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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CORROMPIDOS / Ton Adalclê
CORROMPIDOS / Ton Adalclê

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cinzas foi o que sobrou no dia que as primeiras esferas de fogo jorraram das nuvens. Era uma tarde tranquila e estava propensa a muita diversão. O mar carioca estava magnífico, o sol iluminava os rostos com uma quentura adequada. Até os gritos mudarem o cenário e o chão começar a tremer.
As ondas começaram a varrer muito além da praia, arrastando os veículos da rodovia. O ônibus em que eu estava com meus colegas fora um dos atingidos, e meu melhor amigo foi levado para sempre. Nunca esquecerei seu rosto estampado com um choro incrédulo. Nem imaginava que meus berros podiam ser audíveis de tamanha distância, como no dito momento.
Muito menos previa que meu pai fosse se converter tão rapidamente à nova ordem que surgia em meu Brasil.
As redes sociais? Não mais eram utilizadas, já que a própria Internet fora destruída. E o fim da rede televisiva estava próximo, era o que indicava o único canal político disponível. Havia ordens sendo declaradas. Numerosos boatos causavam medo. Como confiar na verdade dos outros, se nem mesmo dentro de casa já não conseguia ouvir meus pais sem ignorá-los indiscretamente?
Plantar era inútil, e uma atividade pouco conhecida por nós. Não se colheria nada, pois o solo terrestre fora danificado. As árvores estavam murchando numa velocidade chocante. Os animais sumiram, cães e gatos não se viam mais pelas ruas. Assim como também se esgotava o ânimo dos poucos que sobreviveram às grandes catástrofes originadas após as primeiras explosões.
Vieram mais desastres depois. As noites tornaram-se inseguras. Nada trazia mais proteção alguma. Nem mesmo os pensamentos eram confiáveis. O planeta Terra estava enraivecido com aqueles golpes, e nos mostrava suas reações sem cortesia também.
O planeta ficou doente, era a palavra que os professores e pais ditavam para suas crianças. Em uma parte esférica ele combatia uma intensa e interminável febre, na outra ele tossia com um resfriado chuvoso dos mais perigosos. Seu sentido de rotação estava debilitado. Poucos sabiam dar uma explicação exata do porquê de recebermos aqueles presentinhos explosivos. Eu e meu pai partilhávamos nossas próprias conspirações, de modo bem discreto.
O sol ficara grudado no céu, empacado numa interminável tarde. E a cada dia seguinte, incansavelmente iluminado, as pessoas começaram a dar crédito para as palavras de um desconhecido que gritava através das tevês que restaram. E nos muitos panfletos que eram jogados dos helicópteros pelas cidades, junto aos poucos grãos que com muito esforço se transformavam em comida.
Aqueles anúncios, tão bem coloridos em papel, tinham uma utilidade sobre a minha vista: eles preenchiam os extensos buracos das ruas rachadas.
Eu sei que tinha uma garota, minha primeira namorada, e ela chamava-se Evelyn. Ela e sua família vieram morar em minha casa no período apocalíptico. Sua residência estava alagada.
— Johan, você deve se alistar também, o quanto antes melhor — foi a voz de meu pai, um vendedor de peças de automóveis, a única pessoa no mundo a quem eu confiava meus pensamentos sem hesitação. Era ele quem demandava aquelas cruéis palavras.
— Nós iremos juntos — informavam as palavras repetidas de minha companheira, três dias depois da conversa com meu pai. Nós tínhamos quinze anos. Estávamos revirando os destroços de um armazém que os terremotos da semana passada haviam destruído. Buscávamos comida e privacidade para ditar nossos próprios e bobos planos. — Você sabe, como eu disse em nosso último dia na escola, aqui não existe mais salvação.
Eu a fitei por um tempo muito longo. Se ela viria junto, minha coragem poderia vencer o medo.
— Daremos um jeito de ficarmos bem no outro mundo. Mas não se atrase amanhã, Johan. Não me esqueça.
— Eu só quero ficar ao seu lado —respondi-lhe.
— Eu quero o mesmo, por isso sei que seu pai está certo, e os meus errados. Nós devemos nos alistar juntos.
Deixamos as catástrofes naturais de nosso planeta nascente para aceitarmos o estranho. O desconhecido lar. O planeta Marte, reformado e mais seguro que o nosso, em alguns principais aspectos.Foi a coisa mais difícil que fiz, ainda consigo ter essa certeza.
Muito adiante eu encararia os cabelos elétricos e azulados de um pequeno ser enigmático a minha frente, uma criança azul, enquanto ela respondia com cautela. Não precisávamos trocar tantas palavras, elas já não pareciam tão necessárias no momento. A maior das decisões presentes havia sido determinada pelo novo líder humano, Heiden, e era clara como o brilho das estrelas: destruir o reino Escarla.
— Sabe, existem planetas com regiões pacifistas onde todos os seres residentes convivem em harmonia, sem que haja nenhuma necessidade imperiosa.
Deixei as palavras alienígenas bailarem por minha cabeça sem lhes pôr tanto sentido, pois já sabia ao que estava se referindo. Em nosso antigo mundo as coisas eram aparentemente da maneira que disse, com política, leis, escolas e sorrisos. Mesmo existindo o contraste da pobreza e miséria.
A alegria nunca foi devidamente distribuída em fôrmas iguais, e nos conformamos com isso.
Entendia também que, às vezes, agimos impulsionados por diferentes sensações. Mas em meu caso pode não ter sido por um surto qualquer. Foi uma motivação completa. Uma vida inteira. Escolhas erradas, passos firmes, imposições e ordens.
Na minha mente estavam vociferando ordens. Do lado de fora dela também. Para quem deveria dar atenção?
Rezava para que o dia da partida não chegasse, para que tudo não passasse apenas de intensos sonhos ruins, como os pesadelos que se tornaram frequentes. Mas era realidade. Intrigado com o movimento atual e decepcionado com meu pai, eu atendi àquela forte e instigante voz do recente representante de minha tola espécie.
As poucas naves espaciais causaram surpresa devido à comodidade e elegância na viagem, o que resultou em murmúrios suspeitos entre os grupos dos selecionados, inclusive vindos de mim.
Agarrei-me ao primeiro feixe: amigos, família. Perdi todos.
Abracei o futuro ao entrar naquela nave, e agora adentro por uma estranha sala de treinamento que nos fora resignada. Nenhum dos que viajaram ao meu lado teve a chance de vislumbrar o céu do novo planeta ainda.
— Sejam bem vindos. Eu sou Doroth, a encarregada das aulas. Hoje vocês irão se submeter ao primeiro passo do treinamento. Passarão por um processo que chamamos... — Uma mulher magra, de olhos secos e voz macia, começa nos instruindo. — Que chamamos de Checagem de Mentes.
— Também está com medo? — sou distraído por um sussurro ao lado. É uma garota menor. Estamos todos em fileiras desordenadas.
— Sou Síbian — me diz. Ela possui um rosto medroso e branquelo, mapeado por sardas. A calmaria de sua voz lembra-me a de outra garota, uma que eu deixei para trás por culpa de John Stanford, meu pai. Lembra-me Evelyn.
— Johan — eu murmuro de volta, mas minha voz é abafada por gritos alheios. Intensas luzes fosforescentes nos banham ao declinar lentamente do teto e então somos eletrocutados em equipe.

 


 


JOHAN

Zainos

Meu relógio de pulso parou as vinte e duas horas e alguns minutos. Era a única companhia agradável que me restava, um presente vindo de um lugar distante. Tiro-o e o deixo na grama. Não terá mais utilidade além da estética. Espero não retornar por este caminho.

O céu acima de mim está obscurecido. Nuvens negras fazem a ronda e relâmpagos escondem-se por elas, transformando a noite em dia por meio segundo. Estou cismado, pois tudo à minha volta é desconfiável nesta noite. Na verdade esse tipo de lugar sempre é estranho para um humano.

Os gases do reformado planeta Marte tornaram-se propícios para a sobrevivência humana com a ajuda da Nova Ciência. Seu hemisfério sul fora florestado desde que encontraram água em sua superfície e um reino fora criado ali mesmo: Escarla. Para este domínio foi convocado um líder humano, Trístan, o rei louco.

O vento farfalha na copa das árvores da floresta, quebrando os galhos de cor odiosa. A grama alaranjada insiste em fazer barulho sob meus pés, não importa o quão silencioso eu corra. Alguns sinais parecem querer chamar a minha atenção, já que estou afrontando terras inimigas.

Ódio por este lugar alonga-se em meu discernimento interno.

A mando de Trístan, cientistas conseguiram criar um extenso oceano que recebeu um nome semelhante ao planeta: o Escarlate. Suas águas escaldantes e ácidas são de quase impossível navegação. Poucos sabem o que foi posto ali dentro. As florestas não escaparam de sua perversidade: circundando todo o reino como um ninho, perderam seu tom verde natural para resultarem em imensas plantações de árvores avermelhadas artificialmente. Seus frutos alaranjados e venenosos serviam mais como enfeite ou, para os mais desavisados, uma armadilha, dado a seus toques enganosos.

E então aconteceram as primeiras revoltas, geradoras de muitas perdas. Refiro-me aqui à perda de humanos.

Aqueles que tentaram fugir e não obtiveram sucesso tiveram as memórias arruinadas e os corpos modificados. Transformaram-se nos temidos Zainos, criaturas de pele escamosa, asas enegrecidas e olhos banhados em fogo. Deixaram de ser humanos a partir daquele momento. Não há volta nem cura para essa modificação. Trata-se de uma nova espécie fabricada para obedecer exclusivamente os comandos do rei.

Houve também os que por livre vontade se entregaram, os quais são chamados de Corrompidos. Estes passaram por uma operação diferente: símbolos foram tatuados em seus rostos devido à Checagem de Mentes, processo feito por cientistas que consiste em alterar as memórias da vida do indivíduo, de modo que as ordens do regime aqui imposto sejam seguidas a risca e faça esquecer o passado ou qualquer coisa que represente uma ameaça ao reino.

Infelizmente, estes que foram marcados podem chegar a ser tão cruéis quanto um Zaino, que comumente é uma espécie mais traiçoeira.

Ouço os sons novamente. Desejo não ouvi-los tão perto. É um rastejar rumoroso. São botes e asas trepidando ao mesmo tempo.

Forço-me a acelerar as passadas: ainda mais longas e ágeis. Meus pés e braços provavelmente estão cheios de cortes, sangrando, durante meu último salto sobre o muro do reino de Escarla. Mas não é hora para dar importância à dor física ou qualquer outra. Preciso de um lugar seguro e só deve existir um pela região.

À medida que adentro a grande floresta, escuto mais sons, provavelmente outros tipos de predadores querendo me matar. Tento não pensar nas Caçadas, nos grupos montados por Corrompidos e nos Zainos em busca de humanos fujões, mas é difícil.

Ideias, valores e guerras tumultuam-se em minha mente na correria.

Um pequeno grupo de pessoas sobressaiu-se contra os ímpetos das terríveis capturas. E esse era apenas o primeiro desafio, pois logo em seguida elas deveriam sobreviver em um lugar totalmente inóspito e perigoso. Seus integrantes foram apelidados de Filhos do Esgoto, devido à primeira rebelião ser orquestrada e ter eclodido dentro dos próprios esgotos do reino. São os humanos natos, os procurados. Aqueles que lutam por um período futuro onde possam conseguir de volta pelo menos uma parte da vida que lhes foi tão duramente arrancada ao saírem de suas origens terrestres. Eles mantêm seus corpos intactos, embora seus pensamentos estejam em ruínas e a sanidade seja uma característica trêmula e amedrontada, equilibrando-se com cautela nesse beirado de existência.

É nesse grupo que estou fixado.

Sabe-se que para esta pequena e última classe foi eleito um líder também: Heiden, o humano das ideias pacifistas.

Resistir para quê? As respostas chegam simples, ácidas. Ouço mentalmente Heiden impor algumas verdades perante nós, os Filhos do Esgoto.

— Entregar-se seria desonroso para com todos os nossos companheiros de luta. Falhar não é uma opção!

— Esteja lá — sussurro este pedido aos ares frios.

Primeiro chega uma garoa gélida, que posteriormente evolui para uma chuva calorosa. As gotas atingem-me como fuzis. Alcanço uma parte de solo antes seca. O calor destila-se pelos meus dedos dos pés. Não há nenhum som mais amedrontador do que o de minha respiração. Torna-se difícil segurar o ar dentro dos pulmões, ele precisa urgentemente permanecer na mesma adrenalina, mesmo quando eu finco todo o corpo na areia fina.

Não consigo mais prosseguir na corrida e felizmente sei que na verdade já não é mais necessário. O local é este. Relaxo. A chuva suaviza-se de acordo com a minha respiração, posso jurar que elas estão sincronizadas. O pequeno corte entre as árvores logo à minha frente liberta a visão para um amplo espaço de céu acima.

Ajoelho-me e jogo um punhado de terra molhada sobre minhas costas, simplesmente para senti-las salpicarem. Os meus médios cabelos molhados se emaranham em minha testa. Não foi apenas por causa do local, mas algo me indica que estou mais leve, seguro de mim. Não tarda e finalmente encontro esse algo que me tranquiliza. Trata-se de um objeto enterrado na areia.

Deito-me sobre o chão de maneira que meus olhos vislumbrem o esmaecimento das nuvens acima. Aqui e ali uma gota de garoa toca meu rosto. A água é quente.

Eu só consigo ouvir o farfalhar das folhagens vermelhas e isso de uma hora para outra me ocasiona certa angústia. Silêncio... Essa floresta não é tão calma assim e meus perseguidores estão à solta. Eles sempre estão.

— Estou pronto — falo baixinho.

Não sopra sequer uma brisa no instante para abafar minhas palavras. Não espero ouvir resposta, mas apenas uma escapatória, como da última vez.

Minhas esperanças nesse item precioso foram fortificadas com base numa experiência anterior. Agora, mais uma vez, preciso da dita pedra de mutação.

Meu corpo esquelético de dezessete anos tem se mantido com poucos alimentos que encontro, o que não promove tanta energia assim.

Mas sei que fui bem treinado a fingir, saber desempenhar um bom papel, a cumprir missões. Um dos motivos pelos quais os Escarlanos, que são quaisquer adeptos do regime do reino Escarla, podem incitar os cientistas Corrompidos a nos investigar, é a suspeita de nossas intenções.

Há muito estou marcado como desconfiável.

Consegui êxito nos furtos até agora, relembrando-me continuamente para manter o máximo de cuidado, pois outros não foram apossados de tal sorte. Outros receberam algo pior que a morte.

Minhas mãos seguem para o pequeno objeto que fora enterrado na areia. Sua ponta me espeta o dedo. Um diamante violáceo. Um furto de um velho companheiro.

Vislumbro o cristal sob a luz de uma lua, que me lança um lampejo sereno sobre o rosto ao contrastar com o satélite. Não quero parar de fitá-lo, pois é realmente uma das poucas coisas belas que os tais Cientistas Corrompidos produzem.

No céu, sombras me observam nervosas, famintas. Relembro rapidamente do Projeto Zaino que não teve grande sucesso no início. Humanos foram transformados em bestas mudas, letais e leais, mas aos poucos todo esse controle foi decaindo. Algum recurso falhou. Muitas das transformações não saíam mais como o esperado. Esses espécimes resultaram em Zainos deformados, se é que existe um padrão de normalidade nisso. Ao serem considerados impróprios para o uso, são transportados e expulsos para os lixões distantes, deixados para morrer.

Porém eles não morrem tão facilmente, Zainos deformados são como os ratos do antigo e atualmente inabitável planeta Terra. Resistentes. E essa parte abandonada e selvagem começou a se reproduzir, colonizando áreas diversas. Quando seus filhotes crescem e suas asas ficam fortes o bastante para aguentar o próprio peso, tornam-se automaticamente mais um dos perigos que rondam os céus em qualquer horário.

Ainda olhando para o manto celeste e preocupado com aquelas criaturas, engulo o diamante, que se esfarela antes de chegar ao meu estômago. Sou instantaneamente tomado por um efeito poderoso, enérgico. Meus músculos se contraem e meu corpo esquenta. Meus olhos lacrimejaram até ficarem focalizados como os de um Zaino Voador Selvagem, dando-me uma ótima visão noturna.

Levanto-me em um salto rápido. Minhas roupas aos frangalhos só melhoram a imagem de fraqueza que eu pretendo demonstrar. Nada aparentemente foi modificado ou tonificado, mas a energia que corre em minhas veias é algo extremamente vigoroso. É a minha segunda Conversão e para minha alegria sobrevivi ao ácido.

Já não preciso me esconder.

— Achei que estavam com medo de dar as caras — implico em direção à negritude imposta pela noite.

— Estávamos observando você correr — retruca a Corrompida Síbian. Não noto traços de ironia em sua voz, mas ouço sibilos ecoando pela escuridão. Deve ser essa a forma dos outros gargalharem e possuem um péssimo tipo de humor, percebo.

Enxergo os olhares brilhantes como fogo aproximando-se e ganhando formas.

É difícil diferenciar tantos Zainos Domesticados — guardas treinados para proteger o reino — da vegetação. Eles se camuflam facilmente e movem-se como o vento. Porém meus reflexos agora também estão à altura disso.

Decido atacar, dando um soco lateral em uma forma animalesca à esquerda. Em seguida derrubo três Corrompidos com um tiro de choque da velha arma roubada que carrego. Ataco outro Zaino facilmente e rasgo suas asas pegajosas sem piedade. Penso nos abortos selvagens que irão se alimentar deste aqui e sorrio, mas logo retiro o pensamento.

No confronto, de repente vejo aparecer uma forma humana sobressaindo-se contra os Corrompidos. A felicidade se forma em meu rosto enferrujado. A diferença esfomeada de um Filho do Esgoto é algo notável. Estamos travando a mesma luta agora, e ele está do meu lado.

Salto sobre uma das árvores e todas suas folhas tingem-se de vermelho brilhoso. A cor odiosa se espalha de árvore em árvore como fogo. É sua maneira de chamar a atenção para o local, uma espécie de alarme.

Ergo os braços com uma arma em cada punho, a antiga e uma nova aquisição. Quase não preciso de mira, a quantidade de combatentes é monstruosa. Atinjo facilmente cerca de vinte a minha frente.

Volto ao chão novamente, então desfiro um golpe rasteiro que desequilibra um dos Corrompidos, fazendo-o espatifar-se em gás ao ser atingido por um tiro de energia errante. O disparo veio do outro Filho do Esgoto.

Noto que o outro humano equilibrava uma arma letal, diferente das que tenho conseguido que só produzem choques leves. Sorrio em aprovação e saio de perto do local por experiência, pois a substância tóxica gerada na morte de um Escarlano pode matar lentamente um humano comum.

Mas logo me recordo também que no momento estou sob o efeito da mutação, isso não me atingiria.

Derrubo todos os Corrompidos por onde passo com golpes em locais estratégicos. Gosto de deixar suas expressões faciais pouco admiráveis, além das horrendas tatuagens que já exibem.

Então, apanho uma arma largada ao chão. Ela lembra-me uma espingarda de bom calibre, mas bem sofisticada, moderna. Aciono-a e começo a atirar aleatoriamente. A arma solta choques temporários e consigo atingir bastantes oponentes, até mais do que eu pretendia. Parece ser o suficiente, o bando alvejado se contorce de dor no chão.

E sei que nada dessas tarefas seriam tão fáceis se eu não estivesse sob o efeito do cristal, pois ao ser atingido diversas vezes durante este combate, não cambaleei um só segundo.

De repente eu paro de sentir os movimentos. Tudo fica imóvel ao redor.

— Ele a consumiu! — berra um Corrompido.

Vejo que fui cercado por uns trinta Escarlanos, dentre eles Zainos domesticados e poucos Corrompidos. Ouço ruídos distantes, provavelmente mais deles logo chegarão.

— Não é isso que queremos propor, Filho do Esgoto — diz a única Corrompida mulher, com voz calma. Síbian é a capitã das tropas em Escarla, mas aqui se encontra com apenas uns poucos servos. Talvez achasse que seria um caso rápido. Confesso que pensei em facilitar para ela.

— Parece que você possui medo de me enfrentar, filhote de papagaio —, provoco.

Meu insulto nada mais passa de uma lembrança antiga. Meu pai uma vez falou-me sobre esse tal pássaro com penas verdes que tagarelava e um dia existiu na Terra. E, de alguma maneira, assemelho isso a Síbian, sempre a porta-voz do grupo, sempre com aquela cor esquisita nas marcas em formato de várias luas minguantes amontoadas pelo rosto.

Então percebo que insultos não são meu forte. E que algumas de minhas memórias estão entrando em contradição.

Como... Como se chamava meu pai?

Síbian parecia já estar de partida sobre seu bote mecanizado, mas foi só uma rápida impressão. Mentes corrompidas seguem ordens até destruírem a ameaça ou a si próprias, como muitas vezes afirmou meu líder Heiden.

Na maior parte das vezes responde-me com algo negativo quando penso sobre me entregar. E isso não é aconselhável. Pensar deixa-me vagando por guerras, entretém-me em um tempo mais horrendo que o atual.

Como eles foram capazes? Como se deixaram corromper? Heiden, nosso líder, está totalmente certo em julgá-los de forma rude.

— Nos veremos qualquer dia desses — cuspo para Síbian. — E já tenho desgosto disso.

Fujo antes que mais cheguem. Antes que a luta se torne uma derrota, como foi para aquele único humano que aparecera para combater ao meu lado e que agora está sendo carregado por guardas Zainos. Desapareço em uma rapidez alvoroçada, aproveitando meus restantes efeitos da agilidade física.

Na correria vou assimilando que nenhum ser me atacou no combate, eles somente se defendiam. Essa foi uma situação bem estranha. Todavia Síbian é uma Corrompida maligna, preciso me lembrar disso.

Heiden nos ensinou esta verdadeira lição de vida: Corrompidos, juntamente com guardas Zainos, sempre estarão dispostos a nos enganar. A nos matar.

De súbito, meu corpo todo estremece. É o poder daquele medicamento em forma de cristal se esvaindo. É como se eu tivesse passado três dias sem dormir e comer. E acredite, já tive a experiência por tantas vezes que nem ouso enumerar.

Novamente sinto mais ferimentos nos pés.

Chego ao mar Escarlate e vislumbro rochas dentro dele. Bolhas anunciam os perigos escondidos em seu interior. A areia no chão possui uma quentura questionável. Meu pai costumava chamar esse mar de vulcão. Ele me explicou o que de fato era o dito vulcão, mas eu podia apenas imaginar.

Quais suas semelhanças com um vulcão, Johan? Perguntava-me.

Respondia-lhe sempre com perguntas que nunca o agradavam.

Heiden explicou-nos muito bem sobre as características desse oceano para que não ficássemos criando ideias fantasiosas como as de meu pai traidor.

E então me perco pensando no porquê de ele ter sentido tanto medo, de ter se entregado, de se corromper.

Dizem que um vislumbre para esse mar provoca pensamentos atormentadores e começo a acreditar que é verdade. Mas honestamente, eu já tenho isso sempre.

— Sentindo-se solitário?

Viro na direção da voz desconhecida.

— Sou a Kimber.

E, no momento seguinte, apago.


KIMBER

Furtos

A fita que envolve meu largo cabelo de tom avermelhado desprende-se, deixando-o intensamente ao vento.

Estou correndo a várias milhas agora, por entre os imensos arbustos, com o pequeno filhote alienígena no colo. Seus cabelos azulados estão soltando faíscas de eletricidade em mim quando o tomo de mau jeito.


Aberração! Esconjuro-o internamente.

E logo Jorkwill me vem aos pensamentos. Meu Jorkwill, o cara alto e forte, com rosto duro e um olhar que me deixa desvendar o garoto que ainda não cresceu ali dentro. O garoto que consigo amar nessa insana vida, nesse louco tempo. O garoto que fora capturado quando finalmente nos encontramos, quando tudo pareceu se acalmar por um instante e a vida recomeçou a fazer alguma espécie de sentido.

E evaporou-se.

Tropeço e quase caio sobre uma fenda ao chão, isso faz com que arraste os sentimentos melancólicos para longe numa dita fração.

Não ouço mais nenhum dos rosnados atrás. Meus rastros estão quase imperceptíveis devido à minha nova velocidade. A grama parou de soltar sua delatora luminosidade.

Já devem ter descoberto que o roubei, estimo.

Não há salvação para minha raça caso não faça isso, é a missão que o próprio líder Heiden me destinara. Poucos recebem missões importantes assim, e diretamente por ele. Espero ganhar uma alimentação melhor de início, e esquecer aquele arroz acinzentado que nada melhora a fome, tampouco fortalece o corpo.

Tenho que chegar ao oceano logo, senão serei a refeição para alguém, especulo ao dar passadas largas.

Tenho que chegar ao oceano logo, pois Jorkwill já deve estar lá do outro lado me esperando. Já deve ter sido salvo. Já deve estar sentindo minha falta. Já se lembra de mim, o homem dos olhos marotos.

Esteja lá. Esteja lá. Esteja mesmo lá.

Os céus não estão seguros, criaturas malignas, Zainos selvagens e domesticados o habitam. Estou escondida perante as folhas vermelhas da vegetação enquanto corro, mas logo terei de partir por um rumo diferente, aberto.

Meu longo vestido, que antes fora branco, está sujo de sangue e rasgado por várias partes, formando diferentes pontas que o vento agita para os lados. Ganhei cortes na pele devido aos galhos que empecilharam meu caminho. Não é o momento de reclamar também, ainda existem chances de ser pega. Uma única parada e pode ser meu fim.

Tento focar minha mente apenas no trajeto irregular que sigo. A respiração do pequeno alienígena está ofegante em meu colo. Sacudo-o em irritação e ganho pequenas descargas elétricas nas partes onde seus cabelos azuis tocam minha pele nua. Praguejo novamente.

À frente já consigo ouvir as ondas violentas do mar.

E paro.

O que vejo me desanima, e anima, e decepciona.

— Não precisa fazer isso, Kib, se entregue — é a voz da pessoa que mais amo nesse planeta. Da pessoa que não está mais do meu lado de raciocínio. A voz do Corrompido. A voz do meu Jorkwill.

— Vamos ficar juntos, eu e você. Vamos? — ele espera.

Como ele espera.

Como ele espera que eu possa acreditar na falsidade de suas palavras? Como ele acha que eu poderia aceitar suas novas condições e trair minha própria espécie, da forma que está fazendo agora?

Lembro muito bem do dia em que fomos pegos por uma garota suspeita que, fingindo ser uma espécie de ajuda, nos levara para uma torre ao centro do reino. Uma prisão nos aguardava na torre juntamente com um Cientista Escarlano. Lembro-me dos tiros e de estar sobre os efeitos restantes de um cristal de mutação, e que só por isso consegui ficar intacta e com disposição para escapar mais uma vez. Lembro-me de tê-lo deixado para trás. Ele, que ficou com metade de minha coragem naquela torre de traidores. Ele, o Corrompido que está me encarando agora com um olhar penoso, tentando fazer seus joguinhos enganadores, mas dessa vez não para ganhar beijos ou um sorriso.

Jorkwill não tem culpa, eu sei. Foi pego. Sua mente foi alterada por Escarlanos.

Em sua mente não existe mais a Kib. É um truque, garota tonta. Não caia nessa, Kib. Não acredite. Ele não está falando a verdade agora. Não está. Você sabe que ele não está falando a verdade. Você sabe.

— Saia! Saia! — berro em seu rumo.

Jorkwill encontra-se só. O que poderia isso significar? Em suas vestes modernas e prateadas, há bolsos com armas escondidas. Sei que há.

Mas também estou armada, e usando desse artifício no dito momento.

Miro a arma na testa do cara que eu amo. As lágrimas já estão atirando-se de mim.

Não posso fazer isso.

Atire.

Kimber Hills, este é o Jorkwill, o garoto que te beijou na sala de treinamento quando você mal sabia segurar uma arma. O homem raivoso que você segurou o rosto quando viu desabar seus problemas mais bobos e os mais traiçoeiros. O homem que você ama partindo de cada nervo que há em seu ser.

— Kib, por favor. Tudo vai ser diferente se você vier comigo. Não é do jeito que você... — o tiro o deixa contorcendo-se no chão. Acionei o dispositivo de choque leve.

A criança alienígena ativa seus cabelos de choque azul com alta frequência em meu colo. Aperto-a contra o débil vestido sujo, onde não consigo sentir seu ataque infantil.

A criança azul chora, e suas lágrimas são como botões cristalizados. Não estou vendo seu choro. E de maneira alguma eu me importaria, meu choro é ainda mais opressor.

Sua raça é a causadora disso tudo. Estou logo o acusando das mais adversas catástrofes.

Zainos selvagens cercam o céu e sou lembrada de que não posso ficar parada. De que isso é um erro. De que Jorkwill sobreviverá, e hoje não poderei levá-lo. Terei de deixá-lo para trás mais uma vez. Por que as coisas precisam ser tão difíceis?

Sirenes distantes são ativadas e ouço os sons da perseguição retornando.

Fui detectada.

Corro o mais depressa que posso e salto antes que as vespas enormes, ou o que quer que esteja pela região me notem no mar.

O choque do mergulho estilhaça minhas lembranças. Dou braçadas contra a água vermelha e nado rumo à famosa base militar Esgoto na pequena ilha Terra.

O ser em meu colo começa a afogar-se quando decido submergir no mar. Ele não está imune ao ácido das águas como eu, já que não consumiu nenhum produto químico apropriado, mas ainda assim sua pele mantém-se num bronzeamento natural. Acho isso estranho, diferente do que me foi tão sabiamente explicado. Imagino algumas coisas e logo esvaeço estes pensamentos.

Relembro o que foi dito de início na minha missão, que não precisariam dele vivo, mas de seu DNA.

Isso é fácil! Parabenizo-me.

Ignoro a morte lenta do ser em meu colo e me ocupo em desempenhar o nado ao qual fui tão bem treinada.

Começo a gritar no segundo seguinte.

Correntes envolvem minhas pernas e me erguem pelo ar. A água impregnada em todo meu corpo é secada pelo segundo feixe de luz morna. Não há dor no momento.

E não deve haver perdão para meu ato.

Eles inventaram coisas piores que a morte! Dita a voz de Heiden em minha mente.

Estou rodopiando no ar. Deixei cair o furto de minhas mãos. A missão.

Capturada, derrotada, perdida. Meu cérebro logo será modificado.

Porque os gritos não estão saindo de meus lábios?

Quero salvar-me, persiste o pensamento. Quero sair ilesa. Preciso contar tudo o que sei aos Pesquisadores da base...

— Leve logo ela para a Sala Estrelar —, ouço a voz do garoto, do Corrompido que um dia dissera para mim, numa vida sem todas estas modificações e planetas novos, a seguinte frase: “Kimber, você e eu seremos felizes juntos. Eu prometo”.

Você prometeu. Você não cumpriu isso, querido Jorkwill. Você não conseguiu. Você...

Perco os sentidos quando começo a imaginar o que está por vir.


JOHAN

Refugiados

O tempo nem sempre fora frio e cruel, nem vermelho. Havia árvores verdes no início, misturadas com uma estranha vegetação nativa de cor rubra. Outrora até poderia gostar das cores. Mas nunca de seus fabricantes.

Desconhecidos me rondam. Aprisionamento. Dúvidas.

Há algo em minha mente sussurrando. Suspeito de não ser uma voz e sim a dor de uma pancada recente na lateral do crânio. Meu estômago reclama de uma ligeira opressão.

Compadeço-me com o pensamento de meu corpo ser tão frágil.

Preciso de uma nova pedra de cristal para energia. Essa vem sendo minha escapatória mais eficaz, mas consegui-la é penoso.

— Devemos correr o risco? — pergunta um dos vultos, o de voz rasante. Ainda não notaram meu despertar, avalio.

— Ele não é tão perigoso como pensa —, pondera a voz feminina, a última que ouvi antes de terem me deixado inconsciente. — Como ele pensa — sua voz silencia-se tanto na última frase que mal ouço.

— Não acredito que disse isso — rebate a voz ranhosa em contraste. — Kib, você esqueceu mesmo? Esqueceu?

— Jorkwill, não confunda as coisas, está bem? — ela corta. — Ele precisa de nós.

— Sei... — responde o outro, desconfiado, e trocam algumas outras frases balbuciantes. Suspeito de estar fraco demais para assimilar tais sons, que pessoas não transmitem balbucios como forma de conversa.

Tento entender os sentidos que possam envolver aquelas palavras, mas o tilintar de dor em minha cabeça torna impossível. Seja o que for que tenham usado para me nocautear, é algo feito por aqueles tais Cientistas Corrompidos. E é nesse resíduo de pensamento que reconheço meus novos inimigos.

Acautelo-me tragando formas de sair da situação, relembrando que preciso voltar à base Esgoto para despejar as informações que acumulei com os dias me aventurando por Escarla. Informação ultimamente tem sido a coisa mais útil de que precisam na base militar, não pedem mais armas nas missões, muito menos pedras de mutação. No entanto, os diamantes se tornaram minha tarefa particular.

Ao arrastar-me lentamente pela areia rude, noto que não estou mais sob o solo da praia e muito menos há um céu sobre mim, apenas uma escuridão sem estrelas. Há uma gruta mofenta iluminada por fracas chamas azul-néon de uma fogueira e uma luminosidade azulada comum a todos os rochedos devido à água que brota de seu interior. Faço um ruído que só não seria audível estando a dez quilômetros de outro ser, mas que por sorte fora abafado pelo tal Jorkwill ao socar uma rocha e proferir:

— Conseguiu! Tornou-te de novo uma Corrompida sem o menor esforço!

Noto uma coisa esquisita: não sinto fome. Quando foi a última vez que senti? Que comi algo? Seria esse o efeito daqueles cristais com mutação embutida? Não me parece um bom sinal.

Minha garganta mantém-se gosmenta como se eu houvesse consumido barro.

As correntes em meus braços estão fáceis de desvencilhar. Acharia isso suspeito não fosse por ser um Filho do Esgoto com longas experiências nos duros treinos de sobrevivência impostos por Heiden. Devo dar-me crédito algumas vezes com artimanhas assim.

Me solto com certa agilidade, tento pegar uma pequena adaga que sempre prendo na cintura, mas é obvio que não deveria ter tido esperança do objeto continuar ali.

Silenciosamente tateio o chão e encontro uma pedra com um formato peculiar, uma ponta ótima para corte. Agora só preciso de um alvo...

Tento usar o máximo da audição possível, saber onde cada um dos dois está pisando. A surpresa é minha pobre jogada agora.

— E ainda planeja nos matar — Jorkwill é alto e forte o bastante para me aniquilar com um soco. Sei disso porque sinto suas mãos erguendo-me pelo pescoço agora.

Eu tentei.

— Faça logo!— empenho-me para dizer isso. Morrer esganado não estava no topo da minha lista. — Faça logo isso!

Ouço um grito ao meu lado. Jorkwill afrouxa um pouco mais suas mãos a tempo suficiente para que eu raspe com toda força a pedra em seu antebraço esquerdo, forçando-o a me soltar ao chão. Seu sangue respinga em minha camiseta esfarrapada.

Percebo a tal Kib alvoroçada com o que acontece.

Saio da gruta e ao meu redor feixes de luzes ganham vida. Primeiro penso que novamente serei capturado.

Jogo-me no chão antes de qualquer coisa. Não gosto de sentir os choques quando sou capturado pelos guardas de Escarla. Contorcer-me na areia ajuda de alguma forma na sensação de inquietude. Mas não sinto nada por um tempo além da quentura do solo do lado de fora. Abro novamente os olhos e as luzes estão se distanciando.

— Não estamos querendo matar você — remansa Kib, a Corrompida. — Mas se quer realmente viver, é melhor não delatar nosso esconderijo temporário para eles.

Não sei bem qual motivo me faz seguir Kib de volta ao interior daquela caverna. Sei que não confio neles dois. Não confio em ninguém.

— E qual seria o motivo de me quererem vivo? — indago-a, fincando o olhar em sua testa marcada com um símbolo circular de cor verde brilhosa, que parece imitar grades ao redor de um escudo. Um sentimento enojadiço me percorre ao encará-la. Corrompida.

Mas é o ogro quem responde:

— Por mim, já teria...

— Jorkwill! — corta Kib. — Cale a boca! — e vira-se, ignorando meu olhar diferente. — Não somos mais de Escarla. Fomos considerados Desconfiáveis — ela comprime os lábios como se fosse demonstrar choque, mas noto algo diferente em sua pele que me deixa ainda mais arisco, e no momento seguinte suas feições ganham uma forma pacífica. — O que quero dizer é que fugimos. E estamos sendo perseguidos há dias. E então você nos encontrou...

— Eu encontrei vocês? — pergunto com escarmento, lembrando-me quando fui abatido na praia com um belo de um golpe desferido por Jorkwill.

—... Nós nos encontramos. Bom, só queremos ficar a salvo daqui — ela diz, e me encara como se eu fosse um enigma. — Você sabe, não sabe? O Esgoto...

Ah. Era isso mesmo que eu pensava. A base militar secreta que também chamamos de Esgoto. Nosso pequeno domínio forjado com bastante suor, numa localização peculiar e de quase impossível acesso.

— Me matem — não hesito em dizer.

Jorkwill deixa escapar um riso à distância.

— Alimentei você — ela diz ao suspender o que quer que seu companheiro fosse dizer.

— Nosso estoque de comida está bastante precário, eu sei — a voz dela atinge notas baixas. De algum lugar na escuridão, cuidando de um ferimento, o outro emite um som de desdém. — Mas onde duas pessoas se alimentam, pode muito bem caber mais uma. Não é assim que os Filhos do Esgoto falam? Acho que é — seu hálito é fresco, sinto-o mesmo a certa distância.

— Como você é boba, Kimber Hills — diz Jorkwill, esganiçado. — Não vê que ele não se importa com nada disso?

Se eles são atores, sabem interpretar muito bem. Decido que minha melhor escolha é fazer a mesma jogada.

— É claro que sei onde fica — digo. — Roubo alimentos e armas de Escarla justamente para abastecer nossa base — aponto para uma marca um pouco mal feita em minha testa. Uma débil tentativa de fazer uma tatuagem semelhante a dos Corrompidos, para me infiltrar no reino. — Sou quase um de vocês. E o Esgoto não tem recebido muitos visitantes ultimamente.

Jorkwill fala em seu ruído típico:

— Deve não ter tido muita sorte — aproxima-se mais da fogueira, uma distância considerada perigosa de mim. — Pela sua cara horrível, digo — mas não parece haver mais a carranca de antes. Consigo distinguir algo em Kib/Kimber: ela pode ter sorrido com lábios tortos perante seu parceiro. Mas pode ter sido um vestígio de visagem errante.

— Nem sempre é fácil — digo. — Mas não volto para o Esgoto sem conseguir exclusivamente uma coisa antes. E ela, claro, encontra-se em Escarla.

— E você já pegou essa coisa? — ela pergunta.

— Sim, mas... Já a perdi. — lembro-me do último cristal de mutação.

— Foi bom conhecê-lo então— diz Jorkwill. — Quer dizer, não foi de ajuda alguma. — Kib o acotovela.

— Te ajudamos a pegar essa tal coisa e então você nos leva direto para o Esgoto.

Olho para Jorkwill. Ele se levanta e sinto-me em alerta, mas antes de pensar em derrubá-lo com um golpe chave-de-perna achando que irá me atacar, ouço Kib dizer:

— Gostaria muito que fosse conosco, mas essa decisão é sua, Jorkwill.

Isso o pega desprevenido. Ele soca novamente a parede rochosa, e água respinga por cima da fogueira, atiçando-a. Logo se afasta sem nada mais a dizer.

Fico me perguntando que tipo de relação eles possuem. Amigos? Namorados? E então derreto essas generalidades, pois são apenas Corrompidos enganosos. E os pontos que levantei já perderam qualquer sentido para mim.

— Amanhã logo cedo voltarei ao reino — digo ao me afastar deles, torcendo para não ganhar companhia.

Passo a noite em guarda, fitando as luzes dos botes mecanizados que rondam a região. As estrelas estão firmes em seus postos. Sombras circulam pelo céu. Zainos selvagens procurando alimento, ou guardas Zainos domesticados de Escarla procurando humanos fujões. Duas opções desfavoráveis.

Percebo que os outros dois ocupantes da gruta também não dormem. Preciso me livrar deles.


JOHAN

Dúvidas

 

Matamos nossa sede com a boa água da gruta e nos alimentamos com o que resta do estoque de Kimber e Jorkwill. Regurgito a comida quando tenho um tempo sozinho, como forma de me precaver contra envenenamento. É algo horrível de se fazer, mas me garantiu a sobrevivência em muitos casos atrás, convivendo com traidores.

Seguindo, temos um plano juntos e outro separado.

O primeiro plano: Kimber e Jorkwill me darão cobertura nos portões de entrada. Ela distrairá alguns guardas (de algum jeito) enquanto eu e Jorkwill os rendemos, roubamos suas roupas e tomamos posse de seu armamento, para então nos infiltrarmos disfarçados pelo reino. Eles dois planejam furtar comida se conseguirem tempo enquanto eu cuido de pegar os cristais de mutação. Por fim, sairemos sem que nos notem.

O plano não compartilhado: preciso fazer algo para retornar sem companhia.

— Temos de ser rápidos? — Kimber corta meus pensamentos direcionados para ela mesma.

Respondo com algo automático:

— Rápido!

O início do plano obtém tanto sucesso quanto tentar saciar a fome ao comer folhas vermelhas e artificiais da floresta. E eu sei bem que isso significa um estrago e tanto, embora tenha descoberto recentemente que elas refrescam o hálito e acabam com as cáries...

Mesmo conquistando roupas novas e eletrocutando Escarlanos com suas próprias armas, eles possuem um número razoável de amiguinhos tanto nos portões quanto mais adentro.

E ainda assim, o plano de nos misturarmos saiu pela culatra. Tenho adquirido com o tempo de péssima alimentação e os ferimentos quase insaráveis, uma aparência esfomeada e suja. Os cabelos de Kimber, embora envoltos naquele capacete roubado que os deixam bem a mostra, estão emaranhados demais e a cor que um dia aparentara ser de um rubro, tornou-se um laranja desbotado. Jorkwill, com toda aquela estrutura e um rosto tufoso, não teve sorte alguma em encontrar um guarda com suas medidas, então está usando um tipo de armadura humilhantemente apertada.Pelo menos teve algo que me deixou satisfeito no plano um.

Sirenes são acionadas. Corremos por becos e mais becos dos edifícios menores. Começo a desconhecer os rumos até que já estamos bem perdidos. Não quero demonstrar isso, mas Jorkwill acabou de notar em meu rosto, pois solta uma gargalhada ríspida e sofreada ao parar.

— Eu conheço esse lugar — interfere Kib antes de eu deixar um ogro Corrompido de roupas coladas se contorcendo ao chão com intensas descargas elétricas. — Sigam-me.

— Não! — me oponho.

Simplesmente não consigo deixá-la no comando, não consigo. Não quero me sentir em dívida com nenhum desses dois.

Espere... O motivo real é o de não confiar neles.

— Eu sei onde fica! — adianto-me à frente e quando viro uma travessa, sou derrubado por um dardo tranquilizante no pescoço. O efeito é rápido, forte, sinto meus ossos tilintando. E então alguém cai ao meu lado também.

— Fique abaixado — ela me instrui calmamente. — Você, fique aqui. — Kib só não sabe o quanto me é difícil cumprir tal ordem. A inconsciência me chama aos gritos. Alguns vultos passam ao redor, jatos de luz, seres sumindo com o vento. Uma nova gargalhada ríspida corta o ar e algum idiota está rindo. — Fique acordado, aqui — ela repete, e então derrama algo em meus lábios que me alerta um pouco, mas não por completo.

Estou acordado.

Suspeito de que minhas palavras nem ao menos estão sendo pronunciadas.

Logo sou arrastado de uma maneira bem rude e maldições estão sendo dispersas.

Cadê os choques, papagaios fedorentos? Andem, estou logo aqui!

Tenho certeza de que não fechei os olhos por momento algum, nem mesmo para o movimento natural de pestanejar, mas por fim o entorpecimento vai extinguindo-se.

— Achei que o efeito seria mais rápido — diz Kib, ajoelhada ao meu lado. Confirmo sem entender.

Estamos numa espécie de galpão abandonado. Algumas fendas no teto mostram passos apressados e sirenes ecoam a todo vapor lá em cima. Uma grande sombra está bisbilhotando o mundo lá fora, mas ao ouvir minha voz, esse espectro se transforma numa pessoa que vem rapidamente me demonstrar seu afeto.

Jorkwill me joga sobre uma mesa de ferragens, minhas mãos ganham novos cortes. Ele avança novamente e meus instintos preveem suas formas de ataque. Viro-me para o outro lado da mesa e a empurro em sua direção, minhas costelas rangem em protesto da força que faço. Jorkwill me atira algo e antes que desvie, o galão de alumínio choca-se contra meu peito. Foi um arremesso fraco o dele, ou meu corpo estava mais forte devido ao medicamento que Kib me fizera beber. Sorrateiramente passo por baixo do móvel e o derrubo com uma passada rasteira. Isso o faz adquirir uma nova vantagem: meu pescoço.

Está começando a me irritar com isso.

— Por que você fez aquela cena toda? — ruge ele o mais alto que pode, bem no meu ouvido. — Tínhamos um plano, seu demente! Quase fomos pegos por sua causa!

Demente. Uma nova palavrinha para caracterizar um Filho do Esgoto? Pode ser.

Estou torcendo seu braço de uma forma contrária, com intuito de quebrá-lo, competindo com sua força. É quando os olhos dele arregalam-se bem na minha frente. O olhar esbugalhado me assusta mais do que encarar um Zaino escamoso de perto. Assusta-me mais que o barulho seguinte.

Pam! Pam!

Acordo outra vez com uma dor miserável na lateral do crânio.

Quanto tempo se passou?

Jorkwill desperta momentos depois, sentado do outro lado do galpão. Começo a adquirir algumas memórias passadas, o que me deixa seriamente confuso.

Vejo pessoas atacando prédios do governo no planeta Terra, rasgando um enorme cartaz contendo nosso melhor líder, Heiden. Só pode ser um devaneio devido à pancada que levara, penso rapidamente. Nenhum humano seria contra Heiden, a não ser os tais Corrompidos. E Heiden recentemente se tornara nosso líder aqui, neste mundo, não no antigo...

E então chega a voz de Heiden falando em alto tom para com os Filhos do Esgoto e abafando os outros devaneios: Nenhum adepto ao regime do reino Escarlano merece nossa confiança. Precisamos sempre ter cuidado com tudo. Sempre ter cuidado. Sempre.

— Pensei que não fossem parar. Peço desculpas — fala Kib, numa voz que nada identifica remorso.

— Você nos nocauteou? — pergunto, extasiado.

— Sempre que vocês dois se comportarem assim, preparem-se — diz ela e levanta-se de uma escada íngreme. Na verdade não há um tom de ameaça séria em sua voz. — Qual é! Nós somos quem precisa sobreviver aqui, não devíamos tentar matar uns aos outros!

— Você é uma valentona, hein? — ainda estou um pouco aturdido quando digo isso.

— Por que parece que eu levei duas pancadas de cada lado? — geme Jorkwill. Kimber esconde o rosto, move-se rapidamente para a mesa das ferramentas e acende uma chama azul.

O dia lá fora está ficando mais cinzento, de acordo com as pequenas rachaduras no teto. Parece ser o final da tarde. Vento nos atinge pelas fendas do galpão e apagam a tentativa de Kib em fazer uma fogueira, mas ela é persistente. Um chiado mais agudo corta o ar e a chuva começa a cair. Temos de nos mover para os cantos do compartimento devido às intensas goteiras.

— Não podemos sair hoje — Kib interpreta meus pensamentos. — Provavelmente reforçaram todas as saídas e becos com os guardas.

— Não estou muito a fim de sair hoje — gralha Jorkwill. — E a culpa do fracasso é de quem mesmo? — diz, e também o encaro de volta com desdém.

— Já avisei aos dois — ameaça Kib, e nos vemos ambos assustados e logo após, com vontade de rir diante das palavras dela.

O clima entre nós três fica mais ameno à medida que a chuva se fortalece.

Quanto ao segundo plano, o de me livrar dos dois, não estou mais tão disposto a concluir, apenas a última parte do primeiro. O que está acontecendo comigo? Estou me corrompendo? É que parece tão bom encarar os problemas diários com alguma companhia...

Nossos estômagos roncam, mas ninguém ousa falar sobre isso até Kib adiantar-se sobre as chamas e queimar um pedaço de figo (uma fruta recriada pelos Cientistas Corrompidos, mas esta sem o toque venenoso e sim incrementada de proteína) com um espeto de ferro.

— Onde conseguiu? — minha garganta cria saliva. Jorkwill teria feito essa mesma pergunta caso não a proferisse antes. Seus olhos grandes estão focados demais no alimento alheio para qualquer outro tipo de ação.

— Não precisei me distanciar muito, fui lá fora enquanto as donzelas aqui dormiam — diz ela num tom zombeteiro. — Estamos numa zona onde há os comércios dos Corrompidos ambulantes. Havia várias barraquinhas quebradas ao chão, comida esparramada e nenhum dono à vista. Acho que não sentirão falta do que peguei — e mastiga apreciando o pedaço de figo. Quatro olhos famintos a seguem no movimento.

— Parem de me olhar como Zainos Selvagens! Estão esperando o quê? — tendo ela dito isto, rastreamos o local e acima da mesa há uma cesta que nada combina com a feiura e imundice do galpão. Eu e Jorkwill nos atropelamos e acotovelamos numa curta briga para chegar à cesta primeiro e paramos ao ouvir um “Pam!” feito propositalmente por Kib amassando alguma coisa. Suspeitosamente pegamos os figos e afastamo-nos um para cada lado da fogueira.

E dessa vez até esqueço-me de regurgitar a comida. Ou talvez esteja me propondo um novo tipo de desafio individual. Estou vulnerável. Estou querendo confiar.

Para cortar o silêncio do restante da noite, Kib (ela me deixou oficialmente chamá-la assim ao invés de seu nome completo, Kimber Hills) explica-me de que forma os cientistas Escarlanos fizeram esse tipo de fogo azul que nos esquenta agora. Já sei esta história, mas não estrago sua narração. Ela conta que os Escarlanos Natos descobriram-no há muito tempo atrás, em períodos onde havia mais Zainos Selvagens do que estes domesticados.

— Faz parte da história desse planeta. Azul no vermelho. As chamas não soltam fumaça alguma e não se é preciso de muita coisa para obtê-las, basta estalar alguns tipos de rochas. Sempre há rochas assim pelas residências como forma de emergência, embora bem guardadas para que não haja o risco de incêndios acidentais. Estas belezinhas — faz uma breve demonstração estalando uma na outra. — São superinflamáveis.

Surpreendo-me. Escarlanos Natos? Ao que ela se refere? Os humanos habitaram há pouco tempo esse planeta que sempre fora vazio.

— Soube que os tais Cientistas Corrompidos criaram-nas para uso dos Caçadores que passam as noites atrás de humanos fujões. E é algo que os Filhos do Esgoto souberam usufruir com bom grado — corto-a, aborrecido, relembrando as palavras de meu líder Heiden.

Eles trocam olhares nervosos por um momento.

— Vocês ainda estão embriagados com a verdade deles, do povo de Escarla, mas o melhor foi feito, descobriram quem são os vilões — aponto.

— E que ótimo lugar este — reflito audivelmente depois de um breve silêncio, ao olhar detalhadamente nosso refúgio.

— Era aqui onde eu guardava meus pertences — responde Jorkwill de algum lugar da escuridão.

Decido não elogiar mais nada.

Eu faço a primeira vigia. Estamos bem alimentados e exaustos. Apagamos a fogueira há alguns minutos. As sirenes lá fora cessaram, mas a chuva continua. O vento faz barulho e começa a trazer um frio carregado de arrepios. O sono não demora a chegar, e não demoro a recusá-lo.

— Desculpem-me. — me pego falando. — Quase acabei com tudo. Sério, me desculpem.

Um Filho do Esgoto possui boas maneiras? Isso está me surpreendendo. Bom, eu aprendi a fingir, vale lembrar.

— Jorkwill lutou contra vários guardas e te carregou para cá — me diz Kib.

Ao longe, uma estrutura de ogro se contorce e finge um ronco. Tento identificar os reais motivos dessa sua ação.

— Jorkwill pode ser bruto, mas é uma boa pessoa — sussurra Kib. — É por isso que confio nele. Tornou-se Corrompido para ficar perto de mim. Ele me ama também.

Pondero a respeito, e demoro bastante a responder.

— Confiança é uma palavra que me parece tão suspeita — digo sombreado.

Por um longo tempo nos calamos. Quando encontro a lentidão dos sonhos repletos de batalhas antigas e frustradas, começo a expulsá-los. O frio e a armadura se revezam para disponibilizar certa hostilidade ao meu corpo. E tento não dormir, a espreita desses dois Corrompidos aqui.

Prendo a atenção nos finos sons das gotas de chuva nocauteando o chão acima de nós.

Há um ponto da noite em que estou caminhando pela chuva, por outra chuva. Vejo cartazes velhos voando de meu líder Heiden. Sinto um aperto e vejo que uma mulher alta está segurando minha mão. Ela não é tão alta assim, eu que devo ter encolhido.

Minha mãe.

— Encontraremos seu pai logo, Johan —, ela diz insegura. Sua mão afaga meu rosto com cuidado. Usa uma calça jeans preta, com rasgos pelas pernas, onde arranhões e sangue derrapam de uma pele fina e branca. Não sei onde ela conseguiu aqueles pequenos cortes, mas nossos corações estão pulsando alto, ouço o rugir dele quase rasgando o peito para correr dali. Porque tudo está errado, a situação, o tempo, o planeta. Acho que estávamos correndo. Acho que devíamos continuar correndo. Será que encontraremos meu pai logo?

Mas não encontraremos.

Sei que seremos capturados assim que passarmos pela esquina seguinte. Que não avistarei nunca mais essa lua sem irmã ou estas constelações que os astrônomos há muito estudam. Sei que não nos salvaremos.


KIMBER

Turbulências

Não há mais choques, nem tanto barulho. Não há gritos com imposições, nem ameaças soprando. As sirenes foram desativadas e chegou uma névoa, trazendo consigo um sabor de tristeza úmida e desejável.

O passado chega para anunciar minha mãe.

— Minha Kib? Querida, acorde — ela está me despertando para o apocalipse. Nunca esquecerei as lágrimas em seu rosto, e sei que ela também não se esquecerá das que está vendo no dito momento.

— Será temporário — ela diz, mas sua voz continua despida de segurança. — Logo que os adultos como eu se especializarem em algum método de ajuda para o novo regime, nós seremos selecionados para as Viagens à Marte, nos encontraremos por lá mais cedo do que pensa, bobinha — ela consegue ser calma, ainda que suas palavras não consigam transmitir a verdade que persiste em acreditar.

O ódio que germina em mim tem olhos vermelhos e nariz escorrido, o medo tem faces com olheiras de sono. Como dormir com as explosões que ainda acontecem pela noite? Como dormir com os helicópteros militares quase arrastando o telhado da casa pela madrugada?

A vida de todos tornou-se um caos depois das grandes explosões que atingiram minha pequena cidade brasileira, assim como chegaram também para outros pontos da América do Sul.

Os movimentos políticos internacionais que surgiram antes ainda de a poeira baixar pôs fim ao governo nacional. Foi um golpe tão rápido que ninguém teve tempo de segurar uma bandeira branca. Um golpe há muito combinado, a meu jovem olhar das coisas.

Agora vivemos numa ditatura. O novo líder trouxe-nos ideias e soluções para os pouco explicados problemas que essa parte do globo terrestre sofreu.

Não demorou muito para as mídias sociais serem tiradas do ar. Os canais abertos foram desativados e em seus lugares fora implantado somente a presença do Político. As estações de rádio evaporaram-se juntamente com a Internet. Parecia-me que o mundo estava retornando aos períodos mais sombrios da História da Humanidade.

Mas havia novidades para este novo período.

“Marte habitável para humanos.” Leio os artigos nos panfletos que estão inundando as ruas ultimamente. “O planeta Marte há séculos é povoado e só agora isso fora descoberto. Os seres hostis que vivem por lá nos saudaram com três bolas de fogo que caíram do céu em direção ao mar da cidade litorânea...”.

Rasgo os panfletos que o vento rebate em meu corpo e adentro na singela casa onde moro com minha mãe. Meus amigos se mudaram para lugares altos como montanhas, os vizinhos fizeram o mesmo. Como não possuímos carro, ficamos as duas paradas no tempo. Não houve ajuda, e minha mãe entendeu que isso precisava vir de nós.

— Kimber, não pode se atrasar, o alistamento termina em poucas horas — torna a abrir meus olhos, a mulher destemida que me criara sozinha desde que engravidou de um canalha que se evaporou pelo mundo.

— É temporário, acredite. Tenha fé, minha Kib, logo iremos nos ver.

Nós duas temos suspeitas sobre tudo e todos. O mundo não merece nossa confiança, e particularmente o líder Heiden também não, embora minha mãe esteja me propondo algo contrário.

Abraço-a forte e sussurro que a amo. E que a amo, e que a amo mais uma vez. Aceito o que ela está pedindo, pois sempre teve uma certeira opinião sobre o que é melhor para minha vida. Embora minhas suspeitas agora sejam tão grandiosas, eu não me oponho.

— Após esse portão, somente os jovens, senhora — um soldado do governo barra a passagem de minha mãe na entrada do edifício de alistamento.

Vemo-nos deparadas com novos abraços, agora mais rápidos. A fila de espera é bem pequena, mas as pessoas parecem ter adquirido impaciência para qualquer demonstração de sentimentalismo nos últimos tempos, e muitos nos encaram com aquele olhar pouco amistoso.

Queria que minha mãe viesse comigo. Acompanhasse-me pelo menos até eu assinar meu nome sobre o livro dos candidatos que irão para Marte. Nossa despedida foi tão breve quanto o esperado. Ainda assim, de longe, acenamos uma para a outra. E ela segura um lenço, e eu sinto o cheiro do cachecol róseo que calmamente ela camuflara meu pescoço friorento poucos minutos atrás.

Meu rosto vira-se e os pés seguem na finalidade de cumprir o que está sendo designado. Vejo poucos garotos e garotas com idades variadas, próximas aos meus quinze anos, talvez. Os olhares tristonhos são compartilhados com todos os que assinam seu nome e são dispersos para outra sala, de onde não retornam.

— Você está cantando? — uma voz ranhosa desperta minha atenção e me faz abrir os olhos. Estou dentro da nave, aguardando a partida. As poltronas ainda estão sendo preenchidas e este garoto escolhe sentar-se ao meu lado.

— Era apenas uma pergunta simples — ele chama minha atenção outra vez, parecendo entristecido brevemente pela minha recusa em responder.

— É uma forma de relaxar — eu por fim digo.

E a partir da curta conversa toda minha concentração se perde com o primeiro solavanco da nave. Logo as poltronas são preenchidas com rapidez, e os murmúrios amedrontados ganham o ar.

O segundo tremor faz com que minhas mãos agarrem a parte segura do acento, que descubro tão logo se tratar da mão do garoto que falara comigo.

— Desculpe — eu afasto minha mão esquerda da sua e torno a fechar os olhos.

— Não me importo, pode deixar — ele responde e agora quem segura minha mão é ele. Assim que penso em desvencilhar-me do contato, a aeronave decola sem aviso e os tremores proporcionados pela partida resultam em gritinhos involuntários dos muitos presentes, e minha mão está apertando a do garoto com firmeza.

—Qual é o seu nome?! – fala outra vez o garoto, agora em gritos. Pelos ruídos da nave eu quase não assimilo o que suas palavras significam. Elas se perdem nas voltas que estamos dando pelo ar. Nossos corpos se inclinam para frente, para os lados, minha mão não solta a do garoto e ele não permite que o aperto termine.

—O que você disse?!— grito de volta, competindo com o barulho também.

—O seu nome— ele resume a frase. —ME DIZ O SEU NOME.

—Não importa!— berro ao seu lado, atormentada e aborrecida ao mesmo tempo. A sensação é como estar dentro de um liquidificador, eu tento assimilar que seja da mesma maneira. Além disso, por que alguém se importaria com nomes num momento como este? É uma coisa idiota para se registrar, eu penso enquanto sou chacoalhada pela nave junto aos outros.

Num dito segundo mais a frente os tremores param e o sussurro de alívio invade o pequeno espaço que estamos.

— Se morrermos hoje, eu gostaria de saber o nome da primeira e última garota que segurei a mão sem ter corrido de tanta timidez — ele fala baixinho, o silêncio temporário reina ao nosso redor. E é quando me vejo sorrindo e enrubescida com suas palavras. Nenhum outro garoto me despertou o tipo de embaraço que estou sentindo agora.

— Lembre-se que você está praticamente acorrentado — consigo questionar, fitando seus grandes olhos escuros e desviando deles no mesmo segundo.

— Mesmo assim não teria corrido — a voz está com uma nova confiança. — Não vai mesmo me responder então?

— Kimber Hills — eu lhe entrego até o sobrenome.

— Jorkwill Walter — e ele demanda o seu em velocidade igual a minha.

A névoa de lembranças se rompe e me envia para pontos cortados mais a frente do tempo.

— Aperte o gatilho com mais força — instrui Jorkwill. Estamos treinando com armas de choque numa sala pequena e reservada. Passaram-se cerca de dois anos desde que chegamos à base militar Esgotos, que fica no subterrâneo de uma ilha ao meio do grande oceano Escarlate, deste reformado planeta Marte.

Jorkwill já é experiente com missões de furtos, enquanto os de estatura mais frágil, como a minha, empenham-se em ajudar da maneira que podem juntamente com o grupo dos Pesquisadores. Secretamente ele vem me ensinando técnicas de combate e tem sido também minha única fonte de informação sobre os perigos que existem além da ilha batizada com nome Terra.

— Assim não, acabará acertando o próprio pé — ele segura minha mão e direciona o tiro de choque para o boneco a nossa frente, sem errar o pescoço.

— Vou aprender — desafio-me. E treinamos no restante das horas disponíveis, até nossos corpos suarem e um fraco alarme pelo corredor indicar a hora do jantar.

O único refeitório que existe nesse buraco é o local mais barulhento da base militar. Alguns amigos se encontram ali após concluírem suas missões e as conversas alteiam-se pelas paredes de concreto. Jorkwill fora o único amigo que consegui nesse tempo todo, acho que não tenho me tornado uma pessoa tão sociável, e as pessoas também não deram tanta oportunidade de o ser.

— Te vejo mais tarde? — ele pergunta-me após desfrutarmos de uma rápida e desnutrida refeição.

Somos orientados a seguir para os dormitórios. O dormitório masculino fica distante do feminino, e não há nenhuma lei que proíba qualquer pessoa de perambular pelos corredores à noite. No entanto, evita-se tal atrevimento devido ao desaparecimento inexplicável de alguns.

— Ela está quase acordando — uma voz estranha intromete-se no meio de meu sonho tão tênue.

— Vou ficar e esperar aqui até ela acordar — interpõe-se outra voz, esta segunda mais rouca e aceitável por mim. — Eu estou aqui — confidencia-me a voz distante outra vez, e eu estou quase aceitando deixar o sonho para poder abraçar seu proprietário.


JOHAN

Familiares

Os becos por entre os prédios cor de trigo não são mais o meu escape. Vejo neles um novo obstáculo: muros ganharam tamanho no curto tempo, e sobre eles agora há finas fitas de cor estrelar que se movem com a direção da brisa.

— Eletricidade — esclarece Kib. — Tenho certeza — ela pega uma torrão de barro vermelho ao chão e o arremessa contra as fitas, que se despedaça quase antes de atingi-las. — Eletricidade néon, isso não é bom.

Jorkwill também guardava suas roupas velhas no galpão. Estamos agora desfilando com elas pela madrugada nos becos do reino Escarla. Kib está dando uns ajustes à mão, em um vestido que nunca lhe deixará bela.

Alguns guardas não demonstram tanto perigo. Talvez não estejam acostumados a passar uma noite inteira de vigia, pois muitos são imobilizados antes de pensarem em acordar. Mesmo parecendo fácil, nosso percurso leva horas e horas. Quase fomos pegos algumas vezes.

Arrombamos prédios menores, roubamos comida e devoramos uma parte enquanto corremos. Provocamos uma algazarra bastante respeitável, e já estamos próximos do destino. Antes estávamos tentando despistar os guardas dos nossos interesses para com o prédio correto.

— Johan, aqueles Zainos não são humanos — diz Kib quase silenciosamente enquanto adentramos num esgoto íngreme. — Mas eles não provocam o mal. Os que passam bastante tempo servindo ao reino, pelo menos.

Eu penso em dizer a Kib que suas informações são tolas, mas apenas instigo-a ao perguntar:

— E os Corrompidos? E vocês?

— No começo só queríamos... — ela hesita antes de dizer. — Não entendo bem, algo ficou diferente. Queríamos estar perto de quem gostávamos. Nossos familiares. Mas para onde eles haviam ido? Não sobrou ninguém que conheci. E depois comecei a lembrar do que houve, de tudo, sabe? E compreendi a confusão que estava. E bem no meio do furacão conheci Jorkwill. Ele também se sentia sozinho como eu ali, só que um pouco menos aéreo, talvez. Corromper-se era o meio de estar em uma vida calma e normal novamente.

— Apagar mentes humanas, prendê-los, transformá-los em criaturas horrendas como os Zainos, marcados, é um meio de vida normal para você? — a desafio, aborrecendo-me.

— Não, espere — ela tenta converter. — Nunca precisamos fazer nada de ruim.

— Já entendi — corto-a, finalizando suas doidices e continuo a caminhar.

— Shiw! — Jorkwill chama nossa atenção. — Há guardas ali, estou vendo as chamas — ele adverte, algumas passadas adiante.

Não vejo nada. Estou tentando não cair em alguma vala enquanto piso na lama lodosa e pestilenta do esgoto que adentramos. Penso no que Kib me dissera e em que tipo de lavagem cerebral possam ter-lhe feito para que ainda conserve esse tipo de pensamento.

Heiden me deixou bem claro o que os Cientistas Corrompidos fazem com os humanos.

Jorkwill abre caminho, estou sendo deixado para trás pela minha atual lerdeza. Tento aguçar minha visão, mas a escuridão é bastante profunda. Agora estamos pisando em água quente.

— Não ouço mais nada — ele fala, no momento em que sou derrubado. Prendo a respiração e tento revidar, mesmo com alguém forçando minhas costelas a permanecer no chão. Há vários movimentos pelos lados. Num tal momento vejo-me livre e quando vou começar a lutar, Jorkwill e Kib mostram o problema resolvido. Dois guardas zainos estão agora estirados aos nossos pés, inconscientes.

— A escuridão não estava a favor deles — diz Kib, cortando alguma maldição que seu parceiro fosse dizer.

— Mais atenção! — ele apenas fala com dentes trincados.

E entramos numa sala mais ampla, com pouca iluminação e cheia de bugigangas poeirentas. O esgoto fora deixado para trás, mas o cheiro dele e muita sujeira são meus novos companheiros.

— Aposto que é por aqui! — Kib segue para um escapamento de ar e arranca as grades facilmente. Sua força me surpreende.

— Estavam enferrujadas — murmura ao ver meu olhar.

Adentramos da única forma aconselhável: engatinhando.

As tubulações trazem aromas nada amistosos. Têm locais quentes e outros friorentos. Sem dúvida alguma estamos no prédio certo, o esquisito lar dos Cientistas Escarlanos. Reconheço as diferentes sensações que transbordam pelo ar.

— Voltem! — berra Jorkwill. Talvez ele não tenha notado, mas estamos num lugar muito apertado.

No mesmo segundo, cabeças e cotovelos se chocam no metal dos tubos até que retornamos da maneira mais estabanada possível. Entro numa nova direção e eles me seguem.

Estou na frente. Soco uma nova grade e me sinto o cara mais inferior do planeta ao relembrar a facilidade que Kib teve poucos minutos atrás com a mesma tática. Esmurro-a e a empurro até que o ferro cede lentamente. Pulo e caio num chão iluminado. Já estou sentindo novamente meus braços quando Kib e Jorkwill decidem pular do tubo de ventilação também, usando-me como amaciante de queda.

— Alguém... Me... Explica. — falo com a voz mais digna possível.

— Vinha água pelos tubos — responde Jorkwill.

— Eu precisava de um banho, se você não notou.

Ao levantar, cambaleantes, verificamos o local. O teto é alto. Poderíamos ter nos machucado seriamente caso tivéssemos caído em cima de uma das mesas que estão ao nosso redor agora, lotadas de poções coloridas e de muitos outros equipamentos que só um cientista maluco poderia descrever. Um laboratório.

— Era água vermelha — diz ele dando como encerrado o assunto.

Água ácida do mar Escarlate. Esse tipo de banho não era nada preferível. Não sem um cristal de mutação...

Sirenes diferentes estão embaralhando nossos pensamentos. Algumas telas de vidro se espalham pelas paredes brancas, como quadros sem fotografias. A grande porta redonda da sala que dá acesso a um corredor é de vidro transparente.

— Procurem cristais ou qualquer coisa que se pareça com isso! — digo, e começamos a revirar tudo na sala. Abro um armário baixo e as pedrinhas violáceas são a primeira coisa que avisto em suas prateleiras.

— Já achei! — anuncio. Encho os bolsos da velha calça que Jorkwill me emprestara, quando percebo que alguns estão furados, deixando escapar poucos cristais que agora tamborilam pelo chão.

— Isso não fará bem a você — fala alguém.

— Ninguém te perguntou — respondo sem olhar para Jorkwill.

— Johan — Kib e Jorkwill pronunciam ao mesmo tempo. Volto minha atenção para eles.

— Quê?

É então que noto as telas de vidro nas paredes, transmitindo a imagem de um senhor grisalho, olheiras profundas, e uma inconfundível tatuagem dos Corrompidos no meio da testa. Um cientista. Perco a voz por um momento.

— Não é da sua conta — respondo diretamente para ele agora.

Ouve-se uma risada mais ríspida que a de Jorkwill, e então ele volta a falar:

— Você destrói minha sala, rouba meus medicamentos e não é da minha conta?

Penso em lhe dizer um monte de insanidades, mas me perco em memórias passadas e confusas ao tom irônico daquela voz.

Kib está esmurrando a porta de vidro, que não demonstra sinal algum de renunciar à sua inatividade. É então que desiste, pois há figuras particularmente horrendas do outro lado deixando-a pasma e congelada.

— Eles não estão nos vendo — informo-a, pois me lembro de portas assim das vezes que furtei medicamentos.

— Nos ver não será problema algum daqui a pouco — brame Jorkwill. — Qual o plano agora, Rato do Esgoto?

Suas palavras me colocam bastante pressão, até porque tem uma pessoa me encarando por diversos ângulos da sala, através de porta-retratos digitais.

Não hesito em responder:

— Por que não se entregam logo? São Corrompidos. São bons nisso, não é mesmo?

Antes de ver uma Kib apavorada e talvez decepcionada, antes de Jorkwill tentar furar a fila de pessoas-e-criaturas-que-querem-minha-morte, a voz por trás dos porta-retratos retorna:

— Você pode ser melhor do que isso, Johan.

Os porta-retratos voltam a não emitir imagem alguma. Ouvimos um click seguido de um ruído ao lado de uma das mesas. Kib é a primeira a notar uma única moldura revelando a fotografia de uma porta naquela direção. Ela logo arranca o quadro da parede e há, não sei como acreditar, uma passagem por trás.

Isso pareceu genial, mas suspeito. De ambas as partes. Ele, o cientista, o Corrompido, queria nossa fuga ao mostrar aquele sinal? Kib, tão esperta para compreender rapidamente a saída misteriosa?

— Não caberei aí — reflete Jorkwill, e no momento que se ouve uma explosão do outro lado da porta de vidro, é o primeiro a sumir no túnel. Depois é a vez de Kib.

Antes de escapar da sala, olho momentaneamente para um dos porta-retratos maiores, sem imagem, e digo em tom alto:

— Não irei pensar no conselho.

Procurando uma forma diferente de escapar, descarto a ideia de alcançar o tubo de ventilação de onde chegamos, pois dele está vazando um líquido que emite uma densa névoa na medida em que se espalha. Água ácida do oceano. É olhando para esta borbulhante forma que decido seguir a proposta do quadro com a caricatura de uma porta.

Tento frear meu corpo, mas a passagem é escorregadia. A descida é longa e cheia de curvas. Numa distração, declino para um lado e descambo para frente num embalo amedrontador, até estancar numa poça gelatinosa, verde e com um cheiro pouco amistoso.

Estamos nos novos esgotos do reino, o que me traz as horríveis lembranças do antigo.

Entendo que terei de conviver mais um tempo com os dois traidores Corrompidos presentes. Jorkwill tira-me dos pensamentos ao perguntar:

— É nesse estágio que você sabe que se tornou um Filho do Esgoto? — noto um traço esquisito de humor em sua voz.

Não rio, porque sinto raiva em meu ser. Reconhecimento. Dúvidas. Cansaço.

Kib ri de um modo estranho também. É quando cedo com as acusações internas sem notar. Nem parece que eles escaparam do apuro, embora a adrenalina ainda esteja fervilhando em nossos corpos. Vejo-me fazendo tal movimento com os lábios também, sorrindo, e é algo tão disparatado que paro rapidamente, com uma nova sensação de vômito.

Foco no local em que estamos. O esgoto é a parte mais baixa, e também a saída mais segura.

— Não se limpem — digo.

— Mas é impossível — responde Kib, e ri novamente, com Jorkwill imitando-a.

— Acho que isso está fazendo mal a vocês — digo.

Livramo-nos de alguns pesos que possam vir a tornarem-se empecilhos na passagem. Um estojo contendo comida que Kib protegera fielmente foi um deles.

Verifico os bolsos sem furos e os cristais violáceos estão bem protegidos. Arrastamo-nos pela lama até passarmos por baixo das grades enormes, estas nada removíveis. Temos de mergulhar na poça para chegar ao outro lado, e garanto que a sensação não é aconselhável de se descrever. Os pulmões desgastam-se com o longo aprisionamento de oxigênio.

Por fim ultrapassamos as últimas grades e nos vemos livres dos muros de Escarla. Adentramos a floresta avermelhada. Já é o final da tarde, mas os raios do sol ainda estão disfarçando bem a luminosidade que fica na grama devido aos nossos passos. Estamos grudentos.

— Sabem que não devem tocar em nenhuma árvore, não é? — digo, e paramos de correr. Os batimentos acelerados comunicando-se também. Boa parte da sujeira foi expelida pelo vento na correria.

— Quando estávamos fugindo na primeira vez, Kib decidiu subir numa dessas árvores. Todas as outras foram se acendendo muito rápido. Quase fomos pegos. — diz Jorkwill, suas palavras saltando apressadas.

A grama está brilhando a nossa volta, nos denunciando na maior cara de pau. Ou de folha. Que seja.

Ao sairmos da floresta, seguimos em direção à zona dos Rochedos de onde viemos. Voltamos a ser ágeis com os passos.

Meus pensamentos voltam repetidamente ao senhor de cabelo grisalho por trás dos porta-retratos digitais, o cientista Corrompido. Porque o reconheço. Começo a acusá-lo internamente de várias insanidades, algumas frases escapando aos sussurros de acordo com a pulsação da corrida.

— Não seguirei seus conselhos, pai.


JOHAN

Traições

O ar soturno deixa meus pulmões vibrando de uma ansiedade indesejada. Fico imaginando quando a guerra vir a eclodir. Se o planeta suportará as bombas, diferente da forma como a Terra não as acolheu tão bem. A Grande Parada...

Que pensamentos são esses?, pressiono-me. O que aconteceu na Terra foi um desastre ambiental que há muito era previsto, repito as palavras de Heiden.

Chuto os devaneios ao encarar a presente situação. Somos surpreendidos com crateras imensas que nos extrai bastante tempo para contorná-las. Muitas delas são novas, pois me recordo das outras como a cada linha que há em minhas palmas.

Encaro uma de minhas mãos.

Talvez nem tanto assim.

— Já estamos distantes do reino o suficiente — digo aos dois companheiros. Paramos de correr.

— Nunca suei tanto em toda minha vida! — reclama Jorkwill. Kib impressionantemente não parece cansada como nós dois.

Ao nosso redor existem milhares de montanhas de pedras nuas e perigosas, cada uma ameaçando desabar sobre as outras e com isso pôr-nos um fim rápido. São afrontadoras, mas belas. Há uma luminosidade azulada sendo emitida de cada uma, sabe-se que é a água brotando naturalmente de suas fendas.

— Vocês também sentem fome? — pergunta Jorkwill. — Irá escurecer logo.

Alguns Zainos Selvagens voam ao alto, observando e desejando-nos como seu jantar. Seus pios famintos por carne miram para Jorkwill, que responde de volta em rugido.

— Abrigo é a primeira prioridade — falo.

— E depois? — ele retruca. — Morrer de fome dentro de uma caverna?

— Então procure sozinho! — rebato. Estou acostumado a passar noites ouvindo meu estômago roncar, além do que, não sou dos que reclamam por motivos fúteis.

Passamos por um grande rochedo e transmito um assobio antigo ao ar. Infelizmente não ouço resposta. Ninguém pergunta sobre o significado do ato e fico grato pelo silêncio.

— Predadores maiores — arrepia-se Kib ao ver as sombras rondando o céu.

— Ou apenas mais ágeis, nunca se sabe — dou corda ao seu medo.

— Um abrigo é bem legal — ela encerra.

Sempre procuro abrigos em pontos estratégicos destas montanhas, e jamais repito o local por precaução de ter sido farejado por Zainos (domesticados ou não).

Escalamos uma, duas, três, até mais de quatro montanhas, mas nada parece totalmente seguro. Já vi companheiros do Esgoto morrerem por uma fatalidade dessas, desabamento. Portanto, uma boa pesquisa é essencial.

Em uma das tentativas de escalar noto uma grande abertura na rocha, com pequenos pontos encravados em sua superfície. Um rochedo incomum, raro até, se você souber desvendar seus pequenos segredos.

— Comida — anuncio. Entro na breve escuridão e puxo um dos pequenos caroços, que se solta rápido de onde estava encrustado. Possui a aparência de uma pedra retangular, e mostra sua dureza também.

— Acho que você respirou poeira demais — cogita Jorkwill ao chegar à caverna segundos após Kib.

Ponho o Casulo-Rochoso sobre uma pedra grande e uso outra menor para atingi-lo, quebrando assim sua carapaça. Seu conteúdo é gelatinoso e esverdeado.

— Matam a sede e a fome em questão de segundos — informo-lhes.

Sou alvo de olhos intrigados. Mordo parte da substância que havia dentro do casulo, tentando ao máximo não expressar aversão no rosto.

— Não são doces como os pãezinhos de Escarla, mas é a única opção do momento — tento incentivar.

Jorkwill é o primeiro a tentar. Quebra o casulo e consome o conteúdo.

— Horrível — ele diz à Kib. Degusta demoradamente. — Mas me sinto melhor.

Acendemos uma fogueira azul na calada da noite. Aos poucos vamos relaxando sobre a poeira do chão e a sombra de um rochedo alto. Ainda assim reluto em adormecer, mas quando sou acordado abruptamente por Kib, lembro-me dos sonhos confusos e ruidosos que tive.

— É Jorkwill — sussurra ela, ofegante. — Ele sumiu.

Há algo de podre assolando o ar, diferente do fedor exalado de nossas roupas ainda úmidas pelo escapamento do esgoto. Só consigo imaginar que seja meu hálito após ter comido tantos Casulos-Rochosos.

Saímos à procura de Jorkwill, com nenhum rastro possível de se ver no escuro, apenas mesmo com a intenção de achá-lo, e pela intuição de Kimber.

Descobrimos espécies esquisitas de seres luminosos voadores da noite, uns pequenos e outros maiores que meu punho. Não há tanta escuridão quando os olhos se acostumam. O cheiro podre de minhas vestes parece bloquear os sentidos dos predadores. Estamos em um horário da noite onde as estrelas iluminam tão forte quanto se pode, juntamente com a difusa luminosidade azul dos rochedos.

Numa rajada de vento Kib aproveita para falar:

— E se ele tiver encontrado a entrada para a base militar humana, o Esgoto,e está só nos esperando por lá?

Mal consegui ouvi-la, e é depois de um minuto que entendo suas palavras.

— Impossível — respondo, identificando seu nervosismo na pergunta.

Atingimos pontos desconhecidos para mim, mas Kib quer continuar, e me relembra acusadoramente que Jorkwill havia me poupado a vida.

Finco as mãos nos bolsos num dito momento. Num deles está uma arma roubada de Escarla, e no outro, onde deveriam estar os cristais violáceos de mutação, há um espantoso vazio. Era minha segurança declarada para os confrontos. Inquieto-me em pensar.

Dever algo assim, uma dívida de salvamento de vida, me parece ser como uma daquelas promessas que não se deve quebrar. Mas conheço os tipos de pessoas que são como Jorkwill ao lembrar-me das palavras sábias de meu líder, Heiden, que diz que nunca devemos esquecer o foco, principalmente na companhia de alguém que não quer o nosso bem.

Heiden realmente é bastante experiente com os problemas, é a inspiração da quase extinta raça humana, observo.

— Venha por aqui — chamo-a.

Deslizamos sobre um rochedo em formato quadrangular. Tenho que segurar minha acompanhante devido a seus movimentos desajeitados, mas até que ela vai bem nisso para uma principiante. Dou um salto quase no fim do rochedo antes de me chocar contra outras rochas e caio sobre a areia. Da forma como fiz, olho-a tentar repetir. Mas Kib pega um embalo diferente que só termina quando seu rosto enterra-se no chão. Claro que isso não pode machucá-la, o solo aqui é fofo. Talvez me desculpe com Jorkwill algum dia pela minha falta de cavalheirismo agora...

Chegamos perto da praia, e todos os locais parecem iguais por aqui.

— Onde está Jorkwill, Kib? — pergunto.

Ela me olha, aturdida.

— Não entendo — diz.

Impressiona-me ela continuar fingindo, mas a farsa dura até eu sacar minha arma e lançar-lhe o primeiro choque elétrico.

— Infelizmente meus cristais foram roubados — aponto.

Kib não precisa desviar do disparo, seu corpo está bem fortalecido, imune, e agilmente atinge-me com um dardo tranquilizante. Quando se aproxima, há um barulho vindo da direção do mar que a amedronta. Consigo ver isso dentro de seus olhos.

Momentos depois aparecem Síbian e Jorkwill, caminhando calmamente e prostrando-se ao lado dela. Os três agora me ignoram, estão fitando um ponto distante em meio às águas, onde não posso ver devido à minha visão adormecer lentamente.

Luzes brancas bruxuleantes propagam-se em minha visão e várias memórias estão sendo remexidas. Meus olhos ardem, eu sinto. E lentamente consigo abri-los.

Há Zainos de diferentes tipos rondando os céus.

Estou novamente em pé, demonstrando um bom desempenho físico, tirado não sei de onde. Agora existe apenas um combatente em vista, a Corrompida Síbian.

Suas feições humanas dilatam-se após suas roupas serem extintas e darem local a um corpo enegrecido com asas douradas. Ela transformou-se numa daquelas criações científicas luminosas da noite, tão artificial quanto às árvores de frutos venenosos. Nunca havia presenciado tal alteração dessa forma a olhos nus.

A ex-Síbian voa, desviando-se dos tiros. Paro por um segundo. Vejo-a fazer um trajeto no ar, dando voltas triangulares. Suas asas brilhosas são meu guia de localização. É então que se prepara para um golpe típico. No último instante me desloco para a esquerda e a acerto com uma rajada de luz azul em suas asas, que chamuscam, fazendo-a capotar após perder o controle. Surpreendo-me pelo raio emitido, achei que a arma só continha disparos elétricos e não tão mortais, mas devo ter ativado uma nova função sem perceber.

Acontece com bastante rapidez a reação do Zaino Síbian. Sou nocauteado ao não prever o movimento seguinte e mais uma vez recebo o chão caloroso. Ouço a voz ranhosa ralhando.

— Lembra-se bem de mim, rato do esgoto? — sibila ao me virar, dando um soco na mão onde seguro a arma e derramando sua saliva venenosa sobre meu rosto.

Síbian, a antiga humana Corrompida, que de capitã das tropas de Escarla foi promovida a uma nova forma de Zaino falante. Seu hálito denunciador é ainda sufocante. Ela me encara com os novos olhos cheios de labaredas e espreme meu corpo na areia com seu peso descomunal.

— Sabe o que eu faço com os Filhos do Esgoto que encontro? ARR...

RAAAAAAASH!

Esse é o som de uma criatura sendo chamuscada por um choque de eletricidade néon.

O impacto não foi o suficiente para arremessá-la tão distante, de modo que seu corpo grotesco está ao lado do meu, ainda com vida. Levanto-me com certa dificuldade.

— Não queria interromper seu discurso — digo ao pisotear seu pescoço com firmeza, limpando parte da sujeira que fizera cair em meu rosto. O que pouco antes era uma Zaino-Falante agora é uma forma animalesca e trêmula ao chão, com pele de ferrugem por onde transborda um líquido oleoso fumegante. Uma de suas garras segura meu pé com firmeza e eu atiro no ombro dela, que se encolhe um pouco, mas não solta gemido algum. — Vamos mudar isso, Síbian. Sei que o que você vê aqui está sendo assistido por todos os outros. Então, veja. Vejam todos — noto uma leve movimentação atrás de mim e parto-lhe o tronco ao meio, suas pernas caem com um baque, e o líquido oleoso jorra dali também, interminável. Seus olhos estão vivos, cheios de puro ódio. — Os humanos irão vencer a guerra! — Síbian deixa então de ter pescoço e de pestanejar.

O corpo de uma criatura de Escarla tem algum tipo de detector, então rapidamente jogo os restos da coisa no mar Escarlate. Suas partes boiam e possuem um efeito efervescente que faz com que logo se diluam. Arremesso ali também tudo o que possa dar indícios de uma luta recente.

Duas pedras de mutação que achei nas vestes frangalhadas da antiga Síbian estão agarradas à minha mão, na outra há uma arma leve que acabara de salvar minha difícil vida.

Engulo o cristal, apenas um é suficiente. Sinto a força brotar por meu corpo no instante em que começa a se dissolver no organismo. Meus ossos param de doer.

Uma nova Conversão com êxito.

Olho pelos arredores, audição e visão turbinada. Não noto ameaça nem espionagem. Pego um impulso longo, corro e mergulho para o fundo daquele oceano de águas escaldantes e ácidas, rumo à secreta base militar humana.

Nado para a ilha Terra.


EVELYN

Abandonados

Poderia ter sido outro garoto, e talvez as coisas fossem menos tristes agora.

Meus pais perderam a voz e a vontade de sair de dentro de casa. Quiseram essa situação e, de qualquer modo, não há mais o que se ver após estas janelas. Só restou a destruição que banhou o mundo.

Eu grito e esperneio no escuro de meu quarto. Deitamos para dormir quando o cansaço nos atinge, pois a noite desapareceu para sempre e os horários desordenaram nossos hábitos. As janelas quebradas libertam poucos raios solares, que fico tapando como se fossem goteiras.

— Johan se foi — escrevo no caderno velho de folhas úmidas. Não restou quase ninguém. Quando a maior parte da população foi embora, meus pais e eu ficamos em casa, ouvindo músicas no velho rádio portátil, com fitas antigas, gastando as últimas minúsculas pilhas que deveriam existir no planeta.

Meus pais não se importaram de serem deixados, queriam isso mesmo, mas sua filha aqui tinha outros planos. Planos destruídos. Planos esquecidos.

Ainda lembro-me de quando ele, Johan, disse em nosso último dia de aula. “Se eles não querem aceitar, vamos fugir juntos.” A escola e vários outros edifícios desabaram com os terremotos que surgiram logo após aquela data. E ele não apareceu no local marcado, e eu continuo a gritar, e as lágrimas já secaram, e meus olhos endureceram, e eu quero esquecer, esquecer, esquecer...

— Prometo que vou te esquecer — estou falando para as poucas fotos reveladas enquanto as rasgo uma por uma. Não há mais Internet, portanto não há como fazer o mesmo com as redes sociais — bani-las de minha minguada existência.

—Eles já nos apagaram mesmo! — as palavras são altas e meus pais deixaram de dar importância ao meu solitário falatório. Tenho adquirido hábitos rudes e imagino que venho sendo um espelho do planeta Terra — desmoronando, os rios de lágrimas estão secando, o brilho solar parou pela metade do mundo, deixando uma fatia sombria, como metade de meu ser está.

A diária demora das horas me arrasta penosamente ao ar esfumaçado que encontro após atravessar a porta sem fechadura. Não aguento fitar as paredes verdes e desiludidas que há dentro daqueles cômodos, no curto espaço de tempo em que fico acordada. E sei que terei chances de parar o ronco esfomeado de meu estômago somente lá fora.

As ruas são perigosas — não mais devido a assaltantes, e sim aos terremotos, enchentes e buracos que se abrem no solo sugando o que estiver por perto.

A Terra está indo embora lentamente, e os famosos prédios de alistamento foram fechados. As naves espaciais encontram-se todas em Marte, e os recentes colonizadores estão recomeçando uma vida próspera por lá, segundo afirmam os panfletos que decoram e moldam as ruas rachadas.

— Lixo são vocês! — eu grito em direção ao prédio rodeado por cercas de arame farpado. Uma cabeça sobressai-se e mostra-me um sorriso caveiroso de uma das muitas janelas altas estilhaçadas. Desde a última revolta, onde uns poucos humanos abandonados se mobilizaram para tentar destruir todo e qualquer prédio do governo, este aqui fora um dos que ficou bem mais conservado. E por ver o desconhecido eu solto outro grito, mas só pelo susto. Ele pode ter uma arma e acabar comigo agora mesmo. Estou pensando que quero que ele o faça, logo antes de o mundo tratar do serviço. Porque quando tudo explodir eu serei liberada no espaço numa forma de poeira fragmentada. Talvez essa poeira chegue até Marte, talvez essa restante parte de mim alcance o ar que Johan respira e lhe cause um ataque de tosse que, consequentemente, o matará. Essa seria a vingança e o preço por ter me deixado, por não aparecer no lugar marcado, penso com humor negro.

— O que está fazendo aqui? — ele grita do alto, o velhote de roupas gastas e amareladas. Percebo que ele deve ser apenas mais um humano deixado para trás, que por ventura conseguiu se infiltrar no prédio e está a vasculhar algo para se comer. É o que eu deveria estar fazendo.

— Nada, vou procurar em outra área — eu digo a ele, que parece não compreender minhas palavras e nisso as repito.

— Não, o que está fazendo aqui ainda? — torna a perguntar.

— Já disse que vou sair! — viro-me e caminho em direção aos destruídos supermercados. Ainda deve haver algum enlatado de milho por baixo de um dos telhados que veio ao chão, estou imaginando-me até com um pouco de sorte para encontrar algo mais saboroso que isso.

O arroz cinzento que antes nos era fornecido gratuitamente, a ração, como minha mãe começara a gritar aos ares abafados de nossa casa, foi cortada assim que o canal politico deixou de existir. O prédio do governo local foi abandonado, e o planeta não teve mais tantos ocupantes além dos esquecidos, como eu. Meus pais se opuseram ao regime imposto e, embora eu também não fosse contraria a decisão tomada, queria ir com Johan no alistamento. Queria ver o novo mundo, o novo lar, a nova e reformada Marte. Queria ser uma guerreira em outro planeta, queria aquele garoto ao meu lado, queria, queria, queria...

— Vou esquecer você! — estou outra vez gritando sozinha.

Não restaram muitos animais também, mas não que foram selecionados para embarcar nas viagens até Marte, eles apenas estão lentamente morrendo, de fome ou ao enfrentar as novas estações do tempo. Há um inverno glacial e um verão dos infernos dividindo o planeta agora. A Terra parou seu movimento de rotação depois que as primeiras explosões atingiram a América do Sul, fazendo a vida desandar desde então. E os sentimentos perderam seu valor, e o garoto que eu gostava, e acreditava que me amava, foi parar em outro mundo. E ele não compareceu ao local para onde fugiríamos juntos, em oposição aos meus pais. E meus pais entenderiam minha ausência, poderiam me ver um dia, se fizessem esse esforço. E... Meu esforço em acreditar que eles sairiam desse lugar é que está sendo imprestável. Pensar nas possibilidades perdidas é mais inútil ainda.

— Vou esquecer tudo — eu grito outra vez, sozinha.

— Isso é bom — assusta-me outra voz.

E ele aparece. Não Johan, mas o senhor de cabeleira grisalha e dentes em falta que vi no prédio abandonado minutos atrás. Penso que devo conhecê-lo de algum lugar, mas meus sentidos embaraçados estão me avisando que é melhor correr, esconder-se e gritar mais ainda. Outra parte da memória informa-me de que não devo demorar a voltar para casa, pois meus pais vão se desesperar e pensar que a terra já me engoliu, ou que o fim estará chegando para eles hoje, ou que...


— Por que você ainda está aqui, garota? — ele me diz outra vez e eu berro com extrema raiva. Quem agora está invadindo minha área é ele, portanto, tenho direito de permanecer onde estou.

— Quero saber por que ainda está nesse planeta — sua voz causa ecos na minha cabeça e os olhos avaliam-me criticamente. O olhar dele segue minhas roupas maltrapilhas sobre um corpo sujo. Banhos e roupa lavada eram ofertas da vida anterior. Não demonstro importância em encarar as mesmas características do intrometido.

— Por que não tem mais naves? — respondo em forma de pergunta, e ele, talvez ouvindo uma nota triste em minha voz, o que na verdade está lotada, começa a chorar. Mas não com fungados, poucas lágrimas derrapam de seus cílios grossos e fazem um rastro de sujeira por seu rosto cheio de rugas, criando cascatas disformes.

— Evelyn, Johan não teve culpa — ele toca aquele nome e eu me afasto aos tropeços. Ele sabe o nome do garoto. Talvez tenha me ouvido gritá-lo, é claro.

— Não chegue perto — disparo a correr e ele chama outra vez por meu nome. E dou importância de que ele sabe meu nome somente agora, com a certeza de que não o pronunciei nos últimos meses.

— Evelyn, venha comigo! Vamos para onde Johan está...

— Eu vou esquecer Johan! — grito, cortando suas palavras e parando de correr. Perco o fôlego com pouco esforço e meu estômago pede alimento. — Eu vou esquecer tudo. Vou esquecer você, e... Espere, não o conheço. Eu vou esquecer, apenas. Esquecer, esquecer, esquecer...

— Evelyn, Johan não se esqueceu de você. — é isso que ele diz. Uma mentira.

— Só sei que vou esquecer tudo — fito-o com grande demora e começo a ver a semelhança daqueles olhos com os do garoto que não compareceu ao local marcado. Do garoto que um dia frequentara a mesma escola que eu. Este senhor possui aqueles olhos, nisso percebo tratar-se do pai de Johan a minha frente, a pessoa que esqueci inicialmente.

— Eu mandei Johan se alistar no dia errado, me perdoe — ele fala, me fazendo compreender que pode ter sido ele o culpado do terrível desencontro.

— Saia daqui! — grito ao seu rumo e a arma que ele levanta em minha direção é pequena e diferente das que reconheço. Meus olhos brilham. E o mundo logo me tragará em poeira, eu penso.

— Destrua-me — estou agora lhe pedindo. –— Vou esquecer tudo. É tão bom esquecer tudo. — Vejo que seus olhos baixos retornaram a ganhar lágrimas. Por que será que está chorando?

— Alguém sempre se lembra de nós, garota Evelyn — o tiro atinge meu ombro esquerdo. Desabo junto aos escombros do já destruído supermercado. Meus olhos vislumbram as nuvens no céu, elas são escuras como minhas mágoas e parecem ter um gosto salgado também, pois as vejo descendo até meu rosto e tocando os lábios.

Sobre meu ombro há uma dor aguda se proliferando. Retiro dali um pequeno dardo tranquilizante quando o atirador me ergue sobre suas frágeis costas. Meu mínimo tamanho e traços magros o ajudam na velocidade de seus trêmulos passos.

— Vou esquecer tudo — estou murmurando antes de a escuridão convidativa chegar. Meu dia esteve claro por tempo demais, já era hora de se desligar.

— Esquecer é o melhor que você faz — mal ouço esta sua última resposta.


JOHAN

Recordações

 

Em meus pensamentos flutuam os dois casos: Jorkwill e Kimber. Aquelas duas formas gentis de seres que de alguma maneira burlaram o regime Escarlano ao conseguirem o domínio de suas mentes humanas, os sentimentos de volta, não passavam de um truque do reino Escarla para achar os caminhos para a base Esgoto, através de mim.

Devo ter surpreendido a todos os outros, afinal.

E sinto-me péssimo. É a sensação que deve ocorrer às pessoas que conseguem companheiros, e os perdem: estão dependentes da presença amigável. Sua falta é traiçoeira, dolorosa.

Nado ligeiramente por uma hora, ou mais que isso. Meu corpo sendo protegido pelo efeito químico do cristal que sei que não deve durar tanto. Percebo que já não entendo as rotas como antes, a paisagem submarina está diferente. Não era esse o ponto onde eu deveria ser encontrado? Perto do navio de metal caído de ponta-cabeça, lembro-me disso.

Passo longos períodos debaixo d'água com pouco oxigênio nos pulmões, um dos feitos que os cristais de mutação me permitem.

Imagino-me no meio do mar Escarlate, meus pensamentos estão de fato perturbadores. Criaturas medonhas habitam o fundo, a parte da qual me distancio, e estou nadando tão velozmente que tampouco sou notado por elas, mas ainda vejo olhos com brilhos curiosos como estrelas no manto preto das águas. Posso sentir seus desconfortos e deslocamentos, sua agitação atormentada enquanto passo por perto, e eles não entendem minha forma e agilidade. Não espero tirar suas dúvidas também.

Volto a nadar ao redor do navio quebrado, arrisco ir ao fundo e sou eletrocutado por uma enguia. O choque quebra parte do efeito químico em meu corpo, pois sinto uma necessidade urgente de ar. Minha agilidade toda se desprende quando me vejo sendo o alvo de uma segunda investida do animal. Meu nado é mais lento para contornar, e quando sofro o segundo choque, vários flashes me transportam ao passado.

Feixes de luz branca se propagam. Bolhas giratórias surgem, um redemoinho delas...

Retorno alguns anos. Estou no momento pelo qual os humanos foram devidamente conhecidos com o termo Filhos do Esgoto, quando o primeiro grupo se abrigou nos esgotos do reino de Trístan. Vivendo basicamente de roubo, nos passando ainda como antigos moradores, Corrompidos seguidores do regime, pintamos símbolos diversos em nossas testas diariamente. Então, para não serem encontradas certas “informações desnecessárias” na Checagem de Mentes, usamos uma espécie de loção facial que quebra o efeito das máquinas, um produto desenvolvido por cientistas que ainda estão do nosso lado.

Somos convocados a reuniões sigilosas quase todo dia e voltamos sorrateiramente para os esgotos. Heiden é o nosso líder de equipe, ele fala bem e tem planos bons. E é nesse dia que sinto falta de uma garota, uma amiga. Síbian. Hoje ela não veio para os esgotos, não a encontro. E penso que ela tem sorte, pois tudo está desmoronando. O teto desaba e vários dos presentes são soterrados comigo. Alguém me arrasta para fora do grande muro, que está quebrado, e na adrenalina, meus pés redescobrem o ritmo da fuga.

Já sabíamos que era um esconderijo temporário, mas parecia ser o local perfeito, debaixo do nariz do inimigo, assim falavam.

Na correria por entre a floresta vermelha, cuja grama está ardendo em sua luminosidade sanguinária, há pessoas sendo transformadas em pó, em líquido. Outros fugitivos são arrancados do chão por guardas Zainos Voadores, para logo serem devolvidos ao solo com extrema crueldade.

Escurece rápido, estamos nos movendo por baixo de montanhas afiadas agora, a área dos Rochedos. Comemos Casulos-Rochosos azedos. Agimos no maior silêncio possível, e qualquer ruído causa espanto geral. Estou procurando minha mãe. Meu pai eu já sei que se tornara um Corrompido por livre vontade.

Há pessoas chorando, e o susto ainda me é tão terrível que não consigo assimilar as coisas. Sou um dos poucos garotos restantes, e minha mãe não saiu a tempo dos esgotos de Escarla.

Quando dizem que podemos dormir, a noite é a mais longa e fria que eu já passei em todos os meus poucos catorze anos de vida. Na primeira noite dormimos com o mesmo soluço compartilhado, baixo e discreto.

Os dias passam nessa vida diferente, com sonhos difusos. Aprendo a manejar melhor uma adaga, e invejo os que possuem idade e habilidade para treinar com uma arma a laser. Participo da primeira captura de comida Escarlana e me saio melhor que muitos dos mais velhos. Tenho habilidade para escalar muros e rochedos, isso está sendo meu diferencial.

Os mais adultos num certo dia chegam com objetos metálicos que produzem ruídos estranhos. Alguns sabem desvendar aquilo, e ouço-os falar que podem usá-los para navegar pelo oceano. Nas semanas seguintes já estamos nos empenhando em construir uma embarcação com os objetos recolhidos. Demoramos meses com esse projeto, mas Heiden, um simples humano, está batalhando e incentivando a todos sempre. Nós o elegemos como nosso líder oficial a partir de então.

Por fim, chega o dia em que damos início à navegação. Já recebi muitos treinamentos de luta e ganhei um ano de experiência, tenho músculos nos braços magros. A alimentação é à base de um arroz cinza e ninguém reclama, por ser um alimento melhor do que nada.

E nenhum treinamento foi bom o bastante para tirar as náuseas que sinto nos intermináveis dias navegando num mar de cor odiosa. O metal do navio esquenta, mas há ainda algo o revestindo que melhora um pouco o desconforto do calor. Assim como Trístan possui seus Cientistas Corrompidos em Escarla, temos a aqui nossa equipe de capazes. Como os Pesquisadores e outros.

Heiden comanda tudo com punhos fortes, ele nos encoraja a cada dia.

Desembarcamos na primeira ilha que encontramos. Ela é imensa e visivelmente desabitada. Corais mortos a revestem, exalando uma poeira tóxica que fatalmente mata o primeiro tripulante a pisar em seu solo.

Nos oito meses seguintes, a ilha continua visivelmente igual, mas a poeira mortífera foi retirada. Descobriram que ela pode ser usada para produzir fogo. Não entendo esses assuntos, mas há sempre um humano ali com uma habilidade em criar algo de bom uso.

Moramos no subsolo para tornar o ambiente secreto, onde, com as demoradas escavações, foram encontrados diferentes minérios. Até mesmo esqueletos estranhos de moradores extintos do planeta vermelho.

— Johan — chama a voz de minha mãe. — Já está na hora.

Confundo-me.

Mãe?

Já tenho quase dezessete e estou conversando com alguns colegas, ficamos sentados ao chão do Grande Centro, que é a sala mais ampla da base Esgoto, perto das plantas brotando do solo. Recebendo os poucos raios de luz solar vindos do vidro acima. Essa parte é como uma estufa. O único lugar onde não me sinto claustrofóbico. Alguns aproveitam para vir aqui nas poucas horas do dia onde não estão trabalhando ou ajudando em algo, como em plantações, por exemplo. E me refiro às que dão frutos saudáveis e de folhas verdes.

A ilha em si fora batizada de Terra, uma homenagem ao nosso antigo planeta. A localização da ilha Terra é um segredo nosso, mas sua existência não.

Para qualquer Escarlano, um refúgio humano sempre será conhecido como Esgoto,então, para a base, decidiu-se usar o dito nome já imposto.

Heiden incita continuamente que logo mostraremos a todos do que os Filhos do Esgoto são capazes.

— Johan — repete a voz.

Mãe?

Sou içado de volta à vida. Meus ombros doem, minhas pálpebras querem se mover.


KIMBER

Incertezas

Tão rápido retorno ao sussurro do passado, na breve passagem que mais admirei depois de habituada ao novo planeta, à nova casa. Sei que é uma espécie agradável de sonho e com isso me sinto segura em explorar os resíduos de lembranças que chegam lentamente, onde encontro o garoto dos olhos escuros e sorriso difícil.

— Amanhã recebo outra daquelas missões — está contando-me Jorkwill. — Preciso furtar armas de choque, nosso armamento está com falta delas. E no momento não tem companheiro disponível para ir junto, terei de ir nessa só.

— Me leva com você — eu peço a ele. Estamos numa sala escura e apertada, cheia de sacos de estopa. Há uma janela aberta acima de nós oferecendo uma bela vista do céu estrelado. Jorkwill achara este lugar tempos atrás, e nenhuma outra parte da base militar possui uma saída tão rápida como esta.

— Claro que não! — sua frase inicial me desaponta. Ele tem acompanhado diariamente meu desenvolvimento com os treinos e sabe do meu potencial. — Não tem ideia de como é perigoso lá fora...

— E se você não retornar? — solto antes de segurar a melancolia que se agarra a minha voz.

Na escuridão ouço seus poucos passos chegarem até mim, e suas mãos achando as minhas com a mesma rapidez até começar a afagá-las.

— Quero que fique segura — ele defende.

— Quero que fique seguro — devolvo o conselho.

— Eu ficarei bem — está afirmando e meus ouvidos desacreditando em sincronia.

— Como vou ter certeza? — e nessa pergunta torno a lembrar de minha mãe, após um momento semelhante ao nosso. — Agora parece que o perigo é ainda maior, além de você ter de ir sozinho.

Jorkwill me beija pela primeira vez ali, as palavras logo se tornam desnecessárias e dão lugar aos toques arriscados, as carícias. Nossa amizade sempre fora perigosa assim, e hoje foi o dia ao qual rompemos essa categoria para outra mais perigosa. Entregamo-nos aos cuidados mais detalhados um do outro e despimos nossos medos, acompanhados com o olhar sorrateiro de poucas estrelas lá fora.

— Kimber, você e eu seremos felizes juntos. Eu prometo — ele diz ao sentar-se sobre os sacos de estopa e me puxar em seu rumo de encontro à parede.

— É o famoso cristal de mutação? — eu seguro a pequena pedra que ele me oferece e tateio seu formato, minha visão pouco captando seu leve brilho. Sempre ouvi falar deles e do que causam ao corpo. Dos benefícios se tomado com moderação e dos estragos quando usados de maneira exagerada.

— Quer fazer seu primeiro teste agora? — ele me propõe e como é Jorkwill, eu aceitaria qualquer desafio.

— Com calma — ele me adverte. — A primeira Conversão de alguém pode ser difícil...

Estamos colados e acolhidos pelo chão do cômodo secreto. A pedra de mutação encontra-se nos lábios de Jorkwill, esfarelando-se aos poucos. Quando seu corpo começa a estremecer eu beijo-o para roubar a metade restante daquele medicamento em forma de cristal.

Minha primeira Conversão só não acorda a base militar Esgoto inteira devido as ágeis mãos de Jorkwill que taparam minha boca antes dos gritos esgoelados saírem. A energia que escorre por cada centímetro de meu corpo me faz ter vontade de levantar um tanque de guerra com a força de meus magros braços, o que seria um feito desastroso.

— Na primeira Conversão nos sentimos invencíveis — ele me confidencia e confirmo.

Meus pensamentos aglutinam-se e misturam-se a outras lembranças, onde começo a notar a falta de grande parte da minha vida. Para onde foi minha infância? Essa área parece que fora apagada sem meu devido consentimento.

— Realmente, o cristal proporciona energia para todas as partes do corpo... — o que digo rápido e sem pensar faz com que Jorkwill se afaste um pouco, envergonhado.

— Não preciso dele para ficar desse jeito... — ele defende-se e um calor toma conta de meu rosto ao entender do que estamos falando. Permaneço quieta e depois piso em toda timidez. Aproximo-me dele e calo nossas palavras com beijos por longos momentos.

— Quero que guarde estes dois — ele me passa duas das pedras de mutação quando o sono e a manhã começam a nos ameaçar.

— Você não vai me levar? — ainda reluto em perguntar, torcendo para que esteja falando coisas com sentido enquanto me desvencilho de seu corpo seminu.

— Ao meio-dia compareça ao Grande Centro — ele beija minha testa, sua voz é autoritária. — Esteja pronta para seu primeiro assalto ao reino Escarla, soldado Hills.

Ainda penso que se não tivéssemos agarrado as mãos um do outro em nossa viagem para este planeta, essa minha primeira missão junto a Jorkwill não teria existido, nem resultaria na certeira captura que ele sofreu horas depois pelo reino. Talvez eu me encontrasse sendo apenas uma Pesquisadora, com intensa saudade da mãe que fora deixada no planeta vizinho, e buscando inovações para a tecnologia dos humanos refugiados com base nos recursos que são furtados todos os dias do reino Escarla.

De qualquer modo, não suporto imaginar minha vida sem a existência dele, do garoto que se tornou um homem tão rápido e que deixou conservada uma destacada beleza no olhar gentil e esperançoso.

— Kimber? — chama-me uma voz distante. Com o som do chamado sinto-me disposta a largar os sonhos nebulosos, deixar os acontecimentos ruins de lado e mergulhar na verdade daqueles olhos marcantes, na voz daquele que me desperta.

— Kimber Hills — entrego-lhe até meu sobrenome.

— Jorkwill Walter — ele repete o ato em sua voz rouca e tão aceitável para mim.

— Você chamou meu nome diversas vezes enquanto estava adormecida — ele diz e sorrio com estas palavras. Árdua é a saudade de senti-lo tão real e próximo.

Encontramo-nos sobre um largo salão com teto de vidro, onde uma estranha luminosidade declina do teto, parecendo até nuvens brilhosas. As estrelas estão todas grampeadas no céu mais acima.

— Esta é a Sala da Verdade — me diz Jorkwill. Ergo-me e fico sentada no pequeno bloco acolchoado, onde percebo a existência de outros idênticos ao que estou formando extensas fileiras, mas todos desocupados. — Ou Sala Estrelar. É aqui que as verdades são devolvidas. Mesmo que ainda continue um certo problema...

Meu olhar o segue ao captar sua última palavra, pois ela representa sofrimento. Problema e sofrimento são parceiras de catástrofes, e eu já provei doses o bastante disso.

— Problema?

— Não se preocupe ainda — ele tenta acalmar, mas já sendo meio tarde. — São os chips que implantaram em nosso cérebro, Kib...

— Seja bem-vinda, Kimber — saúda-me um senhorzinho de cabeleira grisalha, usando óculos que nada escondem as olheiras por trás dos cansados olhos. — Sou o John. John Stanford.

Sei que espécie de pessoa ele é. Um Cientista Corrompido, um Escarlano, e as definições raivosas que surgem ficam contraindo-se em minha mente, o que causam pontadas no interior de minha testa.

— Sabemos que precisa descansar melhor até desativarmos o chip — o tal cientista pousa uma mão no ombro de Jorkwill, que não vê problema algum com o ato. — Toda vez que você vê uma coisa que desconhece, aciona um pequeno trailer de imagens na sua cabeça, Kimber. Essas imagens mostram que tudo é perigoso e desconfiável, menos seus antigos companheiros...

O que o cientista fala começa a minar para uma confusão interna, onde a vontade de avançar sobre ele e o deixar inconsciente se atropelam com o cansaço e as dores em meu corpo. Ele é um Corrompido, e Jorkwilll...

Jorkwill também é um Corrompido, lembre-se.

Lembre-se.

Eles são desconfiáveis.

— Kimber, precisamos mostrar a verdade para todos os alienados — Jorkwill está me dizendo e reaproximando-se de mim. — O próprio filho do Dr. Stanford é um alienado, e estou querendo trazê-lo para a segurança desse lugar.

Segurança...

Segurança? Como aqui pode ser seguro?

— Kimber, as crianças azuis querem conhecer você — o cientista novamente toca em meu nome.

Crianças azuis... Eu matei uma criança azul.

Segurança...

Desconfiável...

Corrompidos...

As informações foram pesadas e a verdade me achatou. A névoa era mais segura e apeguei-me novamente a ela.

— Quando acordar outra vez, eu te peço que espere ela fazer as perguntas — uma voz distante que ainda me causa incômodo, continua se sobressaindo, mesmo após meu mergulho no mundo macio dos sonhos. — Aliás, você está precisando descansar também, rapaz. Se dê uma folga, não é de ferro.

— Eu quero estar aqui quando ela acordar — é o que a outra voz responde, e com ela me sinto leve e embalada para sonhar.

O dia em que me despedi de minha mãe e do planeta Terra retornam ao meu encalço. E uma fração de minha consciência sente-se aliviada de saber que Jorkwill me aguardará num futuro tão próximo.

Ele cumpre suas promessas, o novo homem dos olhos marotos.


JOHAN

Sussurros

Pelas experiências em laboratórios do inimigo com as Checagens, sei que estão revisando meu cérebro neste instante. Devem estar vendo muita lama. Administrando a confusão que são meus dias.

Alguém está reclamando de soro e de alguma espécie de antibiótico. Estou deitado numa maca dura e meu corpo está frio e suado. Vez ou outra meu rosto inerte é tocado. Sinto-me estranho por estar tão fraco. Sempre drenam quase toda minha energia quando sou capturado.

Noto algo diferente no ar, as vozes. Vozes familiares. São risos gentis. O que pode estar acontecendo? Minhas lembranças sendo emitidas em alto som? É nessa atual curiosidade que abro os olhos. Há aplausos. Estou na enfermaria da base Esgoto, mas ainda sem completa confiança disso.

— Bem vindo novamente, Johan — saúda-me a Pesquisadora Doroth. Ela cuida basicamente da cura de corpos danificados. — Como se sente? — pergunta.

— Bem — digo. — Bem melhor do que antes.

Alguns sorriem com isso.

Observo ao redor. Heiden está ali, ele acena para mim e direciona algumas palavras para outro cientista antes de sumir do local. — Trabalho terminado por aqui.

— Você nos ajudou muito — diz um Pesquisador que não me lembro de nome, mas de rosto, um humano com feições magras. Em geral todos são magros devido à precária alimentação. — Obrigado. E a arma! Era aquele tipo de energia que ela emite que precisávamos analisar.

Tento sorrir, mas o gesto em meu rosto é demasiado rígido para parecer sincero.

— Penso que poderia ter pegado mais coisas, informações melhores — falo. — E a arma foi por conta de um incidente.

— Não, está tudo bem — suaviza Doroth. — O que chequei em sua mente é valioso o suficiente. Podemos entender os pontos até mesmo de onde você não estava observando. Sabemos melhor sobre o funcionamento dos Cientistas Corrompidos graças a você. Fez um trabalho tão bom dessa vez, Johan!

Minhas lembranças sendo revisadas. Nada tranquilizador.

— Checagem de Mentes não é o ofício deles? — arquejo, olhando para outros rostos ao redor, notando que alguns ficam receosos diante de minha referência aos cientistas de Escarla.

A Pesquisadora fala:

— Johan, querido, está conosco. Não precisa se preocupar com isso, precisa? — ela pega minha mão e aperta. Enrijeço. — O trabalho deles é apagar memórias, o nosso não. E você é nosso meio mais eficaz para tirar dúvidas.

O último comentário dela me deixa nervoso.

— Todos são eficazes à sua maneira! — interrompo, pensando em meus antigos companheiros humanos, no quanto lutaram para voltar à base Esgoto com coisas novas. O quanto lutaram por suas vidas. Os que a perderam, os que ainda estão sobrevivendo nesse mesmo momento. Penso que eles estão sendo desrespeitados por um simples comentário de uma Pesquisadora.

Imagino que a coisa esteja mudando por aqui.

— Quando foi que bajulação tornou-se tão comum? — pergunto, desafiando-a no olhar.

Doroth simplesmente se afasta, une as mãos uma na outra. Sua roupa cinzenta me traz um cheiro de mofo na lembrança, e percebo que meus pensamentos estão reprisando-se através de um televisor logo atrás de mim, o que deixa ambos inquietos e enrubescidos.

— Sua pressão está subindo muito — fala Doroth, e sem que eu me interponha, ela aperta um botão num painel ao lado da maca e me desativa do mundo.

Meu sonho está atulhado de vozes.

Vejo meus companheiros do Esgoto lutando com diversas criaturas. Há fotografias velhas, de pessoas ainda da Terra civilizada com suas famílias felizes. E sobre imensas janelas de edifícios surgem plantações verdes, com frutos viscosos sendo queimados por máquinas. Uma gargalhada indecente prolonga-se no sonho. É o riso do inimigo, do rei Trístan. Ele se aproxima de onde o estou observando, suas asas batendo frenéticas e seu rosto sem feições. Percebo pela primeira vez que nunca o vi tão de perto. Depois vem uma verdade: nunca vi Trístan. Nunca o achei em seu edifício no reino Escarla quando algumas vezes tive o intuito de matá-lo pessoalmente. Sei que devo ter chegado bem perto, mas sempre fui impedido por algum acontecimento, alguma explosão. Era como se o destino nos separasse e ele cuidasse à distância de separar-me das pessoas que amo. Mãe, irmãos, companheiros... Em seguida, Trístan, através de um rosto vazio, começa a entonar todos os nomes das pessoas que conheci e foram capturadas. Há uma arma diferente, uma do antigo período terrestre, em minhas mãos, e a estou apontando para ele, que recomeça a rir quando me vê.

Estou a ponto de apertar o gatilho quando acordo, com as mãos vazias unidas para o alto, mirando o teto. Encontro-me numa cabine, um dos muitos quartos da base na ilha Terra.Meu corpo está cansado, mas capto um ruído próximo. Não me movo.

Há alguém deitado na cama ao lado, alguém que deve estar observando meu estranho jeito de acordar.

— Sem comentários — determino, sabendo de quem se trata.

— Tenho os mesmos sonhos — ele especula. — Não direi nenhuma dessas mensagens otimistas pra você relaxar. Relaxar parece até impossível aqui, hein? — fala meu velho companheiro, Anders.

— Como foi sua última saída? — pergunto sem tanta curiosidade e sem encará-lo ainda. — Soube que você quase foi pego — minto. Surge-me de repente uma extrema vontade de conversar com alguém apenas por conversar.

— Não soube nada, é a segunda vez que você acorda desde que chegou — ele rebate, levantando-se e arrumando alguns itens em uma mochila velha. — Nunca notam minha presença — se gaba, e é só esta mentira que me faz rir de verdade desde tempos.

Sento-me na cama e observo que Anders, um pouco mais novo que eu, adquiriu minha altura e seus cabelos se encontram curtos e negros, não loiros e volumosos num mesmo corpo de palito como antes.

— Andaram modificando seu visual pra valer — debocho.

— Você sabe que faz parte. Suas feições podem ser reconhecidas no reino. E não gostaria nada de ser caçado por Zainos — ele fala sem se importar com meu tom, ou por não interpretá-lo direito.

— Todos nós somos caçados por eles — termino o assunto, agora meio aborrecido.

Após alguns minutos, Anders se dirige a mim novamente:

— É bom você estar preparado amanhã cedo. — informa. — Vamos receber a grande missão.

Respondo-o com certa amargura na voz:

— Tenho andado pensando nisso.

Anders reflete um pouco.

— Quer saber como será? — ele pergunta, e parece se deprimir com meu silêncio. — Não consigo nem fazer as pessoas ficarem curiosas — termina, e sai da cabine quando percebe que não falarei mais nada.

Decido sair também, segundos depois, e fico admirado com a velocidade do garoto em sumir de vista num corredor longo e vazio. Caminho observando a única foto exibida em fundo preto pelas paredes, o nosso líder Heiden com o queixo rígido e um olhar afrontador. Imito aquele olhar, é nossa inspiração também.

E não vejo nenhum dos cientistas, nenhum Pesquisador ou colega de quarto, quando entro taciturno pelo Grande Centro, onde os raios solares se espalham pelas poucas árvores verdes do local. Na verdade não encontro alma viva alguma. O único som de conforto por estar em um local habitado é o barulho dos soldados no treino, que vem do fim do corredor a minha esquerda. Som de socos em paredes propagando-se.

As salas abertas que encontro por onde ando estão vazias também. Nenhuma pessoa disponível, conhecida ou não, para conversar. Vagueio por um corredor diferente, escuro, e no final deste ouço o primeiro burburinhar de conversas.

— ... Desse jeito, guarde-o. Cada um ficará com um controle destes, para o caso de emergência, segundo Heiden nos informou — e então se calam por um tempo longo demais para que eu tenha paciência de ouvir por trás das portas. Não faço a mínima ideia do que falam. Ouço cliques e disparos, é apenas uma sala de treinamento qualquer. Decido não importunar aqueles seres com meu tédio e injúrias.

Resolvo retornar à minha cabine, torcendo para que Anders tenha voltado.

Perco o resto do curto tempo que tenho treinando diferentes formas de combate. A cabine continuava vazia. Especulo sobre como as pessoas que conheci mudaram. Como algumas até me amedrontam. Penso também no que nosso líder decidira para o dia seguinte. Uma aposta antiga que Anders achou que eu não adivinharia de cara.

Hoje é treino, descanso e concentração. Amanhã é a guerra.


EVELYN

Deletaçoes

Tento não pensar que a massa, a população completa, foi a grande causadora do modo atual de vida perdida. Não exigimos o bastante, não reclamamos das coisas certas no momento adequado. Seguimos conselhos fraudulosos. E agora eles tiram da nossa mente as lembranças, as experiências de vida, e plantam lá as suas ideias de progresso para esse novo mundo.

Tento não pensar, mas já sei parte da verdade.

Teve de haver uma intervenção especial para abrir novamente meus verdadeiros olhos, um humano com o juízo aparentemente em ordem. E até agora não entendo o porquê desse dito cientista, Corrompido declarado, ter reorganizado meu cérebro. Procuro lhe ser grata agora, mesmo que minha primeira ação tenha sido quebrar-lhe o nariz com um soco.

— Evelyn, Johan é a sua missão — foi o que ele me falou antes de eu lhe mostrar uma fuga acima do prédio. Fomos conhecendo-nos, seu nome é John Stanford, um cientista que trabalha fabricando armas e modificando certas mentes humanas. Às vezes, imagino que já o conheci de muito tempo atrás, mas é somente uma sensação retórica.

John também recebeu suas memórias de volta, como me contou, e desde então possui a tarefa de selecionar as pessoas apropriadas para só então devolver-lhes as lembranças. Fui uma dessas. Ainda não sei o motivo. Quem lhe deu essa tarefa ele não me diz, apenas que faz parte de um plano maior.

Ambos temos fingido ainda seguir essa espécie para nos proteger. Principalmente nós, Pesquisadores, somos submetidos à Checagem de Mentes. Burlamos isso diariamente com alguns truques. A cidade é vizinha a qual John me encontrara pela primeira vez, e desde então nunca mais pude ver meus pais. Talvez tenha sido melhor assim. Escolhi arriscar-me.

De qualquer forma, é bom cuidar dos próprios pensamentos e não se perder neles. E é ainda melhor não desejar morrer. Essa nova rotina me tirou da loucura que era meu passado.

Johan é o nome que nunca sai da minha cabeça desde então.

Aliso a pequena fibra implantada na parte inferior de meu polegar. Nela contém mais de minhas memórias humanas. John me diz que no momento certo as terei por completo.

Procuro ser paciente.

John fabricou asas de um plástico azulado para sua futura fuga. Um material raro encontrado em escavações, num planeta não mais habitável como antes. Quase não se acha nada de útil por este velho território.

Esse precisa ser meu último dia fingindo ser Pesquisadora para me tornar uma seguidora verdadeiramente cega. John prometeu devolver minha mente outra vez, porque irei esquecer-me de todos nossos atuais planos. Por isso paro de alisar os dedos, o local está ficando roxo. Não quero memórias estragadas.

Aciono os alarmes falsos no primeiro andar, e me desloco sorrateiramente por entre um grupo de guardas que passa correndo para o térreo do prédio. Os cientistas estão ágeis também, armados até os dentes, mas somente com o intuito de protegerem a si e a seus projetos; suas mentes são voltadas para isso.

Subo as escadas correndo com os outros, arrombamos a última porta do térreo e a primeira coisa a ser vista é um céu tempestuoso, um vento de derrubar árvores — se ainda existisse alguma ali.

John acaba de saltar do prédio.

Ele está atrasado, noto sobressaltada, isso quebra nosso plano. Os guardas começam a disparar em sua direção, mas ele já está abaixo, num campo de visão oculto. Sou orientada por outros a meu redor a correr até a ponta do edifício, e nisso avistamos um senhor de cabeleira grisalha, corpo magricela, alçar voo subitamente e esconder-se nas nuvens. Logo há helicópteros de busca o perseguindo e atiradores profissionais ao meu redor.

Alguns guardas estão demonstrando impressionismo ao ver uma Pesquisadora dando uma de atiradora. Estou mirando os céus, errando meus tiros.

Num movimento rápido, abaixo a arma e a direciono numa rota nova, soltando disparos ao meu redor, ferindo ou simplesmente derrubando ali todos os tipos de guardas. Salto do prédio ao ver reforços chegando e notando para que lado trabalho. Antes de cair para a morte sustento-me numa janela e quebro-lhe os vidros com os pés, pulando para dentro de um cômodo gloriosamente vazio. Percorro até a porta e sumo pelos corredores, passando por outro grupo de guardas que está indo na direção do primeiro andar. No falatório escandaloso, entendo que John foi atingido, mas continua voando.

Corro para a rua.

— Não me procure mais aqui, entendido? — as palavras de John Stanford agitam-se na minha cabeça quando estou fugindo pelos arredores dos edifícios menores, pulando grades, saltando sobre muros, levando choques quase mortais, mas ainda assim dolorosos. E quando chego ao local informado, não encontro nada. É o fim de um beco, não há saída. Algumas últimas informações John não me contara, por medo de eu ser pega no momento errado e pôr tudo a perder.

Seja esperta. Pense melhor, Evy. O que estaria escondido nesse local?

Rastejo dando pequenas cotoveladas pelo chão. Quando chego numa parte do muro, bem num canto estreito, meu soco emite um som oco. Delicadamente tateio o local, encontro e puxo uma aba de plástico preto, que desvenda um cômodo escuro ao fundo. Há uma entrada horizontal do tamanho de meu corpo. Em segundos já estou me esgueirando para dentro, tapando a realidade lá fora.

Preciso de um grande esforço para me mover adiante e depois caio de mau jeito num colchão ao chão. Levanto-me no receio de o teto ser baixo, mas é suficiente alto para não colidir. Procurando qualquer coisa que emita claridade, caminho com cuidado pela escuridão. Percebo estar em um laboratório improvisado. Um esconderijo do gênio John. Há uma maca num canto, mesas em outros. O clima é ameno, encontro uma entrada de ar.

Tateando mais as paredes frias acho um interruptor. Aperto-o e uma luz fosforescente clareia meus olhos. Vejo que suspenso sobre a maca há um equipamento, como aquele usado pelos cientistas na Checagem de Mentes. Só então compreendo a preocupação de John em esconder isso. Deito-me e desço o projetor sobre minha cabeça. Isso o aciona automaticamente, uma mente com um turbilhão de pensamentos em contato próximo ao aparelho.

E sou desativada ali mesmo, com todos os planos orquestrados por mim e pelo cientista John Stanford sendo apagados lentamente.


JOHAN

Desastres

Anders é meu amigo, meu companheiro de guerra. Estou me relembrando disso há horas por algum motivo. Talvez porque me sinto ansioso, ou por estarmos no primeiro dos cem navios de ataque, como líderes. Logo a coisa vai esquentar no planeta Escarlate.

Ficamos junto dos Pesquisadores, cientistas e combatentes importantes, devido às grandes informações que sempre trouxemos para a base Esgoto.

Trocamos poucas palavras. Elas não são tão necessárias. A decisão principal já fora tomada: destruir o reino Escarla.

Penso ser algo drástico. Não poderíamos tomar o reino e então povoá-lo? Mas minha voz foi abafada e me mantive quieto. Seguindo as ordens. Eles sabem o que estão fazendo. Sempre souberam. São tão sobreviventes como eu.

Os navios transformaram-se em grandes tanques de guerra após sairem do oceano.

Estamos treinados, preparados. Ao meu redor encontram-se outros companheiros que no momento só reconheço facialmente, seus nomes se perdem em minha mente. Suas magras formas parecem disfarçar o medo que alguns transmitem no olhar, ou reforçam o ódio de outros. Estes podem até se esquivar facilmente em combate, mas nenhum é fisicamente preparado para uma luta corpo a corpo como eu e Anders somos. Estes são os que se asseguram somente pelo armamento. Sem isso são presas fáceis.

Chegamos ao grande campo que marca o limite do reino, terreno de barro bronzeado. Nossas tropas freiam. À nossa frente está um aglomerado de árvores baixas, brilhando em vermelho como se estivessem espalhando o alarme de nossa chegada ao local. Ao meio da floresta erguem-se muros enormes, com edifícios ainda maiores em seu interior. O calcário trazido pelo vento, encobrindo-os naturalmente, parece uma forma de mostrar que os muros são blindados e que eles, Escarlanos, também estão preparados. Mas tiro essa forma de estimação rapidamente do pensamento.

Um silvo agudo desconhecido deixa o ar tenso, as nuvens púrpuras do fim do dia se rompem em milhões de pontos negros, mostrando Zainos voadores caindo em busca de confronto. Não identifico se são Zainos selvagens em busca de alimento ou os do tipo domesticados, os guardas do reino.

Atacamos.

A floresta revela seus segredos segundos após o céu, mostrando botes mecanizados pilotados por Corrompidos visivelmente armados. Os feixes de luz começam a surgir, nem há mais como saber quem começou a atirar.

Alvejamos as criaturas à frente. Crateras surgem do chão, sugando boa parte de meus inimigos. Fico a imaginar se o planeta está nos ajudando com estes buracos. É um delírio admirador, mas sei que foram os explosivos acionados.

Os navios locomovem-se rasgando o solo, e logo é ordenada a saída das primeiras frotas de planadores. Eles saem das plataformas para revidar com os seres carnívoros dos ares.

Um inusitado pensamento me ocorre: e se Corrompidos estiverem pilotando Zainos voadores?

Devo estar com algum problema para estar rindo tanto.

Volto a observar.

É uma guerra com números iguais de combatentes, mas agora temos plágios de sua tecnologia juntamente com a nossa, e as duas unidas estão a nos demonstrar uma satisfatória vantagem.

— São os humanos retornando do Esgoto! — Urro e solto uma gargalhada.

Ao ver alguns olhares secos virando-se para mim, silencio-me.

Só assistir a guerra não é para mim, fico inquieto. Quando decido sair do navio-tanque para lutar em terra, sou barrado por Pesquisadores.

— Não ainda — um diz.

Não entendo a razão de não conseguir dirigir-lhes uma enorme ofensa por isso, nem porque fico parado esperando determinarem o que devem fazer a meu respeito. Tento sair e sou novamente detido, mas dessa vez soco a cara do Pesquisador que teve o atrevimento do ato. Ele revida, e travamos um pequeno combate, no qual ganho hematomas, mas também lhe retribuo com o dobro. Escondo no bolso um pequeno objeto quadricular que meu recente adversário deixou cair em nosso curto desentendimento.

Silenciamo-nos perante o som da destruição lá fora.

Ouço um último trecho da conversa silenciosa dos Pesquisadores à minha frente envolvendo meu nome. Falam algo sobre não ter problema algum, que eu não chegaria lá de qualquer modo.

Logo sou equipado com armas e roupas de boa durabilidade. Uma parte de mim tenta entender quando a coisa na ilha Terra ficara tão desenvolvida somente com furtos, e isso me causa um orgulho desconhecido misturado com outras sensações, como náuseas.

Dirigem-me algumas palavras, mas eu me esquivo delas, notando apenas o momento em que estou correndo no solo, disparando rajadas de luz vermelha e transformando seres agitados em pó. Não faço distinção alguma nos primeiros minutos, mas vejo que uns possuem asas e são grandes, outros se diferenciam pelos símbolos que nunca reconheço marcados na face.

Estou me divertindo com a derrubada dos Zainos voadores.

Quando nosso exército avança por boa parte da floresta vermelha, já chegando tão próximo aos portões de Escarla que o barulho da destruição começa a se tornar insuportável, me flagro parando para olhar nossa vitória.

Numa breve ocasião quase sinto pena dos Escarlanos sendo dizimados lentamente. Vejo a floresta queimando em um fogo azulado. O fogo dos fujões.

Noutro momento me vem uma memória embaçada:

— Jorkwill pode ser bruto, mas é uma boa pessoa — sussurra a garota a qual não me lembro do nome. — É por isso que eu confio nele. Ele se tornou Corrompido por minha causa. Ele me ama também.

Demoro pensando tanto que não lembro se respondi a garota, ou se ela merecia resposta. No entanto, por algum empecilho, não consigo acessar a parte onde vivem as minhas vitórias em missões, minhas buscas, meus dias de luta mais desafiadores. Aborrecido, procedo reflexionando sobre como alguém pode amar tanto a ponto de trair seu povo, em como alguém pode pensar em amor diante de tudo o que está acontecendo. Que o amor pode ser uma grande burrice nesses tempos.

— Estamos conseguindo! — surpreende-me a voz de Anders ao meu lado. Ele me lança um olhar suspeito em contraste com o riso que está em seus lábios. Juntos, eliminamos um grupo de guardas Zainos que corria em nossa direção. — É bom lutar contigo novamente! Você sempre mantém o foco, Johan! — braveja, e some em meio ao caos.

Quero lhe responder que nem sempre mantenho isso.

Corro em direção aos portões de Escarla, relembrando aquele pensamento sobre a garota de olhos verdes. Sei agora que realmente a conheci, e ela está morta juntamente com seu namorado. Ou a transformaram em um Zaino. Porque traiu os humanos se tornando uma Corrompida, depois traiu o reino ao qual seguia, por algum motivo, para tentar achar a base Esgoto. Começo a lembrar-me de sua morte com mais nitidez. Eu estava acima de uma tenda à distância, somente observando-os enquanto eram carregados enjaulados para a grande fogueira no centor de Escarla. Eles viraram espetinhos humanos, a refeição daquele dia em Escarla. Somente fiquei a observar seu fim. O fim das escolhas erradas que fizeram. E todos os Escarlanos presentes começaram a fazer sons balbuciantes ao rodear as labaredas. Aquele povo aderiu ao canibalismo.

Mas agora acabaremos com isso.

— Aos humanos! — exclamo quando começo a disparar raios de eletricidade vermelha ao aleatório. E sou atingido por um tiro elétrico néon.

Meu corpo está se retorcendo no chão e minha visão crepitando.

— Johan... — sussurra a voz desconhecida de outra garota que vem em meu socorro. A voz que ouvi algumas vezes em sonhos antigos.

Olhos cor de areia.

Não estou apto a respondê-la, embora também não queira. Ela deve ter se irritado com meu silêncio, pois começa a prender meus braços em correntes firmes e ordena que outros me levem para o edifício central.

O efeito do choque passa, levando com ele minha coordenação motora e deixando-me com a seguinte certeza: A garota era uma Corrompida.


JOHAN

Detonados


Azul é a única cor que inunda meus pensamentos e visão. É um bom contraste contra o vermelho frequente. Mas não para o que estou prestes a descobrir.

O dado comum nos pequenos seres presentes é a cor azulada do tom capilar. Cabelos curtos que dançam no ar como eletricidade néon viva.

Onde estão as asas demoníacas?

— A que ponto? — pergunto a mim mesmo em voz alta, admirado. A pergunta me confunde, anima e alastra. Não há sentido nela.

Há várias emoções em curto espaço. Não me treinaram para sentir isso.

Fito os cabelos azulados do ser enigmático enquanto ele responde com cautela.

— Está começando a perceber as diferenças — diz o garoto Trístan, o que usa uma vestimenta arroxeada. — O único objetivo é chegar ao melhor para todos. Eu e meus companheiros de mesma idade governamos esse planeta da forma mais correta possível.

Deixo as palavras alienígenas bailarem por minha cabeça, sem lhes por sentido algum.

Quando libertam minhas mãos, tateio o solado de minhas botas e encontro um cristal de mutação. Um escape. Em nenhum momento sou impedido de usá-lo.

Engulo a pedra violácea.

Ao invés de me fortalecer como nas outras Conversões, o ácido me queima por dentro.

Caio diante da plateia.

— Não era para ser assim, Johan — diz Trístan, o rei de Escarla, o pequenino ser que está tão próximo de mim. E a raiva de ser incapaz de matá-lo se funde com as dores da queimação em meus membros.

Ele nem ao menos tem uma voz odiável.

— Não diga meu nome! — rujo com dentes trincados.

— Não somos como você imagina — responde Trístan, com voz solene.

Um barulho distante ecoa pelo salão, passos se aproximam e me inquieto mais ao ouvir outras vozes.

— Não era pra você estar do nosso lado? — digo para meu pai, o Corrompido, o cientista John Stanford presente. E outra vez não entendo minha pergunta. Minha voz se esganiça ao chão, começo a salivar. Era para ele ter morrido naquela queda, naquela caçada tempos atrás.

— Você entenderá logo, Johan — diz paternalmente John, abaixando e alisando meu ombro com sua mão firme e magricela.

Quero destruir a calmaria deles.

Num preciso movimento, chuto o cientista para longe. O som da devastação alastra-se lá fora. Rastejando, me distancio de todas aquelas criaturas.

Um objeto quadricular escapa de meu bolso causando um ruído pelo salão central. O objeto que guardei furtivamente do Pesquisador é uma espécie de controle remoto.

Eu teria a sorte de que aquilo fosse um detonador? Um que acione alguma explosão que ponha fim a tudo?

— Morram — digo, apontando o controle ao alto, estremecendo pelo efeito errado do cristal de mutação.

— Você pode ser melhor que isso — entoa Trístan rapidamente. Percebo que todos ficaram tensos ao redor. Divirto-me com suas expressões. Estou rindo histericamente.

É isso mesmo, um detonador.

Levanto-me cambaleante, um feito e tanto, mas que começa a engrenar, dando como resultado uma esquisita agitação em meu estômago que faz com que meus ossos tremam.

No grande salão com vista para o mar Escarlate, entram novas figuras. Três nomes e rostos que vou reconhecendo lentamente. Síbian, a Corrompida, que se transformou em Zaino, a qual matei. Jorkwill e Kimber, os traidores que vi morrer na fogueira central faz um tempo. Eles, que deviam estar mais do que mortos, estão gritando palavras para mim, tentando me deter. É agonia em seus rostos malhados de mentiras?

Estou me afastando de todos. Só podem ser robôs. Ou coisa pior...

— Não importa — desabafo, segundos antes de apertar o botão para acionar os explosivos espalhados pelo reino. O último artifício de defesa é querer destruir aquilo que está errado. Que parece errado. — Nada mais importa.

Às vezes nós agimos impulsionados por diferentes sensações. Em meu caso pode não ter sido um surto qualquer. Foi uma motivação completa. Uma vida inteira. Escolhas erradas, passos firmes. Imposições.

Na minha mente estão vociferando ordens. Do lado de fora dela também. Para quem devo dar atenção?

Vingança! Relembra-me a voz retumbante do líder Heiden num pronunciamento antes dessa guerra começar.

Por conta de meu último ato insano, consigo ver uma cena: Anders chegando com uma equipe de guardas do Esgoto,bem treinados, e todos eles perdendo a consciência instantaneamente, junto a mim.

Quem iria adivinhar onde meu líder Heiden implantaria seus secretos explosivos? Eles estão detonando em nossos cérebros agora.


JOHAN

Restaurações

Não ouço mais barulho de batalhas, há somente os gritos de pesadelos há muito adormecidos.

Várias fitas coloridas são soltas ao ar.

Agarro-me ao primeiro feixe: amigos, família.

Estou de volta ao tempo onde minha vida é feliz. Demarcado num belo ponto do planeta Terra. Estou de volta onde sou esperto, onde consigo diferenciar a realidade da ilusão.

Tiro boas notas na escola. Não são tantas, mas ando me empenhando e estou entusiasmado — pondo mais entusiasmo nas aulas de educação física.

Nosso mundo já sofre com as mudanças climáticas desde tempos, mas agora há também a constante interferência de um homem em particular, o governante da grande potência mundial — o líder Heiden.

Heiden é um ditador. Criador e incentivador de projetos sem escrúpulos, como meu pai diz. Minha mãe, Angelina, não se envolve muito com essas discussões, mas eu sim. Sinto necessidade de entender as coisas que estão se passando, as que irão interferir em minha vida.

Moramos em uma pequena cidade litorânea do Rio de Janeiro, Brasil. A rotina é simples, abençoada, temos um riso afortunado.

Os amigos são próximos. Em finais de semana nos agrupamos, pegamos um ônibus e saímos em busca de praias — em geral vamos a Saquarema, uma cidade vizinha com ondas bem mais ferozes. Há outras boas formas de diversão, mas surfar é o nosso melhor entretenimento. Meus pais quase sempre aproveitam momentos assim conosco, é ainda mais divertido quando estão por perto.

E é numa dessas idas à praia que presencio o que alguns religiosos chamaram de Apocalipse.

Nesse dia, meus pais foram trabalhar. Minha mãe trabalha num Pet Shop, e passa o fim de semana organizando as coisas por lá. É raro vê-la desocupada para sair. Meu pai, John Stanford, cuida de uma loja que vende peças de automóveis, e nos dias de sábado ele também se ocupa.

Então, como de praxe, com ou sem pais, sábado é um dia quase sagrado para se aproveitar as altas ondas com a turma.

Marco com meus amigos e somente uma garota diz que precisará estudar, pois está atrasada em algumas matérias escolares e as provas estão chegando. Justamente ela a quem mais quero ver... Contento-me que irei vê-la na semana seguinte, e pelo resto do ano escolar. Então, ainda possuo tempo de me declarar para Evelyn, num outro momento.

Nunca deveríamos demarcar tanto o tempo. Não temos domínio sobre ele.

— Deixe pra usar seu talento quando chegarmos — digo ao meu amigo grandalhão, Roger, quando ele começa a tocar seu violão dentro do ônibus. Ninguém além de mim está demonstrando desconforto, meus amigos somente riem com isso. Outros vão além, acompanhando a música improvisada. Como por exemplo, um risonho senhor de camisa florida todo no estilo havaiano que fica instigando Roger a cantar ''mais, mais, mais''.

Alegria parece palpável no pequeno veículo.

— Mas lá o barulho do vento vai tapar — Roger me responde, no ritmo de sua música. Estamos passando pelas primeiras praias menores, mas essas ainda não são a nossa Saquarema. De um lado pequenas praias, do outro, casinhas distantes uma das outras, embora num padrão com certo charme. — Porque é isso que faz o danado do mar — ele continua a cantarolar.

Viro-me para a janela, diretamente vendo as praias de ondas baixas. Pelo reflexo do mar, mesmo agitado, vejo pontos brilhantes. Olho para o céu lentamente através do vidro e paro de respirar. Três bolas de fogo estão derrapando das nuvens.

O medo em forma de corrente elétrica passa por cada pelo de meu corpo. Ao redor, ninguém notara nada de incomum.

Os segundos freiam na minha visão, e minha ação seguinte é puxar a chave de emergência da janela. Imediatamente os vidros vão abaixo, sumindo na estrada lá fora.

Os passageiros agitam-se com minha atitude. Roger para de tocar violão.

Vejo olhos horrorizados postos em mim e suponho que a visão de meu rosto deve estar mesmo causando medo, assim como meus berros.

O ônibus continua seu percurso tranquilamente.

É quando o primeiro impacto faz o chão tremer e os carros darem guinadas descontroladas. Não se vê mais praia ao lado, apenas um enorme paredão de ondas se movimentando em todas as direções. O ônibus para ao bater numa caminhonete menor a frente, um carro colide em sua traseira e sentimos que todos os veículos estão chocando-se em desordem geral.

Quando você é surpreendido tão subitamente por algo que tem certeza de que não conseguirá lidar, surgem poucas propostas na sua mente. Uma delas é tentar fugir.

Outros repetem meu movimento e logo não há mais janelas visíveis. Pulo no viaduto cheio de cacos de vidro e não olho para os ferimentos que ganho. Distancio-me bem quando ouço um lamento triste e agudo por cima de toda a confusão. Meu amigo Roger está preso na saída de emergência do ônibus. Entalado. E não posso mais ajudá-lo, pois a primeira onda revira e puxa o veículo, fazendo-o desaparecer naquele oceano sem fim.

Alguém me tira de onde fiquei paralisado. É claro que é natural das pessoas se apavorarem com catástrofes, mas nunca havia presenciado uma morte antes (a de filmes e novelas não conta). E Roger era meu melhor amigo.

Corro observando o céu suspeito. Não há mais bolas de fogo caindo, mas ainda sentem-se tremores e locais sendo alagados. Pessoas fogem pelos arredores das rodovias congestionadas, distanciando-se ao máximo das praias e dos carros. Estou nesse meio todo.

Demoro mais de uma hora para chegar à minha casa. Pelos bairros que passo, os estragos resultantes são assustadores. Casas caíram. Pessoas gritam, desoladas.

Minha mãe está lá na varanda, aguardando-me ansiosa. Nossa residência é uma das poucas que não sofreu com as tremendas rajadas de vento. Isso me acalma brevemente. Ao notar, Angelina Stanford chega até mim e demora-se num abraçamento contínuo. Avisa-me que meu pai saiu a me procurar mais cedo. Não há formas de contatá-lo agora, os aparelhos celulares ficaram sem sinal.

Começo a assistir os noticiários, a tevê milagrosamente funciona. Embora minha mãe relute em não querer ver nada pior do que já soube, ou viu na vizinhança, e me mande ficar apenas próximo dela, eu assisto.

Depois ficamos na espera de meu pai, a esperança como companheira.

Quando John chega, num temeroso tempo depois, minha mãe para com a mania de tomar água com açúcar a cada cinco minutos. Ele é o segundo a querer ver as notícias televisionadas, e dessa vez ela nem discute.

No jornal do canal mais famoso, repórteres destemidos estão às ruas, mostrando os locais destroçados, cortando a imagem apenas para dar voz aos cientistas, que afirmam ter acontecido algo inédito na História:

''Cometas mudam de curso e atingem a América do Sul'', e ''o caso está sendo analisado por especialistas nesse momento, aguardem maiores informações''.

John muda de canal, aborrecido.

Outros jornais especulam sobre as dívidas dos países sul-americanos estarem altas, e como medida de alerta, as grandes potências nos distribuíram estes lembretes a mando do líder Heiden.

— Só os fortes compreenderão. — diz o jornalista ao encerrar o anúncio.

O impacto no Sul desencadeou uma série de catástrofes naturais registradas em todo o mundo, e uma semana depois o planeta para. Literalmente. O sentido de Rotação freia de vez, deixando uma metade da Terra tostando sobre o sol, e a outra entrando numa Era glacial.

Cientistas americanos denominam o fenômeno de “A Grande Parada”. Mas as pessoas estão se importando menos com suas definições, e sim em como ficarão a salvo.

O planeta parou de girar quando era fim de tarde em boa parte do Sul da América. E o país oficialmente eleito como o melhor lugar para sobrevivência foi o Brasil, por ainda possuir enorme biodiversidade.

Dá-se inicio à imigração de diversos povos para nossas terras. Nas entrelinhas, sabe-se que muitas pessoas foram deixadas para trás.

O Brasil torna-se a capital do mundo em menos de um mês, e não se ouve mais falar em nossos antigos governantes nacionais.

A alimentação varia precariamente com as constantes quedas de energia elétrica nas indústrias, que pouco a pouco estão sendo fechadas.

A água que sai das torneiras não é mais aconselhável de se consumir. Abastecemo-nos em postos comunitários, onde nem todo dia há o líquido tão precioso.

Helicópteros começam a arremessar toneladas de arroz para a população pelas cidades nos dias seguintes. O único produto que fora salvo no período. Mas este grão é de um tipo diferente, modificado, notamos. Um arroz cinza.

A tevê funciona vez ou outra, capta somente o canal político. Nos panfletos que são arremessados pelos ares, inundando as ruas, sabe-se que Heiden anunciará algo importante televisionado, para todos que ainda sobrevivem “no final dessa tarde”.

Eles ainda conseguem fazer chacota com isso, já que o dia será sempre “fim de tarde” a partir de agora.

Algumas famílias se abrigaram em minha casa e outras, que perderam apenas eletrodomésticos em enchentes recentes, chegam para assistirem conosco ao noticiário.

Nossas portas estão quase sempre abertas, embora haja uma preocupação pelo roubo de alimentos. Dinheiro não é mais valioso que isso no fim das contas.

Evelyn fica junto a mim o máximo possível. Nossas famílias se aproximaram depois das catástrofes. Entendo que uma tragédia mundial aproxima as pessoas.

Em seguida ficamos seriamente preocupados com o que Heiden está afirmando na tela da tevê. Ele diz que será possível vivermos em Marte, pois lá sempre existiu água. Bastante água, e comida em abundância. Mas que também há habitantes. Seres esses que mandaram as primeiras chuvas de fogo para o nosso planeta. Seres que causaram nossa atual situação aterrorizante.

— Então eu te digo — Heiden alisa o queixo pontudo, encrespando o olhar para nós a partir da tela. — Não vamos deixar isso barato! Você irá?

A programação sai do ar.

Inicia-se aí o processo de alistamento para a V.M. (Viagem para Marte). Há constante repetição nos meios de comunicação de que são tempos de confraternização e de nossa vingança. Que os mais jovens devem se alistar, para serem treinados e ficarem aptos a proteger os mais fracos dos perigos que se encontram no planeta vermelho habitado.

Heiden afirma que os seres de Marte são malignos.

— Nasci aqui, morrerei aqui — ouço a mãe de Evelyn dizer. E embora eu vá contra alguns conceitos dela, confiar em Heiden nunca esteve em meus planos. Penso como meu pai.

— Vamos vencer essa etapa de vida juntos — defende John Stanford perante nossa pequena família. Vira-se para mim, e em alto som determina — Johan, você irá se alistar.

Algumas fitas se despedaçam, imagens se rasgam.

Concentro-me no que pouco resta de minhas lembranças, e me vem a seguinte cena peculiar:

Estou numa sala para receber o devido treinamento, juntamente a outros garotos e garotas de distintas idades. Estamos todos em fileiras desordenadas.

Vejo olhares amedrontados dos jovens. Mas eu, eu estou furioso com meu pai.

Como ele pôde se corromper? Como teve coragem de me mandar para cá? Evelyn nunca me perdoará pelo eterno atraso...

Abracei o futuro ao entrar naquela nave, e agora adentro por uma estranha sala de treinamento que nos fora resignada, que se assemelha com uma daquelas lojas de funeral. O local é pouco iluminado e cheio de macas hospitalares espalhadas ordenadamente, como caixões à espera dos corpos. Não entendo como aprenderemos a matar alienígenas nesse ambiente. Nenhum dos que viajaram ao meu lado tiveram a chance de vislumbrar o céu do novo planeta ainda e estamos ansiosos com tudo.

— Sejam bem vindos. Eu sou Doroth, a encarregada das aulas. Hoje vocês irão se submeter ao primeiro passo do treinamento. Passarão por um processo que chamamos — Uma mulher magra, de olhos secos e voz macia começa nos instruindo. — Que chamamos de Checagem de Mentes.

— Também está com medo? — sou distraído por um sussurro ao lado. É uma garota menor.

Confirmo com um aceno de cabeça.

— Sou Síbian. — me diz ela, que possui um rosto medroso e branquelo, mapeado por sardas.

— Johan. — murmuro de volta, mas minha voz é abafada por gritos alheios. Intensas luzes fosforescentes nos banham ao declinar lentamente do teto e então somos eletrocutados em equipe.


EVELYN

Corrompimentos

— Johan... — me pego chamando pelo tal nome. Meu rosto está com ferimentos por toda parte, sei disso ao tocá-lo. Demoro a ser encontrada. Os clarões dos helicópteros flagram um corpo ao chão de um beco sem saída. Finjo estar desacordada pelo restante do tempo, sentindo a chuva de granizo me atingindo. Essa é minha forma de entrar em pânico, ficar congelada.

Sou levada para o novo planeta enquanto estão checando minha mente e colocando lá todos os seus tipos de verdades sobre a realidade. Esse fora o plano de Jonh Stanford, de outra forma não iria para o outro planeta tão rápido. Um corpo parcialmente ferido, uma Pesquisadora desacordada. Ótimo momento para inserir uma nova candidata na base militar em Marte.

Logo que chego começo a receceber treinamentos para viver no novo planeta. Explicam-me bastante sobre furtos ao reino onde vivem os inimigos, Escarla, e isso deveria ser o suficiente. Só que não basta ultrapassar o grande muro de Escarla, ainda há uma cidade ao meio, onde transitam Corrompidos e Zainos de variados e malignos tipos. O sistema humano continua com falhas aqui.

Meu corpo está se adequando aos poucos com tanta adrenalina, e devo isso ao tipo de alimento que achei pelas florestas do reino quando começaram a me treinar para missões, e não ao arroz acinzentado que nos fornecem na base militar Esgoto.

Minhas novas roupas são largas e velhas, com bolsos equipados. Carrego sempre uma arma mortal, ela pesa menos que uma maçã.

Na primeira missão oficial sou facilmente capturada pelos Escarlanos. O treinamento não ajudou de forma alguma.

A segunda devolução de memórias melhora meu estado emocional. É John quem está por perto, e ele age de maneira diferente aqui, mais calmo. A grande sala com teto banhado em estrelas me conforta e me sinto relaxada, completa. Pela primeira vez depois de muito tempo não sinto a falta de lembrança alguma. Tudo está encaixando-se aos poucos. — Bem vinda à Escarla, garota Evelyn — ele saúda-me e sorrio.

Há um balbuciar diferente pelos ares. Se você convive diariamente com Escarlanos Natos consegue compreender seu idioma com o tempo. Mas mesmo sendo uma espécie de linguagem com cortes e desvios, às vezes chega a se contradizer e isso acaba por confundir tudo.

Recebo uma missão por John uma semana depois de me instalar no reino, e ela é sobre a busca de seu filho. A do garoto alienado que um dia conheci. Johan.

Logo à frente, após vestir um manto cinza sobre minha nova roupa de luta, deixo-me barrar por uma visão. Antes de sair por completo da cidade escarlana, eu observo guardas carregando uma jaula sobre os botes mecanizados, uma espécie de engradado contendo dois humanos. Dois humanos alienados do Esgoto. De longe consigo ver seus rostos raivosos. Um é grande, sem dúvida um homem, o outro corpo é menor e tem cabeleira avermelhada; noto que se trata de uma garota. Levanto meu capuz para olhá-los e sou surpreendida por uma chuva de pequenos Zainos Voadores que estava de passagem. Desloco-me e caio de cima do teto para uma tenda, depois arduamente encontro o chão.

Sou observada pelos que transitam.

Ouço alguns tipos de sibilos e balbucios, percebo que estou sendo motivo de chacota na verdade, e não de alarme vermelho. Levanto-me e puxo uma carroça velha com cestos em cima, quebrada e abandonada ali, e começo a arrastá-la. Finjo estar trabalhando. Sigo na direção daqueles humanos que estão enjaulados. Já não há ninguém a me encarar, sou apenas uma Escarlana participando e cuidando de minha vida.

Caminho aos passos dos guardas que carregam os presos, até o ponto onde são levados ao prédio dos cientistas.

Trístan, um dos pequenos reis, de repente surge no grande palco acima do prédio central, encarando todos à sua volta. Zainos clamam a sua maneira bizarra e outros Escarlanos aplaudem quando ele faz algum tipo de decreto. Discursa sobre esse novo problema dos humanos rebeldes da base Esgoto que andam furtando e matando dentro do reino. E fala também sobre o casal que acabara de ser resgatado, que estava em domínio de um humano alienado ao regime imposto na ilha Terra.

Decido intervir ao compreender que aqueles dois na jaula possam ter informação valiosa. Sobre Johan. Suas memórias não devem ser remexidas tão logo. John precisa vê-los primeiro.

Quando os guardas acendem a fogueira central num típico ato após as aparições de Trístan ou de qualquer outra pequena criança azul governanta, ateio fogo nas tendas vazias ao meu redor, que cresce e se espalha como caminhos de pólvora pelas outras. A fumaça encobre o local e me adianto pelo meio da multidão enlouquecida em direção ao prédio dos cientistas.

Todos são pegos de surpresa com o fogo. Escarlanos indefesos fogem para suas moradias. Há guardas Zainos tentando deter a situação, e gente sendo atropelada.

Liberto os dois alienados no meio da distração.

— Sabia que não estávamos sozinhos aqui — diz o grandalhão na pressa e, em seguida, nocauteia um Zaino que surgira naquela poluição toda. Ter feito isso desencadeia uma sequência de mais adversários que surgem.

Estou treinada e melhor equipada agora.

Urros de dor dos oponentes são o que se ouve a seguir. Vejo o palco de Trístan vazio acima, e logo a fumaça encobre toda nossa visão.

A arma em minha mão possui dez disparos e cerca de um minuto para recarregar automaticamente. O próprio John Stanford a fabricou. Cada disparo paralisa no máximo quinze corpos no campo de mira com um jato de eletricidade néon, mas ainda não é o suficiente para tantos outros que estão surgindo.

John preocupou-se em me equipar com armas que não causem mortes, apenas dor.

— Por aqui — chamo o casal. Esgueiramo-nos por entre becos e mais becos até chegarmos à torre que John me indicara.

— Está pronta, Kib? — diz o Corrompido do Esgoto à companheira, que assente rapidamente. Ao longe, o barulho da confusão e a fumaça estão se dissipando. A tal Kib apoia um pé nas mãos juntas dele, que a lança para o alto. Ela se agarra numa janela e continua a subir, escalando até já estar salva na única abertura ao topo da torre.

Invejo-a no movimento, depois me preocupo em olhar o desafio à frente. — Pronta? — ele me pergunta, achando que repetirei o ato inicial de sua parceira. Salto sobre o muro ao lado e me agarro aos blocos de concreto. Vou escalando vagarosamente, mas ainda estou distante da janela que Kib chegou após seu salto incial. Desconcentro-me olhando para este ponto e quase caio, mas seguro a corda que me é proposta do alto em dois segundos. Kib. Ela está segurando a corda que me ajuda a subir.

Logo estou salva e grata.

— Vamos, Jorkwill! — exclama nervosa a garota ao meu lado. Dou um tiro em direção ao tal Jorkwill, que, surpreso, cai no seu processo de escalada. Kib arregala os olhos em minha direção, mas ao olhar rapidamente seu companheiro, entende o meu ato. A eletricidade atinge somente os quinze Zainos atrás dele, que ficam se contorcendo ao chão. Mas o tiro não foi páreo para deter os outros dois que surgiram, e que agora estão travando uma luta corpo a corpo com o grandalhão. E, quando este derruba um deles, o seguinte o atinge no ombro com um dardo tranquilizante.

Kib faz algo espantoso: salta da torre e cai sobre o adversário de Jorkwill, livrando-o de ser capturado.

Começo a gostar da bravura dela.

Há um novo empecilho. Kib está tentando reanimar Jorkwill, sem muito sucesso. Calculo quanto tempo levará para mais guardas chegarem ao local.

John sai de seu esconderijo e me passa, no escuro, um pequeno frasco.

— Ei — chamo-a de cima da torre. — Dê a ele, depressa!— Jogo o recipiente para ela, que quase o deixa cair. Assente um pouco suspeita, mas o faz beber mesmo assim.

— Esconda-se — sussurro para John.

Essa é minha vez de retribuir a corda para Kib. Em dobro. Uma corda ela ata na cintura de Jorkwill, na outra eu a puxo.

Juntas na torre nós conseguimos içar seu companheiro. O efeito do antibiótico no organismo dele é milagroso por alguns minutos, o bastante para os dois perceberem que estamos num bom esconderijo. Mas não corta o efeito do dardo tranquilizante, pois logo seu corpo se estira no chão poeirento do velho laboratório de John Stanford.

— Meu nome é Evelyn — digo para a humana alienada e assustada. Levanto minha arma e dou-lhe um tiro. — Espero mesmo que sejamos boas amigas.


JOHAN

Emendas

Minhas maiores batalhas são travadas em pensamento. Estou preenchido por uma desgostosa náusea à medida que me firmo nos sons. Gostaria de não ouvi-los tão perto.

Quero correr. Tudo parece distante e a passos lentos.

Em cada voz que começa a surgir há uma distinta e convidativa sensação.

Fisgo um primeiro som. Uma nova fita. A cor da imagem é avermelhada:

Vejo um homem que entendo por ser meu pai, John Stanford, mas não é ele. Este senhor alto e espaçoso, com cabeleira loira, tenho certeza de nunca ter conhecido.

Essa é a vida de outra pessoa, uma vozinha minúscula está me informando, alguém que não conhece, mas que passou momentos parecidos com os seus, Johan.

De alguma maneira as imagens alheias estão disponíveis e eu peco na curiosidade de saber o que cada fita está escondendo.

O indivíduo parece mal-humorado, o que tem uma figura paterna. Sinto que ele está sempre assim quando chego da escola trazendo aqueles panfletos sobre o novo regime, em tentativa de induzi-lo a acreditar no homem das figuras e nas palavras que ele dita. Sua forma de reagir a mim é com uma conversa convencional. Mas não quero ouvi-lo. Sei o que ele dirá. Não vou fazer parte de seus projetos. Recuso-me a ficar para trás, num mundo sem salvação.


A voz lamuriada que saía de sua boca tornou-se curta e rígida, o que desencadeia uma nova rodada de imagens que revelam outros de nossos tristes momentos à frente: Um rádio velho está ligado. A voz firme e masculina que sai dele demanda ordens sobre o mundo. A sensação é tão agonizante para este pai que, de um modo engenhoso, sai demolindo tudo dentro da casa, a começar pelo meu quarto.

Não me importo.

Nada disso importará mais.

Esse é o dia em que a população decidiu seguir o comando do líder Heiden para abandonar o planeta. O dia em que abandono o passado, presente, e começo a tatear meu futuro.

É isso que quero seguir, tento me convencer.

Agarro outra fita, esta é cinzenta:

A sensação de desespero me toma.

Está escuro inicialmente, depois fendas se abrem mostrando a realidade. Percebo que antes estava com as mãos tapando o rosto. Fico sentado no canto de um quarto, que me é curiosamente familiar, mesmo que nunca tenha tido aqueles brinquedos todos.

Minha visão se mantém embaçada por um líquido viscoso que arde. Deveria ter chorado antes, noto. Meu corpo se ergue e vigio através da fechadura da porta, por onde vejo uma mulher discutindo com um homem alto. Há um envelope de lacre vermelho nas mãos dele, que o aponta à sua frente, como que para mostrar a razão de não duvidar de suas escolhas.

Uma frase final é jogada bruscamente no rosto da mulher:

— Heiden é o futuro!

Distancia-se dela. Com apenas um olhar de insatisfação, sai pela porta da frente, batendo-a com extrema arrogância.

A mulher o chama ao abrir a porta, e ele impressionantemente retorna, pisando em todo seu desapontamento. Ela o responde com um longo beijo que é correspondido com um abraço. Trocam palavras silenciosas até que se ouvem os chamados das sirenes ecoando pelas ruas. E tenho a sensação de que acabo de presenciar o último contato daquele casal.

A próxima imagem disponível possui uma cor esverdeada como lodo. Concentro-me em observar:

Raiva é o que esta esconde, levando-me para uma casa bem mobiliada, onde há um senhor idoso fumando charuto, esparramado em uma poltrona de couro preto.

— O que você trouxe hoje? — ele ruge.— Mostre!

Não quero aproximar-me dele, mas o medo me encaminha até lá. A visão centraliza-se em minhas mãos já estendidas, onde há um relógio prateado.

— Só isso? E ainda quer que eu leve você comigo, seu ladrãozinho de quinta? — o velho rosna e produz um assovio alto. Me arrepio pelo som, como se isso indicasse perigo.

Recuo-me dele e gosto da distância entre nós. Mas algo continua errado. O medo continua lá.

Quando olho ao redor, meus braços estão sendo puxados para trás por firmes mãos. Sou arremessado dentro de uma nova sala escura. Ouço o barulho das chaves trancafiando a porta de ferro. O próximo som que se propaga é o da voz do líder da nação no aparelho televisor da sala, proclamando decretos sobre o futuro.

Adormeço no chão frio, ouvindo o ditador Heiden, germinando ódio em meus sonhos.

Sinto-me exausto quando tomo posse da última imagem. Mas caso não me conecte a qualquer som ou figura, reconheço que algo de ruim pode me ocorrer.

Nesse novo sonho vejo uma pessoa ao chão, com a cor azul brilhando em cima de sua cabeça. As três vozes nos arredores já me parecem familiares demais para ficar perdendo tempo com elas.

Um garoto com cabelo estranhamente azul está caído à minha frente, morto. Um líquido gelatinoso vaza de sua cabeça. Olho para a arma que seguro, ainda quente devido ao recente uso. Estico o pescoço para cima, para ver no teto meu próprio reflexo.

Sou Heiden. Eu venci! Parabenizo-me com uma gargalhada retumbante que ecoa pelos corredores. Terei seguidores para sempre...

A voz de Heiden prolonga-se em meus lábios até sumir com o barulho de um tiro. Lentamente estou recebendo o melhor presente: minha própria visão. Meus conceitos gesticulados.

São crianças.

Crianças diferentes.

Crianças governando sabiamente um local extenso. Quem diria que isso poderia ser possível?

— Como ainda acordo? — pergunto, notando minha voz em um estado deprimente. — Sinto que vivi coisas demais para uma vida tão curta.

— Não brinque com isso. — diz Trístan ao meu lado. As luzes acima não causam dor aos olhos, os pontos brilhantes são estrelas acima do teto de vidro. — Seja bem vindo.

— Sou assim mesmo. — respondo.

Uma amargura percorre minhas veias quentes e viro-me para olhar os outros corpos ao meu redor. Kimber e minha mãe estão próximas, dentro de um bloco quase transparente separando-as do ar. À distância vejo outras centenas de corpos inertes. Os rostos de alguns estão se comprimindo mesmo a olhos fechados. Percebo que o local é banhado somente pela luz das estrelas e das duas luas de Marte.

Trístan percorre meu olhar.

— Estão todos bem. Apenas ainda lutando com a verdade. Você deve ter passado por vários pensamentos.

Assinto, relembrando as imagens que toquei em sonho. Seriam elas vidas alheias, me impostas para tirar minhas próprias conclusões sobre o certo e o errado, ou mais uma tática de modificação de mentes?

Sei as respostas agora. As grandes dúvidas pertenceram ao antigo Johan.

O pequeno garoto alienígena percebe meu olhar vagando pelo local e parando em si. A única coisa diferente de um humano em sua aparência são os finos e curtos fios de cabelo de tom azul, que chacoalham sem a necessidade de uma brisa.

Passei situações distintas que não sei como ainda respiro. Já fui preconceituoso com as diferenças alheias. Já ouvi conselhos e fingi escutar. Sei que esse é o momento de aprender sobre o novo.

— Estamos na Sala de Cura — ele avalia. — onde as estrelas são o remédio.

Fito a luminosidade estrelar caindo do teto e compreendo o que Trístan diz.

Minha nova forma de racionar parece lenta, mas me possibilita assimilar bem as diferenças do que foi verdade, daquilo que foi cravado/modificado por meio de violência.

Percorro para os três fatos sobre o ditador Heiden:

1. Criou o projeto da Checagem de Mentes.

2. Implantou suas ideias em cada ser humano que participou do alistamento para a V.M. (Viagem para Marte), conseguindo assim, converter toda uma realidade à sua maneira.

3. A ilha Terra do planeta vermelho existe de fato, foi o local onde se abrigaram os primeiros humanos a pisarem nessas terras e onde também foi criada a base militar Esgoto.

— Como vocês chamam seu planeta? Zainos, eles... — lanço perguntas à medida que o silêncio se agrava. De algum modo, me sinto extremamente confortável para entender as coisas.

— Escarlate. Planeta Escarlate, da forma como já deve ter ouvido. Foi o nome que dissemos ao seu porta-voz muitos anos atrás, em nosso primeiro contato. O chamamos assim há milênios — faz uma pausa para minha assimilação. — E Escarlano é o nome dado a toda forma de vida daqui. Já aos que são brutos, mas não exatamente sem inteligência, recebem o codinome Zaino. Zainos não podem ser domesticados, como os animais do planeta em que nasceu. A vontade de cooperar e evoluir precisa vir deles. Procuramos nos proteger dos tipos selvagens, por isso criamos muros. E alguns deles vêm nos surpreendendo no quesito colaboração. — Trístan pausa, vendo-me assimilar tudo. — Atualmente o reino é composto por mais Escarlanos Zainos do que os Natos, os seres azuis da minha espécie. E recentemente contamos com Escarlanos Humanos, os que aceitaram viver conosco.

— Muitos anos atrás? — interrompo curioso, ignorando brevemente o falatório, mas analisando o que ouvi.

Relembro as criaturas malignas que enfrentei e percebo que muitos daqueles momentos estavam com falhas na lembrança, como um rasgo no canto de uma imagem. Algumas memórias devem mesmo permanecer no passado.

— Muitos — dá ênfase. — Sabemos que poucos terráqueos guardavam o segredo de nossa existência, e respeitamos isso desde então.

Trístan produz um som involuntário com o lábio superior, de forma tênue, e me vejo bocejando segundos depois.

Algo me aturde, um grito feminino que reconheceria mesmo sem nenhuma gota de juízo. Sento-me no veludo que envolve o bloco onde estou e encaro uma mulher de meia idade remexendo os cabelos negros embaraçados. Há outra criança de cabelo azulado ao lado de minha mãe, trocando-lhe palavras. Angelina Stanford sorri quando me nota. Retribuo isso a ela.

— Vocês, humanos, são mais destemidos do que pensam — O garoto de cabelo azul profere ao meu lado — Existem formas positivas e negativas para isso, mas agora mesmo, os dois fizeram uma escolha boa — ele observa minha mãe.

— Qual? — indago à Trístan, embora me venha rapidamente o significado de sua citação. Só imagino que o tratamento estrelar deve ser milagroso, pois meu raciocínio tem melhorado bastante desde que acordei.

— Viver — declara. — Esperamos que muitos outros decidam o mesmo, de verdade. — Dito isso percebo que algumas pessoas já se decidiram. Algumas delas aceitaram viver na mentira de Heiden. Inclusive o próprio ditador.

— Devo acreditar que tudo irá ficar bem? — lanço a pergunta ao encarar o teto transparente.

— Essa é a maior fé que move nossos corpos, Johan. Além do mais, as inspirações de vida é você quem escolhe seguir — fala para mim, com uma voz meio distante. Percebo que o garoto Trístan, o governante porta-voz do reino de Escarla, levanta o pescoço para avistar o céu. Seu cabelo está brilhando em uma cor azul, como se eletricidade néon passasse por cada fio. — Sabe, existem planetas com regiões pacifistas onde todos os seres residentes convivem em harmonia, sem que haja nenhuma necessidade imperiosa.


Eu me inspiro neles agora.

— Obrigado. — me vejo respondendo ao observar uma grande estrela que brilha de forma distinta. — Por mim e por todos os decididos.

Trístan sorri e me aponta o bloco ao lado, onde uma garota acaba de sussurrar para a vida. E sou eu quem a recebo de volta, com um forte abraço e palavras calmas. Eu reconheço aqueles olhos cor de areia.

Reconheço Evelyn.


JOHAN

Verdejantes

Diariamente fui exposto à máquinas que me tiravam a verdade e soldavam no lugar cenas criadas por uma mente lunática. Não era o único corrompido nesse projeto articulado.

A ilusão acabou com Heiden falecendo nos braços amigáveis dos seres aos quais tanto quis domar.

Anders é um dos muitos vivos que escolheu a verdade. Síbian está me observando à distância, demonstrando um aceno amigável. Ela não se tornou Zaino em momento algum, pois esse tipo de transformação nunca existiu realmente. Foi tudo articulado por Heiden nas Checagens.

Pratico minha nova forma de raciocinar e alinho internamente os tópicos verdadeiros:

1. O reino de Escarla é tão antigo quanto à humanidade. A fase da infância – período onde Escarlanos Natos ganham extrema sabedoria – pode chegar a durar dezenas de anos.

2. As águas marítimas temperadas em cores rubras – tonalidade explicada por conta do solo, e sua quentura por pequenas e indefesas fontes vulcânicas – são naturais.

3. A floresta ao redor do reino não produz frutos venenosos, mas se limita temporariamente com a cor vermelha. Na passagem das estações, suas folhagens sofrem um processo de metamorfose, onde banham os ares com uma nova cor luminosa e boas fragrâncias.

Entendo que muitas de minhas aventuras neste território foram enganosas, mas uma delas, a que envolveu o casal ao qual fito demoradamente agora, foi real.

— Queríamos fazê-lo enxergar a verdade sem precisar entrar naquela chata Sala Estrelar. — conta-me Jorkwill. Kimber está ao seu lado, assegurando a ideia enquanto entrelaça as mãos pelo corpo do grandalhão.

— John, seu pai, é o grande herói aqui. — ela afirma.

— Onde ele está? — procuro-o bloco por bloco. Minha mãe se aproxima, abraçando-me naquele típico abraço demorador. Evelyn chega também, segura minha mão. O ato silencioso delas me atormenta.

A cada segundo alguém suspira para a vida em uma maca diferente, e uma criança Escarlana chega para felicitar-lhe.

— John está procurando sobreviventes. — diz Tristan, puxando-me para apontar uma região distante e devastada pela guerra. Olho através da janela arredondada e envidraçada. Não dá para notar muito devido à escuridão que há lá fora, mas sei que me indica os locais onde surgiram grandes crateras, nascidas decorrentes dos explosivos que o exército militar humano soltara pouco antes. Pequenos pontos luminosos escalam pelas bordas. — Ele sempre ajuda em tudo.

Alivio-me ao perceber que ele também está vivo, surpreendendo-me com sua coragem.

— Ele é assim mesmo. — me vejo dizendo.

Com os treinamentos no subterrâneo da ilha Terra, fomos incitados ao poder e à rebelião por tanto tempo que o sentimento de cuidado ao próximo não conseguiu coexistir. Aqui a coisa é diferente.

Perco-me vislumbrando o céu, particularmente em um ponto onde identifico um grande e oliváceo ponto luminoso apelidado de Arvorecer.

— Seu planeta está se curando. — conta-me Trístan ao caminhar sobre meu olhar. — Anime-se, Johan. Logo poderemos fazer expedições até ele.

A ciência dessa raça é simples, mas eficaz. Voltada fielmente para o funcionamento da vida harmônica. E fico feliz em saber que a Terra voltara a girar em seu eixo, mesmo que a ideia de visitá-la não esteja em meus planos. Abracei o perigoso futuro, e finalmente sinto que ele está retribuindo o ato com carinho. Não quero soltá-lo.

— O que acontecerá com os que decidirem voltar para o Esgoto? — pergunto em momentânea dúvida, mudando o assunto.

— Não posso saber. Mas estaremos sempre aptos a receber aqueles dispostos a evoluir — responde. Trístan está me observando. Seus olhos são gentis, azuis.

No dia seguinte ficamos juntos eu, meus antigos companheiros do Esgoto e os novos de Escarla, a observar em silêncio o pequeno grupo humano que preferiu aceitar as mentiras de Heiden. Eles estão sendo levados por um médio bote mecanizado em direção ao mar, à ilha Terra, ao Esgoto. Doroth, a Pesquisadora que era encarregada de apagar minha mente com frequência, é uma das primeiras na fila de partida.

— Sei que irão se isolar — diz-me Trístan. — Como faziam antes. Ensinarão para seus futuros filhos que a humanidade é a única forma de vida inteligente no mundo.

Imagino crianças crescendo numa pequena ilha isolada, ou em locais desertos e distantes do reino, sabendo que algum um dia, inevitavelmente, irão se chocar conosco.

— Devemos respeitá-los então — e dizer isso alegra o ser baixinho ao meu lado. Começo a entender a forma de pensar de meu novo ambiente.

— E estar preparados para recebê-los bem — ele termina.

Passado o período de luto e de reparo dos danos, presencio a primeira festa tumultuosa em Escarla, que um dia pensei tratar-se de um ritual canibal. A alimentação do reino é proposta através do cultivo de diversos frutos, legumes, raízes, folhagens e Casulos-Rochosos.

Escarlanos Zainos, os Natos e humanos misturam-se numa dança rítmica ao redor de uma imensa fogueira azul, fritando figos e outros frutos, balbuciando canções pelo idioma que agora não me parece incomum.

O símbolo verde em meu rosto possui um formato de folha com cinco pontas, é uma simples mania de embelezamento desse povo. Há vários outros colegas também pintados com tinturas que brilham no escuro, de acordo com o humor ou personalidade de cada um.

— Como será que eles se reproduzem? — lanço a pergunta ao grupo humano que me rodeia, os corpos agitados da badalação. Estamos observando alguns casais de Escarlanos Natos adultos e outros deles com humanos.

— Compartilhando prótons negativos e positivos através da fibra capilar — especula o cientista John Stanford, aparecendo nas mãos seguras de Angelina, minha mãe. Ambos devem ter esgotado os estoques de tintas luminosas, pois estão pintados dos pés à cabeça. Kib e Jorkwil estão rindo de minha expressão. Não resisto em sorrir também do que vejo.

Fito uma Evelyn que se aproxima com violetas desenhadas pelos ombros finos. Não temos mais a adorável química que existiu numa vida de páginas viradas e planetas passados, mas estamos tentando nos aproximar. Ela se sente bem com minha presença, e eu um pouco mais com a dela.

— Vamos provocar algumas difusões atômicas numa dança? — Jorkwill flerta com sua Kimber, um pouco alto demais. Começamos a rir de seu enorme rosto enrubescendo.

Noto Trístan e o restante das Crianças azuis num palanque acima de nós. Suas feições estão gentis ao ver as diferentes manifestações de afeto entre seu povo. Estou acenando para ele quando uma forte rajada de vento paralisa o momento. Há um doce cheiro invadindo o ar. Várias folhas avermelhadas são derramadas pelo céu, espalhando-se na noite.

Só pode significar uma coisa...

— Conquiste-me, Filho de Escarla! — desafia-me Evelyn, sorrindo ao misturar-se na correria que muitos seguem em direção aos portões do reino, onde todos anseiam desfrutar a visão da nova cor que ganhara as árvores da floresta.

O verde está presente mais uma vez. Respiro-o com deleite.

Viver promove surpresas, mudanças contínuas. Sei que tomei a decisão certa.

 

 

                                                                  Ton Adalclê

 

 

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