - É aquela a porta de comunicação.
Começou a juntar a roupa.
- E que é que lhes vais dizer?
A verdade - sorriu. - Que era tarde de mais para ires a guiar até casa. Aliás, que é que eles podem dizer, de qualquer maneira, és meu sogro, não? - Levantou os
olhos para ele. - Há uma coisa que me está a incomodar. Não sei como é que te hei-de chamar. Papá Hardeman, agora, iparece-me ridículo.
- Experimenta Loren- sugeriu.-Não te deve ser muito difícil. - Seguiu-a até ao outro quarto. - Há quanto tempo é que vocês têm quartos separados?
- perguntou.
- Sempre tivemos. - Pegou nas roupas que ele levava no braço.
- Deixa-me pendurar-te isto, se não de manhã não estão capazes.
Ficou a vê-la dobrar cuidadosamente o fato sobre o cabide de pé.
-Pensava que dormiam no mesmo quarto.
- Nunca - respondeu. - O Loren disse que dormia mal. Além disso, tu e a mãe tinham quartos separados.
-Só depois de ela adoecer-disse Loren. - Dormimos no mesmo quarto durante os primeiros vinte anos da nossa vida de casados.
- Não sabia - respondeu, pegando na camisa dele e pondo-a num cabide.
- Vocês são os dois demasiado jovens para terem quartos separados - disse. Olhou para ela com ar perscrutador. - Sei que não há nenhum problema contigo.
Que é que se passa com o Loren?
->Não sei - respondeu, olhando-o nos olhos.-É diferente. Não é como tu.
- Diferente, como?
- Não parece querer grande coisa de mim.-Hesitou um momento. - Agora que penso nisso, as únicas ocasiões em que fazemos amor é quando eu faço alguma
sugestão a esse respeito. Na própria noite do nosso casamento, eu desejava-o tanto que me deitei nua na cama, à espera dele e ele perguntou-me se eu estava cansada.
- Nunca foi um rapaz muito forte - disse o pai desajeitadamente.- Sempre foi assim um bocado delicado. A mãe preocupava-se muito com ele. Às vezes
até achava que se preocupava demasiado. Mas ela era assim. Era o único filho e sabia que não podia ter mais nenhum.
- Gostava de te dar um filho - disse.
- Já deste. Um neto.
Sacudiu a cabeça.
- Mais do que isso. Um filho teu. És um homem que devia ter tido muitos filhos.
- Agora já é tarde para isso.
- Será, Loren? - perguntou, caminhando em direcção a ele.
- Será mesmo tarde de mais?
Baixou os olhos para o rosto dela, sem responder.
- Nunca me beijaste - disse Sally.
Colocou-lhe as mãos por baixo dos ombros e levantou-a em direcção a ele. Sentiu-lhe os polegares enterrarem-se-lhe nas axilas, os dedos fortes comprimirem-lhe as
costas, esmagando-lhe os seios de encontro a ele. A boca de Loren esmagou-se de encontro aos lábios dela. O fogo líquido começou a encher-lhe os quadris.
Arrancou a boca da dele e encostou-lhe a cabeça ao peito. Fechou os olhos e roçou-lhe os lábios pelo ombro. Mal a ouviu murmurar, muito baixo:
-'Oh, meu Deus, só queria que esta noite não acabasse nunca.
Apertou-a muito, sem se mexer. Porque a única coisa que ambos sabiam era que a manhã tardava apenas algumas horas.
Mais café, Sr. Hardeman?
Loren fez que sim com a cabeça. Olhou para Sally através da mesa do pequeno-almoço e esperou que o mordomo impassível lhe enchesse a chávena e saísse da sala.
- Não tocaste no pequeno-almoço.
- Não tenho fome - respondeu. - Além disso, ainda preciso de perder cinco quilos para voltar ao que era antes de o bebé nascer.
Ele pegou na chávena e sorveu o café negro e forte. Pensou em como a tinha visto às seis da manhã.
Tinha acordado quando ela saíra da cama para dar de comer ao bebé, mas tinha ficado com os olhos fechados, de propósito, para ela pensar que ainda estava a dormir.
Sentiu-a de pé, ao lado da cama, a olhar para ele. Passado um momento, afastou-se. Espreitou-a com as pálpebras semicerradas.
Estava nua e à luz cinzenta do princípio da manhã, via-lhe na pele clara as leves marcas azuis e violáceas da sua paixão. Parecia vaguear pelo quarto ao acaso. Parou
em frente da cómoda e, de repente, havia duas imagens dela, de frente e de costas, uma no espelho. Mas não olhou para si própria. Em vez disso, pegou no relógio
dele, um pesado relógio de bolso, e ficou um momento a observá-lo, depois pousou-o e pegou nos botões de punho, de ouro, com a forma do primeiro Sundancer que tinha
construído. Ficou a olhá-los longamente. Depois de os ter pousado, voltou-se e olhou novamente para ele, estendido na cama. Fechou rapidamente os olhos.
Ouviu-a andar outra vez pelo quarto, depois o fechar da porta e, passados momentos, o som fraco da água a correr, do outro lado da parede da casa de banho dela.
Rolou até ficar de costas e abriu os olhos.
Estava deitado na cama do filho, no quarto do filho e na almofada a seu lado, sentia-se ainda o cheiro da mulher do filho. Percorreu o quarto com os olhos. Tudo
nele reflectia o amor de
Júnior pelo mobiliário antigo. A cómoda e os espelhos, as cadeiras, até mesmo a delicada secretária Duncan Phyfe colocada no vão da janela. Era tudo do filho.
Uma estranha sensação de desgosto pareceu esmagá-lo. Elisabeth tinha-lhe dito tantas vezes que a vida dele tinha sido uma sucessão de falhanços no que dizia respeito
ao filho. Que nunca tinha compreendido as diferenças que existiam entre eles e que, por mais que tentasse, nunca conseguiria modificar Júnior à sua imagem e semelhança.
Fechou os olhos, cansado. Se isso tinham sido falhanços, o que era isto? Outro falhanço? Ou uma traição? Ou talvez pior, uma usurpação final da vida e do lugar do
filho? Caiu num sono profundo.
Quando abriu de novo os olhos, passava das oito e ela estava de pé ao lado da cama. Trazia um vestido simples e estava de cara lavada, sem qualquer maquilhagem,
os olhos límpidos e o cabelo amarrado atrás da cabeça num chignon feito com todo o cuidado.
- O Júnior está a telefonar do escritório - disse numa voz desprovida de qualquer emoção.
Rodou os pés para fora da cama.
-Que horas são?
- Umas oito e quarenta.
- Como é que ele soube que eu estava aqui?
- Quando viram que não aparecias para a reunião desta manhã, tentaram ligar para casa. Disseram-lhes que tinhas mencionado a possibilidade de vir
até cá a noite passada, mas só pensaram em ligar para cá depois de tentarem outros sítios.
- Que é que lhe disseste? - perguntou.
- Disse-lhe que tínhamos ficado a pé até tarde e que eu pensei que era melhor ficares cá em vez de ir àquela hora para casa..
- Okay - disse, pondo-se de pé. Uma punhalada de dor atravessou-lhe as têmperas.-Podes arranjar-me umas aspirinas? - perguntou enquanto se dirigia
para a minúscula secretária e pegava no telefone.
- Alô.
- Pai? - A voz de Júnior soou fina e metálica ao telefone. - Desculpe, não sabia que estava aí, se não tinha ido para casa.
- Não tem importância-disse Loren. - Foi uma decisão tomada à última hora.
Sally entrou no quarto com duas aspirinas e um copo de água. Engoliu-as de um trago.
Duncan já completou os planos para a reestruturação da linha de montagem do Loren Dois - disse Júnior. - Gostávamos de ter a sua aprovação.
- Que te parece?
- A mim parece-me óptimo - disse Júnior.-No final de cada montagem devemos ter poupado cerca de duzentos e dez dólares por unidade.
- Então dá-lhe o okay - disse abruptamente.
- Sem o pai ver os planos? - O tom de surpresa na voz de Júnior era evidente.
- Sim, acho melhor que te habitues a tomar responsabilidades. Tu é que és o presidente da companhia, toma as decisões necessárias.
- Mas... que é que o pai vai fazer? - Junior estawa espantado.
- As férias que tenho andado a prometer a mim mesmo.
- Ouviu-se a si próprio dizer. - Vou passar um ano na Europa e parto amanhã.
- Pensei que só ia para o mês que vem - disse Júnior.
Loren levantou os olhos para Sally.
- Mudei de ideias.
Ela olhou-o nos olhos, um momento, depois, silenciosamente, saiu do quarto. Loren voltou-se de novo para o telefone.
- Agora vou a casa, mudar de roupa - disse para o filho.
- Vejo-te esta tarde.
Sentou-se, com ar cansado na esguia cadeira Duncan Phyfe, atrás da secretária, e ficou à espera que a aspirina lhe fizesse passar a dor de cabeça matinal.
Agora, Sally olhava para ele, do outro lado da mesa, vendo-o pousar a chávena do café. A voz dela era perfeitamente controlada.
- Vais fugir.
- É verdade - fez que sim com a cabeça.
- E achas que isso vai fazer alguma diferença?
- Talvez não faça. Mas nove mil quilómetros podem evitar-nos uma série de problemas.
Ficou silenciosa.
Loren olhou-a fixamente.
- Não lamento nada do que aconteceu. Mas tivemos sorte. Ninguém ficou magoado. Desta vez. Mas conheço-me o suficiente para saber que, se ficasse cá,
não conseguiria manter-me afastado de ti. E isso acabaria por destruir todas as coisas e as pessoas que não queremos magoar.
Ela estava imóvel na cadeira.
- Amo-te.
Ficou um grande bocado em silêncio.
-- E eu creio que também te amo.-Havia uma nota dolorosa na voz dele. - Mas isso, agora, não importa. O jogo está adiantado de mais. Para ambos.
CAPÍTULO 9
-< Puta! Puta reles sem vergonha! - A voz de Júnior transformou-se num grito agudo. - Quem foi?
Ficou a olhar, espantada, para a súbita transformação sofrida por ele. Era como se um virulento espírito feminino se lhe tivesse introduzido no corpo. Pela primeira
vez, reparou nas características femininas latentes nele. Ao dar-se conta disso, o medo pareceu desaparecer.
- Baixa a voz - disse calmamente. - Vais acordar o bebé.
A mão aberta atingiu-a na cara e Sally tombou juntamente com a cadeira em que estava sentada. A dor surgiu como uma língua de fogo rubra, um momento depois, enquanto
olhava para ele.
Estava inclinado sobre ela, com a mão estendida, pronto para lhe bater de novo.
- Quem foi?
Ficou um momento sem se mexer, depois, com as pernas, afastou dela a cadeira. Pôs-se de pé, lentamente, ainda com a marca branca da palma da mão dele gravada na
face vermelha. Recuou, afastando-se dele, até ficar encostada à cómoda. Júnior seguiu-a, ameaçador.
Sem desviar os olhos da cara do marido, colocou as mãos sobre o tampo da cómoda. A mão dele começou a baixar. Sally mexeu-se ainda mais depressa. Júnior sentiu a
ponta aguçada mesmo através do tecido pesado do colete. Ela disse apenas:
- Não faças isso!
A mão dele parou no ar e os olhos desceram-lhe para a cinta. O punho de prata da comprida lima de unhas brilhava na mão da mulher. Voltou novamente os olhos, incrédulo,
para a cara dela.
- Se me voltas a tocar, mato-te - disse calmamente.
De repente, ele pareceu esvaziar-se, a mão caiu-lhe ao lado do corpo. As lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
- Volta para ali e senta-te- disse ela. - Assim já podemos falar.
Como num sonho, cambaleou para trás, até à cadeira que havia ao canto do quarto e sentou-se. Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.O surto de ira que o tinha
invadido evaporou-se tão rapidamente como tinha surgido. Dentro dela, não restava mais nada a não ser piedade. Era tão pouco homem que ainda não deixara de ser criança.
Pôs outra vez a lima na cómoda e dirigiu-se para ele.
- Eu vou-me embora - disse. - Podes pedir o divórcio.
Olhou para ela por entre os dedos abertos que lhe cobriam
a cara.
- Isso é fácil para ti - disse quase a soluçar. - E eu? Toda a gente vai saber o que aconteceu e vão rir e falar nas minhas costas.
- Ninguém vai saber - disse.-Vou para tão longe que as notícias não chegam a Detroit.
- Estou a ficar mal disposto!-disse, de repente. Pôs-se de pé e correu para a casa de banho.
Pela porta aberta ouviu-o vomitar para a retrete. Foi atrás dele e viu-o inclinado sobre a tampa levantada, arquejante. Estremecia-lhe o corpo todo e parecia prestes
a cair. Rapidamente, foi colocar-se atrás dele e apoiou-lhe a testa na palma da mão.
Vacilou de encontro a ela, enquanto arquejava de novo, espasmodicamente. Mas estava vazio. Não saiu nada. Passado um momento, parou de tremer.
Estendeu a mão por cima dele e fez correr a água fria para o lavatório. Pegou numa luva de banho e, depois de a ensopar, aplicou-lha na testa. Ele começou a endireitar-se.
Sally passou a luva por água e lavou-lhe os vestígios de vomitado da boca e do queixo.
- O que eu fiz aqui - disse desesperado, olhando para o vomitado amarelo e castanho espalhado na tampa levantada e no rebordo de porcelana da retrete.
-'Não faz mal - disse, tranquilizando-o. - Eu limpo. Vai-te deitar um bocadinho.
Júnior saiu da casa de banho e ela ficou a arranjar tudo. Quando saiu, minutos depois, o quarto dela estava vazio, mas a porta de comunicação estava aberta.
Ele estava estendido em cima da cama dele, com um braço a tapar-lhe os olhos. Aproximou-se.
-Sentes-te bem?
Não respondeu.
Sally voltou-se e dirigiu-se para o quarto dela.
- Não te vás embora - disse o marido. - Sinto-me tonto. O quarto está a andar à roda.
Voltou para junto da cama e ficou a olhar para ele. Por baixo do braço, via-lhe o rosto pálido, a transpirar.
- Precisas de qualquer coisa no estômago - disse. - Vou mandar vir um pouco de chá com leite.
Puxou a campainha metida na parede. Momentos depois, o mordomo estava à porta.
- Chá fraco e leite para o Sr. Hardeman - disse.
- Sim, minha senhora.
Fechou a porta e foi, de novo, para junto da cama.
- Deixa-me ajudar-te a despir. Vais sentir-te mais confortável.
Como uma criança, deixou-a despi-lo e vestir-lhe o pijama,
depois ficou pacientemente à espera, enquanto ela abria a cama. Em seguida, deitou-se e puxou as cobertas para cima.
O mordomo trouxe o chá, pôs-lhe o tabuleiro em cima das pernas e saiu. Júnior sentou-se, puxando mais uma almofada para trás das costas. Sally encheu-lhe a chávena
com chá e leite quente, meio por meio.
- Bebe isso. Vais sentir-te melhor.
Bebeu lentamente da chávena fumegante e a cor começou a voltar-lhe às faces. Quando a chávena ficou vazia, ela encheu-a de novo.
Olhou outra vez para ele.
- Importas-te que" eu fume?
Sacudiu a cabeça em silêncio. Sally foi ao quarto dela e voltou com um cigarro.
- Estás melhor?
Fez que sim com a cabeça.
A mulher inalou profundamente o fumo acre que lhe encheu a boca e as narinas.
- Desculpa-disse. - Não queria fazer-te mal.
Não respondeu.
- O que eu tencionava fazer era ir-me embora e deixar-te um bilhete. Não queria que soubesses nada. O médico tinha-me prometido que não dizia nada
a ninguém.
- Esqueceste-te de lhe dizer que isso incluía o teu marido - respondeu. - Não percebi de que é que ele estava a falar, quando o encontrei no clube
e ele me deu os parabéns.
- Agora já sabes - disse. - Já não tem importância. Vou-me embora amanhã, podes tratar do divórcio como quiseres. Eu não te peço nada.
- Não!
Ficou a olhar para ele.
- Não te vais nada embora.
- Mas...
- Vais ficar aqui e ter a criança - interrompeu -, como se nada tivesse acontecido.
Olhou-o silenciosa.
- Um escândalo, neste momento, destruiria a companhia - disse. - Estamos a receber empréstimos do banco num montante de cinco milhões para nos equiparmos
para os novos carros de 1930. Julgas que algum banco era capaz de nos dar uma importância dessas se isto se soubesse? Nem um. E, ainda por cima, o meu pai matava-me,
se eu fizesse alguma coisa que nos impedisse de receber esse dinheiro.
Ficaram sentados, envoltos num silêncio pesado durante o que pareceu ser muito tempo. Sally apagou o cigarro e acendeu outro. Júnior observava-a.
- Porque é que não fizeste qualquer coisa? - perguntou por fim.-'Porque é que levaste tanto tempo?
- Só descobri quando já era tarde de mais. Nessa altura já nenhum médico era capaz de me tocar. Fiquei com os períodos todos trocados depois de o
bebé nascer.
- Não queres dizer-me quem é o pai?
Sacudiu a cabeça.
- Não.
- Não precisas de me dizer - respondeu. - Eu sei quem é.
A mulher não disse palavra.
- Foi ele-disse Júnior.
Não precisou mencionar o nome do pai para ela saber a quem se estava a referir.
- Estás doido - disse, na esperança de que ele não notasse o súbito tremor da mão que segurava o cigarro.
- Não sou tão estúpido como tu pensas - disse o marido, tomando um ar de astúcia feminina. - Ele passou a noite aqui e, no dia seguinte, resolveu
de repente ir para a Europa, um mês antes do que tinha previsto.
Ela teve um riso forçado.
- Isso não quer dizer nada.
- Mas talvez isto queira!-disse o marido, saltando da cama. Atravessou o quarto em direcção ao armário onde guardava as meias e a roupa interior.
Abriu a gaveta de baixo e tirou qualquer coisa para fora, que trouxe até junto dela. Abriu a mão bruscamente e o lençol ficou estendido no chão em frente deles.
- Reconheces isto?
Ela sacudiu a cabeça.
- Pois devias reconhecer - disse. - Era o lençol que estava na minha cama, naquela noite. A noite em que ele cá ficou. Sabes o que são aquelas manchas
amarelas arredondadas?
Continuou silenciosa.- São manchas de esperma - continuou. - Qualquer rapaz as reconhece. Não creio que ele seja do género de fazer isso a dormir.
- Continuas a não conseguir provar nada - disse a mulher.
- Então e isto? - com a outra mão atirou-lhe qualquer coisa. Caiu-lhe no colo e ela apanhou-o: era o soutien de amamentar
que trazia naquela noite. Naquele momento, pendia-lhe dos dedos em farrapos. Nem tinha dado por falta dele.
- Onde é que encontraste isto? - perguntou.
- No cesto da roupa suja, na minha casa de banho - disse.
- Pus lá uma camisa sem me lembrar de lhe tirar os botões de punho e, quando o abri para a tirar para "fora, o lençol caiu e o soutien estava enrolado
nele.
Ficou silenciosa.
- Ele violou-te, não foi? - O tom era mais de quem fazia uma afirmação do que uma pergunta.
A mulher não respondeu.
- Velho doente e devasso!-praguejou. - Não sei como é que a minha pobre mãe o conseguiu aguentar todos estes anos. Devia era estar internado. Não
é a primeira vez que faz uma coisa destas. Arrancou-te a roupa do corpo, não foi?
Sally olhou para o soutien que tinha na mão.
- Foi -disse quase num murmúrio.
- E porque é que tu não fizeste qualquer coisa? - perguntou.
- Porque é que não gritaste?
Ela respirou fundo, demoradamente e, depois, levantou os olhos para ele. Respondeu-lhe com voz clara e firme.
- Fui eu mesma que quis.
Os ombros dele descaíram de repente e pareceu encolher-se todo dentro de si próprio; aos olhos dela, pareceu ficar, de repente, vinte anos mais velho. O rosto tornou-se-lhe
cinzento e pálido. Estendeu a mão e sentou-se na beira da cama.
- Ele odeia-me - murmurou como falasse consigo próprio -, sempre me odiou. Desde o momento em que nasci. Porque me atravessei entre ele e a minha
mãe. Desde criança, sempre me tirou tudo o que eu tinha. Uma vez, tinha uma boneca. Ele tirou-ma e deu-me um carro de brinquedo. Como eu não brincava com o carro,
tirou-mo também.
Estendeu-se na cama, de barriga para baixo, com a cara escondida na curva do braço e começou outra vez a chorar. A cara dela começou a tremer de dor. Com ar cansado,
pôs-se de pé e encaminhou-se para o outro quarto.
- Sally!
Voltou-se e olhou para o marido. Estava sentado na cama, com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
- Não vais deixar que ele te tire também do pé de mim, pois não?
Ficou parada, sem responder.
- Vamos esquecer-nos de que isto aconteceu-disse rapidamente. - Vou ser muito bom para ti, vais ver. Nunca mais falo nisto.
Saiu da cama e pôs-se de joelhos, com os braços em volta das pernas dela, ao mesmo tempo que lhe escondia a cara nas coxas.
- Por favor, Sally - suplicou -, não me deixes. Eu não conseguia aguentar se tu me deixasses.
Deixou cair a mão sobre a cabeça dele e ficou parada. Por momentos, sentiu-se como se Júnior fosse filho defa. E talvez fosse assim que as coisas devessem passar-se.
- Levanta-te e vai para a cama, Júnior - disse com brandura-, eu não te deixo. - Depois voltou-se, fechando a porta atrás dela.
Num dia que veio a ser conhecido como Sexta-Feira Negra na história da economia mundial, a bolsa de Nova Iorque desmoronou das alturas, atirando com o país e o mundo
para as profundezas de uma depressão económica como nunca se conhecera outra.
Quatro meses depois, em meados de Janeiro de 1930, a campainha tocou na suite do Hotel George V, de Paris, onde Loren estava hospedado.
- Roxanne -chamou do banho-, vê quem é.
Alguns minutos depois, ela entrou no quarto de banho.
- Um telegrama da América para ti.
- Abre-o e lê. Tenho as mãos molhadas.
A rapariga rasgou o envelope azul-pálido. A voz dela não tinha qualquer expressão enquanto lutava para pronunciar as palavras inglesas.
LOREN HARDEMAN, SR. HOTEL GEORGE V PARIS, FRANCE
FIZ PARAR PRODUÇÃO E INTERROMPER LOREN DOIS PERANTE INSISTÊNCIA BANCO REDUÇÃO PERDAS CAUSADAS ESCASSEZ VENDAS STOP OUTRAS ECONOMIAS EM ACÇÃO E INFORMAREI DECISÕES
TOMADAS DESEJO TAMBÉM INFORMÁ-LO QUE MINHA MULHER DEU À LUZ UMA RAPARIGA ANNE ELIZABETH ONTEM DE MANHÃ ÀS OITO HORAS
loren hardeman h
CAPÍTULO 10
Ângelo olhou pela janela quando o avião se preparou para a aproximação final numa larga curva inclinada sobre as instalações da Ford em River Rouge. O gigantesco
complexo industrial estendia-se por baixo dele como um monstro de cabeça de hidra, fazendo subir em direcção ao céu o seu bafo nebuloso e despejando nas águas cinzentas
e turvas do rio Detroit os seus desperdícios líquidos, enquanto as manchas multicores dos carros minúsculos se viam estacionadas como cachos de formigas no meio
dos edifícios. O aviso "não fumar" ganhou vida quando o sol do fim da tarde fez brilhar as janelas de vidro e a fachada do extenso edifício da Administração Central
da Ford.
Esmagou o cigarro na bandeja e começou a pôr novamente na pasta os papéis que tinha espalhados em cima da mesa. Quando acabou, empurrou a mesa para o assento e pôs
a pasta no chão.
A hospedeira avançou pelo corredor do avião. Olhou para ele.
- Tem o cinto apertado?
Fez que sim com a cabeça, ao mesmo tempo que levantava as mãos para ela ver. A rapariga sorriu e avançou para a fila seguinte. Ângelo olhou para o relógio. Quatro
e meia da tarde. Precisamente na hora prevista. Voltou-se outra vez para a janela.
River Rouge tinha ficado para trás do avião. Pela primeira vez na sua vida, começou a sentir uns laivos de admiração pelos homens que a tinham concebido. Devia ser
uma tarefa quase impossível. Sabia-o agora. No ano em que tinha começado a trabalhar na fábrica da Costa Ocidental, os problemas tinham surgido um atrás do outro
até que houve alturas em que pensava que ia endoidecer. E era uma fábrica que não se podia considerar nem sequer dez por cento de River Houge.
Mas havia dois factores que faziam com que tudo aquilo funcionasse e ambos representados por pessoas. O conhecimento, a experiência e a sensatez de John Duncan e
a energia contagiante e infatigável, o entusiasmo de Tony Rourke, que se tornou parte de tudo aquilo como se tivesse nascido dentro da indústria automóvel. Esse
facto, aliado ao seu uso criativo e à adaptação das novas tecnologias que usara no espaço aéreo, fê-los ultrapassar os primeiros e talvez os mais difíceis obstáculos.
O departamento de desenho e engenharia tinha sido transferido de Detroit, com êxito, e havia mais de seis meses que estava operacional. A fundição de aço que tinham
comprado, em Fontana, estava em vias de reconversão às suas necessidades de produção e a fábrica que tinham construído juntamente com as demais instalações devia
estar pronta a funcionar no Verão seguinte. A secção de moldagem ficaria pronta a funcionar alguns meses mais tarde, e a linha de montagem podia entrar em funcionamento
já em Setembro de 1971, se necessário. Os quadros de pessoal estavam a ser analisados, os planos de abastecimento estavam a ser estabelecidos e os mil e um outros
pormenores estavam a ser ultimados. Agora só faltava a decisão final quanto ao tipo de carro a construir. E esse era o único problema sobre o qual ninguém parecia
estar de acordo.
Talvez isso fosse por causa do estado actual da própria indústria. Nos últimos anos, a tempestade tinha estado a formar-se e, agora, o olho do furacão estava mesmo
por cima deles e toda a gente andava freneticamente à procura de um sítio onde se abrigar, sem conseguir enxergar nada de definido. Como resposta à pressão, os governos
locais e federais impunham medidas estritas que iriam afectar a indústria automóvel, tanto no que dizia respeito à produção como ao rendimento do produto acabado.
Factores ecológicos e ambientais eram sujeitos a um novo controlo e a padrões mais restritivos. Havia um plano de cinco anos ao qual a indústria tinha que se cingir
com vista a reduzir as emissões de gasolina do motor de forma a atingir níveis aceitáveis por volta de 1975. Outros factores de segurança estavam a ser estudados,
com vista a proteger o condutor e os passageiros mesmo contra os seus próprios erros. De uma maneira geral, era a refutação directa da política que tinha sido privilégio
da indústria ao longo de todos aqueles anos. Tais decisões, que envolviam a segurança e bem-estar do público, iam deixar de estar entregues à sua boa mercê. Apesar
dos gritos de ruína económica de que os custos iam ter que ser transferidos para o consumidor, os padrões tinham que ser respeitados ou os carros não poderiam circular.
Havia outro lado do problema. E esse parecia ser a alteração de gosto dos compradores de carros americanos. Parecia ter sido ontem que a pequena Carocha Volkswagen
não era mais do que objecto de piadas e anedotas. Mas já lá iam vinte anos. De repente, Detroit virou-se e descobriu que aquele insectozito era o quarto carro mais
vendido na América em 1969 e que, para 1970, as previsões da indústria eram de que ele ia arrancar ao Plymouth da Chrysler Motors o terceiro lugar que ocupava havia
muitos anos. Depois, para aumentar a sua desgraça, outra invasão começou a verificar-se, em 1967, vinda do outro lado do mundo. Japão. Em quatro anos apenas, os
Japoneses tinham-se apoderado, com os seus produtos, de uma imensa secção do mercado americano. A Datsun, a Toyota e as outras eram agora uma parte viável da cena
americana. As suas taxas de aumento e penetração do mercado eram tão rápidas, tão completas e, o que é ainda mais notável, não apresentavam qualquer indício de abrandamento.
Pela primeira vez, não era apenas Detroit que mostrava sinais de preocupação, como também a Volkswagen, que via ameaçada a sua própria posição de proeminência no
mercado americano. Agora, a Volkswagen, tal como acontecera muitos anos atrás com o famoso modelo T da Ford Motors, sentia-se em perigo de ser ultrapassada na forma
e nos melhoramentos e procurava um novo carro que pudesse vir a substituir a Carocha. Mas isso seria no futuro.
De momento, as companhias americanas tinham aparecido com a sua versão do compacto económico: o Vega, o Pinto e o Gremlin. A Chrysler continuava a evitar a produção
doméstica, mas dois dos seus carros, que tinham sido fabricados no estrangeiro, foram importados para os Estados Unidos e vendidos com o seu próprio nome: o Dodge
Colt e o Plymouth Cricket. Mas eram tudo paliativos e Detroit estava pronta a admiti-lo.
Os primeiros relatórios relativos às vendas dos subcompactos americanos indicavam que o respectivo mercado era tirado às suas próprias vendas de carros maiores e
que as vendas dos carros importados não eram, de forma nenhuma, afectadas, continuando, pelo contrário, a mostrar uma notável tendência para aumentar.
Todos estes factores, aliados ao investimento adicional, aos custos acrescentados às vendas e ao fardo da manufactura por édito governamental, fizeram com que os
olhos da indústria se voltassem sobre si própria. Ainda que aparassem, cortassem, desbastassem e podassem o mais que pudessem ou quisessem, isso não servia, por
si só, de resposta.
A verdadeira resposta só podia ser dada por um carro totalmente novo, um carro nascido da tecnologia da procura, um carro novo que teria que ser construído segundo
todos os requisitos tanto do governo como do consumidor. E essa a única coisa que Detroit ainda não estava preparada para considerar. É que isso significava interromper
o jogo antigo e começar um novo. E a verdade é que continuava a haver muitos entusiastas no estágio antigo.
As rodas do avião tocaram no chão, arrancando Ângelo ao seu sonho. Continuou sentado, tranquilamente, enquanto rodavam em direcção à porta de desembarque. Tinham
que assumir o compromisso. Era a única opção que lhes restava. No dia seguinte, na reunião do conselho de administração, ia apresentar o assunto. O Sundancer era
um automóvel do passado. Tinha que desaparecer. Se iam construir um novo carro, ele teria que representar um empenhamento geral. Qualquer continuação do Sundancer
seria tomada como uma limitação e não podia deixar, na sua opinião, de reduzir as possibilidades de sucesso para o novo carro.
O avião parou, Ângelo pegou na pasta e pôs-se de pé. Mas isso era no dia seguinte. Naquela noite havia ainda um outro assunto que para o mundo de Detroit era quase
da mesma importância.
Um acontecimento que tinha sido anunciado nos jornais de Detroit como o grande acontecimento social do ano e cujos preparativos tinham sido tão religiosamente relatados
como os preparativos para a tomada de posse de um presidente da República.
A apresentação de Elisabeth Hardeman em sociedade. Tinha dezoito anos de idade. E estava pronta para ocupar o seu lugar no mundo.
- Está com óptimo aspecto, avô - disse a princesa.
Número Um sorriu.
- Sinto-me muito bem, Anne. Como não me sentia há anos.
- Estou satisfeita - disse com simplicidade. Aproximou-se da cadeira de rodas e beijou-o no rosto. -Sabe que é assim, não sabe?
Chegou-lhe às narinas o aroma vago do perfume dela. Estendeu o braço e bateu-lhe nas costas da mão.
- Sei, sim - respondeu. - E tu? Estás feliz?
Acenou com a cabeça, com ar pensativo.
--Tão feliz quanto poderia estar, acho eu. Já há muito que abandonei os sonhos infantis do que poderia ser a felicidade. Agora sinto-me contente. Igor é muito bom
para mim. Toma conta de mim. O avô sabe o que é que eu quero dizer.
Fez que sim com a cabeça. Pensava que compreendia, mas nunca havia de ter a certeza. O problema da sua posição de herdeira tinha destruído a vida a muitas outras.
Ser uma rapariga rica tinha os seus inconvenientes. Mas ela parecia pertencer ao número das pessoas com sorte. Era-lhe difícil capacitar-se de que Anne Elisabeth
tinha agora quarenta anos. Para ele continuava a ser uma criança.
Número Um sorriu.
- Onde é que está o Igor? - perguntou. - Ainda não o vi.
- Está lá em baixo na biblioteca com o Loren - disse. - Sabe como é o Igor. Adora falar de negócios, de homem para homem. E se for com uma garrafa
de uísque ao lado, tanto melhor.
Número Um sorriu.
- Como é que vão os negócios na Europa?
-O Igor estava preocupado - disse. Igor tinha tomado conta da Bethlehem Motors, S. A., França, quando do seu casamento e, com grande surpresa de todos, tinha desenvolvido
excelente trabalho. - Sabe como ele adora os automóveis. Detestou ver cair o número de vendas, embora nos outros departamentos tudo continue a correr bem. Agora
está outra vez excitadíssimo. Nem podia esperar para se encontrar com o Loren e falar com ele sobre o carro novo.
Número Um disse:
- Vou mandá-lo convidar para a reunião de amanhã. Acho que ele vai ficar contente.
- Está a brincar - riu Anne. - Vai adorar. Sempre sonhou com isso. Estar presente quando são tomadas as grandes decisões. Vai-se sentir no paraíso.
- Óptimo.
- Que horas são? - perguntou.
Ele olhou para o relógio de pulso.
- Sete e meia.
- O melhor é eu ir começar a vestir-me.
- Qual é a pressa? A festa só começa lá para as dez.
- Já não sou tão nova como era - sorriu. - Além disso, aparecer com ar de princesa leva um bocadinho mais de tempo.
- Para mim sempre tiveste o ar de uma princesa - disse.
- Lembras-te, avô? Era isso que costumavas chamar-me quando eu era pequena. Princesa. E o meu pai ficava zangado. Dizia que era antiamericano.
- O teu pai tinha umas ideias muito especiais-respondeu.
- É verdade. - Ficou pensativa. - Sempre tive a sensação de que ele não gostava de nenhum de nós. Pensei nisso muitas vezes.
- Achas isso importante?
- Agora já não. - Olhou para ele e sorriu. - Sabes, estou bem contente por estar aqui. Estou contente por teres aberto a mansão para esta festa. Sempre
ouvi dizer que as festas aqui costumavam ser maravilhosas.
- Algumas foram muito boas.
- Quanto tempo já lá vai, avô? - perguntou.-Desde a última festa?
Ficou um momento a pensar. O tempo envolveu-o como as vagas de um oceano. Fechou os olhos e, por momentos, foi como se tivesse sido ontem. Depois, abriu-os.
- Foi há quarenta e cinco anos - disse lentamente. - Para o casamento do teu pai e da tua mãe.
CAPÍTULO 11
Eram, na realidade, duas festas em vez de uma. Na sala de baile principal era a recepção formal. Uma das orquestras da sociedade Meyer Davis despejava cá para fora
aquilo que os amigos de Elisabeth designavam como "música para pessoas de meia-idade".
A outra festa era na gigantesca sala de jogos que tinha sido transformada em discoteca, e a música era produzida electronicamente por dois grupos de rock que alternavam
entre si.
Ambos os locais estavam apinhados de gente e mesmo o espaço de pé era medido em centímetros. Em Detroit nunca se vira uma coisa assim. Era um armagedão de confusão
e som.
Os jardins quentes de fins de Setembro estavam também apinhados de gente que andava de um lado para o outro, de uma festa para a outra, ansiosos por verem tudo e
estarem em toda a parte ao mesmo tempo. Era quase meia-noite quando o aglomerado de carros que tinham avançado pelo caminho de acesso indo espalhar-se pelas ruas
que rodeavam a casa- deixou de impedir o trânsito e Ângelo deu consigo mesmo a entrar as grandes portas de madeira abertas de par em par.
O comité de recepção há muito que se desfizera. Loren, arrumado mesmo antes de a festa começar, não se via em parte nenhuma e Betsy tinha debandado com os amigos
para a discoteca. Só Alicia, ligeiramente esfalfada e muito em baixo, é que continuava perto da entrada.
Pela terceira vez, Ângelo apresentou o seu convite para ser inspeccionado. As duas vezes anteriores tinha sido à entrada do caminho para a casa e em frente da casa.
Desta vez, foi um criado de libré que pegou no cartão.
O' hôrfiém gYTsalTtó VóWòW para a sala.
- O Sr. Ângelo Perino - anunciou num tom sepulcral que se perdeu completamente no meio do clamor.
Ângelo desceu as escadas em direcção a Alicia. Beijou-a na
cara.
- Estás encantadora.
- Estou com um aspecto horrível e tu sabes que é verdade.
- Que festa - disse Ângelo olhando em volta da sala.
- Sim - respondeu-, mas preferia não a ter dado. Tudo isto me parece um imenso desperdício. Mas o Loren insistiu.
- Parece que está divertida - disse Ângelo.
- Espero que ele se esteja a divertir - disse sarcástica.
- Onde está a debutante? - perguntou. - Achas que devo dar-lhe os parabéns, ou como é? Não sei lá muito bem como é que se faz neste género de coisas.
Pela primeira vez naquela noite, Alicia riu.
- Ângelo, tu és maravilhoso. Deves ser a única pessoa honesta que ainda existe em Detroit. - Olhou em volta. - Não a vejo em parte alguma. Deve estar
na sala de jogos com os amigos.
- Eu dou com ela - respondeu.
- Vem - disse Alicia, pegando-lhe no braço. - Vou arranjar-te uma rapariga nova e bonita para dançar contigo.
- Porque não tu?
- Eu? - O tom da voz dela era de surpresa. Hesitou. - Não sei. Eu devia ficar aqui. Ou alguém.
- Porquê?
Ficou um momento a olhar para ele, depois acenou com a cabeça.
- Sabes uma coisa? Tens toda a razão. Não vejo porque é que eu hei-de ficar aqui.
Conduziu-a até à pista de dança e ela procurou-lhe os braços. A princípio, estava um bocado hirta. Ângelo puxou-a mais para ele.
- Descontrai-te - sorriu. - Tens o direito de te divertires na tua própria festa.
Ela riu-se outra vez e seguiu a música. Apoiou-lhe a cabeça de encontro ao ombro e, passados momentos, levantou os olhos para ele.
- Obrigada, Ângelo.
- Porquê?
- Por me fazeres sentir que estou realmente aqui. Toda a noite tive a sensação esquisita de que não estava.
- Não percebo.
- Tu sabes o que está a acontecer - disse. - Toda a gente sabe. É um segredo público que o Loren tem aquela rapariga no apartamento por cima dos escritórios
da administração, na fábrica, e que eu parto para Reno depois de amanhã. As pessoas têm estado a olhar para mim com aquele ar de "a rainha está morta, viva a rainha".
Tem sido muito estranho. Vê-se que não sabem bem até que ponto devem ser amáveis comigo.
- Estás a imaginar coisas - disse. - Foste criada aqui. Esta gente sempre foram os teus amigos. Casada com Loren, ou não, é o mesmo.
Uma expressão de tristeza surgiu nos olhos dela.
- Dantes, também pensava assim. Agora, já não tenho a certeza.
A canção acabou e eles ficaram parados no meio da pista. Uma voz de mulher fez-se ouvir por detrás deles.
-Alicia, querida! Onde é que tinhas escondido este homem perfeitamente encantador?
Voltaram-se e Ângelo viu um par extremamente harmonioso, mesmo junto deles. O rosto da mulher tinha um ar vagamente familiar.
Alicia sorriu.
- Ângelo Perino, a minha cunhada e o marido, o príncipe e a princesa Alekhine.
A princesa estendeu a mão. Ângelo segurou-a. ,
- Aperto-a ou beijo-a? - perguntou sorrindo.
- Pode fazer as duas coisas - riu. - E o nome é Anne. Você andou na escola com o meu irmão, mas nunca nos conhecemos.
- Pouca sorte minha. - Beijou-lhe a mão e voltou-se para apertar a mão ao marido.
O príncipe era mais alto do que Ângelo, com espessos cabelos grisalhos e olhos escuros e brilhantes num rosto forte e bronzeado. O aperto de mão dele foi firme e
directo.
- Chame-me Igor - disse numa voz funda e cheia de cordialidade.- Há muito que desejava conhecê-lo. Temos muito que falar. Quero que me conte tudo
acerca do novo carro.
- Isso tem tempo - disse Anne. - Amanhã, há muito tempo de vocês, os homens, falarem de negócios. - A música começou outra vez. - Igor, vai dançar
com a Alicia -, ordenou, pegando no braço de Ângelo. - Quero ficar a conhecer bem o novo homem de Detroit.
Procurou os braços dele com toda a segurança de uma mulher que já lá tinha estado muitas vezes. Ângelo baixou os olhos para ela.
- Anda a ler revistas a mais - disse.
Claro - respondeu. - Em que é que você julga que os americanos que vivem na Europa passam o tempo? Lêem revistas e, dessa forma, mantêm-se informados. Fá-los sentir
que participam.
- Também podiam vir para a América - disse.
-Como você é inteligente-sorriu. - Conseguir mudar de assunto com tanta rapidez. Mas eu não me deixo levar assim com tanta facilidade. Li o artigo da Life. Aquele
que fala do DeLorean da Chevy, Iacocca da Ford e você. É verdade o que dizem acerca do seu avô? Que ele era o negociante de álcool que forneceu a festa de casamento
dos meus pais, dada nesta casa?
- Não, não é verdade-disse. - O meu avô nunca foi negociante de álcool. Era contrabandista de bebidas alcoólicas.
Ela largou a rir.
- Acho que vou gostar de si. Estou a começar a perceber o que é que o avô vê em si.
À uma da manhã, as portadas largas foram abertas de par em par, pondo a descoberto o sumptuoso bufete e as mesas alegremente decoradas. Meia hora depois, começaram
as atracções que deviam acompanhar o jantar.
O chefe de orquestra falou ao microfone, mas mesmo com a amplificação as palavras perderam-se no meio da barafunda que vinha das mesas. O homem voltou-se e fez um
gesto em direcção ao pequeno palco provisório. A rapariga que avançou para junto do microfone foi reconhecida por todos os presentes. Há anos que viam o rosto dela
na televisão todas as semanas e durante muito tempo ela tinha sido mesmo a voz que apresentava um dos principais automóveis. Agora abria a boca para cantar, mas
ninguém conseguia ouvi-la, porque também ninguém estava interessado em lhe dar atenção. Estavam todos demasiado ocupados com as conversas e com a comida.
Loren estava de pé ao lado do palco, balançando ligeiramente.
Tentou ouvi-la, mas nada. Aproximou-se mais do palco, até ficar mesmo por baixo dela. Ainda nada. De repente, ficou zangado.
Trepou rapidamente para o palco e atravessou até junto do microfone. A cantora olhou para ele, espantada. Loren ergueu a mão e a orquestra parou de tocar. Voltou-se
e ficou a olhar para os convidados.
Ninguém tinha sequer reparado no que estava a acontecer no palco. Ele inclinou-se, tirou uma colher de uma mesa que estava em frente do palco e bateu com ela na
aresta do microfone até conseguir que lhe dessem atenção. Pouco a pouco, a sala começou a serenar.
Loren ficou a olhar para eles, o rosto congestionado e furioso, o colarinho amachucado e mole da transpiração.
- Agora ouçam o que lhes vou dizer, seus cretinos!-gritou ao microfone que lhe deformou as palavras arrastadas enchendo todos os cantos das duas salas
gigantescas.
- Paguei mil e quinhentos dólares para trazer esta dama desde Hollywood até aqui para cantar para vocês, portanto, acho melhor que se calem e a ouçam
com atenção!
De repente, a sala ficou silenciosa, não se ouvia sequer o som de um garfo ou de uma colher. Loren voltou-se para a cantora e fez uma vénia exageradamente cortês.
- Está tudo bem, dona - disse. - Agora já pode cantar.
A orquestra começou de novo e, quando a voz suave da cantora começou a encher a sala, Loren deu meia volta e afastou-se do palco. Tropeçou ligeiramente no último
degrau, mas recuperou o equilíbrio antes de cair e continuou em direcção ao bar.
Ângelo estava de pé no bar quando Loren se aproximou dele. Ângelo estendeu a mão para o amparar.
Loren sacudiu-lhe a mão.
- "Tou óptimo". - Voltou-se para o barman. - Scotch on the rocks. -< Olhou para Ângelo como se acabasse de o ver pela primeira vez. - Idiotas ingratos!
- murmurou. - Não apreciam nada do que se faz por eles.
Ângelo não respondeu.
Loren pegou na bebida e levou-a aos lábios.
- Bom uísque escocês - disse. - Não faz uma pessoa sentir-se tão mal como o uísque canadiano. Devia prová-lo.
- Sinto-me mal com tudo quanto bebo - Ângelo sorriu. - Até mesmo a Coca Cola.
- Idiotas ingratos! - disse Loren, de novo, voltando os olhos para as salas apinhadas. Voltou-se novamente para Ângelo. -Quando é que chegou?
- Esta tarde.
- Mas não me telefonou - disse.
- Telefonei -respondeu Ângelo-, só que já tinha saído do escritório.
- Quero falar consigo antes da reunião de amanhã - disse Loren->, temos coisas importantes a tratar.
- Estou disponível.
- Eu telefono-lhe-disse Loren. Pôs o copo vazio em cima do balcão e ia afastar-se. De repente, voltou-se para trás. - Amanhã de manhã não há tempo-disse.-Encontre-se
comigo aqui no bar quando a festa acabar. Isso vai ser lá para as três da manhã.
Ângelo olhou para ele.
- Vai ser uma noite muito comprida. Tem a certeza de que não pode esperar até de manhã?
- Acha que eu não sei o que estou a fazer?-perguntou Loren com ar bélico.
Ângelo sorriu.
- Não acho, sei - respondeu com naturalidade.
Os olhos de Loren semicerraram-se e o rosto congestionou-se ainda mais. Avançou em direcção a Ângelo.
- Não faça isso - disse Ângelo calmamente.-Só servia para estragar a festa à sua filha.
Loren ficou um momento parado, depois descontraiu-se, chegou mesmo a sorrir.- Você tem razão - admitiu. - Obrigado por não me ter deixado fazer figura
de parvo.
Ângelo retribuiu-lhe o sorriso.
- É para isso que servem os amigos.
- Quer fazer-me um favor? - perguntou Loren.
- Claro.
-É capaz de vir ter comigo, às três e um quarto, e levar-me até à fábrica? - perguntou Loren. - Não creio que esteja em condições de ir eu próprio a conduzir.
- Cá estarei - disse Ângelo.
Saiu pelas enormes portas envidraçadas para o jardim. As lanternas com coloridos alegres estavam penduradas ao longo dos caminhos, balançando suavemente impelidas
pelo vento do fim da noite. Acendeu um cigarro e dirigiu-se para a sala de jogo.
O ritmo pesado do grupo de rock tornou-se mais forte à medida que se aproximava do edifício. Pelas grandes janelas panorâmicas via para o interior da discoteca.
Estava cheia de dançarinos, de uma parede à outra, todos eles parecendo estranhamente imobilizados em relâmpagos de luz colorida.
Entrou pela porta aberta e avançou até ao bar. Mandou vir uma bebida e o barman pôs-lha à frente. Pegou-lhe e bebeu. Chegou-lhe também às narinas o cheiro agridoce
da marijuana. Olhou em volta. Na escuridão não conseguia perceber quem é que estava a fumar erva e quem é que fumava tabaco. Os cigarros enchiam a sala como se fossem
pirilampos.
- Eu já o conheço? - a voz da rapariga vinha de trás dele.
Voltou-se. Era jovem, quanto a isso não havia dúvidas, mas
isso era o que acontecia com todas as raparigas que estavam na sala. Tinha os olhos de um azul-pálido e o cabelo ouro e comprido caía-lhe direito junto ao rosto,
até aos ombros. Havia qualquer coisa de estranhamente familiar na boca e no queixo dela.
- Não creio - sorriu. - Mas como eu também não a conheço, ficamos empatados.
- Sou Elisabeth Hardeman - disse em tom imperioso.
- Claro - respondeu.
- Que é que quer dizer com isso? - perguntou a rapariga.
- Que outra pessoa poderia ser? - sorriu. - Acha que fica bem eu felicitá-la, Miss Elisabeth?
A rapariga ficou a olhar para ele.
- Está a fazer troça de mim.
- Não, não estou - disse rapidamente.-Só que eu não sei . é o que fica bem fazer-se numa altura destas.
- Não está a entrar comigo?
- Pela minha saudinha - disse com ar muito sério.
Ela sorriu de repente.
- Posso dizer-lhe a verdade?
Fez que sim com a cabeça.
- Eu também não faço a menor ideia - riu.
- Então, as minhas felicitações continuam de pé - disse.
- Obrigada. - De repente, fez estalar os dedos. - Nunca esqueço uma cara. Você é o homem que ia a guiar o Sundancer SS na primeira vez que eu o vi
em Woodward Avenue, uma noite no Inverno passado. Ia com aquela rapariga que tem mamas grandes... Aquela que parecia Miss Hurst Golden Shifter, é o que eu quero
dizer.
Ângelo riu.
- Touché.
- Trabalha para o meu pai? - perguntou. - É piloto de ensaio?
- De certa maneira - admitiu. - Acho que pode pôr a coisa assim.
Um ar de espanto surgiu-lhe, de repente, no rosto.
- Eu conheço-o - disse. - Vi a sua fotografia na Life. Você é o Ângelo Perino.
- É verdade - sorriu. - Mas preferia que me classificasse de um seu admirador desconhecido.
- Desculpe, Sr. Perino. Não quis armar em esperta.
- Desculpo, se me conceder esta dança - disse ele.
Ela olhou para a sala e, depois, novamente para ele.
- Aqui? - perguntou duvidosa. - Ou na casa principal?
- Aqui - respondeu ele, rindo e encaminhando-a para a pista. - Não sou assim tão velho como pareço.
CAPÍTULO 12
A orquestra Meyer Davis começou a tocar Três da Manhã e o som atravessou a meia sonolência até à cama do Número Um. Uma vaga recordação agitou-se dentro dele fazendo-o
endireitar-se e puxar a almofada para trás das costas. Ficou sentado um momento a pensar e, depois, carregou o botão que tinha na mesa de cabeceira, ao lado da cama.
Passados momentos, Donald entrou no quarto. Como era hábito, estava vestido como se nunca se tivesse deitado.
- Diz à Roxanne que quero falar com ela-disse Número Um.
- Roxanne? - a voz de Donald estava cheia de espanto.
Número Um olhou para ele. Depois, lembrou-se de que Roxanne já se tinha ido embora, havia muitos anos. Era o problema que havia com a memória. Nunca se lhe sobrevivia,
só as pessoas.
- Veste-me-disse. Quero lá ir abaixo.
- A festa está a acabar - disse Donald respeitosamente.
- Não me interessa - disse Número Um, aborrecido. - Veste-me.
- Vinte minutos mais tarde, Donald empurrava a cadeira de rodas para fora do quarto e ao longo do comprido corredor. Número Um levantou a mão quando
chegaram ao varandim que deitava para a grande escadaria que levava ao vestíbulo da entrada. Donald parou e olharam para baixo.
Os convidados estavam ainda apinhados em volta da porta, esperando que os encarregados do parqueamento lhes trouxessem os respectivos carros. Continuavam a conversar
animadamente e pareciam pouco dispostos a ir-se embora.
- Deve ter sido uma grande festa - disse Número Um.
- Sim, senhor.
- Aí quantas pessoas, que é que te parece?
- Entre quatrocentas e cinquenta e quinhentas - respondeu Donald.
Número Um olhou cá para baixo, para aquela gente toda, em silêncio. As pessoas nunca mudavam. Não eram muito diferentes das pessoas que costumavam ir às festas dele,
havia tantos anos. Olhou novamente para Donald.
- Não quero ser apanhado por aquela gente toda - disse. - Leva-me ao elevador da biblioteca.
Donald fez que sim com a cabeça, deu a volta à cadeira e seguiram rapidamente pelo corredor fora. Ao fim daquele corredór, voltaram para outro que levava a outra
ala da casa. Pararam em frente da porta do elevador e Donald carregou no botão. O relógio que estava na parede ao lado da porta do elevador disse-lhes que faltavam
dez minutos para as quatro.
A discoteca estava silenciosa, só os músicos ainda lá estavam, a desligar os seus amplificadores electrónicos e a juntar os instrumentos. De certa forma, agora que
já não estavam a tocar, pareciam estranhamente desajeitados e as suas instruções monossilábicas de uns para os outros eram estranhamente sincopadas e cheias de um
formalismo arcaico.
Ângelo pôs a bebida em cima do balcão e olhou para Elisabeth. A rapariga parecia extraordinariamente pensativa e fechada em si mesma.
- Acho que somos os últimos - disse.
Elisabeth deitou uma olhadela à sala escura.
- Acho que sim.
- Você está em baixo - disse astuto.
A rapariga ficou um momento a pensar, depois acenou com a cabeça.
- É sempre assim, depois de uma coisa em grande-disse Ângelo. - Empenhamo-nos nisso e, enquanto dura, é tudo festa. Mas, no momento em que acaba...
bum! Vamo-nos abaixo.
- Preciso de tomar qualquer coisa - disse ela.
Ângelo fez sinal ao barman.
- Não - disse rapidamente. Olhou para ele.-O que eu queria era... fumar. O álcool não me ajuda, não me agrada o gosto.
- Só tenho cigarros-disse.
- Eu tenho - respondeu, abrindo a pequena bolsa de noite, para tirar dela o que parecia ser um maço de cigarros. Abriu a parte de cima da caixa e
sacudiu para fora um cigarro com ponta de cortiça. Pô-lo na boca.
Ele estendeu-lhe lume.
- Nunca tinha visto nada assim.
- É um agente que os traz do Canadá. Pode-se pedir a nossa marca preferida. Kent, Winston, L&M, Marlboro, é só dizer o nome. - Inalou profundamente
e depois riu-se. - Só que é preciso ter cuidado, não se vá oferecer algum por engano.
Ângelo sorriu.
A rapariga olhou para ele.
- Você também costuma?
- Às vezes - respondeu. - Mas não quando bebo. Não dá para misturar.
Puxou outra vez pelo cigarro. Desta vez conservou o fumo nos pulmões durante um bom bocado antes de o deitar fora. Finalmente, soprou-o para o tecto.
- Já me estou a sentir melhor.
- Óptimo.
Riu-se.
- Aliás, estou um bocado excitada. - Olhou para ele. - Mas também parece-me que tenho esse direito. Não dei nem um passo em toda a noite enquanto
todos os outros estavam nessa.
- Eu reparei - respondeu secamente.Tirou mais uma fumaça e, depois, esmagou o cigarro numa bandeja que estava no bar e pôs-se de pé. Os olhos dela
estavam de novo a sorrir.
- Okay, Sr. Perino - disse. - Estou pronta para voltar para a mansão e enfrentar a família. - Riu sem alegria. - Ou o que resta dela, quero dizer.
Ângelo pegou-lhe no braço e saíram para o jardim. As lanternas suspensas apagaram-se, mergulhando os carreiros na escuridão. Elisabeth parou de repente e voltou-se
para ele.
- Foi uma autêntica farsa, não foi?
Não respondeu.
- Sabe que a minha mãe parte amanhã para Reno para se divorciar, não sabe?
Fez que sim com a cabeça.
- Então por que raio é que eles tinham que me fazer passar por tudo isto? - explodiu. De repente, começou a chorar. Com o soluçar forte e amargo de
uma criança.
Ele tirou um lenço da algibeira e passou-lho. A rapariga comprimiu-o de encontro aos olhos e avançou para ele, escondendo-lhe a cabeça no peito.
- Que é que eles estão a tentar provar? - soluçou.
Segurava-a levemente, quase de uma forma impessoal.
- Talvez não quisessem privá-la de nada.
- Podiam ter-me perguntado - respondeu.
- Uma coisa que eu aprendi acerca dos pais, Miss Elisabeth - disse calmamente -, é que fazem sempre perguntas quando não deviam e nunca perguntam
nada quando deviam.
Parou de fungar e levantou os olhos para ele.
- Porque é que me trata por Miss Elisabeth?
Na escuridão da noite, os olhos dele brilharam, brancos.
- Porque é o seu nome. E gosto do som.
- Mas quase toda a gente me chama Betsy.
- Eu sei - respondeu.
Levou o lenço aos olhos.
- Estou bem?
- A mim parece-me muito bem.
- Espero não ter borrado a pintura dos olhos. Não quero que ninguém saiba que estive a chorar.
- Não borrou - disse.
- Óptimo. - Devolveu-lhe o lenço. - Obrigada.
- De nada - respondeu, pondo-o novamente no bolso.
Caminharam um momento em silêncio, de mão dada. De repente,
a rapariga parou e olhou para ele.
- Acredita na astrologia?
- Ainda não cheguei a uma conclusão - respondeu.
- Eu acredito - disse com firmeza. - Mandei fazer há pouco tempo o meu horóscopo. Você é Touro não é?
- Como é que sabe? - sorriu. A verdade é que não era. Era Leão.
- Não podia deixar de ser! - disse cheia de excitação. - Estava tudo no meu horóscopo. Está previsto que eu ia encontrar um homem mais velho, que
esse homem era Touro e que eu o gramava à farta.
Riu-se alto.
- E grama?
Um sorriso maléfico bailou-lhe nos lábios.
- Não quer que eu vá agora transformar o meu "horóscopo numa mentira, pois não?
- Miss Elisabeth - sorriu.-É a última coisa que eu desejava fazer.
Abruptamente pôs as mãos sobre a cara dele e, pondo-se em bicos de pés, beijou-o. Depois, a boca dela tornou-se quente e abriu-se e o corpo comprimiu-se-lhe de encontro
ao dele. Os braços de Ângelo apertaram o corpo dela com força, quase a sufocando, depois, largaram-na com a mesma rapidez com que a tinham agarrado.
Olhou para ela, quase chocado com a sua própria reacção inesperada ao gesto dela.
- Porque é que você fez isso?
Sorriu, num sorriso secreto e, de repente, deixou de ser uma criança.
- Agora já pode parar de me chamar Miss Elisabeth - disse.
Número Um entrou na biblioteca pela porta do elevador. Um barman solitário estava ocupado a limpar os resíduos da festa. Levantou os olhos quando os viu.
- Não arrume o uísque - disse o Número Um.
- Sim, Sr. Hardeman -O barman pegou numa garrafa de uísque canadiano e pô-la em cima do bar.
Número Um voltou-se para Donald.
- Vê onde estão os meus netos e traz-mos aqui. Todos. A Betsy também.
Donald hesitou.
- Vamos, faz o que te disse! - atalhou o Número Um.
Donald continuou hesitante.
- O senhor não vai beber, pois não?
- Não, que raio! - berrou Número Um. - Julgas que estou doido varrido? Vai mas é buscá-los!
?-Sim, senhor.
Alicia foi a primeira a entrar na biblioteca.
- Não sabia que o avô ainda estava acordado.
- Não conseguia dormir - disse. - Além disso, pensei que, pelo menos uma vez esta noite, devíamos estar todos juntos. Onde é que está o Loren?
- Não sei - respondeu. - Já há várias horas que não o vejo.
- O Donald vai à procura dele.
Igor e Anne foram os próximos a entrar.
- Avô - disse Anne atravessando a sala em direcção a ele.
Levantou a mão para a interromper.
- Já sei - disse -, não sabias que eu ainda estava acordado.
- Sente-se bem?
- Nunca me senti melhor - disse o velho. Levantou os olhos quando Elisabeth e Ângelo apareceram à porta. Fez um gesto em direcção a ela.
- Entra, minha filha.
Betsy correu para junto dele.
- Bisavô! Não pensei que o fôssemos ver esta noite! - Havia um tom de genuína satisfação na voz dela.
O velho sorriu-lhe.
- Não queria perder a oportunidade de te ver, especialmente esta noite.
- Bisavô, é um amor! - beijou-o na cara.
Viu Ângelo começar a afastar-se.
- Ângelo! - chamou, da cadeirinha de rodas. - Por favor, faz-nos companhia.
Ângelo hesitou.
- Sim, por favor, Ângelo - disse Betsy rapidamente. Eu sei que o bisavô o considera como fazendo parte da família.
Número Um olhou para ela e, depois, para Ângelo. Sorriu.
- O convite é oficial.
Ângelo voltou para a sala. Donald apareceu à porta atrás dele.
- Não consigo encontrar o Sr. Loren em parte nenhuma, Sr. Hardeman - disse.
-Tem que estar por aí - disse Ângelo. - Combinámos encon- trar-nos aqui depois da festa. Vou ajudá-lo a procurar.
- Não precisam de se incomodar. - A voz de Loren veio da porta do terraço que estava aberta. Entrou na sala. - Você está meia hora atrasado, Ângelo
- disse.-Eu tinha-lhe dito que nos encontrávamos às três e um quarto.
- Desculpe - disse Ângelo. -- Acho que perdi a noção das horas.
Loren deitou-lhe um olhar duro e, depois, voltou-se para o avô.
- Agora já estamos todos aqui, avô. Qual era a sua ideia?
Número Um levantou os olhos para ele.
- Pensei, uma vez que esta pode muito bem ser a última vez que nos juntamos todos nesta casa, que seria agradável tomarmos uma bebida juntos.
Loren fez que sim com a cabeça.
- É um gesto bonito e sentimental. - Voltou-se para Alicia. - Aposto que nunca terias pensado que o meu avô gostava tanto de ti que te quisesse oferecer
um brinde de despedida.
A voz de Número Um tornou-se, de repente, gélida.
- O facto de seres meu neto não te dispensa de seres bem educado. Acho que tens obrigação de pedir desculpa à Alicia.
- Eu não tenho de lhe pedir nada! -disse Loren furioso. - Ela que se contente com tudo o que já levou de mim.
A voz do velho tornou-se ainda mais fria.
- Não admito que se fale dessa maneira a uma Hardeman.
- Daqui a umas semanas já deixa de o ser - retorquiu Loren.
- Mas, neste momento, ela ainda é a tua mulher - atalhou o Número Um -, e palavra de honra, tens que a tratar com respeito, se não...
- Se não o quê, avô? - perguntou Loren sarcástico. - Risca-me do seu testamento?
-? Não - disse o velho calmamente. - Posso fazer melhor do que isso, risco-te da minha vida.
Fez-se um longo silêncio na sala, enquanto olhavam para os olhos uns dos outros. Loren baixou os seus.
- Peço desculpa - murmurou em voz baixa.
- Barman - Número Um fez voltar a cadeira.-Sirva uma bebida a cada um.
Mantiveram-se silenciosos enquanto o criado enchia copos e os passava em volta. Depois, voltaram-se para Número Um.
Ele levantou o seu.
- Em primeiro lugar, à debutante. Que viva muitos e felizes anos.
Chegou o álcool aos lábios enquanto todos bebiam e, depois, ergueu de novo o copo.
- Há uma coisa que tenho que lhes dizer - coninuou.-Esta foi a última festa dada na mansão Hardeman. Quando a vossa avó e eu construímos esta casa,
sonhávamos que pudesse, um dia, encher-se com o riso e o som da nossa família. Mas acabou por não ser bem assim. Creio que nenhum de nós alguma vez pensou que os
nossos filhos seguissem o seu próprio caminho e fizessem a sua própria vida. Talvez fosse uma tolice nossa sonhar com tal coisa, mas, agora que os sonhos se desfizeram,
já não a quero para nada.
Amanhã a mansão Hardeman será fechada. No decorrer das próximas semanas, algumas coisas pessoais serão levadas para Palm Beach e, no início do próximo mês, o Estado
de Michigão tomará conta da casa, para fazer dela o que quiser. Foi por isso que quis que esta última festa se realizasse aqui. Para sentir, uma vez mais, esta casa
viva e com gente.
Número Um olhou em volta. Levantou o copo.
- À mansão Hardeman, à minha mulher, a todos os meus filhos e a ti.
Levou o copo aos lábios, hesitou um momento, depois deixou cair o álcool pela garganta abaixo. Tossiu uma vez, com as lágrimas a subirem-lhe aos olhos, depois sorriu.
-Não ponham esse ar tão triste, meus filhos - disse com aspereza. - Isto só serve para lhes provar até onde pode ir um velho, para arranjar uma desculpa para beber
um uísque!
CAPÍTULO 13
A voz de Dan Weyman era seca e inexpressiva.
- O que você está a fazer, Ângelo, é pedir-nos que deitemos fora a água suja antes de nos limparmos. Isso não me parece um bom negócio.
- Então passamos sede - disse Ângelo. - Mas tenho a certeza de que conseguimos o que precisamos.
- A certeza? - A voz de Weyman permanecia inalterável. - Entre a nova fábrica na Costa e a investigação, já investimos mais de sessenta milhões de
dólares e ainda nem sequer temos uma ideia de como será o nosso novo carro.
- Talvez - replicou Ângelo. - Mas sabemos como é que ele não será. E isso já é um passo na boa direcção.
- É um passo negativo - disse Dan. - O que temos que levar ao conselho de administração é qualquer coisa de positivo. - Olhou por cima da mesa para
Loren que se mantivera em silêncio. - Eu, pela minha parte, não posso secundar a ideia de Ângelo de pôr de lado o Sundancer por um carro que ninguém conhece e que
talvez nunca se venha a construir. Meio pão é melhor do que nada e, se deixarmos passar um ano, sem aparecer com um carro novo, podemos nunca mais conseguir entrar
no mercado.
- Segundo os números que me deu - disse Ângelo-, esse meio pão custou-nos quarenta e um milhões o ano passado. Sendo assim, se desistirmos do carro,
teremos pago num só ano o investimento inicial da nova fábrica.
- Fiz notar que era um prejuízo extraordinário - disse Dan. - Cerca de metade foi devida à impossibilidade de arranjar mercado para o Sundancer Super
Sport.
Ângelo preferiu não mencionar que tinha sido ele o único membro do conselho a pronunciar-se contra o carro super rápido e que tinha previsto com justeza a reviravolta
do mercado.
- Deixe-me só recapitular as suas recomendações para as perceber melhor -disse Loren. Pôs as palmas da mão juntas em cima da mesa, com ar judicioso
e ficou a estudá-las. - Segundo as suas recomendações, a linha de produção do Sundancer devia ser convertida numa linha de produção destinada ao motor e à transmissão
do novo carro, de forma a criar mais espaço na Costa para a montagem final. Está correcto?
Ângelo fez que sim com a cabeça.
- E já pensou nas despesas resultantes do envio de tais peças para a Costa, para, no fundo, se fazer o seu reembarque, juntamente com os carros completos,
novamente para Leste, para o mercado? Não representaria isso um desperdício em gastos adicionais?
Ângelo acenou de novo com a cabeça.
- É possível. Talvez fosse preferível enviar as carcaças destinadas ao mercado leste para Detroit, para serem montadas aqui, se conseguirmos arranjar
espaço para isso. Ainda não sei e só posso vir a saber quando o carro tiver sido desenhado e aprovado. Nessa altura, poderemos refinar os métodos de produção.
- Não consigo perceber a sua pressa em pôr de lado o Sundancer- disse Loren.
Ângelo olhou para ele.
- Porque é um carro do passado e eu quero criar uma imagem completamente nova. Um ponto de vista que seja o reflexo do mercado actual, tanto no que
diz respeito à sua atitude como às suas preocupações.
- Já falou no assunto ao Número Um? - perguntou Loren.
- Ainda não - disse Ângelo.
- Acha que lhe vai agradar a ideia de parar com a produção do Sundancer? -perguntou Loren.- No fim de contas, foi esse carro que lançou esta companhia.
- Não creio que a ideia lhe agrade - respondeu Ângelo.
- Então porque não tenta arranjar um compromisso, uma solução intermédia, qualquer coisa que lhe seja mais fácil a ele aceitar?
Ângelo olhou para ele.
- Porque não foi isso que ele me pediu que fizesse. Ele pediu-me que construísse um carro novo que pudesse levar esta companhia
outra vez à posição que ocupava anteriormente na indústria automóvel. Foi isso que ele me pediu para fazer e é isso que estou a tentar fazer. Não me pediu que fizesse
com que ele gostasse.
--Conheço o meu avô - disse Loren. - E a minha sugestão é que fale com ele antes da reunião.
- Tenciono fazê-lo. - Ângelo pôs-se de pé. - Muito obrigado, meus senhores. Vemo-nos à tarde.
Ficaram a ver a porta fechar-se atrás dele e, depois, olharam um para o outro.
- Que é que lhe parece? - perguntou Dan. - Estará a esconder-nos alguma coisa? Talvez os planos para o novo carro?
- Não sei - disse Loren, pensativo. - Palavra que não sei.
-'Fala com muita segurança para um homem que não sabe o que está a fazer.
Loren olhou para o amigo.
- Não faça o mesmo erro que eu fiz uma vez.
- Que é que quer dizer? - perguntou Dan arrufado.
- Já uma vez pensei que ele não sabia o que estava a fazer e você viu o que aconteceu. Na sua maneira calma e maquiavélica, quase nos destruiu. -
Pegou num cigarro e acendeu-o. - Não estou disposto a deixá-lo tentar outra.
- Então que é que vamos fazer? - perguntou Dan.
- Ficamos quietinhos à espera - disse Loren. - Ele é que tem que provar o que é capaz de fazer. Nós não temos nada a provar. Do nosso lado o negócio
está a dar para todos nós.
Quando voltou ao escritório tinha em cima da secretária um recado para telefonar a John Duncan, na Costa. Pegou no telefone e esperou que a telefonista fizesse a
ligação.
A voz do velho escocês surgiu vibrante através das linhas.
- Que tal a festa, moço?
- Óptima - respondeu Ângelo com secura. - Mas não deve ter sido para saber isso que me telefonou.
Duncan riu-se.
- Onde é que anda o teu sentido de humor, Ângelo?
- Foi-se - atalhou Ângelo. - Juntamente com oito horas de sono a menos. Que é que se passa?
- Preciso do teu okay para fazer um trabalho na turbina do meu motor a gasolina.
- Já acabou os testes com o Wankel japonês?
- Ainda não. Mas já sabemos que é bom. Muito bom.
- Então, talvez possamos entrar num acordo.
- Não temos qualquer hipótese. Primeiro, eles estão a pensar entrar em força no mercado americano no próximo ano; segundo, a Ford já anda a fazer
tudo para apanhar uma participação da Toyo Kogyo e eles estão lá dentro. E ainda com a GM a fazer os seus próprios acordos com os alemães, o melhor é esquecermos.
Aplicam-nos com direitos que nos põem fora do mercado.
Ângelo ficou silencioso.
- Tenho estado a analisar a turbina com o Rourke - disse Duncan. - Gostávamos de fazer umas experiências com moldes de titânio e aço. Temos a impressão
de que conseguimos fazer com que aguentem o calor e o esforço tão bem como as ligas de níquel e carbono. Se assim for, poderá ser uma maneira de diminuir os custos.
- Okay - disse Ângelo -, tentem. - Pegou num cigarro. - Já tem o relatório aerodinâmico sobre os desenhos?
- Não - disse Duncan. - Temos os modelos de lado no túnel de vento, para ver o que é que vai ceder primeiro, mas ainda não sabemos nada deles.
- Mantenha-me ao corrente - disse Ângelo.
- Está bem, moço. - Duncan hesitou um momento.-Diz-me, que tal achas o Número Um?
- Óptimo.
- Já lhe falaste no Sundancer?
- Não - respondeu Ângelo. - Vou tentar chegar à fala com ele antes da reunião.
- Boa sorte, Ângelo - disse Duncan.
- Obrigado, para si também. - Ângelo pousou o auscultador. Tocou de novo. Levantou-o.
- Lady Ayres em linha - disse a secretária.
Ligou.
- Olá, Bobbie.
- Podias ter-me telefonado, Ângelo - a voz dela tinha um vago tom de censura.
Ângelo riu-se.
- Pára de brincar comigo. Um simples vice-presidente não telefona à prometida do patrão.
Ela riu-se.
- Agora és tu que estás a entrar comigo. Pensei convidar-te para almoçar.
- Adorava - disse ele. - Mas vou ter uma tarde horrível. Pensei comer uma sanduíche, aqui mesmo, sentado à secretária.
- Tem piada - respondeu. - É exactamente o que o Loren me disse. Isso é costume dos administradores americanos? Um sinal de eficiência ou coisa assim?
- Para ser franco, não sei - respondeu.
- Então vem até cá acima - respondeu. - Prometo que não te como.
- Promessa errada - riu-se.
- Vem até cá - disse ela - e eu prometo que te dou a minha última descoberta americana para o almoço.
-E o que é?
- Sanduíche de herói - respondeu.
Riu em voz alta.
- Subo já. Não há dúvida que sabes como é que se chega ao coração de um italiano.
- Toma o último elevador - disse. - Vou ligar o interruptor para ele vir direito cá acima.
Bobbie estava à porta quando ele saiu do elevador. As portas fecharam-se atrás dele e ficaram ali, um momento, em silêncio, só a olhar um para o outro.
- Não passo de um pássaro numa gaiola dourada - cantou ela numa voz de cana rachada. Tentou sorrir, mas não conseguiu. Depois, correu para os braços
dele e ficaram muito quietos durante um grande ibocado.
Em seguida, ela deu um passo para trás e levantou os olhos.
- Emagreceste.
- Um bocado.
--Tenho sentido a tua falta.
Não respondeu.
- Senti mesmo a tua falta - disse ela.
Continuou silencioso.
- Não fazes ideia do que é estar aqui metida. Havia alturas em que pensei que endoidecia.
- Podias ter saído a todo o momento - disse. - Não estavas amarrada. - Voltou-se e carregou no botão para chamar o elevador.
Onde é que vais?
- Outra vez para baixo - respondeu. - Para começar, foi uma estupidez minha ter vindo aqui. - As portas abriram-se e ele meteu-se no elevador.
Ela pôs uma mão na porta para não a deixar fechar.
- Fica.
Ângelo sacudiu a cabeça.
- Se fico, posso estragar-te tudo. É isso que tu queres?
Ficou a olhar para ele.
- É isso? - repetiu.
Ela deixou cair a mão que tinha na porta. Viu-a voltar-se e ir para dentro, enquanto as portas se fechavam num rompante. Devagar, o elevador começou a descer.O Número
Um estava sentado, calado, à cabeceira da comprida mesa da direcção.
- Então, estamos todos de acordo, meus senhores - disse.
- Aprovamos a produção do Sundancer até Abril de 71 e se, até essa data, o Sr. Perino tiver concluído planos satisfatórios para o novo carro, faremos
uma moção com vistas à mudança.
Olhou para Ângelo.
- Parece-te aceitável?'
- Não senhor - disse Ângelo com firmeza. - Mas tenho alguma opção? " *
- Não:-respondeu Número Um.
- Então, há só mais um aspecto que gostaria de levar à atenção da mesa - disse Ângelo. - Tinha estabelecido como alvo para a produção e venda do novo
carro quinhentas mil unidades no primeiro ano. Aquilo que estão a fazer é tornar essa meta impossível de alcançar, mesmo por metade, pela simples razão de que esse
vai ser o tempo necessário para modificar a velha linha de montagem.
- Vamos tomar nota disso nas actas - disse o Número Um.
- Nesse caso, não havendo mais nada a apresentar à mesa desta assembleia, declaro a sessão encerrada.
A campainha da porta conseguiu finalmente penetrar-lhe no sono. Abriu os olhos e precisou de alguns momentos para compreender que estava na sua suite do Pontchartrain.
Saiu da cama e avançou a cambalear através da sala, até à porta, que abriu.
Era Betsy. Não teria conseguido dizer qual dos dois parecia mais surpreendido.
- Peço que me desculpe - disse a rapariga-, não pensei que já estivesse deitado tão cedo.
- Estava completamente arrumado - disse como que embriagado. - Nos últimos três dias dormi, ao todo, quatro horas.
- Peço-lhe desculpa.
- Não peça mais desculpas. Acaba por me fazer sentir culpado. Vamos, entre.
Seguiu à frente até à sala.
- Que horas são? - perguntou.
- Umas dez e meia.
Apontou para o bar.
- Sirva-se de uma bebida enquanto vou pôr o roupão.-Enca- minhou-se para o quarto, com as calças do pijama a flutuarem-lhe de encontro às pernas.
Quando voltou, encontrou-a a beber Coca Cola num copo alto atafulhado de cubos de gelo. Aproximou-se do bar e preparou um uísque canadiano com água. Voltou-se para
olhar para ela, enquanto bebia longamente do copo que acabava de preparar.
- Então, Miss Elisabeth - disse num tom pesado-, em que posso ser-lhe útil?
Olhou para ele um momento, depois baixou os olhos.
- Preciso que me faça um favor - disse-, um favor muito importante.
Ele bebeu novamente um longo trago.
- E do que é que se trata?
Os olhos da rapariga procuraram os dele.
- Você vai pensar que eu sou pateta, que estou com uma pedrada ou qualquer coisa assim.
-Não penso nada.
- Ângelo-disse com voz fraca.
- Sim? - disse, começando a ficar irritado.
Elisabeth hesitou um momento.
Sim? - repetiu.
- O meu horóscopo diz que tudo se vai concretizar hoje.
- Tudo o quê?
- Você já sabe - explicou. - Você e eu. Touro e Virgem.
- Oh, claro,-disse ele completamente espantado.
- Então, está tudo arranjado - respondeu sorrindo. Pôs o copo em cima do bar. - Podemos ir para a cama. - Passou-lhe os braços em volta do pescoço.
- Espere aí um bocadinho!-protestou.-Será que eu não tenho uma palavra a dizer no meio de tudo isto?
- Não propriamente - respondeu-, está tudo escrito nas estrelas.
- Mas eu não sou Touro - disse.-Sou Leão!
Uma expressão magoada surgiu nos olhos dela.
- Que é que há, Ângelo? - perguntou. - Não queres casar comigo?
LIVRO 3
1971
CAPÍTULO 1
O silêncio caiu sobre a pequena sala de audiências do velho edifício de madeira que servia de tribunal regional na pequena cidade a meio caminho entre Seattle e
Spokane. Silenciosamente, o júri dos casos de homicídio desfilou para dentro da sala e ocupou os seus lugares nas cadeiras de madeira colocadas perto da mesa que
servia de bancada ao juiz de instrução. O juiz, um homem alto com a cara marcada pelas intempéries, avançou para a sua cadeira e sentou-se. Depois, fez um aceno
para o oficial de diligências.
Este voltou-se para a sala.
- Está aberta a sessão para ouvir os depoimentos relativos à causa da morte de um certo Sylvester Peerless enquanto guiava um carro de ensaio ao serviço
da Bethlehem Motors Company. -Olhou, de relance, para uma folha de papel que tinha na mão. - O tribunal chama Miss Cindy Morris como testemunha.
Cindy voltou-se na cadeira e olhou para Ângelo.
- Estou nervosa. Que é que eu lhes digo?
Ângelo tranquilizou-a.
- Diz-lhes a verdade. Assim, nada te pode acontecer de mal.
A rapariga pôs-se de pé. Um murmúrio de apreço percorreu
a pequena sala, enquanto ela se encaminhava para a cadeira das testemunhas. O fato-macaco justo ao corpo, com as palavras BETHLEHEM MOTORS atravessadas nas costas,
não deixava a ninguém a ilusão de que não fosse uma rapariga.
O oficial providenciou rapidamente o juramento e perguntou-lhe o nome.
- Cindy Morris. .
- Sente-se, se faz favor - disse e regressou também à sua
cadeira.Ela sentou-se e o delegado do ministério público pôs-se de pé. Como todos os homens naquela região do país, era um homem alto que dava a impressão de ter
saído de um anúncio da Marlboro. Mas o aspecto de quem estava em contacto com a natureza não contribuía para esconder a inteligência viva dos olhos cinzentos.
Parou em frente dela. Tinha uma voz macia com um sotaque do Oeste, enganosamente brando.
- Que idade tem, Miss Morris?
- Vinte e quatro - respondeu.
- Vinte e quatro - repetiu, acenando com a cabeça.
- Sim.
- É empregada da Bethlehem Motors?
- Sim.
- Com que funções?
- Piloto de ensaio e consultante de design.
- Explique, por favor, as suas atribuições.
- Guio os carros e passo as minhas informações ao chefe da secção de desenho e engenharia, apresentando o ponto de vista de uma mulher relativamente
aos carros.
- Há quanto tempo está contratada para fazer esse trabalho junto da Bethlehtem Motors?
- Cerca de ano e meio.
- Quantos carros já guiou e experimentou, entretanto?
- Cerca de dezanove.
- Considera o seu trabalho perigoso?
- Não propriamente.
O procurador olhou para ela.
- É uma resposta curiosa. Que é que quer dizer com isso?
- Sinto-me muito mais segura a guiar um carro numa pista de ensaio, onde são tomadas todas as medidas de segurança possíveis, do que no meio do trânsito
normal de todos os dias.
Ficou um momento silencioso, depois fez que sim com a cabeça.
- Estou a ver. - Encaminhou-se novamente para a mesa e pegou numa folha de papel. Segurando-a na mão, dirigiu-se de novo até junto da rapariga.
- Conhecia, o falecido condutor, Sylvester Peerless?
- Sim.
- De que rmaneira?
- Éramos bons amigos.
O procurador olhou para o papel.
- Tenho acqui uma cópia da ficha de entrada do Starlight Motel. Diz, passo a citar: "O senhor e a senhora Sylvester Peerless, Tarzana, Califórnia."
À ffrente, entre parêntesis, vem "Cindy Morris". Alguma vez foi casada com o Sr. Peerless?
- Não.
- Então como é que explica o registo?
- Já lhe disse que éramos bons amigos. Ficávamos no mesmo quarto. Não sabia como é que o Fearless nos registava.
O procurador sorriu.
--Quer dizer que eram companheiros de quarto e mais nada?
Cindy sorriu-lhe também, ao mesmo tempo que todo o seu nervosismo desaparecia completamente. Este tipo de conversa já ela percebia.
Eu não disse nada disso. O senhor é que disse. Se quer saber se o Fearless e eu alguma vez tivemos relações sexuais, porque é que não pergunta?
- E tiveram? - ripostou o procurador.
- De tempos a tempos - respondeu calmamenfe. - (guando nos apetecia.
O procurador ficou imóvel, em silêncio. Depois, encolheu os ombros e dirigiu-se novamente para a mesa. Pousou a folha de papel e voltou-se para a rapariga.
- Estava presente na pista de ensaios no dia em que o sinistrado encontrou a morte?
- Sim.
- Houve alguma coisa fora do habitual nas circunstâncias daquele dia?
- Sim.
- O que foi?
- Fearless encontrou a morte.
Uma pequena onda de riso percorreu a sala. O procurador fez uma cara séria e esperou que passasse.
-Houve mais alguma coisa?
A rapariga ficou um momento a pensar.
- Acho que não. Isso já foi bastante fora do habitual.
Novamente os risos. Novamente o procurador esperou que
passassem.
- O que eu quero dizer - explicou - é se houve alguma coisa fora do vulgar no funcionamento do carro que ele estava a testar?
- Acho que não - respondeu. - Passei-lhe o carro depois das minhas duas horas e estava a funcionar perfeitamente.
- Ele disse-lhe alguma coisa que pudesse denotar preocupação quanto ao funcionamento do carro?
- Não.
- Nessa altura ele disse-lhe alguma coisa?
- Sim, disse.
- O quê?
- Fez uma observação. Uma piada. Sabe como é.
- Não, não sei - disse o procurador.
- Uma piada particular - disse desconfortável. Olhou em volta da sala. - O género de coisa que não se diz em público.
- Que foi que ele disse? - insistiu o procurador.
Corou e pôs-se a olhar para o chão. Falou em voz baixa.
- Disse que se sentia tão teso que só esperava que o sexo não lhe ficasse preso ao volante.
A cara do advogado ruborizou-se quando um murmúrio se espalhou pela sala.
- Disse-lhe alguma coisa a ele?
--O que digo sempre.
- E o que foi?
- Guia com cuidado.
O advogado ficou silencioso.
- Que é que queria dizer com isso?
- Nada - respondeu. - Digo sempre isso quando alguém se senta ao volante de um carro.
- Não teria usado essa frase para indicar qualquer coisa especial que pudesse não estar bem no carro que acabava de guiar?
- Não - respondeu -, digo sempre isso.
- Presenciou o acidente?
- Não, não presenciei - disse. - Voltei para o motel e fui dormir.
O procurador olhou para ela um momento e, depois, dirigiu-se de novo para a mesa.
- Não tenho mais perguntas a fazer à testemunha.
O juiz inclinou-se sobre a mesa.
- Tem alguma ideia ou opinião sobre aquilo que poderia ter causado o acidente que terminou com a morte do Sr. Peerless?
- Não, senhor, não tenho - respondeu Cindy.
- Segundo creio, o carro dispunha de um novo tipo de motor - disse o juiz. - Uma turbina a gasolina. Segundo parece, esse tipo de motor pode explodir
sob certas condições. Acha que pode ter acontecido qualquer coisa desse tipo, provocando o acidente?
Cindy olhou para ele, pensativa.
- É possível, mas duvido. Esse motor já tinha feito mais de quarenta e oito mil quilómetros e, se tivesse que explodir, já o teria feito há muito
tempo.
- Mas isso era possível? - insistiu o juiz.
A voz de Cindy era calma.
- Não sei. Mas não é essa a finalidade deste tribunal? Determinar aquilo que aconteceu?
O juiz olhou para ela. Quando falou, a voz dele era fria.
- É isso mesmo que tencionamos fazer, minha senhora. - Deitou um olhar ao júri. - Têm mais alguma pergunta a fazer?
Um murmúrio de "nãos" saiu dos jurados e o juiz voltou-se de novo para Cindy.
- É tudo, Miss Morris. Obrigado, pode ir-se embora.
A sala manteve-se em silêncio enquanto Cindy regressou ao seu lugar. Uma vez sentada, olhou para Ângelo.
- Fui bem?
Deu-lhe uma palmadinha na mão.
- Foste óptima.
- O filho da puta - murmurou. - Não tinha nada que me fazer aquelas perguntas todas.
- Disseste-lhe a verdade - disse Ângelo. - Não te preocupes.
A voz do oficial de diligências atravessou a sala. *
- Sr. John Duncan, queira aproximar-se para depor.
O escocês pôs-se de pé. Ninguém diria que tinha sessenta e cinco anos ao vê-lo caminhar firmemente para junto do oficial e fazer o juramento.
- O seu nome, por favor? - perguntou o homem.
- John Angus Duncan - respondeu e sentou-se.
O promotor público levantou-se e dirigiu-se para ele.
- Quer fazer o favor de nos dizer qual era a sua posição na Bethlehem Motors.
- Vice-presidente, departamento de engenharia.
- Há quanto tempo tem esse cargo?
- Um ano e meio.
- E antes disso?
- Fui, durante vinte anos, vice-presidente da produção automóvel da mesma companhia. Aos sessenta anos reformei-me. Dois anos depois passei novamente
a fazer parte da companhia com o cargo actual.
- Quer fazer o favor de definir as suas atribuições actuais?
- Estou encarregado da parte de engenharia do projecto Betsy.
-'O que é o projecto Betsy?
- Construção e estudo de um novo carro presentemente a ser considerado pela companhia.
- Pode desenvolver essa afirmação?
- Não. - O escocês mostrou-se frio. - Isso seria o mesmo que revelar informações confidenciais que são propriedade da firma.
O promotor público deitou uma olhadela aos seus apontamentos.
- Tenho informação de que o senhor detém certas patentes ligadas a um motor a turbina. É verdade?
- Sim - Duncan acenou com a cabeça. - Gostava de salientar que essas patentes são propriedade conjunta com o meu patrão.
?- É esse motor que foi usado no veículo no qual o Sr. Peerless encontrou a morte?- Uma variante desse motor.
- Pode desenvolver essa afirmação?
- Não - a voz de Duncan era firme. Pela mesma razão que já invoquei anteriormente e ainda pelo facto de que certas patentes estão ainda pendentes
e isso seria dar informações à concorrência.
O promotor público voltou à sua mesa.
- O senhor estava presente na altura em que o Sr. Peerless encontrou a morte?' perguntou.
- Sim, estava.
- Pode falar-nos disso?
O Sr. Feerless entrou na curva número quatro a uma velocidade de duzentos e dez quilómetros por hora, apesar de nós o termos prevenido e saiu da pista, indo embater
no muro.
Diz que ele foi prevenido. Como foi isso feito?
Estamos em comunicação constante, pela rádio, com o condutor do carro.
Conseguiu analisar a velocidade do carro?
Sim. Os nossos carros de ensaio estão equipados com aparelhos radiossensor-gs que emitem informações constantes para um computador de controlo que regista o comportamento
de todas as partes do carro.
Seria possível nós vermos esse registo?
Não replicou Duncan. - Pelas razões que já anteriormente mencionei.
Mas os seus sensores indicaram que não havia nenhuma falha mecânica no carro?
O carro escava a trabalhar perfeitamente.
- Tem alguma gravação dos seus avisos ao Sr. Peerless?
Sim. Há uma fita gravada com essa comunicação.
- É possível nós ouvirmo-la?
Duncan olhou para Ângelo, do outro lado da sala. Ângelo voltou-se para Roberts que estava sentado ao lado dele. O procurador fez que sim COm a cabeça.
- Sim - disse Duncan. - Tenho um leitor na pasta que deixei no meu lugar e posso fazê-lo ouvir a fita já de seguida.
O juiz inclinou-se para a frente.
- Sr. Oficial de diligências, queira fazer o favor de ir buscar a pasta do Sr. Duuncan.
O oficial trouxe a pasta a Duncan. O escocês abriu-a e tirou para fora um leeitor de cassettes. Olhou interrogativamente para o juiz.
- Está certo Sr. Duncan. Pode pô-lo em cima da mesa, à minha frente.
Duncan pôs-se de pé e colocou a pequena máquina em cima da mesa. Carregou no botão. Um vago zumbido encheu a sala. Fez aumentar o volume. O zumbido tornou-se mais
forte.
- Não ouço o ruído de nenhum motor - disse o juiz.
- Faz muito pouco ruído - disse Duncan. - É um motor a turbina e o nível sonoro é desprezível comparado com o do motor normal. Os únicos ruídos de
fundo que ouve são o vento e os pneus.
Uma voz de homem surgiu da gravação.
- Estou a ler duzentos e dezassete no velocímetro. Verifique. Terminei.
A voz de Duncan surgiu na fita. 0
- Dois, um, seis vírgula nove, nove, sete, verifiquei. Melhor começar a abrandar. Está a aproximar-se do número quatro. Terminei.
Por momentos, não se ouviu nada a não ser o zumbido de fundo da fita, depois, a voz de Duncan fez-se ouvir outra vez.
- Estamos a ler dois, quinze vírgula um, dois, cinco. Fá-lo abrandar. Está-te a faltar o tempo. Terminei.
Fez-se silêncio de novo. Depois, veio a voz de Duncan. Desta vez tinha um tom de premência.
- Duncan a Peerless. Estamos a ler dois, catorze vírgula zero, cinco, zero. Abrande! É uma ordem! Terminei.
Silêncio. A voz de Duncan, áspera e zangada.
- Você está doido, Peerless? Abrande antes que se mate! Terminei.
Depois surgiu a voz de Peerless. Riu-se.
- Não seja velho rabujento. Eu aguento-o.
A voz de Duncan sobrepôs-se-lhe.
- Só tem quatro por cento. Não consegue!
- Você não tem confiança na sua própria máquina, meu velho - riu Peerless.-Deixe-a com o Fearless Peerless. Eu sei o que estou a fazer. Eu guio com
os anjos.
Por momentos não se ouviu nada a não ser um guinchar vago, depois, um estalido fraco e, finalmente, nada. Silêncio completo.
Fez-se silêncio total na sala quando Duncan estendeu a mão e desligou a máquina. Olhou para o juiz.
O juiz pigarreou.
- Conseguiram ouvir? - perguntou ao júri.
O primeiro jurado pôs-se de pé.
- Sim.
O juiz voltou-se para Duncan.
- Mencionou um grau de quatro por cento naquela curva. Qual a velocidade que considerava segura? Máxima?
- Duzentos.
- Havia alguns sinais de aviso nesse sentido?
- Sim, senhor. De duzentos em duzentos metros a começar três quilómetros antes da curva.
- Então, calcula que o Sr. Peerless entrou nessa curva a noventa quilómetros por hora a mais em relação à velocidade máxima prevista.
- Sim, senhor.
- Pode dizer-me em que momento é que o motor explodiu?
- O motor não explodiu - disse Duncan.
O procurador atalhou.
- Mas houve testemunhas que afirmaram que houve uma explosão seguida de incêndio. Como é que explica isso, Sr. Duncan?
O escocês voltou-se para ele.
- A explosão não foi no motor. Foi no depósito de combustível onde a ignição foi provocada por uma faísca electrostática quando o depósito estalou
e se abriu.
- Seria, então, possível que houvesse qualquer defeito no depósito?
- Não havia defeito nenhum no depósito. Foi equipado e construído segundo todas as medidas de segurança conhecidas do homem. Mas não existe nada na
nossa tecnologia actual que nos permita construir um tanque capaz de resistir ao impacte a duzentos quilómetros por hora.
- Como é que pode ter a certeza de que foi o depósito de combustível e não o motor?
- Porque temos o motor em nosso poder. Está amachucado e não vai ser possível repará-lo, mas está inteiro. Se tivesse explodido, ter-se-ia espalhado
em toda a volta.
O promotor público fez que sim com a cabeça e voltou para o seu lugar. O juiz olhou para o júri.
- Há mais alguma pergunta?
O primeiro jurado pôs-se de pé, hesitante.
- Eu também conduzo, Sr. Duncan. E devido ao alto rendimento do seu motor suponho que têm que usar uma gasolina com muitas octanas. Era esse tipo
de gasolina que estavam a usar?
- Não, senhor - disse Duncan. - Essa é uma das vantagens do motor a turbina. Não é necessário usar gasolina especial para conseguir o máximo de eficiência.
- Que espécie de gasolina estavam, então, a usar? - perguntou o primeiro jurado.
- Não usámos gasolina.
- Então que é que usaram?
- Petróleo - respondeu Duncan.
- Obrigado - o primeiro jurado acenou com a cabeça e sen- tou-se.
O juiz inclinou-se por cima do banco.
- Sr. Duncan, acha que, se tivesse usado gasolina em vez de petróleo, a explosão e o fogo que se lhe seguiu podiam ter sido evitados?
- Naquelas circunstâncias, não - Duncan estava muito senhor de si.-Na realidade, teria havido ainda maior probabilidade de explosão e de fogo. A percentagem
de octanas da gasolina dá a medida da sua combustibilidade, por isso, quanto maior a percentagem, mais combustível se torna.
O juiz percorreu a sala com os olhos e depois fixou-os novamente no escocês.
- Parece não haver mais perguntas. Muito obrigado, Sr. Duncan. Pode retirar-se.
A sala ficou em silêncio enquanto o escocês regressava ao seu lugar. Ângelo apertou-lhe a mão e Cindy beijou o velho na cara.
- O senhor foi maravilhoso - disse a rapariga.
O escocês corou, satisfeito.
- Mas continuo zangado - murmurou. - O que eu quero saber é quem foi que nos meteu nisto?
- Havemos de descobrir - disse Ângelo calmamente. - Primeiro, vamos ver o que é que acontece a seguir.
O juiz e o promotor público estavam a conferenciar em voz baixa. Passado um momento, o promotor voltou para o seu lugar e o juiz olhou para o tribunal.
- Não vão ser chamadas mais testemunhas - disse. Voltou-se para o júri. - Ouviram o testemunho dos médicos que fizeram a autópsia aos restos do Sr.
Peerless, segundo o qual a morte foi provocada directamente pelas contusões sofridas durante a colisão, enquanto as queimaduras que apresentava no corpo ocorreram
posteriormente à morte. Ouviram igualmente o depoimento de outras testemunhas que deram informações relativas às circunstâncias que rodearam a morte do Sr. Peerless.
Têm mais algumas perguntas a fazer relacionadas com este caso?
O primeiro jurado sacudiu a cabeça.
- Não.
O juiz acenou com a cabeça e continuou.
- É-lhes, portanto, solicitado que cheguem a uma conclusão quanto à causa e responsabilidade da morte do Sr. Peerless. Estão ao vosso alcance várias
conclusões possíveis, que passo a enumerar.
- Primeiro, caso achem que a morte do Sr. Peerless foi da responsabilidade de alguém que não ele próprio, podem afirmá-lo.
- Se, além disso, acharem que houve uma negligência criminosa que culminou com aquela situação, podem afirmá-lo. Em nenhum dos casos acima é necessário mencionar
a pessoa ou pessoas responsáveis, embora possam fazê-lo, se o desejarem.
Segundo, caso achem que a morte do Sr. Peerless foi culpa dele próprio, podem afirmá-lo. Nesse caso, podem declarar simplesmente que a causa da morte foi um erro
do condutor.
Fez uma pausa e olhou para o júri. Estavam em silêncio.
- Desejam retirar-se agora e considerar o vosso veredicto?
O primeiro jurado inclinou-se para os seus colegas. Por momentos, houve uma troca de palavras murmuradas e, em seguida, ele pôs-se de pé.
- Não, senhor.
O juiz olhou para ele.
- Senhoras e senhores jurados, desejam apresentar o vosso veredicto?
O primeiro jurado fez que sim com a cabeça.
- Sim, senhor.
- E qual é ele?
A pequena sala estava no maior silêncio quando o primeiro jurado começou a falar.
- É uma conclusão unânime deste júri que, no que diz respeito à morte do Sr. Sylvester Peerless, a causa da morte foi de sua própria culpa, um erro
de condução e uma enorme leviandade da sua parte.
Uma onda de barulho irrompeu na pequena sala enquanto os repórteres se precipitavam para a porta. O martelo do juiz começou a bater na mesa, à frente dele. Mal se
lhe ouvia a voz por cima de todo aquele barulho.
- Foi ouvida a determinação do júri, dando-se assim por encerrado o inquérito à morte de Sylvester Peerless.
CAPÍTULO 2
A um canto do bar mal iluminado do Starlight Motel, um pianista negro de barbicha fazia uns ruídos suaves para acompanhar bebidas, que vibravam por detrás do zumbido
das conversas na sala apinhada. Estavam sentados, apertados, num pequeno compartimento contra a parede do fundo.
Artie Roberts olhou para Ângelo, do outro lado da mesa.
- Qual é a melhor ligação que tenho amanhã de manhã para Nova Iorque? Spokane ou Seattle?
Ângelo encolheu os ombros.
- Acho que Seattle tem mais voos, mas até Spokane são cem quilómetros a menos. Informe-se na recepção.
Artie ,pôs-se de pé.
- Vou tratar disso. Volto já.
Cindy pegou no copo e ficou a olhar para ele.
- É o desejo de morte, é o que é.
- Que é que tu disseste? - perguntou Ângelo.
A rapariga não levantou os olhos do copo.
- Acho que é isso. Vocês todos querem mesmo morrer não é?
Ângelo não respondeu.
- Olha, quando ele se meteu no carro, percebi logo que ia ao encontro da morte - disse, sem tirar os olhos do copo. - Foi por isso que voltei para
o motel, em vez de ficar por lá à espera dele. Não queria estar presente quando ele fizesse aquilo.
- Se tinhas essa ideia, porque é que não tentaste impedi-lo? - perguntou Ângelo.
- Para quê? Se não fosse naquele dia, seria noutro. Eu não podia estar sempre lá para o impedir.
Ângelo fez sinal para que trouxessem mais bebidas. Ela pegou no copo novo e provou a bebida.
- Acho que me vou embora amanhã - disse.
- Para quê? Tens alguma coisa melhor para fazer?
Sacudiu a cabeça.
- Não. Mas isto também não é para mim. E tu sabes. Estes carros não fazem barulho.
- Um dia, todos os carros vão deixar de fazer barulho - disse Ângelo.-Nessa altura, que é que vais fazer?
- Nessa altura já sou velha de mais para que isso me interesse - respondeu.
- Tu és um bom condutor - continuou Ângelo. - Sei que o Duncan não vai gostar de te perder. Diz que tens um bom ponto de vista.
- Eu gosto do velho, mas só aceitei o trabalho para estar com o Fearless. Nessa altura, ele julgava que tu ias organizar corridas.
- Também nós - disse Ângelo. - Mas agora já não é nada disso. Pelo menos, não é isso que estamos a tentar fazer.
- Eu sei - respondeu. Pegou na bebida e ficou a olhá-la. - Desde quando é que deixaste de ser doido?
-Que é que queres dizer?
Olhou para ele.
- Dantes, eras como todos os outros. Sempre pronto, em qualquer altura, qualquer sítio, qualquer canto. Depois, num dia louco, acabou-se e à tarde
já não eras o mesmo homem que tinhas sido de manhã. Soube-o assim que entrei e te vi na banheira.
- Todos temos que crescer, mais tarde ou mais cedo - disse. - Essa foi a minha altura.
Ficou silenciosa. Pousou a bebida com ar determinado.
- Deve ser isso, mas eu não quero crescer. As pessoas crescidas não precisam de mim. Arranjam-se muito bem sozinhas. Mas os tipos como o Fearless,
como tu costumavas ser, precisam de alguém que lhes dê apoio quando não estão atrás do volante. Alguém que os faça sentir um bocadinho vivos, quando não estão a
fazer aquilo que têm que fazer.
Levantou-se.
- Pedi que me mudassem para outro quarto.
- Isso foi boa ideia - disse Ângelo.
- Tenho umas fitas novas que tu ainda não ouviste. Talvez queiras vir até cá depois de jantar, podíamos ouvi-las.
- Vamos a ver. Dou-te uma telefonadela pelas oito, quando estivermos prontos para jantar.
- O melhor é não ser muito depois das sete se queres arranjar alguma coisa para comer - respondeu. - Aqui é tudo muito cedo.
- Okay. - Ficou a vê-la afastar-se pelo meio da sala apinhada. Havia qualquer coisa de muito só e muito jovem e cheio de ansiedade na maneira como
ela se movia.
O criado apareceu ao lado dele.
- Há uma chamada interurbana para si, Sr. Perino.
Seguiu o criado até uma cabina que havia a um canto da
sala. Fechou a porta e os sons tornaram-se distantes.
- Sr. Perino? - cantarolou a telefonista da interurbana.
- O próprio.
Ouviu-se a voz de Número Um.
- És um homem muito difícil de encontrar - queixou-se, irascível.
- Isso é que não sou - respondeu. - Este é o único bar cá da terra.
- Acabo de saber pela rádio do veredicto do juiz. Pensei que fosses telefonar-me.
- Achei que já devia ser muito tarde lá para esses lados quando saíssemos do tribunal. Mas correu tudo bem.
- Tivemos sorte. Podia ter sido uma grande chatice - disse o velho.
- Ainda gostava de saber quem é que resolveu tramar-nos - disse Ângelo. - Tenho a certeza de que o juiz e o promotor público não inventaram isto sozinhos.
- Cada vez estás mais parecido com o teu avô - disse o Número Um. - Ele estava sempre convencido de que havia conspirações por detrás de tudo. Que
nada acontecia por si.
-Talvez ele tivesse razão--disse Ângelo. - Mas o senhor sabe tão bem como eu que se tivéssemos sido apanhados desprevenidos, a publicidade podia ter posto fim ao
projecto, antes mesmo de começarmos. Não lhe parece um bocado estranho que os serviços de imprensa e rádio soubessem da história do inquérito ainda antes de nós.
- Estamos a construir um carro novo - disse Número Um.
- E isso é notícia. Será melhor que te habitues à ideia. Estão constantemente com os olhos postos em ti.
- Isso já eu sei - disse Ângelo. - Os fotógrafos têm andado por toda a parte, a tentar fotografar o carro. Até andaram de helicóptero por cima das
pistas de ensaio com câmaras telescópicas.
- Apanharam alguma coisa?
- Não desenhada por nós. Mas têm bastantes fotografias de Vegas, Pintos e Gremlins. Talvez mesmo um Maverick e um Nova ou dois.
Número Um soltou uma risada.
- Isso deve arreliá-los. Quantos carros tens na rua?
- Trinta e um nas estradas por todo o Oeste e Sudoeste. Oito nas pistas de ensaio, mais seis sem camuflagem que só pomos cá fora à noite.
- Estás a ir muito bem. Quando é que achas que podes dar o desenho por concluído?
- Daqui a sete, oito meses. Setembro ou Outubro - respondeu Ângelo.
- Não vamos poder ir às exposições da Primavera.
- É um facto - disse Ângelo. - Mas acho que conseguimos ir à Exposição Automóvel de Nova Iorque, na Primavera. Isso até pode ser vantajoso para nós.
Todos os outros setenta e dois já estarão cá fora, podemos ser os primeiros a sair com um setenta e três.
- Isso agrada-me-disse Número Um. Depois, mudou de tom.
- Tenho aqui uma pessoa que quer falar contigo.
Ângelo ouviu o telefone mudar de mãos. A voz de Betsy apareceu em linha. Parecia vaga e um pouco ofegante.
- Quando é que me deixa ir até aí e guiar um desses carros?
- Quando tivermos acabado os nossos testes, Miss Elisabeth - respondeu.
- Não precisa ser tão formal, Ângelo - disse.-Eu contei ao Número Um a propósito daquela noite em que fui ter consigo ao quarto do hotel.
Ângelo riu-se.
- Espero que também lhe tenha dito que a fui levar a casa de carro.
- Também lhe contei isso e ele quis saber porquê.
- Talvez porque você tinha acabado de fazer dezoito anos - disse Ângelo.
- A minha bisavó tinha exactamente essa idade quando ele casou com ela. Acho que deve pensar duas vezes. As raparigas como eu não ficam livres muito
tempo.
Ângelo riu-se.
- E talvez os homens como eu nunca se casem, Miss Elisabeth.
- A seguir ao casamento do meu pai vou à Europa, visitar a minha tia - disse.-Sabe como são os homens por lá.
- Eu sei como eles são - sorriu. - Espero que aconteça o mesmo consigo.
- Continua a pensar que sou uma criança. Só porque andou na escola com a minha mãe, não quer dizer que eu não tenha idade suficiente para si.
- Não duvido-disse. - Mas eu sou um bocado antiquado. Acho que o homem é que deve tomar a iniciativa.
- Óptimo - disse. - Então tome.
- Agora não - riu.-Tenho um carro para construir.
- Ouviu-se uma pancada na porta da cabina. Era um delegado do xerife.
- Aguarde um pouco - disse Ângelo ao telefone e foi abrir a porta.
- Sr. Perino? - perguntou o delegado com toda a delicadeza.
- Sim?
- Tenho isto para si. - E estendeu-lhe um documento com ar de oficial.
Parecia ser um dos impressos correntes para comunicados oficiais. Na parte exterior, estavam dactilografados o nome dele, o de Duncan e o da Bethlehem Motors Company.
Abriu o papel e ficou a olhar. Era um mandato assinado por um juiz proibindo que guiassem qualquer dos carros de ensaio movidos por um motor a turbina em qualquer
das estradas do estado de Washington. Levantou os olhos. O delegado já ia a meio da sala. Voltou-se novamente para o telefone.
- Ponha o Número Um outra vez em linha.
A voz dela tomou um tom de preocupação.
- Há algum problema?
- E não é pequeno - disse num tom incisivo. - Ponha-o em linha.
- O que é? - A voz do Número Um ressoou ao telefone.
- Acabam de me entregar um mandato, com ordens para não guiarmos qualquer dos nossos carros na via pública, neste Estado.
- O quê? - Número Um estava surpreendido. - Como é que podem fazer uma coisa dessas?
- Como podem, não sei, mas fizeram-na - respondeu. Ficou um momento parado, enquanto procurava um cigarro com a mão que tinha livre. - Agora venha-me
cá dizer que não está ninguém por detrás de tudo isto.
Número Um ficou silencioso.
- Seja quem for tem as costas bem quentes - disse Ângelo.
- Que é que vais fazer?
- O Artie Roberts ainda cá está - replicou Ângelo. - Estava a querer apanhar o primeiro avião para Nova Iorque. Mas não vai conseguir. Ele é que pode
discutir isto em tribunal.
- Isso vai levar uma data de tempo - disse o Número Um.
- Se fosse só uma questão de tempo, eu não estaria tão preocupado - disse Ângelo. - Se não conseguimos que levantem esta interdição, o Betsy talvez
nunca chegue a andar nas estradas.
CAPÍTULO 3
- Só mais trinta dias e o divórcio será definitivo - disse Loren III.
Bobbie pousou o copo de martini vazio.
- Quando lá chegarmos já não vai ter importância. Mais um mês aqui e eu fico louca. Não estou habituada a estar prisioneira.
- Mas tu não estás prisioneira, minha querida - disse pacientemente. - Conheces toda a gente aqui. Logo que estivermos casados tudo vai mudar. Vamos
para casa e a vida normaliza-se.
-Que é que te leva a pensar isso? - perguntou sarcástica. - Nas poucas vezes que saímos, Detroit teve o cuidado de me hostilizar.
- Mulheres estúpidas - respondeu. - Tudo vai mudar. Acredita em mim, eu sei que vai.
- Que se fodam! -disse furiosa.-Não preciso delas nem da sua aprovação. - Levantou-se do sofá. - O que eu preciso é de sair daqui por algum tempo.
Levantou os olhos para ela.
- Onde é que tu queres ir?
- Não sei. Para qualquer lado. Desde que seja longe daqui. -Dirigiu-se ao bar e serviu-se de mais um martini, de um jarro.
Olhou novamente para ele. - Juro por Deus que me estou a tornar alcoólica.
- Mas eu não posso afastar-me neste momento - disse.
-Eu sei que não podes. - Dirigiu-se à janela e olhou para fora. As luzes da fábrica brilhavam na noite pardacenta, com as extremidades das chaminés a vomitarem chamas
rosadas para o céu.
- Olha para esta vista - disse com amargura.-Há perto de um ano que olho por esta janela sem nunca ter visto uma árvore ou um pedacinho de verdura.
Acho que até já me esqueci de como são.
Loren pôs-se de pé e aproximou-se dela. Pôs-lhe os braços em volta do corpo e puxou-a para si. Bobbie deitou-lhe a cabeça no ombro.
- Eu sei que não tem sido fácil - disse -, mas nós já esperávamos isso.
- Desculpa - disse-, eu sei que também não tem sido fácil para ti. Mas tu, ao menos, tens o teu trabalho para te ocupares. Eu não tenho nada que fazer
a não ser dar cabo do juízo.
- Olha - disse-lhe-, dá-me só uns dias para organizar as coisas aqui e depois talvez possamos ir ao Oeste dar uma vista de olhos ao que eles estão
a fazer com os carros de ensaio. De qualquer maneira, já é tempo de eu ir até lá.
- Gostava imenso. Tenho uma ideia de que o novo carro vai ser formidável.
- Espero que sim - disse, sem entusiasmo.
Olhou-o.
- Estás preocupado, não estás?
Fez que sim com a cabeça.
- Porquê? Quando toda a gente está tão entusiasmada?
- Podem dar-se a esse luxo - disse num tom sombrio. - Não se trata do dinheiro deles. Se o carro falhar, a companhia pode afundar-se com ele. - Foi
de novo até ao bar e pegou na bebida. - Se acertar, estamos bem, mas, dentro de alguns anos, a GM e a Ford vão avançar e conquistar o mercado. Por isso, na realidade,
o que estamos a fazer é arriscar o nosso capital a favor deles.
Aproximou-se novamente dela.
- Lembro-me do ano em que me tornei presidente da companhia. Mil novecentos e cinquenta e três. O ano em que a Kaiser- -Frazer Company finalmente
apresentou o seu fantasma e foram por água abaixo. Tinham um bom carro, mas não conseguiram derrotar o sistema. A concorrência e a guerra da Coreia, que lhes cortou
as fontes de abastecimento, acabaram com eles. Nessa altura, tomei a decisão de não lutar contra eles. Contentar-me-ia com a fatia do mercado automóvel que conseguisse
apanhar e iria concentrar-me noutras áreas com vistas ao lucro. E não estava enganado. Desde então, não houve um único ano em que a companhia fizesse menos de seis
milhões, depois de pagar os impostos. Agora, um fantasma do passado ameaça fazer ir a companhia pelos ares.
Era o discurso mais comprido que ela jamais o tinha ouvido fazer. Ficou a olhar para ele, pensativa.
- Alguma vez disseste isso ao Número Um?
A voz dele encheu-se de amargura.
- Não há nenhum ser vivo a quem o meu avô dê ouvidos. Excepto, talvez, o Ângelo. E, mesmo assim, só quando o Ângelo lhe diz o que ele quer ouvir. ,
"
- Então e tu? - perguntou. - Não gostavas de construir um carro novo? Um carro que toda a gente quisesse?
Olhou para ela.
- Claro que sim. É o sonho de qualquer indivíduo ligado à indústria. Mas, quando era rapaz, também queria ser o primeiro homem a ir à Lua. E isso
não aconteceu.
- Então porque é que não abandonaste completamente a indústria automóvel?
- Era o que eu devia ter feito. Eu sei. - Olhou para o líquido dourado da bebida. - Mas também sabia que, se o fizesse, o meu avô morreria. Essa era
a única razão que ele tinha para continuar vivo, a única coisa que o interessava.
Ficou alguns momentos silenciosa e, depois, pousou o copo e tirou-lhe o dele da mão. Pô-lo ao lado do outro.
- Vem para a cama - disse.
- O grande problema com o motor a turbina tem sido a reacção à aceleração e falta de travagem do motor - disse Tony Rourke. - Pensamos que conseguimos
finalmente dar com a coisa. - Fez um gesto em direcção às cópias dos desenhos que estavam em cima da mesa de Loren III. - Se acrescentarmos um contra-rotor ao rotor
de avanço, que seria activado por uma pá fixa, desviando a pressão impulsionadora ao mesmo tempo que o afluxo de combustível diminui, criamos o equivalente artificial
para a travagem normal na combustão interna. Serve também para impedir o carro de rolar quando está engrenado e de trabalhar sem carga às velocidades normais. Por
outro lado, elimina o retardamento da reacção, geralmente existente nas turbinas, de forma que a velocidade necessária para alcançar e ultrapassar está semprpe presente.
Loren olhou para o outro lado da mesa.
- Isso já foi testado?- Completamente - disse Rourke. - Tem estado a ser usado em todos os carros de ensaio desde Dezembro último e,
até aqui, a média tem sido de cerca de trinta e seis mil quilómetros de utilização por carro.
- É caro - disse Loren. Olhou para Weyman. - Tem números?
Weyman fez que sim com a cabeça.
- Vai acrescentar aproximadamente cento e trinta e um dólares ao custo de cada motor, se o fabricarmos aqui em quantidades de duzentos mil ou mais.
Rourke voltou-se para ele.
- E esse número já inclui a economia resultante do facto de não termos que construir uma fonte de energia auxiliar para accionar os acessórios quando
estiverem a trabalhar sem carga?
Weyman fez que sim com a cabeça.
- Tomámos isso em consideração - respondeu no seu tom preciso de contabilista. - O factor principal são os custos da mão-de-obra, aqui em Detroit.
De momento, a alta precisão necessária na manufactura de tais rotores faz com que a tarefa deixe de pertencer à mão-de-obra não especializada e põe-a nas mãos de
mecânicos especializados.
- Também não pode ser assim tão grave-disse Rourke. - A Toyo Kogyo está a fabricar rotores e a vendê-los em carros de baixo preço.
- É a vantagem que os japoneses têm sobre nós - disse Weyman.
- O trabalho deles é muito mais controlado.
- Eu conseguia fazê-los mais baratos na Costa -disse Rourke.
- Tenho a certeza disso. Mas não tem pés nem cabeça construir lá os rotores, mandá-los para cá para serem incorporados no motor e, depois, mandá-los
todos de volta para a montagem final.
- Quando chegássemos ao fim, a economia não seria grande - disse Weyman com segurança. - Não vale a pena.
- Quanto é que nos custa, neste momento, o carro? - perguntou Loren.
- Mil novecentos e cinquenta e um dólares, sem os novos rotores. Eles representam uma sobrecarga de quase dois mil e cem.
- Não faz sentido - disse Rourke.-Tenho a certeza de que o Gremlin não custa à American Motors muito mais de mil e setecentos.
- Custa menos - disse Weyman. - Isso é o que eles recebem em média do agente, incluindo as taxas federais. Mas, por outro lado, eles não precisam
incluir acessórios que usem energia, nem ar condicionado, para absorver a energia que sobra do motor. Nós temos que incluir quase setecentos dólares de extras que
têm que ser adicionados ao preço de custo.
- Por essa ordem de ideias o Betsy teria que ser vendido a cerca de dois mil e quinhentos dólares -disse Rourke.
- Dois mil quatrocentos e noventa e nove foi o número que as vendas forneceram - disse Loren.
- Parece-me muito alto em comparação com os outros. O Pinto a mil e novecentos, o Vega a dois mil e cem, para não falar dos importados. Dão cabo de
nós.
- Estão a começar a ter uma ideia da situação que enfrentamos- disse Weyman.
- Não é assim tão má - disse Loren. - Com os acessórios e as opções podem acrescentar-se quatrocentos dólares ao preço médio de venda dos outros carros.
Ao fim e ao cabo, o nosso preço não é assim tão diferente do deles.
Rourke olhou para ele.
- Então, acha que temos hipótese?
O olhar de Loren era firme.
- Tanta como uma bola de neve no inferno. Da maneira como os custos estão a subir, certamente que não será preciso que o carro seja um autêntico milagre
para convencer o público de que, neste caso, pagar mais é, na realidade, pagar menos. O nosso preço é atirar connosco para fora do mercado de carros baratos e vamos
encontrar-nos no mesmo sítio em que estamos agora. A única diferença é que, entretanto, desembolsámos trezentos milhões de dólares.-Pegou num cigarro e acendeu-o.
- Receio bem que o meu avô ainda esteja a viver no passado, no tempo em que Henry Ford mostrou ao mundo que a linha de produção americana podia fazer baixar o preço
de cada peça. Mas, desde então, o mundo tem-se actualizado e no caso do Japão e da Alemanha tem-nos mesmo ultrapassado no que diz respeito a equipamento novo e automatização.
E eles têm sobre nós uma vantagem fantástica, que nós não temos. A mão-de-obra alemã custa sessenta por cento do preço da nossa e a japonesa talvez quarenta por
cento.
Expeliu uma nuvem de fumo e esmagou o cigarro na bandeja que tinha em cima da secretária.
- Na minha opinião, Ângelo cometeu um grande erro. Devia ter instalado a fábrica dele no Japão em vez de ser na Costa. Era a única forma de conseguir
um preço competitivo.
- O seu avô queria um carro construído na América - disse Rourke.
- Eu sei - replicou Loren. - Mas isso não quer dizer que tivesse razão. As pessoas já não querem saber onde é que as coisas são construídas. Só querem
que o artigo seja bom e que ó preço lhes convenha.- Gostava de ter hipótese de dar uma vista de olhos a esses cálculos - disse Rourke. - Talvez possa
surgir alguma ideia.
- Espero bem que sim - disse Loren.-Precisamos de ajuda.
- Não estou a prometer nada - disse Rourke. - Os seus homens são mesmo bons.
- Como é que vão as coisas por lá? - perguntou Loren.
- Agora estão óptimas - respondeu Rourke. - Aquela interdição da semana passada é que nos atrapalhou. Mas, depois de lhes termos demonstrado que a
Chrysler tem turbinas a gasolina na estrada desde 63 e que a Ford e a GM estão a aplicá-las em camiões, o embargo foi levantado. Ângelo continua a pensar que alguém
está a tentar sabotar-nos.
Loren sorriu.
- Não faz sentido. As outras companhias sabem que estamos a fazer-lhes um favor quando avançamos assim para o desconhecido. Eles não arriscam um centavo
do seu dinheiro e, enquanto nós andamos nisto, eles estão a tomar conta da loja e a meter para dentro, como de costume.
- Mas têm que admitir que parece mais do que uma simples coincidência. O inquérito e o embargo logo a seguir.
- Provavelmente algum cruzado local a tentar fazer carreira - disse Weyman.
- Se assim é, porque é que ele ainda não veio à superfície? - perguntou Rourke. - Já ando por lá há dez anos e tenho muitos amigos, mas ninguém parece
saber exactamente donde partiu a coisa.
- Vai falar com o Ângelo mais logo? - perguntou Loren.
- Sim.
- É capaz de lhe pedir que me reserve uma suite e mais dois quartos de sexta a terça-feira. Tenciono ir até lá com a minha filha e a minha noiva.
Rourke olhou para ele com ar de curiosidade. Esteve quase a mencionar que já conhecia Lady Ayres, mas resolveu ficar calado.
- Eu digo-lhe - respondeu. - Mas, se quer ficar perto das pistas de ensaio, não creio que o Starlight Motel tenha suites.
- Então ficamos com três quartos grandes - disse Loren.
- Eu trato disso. - Rourke pôs-se de pé. Estendeu-lhe a mão. - Agradeço-lhe ter-nos dispensado o seu tempo, Sr. Hardeman.
Loren compreendeu.
- Não precisa de me agradecer. Por vezes pode não parecer, mas há uma coisa que eu gostava que não esquecesse. Fazemos parte da mesma equipa.
Rourke olhou-o de frente.
- Nunca tive dúvidas a esse respeito, Sr. Hardeman. - Baixou os olhos para Weyman. - Se precisar de mim, estou nos Cálculos de Produção, Dan.
- Está certo. - Dan continuou sentado na sua cadeira e, quando a porta se fechou atrás de Rourke, voltou a falar. - Que é que acha, Loren?
- Acho que o Ângelo arranjou um daqueles tipos feitos para ganhar. Rourke é um tipo bom.
- O que eu quero saber é se acha que eles vão acabar por descobrir quem é que está por detrás dos problemas que têm estado a ter?
Loren olhou-o fixamente. '
- Tudo depende da eficiência do seu homem em não deixar rasto.
- Ele tem fama de ser muito bom - disse Dan. - Quanto mais não seja pelo dinheiro que nos custou, tem obrigação de ser.
- Então deixe de se preocupar com isso - disse Loren. Pôs-se de pé. - Parece-te que agora não podemos fazer nada para os obrigar a parar. Só nos resta
ficar a ver o Betsy conduzir-nos alegremente à bancarrota.
- O senhor continua a ser presidente da companhia - disse Dan. - Ainda pode fazer alguma coisa, se quiser.
A voz de Loren tornou-se fria. Por momentos, mais parecia o avô.
- Deixe estar.
Weyman pôs-se de pé. Fez um gesto com as mãos.
- Como queira. O senhor é que é o patrão. Mas não se esqueça de uma coisa. O tempo está a fugir. Em menos de sessenta dias a contar de hoje vamos
ter que decidir se entregamos as instalações do Sundancer ao Ângelo ou não.
Loren ficou a olhar para ele.
- Não acha que está a fazer uma certa confusão, Dan? A questão não é se entregamos as instalações do Sundancer ao Ângelo ou não. A questão a pôr é
se paramos com o Sundancer e alinhamos com o Betsy.
- Vem a dar no mesmo - disse Weyman com suavidade. - O que eu não consigo fazê-lo compreender é que, aos olhos da indústria e do público, o homem
que constrói o carro dirige a companhia. - Levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a porta. Aí, parou e olhou novamente para Loren. - Mas o homem que vão responsabilizar
pelas perdas será o presidente da companhia. E o presidente é você, Loren.
CAPÍTULO 4
O interior da gigantesca garagem, semelhante a um hangar, vibrava de actividade. Mecânicos de fato-macaco branco com BETHLEHEM MOTORS a vermelho nas costas estavam
reunidos como enxames de abelhas em redor de vários carros, cada um deles colocado sobre uma fossa, com a carroçaria levantada sobre os macacos dianteiros, de forma
que o motor e o châssis ficassem totalmente expostos.
- Aqueles são os camaleões - explicou Ângelo enquanto os conduzia para o fundo da garagem.
- Camaleões? - perguntou Bobbie.
- Carros camuflados - explicou Ângelo. - Usamos carroçarias de outras marcas de carros para eles não apanharem o nosso modelo. Dessa forma podemos
testar o carro na estrada sem chamar a atenção.
Parou em frente das portas gigantescas que ficavam ao fundo do hangar. Via-se um enorme letreiro:
RESERVADO AO PESSOAL PROIBIDA A ENTRADA A PESSOAS ESTRANHAS!
Desprendeu o cartão plástico da lapela e introduziu-o no orifício de uma fechadura eléctrica. As portas começaram a abrir com um ligeiro zumbido. Retirou o cartão
e entraram, enquanto as portas se fechavam automaticamente atrás deles. Por detrás das portas havia uma grande parede a fazer de biombo para que ninguém, do lado
de fora, pudesse ver lá para dentro quando as portas se abriam. Ângelo levou-os para o outro lado da parede.
Chegaram a uma vasta área aberta, no centro da garagem. Neste espaço não se viam carros; todos eles estavam guardados em grandes compartimentos fechados, junto às
paredes laterais. Ocasionalmente um mecânico saía de um dos compartimentos e entrava noutro. Um guarda de segurança armado veio ter com eles.
O homem reconheceu Ângelo e fez-lhe um aceno.
- Boa tarde, Sr. Perino.
Ângelo deu-lhe o cartão que usara para entrar. Voltou-se para os outros.
- Entreguem os vossos cartões. Ele devolve-os quando forem a sair.
Loren despregou o seu cartão e deu-o ao guarda. Este olhou cuidadosamente para a fotografia de Loren e, depois, para ele.
Fez um aceno com a cabeça, recolheu os cartões de Bobbie e Elisabeth e afastou-se.
Ângelo explicou:
- A razão destas medidas especiais de segurança é porque é aqui que guardamos os nossos protótipos.
John Duncan saiu de um dos compartimentos. Dirigiu-se para eles com um sorriso aberto.
- Loren! - exclamou com evidente satisfação.
- John!-apertaram-se as mãos. - Você parece quinze anos mais novo.
- É exactamente assim que me sinto - disse o escocês. - Cá estamos outra vez, a fazer o que nos compete fazer.
- Gostava de lhe apresentar a minha noiva, Roberta Ayres. Bobbie, este é John Duncan de quem te falei tanta vez.
O rosto do escocês não deu a entender que já a conhecia. Apertou-lhe a mão.
- Muito prazer em conhecê-la, Miss Ayres.
- O prazer é todo. meu, Sr. Duncan - disse delicadamente.
- Já conhece a minha filha, Betsy? - acrescentou Loren.
Duncan sorriu.
- Cresceu um bom bocado desde a última vez que a vi. -Como está, Miss Hardeman!
- Bem obrigada. - Voltou-se para Ângelo. - Já podemos ver o carro? Não posso esperar mais.
Ângelo olhou para Duncan.
- Podemos trazer o Silve( Sprite aqui fora?
O escocês fez que sim com a cabeça.
- Acho que é possível.-E encaminhou-se para um dos compartimentos fechados.
- O Silver Sprite é o protótipo de um carro desportivo de alto rendimento. Não tencionamos pô-lo no mercado enquanto não instalarmos a nossa linha
de produção. Planeamos usá-lo para exposições e talvez numa corrida ou duas, se conseguirmos que ele seja classificado. - Ângelo levantou os olhos. As portas de
um dos compartimentos estavam a abrir-se.
O carro apareceu, rodando em direcção a eles, empurrado por quatro homens, enquanto Duncan, sentado no lugar do condutor, manobrava o volante. Pararam no centro
do hangar, com as fortes luzes fluorescentes do tecto a brilharem-lhe na carroçaria de alumínio prateado.
- É lindo!-Betsy conteve a respiração, a surpresa ressoava-lhe na voz. - Oh, Ângelo, é mesmo lindo!
- Que é que esperava? Um carro esquisito?
- Não sei o que é que esperava - respondeu. - Com tudo o que se diz por aí acerca de um carro popular, pensava que ia ser qualquer coisa de parecido
com um Volks.
- Com o nome de Betsy? Acha que tanto o seu pai como o seu bisavô me iam permitir uma coisa dessas?
Voltou-se para o pai.
- Viste-o?
Loren sacudiu a cabeça.
- Vi os moldes, as maquetas e os desenhos. Esta é a primeira vez que vejo o carro. - Voltou-se para Ângelo. - O desenho é excelente.
- Obrigado, Loren. Sempre pensei que ia gostar.
Deram a volta à parte da frente do carro. O capot inclinado descia em direcção a uma pá de ar oval de contorno bem desenhado, mais larga na parte de cima do que
em baixo e muito semelhante à pá do motor a jacto do 707. Uma pá de ar adicional saía do capot do motor e outra ainda estava montada por baixo da parte mais saliente.
O efeito geral era que o carro parecia estar em movimento, mesmo quando estava parado.
- Todas as pás de ar são funcionais - explicou Ângelo -, a dianteira dirige o ar para a câmara de combustão principal, a do capot dirige o ar para
o afterburner e a pá inferior encaminha o ar fresco entre a cortina quente e o painel interior dianteiro, garantindo ainda o conforto no compartimento destinado
aos passageiros, apesar das elevadíssimas temperaturas resultantes da combustão na turbina.
Duncan saiu do carro, deixando a porta aberta.
- Quer sentar-se ao volante? - perguntou.
Elisabeth não esperou novo convite. Já estava dentro do carro antes de os outros lhe darem a volta.
- Quando é que eu o posso guiar?
- E se eu os levasse a todos primeiro a dar uma volta? - disse Ângelo. - Ao mesmo tempo, posso explicar-lhes umas coisas que precisam saber para guiar
este menino. Uma turbina é um bocado diferente de um motor convencional.
- Eu estou pronta-disse Betsy.
- Vão ter que esperar que escureça - disse Ângelo. - Não saímos com nenhum destes modelos durante o dia.
Um altifalante fez-se ouvir por cima da cabeça deles.
- Sr. Perino ao telefone, Sr. Perino ao telefone.
Ângelo endireitou-se.
- Vão ter que me desculpar. - Voltou-se para Duncan. - É capaz de me substituir? Eu volto logo que possa.
Enquanto se afastava, ouviu a voz do escocês.
- A primeira coisa que tem que aprender, mocinha, é que num carro destes não é só meter a chave na ignição e pôr o motor em funcionamento. Uma turbina
não funciona assim. Há dois interruptores de ignição e um interruptor do gerador de arranque que são activados electronicamente quando se põe a chave na posição
um. Há-de notar que quando se põe a chave nessa posição aparece uma luz vermelha no tablier. Passados dez segundos, mais ou menos, a luz vermelha apaga e aparece
uma luz amarela. Nessa altura, põe-se a chave na posição dois. Este movimento faz disparar a turbina. Em cerca de cinco segundos, a luz amarela deve ser substituída
por uma luz verde. Isso quer dizer que o motor já está a rodar sem carga e que pode pôr o carro em andamento. Dado que o calor da turbina é muito grande, por vezes,
ao disparar, dá-se um aquecimento excessivo. Nesse caso não aparece a luz verde e volta a aparecer a luz vermelha intermitente. Nesse caso, há que desligar e começar
tudo de novo. Só mais uma coisa. Nada entrará em funcionamento, a menos que o carro esteja engatado para estacionar e travado com o travão de estacionamento. Agora,
a lição número dois, muito importante...
Nesta altura, já Ângelo tinha entrado no pequeno gabinete e a voz do escocês desapareceu quando fechou a porta. O guarda levantou os olhos da secretária.
- Posso usar o telefone? - perguntou Ângelo, pegando no aparelho. O guarda fez que sim com a cabeça, enquanto a telefonista atendia.
- Daqui fala o Sr. Perino.
- Só um momento, Sr. Perino - disse rapidamente a telefonista. - Tenho o Sr. Rourke em linha com o seu escritório. Vou transferir a chamada.
- Acha que vale a pena pagar mil dólares para descobrir o nome do homem que levou o promotor público a lançar-nos a interdição? Tenho um amigo em
Olympia que diz que pode descobrir- -nos isso.
- Pague-lhe - disse Ângelo.
- Onde é que você está esta noite? - perguntou Rourke. - Eu depois telefono-lhe.
- Estou no Starlight. - Desligou e encaminhou-se para a janela de observação que deitava para o hangar.
Loren estava agora ao volante. Duncan continuava a falar e Bobbie e Elisabeth estavam de pé ao lado dele. Da janela quase pareciam irmãs.
A porta abriu-se. Cindy entrou e foi pôr-se à janela ao lado dele. Passado um momento estendeu a mão, pegou no cigarro dele, tirou uma fumaça e, depois, devolveu-lho.
- Ele é mais novo do que eu pensava-disse. - As fotografias fazem-no parecer muito mais velho.
- É.
- Qual delas é que é a filha?
- A da direita.
Tirou-lhe outra vez o cigarro e puxou uma fumaça, com os olhos postos nele.
- Ela gosta de carros. Mais do que o pai.
Olhou para a rapariga, curioso.
- Porque é que dizes isso?
- Vi a reacção dela quando estavam a empurrar o carro para fora. Foi a única que ficou verdadeiramente excitada.
Ângelo desistiu de ter o cigarro de volta e acendeu outro. Voltou-se novamente para a janela sem dizer palavra. Duncan tinha levado o capot e estava, agora, a explicar-lhes
o motor.
- Vai haver casamento com a rapariga? - A pergunta de Cindy foi inesperada.
- Vão-se casar para a semana, segundo creio - respondeu antes de compreender que ela não estava a falar em Loren e Bobbie. - Estás-te a referir a
mim?
Cindy sorriu.
- Tem-se falado por aí.
- Tu já devias saber que eu não sou homem para me casar.
- Mas ela é diferente - disse Cindy. - E vejo nela bastantes semelhanças com o Número Um para saber que, geralmente, consegue o que quer.
- Não passa de uma criança.
- Tem a mesma ideia do que eu quando fui pela primeira vez para uma pista - disse Cindy.-Também não é tão criança como finge ser.
Ângelo não respondeu.
- E a outra? - perguntou Cindy.
- A outra o quê?
- Não tira os olhos de ti. E não é com ar de futura sogra.
- Deixa-te disso - disse Ângelo com secura. - Essa é uma jogadora e aposta sempre no mais alto.
- O que não vai impedi-la de tentar uma apostazinha mais pequena, de vez em quando. Ainda não olhou para o carro nem uma só vez. Só olhou para ti.
Ângelo voltou-se e olhou pela janela. Bobbie estava quase sozinha, agora que Loren e Betsy estavam inclinados sobre o capot aberto. Parecia esperar pacientemente
que acabassem.
Um tom de surpresa surgiu na voz de Cindy.- Foste para a cama com ela, não foste? - Sem esperar resposta. - Então é isso. Eu devia ter adivinhado.
Ângelo não olhou para ela.
- Agora é que tu acertaste em cheio.
- Não sou parva - disse. Olhou para ele. - Não te esqueças de que também já por lá passei. Por isso, sei.
CAPÍTULO 5
O candeeiro extensível branco espalhava a sua luz sobre as cópias dos desenhos que estavam em cima da mesa. Ângelo olhava-os fixamente. Espaço, o problema era sempre
o espaço. Desta vez era a mala. Devido ao volume excessivo de tubos de exaustão necessários para a turbina, a mala tinha menos de metade do espaço considerado normal
num carro médio americano e, com o pneu sobressalente lá dentro, não ficava praticamente espaço nenhum para a bagagem.
Deslocou o modelo ao acaso por cima dos desenhos sem tirar os olhos dele. Era uma pena não poderem montá-lo de lado como se fazia havia muitos anos. Isso resolveria
o problema. Lembrava-se do Olds Viking de 1929 que o pai tinha quando ele ainda era criança e do Duesenberg de 1931 do avô. Ficavam bem essas rodas e os pneus montados
lateralmente. Davam ao carro um toque desportivo. Provavelmente foram uma questão de economia e desenho, ao mesmo tempo, que acabaram com isso. Uma roda e pneu sobressalentes
custam menos do que duas.
Pousou o modelo em cima do desenho e deslocou-o ao longo do desenho lateral até ir parar ao lado do guarda-lama dianteiro direito, abaixo do capot. Ficou a olhar
para ele. Podia muito bem encaixá-lo ali e ainda sobrava espaço. Mas havia outros problemas.
O aquecimento da turbina à temperatura normal de funcionamento atingia uma média de 800° C. Não existia nenhum pneu que conseguisse aguentar continuadamente tal
temperatura. Era necessário isolamento, ventilação e talvez mesmo arrefecimento suplementar. Tomou alguns apontamentos na folha de observações para pedir ao departamento
de desenho e engenharia que se debruçasse sobre o problema e lhe fornecesse dados sobre a sua viabilidade e custos.
O telefone tocou.
- Alô.
Soou-lhe ao ouvido a voz britânica e familiar.
- Ângelo?
- Sim, Bobbie?
- Que é que estás a fazer?
- A trabalhar - respondeu.
- Queres tomar uma bebida?
Ficou surpreendido.
- Onde é que estás? Julguei que tinhas ido para a pista de ensaio com os outros.
- Não me apeteceu ir - respondeu.
- Há algum problema? Estás com uma voz esquisita.
- Não. - O tom era vago. - Não sei. De toda a maneira, não tem importância. Desculpa se te incomodei.
O telefone deu um estalido abrupto quando ela desligou. Ficou um momento a olhar para o aparelho e, depois, pousou-o. Pensou em ligar para ela, mas resolveu não
o fazer e, em vez disso, pôs-se de pé e preparou uma bebida.
O telefone tocou outra vez, quando ele se encaminhava para a secretária com o gelo a tilintar dentro do copo. Levantou o auscultador.
- Sim, Bob...
Interrompeu-o a voz de Rourke.
- Ângelo, já sei o nome do homem. Mark Simpson. Está ligado a um grupo chamado Organização Independente de Segurança Automóvel, OISA. São de Detroit.
Sabe alguma coisa acerca deles?
- Do grupo não sei nada - respondeu Ângelo. - Mas já ouvi falar no homem... - Ouviu-se a campainha da porta. - Aguente aí um bocadinho, tenho que
ir abrir a porta.
Pousou o telefone e atravessou a sala. A campainha fez-se ouvir outra vez. Abriu a porta. Era Bobbie.
Olhou para ele.
- Interrompo?
- Não. - Sacudiu a cabeça. - Entra. Estou ao telefone.
Voltou para o mesmo sítio e pegou no telefone enquanto ela
entrava e fechava a porta.
- Serve-te de uma bebida.
- Tony - disse para o aparelho. - Esse tipo é mexido. Afirma-se um novo Ralph Neder, mas isso é conversa. Ele publica uma folha semanal que parece
que dá informações confidenciais sobre os carros novos. Tem-se falado em Detroit que ele tem quem o informe, mas ninguém sabe ao certo quem.
- E porque é que ele resolveria atirar-se a nós? - perguntou Tony.
- Aí está uma boa pergunta - disse Ângelo. - Tanto quanto eu sei, ele nunca pôs os pés perto das nossas instalações. Tem que haver alguém por detrás
dele.
- Bom, eu já fiz tudo o que podia - disse Tony. - Você é que é de Detroit.
- Eu trato do assunto - disse Ângelo. - Obrigado pela informação.
Pousou o telefone e olhou para a outra ponta da sala. Bobbie não tinha saído do pé da porta.
- Já que vieste até aí, mais vale entrares mesmo - disse Ângelo. , "
A rapariga caminhou em direcção a ele, com os olhos postos na secretária cheia de papéis e nos ficheiros encostados à parede.
- Estavas mesmo a trabalhar - disse.
- Que é que pensavas que eu estava a fazer?
Não respondeu. Atravessou para junto da mesa onde se encontravam a garrafa de uísque e o gelo. Deitou um pouco num copo.
- Não sabia que tinhas um quarto armado em escritório.
- Faço muito trabalho aqui - disse. - Os dias nem sempre me chegam.
- Não quero incomodar-te.
- Já disseste isso há bocado - retorquiu intencionalmente.
- Eu sei. - Pousou a bebida em cima da mesa, sem lhe tocar. - Desculpa. Vou-me embora. - Dirigiu-se para a porta.
- Para que é que vieste até cá? - perguntou.
Parou e olhou para ele.
- Estava com ciúmes. Pensei que estavas aqui com uma rapariga. Foi uma estupidez, não foi?
Não respondeu.
- Eu amo-te-disse Bobbie. - Pensei...
A voz dele era áspera.
- Não penses. Já tivemos essa conversa antes.
- Cometi um erro - disse. - Pensava que sabia o que queria. Mas ainda não é tarde de mais.
- É tarde de mais. Vais casar para a semana, lembras-te?
- Eu sei - disse. Voltou para junto dele, lentamente. Olhou-o nos olhos. - Vai haver oportunidades. Continuamos a poder ver-nos de vez em quando.
Ele não se mexeu. Uma veia começou a palpitar-lhe na garganta.
- Agora estás a pensar com o sexo - disse. - Gostava mais quando pensavas com a cabeça.
Ela pôs-lhe os braços em volta do pescoço e comprimiu o corpo de encontro ao dele.
- Diz-me que não me queres - murmurou.
Ficou a olhá-la nos olhos, sem se mexer.
- Diz! - repetiu ela com uma nota de triunfo na voz. Depois, deixou-lhe cair a mão na parte da frente das calças. Rapidamente, abriu-lhe o fecho éclair
e procurou-o, tirando-o para fora. - Diz-me, se és capaz enquanto eu te seguro no sexo, duro e quente e a escorrer-me na mão.
Começou a baixar-se em direcção a ele e estava quase de joelhos quando se ouviu uma pancada na porta e logo ela se abriu de par em par.
- Ângelo! O carro é fantástico! -A voz de Betsy quase extinguiu ao dar com os olhos neles.
Ficaram os dois a olhar para ela. Bobbie quase tropeçou e caiu ao tentar pôr-se de pé. Ângelo voltou-se, durante um momento, enquanto ajustava as calças. Quando
se voltou, já a rapariga estava dentro da sala, com o rosto, de repente, muito pálido e muito jovem.
- Sei que é difícil de perceber - começou ele.
- Não diga nada, por favor - disse Betsy, em voz fraca. Olhou para Bobbie. - O meu pai vai a caminho do seu quarto, para ir buscá-la - disse, quase
calmamente. - É melhor ir para o bar e dizer-lhe que estava lá à espera dele. Ele ia trazê-la aqui para brindar ao novo carro.
Bobbie olhou para ela, um momento e, depois, para Ângelo. Ele fez que sim com a cabeça. Passou por Betsy em silêncio e saiu do quarto. Os passos dela ecoaram no
corredor.
Ficaram a olhar um para o outro, em silêncio, até que o som dos passos desapareceu. Ângelo pegou na bebida que estava atrás dele em cima da mesa.
- As histórias que tenho ouvido a seu respeito devem ser todas verdadeiras - disse. - O senhor não é uma pessoa lá muito decente, Sr. Perino.
Ficou com o copo na mão, sem beber, com os olhos cravados na cara dela. Não disse nada.
- Não pense que fiz isto por nenhum de vocês - disse. - Fi-lo pelo meu pai. Ele está muito apaixonado por ela. Se soubesse disto ficava desfeito.
Sabe, é que ele não é como o senhor. O meu pai é, de facto, um homem muito ingénuo. Não é nada convencido.
Ângelo continuou a não dizer palavra.
- Podia ter sido honesto comigo - começou a fungar. - Não precisava de estar a armar em virtuoso e toda aquela merda do é muito importante conhecermo-nos
melhor...
- Mas eu fui sincero - disse.
- Não, não foi! -gritou com amargura. -E nunca há-de conseguir que acredite em si! Porque é que não se limitou a ir comigo para a cama quando eu lhe
pedi?
Não respondeu.
- Foi por pensar que eu não tinha experiência suficiente para o grande Ângelo Perino?
- Agora está a falar como uma criança - respondeu.
Avançou em direcção a ele, batendo-lhe no peito com o punho
fechado.
- Odeio-o, Sr. Perino! Odeio-o!
Ele agarrou-a pelos pulsos e fê-la parar. Elisabeth olhou-o na cara. De repente, deixou-se cair de encontro a ele, a chorar.
- Lamento muito, Miss Elisabeth - disse calmamente. - Lamento sinceramente.
- Sinto-me uma idiota chapada - disse a chorar.
- Nada disso - disse Ângelo.
- Deixe-me em paz! - afastou-se dele bruscamente. - Não precisa de tomar esses ares protectores!
- Eu não estou...
- Adeus, Sr. Perino - disse num tom glacial.
Ficou um momento a olhá-la, em silêncio.
- Adeus, Miss Elisabeth.
Elisabeth ficou também a olhar para ele e, depois, começou outra vez a chorar. Voltando-se bruscamente, correu para a entrada, indo quase chocar com a cadeira de
rodas de Número Um que vinha no corredor.
- Betsy! - chamou Número Um.
A rapariga nem se voltou.
- Agora não, bisavô - gritou por cima do ombro ao mesmo tempo que descia a escada a correr.
Número Um empurrou a cadeira de rodas até à porta que tinha ficado aberta e olhou para Ângelo.
- Que diabo é que está a acontecer aqui? - perguntou iras- cível. - Quando me meti no elevador lá em baixo, saiu a rapariga do Loren, com um ar muito
perturbado; quando cheguei cá acima, a Betsy sai do teu quarto, como um pé-de-vento, a chorar como uma criança.
Ângelo ficou a olhar para ele.
- Santo Deus!
Número Um olhou para ele e, depois, começou a sorrir. Empurrou a cadeira de rodas para dentro e fechou a porta atrás dele.
- Estás com o ar de um homem que foi apanhado com o sexo de fora.
Ângelo engoliu a bebida de um só golo.- Aah, merda!
Número Um riu em voz alta. Quanto mais as coisas mudavam, mais ficavam na mesma. Ainda se lembrava da última vez que isso lhe tinha acontecido a ele.
E já tinha sido há mais de trinta anos.
CAPÍTULO 6
O motor do grande sedan Sundancer de 1933 com a chapa de matrícula LH 1 ronronou calmamente quando o motorista fez voltar o carro para sair da Woodward Avenue e
entrar em Factory Road, três quarteirões e meio antes do portão da fábrica. Os passeios dos dois lados da rua estavam cheios de homens, pacientemente à espera, sob
a chuva miúda e fria de Março.
- Que é que se passa? - perguntou Loren do banco de trás.
- Não sei, Sr. Hardeman - respondeu o motorista. - Nunca vi uma coisa assim. - Começou a abrandar. À medida que se aproximavam do portão, as filas
de homens engrossavam e transbordavam para o caminho.
- Liga o rádio - disse Loren.-Talvez as notícias digam alguma coisa.
A voz familiar de H. V. Kaltenborn encheu o carro.
- Para terminar, gostaria de repetir, uma vez mais, esta manhã a todos os americanos as palavras proferidas pelo presidente Roose- velt na sua mensagem
inaugural de ontem em Washington.
"A única coisa que temos a recear é o próprio receio." São palavras que vale bem a pena não esquecer. Daqui H. V. Kaltenborn que se despede de Nova Iorque.
Seguiu-se outra voz.
- Termina aqui o nosso noticiário da manhã. Apresentaremos o nosso próximo serviço de notícias ao meio-dia.
Estavam a chegar ao portão.
- Podes desligar - disse Loren.
O carro deslizou até ao portão por entre os homens apinhados em frente dele. O motorista tocou a buzina. Os homens olharam para trás e afastaram-se lentamente para
deixar o carro avançar. Dois homens abriram o portão para que o carro entrasse e, depois, fecharam-no.
Loren baixou o vidro da janela.
- Que é que aconteceu, Fred?
O guarda mais velho olhou para ele.
- Pusemos um anúncio nos jornais para seis maquinistas, Sr. Hardeman.
- Seis maquinistas? - Loren olhou para a multidão que ficara para trás. - Mas devem estar ali pelo menos umas centenas.
- Mais de mil, pelas minhas contas, Sr. Hardeman.
-E já contratámos esses homens?
- Não senhor. A secção de pessoal só começa as entrevistas às nove.
Loren olhou para o relógio. Passavam poucos minutos das sete.
- Quer dizer que eles vão ter que ficar aqui mais duas horas a apanhar esta chuva gelada.
- Exactamente - disse o guarda.-Muitos deles passaram aqui a noite desde que saíram os jornais da tarde de ontem.
Loren olhou para a multidão. Alguns dos homens seguravam jornais por cima da cabeça para se protegerem da chuva, outros tinham os casacos puxados acima do pescoço,
cobrindo as abas dos chapéus. Todos os rostos tinham o mesmo cinzento-pálido da manhã.
Voltou-se de novo para o guarda.
- Ligue para a cantina e diga-lhes que mandem aqui uma camioneta com café quente e doughnuts para eles.
- Não posso fazer isso - disse o guarda, pouco à vontade.
- É contra os regulamentos.
- Quais regulamentos? - Loren estava demasiado surpreendido para conseguir zangar-se.
- Dos serviços de pessoal - disse o guarda, num tom nervoso.
- Disseram que se começássemos com isso, tínhamos aqui uma fila de homens todas as manhãs quer precisássemos de pessoal quer não, só para terem pequeno-almoço
de graça.
Loren ficou um momento a olhar para ele, sem falar.
- Quem é que ditou essa regra? - perguntou por fim.
- Disseram-me que vinha do gabinete do presidente - respondeu o guarda. Teve o cuidado de não nomear o Júnior.
- Estou a perceber. - Loren meteu-se novamente no carro.
- Siga - disse. O motorista conduziu o carro para trás do edifício da administração e meteu-o no parque, ao lado da entrada particular de Loren. Loren
saiu do carro, sem esperar que ele lhe abrisse a porta. O pequeno elevador estava em serviço e, por isso, subiu as escadas até ao segundo andar e, depois, seguiu
pelo corredor comprido. Empurrou a porta e passou em frente das secretárias surpreendidas até ao gabinete de Júnior.
Júnior estava precisamente a pousar o auscultador do telefone no descanso. A voz dele era cheia de excitação.
Acabei de falar para Washington. Diz-se que o presidente vai decretar imediatamente um feriado para os bancos!
Loren ficou a olhá-lo fixamente.
- Tomaste o pequeno-almoço?
Júnior mostrou-se espantado.
- Não ouviu o que eu disse? O presidente vai mandar fechar os bancos! Sabe o que isso quer dizer?
- Tomaste o pequeno-almoço? -repetiu Loren.
- Claro que tomei o pequeno-almoço - respondeu Júnior, aborrecido. - Que é que isso tem a ver com o que eu acabei de dizer? Se ele fechar os bancos,
estamos à beira da anarquia, pode estoirar uma revolução no dia seguinte e os comunistas tomam conta do país!
- Trampa! - explodiu Loren. - Chega aqui à janela.
Júnior levantou-se da cadeira e dirigiu-se à janela. Loren apontou para a multidão dos homens do lado de fora do portão.
- Estás a vê-los?
Júnior fez que sim com a cabeça.
- Assinaste alguma ordem em como a cantina não estava autorizada a dar-lhes café e doughnuts?
- Não. Isso só podia partir do gabinete do Warren.
-Se partiu do gabinete do Joe Warren, quer dizer que teve a tua aprovação. Ele trabalha para ti.
- Pai - a voz de Júnior tinha um tom conciliador-, quantas vezes é preciso dizer-lhe que a única preocupação do Joe é zelar o melhor possível pelos
nossos interesses? Se não fosse ele, aqueles bandidos já podiam ter posto as mãos nojentas em cima da Anne e do Loren Terceiro. E tem que admitir que não houve mais
problemas laborais desde que ele assumiu o cargo. Claro que eu aprovei essa ordem, mas não somos os únicos. Metade das companhias de Detroit adoptaram a mesma política.
Bennett da Ford diz que se não procedermos com firmeza, eles deitam a mão a tudo.
- Quem é que deita a mão a tudo? - A voz de Loren era sarcástica. - E que é que confere ao Bennett essa autoridade de perito? Não passa de um antigo
marinheiro.
- Joe diz que o Bennett é o número um da Ford. Diz que o Sr. Ford confia cegamente nele e mantém o Edsel apenas como elemento decorativo.
- Nesse caso, o velho está senil. O Edsel tem mais cabeça que todos eles juntos - disse Loren. - Eu quero que sirvam café e doughnuts a esses homens.
- Não, pai - disse Júnior, teimoso.-Desta vez receio bem ter que me opor. Acredite que sei o que estou a fazer.
- Seu estúpido de merda! - Loren ficou a olhar para ele. - Se te agrada seres presidente desta companhia, manda chamar esse palerma desse Warren e
faz com que sirvam café e doughnuts a esses homens que estão lá fora.
Júnior estava pálido.
- Não, pai.
A voz de Loren tornou-se áspera e fria.
- Então, espero ter o teu pedido de demissão em cima da minha secretária dentro de dez minutos. - Deu meia volta e preparou-se para sair do gabinete.
- Pai - a voz de Júnior fê-lo voltar. - Não lhe vou*apresentar pedido nenhum.
- Então estás despedido - atalhou.
- Também não pode fazer isso, pai. - Na voz de Júnior havia uma ponta de triunfo amargo. - Juntamente com os papéis que assinou para pedir o empréstimo
ao banco, entregou-lhes como penhor as acções que lhe dão direito a voto, até que os ditos empréstimos tenham sido liquidados. E o banco está muito satisfeito com
a forma como estou a gerir a companhia.
Loren ficou a olhar para ele sem conseguir dizer palavra.
- A menos que tenha trinta milhões de dólares em dinheiro para liquidar os empréstimos, pai, tem que se habituar à ideia de que eu sou o administrador-delegado
desta companhia.
Loren continuou silencioso.
- Se a ideia não lhe agrada - continuou Júnior-, gostaria de sugerir que talvez lhe seja mais agradável voltar para a Europa com a sua prostituta
francesa.
- É tudo o que tens para me dizer? - perguntou Loren.
- Não propriamente - respondeu Júnior. Estava muito senhor de si. - Não tencionava abordar a questão de imediato, mas já que estamos a falar com tanta
franqueza, o melhor será encararmos os factos.
Tudo correu muito bem durante os três anos em que esteve ausente. Agora que voltou com um desejo desenfreado de rejuvenescer a indústria automóvel com um novo carro
de baixo preço, tenho que o informar de que a questão foi estudada a fundo, tanto pelo conselho de administração como pelos bancos. Todos chegaram a um acordo unânime
quanto à rejeição do seu plano. Não têm qualquer intenção de comprometer mais vinte milhões de dólares para fazer experiências num mercado em que o máximo de vendas
foi de um milhão e meio de carros neste ano. Agora que temos o departamento automóvel sob controlo, tencionamos eliminar mais prejuízos desse lado entrando na subcontratação
de carroçarias para a Ford. Bennett teve a amabilidade de nos dar um contrato para cem mil unidades, já que tèm estado a ter problemas com a Briggs. Pela primeira
vez em dois anos vamos ganhar dinheiro e toda a gente gosta da ideia.
- Não mudaste nada, pois não? - disse Loren. - Quando eras pequeno costumavas esconder-te por detrás das saias da tua mãe, agora escondes-te por detrás
do Harry Bennett.
- Trata-se apenas de um bom negócio - disse Júnior. - Temos o lucro garantido sem arriscarmos um centavo nosso.
- E estás também a pôr a tua companhia nas mãos do Bennett. Não tardará muito que ele te diga tudo o que tens que fazer e a única coisa que ele próprio
terá que fazer, para te fechar a porta, é pôr-te de lado. - A voz de Loren era perfeitamente controlada. - Não podes deixar de perceber isso. A única possibilidade
que temos de continuar vivos é continuarmos independentes.
Júnior riu-se.
- Receio bem que tenha perdido o contacto com a realidade, pai. Vê aquelas fileiras ali fora? Há três anos que estou a vê-las crescer. Julga que algum
deles se pode dar ao luxo de comprar os nossos carros?
Loren ficou a olhar para ele.
- Lamento muito, Júnior - disse com relutância. Começou a puxar pelo cinto de couro. - O que me parece é que és uma criança e tens que ser tratado
como tal. - O cinto soltou-se e, segurando-o na mão, avançou em direcção a Júnior.
Júnior ficou a olhar para ele, horrorizado.
- Não vai atrever-se!
Loren sorriu.
Vais ver.
Levantou o braço, com o cinto pendente da mão.
- Não! - Foi quase um grito. Júnior precipitou-se para trás da secretária e carregou num botão.-Não pode bater-me! Sou presidente da companhia! -
Premia freneticamente o botão.
- Mas continuas a ser meu filho - disse Loren friamente, seguindo-o para trás da secretária.
A porta de ligação para o gabinete abriu-se e Joe Warren entrou.
- O que é, Jun...
Júnior correu para trás dele, colocando Warren entre ele e o pai.
- Joe! Não o deixes bater-me, Joe!-disse quase aos gritos. - Ele endoideceu!
Warren voltou-se para Loren.
- Vamos lá a acalmar, Sr. Hardeman - disse. - Não sei qual é o problema, mas tenho a certeza de que podemos resolvê-lo, como homens sensatos.Qualquer
coisa na voz dele disse a Loren que Warren já sabia exactamente qual era o problema. Olhou para a secretária de Júnior. O interruptor do intercomunicador que ficava
por cima do nome dele estava aberto. Warren tinha estado a ouvir todas as palavras que tinham sido ditas dentro do gabinete. Loren olhou para ele e, quando falou,
fê-lo numa voz fria como gelo.
- Mantenha-se fora disto, Warren. É um assunto de família.
Avançou novamente e, depois, parou. Um revólver apareceu, de
repente, na mão de Warren.
- E agora, está disposto a ser razoável? - perguntou este.
Loren olhou-o nos olhos. Brilhavam com uma curiósa expressão
de triunfo. Descontraiu-se ligeiramente.
- Você não vai puxar esse gatilho, Warren - disse calmamente, avançando para ele. - Ou então vai passar o resto da sua vida a lamentar tê-lo feito.
Os olhos de Warren fitaram-no com ar malévolo.
- Não me incite, Sr. Hardeman! Fique onde está!
A mão de Loren deslocou-se quase com rapidez de mais para que a vista a seguisse. O cinto dobrado apanhou o pulso de Warren, arrancando-lhe a arma da mão e atirando-a
ruidosamente para o chão. Warren lançou-se sobre a arma, enquanto Júnior soltava um grito e fugia para o outro gabinete.
Os dedos de Warren começavam a apertar-se-lhe em volta do revólver quando o pé de Loren se lhe abateu pesadamente sobre o antebraço. A dor repentina fê-lo soltar
um grito enquanto o braço estalava como um pau de fósforo. Ficou a olhar para a cara de Loren, meio paralisado de horror.
- Espero que isto te ensine a não te meteres em assuntos de família - disse Loren calmamente.
Warren viu o sapato de Loren avançar-lhe em direcção à cabeça, mas não podia fazer nada para o evitar. O mundo explodiu num imenso e doloroso fogo-de-artifício.
Depois, foi a escuridão.
Loren olhou para o homem deitado a seus pés. A cabeça de Warren estava encostada ao canto da secretária de Júnior, com o sangue a escorrer-lhe do nariz e da boca.
Voltou-se e dirigiu-se para a porta de comunicação.
Estava fechada e trancada. Deu meio passo para trás e ferrou-lhe um pontapé. A porta abriu-se de rompante, meio arrancada das dobradiças e Loren entrou.
O outro gabinete estava vazio. A porta aberta na outra ponta indicou a Loren que Júnior tinha fugido. Voltou para o gabinete de Júnior.
Warren gemia, tentando levantar-se. Loren atravessou a sala em direcção à porta que ficava na outra extremidade e abriu-a. As duas secretárias, que estavam com os
ouvidos colados à porta, quase caíram para a frente.
- Limpem esta porcaria toda - disse Loren sem qualquer emoção, passando diante delas.
CAPÍTULO 7
Subiu as escadas que levavam ao seu gabinete no terceiro andar e entrou pela porta privativa. A sala estava escura à luz fraca da manhã. Premiu um interruptor de
parede e os candeeiros em volta acenderam-se. Passou para o lado de trás da secretária e ligou o intercomunicador.
A voz da secretária saiu do aparelho.
- Faz favor, Sr. Hardeman.
- Quero dois carros da cantina com café e doughnuts junto ao portão número três, imediatamente.
- Sim, Sr. Hardeman.
- Depois quero que me mande aqui o Coburn e o Edgerton.
- Sim, Sr. Hardeman.
Desligou o interruptor e, afastando-se da secretária, dirigiu-se para a janela. Lá fora, à chuva, os homens continuavam aglomerados, como animais à procura de abrigo.
Ficou um momento parado a olhá-los e, depois, voltou para a secretária e sentou-se.
A dor recomeçou, nas têmporas e com ela o martelar. Gemeu para consigo mesmo, era só o que lhe faltava. Mais uma enxaqueca. Os médicos eram todos uns estúpidos.
Não havia nada a fazer, tinham-lhe dito. Evite excitar-se e tome aspirinas. Ligou outra vez o intercomunicador.
- Arranje-me três comprimidos de aspirina e uma chávena de café quente.
- Vai já, Sr. Hardeman.
Recostou-se na cadeira. A aspirina devia fazer-lhe bem e o médico na Suíça tinha-lhe dito que a cafeína do café fazia com que a aspirina actuasse mais depressa.
A porta abriu-se e uma rapariga entrou. Levou-lhe a bandeja de prata com a chávena e o pires e a cafeteira do café para cima da secretária. As natas e o açúcar vinham
em pequenos recipientes de prata. Ao lado havia um frasco com aspirinas e um copo de água.
A rapariga fez cair três aspirinas na palma da mão.
Loren olhou para ela enquanto pegava nas aspirinas.
- Você é nova aqui, não é?
- Sou sim, Sr. Hardeman - respondeu, estendendo-lhe o copo de água.
Engoliu a aspirina com um copo de água.
- Como é que se chama? - perguntou, passando-lhe novamente o copo.
- Melanie Walker-respondeu. Depois, pegou na cafeteira.- Simples?
- Sim, sem natas nem açúcar. - Pegou na chávena e provou o café.
- Está bom?
- Óptimo. Que é que aconteceu à rapariga que estava aqui a semana passada?
- Miss Harriman?
- Nunca cheguei a saber o nome dela.
- Voltou para o lugar dela, na secção de pessoal.
- Ah, está bem - disse, bebendo mais um golo de café.
- E de que secção é que você é?
- Pessoal - respondeu.
Loren ficou um momento em silêncio.
- Normalmente trabalha nessa secção?
- Sim, Sr. Hardeman. Faço parte do grupo de estenodactilógrafas. Quando falta alguém, tomamos o lugar dessa pessoa.
- Quanto é que lhe pagam? - perguntou, curioso.
- Vinte e dois dólares e meio por semana.
Entregou à rapariga a chávena vazia.
- Obrigado.
- De nada, Sr. Hardeman. - Pegou no tabuleiro e dirigiu-se para a porta.
- É capaz de pedir ao Sr. Duncan que venha falar comigo? - disse-lhe, quando ela já ia a sair.
- Sim, Sr. Hardeman.
Ficou a ver a porta fechar-se atrás dela. Warren tinha tudo bem organizado. O pessoal de estenodactilografia era um núcleo perfeito para um sistema de espionagem
sobre as actividades de todos os outros.
Duncan foi o primeiro a chegar.
- Sente-se, seu escocês - disse Loren. - Estou à espera do Coburn e do Edgerton.
Mal Duncan acabou de se sentar, chegaram os outros dois. Loren indicou-lhes com um gesto que se sentassem e, depois, ficou um momento a olhar para eles, em silêncio.
Abriu a caixa de charutos que tinha em cima da secretária, tirou um e acendeu-o. O som esbatido da sirene de uma ambulância fez-se ouvir lá fora.
O silêncio tornou-se desconfortável. Os três homens deitavam olhares uns aos outros, pouco à vontade e, depois, voltavam novamente os olhos para Loren. Este fumava
calmamente.
A sirene soou com mais força e, depois, parou de repente. Loren encaminhou-se para a janela. A ambulância tinha parado em frente da porta do edifício principal e
dois homens vestidos de branco entraram apressadamente com uma maca.
Loren voltou para a secretária e olhou para os outros.
- Okay - disse. - Contem-me lá o que é que se está a passar aqui.
- Não sei o que é que quer dizer - disse Coburn rapidamente.
- Não me venha cá com essas tretas de advogado! Você sabe muito bem de que é que eu estou a falar, Ted!
Ficaram silenciosos.
- De que raio é que vocês têm medo? - perguntou Loren. - Todos vocês me conhecem há anos e nunca antes tiveram medo de abrir a boca. Isto não é nenhuma
prisão.
- Não está a compreender, Sr. Hardeman- disse Edgerton. Era um homem alto, quase tão grande como Loren, a última pessoa no mundo que se pudesse pensar
que era contabilista.
- Eu sei que não estou a compreender, Walt - disse Loren. - Foi por isso que lhes pedi para virem até aqui.
Houve um momento de silêncio enquanto trocavam, mais uma vez, olhares pouco à vontade. Por fim, Coburn levantou-se da cadeira. Deu a volta à secretária de Loren
e inclinou-se sobre o intercomunicador. Com os dedos, verificou todos os interruptores para se certificar de que estavam desligados.
- Mas que é que o preocupa? - perguntou Loren.-Ninguém nos pode escutar.
Coburn não respondeu. Inclinou-se ao lado da secretária e puxou o fio que ligava o intercomunicador à tomada instalada no chão.
- Não vale a pena arriscarmo-nos - disse, endireitando-se. Voltou-se para Loren. - Agora faça sair a sua secretária para fazer um recado qualquer.
- Porquê? - perguntou Loren. - Parece ser boa rapariga.
- É boa rapariga. Boa de mais - disse Coburn. - Mas é uma das que estão ao serviço do Joe Warren.
Loren ficou um momento a olhar para ele. Sem dizer uma palavra, aproximando-se da porta do gabinete dela e abriu-a.
A rapariga levantou os olhos para ele.
- Faz favor, Sr. Hardeman.- Vá até lá abaixo à cantina tomar café. Quando eu precisar de si chamo-a.
O olhar da rapariga cruzou-se com o dele.
- Não posso fazer isso, Sr. Hardeman. As ordens que eu tenho é que não posso sair desta secretária sem que me venham substituir.
- Mas eu acabei de alterar as regras - disse Loren.
- E os telefones? Não fica aqui ninguém que os atenda.
- Atendo-os eu - disse.
A rapariga ficou no mesmo sítio, silenciosa, sem se mexer.
- Vou perder o meu emprego - disse, por fim.
- Já o perdeu - disse Loren. - A sua única hipótese de o recuperar depende da rapidez com que tirar o rabo'daqui*para fora.
Ficou um momento a olhar para ele e, depois, pegou na bolsa e saiu porta fora.
A voz de Coburn fez-se ouvir atrás dele.
- Feche essa porta à chave que eu fecho a sua entrada privativa. - Loren fechou a porta exterior e voltou para o gabinete. Deu a volta à secretária
e sentou-se.
- Bom, agora quero umas quantas respostas e quero-as depressa!
- Depressa, Sr. Hardeman? - disse Coburn. - Posso dizer-lhe tudo em duas palavras. Joe Warren. Não podia ser mais depressa.
Loren levantou-se e dirigiu-se para a janela. Lá fora, a ambulância continuava estacionada. Os maqueiros saíram do edifício transportando um homem.
Loren fez um gesto para os homens que estavam no gabinete atrás dele. Aproximaram-se da janela. Loren apontou para a maca que estava a ser embarcada pela parte de
trás da ambulância.
- Ali vai Joe Warren.
Um dos maqueiros deu a volta à ambulância e sentou-se ao volante. A sereia fez-se ouvir de novo enquanto a ambulância se dirigia para o portão.
Loren voltou para a secretária e sentou-se.
- Agora, talvez possamos retomar o nosso negócio de fabrico de automóveis - disse.
- Não vai ser assim tão fácil - disse Edgerton. - Entre o Warren e o seu filho, o conselho de administração foi completamente virado.
- Deixem-nos comigo - disse Loren. - O que nós temos que tratar é da construção de um carro económico capaz de competir com a Ford e a Chevy e o novo
Plymouth de Walter Chrysler.
- Não temos dinheiro para nos apetrecharmos para isso - disse Edgerton rapidamente. -Seriam precisos quinze milhões de dólares e os bancos não nos
dão esse dinheiro.
- Quanto é que nós temos?
- Cerca de milhão e meio em dinheiro e mais três milhões a receber.
- Não podemos descontar o que temos a receber?
- Contra vinte por cento.
Loren voltou-se para Duncan que se mantivera silencioso até àquele momento.
- Consegue pôr um carro novo na linha de montagem por quatro milhões de dólares?
Duncan sacudiu a cabeça.
- Impossível.
- Não há nada que seja impossível - disse Loren. - Ainda temos os modelos do Loren Dois?
Duncan fez que sim com a cabeça.
- E se cortássemos meio metro ao comprimento do carro passando de quatro portas para duas? Seria muito dispendioso?
Duncan mostrou-se pensativo.
- Não deve ser. Mas há outro problema. Era preciso desenhar um motor completamente novo.
- Porquê? - perguntou Loren. - Não podíamos adaptar-lhe o pequeno Sundancer de noventa cavalos?
Duncan sorriu de repente.
- Acho que sim. E isso iria, ao mesmo tempo, reduzir o nosso stock. O ano passado tivemos um excesso de produção desses motores de quase cinquenta
mil unidades.
- Assim é outra coisa - disse Loren.-Vá já para o seu gabinete e tome imediatamente o assunto em mãos. Peça ao Walt que o ajude a verificar os cálculos
financeiros. Quero os números daqui a dois dias. - Voltou-se para o advogado. - Agora, preciso de umas respostas suas, Ted. Há alguma coisa que me impeça de fazer
isto?
Coburn ficou um momento a pensar.
- Não, a menos que alguém conteste.
- E se contestarem?
- Só há duas pessoas que o podem fazer. O seu filho e, talvez, Warren. Não tenho a certeza, mas acho que ele é vice-presidente executivo e as suas
atribuições podem abranger esse campo.
- E o conselho de administração e o banco?
- Só vão tomar conhecimento na próxima reunião. E isso é quase daqui a um mês. Claro que o seu filho pode sempre convocar uma reunião extraordinária.
- Estou a perceber - disse Loren.
- Só mais uma coisa - disse Coburn. - Tenha todo o cuidado para não ditar qualquer memorando em que faça referência aosseus planos. Agora, todas as
secretárias têm que fazer uma cópia a mais de tudo o que escrevem à máquina. É o processo de que o Warren se serve para saber tudo o que se passa.
Loren olhou para ele.
- O meu filho também sabia desse pormenor?
- Não sei - disse Coburn cauteloso. - Nenhum de nós pode chegar à fala com ele a menos que marque uma entrevista por intermédio do Warren. Já há mais
de um ano que não o vejo a não ser nas reuniões do conselho de administração.
Loren voltou-se para Edgerton.
- E que é que se passa consigo?
- A mesma coisa.
Voltou-se para o engenheiro.
- E você, escocês?
- A última vez que falei com ele foi quando ele me disse que interrompesse a produção do Loren Dois. Há três anos. - A voz do escocês era mordaz.
Loren ficou um momento em silêncio. Depois, pôs-se de pé.
- Okay - disse. - Mãos à obra.
Eles puseram-se de pé e dirigiram-se para a porta. A voz de Loren fê-los parar. Sorria.
- Será que algum de vocês é capaz de me ligar esta porcaria? - perguntou, apontando para o intercomunicador. - Posso vir a precisar disto para algum
fim legítimo.
CAPÍTULO 8
O telefone começou a tocar no momento em que ela vinha da cozinha, depois de ter falado com a cozinheira acerca do almoço das crianças. Atendeu na sala de estar.
- Alô.
Chegou-lhe ao ouvido uma voz familiar.
- Sally?
Deixou-se cair numa cadeira próxima.
- Sim.
- Daqui fala o Loren.
- Eu sei - respondeu. - Como é que estás?
- Óptimo-respondeu. Seguiu-se um silêncio desconfortável.- Queria ir até aí ver-te e às crianças, mas só regressei' há poucos dias e tenho tido imenso
que fazer.
- Eu compreendo - respondeu.
- O Júnior está em casa?
- Não. Não está no escritório?
- Não - respondeu.
- Saiu cedo, como de costume - disse Sally. - Talvez o carro tivesse alguma avaria pelo caminho.
- Não. Ele já esteve no escritório. - Houve uma ligeira hesitação na voz de Loren. - Tivemos uma discussão e ele saiu. Queria falar com ele. Fazes
alguma ideia onde é que o posso encontrar?
Às vezes ele vai ao Atlético Olub fazer sauna e massagem.
- Obrigado - disse. - Vou tentar ligar para lá. Adeus.
- Loren! - disse ela rapidamente.
- Sim?
- Não vens ver-nos? - perguntou. - O Loren Terceiro já está um rapaz crescido e ainda não conheces a tua neta. - Controlou-se a tempo para não dizer
a tua filha.
- Apareço lá mais para o fim da semana - disse. Hesitou um momento. - Tu estás bem?
- Sim - respondeu.
- Se o Júnior aparecer por aí, diz-lhe que me telefone.
- Eu digo - respondeu.
- Adeus.
- Loren, ainda te amo-disse rapidamente. Mas o estalido do telefone disse-lhe que ele já não estava em linha e não a tinha ouvido. Lentamente, pousou
o telefone e ficou sentada no mesmo sítio. Ainda sentia o coração aos saltos e perguntava a si própria se alguma vez modificariam os seus sentimentos para com ele.
A porta de entrada abriu-se de repente e Júnior entrou de rompante. Através da porta em arco viu-a sentada na sala e foi ter com ela.
Ainda ocupada com os seus próprios pensamentos, dirigiu-lhe a palavra.
- O teu pai telefonou agora mesmo. Quer que ligues para ele.
- Ele está doido!
Pela primeira vez viu como ele estava perturbado, com o rosto pálido e terroso.
- Que foi que aconteceu?
- Tentou matar-me. O Joe Warren está no hospital com um braço partido e, possivelmente, fractura do crânio! Está doido, é o que eu te digo!
- Porquê? - perguntou a mulher.
- A única coisa que eu lhe disse foi que ele não podia construir um carro novo e ele ficou como louco. Quis atirar-se a mim. Se não fosse o pobre
do Joe, podia muito bem ser eu que estava no hospital em vez dele.
- Isso não faz sentido - disse ela, espantada. - Tem que haver uma razão. Há bocado, ao telefone, pareceu-me perfeitamente calmo.
Júnior ficou a olhar para a mulher. A voz dele mudou.
- Vai lá para cima e faz as malas. Vamos pegar nas crianças e vamo-nos embora por uns tempos.
- Acalma-te - disse Sally pondo-se de pé. - Deixa-me arran- jar-te uma bebida.
- Não quero bebida nenhuma - disse com aspereza. - Faz mas é o que te digo. Vamos para o outro lado da fronteira, para a nossa residência de Verão
em Ontário.
Sally olhou para ele.
- Não vou levar as crianças para lado nenhum - disse teimosa. - Pelo menos enquanto não souber do que é que vamos a fugir.
- Tu estás do lado dele! - atirou-lhe num tom acusador.
- Não estou do lado de ninguém - respondeu.-O que eu tenho é duas crianças que não vou arrastar por aí como se fossem duas peças de bagagem, é só
isso.
- Entreguei o caso aos meus advogados - disse. - Eles aconselharam-me a afastar-me por uns tempos. Ele não pode tirar-me a companhia.
- Mas como é que ele podia fazer uma coisa dessas? - perguntou.- A companhia não é tua, é dele.
- Não venhas tu agora dizer-me de quem é a companhia! - quase gritou. - Eu sou administrador-delegado.
Sally não disse palavra.
- Ele vai mas é parar à cadeia! - atalhou Júnior. - O Joe assinou uma queixa por ofensas corporais e a polícia vai a caminho para o ir buscar. Já
assinei o meu depoimento
- Com certeza que o Joe fez alguma coisa para ele o deixar nesse estado - disse.:-Não acredito que o teu pai fosse...
- Não acreditas! - quase gritou. - Tu estás apaixonada por
ele!
Sally não respondeu.
- Ouve - disse Júnior muito sério -, a única coisa que o Joe fez quando o pai se quis atirar a mim, foi meter-se no meio. Nem a arma do Joe conseguiu
pará-lo!
- O Joe tinha uma arma? - A voz dela denotava espanto.
De repente, Júnior ficou silencioso. Depois, olhou para ela com ar astuto.
- E que é que isso tem? - perguntou, na defensiva. - Ele só estava a tentar proteger-me.
- Puseste' isso no teu depoimento? - perguntou. Júnior não respondeu.
- É por isso que os teus advogados querem que te afastes? Para não teres que responder a perguntas?
- E qual é a diferença? - perguntou. - Já é tempo de alguém mostrar ao meu pai que não pode dominar o mundo inteiro.
- E tu deixaste esse rufião ordinário puxar de uma arma contra o teu pai? - A voz dela estava cheia de uma estranha repulsa.
- És, realmente, um indivíduo doente.
- O que tu tens é ciúmes! - gritou de repente. - Sempre tiveste ciúmes da minha amizade pelo Joe, logo desde que eu o conheci! E só porque ele é um
verdadeiro homem, é o que é.
- Ele é mas é um reles gangster que não faz nada a não ser aterrorizar os mais fracos. E se tu fosses um verdadeiro homem, não precisavas de amigos
desses!
Avançou para ela, levantando a mão.
- Não faças isso! -disse com voz áspera, pegando no telefone.
- Se queres ir para algum lado, o melhor é ires tu lá acima fazer as malas, porque eu vou ligar agora mesmo para o teu pai e dizer-lhe que estás aqui.
Ficou um momento parado, a olhar, enquanto ela marcava o número. Depois, encaminhou-se para a porta; de repente, parou e quase se dobrou ao meio, agarrado ao estômago.
- Vou vomitar! -disse numa voz fraca e assustada.
Sally pousou o telefone e encaminhou-se para ele. Júnior começou aos arrancos, secos, fortes, arquejantes. A mulher passou-lhe o braço em volta dos ombros e ele
encostou-se, cambaleante, de encontro a ela, deixando-se guiar para o quarto de banho das visitas que ficava na entrada. Depois pôs-se a vomitar para o lavatório.
- Tens que me ajudar-disse em voz fraca entre dois arrancos.
- Já te estou a ajudar - respondeu calmamente. - Não vês que se eu te deixo destruir o teu pai te estás a destruir a ti mesmo? Se não fosse pelo teu
pai, julgas que alguém se importava que estivesses vivo ou morto?
- Tenho que me ir embora - disse. Começou a torcer as mãos.
- Não sei o que é que vou fazer se acontece alguma coisa ao Joe.
- Se queres, podes ir - disse calmamente - Mas vais sem mim e sem as crianças. E quando voltares, não vais encontrar-nos aqui.
A mansão Hardeman parecia estranhamente escura e deserta enquanto conduzia o carro pelo longo caminho serpenteante até à porta principal. Até a luz da entrada estava
apagada quando ela parou o carro debaixo do portal com os seus pilares de pedra. Desligou o motor e saiu.
O luar projectava uma sombra fraca enquanto subia os degraus que levavam até junto da porta. Carregou na campainha. Ouviu-lhe o som lá para os fundos da casa, ecoando
na noite silenciosa.
Esperou calmamente. Passados momentos, como não obtivesse resposta, carregou mais uma vez. Continuou a não haver resposta.
Tirou um cigarro da carteira e acendeu-o. O cigarro brilhou um instante na escuridão, iluminando-lhe o rosto no vidro da porta com a sua cortina por detrás. Depois,
apagou-se, deixando apenas a ponta do cigarro incandescente a brilhar-lhe à frente dos olhos.
Desceu novamente os degraus e levantou os olhos para a casa. Estava escura e silenciosa, não se via uma única luz por detrás de qualquer das janelas da frente. Lentamente,
começou a dar a volta à casa, esmagando com os saltos altos a gravilha do caminho na qual se enterravam. Era o único som que se ouvia na noite.
Deu a volta à esquina do edifício e viu a luz a brilhar numa janela do primeiro andar. Sabia muito bem onde era. A pequena sala ao lado do quarto de Loren onde ele
costumava beber o café da manhã enquanto lia os jornais e o correio.
Hesitou um momento com os olhos postos na janela. A luz queria dizer que estava em casa, mas agora que o sabia sentia uma relutância especial em o procurar. Depois,
inclinou-se rapidamente e apanhou uma mão cheia de cascalho que atirou de encontro à janela. O cascalho fez um tamborilar estranho na noite silenciosa e caiu ao
longo da parede arranhando-a.
Passado um momento, a janela da sacada abriu-se e a silhueta dele apareceu, recortada na luz que vinha do interior. Ficou parado, em silêncio, a olhar para baixo,
para a escuridão.
Do sítio onde se encontrava, ele parecia-lhe ainda mais alto e maior do que o tinha na memória e passou-se um momento antes que se desse conta de que ele não a podia
ver ali, na sombra. Sentiu o coração começar-lhe a bater doidamente.
"Oh, meu Deus", pensou desesperadamente, sentindo um desejo súbito de fugir e de se esconder. "Que é que eu lhe vou dizer?"
A voz dele ecoou na noite.
- Quem é?
Fosse como fosse, a força que emanava da voz dele fê-la chegar para a frente, onde a pálida luz da lua brilhou no rosto. De repente, soltou uma risada, tomada por
uma sensação de leviandade ridícula.
- Romeu, oh, Romeu - declamou. - Onde estás, Romeu?
Ficou um momento em silêncio a olhar para ela, depois riu-se.
- Espera aí, eu desço já. - Deu meio passo para trás e saltou o parapeito abaixo.- Loren!-gritou, quando ele se precipitou da janela.
Loren tocou no chão, flectindo as pernas e amortecendo a queda com as mãos. Já estava a endireitar-se quando Sally chegou junto dele.
Sorriu-lhe limpando as mãos às calças como um rapazito.
- Que tal para um Douglas Fairbanks?
Ficou parada, a olhá-lo no rosto.
- És louco! Podias ter-te matado.
Desviou os olhos em direcção à janela, e depois olhou-a de novo. A voz dele tomou um tom de arrependimento.
- Tens razão, sabes. - Depois, riu-se outra vez. - Mas a verdade é que era uma coisa que eu sempre tive vontade de fazer, desde que mandei construir
a casa nunca tive oportunidade para isso.-Começou a esfregar as mãos uma na outra.
- Deixa-me cá ver. - Pegou nas mãos dele e ficou a olhá-las. Estavam arranhadas e sujas.-Magoaste-te- disse.
- Não é nada.-Pegou-lhe no braço e encaminhou-a em volta da casa, em direcção à parte de frente.
- Vem, vamos lá para dentro.
- Como? - perguntou. - Toquei a campainha duas vezes. Ninguém respondeu.
- Os criados ainda não voltaram todos - disse. - E o mordomo saiu a seguir ao jantar.
Subiram os degraus da entrada.
- Então como é que vamos entrar? - perguntou ela.
- É fácil - respondeu. Deu a volta ao puxador e a porta abriu-se. - Não está fechada à chave.- Acendeu as luzes quando entraram em casa.
- Deixa cá ver outra vez as tuas mãos.
Estendeu-lhas com as palmas voltadas para cima. Nos arranhões começava a aparecer um traço de sangue.
- É melhor lavares já as mãos. E põe qualquer coisa para não infectar.
- Okay-disse.-Tenho um bocado de água oxigenada na minha casa de banho.
Ela seguiu-o, escada acima, até à casa de banho. Abriu a torneira do lavatório e pegou no sabonete que estava na saboneteira.
- Deixa-me fazer isso - disse.
Ele estendeu as mãos para debaixo da água, enquanto ela lhas lavava suavemente. Passado um momento, inspeccionou-as e como não as achasse satisfatórias, lavou-lhas
de novo com uma luva de toilette.
- Onde é que tens a água oxigenada?
Fez um gesto em direcção ao armário dos medicamentos. Ela abriu-o e tirou de lá um frasco.
- Estende as mãos por cima do lavatório.
Estendeu as mãos e ela deitou-lhes água oxigenada por cima. Ele estremeceu e retirou as mãos.
- Queima.
- Não sejas criança - ordenou. - Deixa-te estar quieto. - Despejou o frasco e o líquido fez bolhas e pareceu ferver-lhe por cima das mãos. Ela tirou
uma toalha limpa do toalheiro e secou-lhe as mãos com pancadas suaves.
- Então, não estás melhor assim?
Olhou para ela.
- Estou.
Ela sentiu-se corar. Baixou os olhos. '
- Precisava de te ver - disse.
Vem, vamos tomar qualquer coisa.
Seguiu-o pela escada abaixo até à biblioteca. Ele abriu um armário e tirou para foram uma garrafa de uísque canadiano e dois copos.
- Posso ir buscar gelo, se quiseres.
Ela sacudiu a cabeça.
Despejou a bebida em dois copos pequenos e passou-lhe um.
- Saúde.
Ela provou a bebida e o uísque escorreu-lhe pela garganta, queimando-a. Ele bebeu de um trago e encheu novamente o copo.
- Senta-te - disse.
Ela sentou-se no sofá de couro e, desajeitadamente, compôs a saia por cima dos joelhos enquanto ele puxava uma cadeira para se sentar em frente dela. Depois olhou
para ele.
- Júnior foi para a casa de Ontário - disse.
Ele não disse nada.
- Recusei-me a ir com ele - disse.
Continuou silencioso.
- Vou deixá-lo - disse.
Ele hesitou um momento.
- E as crianças?
- Levo-as comigo.
- Para onde vais?
Ficou a olhar para ele.
- Ainda não tinha pensado nisso. - Na voz dela surgiu uma nota de surpresa. - Hei-de pensar num sítio qualquer.
Ele despejou o copo e pôs-se de pé; dirigindo-se ao bar, encheu-o outra vez. Voltou-se e ficou a olhar para ela.
- Lamento muito - retorquiu.
- Tinha que acontecer, mais tarde ou mais cedo.Hesitou um momento, depois disse encaminhando-se para ela:
- Acho que sim. Só não queria que acontecesse por minha causa.
- Eu sei - respondeu. - Mas não foi essa a razão. Acho que em pensamento já tinha a resolução tomada. Só que a partir do momento em que ele conheceu
o Joe Warren as coisas foram de mal a pior.
Ficou a olhar para ela.
- Joe Warren - disse com amargura. - Para qualquer lado que me volte ouço esse nome.
- O Júnior disse-me que o Warren assinou uma queixa por agressão contra ti e que o xerife te ia buscar.
- Eu sei disso - respondeu. - Mas tenho por lá uns bons amigos e eles ignoraram a coisa.
- Ainda bem - disse. - Mas não penses que fica por aí. O Joe é um verdadeiro patife e não vai desistir. Tem o Júnior pelos cabelos.
Ficou a olhar para ela.
- Isso é que é uma coisa que não consigo perceber. Que raio de ascendente tem ele sobre o Júnior que o faz pular como uma marioneta cada vez que ele
puxa os cordelinhos?
- Não sabes? - perguntou olhando-o fixamente nos olhos.
- Não.
- O Joe Warren é o amigo querido do Júnior - disse ela com toda a naturalidade.
O rosto de Loren tomou uma expressão de espanto.
- O amigo querido?
De repente, a ingenuidade daquele homem gigantesco, a sua cegueira em relação ao filho tocaram-na profundamente. A voz dela tornou-se muito suave.
- Julgava que sabias - disse. - Parece que é do conhecimento de toda a gente em Detroit. Desde o dia em que se conheceram na sauna do Atlético Club.
Viu o choque encher-lhe os olhos que tinha fitos nela. A mão dele começou a tremer, entornando o uísque pelos lados do copo. Lentamente pousou-o em cima da mesa.
Ela viu as marcas cinzentas do Inverno começarem a aparecer-lhe no rosto. De repente, pôs as mãos à frente da cara e um soluçar forte e avassalador sacudiu-lhe o
corpo.
Ela ficou um momento muito quieta, depois, aproximou-se dele e ajoelhou em frente da cadeira onde estava sentado. Puxou-lhe a cabeça para o ombro e apertou-o muito
de encontro a ela.
- Lamento muito - disse com suavidade. - Lamento mesmo muito.
CAPÍTULO 9
Passavam alguns minutos das sete da tarde quando Melanie Walker desceu do carro eléctrico e iniciou a caminhada de quatro quarteirões até casa. Durante o dia, depois
de ter parado a chuva da manhã, fora arrefecendo e agora sentia o vento nocturno soprar-lhe forte através do casaco fino. Aconchegou-o ao corpo ao dobrar a esquina
e continuou pela rua abaixo.
-Yens atrasada - disse a mãe quando ela entrou a porta.- - Nós já comemos. Vais ter que te remediar com o que sobrou.
- Não me importo - disse Melanie. - Também não tenho fome.
- Pensávamos... - ia dizer a mãe.
- Calem-se - gritou o pai do sítio onde estava sentado, em frente do rádio, a um canto da cozinha.-Não vêem que estou a ouvir Amos e Andvl
A rapariga despiu o casaco e saiu da sala. Pendurou-o cuidadosamente num cabide, atrás da porta do quarto dela. Depois, tirou o vestido e as cuecas e colocou-os
muito bem estendidos em cima da cama. Depois de jantar, ia tirar os vincos com o ferro para ficar apresentável para o dia seguinte. Enfiou um vestido de trazer por
casa, de algodão, e, amarrando-lhe a fita em volta da cintura, voltou para a cozinha.
A mãe já tinha posto umas fatias de carnes frias num prato em cima da mesa, juntamente com um bocado de alface já meio queimada e umas fatias de tomate meio esmagado,
ao lado de um prato com pão e manteiga.
Melanie ficou a olhar para aquilo.
- Não é outra vez liverwurst e bologna?
A mãe sacudiu a cabeça.
- Que é que esperavas? Devias era estar em casa à hora do jantar.
- Tive que trabalhar até mais tarde - disse - Hoje estive no gabinete do Sr. Hardeman.
- Devias ter-me telefonado - disse a mãe.
- Não tive tempo. Além disso, sabe que o Sr. mcnanus não gosta lá muito de ser incomodado.
McManus era o vizinho do andar de baixo. Era o único inquilino que tinha telefone. Era polícia na cidade.
-'Mas não costumamos incomodá-lo - disse a mãe.
O pai largou a rir, ruidosamente. Ainda às risadas, levantou-se da cadeira e dirigiu-se para a geleira e tirou uma garrafa de cerveja caseira. Com um movimento experiente,
fez saltar a tampa e meteu a garrafa na boca antes que a espuma começasse a ir por fora. Bebeu longamente e, depois, segurou a garrafa em frente do estômago imenso.
- Aqueles negros são do mais engraçado - arrotou. - Principalmente o Kingfish. Convenceu o Amos a comprar um carro novo e, agora, o Amos não consegue
fazer o primeiro pagamento e quer que o vendedor receba de novo o carro e lhe devolva o calhambeque. - Começou a rir-se só de pensar na história. - Andy meteu mãos
à obra para resolver a questão e, agora, o vendedor ficou com os dois carros e eles sem nenhum.
Nenhuma das mulheres se riu. Ficou um momento a olhar para
elas.
-Tem piada, percebem? - explicou. - O Amos comprou um carro novo e...
- Se achas que os negros têm tanta piada, porque é que ficas furioso por virem viver a uns quarteirões de nossa casa? - perguntou a mulher.
- Isso é diferente-respondeu. - Amos e Andy são negros bons. Conhecem o seu lugar. Não tentam ir viver para os sítios onde vivem os brancos. Ficam
com os da sua espécie, que é como deve ser.
As mulheres não lhe responderam; ele olhou para Melanie que começara a espalhar manteiga numa fatia de pão.
- Porque é que vieste tão tarde?
- Hoje tive que trabalhar até mais tarde no escritório do Sr. Har- deman-disse. Pegou num pedaço de liverwurst.
O pai fez um sorriso.
- Tu, pelo menos, não tens que te preocupar que ele tente dar-te um apalpão quando passas ao lado da secretária dele.
- Não foi esse, foi o pai -disse. Mastigou o liverwurst. Era farinhento e insípido.
- Estás a falar do Número Um? - perguntou o pai numa voz cheia de curiosidade. - Ele já voltou?
A rapariga fez que sim com a cabeça.
- O teu namorado é que não vai gostar disso.
Ficou a olhar para ele.
- Quantas vezes é que eu tenho que lhe dizer que o Sr. Warren não é o meu namorado? Só lá porque janto com ele de vez em quando, isso não quer dizer
nada.
- Okay, okay - disse o pai num tom conciliador. - Está bem, ele não é o teu namorado. Mas mesmo assim não vai gostar. Faz o que quer do Número Dois.
O velho é outra louça. Ninguém manda nele.
Melanie tentou a bolonhesa. Também não estava melhor. Afastou o prato.
- Não tenho fome - disse para a mãe.-Tem café?- Não queres uns ovos? - perguntou a mãe.
Sacudiu a cabeça.
- Não. Só quero café. - Olhou para o pai. - Saiu à procura de trabalho?
- Para quê? - respondeu. - Não se arranja nada.
- Lá na companhia abriram hoje vagas para seis maquinistas. Apareceram mais de oitocentos homens.
- E não esperas que eu me vá pôr em bicha no meio desses polacos e negros, pois não? Não te esqueças de que fui capataz da Chrysler.
- Só que, neste momento, não és nada - disse a mãe.-Há quase três anos que estás sem trabalho. Se não fosse a Melanie estar a trabalhar, tínhamos
que ir todos pedir esmola para a rua.
- Não te metas! - atalhou o pai, zangado. Voltou-se novamente para Melanie. - Além disso, o teu namorado prometeu-me a primeira vaga que aparecesse,
não foi?
Melanie fez que sim com a cabeça.
- Mas isso era para um emprego de capataz - disse a mãe. - Nenhuma das fábricas está a contratar capatazes. E tu, que é que vais fazer? Ficar por
aí o resto da vida à espera que te apareça um emprego desses?
- Já te disse que não te metesses! -berrou o pai. -Que é que tu queres que eu faça? Descer na vida?
- Só quero que arranjes trabalho - disse a mãe, teimosa.
- Eu arranjo trabalho - murmurou o pai. - Logo que nos livrarmos de todos esses estrangeiros e negros que se juntaram para aí depois da guerra, à
procura de dinheiro fácil.
- Eles não se vão embora - disse a mãe de Melanie. - A guerra já acabou há quinze anos e eles ainda cá estão.
- Havemos de nos livrar deles - disse o pai. - Espera que logo vês. Havemos de lhes mostrar que ninguém faz sombra aos verdadeiros americanos. - Uma
onda de música vinda do rádio chegou-lhe aos ouvidos.-Isto é "A Hora da Comédia", de Fleischman - disse -, encaminhando-se, outra vez, para junto do rádio. - Agora
vocês, mulheres, não me façam barulho. Não quero perder pitada.
- Há água quente que chegue para um banho?-perguntou Melanie. - Estou tão cansada. Acho que me sabia bem.
- Espera um minuto que eu vou ver.
A mãe foi até um canto da cozinha e encostou a palma da mão à parte de fora do depósito da água.
- Não.
Ajoelhou-se ao lado do depósito e ligou o gás ao mesmo tempo, acendendo um fósforo. Nada.
- O contador deve estar desligado outra vez - disse.-Tens aí uma moeda?
- Vou buscar - disse Melanie. Foi ao quarto e abriu a carteira. Tirou uma moeda de um pequeno monte de trocos que sempre trazia lá dentro e voltou
para a cozinha. - Tome.
A mãe pegou no dinheiro, puxou uma cadeira para junto do lava-louça e trepou lá para cima. Estendeu o braço e colocou a moeda na ranhura, ao mesmo tempo que dava
duas sonoras palmadas no contador e a moeda caía tilintando lá dentro.
- A mãe faz sempre isso - disse Melanie.
- É assim que o contador nos dá mais duas horas de gás - disse a mãe com ar convencido, ao mesmo tempo que descia da cadeira. Tentou outra vez o aquecedor.
Desta vez, acendeu.
Ia precisamente meter-se dentro da banheira quando a mãe bateu à porta da casa de banho.
- É uma chamada para ti. O Sr. Warren no telefone lá de baixo do Sr. McManus.
- Vou já - disse, estendendo a mão para o vestido de trazer por casa. Desceu as escadas. A porta dos McManus estava entreaberta. Bateu antes de entrar.
O Sr. McManus estava em frente do rádio praticamente na mesma posição que o pai dela no andar de cima. A Sr.a McManus veio à porta.
- Peço desculpa de vir incomodar - disse Melanie.
- Não faz mal - respondeu a mulher.
Melanie entrou para o vestíbulo minúsculo que ficava entre a cozinha e os quartos. O telefone estava em cima de uma mesinha pequena. Pegou no aparelho.
- Alô.
- Melanie? - perguntou a voz familiar.
- Sim.
- Preciso falar contigo imediatamente. Estou no St. Joseph's Hospital.
- Eu sei - respondeu a rapariga. A história e os boatos tinham corrido toda a fábrica. - Está bem?
- Estou óptimo - respondeu. - Mas os estúpidos dos médicos não me deixam sair. Querem-me cá em observação.
- Talvez seja melhor descansar - respondeu.
- Quero falar contigo.
- Ia agora mesmo tomar banho - disse. - Além disso, levo quase duas horas para me pôr aí de eléctrico.
- Eu mando um carro buscar-te - disse secamente. - Espera cá em baixo em frente da tua porta, daqui a meia hora. - Mal acabou de falar, desligou e
ela pousou o auscultador.
Foi até à cozinha.
- Muito obrigada - disse para a minúscula irlandesa.
McManus desviou-se do rádio e olhou para ela. Qualquer coisa
nos olhos do homem lhe dizia que ele percebera que estava nua por debaixo do vestido. Inconscientemente, aconchegou-o mais no peito.
- O seu pai já está a trabalhar?
- Ainda não, Sr. McManus - respondeu delicadamente, enca- minhando-se para a porta.
- Os tempos estão difíceis - disse num tom pesado. - E sabe-se lá o que é que está para vir.
Melanie já estava quase do lado de fora da porta.
- Obrigada por me deixar servir do seu telefone, Sr. McManus.
- Não tem importância - disse ele.-Desde-que não abuse como fazem certas pessoas que eu conheço.
- Boa noite - respondeu, fechando a porta. Meia hora depois, saía do quarto dela, completamente vestida.
A mãe olhou-a surpreendida.
- Onde é que tu vais a esta hora da noite? São quase nove horas.
- Vou visitar o Sr. Warren. Ele está no St. Joseph's Hospital.
O pai afastou-se do rádio.
- Que é que lhe aconteceu?
- Teve um acidente. Diz que não foi nada de grave.
- A estas horas da noite levas quase duas horas para lá chegar - disse a mãe. - É perigoso uma rapariga andar por aí sozinha nestes sítios, agora
que os negros vivem aqui tão perto.
- Ele vai mandar um carro buscar-me.
O pai pôs-se de pé.
- Deve precisar muito de falar contigo. Para que é?
- Não sei. Mas ele é o meu patrão. Deve ser qualquer negócio.
O pai teve um sorriso mordaz.
-- Estou mesmo a ver o negócio que deve ser. - Voltou-se para a mulher. - Está-me a parecer que, se calhar, o Sr. Warren tem qualquer ideia a respeito da nossa cachopa.
A mãe tomou um ar contrariado.
- Pára com os teus pensamentos pouco dignos. Eu conheço a minha Melanie. É uma rapariga como deve ser.
- Eu volto o mais depressa que puder - disse Melanie, esgueirando-se porta fora.
O pai gritou-lhe quando já ia pela escada abaixo:
- Não te esqueças de lhe lembrar a promessa que fez ao teu pai!
Estava sentado na cama, com o braço direito esticado para a frente e suspenso de uma roldana, a cabeça ligada e vários pensos grandes e quadrados na face direita.
Não esperou que ela falasse quando entrou no quarto.
- A secção de pessoal disse-me ao telefone que hoje não receberam as cópias habituais vindas do teu gabinete.
- Não havia nenhumas - respondeu. - O Sr. Hardeman não ditou uma palavra.
- Isso é esquisito - disse.-A semana passada esteve três dias no escritório e passou-os a escrever memorandos.
- Hoje não houve nenhum - disse. - Há um grande falatório lá na fábrica que o Sr. Hardeman lhe deu uma tareia. O que foi que aconteceu?
- Tropecei num tapete no escritório e fui bater com a cabeça na esquina de uma secretária, foi só isso.
Olhou-o sem dizer nada. Se aquilo tinha acontecido no gabinete do Número Dois, como diziam, era de esperar que fosse suficientemente esperto para não contar uma
história daquelas. O Sr. Hardeman Júnior não tinha tapetes no gabinete dele.
- Também não receberam a tua relação de telefonemas - disse.
- O Sr. Hardeman apareceu ao fim do dia e tirou-ma. Além disso, fez todas as chamadas para o exterior na linha directa, que não passa pela minha secretária.
- E as pessoas com quem falou pessoalmente? Quem é que foi falar com ele?
- Logo de manhã, chamou o Sr. Coburn, o Sr. Edgerton e o Sr. Duncan.
- De que é que falaram?
- Não sei - respondeu. - Ele mandou-me ir à cantina. Quando me chamou, já eles se tinham ido embora.
- Quem mais foi falar com ele?
A rapariga ficou um momento a pensar.
- De manhã, foi o Sr. Williams, das vendas, e o Sr. Conrad, da secção de compras.
- De que é que falaram?
- Não sei.
- Tens ordens para conservar o interruptor do intercomunicador ligado para poderes tomar notas sempre que há uma reunião no gabinete dele!
- E eu tinha o interruptor ligado - respondeu. - Mas não se ouvia nada. Ele desligava a ficha cada vez que alguém entrava no gabinete.
Warren ficou um momento em silêncio.
- Veio mais alguém?
- Sim - disse.-Um Sr. Frank Perino.
- Já sei de que é que eles falaram. Perino é o contrabandista e o Número Um gosta do uísque que ele lhe arranja.
- Não foi isso - disse a rapariga. -O filho do Sr. Perino é médico e ele queria que o Sr. Hardeman o metesse num hospital de Detroit. Parecia que
estava a ter problemas por causa dos seus antecedentes. O Sr. Hardeman arranjou tudo.
Warren ficou surpreendido.
- Como é que soubeste isso?
- O Sr. Hardeman chamou-me para ir ao escritório levar-lhe café e aspirina. Estive lá todo o tempo que ele esteve com o Sr. Perino. - Hesitou um momento.
- O Sr. Hardeman toma inensa aspirina. Deve ter tomado pelo menos doze comprimidos durante o dia.
- Okey - disse ele -, fica mas é com os olhos e os ouvidos bem abertos. Tenta saber o mais que puderes e telefona-me todas as noites.
- Está bem - disse. - Quanto tempo pensa ficar aqui?
- Os médicos dizem que me deixam sair daqui a dois ou três dias.
- Lamento que se tenha magoado - disse.
Pôs-se a olhar para ela.
- Sabes porque é que eu te escolhi para ires para o gabinete do Número Um?
A rapariga sacudiu a cabeça.
- Por seres alta e grande, ele gosta de mulheres grandes.
- Não percebo - disse.
- Não sejas estúpida - atalhou. - Conheces a reputação dele. Mais tarde ou mais cedo, vai-se meter contigo.
- E nessa altura que é que eu faço?
- Finges que lhe dás sorte - respondeu. - Ganha a confiança dele. Depois, tem-lo na mão.
- E se eu não lhe der sorte?
Ficou a olhar para ela.
- Há outras raparigas que gostariam desse lugar.
Baixou os olhos. Ficou silenciosa.
Ele riu-se. Tinha agora um tom de voz diferente.
- Disseste que ias tomar banho. Tinhas alguma coisa vestida quando te falei ao telefone?
Melanie não levantou os olhos. A expressão que vira no rosto do Sr. McManus atravessou-lhe rapidamente o espírito.
- Um vestido de trazer por casa.
- E tinhas alguma coisa por baixo? - A voz dele estava a ficar roufenha.
- Não.
- Chega-te aqui ao pé da cama.
A rapariga levantou a cabeça, olhou para ele e, depois, para o homem que a tinha conduzido até ali. Estava de pé, encostado à porta, a observá-los impassível.
Warren percebeu para onde ela estava a olhar.
- Não te preocupes com o Mike. É o meu guarda-costas. Aliás, não vê nada.
A rapariga não se mexeu.
- Eu disse-te que viesses aqui!
Com relutância, ela aproximou-se da cama. Ele pegou-lhe na mão e pô-la entre as pernas, por cima do lençol.
- Estou com tesão só de pensar nisso - disse.
Ficou calada.
- Puxa o lençol para baixo.
Ela começou a tirar o lençol. Ele estremeceu de dor, repentinamente.
- Tem cuidado, que raio!
A rapariga puxou o lençol todo para baixo, devagarinho, até onde a camisa do hospital começava a deixar ver-lhe as pernas magras e peludas. A parte da frente da
camisa pendia como uma tenda por cima do falo erecto.
- Levanta a camisa e faz-me vir - disse-, mas tem cuidado não abanes a cama que me faz doer o braço.
Ela levantou a camisa com todo o cuidado. Tinha o órgão cheio e erecto e a ponta vermelha da glande tentava libertar-se do prepúcio. Devagarinho, ela libertou-o
e começou a massajá-lo. Em breve, tinha as mãos molhadas e escorregadias com o fluido que jorrava dele.
- Oh, céus, é bom - disse, encostando a cabeça às almofadas, com os olhos fechados. -Põe-me a outra mão por baixo dos tomates e espreme-os um bocadinho.
Os testículos pareciam pedras na mão dela.
- Mais depressa, mais depressa.
Começou a espremê-lo rapidamente; a boca abriu-se-lhe e a respiração começou a acompanhar o ritmo dos movimentos dela.
- Agora sim - gemeu.
Passou um momento.
- Põe-o na boca - disse de repente-, estou quase a vir!
Ela hesitou, olhando de relance para o homem que estava encostado à porta. Este olhou-a sem expressão. Depois, sentiu a mão de Warren nos cabelos, empurrando-lhe
a cara para baixo. Abriu a boca automaticamente.
Quando chegou perto dele já o orgasmo tinha começado e as primeiras gotas quentes de esperma viscoso bateram-lhe de encontro às faces antes de começar a recebê-lo
na boca. Engoliu rapidamente para impedir que a torrente impetuosa a sufocasse e, passado um momento tudo estava acabado.
Warren reclinou-se na almofada, com os olhos fechados.
- És quase tão boa com a boca como alguns dos bichas que eu conheço.
Não respondeu.
Ele abriu os olhos e olhou para ela e, depois, para o guarda-
-costas.
- Que é que achas, Mike? Achas que ela é tão boa como o nosso amiguinho?
- Não me parece, chefe - respondeu o guarda-costas. - Ele parece que goza mais.
Warren riu-se.
- Se calhar quando sairmos daqui tu é que lhe vais dar umas lições.
Pela primeira vez a voz do guarda-costas mostrou-se chocada.
. -Bem sabe que eu não gosto de raparigas.
Warren riu-se outra vez.
- Não é isso que eu quero dizer. É só mostrares-lhe como é que se faz. - Voltou-se novamente para ela, desta vez com voz fria. - Vai buscar uma toalha
e lava-me.
Foi à minúscula casa de banho. Viu no espelho as próprias faces luzidias e molhadas do líquido leitoso. Limpou a cara e, depois, voltou para o quarto.
Passados momentos, as cobertas estavam de novo estendidas por cima dele.
- Óptimo. Não vale a pena a enfermeira ficar a saber o que se passa.
A rapariga não disse nada. Era sempre assim que as coisas se passavam quando estava com ele. Nunca, em ocasião nenhuma, tinham tido relações de outra maneira, nem
ele manifestara desejo disso. Se ela ainda fosse virgem, pela parte dele, continuaria com o hímen intacto.
- Dá-lhe cinco dólares e manda-a para casa de táxi - disse ele para o guarda-costas.
Mike aproximou-se dela, com uma nota de cinco dólares na mão. A rapariga recebeu-a e ele voltou para junto da porta. Ela olhou na direcção da cama.
- Telefona-me para aqui amanhã logo que saíres do trabalho.
- Está bem-disse. - Boa noite.
- Boa noite - respondeu.
Mike deu um passo para o lado e abriu a porta para a deixar sair. Ouviu a porta fechar-se atrás dela, enquanto seguia ao longo do comprido corredor do hospital.Uma
vez cá fora, olhou para a mão. Amarfanhada na palma, tinha a nota de cinco dólares. Chegou-lhe aos ouvidos o ruído de um eléctrico que se aproximava. Olhou outra
vez para a nota e, depois, para a fila dos táxis. De repente, começou a correr para a esquina, para a paragem dos eléctricos.
Podia bem levar mais de duas horas para chegar a casa. Mas cinco dólares era mais do que aquilo que ganhava num dia.
CAPÍTULO 10
Edgerton atravessou o gabinete.
- Estou preocupado, Sr. Hardeman - disse. - É o segundo dia de pagamentos em que os bancos estão fechados e estamos a ter uma série de queixas dos
empregados. As lojas não querem aceitar os nossos cheques.
- Nós temos cobertura - disse Loren.
- Mas não somos só nós - disse Edgerton. - São os bancos. Já são muitos a fechar de vez. Já ouvi dizer que os homens vão deixar de vir trabalhar a
menos que lhes paguemos em dinheiro.
- Então, paguem-lhes em dinheiro - disse Loren.
- Não o temos - disse Edgerton simplesmente. -A nossa folha de pagamentos vai a cento e quarenta mil. Ninguém tem tanto dinheiro à mão.
- Então, arranjem-no.
- Onde? Os bancos estão fechados para nós tal como para eles.
Loren ficou um momento pensativo.
- Que é que a secção de pessoal diz a isto?
- O Warren passou a coisa para mim. Diz que compete ao tesoureiro arranjar o dinheiro para a folha de pagamentos.
- E ele já explicou a situação aos empregados?
- Ele diz que sim.
- Não foi isso que eu perguntei. Ele já explicou?
- Não sei. Ouvi dizer que um grupo de homens foi falar com ele por causa disso e que ele os despediu a todos.
- Porquê?
- Disse que eram agitadores. Disse que eram todos Wobblies que queriam sindicalizar a fábrica e que se estavam a servir disto como desculpa.
-E que é que você pensa?
- Conheço alguns desses homens. São empregados antigos. Não creio que sejam Wobblies.
- E se fossem qual era a diferença? Não continuavam a ter direito ao seu salário?
- Sim - disse Edgerton.
Loren accionou o botão do intercomunicador. Respondeu-lhe a voz de Melanie.
- Sim, Sr. Hardeman.
- Peça ao Sr. Warren que venha aqui imediatamente-disse, desligando o interruptor.
Passados alguns minutos, Joe Warren entrou no gabinete. Ainda trazia o braço ao peito e o olhar cauteloso.
- Warren, ouvi dizer que estamos a ter problemas* pelo facto de os nossos empregados não conseguirem cobrar os cheques do pagamento.
Warren começou com mansidão.
- O Sr. Hardeman não pode deixar de reconhecer que, nos últimos anos, temos estado a sofrer infiltrações por parte dos I.W.W., dos comunistas e organizadores
de sindicatos. Não são os nossos homens que estão a causar a agitação. São eles.
- Quer dizer que os nossos homens conseguem receber o dinheiro dos cheques?
- Não - disse Warren. - Mas os nossos homens não se queixam.
- Como é que sabe?
- Conheço os bons e os maus - disse Warren.
- E só os maus é que se queixam, é isso? - perguntou Loren sarcástico.
- É verdade, Sr. Hardeman.
- Já lhes explicou a situação? - perguntou Loren.
- Não há nada a explicar - respondeu Warren. - Todas as outras companhias estão na mesma situação. Todos sabem isso.
- Mas se eles não conseguem receber os cheques e se não lhes dão crédito nas lojas, como é que eles vão comer? - perguntou Loren.
- O problema não é nosso - disse Warren. - Não somos nós que temos que governar o dinheiro do nosso pessoal. Se eles não conseguem criar o seu próprio
crédito, é lamentável.
- Se as lojas não aceitam os nossos cheques - perguntou Loren-, não lhe parece que é o nosso crédito que está a ser posto em causa e não o deles?
Warren não respondeu.
- Já tomou alguma iniciativa no sentido de assegurar aos comerciantes locais que a Bethlehem Motors dará cobertura aos seus cheques, independentemente
do banco sobre o qual tenham sido emitidos?
Não me pareceu que isso fosse necessário-respondeu Warren. Loren ficou silencioso. Estudava o homem que tinha sentado à
sua frente. Warren tinha qualquer coisa de feroz, mesmo quando estava sentado quieto. Havia nele um ar de fria crueldade que nenhuma amabilidade superficial, por
mais intensa, conseguia dissipar.
- Não percebo porque é que se há-de preocupar com pormenores tão mesquinhos, Sr. Hardeman - disse Warren. - Eu consigo perfeitamente controlar a situação.
Entretanto, podemos aproveitar as circunstâncias para identificar os maus empregados da fábrica e desembaraçarmo-nos deles.
Loren não disse palavra.
- Já nos livrámos de mais de vinte agitadores - disse Warren.
- E já temos mais debaixo de olho.
Loren continuou silencioso. Warren pôs-se de pé.
- Deixe isso por minha conta, Sr. Hardeman. Vai ver que tudo se arranja. - Dirigiu-se para a porta.
- Sente-se, Warren!-atalhou Loren. - Não lhe dei autorização para sair!
Warren hesitou um momento e, depois, voltou a sentar-se. Com todo o cuidado apoiou o braço que tinha ao peito no braço da cadeira.
- Quero que mande uma carta a todos os negociantes e armazéns da área em como a Bethlehem Motors garante a cobertura a todos os cheques de ordenados
emitidos por nós, independentemente do banco a que digam respeito.
Warren sacudiu a cabeça.
- Não pode fazer isso, Sr. Hardeman. Uma carta dessas tem que ser aprovada pelo presidente da companhia ou pelo conselho de administração.
- Então, dê-a a assinar ao presidente - disse Loren.
- Não sei onde é que ele está - disse Warren brandamente.
- Há mais de duas semanas que não o vejo. E o senhor?
Loren ficou a olhar para ele. Warren sabia muito bem que ele nunca mais tinha visto o filho desde aquele dia da cena no gabinete dele.
- Então prepare a carta que eu assino-a.
- Não tem autoridade para isso - disse Warren calmamente.
- Não pode comprometer a companhia com um prejuízo dessa ordem, caso os bancos vão à falência.
- Não há nada nos regulamentos da companhia que me impeça de garantir esses cheques pessoalmente, pois não?
- Aquilo que o senhor faz pessoalmente não nos diz respeito - disse Warren.
- Então, prepare a carta nesses termos para eu assinar - disse Loren.
- Como queira - disse Warren. - Há mais alguma coisa?
- Sim - disse Loren. - Informe também os empregados de que o próximo pagamento será em dinheiro.
-Muito bem - disse Warren. - Mas vai ser o diabo se o dinheiro não aparece no dia do pagamento.
- O problema é meu - disse Loren. - Agora, pode retirar-se.
Ficaram em silêncio até que a porta se fechou atrás de Warren.
Nessa altura, Edgerton voltou-se para Loren.
- Onde é que vai arranjar o dinheiro? , *
- Hei-de arranjá-lo em algum sítio - disse Loren. Olhou para a porta fechada. - Que é que diz o último relatório do Duncan?
- Tudo deve ficar concluído na próxima semana. Os novos carros devem estar a sair da linha ainda este mês.
- Óptimo - Loren sorriu de satisfação. Isso reduz a metade o tempo que o Charlie Sorensen da Ford precisa para passar para o novo modelo. Seis semanas
em vez de noventa dias. - Tirou um cigarro da caixa que tinha em cima da secretária. - Acha que ele sabe disso?
- Com o sistema de espionagem que ele tem? - perguntou Edgerton e depois respondeu à sua própria pergunta. - Tenho a certeza de que sabe.
- Mas não fizeram nada - perguntou Loren. - Do que é que acha que eles estão à espera?
- Na verdade, não podem fazer grande coisa neste momento. O facto de terem fechado os bancos jogou a nosso favor, neste caso. Os banqueiros estão
demasiado ocupados com os seus próprios problemas para nos darem atenção a nós. E a reunião do conselho de administração é daqui a mais de uma semana.
Loren ficou um momento a pensar.
- Entre em contacto com o Duncan e diga-lhe que quero a linha de produção em funcionamento dentro de uma semana, não me interessa como é que ele vai
fazer. Quero esse carro cá fora antes da reunião.
- Isso quer dizer que vamos ter que pôr de lado o contrato com a Ford para as carroçarias - disse Edgerton.
- Então, ponham-no de lado.
- O Bennett vai ficar furioso. Vai processar-nos.
- Não processa nada - disse Loren. - Eu falo com o Edsel e o Charlie Sorensen. - Ficou um momento em silêncio. - Estou cá a pensar se haverá alguma
combinação entre o Bennett e o Warren?
- Sei que são bons amigos - disse Edgerton -, Warren acaba de comprar uma casa em Grosse Pointe Isles, ao lado da de Bennett.
Loren ficou a olhar para ele.
- Ouvi dizer que as compras estão todas concentradas no departamento do Warren.
- Não é má ideia - disse Edgerton. - Controlo central. Conseguem-se preços melhores do que comprando departamento por departamento.
- Não disse que não fosse boa ideia - disse Loren rapidamente. - Estava só a pensar se não seria útil dar uma vista de olhos com atenção à secção
de compras.
Edgerton sorriu.
- Não fazia mal nenhum.
- Consegue fazer isso sem que ele se dê conta do que se está a passar?
- Acho que sim - disse Edgerton. - Estamos quase na altura da nossa auditoria anual. Basta fazer com que a rapaziada dê uma vista de olhos mais atenta
aos contratos de compra.
- Então faça isso e informe-me do que se passar. - Loren pôs-se de pé.
Loren pôs-se também de pé. Olhou para Loren.
- Sr. Hardeman - disse hesitante.- O que é, Walt?
- Alegra-me que esteja de volta - disse.
- Avô! Avô! - as vozes das crianças saudaram-no à entrada da porta. Ele abriu os braços e arrebatou-os no ar. Beijou primeiro o rosto de Anne, depois
o de Loren III.
- Tu hoje portaste-te bem? - perguntou ao neto.
- Portou-se muito bem - disse Anne com a sua vozita de três anos. - Hoje só me bateu uma vez.
- Só uma vez? - Loren fingiu-se chocado. Olhou para o rapaz. - E porque é que tu fizeste isso?
- A culpa foi minha - disse Anne. - Eu bati-lhe primeiro.
- Não se esqueçam das regras - disse muito sério. - Já disse que não quero mais brigas.
- Nós tentamos lembrar-nos, avô - disse o rapazito -, mas às vezes esquecemo-nos.
- Não se esqueçam - disse.
- Cavalinho! Cavalinho! - gritou Anne.
- Sim! Cavalinho! - ecoou o irmão.Loren pô-los no chão e depois pôs-se de gatas, com as mãos e os joelhos no chão. Os pequenos treparam-lhe para as
costas, Anne, à frente, enterrava-lhe as mãozitas minúsculas no cabelo, Loren III ia atrás, agarrado ao cinto do avô.
- Pony Express! - gritava o rapaz batendo com a mão no traseiro do avô.
- Mais depressa! Mais depressa! - gritava Anne, feliz.
Loren rastejou rapidamente até à biblioteca com os pequenos
às costas, aos solavancos, para cima e para baixo. Parou em frente de umas pernas com meias de seda e sapatos de salto alto e olhou para cima.
- Mas o que vem a ser isto? - perguntou Sally, tentando manter um tom ríspido.
- Olha só - disse Loren. - Nós somos o Pony Express da Wells Fargo. -? E lançou-se num galope rápido em volta da sala. Depois, foi parar em frente
de Sally.
- Pronto, filhos-disse Sally com firmeza. - Chega. Estão a aborrecer o avô. São horas de irem jantar.
- Mas nós queremos brincar! - gritou Loren III.
- O avô está cansado. Trabalhou muito todo o dia - disse Sally tirando-o de cima das costas do avô. Anne escorregou para o chão. - Agora, dêem um
beijo ao avô e vamos jantar.
- Podemos brincar mais um bocadinho depois de jantar? - perguntou Anne.
- Não, depois de jantar vão os dois para a cama, mas se comerem tudo, o avô vai lá acima e conta-lhes uma história antes de adormecerem.
- Verdade, avô? - perguntou Loren III.
- Aposto o teu lindo rabinho - disse Loren, pondo-se de pé.
As crianças apanharam-lhe o dito.
- Aposto o teu lindo rabinho! - gritaram, saindo a correr da sala, enquanto as suas vozitas ecoavam vindas da entrada. - Aposto o teu lindo rabinho!
Sally franziu a testa.
- Que linda coisa para ensinar às crianças - disse, tentando ficar séria. - Ainda és mais criança do que eles.
Loren riu:
-'Deixa lá que não lhes faz mal.
- Tenho gelo e uísque no bar - disse ela. - Queres que te arranje uma bebida?
Ele fez que sim com a cabeça e ficou a vê-la dirigir-se para o bar. Voltou para junto dele com o uísque cor de âmbar e o gelo a tilintar dentro do copo. Ele pegou
na bebida. Tinha os olhos postos na cara dela.
-'Sempre disse que uma casa precisa do toque de uma mulher.
Sally ficou um momento a olhar para ele sem falar, depois voltou-se, foi até ao bar e preparou uma bebida para ela. Voltou para junto dele.
- Hoje falei com o Júnior - disse, sem se sentar.
-? Sim - disse numa voz sem expressão.
- Queria que eu voltasse para casa. Disse que, se eu voltasse, ele voltava também.
Loren levou o copo à boca, sem falar.
Disse-lhe que não volto nunca mais.
- Que é que ele disse?
- Ficou furioso e disse uma porção de coisas.
- Que coisas?
- Que sabia aquilo que nós estávamos a fazer e que não o enganávamos a ele nem a ninguém. Que tinha provas de que dormíamos juntos e que não hesitaria
em as usar em tribunal para me tirar as crianças.
Loren sacudiu a cabeça tristemente.
- É mais do que isso - disse ela.-Há tanto ódio dentro dele que o cega.
Loren levantou os olhos para ela.
- Que é que vais fazer?
- Não posso continuar aqui - disse. - Não vale a pena arrastar-te para toda esta confusão. Estava a pensar ir para Inglaterra.
- Pensas divorciar-te primeiro?
- Sim - disse. - Se ele concordasse, podia ir a Reno.
- E depois que é que fazias?
- Ia para Inglaterra com as crianças. As escolas lá são boas. E, pelo menos, falam a mesma língua.
Passados momentos, ele pousou o copo.
-Quando é que o Júnior disse que voltava?
- Para a semana. Disse que tinha que estar cá por causa de uma reunião do conselho de administração.
Batia certo. E também dava para entender porque é que o Warren estava tão manso. Iam deixá-lo a ele cavar a sua própria sepultura. Pôs-se de pé.
- Não precisas de ir para lado nenhum, sabes muito bem - disse. -- Podes ficar aqui mesmo na mansão Hardeman. As crianças sentem-se felizes e eu estou-me
nas tintas para o que ele possa fazer.
Sally olhou-o nos olhos.
- As crianças nunca se sentiram tão felizes. Nestas duas semanas brincaste mais com eles do que o pai desde que eles nasceram. Mas não está bem, por
tua causa. Já tens problemas que te cheguem.
- Pensas nisso - disse. - Não tomes nenhuma decisão, por enquanto.
Fez que sim com a cabeça. Ele continuou:
- Vou até lá acima estender-me um bocado antes do jantar. Quando estiver pronto, chama-me.
-'Outra vez a dor de cabeça? Fez sinal que sim.
- Queres que te vá buscar aspirina?
- Não. Já tomei bastantes hoje. Vou tentar passar sem ela. Talvez me faça bem descansar um bocado.
Ficou a vê-lo sair da sala e ouviu-lhe os passos na escada. Depois, afundou-se numa cadeira. Sentia as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Não era justo. Pura e simplesmente
não era justo.
De repente, ocorreu-lhe uma ideia. Correu pela escafla acima e entrou no quarto dele sem bater.
Vinha a sair da casa de banho com a camisa já desabotoada. Olhou para ela.
- É que eu nem pensei em ti - disse, rapidamente.-Nem naquilo que tu queres.
Não respondeu.
- Se isso te tornar as coisas mais fáceis eu volto para ele. Loren respirou fundo e, depois, abriu os braços em direcção
a ela. Sally refugiou-se neles e encostou-lhe a cara ao peito largo.
- Eu não quero que vás para lado nenhum a não ser para onde estás agora - disse ele.
CAPÍTULO 11
Através do intercomunicador, a voz de Melanie soou abafada e cheia de admiração.
- A Casa Branca ao telefone, Sr. Hardeman.
Loren desligou o interruptor e pegou no telefone.
- Alô.
Ouviu-se a voz de um homem.
- Sr. Hardeman?
- O próprio.
- Um momento, vai falar o presidente dos Estados Unidos.
Ouviu-se um estalido.
- Sr. Hardeman? - A voz era inconfundível. Já a tinha ouvido muitas vezes na rádio.
- Sim, Sr. Presidente
- Lamento muito que nunca tenhamos chegado à fala, mas quero que saiba que lhe estou pessoalmente muito grato pela sua contribuição para o fundo da
campanha democrática.- Estou-lhe muito agradecido pela sua amabilidade, Sr. Presidente.
- E agora tenho um favor muito importante a pedir-lhe, Sr. Har- deman, e peço-lhe que o considere. - O presidente foi direito à questão. - Como sabe,
na minha opinião, o problema mais grave que a nação defronta é a depressão e o desemprego que daí resulta, de tal forma que apresentei ao Congresso um documento
que intitulei Acta de Recuperação Nacional. Contido neste documento está o plano geral para a reconstrução e reabilitação das nossas indústrias através da adopção
de práticas mútuas a efectuar por meio de auto-ajuda e regulamentação governamental.
- Já li alguma coisa acerca disso, Sr. Presidente - disse Loren. Os jornais de Detroit já vinham cheios com essa questão, denun- ciando-a na generalidade
como uma tentativa para a socialização da indústria automóvel, colocando-a sob o controlo do governo.
- Tenho a certeza disso, Sr. Hardeman. - O presidente fez uma pausa. - E também tenho a certeza de que não leu nada de bom a esse respeito.
- Tanto não diria, Sr. Presidente. Há algumas propostas práticas que merecem ser consideradas.
- É aí que entra o meu favor - disse o presidente. - Gostaria que o senhor viesse a Washington para ajudar a desenvolver a secção da ARN que diz respeito
à sua indústria. Ficará a trabalhar directamente com o general Hugh Johnson, que aceitou a posição de responsável geral. Dado que consideramos a indústria automóvel
como a pedra chave da nossa economia, pode ver até que ponto é importante a contribuição que irá dar ao seu país.
- Sinto-me muito lisonjeado com semelhante honra, Sr. Presidente- disse Loren-, mas tenho a certeza de que há outras pessoas mais dignas e mais capazes
de ocupar tal posição.
- Está a ser modesto, Sr. Hardeman - disse o presidente com uma risada. - E isso não condiz com o que tenho ouvido a seu respeito. Mas o senhor foi
a nossa primeira escolha e espero que considere bem o caso.
- Com certeza, Sr. Presidente - disse Loren. - Mas a minha própria companhia está a ter graves problemas e não sei se poderei ausentar-me neste momento.
-Sr. Hardeman - disse o presidente-, o país inteiro está em sérias dificuldades. Tenho a certeza de que, como cidadão responsável, não pode deixar de compreender
que, a menos que o país recupere do seu mal-estar, a sua companhia também não vai recuperar. - Parou um momento. - Agradeço-lhe que me comunique a sua decisão ainda
esta semana, Sr. Hardeman, e espero que ela seja favorável.
- Informá-lo-ei, Sr. Presidente - disse Loren.
- Adeus, Sr. Hardeman.
- Adeus, Sr. Presidente. - Loren pousou o telefone. Pegou num cigarro e acendeu-o. O presidente Roosevelt não perdia tempo. Tinha prometido causar
uma certa excitação e era isso mesmo que estava a acontecer.
O intercomunicador fez-se ouvir de novo. Accionou o interruptor.
-Sim, Miss Walker?
- Está quase na hora da reunião do conselho de administração, Sr. Hardeman. ,
- Obrigado, Miss Walker. É capaz de me trazer o meu dossier?
- Levo-o já, Sr. Hardeman.
Passado um momento, entrou no gabinete dele e colocou o dossier em cima da secretária. Em vez de sair, como fazia habitualmente, hesitou.
Loren olhou para a rapariga.
- O que é, Miss Walker?
Ela corou.
- Foi mesmo o presidente Roosevelt que falou ao telefone?
- Foi sim. - Loren acenou com a cabeça. Abriu o dossier e ficou a olhar para ele. Depois, levantou os olhos. A rapariga continuava no mesmo sítio.
- O que é, Miss Walker?
- Eu votei nele - disse.-Foi a primeira vez que votei.
- Eu também. - Sorriu.
Ela sorriu de repente.
- Gosto do som da voz dele no rádio. É uma voz quente e cordial. Parece que está mesmo a falar connosco.
Era a primeira vez que ele a via sorrir. Olhou para ela.
- Sabe uma coisa, Miss Walker, você é uma rapariga muito bonita - disse. - Devia sorrir mais vezes.
Ela corou outra vez.
- Muito obrigada, Sr. Hardeman.
Ficou a vê-la dirigir-se para a porta. Era esquisito, mas nunca tinha olhado para ela antes. Era uma rapariga muito atraente. A porta fechou-se atrás dela. Baixou
novamente os olhos para o dossier.
Chegou deliberadamente alguns minutos atrasado. Os outros membros do conselho já estavam na sala, reunidos em pequenos grupos, embrenhados a conversar. Fez-se silêncio
quando ele entrou. Não perdeu tempo com as saudações habituais. Em vez disso, bateu com os nós dos dedos em cima da mesa.
- Senhores membros deste conselho, querem ter a bondade de ocupar os vossos lugares? - perguntou.
Silenciosamente tomaram as suas posições em volta da comprida mesa rectangular. Júnior sentou-se à frente dele, à cabeceira da mesa. Warren sentou-se à direita de
Júnior. Havia mais onze pessoas à mesa contando na direcção de Loren. Coburn e Edgerton eram os únicos empregados da companhia, além de Warren, que faziam parte
do conselho de administração. Os restantes membros eram representantes dos bancos e companhias de seguros para com quem estavam em dívida e vários outros membros
suplementares, administradores de outras sociedades não concorrentes.
- O presidente da mesa declara abertos os trabalhos e põe à consideração uma moção para que se suspenda a leitura das minutas da reunião precedente,
das quais se encontra uma cópia no dossier que tendes à vossa frente.
Esperou. Coburn fez a moção, Edgerton secundou-a e ela foi aceite unânime e rapidamente pelos restantes membros do conselho. Feito isso, aguardou uma moção para
que a agenda fosse apresentada ao conselho.
- Sr. presidente da mesa - disse Júnior.
- Faz favor, Sr. Presidente - respondeu formalmente.
- Gostaria de colocar uma moção para que se retardassem os trabalhos da agenda a favor de outro assunto de maior importância.
- O presidente da mesa não tem qualquer objecção, Sr. Presidente-? disse. - Alguém secunda a moção?
- Eu secundo a moção - disse Warren.
- O presidente da mesa abstém-se de votar - disse. - O conselho procederá seguidamente à votação da moção que lhe foi apresentada pelo presidente
desta companhia. Todos os que são a favor digam "Sim".
Houve onze "sins"; os dois "nãos" vieram de Edgerton e Coburn. Loren sorriu. *
- Está aprovada a apresentação da moção.-Tirou um cigarro da caixa que estava em cima da mesa à frente dele, acendeu-o e recostou-se na cadeira.
Júnior estava de pé quase antes que Loren tivesse tido tempo de expelir a primeira lufada de fumo.
- Acuso o presidente desta assembleia de ter excedido a sua autoridade no exercício das suas funções e de outras faltas de propriedade graves e prejudiciais
ao bem-estar da companhia e peço a sua demissão!Na sala fez-se um silêncio de pedra. Loren sorriu de novo. Pousou cuidadosamente o cigarro.
- Teremos todo o prazer em considerar o pedido do Sr. Presidente se ele o apresentar devidamente ao conselho sob a forma de moção. - Fez uma pausa
de alguns momentos, mas não o bastante para dar a Júnior a oportunidade de falar outra vez. - O presidente desta mesa tem igualmente o prazer de apresentar uma moção
para que esta assembleia visite a linha de montagem número três antes de proceder a quaisquer outros trabalhos.
Coburn tomou a deixa. Edgerton secundou-o. A curiosidade impeliu o resto do conselho a seu favor. Os únicos dois votos contra foram o de Júnior e Warren. * *
*
- A moção foi aprovada - Loren pôs-se de pé. - A reunião vai continuar na linha de montagem número três. Queiram seguir-me, meus senhores.
Duncan pôs-se a andar ao lado dele logo que saíram do edifício da administração.
- Ande devagar - sussurrou o escocês, pelo canto da boca. -- O primeiro carro só deve chegar ao fim da linha daqui a dez minutos.
Loren fez que sim com a cabeça. Deliberadamente, levou-os pelo caminho mais comprido. Passaram exactamente nove minutos até chegarem à extremidade da linha de produção
na linha de montagem número três.
Loren voltou-se para os membros do conselho.
- Presumo que todos sabem guiar um automóvel?
Fizeram que sim com a cabeça.
- Óptimo - Loren sorriu. Olhou para a linha de produção. Um carro avançava em direcção a eles. - Caso estejam a perguntar a si próprios qual a razão
por que lhes pedi que viessem até aqui, quero mostrar-lhes essa razão.
O carro passou o último posto de inspecção e chegou à frente deles, azul-escuro e brilhante.
- Aqui têm o primeiro Baby Sundancer saído da linha. Será vendido a menos de quinhentos dólares e coloca-nos firmemente no mercado dos carros económicos,
juntamente com a Ford, a Chrysler, a Plymouth e a Chevrolet.
Fez uma pausa.
- O Sr. John Duncan, nosso engenheiro chefe e desenhador, conduzirá o primeiro carro ao cais de embarque, onde ele vai ser metido num comboio para
começar a sua viagem a caminho do agente. Se cada um dos senhores quiser tomar conta de um carro, à medida que eles vão saindo, e seguir atrás do Sr. Duncan, terão
a oportunidade de julgar por si próprios as qualidades do carro.
Chegados ao fim do percurso, tereis um autocarro à vossa espera para vos trazer de regresso ao edifício da administração.
Duncan meteu-se no carro e pôs o motor a trabalhar. Afas- tou-se lentamente quando chegou o segundo carro. Este era de um cor-de-vinho-escuro.
Loren pegou num dos directores pelo braço.
- Vá, ponha-se ao volante.
O homem meteu-se no carro e pô-lo em funcionamento. A partir daí, não houve problema. Os homens nem podiam esperar pela sua vez. Pareciam crianças com um brinquedo
novo. Os carros foram saindo, um atrás do outro, até que só faltavam Loren, Júnior e Warren.
- Não se safa assim! - rosnou Júnior.
Loren sorriu.
- Já me safei, filho. - Tirou um maço de cigarros da algibeira. - Enfrentemos os factos. Tu já perdeste a batalha. No momento em que aqueles homens
se meteram no automóvel.
Loren acendeu o cigarro.
- Se queres um conselho, salta para o carro que vier a seguir e vai até ao cais receber as felicitações do conselho de administração. Não está aqui
ninguém que diga o contrário.
Júnior hesitou. Olhou para Warren.
- É melhor decidires-te - disse Loren. - Eis o carro. Se não te metes lá dentro meto-me eu.
O carro, de um amarelo-vivo, parou. Sem uma palavra, Júnior meteu-se no carro e afastou-se.
Apareceu o carro seguinte, negro de carvão e luzidio. Warren olhou para Loren com ar interrogador. Loren hesitou um momento.
- Este foi o décimo terceiro carro a sair da linha - disse finalmente.
- Eu não sou supersticioso - respondeu Warren.
Loren encolheu os ombros. Ficou a ver Warren saltar para dentro do carro e afastar-se com sofreguidão. O carro ia a cerca de quinhentos metros quando se deu a explosão.
O estrondo ecoou por toda a fábrica, trazendo homens e mulheres dos seus escritórios e linhas de produção. Uma nuvem de poeira ficou suspensa no ar e, quando pousou,
não restava mais nada do automóvel a não ser algumas peças de metal, torcidas e torturadas.
Loren voltou-se e tomou a direcção do edifício da administração enquanto as pessoas passavam por ele a correr. Havia três mecânicos de fato-macaco branco, com as
letras azuis B. M. C. escritas nas costas, que se encaminhavam para o portão à frente dele.
O mais baixo dos três deixou-se ficar para trás e pôs-se a caminhar ao lado de Loren. Caminharam em silêncio até chegarem à porta do edifício da administração. Nessa
altura, Loren voltou-se e baixou os olhos para ele.
- Avisei-o de que era o carro número treze -- disse -, mas ele respondeu que não era supersticioso.
Os olhos castanho-escuros do homenzinho puseram-se a observá-lo por baixo das sobrancelhas escuras e pesadas.
- Um homem sem superstição é um homem sem alma - disse.
Loren ficou um momento em silêncio.
- Estou a pensar no que teria acontecido se eu me tivesse metido nesse carro - disse, por fim. -
A voz do homem mais baixo tomou um tom magoado.
- Os meus rapazes são muito profissionais - disse. - Nunca lhe teriam permitido que pusesse aquele carro a trabalhar.
Loren fez que sim com a cabeça. O lampejo de um sorriso apareceu-lhe nos olhos.
- Peço desculpa por ter pensado tal coisa -disse.-Adeus, Sr. Perino.
- Adeus, Sr. Hardeman.
Loren ficou parado a ver o homenzinho baixo apressar-se para apanhar os dois companheiros. Viu o guarda de segurança do portão voltar cuidadosamente as costas para
não ver passar os três homens.
A recepcionista à entrada do edifício da administração estava precisamente a pousar o telefone quando ele entrou.
- Sr. Hardeman! - exclamou numa voz excitada. - Acaba de explodir um carro à saída da linha três!
--Eu sei - respondeu, dirigindo-se para o elevador e carregando no botão.
- Quem seria que ia lá dentro?-disse a recepcionista, enquanto as portas do elevador se abriam.
Loren entrou e carregou no botão.
- Um pobre diabo qualquer.
CAPÍTULO 12
A neve, que caía em flocos brancos e macios, cobria parte da grande cúpula do Capitólio, com a sua iluminação feérica, no momento em que ela olhou pela janela da
pequena casa de Washington na qual tinham vivido o último ano e meio. Passava das nove. Mais uma noite comprida.
-Voltou para o sofá, em frente da lareira acesa. As chamas ao saltar lançavam o calor em direcção a ela, criando uma nota de conforto antigo e familiar. Havia
já tantas noites que esperava por ele naquela cadeira, em frente daquele mesmo fogo. De uma maneira ou doutra, havia sempre uma emergência em Washington.
- Governo de crise - dissera ele uma noite em que tinha chegado particularmente tarde. - Não deve ser lá muito divertido para ti.
- Não me queixo - dissera. E estava a ser sincera. Detroit parecia-lhe distante, um outro mundo. Um mundo completamente egocêntrico cujos horizontes
começavam num amortecedor dianteiro e acabavam no amortecedor traseiro.
- Não quero voltar, nunca mais - tinha acrescentado.
Loren tinha olhado para ela de uma forma curiosa, mas não tinha dito nada.
- As crianças também gostam disto - disse. - Todos os dias a ama as leva a um sítio diferente, um sítio excitante, cheio de história. Imagina o que
aprenderam desde que aqui estão. É como estar a crescer vendo tudo neste mundo acontecer diante dos nossos próprios olhos.
- Não te tens sentido muito só? - perguntou. - Longe dos teus amigos?
- Quais amigos? Em Detroit os únicos amigos que tinha eram as mulheres dos homens que trabalhavam para a Bethlehem ou queriam ir trabalhar para lá.
Sentia-me lá mais só do que aqui. Pelo menos aqui, quando vamos a uma festa temos mais coisas de que falar sem ser só de automóveis.
O som da porta da frente interrompeu-lhe os pensamentos. Levantou-se do sofá e encaminhou-se para a entrada. O mordomo já tinha pegado no chapéu e no casaco de Loren,
que estavam cobertos de neve, e estava a pendurá-los no armário, quando chegou junto dele.
- Desculpa chegar atrasado - disse, beijando-a no rosto.
Os lábios dele estavam frios.
- Não faz mal - respondeu rapidamente. - Vem para junto do lume para te aqueceres.
Loren enterrou-se num sofá, cansado, estendendo as mãos para o fogo. Ela olhou-o preocupada. Nunca o tinha visto tão cansado, as sobrancelhas franzidas com a dor
de cabeça que agora parecia ser constante.
- Deixa-me arranjar-te uma bebida.
Dirigiu-se ao aparador e preparou-lhe uma bebida rapidamente. Quando voltou, ele tinha encostado a cabeça ao sofá e fechado os olhos. Sentiu a presença dela. Em
silêncio, pegou no copo e bebeu um pouco. Sally sentou-se ao lado dele, sem falar.
Loren voltou-se para ela.
- Bom, está tudo acabado - disse numa voz cansada.
Olhou para ele, espantada.
- Que é que queres dizer?
- Não ouviste as notícias?
Sacudiu a cabeça.
- Estive a ler um livro, não ouvi a rádio esta noite.
- O Supremo Tribunal decretou hoje que a ARN era inconstitucional.
- Que é que isso quer dizer? - perguntou.
Um meio sorriso surgiu-lhe nos lábios.
- Uma das coisas que quer dizer é que eu estou desempregado. Perdi o emprego, como muitos outros. - Levou o copo à boca e sorriu outra vez. - Quanto
será que recebe, em caso de despedimento, um indivíduo que ganha um dólar por ano?
- Talvez dois dólares por ano?-: sugeriu ela.
Loren riu-se.
- Seja como for, o presidente nunca me prometeu um emprego permanente.
- Falaste com ele?
- Não, mas falei com Hugh Johnson. O general estava excitadíssimo, a praguejar, convencido de que o país ia a caminho da ruína e da perdição sem ele
ao leme.
- Que é que vai acontecer agora? - perguntou.
- Não sei - respondeu, encolhendo os ombros. - Tanto quanto consigo perceber, no mundo da política, quando uma pessoa perde, enrola a tenda e desaparece
silenciosamente na noite.
- Foi uma coisa tão rápida que ainda nem consigo acreditar - disse ela.
- Acreditarias, se tivesses visto os amanuenses e a secretárias a encher as pastas de provisões e clips para papel - disse
Quando é que soubeste?
- Esta manhã, quando o Supremo Tribunal fez a notificação. Foi um pandemônio imediato. Toda a gente a correr em círculos, sem fazer nada a não ser
aumentar a confusão geral. De repente, mostrou-se zangado. - O pior de tudo foram as notícias de Detroit. Por lá, ficaram todos loucos. Fizeram tudo, só faltou
decretarem feriado. Idiotas chapados!
Bebeu mais um golo.
- O que ninguém parece ter compreendido é que sem a ARN mais vale darem meia volta e entregarem toda a indústria aos três grandes. Nash, Studebaker,
Willys, Hudson, Packard, estão todos condenados. É só uma questão de tempo até que todos os fabricantes de automóveis independentes estejam fora de jogo.
- Com certeza que eles compreendem isso - disse Sally.
- Não vêem um palmo diante do nariz - disse sarcástico. - Pensam que podem competir com a Ford, a GM e a Chrysler agora que se acabou o controlo.
Não têm qualquer hipótese. As grandes companhias fabricam mais barato e vendem mais barato.
- E isso aplica-se também à Bethlehem? - perguntou.
Olhou para ela.
- Sim.
- Há alguma coisa a fazer?
Fez que sim com a cabeça.
- Concentrarnos-emos no lado mais económico da gama de preço médio. Um carro que se situasse entre o Chevy e o Pontiac. Esse deve ser o mercado para
o Sundancer durante, pelo menos, os próximos dez anos.
- E o Baby Sundancer? - perguntou Sally.
- Já cumpriu o seu programa - respondeu. - Manteve-nos de pé quando o único mercado que havia era o dos carros de baixo preço. Mas, presentemente,
os custos estão a subir e não podemos competir com os outros. Segundo os meus cálculos, no próximo ano, as coisas já devem ter melhorado o suficiente para deixarmos
de o fabricar.
Ela ficou um momento pensativa.
- Vou ter pena de o ver desaparecer. Gostava daquele carrito.
- Não passava de um bastardo - disse num tom afectuoso. - Feito com os restos dos outros carros, mas tinha o seu interesse.
O mordomo bateu discretamente antes de entrar na sala.
- O jantar está pronto, minha senhora.
Passava da meia-noite, quando levantou os olhos da secretária, no pequeno estúdio da casa, depois de concluído o seu trabalho. Começou a juntar os papéis e a metê-los
na pasta. Ficou um momento a olhar para a pasta. Depois, fechou-a com um movimento rápido. Havia qualquer coisa de definitivo nesse gesto. Estava acabado. Era uma
parte do passado. Não havia nenhuma razão para continuar ali depois de fazer a entrega dos papéis no dia seguinte.
Pôs-se de pé e, apagando a luz, saiu da sala. Subiu silenciosamente a escada escura e seguiu pelo corredor até ao seu quarto.
Preparava-se para acender a luz, quando ouviu a voz dela, vinda da cama.
- Loren! Não acendas a luz!
Ficou um momento parado, depois, fechou a porta, devagarinho.
-< Porquê?- Estive a chorar - disse. - Sei que estou horrível.
Atravessou o quarto em direcção a ela, com os olhos a habituarem-se à escuridão. Estava sentada na cama, com as almofadas atrás das costas.
- Chorar não remedeia nada - disse.-Nunca.
- Eu sei. Mas fomos felizes aqui.
Levou um cigarro à boca. Ela estendeu a mão.
- Posso?
Deu-lho, em silêncio. A ponta brilhou, incandescente, iluminan- do-lhe fracamente o rosto. Tinha os olhos quase luminosos.
- Loren? ?
- Sim?
- Eu não volto para Detroit - disse, com voz suave. - Já sabias, não sabias?
- Sabia - respondeu.
- Mas eu quero estar contigo.
- Então, vem para Detroit - disse rapidamente. - A mansão Hardeman é bastante grande. Podemos...
- Não, Loren - interrompeu. - Não é a mesma coisa. Detroit não é Washington. Aqui sou aceite. Sou a tua nora que se ocupa da casa do sogro viúvo.
Lá, continuo a ser a mulher do teu filho que está a viver contigo enquanto o marido vive ali adiante. Não dá.
- Então, divorcia-te dele - disse com aspereza - e já nos podemos casar.
- Não. Uma das coisas que eu aprendi acerca de Detroit é que um crime de morte pode ser perdoado, mas nuqca um divórcio. Tu ainda deves aos bancos
vinte milhões de dólares. Qualquer escândalo público levar-te-ia a perder aquilo que levaste a vida inteira a construir.
Ficou silencioso.
- Sabes que eu tenho razão, Loren - disse. - Pedir-te-ia que fosses tu a vir comigo, mas há uma coisa que tu não podes deixar de fazer. Construir
automóveis, Loren. Se páras, morres.
Loren encaminhou-se para a janela. A neve tinha parado de cair e a noite estava clara, com as estrelas a brilhar no céu azul-escuro.
- Que é que vais fazer?
- Vou ficar aqui mais algum tempo - disse. - Depois, talvez vá para Nova Iorque. Daqui a pouco as crianças começam com a escola. Há lá boas escolas.
- Vou sentir a falta deles - disse.
- E eles ainda vão sentir mais a tua. Desenvolveram por ti um amor profundo.
Ele sentiu as lágrimas virem-lhe aos olhos e pestanejou para as afastar. Mas agora até mesmo as estrelas eram uma imagem confusa.
- Posso ir visitá-los?
- Espero bem que vás. Muitas vezes.
Lentamente, Loren começou a despir-se. Pôs a roupa numa cadeira e dirigiu-se para a casa de banho. Sally chamou-o e ele parou.
- Loren, nada de pijamas esta noite, por favor. Quero dormir nua contigo.
- Posso lavar os dentes? - sorriu.
- Sim - respondeu. - Mas despacha-te. Quero-te dentro de mim.
- Então para quê esperar? - perguntou, metendo-se na cama.
As pernas dela rodearam-lhe o corpo e ele, com as mãos grandes
e fortes, agarrou-lhe as nádegas enquanto penetrava nela.
- Oh, meu Deus - gritou Sally, com um desespero repentino na voz. - Como é que eu vou conseguir viver sem ti?
CAPITULO 13
Melanie estava à espera, junto à mesa da cozinha, a ler o jornal da tarde, quando o pai entrou em casa. Olhou por cima do ombro da rapariga para os cabeçalhos.
PROVA FINAL PREVISTA HOJE NA FORD
DEARBORN DÁ À UAW DIREITO DE DISTRIBUIR FOLHETOS -
JUNTO A RIVER ROUGE
Começou a desabotoar o blusão cinzento do uniforme da Polícia de Segurança da Ford, ao mesmo tempo que se encaminhava para a geleira. Tirou uma garrafa de cerveja
e abriu-a. Pondo a garrafa à boca, bebeu até ela ficar meio vazia e, depois, pousou-a em cima da mesa e arrotou.
Melanie não levantou os olhos. Começou a voltar as páginas, à procura da secção das mulheres.
- Podes dizer ao teu patrão amigo dos comunas que observe bem amanhã como é que uma companhia a sério trata da saúde ao sindicato - disse o pai despindo
o blusão. Desapertou a gravata e pegou outra vez na cerveja.
- Que é que quer dizer com isso? - levantou os olhos para ele.
- Amanhã já vais ver. - Teve um sorriso misterioso. - A única coisa que eu te posso dizer é que estamos prontos para aqueles malandros daqueles comunas.
Hão-de desejar nunca terem tido o okay da cidade de Dearborn.
- Mas vocês não podem fazer nada - disse a rapariga, olhando novamente para o jornal. - Eles têm a lei do lado deles.
- A Ford tem o direito de proteger aquilo que lhe pertence - disse. Olhou para ela. - Lá porque o teu patrão se encolheu e cedeu ao sindicato, não
quer dizer que vamos ter que depor as armas e aceitar tudo.
- O Sr. Hardeman diz que é só uma questão de tempo até que toda a indústria esteja sindicalizada.
- Isso é o que ele pensa - respondeu o pai. - Amanhãf já ele vai ver que não é assim. - Acabou de beber a cerveja. - Porque é que ainda estás com
esse fato?
- Vou trabalhar esta noite - respondeu. - O Sr. Hardeman tem uma reunião de directores em casa dele, depois de jantar. Eu tenho que ir para tomar
notas.
Fez-lhe um sorriso irónico.
- Não admira que ele te deixe usar o carro da companhia. Ultimamente tens andado a trabalhar muito de noite.
Não respondeu.
- Onde é que está a tua mãe? - perguntou repentinamente.
- Daqui a minutos está aí - disse-, está lá em baixo com a Sr.a McManus.
O pai tirou outra garrafa de cerveja e deixou-se cair numa cadeira em frente dela. Quando falou, fê-lo num tom confidencial.
- Podes contar tudo ao teu velho. Ele sabe como são essas coisas. Que é que se passa entre ti e o Número Um?
- Nada - respondeu.
Abriu a garrafa.
- Nada? És esperta de mais para estar convencida de que o teu pai vai acreditar nisso. - Bebeu uma golada de cerveja. A voz tornou-se-lhe ardilosa.
- Da mesma maneira que também não havia nada entre ti e o Joe Warren.
A rapariga não respondeu.
- Eu sei tudo o que se passou com esse - disse. - E também não sou eu que te censuro por isso. Se não fosses tu, apareciam, pelo menos, uma centena
de raparigas desejosas de fazer o trabalho.
Ela sentiu-se corar. Levantou-se da cadeira.
- Só sabe pensar no mal.
O pai sorriu-lhe.
- Há um tipo que está a trabalhar comigo lá na Ford. Foi guarda-costas do Warren. O nome dele é Mike. Lembras-te dele?
O rosto ardia-lhe. Não se mexeu.- Ele não sabe que tu és minha filha. Os nomes não lhe dizem nada. Eram tantas. Mas lembra-se de ter ido buscar uma
rapariga, uma vez à noite, e de a ter levado ao Joe Warren, ao hospital. E também se lembra do que ela fez. - Bebeu mais uma golada de cerveja da garrafa. - Por
isso, não me venhas para cá fazer de menina inocentinha à espera que eu acredite que não fazes o mesmo ao Número Um e se calhar ainda mais. As raparigas como tu
não arranjam carros e cinquenta dólares por semana só a escrever à máquina.
Tentou falar, mas as palavras ficaram-lhe presas na garganta.
O pai largou a rir.
- Só o que eu acho é que te estás a vender muito barato. O Número Um está habituado a largar boa massa pelas raparigas com quem anda. Mike diz que
ele andava enrolado com a própria nora e que lhe deu um milhãozinho bem contado para ela se divorciar sem alarido, no ano passado, para não haver merda.
Abruptamente, deu meia volta e atravessou a entrada a correr até ao quarto dela. Atirou com a porta e começou a chorar. Através das paredes finas continuava a ouvir
o som do riso dele, obscenamente zombeteiro.
A carta estava em cima da mesa da biblioteca quando Loren voltou para casa. Reconheceu a letra no envelope, a maneira característica como a palavra "Pessoal" estava
sublinhada com uma linha ondulante. Pegou-lhe. O carimbo era de Nova Iorque, 23 de Maio, à tarde.
Pegou no corta-papel, de prata, e, cuidadosamente, abriu o sobrescrito. Havia mais de um ano que não sabia dela. Desde a altura em que tinham combinado não se voltar
a ver. Tinha um estranho pressentimento de que já sabia qual o conteúdo da carta. Não se enganava.
Querido Loren
Quando, há muito tempo, me disseste que eu não era o género de mulher que conseguisse viver sozinha e que, um dia, havia de encontrar um homem a quem pudesse dar
o meu amor, não te acreditei. Se te lembras, respondi-te que, para ti, era fácil falar. Que és um homem e tens conhecido muitas mulheres e que talvez até tenhas
amado algumas delas, à tua maneira. Também disse que comigo não era assim, que não me parecia que alguma vez pudesse amar outro homem.
Estava enganada e tu sempre soubeste que o estava. Na próxima terça-feira, vou casar-me com o capitão Hugh
Scott, da marinha americana. Ele comanda um porta-aviões estacionado na base de Pensacola, Florida, para onde vamos viver. A única razão que me leva a escrever esta
carta é que eu prefiro que saibas a notícia por mim antes de a veres nos jornais. As crianças estão bem e estão felizes e eu também. Se tens alguma coisa a desejar-me...
deseja-me...
Amor, Sally
Dobrou cuidadosamente a carta e meteu-a, de novo, no sobrescrito. Por momentos, pensou em pegar no telefone e ligar para ela, para Nova Iorque. Mas isso não ia alterar
nada. Estava tudo acabado. Lentamente, rasgou a carta em pedacinhos e deixou-os cair, um a um, no cesto dos papéis.
Melanie chegou precisamente quando estava a acabar de jantar. Levantou os olhos quando o mordomo a fez entrar na sala de jantar.
- Já jantaste?
- Já - respondeu. - Venho de casa.
- Então, senta-te e toma café comigo.
O mordomo segurou na cadeira para ela se sentar e, depois, pôs-lhe uma chávena de café em frente. O homem saiu da sala e ela ficou a beber o café em silêncio.
Passado um momento, Loren sorriu-lhe.
- Estás muito silenciosa e muito solene esta noite, Melanie.
- Acho que o meu pai sabe do que se passa entre nós.
Loren olhou para ela.
- Sabe ou suspeita? Há uma grande diferença.
- Mas não para o meu pai - respondeu. - Para ele é o mesmo.
- E daí?-perguntou. - Ele não pode fazer nada.
- A si, não - disse. - Mas a mim pode tornar-me a vida num inferno.
- E porque é que não arranjas uma casa tua? Ele agora já tem trabalho. É tempo de começares a gastar algum dinheiro contigo.
- Não posso fazer isso à minha mãe. O senhor não conhece o meu pai. Não tem outra preocupação a não ser ele próprio. Se não fosse eu, dava com ela
em doida.
- Eu dou-te um aumento - disse. - Assim, podes continuar a dar-lhes o mesmo.
- Não é só o dinheiro - disse.-É ele. É um indivíduo mau. E ainda se nota mais desde que começou a trabalhar com o Bennett na Ford.
- Mas que é que isso tem a ver? - perguntou.
A rapariga olhou para ele.
- Sabe o que se está a passar por lá. Toda a fábrica de River Rouge vive aterrorizada pelo Bennett e pelo seu bando e o meu pai adora fazer parte
das tropas de choque do Bennett, como lhes chamam.
- Não percebo - disse Loren. - O Edsel não é desse género. Não tolerava uma coisa dessas.
- Edsel não tem nada a ver com o caso -disse ela. - O meu pai disse-me que o Bennett domina completamente o velho e que Edsel Ford é, pura e simplesmente,
ignorado.
- O velho há-de acabar por lamentar tudo isso - disse. - Num destes dias, aquilo vai tudo pelos ares.
- Talvez seja amanhã - disse.
Loren olhou para a rapariga.
- Que é que queres dizer com isso?
- Já leu os jornais?
Fez que sim com a cabeça.
- O meu pai diz que o Bennett está a preparar uma surpresa para o sindicato. Todo o bando do Bennett vai estar à espera quando os organizadores sindicais
aparecerem.
- Mas não podem fazer nada - disse Loren.-Desde que os do sindicato não entrem nos terrenos da Ford.
- E se eles vão para a ponte que passa por cima de Miller Road, em frente do portão quatro?
- Que é que isso tem? - respondeu. - É uma ponte pública para a passagem de peões. Está sempre apinhada de vendedores ambulantes e carrinhos de gelados
que vão ali fazer negócio quando há a mudança de turnos.
- O meu pai contou-me que o Bennett diz que a ponte é propriedade da Ford, porque foram eles que a construíram.
Loren ficou um momento a pensar e, depois, fez que sim com a cabeça.
- Isso já pode dar sarilho. - Levantou os olhos para ela. - Liga-me para Richard Frankensteen ou para um dos irmãos Reuther. Não quero que aconteça
mal a ninguém. Seria um olho negro para toda a indústria. Vou preveni-los que devem evitar a ponte.
A rapariga dirigiu-se ao telefone que estava em cima do aparador e pediu um número. Depois de uma breve conversa, pôs a mão no bocal e falou com ele.
- Estão todos fora, em reuniões - disse. -Ninguém sabe a que horas é que voltam.
- Diz que logo que um deles voltar me telefone imediatamente. É muito importante.
Ela deu o recado e voltou para a mesa. Ia para se sentar quando mudou de ideias. Em vez de se sentar, dirigiu-se à cadeira e beijou-o.
- Isso não é propriamente de uma secretária - disse com um sorriso.
- Não me importo - disse. - Gosto de si.
Ele estendeu o braço e pôs-lhe um dedo na ponta do nariz.
- Logo que acabe a reunião, dou-te uma oportunidade de me provares até que ponto.
A rapariga pegou-lhe na mão e beijou-a, acariciando-lhe com a língua a palma da mão.
- Nem posso esperar.
- Júnior, senta-te aqui ao meu lado - disse Loren. - Você, Walt, o Ted e o Escocês sentam-se à nossa frente.
Ocuparam os seus lugares, em silêncio. Melanie instalou-se à cabeceira da mesa rectangular da biblioteca e abriu o livro de notas.
Loren olhou para ela.
- Não precisa de tomar notas, Miss Walker. Esta reunião não é oficial.
Fechou o livro.
- Quer que eu fique, Sr. Hardeman?
- Fique, por favor.
Recostou-se na cadeira, enquanto Loren se voltava para os outros.
- E vocês não precisam de tomar um ar tão solene. Não vai acontecer nada de terrível.
A tensão aliviou-se um pouco. Inclinaram-se para a frente, atentos.
- Vou tornar a coisa simples e breve - disse Loren. - Aquilo que tenho para lhes dizer está relacionado com a futura direcção e actividades da companhia.
Parou um momento.
- Começarei por lhes dizer uma coisa que estou convencido já todos sabem. Com o pagamento da última prestação, no valor de dois milhões e cem mil
dólares, relativa aos nossos empréstimos bancários, pagamento esse que foi efectuado hoje, recebi de volta todos os direitos sobre as minhas acções da companhia.
- Ora ainda bem, ainda bem!-disse Duncan, em voz baixa.
Loren sorriu-lhe.
- Partilho os seus sentimentos. Também não gosto de banqueiros. Ao mesmo tempo, recebi o pedido de demissão dos quatro directores que tinham provisoriamente
feito parte do conselho de administração, até à próxima reunião.- Outra vez ainda bem!-desta vez o escocês não conseguiu conter-se. Começou a bater
as mãos em silêncio.
Passado um momento, os outros juntaram-se-lhe.
Loren fez um gesto e eles pararam.
- Agora, vamos ao meu plano.
Ouviu-se um leve remexer nas cadeiras. Os homens ficaram recostados, à espera.
- Pertencem-me noventa por cento da companhia - disse Loren -, ao meu filho, dez por cento. Além disso, tenho cinquenta e nove anos e, para o ano,
quando fizer os sessenta, tenciono retirar-me da minha participação activa nos negócios da companhia.
Fez uma pausa e o silêncio em volta da mesa adensou-se.
- Na sequência do que acabo de dizer, tomei as seguintes disposições relativamente à minha parte.
"Aos meus netos, Loren III e Anne Elisabeth, cinco por cento a cada um, num total de dez por cento para ambos. Estas acções ficarão em posse de e serão votadas por
seu pai, como procurador, até à sua maioridade. Ainda foram tomadas outras disposições, para um possível caso de morte de qualquer das partes interessadas, a fim
de proteger tanto os sobreviventes como a companhia.
Fez uma pausa e olhou para Melanie.
- Pode arranjar-me um copo com água e duas aspirinas, Miss Walker?
Em silêncio, a rapariga dirigiu-se ao bar e voltou com a água e as aspirinas. Os homens não disseram palavra enquanto ele tomava os comprimidos. Estavam habituados
a vê-lo comer aspirina.
Loren pousou o copo de água.
- Ao mesmo tempo, doei a uma fundação de carácter beneficente, que deverá ser conhecida como Fundação Hardeman, trinta e nove por cento das acções.
A finalidade desta Fundação será a utilização dos fundos assim adquiridos para o bem e o benefício do público. O direito a voto relativo às acções da firma estar-me-á
confiado a mim enquanto for vivo. Após a minha morte, os direitos de voto caberão a procuradores da Fundação, seleccionados entre os mais destacados educadores e
cidadãos interessados no bem comum deste país. O meu filho e eu seremos automaticamente procuradores vitalícios da Fundação.
Um ar curioso de surpresa surgiu no rosto de Júnior.
- Eu não...
Loren levantou a mão.
- Deixa-me acabar antes de falares - disse, num tom amável.
Júnior fez que sim com a cabeça. Recostou-se na cadeira, ainda
com a surpresa gravada no rosto.
- Eu pessoalmente ainda fico detentor de quarenta e um por cento das acções da companhia - continuou Loren. - Esses quarenta e um por cento serão
distribuídos, depois da minha morte e de acordo com as minhas disposições testamentárias, entre membros da minha família, a Fundação e certas outras pessoas e obras
de caridade, conforme eu venha a decidir.
Pegou no copo de água e bebeu um pouco.
- A começar com a próxima reunião de administração, tenciono pôr uma proposta a esse conselho, para que o controlo da companhia passe das mãos de
um só homem, eu ou meu filho, neste momento, para as mãos de um comité executivo de cinco homens, agora presidido por mim e, depois de eu me retirar, pelo meu filho.
O presidente do comité não terá direito a voto em questões de orientação, excepto nos casos em que haja empate entre os restantes membros, tendo ele, nesse caso,
o direito do voto decisivo.
Bebeu novo golo de água.
- Até ao momento em que me retirar, continuarei como director e presidente do conselho de administração da companhia, enquanto o meu filho continuará
como presidente e administrador-delegado, com a obrigação de pôr em prática as decisões do comité executivo e do conselho de administração. Quando eu me retirar,
o meu filho assumirá as obrigações de presidente do conselho de administração, além das que já lhe incumbem.
Ficou um momento em silêncio, olhando para as próprias mãos. Depois, levantou novamente os olhos.
- Há mais, meus senhores, muito mais, nesta minha proposta, mas não vale a pena entrar em mais pormenores neste momento. Outros pontos tratam de questões
como pensões e planos de comparticipação de lucros para directores, seguros especiais e outros benefícios semelhantes para os empregados da companhia. Antes de saírem,
Miss Walker vai entregar a cada um uma pasta contendo todos os pormenores destas propostas, bem como daqueles em que já lhes falei.
Pôs-se de pé.
- Acho que isto cobre tudo o que tenho para lhes dizer neste momento. Muito obrigado, meus senhores.
Levantaram-se com ele. Melanie distribuiu rapidamente as pastas. Passados alguns minutos, já tinham saído todos, excepto Júnior. Este ficou sentado na cadeira, a
olhar para o pai.
- Posso falar consigo? - perguntou.
Discretamente, Melanie desapareceu da sala.
- Vem, vamos tomar uma bebida - disse Loren.
Júnior seguiu-o até ao bar. Loren serviu-se de um uísque canadiano; olhou para o filho:
- Continuas a beber conhaque?
- Vou tomar uísque - disse Júnior.
Loren fez que sim com a caibeça. Deitou uma boa porção no copo de Júnior.
- Gelo?
Júnior acenou com a cabeça.
Loren foi atrás do bar e tirou gelo do balde que estava na prateleira. O gelo tilintava dentro do copo quando o estendeu a Júnior. Loren ficou atrás do bar e pegou
na bebida dele.
- Saúde -disse. Atirou o uísque pela garganta abaixo e já estava a estender novamente a mão para a garrafa enquanto Júnior bebia em pequenos sorvos.
Encheu novamente o copo em silêncio. Desta vez foi bebendo aos golos enquanto olhava para o filho. O rosto de Júnior estava magro e pálido e tinha círculos azulados
por baixo dos olhos por falta de sono. Esperou que o filho falasse.
Passado um momento, Júnior meteu a mão na algibeira, puxou de um sobrescrito e pô-lo em cima do bar, sem falar.
Loren olhou para o sobrescrito.
- O que é isso?
- Abra e veja - disse Júnior. - Não está fechado.
Rapidamente, Loren tirou o papel do sobrescrito. Estava cuidadosamente dactilografado, no papel pessoal de Júnior.
Ao Presidente do Conselho de Administração e
ao Conselho de Administração da Bethlehem Motors Company, Inc. Exmos. Senhores:
Venho por este meio apresentar o meu pedido de demissão de presidente e administrador-delegado da Bethlehem Motors Company, Inc. Peço igualmente a minha demissão
como membro do conselho de administração daquela companhia, bem como de administrador e/ou director de qualquer das suas associadas. Todas estas demissões devem
ter efeito imediato.
Atentamente Loren Hardeman II
Loren olhou para o filho.
- Para que é que tu queres fazer uma coisa dessas?
- Sabe, pai, quando convocou esta reunião de hoje - respondeu Júnior -, pensei que fosse com a finalidade de me despedir.
Loren olhou fixamente para ele.
- Que é que te fez pensar isso?
- Duas coisas - respondeu Júnior. - Uma, o facto de já ter de novo as suas acções e, portanto, o controlo total da companhia. Em segundo lugar, eu
merecia-o. Já lhe dei duas boas razões. E não lhe teria levado a mal que o fizesse.
- Isso faz sentido - disse Loren lentamente -, excepto quanto a um pequeno pormenor. Ora diz-me cá, é bastante fácil um homem despedir um empregado,
mas como é que se faz para despedir um filho de ser nosso filho?
Júnior olhou-o fixamente.
- Eu fiz-lhe guerra quando não havia guerra a fazer.
- Fizemos bastante mal um aò outro - dise -Loren,* calmamente. Começou a rasgar a carta ao meio. - Há muito tempo, quando disse que, um dia, isto
seria teu, estava a falar a sério. E não mudei de ideias. Tu continuas a ser meu filho. - Pôs novamente no sobrescrito as duas metades da carta rasgada e deu-as
a Júnior.
Júnior pegou no sobrescrito, ficou um momento a olhar para ele em silêncio. Depois meteu-o no casaco. Levantou os olhos para Loren. Pestanejou para afastar as lágrimas.
-- Obrigado, pai - disse, em voz rouca.
Loren fez que sim com a cabeça. Não disse nada, pois não confiava na própria voz.
- Vou tentar não o decepcionar outra vez - disse Júnior. -Vou fazer o melhor que puder.
- Ninguém pode fazer mais do que isso - disse Loren.
Ficaram um momento em silêncio e, depois, Loren deu a volta
ao bar e abraçou-o. Ficaram muito quietos. Em seguida Loren deu um passo para trás.
- Agora vai para casa e vê se dormes, filho. Tens ar de quem tem falta de sono.
Júnior acenou com a cabeça e encaminhou-se para a porta. Depois, voltou-se e olhou para trás.
- Vai ser como nos velhos tempos, não vai, pai?
Loren sorriu.
- Como nos velhos tempos.
Júnior retribuiu-lhe o sorriso.
- Boa noite, pai.
- Boa noite, filho. - Loren esperou que a porta se fechasse antes de se voltar de novo para o bar e servir-se de uma bebida.
Melanie entrou na sala.
- Deixe que eu faço isso - disse, tirando-lhe o copo da mão. Foi atrás do bar, pôs-lhe os cubos de gelo dentro e, depois, estendeu-lho outra vez.
- Correu tudo bem?
Fez que sim com a cabeça, com um ar cheio de cansaço, ao mesmo tempo que provava a bebida. Olhou para ela.
- Tive um dia comprido.
- Eu vou lá acima e preparo-lhe um banho quente - disse a rapariga. - Vai ver que se sente melhor.
Saiu de trás do bar e encaminhou-se para a porta.
- Não me vás mas é pôr aqueles perfumes todos na água - gritou-lhe. - Fico a cheirar que nem uma prostituta francesa.
Ela sorriu-lhe da porta.
- Páre de se queixar - disse. - Sabe bem que até gosta.
Loren saiu da casa de banho com a toalha enrolada em volta da cintura, o peito e os ombros cabeludos a brilharem muito escuros, em contraste com a toalha branca.
- Já estou descontraído.
- Faça o que eu lhe digo - disse a rapariga. - Eu sei muito bem como trabalhou hoje.
Obedientemente, atravessou até junto da cama e estendeu-se de barriga para baixo. Os dedos dela eram fortes ao enterrarem-se-lhe no pescoço, pouco a pouco foram
deslizando para os ombros e, depois, pelas costas abaixo. Lentamente os músculos relaxavam sob a pressão das mãos dela.
- Que tal? - perguntou.
- Óptimo - disse. Rolou até ficar de lado. - Mas estou a ter uma erecção.
- Eu sei - disse, olhando-o. - Fica sempre assim.
- E que é que vais fazer quanto a isso? - riu.
- É um músculo como qualquer outro - sorriu, maliciosa. - Pode ser tratado.-Tomou-lhe o pénis nas mãos e puxou lentamente o prepúcio para trás, pondo
a descoberto a cabeça inchada, de um púrpura-avermelhado. Quando lhe tocou, a erecção completou-se. Segurando-lhe o pénis com uma das mãos, começou a acariciar-lhe
suavemente os testículos com a outra e, depois, começou a movimentar a mão para cima e para baixo, devagarinho.
- Tens um órgão lindíssimo -disse, fascinada por aquela força de gigante. Inclinou-se para ele, acariciando-o suavemente com a língua. Empurrou-lhe
o pénis de encontro à barriga e tomou-lhe um dos testículos na boca, depois o outro. Por fim deixou que a boca aberta lhe percorresse toda a extensão do órgão, até
lhe cobrir a ponta com os lábios.
Loren enterrou-lhe os dedos no cabelo e voltou-lhe a cara para ele.
- Quero foder - disse.
- Sim, sim.-Pôs-se de pé e começou a despir-se. Os seios caíram-lhe livres do soutien e, em seguida, arrancou a cinta, deixando ver as ancas cheias
e luxuriantes e o denso triângulo negro por baixo da barriga.
Puxou-a para cima da cama e começou a rolar para cima dela.
- Não - disse a rapariga, rapidamente. - Descontrai-te. Deixa-me eu fazer tudo.
Deitou-se novamente de costas e ela pôs-se de joelhos por cima dele. Segurando-lhe o pénis com uma das mãos e, com a outra pousada no peito dele para se equilibrar,
baixou-se lentamente, guiando-o de forma a penetrar nela.
Impaciente, agarrou-a pelas nádegas e puxou-a para ele. O ar fugiu-lhe dos pulmões, deixando-a ofegante.
- Céus! Tu enches-me!
Devagarinho primeiro, depois, mais rapidamente começou a esfregar de encontro a ele. As mãos dele estenderam-se, apertaram-lhe os seios, puxando-os de encontro à
cara. Meteu-lhe os mamilos na boca e sugou-os até ficarem bem vermelhos e inchados.
Ela afastou-se dele e procurou com a mão por detrás das costas até lhe encontrar os testículos. Estavam duros e muito apertados na base do membro. Sentiu aproximarem-se
os orgasmos e começou a estremecer enquanto eles lhe percorriam o corpo. Sentiu os testículos dele incharem-lhe entre os dedos e começarem a sua descarga. Um calor
líquido e quente como o fogo começou a queimar-lhe os quadris.
- Loren! Loren!-gritou, caindo de encontro a ele nos espasmos do orgasmo mútuo. Ficou agarrada a ele até parar a tremura dolorosa e sentir os líquidos
dele escorrerem de dentro dela, ao longo das pernas, para lhe irem cair em cima.
Lentamente, sentiu-o descontrair-se dentro dela e, depois, rolou de repente para o lado. Segurando a mão em concha de encontro ao corpo, para não sujar a carpete,
dirigiu-se para a casa de banho.
- Espere aí - disse. - Eu já vou lavá-lo. Quero que descanse.
- Traz-me aspirina. Parece que me estão a esmagar a cabeça.
- Okay - respondeu.
Passados minutos, quando saiu da casa de banho, ele parecia dormir calmamente, com a cara voltada para o outro lado, em cima da almofada. Em silêncio, ela ajoelhou
no chão, ao lado da cama, lavou-o com o turco quente e, depois, secou-o suavemente.
Quando ia pôr-se de pé, a mão dele avançou para ela.
- Durma - disse suavemente.-Bem precisa. - Encaminhou-se para junto da cadeira e pegou no soutien.
- Melanie! - a voz dele era rouca e estranha.
- Tente dormir, Loren - disse com suavidade, abotoando o soutien e pegando na cinta.
- Não, Melanie!
Qualquer coisa na voz dele fez com que o olhasse, já com um pé dentro da cinta. Loren estava a voltar-se para ela. Mas havia qualquer coisa de errado na maneira
como se movia. Era quase como se estivesse a ver um filme em câmara lenta e tudo aquilo que fazia exigisse demasiado esforço.
Por fim, conseguiu pôr-se quase sentado, com os olhos enormes e cheios de agonia postos nela. As palavras pareciam sair-lhe espessas dos lábios.
- Melanie! Estou doente. Chama o médico!
Depois, lentamente, como se as palavras lhe tivessem tirado toda a força, começou a cair para a frente. Ela deu um salto para o agarrar, mas o peso era de mais para
ela e ele escorregou-lhe dos braços, indo rolar pesadamente no chão.
- Loren! - gritou a rapariga.
No dia seguinte, os jornais da tarde de Detroit traziam grandes manchettes e fotografias daquilo que acabou por ser conhecido como a batalha de River Rouge. A esquadrilha
de Bennett abateu-se em força sobre os organizadores sindicais desprevenidos. Frankensteen e Walter Reuther estavam no hospital, o último com a coluna partida em
três sítios, depois de ter sido arrastado por uma escada de trinta e seis degraus. Outras pessoas estavam igualmente hospitalizadas, entre elas uma mulher grávida
que tinha recebido um pontapé na barriga. Mas, provavelmente, aquilo que mais enraiveceu a imprensa foi que os rapazes de Bennett, depois de terem tratado da saúde
aos sindicalistas, se voltaram contra os repórteres e fotógrafos, maltratando-os e partindo máquinas fotográficas. Relataram o incidente como tendo sido um dos episódios
mais vergonhosos na história das relações laborais americanas.
Dado o tremendo impacte da notícia sobre os acontecimentos de River Rouge em todo o país, a história relativa a Loren Hardeman foi relegada para as páginas interiores.
Na quarta coluna da segunda página do The New York Times de 27 de Maio de 1937, vinha um pequeno título.
LOREN HARDEMAN DOENTE
Detroit, 26 de Maio - Loren Hardeman I, presidente do conselho de administração e fundador da Bethlehem Motors, está a descansar confortavelmente num hospital de
Detroit, segundo informam os médicos, depois de ter sido submetido a uma operação para remover do cérebro 'um tumor benigno que, há alguns anos, vinha incomodando
o Sr. Hardeman.
CAPÍTULO 14
John Bancroft, vice-presidente das vendas da Bethlehem Motors, fez girar a sua cadeira quando Ângelo entrou, no gabinete. Levantou-se, com o sorriso aberto de vendedor
estampado na cara, a mão estendida.
- Ângelo! Muito prazer em tornar a vê-lo!
A sua maneira de apertar a mão era também típica de um vendedor. Firme, entusiástica, de uma cordialidade impessoal. Ângelo retribuiu-lhe o sorriso.
- Muito prazer em vê-lo, John.
- Sente-se - disse Bancroft voltando para o seu lugar atrás da secretária.
Ângelo sentou-se, em silêncio, e acendeu um cigarro. Foi direito ao assunto.
- Recebi o seu recado e aqui estou.
Bancroft pareceu pouco à vontade.
- Ainda bem que veio. Estamos com problemas.
-Eu sei -disse Ângelo. -Que é que o seu tem de tão especial?
- Estou a começar a perder agentes.
- Porquê? - a surpresa na voz de Ângelo era evidente. - Julgava que tínhamos mais pedidos de agência do que nunca.
- E temos - admitiu Bancroft. - Mas são tudo agências fracas. Negociantes de carros usados que estão a tentar subir, agentes de carros estrangeiros
que não estão a ter lá muitos bons negócios e querem tentar uma coisa nova. O grande problema é que em noventa por cento dos casos não têm capital suficiente para
apoiar as vendas com um serviço de assistência adequado. Os outros dez por cento constituem propostas aceitáveis, mas situam-se em áreas onde já estamos bem representados.
- Mas, mesmo assim, isso ainda não tem nada a ver com o facto de estarmos a perder agentes - disse Ângelo.
Uma expressão preocupada carregou a fronte do vendedor.
- Nos últimos dois meses tenho estado a receber cartas dos nossos agentes. Alguns deles estão connosco desde que a companhia começou. Começam a estar
preocupados com a interrupção no fabrico do Sundancer. Receiam que o Betsy não lhes assegure o lugar que ocupam no mercado. Tenho cerca de quatrocentas cartas deste
teor.-Parou para respirar fundo. - Mas o pior de tudo é que temos avisos de cancelamento de cerca de noventa agentes. Chrysler, Dodge e Plymouth tiveram cerca de
metade, Pontiac e Buick, cerca de trinta, American Motors, cerca de dez, Mercury, quatro, e Olds, um. - Apesar do ar condicionado, não parava de enxugar a fronte.
- Todos eles bons fabricantes. Só Deus sabe se os que vêm de novo se podem comparar com eles.
Ângelo puxou uma fumaça do cigarro. Passado um momento, falou.
- Não perceibo. A Mazda Rotary, com o motor Wankel, tem os agentes atrás deles de uma costa à outra e nós estamos em apuros. Que é que se passa?
- A maior parte deles são provavelmente do mesmo calibre dos que estão a vir ter connosco. Atiram-se a tudo o que é novo. Além disso, a Mazda está
a tentar bater o mercado americano. Estão a financiar as estações de serviço. - Olhou por cima da mesa para Ângelo.-Se tivéssemos que fazer isso, precisaríamos de
mais cinquenta milhões de dólares para espalhar pelo país. Por isso é que a Mazda se está a concentrar apenas na Califórnia e na Florida. Se conseguirem lançar-se
nesses mercados e criar a procura suficiente, esperam não ser obrigados a financiar o resto do país.
Ângelo fez que sim com a cabeça.
- E nós estamos encravados. Nós somos obrigados a cobrir o país de uma ponta à outra porque já lá estamos.
- Agora é que você está a começar a perceber - disse Ban- croft.
Ângelo apagou o cigarro.
- Que é que vamos fazer?
- Posso dar-lhe uma resposta do meu ponto de vista de vendedor. Não posso responder pelos seus problemas de produção.
- Diga o que tem a dizer - disse Ângelo.
A voz de Bancroft era decidida.
- Primeiro, não parem com a produção do Sundancer. Isso evitará que os agentes se preocupem demasiado. Segundo, sigam o plano japonês de infiltração
no mercado, concentrando-se em áreas experimentais limitadas e fomentando a procura. Se a coisa pegar, podemos expandir-nos lentamente e dentro de dois ou três anos,
quando tivermos uma posição sólida, podemos pôr de lado o Sundancer.
- E se pusermos de lado o Sundancer neste momento?
- A minha previsão mais optimista é que perderemos uma rede de mais seiscentos agentes, depois de termos aceite os novos.
Ângelo levantou-se da cadeira e encaminhou-se para a janela, pensativo.
- Preciso das instalações do Sundancer para construir os motores para o Betsy.
- Eu sei - disse Bancroft. - Mas se ficamos apenas com setecentos agentes em todo o país, estaremos falidos mesmo antes de o carro ter aparecido no
mercado.
Ângelo sabia a que é que ele se estava a referir. Tinham feito os cálculos em relação às agências na base de quatro carros novos por semana, contando com, pelo menos,
mil e quinhentos agentes. Isso correspondia a seis mil carros por semana, trezentos mil por ano. Com duzentas e vinte mil unidades não tinham prejuízo. Setecentos
agentes corresponderiam apenas a cento e quarenta mil unidades o que seria calamitoso. Um prejuízo de cento e sessenta milhões de dólares no primeiro ano.
Encaminhou-se de novo para a secretária de Bancroft.
- A quem mais é que já falou neste assunto?
Bancroft olhou-o também fixamente.
- A ninguém. Estive agora a jogar com os números e você é a primeira pessoa a quem falei nisto. Mas o Loren Terceiro volta amanhã da lua-de-mel e
eu tenho que lhe chamar a atenção antes da reunião do conselho de administração de sexta-feira.
Ângelo fez que sim com a cabeça. A reunião de sexta-feira tinha o propósito expresso de chegar a uma decisão acerca do Sundancer.
- Agradeço-lhe ter-me dito, John.
O vendedor sorriu.
- Olhe, Ângelo, você sabe que eu acredito no Betsy, tanto como você próprio. Mas não consigo que a aritmética dê certa.
- Eu compreendo - disse Ângelo. - Deixe-me só pensar um bocado. Obrigado, John.
Já ia a meio do corredor, a caminho do seu próprio gabinete quando lhe ocorreu a ideia. Deu meia volta e foi novamente ter com o gerente de vendas.
Bancroft estava ao telefone. Levantou os olhos, surpreendido com o regresso de Ângelo. Acabou a chamada e pousou o telefone.
Ângelo disse:
- Não lhe parece esquisito que, de repente, nos últimos dois meses, comece a receber cartas de agentes todas elas do mesmo teor?
- Não sei - respondeu Bancroft. - A verdade é que nunca pensei nisso. Em geral, acontece-nos sempre qualquer coisa do género no fim de cada ano automóvel.
- Tantas cartas?
Bancroft sacudiu a cabeça.
-'Não. Normalmente recebemos qualquer coisa como entre vinte e quarenta ou cinquenta. E geralmente de agentes que não cumpriram as quotas e estão a tentar levar-nos.
Todas as companhias passam pelo mesmo.
-'Você leu todas as cartas?
Bancroft sacudiu a cabeça.
- Tenho que ler. É esse o meu trabalho.
- Há qualquer tópico ou ideia em especial que pareça ser linguagem comum a todas as cartas?
Bancroft ficou pensativo um momento. Carregou no botão do intercomunicador.
-? Traga o arquivo com as últimas cartas dos agentes.
Um momento depois, a secretária entrou com várias pastas na mão. Pô-las em cima da mesa e saiu do gabinete. John abriu as pastas e começou a percorrê-las com os
olhos.
Ângelo esperou em silêncio enquanto o gerente de vendas passava os olhos pelas cartas uma após outra. Passaram quase dez minutos antes que Bancroft levantasse os
olhos, com uma expressão estranha no rosto. Baixou novamente os olhos para as cartas, desta vez pegando num lápis e fazendo círculos a vermelho em algumas delas.
Um momento depois, estendeu algumas dessas cartas a Ângelo.
- Leia isso aí.
A linguagem era diferente em cada uma das cartas, mas a ideia era basicamente a mesma. Estavam todos preocupados que o motor a turbina pudesse ser perigoso e vir
a explodir a altas velocidades.
John estava ainda a marcar as cartas, quando Ângelo falou.
- Isto começa a fazer sentido.
Bancroft pousou o lápis e olhou para ele.
- Que é que quer dizer?
- Já alguma vez ouviu falar numa Organização Independente para a Segurança Automóvel?
- Já. Quem está à frente disso é um patife da pior espécie, um tal Mark Simpson. Já o pus fora do meu gabinete uma meia dúzia de vezes, mas ele volta
a aparecer todos os anos.
- E que é que ele quer?
- Basicamente o que ele quer é ver se leva algum, acho eu. - Bancroft pegou num cigarro e acendeu-o. Empurrou o maço na direcção de Ângelo. - Mas
ele é esperto. É ele que dirige aquela porcaria que é mandada como lista nacional e que dá uma apreciação errada dos carros e apregoa que é muito honesta porque
não aceita publicidade.
- Que é que ele faz?
- Ainda não percebi bem-disse Bancroft.-Nunca falei desses assuntos com ele. Tanto quanto julgo perceber, no entanto, ele ou é proprietário ou tem
interesses em stands de carros usados, pelo país fora. Conhece o género. Sobras dos agentes. Na realidade, trata-se de carros novos, mas com setenta ou cento e cinquenta
quilómetros em cima para poderem ser considerados usados. Deu a entender que se lhe puséssemos à disposição uma centena de Sundancers, o carro teria uma boa classificação.
Foi aí que eu o pus fora.
- Sabe se alguma companhia faz negócio com ele?
- Nenhuma. Gostam tanto dele como nós.
- Então, como é que ele se aguenta de pé?
- Pressionando os agentes locais - respondeu Bancroft. - Os agentes andam sempre apavorados. Acham que se lhe derem uns quantos carros não faz mal
a ninguém e além disso ajuda-os a manter o plafond.
- Tenho um pressentimento de que é ele que está por detrás disto - disse Ângelo.-Também descobrimos que era ele que estava por detrás dos problemas
que tivemos no Oeste.
- Não faz sentido - disse Bancroft. - O Simpson não faz nada a menos que ganhe com isso. Que é que ele pode lucrar em nos impedir de pôr o Betsy no
mercado?
- Isso era o que eu gostava de descobrir - respondeu Ângelo. - O tipo de campanha que ele está a fazer não pode deixar de custar muito dinheiro. Ao
que parece, ele anda a dar a volta ao país.
- Onde é que lhe parece que ele vai buscar o dinheiro? - perguntou Bancroft. - Não me parece que seja o tipo de homem para estar a especular com o
seu próprio dinheiro.
Ângelo olhou para ele.
- Não sei. Mas seja quem for que está a entrar não quer ver o Betsy na estrada.
- Não são as outras companhias - disse Bancroft.-Isso sei eu. Esses têm todo o gosto em nos deixar fazer o papel de pioneiros. Acha que podiam ser
as bombas de gasolina?
Ângelo sacudiu a cabeça.
- Não. Já fizemos acordos com todas as cadeias de gasolina nacionais. Concordaram em pôr bombas de petróleo em todos os postos quando o nosso carro
aparecer no mercado.
Ambos ficaram em silêncio. Ângelo encaminhou-se para a janela. Um comboio de mercadorias saía da fábrica, cheio de automóveis, com todas as cores a brilharem ao
sol. Ficou a ver o comboio afastar-se lentamente e depois aproximou-se de novo da secretária de Bancroft.
- Pegue no telefone e fale com cada um desses agentes
- disse-, procure descobrir se o Simpson ou alguém ligado ao Simpson falou, de facto, com eles.
- Para que é que isso serve?
-'Tem que haver qualquer coisa de ilegal no que ele anda a fazer e talvez consigamos prová-lo. Difamação, calúnia. Não sei. Vou entregar o caso aos advogados e eles
que o resolvam.-Tirou um cigarro do maço que estava em cima da secretária de Bancroft. - Entretanto, tranquilize-os, garanta-lhes que não há qualquer problema com
o carro. Fale-lhes dos nossos testes.
- Vão pensar que estou a fazer conversa fiada - disse John.
- O nome do Simpson parece estar por detrás dos problemas que tivemos quando o Peerless se matou; e já leram tudo isso nos jornais.
- Então convide-os a todos para virem às nossas pistas de ensaio às nossas custas, ver o funcionamento do carro - disse Ângelo.
- Deve bastar para os convencer.
- Convencer, não sei se os convence - disse Bancroft. - Mas lá vir, vêm com certeza. Ainda não conheci nenhum agente que recusasse uma viagem onde
quer que fosse, com tudo pago, nem que fosse só para a outra ponta da cidade.
Ângelo riu-se.
- Deixo isso consigo. Entretanto, vou ver o que consigo descobrir cá pelo meu lado. Ainda estamos vivos.
- Estou a começar a sentir-me melhor - disse Bancroft.-Pelo menos, estamos a fazer alguma coisa, em vez de ficarmos para aqui parados. - Pôs-se de
pé. Mesmo assim não podemos dar-nos ao luxo de ignorar o que aqui está.
-Nem eu tenciono fazê-lo - disse Ângelo. Olhou para o gerente de vendas.-Não aceitei este trabalho para destruir a companhia e tenciono fazer o que for melhor para
ela, quer isso esteja ou não de acordo com as minhas preferências pessoais.
CAPÍTULO 15
O príncipe Igor Alekhine acordou com o sol a entrar-lhe abundantemente pelas janelas do quarto que davam para as águas azuis do Mediterrâneo. Saltou da cama, a sorrir,
foi até junto das janelas, que abriu de par em par, e inalou profundamente o ar suave da manhã. Puxou o cordão da campainha para o mordomo lhe trazer o café e começou
a Fazer as suas flexões matinais.
Religiosamente, em frente da janela, todas as manhãs. Inalar, dois, três, quatro. Exalar, dois, três, quatro. Todas as vezes abrindo bem os braços. Vinte vezes.
Depois as extensões. Para cima, dois, três, quatro. Para baixo, dois, três, quatro. Também vinte vezes.
Nessa altura, o mordomo apareceu com o café e os jornais da manhã. O Nice Matin local e o Paris Herald Tribune. O mordomo colocou o tabuleiro na mesa pequena ao
pé da janela.
- Precisa de mais alguma coisa, senhor? - perguntou, como já tinha feito um milhar de vezes. , "
- Vinte. - Igor levantou os olhos. Pôs-se de pé, a respiração breve por causa do esforço. Baixou os olhos para o próprio estômago. Liso e duro. Nada
mau para um homem de cinquenta anos. Sorriu para o mordomo.
- Acho que não, James.
Não tinha importância que o nome do mordomo fosse François. Uma vez ao serviço do príncipe, todos eles se tornavam James.
- Muito obrigado, senhor - disse, com o rosto inexpressivo. Voltou-se para se ir embora.
Igor chamou-o.
- A princesa já acordou?
- Penso que não, senhor - respondeu o mordomo. - Ainda não recebemos qualquer sinal dela na cozinha.
- Logo que ela dê sinal, diz-me.
- Sim, senhor. - O mordomo saiu do quarto.
Igor dirigiu-se para a mesa e, ainda de pé, despejou café para uma chávena. Levou o café à boca, ao mesmo tempo que abria o Herald Tribune nas informações da bolsa.
O seu olhar experiente percorreu rapidamente as colunas. Automóveis, firme. Metais, firme. AT&T, Eastman Kodak, relativamente sem alteração. Índice Dow Jones subida,
09. Pôs novamente o jornal em cima da mesa, levou a chávena de café até à janela e olhou para fora. Tudo ia bem no mundo.
Um iate ia em direcção a Monte Carlo, com as velas brancas enfunadas ao vento enquanto aflorava as águas azuis e calmas. Outro iate a motor passava junto dele, em
direcção ao seu ancoradouro em Beaulieu sur Mer. O dia parecia estar óptimo para andar no mar. Ia perguntar a Anne, quando ela acordasse, se queria almoçar a bordo
do iate. Até lá, bem podia ir nadar um bocado e tratar de se bronzear. Era raro ela acordar antes das onze e meia.
Desceu no elevador até à praia privativa. Saiu do edifício a pestanejar por causa do sol. Voltou-se para olhar para a casa.
Tinha cinco andares. Era feita de pedra nativa dos Pirenéus e formada por um grupo de construções em forma de várias torres que ocupavam o flanco do penhasco que
descia da Bas Comiche até à orla do mar. No interior da casa, as divisões ficavam a níveis diferentes e cada um dos torreões era ligado ao seguinte por uma passagem
interior em arco. Era uma casa maluca, mas gostava dela. Era a coisa mais parecida com um castelo que tinha podido construir naquela propriedade.
Caminhou até à extremidade da pequena doca e lançou-se à água como uma flecha. O frio susteve-lhe a respiração mesmo no fundo do peito. Veio à superfície soprando.
Que raio, estava-se em Junho e a água ainda estava gelada. Começou a nadar vigorosamente e, quando regressou à doca, vinte minutos depois, sentia-se quente e com
o corpo a irradiar calor.
Trepou a pequena escada que levava ao terraço da piscina e foi buscar uma toalha ao balneário. Esfregando-se vigorosamente, foi atrás do bar e carregou no botão
do intercomunicador para falar para a cozinha.
- Faz favor, senhor? - a voz do mordomo ecoou funda dentro da caixa.
-Traz-me um bocado de café aqui à piscina, James - ordenou. Desligou o interruptor e saiu de trás do bar. Deu a volta ao pequeno edifício, dirigindo-se para a piscina.
Só nesse momento é que reparou nela.
Um sorriso aberto surgiu-lhe nos lábios. Gostava da sobrinha.
- Bom dia, Betsy - disse calorosamente.-Levantaste-te cedo.
Betsy sentou-se no Matelas, segurando com as mãos as alças
da parte de cima do bikini de encontro aos seios.
- Bom dia, tio Igor - disse.
Ele riu-se.
- Da maneira que esse bikini te tapa, não precisas de ficar tão nervosa.
Ela não sorriu e, em vez disso, abotoou a alça.
O príncipe voltou-se e ficou a olhar para a água.
- Mais um belo dia na Riviera. - Acenou com os braços. Voltou-se novamente para ela. - Às vezes custa a acreditar, com todos os problemas que há pelo
mundo, que o sol aqui continue a brilhar.
Ficou silenciosa.
O tio olhou-a. Não era costume estar assim tão calada.
- Sentes-te bem? - perguntou. Depois lembrou-se.-Não eras para ter ido andar de barco esta manhã?
- Não me apeteceu - disse secamente.
-Porque não?
Olhou para ele, franzindo os olhos por causa do sol.
- Porque tenho estado enjoada e com náuseas toda a manhã.
- É melhor eu chamar o Dr. Guillemin -disse rapidamente, preocupado. - Bem me pareceu que aquela bouillabaisse a noite passada estava demasiado temperada.
- Não tem nada a ver com a bouillabaisse.
- Então o que é? - perguntou, espantado.
- Acho que estou grávida - disse, num tom cheio de naturalidade. "
O tio ficou a olhar para ela, com o espanto bem visível no rosto queimado, aberto.
- Como é que isso é possível?
A rapariga riu-se.
- Tio Igor, para um homem que foi um dos maiores playboys do mundo, revela uma ingenuidade notável. É muito simples. Trouxe tudo comigo para a Riviera
excepto as minhas pílulas anticonceptivas. Esqueci-me delas.
- A França é um país civilizado - respondeu num tom rígido. - Podias tê-las comprado aqui.
- Mas não comprei - disse -, portanto, não vale a pena falar nisso.
- E tens a certeza de que estás grávida?
- Já falhei dois períodos - disse com simplicidade. - E isso nunca me tinha acontecido.
- É melhor termos a certeza- disse. - Vou marcar-te uma consulta em Cannes com o Dr. Pierre Guillemin para esta tarde.
- Não vale a pena - respondeu.-Vou-me embora para os Estados Unidos esta tarde. Em Nova Iorque o aborto é legal e o Max já preparou tudo. Diz que
vou ter os melhores médicos.
- Max van Ludwige? - perguntou num tom incrédulo. - Foi ele? Mas parece que é feliz no casamento. Tem uma filha quase da tua idade.
- O Max é feliz no casamento - disse. - Mas, às vezes, estas coisas acontecem. Estivemos sozinhos no barco durante três dias quando fomos buscar a
família dele.
- E se os médicos acham que é tarde de mais para fazer o aborto?
- Nessa altura o Max divorcia-se e casa comigo - disse. - Depois de ter a criança, dou-lhe o divórcio e ele casa outra vez com a mulher.
- Pareces muito segura de ti.
- E estou - disse calmamente. - Nós três já temos tudo planeado.
- Três? - ergueu o tom de voz. - Quem mais é que está metido nisto?
- A Rita - respondeu. Rita era a mulher de Max. - A única coisa sensata a fazer era contar-lhe tudo. Nenhum de nós queria magoá-la. Ela foi muito
simpática. Compreende perfeitamente que não passou de um acidente. Que o Max a ama de verdade.
O mordomo apareceu com o tabuleiro e o serviço de café em prata.
- Onde é que o senhor deseja tomar o café?
Igor olhou para ele, sem dizer palavra. Apontou para uma pequena mesa que estava perto. O mordomo pousou o tabuleiro, com todo o cuidado. Igor, por fim, conseguiu
usar de novo a voz.
- Traz-me um conhaque, James - disse e acrescentou, quando o criado já se ia a voltar - o melhor é ser duplo.
Loren III olhou para o holandês alto e bem parecido. Max van Ludwige parecia ter aproximadamente a mesma idade do que ele, mas os cabelos louros e os olhos azuis
no rosto fortemente bronzeado faziam-no parecer muito mais novo.
- Estas coisas são sempre embaraçosas - disse o holandês no seu inglês preciso. - Uma pessoa nunca sabe muito bem o que dizer.
- Não posso avaliar - disse Loren com rigidez. - Nunca tinha estado numa situação destas.
- Ambos lamentamos muito o que se passou - disse Van Ludwige.
Loren ficou silencioso.
- Onde está a Betsy neste momento?
- Ela vem já para baixo - disse Max. Levantou os olhos quando o mordomo entrou na sala de Suttom Place, casa de pedra acastanhada que a família possuía
em Nova Iorque, havia muitos anos.
- Que é que desejam tomar? - perguntou, delicadamente.
- Scotch com água -disse Loren automaticamente.
- Eu tomo um dry martini, simples - disse Bobbie.
Van Ludwige olhou para o mordomo.
- O meu scotch habitual.
O criado fez um sinal de assentimento com a cabeça e saiu da sala. Um silêncio desconfortável caiu sobre eles. Van Ludwige tentou quebrá-lo. Olhou para Bobbie.-
Há
quanto tempo é que eu não a via, Bobbie? Foi em Le Mans, em 67?
Ela fez que sim com a cabeça.
- Acho que sim. Se bem me lembro, tinha lá dois Porsches.
- Exactamente - riu-se. - Mas tive pouca sorte. Nenhum deles chegou ao fim. - O mordomo voltou com as bebidas. Depois de ele se ir embora, Max pegou
no seu copo. - Tive muita pena, quando soube o que aconteceu a Lord Ayres, mas fico contente por saber que está outra vez feliz. - Ergueu o copo. - Espero que não
seja tarde de mais para lhes apresentar os meus parabéns?
- Obrigado - disse Bobbie. - Hoje é o nosso aniversário.
Loren ficou surpreendido.
- É?
- Faz hoje três meses que nos casámos - disse.
- Então, temos de brindar-disse Max. - A muitos e felizes aniversários.
Levaram os copos à boca e o mesmo silêncio desconfortável caiu de novo. Max tentou retomar a conversa.
- Há na Europa um grande interesse pelo vosso carro. É um motor a turbina, não é verdade?
- Sim - respondeu Loren.
- Esperam tê-lo no mercado no próximo ano?
- Não sei - respondeu Loren. - Passámos os últimos dois meses em lua-de-mel. A verdade é que eu já devia estar em Detroit desde ontem, por causa de
uma reunião do conselho de administração que tem lugar esta semana, para tomar umas decisões finais. Mas, como surgiu isto, tive de adiar tudo.
Max pôs-se de pé no momento em que Betsy entrou a porta. A rapariga hesitou um momento e, depois, avançou em direcção a eles.
- Olá, Bobbie - disse.
Bobbie olhou para ela. Por baixo dos olhos de Betsy, havia os círculos escuros das noites mal dormidas. Impulsivamente, pôs-se de pé e beijou-a na cara.
- Olá, Betsy.
Betsy sorriu, um sorriso rápido e, depois, voltou-se para o pai, que estava de pé, a observá-las. Não se mexeu.
- Olá, papá.
Ele fez um gesto desajeitado com a mão. Nessa altura, precipitou-se nos braços dele.
- Oh, papá! Espero que não esteja zangado comigo.
Ele sacudiu a cabeça, beijando-a.
- Eu não estou zangado contigo, minha filha.
- Realmente, meti-me numa grande trapalhada, não foi?
- Vai-se arranjar tudo-disse. - Havemos de arranjar tudo.
Ela respirou fundo, retomando o domínio de si própria.
- A princípio fiquei zangada, mas agora estou contente por o tio Igor lhe ter telefonado.
- Ele fez bem. Estava .preocupado.
- Eu sei - respondeu. Voltou-se para Max. - Vês, tinha-te dito que o meu pai havia de compreender.
O holandês fez uma vénia rígida.
- Estou muito feliz por ti.
Loren voltou-se para ela.
- Agora que a minha filha está aqui, presumo que podemos discutir os planos.
- Claro - disse Max. Dirigiu-se para a porta e fechou-a. - Os criados têm o ouvido apurado.
Loren fez que sim com a cabeça. Sentou-se novamente, com Betsy ao lado no sofá espaçoso. Loren pegou na bebida e ficou a olhar para Max com ar de expectativa.
- Tenho tudo preparado para seguir de avião para Nassau com a Betsy na próxima semana. Já se tratou do necessário para a obtenção de um divórcio imediato,
para nós podermos casar. É muito simples.
Loren voltou-se para a filha.
- É isso que tu queres?
Betsy olhou para ele, depois para Max, depois outra vez para o pai.
- Não - disse com voz firme.
Por momentos, houve um silêncio feito de espanto, depois começaram todos a falar ao mesmo tempo.
- Eu julgava...-disse Max.
- Que é que queres dizer? - perguntou Loren.
Betsy deitou um olhar para Bobbie. Entre ambas passou um lampejo de compreensão. Depois voltou-se novamente para os homens.
- É uma farsa - disse. - Não sei porque é que havemos de levar isso por diante. O Max não quer casar comigo, da mesma maneira que eu também não quero
casar com ele. Está apenas a ser cavalheiro. Não vejo porque é que o havemos de fazer a ele e à Rita passar por tudo isto só porque eu fui suficientemente estúpida
para ficar grávida.
- Então que é que queres fazer? - perguntou Loren.
- Porque não limitar-me a ter a criança?
De repente, Loren ficou furioso.
- Não quero bastardos na minha família!
Betsy ficou a olhá-lo fixamente.
- Não seja tão antiquado, papá. Há muita gente que tem filhos e que não se quer casar. Isto é uma estupidez. Casarmo-nos só para ter a criança e depois
divorciarmo-nos. Porque é que eu não vou para qualquer sítio, tranquilamente, para ter a criança?
- Porque já houve demasiado falatório e mexericos nos jornais sobre a tua gravidez - disse Loren. - Não há sítio onde te possas esconder tranquilamente.
- Então, os jornais que falem!-disse Betsy.-Eu, por mim, não me ralo.
- Betsy, escuta-me - disse Max. , *
A rapariga voltou-se para ele.
- Não. Não te vou fazer passar por todos esses trabalhos.
- Betsy, eu quero casar contigo!-disse Max.
Betsy ficou a olhar para ele.
- Para quê? Não está apaixonado por mim.
- Betsy, supõe que tens um filho? - disse Max.
- E se tiver? - respondeu.
- Não percebes o que isso significaria para a minha família? - perguntou. - Tenho três filhas e nenhum filho para perpetuar o nome. O meu pai ficaria
no sétimo céu.
- Aí está uma boa razão - disse Betsy sarcástica. - E, no caso de eu ter uma rapariga ou de abortar, é-me concedido o benefício de uma segunda tentativa.
- Betsy, estás a ser disparatada!-disse Max.
- Não, não está a ser disparatada - disse Bobbie, de repente. Todos olharam para ela, surpreendidos. Bobbie ignorou os homens e dirigiu-se a Betsy.
- Acho que tens razão e normalmente concordaria contigo e até estaria disposta a ajudar-te a fazer o que pretendes. Mas, neste caso, não estás a ser justa.
- Estou a ser justa - disse Betsy com calor. - Para o Max e para a Rita. Para comigo.
- Mas não para com o teu filho - disse Bobbie. - Não preciso de te dizer que Max é um homem como deve ser, tu já o sabes. Deves ao teu filho a possibilidade
de conhecer o pai. Também deves ao teu filho não o privares de uma herança.
Betsy ficou silenciosa. Passado um momento, falou.
- Pelo menos, você é honesta - disse. - Põe a questão exactamente onde ela deve ser posta, não é?
- Tento - disse Bobbie. - Cometeste um erro.Betsy, de repente, compreendeu que Bobbie sabia desde o princípio porque é que ela tinha agido daquela
maneira. Ângelo. Para lhe mostrar que também podia fazer como ele; compreendia, agora, que tinha sido estúpida.
- Não cometas outro erro - disse Bobbie calmamente.
- Okay, estou pronta a ir até ao fim -disse Betsy rapidamente. E os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
As coisas nunca eram como se queria.
CAPÍTULO 16
Estamos em apuros - disse Ângelo. - E em grande estilo.
- Sim, e que é que há de novo?- perguntou Rourke.
Duncan teve um riso sombrio.
- Passei quarenta e cinco anos da minha vida ligado a esta indústria e nunca deixei de estar em apuros.
- Não como desta vez - disse Ângelo muito a sério. Pôs-se de pé e caminhou de uma ponta à outra da sala. Parou e olhou pela janela do Pontchartrain.
Do outro lado da rua, Cobo Hall anunciava os acontecimentos iminentes. A grande atracção mais próxima era o convénio dos fabricantes de soutiens. Fez um meio sorriso
para si próprio ao pensar no ridículo da questão. Aqueles homens divertiam-se à grande. A única coisa em que tinham que pensar era em mamas.
Voltou para junto dos outros.
- Não os teria feito vir os dois da Costa até aqui se não estivesse preocupado.
Acenaram com a cabeça atentamente, sem falar.
- Na semana passada, Bancroft disse-me que estávamos a perder agentes e que tudo indicava que íamos perder a nossa rede se puséssemos de lado o Sundancer.
- Preparavam-se para o interromper, mas ele levantou a mão para os conter. - Verificámos o que se estava a passar. É outra vez o nosso amigo Simpson e a coisa Foi
montada uma campanha contra nós e, neste preciso momento, levam-nos um tal avanço que já nada podemos fazer para os deter.
- Mas que é que o tipo tem contra nós? - perguntou Duncan. - Nunca lhe fizemos nada.
- Não sei - disse Ângelo-, mas estou a tentar descobrir. O dinheiro tem que lhe vir de qualquer lado. Ele não tem recursos para se meter sozinho numa
coisa desta envergadura.
Manteve-se silencioso enquanto se aproximava do bar para encher de novo o copo. Olhou para eles. Fizeram que sim com a cabeça. Serviu-lhes novas bebidas. Trouxe
os copos e deixou-se cair numa cadeira, em frente deles.
- Que é que vai acontecer? - perguntou Tony.
- Só podemos deitar-nos a adivinhar - respondeu Ângelo. - A minha ideia é que o conselho de administração vai cortar os planos do Betsy na próxima
sexta-feira e votar a favor da continuidade de fabrico do Sundancer.
- Mas eu tenho um compromisso de setenta milhões de dólares em materiais - disse Rouke.
- Eu sei - Ângelo olhou para ele-, uma boa parte desses materiais seriam absorvidos se continuassem com o Sundancer. Mas não é aí que está o problema.
As perdas materiais têm que*ser calculadas em função da perda da companhia em si.
- Você fala como se já estivéssemos mortos - disse o escocês com ar sombrio.
- Ainda não - respondeu Ângelo. - Tenho várias ideias. Mas ainda não estou certo do seu lado prático.
- Experimente contar-nos - disse Rourke.
Ângelo olhou para ele.
- Quais são as possibilidades que temos de construir o motor do Grande Betsy na nossa fábrica da Costa em vez dos Betsy Mini?
- Nenhuma - disse Rourke simplesmente-, precisaríamos de mais um ano para nos apetrecharmos e, mesmo asim, só teríamos capacidade para cerca de cinquenta
mil unidades por ano, no máximo.
- Quantos Minis tinha planeados?
- Cem mil.
Ângelo pensou cuidadosamente. O Betsy Mini era a sua resposta aos subcompactos. Volks, Pinto, Vega, Gremlin. Estava concebido com simplicidade, à semelhança dos
Minis ingleses, que tinham sido copiados com tanto êxito pela Honda japonesa, mas tinham maior potência e melhor funcionamento e o preço, 1899 dólares, era mais
competitivo.
- E quantos Silver Sprites?
- Sete a dez mil - respondeu Rourke.
O Betsy Silver Sprite era o carro de desporto da mesma linha, que correspondia praticamente àquilo que o Corvette era para a Chevrolet. Era o único carro da linha
em que todas as potencialidades do motor eram exploradas ao máximo. Tudo nele era alta competição. Eixos, suspensão heavy duty, direcção, châssis reforçado. O velocímetro
parava nos 300 quilómetros por hora, mas nos testes o carro tinha chegado aos 370,
Ângelo pegou num cigarro.
- Dentro de quanto tempo é que podem começar a produção?
Rourke e Duncan olharam um para o outro. Foi Duncan quem deu a resposta.
- Se nos for dada a aprovação agora, em Novembro podemos ter carros a sair.
Ângelo olhou para ele. Estavam em princípios de Julho. Novembro era dali a cinco meses.
- Não pode ser mais cedo?
Duncan sacudiu a cabeça.
- E, mesmo assim, já é muito, meu rapaz. É uma sorte se conseguirmos.
Ângelo ficou silencioso. Ainda ficava de fora o Betsy JetStar, a base principal de toda a linha. Havia dois modelos básicos, o mais pequeno, que correspondia ao
Nova e ao Maverick, e o outro, ligeiramente maior do que o Chevelle e o Torino e, no entanto, dentro da mesma ordem de preço. Era para este carro que precisavam
da fábrica do Sundancer. Eram as únicas instalações que tinham a possibilidade de produzir duzentas mil unidades por ano, ou mais.
Pousou o copo.
-Isso só nos deixa um caminho. Construir os nossos motores no estrangeiro.
- O Número Um não vai gostar - disse Duncan. - Ele queria que o Betsy fosse um carro cem por cento americano.
- Não vai ter outra hipótese, se quiser pôr o carro no mercado- disse Ângelo. - Até ele tem que perceber que não se consegue pôr o carro no mercado
se perdemos a rede de agentes.
- Já não há tempo para montar uma fábrica em qualquer outro sítio com a capacidade de que precisamos - disse Rourke.
- Temos duas hipóteses - disse Ângelo. - A Matsuoka no Japão e a Waggoner Fabrik na Alemanha Ocidental. Ambas têm a capacidade industrial necessária
e ambas exprimiram interesse em fabricar o motor sob licença para seu próprio uso.
- Se lhe damos essa licença, estaremos a criar a nossa própria concorrência - disse Duncan.
- Se tivermos êxito, não teremos hipótese de o impedir - disse Ângelo-, vejam o que aconteceu com o Wankel. A GM aqui tem os direitos e a Toyo Kogyo
já pôs a sua versão no mercado. - Apagou o cigarro no cinzeiro e acendeu outro. - Até podia resultar a nosso favor. Se eles mostrarem capacidade suficiente, podemos
até associar-nos a eles.
Rourke fez que sim com a cabeça.
- Isso envolveria muito dinheiro.
- Esqueça o dinheiro - disse Ângelo. - A parte mais importante do negócio é que eles têm que nos garantir a entrega de, pelo menos, cento e cinquenta
mil motores no próximo ano.
- Não vai ser fácil - disse Rourke. - Esses meninos são uns negociantes astutos. Vai-lhes dar o cheiro de que estamos em apuros.
- Compete-lhe a si convencê-los do contrário - disse Ângelo. Pôs-se de pé. - Tony, encarregue-se do Japão. Duncan, você fica com a Alemanha.
- Okay - disse Rourke. - Quando é que partimos?
- Agora mesmo - respondeu Ângelo.
Duncan pôs-se de pé.
- Já estou a ficar velho para andar de um lado para o outro dessa maneira - resmungou.
Ângelo sorriu-lhe.
- Sabe bem que gosta. Todas essas frauleins louras e "normes.
- Meu rapaz, com a idade que tenho, a única coisa que posso fazer é olhar - disse o escocês.-E, se não ponho os óculos, até isso não me serve de muito.
Ângelo riu-se.
- Vai ver que tudo corre bem.
Duncan olhou pra ele.
- E quanto ao Mini e ao Silver Spríte? Vamos com eles para a frente?
- Ainda não - disse Ângelo. - Vão ter que esperar até à reunião de sexta-feira. A decisão tem que vir deles.
A sala de reuniões estava cheia de fumo e de tensão. John Bancroft apresentou o seu relatório com simplicidade e sem dramatismo. Mas o resultado final foi claro
para todos. Sem a rede de agentes completa, o Betsy não tinha qualquer hipótese.
Ângelo cortou o burburinho de conversa fútil.
- Trataremos posteriormente do problema do Simpson. Não é essa a questão que estamos a considerar. O nosso problema é como conseguir as duas coisas,
pôr o Betsy no mercado e, ao mesmo tempo, fornecer o Sundancer aos agentes para os manter satisfeitos.
Fez-se silêncio à volta da mesa enquanto todos se voltavam para olhar para ele. Continuou.
- Todos reconhecemos que, se não tivermos a fábrica do Sundancer à nossa disposição, não temos maneira de produzir o Betsy JetStar em quantidades
suficientes para tornar o empreendimento vantajoso e, ao mesmo tempo, prático. No entanto, há várias soluções ao nosso alcance. Estão a ser exploradas neste preciso
momento.
- Tony Rourke está no Japão a falar com a Matsuoka Heavy Industries e John Duncan está na Alemanha Ocidental, a tratar com a Waggoner Fabrik da possibilidade
de fabricarem para nós os motores do JetStar. Se conseguirmos fazer com eles um acordo satisfatório, ser-nos-á possível produzir o JetStar na terceira e quarta linhas
de montagem do Sundancer. Será necessário um investimento adicional para pôr estas linhas em condições de poderem funcionar, dado que há muitos anos que deixaram
de ser utilizadas, mas creio que será um investimento razoável, considerando o nosso programa global.
Ficou um momento em silêncio e, depois, enquanto um murmúrio de aprovação se erguia em volta da mesa, falou de novo.
- Tenho a certeza de que compreendem, meus senhores, que não temos outra alternativa, a não ser retardar e rever o projecto Betsy.
- Não, raios partam!-Número Um bateu com o punho em cima da mesa. - Não entro numa coisa dessas! O Betsy é um carro americano e terá que ser construído
aqui mesmo. Todo. Não tenciono ir rastejar aos pés de uns diabos de uns estrangeiros quaisquer para que nos ajudem a fazer aquilo que nós lhes ensinámos a eles!
Em contraste com a veemência de Número Um, a voz de Loren III era calma, quase fria.
- Não está a ser razoável, avô. Acho que o Ângelo apresentou a nossa posição com toda a justeza e muito claramente. Não há mais nada a fazer a não
ser seguir essa via.
- Enquanto eu for vivo, nenhum estrangeiro do diabo há-de ter nada a ver com este carro! - atalhou Número Um. - Trata-se da minha companhia e do meu
dinheiro e eu é que determino o que se vai fazer com eles.
Loren olhou fixamente para o avô.
- Já não pode fazer isso - disse, calmamente, num tom quase paciente. - Os tempos em que uma companhia podia ser gerida de acordo com os caprichos
de um homem, que lhe ditava a política de vida e de morte, acabou. Homens como o senhor, Henry Ford e Walter Chrysler pertencem a outra época. Não pode tomar decisões
baseadas exclusivamente na sua própria equidade e vaidade egoísta. Há trinta mil empregados nesta companhia, muitos dos quais dedicaram a ela toda a sua vida, e
o senhor não tem o direito de jogar numa roleta o seu bem-estar e o seu futuro. Já ganharam os mesmos direitos a esta companhia que o senhor e merecem toda a consideração
a que julga ter direito. Não temos outra alternativa a não ser continuar com o Sundancer.
- Raios partam! Não! -berrou Número Um. Estendeu os braços à frente do corpo. Rapidamente, desabotoou as mangas do casaco, pondo a descoberto os punhos
da camisa que trazia por baixo. Com um esticão, arrancou os botões de punho e estendeu-os em direcção a eles, segurando-os na mão. Eram de ouro e reluziam-lhe na
palma da mão.
- Olhem para estes botões de punho! - ordenou com uma violência irada.
- São modelos do primeiro Sundancer que eu construí. Foi há cinquenta anos. Vocês falam em viver no passado quando a única coisa que pretendem é agarrar-se
a ele!
Sacudiu o braço violentamente, atirando os botões de punho para longe dele. Os pesados botões foram bater nas janelas. O vidro frágil cedeu com um leve tilintar
e os botões de punho desapareceram no exterior.
Voltou-se, de novo, para a sala silenciosa. Agora a voz dele era calma e sossegada.
- O Sundancer morreu, meus senhores. A reunião terminou.
Silenciosamente todos desfilaram para fora da sala, até que
só Ângelo, Loren III e Número Um ficaram para trás. Passado um momento, Loren III pôs-se de pé.
Baixou os olhos para o Número Um.
- Sabe que não tenciono deixá-lo levar isto por diante. Pode pôr os pés em cima de todos os outros, mas não de mim. Vou lutar contra si com todas
as minhas forças.
Número Um sorriu.
- Isso mesmo - disse num tom quase afável. - Mas não venhas ter comigo a chorar quando as coisas te saírem ao contrário.
- Não tenciono perder - disse Loren III. Agora estava a falar exactamente como o avô. - Alguém tem que se ocupar das responsabilidades que esta companhia
assumiu ao longo dos anos para com os seus empregados. E há uma coisa que parece escapar-lhe.
Número Um não disse palavra.
- Por lei, os accionistas minoritários têm alguns privilégios. A minha irmã e eu temos vinte por cento da companhia. A Anne deu-me procuração. Nenhum
de nós tenciona deixá-lo destruir a companhia.
- E eu tenho oitenta por cento - disse Número Um.
- Não - respondeu Loren, calmamente. - O senhor vota oitenta por cento. O que lhe pertence são quarenta e um por cento. Há uma grande diferença. -
Voltou-se e saiu da sala.
Número Um viu a porta fechar-se atrás do neto. Depois, voltou-se para Ângelo.
- O rapaz está a ficar enérgico - disse, quase com respeito.
Ângelo ficou um momento a estudá-lo em silêncio antes de falar.
- E não está totalmente errado. O senhor está a entrar numa curva e contracurva a quatrocentos e cinquenta quilómetros por hora.
Número Um ficou a olhar para ele.
- Mas, que raio, do lado de quem é que tu estás?
Ângelo não respondeu. O telefone que estava em cima da mesa à frente dele começou a tocar. Levantou o auscultador.
- Tenho uma chamada das Baamas para si, Sr. Perino -disse a telefonista.
Ficou espantado.
- De quem é a chamada?
Ouviu-se um estalido na linha, um momento de silêncio, depois novamente a telefonista.
- Miss Elisabeth Hardeman.
Deitou uma olhadela ao Número Um.
- Ligue-disse para a telefonista.
- Ângelo? - a voz de Betsy surgiu na linha.
- Sim. -Houve um vago zumbido nos fios que era como o som das ondas a rebentarem por trás dela.
- Ângelo - a voz estava cheia de nervosismo e tensa, como se a rapariga tivesse estado a chorar. - É a última vez que te faço esta pergunta. Queres
casar comigo?
Ângelo tentou gracejar.
- Quando?
- Nada de gracinhas, Ângelo - disse com aspereza. - Estou a falar sério. Agora mesmo. Neste momento. É a última vez.
Continuou a manter o tom ligeiro.
- Eu já lhe disse, Miss Elisabeth, não sou feito para o casamento.
De repente, o telefone morreu-lhe na mão. Lentamente, desligou. A voz dela tinha uma nota de desespero, quase como se estivesse fora de si. Olhou para o outro lado
da mesa para Número Um.
- Era a Betsy - disse, num tom admirado. - Julgava que ela estava em França. Que raio está ela a fazer nas Baamas?
Número Um deitou-lhe um olhar estranho.
- Não sabias? - perguntou. - Veio em todos os jornais.
- Há semanas que não olho para um jornal - disse Ângelo ainda espantado.
- É uma pena - disse Número Um devagar, com uma nota de tristeza a dominar-lhe a voz. - A minha bisneta casa-se esta tarde nas Baamas.
Número Um fez rolar a cadeira em direcção à porta. Abriu-a e olhou para Ângelo que continuava sentado à mesa.
- Vemo-nos de manhã.
Ângelo acendeu um cigarro enquanto a porta se fechava e ficou ali sentado na sala vazia. Só quando o cigarro começou a queimar-lhe as pontas dos dedos é que o deixou
cair no cinzeiro e saiu.
Saiu do edifício para os raios vermelhos e dourados do sol que se punha através da atmosfera densa dos fumos de Detroit. Levantou os olhos para o edifício que ficara
atrás dele. O vidro partido da janela da sala de reuniões olhou para ele com o seu único olho.
Impulsivamente saiu do caminho e pôs-se a andar no relvado que ficava por baixo das janelas, perscrutando o terreno com os olhos. Encontrou quase imediatamente o
primeiro botão de punho, directamente por baixo da janela, no meio de alguns pedaços de vidro. O segundo levou quase quinze minutos a encontrar. Estava escondido
sob uma sebe de ligustros. Apanhou-o e voltou para o caminho cimentado.
Olhou para os botões de punho que tinha na palma da mão. O sol revelava todos os pormenores delicados do desenho do artista. A minúscula reprodução do Sundancer
era tão real que bastava um ligeiro toque de imaginação para lhe dar vida e vê-lo partir a roncar, noite fora.
A mão apertou-se-lhe com tanta força à volta dos pequenos botões de punho em ouro que eles quase se lhe enterraram na palma. Lentamente foi seguindo ao longo do
caminho, em direcção ao carro.
LIVRO 4
1972
CAPÍTULO 1
O sol branco de Janeiro abatia-se sobre as salinas tornando os quilómetros que tínhamos à nossa frente em diamantes refulgentes que nos teriam cegado se não fossem
os vidros coloridos dos visores dos nossos capacetes antichoque. Os únicos sons eram o gemer da turbina, o guinchar do vento e o rolar dos pneus gigantescos que
mordiam a terra entre nós dois. Segurava o volante firmemente na mão, apontando o carro para o horizonte, no sítio em que a areia branca se juntava ao céu azul de
Inverno.
A voz de Cindy chegou-me através dos auscultadores, calma e tranquila, como se estivéssemos a rodar calmamente por uma vereda no meio dos campos.
- Linha vermelha, sessenta e oito mil r.p.m.; velocidade, quatrocentos quilómetros por hora; temperatura do reactor da turbina fixa a mil e duzentos
graus centígrados.
O controlo de rádio sobrepôs-se à voz dela. Através dos auscultadores, a voz de Duncan era ainda mais áspera do que habitualmente.
- Linha vermelha a sessenta e oito mil, meu rapaz.
- Já temos esse número - respondi.
- Todas as indicações do sistema estão normais - disse Duncan. - Vai até aos setenta mil e aguenta durante um minuto. Eu dou-te o tempo. Cindy, prepara
o relógio para me controlares se o rádio falhar.
- Okay - disse Cindy. A mão dela, segurando o cronômetro, apareceu à minha frente.
Abri a válvula. Passada uma fracção de segundo, Duncan fez-se ouvir de novo.
- Começa a contar um minuto. Linha vermelha, setenta mil.
O polegar de Cindy carregou no botão. Vi, de relance, o ponteiro
dos segundos começar a dar a volta ao mostrador. Depois, a mão dela desapareceu quando retirou o relógio. Falou num tom natural.- Linha vermelha setenta;
velocidade, quatro dez; temperatura, mil e duzentos; tempo, quinze segundos. - Houve uma pausa e, depois, começou de novo. - Linha vermelha, setenta; velocidade,
quatro vinte e cinco; temperatura, mil e duzentos; tempo, quarenta e cinco segundos. - Passado um momento.-Sessenta segundos.
A rádio abafou de novo a voz dela.
- Sessenta segundos! Reduz, rapaz. Devagarinho agora.
Já tinha começado a fechar a válvula.
- Okay - respondi. Só quando já íamos a menos de cento e vinte quilómetros por hora e em ponto morto é que ousei voltar-me para olhar para ela.
Apesar de a cabina ter ar condicionado, tinha o rosto afogueado e uma leve camada de humidade no lábio superior. A voz era ofegante.
- Sabes a que velocidade íamos?
Sacudi a cabeça.
-'Não.
- Quinhentos. Vim-me duas vezes.
Sorri.
- Eu também me teria vindo, mas estava muito ocupado.
A voz de Duncan fez-se ouvir com secura.
- Lembrem-se de que estão a ser ouvidos pela rádio. Parem com as conversas indecentes.
Rimo-nos.
A mão dela tocou na minha em cima do volante.
- Caramba - disse -, que carro!
Olhei para ela.
- Já imaginaste o que podíamos fazer com isto em Indy se fosse aceite?
O fim da pista era a cerca de quilómetro e meio à nossa frente. Toquei no pedal de travagem. Não era preciso mais nada. A bomba de travagem electrónica fez o resto.
Quando acabei de tomar o duche e de me vestir, ja estavam a levar o protótipo do Betsy Fórmula Um ao longo da pista para o camião com ar condicionado, pronto para
a viagem de regresso às nossas pistas de ensaio.
Duncan voltou-se para mim quando saí do edifício, franzindo os olhos por causa do sol.
- Foi uma bela prova, rapaz.
- Obrigado - respondi.-Correu tudo bem?
- Perfeitamente - respondeu. - O director disse-me que as filmagens do helicóptero devem ter ficado óptimas e que todas as câmaras funcionaram perfeitamente.
- Óptimo - respondi. - Tivemos sorte com o tempo.
Fez que sim com a cabeça.
-O pessoal da secção de publicidade da TV não tem de que se queixar. Demos-lhes tudo o que eles queriam.
Olhei para ele.
- Era mais fácil nos tempos em que não havia televisão? - perguntei. No tempo em que para apresentar um novo carro bastava pô-lo nas salas de exposições?
Sorriu.
- Pelo menos, não tínhamos que perder tempo a fazer coisas como esta. Já pensaste no descaramento do director? A dizer-me que queria mais dramatismo
na minha voz ao falar contigo pela rádio.
Ri-me.
- Não admira que eu o achasse um bocado áspero.
Cindy saiu do edifício. Encaminhou-se para nós com os cabelos soltos a brilharem ao sol.
- O Número Um ao telefone para ti, de Palm Beach.
Fui para dentro e peguei no telefone.
- Ia agora mesmo ligar para si - disse. - O Fórmula Um fez quinhentos sem qualquer dificuldade.
- Quem é que ia a guiar? - 'A voz dele soava irritada.
- Era eu.
Ficou silencioso. Senti a explosão preparar-se. Afastei o telefone do ouvido.
- Estúpido filho da puta!-berrou. - Os vice-presidentes não andam por aí a guiar carros de ensaio. Quando é que paras de brincar com brinquedos?
- Também tenho o direito de tirar algum prazer do meu trabalho - respondi.
- Mas não com o meu dinheiro - atalhou. -Por que raio pensas tu que eu te dei opção sobre duzentas mil das minhas acções? Não foi para tu te ires
matar, nem para nos dares cabo do negócio.
Não respondi. A única razão por que ele me tinha dado aquelas opções era por não querer reembolsar-me do milhão de dólares que eu tinha adiantado como depósito sobre
a fábrica de Washington, havia alguns anos.
- Mantém-te bem longe dessa porcaria desses carros, ouviste?
- Sim, senhor-respondi. - Mas tenho a impressão de que vai gostar dos anúncios. Vou-lhos mandar de avião, logo que estiverem prontos.
- Posso esperar que apareçam na televisão - disse. - Temos outros problemas.
Era inegável que ele não estava a exagerar. Pelo menos até àquela altura. O ano era. novinho em folha.
De qual deles é que está a falar?
- O meu neto - disse secamente.-Finalmente, já tivemos notícias dele.
- Oh? - Loren tinha estado particularmente sossegado nos últimos meses. Já tinha perguntado a mim mesmo quando é que ele iria interromper aquele silêncio.
- Não quero falar no assunto pelo telefone - disse Número Um. - Vem imediatamente para cá.
- Mas estão à minha espera em Detroit para dar a aprovação final às novas linhas de montagem.
- Deixa isso com o Duncan - interrompeu. - Põe-te mas é a mexer para aqui!
O telefone apagou-se-me nas mãos e eu pousei-o de novo. Duncan e Cindy entraram naquele momento.
- O Número Um está contente com tudo?-perguntou Duncan.
- Nem tudo. Quer-me lá o mais depressa possível.
Duncan olhou para mim.
- Que é que há?
- Não sei - respondi. - Não quis falar ao telefone.
O escocês ficou um momento silencioso.
- Achas que descobriu?
- Descobriu?-Estava a pensar noutra coisa.- O quê?
- O projecto do Sundancer?
- Não, acho que não - respondi. - Pelo menos, não falou nisso. Qualquer coisa ligada com Loren Terceiro. - Olhei para Cindy. - Pega no telefone e
liga para a companhia de aviação. Arranja-me a ligação mais rápida que houver para Palm Beach. - Ela fez que sim com a cabeça e dirigiu-se ao telefone e eu voltei-me
novamente para Duncan. - Você, siga para Detroit e veja as linhas de montagem por mim. Quero tudo pronto para começar a vinte.
Cindy tapou o bocal do telefone com a mão.
- Já não vai a tempo para os voos directos. A melhor ligação sai de Salt Lake às seis da noite; em Chicago muda para um avião de Fort Lauderdale e,
depois, vai de carro.
- Okay. Confirma.
-- Não há alteração dos planos? - perguntou Duncan. - Linhas um e dois Sundancer standard, três e quatro JetStar?
- Assim mesmo - respondi. - Fale com o Tony Rourke e veja se ele tem tudo pronto. Quero tudo a funcionar como um relógio.
- Há-de funcionar - dise o escocês. - Mas...
- Mas o quê?
- O Número Um não vai ficar contente quando descobrir o que tu fizeste.
Olhei para ele.
- Quando ele carregar no botão já vai ser tarde de mais para fazer o que quer que seja.
Estava tudo planeado: às onze da manhã na Florida, eram dez da manhã em Detroit e oito em Washington. A chave dourada do telégrafo já estava instalada na biblioteca
da casa de Palm Beach. Os cameramen e os fotógrafos e os meios de comunicação social estavam alerta e prontos para dar cobertura à cerimónia. Âs onze horas em ponto,
Número Um premia a chave dourada que tinha na sua secretária, iniciando-se assim o trabalho das linhas de montagem de Detroit e Washington, exactamente no mesmo
instante. Quarenta e cinco minutos mais tarde, o primeiro carro sairia das linhas de montagem e, a partir daí, um carro de três em três minutos. No dia do aniversário
de Lincoln, passado menos de um mês, todos os agentes da Bethlehem na América apresentariam os novos carros.
Cindy pousou o telefone.
- Está confirmado em todos os voos.
- Óptimo - respondi. - Obrigado.
A rapariga olhou para mim.
- Que é que queres que eu faça? Que volte para a pista de ensaio?
Sacudi a cabeça.
- Não. Vai para Detroit. Ficas à frente do grupo que vai testar os carros da linha de produção.
- E o Stanforth? - perguntou.
Stanforth era o chefe dos pilotos de ensaio.
- Fica na Costa para dirigir o grupo de lá - respondi.
- Vou ser aumentada? - perguntou com um sorriso.
- Quanto é que ganha o Stanforth?
- Trinta nil - respondeu.
- É isso que tu vais receber-disse.
- Ele não vai gostar. Uma mulher a receber o mesmo que ele.
- Que vá à merda - sorri. - Será que ele ainda não ouviu falar na libertação da mulher?
Estava ocupada com o gravador de fita estereofónico quando eu saí do quarto.
- Já fiz as malas - disse-lhe.Olhou para mim.
- Que tal uma foda de despedida antes de ires para o aeroporto? Assim dormes melhor no avião.
Ri-me.
- Desde quando é que te preocupas que eu durma nos aviões?
- Ouve isto - disse, pondo o aparelho em funcionamento.
O rugido de uma lufada de ar misturado com o gemido peculiar e sonoro da turbina veio do amplificador mais distante e atravessou o quarto em direcção a mim, passando
de um altifalante para outro. De repente, a voz dela saiu dos altifalantes centrais.
- Temperatura do reactor da turbina oitocentos graus centígrados.
A voz de Duncan, fraca e aguda, veio dos altifalantes mais afastados. .,
- Começa quando ouvires o sinal. Dez segundos... nove... oito...
Desligou o gravador.
- Que tal?
Fiquei a olhar para ela. Era uma constante fonte de admiração para mim. Ia jurar que ela não tinha tido tempo.
- Como é que conseguiste?
Fez um sorriso misterioso.
- Mandei-os tirar dos duplicados da fita do computador e das fitas da câmara. Depois, só tive que as misturar.
Fiquei silencioso.
- Então? - perguntou.
Sorri.
- Okay. Vamos para o quarto.
- Não, não há tempo - disse-, se vou ter que instalar tudo lá dentro outra vez, perdes o avião. Tem que ser aqui mesmo no chão.
Carregou outra vez no botão. O som veio de novo e ela começou a caminhar para mim, de joelhos no chão. O gemido da turbina e a voz de Duncan vieram dos altifalantes.
- ... te... seis... cinco... quatro...
Quando chegou a "um e começar", já ela me tinha desabotoado as calças e metido o sexo na boca.
CAPÍTULO 2
Os gigantescos pastores de guarda conheciam-me a mim, mas não conheciam o carro e, por isso, seguiram-no desconfiados ao longo do caminho, até eu sair e depois aproximaram-se
a correr, acenando com as caudas e partindo-se ao meio para lhes fazer festas. Cocei-lhes a cabeça, antes que me deitassem ao chão.
- Olá, Donner, olá, Blitzer.
O chamamento silencioso do apito ultrassónico arrancou-os de junto de mim. O criado do Número Um estava ao cimo dos degraus, em frente da porta.
- Bom dia, Sr. Perino.
- Bom dia, Donald - respondi.
- Posso tirar a bagagem do carro?
- Não trouxe nada - disse. - Só este saquito que aqui tenho.
Tirou-mo da mão e eu segui-o para dentro de casa.
- O Sr. Hardeman já está acordado? "
- Está na sala do pequeno-almoço com o Sr. Roberts - respondeu.
Continuei através da sala de entrada até à parte de trás da casa onde o terraço do pequeno-almoço deitava sobre a praia e o mar. Número Um e Artie estavam sentados
à mesa. Levantaram os olhos quando atravessei a porta.
- Bom dia, Número Um-? disse. - Bom dia, Artie.
Artie levantou-se e deu-me o aperto de mão tranquilizador do advogado. Aquela pressão que queria dizer não se preocupe eu trato de tudo.
- Bom dia, Ângelo.
Número Um resmungou.
- Levaste bastante tempo para cá chegar.
- Cheguei a Fort Lauderdale à uma e trinta da manhã, mas pensei que talvez não quisesse que viesse bater-lhe à porta àquela hora. - Puxei uma cadeira,
sentei-me e servi-me de uma chávena de café. - Está uma manhã estupenda.
- Não a vais achar assim tão estupenda depois de leres isto - disse Número Um, atirando um exemplar do Miami Herald da manhã em direcção a mim.
Peguei e li o jornal. Estava dobrado na página dois. Chamou-me a atenção um pequeno título que abrangia duas colunas, sublinhado a lápis vermelho grosso, mesmo ao
canto da página.
loren hardeman I processado pelos netos
por controlar a fundação
Loren Hardeman III e a irmã, a princesa Anne Elisabeth Alekhine, procuradores da Fundação Hardeman, apresentaram uma petição ao tribunal de Michigão no sentido de
ser posto de lado e revogado o acordo pelo qual a Fundação dá a seu avô o direito de votar as acções da Bethlehem Motors Company enquanto for vivo. Argumentando
que tal acordo era ilegal, sem validade e contrário ao interesse público que é a finalidade principal da Fundação, afirmaram ainda que o aludido direito de voto
permite ao Sr. Hardeman controlar a Bethlehem Motors, que constitui o único bem da Fundação, e que esse mesmo controlo põe em perigo esses bens e, como tal, é uma
ameaça para o trabalho, a prosperidade e a finalidade da Fundação. Juntou-se-lhes nesta petição o procurador-geral do Estado de Michigão, como amicus curiae em nome
do povo do estado de Michigão, que ainda acrescentou que, na sua opinião, a perda e/ou desvalorização dos bens da Fundação afectaria negativamente os projectos para
benefício do povo do Estado de Michigão nos quais a Fundação e o Estado tinham unido os seus esforços. O promotor de justiça Paul Gitlin tomou o assunto para estudo
e marcou a data de 17 de Janeiro para uma audiência; deu à Fundação e ao Sr. Hardeman I até àquela data para responderem às acusações.
Pousei o jornal e olhei para o Número Um.
- Agora explique-me o que é que isto quer dizer.
Ele olhou-me com um ar terrível.
- Quer dizer que estamos fodidos!
- Não percebo - disse. - Pensava que me tinha dito que havia cinco procuradores. Isso quer dizer que há mais dois, além de si e dos seus netos.
- E então? - atalhou. - Há anos que nem sequer os vejo. O mesmo acontece com a Anne. Mas o Loren tem estado sempre muito ligado aos outros dois e
tem-nos no papo.
- Falou com eles? - perguntei.
- Não consigo contactá-los pelo telefone - disse sarcástico. - Desapareceram misteriosamente. Loren fez bem as coisas.
Voltei-me para Artie.
- Que hipóteses temos?
- Quer uma opinião legal e pormenorizada ou quer a verdade em poucas palavras?
- A verdade em poucas palavras.
- Perdemos. - Olhou para mim. - Não consigo dizê-lo em menos palavras.
- Porquê? - perguntei.
- Trata-se de uma dádiva condicional. Quando o Sr. Hardeman deu as acções à Fundação, ou guardou ou pediu o direito aos votos correspondentes, como
condição dessa doação. O tribunal teria que determinar que se tratava de uma dádiva incompleta e, uma vez que a validade da Fundação não está em causa, ordenar ao
Sr. Har- deman que passasse para a Fundação os respectivos votos.
- E se a validade da Fundação for posta em causa? - perguntei.
- Nessa altura as acções tornar-se-iam de novo propriedade do Sr. Hardeman, retroactivamente. Nesse caso, como é evidente, ele tornar-se-ia responsável
pelo rendimento recebido pela Fundação e correspondente ao rendimento dessas acções. O cálculo que fiz por alto determinou que, desde 1937 até hoje, foram recebidos
aproximadamente cem milhões de dólares. Partindo do princípio de que o imposto de capitais, federal e estadual, perfazem uma média de sessenta e cinco por cento,
incumbe assim ao Sr. Hardeman uma responsabilidade fiscal de sessenta e cinco milhões de dólares, juntamente com o juro correspondente a seis por cento, a partir
do ano em que o rendimento começou a ser auferido, o que pode muito bem elevar essa responsabilidade fiscal a mais do dobro da taxa base, ou sejam, cento e trinta
milhões de dólares.
Voltei-me novamente para o Número Um.
- O senhor tem razão. Está fodido.
O velho acenou com a cabeça, sorumbático.
- Foi o que eu disse.
Ficámos um momento em silêncio. Levei a chávena do café à boca. Naquele momento, já não me sabia tão bem. Fosse como fosse, a manhã perdera o esplendor. Baixei os
olhos para o jornal. Qualquer coisa na história me prendeu o olhar. Pus o dedo em cima da linha e li em voz alta.
-... o aludido direito de voto permitiu ao Sr. Hardeman controlar a Bethlehem Motors, que constitui o único bem da Fundação, e que esse mesmo controlo põe em perigo
esses bens.-Levantei os olhos para Artie. - Eles não têm que provar esta afirmação antes de ganhar?
- Não propriamente - disse. - Bastaria demonstrar o facto de que todo o capital da companhia foi arriscado na manufactura e venda de um novo carro
para que o tribunal se pronunciasse. Geralmente, a prudência nos negócios não permite uma responsabilidade dessas. Parte do capital, sim. Todo, não.
- Mas se o carro tiver sucesso, a companhia ganhará mais dinheiro do que nunca desde o princípio da sua existência - respondi.
Artie mostrou-se interessado.
- Quando é que se pode saber isso?
- Seis meses a um ano depois de o carro estar no mercado.
- Tarde de mais para nos servir de alguma coisa. - Sacudiu a cabeça. - Não consigo aguentá-los tanto tempo.
-Se o Loren consegue o controlo da companhia, é a morte do Becsy-comentei. - E a companhia perde cem milhões de dólares, assim de uma assentada.
- Mas não perdem tudo -disse Artie. - Mesmo assim é menos do que aquilo que, segundo sei, podiam perder se não conseguissem vender, pelo menos, duzentos
mil carros dos novos.
- Sentir-me-ia mais confiante quanto à venda do Betsy se não estivéssemos a ter aqueles problemas todos com os agentes - disse.
- Aí está! - pela primeira vez havia uma nota de triunfo na voz do Número Um.
Pusemo-nos a olhar para ele.
- Aquele idiota do Simpson - disse. - Todos sabíamos que ele não tinha dinheiro para desencadear uma campanha daquelas sozinho. Tinha que ter alguém
por trás dele.
- Andámos por aí a verificar - respondi. - Não descobrimos nada.
- Quem é que andou a verificar? - perguntou Número Um.
- O Dan Weyman, claro - disse. - Isso é do pelouro dele.
- Dan Weyman - a voz de Número Um era sarcástica. - E vocês acreditaram nele?
Eu não disse palavra.
- O Weyman é homem de confiança do Loren - disse Número
Um.
- Está a querer dizer que o seu neto está por detrás da campanha? - perguntou Artie incrédulo. - Não acredito. Porque havia ele de querer destruir
a companhia da qual é presidente?
- Eu não digo que está nem digo que não está - respondeu Número Um com ar astuto. - Mas o meu neto cada dia se parece mais comigo. E se eu estivesse
no lugar dele e quisesse pregar um susto à direcção, era uma coisa assim que eu fazia. A única coisa que falhou foi que nós não nos assustámos.
- Se conseguirmos relacionar o Simpson com o Loren, isso pode servir-nos de alguma coisa no tribunal? - perguntei a Artie.
Ficou um momento a pensar.
- Não creio. Acho que o tribunal retiraria a procuração a Loren por violação das suas responsabilidades fiduciárias, sem alterar o que diz respeito
ao direito de voto.
- Mas se apanhamos o Loren em falso, certamente que os votos da Fundação vão para o Número Um - respondi.
- Se apanharmos o Loren - disse Número Um-, não precisamos dos votos da Fundação.
- Agora é que eu não entendo - disse espantado.
- Eu tenho quarenta e um por cento, está certo? - perguntou.
- Quarenta - respondi. - Resolvi usar as minhas opções.
Ele sorriu.
- Porquê agora?
Retribui o sorriso.
- Pensei que talvez precisasse de mais um milhão em dinheiro, com todos os problemas que está a ter.
Riu-se.
- Okay. Quarenta por cento. Tu tens um por cento. A minha neta Anne tem dez por cento. Faz cinquenta e um por cento. Não preciso de mais. *
- E como é que sabe que ela vai alinhar consigo? - perguntei.
- Conheço a minha neta - respondeu. - Se perder a confiança no irmão, volta-se para mim. O marido encarrega-se disso. Está sempre orientado no sentido
do dinheiro.
- Então, só nos resta um problema - disse. - É ligar o Sim- pson ao Loren.
- O problema é teu - disse o Número Um. - Trata disso e só te restam oito dias para o fazer.
- E como raio é que eu consigo uma coisa dessas? - perguntei.
- Quero lá saber! - atalhou o velho. - Faz tudo o que tiveres a fazer. Foi o dinheiro que pôs o Simpson em movimento. O dinheiro também o há-de trazer
de volta.
- E se não resultar? - perguntei. - Se o Loren estiver mesmo fora disto?
O velho olhou-me com ar maléfico.
- Trama-o como puderes! Isto não é nenhuma brincadeira de crianças!
CAPÍTULO 3
Quando voltei a Detroit nessa tarde, havia uma mensagem telefónica para mim, na minha caixa do Ponch. Li-a no elevador, enquanto subia para o meu apartamento.
favor telefonar à sr.a hardeman
Havia indicação de uma telefonista de Nova Iorque e um número de telefone. Olhei para as horas na parte de cima da mensagem. 19.10. Olhei para o relógio, perguntando
a mim mesmo o que estaria Bobbie a fazer em Nova Iorque. Eram quase nove.
Quando entrei, ouvi o som abafado da música do cabaré do andar por cima do apartamento, vinda através do tecto. Peguei no telefone que estava na outra ponta da sala
e olhei através da janela para Cobo Hall, enquanto esperava pela ligação.
A convenção desta semana era de agentes funerários. Devia ser divertido. A telefonista apareceu novamente na linha.
- Vou ligar à Sr.a Hardeman.
- Olá, Ângelo? - Não era a voz de Bobbie. Era Alicia.
Escondi a surpresa.
- Ora viva.
Ela riu.
- Ora viva - respondeu. - Hesitou um momento. - Deves estar a pensar que é que me levou a telefonar?
- Sim - disse francamente.
- Sei que estás ocupado e não te vou tirar muito tempo.
- Não precisas de ser tão formal comigo, Alicia - respondi. - Já nos conhecemos há tempo de mais para isso.
Riu outra vez. Desta vez, a voz dela era descontraída.
- Desculpa - disse. - A verdade é que, desde o meu divórcio, nunca sei lá muito bem em que pé é que estou com as pessoas que conhecia quando estava
casada.
- Eu conheci-te antes de casares.
- Okay - disse. - Vou ser simples na mesma. Como parte do acordo do divórcio, recebi metade das acções do Loren na Bethlehem.
- Não sabia.
- Muito poucas pessoas sabem - disse. - O Loren não quis dar publicidade ao assunto. É por isso que ele tem procuração minha para votar.
- Estou a ver. -Queria dizer que o Loren só tinha cinco por cento da companhia e não dez por cento como nós pensávamos.
- Li nos jornais sobre o caso da Fundação - disse. - Ouvi muitas vezes o Loren e o Dan Weyman falar nisso, mas nunca pensei que o fizessem. - Depois
a voz dela tornou-se dura. - Não quero que eles controlem a companhia.
- Já somos dois.
- Falei com o meu advogado e ele fez-me uma nova procuração a favor do avô - disse. - Quero que lhe digas isso por mim.
- Porque é que não lhe telefonas? Tenho a certeza de que ele ficava contente.
- Não-respondeu. - A secretária-governanta que ele lá tem, a Sr.a Craddock, conta tudo ao Loren. Não quero que ele saiba disto.
Eu tinha razão e não tinha. Pensava que o criado do Número Um é que era a fuga.
- Eu encarrego-me de dizer ao Número Um.
- Vou mandar-te a procuração aí ao hotel - disse. - O avô que a use como quiser.
- Eu digo-lhe - respondi. Sentia-me curioso. - Dizes que o Loren e o Dan falaram nisto muitas vezes?
- Sim. Não é nada de novo. Cada vez que o Loren se zangava com o avô falava nisso. Especialmente depois de saber do Betsy.
Tentei um tiro às cegas.
- Alguma vez os ouviste falar num homem "chamaflo Mark Simpson?
- Mark Simpson?
- Isso mesmo - disse.
- É amigo do Dan Weyman - respondeu. - Dan levou-o várias vezes lá a casa para falar com o Loren. Estavam a trabalhar em qualquer coisa juntos. Tinha
que ver com a segurança automóvel, foi o que eu percebi.
Jackpot! Deliberadamente disfarcei a excitação, mantendo uma voz calma.
- És capaz de me fazer um favor e escrever-me um bilhete indicando as vezes que te lembras de eles se terem reunido em tua casa?
- Claro - respondeu. Havia uma certa curiosidade na voz dela. - Isso vai ajudar?
- É possível - respondi, cauteloso. Olhei para o papel da mensagem que tinha na mão. - Se precisar de voltar a falar contigo, ligo para este número?
- Não - respondeu. - Vou amanhã à noite para Gstaad.
- Não sabia que fazias esqui.
Riu.
- Não vou lá para fazer esqui. A Betsy deve ter o bebé a todo o momento e eu quero estar com ela.
- Como é que ela está?
Riu outra vez.
- Ela está perfeitamente calma. O marido, Max, está mais excitado do que ela, mas eu ainda mal consigo acreditar. Estou quase a ser avó.
- De ano para ano, as avós estão a ficar mais novas. Podes agradecer isso à geração da tua filha. Dá as minhas saudações à Betsy.
- Com certeza - disse. - Adeus, Ângelo.
- Adeus, Alicia.
Desliguei o telefone e encaminhei-me para o bar. Desmanchei um tabuleiro de cubos de gelo, abri uma garrafa de Crown Royal e preparei uma bebida valente. Estava
a precisar dela.
O Número Um tinha razão quando pensara que o Weyman estava a servir de capa. Mas não pude deixar de pensar porque é que ele estaria convencido de que o Weyman e
o Loren estavam ligados ao Simpson. Não fazia sentido. Até àquele momento.
A música do cabaré estava cada vez mais alta. Estava a incomodar. Voltei ao telefone e liguei para o subgerente.
- Tem que fazer qualquer coisa quanto àqueles amplificadores do cabaré lá de cima - queixei-me. - Estão a dar comigo em doido.
- Deve estar enganado, Sr. Perino - disse o subgerente com toda a suavidade. -O cabaré está fechado esta noite. Talvez um dos hóspedes tenha o rádio
alto de mais. Vamos verificar.
- Faça-me esse favor - disse secamente. Pousei o telefone e dirigi-me para o quarto. A música era cada vez mais alta. Já tinha problemas que me chegassem
para fabricar sozinho as minhas dores de cabeça, não precisava da ajuda de ninguém. Abri a porta do quarto. A rajada de música dos oito altifalantes quase me deitou
ao chão.
Cindy estava sentada na cama, com o cabelo a cair-lhe por cima dos ombros nus e dos seios até ao lençol que lhe cobria as pernas, completamente perdida no som. Voltou-se
para olhar para mim, sem parar de abanar a cabeça ao som do ritmo. Um sorriso lento, feliz, surgiu-lhe nos lábios.
- Bem vindo a casa, Ângelo. Não é uma beleza?
- Baixa isso!-gritei por cima da barulheira... - Que é que estás a tentar fazer? Que me cancelem o contrato?
Pegou num aparelho de controlo remoto e apontou-o para o gravador que estava do outro lado do quarto. O volume atingiu um nível respeitável.
- É a última palavra - disse. - Não consegui resistir.
Fiquei a olhar para ela.
- Como é que entraste?
Os olhos dela tornaram-se grandes e redondos.
- Acreditas que não havia um único quarto em nenhum dos hotéis desta cidade quando cheguei ontem à noite?
- Isso não responde à minha pergunta...
Pôs-se de joelhos à beira da cama.
- Vem cá - disse.
Aproximei-me dela, pôs-me os braços à volta do pescoço e puxou o corpo de encontro ao meu. Tinha os lábios quentes e macios.
Afastei a boca.
- Continuas a não responder à minha pergunta.
- Não foi difícil, querido - disse com os olhos a sorrirem nos meus.-Só lhes disse que ia instalar o novo sistema de som que tu tinhas encomendado.
- Mas isso foi ontem - respondi.-Como é que eles te deixaram ficar este tempo todo?
- Toda a gente sabe que não se fazem instalações como esta num dia - disse com ar inocente. - Além disso, eu não fiz barulho. Até agora, quando te
ouvi entrar e ir direito ao telefone para falares com outra mulher. - Meteu a mão debaixo da almofada e tirou de lá uma mensagem telefónica que me enfiou na mão.
- Especialmente ela!
Olhei para o papel. Era a cópia da mensagen que me tinham dado à entrada. Quando levantou os olhos estava tão zangada que não pude deixar de me rir.
- Tu estás com ciúmes - disse. - Isso não parece teu. Julguei que eras demasiado fria para isso.
- Não estou nada com ciúmes! - disse, acalorada. - Mas diz-me lá se gostavas de passar dois dias na cama à minha espera e, quando eu chegasse, fosse
direita ao telefone falar para outro tipo?
- Mas eu não sabia que estavas à minha espera - disse a rir.
- Isso não tem importância!-atalhou.-'Acho que não foi nada simpático. Ao menos podias ter espreitado para o quarto primeiro!
- Era uma questão de negócios - respondi.
- Claro - respondeu sarcástica.
- Era sim - disse. - Estás enganada quanto à Sr.a Hardeman. Era a primeira.
- Meu Deus - disse num tom chocado. - Não me digas que também já passaste por lá?
Duncan estava à espera no meu gabinete quando cheguei à fábrica na manhã seguinte. Carradine da engenharia e Joe Huff do design estavam com ele.
Não precisei de olhar segunda vez para perceber que não estavam ali para me trazer boas notícias. Dei a volta à secretária.
- Okay, meus senhores - disse. - Descarreguem.
- Como é que quer a coisa, rapaz? - perguntou Duncan. - Um de cada vez ou tudo ao mesmo tempo?
- Um de cada vez - respondi. - É segunda-feira de manhã e não estou lá em muito boa forma.
- Okay - disse. - Na sexta-feira todo o trabalho na linha de produção parou. Ordens do presidente.
- Ele não pode fazer isso. Não tem autoridade para o fazer.
O Número Um continua a ser presidente do conselho de administração e administrador-delegado.
- Mas fê-lo - disse Duncan simplesmente.
- Bom, vão lá e ponham-na outra vez em funcionamento.
- Não podemos. disse Duncan. - Foi-nos impedida a entrada na fábrica, não podemos sequer chegar aos nossos gabinetes. Este foi o único sítio onde
conseguimos chegar.
Fiquei em silêncio. Loren não perdia tempo. Talvez estivesse até mesmo a adiantar-se demasiado.
- Isso é uma coisa - disse. - Que é que se segue?
- Problemas com o sindicato - disse Duncan. - A UAW disse que não vão permitir que a linha de montagem comece até que todas as reclassificações tenham
sido acordadas. Afirmam que há muitos trabalhos que estão a ser desclassificados.
- Julgava que tínhamos aprovado um esquema que eles achavam satisfatório.
- O que quer dizer é que você o aprovou - disse Duncan.
- Weyman não lhe deu seguimento.
Outra vez o Weyman. Não me estava a ajudar nada. Começava verdadeiramente a detestá-lo.
- Só lhe compete negociar nas bases que nós lhe damos - disse.
- Não tem o direito de alterar ou reter as nossas propostas.
- Mas fê-lo - disse Duncan.-Claro que tinha ordens directas do presidente.
Olhei para ele.
-É tudo?
- Não - respondeu. - Leu o Wall Street Journal desta manhã?
Sacudi a cabeça.
- Tome, leia -disse, dando-me o jornal.
Era uma história de primeira página. Um título de caixa alta que abrangia as duas primeiras colunas.
carro novo da bethlehem motors db cento e cinquenta milhões de dólares já é um desastre?
Continuei a ler. A história vinha de Detroit e estava datada de sexta-feira.
Especial para o Wal Street Journal - Fontes bem informadas da própiia companhia Bethlehem Motors exprimiram hoje fortes dúvidas quanto ao possível sucesso do seu
novo carro, o Betsy, que deverá aparecer no mercado ainda este ano. Estas dúvidas vieram à superfície na sequência de uma queixa apresentada por Loren Harde- man
III e sua irmã, a princesa Alekhine, contra seu avô, Loren Hardeman I, e a Fundação Hardeman em relação ao que representa basicamente o controlo da gigantesca companhia
automóvel.
Fontes da companhia revelaram ainda que o Sr. Hardeman III começava a sentir preocupações face aos custos crescentes do projecto juntamente com os relatórios sucessivos
quanto à segurança do próprio carro e que de tinha instaurado este processo com a maior relutância, depois de tentar persuadir o avô a abandonar o projecto no interesse
do público.
Havia mais, mas eu já tinha lido o suficiente. Pousei o jornal. Não restavam dúvidas no meu espírito sobre quem eram as "fontes bem informadas da companhia". Weyman.
Como vice-presidente tinha acesso directo ao jornal. Pela minha parte, tinha o pressentimento de que isto era apenas o princípio, iam aparecer mais histórias como
esta em jornais de todo o país. Se o que eles queriam era matar o Betsy antes mesmo de ele chegar ao mercado, não podiam arranjar melhor maneira. Mais algumas histórias
como esta e o público não compraria o carro nem que lhe fosse servido numa bandeja de prata.
- Esperem aqui-disse. E dirigi-me para o gabinete de Loren.
CAPÍTULO 4
- O Sr. Hardeman está em reunião - disse a secretária, levantando a mão num gesto de interdição quando avancei para a porta dele.
- Magnífico - disse, passando bruscamente por ela. Quando entrei, Loren III estava sentado atrás da secretária
e, à frente dele, Weyman e outro homem que eu não conhecia. Loren foi o único que não pareceu ficar surpreendido.
- Tenho estado à sua espera - disse.
- Não duvido - respondi.
O outro homem e Weyman puseram-se rapidamente de pé.- Quando estiver livre, estamos no meu gabinete - disse Wey- man. Prepararam-se para sair.
- Espere aí - disse para Weyman. - O que tenho a dizer também tem a ver consigo.
Weyman deitou um olhar interrogador para Loren. Loren acenou com a cabeça e ele deixou-se cair novamente na cadeira.
- Espere no meu gabinete, Mark - disse para o outro homem.
O homem fez que sim com a cabeça e saiu. Não esperei que
a porta se fechasse atrás dele.
- Aquele é Mark Simpson? - perguntei.
Weyman hesitou. Loren fez novamente que sim com a cabeça.
- Sim - respondeu Weyman.
- Era o que eu pensava - disse. - A escumalha começa a vir à superfície.
Não responderam.
- Trato dele mais tarde - disse. Pus-me ao lado da secretária de Loren, donde podia vê-los a ambos. - Leu a história do Wall Street Journal desta
manhã?
- Sim - respondeu Loren.
- Não acha que, desta vez, exagerou?
- Não - disse. - Acho que reflecte a verdade.
- Tal como você a vê - disse.
- Tal como eu a vejo - ecoou.
- Já pensou no que podia acontecer à companhia se você perdesse?
- Não perco - disse confiante.
- Mesmo que ganhe - disse-, perde sempre. Mais umas quantas histórias como aquela e ficará a controlar uma companhia falida. Não haverá uma única
pessoa em todo o mundo que compre um só carro produzido por esta companhia.
- O que acontecer à companhia não é de sua conta -disse Loren.
- Nisso é que você se engana - respondi. - É da minha conta. Acontece que sou proprietário de duzentas mil acções desta companhia que comprei ao seu
avô por dois milhões de dólares em dinheiro.
Pela primeira vez, o rosto de Loren mostrou surpresa.
- Não acredito. O meu avô nunca ia vender uma acção a um estranho.
- É fácil de verificar - respondi. - Porque é que não pega no telefone e não lhe pergunta?
Loren não se mexeu.
- Como accionista tenho certos direitos. Se ler os estatutos da companhia com tanto cuidado como eu os li, verá de que é que eu estou a falar. Tenho
o direito de pedir indemnização e danos contra qualquer administrador da companhia que interfira com o trabalho em curso, caso essa interferência conduza a perdas
que lhe sejam directamente imputáveis.
Loren estendeu a mão para o telefone. Falou rapidamente com Jim Ellison, advogado geral da companhia. Pousou o telefone e olhou para mim.
- Primeiro teria que provar o que disse.
Sorri.
- Não sou advogado, mas isso não deve passar de uma brincadeira. Se parar a produção do Betsy neste momento, são cento e cinquenta milhões de dólares
que se vão por água abaixo.
Ficou silencioso.
- Vou-lhe tornar a coisa mais fácil - disse-lhe. - Dou-lhe o tempo que levo para chegar daqui ao meu gabinete. E se, quando eu lá chegar, você não
me disser que o trabalho na linha de produção já começou outra vez e que a minha gente pode ir tratar das suas tarefas normais, sem qualquer interferência, vou-lhe
cair em cima e aqui deste pateta do seu amiguinho com um processo que os vai obrigar a pagar a maior indemnização em que vocês alguma vez ouviram falar. Cento e
cinquenta milhões de dólares.
Preparei-me para sair. A meio caminho da porta, voltei-me para trás. Olhei para Weyman.
- E você tem exactamente uma hora para aparecer no meu gabinete com gente da UAW para tratarmos do nosso contrato.
Quase sorri com a expressão que lhe apareceu no rosto.
A devoção dele ao Ex-Lax era uma piada que já tinha corrido toda a fábrica. Naquele momento, não tinha o ar de quem ia precisar de o tomar.
Voltei-me para Loren.
- Se fosse a si - disse quase com brandura-, punha-me já à procura de uma maneira de negar ou de contradizer essa história que apareceu no jornal
de hoje, antes que ela tenha a possibilidade de lhe cair em cima.
Voltei para o meu gabinete pelo caminho mais comprido, caso eles precisassem de tempo para pensar no que iam fazer. Passei pelo gabinete de Weyman. Movido por um
impulso, entrei.
- O Sr. Simpson está aqui? - perguntei à secretária.
- Acaba de sair, Sr. Perino - disse alegremente. - Pediu-me que dissesse ao Sr. Weyman que tinha uma entrevista importante e que lhe telefonava mais
tarde.
Fiz que sim com a cabeça e continuei o meu caminho. O homem tinha todos os instintos do chacal. Sentia o cheiro dos problemas e não queria estar perto quando as
coisas aconteciam. Resolvi que havia de entrar em contacto com ele, mais tarde, quando tudo estivesse calmo por ali.
Encostei-me à porta exterior do meu gabinete e fumei um cigarro inteiro antes de entrar. Não queria correr riscos. Ia dar-lhes todo o tempo de que precisassem.
A minha secretária olhou para mim quando entrei a porta.
- Sr. Perino.
Parei junto da mesa dela.
- Sim?
- Acabei de receber uma mensagem um bocado estranha para si, do gabinete do Sr. Hardeman - disse, com uma expressão de espanto no rosto. - Eu não
percebi nada, mas ele disse que o Sr. Perino ia entender.
- Leia lá.
A rapariga baixou os olhos para o livro onde tomava as notas em taquigrafia.
- Pediu-me para lhe dizer que tudo estava arranjado como o senhor queria, mas que, para a semana, viria aqui, pessoalmente, despedir-se de si.
Sorri. Sabia perfeitamente o que ele queria dizer. Dirigi-me para o meu gabinete.
- Okay, meus amigos, vamos ao trabalho. Já perdemos quatro dias com esta merda.
Duncan olhou para mim.
- Como é que conseguiu fazê-los recuar tão rapidamente?
Sorri.
-: Usei o meu encanto italiano. Ameacei-os de que lhes cantava O Sole Mio.
Só às nove da noite é que acabámos a reunião com os representantes da UAW e, nessa altura, já era tarde de mais para ir à procura do Simpson. A construção de um
carro envolvia muito mais coisas do que simplesmente transpô-lo da prancheta de desenho para a linha de montagem.
Era a primeira vez que eu me encontrava presente a uma negociação sindical, e, pela minha parte, preferia que fosse a última. Mas, por muito pouco que eu gostasse
daquele filho da puta, não podia deixar de admitir que o Dan Weyman sabia o que estava a fazer.
Era profissional e preciso. Até àquele momento, nunca me tinha dado conta do número de classificações diferentes que existiam dentro do mesmo conjunto da linha de
montagem. Ele sabia-o. E sabia a definição exacta das responsabilidades de trabalho de cada classe. Quando ele se embrenhou no assunto, fiquei fascinado com a eficiência
e subtileza com que realizava o trabalho. Limitei-me a desejar que estivesse do nosso lado, e não do lado de Loren, mas isso não impedia que ele estivesse a fazer
um bom trabalho para a companhia.
A dada altura em que a coisa se estava a tornar um bocadinho escorregadia, ele avançou e explicou-lhes tudo em termos básicos.
- Nós cedemos um pouco, mas vocês também vão ter que vergar um bocadinho.
A voz dele era tão calma como se estivesse a dar uma aula numa universidade, o que creio que ele tinha feito antes de ij" para a Ford com os mais inteligentes.
- Estamos todos a matar a cabeça para impedir que os japoneses e os alemães nos tirem o mercado. Não só no que diz respeito a vendas como a fabrico.
Teria sido bastante mais fácil para a direcção da Bethlehem mandar construir este carro no estrangeiro, além de ter custado menos. Vocês sabem-no e eu também o sei.
O ano passado a nossa média de pagamentos por hora foi de $6.66, substancialmente mais alta do que a da maior parte das outras companhias da indústria. Além de que
perdemos vinte milhões de dólares na nossa divisão automóvel. Tínhamos todas as justificações do mundo para irmos construir o nosso carro no estrangeiro. Mas não
o fizemos. Porque respeitamos os nossos empregados e sentimos que temos uma obrigação para com eles. Se adoptássemos tal medida, ter-lhesiíamos causado grandes dificuldades.
Agora tudo o que pedimos é a vossa colaboração. Para aumentar a sua produtividade juntamente com a nossa. Os senhores dão um pouco, nós damos um pouco. Talvez que,
entre nós, consigamos levar a indústria novamente ao lugar que lhe compete.
Fiquei a olhar para as caras dos representantes do sindicato enquanto ele fazia este pequeno discurso. Não consegui ler grande coisa nelas, mas também eles eram
profissionais e experientes no seu trabalho. A partir daí, levou horas. Mas, por fim, tudo terminou.
Depois de eles se terem ido embora, olhei para Dan Weyman que estava a juntar os papéis.
- Fez um bom trabalho - disse-lhe.
Não respondeu.
- Podia ter-nos poupado a todos uma data de trabalhos se tivesse feito isto na altura em que lho pediram - disse.
Fechou a pasta com uma pancada seca. Ficou a olhar para mim, um momento, como se fosse dizer qualquer coisa e, depois, voltou-se bruscamente e saiu do gabinete sem
dizer palavra.
Cindy recebeu-me à porta do apartamento quando entrei, depois das dez. Estendeu-me uma mensagem escrita.
- Agora diz-me que isto também são negócios - acrescentou, sarcástica.
Baixei os olhos para o papel.
"Estou no piano-bar do rés-do-chão. Preciso falar-te imediatamente." Estava assinado com as iniciais B. H.
Levantei os olhos para Cindy.
- Provavelmente são.
- Com certeza - disse a rapariga. - Ela telefonou antes de cá chegar o recado. Eu era capaz de reconhecer aquele sotaque britânico em qualquer lado.
Mas desligou antes de eu perguntar quem falava e, depois, veio a mensagem.
- Há quanto tempo foi? - perguntei.
- Talvez há uma meia hora.
Fiquei um momento a pensar. O bar não era sítio para um encontro. Bobbie devia andar à procura de sarilho.
- Vai lá abaixo e diz-lhe que venha cá acima - disse.-Depois, desaparece durante uma hora.
- E que é que achas que eu devo fazer? - perguntou.
- Vai ao cinema, fica sentada no bar, não sei - respondi.
Um sorriso matreiro surgiu-lhe nos lábios, enquanto se dirigia
obedientemente para a porta.
- Não posso vir outra vez cá para cima? - perguntou. - Eu fico no quarto, não incomodo. Nem sequer dão por mim.
- Mnm-mm - sacudi a cabeça.
- Então, ao menos, deixa-me instalar um microfone - disse. - Talvez assim eu possa aprender alguma coisa. Sempre tive curiosidade em saber como é
que as senhoras inglesas fazem isso.
- Tive um dia difícil, Cindy - disse num tom fatigado. - Agora faz o que te digo, se não apanhas com o cinto.
Ela ficou um momento a olhar para mim.
- Agora não - disse. - Quando eu voltar. - A porta fechou-se atrás dela.
CAPÍTULO 5
Tinha um martini, muito seco e muito frio, num copo coberto de gotas de gelo, à espera, no bar, quando ela entrou. Em silêncio, pus-lho na mão.
- Não te esqueceste, pois não, Ângelo? - perguntou. Levantei o meu copo.
- Os Ângelos, tal como os elefantes, nunca esquecem. Bebemos em silêncio. Ela pareceu acabar a bebida num só golo.
Também me lembrava disso. Enchi-lhe de novo o copo com o jarro do martini. Continuei a não dizer palavra.
Bobbie atravessou o quarto e olhou lá para fora, para as luzes esplendorosas de Ontário. O anúncio intermitente do outro lado do rio acendia e apagava constantemente:
venha até Cá! Voltou-se para mim.
- Tens uma linda vista à noite.
- Quando o tempo está claro - disse. - Nos dias em que há nevoeiro não é tão boa.
Levou o copo à boca e voltou-se de novo para a janela.
- Vou deixá-lo - disse. -Cometi um erro. Sei isso agora. Não respondi.
Voltou-se para olhar para mim.
- Ouviste o que eu disse? Fiz que sim com a cabeça.
- Ouvi.
- Não tens nada a dizer? - A voz dela era fraca e insegura.
- Não.
- Nada? - Riu-se. - Nem mesmo, eu tinha-te dito?
- Nada.
Voltou-se outra vez e olhou pela janela.
- A rapariga que foi lá abaixo. É...?
- Somos velhos amigos - respondi.
Ficámos de novo em silêncio. Despejou o copo e estendeu-mo. Enchi-o e devolvi-lho.
- Obrigada - disse.
Fiz que sim com a cabeça. ---Continuas a falar pouco, não achas?
- Só quando tenho alguma coisa a dizer.
- Então diz qualquer coisa - disse com aspereza. Olhei para ela.
- Porquê?
Não olhou para mim.
- Porque não era assim que eu tinha imaginado que ia ser. A única coisa que lhe interessa é a companhia. Só vive para isso. Isso e a sua ideia de
vingar a morte do pai.
- Vingar a morte do pai?
- Sim - respondeu. - É um homem dividido entre o respeito que tem pelo avô, por tudo o que ele fez e o ódio que sente por ele ter empurrado o pai
para o suicídio.
Põe as culpas disso ao Número Um?
Fez que sim com a cabeça.
- Disse que o velho nunca deixou o pai descansado, tal como faz com ele.
- Não posso acreditar.
Voltou-se para mim.
- Nem eu. Até que uma noite ele me mostrou uma carta que tem guardada em casa no cofre de parede. Foi a primeira vez que a mostrou a alguém. Mesmo
a Alicia nunca a viu.
- Que carta?
- A carta que o pai deixou quando se suicidou - respondeu.
- Mas não havia carta nenhuma - disse-lhe. Lembrava-me das histórias que tinham vindo nos jornais. - A polícia não encontrou carta nenhuma.
- Encontrou-a o Loren - disse ela. - Foi ele quem deu com o corpo do pai. E encontrou também a carta. E escondeu-a. Até nessa altura, ele teve medo
que, se o conteúdo da carta fosse tornado público, a companhia pudesse acabar.
- Que é que dizia a carta?
- Só a vi uma vez, mas nunca a esquecerei - disse.-Não estava dirigida a ninguém. Era apenas uma nota rabiscada pela mão do pai.
"Não posso mais. Ele não me deixa em paz. Não tenho um único dia de sossego e não se passa um único dia em que ele não me faça exigências impossíveis. Há anos que
ando a tentar que ele me deixe em paz, mas agora vejo que nunca há-de deixar. Já não tenho forças para lutar com ele. Esta é a única saída. Acreditem-me. Perdoem-me."
Estava assinado simplesmente "L. H. II".
Fiquei calado.
- Loren disse que era exactamente a maneira como o avô o tratava. Mas que ele era mais forte do que o pai. Que era capaz de lutar contra ele e havia
de lutar.
Voltei-me em silêncio para encher o meu copo. Bebi um golo.
- Porque é que ele não fez qualquer coisa nessa altura?
- Pela razão que me disse e ainda por outra - respondeu. - Disse que receava que o avô não o fizesse presidente da companhia se tomasse qualquer atitude.
- Levou o copo à boca e estendeu-mo vazio.
Enchi-o e dei-lho.
- Estou a ficar embriagada - disse. - Provavelmente já estou embriagada desde que vim até aqui. Tomei dois duplos lá em baixo enquanto estava à espera.
Aguentava bem a bebida, tinha os olhos límpidos.
- Pareces-me bem.
- Mas eu sinto - disse. - Conheço-me.
Não disse nada.
- Como vês, mesmo nessa altura, a única coisa que lhe interessava era a companhia. E continua na mesma. Na verdade, ele não precisa de casar, nem
mesmo de ter uma mulher. Não precisa de ninguém.
- Então porque é que casou contigo? Podia ter-te tido a ti sem perder a Alicia. Teria poupado uma fortuna.
Riu-se.
- Mas ele não sabia isso, não é verdade? Tu sabias e eu também, mas ele não. Lembro-me de teres dito uma vez que ele é um tipo direito. - Riu outra
vez. - Nem sabes como ele é direito.
Bebi em silêncio.
-' Sabes que cada vez que fazemos amor me pergunta se já vim antes de ter o orgasmo? - Soltou uma risada. - Às vezes dou-lhe cabo da cabeça e digo que não, só para
o fazer esperar. Fica como louco.
- Acho que estás embriagada.
- Que é que se passa, Ângelo? - perguntou. - Não gostas de me ouvir falar da minha vida sexual?
Olhei para ela.
- Se queres saber a verdade, não.
- Estás a ficar muito decente, não estás, Ângelo? Como daquela vez na pista de ensaio em Washington e agora nem sequer queres falar nisso.
Fiquei silencioso.
- Ainda me lembro do que se passou entre nós em São Francisco. Lembras-te, Ângelo? Foi lindo.
- Lembro-me, sim. Também me lembrava do que tinha sofrido quando ela me deixou no aeroporto. Estranho, agora já não doía.
Aproximou-se de mim, aproximou-se tanto que senti na boca o cheiro dela.
- Podia ser outra vez assim.
- Não.
Pousou a bebida e pôs-me os braços em volta do pescoço. A boca aberta agarrou a minha, faminta, explorando-a com a língua. Nada.
Segurei-a, afastada de mim, agarrando-lhe firmemente os braços com as mãos.
- Não.
- Deixa-me experimentar, Ângelo-disse, com os olhos a procurar os meus. Podia ser outra vez o mesmo!
- Não ia ser o mesmo, Bobbie. Nunca mais.
- Porque é que estás sempre a dizer isso, Ângelo? - gritou. - Eu amo-te! Sempre te amei!
Desta vez, trouxe-a de encontro a mim e beijei-a. Demoradamente, até que os braços lhe caíram ao longo do corpo e ela deu um passo para trás, com os olhos levantados
para mim, cheios de uma estranha solidão.
- Estarias a cometer outro erro - disse-lhe. - Fugir a correr dos braços dele para os meus não é a resposta.
A voz dela era perfeitamente clara e controlada, sem vestígios de tudo o que tinha bebido.
- Como é que sabes?
Peguei-lhe na mão.
- Não ouvi a música - respondi.
Ficou um momento silenciosa, a olhar para as nossas mãos, depois retirou a dela.
- Ainda há martini no jarro?
Enchi-lhe novamente o copo. Fiquei a vê-la despejá-lo até meio, antes de parar.
- Vou sentir a tua falta. Fazes um bom martini.
- Eu dou-te a receita - respondi. - Gim puro. Muito gelo. Nada de vermute.
- Isso é uma partida indecente.
- Mas dá um excelente martini.
- Tenho as malas lá em baixo. Vou para o aeroporto. Não vou voltar para ele.
Não disse nada.
- Posso apanhar o último avião para Chicago. De lá sigo para Londres, amanhã de manhã.
- Ele sabe que te vais embora?
Sacudiu a cabeça.
- Telefono-lhe do aeroporto, antes de me meter no avião.
- E ele não vai dar pela tua falta antes disso?
Riu-se.
- Quando saí estava fechado em reunião com o Dan, um tipo chamado Mark Simpson e mais uns outros que eu nunca tinha visto. Uns indivíduos com mau
aspecto. Não eram como os outros homens que costumavam ir lá a casa. O mais provável é que não vá para a cama a não ser de madrugada.-Uma expressão curiosa passou-lhe
no olhar. - Agora que penso nisso, lembro-me de que estavam a falar em ti quando passei em frente da porta.
- Palavra? Espero que estivessem a dizer bem?
- Nada bem - disse muito séria. - Ao que parece fizeste qualquer coisa que pôs o Loren fora de si. É verdade?
- É possível - admiti. - Mas eu trabalho para o avô e actualmente as nossas relações não são das melhores.
- Ouvi a voz do Loren quando passei no vestíbulo - disse.
- "Vou jogar tão forte e tão baixo como o velho jamais jogou e o Ângelo bem pode ficar a saber para já."
- Que mais é que ele disse? < *
- Não ouvi mais nada. Entretanto, já estava do outro lado do vestíbulo e não ouvia nada. - Os olhos dela estavam conturbados.
- Não gosto disto.
- Provavelmente foram apenas umas palavras fora de contexto que pareceram muito piores do que, na realidade, são.
Bobbie acabou a bebida e passou-me o copo. Coloquei o copo vazio em cima do bar.
- Prometes que tens cuidado?
Fiz que sim com a cabeça e dirigimo-nos para a porta.
- Trouxeste casaco? - perguntei-lhe.
- Deixei-o a guardar lá em baixo.
Segurei a porta aberta para ela passar. Saiu e voltou-se para olhar para mim. Inclinei-me e beijei-a na cara.
- Adeus, Bobbie. Boa sorte.
Vi as lágrimas a espreitarem-lhe nos olhos.
- Pelos vistos estamos sempre a dizer adeus, não é, Ângelo?
- Parece que sim - respondi.
Conteve as lágrimas. Levantou o queixo com ar orgulhoso.
- Bom, pelo menos não temos que passar por isto outra vez, pois não?
- Não.
Agarrou-me pelas bandas do casaco e puxou-me para ela. Os lábios dela pousaram-se suavemente nos meus.
- Adeus, Ângelo. Não penses mal de mim. Lembra-te apenas de que nos amámos. Em tempos.
Olhei-a nos olhos. As lágrimas eram visíveis agora.
- Hei-de lembrar-me - disse suavemente.
Depois, Bobbie voltou-se bruscamente e encaminhou-se para o elevador, com as costas muito direitas e rígidas. Fiquei parado a olhar, até que as portas do elevador
se fecharam atrás dela. Não olhou para trás. Nem uma vez.
CAPÍTULO 6
Quando saí do quarto de banho, depois de tomar duche, o criado tinha feito rolar a mesa do pequeno-almoço até junto da cama e Cindy estava sentada, a comer um biscoito
dinamarquês e a espalhar migalhas por cima do lençol, enquanto o estéreo berrava a toda a força.
- Santo Deus!-disse, apertando a toalha à volta da cintura e servindo-me de uma chávena de café. - A esta hora da manhã?
- É a inauguração de Pocono em Julho passado - disse-, recebi as fitas ontem.
Bebi um pouco de café. Era negro, quente e sem sabor, como todos os cafés de hotel.
- Não podias esperar?-disse sarcástico.
Não me prestou atenção, seguia atentamente o roncar dos motores que ia de um altifalante para outro.
- Este é o Mark Donohue-disse cheia de excitação.-Ouves como aquele outro carro se aproxima dele?
Acendi um cigarro sem responder. Pus-me a ouvir. Tinha razão. Eram dois motores que roncavam passando de um altifalante para outro. Agora, quase parecia que estavam
no mesmo altifalante.
- Aquele é o Joe Leonard! Agora está a ultrapassá-lo. Já o passou! Mark abrandou por causa da mancha de óleo da segunda curva da segunda volta e Joe
passou-o. Escuta! Lá vêm A. J. e Mário mesmo atrás deles!
O telefone tocou. Atendi.
- Alô - gritei, por cima do som dos altifalantes.
- Que raio de barulho é esse? - perguntou o Número Um. - Onde raio é que tu estás?
- Cindy, desliga-me essa porcaria! - gritei. Ela pegou no controlo remoto. A fita fez um zumbido e parou. Voltei-me novamente para o telefone. - Está
melhor agora?
- Quem é que está aí contigo? - pergunto o velho.
- Cindy. O meu piloto de ensaio.
- Que diabo está ela a fazer? - perguntou. - A dar voltas ao quarto num Fórmula Um?
Ri-me.
- Praticamente.
- Já lá vão três dias - disse.-Não sei nada de ti.
Lembrei-me do que Alicia me tinha dito acerca da Sr.a Crad-
dock.
- Não tenho nada a contar - disse.
- Então, que raio tens andado a fazer? - atalhou. - A conduzir o teu piloto de ensaio dentro da cama?
- Porque é que não liga para mim mais tarde, de fora? - sugeri com precaução.
- Para quê? - retorquiu. - Sabes como eu detesto sair nesta cidade.
- Segurança - respondi.
Ficou, um momento silencioso. Ouvia-lhe a respiração ao telefone.
- Estás a falar da Craddock? - perguntou.
- Sim. , *
- Eu sei tudo - disse, lacónico. - Neste momento ela está fora de casa, às compras. Podes falar.
- Se sabe, porque é que continua a tê-la aí?
- Porque é a melhor secretária e governanta que eu já tive. E podes acreditar, hoje em dia não é fácil arranjar uma boa governanta.- Soltou uma risada.-A
minha ideia é que o dinheiro que o meu neto lhe paga faz com que ela tenha o melhor emprego do mundo e não a deixa deitá-lo a perder.
- Mas para que é que lhe serve se o Loren sabe tudo o que faz?
Soltou nova risada.
- O Loren só sabe aquilo que eu quero que ele saiba. Assim toda a gente vive feliz. Neste momento, ela não está em casa. Estás a ver o que eu quero
dizer?
- Okay - respondi. Perguntava a mim mesmo se algum de nós seria, alguma vez, capaz de o levar à certa. Tinha que haver uma vantagem em se ter noventa
e quatro anos de idade. Se é que havia alguma verdade no velho ditado, que a perfeição vem com a prática, noventa e quatro era uma prática considerável.
Ouviu em silêncio enquanto lhe contei os acontecimentos dos últimos dois dias. Quando acabei, continuou em silêncio. A linha parecia vazia.
- Ainda aí está? - perguntei.
- Estou aqui, estou - respondeu. Ouvi um suspiro fundo. - O meu neto está tão desejoso de me bater que nem pode esperar.
Foi a minha vez de ficar silencioso.
Pela primeira vez, ouvi um tom de resignação na voz dele.
- Quando se é novo, está-se sempre com pressa. Ele devia deixar passar o tempo. Segunda-feira não tarda aí.
- Em seis dias pode acontecer muita coisa.
- Disse ao Roberts que devolvesse à Fundação a procuração de voto - disse. - Nem sequer vou à audiência do tribunal.
- Porquê? - perguntei. - Porque sabe que vai perder?- Não estejas a ser impertinente, rapazola - atalhou, enquanto a voz se lhe enchia
outra vez de fogo. - Não, não é por saber que vou perder, é porque é isso mesmo que devo fazer. A Fundação é demasiado importante para se tornar uma bola de futebol.
Não respondi.
- Além disso, não passa de uma escaramuça. A verdadeira luta vai ser na reunião dos accionistas, terça-feira de manhã. Aí é que se perde ou ganha.
Aí vou estar presente. - Teve um riso irónico. - Claro que o meu neto imagina que já a tem no papo, senão não convocava a reunião para o dia a seguir à audiência.
- Já perdeu os votos da Alicia - disse. - Talvez possamos mudar mais alguns.
- Não têm as mesmas razões que ela. A única hipótese que vejo é se conseguirmos associá-lo ao Simpson. Até mesmo os procuradores da Fundação não vão
alinhar com um homem que tentou sabotar a sua própria companhia.
- Já não falta tudo. Sabemos que entre os dois não há apenas um vago conhecimento.
- Isso é lá contigo. Eu aqui não posso fazer nada.
- Vou tentar-'disse. - Ainda me lembro do que me disse quando me vim embora.
-Esquece isso! Foi uma coisa que eu disse só porque estava furioso. Não quero metê-lo em apuros se ele não tiver nada a ver com o caso.
- Porquê a mudança súbita? -perguntei. - Começou a ter problemas de consciência com a idade?
- Não, raios parta!- berrou.-Não te esqueças que ele é meu neto e eu não vou enforcá-lo por um crime que não cometeu.
- Então, prepare-se para perder, se eu não conseguir ligar as coisas - atalhei.
- Não perco! - disse num tom áspero. - Lembra-te daquilo que eu disse quando nos metemos nisto. Que havíamos de construir um novo carro. Pois bem,
é exactamente isso que nós fizemos!
- O Sr. Hardeman está à espera no seu gabinete - disse a minha secretária quando entrei.
- Óptimo. Traga duas chávenas de café.
Abri a porta e entrei. Loren estava de pé junto da janela. Voltou-se para mim.
- Bom dia, Loren. Você vem uma semana adiantado, não vem?
-Não se trata de uma visita de negócios - disse, em tom
pesado. Encaminhou-se lentamente em direcção à minha mesa. Tinha o ar de um homem que não dormira em toda a noite, com
sulcos de cansaço a cavarem-lhe no rosto o ar abatido, os olhos vermelhos e inchados. - A minha mulher deixou-me, na noite passada.
A secretária entrou com o café. Ficámos em silêncio enquanto ela punha as chávenas em cima da secretária e saía. Empurrei uma chávena para ele.
- É melhor beber isso. Tem ar de quem precisa.
Deixou-se cair numa cadeira à minha frente e estendeu a mão
para a chávena do café. No entanto, as mãos tremiam-lhe tanto que parte do café transbordou da chávena e ele pousou-a novamente, sem ter bebido nada. , *
- Você não ficou admirado-disse.
Olhei para ele.
- E devia ter ficado? Você ficou?
Os olhos dele baixaram-se um momento.
- Acho que não - disse em voz baixa, quase como se estivesse a falar sozinho. - Já há muito tempo que via que isto se estava a preparar. Mas não podia
fazer nada. Detroit não tinha nada a ver com ela.
Levei o café à boca sem falar. O café de escritório era tão mau como o café de hotel, só que era solúvel.
Levantou os olhos.
- Esteve com ela ontem à noite?
- Estive.
- Ela disse-lhe alguma coisa?
- Não mais do que aquilo que você me disse - respondi.
- Raios parta!-explodiu. Pôs-se de pé e foi, de novo, até à janela, batendo com o punho na palma da mão aberta. - Raios parta!
Fiquei a olhá-lo silencioso, enquanto bebia o meu café.
Passado um momento, conseguiu controlar-se de novo. Voltou-se para mim.
- Porque é que ela foi ter consigo? - perguntou numa voz quase normal.
Olheio-o nos olhos.
- Porque éramos amigos, julgo. E não havia aqui mais ninguém que ela pudesse ter procurado. Acho que você pôs o dedo na ferida. Detroit não tinha
nada a ver com ela. Além disso, Detroit
- também não fez qualquer esforço para que ela se sentisse bem-vinda.
Loren voltou-se de novo para a janela.
- Não sei o que hei-de pensar. - Passado um momento voltou para junto da secretária. - Eu tinha ciúmes de si - disse.-Sei que ela ficou em São Francisco
praticamente todo o tempo que você lá esteve.
- Mas isso foi há dois anos. Muito antes de vocês resolverem casar-se.
- Eu sei - respondeu. - Mas quando me disseram que ela tinha parado no Ponch para falar consigo no caminho para o aeroporto, fiquei a pensar. Afinal
você é muito mais o tipo dela do. que eu. Eu nunca fui o que se pode dizer um conquistador.
Sem querer, tive que sorrir.
- E eu sou?
Pelo menos, teve a gentileza de se mostrar atrapalhado.
- Então, Ângelo - disse -, sabe bem de que é que estou a falar. As suas histórias com mulheres chegam-nos de todas as partes do mundo.
Ri-me.
- Tem de mas contar um dia. Talvez venha a descobrir alguma coisa sobre mim mesmo.
- Ângelo, é capaz de me responder sim ou não se eu lhe fizser uma pergunta directa?
- Experimente.
- Teve alguma aventura com a minha mulher?
- Não - olhei-o bem nos olhos, confiante de que estava a dizer a verdade. Bobbie e eu não tivemos qualquer ligação depois de ela casar com Loren.
Respirou fundo e acenou com a cabeça.
- Obrigado - disse. - Agora já posso pôr essa questão de lado e esquecer que isso alguma vez me veio à ideia.
- Okay - respondi.
Voltou-se e dirigiu-se para a porta. Chamei-o. Parou no meio do quarto.
- O que é, Ângelo?
- É capaz de me responder sim ou não se eu lhe fizer uma pergunta directa?
Veio outra vez até junto da minha mesa.
- Experimente - disse.
- Se eu conseguisse arranjar um compromisso entre si e o seu avô, é capaz de desistir desta guerra estúpida entre ambos, na qual um dos dois vai sofrer,
mas só a companhia é que é prejudicada?
O rosto petrificou-se-lhe em linhas sombrias. Era espantoso como se parecia com o avô.
- Não.
- Porquê?
- Porque ele é um déspota. E não vou deixar que ele me destrua como destruiu o meu pai.- Mas isso já foi há muito tempo - respondi.
- Ele agora é um velho, numa cadeira de rodas...
-' Nessa altura já ele era um velho e estava numa cadeira de rodas!-interrompeu. - Mas, nessa altura, isso não o impediu de nada, como também não o impediria agora!
- O olhar de Loren tornou-se frio.-Além disso, você nunca entrou num quarto e encontrou o seu pai com os miolos estoirados!
Fiquei a olhar para ele.
- E tem a certeza absoluta de que a culpa foi do seu avô?
- Tão certo como eu estar aqui! - respondeu.
Pus-me de pé. Peço desculpa de ter feito a pergunta - disse. - O seu avô dava-me uma tareia se soubesse que eu tinha tocado nisto. Mas eu tinha uma ideia errada.
- Que ideia?
- Foi há momentos - respondi. - Cheguei a pensar que você era humano.
CAPÍTULO 7
Marion Stevenson, chefe da Segurança da Bethlehem, tinha a cara sem expressão do agente do FBI que fora antes. O fato cinzento-escuro e gravata incaracterística
não contribuíam em nada para desfazer essa ilusão. Era o tipo de homem que passava despercebido no meio da multidão. Um homem mediano em tudo, menos numa coisa.
Tinha os olhos mais claros que eu alguma vez tinha visto. Quase se via a parte de trás da cabeça através deles.
- Queria falar comigo, Sr. Perino? - A voz era sem expressão, como tudo nele.
- Sim, Sr. Stevenson. Obrigado por ter vindo até aqui. - Não era meu hábito ser tão formal, mas ainda me lembrava do ressentimento dele quando eu
tinha posto o pessoal da Burns na pista de ensaio. Ainda tinha dentro dele bastante J. Edgar para que isso lhe parecesse uma afronta pessoal. - Sente-se, por favor.
- Obrigado - disse, com igual formalidade.
O telefone tocou. Atendi. Era Max Evans da secção de compras. Estava com um problema.
Tapei o bocal do telefone enquanto o escutava.
- Desculpe - disse para Stevenson. -• É só um momento. - Stevenson fez que sim com a cabeça e eu voltei-me novamente para o telefone.
- Acabamos de receber um novo orçamento, revisto, do fornecedor das ligações electroestáticas para os cintos do condutor. Mais três dólares e quarenta
cêntimos.
- Porquê? - perguntei.
- Isolamento adicional para fios de chumbo e fios de terra por causa dos regulamentos do segurador quanto a fogos e segurança.
- Mas isso não estava já incluído no nosso projecto?
- Sim - respondeu. - Mas o segurador alterou as suas exigências a nosso respeito há duas semanas.
Não podíamos fazer nada. O cinto do condutor era um dos nossos elementos de segurança, feito especialmente, estandardizado e sem aumento de preço. Estava ligado
electricamente a um comando existente no motor. Com todos os cintos desapertados, o carro não andava a mais de vinte quilómetros por hora. Com os cintos apertados,
a velocidade subia para cinquenta quilómetros por hora. Uma vez apertada a fixação da omoplata, o comando ficava completamente livre. Mas sempre era uma boa soma.
Mais de um milhão de dólares em trezentos mil carros.
- Já comparou com outros fornecedores?-'perguntei.
- Sim - disse. - Quando pedimos as primeiras propostas. Mas agora é tarde de mais. Qualquer deles precisaria de, pelo menos, oito meses, para se preparar.
- Então não há nada a fazer - disse.
- Pois não - respondeu.
- Espere aí - disse-lhe. - Isto está dependente do controlo de custos. Não é o gabinete do Weyman que costuma dar a aprovação para coisas destas?
- É um facto - respondeu, como que a pedir desculpa. - Mas esta manhã fomos informados de que tudo o que se relaciona com o novo carro deve ser aprovado
por si.
- Estou a ver. - Via até mais do que isso. Havia centenas de pormenores como aquele todas as semanas. Se o Weyman conseguisse pô-los todos às minhas
costas, eu ficaria tão ocupado a tentar desembaraçar-me daquela merda toda que não tinha tempo para mais nada.
- Podemos pôr o okay e prosseguir, Sr. Perino?
- Okay, Max - disse. - Mande-me uma ordem de compra que eu ponho-lhe o visto.
Pousei o telefone e voltei-me para o meu visitante. Puxei de um cigarro e estendi-lhe o maço.
- Pu-los de lado, obrigado - disse.
Acendi um e recostei-me na cadeira. Deixei o fumo vogar ao acaso enquanto o observava. Passados momentos, notei que ele estava a ficar ligeiramente inquieto.
O telefone tocou. Atendi.
- Não me liguem mais nenhuma chamada, por favor. - Pousei o aparelho e continuei a fumar em silêncio.
Passado cerca de um minuto, olhou ostensivamente para o relógio de pulso. Ignorei o gesto até ter acabado o cigarro, que apaguei meticulosamente no cinzeiro.
- Sei que é uma pessoa ocupada, Sr. Stevenson - disse-, mas vai ter que ser paciente comigo esta manhã, mesmo que eu lhe pareça um bocado lento. É
que tenho uma imensidão de coisas na ideia.
- Eu compreendo, Sr. Perino - disse com suavidade.
- Tenho estado a ler o organigrama e, se a minha leitura foi correcta, o senhor é directamente responsável perante o presidente e o vice-presidente
executivo.
- Está correcto.
- E as suas responsabilidades são todos os assuntos de segurança que dizem respeito aos negócios da companhia, desde atentados contra empregados à
protecção dos arquivos da empresa e dos segredos industriais.
Fez que sim com a cabeça.
- Sim, senhor.
- Deixe-me pôr-lhe uma questão hipotética - respondi. - Se viesse a descobrir uma fuga de segurança no meu gabinete, apresentava essa informação ao
presidente?
- Não, senhor - respondeu. - Primeiro ao vice-presidente.
- E se descobrisse uma fuga nos gabinetes de qualquer um deles.
- Ao presidente se a fuga fosse no gabinete do vice-presidente e vice-versa.
- E se a fuga viesse dos dois gabinetes?
Ficou um momento a pensar.
- Teria que partir do princípio de que a fuga era uma questão de política da companhia, aprovada por eles.
Empurrei um exemplar da história do Wall Street Journal em direcção a ele.
- Já viu isso?
Fez que sim com a cabeça.
- Era capaz de dizer que as informações contidas nessa história resultaram de uma quebra na segurança da companhia?
- Não sei, Sr. Perino.
- Chamo a sua atenção para a frase "fontes bem informadas da própria companhia". Chamo também a sua atenção para certos números mencionados na história.
Esses números correspondem rigorosamente aos que existem nos dossiers secretos da companhia relativos a custos. Não existem mais de uma dúzia de directores na companhia
que têm acesso a esses números. De repente, essa informação aparece num jornal principal e de tal maneira que se torna potencialmente prejudicial para a companhia.
Não lhe parece que isso constitui uma falha na segurança da companhia?
Stevenson começava a sentir-se desconfortável.
- Não posso dizer isso, Sr. Perino.
- Posso, então, partir do princípio de que acha que este assunto entra no tipo de situação que classifica de política aprovada pela companhia?
Agora já ele se mostrava genuinamente desconfortável. Os advogados e os polícias são as piores testemunhas. Odeiam ser interrogados.
- Não posso responder a essa pergunta, Sr. Perino.
Fiz que sim com a cabeça.
- Acontece que esse artigo não está assinado. Será que, por acaso, tem conhecimento do nome do autor?
- Tenho sim, senhor - respondeu.
- Pode dizer-mo?
- Lamento muito, Sr. Perino - disse. - Já apresentei o meu relatório a esse respeito ao Sr. Weyman.
Fiz uma pausa breve.
- Tem conhecimento da existência de um homem chamado Mark Simpson?
- Tenho, sim senhor.
- Que é que sabe acerca dele?
- Que está à frente de uma organização chamada OISA e que publica uma folha semanal sobre a indústria automóvel.
- Que mais sabe acerca dele?
- O Sr. Weyman tem o meu relatório sobre esse senhor - disse. - Não estou autorizado a distribuir cópias.
- Compreendo. Será que também é contra os regulamentos fornecer-me uma lista das vezes que o Sr. Simpson visitou esta fábrica e das pessoas com quem
falou em cada visita nos últimos dois anos?
- Não, senhor - respondeu. Vi que estava satisfeito por encontrar uma coisa que eu lhe pedia e que ele podia fazer.-Farei chegar a lista ao seu gabinete
esta tarde.
- Obrigado - respondi. - Deu-me uma grande ajuda.
Corou. Sabia exactamente até que ponto me tinha ajudado.
Pôs-se de pé.
Olhei para ele.
- Tem a minha autorização para repetir esta conversa aos seus superiores, se o desejar.
- Sr. Perino, se eu achasse que esta conversa devia ser repetida aos meus superiores, fá-lo-ia, com ou sem a sua autorização - disse com frieza. -
Gostaria de fazer notar que estou encarregado da segurança da fábrica, não da política da fábrica.
Pus-me de pé.
- Sr. Stevenson, as minhas desculpas. - Estendi-lhe a mão.
Hesitou um momento, depois apertou-me a mão.
- Muito obrigado, Sr. Perino.
Telefonei a Weyman assim que ele saiu. A voz de Weyman tinha um tom quase afável quando atendeu a chamada. Acho que estava à espera que eu tivesse uma fúria por
me ter despejado todas as aprovações de custos para o meu gabinete. Não hoflVe naSa disso.
- O Número Um anda atrás de mim por causa do relatório que pedimos sobre Mark Simpson há já algum tempo - disse.- Acabo de falar com o Stevenson da
Segurança e ele disse-me que o deixou consigo.
Mostrou-se excitado.
- Lembro-me de o ter visto. Vou procurá-lo e, depois, faço-lho chegar- às mãos.
- Desliguei o telefone sabendo muito bem que nunca havia de pôr os olhos em cima desse relatório, mas, pelo menos, sabia que ele o tinha.
Ao princípio da tarde, recebi o relatório do Stevenson sobre as visitas de Simpson à fábrica. Tinha feito bastantes nos últimos anos e, à excepção de uma visita
a Bancroft, das vendas, todas as outras tinham sido para Weyman.
Resolvi ir até ao escritório e fazer, por minha vez, uma visita ao Sr. Simpson, mas surgiu uma coisa e outra e já eram quatro horas quando consegui sair. Telefonei
para o apartamento, para Cindy.
- Que tal irmos jantar a Dearborn Inn? - perguntei.
- Fantástico - respondeu. - Nunca lá estive, mas já ouvi falar. É mesmo no meio do território da Ford, não é?
- Mesmo no meio da coisa. - Ri-me. - Mas não penses mal por isso. É mesmo bom. Tenho de fazer uma paragem no caminho, mas não leva muito tempo. Está
cá em baixo na entrada dos carros dentro de quinze minutos. Eu vou-te aí buscar.
- Quinze minutos certos - disse. - Lá estarei.
E estava. Tinha mesmo posto um vestido para a ocasião. Fiquei a olhar enquanto o porteiro segurava a porta do Maserati para ela entrar. Era a primeira vez, em quase
dois anos, que a via usar outra coisa que não fossem calças.
- Eh! Afinal és uma rapariga - disse, pondo o carro em primeira.
Voltou-se para mim com um sorriso enquanto acabava de afivelar o cinto.
- Caramba, és muito lento. Até pensei que nunca mais descobrias.
Os escritórios da OISA ficavam na Avenida Michigão, à saída do bairro de casas de luxo, a caminho de Dearbon. Era um edifício esquisito, de dois andares, ao lado
de um depósito de carros usados. O rés-do-chão estava ocupado pela parte de tipografia e tinha as janelas do que, em dias melhores, tinha sido um stand de carros
novos, tapadas com pintura. No andar de cima, as janelas pequenas tinham as iniciais OISA pintadas num azul desbotado.
Parei o carro na área destinada ao estacionamento, mesmo em frente da tipografia, que estava reservada para os clientes, e saí.
- Não me demoro.
Fez que sim com a cabeça ao mesmo tempo que abria a carteira e retirava de lá uma cassette.
- Posso usar o teu gravador?
Quando me afastei do carro já ela tinha os Creedence Clear- water saindo estrondosamente dos quatro altifalantes e estava recostada, a banhar-se no som, com uma
expressão beatífica no rosto.
Não havia nenhuma entrada separada para o andar de cima, que eu visse, por isso entrei na tipografia. Chegou-me aos ouvidos o barulho da máquina impressora e abri
a porta. Havia um balcão de madeira, muito velho, a separar a entrada do resto do estabelecimento. Em cima do balcão havia uma sineta ferrugenta com um letreiro
ao lado: para ser atendido toque a campainha.
Abanei a sineta, mas o som perdeu-se no meio do rugir das máquinas impressoras. Toquei-lhe de novo.
Vários trabalhadores espreitaram por cima das máquinas para ver quem era.
- OISA? - berrei por cima do barulho, apontando com a mão para o tecto.
Um homem alto de cabelos negros, com a cara e os braços cabeludos cobertos com tinta de jornal, saiu de trás da máquina. Fez um gesto largo com o braço.
- Dê a volta ao edifício -berrou. - Há uma escada na rua de
trás.
- Obrigado - gritei. Saí, satisfeito por me ver livre do martelar das máquinas de impressão. Cindy viu-me e sorriu, começando a baixar o vidro da
janela.Sacudi a cabeça e fiz um gesto contornando o edifício. Fez que sim com a cabeça e fechou outra vez a janela, recostando-se de novo no som.
Havia uma escada de ferro ferrugenta, do lado de fora do edifício, junto à rua. No edifício havia um pequeno sinal com uma seta a apontar para os degraus. OISA.
Subi e entrei no edifício pela porta de ferro, pintada de um cinzento desbotado.
Entrei numa sala de recepção deserta. As paredes estavam pintadas de um verde baço e cobertas com cartazes, afivele a sua segurança! a velocidade mata! E outras
parecidas. Algures, lá para trás, ouvi uma campainha anunciando a minha chegada.
Momentos depois, uma rapariga loura e forte, vestindo uma camisola negra, direita, e mini-saia, apareceu.
- Em que é que posso ser-lhe útil? - perguntou numa voz tão entediada quanto a expressão que tinha no rosto.
- O Sr. Simpson está? '
- Tem hora marcada?
- Não - sacudi a cabeça.
- O seu nome, por favor.
Disse-lho. Não ouve qualquer alteração na expressão entediada quer da voz quer do rosto.
- Sente-se, por favor. Vou ver se o Sr. Simpson está disponível.
Saiu da sala de recepção e ouvi a porta fechar-se à chave atrás
dela. Sentei-me num banco de madeira, ao lado de uma mesa, cujo tampo estava coberto com a última edição da folha semanal da OISA.
Acendi um cigarro e olhei distraidamente para um dos exemplares. Fiquei a saber tudo acerca dos aperfeiçoamentos que a GM tinha introduzido no novo '72 Vega e que
não se podiam ver do exterior e do aumento de rendimento do Pinto com o novo acondicionamento Boss, informações essas que também se podiam encontrar nos anúncios
impressos e nos reclamos da televisão das companhias em causa. Cheguei à última página sem ter encontrado quaisquer linhas que dissessem respeito a segurança automóvel.
Procurei um cinzeiro para apagar o cigarro. Não havia e, por isso, pus-me de pé, abri a porta e saí para a rua. Através da parede fina atrás de mim ouvi o som da
campainha. Ao mesmo tempo, a ligeira vibração do sobrado e o roncar abafado das máquinas pararam de repente. Olhei para o relógio. Quatro e quarenta e cinco. Já
estava ali há mais de dez minutos.
A rapariga loura apareceu outra vez à porta. Quando me viu, uma expressão de surpresa afastou do rosto dela o ar entediado. Olhou por cima do meu ombro.
- Entrou alguém agora?
- Não - respondi. -Eu é que fui deitar fora um cigarro.
Olhou para mim.
- Está à espera de mais alguém?
- Não - disse -, continuo à espera do Sr. Simpson.
- A secretária dele não veio falar consigo?
- Não.
- Que raio!-disse, enquanto uma expressão desesperada lhe aparecia no rosto. - Nunca trabalhei num sítio tão desorganizado como isto. Ela devia ter
vindo aqui dizer-lhe que ele foi para fora da cidade.
Olhei para ela.
- E foi?
- Cavalheiro - disse num tom aborrecido-, da maneira que as coisas se passam nesta casa, ele até pode estar a chegar à Lua que
eu não sei.
Voltou para o outro gabinete, atirando com a porta e eu saí. Quase tinha escurecido enquanto estive à espera. iParei no patamar de ferro para acender outro cigarro
antes de descer. Pensei que era uma ingenuidade ter julgado que o Stevenson me fosse receber. Sobretudo, depois da maneira como se tinha posto a andar do gabinete
de Weyman, havia dias. Enquanto descia as escadas, ouvi, lá em baixo, as vozes dos tipógrafos que saíam do trabalho.
A voz veio de trás de mim quando cheguei ao degrau de baixo.
- Oh, amigo, tem aí um fósforo?
- Com certeza - disse, voltando-me. Pelo canto do olho, vi de relance o punho enorme, como um presunto, que vinha direito à minha cara.
Instintivamente, tentei baixar-me, mas não fui suficientemente rápido. O punho explodiu de encontro à minha cara, com toda a força de um martelo pneumático. Senti
que ia a cair para trás, enquanto uma chuva de luzinhas brilhantes me dançava em frente dos olhos. Sacudi a cabeça, estonteado, tentando aclarar a visão.
Mãos agarraram-me pelos ombros e começaram a arrastar-me para a rua. Mesmo nessa altura não desconfiei de que se tratasse de qualquer outra coisa que não uma tentativa
de roubo. Tentei dizer- -lhes que tinha a carteira na algibeira de trás, mas sentia os lábios paralisados e não conseguia movê-los.
Senti que me encostavam à parede da casa. Tentei vê-los através dos olhos semicerrados. Eram três, mas não consegui ver-lhes a cara. Estava já muito escuro.
Depois começou a dor. Lenta. Deliberada. Metódica. E profissional. Nas costelas, no estômago, nos intestinos, nos testículos. Escorreguei lentamente pela parede
abaixo e a dor começou outra vez na cara. Senti-a rebentár-me de encontro aos olhos, o nariz, a boca e sentia o gosto do sangue quente a escorrer-me para dentro
da boca enquanto escorregava para o chão.
E continuei a não perder a consciência enquanto me aplicavam novamente a bota. Senti um vago incómodo na parte de trás da cabeça, como se me estivessem a arrastar.
Alguém me tinha avisado que tivesse cuidado. Mas não me lembrava quem. Alguém tinha dito que eu havia de aprender que eles sabiam fazer jogo duro e sujo. Mas não
me lembrava quem.
Tentei levantar-me. Consegui pôr->me de joelhos e ia começar a endireitar-me quando vi a bota, enorme.
Não podia fazer nada. Apanhou-me por baixo do queixo e eu senti que estava a ser levantado no ar, para depois ir cair para trás, em salto mortal, de encontro à parede.
Foi quase com felicidade que senti que a noite tinha chegado, finalmente.
CAPÍTULO 8
Ouvi a rapariga gritar à distância.
- Ângelo! Ângelo!
Senti-lhe as lágrimas quentes espalharem-se-me pelo rosto. Lentamente, lutei para vir até junto dela.
Na escuridão da noite, o rosto da rapariga, pálido e assustado, estava muito próximo, mas as feições pareciam-me imprecisas através dos meus olhos deformados e inchados.
Senti-lhe o braço passar-me por baixo da cabeça, e puxar-me de encontro ao peito. As lágrimas continuavam a cair-me sobre o rosto enquanto me segurava, embalando-me
para trás e para a frente, ajoelhada.
- Cindy.-A minha voz era um grasnar desconhecido que me vinha da garganta. - Ajuda-me a levantar.
- Não te mexas - sussurrou. - Estás magoado. Deixa-me chamar uma ambulância.
Tentei sacudir a cabeça, mas a dor era demasiado forte.
- Não! - tentei pôr-me de pé. - Leva-me para casa. O meu pai é médico.
- Ângelo, por favor.
- Ajuda-me a levantar!
Ela reagiu ao desespero da minha voz e passou-me o braço por baixo dos ombros. Quase gritei, ao sentir a pressão sobre os lados, quando ela me puxou para cima. Pareceu-me
que levara horas, mas, finalmente, consegui pôr-me de pé, com as costas de encontro ao edifício.
- Não andes - disse. - Deixa-me trazer o carro até aqui.
Fiz que sim com a cabeça.
- Consegues ficar de pé? - perguntou ansiosa.
- Sim - disse num tom estridente.
Olhou para o meu rosto. Não sei o que viu nele, mas, passado um momento, voltou-se e ouvi-lhe os passos a correr pela rua fora. Não a segui com o olhar porque a
dor era demasiado forte quando virava a cabeça.
Mais uma vez o tempo pareceu arrastar-se e houve um vácuo de espaço a rodopiar dentro da minha cabeça. Depois ouvi o roncar forte do Maserati, avançando para mim,
a cortar a escuridão com os potentes faróis brancos. A dor fez-me pestanejar.
Ela era apenas uma sombra a dar a volta ao carro e a abrir a porta. Veio em direcção a mim.
- Consegues pôr-me o braço em volta do ombro? - perguntou.
Levantei o braço. Escorregou por baixo dele e eu apoiei o meu
peso sobre o ombro dela. Percorremos os quinhentos metros que nos separavam da porta. Fez-me voltar e deixou-me escorregar primeiro de encontro ao encosto, depois,
pegou-me nos pés e pô-los dentro do carro. Rapidamente, afivelou o cinto e baixou o encosto suavemente, até eu ficar quase estendido.
- Sentes-te bem? - perguntou.
- Sim - disse num gemido. Sob o reflexo da luz via-lhe manchas de sangue espalhadas na parte da frente do vestido.
Cindy fechou a porta, deu a volta para o lado do condutor e entrou. Inclinou-se por cima de mim para trancar a outra porta.
- Desculpa - murmurei.-Dei-te cabo do vestido.
Não respondeu. Saiu da rua em marcha atrás e voltou de novo para a Avenida Michigão.
- E agora, para onde é que vamos?
Com muito cuidado e muito claramente dei-lhe todas as indicações para ir até casa dos meus pais. Com a língua senti um buraco na boca, no sítio onde costumava ter
alguns dentes. Pensei para comigo mesmo que com um bocado de sorte, talvez fossem pivots e não dos que ainda me restavam.
(Entrámos na avenida.
- Agora descansa - disse a rapariga.
Fechei os olhos, mas depois abri-os.
- Como é que deste comigo?
Não desviou os olhos da estrada.
- Pelas cinco e meia, quando ainda não tinhas voltado, fiquei intrigada. O edifício estava completamente às escuras e já tinha visto irem todos para
casa. Por isso, fui pelas traseiras, subi a escada e tentei a porta. Estava fechada. Bati. Ninguém respondeu. Nessa altura, ouvi-te gemer. Corri escada abaixo e
dei contigo à esquina do edifício. - Parou num sinal luminoso e olhou para mim. - Agora não fales mais até eu conseguir levar-te a casa. Descansa.
Fechei os olhos e mergulhei de novo na escuridão. Abri-os outra vez quando o carro parou no caminho que levava directamente à casa.
- Eu ajudo-te a sair - disse, abrindo a porta e estendendo os braços para mim.
Conseguiu pôr-me os pés para fora, mas não fui capaz de avançar mais. Mesmo com a ajuda dela, a dor não me*deixava andar. Agarrei-me à porta do carro.
- Toca a campainha - disse. - O Gianno ajuda-me.
Cindy correu pelas escadas acima e carregou no botão da campainha. Passados momentos, as luzes da entrada acenderam-se e Gianno abriu a porta. A única coisa que
ela conseguiu dizer foi o meu nome e já ele ia pelas escadas abaixo. Levantou-me nos braços, como se eu fosse ainda o bebé que ele costumava trazer ao colo.
- Dottore! Dottore! - gritou a plenos pulmões logo que entrámos em casa. - Ângelo, está magoado!
A minha mãe foi a primeira a aparecer. Olhou para mim e levou à boca o punho cerrado.
- Figlio mio! - gritou. - Que foi que te fizeram?
O meu pai veio logo atrás dela. Olhou-me.
- Levem-no para o meu gabinete - disse, enquanto o rosto tomava uma expressão austera.
Gianno levou-me através da casa até uma parte que o meu pai usava como gabinete quando recebia doentes em casa. Fomos para a sala de observação e Gianno colocou-me
suavemente em cima da mesa branca.
O meu pai abriu um armário e tirou de lá uma seringa hipo- dérmica e uma ampola.
- Liga para o hospital e eles que mandem imediatamente uma ambulância - disse a Gianno.
- Hospital não - disse.
Gianno hesitou, mas o meu pai deitou-lhe um olhar e ele foi direito ao telefone.
- Que foi que aconteceu? - perguntou o meu pai calmamente, enquanto arranjava a injecção.
- Três homens fizeram-me este trabalho - respondi, olhando-o.
Ouvi a minha mãe conter a respiração. O meu pai voltou-se
para ela.
- Momma! - disse num tom severo. - Espera lá fora.
- Mas o Ângelo... - Faltou-lhe a voz.
- O Ângelo vai ficar bom - disse com firmeza. - Prometo-te. E agora espera lá fora. - Olhou por cima do ombro dela para Cindy, que estava mesmo atrás
da minha mãe. - E essa jovem também.
A minha mãe pegou no braço de Cindy.
- Conte-me tudo o que aconteceu-disse, enquanto saíam do quarto.
Olhei para a agulha que o meu pai tinha na mão.
- Para que é isso?
- Contra a dor - respondeu. - Vou começar a limpar-te e vai-te doer bastante mais do que agora.
- Não quero adormecer - disse. - Tenho que fazer umas quantas chamadas.
- A quem é que queres telefonar? - perguntou, olhando-me com ar natural. - Talvez eu te possa ajudar.
Mal senti a picada da agulha no quadril quando o meu pai me baixou as calças com destreza e me enterrou a seringa, tudo num movimento cheio de prática.
- Primeiro, quero falar com o tio Jake - respondi.
- O tio Jake? - perguntou. Mal consegui detectar a nota de surpresa na voz dele, antes que a injecção hipodérmica atirasse comigo para o mundo dos
sonhos.
Gianno e eu estávamos a brincar aos cowboys e aos índios por entre os arbustos, ao lado da casa. Naquele momento, eu era Tom Mix, ele era o meu fiel cavalo, Tony,
e eu estava a disparar o meu revólver de seis tiros contra os índios que íamos a perseguir através do mato, tal como tinha visto na véspera em Cavaleiros da Pradaria
Vermelha, na sessão infantil do sábado.
- Oha, Tony! - gritei, puxando-lhe o colarinho da camisa, quando nos abeirámos do caminho. - Acho que estou a ouvir um carro coberto.
Saltei de cima das costas dele e agachei-me entre os arbustos. O gigantesco Duesenberg preto e castanho do meu avô apareceu no caminho. Esperei que nos ultrapassasse
e, depois, saltei para os ombros de Gianno.
- Atrás deles! - gritei. - Temos que os prevenir por causa dos índios!
Gianno pôs-se a galopar furiosamente pelo caminho fora, ao lado do carro, agarrando-me as pernas para eu não cair.
Levantei no ar a minha arma de seis tiros, fazendo explodir as cápsulas numa enorme chinfrineira.
-Cuidado, avô!-gritei.-Vêm aí os índios!
Pelas janelas fechadas da parte de trás do carro via o meu avô. Estava sentado no banco de trás, entre dois homens. Outro homem ia no assento de dobrar, à frente
deles.
O automóvel parou em frente da casa. Giaoino e eu esperámos por eles ao cimo das escadas, enquanto saíam do automóvel. Os dois homens que estavam no assento de trás
com o meu avô esperaram encostados ao carro e o outro subiu em direcção a nós.
Agitei o meu revólver no ar.
- Andam índios nas montanhas!
O avô parou à nossa frente. Não era alto, era delgado, quase pequeno; na realidade, Gianno, que tinha um metro e setenta, parecia uma torre ao pé dele. Mas, estivesse
ao lado de quem estivesse, o meu avô era sempre o maior.
Estendeu a mão para mim.
- Dá cá essa arma, Ângelo.
Olhei-o nos olhos, à procura de um sinal de descontentamento mas não consegui ler nada. Os olhos dele eram castanho-escuros, quase negros, como o cabelo, e imperscrutáveis.
Em silêncio, entreguei-lhe o revólver de seis tiros.
Pegou-lhe e olhou-o com desagrado. Voltou novamente os olhos para Gianno.
- Quem é que lhe deu isto?
- Padrone, não passa de um brinquedo. - Gianno esboçou uma reverência, mas comigo às costas não conseguiu.
- Não me interessa - disse o meu avô numa voz fria. - Julgava que já tinha dito que não queria nada de armas. Nem mesmo de brinquedo. São prejudiciais
para as crianças.
Desta vez Gianno conseguiu fazer uma reverência, mesmo comigo às costas.
- Si, padrone.
O meu avô deu-lhe a arma.
- Deita-a fora - disse e, depois, estendeu os braços para mim. - Vem, Ângelo.
Escorreguei dos ombros de Gianno para os braços do avô, contente por ele não estar zangado comigo. O avô beijou-me enquanto me levava pelas escadas acima para dentro
de casa.
- As armas são um brinquedo perigoso para as crianças - explicou. - Mesmo as de brinquedo.
Dirigimo-nos para a sala, onde o meu pai e a minha mãe nos esperavam. Logo que o viu, a minha mãe começou a chorar. Desajeitadamente, o avô passou-me para um dos
braços e pôs o outro em volta dos ombros dela.
- Então, então, Jenny - disse suavemente. - Não chores. A Sicília não é o fim do mundo.- Mas vai ficar tão longe de nós - chorou.
Comecei também a chorar.
- Não quero que se vá embora, avô!
- Então, Jenny, estás a ver o que fizeste? - disse o meu avô em tom reprovador. - Fizeste-o chorar. - Voltou-se para o meu pai-Dottore, diga à sua
mulher que pare com aquilo. Não é bom para o Ângelo afligir-se assim.
Os olhos do meu pai também não estavam propriamente secos, de forma que eu aproveitei a sua hesitação momentânea para soltar um brado ainda mais forte.
- Não quero que me deixe, avô!-e agarrei-me a ele soluçando fortemente.
Desta vez tinha sido tão alto que até a minha mãe parou de chorar e olhou para mim.
- Ele está a ficar histérico!-disse, estendendo-me os braços.
O meu avô afastou-a.
- Eu tinha-te avisado - afirmou triunfante. -? Deixa o avô falar com ele.
A minha mãe ficou silenciosa enquanto o avô me voltava de maneira a poder olhar-me de frente.
-Eu não te vou deixar, Angelo mio - disse.-Vou para a Sicília, para Marsala e Trapani, onde nasci.
Senti que estava a perder terreno mas, pelo menos, ele já se tinha esquecido do revólver de seis tiros. Tentei gritar mais uma vez.
- Nunca mais o vejo!
Desta vez, os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Apertou-me muito. Mal podia respirar.
- Claro que vês - disse numa voz sufocada. -No Verão, podes ir visitar-me com a mamã e o papá e eu mostro-te as vinhas e os olivais na encosta do
Monte Erice onde o teu avô foi criado.
- E lá pode-se brincar aos cowboys e aos índios? - perguntei com os olhos muito abertos.
- Não, esse jogo não presta - disse. - Todos os jogos em que se matam pessoas são maus. É melhor seres como o teu pai, um médico, para poderes salvar
pessoas em vez de as matar. - Olhou para mim sem ter bem a certeza se eu o tinha entendido. - Além disso, não há índios na Sicília - acrescentou.
- Só tipos bons? - perguntei.
Ele sabia quando era vencido.
- Na Sicília só há tipos bons - disse, desistindo e recorrendo à sua arma final. O suborno. - Além disso, o avô vai mandar-te um presente muito especial
quando lá chegar.
-? Que espécie de presente? - quis saber.
- O que tu quiseres. Tu é que dizes ao avô.
Fiquei um momento a pensar. Lembrei-me do filme que eu e o Gianno tínhamos visto uma semana antes. Era com Monte Blue que fazia o papel de um destemido corredor
de carros.
- Um carro de corrida a sério que eu possa guiar? - perguntei hesitante.
- Se é isso o que o meu Ângelo quer, é isso que ele vai ter. Vou encomendar à Bugatti um carro de corrida especialmente para ti!
Apertei-lhe os braços em volta do pescoço.
- Obrigado, avô. Beijei-o.
Ele voltou-se para os meus pais.
- Estão a ver? - declarou, triunfante. - Que é que eu lhes tinha dito? Já não há problema.
Durante toda esta cena, o homem que tinha entrado connosco observava-nos com um meio sorriso nos lábios. - O meu avô fez-lhe um gesto para que se aproximasse.
- Jake, chegue aqui.
- Este é o meu filho, Dr. John Perino - disse o meu avô com orgulho. - A mulher do meu filho, Jenny. Este é o juiz Jacob Weinstein de quem já lhes
falei.
O juiz Weinstein, um homem de cabelos castanhos que tinha mais ou menos a idade e a estatura do meu pai, trocou apertos de mão com os meus pais.
- Não se esqueça de mim - disse, estendendo-lhe a mão.
Voltou-se, sorrindo e pegou-me na mão.
- Não creio que isso seja possível - disse.
- Fiz um contrato vitalício com o Jake para ele tomar conta dos negócios da família enquanto eu estiver ausente - disse o meu avô. Pôs-me no chão.
- Vamos, agora vai brincar enquanto o teu pai, o juiz e eu tratamos de negócios.
- Vem comigo à cozinha - disse a minha mãe, rapidamente. - Acabei agora mesmo de fazer uns bolinhos. Podes comer alguns e beber um copo de leite.
Pegou-me na mão e encaminhou-me para a porta. Fi-la parar e olhei para trás.
- Ainda o vejo antes de se ir embora, avô?
O avô susteve a respiração e vi os olhos enevoarem-se-lhe outra vez. Fez que sim com a cabeça.
- Antes de eu me ir embora - conseguiu dizer.
Cerca de uma hora depois, estávamos ao cimo dos degraus em frente da casa, a dizer adeus ao meu avô, enquanto o grande Duesen- berg arrancava pelo caminho abaixo.
Vi-o olhar para mim pela janela de trás e acenei-lhe outra vez. Levantou a mão. O carro deu a volta e desapareceu ao fim do caminho.
Ficámos ainda um momento parados e, depois, levantei os olhos para os meus pais.
-'Aqueles homens que estavam à espera do avô traziam armas por baixo do casaco - disse. - Se calhar não sabem que o avô não gosta de armas.
A minha mãe e o meu pai ficaram um bom bocado a olhar um para o outro, depois, os olhos da minha mãe encheram-se outra vez de lágrimas. O meu pai levantou-me com
um braço e pôs o outro em volta dela. Ficámos assim muito tempo, silenciosos, em frente da casa, enquanto a minha mãe escondia a cara no peito do meu pai. Olhei
para o meu pai. Nos olhos dele havia lágrimas contidas. Senti um nó esquisito na garganta. Havia tantas coisas que eu não compreendia.
Mas em tempos vindouros havia de ficar a saber muitas delas. Como, por exemplo, que aqueles dois homens que estavam à espera do avô eram agentes federais que deviam
escoltá-lo até Nova Iorque onde ia tomar um navio para Itália.
Como, por exemplo, que o juiz Weinstein, ou o tio Jake, como passei depois a tratá-lo, não era, na realidade, um juiz, mas um advogado que ficara encarregado de
todos os negócios dele.
Durante muitos anos, quase até à altura em que fui para a universidade, o tio Jake era um visitante mensal dos nossos jantares de domingo.
Pouco depois de fazer vinte e um anos e depois de ter saído do MIT, em Janeiro de 1952, fiquei a saber até que ponto o meu avô era rico. Nessa altura, a minha parte
dos bens dele já tinha crescido, sob a prudente gestão do tio Jake, para cima de vinte e cinco milhões de dólares e a parte dos meus pais era o dobro disso.
Lembro-me de ter olhado para o meu pai e para o tio Jake, completamente espantado. Sabia que vivíamos bem. Mas não sabia que éramos ricos.
- Que é que eu faço com esse dinheiro todo? - perguntei.
- O melhor é começares a aprender - disse o meu pai, muito sério-, porque um dia vais tê-lo todo.
--A minha sugestão era que fosses para a Escola de Comércio de Harvard quando acabares o curso - disse o tio Jake.
- Mas eu não estou interessado em negócios - respondi. - Estou interessado em automóveis.
- Os automóveis são também uma forma de negócio-'disse o tio Jake.
- Mas não o meu género de negócio - disse. - Para mim os automóveis apenas custam dinheiro.
- Bom, pelo menos, é um luxo que te podes permitir - e o tio Jake sorriu.
- Não preciso desse dinheiro todo - disse.
- Então sugiro que cries um fundo de investimento no banco e que os deixes a eles administrar esse dinheiro - disse o tio Jake.
Olhei para ele.
- Porque é que não continua a tratar disso como tem feito até aqui? - perguntei. - Lembro-me de que o avô fez consigo um contrato vitalício. Se estava
bem para ele, também está bem para mim.
Olhou de relance para o meu pai.
- Lamento - disse, voltando-se para mim. - Mas não posso fazer isso.
- Porquê?
Pigarreou para aclarar a voz.
- Por causa de outras actividades minhas que o governo considera estarem ligadas ao crime organizado. Acho mais prudente libertá-los da minha pessoa,
para não correr o risco de o envolver a si e aos seus pais numa situação com a qual nada têm a ver.
Sabia do que é que ele estava a falar. Eu também lia os jornais. O nome dele tinha sido mencionado muitas vezes em ligação com investigações no campo do crime organizado.
- E podemos continuar a contar consigo se tivermos algum problema? - perguntei. - Refiro-me a um problema a sério.
Fez que sim com a cabeça.
- Claro que podem. Aliás o seu avô fez comigo um contrato vitalício. - Pôs-se de pé. - Está tudo mais ou menos já arranjado com o banco, John - disse
para o meu pai. - Talvez possa vir amanhã ao centro com o Ângelo? Podíamos almoçar e depois ir ao banco assinar os papéis e oficializar tudo.
Foi o que fizemos e quando voltei para a universidade assinei The Wall Street Journal. Durante algum tempo segui religiosamente, todos os dias, a evolução do mercado,
segundo a lista de acções e obrigações que o banco tinha em meu nome. Mas, depois, a coisa tornou-se aborrecida e deixei completamente de seguir a evolução do mercado,
dependendo exclusivamente da informação contida nos extractos trimestrais do banco. E mesmo assim, a maior parte das vezes os extractos iam parar a uma gaveta, sem
ser abertos. Ao fim e ao cabo, que problemas podia eu ter depois de ter começado com vinte e cinco milhões de dólares limpos?O tio Jake não perdeu completamente
a luta com o governo mas, no ano seguinte, desistiu de exercer e mudou-se para Las Vegas, onde tinha interesses em vários hotéis. Trocávamos cartões de Natal e,
de vez em quando, se ele vinha ao Leste, os meus pais avistavam-se com ele, mas nunca calhava eu estar presente. Depois, ainda não há muitos anos, li nos jornais
que tinha vendido os seus interesses em Las Vegas e se tinha mudado para um sítio perto de Phoenix, no Arizona, onde se meteu num grande empreendimento de urbanização
ligado a um hotel, para desporto e tratamento termal, e a um complexo em regime de clube de campo chamado Fontes do Paraíso. Lembrava-me de ele me ter mandado um
convite para a inauguração de gala, mas foi mais ou menos na altura em que comecei a trabalhar com o Número Um e não pude ir. O meu pai e a minha mãe, no entanto,
estiveram lá e levaram com eles as minhas explicações, a minha pena e os meus melhores votos. A minha mãe adorou e ambos voltaram lá várias vezes por ano a partir
daí. O meu pai disse-me que o tio Jake parecia descontraído e contente, pela primeira vez desde que o conhecia, e que se tornara um verdadeiro nativo, ao ponto de
usar um enorme stetson branco quando ia fazer a sua partida matinal de golfe.
Ao longo do tempo, tinha aprendido muitas coisas, mas de todas elas aquela que eu mais lamentei foi talvez nunca mais ter visto o meu avô. Levou quase dois anos
para me arranjar o Bugatti que tinha prometido, mas, finalmente, ele chegou. Como chegou um ano mais tarde a guerra na Europa e ele escreveu aos meus pais para que
não fossem visitá-lo porque não queria que corressem riscos comigo. Depois, entrámos na guerra, e, durante quase dois anos não soubemos de nada, até que as tropas
americanas entraram em Itália.
Mas nessa altura já era tarde de mais. O meu avô tinha morrido de cancro no ano anterior.
CAPÍTULO 9
Abri os olhos ao sol que jorrava abundantemente num quarto cheio de flores. Movi ligeiramente a cabeça. Não houve dor. Tornei-me mais ousado. Doía como o diabo.
- Raios parta! -disse.
A enfermeira, que estava sentada a um canto do quarto, pôs-se de pé. O uniforme fez ouvir um roçar de tecido enquanto ela se aproximava da cama e baixava os olhos
para mim.
- Está acordado - disse.
Isso já eu sabia.
- Que dia é hoje?
- Quinta-feira.
- Que é que aconteceu à quarta-feira? - perguntei.
- Esteve a dormir - respondeu, estendendo a mão para o telefone. Marcou um número. Ouvi o crepitar fraco de uma voz do outro lado da linha.
- É capaz de localizar o Dr. Perino e dizer-lhe que o 503 acordou? Obrigada.
- O seu pai anda a dar a volta, mas pediu para ser informado logo que acordasse - explicou.
- Que horas são?
- Dez horas - respondeu. - Como é que se sente?
- Não sei - respondi. - E tenho medo de tentar saber.
A porta abriu-se e o meu pai entrou. Nada de fitas anglo-saxónicas, nós éramos italianos. Ele era médico mas, em primeiro lugar, era meu pai. Beijámo-nos na boca.
- A mãe e a Cindy estavam na cafetaria, vêm já aí - disse.
- Antes que elas cheguem, é muito mau? *
- Já tens apanhado piores - respondeu. - Umas costelas partidas e várias equimoses e contusões pelo corpo, mas nada de lesões internas, tanto quanto
conseguimos verificar, concussões ligeiras, vais ter dores de cabeça durante uns tempos. - Fez uma pausa. - Mas deram-te cabo da cara. Escangalharam tudo o que te
fizeram na Suíça. O nariz partido em dois sítios, o maxilar levemente estalado, nada de grave, vai acabar por curar praticamente por si. Deves ter perdido cerca
de cinco dentes, quase todos pivots e parece que te deslocaram um pouco o malar direito, mas não podemos ver bem enquanto o inchaço não diminuir. Cortes por cima
dos olhos e em volta da boca. Bem vistas as coisas, não foi muito mau.
-'Obrigado, doutor - disse. Peguei-lhe na mão e beijei-a. Tal como disse atrás, éramos italianos. Quando olhei para ele, vi-lhe os olhos cheios de lágrimas.
Nessa altura, a porta abriu-se e a minha mãe e Cindy entraram e o meu pai não teve parança nos dez minutos que se seguiram, tentando impedir a minha mãe de me cobrir
de lágrimas.
Cindy ficou aos pés da cama, a observar-nos, cheia de acanhamento. Acho que devia ser a primeira vez que via uma família italiana em acção. Realmente, era um espectáculo.
Finalmente, quando a minha mãe já tinha beijado praticamente todos os bocadinhos de mim, incluindo os pés, endireitou-se.
- Cindy, chega aqui - disse. - O Ângelo quer agradecer-te.
A minha mãe voltou-se para mim.
- É muito boazinha, a tua amiga. Salvou-te a vida e trouxe-te para junto de nós. Agradeci-lhe um milhão de vezes. Agora, agradece-lhe tu também.
Cindy inclinou-se por cima de mim e deu-me um beijo casto na cara. Eu retribui-lhe o beijo, igualmente casto, na cara.
- Obrigado - disse-lhe com voz grave.
- Não tens de quê - respondeu-me com toda a formalidade.
- Assim é que é, Ângelo - disse a Mamma, cheia de orgulho.
Cindy e eu fizemos um enorme esforço para não nos desmancharmos. Nem ousávamos olhar um para o outro.
- Quem é que mandou estas flores todas? - perguntei.
- A história de tu teres sido assaltado veio em todos os jornais - disse Cindy. - Começaram a chegar ontem. Número Um, Duncan, Rourke, Bancroft. Até
o Número Três e Weyman mandaram flores.
- O Ângelo tem bons amigos - disse a minha mãe, orgulhosa.
- Pois tenho - respondi secamente, olhando para Cindy.
- O Número Um telefonou-te de Palm Beach - disse Cindy. - Disse que não te preocupasses. Que falava contigo na segunda-feira quando viesse para cá.
De repente, voltou-me tudo à ideia. Segunda-feira era apenas dali a cinco dias. Tinha perdido um dia precioso a dormir. Levantei os olhos para o meu pai.
- Quanto tempo tenho que ficar aqui?
- Deves ficar o resto da semana - respondeu. - Se tudo correr bem, deixamos-te sair lá para segunda ou terça.
- Se eu sair do hospital durante um dia e, depois, voltar, há perigo?
O meu pai ficou a estudar-me.
- É assim tão importante?
- É. Isto não foi um assalto e o pai sabe-o bem. Ninguém me tirou nem o relógio nem a carteira.
E também sabia reconhecer o trabalho de profissionais. Não se trabalha durante mais de quarenta anos nos hospitais de Detroit sem aprender isso. Ficou silencioso.
- Há uma coisa que eu tenho que fazer - disse. - É a única possibilidade que tenho de os impedir de tirarem a companhia ao Número Um.
Uma expressão estranha surgiu no rosto do meu pai.
- Referes-te ao velho Sr. Hardeman?
Fiz que sim com a cabeça.
Ele ficou um momento pensativo.
- E voltas dentro de um dia?
- Sim.
- Cada minuto vai ser de agonia - disse.
- Dê-me uns comprimidos.
- Está bem - respirou fundo. - Dou-te um dia. E tenho a tua palavra. Voltas para aqui.
- Não! -gritou a minha mãe. - Não podes permitir uma coisa dessas! Ele mata-se! -Avançou para mim, a gritar. - Meu filhinho!
O meu pai estendeu o braço para a obrigar a parar.
- Jenny! -disse em tom severo.A minha mãe olhou para ele, surpreendida. Era um tom que eu estava bem convencido que devia ser a primeira vez que ela
lhe ouvia.
- Deixa aos homens o seu trabalho de homens! - disse o meu pai.
As mulheres sicilianas compreendem estas coisas.
- Sim, John - respondeu com brandura. Olhou para mim, mas falou para o papá. - Ele vai ter cuidado?
- Ele vai ter cuidado - afirmou o meu pai.
Acordei, da próxima vez, na cabina do enorme DC-9 fretado. A hospedeira estava a olhar para mim, Gianno estava ao lado dela.
- Daqui a quinze minutos vamos aterrar em Phoenix, Sr. Perino - disse.
- Levanta-me - disse para Gianno.
Ele inclinou-se ao lado da maca e inclinou a alavanca, levantando a parte de trás até eu ficar meio recostado.
- Está bem assim, Ângelo?
- Óptimo - respondi. Aqui, a nove mil metros, o sol da tarde brilhava com mais força do que em Detroit. O aviso para apertar os cintos acendeu, acompanhado
de um som sibilante.
Gianno inclinou-se sobre mim para apertar as correias. Feito isso verificou os fechos que prendiam a cama ao chão. Satisfeito, voltou para o lugar dele e apertou
o cinto. A hospedeira foi para a cabina do piloto.
Recostei-me, satisfeito. O meu pai tinha tudo bem organizado. Tinha começado naquela manhã, quando pedi a Cindy que verificasse os voos para Phoenix enquanto eu
ligava para o tio Jake.
-'Deixa-te disso - disse o meu pai. - Eu trato de tudo.
- Mas eu preciso de chegar ainda hoje a Phoenix.
- E chegas. Descansa. Eu telefono ao Jake e ponho-te hoje mesmo em Phoenix.
- Mas como é que vai conseguir isso?
- Não te preocupes - sorriu. - Já é tempo de aprenderes que há algumas vantagens em se ser rico.
Depois de ele se ter ido embora, Cindy aproximou-se da cama. Ficou de pé ao lado da minha mãe que estava sentada numa cadeira, a observar cada movimento meu com
olhos de águia.
- Se calhar vou até ao hotel, dormir um bocado - disse. - Estou morta.
- Não quero que voltes para o hotel. Eles sabem que estavas comigo, não quero que te aconteça nada.
- Não me acontece nada - disse ela.
- Isso era o que eu pensava.
- Cindy pode ficar em nossa casa - disse rapidamente a minha mãe. -Pode ficar no quarto de hóspedes, como ficou ontem à noite.
Olhei para Cindy. Ela fez que sim com a cabeça.
- Não quero que ninguém saiba onde tu estás - disse.
- Okay - respondeu. - Eu digo ao Duncan que fique calado.
- Não lhe dizes coisa nenhuma. Nem a ele nem a ninguém. Não tenho confiança em nenhum dos telefones da fábrica.
- Mas eu prometi dizer-lhe onde tu estavas - disse.
- O hospital dá-lhe as informações. Tu desapareces até eu te dar notícias.
- Ela faz o que tu lhe disseres, Ângelo - disse a Mamma. - Não faz, Cindy?
- Faço - respondeu Cindy.
- Vês? - disse triunfante. - Eu disse-te que ela era uma boa menina. Não te preocupes com ela. Eu tomo conta da Cindy, não a deixo um minuto. Ninguém
há-de saber onde ela está.
Vi um sorriso começar a despontar nos lábios de Cindy. Mas não era o sorriso de quem se está a divertir com alguma coisa. Era o sorriso que se tem quando se encontra
um amigo.
Acenei com a cabeça.
- Obrigado, Mamma.
O meu pai entrou novamente no quarto.
- Bom, está tudo arranjado - disse, obviamente satisfeito consigo próprio. - Falei com o Jake. Vai encontrar-se contigo no escritório dele, às cinco
horas.
Era verdade que tinha tudo planeado. Uma ambulância particular levou-me desde o hospital até ao aeroporto, onde rolou direitinha para o campo e, depois, para o avião
fretado. Gianno seguiu comigo e no avião verificou se a maca estava devidamente fixa no seu lugar. Cinco minutos depois de estarmos no ar, veio ter comigo com uma
seringa na mão.
- O que é isso? - perguntei.
- Uma injecção para dormir - respondeu. - O Dottore quer que descanse até chegar a Phoenix.
- Eu descanso- respondi.
- O Dottore disse que se me desse problemas fizesse voltar o avião para Detroit.
- Okay - disse com voz cansada. - Podes atacar.
O meu pai tinha-o ensinado bem. Antes de ele me tirar a agulha do rabo já eu estava a dormir.
Havia uma ambulância à espera, na pista, quando o avião parou. Trinta e cinco minutos depois entrámos em Paradise Springs. Não posso deixar de dizer uma coisa. Era
uma maneira fantástica de resolver o problema do trânsito.
Fomos encaminhados para a entrada privativa do gabinete do tio Jake. Passava-se por um jardim fechado, em frente ao campo de golfe.
O tio Jake estava por trás da sua secretária, na enorme sala forrada a madeira. A lenha crepitava na lareira, numa luta inglória contra o ar condicionado.
O tio Jake viu-me olhar para o fogo enquanto Gianno me fazia subir a cabeceira da cama. Levantou-se da cadeira e encaminhou-se para mim, com o seu stetson branco
como a neve a destacar-se de forma inquietante contra as paredes de madeira escura.
-Este ar condicionado é de um raio de uma eficiência que às vezes dou comigo a tiritar-disse.-E ainda me manteifho suficientemente ligado ao Leste para gostar de
aquecer as mãos a um fogo de lenha.
Sorri-lhe.
- Olá, tio Jake. - Estendi-lhe a mão.
Pegou-me na mão, apertando-a com força e calorosamente, como sempre fizera.
- Olá, Ângelo. - Voltou-se para Gianno. - Tenho muito prazer em voltar a vê-lo, Gianno.
Gianno fez uma reverência.
- Muito prazer em vê-lo, Excelenza. - Encaminhou-se para a porta e saiu do gabinete.
Quando a porta se fechou, o tio Jake voltou-se novamente para mim. Puxou uma cadeira que estava em frente da secretária e sentou-se, voltado para mim.
- Viajas sempre assim? - sorriu.
- Não. - Ri-me. - Só quando estou demasiado cansado para sair da cama.
- O teu pai contou-me que levaste uma grande dose-disse, sempre a sorrir. - Devias ter aprendido a baixar-te.
--E foi o que eu fiz - disse. - Direitinho a um pontapé nos dentes.
O sorriso apagou-se-lhe. As pálpebras descaídas e pesadas sobre os olhos grandes, o nariz romano grande e curvo, chegando quase ao centro do lábio superior, por
cima da 'boca larga de lábios finos e o queixo pontiagudo, com uma covinha ao meio, tudo contribuía para lhe dar o aspecto perigoso e guardado de um falcão à caça.
-Quem fez isso? - perguntou.
- Não sei - disse, fazendo uma pausa deliberada. - Mas não é difícil adivinhar.
- Conta-me.
Contei-lhe a história toda desde o princípio. Desde a primeira chamada que tinha recebido do Número Um, havia quase três anos.
Não omiti nada, quer de natureza pessoal, quer de trabalho, pois sabia que era assim que ele queria as coisas e que assim é que tinha que ser. Passada hora e meia,
cheguei ao fim da história, contando-lhe a conversa que tinha tido com o meu pai naquela manhã.
Ele era bom ouvinte, interrompendo-me apenas uma ou outra vez para clarificar algum ponto mais obscuro. Depois, pôs-se de pé e es- preguiçou-se. Mantinha uma forma
extraordinária para um homem que já estava quase a chegar aos setenta; mais parecia um homem dos seus cinquenta anos e não muito avançados.
- Acho que preciso de uma bebida - disse.
- Também eu.
- Que é que te apetece?
- Um canadiano só com gelo.
Riu-se.
- O teu pai preveniu-me de que era isso que tu ias pedir, mas a única coisa que estou autorizado a servir-te é um pouco de conhaque puro.
- O meu pai lá sabe.
Havia um bar escondido na parede que aparecia premindo apenas um botão. Despejou conhaque em dois copos pequenos e passou-me um.
- Saúde - disse-lhe. O conhaque escorregou-me pela garganta, queimando-a. Tossi e estremeci quando a dor me percorreu o lado do corpo.
- Deves beber em golos pequenos, em vez de engolir tudo de uma vez - disse. Sorveu um pouco de conhaque. Passado um momento, baixou os olhos para
mim.
- Okay, agora que já ouvi a tua história, que é que pretendes exactamente que eu faça?
- Que me ajude - disse simplesmente.
- Como?
- Há duas coisas que quero que me faça. Se puder. Uma é descobrir onde é que o Simpson arranjou o dinheiro para desenvolver a campanha contra nós.
Se o arranjou de maneira legítima, está tudo bem, esquece-se o caso. Mas se lhe veio de alguma forma de alguém ligado à companhia, quero saber como foi.
"Em segundo lugar, quero o bilhete que Loren II deixou quando se suicidou e que Loren Terceiro tem em casa, no cofre.
- E para que é que achas que isso te pode servir?
- Não sei - disse. - Mas tenho um pressentimento de que talvez seja a chave de tudo isto, se conseguir trazê-lo à luz do dia.
- Não estás a pedir muito, pois não? - E continuou, sem esperar pela resposta. - Um pouco de trabalho de detective, o arrombamento de um cofre e mais
nada.Não disse palavra.
- De quanto tempo dispomos?-'perguntou.
- Até segunda-feira à noite - respondi. - Preciso da informação para a reunião de accionistas na terça-feira de manhã. É a nossa última hipótese.
- Sabes que me estás a pedir que participe num acto ilegal com conhecimento total e prévio? - disse.-É uma coisa em que nunca me meti. Toda a minha
vida fui advogado e a única coisa que fiz foi defender os meus clientes o melhor que sabia, depois de eles cometerem o acto.
- Eu sei isso - respondi.
- E, mesmo assim, pedes-me que faça o que pretendes?
- Sim.
- Porquê?
- O senhor é advogado, não devia ter que fazer essa pergunta - disse, olhando-o fixamente. - Fez um contrato vitalício com o meu avô para tratar dos
meus negócios. E este é o meu negócio.
Pensou um momento e, depois, fez que sim com a cabeça.
- Tens razão. Vou ver o que é que consigo fazer. Mas não prometo nada. Os meus contactos em Detroit podem já não ser tão bons como eram.
- Estou de acordo, tio Jake-disse. - Obrigado.
Olhou para o relógio.
-'São horas de voltares para o avião. Já passa das sete e eu prometi ao teu pai que a esta hora já irias a caminho.
- Sinto-me bem-disse. Mas não sentia. A dor começava a bailar dentro de mim.
- Onde é que estás às nove da noite de segunda-feira?
- Ou no hospital ou em casa - respondi. - Depende do que o meu pai me deixar fazer.
- Okay - respondeu. - Às nove horas, na segunda-feira à noite, estejas onde estiveres, alguém te há-de contactar. Ou terão o que pretendes ou irão
dizer-te que não o têm.
- Está muito bem.
Dirigiu-se para a porta e abriu-a. Gianno estava à espera do lado de fora.
- Okay, Gianno - disse. - Leve-o de volta.
- Si, Excellenza.-Gianno tirou uma pequena caixa de metal da algibeira de cima do casaco. Rasgou o invólucro de papel da seringa descartável e começou
a enchê-la num pequeno frasco.
- Compreendo perfeitamente porque é que o teu pai te deixou vir aqui falar comigo ainda nesse estado - disse o tio Jake. - O que eu não percebo é
porque é que tu o estás a fazer, o que é que lucras com isso.
- Uma das razões é o dinheiro. Um dia, essas acções hão-de valer alguns dez milhões de dólares.
- Não é por isso - disse. - Nesta altura já deves ter cinco vezes isso e não ligas ao que tens. Tem que haver outra razão.
- Talvez seja porque dei a minha palavra ao velho que havíamos de construir um novo carro. E quanto a mim, a coisa não está feita enquanto o carro
não sair da linha de montagem.
Olhou para mim. A voz dele tinha um tom de aprovação.
- Pára aí, sim.
Eu também tinha uma pergunta a fazer-lhe. Havia uma coisa que me intrigava.
- Disse que sabia porque é que o meu pai me deixou vir aqui. Porque foi?
- Julgava que sabias - disse.-Foi o velho Sr. Hardeman que meteu o teu pai no hospital como estagiário, depois de todos o terem recusado por ser filho
do teu avô.
- Volte-se um bocadinho de lado - disse Gianno.
Automaticamente fiz o que ele me pediu, sem tirar os olhos do
tio Jake. Senti a picada leve na nádega.
O tio Jake começou a sorrir.
- A roda não pára de girar, pois não?
Depois, mesmo ali à frente dos meus olhos, começou a desaparecer.
Devia ser uma das melhores injecções do mundo. Dormi todo o caminho, desde o gabinete do tio Jake, em Phoenix, até às nove horas da manhã seguinte, quando acordei
na minha cama de hospital em Detroit.
CAPÍTULO 10
Quando chegou a sábado à tarde, no hospital, já não sabia o que fazer. As dores tinham acalmado o suficiente para eu as controlar com bastante aspirina e pus-me
a andar de um lado para o outro no quarto como um animal enjaulado. Mudei a televisão de um canal para outro e fiz rodar o botão do rádio até ficar com ele na mão.
Por fim, a enfermeira fugiu do quarto e voltou dez minutos mais tarde com o meu pai.
Ele olhou para mim, calmamente.
- Que é que se passa?
- Quero ir-me embora!
- Okay - respondeu.- Não podem ter-me aqui mais tempo - disse, sem o ouvir. - Estou farto!
- Se me tivesses prestado atenção, em vez de estares para aí a falar - disse o meu pai -, ter-me-ias ouvido dizer "Okay".
Fiquei a olhar para ele.
- Está a falar sério?
- Veste-te - disse. - Daqui a uns quinze minutos, venho buscar-te. É só o tempo de acabar as minhas visitas.
- E as ligaduras?
- Tens que ficar mais uns dias com as costelas ligadas, mas posso substituir as ligaduras da cabeça e da cara por uns pensos rápidos. - Sorriu. -
Estou bastante satisfeito. Vi as tuas radiografias e análises esta manhã. Estás óptimo. Agora vou deixar que a droga miraculosa da Mamma, a pasta, faça o resto.
Claro que a Mamma chorou quando cheguei a casa. E o mesmo aconteceu com o Gianno e com o meu pai. Olhei por cima da cabeça da minha mãe para Cindy. Até ela tinha
os olhos marejados de lágrimas.
Sorri-lhe.
- Estou a ver que a Mamma te tem estado a ensinar a tornares-te italiana.
Ela fez uma careta e afastou-se. Quando se voltou já estava em forma.
- Também me ensinou a fazer o molho para o esparguete - disse. - Temos estado na cozinha desde manhã, quando o teu pai nos disse que te ia trazer
para casa.
Olhei para ele.
- Ao menos, podia ter-me dito.
Sorriu.
- Primeiro, queria ver os resultados dos exames, para ter a certeza.
- Gianno, ajuda-o a subir as escadas - disse a minha mãe.
- Si, signora.
- Despe-o e mete-o na cama - continuou. - Quero que ele descanse até à hora do jantar.
- Mamma, eu já não sou nenhuma criança - protestei. - Posso arranjar-me sozinho.
A Mamma ignorou-me.
- Gianno, não lhe dês atenção - disse com firmeza. - Vai com ele.
Comecei a subir as escadas, com Gianno atrás de mim.
- E não o deixes fumar na cama - acrescentou. - Ainda acaba por se queimar.
Quando, finalmente, me meti na cama, já tinha percebido que ainda não estava tão forte como pensava. Sentia-me grato pela ajuda de Gianno. Adormeci imediatamente.
Cindy apareceu antes do jantar, ainda a tempo de apanhar a minha mãe a enfiar-me um copinho de Fernet Branca pela goela abaixo.
Engoli metade, quase a vomitar com o gosto horrível que aquilo me deixava na boca. Fiz uma careta.
- Já chega!
- Tens que beber tudo - insistiu. - Faz-te melhor do que aqueles comprimidos todos.
Fiquei de copo na mão, teimosamente. A minha mãe voltou-se para Cindy.
- Fá-lo acabar isso - disse. - Eu tenho que ir à cozinha pôr a água para a pasta. - Foi até à porta e, depois, parou. - Obriga-o a acabar isso antes
de descer para jantar.
- Sim, Sr.a Perino - disse Cindy, obedientemente. A minha mãe saiu e Cindy voltou-se novamente para mim. - Ouviste a tua mãe - disse, com um sorriso.
- Bebe isso.
- Ela é fantástica, não é? O problema é que ela não acredita quando lhe digo que a melhor amiga de qualquer homem é a própria mãe.
-'Nunca conheci ninguém como ela - disse Cindy com uma pontinha de inveja na voz. - E como o teu pai também não. O dinheiro que têm não os afecta em nada. Vivem
um para o outro. E para ti. São pessoas, no verdadeiro sentido da palavra.
- Mesmo assim, não bebo esta merda.
- Bebes sim - disse, olhando-me nos olhos -, só para lhe dar prazer.
Acabei a Fernet Branca de um trago. Fiz uma careta, enquanto lhe estendia o copo.
- Caramba, isto é horrível!
Ela não disse nada, com os olhos postos nos meus.
Sacudi a cabeça, espantado.
- A minha mãe conseguiu mesmo impressionar-te, não foi?
-'Nem sabes a sorte que tens - disse muito séria.-A minha família tem mais dinheiro do que a tua. Muito mais. E a minha mãe e o meu pai parece que nunca repararam
sequer que eu existia.
Fiquei a olhá-la, admirado. Nunca me tinha falado na família.
- Alguma vez ouviste falar na Morris Mining? - perguntou, de repente.
Fiz que sim com a cabeça. Claro que tinha. Agora já percebia porque é que para ela o dinheiro parecia não ter qualquer importância. Tinha dinheiro que nunca mais
acabava. Juntamente com a Kennecott Copper, Anaconda e a Companhia Três M. Eu até tinha mil acções.
- O meu pai é presidente do conselho de administração. O meu irmão é presidente da companhia. É quinze anos mais velho do que eu. Eu fui um bebé tardio
e sempre tive a impressão de que se sentiram embaraçados com a minha chegada. De qualquer forma, despacharam-me para as melhores escolas logo que puderam. Aos cinco
anos de idade, já não passava muito tempo em casa.
Pensei na minha própria infância e em como tinha sido diferente da dela. Cindy tinha razão. Eu tinha muita sorte. Ergui as mãos no gesto do vencido.
- Tens razão, confesso. Tenho-lhes muito amor.
- Não precisas de o dizer - respondeu. - Eu sei. Logo que te sentiste magoado, vieste a correr para casa. Tenho passado a minha vida a fugir quando
me sinto magoada.
Alguém bateu à porta aberta. Gianno entrou no quarto.
- La signora mandou-me vir cá acima para o ajudar a vestir e levá-lo para baixo.
Sentei-me na cama e pus-me a alisar as cobertas por cima das minhas pernas ao mesmo tempo que sorria para Cindy.
Ela percebeu o que eu estava a pensar. A minha mãe tinha, realmente, feito o número completo.
Faltava mais de uma hora para o jantar. Tinha tempo de me vestir. Mas as meninas bonitas não ficam muito tempo nos quartos dos rapazes italianos. Não parece bem.
À hora do jantar, descobri, com grande surpresa para mim próprio, que estava esfaimado. A Mamma tinha-se esmerado, não havia dúvida. A pasta estava mesmo como eu
gosto. Al dente. Firme e não mole e empapada. E o molho tinha tudo. Salsicha picante, salsicha sem ser picante, pimentinhas verdes ligeiramente salteadas em óleo,
bolas de carne delicadamente misturadas com carne de porco picada, tomates italianos aos quartos, cozinhados num molho vermelho e espesso, com a quantidade exacta
de orégãos e alho. Só tinha um defeito. Como de costume, estava demasiado doce. Era tipicamente siciliano acrescentaram-lhe uma boa porção de açúcar.
Mas devorei a comida como se fosse uma coisa que estivesse a cair em desuso. Estava demasiado esfomeado para me tornar difícil.
A minha mãe olhava para mim, cheia de orgulho.
- Gostas do molho?
Fiz que sim, com a boca cheia.
- Está óptimo!
- Foi ela que o fez - disse. - Fez tudo sozinha.Olhei para Cindy, perguntando a mim mesmo se lhe poderia dizer que, caso a mãe lhe desse outra oportunidade,
tivesse cuidado com o açúcar. As próprias palavras de Cindy afastaram-me esse pensamento.
- A tua mãe está só a ser amável. A única coisa que eu fiz foi pôr no tacho as coisas que ela me ia dando e mexer, de vez em quando.
Eu devia ter adivinhado.
- Está muito bom - respondi.
- Se ficar umas semanas comigo, faço dela uma verdadeira cozinheira siciliana - disse a minha mãe.
A pasta era melhor do que os comprimidos para dormir. Meia hora depois de jantar, senti os olhos fecharem-se-me, mesmo a meio do espectáculo de televisão preferido
da minha mãe. Subi para o quarto, para ir dormir.
Na manhã seguinte era domingo e a rotina habitual era que toda a família, incluindo Gianno, fosse à missa das dez. A rotina daquele domingo foi modificada, porque
a minha mãe não quis deixar-me sozinho em casa.
Gianno foi à missa das nove e, quando voltou, os meus pais foram à das dez. Com grande surpresa minha," quando fui à procura da Cindy, Gianno disse-me, com um sorriso
misterioso e entendido a espreitar-lhe no olhar, que Cindy tinha ido à missa com eles.
Voltei para o meu quarto, resmungando comigo mesmo. Nessa altura é que percebi que estava a ficar melhor. Estava com um tesão dos diabos. Mas a minha mãe estava
a actuar em grande estilo.
Devo ter passado pelo sono, porque, quando abri os olhos, o meu pai estava inclinado sobre a cama, a olhar para mim.
Baixou-se e beijou-me na testa.
- Pensei que se te sentisses com coragem, podíamos ir até ao meu gabinete e eu tirava-te as ligaduras.
- Estou pronto - respondi.
Fiquei sentado, com as pernas penduradas na marquesa, enquanto ele ia cortando cuidadosamente a ligadura que tinha em volta da cabeça. Depois, com toda a suavidade
possível, arrancou o adesivo que segurava o penso do nariz e retirou-o. Usou do mesmo cuidado com o adesivo e o penso do malar, do queixo e da orelha esquerda.
Pegou num frasco e deitou um pouco de líquido num pedaço de algodão.
- Vai arder um bocadinho - disse -, mas quero limpar tudo
isto.
Era o tipo de afirmação que primava pela moderação profissional. Ardia como o inferno. Mas foi rápido. Quando acabou, ficou a olhar para mim com ar crítico.
- Não está mal - disse com ar apreciativo. - Quando tiveres tempo, podes dar um salto à Suíça. O Dr. Hans compõe-te outra vez a cara sem grande dificuldade.
Desci da mesa e olhei-me no espelho que ficava na parede, por cima do lavatório. Dei com um rosto muito familiar a olhar para mim.
De repente, senti-me bem. Era eu outra vez. Enquanto tinha a outra cara, nunca deixara de ser outra pessoa. Agora, os meus olhos já não me pareciam velhos. Pertenciam
ao resto da minha cara.
-'Olá, Ângelo - murmurei.
A minha cara respondeu, também num murmúrio:
- Olá, Ângelo.
- O que foi que disseste? - perguntou o meu pai.
Voltei-me para olhar para ele.
- Não volto ao Dr. Hans - disse. - Vou ficar com esta cara. É a minha.
Acordei com os nervos à flor da pele, na segunda-feira de manhã. E não houve nada que os acalmasse. Especialmente depois de ter lido o jornal da manhã.
Era uma história de primeira página com fotografia. Esta mostrava uma massa confusa daquilo que tinha sido um edifício. O título era simples.
EXPLOSÃO MISTERIOSA E INCÊNDIO DESTROEM TIPOGRAFIA E EDIFÍCIO DA AVENIDA MICHIGÃO
Quase não precisei de ler o resto da história para saber o que tinha acontecido. Pouco depois das zero horas, na noite anterior, duas violentas explosões, que fizeram
estilhaçar janelas a uma distância de três quarteirões e foram seguidas de um incêndio repentino, com um calor intenso, destruíram a Mark S. Printing Company, a
OISA e quarenta carros usados de modelo recente que se encontravam no parque de carros usados de Simp. Quando tentámos entrar em contacto com o Sr. Mark Simpson,
proprietário dos três empreendimentos, em sua casa, fomos informados de que o Sr. Simpson se encontrava fora e não havia forma de o contactar. Os bombeiros e postos
da polícia estavam a conduzir uma investigação quanto às circunstâncias que rodeavam a ocorrência. Felizmente, não havia ninguém nas instalações e não houve notícia
de que ninguém tivesse ficado ferido.
A notícia não serviu propriamente para me fazer sentir mais confortável. Perguntava a mim mesmo se os contactos do tio Jake
não se teriam excedido um bocado no seu entusiasmo. Depois, afastei
a ideia do pensamento. Se o tio Jake não sabia o que estava a fazer, então ninguém sabia.
Ainda assim, o nervosismo não me abandonou. E à medida que o dia parecia arrastar-se ia-se tornando cada vez pior. Fui para o meu quarto e tentei dormir, mas os
olhos não se me fechavam. Desci novamente ao rés-do-chão.
Liguei para um jogo de futebol profissional. Mas a minha ideia estava noutro sítio. Fiquei ali sentado, a olhar sem ver, fumando cigarro em cima de cigarro. Por
fim desliguei o aparelho, e voltei para cima, para me estender em cima da cama, com os braços por baixo da cabeça, em cima da almofada, a olhar para o tecto.
Ouvi abrir-se a porta. Não voltei a cabeça. O meu pai ficou parado junto da cama, a olhar para mim. Não falei.
- Não estás em estado de te pores num nervosismo desses - disse.
- Não consigo evitar.
- Então deixa-me dar-te uma injecção para dormires um bocado - sugeriu.
- Não.
- Então deixa-me dar-te uns tranquilizantes, para ver se ficas mais calmo.
- Deixe-me em paz, papá.
Voltou-se, em silêncio e dirigiu-se para a porta. Sentei-me na cama, com os pés no chão.
- Papá!
Ele voltou-se, já com a mão na porta.
- Desculpe, papá.
Ele fez que sim com a cabeça.
- Não tem importância, Ângelo - disse e saiu do quarto.
Não tinha apetite ao jantar e debiquei aqui e ali, durante uma refeição em que ninguém disse palavra. Depois de jantar, voltei para o meu quarto.
Às oito e meia, desci e fiquei sentado, sozinho, na sala. Ouvia os sons da televisão vindos da saleta pequena. Às oito e quarenta e cinco, o telefone tocou. Mergulhei
em direcção ao aparelho.
Era Donald. O criado do Número Um.
- Sr. Perino?
- Sim - respondi, decepcionado por não ser a chamada que eu esperava.
- O Sr. Hardeman pediu-me que soubesse se pode estar presente às reuniões de accionistas e do conselho de administração, amanhã - disse.
- Lá estarei - respondi.
- Obrigado. Eu dou-lhe a informação - disse. - Boa noite.- Espere aí um momento! - disse rapidamente. - Posso falar com o Sr. Hardeman?
- Lamento muito - disse. - Mas o Sr. Hardeman já está a dormir. Tivemos que fazer uma paragem em Pensacola e chegámos há pouco. O Sr. Hardeman estava
muito cansado e foi logo para a cama.
Está bem, Donald. Obrigado - disse, pousando o telefone. Não percebi como é que o velho fazia. Devia ser de aço, para estar a dormir numa ocasião daquelas.
Mas o que era que eu tinha lido uma vez? O general Grant costumava dormir uma soneca antes das grandes batalhas. Afirmava que isso e um uísque o refrescava para
a luta.
Talvez eu não conseguisse dormir, mas o uísque não me parecia má ideia. Olhei para o relógio. Cinco para as nove. Dirigi-me para o bar.
Ia no segundo uísque, exactamente às nove horas, quando a campainha da porta principal soou. Ouvi o Gianno dirigir-se para lá, mas resolvi adiantar-me e fui abrir.
Vi um homem na sombra, com a aba do chapéu descaída e a gola do casaco levantada. Não consegui ver-lhe a cara.
- Sr. Ângelo Perino?
- Sim - respondi.
- Tenho isto para si - disse, atirando-me para a mão um grande sobrescrito de papel pardo.-Com os cumprimentos do juiz.
- Obrigado - disse, mas ele já se tinha ido embora, metendo-se rapidamente num carro que disparou pelo caminho fora.
Fechei a porta e voltei lentamente para a sala, desatando a fita que fechava o sobrescrito. Lá dentro havia duas pastas de cartão.
Enterrei-me no sofá e abri-as. A primeira era a carta que lhe tinha pedido que retirasse do cofre de Loren. Li-a rapidamente. Era quase textualmente aquilo que Bobbie
tinha dito. Pu-la de novo na pasta e abri a outra.
Aqui estava tudo o que eu queria e ainda mais. Nomes, datas, locais, tudo. Até fotocópias do cheque que tinha recebido, assim como das notas de despesas. Simpson
devia ser doido para guardar aqueles elementos. Ou era doido ou tencionava usá-los para fazer chantagem, um dia. E por aquilo que sabia dele, até ali, a hipótese
correcta devia ser a segunda.
De repente, levantei os olhos. Estavam todos ali, a olhar para mim, ansiosos. O meu pai, a minha mãe e Cindy. Até Gianno estava à porta, a olhar.
- Era isso que tu querias? - perguntou o meu pai.
Fiz um sorriso aberto. De repente, o peso que tinha sentido no ar durante todo o dia, desapareceu. Levantei-me de um salto, beijei o meu pai, beijei Cindy e pus-me
a dançar com a minha mãe.
- Eh, papá! - gritei-lhe por cima do ombro. - Quem é que disse que o avô não está a tomar conta de nós?
A minha mãe parou de dançar e benzeu-se.
- Ele está lá em cima no céu, com os anjos - disse com solenidade. - A tomar conta dos filhos.
CAPÍTULO 11
Era-me impossível guiar com as costelas ainda ligadas e, por isso, Cindy deixou-me no edifício da administração às oito e meia da manhã.
- Queres que te venha buscar? - perguntou.
Contive a respiração. Não era assim tão fácil sair de um Maseratti com umas quantas costelas partidas.
- Não - respondi. - Vai para o hotel. Quando acabar, pego num táxi e vou-te buscar para almoçar.
- Óptimo - sorriu. Estendeu o punho com o polegar espetado para cima, a desejar-me boa sorte.
Sorri e retribuí-lhe na mesma moeda e ela desapareceu, estrada fora. Entrei no edifício e fui directamente para o meu gabinete. A minha secretária ainda não tinha
chegado, o que vinha a calhar. Sentei-me à mesa dela, meti uma folha de papel na máquina de escrever e comecei a bater algumas notas.
Mal acabei, ela entrou. Eram dez para as nove. Arranquei a última folha de papel da máquina, assinei-a e meti-a na algibeira interior do casaco.
- Como é que se sente, Sr. Perino? - perguntou. - Melhor?
- Muito melhor.
- Ficámos todos tão chocados quando soubemos o que tinha acontecido - disse.
- Não ficaram mais do que eu.- Peguei na pasta e encaminhei-me para a porta. - Vou para o gabinete do Número Um.
- Não se esqueça de que tem a reunião de accionistas às nove.
- Não esqueço - respondi, como se precisasse que me lembrassem.
Número Um ainda não tinha chegado.
- Deve chegar um pouco atrasado - disse a secretária. - Ainda teve que fazer uma paragem antes de vir para cá.
Voltei para o meu gabinete, tomei uma chávena de café e, exactamente às nove horas, encaminhei-me para a sala de reuniões. A sala já estava apinhada, estavam lá
todos. Excepto o Número Um.
Loren III deu algumas pancadas com um martelo na mesa. Todas as conversas pararam.
- Acabo de ser informado de que o meu avô vai chegar alguns minutos atrasado - disse. - Enquanto esperamos por ele, vou explicar-lhes brevemente algumas
alterações formais que foram estabelecidas exclusivamente para as reuniões de hoje, de accionistas e do conselho de administração. Estas alterações foram apresentadas
ao meu avô, que está inteiramente de acordo com elas.
Fez uma pausa de alguns momentos, enquanto olhava em volta da mesa. Não creio que me tenha reconhecido à primeira vista, porque os olhos dele voltaram a cair sobre
mim, para um segundo olhar rápido e, depois, continuaram, mas não tive a certeza.
- Tanto os accionistas como os administradores foram convidados para as duas reuniões - disse. - Durante a reunião de accionistas, pede-se aos administradores
que não sejam accionistas que se retirem da mesa e vão ocupar os assentos que, para esse fim, se encontram espalhados em volta da sala. Sentados à mesa com os accionistas
directos estarão também os procuradores da Fundação Hardeman que votarão hoje as acções da companhia pertencentes à Fundação. Gostaria de apresentar a todos os procuradores
da Fundação aqui presentes, para além da minha pessoa.
Fez uma ligeira pausa.
- Minha irmã, a princesa Anne Elisabeth Alekhine.
Anne, com todo o ar de princesa no seu saia e casaco parisiense chiquíssimo, fez um aceno cheio de realeza e recostou-se novamente no seu lugar, à direita do irmão.
- Gostaria também de acrescentar que a minha irmã votará igualmente as acções que tem na companhia em seu próprio nome.
Fez um gesto com a mão.
- Sentado à sua direita está o Dr. James Randolpn, administrador da Fundação, e à direita deste, o professor William Mueller, director administrativo
da Fundação. Os accionistas terão também o direito de ter os seus consultores legais sentados a seu lado, à mesa, se o desejarem. Tais consultores não têm o direito
de dirigir a palavra directamente a qualquer accionista, a não ser ao seu cliente ou clientes.
Fez nova pausa.
- Para a reunião do conselho de administração, passar-se-á o contrário. Isto é, os accionistas que não são administradores da companhia retirar-se-ão
da mesa, para que os administradores possam, sem demora nem interferência, ocupar-se dos assuntos da companhia para os quais esta reunião foi convocada.-'Se os administradores
não accionistas quiserem ter a bondade de se retirar da mesa, poderemos proceder à reunião de accionistas logo que chegue o meu avô.
Espalhou-se pela sala um certo burburinho, enquanto o público numeroso ocupava os lugares que lhe competiam. Quando o ruído soçobrou, só cinco de nós continuavam
sentados à mesa: Loren III, Anne, os dois procuradores da Fundação e eu próprio.
Sentei-me sozinho na outra ponta da mesa, à frente deles. Loren olhou para mim, mas não falou. Havia milhares de quilómetros de campo de batalha entre nós. Um vago
murmúrio saiu dos outros assentos em volta da sala. Não pude deixar de sentir que estávamos ali como gladiadores numa antiga arena romana.
O silêncio caiu abruptamente na sala quando a porta começou a abrir-se. Número Um foi o primeiro a passar, empurrando vigorosamente a cadeira de rodas para dentro
da sala. Atrás dele vinham Alicia, uma mulher alta e imponente, de cabelos grisalhos, que eu não conhecia, e Artie Roberts.
Número Um parou, durante um segundo, para olhar em volta e, depois, empurrou a cadeira em direcção à mesa. Artie afastou uma cadeira, para arranjar lugar para a
cadeira de rodas. Número Um fez um gesto às mulheres e elas sentaram-se ao lado dele. Artie sentou-se na cadeira que ficava logo atrás do Número Um.
A cara de Loren III estava pálida enquanto olhava zangado para o avô. Anne pôs-se de pé rapidamente e avançou para junto do Número Um. Loren foi atrás dela, relutante.
Anne parou em frente da mulher de cabelos grisalhos e beijou-a afectuosamente na face.
- Mãe, não contava vê-la aqui. Devia ter-nos dito que vinha!
Agora sabia quem era a dama imponente. A mulher do almirante
Hugh Scott. Não admirava que Loren estivesse tão zangado com o avô. Trazer-lhe para a reunião a ex-mulher e a mãe.
Anne saudou Alicia com um beijo rápido na face e um "Prazer em ver-te", deu também um beijo ao Número Um, em silêncio, e, depois, voltou para o seu lugar.
Loren foi muito mais reservado. Beijou a mãe com toda a cortesia, fez um aceno silencioso para Alicia, ignorou o avô e voltou para o seu lugar.
Pegou no martelo e bateu peremptoriamente na mesa.
- Vamos dar início à reunião dos accionistas da Bethlehem Motors Company, Incorporated. - Deitou um olhar ao avô. - Antes de entramos nas questões
que dizem respeito a esta reunião, a mesa põe em causa o direito e propriedade da presença da Sr.a Scott e da ex-Sr.a Hardeman na mesma. A mesa argumenta que essas
senhoras não têm interesse, como proprietárias ou outro, nesta companhia, de forma a permitir a sua presença, visto que a mesa já está de posse da procuração da
Sr.a Hardeman para votar como lhe parecer e a Sr.a Scott não tem qualquer espécie de interesse na companhia que seja do conhecimento da mesa.
Artie inclinou-se para a frente, pondo um papel na mão de Alicia e sussurrando-lhe qualquer coisa ao ouvido. Ela fez que sim com a cabeça e pôs-se de pé.
- Sr. Presidente!
- Sim, Sr.a Hardeman-'respondeu Loren com toda a formalidade.
Sempre com Artie a sussurrar-lhe por detrás, Alicia falou, numa voz fina e clara.
- Desejo apresentar à consideração da mesa este aviso de revogação da procuração previamente dada por mim e o regresso à minha pessoa dos privilégios
de voto nela contidos.
Colocou o papel em cima da mesa, empurrando-o na direcção do ex-marido e, em seguida, sentou-se.
Loren pegou no papel e olhou para ele. Voltou-se e passou-o a Dan Weyman, que estava sentado atrás dele e que, por sua vez, o passou para o consultor da companhia.
Loren começou a falar sem esperar.
- Parece-me que esta revogação é ilegal e contrária a um acordo contratual, não sendo, portanto, válida para esta reunião.
Artie inclinou-se para a frente e sussurrou rapidamente ao ouvido de Alicia. Alicia inclinou-se para a mesa; desta vez, não se levantou.
- Este accionista está disposto a concordar com o adiamento da reunião até que a questão seja decidida em tribunal. Quer-me parecer que os direitos
desta accionista de votar as suas próprias acções não são menos válidos do que o direito reclamado pelo presidente para a Fundação, em circunstâncias semelhantes
e sobre o qual a decisão já foi tomada e aceite por todas as partes.
Loren voltou-se na cadeira e murmurou qualquer coisa para o conselheiro da companhia. Passado um momento, voltou-se novamente para a frente. Encolheu os ombros com
desprezo. Eram apenas cinco por cento. Continuava a ter uma nítida maioria, com a inclusão das acções da Fundação. Cinquenta e quatro por cento.
- A mesa concede a revogação - disse. - Mas a mesa continua a pôr objecção à presença da Sr.a Scott.
Desta vez, Número Um atirou uma folha de papel para cima da mesa.
- De acordo com o direito concedido à minha pessoa nos artigos de incorporação da Fundação Hardeman, segundo o qual eu tenho
direito de designar o meu sucessor como procurador da Fundação, caso eu pretenda retirar-me daquela função, faço-o neste momento. Encontrareis naquela folha de papel
a minha demissão formal de procurador da Fundação e a minha designação da Sr.a Sally Scott como minha sucessora.
Loren pegou no papel e passou-o ao administrador-delegado da Fundação. O homem leu-o rapidamente e fez com a cabeça um sinal de assentimento. Loren voltou-se de
novo para a mesa.
- A Fundação reconhece a Sr.a Scott como procuradora e o presidente apresenta-lhe pessoalmente as boas-vindas a esta mesa.
A Sr.a Scott sorriu.
- Obrigada, Loren.
Ele fez que sim com a cabeça. Ao fim e ao cabo, não estava a perder terreno. Ainda tinha quatro dos cinco votos dos procuradores.
- E agora, podemos começar com os trabalhos? - perguntou sarcástico.
Número Um fez que sim com a cabeça, com ar satisfeito.
- Acho que podemos, filho.
Loren olhou em volta da mesa, enquanto todos lhe faziam sinal que sim, até que chegou a minha vez. Sacudi a cabeça. Ele parou.
- Sr. Presidente - disse.
- Faz favor, Sr. Perino-respondeu.
-'Antes de entrarmos propriamente no assunto desta reunião, seria possível ter uma reunião particular apenas com os accionistas que têm participação pessoal na companhia
e membros, passados ou presentes, da família Hardeman?
Até o Número Um me olhou com curiosidade.
Loren estava espantado.
- Trata-se de um pedido muito estranho, Sr. Perino.
- Tomando em conta certas informações de que disponho, Sr. Presidente - respondi calmamente -, acho que é um pedido razoável. E, dado que essas informações
dizem pessoalmente respeito a membros da família Hardeman, não vejo qualquer interesse em que sejam apresentadas publicamente.
- Seria possível facultar ao presidente as ditas informações de que dispõe, para assim poder melhor avaliar da propriedade do pedido feito?
- Não tenho qualquer objecção-disse, abrindo a minha pasta. Retirei dela as duas pastas e separei os originais das fotocópias que tinha feito naquela
manhã. Entreguei-lhas.
Olhou-as durante alguns segundos, enquanto pelo seu rosto passavam todas as cores, desde o vermelho irado à palidez mortal. Finalmente levantou para mim os olhos
assustados.
- Não vou admitir chantagens! - disse com voz rouca. - O que eu fiz foi para o bem da companhia!
- Deixa-me ver - disse Número Um.
Furioso, Loren atirou os papéis para cima da mesa, em frente do avô. Número Um pegou neles e leu-os. Passados alguns minutos, olhou para mim. Vi-lhe nos olhos um
desgosto profundo e doloroso que me fez sentir pena dele. Afinal, tratava-se do seu próprio sangue.
Lentamente, olhou em volta da sala.
- Acho que seria melhor tratarmos deste assunto em particular, no meu escritório - disse com voz cansada.
E terminou assim a reunião de accionistas.
CAPÍTULO 12
- Acho que temos o direito de saber como é que arranjou esta informação - perguntou-me Número Um, de trás da sua secretária, sem levantar a voz.
- Na noite passada, às nove horas, um homem veio bater-me à porta e perguntou se eu era Ângelo Perino. Respondi afirmativamente. "Isto é para si",
disse, pondo-me os papéis na mão, e desapareceu.
Era verdade, não toda a verdade, mas o suficiente para responder à pergunta.
-Conhecias o homem? Já alguma vez o tinhas visto antes? - perguntou.
Sacudi a cabeça.
-'Não.
- Dizes que esta carta deve ser uma nota deixada pelo meu falecido filho, antes de se suicidar? - a voz dele denotava um ligeiro tremor.
- Que raio, avô! - explodiu repentinamente Loren III. - Sabe muito bem que é. Reconhece a letra dele! Ou talvez por ele estar a escrever a seu respeito
não quer reconhecê-la? - Respirou fundo. - Como é que o Ângelo apanhou essa carta, não sei, mas durante todos estes anos desde que o meu pai morreu, tenho-a tido
fechada no meu cofre! Só para que o mundo não viesse a saber que o senhor tinha sido suficientemente filho da puta para levar o seu próprio filho ao suicídio!
Começou a chorar.- Santo Deus, como eu o odiei por isso! Cada vez que pensava no meu pai, deitado no chão frio da biblioteca, com a cabeça desfeita,
o cérebro a manchar a carpete, odiava-o ainda mais. Mas, mesmo nessa altura, não conseguia acreditar. Lembrava-me também de quando eu era pequeno e o avô costumava
brincar connosco. Mas, depois, começou com o Betsy e tudo reviveu. Agia comigo exactamente como tinha agido para com o meu pai. Mas eu tomei uma decisão. Que não
me havia de fazer a mim o que lhe tinha feito a ele. Havia de o destruir a si primeiro!
Deixou-se cair numa cadeira e tapou a cara com as mãos.
- É isso que estás convencido que eu fiz ao teu pai? - perguntou Número Um, em voz calma.
Loren III tinha recuperado o controlo de si mesmo. Olhou para o avô.
- Em que outra coisa posso eu acreditar? Sei o que lhe aconteceu. Li a carta em que o acusa de tudo, embora sem o nomear. E sei como o senhor agiu
comigo.
A voz do Número Um continuava calma.
- Alguma vez te ocorreu que o teu pai podia estar a referir-se a outra pessoa?
- Que outra pessoa podia ser, além do senhor? - atacou Loren.
Número Um olhou para o outro lado da sala, para a Sr.a Scott.
- A verdade tem que vir ao de cima - disse, num tom pesado.
- Se vivemos o tempo suficiente, tudo se esclarece.
Ela olhou para ele e, depois, para o filho, fitando-os a ambos com a mesma compaixão carinhosa. Finalmente falou.
- Loren - disse, - o teu avô está a dizer a verdade. Não era a ele que o teu pai se referia naquele bilhete.
Está a dizer isso só para o defender! - acusou Loren.
- Conheço as histórias acerca de si e dele, mãe. E também sei o que sentia por ele. Também me lembro disso de quando era pequeno.
- Loren - disse a Sr.a Scott. -O teu...
- Saliy! - disse Número Um com aspereza. - Deixa-me dizer-lhe!
A Sr.a Scott ignorou-o.
- Loren, o teu pai era um homossexual. Durante vários anos, teve uma ligação com um homem que trabalhava para ele, Joe Warren. Joe Warren era um homem
doente, terrível e pervertido e, depois da sua morte, pensámos que tudo tivesse ficado enterrado com ele. Mas não foi assim.
"Parece que Warren tinha feito um cuidado registo fotográfico da sua relação que veio a cair nas mãos de um homem igualmente sem escrúpulos. Durante anos, este homem
explorou o teu pai, até ele não aguentar mais. Ficámos tão chocados como tu com a notícia do suicídio dele e incapazes de compreender,
"Mas a morte do teu pai não pôs fim à ganância do indivíduo. Foi ter com o teu avô. Lembro-me de ter falado com o teu avô, nessa altura. A única coisa boa, disse-me,
foi o chantagista ter ido ter com ele e não contigo. Assim, não precisavas de ficar a saber a história do teu pai.
"O teu avô conseguiu meter o chantagista na cadeia e destruir todas as fotografias. Gastou uma fortuna para abafar essa história. E fê-lo não tanto por ele, como
para te poupar o desgosto, a ti e à tua irmã. Apesar de tudo o que tinha acontecido, como vês, continuava a amar o filho e quis proteger a memória do teu pai.
Loren III olhou para ela e, depois, para o avô.
- Isto é verdade?
Número Um fez que sim com a cabeça, lentamente.
Loren III pôs a cabeça nas mãos. Olhei em volta. Eu era o único estranho. Todos os outros eram Hardemans, passados ou presentes.
O telefone começou a tocar. Número Um ignorou-o. Continuou a tocar insistentemente. Por fim, levantou o auscultador.
- Sim? - atirou, impaciente. Escutou um momento e, depois, fez sinal a Alicia. - É para ti.
Alicia, ainda a enxugar as lágrimas com o lenço, atravessou a sala. De pé, ao lado da cadeira de Loren III, recebeu o telefone da mão do Número Um.
- Sim - disse para o telefone. - Daqui fala a Sr.a Alicia Hardeman.
Uma voz excitada fez-se ouvir no gabinete, vinda do aparelho.
- Sim - disse ela-, sim, sim. Um grande beijo para ambos.
Lentamente, pousou o telefone.
Voltou-se para Loren III.
- Loren - disse.
Loren olhou para ela com o rosto crispado.
- Sim, Alicia - disse numa voz apagada. - Realmente, só fiz disparates. De todas as maneiras.
- Não, Loren - respondeu. - Não é disso que estou a falar. Foi o Max que telefonou.
- Max! - repetiu sombrio.
- Sim! - disse, começando a mostrar-se excitada. - Max. O marido da nossa filha. Telefonou da Suíça. A Betsy acaba de ter um rapaz! Estão ambos óptimos!
- De repente, a voz dela encheu-se de espanto. - Meu Deus, Loren, já viste? Somos avós!
E, de repente também, tornaram-se novamente uma família. Todos a beijarem-se e a chorar e a rir.
Saí e fui para o meu gabinete. Por momentos, tinha começado a pensar que o mundo inteiro era italiano.
Meia hora mais tarde, abriu-se a porta do meu gabinete e Número Um entrou, empurrando a sua cadeira. Fechou a porta e ficou a olhar para mim.
Olhei para ele.
Passados momentos, falou.
- Fodeste tudo - disse. - Estás despedido!
- Já sabia - disse. - Senti, logo de manhã, que isto ia acontecer. - Tirei o meu pedido de demissão da algibeira interior do casaco e levantei-me
da cadeira. Aproximei-me dele e entreguei-lha.
Ele abriu-a e leu-a rapidamente e, depois, olhou-me com ar astuto.
- Caramba, tu já sabias!
Fiz que sim com a cabeça.
- Sabes porquê?
- Também sei - respondi.
- Diz-me.
- Eu não devia ter ganho - disse. - Sei muito bem que o senhor não queria que eu ganhasse.
- É isso mesmo - concordou, sombrio. - Perdi um filho e não queria perder o Loren. Mas, se sabias que devias deixá-lo ganhar, porque é que não deixaste?
- Porque não podia de maneira nenhuma - disse. - Mesmo que tentasse, não podia ceder-lhe. Empenhei-me demasiado na corrida.
- Sem rancor?
- Sem rancor.
Olhou outra vez para o meu rosto.
- Não te saíste lá muito mal. Essas acções que tu tens devem valer alguns doze milhões para o ano, quando nos tornarmos numa sociedade anónima.
- Com certeza - respondi. Meti a mão na algibeira.
- Tenho uma coisa sua. - Pus-lhe na mão os botões de punho de ouro com o Sundancer.
Olhou para eles.
- Também me fodeste com o Sundancer - disse. - Porque é que mudaste o nome do Betsy JetStar outra vez para Sundancer?
- Porque foi, durante muitos anos, um carro bom de mais para se deixar desaparecer assim.
Ficou um momento a pensar. Depois, fez que sim com a cabeça.
- Talvez tenhas razão.
Cuidadosamente tirou os botões de punho da camisa e substituiu-os pelos Sundancers. Deixou cair os outros na algibeira do casaco. Depois, levantou novamente os olhos
para mim.
- Talvez tenhas razão - repetiu.Segurei a porta para ele passar com a cadeira e, depois, fechei-a, voltei para trás e pus-me a despejar a secretária.
Cindy estava à porta quando entrei no apartamento.
- Liguei a tua Jacuzzi portátil e enchi a banheira com o teu banho de espuma preferido.
Beijei-lhe a ponta do nariz.
- Bem preciso dele.
Seguiu-me através do apartamento até à casa de banho e ficou ali a receber a roupa que eu ia tirando, enquanto me despia.
- Ouvi na rádio, a abrir as notícias do meio-dia
- Aqui é assim. Notícias de automóveis circulam depressa.
Pus as mãos na parede para me apoiar. Meter-me na banheira não ia ser fácil, com as costelas como eu tinha.
- Vais ter que me ajudar.
Ela pôs-me o braço em volta dos ombros e eu comecei a deixar descair o corpo para dentro da banheira.
- Tens umas quantas chamadas - disse.
- Alguma coisa importante? - perguntei enquanto o meu traseiro tocava na superfície da água.
- Nadinha - disse com desenvoltura. - Só Iacocca da Ford, Cole da General Motors...
- Vai à merda...-disse, olhando para ela.
- É verdade - disse com indignação. Tirou o braço com que estava a amparar-me as costas.
Acabei de me meter na água como um cepo.
- Céus - berrei.
Ela saiu da casa de banho e voltou logo a seguir com um molho de mensagens telefónicas para mim.
- Vês! Estava a falar verdade. Foi também a Chrysler, a American Motors. Até a Fiat italiana!
Liguei a Jacuzzi? A água começou a debater-se e a cantar a sua canção calmante. Encostei a cabeça à parede que ficava por trás da banheira e soltei um suspiro. Sentia-me
bem.
- Que é que queres que eu faça com isto? - perguntou, sacudindo o molho de recados para eu ver.
- Deixa-os em cima da mesa. Não estou assim tão entusiasmado com a ideia de recomeçar já a trabalhar. Isso ia interferir com o meu estatuto de homem
rico.
A campainha da porta tocou.
- Vai ver quem é - disse.
Saiu sacudindo a cabeça e voltou num momento, um tanto mais comedida.
- É o Número Um que quer falar contigo.
Olhei para ela.
- Manda-o entrar.
- Para aqui? - perguntou.
- Para onde é que havia de ser? - retorqui. - Não pensas que consigo pôr-me fora desta banheira em menos de meia hora, pois não?
A rapariga saiu da casa de banho e voltou, empurrando a cadeira de rodas. Depois foi-se outra vez embora.
- Céus que calor que está aqui dentro - disse, seguindo-a com o olhar. - Quem é a boneca?
- Cindy - vi na cara dele que tinha ficado na mesma. - Sabe, o piloto de ensaio.
- Não a reconheci - disse. - Parece diferente.
- Acho que, entretanto, descobriu os vestidos - disse.
- Pelo amor de Deus, precisas de ter essa porcaria ligada? - gritou. - Estou a dar cabo dos pulmões a berrar por causa desse barulho.
Carreguei no interruptor. O som extinguiu-se.
- Está melhor assim?
- Muito melhor. - Olhou para a minha cara. - Tu também estás diferente.
Sorri.
- Tenho a minha cara de volta.
- Ia a caminho do aeroporto quando me lembrei de que tinha uma coisa tua - disse.-Parei para ta entregar.
- Ah sim?-Não me conseguia lembrar de nada meu que ele pudesse ter em seu poder.
Meteu a mão na algibeira e tirou de lá uma caixinha de joalharia. Abriu-a e deu-ma.
Eram uns botões de punho de platina. O Betsy Silver Sprite. Fiquei a olhar para eles. Quem quer que fosse que os tinha feito não tinha esquecido um único pormenor.
Eram lindos. E eu que nunca uso botões de punho. Empurrei-os em direcção a ele.
- Não são meus, são seus.
Não lhes tocou.
- São nossos - disse.-Mas são mais teus do que meus. Fica tu com eles!
Puxou a cadeira para trás, em direcção à porta e voltou-a.
- Menina!-gritou. - Ajude-me a sair daqui!
Sem deixar de olhar para os minúsculos Silver Sprite liguei novamente a Jacuzzi? Eram lindos. Ia ter que comprar camisas com punhos à francesa para os poder usar.
Saí da banheira, enrolando a toalha à volta da cintura, sempre a olhar para os Silver Sprite.
- Cindy, olha para isto.
- São bonitos - disse. Olhou para mim.-E tu também és. Sabes que eu nunca gostei muito da tua outra cara?
- Nem eu - respondi.
- Como é que te sentes? - Nos olhos dela havia aquela expressão familiar, tão bonita.
- Com um tesão dos diabos - disse, pegando-lhe na mão.-Vem para o quarto, vamos foder.
- Okay - disse ela.
Entrámos no quarto. Olhei em volta.
- Há qualquer coisa de diferente - disse, enquanto ela se contorcia para sair do vestido. De repente, percebi. - Onde é que escondeste a estereofonia?
Debaixo da cama?
- Deitei isso tudo fora - disse, caminhando nua para os meus braços. - Toda a gente, até mesmo uma rapariga, tem que crescer, mais tarde ou mais cedo.
- Não é assim um bocado repentino? - perguntei, chupando- -lhe o lóbulo da orelha.
- Nem por isso - respondeu. - Já tenho vinte e quatro anos.
- Bastante velha - disse, passando para o pescoço.
- É verdade - respondeu. De repente, voltou a cabeça e olhou-me nos olhos. - Além disso, não precisamos de estereofonia.
- Tens a certeza? - perguntei, beijando-a ao de leve nos lábios.
Segurou-me a cara com as mãos. Os olhos dela eram escuros
e grandes.
- Absoluta - disse. - Amo-te.
Fiquei um momento calado, depois compreendi.
- E eu também te amo.
Depois beijámo-nos. Ela tinha toda a razão. Não precisávamos de estereofonia.
Ambos ouvimos a música.
Harold Robbins
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