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CORVOS SANGRENTOS / Simon Scarrow
CORVOS SANGRENTOS / Simon Scarrow

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Durante dez longos anos, o Império Romano lutou incessantemente para manter o seu domínio na Britânia. Mas a oposição das tribos nativas, lideradas pelo implacável Carátaco, ameaça destruir tudo. O Perfeito Cato e o Centurião Macro são chamados pelo Governador Ostório a Londinium e encarregues de uma nova missão: liderar uma coorte em direção a Gales onde devem destruir toda e qualquer resistência.
Mas Carátaco já pôs em marcha um plano ambicioso e tanto o caos como a revolta irrompem no seio da legião de Macro e Cato. Testados até ao limite, os soldados sabem que, se não regressarem vitoriosos, será a governação do Imperador Cláudio a ser posta em causa. Em última instância, uma vitória do guerreiro Carátaco pode significar o colapso das próprias fundações do Império Romano.

 

 

 

 

 

 

Fevereiro, 51 d.C.
A coluna montada subia a ladeira na estrada com esforço; quando alcançou o cimo, o líder refreou o cavalo e ergueu a mão em sinal de alto. As chuvas recentes tinham
transformado a estrada numa faixa de lama escorregadia, esburacada e cheia de sulcos, e os animais resfolegavam e protestavam ao sentirem os cascos presos e sugados
pelo lamaçal. O ar gélido encheu-se do ruído produzido pelos cavalos ao deterem-se, as patas a bater no solo ensopado e as narinas a soltarem espessas nuvens de
vapor a cada expiração. O comandante da coluna envergava uma espessa capa vermelha sobre a brilhante placa peitoral, por cima da qual se cruzavam as faixas correspondentes
à sua patente: era o legado Quintato, comandante da Décima Quarta Legião, à qual competia vigiar e proteger a fronteira ocidental da mais recente província conquistada
pelo Império, a Britânia.
Uma árdua tarefa, considerou o oficial para si mesmo, em tom amargo. Já se tinham passado quase oito anos desde que o exército romano tinha desembarcado naquela
ilha, situada nos confins do mundo conhecido. Ao tempo, Quintato não passara de um jovem tribuno de vinte e poucos anos, repleto de sentido de missão e ansioso por
conquistar glória, para si, para Roma e para o seu novo Imperador, Cláudio. O exército tinha avançado para o interior à custa de intensos combates, conseguindo por
fim derrotar a poderosa hoste em que as tribos locais se tinham reunido, numa coligação liderada pelo rei dos catuvelaunos, Carátaco. As batalhas sucessivas tinham
acabado por desgastar os valentes guerreiros nativos, até que por fim as legiões os tinham esmagado num renhido confronto junto à sua capital, Camulodunum.
Naquela altura, a batalha tivera todo o ar de ser realmente decisiva. O próprio Imperador estivera presente, a testemunhar a vitória do seu exército. E, evidentemente,
a colher todo o crédito pelo feito. Depois da maioria dos governantes nativos terem concluído tratados com o Imperador, Cláudio regressara a Roma para reclamar um
triunfo e anunciar à multidão que a conquista da Britânia estava concluída. O que, de todo, não acontecera realmente. O legado franziu o cenho. Nem de perto. Aquela
derradeira batalha não tinha quebrado a vontade de Carátaco e dos seus homens continuarem a resistir. Tinha-lhe apenas mostrado que era inútil e pouco inteligente
lançar os seus bravos mas mal treinados guerreiros contra as legiões em terreno aberto. Por conseguinte, ele aprendera a jogar com outras regras, mais dissimuladas,
atraindo as colunas romanas a emboscadas e lançando grupos de assalto, velozes e móveis, para flagelar os postos avançados e as linhas de abastecimento das legiões.
Tinham sido necessários sete anos de campanhas para forçar Carátaco a recuar para as montanhas austeras onde habitavam siluros e ordovicos. Eram tribos de caráter
guerreiro, e tinham a incitá-las a fanática fúria dos druidas, pelo que estavam determinadas a resistir ao poder de Roma até ao derradeiro suspiro do último dos
seus sobreviventes. Tinham aceite a liderança de Carátaco, e aquele novo centro de resistência tinha atraído todos os guerreiros que por toda a ilha mantinham vivo
um persistente ódio a Roma.
Tinha sido um inverno rigoroso; os ventos frios e a chuva gelada tinham obrigado o exército romano a limitar as suas atividades durante os longos meses de céu cinzento
e escuro. Só para o fim da estação é que as nuvens baixas e os cerrados nevoeiros tinham abandonado as terras montanhosas que se estendiam para lá da fronteira,
e por fim as legiões tinham ficado em condições de renovar a sua campanha contra os nativos. O governador da província, Ostório Escápula, tinha dado ordens bem precisas
à Décima Quarta: avançar para os vales densamente florestados, e neles estabelecer uma cadeia de fortes. Serviriam de base para a grande ofensiva que seria lançada
assim que chegasse a primavera. O inimigo ripostara com uma rapidez e uma ferocidade que tinham surpreendido o próprio legado, atacando a mais numerosa das colunas
que enviara para lá da fronteira. Duas coortes de legionários, quase oitocentos homens. O tribuno que os comandava tinha enviado um estafeta ao legado assim que
o ataque se iniciara, solicitando apoio urgente. Quintato resolvera levar o resto da legião baseada em Glevum, assim que nascera o dia, e naquele momento, ao aproximar-se
da posição do forte, tinha-se adiantado com uma escolta montada para reconhecer o terreno, o coração pesado por um pressentimento lúgubre sobre o que ia encontrar.
Para lá da colina onde se tinham detido ficava um vale que se estendia profundamente pelo território dos siluros. O legado esforçou os ouvidos, tentando filtrar
os barulhos produzidos pelos animais em redor. Mas nenhum som se soltava da paisagem que se desenhava à sua frente. Não se escutava o embater ritmado dos pesados
machados com que os legionários deveriam estar a derrubar árvores, para obter madeira para a construção do forte e para criar uma zona desimpedida à volta do fosso
que, de acordo com o regulamento, rodearia o perímetro do campo. Nem uma voz ecoava nas abruptas encostas que envolviam o vale. E nem um indício sonoro de que um
combate ainda estivesse a decorrer.
- Chegámos tarde. - Concluiu em voz alta, desanimado. - Muito tarde.
Franziu de novo o sobrolho, irritado por não ter conseguido guardar a sua conclusão para si mesmo, e olhou rapidamente em redor, para tentar perceber se alguém o
escutara. Os mais próximos dos homens da escolta mantinham-se impassíveis nas suas selas. Não, corrigiu-se. Impassíveis, não. Nas suas expressões faciais era fácil
ler a ansiedade, os olhos a percorrer velozmente a paisagem em redor, tentando descortinar qualquer sinal do inimigo. O legado inspirou lenta e profundamente, acalmando-se,
e desenhou um arco no ar com o braço, dando sinal para avançar, enquanto calcava os flancos da sua montada. O animal avançou a passo, as orelhas espetadas como adagas
a tremelicar, como se pressentisse o nervosismo do cavaleiro. A estrada tornou-se plana, e, ao fim de poucos passos, os homens que seguiam na vanguarda da coluna
ficaram com a entrada do vale bem à vista.
O local de construção do forte ficava uns oitocentos metros mais à frente. Já tinha sido criada uma vasta clareira no pinhal, e os tocos ainda enraizados faziam
lembrar dentes partidos espalhados pela terra revolta. A silhueta do forte era percetível, mas no local onde se deviam situar o fosso, a rampa e a paliçada, não
se via mais do que uma pilha arruinada de troncos e vagões carbonizados, decorada com restos das tendas que anteriormente tinham formado filas; as peles de cabra
tinham sido rasgadas, arrastadas e espalhadas pela lama. Muitas secções da rampa de terra tinham sido destruídas, e os detritos, misturados com as estacas da paliçada,
tinham sido lançados para o fosso. Havia corpos também, de homens, mas intercalados com os de algumas mulas e cavalos. Os cadáveres tinham sido desnudados, e as
suas peles pálidas lembravam ao legado, àquela distância, grandes lagartas asquerosas. Estremeceu perante tal ideia, e apressou-se a afastá-la do pensamento. Ouviu
os homens a susterem as respirações perante o espetáculo, e não lhe escaparam algumas imprecações lançadas pelos soldados ao aperceberem-se de toda a extensão do
cenário macabro. O cavalo foi reduzindo o passo até parar, e Quintato, irritado, espetou-lhe os calcanhares enquanto fazia estalar as rédeas para o forçar a avançar
a trote.
Não havia qualquer sinal de perigo iminente. O inimigo terminara o seu sangrento trabalho havia já muitas horas, e deixara o local, com a sua vitória e os despojos.
Tudo o que deixara fora as ruínas do forte, os vagões e os mortos. Isso, e os corvos que se alimentavam já dos cadáveres. À medida que os cavaleiros se aproximavam,
as aves, vendo-se forçadas a abandonar o seu macabro festim, elevavam-se no céu, lançando estridentes gritos de alarme. Pairavam sobre a cena como pedaços de tecido
negro a esvoaçar ao vento de uma tormenta, e os seus sons tenebrosos retiniam nos ouvidos do legado.
Quintato refreou a montada ao aproximar-se dos destroços da que estivera para ser a entrada principal do campo romano. As torres que ocupavam os cantos do forte
tinham sido as primeiras estruturas a serem edificadas. Agora estavam reduzidas a esqueletos chamuscados, dos quais ainda se evolavam pequenas colunas de fumo, que
contrastavam com o fundo do cenário, as vertentes cobertas de floresta e os afloramentos rochosos, e depois se confundiam com as nuvens cinzentas que cobriam todo
o céu opressor. O fosso estendia-se para ambos os lados até aos cantos do forte, onde se avistavam as ruínas das torres. Com um estalo da lingua, o legado dirigiu
a montada até ao interior do portão destroçado. Avistou a rampa interna e o corredor de terreno limpo que acompanhava o interior das defesas. Mais adiante viam-se
os restos das tendas alinhadas, e a primeira das pilhas em que tinham sido reunidos os cadáveres. Despidos das armaduras, túnicas e botas, ali estavam, retorcidos,
marcados e sulcados pelo sangue que escorria dos escuros lábios das feridas que lhes tinham provocado a morte. Nas suas peles viam-se também muitos outros cortes
e rasgões, resultado do trabalho dos bicos dos corvos, e alguns dos corpos exibiam órbitas ensanguentadas, já que os pássaros lhes tinham arrancado os olhos. Alguns
corpos tinham sido decapitados, restando deles apenas torsos cobertos de sangue seco e escurecido.
Enquanto Quintato absorvia o terrível espetáculo dos legionários caídos, um dos oficiais do seu estado-maior aproximou o cavalo e lançou um comentário
compenetrado.
- Pelo menos parece que alguns dos homens lutaram até ao fim. O legado não deu atenção ao comentário. Era-lhe fácil imaginar os últimos momentos da vida daqueles
homens, a combater arduamente, costas com costas, tentando adiar o fim inevitável. Depois, quando o último dos feridos fora já despachado, o inimigo roubara-lhes
armas e equipamento. Tudo o que Carátaco e os seus guerreiros pudessem utilizar fora levado, e o resto lançado ao rio mais próximo, ou enterrado, para impedir que
os romanos pudessem recuperar o equipamento e levá-lo para os armazéns da Décima Quarta Legião. Quintato ergueu o olhar e deixou-o percorrer todo o campo. Havia
mais corpos por entre as tendas arruinadas, solitários ou em pequenos magotes, que denunciavam o caos que se tinha instalado quando os guerreiros inimigos tinham
conseguido ultrapassar as ainda incompletas defesas do perímetro romano.
- Senhor, devo dar ordens aos homens para desmontar e começar a enterrar os mortos?
Quintato olhou para o tribuno, mas precisou de um momento para deixar a questão penetrar-lhe os pensamentos. Abanou a cabeça.
- Deixa-os assim até que o resto da legião nos alcance. O jovem oficial mostrou-se surpreso. - Senhor, tem a certeza? Temo que este espetáculo afete o moral dos
homens. Que já está bem por baixo, aliás.
- Sei perfeitamente qual é a disposição dos meus homens, muito obrigado - lançou o legado, irritado. Mas arrependeu-se de imediato. O tribuno tinha chegado de Roma
havia pouco, todo ele armadura reluzente e vontade de pôr em prática toda a sabedoria militar que tinha recebido em segunda e mesmo terceira mão. Quintato relembrou-se
de que ele próprio não fora muito diferente quando pela primeira vez se juntara às legiões. Limpou a garganta e obrigou-se a falar em tom mais calmo.
- Deixa-os ver os cadáveres. - Muitos dos homens também se tinham reunido recentemente à Décima Quarta, já que eram substitutos acabados de chegar a bordo dos primeiros
navios a deixarem a Gália depois das tempestades de inverno amainarem. - Quero que percebam o destino que os espera se algum dia permitirem que o inimigo triunfe
sobre eles.
O tribuno hesitou um momento antes de aceder. - Será feito como ordena. Quintato fez avançar o cavalo sem pressa, seguindo para o coração do campo romano. A destruição
e a morte campeavam de ambos os lados da via larga e lamacenta que rasgava as ruínas e se cruzava com uma perpendicular de iguais dimensões. Alcançou por fim os
retalhos do que fora em tempos a tenda do comando da coorte. Ao seu lado via-se nova pilha de corpos, e o legado sentiu um arrepio frio pela espinha ao reconhecer
o rosto de Sálvio, o centurião-chefe de uma das coortes. O veterano de cabelo grisalho jazia de costas, olhando já sem ver para o céu encoberto, o queixo descaído
a mostrar os dentes irregulares e amarelados. Fora um belo oficial, refletiu Quintato. Duro, eficiente e corajoso, e muitas vezes condecorado; não tinha dúvidas
de que Sálvio mantivera até ao último momento os elevados padrões de comportamento militar que eram típicos do centurionato. Apresentava inúmeras feridas no peito
e no ventre, e o legado estava seguro de que, quando o seu corpo fosse virado, antes de ser removido, não se encontraria nenhum golpe nas costas do homem. Talvez
os nativos lhe tivessem deixado a cabeça em sinal de respeito, considerou o legado.
Ainda faltava encontrar o tribuno Marcelo, o comandante do grupo de construção do forte. Quintato apoiou-se na sela, fez a perna rodar sobre a garupa da montada
e saltou para o solo, provocando um estrondo molhado na lama. Aproximou-se dos corpos e procurou por sinais do jovem aristocrata cujo primeiro comando independente
acabara por se tornar também no último. Não valia a pena procurar entre os cadáveres decapitados, e o legado evitou-os, enquanto continuava a busca. Não encontrou
Marcelo, mesmo depois de revirar alguns dos cadáveres que jaziam de borco. Dois dos homens tinham recebido cortes horríveis nos rostos, e os fragmentos de osso,
a carne esmagada e as abas do crânio abertas impediam uma identificação imediata. Encontrar Marcelo teria que ficar para outra ocasião.
Contudo, uma súbita apreensão fez com que se detivesse. Levantou a vista e mais uma vez contemplou as ruínas do campo, fazendo uma rápida estimativa do número de
corpos que se via espalhado pela lama. Não se avistava um único inimigo morto. Mas isso era normal. Os nativos levavam sempre os seus mortos para lhes dar honras
funerárias em segredo, de forma a que os romanos não os encontrassem e não soubessem quantas baixas tinham provocado.
- Senhor, o que se passa? - Indagou o tribuno, preocupado com a súbita reação do seu superior hierárquico.
- Há demasiadamente poucos dos nossos homens aqui. Pelo meu cálculo, diria que falta um quarto do efetivo.
O tribuno olhou em redor e concordou. - Nesse caso, onde estão? - Temos que assumir que foram levados vivos. - Afirmou Quintato, numa voz fria. - Prisioneiros...Que
os deuses tenham piedade deles. Nunca se deviam ter rendido.
- O que lhes vai suceder, senhor? Quintato encolheu os ombros. - Se tiverem sorte, serão usados como escravos, e forçados a trabalhar até à morte. Antes disso, serão
levados de tribo em tribo e mostrados ao povo das montanhas, como prova de que Roma pode ser derrotada. Serão torturados e humilhados ao longo desse périplo, claro.
O tribuno manteve o silêncio por momentos e por fim engoliu em seco, nervoso.
- E se não tiverem sorte? - Nesse caso, serão entregues nas mãos dos druidas, e sacrificados aos seus deuses. Esfolados ou queimados vivos. É por isso que é sempre
melhor não nos permitirmos ser capturados vivos. - Pelo canto do olho apercebeu-se de um movimento, e virou-se para ver o que se passava na estrada que levava à
entrada do campo. A centúria que ocupava a vanguarda da coluna acabava de alcançar o cimo da ladeira e começava já a descer para o vale, tentando manter um passo
ordenado sobre um terreno cada vez mais lamacento. Nesse momento surgiu uma aberta entre as nuvens e um estreito feixe de luz derramou-se sobre a cabeça da coluna.
Um brilho ofuscante denunciou a posição do estandarte com a águia, símbolo das legiões, e dos outros estandartes com a imagem do Imperador e as insígnias e condecorações
das unidades que compunham a força. Quintato interrogou-se se aquele seria um bom prenúncio. Se assim fosse, os deuses tinham de facto um estranho sentido de oportunidade.
O tribuno levantou nova questão. - Senhor, e agora? - Hum? - Quais são as suas ordens? - Acabarmos aquilo que foi começado. Assim que toda a legião estiver aqui,
quero o fosso e a rampa reparados, e depois a continuação dos trabalhos no forte. - Quintato endireitou as costas e enfrentou as florestas escuras que cobriam as
encostas que rodeavam o vale. - Hoje, aqueles selvagens conseguiram a sua pequena vitória. Já nada podemos fazer quanto a isso. Algures nessas colinas, eles celebrá-la-ão.
Os loucos. Não sabem que isto apenas endurece a vontade de Roma, que prosseguiremos até que o último vestígio de resistência à nossa vontade seja esmagado. Não importa
quanto tempo vai levar, podes estar certo de que o Ostório e o Imperador não nos permitirão qualquer descanso até esta tarefa estar concluída. - Os lábios do legado
encurvaram-se num breve e amargo sorriso. - Meu caro jovem, farias bem em não te habituares aos confortos do forte em Glevum.
O jovem oficial anuiu, respeitoso. - Ora bem, vou precisar de uma tenda montada aqui, para instalar o meu quartel-general. Traz alguns homens para limparem o terreno
e trata disso. Envia-me também o meu secretário. O governador vai precisar de um relatório sobre este acontecimento, e depressa. - Quintato cofiou o queixo enquanto
contemplava os corpos do centurião Sálvio e dos seus camaradas. Sentia o coração pesado perante a perda de tantos homens de valor, e perante o facto de saber que
a próxima campanha ia ser tão dura e sangrenta como qualquer das outras que os romanos tinham enfrentado desde que tinham colocado pé naquela maldita ilha.
Mas aquele era um novo tipo de guerra. Os soldados de Roma teriam que ser completamente impiedosos, se queriam ter a esperança de vergar o espírito inimigo. E teriam
que ser liderados por oficiais capazes de perseguir o inimigo com uma decisão inabalável e inatacável, sem qualquer piedade nos seus corações. Felizmente, refletiu
Quintato, tais homens existiam. Havia um homem em particular cujo nome chegava para fazer gelar o sangue dos seus inimigos. O centurião Querto. Com uma centena de
homens do mesmo calibre, os problemas de Roma na Britânia teriam rápido fim. Homens daquele género eram realmente necessários na guerra. Mas o que lhes sucederia
em tempos de paz? Esse, concluiu Quintato para si mesmo, era um problema para outros resolverem.
2
Dois meses depois, no rio Tamesis
Pdeuses, esta terra está mesmo mudada. - Notou o centurião Macro, enquanto apontava para os edifícios que se erguiam na margem norte do rio. O cargueiro em que seguiam
tinha acabado de executar uma mudança de bordo para acompanhar uma curva larga do rio, e agora a proa apontava diretamente à brisa persistente, fazendo a vela dançar
contra o céu cinzento, ineficaz.
O capitão levou as mãos em concha à boca e usou o poderoso vozeirão para lançar uma ordem sobre o amplo convés.
- Lá para cima! Recolham a vela! Enquanto vários homens trepavam pelo cordame, o capitão virou-se para os restantes tripulantes.
- Lancem os remos à água e preparem-se! Os marinheiros, uma mistura de gauleses e batavianos, hesitaram apenas um instante antes de se porem ao trabalho, com ar
pouco animado. Macro não conseguiu evitar um sorriso ao vê-los, percebendo perfeitamente a natureza do protesto mudo que lançavam: era mais uma questão de forma
do que de substância. O que era também habitual com os soldados que conhecera ao longo de toda a sua vida. Deixou que o olhar se voltasse a perder pelas colinas
baixas e encadeadas que desenhavam a paisagem de ambas as margens do rio. Grandes extensões tinham sido limpas de arvoredo, e viam-se pequenas quintas espalhadas
pelos campos agora abertos. Avistavam-se também alguns edifícios de maiores dimensões com telhados sólidos, uma evidência clara de que Roma começava a estampar a
sua marca na nova província. Macro interrompeu os seus devaneios para deitar uma olhadela ao seu companheiro de viagem, ali perto, de cotovelos apoiados na amurada
do navio e olhar perdido na agitada superfície do rio, à medida que esta ia sendo rasgada pela embarcação. Macro deitou a subtileza ao vento e tossicou de forma
audível, ostensivamente para limpar a garganta.
- Disse eu que esta terra está bem mudada. Cato agitou-se, olhou para cima ainda sem ver, e acabou por sorrir. - Desculpe, estava muito longe daqui. Macro assentiu.
- De pensamentos virados para Roma, aposto. Não te preocupes, miúdo, a Júlia é uma grande mulher, e uma excelente esposa. O seu coração não arrefecerá enquanto espera
pelo teu regresso.
Apesar do jovem ter agora uma patente superior, não se tinha apagado a familiaridade que se estabelecera entre os dois homens ao longo dos oito anos que tinham servido
juntos. Em tempos fora Macro o mais antigo dos dois, mas Cato tinha-o deixado para trás, subindo nas fileiras até ao posto de prefeito, pronto a assumir pela primeira
vez o comando permanente de uma unidade de auxiliares: a Segunda Coorte Trácia de cavalaria. O precedente comandante da unidade tinha sido morto na campanha anterior,
e o gabinete imperial das legiões, em Roma, tinha escolhido Cato para preencher a vaga.
- E quando será isso, pergunto-me? - Respondeu o jovem, sem conseguir ocultar a amargura na voz. - Pelo que sei, a celebração triunfal que o Imperador ofereceu para
marcar a conquista da Britânia foi um tanto prematura. Quase que aposto que ainda haveremos de estar a combater o Carátaco e os seus seguidores quando formos velhos
de barbas brancas.
- Por mim, tudo bem. - Macro encolheu os ombros. - Sempre me sabe melhor um honesto trabalho nas legiões do que aquelas histórias de capa e espada em que nos vimos
metidos desde que aqui estivemos pela última vez.
- E eu a julgar que nutria um persistente ódio pela Britânia. Sempre a protestar contra a maldita humidade, e o frio, e a falta de comida decente. Mal podia esperar
para se ver daqui para fora, dizia nesses tempos.
- Quem, eu? - Macro fingiu-se inocente, até esfregar as mãos. - Seja como for, cá estamos. Com uma campanha decente pela frente, a possibilidade de novas promoções
e recompensas e, acima de tudo, de engordar as minhas economias para a reforma. Também eu tenho ouvido umas coisas, miúdo, e ao que parece há uma fortuna em prata
à espera de quem a queira recolher nas montanhas da parte ocidental da ilha. Com uma pontinha de sorte, assim que os nativos levarem uma boa coça e meterem juízo
nas cabeças, ficamos como queremos.
Cato não evitou um sorriso. - Na minha experiência, dar uma coça a alguém raramente o conduz à razoabilidade.
- Discordo. Se souberes onde aplicar e com que força lhe dar, depressa ele fará o que lhe disseres.
- Se o diz. - Cato não estava com disposição para debates. Ainda estava perturbado pela perspetiva de uma longa separação de Júlia. Tinham-se conhecido havia alguns
anos, na fronteira oriental do Império, onde o pai dela, o senador Semprónio, desempenhava a missão de embaixador do Imperador junto do rei de Palmira. A entrada
numa família senatorial por via do casamento constituía uma progressão considerável no estatuto social, especialmente para um oficial subalterno das legiões como
Cato era, e não deixava de lhe provocar alguma ansiedade perante a franca possibilidade de se ver desprezado por todos os que provinham de velhas famílias aristocráticas.
Porém, o senador Semprónio reconhecera o potencial do jovem, e fora com agrado que autorizara que ele desposasse a sua filha. O casamento fora o dia mais feliz da
vida de Cato, mas pouco tempo tivera para se acostumar ao seu papel de marido, já que pouco depois recebera ordem de marcha, vinda do secretário imperial. Narciso
estava sob pressão crescente da fação que escolhera o jovem príncipe Nero como sucessor do Imperador Cláudio. O secretário imperial tinha alinhado com os que apoiavam
Britânico, o filho natural do Imperador, mas o seu partido não parava de perder influência junto do idoso e atarantado governador do maior império do mundo. Narciso
explicara que estava a fazer um favor a Cato, ao enviá-lo para o mais longe de Roma que podia. Quando o Imperador morresse, ia dar-se um confronto impiedoso pelo
poder, e os que estivessem do lado perdedor não poderiam esperar qualquer piedade; o mesmo se aplicava a todos que a eles estivessem associados. Se Britânico perdesse
o combate, estava condenado, e Narciso com ele.
Uma vez que Cato e Macro tinham prestado bons serviços ao secretário imperial,
embora muitas vezes a contragosto, também eles ficariam em perigo. Seria vantajoso que, quando o momento chegasse, estivessem a combater numa fronteira longínqua,
longe do olhar vingativo dos seguidores de Nero. Era verdade que Cato tinha salvo a vida de Nero havia ainda pouco tempo, mas também se tinha atravessado no caminho
de Palias, o liberto que controlava a fação que apoiava o príncipe. E o grego não era homem capaz de perdoar a quem se interpusesse entre ele e as suas ambições.
A dívida de Nero para com Cato não chegaria para o salvar. E portanto, mal tinha passado um mês após a celebração do casamento, que tivera lugar na casa do pai de
Júlia, Cato e Macro tinham sido convocados ao palácio para conhecerem as suas novas colocações: para Cato, o comando de uma coorte trácia, e para Macro o de uma
coorte na Décima Quarta Legião; ambas as unidades faziam parte do exército ao dispor do governador da Britânia, Ostório Escápula.
Tinha havido lágrimas quando chegara o momento da partida. Júlia tinha-se agarrado a ele, e ele apertara-a contra si, sentindo o fremir do peito da jovem enquanto
ela enterrava a face nas dobras do manto e as suas longas tranças escuras lhe escorriam pelas mãos. Cato sentira o coração dilacerado ao ver a dor que a separação
causava à sua jovem esposa, dor que ele partilhava por inteiro. Mas a ordem fora dada, e o sentido de dever que unia os cidadãos de Roma e lhes tornara possível
derrotar todos os inimigos não podia ser contrariado.
- Quando regressarás? - A voz de Júlia era abafada pelas dobras da capa de lã. Ela olhou para cima com os olhos avermelhados, e Cato sentiu uma onda de angústia
a correr-lhe pelo peito. Forçou-se a dar-lhe um sorriso despreocupado.
- A campanha não deverá ser longa, meu amor. O Carátaco não conseguirá resistir muito mais tempo. Derrotá-lo-emos.
- E depois? - Depois, esperarei para ver quem será o novo Imperador, e quando for seguro regressar, candidatar-me-ei a um posto na administração civil em Roma.
Ela cerrou os lábios. - Mas isso pode levar anos. - Sim. Ficaram os dois em silêncio por momentos, até que Júlia voltou a falar. - Eu podia ir ter contigo à Britânia.
Cato inclinou a cabeça para o lado. - Talvez. Mas não para já. Aquela ilha, por enquanto, não passa de um recanto bárbaro e atrasado. A maior parte das comodidades
a que estás habituada estão ausentes. E há ameaças e perigos, o menor dos quais não será o ar pouco saudável daquelas paragens.
- Isso pouco importa. Cato, sabes que já passei pelas mais terríveis condições. Sabe-lo muito bem. E depois de tudo o que já passámos, merecemos estar juntos.
- Sim, bem o sei. - Portanto, promete-me que me chamarás para junto de ti assim que tal for seguro. - Apertou com mais força ainda a capa do marido e fitou-o nos
olhos com toda a intensidade. - Promete-me.
Cato sentiu que se dissolvia a sua firme resolução de a proteger de todos os perigos e desconfortos da nova província.
- Prometo. Ela afrouxou a pressão e deu meio passo atrás, com uma expressão de alívio sofrido no rosto, e assentiu.
- Meu querido Cato, não me faças esperar demasiado tempo. - Nem um dia a mais do que achar necessário. Juro-o. - Bom. - Ela sorriu e pôs-se em bicos dos pés para
o beijar na boca, afastando-se de novo para lhe segurar nas mãos uma última vez, antes de se endireitar. - Tens de ir.
Cato deitou-lhe um último e demorado olhar, antes de inclinar a cabeça e deixar para trás a casa do senador, seguindo pela rua que levava ao portão da cidade, onde
ia embarcar num barco para descer o Tibre e se juntar a Macro no porto de Óstia. Olhou para trás ao chegar ao fundo da rua e viu-a, ainda à porta; teve que se obrigar
a virar-se e prosseguir até não mais conseguir vislumbrar a casa.
A dor da separação não tinha diminuído ao longo da viagem por mar até Massíllia, e depois por terra até Gesoriacum, onde tinham voltado a embarcar num cargueiro
para a última fase da viagem até à Britânia. Era estranho regressar à ilha depois de tantos anos. Naquele dia o navio tinha passado pela zona onde Cato e os seus
camaradas da Segunda Legião tinham em tempos realizado um desembarque na margem do rio, enfrentando uma horda de guerreiros nativos constantemente incitados por
druidas aos berros, a lançar invetivas e maldições sobre os invasores. Era uma lembrança difícil e um alerta para o que se avizinhava, e Cato temia fortemente que
vários anos se haviam de passar antes de considerar a área suficientemente segura para poder chamar a esposa para junto de si.
- É aquilo lá à frente? Londinium? Cato virou-se: uma mulher já idosa, esguia e de feições duras, caminhava pelo convés, vinda da direção da escotilha que dava acesso
às acomodações atravancadas dos passageiros. Trazia um xaile sobre a cabeça, de onde se escapavam alguns fios de cabelos grisalhos que esvoaçavam na brisa. Cato
sorriu-lhe à laia de saudação, e Macro saudou
efusivamente a recém-chegada, que se lhes juntou na amurada.
- Mãe, estás com muito melhor aspeto. - Claro que estou. - Ripostou ela, de forma agreste. - Agora que esta maldita casca de noz parou de se remexer para todos os
lados. Julguei mesmo que aquela tempestade nos ia mandar para o fundo. E, com toda a franqueza, teria sido um favor. Nunca me senti tão mal em toda a minha vida.
- Aquilo nem foi uma tempestade a sério. - Comentou Macro, desdenhoso.
- Não? - Ela acenou na direção de Cato. - O que acha? Vomitava com tanta vontade como eu.
Cato fez uma careta. O oscilar e baloiçar do navio na noite anterior tinha-o deixado num estado miserável, enrolado numa bola enquanto vomitava para um recipiente
colocado ao lado da enxerga. Normalmente, já pouco lhe agradavam as travessias no Mediterrâneo. O mar revolto ao largo da Gália tinha sido uma verdadeira tortura.
Macro fungou, dando pouca importância ao assunto. - Mal soprava uma brisa. E o ar era fresco, apetecível. Sempre me meteu um bocado de sal nos pulmões.
- E ao mesmo tempo tirava-nos tudo o que tínhamos nas entranhas.
- Replicou a mãe. - Preferia morrer a passar por aquilo outra vez. Aliás, o melhor é nem pensar mais nisso. Estava eu a dizer, aquilo além é Londinium?
Os outros viraram-se para olhar na direção que ela indicava, e apreciaram os edifícios distantes que marcavam a margem setentrional do Tamesis. Tinha sido ali construído
um cais, limitado por grandes estacas cravadas no leito do rio, onde se apoiavam vigas que continham o enchimento de terra e pedras, cuja superfície fora alisada
e depois pavimentada. Havia vários cargueiros lá atracados, e outros esperavam a sua vez de descarregar, ancorados um pouco a montante. No cais, fileiras de escravos
agrilhoados atarefavam-se a levar os bens dos porões dos navios para os longos e baixos armazéns. Por trás destes avistavam-se outros edifícios, muitos ainda em
construção, assinalando a contínua expansão da nova cidade. A uns cem passos da margem distinguia-se um vasto complexo de dois andares que dominava as edificações
próximas. Devia ser a basílica, reconheceu Cato, onde se situariam o mercado, os tribunais, lojas, gabinetes e escritórios da administração, como acontecia em todas
as cidades fundadas por Roma.
- É Londinium, pois. - Confirmou o capitão, juntando-se aos seus passageiros. - Cresce mais depressa do que um abcesso no cu duma mula. E com o mesmo grau de limpeza.
- Oh? - Espantou-se a mãe de Macro. - É isso mesmo, menina Pórcia. Aquilo é um verdadeiro ninho de ratos. Ruas estreitas, repletas de lama, botequins de baixa categoria
e bordéis. Ainda vai levar um bocado a tornar-se decente e a transformar-se no género de cidade a que está habituada.
- Ótimo. Era mesmo isso que eu queria ouvir. O capitão não escondeu uma careta de espanto, e Macro soltou uma gargalhada.
- Ela veio para cá para se dedicar aos negócios. O capitão encarou a mulher com nova atenção. - Que género de negócios? - Tenciono abrir uma estalagem. - Explicou
ela. - Há sempre necessidade de uma bebida, e de outro género de confortos, ao fim de uma viagem marítima, e atrevo-me a imaginar que Londinium deve estar cheia
de mercadores, marinheiros e soldados, sempre a entrar e sair pelos portões. Todos eles bons clientes para o tipo de serviços que oferecerei no meu estabelecimento.
- Oh, não há falta de movimento, isso é verdade - confirmou o capitão. - Mas o negócio é duro. Ainda mais numa nova província como esta. O tipo de mercadores que
anda por cá a fazer fortuna é rijo. Não apreciarão que uma mulher venha de Roma para lhes fazer competição.
- Já lidei com homens bem duros na estalagem que tinha em Ravenna. Duvido que os locais me coloquem grandes problemas. Especialmente quando souberem que o meu filho
é um centurião-chefe da Décima Quarta Legião. - Pegou no braço de Macro e deu-lhe um aperto de afeição.
- É verdade. - Anuiu o centurião. - Quem se meter com a minha mãe está a meter-se comigo. E a coisa não correu nada bem a quem já o tentou.
O capitão avaliou o físico entroncado e poderoso do oficial romano, contemplou as cicatrizes que ele exibia no rosto e nos braços, e não teve dificuldade em acreditar
no que ouvia.
- Ainda assim, senhora, não percebo porque resolveu vir para esta ilha. Se tivesse montado um estabelecimento em Gesoriacum estaria muito mais confortável. E também
por lá não lhe faltariam clientes.
Pórcia cerrou os lábios. - É aqui que se pode fazer dinheiro a sério, com gente que não hesita em gastá-lo. Além disso, este rapaz é tudo o que me resta neste mundo.
Quero estar perto dele, na medida do possível. Quem sabe, quando ele deixar as legiões talvez me possa ajudar no negócio.
Os olhos de Macro alumiaram-se ao ouvir tal possibilidade. - Ah, aí está uma bela ideia. Todo o vinho e todas as mulheres que um homem pode querer,
sem sair de casa!
Pórcia deu-lhe um safanão no braço. - Pensando melhor... Vocês, soldados, são todos iguais. Seja como for, hei de fazer fortuna aqui em Londinium, e aqui ficarei
até ao fim dos meus dias. O que fazes com a tua vida é contigo, Macro. Mas por mim, é aqui que vou ficar. Esta será a minha última morada.
O navio aproximava-se do cais num ritmo constante. À medida que se aproximavam da povoação, as pessoas a bordo aperceberam-se pela primeira vez do cheiro que se
desprendia dela, um odor acre, a turfa e esgoto, que se misturava com o fumo de lenha, se prendia nas gargantas e as irritava.
- Bem, parece-me que afinal o ar do mar sempre é mais recomendável. - Resmungou Cato, enquanto torcia o nariz.
Não havia espaço para atracarem, pelo que o capitão deu ordens para que se dirigissem para o fim da linha de navios ancorados a montante. Virou-se para os passageiros
para lhes oferecer uma desculpa.
- Ainda vai levar algum tempo até chegar a nossa vez de acostar. Claro que podem ficar a bordo, mas se preferirem posso mandar alguns dos rapazes levá-los para terra
no bote.
Cato afastou-se da amurada e adotou os modos militares que tinha aprendido com Macro, empertigando-se e falando de forma decidida.
- Vamos a terra. O centurião e eu temos que nos apresentar às autoridades militares assim que for possível.
- Sim, senhor. - O capitão tocou com a mão na testa, como que a reconhecer instintivamente que o tom informal em que decorrera a travessia se tinha desvanecido.
- Vou tratar disso imediatamente.
O capitão não era homem de palavra vã, e pela altura em que a âncora do navio mergulhava na corrente e a tripulação recolhia os remos, as sacas dos dois oficiais
e as arcas e malas que pertenciam a Pórcia já tinham sido tiradas do porão. O esquife, uma pequena embarcação de proa quadrada e larga, foi baixado até à água, e
dois remadores saltaram agilmente lá para dentro e aprestaram-se a auxiliar os passageiros a descer. Não havia espaço para mais nada; as bagagens teriam que ser
levadas numa segunda viagem. Cato foi o último a tomar lugar a bordo, e quando desceu para a minúscula embarcação pôs-se a agitar freneticamente os braços para manter
o equilíbrio, até que se deixou cair pesadamente num dos bancos. Macro lançou-lhe um olhar desconsolado e um assobio gozão; os remadores manobraram os remos, dirigindo
o bote para o cais. Agora que estavam mais próximos de Londinium, percebiam que a superfície do rio estava manchada pelo fluxo do esgoto que se escoava das aberturas
ao longo do cais. Na água parada que se mantinha naquela zona viam-se pedaços de madeira partida por entre outros materiais flutuantes, e havia ratazanas a correr
de destroço em destroço, em busca de qualquer coisa comestível. Numa das pontas do cais estava localizada uma escadaria de madeira, e os remadores orientaram para
lá o bote. Quando acostaram, o homem mais próximo recolheu o remo e esticou-se para agarrar o molho de cabos escorregadios que servia de amortecedor no cais. Aguentou
a posição enquanto o seu companheiro passava uma corda pelo poste de amarração.
- Ora cá estamos, senhores e senhora. - O homem sorriu e ajudou-os a saltar para os degraus em terra firme. Cato seguiu à frente e subiram as escadas até ao cimo
do cais, onde puderam apreciar a congestionada via que ocupava o espaço entre os navios atracados e os armazéns. Uma cacofonia de vozes enchia a fresca tarde primaveril,
e no meio dela distinguiam-se os sons das mulas, os estalos dos chicotes e os berros dos capatazes que comandavam as cadeias de escravos. Apesar de a cena ter um
aspeto caótico, Cato não tinha dúvidas de que representava, em cada ínfimo detalhe, a prova da transformação que afetava aquela ilha, que tinha desafiado o poder
de Roma durante perto de cem anos. Para o bem ou para o mal, a mudança chegara à Britânia, e quando as últimas bolsas de resistência tivessem sido esmagadas, a nova
província seguiria a norma e tornar-se-ia verdadeiramente parte do Império.
Macro juntou-se a ele e olhou rapidamente em redor, antes de resmungar.
- Bem-vindos de volta à Britânia... o verdadeiro cu do mundo civilizado.
3
Depois do bote regressar com as bagagens, Macro abordou um grupo de homens desocupados, junto ao armazém mais próximo. - Preciso de portadores. - Anunciou, usando
o tom de voz elevado e claro que costumava empregar na parada. Os homens apressaram-se a responder, e ele escolheu alguns dos mais fortes, um dos quais tinha uma
tira de cabedal em volta da cabeça, para manter a vista livre do cabelo louro e espesso. Na testa, mal coberta pela tira, tinha uma marca. Macro reconheceu-a de
imediato. Era o símbolo de Mitra,
relativo a uma religião com origem no oriente que se espalhava rapidamente pelas fileiras do exército romano.
- Tu foste em tempos um soldado, se não estou enganado? O homem dobrou o pescoço. - Sim, senhor, fui. Até que levei com uma lança silura na perna. Fiquei a coxear,
já não conseguia marchar ao ritmo do resto dos rapazes. O exército teve que me passar à disponibilidade, senhor.
Macro avaliou-o de alto a baixo. O homem envergava uma capa militar já muito puída por cima da túnica, e as botas eram mantidas no lugar por tiras de pano apertadas.
- Deixa-me adivinhar. Estouraste o prémio de saída e viste-te reduzido a este estado.
O ex-soldado assentiu. - Sim, senhor, foi mais ou menos isso. - Como te chamas, e a que unidade pertencias? - Legionário Marco Metelo Décimo, da Augusta Segunda
Legião, senhor! - O homem pôs-se em sentido e fez um esgar de dor involuntário antes de levar uma mão à perna para a tentar manter firme.
- A Segunda, hã? - Macro cofiou o queixo. - A minha velha malta. Ou, aliás, a nossa velha malta. - Fez um gesto com o polegar indicando Cato. - Servimos sob o comando
do legado Vespasiano.
Décimo inclinou a cabeça, pesaroso. - Isso foi antes do meu tempo, senhor. - Uma pena. Muito bem, Décimo, ficas encarregado destes homens. A nossa bagagem está além,
no cais, ao pé do meu amigo e da senhora.
Décimo olhou na direção indicada e fungou. - Um bocado velha demais para ele. A não ser que tenha dinheiro... Nesse caso, nunca são velhas demais.
Macro rangeu os dentes. - A mulher em questão é a minha mãe... Vai mas é fazer o que te disse!
Décimo voltou-se rapidamente e fez sinal aos outros para o seguirem. Enquanto pegavam nas arcas e nas sacas, Cato pediu orientações.
- Onde é que está aquartelada a guarnição local? - Não há guarnição, senhor. Nenhum forte. Aliás, não existem quaisquer fortificações. Aqui há uns anos construíram
um forte, mas a cidade cresceu tão depressa que ele acabou engolido. E onde estão agora a construir a basílica; era lá o antigo forte.
- Estou a ver. - Cato suspirou, frustrado. - Nesse caso, onde é que posso encontrar algum representante do governador?
Décimo pensou por instantes. - Bem, senhor, creio que deve ir às acomodações do governador. Ficam ao lado do local das construções. Há de encontrá-lo por lá.
Cato não escondeu a surpresa. - Ostório está aqui em Londinium? - Sim, senhor. - Mas a capital da província é Camulodunum. - Oficialmente, sim, senhor. Afinal de
contas, foi de lá que veio o Carátaco, e é lá que o Imperador Cláudio prometeu erigir um templo a si mesmo. Mas fica demasiado a leste. Seja lá o que pretenderem
em Roma, toda a gente aqui parece preferir fazer de Londinium a cidade mais importante. Até o governador. E é por isso que o pode encontrar por cá.
Cato assimilou toda a informação e agradeceu. - Muito bem, leva-nos até à casa do governador. Décimo dobrou o pescoço e depois de colocar um dos sacos ao ombro,
e a grunhir devido ao peso da armadura que continha, seguiu a coxear por uma rua que se afastava do porto.
- Senhor, siga-me então. Londinium depressa se mostrou tão desagradável como o capitão do cargueiro os tinha prevenido. As ruas eram estreitas e cheias de gente
e, ao contrário do que se passava em Roma, não havia quaisquer restrições ao trânsito de veículos com rodas durante o dia. Cato e os outros tiveram que lutar para
abrir caminho nas ruelas acanhadas, repletas de carroças, cavalos e pessoas. Décimo e os seus companheiros, conhecedores da disposição das ruas, seguiam a bom ritmo,
e Cato temeu que acabassem por os perder de vista. Fez um gesto dissimulado a Macro, para que ajudasse a mãe a deslocar-se pelo meio da turba com mais agilidade.
Pelas vestes e feições das pessoas que cruzava, Cato concluiu que a maior parte provinha de outras regiões do Império, e que se dedicavam muito provavelmente a tentar
arrecadar dinheiro fácil numa nova província. Pórcia teria que enfrentar competição muito dura, refletiu, e seria de desejar que a patente do filho fosse realmente
suficiente para proteger os seus interesses dos bandidos, ladrões e fura-vidas que já predavam os menos capazes na cidade de Londinium.
- Mãe, tudo bem? - Indagou Macro. Pórcia olhava com firmeza para um grupo de nativos de alguma tribo que passava pela rua, embrulhados em peles e ostentando tatuagens
em linhas que serpenteavam pelos braços abaixo.
- Selvagens... Cato sorriu para si mesmo, mas depois franziu o sobrolho. Ainda havia muito caminho a percorrer até que os povos daquela ilha aceitassem o domínio
de Roma. Carátaco e os seus seguidores podiam estar naquele momento muito longe de Londinium, lá para o ocidente, mas o espírito dos povos tribais que viviam na
cidade e nas suas redondezas estava longe de se encontrar sob perfeito controlo. E se as legiões sofressem algum sério contratempo, seguramente que tal encorajaria
mais do que um punhado de nativos a lançarem-se numa revolta aberta contra Roma. Se o poderio do exército do governador estava concentrado na fronteira, poucas forças
haveria para impedir os rebeldes de devastarem as partes da província que, de acordo com os burocratas em Roma, já eram consideradas como pacificadas e como tal
marcadas nos mapas.
- Onde raio se meteu aquele Décimo e a sua cambada? - Protestou Macro, esticando o pescoço, mas incapaz de ver grande coisa, dada a sua baixa estatura.
- Uns vinte passos adiante. - Explicou Cato. - Não percas esses sacanas de vista. A última coisa de que precisamos é que nos roubem o equipamento assim que pusermos
pé em terra firme. Não estou disposto a reintegrar as legiões como se fosse um recruta verde acabadinho de sair debaixo das saias da mãe.
Pórcia fungou. - Meu filho, se há uma coisa que não és, é um filhinho da mamã. Prosseguiram apressados, tentando não perder de vista os homens que lhes transportavam
as bagagens. Ao chegarem a um cruzamento onde carroças carregadas de ânforas empilhadas se cruzavam em todas as direções e na maior confusão, não avistaram os homens
do outro lado da estrada.
Cato sentiu o coração a afundar-se no desespero, e uma onda de cólera contra Décimo, por os ter enganado.
- Ei! Prefeito! Por aqui. Virou-se na direção da voz e avistou Décimo e os seus companheiros um pouco à esquerda. O antigo legionário abanou a cabeça com ar de gozo.
- Cá estou eu com a minha perna coxa, e mesmo assim os oficiais não me conseguem acompanhar. Onde irá este mundo parar?
Antes que Cato pudesse interrompê-lo e dizer-lhe para ter atenção à língua quando se dirigia a um superior, o outro ergueu uma mão e apontou para um grande portão
próximo, do outro lado da rua para onde tinham virado. Por trás do muro, Cato avistou andaimes e a alta estrutura de madeira de uma grua erguendo-se contra o céu
cinzento.
- Cá estamos, prefeito. Ali fica a basílica. Ou o que há de ser a basílica, um dia destes.
Sem esperar por resposta, Décimo recomeçou a andar, mas naquela rua o tráfego era menos denso, e os romanos conseguiram acompanhá-lo sem dificuldade. Depois de passar
o comboio de carroças com ânforas, atravessaram a rua até ao portão, e dirigiram-se aos dois legionários que estavam de guarda. O arco do portão tinha sido rebocado
e caiado, mas a tijoleira das paredes ainda estava inacabada.
- Digam ao que vêm. - Instou um dos guardas com ar descontraído, enquanto passava o olhar sobre os dois homens e a mulher mais idosa, tentando perceber qual era
o seu estatuto social. Os dois oficiais vestiam túnicas novas e imaculadas, e capas militares que tinham adquirido em Roma antes de partirem. Apesar de não ostentarem
quaisquer insígnias que indicassem as suas patentes, nem quaisquer anéis reveladores de riqueza pessoal, o porte dos dois oficiais e as cicatrizes que exibiam contavam
já boa parte da sua história. Sobretudo a longa linha lívida que atravessava a face de Cato, da testa ao queixo. Depois de absorver a informação, a sentinela limpou
a garganta e adotou um tom mais moderado.
- Senhor, em que posso ajudá-lo? - Somos o prefeito Quinto Licínio Cato e o centurião Lúcio Cornélio Macro. - Acenou, designando Macro, antes de prosseguir. - Acabámos
de chegar de Roma para assumir os nossos postos. Queremos apresentar-nos ao governador e encontrar aposentos.
- Senhor, aqui não encontrará nada disso. Deitaram abaixo o forte há dois meses.
- Já ouvi. Imagino que Ostório e o seu pessoal administrativo não trabalham ao relento, ainda assim?
- Isso é que havia de ser bonito, senhor! - A sentinela virou-se e usou o dardo para apontar para mais andaimes que rodeavam um vasto complexo com um andar apenas.
- É o princípio do palácio do governador. Ordenou aos construtores que acabassem o andar térreo e deixassem assim, por agora. Ainda assim, conseguiram colocar o
hipocausto antes de pararem, por isso lá dentro está tudo quentinho e aconchegante. Ao contrário de nós, encarregados da proteção do governador. Dormimos em tendas
no exterior.
- É o que fazem os soldados, rapaz. - Macro deu um estalo com a língua. - Se é demasiado duro para ti, talvez devesses ter-te juntado a uma tropa fandanga de atores
mariconços, ou coisa do género.
- Vamos! - Cato fez um gesto com o braço, e seguiu pelo caminho que tinha sido aberto no estaleiro de construção. Aos lados havia pilhas de vigas e tábuas, de tijolos
e telhas, e longas valas para misturar cimento. As fundações de várias estruturas de grandes dimensões tinham sido terminadas
e havia paredes com altura até à cintura a demarcarem as divisões do primeiro grande edifício cívico da nova província, que dominaria a paisagem e inspiraria temor
e admiração no coração de todo e qualquer nativo que o avistasse. No local trabalhavam centenas de homens, incluindo algumas cadeias de escravos, usados para transportar
materiais pesados sempre que necessário. Os sons dos seus grunhidos, o serrar da madeira e os estalos das pedras a serem partidas para serem reduzidas às dimensões
necessárias misturavam-se com as instruções lançadas aos gritos pelos capatazes e encarregados.
Macro acenava satisfeito enquanto passavam pelas obras. - Quando estiver acabado, será um edifício e peras. Na outra ponta do recinto tinha sido deixada uma abertura
nos andaimes para permitir a passagem até ao edifício semiconstruído que ali se situava, que servia de sede administrativa ao governador Ostório e ao seu pessoal.
Dois dos elementos da sua escolta guardavam a entrada. Cato viu-se obrigado a repetir o propósito da sua visita, e depois voltou-se para os portadores das bagagens,
para lhes pagar, depois de eles terem deixado os seus fardos à entrada improvisada do edifício. Pegou na bolsa que levava ao cinto e desapertou as correias que a
fechavam.
- É um sestércio, senhor. - Décimo levou um dedo à testa, numa saudação informal. - A cada um.
Macro arregalou um olho. - Pelos deuses, isso é exorbitante. - Senhor, é a tabela corrente em Londinium. Cato virou-se para um dos guardas. - Confirmas? O legionário
assentiu.
- Muito bem. - Pescou algumas moedas na bolsa, contou-as e entregou-as a Décimo e aos outros. - Ao que parece, a vida em Londinium vai-nos sair cara. Podem ir...
Décimo, uma palavra.
O ex-legionário acenou aos companheiros para irem andando e virou-se para Cato.
- Senhor? Cato encarou-o, tentando ver para além dos trapos sujos e rasgados e do cabelo desgrenhado, avaliando o homem que em tempos fora um legionário. Se Décimo
dizia a verdade, a sua carreira militar tinha sido abreviada pelas fortunas da guerra. As mesmas que tinham decidido poupar Cato e Macro ao longo de todas as campanhas
e batalhas desesperadas que tinham enfrentado durante tantos anos de serviço. Às vezes, Cato não conseguia evitar pensar que estava a levar ao limite a porção de
sorte que lhe fora distribuída. Mais cedo ou mais tarde, uma lança, uma espadeirada, uma seta, algo o havia de encontrar, como acontecera com Décimo e com tantos
outros.
- Quantos anos serviste aqui na Britânia? Décimo coçou o queixo. - Vim para cá há cinco anos, do centro de treino em Gesoriacum. Servi na Segunda na campanha contra
os deceanglos, antes de ser enviado num destacamento de reforço à Décima Quarta em Glevum. Mais dois anos em campanha contra os siluros, até que ganhei isto. - Fez
uma festa na perna aleijada.
- Muito bem. - Cato assentiu e pensou um momento antes de prosseguir. - E agrada-te este trabalho de rato de porto?
- Senhor, foda-se, odeio isto. - Virou-se apressadamente para Pórcia. - Peço desculpa, senhora.
Pórcia olhou-o sem se desmanchar. - Passei quase quinze anos a viver com um fuzileiro. Portanto, podes meter a merda da desculpa onde bem te aprouver.
Macro olhou para a mãe chocado; o queixo descaiu-lhe, mas fechou rapidamente a boca, decidindo que o melhor era ignorar a resposta.
Décimo voltou a virar-se para Cato. - Mas o que pode fazer um soldado inválido? Ainda tive sorte por ter recebido uma fração razoável do bónus de passagem à disponibilidade.
Chegou para me permitir esta vida, mas mal dá para sobreviver.
- Estou a ver. - Replicou Cato. - Bom, pode ser que tenha trabalho para ti. Nada de grandioso, mas pode implicar algum perigo. Se estiveres interessado, vem ter
aqui pela alvorada.
Décimo pareceu surpreendido, mas rapidamente dobrou o pescoço e afastou-se a coxear.
Macro observou-o até o homem já não os conseguir ouvir, e virou-se para Cato.
- O que foi essa história? - As coisas mudaram desde que aqui estivemos. Sim, vamos ter uma reunião com o governador, mas ele vai pintar o cenário de acordo com
a sua perspetiva. A mistura costumeira de confiança e de menosprezo à ameaça que o inimigo representa. Ostório é como outro qualquer governador de província. Vai-nos
tentar convencer que o período em que ocupou o posto foi um grande sucesso, e quererá que qualquer carta ou relatório que mandemos para Roma reflitam essa opinião.
Portanto, pode-nos ser útil saber o que pensa uma das "mulas de Mário". Além disso, vou precisar de ter alguém no campo para tratar do meu equipamento. Alguém em
quem possa confiar, espero.
- Confiar? - Pórcia fungou com desprezo. - Aquele vagabundo? A mim parece-me um vulgar meliante como os outros.
Cato agitou o dedo. - Não se precipite nos seus julgamentos. A aparência não é tudo. Se fosse assim, toda a gente correria para se afastar do seu filho.
- Isso já acontece. - Lembrou Macro. - Se é que sabem o que é bom para eles.
- Oh, tu! - A mãe deu-lhe uma pancada amigável no ombro. - Não passas de um gatinho disfarçado de tigre. Não penses que não te conheço. E o mesmo acontece com o
Cato.
Macro corou de embaraço. Detestava falar de sentimentos, e a ideia de que podia ter de facto um lado mais sensível na sua natureza desgostava-o profundamente. Os
sentimentos eram para poetas, artistas, atores e outras categorias de mortais sem importância. Um soldado era diferente. A ele pedia-se que esquecesse coração e
cérebro e cumprisse o seu dever. E quando estivesse de folga, não se podia deixar amolecer. Claro, admitiu, alguns soldados eram diferentes. Deitou uma olhadela
a Cato, magro, esguio e, até muito recentemente, de ar quase juvenil. Agora o olhar do amigo tinha adquirido uma certa dureza, e o ar por vezes atarantado de anos
passados tinha praticamente desaparecido. Agia com claro propósito e com a economia de esforço que era a marca de um veterano. Ainda assim, Macro conhecia-o suficientemente
bem para saber que a mente do jovem nunca descansava, treinada que estava pelos trabalhos dos filósofos e historiadores que estudara com tanta paixão quando pouco
mais era que um rapaz. Cato era, de facto, um tipo muito diferente de soldado, refletiu, e aceitou a contragosto que isso só o fazia ainda melhor nas funções que
desempenhava.
Limpou a garganta com um profundo arranque de irritação, antes de se dirigir a Cato.
- Bem, a decisão é tua. Mas porque é que não te limitas a comprar um escravo? Podes bem suportar a despesa. E haverá com certeza bons negócios aqui em Londinium,
com tantos prisioneiros feitos pelo exército.
- Não quero nenhum tipo das tribos. A última coisa de que preciso é de um nativo cheio de ressentimento a limpar a minha espada e a tratar da minha segurança, dia
e noite, enquanto combato o inimigo. Não, tem que ser alguém que esteja nessa posição porque assim o deseja. E se o Décimo foi de facto um soldado, quem posso arranjar
de melhor? Além do mais será um bom guia para o moral dos homens.
Macro considerou por momentos e assentiu. - Seja. Bom, vamos lá encontrar sítio para guardar o equipamento. - Virou-se para a mãe. - Ficas bem sozinha por algum
tempo?
- Ao longo dos últimos cinquenta anos não tive grandes problemas... Vão lá ao vosso trabalho.
Uma das sentinelas indicou-lhes o bloco da administração que estava a ser usado pelo governador, e atravessaram um pátio até à respetiva entrada. As espessas paredes
da estrutura abafavam ligeiramente os sons da construção, mas havia em cima de todas as pedras uma fina camada de poeira e sujidade, e nas margens do pátio acumulavam-se
materiais de construção diversos. Um punhado de escribas passavam de escritório em escritório, empunhando tábuas enceradas ou montes de documentos enrolados. No
interior, braseiros proporcionavam calor, e dezenas de homens trabalhavam nas secretárias longas que preenchiam o salão principal. Cato aproximou-se de um jovem
tribuno debruçado sobre a mesa enquanto lia um documento, e bateu com os nós dos dedos na madeira. O homem levantou o olhar com cara de enjoado.
- Sim? Cato procedeu a uma apresentação rápida. - Acabámos de chegar. Tenho que me apresentar ao governador e precisamos de acomodações até deixarmos a cidade, a
caminho dos nossos postos. E também de um quarto para uma senhora.
- Acomodações? Não há grande coisa. Já tivemos que converter os estábulos em quartos. Ainda há alguns lugares. Não é muito húmido, e há camas decentes em cada compartimento.
- E quanto a lugares na cidade? - Podem sempre tentar. Vai sair caro, e são pouco agradáveis. A maior parte são alugados à hora, se percebe o que quero dizer, senhor.
- Ficamos no estábulo. - Decidiu Cato. - O nosso equipamento está à entrada. Manda alguns homens levarem-no para o nosso, hum, estábulo. O centurião Macro e eu precisamos
de nos apresentar ao governador Ostório de imediato. Se pudesses levar-nos a ele...
O tribuno suspirou e largou o relatório que tinha estado a estudar, antes de raspar a cadeira no chão e se pôr em pé.
- Por aqui, senhor. Tratarei da vossa bagagem quando regressar. Levou-os para as traseiras do salão e por um corredor ladeado por pequenos gabinetes. Alguns estavam
apinhados com mais escribas, outros eram ocupados por oficiais e funcionários civis que pertenciam ao pessoal do governador.
A porta ao fundo do corredor estava aberta de par em par, e o tribuno fez-lhes um gesto para se deterem enquanto ele avançava e batia levemente na estrutura de madeira.
- Senhor, estão aqui dois oficiais para o verem. Acabam de chegar de Roma.
Deu-se uma pausa, e depois veio a resposta numa voz fina e fatigada. - Oh, muito bem. Eles que entrem.
O governador Ostório estava sentado por trás da secretária, embrulhado num espesso manto escarlate. Um braseiro adicionava mais calor ao gerado pelo hipocausto,
e tornava o ar dentro da divisão quase asfixiante. O governante estava sentado num banco perto do fogo, ostensivamente empenhado no estudo de várias pilhas de documentos
e tábuas. Olhou com ar algo desalentado para os dois oficiais que entraram para o gabinete e pararam a distância respeitosa, para o saudarem formalmente. Cato notou
as profundas linhas que sulcavam o rosto do governador, e que este tinha os olhos encovados e enrugados. Sabia que Ostório tinha granjeado uma excelente reputação
como soldado e administrador, e que era um comandante duro e exigente. Era-lhe difícil ajustar essa fama ao indivíduo de aspeto frágil e cansado que ali estava sentado
à sua frente.
- Apresentem-se. - Instou o governador, antes de tossir e levar o punho mal fechado aos lábios até que a irritação dos pulmões amainasse. - Então?
Sendo o oficial de mais alta patente, Cato tomou a palavra. - Prefeito Quinto Licínio Cato, senhor. - Centurião Lúcio Cornélio Macro, senhor. - Juntou Macro. O governador
contemplou os dois recém-chegados em silêncio por momentos.
- Terão que entregar as vossas folhas de serviço ao chefe de pessoal. Mais tarde vê-las-ei com atenção. Gosto de saber o calibre dos meus oficiais. Dados os problemas
que enfrento por aqui, não me posso dar ao luxo de acolher gente sem valor. Calculo que tenham sido designados para postos específicos no meu exército?
- Sim, senhor. - Replicou Cato. - Fui colocado no comando da Segunda Coorte Trácia de cavalaria.
- Uma boa unidade. Uma das melhores que tenho à minha disposição. Tem-no sido desde que o comandante interino tomou conta dela. O centurião Querto tem dado muito
trabalho ao inimigo, ao que sei. Espero que prossigas nesse caminho quando assumires o comando. - Ostório virou-se para Macro. - E tu?
- Fui nomeado para a Décima Quarta Legião, senhor. - Estou a ver. - O governador assentiu lentamente, e depois prosseguiu. - Nesse caso, ambos se irão juntar à coluna
principal do exército, comandada pelo legado Quintato. Um bom oficial, mas pouco tolerante para com aqueles que não se mostram à altura dos seus padrões. Seja como
for, preciso de todos os homens que possa arranjar. E de oficiais mais ainda, dada a velocidade a que os temos perdido. Atrevo-me a dizer, Macro, que não haverá
falta de uma vaga para ti entre os centuriões-chefe da Décima Quarta. Aliás, creio mesmo que, enquanto te aguentares vivo, claro está, deverás ser um dos mais experimentados
centuriões de toda a legião.
Macro sentiu uma ponta de irritação perante as palavras do governador. Não merecia ser tratado como se fosse um insignificante comandante de um posto avançado, um
centurião sem grande valor.
- Senhor, tenciono sobreviver o tempo suficiente para chegar à reforma, e à minha gratificação de saída da legião. Não é um bárbaro qualquer que me vai impedir de
lá chegar. Muitos já o tentaram, e pagaram o preço por isso.
- Palavras ousadas, centurião. - Um breve sorriso aflorou aos lábios do governador. - Mas diz-me, o que é que te torna exatamente uma tão grande ameaça para os nossos
inimigos nesta fria e esquecida ilha que Roma tanto insiste em adicionar ao Império?
Macro ficou momentaneamente sem palavras, enquanto a sua mente recordava rapidamente tudo o que tinha enfrentado em anos recentes. Combates de rua em Roma, a campanha
no calor escaldante, ofuscante e poeirento do sul do Egito. Antes disso, o abafar da revolta de escravos em Creta, a defesa de Palmira contra as hordas partas. E
ainda antes, confrontos com fanáticos rebeldes judeus, a passagem pela marinha imperial na campanha contra os ninhos de piratas que atacavam os navios mercantes
no Adriático. E tudo isso depois de um longo período de serviço na Segunda Legião, primeiro no patrulhamento da fronteira do Reno, depois como parte do exército
que invadira a Britânia e esmagara os exércitos nativos comandados por Carátaco. Uma folha de serviços notável sob qualquer ponto de vista, e Macro chegara a centurião
com todo o mérito - ao contrário de outros, cujas posições se deviam mais às ligações das suas famílias ao poder. Ainda assim, Macro não estava disposto a vangloriar-se
de forma ostensiva à frente do governador. Limpou a garganta.
- Senhor, estive destacado em missões especiais nos últimos anos. Antes disso, servi na Segunda, no Reno e depois aqui na Britânia.
- Missões especiais? Essa designação, hoje em dia, é apenas outra forma de dizer que andaste a espiar. Qual era a exata natureza dessas tuas, ah, missões especiais?
- Senhor, não tenho autorização para revelar todos os detalhes. - Bom, diz-me pelo menos ao serviço de quem estavas. Macro sentiu-se pouco seguro do caminho que
a conversa levava, e deitou uma olhadela a Cato, mas a expressão do amigo era fixa e impenetrável, de olhos sempre em frente. Macro respirou fundo.
- Do secretário imperial, Narciso. - Trabalhaste para essa víbora? - Os olhos de Ostório semicerraram-se. - É por ordem dele que aqui estás?
Macro indignou-se ao ouvir tal suspeita, e inspirou fundo por entre os dentes cerrados, mas antes que pudesse responder, Cato interveio.
- Senhor, se tal fosse o caso, dificilmente estaríamos a divulgá-lo. Mas, para futura referência, dou-lhe a minha palavra de honra de que já não estamos ao serviço
de Narciso. É como soldados que nos apresentamos. Para o servir, ao Imperador e a Roma. Nada mais.
- Com que então a tua palavra de honra? - Ostório fungou. - Há muito pouca dessa preciosa mercadoria a circular em Roma nos tempos que correm. - Inclinou-se no banco
e esfregou o fundo das costas. - Não tenho grande escolha, tenho que aceitar a tua palavra. Mas aviso-te, se me surgir a mais pequena indicação de que qualquer um
de vós está aqui para mais do que cumprir os deveres de um soldado, lanço-vos aos nativos, e deixo que eles se encarreguem de vocês. Os druidas possuem várias formas
muito interessantes de tratar dos seus prisioneiros.
- Bem o sabemos, senhor. Vimo-lo com os nossos próprios olhos. - Respondeu Cato, resistindo ainda assim à vontade de estremecer ao recordar o seu encontro com os
druidas da lua negra, ao início dos seus tempos de serviço nas legiões, quando fora apenas um optio na centúria de Macro. Visões fugazes das vítimas sacrificiais
e da aparência aterradora dos druidas passaram-lhe à frente dos olhos, e Cato apressou-se a afastá-los da mente.
- E quanto a ti, prefeito? - O governador encarava-o. - Tens experiência de combate? A cicatriz no teu rosto conta parte da história, mas pareces-me demasiado jovem
para já ter atingido essa patente. És filho de algum senador? Ou de algum liberto abastado, ansioso por conseguir alguma honra para a família? Que idade tens?
- Estou no meu vigésimo sexto ano, senhor. - Vinte e seis? Ainda mais novo do que eu julgava. E quem é que te empurrou nessa tão rápida ascensão a prefeito?
Havia já muito que Cato aceitara a ideia de que seria, ao longo da sua vida, vítima do seu baixo estatuto à nascença. Por muito bom soldado que pudesse ser, por
muito que o seu sogro fosse um senador, nunca lhe seria permitido afastar o estigma de ser filho de um liberto que fora, em tempos, um mero escravo no palácio imperial.
- Não tenho família, senhor. A não ser a minha esposa, Júlia Semprónia, que desposei depois de atingir a minha presente patente. É a filha do senador Semprónio.
Mas nunca lhe pedi qualquer favor para a minha carreira militar.
- Semprónio? - As sobrancelhas do governador arregalaram-se por um breve instante. - Conheço-o. Serviu como meu tribuno na Oitava Legião. Um bom homem. Trabalhador,
e mais importante ainda, de confiança. Bem, se ele esteve preparado para te deixar desposar e dormir com a sua preciosa filha, é porque deves possuir algumas qualidades.
Mas pergunto-me se terás de facto a experiência requerida para ocupar essa posição...
- Tive a honra de servir ao lado do centurião Macro desde que me juntei ao exército, senhor. O meu amigo tem uma certa inclinação para a modéstia quando fala da
sua experiência. Basta dizer que já combatemos tribos germânicas, britânicas, piratas, judeus, partos e númidas ao longo da nossa carreira. Sabemos o que fazemos.
Ostório assentiu, pensativo, antes de responder. - Se tudo isso é verdade, prefeito Cato, tens de facto um registo invejável. E és do tipo de homens que me apraz
incorporar no meu exército. É de gente assim que eu preciso para arrumar a questão aqui na Britânia e transformar esta maldita ilha selvagem nalguma coisa que possa
ter uma ligeira semelhança com a civilização. - Acenou com a mão. - Senhores, a vontade.
Cato e Macro relaxaram a posição, enquanto o governador considerava a situação e voltava a dirigir-lhes a palavra.
- É importante que tenham bem consciência da situação atual. Não faço ideia do que vos disseram em Roma, mas qualquer noção de que estamos apenas empenhados em meras
operações de limpeza para completar a conquista da Britânia é - como dizer? - um bocadinho errónea. Já passaram sete anos desde que o Imperador Cláudio teve o seu
triunfo para celebrar a conquista. Sete longos anos... E durante esse período temos alargado a fronteira a passo, e a que custos. Mesmo as tribos que já subjugámos,
ou com quem celebrámos tratados, dificilmente podem ser consideradas de confiança; eu pelo menos já me vi metido em belos assados com elas. Faz agora dois anos,
quando me preparava para lançar uma ofensiva contra os siluros e os ordovicos, dei ordens para que os icenos
fossem desarmados, para garantir que não éramos atacados pelas costas. Um pedido razoável, feito a quem se intitula nosso aliado, não acham? Mas os filhos da puta
lançaram uma rebelião assim que o meu exército se internou nas montanhas. Não me deixaram alternativa senão abandonar a campanha e regressar para tratar do caso.
Os idiotas tinham-se entrincheirado num daqueles ridículos fortins de barro. Assim que lhes rompemos as defesas, apressaram-se a render-se. A coisa acabou depressa,
mas fui obrigado a passar o resto da temporada de campanha a construir estradas e fortes por todo o território, para os manter debaixo de olho.
Cato cerrou os lábios ao recordar o orgulhoso mas suscetível guerreiro iceno que lhes tinha servido de guia quando ele e Macro se tinham lançado numa missão em território
inimigo, a mando do comandante do exército que tinha invadido a Britânia. Não lhe era difícil imaginar a reação de Prasutago ao receber ordens para entregar as suas
armas. As tribos da ilha eram governadas por uma casta de guerreiros que consideravam ser desarmado como o pior dos insultos ao seu orgulho sensível. Não era de
espantar que se tivesse dado uma revolta.
- E enquanto eu lidava com os icenos - continuou Ostório, - o Carátaco aproveitou a folga para convencer as tribos das montanhas e tornar-se o seu chefe de guerra.
Quando finalmente lhe pude voltar a dedicar a minha atenção, já tinha reunido um exército suficientemente poderoso para me desafiar. E foi por isso que tive que
pedir reforços a Roma. Agora que eles chegaram, é tempo de tratar do Carátaco e dos que o apoiam, de uma vez por todas.
Macro anuiu com entusiasmo, já antevendo a campanha que se aproximava, e a possibilidade de conseguir algum saque e mesmo nova promoção. Embora relutante em falar
das suas ambições, Macro, como muitos outros soldados, sonhava em tornar-se o mais antigo centurião de uma legião, posto que conferia inúmeros privilégios e tremenda
honra a quem o alcançava. Com a patente, vinha a elevação social à classe de cavalaria; além do Imperador, só os senadores recebiam maior consideração, recordou
Macro. Se os combates se tornassem intensos nos meses que se avizinhavam, as fileiras do centurionato sofreriam perdas, como era habitual, já que eram eles quem
comandava os homens na frente de combate e, ao exporem-se dessa forma, transformavam-se em baixas muito frequentes. Se Macro conseguisse sobreviver, talvez conseguisse
chegar ao comando da Primeira Coorte da legião, um dia, e depois disso ao posto de prefeito do campo, com o comando direto de uma legião em caso de ausência do legado,
ou se este fosse seriamente ferido ou morto. Só o pensamento de assumir tal responsabilidade enchia-o de esperança.
O governador suspirou e cofiou a pelugem acinzentada que lhe ornava o queixo. Pareceu mergulhar ainda mais dentro de si mesmo enquanto ponderava a situação e deixava
passar alguns momentos de silêncio antes de voltar a falar.
- Estou a ficar velho demais para isto. Quando acabar esta comissão, reformo-me. - Os cantos da boca ergueram-se ligeiramente. - Regressarei à minha propriedade
na Campânia, tratarei das minhas vinhas e envelhecerei ao lado da minha esposa. Sirvo Roma há já bastante tempo, o suficiente para ao menos me permitirem tal futuro...
Porém, antes há muito trabalho a realizar! - Obrigou-se a sentar-se direito e voltar a dar atenção aos dois oficiais à sua frente. - Embora esteja a preparar uma
nova ofensiva, ainda existe uma pequena esperança de paz.
- Paz, senhor? - Cato inchou de ar as maçãs do rosto. - Com Carátaco? Duvido que ele aceite os termos de Roma, quaisquer que eles sejam.
- Oh? E como o sabes tu, meu jovem? - Porque o conheço, senhor. Encontrei-me com ele, e falámos. Instalou-se um silêncio tenso enquanto o governador olhava espantado
para Cato. Debruçou-se para a frente.
- Como pode ser isso? Carátaco é consumido por um inesgotável ódio a Roma, e a todos os que servem nas suas legiões. Raramente faz prisioneiros, e aqueles que são
capturados nunca mais são vistos pelos seus camaradas. Portanto, como te foi concedida tão dúbia honra?
O tom do governador era de escárnio, mas Cato ignorou a ofensa e ripostou.
- Fui capturado por Carátaco, senhor, com mais alguns camaradas, no segundo ano da invasão. Quando chegámos ao acampamento inimigo, fui interrogado por ele.
- Porquê? - Ele queria saber mais sobre Roma. Sobre o que motivava os seus soldados. E queria dar-me a perceber que as tribos nativas tinham o seu orgulho, e que
os seus guerreiros nunca dobrariam o pescoço perante aqueles que invadiam as suas terras. Jurou que preferiam a morte a aceitar a vergonha da submissão ao Imperador.
- Estou a ver. E como é que sobreviveste para me estar aqui a contar esse episódio?
- Escapei, senhor. - Fugiste do acampamento inimigo? Cato confirmou. - Nesse caso, prefeito Cato, os deuses devem realmente favorecer-te, pois que nunca ouvi falar
de outro romano que se possa orgulhar de tal feito.
Macro soltou uma risada. - Senhor, ainda nem ouviu metade. Fortuna não tem mãos para mais nada, a não ser manter o prefeito longe de sarilhos.
Cato deitou uma olhadela mordaz ao amigo. - Não me parece que ela se tenha esquecido de si. O governador pigarreou, irritado. - Senhores, falava de paz. Passaram-se
anos desde esse encontro.
Anos de guerra incessante. Ambos os contendores têm sido desgastados pelo combate, e suspeito que a apetência do nosso inimigo pelo confronto está tão exaurida como
a minha. E há em Roma muitos cuja impaciência com a situação na Britânia cresce de dia para dia. Sobretudo a de Palias, um dos mais próximos conselheiros do Imperador.
Não imagino que saibam quem é.
- Sabemos, sim, senhor. - Respondeu Cato, cautelosamente, antes que o governador prosseguisse.
- Pelo que me dizem os meus amigos em Roma, Pallas está em plena ascensão. É próximo da nova esposa do Imperador e do seu filho, Nero, que pode muito bem vir a ser
o novo Imperador, à morte de Cláudio. Ao que parece, Pallas favorece a ideia de retirar o exército da Britânia e abandonar a província. Vendo bem as coisas, tem
sido um exercício dispendioso, e Roma pouco tem recebido do seu investimento em ouro e homens. E nem sequer há grandes perspetivas de extrair daqui alguma coisa
de valor, depois de esgotarmos o contingente de prisioneiros de guerra no mercado de escravos. A prata, o estanho e o chumbo que nos diziam que corriam pela ilha
revelaram-se bem mais escassos do que o previsto. Pelo que me toca, imagino que só existem duas razões para andarmos a sujar as botas por cá. Em primeiro lugar,
alguns dos homens mais ricos de Roma emprestaram avultadas somas aos líderes das tribos que se aliaram a nós. Acontece que o Narciso é um deles, o que provavelmente
explica o seu empenho em manter o exército por cá, pelo menos até que a dívida lhe seja paga. A outra razão tem a ver com o orgulho, puro e simples. Se Roma se vir
forçada a retirar da Britânia, será uma humilhação para o Imperador, e os nossos inimigos noutras fronteiras sentir-se-iam encorajados perante o nosso falhanço nesta
terra. Claro, se se der uma mudança de regime, o próximo Imperador poderá justificar uma retirada com a correção dos erros do seu antecessor. Portanto, senhores,
como podem depreender, o domínio de Roma sobre a Britânia é bastante incerto.
O governador baixou o olhar e refletiu por momentos, antes de continuar.
- Muitos dos nossos camaradas derramaram aqui o seu sangue, e muitos tombaram para sempre. Se nos for ordenado que deixemos a Britânia, tamanho sacrifício terá sido
em vão. Na minha opinião, tenho dois possíveis cursos de ação à minha frente, se quero dar um significado ao sacrifício de tantos e tantos camaradas. Ou destruo
de uma vez por todas as tribos que ainda nos resistem, ou consigo estabelecer com elas uma paz duradoura. De uma forma ou de outra, é preciso agir com rapidez, de
forma a alcançar a paz na província antes que um novo Imperador ascenda ao trono. Só assim deixará de existir qualquer desculpa para retirar da Britânia.
E foi por isso que resolvi convidar reis e chefes de todas as tribos, mesmo dos brigantes lá do norte, para um encontro, onde se possam discutir termos para pôr
fim ao conflito. Dei a minha palavra de que os membros das tribos que ainda não são nossas aliadas teriam passagem livre pelas nossas fronteiras.
Macro hesitou brevemente antes de lançar a questão óbvia. - Senhor, tenciona manter essa palavra? - Evidentemente. - Mesmo que o próprio Carátaco apareça? Se o capturássemos,
bem como aos outros líderes ainda problemáticos, púnhamos fim à resistência dos nativos mais depressa do que se cozem os espargos.
Ostório suspirou e abanou a cabeça. - Ou arranjávamos maneira de ofender todas as tribos e dar-lhes um motivo para se unirem contra nós - tão depressa como nessa
comparação culinária que inventaste. Talvez fosse melhor guardares esses pensamentos para ti mesmo, centurião. Deixa a estratégia a cargo de mentes mais sábias,
sim?
Perante o raspanete, Macro mordeu com força os lábios e cerrou os punhos por trás das costas, enquanto anuía com um rápido gesto de cabeça. Instalou-se um silêncio
desconfortável, até que Cato levou a discussão noutra direção.
- Senhor, onde e quando vai ter lugar esse encontro? - Daqui a dez dias, num dos bosques sagrados dos nativos, uns cem quilómetros para oeste de Londinium. Levarei
comigo uma pequena escolta. - Olhou para Cato e sorriu. - Não há assim grande pressa para que vocês os dois se juntem às vossas unidades. E de qualquer maneira,
fica praticamente no caminho para Glevum.
- Nós? - Cato não escondeu o espanto. - Senhor, nós somos soldados. Não somos diplomatas. Além disso, queríamos chegar aos nossos postos o mais depressa possível.
Se a campanha que se aproxima vai ser assim tão difícil, gostava de ter tempo para conhecer os homens que vou comandar, antes de entrar em ação.
- O que pode vir a não ser necessário, se conseguirmos fazer a paz com os nossos inimigos. E uma vez que já te encontraste com Carátaco antes, podes vir a revelar-te
muito útil durante as conversações. Virão comigo, os dois.
- Muito bem, senhor. Será feito como ordena. Mas há uma coisa. O que o faz pensar que o inimigo estará disponível para assinar a paz connosco?
Ostório respondeu em tom glacial. - Porque se não o fizer, deixarei perfeitamente claro que, antes do fim do ano, toda e qualquer aldeia ou povoação pertencente
a uma tribo que se mantenha em guerra será arrasada, e que todos os nativos que sobreviverem serão vendidos como escravos... - O governador bocejou. - E agora, preciso
de descansar. É tudo, senhores. Sugiro-vos que aproveitem os poucos prazeres que Londinium tem para oferecer enquanto podem. Estou certo que na messe dos oficiais
haverá quem vos dê boas sugestões. Podem seguir.
Macro e Cato puseram-se de novo em sentido, saudaram o governador e rodaram nos calcanhares para sair. Ostório contemplou a pilha de registos e relatórios junto
a si, ergueu-se devagar do banco e caminhou rigidamente até à cama de campanha que tinha sido colocada junto à parede. Deitou-se de lado, ainda de botas calçadas,
e puxou o manto para cobrir o corpo tanto quanto possível, antes de se deixar cair num sono perturbado.
- O que pensas dele? - Indagou Macro, quando já se tinham afastado o suficiente pelo corredor que saía do gabinete do governador.
Cato olhou em redor e viu que não havia por perto funcionários que pudessem escutá-lo.
- Está quase a estourar. Desgastado por todos os deveres que lhe cabem. Mas ouvi dizer que era um comandante dos tesos.
Macro encolheu os ombros. - Ser duro não nos torna imunes à passagem dos anos. Sei-o muito bem. Já não sou tão ágil em combate como fui em tempos. Acontece a todos,
ao fim e ao cabo.
Cato olhou-o de alto a baixo. - Bom, não deixe que isso lhe suceda quando estiver a combater a meu lado. A última coisa de que preciso é de algum jarreta a proteger-me
o flanco quando enfrentarmos o inimigo.
- Isso é ser muito mal agradecido, dadas as vezes em que tive que olhar por ti nas primeiras batalhas que travámos quando eras um recruta, verde como uma alface.
- Macro riu e abanou a cabeça. - Nunca poderia imaginar o soldado em que acabaste por te tornar.
Cato sorriu. - Aprendi com o melhor. - Cala-te, miúdo. Ainda me fazes chorar. - Macro gargalhou. Mas depressa a sua expressão endureceu. - Agora, a sério. Tenho
as minhas dúvidas sobre o nosso novo general. Pelo aspeto que apresenta, uns meses no campo vão matá-lo. Mesmo a meio da campanha.
- A não ser que consiga negociar a paz com Carátaco. Ou pelo menos com tribos suficientes para o deixar isolado.
- Achas que há mesmo alguma hipótese do Carátaco querer a paz? Cato relembrou a cena na pequena cabana onde fora interrogado por Carátaco. Lembrava-se de forma vívida
do brilho determinado nos olhos do bretão quando afirmara que preferia morrer a vergar-se perante Roma.
- Se eu fosse de apostas, nem a cem contra um eu apostava nessa hipótese.
- E eu, meu amigo, diria que ainda assim estarias a ser generoso. - Macro deu um estalo com a língua. - Cato, vamos enfrentar tempos difíceis. Para variar.
- Pouco podemos fazer quanto a isso. - Ora essa, podemos sim! - Macro riu. - Ouviste o homem; todos os prazeres de Londinium estão à nossa espera. - A expressão
depressa ganhou traços de ansiedade. - Desde que não digas nada à minha mãe, sim?
5
Então, rapazes, o que acham do sítio? - Indagou Pórcia, enquanto se sentavam a uma mesa, junto à lareira da estalagem. Caía a tarde do seu terceiro dia em Londinium,
e acompanhavam-na o filho e Cato. Para variar, chovia lá fora; uma chuva persistente acompanhada por um vento cortante que a fazia cair em ângulo e varrer as ruas
da cidade, ricocheteando nos poucos telhados de telha e correndo pelas coberturas de colmo da maior parte dos edifícios. A estalagem em que estavam tinha em tempos
sido um estábulo, a que tinham sido adicionados anexos, de forma a criar um modesto pátio à frente da entrada. O portão dava para uma via larga que vinha do cais
no Tamesis até ao estaleiro de construção da basílica. Apesar do mau tempo, a rua estava cheia de movimento, e o ranger das rodas e o bramir das mulas escutava-se
perfeitamente sobre o constante silvo da chuva.
Macro afastou o capuz da capa militar e deitou uma olhadela rápida ao que o rodeava. A estalagem estava aquecida e seca, e o soalho era lajeado e estava coberto
de palha em doses liberais, para absorver a sujidade das botas e sandálias dos clientes que entravam, vindos da rua molhada. A um dos lados havia um balcão, e por
trás dele viam-se grandes recipientes, onde eram mantidos o guisado e o vinho aquecido que eram servidos aos clientes. O resto do espaço era quase totalmente preenchido
por várias mesas compridas, ladeadas por bancos corridos. Apesar de todas as melhorias, ainda havia um ligeiro odor ao acre suor de cavalo no ar, mas a Macro isso
pouco importava. Havia cheiros bem piores.
- Catita. - Concedeu. - Comparado com a maior parte do que há nesta cidade.
Cato anuiu. Enquanto esperavam pela ordem para se reunirem a Ostório e comitiva para irem ao encontro com os líderes tribais, tinham passado o tempo a percorrer
as estalagens e tabernas indicadas por Décimo. Pouco mais havia a fazer ou ver. Apesar das reticências que mostrara quanto ao antigo legionário, Pórcia tinha aproveitado
as suas indicações enquanto inspecionava vários estabelecimentos e sondava subtilmente os seus proprietários, tentando descobrir se havia algum disposto a vender-lhe
o negócio.
Cato acenou a uma empregada por trás do balcão, e ela apressou-se a vir saber o que queriam. Era jovem, mal entrada na adolescência, pouco atraente e magricela,
mas pelo menos falava um latim razoável.
- Um jarro de vinho para os três. O guisado hoje é de quê? Ela encolheu os ombros. - O mesmo de sempre. Cevada e cebola. Cato obrigou-se a sorrir. - Parece-me bem.
Três tigelas, e pão. Espero que seja fresco? - Cozido ainda ontem, senhor. Está perfeito. Sem esperar por novo comentário, virou-se e apressou-se a regressar para
trás do balcão, para preparar uma bandeja com o pedido.
- Catita? - Comentou Pórcia sem entusiasmo, enquanto encarava o filho. - É tudo o que tens a dizer?
- O que queres tu que eu te diga? - Irritou-se Macro. - É uma estalagem como outra qualquer.
- Não, por acaso não é nada disso. - Ela agitou um dedo no ar. - É esta que eu quero comprar. Graças ao Décimo, fiquei a saber que o dono é um veterano da Segunda
Legião que está farto da Britânia e quer vender o negócio, para regressar a Roma. Fiz-lhe uma oferta, e ele aceitou.
Macro deitou uma nova e mais demorada olhadela às instalações. - Porquê esta? Pórcia ponderou rapidamente os seus argumentos e começou a enumerá-los com os dedos
enquanto respondia.
- Primeiro, pela localização. Passa imensa gente por aqui, e muitos trabalham nas instalações do governador, portanto podem pagar bem pelo vinho e pela comida. Segundo,
há oito quartos em volta do pátio, e todos alugados a viajantes. Posso bem criar mais alguns quartos nas traseiras. À medida que a província estabilizar, a cidade
vai crescer, e há muito dinheiro a fazer com todos os que vão estar de passagem por Londinium. E terceiro, do outro lado do pátio há uns armazéns pequenos que podia
muito bem alugar à guilda das prostitutas. Um serviço extra, que alguns dos clientes apreciariam por certo. Portanto, imenso potencial e um preço muito aceitável.
- Fez uma pausa. - Só há um problema. O que me resta do dinheiro que recebi quando vendi a taberna em Arminium não cobre o que ofereci.
Macro segurou a cabeça com as mãos e gemeu, fingindo sofrimento. - Mãe, já estou a ver onde é que isto vai parar. Queres que vá às minhas economias, e te passe para
as mãos o suficiente para chegar ao preço combinado.
- Não quero que me dês o dinheiro sem mais nada. Pensa nisto como um empréstimo, ou melhor, um investimento avisado. Tenho metade do que preciso. Se pagares o resto
ficas como meu sócio, com direito a quatro décimos dos lucros. - Respondeu a mulher rapidamente.
Macro olhou para ela, espantado. - Quatro décimos? E porque não metade? - Porque sou eu quem vai fazer o trabalho todo. Quatro décimos. É a minha oferta, e não a
altero.
Cato deixou-se estar quieto e calado, a observar a negociação, um tanto espantado perante o jeito apurado para os negócios de Pórcia, e a forma inflexível como levava
a sua avante. Era evidente qual das qualidades fora herdada em boa quantidade por Macro.
- Espera aí! - Macro levantou as duas mãos. - E se eu decidir que não te quero emprestar o dinheiro?
Pórcia juntou as mãos esguias e fez cara de magoada. - Eras mesmo capaz de fazer isso à tua própria mãe? Obrigar-me a comprar uma espelunca qualquer, mal localizada,
e isso seria tudo o que poderia conseguir sem a tua ajuda. Fazer-me trabalhar até ficar um espeto para ganhar uma miséria e depois morrer velha e sozinha?
- Foda-se, sabes muito bem que isso não vai suceder! - Ripostou Macro, irritado. - Tratarei de garantir que isso não sucede. Devo-te isso, pelo menos.
- Precisamente. - Anuiu ela. - E então? Macro respirou fundo e soltou um suspiro de exasperação. - Muito bem. De quanto é que precisas afinal? -
Cinco mil denários. Nem mais um. O queixo de Macro descaiu. - Cinco mil! Isso... Isso é... - O sobrolho do veterano franziu-se com o esforço de concentração. - O
salário de muitos anos.
- Podes bem suportá-lo. - O que é que te faz pensar isso? - Deitei uma espreitadela àquele cofrezinho que levas no fundo do saco do equipamento.
- Mas está trancado. Ela deitou-lhe um olhar quase piedoso. - Meu querido, passei quinze anos a trabalhar num bar em Arminium. Aprendi muitos truques e jeitos com
os meus clientes. Abrir fechaduras foi dos menos interessantes. Mas o que me interessa aqui é saber como é que um centurião se arranjou para pôr as mãos numa fortuna
daquelas.
Macro trocou um olhar rápido com Cato, e ambos sentiram um arrepio de ansiedade a descer-lhes pelas espinhas. Durante a sua estadia em Roma tinham ajudado a desmascarar
uma conspiração que grassava nas fileiras da Guarda Pretoriana. A prata era parte de um comboio de moeda que os conspiradores tinham roubado ao Imperador, e que
continuava desaparecida, pelo menos aos olhos do palácio imperial. Cato tinha defendido que a deviam devolver, mas Macro insistira com grande ênfase que tinham ganho
o direito àquele dinheiro, e recusara entregá-lo. Tinham acabado por dividir o lote. Cato depositara a sua parte num banqueiro em Roma, mas Macro, que considerava
os banqueiros pouco mais do que parasitas corruptos, tinha trocado a prata por moedas de ouro, para fazer a sua fortuna mais portátil e a poder manter junto de si.
O seu pequeno segredo, que acabava de ser exposto. Olhou em volta, temendo que outros ouvidos pudessem ter escutado o comentário da mãe. Virou-se então para ela.
- Muito bem, seja. Cinco mil. Por metade dos lucros. - Quatro décimos, disse eu. - Vamos dividir ao meio a diferença. - Tentou Macro, desesperado. - Quatro décimos.
Rangeu os dentes e olhou-a furioso, antes de acabar por anuir. - Merda. Desisto. Mas, daqui em diante, mantém as tuas mãos longe das minhas coisas.
A mãe sorriu-lhe com doçura e afagou-lhe uma bochecha. - Eu sabia que havias de ver a razão. E vais ver que acabarás por te sair bem deste negócio.
Macro tentou imaginar o que se ia passar. A mãe, como muitos proprietários de pequenos negócios, era tão boa a cozinhar as contas como a preparar refeições baratas
para os clientes. Mas pelo menos Pórcia teria meios para sobreviver de forma independente, e isso agradava-lhe, já que assim não teria que se preocupar com a mãe
enquanto marchava para enfrentar o inimigo. E apesar de tudo, se as coisas corressem bem, ainda podia conseguir um belo lucro daquele investimento.
A criada regressou com o pedido, o vapor a esfumar-se do jarro de vinho e das tigelas de guisado. Pousou a bandeja com estrondo e colocou-lhes as tigelas à frente
sem grande jeito, seguidas pelas taças de barro e as colheres de bronze. Fungou e limpou o nariz com a manga da túnica que usava.
- Nove sestércios. Antes que Cato pudesse mexer na bolsa, Macro interrompeu-lhe o movimento.
- Pago eu. Não faz diferença, já que parece que hoje é o meu dia de ser esfolado.
Pescou na bolsa um punhado de moedas e despejou-as na mão gordurosa da jovem, que as contou rapidamente antes de regressar ao balcão. Pórcia observou-a com olhos
frios e calculistas.
- Ao que me parece - comentou em voz neutra, - vão ocorrer algumas mudanças quando eu me tornar dona deste estabelecimento. Aquela jovem, por exemplo, precisa de
umas lições para melhorar a aparência e maneiras.
- Bom, vamos comer. - Sugeriu Cato, enquanto levantava a colher, ansioso por pôr fim ao aceso diálogo entre Macro e a mãe. Estavam todos com fome, pelo que comeram
em silêncio, e os pensamentos de Cato vaguearam inevitavelmente para Júlia, em Roma. Ainda faltavam muitos anos até ele ser dispensado dos seus deveres na Britânia.
Nalgum ponto do futuro teria que lhe pedir para renunciar aos confortos e prazeres da vida em Roma para se lhe vir juntar. Não tinha ilusões quanto às fracas condições
de vida numa fortaleza de fronteira, ou mesmo numa cidade de província. A ele isso não preocupava, mas temia que não fosse adequado a Júlia.
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo som de vozes no pátio, e pouco depois entraram dois oficiais. Reconheceu-os de os ter visto nas instalações do governador.
Tribunos subalternos, que serviam na Nona Legião. Engoliu o guisado que tinha na boca e secou os lábios nas costas da mão antes de os chamar.
- Querem juntar-se a nós? Os dois jovens hesitaram, e Cato riu-se. - As bebidas ficam por minha conta. O mais alto dos dois, com lustroso cabelo escuro, sorriu.
- Bem, se põe as coisas nesses termos...! Aproximaram-se e sentaram-se, enquanto Cato apresentava Macro e a mãe.
- Tribuno Marco Pelino. - Anunciou o mais alto, e acenou na direção do companheiro.
- E Caio Deciano. Já os vi no quartel-general, não vi? É o novo comandante da coorte de cavalaria Trácia que está com o legado Quintato. - Isso mesmo. - Confirmou
Cato. Chamou a atenção à criada, e indicou os novos comensais. Ela lá se resolveu a mexer-se e inclinou-se por trás do balcão para recolher mais canecas. - E aqui
o meu amigo vai comandar uma coorte da Décima Quarta.
- Aposto que sei qual será. - Pelino soltou uma risada. - Parece-me que foram os dois escolhidos a dedo para o trabalho que vos espera.
- E que trabalho é esse? - Quis saber Macro. A empregada pousou as duas novas canecas e o tribuno Deciano pegou no jarro de vinho enquanto ia falando.
- Há um posto avançado, já dentro do território siluro, onde os trácios têm estado aquartelados com uma coorte da Décima Quarta. Faz tudo parte do plano do governador
para ter forças poderosas instaladas na vanguarda, para vigiar o inimigo e fazer soçobrar à nascença qualquer tentativa da malta do Carátaco para invadir a província.
Só que foram recebidos relatórios que indicam alguns problemas com a guarnição do forte.
- Que género de problemas? - Perguntou Cato. - Sabem como é. Nunca há grande amizade entre legionários e auxiliares. Trocas de insultos, umas zaragatas, enfim, isso
é normal; mas os soldados destas duas unidades parecem estar muito para lá disso, detestam-se verdadeiramente.
- A mim dá-me ideia de que essa cambada de idiotas só precisa de alguém que lhes meta juízo na cabeça, à porrada se necessário.
Deciano fez uma careta. - Parece que o comandante interino tem feito um bom trabalho na restauração da disciplina, enquanto espera pelo substituto que vai tomar
o comando. É evidente que a guarnição vai continuar a precisar de mão firme. E é por isso que calculo que vocês os dois foram escolhidos para isso, a julgar pela
vossa folha de serviços. Vi os documentos. Impressionantes. Parece que são justamente aquilo de que a guarnição precisa. Sobretudo porque a vossa coluna vai ser
a ponta da ofensiva planeada pelo Ostório.
- Partindo do princípio de que não vai conseguir convencer os nativos no tal encontro que convocou. - Juntou Pelino.
- Quer-me parecer que todos sabemos que isso não vai ter um final feliz. - Respondeu o amigo. - A única coisa que os nativos parecem querer fazer é lutar. Quando
não combatem os romanos, atiram-se aos pescoços uns dos outros. O Ostório está apenas a perder tempo, devia era aplicar-lhes um corretivo. Uma boa coça é a única
coisa que fará com que a mensagem seja entendida por aqueles crânios duros. - Deciano fez uma pausa, com os olhos arregalados. - E já que falamos de crânios duros,
viram aquele no pátio, ainda agora?
Pórcia debruçou-se para a frente, ansiosa. - O quê? Um bárbaro aqui, nas instalações da estalagem? - Exatamente, senhora. Ele, a mulher e um punhado dos seus brutamontes.
Acabadinhos de chegar. Como estão armados, calculo que se dirigem ao famoso concílio do governador. Mas, porra, o homem é um gigante. Não gostaria de ter de o enfrentar
em combate.
Macro fungou. - Para mim, quanto maiores forem, de mais alto caem. - Bom, seria necessário um machado de lenhador para derrubar aquele. Nos últimos dias têm passado
bastantes por Londinium. Fizeram sensação, já que muitos dos habitantes locais já não usam aqueles farrapos há anos. Alguns ajeitaram-se mesmo muito bem aos nossos
costumes e roupagens.
Sobre isso, Cato tinha as suas dúvidas. Por muito que adquirissem a aparência e que até se esforçassem por aprender o latim da melhor forma possível, não deixariam
de se considerar por muitos e muitos anos ainda, antes e acima de tudo, bretões. Sobretudo enquanto as tribos espalhadas pela província se considerassem reinos distintos,
ferozmente orgulhosos do seu passado e da sua independência. Isso mudaria no instante em que o seu estatuto de estados-cliente desaparecesse. Era a técnica que Roma
empregava em cada nova província: estabelecer acordos com os governantes locais, garantindo-lhes a proteção de Roma em troca da anexação pacífica do seu território
assim que o ocupante do trono morresse. Tinha resultado bastante bem noutras áreas do Império, mas Cato suspeitava que o arranjinho não funcionaria tão facilmente
quando aplicado aos belicosos guerreiros da Britânia. Acabou de comer e empurrou a última colherada com um bom gole de vinho aquecido, antes de se dirigir a Pelino.
- Como vão os preparativos para a nova época de campanha? A expressão do tribuno mostrou desalento por se ver forçado a falar de trabalho, mas Cato era seu superior
e podia portanto levar a conversa na direção que bem entendesse.
- Quase terminados, senhor. Os depósitos avançados estão bem fornecidos de abastecimentos, os últimos reforços estão em marcha para as suas unidades e as montadas
da cavalaria estão bem treinadas e disciplinadas. O governador quer-nos prontos para avançar no primeiro dia capaz de primavera, partindo do princípio de que esta
tentativa de concluir um tratado de paz vai falhar. Como sucederá por certo. Depois disso, estaremos nas mãos dos deuses. O terreno em que vamos combater é montanhoso
e muito arborizado. Os nossos batedores só conseguiram descobrir alguns caminhos. Terreno ideal para emboscadas. Se o Carátaco for esperto, vai-nos desgastar com
uma tática de ataques súbitos e retirada imediata. A nossa única esperança é descobrir as aldeias e destruir número suficiente delas para os obrigar a enfrentar-nos
em terreno aberto. Nessa altura, com alguma sorte, poderemos tratar da saúde ao Carátaco e ao seu exército.
- Não pareces muito otimista. - Comentou Macro. - Oh, sou otimista, até certo ponto. Porque foi isso que o governador nos ordenou nas normas de execução permanente.
Não quer que perturbemos o moral dos reforços que se estão a juntar ao nosso feliz contingente. Nada de derrotismo, disse ele, e não hesita em castigar qualquer
subordinado que se atreva sequer a sugerir que ainda não é desta que vamos mesmo dar cabo do Carátaco. Portanto, claro que sou otimista. Mas, antes de mais, sou
realista. E por isso afirmo que quem quer que pense realmente que isto vai ser como um passeio no fórum vai ter uma surpresa, e das grandes, foda-se. Perdão, senhora.
Pórcia suspirou, exasperada, e afastou a desculpa com um gesto da mão. Deteve-se repentinamente, e ficou a olhar para a entrada da estalagem. Cato virou-se para
seguir a direção do olhar da mulher, e avistou dois guerreiros gigantescos que acabavam de entrar na sala. Usavam mantos espessos, com um desenho aos quadrados castanhos
e brancos. Tinham o cabelo apanhado, com uma trança grossa que lhes corria pelas costas. Nos braços peludos ostentavam tatuagens onduladas, e dos ombros pendiam
bainhas com espadas longas. Os guerreiros nativos avançaram lentamente, seguidos por outros dos seus companheiros, incluindo um homem tão alto que tinha que dobrar
o pescoço para evitar embater nas vigas que se cruzavam no interior do edifício. A seu lado vinha uma mulher, de cabeça coberta pelo capuz do manto. A criada ao
balcão deitou um olhar ao gigante e desapareceu apressada pela porta das traseiras, a chamar pelo patrão.
À medida que os recém-chegados se dirigiam ao balcão, o chefe do grupo passeou os olhos pela sala, até encontrar o pequeno grupo de romanos. Tinha uma expressão
feroz, mas a pouco e pouco a surpresa foi-se estampando no seu rosto, de olhar fixo em Macro e Cato.
Foda-se, não acredito... - Macro pegou no braço de Cato. - Olha quem ele é! Não o reconheces?
- Claro. - Respondeu Cato, quase em surdina. - Prasutago. Ouviu-se um banco a raspar nas pedras do chão quando Macro se ergueu e chamou.
- Prasutago! Sou eu. Quero dizer, nós. Macro e Cato! Deciano quase se engasgou com o vinho. - Quer dizer que vocês conhecem aquele brutamontes? Macro ignorou o comentário
do tribuno e deu dois passos na direção do líder nativo, enquanto estendia a mão. Prasutago deixou-se ficar imóvel, antes de sorrir fracamente e acenar, sem responder
à mão estendida de Macro. Este baixou-a e abanou a cabeça, assombrado.
- Nem acredito nisto... Prasutago. - Olá, centurião. - Uma voz feminina rompeu o silêncio espantado de toda a sala. Macro virou-se e viu que a mulher tinha tirado
o capuz do manto, revelando tranças espessas de um cabelo avermelhado. Os olhos rebrilhavam-lhe enquanto ela sorria numa saudação.
Macro viu-se sem fala durante longos momentos, até que conseguiu engolir em seco, nervoso, e pigarreou para limpar a garganta.
- Boudica...
6
Raeinha Boudica, de facto. - Ela tentava mostrar-se distante, mas era traída pelo sorriso que não conseguia suprimir. - Rainha? - Macro franziu o sobrolho. - Não
percebo. - Sou a esposa do Prasutago, e portanto a rainha da nação icena. Presumo que também tu subiste na carreira desde a última vez que nos vimos. Já não és o
centurião que em tempos conhecemos.
Macro abanou a cabeça. - Ainda centurião Macro, embora bastante mais antigo. Boudica afastou-se do balcão, avançou até junto do marido e pegou-lhe na mão.
- Estamos contentes por vos revermos. Os dois oficiais romanos trocaram olhares com os governantes da tribo dos icenos, e por momentos ninguém falou, enquanto as
memórias das dificuldades e dos perigos partilhados lhes preenchiam os pensamentos. Macro sentiu uma pontada de pesar pela perda definitiva da mulher cuja afeição
fora sua, quando Boudica não passava da filha rebelde de um nobre iceno. Por fim, Prasutago não conseguiu aguentar mais a altivez própria de um rei, e acabou por
soltar um sentido rugido de alegria, antes de avançar e lançar os braços em torno de Macro, num aperto amigável que quase lhe fazia estalar as costelas.
- Ah! É bom voltar a ver-te, romano! Passaram já demasiados anos. Macro agarrou nos braços de gigante e libertou-se a custo do abraço poderoso.
Respirou fundo antes de responder.
- Vejo que aprendeste mais algum latim desde o nosso último encontro.
- É bom poder falar a língua de um amigo. - Ripostou Prasutago, com uma pronúncia bem vincada, mas com palavras perfeitamente compreensíveis. Virou-se para Cato,
apertou-lhe a mão e sorriu calorosamente. - E tu, Cato. Calculo que continues astuto e corajoso como sempre. - Assinalou a cicatriz que descia da testa do jovem.
- A marca de um guerreiro, hã?
- A marca de um homem que não conseguiu esquivar-se a uma lâmina a tempo, mais exatamente. - Contrariou Cato, com um sorriso.
A esposa tinha-se aproximado, e avaliava Cato com uma expressão de alguma preocupação.
- Eras pouco mais do que um rapaz quando nos vimos pela última vez. Agora fazes mais lembrar o Macro desses tempos.
- O quê? - Interrompeu Macro. - Nesse caso, o que é que eu pareço agora?
Boudica perscrutou-lhe o rosto. - Tens a face mais vincada, alguns cabelos cinzentos, mas continuas a ser o mesmo Macro que conheci. E isso é bom. É bom ver um velho
amigo... - O tom dela tornou-se mais sério. - Precisamos de amigos, agora mais do que nunca. As relações entre Roma e os icenos estão muito fragilizadas. Suponho
que conhecem a história recente?
- Soubemos da revolta, sim. - Anuiu Cato. - Uma pena. - Pena? - As sobrancelhas de Prasutago franziram-se de forma bem evidente. - Uma tragédia, isso sim. Uma traição
ao elo que havia entre o nosso povo e Roma. Ostório exigiu que entregássemos as nossas armas, mesmo depois de lhe termos dado a nossa palavra de honra de que respeitaríamos
a nossa aliança com o Imperador. Alguns entregaram-nas. Outros não o fizeram, e morreram com as espadas na mão. - Prasutago baixou o olhar. - Loucos, sim, mas bravos.
Talvez...
- Fizeste o que era correto. - Boudica apertou-lhe a mão. - Sobreviveste, para servir o povo iceno. Que precisa de ti.
Prasutago encolheu os ombros. Cato pressentiu que o guerreiro ainda se sentia ferido na sua honra, mas não conseguiu resistir ao desejo de conhecer toda a história.
- Então, como é que te tornaste rei? - Fui um dos poucos que não tomaram parte na rebelião. Estava demasiado doente para combater ao lado dos meus irmãos. E quando
tudo terminou, o governador escolheu-me para tomar o lugar do velho rei. Ele morreu na batalha.
- Estou a ver. Estou seguro de que a escolha de Ostório foi ponderada e sábia. - Cato virou-se e fez um gesto a designar a mesa que ocupavam. - Querem beber um copo
connosco? Aquela é a mãe do Macro, e os outros dois são camaradas do exército.
- A mãe do Macro? - Boudica arregalou um olho. - Ora aí está alguém com quem poderia travar uma conversa fascinante.
Mas Prasutago olhava com frieza evidente para os dois tribunos, e abanou a cabeça.
- Terá que ficar para outro dia, meus amigos. Quando pudermos falar livremente uns com os outros.
Pelino corou perante tais palavras, e levantou-se. Dirigiu-se a Cato.
- Senhor, obrigado pela bebida. Esperam-nos no quartel-general, e por isso pedimos licença para nos retirarmos.
O outro tribuno pareceu surpreendido, mas depressa percebeu, e anuiu em silêncio. Baixaram as cabeças por respeito a Pórcia e deixaram a estalagem, sem saudarem
os governantes icenos. O silêncio pouco agradável foi quebrado por Boudica.
- Sabem da assembleia das tribos, calculo? - Sim. Faremos parte da comitiva do governador. - Estou a ver. - A voz dela tinha perdido algum do calor habitual. - Nesse
caso, ver-nos-emos lá, ou talvez no caminho.
- Esperemos que sim. E agora, que tal essa bebida? Temos muito que contar uns aos outros.
Boudica preparava-se para responder quando o marido a interrompeu. - Noutra altura. Algures menos... romano. Vem. - Pegou no braço dela e levou-a a caminho da saída.
Prasutago lançou uma ordem aos seus guerreiros, que se juntaram e caminharam em conjunto até à porta, abandonando a estalagem e fechando a porta atrás deles.
Macro encolheu os ombros, infeliz. - Será que tem que ser assim? Mal os reencontrámos, e já nos separámos?
- O tempo tem muitas formas de cobrar a sua passagem, velho amigo. - Tentou Cato aplacá-lo.
Macro olhou-o, furibundo. - Velho? Ora, vai-te foder. Vamos mas é voltar à pinga. Pelo menos já não temos que a partilhar com aquelas sanguessugas dos tribunos.
Voltaram a sentar-se no banco, do lado oposto ao que Pórcia ocupava. Cato ergueu a caneca, espantou-se com a sua leveza e sacudiu-a. Mal ouviu o pouco líquido que
dançava lá dentro. Voltou a encher a caneca de Macro e deitou o que sobrava no jarro para a sua, antes de a erguer num brinde, num esforço para voltar a animar o
ambiente.
- Ao vosso novo negócio. Tenho a certeza de que será um sucesso, pela quantidade de gente que tem entrado desde que aqui estamos.
Pórcia ergueu a caneca sem grande entusiasmo. - Seria um sucesso, sim, se algumas das pessoas ficassem cá dentro tempo suficiente para beberem alguma coisa.
Cato lançou um olhar lamentoso aos restos de vinho na caneca. - Pois, ou se oferecessem uma rodada ou outra. - Então onde estão esses arruaceiros, afinal? - Soltou
uma voz forte vinda da zona do balcão, e Cato voltou-se; avistou um homem forte, de cabelo cinzento, a passar pela porta que dava para a despensa. A jovem criada
espreitava receosa por trás das suas costas. O estalajadeiro contemplou o salão onde os seus clientes bebiam calmamente, e virou-se para a rapariga. - Então?
Ela recuou amedrontada para a porta, e ele deu-lhe um piparote na cabeça, exasperado.
- Só me andas a fazer tempo, cabra de um raio! Vai para ali e vê se avivas o lume!
A rapariga, atordoada pela pancada, quase se agachou, e esgueirou-se para ir fazer o que lhe fora ordenado.
Cato acenou na direção do homem. - Imagino que seja o proprietário, e vendedor, da estalagem, não? - Ele mesmo. - Pórcia acenou-lhe quando ele olhou para eles. -
Aliás, acho que é altura de fechar o negócio, agora que o meu rico filho concordou em investir no meu novo estabelecimento.
- Investir? - Repetiu Macro, ainda a remoer a história. - A mim dá-me mais a sensação de ter sido assaltado.
Pórcia ignorou os queixumes do filho e sorriu enquanto o proprietário se dirigia para a mesa que ocupavam. Movia-se com a certeza de quem está habituado a comandar
e a não tolerar qualquer problema a um dos seus subordinados. O cabelo rareava-lhe já, mas o físico bem cuidado que lhe tinha garantido passagem ilesa através de
inúmeras batalhas ainda lá estava. Cato não duvidou de que o homem fosse capaz de impor a ordem entre quaisquer clientes que armassem confusão na estalagem. Quando
se aproximou o suficiente para as suas feições serem facilmente reconhecíveis, Cato voltou a espantar-se, e a soltar uma saudação amigável.
- Centurião Gaio Túlio! O estalajadeiro abrandou o passo e semicerrou os olhos, tentando perceber quem o tinha reconhecido; a expressão alterou-se abruptamente,
e ele sorriu com ar amigável.
- Macacos me mordam, se não são o Cato e o Macro! Mas o que estão vocês os dois aqui a fazer? Pensava que a Segunda Legião se tinha visto livre de vocês há já muitos
anos.
- E viu mesmo. - Riu Macro. - Mas ao que parece, a rapaziada tem andado um bocado atrapalhada com os nativos, e tiveram que chamar uns soldados a sério para resolver
a questão.
- Ah, sim, está-se mesmo a ver! - Túlio deu um soco amigável no ombro de Macro. - Safamo-nos muito bem sem vocês os dois, meliantes de primeira. Mas isto é uma verdadeira
surpresa, e fico sempre contente por rever velhos camaradas. Sabem os deuses quão poucos ainda restam. - Virou-se para Pórcia. - Ah, senhora, aí está. Está com eles?
- Piscou o olho. - Ou são eles que estão consigo?
Pórcia lançou-lhe um olhar frio. - Se isso é suposto ter piada, não vejo como. Por acaso, o centurião Macro é meu filho.
Túlio virou-se para confrontar Macro com ar de espanto. - Tu tens mãe? Puxou de um banco e sentou-se. - Túlia! - Gritou. - Traz-me outro jarro de vinho. Do bom!
Espera... Aquela pinga gaulesa serve! Bom, rapazes, então contem-me coisas. Como é que se arranjaram para estar de volta a esta cloaca? Não pode ser por apreciarem
o clima.
- Cloaca? - Pórcia fixou o olhar no homem. - É por isso que estás a vender? Talvez tenha que baixar o preço nuns mil ou dois mil.
Túlio baixou a cabeça, reconhecendo a infelicidade do comentário. - Estou a vender, senhora, porque quero ir descansar para um sítio quente algures na Campânia.
A sério, não há nada de verdadeiramente errado com Londinium. Há por cá muito dinheiro a ser feito. Não sou homem para tentar enganar a mãe de um dos meus antigos
camaradas de armas, não lhe parece? Além disso - o tom endureceu ligeiramente - pensava que já tínhamos combinado o negócio.
- Não. Eu fiz uma oferta. Disseste que ias considerá-la. E agora sou eu que estou a reconsiderar a oferta que fiz, dada a tua pressa em vender. Acho mesmo que nove
mil seria um preço mais razoável.
Túlio mal conseguiu disfarçar a surpresa perante o tom impiedoso da voz de Pórcia.
- Caraças, que aqui está um osso duro de roer. Macro, não tenho dúvidas de que é realmente a tua mãe... Mas o preço continua a ser dez.
- Nove. - E quinhentos. Pórcia mordeu o lábio, pensativa. - Nove mil e quinhentos. Ele franziu o cenho. - Bom, uma vez que é parente do Macro, ficamos assim. Mas
estou a roubar-me a mim mesmo. - Cuspiu na palma da mão e apresentou-a. Pórcia aceitou-a de imediato, antes que houvesse tempo para Túlio mudar de ideias, e assim
selou o negócio. A criada chegara entretanto com um jarro cheio de vinho que pousou na mesa, antes de se afastar com pé ligeiro. Túlio encheu as canecas mesmo até
ao cimo e ergueu a sua. - À Augusta Segunda!
- À Segunda! - Ecoaram Macro e Cato, antes de esvaziarem os copos. O vinho era melhor do que Macro esperava, pelo que não perdeu tempo a pegar no jarro e voltar
a encher as canecas.
- Calminha aí com o néctar. - Avisou Pórcia, com voz firme. - Isso agora é parte do meu inventário. O próximo jarro é a pagar, ouviste?
Túlio sorriu, ao ver confirmada a sua impressão. - Tesa como um carapau. Bom, voltando ao que interessa, calculo que estejam por cá para reforçar as legiões a tempo
da nova campanha.
- Precisamente. - Confirmou Cato. - O Macro vai para a Décima Quarta, como centurião-chefe. - Pffff! A Décima Quarta, que bando de tansos. Nem para lamber as botas
da Segunda prestam, digo eu.
Macro não quis seguir aquele caminho de denegrir a reputação da sua nova unidade, já que com o correr do tempo esperava adquirir algum orgulho na Décima Quarta.
Cerrou os lábios e serviu-se de mais vinho, enquanto comentava.
- Veremos isso. Túlio virou-se para Cato. - E tu? Vais com o Macro? Com toda a certeza ele tem lugar para um bom centurião como tu.
Cato sentiu-se algo constrangido. - Não. Vou para outra unidade. Uma coorte de cavalaria Trácia. Foi-me atribuído o comando.
Túlio ficou siderado. - Tu? Mas... nesse caso, já deves ser prefeito. Foda-se, ora aí está uma surpresa das grandes. Quando nos encontrámos da última vez, eras um
centurião ainda verde.... - Fez uma pausa e mostrou-se por sua vez incomodado. - Porra... Bem jogado, miúdo. Quero eu dizer, senhor.
- Não há necessidade de formalidades. - Respondeu Cato. - Não estamos de serviço. Aliás... Tu já nem estás na tropa.
- Sim, mas continuo a ter respeito pela patente. E pelo homem que a alcançou. Prefeito Cato. Isso é que é. Mesmo a sério. Pelos deuses, deves ter andado metido em
grandes confusões e ter-te coberto de glória para conseguires uma promoção a prefeito. Ou isso ou saltaste para cima da senhora do Imperador. Ou meteste-te debaixo
do Cláudio. Ao que tenho ouvido, o velhote é danado para a brincadeira.
Macro esvaziou a caneca e espetou um dedo no ar. - Já chega. O Cato chegou à patente pelo caminho difícil. Eu sei. Estava lá ao lado dele.
- Seja, ainda bem para ele. - Admitiu Túlio. - E agora acabaram aqui os dois, no túmulo da ambição, como é costume dizer-se.
- O que é que isso quer dizer? - Quer dizer que não há glória a conquistar por estas bandas. Isso já acabou. As grandes batalhas são coisa do passado. O Carátaco
e o seu bando rasparam-se para as montanhas. A maior parte dos nossos rapazes estão enfiados em fortes, de olho nos nativos, e a tentar evitar que deem cabo deles
sempre que saem em patrulha. De vez em quando lá conseguimos encurralar alguns desses sacanas pintados, e damos-lhes o que merecem. Mas ao ritmo a que as coisas
acontecem, atrevo-me a dizer que Roma ainda andará a tentar amansar estes bretões muito tempo depois de toda a gente já se ter esquecido de que em tempos houve uma
invasão. Querem um conselho? Peçam transferência, assim que tiverem ocasião.
Macro retorquiu. - Estás enganado. O Ostório vai-lhes oferecer uma última oportunidade para se submeterem a Roma, e quando eles recusarem vai-lhes cair em cima com
toda a força. - A voz do centurião começava a ficar arrastada.
Túlio gargalhou. - A sério? Achas mesmo que é a primeira vez que um governador tenta acabar com a resistência destes bandalhos? O que é que te faz pensar que este
tem mais hipóteses de concluir a tarefa do que o Aulo Pláucio?
Macro agitou um dedo no ar, e Cato deu uma palmada desanimada no próprio peito.
- Porque desta vez somos nós quem vai combater por ele. Aí está! Cato entrelaçou os dedos, enquanto abanava a cabeça, adivinhando o que se ia seguir. Macro já estava
lançado, e ergueu o punho no ar.
- Vamos mostrar ao Carátaco umas coisas, vais ver! Amachucar-lhe o focinho e dar-lhe umas palmadas por se ter portado mal. A coisa vai estar acabada antes da saturnália.
- Queres fazer uma apostinha? - Lançou Túlio, aproveitando a ocasião.
- Evidentemente. - Macro anuiu com vigor. - Macro! - Irritou-se Pórcia. - Nem penses! Antes que o filho lhe pudesse responder, sentiu-se uma corrente de ar frio
na sala quando alguém abriu a porta; era um escriba do quartel-general, que entrou. Olhou em redor até notar a mesa a que Cato e os outros estavam sentados, no preciso
instante em que Macro lançava um impropério por cima do ombro.
- Foda-se, tapem esse buraco! - Perdão, senhor. - O escriba empurrou a porta até ela voltar a cerrar-se; dirigiu-se à mesa e colocou-se em sentido. - Prefeito, peço
desculpa, mas o governador envia-lhe cumprimentos e informa que devem estar os dois preparados amanhã de manhã para o acompanhar quando partir para Durocornovium.
- Muito bem. - Assentiu Cato. - Lá estaremos. Podes seguir. O homem baixou a cabeça e saiu. Cato levantou-se.
- Macro, vamos. Temos que encontrar o Décimo e dizer-lhe para nos preparar as bagagens. E depois, acho que um bom descanso é aconselhável.
- Uma gaita. Estou aqui a apreciar um copo com o Túlio. Quando acabar, lá irei ter.
Por momentos, Cato considerou a possibilidade de ordenar ao amigo que o acompanhasse. Mas sabia que isso ia deixar Macro de péssimo humor. Melhor seria deixá-lo
beber até ao fim e voltar aos aposentos satisfeito e bêbado. Além disso, a inevitável ressaca que o afetaria na manhã seguinte daria a Cato algum descanso enquanto
seguissem a caminho de Durocornovium.
7
No dia seguinte, pouco depois da alvorada, Pórcia foi despedir-se deles. Cato tinha dado a Décimo prata suficiente para comprar três mulas, duas para as bagagens
e uma para ele próprio. O governador tinha autorizado a atribuição de cavalos a Cato e Macro. Não se deu nenhuma cena chorosa nos portões da cidade, já que estes
ainda nem existiam, e os limites de Londinium eram pouco claros, ficando algures no meio dum amontoado de barracas mal-amanhadas que se espalhavam pelos lados da
estrada que seguia para ocidente. Temendo pela segurança da mãe entre os habitantes da área, de aspeto bárbaro e pouco amigável, Macro deteve o cavalo, esperou que
o último homem da coluna passasse, e deu-lhe um beijo fugidio na testa. Bem desejava que a sua própria cabeça não latejasse como fazia. E também não apreciava a
náusea que lhe dominava as entranhas e que ameaçava humilhá-lo à frente dos seus camaradas, no caso de se ver obrigado a vomitar.
- Será melhor separarmo-nos aqui. - Sugeriu o centurião. - Não sei até que ponto é que esta malta por aqui é de confiar.
Assinalou alguns dos moradores, que tinham acordado cedo e observavam pachorrentamente os romanos que passavam a pé, com os cavalos pelas rédeas, ao longo da estrada
bem vincada pelos sulcos.
- Não vai haver problemas. - Ela entreabriu a capa, revelando um porrete pendurado no cinto da túnica. - Uma lembrança dos dias de Arminium.
- Tenta não dar cabo dum grande número de nativos. - Riu Macro, tentando aligeirar o peso da despedida. - Deixa alguns para mim. É esse o meu trabalho.
Ela sorriu fracamente, e depois afagou a bochecha do filho e olhou-o com intensidade.
- Toma cuidado contigo, e com o garoto. Não faças nada estúpido. Conheço-te bem. Sei como és. Não corras riscos desnecessários. Percebido?
Macro assentiu. Ela suspirou e abanou a cabeça.
- Talvez um dia tenhas um filho teu. Nessa altura, perceberás bem a minha preocupação. Vai lá. Antes que me faças chorar.
- Ainda está para nascer esse dia. - Rezingou Macro. - Logo tu, rija como um par de botas velho.
- Vai lá! Sem outra palavra, e sem dar mostras de qualquer hesitação, Pórcia deixou pender a mão e virou-se, seguindo pela rua que levava ao coração de Londinium.
Macro ficou a vê-la a afastar-se, mas a mãe nem uma vez se virou.
- Rija como um velho par de botas... - Repetiu entre dentes. Por fim, puxou pelas rédeas, e fez a montada avançar a passo para se juntar ao resto da escolta do governador,
enquanto os espectadores nativos, de curiosidade saciada, voltavam a recolher aos interiores dos seus casebres rústicos. Quando passaram pela última das barracas
e saíram para uma paisagem aberta, o governador deu ordem aos homens para montarem.
Cato tinha aprendido a montar na recruta, e tinha tido várias ocasiões de praticar nos anos seguintes, mas ainda não se sentia perfeitamente à vontade em cima de
uma sela, e o cavalo que lhe fora distribuído tinha alguma tendência para pequenos saltos nervosos e estremeções, ao menor sinal de movimento
na periferia da sua visão. Ostório seguia um pouco à frente dos seus homens; de vez em quando deitava uma espreitadela por cima do ombro, vigiando Cato, e este percebia
perfeitamente a intenção do comandante. Estava a tentar perceber se o seu novo comandante de cavalaria era capaz de dominar uma montada difícil. Com essa vigilância
em mente, Cato concentrou-se em manter o cavalo sob controlo, e em tentar antecipar as suas reações ao que o rodeava, para ter a certeza de que ele não se espantava
ou empinava e lhe provocava algum sério embaraço.
A própria estrada estava longe de ser fácil; na maior parte do tempo era apenas um trilho enlameado e, nas zonas em que o terreno era particularmente mole, os engenheiros
do exército tinham construído umas armações de troncos e terra, de forma a proporcionar às colunas a pé, montadas e ao tráfico com rodados uma superfície mais estável.
Não chovia, mas o céu estava carregado, e havia bancos de nevoeiro a preencher cada zona mais baixa da paisagem. Na ausência de um sol capaz de os dissipar, iam
provavelmente ficar na mesma área durante todo o dia, e faziam Cato compreender perfeitamente porque é que era aquela a impressão mais duradoura que a ilha deixava
nas mentes romanas. O terreno molhado tinha um cheiro fresco, um alívio depois do fedor arrepiante de Londinium. Estava-se já no fim de abril, e nos troncos nus
de árvores e arbustos começavam a surgir rebentos; algumas flores mais resistentes davam à paisagem algumas pinceladas de cores brilhantes. Depressa a cidade ficou
lá longe, e a sua presença era revelada apenas por um fraco tom acastanhado no horizonte ondulante.
Em breve, Cato conseguiu tornar-se senhor do temperamento e suscetibilidades do cavalo que montava, e pôde então dar alguma atenção aos seus camaradas. Tinha havido
uma breve ronda de apresentações ainda no quartel-general do governador antes de partirem, mas Cato já se tinha esquecido da maior parte dos nomes. Porém, os tipos
de homens que o ladeavam eram-lhe familiares. Para lá de Ostório, iam na coluna dez legionários, escolhidos a dedo, que faziam as vezes de guarda pessoal do governador.
Veteranos duros, com excelentes folhas de serviço, em quem se podia confiar para defender o governador com a própria vida, se tal se tornasse necessário. Depois
vinham os tribunos. Seis oficiais subalternos, que continuariam as suas carreiras numa sucessão de nomeações para postos administrativos civis, e que um dia poderiam
ser recompensados com uma promoção ao Senado. Nessa altura, alguns dos mais considerados poderiam vir a ser nomeados governadores de uma das províncias de Roma.
Ostório Escápula era um deles. Tinha devotado toda a vida a dois ideais: Roma, e a busca de glória para engrandecer o nome da família. E fora sem dúvida sua ambição
ser capaz de controlar a Britânia, para coroar uma longa carreira, refletiu Cato. Uma pena que as nações nativas tivessem ideias diferentes.
O último membro do grupo era um tradutor nativo, embora este mostrasse o cabelo castanho bem cortado, uma túnica e capa vermelha que o podiam levar a ser facilmente
tomado por um romano. Apenas o brilho do grosso colar ricamente ornado que usava em redor do pescoço indicava a sua verdadeira origem. Marcómio, na versão latinizada
do seu nome nativo, tinha trinta e tal anos de idade, era magro e de aspeto cuidado. Era bem evidente que tinha abandonado os costumes do seu povo.
Cato seguia atrás dos tribunos, enquanto Macro se deixara atrasar mais ainda, para se juntar aos guarda-costas e meter conversa com eles. O tagarelar animado misturava-se
com o batuque ritmado dos cascos enquanto a pequena coluna seguia pela estrada que cruzava a paisagem verde e ondulante das terras dos atrébates. Por todo o lado
se viam campos cultivados e pequenas quintas, e de vez em quando uma mansão no meio de um padrão regular de campos trabalhados, pelo meio do que restava das antigas
florestas de carvalhos e outras árvores. Ocasionalmente, passavam por um dos nativos a trabalhar o campo; Ostório atirava-lhe uma saudação amigável, e os seus oficiais
imitavam-no, reparou Cato com aprovação. Nunca conseguira perceber a atitude distante e altiva que muitos romanos adotavam em relação aos povos conquistados. A forma
mais rápida de romanizar uma população era encorajar as boas relações. E a forma mais rápida de a antagonizar era rebaixar os seus membros, esmagá-los, tratá-los
como criaturas inferiores, uma política que apenas provocava ressentimentos, quando não levava a revolta aberta.
Depois de percorridos uns oito quilómetros de caminho, Ostório refreou o seu cavalo e esperou até ficar junto de Cato. A estrada tinha descido para um vale pouco
pronunciado, mergulhado no nevoeiro, que se fechava em torno dos cavaleiros e mal permitia adivinhar as silhuetas vagas das árvores e arbustos que os rodeavam. Trocaram
um aceno antes de o governador começar a falar.
- Falei com os meus tribunos e os meus guardas pessoais antes de deixarmos a cidade, mas queria assegurar-me de que tu e o centurião Macro não vão destoar. Como
podes imaginar, esta ocasião é claramente de tudo ou nada. A última oportunidade para conseguirmos a paz com Carátaco e os seus seguidores. Claro que nada nos garante
que ele esteja presente. Mas estarão com certeza muitos dos que partilham a sua visão das coisas, e não deixarão de o informar do que se passar. A grande maioria
das tribos é já nossa firme aliada. Alguns, admito-o, de forma francamente relutante. Ainda assim, haverá mais vozes a falar pela paz do que pela guerra e, se não
servir para mais nada, este encontro mostrará o isolamento em que se encontram aqueles que insistem em resistir. De qualquer maneira, não tomo nada por certo. Tu,
e o teu subordinado, tratarão os delegados nativos com cortesia e respeito em todas as ocasiões. Entendido?
- Sim, senhor. - E isso aplica-se também aos druidas, se algum deles estiver presente. - Aos druidas? Senhor, sempre pensei que eram eles os nossos mais implacáveis
adversários. Era seguramente assim quando eu e o Macro servimos aqui anteriormente.
- Oh, ainda nos odeiam ferozmente, sem qualquer dúvida, e a política oficial é de não os poupar em nenhuma circunstância, mas se não lhes permitíssemos comparecer
a este encontro, não haveria qualquer hipótese de alcançarmos a paz. Espero persuadi-los a ganharem juízo.
Cato deu um estalo com a língua. - Senhor, todos os druidas que encontrei até hoje eram fanáticos. Optariam alegremente pela morte antes de cederem um passo que
fosse a Roma.
Ostório virou-se para ele com uma expressão irada. - Como já te disse, prefeito, isso foi há muitos anos. Os homens mudam. Mesmo os inimigos mais determinados podem
acabar por se cansar de se abaterem mutuamente, e encontrar em si um desejo de paz.
- Em muitos casos, sim. Mas os druidas? - É esse o tipo de pensamento que tens que pôr de parte. E é por isso que te digo isto. Prefeito Cato, não podem ficar quaisquer
dúvidas, nenhuma ponta solta entre nós. Comportar-te-ás em todas as circunstâncias da forma que te indiquei, com todos os presentes neste concílio, incluindo os
druidas. Aliás, especialmente com os druidas. E isso vale também para o centurião. Não permitirei que nenhum de vós provoque algum problema. É uma ordem.
- Sim, senhor. - Ótimo. E o mesmo se aplica ao Carátaco, se ele aparecer. Ou a quem quer que represente siluros e ordovicos.
- Compreendo, senhor. - Nesse caso, espero que o faças compreender também ao centurião Macro. E com estas palavras, o governador incitou o cavalo, de forma a reocupar
a posição à cabeça da coluna. Cato ficou a vê-lo adiantar-se com um sentimento de alguma pena. Parecia-lhe que Ostório estava a apostar demasiado no seu evidente
desejo de paz. Mesmo que conseguisse persuadir Carátaco a depor as armas, Ostório devia saber muito bem que os termos dessa paz seriam inaceitáveis para Roma, desde
que neles houvesse o mais pequeno indício que apontasse para uma humilhação do Imperador e das suas legiões. Por muito que partilhasse o desejo de paz do governador,
temia bem que o mais provável resultado da cimeira seria a continuação do duro conflito. O que agradaria sobremaneira a Macro, refletiu Cato, com um sorriso amargo.
Era para isso que o amigo vivia. O combate era o seu elemento, como a água o era para os peixes. Ia ser interessante ver como ia o veterano lidar com as ordens diretas
do governador.
Refreou o andamento do cavalo e esperou que Macro e os legionários o alcançassem. Macro parecia ter já recuperado da ressaca, e estava a contar uma história picante
enquanto segurava um cantil repleto de vinho, que um dos homens lhe tinha passado para as mãos.
- ... E disse eu, "Uma pena que ela só tenha uma das pernas". E ele não percebeu nada!
Os outros soltaram tremendas gargalhadas, enquanto Cato retomava o andamento, colocando-se ao lado do amigo.
- Essa já tem barbas. Deve ser para aí a décima vez que a oiço. - As piadas são como o vinho, quanto mais velhas, melhores são. - Ripostou Macro, enquanto prendia
as rédeas na sela de forma a poder levantar o cantil e sorver algum vinho.
- Isso parece-lhe recomendável? Macro fez estalar os lábios e encolheu os ombros. - Ora, o pelo do mesmo cão, e histórias desse género. - Imagino o que diria a sua
santa mãe.
- Não, não imaginas. Mas o que estás tu a fazer, aqui na retaguarda com o pessoal alistado?
- A transmitir ordens do governador. Quer-nos bem comportados ao pé dos nativos. Portanto, se fosse a si, ia com calma com a bebida.
- Não há problema. Sei muito bem refrear a sede quando é preciso. Por agora
estou aqui na brincadeira com os rapazes. Sabes que podes contar comigo, quando chegar a altura. Alguma vez te deixei mal?
- Não, não dessa forma. Mas, se bem me lembro, já me arrastou para uma ou duas zaragatas desnecessárias. Há ocasiões para isso. Mas aqui e agora temos mesmo que
nos portar bem. Como cidadãos-modelo.
- Se eu quisesse ser um cidadão-modelo, nunca me teria alistado nas legiões.
- Macro, foram-nos dadas ordens claras. É tudo o que importa. Macro assentiu, desconsolado, e deixou-se ficar para trás para devolver o cantil ao seu proprietário,
antes de voltar para junto de Cato, que espreitava para os dois lados da estrada por onde a coluna seguia, envolta em nevoeiro. Macro não evitou um fungar irónico.
- Só espero que as tribos estejam também assim interessadas em ganhar um prémio de bom comportamento. Olha que belo sítio para uma emboscada! Podiam atacar-nos de
todos os lados antes de sabermos o que estava a acontecer.
- Obrigado por tão reconfortante pensamento. - Cato esforçava olhos e ouvidos na tentativa de descortinar qualquer som ou movimento suspeito, mas nada se passava,
e o único som vinha da conversa em tom de surdina dos tribunos, dos soldados, e do regular bater dos cascos dos animais. Por cima deles, o céu abriu ligeiramente,
e o Sol surgiu, embora não passasse de um disco pálido que dava luz mas não fornecia calor.
Passaram algumas horas, e o ambiente sombrio sofreu apenas uma breve interrupção quando a estrada passou por uma crista no terreno, antes de voltar a descer para
outro vale imerso no nevoeiro. Pela altura em que o Sol atingia o zénite, o governador deu ordem de alto, para descansar os cavalos e permitir aos homens saírem
das selas por alguns momentos. Dois dos soldados correram a segurar as rédeas dos cavalos dos oficiais, enquanto estes também esticavam as pernas.
Ostório sorriu a Cato. - E como te sentes tu, neste regresso ao solo britânico? Não há em todo o Império outro sítio como este, quando se trata de pôr os pelos da
nuca em pé, hã?
Cato recordou as neblinas e nevoeiros britânicos, a forma como eles tomavam conta da paisagem por dias a fio e influenciavam a imaginação de muitos dos homens. Nada
que afetasse Macro, evidentemente, mas que contribuía para deixar Cato tenso e ansioso. Preparava-se para responder a Ostório quando ouviu um ténue som de cascos
a martelarem a terra do caminho.
O sorriso de Ostório apagou-se-lhe da face; saiu da estrada e olhou para os guardas, que esperavam em silêncio junto às montadas.
- Centurião Macro, tira os homens da estrada. Bem como aquele vosso criado. Metade em cada flanco, a uns vinte metros, e aguardem pela minha ordem antes de avançar.
Os outros, montem e formem uma linha na estrada.
Enquanto os soldados se colocavam em posição, Cato e os outros voltaram a montar, e formaram uma linha na estrada. Ostório estava de ouvidos atentos, e foi o último
a trepar para a sela, fazendo avançar o cavalo até ficar ligeiramente à frente dos seus oficiais, a meio da estrada. Cato viu como a mão esquerda do governador descansava
sobre o punho da espada enquanto esperava. O som dos cavalos que se aproximavam era agora muito mais distinto, e um dos tribunos mais novos, que ladeava Cato, limpou
a garganta, nervoso.
- Quantos serão, na sua opinião? Cato não percebeu bem a quem se dirigia a pergunta, mas era óbvio que o jovem oficial precisava de umas palavras que o animassem.
Já tinha experiência suficiente de tropas montadas para arriscar um palpite.
- Diria que não mais de dez. O tribuno anuiu e, seguindo o exemplo do comandante, colocou a mão no punho da espada. Cato reparou no tremor nervoso nos dedos do oficial.
Lembrou os seus próprios receios nos primeiros dias que passara no exército, sempre que um combate se tornava mais iminente. O medo desaparecera, mas ainda continuava
a ser apoquentado por uma enorme ansiedade, sobretudo de não estar à altura do que lhe era exigido e do que os seus camaradas, em especial Macro, esperavam. A isso
juntava-se o terror perante a possibilidade de sofrer um ferimento incapacitante, que fizesse dele apenas um objeto de piedade e de ridículo. Nesse momento, os seus
pensamentos foram interrompidos pelo cavalo, que resolveu remexer-se e tentar sair da linha. Cravou-lhe os calcanhares com firmeza e rangeu os dentes enquanto tentava
dominar o animal e voltar a colocá-lo em posição. Quando o conseguiu, já o som dos cascos estava próximo, até que por fim um vulto indistinto começou a emergir do
nevoeiro, seguido por um grito lançado na língua de uma das tribos nativas. O cavaleiro refreou subitamente a montada, no que foi imitado pelos que o acompanhavam,
que formaram também uma linha na estrada.
Soou um grito de desafio, na mesma língua, e Ostório ergueu a mão esquerda em saudação.
- Romanos! Ouviu-se um grunhido abafado à laia de resposta, seguido de silêncio e imobilidade. Um leve raspar metálico chegou aos ouvidos de Cato, que olhou em redor
e descobriu que o tribuno que o interpelara havia pouco estava a desembainhar a sua espada.
- Guarda isso, idiota! - Instou Cato. - Não fazemos nada sem ordem do governador.
O tribuno voltou a recolher a lâmina, mas os dedos continuavam a fechar-se e abrir-se de forma quase incontrolável.
- Avancem para serem reconhecidos! - Ordenou Ostório. A pausa tensa prolongou-se, até que um dos bretões fez adiantar o cavalo e saiu do nevoeiro, revelando uma
figura gigantesca envolta num manto de peles, sob o qual se notava a presença de uma cota de malha de brilho baço. O cabelo escorria-lhe pelos ombros, e à medida
que se aproximava, o governador reconheceu-o, pelo que baixou a mão e acenou em saudação.
- Rei Prasutago. - Governador Ostório. - Veio a resposta, num voz profunda e ribombante. - Por momentos temi que fosse uma emboscada.
- Quem se atreveria a emboscar-vos, aqui em território sob controlo romano?
- Todos temos os nossos inimigos. - Prasutago virou-se e fez sinal à sua comitiva, que avançou para se juntar a ele, ao mesmo tempo que Ostório chamava Macro e os
seus guardas de regresso à estrada. Os cavaleiros icenos não deixaram de olhar com suspeição para os legionários que surgiam dos dois lados. O governador fez avançar
o cavalo e apertou o braço de Prasutago.
- Seria uma honra se vocês se juntassem a nós durante o resto da viagem até Durocornovium.
- Sentir-me-ia eu honrado se vocês se juntassem a nós. Ostório ponderou brevemente e assentiu. - Muito bem, é com todo o prazer que aceito o teu convite. A tensão
diminuiu visivelmente, e Cato ouviu o longo suspiro de alívio que o tribuno ao seu lado soltava, enquanto relaxava na sela.
Pouco depois, o agora alargado grupo de cavaleiros saiu do nevoeiro, já que a estrada subiu um pouco para se unir a uma via mais frequentada que corria pelos cimos
das colinas que se estendiam para ocidente. O céu começou a clarear, e o sol a rebrilhar por entre as abertas ocasionais, lançando sombras que dançavam na paisagem.
O governador seguia ao lado de Prasutago, fazendo tentativas ocasionais de começar uma conversa. Os guerreiros icenos seguiam-nos de perto. Vinham a seguir a rainha
Boudica, ladeada por Cato e Macro, e por fim o resto dos romanos.
- Tinha esperança de vos alcançar. - Confidenciou ela. - Depois da melindrosa situação de ontem à noite, queria ter uma ocasião para desanuviar a atmosfera.
Ao contrário do marido, ela tinha aprendido a língua de Roma desde muito nova, graças a um mercador que o pai tinha contratado, depois de perceber, muitos anos antes
de a invasão ocorrer, que se ia tornar necessário conversar com os representantes da grande potência que tinha já alcançado as costas da Gália e se mostrava claramente
disposta a atravessar o mar e invadir a Britânia...
- Passou já tanto tempo. - Continuou. - Mas não mudaste muito, Macro. Continuas o mesmo patife bem parecido.
O centurião respondeu com um grunhido meio indiferente. Era complicado reencontrar uma pessoa com quem tinha tido uma relação tão próxima e tão física. Claro que
tinha havido afeição entre eles, mas a verdade é que tudo fora, antes de mais, uma questão de desejo, puro e simples. E a situação tornava-se ainda mais difícil
dada a presença de Prasutago, de quem Boudica se tornara prometida da última vez que Macro a tinha visto. Agora era sua esposa, e ele era rei. Uma situação realmente
complexa, e Macro não estava seguro quanto à melhor forma de a enfrentar. Nem se punha a hipótese de voltarem ao mesmo tipo de relação. Mas também lhe era difícil
tratá-la com a distância e deferência devidas à sua posição formal. E aquela atitude amigável dela, de velhos companheiros, ainda tornava a coisa mais difícil.
- Mas tu, Cato, agora tens todo o ar de um veterano experimentado, e essa cicatriz dá-te um ar muito atraente. Ficas com um certo aspeto selvagem.
- É o que diz a minha mulher. - És casado! Não devia ficar nada espantada. Quem é a sortuda? - Chama-se Júlia. - E onde anda? - Em Roma. - Oh, coitada. Isso não
deve ser fácil para nenhum dos dois. Porque é que não a trouxeste contigo?
Cato fez uma pausa antes de responder. Queria explicar, lembrar que Júlia estava habituada aos confortos e luxos que lhe eram proporcionados pelos pais e que, na
realidade, temia que ela ficasse ressentida com ele se a obrigasse a viver na Britânia, com o seu clima inóspito e tribos ainda menos acolhedoras. Limpou a garganta.
- Prefiro que a Júlia fique onde se sente melhor. - A sério? - Boudica lançou-lhe um olhar curioso. - Por mim, era capaz de pensar que uma esposa se sentiria melhor
com o marido ao lado.
- É diferente para as mulheres romanas. - Menos animado, queres tu dizer. - Possuem um elevado sentido do dever. Estão preparadas para aguardar pelo regresso dos
seus maridos que cumprem serviço ativo, e a manterem as casas
enquanto esperam.
- Oh, sim, claro. - Assentiu Boudica. - Percebo que a tua Júlia prefira essa situação. Quer dizer, não deve querer demasiada excitação nessa vida regalada, não é?
Cato irritou-se. Não apreciava aquele interrogatório sobre o seu casamento. Já se sentia suficientemente afligido quanto à situação por si mesmo. Resolveu inverter
a questão.
- Então e tu? Estás contente com as tuas novas funções? E o Prasutago?
O sorriso de Boudica desvaneceu-se, e ela olhou para a frente da coluna, fitando os ombros largos do marido, que cavalgava lá na frente.
- Tornou-se rei há apenas dois anos. - Sortudo. - Comentou Macro. - Nem por isso. A escolha era entre o exílio ou a coroa. E para lá de passar a ser visto como o
capacho de Roma, o Prasutago ainda teve de aceitar a construção de uma série de fortes ao longo da nossa fronteira, e permitir livre passagem às patrulhas romanas.
Pior ainda, o Ostório insistiu em que o Prasutago tinha que honrar as dívidas que o velho rei, Bodomínio, tinha contraído; o homem pediu uma fortuna aos usurários
romanos. E agora o nosso povo está enterrado em impostos até ao pescoço para conseguirmos pagar tudo, e ainda somos obrigados a fornecer quinhentos jovens por ano,
para servirem nas vossas coortes auxiliares. Digo-vos, se é assim que Roma quer tratar todas as tribos da Britânia, é só uma questão de tempo até se dar um levantamento
geral.
- Os icenos estão a pagar o preço de terem desafiado Roma. - Comentou Macro, em tom neutro. - Eram apenas uma tribo. O que esperavam alcançar?
- A única tribo a revoltar-se, sim. Mas não a única com queixas. Os nossos vizinhos, os trinobantes, ainda estão pior, sobretudo desde que o governador resolveu
fundar uma colónia de veteranos em Camulodunum. A terra em redor foi dada aos vossos homens, que não se coibiram de se apossar de outras parcelas ainda. Quem tentar
protestar é espancado. Alguns foram mesmo mortos. E depois há o templo dedicado a Cláudio, que está a ser construído bem no coração da cidade. Não fazia ideia de
que ele era um deus. - Desdenhou ela. - Não me deu muito esse ar quando o vi durante a sua curta visita a Camulodunum.
- Cuidado. - Avisou Cato. - Esse tipo de conversa é perigoso, sobretudo se chegar a Roma. Os imortais possuem formas muito pouco agradáveis de lembrar aos outros
a sua própria mortalidade.
- Pode ser que sim, mas as ameaças tendem a perder peso quando as pessoas são levadas longe demais. Os trinobantes já estão muito pouco felizes com a usurpação das
suas terras. Mas, para piorar as coisas, estão a ser taxados para pagar a construção do templo. Conseguem imaginar isto? Ser sugado até ao tutano para arranjar forma
de pagar um monumento a quem vos oprime? Se é esta a paz que Roma oferece, temo bem que o vosso governador vai ter muito trabalho para convencer as tribos de que
é uma proposta valiosa. Não adivinho nada de bom em resultado deste encontro.
- Nesse caso, porque é que vieram? Porque é que o Prasutago aceitou o convite para este concílio com as tribos?
- Convite? - Boudica soltou uma gargalhada amarga. - Uma convocatória, é mais o termo. Como um senhor a convocar um escravo, ou um cão, à sua presença. Estamos aqui
porque não vir, custaria aos icenos ainda menos simpatia da parte do vosso governador. E calculo que se passe o mesmo com as outras tribos que têm a felicidade imensa
de serem aliadas de Roma.
- Ele procura a paz. - Insistiu Cato. - O Ostório quer pôr fim ao conflito nesta província.
Ela virou-se para ele, pouco convencida. - Não percebeste? Acabo de te mostrar o que significa realmente a paz para todas as tribos que já se submeteram ao jugo
de Roma. E se é esse o significado, assim tão pervertido, da palavra paz, diz-me então, Cato, serias tu capaz de a acolher, se fosses um nativo desta ilha?
8
Ao entardecer do terceiro dia de viagem, o pequeno grupo de romanos e icenos deixou a estrada para Durocornovium e dirigiu-se a Cunetio, um fortim a uns oito quilómetros
dos círculos sagrados onde ia ter lugar o concílio das tribos. A pequena guarnição local era composta por meia centúria de gauleses comandada por um optio, que imediatamente
colocou as suas pobres acomodações ao dispor do governador, enquanto aos seus homens era dada ordem para deixarem as casernas, para dar lugar aos outros visitantes.
Os soldados iam ser obrigados a passar a noite ao relento ou nos armazéns bafientos. O optio tinha recebido informações sobre o encontro, e fora-lhe recomendado
que mantivesse os seus homens no fortim, de forma a evitar qualquer contacto com nativos que pudessem estar de passagem. Ostório estava decidido a não deixar nada
ao acaso na sua busca por uma alternativa a mais uma temporada de dura campanha militar.
- Senhor, fizemos como nos foi recomendado. - Confirmou o optio. - Há cinco dias que os meus homens não passam daqueles portões para fora.
- Excelente. Avistaram alguma das delegações tribais a passarem por aqui?
- Sim, senhor. Várias. E nalgumas pareceu-me ver druidas. - Consegues distingui-los? - Inquiriu Macro. O optio pensou rapidamente, e confirmou. - Os guerreiros e
outros membros das delegações usavam cores vivas. Estes de que falo cobriam-se com capas sem adornos. E eram poucos, também. Mas tinham um ar diferente, e mantinham-se
à parte dos outros na estrada.
Macro virou-se para Cato. - Druidas? Não posso dizer que me agrade a ideia de voltar a cruzar o caminho dessa gente.
Ostório cortou-lhes a palavra. - Não vai haver cruzamento algum com os druidas, nem com outros quaisquer. Está claro? Todos os que vierem ao encontro no círculo
de Avibarius têm salvo-conduto garantido durante um período de dez dias. Se alguém provocar algum conflito durante este período de trégua, não manterá a cabeça em
cima dos ombros por muito tempo.
- Sim, senhor. - Macro baixou a cabeça, em sinal de aceitação das instruções. - Mas o que acontecerá se o outro lado não se portar de acordo com essa disposição?
Quais são as regras para nos metermos ao barulho?
- Nenhum de nós desembainhará qualquer arma, exceto em caso de autodefesa, e mesmo assim só se o adversário primeiro empunhar a sua arma. - Enunciou Ostório em tom
firme, enquanto encarava os seus oficiais. Os icenos já tinham ocupado a caserna que lhes fora designada, e apenas um punhado deles ainda se mantinha no exterior,
observando em silêncio enquanto o governador se dirigia aos seus homens. - Se isso se tornar absolutamente necessário, combateremos, mas esperarão pelas minhas ordens
antes de agir. E que os deuses ajudem quem se lembrar de infringir as minhas ordens quanto a isto.
Deixou que a ameaça fosse bem compreendida antes de prosseguir em tom mais moderado.
- Por esta altura já todos os grupos devem ter chegado. Marcómio, o meu tradutor, irá até ao local para confirmar que assim é. E nesse caso, a primeira reunião deverá
acontecer esta noite mesmo. Uma vez que o local é sagrado para os nativos, esperaremos aqui mesmo até que nos venham dizer que eles estão prontos para nos receber.
Depois disso, senhores, estaremos à mercê dos deuses.
Macro debruçou-se para Cato e sussurrou. - Pois sim, mas quais, os nossos ou os deles? - Até que chegue o momento - prosseguiu Ostório, - sugiro que descansem. Vão
precisar de toda a vossa atenção esta noite. Estão dispensados.
Enquanto Ostório se dirigia para os aposentos do optio, os tribunos e os soldados da escolta começaram a encaminhar-se para a entrada do seu bloco de casernas.
- Vens? - Perguntou Macro. - Um dos guardas tem um odre de vinho decente. Desafiei-o para um joguinho de dados. Queres vir?
Cato sentiu-se dividido. Seria uma distração bem-vinda passar umas horas com Macro e os outros mas, ao mesmo tempo, sendo um prefeito, havia uma diferença de patente
que nem ele nem os legionários que constituíam a guarda do governador podiam ignorar, mesmo fora das horas de serviço. Abanou a cabeça.
- Preciso de tempo para pensar um bocado. Macro sorriu. - Estás outra vez com saudades da tua mulher.
- Macro, isso é um estado permanente. E calculo que se vá manter ainda por muito tempo.
- Depressa terás mais com que te entreter. - Macro deu-lhe um murro ao de leve no ombro, e voltou-se para seguir para o interior da caserna. Depois de o amigo ter
desaparecido no interior do edifício, Cato subiu à torre de vigia do fortim e deixou o olhar perder-se no ocidente, onde o Sol tombava sobre o horizonte ondulado.
A poucos quilómetros dali, naquela direção, ficavam os sagrados círculos de pedras, e lá perto estariam os acampamentos de todos os que ali se tinham dirigido, vindos
dos seus territórios tribais. E entre eles haveria druidas. Cato sentiu um arrepio a subir-lhe a espinha ao lembrar-se dos druidas da lua negra. Ele e Macro tinham-nos
combatido da última vez que tinham estado na Britânia. Fanáticos e destemidos, não recuavam perante nenhuma crueldade na guerra contra Roma. Se eles se tivessem
decidido a comparecer ao concílio das tribos, Cato estava certo de que seriam infatigáveis no incentivo a todos os outros para que destruíssem as legiões, mesmo
no caso das tribos que já eram aliadas de Roma. Era esse o verdadeiro perigo que os ameaçava nos dias que se aproximavam, a possibilidade de que a tentativa de Ostório
para estabelecer uma paz duradoura pudesse degenerar numa revolta generalizada contra os comparativamente poucos e já assoberbados legionários e auxiliares de que
o exército dispunha na Britânia. E a maior ameaça era a pouco credível possibilidade de que o próprio Carátaco surgisse em frente às tribos reunidas e as convencesse
a juntar-se a ele na guerra contra o invasor. Estremeceu.
- Com frio? Cato virou-se rapidamente e avistou Boudica, que lhe sorria do cimo das escadas de acesso.
- Um pouco. O dia foi longo, e estou cansado. Boudica subiu os dois últimos degraus para a plataforma, dando tempo a que Cato retomasse o controlo absoluto dos seus
nervos. Juntou-se a ele e seguiu com o olhar a direção que Cato fitara um momento antes.
- Ainda se vai tornar mais longo, parece-me. - Comentou ela. - E mais cansativo. Acho que o governador Ostório está a cometer um erro. Nunca devia ter avançado com
este encontro. Nenhuma promessa que ele possa fazer satisfará as tribos hostis e, acima de tudo, nenhuma promessa que os seus superiores em Roma algum dia pudessem
vir a aceitar.
Cato temia que ela tivesse toda a razão, mas não duvidava ainda assim da sinceridade dos esforços do governador para evitar novos derramamentos de sangue.
- Sim, isso é bem verdade. - Nesse caso, o que estamos aqui a fazer?
Cato olhou em redor, para ter a certeza de que mais ninguém escutava as suas palavras.
- Estamos aqui porque Ostório está velho e doente, desgastado pela pressão a que o cargo o submete. O que ele quer, acima de tudo, é regressar para junto da sua
família e poder passar os seus últimos dias em paz e conforto. Se tiver que enfrentar mais uma época de campanha, ele pode muito bem não lhe sobreviver. Temo bem
que esta terra o tenha quebrado.
- Nesse caso, devia partir. E levar as suas legiões com ele. Cato ficou assombrado com a veemência na voz dela. Nos dois últimos dias, a atmosfera entre romanos
e icenos tinha-se tornado mais cordial.
- Sabes que isso não vai acontecer. - Nesse caso, todos teremos que viver com as consequências. - Ripostou ela, mais calma, antes de se obrigar a sorrir. - Mas chega
desta história. Velhos amigos, velhos camaradas, devem pôr de parte os pensamentos que os dividem. Partilhámos perigos e prazeres, e tal laço não é facilmente quebrado.
Diz-me, achas que, depois de tantos anos, o Macro ainda está zangado por eu me ter tornado esposa do Prasutago? Na altura tentei fazê-lo compreender que não tinha
grande escolha.
- O Macro é o Macro. Não é próprio dele guardar rancor por uma coisa dessas. Tinha uma forte afeição por ti, sim, mas prometeste-te a outro homem e isso provocou
nele alguma mágoa e mesmo raiva, por algum tempo, mas depois passou, e atirou o assunto para trás das costas. É assim que ele vive, por escolha própria. Portanto,
duvido que te tenha ainda algum rancor, a ti ou ao Prasutago.
- Quem me dera ser capaz de ser tão filosófica. Cato riu com vontade. - Duvido que seja uma questão de filosofia, pelo menos na visão do próprio Macro. Aliás, se
o quiseres chatear mesmo a sério, é chamares-lhe filósofo na cara dele.
Boudica riu também, mas depressa voltou a uma expressão pensativa. - Ainda assim, gostava de ser capaz de pensar que o que ele sentia por mim não foi assim tão facilmente
atirado para o lado, como um trapo gasto.
Cato pressentiu o remorso na voz dela, e ao mesmo tempo percebeu, com uma ponta de culpa, que nunca lhe tinha passado pela cabeça que o amigo pudesse ter inspirado
sentimentos realmente profundos em Boudica. Macro era um excelente soldado, do melhor que alguma vez vivera, e como amigo era de uma lealdade extrema. Mas não parecia
possuir muitas outras qualidades que Cato conseguisse imaginar que pudessem ser atraentes para uma mulher que não ganhasse a vida na posição horizontal. Quase estremeceu
perante a baixeza dos seus pensamentos. Macro era o seu maior amigo. Sentia-se tão próximo dele como de um irmão ou de um pai.
Um clarão repentino desviou-lhe a atenção para uma colina baixa no horizonte, onde o brilho líquido do sol refulgia contra um céu limpo de nuvens.
- Belo. - Murmurou Boudica. - De facto. - Assentiu, mas a sua mente continuava a trabalhar a toda a velocidade. A base de uma amizade verdadeira era impossível de
definir. E o mesmo se aplicava ao amor, ao que parecia. Havia em Macro uma qualquer indefinida qualidade que atraía Boudica. Talvez isso acontecesse com todas as
pessoas; todas elas possuíam algum traço de caráter que encaixava com o de outra pessoa, a sua companheira ideal...
- Olha! - Boudica ergueu a mão e apontou para ocidente. Cato esqueceu a sua introspeção e avistou um brilho no meio da escuridão, a curta distância da crista atrás
da qual o Sol acabara de mergulhar. Logo surgiu outro, e outros se seguiram, até que as chamas tremeluzentes pareceram definir uma elipse e uma linha que se prolongava
para um lado. Os fogos tinham sido avistados por uma das sentinelas da guarnição, que fez soar o alarme, batendo com a ponta do dardo contra um pequeno caldeirão
de bronze que estava pendurado
à entrada do fortim. No instante seguinte o optio estava de pé, a gritar aos seus homens para guarnecerem a paliçada. A porta da caserna mais próxima pareceu explodir
quando Macro surgiu do interior a correr, de capacete numa mão e a armadura dependurada do outro braço. Atrás dele vinham os outros romanos, que abriram passagem
para Ostório, que surgiu ao mesmo tempo que Prasutago e os seus guerreiros deixavam os seus aposentos e corriam pela rampa interna arrelvada até chegarem ao passadiço
de madeira que ladeava as aguçadas estacas da paliçada. A sentinela continuou a fazer soar o alarme, até que Macro lhe deu um berro.
- Acaba lá com essa chinfrineira! Enquanto o último som dissonante se desvanecia, Macro colocou o capacete e enfiou-se dentro da cota de malha.
- Oh homem, informa! O que é que viste? Antes que a sentinela pudesse responder, Cato inspirou profundamente e gritou da torre.
- Fogueiras a oeste! Enquanto os últimos retardatários ocupavam os seus lugares na paliçada, Ostório chegou por fim ao passadiço, a respirar pesadamente. Os fogos,
dezenas deles, brilhavam com fulgor, tornando-se bem visíveis. E escutava-se um murmúrio baixo entre os soldados, até que um dos jovens tribunos lançou a questão.
- O que é aquilo? Parece um exército em movimento. Ostório tossiu para aclarar a garganta.
- Aquilo é Avibaruius, imagino eu. - Assim é, romano. - Concordou Prasutago, na sua voz profunda e clara. - É isso mesmo. - Olhou para cima, para a torre, e franziu
o sobrolho ao reparar na presença da esposa. Rapidamente o gigantesco guerreiro iceno trepou pela escada acima, fazendo toda a estrutura estremecer, e juntou-se
a Cato e Boudica na plataforma, que se tornou exígua. Seguiu-se uma rápida e ríspida discussão na linguagem icena, até que Prasutago se colocou entre a mulher e
o prefeito e se concentrou nas fogueiras distantes.
- Os fogos marcam a fronteira das pedras sagradas. Quando o sol morre, o fogo dá luz ao mundo. Assim que os sacerdotes dão ordem para que tal suceda.
- Sacerdotes? - Cato inspirou com assombro - Queres tu dizer druidas.
Prasutago anuiu. Quase sem dar por isso, Cato levou a mão ao peito, traçando o desenho do golpe que quase lhe custara a vida, desferido por um druida havia sete
anos. Só restava a cicatriz, mas isso não o impediu de sentir um arrepio na pele sob o tecido da túnica.
- O que significam os fogos, Prasutago? - Estão a preparar o local para o concílio. Há rituais a cumprir e sacrifícios. Para aplacar os espíritos e agradar aos nossos
deuses.
- Que género de sacrifícios? - Indagou Cato, em voz baixa, mas Prasutago não lhe respondeu. Esforçava a vista para tentar perceber mais pormenores. Por fim confirmou,
no seu latim mal amanhado.
- Em breve seremos convocados. - Tão cedo? O rei iceno encolheu os ombros. - Porque não? Tens alguma outra coisa para fazer? - Olhou significativamente para a esposa.
Boudica ripostou sem receio. - Estávamos a lembrar a última vez em que estivemos juntos. Os quatro, meu rei.
- Isso foi há muito tempo. Muito tempo. Muita coisa mudou. És a minha esposa, e rainha dos icenos.
- E a amizade? - Inquiriu Cato. - Também ela se perdeu? - Um homem que tira e volta a tirar até nada deixar, será ele um amigo?
Cato sorriu. - É de Roma que falas. Mas eu e o Macro? Alguma vez te tirámos alguma coisa? Porque não havemos de ser amigos como fomos em tempos?
Prasutago arregalou os olhos, surpreso, enquanto respondia.
- Porque vocês são romanos. - Há movimento ali à frente! - Avisou o tribuno que falara antes. - Um cavaleiro a aproximar-se.
- Obrigado, tribuno Deciano. - Replicou o governador em tom brusco. - Posso estar a ficar velho, mas ainda não estou cego.
O comandante do fortim virou-se para ele. - Senhor, as suas ordens? - Mantém os teus homens a postos na paliçada. Vamos manter-nos atentos e preparados, sim? O tipo
de soldados que nunca se deixariam apanhar de surpresa.
O optio sorriu. - Sim, senhor. O governador virou-se de novo para Prasutago. - Talvez fosse boa ideia se a vossa comitiva se mantivesse fora de vista, em vez de
dar a sensação de que estão aqui sob a minha proteção.
Prasutago rangeu os dentes e ripostou de imediato. - Os icenos não precisam de ninguém a protegê-los. - Evidentemente que não - apressou-se Ostório a confirmar,
aplacando o rei nativo. - É apenas uma questão formal. Será melhor que nenhum dos vossos pares pense que tem razões para tirar as suas próprias conclusões.
Prasutago hesitou um momento ainda, mas acabou por soltar uma ordem para os seus guerreiros, antes de se lançar para as escadas e descer da torre. Depois de um breve
olhar apologético, Boudica seguiu-o. Os nativos reuniram-se
no sopé da rampa relvada interna, escondidos da vista do cavaleiro que se aproximava. O martelar suave dos cascos chegava distintamente aos ouvidos de toda a gente
na paliçada, até que por fim o cavaleiro reduziu o andamento. Instalou-se um silêncio tenso, à medida que ele se chegava ao fortim, até se poder fazer ouvir. O vulto
tenebroso deteve-se por fim, a uns cinquenta passos do fosso, e uma voz ergueu-se, falando numa língua nativa.
- Onde está o maldito intérprete? - Inquiriu Ostório em voz baixa e tensa. - Marcómio, aqui comigo, porra. E depressa!
O intérprete abriu caminho por entre os tribunos e juntou-se ao governador.
- O que disse ele? - Deseja falar consigo, senhor. - Pergunta-lhe como sabe ele que eu estou aqui? Depois de uma breve troca de palavras, Marcómio traduziu. - Diz
que temos sido vigiados de perto desde que passámos por Calleva, senhor. Nós e o grupo dos icenos. Os outros têm estado à espera que chegássemos para dar início
às cerimónias, senhor. Por isso, solicita-nos, bem com ao rei Prasutago, que o sigamos até às pedras sagradas.
- E quem é ele? - Quis saber Ostório. - Como se chama este tipo? Do alto da torre de vigia, Cato tinha uma perspetiva melhor, e distinguia facilmente as vestes escuras
e o cabelo longo e desgrenhado do cavaleiro. Já sabia a resposta antes mesmo de o intérprete abrir a boca.
- É um druida, senhor. E diz que o seu nome é conhecido apenas pelos que o seguem, tal como é seu uso. E, hã, solicita que o sigamos agora mesmo com todo o grupo.
- Solicita? Suspeito bem que ele tenha posto a questão em termos mais fortes. Preciso que traduzas tudo da forma mais literal que te for possível. Diz-me as palavras
exatas que ele pronuncia, e deixa comigo as preocupações com os segundos sentidos dessas palavras.
- Sim, senhor. - Diz-lhe que partimos de imediato. - Ostório virou-se para os seus oficiais. - Que ninguém olvide o que eu disse. Nenhum homem fará ou dirá o que
quer que seja sem a minha ordem expressa.
- Senhor, e se alguma coisa lhe acontecer? - Inquiriu o tribuno Deciano.
- Nesse caso, creio que os vossos instintos entrarão em ação. - Respondeu Ostório com um sorriso triste. - A cadeia de comando é bem clara. Se eu tombar, o prefeito
Cato será o mais antigo oficial presente. Sigam as suas ordens.
Vários dos homens olharam na direção de Cato, que descia da torre. Embora estivesse perfeitamente ciente dos seus deveres, a possibilidade real de se ver atirado
para o comando no que só poderia ser uma situação desesperada não deixava de lhe causar ansiedade.
Os cavalos, habituados à rotina de se verem livres das selas e alimentados ao fim do dia, resfolegaram e fungaram em protesto quando se viram de novo sob o peso
das selas e do restante aparelho. Décimo tratou das mulas, aliviado por não ter que acompanhar os seus amos naquela sortida perigosa. A noite já tombara quando por
fim os portões do fortim se abriram e Ostório liderou a coluna ao encontro do druida que os guiaria. Este não se tinha movido, e continuou imóvel até Ostório se
aproximar e refrear o cavalo. Depois de uma pausa, o druida deu um estalo com a língua e fez avançar a montada a passo. Cato e Macro seguiam logo atrás do governador
e do intérprete, e esforçavam-se por distinguir as feições do druida, que olhava com desprezo para Ostório. De perto tinha um ar ainda mais selvagem, mais desprendido
do mundo que o rodeava, de cabelo hirsuto e vestes negras.
- Se aquele acha que o olhar fixo me vai assustar, será melhor que pense noutra. - Comentou Macro em surdina. - Se não fossem as ordens, este não me escapava.
- É cedo, Macro. - Sussurrou Cato. - Se não me engano na avaliação da situação, em breve terá a sua oportunidade.
O druida deixou de contemplar o governador e começou a percorrer a coluna, devagar. Ostório manteve o olhar fixo no horizonte, disposto a não permitir que o escrutínio
do druida o perturbasse. Enquanto o sacerdote nativo passava junto a Macro e Cato, o veterano lançou-lhe um sorriso trocista, e o druida ripostou com um grunhido
semelhante a uma maldição lançada sobre o oficial romano. Prosseguiu, passando pelos tribunos que imitavam o seu comandante e tentavam a todo o custo disfarçar a
ansiedade. Por fim, o druida parou à frente de Prasutago e da sua comitiva. Deu-se um longo silêncio até que o druida cheirou o ar, antes de torcer o nariz com ar
de nojo e cuspir no chão à frente do rei iceno. Só então falou.
- O que disse ele? - Quis saber Ostório, em tom calmo. - Afirmou que os icenos têm passado demasiado tempo na companhia dos romanos. E que por isso, hã, começam
a cheirar tão mal como estes.
Macro soltou uma risada. - Essa é muito boa. Vinda de um bárbaro de cu peludo que se passeia todos os dias por pântanos fedorentos.
Cato deitou-lhe um olhar de aviso. - Chhhh... O druida soltou de repente
um grito agudo, fez a montada escanzelada rodopiar, e regressou para a frente da coluna. Fez um gesto a Ostório para que o seguisse e afastou-se a trote do fortim,
na direção das fogueiras distantes. O ar noturno ficou repleto do ruído dos cascos e do tilintar dos arreios dos cavalos e das armaduras dos seus cavaleiros.
- Ele vai demasiado depressa. - Protestou o tribuno Deciano. - Nesta escuridão, é uma loucura completa.
- Se ele consegue, nós também temos que conseguir. - Ripostou Cato.
Depressa a relva que percorriam deu lugar à terra batida de um caminho utilizado com frequência, e Cato compreendeu que deviam ter alcançado a estrada que vinha
de Calleva, o que fez diminuir um pouco a sua preocupação com a segurança dos animais.
Um pouco adiante, a estrada passou por um pequeno bosque, antes de subir até ao cimo de uma crista. O druida, conhecedor do caminho, parou para lhes permitir chegarem
até junto dele, e quando o cavalo de Cato reduziu o andamento e chegou ao cimo da colina, o prefeito avistou as pedras sagradas de Avibarius no vale pouco profundo
que se abria à sua frente. O espetáculo fê-lo perder o fôlego. Uma alameda de fogueiras, com uns oitocentos metros de comprimento e cerca de vinte de largo, estendia-se
ao longo de uma faixa de terreno aplanado. De ambos os lados eram discerníveis pilares de pedra, iluminados em tons vermelhos pelas fogueiras acesas nos espaços
que os separavam. Ao fim da álea de fogo havia um círculo de terra, no interior do qual se viam mais menires, e sobre o qual havia outras fogueiras. No ponto onde
a avenida se encontrava com o anel de terra situava-se uma entrada para o redondel, e no ponto oposto do círculo encontravam-se dois obeliscos monumentais, com uma
laje a unir-lhes os cimos. À sua frente ficava um grande altar de pedra, quase invisível mesmo à luz das fogueiras, devido ao sangue seco que o escurecera ao longo
de incontáveis anos de utilização. Uma fila contínua de gente descia a avenida, em direção à abertura do círculo. O druida apontou para o começo da alameda, onde
centenas de pessoas e cavalos se amontoavam num espaço aberto, e incitou a montada.
Prosseguiram, descendo a encosta suave, e depressa se juntaram à multidão, que se abriu de imediato ao avistar o druida e os que o seguiam. À medida que passavam
por entre os nativos, Cato sentia centenas de olhos a observarem-nos. Mas não houve qualquer saudação, nem quaisquer gritos de hostilidade lançados ao governador
romano e à sua comitiva, apenas um pesado silêncio que os envolveu enquanto se dirigiam ao início da avenida de fogo. O druida fez alto ao chegar a esse ponto, e
deixou-se escorregar para o solo pela garupa do cavalo. Vários jovens acorreram a pegar nas rédeas das montadas dos recém-chegados, e assim que o governador romano
e os outros se aprestaram, o druida fez um gesto para que prosseguissem, soltando um curto brado e avançando a pé pela avenida.
A maioria dos que tinham comparecido para o concílio já tinham entrado para o círculo, e só a retaguarda da procissão ainda percorria a avenida de pedras e fogo.
O druida caminhava apressado, mas Ostório conduziu os seus homens mais devagar, recusando-se a ceder o controlo ao druida. Ao olhar para trás, este reparou que se
tinha criado um espaço, e não escondeu a raiva perante a situação, mostrando os dentes. Parou e esperou, e acabou por adotar o passo estabelecido pela comitiva romana.
Cato apercebeu-se dos vultos que os rodeavam, quase invisíveis por estarem no limite da área iluminada pelas fogueiras. O silêncio e o cenário espetacular preenchiam-lhe
o espírito com maus prenúncios.
- Isto não me agrada. - Resmungou Macro em voz baixa, com a mão a deslocar-se involuntariamente para o punho da espada. Obrigou-se a deixá-la pender ao seu lado.
- Se houver confusão, estamos muito longe dos cavalos, mesmo que consigamos abrir caminho.
- Se houver confusão, não conseguiremos sequer sair do círculo. - Comentou Cato.
- Obrigadinho. Vais ser uma verdadeira inspiração para os homens da tua coorte.
- Meu amigo, uma verdade amarga é bem melhor do que a mais doce das mentiras.
- Pffff! - Macro cuspiu com desdém e prosseguiu em silêncio, mantendo-se atento ao que se passava nos flancos do grupo. Por fim, aproximaram-se da abertura do círculo,
e Cato reparou que estava decorada com o que pareciam grandes pérolas. Só quando se aproximaram mais é que a macabra realidade se tornou evidente: eram caveiras
penduradas em pregos.
- Oh, meu doce Júpiter... - Murmurou Deciano. - Que género de lugar é este? Um templo, ou um matadouro?
- De facto, um misto dos dois. - Respondeu-lhe Marcómio, em surdina. - De tempos a tempos os nossos deuses exigem sacrifícios de sangue.
Deciano olhou para o intérprete com uma expressão de verdadeira repulsa.
- Bárbaros. - Romano, ninguém te convidou a vires para cá. - Nesse caso, ainda bem que viemos. É tempo de pôr fim a estas atrocidades.
Ostório olhou para trás, furibundo. - Calados! Ninguém abre a boca. Passaram pela entrada, um portão de carvalho com quase cinco metros de altura. Devia haver ali
bem mais de cem caveiras espetadas nas tábuas, calculou Cato, e quase podia sentir os espíritos dos mortos a contemplá-lo, com intenções sinistras e hostis a todos
os que chegavam à Britânia sem serem convidados. O círculo abria-se à sua frente, com uns cem passos de diâmetro. Os homens das tribos que tinham chegado primeiro
tinham tomado lugares em redor do perímetro. O druida apontou para o outro lado do redondel, à esquerda do altar, onde havia um espaço vazio, e disse umas breves
palavras ao intérprete.
- Senhor, ele informa que são aqueles os nossos lugares. E que os icenos devem ficar junto a nós.
Ostório assentiu. - Muito bem. Todos os rostos se viraram para os recém-chegados, não os perdendo de vista enquanto atravessavam a extensão de terra batida nua no
centro do local sagrado.
- As tribos das montanhas estão presentes? - Indagou Cato junto de Marcómio. - Os ordiovicos e os siluros?
O intérprete avaliou os guerreiros que orlavam o círculo. Cato tinha reparado em diferenças subtis nas roupas e no arranjo do cabelo entre os diversos grupos.
Marcómio abanou a cabeça. - E também não há sinais do Carátaco. O que não é grande surpresa, se considerarmos a vontade que vocês romanos têm de lhe meter as mãos
em cima.
- O governador deu a sua palavra de que seriam concedidos salvo-condutos a todos. Até mesmo ao Carátaco.
- Garantias que facilmente são quebradas. Cato deitou uma olhadela a Ostório. - Mas não por todos os romanos, pelo menos. Uma figura surgiu entre os pilares rochosos
por trás do altar. De negro, dos ombros à ponta dos pés, o druida ostentava uma espécie de capacete de cabedal, de onde irrompia um conjunto de hastes, fazendo lembrar
os galhos de uma árvore em pleno inverno. Quando os romanos e os icenos assumiram os seus lugares, o druida que os tinha levado até ali apressou-se a reunir-se aos
que aguardavam junto do altar. Estabeleceu-se o silêncio até que o druida ornado avançou para o altar, lentamente, ergueu as mãos ao ar, de dedos bem abertos, fazendo
lembrar, com as unhas compridas, garras vermelhas, iluminadas pelos fogos que ardiam ao cimo da muralha arenosa que os rodeava. Começou então a falar, ou melhor,
a entoar uma lengalenga em tom agudo, a que de tempos a tempos os outros druidas se juntavam, em coro.
- O que dizem eles? - Perguntou Macro a Marcómio, num sussurro. - É uma prece para que todos os que aqui estão reunidos se mostrem sábios, e cumpram a vontade dos
respetivos deuses. O druida supremo pede que os espíritos dos deuses falem através de nós... E pede que tal suceda em troca da oferenda.
Cato virou-se para ele. - Que oferenda? Antes que Marcómio pudesse elucidá-lo, outro vulto surgiu de entre os pilares, um rapaz, ainda mal um adolescente, que envergava
uma veste branca e uma coroa de azevinho em volta do pescoço. Tinha os olhos quase esbugalhados, e os lábios tremiam-lhe enquanto avançava lentamente para o altar.
9
A trás do jovem vinha um homem coberto por um manto ricamente debruado. Mantinha uma mão no ombro do miúdo e a outra pendia a seu lado, inerte. Lutava visivelmente
para conter a mágoa. Quando o rapaz alcançou o altar, o homem avançou, deu-lhe um beijo terno no cimo da cabeça e ficou imóvel por um momento, até que o druida supremo
lançou uma ordem ríspida. O homem recuou, temeroso, de boca aberta, como que querendo lançar um aviso ao jovem. Mas nenhum som foi emitido, e depressa dois druidas
lhe seguraram os braços e o imobilizaram.
- Por Hades, o que se passa? - Grunhiu Macro. - Espero bem que não seja aquilo em que estou a pensar. Marcómio, diz-me.
- É o sacrifício exigido pelos deuses, sim. Uma criança imaculada. Aquele homem é o pai.
- Como? Que raio de pai é que se disporia a participar neste maldito espetáculo de horror?
- Romano, é uma tremenda honra ser escolhido. Como vês, o rapaz avança de moto próprio. E quando tudo tiver terminado o pai será visto com enorme respeito.
- Como pode um homem ser respeitado depois de levar o próprio filho ao matadouro?
Na voz de Macro havia um tom de genuína raiva e exasperação, e Cato conhecia suficientemente bem o amigo para temer que a qualquer momento ele se adiantasse e interrompesse
o ritual, sem pensar nas consequências.
- Macro, pelos deuses, controle-se. - Cato fechou os dedos em torno do pulso do centurião, que se preparava para empunhar a espada. - Não há rigorosamente nada que
possamos fazer. Não podemos alterar o que se vai passar.
- Isso é o que vamos ver! - Rosnou Macro, soltando o braço. - Não. - Cato colocou-se à frente do amigo, bloqueando-lhe a vista do altar. - Mantenha-se na formação.
É uma ordem.
Macro olhou-o com uma expressão de incredulidade. - Uma ordem? Cato... Miúdo, não podes estar a falar a sério. A amargura dilacerava as entranhas de Cato enquanto
escutava o tom de súplica na voz do amigo. Uma parte de si queria dizer-lhe que compreendia - que partilhava - a repulsa e o desejo de interromper aquela cerimónia
macabra. Mas outra parte era o soldado, o homem que obedecia a ordens. Contudo, foi a necessidade de proteger o amigo que o decidiu. Virou-se para dois dos guardas
do governador.
- Segurem-no. Se ele se debater ou gritar, ponham-no a dormir. Um dos legionários abanou a cabeça, estupefacto. - Senhor? - Faz o que digo! - Ripostou Cato, furioso.
- Fá-lo! Antes que ele nos condene a todos.
Os legionários agarraram Macro como lhes fora ordenado e seguraram-no com firmeza, embora o veterano estivesse demasiado chocado para conseguir reagir. Limitou-se
a olhar para Cato.
- Porquê? - Nada podemos pelo miúdo. - O que se passa aqui? - Indagou Ostório, enquanto abria caminho por entre o grupo, até à origem da comoção. A atenção dos legionários
foi perturbada e Mácro aproveitou para se libertar com um puxão. O governador lançou um aviso em voz baixa. - Bocas caladas e todos quietos, malditos sejam. Prefeito,
fala, homem. O que se passa aqui?
Cato virou-se para o seu superior. - Está tudo bem, senhor. Não é assim, centurião Macro? Os olhos de Cato pediam-lhe uma confirmação, mas Macro respondeu com um
olhar de desafio que durou uns breves momentos, antes de baixar a cabeça e deixar descair os ombros, desesperado e impotente. Cato virou-se, de forma a obstruir
de novo a visão de Macro. O rapaz tentava subir para o altar com dificuldade, embora Cato não pudesse estabelecer se por causa do medo ou da falta de forças. O druida
avançou, pegou nele pela cintura e colocou-o sobre o cimo da pedra antes de o forçar a ficar deitado, com os braços abertos. Virou-lhe a cabeça de lado, de forma
a que ele olhasse para o centro do círculo, e então ergueu os braços ao céu, lançando ao mesmo tempo para trás a cabeça com as suas hastes ornamentais e entoando
um cântico. A voz soava rica e melódica, e as palavras eram proferidas numa cadência ritmada. Uma frase era repetida, os outros druidas juntavam-lhe a sua voz, e
depois todos os nativos presentes a entoavam - até mesmo o rapaz deitado no altar, de olhos esbugalhados mas incapaz de travar o movimento dos seus lábios, que pareciam
ter adquirido uma vida própria. O som cresceu em volume até que o cântico se tornou ensurdecedor, e Cato sentiu os ouvidos assaltados pelo alarido que lhe penetrava
no crânio, no corpo e em todos os ossos, até que se sentiu praticamente consumido pelo ritmo hipnótico.
Então, quando o cântico parecia ter atingido o seu paroxismo, o druida supremo dobrou-se e voltou a erguer-se, com uma adaga de lâmina fina segura nas duas mãos.
Ergueu-a lentamente, e o aço polido da lâmina refletiu o brilho das chamas. Todos os olhos estavam fixos no espetáculo que se desenrolava no altar. Cato espreitou
na direção de Macro e viu-lhe o queixo cerrado e a mão esquerda a segurar com toda a força o punho direito, como que para o impedir de se dirigir à pega da espada.
Enquanto voltava a focar o altar, o cântico interrompeu-se abruptamente, como se o fôlego tivesse sido sugado dos pulmões de cada um dos nativos precisamente no
mesmo instante. O silêncio que imperou era tão assombroso como o som que o precedera, interrompido apenas pelo restolhar de uma leve brisa no arvoredo, e o quase
sumido crepitar das fogueiras.
O druida supremo lançou então um grito estridente, quase inumano, e fez descer a adaga com força selvagem. A ponta aguçada mergulhou na túnica branca sobre o coração
do rapaz, com tanta força que fez com que os seus braços e pernas se agitassem sem sentido e o ar lhe explodisse dos pulmões com um som algures entre o grito e o
grunhido animal. Depois a cabeça do miúdo foi lançada para trás, e a boca abriu-se-lhe num breve grito, enquanto ele se agitava debaixo da lâmina que o prendia ao
altar. O sangue ensopou rapidamente o tecido que o cobria e criou uma poça sobre a superfície da pedra, até que uma mancha escura começou a precipitar-se sobre a
borda e a escorrer pelos lados do altar. O rapaz imobilizou-se por fim, e os nativos entoaram um murmúrio sibilante que marcava a sua morte.
- Sa... sa... sa. - Filhos da puta, monstros. - Rosnou Macro entre dentes. - Doentes, cabrões degenerados.
Cato avisou-o com um silvo. Enquanto todos olhavam, o druida supremo começou a trabalhar com a faca, abrindo o peito da vítima, e Cato avistou pequenos rolos de
vapor a voltearem pelo ar gélido. O druida debruçou-se e meteu uma mão na cavidade, até arrancar um naco sangrento e o examinar de perto. Era o coração do jovem,
apercebeu-se Cato, enquanto a garganta se lhe apertava numa náusea. Após uma pausa demorada, o druida pousou o órgão sanguinolento e olhou em volta, para toda a
audiência, antes de se pronunciar. A assembleia de nativos respondeu com um audível e coletivo suspiro de alívio.
- O druida supremo anuncia que o coração é bom e forte, e que constitui uma adequada oferta aos deuses. - Explicou Marcómio aos romanos, em voz baixa. O druida virou-se
para um pequeno braseiro perto do altar, e lançou o coração às chamas. O fogo avivou-se de imediato, soltando uma grande nuvem de fumo que se elevou no céu noturno.
Algum truque, percebeu Cato. O druida lançara dissimuladamente qualquer coisa ao fogo, junto com o coração. Ainda assim, o efeito não deixava de ser impressionante,
e conseguiu obter o impacto esperado na audiência, que se encolhera quase por instinto perante o clarão súbito. Só então o romano se apercebeu de que o druida supremo
tinha desaparecido ao mesmo tempo, como se o solo se tivesse aberto e o tivesse engolido. Levantou-se um murmúrio ansioso, até que o druida que tinha escoltado os
romanos e os icenos até ao círculo sagrado avançou e ergueu as mãos para aplacar a multidão.
- Foi dito que o encontro das tribos pode ter início. O governador assentiu, e concentrou-se no que se passava, enquanto o druida prosseguia e Marcómio traduzia
o discurso aos representantes tribais.
- Está a dizer que lhes foi pedido que aqui viessem para discutir os termos para uma paz duradoura entre Roma e os reinos tribais da Britânia. Algumas tribos já
concluíram tratados de aliança com Roma, enquanto outras continuam a resistir. Mesmo sem a presença de Roma, há velhas questões entre várias tribos, que ao longo
do tempo provocaram discussões e conflitos. Lembra a todos os que aqui se juntaram que este é o terreno consagrado dos druidas, e que só eles têm o direito de derramar
sangue no interior do círculo. Além disso, Roma jurou conceder salvo-conduto a todos os que aqui vieram, tanto aliados como inimigos, e não poderão ocorrer lutas
nem desafios de honra enquanto o concílio estiver reunido. Quem quer que quebre estes termos cobrir-se-á de grande desonra, bem como ao seu povo, e não deixará de
sentir a ira dos deuses em consequência. Se algum dos presentes recusar estas condições, é livre de partir...
O druida calou-se e esperou por alguma resposta que não surgiu; a audiência manteve-se imóvel.
- Muito bem. Assim sendo, dou a palavra ao governador da parte das nossas terras ancestrais, que hoje em dia é conhecida como a província romana da Britânia, para
que se dirija às tribos.
O druida inclinou a cabeça, designando Ostório, e recuou para um dos lados do altar. O governador fez um gesto ao intérprete para que o acompanhasse e encaminhou-se
a passo firme para o centro do círculo sagrado. Tudo estava em silêncio quando ele se deteve na posição pretendida, e olhou em volta para os rostos que o observavam.
Não havia gritos de apoio, nem vaias ou insultos raivosos. Apenas silêncio. Ostório limpou a garganta e começou, e o tradutor desatou a entoar a rítmica cantilena
da língua céltica para que o concílio apreendesse o significado das palavras do romano.
- Eu sou Ostório Escápula, pretor de Roma, governador da Britânia e comandante de todas as forças terrestres e navais que se encontram presentemente na ilha. Dou-vos
as boas-vindas. A todos, sem exceção. Até aos representantes dos siluros e dos ordovicos, inimigos jurados de Roma e de tudo o que Roma representa. - O governador
fez uma breve pausa. - Já passaram quase oito anos desde que as legiões desembarcaram nesta terra. Ao fim de poucos meses já tínhamos derrotado o mais formidável
exército que as tribos conseguiram reunir para nos combater, sob o comando de Carátaco. Não uma, mas três vezes. E desde aí, nada conseguiu suster o poder de Roma.
Não os vossos exércitos, por muito bravos que os vossos guerreiros sejam. Não as vossas colinas fortificadas, por muito formidáveis que possam ter parecido aos vossos
olhos. Não conseguem derrotar-nos numa batalha, por muito corajosos que sejam. Os nossos soldados estão mais bem treinados, e melhor equipados. Triunfaram sobre
os melhores combatentes de Cartago, da Grécia e da Gália. Combatemos nas mais altas montanhas, penetrámos nas densas e escuras florestas da Germânia, e nenhum rio
se mostrou demasiado bravio ou largo a ponto de não conseguirmos cruzá-lo com uma ponte em poucos dias. Nada interrompe a nossa marcha, mesmo que a demore. Uma vez
dada a ordem pelo nosso Imperador, só um resultado é possível: a vitória. É assim que as coisas são. Roma é excelente na arte da guerra. O preço de nos desafiarem
é verem as vossas cidades, povoações e quintas destruídas e queimadas. Os vossos guerreiros mortos, as vossas mulheres e crianças levadas em correntes para uma vida
de escravatura... Todavia, sendo tão bons na guerra, somos também excelentes na paz. Roma traz ordem e prosperidade a todos os que acolhem o nosso abraço, se tornam
nossos aliados e aceitam a nossa proteção. Sim, há taxas e impostos. Mas tal é o custo de viver em paz. Aceitem as nossas leis, os nossos costumes e regras, e a
seu tempo aprenderão que a via romana é o vosso futuro, e a melhor para os vossos interesses.
Um guerreiro de um dos contingentes tribais deu um passo em frente, um indivíduo alto e entroncado. Falou em tom amargo, apontando o governador com o dedo esticado
para vincar bem as suas palavras.
- É Venúcio, dos brigantes. - Apontou o tradutor. - Marido da rainha Cartimandua.
- É portanto o rei? - Não, senhor. É a rainha quem governa a tribo. Ele é o consorte, e não partilha a apreciação por Roma que ela demonstra.
- Compreendo. E o que tem então o consorte a dizer? - Está zangado perante a afronta que as suas palavras constituíram. Que fosse capaz de dizer às tribos, aqui
no terreno que lhes é sagrado desde tempos imemoriais, que devem adotar os costumes romanos. Acusa-o de nos querer forçar a abdicar dos nossos deuses.
As palavras de Venúcio tinham levantado um murmúrio zangado na multidão, e Ostório ergueu a mão a pedir silêncio. Quando o murmúrio acalmou, voltou a falar através
do intérprete.
- Roma não tem qualquer intenção de vos afastar dos vossos deuses, ou de profanar os vossos locais sagrados. São livres de manter as vossas crenças. Ou de escolher
as nossas, como quiserem. Podem adotar os nossos costumes ou manter o vosso atual estilo de vida. A escolha é vossa. Têm apenas que aprender a viver debaixo da nossa
autoridade e das nossas leis. É um pequeno preço a pagar para pôr fim ao terrível conflito destes últimos anos. E ao que existia antes disso, as contínuas guerras
e assaltos que ocorriam entre as vossas tribos.
Venúcio escutou as palavras e ripostou de imediato, no mesmo tom irado.
- Diz ele que é essa a forma de vida das tribos. Se assim não for, como poderá um guerreiro provar o seu valor? Tem que demonstrar coragem e capacidade de combate.
Se lho tirarem, não lhe deixam qualquer propósito na vida.
Ostório replicou com firmeza. - Os guerreiros deverão encontrar novos propósitos na vida. Terão que aprender a ser lavradores, ou então poderão perfeitamente alistar-se
e servir Roma nas fileiras das nossas unidades auxiliares. É esse o único futuro que os espera. Devem aceitar a verdade. Os vossos guerreiros têm que abandonar os
velhos costumes, ou morrer em combate contra as legiões.
Venúcio lançou uma série de gargalhadas secas. - Diz que não lhes estás a oferecer qualquer escolha. - Pelo contrário. Ofereço-lhes uma escolha entre a vida ou a
morte certa.
Quando as palavras do governador foram traduzidas, ouviram-se gritos de protesto e brados irados vindos de todo o círculo, e Cato temeu que o seu superior estivesse
à beira de levar os lideres tribais a um ponto de não retorno. Nesse momento, outro homem adiantou-se. Ergueu a mão e solicitou a atenção de todos. De constituição
sólida, tinha-se deixado engordar, e as maçãs do rosto descaíam-lhe pesadamente, orladas por uma barba bem cuidada. Embora usasse roupas nativas, uma capa e calças
de lã, por baixo tinha também uma túnica de estilo romano, e tinha o cabelo muito mais curto do que os outros nativos presentes. Avançou com confiança para o centro
do círculo e esperou que se fizesse silêncio antes de tomar a palavra.
- Por Hades, quem é aquele palhaço? - Quis saber Macro. - Essa é fácil. - Indicou Cato. - Aposto que é o Cogidubno, dos regnos.
- Aquele que se veio oferecer a nós antes mesmo da primeira bota romana ter pisado o solo da ilha?
- Esse mesmo. Macro reparou nos olhares de desprezo nas faces de muitos dos outros nativos.
- Quem me dera que ele não falasse para defender as nossas posições. O homem no centro do círculo discursou com uma voz clara e profunda; o tradutor explicou o que
ele dizia.
- Em primeiro lugar, queria oferecer ao governador a minha mais sincera gratidão, por nos oferecer esta oportunidade para estabelecer uma paz duradoura... Todos
vocês me conhecem. Sou o rei Cogidubno. Quero falar com clareza, quero dizer toda a verdade. Também eu fui educado como um guerreiro, e conduzi os meus homens ao
combate em diversas ocasiões. Não preciso de provar o meu valor para dar peso às minhas palavras. Estou aqui para dar o meu apoio aos argumentos apresentados pelo
governador Ostório Escápula. Roma tem demonstrado ser uma amiga poderosa, e uma aliada para mim e para o meu povo. Posso testemunhar que beneficiámos imenso com
a vinda de Roma, e o que é verdade para os regnos pode sê-lo também para qualquer tribo que aceite a mão amiga que o governador lhe estende.
- Traidor! - Gritou uma voz em latim, antes de repetir o epíteto na língua nativa.
Cogidubno franziu o sobrolho enquanto se virava, como toda a gente, para a origem do grito acusatório. As fileiras nativas agitaram-se, e por fim um guerreiro de
porte altivo abriu caminho até à frente. Vestia uma capa com capuz, e lançou-o para trás, revelando o longo cabelo claro. Levantou-se de imediato um burburinho excitado
na multidão. Marcómio abanou a cabeça, atónito.
- Carátaco...
O velho inimigo de Roma avançou e deteve-se à distância de uma espada de Cogidubno. Contemplou o rei dos regnos com desprezo, de punhos na cintura. Soltou então
a voz, que se escutou límpida até nos mais distantes recantos da área, enquanto Marcómio traduzia para os romanos.
- Beneficiaste, de facto. Todos nós sabemos do belo palácio que os romanos te estão a construir. Um canil de luxo para o cãozinho preferido do Imperador. É o que
és. Um rafeiro, meio bretão e meio romano, a pedinchar migalhas à mesa do teu senhor. Vendeste a tua honra por futilidades, Cogidubno, e que a vergonha te seja eterna.
O indigitado abriu a boca para protestar, mas o outro homem deu um passo ameaçador na sua direção, e ele encolheu-se e recuou na direção do seu grupo. Carátaco deitou-lhe
mais um olhar ameaçador e depois fez um gesto largo com a mão, como se afastasse um inseto irritante antes de falar à multidão.
- Todos vocês me conhecem. Todos sabem que combato os romanos desde a primeira hora. Nunca cedi perante o inimigo, o nosso inimigo. É pela nossa liberdade que combato
há tanto tempo. Enquanto os estandartes da águia romana e das suas legiões flutuarem sobre as nossas terras, não seremos mais do que escravos. É essa a forma como
as coisas são. O governador romano diz-nos que temos que mudar. Temos que esquecer quem somos e tornarmo-nos parte do Império romano. Mas será assim tão simples
abandonar tudo aquilo que somos? - Levou uma mão ao peito. - Eu sou Carátaco, rei dos catuvelaunos. E mesmo que o meu reino já não exista, trago-o comigo no coração.
O meu povo, a nossa história, toda a honra que conquistámos em combate, tudo isso me ocupa o coração, e vivo apenas para o dia em que os romanos serão empurrados
para o mar, como lhes sucedeu anteriormente, quando o seu grande general Júlio César tentou uma primeira vez desapossar-nos da nossa terra. E esse dia virá, creio-o
com tanta firmeza como aquela que dedico aos nossos deuses. - Apontou o dedo a Ostório. - O governador romano diz-nos que devemos abandonar os nossos costumes ou
morrer em combate por eles. O que nos oferece é de facto uma escolha simples, entre manter a nossa honra ou submeter-nos à escravidão dos cães. Por mim, escolho
a honra e a liberdade!
Fez uma pausa para dar mais efeito às palavras que acabara de proferir. Alguns de entre a multidão soltaram gritos de apoio, mas muitos outros continuaram em silêncio,
à espera que prosseguisse.
- O governador diz-nos que a nossa luta terminará inevitavelmente em derrota. É certo que fomos derrotados nas primeiras batalhas, mas a nossa vontade de resistir
persiste. Há já muitos anos que desafiamos Roma. Abandonámos o campo de batalha, sim, porque escolhemos outro tipo de guerra. Atacámos os postos avançados dos romanos,
queimámos os seus abastecimentos, destroçámos as suas patrulhas. Devagar mas seguramente, continuamos a corroer a força das poderosas legiões romanas, desgastando-as
a pouco e pouco. E entretanto temos também aumentado o nosso poderio e empreendido ações cada vez mais ousadas contra o nosso inimigo comum. E para marcar esse facto,
tenho uma oferta para vós.
Virou-se e fez sinal ao bando dos siluros. Um pequeno grupo de homens avançou, dois deles a segurar um terceiro com a cabeça coberta por um capuz. O homem cambaleou,
como se estivesse bêbado, e os outros seguraram-no e quase que o arrastaram até ao centro do círculo, por entre o silêncio da assistência. Os três homens detiveram-se
em frente a Carátaco, que se debruçou e afastou o capuz de forma a revelar um cabelo escuro e encaracolado sobre um rosto magro e de linhas finas, no qual se viam
duas manchas escuras e cicatrizadas que marcavam o lugar onde antes tinham estado os olhos do indivíduo. Ao sentir o capuz a ser-lhe tirado, o homem estremeceu visivelmente
e abriu a boca para soltar um gemido gutural, um quase animal sinal de pânico.
- Cortaram-lhe a língua. - Comentou Macro. - Seja ele quem for. Cato engoliu em seco. - Depressa o saberemos. Carátaco deu ordens para que o homem fosse libertado,
e empurrou-o para junto dos romanos com tanta força que ele tropeçou e caiu de mãos e joelhos no solo, lançando um gemido surdo de dor, antes de avançar a apalpar
o terreno de terra batida, tentando afastar-se das sinistras gargalhadas de Carátaco e dos seus companheiros. O comandante inimigo virou-se para Ostório e a sua
comitiva, e fez um floreado com as mãos.
- Devolvo-to. Fizemo-lo prisioneiro há alguns meses, em conjunto com mais alguns que já seguiram o seu destino. Este homem foi levado de aldeia em aldeia, e muito
maltratado nessas viagens. Uma pena, já que estou certo que tinha à sua frente um futuro brilhante. Mas era necessário demonstrar que os homens das legiões são feitos
de carne e osso como todos nós, e que podiam ser vergados. Mesmo homens como o vosso centurião Querto, de quem trataremos a seu tempo. Por agora, digamos que nos
fatigámos de usar este tribuno para nossa diversão, e que chegou a hora dele regressar para junto dos seus camaradas. Não é assim, tribuno Marcelo?
Caminhou de novo até junto do cativo indefeso, e com a bota empurrou-o para junto do governador, fazendo-o cair de rosto no chão. Uma gargalhada cruel soltou-se
de algumas secções das tribos reunidas. Outros contemplaram a cena em choque, temendo a inevitável ira dos romanos na reação àquele ultraje. O governador Ostório
tinha os lábios cerrados numa fina linha, lutando para controlar a fúria. Virou-se para os seus homens e deu ordens num tom calmo e frio.
- Peguem-lhe. Tirem-no daqui. Macro foi o primeiro a responder, avançando de queixo firme, e Cato seguiu-o. O centurião baixou-se e pegou com gentileza no braço
do tribuno. O outro homem estremeceu e recuou instintivamente, enquanto soltava novo gemido sem sentido.
- Senhor, vamos lá a pôr de pé. - Disse-lhe Macro em tom neutro, apesar de se sentir angustiado até ao âmago perante as feições arruinadas do rosto cego que se virou
para ele. Cato pegou-lhe no outro braço e, entre os dois, levantaram Marcelo e levaram-no para junto dos outros tribunos e dos guardas que contemplavam a cena desgostosos.
- Acabou o tormento, senhor. - Prosseguiu Macro. - Está de novo com os seus.
Cato chamou dois dos guardas. - Venham cá. Cuidem do tribuno. Levem-no imediatamente para o forte e tratem de lhe cuidar das feridas e de o alimentar.
Um dos legionários anuiu de imediato; ele e um camarada tomaram o lugar dos oficiais e levaram o tribuno pela periferia do círculo. Macro seguiu-os com o olhar por
um momento antes de sussurrar.
- Se alguma vez me acontecer uma coisa assim, jura que me cortas o pescoço.
- E depois o que digo à sua mãe? Macro virou-se para o amigo com uma expressão lúgubre. - Cato, estarás a poupá-la a um destino cruel, bem como a mim mesmo. Promete-mo.
Cato anuiu. - Como queira. - Jura-o! Cato foi surpreendido pela intensidade do brilho nos olhos de Macro. - Pela minha vida, assim farei. Macro deixou escapar o
ar que retera nos pulmões. - E eu farei o mesmo por ti.
Cato franziu um sobrolho face ao aparente à-vontade com que Macro se dispunha a pôr-lhe termo à vida. Mas nesse momento a imagem da face arruinada do tribuno veio-lhe
à mente, e sentiu um nó frio na boca do estômago ao imaginar-se no seu lugar, de regresso a casa inválido e inútil, e do olhar de horror, nojo e piedade que distorceria
a face de Júlia quando o visse. Mesmo que ele não estivesse em condições de o verificar, escutá-los-ia sem dúvida na voz dela. Talvez houvesse uma mulher à espera
de Marcelo em Roma, refletiu. Condenada a experimentar na realidade aquilo que acabava de imaginar.
Carátaco tinha-se permitido dar tempo ao seu pequeno teatro, afastando-se para o lado. Voltou por fim a ocupar o centro do círculo e continuou a dirigir-se ao concílio.
- O tribuno comandava quase um milhar de legionários. Todos foram mortos ou capturados num único ataque. Se uma coluna tão poderosa pôde ser aniquilada, tenho grandes
dificuldades em partilhar da certeza expressa pelo governador sobre o triunfo de Roma neste conflito. Não há nenhum posto na fronteira com as terras dos siluros
e dos ordovicos que esteja a salvo do meu exército, nem qualquer coluna de abastecimentos; e nenhuma estrada oferece segurança aos romanos e aos seus aliados. E
assim será de hoje em diante, até que chegue o dia em que teremos esgotado a vontade do nosso inimigo para continuar a luta. Até mesmo a poderosa Roma não poderá
aguentar constantes perdas de homens e a contínua deterioração do moral. E digo-vos a todos que a nossa vontade de defender a terra que nos viu nascer e de lutar
pela nossa liberdade é maior do que a vontade deles de nos conquistarem! No fim, a vitória será nossa...
Olhou com ar de desafio para Ostório, enquanto os seus seguidores o aclamavam. Olhando em redor, Cato notou que, para lá das tribos das montanhas, também alguns
dos brigantes se juntavam a eles, bem como guerreiros de outras tribos das partes ocidentais e setentrionais da ilha. O governador avançou para confrontar Carátaco,
e a aclamação foi esmorecendo a pouco e pouco. Quando Ostório falou, já não havia qualquer traço do tom razoável que tinha empregue anteriormente. A sua voz soava
de forma cruel e implacável.
- A tortura que infligiste a um dos meus oficiais não passará sem punição. Daqui em diante, executarei dez dos teus seguidores por cada um dos meus homens que seja
abatido ou feito prisioneiro. O mesmo se aplicará a qualquer tribo que seja idiota a ponto de se juntar à tua causa malfadada. Vejo agora que a minha oferta de paz
foi um desperdício de tempo e esforço. Terminou o tempo das conversações. Ao invés, faço aqui e agora a promessa, pela minha vida, e por todos os deuses que adoro,
de que não descansarei até que sejas derrotado e levado, com toda a tua família, para Roma, onde a humilhação que infligiste ao tribuno Marcelo te será devolvida,
e dez vezes mais, a ti e a todos os do teu sangue. Além disso, juro que não descansarei enquanto as tribos das montanhas não forem esmagadas. Os ordovicos e os siluros
serão varridos da face da terra. Deles ficará apenas a memória, como lembrança para todas as outras tribos desta ilha do custo de desafiar Roma.
- Ora bem, agora o sacana já fica a saber com o que conta. - Comentou Macro com evidente aprovação.
Carátaco respondeu com uma gargalhada. - Romano, promete o que quiseres. As tuas juras nada alteram. Continuaremos a desafiar-te, e a matar os teus homens, até conseguirmos
quebrar-te o espírito.
Antes que Ostório pudesse responder, outra figura entrou no debate. Prasutago deu um passo à frente e esperou que se fizesse silêncio antes de falar. Marcómio ouviu
a frase inicial e traduziu-a para os oficiais romanos.
- O rei iceno diz que já houve demasiado sangue derramado. Muitos homens morreram de ambos os lados. É tempo de pôr fim ao conflito. Diz que é verdade que a paz
romana tem um preço, mas que esse custo, por muito oneroso que seja no presente, é melhor do que o contínuo sofrimento de todos os que se veem envolvidos na luta
contra Roma. Conhece, por experiência própria, a qualidade dos homens das legiões. Combateu a seu lado e sabe que eles não podem ser derrotados, e que nunca desistirão
até obterem a vitória. - Enquanto traduzia, Marcómio achou por bem usar a primeira pessoa como o rei fazia. - Peço-te, Carátaco, que aproveites esta ocasião de depor
a espada e acolher a paz, seguindo o exemplo dos icenos.
- Seguir o teu exemplo? - Carátaco fungou, pleno de desdém. - Tu, que te tornaste rei somente depois do último nobre com tomates para resistir a Roma ter sido derrubado
e morto? E, aliás, quanto tempo levaram os bravos icenos a voltar-se contra Roma? Passaram anos desde o momento em que venderam a sua alma ao Imperador, em troca
das suas moedas de prata. Só demasiado tarde é que o teu povo compreendeu o custo da perfídia romana. Demasiado tarde para nos auxiliarem quando avançámos contra
as legiões no início desta guerra. Demasiado tarde para poderem fazer alguma diferença. E agora vivem sob o tacão da bota romana. Tal e qual esses trinobantes sem
espinha, que agora são os relutantes anfitriões de uma colónia de veteranos e que são chupados até à última moeda em taxas para pagar a construção de um templo em
honra do Imperador Cláudio. Assim se vê a liberdade que nos é dada para adorarmos os deuses da nossa escolha! - Baixou um pouco o tom de voz. - Prasutago, o teu
povo carrega o mesmo fardo. Os teus guerreiros foram forçados a entregar as suas armas. Ficaram desarmados, à mercê dos caprichos de Roma. O que os impede de vos
tomarem como escravos? Pensas que os icenos aceitarão esta situação eternamente? Chegará o dia em que dirão basta, e em que se levantarão contra o invasor. E nesse
dia ver-te-ão claramente como um traidor. Dizes que queres salvar vidas, e que queres a paz. A verdade é que te viste perante uma escolha entre a desonra e a guerra.
Escolheste a desonra... e por isso terás guerra. Tão certo como a noite suceder ao dia. - Virou-se para apontar o dedo acusatório a todos os líderes e tribos que
tinham concluído tratados com Roma. - Quando os vossos guerreiros, quando os vossos homens e mulheres estiverem fartos dessa paz romana, livrar-se-ão de vocês como
palha seca. Perecerão nas chamas, ao lado dos vossos amigos romanos. Pensem nisso! E se voltarem a ver a razão, procurem por mim nas montanhas.
Manteve o olhar de desafio para a assembleia, e por fim aproximou-se de Ostório e dos seus oficiais, e falou em latim. A sua pronúncia tinha melhorado muito desde
aquele dia em que tinha interrogado Cato numa cabana, havia muitos anos.
- A guerra prosseguirá. Não conseguirão derrotar-nos. Salvem-se, e deixem esta ilha. Só assim poderá haver paz. Uma paz estabelecida entre iguais.
Ostório abanou a cabeça. - Tenho as minhas ordens. O Imperador falou, e a sua palavra é lei. A Britânia fará parte do Império.
- Nesse caso, nada mais há a conversar. - Carátaco olhou para os oficiais que rodeavam Ostório. - Prestem atenção, pois acabarão como o vosso governador. Velho e
exausto. Cansado de perseguir o impossível. A Britânia será o vosso túmulo. - Fez uma pausa quando o olhar caiu sobre Cato e franziu o sobrolho. - Eu conheço-te...
- Já nos encontrámos, sim, senhor. Quando era vosso prisioneiro. Ao tempo em que combatíamos nos pântanos do oeste.
O comandante inimigo pensou por momentos e, por fim, os olhos arregalaram-se ao relembrar.
- Sim! Parecias bastante mais jovem nessa altura. Agora tens marcas de combate e cicatrizes dos anos de guerra que já levas.
- Como vós. Carátaco sorriu levemente. - Nem imaginas. Se bem me lembro, quando foste meu prisioneiro falámos longamente.
- De facto, senhor. Tentei persuadir-vos a abandonar a luta. - E no entanto aqui estamos, anos depois. Ao que parece, estás mais velho, mas nem por isso mais sábio.
Foi a vez de Cato sorrir.
- Senhor, estava justamente a pensar isso de vós. A expressão no rosto de Carátaco endureceu, mas acabou por se abrir num sorriso triste. Agarrou o antebraço de
Cato.
- Bem posto. Uma pena que sejamos inimigos. - Nesse caso, senhor, deixemos de o ser. - É demasiado tarde para isso. Roma devia ter-nos tratado como parceiros, em
vez de tentar tornar-se dona de nós. Se nos encontrarmos em combate, matar-te-ei sem pena nem piedade.
Cato cerrou os lábios. - Talvez assim venha a suceder. Ou talvez, da próxima vez que nos encontrarmos, seja outro o prisioneiro.
A expressão de Carátaco voltou a fechar-se. Largou o braço de Cato e afastou-se pelo círculo na direção da abertura, chamando os seus seguidores. Macro observou-o
e por fim murmurou para o amigo.
- Ao que parece, o tempo do falatório acabou. E agora temos entre mãos mais uma luta até ao fim.
Cato comentou pesadamente. - Não havia hipóteses de verdadeiras negociações. Já era tarde demais para isso. Carátaco quer a guerra, e Ostório aceita a ideia com
toda a naturalidade. Tudo isto foi uma grande perda de tempo. E agora vai-se transformar na perda de muitos homens de valor.
11
Assim que o governador e a sua comitiva regressaram ao fortim, ele dispensou os guardas e recolheu-se aos apertados aposentos do optio para conferenciar com os oficiais.
O encontro com as tribos tinha sido bem menos demorado do que Ostório pensara, e não havia quaisquer perspetivas de o retomar no dia seguinte. Depois de Carátaco
e de os romanos se terem retirado, vários dos outros grupos tinham-nos imitado, alguns regressando de imediato aos seus territórios, apesar da noite cerrada. Era
evidente que qualquer tentativa de estabelecer termos para uma paz global na ilha tinha falhado definitivamente.
- Se Carátaco quer prosseguir na senda da guerra, verá o seu desejo satisfeito. - Anunciou Ostório aos oficiais, amontoados em redor da pequena mesa que, em conjunto
com um banco e uma tarimba, constituía toda a mobília do compartimento. - Não regressarei já a Londinium; assim que nascer o dia, rumarei ao quartel-general do exército
em Cornoviorum. Deciano, tu voltarás a Londinium, e informarás a administração da minha decisão. Terão que preparar tudo e juntar-se a mim logo que possível. Envia
mensagens aos comandantes da Nona e da Segunda
legiões, comunicando que darei início à campanha o mais cedo possível, e que eles serão responsáveis pela segurança da província por trás da linha de fronteira.
Prefeito Cato, tu e o Macro seguirão para Glevum e apresentar-se-ão ao legado Quintato.
- Sim, senhor. - Senhores, os meus planos estão traçados, temos agora que os pôr em ação da forma mais rápida e efetiva que nos for possível. Não haverá qualquer
demência para todos aqueles que seguem Carátaco. As minhas ordens são de que, de ora em diante, não haverá qualquer preocupação em fazer prisioneiros. Se algumas
mulheres e crianças forem poupadas, serão conduzidas para a retaguarda e vendidas aos mercadores de escravos nos postos do exército. Todas as povoações hostis que
forem localizadas serão incendiadas e arrasadas. E sim, quis mesmo dizer o que disse antes. Todos os que pegarem em armas contra Roma serão esmagados. Está claro?
Os oficiais anuíram em silêncio.
- Será então melhor que se retirem e que cada um procure conseguir um sono reparador. Nos próximos tempos não haverá grandes oportunidades para isso. Podem sair.
Os oficiais saudaram-no e deixaram o quarto, saindo para a escuridão da noite. Macro reparou que a pequena guarnição estava equipada e espalhada pela paliçada. O
Optio devia ter estado à conversa com alguns dos guardas do governador e ter assim ficado a saber o que se passara no círculo sagrado dos nativos. Tinha portanto
resolvido não arriscar, e tinha dado ordens aos seus homens para se manterem vigilantes durante toda a noite. Os legionários da guarda tinham-se juntado em volta
do fogo de cozinha da guarnição e aqueciam-se às chamas, enquanto trocavam comentários ansiosos e murmurados sobre aquilo a que tinham assistido. Ali perto, Décimo
limpava cuidadosamente as feridas de Marcelo. O tribuno tinha apenas uma tanga e sorvia cuidadosamente papa de uma colher, lutando depois para a engolir com um som
gorgolejante. Enquanto ele comia, o criado limpava a sujidade do corpo emaciado e em lamentável condição, revelando assim as mazelas e cortes que testemunhavam o
tratamento brutal a que tinha sido submetido.
- O que irá acontecer àquele pobre desgraçado? - Perguntou-se Macro.
- Com certeza que tem família em Roma. Tomarão conta dele, da forma que puderem.
Macro observou-o ainda mais um momento. - Teria sido bastante mais caridoso matá-lo. Bárbaros de merda. Umas bestas.
- Talvez sim, mas astutos. Todos os que virem Marcelo ao longo da sua viagem para casa ficarão a saber o que sucede aos soldados capturados pelo inimigo, e isso
deixá-los-á abalados. E ainda mais em Roma, longe dos campos de batalha. Um jovem aristocrata tão cruelmente mutilado não deixará de ser assunto de conversa. Poderá
dar peso às palavras dos que defendem que não devíamos tentar expandir ainda mais o nosso território na Britânia, e que devíamos mesmo abandonar a província sem
mais. Carátaco sabe perfeitamente como vincar um ponto, e garantir que ele chega ao seu destinatário com toda a força. Executar Marcelo teria sido uma oportunidade
desperdiçada.
Macro olhou para o amigo. - Pelos deuses, tens um coração tão frio como o dele. - Não, limito-me a compreender o raciocínio que lhe guiou as ações. A minha única
preocupação é que Ostório pode estar a preparar-se para fazer exatamente aquilo que o inimigo deseja. Se devastar tudo a ferro e fogo no território das tribos das
montanhas, pode fazer com que alguns dos outros se virem contra nós. E há um problema mais global ainda. Se os nossos homens se habituarem a tratar os nativos de
forma dura, vai ser difícil fazê-los mudar de comportamento quando a campanha terminar e forem colocados em povoações já romanizadas. Isto, claro, partindo do princípio
de que vamos conseguir acossar o Carátaco e forçá-lo a enfrentar-nos em campo aberto.
- Tinha a impressão de que ele está mortinho por uma boa batalha. - Replicou Macro. - Fez um grande espetáculo acerca do facto de ter derrotado a coluna do Marcelo,
e de como isso tinha sido apenas o princípio.
- Sim, assim foi. Portanto, talvez essa seja a impressão que ele nos quis deixar.
Macro suspirou, irritado. - Nesse caso, o que pensas tu que são as suas verdadeiras intenções? - Não estou certo. Se penetrarmos profundamente nas montanhas em busca
do seu exército ou da sua base, estaremos a esticar as nossas linhas de comunicação e a deixá-las vulneráveis a ataques. O que me parece é que ele voltou à sua velha
tática. Atrair-nos, para poder golpear a nossa retaguarda. Pelo menos conseguiu acicatar o Ostório.
- Ou talvez esteja demasiado confiante e a tentar levar-nos a uma batalha nas condições que ele considera mais favoráveis.
Cato encolheu os ombros, pouco convencido. - Ainda há outra possibilidade, claro. - Qual é? - Inquiriu Macro, com mal disfarçada impaciência. - O espetáculo que
ele deu foi tanto para nós como para aqueles que o seguem.
Ele trava uma longa guerra. Que é tão exigente em recursos e vontade dos seus seguidores como o é do nosso lado. Só que enquanto os nossos soldados são disciplinados,
os guerreiros tribais precisam de inspiração para combater com vontade. Pergunto-me até que ponto é que o Carátaco pode contar com eles. Enquanto lhes proporcionar
vitórias, tê-los-á a seu lado. Se os desgastarmos, acabará por ser forçado a dar-nos batalha enquanto ainda tem homens suficientes para o seguirem.
- Esperemos então que seja esse o caso. Não me agrada a ideia de passar os próximos anos a perseguir sombras por entre montanhas e florestas.
- Concordo. - Cato refletiu por momentos. - Pelo menos, há um oficial que parece ter ideias claras. O tal centurião Querto deixou uma forte impressão em Carátaco.
Parece-me um homem a ter por perto quando assumir o comando dos trácios.
Macro coçou o queixo. - O Querto é que pode não apreciar grandemente a situação. Está a tornar-se conhecido, e tu apareces de repente. A situação pode ser delicada.
- Não o será se ele for um oficial com metade do seu valor, Macro.
- Cato espreguiçou-se e bocejou longamente. - Bom, o melhor é ir dormir.
Foram buscar os alforges ao estábulo e dirigiram-se aos aposentos que lhes tinham sido designados. No interior da diminuta caserna havia apenas uma lamparina de
óleo, que dava uma luz fraca. Os tribunos já se tinham instalado nas suas enxergas, envoltos nos seus espessos mantos militares. Um punhado deles ainda estava acordado
quando Macro e Cato abriram caminho até ao canto mais afastado e dispuseram no chão os seus rolos de tecido grosseiro cheio de pelo de cavalo.
- Digo-vos eu - estava Deciano a sussurrar aos seus companheiros. - Esta campanha vai ser um desastre. Esta gente é uma cambada de selvagens. Animais ferozes, sem
traço de humanidade...
Deu-se uma pausa até que outro tribuno retorquiu. - Não quero acabar como o Marcelo. - Devíamos era deixar os cabrões lá pelas montanhas. - Insistiu Deciano. - Construir
uma linha de fortes e contê-los lá. Seria o melhor.
Macro esticou-se sobre a sua enxerga e limpou a garganta. - Tribuno, se não se importa, gostava de dormir um bocadito. O que não será fácil se ficar aí a noite toda
a arengar e a assustar o resto das senhoras.
Na pesada penumbra, Cato quase adivinhou a boca do tribuno a abrir-se para responder, mas o homem repensou a opção e acabou por se deitar, puxar a capa até ao pescoço
e ficar calado. Macro lançou um pequeno assobio de gozo, colocou-se numa posição confortável e poucos instantes depois começou a ressonar baixinho. Cato sabia muito
bem que teria apenas uma breve oportunidade de adormecer antes que o amigo começasse a ressonar a sério. Tinha inventado um truque durante a viagem desde Roma, para
limpar a mente e se deixar cair no sono. Imaginava a casa que sonhava construir nas colinas albanas, perto de Roma. Divisão por divisão. Normalmente adormecia antes
de chegar ao triclínio. Por outro lado, sabia que se chegasse a esse ponto ia ter uma noite complicada... Porém, naquela ocasião, o longo dia na sela e a tensão
nervosa da assembleia com as tribos fizeram-se sentir, e Cato adormeceu ainda antes de terminar de imaginar o átrio, felizmente muito antes de o troar nasal de Macro
encher o quarto e perturbar o sono dos mais ansiosos dos tribunos, deitados junto à parede oposta da caserna.
A jornada até Glevum levou-lhes mais de meio-dia de dura cavalgada; lá chegados, o governador e a sua comitiva prosseguiram para norte pela estrada para Cornoviorum.
Ao refrearem as montadas depois de subirem uma ligeira encosta, Cato, Macro e Décimo apreciaram a cena que se abria à sua frente. A Décima Quarta Legião tinha construído
uma vasta fortaleza numa zona plana junto ao rio Severnus e, como era habitual, uma colónia civil de razoável dimensão tinha-se instalado a curta distância do fosso
que rodeava o forte, ao alcance de uma flecha. A maior parte dos edifícios seguiam o estilo nativo, cabanas circulares com uma estrutura de madeira coberta por barro,
com telhados de colmo. Uma pequena abertura ao cimo do telhado permitia ao fumo da lareira central escapar-se do interior. Algumas das estruturas eram de maiores
dimensões, e tinham sido erigidas por mercadores gauleses que tinham seguido os seus clientes quando as legiões tinham sido destacadas para o exército de invasão
da Britânia. Esta espécie de povoação era onde os soldados de folga se dirigiam para satisfazer os seus apetites por bebida e mulheres, e chegava a suceder, se uma
legião ficava muito tempo num local, que alguns dos homens acabavam por casar e constituir família. Essas uniões não eram oficializadas, já que aos soldados não
era permitido contrair matrimónio formal enquanto estivessem ao serviço, mas era uma tradição já antiga, e os homens nas fileiras continuavam, no fundo, a ser humanos.
Para lá da grande fortaleza, havia ainda dois fortes de menores dimensões, das tropas auxiliares, unidades de cavalaria e infantaria adjuntas à Décima
Quarta Legião, e o conjunto acabava por ter o aspeto de uma modesta cidade em plena expansão, coberta por um leve lençol de fumo vindo de inúmeras fogueiras. Do
outro lado do rio a paisagem era plana e aberta, e, à distância, Cato avistava a massa cinzenta das colinas que delimitavam o território dos siluros. Sobre elas
pairavam nuvens que obscureciam as montanhas densamente florestadas que se estendiam mais longe.
- Não é propriamente o sítio mais apetecível que já vi. - Comentou Macro. - Mas pelo menos já não andamos a esgueirar-nos pelos cantos a fazer o trabalho sujo do
Narciso.
- Dadas as circunstâncias, creio que acabará por encontrar nesse facto um fraco consolo. - Cato deu um estalo com a língua e levou o cavalo a descer a estrada larga
e lamacenta que conduzia ao portão oriental da fortaleza. O caminho passava por entre algumas pequenas quintas onde os nativos plantavam sementes em campos despidos,
para as colheitas de verão, de cevada e trigo. Estavam já tão habituados à passagem dos soldados que quase ninguém prestou atenção aos três cavaleiros. Só um miúdo,
ainda pequeno, agachado sobre o solo enlameado junto à mãe, levantou o olhar quase escondido por uma melena de cabelo escuro e lançou um súbito sorriso a Macro.
A espontaneidade da expressão da criança tocou o veterano.
- Olha, Cato. Afinal, nem todos nos odeiam. - Macro sorriu de volta e piscou-lhe o olho.
Cato abanou a cabeça. - É só dar-lhes tempo. Aquele pequenote estará a pegar na espada daqui a pouco.
- Bem, hoje estás mesmo animado, não é verdade? Cato não respondeu; ao invés, lançou o cavalo a trote, o que obrigou Macro e Décimo a imitarem-no com suspiros resignados.
O criado aproximou a montada da de Macro e sussurrou-lhe uma questão.
- Senhor, peço desculpa por perguntar, mas é habitual o prefeito andar com esta disposição? Sabe, miserável?
- Oh, não, de todo! - Macro riu. - Isto é só quando ele está bem disposto.
O miúdo ficou a olhá-los durante mais um instante, até que o sorriso desapareceu e ele se voltou a concentrar nos bonecos de palha que mantinha agarrados. Soltou
um pequeno rosnido e lançou-os um contra o outro, esmigalhando-os.
Ao passarem pela povoação, Macro estudou-a cuidadosamente, fazendo uma avaliação típica de um soldado profissional, inventariando os prazeres que a improvisada cidade
podia proporcionar, e registando mentalmente os locais que não poderia deixar de visitar na primeira oportunidade. Dois legionários montavam guarda na rampa que
atravessava o fosso e levava aos portões da fortaleza. Cato tinha envergado a armadura nessa manhã, depois de Décimo lhe ter dado um rápido polimento, pelo que o
metal refulgente e a faixa vermelha que o cruzava sobre o peito mostravam claramente a sua patente e fez com que as sentinelas se colocassem imediatamente em sentido.
No portão, o optio que comandava a guarda convocou de imediato o resto dos homens da secção, que se foi colocar de ambos os lados da abertura enquanto Cato fazia
avançar o cavalo pela rampa e retribuía a saudação formal do optio.
- O legado Quintato está no campo? - Sim, senhor. Deve estar no quartel-general. - O homem hesitou brevemente antes de perguntar. - Senhor, tem uma autorização?
Cato levou a mão ao alforge e extraiu a pequena tábua encerada ostentando o selo do governador e detalhando o seu nome, patente e o propósito da sua viagem. O optio
examinou-a rapidamente e devolveu-lha.
- Muito bem, senhor. Pode passar. Atravessaram o arco reforçado do portão e entraram na fortaleza, com as suas filas de casernas de madeira bem alinhadas dos dois
lados da larga avenida que conduzia ao grupo de grandes edifícios que constituíam o quartel-general, as acomodações dos oficiais superiores e os armazéns da Décima
Quarta Legião. Viam-se por ali muitos soldados de folga, sentados à porta da caserna correspondente à sua secção, a limpar o equipamento uns, a jogar aos dados outros.
Alguns equipavam-se, já que estava a chegar o seu turno de serviço, ou iam sair em patrulha. Algumas das casernas estavam vazias, já que os seus ocupantes tinham
sido destacados para guarnecer postos avançados. Da zona do armeiro escutava-se o repicar metálico de martelos, e um grupo de homens fardados dirigia-se às latrinas
com baldes, escovas e pás. Macro sorriu perante o cenário, que lhe era tão familiar como um lar.
- O Quintato parece gostar das coisas limpas e em ordem. - Mais um daqueles para quem o que conta é o aspeto. - Juntou Décimo, com azedume.
- O que é sempre pelo menos metade do valor de um exército. Não se pode simplesmente ir lá para fora e matar bárbaros em nome de Roma sem ostentar o aspeto adequado.
Os guardas de serviço à entrada do quartel-general franquearam-lhes a entrada. Cato e Macro deixaram Décimo com os cavalos e mulas enquanto se iam apresentar ao
legado. Apesar da proximidade da campanha, tudo parecia processar-se numa atmosfera calma e eficiente; os escribas debruçavam-se sobre os seus registos e levavam
mensagens e indicações de uns oficiais para outros. O legado Quintato estava com o intendente da Décima Quarta Legião quando o secretário anunciou a chegada dos
novos oficiais. - Um momento. - Instou Quintato friamente, do assento por trás da secretária, e deu toda a sua atenção ao intendente, que aguardava em sentido à
sua frente.
- O celeiro devia ter sido inspecionado diariamente. A responsabilidade por isso era tua. Se tivesses cumprido o teu dever, os ratos teriam sido eliminados muito
antes de conseguirem arruinar umas mil medidas de grão. Agora vamos ter que encontrar alternativas.
- O próximo comboio de abastecimentos está previsto para o fim do mês, senhor. Vou enviar uma mensagem a indicar que precisamos de uma quantidade maior para substituir
as perdas.
Quintato abanou a cabeça. - O fim do mês não serve. Quero o cereal reposto daqui a cinco dias. O queixo do outro homem descaiu com a surpresa. - Mas... - Nada de
desculpas. Trata disso. Se não conseguires o cereal nalguma unidade de reserva, terás que o comprar aos nativos. Estás dispensado.
O intendente saudou o superior e rodou, saindo do compartimento com uma expressão baralhada e ansiosa no rosto. Quintato soltou um suspiro de frustração e por fim
fixou o olhar penetrante nos dois oficiais que aguardavam à entrada do gabinete.
- Então?
Cato tratou das apresentações, e os dois entregaram as tábuas com as suas folhas de serviço. O legado olhou para os visitantes com evidente curiosidade, antes de
ler os registos e acenar com a cabeça, satisfeito.
- Folgo em saber que já serviram nesta ilha antes. E que possuem ampla experiência de combate, embora haja aqui uma ou duas lacunas nos registos.
- Estávamos à espera de colocação, senhor. - Respondeu Cato. - Em Roma, a meio salário.
- Um desperdício de talento. Sentados à boa vida enquanto um qualquer anafado escriba imperial vos procurava um novo trabalho, com todo o vagar. Malditos burocratas,
hã? - Um sorriso de simpatia assomou-lhe aos lábios, mas desapareceu rapidamente. - Bom, agora estão aqui. Não tenho dúvidas de que anseiam por assumir os vossos
postos e lançarem-se sobre o inimigo.
Macro sorriu. - Senhor, está a ler-me a mente. - Se não fosse isso a ocupar-vos a mente, não teriam para mim qualquer utilidade. Não estou disposto a aturar quem
venha para aqui só para passar o tempo, meus senhores. Seja qual for a patente. Enfrentamos uma oposição coriácea, e eu exijo resultados. Entendido?
Cato assentiu. - Sim, senhor. - Por um feliz acaso, tive a sorte... a tremenda sorte, aliás, de ter o centurião Querto aqui à mão para assumir o comando do forte
de Bruccium enquanto esperávamos pela tua chegada. O Querto tem procurado o confronto com o inimigo a cada oportunidade que se lhe oferece. Já queimou mais aldeias
e matou mais siluros do que qualquer outro homem neste exército. E o inimigo acabou por lhe ganhar medo. Segundo alguns dos prisioneiros que temos interrogado, chamam-lhe
o corvo sangrento, e basta mencionar o nome para o temor se instalar nos seus corações.
- Corvo sangrento... - Repetiu Macro, e franziu o sobrolho. - E os prisioneiros revelaram a razão dessa alcunha, senhor?
- É fácil de entender. A coorte trácia tem um corvo no estandarte. Calculo que a parte do sangue tenha a ver com os métodos empregues pelo Querto e os seus homens.
E, ao que sei, a coorte adotou o nome para toda a unidade. Designam-se a si mesmos como os Corvos Sangrentos.
Cato sentiu um arrepio frio na base da espinha. - E que métodos são esses, senhor? O legado hesitou muito brevemente antes de responder. - O centurião Querto é um
homem que veio das fileiras. Foi recrutado na Trácia, embora a família dele vivesse nas montanhas da Dácia, longe de qualquer coisa que pudéssemos reconhecer como
civilização. Digamos que alguns podem considerar os métodos que usa... questionáveis. Mas a verdade é que o fortim está situado no coração do território siluro,
e talvez seja necessário enfrentar os bárbaros nos seus próprios termos se queremos realmente alcançar o triunfo. E por falar nisso... - Esticou-se e pegou num longo
rolo de pergaminho que desenrolou sobre a mesa. Cato percebeu que era um mapa. As marcas que identificavam as posições das forças romanas e o terreno em volta eram
bastante detalhadas, mas vastas secções do mapa estavam em branco, para lá dos nomes das tribos: siluros e ordovicos.
O legado tamborilou com o dedo sobre o mapa. - Glevum. Aqui tenho a Décima Quarta, duas coortes de cavalaria e quatro de infantaria auxiliares sob meu comando pessoal.
Um terço das minhas forças guarnece os fortes que já temos construídos ou em fase de acabamento. A nossa função é controlar os vales e servir como a bigorna sobre
a qual cairá o poderio de Roma como se fosse um martelo. Esse martelo é a coluna principal que o governador conduz. Está sediado mais a norte, aqui, em Cornoviorum,
com a Vigésima Legião e doze coortes de auxiliares. Assim que estiver pronto a avançar, Ostório tenciona castigar fortemente os ordovicos, e depois virar para sul
para atacar os siluros. Se tudo correr de acordo com o planeado, Carátaco e as suas forças ficarão encurralados entre as nossas colunas e serão esmagados.
Cato estudou o mapa e, apesar de preocupado com a falta de conhecimento acerca da maior parte do terreno pelo qual as forças romanas teriam que marchar, reconheceu
o senso da estratégia do governador. Anuiu.
- Parece um plano realizável, senhor. Quintato arqueou uma sobrancelha. - Fico feliz pela tua aprovação, prefeito. Estou certo de que Ostório ficaria também imensamente
feliz por ter o teu beneplácito. Mas seja como for, primeiro vai ser preciso encontrar Carátaco. O sacana já demonstrou ser tão escorregadio como uma enguia. Tudo
o que sabemos ao certo é que ele está neste momento no território dos ordovicos.
Cato corou, pensou em ripostar, mas resolveu que seria melhor manter a boca fechada e não se arriscar a novo comentário vexatório acerca da sua suposta soberba.
- A tua função, partindo do princípio de que a aprovas, é a de controlar o vale no qual se localiza o campo de Bruccium. - O legado apontou um símbolo no mapa. -
Deverás patrulhar o vale e mantê-lo livre da presença inimiga. Se achares conveniente, poderás estender as tuas operações até mais longe. O último relatório que
recebi do Querto já foi há mais de um mês. Informava que tinha queimado várias aldeias nativas mais a oeste e a sul, e proclamava ter abatido mais de um milhar de
inimigos. Mas também sofreu consideráveis baixas, e vou enviar uma coluna de reforços para o forte assim que me chegar uma nova leva de legionários frescos da Gália.
Macro deu um estalo com a língua. - Há mais de um mês que não há notícias, senhor? Durante esse tempo muita coisa pode ter acontecido. O forte pode até ter sido
tomado.
- Se isso tivesse sucedido, penso que o inimigo já nos teria feito saber a novidade. O Carátaco nunca perde uma oportunidade de alardear qualquer boa notícia para
o seu lado. Não, parece-me bem que o Querto continua em jogo.
Cato tinha estado a examinar o mapa, e depreendeu que Bruccium estava posicionado profundamente no território siluro, a mais de cem quilómetros de Glevum, pela sua
estimativa. Uns sessenta quilómetros distante do mais próximo forte romano de dimensão relevante. Demasiado exposto, decidiu. Tremendamente exposto. Qualquer comboio
de abastecimento que se dirigisse a Bruccium teria que passar por vários colos montanhosos antes de atravessar os vales densamente florestados: um terreno perfeito
para emboscadas.
- Senhor, com que frequência é que o forte é reabastecido? - Nunca é. Cato franziu o sobrolho. - Desculpe, senhor, mas como é isso possível? Com certeza que os homens
têm que receber provisões e equipamento. Deve haver lá centenas de homens, e cavalos, claro.
Quintato encolheu os ombros. - Os primeiros comboios até conseguiram lá chegar. Graças a pesadas escoltas. Então os siluros resolveram aumentar a pressão, e nunca
mais conseguimos alcançar a guarnição. Enviei uma mensagem ao Querto, dando-lhe permissão para recuar antes que as provisões acabassem. Respondeu que ele e os seus
homens viveriam da própria terra. Foi a última vez que o assunto foi mencionado, portanto, suponho que ele arranjou maneira de se abastecer.
- Difícil de acreditar, senhor. - Contrariou Macro. - Está rodeado de inimigos. Decerto poderiam fazê-lo cair pela fome, se a isso se decidissem.
- Bom, ao que sei, não o decidiram. Seja lá qual for a forma pela qual o Querto mantém os homens em ação, parece que funciona. Verão por vocês mesmos quando chegarem
ao forte. Depressa perceberão que o Querto vos pode ensinar muita coisa. Se fores sábio, prefeito, escutá-lo-ás com atenção.
A crítica implícita voltou a enfurecer Cato, que lutou para não o deixar transparecer. Era um soldado profissional que servia o Imperador lealmente e com eficiência
havia já bastantes anos. Sabia perfeitamente que era importante escutar os subordinados, sobretudo um com as evidentes capacidades do centurião Querto. Engoliu em
seco para acalmar a irritação.
- Claro, senhor. - Muito bem. Podem portanto partir pela alvorada. Vou fornecer-vos uma escolta para vos levar até ao forte. Um esquadrão do contingente montado
da legião deve chegar. Depois de assumires o comando em Bruccium, quero um relatório detalhado sobre o efetivo e a condição das duas coortes, bem como sobre o progresso
das ações empreendidas contra os siluros. Isso, se houver condições que permitam enviar um estafeta aqui para Glevum. E agora, senhores, se me permitem, estou sob
grande pressão para terminar os preparativos da minha coluna para a campanha que se avizinha. Que a fortuna vos acompanhe.
Fez um gesto na direção da porta, e Cato e Macro saudaram-no e deixaram o gabinete do legado. No corredor, enquanto se dirigiam ao pátio onde Décimo os esperava,
Macro falou em voz baixa.
- Não estou muito convencido com este centurião Querto. Parece-me que ainda nos vai arranjar problemas.
Cato ponderou as informações de que dispunham. - Uma coisa é certa, o homem está a seguir as suas próprias regras. Mas, como ouviu, parece estar a provocar duras
perdas ao inimigo. E isso é o que o legado e o governador querem. Só espero que possamos manter essa pressão quando assumir o comando.
Macro inspirou profundamente. - Parece-me que o centurião Querto não te vai acolher de braços abertos. Já há alguns meses que é ele quem comanda, à sua própria maneira.
O que é que te faz pensar que ele vai aceitar de bom grado passar-te as rédeas?
- Porque é um soldado, e portanto faz o que os superiores lhe dizem para fazer.
Macro mordeu os lábios. - Espero bem que tenhas razão.
12
Começou a chover pouco antes da alvorada, e Glevum desaparecia sob um manto cinzento de chuva enquanto os cavaleiros se refugiavam sob as capas e levavam as montadas
pela estrada que conduzia à distante linha de colinas. Macro e Décimo tinham ido visitar a povoação na véspera, e tinham partilhado uns jarros de vinho barato numa
das tabernas. Cato tinha ficado no quartel-general, a vasculhar os registos para ficar a saber tudo o que pudesse sobre a sua nova unidade e o oficial que a comandava
interinamente. Os trácios tinham demonstrado o seu valor nos anos que levavam colocados na Britânia, mas nos últimos meses tinham provocado mais baixas inimigas
do que nos oito anos anteriores considerados em conjunto.
Quanto a Querto, nada havia nos arquivos que revelasse mais alguma coisa do que aquilo que Quintato lhe dissera - à exceção de uma queixa feita pelo anterior comandante
dos trácios. Depois de uma escaramuça nas margens do Severnus, o prefeito Albino tinha dado ordem a Querto para escoltar os cativos até Glevum. Mas estes nunca tinham
chegado à fortaleza. Segundo Querto, tinham tentado uma fuga em massa na primeira noite de marcha, e tinham sido todos mortos na confusão. Nem um sobrevivera. Não
havia registo de qualquer ação disciplinar, e poucos dias depois o próprio prefeito encontrara a morte ao ser projetado do cavalo e rachar o crânio contra uma rocha.
A coorte de legionários que compunha o resto da guarnição de Bruccium tinha um registo igualmente competente, mas sem nada de extraordinário até ao sucesso dos últimos
meses. O aspeto mais curioso era o facto de que nenhuma das unidades reportava qualquer caso de indisciplina desde que o centurião Querto os tinha levado a combater
nas montanhas. Normalmente essas infrações eram parte dos relatórios periódicos que eram enviados para o quartel-general. Mas depois dos primeiros relatórios existiam
apenas os números de inimigos abatidos e de aldeias destruídas. E nada mais, desde havia mais de um mês.
Cato, os seus companheiros e a escolta atravessaram a ponte de madeira que os engenheiros da Décima Quarta Legião tinham lançado sobre o Severnus, e prosseguiram
pela estrada que ladeava o curso do rio. Havia ali menos sinais da presença nativa do que em qualquer outro ponto da viagem que tinham feito pela nova província.
Um punhado de pequenas quintas salpicava a paisagem. Os habitantes, gente de aspeto rude, vestida de trapos e peles, cuidavam de pequenos rebanhos de cabras e de
pequenas parcelas agrícolas no rico solo junto à margem. De poucos em poucos quilómetros, os cavaleiros encontravam um dos pequenos fortins que tinham sido erigidos
para controlar a estrada. Cada guarnição de vinte ou trinta auxiliares abrigava-se por trás de um muro de turfa sobre o qual fora instalada uma paliçada robusta,
e uma sentinela vigiava a paisagem em volta do alto de uma torre que se erguia sobre as pobres fortificações.
Ao fim do dia alcançaram o forte de Isca, de dimensões razoáveis e guarnecido por uma coorte de gauleses. Depois das montadas e animais -de carga terem sido colocados
num estábulo para passarem a noite, Cato e os seus camaradas juntaram-se ao decurião que comandava a escolta de cavalaria na messe do forte. Havia apenas um pequeno
salão com duas mesas e um minúsculo balcão, de onde um mercador esquelético vendia um vinho de péssima qualidade a preços inflacionados, beneficiando da falta de
opções ao dispor dos compradores. Aquela margem do Severnus já era território siluro, e ninguém de entre a multidão de costumeiros acompanhantes que se estabelecia
junto aos campos romanos tinha tido a coragem suficiente para criar um estabelecimento no exterior do forte.
Macro e Décimo tinham ultrapassado as suas ressacas durante a longa viagem a cavalo, e Macro pediu de imediato vinho ao mercador, com a atitude beligerante de um
homem que sabe que está a ser explorado.
- Cinco sestércios por este mijo? - Rosnou Macro, ao sentir os lábios a arrepanharem-se e fugirem do bordo da caneca, depois de um primeiro gole. - Foda-se, isto
é uma vergonha.
- Não é assim tão mau, senhor. - Décimo ergueu a sua caneca e voltou a sorver o líquido.
Macro olhou para ele com ar consternado. - Nunca é muito mau quando não tens que pagar por uma gota sequer. Devia deduzir o vinho que consomes do teu salário.
- Nesse caso, senhor, teria que se haver sozinho com este mijo. - Decamo fingiu-se magoado. - Na realidade, devia era estar a agradecer-me por o ajudar a acabar
com ele.
- Na realidade? - Macro semicerrou os olhos, e virou-se para Cato. - O que achas tu?
- Hã? - Cato levantou o olhar ausente. - Desculpe, o que era? - O vinho. Prova e diz-me o que achas. Cato olhou para o recipiente de cerâmica, e cheirou. Parecia-lhe
vinagre, de alguma forma perfumado com uma antiga mistura de queijo de cabra e esgoto. Ainda assim, para agradar a Macro, provou-o, e arrepiou-se todo quando o tenebroso
líquido lhe chegou à língua. Pousou a taça com estrondo.
- Mas isto é vinho? - Segundo alio amigo por trás do balcão, é. O homem produz extrato de esgoto. Estou com vontade de lhe dar uma palavrinha.
- Para quê? Isto é do melhor que se pode arranjar tão longe da fronteira.
Macro pareceu chocado. - Pelos deuses, espero bem que não. Nesse caso, o que andarão eles a beber lá para Bruccium?
O comentário despertou os pensamentos de Cato, que se virou para o decurião que tinha estado tranquilamente a beber, também ele com ar preocupado. Cato limpou a
garganta.
- Trebélio, não é? O decurião olhou para ele e assentiu. - Sim, senhor. - Não pareces ter ar de quem está a apreciar uma pequena excursão até às montanhas. Pelo
menos o vinho vai-te afastar daí a ideia. Bebe.
Trebélio obedeceu, sem qualquer alteração da expressão que ostentava no rosto.
- Ao que parece, há quem se tenha habituado a esta zurrapa. - Comentou Macro.
Décimo riu-se. - É como eu disse, senhor. Não é assim tão mau. Aqui na Britânia acabamos por nos habituar a isto. Temos o pior de tudo. Do tempo, do vinho, e até
as mulheres são tão rudes como as piores que se podem encontrar no resto do Império. É inacreditável que Cláudio e os seus conselheiros possam pensar que há alguma
coisa de jeito a conquistar nesta terra de merda. Na minha opinião, nunca a devíamos ter invadido, devíamos era ter deixado estes bárbaros com os seus assuntos.
Se querem viver em cabanas de lama, adorar os cabrões dos druidas e andar constantemente à pancada uns com os outros, é deixá-los. Se o Imperador não se tivesse
lembrado da Britânia, ainda eu tinha uma perna em condições.
Macro deitou-lhe um olhar carrancudo. - Por acaso perguntei-te alguma coisa? Não me parece. Sabias no que te metias quando te alistaste. Vais para onde és mandado,
e não paras para fazer perguntas. Matas quem te disserem para matar e pronto. Se os cabrões te apanharem primeiro, é o risco que corres. Não sendo assim, bem podias
ter escolhido ser um daqueles paneleirotes que passam a vida a ler filosofia.
- Macro deitou uma rápida olhadela a Cato. - Não considerando os presentes, claro.
- Muito obrigado, Macro. - Ripostou Cato, ligeiramente irritado, antes de voltar a dar atenção ao decurião. - Há quanto tempo é que estás na décima Quarta?
- Vinte anos, senhor. Faz no próximo verão. - E há quanto tempo é que a cavalaria trácia foi anexada à Décima Quarta? - Essa malta? Acho que vem de sempre, senhor.
Pelo menos desde que eu sirvo na legião.
Cato sorriu. - Já apanhei muitas unidades auxiliares na minha carreira. Algumas boas, outras nem tanto. Mas nunca encontrei cavalaria trácia. Que tal são?
O decurião fungou. - Bem, não cheiram mal, ao contrário de outros. Os germanos são os piores. Mas pelo menos, no caso deles, sabemos com o que contamos. Com os trácios
é diferente. Têm traços de crueldade, os sacanas. Mas porra, se são bons cavaleiros. Fico feliz por estarem do nosso lado, e é tudo.
- Estou a ver. - Cato pegou no jarro e voltou a encher a taça do decurião.
- E quanto ao centurião Querto? O decurião respondeu com cautela. - Não posso dizer grande coisa. Os trácios gostam pouco de se misturar. Já me cruzei com ele algumas
vezes na parada, em treinos de manobras. É um tipo grande. Tem a constituição de uma latrina de tijoleira, e com os tomates correspondentes.
- Tens que ter cuidado com o que andas a comer - meteu-se Macro. Cato deitou-lhe um olhar de aviso antes de colocar nova questão ao decurião.
- Que mais? - É como disse. É corajoso, e os homens segui-lo-iam a qualquer parte.
- Inspirador, portanto? - Pode pôr as coisas assim, senhor. Depende do tipo de inspiração
a que se refere. É um combatente nato, do tipo que prefere a morte a ceder um milímetro de terreno. O problema é que exige o mesmo a todos os homens que comanda.
Uma vez vi-o a espancar um tipo na parada até ele desmaiar, só porque não conseguia saltar o fosso com o cavalo. Digamos que leva a disciplina muito a sério. Tal
como a lealdade. Ouvi dizer que era uma espécie de príncipe lá na sua terra. - O decurião olhou em redor e debruçou-se para Cato. - Isso, mas também uma espécie
qualquer de sacerdote. Do tipo que está envolvido em magias. Do género das que exigem sacrifícios de sangue.
- Magia? - Repetiu Cato, devagar. - Ainda tenho que encontrar alguma magia que seja genuína.
Macro inclinou a cabeça para o lado. - Não sejas tão rápido a julgar as coisas. É certo e seguro que alguma lançou uma maldição sobre este vinho merdoso, por exemplo.
O decurião mostrou uma face desdenhosa por breves momentos. Antes de esvaziar a caneca e a afastar com um aceno de agradecimento.
- Bom, será melhor ir ver dos cavalos, senhor. Têm que ser alimentados antes da mudança de turno.
Ergueu-se do banco e deixou a messe. Macro ficou a vê-lo afastar-se e lançou uma pergunta irónica.
- Terá sido alguma coisa que eu disse? - Senhor, não é aconselhável gozar com as crenças alheias. - Sugeriu Décimo, em tom calmo.
- Oh, vá lá! - Macro gargalhou. - Magia? Sacerdotes? Sacrifícios? Uma boa montanha de patranhas. Qualquer pessoa com metade de um cérebro sabe que os únicos deuses
com alguma espécie de poder são os romanos. É por isso que Roma domina o mundo.
- E eu a pensar que isso era porque os nossos soldados são melhores que os dos outros. - Ripostou Cato. - E, verdade seja dita, não dominamos metade das tribos desta
ilha, como é evidente.
Décimo fez menção de responder a Macro, mas acabou por fechar a boca e baixar o olhar para a caneca. Manteve-se em silêncio por mais uns instantes, antes de se pronunciar
em voz baixa.
- Alguns deuses são falsos. Talvez mesmo a maior parte deles. Mas há um que é verdadeiramente poderoso. Um que vem do oriente. E que promete uma vida no paraíso
a todos os que escolhem segui-lo.
Macro riu de novo. - Já ouvi essa historieta de merda antes! Lembras-te, Cato? Na Judeia? Os doidos que se intitulavam servos de um homem santo que tinha em tempos
vagueado pela região. Espero bem que não estejas a falar desse, Décimo. O antigo legionário abanou a cabeça. - Nunca ouvi falar desse disparate da Judeia, senhor.
Falo de Mitra, o senhor de tudo. É ele que reina sobre o mundo.
- Mitra... - Macro coçou o queixo, onde cresciam alguns pelos esparsos. - Há um culto espalhado por algumas unidades, ao que sei. A mim não me atrai. O que tem ele
a oferecer que Júpiter não tenha? Acreditar nesse Mitra não é melhor do que os disparates de que o Trebélio falava acerca desse nosso amigo trácio.
Décimo cerrou os lábios. - Senhor, acho que há algo mais profundo neste culto. Macro apontou para o símbolo marcado na testa de Décimo. - Percebo bem porque o dizes.
Mas estás apenas a perder tempo, digo-to eu. Júpiter, o maior e melhor dos deuses, e o resto dos nossos, cagam de alto nos deuses de todos os outros.
- Talvez seja isso aquilo em que acredita agora, senhor. Mas pedirei a Mitra que lhe mostre o verdadeiro caminho, em todo o caso.
Macro encolheu os ombros. - Reza lá o que quiseres. Não vai mudar nada. Lançarei a minha maldição pessoal sobre quem quer que diga outra coisa.
Cato suspirou e voltou a considerar a questão do centurião Querto. Era evidente que o homem tinha qualidades de guerreiro e líder, e que estava a cumprir as suas
ordens de uma forma que dava total satisfação aos seus superiores. Um homem assim não abdicaria da sua posição de boa vontade. Pelo contrário. E Bruccium estava
tão longe de Glevum que obrigaria Cato a impor a sua própria autoridade para assumir o comando do forte e da guarnição. Era uma perspetiva muito pouco animadora,
e quanto mais pensava nela mais difícil lhe parecia o desafio que ia enfrentar.
Na manhã seguinte, a estrada entrou nas montanhas siluras, seguindo às curvas pelo espaçoso vale por onde corria o Isca. O rio era largo e escuro, engrossado pela
chuva que tinha tombado nos primeiros meses do ano, e pela neve dos cimos das montanhas, que tinha derretido e alimentado os seus afluentes. Ao longo da estrada
havia mais fortins, cujas sentinelas vigiavam com evidente ansiedade a cinzenta paisagem em redor, por trás das suas vulneráveis paliçadas. Os engenheiros militares
tinham derrubado as árvores mais próximas dos dois lados da estrada para remover a cobertura vegetal que podia ser usada para emboscar as patrulhas ou colunas de
abastecimento que passassem pelo vale. Para além do terreno desbravado, as árvores erguiam-se majestosas, e as sombras que projetavam sob as ramagens eram escuras
e tinham um aspeto impenetrável. À distância, no local em que o terreno subia de forma íngreme, a linha de árvores dava lugar a encostas rochosas onde imperavam
ervas longas e arbustos, vergastados e deitados pelo vento que soprava sobre as montanhas.
A estrada tomou um curso cheio de curvas e contracurvas que circundavam os afloramentos rochosos e as colinas, e a conversa que se tinha estabelecido no seio do
grupo de cavaleiros esmoreceu, já que os nervos de toda a gente começaram a ser afetados pela paisagem opressiva e pela real possibilidade de estarem a ser observados
pelo inimigo. Cato tinha colocado e apertado o capacete, e juntou-se ao decurião na cabeça da coluna, notando os olhares ansiosos que Trebélio deitava aos dois lados
da estrada.
- Achas que corremos perigo nesta área? - Indagou Cato, sem querer alertar os homens.
- Uma patrulha foi emboscada há poucos dias, não muito longe daqui, senhor. Perderam metade dos homens antes de conseguirem recolher a um fortim. E a verdade é que
o inimigo se tem tornado mais audacioso em tempos recentes. Os siluros têm atacado a zona fronteiriça até ao Severnus em diversas ocasiões.
- Bem, se já fizeram uma emboscada aqui, seria pouco avisado da parte deles repetir o golpe, numa zona onde o poderíamos esperar. Devemos portanto estar em segurança.
O decurião olhou para ele. - Espero bem que tenha razão, senhor. Cato afastou o receio do outro com um encolher de ombros. - Quanto é que nos falta para Bruccium,
na tua opinião? - Meio dia a cavalo até ao último dos fortins. Mais um dia deve chegar para passarmos o colo da montanha e podermos ver o vale a abrir-se à nossa
frente. Mais uns quilómetros e estaremos lá.
- Ótimo. Trebélio lançou um sorriso tímido. - Para mim sê-lo-á certamente. Mal posso esperar por deixar estas malditas montanhas nas minhas costas e voltar para
os braços da minha mulher em Glevum.
- Oh? Sortudo. - Suponho que sim. Não é nenhuma finória lá da Itália. Nem sequer gaulesa. É uma miúda daqui, meio silura, chama-se Garwhenna. Não é grande coisa
à vista, mas é forte e leal. E ensinou-me alguma coisa da língua deles. O que dá muito jeito quando tenho que negociar com os nativos, para conseguir rações.
- Calculo que sim. Ficaram em silêncio por momentos, até que o decurião apontou para uma curva no caminho, a uns quatrocentos metros, onde uma falésia rochosa se
destacava na encosta do vale.
- Há um fortim logo a seguir àquela curva, senhor. Faremos uma paragem para descansar os cavalos e para recolher o relatório do optio, com informações sobre o efetivo
e o estado dos abastecimentos.
- Muito bem. - Respondeu Cato, ausente. A chuva tinha-se transformado numa névoa molhada que tudo ensopava, e ele já imaginava um período de calor e secura antes
de voltarem a colocar-se a caminho. Nesse momento, ouviu um som abafado que se destacou sobre o ruído dos cascos a martelar as lajes do caminho. Num instante ficou
alerta, a esforçar os ouvidos. Perguntou-se se tinha imaginado o que ouvira. A ansiedade do decurião estava a pegar-se a ele. Mas mais valia ser prudente do que
arrependido. Puxou pelas rédeas e ergueu a mão direita.
- Alto! Ao seu lado, o decurião refreou a montada, e o resto da coluna deteve-se também, permitindo que a quietude da paisagem em redor se fechasse sobre eles. Macro
levou o cavalo para a frente até se juntar ao amigo e ao decurião.
- O que foi? - Ouvi qualquer coisa. Ali à frente. Macro escutou com toda a atenção e acabou por abanar a cabeça. - Não ouvi... E então soou de novo. O longo e profundo
apelo de um corno de guerra, abafado pela cortina de neblina e pela massa da falésia que se erguia na paisagem. Tinha passado muito tempo desde a última vez que
Cato ouvira aquele som, mas não havia como confundi-lo. Aquele chamamento estridente provinha de um corno de guerra celta.
13
É uma emboscada! - Exclamou Trebélio, de olhos esbugalhados pelo medo, enquanto olhava assarapantado para as árvores dos dois lados da estrada, que ficavam perfeitamente
ao alcance do lançamento de um dardo. - Temos que sair daqui!
- Espera! - Ordenou Cato. - Compõe-te! És um oficial, caralho. - Virou-se para Macro. - Fique aqui. Diga aos homens para largarem as bagagens e se prepararem para
o combate. Tratem disso sem fazer muito barulho. Eu e o decurião vamos avançar para ver o que se passa.
- Vamos? - Trebélio reagiu com espavento. Mas, ao notar o olhar furioso de Cato, o decurião esforçou-se por controlar os nervos, e assentiu. - Sim, senhor.
- Vamos, então. - Cato lançou o cavalo numa corrida ritmada. Depois de hesitar ainda um breve momento, o decurião imitou-o, e Macro virou-se para o esquadrão e para
Décimo e respirou fundo, pronto para gritar as ordens. Então apercebeu-se do que estava prestes a fazer, e falou em tom quase de murmúrio.
- Bom, rapazes, vamos lá a fazer isto sem grande barulheira, sim? Deixem as bagagens no chão...
À medida que a estrada começava a rodear a base da falésia, Cato refreou o cavalo, seguindo a trote até por fim se deter por completo. O som do corno era agora mais
percetível, e conseguia também escutar homens a gritar. Olhou para a arriba e reparou que naquele ponto não tinha mais do que uns quinze metros de altura. Tinham
tombado alguns penedos para a berma da estrada, e isso parecia tornar possível a subida.
- Segura no meu cavalo. - Ordenou Cato, enquanto descia da sela; começou a trepar pelas rochas, escalando o penhasco.
O decurião olhou para ele sem disfarçar o alarme que sentia. - Senhor, onde vai? - Espreitar para o terreno ali à frente sem ser visto. - Cato fez uma pausa e olhou
para baixo por cima do ombro. - Vê se aguentas aí até eu voltar.
Não esperou pela resposta e prosseguiu, testando cuidadosamente cada apoio das mãos e dos pés, a caminho do cimo. Era uma escalada pequena, mas respirava pesadamente
quando conseguiu içar-se sobre o bordo que se desmoronava e rastejou para longe, de forma a garantir que o rochedo não cedia debaixo do seu peso. Então levantou-se
com toda a cautela e olhou na direção de onde vinha o som que voltara a fazer-se ouvir. Do outro lado da colina, a estrada seguia a direito para o vale, até um pequeno
outeiro no cimo do qual se situava o posto romano. À sua volta, num círculo desalinhado, avistavam-se umas cem figuras, armadas de lanças e escudos. Alguns usavam
elmos, mas a maioria tinha a cabeça descoberta, ostentando longos cabelos escuros apanhados por trás da nuca. Enquanto Cato observava a cena, mais alguns emergiram
do meio das árvores a curta distância, transportando um toro pesado. Dirigiram-se diretamente para o fortim, com uma intenção bem evidente. Cato assegurou-se de
que não havia mais inimigos visíveis nas redondezas antes de descer para junto de Trebélio, pegar nas rédeas e voltar a trepar para a sela.
- O inimigo está a atacar o fortim. Não temos tempo a perder se queremos salvá-los!
Cato virou-se para onde Macro esperava e fez-lhe sinal para se aproximar. Pouco depois os homens do esquadrão estavam junto à curva da falésia e aguardavam ordens.
Livres do peso dos alforges e das sacas de ração, os cavalos estavam agitados, e fungavam ansiosos, enquanto os cascos raspavam o solo. Décimo, na sua mula, foi
o último a chegar, armado com um pequeno escudo redondo e a sua velha espada militar dependurada do cinturão que levava ao ombro.
- O inimigo está a tentar tomar o posto aqui perto. - Explicou Cato, enquanto a sua mente trabalhava a toda a velocidade para estabelecer um plano. - Têm toda a
atenção concentrada nos nossos camaradas auxiliares, por isso nem vão dar pela nossa aproximação, até ser demasiado tarde. Ficarão presos entre nós e a guarnição.
Quando rodearmos a falésia, quero que formem uma linha de combate e sigam o meu passo. Temos que os atingir todos ao mesmo tempo, de forma a ter o máximo impacto
possível. Quem se atrever a adiantar-se mete-se numa carga de trabalhos de merda. Mais especificamente, num mês de faxina às latrinas.
Alguns dos homens riram perante a piada pouco conseguida; os outros, incluindo Trebélio, sorriram, e Cato ficou certo de que não o iam deixar mal na refrega próxima.
- Quando der a ordem para carregar, deem-lhes com toda a força. Destrocem-nos, e persigam-nos. Nada de piedade, até se tornar claro que eles perderam a vontade de
combater. - Percorreu com o olhar os rostos à sua frente, para ter a certeza de que todos percebiam a sua intenção. O ar ávido da maior parte das feições disse-lhe
tudo o que precisava de saber. Fez a montada rodopiar e pegou na espada curta. Tinha intenção de arranjar uma espada longa, de cavalaria, assim que chegasse a Bruccium.
- Preparem as armas! Macro, Décimo, Trebélio e Cato desembainharam as espadas, enquanto os homens colocavam as lanças em posição de ataque. Cada um ajeitou o escudo
que antes levava às costas, de forma a proteger o flanco esquerdo, por cuja mão passaram as rédeas. Durante o combate, dificilmente teriam ocasião de as usar; por
isso, os homens verificaram a posição na sela, e prepararam-se para controlar as montadas com as pernas e os calcanhares.
Cato baixou a ponta da sua espada. - A trote! Avançar! A coluna começou a mover-se com um tilintar de metais, fungadelas dos cavalos e rápidos brados dos cavaleiros
para as manterem sob controlo. Macro acelerou o seu animal até se ver ao lado do amigo.
- E cá vamos nós outra vez. Cato manteve o olhar fixo na estrada. Ao rodear a base da falésia, avistou o inimigo a algumas centenas de passos; os guerreiros celtas
tentavam atravessar o fosso que rodeava o fortim. Alguns lançavam dardos, outros pedras, enquanto os auxiliares ripostavam com lanças e projécteis de funda. Já havia
vários inimigos abatidos pelo solo. Mas o grupo com o aríete tinha conseguido alcançar o portão, e um estrondo ressoou pelo ar quando o lançaram pela primeira vez
contra as tábuas que defendiam a entrada do posto romano.
- Formem a linha! - Ordenou Cato, e os homens ajustaram o passo dos animais de forma a alinharem-se e a estenderem-se pelos flancos numa linha; já estavam a menos
de duzentos passos dos mais próximos dos guerreiros nativos. Contudo, já tinham sido vistos. Havia rostos a voltarem-se, e os gritos e brados de triunfo que soavam
um momento antes transformaram-se rapidamente em avisos e alarmes. Os homens com o aríete interromperam a sua tarefa, largaram o toro e começaram a recuar.
O momento de surpresa tinha terminado. O chefe do grupo de guerreiros deu várias ordens aos seus homens, e estes viraram-se para enfrentar a carga do esquadrão romano,
formando uma linha de defesa. Cato apercebeu-se de que se estava a esvair a possibilidade de esmagar o inimigo na primeira vaga de ataque. Se eles conseguissem agrupar-se
e apresentar uma parede de lanças, teriam grandes hipóteses de resistir ao assalto dos cavaleiros. Ao mesmo tempo, porém, era vital que Cato e os seus homens conseguissem
um impacto simultâneo, para obter o efeito pretendido. Em menos de duas batidas de coração pesou as opções que se lhe apresentavam, calculando a distância, o tempo
que ainda levariam a percorrê-la, e a possibilidade de dispersão do grupo, já que nem todos os cavalos seguiam à mesma velocidade. Respirou fundo, espetou decidido
a espada no ar na direção dos nativos e gritou a plenos pulmões.
- À carga! À carga! O grito foi ampliado por Macro, de dentes cerrados e lábios arrepanhados num sorriso feroz, enquanto fazia voltear a espada sobre a cabeça e
mantinha as rédeas apertadas na mão esquerda; Trebélio e o seu esquadrão entoavam o seu grito de guerra e apontavam as lanças, prontos a derrubar os inimigos que
pudessem alcançar. Décimo vinha na retaguarda, as pernas quase a bater no solo enquanto incitava a mula que protestava e o obrigava a usar a espada para lhe fustigar
o flanco e fazê-la avançar. Cato sentia o uivo do vento nos ouvidos e era martelado no rosto pela chuva gelada, e o coração batia-lhe desalmadamente enquanto aperrava
os flancos do animal e se inclinava para a frente. O acre cheiro do pelo do cavalo encheu-lhe as narinas, e a espuma que saltava do focinho salpicou-lhe as maçãs
do rosto. Olhando para diante, reparou que alguns dos guerreiros tribais se preparavam para receber a carga, afastando os pés e firmando-os, agachando-se e assestando
as pontas metálicas de lanças e espadas contra os cavaleiros que se dirigiam velozmente para eles. Outros tinham formado pequenos grupos, e alguns corriam para a
segurança das árvores, debaixo dos insultos e maldições do líder, antes deste se virar também para enfrentar os romanos com uma expressão de ódio profundo que lhe
distorcia as feições. O homem que empunhava o corno soprava com todas as forças para dar coragem aos seus camaradas, e os bravos corações que neles pulsavam responderam
com um animado coro de desafio.
Uma rápida espreitadela para ambos os lados revelou a Cato que a linha de cavaleiros estava em risco de se desagregar, pelo que o jovem oficial respirou rapidamente
e lançou um grito.
- Mantenham a linha! Só os que se encontravam mais próximos o escutaram e obedeceram à ordem, tentando ajustar o passo das suas montadas. Mas antes que Cato pudesse
fazer qualquer outra coisa, a formação romana estava em cima do inimigo. Surgiu uma massa de rostos indistintos, marcados pela fúria e pelo medo, alguns com padrões
azulados pintados no corpo, e logo um impacto no flanco esquerdo quando o primeiro cavalo se lançou contra um magote pouco denso de guerreiros celtas, embatendo
num escudo. O animal soltou um relincho assustado, e o cavaleiro usou a lança para trespassar o pescoço do homem que tinha sido derrubado. Cato apercebeu-se de que
os outros nativos se aglomeravam em volta do cavalo, lançando golpes de espada e lança, mas a sua atenção foi solicitada pela linha de homens que se apresentava
à sua frente, e pelo líder nativo na retaguarda, que não parava de berrar encorajamentos aos seus homens. Aquele grupo parecia mais disciplinado do que a maioria
dos seus camaradas, e estavam também mais bem equipados, com escudos orlados a bronze; alguns usavam mesmo capacetes e armaduras, muito provavelmente tirados a cadáveres
de romanos.
Um dos homens de Trebélio carregou diretamente sobre as lanças do grupo, mas o cavalo empinou-se ao deparar com as pontas metálicas aceradas e desviou-se para o
lado, obrigando o cavaleiro a lutar para se manter na sela. Cato mal teve tempo para puxar pelas rédeas e desviar-se para a direita, de forma a evitar uma colisão.
Entretanto, outros romanos entravam já em contacto com o inimigo, golpeando os guerreiros enquanto faziam os cavalos variar de direção para evitar transformarem-se
em alvos fáceis. A voz de Macro fez-se ouvir por cima do clamor da batalha.
- A eles, rapazes! Desfaçam-nos! Cato cerrou as mandíbulas e arreganhou os dentes, enquanto localizava um alvo na extremidade da linha defensiva, um guerreiro alto
e seco, com melenas de cabelo escuro a emoldurarem um rosto franzido de ira assassina. Empunhava uma lança pesada com as duas mãos, e avistou Cato ao mesmo tempo,
fazendo rodar a ponta na direção do oficial romano enquanto se firmava no solo e endurecia a postura. Cato castigou os flancos do cavalo com os calcanhares e o animal
saltou em frente, num movimento repentino que surpreendeu o adversário, o desconcentrou e o fez dar um passo instintivo para trás, o que permitiu a Cato desferir
um golpe selvagem, fazendo a espada curta descrever um arco descendente. Não tinha qualquer esperança de atingir o adversário, estava sim a tentar atingir o cabo
da lança. O inimigo puxou-a para trás, o que a fez bater e deslizar ao longo da espada de Cato, num impacto ruidoso mas inócuo para ambos. Os dois homens recuperaram
posições e tentaram novas iniciativas. Cato foi mais rápido, fazendo a montada avançar de novo e golpeando. Desta vez a lâmina atingiu a mão do guerreiro, decepando-lhe
dois dedos. O homem soltou um urro de raiva ao ver o sangue a jorrar dos cotos. Desviou a espada do jovem e avançou sobre ele, com a lança bem apontada ao corpo
de Cato.
Apesar do treino de combate, o cavalo fez menção de se empinar, o que fez com que o golpe errasse Cato e atingisse a própria montada, rasgando-lhe o flanco. O animal
escoiceou com o trem dianteiro, acabando por atingir o guerreiro, fazendo-o rodar e cair por terra de costas. A lança estava alojada entre as costelas do animal,
que se empinou de novo enquanto agitava a cabeça para todos os lados. Cato sentiu-se aterrado perante a dificuldade de controlar o animal, puxando pelas rédeas com
toda a força e gritando.
- Calma, calma aí! Em agonia, o cavalo ignorou as suas ordens desesperadas e prosseguiu, avançando sobre a linha inimiga antes de tropeçar no solo acidentado e cair
pesadamente sobre o flanco direito, fazendo com que a lança penetrasse ainda mais profundamente nos seus órgãos vitais, até que o cabo se quebrou com um estalo.
Cato soltou as rédeas e tentou saltar para longe do animal moribundo. Sentiu que perdia o contacto com o assento da sela, avistou o solo a dirigir-se ao seu encontro
e caiu sobre a erva. O impacto fê-lo perder o fôlego; avistou num relance o céu cinzento, mas logo o rosto mergulhou na lama e na relva. Conseguiu erguer a cabeça,
o suficiente para avistar a face do homem que tinha ferido, a curtos centímetros de distância, ainda a contorcer-se com dores e a lançar imprecações contra o atacante.
Nesse momento sentiu um tremendo golpe nas costas, que o empurrou de novo para o solo. Lutou para respirar, com o enorme peso do cavalo a esmagá-lo por momentos,
enquanto o animal soltava um longo relincho de terror e fazia dançar os cascos no ar.
Cato sabia perfeitamente os danos que um cavalo ferido podia provocar à sua volta com os cascos, e aninhou-se no solo, sem deixar de sentir a pressão dolorosa na
sua perna direita, já que o cavalo moribundo o prendia naquela posição. Apercebeu-se então de que já não tinha a espada na mão. Ergueu rapidamente a cabeça e avistou
o punho do gládio no meio da erva em frente ao seu rosto, e do outro lado o brilho malévolo nos olhos do guerreiro que também tinha sido aprisionado no solo pelo
cavalo ferido de morte. O outro reagiu primeiro, agarrando na arma com a mão mutilada. Cato lançou a mão esquerda, de dedos em garra para prender firmemente o pulso
do outro antes que ele pudesse usar a espada. Estavam ambos presos pelo cavalo, mas isso não os impedia de lutar com fúria pelo controlo da arma. Torcendo-se todo,
Cato conseguiu usar a outra mão para agarrar os cotos sanguinolentos dos dedos decepados do guerreiro nativo, e os apertar selvaticamente. Um uivo de agonia cruzou
o ar, e depressa os outros dedos largaram o punho, permitindo a Cato arrancar o gládio ao inimigo e empunhá-lo com a mão direita. Atacou o peito do adversário, e
este tentou defender-se com as mãos nuas, o que resultou em novos ferimentos. Cato puxou atrás a lâmina, firmou-se sobre o solo e golpeou com toda a força, até sentir
a ponta rasgar o peito do guerreiro celta. Libertou a lâmina com um puxão e deu nova estocada. O outro respondeu com um grunhido explosivo e tombou para trás, enquanto
murmurava
palavras ininteligíveis e deixava o olhar perder-se no céu, sem parar de tentar pressionar com os dedos da mão intacta as feridas de onde o sangue jorrava a cada
pulsação.
Cato apoiou-se num cotovelo, de respiração pesada, mantendo a espada que pingava sangue apontada na direção do outro. Tornou-se por fim evidente que ele já não representava
uma ameaça. Cato tentou olhar em redor para avaliar a forma como decorria a escaramuça, mas a altura da erva e o corpo ainda fremente do cavalo bloqueavam-lhe a
vista. O tilintar das lâminas, o estrondo dos choques das armas contra os escudos, e o som menos claro dos impactos em carne e músculo, pontuado por gritos de dor,
fúria e triunfo, vinham de todos os lados. Cato sentia uma dor gritante na perna direita. Olhou para lá e percebeu que estava presa por baixo da pesada massa da
sela de couro. Tentou libertá-la, mas a dor tornou-se insuportável, pelo que se voltou a apoiar no cotovelo com um impropério. resultante da frustração que sentia.
A cabeça do guerreiro inimigo rolou para o lado e ele sorriu perante o evidente desconforto de Cato, até que um fio de sangue lhe jorrou dos lábios, fazendo-o tossir
e engasgar-se, lançando gotículas de sangue sobre o rosto do romano. O homem debateu-se ainda numa fútil tentativa de evitar que o sangue se acumulasse nos seus
pulmões e o sufocasse.
- Foda-se. - Protestou Cato para si mesmo. - Não vou morrer aqui Tentou de novo libertar-se, firmando o pé esquerdo contra a garupa do animal enquanto esforçava
os músculos para tentar soltar a perna aprisionada. Mas o seu esforço era vão e sem esperança, já que o peso do animal moribundo recaía sobre a sela e tornava impossível
extrair a perna de debaixo dela. Por fim, Cato deixou-se tombar de novo sobre os cotovelos.
- Merda... merda... merda... Nada mais podia fazer, pelo que agarrou a espada com firmeza e aguardou atentamente que alguém se aproximasse, fosse amigo ou inimigo.
Macro desferiu um golpe descendente, fazendo uma careta quando o gume penetrou profundamente no crânio do adversário com um som como se quebrasse a casca de um grande
ovo. O corpo do guerreiro entrou em convulsões, e a espada tombou-lhe dos dedos incapazes. No instante seguinte o homem caiu ao lado da arma, as pálpebras a piscarem
rapidamente enquanto sangue e massa cinzenta se escoavam do buraco no crânio. Macro endireitou-se na sela e lançou o olhar sobre os homens que combatiam em redor.
Nenhum inimigo estava por perto para representar uma ameaça imediata, pelo que Macro se dedicou a avaliar rapidamente a situação.
A formação inimiga tinha sido desbaratada, e travavam-se agora uma série de duelos no terreno em frente ao fortim. Havia já inúmeros corpos espalhados pelo solo,
e Macro estimou que talvez já um terço dos homens de Trebélio tivesse sido abatido. Os outros estavam em clara inferioridade numérica, e agora que tinha passado
o impacto da carga, os guerreiros nativos estavam a começar a prevalecer, já que eram muito mais numerosos do que os romanos. Sob a vista de Macro, vários dos celtas,
levados pelo chefe, rodearam o porta-estandarte do esquadrão. Este mantinha o longo cabo junto ao corpo, enquanto ameaçava qualquer adversário que se pusesse ao
alcance da longa lâmina da sua espada, a grande espada da cavalaria romana. Mas os opositores eram demasiado numerosos, e um, mais afoito e corajoso do que os seus
camaradas, saltou para a frente e conseguiu arrancar as rédeas das mãos do homem, obrigando de imediato o cavalo a torcer o pescoço, de forma a tentar fazer o romano
cair da sela. Foi a vez do chefe avançar e aplicar uma estocada no flanco do romano, enquanto outro nativo roubava o estandarte e o exibia com evidente júbilo. Macro
reparou na expressão mortificada na face do porta-estandarte, enquanto este usava o resto das suas forças para manobrar o cavalo com os joelhos e aplicar uma poderosa
espadeirada nas costas do guerreiro que se tinha apoderado da insígnia do esquadrão. O estandarte rolou pelo chão ao mesmo tempo que o homem que o tinha exibido,
e os camaradas deste saltaram sobre o cavaleiro romano, arrancando-o da sela antes de o estriparem já no solo.
Macro notou que Trebélio e quatro dos seus homens estavam mais perto da ação do que ele, pelo que lhes lançou um brado.
- Decurião! Salva o estandarte! Trebélio olhou em redor e avistou Macro, que apontou um dedo na direção dos nativos que tinham acabado de liquidar o porta-estandarte
e já se preparavam para fugir com o troféu. O sucesso daquele bando tinha encorajado os outros, e Macro percebeu que a sorte da batalha se jogava naqueles instantes.
Virou-se para o fortim.
- Vá lá, seus sacanas! Venham ajudar-nos! O comandante da guarnição tinha lido bem a situação, e ainda as palavras de Macro lhe morriam nos lábios e já os portões
se abriam para deixar sair um grupo de auxiliares em formação cerrada, que se encaminhou para o local da escaramuça. Macro sentiu-se aliviado, enquanto voltava a
erguer a espada e procurava um novo adversário ali perto. Foi nesse momento que percebeu que não havia sinal de Cato. Sentiu um arrepio frio na base da espinha e
voltou a perscrutar a cena em redor.
- Cato! Senhor! Onde está? Avistou então uma mancha vermelha na relva a uns cinquenta passos, e percebeu que era a estreita crista de crina do capacete do prefeito,
pelo que puxou bruscamente pelas rédeas para virar o cavalo na direção do amigo. Notou a presença da carcaça do cavalo e percebeu de imediato que Cato devia estar
preso debaixo do animal. Ali perto, um dos nativos tinha acabado de despachar um legionário com a sua lança, e libertava a ponta ensanguentada. Olhou em volta e
a sua atenção foi atraída pela mesma crista de tom vermelho. Lançando um olhar cruel que não deixava dúvidas sobre as suas intenções, virou-se e encaminhou-se para
Cato.
- Foda-se, é que nem penses! - Rosnou Macro, enquanto incitava o cavalo para diante.
Cato sentiu a aproximação do inimigo antes de o ver; virou-se e avistou um vulto de elevada estatura a avançar por entre os tufos de ervas altas, dirigindo-se para
si. Envergava uma espessa capa castanha sobre uma túnica negra, e perneiras apertadas com tiras cruzadas. Um pesado cordão de prata pendia-lhe ao pescoço, e o cabelo
ensopado pela chuva miudinha escorria-lhe pelos ombros. Cato reparou em todos os pormenores num instante, antes de voltar a tentar soltar a perna, grunhindo com
o esforço. O cavalo tinha acabado por se esvair em sangue, e jazia imóvel, um peso morto que pressionava a sela e a perna presa debaixo dela contra o solo. Pôs-se
de lado e soergueu-se o mais possível sobre o cotovelo esquerdo, de espada aperrada e dirigida contra o guerreiro que chegava.
O homem apercebeu-se de que ia ter uma tarefa fácil, e sorriu cruelmente enquanto levantava a lança e se preparava para trespassar o oficial romano, impotente para
o travar. Cato cerrou os dentes e devolveu-lhe o olhar de ódio, determinado a não mostrar qualquer receio mesmo perante a morte iminente. Sentia apenas uma grande
pena por partir daquela forma, espetado como uma cabra num sacrifício, uma morte ignominiosa, até mesmo vergonhosa. Esperava que quando levassem as notícias da sua
morte a Júlia, em Roma, não lhe revelassem todos os detalhes, e que ela o chorasse como o herói que sempre almejara ser. Não daquela forma.
O guerreiro puxou o braço atrás para desferir o golpe fatal, e Cato fletiu os músculos do braço. A ponta da lança desceu então, a rodar como uma folha larga ao vento,
para produzir um rasgão tão largo quanto fosse possível. Cato aparou o golpe no momento ideal, sem se precipitar, o que o teria feito falhar por completo o cabo
da lança; a lâmina do gládio intercetou a ponta da lança com um estalido metálico, e a lâmina assassina foi desviada da sua garganta, passando-lhe por cima do ombro
e assobiando-lhe ao ouvido, tão próxima que sentiu a agitação do ar na pele.
O oponente soltou um grunhido de frustração e puxou atrás a lança para tentar novamente. Desta vez apontou à espada de Cato, lançando uma estocada horizontal e forçando
a lâmina para o lado com tanta força que Cato quase perdeu o controlo da arma e sentiu a dor do impacto a subir-lhe pelo braço acima. Depois o guerreiro inimigo
rodou o cabo da lança rapidamente, desferindo uma pancada potente na parte lateral do capacete do jovem. Atordoado, Cato tombou para trás, indefeso, o que fez com
que o guerreiro lançasse um urro de triunfo e erguesse a lança ao alto uma última vez, para desferir o golpe fatal.
- Nada disso! - Berrou Macro, e o outro hesitou e olhou à volta. Tempo suficiente para o cavalo o alcançar e Macro se lançar da sela sobre o homem, e acabarem os
dois a rolar pelo solo lado a lado. Foi uma queda brutal, e ambos perderam o controlo das suas armas. Macro sacou a adaga que levava ao cinto e cravou-a no inimigo,
rasgando o material áspero do manto. A espessura do tecido salvou o outro, já que só a ponta da faca lhe penetrou na pele. Quando Macro conseguiu repetir o ataque,
já ele tinha rebolado para longe, tendo recebido apenas uma ferida superficial no ombro. Ainda assim, a constituição baixa e robusta do centurião dava-lhe vantagem
naquele tipo de combate corpo-a-corpo, e este depressa estava de pé, agachado, lançando-se de novo sobre o adversário e tentando prendê-lo sob os joelhos. Ao mesmo
tempo, agarrou-lhe os cabelos para puxar a cabeça para o lado e deixar exposta a garganta. Puxou o braço atrás para o golpear sob o queixo.
- Macro! Espere! - Gritou Cato. O centurião rosnou uma resposta. - Foda-se, espero o quê? - Não o mate, quero-o vivo para podermos interrogá-lo. Macro respirou fundo,
evidentemente frustrado, e assentiu, antes de se pronunciar em voz baixa.
- Bom, pá, então vais-te apagar. Rodou o pulso e bateu com o punho da adaga no crânio do homem, deixando-o desacordado. O homem soltou um gemido e ficou imóvel,
batendo com a cabeça no solo quando Macro lhe soltou os cabelos. O centurião guardou a adaga, recolheu também a espada que tinha voado para longe, e virou-se para
Cato, com as mãos na cintura.
- Mas a que é que andas tu a brincar? A dormir em serviço? - Engraçadinho. - Resmungou Cato. - A verdade é que estou aqui numa posição difícil, Macro. Vai uma ajuda?
Ouviu-se um restolhar de folhas por perto; uma secção de auxiliares, comandados por um optio, corria na direção de Macro. O optio deteve-se e fez uma saudação apressada.
- Caio Lentulo, senhor. Macro contemplou-os com ar de poucos amigos. - Grande sentido de oportunidade, optio. Conseguiram escapar ao combate. Mas ao menos podem
fazer qualquer coisa de útil. Tirem este maldito cavalo de cima do prefeito.
O optio e os seus homens pousaram as lanças e os escudos e puxaram a carcaça até a afastarem de Cato. Este teve que cerrar os dentes, já que aquela movimentação
lhe provocou uma renovada agonia na perna.
- Cuidado! - Soltou, irritado. Por fim a bota ficou livre, e Cato sentou-se para inspecionar a própria perna. As tachas metálicas aplicadas no couro da sela tinham-lhe
rasgado a carne por baixo do joelho, onde a pele ficava exposta, abaixo da bainha das calças curtas. O sangue escorria sem parar, e Cato lançou uma imprecação enquanto
tentava pôr-se de pé. Tinha a perna dormente, e vacilou ao tentar dar um passo. Macro agarrou-o de imediato pelo braço e manteve-o em pé.
- Senhor, está bem? - Oh, em grande, obrigado. Próxima questão idiota? Macro contemplou ansioso a perna do amigo. - Alguma coisa partida? Cato abanou a cabeça e
endireitou-se para avaliar o que o rodeava. O inimigo fora derrotado. Dezenas de corpos jaziam espalhados pelo solo, bem como alguns cavalos. Trebélio reagrupava
os sobreviventes do seu esquadrão, e Cato notou que só cerca de metade dos homens que se tinham lançado à carga ainda se mantinha em cima das selas. Outros estavam
feridos, e aninhavam-se sobre o solo. Algumas das montadas estavam sem cavaleiro e pisoteavam o solo, nervosas. Os últimos guerreiros nativos ainda podiam ser vistos
a desaparecer por entre as sombras das árvores, e Cato contou, numa estimativa rápida, cerca de trinta abatidos, pelo menos. Os auxiliares circulavam por entre os
corpos no solo, dando o golpe de misericórdia aos que ainda estivessem vivos. Cato anuiu para si mesmo, satisfeito. Tinha sido uma escaramuça curta e brutal, mas
o fortim tinha sido salvo, e o inimigo recebera uma dura lição.
Apercebeu-se então de que o esquadrão de Trebélio perdera o estandarte. Seria porém uma tolice perseguir o inimigo pelos bosques na tentativa de o recuperar. Uma
inútil perda de vidas. A perda do símbolo seria penosa para o decurião, especialmente no regresso a Glevum. O exército não aceitava nenhum tipo de desculpas quando
se tratava da perda de um dos estandartes, mesmo que fosse da mais pequena e insignificante das unidades. No mínimo, cairia em desgraça. Seria despromovido para
as fileiras, e aquela mancha na sua folha militar nunca seria apagada. Antes isso, porém, do que perder o resto do esquadrão numa vã tentativa de recuperar a sua
honra. Talvez o estandarte viesse a ser recuperado a seu tempo - quando os siluros fossem esmagados e as suas terras adicionadas à província da Britânia.
- Macro, diga ao Trebélio para meter os homens no fortim, antes que ele resolva fazer alguma estupidez.
Macro anuiu. - Sim, estou a ver. Cato ordenou a dois dos auxiliares que o ajudassem a seguir até ao portão, e a outros dois que levassem o guerreiro ainda inconsciente.
Depois de ter a perna tratada, e de os feridos receberem cuidados, haveria muito tempo para ver que informações conseguiriam extrair do prisioneiro.
14
Mrebélio deu um passo atrás, afastando-se do prisioneiro, enquanto limpava o sangue dos nós dos dedos com um trapo. - Acho que já está em condições de ser interrogado.
Cato anuiu; estava sentado num banco alto, na messe do posto. As feridas na perna, sem grande seriedade, tinham sido limpas e ligadas, mas a articulação do joelho
tinha sido muito mal tratada durante a sua breve luta com o guerreiro celta, e fazia com que andar fosse uma agonia. Por isso, um dos auxiliares tinha-lhe improvisado
um apoio que o ajudava a deslocar-se até que o joelho recuperasse. Não dava muito jeito, refletiu Cato, mas calculava que no dia seguinte já estaria bem. O que era
bastante mais do que se podia dizer do prisioneiro, que estava a pagar um elevado preço pela sua tentativa de matar o prefeito.
O siluro estava de peito nu e de mãos atadas à frente do corpo, mas o cabo de uma lança tinha sido passado pelos ângulos dos cotovelos e por trás das suas costas.
Uma corda estava presa ao cabo, e a outra ponta tinha sido passada sobre a espessa viga que suportava o telhado do edifício. Trebélio
tinha puxado pela corda para forçar o prisioneiro a ficar de pé, apoiado apenas nas pontas dos pés, antes de a amarrar a um poste. Depois disso, tinha-se dedicado
a um ritmado espancamento, atingindo o homem na face e no estômago. Sem exagerar, de forma a evitar qualquer ferida incapacitante, mas com a força suficiente para
provocar considerável dor e receio. Trebélio explicara que tinha tido treino de frumentário, um interrogador, e ao vê-lo a exercer os seus dons, Cato concluiu que
tinha aprendido bem o seu ofício. Macro estava sentado a uma mesa ali perto. Debruçado sobre uma tigela de guisado fumegante, mas sem perder pitada dos trabalhos.
Sobre a mesa viam-se um jarro de vinho e duas canecas, além de outra tigela de comida, para Cato, que este deixara intocada.
- Muito bem. - Cato pigarreou para limpar a garganta. - Pergunta-lhe de onde veio o bando de guerreiros a que pertencia. Quero saber onde fica a povoação.
Trebélio traduziu o melhor que pôde para a língua nativa. O siluro olhou para Cato e escarrou uma bola de saliva e sangue na direção do romano, antes de resmungar
qualquer coisa. Trebélio levantou-lhe a cabeça com uma mão e aplicou-lhe com a outra uma tremenda bofetada.
- Chega. - Instou Cato. - O que é que ele disse? Trebélio largou os cabelos do homem, e a gadelha descaiu-lhe para cima do peito.
- Convidou-nos a irmo-nos todos foder, senhor. Macro baixou a colher de bronze e adotou uma expressão chocada. - Mas que falta de maneiras! Digo-vos eu, a perspetiva
de obrigar estes bárbaros a moderarem a sua suja língua faz disto tudo um trabalho verdadeiramente útil. Decurião, informa-o de que, se não passar a demonstrar algum
respeito pelas nossas pessoas, eu tratarei pessoalmente de lhe foder a irmã. E a mãe, e as filhas, se as tiver. Caralho, até lhe fodo os cães de caça, até os bichos
ficarem todos rotos, se ele não começar a pensar em adotar uma atitude mais cooperante. - Acenou com a colher. - Diz-lhe, vá.
Deu-se uma breve troca de palavras, e o decurião não conseguiu evitar um sorriso ao traduzir.
- Diz ele que não percebe porque se dariam os seus cães ao desprazer de o foder, quando ainda há tanto porco à solta por este mundo?
Macro deitou um olhar assassino ao homem, antes de rebentar em gargalhadas sonoras e abanar a cabeça.
- Este tem tomates, lá isso é certo... Pelo menos por enquanto. - Juntou, em tom ameaçador.
Cato fez um gesto a pedir silêncio ao amigo. - Diz-lhe que ele acabará por revelar o que eu quero saber, de uma forma ou de outra. Pode tornar isso fácil, ou podemos
continuar a fazer isto o resto do dia. Durante o tempo que quisermos, até obtermos aquilo que queremos. Não há qualquer vergonha em falar já e se poupar a muita
dor e sofrimento.
Trebélio traduziu e reforçou a mensagem com um murro no estômago do homem, mas ele apenas grunhiu, esforçou-se por recuperar o fôlego e cerrou os dentes num claro
desafio. Cato disse ao decurião para continuar o trabalho, e Trebélio voltou a martelar-lhe o corpo metodicamente, numa ininterrupta série de pancadas no ventre,
nas costelas e na cabeça. O siluro tudo aguentou sem dizer uma palavra, permitindo-se apenas gemer e respirar em golfadas rápidas quando o peito tatuado doía demasiado
para lhe permitir respirar normalmente.
- Bom, isto não nos está a levar a lado nenhum. - Decidiu Cato, por fim. - Temos que tentar outra coisa. Decurião, desamarra-o e tragam-lhe água e pão.
Trebélio limpou as gotas de suor da testa.
- Senhor, se quiser posso experimentar com um pouco de calor. Um ferro quente pelo cu acima é capaz de ser eficaz.
Cato abanou a cabeça. - Agora não. Talvez mais tarde, se isso se tornar necessário. Vamos só tentar pô-lo a falar. Desamarra-o. Procura o Décimo e diz-lhe para nos
trazer alguma comida e água, e vinho para mim e para o centurião.
Trebélio desapertou o nó da corda, e o siluro tombou para o solo com um grunhido de dor, já que o impacto lhe expulsou o ar dos pulmões. Antes de sair da sala à
procura de pão e água, Trebélio arrancou o cabo da lança do meio dos braços do prisioneiro, libertando-lhos. O siluro deixou-se ficar pelo solo, de lado, a ofegar
até conseguir acalmar a respiração; deitou-se então de costas e rastejou nessa posição até junto da parede, onde se sentou apoiado, olhando de maus modos para os
dois oficiais romanos.
Macro acabou a sua sopa e afastou a tigela para o lado. Limpou os lábios nas costas do antebraço.
- Sabes, Cato, dá-me ideia de que ele não gosta lá muito de nós.
Cato sorriu sem vontade. - Viemos até tão longe para lhes oferecer os benefícios da civilização, - prosseguiu Macro, - e é este o agradecimento que nos dão. Às vezes
pergunto-me se estes bárbaros merecem realmente a nossa atenção.
O que tencionas fazer com este, quando o Trebélio tiver terminado?
Cato batucou com a ponta da muleta contra a parte de dentro da bota. - Parece-me bem que este tipo vai mesmo ser um desafio de monta para o decurião. É uma cabeça
dura, sem qualquer dúvida. Teremos que o levar connosco. Pomo-lo em cima de uma das mulas e voltamos a interrogá-lo assim que chegarmos a Bruccium. De certeza que
o Querto tem um interrogador na guarnição.
O siluro levantou de sopetão o olhar, e por momentos Cato viu o medo na sua expressão, até que o prisioneiro voltou a firmar o queixo e a dedicar-lhe um olhar furibundo.
- Viu aquilo, Macro? - O quê? - A reação dele quando mencionei o nome do Querto. Ao que parece, a reputação do centurião nas tribos locais é tão grande como o que
nos disseram.
A porta da messe abriu-se e Trebélio manteve-a aberta para deixar entrar Décimo com uma bandeja de madeira onde se viam um jarro, três canecas, um cantil e um naco
de pão. Pousou a bandeja sobre a mesa e deitou vinho nas canecas, entregando-as aos oficiais.
- Dá-lhe alguma água - Ordenou Cato. - E pão também. Décimo anuiu e aproximou-se do prisioneiro com todas as cautelas, antes de se ajoelhar ao lado do homem manietado.
Tirou a rolha do cantil e mostrou-o ao guerreiro. O siluro hesitou brevemente antes de assentir com a cabeça e abrir os lábios de forma a que o romano pudesse introduzir-lhe
o cantil na boca. Sorveu com vontade, deixando cair água sobre o peito. Quando terminou, deixou a cabeça pender para trás e esperou que Décimo lhe pusesse o pedaço
de pão nas mãos. Esforçou-se por as levar até junto da boca e conseguir arrancar um bocado, que se pôs a mastigar. Cato deixou-o comer durante algum tempo, e depois
voltou-se para Trebélio.
- Pergunta-lhe o nome. - O nome? - Macro franziu o sobrolho. - Para que é que queres saber o nome do homem? Não estás com certeza a pensar em tornar-te amigo dele.
- Macro, deixe-me tratar disto. - Cato fez sinal ao decurião para que traduzisse a sua pergunta. O siluro olhou desconfiado para o prefeito, pensando o que podia
ganhar e perder se fornecesse a informação pedida; tomou uma decisão e deu a resposta.
- Turro. Diz ele. - Estou a ver. - Cato assentiu e bateu ao de leve no próprio peito. - Prefeito Cato. E aquele macambúzio ali é o centurião Macro.
Dado que Trebélio tinha passado a maior parte da hora anterior a espancar o prisioneiro, Cato decidiu que nada havia a ganhar em apresentá-lo formalmente ao prisioneiro.
Em vez disso, optou por continuar à procura de uma abertura na dura carapaça que o guerreiro nativo apresentava. O homem parecia ter quase trinta anos de idade,
e Cato resolveu arriscar um palpite.
- Turro, tens mulher? Família? Depois do decurião traduzir, o siluro deu uma dentada deliberadamente lenta no pão e mastigou longamente, para ganhar tempo. Cato
aceitou o estratagema, enquanto Macro se encostava à parede e cruzava os braços, enfadado. Por fim o homem engoliu o último pedaço de pão e assentiu.
- Sa... Cato sorriu, agradado. - Também eu tenho uma esposa, em Roma. Ela preocupa-se comigo. Mal posso esperar pelo fim desta campanha para me poder juntar de novo
a ela. Ou para ela vir ter comigo, assim que a nova província esteja calma e tenhamos paz.
Turro escutou a tradução e replicou. - Ele diz que se os romanos voltassem a pegar nos navios e se fossem embora, deixando esta ilha para o seu povo, todos poderiam
regressar para junto das suas famílias.
Cato abanou a cabeça com tristeza.
- Infelizmente não é assim tão simples. Muitas das tribos já são nossas aliadas e aceitaram o domínio de Roma, bem como todos os benefícios que daí advêm. É verdade
que há um preço a pagar por eles. Não podemos deixar os nossos novos amigos à mercê de Carátaco e dos seus guerreiros, para os atacarem. Além disso, a reputação
do nosso Imperador depende de conseguirmos estabelecer a paz na Britânia, a qualquer preço, leve o tempo que levar. E deves saber que, quando Roma mete na cabeça
conseguir um objetivo, ele cumprir-se-á, e nada poderá resistir-lhe. Diz-lhe, Trebélio.
O siluro escutou e depois assentiu, pensativo, antes de ripostar. - Ele diz que os romanos e os siluros têm muito em comum. Nenhum deles está preparado para permitir
que a vontade do outro prevaleça. Será uma guerra longa.
Cato encolheu os ombros. - Talvez. Mas duvido. Os nossos soldados são os melhores em todo o mundo conhecido. O resultado final não está em questão, Turro. Acredita
no que te digo. Se os siluros continuarem a seguir Carátaco, tomarão um caminho que os levará à destruição. E ao longo desse caminho apenas haverá sofrimento para
todos os lados. Seria bem melhor enfrentar a realidade e que os guerreiros siluros procurassem a paz com Roma. E assim eu poderia voltar para a minha esposa, e tu,
Turro, regressar ao seio da tua família. Não seria bem melhor assim?
O prisioneiro sorriu e respondeu em tom quase pesaroso. - Mesmo que contigo concordasse, os nossos desejos não teriam qualquer peso junto dos nossos líderes. O teu
Imperador e Carátaco darão seguimento a este conflito até esgotar a nossa última gota de sangue. Por isso, a luta deve prosseguir.
- Para ti não. - Rosnou Macro. - Para ti, queridinho, a luta acabou. De uma forma ou doutra.
Cato ignorou o comentário do amigo e concentrou-se no prisioneiro. Sentia uma certa dose de satisfação perante a última resposta do siluro. Havia portanto um certo
grau de descontentamento com o líder. E deviam existir outros como Turro, muitos outros, homens das tribos que tinham respondido de corações abertos ao apelo para
a luta, imaginando que seria uma causa bem mais gloriosa do que as habituais questiúnculas entre as tribos e os conflitos de pequena dimensão a que davam origem.
Carátaco sabia perfeitamente como atiçar o fogo nos corações dos guerreiros, e as orgulhosas tribos das montanhas deviam ter respondido com todo o entusiasmo. Mas
ao invés de serem conduzidos a uma grandiosa batalha, tinham sido arrastados para uma guerra de atrição que se eternizava, cada vez mais amarga a cada mês que passava.
Ao contrário dos soldados que constituíam o exército romano, os siluros eram lavradores e pastores. Deviam querer regressar para as suas famílias e para o calor
das suas fogueiras, em vez de seguirem os romanos enfrentando os ventos e a chuva gelados das montanhas. Era o momento de tentar aproveitar aquela fraqueza, decidiu
Cato.
Obrigou-se a sorrir enquanto falava com Trebélio. - Pergunta-lhe porque é que tem tanto medo do centurião Querto. O decurião pareceu estupefacto perante a pergunta,
mas encolheu os ombros e traduziu. Turro parou subitamente de mastigar, engoliu em seco, nervoso, e fixou o olhar nas lajes do soalho.
- Essa despertou-lhe mesmo a atenção. - Comentou Macro. Atravessou a sala e cravou a bota na cintura do homem. - Fala.
O guerreiro puxou as pernas para junto do corpo e encolheu-se todo, como um cão a quem o dono tivesse aplicado um corretivo, e começou a falar em voz baixa e assustada.
- Diz que o Querto é um demónio. Que já queimou muitas aldeias e massacrou todas as criaturas que lá encontrou. Até à última criança, ao último cão ou cordeiro.
É mau e cruel, adora deuses das trevas e oferece-lhes sacrifícios de sangue. Não há gesto pérfido que não tenha infligido aos siluros. Quando avança para a batalha,
cobre-se com as peles dos maiores guerreiros que já derrotou. Bebe o sangue dos que chacina, e come-lhes a carne. Os que o seguem são escravos da sua vontade e seguem-lhe
o exemplo. Onde quer que vão, deixam um rasto de morte e destruição. São...
Trebélio pediu ao homem para repetir as suas últimas palavras, e trocaram mais algumas antes de o decurião se virar para os dois oficiais.
- A palavra latina mais próxima é mesmo bárbaros. - Bárbaros? - Macro rebentou às gargalhadas. - Bárbaros! Nós? Olha o descaramento do sacana! Trebélio, sai-me da
frente. Eu já lhe dou os bárbaros.
- Macro, chega. - Interrompeu Cato. - Deixe-o em paz. O prefeito contemplou pensativamente o prisioneiro. Era evidente que o centurião Querto tinha conseguido estabelecer
uma reputação aterradora entre os siluros. Isso era bom. Se era possível instilar o medo no coração do inimigo antes de o enfrentar em batalha, o combate estava
já meio ganho. Como era óbvio, havia algum exagero nos detalhes, tal como eram mencionados pelo homem. Era de esperar, quando os rumores se alimentavam uns dos outros.
Sem dúvida que os métodos do centurião deviam ser brutais, e que, para obter tantas vitórias, ele devia fazer grande aproveitamento do fator surpresa, mas o resto
não fazia qualquer sentido. Histórias para assustar criancinhas. Ainda assim, davam a Cato uma vantagem sobre o prisioneiro. Olhou para Trebélio, e falou em tom
ríspido.
- Pergunta-lhe outra vez onde fica a sua aldeia. Diz-lhe que se não mo disser, o levaremos connosco para Bruccium e o deixaremos nas mãos do Querto, para que seja
ele a dar seguimento ao interrogatório. Ao ouvir a tradução, Turro estremeceu como se tivesse acabado de receber um pontapé, e Cato percebeu que o homem estava verdadeiramente
aterrado pela perspetiva de ser entregue nas mãos do centurião Querto. O siluro juntou as mãos, rastejou ligeiramente na direção de Cato e lançou uma súplica.
Na cara do decurião espalhava-se um sorriso frio de satisfação quando traduziu as palavras do prisioneiro.
- Suplica que o poupe. Que não o leve para Bruccium. Que o envie antes para Glevum. Prefere tornar-se um escravo a enfrentar Querto...Depois houve um palavreado
qualquer, para pedir aos deuses que o salvem.
Cato inclinou-se sobre o homem e picou-o com a ponta da muleta no peito.
- Para isso, diz-me onde fica a aldeia! Diz-me isso e tens a minha palavra
de que tu e o teu povo serão poupados. Tornar-se-ão escravos, claro. Mas escaparão ao fogo e à espada. Diz-me, imediatamente!
Turro produziu um som gutural na garganta e abanou a cabeça, dilacerado entre o terror de enfrentar o inimigo que lhe povoava os mais negros pesadelos e a vergonha
de se sentir um traidor à própria tribo. Rangeu os dentes e baixou a cabeça, fechando-se em si mesmo.
Trebélio deu um estalo com a língua. - Senhor, quer que eu continue o interrogatório? Mais umas cacetadas talvez consigam quebrar-lhe o espírito, agora que conseguiu
deixá-lo cheio de medo.
Cato considerou a situação. Apesar do terror evidente no espírito do guerreiro, este não trairia a sua família. Havia uma hipótese, por remota que fosse, que a coluna
romana fosse alvo de um ataque antes de alcançar Bruccium. Ele devia estar a agarrar-se a essa esperança. Pelo menos até chegarem ao fortim. Só aí deixaria de poder
fugir à escolha que Cato lhe impusera. O prefeito abanou a cabeça.
- Não. Levanta-o. Leva-o lá para fora e amarra-o bem para passar a noite. Trata de garantir que ele não poderá infligir nenhum mal a si mesmo. E diz ao optio que
os homens de serviço devem verificar se ele está vivo de tempos a tempos. E pronto, é tudo por aqui.
Trebélio fez a saudação e levantou o prisioneiro do chão sem contemplações.
- Anda lá, meu lindo, é hora do teu sono de beleza. O decurião empurrou Turro para o exterior e fechou a porta. Cato acenou a Décimo, que se tinha aninhado a um
canto, a roer um bocado de carne seca.
- Quero falar com o optio que comanda este posto. Décimo levantou-se a custo e coxeou para fora da sala. Instalou-se o silêncio, até que Macro apontou para a tigela
de guisado que tinha sido preparada para Cato.
- Importas-te? O guisado já tinha arrefecido, e formado uma massa gelatinosa com uma camada de gordura à superfície. Cato abanou a cabeça.
- Sirva-se à vontade. Enquanto Macro se lançava sobre a sua segunda tigela, o amigo cofiava o queixo e considerava a situação.
- Quanto mais nos aproximamos de Bruccium, mais estranhas as coisas se me afiguram. Mesmo que só metade das coisas que o nosso amigo Turro mencionou seja verdadeira,
vamos estar metidos num belo sarilho. Não lhe parece que isso dá muito jeito?
Macro levantou o olhar, a colher a pingar gotas de massa castanha enquanto ele a segurava no ar.
- Jeito, como? - Não fizemos propriamente muitos amigos em Roma antes de nos virmos embora. Aliás, foi por isso que o Narciso nos fez um favor ao arranjar-nos postos
na Britânia de forma tão rápida.
- E pronto, cá estamos, portanto qual é o problema? - É só que "cá", por acaso, é a caminho de um forte isolado, tão remoto quanto é possível sê-lo, cercado por
guerreiros inimigos e comandado por um tipo que, ao que parece, é um maníaco sanguinário. Macro, a mim isto dá-me toda a sensação de ser um arranjinho para nos lixarem.
- Arranjinho, de quem? - De quem acha? Só pode ser coisa do Palias. - Cato relembrou o viscoso liberto grego que era um dos conselheiros imperiais. À medida que
o Imperador envelhecia e sucumbia à doença, os que o serviam posicionavam-se para tirarem o máximo proveito da situação que resultaria da ascensão ao trono do seu
sucessor. Pallas tinha tomado o partido da nova esposa do imperador, Agripina, e do filho desta, Nero. Este poderia até já ser Imperador, se Cato e Macro não tivessem
salvo a vida de Cláudio quando este fora alvo de um atentado. Cato suspirou. - Fizemos gorar os planos do Pallas para derrubar o Imperador, e ele quer vingança,
além de assim não deixar pontas soltas.
- Uma pena que ele tenha saído sem mácula dessa história. - Lamentou Macro. - O sacana do grego safou-se bem.
- É verdade, mas nós sabemos o que ele tentou fazer. Enquanto estivermos vivos, seremos para ele uma potencial ameaça. Não pode permitir que nós revelemos o que
sabemos, mesmo que pouca gente nos acreditasse.
Portanto, para ele, o que haveria de melhor do que garantir que íamos acabar numa situação perigosa?
- Não te estás a esquecer de alguma coisa? Duvido que o forte estivesse já construído quando o Narciso nos mandou para a Britânia. E o teu antecessor no comando
da coorte morreu pouco antes. Não havia maneira da notícia chegar a Roma antes de nós partirmos de lá.
- Não importa. Os pormenores não são importantes. Calculo que, depois de saber que estávamos a caminho da Britânia, o Pallas tenha mandado uma mensagem a um dos
seus agentes no terreno, com ordens para garantir que éramos colocados em locais de extremo perigo. O meu palpite é que o Pallas deve ter gente entre o pessoal do
governador, se não for o próprio governador a estar ao seu serviço. Trataram de nos enviar para um posto onde temos grandes hipóteses de ser mortos. Bruccium corresponde
perfeitamente a esse papel, e a morte do anterior prefeito caiu muito bem, já que assim não foi necessário transferi-lo para outro posto. Até aqui, correu tudo bem
ao Palias.
- Se é realmente isso o que está a acontecer. - Admitiu Macro, ainda pouco convencido. - Mas francamente, Cato, acho que estás a inventar fantasmas. Termos sido
enviados para Bruccium foi apenas mais um bocadinho de má sorte.
Cato olhou para o veterano. - Acha mesmo que sim? Depois de todas as intrigas e manigâncias que presenciámos nos últimos anos? Já sabe perfeitamente como se passam
as coisas lá pelo palácio imperial.
Foram interrompidos por Décimo, que regressava com o optio. Entraram na sala da messe e o optio fechou a porta antes de saudar os seus superiores.
- Optio Mânlio Acer, senhor. Ao que sei, queria falar comigo. Cato assentiu. - À vontade, optio. Senta-te. O optio reagiu com surpresa à informalidade com que era
tratado por alguém de patente tão elevada como o prefeito, e acabou por se sentar no banco do outro lado da mesa.
- Este fortim é o posto mais avançado antes de Bruccium, certo? Não há qualquer outro fortim no caminho. Nem sequer uma torre de sinalização.
O optio assentiu. - O que me preocupa é que há mais de um mês que não é recebido qualquer relatório de Bruccium. E tu, tens tido notícias?
- Notícias, nem por isso. Mas foi avistada uma patrulha a dirigir-se à entrada do vale, há uns dez dias, senhor. Um esquadrão de cavalaria trácia.
Aproximaram-se, pareceram estar a avaliar a situação, mas acabaram por desaparecer por entre as árvores.
- E nem uma mensagem? Nenhum pedido para qualquer tipo de abastecimentos?
O optio abanou a cabeça negativamente. - Peculiar, não te parece? - Instou Cato. - Peculiar não me parece a palavra que possa sequer começar a descrever a situação,
senhor. Antes do Querto assumir o comando, o prefeito tinha por hábito enviar dois esquadrões e duas centúrias de legionários até ao depósito, para escoltar o comboio
de abastecimentos até ao forte; e isso acontecia de dez em dez dias, com toda a regularidade. Depois do prefeito falecer, a rotina prosseguiu durante algum tempo,
mas depressa os períodos entre as colunas começaram a alargar-se. Até que, por fim, quer os pedidos de abastecimentos quer as escoltas deixaram de aparecer.
Macro lançou uma questão. - Porque é que não mandaste uma patrulha ver o que se estava a passar?
- Senhor, essa não é a minha função. As minhas ordens são para vigiar este lado do colo da montanha e reportar a Glevum qualquer avistamento de forças inimigas.
- Isso não requer um grande esforço, pois não? - Lançou Macro, cáustico. - Levaste o teu tempo a ajudar-nos no combate de hoje, e agora sais-te com essa. Não estou
grandemente impressionado.
Acer cruzou as mãos e remexeu os polegares, pensativo. - Senhor, tenho aqui menos de quarenta homens. Estamos no coração do território inimigo. Se tomarmos riscos
desnecessários, o mais certo é sermos destruídos.
- Foi para isso que te alistaste, Acer. Que todos nós o fizemos. Fraca desculpa.
O optio abriu a boca para protestar, mas notou um brilho frio nos olhos de Macro e acabou por baixar o olhar, envergonhado. Cato decidiu que não havia vantagem em
minar a confiança do optio, pelo que resolveu voltar ao assunto principal.
- Se não tem havido pedidos de abastecimentos, isso quer dizer que o Querto e os seus homens têm vivido do território. - Ou que foram aniquilados. - Sugeriu Décimo,
em tom ansioso. - Se não tem dado notícias, o que mais pode ter acontecido?
Macro corrigiu-o. - O optio acaba de nos dizer que avistou uma das patrulhas montadas há dez dias.
- Exato. - Concordou Cato. - Devemos portanto assumir que o forte e a sua guarnição estão intactos. Depressa o saberemos, de qualquer modo. Se sairmos amanhã pela
alvorada devemos chegar lá ao entardecer.
- Vamos continuar, senhor? - Indagou Décimo. - Evidentemente. Tenho ordens para assumir o comando do forte. - Mas, senhor, há algo de errado aqui. Muito errado.
Seria uma loucura prosseguir o caminho. Especialmente sem saber aquilo a que nos conduz.
- Ainda assim, vamos continuar para Bruccium. - Eu não, senhor. Não dou nem mais um passo. Pela manhã, regresso a Glevum, e depois a Londinium.
Macro sorriu. - Sozinho? E a pé, com essa perna manca? A mim isso soa-me muito mais perigoso do que continuar para Bruccium.
- Levo uma das mulas. - Uma das nossas mulas? Não me parece, Décimo. O veterano voltou-se para Cato. - Senhor, pode com certeza dispensar um dos animais. Cato abanou
a cabeça. - Temos um prisioneiro a transportar, para além da bagagem. Mas, se isso te ajudar a mudar de ideias, ofereço-te um bónus de cem denários, se ficares connosco
até ao outono.
Macro quase deu um pulo de espanto. - Cem? Estás maluco? Cato ergueu uma mão a pedir-lhe silêncio, enquanto mantinha o olhar preso em Décimo.
- Se for assim tão perigoso como pensas, vou precisar de ti ao meu lado. E estes cem denários devem permitir-te uma vida regalada em Londinium quando esta história
estiver terminada. O que dizes?
Décimo estava desorientado, e era evidente a luta que se travava no seu espírito entre o medo e a ganância. Por fim olhou para Macro, com ar amargo.
- Ao que parece, não tenho realmente escolha. Não posso ficar aqui. Não posso voltar para Londinium. A única saída é para a frente. Seja, cem denários. Aceito.
Cato lançou um sorriso fino. - És muito corajoso. Bom, agora vai tratar das nossas enxergas. O centurião Macro e eu dormiremos aqui. Depois vai tu descansar também.
Amanhã será um longo dia.
Décimo assentiu, com ar miserável, e saiu da sala. Depois de ele sair, Macro soltou um profundo suspiro e resmungou.
- Fico feliz por ver que o Décimo vai connosco... Com a ajuda dos cem denários, claro.
- Sabe como é. O dinheiro manda. - Cato arqueou uma sobrancelha. - Aliás, domina.
O optio Acer olhou-o. - Senhor, talvez o vosso criado tenha razão para estar nervoso. - Porquê? - Não sei bem como pôr a questão, senhor. - Ora, homem, experimenta
pô-la em palavras. - Instou Macro. - Antes que eu perca o pouco de paciência que me resta.
O optio estremeceu, mas respirou fundo e empertigou-se antes de começar a falar.
- Senhor, não sei o que lhe disseram sobre o que se passa em Bruccium, mas desde que o forte foi construído que a coisa não me cheira bem. O último prefeito era,
bom, um bocadito mole. Deixava a maior parte da gestão da guarnição nas mãos do Querto.
- Como é que sabes isso? - Quis saber Cato. - Ouvi-o da boca dos homens que por aqui passavam a caminho do depósito. Isso e muito mais. - O optio baixou a voz. -
Diziam que o Querto governava o forte com mão de ferro e distribuía castigos pesados à mais leve das infrações. Disseram-me que ordenou a morte por espancamento
de um dos optios por ter questionado uma ordem dele para não fazer prisioneiros depois de um ataque a uma aldeia próxima.
Macro sorveu o ar, assombrado. - Disciplina férrea é uma coisa. Isso é ir longe demais. Cato deitou-lhe uma olhadela. - Acha mesmo? Prossegue, Acer. Que mais ouviste?
- Que o prefeito se fez desentendido durante muito tempo, mas que acabou por se ver obrigado a confrontar o Querto. Disse-lhe que tinha feito um pedido para que
o centurião fosse transferido para outra unidade. Foi pouco antes do acidente do prefeito.
Macro semicerrou os olhos. - Optio, o que é que estás a sugerir? Acer engoliu em seco, nervoso. - Senhor, estou apenas a relatar o que ouvi. Deixo as conclusões
ao cuidado de cada um. - O optio levantou-se e encarou Cato. - Senhor, creio que já disse o bastante. Tenho que ir fazer a ronda das sentinelas. Depois do ataque
de hoje, pus o dobro dos homens de serviço. Não quero voltar a ser surpreendido.
- Muito bem. - Cato concordou. - Podes ir. Depois de ele sair, Macro encheu de ar as bochechas.
- Porra, agora dizem todos o mesmo. O Querto assusta tanto o nosso lado como o inimigo. Talvez tenhas razão. Talvez esta história seja mais complicada do que eu
pensava.
- Depressa o saberemos. Amanhã devemos chegar a Bruccium. - Cato espreguiçou-se e bocejou. - E nessa altura conheceremos o centurião Querto, em carne e osso.
15
O cimo da passagem deve ser ali à frente. - Trebélio falava em voz baixa, como se temesse ser escutado. Em redor, o nevoeiro era tão espesso que escondia as encostas
pedregosas que se erguiam de ambos os lados da estrada. O martelar dos cascos dos animais nas pedras soltas soava alto demais, e enervava os cavaleiros que subiam
lentamente o longo declive na montanha. O cavalo que substituíra o de Cato, abatido no combate da véspera, era um animal calmo e tranquilo ao qual tinha sido dado
o nome de Aníbal. Felizmente não tinha nada daquele que lhe dera o nome, e não provocava qualquer tipo de problemas ao seu cavaleiro romano. Era já o meio da tarde,
pelo menos pela estimativa pouco precisa de Cato. O ar era como uma nuvem de água em suspensão, que revestia as capas dos cavaleiros de pequenas gotículas. O prisioneiro
tinha sido lançado sobre o dorso de uma mula e amarrado, e as suas costas tatuadas rebrilhavam com a humidade. A quietude e o silêncio que imperavam naquela paisagem
escondida deixavam os homens do esquadrão nervosos, e faziam-nos olhar constantemente de lado a lado, enquanto conduziam os animais a passo pela estrada. Cato apertou
a capa em torno do pescoço e tentou reprimir um arrepio de frio.
- E para lá da passagem pelo colo da montanha, o que há? - Perguntou ao decurião.
- A estrada desce para o vale, direitinha ao forte, a uns oito quilómetros. Não o podemos falhar.
- Já lá estiveste, portanto? - Uma vez, pouco depois de ter sido concluído. - Qual é a disposição do terreno? Trebélio fez uma curta pausa enquanto tentava recordar
os detalhes. - Está bem situado, sobre uma garganta onde corre uma torrente. A arriba contorna as muralhas, e nas outras duas faces o terreno é íngreme, e ainda
têm o habitual fosso e o talude, claro. É uma posição formidável, seria preciso um exército bem equipado com engenhos de cerco para lá conseguir penetrar.
- E tem uma boa vista para o vale?
O decurião assentiu. - Também, sim. Embora, quando desce um nevoeiro deste género, isso pouca vantagem ofereça, e os nevoeiros até sejam comuns por estas paragens.
- Abanou a cabeça. - Foda-se, não percebo porque é que alguém, mesmo uns bárbaros como os siluros, havia de querer viver aqui. - Virou-se para Cato. - Quando atingirmos
o colo, senhor, encetarei o caminho de regresso a Glevum.
- Eu sei. Após uma breve pausa, Trebélio prosseguiu. - Já os escoltámos até mais longe do que era mencionado nas minhas ordens, senhor.
- Eu sei. Decurião, não tens que te justificar. Vai tudo correr bem connosco.
- Sim, senhor. - O decurião cravou os calcanhares no flanco do cavalo, e fê-lo avançar mais depressa, para voltar a assumir a sua posição à cabeça da pequena coluna.
Prosseguiram em silêncio até que Macro colocou a sua montada a par da de Cato e sussurrou.
- Espero mesmo que tudo corra bem. Se os amigos siluros ali do bem-disposto ainda andarem por aí, não dou grande coisa pelas nossas hipóteses, assim que o Trebélio
e os seus homens derem meia-volta.
- Se o inimigo tiver tanto pavor do Querto como parece ser o caso do nosso prisioneiro, não me parece que possamos correr grande risco depois de entrar no vale.
Pelo menos da parte dos siluros.
Macro deitou-lhe um olhar admirado. - O que é que queres dizer com isso? - Ouviu o que o Acer disse sobre o anterior prefeito. Parece-me que vou ter que ser muito
cuidadoso para não lhe seguir o caminho.
Macro olhou em redor, ansioso, antes de responder em voz baixa. - Achas mesmo que o Querto era capaz de uma coisa dessas? Livrar-se do comandante, e justamente a
meio de uma campanha?
- Consegue imaginar uma altura melhor? Com o inimigo por perto e as baixas a somarem-se, quem é que se vai lembrar de questionar mais uma morte? Desde que o autor
seja cuidadoso e não faça as coisas muito óbvias, é fácil cometer um assassínio e escapar. E, pelo que nos contaram, o centurião Querto é um tipo com traços implacáveis,
que não admite que alguém se ponha no seu caminho.
- Pode ser que sim. - Admitiu Macro. - Mas mesmo assim. - Mesmo assim o quê? - Irritou-se Cato. - Já vimos homens a fazer coisas piores, Macro. Muito piores.
- E aqui estava eu a pensar que era em Roma que tínhamos que proteger as costas. - Macro soltou uma imprecação para si mesmo. - Foda-se, Cato, o que raio se passa
connosco? Onde quer que vamos, temos sempre que ter olhos na nuca. Até parece que fomos amaldiçoados, ou coisa parecida. Pensava que nos tínhamos visto livres disto
quando embarcámos para a Britânia.
Prosseguiram em silêncio por algum tempo, enquanto a estrada se tornava plana, e escutou-se então um grito do homem que seguia à frente da coluna. Trebélio deu imediatamente
ordem de alto e solicitou informações ao soldado.
- Há qualquer coisa ali à frente, no meio da estrada, senhor! - O que é? - Não consigo distinguir bem. Havia ali uma aberta no nevoeiro, mas já se fechou outra vez.
- A voz do homem traía o seu nervosismo, e Macro agitou as rédeas para fazer avançar o seu cavalo.
- Já estou farto destas historietas. Vamos lá. Por um instante, Cato sentiu a irritação a nascer dentro de si, por o amigo ter tomado a iniciativa antes de ele mesmo
ter reagido. Mas limitou-se a calcar o flanco de Aníbal e seguir atrás do centurião. Ao passarem pelo decurião, Macro fez-lhe um gesto.
- Tu também, oh janota. Os três oficiais adiantaram-se a trote, percorrendo uns cem passos antes de avistarem o vulto do batedor no meio do nevoeiro revolto, de
lança aperrada, enquanto tentava penetrar com a vista a penumbra à sua frente.
- O que é que viste? - Inquiriu Macro quando se detiveram junto ao soldado.
- Desembucha, homem!
- Havia ali qualquer coisa na estrada, senhor. - Qualquer coisa? - Enfureceu-se Macro. - Tenta ser mais específico, sim? Uma coisa, ou alguém?
O soldado engoliu em seco. - Pareceu-me ver um homem, senhor, de pé, a meio do caminho. Por um momento apenas, antes do nevoeiro voltar a fechar-se.
- E ele viu-te? - Não sei. Parecia estar imóvel. Nem se mexeu quando eu o interpelei. Não respondeu, senhor.
- Estou a ver. - Macro perscrutou o nevoeiro à sua frente. - E depois disso, mais nada. Nenhum sinal de movimento? Nenhum som?
- Não, senhor. Nada. Macro virou-se para Cato. - O que achas? Cato sentiu o coração a acelerar, e reprimiu o arrepio que parecia querer manifestar-se na base da
sua espinha. Engoliu em seco antes de responder, no tom mais firme que conseguiu encontrar.
- Centurião, acho que devíamos ir ver o que se passa por nós mesmos. - Virou-se para o decurião. - Trebélio, se ouvires alguma coisa, avança de imediato com os teus
homens. Entendido?
Trebélio anuiu e deixou-se ficar, sem se preocupar em oferecer-se para acompanhar os seus superiores quando estes avançaram com os animais a passo.
A névoa atapetava a paisagem como o mais fino dos véus, a remexer-se perante o mais leve movimento do ar. Mais espesso aqui, esparso além, antes de voltar a fechar-se.
Uma quietude cheia de prenúncios e ameaças parecia abater-se sobre eles. Uma súbita aberta oferecida pela brisa revelou-lhes a estrada à sua frente, e avistaram
uma figura esquelética a emergir da neblina a uns cinquenta passos à frente. Os dois fizeram alto de imediato.
- O que é aquilo? - Macro forçou a vista. - Os teus olhos são melhores que os meus. Aquilo é um homem?
- Acho que sim, mas não se mexe. Se era um homem, havia algo de muito estranho na sua postura, decidiu Cato. Respirou fundo e chamou.
- Quem vem lá? Não houve resposta, nem qualquer sinal de movimento, e depois de uma ligeira espera, Cato voltou a fazer avançar o cavalo a passo, no que foi imitado
por Macro.
- Isto não me agrada - Comentou o centurião. - E se for outra emboscada?
- Se for, então estão a fazer tudo o que podem para não nos apanharem de surpresa.
Apesar do tom calmo com que falava, o coração de Cato batia-lhe desalmadamente no peito, e as palmas das mãos estavam húmidas com a ansiedade, enquanto prosseguia
o caminho. Olhou para os lados, esforçando olhos e ouvidos em busca de qualquer sinal de movimento, mas tudo estava tão calmo como antes. Pouco adiante, o vulto
misterioso começava a ganhar formas definidas, à medida que se aproximavam dele. Era claramente um homem, e por fim conseguiram perceber porque é que não se mexia
nem tinha respondido ao chamamento de Macro. Estava nu e empalado numa grossa estaca de madeira que fora cravada no meio do caminho. A pele do homem, pálida e manchada,
estava coberta por desenhos nativos, e a cabeça e os membros pendiam, inanimados. Quando se aproximaram mais, Cato verificou que a estaca tinha sido enfiada por
baixo da virilha, e que a madeira estava coberta por uma mancha escura que também tinha alastrado para o solo em torno da base da estaca.
- Por Hades, o que raio é isto? - Espantou-se Macro, em voz sumida. - Um marco, diria eu. Querto delimita a fronteira do seu território e deixa um aviso a todos
os que se atreverem a entrar no vale.
- Aviso, a quem? Ao inimigo, ou a nós? - A ambos, diria eu. Porque motivo o deixaria aqui, onde uma das nossas patrulhas o poderia encontrar facilmente? - Ao dizer
a última palavra ficou com ela presa na garganta, já que tinha acabado de avistar outro cadáver numa estaca, a um dos lados da estrada, e ainda outro do lado oposto,
formando uma linha que cruzava a estrada que levava ao vale. - Há mais, Macro. Veja.
Apontou os cadáveres, e o amigo soltou uma imprecação. Contemplaram os corpos por momentos, até que Macro rodou o cavalo e levou a mão em concha à boca.
- Decurião! Traz os teus homens! Não há perigo. Cato deitou-lhe um olhar surpreso. - Não há? - Estes três não nos vão apoquentar de certeza, não te parece? Cato
deitou novo relance aos cadáveres. - Não. Eles não. Ouviu-se um matraquear surdo de cascos sobre pedras soltas, e Trebélio e o resto da coluna emergiram do nevoeiro
e detiveram-se junto à linha de estacas com os seus ornamentos macabros. A maior parte daqueles soldados já tinham uma vasta experiência dos horrores da guerra,
mas ainda assim Cato notou as expressões perturbadas nos rostos dos homens mais próximos. O prisioneiro, dobrado em cima do dorso de uma das mulas conduzidas por
Décimo, despertou para a cena, e os seus olhos arregalaram-se de terror ao avistar os homens empalados. Começou a falar rapidamente, numa súplica desesperada.
- Décimo! - Chamou Macro. - Cala-me esse tipo. Décimo afastou o olhar do cenário tenebroso e anuiu. Conduziu a mula até junto do prisioneiro e ergueu
o punho numa clara ameaça. Turro encolheu-se todo, e calou-se, mantendo um olhar temeroso nas ações do romano.
- Quem serão eles? - Indagou Trebélio. - Siluros, presumo. - Cato apontou para as marcas na pele do mais próximo dos corpos. - Mas vamos descobrir. Décimo! Traz
o prisioneiro até aqui.
As mulas aproximaram-se. O queixo de Turro descaiu quando ele viu os três cadáveres mais de perto, e começou a tremer de forma descontrolada.
- Pergunta-lhe se estes pertencem ao seu povo.
Trebélio traduziu a pergunta, e Turro acenou em concordância, aterrado.
- Nesse caso, isto é mesmo obra do Querto, sem dúvida. - Comentou Macro. - É a única coisa que faz sentido.
Preparava-se para continuar a falar quando se ouviu um gemido quase sumido, vindo do homem à direita. Todas as cabeças se viraram para lá, Cato apercebeu-se de que
ele se remexia, com os pés a roçarem contra a estaca de madeira bruta.
- Santo Mitra. - A voz de Décimo quase se esvaiu. - Aquele ainda está vivo.
Cato lançou uma perna sobre a sela, escorregou para o solo e dirigiu-se ao tufo de ervas sobre o qual o homem tinha sido colocado. Macro seguiu-o, enquanto os outros
observavam. Ao chegar junto da vítima, Cato percebeu que se tratava de um guerreiro ainda jovem, no máximo com uns vinte anos, de membros magros, com o cabelo empastado
e colado ao crânio, caindo depois até aos ombros. Tinha os olhos meio abertos e revirados, e soltou outro fraco e agudo gemido de agonia. Cato viu que ele tentava
pressionar as palmas dos pés contra a estaca e levantar o peso do corpo, mas os pés escorregavam-lhe na madeira húmida uma vez e outra, e as entranhas voltavam a
descair sobre a ponta da estaca com um som húmido e horrível, e soltava outro gemido. Só então Cato compreendeu a realidade. O homem não estava a tentar libertar-se
da estaca, estava apenas a tentar pôr termo à agonia fazendo a ponta penetrar mais profundamente, até atingir algum órgão vital. Cato sentiu o estômago a revirar-se
de nojo e náusea. Abriu a boca, prestes a ordenar a Macro que pusesse fim ao inumano sofrimento do siluro, mas deteve-se. Era ele que o devia fazer, e não tinha
o direito de forçar o amigo a fazê-lo por ele. Cerrou os dentes e desembainhou a espada. Hesitou brevemente, mas decidiu-se por fim; avançou e colocou a ponta do
gládio contra a pele nua do homem, por baixo das costelas. Os olhos do siluro arregalaram-se, e ele olhou para Macro antes de fixar o olhar em Cato, mesmo por baixo
dele. Tinha olhos de um azul penetrante, reparou Cato, tentando desesperadamente não se concentrar noutros detalhes.
O siluro murmurou qualquer coisa por entre os lábios gretados, palavras ditas em tom suave, num pedido, antes de acenar e estremecer perante a pavorosa dor que tão
leve movimento lhe causara.
Cato firmou o braço, recuou a espada ligeiramente e empurrou-a para cima, por baixo das costelas, até que a ponta encontrou um osso. O siluro lançou a cabeça para
trás e deixou escapar um grunhido curto. O corpo imobilizou-se enquanto Cato remexia a lâmina, para um lado e outro, e depois a recolhia. Uma torrente de sangue
veio atrás dela e tombou sobre o solo por baixo da estaca, deixando escapar uma quase invisível pluma de vapor para o ar frio. O siluro entrou em convulsões violentas,
e a respiração tornou-se irregular e difícil, enfraquecendo rapidamente, até que por fim o corpo perdeu qualquer sombra de movimento e a cabeça descaiu para cima
do peito. O corpo ficou ali pendurado no ar gélido, como uma peça de carne na loja de um talhante. Cato debateu-se para manter uma expressão neutra enquanto se baixava
para limpar a espada num tufo de relva. Limpou quase todo o sangue antes de se levantar novamente e embainhar o gládio com um movimento decidido. Olhou em volta;
todos tinham os olhos presos nele.
- Não temos mais nada a fazer aqui. Vamos continuar. Deu-se um breve instante de silêncio, até que Trebélio aclarou a garganta.
- Senhor, peço perdão, mas é aqui que eu e os meus homens voltamos para trás.
- Do que é que estás tu a falar? - Senhor, este ponto marca a entrada do vale. Como disse, estes corpos delimitam o território controlado pelo forte. Estará em segurança
até chegar ao seu novo posto.
Cato encarou o decurião, e notou que o homem mal conseguia disfarçar o medo que o possuía.
- Talvez tenhas razão, mas gostaria que tu e os teus homens nos levassem até estarmos à vista do forte, antes de inverterem a marcha. De forma a que possas relatar
ao legado que chegámos de facto ao nosso destino, e que não desaparecemos misteriosamente algures ao longo da estrada. Se é que me estás a entender.
Trebélio anuiu lentamente. - Senhor, compreendo. Mas, tal como disse, é aqui que volto para trás. Foi demais para Macro, que se virou para o decurião com um olhar
feroz.
- É aqui que nos abandonas, queres tu dizer. Cobarde! Estás com medo de quê? - Macro fez um gesto abarcando os cadáveres pendurados nas estacas. - Achas que estes
cabrões vão descer dos poleiros e aplicar-te uma tareia? Trebélio, pelo amor dos deuses, vê se arranjas um par de tomates!
O decurião rangeu os dentes. - Sou tudo menos um cobarde. Combato nesta maldita ilha há oito anos, como a maior parte dos meus homens. Faltam-me cinco anos para
deixar o exército. Portanto, obedeço às ordens que me dão, tal como são enunciadas, nem mais nem menos. E s ordens que tenho são para o escoltar, a si e ao prefeito,
até ao vale. Está feito.
- Nesse caso, deixa-me dar-te novas ordens. - Interrompeu Cato. - Ordeno-te que nos escoltes até Bruccium.
O decurião não se atreveu a responder, mas encarou-o com ar de desafio. Cato decidiu tentar outra abordagem. Prosseguiu em tom mais razoável.
- Olha, Trebélio. Sabes perfeitamente o que te espera quando chegares a Glevum. Vais ser apontado como responsável pela perda do estandarte quando do combate no
fortim. Se ficares connosco até Bruccium, dou-te a minha palavra que enviarei ao legado um relatório que te poderá ajudar.
O decurião considerou a oferta, mas abanou a cabeça, pesaroso. - Desculpe, senhor. Não vou prosseguir. Duvido que algum dos meus rapazes estivesse disposto a seguir-me,
mesmo que fizesse o que me pede.
Cato olhou-o ferozmente durante um instante mais, dando-lhe ainda uma oportunidade de mudar de ideias, mas Trebélio enfrentou-lhe o olhar e manteve o silêncio. Com
um suspiro de frustração, Cato resolveu fazer um último apelo à disciplina. Dirigiu-se ao seu cavalo, pegou nas rédeas e lançou-se para cima da sela.
- Bom, vamos lá a mexer. A sua instrução foi recebida com silêncio e imobilidade. Cato sentiu o pulso a acelerar, e o ar frio pareceu-lhe de repente ainda mais gelado.
Trebélio continuava a fixá-lo sem receio, e os seus homens aguardavam instruções do seu comandante.
- Ouviram o prefeito! - Lançou Macro. - Formem em coluna e preparem-se para prosseguir!
- Não... senhor. - Ripostou Trebélio, em voz suficientemente alta para se fazer ouvir pelos seus homens. - Nós recebemos ordens do legado. Não de si. De nenhum dos
dois. Coluna! Meia-volta, e formar!
- Oh, não, nem penses. - Rosnou Macro, enquanto fazia menção de puxar pela espada. O arrastar metálico indicou que a lâmina começava a deixar a bainha.
Cato puxou pelas rédeas e apressou-se a interpor o seu cavalo entre Macro e o decurião, e a repreendê-lo.
- Macro, não faça isso. O Trebélio e os seus homens estão aterrorizados. Se tentar obrigá-lo a vir connosco, tudo pode acontecer.
- Mas... - Deixe. É uma ordem. Macro franziu o cenho, relutante, antes de dar um encolher de ombros frustrado e voltar a guardar a espada na bainha.
- Haja ao menos alguém a obedecer a ordens nesta história... Observaram enquanto Trebélio e os seus homens formavam uma coluna de dois apressadamente, e assim que
ficaram prontos o decurião virou-se na sela para saudar formalmente os superiores.
- Devem chegar a Bruccium antes de escurecer. Boa sorte. Cato assentiu, enquanto Macro cerrava os dentes e soltava um insulto. - Pois, e vai-te foder tu também.
Trebélio ergueu a mão. - Coluna, em frente! Os cavaleiros colocaram as montadas a trote e afastaram-se, subindo a estrada a caminho do colo montanhoso. Depressa
o último deles desapareceu no nevoeiro, e só o som dos cascos chegava a Cato e aos outros, até que também ele se desvaneceu e voltaram a reinar o silêncio e a impressão
de estarem sós no mundo. Décimo olhava em volta, ansioso, e mordia o lábio.
- E agora, senhor? Ainda estamos a tempo de ir atrás deles. - Lembra-te da recompensa que te espera. - Aconselhou Cato. Olhou para o cadáver do jovem guerreiro siluro.
- Não nos serve de nada ficar aqui.
Macro assentiu. - De facto, a conversa não está animada. Só espero que acabemos por encontrar alguém vivo, e que esteja do nosso lado. Este nevoeiro e esta quietude
toda começam a irritar-me a sério.
Cato sorriu. - Ora aí está uma excelente razão para nos pormos a mexer. Deu um estalo com a língua e conduziu o cavalo de volta à estrada, rodeando o cadáver, e
Macro e Décimo incitaram as suas montadas, ocupando os seus lugares junto ao prefeito. Décimo puxou pela corda que prendia as mulas, que soltaram um bramido surdo
e se puseram em movimento. O prisioneiro entoou em voz baixa algumas preces aos seus deuses enquanto avançavam pelo meio do nevoeiro. A estrada descia mais quase
dois quilómetros até chegar ao chão do vale. A pouco e pouco, o manto cinzento começou a levantar-se, deixando adivinhar a muralha verde das encostas arborizadas
que os rodeavam. Foi Décimo o primeiro a reparar, e usou a vara para acelerar a mula até se aproximar dos dois oficiais.
- Senhor, há alguém atrás de nós. Cato e Macro abrandaram até parar e viraram-se nas selas. Durante um momento, os três homens olharam para trás, de ouvidos apurados.
Por fim, Macro soltou um suspiro pesado.
- Décimo, estás é a imaginar coisas. O único perigo que corres por aqui é a possibilidade de te assustares a ti mesmo até morreres de susto.
Décimo abanou a cabeça. - Chhhh! Ora oiça.
- O que é que achas que ouviste? - Inquiriu Cato, depois de mais um breve silêncio.
- Um cavalo... Cavalos. Estou seguro disso, senhor. - Bom, eu não oiço nada. - Como eu disse. - Macro fungou com evidente desdém. - Está a ver fantasmas.
Um relincho quase inaudível soou a alguma distância atrás deles. Os três imobilizaram-se, e Cato sentiu um arrepio gélido a subir-lhe pelo corpo.
- Fantasmas, hã? - Resmungou Décimo. - Eu avisei, senhor. E agora, o que fazemos? Fugimos? Escondemo-nos? Se nos apanham, de certeza que nos aplicam o mesmo tratamento
que o Querto deu aos seus camaradas. Ou pior ainda.
Macro olhou-o e franziu o sobrolho. - Pior? Ao que parece, subestimei a tua imaginação... Voltamos para trás e enfrentamo-los?
- Não. Não fazemos ideia de quantos são. O melhor é prosseguirmos e deixá-los a pensar que não nos apercebemos da sua presença. Décimo, ouvidos atentos. Se achares
que se estão a aproximar, avisa-me imediatamente. Enquanto seguimos, vamos procurando um refúgio. Não devemos estar muito longe de Bruccium. Talvez até encontremos
uma patrulha. Vamos.
Continuaram pela estrada; Macro e Cato vigiavam os flancos e o caminho à sua frente, enquanto Décimo, nervoso, espreitava por cima do ombro a cada duas passadas.
Os cavaleiros que os seguiam pareciam não estar grandemente empenhados em se aproximar, e para lá de um relincho ocasional ou do som distante dos cascos sobre os
calhaus do caminho, era difícil não acreditar que estavam sozinhos naquela paisagem etérea e ameaçadora de frio, humidade e sombras. Algumas centenas de metros adiante,
Macro aproximou o cavalo do de Cato e murmurou.
- Há mais alguns à nossa esquerda. Cato anuiu. - Dei por eles há uns minutos. - E não disseste nada? - Não queria assustá-lo. - Ah... ah... - Soltou Macro, imitando
uma gargalhada, enquanto ambos mantinham os rostos virados para a frente mas olhavam de esguelha para o flanco esquerdo. O terreno era agora mais plano, já que o
vale se tinha alargado e os seus limites se perdiam no nevoeiro. A uns quatrocentos metros à esquerda ficava a orla de uma floresta. Por entre as árvores progredia
uma fila de cavaleiros, dez deles. Estavam demasiado longe para se poderem perceber pormenores. Um presságio súbito fez com que Cato olhasse para a direita. A uma
distância aproximadamente igual, outro grupo de cavaleiros controlava-lhes o avanço.
- Macro, parece-me que entrámos, ou melhor, cavalgámos, mesmo para a boca da armadilha. Olhe para ali. - Fez um gesto subtil, e Macro virou-se e soltou uma imprecação
para si mesmo.
- Porque é que não nos atacam? - Perguntou-se Macro. - Já perceberam com toda a certeza que têm uma enorme vantagem?
Cato pensava furiosamente. Não havia outra possibilidade senão prosseguir em frente. A uns oitocentos metros dali, a estrada entrava num bosque que se estendia pelo
chão do vale. Se conseguissem alcançar as árvores com algum avanço sobre os perseguidores, talvez pudessem sair da estrada e esconder-se no meio das sombras.
- Senhor! - Chamou Décimo, em voz baixa. - Já reparou que eles nos cercaram?
- Estou a ver. - Retorquiu Cato, calmamente. - Ignora-os. Até eu dar ordem.
- O que é que estás a planear? - Quis saber Macro. Cato não lhe respondeu. Calculou a distância que faltava, e o ângulo em que os dois grupos teriam que seguir para
continuar a persegui-los pelo bosque dentro. Teriam que abandonar as mulas. Eram demasiado lentas. Cato, como era seu costume, pesou todas as alternativas, mesmo
a de pura e simplesmente abandonar Décimo à sua sorte, de forma a dar-lhe, a ele a Macro, uma hipótese de fuga. Mas, como também era típico de si, abandonou tal
ideia instantaneamente. Ditasse a lógica o que entendesse, havia um código de conduta que abrangia todos aqueles a quem era confiado um comando, e que tornava impensável
sacrificar Décimo.
Abrandou o passo do cavalo até ficar a par do criado, e falou em voz baixa.
- Décimo, quando eu disser, salta da mula e trepa para trás de mim no cavalo.
- E quanto ao prisioneiro? - Indagou Macro. - Deixamo-lo para trás com as mulas. Se os perseguidores pertencerem ao seu povo, esperemos que parem para o libertar,
o que nos dará mais algum tempo para desaparecer.
- Miúdo, no que é que estás a pensar? - Vamos acelerar até às árvores. Para nos seguirem, eles terão que atravessar o campo, e perderão terreno. Se chegarmos ao
bosque à frente deles, podemos sair da estrada e despistá-los
no meio das árvores.
- É uma loucura. - Protestou Décimo. - Vão-nos caçar sem dificuldade.
- Talvez. Mas com duas pessoas no meu cavalo, se ficarmos em campo aberto depressa nos apanharão. No bosque temos muito mais possibilidades de lhes escaparmos.
Décimo mordeu o lábio e concluiu com azedume. - Devia era ter ficado quietinho em Londinium. Macro cuspiu para o lado. - E eu começo a desejar a mesma coisa. - Calados!
- Ordenou Cato. - Estejam prontos quando eu der o sinal.
Já não estavam a mais de quatrocentos metros do limite do bosque quando Cato reparou que os homens que seguiam de ambos os lados se acercavam a pouco e pouco. Tinha
chegado o momento de agir, decidiu. Respirou fundo, afrouxou o passo do cavalo e dirigiu-se a Décimo sem gritar.
- É agora. Sobe para o cavalo! Décimo saltou da sela da mula e Cato ofereceu-lhe uma mão para o ajudar a trepar para a garupa do cavalo. Assim que ele se agarrou
com firmeza à sela, Cato incitou Aníbal para aumentar de velocidade.
- Macro, vá! Acelere! Eu sigo-o! O centurião deu uma palmada na garupa da sua montada antes de se debruçar sobre o pescoço e o fazer correr para as árvores distantes.
As mulas, assustadas pela repentina atividade, bramiram e correram atrás dos cavalos por alguns metros, até que o peso das bagagens e do prisioneiro as fez reduzir
o andamento e parar; ficaram ali, amarradas umas às outras, indecisas e abandonadas.
Assim que perceberam as intenções das suas presas, os cavaleiros nos flancos lançaram-se em perseguição acesa, dirigindo-se ao espaço entre as árvores onde a estrada
entrava no bosque, tentando cortar o caminho aos romanos. Macro já tinha ganho alguma distância, e Cato sentiu-se tentado a chamá-lo, de forma a não ficar isolado.
Era um pensamento indigno, e Cato afastou-o num fôlego, enquanto cerrava os dentes e empurrava os calcanhares contra o flanco do cavalo, obrigando-o a prosseguir
à desfilada pela estrada, lançando para o ar pequenas pedras e tufos de relva arrancada. A frieza do dia fora já esquecida no calor da ação, e os detalhes da paisagem
em redor passavam-lhe rapidamente pelos olhos enquanto os poderosos músculos do cavalo o impeliam para a segurança das árvores.
- Vá, Cato. - Gritou Macro sobre o ombro. - Continua! Os outros homens já estavam suficientemente perto para permitir que os seus gritos fossem ouvidos sobre o estrondo
dos cascos do cavalo do prefeito a baterem furiosamente no solo. Mas Cato não conseguia distinguir as palavras, e debruçou-se ainda um pouco mais sobre o animal
enquanto prosseguiam a galope. De repente as árvores envolviam-no, e a estrada mergulhava na penumbra do bosque. O caminho prosseguia a direito até chegar a um maciço
de grandes carvalhos, que rodeava e por trás do qual desaparecia.
- Macro! - O passo pesado do cavalo tornava difícil gritar as instruções que queria dar ao centurião. - Quando passarmos... os carvalhos... saia da estrada... para
a direita!
Macro assentiu, e os dois cavalos continuaram a correr pela estreita vereda. Cato arriscou uma olhadela para trás, mas não avistou os perseguidores. Mas quando se
aproximava da curva ouviu um grito excitado e avistou o primeiro dos perseguidores a entrar no bosque, a pouco mais de cem passos de distância. Ainda tinham avanço
suficiente para que o seu plano pudesse resultar, considerou Cato em desespero, e incitou mais uma vez o cavalo. A curva estava quase ali, e Macro já rodeava os
ramos caídos e as folhagens na base dos velhos carvalhos, e desaparecia de vista. Cato sentia os flancos do cavalo a incharem e esvaziarem como foles contra as barrigas
das suas pernas, enquanto o animal se esforçava ao máximo, com o peso de dois homens em cima. Apesar dos constantes e desesperados incitamentos, já começava a perder
velocidade. Alcançaram por fim os carvalhos, e Cato debruçou-se para o lado enquanto o cavalo descrevia a curva. Viu Macro uns poucos metros à frente, de espada
desembainhada, contemplando o caminho à sua frente enquanto o cavalo resfolegava e pisoteava o chão. Cato puxou com força pelas rédeas, e a montada desviou-se para
a esquerda, embatendo de raspão nos quartos traseiros do outro animal, enquanto soltava um relincho de medo. Décimo foi lançado para a frente pela paragem inesperada,
e empurrou Cato, cujo rosto foi embater contra o áspero pelo da crina do cavalo.
Endireitou-se de imediato. - Macro, porque raio... E então avistou-os. A não mais de cinquenta passos, a estrada estava bloqueada por um grupo de cavaleiros. Silenciosos
e imóveis nas selas, contemplavam os romanos. Envergavam capas escuras, e tinham o cabelo caído sobre os ombros. Cada um empunhava uma lança e um escudo oval. Foi
tudo o que Cato apreendeu antes de a sua atenção ser atraída pelo som de cascos em rápida aproximação por trás de si.
- Estamos fodidos. - Concluiu Décimo em tom de queixume, enquanto Cato empunhava a espada.
- Calado! - Irritou-se o prefeito, enquanto juntava o cavalo ao de Macro. - Lá se foi o plano. - Macro sorriu de forma funesta. - E agora? Tèntamos passar à espadeirada?
Cato assentiu. - É tudo o que nos resta. Pronto? Os dois homens aperraram as espadas e calcaram as pernas contra os flancos das montadas, enquanto se preparavam
para carregar sobre o grupo que lhes interrompia a passagem. Cato ouviu um raspar metálico; era Décimo que também empunhava a espada.
Atrás deles, estabeleceu-se de repente uma confusão de cascos a travar e gritos de alarme quando os perseguidores chegaram à curva, se depararam com o confronto
que se preparava, e se detiveram em grande alvoroço. Era o momento de atacar, decidiu Cato, enquanto pelo menos alguns dos adversários se tinham desorganizado. Respirou
fundo, preparado para soltar um brado de guerra, quando se ouviu de repente uma voz troando no ar. Uma figura destacou-se nas fileiras dos homens que bloqueavam
a passagem. Fez avançar o cavalo a passo com toda a calma, e virou-o de forma a ocupar toda a estrada, de pescoço levantado, orelhas atentas e vapor a soltar-se
das narinas. O coração de Cato batia com tanta força que lhe parecia que todos à sua volta o deviam ouvir. Encarou o homem que os confrontava. Tal como os outros,
tinha o cabelo escuro e preso por trás por uma fita que lhe rodeava a testa. Tinha arcadas proeminentes, e olhos escuros afundados no rosto sobre uma espessa barba
que lhe mascarava o queixo. Apesar de envergar um manto, Cato reparou que era de constituição sólida e poderosa, e que os braços nus pareciam presuntos cobertos
de cerdas negras. O homem olhava-os, impassível, enquanto os seus homens esperavam ordens, de lanças prontas para derrubar os três romanos que se tinham atrevido
a entrar no coração daquelas montanhas selvagens.
A pausa prolongou-se, fazendo com que Cato registasse, com os seus sentidos apurados, cada um dos momentos; absorveu cada detalhe visual, cada som, cada cheiro,
naqueles que podiam ser os últimos instantes da sua vida. Por fim, o vulto pareceu adotar uma atitude mais descontraída na sela, e deixou a mão esquerda descair
sobre a perna.
- Quem são vocês? - Inquiriu, em latim. - Romanos. - Retorquiu Macro. - Não me digas. - Havia um traço de divertimento no tom empregue. - Bom, isso é uma pena. Estava
com fortes esperanças de apanhar mais alguma escumalha silura para lhes poder oferecer mais uns exemplos... O que estão aqui a fazer?
Cato empertigou-se na sela, enquanto embainhava a espada. - Sou o prefeito Quinto Licínio Cato. Este é o centurião Lúcio Cornélio Macro. Fui enviado para assumir
o comando do forte de Bruccium. Calculo que sejam trácios da guarnição.
O outro anuiu.
- E quem és tu? - Perguntou Macro, baixando a espada mas mantendo-a pronta a seu lado.
O homem deu um estalo com a língua e fez o cavalo seguir a passo para junto dos romanos. Parou de novo diretamente à sua frente, e ergueu a cabeça. Os olhos escuros
pousaram em Cato como se quisessem trespassá-lo.
- Sou o centurião Querto.
16
Quando os cavaleiros emergiram do bosque e começaram a seguir a estrada ao longo de uma paisagem aberta, já o nevoeiro se tinha levantado. O céu continuava cinzento,
e o sol não passava de uma luz pouco brilhante que tentava romper o véu pardo que se espalhava pelo cenário. A ajudar ao desconforto de Cato e dos seus companheiros
enquanto acompanhavam os auxiliares trácios, caía um chuvisco irritante. Depois de examinar os papéis que conferiam a Cato a autoridade para assumir o comando, o
centurião Querto tinha dado ordens para que as mulas e o prisioneiro fossem trazidos para junto de todo o grupo. Depois tinha indicado aos seus homens para refazerem
a formação e começara a conduzir a coluna na direção do forte. Ao deixarem o bosque, tinha mandado dois cavaleiros à frente para baterem o caminho, enquanto ele
se deixava ficar para trás e se juntava a Cato e Macro.
- Importas-te de me dizer o que raio foi aquilo tudo? - Começou Macro. - Quando tu e os teus homens nos perseguiram como inimigos?
Querto cerrou os lábios, fazendo-os desaparecer por trás dos pelos eriçados da barba, antes de responder.
- Isto é território siluro. Ou era, antes de nos estabelecermos aqui no forte. A minha missão é levar a guerra até ao inimigo. Vocês foram avistados por uma das
minhas patrulhas ainda antes de entrarem na passagem por entre as montanhas. No meio do nevoeiro não conseguiram aproximar-se o suficiente para vos identificar claramente
como romanos. A verdade é que já passou algum tempo desde a última vez que vimos algum romano que não fizesse parte
da guarnição.
- Já ouvi dizer. - Comentou Cato. - Além disso, estás em falta com os relatórios para Glevum, desde há algum tempo também. Presumo que no quartel-general havia quem
se preparasse para te dar por perdido, a ti e aos teus homens.
- Mas não com tanta certeza que não tratasse de vos enviar para cá, ao que parece.
Cato e Macro trocaram um rápido olhar.
- Porque é que deixaste passar tanto tempo sem estabelecer contacto com o quartel-general? - Indagou Cato.
- Estamos rodeados de inimigos. Se mandasse um homem com um relatório, o mais provável era que os siluros o apanhassem. E nesse caso eu perdia um homem e o relatório
não chegava na mesma. Portanto, não valia a pena. Se tiver alguma coisa de realmente importante a comunicar ao legado, nesse caso enviarei um relatório. Não sendo
assim, continuo a seguir as ordens que me foram dadas: apoquentar o inimigo. Razão pela qual levei um dos meus esquadrões para vos montar uma armadilha, no caso
de serem elementos inimigos. Já agora, devo dizer que caíram nela que nem patos. Embora me tivesse dado a sensação de que eram mais do que três, sem contar com o
prisioneiro que ali vai.
- A nossa escolta voltou para trás depois do colo, quando a estrada começou a descer para o vale. - Explicou Cato. - No ponto onde encontrámos três siluros deixados
a morrer. Trabalho teu, calculo.
- Gosto de mostrar ao inimigo o que pode esperar se se atrever a cruzar-se no meu caminho. Há outros, em cada uma das estradas que conduzem ao vale. E deixamos sempre
alguns assim de cada vez que atacamos uma aldeia ou defrontamos um dos bandos de guerreiros.
- Porquê? Querto virou-se para lhe lançar um olhar estupefacto. - É óbvio. Assusta o inimigo. Macro soltou uma gargalhada seca. - E os nossos rapazes também. - Nesse
caso, eles que não se metam no meu caminho. - Desdenhou Querto. - Não preciso de interferências no meu trabalho. - O teu trabalho? Queres dizer as tuas ordens. Foi-te
indicado que flagelasses o inimigo, e não que te dedicasses a travar uma guerra privada.
Querto encolheu os ombros e olhou para a frente. - O meu vale, as minhas regras. Desde que faça aquilo que o legado me pediu.
- Pois sim, mas agora sou eu quem comanda. - Ripostou Cato, cauteloso. - As coisas em Bruccium podem mudar.
- Veremos. - E já que estamos a falar nisso, uma vez que sou o novo prefeito, quando te dirigires a mim, tratar-me-ás por senhor, centurião Querto.
O outro olhou para ele, quase sem se dar ao trabalho de esconder o desprezo com que respondeu.
- Se assim o deseja, senhor. Cato sentiu como que um punho gelado a apertar-lhe o coração. Uma escura nuvem de ameaça parecia rodear o oficial trácio. Cato dava
passos cautelosos, e reconhecia o receio que sentia. Não tinha qualquer desejo de fornecer àquele homem uma oportunidade para se livrar de um provável rival pelo
controlo dos seus homens. Resolveu que seria aconselhável pôr Querto a par das novidades. - Calculo que deves ter sofrido algumas baixas desde a construção do forte.
- Algumas, sim. Os homens menos capazes. - Nesse caso, gostarás de saber que daqui a poucos dias sairá de Glevum uma coluna de reforços para o forte.
Querto deitou-lhe um olhar feroz. - Mais romanos? Cato assentiu. - Legionários, sim, na maioria. Embora os que forem capazes de montar possam substituir alguns dos
homens que perdeste na cavalaria, se eu assim decidir.
Era um lembrete subtil de que o oficial trácio voltaria à sua unidade e entregaria o comando do conjunto da guarnição a Cato.
- Quando chegarmos ao forte vou querer um relatório completo sobre o período em que o comandaste, bem com um inventário dos suprimentos ainda existentes e do efetivo
em condições de combate. - Prosseguiu Cato. - E amanhã pela alvorada quero as duas coortes na parada para uma inspeção completa.
Querto não respondeu, e Cato sentiu-se enrubescer com a fúria. Limpou a garganta de forma bem audível, e voltou a falar com clareza.
- Centurião, ouviste as minhas ordens? - Sim, senhor. - Nesse caso, gostaria que no futuro o confirmasses. - Sim, senhor. - Ripostou Querto sem trair qualquer emoção
na voz. - Se é tudo, tenho que ir ver onde andam os meus batedores.
- Pareceu-me ouvir-te dizer que este vale te pertencia. - Comentou Macro. - E que era essa a razão para deixares aqueles homens empalados, para que o inimigo os
visse. Para os avisar para manterem a distância.
- E assim sucede. Deixa-os nervosos, e serve ainda para lembrar aos meus homens o tipo de guerra que estamos aqui a travar. É o destino de qualquer homem que se
deixe aprisionar. Uma lição que me parece que até vocês os dois devem aprender. E quanto mais cedo melhor. - Olhou para Macro com fúria. - De qualquer forma, há
alguns guerreiros inimigos de espírito mais forte, e é com esses que nos preocupamos.
Fez o cavalo saltar para a frente e seguir num passo rápido, afastando-se da coluna, até chegar junto dos batedores que seguiam na vanguarda.
Cato e Macro viram-no ir, com a capa a esvoaçar em redor do corpo, qual um bando de corvos a voltear pelo ar.
Cato olhou em redor. Os trácios devolveram-lhe o olhar sem qualquer deferência, como se não se importassem de estar sob o escrutínio do novo prefeito que ia comandar
o forte de Bruccium. Muitos deles exibiam tatuagens na face, padrões espiralados em tons escuros, diferentes dos padrões ornamentais em tom azul preferidos pelos
celtas. As capas e túnicas mostravam sinais de uso intensivo e estavam sujas, e o equipamento era uma mistura do que era distribuído às tropas auxiliares, de armas
siluras capturadas, e de alguns instrumentos de desenho mais estranho, que Cato calculou que fossem provenientes da própria Trácia, berço daqueles homens.
Na cauda da coluna, Décimo seguia pela berma da estrada, de forma a poder ver Cato e Macro, o que lhe dava algum conforto. Atrás dele, amarrado à sela de uma das
outras mulas, ia o prisioneiro, com um ar de absoluta miséria estampado no rosto. Cato virou-se para a o amigo e falou em voz baixa.
- Macro, no que pensa? O amigo respondeu no mesmo tom de voz. - O centurião Querto não está propriamente a aceitar bem a coisa. - Pode dizê-lo. Macro fez um gesto
discreto na direção dos homens que cavalgavam atrás deles.
- E nunca vi tamanho bando de maltrapilhos, mesmo nas mais desleixadas unidades auxiliares do exército. Parecem bárbaros. É difícil distinguir esta malta dos nativos.
Cato assentiu. - Se calhar é mesmo essa a intenção. Ou isso, ou o Querto resolveu dar mais um passo e fazer com que os seus homens tenham um aspeto ainda mais assustador
do que os siluros.
- A mim não me assustam. - Ripostou Macro com firmeza. - Pouca coisa é capaz disso, devo reconhecê-lo. O que me deixa, aliás, bastante feliz.
Macro sorriu perante o cumprimento, mas depressa a sua expressão voltou a endurecer.
- Ainda assim, a situação não me agrada. Vamos ter que manter o Querto debaixo de olho. Já deve andar a pensar na melhor forma de se livrar de nós sem despertar
demasiada atenção do quartel-general.
- É precisamente o que eu acho. - Confirmou Cato. - E enquanto ele continuar a aterrorizar as tribos locais, o legado vai achar tudo uma maravilha e mantê-lo no
posto. Vamos ter que tomar muito cuidado.
Macro anuiu.
- Há mais uma coisa que me preocupa. Se este grupo for uma amostra característica dos homens no forte, que mais vamos nós ter que aguentar? Não me parece que apreciem
a obrigação de cuidarem da aparência e de terem aprumo militar.
- Pois não. Cato sentiu uma gota de chuva tombar sobre a mão com que segurava as rédeas, e levantou a vista para o céu. Uma massa de nuvens escuras vinha do lado
das montanhas, e trazia consigo mais chuva. Puxou para cima o capuz do manto e encolheu-se no interior das espessas dobras da roupa. Mais gotas começaram a tombar,
e depressa a chuva se abateu sobre os cavaleiros, assobiando enquanto chocava com o solo e transformava a estrada numa faixa resplandecente de lama.
- Sabes, - resmungou Macro, - é nestas alturas que me pergunto se não seria bem melhor deixar estes campos elísios ao cuidado dos locais. Foda-se, mas porque carga
de água é que o Cláudio cismou que havia de adicionar este buraco miserável ao Império?
- Macro, sabe muito bem como isto funciona. Não podemos levantar essas questões. Estamos cá porque cá estamos, e é tudo.
Macro riu com vontade. - Até que enfim que estás a aprender.
A chuva prosseguiu sem interrupção ao longo do resto do dia. À medida que a pálida luz começava a desaparecer, a paisagem das regiões mais remotas do vale começou
a dar lugar ao que em tempos tinham sido terras cultivadas. Quintas abandonadas espalhavam-se dos dois lados da estrada. Alguns grupos de cabanas ainda se mantinham
de pé, mas estavam vazias, e nenhum fumo saía das suas chaminés. Muitas outras tinham sido queimadas, e dessas só restavam ruínas enegrecidas e horríveis, que se
erguiam do solo como dentes apodrecidos nas gengivas de uma velha bruxa. Em redor imperavam os campos negligenciados, onde predominavam as ervas e a cevada silvestre.
Junto à estrada, por entre a erva alta, Cato avistou os restos de animais, peles gastas sobre as ossadas, sinal evidente de que ali tinham ficado depois de abatidos.
Mas havia também cadáveres humanos, chupados, rostos enegrecidos com a pele esticada sobre crânios onde as órbitas já tinham sido vazadas havia muito. Mais indícios
do tipo de trabalho a que Querto e os seus homens se tinham dedicado.
A estrada chegou à margem de um rio estreito e seguiu-lhe o curso; a chuva caía sobre a superfície da água provocando pequenas explosões que faziam lembrar um dilúvio
de moedas de prata. Ao fim de alguns quilómetros, quando a luz do dia morria de vez, os cavaleiros chegaram à vista do forte de Bruccium. Cato soergueu-se na sela
e espreitou com atenção. Pela descrição que Trebélio fizera do local já tinha uma ideia do que o esperava, mas verificou ainda assim que o local tinha sido de facto
muito bem escolhido. O rio corria em torno do outeiro onde o forte fora erguido, fornecendo uma defesa natural a três das faces da fortaleza. Qualquer assaltante
teria que deixar de lado a ideia de atacar os taludes de turfa que prolongavam as encostas íngremes que iam dar à borda de água. Na face restante, o forte estava
protegido pelo fosso escavado à frente do talude.
- Impressionante. - Admitiu Macro. - O Carátaco não deve albergar grandes esperanças de tomar Bruccium.
Cato assentiu. Sem pôr em questão a coragem dos nativos, a verdade é que lhes faltava alguma compreensão quanto à forma de utilizar armas de cerco. Era essa a razão
pela qual tinham depositado tanta fé nas suas simples fortificações em cimos de colinas, que tinham adotado em grande escala. Tinham resultado nos conflitos entre
as tribos que viviam na ilha, mas pouca resistência ofereciam contra as armas pesadas das legiões romanas. Os onagros tinham destruído paliçadas e portões das fortificações
celtas, umas atrás das outras, enquanto as balistas tinham varrido as muralhas de turfa, abatendo qualquer guerreiro que se atrevesse a tentar demonstrar a sua coragem
num desafio vão contra o inimigo. Depois do bombardeamento, era geralmente caso apenas de formar uma tartaruga para avançar sobre as brechas e carregar em força
para fazer debandar os poucos defensores ainda em condições de combater.
Os guerreiros nativos ainda mal começavam a descobrir formas de contrariar a superioridade dos soldados de Roma, quer no campo de batalha quer no cerco. Carátaco
sofrera várias derrotas importantes até aprender a evitar batalhas contra as legiões em campo aberto, e começar a utilizar o passo lento e pesado do exército romano
contra ele mesmo. Desde alguns anos, começara a devotar as suas energias aos golpes contra as linhas de abastecimento das legiões, atacando bem para lá da fronteira
e retirando antes que os romanos pudessem reagir. Tal estratégia tinha-se revelado eficiente e lucrativa, e os atacantes regressavam muitas vezes às suas tribos
carregados de bens obtidos nos ataques a herdades e em emboscadas a colunas de abastecimento e a patrulhas desprevenidas. Pela sua parte, tendo perdido a iniciativa,
os romanos só conseguiam responder a tais ataques com o envio de colunas numerosas mas lentas para os locais das escaramuças, e estas chegavam sempre demasiado tarde.
Inevitavelmente, o governador Ostório tinha chegado à conclusão de que a longa guerra contra as tribos nativas só teria fim quando Carátaco e os seus guerreiros
não tivessem lugar seguro para onde retirar. Sem a derrota de siluros e ordovicos, nunca haveria paz na nova província da Bruiânia.
Uma vez que já estavam à vista do forte, Querto e os seus batedores detiveram as montadas e aguardaram pelo resto da coluna antes de prosseguir pela estrada que
levava à entrada. Fora das muralhas não se via qualquer povoação civil, nem qualquer estabelecimento de nativos. Só montes de feno, altos como cabanas, que faziam
parte das rações dos cavalos. Eram protegidos por uma modesta paliçada, com um portão onde duas sentinelas estavam de vigia. A estrada fazia uma curva e seguia para
o portão principal de Bruccium.
- O que é aquilo? - Perguntou Macro, enquanto apontava para a subida.
Cato virou-se na sela e ergueu uma mão para proteger a vista da chuva persistente, enquanto olhava na direção que Macro indicara. Dos portões do forte descia uma
linha de postes, dos dois lados da estrada, colocados a intervalos de cerca de três metros ao longo de uns duzentos passos. Ao cimo de cada um estava uma pequena
esfera de formas irregulares. Cato sentiu o estômago a vir-lhe à boca quando percebeu o que eram. A sua suspeita foi confirmada de imediato. Cabeças. Uma avenida
de troféus macabros, com expressões congeladas na dor e no terror da morte, a reluzirem à chuva, enquanto a água lhes escorria pelos tufos de cabelo ainda agarrados
aos escalpes.
Cato engoliu em seco, enquanto lutava para controlar a vaga de náusea que ameaçava submergi-lo. Então, ao olhar para o forte, notou mais cabeças espalhadas sobre
a paliçada, viradas para o vale, como que a avisar quem quer que as avistasse que aquele era um antro de morte e escuridão. As trevas da alma humana, tão escuras
como a mais negra das noites, considerou Cato enquanto seguia ao lado de Macro em silêncio, passando por entre as cabeças decapitadas das vítimas de Querto e dos
seus homens.
Ao chegarem à estreita passagem sobre o fosso no exterior da fortaleza, escutou-se uma ordem no interior, e os portões começaram a abrir, as dobradiças a ranger
e estalar debaixo da tensão dos pesados barrotes. Querto deteve-se e virou o cavalo na estrada, de forma a encarar os dois oficiais que o seguiam.
A chuva tinha-lhe ensopado o cabelo e o manto, ambos negros, que pareciam ter-se transformado numa única peça, coberta por uma substância com um brilho mortiço,
como o asfalto. A barba abriu-se quando o homem sorriu e agitou uma mão, indicando a abertura escura que se formava por baixo do torreão da entrada do forte.
- Centurião Macro, prefeito Cato... Bem-vindos a Bruccium.
17
uviu-se alguém a bater à porta, e Décimo entrou e baixou a cabeça, àalaia de saudação. - Senhor, o último dos oficiais já chegou. Estão todos à espera no salão.
- Muito bem. - Cato levantou-se do banco por trás da secretária. - Ajuda-me a pôr a armadura.
- Sim, senhor. - Décimo atravessou o gabinete do comandante até ao cabide de madeira onde estavam penduradas as armas e a armadura de Cato. Tinham passado duas horas
desde que chegara ao forte. O prisioneiro tinha sido conduzido ao calabouço, enquanto Décimo se tinha entretido a desfazer as bagagens de Cato e Macro, nos aposentos
que lhes tinham sido atribuídos no edifício do quartel-general. Não tinha havido necessidade de remover quaisquer pertences de Querto, já que este tinha escolhido
nunca ocupar os aposentos que tinham sido do antecessor de Cato. As poucas posses do anterior prefeito tinham sido deixadas onde se encontravam, e Décimo tinha chamado
dois escribas, o que restava do pessoal do quartel-general, para levar as coisas para o armazém. Os homens eram ambos veteranos, já idosos, de cabelo grisalho e
sem o vigor necessário para tomar lugar nas fileiras ao lado dos seus camaradas mais novos e em melhor condição física. Antes, tinham explicado a Cato que, desde
que Querto assumira o comando do forte, os outros elementos do pessoal administrativo tinham sido arrancados de detrás das suas mesas de trabalho para se juntarem
aos grupos de homens que Querto enviava para combater as tribos mais próximas. Não fora feita qualquer tentativa de manter atualizados os registos das duas coortes
da guarnição, e o edifício do quartel-general tinha sido praticamente abandonado. Tinham ficado apenas aqueles dois, cumprindo as tarefas que o comandante interino
se dignava atribuir-lhes quando se lembrava disso.
Cato tinha tirado a túnica e as botas que usara na cavalgada desde Glevum. Tinha em vez delas colocado uma túnica limpa e um colete de couro com meias mangas em
fitas, e botas de cabedal, que eram mais práticas e confortáveis que as robustas sandálias militares que preferia usar no campo.
Esticou os braços para que Décimo colocasse as duas placas da couraça e começasse a apertar os fechos. Depois de terminar de um lado, o criado rodeou-o e começou
a trabalhar no outro lado, limpando a garganta para se dirigir ao patrão.
- Senhor, isto não é o que eu estava à espera. - Começou, a medo. - Não é o que nenhum de nós estava à espera. - Ripostou Cato, cansado. - O centurião Querto tem
muitas ideias próprias acerca dos deveres de um comandante de guarnição, para não dizer dos de um oficial do exército romano.
Décimo grunhiu e passou à fivela seguinte. - Nunca vi nada que se parecesse com este lugar, senhor. E posso dizer que espero nunca voltar a vê-lo. Aquelas cabeças
todas. E os corpos atirados para o fosso e abandonados. Não está certo. E os homens dele, até parece que andam em transe. Nem um se mostrou disposto a conversar
comigo enquanto vínhamos para o forte. Ignoraram-me, pura e simplesmente, mas não me escapou a forma como olham para as coisas. Como se tivessem demasiado medo de
falar.
- A sério? Se calhar estavam só a respeitar a disciplina. Décimo fechou a última fivela e recuou um passo. - É mesmo isso que pensa, senhor? - Décimo, não tenho
que te dizer o que penso ou deixo de pensar. E não me parece muito apropriado que emitas opiniões desse género sobre um centurião veterano. Ficou claro? - Cato não
queria dar um grande raspanete ao homem, mas era preciso que ele percebesse que havia limites que tinham que ser respeitados, a não ser que lhe dessem permissão
para os ultrapassar. Cato adotou um tom mais conciliatório ao prosseguir. - Em circunstâncias normais, é assim que as coisas funcionam. Porém, as condições aqui
são tudo menos normais. Para já, temos que ter muito cuidado com o centurião Querto. Preciso que sejas os meus olhos e ouvidos entre a soldadesca da guarnição. Tenta
descobrir o que se tem passado. Vê se alguém sabe alguma coisa acerca do destino do meu antecessor, o prefeito Albino. Mas, Décimo, tem muito cuidado.
- Tê-lo-ei, senhor. Uma vez que não me foi dada escolha quanto à vinda, tenciono sair de Bruccium inteiro, e receber o pagamento que me foi prometido.
- Partindo do princípio de que eu vivo o tempo suficiente para to pagar.
Décimo olhou-o com algum espanto. - Senhor, acha mesmo que corremos assim tanto perigo? Cato encarou-o com assombro. - É evidente que sim. Estas montanhas e vales
são o lar dos mais duros e perigosos guerreiros da Britânia. Odeiam-nos sem reservas, e estão dispostos a combater até ao fim. Ainda por cima, é muito possível que
tenhamos que nos preocupar com outros fatores. Não te vou mentir, Décimo. Também eu nunca vi nada como este lugar. Vou ter que ser muito cuidadoso. Tal como tu e
o Macro. Não te deixes distrair por nada, percebes?
- Sim, senhor. - Ótimo. Espero bem que esteja apenas a ser demasiado prudente e que as coisas não se revelem assim tão más como parecem. Talvez daqui a uns dias
nos possamos rir dos nossos temores.
- Tenho umas certas dúvidas. - Veremos. Bom, agora a faixa. Décimo pegou na faixa de tecido vermelho vivo do cabide e passou-a pelo centro da couraça antes de a
atar na frente e prender as pontas soltas, de forma a criar umas dobras decorativas.
- Que tal estou? - Quis saber Cato. Décimo mordeu os lábios. - Se fosse noutro sítio qualquer, senhor, diria que muito bem. Aqui, porém, parece apenas deslocado.
Cato não respondeu; apontou para a espada, e Décimo colocou-lhe a tira de suporte por cima do ombro e deixou a bainha descair para a direita de Cato, antes de puxar
o colarinho da túnica para garantir que em nenhum momento o couro da couraça roçasse e acabasse por ferir a pele do prefeito. Recuou para admirar a sua obra e obrigou-se
a sorrir.
- Senhor, parece pronto a apresentar-se ao próprio Imperador. - Uma última coisa. - Cato detestava a vaidade, mas tinha resolvido que a sua posição no forte seria
cimentada se os oficiais percebessem que o novo comandante não era um noviço sem caráter, acabadinho de sair das saias da mãe em Roma. - Ali, na arca. O meu arnês
de medalhas.
Décimo fez o que lhe era pedido e tirou da arca o conjunto de discos polidos presos ao couro brilhante do arnês. Cato sentiu-se animado perante o olhar de franca
admiração do veterano enquanto este lhe colocava a peça sobre a placa peitoral. Cato manteve-a em posição enquanto o criado fechava a fivela nas costas.
- Senhor, vejo que se distinguiu em muitos combates. Não distribuem medalhas destas só por aparecer no campo de batalha.
- Pois não. - Cato soltou um breve sorriso. - E quanto a combates, já vi mais do que os suficientes. Tenho contudo a distinta sensação de que vou ver muitos mais,
e depressa, se for essa a vontade dos deuses.
- Quanto aos deuses, não sei, senhor. Mas tenho a certeza de que é isso que o Carátaco nos vai proporcionar. E se não for ele, então o centurião Querto não se esquecerá
de nós.
- Bom, agora sou eu quem decide isso. - Ripostou Cato com firmeza. Respirou fundo e olhou para a porta, fazendo uma pausa para organizar os pensamentos e acalmar
a mente em turbilhão. Pegou então no estojo de couro que continha os documentos que comprovavam a sua autoridade para assumir o comando da guarnição, e decidiu-se.
Saiu para o corredor e dirigiu-se ao salão principal do edifício do quartel-general, os passos a ecoar nas paredes.
Os centuriões e optios da unidade auxiliar trácia e da coorte de infantaria da Décima Quarta Legião estavam sentados em filas de bancos quando Cato entrou no salão.
O amplo espaço era iluminado por velas de sebo colocadas em encaixes de ferro nas paredes, e aquecido por um braseiro que ardia a um dos lados.
Assim que Cato entrou, Macro colocou-se de pé e lançou um urro. - Comandante presente! Os outros homens hesitaram até verem Querto a colocar-se vagarosamente de
pé, e só depois lhe seguiram o exemplo. Cato percorreu o salão, rodeando a assembleia até ao espaço livre à sua frente, e indicou a Macro que estava pronto para
falar.
- À vontade! Os oficiais sentaram-se, e Cato deu-lhes um momento para se acomodarem, que aproveitou para passar o olhar sobre os homens que agora comandava. Tinha
pensado que haveria marcadas diferenças de aparência entre os oficiais da coorte de cavalaria trácia e os das legiões. Em vez disso, ficou consternado ao verificar
que praticamente todos os homens se apresentavam com a barba por fazer, e com cabelos compridos apanhados por trás da cabeça, à moda do próprio centurião Querto.
Apenas dois dos centuriões da Décima Quarta e os seus optios eram reconhecíveis como romanos, de cabelo curto e túnicas e botas regulamentares. Cato sentiu o coração
a afundar-se ao verificar aquela situação, e compreendeu que o desafio que o esperava era ainda maior do que pensava. Respirou fundo e fechou as mãos por trás das
costas, em redor do documento da sua nomeação.
- Boa noite, senhores. Se este forte não diferir grandemente dos outros, já se terá espalhado a notícia da minha chegada; mas, para que conste, sou o prefeito Cato,
nomeado para o comando da guarnição de Bruccium. - Mostrou o porta-documentos ao alto e abriu a tampa do tubo antes de retirar do seu interior a autorização que
ostentava o selo imperial. Ergueu-a bem no ar para que todos o vissem, e voltou a colocá-la no interior do tubo de couro. Indicou Macro. - O outro oficial novo é
o centurião Macro, que vai assumir o comando da Quarta Coorte da Décima Quarta. Antes de prosseguir, gostaria de ficar a saber mais sobre os homens que vou comandar.
Um oficial de cada vez.
Antes que Cato pudesse indicar o primeiro a falar, Querto estava de pé, de braços cruzados.
- Muito bem. Sou o centurião Sícaro Querto, da Dácia. Era um príncipe entre o meu povo, até ser obrigado a fugir depois do meu pai ter sido assassinado. Cresci na
Trácia, onde fui forçado a entrar para o exército e enviado para servir no Reno. Por lá fiquei até que o meu regimento recebeu ordens para se juntar ao exército
que se aprontava para a invasão da Britânia. Nas campanhas que se seguiram fui promovido a optio, e depois a centurião, e duas vezes condecorado por ter demonstrado
o meu valor em combate. Depois da morte do prefeito Albino, assumi o comando da coorte e do forte, e desde então tenho levado a guerra até ao coração do território
siluro, queimando dezenas de aldeias e provocando milhares de baixas ao inimigo. Fiz de Roma um nome a temer nas terras que ficam entre Glevum e o mar. O inimigo
conhece bem o meu nome, e ele leva o terror aos corações de todos os que o ouvem. - Abriu os braços e cerrou os punhos. - Sou Querto, destruidor de todos os que
se põem no meu caminho! Ninguém me pode derrotar!
Os outros oficiais batucaram com os pés no chão em sinal de aprovação, e Querto gozou o momento, até baixar os braços, sinal para que todos ficassem de novo em silêncio.
Virou-se para Cato com um sorriso frio, de satisfação.
- Estes oficiais são meus irmãos. São os comandantes dos meus esquadrões de cavalaria. - Indicou-os à vez. - Fermato, Cremax, Estelano, Píndaro, Mitridates e Miro.
Bravos guerreiros, todos eles. Aqueles ali, - acenou na direção dos centuriões dos legionários, - são da infantaria. Os centuriões Públio Severo e Gaio Petílio.
A sua tarefa é defender o forte, já que é só para isso que servem.
Os dois centuriões enrubesceram de fúria e vergonha, mas não se atreveram a responder ao insulto que lhes tinha sido dirigido. Querto contemplou-os com desdém antes
de voltar a olhar para Cato e inclinar ligeiramente a cabeça para o lado.
- Há vários meses que lutamos contra os siluros, sem qualquer interferência do legado em Glevum. Não solicitei qualquer substituto para o prefeito Albino. Com todo
o respeito, senhor, a sua presença não foi pedida, nem é desejada. Devia regressar a Glevum. Para dizer ao legado que continuo a cumprir as ordens que recebi e que
continuarei a fazê-lo até que os siluros existam apenas na memória das gentes.
Cato via o sangue a fugir do rosto de Macro enquanto escutava aquela torrente de insolência, e temeu que o amigo resolvesse intervir. Avançou de forma a colocar-se
entre os dois e enfrentou Querto.
- Centurião, não te cabe dizer quem é que é preciso aqui e quem não é bem-vindo. Tu, e eu, estamos sujeitos às regras e regulamentos do exército. Ambos prestámos
ao Imperador um juramento de obediência aos nossos superiores, sem questionar as suas ordens. Foi-me ordenado que assumisse o comando aqui, e é tua obrigação reconhecer
a minha autoridade para tal. Ambos conhecemos as severas penalidades que caem sobre aqueles que se recusam a obedecer às ordens. Em reconhecimento do sucesso que
tens tido nas operações que conduziste, e por esta ocasião, vou esquecer os teus modos insubordinados e atribuí-los às consequências do zelo com que levaste a guerra
ao coração do território inimigo. Porém, não voltarei no futuro a tolerar um comportamento semelhante da tua parte. Fui claro?
Querto encarou Cato com uma expressão quase divertida, que apenas contribuiu para enfurecer e alarmar Cato ainda mais. Querto acabou por baixar a cabeça com ar zombeteiro.
- Como desejar, prefeito... - Sim, como eu desejo. Senta-te. - Instou Cato, com toda a firmeza que conseguiu reunir e, para seu alívio, o trácio fez o que lhe era
ordenado. Cato aguardou um momento para que se dissipasse alguma da tensão que se sentia no ar. - Independentemente do sucesso que conseguiste nos últimos meses,
o fito da campanha empreendida pelo governador deve ser lembrado de forma clara. O propósito da construção de fortes como Bruccium é o de restringir os movimentos
do inimigo e flagelar as tribos de forma a levar Carátaco a concentrar as suas forças e tentar resolver o problema que lhe causamos. Nessa altura, a coluna principal
do exército de Roma poderá avançar contra o inimigo e tentar forçá-lo a uma batalha decisiva. Se esmagarmos os siluros e os ordovicos, Carátaco verá a sua força
desaparecer. Nenhuma outra tribo se disporá a permitir que ele os conduza à derrota. E, não havendo outro comandante da mesma estatura entre os nativos, a ameaça
aos interesses romanos na Britânia estará dissipada, e de uma vez por todas. É meu dever garantir que a guarnição de Bruccium desempenha o seu papel neste plano
global. Não tolerarei que qualquer oficial, ou soldado, não compreenda e aceite o seu dever neste esquema. Esta guarnição é parte do exército romano, e tratarei
de verificar que se porta de acordo com os padrões que são de esperar nos soldados romanos. O primeiro passo nesse sentido será uma inspeção completa e detalhada
a todos os homens da guarnição, que terá lugar amanhã pela alvorada. Além disso, quero informações sobre os efetivos das unidades, inventários de equipamento, e
das reservas de alimentos para os homens e de rações para os cavalos. Os registos passarão a ser mantidos em ordem, e cópias de toda a informação relevante serão
enviadas para o pessoal do quartel-general. Haverá daqui em diante mudanças na forma como a guarnição opera, e será aconselhável que todos estejam prontos a colaborar
nelas da forma mais completa possível. - Fez uma breve pausa. - Senhores, até amanhã à primeira luz do dia. Dispensados!
Mais uma vez se deu uma pausa enquanto os oficiais esperaram que Querto lhes mostrasse o que fazer. Ele levantou-se e virou-se para o resto da assembleia.
- Ouviram o prefeito. Dispensados! Os homens ergueram-se obedientemente e começaram a deixar o salão. Entretanto, Cato lutava para controlar a humilhação que lhe
corria nas veias. Esperou até ficarem apenas uns poucos oficiais e Querto, antes de o chamar.
- Centurião Querto. Uma palavra, por favor. Querto encolheu os ombros, virou-se, e sentou-se numa das últimas filas de bancos, enquanto o mais atrasado dos oficiais
desaparecia no corredor, não sem lançar um olhar curioso por cima do ombro. Macro deixou-se ficar onde estava.
- Senhor, deseja que eu também fique? - Não é necessário, centurião. Pode seguir. - Sim, senhor! - Macro fez uma saudação aprimorada e deixou o salão.
Depois da porta se fechar, Cato deu toda a atenção ao entroncado trácio. Agora que o homem tinha removido a capa e se sentava ali envergando apenas a túnica, Cato
via que ele era ainda mais poderoso do que julgara antes. Tinha um físico capaz de rivalizar com os melhores lutadores da arena em Roma, e o ar carrancudo que ostentava
dava-lhe uma aparência verdadeiramente intimidatória. Cato teve que se lembrar e manter presente que detinha uma patente superior, e que era fundamental garantir
que esta era respeitada. Semicerrou levemente os olhos ao contemplar o trácio.
- O que é que se passa aqui? - Senhor, o que é que quer dizer? - Querto, não te armes em parvo comigo! Os homens têm a aparência de selvagens, e os corpos e as cabeças
que puseste em exposição... Tudo isto está muito para lá de qualquer noção do que é aceitável. Não é digno de gente civilizada.
- Prefeito, poupe-me aos seus nobres sentimentos. Estamos em guerra, não estamos a brincar às guerras. - Fez um gesto de desprezo na direção da armadura e das medalhas
polidas que Cato ostentava. - Aqui não há espaço para os valores civilizados. Há seis anos que Roma enfrenta as tribos das montanhas, sem resultado visível. Perdi
muitos camaradas nesta luta, homens que me eram próximos. Os que vivem nestas paragens, esses é que são os verdadeiros selvagens. São fanáticos no seu ódio a Roma,
e são acicatados a toda a hora pelos druidas. Até que sejam apagados da face do mundo, e os seus druidas com eles, não haverá paz romana na província. Combato-os
há tempo suficiente para saber que continuarão a enfrentar Roma até que se esgote a última gota de sangue dos seus corpos. Cada derrota serve apenas para fortalecer
a sua determinação. Existe apenas uma forma de lhes quebrar o espírito e levar isto a um fim.
- E qual é ela? O trácio inclinou-se para a frente, e os seus olhos perscrutaram os de Cato com intensidade.
- Há que não lhes mostrar qualquer piedade. Provar-lhes que conseguimos ser ainda mais selvagens, mais cruéis, mais implacáveis, que o mais tenebroso dos seus druidas.
Eu provoco-lhes medo. Tanto medo que me temem em cada instante que passam conscientes, e sabendo que lá estarei, nos seus sonhos, a persegui-los com visões de sangue
e fogo.
- É essa a razão para a macabra exposição que rodeia este forte? - Evidentemente, e também a razão pela qual encorajo os meus homens a assumirem um aspeto ainda
mais bárbaro do que o inimigo.
- Quanto a isso, só posso dar-te os parabéns. - Respondeu Cato com sarcasmo. - Mas há aí mais qualquer coisa, não há?
Querto não respondeu durante alguns momentos, e depois sorriu friamente.
- Muito bem. Tem razão, prefeito. As minhas táticas e a aparência dos meus homens são apenas uma parte do plano. Mais importante é que os homens pensem e ajam como
selvagens, no momento indicado. E isso é algo que não se lhes pode simplesmente ordenar. Têm que o fazer sem pensar. Têm que ser mais bárbaros do que os bárbaros
que combatem. Só assim podemos triunfar. E é isso que estamos a fazer. Cada aldeia que destruímos, cada homem, mulher ou criança que liquidamos, cada corpo mutilado
que deixamos para que os outros o vejam, serve para afrouxar a vontade do inimigo. - Fez uma pausa e baixou a voz. - Quando acabámos de construir este forte, os
siluros atacavam todas as noites. Emboscavam as nossas patrulhas, massacravam os grupos de recolha de alimentos e provocavam-nos com as cabeças cortadas dos nossos
camaradas. Quando assumi o comando, queimámos-lhes as quintas, destruímos-lhes as aldeias, e corremos com eles, todos, até ao último, do vale - todos, exceto aqueles
que passámos a fio de espada. Depois, começámos a varrer os vales mais próximos, e tratámos de garantir que eles ficavam a saber quem era o responsável pelo castigo
que lhes era imposto. Espalharam-se notícias das nossas ações, e depressa começámos a encontrar povoações que tinham sido pura e simplesmente abandonadas. O medo
é contagioso, espalha-se entre os homens e enfraquece-lhes a vontade e a capacidade de resistência. Estamos prestes a quebrar-lhes de vez o espírito de luta. Tenho
essa certeza. Mais um mês, e pronto. Nessa altura virão ter connosco de joelhos, suplicando pela paz que lhes queiramos oferecer nos nossos próprios termos.
Cato escutou em silêncio, absorvendo a informação. Explicava tudo aquilo que vira, refletiu, mas havia ainda mais qualquer coisa que Querto não estava a revelar.
E, além disso, o discurso não desculpava o desafio à sua autoridade. E ainda havia a não insignificante questão das circunstâncias que rodeavam a morte do prefeito
anterior.
- Este... sucesso que tens alcançado teve um custo, presumo. Quantos homens já perdeste desde que assumiste o comando?
- Não mais do que aqueles que Roma pode aceitar. - Quantos? - Não tenho números precisos. - Mas deves ter uma ideia. - Insistiu Cato. Querto juntou as mãos. - Há
um preço a pagar pelo sucesso numa guerra. Um preço que é pago em vidas humanas. Custou à minha coorte mais de metade dos homens. Cobri essas baixas com os legionários
que se ofereceram para ocupar essas vagas. E não foram poucos. Alguns não o fizeram. Homens como o Petílio e o Severo, que não têm estômago para este trabalho. Ficam
a defender o forte sempre que eu levo os outros para combater o inimigo. Mas agora temos falta de legionários. Ainda bem que vamos receber reforços. Homens suficientes
para acabar o que comecei. - Os olhos rebrilharam-lhe perante tal perspetiva.
- Querto, quem comanda agora sou eu. Serei eu a decidir o curso futuro das nossas ações.
O trácio lançou-lhe um olhar gelado. - Seria prudente permitir-me que continue o meu trabalho... senhor. - Isso é uma ameaça? - Inquiriu Cato, enquanto resistia
à vontade de pousar a mão no punho da espada.
Querto ficou hirto por momentos, antes de abanar a cabeça. - Estamos do mesmo lado. Trabalhamos para alcançar o mesmo fim. É simplesmente uma questão de método,
e eu acredito que o meu resulta. Permita-me que lho demonstre. Venha connosco no próximo ataque e tire as suas próprias conclusões. Ao que sei, testemunhou o assalto
de um bando de guerreiros siluros ao fortim mais próximo.
- De facto. E posso saber como é que ficaste a saber disso? - Um dos meus batedores viu tudo. Relatou-me o sucedido, e saímos para perseguir os siluros. Em vez disso,
encontrámo-lo. E ao seu prisioneiro.
Assim que o interrogar e lhe arrancar a localização da aldeia de que vieram, poderemos fazer deles mais um exemplo.
- Preferia que fosse o centurião Macro a interrogá-lo. - Ele foi treinado em técnicas de interrogatório? Cato permitiu-se um leve sorriso. - Ele fez, digamos, um
estágio. Se há alguém capaz de soltar a língua de um homem, é o Macro. Mas isso pode esperar até amanhã.
Querto assentiu, com ar pensativo. - Como desejar, senhor. - Centurião, vou ser honesto contigo. Não sei bem o que pensar das tuas atividades nos últimos meses.
Vou ter que ponderar seriamente a situação. Amanhã, depois da inspeção, voltaremos a falar.
- Os homens não precisam de nenhuma inspeção, senhor. - Serei eu a aferir dessa necessidade. - Cato bocejou. O trácio levantou-se. - É tudo? - Ainda não. Quero aquelas
cabeças retiradas das muralhas do forte até amanhã.
Querto inclinou ligeiramente a cabeça, à laia de saudação, antes de se virar e sair da sala. Uma vez a sós, Cato deixou-se cair sobre a cadeira, meteu a cabeça entre
as mãos e fechou os olhos. Instintivamente, não gostava nem confiava no oficial trácio. Contudo, o homem tinha feito uma razoável defesa dos seus métodos extremos,
e talvez existisse realmente neles algum mérito. As tensões acumuladas ao longo da dura viagem desde Glevum começavam a triunfar, e era-lhe difícil pensar com clareza.
Precisava de descansar. Uma noite decente de sono, para preparar a mente para o dia seguinte, que se adivinhava também difícil.
Abafou outro bocejo, levantou-se e espreguiçou-se, sentindo com prazer as articulações a estalar. Saiu do salão e não viu sinais de Macro no corredor. Sentiu-se
pouco inclinado a recolher aos seus aposentos sem averiguar do paradeiro do amigo naquele estranho forte, com uma guarnição de soldados intoxicados pela sede de
sangue de Querto. Mas Macro sabia muito bem cuidar de si mesmo, decidiu. Dirigiu-se devagar para as suas acomodações e fechou a porta. Hesitou um momento antes de
puxar o ferrolho para a trancar. Depois, para arrumar a questão, arrastou uma arca cheia de documentos contra a face interna da porta, antes de se dirigir ao quarto
de dormir.
Removeu a espada, debateu-se até se livrar do arnês e abriu as fivelas da armadura antes de a deixar no chão junto à cama. Deitou-se por fim sobre o colchão duro
e pouco espesso, recheado de pelo de cavalo, e fechou os olhos, aliviado. Durante alguns momentos reviu a conversa que tinha tido com Querto, mas depressa a sua
mente começou a divagar. A última imagem de que teve consciência foi a do jovem siluro empalado à saída da passagem montanhosa que conduzia àquele vale da morte.
Franziu o sobrolho perante tal imagem, certo de que era apenas um presságio de piores visões futuras. Caiu, por fim, num sono inquieto.
18
Ei! - Macro tentou atrair a atenção do outro centurião, enquanto o seguia à saída do quartel-general, pela escuridão do pequeno pátio que ficava na frente do edifício.
Havia apenas uma tocha a arder num encaixe na parede junto à porta, e os outros oficiais já tinham dispersado. - Severo!
O homem deteve-se e virou-se para confrontar Macro, que sorria. - Eu sabia que eras tu! Pelos deuses, homem, há quanto tempo? - Macro chegou junto dele e apertou-o
pelos ombros. O outro centurião era magro, e o rosto parecia toldado. Uma fina coroa de cabelo cinzento ornava-lhe o crânio, e o cimo calvo brilhava à luz da tocha
solitária. - Mudaste, Severo. Quase não te reconheci. Onde é que foi parar aquele legionário atlético com a farta cabeleira loura? Aquele que partia os corações
de todas as mulheres da povoação junto à fortaleza da Segunda Legião?
- Envelheceu, e tornou-se prudente. - Respondeu Severo, sem entusiasmo. Olhou para trás de Macro, na direção do corredor que levava ao salão. - O prefeito ainda
vai manter o Querto ali muito tempo?
- Se bem conheço o Cato, ainda vão conversar um bom bocado, sim. Severo pareceu aliviado, e ofereceu a Macro um sorriso fatigado. - Bom, ao menos um de nós não mudou
assim tanto. Ainda o mesmo touro com esse cabelo espesso e encaracolado, que bem podia fazer as vezes de uma escova para as botas.
- Portanto, também me reconheceste? - No momento em que te vi no salão. - E porque é que não disseste nada? Duvido que ainda exista mais alguém daquela famosa secção
de recruta. Foda-se, que é bom encontrar uma cara conhecida neste lugar de pesadelo.
O sorriso de Severo apagou-se. - Pesadelo, é bem verdade. - E aquele Querto parece-me um bom meliante. Um assassino frio, isso sim.
Severo encarou Macro. - Nem sabes metade da história. Foi por isso que não disse nada quando te reconheci no salão. Já estou constantemente em perigo, preciso lá
de atrair as atenções.
- Perigo? Severo, o que é que queres dizer com isso? O outro olhou em redor, ansioso, mas nada se movia nas sombras que reinavam no pátio. Estavam sozinhos.
- Olha, Macro, temos que conversar. Mas não aqui. Vamos para o nosso lado do forte, para longe destes sacanas trácios. Ainda tenho para lá uns jarros de vinho da
Gália. Ofereço-te um copo.
- Magnífico. Vamos então! - Macro deu-lhe uma palmada no ombro. - Temos muito que conversar. Nada melhor do que um trago antes de assumir o comando da coorte.
Deixaram o quartel-general e tomaram pela álea larga que dividia a área interna do forte. À esquerda, Macro avistou alguns dos outros oficiais a dirigirem-se para
os longos blocos de casernas onde estavam acomodados os soldados; do outro lado ficavam os estábulos para as montadas da coorte de cavalaria. Viraram à direita,
na direção das casernas de menores dimensões da coorte de legionários. Enquanto percorriam o forte, Macro não deixou de reparar nos sinais de negligência evidentes
por todo o lado. Nas passagens entre os edifícios de madeira e adobe cresciam ervas. Algumas das valas de drenagem estavam entupidas, o que fazia alastrar aqui e
além charcos de água mal cheirosa. Não se escutava nenhum dos sons que Macro associava aos fortes em que tinha passado a maior parte da sua vida. As casernas estavam
silenciosas - nada das sonoras gargalhadas lançadas por homens que bebiam e jogavam em conjunto. Ninguém se sentava no exterior dos edifícios a limpar o equipamento.
Aliás, muito pouca gente se via. Ao chegarem à área atribuída à coorte de legionários, passaram por uma grande cruz de madeira com uma placa colocada no pedestal.
Macro deitou-lhe uma olhadela mas não fez qualquer pergunta, já que estava envolvido na conversa com o seu velho camarada.
- É bom ver que ambos chegámos a centurião. - Disse. - Levou-me bastante tempo, para lá da necessária dose de boa sorte. E tu? Se bem me lembro, foste transferido
ao fim de pouco tempo, e deixaste a Segunda.
Severo acenou em concordância. - Estavam a retirar homens do Reno para compor as legiões designadas para uma campanha para lá do Danúbio, na Cítia. A região de onde
é originário o nosso comandante. Como podes imaginar, nem quero falar dessa parte da minha carreira.
- Ele já não é o comandante. Agora há um prefeito novo no forte. Severo deitou-lhe um rápido olhar. - Achas que sim? Duvido que o Querto resigne ao controlo da guarnição
assim com tanta facilidade.
- Não tem escolha. Há uma cadeia de comando. Severo lançou uma risada amarga. - Parece-me que vais descobrir que aqui em Bruccium as coisas funcionam de maneira
um tanto diferente. - Mudou de assunto. - Bom, então o que aconteceu ao resto da malta da secção, depois de eu ter saído da Augusta?
Macro coçou o queixo enquanto tentava lembrar-se de todos os seus velhos camaradas de recruta.
- O Póstumo afogou-se, o barco em que ia virou-se numa patrulha no rio. O Lúculo levou uma dentada de um cão de caça. A ferida apodreceu e acabou por o matar. O
Barco, aquele grande sacana, lembras-te? Foi escolhido para a guarda pessoal do legado, depois atraiu o olhar do Calígula e foi transferido para a Guarda Pretoriana.
A última vez que ouvi alguma coisa dele tinha sido promovido a centurião da armada, em Miseno. O Aculo serviu como escriba no quartel-general, e acabou corrido por
cozinhar umas contas. O Piso foi morto numa escaramuça com uns germanos que se tinham recusado a largar o dinheiro dos impostos, e o Mário, bom, esta é mesmo difícil
de acreditar: o Mário foi morto pelo coice de uma mula.
Riram os dois, até que Severo olhou para o seu velho companheiro com ar curioso.
- Ouvi umas coisas a propósito da tua promoção a centurião. Se bem me lembro, foste chamado a Roma para ser condecorado e promovido pelo próprio Cláudio.
- Sim - respondeu Macro rapidamente. - Uma cerimónia chata, uns meses de licença na cidade, e pronto, de volta ao Reno.
- Oh. - Severo deu ar de ter ficado desapontado. - Ouvi umas histórias que diziam que tinha havido mais sal nisso.
- E tu, como é que vieste aqui parar? - Começou Macro, tentando mudar o curso da conversa. - Bruccium, o cu do mundo imperial, sem qualquer dúvida.
Severo encolheu os ombros. - Vais para onde te mandam. O Ostório está determinado a conseguir esmagar o último centro de resistência a Roma. Portanto, desatou a
construir uma série de fortes de grande dimensão como este, capazes de resistir a qualquer ataque inimigo, e com uma guarnição suficientemente grande para tornar
a vida difícil para as tribos vizinhas. Claro que estes fortes estão mesmo isolados, e também não é fácil viver neles, mas esse era um risco que o governador estava
disposto a correr, especialmente porque as vidas em jogo são as nossas.
Macro olhou em redor. - Alguns fortes têm ar de estar mais isolados do que outros.
- Conta-me dessas. - Tinha esperança de que fosses tu a contar-me alguma coisa. Severo respondeu quase em surdina. - Aqui fora, nem pensar. Ergueu a mão e apontou
para a extremidade de um bloco de casernas, a uns vinte passos dali.
- Aquela, além, é a minha. Lar da Segunda Centúria, Quarta Coorte, Décima Quarta Legião. Ou melhor, do que resta dela. Os aposentos do comandante da coorte ficam
ali, ao fundo da rua.
- Quem é o mais antigo centurião, atualmente? - Por acaso, sou eu. Normalmente seria o Estelano, mas ele passou-se para os trácios. E assim, ficámos só eu e o Petiio.
E mal temos homens suficientes para compor duas centúrias.
- Duas centúrias? - Macro arregalou os olhos. O efetivo completo de uma coorte de legionários era de quatrocentos e oitenta homens, organizados em seis centúrias
de oitenta soldados. Portanto, no forte havia apenas um terço desse número. - O que é que aconteceu aos outros?
Tinham chegado à porta dos aposentos de Severo, e ele indicou a Macro que entrasse. Um ordenança estava sentado junto à pequena fogueira no interior, a aquecer-se,
e pôs-se em sentido num salto quando deu pela entrada dos dois oficiais.
- Tito, aviva o fogo, e depois vai-me buscar um jarro de vinho da minha reserva. - Virou-se para Macro. - Já comeste?
Macro abanou a cabeça. - Nesse caso, traz-me também um bocado de pão. Ainda sobrou algum queijo?
- Não, senhor. Acabou há dois dias. E o mesmo com o pão. Só há biscoito, senhor.
Severo suspirou. - Seja então biscoito, e mais um bocado daquela merda de carneiro seco.
O soldado baixou a cabeça e dedicou-se ao fogo, colocando com precisão alguns pedaços de lenha sobre as chamas quase mortas.
- Problemas de provisões? - Indagou Macro. - Nem por isso, desde que aprecies carneiro, seco ou salgado, e biscoito. O Querto resolveu viver à custa dos nativos,
como parte do seu plano de se manter independente de Glevum. O que isto significa é que comemos aquilo que o Querto e o seu bando pilham nas aldeias. Uma vez que
os cereais foram plantados há pouco tempo, só nos resta aproveitar aquilo que eles tinham guardado para aguentar o inverno.
- Bom, tenho tanta fome que estou capaz de comer qualquer coisa. E sinto-me um tanto ou quanto seco, também.
- Felizmente, quanto a isso posso oferecer-te algo de mais interessante do que a cerveja nativa, que é tudo o que há no menu ordinário.
- Cerveja? - É o que lhe chamam. Com toda a franqueza, já cheirei mijo de cavalo mais apetitoso. Mas o Querto não se chateia nada por obrigar o pessoal a beber daquilo.
Acha ele que uma dieta sem qualquer interesse ajuda a mantê-los focados numa única coisa. Matar.
O ordenança tinha acabado de reavivar o fogo, e deixara o compartimento. Macro não perdeu tempo a voltar ao tema que abordara antes.
- Parece-me que tem havido muito disso, de ambos os lados. Diz-me lá o que é que aconteceu ao resto da Quarta Coorte?
- Começámos a perder homens assim que pusemos o pé neste vale e iniciámos a construção do forte. Nada de preocupante, só as habituais escaramuças quando os nativos
se atiravam aos grupos de limpeza da floresta. Depois, quando o forte ficou pronto, o prefeito começou a enviar patrulhas para o vale. Tínhamos ordens para confrontar
apenas os bandos de homens armados. Os outros deviam ser deixados em paz. Até fomos encorajados a negociar com eles. - Severo sorriu. - Dá ideia que o prefeito tinha
umas ideias bizarras sobre formas alternativas de construir um Império, para lá do uso da força bruta.
- Pois. Conheço o género. - Suspirou Macro. - Estranhas ideias acerca da forma de um soldado se portar e fazer o seu trabalho.
- Exato. De qualquer maneira, os siluros contentavam-se em fazer umas emboscadas e atacar as patrulhas, e depois esconder as armas e recolher às aldeias como se
nada se tivesse passado, e tínhamos que aturar isso. À exceção do Querto. Recusou-se a alinhar nesse jogo. A unidade dele combatia os siluros há já alguns anos,
e ele disse que conhecia a forma dos nativos pensarem, e que a abordagem do prefeito não ia dar em nada. Talvez tivesse razão. Lá devia saber. Há alguns anos, antes
dele ser promovido a comandante da unidade, foi capturado, ele e alguns elementos do esquadrão que liderava. Ao que parece, os siluros mantiveram-nos prisioneiros
durante alguns meses, e limparam o sebo a alguns antes de entregar os outros aos druidas, para serem sacrificados. O Querto conseguiu escapar, depois de ver os seus
companheiros a serem queimados vivos. Por isso, até acredito que ele tenha alguma ideia sobre a forma como os siluros vivem e pensam. De qualquer maneira, isso parece
tê-lo convencido de que eles nunca se deixariam convencer. E mais, ele acha que só podem ser derrotados se formos capazes de adotar processos tão bárbaros como os
deles, e fazê-los temer os romanos tanto como nós tememos os druidas.
Macro encheu de ar as bochechas. - É essa portanto a estratégia dele? Severo baixou a voz e prosseguiu. - Isso é só o princípio da história. O Querto sabia muito
bem que aqueles que o seguissem tinham que estar comprometidos com essa forma de travar uma guerra. Foi por isso que encorajou os seus homens a alterarem a sua aparência
e a retomar os velhos costumes trácios. Começou a modificar o treino, fazendo-os concentrarem-se em matar e na absoluta obediência à sua vontade. Houve um dia em
que trouxe uns prisioneiros de uma aldeia na extremidade do vale. Cerca de uns vinte homens, mulheres, e também crianças. Mandou amarrá-los a postes no campo de
treino no exterior do forte, e depois ordenou aos homens que os usassem para treinar com as lanças. Um dos homens recusou, e o Querto pegou na espada e abateu-o
ali mesmo. Não vi a cena, mas contaram-me que não mostrou qualquer emoção quando o fez, e se limitou a avisar os outros que seria aquele o destino de quem se atrevesse
mais alguma vez a recusar cumprir uma ordem.
- Merda... Isso é levar as coisas um bocado longe demais. - Era o que pensava o prefeito Albino. Foram interrompidos pelo regresso do ordenança, que pousou junto
deles um jarro, duas canecas e uma travessa de madeira onde tinha disposto umas tiras de carne seca e alguns biscoitos de farinha de centeio. Baixou a cabeça e saiu
da sala, fechando a porta atrás de si. Severo aguardou até ouvir os passos do homem a afastarem-se, e só então continuou.
- O prefeito convocou o Querto para uma reunião e, pelo que sei, avisou-o para não repetir a façanha. Se o fizesse, seguiria uma queixa ao legado, e o processo disciplinar
seria desencadeado. O Querto passou então a liquidar as suas vítimas onde as apanhava, mas o prefeito soube disso, e anunciou que daí em diante passaria a acompanhar
o Querto nas patrulhas.
- Deixa-me adivinhar. - Disse Macro. - Foi de uma dessas patrulhas que o prefeito não regressou.
Severo assentiu. - A versão oficial é que atacaram uma aldeia, e que o prefeito foi morto em combate, quando caiu do cavalo. Foi a primeira aldeia a ser arrasada
e queimada, e ver todos os seus habitantes passados à espada, como vingança pela morte do prefeito, disse o Querto. Mas depois disso esse modo de ação tornou-se
a regra. Uma aldeia atrás da outra, uma quinta e depois a seguinte. Até que as únicas pessoas que ainda vivem neste vale são as que estão aqui em Bruccium. A seguir,
no princípio deste ano, começou o mesmo trabalho nos vales próximos. Claro que perdeu homens no processo, mas então começou a oferecer aos legionários a possibilidade
de se juntarem aos trácios. Nessa altura já tínhamos pouca comida, e uma vez que os legionários ficavam aqui a defender o forte, o Querto decidiu que não precisavam
de tanta comida como os auxiliares. Depois, a razão passou a ser que não a mereciam, uma vez que não estavam a arriscar-se. Um homem não se aguenta muito tempo de
estômago vazio, e por isso os nossos rapazes começaram a juntar-se a ele de bom grado. A única condição que lhes era imposta era a obediência cega, e que adotassem
o aspeto dos trácios. Foi o que aconteceu com o Estelano e o Fermato.
Os olhos de Macro arregalaram-se de espanto. - O quê, eles são oficiais romanos? - Eram. E um terço da coorte trácia veio dos legionários. Havia ainda mais uma exigência
antes dos homens se poderem considerar seguidores do Querto. - Severo encheu uma caneca de vinho para cada um e contemplou o líquido escuro no seu copo. - O Querto
disse-lhes que tinham que cortar a cabeça a um dos inimigos, e beber-lhe o sangue.
Macro olhou para ele, assombrado. - Foda-se, estás a gozar... - Quem me dera. Por todos os deuses, muito gostaria de estar a brincar. Mas é a verdade.
Apesar de todos os horrores que presenciara nas inúmeras campanhas em que tinha combatido ao longo dos anos, Macro sentiu um nó nas tripas e um arrepio de medo a
percorrê-lo.
- Não pode ser verdade. - Depressa o verás por ti mesmo. Tu e o novo prefeito. Embora não me pareça que ele possa durar muito.
Macro olhou para o outro centurião. - O Cato está em perigo? - Claro que está. Se tentar tomar alguma medida contra o Querto, é como se já estivesse morto.
- Porra, mas ele é o prefeito! - Protestou Macro. - Nomeado para o comando pelo próprio Imperador! E a sua palavra é lei. Assim que o Querto tentar algum truque,
o Cato castigá-lo-á. Ou ordenará a sua detenção.
- A sério? E quem é que cumprirá uma ordem dessas? Macro abanou a cabeça, descrente. - Caralho, isto é o exército. Quando uma ordem é dada, os homens cumprem-na.
- Oh, sim, isto é o exército. Mas este forte está nas mãos do Querto. A quem é que achas que os trácios vão obedecer se se der um confronto entre o teu prefeito
e o Querto? E isso vale também para a maior parte dos legionários sobreviventes. Nenhum se atreve a pisar o risco. Isso já acabou. Lembras-te daquela cruz por onde
passámos há bocado? Depois da morte do prefeito, houve alguns oficiais e homens desta coorte que se recusaram a aceitar Querto como novo comandante. Confrontaram-no
à frente de toda a guarnição. Os seus homens prenderam-nos por motim, e todos foram crucificados e deixados a morrer, um a um. Desde então, mais ninguém se atreveu
a desafiá-lo. Pior ainda, há uma recompensa prometida a quem denunciar qualquer ação que possa estar a ser preparada. Podes imaginar o efeito que isso tem nas línguas
das pessoas. - Severo esvaziou a caneca. - Macro, nunca devias ter vindo para estas bandas. Claro que não podias saber. Fora do vale ninguém sabe o que se passa,
exceto os desgraçados dos siluros.
Macro ficou em silêncio por momentos. - Porque é que ninguém tentou informar o legado acerca do que se passa em Bruccium?
- Nenhum legionário tem autorização para sair do forte, a não ser que vá integrado numa patrulha trácia. Quando tomou o comando, o Querto anunciou que quem tentasse
sair seria considerado como desertor, e executado.
- E alguém tentou chegar a Glevum? - Um dos optios. Não tinha andado mais do que uns oito quilómetros quando foi apanhado por uma patrulha trácia.
- O que lhe aconteceu? - Indagou Macro em voz baixa, quase receosa. - O Querto manteve a sua palavra. - O centurião pegou numa tira de carne e mordeu até conseguir
separar um naco. Enquanto mastigava com vigor, voltou a olhar para Macro. - Passaste por ele quando chegaste ao forte. A cabeça está numa daquelas estacas, e o que
resta do corpo foi lançado para o fosso exterior.
O silêncio instalou-se enquanto Macro absorvia o que lhe fora dito, antes de voltar a menear a cabeça, abalado.
- Isto é uma loucura. Completa e absoluta. O legado tem que saber disto.
Severo não escondeu a dúvida no olhar. - Enquanto ele achar que estamos a cumprir as ordens que nos deu, de levar a guerra até ao coração do território inimigo,
porque havia ele de se preocupar? Para o Quintato, está tudo a decorrer de acordo com os planos, e não há qualquer problema em Bruccium. Senão, porque havia ele
de vos ter enviado, a ti e ao prefeito, para cá? Podes esquecer qualquer ajuda dessa banda.
- Nesse caso, temos que agir. Alguém tem que fazer qualquer coisa. - Podes tentar, Macro. Desde que me deixes de fora. Avisei-te quanto ao que se passa por aqui,
por respeito a um velho camarada. Mas não estou pronto para ir mais longe.
- Não me vais apoiar? Severo deixou-se estar imóvel, e depois encolheu os ombros, impotente.
- Não há nada que eu possa fazer. Pelo menos por agora. Só espero que o Carátaco deite a toalha ao chão. É a única forma que vejo de sair daqui vivo. Se Carátaco
derrotar Ostório e forçar os romanos a abandonar as terras dos ordovicos e dos siluros, virará as suas atenções para nós aqui. Dado o que o Querto tem andado a fazer
às tribos mais próximas de Bruccium, podes ter a certeza de que o coração do Carátaco não terá a menor gota de piedade quando ele decidir a sorte de quem possa sobreviver
entre a guarnição.
Macro recostou-se e respirou fundo. Nunca poderia ter imaginado uma situação tão adversa. Pensou em Cato, e sentiu uma golpada de pânico. Tinha-o deixado a sós com
Querto. Fez menção de se levantar, mas embateu contra o canto da mesa. Severo teve que se mexer a toda a velocidade para agarrar o jarro de vinho.
- Ei! Cuidado, Macro. Porra, é o meu vinho! - Que se lixe o teu vinho. - Rosnou Macro. - O prefeito está em perigo!
- Não... Não, não está. Para já, pelo menos. Macro, pensa bem. Senta-te e pensa no que te disse.
Designou o banco em que Macro estivera sentado, e este, depois de uma breve hesitação, deixou-se cair de novo sobre o assento.
- Continua lá. - Primeiro, o Querto vai tentar convencer o prefeito. Se o conseguir, evitará qualquer conflito e poderá prosseguir na mesma via. Os seus homens seguem-no
porque ele assumiu o comando da guarnição em respeito por todas as regras, quando o Albino foi morto. Se ele tentar matar o Cato, ou tomar a sua posição, isso dividirá
os homens. O que não quer dizer que ele não tente provocar qualquer acidente. Sobretudo se o novo prefeito tentar arrancar-lhe das mãos o controlo sobre a guarnição.
Enquanto alguém zelar pelas costas do Cato, ele estará em segurança. Mas ele vai ter que ter muito cuidado com a forma como trata o Querto e os seus trácios. E o
mesmo se passa contigo, velho amigo.
Antes que Macro pudesse responder, a porta abriu-se de rompante, revelando uma forma escura no exterior. Os dois centuriões deram um pulo nos bancos, e escutou-se
uma risada seca antes de o vulto avançar para a área iluminada e aquecida pelo fogo. Macro reconheceu um dos oficiais da coorte trácia.
- Muito acolhedor, aqui dentro. E ainda por cima um banquete, ainda que de pequena monta!
Severo engoliu em seco, nervoso. - Estelano... O que é que queres? O outro riu sem humor. - Obrigado. Agradeço o convite. Fechou a porta nas suas costas, atravessou
a sala e pegou num banco. - Não há uma caneca a mais? Bom, terei que me desenrascar. - Pegou no jarro e levantou-o de forma a colocar o gargalo sobre os lábios rodeados
pela barba, e deixou cair uma cascata do líquido escarlate para a boca, engolindo avidamente até voltar a pousar o jarro com estrondo, e fazer estalar os lábios.
- Boa pinga, esta!
Severo continuou a olhá-lo com cara de poucos amigos. - Volto a perguntar, o que queres? - Vim só conhecer o novo comandante da Quarta Coorte. - Estendeu a mão e
o braço na direção de Macro. - Centurião Marco Estelano, destacado na Segunda da cavalaria trácia. Saudações. Não tive oportunidade de me apresentar mais cedo, lá
no quartel-general. Portanto, pensei em vir até aqui e descobrir onde estava ele.
- Está feito. - Ripostou Macro em tom neutro, enquanto ignorava o braço estendido. - Embora deva dizer que não tens propriamente ar de ser um centurião.
Estelano sorriu por trás da barba. - Este aspeto? Foi ideia do Querto. Dá-nos um ar selvagem e aterrorizante. Grrrr! - Fez uma careta e deixou escapar uma gargalhada.
Macro não se deixou intimidar, e nem piscou os olhos. - Pois, imagino que essa fantochada seja capaz de fazer um miúdo borrar-se todo, especialmente numa noite escura.
A mim dá-me mais a ideia de uma escova daquelas que se usam para limpar as latrinas.
Estelano franziu o sobrolho. - Desculpa? Macro sorriu. - O tipo de coisa a que gosto de limpar o cu. O vinco no sobrolho de Estelano aprofundou-se, e ele encarou
Macro com ar feroz, antes de voltar a sorrir repentinamente.
- Ah, és um durão. Vejamos. Qualquer homem que sobrevive nas legiões tempo suficiente para se tornar o comandante da sua própria coorte tem que ser um tipo rijo.
Macro, somos feitos do mesmo pano. Eu era o comandante da Quarta antes de me oferecer para seguir o Querto.
- Já ouvi dizer. - Macro pegou numa dobra da capa escura do homem e esfregou-a entre o polegar e o indicador. - Não sei bem porquê, mas desconfio que isso não é
bem assim. Eu uso o uniforme de um oficial de Roma, e não uns trapos que caem melhor a um cão bárbaro.
Estelano puxou a ponta da capa para se libertar, e recuou ligeiramente. - Meu amigo, não há razão para essa atitude. Vim apenas desejar-te as boas-vindas a Bruccium.
Precisamos de bons homens, agora mais do que nunca. Querto pensa que o inimigo está à beira de vergar. Mais um mês ou dois, e estarão acabados. Portanto, saúdo a
tua chegada e a do prefeito, e da coluna de reforços que estará para chegar. Sangue fresco. Exatamente aquilo de que precisamos para dar uma lição aos cabrões dos
siluros.
- Parece que já receberam algumas. E o mesmo aconteceu aos homens do forte.
Estelano deitou uma olhadela a Severo, que de imediato baixou o olhar, concentrando-se no seu vinho e mantendo a boca fechada.
- Ao que parece, centurião Macro, alguém tem andado a contar-te histórias sem sentido. A verdade é que, por aqui, fazemos as coisas de modo um tanto diferente. Alguns
sentem dificuldades para aceitar esse facto, e seria prudente que guardassem as suas opiniões para si mesmos. Porém, assim que vires as coisas com os teus próprios
olhos e perceberes o que de facto se passa, estou certo de que darás total apoio ao Querto, como sucedeu com a maior parte de nós. E em caso contrário, pelo menos
não lhe levantarás obstáculos. É esse o conselho que te deixo.
Macro obrigou-se a lançar um sorriso. - Pelo qual te agradeço, Estelano. E agora peço que me desculpem, mas estou fatigado. Tenho que me retirar para as minhas acomodações,
desfazer as bagagens e descansar esta noite. Quero estar fresco para a inspeção amanhã, quando o novo prefeito se apresentar à guarnição, na qualidade de seu novo
comandante.
- Ah sim... o prefeito Cato, comandante do forte de Bruccium. Um belo título, de facto. Mas um título implica mais do que meras palavras, Macro. Que seja essa a
primeira lição que colhes no teu novo posto, se sabes o que é bom para ti. Como é que te portas em cima de um cavalo?
A repentina mudança de assunto apanhou Macro de surpresa. - Aguento-me tão bem como qualquer outro homem das legiões. - Respondeu, sem jeito.
- Chega. Dava jeito ao Querto ter outro oficial competente na coorte trácia.
- Nesse caso, agradece-lhe a oferta. Mas por agora fico-me pelo comando da Quarta Coorte da Décima Quarta Legião.
Estelano sorriu friamente. - Por agora, sim... - Tenciono fazer da Quarta a melhor coorte da legião. Faz-me um favor, Estelano. Diz aos romanos que se juntaram ao
Querto que ainda aqui têm lugar. Pelo menos até que chegue a coluna de reforços. Depois disso,
ei ?
enviarei para Glevum um relatório com a indicação de que todos os legionários que prestam serviço com os trácios renunciaram aos privilégios, pagamentos e bónus
que acompanham o serviço nas legiões. Talvez queiras pensar nessa possibilidade tu mesmo.
- Não me parece. - Não? - Macro levantou-se. - Uma pena. Tinha quase a certeza de que ainda havia um romano decente escondido por baixo dessa inacreditável cabeleira
fedorenta. Ao que parece, estava enganado. Desejo-te uma boa noite... trácio.
Os olhos de Estelano semicerraram-se sob as pesadas pálpebras, mas ele nada disse enquanto Macro saía. Já no exterior, o veterano respirou fundo e dirigiu-se à caserna
ao fundo da rua. Quando tinha chegado à Britânia, estava entusiasmado com a perspetiva de voltar à sua carreira nas legiões. Tinha pensado que era praticamente um
regresso a casa. A todas as cenas, sons e cheiros a que estava habituado, e à rotina da vida ao serviço de Roma. Mas agora que estava ali em Bruccium, tudo isso
lhe parecia um sonho inalcançável e cruel. Via-se em vez disso envolvido no mais negro dos pesadelos, com a tenebrosa sombra da morte a prometer ser uma companhia
constante e demasiado próxima.
19
Durante a noite caiu uma tempestade; a chuva precipitava-se sobre as placas de madeira que cobriam as casernas, e corria em torrentes pelas estreitas ruas entre
elas. Mas o tempo amainou, e o dilúvio parou ainda antes da alvorada, permitindo que o Sol se levantasse num céu semeado de manchas azuis e nuvens dispersas. A guarnição
marchou para o terreno aplanado no exterior da entrada principal do forte e formou em frente ao montículo de terra que servia como posto de inspeção para o comandante.
O solo estava empapado de água, e as botas dos homens, bem como os cascos das montadas da cavalaria, depressa transformaram o piso da estrada que saía do portão
num lamaçal. Algumas das estacas, sobrecarregadas pelo peso das cabeças cortadas, tinham descaído para cima da lama, e Querto tinha destacado um pequeno grupo de
homens para voltar a colocá-las em posição vertical, e desta vez com maior garantia de que se aguentassem em pé.
Cato e Macro saíram do forte antes que Severo e a primeira centúria de legionários marchassem para a inspeção, e dirigiram-se ao pódio improvisado para observar
a forma como as coisas se processavam. Os legionários, como era seu privilégio, formaram em centúrias, com quatro homens de profundidade, no centro da parada. Apesar
de já saber o pequeno número de homens que restavam no seu novo comando, Macro sentiu-se amargamente desapontado enquanto passava a vista sobre o par de centúrias
que o compunha. O efetivo real era quase uma piada insultuosa ao grupo que transportava os símbolos das unidades, no qual se viam seis flâmulas junto ao porta-estandarte
da coorte e dos homens que levavam as trombetas curvas aos ombros, bem reluzentes ao sol.
Em claro contraste, a coorte trácia parecia ter o efetivo completo, e apresentava dez esquadrões de cavaleiros, cinco formados de cada flanco dos legionários. O
porta-estandarte da unidade fez avançar o cavalo para a direita da linha e desfraldou um estandarte vermelho com um corvo negro, representado com uma caveira presa
nas garras aceradas. A força que Cato comandava tinha um ar de perfeito desequilíbrio, ali formada em silêncio. O último homem a chegar ao terreno da parada foi
o centurião Querto.
Passou por toda a formatura, perfeitamente ereto na sela, a contemplar os soldados com altivez, como se eles fossem sua propriedade. Fez o cavalo rodopiar e levou-o
a passo até junto do pódio, onde desmontou sem cerimónia e passou as rédeas para as mãos de um ordenança, antes de subir a pequena rampa.
- Simpático, vires-te juntar a nós. - Comentou Macro, enquanto se colocava à direita de Cato.
O trácio não disse nada; tomou posição à esquerda do prefeito e ali ficou, com as mãos cruzadas por trás das costas. Soprava uma leve brisa, que fazia ondular as
crinas dos cavalos, as capas negras dos trácios, o estandarte dos Corvos Sangrentos, e as cristas nos capacetes dos oficiais.
Cato pegou no estojo de couro e tirou de lá de dentro o documento que o autorizava a assumir o comando. Depois da conversa que tinha tido com Querto na noite anterior,
e de outra que tivera com Macro ainda de madrugada, sentia-se ansioso. Se o centurião trácio resolvesse desafiá-lo naquele momento, à frente dos homens que tinha
governado com mão de ferro nos últimos meses, Cato não alimentava qualquer ilusão sobre o seu destino. Se tivesse sorte, seria apenas feito prisioneiro e mantido
num calabouço por baixo do quartel-general. Por isso, tinha resolvido agir com todas as cautelas até ter uma ocasião de afirmar a sua presença no forte; deixaria
as coisas correrem, até descobrir o ponto fraco de Querto.
Cato desenrolou o documento e começou a ler. - Eu, Tibério Cláudio Druso Germânico, primeiro cidadão, sumo sacerdote, pai da nação, proclamo para que todos saibam
que Quinto Licínio Cato é nomeado prefeito da Segunda Coorte de Cavalaria Trácia. Ao indigitado Quinto Licínio Cato caberá defender a honra da coorte, obedecer aos
seus superiores, e jurar que devotará a sua vida ao Imperador, ao Senado e ao povo de Roma. - Cato fez uma pausa, para dar ainda maior ênfase às palavras que ia
pronunciar a seguir. - Esta nomeação é feita por decreto imperial, e os oficiais e homens ao comando dos quais é colocado Quinto Licínio Cato são relembrados de
que estão vinculados, pelo juramento que pronunciaram quando do seu alistamento, a obedecer àqueles a quem é concedida autoridade, como fariam com o Imperador, sem
questões, sob pena de serem sujeitos à completa aplicação do máximo rigor das leis militares. Pela minha própria mão vai esta ordem autenticada.
Cato virou o documento e levantou-o ao alto, para que todos vissem o selo imperial ao fundo da página. Esperou um momento antes de o baixar, enrolar e colocar de
novo no tubo protetor. Passou então lentamente a vista pelo conjunto de homens que estavam à sua frente, e começou a discursar.
- Já sabem o meu nome. Já sabem a minha patente. E ficaram a saber que vim diretamente de Roma para assumir o comando deste posto. Mas isso é tudo o que sabem. Alguns
de vós já tiveram ocasião de servir sob diversos comandantes. A maior parte deles terão sido filhos de famílias nobres de Roma, abastadas e bem relacionadas. Outros,
com certeza em menor número, terão subido nas fileiras até chegarem a um comando. É essa a tradição que eu represento. Juntei-me à Segunda Legião quando esta ainda
estava estacionada no Reno. Foi lá que travei a minha primeira batalha, contra uma tribo germana. Depois disso, a legião juntou-se ao exército que estava a ser formado
para a invasão da Britânia. Estive no desembarque, e estive também em cada uma das batalhas travadas até Carátaco ser derrotado às portas da sua capital, em Camulodunum.
Desde então, enfrentei os durotriges, os druidas da lua negra, e muitos outros inimigos de Roma.
"Portanto, senhores, quem têm na vossa frente é um soldado que conquistou o direito de ser o vosso prefeito, e comandante da guarnição de Bruccium. Não sou um aristocrata
mimado. Experimentei o frio cortante que uma sentinela de serviço aguenta numa noite de inverno, como sucede convosco. Senti sobre a pele a pancada cortante da vareta
de um centurião, como tantos de vós. Sei bem o que custa marchar dia após dia com a armadura completa, carregado com o equipamento e as rações, e ter que construir
um campo fortificado ao fim de cada dia de marcha. Sei o que posso esperar dos homens sob o meu comando, porque já estive no vosso lugar, porque vivi e lutei como
vós, e colecionei as cicatrizes que o provam. - Calou-se por um breve momento, e prosseguiu. - O que espero de vós é um comportamento de acordo com os mais elevados
padrões do exército romano, e nada menos do que isso me deixará satisfeito. A campanha contra os siluros e os ordovicos tem sido um duro combate, que já dura há
três anos. Muitos milhares dos nossos camaradas já deram as suas vidas neste combate, mas o seu sacrifício não foi em vão. O governador Ostório reuniu um poderoso
exército, capaz de desferir um golpe decisivo contra o inimigo antes do fim do ano. Nós, hoje aqui presentes, desempenharemos o nosso papel neste vasto plano. Faremos
parte dessa vitória. Conquistaremos o nosso quinhão de glória, e do espólio, e decoraremos os nossos estandartes com coroas e medalhas ganhos em batalha! - Desembainhou
a espada e ergueu-a com determinação no ar, dando uma estocada na atmosfera. - Honra à Segunda Trácia! Honra à Décima Quarta Legião!
Macro ecoou o grito, bem como os legionários formados na parada, mas as figuras negras sentadas nas selas permaneceram mudas e quietas.
Quando as tímidas aclamações dos legionários se desvaneceram, Querto remexeu-se; extraiu da bainha a sua longa espada de cavalaria, e apontou-a para o céu, enquanto
a sua voz poderosa ressoava sobre toda a parada.
- Honra aos Corvos Sangrentos!
De imediato, todos os cavaleiros ergueram as lanças ao alto, numa floresta agitada de pontas reluzentes, e o seu grito ecoou nos ouvidos dos três oficiais no pódio
de revista. Querto repetiu o brado uma e outra vez, e em cada ocasião os seus homens responderam com um rugido frenético. Macro olhou na direção de Cato e notou
o queixo firme e o ar de ressentimento evidente na sua expressão. Trocaram um rápido olhar, e Macro sentiu alguma aflição pelo amigo.
Por fim, Querto baixou a espada e devolveu-a à bainha, e os seus homens voltaram instantaneamente ao seu silêncio perturbador. Depois do trácio retomar a sua posição
ao lado do prefeito, Cato engoliu em seco, deu um passo à frente e virou-se para os outros dois oficiais.
- Senhores, as formalidades estão praticamente concluídas. Só mais uma coisa, antes de dar início à inspeção aos homens. - Cato fez uma pausa, consciente de que
o que se preparava para dizer ia ser um choque para Macro, mas que era um passo necessário naquelas circunstâncias. A aclamação dos trácios a que assistira no momento
anterior era uma confirmação dessa necessidade. Limpou a garganta. - Centurião Querto, decidi nomear-te meu adjunto. Tens a confiança dos homens, e conhece-los bem.
Aceitas?
Encarou Querto, até que por fim os lábios do trácio se curvaram num pequeno sorriso, e ele respondeu.
- Aceito, senhor. - Muito bem. Acredito que assumirás as tuas responsabilidades de uma forma eficaz e obediente.
- Claro. Pode ter a certeza de que o farei beneficiar da minha experiência e dos meus conselhos durante o tempo em que for o comandante da guarnição. Senhor.
- Agradeço-te. Agora, gostaria de proceder à inspeção aos homens. Pede aos trácios que desmontem e formem duas linhas.
- Sim, senhor. - Querto ofereceu-lhe uma saudação fugaz e virou-se para descer do púlpito e se dirigir aos seus homens, já a gritar ordens.
Cato ficou a vê-lo afastar-se, bem consciente da presença silenciosa de Macro junto ao seu ombro.
- Calculo que se esteja a perguntar que decisão foi esta. - Senhor, não é da minha conta. - Replicou Macro, curtamente. - Como comandante da guarnição, é a si que
compete dar as ordens.
Cato anuiu para si mesmo, e sentiu uma pontada de irritação perante aquele costumeiro impulso de se explicar a Macro. A promoção a prefeito, depois de dois anos
de comandos temporários, tinha-lhe dado uma autoridade superior à do amigo. Teria que ser mais cuidadoso com os momentos de amizade, e sobretudo com os pedidos de
conselhos ao único homem que alguma vez considerara como um amigo chegado. Sentiu uma breve impressão de perda ao pensar em todos os anos em que tinha tido a mesma
patente que Macro. Esse sentimento de igualdade tinha agora desaparecido, e não poderia ser recuperado. Perdido para os dois, compreendeu de súbito, apercebendo-se
de que Macro lamentaria esse desaparecimento pelo menos tanto como ele. Sentiu a tentação de ceder à pena de si mesmo, e de sofrer pela sua nova solidão, mas suprimiu
tais sentimentos com firme determinação, enquanto se insultava pela fraqueza que quase o tinha distraído das obrigações e ameaças que o presente lhe mostrava. Tinha
sido difícil decidir-se pela escolha de Querto como seu adjunto. Tinha considerado a possibilidade de confrontá-lo, removê-lo do comando e pôr fim ao seu intolerável
desafio à disciplina do exército romano. Mas se o tivesse tentado naquele momento, havia grandes possibilidades de que a maior parte dos homens da guarnição apoiassem
o trácio. E se isso acontecesse, ele e Macro ficariam em grave perigo. Até que os reforços chegassem, Cato sabia que tinha que deixar Querto pensar que podia controlar
o novo prefeito a seu bel-prazer. Assim que Cato tivesse homens suficientes sem qualquer lealdade para com o trácio, poderia pôr Querto no seu lugar.
- Senhor, os homens estão a postos para ser inspecionados. - Indicou Macro.
- Muito bem. - Cato empertigou-se e desceu para junto das linhas de homens à espera. Querto mantinha-se junto à guarda de honra da sua coorte, sob o corvo negro
que decorava o estandarte. Esperou que o prefeito passasse por ele para se colocar ao lado de Macro e seguir em passo cadenciado atrás do comandante da guarnição,
enquanto este percorria a primeira fila de soldados. O olhar experimentado de Cato recolhia todos os detalhes dos homens pelos quais ia passando. Os elementos da
coorte trácia dariam um tremendo desgosto a qualquer centurião de legionários a quem fosse indicado que conduzisse o treino daqueles homens. As capas negras que
usavam estavam manchadas de lama e sujidade, e nunca tinha sido feita qualquer tentativa de remendar ou reparar as pontas que se desfiavam, nem mesmo os rasgões
ocasionais. O cabelo dos homens era longo e desgrenhado, e muitos deles ostentavam tatuagens no rosto. Embora Cato tivesse já visto muitos daqueles homens na véspera,
o impacto de ver toda a coorte formada era brutal, de um ponto de vista profissional. Tinha passado tempo suficiente no exército para esperar um certo aprumo na
aparência dos soldados, bem como um desempenho capaz, e reconhecia a ligação entre os dois. Mas o aspeto selvagem da coorte como um todo era enervante, e percebia
perfeitamente o efeito que aquela visão podia ter no inimigo, habituado ao aspeto aprumado e polido do exército romano. Querto e os seus homens, saindo do nevoeiro
que envolvia habitualmente a paisagem montanhosa, despertavam por certo um terror infindo nos corações das suas vítimas.
Parou em frente a um homem alto e ossudo. - Mostra-me a tua espada. - Sim, senhor. - O homem apoiou a lança contra o ombro e tirou a longa espada da sua bainha.
A lâmina saiu sem dificuldade, e o soldado colocou-a em posição vertical, para que Cato a pudesse examinar por completo. O metal reluzia, e não havia sinais de falhas
nem manchas de ferrugem, que denunciariam uma arma mal cuidada. Cato levantou a mão e experimentou o gume com os dedos, descobrindo que estava tão afiado e limpo
como se poderia esperar. Assentiu.
- Muito bem. Agora abre a tua capa. O soldado fez o que lhe fora mandado, e Cato reparou que os anéis de ferro da armadura que lhe cobria o corpo mostravam um aspeto
limpo e baço, provavelmente devido a uma recente aplicação de areia, que depois fora esfregada com um pano de cabedal. Apesar do aspeto selvagem dos homens, era
evidente que Querto insistia em que as armas e proteções estivessem sempre em boas condições. Ordenou ao homem que guardasse a espada e examinou mais alguns ao acaso,
assinalando com agrado que mantinham o equipamento em condições. Voltou então a atenção para as montadas. Os cavalos eram de grande porte e fortes, típicos das raças
que eram criadas para o exército na Gália e na Hispânia. Já se tinham despido da pelagem de inverno, mas os flancos dos animais não tinham sido cuidados, pelo que
se apresentavam cobertos de lama, que obscurecia as marcas identificativas na garupa. O que vinha em linha com o aspeto selvático da coorte. Apesar disso, as selas
e arreios estavam em bom estado, e os cavalos pareciam bem alimentados e atentos.
Cato virou-se para Querto. - Presumo que tenham sido exercitados até ficarem em forma. - Sim, senhor. Desde o fim do inverno que têm vindo a ser treinados e preparados.
Estão em boas condições, e prontos para a batalha. Já tiveram uma primeira amostra ao princípio do mês.
- Estou a ver. Muito bem. Os homens e as montadas estão em forma, centurião, apesar da aparência desleixada. Quanto a esse tema, trataremos dele a devido tempo.
- Que importância tem o aspeto dos homens, desde que sejam capazes de liquidar o inimigo... senhor?
Cato subiu o tom de voz, de forma a que os homens mais próximos o pudessem entender claramente.
- Importa, porque eu assim o digo. Querto franziu o sobrolho.
- Muito bem, senhor. Cato sentiu a necessidade de não exagerar na imposição da sua autoridade, e virou-se para Macro.
- E agora, os legionários da sua coorte. - Sim, senhor. - Anuiu Macro. Atravessaram o espaço entre as duas unidades, e o centurião Severo juntou-se a eles quando
começaram a inspeção aos legionários. Cato notou que uma grande maioria deles ostentava feições gastas, e foi-lhe fácil perceber o cansaço dos homens ao percorrer
lentamente as fileiras. Em contraste com os trácios, mostravam-se aprumados, de capacetes polidos, escudos em perfeitas condições e armas tão letais como as dos
seus camaradas montados. Mas não conseguiam esconder o seu estado de nervos.
- Tu! - Cato apontou o dedo a um homem que se inclinava ligeiramente para a frente, apoiando o peso do corpo na orla do escudo. - Põe-te direito. - Parou à frente
do soldado e olhou-o com ar severo. - Nome?
- Caio Balbo, senhor. - É assim que te apresentas na parada? Estiveste a beber? - Não, senhor. - Então por que carga de água é que estás aí plantado como um cagalhão
ainda mole?
Balbo fez uma careta e forçou-se a endireitar o corpo, enquanto rangia os dentes. Severo aproximou-se de Cato e falou em voz baixa.
- Senhor, este homem está doente. Como quase todos eles. Doentes ou enfraquecidos. O que não é surpreendente, uma vez que passam a maior parte do tempo a meias-rações.
Ou até menos, quando as provisões ficam reduzidas entre os ataques a aldeias inimigas.
Cato respirou fundo, enquanto ponderava a situação. Mais um escolho a enfrentar na sua relação com Querto. Mas talvez aquele fosse fácil de contornar. Não fazia
sentido que Querto e a sua coorte saíssem e deixassem o forte nas mãos de homens em péssimas condições de assegurar a defesa de Bruccium. Por outro lado, o trácio
tinha muito provavelmente calculado que os siluros não se atreveriam a entrar no vale, guardado como estava pelos troféus macabros deixados pelos guerreiros selvagens
que tinham penetrado profundamente no coração das terras da tribo e ali mesmo tinham construído um forte praticamente inexpugnável.
- Quantos homens estão demasiado doentes para poderem vir para a parada? - Quis saber Cato.
Severo fez uma rápida consulta à tábua encerada que trazia consigo. - Quinze homens da Primeira Centúria, e doze da Segunda. - E nenhum das outras centúrias?
- Não há outras centúrias, senhor. Juntei os elementos que restavam da coorte em duas centúrias, há uns dez dias. Os doentes fazem parte do efetivo das unidades
que sobraram. Deviam ser mais uns dez, ou à volta disso. Mas dei ordens para que todos os homens ainda capazes de se terem em pé viessem para a parada.
Cato acenou na direção de Balbo. - Este está com dificuldades até para conseguir isso. Tira-o da parada e leva-o para a enfermaria. Ele que descanse e se alimente
até voltar a ter forças. E o mesmo para os outros.
Severo deitou o rabo do olho na direção de Querto, que estava junto aos seus oficiais, a rir e a conversar informalmente.
- As normas permanentes estabelecem que os legionários não podem receber mais do que a ração especificada, senhor.
- Nesse caso, estou a determinar uma nova ração. - Ripostou Cato, irritado. - Não podemos permitir-nos ter homens demasiado fracos para aguentar as muralhas do forte.
- Senhor, nesse caso, posso receber essa ordem por escrito? Terei que mostrar ao intendente da messe alguma espécie de autorização para que ele me forneça rações
extra. E ele é um dos trácios.
- Foda-se. - Soltou Macro. - Esta merda está-se a tornar demais. Aqueles sacanas auxiliares têm que ser postos no seu lugar, senhor.
Cato manteve-se em silêncio por momentos, e depois anuiu. - Vou tratar disso, assim que esta formatura terminar. Centurião Severo!
- Senhor? - Manda o Balbo para a enfermaria. Ele e todos os que estiverem demasiado fracos para tomarem posição numa linha de batalha. Centurião Macro, pode dar
ordem de dispersar à sua coorte.
- Sim, senhor. - Macro saudou, virou-se para os homens e respirou fundo. - Segunda Coorte, Décima Quarta Legião, dispersar!
Os legionários puseram-se em sentido, viraram-se num movimento único e bateram as botas direitas antes de desfazerem as fileiras e começarem a dirigir-se para os
portões do forte. Macro aguardou um momento antes de falar com Cato.
- Senhor, irei ao quartel-general buscar a autorização para o aumento da ração.
- Claro. Eu estarei lá daqui a pouco. Depois de dispensar Querto e os seus homens.
Macro saudou de novo e fez sinal a Severo para se juntar a ele enquanto seguia para o forte. Cato regressou para junto da coorte trácia e deu permissão a Querto
para dispensar os homens. Enquanto estes conduziam as montadas de volta aos estábulos, Cato chamou o comandante dos trácios para se reunir a ele.
- Ainda há um assunto a resolver. O prisioneiro siluro. E preciso interrogá-lo.
- Já tratei disso, senhor. Os rapazes cuidaram dele a noite passada. Cato deitou-lhe um olhar frio. - Eu disse que seria o centurião Macro a tratar do interrogatório.
Não te dei ordem para o fazeres.
- Tomei eu a iniciativa, senhor. Pareceu-me que quanto mais depressa o cabrão falasse, melhor.
- Estou a ver. E ele revelou a localização da aldeia? Querto sorriu. - Foi uma mina. Deu-nos indicações muito precisas, e o número de guerreiros no local.
- Muito bem. - A fúria que sentia por o trácio se ter antecipado e dirigido o interrogatório desvaneceu-se quando considerou a ocasião que lhes era dada pelas informações
extraídas ao prisioneiro. - Nesse caso, podemos preparar uma expedição punitiva o mais cedo possível.
- Vou dizê-lo aos homens. - Eu comandarei o ataque, e o centurião Macro seguirá connosco. Estou ansioso por ver a minha nova coorte em ação.
O sorriso de Querto evaporou-se rapidamente. - Senhor, isso não será necessário. Eu e os meus rapazes sabemos o que temos a fazer. Deixe-me resolver isto, que nós
tratamos dos siluros.
- Centurião, a minha decisão está tomada. Espero-te ao meio-dia no quartel-general, para planearmos o ataque. E leva contigo o prisioneiro. Talvez consigamos mais
alguns pormenores que se possam revelar necessários.
Querto franziu o sobrolho. - Algum problema, centurião? - É só que já não temos o prisioneiro. - O que é que queres dizer? Ele escapou? - Não, ainda está por cá.
É só porque eu decidi que já lhe tínhamos extraído toda a informação de que necessitávamos.
- Serei eu a decidir isso. - Repetiu Cato com firmeza. - Diz-me só onde está ele então.
Querto ergueu a mão e apontou para a estrada que levava ao forte. - Ali mesmo. Cato virou-se e olhou em redor. - Porque é que ele está aqui fora? Não o vejo. Onde
está? - Além. Última estaca.
Cato sentiu um arrepio frio a percorrer-lhe todo o corpo. Obrigou-se a contemplar a alameda de cabeças empaladas, a última das quais tinha um ar de ter sido decapitada
havia menos tempo do que as outras. Sentiu um nó no estômago quando reconheceu as feições brutalizadas do guerreiro que tinham capturado havia apenas dois dias.
- Turro...
20
Dois dias depois, pouco antes da alvorada, Cato estava deitado sobre um leito de feno amontoado numa pequena depressão no solo, a meio de uma encosta inclinada.
A noite tinha sido fria, e a humidade pegajosa do orvalho tinha-o feito tiritar na última hora, antes de o Sol se começar a erguer sobre as cristas das montanhas
a leste. Era a primeira vez em muitos dias que o céu se apresentava limpo, e o dia prometia ser esplêndido. Cato tinha deixado a capa escarlate ao pé do resto dos
homens, acampados sob as árvores, e tinha colocado um manto negro, de forma a não se destacar na paisagem quando chegasse a alvorada. Ao seu lado, Querto vasculhava
com o olhar, em silêncio, a cena bucólica que presenciavam por baixo deles. À sua direita e esquerda estendia-se a floresta densa que cobria as vertentes que rodeavam
o vale. Lá em baixo abria-se um vale largo, com cerca de um quilómetro e meio de extensão, onde o terreno ondulava suavemente e era coberto por áreas cultivadas,
em fileiras, interrompidas de quando em vez por currais de pedra onde se avistavam rebanhos de cabras, ainda deitadas no solo de forma a providenciar calor para
os cabritos nascidos havia pouco, ao início da primavera, e que dormiam aconchegados contra as mães. Havia também vários núcleos de cabanas arredondadas, o mais
extenso dos quais ocupava um morro ao centro do vale, de onde dominava a paisagem circundante. O edifício principal ali situado tinha mais de quinze metros de lado,
calculou Cato, e da abertura no telhado de colmo escapava-se vagarosamente uma fina coluna de fumo. Dois homens apoiavam-se contra as paredes de barro, aos lados
da entrada que guardavam. Em torno das fogueiras que acabavam de arder no espaço aberto que rodeava a cabana dormiam vários outros homens. Nas proximidades havia
ainda uma série de pequenas edificações.
- Aquele é o nosso primeiro alvo. - Indicou Querto em voz baixa, enquanto apontava para a grande cabana. - O chefe da tribo e o seu grupo. Ele deve ter ali pelo
menos uns cem homens. São bastantes, para uma aldeia deste tamanho. Deve ter visitantes. Deve haver mais homens espalhados pelas quintas. Talvez mais uns cem homens
em condições, mas duvido que muitos deles alguma vez tenham empunhado alguma coisa mais perigosa que uma foice ou um cacete.
- Uma foice chega bem para te pôr a lamentar o teu destino. - Cato reprimiu um sorriso amargo quando se lembrou da profunda ferida que em tempos lhe tinha sido infligida
por um druida armado com uma foice. A cicatriz ainda fazia com que a pele do lado do peito lhe parecesse estar esticada, de vez em quando. Deixou a ideia desvanecer-se.
- Então, qual é o teu habitual plano de ataque?
Querto estudou o terreno mais profundamente antes de responder. - Na extremidade, o vale abre-se para o canal do rio. Enviei quatro esquadrões para rodear as colinas
e entrar por lá, de forma a impedir qualquer tentativa de fuga nessa direção.
Cato olhou para ele, admirado. - Ainda não tinha sabido disso. Quando é que lhes deste essas ordens? - Ontem à noite. Quando já estava a dormir, e o centurião Macro
também.
- Porque é que não mo disseste assim que acordei? Sendo o prefeito da coorte, devia ter tido conhecimento disso.
Querto enfrentou-lhe o olhar calmamente. - Como disse, senhor, antes de deixarmos o forte, queria observar as táticas que desenvolvi nos meus ataques. Portanto,
depreendi que não desejava tomar parte ativa nas decisões respeitantes a esta operação. Não havia assim necessidade de lhe dizer.
Cato não respondeu de imediato, mas acabou por contrariá-lo. - Querto, para perceber as tuas táticas, tenho que estar a par de todos os pormenores. Portanto, trata
de assegurar que no futuro serei informado de todas as decisões. Entendido?
- Sim, senhor. - Muito bem. Prossegue. O trácio inspirou profundamente e continuou. - Assim que a principal via de fuga estiver coberta, lançamos o ataque contra
o chefe e o seu grupo. Saímos das árvores e carregamos sobre o morro assim que for dado o alarme. Nessa altura, os meus homens farão todo o barulho que conseguirem.
Ajuda a assustar o inimigo. Caímos sobre o chefe e a sua trupe rapidamente e em força, e não fazemos prisioneiros. Sem ninguém para os liderar e sem estandarte atrás
do qual se possam agrupar, o resto dos homens da aldeia normalmente tentará render-se. Alguns aldeãos hão de tentar a fuga, mas vão dar de caras com os quatro esquadrões
que ocupam o caminho. Nessa altura avançamos, matamos toda a gente e queimamos todos os edifícios. Alguns conseguirão escapar, e hão de passar muito tempo enfiados
nos seus esconderijos, à espera que nós partamos, e por fim sairão dos seus buracos e irão a correr ter com as tribos mais próximas e contar-lhes o que sucedeu aos
seus aliados. Esses, por sua vez, enviarão patrulhas para verificar a história e ir contar que os sobreviventes estavam mesmo a dizer a verdade. - Os lábios de Querto
abriram-se num sorriso lupino. - E é assim que inspiro o terror nos corações do inimigo. É assim que a lenda dos Corvos Sangrentos se espalha pela terra dos siluros
e enche esses cabrões de medo.
Havia um ligeiro tom esganiçado na voz do centurião quando concluiu o discurso, e Cato deitou-lhe um olhar atento. Havia ali ódio, e mais qualquer coisa. Mas não
havia tempo para refletir nisso. Daí a pouco a atividade na aldeia inimiga começaria a aumentar, e a coorte trácia tinha que lançar o seu ataque, se queria aproveitar
ao máximo o elemento de surpresa. Havia todavia um assunto que Cato estava decidido a resolver antes que o ataque começasse.
- O teu plano parece-me correto. Só quero fazer uma pequena alteração.
Querto olhou-o com irritação. - Disse que estava aqui para observar. Não para interferir. - Seja lá o que for que tenha dito, sou eu o comandante da coorte e sou
eu quem dá as ordens. E chamar-me-ás senhor quando te dirigires a mim.
Querto encarou-o, lutando de forma óbvia para manter uma expressão calma.
- Senhor, eu sei o que estou a fazer. Já utilizei esta tática inúmeras vezes, sem quaisquer problemas. Não há necessidade de alterar o quer que seja.
- Cabe-me a mim decidir isso. - Repetiu Cato, com firmeza. - Realmente? - Querto recuou ligeiramente da borda da pequena ravina onde estavam, antes de se erguer
sobre os joelhos. Mexia-se com uma graça quase líquida, invulgar para um homem do seu porte, notou Cato. Quase displicentemente, Querto lançou uma ponta da capa
sobre o ombro, revelando a espada. Os dois homens ficaram imóveis por momentos, e Cato encarou o centurião sem hesitar. Nesse momento, Querto soltou uma risada e
pôs-se de pé, dominando claramente a figura ainda deitada no solo do seu comandante. - Então o que acha que eu devia alterar, senhor?
Cato continuava deitado, apoiado nos cotovelos, a olhar para trás por cima do ombro, e sentia-se numa situação ao mesmo tempo desconfortável e vulnerável. Recuou
para fora da vista das cabanas no vale em baixo e pôs-se de pé, antes de voltar a interpelar o trácio numa posição mais dignificada, enquanto o observava atentamente
para detetar qualquer sinal de traição.
- Vamos seguir o plano que apresentaste, mas no fim de tudo quero prisioneiros. Depois de lhes quebrarmos a resistência, todos os que se renderem serão levados como
cativos.
- E porque haveríamos nós de fazer tal coisa? Cato estava consciente de que nada o obrigava ou até aconselhava a explicar-se a um subordinado, mas havia um brilho
perigoso nos olhos do outro, e não estava interessado em provocar uma confrontação estando os dois sozinhos.
- Os prisioneiros são uma fonte de informação sobre o inimigo, e além disso valem bom dinheiro. - Havia uma terceira razão, que era o facto de Cato não estar disposto
a pactuar com a matança indiscriminada de mulheres, crianças e outros não-combatentes. Mas estava seguro de que adiantá-la apenas o deixaria à mercê do escárnio
por parte de Querto.
- Senhor, esta gente é o inimigo. Até as crianças. Bárbaros selvagens, todos eles! - Cuspiu. - Porque havemos de deixar as lêndeas tornarem-se piolhos? Melhor é
acabar com eles de vez.
- Poupamo-los porque, quando esta campanha terminar, serão parte do Império, e como tal pagarão os seus impostos. Tenho a impressão de que o Imperador não ficaria
agradado ao saber que aqueles que um dia poderiam ser por ele governados tinham sido chacinados à espadeirada.
- O Imperador não está aqui. O Imperador não faz ideia da selvajaria desta gente. Nunca poderão ser civilizados, apenas exterminados como a praga que são. - Querto
falou por entre os dentes cerrados, como se estivesse a sofrer de alguma dor, e os olhos reluziam-lhe de raiva. - O que eles merecem é ser erradicados, todos e cada
um deles! Aldeia após aldeia, homem depois de homem, o gado, os porcos, as ovelhas e os cães. Não podemos permitir que nada sobreviva.
Cato ficou admirado com a veemência do trácio, e nesse instante compreendeu até que ponto ele era verdadeiramente perigoso. Sentiu os pelos da nuca a eriçarem-se
enquanto o olhava, e os frios dedos do medo apertavam-se em torno das suas entranhas. Engoliu em seco, e tentou falar da forma mais calma possível.
- Porquê? Porque é que os odeias tão profundamente? Querto encarou Cato com as pesadas sobrancelhas bem franzidas. - Não sabe? - Por que é que havia de saber? Se
há de facto uma razão, diz-me qual é.
O trácio baixou a cabeça, e Cato deixou de lhe poder apreciar a expressão facial.
- Romano, eu conheço os siluros. Vivi entre eles. Fui seu prisioneiro, em tempos. Trataram-me pior do que a um cão. Mantiveram-me amarrado, e atormentaram-me com
a fome e a sede, e espancaram-me. Gozaram comigo. Troçaram de mim... Humilharam-me. E não foram apenas os guerreiros, foram também as mulheres e as crianças. Acha
que as crianças são inocentes? Pense bem. Dê-lhes permissão para fazerem o que bem entenderem, e ficará a saber que não há nada de que não sejam capazes. Nada. Veja.
- Arregaçou a manga direita e ergueu o braço. Cato viu que existia ali como que uma rede fina de tecido esbranquiçado, cicatrizado. Querto sorriu pesadamente. -
Fizeram isto com pontas de lanças aquecidas no coração de uma fogueira. Nos meus braços, nas pernas, nas costas e no peito. Crianças... Têm que morrer ao lado dos
outros. Não aceito nenhuma outra opção.
Cato sentiu alguma simpatia pelo passado de tormento do outro. Macro e Júlia tinham ambos sido em tempos prisioneiros de um gladiador revoltoso e do seu grupo de
seguidores, e apesar de só raramente falarem do assunto, sabia perfeitamente que a experiência deixara marcas profundas em ambos. Ainda assim, acreditava firmemente
que o sofrimento passado não podia servir de justificação para qualquer comportamento cruel. E não havia exceções. Recuou meio passo, para longe do trácio, e respondeu
em tom calmo.
- Centurião, estou a dar-te uma ordem. Faremos prisioneiros neste ataque.
- Não! - Querto assumiu uma posição semiagachada, como um animal encurralado, e levou a mão ao punho da espada. - Eles morrerão! E eu liquidarei pessoalmente qualquer
homem que mostre sequer uma réstia de piedade.
- Nesse caso, terás que me matar. - Cato ripostou sem pensar no que dizia, e ficou horrorizado perante a sua falta de tato. Os dedos foram-lhe subindo pela perna,
prontos a pegar na espada.
- Matá-lo? - Querto soltou uma gargalhada. - Acha que não seria capaz disso?
O coração de Cato batia-lhe no peito como um martelo. - Não seria eu o primeiro romano que matasse, pois não? - Nem de perto, prefeito. - Ouviu-se um ligeiro raspar,
uma indicação de que começava a desembainhar a espada.
Cato pegou no punho da espada, mas resistiu à tentação de a arrancar da bainha.
- Querto, já chega. Pensa bem no que estás a fazer. Se te atreveres a ameaçar-me com uma arma, pelos deuses, juro que te verei crucificado.
- O que é que se passa aqui, afinal? - Interrompeu uma voz mal-humorada. Cato olhou rapidamente para a esquerda e avistou Macro a emergir das sombras, a abrir caminho
por entre os rebentos mirrados que cresciam na orla da depressão. Na garganta de Querto ressoou um grunhido de frustração antes de ele voltar a embainhar a espada
e se colocar em posição normal. Cato imitou-o, ainda com o coração aos saltos. Num breve momento de devaneio, ainda pensou em solicitar a Macro que o ajudasse a
liquidar Querto ali mesmo, naquele momento em que a oportunidade se lhe oferecia. Mas havia sempre o perigo de ele conseguir ferir de morte um deles. E se regressassem
ao acampamento sem o trácio? Como reagiriam os seus homens? Fosse qual fosse a história que Cato inventasse, eles não deixariam de suspeitar e de enviar alguém à
procura do seu líder. E quando encontrassem o cadáver, fariam Cato e Macro em pedaços. Com azedume, percebeu que não era aquele o momento para agir. Virou-se para
o amigo e tentou falar com naturalidade.
- Macro, o que está aqui a fazer? - Demorou-se muito tempo, senhor. Estava preocupado. Vim assegurar-me de que não havia nada errado consigo. Com os dois, aliás.
O significado daquelas palavras não escapou a Cato, mas também não escapou a Querto, que levantou os olhos ao céu e premiu os lábios, antes de falar.
- Senhor, será melhor que nos mexamos. Antes que o inimigo acorde. - Sim. - Cato assentiu, mantendo o olhar preso em Querto. - Regressemos ao acampamento. Podes
ir à frente.
Querto pôs-se imediatamente a caminho, subindo e saindo da depressão, os ombros poderosos a afastarem os finos ramos dos rebentos e fazendo saltar gotas de orvalho
em redor. Cato apressou-se a segui-lo, e Macro imitou-o, pondo-se a seu lado.
- Tudo bem? - Perguntou em voz baixa. - Tudo. - Deu-me a sensação de que apareci no momento certo, há bocadinho. O que é que se estava realmente a passar?
- Uma diferença de opiniões. Nada mais. Macro deixou passar um momento de silêncio. - Uma diferença de opinião com aquele cabrão daquele trácio é bem capaz de levar
um homem à morte. Será melhor mantê-lo debaixo de olho.
- É o que estou a fazer, acredite. Tiveram que acelerar o passo para não perderem o rasto a Querto enquanto abandonavam a área de novos rebentos e entravam pelo
meio dos altos pinheiros que se estendiam pela encosta. Já se espalhava pelo céu um prenúncio de luminosidade, tingindo as árvores com uma luz leitosa. Querto seguia
à frente, em passos velozes, lançando olhares ocasionais para trás, mas sem se dar ao trabalho de afrouxar o passo e lhes permitir que se aproximassem, nem tentar
ganhar maior distância e deixá-los no meio do bosque. Parecia contentar-se com manter uma distância razoável. Pouco depois chegaram à clareira onde os quatro esquadrões
de cavalaria trácia tinham passado a noite, sem fogueiras para se aquecerem. Os homens já tinham selado as montadas e mantinham-se em grupos onde se discutia em
voz baixa, de lanças apoiadas nos ombros e escudos ovais pousados no solo.
Assim que avistaram o seu líder, apressaram-se para junto dos respetivos cavalos, pegaram nas rédeas e esperaram pelas ordens. Querto saltou para a sela e ordenou
no tom mais elevado que se atreveu a usar.
- Montar! Cato e Macro receberam as suas montadas das mãos do homem que as estivera a guardar, e montaram também. Levaram os cavalos até se juntarem ao grupo do
porta-estandarte e trombeteiros. Querto sentava-se altivamente na sela, a curta distância, verificando as condições dos cento e vinte homens que compunham a sua
força principal. Quando o último deles se mostrou bem sentado na sela, e os únicos sons que se ouviam eram os dos cavalos a resfolegar e a bater com os cascos no
solo, Querto acenou, satisfeito.
- Preparar para seguir! Fez o cavalo girar para o trilho estreito que saía da clareira e deu um estalo com a língua. O animal avançou a trote, e Cato, Macro e todos
os outros seguiram-no. Atrás deles, os esquadrões avançavam em coluna, até o ar ficar cheio do martelar dos cascos e do tilintar dos apetrechos metálicos. Depois
de uns cem passos por entre as árvores, o trilho conduzia à antiga estrada de acesso ao vale, e Querto levou a coluna pelo declive suave. Durante algum tempo as
árvores esconderam o cenário à sua frente, mas de repente viram-se a cavalgar a descoberto, com pastos de ambos os lados, onde algumas cabeças de gado mais afoitas
se viraram e fugiram perante a sua aproximação súbita.
A um quilómetro e meio à frente, Cato avistava o morro sobre o qual se situava a cabana do chefe, dominando todo o vale. Pouco adiante a estrada passava junto a
um dos aglomerados de pequenas cabanas que constituíam a aldeia tribal. Depois, a estrada seguia perto de uns currais e de poços de armazenamento de cereais cobertos
por tampas de couro, antes de descer para junto de um ribeiro veloz. Do outro lado do vau, a estrada encetava a subida do morro.
Querto levantou a espada e gritou. - Acelerar! Incitou o cavalo, e o animal reagiu com um salto e empinou-se ligeiramente, antes de se lançar de novo para a frente
com maior velocidade. Os homens atrás dele imitaram-no, e o ar em torno de Cato encheu-se com o troar amortecido de algumas centenas de cascos. Surgiu um rosto à
entrada de uma das cabanas mais próximas, e um homem debruçou-se para o exterior, enquanto os olhos se lhe arregalavam de susto. Lançou um brado de aviso e voltou
a recolher ao interior. No instante seguinte a coluna fez tremer o chão junto à cabana, e Cato avistou uma mulher a sair de outra cabana pouco à frente, com um bebé
apertado ao peito. Olhou para o estandarte dos assaltantes, virou-se e fugiu, deixando a aldeia e tentando alcançar as árvores. Mais vultos surgiram e adotaram o
mesmo comportamento, espalhando-se em todas as direções. Um dos cavaleiros mudou também de direção, afastando-se do grupo, mas o gesto atraiu a atenção de um oficial
que lhe deu um berro para o fazer voltar à coluna.
O vau apareceu-lhes à frente, e Cato viu-se a atravessar a água, que explodia num caos de espuma prateada enquanto os cavalos abriam caminho pela corrente. Na outra
margem, Querto reduziu o andamento e esticou o braço para o lado. - Formem uma linha!
O grupo dos estandartes, em que seguiam Cato e Macro, ocupou o centro da linha, e os esquadrões colocaram-se dos dois lados.
- Ali em cima! - Macro esticou o braço e apontou para o cimo do declive. - Já nos viram.
Vários homens tinham entretanto saído das cabanas, e gesticulavam na direção do declive, enquanto chamavam os seus camaradas às armas.
A linha romana estava formada em poucos momentos. Quando o último dos homens posicionou a sua montada na ponta do flanco, ouviu-se uma estridente nota de um corno,
e logo depois o som foi replicado por outro corno à distância.
- Isto deve tê-los acordado a todos. - Rosnou Querto. - Não há tempo a perder. Atacamos agora. - Empunhou a espada e agitou-a no ar. - Meus Corvos! Atenção à minha
ordem! À carga!
21
Querto baixou a espada com um golpe vigoroso no ar e lançou um rugido indistinto, enquanto fazia acelerar a montada. Os seus homens imitaram-lhe o grito, tal como
Macro; Cato cerrava as mandíbulas e respirava fundo e rapidamente através das narinas bem abertas, enquanto incitava o cavalo, desembainhando a espada e usando a
folha para bater na garupa do animal. A linha de cavaleiros ganhou velocidade ao subir a rampa que se afastava da margem do riacho, galopando sobre a relva crescida
do prado, perlada por gotas de orvalho e adornada por brilhantes flores amarelas. O Sol erguia-se sobre as colinas nas costas dos cavaleiros, e os seus primeiros
raios derramavam-se sobre o vale, iluminando-o com uma luz dourada mas ainda pálida.
À medida que os cavalos ganhavam mais velocidade, até atingirem um galope desabrido, Cato sentia o vento a rugir-lhe aos ouvidos, e o corpo a ser sacudido e dobrado
de cada vez que as patas do cavalo embatiam no solo. Agarrou as rédeas com mais força ainda, apertou as pernas contra os flancos do animal e inclinou-se para a frente,
mantendo a mão com a espada em baixo e de lado, de forma a evitar ferir-se acidentalmente, ou a Macro, que cavalgava a seu lado. Os trácios que o acompanhavam dos
dois lados mantinham pelo mesmo motivo as lanças na vertical, e Cato reparou que seguiam uma disciplina férrea: nem um dos homens tinha sucumbido à febre do combate
e baixado ainda a ponta da arma. O chinfrim que Macro fazia ao lançar gritos excitados e ininterruptos enchia-lhe os ouvidos. Os cavalos mais rápidos começaram a
destacar-se, e Querto berrou acima do clamor, exigindo aos seus homens que mantivessem o alinhamento na formação de combate.
A uns cento e cinquenta passos adiante, os guerreiros siluros corriam na direção da cabana do chefe, com a evidente intenção de criar um perímetro de defesa. Agarravam
pelo caminho nas primeiras peças de proteção e nas armas que estavam à mão. Muitos tinham escudos, grandes, lisos e redondos, com belas pinturas que representavam
animais selvagens. Nas outras mãos empunhavam um sortido de lanças, espadas e machados. Quando o declive suave começou a desaparecer, Cato avistou o chefe a sair
da cabana, uma figura alta e espadaúda, com o cimo da cabeça calvo, e o cabelo vermelho que lhe orlava o crânio atado em duas tranças que lhe caíam para as costas.
Os seus guerreiros tinham-lhe dado tempo suficiente para envergar uma armadura de cota de malha, e ele segurava um longo machado de guerra na mão direita, enquanto
distribuía ordens aos seus homens.
À medida que os Corvos Sangrentos chegavam à orla do morro, as choupanas ali situadas obrigaram-nos a rodeá-las e a aglomerarem-se nas passagens estreitas, provocando
embates que levavam os cavaleiros a soltarem impropérios e as montadas a relincharem, pouco satisfeitas. Ainda havia homens a aparecerem à entrada das cabanas, e
quando Cato se aproximou de uma, a cortina de couro abriu-se, e um siluro, abrigado por trás do escudo levantado, usou uma lança de caça contra os cavaleiros que
passavam. A ponta rasgou o flanco do cavalo do porta-estandarte, que seguia mesmo à frente de Cato. Um relinchar estridente rasgou o ar, e o animal saltou para o
lado, arrancando o cabo da lança das mãos do guerreiro. A ponta bateu contra a parede da cabana e quebrou-se com um estalo audível, e os estilhaços aguçados voaram
pelo ar, dirigindo-se contra o rosto de Cato. Baixou a cabeça mesmo a tempo, e sentiu o impacto da madeira no cimo do capacete. Voltou a erguer a cabeça e torceu-se
na sela para tentar atacar o homem. A espata que tinha obtido nos armazéns do forte tinha muito maior alcance do que o gládio a que estava habituado, e o guerreiro
nativo conseguiu escapar, dando um pulo para trás e deixando a lâmina abater-se sobre a ombreira da porta, feita também de madeira. Cato recuperou a arma, mas entretanto
já tinha deixado a cabana para trás.
À direita, viu Macro a abater um siluro baixo que envergava uma túnica castanha. O homem virou-se no preciso momento em que a lâmina empunhada por Macro cortava
o ar e o atingia na parte lateral da cabeça, cortando pele e esmagando a mandíbula. O guerreiro tombou e perdeu-se de vista por entre o tropel dos cavalos. Ouviu-se
um curto grito de dor que morreu quando o seu autor foi pisoteado no solo.
- Matem-nos a todos! - Gritava Querto, uma expressão maníaca gravada nas feições. Os seus homens repetiam o grito enquanto abatiam o punhado de inimigos que tinham
levado demasiado tempo a responder ao apelo para se juntarem aos seus camaradas à frente da grande cabana central. Um segundo homem saiu então dela, também ele alto
e bem constituído. Tinha o corpo protegido por uma armadura e capacete, sob o qual escorria o longo cabelo louro até lhe cair sobre os ombros. Empunhava uma espada
e escudo, e meteu-se entre dois dos homens que formavam a linha de defesa, para ocupar um lugar na frente de batalha. Havia qualquer coisa no seu rosto que despertou
a memória de Cato. Parecia-lhe de alguma forma familiar. Mas não teve tempo de pensar mais no caso.
Os Corvos Sangrentos continuavam a avançar, troando pelo espaço aberto, fazendo explodir no ar os restos das fogueiras e lançando para o céu torvelinhos de cinza
e brasas ainda brilhantes. Alguns dos trácios manobraram entre Macro e Cato, separando-os, e Cato viu-se a uns metros à esquerda do amigo e do resto do grupo de
estandartes, no instante preciso em que os mais avançados dos cavaleiros baixavam as pontas das lanças e carregavam a toda a velocidade sobre a linha de guerreiros
siluros. Ouviu-se um clamor de choques metálicos e pancadas surdas sobre os escudos. Gritos de guerra morreram nos lábios dos homens que se envolviam no combate,
empunhando as armas com fúria e desferindo golpes e estocadas contra os oponentes mais próximos. Abriu-se um espaço entre dois cavaleiros à frente de Cato, e ele
puxou pelas rédeas para dirigir a montada para lá, de espada em riste, pronto a atacar o inimigo.
Um guerreiro celta saltou para a sua frente, com os dentes arreganhados no meio do espesso pelo escuro da barba. Ergueu o escudo e deu uma estocada com a lança,
dirigida ao pescoço do animal que Cato montava. Este empinou-se para tentar evitar o golpe, escoiceando o ar enquanto Cato lançava o peso para a frente e agarrava
firmemente nas rédeas, para evitar ser projetado para trás e cair da sela. Um dos cascos atingiu a ponta da lança do guerreiro, projetando-a para baixo, e o homem
recuou alguns passos para fugir ao perigo que as patas do cavalo representavam. O animal voltou à posição normal, e Cato debateu-se para recuperar a posição ereta
na sela, a tempo de aparar outra estocada do siluro. A longa lâmina que empunhava retiniu, e ele torceu o braço para desviar a ponta da lança, antes de fazer avançar
o cavalo sobre o guerreiro inimigo, embatendo contra o escudo e desequilibrando-o. Cato não lhe deu oportunidade de recuperar a posição, e lançou uma cutilada, esticando
todo o corpo para ter o máximo alcance possível. O gume da espada silvou pelo ar e atingiu o outro na pele pintada do ombro. Rasgou-lhe a carne e embateu na clavícula,
que cedeu perante a força selvagem do golpe. O homem lançou um grito de dor e cambaleou, enquanto o escudo lhe escorregava dos dedos. Ainda assim, apesar da nuvem
de dor que o atingia, manteve a presença de espírito para empunhar de novo a lança e a orientar contra Cato.
O jovem prefeito puxou selvaticamente pelas rédeas, e Aníbal respondeu com uma viragem súbita para a direita, fazendo com que a ponta da lança escorregasse pela
superfície do escudo. Cato rodou o corpo na sela e lançou novo golpe, embora sem grande força. Foi ainda assim o suficiente para obrigar o siluro a recuar, enquanto
o sangue que saía da ferida no ombro lhe escorria pelo peito. Deixou cair a lança e pôs uma mão sobre o rasgão, enquanto se virava para tentar escapar da confusão.
Cato deixou-o ir e, ao reparar que não enfrentava nenhuma ameaça imediata, olhou em volta. Os auxiliares tinham destroçado a pouco disciplinada linha de defesa inimiga,
e havia agora pequenos grupos de combatentes envolvidos em escaramuças renhidas à frente da cabana. Macro seguia ao lado de Querto, e os dois homens carregaram sobre
um punhado de siluros com entusiasmo, forçando-os a dispersar e abatendo uma série deles, que se foram juntar aos que já jaziam pelo solo, mortos ou feridos.
O chefe, o seu companheiro alto e vários dos seus homens tinham formado um círculo que conseguia manter os trácios à distância. Enquanto Cato observava, um dos Corvos
fez avançar o cavalo e tentou dar uma estocada com a lança. A ponta embateu num escudo e, enquanto ele tentava recuperar a arma, o homem alto com o cabelo loiro
correu para ele e cravou-lhe a lâmina no flanco. O impacto foi tão forte que o auxiliar foi projetado da sela e caiu para o outro lado do cavalo. De imediato um
outro siluro atarracado, com um machado nas mãos, saltou sobre ele e desferiu um golpe com as duas mãos. A cabeça do machado abateu-se sobre as costas do auxiliar,
cravando-o no solo. Novo golpe sobre o crânio rachou o capacete de ferro e esmagou-lhe os ossos.
Nesse momento, Cato avistou o porta-estandarte da coorte, num flanco afastado, encurralado contra uma cabana por um grupo de siluros que usavam as espadas para aterrorizar
o cavalo enquanto fechavam o cerco letal. A vergonha de permitir que o estandarte caísse em mãos inimigas estava bem entranhada em todos os soldados do exército
romano, e Cato virou automaticamente o cavalo naquela direção e fê-lo avançar para lá. Passou por alguns cavaleiros que pareciam dispostos a manter-se a alguma distância
da refrega. Cato brandiu a espada ensanguentada e gritou-lhes uma ordem.
- Sigam-me! Não ficou à espera para ver se a ordem era obedecida, já que toda a sua atenção estava focada no confronto entre os siluros e o porta-estandarte. Um
dos nativos tinha conseguido ferir o animal, e o sangue escorria-lhe pelo flanco e pingava para o solo. Um outro guerreiro ameaçou o auxiliar, obrigando-o a virar-se
e confrontá-lo. A ocasião foi de imediato aproveitada por outro, que avançou pelo outro lado e lhe cravou uma lâmina na barriga da perna, antes de recuar com um
salto. O porta-estandarte soltou um grito de dor e fez uma careta enquanto se mexia de um lado para outro sobre a sela, tentando manter todos os adversários bem
à vista.
O som da aproximação furiosa de Cato fez com que o mais próximo dos guerreiros nativos olhasse para trás e se virasse de imediato para lidar com a nova ameaça, os
pés afastados, o corpo protegido pelo escudo e a espada levantada, de ponta bem assestada ao romano que crescia para ele. Por trás, Cato viu que o porta-estandarte
também o olhava com toda a atenção.
Havia nas feições do homem uma expressão estranha, fria e calculista. Nessa altura, o trácio largou o cabo do estandarte, e a imagem do corvo negro estampada no
pano vermelho fluiu no ar enquanto descia para o chão.
- Que raio... Cato observou horrorizado enquanto o porta-estandarte pegava nas rédeas e fazia o cavalo abrir caminho para longe da parede da cabana. Um dos inimigos
lançou-se sobre o estandarte, enquanto soltava um grito de triunfo. Atirou fora o escudo e agarrou no símbolo, antes de se aperceber do cavalo de Cato a aproximar-se
a toda a brida. Nessa altura soltou um grito de alarme, fez um gesto aos companheiros e correu com o estandarte nas mãos.
Debruçado sobre o pescoço do cavalo, Cato mantinha a espada ao lado enquanto carregava sobre o mais próximo dos siluros. Fez a espada rasgar o ar, mas o adversário
deu um passo ágil ao lado e avançou de imediato para desferir o seu próprio ataque, uma estocada poderosa contra o peito do prefeito. Os movimentos nervosos do cavalo
estragaram-lhe a tentativa, e a ponta escorregou de forma inofensiva pela placa peitoral de Cato. Este desferiu nova espadeirada, acertando no escudo do siluro e
fazendo-o recuar. Os dois homens fizeram uma breve pausa, medindo o adversário, até que o companheiro do siluro avançou, pronto a juntar-se ao combate. Atrás deles,
o terceiro homem escapava com o seu troféu bem preso nos braços, e desaparecia por trás da cabana. Cato ouviu o som de cascos atrás de si; eram com certeza os homens
a quem tinha ordenado que o seguissem, pelo que renovou o ataque ao siluro que se tinha voltado para o enfrentar. Dirigindo o movimento da montada, desferiu golpe
após golpe sobre o escudo, impactos pesados que faziam saltar estilhaços da superfície de madeira pintada, obrigando o homem a recuar e a afastar-se do seu companheiro.
- Tratem destes! - Gritou Cato, enquanto incitava o cavalo a avançar, para rodear a cabana. A única coisa que importava naquele momento era recuperar o estandarte.
O cavalo iniciou o galope enquanto ele escutava o som do confronto entre os trácios e os dois inimigos. A montada de Cato descreveu a curva da cabana a toda a brida,
e ele avistou o siluro que corria pela encosta abaixo, para longe do combate, com o estandarte à sua frente, carregado como uma cruz ao ombro. Uns cinquenta passos
mais à frente via-se um grande curral com uma vedação de madeira, onde esperavam uns vinte ou trinta cavalos, alguns já selados. Um jovem siluro espreitava junto
ao portão, e olhava ansioso para o cimo da encosta, de onde vinha o som da refrega. Percebendo o que se passava, debruçou-se para o interior e voltou a surgir com
uma forquilha nas mãos. Sem perder tempo, apontou-a contra Cato. Entretanto, o homem que levava o estandarte continuava a correr, olhando para trás com alarme perante
a aproximação do romano que o perseguia.
Cato apertou as pernas contra o flanco do cavalo e preparou a espada, enquanto se aproximava da presa. A lâmina subiu, deteve-se enquanto Cato avaliava o momento
ideal, e desceu cortando o ar. No último instante o siluro atirou-se para o lado e rebolou sobre a erva, sem largar o estandarte dos Corvos Sangrentos.
- Merda... - Soltou Cato, enquanto refreava o cavalo e o fazia rodar para enfrentar o guerreiro, que já se tinha posto de pé e prosseguia a fuga para o curral, soltando
ordens para o jovem que o esperava à entrada. Cato colocou o cavalo em passo rápido, tentando cortar o caminho ao outro, mas já era tarde demais para o alcançar
antes de ele chegar ao portão, onde se deteve e rodopiou. O peito arfava-lhe do exercício a que se submetera, e ele virou a ponta do estandarte contra Cato. A perseguição
terminara, e Cato deteve o cavalo a curta distância dos dois novos adversários. Era fácil de perceber que o jovem que empunhava a forquilha estava cheio de medo.
Os olhos dele estavam muito abertos e as pontas da sua arma improvisada tremiam no ar. Cato fez avançar o cavalo, apontou a espada ao jovem e fez um movimento para
o lado.
- Vai! Desaparece daqui! Apesar de as palavras serem proferidas numa língua estranha, o seu significado era evidente, e o siluro deslizou para o lado, até que uma
brusca ordem do outro o fez estacar. Cato ouviu o som de cascos por trás de si, e espreitou sobre o ombro para confirmar que eram dois trácios que se dirigiam para
ali. Animado perante o facto, concluiu que a recuperação do estandarte ia mesmo acontecer. Mas os dois auxiliares refrearam os cavalos a uns trinta metros dali.
- Do que é que estão à espera? - Gritou-lhes Cato. - Comigo! Imediatamente!
Os homens não reagiram, e as montadas ficaram estáticas sobre a erva alta, as caudas a abanar calmamente, enquanto os seus cavaleiros aguardavam em silêncio.
Cato sentia a cólera a queimar-lhe nas veias. Ali estava o que valia a temível reputação dos Corvos Sangrentos, pensou com azedume. Preparava-se para lhes dar novo
berro quando o siluro que empunhava o estandarte soltou um rugido e correu sobre ele. Tinha muito pouco tempo para reagir, pelo que Cato se limitou a apresentar
o escudo ao choque, enquanto mantinha a espada ao alto. Os olhos do guerreiro estavam esbugalhados, e os lábios arreganhados, e ele fletiu os músculos dos ombros
e lançou todo o seu peso naquele ataque. A ponta atingiu o escudo e rachou a madeira, rompeu por entre as tiras laminadas e surgiu do outro lado, atingindo o cavalo
mesmo à frente do joelho de Cato. O animal saltou para o lado, enquanto Cato fazia rodar a espada contra a cabeça do siluro. Este baixou-se, puxou o cabo do estandarte,
recuou e retomou uma posição estável, enquanto soltava um brado para o seu jovem camarada. O rapaz aproximou-se, ainda hesitante, tentando rodear Cato para o atacar
pelo flanco.
- Foda-se... - Resmungou o prefeito, remexendo-se na sela para tentar manter os dois homens sob controlo. Arriscou uma espreitadela para o cimo do declive, onde
os dois trácios continuavam a aguardar calmamente, e um arrepio frio percorreu-lhe a espinha. Havia ali algo de errado. Voltou a dedicar a atenção aos dois inimigos.
A maior ameaça provinha claramente do guerreiro. Se Cato o derrubasse, tinha a certeza de que o jovem se decidiria pela fuga. Por outro lado, o nervosismo de que
dava provas tornava difícil prever que comportamento adotaria ao certo. Podia tão facilmente decidir-se a atirar-se a Cato como um animal selvagem, como correr para
longe. Quase por instinto, Cato avançou para ele e debruçou-se na sela para atacar a forquilha. O jovem não tinha experiência nem treino que lhe permitisse aparar
o golpe, e a espada atingiu um dos dentes, obrigando a ferramenta agrícola a descair para o solo. Cato aproveitou rapidamente, desferindo um golpe ligeiro que fez
a ponta da espada rasgar a túnica do outro e arranhar-lhe a pele ao longo do peito. O jovem gritou mais de surpresa do que de dor, e recuou horrorizado, soltando
a forquilha. Cambaleou, rodou nos calcanhares e fugiu, abandonando Cato e o curral, dirigindo-se a um grupo de cabanas a umas centenas de passos dali.
O outro siluro soltou um insulto cheio de desprezo na direção do jovem e voltou a atacar, tentando aplicar uma estocada com o estandarte dos Corvos Sangrentos. Desta
vez apontou mais para cima, e Cato levantou o escudo para aparar o golpe. No último instante, o adversário rodou a ponta para o lado, de forma a que a peça de suporte
no cimo do estandarte, feita de ferro, passasse para lá da orla do escudo. A seguir, com uma poderosa torção do pulso, prendeu-a por trás da defesa de Cato e puxou
com todas as forças. O escudo dançou nas mãos de Cato e a orla bateu-lhe com força por baixo do queixo. Provou sangue, e o escudo foi-lhe puxado de novo, pelo que
decidiu deixá-lo ir. Estandarte e escudo voaram sem resistência contra o guerreiro, que perdeu o equilíbrio e escorregou na erva. Antes que ele conseguisse recuperar,
Cato inclinou-se na sela e golpeou-o na garganta, cravando-o contra o solo antes de torcer a lâmina e a puxar para si. O sangue jorrou da ferida, e o siluro levou
as duas mãos ao pescoço, enquanto cuspia sangue, gorgolejava e tentava respirar, sem êxito. Seguro de que o homem estava liquidado, Cato desceu da sela para recuperar
o estandarte dos Corvos Sangrentos e o seu escudo. Passou a orla do escudo sobre um dos bicos da sela e voltou a subir, mantendo o estandarte bem ao alto, de forma
a que o peso do pano revelasse a imagem do corvo. O coração estava pleno de alívio por ter afastado o perigo da unidade perder o estandarte e se ver coberta de vergonha.
Virou o cavalo para subir o declive, e foi nessa altura que viu os dois trácios a pegar nas rédeas e fazerem os seus cavalos começarem a descer. Cato encarou-os
com despeito e preparava-se para lhes dar uma forte reprimenda quando se apercebeu de que havia alguma coisa de estranho nas suas expressões. Olhavam-no de forma
fria enquanto se aproximavam, baixavam as lanças e as preparavam para um ataque.
Um ataque cujo alvo era Cato.
22
A maioria dos inimigos já tinha tombado, e os sobreviventes agrupavam-se em volta do seu chefe e do homem alto de cabelo louro, que combatia com tanta destreza como
os melhores que Macro já defrontara. Movia-se agilmente, e desferia golpes precisos e letais com a lança. Já tinha morto dois trácios e ferido um terceiro, sem sofrer
um único arranhão. Ao seu redor havia pouco mais de uma dezena de siluros, alguns já feridos, mas todos eles de escudos ainda bem erguidos e de armas assestadas
aos atacantes.
Deu-se uma pausa, enquanto os cavaleiros se reagrupavam e formavam um crescente em volta dos celtas, cujas costas estavam encostadas à parede da cabana do chefe.
Os peitos dos guerreiros arfavam enquanto olhavam com fúria para os trácios.
Macro viu-se perto de Querto, e não hesitou em chamá-lo. - É hora de lhes ordenar que desistam. Sabes o suficiente da língua deles para lhes fazeres essa sugestão?
Querto olhou para Macro com raiva indisfarçável. - Eles lutarão até ao fim. Não haverá prisioneiros. Macro aproximou o cavalo do do trácio. - Haverá, sim. Ouviste
o que disse o prefeito. Todos os que se renderem serão poupados. Só os que não o fizerem deverão ser abatidos.
Querto olhou para os homens à frente da cabana com mal disfarçado ódio.
- São essas as ordens que temos. - Lembrou Macro com firmeza. - Diz-lhes para deporem as armas.
Durante alguns momentos, deu a sensação de que o outro homem ia recusar a ideia. Mas acabou por assentir, respirar fundo e dirigir-se ao inimigo. Enquanto o homem
louro dava a sua resposta, Macro esticou-se na sela e olhou em volta, à procura de Cato.
- Mas onde raio se meteu ele? - Resmungou para si mesmo. - Às vezes dá-me mesmo a ideia que não posso deixar este miúdo à solta...
Nesse momento relembrou o instante em que tinha visto o amigo em perseguição de um homem, a rodear uma cabana. Macro voltou-se outra vez para Querto, que ainda trocava
argumentos com o nativo. Notou que os siluros estavam a adotar posições mais relaxadas à medida que as negociações progrediam. Pressentiu que estavam prestes a render-se,
e que a sua presença ao lado de Querto já não era necessária. Puxou pelas rédeas, abriu caminho por entre os cavaleiros auxiliares e seguiu a trote para as traseiras
da cabana, na direção que tinha visto o amigo tomar havia pouco tempo. Passou por um corpo esparramado no solo, e prosseguiu. Ao chegar ao cimo da encosta sentiu
um tremendo alívio ao avistar a crista vermelha do capacete de Cato, e viu que o prefeito empunhava o estandarte da coorte trácia numa mão, e o escudo na outra.
A curta distância de Cato estavam dois dos trácios, a cavalgar calmamente na sua direção. Macro preparava-se para chamar o amigo quando as palavras lhe morreram
na garganta. Os dois homens estavam a acelerar os cavalos e carregavam contra Cato, com as lanças em posição de ataque.
- Foda-se, mas que é isto? - Lançou Macro. A perceção de que o amigo estava em grave perigo atingiu-o como um murro, e ele espetou os calcanhares nos flancos do
cavalo enquanto ao mesmo tempo lhe dava palmadas na garupa. - Iá!
O cavalo saltou para a frente, lançando-se a galope pela encosta abaixo. Os trácios aproximavam-se rapidamente de Cato. Este olhava-os com toda a atenção e manejava
o escudo, rodando-o para cobrir o corpo. Depois, no último momento, baixou o estandarte como se fosse uma lança e avançou contra o homem que seguia à direita. Os
três colidiram com estrondo, provocado pelo choque de uma lança contra o escudo. Um retinir metálico sublinhou a troca de golpes entre Cato e o adversário à sua
direita, numa tempestade de estocadas e paradas. O estandarte não tinha sido feito para aquele fim, e Cato sentia-se desajeitado enquanto lutava pela vida. As suas
hipóteses de sobrevivência pioravam pela necessidade de estar atento ao que se passava à sua esquerda, de modo a evitar os ataques do outro trácio. Macro notou que
o amigo não ia conseguir aguentar aquela situação muito mais tempo, e golpeou selvaticamente o cavalo com os calcanhares, fazendo-o acelerar mais ainda. Ouviu um
grito de frustração quando o estandarte saltou das mãos de Cato e caiu no meio das ervas. Cato tentou então desembainhar a espada, enquanto o seu oponente tentava
aproveitar a ocasião, atacando pelo lado desprotegido e preparando o golpe final. Mesmo a tempo, Cato lançou o seu escudo contra o rosto do homem à esquerda e baixou-se
de forma a passar sob a ponta acerada da lâmina do outro atacante e evitar embater contra o escudo, para poder assim agarrar-lhe o manto e a túnica, numa tentativa
desesperada de derrubar o trácio da sela. Os dois debateram-se, e Cato depressa ficou quase fora da sua sela, enquanto o outro trácio fazia o cavalo rodar de forma
a poder atacar o prefeito pelas costas.
Ao ouvir o som da aproximação do cavalo de Macro, o segundo homem hesitou e olhou à volta, antes de fazer rodar de novo o cavalo para enfrentar a inesperada ameaça.
Macro tinha o escudo levantado, e encolhia-se por trás dele, de forma a ficar completamente coberto. Não havia tempo para pensar, pelo que o veterano se limitou
a cerrar os dentes e avançar diretamente sobre o opositor. O trácio só se apercebeu da sua intenção no último momento, e tentou ainda fazer o cavalo sair do caminho.
Mas era tarde demais, e a colisão com a montada de Macro foi tremenda. O cavalo do trácio soltou um agudo relincho de terror, escorregou sobre os cascos e caiu de
lado. Rodou até ficar de costas sobre o solo, com as pernas a escoicear loucamente o ar. O cavaleiro soltou um grito de pânico, mas o peso do cavalo em cima dele
roubou-lhe todo o ar dos pulmões e esmagou-lhe o torso e os membros.
Cato ainda lutava com o outro homem, uma mão a tentar encontrar sítio onde agarrar ao redor do peito do trácio, e a outra a segurar-lhe no pulso que empunhava a
lança e a lutar para manter a ponta afastada do seu corpo.
- Aguenta, miúdo! - Gritou Macro, enquanto recuperava o controlo da sua montada assustada, que tentava a todo o custo fugir dali para fora.
O trácio ainda montado puxou pelas rédeas com toda a determinação, fazendo o cavalo afastar-se do de Cato e arrastando o prefeito para fora da sela. Cato agarrou-se
com desespero, sabendo perfeitamente que se largasse o outro e lhe desse espaço para manejar a lança estaria acabado. Então, quando sentia que estava mesmo no limite
e que ia acabar por cair para debaixo das patas do cavalo, largou o pulso do opositor e agarrou antes no punho da adaga que trazia à cintura. Puxou-a rapidamente
e espetou repetidamente o adversário nas pernas e virilhas. O homem soltou vários gritos de dor e fúria e largou a lança, concentrando-se em aplicar murros ferozes
na guarda do rosto do capacete de Cato, antes de lhe desferir um brutal murro em plena cana do nariz. Cato sentiu uma dor aguda e algo a quebrar-se, e no instante
seguinte o sangue a escorrer-lhe das narinas. O trácio grunhiu, de punho alçado para novo soco, e Cato levantou o olhar para descobrir, espantado, a ponta de uma
espada cravada na cova no pescoço do homem, e sentir um jorro quente de sangue a tombar-lhe no rosto. O trácio olhou também para ele, de boca escancarada, um ar
de surpresa nos olhos, antes destes se revirarem e ele desmoronar sobre a sela com um gemido profundo. Nessa altura, a espada foi recolhida com ferocidade, e o homem
soltou um derradeiro grito antes de o cavalo dar uns passos para o lado, arrastando Cato uma curta distância até este puxar a adaga ainda cravada na perna do trácio
e lhe largar a capa, a que ainda estava agarrado.
Caiu para o solo, tendo o cuidado de atirar a adaga para longe, para evitar cair sobre ela. O impacto foi duro, e fê-lo expelir o ar dos pulmões e ficar atordoado
ao bater com o capacete, mas ainda assim teve a presença de espírito para se aninhar e fazer-se pequenino no chão, de forma a correr menos perigo de ser pisoteado
pelos cavalos que martelavam a erva em redor.
- Já passou, miúdo. - Ouviu a voz ansiosa de Macro a dizer-lhe. Arriscou uma olhadela para cima, e avistou a crista transversal de um capacete de centurião, que
bloqueava a luz crescente do céu matinal. Sossegado, rolou o corpo e pôs-se de pé, ainda aturdido, e limpou o sangue do nariz com as costas da mão. Macro recuperou
o estandarte de onde estava tombado sobre a relva e espetou a ponta aguçada no solo com toda a firmeza. Voltou-se por fim e contemplou os dois trácios. O cavalo
que tinha sido derrubado tinha acabado por conseguir reerguer-se, e mantinha-se estático, a curta distância do seu cavaleiro, que se debatia ainda no solo, tentando
sem grande sucesso recuperar a respiração normal. O outro homem, depois de dançar sobre a sela por momentos, tinha escorregado para o lado e acabara por tombar para
o solo. O cavalo tinha dado mais alguns passos assustados, mas depressa parara e deixara-se estar de cabeça baixa, concentrado em pastar a erva apetitosa.
Macro virou-se para Cato. - Foda-se, importas-te de me explicar o que raio se passou aqui? Cato ainda estava a recuperar o fôlego e a tentar dominar a dor resultante
do nariz partido. Levantou uma mão, e o sangue que lhe corria pelas narinas deu-lhe um tom estranho à voz.
- Só... um bocadinho... - Miúdo, estes dois tentaram matar-te. Vi tudo. Não tenho qualquer dúvida disso.
Cato anuiu, e encaminhou-se para junto do homem que Macro derrubara. Debruçou-se sobre o vulto embrulhado no chão e viu a terrível ferida que a espada do centurião,
entrando em ângulo pelo pescoço, tinha provocado, estilhaçando a clavícula e algumas costelas antes de interromper o seu curso, a uns vinte centímetros de profundidade.
O sangue jorrava da ferida ao ritmo das pulsações, acumulava-se sobre o peito e escorria para a relva, enquanto o trácio rangia os dentes e fitava o céu pálido.
Cato ajoelhou-se ao lado do homem.
- Porque é que me atacaram? Os olhos do trácio piscaram e fitaram Cato, mas não abriu a boca. O prefeito debruçou-se mais para ele.
- Diz-me! Os lábios do homem encurvaram-se ligeiramente, num sorriso trocista. - Filho da puta, do que ele precisa é de um pequeno incentivo. - Disse Macro. Rodeou
o amigo e colocou-se junto à cabeça do trácio. Ergueu uma bota e depois colocou-a sobre a ferida, primeiro sem fazer pressão, mas aumentando-a gradualmente até fazer
o trácio gritar de agonia e se torcer todo. Macro remexeu a bota sobre a ferida, fazendo com que os pregos dilacerassem a carne exposta e o osso, antes de afrouxar
um pouco a pressão.
- Ou respondes à pergunta do prefeito, ou levas outra dose. - Porque é que me atacaste? - Repetiu Cato. O trácio ofegava enquanto tentava controlar as vagas de dor
que provinham da ferida. Lambeu os lábios e conseguiu reunir forças para responder.
- Fi-lo... pelo centurião. - O centurião? Querto? O homem fez um quase impercetível gesto de concordância com a cabeça.
- A coorte... pertence-lhe... Não a si. Nunca. - Foi ele quem te deu ordem para fazer isto? O trácio voltou a cair sobre a relva e começou a tremer de forma incontrolável,
enquanto se esvaía em sangue. Cato agarrou-lhe o lenço que levava ao pescoço, agora empapado de sangue, e puxou-lhe a cabeça para cima com brusquidão.
- O Querto ordenou-te que me matasses? - Exigiu saber. Os olhos do homem reviraram-se e ele engasgou-se com o sangue na garganta. Por fim, quando já lhe escorria
um fio vermelho pelo canto da boca, voltou a falar, em tom muito baixo.
- Querto... - O quê? - Inquiriu Cato. - O que há quanto ao Querto? Fala! Mas era tarde demais. A cabeça do trácio descaiu para trás, já sem vida, e Cato contemplou-o
em cólera, antes de lhe soltar o lenço e largar a cabeça, furioso.
- Filho da puta! Enquanto ele se levantava, Macro afastava a bota da ferida do homem e limpava-a nas ervas próximas, tentando fazer desaparecer o sangue. O centurião
olhou para o corpo e deu um estalo com a língua.
- Bom, temos que dar ao Querto algum mérito, ele realmente inspira lealdade entre os seus homens.
- Lealdade? - Cato cuspiu as palavras com azedume. - Lealdade a quê? Não a Roma. Só àquele cabrão doentio que se quer banhar em sangue.
Macro olhou para o amigo. - Estava a ser irónico. Encararam-se com maus modos, até que Cato sorriu nervosamente, feliz por libertar a tensão que lhe oprimia o peito.
Macro riu.
- Ora aí está. Parece-me, Cato, que te conheço há já demasiado tempo. Ironia - eis uma coisa que não era costume eu empregar assim com tanta facilidade. Bom, mas
por Hades, o que é que se anda a passar aqui? Achas que estes sacanas estavam a agir por conta própria, ou por ordens do Querto? - O que lhe parece? É ele que está
por trás disto. Quer-me morto, tal e qual como aconteceu ao anterior prefeito, para poder continuar a governar Bruccium como se fosse o seu próprio pequeno reino.
Macro soprou as bochechas. - Está a correr um risco desmesurado. Um prefeito morto, bom, é azar. Dois, já dá ar de conspiração. - Fez uma pausa e abanou a cabeça.
- Foda-se... Conspiração. Parece que anda uma nuvem negra com essa forma a pairar sobre nós constantemente. Pensava eu que quando voltássemos para o exército íamos
ter uma vida tranquila. Em vez disso... Tens a certeza de que o Querto é o responsável por isto?
- Tenho. Macro, isto foi uma armadilha. O porta-estandarte devia estar metido no plano. Deixou que os siluros lhe roubassem o estandarte, sabendo perfeitamente que
eu iria atrás do homem que o tivesse, e que assim me veria afastado da área do combate. Assim que me viram separado do resto da coorte, estes dois vieram atrás de
mim. Primeiro, deram ao inimigo uma oportunidade de me despachar, e depois avançaram para concluir o trabalho. Muito bem pensado. Eu teria tido uma morte heroica
a tentar recuperar o estandarte, e o Querto teria uma rica história para lhe contar e reportar ao quartel-general, quando chegasse esse momento. - Cato anuiu para
si mesmo, carrancudo. - O homem é astuto como uma serpente.
Macro remexeu o trácio morto com a ponta da bota. - E agora, o que é que fazemos? A tentativa falhou, e tu ainda estás vivo. E agora? Espetamos uma adaga nas costas
do cabrão? O pulha bem o merece.
Antes que Cato pudesse responder, escutaram o som de cavalos a aproximarem-se, e olharam para lá; era Querto, que conduzia um dos seus esquadrões pela encosta abaixo,
até junto deles. Macro aprontou a espada e virou-se para os enfrentar com uma expressão determinada. Cato colocou-se ao seu lado e deixou a mão deslizar até ao punho
da espada.
- Macro. - Disse, quase em surdina. - Corremos sério perigo. Deixe-me falar.
O amigo anuiu, mantendo os cavaleiros sob vigilância cuidada. Querto refreou o cavalo junto aos dois oficiais, e os seus homens imitaram-no, rodeando-os. No momento
de quietude que se seguiu, Cato perscrutou o rosto do oficial trácio e viu naquele olhar frio os indesmentíveis traços de frustração que confirmaram definitivamente
as suas suspeitas. Querto acenou na direção do estandarte. - Vejo que conseguiu salvá-lo. Recuperou a honra da coorte. - Sim, salvei o estandarte. - Retorquiu Cato,
em tom deliberadamente calmo. Assinalou depois os corpos dos dois trácios. - Mas não consegui salvar estes homens.
Querto contemplou os dois corpos, e por fim os seus olhos escuros fixaram-se de novo em Cato.
- O que é que sucedeu? - Indagou, sem qualquer emoção. - Tentaram recuperar o estandarte das mãos do siluro. Ele abateu os dois antes de eu poder intervir.
Ao seu lado, Macro agitou-se, espantado; aquela explicação falsa tinha-o apanhado completamente de surpresa. Cato lançou uma apressada prece para que Macro não desse
com a língua nos dentes naquele momento. Querto anuía, devagar.
- Foram portanto uns heróis. - Assim parece. Por fim, o trácio apontou para a cara de Cato. - Senhor, está ferido. - Não é nada. - Cato virou costas, dirigiu-se
para o seu cavalo e trepou para a sela. Macro hesitou um momento, de olhar fixo em Querto, antes de o imitar. Cato deitou o olhar pela extensão do vale e avistou
as distantes figuras de homens e mulheres da tribo a tentarem salvar as vidas, com as crianças arrastadas pelos braços, dirigindo-se às árvores que rodeavam a área
aberta. Limpou o sangue dos lábios. Já começava a coagular no nariz, e apenas uma fina linha lhe corria pela cara. Limpou a garganta.
- Centurião Querto, ordena aos teus homens que façam prisioneiros. Só poderão ser abatidos os que resistirem. Os prisioneiros e os nossos feridos devem ser levados
para a cabana do chefe. Entendido?
Querto anuiu. - Centurião, eu perguntei se tinhas percebido as ordens. - Sim, senhor. - Assim está melhor. Trata disso imediatamente. - Sim, senhor. - Querto fez
o cavalo rodopiar e lançou várias ordens aos seus homens. Alguns cavaleiros deixaram o grupo de imediato para informar os outros esquadrões, enquanto Cato e Macro
subiam a encosta. Querto acenou aos restantes dos homens, e todos seguiram atrás do prefeito e do centurião. Ao cimo do declive, Cato dirigiu-se para o espaço aberto
em frente à cabana, e avistou uns vinte ou mais elementos inimigos sentados no solo, vigiados por um bom número de auxiliares trácios. Entre os prisioneiros via-se
o homem louro, que sobressaía entre eles pela sua estatura e pelo tom claro do cabelo, comparado com os siluros, quase todos de cabelo escuro. Tinham-lhe sido retiradas
todas as armas, bem como o escudo e o capacete, e Cato já conseguia apreciar melhor as suas feições. Deteve o cavalo e fitou o homem.
- Macro, está a ver aquele? - Apontou-o. - Tem um ar familiar. Não o reconhece?
Macro olhou e encolheu os ombros. - Não posso dizer que sim. Cato franziu o sobrolho. - Já o vi antes. Há pouco tempo. Tenho a certeza... Fez avançar o cavalo até
junto do homem e fê-lo parar a menos de dois metros. O nativo olhou-o com ar desafiante.
- Põe-te de pé! - Ordenou Cato, enquanto fazia um gesto com a mão.
O homem não se mexeu, e Macro aproximou-se, com o rosto avermelhado de fúria.
- Ouviste o prefeito! Põe-te já de pé, foda-se, cão sarnento! Devagar, e com toda a altivez e dignidade que conseguiu reunir, o guerreiro levantou-se e empertigou-se,
contemplando os seus captores com uma expressão de desdém.
- Quem és tu? - Indagou Cato. - Não és um siluro. - Sou um catuvelauno. - Retorquiu o homem, num latim quase sem sotaque.
- Nesse caso, o que estás aqui a fazer? A tua tribo rendeu-se a Roma há já muitos anos. - Cato obrigou-se a prosseguir em tom frio. - O que faz de ti um traidor.
- Traidor? Serei tudo menos isso. Jurei que combateria Roma até ao meu último fôlego. Como muitos outros da minha tribo, escolhi seguir Carátaco.
À menção do líder das forças inimigas, Cato sentiu uma onde de familiaridade a percorrer-lhe o espírito. Sim, já tinha encontrado aquele homem antes. No sagrado
círculo de pedras, entre o séquito do rei nativo que resistia a Roma desde o momento em que as legiões tinham desembarcado em solo britânico. Como muitos catuvelaunos,
tinha o cabelo claro, mas havia nele outra coisa que o distinguia. O físico e o rosto lembravam a Cato o próprio Carátaco.
- Como te chamas? - O meu nome? - Os lábios do guerreiro encurvaram-se com despeito. - O meu nome é apenas para o meu povo e para aqueles que combatem a meu lado
e a quem chamo irmãos.
- Ai sim? - Macro lançou um sorriso cruel. - Senhor, se ele não nos quer dizer o seu nome, já não tem qualquer uso para a língua. Permita-me que lha corte de vez.
Macro levou a mão à adaga e brandiu-a, levantando-a no ar para que o outro a visse claramente. Cato não disse nada durante alguns momentos, permitindo que o sanguinário
pedido de Macro tivesse o seu efeito. Viu como o guerreiro afastava os olhos da adaga e deixava cair a máscara , revelando um vislumbre do medo que lhe ia no coração.
- Diz-me o teu nome. - Ordenou Cato. - Enquanto ainda tens língua.
O guerreiro olhou-o, tentando recompor-se, e recuperou algum do orgulho que ostentava.
- Muito bem. Chamo-me Marídio. - Marídio. - Repetiu Cato. - Guerreiro da tribo dos catuvelaunos e, se não me engano, irmão do rei Carátaco.
23
Eo que vamos então fazer com este tal Marídio? - Indagou Macro, enquanto aquecia as mãos ao braseiro. Apesar do verão estar já próximo, as montanhas siluras continuavam
a ser varridas por ventos frios, e a chuva e os nevoeiros eram uma constante. No exterior, para lá das paredes do edifício do quartel-general, soprava uma brisa
feroz, que fazia ranger as portadas das janelas do gabinete de Cato. Décimo trouxera-lhes uma refeição, um simples guisado. Alguns dos cavalos feridos no ataque
recente tinham sido considerados inaptos para o serviço pelo responsável dos estábulos da coorte trácia, e tinham sido sacrificados, para melhorar a alimentação
dos homens. A guarnição de Bruccium apreciava sobremaneira a adição de carne fresca à dieta, pelo menos durante uns dias, antes de regressarem ao habitual regime
de papa.
Cato encheu o copo de posca, o vinho barato e aguado que os legionários consumiam regularmente.
- Tivemos uma sorte tremenda por lhe pôr as mãos em cima. - É verdade. - Concordou Macro com ênfase. - Mas o que estaria ele a fazer naquela aldeia?
Cato beberricou um pouco, e pensou na questão. - O mais provável é que tenha sido enviado pelo Carátaco. Talvez para recrutar mais homens. Ou talvez para avaliar
com os próprios olhos o efeito que o Querto está a ter nos seus aliados, e tentar galvanizá-los de novo. Não podemos ter a certeza, a menos que ele nos diga.
- Ainda não disse uma palavra. Pus alguns dos tipos do Severo a trabalhá-lo, mas o sacana é mesmo tão rijo como parece. Ainda não lhe conseguimos extrair nada de
jeito. Talvez tenhamos mais sorte esta noite.
- Espero bem que sim. Disse ao Querto para mandar alguns dos seus homens interrogá-lo.
Macro levantou o olhar com ar interrogativo. - Porque é que o meteste nisto? - Sou o prefeito da coorte trácia, além de comandante do forte. Não posso deixar passar
nenhuma ocasião para lho lembrar; a ele e ao resto dos seus... dos meus homens.
Mas acho que ainda é capaz de ver o interesse que tem em recuar. Tenciono dar-lhe essa oportunidade.
Macro manteve-se calado por momentos, até que não conseguiu evitar ripostar em tom de lamento.
- Pelo amor dos deuses, Cato, porquê? O cabrão tentou matar-te. Cato cruzou as mãos e pousou sobre elas o queixo, enquanto pesava o protesto do amigo. Macro tinha
toda a razão. O trácio era perigoso, e guiava-o uma espécie de loucura que Cato não conseguia compreender. Havia algo de bizarro na forma extrema como conduzia a
guerra, muito para além dos costumes sanguinários da sua raça. Ele procurava uma vingança, e era consumido pelo desejo de erradicar os siluros, até à mais ínfima
criatura viva que lhes pudesse ser associada. Ainda assim, o efeito que aquela campanha aterrorizante do trácio tinha no inimigo - as cabeças, os cadáveres putrefactos
e os restos calcinados de tantas aldeias - era impressionante. Os nativos temiam de facto os homens da coorte. A mera visão do estandarte dos Corvos Sangrentos tinha-os
posto em fuga, a tentar salvar as suas vidas sem pensar em mais. Talvez o medo fosse realmente a melhor das armas, considerou Cato. Nada se lhe conseguia opor, nem
a melhor das armaduras, nem a mais alta muralha. Só a coragem, e com igual intensidade, se podia contrapor a uma estratégia que se baseasse em instilar no inimigo
um terror tão intenso como aquele que Querto e os seus homens produziam. Seria portanto o terror a arma suprema da guerra...
Parte da mente de Cato recuou perante tão abjeta linha de pensamento. Os frios cálculos que lhe tinham ocupado o espírito fizeram-no desprezar-se a si mesmo. Ele
não era Querto. Nunca poderia sê-lo. Porém, ao mesmo tempo, compreendeu que também ele seria perfeitamente capaz de um comportamento tão implacável. A diferença
entre ele e o trácio era que ele escolhia não o ser... Ou talvez essa fosse meramente a desculpa que dava a si mesmo para justificar a sua cobardia moral. Levantou
o olhar e encarou Macro, perguntando-se se valeria a pena tentar explicar-lhe as dúvidas que o consumiam. Quanto ao amigo, Querto tinha-se condenado no preciso momento
em que planeara a morte de Cato. Nada mais lhe interessava. Macro tinha tendência para ser mais direto nos julgamentos que fazia relativamente aos outros.
- Se o Querto puder ser convencido a deixar Bruccium e a escoltar os prisioneiros até Glevum, - começou Cato, - estará longe quando nós assumirmos o controlo total
da situação, e tomarmos medidas para garantir que ele não o recuperará quando voltar. Se ele se atrever a tentar, poderei invocar as leis militares e detê-lo por
insubordinação, talvez mesmo motim. E os procedimentos regulamentares serão assim seguidos em toda a sua extensão.
- Cato, foda-se, estás doido ou quê? - Irritou-se Macro. - Caralho, onde é que estava essa merda dos procedimentos regulamentares quando ele tentou despachar-te,
hã? Quando o teu inimigo joga sujo, tu respondes na mesma moeda. É só dizeres, e eu mesmo lhe espeto uma lâmina nas entranhas, e não sentirei o mínimo remorso por
tratar da saúde àquele grandessíssimo cabrão. Aí estão os meus procedimentos regulamentares seguidos em toda a sua extensão.
Cato ficou por momentos atónito perante a veemência das palavras do amigo.
- Hã... Pois, tem razão. Instalou-se um breve silêncio, enquanto Cato dava tempo para o centurião se acalmar um bocado, antes de prosseguir. Décimo aproveitou a
ocasião para pigarrear. Cato olhou para ele.
- Senhor, posso ir? Cato anuiu. - Sim, vai lá comer qualquer coisa. - Obrigado, senhor. - Décimo virou-se para a porta, e preparava-se para sair quando Macro o chamou.
- Décimo, escuta, vê se ainda há algum daquele pão dos siluros na dispensa dos oficiais. Se houver, traz um para cada um de nós.
- Sim, senhor. - Respondeu Décimo, e saiu da sala, cerrando o ferrolho silenciosamente.
Cato não estava com grande apetite, dadas as preocupações que o afligiam.
- Para mim chega o guisado. - Como queiras. Se não quiseres o pão, eu fico com o teu. Macro atirou-se à comida, sorvendo o líquido bem quente da colher enquanto
Cato remexia o seu, ainda pensativo, até voltar ao mesmo tema.
- Macro, temos que ter mesmo muito cuidado. Nunca nos vimos numa situação destas.
Enquanto falava, o prefeito recordou o regresso da aldeia silura. Ele e Macro tinham-se mantido sempre na coluna, dia e noite, fazendo turnos para dormir enquanto
o outro vigiava. Querto já tinha feito uma tentativa para matar Cato, e tinha com toda a certeza, entre os seus seguidores, outros homens preparados para lhe obedecer
e assassinar um oficial superior. Assim que tinham regressado ao forte, Cato dera ordens para que a guarda do quartel-general fosse constituída apenas por homens
da coorte de legionários. Homens escolhidos a dedo pelo centurião Severo, em função da sua lealdade.
- Tens toda a razão. - Respondeu Macro. - E pensava eu que trabalhar para aquele verme viscoso do Narciso é que era perigoso. Os deuses continuam a divertir-se à
nossa custa.
- Não sei bem quem é que se está a rir. Macro, estou a falar muito a sério. Enquanto o Querto estiver aqui no forte e continuar a desafiar a minha autoridade, estamos
em sério perigo. Se vamos resolver isto, tem que ser um passo de cada vez. Por agora, esperamos, até que os reforços apareçam. Quando cá estiverem, poderemos pôr
as coisas no seu devido lugar. E o Querto não terá outra opção senão aceitar essa situação. - E que mais? O que lá vai, lá vai? Deuses, ele tentou matar-te. - Mas
que prova temos disso? E sem provas, que posso eu fazer? Macro abriu a boca para protestar, mas acabou por franzir o sobrolho e abanar a cabeça.
- Ora porra. Já sei, outra vez os procedimentos regulamentares. Cato anuiu. - No estado em que estão as coisas, não posso acusar o Querto de nada. Nem do atentado
contra a minha pessoa, nem da morte suspeita do último prefeito. Além disso, há outros interesses em jogo nesta situação, muito para lá do Querto e dos seus métodos.
Lembra-se de eu lhe ter dito que o facto de nos encontrarmos aqui poderia ter alguma coisa a ver com o Pallas? Que é bem possível que ele tenha querido mandar-nos
para um sítio qualquer onde tivéssemos uma boa possibilidade de acabarmos mortos?
Macro acenou com a colher. - Achas mesmo que é difícil encontrar um lugar desse género neste canto do Império?
- Já não estamos no Império. Estamos bem para lá das fronteiras da província. Tão longe que não poderemos esperar auxílio se tivermos problemas. E nós estamos enterrados
em problemas. Se tentarmos usar atalhos para resolver a questão do Querto, pode ter a certeza de que o agente do Pallas aqui na Britânia tudo fará para nos acusar
de algum crime. Não é fácil assassinar um centurião com tanta antiguidade, ou aplicar-lhe um processo disciplinar sem evidências adequadas, e passar despercebido.
Uma coisa dessas, é certo e sabido que ia acabar por se voltar contra nós. Sobretudo se houver alguém à espreita de uma oportunidade para nos foder. Como eu disse,
temos que ter muito cuidado. Se tivermos mesmo que o fazer, o Querto terá que desaparecer de uma forma que possa ser inteiramente justificada. Está-me a perceber,
Macro?
O centurião suspirou pesadamente. - Cato, isto não me encaixa bem na cabeça. Pensava que tínhamos deixado este género de coisa bem longe. Pensava que estávamos de
volta às legiões e nos poderíamos dedicar à boa e velha vida militar, e deixar as macacadas deste género para quem as aprecia. - Abanou a cabeça, engoliu mais uma
colherada de comida, mas sem qualquer entusiasmo, e acabou por murmurar. - Digo-to eu, há aqui qualquer coisa que não joga bem.
Cato não pôde evitar um sorriso sardónico. - Ora, vá lá, não me diga que achou que isto ia mesmo ser assim tão simples?
Décimo abriu a porta da messe dos oficiais e espreitou, antes de se atrever a entrar. Dada a hora tardia, não havia ali ninguém, e na lareira ardia um lume baixo,
que ainda assim lançava um brilho quente sobre o modesto compartimento. Deixou escapar um suspiro de alívio por não se ver forçado a partilhar a sala com nenhum
dos oficiais da coorte trácia. Apressou-se a fechar novamente a porta e atravessou para a passagem que dava acesso às dispensas onde era guardada a comida para os
oficiais. Os mantimentos comuns ocupavam as prateleiras de um dos lados, e na outra parede havia outra série de prateleiras, mas estas guardavam as provisões privadas
de cada um dos oficiais. Também não fazia grande diferença, sorriu Décimo para si mesmo, estavam todas no mesmo estado lastimável. Pouca comida tinha sido conseguida
na aldeia, apenas umas rodelas de queijo de cabra, algumas ânforas da cerveja adocicada dos nativos, e os pães espalmados e duros que tinham um sabor tão pouco apetitoso
como o aspeto. Décimo retirou dois das prateleiras comuns e fez uma marca na tábua encerada que pendia de um prego junto à porta. Ouviu a porta abrir-se e fechar-se
logo a seguir, e engoliu em seco, nervoso; quando saiu da dispensa, avistou o vulto maciço do centurião Querto a tapar-lhe a passagem. O brilho da lareira criava
uma sombra ondulante que se projetava por trás dele, e ao mesmo tempo alumiava-lhe as feições escuras com um tom avermelhado, de forma que o homem parecia ainda
maior do que era quando visto à luz do dia. Os olhos do centurião fixaram-se no criado do prefeito, mas não disse nada.
Décimo aproximou-se hesitante, e apontou para a porta. - Senhor, se me dá licença... - Ainda não. - Ripostou Querto, num tom baixo mas semelhante a um trovão distante.
- Tenho fome. Vai-me buscar pão e queijo. E um jarro de cerveja.
- Senhor, ia levar isto ao quartel-general. - Já lá vais. - O prefeito e o centurião Macro estão à espera que eu regresse rapidamente, senhor.
- Assim que tivermos acabado aqui, podes ir. Agora, trata de avivar o fogo e de ir buscar a comida que te mandei.
Décimo hesitou um momento. O trácio deu sinais de irritação, e o criado virou-se e depositou os pães que levava sobre a mesa mais próxima. Dirigiu-se à lareira,
pegou nalguma lenha da pilha ao canto da sala e colocou-a sobre as brasas, empilhando-a, antes de pegar no abano e avivar as chamas cuidadosamente, até elas começarem
a consumir os pedaços de madeira mais próximos. Durante todo o tempo sentiu a presença do trácio, sentado no banco mais próximo, a observá-lo em silêncio.
- Está bom. - Considerou Querto. - Agora, a comida. Décimo voltou à dispensa, onde empilhou num prato de madeira os alimentos requeridos, e regressou à sala para
os apresentar ao centurião.
- Aqui está, senhor. E agora, se não há mais nada... - Há mais uma coisa, sim. - Querto partiu um canto do pão e mastigou-o com persistência, até engolir e voltar
a ter a boca suficientemente vazia para falar. - Chamas-te Décimo, não é?
Décimo acenou com a cabeça, pouco animado com o facto de o oficial trácio saber até o seu nome.
- O gato comeu-te a língua? - N-não, senhor. - Ainda bem. Ora bem, Décimo, talvez me possas ajudar. - Claro, senhor. - Estás contente, ao serviço do prefeito? Décimo
mordeu o lábio. - Contente, senhor? Não tinha pensado nisso assim. - Oh, tenho quase a certeza de que o fizeste. Acharia difícil de acreditar que estivesses feliz
e satisfeito num lugar tão longínquo e inóspito como Bruccium. Tens ar de ser um antigo soldado. O facto de coxeares sugere que foste passado à disponibilidade por
incapacidade física. Estou certo?
Décimo anuiu, e ao ver que o sobrolho do oficial trácio se franzia apressou-se a completar.
- Sim, senhor. Servi na Segunda Legião. Antes de encontrar o prefeito, vivia em Londinium, e trabalhava nas docas.
- E largaste todos os confortos da vida em Londinium para vir para aqui?
- O prefeito ofereceu-me uma boa maquia para o servir, senhor. Na altura pareceu-me uma boa ideia.
- Aposto que já não tens a mesma opinião. - Querto sorriu levemente. - Calculo que agora pensas é que não há prata que valha passar a vida num sítio deste género.
Décimo decidiu que o melhor seria levar a coisa para o engraçado, e tentar pôr-se a andar dali para fora o mais depressa possível.
- Tenho a certeza de que consigo imaginar prata suficiente para fazer qualquer coisa valer a pena, senhor.
Querto ripostou com toda a calma. - Sim, estou certo de que o conseguirias.
Décimo tossicou. - Se é tudo, senhor, será melhor que me vá. Não posso deixar o prefeito e o centurião Macro à espera.
- Antes de ires, Décimo, há uma coisa sobre a qual gostaria que pensasses. - Querto inclinou-se para a frente e fixou o olhar escuro e profundo no veterano. Décimo
sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias.
- Gostas de prata, e isso faz de ti um dos meus. E que tal se eu te oferecesse o dobro do que o prefeito te paga, para passares a trabalhar para mim?
- Senhor? - Vá lá, Décimo, não pensas com certeza que pão e cerveja são as únicas coisas que os Corvos Sangrentos trazem das aldeias que pilhamos. Há inúmeros veios
de prata nestas montanhas, aliás, essa é uma das razões que leva o Imperador a querer pôr as mãos na terra dos siluros. Já acumulámos uma pequena fortuna em prata.
Prometi a todos os homens e oficiais que sabem da coisa uma distribuição equitativa. Porque não hás de tu ter também direito a molhar o bico? Desde que sirvas os
meus propósitos. Vejo que estás tentado...Olha, vou dar-te uma ajuda. E que tal se eu te pagasse o triplo do que o prefeito te prometeu?
- Um milhar de sestércios, foi o que me disse o prefeito Cato. - Só isso? Para um homem tão capaz como tu? O prefeito é um unhas de fome. O que me dizes a três mil
sestércios?
Os olhos de Décimo arregalaram-se perante a perspetiva de tal fortuna nas suas mãos, e Querto aproveitou para o pressionar.
- Claro que podias guardar também o que ele te prometeu. Deve ser suficiente para teres um fim de vida sossegado. E o melhor é que tudo o que tens a fazer é continuar
a servir o prefeito. Quanto a mim, o que quero que faças é apenas manter os olhos e ouvidos bem abertos e vir-me dizer tudo o que ele disser acerca de mim ou da
minha coorte. É tudo, não há mais nada a fazer. O que me dizes, Décimo?
O criado manteve-se silencioso, embora o pensamento lhe corresse a toda a velocidade.
- Tenho que pensar nisso, senhor. Querto avaliou-o durante alguns momentos, antes de anuir. - Seja. Mas quero uma resposta tua amanhã sem falta. Só mais uma coisa,
que deves compreender. Se algum dia vier a saber que repetiste a alguém alguma parte desta conversa, corto-te a cabeça. Depressa perceberás que, neste forte, é muito
mais seguro e compensador ser-me leal. Percebido?
- Sim, senhor. - Décimo engoliu em seco, aterrado. - Podes ir então. Lembra-te bem, uma palavra a mais e a tua vida não valerá nada.
- Compreendo, senhor. - Décimo anuiu e saiu da messe, tentando manter um passo firme. Já do lado de fora, fechou a porta, a mão a tremer enquanto colocava a tranca
no seu lugar, e apressou-se a percorrer pela rua bem escura a curta distância que o separava do quartel-general.
24
Marídio tinha os braços amarrados por trás das costas quando foi arrastado para fora da cela e levado para a pequena sala na casa da guarda, na entrada principal
do forte. Tinham-lhe sido removidas todas as roupas à exceção das calças, e apresentava o rosto e o peito já bem marcados de pancadas. Um dos olhos estava tão inchado
que o homem já quase nada via dele. Cheirava à sua própria porcaria, e a pele exibia manchas de sujidade e de sangue seco.
- Ponham-no no gancho. - Ordenou Querto, e os seus homens arrastaram o guerreiro celta para debaixo da trave ao centro da divisão. De um dos lados da viga sobressaía
um gancho de ferro. Enquanto um dos trácios mantinha Marídio em posição, o outro foi buscar uma tábua com cerca de um metro e vinte de comprimento, entre cujas extremidades,
e nelas bem presa, se estendia um bocado de corda. Puxou os braços do prisioneiro para trás e meteu a ripa por baixo deles, até onde conseguiu, antes de passar a
corda pelo gancho e a ajustar de forma a que a tábua ficasse paralela ao solo. Marídio fez uma careta quando os seus ombros começaram a sentir a pressão.
Cato e Macro observavam os preparativos sentados num banco encostado a uma das paredes do compartimento. Macro estava sentado com as costas apoiadas à parede, as
pernas estendidas e os braços cruzados, aparentemente pouco comovido com o sofrimento do prisioneiro. Cato, pelo contrário, não se mostrava tão despreocupado. O
interrogatório ao prisioneiro era um mal necessário, pela parte que lhe tocava, e queria vê-lo terminado o mais depressa possível.
Um dos interrogadores trácios virou-se para Querto e anunciou. - Está pronto, senhor. Antes que Querto pudesse responder, Cato inclinou-se para a frente e lançou
uma reprimenda.
- Soldado, se queres evitar um castigo por insubordinação, será a mim que te dirigirás com comentários e informações.
O trácio olhou de relance para Querto, que assentiu discretamente. O homem pôs-se em sentido.
- Sim, senhor. O prisioneiro está pronto para ser interrogado, senhor. Cato retorquiu. - Muito bem. Podem começar. - Sim, senhor! O homem rodeou o prisioneiro para
se pôr à sua frente, enquanto o seu camarada se punha por trás dele e lhe aplicava um repentino e forte pontapé na parte de trás dos joelhos. Marídio escorregou,
e os ombros ficaram a suportar todo o peso do corpo. O prisioneiro soltou um esforçado grito de agonia e rolou a cabeça para trás, de olhos fechados, enquanto lutava
contra a dor. O homem à sua frente agachou-se ligeiramente, levou o punho atrás e descarregou-o sobre o ventre de Marídio, fazendo-o expelir o ar dos pulmões e deixando-o
a arquejar, aflito por ar. Seguiu-se outro golpe, e outro, num ritmo constante que lhe castigava o estômago e o peito, até que os gritos de dor deram lugar a gemidos
e grunhidos quase sumidos.
Cato debruçou-se para Macro e sussurrou. - Isto será realmente necessário? Outra vez? Macro confirmou. - Viste como foi com aquele siluro, o Turro. Educam-nos para
ser tesos, aqui na Britânia. E é por isso que temos que passar mais tempo a amolecê-los antes de chegarmos à parte das perguntas. Na maior parte dos casos cedem,
mas aqui o Marídio está a provar ser um verdadeiro desafio. Talvez o Querto e os seus rapazes consigam ter sucesso, já que o Severo não conseguiu. - Macro fez silêncio
por momentos, e ouviu-se um som bizarro: o estômago do centurião roncava. - Uma pena não ter tido tempo de acabar aquele último pão. O palerma do Décimo levou tempo
a ir buscá-lo. Tenho fome.
- Fome? - Espantou-se Cato. O espetáculo que decorria à sua frente não era de molde a despertar-lhe o apetite, mas a verdade é que nada se interpunha entre Macro
e a comida, refletiu.
As pancadas continuaram mais algum tempo, até que Querto se adiantou e fez sinal aos seus homens para se afastarem.
- Chega por agora, rapazes. Vamos deixá-lo recuperar o fôlego antes de continuarmos.
Os soldados trácios recuaram e sentaram-se a uma mesa ao canto da sala, enquanto Querto puxava um banco e se sentava à frente do prisioneiro. Por momentos imperou
o silêncio, interrompido apenas pela respiração entrecortada de Marídio, que se sobrepunha ao gemido do vento em redor das paredes da casa da guarda.
Cato levantou-se, atravessou a sala e colocou-se de pé ao lado de Querto. Olhou para o cimo da cabeça do prisioneiro por momentos, antes de começar.
- Sei que entendes o latim. Tal como o teu irmão. Ambos o falam fluentemente. Devem ter tido um bom professor.
- O nosso professor foi um prisioneiro romano... Executámo-lo no preciso momento em que percebemos que já podíamos... passar sem ele.
- Porque é que escolheram aprender a nossa língua? Marídio respirou fundo e levantou a cabeça, o único olho que se mantinha aberto rebrilhava de malevolência.
- O nosso pai ensinou-nos que o primeiro passo para derrotarmos um inimigo é compreendê-lo. E já sei tudo aquilo que preciso de saber sobre Roma.
- Oh? - Cato sorriu sem vontade. - E então, o que sabes tu sobre nós?
Marídio passou a língua pelos lábios secos e pensou um momento, antes de responder.
- Que têm um apetite insaciável pela terra, pela propriedade e pela liberdade dos outros. Devastam a terra e deixam um ermo a que chamam civilização. Grande civilização!
- Fungou com desprezo. - São um povo ganancioso. São como uma enorme e gorda sanguessuga que suga toda a seiva deste mundo. Os vossos soldados matam, violam, e queimam
tudo o que lhes surge pela frente. Como esta escumalha trácia a quem pagam para executar o trabalho mais sujo. Não são guerreiros, nem sequer homens, não passam
de vermes.
Querto inclinou-se ligeiramente para a frente e, sem qualquer aviso, deu-lhe uma poderosa bofetada. Marídio grunhiu, piscou os olhos e abanou a cabeça.
- Tento nessa língua, - avisou Querto. - Se não queres que os meus rapazes tratem de a separar dessa boca porca.
- Vai-te foder... Querto cerrou o punho, mas Cato interveio antes que ele pudesse atingir o prisioneiro.
- Não. Chega, por agora. Com toda a calma, devolveu ao prisioneiro o olhar furibundo, e voltou a interpelá-lo.
- Consideras tu que nós cobiçamos as terras dos outros; mas diz-me, Marídio, em que difere essa cobiça das guerras que tu, o teu irmão e o teu pai travaram para
conquistar as tribos vizinhas dos catuvelaunos? Corrige-me se estiver errado, mas a tua tribo esmagou os trinobantes, e fez sua a que antes era a capital dos derrotados.
Também se apropriaram de terras dos catíavos, dos atrébates, dos dobunos e dos coritanos. - Cato interrompeu-se, e encolheu os ombros. - Dá-me ideia que não há assim
tão grande diferença entre as ambições dos catuvelaunos e as de Roma, a não ser que o meu povo é bastante mais eficaz na sua prossecução.
Marídio curvou o lábio e escarrou na direção da ponta das botas de Cato.
- Vai-te foder! Cato olhou para a bota. - Já agora, acontece também que somos mais refinados e mais imaginativos no uso que fazemos da linguagem, incluindo na parte
que diz respeito aos insultos, ao que vejo.
- Caralho, mostra a esse cabrão como é! - Juntou Macro, para colorir e dar ênfase à conclusão de Cato.
Cato reprimiu a leve irritação que a interrupção lhe causou, e voltou a dar toda a atenção ao prisioneiro.
- Bom, agora que nos livrámos da pretensão de que existe algum tipo de superioridade moral neste conflito, fica apenas a velha questão: quem sairá vencedor? E por
esta altura já deves ter percebido que Roma triunfará. Temos mais e melhores homens, e mais recursos do que Carátaco alguma vez terá. A única coisa que lhe resta
é adiar a derrota. E cada morte, seja de que lado for, que ocorra até que ele aceite render-se, ficará a manchar-lhe as mãos. Não nos pode derrotar, apenas conseguirá
prolongar o sofrimento e a destruição, até ao momento inevitável da derrota. Deves compreender isto.
Marídio encolheu os ombros. - Antes sermos derrotados e morrermos como guerreiros do que vivermos como escravos.
- Escravos? Não estou a ver. Tu e os teus irmãos terão precisamente o mesmo tratamento que o rei Cogidubno, que foi suficientemente sábio para se aliar a nós desde
o primeiro momento.
- Aquele cobarde balofo? - Desdenhou Marídio. - Desgraçou-se para sempre, a ele, à sua linhagem e a todo o seu povo, aos olhos de qualquer outra tribo da Britânia.
- Qualquer outra? Não me parece. Os atrébates são apenas uma da dúzia de tribos que já concluíram tratados de paz com Roma.
- Que sejam para sempre malditos, todos eles! - Gritou o celta. Durante um momento, ninguém falou. Macro bocejou. - Essa conversa está muito interessante, senhor,
mas não nos está a levar a lado nenhum. Esse tipo é tão louco como os outros. Vamos é descobrir o que queremos e acabar com isto.
Cato ergueu uma mão para pedir silêncio ao amigo. - Marídio, dou-te uma última oportunidade, antes que o interrogatório prossiga. Embora admire a tua coragem e o
teu orgulho, eles só contribuem para prolongar o sofrimento do teu povo.
O prisioneiro soltou uma gargalhada seca. - O que é que é tão engraçado? - Eles não são o meu povo. São os siluros e os ordovicos. Que me interessa o seu sofrimento?
- Olha que bonito. - Comentou Macro. - Ainda assim, são o povo. - Prosseguiu Cato. - Merecem mais consideração da parte daqueles que os governam. Merecem a paz.
- A paz romana? Cato ignorou a provocação. - Paz. É o que lhes ofereceremos, assim que Carátaco for derrotado. Preciso de saber a localização do seu exército, e
de quantos homens dispõe. Pouco me importa a forma como vou obter essa informação, apenas que a consiga.
O prisioneiro olhou-o com raiva e voltou a lançar palavras de desafio. - Vai-te foder. Macro suspirou. - O quê, outra vez? Com uma expressão de cansaço no rosto,
Cato pôs-se de lado e acenou a Querto.
- Os teus homens podem prosseguir. O trácio afastou o banco onde se sentara, e chamou os seus homens. O soldado a quem cabia espancar Marídio pôs-se de pé e avançou
para a frente do prisioneiro, enquanto fazia estalar os nós dos dedos e remexia o pescoço, como se fosse um lutador a preparar-se para mais um combate, pensou Cato.
Fincou as botas no pavimento e Marídio cerrou as mandíbulas com força e semicerrou os olhos, a preparar-se para os murros que em breve voltariam a cair-lhe em cima.
De súbito, a porta da casa da guarda abriu-se, e todos os olhos se viraram para lá; o oficial de serviço, um dos optios de Severo, entrou e saudou Cato.
- Senhor, peço licença para informar que uma das sentinelas afirma ter visto movimento nas proximidades do forte.
- Movimento? - Cato franziu o sobrolho. - O que é que isso quer dizer? Homem, sê específico.
O optio era um jovem, apenas um ou dois anos mais velho do que Cato fora quando tivera a mesma patente. A ansiedade que sentia era evidente, enquanto abria a boca
e tentava organizar os pensamentos.
- Optio, apresenta um relatório claro. - Cato obrigou-se a falar em tom calmo. - O que é que a sentinela viu, exatamente?
- Diz que há homens no terreno à frente do forte. - Viu-os? Quantos são?
- Ouviu vozes, senhor. E cavalos. Nessa altura mandou outro homem chamar-me.
- E onde andavas tu? O optio inspirou rapidamente. - Estava na latrina, senhor. Cato tentou amainar a irritação crescente. Não lhe ficavam dúvidas de que o optio
estivera na conversa com outros camaradas, da forma que muitos homens escolhiam: no ambiente aconchegado e camaradesco do bloco das latrinas. Era muito mais confortável
deixar passar o turno a conversar nas latrinas, quentes e secas, do que passar a noite a patrulhar as muralhas do forte, varridas pelo vento. Mas isso não era desculpa.
O optio estava de serviço. Se precisasse de urinar, podia perfeitamente fazê-lo na base da rampa interna. Se precisasse de defecar, teria que aguentar até acabar
o seu turno.
- Mais tarde trataremos desse caso. - Ameaçou Cato, sem mais. - Quando chegaste à muralha, tu, viste ou ouviste alguma coisa? - Eu-eu não estou certo, senhor. A
paciência de Macro esgotou-se. - Ou viste ou não viste. Qual foi? - Pareceu-me ouvir vozes, senhor. - O optio olhou de Cato para Macro, e outra vez para o prefeito.
Querto soltou uma risada. - O cretino está a imaginar coisas. O rio corre bem cheio. Já vi muitos homens convencidos de que o som da corrente a passar pelas rochas
era outra coisa, e que depois se deixavam levar pela imaginação. Não se passa nada. Optio, volta lá para o teu posto, e vê se metes a sentinela na ordem. Talvez
uma semana a limpar a merda das latrinas o cure dos nervos.
- Espera. - Interrompeu Cato. - Centurião, pareces muito seguro de ti.
- E porque não o estaria? Os siluros estão demasiado acagaçados para se atreverem a aparecer neste vale. Não houve sinais deles nas redondezas do forte nos últimos
meses. O homem está assustado com sombras e fantasmas. Julgava que os legionários eram feitos de material mais rijo.
Macro saltou de imediato. - Não há melhor combatente que um legionário. Farias bem em lembrar-te disso, trácio.
- Talvez, mas quanto a sentinelas, há-as bem melhores. Optio, diz ao teu homem para se recompor e deixar de lado a cobardia.
- Essa acusação é inaceitável. - Rosnou Macro, avançando para Querto, enquanto deixava a mão descair para o punho da espada. - Retira o que disseste, ou juro que
te enfio os dentes pela goela abaixo e que vais passar o mês todo a cagá-los.
Querto levantou-se e encarou Macro com um sorriso divertido a ornar-lhe os lábios. Nos olhos, porém, mostrava uma frieza mortal que fez Cato temer pela vida do amigo.
Interpôs-se entre os dois antes que o confronto se tornasse realmente sério, e dirigiu-se ao optio, ainda junto à porta e nervoso.
- Optio, este forte é o posto mais avançado que possuímos em território inimigo. Isso significa que não podemos arriscar. Se tu ou algum dos teus homens pensarem
que pode existir alguma ameaça, devem informar-me de imediato. Deste indicações para a centúria do Severo ser chamada?
O oficial subalterno abanou a cabeça. - Não, senhor. Cato sentiu a exasperação a crescer-lhe no peito. Não valia a pena estar a castigar o optio naquela ocasião.
Isso só provocaria mais atrasos.
- Então vai tratar disso. Quero o Severo e os seus homens na muralha, imediatamente. Mas diz-lhe para o fazer com discrição. Vai.
O optio apressou-se a sair, aliviado por fugir ao olhar severo do comandante. Cato virou-se para os outros oficiais na sala.
- Provavelmente não é nada, como dizes, Querto, mas não quero correr nenhum risco relativamente à segurança do forte. Vamos lá ver por nós mesmos o que se passa.
- Cato fez uma pausa e indicou o prisioneiro, ainda pendurado pelos braços do gancho na viga. - Vocês, homens, conduzam o prisioneiro à sua cela.
No exterior, o forte estava calado e calmo, e só a brisa gélida se esgueirava por entre os edifícios. O céu estava quase completamente desanuviado, e salpicado de
estrelas. Um crescente lunar mal se via, por trás de um farrapo de nuvem prateada, e não dava grande claridade à paisagem. Cato estacou para escutar, mas não ouviu
nenhum alarido de tropas em movimento, nem qualquer sinal de uma ameaça externa. Permitiu-se algum alívio, enquanto conduzia os outros dois oficiais até ao torreão
sobre a entrada principal do forte, que abria para a descida que levava à parada, mais abaixo, na planura do vale. Obrigou-se a caminhar em passo normal, de forma
a demonstrar ao trácio o seu sangue-frio. Estavam a chegar ao portão quando ouviram Severo a dar ordens em voz baixa aos seus homens, e o ruído surdo das botas dos
legionários que deixavam as casernas e se dirigiam aos seus postos na muralha. A casa da guarda era um edifício de madeira e turfa, e havia um braseiro ali perto
que fornecia luz e calor aos homens que se encontravam de serviço. Os oficiais entraram e subiram a escada que levava à plataforma sobre o portão. O parapeito era
formado por sólidos toros de pinheiro, e a sentinela de serviço virou-se para os oficiais e pôs-se em sentido, baixando o dardo.
- Foste tu a dizer que avistaste movimento? - Indagou Cato, em tom brusco.
- Sim, senhor. - Apresenta o teu relatório, então. O homem anuiu, virou-se para o parapeito e encostou o dardo ao ombro enquanto gesticulava na direção das trevas
que dominavam a paisagem para lá do fosso defensivo.
- Ali em baixo, senhor. Ouvi vozes vindas da direção da parada, e vi alguém a mexer-se.
- Viste alguém? Tens a certeza? A sentinela hesitou brevemente, mas depois confirmou sem reservas. - Sim, senhor. Não tenho dúvidas de que era um homem, agachado
no meio das ervas, pouco para lá do fosso.
Querto fungou, dando pouca importância ao assunto, enquanto se encostava ao corrimão de madeira que percorria o cimo do parapeito e perscrutava a escuridão.
- Não vejo nem oiço nada... Há quanto tempo é que pensaste que tinhas visto alguma coisa?
- Mesmo antes de chamar o optio, senhor. - E desde então, nada? - Não, senhor. - Admitiu o legionário. Querto soltou um ligeiro assobio e virou-se para o prefeito.
À trémula luz das estrelas, Cato percebeu perfeitamente o desdém no rosto do trácio.
- Bem, parece que eu sempre tinha razão... senhor. Cato não ripostou; adiantou-se até ao parapeito e esforçou os olhos e os ouvidos, enquanto tentava lobrigar a
parada lá em baixo. Para lá do fosso, o terreno parecia tornar-se uma massa escura indistinta; mal conseguia descortinar os limites das pilhas de feno, e apenas
porque sabia que elas lá estavam. Macro pôs-se ao seu lado e manteve-se em silêncio enquanto também ele tentava perceber qualquer sinal de perigo.
- Senhor, o que acha? Cato olhou em redor ao escutar os sons dos legionários a tomarem posições nas muralhas de ambos os lados do portão. Apesar de lhes ter sido
ordenado que se dispusessem sem fazer barulho, os pesados passos das botas cardadas no passadiço de madeira e o retinir metálico do equipamento pareciam estrondos
na calma da noite. Cato sentia-se dividido entre a necessidade de cautela e o receio de fazer figura de medroso à frente de Querto, por ter disposto os homens de
Severo em posições de combate em resultado do que podia ser apenas o capricho de uma sentinela. Deitou uma nova olhadela ao legionário, e apercebeu-se das suas feições
determinadas. Devia ter uns trinta e tal anos de idade, e mostrava o rosto austero e vincado que lhe corria nas veias. - Já vi tudo o que precisava de ver deste
forte, destes homens, dos oficiais e da maneira como tens travado as tuas campanhas contra o inimigo. Não é esta a forma de Roma atuar. Não é esta a forma do exército
romano agir. Não é a minha forma de fazer as coisas. Sou eu quem está no comando aqui, e daqui em diante as minhas ordens serão obedecidas sem questões. Se voltares
a pisar o risco, centurião Querto, mandarei deter-te e acusar-te-ei perante a hierarquia. Compreendes o que te digo?
O trácio pôs as mãos na cintura. - Até que enfim... perguntava-me quanto tempo ia levar até chegarmos a este ponto. Começava a duvidar de que tivesse espinha. Tal
como aquele idiota do prefeito Albino. Agora, vou dizer uma coisa. Conheço o seu tipo. Jovens promissores que ficaram debaixo do olho de um legado ou de um governador,
e que foram promovidos a patentes muito acima do que merecem. Eu já combatia quando ainda vivia pendurado da teta da sua mãe. Claro que já teve a sua quota de campanhas
e batalhas, mas a cáfila de oficiais romanos emproados em que se inclui luta há quase dez anos para submeter a Britânia. E o inimigo continua lá fora, a rir-se de
vocês. - Inclinou-se para a frente e bateu no próprio peito. - Gozam convosco, mas a mim temem-me. Eu sei como quebrar o espírito guerreiro desta gente. Os vossos
métodos falharam. Os meus estão a resultar. E faria bem melhor em não meter o nariz onde não é chamado e deixar o comando da guarnição a quem é capaz de o exercer,
eu... senhor. - Pronunciou a última palavra com mal-disfarçada ironia e despeito.
Cato enfrentou-lhe o olhar sem recuar. - Os teus métodos? Não vejo qualquer método no que andas aqui a fazer. As cabeças em estacas, os corpos empalados, as aldeias
queimadas, as mulheres e crianças chacinadas. Não há nisso qualquer método. Apenas a crueldade sanguinária de um bárbaro.
- Um bárbaro que conhece o inimigo tão bem como os seus próprios homens.
- Oh? Querto calou-se por momentos, antes de prosseguir em tom neutro. - Chamou-me um bárbaro... Bem, eu aprendi os meus métodos nas mãos do inimigo. Uma gente a
quem não falta crueldade. E se a crueldade é a única linguagem que entendem, resolvi devolver-lhes o favor que me fizeram, e com juros. E agora é a vontade deles
que vacila. Prefeito, eu sei muito bem o que estou a fazer. E posso fazê-lo consigo ou sem si. Compreenda isso, e talvez consiga sobreviver para um dia regressar
a Roma.
Antes que Cato pudesse responder, a sentinela esticou o braço e gritou. - Senhor! Lá em baixo! Cato virou-se e seguiu com o olhar a direção indicada pelo veterano.
Só ao fim de um momento é que os seus olhos captaram o movimento, e nessa altura avistou uma figura que saía da escuridão, um homem a cavalo que avançava lenta mas
deliberadamente pelo terreno irregular até chegar à alameda das cabeças e tomar então pela estrada que conduzia ao portão. Qualquer satisfação que Cato pudesse sentir
pela má avaliação que Querto fizera ao desempenho da sentinela evaporou-se rapidamente quando localizou o cavaleiro e ponderou a sua presença. Por fim, quando o
homem já estava a cerca de trinta metros do fosso, a Lua rompeu por entre o banco de nuvens que a escondia e banhou a paisagem noturna numa luz cinzenta e pálida.
Foi o suficiente para perceber alguns detalhes no vulto do cavaleiro, bem como notar mais homens a percorrerem a parada. Cato sentiu o coração dar um salto ao avistá-los.
Mas a sua atenção voltou a focar-se no cavaleiro, já que este deteve o cavalo e levou qualquer coisa aos lábios. A nota estridente de um corno de guerra rasgou a
calma da noite. A nota foi repetida antes de o homem voltar a avançar, depois de ter alertado a guarnição e ter assim mostrado a sua intenção de parlamentar e não
de lançar um ataque de surpresa.
Querto riu e virou-se para a sentinela. - Assim que ele estiver ao teu alcance, tenta acertar-lhe com o dardo. - Não. - Interveio Cato. - Ele está a jogar pelas
regras, e o mesmo faremos nós. Nem penses em utilizar o dardo.
A sentinela voltou a apoiar o dardo no chão e virou a sua atenção para o cavaleiro.
- Regras? - Querto respirou fundo, agastado. Cato ignorou-o, e passou o olhar sobre todo o forte. A guarnição estava toda desperta, e havia luz em todas as portas
de casernas, iluminando homens que saíam à pressa enquanto ajustavam o equipamento, a caminho dos seus postos na muralha. Chamas surgiram quando os homens começaram
a acender os pequenos braseiros na base das torres, a prepararem-se para atear os molhos de madeira embebida em pez que seriam lançados para o exterior, para alumiar
as proximidades do forte e impedir assaltos a coberto das trevas.
- Vocês aí, no forte! - Chamou uma voz, e Cato fixou o olhar no cavaleiro, que se acercava da ponte levadiça coberta de terra que atravessava o fosso.
Cato levou a mão em concha à boca. - Já te aproximaste o suficiente! Para aí mesmo! O cavaleiro obedeceu e refreou o cavalo, mantendo-se empertigado na sela, contemplando
as silhuetas escuras dos homens na plataforma sobre o portão, negras contra o pano de fundo estrelado. Por trás dele, e a um nível mais baixo, acendeu-se uma tocha
na área da parada. Depois dela, outras tochas surgiram, e Cato avistou uma linha de homens que se estendia pelo terreno à frente do forte.
- Quem és, e o que queres? - Indagou Cato. Houve uma pausa, até que o cavaleiro respondeu numa voz profunda que se fez ouvir claramente por toda a muralha, de um
lado e de outro do portão.
- Sou o rei Carátaco, chefe de guerra das tribos livres da Britânia. Cato sentiu o sangue a gelar. Debruçou-se sobre o parapeito, para tentar ver melhor o cavaleiro.
À luz da tocha, a face do homem era bem visível, de forma a provar a veracidade das suas palavras.
- Vim reclamar aquilo que é meu. - Prosseguiu, em latim fluente. - Têm o meu irmão em vosso poder. Exijo que mo entreguem, se ainda estiver vivo.
A mente de Cato trabalhava a toda a velocidade, face à surpresa e às implicações que tinha para toda a campanha o facto de o líder inimigo estar ali mesmo à sua
frente. Se Carátaco soubera da captura do irmão e se tinha precipitado para o sul para negociar a sua libertação, então o exército inimigo estava sem chefe. E isso
oferecia ao governador Ostório uma excelente oportunidade para atacar. Ouviu a madeira da escada a ranger; era Macro que regressava à plataforma, ofegante devido
às corridas que fizera pelo campo.
- Ouviu? - Quis saber Cato. - Sim. Gaita, que o sacana tem mesmo uns grandes pulmões. Duvido que haja um homem neste forte que ainda não saiba que o temos aqui mesmo
à porta. - Macro espreitou para lá da balaustrada e abanou a cabeça, sem esconder alguma admiração. - Seja lá o que se diga dele, o rapaz tem-nos no sítio.
- Devíamos matá-lo. Agora. - Rosnou Querto. - Antes que o idiota se afaste.
Macro sugou o ar pelos dentes. - Ele tem razão. Matá-lo seria o melhor. - Não. - Ripostou Cato, sem dar azo a mais debate. O comandante inimigo voltou a interpelá-los.
- Perguntei se tinham o meu irmão Marídio. Centurião Querto, aparece e responde-me!
Antes que o trácio pudesse abrir a boca, Cato avançou até ao parapeito.
- Sou eu o comandante de Bruccium. Sou o prefeito da coorte trácia. - Prefeito? O que aconteceu ao pulha do Querto? Cato respondeu no tom mais alto que conseguiu,
para que toda a guarnição o ouvisse.
- Ele é meu subordinado. - E quem és tu, romano? Como te chamas? Não parecia haver qualquer vantagem em evitar a resposta, e Cato respirou fundo antes de anunciar.
- Sou o prefeito Quinto Licínio Cato. - Prefeito Cato... - Deu-se uma breve pausa. - O meu irmão ainda está vivo?
- Está. - Ótimo. Nesse caso, exijo a sua libertação. - Exige? - Macro soltou uma gargalhada seca e rápida. - O descaramento do sacripanta. Senhor, diga-lhe para
ir levar no dele.
- Mate-o. - Murmurou Querto. - Antes que seja tarde demais. Cato ignorou ambos. - O Marídio é meu prisioneiro. Por que havia eu de o libertar? Carátaco deixou passar
um momento antes de responder. - Porque, se não o fizeres, tomarei este forte, e juro por todos os deuses da minha tribo que te matarei, e a todos os homens que
comandas. Tal como vocês têm chacinado os meus aliados. Todos os homens que forem capturados com vida serão empalados sobre as muralhas de Bruccium, e as vossas
cabeças adornarão a estrada daqui até Gobannium... Liberta Marídio, e tens a minha palavra de que a guarnição será poupada, na condição de que abandone o forte e
regresse a Glevum.
- Está a gozar. - Adiantou Macro em voz baixa. - Como é que ele tenciona tomar o forte? Para fazer isso precisava de um exército.
Um pressentimento gelado apertou o estômago de Cato enquanto retorquia ao inimigo.
- Não abandonarei o forte, e também não libertarei Marídio, nem qualquer outro prisioneiro.
Carátaco voltou a deixar passar um momento antes de ripostar. - Assim seja. Fez o cavalo rodar e lançou um brado para o vale na sua língua nativa, que fez com que
os homens com as tochas avançassem em corrida.
Macro esticou o pescoço e esforçou a vista. - O que é que eles pretendem? - Parece-me que se dirigem às reservas de feno. As tochas empunhadas pelos nativos lançavam
uma luz avermelhada sobre os montes de feno enquanto eles se aproximavam; depois, uma primeira tocha descreveu um arco brilhante no ar antes de tombar sobre uma
das pilhas. Outras tochas foram lançadas sobre outros montes, e as chamas irromperam em todos eles, espalhando-se velozmente até que o fogo crepitava em vários pontos,
lançando um lençol de luz pelo cenário em redor.
E revelando assim as densas fileiras de guerreiros que se estendiam aos milhares pela largura do vale, todos em silêncio.
- Pelos deuses... - Murmurou a sentinela, contemplando a hoste que se erguia contra o posto romano.
Cato e os outros oficiais não produziram quaisquer comentários enquanto avaliavam o exército inimigo, pensativos. A possibilidade de Ostório aproveitar a situação,
que aventara para si mesmo, regressou à mente de Cato para o assombrar, e ele sorriu amargamente perante o seu próprio erro de avaliação. O comandante inimigo trouxera
com ele todo o seu exército.
- Romanos! - Gritou Carátaco. - Veem? Tenho homens mais do que suficientes para esmagar Bruccium, uma e outra vez, e outra vez ainda. E assim farei. A menos que
me entreguem Marídio e os outros, e deponham as vossas armas. Têm até ao nascer do dia para decidir.
Fez o cavalo rodopiar e tomou de novo a estrada por entre as filas de cabeças em decomposição. Atrás dele, a guarnição do forte contemplava a silenciosa horda de
guerreiros, banhados pelo brilho sanguíneo das pilhas de feno a arder.
25
Depois de Carátaco se afastar para se juntar aos seus homens, Cato ficou a ver o feno a arder, e a avaliar a disposição do exército que esperava ao longe; todavia,
não parecia haver sinais de estarem a decorrer preparativos para um assalto imediato. Deu ordens para que a guarnição descansasse da prontidão para o combate, mas
que Severo e a sua centúria assumissem o primeiro turno de vigilância. Ao resto dos homens foi permitido descansar na base da rampa interna, para o caso de serem
necessários de repente.
Dadas as ordens, Cato convocou todos os oficiais superiores para uma reunião no quartel-general. Ninguém tinha grande disposição para conversar, enquanto esperavam
pela chegada dos mais atrasados. Macro dissera a Décimo para trazer comida e vinho diluído, e tinha-se acomodado num banco junto a uma parede do salão, enquanto
Querto e os seus oficiais se sentavam do outro lado. Cato andava para a frente e para trás, lentamente, entre os dois grupos, enquanto esperava por Severo e o outro
centurião, Petílio. Os dois centuriões da coorte de legionários tinham ido dispor os seus homens na muralha frontal, a que estava mais exposta. Os trácios estavam
colocados nas outras três faces do forte, que estavam de alguma forma protegidas pelo rio e pelas íngremes fragas que o ladeavam e subiam até à beira do montículo
onde se situava a fortaleza.
Décimo apareceu com um pequeno caldeirão de guisado de cevada e carneiro, e com tigelas e colheres, e ainda dois jarros e canecas de cerâmica para os oficiais. Enquanto
ele dispunha as vitualhas na mesa, chegaram os dois centuriões dos legionários, que se foram sentar junto a Macro. Cato acenou ao criado.
- Serve a comida, e depois vai aos armazéns buscar equipamento e junta-te à centúria do Severo na muralha.
Depois de Décimo ter executado as suas tarefas e deixar a sala, Cato dirigiu-se aos seus oficiais, enquanto estes comiam.
- Apreciem bem essa refeição. Calculo que nos próximos dias vamos ter muito poucas oportunidades para comer normalmente. Creio que já todos estarão a par da situação.
Ao que parece, fomos nós a descobrir o paradeiro do exército que o governador Ostório tem tentado fixar no terreno nestes dois últimos anos. Se vamos ser capazes
de sobreviver para lhe poder relatar tal facto, essa é outra história. - Cato fez uma pausa, mas não notou qualquer reação à sua tentativa de aligeirar as sombrias
perspetivas com que se defrontavam. Respirou fundo, abatido, e prosseguiu o discurso. - O Carátaco exigiu que lhe entregássemos o forte e os prisioneiros. Claro
que só um deles lhe interessa verdadeiramente, o seu irmão, Marídio. Se acedermos à sua exigência, dá-nos a sua palavra que nos será permitido regressar a Glevum
sem qualquer dano.
- A sua palavra? - Interrompeu Querto. - Nada vale. Ele é como todos os outros selvagens que vivem nestas montanhas. Não conhece o significado da palavra honra.
Não podemos confiar nele.
Cato assentiu. - E mesmo que pudéssemos, duvido seriamente que a palavra de Carátaco fosse suficiente para amainar os instintos dos siluros que o seguem. Depois
do belo trabalho que vocês têm efetuado nos vales circundantes a Bruccium, estarão sedentos de vingança contra ti, os teus homens, e todos os outros que estão neste
forte. Diga o que disser o homem que os lidera, eles não se darão por satisfeitos até que todos os soldados romanos estejam mortos.
- Cá se fazem, cá se pagam. - Comentou Macro. Ergueu o copo num brinde a Querto. - Bela trapalhada em que nos meteste, meu amigo.
O trácio desdenhou do gesto de Macro, e um dos seus oficiais fez menção de se levantar, a mão já a dirigir-se para a espada, até que Querto abriu os braços e o empurrou
de volta ao banco. Instalou-se um silêncio tenso mas breve, interrompido pelo centurião Severo.
- E que tal se lhes oferecêssemos o Querto, com a contrapartida de o resto da guarnição poder deixar o vale em paz?
Querto lançou-lhe um olhar assassino. - Cobarde. Severo abanou a cabeça e ripostou em tom furibundo. - É por tua causa e pelo teu comportamento de bárbaro que estamos
metidos nesta situação de merda. É a ti que o inimigo quer. Como diz o Macro, a culpa é tua, e agora tens a oportunidade de colher o que semeaste.
Macro virou-se para ele. - Severo, aguenta aí. Estava a brincar. Nem pensar em entregar um dos nossos aos siluros, para esses cães o estraçalharem. Nem mesmo ele.
Severo olhou em volta, e acabou por fixar o olhar em Cato. - Senhor, porque é que havemos de dar as nossas vidas por ele? - Porque somos oficiais romanos. Se sacrificássemos
o Querto ao inimigo, apenas conseguiríamos recolher uma mancha indelével na nossa honra. Não serias só tu a incorrer nela. Seria uma nódoa na honra desta legião,
e eterna. Não permitirei que tal ocorra. De qualquer forma, já tomei a minha decisão. Vamos defender o forte. É o nosso dever. E, centurião Severo, é também a única
esperança de sobrevivência que nos resta.
O centurião abriu a boca para protestar, mas apercebeu-se da expressão fria que o rosto do comandante assumira, e dos olhares de desprezo e cólera que os outros
oficiais lhe deitavam, e deixou-se tombar no banco, recostando-se contra a parede.
- Nesse caso, é como se já estivéssemos todos mortos. - Murmurou, desalentado.
- Ainda não, - ripostou Cato. - Primeiro, o Carátaco e os seus guerreiros terão que entrar no forte. O nosso trabalho é garantir que os mantemos lá fora. Bruccium
ocupa uma soberba posição. Só há uma frente em que nos podem atacar com facilidade, e apesar da sua enorme vantagem em número, não conseguirão lançar toda essa força
contra nós ao mesmo tempo. Enquanto tivermos homens suficientes para proteger o portão principal e a muralha circundante, poderemos manter o controlo do forte.
- E quanto tempo acha que o poderemos fazer, senhor? - O tempo que for necessário, - retorquiu Cato, - até que cheguem reforços, ou até que o inimigo abandone a
pretensão de tomar o forte.
Severo deu uma gargalhada seca. - Não seremos socorridos. O forte está longe demais para receber auxílio.
- Não é verdade. - Contrariou Macro. - Assim que houver claridade, podemos acender a fogueira do sinal. Se o tempo estiver bom, o fumo será avistado em Gobannium.
Lançarão o alarme, e o legado Quintato enviará uma coluna para nos socorrer. Verás.
- Não podemos usar o fogo. - Contrariou Cato. Macro franziu o sobrolho. - Porquê? - Pense bem. Pelo que sabe o Quintato, o inimigo está a norte, a vários dias de
marcha, perto de Ostório e do seu exército. Quando o nosso sinal for avistado e ele for informado, enviará uma coluna, por certo, a qual virá cair numa perfeita
armadilha. O Carátaco escolherá com mestria o terreno, e tem ao seu dispor homens mais do que suficientes para aniquilar um destacamento da Décima Quarta. - Cato
encolheu os ombros. - Não podemos acender um fogo que acabaria por conduzir os nossos camaradas à morte. Melhor será combater até ao fim, ou arranjar uma forma de
fazer chegar uma mensagem ao legado antes dele enviar qualquer socorro. - Ao concluir, Cato sentiu de repente um arrepio frio que o fez reagir horrorizado. - Merda...
Macro arregalou um olho, ansioso.
- O que se passa, senhor? - A coluna de reforços. Já devem vir a caminho de Bruccium. Se chegarem enquanto o Carátaco aqui estiver...
Todos os homens na sala compreenderam o perigo; e foi Macro o primeiro a reagir.
- Se avistarem o fumo do sinal, perceberão que estamos a ser atacados, e voltarão para trás.
- Isso é se o céu permanecer limpo e eles conseguirem vê-lo. Macro mordeu o lábio. - Seja como for, senhor, temos que os avisar. E temos que enviar uma mensagem
ao legado.
- Como? - Inquiriu Cato. - Suspeito que a esta hora o Carátaco já tenha fechado o cerco. Seria preciso um homem de grande bravura para se arriscar a tentar encontrar
uma passagem por entre as linhas inimigas. Não serei eu a enviar um homem para a morte certa.
- Mesmo que ele se ofereça? - Indagou Severo, com um toque de esperança na voz.
- Mesmo que alguém o designe voluntário. Macro abanou a cabeça. - Senhor, é um risco que temos mesmo que correr. Não apenas para salvar os nossos pescoços. O Ostório
tem que ficar a saber qual a situação corrente. Se souber que o Carátaco está aqui com todo o seu exército, pode marchar para Bruccium imediatamente. É a oportunidade
de que ele tem estado à espera. A ocasião de apanhar e destruir o inimigo de uma vez por todas.
- Sei muito bem disso, - retorquiu Cato, irritado. - Porém, levaria vários dias a fazer chegar uma mensagem ao governador, mesmo que houvesse um homem capaz de passar
pelo inimigo e chegar a Glevum. Nessa altura, o mais provável é que o cerco esteja terminado, de uma forma ou de outra. - Cato passeou o olhar pelo salão. - Senhores,
dei-vos o panorama que enfrentamos, da forma mais completa que me foi possível. A verdade nua e crua é que teremos que aguentar a nossa posição, e prender aqui o
Carátaco tanto tempo quanto pudermos.
- E quanto ao Marídio? - Perguntou Querto. - O que fazemos com ele?
- Vamos tentar aproveitá-lo. Quando chegar a alvorada, será levado até ao portão e exibido perante o Carátaco. Avisá-lo-ei de que cortaremos o pescoço ao irmão no
preciso instante em que ele lançar um assalto contra o forte.
Macro olhou para o amigo, atónito. - Senhor, seria capaz disso?
- Da ameaça, sim, claro. Matá-lo, não. É demasiado importante para isso. O governador Ostório há de querê-lo vivo.
Querto inclinou-se para a frente. - E se o forte for tomado? Nesse caso? Cato ponderou por momentos a hipótese, e replicou. - Se chegarmos a isso, então darei a
ordem para que seja executado. - Prefeito, há um outro caminho que se nos oferece. - Querto, estou aberto a todas as sugestões. Fala. - Podíamos abrir caminho. Marchar
em formação cerrada, combater até atravessar as linhas inimigas, e recuar para Gobannium.
Macro voltou a abanar a cabeça. - Isso seria uma loucura. Eles são demasiados. Não haveria espaço para a nossa cavalaria atuar. E se ficassem junto à infantaria,
seriam cercados e destruídos. - Olhou para Querto com a expressão de quem percebia a intenção oculta da proposta. - Claro, haveria sempre a possibilidade de a infantaria
conseguir abrir uma brecha, o que daria à cavalaria a ocasião de se escapar. Ou seja, sacrificaríamos os meus homens. Para que tu pudesses escapar. É a isso que
se resume a tua ideia, não é?
Querto não reagiu de imediato. - Se pudermos salvar uma unidade, será bem melhor do que perder as duas. É um cálculo muito simples, centurião.
Do outro lado da sala, Severo deitou-lhe um olhar reprovador. - E chamaste-me tu a mim de cobarde... Cato irrompeu entre eles e subiu o tom de voz. - Senhores, silêncio!
Ninguém vai abandonar o forte. Ficamos todos, e todos lutamos. Não há qualquer outra opção. O Carátaco tem com ele milhares de homens. Eu tenho, quantos? Querto,
qual é o efetivo corrente da coorte trácia?
- Duzentos e trinta e oito homens. - Quantos feridos? - Vinte e sete, cinco com gravidade. Os outros estão feridos, mas conseguem aguentar-se de pé.
- Nesse caso, já não estão de baixa. Todos os homens que se puderem ter de pé terão que estar prontos para tomar lugar na muralha. E quanto a si, Macro? Qual é o
efetivo da coorte?
- Cento e quarenta e oito, nove feridos mas não incapacitados... Cento e cinquenta e sete no total, portanto. Embora a maior parte deles precise de ser bem alimentada
para recuperar toda a energia.
Cato procedeu a alguns cálculos rápidos. - Quatrocentos e vinte, mais ou menos. Os suficientes para proteger a muralha em volta do portão principal.
- Mal chegam - comentou Querto. - Assim que começarmos a sofrer baixas, vamos ter uma linha de defesa muito esparsa.
Cato lançou-lhe um olhar exasperado. - É óbvio. Trataremos desse assunto quando chegar o seu tempo. Entretanto, temos todas as razões para acreditar que podemos
aguentar. Podemos fazer a comida durar pelo menos mais uns dez dias. Mais ainda, se cortarmos as rações aos prisioneiros. O verdadeiro problema reside nos cavalos.
Uma vez que perdemos o feno acumulado no exterior, terão que sobreviver com as rações que existem no forte. Querto?
O oficial trácio coçou o queixo. - Nos estábulos há sempre comida para três dias. - Três dias? - Cato avaliou rapidamente a situação. - Muito bem, mantém um dos
esquadrões a ração completa. O resto dos cavalos passa a receber meia-ração. Ao fim de dois dias, passa-a para um quarto. Se ainda estivermos cercados quando se
acabar a comida, teremos que começar a abatê-los. Pelo menos assim as rações dos homens poderão ser melhoradas. Carne fresca dar-lhes-á coragem quando ela for mais
necessária.
A expressão de Querto toldou-se, e os seus oficiais agitaram-se e trocaram olhares irados. Querto levantou-se.
- Ninguém vai abater os meus cavalos. Especialmente sem a minha autorização.
Cato cruzou as mãos por trás das costas, num movimento que pretendeu natural, para que ninguém se apercebesse da tremura que se tinha apoderado dos seus dedos, dada
a tensão do momento. O trácio tinha acabado de o desafiar de forma evidente em frente de todos os oficiais. Era chegado o momento de afirmar a sua posição, mas não
deixava de recear não possuir autoridade suficiente para forçar Querto e os oficiais da coorte auxiliar a vergarem-se à sua vontade. Obrigou-se a falar devagar,
de forma clara e imperiosa.
- Centurião Querto, tolerei os teus modos insubordinados por tempo suficiente. Da próxima vez que te dirigires a mim nesses termos far-te-ei deter, apesar da necessidade
premente de recorrer a todos os homens disponíveis para a defesa do forte. É por tua causa que todos os que estão nesta sala correm agora um grave perigo... Portanto,
se eu der ordens para começar a abater os cavalos, ela será obedecida sem demora e sem questões, a começar pelo teu próprio cavalo. Está entendido?
A sala pareceu dominada por uma quietude insuportável. Cato manteve o olhar fixo no subordinado, sem sequer pestanejar. Do seu lado, o trácio dardejava-o com o olhar,
mas acabou por cerrar os dentes e assentir, antes de voltar a sentar-se lentamente no banco.
Cato sentiu uma vaga de alívio a correr-lhe pelos membros, e permitiu-se mais um momento de silêncio para que os outros homens refletissem no significado do recuo
do trácio, antes de prosseguir.
- Se, ou quando, o inimigo lançar um assalto, o centurião Severo manterá metade da sua centúria de reserva, por trás do portão. O centurião Estelano levará cinquenta
trácios para cobrir a retaguarda e os lados do forte. Os outros defenderão a muralha que dá para a parada. Percebido? - Cato olhou para os oficiais, que anuíram
em silêncio. - Sabem qual é o vosso dever. Já têm as vossas ordens. Não há mais nada a dizer, senhores. Centurião Querto, trata de dividir os teus homens em dois
turnos. Alternarão com os legionários. Espero que estejam bem preparados.
- Os meus homens sabem perfeitamente qual é o seu dever, senhor. - Replicou Querto, com azedume.
- Fico feliz por sabê-lo. - Cato acenou com a cabeça na direção da porta. - Então, senhores, aos vossos postos.
Querto e os seus oficiais deixaram o salão, no que foram imitados por Severo e Petílio. Cato cruzou o olhar com Macro e ergueu uma mão para indicar ao amigo que
ficasse. Macro fechou a porta e voltou-se para ele.
- Que se passa? Cato falou em voz baixa. - Quando começar a ação, peço-lhe que mantenha o Querto debaixo de olho. Depois do que sucedeu na aldeia silura, sabe-se
lá o que ele poderá tentar no calor da batalha.
- Não te preocupes, miúdo. - Macro obrigou-se a sorrir. - Se ele quiser fazer as suas patifarias, depressa ficará a saber que eu não brinco em serviço. - Passou
um dedo pela garganta e riu. - Nesta altura, não consigo pensar em melhor forma de passar o tempo do que enfiar uma lâmina por entre as costelas daquele filho da
puta, e dar-lhe um torcidela amigável.
Cato arregalou a sobrancelha. - Que belo pensamento. Mas não nos entusiasmemos. Precisamos do Querto, no momento presente, dado o ascendente que ele tem sobre os
seus homens. Quando o cerco estiver terminado, trataremos dele, se ainda por cá estivermos, claro.
Macro fez uma careta. - Ora aí está outro belo pensamento, porra. Obrigadinho por mo lembrares.
Cato riu, e continuou a sorrir perante a libertação de tensão que o diálogo lhe proporcionara. Pegou na proteção para a cabeça, colocou-a no lugar, e pôs depois
o capacete e começou a apertar as tiras de cabedal que o seguravam. Macro imitou-o, mas concluiu a tarefa em primeiro lugar, e reparou na falta de destreza dos dedos
do seu ainda jovem amigo.
- Vem cá. - Disse, quase com ternura. - Deixa-me ver isso.
Cato recuou um passo, e abanou a cabeça, furioso consigo mesmo por deixar transparecer a ansiedade que lhe roía o espírito.
- Eu consigo. Forçou-se a continuar a tentar dar um laço nas grossas fitas de cabedal. - Achas que o Carátaco vai desistir quando chegar a alvorada e ameaçares executar-lhe
o irmão? - Indagou Macro.
Cato baixou as mãos e pensou na ideia. - Não sei. Ele trouxe o exército até aqui para pôr fim ao Querto e aos seus ataques, pelo menos tanto como o fez para salvar
o Marídio, acho eu. Se estivesse no lugar dele, colocaria a necessidade de assegurar o apoio dos meus aliados acima da vida do meu irmão. Mas a verdade é que nunca
tive um irmão, portanto dificilmente posso avaliar quão profundos são os sentimentos que o ligam ao Marídio.
- Também não tenho um irmão, mas penso que, se tivesse essa oportunidade, tentaria salvá-lo. - Considerou Macro. - Se não o conseguisse, não teria descanso enquanto
não o vingasse.
- Isso quer dizer que tem algo em comum com o Carátaco. - O pensamento apanhou Cato de surpresa. Talvez houvesse naquela ideia mais verdade do que gostaria de admitir.
Havia uma semelhança de espírito entre gente como Macro e Carátaco, irmãos de armas fosse qual fosse a causa pela qual combatiam. Havia neles atributos como o valor,
a integridade e a honestidade de sentimentos a que Cato sentia poder apenas aspirar, sem nunca os alcançar verdadeiramente. Questionava demasiado tudo o que o rodeava,
de tal forma que nunca se permitia o prazer simples de tais certezas. O coração pesava-lhe ao compreender que, de facto, nunca poderia partilhar aquela segurança
de sentimento de que Macro beneficiava.
Macro, contudo, respondeu com exasperação evidente. - Eu? Ter algo em comum com aquele sacana? Nunca! Caralho, nem pensar. - Dirigiu-se à porta. - O mero pensamento,
foda-se... Bom, tenho que voltar para a muralha.
Antes que Cato pudesse dizer outra palavra, o amigo tinha saído e afastava-se a passos largos, ainda a murmurar impropérios para si mesmo.
- Bom, lá se vai a noção da ligação universal entre os guerreiros. - Cato encolheu os ombros, e seguiu o amigo.
Ao longo de toda a noite, a guarnição de Bruccium manteve a zona de aproximação ao forte sob aturada vigilância. Recargas de dardos foram trazidas dos armazéns e
empilhadas na base das muralhas, ao pé dos molhos de trapos e lenha, bem apertados e regados com pez, de forma a pegarem fogo quando chegasse o momento de os lançar
sobre as muralhas para iluminar a aproximação do inimigo. As chamas dançavam numa série de pequenos braseiros espalhados pelo interior das muralhas, e alguns soldados
tentavam aquecer-se nos minúsculos lumes, com os rostos pintados pelo tom alaranjado das chamas. Os turnos mudaram quando se ouviu um instrumento de sopro a soar
no quartel-general, e a lançar uma série de notas por todo o campo. Lá fora, as pilhas de feno tinham ardido ferozmente durante algum tempo, iluminando o terreno
e os guerreiros inimigos numa luz avermelhada. Pouco depois da meia-noite, as labaredas foram morrendo, e só aqui e ali se viam brasas ainda a alumiar levemente
a escuridão.
Cato e Macro acomodaram-se na casa da guarda do portão principal, fazendo turnos a percorrer as defesas e a certificarem-se de que os homens estavam bem alerta.
De vez em quando, Cato detinha-se e perscrutava a noite, esforçando vista e ouvidos para tentar detetar qualquer sinal de movimentações inimigas. Mas nada se passava,
para lá de uma ocasional ordem em surdina ou uma breve conversa que vinha da direção da parada. Não havia sinal de atividade no exterior das muralhas do forte, e
de qualquer forma a ruidosa corrente do rio ao passar sobre as rochas tornava impossível distinguir os sons mais fracos. Ao regressar à casa da guarda, Cato pôs
o capacete de lado e sentou-se com as costas contra a parede. Puxou a capa para se cobrir e cerrou os olhos. Do outro lado da pequena sala, Macro ressonava profundamente,
até ser acordado à hora combinada para fazer a ronda das defesas. Cato não conseguia dormir, mas fazia questão de mostrar aos homens de serviço que estava tão confiante
que até se permitia descansar com o inimigo à porta. Sabia que isso produziria uma boa impressão nos soldados, e que depressa se espalharia a notícia da firmeza
e da coragem do comandante do forte.
Todavia, embora deixasse a cabeça descair, em aparente repouso, e de o seu peito se elevar e baixar num ritmo fácil, a mente fervilhava-lhe de pensamentos, enquanto
revia a forma e a disposição do forte e do terreno sobre o qual assentava. Depois tentou colocar-se no lugar de Carátaco e procurar quaisquer pontos fracos nas defesas,
e perceber onde e quando poderia lançar um assalto triunfante ao forte. Para cada hipótese, Cato ponderou qual a resposta a dar, e como melhor poderia dispor o seu
mísero efetivo para manter a horda inimiga à distância. O maior perigo resultava da possibilidade de Carátaco lançar um ataque simultâneo e incessante a duas ou
três das faces do forte. Isso depressa obrigaria Cato a lançar na refrega todas as suas reservas, o que levaria a deixar uma qualquer secção da muralha mais vulnerável.
E havia outra ideia a perturbar-lhe os pensamentos. Carátaco devia estar determinado a tratar do forte e dos seus defensores o mais depressa possível, antes que
Ostório ficasse a saber da sua localização. A guarnição devia, pois, esperar um ataque a qualquer momento.
Como se fosse uma resposta aos seus pensamentos, Cato ouviu o tropel de botas nas tábuas do solo ao seu lado, e uma mão sacudiu-lhe o ombro. Hesitou o tempo suficiente
para dar a entender que estava a despertar de um sono profundo, e depois piscou os olhos e deparou com a figura escura do optio de serviço, debruçado sobre ele,
quase invisível à luz sumida da única lamparina de óleo que ardia no compartimento.
- O que há? - Senhor, peço desculpa, mas um dos rapazes diz que ouviu qualquer coisa à frente do portão.
Cato fez um gesto para o outro lado do quarto, onde a volumosa forma de Macro ressonava e grunhia no sono.
- O quê, conseguiu ouvir alguma coisa por cima daquilo? Fantástico... Já lá vou.
Cato endireitou-se, combatendo a rigidez do corpo, e pegou no capacete. Enquanto apertava as fitas foi até junto de Macro e tocou-lhe de lado com a ponta da bota.
Macro grunhiu e remexeu-se, enquanto fazia estalar os lábios e produzia um som bizarro.
- Arrrr. Então abriu os olhos e sentou-se, esfregando vigorosamente os caracóis espessos.
- Que se passa? - Parece que o inimigo resolveu entrar em ação. - Bom. - Respondeu, com ar decidido. Pegou no capacete e levantou-se. - Vamos lá ver então.
Já na plataforma, toda a secção do optio tentava divisar o que quer que fosse no declive em frente ao forte. O optio apontou para um vulto alto ao canto.
- Foi aquele homem, senhor. Caía uma chuva miudinha, apenas suficiente para fazer o mais leve dos sons enquanto tombava sobre as madeiras e a turfa que compunham
as muralhas do forte. Não havia sinal de estrelas no firmamento, somente se adivinhava a massa escura de uma nuvem carregada e baixa no céu. Os dois oficiais aproximaram-se
da sentinela e colocaram-se ao seu lado.
- Bom, rapaz. - Começou Macro, em voz baixa. - O que é que se passa?
O legionário respondeu sem desviar o olhar do exterior do forte. - Ouvi um barulho, mesmo há bocadinho. Como a haste de uma lança a bater na orla de um escudo, senhor.
- Uma descrição admiravelmente precisa. Tens a certeza?
- É um som que já ouvi as vezes suficientes para o conhecer bem, senhor. Tenho a certeza.
- Muito bem. - Macro assentiu, e debruçou-se para espreitar para as trevas, ao lado de Cato. Os dois homens mantiveram-se em silêncio por momentos, até que Macro
recuperou a posição direita e abanou a cabeça. - Fosse o que fosse, agora não está ali nada.
Cato não se mexeu. Mesmo ali parado à escuta, a sua mente fatigada não procurava o descanso. Calculou que já não faltava mais de uma hora até nascer o dia. A luz
começaria a regressar ao mundo muito antes disso. Era o melhor momento para lançar um ataque. Os defensores estariam a terminar o que para a maior parte deles teria
sido uma noite sem descanso. Estariam extenuados e assustadiços, pelo que o menor dos movimentos contribuiria para lhes ampliar o nervosismo e minar o moral.
- Disse eu que não há ali nada. - Repetiu Macro, pacientemente. Cato virou-se para ele com uma expressão irritada. - Centurião, eu ouvi. E apreciaria que mantivesse
a sua opinião para si mesmo até ao momento em que eu a solicitar.
Macro respirou fundo e baixou a cabeça. - Como deseja, senhor. - Isso mesmo. - Cato deitou um último olhar pela encosta para se certificar de que o forte estava
seguro, pelo menos de momento. Virou-se de novo para Macro. - Quero o Marídio aqui na torre assim que chegar a luz da alvorada, de forma a poder mostrá-lo ao Carátaco.
Traga-o para um dos estábulos mais próximos e mantenha-o lá acorrentado, se tal for necessário, para o podermos trazer para aqui quando precisarmos.
- Sim, senhor. Macro fez uma saudação rápida e dirigiu-se para junto do optio, que esperava ao cimo das escadas que levavam à sala do piquete. Cato viu-o afastar-se
com pesar. Não tinha querido irritar-se daquela maneira com o amigo. Mas a sua disposição não beneficiava em nada de ter passado a noite acordado, de olhos e ouvidos
sempre alerta ao menor sinal de perigo. Estava prestes a chamar Macro outra vez, com um pretexto qualquer, de forma a poder pedir-lhe desculpa, quando ouviu um ligeiro
silvo vindo da área da parada. O som foi crescendo em volume e dando a ideia de que vinha de uma ampla área em frente ao forte. Outros homens o tinham escutado também,
e tinham virado para lá as cabeças. Uma voz de comando fez-se ouvir algures na escuridão, e o som intensificou-se ainda mais por um breve momento antes de cessar
abruptamente, no que foi acompanhado por um coro de grunhidos. Cato reconheceu por fim o som, e de imediato compreendeu a ameaça.
- Para baixo! - Levou as mãos à boca, e gritou para os dois lados do torreão. - Abaixem-se!
No instante seguinte o ar noturno encheu-se dos estalidos claros de mísseis pedregosos a bater contra as estacas de madeira e as tábuas do parapeito na muralha e
no cimo do torreão. O terrível ruído da metralha a atingir alvos sólidos quase abafava o assobio dos projécteis que passavam sem provocar danos sobre a muralha e
tombavam no interior do forte. Ouviram-se alguns sons característicos de embates em corpos, seguidos de gritos de agonia, quando as mais expostas das sentinelas
foram atingidas por projécteis bem dirigidos.
Na escuridão do exterior, outra ordem foi dada, e Cato reconheceu a voz de imediato - era Carátaco. Um tremendo rugido coletivo irrompeu, e então o terreno à frente
do forte pareceu ganhar vida, quando milhares de vultos se ergueram da erva alta e correram para o fosso defensivo à frente das muralhas.
- Deem o alarme! - Bradou Cato a plenos pulmões, a garganta esganiçada. - Todos às muralhas!
26
A metralha continuava a embater com estrondo ensurdecedor nas estacas da paliçada, afogando o som agudo da trombeta que ecoava pelo forte, chamando os homens ao
combate. Os urros inimigos tinham baixado de tom quando os guerreiros tinham desatado a correr pelo declive acima, tentando alcançar rapidamente o fosso. Só umas
poucas vozes berravam ainda na escuridão, incitando os homens e, muito provavelmente, lançando insultos sobre os defensores romanos. Cato olhou em redor da plataforma
e reparou que um dos homens tinha sido abatido. Macro debruçava-se sobre ele, segurando o legionário pelos ombros e sacudindo-lhe a armadura.
- Soldado, estás bem? Cato foi ter com ele, correndo agachado enquanto ouvia o assobio da metralha que lhe passava por cima. Da garganta do soldado subia um gemido
incongruente. Cato verificou que havia uma sombra estranha no capacete do homem, e levou lá um dedo. Como tinha adivinhado, havia ali uma mossa, com alguma profundidade,
onde o capacete recebera um impacto com toda a força. Mesmo que o choque não tivesse fraturado o crânio do homem, a força do golpe tê-lo-ia deixado desnorteado.
- Leva-o lá para trás! - Ordenou a um dos legionários agachados ali perto, antes de correr também até à parte de trás da plataforma e espreitar para o interior do
forte. Os fogos dos braseiros tinham sido atiçados, para evitar que a chuva miúda os extinguisse, e ao brilho das chamas via os homens a correrem pelas escadas acima
até ao topo da rampa de turfa, e depois a espalharem-se pelas muralhas. Os centuriões e optios gritavam-lhes para se apressarem e manterem as cabeças baixas enquanto
ocupavam as posições, de joelhos e por trás dos escudos. Os legionários guarneciam a muralha em redor do portão, e os trácios ocupavam os flancos. Satisfeito com
a prontidão da resposta, Cato acenou a Macro para o acompanhar e regressou ao parapeito que dava para o exterior. O som da metralha continuava a reinar, mas Cato
sabia que tinha que verificar a progressão do inimigo. Preparou-se, soergueu-se no intervalo entre duas estacas, e espreitou de cima para o fosso.
Apesar da escuridão, o terreno parecia ter-se tornado uma criatura viva; os primeiros elementos inimigos já tinham alcançado o bordo do fosso e desciam para as sombras
que ocultavam o fundo. Escutou imediatamente o tilintar dos cacos da loiça de barro partida que eram espalhados pelos fossos dos fortes por todo o Império, em conjunto
com outros obstáculos, para tentar travar o avanço dos atacantes. Gritos de dor denunciavam que tinha havido quem tivesse cortado mãos e pés em arestas bem afiadas.
A metralha também cessou subitamente, já que o inimigo não queria correr o risco de atingir os seus próprios homens à medida que estes se aproximavam das muralhas.
Macro ergueu-se, levou a mão em concha à boca e gritou para os homens nas muralhas.
- Preparem os fardos incendiários! Grupos de homens trataram de levar os feixes de trapos e madeira para o cimo da rampa, enquanto outros acendiam tochas nos braseiros
e acorriam para junto dos camaradas.
- Acendam-nos! - Ordenou Macro. - E lancem-nos sobre a muralha!
Apesar da combinação de materiais combustíveis que constituía os fardos, a chuva tornava difícil atear o fogo a todos; ainda assim, alguns incendiaram-se rapidamente,
crepitando furiosamente. No instante em que se verificava que o fogo estava bem aceso, dois soldados manejavam uma longa forquilha com que trespassavam os molhos,
o que lhes permitia puxá-los atrás e depois, com um grunhido de esforço, lançá-los em arco sobre a muralha. As chamas rugiam ferozmente quando se precipitavam para
a escuridão, provocando uma explosão de fagulhas ao atingirem o solo e rolarem ainda alguns metros, até se imobilizarem e ficarem a alumiar a área com uma luz tremeluzente.
Alguns caíram demasiado perto e rebolaram para o fosso, por entre os atacantes que tentavam abrir caminho no fundo do mesmo, provocando alguns gritos de pânico e
saltos para longe da trajetória das bolas flamejantes. Alguns homens não tiveram a sorte ou o expediente necessários e foram queimados, o que lhes provocou urros
de agonia. Ao brilho dos molhos em chamas, Cato avistou pequenos grupos de atacantes, de vestes reluzentes devido à chuva, a debaterem-se com o íngreme declive,
que tentavam ultrapassar enquanto transportavam escadas de assalto pouco sofisticadas.
Encheu os pulmões de ar e gritou. - Lançar dardos! Os legionários e os trácios ergueram-se por trás da paliçada, e prepararam os braços para o arremesso. A distância
para os alvos era curta, e as pontas de ferro das armas foram apontadas para baixo, contra a vaga de guerreiros nativos que subiam a encosta. Não havia necessidade
de apontar a alvos isolados, e os homens soltaram os projécteis com grunhidos que traduziam bem o empenho posto no movimento. As hastes letais, iluminadas pelos
fogos no solo, atravessaram o ar e mergulharam na massa agitada do exército inimigo. Cato viu um deles ser atingido quando estava à beira do fosso, ligeiramente
à direita do torreão, e ter o ventre trespassado pela cabeça metálica do projétil. Dobrou-se em dois, deixou cair o machado que empunhava, e tombou para trás, com
as mãos agarradas à haste.
Muitos outros atacantes foram derrubados. Era difícil não lhes acertar enquanto se acotovelavam na difícil progressão para a base da muralha. Por fim, o primeiro
dos grupos que levavam as escadas de assalto atravessou o fosso com a sua carga desajeitada. Colocaram a base da escada no solo empapado e fizeram rodar o cimo contra
a paliçada, junto ao portão. Imediatamente vários guerreiros se lançaram por ela acima, incitados por um homem de aspeto mais nobre, de cota de malha, que fazia
a espada bater contra o escudo numa excitação quase frenética. Cato virou-se para Macro e apontou-o.
- Está a ver aquele? Macro assentiu. - Abata-o! - Ordenou Cato, crente no infinitamente maior talento do amigo no uso do dardo. Quanto a ele, nunca tinha conseguido
ultrapassar completamente o facto de constituir um perigo para o seu próprio lado de um combate, bem ilustrado quando quase trespassara Macro com um dardo no decorrer
da primeira escaramuça em que participara, ainda na fronteira do Reno.
Macro pegou num dos dardos empilhados na parte de trás da plataforma e aproximou-se do parapeito. Fez pontaria com o braço esquerdo enquanto puxava atrás o direito,
o músculo retesado e preparado para o esforço. Os olhos do veterano semicerraram-se ligeiramente, e por fim lançou o braço para a frente, soltando um som animal
a acompanhar o esforço. O míssil tomou uma trajetória quase plana, e passou inofensivo pelo líder nativo, que tinha acabado de dar um passo ao lado para melhor encorajar
o grupo de guerreiros, sem se dar sequer conta do projétil que tinha rasgado o espaço onde ele estivera um único momento antes.
- Filho da puta! - Soltou Macro, frustrado. - Espera aí. Já trato do teu caso...
Virou-se para pegar noutro dardo, mas Cato segurou-lhe o braço. - Já não vale a pena. Olhe! O primeiro dos guerreiros inimigos tinha já quase chegado ao cimo das
escadas, e trocava golpes com um par de legionários que lhe tinham barrado a passagem. O nativo empunhava um machado de cabo longo na mão direita, e baloiçava-o
selvaticamente enquanto subia passo a passo. A pesada lâmina fazia mossas no escudo de um dos defensores, estilhaçando-lhe a superfície e forçando o homem a recuar.
O seu camarada recuou também, quase por instinto, ao ver a terrível arma a cortar o ar frio à sua frente. De imediato o guerreiro lançou a perna sobre a paliçada
e saltou agilmente para o passadiço. Desferiu golpes à direita e esquerda com o machado, embatendo com estrondo nos pesados escudos dos legionários, mantendo-os
à distância, enquanto um segundo guerreiro celta alcançava o último degrau da escada. Noutros pontos da muralha viam-se os cimos de escadas a serem apoiados na muralha,
e os defensores viam-se envolvidos num combate empenhado para as atirar para longe; no caso de não o conseguirem, tentavam por todos os meios golpear as cabeças
e ombros dos homens que as escalavam. Cato viu Querto, a uns cinquenta passos, a decepar o braço a um inimigo que tentava saltar sobre a paliçada. O trácio soltou
um urro de triunfo quando o guerreiro tombou da escada, e de imediato rodou, à procura de novo adversário.
Cato engoliu em seco, nervoso, e desembainhou a espada. - Macro, venha comigo! Temos que ir para a muralha. Desceu à pressa a escada que dava acesso à sala da guarda,
saltando os últimos degraus, e correu para a porta que abria para a muralha. A poucos metros de distância, um camarada do homem com o machado agachou-se e virou-se
para o enfrentar quando ele irrompeu do interior, de espada em riste e pronta a desferir um golpe letal. A luz de um braseiro, vinda de baixo, lançava um brilho
vivo em metade do rosto do homem, revelando uma barba rija e caracóis húmidos, sob os quais reluziam olhos malévolos que avaliavam o adversário romano. O homem lançou
um rosnido e carregou sobre Cato, de espada alçada sobre a cabeça, pronto a aplicar uma cutilada decidida para rasgar o crânio do adversário. Cato erguia por sua
vez a espada para aparar o golpe quando Macro saiu também a correr da abertura na torre atrás dele e, sem querer, o empurrou contra o nativo. Cato cambaleou e quase
caiu, mas quase por instinto percebeu que para escapar daquela situação tinha que aproveitar a embalagem. A espada do nativo já descrevia o seu arco mortífero, rebrilhando
como bronze fundido ao refletir a luz alaranjada do braseiro.
- Merda! - Exclamou Macro, enquanto saltava para o lado. Cato deixou-se ir para a frente, passou por baixo do braço esticado do homem e lançou-se contra o peito
dele com todo o seu peso. O cheiro acre do suor do outro encheu-lhe as narinas. O impacto obrigou o guerreiro celta a dar um passo atrás, mas o calcanhar embateu-lhe
numa tábua solta, e ele tropeçou e caiu. Cato pôs um pé à frente e firmou o joelho para travar, conseguindo deter o movimento sem cair para cima do outro. O siluro
ainda empunhava a espada, e tentou quase em desespero acertar na perna do romano. Seria um golpe decisivo, que deixaria Cato incapaz de se manter em pé, mas a ponta
da espada embateu contra as estacas da paliçada e ficou presa. Os dois homens trocaram um olhar de espanto, e o nativo tentou soltar a lâmina. Mas era já demasiado
tarde. Cato inclinou-se para a frente e cravou a sua espada nas costelas do homem, sentindo o impacto a percorrer-lhe todo o braço quando atingiu um osso, partindo-o,
e fazendo a lâmina deslizar pela carne. Cato torceu violentamente a lâmina, relembrando o treino que recebera na já distante recruta. Colocou uma bota sobre o peito
da vítima e puxou a espada com toda a força, fazendo-a deslizar da ferida com um som de sucção húmida. O siluro tentou respirar e caiu de novo para trás, de boca
escancarada.
À frente de Cato estava agora a escada apoiada no cimo da paliçada, e um pouco adiante o homem com o machado. Uma mão surgiu por cima do parapeito, e logo a seguir
começaram a aparecer uma cabeça, ombros e a ponta de uma espada. O assaltante avistou Cato ao mesmo tempo, e lançou um grito de alarme. Cato agarrou o cimo da escada
e tentou fazê-la deslizar para o lado, mas o peso dos homens nela empoleirados era já demasiado grande. O siluro, receoso de tombar, tinha-se agarrado com todas
as forças à escada, usando a mão que empunhava a espada, mas ao aperceber-se de que estava seguro sorriu, enquanto se preparava para atingir Cato.
Pelo canto do olho, Cato apercebeu-se de um movimento rápido, e no instante seguinte viu a espada de Macro a abater-se sobre o rosto do inimigo na escada, esmagando-lhe
o maxilar e fazendo a cabeça saltar para trás. O nativo gritou e soltou a mão para apalpar a ferida; perdeu o equilíbrio de imediato e caiu da escada para as trevas
na base da muralha. O grito tinha entretanto alertado o homem do machado, que espreitou por cima do ombro, os olhos imensos com a fúria que sentiu ao ver os dois
oficiais romanos.
- Trata da escada! - Avisou Macro. - Este é meu! Cato nem teve tempo de responder, já que o amigo passou por ele a toda a velocidade, agachando-se e avaliando o
alto e espadaúdo siluro que fazia rodar o cabo do machado na mão, para demonstrar a sua destreza com a arma.
Cato tinha recolocado a espada na bainha para melhor se dedicar à escada. Pegou nas duas pontas, firmou os pés e tentou com toda a força fazer deslizar a pesada
peça de madeira sobre a borda da paliçada. Uma vez que estava mais leve, a escada começou a ceder. Primeiro devagar, depois com maior facilidade, começou a inclinar-se,
e Cato acabou por deixá-la ir. Tombou contra a esquina do torreão, fazendo outros dois homens cair antes de se precipitar no fosso escuro.
Entretanto, Macro fazia algumas fintas ao siluro do machado, para lhe estudar as reações. O outro não perdeu tempo: rodou o machado e agarrou no cabo com as duas
mãos, pronto a aparar qualquer golpe.
- Bons reflexos. - Cumprimentou Macro, em surdina. Deu um passo à frente para desferir um ataque, tentando atingir o estômago do outro. O siluro desviou a lâmina
com um sorriso de desdém, e aparou também o golpe ao rosto que se seguiu; logo a seguir deixou a mão direita escorregar ao longo do cabo, enquanto executava um corte
diagonal contra o ombro de Macro. Foi tão rápido que o veterano mal teve tempo de saltar para o lado; A lâmina falhou-o por um dedo. O centurião embateu contra a
paliçada, a pouca distância de Cato, e perdeu o fôlego. O outro avançou e atingiu-o no peito com a ponta do cabo do machado, acertando numa das medalhas de prata
no arnês e obrigando-o a recuar mais um passo. Fez menção de voltar a usar o mesmo ataque, mas Cato saltou sobre o amigo e ripostou contra o peito do siluro. Foi
uma tentativa improvisada, feita com o braço totalmente estendido, pelo que resultou apenas num ferimento superficial, mas deteve o avanço do homem, surpreso perante
a nova ameaça. Entretanto, Macro tinha recuperado o fôlego, e tomava lugar ao lado de Cato.
- Este gajo já começa a chatear-me. Cato concordou, de dentes cerrados e olhos fixos no adversário. Voltou a atacar, já que era mais alto e por isso tinha maior
alcance do que Macro, e obrigou o outro a recuar. Macro deixou sair da garganta mais um rugido e carregou, e Cato seguiu-o. O súbito avanço dos dois oficiais apanhou
o guerreiro inimigo de surpresa, e ele teve a mais ínfima das hesitações; foi o suficiente para o condenar. Macro atingiu-o primeiro, rasgando-lhe o ombro direito,
fazendo a mão largar o cabo do machado, que tombou para o passadiço, inútil. Cato imitou o amigo e aplicou um golpe por baixo do queixo, que lhe destruiu a clavícula
e penetrou vários centímetros pela traqueia. O homem vacilou, indefeso, e recuou, mas deteve-se de repente, de cabeça atirada para trás, quando a ponta de um pilo
lhe rasgou o dorso. Por trás dele, um legionário puxou a lança para trás e aplicou um pontapé no corpo do inimigo, fazendo-o rolar pela rampa de turfa até se imobilizar
na base interna da muralha, com as mãos a apertarem a garganta enquanto tentava respirar mas só conseguia sangrar até à morte.
- Bom trabalho, soldado! - Macro sorriu. - Espetado como um porco!
O homem sorriu perante o elogio do seu superior e virou-se para o parapeito, a ponta da lança ensanguentada em riste, pronta a golpear o próximo homem suficientemente
audaz para tentar escalar a muralha. Cato embainhou a espada, sem prestar atenção ao sangue que a manchava, e olhou para o que se passava ao longo do comprimento
da muralha. Decorriam uma série de duelos ao cimo de escadas de assalto, mas nenhum outro elemento inimigo tinha conseguido chegar ao passadiço. Assentiu, satisfeito.
- Por enquanto, tudo bem. Vamos. Voltamos para o torreão. Subiram até ao cimo da plataforma, de onde tinham uma vista clara sobre todas as frentes de ataque. Os
homens à esquerda do portão também se estavam a aguentar no embate com os nativos que enxameavam o espaço à frente do forte, e que eram iluminados por trás pelos
feixes incendiários que ainda ardiam no solo. Ao notá-los, Cato reparou também que as labaredas começavam a esmorecer, mais cedo do que ele tinha esperado, e ergueu
o olhar para o céu noturno, pesadamente carregado de nuvens; a chuva tinha-se intensificado, pingando sem cessar pelas curvas do seu capacete e juntando um silvo
baixo e constante ao clamor da batalha. No espaço aberto por trás do portão, os homens que constituíam a reserva aguardavam, de lanças e escudos apoiados no solo.
Cato distinguia facilmente Severo, a andar para trás e para a frente, batendo ligeiramente com a espada contra a caneleira. Quase que conseguia cheirar a ansiedade
do homem, e contra a sua própria maneira de ser lançou uma prece aos deuses, para que o centurião conduzisse os seus homens de forma exemplar, caso fossem chamados
para colmatar alguma brecha na linha de defesa. Ao olhar para a direita, viu Querto, que berrava aos seus homens, encorajando-os a combater. De vez em quando empertigava-se,
colocando-se bem à vista do inimigo, e lançava-lhes um evidente desafio. Precisamente o género de exemplo de que os homens precisavam num momento daqueles, admitiu
Cato, com uma réstia de admiração pelo centurião trácio, ainda que a contragosto.
Virou-se para Macro. - Esta chuva não nos ajuda nada. - É tão má para nós como para eles. Ou pior ainda. Pelo menos nós podemos abrigar-nos.
Cato abanou a cabeça. - Não está a ver a coisa. A chuva está a apagar os feixes incendiários. Se continuar assim, quando chegar a manhã não teremos hipótese de acender
o sinal de fumo. E mesmo que o conseguíssemos, quase que aposto que as nuvens iam disfarçar o fumo.
Macro olhou para o céu, piscando os olhos para evitar as gotas de chuva.
- Porra, mas não haverá nesta terra alguma coisa que não esteja contra nós?
Antes que Cato pudesse responder, a sua atenção foi atraída por um movimento na rampa da estrada que levava ao portão. Ao esforçar a vista, mal conseguiu distinguir
um grupo numeroso de homens a esgueirarem-se pela estrada. Inclinou-se para fora das muralhas para tentar ver melhor.
- Cuidado! - Avisou Macro. - Queres dar um alvo fácil àqueles sacanas dos fundibulários?
Como que a sublinhar as palavras do centurião, Cato ouviu um ligeiro silvo, sinal de que um projétil tinha passado sobre ele, não muito longe. Deu um pequeno pulo,
agastado consigo mesmo, recuou para trás da proteção da paliçada, e continuou a observar dali. Enquanto se aproximavam, os homens juntavam-se de forma estranha,
e uma lembrança acabou por despertar na mente do prefeito, provocando um arrepio de ansiedade que lhe percorreu as entranhas. Percebeu do que se tratava.
- Têm um aríete... Macro! Olhe! - Apontou para os homens que subiam a estrada e se dirigiam diretamente para a estreita ponte que transpunha o fosso.
Macro esforçou a vista para ver através da cortina de chuva, e fez uma careta.
- Era mesmo desta que estávamos a precisar. Cato virou-se para os outros homens na plataforma do torreão. - Agarrem nos dardos e venham cá, imediatamente! Os legionários
recolheram o molho de dardos e formaram junto à frente da torre.
- Há um grupo de homens a dirigirem-se à ponte. - Explicou Cato, falando em tom elevado para se fazer ouvir sobre a confusão da refrega e da chuva. - Têm um aríete.
Não podemos permitir que alcancem o portão.
Os legionários compreenderam de imediato o perigo. Pegaram nos dardos e colocaram-nos em posição de lançamento, enquanto com a outra mão seguravam nos escudos para
se protegerem das fundas. Apontaram aos inimigos que se acercavam e esperaram pela ordem de Cato; Macro tinha-se juntado a eles, e empunhava também um dardo. Cato
observou com todo o cuidado os guerreiros, e conseguiu por fim apreciar o toro longo e espesso que levavam suspenso entre eles. O mais provável era que fosse o tronco
de um pinheiro abatido numa das florestas que cobriam as vertentes do vale. Felizmente não pareciam ter-se lembrado de lhe instalar uma ponta metálica, refletiu
Cato. Mas apesar de ser uma arma pouco sofisticada e grosseiramente acabada, haveria de conseguir estraçalhar o portão, se lhe fosse dada oportunidade para isso.
A cabeça do grupo já não estava a mais de trinta passos da ponte quando Cato ergueu o braço.
- Preparar! A distância ainda era longa e, com a chuva, era bastante provável que a precisão dos homens não fosse a mesma que seria conseguida em tempo seco. Cato
deixou que o inimigo avançasse ainda mais uns passos. Queria que a primeira barragem fosse o mais devastadora que fosse possível.
Ouviu-se um grunhido, quando um dos legionários não aguentou a
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tensão e lançou o seu dardo, que descreveu um arco e tombou vários passos à frente do inimigo, inofensivo.
- Foda-se, quem foi o animal? - Indagou Macro, virando-se para avaliar a linha de soldados e espumando de fúria quando identificou o culpado. - Vais ter uma participação,
assim que esta festa acabar! Agora vai buscar outro dardo e espera pela ordem, caralho!
O legionário pegou noutro míssil e voltou a apontar. Cato percebeu que os homens com o aríete eram escoltados por outros que empunhavam grandes escudos redondos.
Por trás deles, um grupo mais pequeno avançava, comandado por um guerreiro alto, que se deteve muito antes de ficar ao alcance dos dardos, e ficou a observar o avanço
dos outros. Cato notou para si mesmo que devia ser o próprio Carátaco. A intenção do inimigo era agora bem evidente. Enquanto os romanos estavam ocupados na muralha,
o aríete romperia pelo portão antes que os defensores percebessem a ideia de Carátaco. Era um bom plano, admitiu Cato, embora não contasse com romanos atentos e
prontos a repelir o ataque.
Os primeiros homens já tinham atravessado a ponte, e Cato encheu os pulmões de ar, lançou o braço para a frente e soltou um brado.
- Lançar dardos! Os legionários soltaram um coro de grunhidos e atiraram os seus projécteis de cima para baixo, na direção da ponte, um estrangulamento no caminho
que forçava os inimigos a juntarem-se e proporcionarem um alvo fácil. Os dardos com pontas de ferro penetravam na carne e no solo com sons quase suaves, que eram
seguidos pelos gritos e gemidos dos feridos, que atravessavam claramente as trevas. O grupo interrompeu subitamente o avanço, o aríete tombou para o solo, e os que
tinham escudos ergueram-nos para se tentar proteger.
- Outra vez! - Ordenou Cato. - Afinquem-lhes, rapazes! Os legionários já tinham empunhado outra leva de dardos, que apontaram e lançaram sem demora. Mais inimigos
tombaram, incluindo alguns com escudos - a madeira e couro que os constituíam pouca proteção davam contra o ímpeto das letais pontas de ferro. Macro urrava de gozo
enquanto atirava míssil após míssil e incitava os legionários a imitá-lo. No meio do monte de mortos e feridos, os sobreviventes tinham destroçado, e já corriam
em fuga pela estrada. Cato ouviu o comandante inimigo a gritar-lhes, furioso, e depois a virar-se, para emitir uma ordem para a retaguarda. Momentos depois, nova
descarga de metralha irrompeu da escuridão, atingindo as tábuas da paliçada e os escudos dos legionários. Um dos projécteis fez ricochete e acertou na guarda de
rosto do capacete de Cato, com um retinir estrondoso. O prefeito sentiu o choque, mas por felicidade o pequeno projétil já tinha perdido uma parte da sua energia,
e não o feriu.
- Abriguem-se! - Ordenou, enquanto se intensificava a chuva de calhaus e outro legionário era atingido, com tanta força que rodopiou sobre si mesmo. Outro disparo
atingiu-o no rosto, destruindo-lhe o nariz e a órbita numa súbita explosão de sangue. Caiu como se fosse um saco cheio de pedras. Rolou sobre as tábuas do chão,
o escudo a acompanhá-lo na queda. Os outros legionários agacharam-se por trás do parapeito, os escudos retangulares a ajudar à proteção enquanto a barragem de metralha
continuava a desabar sobre o torreão. Cato respirou fundo, ansioso, e aproveitou um momento de acalmia para espreitar sobre a muralha. O inimigo voltara a empunhar
o aríete, e atravessava já a ponte. Um estrondo na madeira ao seu lado lançou estilhaços pelo ar, e ele sentiu algo quente a bater-lhe no rosto, e voltou a agachar-se.
- Merda... - Levou a mão à face e sentiu o sangue quente a escorrer, e também algo rijo cravado na carne. Cerrou os dentes, agarrou na ponta com força e puxou o
objeto, atirando-o para longe. A dor aguda e irritante recrudesceu de intensidade, mas Cato ignorou-a.
Macro agachou-se junto a ele, a respiração pesada. - Os sacanas têm-nos pregados ao chão. Uma voz lançou um brado junto ao portão, e no momento seguinte nasceu uma
espécie de canto ritmado. Ao terceiro compasso escutou-se um impacto de madeira em madeira, e Cato e Macro sentiram todo o torreão a estremecer debaixo dos pés.
As tábuas do portão eram resistentes, bem como os fechos, as dobradiças, e a tranca, mas Cato sabia perfeitamente que havia um limite para a pancada que conseguiriam
aguentar.
- Temos que os aguentar. Eu fico aqui e continuo com os homens a atirar dardos.
- Vai ser complicado. - Nada a fazer quanto a isso. Temos que os derrotar e tentar salvar o portão exterior. Se ele ceder, ficamos limitados às portas interiores.
E se perdermos essas também, é como se já estivéssemos mortos.
Macro assentiu. - Preciso que vá assumir o comando da reserva. Formem por trás do portão e abram as portas interiores. Se eles conseguirem romper pelo portão exterior,
avance sem hesitar. Destrua o grupo e recolha o aríete. Depressa arranjarão outro, mas sempre ganharemos algum tempo. Entendido?
- Sim, senhor. - Então vá. Enquanto Macro descia as escadas, Cato virou-se para os homens agachados por trás da balaustrada. Ergueu a voz para se fazer ouvir sobre
o constante retinir das armas, os gritos dos homens e o ritmado estrondo do aríete.
- Rapazes, temos que manter uma barragem contínua com os dardos. Atirem-nos rapidamente e não fiquem a admirar a vossa pontaria, ou serão alvos fáceis. Vamos a isso.
- Cato conhecia bem o perigo que era expor-se à metralha das fundas. Mas também sabia que tinha que dar o exemplo aos seus homens. Pegou num dardo ligeiro da pilha
ainda na torre, evitando deliberadamente olhar para os dois homens que tinham sido abatidos e arrastados para a traseira do torreão. Depois, tentando usar uma das
estacas da paliçada como proteção, preparou a arma; cerrou a mandíbula com toda a força e ergueu-se, inclinando-se para a frente e lançando o dardo contra as costas
refulgentes dos homens que empunhavam o aríete, de cabelos e roupas ensopados pela chuva incessante. Viu que tinha atingido um guerreiro entre as omoplatas, antes
de se voltar a esconder. Logo a seguir o espaço que tinha ocupado foi trespassado por dois pequenos mísseis. Sentiu uma vaga de satisfação a percorrer-lhe o corpo,
e ofereceu aos homens um grito triunfante.
- Mais um bárbaro que se foi juntar aos seus deuses!
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Macro ajeitou o escudo ao ombro enquanto deixava a casa da guarda e se dirigia para junto da meia centúria que aguardava em formação ali à frente. Quando o viu a
chegar, o centurião Severo interrompeu a sua passeata e virou-se para ele, expectante.
- Atenção! - Ordenou Macro, e os legionários apressaram-se a erguer os escudos e a apresentar lanças, numa ação simultânea de belo efeito, como se estivessem a treinar
na parada. Anuiu, satisfeito, e virou-se para o comandante da centúria. Reparou de imediato na expressão nervosa no rosto do outro. Nesse preciso momento, o aríete
embateu de novo contra o portão externo, o que provocou um estremecimento de Severo, que não parava de olhar para a origem do ruído.
- Depressa vão entrar por ali dentro. - Afirmou, ansioso: - E depois pelo portão interno, e não vamos conseguir detê-los.
- Ora, duvido muito! - Lançou Macro, em voz alta, para que todos ouvissem. - Porque somos nós mesmos quem vai dar a esses cabrões bárbaros uma boa carga de porrada.
Vocês os dois, aí. - Indicou os legionários colocados na ponta esquerda da pequena formação. - Abram o portão interno. E depressinha, vá.
A boca de Severo escancarou-se. - Abrir o portão? Mas que raio... Macro obrigou-se a sorrir, e prosseguiu em tom calmo. - Como veem, aqueles estafermos estão a dar
cabo de um dos portões. O caralho é que vou deixar que se atrevam sequer a arranhar o outro.
Severo olhava para ele como se o considerasse louco, mas Macro não lhe deu ocasião de falar. Desembainhou a espada e virou-se para os legionários.
- Larguem as lanças, rapazes. Este trabalho é para ser feito à espadeirada.
Os homens depuseram as lanças e colocaram-se de novo em prontidão, de mãos nos punhos dos gládios e à espera de ordens.
- Formem coluna a quatro! Cerrar fileiras e escudos à frente! A chuva tinha criado pequenos charcos no solo, e as botas dos legionários chapinhavam enquanto eles
reordenavam a formação. Os dois homens que tinham sido mandados para abrir o portão interno tinham já levantado a pesada tranca dos encaixes e começavam a escancarar
as portadas que se abriam para dentro. As dobradiças de madeira chiaram à medida que o portão se abria e revelava a escuridão que dominava a curta passagem coberta
que levava ao portão externo. Terminada a tarefa, reuniram-se aos seus camaradas, e Macro tomou posição à cabeça da formação cerrada, acenando a Severo para se juntar
a ele.
- Vamos aplicar-lhes a cunha. Tu e eu vamos na ponta. - Macro sorriu e recitou o lema do centurionato. - Primeiros a combater, últimos a ceder!
Severo assentiu e lançou um fraco sorriso. - Primeiros a entrar. Últimos a sair. A expressão de Macro endureceu, enquanto ele desembainhava a espada e a erguia no
ar húmido.
- Primeira Centúria, Quarta Coorte, espadas na mão! Ao combate, pela glória da Décima Quarta Legião!
Os legionários empunharam as espadas e soltaram uma aclamação. Na muralha, de ambos os lados do torreão, os homens que não estavam envolvidos em combates olharam
em redor ao escutarem-nos, e o coração de Macro alegrou-se quando notou que os homens dos Corvos Sangrentos se juntavam aos incitamentos e repetiam o grito, de uma
ponta a outra da muralha. Baixou a espada e apontou-a para a passagem entre os portões. Quase em resposta, ouviu-se um estalo na escuridão, quando o aríete destroçou
uma das tábuas do portão externo.
- A passo lento... avançar! Os legionários encetaram a marcha para a abertura, os escudos bem erguidos, deixando apenas os olhos desprotegidos. Quando entravam na
passagem, o aríete voltou a embater, penetrando pela tábua estilhaçada e empurrando outra para fora de posição. Enquanto o toro era puxado para trás pelos nativos
que o manejavam, Macro distinguiu os vultos dos inimigos através da brecha irregular. Também conseguiu aperceber-se de que a tranca ainda estava intacta. Fez alto
a dois passos do portão, mantendo-se nas trevas, de forma a que o inimigo não se apercebesse da presença da formação romana.
O aríete voltou a atingir o portão, acompanhado desta vez por um grito de alegria dos siluros, quando perceberam que daí a pouco conseguiriam derrubá-lo. Mais uma
tábua cedeu com um som de esmagamento. O golpe seguinte atingiu em cheio a tranca, fazendo-a saltar nos encaixes de ferro que a mantinham no lugar. Ao cair, no entanto,
voltou a ficar na posição correta, mas o choque seguinte fê-la ranger e começar a estalar. Mais dois embates concluíram o trabalho; a barra estilhaçou-se e uma das
portadas começou a abrir-se, revelando as apinhadas fileiras de guerreiros inimigos ansiosos por irromper pelo forte. Enquanto Macro fincava as botas no terreno
e respirava fundo, viu dois dardos a precipitarem-se do alto. Um guerreiro nativo empertigou-se subitamente com um urro de agonia, enquanto tentava alcançar a haste
do projétil que lhe tinha rasgado as costas e mergulhara nos seus órgãos vitais. O gesto foi inútil, e ele tombou para o fosso.
- Por Roma! - Gritou Macro, e o seu brado ecoou-lhe de imediato nos ouvidos, no interior acanhado da passagem entre os portões. - Avançar!
À sua frente, os homens ainda concentrados na ação do aríete levantaram os olhares, tentando perceber o que havia na escuridão com que se defrontavam. As suas silhuetas
apresentavam-se claramente delineadas contra o brilho avermelhado do que restava dos feixes incendiários que ainda ardiam. Antes que algum deles pudesse reagir,
Macro e os seus homens saíram da passagem com ímpeto brutal. Macro lançou o escudo contra o mais próximo dos inimigos, empurrando-o para o meio dos seus camaradas,
e prosseguiu o movimento com uma estocada decidida da espada curta ao peito do siluro. Ao seu lado, Severo desferiu um golpe contra um ombro inimigo, provocando
uma ferida profunda ao longo de todo o braço, antes de empurrar o escudo e avançar por trás dele. Os legionários que seguiam os oficiais faziam pressão e avançavam
pelos lados, golpeando os inimigos que lhes ficavam ao alcance. Os siluros estavam longe de esperar um contra-ataque no preciso momento do triunfo, e os que levavam
o aríete largaram o toro e deixaram-no cair sobre a ponte, enquanto tentavam recuar para longe do perigo, deixando aos guerreiros armados o trabalho de dar luta
aos romanos. Alguns reagiram rapidamente, erguendo os escudos redondos e carregando sobre os legionários que saíam da passagem por trás do portão arruinado.
Aquele era o género de combate próximo para o qual as legiões treinavam aturadamente e em que eram insuperáveis, e na densa massa de corpos apinhados na ponte, as
pontas letais das espadas curtas saíam repentinamente da proteção dos longos escudos curvos, golpeando membros e torsos e sendo recolhidas sem cessar, provocando
feridas inúmeras e terríveis que incapacitavam os inimigos e os deixavam a sangrar, sem afrouxar a pressão. Macro sorria ferozmente enquanto forçava a passagem com
o escudo, e aplicava a espada uma vez e outra. Por vezes, as estocadas não encontravam alvo, por vezes eram aparadas, mas a maior parte tinha sucesso, e já sentia
um fluxo de sangue quente a escorrer pela guarda do gládio e até à sua mão, enquanto continuava a empurrar, levando os seus homens a conquistar terreno passo a passo.
À esquerda viu o fosso, cujas vertentes e fundo já estavam cobertas por mortos e moribundos da hoste inimiga. Outros acotovelavam-se na estreita faixa de terreno
entre a escarpa do fosso e a muralha, desejosos de trepar pelas escadas acima e se lançarem sobre os defensores.
- Larguem os dardos! - Ouviu Cato gritar lá em cima na plataforma. - São os nossos que avançam!
Macro nem tinha pensado no muito real perigo de ser abatido pelos seus próprios camaradas, e agradeceu mentalmente ao amigo enquanto voltava a golpear um inimigo
que num esforço desesperado conseguiu usar o escudo para desviar a lâmina. De súbito, houve uma agitação nas fileiras dos siluros, e um guerreiro enorme, todo vestido
de peles, abriu caminho até à frente de combate, com um grande machado de guerra nas mãos poderosas. Os seus camaradas lançavam-lhe olhares de admiração e apressavam-se
a dar-lhe espaço, enquanto o homem fazia rodopiar o machado sobre a cabeça, pronto a desferir um ataque. O gigante soltou um urro selvagem e pareceu fixar toda a
atenção no capacete de Severo, denunciado pela crista; o homem parecia determinado a abater os oficiais romanos, para assim quebrar o ímpeto dos que os seguiam.
Severo aguardou-o sem recuar, de escudo bem levantado e espada recolhida, pronta a avançar. Não tinha escolha. Os homens que o seguiam de perto tornavam impossível
qualquer fuga. O gigante avançou um pé e manejou o machado num arco largo à altura do peito. Macro escutou o assobio da lâmina a cortar o ar, seguido pelo ribombar
quando atingiu a borda do escudo do centurião; a orla de bronze foi esmagada e as camadas de madeira e couro explodiram em destroços perante o tremendo poder do
impacto. O escudo, ou o que dele restava, saltou dos dedos dormentes do centurião e rolou pelo solo até cair no fosso. O guerreiro soltou um grito de triunfo e voltou
a fazer rodopiar o machado com todos os músculos. A pesada lâmina voltou a atravessar o ar, desta vez a uma altura ligeiramente superior. Severo rodou ligeiramente
para colocar a espada em posição de bloquear o golpe, a boca aberta num último grito descrente.
- Nããão! A cabeça do machado retiniu quando fez a espada do centurião saltar-lhe das mãos e a enviou a rodopiar pelo ar. No instante que se seguiu, a lâmina colheu
o centurião pelo pescoço, rasgando pele, carne e osso e enviando a cabeça, ainda presa dentro do capacete polido, a voar para longe dos ombros do oficial romano.
- Foda-se... - Macro assistiu boquiaberto ao desenlace, e depois a fria lâmina da razão fê-lo compreender que o gigante o ia atacar e tentar matar a seguir.
- Eu não, amigo! - Rosnou, enquanto se virava para ele e carregava, agachado, para melhor manter o equilíbrio. Nada poderia resistir ao impacto daquele pesado machado,
e Macro sabia-o bem. Tinha que se aproximar do homem, tão perto que o impedisse de usar a formidável arma. O guerreiro siluro voltava-se já para ele, de machado
em riste, preparando outro golpe. Macro correu contra ele, levantando o escudo mesmo antes do embate. A borda metálica apanhou o adversário por baixo do queixo,
obrigando-o a fechar a boca e calando-lhe o grito de guerra que lhe nascia nos lábios. Ao mesmo tempo, Macro fez rodar o braço com a espada e desferiu um golpe em
diagonal. Não era o mais eficiente dos movimentos, pouco poderoso, mas colheu o outro no flanco, por baixo das costelas; penetrou pelas dobras da veste de peles
e rasgou-lhe a carne antes mesmo de Macro se encostar e pressionar pelo interior do escudo, impressionado com a solidez do opositor. Fincou as botas no solo e empurrou,
usando o gládio para aplicar golpes sucessivos, enquanto ouvia os grunhidos do homem, que mal conseguia respirar perante o assalto furioso.
Consciente de que o machado de nada lhe valia naquele combate corpo-a-corpo, o gigante largou-o e agarrou as bordas do escudo de Macro, tentando arrancá-lo das mãos
do centurião.
- Não, foda-se, nem penses! - Gritou Macro, apertando a pega ainda com mais força. Por cima dele via a carantonha raivosa do outro, em plano superior ao escudo.
Quase por instinto, Macro deu um impulso com os pés e aplicou-lhe uma cabeçada, usando o metal sólido do capacete para lhe partir a cana do nariz. O nativo soltou
o escudo e cambaleou para longe, com sangue a correr sobre a barba e também a tingir-lhe o blusão de pele. Macro parou, a recuperar o fôlego, e só então se apercebeu
de que tinha ido até à outra ponta da ponte. À sua frente, os últimos membros do grupo que tinham estado a tentar derrubar o portão viravam-se e fugiam, abandonando
cerca de uma vintena de cadáveres espalhados pela área de terra batida junto ao portão arruinado, a maior parte deles trespassados por dardos.
- Macro! Virou-se, olhou para cima e viu Cato a apontar na sua direção. - Macro, recolha o aríete! - Sim, senhor! Virou-se e ordenou a duas secções para guardarem
as espadas e pegarem nos ramos que o inimigo tinha usado à laia de pegas. Os restantes homens formaram uma parede de escudos na extremidade da ponte, para cobrirem
a ação dos seus camaradas. Era tempo. Assim que o inimigo recuou o suficiente, da escuridão veio uma salva de metralha, tombando com estrondo sobre as superfícies
dos escudos. Os homens que levavam o aríete esforçaram-se para o recolher, a grunhir de esforço, seguindo a cadência que Macro marcava para que a cortina defensiva
recuasse de forma ordenada para o interior do forte.
Na plataforma, Cato soltou um longo suspiro de alívio. A captura do aríete ia-lhes render pelo menos mais umas horas. Apesar de ter perdido o portão externo, o interno
ainda resistia, e havia tempo para selar a passagem entre os dois com terra e rochas, de forma a impedir a passagem a quem quer que fosse. Ao olhar para o céu, detetou
os primeiros indícios da chegada da alvorada por entre a chuva e as nuvens, uma estreita faixa acinzentada sobre a linha montanhosa do horizonte oriental. Já conseguia
distinguir mais detalhes dos combates que decorriam na muralha, e do terreno à frente do forte. Avistou de novo Carátaco, de punhos cerrados na cintura, contemplando
o forte com evidente fúria. O comandante inimigo virou-se para os seus seguidores, e logo se ouviu um corno de guerra, cujas notas graves se espalharam facilmente
pelo campo de batalha. Um a um, os homens ao cimo das escadas de assalto, que se esforçavam para conseguir colocar um pé sobre o parapeito, deixavam de lutar e desciam
cautelosamente. Os homens por baixo deles também desciam, e todos atravessavam o fosso antes de se escapulirem pelo declive do terreno; alguns tinham a presença
de espírito para levar com eles as escadas. Durante um momento, Carátaco ficou imóvel, e depois pareceu a Cato que o inimigo o tinha identificado no cimo do torreão,
já que ergueu um dedo e apontou diretamente para ele, numa ameaça bem clara. Não desistiria. Não até que o forte de Bruccium, a sua guarnição e o seu comandante
fossem aniquilados.
Carátaco virou-se e desceu calmamente o declive, acompanhando o resto do seu exército.
Cato ouviu a escada a estalar, era Macro que subia à torre e vinha colocar-se a seu lado.
- Ganhámos o primeiro desafio. - Comentou Cato, fatigado. Macro assentiu. - Mas perdemos o Severo e mais uns tantos. Viste aquilo? - Vi, sim. - O olhar de Cato passou
de relance pela ponte onde o cadáver decapitado do centurião jazia, esparramado sobre um siluro, este morto por um dardo. Recordou-se então do que era o seu primeiro
dever naquela situação.
- Dê ordens para os homens descansarem. Os trácios farão o primeiro turno na muralha. Os feridos que sejam levados para a enfermaria, e os outros têm que receber
as suas rações para se alimentarem. Oh, e diga-lhes que me orgulho deles. Depois disto, podemos ter a certeza de que o inimigo se lembrará da guarnição de Bruccium,
mas pelas razões devidas. Já ficaram a saber que, para lá de queimar aldeias e massacrar gente, também somos capazes de lhes oferecer um combate decente.
Macro anuiu, mas antes de se afastar fez uma pausa e perguntou. - Tens a certeza de que queres dizer-lhes isso tudo? Cato cofiou o queixo. - Bom, talvez não a última
parte. Diga-lhes apenas que o comandante está plenamente satisfeito com o trabalho de todos. Que se orgulha de os comandar. Isso deve chegar para lhes aquecer os
corações... E bem vão precisar, quando o Carátaco nos vier fazer outra visita.
28
A alvorada rompeu sobre um cenário muito diferente daquele a que presidira na manhã anterior. Das pilhas de feno já nada restava, a não ser montículos de cinzas
fumegantes. Na encosta que levava ao forte havia áreas de vegetação queimada, a marcar os pontos onde os fardos incendiários se tinham consumido, e molhos de materiais
chamuscados onde a chuva tinha conseguido apagar alguns. Havia corpos espalhados pelo fosso e pela estreita faixa de terreno imediatamente por baixo da muralha.
O inimigo sofrera as mais pesadas baixas na área em frente ao portão, onde os corpos se empilhavam a cobrir o solo e a passagem sobre o fosso, e onde sobressaíam
inúmeras hastes de dardos em todos os ângulos, como se houvesse ali uma gigantesca almofada de alfinetes. Assim que a luz se tornou suficiente para verificar que
o inimigo recuara para a parada, a uns duzentos passos de distância, Cato enviou uma patrulha ao exterior para recuperar do meio dos cadáveres os dardos que ainda
pudessem voltar a ser usados. Ao notar a aproximação de um grupo de fundibulários, a patrulha romana apressou-se a regressar à segurança do interior do forte, atravessando
o portão arruinado com molhos de dardos recuperados nos braços. Outra secção de legionários tinha recuperado os corpos de dois soldados que tinham sido mortos durante
o ataque ao aríete, bem como o cadáver de Severo. A cabeça não fora encontrada. Provavelmente, um dos nativos tinha-a levado antes de retirar, para usar como troféu,
supôs Cato enquanto observava os acontecimentos do torreão.
O acampamento inimigo espalhava-se por todo o chão do vale. Não se tinham dado ainda ao trabalho de construir abrigos, pelo que dormiam ao relento, em torno das
fogueiras que tinham conseguido acender a custo desde que o Sol se tinha elevado no céu. A chuva tinha parado de cair, mas quer o solo quer os ramos das árvores
estavam ensopados, e só quem se tinha internado até aos cantos mais recônditos e abrigados das florestas circundantes tinha regressado com combustível viável. Pelo
tamanho do campo, Cato estimou por alto um efetivo de cerca de dez mil homens, dos quais várias centenas tinham montadas, a julgar pelos cavalos que pastavam aqui
e ali.
- Temos uma desvantagem numérica de pelo menos vinte para um. - Comentou para si mesmo. - Nem o Macro apostava em nós, com esta proporção.
Ao passar os olhos pelo terreno que rodeava o forte, Cato avistou vários grupos de homens acampados na outra margem, em frente à curva que o rio descrevia em torno
do montículo onde o forte fora construído. Também já não havia, portanto, qualquer possibilidade de fuga por esse lado. Seria precisa muita coragem para atravessar
a nado a feroz corrente, tentando evitar as rochas meio submersas sobre as quais a água borbulhava. E mesmo que tal fosse possível, quem o fizesse teria ainda que
escapar ao inimigo antes de conseguir sair do vale e alcançar o posto romano mais próximo, de onde poderia ser lançado o alarme. Seria uma missão suicida, concluiu.
Mas poderia vir a tornar-se necessária, se a cobertura que acinzentava o céu não se abrisse. As nuvens pesadas e escuras estavam muito baixas, obscurecendo os cimos
das colinas que rodeavam o vale, e tinham-se tornado.mais ameaçadoras desde a alvorada, reduzindo progressivamente a visibilidade. Seria inútil acender o sinal.
De forma alguma o fumo seria visível em Gobannium, ou noutro posto próximo. O que queria dizer que a guarnição estava por sua conta.
Reprimiu um bocejo, determinado a não exibir qualquer sinal de cansaço, e virou-se para a sentinela mais próxima.
- Avisa-me assim que o inimigo se movimentar. - Sim, senhor. - O legionário saudou-o e concentrou a atenção no exército de Carátaco, enquanto o comandante do forte
descia a escada para a casa da guarda. Lá em baixo, Cato verificou que Macro já se encarregara de tratar do entulhamento da passagem entre o portão externo, agora
arruinado, e o interno. O bloco de casernas mais próximo tinha sido canibalizado, e o entulho da demolição estava a ser levado pelos homens em cestos de vime e despejado
e compactado na passagem.
Macro acenou-lhe. - Isto vai estar despachado daqui a pouco. Por aqui os sacanas já não entram.
- Excelente. - Respondeu Cato, satisfeito. Era menos um ponto fraco nas defesas com que tinha que se preocupar.
Macro baixou o tom de voz enquanto prosseguia. - Já é conhecido o número de baixas? Cato suspirou. Um escriba tinha-lhe levado o relatório logo às primeiras horas
do dia.
- Doze mortos, dezoito feridos. A maior parte vítimas dos fundibulários. Teremos que tomar cuidado para não nos expormos desnecessariamente na muralha, daqui para
a frente. O risco é demasiado.
- E o que não é, nesta situação? - É bem verdade. - Cato esfregou a testa e avistou Décimo, ainda com equipamento de legionário vestido, a coxear vindo da direção
do quartel-general, com uma malga de estanho e uma caneca, avançando com cuidado por entre a lama e as poças de água. Ao levantar a vista e avistar o comandante,
apressou o passo.
- Senhor, trouxe-lhe qualquer coisa para comer. Tem que manter as forças, por isso aqui está algum guisado e posta.
Grato, Cato pegou na malga e apercebeu-se da fome que tinha, depois daquela noite agitada. O guisado estava mais morno do que quente, e ele engoliu-o à pressa.
Macro lambeu os lábios. - Há mais disso? Décimo olhou-o. - Lamento, senhor, mas acabou-se. - Estou a ver. - Macro deu-lhe um piparote no nariz. - Espero que o tenhas
apreciado tanto como o prefeito.
Décimo baixou o olhar, algo intimidado. - Achei que era uma pena deixá-lo arrefecer, senhor. - Não duvido. - Ripostou Macro, sarcástico. Por momentos, Décimo manteve
o olhar no chão, ansioso, até que conseguiu reunir a coragem para levantar uma questão.
- Senhor, há alguma possibilidade de nos safarmos desta com vida? Cato mastigou um pedaço de carne e engoliu antes de responder. - Há sempre esperança. Os ombros
de Décimo descaíram, e ele assentiu, com ar resignado. Cato observava os semblantes dos homens que passavam, enquanto acabava a parca refeição. Tinham um ar cansado,
mas resoluto. Havia mesmo alguns que discutiam animadamente com os camaradas. Ter conseguido repelir aquele primeiro assalto tinha levantado o moral da guarnição.
Contudo, isso não teria sido necessário. Aqueles homens eram legionários, profissionais batidos, habituados ao perigo e à dureza das condições de vida, e imbuídos
de um firme sentido de tradição e da necessidade de preservar a honra da legião a que pertenciam. Desempenhariam o seu papel sem problemas. Eram os auxiliares que
preocupavam Cato. O seu moral era mais incerto, um problema exacerbado pelos excessos a que os conduzira o centurião Querto. Embora o seu efetivo tivesse sido reposto
por legionários transferidos da outra coorte que compunha a guarnição, Cato sentia que o moral era mais frágil. Estavam habituados a sair em patrulha e a atacar
o território inimigo. O tipo de combate a que se viam agora obrigados, estático, a pé, exigia uma determinação firme. Nos dias que se avizinhavam, ambas as unidades
iam ser levadas ao limite, disso não havia dúvidas.
Como que em resposta aos seus pensamentos, viu Querto a aproximar-se, cruzando o espaço aberto por trás da muralha.
- Aí vêm mais problemas. - Comentou Macro. - Não necessariamente. - Com este tipo, diria eu que sim, necessariamente. Cato endireitou-se e empertigou-se, enquanto
o trácio se aproximava e fazia uma saudação quase informal ao seu superior.
- Uma noite complicada, senhor. Mas demos-lhes uma boa lição, e pusemo-los a correr de volta aos braços das mãezinhas.
- A sério? - Macro coçou a pelugem que lhe nascia no queixo. - Achas portanto que já ganhámos?
- Por agora. Não se atreverão a lançar outro assalto frontal tão cedo. - Adiantou Querto, confiante. - Sobretudo agora, que demonstrámos, definitivamente, que têm
todas as razões para nos temer.
Macro deitou um olhar de relance a Cato e arregalou um olho. - Somos uns heróis do caralho, hã? Cato ignorou o comentário e dirigiu-se ao trácio. - Suponho que vens
apresentar um relatório? - Sim, senhor. Os meus cavalos. Temos aveia para os alimentar ainda por uns dias, como sabe, mas também vão precisar de água.
- Claro que vão. Há muita nas cisternas do forte. E ainda mais no poço.
Querto abanou a cabeça. - Vão esvaziar a cisterna em poucos dias. E quanto ao poço, secam-no ainda mais depressa.
- Estou a ver. Nesse caso, teremos que lhes racionar a água e a comida. - Senhor, isso não é possível. A comida pode ser reduzida, mas os animais não podem passar
sem água. Se é que os queremos manter em estado de utilização.
- O que sugeres então? Querto fez um gesto para as traseiras do forte. - Há um trilho estreito que percorre a falésia daquele lado. Tem largura suficiente para um
homem levar um cavalo a passo. Os meus rapazes podem levá-los ao rio para beberem.
Cato ponderou a sugestão. - Será melhor fazê-lo a coberto da escuridão. - É demasiado perigoso, senhor. Se põem uma pata fora do caminho, caem para o rio. Só podemos
usar o trilho durante o dia.
Cato suspirou, exasperado.
- Trata disso, então. Vê se arranjas uma escolta aos homens que levarem os cavalos, não vão os siluros preparar algum truque.
Pensou que a conversa estava acabada, mas Querto deixou-se ficar. - Centurião, há mais alguma coisa? - Só a questão do que tenciona fazer a seguir... senhor. - Fazer?
- Sou o segundo na cadeia de comando. Se tombar, terei que dar ordens de acordo com as suas intenções.
Cato sorriu sem vontade. - Tenciono defender o forte. Querto acenou na direção do acampamento inimigo, já sem qualquer sinal de bazófia na voz.
- Conseguimos pará-los uma vez, mas não o conseguiremos fazer sempre. Se continuarmos a perder homens ao ritmo do que sucedeu esta noite, será uma questão de mais
uns ataques até termos tão pouca gente na muralha que eles conseguirão penetrar facilmente no forte.
- Agradeço-te a avaliação cuidada. - Ripostou Cato, brusco. - Não podemos ficar aqui aprisionados. Temos que sair. - Não me parece possível. Caso não tenhas reparado,
estamos cercados.
- Teremos que romper o cerco. Enquanto ainda temos homens suficientes para isso. - Querto olhou para o céu. - Se o tempo se mantiver, a noite será escura. O suficiente
para cobrir a nossa fuga.
- E também para andarmos aos encontrões uns aos outros, se não esbarrarmos com o inimigo.
- E porque não usar os prisioneiros como escudo? O Carátaco não permitiria que os seus homens nos atacassem se isso pusesse em perigo o irmão e os outros.
Cato abanou a cabeça. - Talvez não. Mas, dado o sofrimento que provocaste aos teus vizinhos nos últimos meses, atrevo-me a imaginar que o Carátaco dificilmente conseguiria
refrear os seus aliados. Tudo o que eles querem é massacrar-nos e levar as nossas cabeças como troféus. É demasiado arriscado. Querto, já debatemos este assunto.
A nossa melhor hipótese é aguentar até que cheguem reforços. É essa a minha decisão.
O trácio deitou-lhe um olhar gelado. - É a decisão errada. - Antes que Cato pudesse responder, virou-se e afastou-se para junto dos seus homens, que descansavam
na rampa interna.
Macro olhou-o com hostilidade. - O inimigo far-nos-ia um favor se acertasse uma boa cacetada naquele monte de esterco.
Cato estava demasiado fatigado para comentar. Acabou o guisado e esvaziou a caneca. Esfregou o queixo, pensativo.
- Parece-me que é altura de fazer entrar em cena o Marídio e os outros prisioneiros.
Tinha recomeçado a chover; na muralha, dúzias de homens observavam curiosos enquanto dois legionários colocavam uma escada até ao chão no exterior do forte, junto
à passagem sobre o fosso. Ao lado deles, Macro olhava preocupado para Cato.
- Miúdo, isto não é boa ideia. Cato fez um gesto na direção dos prisioneiros, agrupados junto à casa da guarda, sob vigilância apertada de vários soldados.
- Acho que assim podemos ganhar mais algum tempo. - E o que te faz pensar que o Carátaco vai concordar? - O mais provável é que não concorde, mas vai pelo menos
considerar a ideia. E cada hora que lhe levar a ponderar o problema, aumenta as nossas possibilidades de sobreviver ao cerco.
- Nem por isso. Tu mesmo o disseste. Estamos num grande sarilho, e enquanto as nuvens persistirem ninguém no resto do exército fará a mais pequena ideia do que enfrentamos.
- Macro juntou uma bola de saliva e lançou-a sobre a muralha. - Foda-se, o tempo nesta merda de ilha é realmente inacreditável. Só mesmo um cão raivoso ou um celta
é que se atrevem a passear debaixo desta invernia permanente, digo-to eu.
Cato sorriu, enquanto o amigo prosseguia, em tom menos apaixonado. - Tem cuidado. Se suspeitares de alguma marosca, raspa-te e corre para a escada. Vou manter aqui
um grupo de homens com dardos para te proteger.
Cato pensou na ideia e acabou por assentir. - Acho bem. Mas mantenha-os escondidos. A situação é dúbia para ambos os lados. Se o Carátaco tiver a ideia de que o
estamos a atrair a uma armadilha, perdemos toda e qualquer hipótese de voltar a parlamentar. Bom, o melhor é pôr-me a caminho.
Acenou ao trombeteiro, e o trácio levantou o instrumento recurvo e soprou uma nota grave que se espalhou por todo o vale. Assim que Cato notou que alguns dos inimigos
se tinham virado para o forte para verem o que se passava, passou uma perna sobre o parapeito e pôs o pé no último degrau da escada. Quando sentiu um apoio sólido,
começou a descer. Na base da escada afastou-se e ergueu as mãos na direção do parapeito. Macro deixou cair uma haste de estandarte sobressalente. Tinha-lhe sido
amarrada na ponta uma flâmula vermelha, e Cato levantou-a e agitou-a de lado a lado, sobre a cabeça. Depressa seria notado, e o vermelho da flâmula e da sua capa
militar contrastariam com a erva e a urze acastanhadas que cobriam o terreno. Desceu cuidadosamente para o fosso, escolhendo o caminho por entre os corpos que ali
jaziam. Alguns, que ainda viviam; gemiam debilmente e lançavam uma mão suplicante enquanto ele passava. Nada podia por eles, e esforçou-se por ignorar o sofrimento
que o rodeava até chegar à outra face do fosso e começar a descer a encosta, ainda a agitar a flâmula, enquanto a buzina continuava a soar na muralha. Em redor,
o persistente silvo da chuva contribuía para dar ao dia um aspeto lúgubre.
- Senhor, não avance mais! - Gritou-lhe Macro. - Mantenha-se dentro do raio de ação dos dardos!
Cato deteve-se. Continuou a agitar a flâmula em círculos, à medida que o pano ia ficando ensopado pela chuva. Mais abaixo, só conseguia distinguir os mais próximos
dos inimigos, já que o resto da paisagem se tornava cinzenta e indistinta na neblina húmida que tinha engolido o vale. Viu que um dos homens que constituía o perímetro
de defesa do acampamento se virava e corria para uma barraca de maiores dimensões, embora de aspeto improvisado, feita de ramagens e arbustos, instalada no centro
da multidão que maioritariamente continuava a viver ao relento, sem abrigo da chuva. Pouco depois, saiu da barraca um grupo de personagens; puseram-se todos a olhar
para o solitário oficial romano a uns quatrocentos metros de distância. Depois do que pareceu uma rápida troca de impressões, Cato viu um dos homens dirigir-se a
passos largos para um grupo de cavalos ali próximo, soltar uma montada branca e saltar-lhe para o dorso. Virou o animal na direção de Cato e aproximou-se num passo
ligeiro. Os seus homens levantaram-se, e alguns aclamaram-no, enquanto ele passava e atravessava a linha de sentinelas, a caminho do forte. Refreou o andamento do
animal ao acercar-se de Cato, e foi a passo que veio até uns metros do jovem prefeito antes de se deter, enquanto lançava um olhar desconfiado sobre o terreno circundante
e a muralha do forte, repleta de soldados.
Cato pousou o sinal. - Queres parlamentar, romano? - Perguntou Carátaco no seu latim com sotaque.
- Quero, sim. - Cato designou os cadáveres mais próximos no terreno. - O assalto da noite passada custou-te muitos homens. Gostava de te dissuadir de desperdiçar
mais das vidas dos teus homens em ataques tão fúteis.
- Agradeço-te a preocupação. - Retorquiu Carátaco, sem emoção. - Mas tenho toda a intenção de tomar o teu forte e de o queimar de alto a baixo. - Fez um gesto para
o céu, e um sorriso atravessou-lhe os lábios. - Se o tempo o permitir.
- Não consegues tomar o forte. A nossa posição é demasiado boa, e não tens engenhos de cerco, nem os conhecimentos requeridos para construir as armas necessárias
a desbastar as nossas defesas.
- Ora, tudo de que precisamos é de um aríete decente. E mesmo um bárbaro incivilizado tem a inteligência necessária para arranjar uma coisa dessas, como já viste.
- Sim, estive muito tempo a admirar o maravilhoso trabalho rústico do aríete que capturámos. O portão, já agora, foi bloqueado com entulho, pelo que outro aríete,
mesmo que mais sofisticado, seria completamente inútil. Tudo o que te resta são os assaltos frontais. E já vimos qual é o resultado dessas ações.
- Sofremos as nossas baixas, sim. - Admitiu Carátaco. - Mas também vocês as sofreram. E permito-me suspeitar que posso bem perder mais homens do que tu. Além disso,
muitos dos meus seguidores têm família nestes vales em redor, e os seus corações ardem de desejo de vingar todos aqueles que vocês massacraram. É minha intenção
continuar a atacar Bruccium até o destruir e todos os romanos que lá estão dentro serem mortos.
Por momentos, Cato ponderou explicar que tudo aquilo fora obra de Querto, mas compreendeu que isso pouca diferença faria a homens que viam todos os romanos como
opressores brutais. Suspirou.
- Temi que fosse essa a tua resposta, sim. - Cato ergueu duas vezes a flâmula, o sinal que tinha combinado com Macro. Carátaco reagiu com desconfiança.
- Que truque é este? - Não há nenhum truque, asseguro-te. Sabes que temos prisioneiros, e que entre eles se encontra o teu irmão, Marídio. Se olhares para ali, para
a muralha, do lado esquerdo do torreão, poderás vê-los dentro de momentos.
Os dois comandantes observaram enquanto uma fila de homens e algumas mulheres se arrastaram até ao parapeito, sob a vigilância de Macro e de alguns legionários.
À sua frente vinha Marídio, uma figura alta e orgulhosa. Assim que avistou Carátaco soltou um brado, e Macro avançou rapidamente e deu-lhe uma bofetada com força.
- Cala-me essa boca bárbara! Cato não evitou um ligeiro estremecimento perante a violenta ação tomada para calar o homem, e notou que a expressão de Carátaco se
toldava. Aclarou a garganta e adotou um tom duro ao dirigir-se de novo ao comandante inimigo.
- Quero que saibas que, se for lançado um novo assalto ao meu forte, executarei dez dos meus prisioneiros, ali mesmo, à vista de todo o teu exército, e colocarei
as suas cabeças em estacas no torreão, para te recordar a loucura que cometes. Se isso não for suficiente para te deter, seguir-se-á o teu irmão. Mas no caso dele
tratarei de garantir que a sua morte seja lenta e dolorosa. Será crucificado no cimo da muralha. Ouvi dizer que um homem pode levar até três dias a morrer na cruz.
Marídio, como bem se nota, é um excelente guerreiro. Duro e forte. Com toda a certeza resistirá bastante tempo antes de se finar. - Cato falou num tom frio e calculista,
determinado a esconder o nojo que sentia pelo cenário que apresentava.
- É esta, portanto, a civilização romana. - Contrariou Carátaco com desprezo. - Os vossos costumes pouco mais são do que a montagem de espetáculos cruéis. Tal como
sempre me disseram.
Cato abanou a cabeça. - Isto nada tem de civilizado. Isto é a guerra. Ameaças chacinar-me, a mim e aos meus homens. É meu dever fazer tudo o que puder para evitar
tal fim. Não me deixas qualquer escolha.
- Estou a ver. - Os olhos de Carátaco semicerraram-se, revelando a argúcia do rei nativo, e ele encarou Cato. - Romano, sinto perfeitamente que o teu coração não
acompanha as palavras que proferes. Estás realmente pronto a executar as tuas ameaças?
- Se voltares a atacar-nos, descobrirás que eu cumpro as minhas promessas. Juro-o. Executarei os prisioneiros no instante em que o primeiro siluro puser o pé no
fosso que rodeia o meu forte. E morrerão às minhas próprias mãos. - Cato enfrentou Carátaco, olhos nos olhos, desafiando o inimigo a duvidar da sua palavra. O rei
celta fixou-o sem hesitar, até que olhou por cima do ombro de Cato para o irmão e os outros na muralha.
- Duvido que tenhas coragem para tal. - Um erro teu. - Então, romano, deixa-me fazer também uma promessa, a ti em especial. - Foi a vez de Carátaco erguer a voz,
para que fosse audível a todos os que ocupavam a muralha. - Se fizeres o que prometes e matares aqueles que tens cativos, juro por todos os meus deuses que terei
ainda menos piedade contigo e com os teus homens. Tomaremos o forte, e se tiveres executado um que seja dos teus prisioneiros, capturar-vos-emos vivos, todos os
que sobreviverem ao assalto. Depois, serão esfolados vivos, um por dia, em frente aos seus camaradas. E tu serás o último... E agora, faço-te uma oferta. A mesma
que fiz anteriormente. Entrega-me os prisioneiros, e permitir-te-ei deixar o vale. Não sou um homem pouco razoável. Vou-te dar um dia para ponderares esta oferta.
Se a recusares, voltaremos a atacar. E se tiveres maltratado o meu irmão ou algum dos outros, já sabes o destino que te espera. Não voltaremos a trocar mais palavras.
- Puxou pelas rédeas, fez o cavalo rodar e afastou-se a trote pela encosta. Cato ficou a vê-lo, tentado a chamar Macro e a dizer-lhe para os homens lançarem uma
salva de dardos contra o comandante inimigo. Com Carátaco morto, a coligação de tribos que ainda resistia a Roma depressa entraria em colapso. Mas o momento passou;
Carátaco acelerou o cavalo, e depressa deixou de estar ao alcance dos mísseis.
Cato suspirou de frustração perante a sua incapacidade de decidir, apesar de saber que não estava na sua natureza ter um gesto tão implacável como o de quebrar as
regras da negociação. Carátaco tinha-o adivinhado, e Cato sentiu um desespero pesado pelo falhanço que registara na tentativa de esconder o seu caráter. Pôs o cabo
do estandarte ao ombro e voltou para o forte, pensativo.
29
As horas que faltavam até ao fim do dia foram passadas a preparar tudo
enfrentar novo assalto. Das forjas do forte vinha o som de martelos a repicar; Macro supervisionava a produção de estrepes, as pequenas peças de ferro com quatro
pontas que eram normalmente espalhadas pelo terreno em redor de uma posição romana, para quebrar o ímpeto das cargas inimigas. Um pé ou casco que fossem empalados
por uma daquelas peças era o suficiente para deixar um homem ou cavalo inapto para prosseguir em ação. Não existia nos armazéns do forte nenhum exemplar, e Macro
tivera que dar ordens para fundir pontas de dardos sobressalentes, e até o punhado de barras de ferro que tinham sido levadas para fazer trocas com os nativos, antes
de Querto ter adotado uma estratégia menos diplomática. O fumo saía da forja, mas era rapidamente dissipado pela brisa que acompanhava a chuva, antes mesmo de ser
engolido pelas nuvens baixas.
- O problema é que não conseguimos fabricar assim tantos que deem para fazer grande diferença. - Explicou Macro a Cato, quando este foi verificar o progresso dos
trabalhos, já a tarde ia adiantada. O calor na forja era intenso, e o ferreiro e os seus assistentes trabalhavam apenas de tanga. Suavam profusamente enquanto vigiavam
a fornalha e faziam turnos nos foles que eram usados para manter o fogo a alta temperatura. O ferro fundido era vertido para um molde feito de forma apressada que
produzia peças em forma de V, um par das quais era depois unido e martelado enquanto ainda incandescente. O centurião limpou a testa e indicou uma tina de madeira
que estava cheia até cerca de um quarto da altura com as escuras e aguçadas peças. - Mal cobrirão um décimo do comprimento do fosso frontal. Temos material suficiente
para o resto da frente, mas não para os outros lados do forte. E o que temos só estará acabado daqui a quatro ou mesmo cinco dias.
- Bom, já é qualquer coisa. - Resignou-se Cato. - Para começar, vamos colocá-los de forma dispersa, e esperemos que possam ferir homens suficientes para os fazer
avançar de forma mais cautelosa da próxima vez.
- Achas portanto que o Carátaco vai atacar, apesar da tua ameaça? - Tenho a certeza disso. Sei que se estivesse no lugar dele o faria.
- E vais cumprir o que prometeste? O que juraste fazer aos prisioneiros?
Cato respirou fundo e assentiu. - Tenho que o fazer. Pelo menos da primeira vez. Talvez ele receie depois causar a morte do irmão. Vai ser um mau momento, Macro.
Muito mau mesmo. Mas terá que ser feito.
- Não tens que o fazer pessoalmente. - Assinalou Macro, com pesar na voz. - Só terás que dar a ordem. Outro qualquer pode fazê-lo. Eu fá-lo-ei, se quiseres. Ou pede
ao Querto. Esse fá-lo-á com todo o prazer, já que nunca quis fazer prisioneiros nos seus ataques.
- Não. Terei que ser eu mesmo. - Disse, Cato, em tom resignado. - O Carátaco tem que perceber que eu concretizo as minhas ameaças. Além disso, será bom para os homens
verem que sou tão implacável como o trácio. Não quero que fiquem dúvidas a ninguém de que quando digo que vou matar alguém, o faço mesmo. Será bom para a disciplina.
Macro arregalou as sobrancelhas, estupefacto. - Bem, miúdo, se tens a certeza... Caro sorriu-lhe em resposta. - A única coisa que me conforta é a Júlia não estar
cá para ver isto. - Não te preocupes com ela. Ela sabe perfeitamente o que significa ser um soldado. A Júlia já viu mais do que sua dose de morte e destruição. Ela
compreenderia.
- Matar no calor da batalha é uma coisa. Isto é algo completamente diferente.
Macro encolheu os ombros. - No fundo é tudo a mesma coisa, por muito que lhe dês outras roupagens.
Cato olhou para o veterano, tentando perceber o que ele sentia realmente.
- Acha mesmo? - Não acho, sei. - Macro pegou num pedaço de pano molhado e humedeceu a face. - Matar é matar, quer lhe chames assassínio ou guerra. A única coisa
é que quando um daqueles cabrões lá de cima resolve adotar uma política que leva à morte de outros, transforma-a em algo mais aceitável. Mas vai lá dizer isso às
vítimas! - Macro soltou uma gargalhada seca, mas rapidamente franziu o sobrolho quando viu um dos ajudantes do ferreiro a deixar-se cair num banco e a pegar num
cantil. - Tu aí, de pé, e já! Nada de mandriar! Não vamos ter folgas até eu dizer que já chega.
O legionário ergueu-se a custo, e voltou a pegar no martelo e na pinça antes de agarrar em mais duas peças de ferro incandescente e começar a martelar outro estrepe.
- Cato, tenho que voltar ao trabalho. - Muito bem. Mas trate de descansar esta noite. Se o Carátaco voltar a tentar um ataque antes da alvorada, quero-o fresco para
o combate.
- E tu? Vais dormir alguma coisa? - Vou tentar. Macro abanou a cabeça enquanto sorria tristemente, e voltou a concentrar a sua atenção no fabrico das pequenas mas
eficientes peças.
Cato ficou aliviado por deixar a sufocante atmosfera da forja, e apreciou a brisa fria no exterior. As nuvens continuavam a pesar sobre a paisagem, e embora a noite
não caísse senão daí a cerca de uma hora, a luz parecia estar já a esmorecer. Voltou-se para o bloco dos estábulos que estava a ser usado para manter os prisioneiros,
e preparou-se para a dura tarefa que o esperava.
Não tinha dado mais do que alguns passos quando avistou Querto a emergir da via entre a messe dos oficiais e uma das casernas dos trácios. O centurião também o detetou
imediatamente, e dirigiu-se de pronto a ele.
- Senhor, uma palavra. Cato deteve-se e respondeu em tom tenso. - Que se passa? - Senhor, preciso de autorização para dar de beber aos cavalos. Como já mencionei,
levá-los-ei ao rio, um esquadrão de cada vez, e vou colocar piquetes quer a montante quer a jusante, para o caso dos siluros tentarem alguma surpresa.
Cato anuiu. Era um plano sensato. - Muito bem. Assegura-te de que não correm riscos desnecessários. Ao primeiro sinal de problemas, quero que recues com os homens
para o forte, imediatamente. Se o Carátaco nos quiser cortar o acesso ao rio e ficarmos sem água, poderemos ter de sacrificar os cavalos mais cedo do que pensávamos.
Querto hesitou um instante antes de responder. - Será feito como ordena. O trácio voltou-se e caminhou de volta à messe dos oficiais. Cato ficou a vê-lo afastar-se,
e não evitou um comentário murmurado para si mesmo.
- Ora bem, aqui está uma mudança de atitude... Talvez o homem estivesse a começar a aceitar que não podia desafiar a autoridade do prefeito. Uma pena que tivesse
sido necessário verem-se naquela situação apertada para que ele admitisse a derrota, pensou Cato. Enfim, era menos um problema a perturbar-lhe o já congestionado
pensamento. Ou mais uma coisa a considerar suspeita, avisou uma vozinha no fundo da sua consciência. Cato mordeu os lábios enquanto via o trácio a ir-se. Raio do
homem, pensou.
- Põe os teus a pé. - Ordenou Cato a Marídio. As condições no estábulo eram as que se podiam esperar para prisioneiros num forte cercado. Todos os homens eram necessários
nas muralhas, pelo que só meia secção, quatro homens, tinha ficado com a tarefa de vigiar os siluros. Estes tinham as mãos agrilhoadas por trás das costas, e uma
corrente que passava pelos aros de ferro das algemas ia-se prender às colunas de troncos maciços que suportavam as vigas do estábulo. Não havia qualquer possibilidade
de os prisioneiros se soltarem e atacarem os defensores do forte. Também não havia qualquer possibilidade de lhes ser concedido acesso às latrinas, pelo que o ar
estava fétido com o cheiro a excrementos humanos e o acre odor a suor que se instalavam em sítios onde muitas pessoas fossem forçadas a ficar juntas durante muito
tempo.
O príncipe dos catuvelaunos sentou-se de costas direitas e enfrentou o olhar de Cato com ar de desafio. Não se dignou a responder à ordem. Cato virou-se para os
legionários que tinham entrado no estábulo com ele.
- Ponham-nos de pé. Os legionários avançaram e começaram a distribuir pontapés aos prisioneiros com as botas pesadas, bem como golpes com as pontas rombas das hastes
dos dardos. O súbito irromper da violência fez os prisioneiros desatar aos berros em protesto e dor, mas apressaram-se a levantar-se e ali ficaram num grupo, ao
centro do espaço, recolhendo-se de novo ao silêncio enquanto Cato os contemplava com ar severo, até que só o tilintar da corrente presa aos postes e o arrastar ocasional
de pés sobre a palha se ouviam. Cato observou-os cuidadosamente, notando o sebo e a lama que lhes cobriam as roupas, a pele e o cabelo. Havia entre eles alguns homens
e mulheres mais idosos, e um punhado de crianças assustadas, abraçadas aos pais. A aparência lamentável daquela gente provocou em Cato um momento de piedade, mas
ele forçou-se a reprimir tal sentimento.
Precisava de selecionar dez deles. Dez para executar no dia seguinte, se Carátaco fizesse alguma tentativa de assaltar o forte. Mas quem escolher? Cato sentiu um
princípio de náusea na boca do estômago. O poder de vida ou morte que detinha naquele momento assoberbava-o. Tinham sido porém as suas palavras a conduzi-lo àquele
momento, em que se tornava premente a escolha. Tinha que assumir todas as consequências da promessa que fizera ao comandante inimigo. Contudo, quem devia ele escolher?
Os mais velhos? Já tinham tido uma vida preenchida, e eram os que menos tinham a perder. Os jovens? Seriam os mais fáceis de conduzir à execução, e as suas mortes
teriam um impacto muito maior no inimigo do que a perda dos anciãos. Mas porque haveria de existir maior sentimento de perda acerca de uma vida ainda mal começada,
comparada com a perda de uma vasta experiência? Onde estava a lógica dessa ideia? E quanto aos homens em idade de combater? Numa guerra, seria a sua perda que deveria
ser mais profundamente sentida, mais que não fosse porque eram os que maior contributo poderiam dar à capacidade guerreira da sua nação; e ainda assim, seriam as
suas mortes as que menos pesariam nos corações e nas mentes do seu povo.
Um dos legionários tossiu, e Cato apercebeu-se de que tinha estado a contemplar os prisioneiros durante algum tempo, sem tomar qualquer decisão. Irritou-se consigo
mesmo por passar tanto tempo a deliberar o destino daquela gente. A verdade, pura e simples, era que não existia uma resposta correta à questão de selecionar os
que deveriam morrer. Era um soldado com uma tarefa a desempenhar, e nada mais havia para além disso. Cato avançou e apontou para o mais próximo dos nativos.
- Levem este e outros nove lá para fora. Acorrentem-nos na casa da guarda da entrada principal.
- Sim, senhor. - Confirmou o optio que comandava a secção. - E coloca o Marídio na cela da cave do quartel-general. Coloca um dos teus homens à porta. Quero-o vigiado
em permanência. É demasiado precioso para permitir que lhe aconteça alguma coisa. Se ele tentar matar-se, o teu soldado será visto como responsável pelas consequências.
Entendido, optio?
- Sim, senhor. Cato deitou uma última olhadela aos prisioneiros. - Prossegue, então. - Virou-se e saiu. Estava feito, tudo o que era preciso para decidir o destino
de dez pessoas, refletiu, uma decisão arbitrária e uma ordem simples. Devia sentir-se livre do peso da responsabilidade, mas não conseguia. De facto, aquela decisão
pesava-lhe no coração como uma enorme pedra que lhe moía a alma e a reduzia a poeira.
A luz desaparecia quando Cato deixou os prisioneiros e fez uma última ronda pelo forte, para ter a certeza de que os seus homens estavam prontos a enfrentar toda
e qualquer coisa que o inimigo lançasse contra eles naquela segunda noite de cerco. Ao seguir pela muralha que dava para o rio avistou alguns dos trácios lá em baixo,
a conduzir cavalos em fila pelos últimos metros do trilho que levava ao rio. Outros homens, desmontados, ocupavam posições na encosta íngreme, mantendo-se atentos
a qualquer aproximação de elementos inimigos. A inconfundível figura de Querto já se via na margem, a dar de beber ao seu cavalo. Ao olhar para a outra margem, Cato
compreendeu que os nativos não tinham possibilidade de intervir. Mas isso depressa mudaria, considerou. Carátaco depressa disporia fundibulários junto à margem,
para impedir qualquer nova tentativa de os defensores levarem as montadas ao rio.
Depois de completar a ronda da muralha, Cato voltou a subir à plataforma do torreão na entrada principal do forte, para avaliar as atividades do inimigo, antes de
voltar aos seus aposentos e comer qualquer coisa. Depois, seria altura de determinar a senha para aquela noite e descansar algumas horas. Tinha decidido confiar
o segundo turno da noite a Macro, em quem podia confiar para dar o alarme a tempo se Carátaco resolvesse tentar novo assalto noturno. A subida da escada pareceu-lhe
extenuante, e só então Cato se apercebeu de que não tinha pregado olho em quase dois dias. Ao pensar nisso, nada lhe pareceu mais apetitoso do que a perspetiva de
passar umas horas na simples cama de campanha que o aguardava nas modestas acomodações do comandante da guarnição.
A chuva tinha parado, e no chão do vale as trevas crescentes eram rasgadas pelo brilho avermelhado das fogueiras. Cato avistou um grupo de nativos a trabalhar arduamente
na orla da parada, entretidos a limpar troncos de árvores. A atividade não o perturbou grandemente, até que o seu olhar foi pousar noutro grupo de guerreiros atarefados
a agrupar e amarrar conjuntos de pinheiros ainda jovens, com troncos flexíveis. Eram coisas demasiado grandes para feixes incendiários, e então percebeu que Carátaco
dera ordens para fazer placas para atravessar o fosso. Assim que a noite caísse deviam começar a levá-las para a frente. Atirá-las-iam para o fosso e assim, a pouco
e pouco, construiriam várias passagens sobre aquela defesa, o que lhes permitiria trazer aríetes para desbastar outras secções da muralha. Era evidente que os siluros
estavam absolutamente determinados a prosseguir o ataque. Nada os impediria de tomar Bruccium, refletiu Cato. Lá se iria o seu comando. Não ia durar mais de um mês.
- Foda-se, que raio estou eu para aqui a pensar? - Perguntou-se repentinamente, num murmúrio exasperado. Não tinha nenhum direito de ser derrotista, muito menos
quando as vidas de centenas de homens dependiam da sua liderança. Era a mais desprezível e vergonhosa indulgência, e sentiu-se revoltado e com asco de si mesmo.
Não pela primeira vez, Cato sentiu que estava apenas a desempenhar o papel de um prefeito, e que o seu verdadeiro receio era que alguém o descobrisse. Outros homens,
verdadeiros soldados profissionais, veriam sem dificuldade o que estava por trás da máscara. O pior de tudo seria que Macro reconhecesse por fim aquilo que ele realmente
era. Perder o respeito do veterano partir-lhe-ia o coração. Desde o início que aquela fora uma amizade estranha, refletiu. A princípio, Macro quase desanimara perante
os seus esforços vãos de aprender o ofício de soldado, mas a seu tempo o jovem tinha demonstrado coragem e engenho suficientes para conquistar o centurião. E tinha
sido a aprovação de Macro que tinha dado a Cato a alma para prosseguir, para combater, para subir nas fileiras, até se tornar superior hierárquico do seu próprio
mentor.
Macro tinha sido para ele mais do que o seu próprio pai, muito mais do que um irmão. Era aquela a peculiar ligação entre soldados, compreendeu. Uma ligação mais
poderosa do que os laços de família, não amor, talvez, mas algo ainda mais essencial, ainda mais exigente.
Soltou um suspiro exasperado. Lá estava ele outra vez! Aquela incessante autoanálise que não servia qualquer propósito. A mente divagava-lhe apenas porque estava
fatigada, concluiu. Precisava realmente de descansar. E muito.
Voltou as costas ao acampamento inimigo, deixou o torreão e regressou aos seus aposentos, onde Décimo lhe levou o que restava do pão, já seco e duro, e um triângulo
do queijo de cabra local. Era uma pobre refeição, e Cato pouco apetite tinha, mas obrigou-se a comer, sabendo perfeitamente que precisava de energia para se aguentar
durante as provações que o cerco ainda o faria passar. A reunião vespertina com os oficiais foi rápida e inócua, já que todos sabiam muito bem o que fazer, e pouco
de novo tinham a relatar. Cato dispensou-os rapidamente e retirou-se para o quarto, tirando o cinto com a espada e a couraça, mas deixando as botas calçadas, para
o caso de ser acordado numa emergência; deixou-se por fim cair sobre o leito. Esticou o braço para apagar o pavio da pequena lamparina de óleo que dava uma fraca
luz ao quarto, e tentou descansar sobre a esteira repleta de palha. Fixou o olhar nas quase invisíveis traves de suporte do telhado e nas telhas de madeira. Mais
uma vez, percorreu com a mente as defesas do forte, mas antes de chegar muito longe já tinha caído num sono profundo e sem sonhos, e uma vez sem exemplo começou
a ressonar tão alto como era habitual suceder com o seu amigo Macro.
O estridente som da trombeta levou um momento a acordar Cato, e enquanto se agitava passou por um momento de absoluta incompreensão. Então, com uma ponta de pânico
no espírito, sentou-se direito e completamente alerta. Passou as botas sobre a borda da cama, pegou no cinto da espada e correu para a porta. Ao passar pelo pequeno
pátio avistou os escribas a saírem dos seus aposentos, de caras estremunhadas à luz do braseiro da sentinela. Já havia no horizonte um indício da aproximação da
aurora, e Cato sentiu um princípio de raiva. Porque é que Décimo não tinha ido acordá-lo havia uma hora, como lhe tinha dito? Procurou pelo criado, tencionando dizer-lhe
para lhe trazer o capacete e a armadura e depois ir ter com ele à muralha, mas não havia sinal dele, e não havia também tempo para o buscar. Lá fora, nas ruas que
cruzavam o forte, os homens começavam a sair das casernas, de equipamento na mão, e a correr para as suas posições na muralha. Não se escutavam sons de combate,
nem gritos de guerra vindos do exterior do forte, somente o corropio de botas apressadas e ordens a serem gritadas pelos oficiais das duas coortes que compunham
a guarnição.
Cato deteve-se, incerto quanto à direção a seguir. O instinto dizia-lhe para acorrer à muralha que dominava o acampamento inimigo, mas o som da trombeta vinha da
muralha oposta, nas traseiras do forte. Ao que parecia, Carátaco estava a tentar uma nova abordagem, e Cato correu pela álea que levava ao portão traseiro. Era prática
comum do exército romano construir quatro entradas com os respetivos torreões, mesmo que não viessem a ter grande uso. Bruccium não era exceção, apesar de três dos
portões darem para declives francamente íngremes. Ouviu gritos adiante, e depois o retinir e estalar de armas a entrechocar-se.
- Ao portão das traseiras! - Gritou Cato enquanto corria. - Lá atrás! O grito foi ouvido e repetido, e o tropel de botas pela escuridão seguiu-o e foi engrossando
à medida que mais homens deixavam as casernas e seguiam para o portão na parte de trás do forte. Cato avistou o torreão ao fim da rua, o cimo da plataforma iluminado
pelo brilho de um pequeno braseiro. Por baixo havia vultos a rodopiar, e Cato sentiu um arrepio gelado ao compreender que o inimigo tinha penetrado no forte. Como
fora possível? Era o turno de Macro. Ele nunca permitiria que tal coisa acontecesse.
Nesse instante ouviu o amigo a gritar sobre a confusão da refrega. - Aguentem esses sacanas! Cato puxou a espada da bainha e atirou esta fora enquanto corria a toda
a pressa para o combate. Ao passar por entre o último par de casernas avistou dois ou três homens a guardar cavalos a um dos lados, e uma vintena de outros, trácios,
amontoados junto ao portão interno, enfrentando um punhado de homens que defendia a passagem escura entre os portões. Só então percebeu que o grupo menos numeroso
empunhava escudos de legionários, e usava capacetes inquestionavelmente romanos. Um deles até tinha a crista de centurião. Portanto fora assim. Carátaco tinha usado
equipamento capturado para conseguir entrar no forte, dissimulado.
Macro voltou a gritar. - Não os deixem sair, rapazes! Sair? Cato parou de repente, e derrapou na areia. O que é que se estava a passar ali, afinal? O que era aquilo?
Havia mais homens a juntar-se em redor do torreão, alguns com tochas que tinham tirado dos pontos onde ardiam toda a noite para facilitar as rondas. À luz dos archotes,
a cena começou por fim a tornar-se clara. Querto e um grupo dos seus homens estavam a tentar abrir caminho através da secção de legionários que guardava o portão,
reforçada apenas pelo oficial de serviço, Macro. À medida que mais homens se deparavam com aquele cenário, hesitavam ao ver a escaramuça, sem saber o que fazer,
a que lado se juntar naquela refrega desigual. O comandante dos trácios levantou o olhar, com uma expressão selvagem e temerosa.
- Matem-nos! - Gritou aos seus seguidores. - Agora mesmo, ou estamos feitos!
Cato avançou, de espada em riste. - Querto! - Berrou. - Depõe as armas, tu e os teus homens. Agora mesmo!
Os trácios junto ao portão afastaram-se dos legionários, incertos, virando-se para o prefeito que se aproximava. Em redor, cada vez mais numerosos, apinhavam-se
os legionários e auxiliares que tinham sido acordados pelo alarme. Cato compreendeu o que se passara, e parou a uma distância segura de Querto.
- Estão a tentar desertar... Centurião Petílio! - Senhor? - Respondeu o oficial, no meio da multidão de espectadores.
- Coloca os teus homens no portão, imediatamente! - Sim, senhor! Legionários! Comigo! Vários homens avançaram e colocaram-se entre os trácios e o portão. Já havia
luz suficiente para Cato poder distinguir os homens que seguravam os cavalos, o que o voltou a surpreender.
- Décimo? Pelos deuses, o que estás tu aí a fazer? O criado encolheu-se perante o olhar do superior, largou as rédeas dos cavalos que segurava e foi avançando lentamente,
enquanto olhava alternadamente para Cato e para Querto. Então desatou a correr e foi-se juntar ao grupo que ladeava o oficial trácio. Os outros homens com os cavalos
seguiram-lhe o exemplo e foram juntar-se ao seu comandante. No meio deles, Cato avistou Marídio, de braços amarrados junto ao corpo. Cato olhou-os a todos, colérico,
ainda incapaz de acreditar na evidência da traição que se abria aos seus olhos. Virou-se para o portão.
- Macro? Não houve resposta. Cato rodeou o outro grupo e juntou-se a Petílio e aos seus homens.
- Macro! Diga qualquer coisa, homem! - Ele está aqui, senhor! - Respondeu um legionário, e Cato abriu caminho até à base do torreão. Na penumbra viu um legionário
no chão, quieto e desacordado. Outro estava sentado, com as costas apoiadas na parede, a apertar um braço ferido, uma mão sobre a ferida numa tentativa de estancar
o sangue. Um dos homens estava ajoelhado ao pé de outro vulto, deitado de lado. Cato sentiu o coração aos pulos enquanto se ajoelhava também. Os olhos de Macro piscavam,
e ele gemia baixinho, mas não havia sinal de sangue no corpo.
- Levou uma pancada na cabeça. - Disse um dos homens da guarda do portão. - Foi mesmo antes da sua chegada, senhor.
Cato sentiu-se aliviado, mas depressa a fúria voltou a invadi-lo, e ele pôs-se de pé e virou-se para Querto, de espada em riste, a apontar para o trácio.
- Detenham esse homem! Prendam-nos a todos! - Senhor? - O centurião Petílio pareceu confundido. - Cobardes! - Cuspiu Cato. - Cobardes e desertores! Faz o que te
digo. Prende-os!
Petiio deu um passo na direção do grupo. - Deponham as armas! Querto riu com desprezo. - Não me parece. Se avançares, terás que enfrentar todos os meus homens. Não
é assim, rapazes? Já estamos todos fartos deste cachorrinho romano! Ele não ganhou o direito de vos comandar. Este forte é meu. Este forte é dos trácios! - Rasgou
o ar com a espada, e os homens que o rodeavam soltaram uma primeira aclamação tímida, que repetiram com maior ardor. Cato reparou que alguns dos homens que ainda
estavam no círculo de espectadores se juntavam ao clamor e começavam a atravessar o espaço vazio para se juntarem ao seu comandante. Um arrepio de medo percorreu-lhe
a espinha perante o adensar da ameaça. Avançou e dirigiu-se aos homens que assistiam ao desenrolar da situação.
- Escutem-me! Escutem-me! Os gritos soltos esmoreceram, e Cato espetou um dedo na direção de Querto.
- Este homem, este cobarde, estava a ponto de sair do forte e abandonar-nos à nossa sorte!
- Mentiroso! - Replicou Querto. - Estava apenas a enviar alguns homens para darem o alarme, uma vez que este romano se recusou a dar tal ordem! Por ele, morreríamos
todos aqui! Eu sim, salvar-nos-ia.
Cato apontou para Marídio. - Nesse caso, o que faz o príncipe inimigo aqui? Ias usá-lo como refém para atravessar as linhas inimigas. Não é assim?
Os olhos de Querto semicerraram-se astutamente. - Claro. Se não fosse assim, que hipótese teriam os meus homens? Melhor pô-lo a uso do que deixá-lo apodrecer acorrentado.
- E tu ias ficar para trás, calculo. - Indagou Cato, sem esconder o cinismo com que o fazia. - Depois de enviares estes homens na sua missão?
- Claro. O meu lugar é aqui, ao lado dos meus camaradas. A conduzi-los à batalha.
Os lábios de Cato arreganharam-se. - Mentiroso! Cobarde. A prova da tua traição está ali junto ao portão. Os homens que atacaste de forma a poder fugir do forte.
Tê-los-ias morto a todos e fugido, deixando o portão escancarado para o inimigo entrar. Esperavas sem dúvida que fôssemos todos chacinados, de forma a poderes regressar
a Glevum e relatar que tinhas conseguido escapar rompendo as linhas inimigas, e com um valioso prisioneiro para entregar ao legado. Já percebi todo o teu plano.
- Não estás a ver nada! - Ripostou Querto. Abriu os braços, como que a querer abarcar todos os homens. - Meus irmãos, chegou a hora de recuperar o nosso forte das
mãos deste idiota arrogante! É ele quem deve ser detido! É ele o cobarde, o prefeito que não tem coragem de matar o inimigo, de o eliminar até ao último dos seus
cães de caça. Ele não merece a vossa lealdade. Eu provei-vos o meu valor, uma vez e outra. Sigam-me, irmãos! Sigam-me! E ponham este homem a ferros ao pé da escumalha
silura!
Querto voltou a erguer a espada no ar com um rugido selvagem que foi imitado pelos mais ardentes dos seus seguidores na turba. O coração de Cato martelava-lhe o
peito. Sentia a sua autoridade a esvair-se pelos dedos a cada momento que passava. Tinha que agir enquanto ainda tinha alguma hipótese de convencer os auxiliares
trácios. Podia contar com a lealdade dos legionários, mas estes eram menos numerosos. Se houvesse um combate, seriam derrotados. Só havia uma coisa que podia ainda
fazer para salvar a situação. Tinha que aproveitar a oportunidade que Querto, sem se dar conta, lhe oferecera.
Endireitou-se e avançou até ao espaço vazio entre os legionários e Querto e o seu bando, onde todos o podiam ver com clareza. Ergueu os braços, e a pouco e pouco
o barulho começou a dissipar-se.
- O centurião Querto acusa-me de ser um cobarde. Todos o ouviram. Não aceito um insulto desse calibre de nenhum homem! Todos vocês são soldados corajosos. Só um
oficial igualmente corajoso merece a vossa lealdade. Portanto, vamos testar a coragem. Vamos ver quem é realmente digno de comandar os Corvos Sangrentos! - Apontou
a espada diretamente contra Querto. - Desafio-te a enfrentares-me pelo direito a comandar. Se recusares, isso prova apenas que és o cobarde que eu afirmo que és!
A sua proposta foi acolhida por um silêncio estupefacto, até que Querto avançou e confrontou Cato com um sorriso gélido.
- Queres lutar comigo? - Baixou a voz, de forma a que apenas Cato ouvisse as suas palavras seguintes. - És um idiota chapado, prefeito Cato... e por causa disso,
vais morrer, aqui e agora.
Com um gesto dos ombros, Querto libertou-se da sua capa de pele; depois abriu as fivelas que lhe prendiam a placa peitoral e deixou-a cair no solo, de forma a ficar
apenas com a túnica, como Cato. Era ainda assim quase uma cabeça mais alto, e tinha a largura de ombros correspondente. Deixou a lâmina da espada descansar contra
o ombro.
- Queres resolver isto com a espata ou o gládio? Cato pensou rapidamente. A espata, a arma típica da cavalaria, tinha maior alcance e era mais pesada, mas era com
a arma dos legionários que tinha treinado e era com ela nas mãos que tinha travado inúmeros combates em todas as campanhas em que já tinha participado.
- Fui legionário muito antes de ser prefeito. Combaterei portanto como um legionário deve fazer.
Querto sorriu como um lobo que vê a presa cair ao seu alcance. - Como desejares. Comecemos então. Abram espaço! - Berrou, e os trácios recuaram para criar um recinto
com uns vinte passos de lado, alumiado pela vacilante luz das tochas que vários homens empunhavam. Sobre o cenário já se espalhava uma pálida luminosidade vinda
do céu, e Cato reparou que as nuvens não eram tão espessas como na véspera; havia mesmo aqui e ali alguns espaços que pareciam prometer uma aberta capaz de revelar
o azul do céu. Sentiu uma estranha calma apossar-se de si, agora que estava empenhado naquela solução. Focou então toda a sua atenção no trácio e agachou-se ligeiramente,
enquanto manejava a espada.
- Só pode existir um comandante em Bruccium. - Afirmou, com toda a calma. - Não haverá quartel, nem pedido nem aceite. Esta luta será até à morte.
Querto assentiu. - Até à morte. Cato engoliu em seco, respirou fundo uma última vez, e soltou as palavras fatídicas.
- Vamos a isso!
30
A inda mal se tinha escapado da boca de Cato a última sílaba quando ...Querto carregou sobre ele, de boca escancarada a lançar um rugido ensurdecedor e selvagem.
Se a intenção era amedrontar o prefeito, falhou redondamente.
Este nem piscou os olhos, enquanto mantinha a espada a postos, com o braço firme a o punho bem preso. O trácio manejou a longa espada num arco em diagonal, dirigido
ao pescoço de Cato, e este colocou a sua lâmina de forma a defletir o golpe. O metal chocou com um retinir estridente e uma faísca brilhante que se desvaneceu de
imediato, quando a ponta da espada de Querto se enterrou no solo sem provocar danos. Cato repuxou o gládio de forma a correr sobre o peito do adversário, numa tentativa
de ser o primeiro a derramar sangue, e foi recompensado com um som de roupa a rasgar, quando a ponta da sua lâmina retalhou as dobras da túnica do centurião, mesmo
abaixo da bainha do colarinho. Querto recuou, surpreso, enquanto levantava de novo a espada para bloquear os golpes seguintes.
Cato sabia que tinha que se manter perto do oponente, para poder utilizar o gládio da melhor forma, e voltou a avançar, dando rápidas estocadas e golpes deliberados
que obrigavam o outro a defender e aparar sem cessar, enquanto o assalto contínuo o forçava a recuar para junto do círculo de espectadores. Estes apressaram-se a
sair do caminho, abrindo um espaço que revelou a proximidade do declive relvado da rampa que ladeava o portão. Nesse momento, Querto recorreu à sua extraordinária
força corporal e, num movimento célere, afastou a espada de Cato para o lado e contra-atacou, apontando diretamente à cabeça do prefeito. Foi a vez de Cato recuar,
o que fez sem problemas, mantendo-se equilibrado nas plantas dos pés, de forma a poder usar os músculos das pernas para se dirigir em qualquer direção que escolhesse.
Abriu-se um espaço entre os dois combatentes, e Cato recuou ainda mais um passo para ter tempo e espaço para considerar novos movimentos. Os dois homens tinham já
a respiração acelerada, e Cato sentia o sangue a pulsar-lhe no crânio, como se tivesse percorrido uma grande distância a correr. Os membros pareciam-lhe ligeiros
e vivos, imbuídos de uma vida própria, e no coração morava uma espécie de exaltação, enquanto os olhos não se despegavam do trácio.
Querto rangeu os dentes e os cantos da boca retorceram-se numa expressão de divertimento.
- És um guerreiro e tanto, não és, prefeito? Tens mais espinha do que eu pensava. - Rosnou o trácio. - Mas isso não te vai salvar a pele.
Cato saltou em frente, num passo elaborado com uma finta, em parte para testar os reflexos do adversário e em parte para o calar. Querto recuou com agilidade e apresentou
a espada bem dirigida ao rosto de Cato, aproveitando a vantagem que lhe dava o seu maior alcance para impedir a continuação do movimento do adversário.
- Alto aí! Cato regressou para uma distância segura, e avaliou o inimigo. O homem era rápido, além de forte, uma combinação realmente perigosa. Contudo, havia nele
também uma arrogância presunçosa que ainda podia funcionar a favor de Cato - se conseguisse sobreviver tempo suficiente para a aproveitar na devida ocasião. Ao mesmo
tempo, estava consciente da excitação ansiosa com que os homens observavam o duelo. A princípio todos se tinham mantido em silêncio, mas naquele momento uma voz
lançou um brado.
- Acaba com o fedelho romano! Um punhado de trácios lançou gritos de apoio ao seu líder, e os homens cerraram os punhos e agitaram-nos na direção de Cato. De imediato,
o mais reduzido contingente de legionários ripostou com gritos de apoio a Cato. Outros se juntaram aos primeiros, e o ar ficou pejado de gritos. Cato recordou-se
do ambiente que rodeava um combate de gladiadores, e agradeceu aos deuses nunca ter tido de enfrentar o medo e a vergonha daqueles que eram forçados a combater para
gáudio da multidão.
Mantendo um olhar atento ao adversário, Querto foi rodeando o círculo de espectadores, até ficar com os seus apoiantes nas costas e obrigar Cato a enfrentar os seus
semblantes hostis. Os legionários, em minoria, debatiam-se para fazer ouvir os gritos de apoio a Cato contra o clamor dos trácios, mas de súbito uma voz mais potente
elevou-se no meio da confusão.
- Avance, senhor! Acabe com esse cão trácio! - Calado, idiota! - Soou outra voz nas costas de Cato. - Queres que o cão trácio te venha morder, depois disto acabar?
Cato sorriu amargamente para si mesmo. Portanto, até os legionários, por muito que temessem e detestassem Querto, estavam pouco convencidos de que havia realmente
uma hipótese de o seu comandante sair vitorioso daquele duelo. Bom, teria que lhes mostrar do que era capaz, resolveu.
Demonstrar-lhes-ia que estavam errados, e provaria que tinha o direito de comandar a guarnição, tanto pela autoridade do Imperador como pela força das armas.
Querto aguardava, calmo e descontraído, como se desprezasse o opositor, e virou mesmo as costas a Cato, voltando-se para os seus homens, de braços bem abertos, a
agradecer a aclamação. O clamor recrudesceu de intensidade graças àquele gesto, e Querto ergueu repetidamente os punhos no ar.

Cato rangeu os dentes e avançou contra as costas do homem, visualizando a ponta da sua espada a penetrar no corpo do outro, a cortar-lhe a espinha e a dirigir-se
ao seu coração negro. Os auxiliares avisaram o seu oficial aos gritos, e Querto rodou e voltou a agachar-se. Lançou uma risada para benefício dos seus homens e falou
em voz baixa.
- A atacar-me enquanto estava de costas, com que então? E chamaste-me tu cobarde?
Enquanto os seus homens respondiam com gozo à acusação que ele lançara, Querto avançou com confiança, fazendo rodar a espada numa larga elipse. Cato não parou nem
hesitou, antes avançou também para um embate direto, aplicando um golpe rápido para desviar a espata e dando uma estocada dirigida ao peito do adversário. Querto
aparou o golpe com firmeza e não parou também, lançando a guarda da espada contra o peito de Cato, obrigando-o assim a recuar. Cato não tentou suster o golpe, preferindo
deixar-se empurrar, de forma a diminuir a força do impacto, mas ainda assim o ar saltou-lhe dos pulmões, e a dor percorreu-lhe as costelas. Ao mesmo tempo, viu-se
obrigado a levantar o gládio para bloquear um novo golpe à cabeça, quando Querto tentou aproveitar a vantagem que tinha conseguido com o choque. A lâmina escorregou
para o lado, mas no instante seguinte Cato sentiu uma dor lancinante na perna, por cima do joelho, no ponto em que a espada do trácio lhe retalhou a pele, embora
o golpe fosse superficial.
Os dois homens afastaram-se de novo, e Querto soltou um grito de triunfo ao notar o risco vermelho que nascera sobre o joelho do prefeito. Os seus apoiantes voltaram
a aclamá-lo, enquanto os legionários se calavam, a contemplar ansiosos o seu comandante, tentando avaliar a seriedade do ferimento. Cato arriscou uma rápida olhadela
à perna e viu o sangue a correr-lhe pela canela e por cima das botas de couro. Abaixou-se e levantou-se cuidadosamente, mas não sentiu qualquer dor, nem nenhuma
falha no trabalho dos músculos. Ainda assim, estava a sangrar, e as suas forças iam sem dúvida diminuir ao longo do combate. Cerrou os dentes e voltou a avançar,
fingindo alguma dificuldade em caminhar, enquanto soltava um gemido genuíno.
Querto gargalhou. - Prefeito Cato, estou desapontado. Estava à espera de maiores dificuldades. Mas olha bem para ti. Magro, fraco, a sangrar como um porco a caminho
do espeto. Podia deixar-te sangrar até ao fim, mas quero triunfar claramente. De forma a mostrar a todos os homens que sou eu quem merece ser o seu comandante.
Cato debruçou-se sobre a perna ferida e olhou para o adversário por baixo da franja escura, enquanto respirava pesadamente. Lambeu os lábios e reagiu.
- Não mereces sequer ser membro do exército romano, quanto mais comandar um dos seus fortes.
- Já vamos ver isso. - Querto voltou a adotar a posição de combate, e aproximou-se com cautela. Cato permitiu-lhe o avanço e ergueu a espada, a ponta a tremelicar
enquanto se endireitava e se preparava para mais uma vez lutar pela vida. Quando Querto levantou a espada para desferir novo golpe e mexeu o pé direito para avançar
com decisão, Cato lançou-se para a frente, enquanto soltava um rugido que quase lhe arranhou a garganta. O trácio só teve tempo para arregalar os olhos de espanto
antes de a ponta do gládio faiscar pelo ar, avançando contra o seu ombro esquerdo. A lâmina rasgou o tecido, a pele e o músculo, antes de embater num osso. Querto
grunhiu de forma explosiva devido ao ímpeto do golpe e cambaleou. Cato não refreou o avanço; ao invés, lançou todo o seu peso por trás da lâmina, retorcendo o punho
enquanto forçava e avançava.
Todavia, a reputação de Querto como combatente feroz fora bem ganha, e ele depressa recuperou, libertando-se da lâmina e saindo do caminho, de forma a que o ímpeto
do prefeito o fez andar mais alguns passos antes de conseguir travar e rodar para voltar a enfrentar o centurião. Voltou de imediato ao ataque, e seguiu-se uma frenética
troca de golpes. Os homens voltaram a fazer-se ouvir, cada um dos lados a torcer pelo seu oficial, e agora os legionários já gritavam com tanto empenho como os auxiliares.
Depois de um último entrechoque metálico, os dois adversários recuaram e agacharam-se de novo, os peitos a arfar e os olhos a escorrerem ódio.
- És um sacana ardiloso... - Rosnou Querto. - Admito... isso. Cato manteve-se em silêncio, e começou a rodeá-lo. A ferida no ombro do outro era profunda, mas era
difícil perceber a quantidade de sangue que encharcava as pregas da túnica escura de Querto, exceto pelas zonas que reluziam por já estarem ensopadas. Cato anuiu
para si mesmo, satisfeito. Não era uma ferida mortal, mas estava a sangrar abundantemente, e pioraria quanto mais o trácio fosse obrigado a movimentar-se.
- Foda-se, mas o que é isto? - Inquiriu uma voz ainda aturdida. Pelo canto do olho, Cato apercebeu-se de que Macro estava finalmente a pôr-se de pé, embora ainda
bastante inseguro, com uma mão na cabeça. Olhou para os dois oficiais envolvidos no duelo e apreendeu rapidamente a situação.
- Dá-lhe, miúdo... perdão, senhor! - Berrou. - Mate esse canalha! Querto lançou novo urro de fúria e avançou, desferindo golpes à esquerda e direita com a sua longa
espata, obrigando Cato a recuar e a aparar cada golpe, sentindo o poder do adversário a fazer-lhe vibrar o braço com tanta força que ameaçava fazê-lo soltar o punho
do gládio.
E, nesse momento, aconteceu. Todo o peso selvagem da pesada espada de cavalaria do trácio se abateu sobre a guarda do gládio de Cato. Os dedos abriram-se-lhe involuntariamente,
e sentiu a espada a escapar-se-lhe das mãos. De imediato, Querto respondeu com um brado de triunfo e avançou, para acabar com ele. Cato saltou para o lado e ouviu
o assobio da lâmina quando a espada se abateu por trás de si e atingiu o solo com uma nota metálica abafada. Correu lateralmente, enquanto o trácio voltava a recuperar
a posição da espada e avançava com a ponta à altura da cintura, pronto a desferir o golpe final.
- Não me podes fugir. - Desdenhou Querto. - Fica quieto e aceita a morte como um homem; em vez de um romano cobarde!
Cato manteve os braços abertos, as pernas bem firmes, pronto a saltar para qualquer lado assim que pressentisse que o inimigo ia desferir um novo golpe. Ao mesmo
tempo, sentia que estava a ser manobrado de forma a ficar com as costas contra o portão. Em redor, o ar parecia mais espesso com os gritos dos apoiantes do trácio,
que pediam o seu sangue, quase em êxtase. A calma que lhe preenchera a mente nos primeiros momentos do duelo tinha sido estilhaçada. Naquele instante, todos os seus
sentidos lutavam pela sua atenção, em confronto com a sua mente vertiginosa, numa mistura de visões: os rostos à sua frente, a pureza do azul na mancha de céu entre
as nuvens lá em cima, a doce lembrança de Júlia quando ele lhe sorrira pela manhã, depois do casamento, Macro a rir com prazer quando acabava de lançar os dados
e ganhar uma boa maquia, o doce aroma do ar depois de uma chuvada de verão... Um homem que tentava agarrar os inúmeros mas fugazes tesouros da sua vida, tentando
saboreá-los uma vez derradeira antes de ser engolido pelo esquecimento eterno.
Algo faiscou no ar, antes de tombar sobre a areia junto aos seus pés. Olhou para baixo e viu uma espada de cavalaria junto às botas; pegou nela imediatamente, sentindo
a diferença de peso e equilíbrio em relação à espada curta das legiões, e ajustando-se a ela quase por instinto. Os músculos do braço sentiram a carga, e avistou
o rosto de Querto a endurecer, quando se compenetrou de que a vitória que tinha por certa havia tão poucos momentos se escapava do seu alcance.
- Chega de brincadeira. - Anunciou o trácio, enquanto sopesava a sua arma. - É hora de morrer, escumalha romana.
Os lábios arreganharam-se, revelando os dentes bem cerrados quando carregou sobre Cato, o braço esticado e a ponta orientada diretamente à garganta do prefeito.
Cato recuou. O calcanhar embateu-lhe contra uma das tábuas do portão, e a dor percorreu-lhe a barriga da perna. Não havia mais para onde recuar, nem possibilidade
de fugir para o lado. Compreendeu que já nada podia fazer a não ser defender-se onde estava. Ergueu a espata, como se estivesse a preparar-se para parar a estocada
que atravessava o ar na sua direção, com todo o peso do trácio por trás. Engoliu em seco e sentiu a garganta a apertar-se de medo, e então mergulhou para o solo
mesmo à frente dos pés do adversário. A espada do trácio passou a faiscar sobre a sua cabeça, e ao embater contra o portão fez saltar lascas de madeira. Uma bota
pesada acertou na face lateral da cabeça de Cato, quase lhe deslocando o pescoço. O prefeito atingiu o solo e rolou sobre o ombro, enquanto o punho da espata dançava
na sua mão e levava a ponta a cravar-se profundamente no corpo de Querto. Cato manteve o punho firme enquanto a espada vibrava na sua mão, forçando a lâmina a retorcer-se.
Botas remexeram a poeira do solo e escutou-se um profundo gemido vindo dos lábios do trácio, e por fim silêncio.
A cabeça de Cato zunia, mas ainda assim apercebeu-se de que os gritos de ambos os grupos de apoiantes tinham cessado. Estava atordoado pela pancada que levara no
crânio, e só ao fim de um momento se apercebeu das feições de Querto a não mais de um passo da sua cabeça. Os olhos do trácio estavam arregalados e fixos, e o queixo
tinha-lhe descaído, enquanto o homem tentava respirar. Nesse momento, a náusea tomou conta de Cato; sentia todo o cenário a rodopiar, o que o obrigou a cerrar os
olhos por alguns instantes.
- Está arrumado. - Sussurrou uma voz, e Cato tentou anuir, resignado a aceitar o seu destino. Sentiu mãos a pegarem-lhe nos braços e a porem-no de pé, longe do solo
poeirento. A cabeça começou a clarear e a náusea a dissipar-se, pelo que se atreveu a reabrir os olhos. Um rosto familiar olhava-o ansioso.
- Cato... senhor? Piscou os olhos e obrigou-se a responder, devagar e com a clareza possível.
- Macro. Está bem? - Se eu estou bem? - Macro soltou uma gargalhada sonora e deu um piparote na própria cabeça. - Ainda não foi feita a arma capaz de rachar esta
cabeçorra!
Cato assentiu.
- Acredito. O que... Querto? - Tal como eu disse: despachado. - Macro acenou na direção do solo e Cato seguiu o gesto e viu o trácio que jazia de lado, a espada
de cavalaria enterrada quase até ao punho na virilha, apontada diretamente aos seus órgãos vitais. Oscilava vagarosamente, e por baixo dele crescia uma poça de sangue,
enquanto um gemido grave se lhe escapava da garganta de cada vez que tentava conseguir mais uma inspiração.
A mente de Cato tornava-se mais clara a cada momento que passava. - Ótimo. Olhou para os rostos dos homens que continuavam em redor do portão traseiro do forte.
Alguns dos trácios pareciam atordoados. Outros não escondiam a raiva que os possuía, e as suas expressões tornavam-se ainda mais sombrias ao escutarem os legionários,
que começavam a entoar em coro o nome de Cato.
- Será melhor tratar dessa perna, senhor. - Dizia-lhe Macro. Tirou o lenço do pescoço, ajoelhou-se e ligou cuidadosamente a ferida.
Cato lutava para se manter focado. Tinha conseguido. Tinha derrotado o trácio. À vista de toda a guarnição. Tinha assumido um tremendo risco, apostado a própria
vida, de forma a pôr fim à luta pela supremacia sobre a guarnição, e agora enfrentava os auxiliares com uma autoridade inatacável, fria e implacável. Um vulto adiantou-se,
e os olhos de Cato dirigiram-se para o homem até reconhecer o centurião Estelano.
- Senhor, peço desculpa. - O que é? Estelano designou o moribundo. - A minha espada, senhor. Gostava de a reaver. - A tua espada? - Cato arregalou uma sobrancelha.
- Sim... Sim, claro.
Estelano anuiu e aproximou-se. Hesitou um momento ao colocar-se de pé sobre Querto, mas depois rolou o corpo até ele ficar de costas e pegou no punho da espada.
Colocou um pé sobre a virilha do homem e libertou a espada. Uma torrente de sangue escuro, quase negro, jorrou depois da espada ser extraída da ferida com um som
de sucção. O corpo de Querto empertigou-se, e ele soltou um derradeiro grunhido e depois esmoreceu, à medida que a luz se esvaía dos seus olhos, até morrer. Estelano
limpou o sangue da lâmina e embainhou-a antes de se colocar em sentido à frente de Cato.
- Senhor, à sua disposição. Cato assentiu, e interpelou-o em tom calmo. - Porquê? - Senhor?
- Porque é que me atiraste a tua espada? Estelano franziu o sobrolho. - Ele chamou-lhe romano cobarde, senhor. Não é verdade. Não é verdade de nenhum oficial romano.
E, de qualquer forma, tinha o direito de morrer com uma espada nas mãos.
- Agradeço-te. Estelano encarou-o em silêncio por momentos, antes de responder, sem deixar transparecer qualquer emoção.
- Teria feito o mesmo por ele, senhor. - Por ele? - Interrompeu Macro, exasperado. - Aquele pulha? Estelano confirmou. - Pode pensar dele o que quiser, mas tinha
um coração de guerreiro, e merecia uma morte de guerreiro.
Foi interrompido pelo som de trombetas junto ao portão principal. Estava a ser dado novo alarme. Todos os homens se viraram para a fonte do som, uma série de notas
estridentes que se conseguiam ouvir por todo o forte. Foi Cato o primeiro a reagir.
- Todos às suas posições! Toda a gente para a muralha! Macro fez um gesto com o polegar, designando o grupo que tinha apoiado Querto.
- E quanto a eles? Cambada de poltrões desertores. Cato olhou para os homens. - Mais tarde trataremos disso. Para já, preciso de todos os homens disponíveis. Envie-os
para as respetivas unidades.
- E o Décimo? Cato virou-se e contemplou o criado. O homem tremia como varas verdes perante o olhar severo dos dois oficiais. Cato sentiu pena pelo homem, como sentiria
por qualquer homem que se deixava dominar pelo medo até àquele ponto. Pena, e alguma empatia. Mas era no fundo o ainda maior medo de ser desmascarado que levava
Cato a obrigar-se a cometer os feitos que Macro atribuía a uma extraordinária dose de coragem. Foi portanto com uma mistura de piedade e culpa que Cato abanou a
cabeça. - Mande-o para os meus aposentos.
Quando chegou à plataforma do torreão sobre o portão principal, Cato avistou toda a extensão do vale à luz do Sol nascente, que se erguia sobre os topos das colinas
a leste. O céu estava a clarear, e o dia que se avizinhava prometia ser seco e quente, pontuado apenas por ligeiras brisas. Condições perfeitas para acender o sinal.
O fumo poderia ser avistado a uns vinte ou mesmo trinta quilómetros de distância. Lá em baixo, o acampamento inimigo fervilhava de atividade, enquanto os homens
se juntavam em grupos de guerra e os cavalos de pelo espesso, os preferidos das tribos das montanhas, eram selados e montados. Os primeiros grupos já estavam em
movimento, e dirigiam-se para a entrada do vale, na direção de Gobannium. Uma pequena força avançou para o forte, mas deteve-se no sopé do montículo. O seu propósito
era perfeitamente evidente para Cato: conter a guarnição, enquanto o corpo principal do exército de Carátaco se dedicava a enfrentar o que quer que os tinha alertado.
E isso
só podia ser a aproximação de mais soldados romanos. Por momentos, o coração de Cato alegrou-se com tal perspetiva, mas rapidamente a sua alegria se transformou
num receio gelado, ao aperceber-se do que isso realmente significava. Talvez ainda houvesse tempo de evitar o desastre que se preparava.
Rodopiou e correu pela plataforma, até se poder debruçar no parapeito que dava para o interior do forte. Acenou com os braços ao optio encarregado do fogo sinaleiro,
um grande cesto de ferro repleto de materiais inflamáveis bem regados de pez. Ao lado via-se um monte de folhas secas, que produziriam um fumo espesso assim que
as chamas ateassem.
- Acende o sinal! Agora mesmo! Virou a sua atenção de novo para a entrada do vale, enquanto o optio cumpria a ordem, e amaldiçoou os deuses, que tinham resolvido
remover as nuvens e a chuva do céu precisamente na manhã em que a coluna de reforços vinda de Glevum se aproximava do forte, demasiado próxima para que o sinal lhe
desse um aviso atempado. A intenção do inimigo era bem clara. Carátaco preparava-se para emboscar a coluna inimiga. Os reforços romanos ver-se-iam cercados pelos
guerreiros nativos, e seriam esmagados. Estavam completamente ignorantes da ameaça. Tanto quanto sabiam, o comandante inimigo e a sua hoste estavam muito a norte,
com a atenção fixa no avanço decidido do governador Ostório e do seu exército. Mas depressa ficariam a conhecer a dura realidade, cismou Cato, cheio de amargura.
Havia apenas uma muito ténue possibilidade de salvar a coluna, sabia-o, mas não podia ficar simplesmente parado a ver os seus camaradas serem massacrados.
31
porque não vou eu? - Inquiriu Macro, preocupado. - Foste ferido no duelo. E os homens precisam de ti aqui no forte.
Cato abanou a cabeça enquanto acabava de colocar as grevas. Endireitou-se e sorriu ao amigo.
- Fui nomeado prefeito da Segunda Coorte Trácia, além de comandante da guarnição. Parece-me que é tempo de justificar tal posição, agora que o Querto já não está
no caminho.
Estavam junto ao portão lateral que abria para a encosta, o que ficava mais próximo da estrada que levava à cabeceira do vale. Dois esquadrões da coorte de cavalaria
preparavam-se à pressa e montavam no espaço vazio entre a muralha, as casernas e os estábulos da coorte. Não mais de sessenta cavaleiros podiam ser dispensados da
muralha para levar a cabo a tarefa a que Cato se propunha. Se mais homens o acompanhassem, Macro ficaria com um número insuficiente para defender Bruccium. Cato
via bem a espessa coluna de fumo que se erguia para o céu, vinda do sinal. Subia a direito uma curta distância, mas depois era apanhada pela brisa que despertara
com o nascer do dia, e que fazia dispersar o fumo em farrapos acinzentados que se esvaíam pelo céu. Se os homens da coluna de reforço estivessem atentos, talvez
conseguissem ver o sinal e ter senso suficiente para inverter a marcha enquanto ainda tinham uma remota possibilidade de fuga.
Macro olhou para os trácios que os rodeavam, e deu um estalo com a língua.
- O que pensas conseguir com sessenta homens? - Olhou para o amigo, consternado. - Isto é suicídio, puro e simples.
- Espero bem que não chegue a tanto. - Replicou Cato, com um sorriso amarelo. - Temos melhores montadas que o inimigo, e teremos também o elemento da surpresa. Não
estarão de todo à espera de uma sortida para ajudar a coluna de reforços.
- A sério? E porque será, pergunto-me eu? - Ripostou Macro, em tom seco.
O sorriso de Cato apagou-se, e ele baixou a voz de forma a que apenas Macro o pudesse ouvir.
- Preferia que eu ficasse aqui especado enquanto os nossos camaradas eram massacrados? Tenho que tentar ajudá-los a escapar desta armadilha. Faria o mesmo se estivesse
na minha posição, como sabe muito bem.
Macro não tinha forma de negar a veracidade da resposta, mas resolveu prosseguir com a discussão.
- Cato, onde está a lógica disto? Sais lá para fora e tentas salvar os nossos rapazes, muito certo, mas as probabilidades de te safares são para aí de cinquenta
para um. Vais apenas desperdiçar a tua vida, e as dos trácios que te acompanham. A coluna de reforços não terá mais hipóteses de escapar por causa disso.
- Não é bem assim. Bom, se quer apostar cinquenta contra um... - Só um idiota é que entraria nessa aposta. Cato estendeu a mão. - Nesse caso, pode chamar-me idiota.
Eu aposto dez sestércios. Macro apertou-lhe a mão, e tentou dar ao momento um tom de brincadeira.
- Feito! Os dez sestércios mais fáceis que alguma vez ganhei... Instalou-se um silêncio breve e desconfortável, antes de os dois homens trocarem um aperto de braços
e se despedirem em silêncio. Cato recolheu a mão e olhou sobre o ombro de Macro.
- Os homens estão prontos. Temos que ir. Veja se tem uma das suas centúrias pronta a manter o portão aberto para nós se - quando - regressarmos com os reforços.
- Estarão a postos. Eu mesmo os comandarei. - Ótimo. Nesse caso, espero revê-lo em breve. - Cato testou o ajuste do capacete, respirou fundo para se acalmar e dirigiu-se
em passo rápido até ao seu cavalo, que um dos trácios segurava. Pegou nas rédeas e acariciou o largo focinho de Aníbal, e murmurou junto às orelhas espetadas como
folhas de adaga. - Porta-te bem hoje e, quando eu disser, corre como o vento.
O cavalo resfolegou e mexeu a cabeça ligeiramente, e Cato sorriu brevemente antes de saltar para a sela, tentando evitar um esgar de dor quando a perna lhe lembrou
eventos recentes, ao fazê-lo sentir que a pele se rasgava de novo. Pegou firmemente nas rédeas, segurou o grande escudo oval que lhe foi oferecido, e passou a tira
na parte de dentro pelo ombro. Apesar de ser costume os oficiais superiores levarem espada, Cato tinha preferido seguir armado com uma lança pesada e longa, como
os seus homens, e experimentou a pega da arma para lhe encontrar o ponto de equilíbrio. Enfiou a base no pequeno coldre de couro que pendia da sela e fez Aníbal
rodar para ficar de frente para os homens. Os esquadrões estavam formados em fila dupla por trás dos seus oficiais, o centurião Estelano e um trácio, o decurião
Kastos, de ar carrancudo enquanto observavam o prefeito, e à espera do tradicional pequeno discurso de encorajamento antes de serem conduzidos à batalha.
E pequeno ia ser de certeza, pensou Cato; não havia tempo a perder. Teria até preferido dispensar todas as formalidades e dar simplesmente a ordem para saírem do
forte, mas sabia que os homens precisavam de algumas palavras, tão cedo depois da morte de Querto.
- Corvos Sangrentos! - Começou. - Os nossos camaradas estão em perigo iminente. O Carátaco tenciona massacrá-los e levar as suas cabeças como troféus, para os oferecer
aos seus aliados druidas. Esse não é destino que um soldado mereça. O inimigo quer humilhá-los à nossa frente, e assim humilhar-nos também, por assistirmos impotentes
à sua destruição. Mas não seremos humilhados, nem nós nem os nossos camaradas. É tudo o que nos pode importar neste dia. A nossa tarefa é simples. Vamos ajudá-los,
alertá-los e abrir um caminho que lhes permita atravessar as linhas inimigas e recolher ao forte... O que aconteceu já nada pode alterar. Temos aqui e agora uma
oportunidade de conquistar para os Corvos Sangrentos uma glória duradoura. Os que sobreviverem lembrarão para sempre este dia como aquele em que conquistaram honra
imensa para partilharem com os seus camaradas, e em que passaram a ser vistos com respeito indesmentível pelo resto do exército. - Fez uma pausa, vagamente frustrado
por não ter conseguido fazer um discurso tão entusiasmante como aqueles sobre os quais lera nos livros de História da sua juventude. Todavia, ali não havia tempo
para retórica elaborada, que exigia preparação e ensaios. Pegou na lança e ergueu-a ao alto.
- Pela glória de Roma! Pela honra dos Corvos Sangrentos! O centurião Estelano imitou-lhe o gesto e o grito. - Pela honra dos Corvos Sangrentos! O resto dos homens
entoou o mesmo brado, e os cavalos agitaram-se, batendo com os cascos no solo, ansiosos, contagiados pelo entusiasmo dos seus cavaleiros. Cato virou-se para Macro
e acenou.
- Abram os portões! - Gritou Macro, e os dois legionários que aguardavam junto à tranca levantaram-na dos robustos suportes de ferro e pousaram-na no chão, antes
de escancararem as portadas.
Cato conduziu a montada e incitou-a a seguir pela passagem por baixo do torreão, enquanto entoava novo grito.
- Avançar! Estelano passou a ordem aos seus homens, e todos seguiram o prefeito, fazendo avançar os cavalos a passo, em coluna de dois. Ao passar por Macro, Cato
trocou com o amigo um breve aceno de cabeça. O segundo esquadrão avançou também através do túnel que ligava os dois portões, cruzou a ponte que transpunha o fosso
estreito e tomou pela estrada que descia na diagonal a encosta ao cimo da qual se situava o forte. Cato sabia que a coluna não seria avistada antes de rodear a esquina
do terreno, pelo que permitiu que seguisse naquele passo lento, antes de aumentar de velocidade. Sentiu o coração a acelerar e teve que se obrigar a não olhar para
trás, para o portão e a segurança que o forte representava. À distância, a cerca de quilómetro e meio, ainda conseguia ver a retaguarda da força inimiga que se dispunha
a intercetar a coluna de reforço romana. Enquanto avançava a passo bem marcado, determinado a deixar transparecer uma impressão de calma e perfeito controlo da situação,
a mente de Cato antecipava ansiosamente os perigos que depressa iam encontrar.
Com sorte, o oficial que liderava a coluna romana teria alguns homens a bater o terreno em redor da força principal, e no instante em que detetassem o inimigo os
reforços cerrariam fileiras e confiariam nos seus pesados escudos e na férrea disciplina para abrir caminho até ao forte. Por outro lado, refletiu Cato, esse oficial
podia muito bem ser um daqueles tribunos verdes, recém-chegados à fronteira, cheio de confiança na supremacia romana e repleto de inabalável desdém pelos bárbaros,
incapazes de organização. O tipo de homem que avançava de erro em erro até que a experiência lhe oferecesse uma bengala, depois de muitas quedas. Alguns conseguiam
usá-la e voltavam a erguer-se, outros pagavam o preço da arrogância com a vida, a própria e as dos outros.
O caminho rudimentar que atravessava a encosta começava a tornar-se plano, e Cato avistou a extremidade da parada e do acampamento inimigo que lhe estava adjacente.
A qualquer momento iam ser avistados, se é que não o tinham sido já. Bateu com os calcanhares para despertar a atenção do cavalo.
- Vamos, Aníbal. Vamos! O animal agitou-se e aumentou de ritmo, adotando um trote ligeiro. Atrás dele, Estelano, e depois Kastos, repetiram o gesto do comandante,
e um leve troar tomou o lugar do bater ritmado dos cavalos a passo. Cato tinha escrutinado cuidadosamente o terreno do vale antes de sair do forte, e tinha decidido
dirigir-se a um afloramento rochoso que dava passagem para a cabeceira do vale. Por um lado, o caminho que lá levava oferecia pouca cobertura, mas, por outro, permitia
uma passagem rápida da cavalaria. Puxou pelas rédeas, para conduzir Aníbal nessa direção, e só então olhou para o lado inimigo. Os cavaleiros tinham sido vistos
pelos guerreiros nativos ainda no campo, que gesticulavam e apontavam para os dois esquadrões que abandonavam o forte. No momento seguinte soou um primeiro corno,
que lançou o alarme, a avisar os camaradas que estavam já na outra ponta do vale. Foi questão de momentos até que o último grupo de combatentes inimigos, a quilómetro
e meio de distância, parou e se virou para trás. Por momentos pareceram hesitar, mas depois Cato viu como se espalhavam para formar uma linha de combate, prontos
a enfrentar a sua coluna. A maior parte dos inimigos tinha escudos e lanças, mas alguns entre eles tinham equipamento mais básico, sem armadura e com armas de menor
impacto.
Cato levou os trácios ao encontro da linha inimiga, sem apressar o passo. Mais grupos de guerreiros tinham entretanto parado para ver o que se passava atrás deles,
inseguros quanto à reação a adotar face àquela inesperada resposta da guarnição de Bruccium. Cato teve um momento de satisfação perante aquele cenário. Qualquer
semente de dúvida que pudesse plantar no exército inimigo acabaria por prejudicar o ataque à coluna de reforços. Os guerreiros de Carátaco chegariam à batalha aos
grupos, e isso daria tempo aos romanos para assumir uma formação de batalha, em vez de serem apanhados em ordem de marcha, em coluna, desorganizados. Com alguma
sorte, talvez até já tivessem visto o fumo do sinal do forte, e tomado medidas para responder ao aviso.
Outros três bandos tinham decidido voltar para trás para confrontar os trácios, e já se apressavam a percorrer o terreno aberto para tomarem posição nos flancos
da linha nativa. A perspetiva não perturbou Cato, já que não tinha qualquer intenção de se ir envolver com eles. Seria suicídio uma tão pequena força de cavalaria,
mesmo bem montada e equipada como era o caso, enfrentar de peito aberto uma muito mais numerosa massa de infantaria. Não era esse o plano que traçara. O verdadeiro
perigo era representado pela cavalaria inimiga. Era também muito mais numerosa do que os dois esquadrões e, o que era bem mais preocupante, podia deslocar-se mais
velozmente. Se conseguissem atacar e encurralar os trácios pelo tempo suficiente para permitir a intervenção da infantaria, tudo terminaria depressa, e a destruição
dos dois esquadrões montados representaria apenas as primeiras baixas romanas daquele dia.
A linha inimiga já estava a poucas centenas de metros à frente, e Cato estimou o número de elementos inimigos em cerca de quinhentos. Levantou a lança e apontou
para a direita da linha, na direção do esporão rochoso na montanha, acima do colo.
- Virar à direita! Tomou o novo rumo, e os seus homens fizeram as montadas virar também para a direção indicada. O inimigo, temendo uma tentativa de flanquear a
sua linha, desorganizou-se por momentos, até que os chefes os convenceram, entre incentivos e invetivas, a formarem uma espécie de elipse cerrada, de onde só sobressaíam
lanças e outras armas. Todavia, os cavaleiros prosseguiram no seu rumo a toda a brida, passando tão perto dos guerreiros siluros que lhes foi fácil perceber os gritos
de guerra e os insultos. Alguns trácios não se coibiram de devolver os berros na mesma moeda, até que o centurião Estelano se virou para eles, furioso.
- Foda-se, bicos calados! Quem piar leva um castigo, assim que voltarmos ao forte!
Seguiram a trote até alcançarem o início da subida, por baixo do esporão. A estrada que saía do vale estava à sua esquerda e passava por um maciço de resinosas,
antes de subir para o desfiladeiro entre as duas montanhas. Cato via grupos de guerreiros inimigos a tomarem posições por cima dos dois lados da estrada, para atacar
a coluna de reforços. À sua frente seguia a cavalaria de Carátaco. Na cabeça da coluna via-se um pequeno grupo de cavaleiros em vestes multicoloridas, agrupados
em redor do longo estandarte esvoaçante do seu comandante. Os cavaleiros inimigos estavam suficientemente longe para não constituírem perigo imediato para os trácios,
calculou Cato. Ao olhar para trás, percebeu que os guerreiros por quem tinham passado havia pouco estavam novamente a espalhar-se e a ocupar toda a largura do caminho
que os trácios tinham seguido desde o forte, de forma a cortar-lhes qualquer linha de retirada. Agora já não havia regresso possível, apercebeu-se Cato, sombrio.
Os flancos de Aníbal arfavam com o esforço de subir a encosta, mas Cato não lhe deu descanso, mantendo o passo até que por fim alcançaram a cornija e o terreno se
tornou plano, numa estreita faixa de maciços de erva e zonas de turfa. Virou-se e contemplou o vale que se estendia a seus pés. A infantaria inimiga que tinha resolvido
cortar-lhes o acesso ao forte subia agora a colina, persistentemente, dirigindo-se para eles. Dali, Cato já conseguia espreitar para o outro lado do colo, para além
do pinhal, e o coração quase lhe parou quando avistou a coluna de reforço - uma fita estreita e escarlate que se estendia pelo terreno, refulgindo devido aos reflexos
do sol nos capacetes polidos. À retaguarda vinha uma pequena força de cavalaria, em missão de proteção às carroças e vagões que transportavam as bagagens. No total,
uns setecentos ou oitocentos homens, calculou Cato, sentindo as suas esperanças a desvanecerem-se. Tinha suposto que o legado Quintato enviasse pelo menos o dobro
dos legionários ou auxiliares para escoltar os reforços até ao forte, antes de regressarem a Glevum. Perante aquele cenário, a diminuta esperança que tinha alimentado,
de que seriam homens suficientes para conseguir abrir caminho até Bruccium, ficou destroçada.
Calculou que os reforços estavam a marchar havia cerca de duas horas, e que deviam ter percorrido uns oito a nove quilómetros desde o campo onde tinham passado a
noite anterior. Felizmente, não tinham caído na tentação de continuar a marchar depois de cair a noite, para tentar chegar a Bruccium na véspera. Nesse caso, teriam
caído nos braços do exército de Carátaco, e teriam sido obliterados à vista da guarnição do forte. Ao que parecia, ainda não tinham reparado no fumo que se erguia
sobre o forte, ou pelo menos não tinham reagido ao aviso. Tal como não tinham detetado os grupos de guerreiros nativos escondidos nas pregas do terreno, na orla
do grande colo montanhoso, nem nos que os esperavam ao redor da estrada que descia para o vale. Marchavam de forma cega para a armadilha que Carátaco lhes estendia.
Estelano fez avançar o cavalo até alcançar o prefeito, e considerou rapidamente a cena que se desenrolava à sua frente antes de se virar para Cato.
- Senhor, as suas ordens? - Temos que os alertar para o perigo. - Cato revirou-se na sela. - Trombeteiros! Toque de ataque! No tom mais alto que conseguirem!
Os homens que empunhavam os longos metais recurvos da cavalaria inspiraram profundamente e levaram os instrumentos aos lábios. No instante seguinte, a curta sequência
de notas fez-se ouvir por todo o vale, ecoando nas fragas montanhosas por cima dos trácios. Cato apontou ao longo da cornija.
- Vamos seguir por aqui e rodear os elementos inimigos emboscados, antes de nos dirigirmos para a coluna. Os trombeteiros que continuem a dar o toque enquanto avançamos.
- Sim, senhor! - Estelano saudou e deixou-o. Cato ergueu a lança e apontou-a para a frente. - Segunda Trácia! Sigam-me! Os animais lançaram-se num trote ligeiro
ao longo do corredor aplanado que curvava à medida que contornava a encosta. Enquanto se dirigiam para o colo, Cato ficou aliviado ao verificar que a coluna tinha
feito alto. Avistava uma centúria de legionários na vanguarda, mas os outros soldados empunhavam os escudos ovais dos auxiliares. Porém, não havia qualquer sinal
de se estarem a preparar para um combate. Amaldiçoou silenciosamente o comandante da coluna, por não ser mais cuidadoso, e incitou Aníbal a prosseguir. Algumas centenas
de passos adiante, e em posição inferior na encosta, reparou num grupo de homens de Carátaco que já se preparava para o ataque. Também eles tinham sido alertados
pelo sinal sonoro das trombetas, e Cato via muitas manchas pálidas que correspondiam aos rostos dos que se tinham voltado para ver o que se passava mais acima na
encosta. A mente do prefeito avaliava a disposição das forças inimigas e o terreno em que se ia travar a batalha iminente. Já se lhe tinha tornado evidente que poucas
hipóteses haveria de conseguir abrir caminho até ao forte. Só restava a possibilidade de uma retirada para Gobannium, em combate contínuo mas em boa ordem. Se conseguissem
chegar ao posto, e Carátaco optasse por também lhe dar cerco, as suas forças ficariam mais espalhadas, de forma a cobrir as duas fortificações romanas. E assim Macro
e o resto da guarnição de Bruccium teriam maiores hipóteses de sobrevivência. refletiu Cato.
Os seus pensamentos foram interrompidos pelo estridente som de cornos celtas, vindo do grupo de cavaleiros que rodeavam Carátaco. A nota foi rapidamente repetida
pelos outros grupos, e depressa o som dos seus gritos e alaridos subiu a encosta até Cato e os seus homens, como se fosse uma vaga a subir pelo terreno. Guerreiros
celtas surgiram de todos os pontos, avançando contra a vanguarda e os flancos da coluna romana. Cato sentiu as entranhas a apertarem-se com terrível ansiedade, quando
viu que nenhum dos elementos da coluna se mexia.
- Foda-se, mas estão à espera de quê? - Inquiriu Estelano. Então, como que em resposta às suas palavras, os soldados da coluna começaram a formar em redor do comboio
de bagagens, e o esquadrão da escolta montada avançou para o flanco, enquanto formava uma linha de combate. Os homens estavam bem treinados, Cato sabia-o, mas era
evidente que não tinham grande hipótese de completarem a manobra antes que os nativos carregassem em força sobre eles e os fizessem dispersar.
- Merda. - Murmurou para si mesmo, antes de se virar na sela para dar uma ordem. Via-se obrigado a agir. Só havia uma coisa a fazer. - Alto! Formem uma linha e preparem-se
para carregar!
32
Carregar? - Repetiu o centurião Estelano, colocando o cavalo à frente do do seu superior. - Senhor, não podemos lançar uma carga a descer esta encosta. É demasiado
íngreme. Muitos dos homens seriam lançados para fora das selas antes de chegarmos à zona plana.
- Sei muito bem disso, caramba. - Irritou-se Cato. - Centurião, agradecer-te-ia que não contestasses as minhas ordens. E agora, manda formar os homens. Mantenham-se
atentos ao passo a que eu sigo. Não quero ninguém a adiantar-se, nem a ficar para trás. Chegaremos ao campo de batalha todos ao mesmo tempo. É a nossa melhor hipótese
de sobrevivência. Entendido?
Estelano cerrou os dentes e anuiu em silêncio, antes de se virar para repetir a ordem aos auxiliares trácios.
- Formar linha! Os dois esquadrões rodaram para a esquerda e espalharam-se pelo declive. Cato avaliou cuidadosamente o terreno e notou que havia talvez uns trezentos
passos de encosta realmente íngreme a negociar antes de chegarem a uma zona suficientemente plana para poder acelerar e dar então ordem para carregar. Ainda assim,
não queria que se lançassem numa cavalgada louca pelo terreno, como sucedia com cargas de cavalaria em exércitos menos disciplinados. A cavalaria romana treinava
assiduamente, e uma carga consistia num aumento gradual e criterioso da velocidade dos animais. Só nos últimos cinquenta passos antes do contacto com o inimigo é
que as montadas podiam ser lançadas a galope franco. De qualquer maneira, a descida da encosta teria que ser conduzida com todos os cuidados, para manter a formação
cerrada.
Ao olhar para os lados, Cato verificou que os dois esquadrões estavam a postos, e os homens já empunhavam as lanças e aperravam os escudos, bem próximos aos corpos.
As caudas dos cavalos agitavam-se, e alguns meneavam as cabeças, reagindo à evidente tensão dos seus cavaleiros. Cato espetou a sua lança no ar.
- Mantenham a formação. Quando for dada a ordem para carregar, não parem por nada até chegarem à coluna romana... Corvos Sangrentos, em frente!
Aníbal começou a descer a encosta a passo. À medida que desciam, Cato olhou para diante, verificando que os mais velozes dos elementos inimigos se tinham lançado
sobre os reforços antes de estes terem sequer tempo de formar uma caixa em torno do comboio de aprovisionamentos. Os primeiros siluros tinham sido derrubados com
facilidade, mas, à medida que mais e mais se juntavam à refrega, os legionários na cabeça da coluna tinham-se visto impedidos de completar a alteração do dispositivo,
e em breve havia apenas uma confusa frente de combate a envolver os vagões e carroças dispostos ao centro. O esquadrão de cavalaria da escolta, que tinha avançado
com maior velocidade, juntou-se também à batalha, numa carga que depressa foi engolida pela horda de guerreiros siluros que continuava a engrossar em volta da coluna
romana.
Na base da encosta, a infantaria celta que tinha estado a acompanhar os movimentos dos trácios tinha interrompido o avanço, e preparava-se para os enfrentar. Cato
avistou algumas capas escuras, sinal inequívoco da presença de druidas no meio dos guerreiros; não deixariam de os incitar e encorajar, enquanto distribuíam maldições
e impropérios na direção dos cavaleiros que se aproximavam. Quando o declive do terreno começou a diminuir, Cato lançou uma ordem sobre o ombro.
- Formar cunha atrás de mim! Os comandantes de esquadrão passaram a ordem
aos seus homens, e estes começaram a ajustar o andamento, de modo que em pouco tempo a linha se transformou numa espécie de ponta de seta, com dez homens na última
linha, prontos a ocupar qualquer vazio provocado pela perda de um camarada nas linhas mais adiantadas. Teriam que atravessar a linha inimiga para alcançar a coluna
empenhada na refrega, e Cato foi gradualmente mudando de direção, apontando para o flanco direito da massa de nativos. O inimigo já não estava a mais de cem passos,
e os mais indisciplinados dos guerreiros lançavam já setas na direção dos trácios. Os projécteis caíram à sua frente, inofensivos, e Cato bateu os calcanhares contra
o flanco do seu cavalo e deu nova ordem.
- Acelerar passo! Aníbal agitou-se por baixo dele e redobrou de vontade, começando a correr ligeiramente. O solo começou a troar, e o ar encheu-se do retinir de
freios, do embater dos escudos e do ranger do couro. O espaço entre as duas forças estreitava rapidamente, e Cato agarrou com toda a força na pega do escudo e levantou
a lança sobre a cabeça, pronto a golpear o inimigo. Já conseguia distinguir os rostos dos siluros e ler as suas expressões: medo, excitação e feroz determinação.
Respirou fundo e gritou com toda a força dos pulmões, de forma a fazer-se ouvir.
- Corvos Sangrentos... À carga!
Os trácios repetiram o grito, enquanto incitavam as montadas e se preparavam nas selas para o embate. As notas estridentes das trombetas soavam sobre a cacofonia
dos cascos a martelar o solo e os gritos de guerra soltados a plenos pulmões. Cato debruçou-se para a frente, a parte esquerda do corpo protegida pelo escudo e os
músculos do braço direito tensos, prontos a desferir golpes letais sobre o primeiro siluro que lhe aparecesse à frente. A distância foi coberta no que lhe pareceu
um mero instante, e viu dois homens saltarem para o lado imediatamente à sua frente. Apontou a lança ao mais próximo deles, mas o guerreiro moveu-se rapidamente,
e a ponta trespassou apenas o ar. Recuperou a lança, enquanto Aníbal continuava a avançar por entre as fileiras inimigas. Outro homem, mais corajoso, aguentou a
pé firme o avanço de Cato, e este manobrou a lança para o golpear. O siluro empunhava um escudo reduzido, com um desenho espiralado, e brandia uma longa espada que
mantinha em posição de ataque sobre a cabeça. Cato puxou pelas rédeas com a mão com que segurava o escudo e puxou a cabeça de Aníbal para o lado; o cavalo resfolegou
em protesto quando o freio lhe forçou a boca. Todo o corpo do animal rodou, e o peito foi embater no escudo do guerreiro inimigo, atirando-o para trás. Cato aproveitou
para lançar uma estocada que atingiu o celta na perna. Uma ferida não letal, mas suficientemente profunda para o obrigar a grunhir de dor e afastar-se a cambalear.
Cato calcou os flancos da montada para a endireitar e prosseguir o avanço. De ambos os lados, os trácios penetravam pela linha inimiga. Cato avistou um dos seus
homens a virar e começar a perseguir um guerreiro em fuga, e gritou-lhe de imediato.
- Deixa-o! Em frente! Em frente! Incitou Aníbal e continuou a subir o declive suave que levava ao colo, onde quase só adivinhava o cintilar das armas e os estandartes
que flutuavam sobre o cimo relvado da encosta. Os esquadrões trácios tinham conseguido romper o flanco direito da linha inimiga, e feito dispersar os guerreiros
nativos que a compunham. Ao espreitar por cima do ombro, Cato sentiu um tremendo alívio por verificar que a formação se mantinha intacta, embora menos definida do
que antes do impacto na linha inimiga. Mas não havia espaços vazios, e não avistou nenhum homem ainda envolvido nalguma escaramuça com a infantaria inimiga. Sentiu-se
empolgado por terem rompido as linhas siluras com tanta facilidade, mas logo se preparou para o verdadeiro combate que ainda os esperava.
A formação em cunha alcançou por fim o colo, e só então se revelou aos seus olhos o combate desesperado que se desenrolava com extrema selvajaria à sua frente. Havia
milhares de guerreiros inimigos a rodear a coluna romana acossada. Não havia sinais de sobreviventes do esquadrão de cavalaria da escolta, que pouco tempo antes
tinha feito a sua malfadada carga. Numa pequena crista ali perto, Carátaco e o seu séquito, a cavalo, observavam o combate. Por momentos, Cato sentiu-se tentado
a levar os seus homens num ataque direto contra o general inimigo. Se ele fosse morto, o coração, e cérebro, da coligação de tribos que se opunha a Roma seria eliminado.
E então talvez a paz pudesse prevalecer na nova província romana da Britânia. Mas antes que pudesse ceder ao impulso e dar a ordem, viu Carátaco e os seus seguidores
a descerem o declive para se juntarem à refrega no outro lado do assoberbado perímetro romano.
À sua frente já havia alguns guerreiros inimigos que se voltavam para trás, ao escutarem o som dos trácios a acorrerem ao combate. A aparência selvagem que Querto
tinha encorajado os seus homens a adotar, bem como a sua reputação de crueldade e destemor, pareciam cavalgar à sua frente e abrir-lhes caminho, já que muitos preferiam
fugir da zona, deixando apenas os mais experimentados guerreiros a defender o caminho. Por trás deles, Cato viu apenas uma massa revolta de inimigos, que ele e os
seus homens teriam que atravessar, se quisessem alcançar a coluna. E depois? Escapar do colo parecia uma impossibilidade. Afastou o pensamento. Para ele, só podia
haver o ali e agora. Tinha que liderar os seus homens e combater enquanto lhe fosse possível. Se os deuses lhe concedessem o seu favor, talvez sobrevivesse àquele
aperto. Em caso contrário, lançou uma rápida prece para que o fim fosse rápido e relativamente pouco penoso.
Os flancos de Aníbal arfavam com o esforço da carga, mas o animal prosseguia a toda a brida, derrubando mais dois homens antes de um terceiro desferir uma espadeirada
na guarda de bronze que lhe protegia a testa e os olhos. Por sorte foi apenas de raspão, mas o golpe não deixou de assustar o animal, que se empinou e golpeou o
ar com os cascos. Cato lançou o seu peso para a frente, e lutou para recuperar o controlo da montada.
- Calma, rapaz! Calma... - Cato falou com voz suave, e assim que Aníbal voltou a pôr as patas no solo, incitou-o novamente a avançar. A forma de cunha já tinha sido
desfeita quando os trácios se lançaram sobre a infantaria inimiga, lançando gritos de guerra e desferindo golpes à esquerda e direita com as suas longas lanças,
ferindo corpos e membros dos guerreiros siluros. Cato olhou à volta e reparou que algumas das selas já estavam vazias e que, ali perto, outro homem se via rodeado
pelos nativos, todos eles a atacá-lo e a impedi-lo de avançar e de lhes apresentar um alvo mais difícil. Eram demasiados, e quando o trácio levantou o braço para
lançar uma estocada, um machado abateu-se sobre as suas costas, sem conseguir forçar a passagem pela cota de malha mas ainda assim provocando a fratura de alguns
ossos. A lança tombou-lhe dos dedos, e no momento seguinte foi arrancado da sela e desapareceu da vista de Cato.
A voz do centurião Estelano fez-se ouvir sobre a refrega, rouca e esganiçada.
- Força, rapazes! Não parem! Cato avançou também, o escudo bem levantado enquanto manejava a lança. Um guerreiro já idoso, ossudo e de cabelo cinzento pastoso, destacou-se
da turba com um machado nas mãos, de dentes à mostra num esgar selvagem ao avistar o oficial romano. Correu para ele. Cato debruçou-se para a frente e empurrou a
lança. A ponta acertou no inimigo, cravando-se profundamente na sua virilha. O homem grunhiu, dobrou-se em dois, deixou cair o machado e tombou de gatas; no instante
seguinte, Cato já tinha passado por ele e procurava novo adversário. Tão concentrado estava no combate que quase esbarrou na linha romana sem se aperceber da sua
presença. Abriu-se uma brecha no seio dos siluros, e de repente lá estavam os homens com os pesados escudos retangulares das legiões. Cato deteve o cavalo subitamente
e gritou.
- Abram fileiras! Deixem-nos passar! Não houve reação; os olhos suspeitosos dos legionários espreitavam sobre as orlas superiores dos escudos. A um dos lados, Cato
avistou a estreita crista do capacete de um optio, e apontou-lhe a lança de imediato.
- Tu! Ordena aos teus homens que abram as fileiras! O optio olhou-o com suspeita, mas acabou por gritar a ordem aos seus homens. Para seu grande alívio, Cato viu
os escudos separarem-se, e conduziu Aníbal pela abertura até ao espaço vazio por trás das costas dos soldados romanos. De imediato fez a montada rodopiar e levantou
a lança ao ar.
- Corvos Sangrentos! Corvos Sangrentos! Comigo! Outros homens irromperam pela abertura na formação romana, a sós ou em pequenos grupos, à medida que se iam livrando
dos siluros que os combatiam. Cato verificou que a maior parte dos dois esquadrões tinha conseguido sobreviver. Alguns tinham-se visto separados da formação, e avistou
um último, a menos de trinta passos, a ser puxado selvaticamente da sela e envolvido por um vendaval de guerreiros inimigos. As suas armas ensanguentadas subiam
e desciam num frenesim, antes de acabarem a sua tarefa macabra e voltarem a concentrar-se no assalto à coluna de reforços.
Cato repousou a base da lança no apoio, e chamou. - Centurião Estelano! Decurião Kastos! A mim! - Aqui, senhor! - Estelano abriu caminho por entre os outros cavaleiros
amontoados no espaço entre os legionários e os vagões.
- Onde está o Kastos? - Foi atingido por uma lança no peito e derrubado, ali atrás. Cato assentiu.
- Nesse caso, assumirei o comando direto do esquadrão dele. - Por Hades, quem são vocês? - Interrompeu-os uma voz, e Cato voltou-se na direção de um tribuno, de
pé sobre um dos vagões próximos. Um homem alto e espadaúdo, alguns anos mais velho do que ele. Cato levou o cavalo até junto da posição do outro.
- Prefeito Quinto Licínio Cato, comandante do forte de Bruccium. O oficial acenou à laia de saudação. - Tribuno Mancínio, senhor. Da Décima Quarta. O que está aqui
a fazer?

Cato ignorou o tom brusco. - Tinha esperanças de vos ajudar a abrir caminho até ao forte. Mas parece-me que não têm homens suficientes para tamanha tarefa.
Mancínio abanou a cabeça, desolado. - Exatamente o que eu acho. Mas o legado achou que a escolta seria suficiente. Não foi a mais avisada das decisões.
- Assim parece. Qual é o teu plano? - Plano? - O tribuno gesticulou, designando o combate que se desenrolava em redor dos vagões. Havia homens feridos a serem levados
da frente de combate e acomodados contra as rodas das carroças. - O que acha? - A voz do tribuno denunciava exasperação. - Neste momento, lutamos pelas nossas vidas.
Depois de uma breve hesitação, o homem cedeu o controlo da situação. - Senhor, quais são as suas ordens? Cato olhou em redor, e verificou que até ali os soldados
romanos estavam a conseguir aguentar a sua posição. Virou-se de novo para Mancínio.
- Temos que abrir caminho. Mas não podemos avançar, ainda há mais forças inimigas entre nós e o forte. Temos que recuar para Gobannium.
O tribuno mordeu os lábios. - Não será assim tão simples, senhor. Fomos seguidos por um grupo de guerreiros praticamente desde que deixámos o fortim. Mantiveram-se
nas proximidades até esta manhã. E depois desapareceram. Pensava eu.
- Bom, é a única saída que ainda temos. - Cato piscou os olhos quando uma seta lhe bateu no escudo e ricocheteou por cima do capacete. - Eu e os meus homens abriremos
uma passagem. A infantaria que cerre fileiras, e vamos pôr-nos em movimento. Libertem três vagões para levar os feridos. Os outros terão que ficar para trás. A perspetiva
do saque ajudará a diminuir o número de inimigos que nos seguirão.
Mancínio anuiu e virou-se para dar as ordens a uma das secções que constituíam a sua pequena reserva. Os homens largaram os escudos e começaram a descarregar os
últimos três vagões, espalhando o equipamento de reserva e as rações pelo chão, escorregadio devido à lama remexida pelas pesadas rodas, pelos cavalos e pelas botas
dos elementos da coluna. Os feridos foram levantados e ajeitados no leito do primeiro vagão. Cato sabia que depressa aquele e os outros dois ficariam repletos de
mais feridos.
Enquanto os legionários preparavam os carros, Cato deu ordem a Estelano para formar os trácios na estrada, na parte de trás do perímetro romano.
O optio que comandava a reserva aproximou-se e saudou-o. - Senhor, e quanto aos animais de tiro? Levamo-los connosco, ou abatemo-los?
Cato deitou um olhar às mulas e bois atrelados aos vagões que iam ficar para trás. Não fazia sentido deixá-los ali para que o inimigo os pudesse utilizar. Era prática
comum destruí-los, para não permitir que fossem capturados. Porém, naquele caso podiam ainda vir a ser úteis. Levou alguns segundos a refinar o plano que congeminara,
e depois dirigiu-se ao optio.
- Tirem-nos das cangas e disponham-nos à frente dos trácios. Têm as redes em que é levada a ração?
- Sim, senhor. - Então prendam uma ao arnês de cada um deles. - Senhor? - O optio ficou espantado com a sugestão, mas anuiu obedientemente. - Sim, senhor.
- Trata disso. E depressa. O optio afastou-se para dar cumprimento às ordens, e Cato fez uma pausa para avaliar a forma como decorria a batalha. Tinha perdido um
terço dos seus homens. Não restavam mais do que uns quarenta trácios. A coluna de reforço estava a resistir melhor, graças à muralha de escudos que oferecia ao inimigo.
Sofreriam muito menos baixas do que os siluros, equipados de forma ligeira, mas seria sol de pouca dura. O preço do equipamento pesado era a exaustão que provocava
nos soldados. Era por isso que os legionários combatiam por turnos nas grandes batalhas em linha. Contudo, na retirada que estava a planear realizar até Gobannium,
não teriam qualquer descanso, recordou Cato. Daí a poucas horas estariam completamente extenuados, e seriam presa fácil para um inimigo ágil e ligeiro.
Enquanto esperava que as suas ordens fossem executadas, Cato refez mentalmente o caminho para fora do vale. A estrada passava pelo colo entre as montanhas e descia
para outro vale. Aí, o caminho estreitava, e era ladeado por uma espessa floresta de pinheiros. Se conseguissem alcançá-lo, talvez uma retaguarda bem colocada conseguisse
aguentar o inimigo tempo suficiente para que o resto da coluna escapasse. Ou pelo menos para que ganhasse um avanço suficiente para lhes permitir chegar a Gobannium.
Sobre as cabeças dos homens envolvidos na refrega avistava Carátaco e a sua escolta, incitando os seus guerreiros. Por um breve instante sentiu que o comandante
inimigo o fixava com o seu olhar, ainda com a mesma determinação obstinada de obliterar Bruccium, todo e cada homem da sua guarnição, e qualquer outro romano que
lhe surgisse pelo caminho. Mas então Carátaco esporeou o cavalo e dirigiu-se a outra secção do seu exército, desmontou e envolveu-se
pessoalmente no combate.
O tribuno Mancínio aproximou-se e manteve-se a seu lado a verificar o progresso do encarniçado mas desigual combate que se desenrolava em redor.
- Para que quer os animais de tiro? - Perguntou. - Se leste o Lívio, deves ser capaz de adivinhar a minha ideia. - Lívio? - Mancínio encolheu os ombros. - Não fez
parte das minhas leituras, lamento dizê-lo, senhor.
- Uma pena. Tem os seus usos. - Cato viu que os animais e os trácios estavam nas posições que tinha designado, e que o último dos três vagões que tinha escolhido
já tinha dado a volta, e estava pronto a pôr-se a caminho. - Tribuno, está tudo a postos. Quando eu der a ordem, os animais provocarão uma espécie de diversão. A
minha cavalaria seguirá atrás deles e tentará abrir uma passagem para a coluna. Põe os teus homens em marcha imediatamente a seguir. Mantenham as fileiras bem cerradas,
com os escudos a fazer muralha. Se puderes salvar os feridos, fá-lo. Mas se se atrasarem e não puderem ser protegidos, terás que os abandonar. Entendido?
- Entendido, senhor, mas difícil de engolir. - Paciência. Não podemos afrouxar o andamento da coluna por motivo nenhum. Isto, se queremos mesmo ter alguma hipótese
de salvar pelo menos alguns dos homens.
- Compreendo, senhor. - Ótimo. Então, vamos a isto. - Cato deu um estalo com a língua e levou Aníbal a passar pelos vagões abandonados, até chegar à cabeça das fileiras
apinhadas dos trácios. Avistou o optio a tratar de atar as redes de ração às nervosas mulas e bois, agrupados por trás da linha de auxiliares que protegiam a retaguarda
do perímetro.
- Optio, tens contigo a tua pederneira? O homem afagou a caixa de couro que lhe pendia do ombro. - Sim, senhor. - Então acende uma chama. Assim que o conseguires,
manda os teus homens atearem uns molhos de palha seca, e depois pegarem fogo ao feno nas redes.
O optio arqueou as sobrancelhas, atónito, mas assentiu obedientemente e começou a trabalhar. Cato dirigiu-se ao centurião que comandava a retaguarda.
- Centurião, qual é a tua unidade?
O oficial, um veterano entroncado e de ar duro, saudou-o. - Quarta Coorte Hispânica, senhor. - E o teu nome? - Centurião Fernando, senhor. - Quando eu der a ordem,
Fernando, quero que os teus homens abram alas para deixar passar os animais. Terão que ser rápidos, se não quiserem ser pisoteados.
- Sim, senhor. Tudo estava pronto, e Cato regressou à sua posição à cabeça dos trácios. O optio tinha já ateado um pequeno fogo, que alimentava com punhados de erva
seca. Assim que as labaredas se tornaram mais fortes mandou os homens avançarem, e estes atearam por sua vez os feixes de ervas retorcidas e apressaram-se a colocar-se
por trás dos animais, à espera de nova ordem. Cato endireitou-se na sela, preparando-se para o que aí vinha, e pegou na lança.
- Acendam-nos! À sua ordem, os legionários prenderam as suas tochas improvisadas nas redes que seguravam as sacas de rações, e de imediato o combustível seco começou
a alimentar as chamas. Pequenas colunas de fumo voltearam pelo ar, e as labaredas propagaram-se velozmente. O calor e o brilho alarmaram os animais, que começaram
a remexer-se, empurrando-se uns aos outros. Cato esperou mais uns instantes, para ter a certeza de que os animais estavam realmente agitados e prontos a precipitarem-se
por uma saída, assim que a vislumbrassem. Um dos bois soltou um longo bramido de medo e dor, e bateu com uma pata no solo.
- Fernando, agora! O centurião auxiliar respirou fundo e gritou. - Quarta Hispânica! Abrir fileiras! A linha de combate separou-se quando os homens ao centro recuaram
e deram passos para o lado. Movimentaram-se com rapidez suficiente para surpreender os inimigos com quem combatiam, que ficaram de repente confrontados com um vazio,
de armas aperradas e olhos esbugalhados de assombro. O boi voltou a fazer-se ouvir, à medida que as chamas da rede começavam a chamuscar-lhe a pele. Resfolegou e
correu para a abertura, tentando escapar ao feno que ardia já junto à sua pele. Os outros animais começaram a mover-se e, ao tentarem fugir ao tormento, aceleraram
diretamente de encontro às fileiras apinhadas dos siluros. Não havia possibilidade de sair do caminho das bestas assustadas, e os homens foram arrebanhados e varridos
pelo ímpeto dos animais aterrorizados. Os primeiros caíram sob os cascos com gritos de espanto, mas depressa outros se viram pisoteados, à medida que os animais
irrompiam do centro da formação romana. Nada se lhes podia opor, no seu pânico irracional. Os bramidos e urros enchiam o ar enquanto as chamas, avivadas pelos esforços
titânicos de fuga, se erguiam por trás deles, aumentando o terror que sentiam.
Cato aguardou que o último dos animais em correria tivesse passado pela brecha, e fez sinal com a lança.
- Corvos Sangrentos! Vamos a eles! Uma ordem sem qualquer formalidade, sabia-o, mas que era impossível de ignorar, e os seus homens incitaram as montadas
e carregaram pela abertura do quadrado romano. Cato e o esquadrão do falecido Kastos avançaram sobre o flanco esquerdo, enquanto Estelano e os outros o faziam à
direita, ajudando a destroçar o que restava da formação silura, cujos membros estavam já espalhados e aterrorizados; os trácios espetavam lanças sem parar, dizimando
o inimigo em fuga. Assim que o último dos cavaleiros deixou o perímetro, o tribuno Mancínio deu ordens para avançar, e os homens por trás da muralha de escudos começaram
a seguir pela estrada, momentaneamente livre de inimigos, que descia do colo entre as montanhas e seguia para Gobannium. Os siluros acompanharam o movimento, continuando
a atacar sem cessar os escudos e a tentar atingir uma perna exposta ocasionalmente, ou um espaço que se abrisse entre os escudos. Pela sua parte, os romanos continuavam
a distribuir estocadas contra o inimigo. Alguns ainda possuíam dardos, e usavam o maior alcance que a arma lhes dava para bom efeito, trespassando qualquer guerreiro
que se aventurasse demasiado perto da linha de escudos. Enquanto progredia, a coluna deixava para trás uma série de corpos, mortos e moribundos, a maior parte deles
nativos, mas também alguns romanos, que depressa eram chacinados no solo pelo inimigo.
Os animais tinham-se dispersado, correndo cegamente num esforço fútil para fugirem às chamas que lhes chamuscavam os dorsos. E cabia a Cato e aos trácios manterem
limpa a trajetória que a coluna seguia. Carregavam para um lado e outro, fazendo dispersar qualquer grupo de guerreiros inimigos que tentasse criar um ponto de resistência
à frente da coluna romana que recuava a passo do cimo da passagem entre as montanhas. Tal como Cato tinha esperado, muitos dos celtas tinham-se precipitado sobre
os vagões abandonados, entretendo-se a vasculhá-los à procura de algo de valioso, ou de armaduras e outro equipamento. Só quando Carátaco se aproximou dos seus seguidores
assim entretidos e lhes ordenou que se concentrassem na refrega é que esta recrudesceu de intensidade.
Tinham percorrido já mais de quilómetro e meio com poucas perdas quando se aproximaram da pequena crista antes do ponto onde o vale se estreitava. Cato reagrupava
os seus homens para nova carga contra o inimigo quando o centurião Estelano, que se tinha adiantado ligeiramente, deteve abruptamente o cavalo e ficou especado a
contemplar a descida que se seguia. Virou-se e chamou Cato, de forma frenética.
- Senhor! Aqui! Os grupos de guerreiros inimigos tinham recuado, e mantinham-se a distância segura dos trácios, pelo que Cato aproveitou o alívio momentâneo para
se juntar a Estelano. Ao refrear o cavalo ao lado do do centurião, a razão para a consternação que este exibia tornou-se imediatamente evidente. A estrada estava
bloqueada por uma barricada improvisada, feita de rochas e árvores abatidas. À frente desta via-se uma linha de estacas aguçadas, apontadas aos romanos, que se prolongava
pelas bermas até ao pinhal cerrado que cobria a largura do vale, ali relativamente reduzida. Por trás daquelas defesas improvisadas via-se o inimigo, de armas a
postos, a lançar desafios e impropérios. Quando viram Cato e um punhado de trácios a juntarem-se ao centurião, as provocações subiram de tom, até ecoarem nas paredes
rochosas que fechavam a paisagem.
Por momentos, Cato sentiu-se confundido. Não tinha dado por nenhum grupo de guerreiros a adiantar-se à coluna. Só então compreendeu. Aqueles eram os homens que tinham
perseguido Mancínio e a sua coluna. Não tinham desaparecido, tinham-no seguido o tempo suficiente para o conduzir à armadilha, e depois tinham-se dedicado a colocar
no terreno a última peça do plano elaborado pelo seu comandante, Carátaco. Cato não conseguiu evitar alguma admiração pela inteligência e engenho militar do rei
dos catuvelaunos. Mais uma vez, tinha-se revelado mais astucioso do que os seus opositores romanos.
O momento passou, e a admiração de Cato transformou-se em temor, puro e simples. As suas possibilidades de sobrevivência acabavam de se ver reduzidas ao mínimo.
Tinham que romper aquele bloqueio, ou então morreriam ali mesmo.
33
Tens que manter esta posição até acabarmos o trabalho. - - 1 Explicou Cato a Mancínio. - Um terço dos homens já foi abatido. Vou precisar de uma centúria dos auxiliares
hispânicos para romper a barricada. Isso deixa-te com muito pouca gente. O Estelano fará o que puder para resguardar os teus flancos, mas caberá ao resto da escolta
e à coluna de reforços aguentar o inimigo à distância.
O tribuno anuiu, e ajustou a pega no escudo que empunhava. - Senhor, faremos o nosso dever. Na direção de Bruccium, os siluros continuavam a amontoar-se, ocupando
toda a largura do vale, ganhando coragem e motivação para novo assalto à muralha de escudos romana com um coro crescente de gritos de guerra.
Cato sorriu ao tribuno. - Neste caso, o dever só não chega. Preciso mesmo é que tu e os teus homens sejam uns verdadeiros heróis.
Mancínio sorriu também. - Os que vão morrer... Cato abanou a cabeça. -
Não era bem nisso que estava a pensar. Ver-te-ei, e aos teus homens, do outro lado da barricada, depois de a atravessarmos.
- Sim, senhor. Boa sorte. Cato agradeceu com um aceno e dirigiu-se para junto dos auxiliares da Primeira Centúria da Coorte de Fernando. Tinham formado uma coluna
apertada, oito homens de lado e dez de profundidade. Cato tinha deixado a lança e Aníbal aos cuidados de um dos feridos ainda capazes de andar, e desembainhou a
espada enquanto tomava lugar na primeira linha da centúria. O comandante da coorte olhou-o com aparentes dúvidas.
- Senhor, devia ser eu a liderar o ataque. São os meus homens. - E é a minha ordem que executam. Não lhes pedirei que corram os perigos que eu me recusaria a enfrentar.
Fernando encolheu os ombros. - Como desejar.
Cato assentiu. - Regressa para junto do resto da tua coorte. Algo me diz que o inimigo não vai esperar muito mais tempo antes de lançar novo ataque à coluna.
O centurião baixou a cabeça e virou-se, afastando-se em corrida ligeira para junto do resto dos seus homens, alinhados à direita dos legionários que defendiam o
centro da linha, enquanto os reforços destinados ao forte defendiam o flanco esquerdo. Além disso, havia apenas uns dez homens de cada esquadrão dos trácios, que
ocupavam as pontas da linha de combate. Aguentariam a primeira carga de Carátaco e da sua horda, mas depois disso seriam os deuses a decidir a sorte da batalha.
Cato afastou esse tema da mente, rodou o escudo para cobrir o ombro esquerdo e colocou a espada em posição horizontal.
- Avançar, a passo cadenciado! - Ordenou. Os auxiliares que o rodeavam prepararam-se para o combate, de rostos sombrios mas determinados. Sabiam tão bem como ele
que a sua sobrevivência, bem como a dos seus camaradas, dependia de conseguirem romper a barricada e, depois, de manterem a brecha aberta o tempo suficiente para
o resto da coluna retirar pela estrada que percorria o pinhal.
- Um! Dois! - Entoou Cato, repetidamente, e a formação cerrada avançou a caminho da linha de estacas, a menos de cem passos à sua frente. Por trás delas, os guerreiros
inimigos que guarneciam as defesas improvisadas brandiam as suas armas e provocavam os romanos, convidando-os a aproximarem-se e a serem derrotados. Nas suas costas,
Cato ouvia os apelos dos cornos de guerra, e um enorme rugido coletivo indicou-lhe que o resto dos siluros se precipitava mais uma vez contra a fina linha romana
que cobria a retirada.
Passo a passo, os auxiliares prosseguiram pela estrada, aproximando-se do inimigo barricado, e Cato avistou um homem a trepar à barricada e a fazer rodar um pedaço
de couro acima da cabeça.
- Escudos acima! Formar em tartaruga! As fileiras do interior da formação levantaram os escudos, uma a uma, da frente à retaguarda, e por baixo dos escudos a centúria
transformou-se num mundo escuro e congestionado de respirações assustadas, de cheiro a suor e do som de preces murmuradas apressadamente a todo o género de deuses.
Os sons quase em surdina foram repentinamente afogados no estrondo da chuva de metralha que se abateu sobre eles, amolgando as superfícies dos escudos de couro.
Cato baixou a cabeça, de forma a conseguir espreitar por cima da orla do escudo, e subiu o tom de voz enquanto continuava a marcar o ritmo do avanço. - Um! Dois!
Ouviu-se um grito de dor quando um dos auxiliares foi atingido na canela, o que lhe esmagou imediatamente o osso. Caiu da formação e cobriu o corpo com o escudo,
enquanto outro homem tomava o seu lugar. O bombardeamento intensificou-se quando chegaram junto da linha de estacas e Cato deu ordem de alto à formação. Disse a
dois dos homens para arrancarem a primeira estaca. Outro auxiliar foi atingido por um projétil que ricocheteou num escudo e lhe foi bater no rosto, partindo-lhe
o malar e cegando-o de um olho. Soltou um gemido de dor, mas manteve-se no lugar.
- É assim mesmo. - Gritou-lhe Cato. A primeira estaca foi arrancada, e logo outra seguiu o mesmo caminho. A metralha caía sem cessar, acompanhada por pedras, que
provocavam maiores estrondos ao bater nos escudos. Ouviu-se então um grito, seguido do soprar de um corno, e Cato arriscou uma espreitadela por cima do escudo; avistou
guerreiros inimigos a saltarem sobre a barricada e a correrem contra a formação, para a atacar.
- Aí vêm eles! Preparem-se! No instante seguinte, Cato sentiu o escudo a ser empurrado contra o corpo. Recuou um passo, abalado, antes de empurrar com quanta força
tinha e voltar ao seu lugar na linha da frente da formação. Recebeu mais golpes no escudo, e sentiu mãos a tentarem arrancar-lho, enquanto vários guerreiros se esforçavam
por golpear o inimigo romano de qualquer maneira. Mas os auxiliares aguentaram a posição e apresentaram as espadas, atacando os guerreiros que os rodeavam. Os dois
homens que arrancavam as estacas continuaram a sua tarefa, grunhindo enquanto as puxavam com toda a força.
De súbito, ouviu-se um estalo ensurdecedor, estilhaços voaram pelo espaço confinado por trás dos escudos, e um raio de luz trespassou a penumbra. Cato espreitou
e avistou um enorme guerreiro siluro, envergando apenas uma tanga, o poderoso corpo coberto de tatuagens sinuosas, que fazia girar um pesado martelo de guerra, e
que se preparava para desferir novo golpe. O primeiro tinha desfeito um escudo e o peito do homem que o segurava. Este estava pelo chão, ainda de olhos atónitos,
enquanto o sangue lhe borbulhava nos lábios e lhe salpicava o uniforme. O martelo cruzou o ar num arco mal intencionado, e voltou a abater-se sobre a formação romana,
fazendo outro homem voar pelos ares, de encontro aos seus camaradas.
- Merda! - Resmungou Cato quando viu dois outros guerreiros inimigos tentarem irromper pela brecha assim criada. Um deles empunhava uma lança de caça, e depressa
a cravou no ventre de um auxiliar. O outro trazia um pequeno machado que usou para atacar o braço de outro dos soldados. A formação estava em risco de se desfazer,
já que os outros homens começavam a recuar quase por instinto.
- Aguentem as posições! - Instou Cato. Nesse momento, dedos fecharam-se em volta da orla do seu escudo, e tentaram puxá-lo para trás.
Cato encarniçou-se com o gládio sobre o que via do inimigo, os nós dos dedos, e foi recompensado por urros de agonia quando os cortou, obrigando o adversário a recolher
a mão, agora estropiada. Cato reparou que o gigante do martelo tinha acabado de abater outro auxiliar, com um golpe na cabeça que esmagara o capacete e o crânio
por baixo dele. O sangue espirrava do rosto e dos ouvidos da vítima. Entretanto, mais elementos inimigos tinham penetrado na formação. Cato percebeu num relance
que já não conseguiriam resistir, e que seria suicídio tentar prosseguir com o plano original.
Com um lamento de frustração, respirou fundo e deu a ordem que tentara evitar.
- Recuar! Recuar! Manteve o escudo em posição enquanto recuava cuidadosamente, passo a passo. Os homens voltaram a cerrar fileiras e acertaram o passo pelo comandante,
que de novo marcava a cadência. O inimigo não os largou, porém, e era ainda o gigante do martelo a liderar o assalto, a poderosa arma a girar pelo ar e a derrubar
auxiliares um atrás do outro. Cato compreendeu que era preciso abatê-lo, antes que conseguisse destruir o espírito de luta dos sobreviventes da centúria. Deu ordem
de alto à formação, esperou que o martelo voltasse a subir e se preparasse para se abater sobre outro inimigo. Atirou-se então para a frente, lançando o escudo para
cima, contra o rosto do gigante. O nariz do homem partiu-se com um estalo, e Cato desferiu um golpe em arco por fora do escudo, atingindo-o na axila. O golpe não
tinha a força suficiente para penetrar pelas costelas, e assim a lâmina limitou-se a fazer um longo rasgão na pele tatuada. Cato não tentou desferir um golpe fatal,
preferindo recuar de imediato de volta ao seio da formação e continuar a orientar a retirada da centúria. Viu o sangue a correr pelo rosto do gigante, enquanto o
homem cambaleava, ainda atónito. Os seus camaradas soltaram em coro um grunhido ansioso perante aquele contratempo, e deixaram de atacar os escudos dos auxiliares
com tanto empenho, o que permitiu a criação de um espaço entre as duas forças. Havia muitos mais siluros do que romanos pelo solo, e ao confrontarem-se com a muralha
de escudos e de letais pontas de espadas que se projetavam para o exterior, os nativos ficaram com pouca vontade de se lançarem num ataque renovado. Contentaram-se
com o habitual lançamento de insultos e provocações aos romanos em retirada, até que um dos seus chefes teve o bom senso de os reconduzir aos berros para junto das
estacas arrancadas, que voltaram a cravar no solo.
Cato conduziu os homens para fora do alcance das fundas, e ordenou-lhes então que formassem uma linha para cobrir a retaguarda do resto da coluna. Quando pôde finalmente
dar atenção à evolução da refrega na frente principal, o inimigo estava de novo a recuar. Mas tinha cobrado um preço tão pesado como aquele que tinha pago, e na
maior parte da extensão da linha romana já só existia um soldado, sem qualquer apoio nas costas. O próximo ataque romperia sem dificuldade a formação, compreendeu
Cato. Apressou-se a dirigir-se ao tribuno Mancínio, que estava a ser tratado a uma ferida no braço.
- Não conseguimos ultrapassar a barricada. - Informou-o Cato. - Eu vi. - Mancínio encheu de ar as bochechas. - Não podemos abrir caminho para Bruccium. Não conseguimos
retirar para Gobannium. Já não nos restam grandes opções, senhor.
- Não, com efeito. - Cato apontou para uma pequena elevação a meia encosta, mais próxima das falésias que confinavam o vale. - É ali que ficaremos.
O tribuno considerou a posição, e encolheu os ombros. - Um lugar tão bom como outro qualquer para um combate sem esperança.
- Pois, mas será melhor ocupá-lo e cimentar a posição antes que o Carátaco
se lembre de nos vir fazer outra visita.
Mancínio anuiu, e dispensou o enfermeiro assim que este acabou de lhe ligar o ferimento. Os três vagões foram conduzidos até ao cimo do montículo, e as equipagens
de animais que os puxavam foram levadas até uma curta distância, onde os condutores lhes cortaram as gargantas. Cato ordenou a Estelano que reunisse os trácios,
dos quais apenas doze sobreviviam ainda, embora tivessem conseguido salvar mais três montadas.
- Ficaremos junto aos vagões e colmataremos qualquer brecha, se o inimigo conseguir entrar na formação.
Estelano olhou-o, espantado. - Se? Cato ignorou o comentário e observou os legionários e auxiliares a recuar para o cimo do outeiro. O inimigo pressentia o fim,
e recomeçou a avançar, ao mesmo tempo que Carátaco fazia claros sinais aos homens que compunham a força de bloqueio na estrada para que se reunissem aos seus camaradas
e ajudassem a concluir a aniquilação total da força romana. O gigante que tantos estragos causara já tinha recuperado dos ferimentos na cabeça e, apesar de ainda
coberto de sangue, apressou-se a saltar a barricada e a abrir caminho por entre as estacas para conduzir o seu bando, só por si mais numeroso do que os sobreviventes
romanos, começando a fazer girar o martelo enquanto se aproximava.
Os últimos soldados romanos ocuparam as suas posições no cimo do pequeno montículo, e prepararam-se para enfrentar o inimigo. Muitos já estavam feridos, e ostentavam
panos atados apressadamente sobre rasgões em pernas e braços. A maior parte dos escudos apresentava amolgadelas, e muitos tinham as orlas estilhaçadas pelos repetidos
impactos de espadas e machados. Estelano segurou Aníbal, e Cato trepou mais uma vez para a sela. Daquele ponto mais elevado contemplou o anel diminuto de soldados,
alinhados ombro a ombro em silêncio, expectantes e resignados ao destino. Os feridos mais graves, deitados nos vagões, podiam apenas observar o que se ia passar,
impotentes para o influenciar. Alguns ainda empunhavam espadas e adagas, embora Cato não estivesse certo de que pretendiam realmente lutar até ao limite das suas
forças; era mais provável que pretendessem pôr fim às suas próprias vidas, face à perspetiva de tormentos infindáveis às mãos dos siluros. Os porta-estandartes das
duas coortes estavam de pé no lugar do condutor de um dos vagões, de forma a garantir que as cores das suas unidades se mantinham a flutuar sobre os homens até ao
derradeiro momento.
Mancínio abriu caminho até junto de Cato, e ofereceu-lhe a mão. - Uma pena que tenhamos tido tão pouco tempo para nos conhecermos, senhor. Lamento que não tenha
decidido permanecer no forte.
Cato suspirou e fez um gesto abarcando o contingente de reforços. - Estes homens iam juntar-se ao meu comando. Não podia ficar quieto a vê-los ser aniquilados.
Mancínio sorriu. - Senhor, possui uma visão que diria antiquada do que constituem os deveres de um comandante.
- Pode ser que sim, mas uma patente implica responsabilidade, e não apenas privilégio. - Cato levou a mão em concha à boca. - Rapazes! É uma pena que nos vejamos
nesta situação, mas agora só nos resta um dever a cumprir. Levar connosco o maior número possível destes cabrões. Cada um que tombar às nossas mãos representará
um problema a menos para Roma. Seremos vingados. Disso podem estar certos. Será trabalho para os nossos camaradas. Vamos fazer com que eles se orgulhem de nós! E
quanto ao inimigo, vamos mostrar-lhes como morrem os romanos! - Desembainhou a espada e ergueu-a no ar, bem acima da cabeça. - Por Roma, e pelo Imperador!
- Por Roma! - Repetiu Mancínio, embora omitisse parte do grito; foi ainda assim o suficiente para que o clamor se espalhasse pelo derradeiro reduto romano, enquanto
os homens se preparavam para vender caro as suas vidas.
Cato reparou que era o próprio comandante inimigo, com os seus companheiros mais próximos, que liderava as fileiras de siluros que se aproximavam, e perguntou-se
se Carátaco lhe viria oferecer uma última oportunidade para se renderem. Se tal fosse o caso, sabia bem que não a poderia aceitar. Depois do cruel castigo que Querto
tinha infligido aos parentes daqueles guerreiros na região, não haveria qualquer misericórdia para com quaisquer prisioneiros romanos, e nada mais teriam a esperar
senão viver em condições miseráveis o pouco tempo que levaria a ser-lhes preparada uma morte lenta e dolorosa. Mas Carátaco não deu qualquer indicação de que se
preparava para lhes oferecer quaisquer termos de rendição. Ao dirigir-se aos seus homens na língua nativa, havia um claro tom de triunfo nas suas palavras. Os guerreiros
inimigos foram rodeando o montículo até o cercarem completamente, e só então recomeçaram a aproximar-se. Os seus gritos eram ensurdecedores, e nas suas faces evidenciavam-se
o ódio e o triunfo, à medida que mostravam os punhos e imitavam o tradicional bater das espadas nos escudos que os romanos executavam antes de um confronto. Só mesmo
no último instante,
quando os mais próximos estavam a uns poucos passos da linha romana, é que um qualquer instinto se propagou pela linha silura, e eles correram contra o inimigo,
lançando-se sobre os escudos e tentando a todo o custo abrir brechas entre eles, para poder atingir os homens que se protegiam por trás daquela parede.
Por momentos, a linha romana aguentou a pressão. E os legionários lutaram com um desespero selvagem que igualava o dos seus opositores. Corpos acumulavam-se à frente
dos escudos, e os siluros viam-se obrigados a pisar os seus camaradas já caídos para tentar alcançar os legionários e auxiliares. Porém, um a um, os defensores da
posição foram também tombando, e a cada baixa o círculo de defensores apertava-se mais e mais em redor dos vagões e dos poucos cavaleiros que esperavam junto a eles.
Cato decidiu conduzi-los numa última carga contra o próprio Carátaco, esperando que um qualquer milagre lhe permitisse chegar suficientemente perto para atentar
contra a vida do comandante inimigo. Mas este mantinha-se tranquilo e à distância, com o seu séquito, observando satisfeito a completa destruição da coluna de reforços
romana.
Cato gastou mais um momento a considerar a forma como ia morrer. Era verdade que tinha sido temerário ao deixar o forte para tentar ajudar os homens que o rodeavam
naquele momento, mas não teria conseguido viver consigo mesmo se não o tivesse feito. E havia a euforia que sentira depois de ter vencido Querto. Não fora apenas
o trácio a ser derrotado naquele duelo, mas também o receio que Cato tinha da morte. Tinha sido libertador ser capaz de confiar a própria vida à sua coragem e capacidade
de luta. Talvez tivesse sido a exaltação daquele triunfo o que o tinha conduzido àquele fim. Isso, e a convicção de que as suas ações talvez levassem à salvação
daqueles homens. Agora que estava condenado com eles, resolveu que pelo menos teria que fazer com que o seu sacrifício servisse de alguma coisa a Macro. Se conseguissem
matar suficientes siluros, talvez eles perdessem a vontade de continuar a atacar o forte. Havia naquela ideia algum conforto:
o seu último serviço naquela vida seria para ajudar o mais fiel dos amigos que algum dia poderia ter tido.
Ali bem perto, o gigante que tantos danos causara à formação que atacara a barricada avançava, para tentar abater mais um legionário. O soldado ergueu o escudo para
deter o golpe, e este praticamente explodiu com o impacto, fazendo-o cair de joelhos. O siluro desferiu-lhe um pontapé que o fez cair no solo de costas. Outro golpe
esmagou-lhe o peito, e o homem ficou imóvel sobre a erva ensanguentada.
- Estelano! - Chamou Cato. - Mata-me aquele tipo. O centurião anuiu, colocou a lança em posição de ataque e incitou a montada. O siluro olhou para cima com uma expressão
selvática ao detetar outra vítima em potência, e ergueu o martelo. A arma atravessou o ar a grande velocidade e abateu-se sobre a cabeça do cavalo do centurião.
Ao mesmo tempo, Estelano desferiu uma estocada com a lança, e a ponta perfurou o grosso pescoço do nativo e saiu sobre a omoplata. O homem soltou um urro de dor
e fúria, que foi subitamente interrompido pelo sangue que lhe preencheu a traqueia e a boca. O cavalo cambaleou, tremeu sobre as pernas e caiu por cima do centurião
e das costas de três legionários empenhados no combate. As patas do animal escoicearam, derrubando mais dois homens, e criando assim uma larga abertura na linha
romana. Os siluros responderam de imediato, entrando pela brecha e espalhando-se por entre os defensores. O gigante, entretanto, cambaleou até junto do cavalo, que
ainda se remexia, e dobrou-se, para pegar em Estelano pelo pescoço. O centurião só conseguia mexer um braço, e usou-o para bater no queixo do outro, mas o gesto
teve o mesmo efeito que teria se estivesse a fazer festas no dorso de um cão. De imediato, mãos poderosas fizeram a cabeça do oficial rodar bruscamente, partindo-lhe
o pescoço. Por fim, com o sangue a escorrer da boca, os olhos do siluro reviraram-se e ele tombou sobre a sua última vítima.
Mais guerreiros saltaram por cima dos cadáveres que juncavam o chão e subiram os últimos metros, espalhando-se à medida que se lançavam sobre os romanos. O perímetro
tinha entrado em colapso, e só restava aos soldados combaterem individualmente. Alguns lutavam costas com costas, outros formavam pequenos grupos e golpeavam com
ferocidade os guerreiros nativos que os rodeavam.
- Os estandartes! - Gritou Mancínio, enquanto recuava para junto dos vagões. Virou-se e olhou para Cato. - Salve os estandartes!
Cato hesitou por momentos, dividido entre o dever de combater até ao fim ao lado dos seus camaradas e a vergonha que cairia sobre todos eles se os símbolos das suas
unidades fossem capturados pelo inimigo. Então virou-se para os porta-estandartes ainda de pé sobre o vagão e voltou a colocar a espada na bainha.
- Deem-mos! Os dois homens fizeram como ordenado, e Cato entregou o estandarte dos auxiliares a um dos trácios, enquanto se encarregava do dos legionários, enfiando
a base no recetáculo da lança, na sela. Um pequeno grupo de guerreiros siluros tinha entretanto abandonado a refrega com os soldados a pé, e corria pelo declive
na direção dos vagões.
- Saia daqui! - Gritou Mancínio a Cato, antes de se lançar a correr contra o inimigo, derrubando um homem com o escudo e cravando a espada no ventre de outro. Soltou
a lâmina e desferiu um último golpe antes de se ver encurralado por três adversários que o lançaram ao solo. Teve tempo para um último grito. - Vá!
Cato calcou os flancos da montada. - Corvos Sangrentos! Sigam-me! Acelerou pela descida, carregando sobre a confusão da batalha, tencionando abrir caminho e fugir
para o meio das árvores, agora que a força de bloqueio inimiga tinha abandonado a sua posição para ajudar na destruição da coluna romana. Os cavaleiros mantiveram-se
juntos, e os homens apeados apressaram-se a sair do caminho, tentando apenas acertar-lhes enquanto passavam a grande velocidade. Os sons da batalha dominavam todo
o cenário, enquanto a toda a volta se remexia um verdadeiro mar de armas a faiscar e de sangue a saltar pelo ar. Um jovem de ar espaventado fez menção de saltar
sobre Cato, os dedos a tentarem agarrar o cabo do estandarte, mas o prefeito respondeu com um rápido movimento da bota, acertando com a sola cardada no rosto do
guerreiro e mandando-o para o solo sem remissão. Passaram pelo que restava da linha romana, e mergulharam nas fileiras dos siluros.
Pouco adiante, um outro guerreiro de maior argúcia deu um passo lateral para sair do caminho dos cavalos, mas usou a lança de caça para atacar. Cato desviou-se no
último instante, mas o homem que o seguia não detetou a ameaça, e a lança prendeu-se entre as patas do cavalo, fazendo-o cair para a frente e projetar o cavaleiro.
Caiu contra um grupo de siluros, derrubando-os, mas depressa eles recuperaram e se lançaram sobre o inimigo como cães selvagens. Um outro trácio foi atingido por
um machado que quase lhe decepou uma perna pelo joelho, mas o homem soltou um urro de desafio e cerrou os dentes, apertou a perna contra a sela e prosseguiu. A densidade
de inimigos começava a diminuir, e Cato verificou que estavam quase a libertar-se da massa dos guerreiros. À frente já se via algum terreno livre, até à extremidade
da barricada na estrada, por onde havia acesso ao pinhal, que se estendia até à vertente rochosa que limitava o estreito vale entre as montanhas. Com os calcanhares,
fez Aníbal dirigir-se para lá. Os trácios seguiram-no, derrubando os últimos inimigos, e por fim estavam livres, os cascos a martelar o solo de turfa pouco consistente,
tentando desesperadamente salvar os estandartes e preservar alguma da honra das unidades que estavam a ser massacradas nas suas costas.
Alcançaram por fim a extremidade da linha de estacas e reduziram o andamento ao entrarem pelo meio das árvores. Cato refreou a montada e olhou para trás, para o
montículo de onde tinham escapado. O combate estava praticamente terminado. Os siluros já se encarniçavam sobre os vagões, matando os que lá jaziam, indefesos. Só
uma ou duas bolsas de resistência ainda lutavam. Cato conduziu Aníbal por entre as árvores, saindo da vista do inimigo antes que eles se lembrassem de procurar o
pequeno grupo de cavaleiros que tinha rompido o cerco. As espessas ramagens dos pinheiros filtravam a luz e davam a todo o cenário um tom esverdeado, aqui e ali
trespassado por faixas de luz dourada. O som do combate era abafado, e conseguia-se mesmo escutar o canto dos pássaros nos ramos mais elevados. O solo estava coberto
por muitos anos de agulhas caídas e pequenos ramos, e os cavalos deslocavam-se quase em silêncio por entre os troncos verticais, direitos como colunas, penetrando
mais e mais na floresta. Cato sabia que tinham que voltar rapidamente à estrada para se manterem à frente do inimigo. Se ficassem entre as árvores, depressa Carátaco
colocaria grupos de guerreiros à sua volta, e depois seria fácil fechar o cerco e acabar com eles.
- Senhor. - Um dos homens interrompeu-lhe os pensamentos, e Cato olhou para cima.
O trácio fez um gesto para o homem que tinha sido ferido no joelho. - Temos que tratar do Eumenes. Não irá longe com a perna naquele estado.
Cato reparou que o homem estava em plena agonia, e que a perna lhe pendia inútil da pequena área de tecido que mantinha a articulação ainda unida. O sangue pingava
da bota para o chão da floresta. Abanou a cabeça.
- Não podemos parar. Ele vai ter que aguentar até pormos alguma distância entre nós e o inimigo.
- Senhor, ele não poderá cavalgar muito mais neste estado. Cato sabia que era verdade. Tal como sabia que correriam um enorme risco se interrompessem a marcha para
cuidar do ferido. Lamentável, mas tinham que manter os estandartes a salvo, e chegar a Glevum. Era vital que o governador Ostório ficasse a saber qual a localização
de Carátaco e do seu exército, o mais cedo possível. Endureceu a voz e retorquiu.
- Liga-lhe a ferida e tenta manter-te no grupo. Ele tem que prosseguir. Se não conseguir, terá que ficar para trás.
O trácio lançou-lhe uma saudação sem esconder o azedume, e foi ajudar o camarada. Dada a ordem, Cato agitou as rédeas, acenou aos outros homens e tomou a direção
da estrada para Gobannium.
34
No fim da tarde, as nuvens tinham desaparecido do céu, e o Sol brilhava sobre o forte de Bruccium. Macro tinha dado ordens para que o sinal fosse mantido aceso,
e a coluna de fumo cinzento subia bem alto no céu sobre o vale, uma vez que também a brisa tinha amainado. Nas horas que tinham passado desde que Cato saíra com
os dois esquadrões pelo portão lateral, Macro tinha permanecido no torreão sobre a entrada principal, o ponto mais elevado em todo o forte. Tinha seguido os cavaleiros
a dirigirem-se para a cornija e a prosseguirem pela face da montanha, até lhe desaparecerem da vista. O último bando de guerreiros tinha também passado pela crista
que delimitava o colo, e depois disso o acampamento inimigo tinha-se acalmado, enquanto alguns elementos mantinham o forte sob vigilância. Tinham-se colocado a uma
distância segura, enquanto os seus camaradas se dedicavam às tarefas quotidianas de procurar comida, lenha e troncos para construir habitações. Também se atarefavam
a criar abrigos portáteis que os pudessem proteger dos dardos lançados pelos defensores, quando surgisse a ordem de voltar a assaltar o forte.
- Ao que parece, afinal estes bárbaros são capazes de aprender umas coisinhas. - Murmurou Macro para si mesmo, sardónico. Mas depressa a sua face recuperou uma expressão
austera e concentrada, enquanto contemplava a estrada que levava ao colo. Atormentava-o nada saber como estava a correr a ação desesperada do amigo. A guarnição
precisava desesperadamente dos homens que vinham na coluna de reforço, bem como da escolta. Bruccium facilmente resistiria a vagas sucessivas de assaltos inimigos,
desde que as duas coortes voltassem a ter o efetivo completo; mais ainda se pudesse contar com a ajuda das forças que tinham sido enviadas para assegurar que os
reforços chegavam ao seu destino. Ao contemplar a muralha, Macro estava plenamente consciente da forma como os poucos homens que restavam mal davam para a guarnecer.
Tinha menos de duzentos homens. Se Carátaco ordenasse um ataque antes do regresso de Cato, havia fortes possibilidades de os siluros conseguirem prevalecer sobre
os defensores. Esforçou a vista na direção da passagem montanhosa, e reconheceu perante si mesmo que era bem possível que Cato não regressasse de todo. Parecia-lhe
já ter passado muito tempo desde que o amigo deixara o forte, e Macro não conseguia evitar pensar que o pior podia ter acontecido.
Cerrou o punho e bateu com ele na perna, frustrado. Tudo podia ter acontecido. Carátaco podia ter sido forçado a retirar. A coluna de reforços podia ter sido obrigada
a recuar. A batalha podia ainda estar a decorrer, nos confins do desfiladeiro montanhoso. Não tinha ainda qualquer indicação quanto à hipótese que se tinha concretizado.
Encostou-se à balaustrada de madeira e fechou os olhos doridos, para os deixar descansar uns momentos, perfeitamente consciente de que se sentia fraco, dada a falta
de sono nos últimos dias. Sentia os membros rígidos e pesados, e pela primeira vez na vida interrogou-se sobre quantos mais anos daquela vida é que conseguiria aguentar
sem se ir abaixo. Ao longo da sua carreira tinha conhecido muitos veteranos que tinham servido bem para lá dos vinte e cinco anos a que se tinham comprometido inicialmente.
Muito mais tempo do que lhes teria ficado bem, falando francamente. Mas o exército estava sempre pronto a esquecer a desvantagem da idade avançada em troca da inestimável
experiência que esses homens tinham adquirido ao longo da carreira nas legiões.
Quanto a ele, Macro, como muitos outros veteranos, tinha alimentado o sonho de se reformar e ir viver para uma pequena quinta etrusca, com um punhado de escravos
para trabalhar a terra, e passar as tardes numa agradável taberna local, a reviver velhas experiências em conjunto com outros veteranos. E agora que aquele plano
se tornava dia a dia mais próximo da realização, apercebeu-se de que a ideia lhe provocava sobretudo desdém... e até mesmo uma espécie de tranquilo desespero. Tudo
o que conhecia, de facto, era a vida militar. E era também tudo o que lhe importava. Tudo o que realmente amava. O que era a vida sem as rotinas, a camaradagem,
e a excitação do combate, que o cobriam como uma segunda pele?
A mente continuou no seu devaneio, deixando-se perder no nevoeiro acolhedor das memórias agradáveis, até que foi desperto repentinamente por uma picada no queixo,
e reabriu os olhos, estremunhado, tentando recuperar a compostura.
A cabeça tinha-lhe descaído de tal forma que a pele sob o queixo se tinha ido apoiar numa farpa da madeira do cimo da paliçada. Empertigou-se, horrorizado pela ideia
de se ter deixado dormir, por um ínfimo momento que tivesse sido. O castigo por tal falta enquanto se estava de sentinela podia chegar à morte. O facto de não estar
de serviço não era desculpa, remoeu para si mesmo, furioso. Era simplesmente indesculpável, e ele olhou furtivamente em redor do torreão para tentar perceber se
algum dos dois homens de sentinela se tinha apercebido do que acontecera. Por sorte, os dois estavam concentrados no que se passava no acampamento inimigo, pelo
que se permitiu um breve suspiro de alívio. Nada que pudesse fazer ia afetar o resultado do combate nas montanhas. Seria melhor permitir-se algum descanso e uma
refeição rápida enquanto a situação em torno do forte se mantinha calma. Com toda a probabilidade, ia precisar de todas as suas forças mais tarde.
Espreguiçando-se como se fosse a coisa mais natural do mundo, dirigiu-se à escada.
- Vou ao quartel-general. Se houver algum sinal do prefeito ou da coluna, ou outra coisa qualquer, manda-me chamar imediatamente.
- Sim, senhor. - Respondeu uma das sentinelas. Macro desceu as escadas e começou a desapertar o capacete enquanto saía da casa da guarda. Pôs o capacete debaixo
do braço e tirou também a proteção de feltro, aproveitando para remexer o cabelo empastado e colado ao crânio. Os legionários que tinham saído de serviço a meio
da manhã descansavam, deitados ou sentados na relva que cobria a rampa interna. Alguns tinham conseguido adormecer, enquanto outros conversavam em surdina. Só havia
um grupo a jogar dados, junto a uma das torres de canto do forte, onde o ruído que faziam não perturbava o descanso dos camaradas.
Ao entrar no pátio do quartel-general, trocou uma saudação rápida com a sentinela. Mesmo com a necessidade que havia de ter todos os homens envolvidos na defesa
da muralha, era também fundamental que o cofre onde estava o dinheiro para pagar à guarnição fosse mantido em segurança. Já nos aposentos do comandante, pousou o
capacete sobre uma mesa e chamou Décimo.
Não houve resposta, e não se ouviram passos apressados, e Macro franziu o sobrolho. O criado de Cato tinha recebido ordens explícitas para regressar para ali, depois
da luta com Querto.
- Décimo! Porra, homem. Onde é que te meteste? - Os gritos de Macro propagavam-se por todo o edifício. Irritado, espreitou para o gabinete do prefeito, não encontrou
ninguém, e resolveu ir à cozinha para ver que comida podia arranjar para uma refeição rápida. Ao entrar no compartimento dominado pelo cheiro pesado a lenha queimada,
Macro pressentiu uma sombra no canto mais afastado, e virou-se para ver do que se tratava.
- Foda-se... - Murmurou, enquanto se detinha, assombrado. Um corpo pendia de uma corrente presa por dois dos elos num gancho para carnes cravado numa das vigas.
A face do homem estava inchada, os olhos esbugalhados, e da boca saía uma língua já em tons púrpura. Macro demorou um momento a reconhecê-lo, e abanou a cabeça,
pesaroso.
- Décimo. Grande cretino. Apesar da pena que sentia, Macro não tinha realmente grande simpatia pelo criado, e manteve-se a observar o corpo que rodopiava lentamente
na sala mergulhada na penumbra. Sentia sobretudo um desapontamento exasperado perante a atitude do homem. Porque teria ele escolhido o suicídio? Receio do castigo
por ter traído Cato? Temor de ser capturado pelo inimigo se Bruccium fosse conquistado? Fosse qual fosse a razão, Macro considerou que não era suficiente para tirar
a própria vida. Aquela não era forma de um homem morrer, sobretudo um homem que fora em tempos um soldado. Não havia qualquer justificação para escolher aquele fim.
Macro não tinha paciência para as histórias dos nobres romanos que se tinham suicidado para o bem de Roma, ou para salvaguardar a sua família. Seria muito melhor
partir de espada na mão, a enfrentar o inimigo e a amaldiçoá-lo face a face enquanto se era abatido. Aquilo? Macro deixou escapar um longo suspiro. A escolha de
um cobarde... Durante um instante, mesmo sem querer, conseguiu imaginar os últimos momentos do criado, e uma partícula do desespero que teria preenchido a alma do
homem ameaçou tomar-lhe conta dos pensamentos.
Afastou a ideia rapidamente. Aquele género de coisas só interessava a tipos do género de Cato. Virou-se para o que restava das rações na prateleira por cima da tábua
na parede. Havia ainda um bom bocado do queijo local e alguns pedaços de pão duro. Pegou neles, puxou um banco, e comeu obstinadamente, recusando-se a deitar mais
um olhar que fosse ao cadáver de Décimo.
Estava a meio do queijo quando ouviu passos de corrida pelo corredor que percorria todo o comprimento dos aposentos do prefeito e acabava na cozinha.
- Senhor! Senhor! Macro mastigou rapidamente o que ainda tinha na boca e engoliu à pressa.

- Aqui! A sentinela surgiu à porta, ofegante. - Senhor, o inimigo está a regressar ao acampamento. Macro sentiu o estômago a apertar-se. - Algum sinal dos nossos?
- Não, senhor. Nada... - A resposta da sentinela morreu-lhe na garganta ao deparar-se com o corpo pendurado. Ficou especado a olhar para ele, quase esquecido de
Macro.
- Acaba lá o relatório, caraças! - Instou o centurião. - O quê? - O legionário olhou para o oficial, o feitiço quebrado. - Sim, senhor, desculpe. Informo que os
guerreiros nativos estão a descer da montanha. Vi o Carátaco entre eles, senhor.
- E nenhuns romanos. Estás certo disso? - Sim, senhor. - Nada de prisioneiros? - Ainda se podia agarrar àquela esperança.
- Não distingui nenhuns. Pelo menos até vir apresentar o relatório, senhor.
Macro levantou-se e pegou no que restava da sua parca refeição. Acenou para o corpo.
- Tira-o para baixo e leva-o daqui. Dirigiu-se para a porta do corredor e parou na ombreira. - Mete o Décimo ao pé dos outros corpos. Já agora, quando isto acabar,
podemos dar um enterro decente ao desgraçado.
- Sim, senhor. - Assentiu o legionário. Macro encarou-o. - Bom, estás à espera de quê? Queres que ele comece a empestar a cozinha? E trata de limpar a sujeira que
ele fez no chão.
O legionário fez uma careta enquanto pousava o dardo e o escudo junto ao banco a que Macro estivera sentado, e ia buscar o balde das limpezas. Macro lançou um último
olhar ao cadáver, abanou a cabeça, e saiu.
Enquanto se dirigia para a entrada principal do campo, o rosto do veterano assumiu uma expressão sombria. Se Carátaco e as suas forças estavam de volta do colo,
era praticamente certo que tinham aniquilado a coluna de reforços, ou que pelo menos lhe tinham provocado pesadas baixas. O que queria dizer que a guarnição estava
outra vez entregue a si própria. Com ainda menos homens para defender a muralha. As perspetivas não eram de todo animadoras, considerou. A única esperança no meio
daquilo tudo era que o sinal de fumo tivesse sido visto mais longe, e que alguém tivesse enviado uma mensagem ao legado Quintato, a alertá-lo para os problemas que
a guarnição de Bruccium parecia estar a enfrentar. Ainda assim, Glevum ficava a quase cem quilómetros dali. A Décima Quarta Legião levaria pelo menos três dias a
marchar em socorro da guarnição. E Macro sabia perfeitamente que não conseguiriam aguentar tanto tempo.
Os músculos doíam-lhe quando acabou de subir ao torreão e se aproximou do parapeito. A outra sentinela observava o vale, onde uma imensa coluna de guerreiros inimigos,
muitos milhares deles, percorria a estrada que levava ao seu acampamento junto ao forte. O estandarte de Carátaco ondulava sobre o grupo de cavaleiros que a liderava,
atrás do qual seguiam bandos e bandos de nativos. À sua aproximação, os homens que tinham ficado no acampamento avançaram para os vitoriar e aplaudir. O Sol começava
a descer para o horizonte montanhoso do ocidente quando os guerreiros entraram no seu campo. O vale era já banhado por uma luz avermelhada, e as sombras estendiam-se
pelas ervas e urzes que rodeavam o forte.
A muralha frontal estava apinhada de homens da guarnição, que observavam em silêncio. Macro avistou um grupo de cavalos que era conduzido na retaguarda da coluna
inimiga. As crinas aparadas e as selas eram
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tipicamente romanas, e ficou então certo de que a tentativa de Cato para ajudar os homens da coluna de reforço fora malograda. De repente, o coração passou a pesar-lhe
como chumbo, ao perceber que o seu amigo tinha partido para sempre, ao lado dos outros homens dos dois esquadrões trácios. Esforçou a vista para percorrer as colunas
de guerreiros, e viu homens a serem ajudados pelos camaradas, e outros a serem levados em macas improvisadas, feitas de ramos de pinheiros e das capas vermelhas
de legionários. Por fim, avistou aquilo que mais temia. Na parte de trás da coluna seguia uma fila de prisioneiros. Uns vinte homens, de mãos amarradas atrás das
costas, e presos uns aos outros pela corda que se enrolava nos seus pescoços. Ainda envergavam armaduras, e Macro percebeu que um deles tinha a placa peitoral e
o manto de um oficial, embora àquela distância se tornasse impossível determinar a sua identidade. O coração alegrou-se pela possibilidade de ser Cato, mas o breve
momento de esperança dissipou-se quando pensou no destino que Carátaco teria reservado para aqueles prisioneiros. Se o prisioneiro era de facto Cato, teria sido
bem melhor para ele ter morrido em combate, relembrou-se Macro com amargura.
À medida que a escuridão tombava sobre o vale, deu ordens para serem distribuídas à guarnição rações completas. Não via razão para fazer os homens passar fome. Quando
a manhã chegasse, lutariam melhor com os estômagos confortados. No acampamento inimigo já tinham começado as celebrações da vitória, e Macro considerou que o mais
provável era que o comandante inimigo desse uma espécie de folga aos seus homens, pelo que o risco de novo ataque noturno era reduzido.
Ainda assim, ordenou que os homens trouxessem as suas enxergas para a base da paliçada, para estarem bem próximos em caso de se dar novo assalto ao forte.
Um a um, foram nascendo fogos no chão do vale. À luz das chamas, Macro viu os guerreiros inimigos a beber, e os sons de risos e canções eram de vez quando levados
pelo vento até à guarnição romana. A maior fogueira rebrilhava à frente da cabana que albergava Carátaco, e Macro distinguia-o facilmente, sentado com os seus seguidores
mais próximos na elevação onde estava instalado o pódio de cerimónia à frente da parada. A noite avançou, e não havia sinais de que as celebrações se aproximassem
do fim; a Lua surgiu sobre as montanhas e foi fazendo o seu caminho por entre as estrelas. A dado momento surgiu uma agitação na parada, e Macro viu gente a agrupar-se
junto à fogueira. Foi deitada mais lenha para avivar o fogo, até que grandes labaredas amarelas e vermelhas se ergueram para o céu noturno. Daí a pouco havia já
milhares de homens ao seu redor.
- Centurião Macro! Virou-se para a voz e debruçou-se sobre a parte lateral do torreão. Ao luar, mal conseguia distinguir Petílio na muralha.
- Senhor, está a ver? Eles vão atacar. Não será melhor fazer soar o alarme?
Macro olhou de novo para o acampamento inimigo. Havia muito pouca ou nenhuma preocupação de ocultar os preparativos, se os siluros realmente tencionavam atacar.
Voltou a olhar para o centurião, apreensivo.
- Não é preciso o alarme. O Carátaco e os seus rapazes estão apenas a divertir-se. Deixa os nossos descansar. Pelo menos estarão mais preparados para enfrentar o
que nos trouxer a luz do dia do que aqueles além.
Petílio não respondeu de imediato, mas acabou por fazê-lo em tom relutante.
- Como desejar, senhor. Espero que tenha razão. As últimas palavras atingiram-lhe o orgulho, e Macro preparava-se para repreender o subordinado quando se apercebeu
de que Petílio estava num estado de ainda maior ansiedade do que ele. Não lhe faria bem nenhum levar um raspanete naquele momento. Suspirou.
- Centurião, vai dormir um bocado. Eu fico a vigiá-los por mais algum tempo.
- Sim, senhor. - Petílio acedeu, deitou uma última espreitadela sobre a muralha, desceu os degraus de madeira até à base da rampa e sentou-se, cruzou os braços em
cima dos joelhos e escondeu a cabeça.
Macro recostou-se contra a paliçada e observou a multidão que se concentrava em redor da fogueira. Era evidente que alguma coisa se ia passar, algo que marcaria
o auge das celebrações. Avistou então um pequeno grupo a emergir da escuridão, e a turba a abrir caminho para lhe dar passagem. À frente do grupo vinha um homem
alto e de vestes escuras. Atrás dele seguiam grupos de três indivíduos, cada um constituído por dois nativos e um prisioneiro no meio deles. Os cativos, cinco deles,
foram lançados ao solo junto ao fogo. Apareceram mais nativos, carregando estruturas em madeira, na forma de um A. Amarraram o primeiro dos prisioneiros a uma delas,
com a cabeça no vértice e os membros firmemente presos às vigas que dele saíam em ângulo. Quando os preparativos terminaram, o vulto de vestes negras fez um gesto
para o fogo, e a estrutura de madeira foi levantada do solo e colocada em pé. O prisioneiro começou a agitar-se ao ver o fogo e compreender, ao mesmo tempo que Macro,
qual o destino que lhe tinham reservado. Vários homens agarraram em cordas presas ao cimo da estrutura, e começaram a deixá-la descair, de forma a incliná-la sobre
a gigantesca fogueira. A turba fez silêncio por momentos, e logo se ouviram os gemidos do homem, que se transformaram rapidamente em gritos de agonia. Em resposta,
os nativos lançaram um coro cruel e festivo. O soldado remexia-se inutilmente contra as cordas que o prendiam à armação. A túnica que o cobria pegou fogo, e todo
o corpo foi rapidamente engolido pelas labaredas, enquanto os seus berros atingiam um novo paroxismo de terror e tormento.
Macro virou as costas à cena, não querendo ver mais. Deixou-se escorregar pelo interior da paliçada, apoiando as costas nas tábuas rijas, mas não conseguia fugir
aos sons que vinham do acampamento inimigo, e que lhe gelavam o sangue. Ergueu o olhar para as frias e estrelas distantes, e orou aos deuses para que o salvassem
daquele inferno.
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Não esperava encontrá-lo aqui, senhor. O legado Quintato olhou para o indivíduo exausto e coberto de salpicos de lama que tinha sido levado aos seus aposentos pouco
tempo depois de ele se ter retirado para dormir. Tinha posto uma túnica à pressa, e resolvido falar com ele no gabinete do comandante do forte de Isca, para confrontar
o homem que tinha exigido que o fossem acordar a hora tão tardia.

- Prefeito Cato... Dir-se-ia que levaste uma valente coça. Cato estava demasiado fatigado para poder apreciar o sarcástico comentário do legado. Na realidade, estava
tão cansado que mal se aguentava de pé, mas tinha que apresentar o relato dos acontecimentos o mais depressa possível, se queria dar ainda a Macro e aos outros uma
hipótese de salvação. Tinha passado o dia na sela, desde que deixara o desfiladeiro entre as montanhas, pela manhã. Em conjunto com os poucos trácios sobreviventes,
tinha saído da floresta com algum avanço sobre um grupo de cavaleiros siluros, que os tinham perseguido até Gobannium. Pelo caminho tinham-se visto forçados a abandonar
o ferido. Tinha demasiadas dores para prosseguir, e levá-lo com eles significaria diminuir o andamento e correr o sério risco de se verem alcançados pelo inimigo.
O homem estava perfeitamente ciente da situação, e despediu-se dos camaradas antes de desembainhar a espada e levar o cavalo a passo pela estrada, ao encontro dos
perseguidores e da morte certa.
Em Gobannium, Cato fora informado de que o legado Quintato e a sua coluna tinham avançado para Isca. Cato deixou os cavalos descansar durante uma hora antes de prosseguir,
passando toda a tarde a cavalgar e continuando quando a escuridão caíra, até avistar as distantes fogueiras da Décima Quarta Legião e das coortes auxiliares que
estavam também sob comando do legado. O grupo do prefeito tinha sido encontrado por uma patrulha de cavalaria, cuja primeira reação perante o aspeto dos trácios
fora a de os tomar pelo inimigo. Só a presença do oficial romano os tinha persuadido do contrário. Cato pedira para ver o legado imediatamente, e tinham sido escoltados
para o forte de Isca, em torno do qual o pequeno exército romano se tinha acantonado. Cato deixara os estandartes ao cuidado de um tribuno do estado-maior do legado,
e tinha-se dirigido aos aposentos privados de Quintato para lhe apresentar um relatório.
- Foi um dia agitado, senhor. - Replicou Cato, à laia de comentário. - Pensava ir encontrá-lo em Glevum.
- Recebemos ordens do Ostório há dois dias, para marchar para o interior do território dos siluros. Ao que parece, o governador perdeu contacto com o exército do
Carátaco, e as patrulhas não lhe conseguem descobrir o rasto. Ou foi para norte, para se juntar aos seus aliados, os brigantes, ou então foi para o sul. É isso que
o Ostório quer que eu descubra.
- Senhor, ele veio para sul. Cerca Bruccium neste preciso momento. É isso que vim comunicar. Isso, e a perda completa da coluna que foi enviada para reforçar o meu
comando.
Quintato olhou para ele de boca aberta, atónito. - O quê? O que é feito da escolta? O tribuno Mancínio? - Todos mortos, senhor. - Impossível! - Foram emboscados
na passagem entre as montanhas, já perto do forte. Fiz uma sortida com parte da minha cavalaria, para tentar abrir caminho e permitir que os homens de Mancínio alcançassem
o forte, mas acabámos todos presos na mesma armadilha fatal. Consegui apenas salvar os estandartes, senhor.
- Foram salvos? Bom, já é alguma coisa. Mas, pelos deuses, perdi praticamente um milhar de homens.
- E também perderá o forte, senhor, a menos que a sua coluna parta de imediato.
Quintato ponderou por momentos. - O forte é um assunto de somenos. A verdadeira oportunidade é apanhar o Carátaco a jeito, e forçá-lo a dar-nos batalha. E se isso
não suceder, poderei continuar a acossá-lo até que Ostório traga o seu exército e o possamos encurralar entre os dois, e esmagá-lo por fim. - Os olhos rebrilharam-lhe
de antecipação. Só então voltou a olhar para Cato. - Estás certo de que se trata do Carátaco, e que todo o seu exército está lá?
- É ele, sim, senhor. Já o tinha visto antes. Reconheço-o perfeitamente. E tem com ele pelo menos uns dez mil homens.
- Nesse caso, deve ser mesmo todo o seu exército. Mas porque carga de água quer ele tomar Bruccium?
- Por duas razões, senhor. Primeiro, nos últimos meses, os trácios têm provocado uma tremenda devastação no território siluro.
- Trabalho do centurião Querto, por certo. - O legado assentiu. - Aí está um belo oficial.
Cato mordeu os lábios durante alguns momentos. - Os métodos do centurião eram... pouco ortodoxos, mas ao que parece levaram de facto o Carátaco a sentir que tinha
que agir.
- Presumo que estás a reclamar a maior parte do mérito por esse desenlace?
- Nunca reclamarei qualquer crédito pelo trabalho do centurião Querto, senhor, asseguro-lhe. Mas a principal razão para o Carátaco ter vindo assediar a guarnição
deve ter tido mais a ver com o facto de termos capturado o seu irmão, Marídio. É nosso prisioneiro no forte.
O legado sorriu. - Prefeito, vejo que te tens mantido ocupado. Ao que parece, tu e o centurião Querto trabalharam realmente bem. Tenho a certeza de que
o governador vos recompensará a ambos ricamente, se isto resultar na derrota do Carátaco. Evidentemente que será o próprio Ostório quem mais beneficiará desse desfecho.
O Imperador conceder-lhe-á uma ovação pública, pelo menos. Um triunfo adequado a uma longa carreira ao serviço de Roma.
- Senhor, não busco qualquer recompensa. E o Querto também já nada poderá aceitar.
- Oh? Porque não? - O centurião Querto morreu, senhor. - Morto. Como? Cato hesitou brevemente. - Morreu a combater, senhor. O legado assentiu. - Nem eu esperava
outra coisa do homem. Será vingado. Mas, antes de mais, não podemos perder tempo; é preciso realmente marchar para Bruccium. Prefeito, aguarda aqui. Vou dar ordens
ao meu pessoal para que os homens levantem o acampamento à primeira luz da alvorada. - Coçou a penugem que lhe crescia no queixo. - São quase cinquenta quilómetros.
Praticamente dois dias de marcha. Quem é que deixaste no comando do forte?
- O centurião Macro, senhor. - Um homem de valor? - O melhor, senhor. - Espero então que possamos chegar a tempo de o salvar, a ele e aos outros. Não nos podemos
dar ao luxo de perder constantemente bons oficiais como ele e o Querto.
- Pois não, senhor. O legado apontou para um jarro de vinho sobre a secretária. - Bebe um trago enquanto eu ponho as coisas a andar. Voltarei assim que puder. Tenho
que ouvir essa tua história de uma forma mais detalhada.
- Obrigado, senhor. Ao ver-se sozinho, Cato aguardou um momento em pé, de mente entaramelada pelo cansaço, mas lembrou-se que não se podia permitir descansar ainda.
Pegou num dos cálices de prata finamente decorados do legado, e ofereceu-se uma generosa quantidade de vinho. Com a taça na mão, deixou-se cair num cadeirão com
uma almofada de pelo de cavalo, e bebeu um pouco. Era um vinho doce, pouco do agrado de Cato, mas aqueceu-lhe as entranhas, enquanto descia para o estômago. Resistiu
à tentação de esvaziar a taça de um trago e voltar a enchê-la. Tinha que se manter alerta. Ainda havia vários assuntos a resolver com o legado antes de poder ir
descansar. Sentiu as pálpebras a pesarem e empertigou-se de um salto, fazendo o vinho espalhar-se sobre as mãos. Pousou a taça e começou a andar para trás e para
a frente no gabinete, sem parar, já que não tinha a certeza de se conseguir manter acordado se o fizesse; muito menos pensou em voltar a sentar-se. Sentia a cabeça
como se estivesse cheia de lã, e temia que a sua mente não conseguisse responder com a habitual sagacidade. O martelar rítmico de uma crescente dor de cabeça tornava
tudo ainda mais complicado.
Passou-se quase uma hora até Quintato regressar, já bem vestido e de barba feita, e Cato amaldiçoou-o em pensamento por ter desperdiçado tempo naqueles preparos
quando devia ter regressado para continuar a discussão.
- Folgo em ver que ainda estás acordado, prefeito. Depressa poderás ir descansar. Disse ao meu escravo para te preparar uma cama na messe dos oficiais. Também haverá
comida quente e bebida à tua espera.
Cato agradeceu com um aceno, e o legado regressou à sua posição atrás da secretária, onde se sentou. Fez sinal a Cato para se sentar.
- Por favor. - Senhor, prefiro ficar de pé. Quintato franziu o cenho e encolheu os ombros. - Faz como desejares. Bom, agora há alguns detalhes que quero ver esclarecidos.
Dizes que o Carátaco tem uns dez mil homens, ou à volta disso.
- É a minha estimativa. - Quantos são de cavalaria? Cato debateu-se para organizar os pensamentos. - Não mais de quinhentos. - E quanto à infantaria? Que género
de equipamento? - Cerca de um quarto deles possuem armaduras. Agora serão mais, dada a perda da coluna. Os outros estão equipados de forma muito ligeira.
Mas estão muito motivados, senhor. Raramente vi homens a combaterem com tamanha vontade. Sofreram pesadas baixas no primeiro ataque ao forte e na emboscada ao tribuno
Mancínio e à sua coluna, mas duvido que isso os faça perder qualquer vontade. O Carátaco sabe bem como conseguir o melhor dos seus homens.
- Pode ser que sim, mas ainda assim não estarão à altura da Décima Quarta Legião. Espero apenas que se mantenham a cercar Bruccium até que eu chegue ao local. Será
o fim do Carátaco. O homem tem sido um espinho cravado no dorso de Roma há demasiado tempo. Se fui eu o escolhido pelos deuses para terminar este trabalho, talvez
possa vir a partilhar a ovação com o Ostório, hã? - Quintato sorriu, algo consciente de estar a expor a extensão da sua ambição. - Nunca faz mal nenhum cair nas
graças da corte imperial, Cato.
- Na minha experiência, senhor, é melhor ainda nada ter a ver com a corte imperial.
Quintato lançou-lhe um olhar calculista. Falas por experiência própria? - Sim, senhor. - Estou a ver. Ora aí está uma outra história que deve valer a pena escutar.

Cato não respondeu de imediato, mantendo uma expressão inescrutável.
- Permita-me apenas dizer que é fácil fazer inimigos por lá, mesmo quando nos limitamos a servir o Imperador com toda a lealdade, protegendo os seus interesses.
A minha promoção a prefeito foi a paga desses serviços. Porém, a vida parece por vezes dar com uma mão e tirar com a outra. A minha promoção teve como contrapartida
o facto de incorrer na inimizade de alguém bastante poderoso na corte.
- Não duvido que te tenhas interposto no caminho de um daqueles infernais libertos que rodeiam o Imperador. Ou isso, ou afrontaste de alguma forma aquela sua nova
esposa e o filho dela, o Nero.
Cato preferiu ignorar a deixa, que claramente pedia mais pormenores.
- Foi por causa dessa inimizade que aproveitei a primeira oportunidade para abandonar Roma e tomar o comando de uma unidade numa fronteira distante; era minha esperança
poder devotar-me simplesmente à carreira militar e cair no esquecimento. Mas, ao que parece, era esperar demasiado. Senão, porque me seria atribuído precisamente
o comando da guarnição de Bruccium?
Quintato recostou-se na cadeira e cruzou as mãos. - Prefeito, não sei se estou a seguir a tua linha de raciocínio.
- É bem evidente, senhor. O anterior prefeito foi morto em circunstâncias suspeitas. Muito provavelmente assassinado.
- Uma suspeição muito séria, essa que adiantas. - O assassínio é sempre um assunto sério. Mas alguém preferiu não investigar a questão muito a fundo, enquanto ao
mesmo tempo dava mão livre ao centurião Querto, para que escolhesse a forma que mais lhe agradasse na guerra contra os siluros.
- Não sei se me agrada a direção que esta conversa está a tomar. Cato esfregou a testa e piscou os olhos, por causa da dor de cabeça que começava a provocar-lhe
náuseas, de tão forte.
- Senhor, não quero armar nenhuma confusão. Desejo apenas esclarecer a questão. Se não lhe agrada o que digo, posso apenas assegurar-lhe que a mim ainda menos agrada
ser perseguido pela má vontade de um inimigo que está lá tão distante, em Roma. Faça-me, por favor, a cortesia de ser honesto, tal como eu estou a ser.
O legado considerou as palavras do jovem e anuiu. - Muito bem. Continua. Mas digo-te já que poderá não me apetecer confirmar ou negar qualquer suposição que faças.
- Compreendo. - Cato lutou por momentos para pensar de forma clara, antes de prosseguir. - A minha colocação em Bruccium tinha por fim resolver dois problemas. Primeiro,
esperava-se que, ao ser enviado para lá, eu acabasse por desaparecer. Se não fosse o inimigo a tratar disso, então o centurião Querto já se tinha mostrado mais do
que capaz de se livrar de um comandante que não lhe agradasse. Segundo, era de prever que os seus... métodos provocariam a ira do Carátaco. Ele não poderia prosseguir
as operações contra Ostório enquanto os seus aliados sofriam os contínuos massacres que Querto praticava com tanto entusiasmo. Os siluros acabariam por ser obrigados
a pedir a paz, ou a retirar os seus guerreiros do exército nativo para proteger as suas próprias terras. E Carátaco não podia permitir nenhuma dessas alternativas.
Seria portanto obrigado a dirigir-se para Bruccium, onde, a seu tempo, lhe apresentaria a oportunidade para o confrontar diretamente. - Cato assentiu para si mesmo.
- Congratulo-o, senhor. Era uma solução simples e bem desenhada. Os seus talentos estão a ser desperdiçados aqui na fronteira. Estou certo de que seriam muito mais
bem empregues em Roma.
- Assumo que com essa tirada me queiras insultar. Cato suspirou. - Não, foi apenas a constatação de um facto. O rosto do legado estremeceu, mas ele recuperou a compostura,
e encarou Cato com atenção.
- E o que planeias fazer quanto a isso? Deves saber que posso facilmente afastar essas acusações. Seria a tua palavra contra a minha.
- Sei-o perfeitamente. - Então, o que queres de mim? - Quero apenas ser deixado em paz, senhor. - Replicou Cato, secamente. - Não foi por minha escolha que arranjei
inimigos no palácio. Desde que me juntei ao exército que nunca quis mais do que ser um bom soldado. Consegui-o durante alguns anos, antes de eu e o meu amigo Macro
nos vermos forçados a desempenhar algumas missões a mando de um dos secretários imperiais. Agora, pela primeira vez em muitos anos, tínhamos esperança de nos termos
visto livres da sua influência e de podermos regressar à pura e simples vida militar. E nós somos bons soldados. Experientes. Não merecemos ser tratados como meras
peças num tabuleiro. É um desperdício das nossas capacidades, e da nossa lealdade a Roma. Não quero passar a vida a preocupar-me com a possibilidade de alguém me
dar uma facada pelas costas. - Cato fez uma breve pausa. - Eis portanto aquilo que peço. Já desempenhou o seu papel. Cumpriu com o favor que alguém em Roma lhe pediu.
Nada mais lhes deve. E, sendo esse o caso, peço-lhe uma simples promessa, a de que não tentará prejudicar-nos, a mim e ao Macro. Não tenho qualquer objeção a ser
colocado em locais onde terei que combater. É esse o dever de um soldado. Permita-nos seguir a nossa carreira, e serviremos Roma, e servi-lo-emos a si, com toda
a lealdade. E só terá razões para nos agradecer. Se continuar a conspirar contra nós, isso não será apenas desonroso, é algo de pior ainda. É um desperdício de homens
valorosos.
Quando Cato concluiu, instalou-se na sala um silêncio que durou até Quintato limpar a garganta. - É então essa a proposta que me fazes? - Não é nenhuma proposta,
senhor. Que sentido faria isso? Nada tenho para oferecer em troca. Como disse antes, é um simples pedido. Dê-me a sua palavra que nos tratará apenas como soldados,
e isso chegar-me-á.
- E serias capaz de confiar na minha palavra? - Sim. Que escolha tenho? A escolha está apenas aos seu dispor, senhor. Pode optar por ser um homem honrado, um soldado
profissional, ou pode escolher não ser melhor do que o resto daqueles que compõem o ninho de víboras que mora em Roma. - Cato forçou-se a endireitar-se e a enfrentar
o olhar do legado, sem vacilar. - Tenho a sua palavra?
Quintato coçou o queixo, pensativo. - Muito bem. Dou-te a minha palavra que não te tratarei de forma diferente da de qualquer outro homem sob o meu comando. Chega-te?
Cato refletiu por momentos, e assentiu.
- Creio que nada mais há a dizer, senhor. Posso ir então em busca da tal cama que referiu?
- À vontade. Cato baixou a cabeça e virou-se, saindo da sala meio a coxear. O legado viu-o afastar-se, e manteve-se em silêncio até abanar a cabeça lentamente e
murmurar para si mesmo.
- Um jovem verdadeiramente excecional... Uma pena que tenha conseguido fazer tão poderosos inimigos.
36
Durante a maior parte do dia seguinte, o inimigo contentou-se em permanecer no acampamento, e a guarnição de Bruccium limitou-se a observá-lo, com evidente alívio.
Os gritos dos homens que tinham sido queimados vivos tinham-nos deixado com os nervos em franja, e até Macro, extenuado como estava, tinha tido dificuldades para
conseguir repousar. Só muito depois da meia-noite é que os siluros deram por findas as celebrações da vitória e começaram a acomodar-se para passar a noite, deixando
as fogueiras morrer a pouco e pouco. Quando o Sol nasceu e continuaram a não se vislumbrar sinais de um ataque iminente, Macro permitiu que a maior parte dos homens
recolhesse às casernas, para descansar decentemente. Um quarto do efetivo ficou de serviço, guarnecendo a muralha e mantendo o inimigo sob vigilância apertada. Depois
de dadas as ordens, Macro aninhou-se no chão do torreão e deixou-se vencer pelo cansaço que lhe pesava como chumbo e lhe manietava os membros.
Foi acordado perto do meio-dia por uma das sentinelas, tal como tinha ordenado, e levantou-se ainda estremunhado e de membros rígidos para observar o inimigo, que
ainda dormia, na ressaca das festividades da noite anterior. Alguns bandos de jovens e rapazes percorriam o vale, a catar lenha. A comida também devia estar a começar
a escassear, já que uma pequena manada de gado e um rebanho de cabras tinham sido conduzidos até junto do acampamento, vindos de um vale próximo, e os animais estavam
a ser abatidos, a alguma distância do abrigo onde dormia Carátaco. A primeira das carcaças foi levada até à parada e desfeita em grandes nacos para serem assados
num espeto sobre uma fogueira recém-ateada. Mais fogueiras foram acesas para cozinhar, enquanto os restantes animais já abatidos eram distribuídos pelo acampamento.
À medida que a tarde progrediu, o cheiro a carne assada acabou por chegar às narinas dos defensores.
Macro sentiu o estômago a protestar, e não conseguiu deixar de imaginar quanto apreciaria um naco de carne bem assada, depois das diminutas rações a que tinha tido
direito ao longo da sua estadia no forte. Chegou a pensar em mandar abater alguns dos cavalos, mas acabou por afastar a ideia. Seria penoso para o moral dos poucos
trácios que ainda sobreviviam.
Resolveu que, se chegasse ao ponto em que a perda do forte pareceria inevitável, mandaria nessa altura matar os animais, para evitar que pudessem ser úteis ao inimigo.
Mas não antes disso. Entretanto, nada mais havia para encher a barriga do que a habitual papa, e os últimos nacos de queijo ressequido e pão rançoso. Felizmente,
considerou, a fome tinha uma estranha forma de transformar até a menos apetecível das mixórdias sensaboronas num verdadeiro banquete.
A tarde já ia avançada quando, depois de terminado o festim dos nativos, um pequeno grupo começou a subir a encosta, dirigindo-se à entrada principal do forte. Anunciaram
a sua aproximação com vários sopros de corno, e Macro verificou que era o próprio Carátaco que se apresentava, rodeado por outros quatro homens. Um deles envergava
as vestes negras de um druida, e outro era um dos prisioneiros. Tinham-lhe sido retiradas a armadura e as botas, e usava apenas uma túnica rasgada. Era mantido em
poder de dois guerreiros entroncados, e tinha a cabeça descaída sobre o peito enquanto era semiarrastado na direção do forte. Ao escutar o som dos cornos, o centurião
Petílio subiu ao torreão e juntou-se a Macro. Trocaram um aceno antes de Petílio fazer um gesto lá para fora.
- Qual é a jogada deles agora? - Depressa o saberemos. Carátaco parou fora do alcance dos dardos, e pôs as mãos na ilharga enquanto se dirigia aos defensores.
- Romanos! A noite passada testemunharam o destino que reservámos a alguns dos vossos camaradas. Uma pena que tenham tido que assistir ao espetáculo de tão longe.
Se tivessem vindo partilhar o calor das nossas fogueiras, teriam estado lá para apreciar a forma como a carne deles queimava, e para ouvir as preces que eles lançaram
aos vossos deuses, pedindo demência. - Carátaco fez uma pausa e olhou em volta, com ar dramático. - Mas onde estão eles? Onde está o vosso Júpiter? O vosso Marte?
Dá ideia de que os vossos deuses pouco se interessam por vós. Ou será que temem o poder das nossas divindades? Seja qual for o caso, as palavras dos que morreram
ontem caíram em orelhas moucas. Como disse, foi uma pena que não tenham partilhado este belo espetáculo na nossa companhia. E para colmatar essa pecha, vim aqui
oferecer-vos uma pequena surpresa, só para vocês. Aqui mesmo, onde nos podem ver e ouvir com toda a clareza. - Aproximou-se do prisioneiro e ergueu-lhe o queixo
com brusquidão, para que todos os defensores lhe vissem o rosto.
- Este é o comandante da coluna romana que destruímos ontem. - Anunciou Carátaco.
Petílio vociferou. - Merda. Ficámos a saber a sorte do prefeito e dos trácios.
O comandante inimigo continuou a dirigir-se à guarnição. - Este homem é o tribuno Gaio Mancínio, um orgulhoso e altivo aristocrata. Um daqueles romanos que é capaz
de traçar a linhagem da sua família até Eneias, sem qualquer dúvida. Vamos então ver como morre um aristocrata romano. Uma mera execução seria demasiado misericordiosa.
Nunca fui tão orgulhoso que não fosse capaz de aprender com os meus inimigos, e os Corvos Sangrentos revelaram-se excelentes professores. Aterrorizaram os meus amigos
siluros, e tenho que lhes mostrar que vocês não passam, no fundo, de homens tão mortais como os outros, e que não são demónios. Portanto, quando tomar o forte, entregarei
quaisquer sobreviventes aos siluros, para fazerem com eles o que bem lhes apetecer. O propósito da lição desta tarde é mostrar-vos que colherão aquilo que semearam...
- O general inimigo contemplou as faces que o observavam da muralha, e deu um passo ao lado, enquanto acenava ao druida para que este prosseguisse.
A figura de negro aproximou-se de Mancínio e brandiu uma faca. Cortou o colarinho da túnica do romano, e rasgou-a de alto a baixo. Com mais um corte, o tecido ficou
feito em tiras, deixando exposto todo o peito do oficial.
- Doce Mitra... - Murmurou Petílio. - Vão estripá-lo, o desgraçado.
Macro virou-se rapidamente para ele. - Traz o Marídio cá para cima, o mais depressa possível! Petílio correu para a escada e desceu dois degraus de cada vez. Logo
a seguir, Macro ouviu-lhe as botas a correr para o local onde o príncipe dos catuvelaunos estava preso. À frente do forte, o druida começou por fazer um corte pouco
profundo no peito de Mancínio. O tribuno lutou para se libertar das mãos dos dois guerreiros, mas estes eram fortes e mantiveram-no bem preso, gorando todos os seus
esforços. O sangue corria-lhe sobre a pele pálida. O druida aguardou uns momentos antes de voltar a retalhar-lhe a pele, um pouco mais acima, onde podia ver melhor
a sua obra. Desta vez o romano não conseguiu evitar um grito, e o som trespassou o coração de Macro. Impotente para poder ajudar Mancínio, a cólera contra o inimigo
cresceu-lhe no peito.
Quando o druida começou a fazer um terceiro golpe, Macro virou-se e correu até à parte de trás da plataforma e espreitou para o forte, desejando que Petílio surgisse
com o prisioneiro. Outro grito ressoou na frente do forte, e Macro cerrou os dentes, numa máscara de pesar silencioso. Por fim, viu Petílio surgir entre dois dos
blocos de casernas, a empurrar Marídio à sua frente. O prisioneiro envergava apenas as calças largas com que tinha ficado depois do interrogatório a que fora submetido
alguns dias antes.
Embora o rosto e o corpo ainda mostrassem muitas marcas, o inchaço em torno dos olhos e lábios tinha diminuído bastante.
- Traz-me esse cabrão cá para cima, depressa! - Gritou Macro. Virou-se e correu para o parapeito, agitando os braços para chamar a atenção de Carátaco.

- Chega! Diz ao teu druida para largar a faca! O comandante inimigo e os que o acompanhavam olharam para cima, enquanto a cabeça de Mancínio descaía e ele soltava
um profundo gemido.
- O quê? - Respondeu Carátaco. - Queres interromper a nossa pequena diversão? Pensava eu que os romanos estavam habituados a coisas do género. Pensava que tinham
estômagos mais fortes. A visão de umas gotas de sangue faz-vos perder assim tão depressa a virilidade?
Macro não respondeu imediatamente à provocação. Sabia que tinha que atrasar o tormento de Mancínio, o tempo suficiente para trazer Marídio até ao cimo do torreão.
Tentou pensar na melhor forma de salvar o tribuno.
- Ouve, meu selvagem de merda, já estou farto do teu jogo. Queres atormentar os teus prisioneiros? Bem, nós também podemos brincar dessa forma. Se o teu druida voltar
a tocar na pele do tribuno, juro perante todos os deuses que o hás de lamentar por todo o tempo que restar da tua mísera vida de merda.
Carátaco soltou uma gargalhada. - Não gastes o fôlego em ameaças vãs! Além disso, o meu exército ficaria extremamente desapontado se eu interrompesse este espetáculo.
Prometi o tribuno aos druidas, para que fizessem uma oferenda de sangue aos nossos deuses. Nada o pode salvar agora!
Macro ouviu sons nas escadas nas suas costas e viu Marídio a ser empurrado por elas acima. Dirigiu-se a ele, e puxou-o para a plataforma, antes de o arrastar até
ao parapeito. Agarrou nos cabelos do prisioneiro e puxou-lhe a cabeça para cima, de forma a que o seu rosto fosse perfeitamente visível a Carátaco e aos outros.
- Carátaco, reconheces o teu irmão? - Gritou Macro lá para baixo. - Se mais algum mal for feito ao tribuno Mancínio, garanto-te que replicarei na sua carne todos
os cortes, um a um. - Desembainhou a adaga e mostrou-a ao comandante inimigo.
O silêncio tenso que se seguiu foi finalmente quebrado por Carátaco. - Não te atreverias a isso. Ele é um refém demasiado precioso para Roma.
- Não estamos em Roma! - Ripostou Macro. - Estamos aqui, em pleno cu do mundo. E aqui estamos: tu, eu, e os dois homens que temos prisioneiros. Se torturares o tribuno,
eu farei o mesmo a Marídio. É isso o que vai acontecer. Percebido?
Carátaco não respondeu logo, enquanto olhava para o seu irmão mais novo e o oficial romano que o ladeava. Só então voltou a falar.
- Se magoares o meu irmão, juro que tu e todos os teus homens, os que forem capturados vivos quando o forte cair, serão sujeitos a todas as crueldades, todas as
torturas, todas as humilhações que conseguirmos imaginar, antes de vos ser permitido morrer. E o mesmo sucederá a todos os prisioneiros romanos que forem capturados
pelo meu exército até ao momento em que tivermos expulso de vez a escória romana das nossas terras. Juro-o solenemente!
Macro ignorou a ameaça, e manteve-se em silêncio. Atrás dele, foi o centurião Petílio que reagiu com um sussurro.
- Ele não está a brincar. - Nem eu. O druida virou-se para Carátaco e trocaram algumas palavras, até que o druida levantou a voz, se voltou de novo para o prisioneiro
e lhe fez novo golpe, desta vez rasgando-lhe o rosto com um movimento rápido da lâmina. Macro não hesitou. Virou-se para Marídio e golpeou-o na mandíbula. O sangue
jorrou para as tábuas do chão da plataforma. Marídio soltou um urro de dor.
- Agarrem-no! - Ordenou Macro. Petílio e as duas sentinelas aproximaram-se do prisioneiro e agarraram-no pelos ombros, enquanto o vermelho vivo do sangue lhe pintava
o pescoço e os pelos do peito.
Carátaco soltou uma imprecação na direção do forte e deu vários passos, com a mão a dirigir-se ao punho da espada. Deteve-se de súbito, deixou a lâmina recolher
lentamente ao seu asilo e apontou um dedo a Macro.
- Vou-te matar! Com as minhas mãos nuas, arrancar-te-ei o coração, e dá-lo-ei a comer aos meus cães!
Macro lançou um sorriso lúgubre. - Primeiro, terás que tomar o forte. - O forte será meu! Não conseguirás resistir aos nossos ataques. - Veremos. Até esse momento,
leva o tribuno de volta ao teu acampamento, e trata dele. Quero vê-lo vivo todas as manhãs. Se isso não acontecer, executo o teu irmão.
Carátaco deixou escapar um rosnido animal que encerrava raiva e dor.
- Romano, isso já não está nas minhas mãos. O tribuno pertence aos druidas, agora.
- Então, recupera-o.
- Não posso! - Quem é que manda? Tu, ou aquele palhaço de roupas negras? Carátaco debateu-se para reprimir o ultraje que sentia. - Aquele é o druida supremo dos
siluros, o homem escolhido pelos nossos deuses. Não sou eu quem lhe pode dar ordens.
- Estou-me a cagar para isso. Diz-lhe para se afastar do tribuno! Carátaco
voltou-se para o druida e voltaram a discutir em tons exaltados. Então, com um gesto quase impaciente da mão livre, o druida voltou-se para Mancínio e cravou-lhe
a lâmina profundamente, de lado, antes de a fazer descer em diagonal sobre o estômago do romano. O tribuno lançou um som entre o grito e o grunhido de espanto, enquanto
os seus intestinos escorregavam do rasgão e se lhe derramavam sobre as virilhas. O druida voltou a erguer a lâmina sanguinolenta e mergulhou-a no coração de Mancínio,
antes de recuar e lançar os braços ao céu, enquanto começava a entoar um cântico esganiçado. Os guerreiros que tinham estado a segurar e amparar o tribuno largaram-lhe
os braços, e ele caiu morto sobre o solo.
- Não! - Macro mal conteve o vómito. - Filhos da puta! Cabrões bárbaros! Filhos de uma cabra! - Arrancou a espada da bainha e encostou a ponta à garganta de Marídio.
Os olhos faiscavam-lhe de fúria quando se dirigiu a Carátaco. - Vê isto, e recorda-o para sempre!
Então, com toda a força que conseguiu reunir, Macro cravou a espada no crânio do prisioneiro, fazendo a ponta rasgar o escalpe, arrastando osso e cérebro e atirando-os
pelo ar. O corpo de Marídio ficou duro como pedra, as veias ainda a pulsar, antes de ter um espasmo violento e tombar para o chão do torreão quando Macro libertou
a espada com um puxão violento.
Carátaco lançou um tremendo urro de revolta e cólera, e pouco depois o resto do seu exército, que acompanhava de longe o evoluir da situação, fez ouvir um coro de
fúria.
Macro virou-se e viu Carátaco desembainhar a espada e colocar-se de pé sobre o corpo de Mancínio. Desencadeou uma furiosa série de golpes, retalhando o cadáver do
tribuno como um talhante enlouquecido. Macro afastou o olhar, endurecendo o coração para se preparar para o que tinha de fazer. Respirou fundo e cortou o pescoço
ao cadáver de Marídio. Foram necessários vários golpes até separar a última cartilagem. Mudou a espada para a mão esquerda e pegou na cabeça pelo cabelo; tomou balanço
com o braço estendido e enviou-a num longo arco pelo ar. A cabeça saltitou pelo declive e rolou até se deter a curta distância de Carátaco.
Ainda de espada ensanguentada na mão, Carátaco contemplou a cabeça, todo o corpo a tremer, e então espetou a espada com toda a força no ar na direção de Macro, enquanto
gritava.
- Vou-te matar! Matá-los a todos! Matarei todos os romanos! Cada homem, cada mulher, cada criança! Destruirei este maldito forte com as minhas próprias mãos! Não
viverás para ver um novo dia! Nenhum de vocês! - Fez um gesto com a espada a cobrir toda a muralha do forte, e virou-se, metendo atabalhoadamente a espada na bainha
enquanto começava a descer a encosta para o acampamento, de mãos no rosto e os ombros a tremer de desgosto.
Um dos seus homens foi buscar a cabeça de Marídio e juntou-se ao outro, que seguia o seu comandante à distância.
- Agora é que estamos mesmo fodidos. - Concluiu Petílio com naturalidade.
Macro confirmou. - Virão assim que escurecer. Quero todos os homens na muralha, bem alimentados e prontos a lutar pelas vidas.
Olhou para o cadáver sem cabeça que ocupava o centro de uma poça de sangue que continuava a crescer.
- Mas primeiro, livra-te disto. Macro deitou um último olhar a Mancínio, embora já nada no cadáver permitisse reconhecer o jovem tribuno. O mesmo destino estava-lhe
prometido. Os lábios de Macro cerraram-se com força, e ele abanou a cabeça. Não. Não daria tal satisfação a Carátaco. Quando o fim chegasse, morreria a combater,
de espada na mão, a lançar insultos ao rosto do inimigo até que o coração soltasse a sua última batida.
Vieram ainda antes de o último brilho do Sol poente esmorecer no céu ocidental. Assim que Carátaco tinha regressado ao acampamento, o inimigo tinha começado a reunir
forças, e grandes montes de feixes incendiários foram rapidamente preparados e empilhados na parada. Os nativos executavam o trabalho com uma determinação e propósito
que não lhes era típica, e tornou-se evidente para Macro que estavam francamente decididos a vingar a morte de Marídio. À pouca luz da tarde já avançada, convocou
os oficiais ainda vivos. O pequeno grupo de homens encontrou-se com ele por trás do que fora o portão principal.
Macro encarou-os, e ficou satisfeito por nenhum mostrar quaisquer sinais de receio.
- Todos vocês sabem o que aí vem. O Carátaco quer tomar o forte neste assalto. O inimigo está com o sangue a ferver, pelo que podemos esperar que continuem a avançar
mesmo perante perdas pesadas. Se eles conseguirem ultrapassar a muralha e estabelecer uma testa de ponte, pouco mais poderemos fazer. Se isso suceder, será melhor
escolher a morte a arriscar a captura. Tratem de vincar essa ideia nos vossos homens. Se queremos ter alguma hipótese de sobreviver a isto, temos que ter o mesmo
nível de motivação. Não vos quero mentir. Poderemos aguentar o primeiro embate, mas
depois disso ninguém pode ter a certeza do que vai suceder. Se o forte cair, estaremos todos mortos. E há de cair. Somos demasiadamente poucos para poder garantir
a integridade da muralha. Eles são muitos, e nós já não temos qualquer hipótese de receber auxílio exterior. A única escolha que nos resta é como vamos morrer: como
soldados, ou como cães. - Macro fez uma pausa e suavizou o tom de voz ao virar-se para o médico do forte. - Não quero ver nenhum homem capturado vivo. Se a muralha
for tomada, direi ao trombeteiro para fazer soar cinco notas longas. Será esse o sinal. Tu e os teus ordenanças terão que se ocupar dos feridos. Entendido?
O médico anuiu. - Sim, senhor. Garanto que será feito, de forma rápida e sem sofrimento.
- É isso. - Macro olhou em seguida para o oficial mais antigo da coorte trácia. - O mesmo se aplica aos cavalos. Manda alguns homens prepararem-se. Assim que for
dado o sinal, terão que lhes cortar os tendões. Será mais rápido do que matá-los, e terá o mesmo efeito.
- Porque não abatê-los agora, senhor? Enquanto ainda temos tempo para isso.
Macro abanou a cabeça e sorriu. - Apesar do que vos estou a dizer, eu nunca desisto. Nunca. Mesmo agora, pode ser que surja uma forma de nos escaparmos. Não admitirei
a derrota senão mesmo no fim. E se for esse o destino que os deuses nos reservaram, será nesse momento, e só nesse, que o aceitaremos. E agora, rapazes, aos vossos
postos. - Ofereceu a mão, e apertou o antebraço de cada um dos oficiais antes de eles se dirigirem para junto dos seus homens. Depois, deixando escapar um profundo
suspiro, o centurião Macro voltou a subir à plataforma do torreão da entrada, apertou o capacete, e esperou pelo inimigo.
Na altura em que a luz morria, os siluros formaram em frente ao acampamento, uma escura massa de homens e armas que se destacava sobre o brilho das fogueiras nas
suas costas. Por momentos mantiveram-se em silêncio, até que um corno fez soar uma nota grave que ecoou pelas colinas vizinhas, e os guerreiros nativos começaram
a avançar sem soltar um som.
Macro levou as mãos em concha à boca e gritou a toda a guarnição. - Aí vêm eles! Todos atentos! Ao longo de toda a muralha, legionários e trácios assomaram ao parapeito.
Macro observou a forma determinada como os nativos subiam o declive. Ouviu-se outro som do corno, e desta vez foi respondido por um ensurdecedor urro coletivo. Não
conseguiu evitar um sorriso cruel. Apesar de Carátaco ter decidido atacar a coberto da escuridão, os seus homens lançariam um assalto em massa, e seria difícil aos
defensores errar os alvos. Sobretudo quando alcançassem o fosso.
Soltou novo brado. - Tochas! Por toda a muralha se viram pequenos arcos luminosos de fogo, quando os defensores lançaram para o exterior tochas improvisadas. As
tochas bateram no solo e rolaram por curtas distâncias. As suas chamas iluminavam as áreas circundantes, e foi assim que Macro avistou os primeiros atacantes a emergirem
das trevas. As aclamações tinham-se calado à medida que lutavam para subir o declive que levava ao forte.
- Preparar dardos! Os defensores pegaram nas armas, puxaram os braços atrás e esperaram pela ordem.
Macro aguardou até conseguir distinguir toda a linha de assaltantes a encaminhar-se para o fosso. Esperou ainda mais um momento, com toda a calma, até ter a certeza
de que já estavam ao alcance e que nenhum dos projécteis seria desperdiçado.
- Atirar! Um coro de grunhidos respondeu à ordem, quando os homens lançaram as armas para o meio da escuridão. As hastes rebrilharam brevemente à luz das tochas
quando se precipitaram sobre as cerradas fileiras do inimigo. Macro viu vários nativos a serem abatidos, e escutou gritos de dor do seio da horda que corria para
o fosso.
- Continuem, à vontade! Os homens voltaram a pegar em dardos e continuaram a lançá-los contra o inimigo. O que restava do inventário do forte estaria gasto daí a
pouco, mas Macro resolvera que seria melhor esgotar o suprimento de dardos enquanto podiam ser usados. Dúzias de guerreiros nativos eram derrubados a cada salva
dos mortíferos mísseis, e muitos caíram antes da frente da vaga de assalto atingir o fosso e correr pela face deste abaixo. Macro apercebeu-se por fim das intenções
do inimigo. Cada homem empunhava um pequeno molho de lenha. Os guerreiros atravessavam o fosso e subiam a pequena encosta antes de depositarem a sua carga na base
da muralha e se retirarem. Depois, do meio das trevas, começaram a surgir os primeiros abrigos de vimes entrelaçados, que eram levados até à borda do fosso e colocados
lado a lado para construir uma espécie de muralha que protegia os atacantes. O fluxo contínuo de dardos continuou a provocar vítimas, e os corpos dos mortos e moribundos
ficaram espalhados pelo cimo da ladeira e pelo fosso. Mas nada interrompia a vaga inimiga, e os homens corriam de detrás dos abrigos para adicionar mais combustível
às pilhas que cresciam continuamente ao longo da muralha. A maior parte dos esforços dos nativos estava concentrada no exterior da entrada principal, e eles empenhavam-se
em colocar lenha nas brechas deixadas pela guarnição quando bloqueara à pressa a passagem entre os portões.
Um estalido brusco fez com que Macro se abaixasse, numa resposta instintiva. Ouviu mais impactos de ambos os lados, e soltou uma imprecação surda. O inimigo trouxera
fundibulários para a frente, e estes faziam o seu serviço a curta distância, por detrás dos abrigos. Arriscou uma espreitadela sobre a muralha à direita do torreão
e verificou que já tinha havido uma baixa, um homem que jazia de costas na rampa interna. Outro foi abatido enquanto apontava o dardo; a cabeça saltou-lhe para trás
com um barulho metálico do capacete e a arma escapou-se-lhe dos dedos enquanto ele caía e ficava imóvel. Era demasiado perigoso continuar com o arremesso de dardos
com os fundibulários ali tão perto, decidiu Macro. Respirou fundo, e soltou um grito.
- Deixem os dardos! Protejam-se! Os outros oficiais ecoaram a ordem, e os defensores deixaram de lançar os dardos e encolheram-se por trás da paliçada, enquanto
a metralha continuava a zunir-lhes por cima e a embater nas madeiras da muralha. Os ordenanças ao serviço do médico apressaram-se a recolher os homens atingidos
e a levá-los para a enfermaria, e Macro não pôde deixar de se perguntar quantos mais se seguiriam ao longo da noite.
Durante toda a primeira hora da noite, o inimigo continuou a empilhar combustível contra a base da muralha, sob a proteção dos fundibulários, que vigiavam qualquer
sinal de movimento na muralha e não desperdiçavam nenhuma ocasião de atingir os romanos que se atreviam a mostrar-se. Macro arriscou espreitadelas ocasionais para
verificar o progresso dos planos do inimigo, e durante algum tempo viu Carátaco e o portador do seu escudo a deambular por trás dos abrigos, a supervisionar o trabalho
dos seus homens. Por fim, lançou um brado na direção do acampamento, e depressa se viram pequenas chamas a serem trazidas para junto do forte, enquanto Macro reparava
em equipas de homens que corriam até junto das pilhas de lenha com baldes. O odor acre do pez chegou-lhe às narinas. e compreendeu que o tempo se estava a esgotar
para a guarnição. Pouco depois, foi o cheiro a fumo que lhe irritou a garganta. Os estalidos e o crepitar da madeira começaram a espalhar-se por toda a muralha,
à medida que um e outro dos molhos de lenha se tornavam pasto das chamas. A borda do parapeito ficou claramente visível contra o brilho do fogo que ardia na base
do torreão. Uma labareda amarelada surgiu no campo de visão de Macro, lambendo já as estacas da paliçada.
- Merda. Merda. Merda. - Lançou entredentes.
Ouviu-se um grito de alarme por baixo da plataforma, na casa da guarda.
- Há fumo por todo o lado! Saiam! Saiam! Macro virou-se e viu que o punhado de homens que o acompanhava na plataforma o olhava com ansiedade. Sorriu calmamente.
- Bem, rapazes, é hora de mudarmos de poiso. Não me apetece transformar-me em oferenda esturricada a algum cabrão de um deus bárbaro.
Os legionários apinharam-se junto à escada e depressa desceram. Enquanto se preparava para os seguir, sentiu o calor abrasador das chamas que se erguiam à sua frente.
Lançou-se pelas escadas abaixo, descendo apressadamente os degraus até chegar à sala da guarda, onde verificou que o fumo estava a tomar rapidamente conta do compartimento.
As duas portas que davam para o passadiço que acompanhava a paliçada estavam ambas escancaradas, e notava-se uma certa brisa, dado que o ar era sugado para alimentar
as chamas. Pelos espaços entre as tábuas já se viam traços de luz brilhante, e o rugido das chamas e o crepitar da madeira tornavam-se a cada minuto mais intensos.
Macro respirou fundo e imediatamente se viu obrigado a dobrar-se sobre si mesmo, acometido por um tremendo ataque de tosse devido ao fumo na garganta, enquanto os
olhos lhe picavam sem cessar. Dirigiu-se à porta mais próxima, saiu da casa da guarda, e cambaleou ao longo da muralha, até se agachar.
Demorou alguns momentos até conseguir limpar os pulmões; piscou os olhos para afastar as lágrimas dos olhos ainda a arder, e só depois conseguiu avaliar a situação.
Havia vários incêndios a lavrar ao longo da face da muralha que dava para a parada, o maior dos quais era o que rugia junto ao torreão da entrada.
- Senhor! Macro olhou para quem o chamava; era o centurião Petílio, na base da rampa, a face iluminada pelo fulgor das chamas. Apontava para o torreão.
- Não será melhor pôr uma das centúrias a trazer água? Macro pensou um instante, e abanou a cabeça. - Ficariam demasiado expostos à ação das fundas. Além disso,
há tão pouca água na cisterna que pouca diferença faria. Retira os homens das secções que estão a arder. Os outros que mantenham as posições.
Petílio saudou e correu a transmitir as ordens de Macro. Este manteve-se na muralha mais algum tempo, até que a dor nos pulmões se dissipou, e então desceu para
o interior do forte, e resolveu ficar a assistir à progressão do incêndio junto à extremidade do mais próximo bloco de casernas. Os fogos estavam bem implantados,
e as chamas já lambiam os cantos do torreão da entrada. Já nada podia ser feito para salvar a estrutura, compreendeu Macro. Seria consumida gradualmente pelas chamas
e acabaria por se desmoronar. O fogo continuaria a arder por mais algumas horas, até começar a morrer. Pela alvorada já a maior parte das muralhas seria apenas uma
ruína fumegante, e nada poderia impedir Carátaco e o seu exército de abrir caminho por entre os montes calcinados e de se lançarem sobre os homens da guarnição,
a quem só restava ficar a aguardar por esse momento.
Quando Petílio regressou para junto dele, Macro disse-lhe para deixar um punhado de homens de vigia e ordenar aos outros que descessem das muralhas e descansassem
nos espaços entre as casernas.
- E quanto aos cavalos e aos homens no hospital, senhor? - Inquiriu Petílio, calmamente.
Macro deixou o olhar perder-se nas chamas por alguns momentos, antes de responder.
- Trataremos disso no último momento. Será melhor não estragar o moral dos homens antes disso. Quando chegar a hora, darei a ordem.
- Sim, senhor. - Depois de tratares dos homens, Petílio, vai ver se descansas um bocado.
- Senhor, devia fazer o mesmo. Macro deu-lhe uma palmada leve no ombro. - Eu estou bem. - Fez um gesto com o polegar na direção das chamas. - Enquanto aquilo não
deixar de arder, não vamos ser incomodados. Vou para o quartel-general um bocado, se acontecer alguma surpresa sabes onde me procurar.
Petílio anuiu, e dirigiu-se para junto da mais próxima secção de homens aninhados por trás da muralha. Macro virou-se para o coração da fortaleza e reparou na expressão
resignada nos rostos dos homens por quem ia passando, alumiados pelo brilho avermelhado das labaredas. Não havia dúvidas quanto ao destino que enfrentariam na manhã
que se aproximava, e Macro sentia-se demasiado fatigado para tentar lançar algumas palavras de falsa esperança enquanto caminhava pesadamente. Chegado ao gabinete
do comandante da guarnição, sentou-se, e apanhou uma tábua encerada limpa. Pegou num estilete, e escreveu uma carta à mãe. Os sentimentos que passou para a cera
eram simples e honestos; um lamento pelos acontecimentos do passado, e a esperança em que ela se viesse a sentir orgulhosa por ele ter morrido com honra. Era uma
despedida breve, e quando terminou de gravar na cera aquelas poucas linhas, Macro releu-a, fechou a tábua e apertou os fechos. Levou-a para a sala subterrânea onde
eram mantidos os documentos importantes e colocou-a cuidadosamente por baixo de uma arca com os registos da guarnição. Ao deixar o quartel-general, sentia uma profunda
calma no coração, um sentimento de que tinha cumprido já todos os seus deveres, à exceção de um.
Os fogos arderam ao longo das horas da noite; as chamas atingiram o seu paroxismo e depois começaram lentamente a amainar. Pouco depois da meia-noite, o torreão
rangeu e começou a inclinar-se para fora, até se desmoronar sobre a ponte e o fosso, despertando uma aclamação do inimigo acoitado por trás dos seus abrigos. A pouco
e pouco as comemorações foram de novo esmorecendo, e o único som audível voltou a ser o das chamas a crepitar, cada vez com menor intensidade. Durante algum tempo
as vigas que definiam a estrutura do torreão ainda se aguentaram, para relembrar todos da sua forma. Mas também elas acabaram por ruir sobre as chamas que consumiam
a pilha de lenha resultante das paredes da estrutura. Quando os primeiros alvores acinzentados se começaram a fazer notar no horizonte oriental, Macro colocou mais
uma vez o capacete, pegou no escudo e subiu a rampa, para se juntar a um dos legionários que tinha estado de vigia ao inimigo. Espreitou rapidamente sobre o parapeito
e viu os abrigos de vime, e um punhado de nativos a espreitar por trás deles.
- A maior parte deles recuou há um bocado, senhor. - Comunicou a sentinela. - Foram descansar, enquanto os fogos faziam o seu trabalho.
Macro anuiu. - Depressa estarão de volta. A sentinela deixou passar uns segundos até voltar a falar. - Espero que tudo seja rápido. - Desde que leves contigo alguns
daqueles cabrões, hã? Trocaram um sorriso consternado e continuaram a tentar discernir sinais de movimentações no campo inimigo, que indicassem o lançamento do assalto
final ao forte. Pouco a pouco, a alvorada rasgou o horizonte e a escuridão começou a ceder, revelando a encosta em frente ao forte, e a parada, e o chão do vale
que se estendia para lá disso. Uma paisagem praticamente vazia de vida ou de movimento. Só um punhado de figuras se mexia por ali, apanhando uma coisa aqui e outra
acolá, antes de se dirigirem apressadamente para a longínqua saída do vale. Por fim, até os poucos guerreiros que se escondiam por trás dos abrigos recuaram, formaram
uma coluna e desapareceram em passo rápido.
- Foda-se, mas que brincadeira é esta agora? - Lançou Macro, desconfiado, os pelos da nuca a porem-se de pé.
- Senhor! - A sentinela empertigou-se e apontou para leste, para a entrada do vale. Macro virou-se e avistou a vanguarda de uma coluna de cavaleiros a passar pelo
colo entre as montanhas, e a encetar a descida pela estrada que levava ao forte. Por momentos, não se atreveu a ceder à esperança. Não soltou palavra, nem mesmo
quando as outras sentinelas nas secções de muralha ainda intactas se juntaram e começaram a gritar em tons excitados, a chamar os outros homens para subirem também
à muralha e verem por eles mesmos. O centurião Petílio correu a juntar-se a Macro, esforçando a vista para perscrutar a coluna que se dirigia para eles como se fosse
uma gigantesca centopeia.
- Nossos? - Nossos? - Macro deixou escorrer as emoções numa gargalhada quase histérica. - Foda-se, sim, podes crer que são dos nossos, porra.
37
O legado Quintato contemplou os cadáveres espalhados pelo solo e pelo fosso, antes de virar a atenção para a abertura na muralha onde todo o torreão e boa parte
da paliçada adjacente tinham ruído, depois de arderem. O nariz do aristocrata torcia-se devido ao cheiro acre da madeira calcinada quando ele se virou para Macro.
- Centurião, deve ter sido um combate tremendo. - Sim, senhor. - Replicou Macro, secamente. - Este é o tipo de ação que transforma em heróis todos os homens que
nela estiveram envolvidos. - Prosseguiu o legado. - Estou certo de que terás alguma coisa a ganhar quando o meu relatório chegar às mãos do governador Ostório e
ele o mandar para Roma. A guarnição de Bruccium distinguiu-se, e haverá por certo condecorações a prender aos estandartes da vossa coorte, bem como à dos trácios.
- Virou-se e lançou um sorriso a Cato. - Os Corvos Sangrentos construíram uma reputação e tanto. Claro que grande parte dela se ficou a dever aos esforços do centurião
Querto. Uma pena que ele não tenha sobrevivido para ver este dia.
- Sim, senhor. Uma grande pena. - Pouco importa. Estou certo de que o seu nome sobreviverá. Cato assentiu. - Também estou certo disso. Quintato voltou a dar atenção
a Macro. - Tens as tuas ordens. Trata de garantir que o forte é completamente destruído. Não quero que haja qualquer força inimiga a ocupar esta posição depois de
deixarmos o vale. É tudo, centurião.
Macro saudou o superior e virou-se, dirigindo-se à brecha na muralha e seguindo para o interior do forte. O legado observou-o por momentos, e encolheu os ombros.
- Um bravo combatente, aquele homem, mas um caráter um tanto de urso.
Cato não deixou transparecer a fúria que sentiu perante aquela descrição do seu amigo.
- O centurião está extenuado, senhor. No estado em que está, seria difícil que conseguisse travar uma conversa animada.
Quintato virou-se para ele, irritado. - Defende os teus oficiais como quiseres, mas agradecer-te-ia que não voltasses a exprimir-te em termos tão insubordinados.
Tu, e o centurião, podem ter saído desta história como heróis, mas aconselho-te a não pores à prova a minha boa vontade. Entendemo-nos?
- Sim, senhor, com toda a clareza. - Muito bem. Depois dos teus homens terminarem a destruição do forte de Bruccium, que se juntem à retaguarda da coluna. Temo bem
que não haja tempo para descansarem. Temos que avançar rapidamente para manter a pressão sobre Carátaco. Não nos podemos permitir perder-lhe o rasto e deixá-lo escapar-se
outra vez. Ostório não apreciaria de todo essa possibilidade. - Quintato sorriu. - Apesar de ter sido o governador a perdê-lo de vista da primeira vez. Seria muito
agradável acabar com Carátaco antes que Ostório chegue. Extremamente agradável, de facto.
Cato sentiu uma ponta de irritação. Os comandantes de exércitos não tinham qualquer direito de levar as suas rivalidades políticas para uma campanha militar. Eram
vidas humanas que estavam em jogo, e um general devia àqueles cujos destinos determinava que se concentrasse apenas em obter resultados favoráveis nas manobras.
Tudo o que importava era derrotar o inimigo. A quem cabia o mérito por tal resultado era irrelevante. Ou melhor, devia ser. Mas havia alturas em que parecia que
a guerra não passava senão de uma continuação da política, considerou Cato. E em lugar nenhum mais do que em Roma, onde as duas atividades tantas vezes se sobrepunham
nas carreiras dos que ocupavam os mais elevados estratos da sociedade.
O legado Quintato continuava a observar o desfile do seu exército pelo forte arruinado; eram milhares de homens, mulas, cavalos e vagões pesadamente carregados com
tudo o que era necessário para uma campanha militar.
- Desperdiçámos demasiados anos a tentar conseguir paz nesta província. Graças às proclamações do Imperador, de que esta terra estava conquistada poucos meses depois
de cá desembarcarmos, tem havido muito poucas oportunidades para um homem se cobrir de glória. Mas há um mundo de diferenças entre a versão oficial e a realidade
no terreno, hã? Ficarei bem contente por ser colocado numa fronteira onde poderei construir uma reputação. Mas estou-me a adiantar. - Com a mão, Quintato fez um
gesto de menosprezo por si mesmo. - Primeiro, temos que terminar a destruição deste inimigo. Depois de vencido Carátaco, poderemos finalmente pôr fim à resistência
nativa nesta ilha miserável.
- Espero bem que sim, senhor. O legado virou-se para Cato com o sobrolho franzido. - Tens dúvidas? Cato respondeu cuidadosamente. - Primeiro, senhor, temos que derrotar
Carátaco. Só saberemos se isso é o fim depois de o conseguir. Mesmo assim, é preciso ver que ele se tem demonstrado um inimigo cheio de recursos. Quem sabe? Pode
ainda ter algumas surpresas na manga. E há outras tribos que ainda não se resignaram ao domínio de Roma. E depois, ainda há os druidas, sempre prontos a acicatar
ódios contra nós. - Encolheu os ombros. - Temo que ainda seja preciso algum tempo para que a paz reine realmente sobre a Britânia.
Quintato soltou um suspiro impaciente. - O teu espírito otimista, prefeito Cato, está longe de provocar admiração. Estou certo de que deves ser excelente quando
o moral dos homens precisa de uma ajudinha.
- O otimismo, senhor, é uma qualidade muito apreciável, mas as duras realidades de uma situação só raramente cedem perante o bom humor, na minha experiência.
- Na tua experiência? - Os lábios do legado arquearam-se, ligeiramente divertidos. - Espero que venhas a viver tempo suficiente para poderes usar o termo com propriedade.
Cato enfrentou-lhe o olhar sem vacilar. - Também eu, senhor. Quintato fez sinal ao soldado que tomava conta do seu cavalo, e o homem apressou-se a trazer-lhe a montada
e a entregar-lhe as rédeas, antes de se dobrar e oferecer as mãos para criar um degrau que permitisse ao oficial trepar facilmente para a sela. Este olhou de cima
para Cato, e a voz assumiu um tom seco de comando.
- Destrói o forte, reúne o que resta do teu comando e junta-te à coluna.
- Sim, senhor. Trocaram uma saudação formal, e Quintato incitou a montada, levando-a a trote pela estrada até à antiga parada, sobre a qual marchava uma coluna de
legionários. Cato ficou a vê-lo a afastar-se, tentando estabelecer se poderia partilhar o otimismo do legado quanto ao fim próximo da guerra contra Carátaco e todos
os que ainda resistiam à força bruta de Roma. Apesar das suas reservas, queria realmente ter esperança de que a longa campanha estava mesmo a chegar ao fim. Com
a Britânia finalmente em paz, poderia trazer Júlia para junto de si. A seu tempo, muitas das unidades que guarneciam a ilha seriam de novo deslocadas, e uma posição
mais interessante poderia surgir no horizonte. Algures onde houvesse mais calor e mais civilização. Olhou para as distantes fragas cinzentas ao cimo das montanhas
que rodeavam aquele vale onde tanto sangue fora derramado, e estremeceu. Aquele era um território selvagem e hostil, e era difícil acreditar que um dia pudesse ser
dominado. Seria melhor nem pensar em trazer Júlia para aquelas paragens. Quando os nativos por fim renunciassem à sua luta, o melhor seria solicitar um novo comando,
mais próximo de Roma. Não se atrevia ainda a esperar um dia ter uma posição na própria capital. Não enquanto no palácio existisse gente que lhe queria mal. Mas também
isso não duraria para sempre, refletiu. Aqueles que planeavam o futuro de Roma ao lado do Imperador raramente aguentavam tempo suficiente para ver o resultado dos
seus esquemas. Em breve haveria um novo Imperador. O mais provável era que fosse Nero, o filho adotivo de Cláudio, a quem em tempos Cato tinha salvo a vida. Se o
destemido jovem se tornasse Imperador, haveria uma purga que afastaria muita da velha guarda da corte, e Cato estaria livre para regressar a Roma e aos braços de
Júlia, e para viver em paz.
Com aquele caloroso pensamento no coração, virou as costas à coluna de infantaria que continuava a passar e abriu caminho pela brecha no lugar do torreão arruinado,
e foi à procura de Macro.
No interior do forte imperava o cheiro a madeira queimada, misturado com o odor acre do pez. Pequenos grupos de homens preparavam pilhas de combustível em redor
dos blocos de casernas e estábulos. Cato não deixou de apreciar a ironia: seriam soldados romanos a concluir a destruição que os seus inimigos não tinham conseguido
terminar.
Encontrou Macro no quartel-general, a tratar da transferência do dinheiro dos salários e dos registos das coortes para uma carroça. Uma secção de legionários tinha
sido destacada para a tarefa. Ao que parecia, Macro ainda não confiava plenamente nos trácios.
- Macro, como vão as coisas? O centurião fez uma saudação formal ao ver o amigo a aproximar-se. passou uma mão pelo cabelo e coçou as costas do pescoço enquanto
ordenava os pensamentos.
- Os feridos e doentes já se juntaram ao comboio do material. E os prisioneiros siluros também. As montadas da cavalaria já foram tiradas dos estábulos, bem como
todo o material que conseguimos levar nos vagões livres. - Acenou na direção das arcas que estavam a ser carregadas. - Assim que isto estiver tratado, fica tudo
feito.
- E os nossos equipamentos? Fez um gesto para a carroça parada no pátio. - Já estão carregados.
Cato assentiu. - Ótimo. Assim que o último vagão deixar o forte, pode dar ordens para acender os fogos.
- E bem contente ficarei. Cato olhou para o amigo com uma expressão curiosa. - Agrada-lhe essa perspetiva? - E porque não? Porquê lamentar a perda deste lugar? -
Macro olhou em redor do pátio à frente do edifício do comando. - Há aqui demasiado peso do Querto. É como se o homem ainda projetasse uma sombra sobre este sítio.
O que não é de espantar, acho eu. Aquele cabrão não é do género que é bem-vindo ao outro mundo. O Querto merece um além só para ele, na minha opinião.
Cato ficou assombrado. Não era nada característico de Macro estar tão desanimado. Falou-lhe em tom gentil.
- Macro. O Querto está morto. Matei-o. Acabou. Macro abanou lentamente a cabeça. - Não, miúdo, para mim não. Passei vinte anos nas legiões, vi muita coisa e conheci
alguns maus fígados, mas nunca ninguém como o Querto. Ele tinha um coração onde reinavam as trevas.
- Trevas? - Cato cerrou os lábios e pensou por momentos, antes de continuar. - Sim, acho que tem razão.
- Achas? - Macro soltou uma risada sem humor. - Que se foda isso tudo. Ele era louco. O Querto tinha um traço de maldade tão largo como o Tibre. Pouco melhor era
do que um animal selvagem, e ainda por cima era astuto como uma serpente. Tinha que ser destruído. Só gostava de ter sido eu a fazê-lo. Não tu. - Olhou para Cato
com ansiedade evidente. - Espero que isso não venha a ter repercussões.
- Pelo menos por algum tempo não haverá novidade. Pelo que eu lhe disse, o legado pensa que ele morreu em combate. Se me for solicitado um relatório pormenorizado,
então a verdade será conhecida. O que acabará por acontecer de qualquer maneira, estou certo. Houve testemunhas. A história há de espalhar-se.
- Pois, mas espero que haja poucos a defender o Querto, já que ele se preparava para nos abandonar à mercê do Carátaco. Não serei com certeza o único a corroborar
o teu relato. Haverá muitos outros.
Cato sorriu, grato. - Eu sei. Não estou preocupado com isso. - A expressão do jovem tornou-se mais pensativa. - Uma pena que tenha tido que ser assim. Havia algum
mérito na tática do Querto.
- Não estás a falar a sério? - Porque não? O medo é de facto a melhor das armas numa guerra. E ele conseguiu instilá-lo nos corações do inimigo, isso é certo. O
erro dele foi tê-lo metido também nos corações dos seus próprios homens.
- Cato, dás-lhe demasiado crédito. Ele não prestava. É tudo. Mau, ruim até ao tutano, e capaz de contagiar outros. Os homens dele, os siluros... até eu. - O olhar
de Macro desviou-se do do amigo, enquanto recordava as mortes de Mancínio e Marídio como se estivesse a vivê-las de novo. Estremeceu, como se lhe doesse qualquer
coisa. - Não cometas o erro de falar bem dos mortos. Alguns deles não o merecem. - Macro olhou para lá de Cato, para a carroça, e soltou um berro. - Bom, essa coisa
maldita está carregada, portanto do que é que estão à espera? Levem-no para fora do forte, até à parada, e tratem de ver se não há mãozinhas marotas a tentarem apropriar-se
das coisas. Toca a mexer!
O condutor fez estalar o chicote, e as pesadas rodas rangeram ao começarem a mover-se; o veículo e a sua escolta saíram do pátio e dirigiram-se ao portão lateral
e ao caminho que rodeava o forte e levava à parada. O momento melancólico que durara até havia poucos momentos estava ultrapassado, e os dois homens assumiram o
verniz das suas patentes ao voltarem-se de novo um para o outro.
- Está despachado. - Macro empertigou-se. - Senhor, o forte está pronto para ser destruído pelo fogo.
Cato assentiu. - Nesse caso, centurião, esperá-lo-ei com o resto dos homens lá fora. Prossiga.
Enquanto Cato se dirigia às ruínas calcinadas da muralha que dava para a parada, ouviu a voz de Macro a lançar ordens aos grupos incendiários. Quando chegou à base
do declive e se virou para olhar para cima já havia escuras colunas de fumo a subirem para o céu. Macro e um punhado de homens emergiram de um dos buracos na muralha
e desceram a estrada para se juntarem aos seus camaradas. Cato dispensou o homem que segurava no seu cavalo. Apetecia-lhe andar um bocado. Os sobreviventes da guarnição
formaram, e Cato fez sinal com o braço para os pôr em movimento, ocupando a retaguarda da coluna.
Muito mais à frente, a cavalaria do legado Quintato mordia os calcanhares a Carátaco e ao seu exército. Depressa os nativos se veriam forçados a parar e enfrentar
a força romana. Dar-se-ia uma grande batalha, que seria um teste à coragem e à destreza dos homens dos dois exércitos, previa Cato. Se Roma triunfasse, haveria uma
hipótese de paz na nova província. Se tal não sucedesse, a guerra amarga prolongar-se-ia, ano após ano. Essa perspetiva deprimiu-o. Mais morte. Mais sofrimento.
Os nativos manter-se-iam desesperadamente apegados à esperança de que um dia conseguiriam humilhar Roma. Tal nunca aconteceria, considerou. Nenhum Imperador romano
o permitiria, fosse qual fosse o preço a pagar. Era isso que Carátaco e os seus seguidores fariam realmente bem em temer.
Mais uma vez, tudo se resumia ao medo. Talvez quanto a isso Querto tivesse tido mesmo razão.
- Assim, não faremos grande diferença. - Comentou Macro, quebrando o encanto dos pensamentos que lhe ocupavam a mente. Fez um gesto que abarcava a pequena coluna
de homens e cavalos que os seguia. - As duas coortes sofreram enormes perdas.
- É verdade, mas o legado prometeu que teríamos direito aos primeiros reforços que vierem de Londinium. Depressa estaremos de volta à linha da frente.
Macro sorriu perante a perspetiva de ter novos recrutas para moldar à sua vontade.
- De volta à boa e velha vida militar. Por fim. - É isso mesmo! - Cato sorriu ao amigo. - Treiná-los-emos até caírem para o lado, e quando voltarmos a enfrentar
o inimigo, eles deixar-nos-ão orgulhosos. Os seus homens e os Corvos Sangrentos serão as melhores coortes de todo este exército. Não haverá em toda a Britânia uma
única tribo capaz de nos enfrentar e prevalecer.
Macro assentiu. - Bebo a isso. - O primeiro jarro é à minha conta, assim que estabelecermos campo esta noite.
- Porquê esperar? - Macro afastou a capa e mostrou o cantil. - Tomei a liberdade de me fornecer com o que restava do vinho de Falerno. Não é má pinga. - Ofereceu
o cantil a Cato. - Tu primeiro. A patente dá alguns privilégios.
Cato abanou a cabeça. - Também a amizade. Depois de si. Macro riu, tirou a rolha e sorveu uma boa quantidade, antes de voltar a passar o cantil a Cato. O prefeito
pensou por momentos, antes de o erguer no ar com um brinde.
- A Roma, à honra e, sobretudo, à amizade!

 

 

                                                    Simon Scarrow         

 

 

 

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