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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


COSMO E OS SUPERNATURALISTA / Eoin Colfer
COSMO E OS SUPERNATURALISTA / Eoin Colfer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Cidade-Satélite Hemisfério Norte, em breve
— Bom, garotos — disse Redwood abrindo um par de algemas de cada vez. — Eu estou muito interessado em ver um jogo esta noite. Na verdade apostei uns dinares. De modo que, se sabem o que é bom para vocês...
Não precisou terminar a ameaça. Os garotos sabiam que Redwood tinha uma centena de meios legais de tornar miserável a vida de um sem-patrocínio. E milhares de meios ilegais.
— Durmam bem, jovens príncipes — riu o bedel, digitando seu código na porta do dormitório. — Amanhã, como sempre, é dia de trabalho. Cheinho de diversão.
Os sem-patrocínio relaxaram assim que Redwood saiu, e o silêncio da disciplina foi substituído pelos gemidos e soluços dos garotos sentindo dor. Cosmo tocou a perna com cuidado, no ponto em que um produto particularmente ácido tinha queimado a pele.
— Cinco minutos para apagar as luzes — disse a voz de Redwood pelos alto-falantes. — Subam as escadas, garotos.
Trezentos órfãos se viraram imediatamente para cerca de uma dúzia de escadas de aço e começaram a subir. Ninguém queria ficar no piso do dormitório assim que as escadas se retraíssem. Se os bedéis pegassem um sem-patrocínio no chão depois de as luzes se apagarem, uma corrida de dez quilômetros iria parecer um passeio de domingo comparada à punição que viria.
Cada garoto tinha uma área no dormitório onde comia, dormia e passava qualquer tempo de lazer que os sem-patrocínio tivessem. Na verdade esses cômodos eram tubos de papelão serrados em pedaços de dois metros de comprimento. Os tubos eram suspensos numa rede de fios a quase 15 metros do chão. Assim que os tubos eram ocupados pelos órfãos, a armação inteira balançava como um transatlântico.

 


 


Cosmo subiu rapidamente, ignorando a dor nos músculos da perna. Seu tubo ficava perto do topo. Se as luzes se apagassem antes de ele chegar, poderia ficar per-
dido na escada. Cada passo trazia novas pontadas de dor aos tendões, mas ele continuou subindo, pressionando a cabeça contra o garoto da frente e sentindo o de trás se aproximar.
Depois de alguns minutos de subida febril, chegou ao seu nível. Uma passarela estreita, mais ou menos da largura da sua mão, dava em cada tubo. Cosmo deslizou cuidadosamente por ela, segurando um corrimão fixo à parte inferior da passarela de cima. Seu tubo ficava quatro colunas adiante. Cosmo se enfiou nele e tombou no colchonete de espuma. Dez segundos depois as luzes se apagaram.
Um brilho amarelo doentio iluminava o interior de cada tubo. O jantar. A refeição tinha sido jogada antes por um bedel usando uma grua. Aqueles pacotes de refeição tinham sido testados alguns anos antes pelos sem-patrocínio, para uso dos soldados no campo de batalha. As bandejas e garrafas d'água eram luminosas e também comestíveis, o que significava que os órfãos podiam se alimentar depois de as luzes estarem apagadas, economizando alguns dinares da administração. A bandeja era feita de um biscoito duro e sem fermento, e a garrafa d'água era de goma semi-rígida. O exército tinha parado de usar esse tipo de refeição depois de vários processos judiciais movidos pelos soldados, argumentando que os pacotes luminosos causavam hemorragia interna. O orfanato comprou as sobras e dava todo dia para os órfãos.
Cosmo comeu devagar, sem se incomodar em pensar no que havia na refeição. Isso apenas traria mais uma preocupação para a sua lista. Tinha de acreditar que escaparia do Clarissa Frayne antes que os pacotes de refeições lhe causassem um dano definitivo.
Guardou a água para o fim, usando a maior parte para ajudar a engolir a bandeja de biscoito duro. Depois virou a garrafa de goma pelo avesso, colocando-a na testa como se fosse uma flanela. Tem de haver uma vida melhor, pensou, mal-humorado. Em algum lugar, naquele momento, pessoas falavam abertamente. Sem dúvida pessoas riam. E riso de verdade, e não o de desprezo que costumava ecoar nos corredores do orfanato.
Deitou-se, sentindo a umidade da garrafa de goma penetrando na testa. Nesta noite não queria pensar. Não queria brincar do jogo dos pais, mas o sono que tinha desejado estava escapando. Seus pais. Quem eram? Por que o tinham abandonado na Colina do Cosmonauta? Talvez ele fosse russo. Era impossível dizer, pelas feições. Cabelo castanho encaracolado, olhos castanhos, pele clara com sardas castanhas. Podia ser de qualquer lugar.
Por que eles o tinham abandonado?
Transferiu a garrafa de goma para uma faixa vermelha na perna. Fica quieto, disse ao cérebro. Esta noite, não. Nada de viver no passado. Olha para o futuro.
Alguém bateu de leve no tubo acima. Era Ziplock Murphy. A rede estava se abrindo. Cosmo respondeu ao som batendo também, depois puxou o colchonete para trás, sinalizando para Pula-cerca no tubo embaixo. Os sem-patrocínio tinham desenvolvido um sistema de comunicação que permitia conversar sem provocar a raiva dos bedéis. O Clarissa Frayne desencorajava a comunicação direta entre os garotos, argumentando que poderiam surgir amizades. E as amizades podiam levar à unidade, e talvez à revolta.
Cosmo enfiou as unhas numa emenda do tubo de papelão e puxou dois canos pequenos. Ambos tinham sido feitos de garrafa de goma mastigada e biscoito duro, depois postos para secar no parapeito de uma janela. Cosmo atarraxou um deles num buraquinho na base de seu tubo, e o outro num buraco no alto.
A voz de Ziplock veio de cima.
— Ei, Cosmo, como estão suas pernas?
— Queimando. Coloquei minha garrafa de goma numa delas, mas não está ajudando.
— Eu também tentei isso — disse Pula-cerca embaixo. — Antiperspirantes. Foi quase tão ruim como quando eles fizeram a gente levar aquelas balas Calafrio. Vomitei uma semana.
Comentários e sugestões vinham de toda a armação de tubos, pelos buracos. O fato de todos os tubos se tocarem, junto com a acústica do salão, fazia as vozes viajarem distâncias incríveis pela rede. Cosmo podia ouvir os sem-patrocínio sussurrando a cem metros de distância.
— O que o Químico disse? — perguntou Cosmo. — Sobre nossas pernas.
O Químico era o nome dado pelo orfanato a um garoto que ficava três colunas adiante. Ele adorava assistir a programas de medicina pela TV, e era o mais próximo de um consultor para os sem-patrocínio.
A notícia voltou em menos de um minuto.
— O Químico disse para cuspir nas mãos e esfregar. O cuspe tem algum tipo de ungüento. Mas não lambam os dedos, caso contrário o antiperspirante vai deixar a gente mais enjoado do que as balas Calafrio.
O som de garotos cuspindo ecoou pelo salão. Cosmo seguiu o conselho do Químico, depois se deitou, deixando que uma centena de conversas diferentes passassem sobre ele. Algumas vezes participava, ou pelo menos ouvia uma das cascatas de Ziplock. Mas esta noite só conseguia pensar no momento em que a liberdade o chamaria. E em estar pronto quando isso acontecesse.
A chance de liberdade veio no dia seguinte, durante um transporte de rotina. Quarenta sem-patrocínio, dentre eles Cosmo, tinham acabado de passar o dia numa empresa de música assistindo a sugestões de clipes de bandas geradas por computador, seguidos por um questionário de sessenta quilobytes. Que artista sintetizado você preferia? Que artista sintetizado era maneiro? Maneiro? Até os computadores da empresa estavam desatualizados. Hoje em dia a garotada raramente dizia "maneiro". Cosmo mal lia as perguntas antes de marcar um quadrado com a caneta digital. Ele preferia música feita por gente de verdade ao pop gerado por pixels. Mas ninguém reclamava. Um dia assistindo a clipes de música era infinitamente preferível a mais testes químicos.
Depois da sessão, os bedéis do instituto Frayne colocaram os sem-patrocínio num caminhão. O veículo devia
ter uns cem anos, com pneus de borracha em vez de lagartas de plástico. Cosmo foi posto com Ziplock Murphy, como parceiro de algemas. Ziplock era legal, só que falava demais. Foi assim que ganhou o apelido no orfanato. Uma vez o garoto irlandês tinha falado demais com a pessoa errada e usaram cola-tudo para grudar em sua boca o fecho ziplock de um saco de comida. Levou semanas para as bolhas se curarem. E Ziplock não só deixou de aprender a lição, como agora tinha outro assunto para falar.
— E não chamam aquilo de cola-tudo à toa — disse Ziplock todo animado, quando um dos bedéis passou as algemas pelo anel de contenção preso ao banco. — Os médicos usam isso nas áreas de guerra, para fechar ferimentos. Derramam a cola direto nos machucados.
Cosmo assentiu sem muito entusiasmo. Ziplock parecia esquecer que tinha contado essa história um milhão de vezes, talvez porque Cosmo fosse o único que ao menos fingia escutar quando ele falava.
— Tiveram de usar água fervendo para tirar o saco da minha cara — continuou Ziplock. — Se você está preocupado, eu não senti nada. Um bedel encheu minha cara de anestésico primeiro. Eles podiam cravar pregos de dez centímetros no meu crânio e eu não iria me importar.
Cosmo esfregou a carne embaixo das algemas. Todos os sem-patrocínio tinham um círculo de pele vermelha em volta dos pulsos. Marca da vergonha.
— Você já tentou respirar só pelo nariz durante um dia inteiro? Eu entrei em pânico algumas vezes, tenho de admitir.
Na cabine, o piloto estava conectando o caminhão ao sistema de navegação do Satélite. Mas ultimamente tinha havido problemas com o Satélite. Os comentaristas na TV tinham dito que eram acréscimos demais. O Myishi 9 estava simplesmente ficando muito pesado para os motores agüentarem uma órbita tão baixa. Falava-se até que algumas antenas da companhia iriam se soltar e se queimar.
— Por que esse atraso? — gritou o bedel Redwood. Hoje o ruivo grandalhão estava com o hálito ruim e uma atitude pior ainda. Cerveja demais na véspera. Sua barriga pendente falava de cervejas demais quase toda noite.
— Se eu me atrasar de novo esta noite, Agnes jura que vai se mudar para a casa da irmã.
— E o Satélite — gritou o piloto. — Não estou conseguindo linha.
— Bem, consiga, senão minha bota vai abrir uma linha na sua bunda.
Ziplock deu um risinho suficientemente alto para Redwood escutar.
— Acha que eu estou brincando, Francis? — gritou o sujeito, dando um tapa na orelha de Ziplock. —Acha que eu não faria isso?
— Não, senhor. O senhor faria mesmo. O senhor está com aquela expressão nos olhos. Não é inteligente mexer com um homem que tem essa expressão.
Redwood levantou o queixo de Ziplock até que os olhos dos dois se encontraram.
— Sabe de uma coisa, Francis? Esta é a primeira coisa esperta que eu já ouvi você falar. Não é inteligente mexer
comigo, porque eu faço o que quero. O único motivo para não me livrar de uma dúzia de idiotas como vocês é a papelada que teria de preencher. Eu odeio papelada.
Ziplock poderia ter parado por aí, mas não conseguiu. Sua boca enorme não deixava.
— Ouvi falar isso sobre o senhor.
Redwood puxou o queixo com mais força, levantando-o um pouco mais.
— O que foi, Francis? O que você ouviu?
Cosmo deu um puxão na corrente da algema. Um aviso. Redwood não era um sujeito que devesse ser provocado. Até os garotos psicóticos tinham medo de Redwood. Havia histórias sobre ele. Alguns sem-patrocínio tinham desaparecido.
Mas Ziplock não conseguia parar. As palavras jorravam como abelhas agitadas saindo de uma colméia.
— Ouvi dizer que o senhor odeia a papelada porque algumas palavras têm mais de três letras.
A frase foi seguida por um risinho agudo. Mais histeria do que humor. Cosmo percebeu que Ziplock ia ser mandado à ala dos psicóticos, se sobrevivesse até lá.
Redwood transferiu os dedos para a garganta de Ziplock, apertando casualmente.
— Imbecis como você nunca entendem. Bancar o espertinho não garante prêmios nesta cidade, só faz você ser machucado, ou coisa pior.
O Satélite salvou o pescoço de Ziplock, mandando para baixo um plano de transporte antes que Redwood pudesse apertar os dedos mais um pouco. O caminhão se sacudiu na vaga de estacionamento, rolando para a via expressa principal. Uma haste de orientação se projetou do chassis, encaixando-se numa canaleta correspondente na via expressa.
— Estamos encaixados — gritou o piloto. — Dez minutos para chegar ao Instituto.
Redwood soltou o pescoço de Ziplock.
— Você tem a sorte dos irlandeses, Francis. Agora estou feliz demais para causar dor em você. Mas mais tarde, quando estiver com péssimo humor, pode contar com isso.
Ziplock respirou cobiçoso. Sabia, pela experiência, que logo sua traquéia iria se encolher até o diâmetro de um canudinho de refrigerante e que ele iria assobiar quando falasse.
— Fecha essa matraca, Ziplock — sibilou Cosmo, vigiando o bedel que seguia pelo corredor entre os bancos. — Redwood é maluco. Para ele nós não somos gente de verdade.
Ziplock assentiu, esfregando a garganta dolorida.
— Eu não consigo evitar — falou rouco, com lágrimas nos olhos. — O lixo sai da minha boca. Essa vida me deixa maluco.
Cosmo conhecia bem esse sentimento. Ele o visitava na maioria das noites enquanto estava deitado em seu tubo ouvindo o choro ao redor.
— Você também sente, não é, Cosmo? Você acha que alguém vai adotar um garoto quase psicótico ou um adolescente soturno como você?
Cosmo olhou para o outro lado. Sabia que nenhum deles se ajustava ao perfil de adotável, mas Ziplock sempre tinha conseguido fingir que hoje era o dia em que seus novos pais iam aparecer. Negar esse sonho significava que o garoto estava perto de desmoronar.
Cosmo encostou a testa na janela, olhando a cidade do outro lado do vidro. Agora estavam nos conjuntos residenciais, passando por prédios cinzentos. Prédios de ferro fundido, motivo pelo qual os moradores da área chamavam a Cidade-Satélite de Grande Fundida. Não que o material fosse mesmo ferro fundido. Era um polímero superforte, com base de aço, que supostamente ficaria frio no verão e quente no inverno, mas que conseguia fazer exatamente o oposto.
O caminhão estremeceu violentamente. Alguma coisa tinha batido na traseira.
Redwood foi jogado nas tábuas de plástico do piso.
— Ei, o que está acontecendo aí?
Cosmo se levantou até o limite permitido pelas algemas, esforçando-se para ver. O piloto estava de pé, digitando repetidamente seu código no teclado.
— O Satélite. Perdemos a conexão!
Não havia conexão! Isso significava que estavam numa via expressa apinhada sem um padrão para seguir. Sardinhas num mar de tubarões-martelo. Foram abalroados de novo, desta vez de lado. Cosmo viu um minifurgão de entregas saindo da via expressa, com o pára-choque amassado.
Redwood lutou para ficar de pé.

— Passe para o manual, seu cretino. Use o volante. O piloto empalideceu. Os volantes só erarn usados nas
áreas rurais ou para corridas ilegais na região do Bushka. Era provável que ele nunca tivesse experimentado um volante na vida. A opção foi retirada do infeliz quando um caminhão de publicidade dando um cavalo-de-pau os acertou de frente, esmagando a cabine como se fosse um acordeão. O piloto se perdeu numa névoa de fios e cacos de vidro.
O impacto foi tremendo, arrancando o caminhão da canaleta e jogando-o de lado. Cosmo e Ziplock ficaram pendurados em seus bancos, salvos pelas algemas. Redwood e os outros bedéis se espalharam como folhas numa tempestade.
Cosmo não sabia quantas vezes outros veículos colidiram com o caminhão. Depois de um tempo os impactos se fundiram como as últimas notas de um solo de bateria. Enormes mossas apareciam na lataria, acompanhadas por trovões estrondosos. Todas as janelas se despedaçaram, fazendo chover arco-íris de cristal.
Cosmo se segurou firme; o que mais podia fazer? Ao lado, o riso histérico de Ziplock era quase tão cortante quanto os cacos de vidro.
— Ah, cara, é isso aí! — gritava o garoto irlandês.
O caminhão girou uma meia-volta, deslizando para fora da via expressa numa cascata de fagulhas. Pedaços de pavimento se arrebentaram, deixando uma trincheira de trinta metros depois da passagem do veículo. Por fim ele parou, depois de atravessar a janela do restaurante chinês Barba
do Dragão. Os odores picantes de gengibre e molho de soja se misturaram ao cheiro de óleo de motor e sangue.
Cosmo apoiou um dos pés na borda de uma janela, tirando o peso dos braços.
— Ziplock! Francis, você está legal?
— É, ainda estou aqui. — O garoto parecia desapontado.
Por todo o caminhão os sem-patrocínio gemiam e gritavam pedindo ajuda. Alguns tinham se ferido, outros mais do que isso. Quase todos os bedéis estavam inconscientes. Ou isso ou olhando para uma parte do corpo quebrada e torcida. Redwood tocou de leve o inchaço no nariz.
— Acho que quebrou—gemeu ele.—Agnes vai adorar.
— Ah, bem — disse Ziplock, balançando acima de Redwood. — Tudo tem seu lado positivo.
Redwood se imobilizou, ficando de quatro como um pit bull. Uma grossa gota de sangue escorreu de uma narina, caindo através de uma janela sem vidro.
— O que você disse? — falou o bedel lentamente, cer-tificando-se de que cada palavra saísse direito.
Cosmo girou o pé, acertando as costelas do seu colega de algemas.
— Cala a boca, Ziplock. O que acontecer com você acontece comigo!
— Certo! Certo! Eu não disse nada, bedel. Nadinha.
Mas era tarde demais. Uma fronteira invisível fora atravessada. No meio de todo o caos, Redwood recuou para dentro si mesmo. Quando voltou para fora, era um indivíduo muitíssimo mais perigoso.

— Pelo modo como eu vejo... — disse ele, levantando-se devagar para encarar os garotos pendurados. Em seguida passou um pente pelos preciosos cachos vermelhos — ... sua algema se partiu e você tentou fugir.
Apesar da fala rápida, Ziplock foi meio lento para entender.
— O que o senhor está falando, Sr. Redwood? Não tem nada de errado com nossa algema. Olha! — Ele puxou a algema, para demonstrar.
— Eu ordenei que você parasse, mas você não quis ouvir. — Redwood suspirou dramaticamente, com o nariz assobiando um pouco. — Não tive escolha a não ser embrulhar você.
Embrulhar era. o jargão da segurança para as balas de vírus de celofane com que os bedéis carregavam seus bastões a gás. Assim que a bala se chocava contra um objeto sólido, o vírus era liberado e cobria o alvo com uma camada de celofane que impedia os movimentos. O celofane era suficientemente poroso para permitir uma respiração dificultosa, mas havia histórias de que ele apertava tanto que as costelas se quebravam. Cosmo tinha sido embrulhado uma vez. Em conseqüência, passou uma semana engessado.
Cosmo empurrou Ziplock com o cotovelo.
— Sr. bedel Redwood. Francis não quis dizer nada. Ele é só um idiota. Eu ensino a ele, senhor. Deixe que eu cuido disso. Vá tratar do nariz.
Redwood deu um tapinha no rosto de Cosmo.
— É uma pena, Colin, porque eu sempre gostei de você. Você não fica se defendendo. Mas infelizmente todas as guerras têm danos colaterais.
O bedel estendeu a mão, enfiando o cartão no aro da algema. Os garotos caíram dois metros, embolando-se no tapete de vidro quebrado.
Redwood desembainhou o cassetete, verificando a câmara de munição.
— Eu sou um homem razoável. Vocês têm vinte segundos.
Cosmo sacudiu os cacos que havia na roupa e puxou Ziplock de pé. Era isso. Sua chance havia chegado. Viver ou morrer.
— Por que o senhor não dá trinta segundos? Redwood gargalhou.
— Por que eu faria isso?
Cosmo agarrou o nariz do bedel, torcendo-o quase noventa graus.
— Por isso.
Os olhos de Redwood se encheram de lágrimas e ele desmoronou, retorcendo-se no vidro quebrado.
— Vamos — disse Cosmo, agarrando Ziplock pelo cotovelo. — Temos trinta segundos.
Ziplock ficou parado.
— Quero passar meu meio minuto vendo Redwood se retorcer.
Cosmo correu para a janela de trás, arrastando o garoto irlandês.
— Use sua imaginação. Eu prefiro ficar vivo.
Atravessaram a janela quebrada, entrando no restaurante. Clientes se grudavam às paredes, para o caso de o caminhão se sacudir avançando mais um metro. Em alguns segundos a polícia da cidade chegaria e todas as rotas de fuga estariam fechadas. Os faróis dos pássaros da TV já estavam espiando pela parede desmoronada.
Ziplock pegou duas panquecas de frango no prato de um cliente perplexo. Os sem-patrocínio tinham ouvido falar de comida preparada na hora, mas nunca a comeram.
Ziplock enfiou uma na boca, oferecendo a outra ao parceiro de algema. Cosmo não era estúpido a ponto de recusar comida, não importando as circunstâncias. Quem sabia quando conseguiriam comer de novo, se é que comeriam? Esta podia ser a última refeição dos garotos condenados.
Mordeu a panqueca e o molho picante saturou sua língua. Para um garoto criado com comida governamental pré-empacotada, foi quase uma experiência religiosa. Mas não podia parar para desfrutar. As sirenes já estavam atravessando o som sibilante do motor.
Correu para a parte de trás do restaurante, arrastando Ziplock. Um garçom bloqueou o caminho. Usava macacão listrado e tinha o cabelo excepcionalmente brilhante, mesmo pelos padrões dos testadores de produtos.
— Ei — disse ele vagamente, sem saber se queria se envolver. Os garotos se desviaram do sujeito antes que ele pudesse tomar uma decisão.
Uma porta dos fundos dava numa escada estreita que se retorcia até sumir de vista. Possivelmente para a liberdade. Não havia tempo para uma decisão consciente.
Redwood viria logo. Se já não estivesse a caminho. Os dois pegaram a escada, espremendo-se ombro a ombro.
— Nunca vamos conseguir — ofegou Ziplock com molho de ameixa escorrendo pelo queixo. — Espero que ele não pegue a gente antes de eu terminar essa panqueca.
Cosmo acelerou, a algema cortando o pulso.
— Vamos conseguir. Vamos.
Os garotos viraram uma esquina e deram num luxuoso apartamento estilo quitinete. Um rosto de homem espiou de baixo de uma grande cama de casal.
— O terremoto? — guinchou o homem. — Terminou?
— Ainda não — respondeu Ziplock. — O grande choque ainda está vindo.
— Que o céu nos ajude! — O homem recuou para trás da barra de uma colcha de chintz.
Ziplock deu um risinho.
— Vamos antes que ele perceba que os informantes são fugitivos sem-patrocínio.
O apartamento era decorado no estilo opulento da China antiga. Havia armaduras de batalha em cada canto e dragões de jade enfileirados nas prateleiras. O cômodo tinha várias janelas, mas a maioria era de plasma decorativo; somente uma dava para a Cidade-Satélite. Cosmo puxou o fecho, abrindo o painel de vidro triplo reativo à luz.
Ziplock enfiou o rosto no ar lá fora.
— Excelente — disse ele. — Uma escada de incêndio. Dá para descer.
Cosmo passou e chegou a uma grade de metal.
— Descer é o que Redwood espera. Vamos subir.
Ziplock parou.
— Subir? Cosmo puxou-o.
— Não me diga que o garoto que irrita os bedéis para se divertir tem medo de altura.
— Não — respondeu Ziplock, com a palidez cobrindo o rosto magro. — Eu tenho medo é do chão.
O bedel Redwood não desmaiou. Não teve tanta sorte assim. Em vez disso, um bloco de dor se chocou contra ele como uma geleira maligna. Combateu a agonia usando um truque dos tempos do exército. Encontrar o centro branco da dor e se concentrar nele. Redwood descobriu, para sua surpresa, que a raiz da dor não estava no nariz, e sim no meio da testa. Concentrou-se no ponto, sugando a dor e contendo-a. Prendeu-a ali por tempo suficiente para tirar um comprimido da bolha de plástico dentro do kit de primeiros socorros. Menos de um minuto depois, a dor recuou até virar um latejamento surdo atrás de um dos ouvidos. Sob controle. Por enquanto.
De volta ao trabalho. Aqueles sem-patrocínio tinham zombado de sua autoridade. Sem dúvida seriam embrulhados. Mesmo assim era melhor fingir que estava seguindo as regras. Tirou um comunicador do cinto.
— Redwood para base.
— E você, Redwood? Pensamos que estava morto. Redwood fez um muxoxo. Fred Allescanti estava de
serviço na base. Aquele sujeito fazia um bagre parecer inteligente.
— É, bem, eu estou vivo. Mas há dois fugitivos. Vou persegui-los agora.
— Não sei, bedel Redwood. Você deveria ficar no veículo. São os regulamentos. Eles vão mandar um caminhão. Chega no máximo em cinco minutos.
Redwood pegou o bastão de um dos seus colegas inconscientes.
— Negativo. Os sem-patrocínio estão armados e já dispararam balas de celofane. Dá para imaginar o processo que o Clarissa Frayne vai sofrer se eles celofanarem um civil?
Fred demorou alguns segundos para responder. Sem dúvida estava verificando o protocolo no manual de segurança.
— Certo, Redwood. Talvez você possa dar umas pancadas neles primeiro; assim a gente pode testar alguns dos novos produtos farmacêuticos.
Isso era típico do Instituto, sempre procurando o lado positivo. Um novo lote de pele sintética havia acabado de chegar, mas eles precisavam de gente com ferimentos para o teste.
Redwood escondeu o bastão na jaqueta.
— Verei o que posso fazer.
No restaurante, clientes estavam escapando por uma porta lateral. Não que fossem culpados de nada, mas ninguém queria passar a noite respondendo a perguntas da segurança particular, da polícia do estado, das companhias de seguro e dos advogados.
Quando Redwood passou pelos restos da escotilha de escape, as pessoas instintivamente saíram do caminho. Com os olhos ferozes e a cara arrebentada do bedel, não parecia sensato ficar na frente dele.
Para um homem que perseguia dois fugitivos, Redwood não parecia muito ansioso. E por que pareceria? Ainda que os sem-patrocínio não soubessem, a fuga era impossível. Cada movimento que faziam era rastreado. E não era um tipo de rastreador que pudesse ser descartado. Estava em cada poro. Sempre que os sem-patrocínio tomavam banho, a pele era coberta com micropartículas de uma solução halógena eletronegativa que aparecia no scanner do Clarissa Frayne. Mesmo que os órfãos parassem de tomar banho, a solução demorava meses para sair.
Redwood apertou o botão de seu comunicador.
— Fred. Mande os padrões de rastreamento de Colin Cosmo e Francis Murphy.
Fred pigarreou no microfone.
— Ah... os padrões de rastreamento? Redwood trincou os dentes.
— Que droga, Fred, Bruce está aí? Deixe eu falar com o Bruce.
— Bruce foi chamado para cuidar de um probleminha no Bloco D. Eu estou sozinho aqui.
— Certo, Fred. Escute com atenção. Digite o nome de Cosmo e Ziplock no arquivo de rastreamento, depois mande um e-mail com os padrões para o meu telefone. Use 0 ícone de e-mail. Meu número está na lista do pessoal. Você só precisa arrastar as pastas. Entendeu?
Fred enxugou a testa suada. Pelo rádio pareceu lixa passando em madeira macia.
— Entendi. Arrastar as pastas. Sem problema. Aí vai.
— É melhor que venha mesmo. Senão eu vou atrás de você.
Redwood tinha o hábito de transformar declarações em ameaças. Nas lojas de café sintético, ele costumava dizer: É melhor que essa coisa esteja quente, senão eu esquento as coisas para você. Redwood achava isso muito inteligente.
Cinco segundos depois, dois ícones animados apareceram na telinha do telefone de Redwood, situando os fugitivos numa escada de incêndio do lado de fora do prédio. E subindo, os idiotas. O que eles iam fazer? Voar do telhado?
Redwood riu, e isso provocou lágrimas de dor em seus olhos.
Voar do telhado. Não era má idéia.
Na Cidade-Satélite, as gotas de chuva podiam arrancar os globos oculares da pessoa se ela fosse idiota o bastante para olhar para cima durante uma tempestade. A reação com certas fumaças tóxicas fazia com que as moléculas de água se unissem com mais eficiência, até caírem na terra como mísseis. Os guarda-chuvas tradicionais não eram mais suficientes, e novos modelos de plástico rígido estavam se tornando populares na Grande Fundida.
Ziplock e Cosmo não tinham o luxo de guarda-chuvas para ajudá-los no aguaceiro, e tinham de manter os olhos baixos e os ombros encolhidos. As gotas de chuva golpea-
vam o pescoço e as costas, mas os garotos estavam com tanto frio que mal sentiam dor.
Um jorro de gotas lançou Ziplock contra as barras da escada de incêndio.
— Estou vendo a cidade. Eu sempre quis ver a cidade sem algemas nos pulsos. Talvez agente possa fazer isso logo, Cosmo. Andar por aí sem algemas.
Cosmo guardava a energia para a corrida. Ainda faltava um pavimento para chegar ao telhado. Depois disso dependiam da sorte. Talvez pudessem pular para o prédio ao lado. Talvez não.
Grudaram-se à parede, evitando o grosso da tempestade. Embaixo, nas ruas, alarmes de automóveis eram ativados pelas gotas mutantes. As empresas de segurança nunca reagiam aos alarmes de carros durante uma tempestade. Eram sempre as condições do tempo ou assaltantes muito idiotas.
Cosmo rodeou a última esquina até o telhado, uma vastidão de feltro coberto de piche escorregadio pontuado por uma caixa de poço de escada, parecendo a torre de um submarino. O telhado de metal corrugado da caixa estava se dobrando sob o ataque da chuva. E de repente o aguaceiro parou, como se Deus tivesse desligado a água. Outra característica do tempo maluco da Cidade-Satélite.
— Alguém lá em cima gosta de nós — disse Ziplock.
— É meio tarde para isso — comentou Cosmo, sacudindo a água do cabelo. — Vamos.
Chapinharam no feltro encharcado. A cada passo a cobertura balançava de modo assustador, e em vários pon-
tos as traves de sustentação eram visíveis através de tiras de feltro. O prédio ao lado era um andar mais baixo. Como almofada de pouso, deixava muito a desejar. O terraço estava atulhado dos restos de um acampamento de invasores. Blocos de concreto se espalhavam como dominós largados, e fagulhas saltavam do invólucro rachado de um gerador de eletricidade.
Cosmo apertou os dedos dos pés na borda, como se fossem ganchos, tentando não pensar na queda.
— Você acha que a gente consegue? — perguntou. A resposta de Ziplock foi para recuar da borda. Cosmo não se abalou.
— Acho que a gente consegue. Acho mesmo.
— Acho que não vão conseguir. Nenhum dos dois — disse alguém com uma voz fanhosa. Qualquer um que falasse assim estava tremendamente resfriado ou tinha o nariz partido.
Cosmo e Ziplock se viraram devagar. O bedel Redwood estava parado na porta da escada do telhado, com os lábios esticados num riso enorme. Lágrimas escorriam pelas bochechas.
— Peguei o elevador—explicou. —Vocês dois são mais idiotas do que esgoto reciclado. O que achavam? Que se subissem iam me enganar?
Cosmo não respondeu. Aquilo não era realmente uma pergunta. A água escorria do seu cabelo, descendo entre as omoplatas. Talvez fosse por isso que estava tremendo.
— Nós nos rendemos, bedel. Não é, Ziplock?
Ziplock estava petrificado demais para responder.
— É tarde demais para isso. Agora vocês são fugitivos armados e perigosos. Não posso me arriscar. Terão de ser embrulhados. — Redwood pegou o bastão de seu companheiro no colete, largando-o aos pés deles.
A respiração de Cosmo saía curta e ofegante.
— Por favor, bedel. Nós estamos num telhado. Podem se passar horas antes que eles joguem a gente no tanque.
O tanque era cheio de um composto ácido usado para dissolver o celofane.
— Eu sei — disse Redwood, com a loucura em seus olhos aparecendo através das lágrimas.
Redwood marchou até Ziplock, agarrando a gola do garoto. Em seguida inclinou-o para fora do telhado.
— Esta é sua última lição, Francis. É melhor aprender com ela.
Ziplock começou a dar um risinho, um riso histérico que não tinha nada a ver com felicidade.
Redwood encostou seu bastão na testa dele.
— Aconselho você a fechar a boca, Francis. Você não vai querer que o plástico entre nela.
— Faça o pior que puder, Redwood — gritou Ziplock, os olhos arregalados. — Não posso ficar mais apavorado do que já estou.
Redwood riu, provocando um novo jorro de seus canais lacrimais.
— Ah, não sei...
Então o macacão de Ziplock se rasgou. Lavagens demasiadas tinham-no deixado com a resistência de papelão
molhado. Redwood ficou segurando um punhado de tecido em forma de rosa, e Ziplock foi deixado num ângulo que não podia corrigir.
Sua última palavra para Cosmo foi "Desculpa", e escorregou pela borda.
Não foi uma queda longa. Crianças pequenas já pularam de árvores mais altas e escaparam sem nada mais do que o tornozelo torcido. Mas quando Ziplock tombou, foi de costas, arrastando Cosmo.
Não havia tempo para orações nem gritos. Ávida de Cosmo não passou num clarão diante de seus olhos. Num momento estava implorando com o bedel Redwood, no outro terra e céu giravam e ele estava de cabeça para baixo, em cima do gerador de eletricidade do prédio ao lado.
Mas vivo. Sem dúvida. Com uma dor considerável, mas vivo. A dor era prova disso. A visão de Cosmo se encheu de fios e fagulhas multicoloridas, transformadores antigos e chips enferrujados que giravam em volta de sua cabeça como flocos de neve sangrentos.
Seu braço se sacudiu. Ziplock estava se mexendo.
— Não — sussurrou ele, sem ar para gritar. — Não se mexa.
Ziplock se mexeu de novo. Talvez tivesse escutado, talvez não. Cosmo nunca saberia. O movimento do colega arrastou a algema de metal sobre dois fios expostos, desviando dez mil volts dos cabos de alimentação e mandando para os dois garotos.
A descarga lançou-os para longe do gerador, fazendo-os girar pelas poças do terraço como pedras saltando num lago. Foram parar de encontro a um parapeito. De costas. Olhando para cima.
Redwood espiava do alto. Os padrões dos dois garotos tinham desaparecido do rastreador. O gerador podia ter causado um curto nas micropartículas halógenas eletro-negativas em seus poros. Mas o mais provável era que es-tivessem mortos.
Era óbvio que isso podia acontecer. Os fugitivos tinham sido derrubados do telhado pela tempestade. Era uma mentira simples e digna de crédito, desde que ele não ficasse muito tempo aqui para ser fotografado por algum satélite xereta. O bedel correu até o poço da escada. Melhor deixar que outro achasse os corpos. Quando isso acontecesse, ele estaria no restaurante ajudando os feridos.
Cosmo não tinha energia para falar. Todo o seu corpo parecia desbotado pelo choque elétrico. Só conseguia ouvir as batidas do próprio coração, ficando mais lentas a cada vez que respirava. Batidas falhando. Encerrando.
Os olhos pregavam peças. Alucinações, supôs. Estranhas criaturas inumanas apareceram nas paredes dos prédios em volta, arrastando-se a velocidades espantosas sem ligar para a gravidade. Saltaram pela borda do prédio, descendo rapidamente pela parede em direção ao local do acidente. Duas se separaram do grupo, indo para os garo-
tos feridos. Uma se acomodou sobre o peito de Cosmo. Sem peso. Olhando-o com enormes olhos inexpressivos. A criatura era do tamanho de um bebê, com pele lisa, azul e translúcida, quatro membros esguios e cabeça oval. As feições eram delicadas e impassíveis. Sem pêlos e lisas. Nas veias corriam fagulhas em vez de sangue.
A segunda criatura tremulou no canto de seu olhar, acomodando-se ao lado de Ziplock, aninhando sua cabeça fumarenta. Cosmo sentiu o coração falhar mais uma batida. Talvez duas. O que eram aquelas criaturas? O medo lançou um tremor em seu peito, como se fosse outro choque do gerador.
Sua coluna se arqueou de choque e pânico, fazendo a criatura pular em seu peito, mas ela se manteve ali sem qualquer esforço. Estendeu a mão azul. Quatro dedos, pensou Cosmo, só quatro. A mão se apoiou em seu peito e sugou. De algum modo a mão estava tirando a dor de seu corpo. A agonia diminuiu, desbotou e desapareceu. Quanto mais a criatura sugava, mais clara se tornava sua luz, até que o brilho azul se transformou num ouro de pôr-do-sol. Ele sabia o que era. Vida. Cosmo sentiu seus dias e meses saírem do corpo como água escorrendo por uma represa rachada. Queria lutar, tentou agarrar a criatura, mas seus músculos tinham se transformado em geléia.
Então as coisas aconteceram depressa demais. Três pessoas apareceram no telhado. Dois garotos e uma garota. Não eram nenhum tipo de médicos, isso estava claro pela roupa e pela idade, mas pelo menos eram humanos.
— Dois aqui — disse o primeiro, um garoto alto e mais velho, vestido de preto da cabeça aos pés. — Eu cuido deles. Verifiquem embaixo.
Seus colegas correram até a borda do terraço, espiando a rua.
— Eles estão olhando, mas não estão pousando — disse o segundo recém-chegado. Uma garota latina, de uns 15 anos, com uma tatuagem de gangue em cima de uma sobrancelha. — Tem água demais. O corpo de bombeiros está molhando o caminhão.
O primeiro jovem tirou do coldre de ombro algo que parecia uma lanterna e girou um anel na base. Fagulhas brancas saltaram do outro lado. Ele disparou o instrumento enquanto se movia, dois tiros de pura eletricidade irromperam do cano daquela arma estranha. O efeito foi espetacular. Os raios brancos afundaram na pele das criaturas fantasmagóricas, dividindo-se em um milhão de riscos. Cada um seguia o caminho de uma veia, fundindo-se com as fagulhas que já estavam ali. As criaturas estremeceram e entraram em convulsão, a pele inchando até o ponto de se romper. E mais além. As duas explodiram numa dúzia de perfeitas esferas de luz que se espalharam na brisa.
— Uau — grasnou Cosmo, desperdiçando seu último sopro de ar.
— Um está vivo! — disse o terceiro membro do grupo, que parecia ter uns seis anos. Louro, com cabeça de criança, desproporcionalmente grande. Ajoelhou-se ao lado de Cosmo, verificando seus batimentos cardíacos e apontando uma luz para sua pupila.
— Não tem dilatação, e os batimentos cardíacos estão irregulares. Ele precisa de um desfibrilador, Stefan. Precisamos dar partida rápida no coração dele.
Alucinação. Tinha de ser alucinação. O garoto alto, Stefan, surgiu diante da visão desbotada de Cosmo.
— E o outro, Dito?
Dito pôs a mão no peito de Ziplock. Por um segundo Cosmo pensou ter visto um jorro de vida correndo em volta dos dedos dele. Então...
— O outro? Não. Ele se foi. Nem um tremor. Stefan ajustou sua arma.
— Bem, eu não tenho um desfibrilador. Dito se afastou rapidamente.
— Tem certeza? Este telhado é úmido. Stefan apontou a arma para o peito de Cosmo.
— Não — disse ele, e disparou.
Cosmo sentiu a carga elétrica entrando como uma marreta entre suas costelas. Sem dúvida devia ter quebrado todos os ossos do peito. Sem dúvida era a última gota. Seu corpo não agüentava mais. Sentiu o cabelo se esticando, puxando os poros do couro cabeludo. Seu macacão pegou fogo, caindo da pele em chumaços incendiados. Dito molhou-o com o conteúdo de um balde que estava ali perto, mas Cosmo não sentiu o frio. Outra coisa estava acontecendo.
Ba-duum...
Seu coração. Batendo de novo. E de novo.
Ba-duum. Ba-duum.
— Conseguimos — grasnou Dito. — Esse cara tem mais vontade de viver do que um cachorro faminto. Mas precisa de cuidados médicos sérios. A cabeça dele está quebrada que nem um ovo.
Stefan suspirou, aliviado por aquele jogo ter dado certo. Guardou o bastão elétrico no coldre.
— Tudo bem. Os advogados vão encontrá-lo. Não quero que eles nos encontrem também.
Cosmo inspirou pela primeira vez em mais de um minuto.
— Por favor.
Eles não podiam deixá-lo ali. Não depois de tudo isso.
— Me levem.
Stefan não olhou para trás.
— Desculpe. Nós já temos problema suficiente para cuidar de nós mesmos.
Cosmo sabia que Redwood jamais deixaria que ele chegasse vivo ao Instituto.
— Por favor.
A garota se inclinou acima dele.
— Sabe, Stefan. Talvez ele pudesse fazer o café sintético ou algo assim.
Stefan suspirou, mantendo a porta aberta para sua equipe.
— Mona. A gente fala isso toda noite. Mona suspirou.
— Barra pesada, garoto.
Agora o coração de Cosmo batia com firmeza, lançando o sangue pulsante no cérebro.

CAPÍTULO 2
VISÃO

O CHEIRO acordou Cosmo. O aroma amargo e estimulante de um bule de café sintético ali perto tinha feito suas narinas cocarem. E embora não fosse desagradável, era demais para seus sentidos em carne viva. Tudo fazia a dor de cabeça piorar. O barulho do pano, a luz martelando em suas pálpebras e agora esse cheiro. Mas pior ainda do que a dor era a sede. Tentou abrir a boca, mas seus lábios estavam secos e grudados. Um gemido frustrado escapou pelo nariz. Passos se aproximaram por uma superfície que, pelo som, parecia dura. — Certo, bueno — disse uma voz. Feminina. — Bem-vindo à rua Abracadabra.
Um pano úmido roçou seus lábios, rompendo o lacre. Cosmo abriu a boca, apertando o tecido entre os dentes. A água tinha gosto de vida, escorrendo pela garganta.
— Calma, só um pouquinho.
Cosmo abriu os olhos, um pouco, mantendo-os semi-cerrados por causa da claridade do sol. A garota estava cercada por uma aura de luz branca. Por um segundo ele pensou... Mas não, era a menina do telhado. O telhado?
— Bem-vindo. Se bem que, pelo modo como você vai se sentir por alguns dias, talvez preferisse estar morto.
Então Cosmo se lembrou de tudo. O acidente, a subida, a queda.
— Ziplock? — grasnou, com a voz parecendo estranha e distante.
A garota coçou a testa, esticando a tira de DNA tatuada. Cosmo sabia que a tatuagem era a marca de uma das várias gangues de rua da Cidade-Satélite. A tinta provavelmente tinha um isótopo que poderia ser verificado por um leitor de barras. Isso impedia a infiltração da polícia.
Cosmo sentiu uma única lágrima escorrer pelo rosto. Ziplock havia sido a coisa mais próxima de um amigo que ele já tivera.
A garota viu a lágrima e fez a ligação. Encolheu-se ao perceber a própria insensibilidade.
— Sinto muito. Ziplock era o nome do seu amigo?
— Ele...?
— Sinto muito, garoto. Ele estava morto quando a gente chegou. Nós o deixamos para trás, lembra?
Cosmo levantou o braço. A única coisa em volta de seu pulso era um curativo.
— A eletricidade fundiu parte da algema em sua pele. Dito precisou arrancar. Você teve sorte porque a veia não estourou.
Cosmo não se sentia com muita sorte, e não só por causa do pulso.
— Na verdade, Dito precisou fazer um bocado de trabalho em você. Você nunca teria conseguido chegar a um hospital, por isso precisamos usar o que estava por perto. O soro com analgésico estava meio vencido, mas, bem, não matou você.
Mona consultou um monitor na parede atrás da cama de Cosmo.
— Dito colou o tendão-de-aquiles do seu calcanhar esquerdo e substituiu a rótula direita com osso de crescimento artificial.
Cosmo assentiu, pasmo.
— Também tivemos de entrar no seu peito e colar algumas de suas costelas com adesivo plástico. Eu tirei os grampos hoje de manhã. E, claro, tive de raspar sua cabeça.
— O quê?
Mona deu de ombros.
— Era isso ou deixar seu cérebro cair no chão. Por sorte Dito tinha duas placas robotix guardadas; usou uma para remendar seu crânio fraturado. Essas placas robotix são feitas do mesmo material usado nos tanques de artilharia blindados. Quando sua pele se curar, Dito falou que você vai poder abrir caminho num muro de tijolos usando a cabeça.
Cosmo se lembrou de uma coisa.
— Dito? O garotinho?
Mona olhou por cima do ombro.
— Shhh! Não o chame assim. Ele se irrita com facilidade. — A garota chegou mais perto, baixando a voz. — Dito é um Bebê Bartoli. Aquele garotinho tem 28 anos.
Agora fazia sentido. As experiências genéticas do doutor Ferdinand Bartoli eram um capítulo infame da história moderna. O médico tinha realizado testes de divisão de genes num grupo de bebês, numa tentativa de criar um super-homem. Em vez disso corrompeu o DNA dos bebês, resultando numa série de mutações. Um dos efeitos colaterais era a percepção extra-sensorial, mas o mais comum era um retardo no desenvolvimento físico. O escândalo Bartoli tornou ilegais as experiências genéticas por mais de dez anos.
Cosmo coçou cuidadosamente o crânio raspado. Uma parte da testa parecia dura e com milhares de pontinhos em baixo relevo.
— Essa placa tem poros de liberação de pressão, portanto não cutuque com nada através da pele.
Placas robotix na cabeça e Bebês Bartoli. Era quase demais para aceitar.
— Mais alguma coisa?
— Só isso. Claro que ainda há uns cem grampos em vários cortes e ferimentos, mas eu disfarcei com spray de pele. No total, você está muito pior do que parece.
Mas não pior do que me sinto, pensou Cosmo. Mona tirou o invólucro de um adesivo e o grudou no braço dele.
— O melhor, para você, é descansar e se recuperar. Esse sedativo vai deixar você apagado durante um tempo.
Na próxima vez em que acordar, talvez até consiga andar um pouco.
— Não — protestou Cosmo, mas era tarde demais. O sedativo já estava entrando em sua corrente sangüínea.
— Boa noite — disse Mona gentilmente.
Os membros de Cosmo estavam sem peso. Sua cabeça parecia balançar como a de um cachorrinho de brinquedo.
— Boa noite — ecoou ele.
Ou talvez só tenha pensado, porque o mundo estava pingando pelos seus globos oculares como tinta a óleo úmida escorrendo por uma tela.
Acordou de novo uns cinco segundos depois, ou pelo menos foi o que pareceu. Mas não podia ser, porque as tiras de luz halógena estavam acesas, e estrelas desbotadas espiavam através da névoa atrás de cortinas fora de moda. Não havia muita gente que ainda usasse cortinas; em geral o vidro reativo à luz já fazia parte das construções.
Cosmo examinou as lembranças como se fossem arquivos numa tela de computador. Quem era ele? Colin Cosmo, 14 anos. Um sem-patrocínio fugitivo. Onde estava? Talvez num armazém, resgatado por um bando de caçadores de criaturas. Um adolescente alto, uma garota latina e um Bebê Bartoli. Poderia ser verdade? Parecia impossível. Será que ele poderia fazer parte daquele bando estranho?
Seu cérebro gaguejou e parou. O que ele queria? Essa era uma pergunta que ninguém lhe tinha feito na vida. Ele próprio raramente fazia. A única coisa que queria era escapar do Clarissa, e agora que estava fora não tinha idéia
do que fazer. Mas sabia de uma coisa com certeza absoluta: nunca mais voltaria ao Clarrissa Frayne. Nunca.
Verificou os ferimentos. A dor continuava lá, abafada mas presente. Como um monstro debaixo da ponte, pronto para atacar se ele se mexesse depressa demais. O curativo do pulso tinha sumido, e todo o antebraço estava coberto por spray de pele.
Depois de respiração básica e piscadas durante vários minutos, Cosmo decidiu testar os membros. Sentou-se devagar, tonto por causa do sedativo grudado no braço. Tirou-o, verificando a esponja. Branca. Não tinha mais o produto. Isso explicava por que estava acordado.
O joelho novo estava coberto por um pleximolde. O molde transparente estava cheio de um antiinflamatório que aceleraria o processo de cura. Um LED verde acima do painel de raio X do molde lhe disse que a perna suportaria seu peso.
Testou o chão como um nadador experimentando as águas do ártico. O joelho pinicou, mas nada além disso. Ele devia ter ficado apagado por pelo menos 48 horas, para o molde ter feito o trabalho. Já a testa era outra coisa. Cada movimento, por mais leve que fosse, cravava uma agulha de dor no crânio. Quase tão ruim quanto a dor era a coceira da pele nova crescendo por cima da placa robotix.
Trincou os dentes e começou a andar, tendo como alvo inicial a jarra de água filtrada na mesa a cinco metros de distância. Não era exatamente uma maratona, mas não foi nada mal, considerando o que havia passado.
Cosmo quase chegou à mesa. Teria conseguido, não fosse por uma coisa. Um espelho de aço aparafusado à parede. Viu o próprio reflexo e, por um momento, havia outra pessoa no cômodo.
Seus lábios se separaram para formar uma única sílaba:
— Ah.
A figura no vidro fez com que ele se lembrasse de uma criança numa guerra, num daqueles vídeos de história. Espancada e magra, pálida e desprezível. Parecia uma miniatura do monstro de Frankenstein. Remendado com várias partes de corpos. Nenhuma delas do tamanho certo, algumas nem mesmo destinadas a seres humanos. A cabeça estava especialmente grotesca. Completamente raspada e com uma dúzia de grampos atravessando o couro cabeludo. A placa robotix na testa se projetava ligeiramente por baixo da pele inchada, com os poros de pressão claramente delineados contra o tecido cor-de-rosa. As únicas coisas que ele reconhecia eram os olhos castanhos redondos e muito separados.
Completou a jornada trêmulo, pegando a jarra com as mãos e bebendo pelo gargalo. A maior parte da água escorreu pela frente do corpo, mas um pouco entrou. Tudo estava sendo consertado, disse a si mesmo. Era tudo temporário.
Mas não para Ziplock. Era tarde demais para consertá-lo.
Ziplock. Seu amigo deveria estar ali com ele. Mas onde Cosmo se encontrava, exatamente? Olhou em volta pela primeira vez. Estava num grande armazém aberto, construído com polímero de ferro fundido. As janelas eram
altas e finas, estilo igreja, com cortinas penduradas de cada lado. Bancadas e equipamentos eletrônicos atulhavam o chão de concreto e cabos elétricos fluíam de cada tomada de parede como cobras multicoloridas. Vários cubículos eram formados por divisórias móveis, e uma dezena de computadores zumbiam dentro das salas improvisadas. Mas não havia mais ninguém. Afora ele, o armazém estava completamente deserto.
Moveu-se lentamente, acostumando-se ao joelho novo. Num canto ficava uma área de cozinha. Nada aconchegante. Só um fogão de duas bocas, móveis de jardim mofados e um bule de café sintético. Havia um punhado de lírios sobre a mesa, enrolados em celofane e com uma bolha de água na base. Flores de verdade. Caras. Com um cartão enfiado entre dois lírios. Mamãe, dizia ele, sinto sua falta mais do que nunca.
Um par de algemas de aço estava sobre a bancada ao lado do simulador. Cosmo sentiu um nó na garganta. A última prova que restava da existência de Francis Murphy, e eles nem sabiam seu nome verdadeiro.
— Vamos, Francis — disse ele, pegando as algemas. — Está na hora de você ver a cidade.
Uma das janelas do armazém dava para o rio, na direção da famosa silhueta da Cidade-Satélite dominada pela cilíndrica Torre Myishi. O prédio da Cuzzy Cola borbulha-va do outro lado da baía, com as paredes animadas por bolhas geradas por computador, subindo sempre. E uma luz vermelha piscava na mão de pedra da Estátua do Empreendedor, um colosso de 240 metros de altura apontando para o Satélite lá em cima.
Cosmo passou pela janela chegando a uma pequena varanda, e tentou se orientar. Avaliando pela posição do rio da Jornada, estava em algum lugar da Zona Oeste. O uivo cortante de sirenes e o vup vup dos pássaros da polícia confirmavam essa teoria.
Balançou as algemas por sobre a borda. Deveria haver algo a dizer. Algo especial para marcar a morte de Ziplock. Pensou durante vários instantes, mas não pôde encontrar nenhuma palavra para descrever como se sentia desolado. Talvez a questão fosse esta. Como qualquer palavra poderia capturar sentimentos assim? Ele sabia como se sentia, c isso é que era importante.
Jogou as algemas no ar da Cidade-Satélite e elas piscaram através do néon como estrelas cadentes.
Os anfitriões de Cosmo pareciam passar de uma crise a outra. O garoto mal havia trancado a janela quando eles passaram rapidamente pelas grades do elevador, empurrando um carrinho de compras. Mona estava dobrada dentro do carrinho. Sua pele tinha um tom esverdeado e ela tremia violentamente. Cosmo mancou até eles.
— O que aconteceu?
Stefan não respondeu, liberando uma bancada de fórmica com o braço.
— Feche as cortinas — gritou.
Cosmo apontou para o painel de controle de reação à luz ao lado de uma janela.
— Mas o vidro. Por que vocês não ajus...
— Porque os pássaros da polícia vêem através do vi-dro reativo à luz. Por isso eles são itens de série nos prédios. Sacou?
Cosmo puxou as cortinas de aniagem sobre as janelas. Segundos depois de ter terminado, um pássaro do governo passou pelo prédio. Cosmo ouviu um estalo eletrônico quando as janelas foram despolarizadas por controle remoto. Com as cortinas abertas, o lugar estaria exposto. O que não seria problema, desde que ninguém estivesse fugindo do local de um crime. E eles obviamente estavam.
Stefan estava curvado sobre Mona. O corpo magro da garota se retorcia de dor, com cada músculo e cada tendão retesado. Longos jorros de palavras em espanhol saíam dos lábios exangues, e o cabelo preto, encharcado de suor, batia na mesa como fiapos de algas.
Dito pulou na mesa, tirando uma chave de fenda do cinto. Enfiou a ferramenta na boca de Mona para impedir que ela engolisse a língua.
— Não sei o que é isso — admitiu ele. — Para mim é novo. Nunca vi dessa cepa antes. — Ele tirou o adesivo de uma tira termométrica e grudou-a à testa de Mona.
— Ela está pegando fogo — disse, lendo a temperatura na tira. — Está ficando crítica.
— Pegue um balde de gelo — disse Stefan a Cosmo. — O que você conseguir carregar.
Cosmo cambaleou rapidamente até a geladeira, esvaziando um balde de areia no chão. Encostou a borda no bocal de gelo da geladeira, olhando enquanto os cubos caíam com uma lentidão de enfurecer.
— Anda, anda.
Demorou quase um minuto para o balde ficar com gelo até a metade. Teria de servir. Ignorando a dor no joelho, voltou rapidamente à mesa.
Stefan pegou o balde e começou a enfiar o gelo dentro da roupa de Mona. O olhar de Dito permaneceu fixo na tira termométrica.
— Não está dando certo. Quarenta e quatro, e subindo.
— Não — gritou Stefan. Suas feições estavam tensas de preocupação. — Precisamos levá-la a um hospital.
— Que hospital? — fungou Dito. — Eu já trabalhei em todos os hospitais da cidade, lembre-se. Na Zona Oeste só há o Geral, e acredite, se eu não souber como consertar uma coisa, eles também não vão saber.
Cosmo espiou esticando a cabeça pelo lado de Stefan. As convulsões de Mona ficaram mais violentas, com fiapos verdes se espalhando pelos globos oculares.
— Será que a gente devia dar um antibiótico? — perguntou Stefan. — Temos de tentar alguma coisa.
— Não! — disse Cosmo rapidamente. A palavra saiu antes que ele pudesse impedir.
Dito pulou da mesa.
— Não? O que você sabe, garoto?
As dores de Cosmo escolheram aquele momento para voltar.
— Não sei. Alguma coisa, talvez. Eu já vi isso no Instituto. O que aconteceu com ela?
— Não temos tempo para isso — disse Stefan. — Temos de levá-la ao Geral. Correr o risco.
Dito enfrentou o rapaz. Era um montinho de cupim encarando uma montanha.
— Correr o risco? Quando tivermos passado pela burocracia ela já vai estar morta. Vamos ouvir o que o garoto tem a dizer. Agora, garoto, o que você precisa saber?
Cosmo evitou o olhar de Stefan.
— Só o que aconteceu. Como foi que ela ficou assim? Stefan franziu a testa.
— Houve uma explosão na fábrica de produtos químicos Komposite. Nós estávamos fazendo uma varredura em busca de Parasitas. Alguns seguranças nos viram, e um atirou um dardo em Mona. Desde então ela está ficando pior.
Cosmo revirou o cérebro. Segundo a lei, os seguranças particulares não tinham licença para portar armas. Eles resolviam esse problema se armando com bastões não-le-tais que disparavam balas de celofane ou vários dardos químicos. Os dardos eram inteligentes, porque tecnicamente eram não-letais, desde que você ficasse perto para receber o antídoto.
— De que cor era o invólucro do dardo? Dito franziu a testa.
— Invólucro? Não tenho certeza. Verde, talvez.
— Com uma tira branca na lateral?
— Talvez. Não posso garantir.
— Sim — disse Stefan. — Uma tira branca. Eu me lembro de ter arrancado da perna de Vasquez. Verde e branco.
Cosmo fechou os olhos, lembrando-se do Instituto.
— Esses dardos Komposite foram testados no Clarissa Frayne. Eu lembro. O verde e branco era o pior. Nós chamávamos de balas Calafrio. Os caras ficavam enjoados durante horas, mesmo depois de receber o antídoto. Os encanamentos do Instituto ficaram entupidos. Mas um sujeito descobriu uma cura. Ele comeu um sanduíche mofado e se sentiu melhor. Não era o pão, era...
— O mofo — completou Dito. — Claro. Este é um vírus de flora. A celulose pode trancá-lo. Precisamos de algumas plantas.
Cosmo mancou até as flores enroladas em celofane.
— Aqui. Estão aqui.
Ele pegou uma flor do buquê e cortou a haste e as folhas do lírio em pedacinhos pequenos, enfiando alguns na boca. O resto entregou a Dito, que fez o mesmo. Stefan pegou outra flor e enfiou a haste dobrada na boca.
Mascaram furiosamente, ignorando o gosto ácido que escorria pela garganta.
As hastes eram duras, dividindo-se em fiapos que se recusavam a ser partidos. Mas Cosmo e os outros insistiram, mascando os fiapos entre os molares. Um suco verde escorria pelos queixos. Finalmente eles cuspiram uma pasta verde na palma das mãos.
— No ferimento — instruiu Cosmo.
O Bebê Bartoli rasgou a calça de Mona, cuspindo a gosma que estava em sua boca diretamente na marca de furo na coxa da garota. Stefan acrescentou seu bocado de pasta ao ferimento, pressionando-a contra o buraco inflamado.
Cosmo tirou a chave de fenda da boca de Mona e forçou a pasta entre os dentes que tremiam. Mona engasgou, estremecendo, com o corpo naturalmente rejeitando a planta, mas Cosmo coçou sua traquéia até que ela engoliu. Gradualmente mais e mais gosma verde escorreu por dentro da garganta da garota. Quando Cosmo terminou, seus dedos estavam mordidos e sangrando.
Durante o que pareceu uma eternidade, não houve mudança no estado de Mona. Então...
— Quarenta e três — exclamou Dito. — Ela passou do pico.
Os olhos de Mona continuaram se revirando, mas os fiapos verdes começaram a pulsar com suavidade, e então desapareceram.
Dito verificou a tira termométrica.
— Quarenta e dois. Trinta e oito. Trinta e sete.
O corpo magro da garota se afrouxou na mesa. Gradualmente a tensão liberou seus músculos.
— Trinta e seis e meio. Normal. Ela vai ficar bem. Mona se virou de lado, vomitando a gosma verde no ladrilho do chão.
Dito deu um riso angélico de bebê.
— É isso que acontece quando a gente come comida de vaca.
Limparam Mona e a colocaram numa cama.
— Agora ela precisa é de sono — declarou Dito. — É melhor do que qualquer remédio.
Cosmo também apreciaria algumas horas dormindo, mas havia algumas coisas que precisava saber.
— Vocês são o quê? — perguntou. — O que está acontecendo aqui?
Stefan estava consertando com fita adesiva o que restava de seu buquê.
— Nós moramos aqui. Portanto acho que a pergunta é: quem é você?
Bastante justo.
— Colin Cosmo. Quando vocês me acharam eu estava fugindo do Instituto Clarissa Frayne para Meninos com I )eficiência de Pais.
Dito riu.
— Colin Cosmo. Você foi encontrado na Colina do Cosmonauta, certo?
— É. Isso mesmo.
— Os orfanatos vêm usando esse truque velho há séculos. Uma vez conheci um sujeito de São Francisco chamado Holden Gate. Adivinhe onde ele foi achado?
— O bedel Redwood virá me procurar, e ao Ziplock. Dito balançou a cabeça.
— Não. Para as autoridades você está tão morto quanto seu amigo, Cosmo. Eu trabalhei uns dois meses numa enfermaria de orfanato, antes de descobrir o que acontece lá. Todos os orfanatos, e outros institutos de comércio humano, usam microrrastreadores nos poros dos residentes para ficar de olho neles. Aquele gerador no terraço deve ter queimado qualquer rastreador da sua pele. Você está totalmente limpo. É uma não-pessoa.
Cosmo sentiu a preocupação sair de seus ombros como se fosse um peso físico.
— Agora a pergunta é minha: Quem são vocês?
— Quem somos nós? — Dito apontou dramaticamente para Stefan. — Este é Stefan Bashkir. Nativo de segunda geração da Cidade-Satélite, de ascendência russa. Eu sou Lucien Bonn, também conhecido como Dito, por causa da minha mania irritante de repetir o que as pessoas dizem. E acho que você já conhece Mona Vasquez.
— Então nós sabemos os nomes uns dos outros. Mas o que vocês fazem?
Dito abriu os braços.
— Nós, Colin Cosmo, somos os únicos Supernaturalistas do mundo.
Cosmo deu um riso débil.
— O quê? Vocês não gostam de usar roupa? Stefan não pôde deixar de rir.
— Esses são os naturistas, Cosmo. E ninguém mais faz isso, não com a camada de ozônio mais fina do que papel de seda. Nós nos chamamos de supernaturalistas porque caçamos criaturas sobrenaturais.
— Eu, não — interrompeu Dito. — Eu sou médico. Tento curar pessoas, só isso. Deixo a caçada para o Stefan. É ele que tem treinamento na academia de polícia.
Cosmo olhou para a garota adormecida.
— E Mona? Ela não é policial. Não com aquela tatuagem.
— Não — concordou Stefan. — Mona cuida do transporte. Ela tem algum... é... treinamento nessa área.
Cosmo assentiu. Até agora tudo estava bastante claro, mas ele achava que a próxima pergunta abriria um mundo totalmente novo.
- Essas criaturas sobrenaturais. O que elas são? Acho que vocês estão falando daquelas azuis, no terraço.
Stefan franziu a testa, cortando uma fenda entre os olhos.
- Exato. Os Parasitas vão agindo como nossos predadores desde Deus sabe quando. Sugando a vida dos nos-«os corpos. Você sabe, você viu. Nem todo mundo vê.
— Vocês disseram que eu tenho a Visão.
Stefan ocupou um banco na frente de Cosmo. Era uma
figura carismática. Com uns 18 anos e feições assombradas. Seu cabelo totalmente preto se projetava espetado e
desgrenhado, e uma cicatriz cor-de-rosa se estendia do canto da boca, dando a impressão de um riso maroto. Uma Impressão que não combinava com a dor nos olhos. Olhos que eram provavelmente azuis, mas para Cosmo pareciam mais negros do que o espaço sideral. Obviamente Stefan era o líder do grupinho. Isso estava em sua natureza. O modo como se sentava relaxado, o modo como Dito se virava automaticamente para ele, mesmo que o Bebê Bartoli fosse vários anos mais velho.
- Nós não somos muitos — disse Stefan, mirando direto os olhos de Cosmo. Era difícil não olhar para outro lado. — Não o suficiente para que acreditem em nós. E o fato de que a maioria dos que têm a Visão é jovem não ajuda muito; talvez nossa mente seja mais aberta. Dito é o único adulto com a Visão que eu encontrei, se é que a gente pode dizer que Dito é adulto.
- Ah? Stefan fez uma piada? — zombou Dito dando um soco nas costelas dele. — Não foi engraçada, mas nada mal para uma primeira tentativa.
Stefan segurou as costelas fingindo agonia.
— Você nunca tinha visto as criaturas antes daquela noite no terraço, tinha, Cosmo?
Cosmo balançou a cabeça. Ele se lembraria.
— A visão costuma vir depois de uma experiência de quase-morte, e acho que o que aconteceu com você pode ser considerado uma experiência de quase-morte.
— Praticamente o mais próxima possível — acrescentou Dito, batendo na placa da cabeça de Cosmo.
— Em geral a Visão some de novo, igualmente rápido — continuou Stefan. — Mas algumas vezes, quando o novo espectro é aberto, ele continua assim. Às vezes por uma semana, às vezes para sempre. Você pode perder a Visão amanhã, ou em dez anos, ou nunca. Você é uma raridade, Cosmo. Sua opção é ser uma raridade conosco, onde fará algum bem, ou voltar ao Clarissa Frayne.
Que opção? Cosmo se arriscaria com mil parasitas para não voltar ao orfanato. Uma pessoa só pode passar por um certo número de experiências médicas.
— Gostaria de ficar.
— Bom — disse Stefan. — Você vai precisar de coragem e determinação para fazer parte desta pequena família.
Família, pensou Cosmo, eu faço parte de uma família. Stefan usou a palavra sem dar importância, mas para Cosmo foi uma coisa enorme.
— Nós somos uma família? Stefan levantou Dito do chão.
— Sim, este homenzinho mal-humorado é o vovô. E Mona é nossa irmãzinha. É um grupo esquisito, mas é o que temos. Nós somos tudo que temos. Às vezes parece que nunca poderemos vencer, mas salvamos os que podemos. Você, por exemplo. Se não fosse por nós, aquele Parasita o teria sugado até o fim, e ninguém saberia.
— Eles podem sugar a gente até o fim?
— Claro, é para isso que eles vivem. Cosmo se remexeu no banco.
— Então eles poderiam vir aqui a qualquer minuto. O bom humor de Stefan desapareceu.
— Não, este é o único lugar onde você está em segurança. Nós isolamos as paredes com hidrogel. Os Parasitas não gostam de água. Tem gel até entre os vidros.
— Mas e quando a gente sai? Stefan deu de ombros.
— Aí nós viramos caça.
— As coisas mudaram no ano passado — explicou Dito, abrindo uma garrafa de cerveja. Tomou um gole comprido e arrotou. Um menininho louro tomando cerveja. Era uma visão estranha.
— Dito está certo — disse Stefan. — Antes os Parasitas só apareciam à noite. Em locais de acidentes ou hospitais. Achavam alguém às portas da morte e sugavam o resto de vida. Os médicos nunca suspeitavam de nada. Foi assim que permaneceram escondidos por tanto tempo. Aquele monstro que estava no seu peito na outra noite provavelmente sugou cinco anos da sua vida antes que a gente acabasse com ele.
Cosmo esfregou o peito instintivamente.
— E agora?
— Agora ninguém está seguro — disse Stefan, amargo. — Por algum motivo parece haver um número maior deles. As regras mudaram. Eles podem atacar a qualquer hora, em qualquer lugar, qualquer um. Os Parasitas aparecem quando sentem até mesmo o menor ferimento.
Cosmo engoliu em seco.
— Então, como vocês lutam contra uma coisa assim? Como matam fantasmas?
Stefan tirou um bastão de dentro da jaqueta, girando-o como se fosse um baliza.
— Com um desses. Se eles querem energia, é o que eu dou.
Dito pegou o bastão.
— Metido a besta — disse ele. — Há várias opções de projéteis nessa coisa, dependendo do cartucho que você usa. Um certo tipo de bala coloca os Parasitas em sobrecarga: você viu o resultado. Chama-se Chocante, uma bala desenvolvida inicialmente por uma fábrica de armas como alternativa ao taser. Mesmo se a gente errar, a carga não é suficiente para ferir nem mesmo a menor pessoa. Diferente do disparo que Stefan fez em você, que poderia transformar um javali em churrasco.
Cosmo se lembrou da criatura sobre seu peito, explodindo numa nuvem de bolhas azuis.
— Você pode escolher balas não letais comuns: balas-de-goma, de celofane, e assim por diante — continuou Dito. — A última coisa que a gente quer é machucar alguém. Mas algumas vezes precisamos ganhar um pouco de tempo, e as não-letais podem realmente ajudar.
Cosmo piscou.
— Entendi uns sessenta por cento disso aí. Stefan se levantou, abotoando o casaco.
— Isso é mais do que a maioria das pessoas entende. Dito, pode mostrar as coisas ao Cosmo? Eu tenho de dar uma saída. — Ele enfiou o buquê dentro do sobretudo, indo para o elevador.
Cosmo gritou para ele:
— Uma pergunta. Stefan não se virou.
— Que seja rápida, Cosmo.
— Eu sei o que vocês estão fazendo, mas por que estão fazendo?
— Porque somos os únicos que podem. Stefan puxou o cordão da grade do elevador.
Estou dentro de um desenho, pensou Cosmo. Tudo isso é uma história em quadrinhos. Alguém está virando as páginas agora mesmo e dizendo: "Isso é esquisito demais; quem iria acreditar numa coisa dessas?"
— Stefan era cadete da polícia há três anos — contou Dito, jogando a garrafa de cerveja no reciclador. —A mãe dele também era da polícia. Era uma das principais cirurgias de trauma da cidade. Depois de ela ter morrido, ele passou um ano no lar das viúvas e dos órfãos. Quando saiu, gastou cada dinar que tinha na segurança deste prédio.
Cosmo olhou em volta. O prédio não era luxuoso, nem mesmo pelos padrões de um órfão. As camas eram catres do exército, a tinta estava com bolhas de umidade e as janelas não viam um pano há anos.
— Não é exatamente a Batcaverna.
— O quê?
— Esquece.
O garoto louro apontou para uma fileira de computadores precários sobre uma bancada. As telas de cristal líquido de último tipo ficavam lado a lado de monitores do século passado.
— A maioria dessas coisas é do mercado negro. Nós acompanhamos sites do Satélite, esperando desastres.
— O quê? Vocês invadem o site da polícia do estado? Dito deu um risinho.
— O site da polícia? Não, obrigado. Temos pressa demais para ficar esperando a polícia. A gente invade as firmas de advocacia.
Fazia sentido. Com alto custo dos processos judiciais, a maioria das corporações contratava equipes particulares de combate formadas por advogados para chegar aos locais de acidentes antes da polícia.
Dito voltou a atenção de novo para o salão.
— Todos nós temos uma cama. Material básico, mas é um lugar para descansar a cabeça.
— E por acaso tinham uma de reserva para mim? Dito suspirou.
— Uma de reserva para você? Bem, não. Aquela era do Estilhaço. Ele era do grupo. Não conseguiu suportar mais as visões. Saiu da cidade há seis meses. Agora vive do lado de fora. Usa óculos de sol com lentes azuis, nunca tira.
— Você tem a Visão, Dito?
— Se tenho a Visão? Sim, todos nós temos. Mas comigo é um efeito colateral do Bartoli. Mona falou de mim, não falou?
— Falou. E como você achou Stefan? Dito franziu a testa.
— Stefan teve um... acidente há alguns anos. Eu estava na ambulância que o pegou. Era o paramédico mais baixo do mundo. Aquele hospital fez o maior alarde quando contratou um Bebê Bartoli. Talvez você tenha lido sobre mim na Sat-net.
Cosmo balançou a cabeça.
— Bem, de qualquer modo, quando nós pegamos o Stefan ele estava balbuciando sobre criaturas azuis sugando a vida do seu peito. Não pude acreditar. Até aquele momento achava que eu era maluco. Por isso visitei-o no hospital e nós partimos daí. Quando Stefan decidiu montar nosso grupinho, eu larguei o emprego sem pensar duas vezes. Desde então estamos salvando o mundo juntos.
— Mais uma pergunta.
Dito balançou sua cabeça de menininho.
— Mais uma pergunta. Com vocês, crianças, tudo é pergunta.
— O que Stefan está fazendo com flores de verdade?
— As flores? Stefan vai lhe contar quando estiver pronto. O coração de Cosmo se encolheu. Ele quase fazia parte de um grupo. Quase, não totalmente.
O LED em seu pleximolde mudou para vermelho e um alerta começou a soltar bips fracos.
— Chega de ficar andando por hoje. O molde precisa de mais oito horas para completar o serviço. Está sentindo dor?
Cosmo assentiu.
Dito pegou um analgésico no bolso. O adesivo amassado parecia ter uns dez anos a mais do que o prazo de validade.
— Aqui. Ainda tem um pouco de remédio nisso.
Ele tirou a película de proteção e grudou o adesivo na testa de Cosmo.
— Como estão os batimentos cardíacos? Seu coração levou umas boas marteladas. — Dito pôs a mão no coração de Cosmo e de repente a dor desapareceu.
— Sumiu. A dor. Como você fez isso?
— Não fui eu. Foi o adesivo. Um dos meus inventos. Nesse serviço eu tenho bastante oportunidade de colocar o treinamento médico em uso.
— E Stefan estudou na academia de polícia?
— É, ele se especializou em demolição.
— Amanhã eu vou trabalhar com a Visão? — perguntou Cosmo.
Dito assentiu para Mona Vasquez, que estava roncando baixinho, num sono profundo mas calmo.
— Ninguém pode ensinar você a usar a Visão. Você é o que é. Mas aquela menininha de jeito inocente ali vai ensinar o que fazer quando estiver na hora de colocar seu talento natural para funcionar.
O armazém da rua Abracadabra tinha o que parecia uma porta lateral pouco usada. Na verdade a porta era bem lubrificada e com alarme, mas para o observador casual a ferrugem e as pilhas de lixo faziam-na parecer fora de uso. As pessoas de fora não sabiam que a ferrugem era cuidadosamente cultivada e que as pilhas de lixo estavam sobre pranchas com rodas. Apertando-se um simples botão, todo
0 monte deslizava para o lado, revelando uma entrada de (amanho suficiente para um caminhão grande. Não era tecnologia muito avançada, mas bastava, desde que ninguém tentasse reciclar o lixo.
Stefan abriu uma fresta na porta, saindo para o alvorecer da Cidade-Satélite. Antigamente o nascer do sol costumava ser laranja. Mas agora era um negócio multicolorido, à medida que a luz do sol iluminava os produtos químicos que estivessem na névoa de poluição naquele dia específico.
Hoje a névoa era de um roxo profundo, de modo que isso provavelmente indicava pesticidas. O ar estaria fedendo ao meio-dia. Mesmo assim era melhor do que vermelho. Ninguém se aventurava do lado de fora sem máscara quando a névoa estava vermelha.
Os vendedores de rua estavam ocupados mesmo a essa hora, acendendo os braseiros e as churrasqueiras, prontos para o café da manhã. Mas era cedo demais para as gangues. Os bandidos costumavam seguir o horário dos vampiros. As ruas ficariam relativamente seguras até o fim da tarde.
Stefan comprou uma pazza na Cozinha do Karlo, e foi para o crematório. As pazzas eram uma nova moda em lanches rápidos. Pizza calzoni recheada com macarrão de conchinha e vários molhos. Comida perfeita para alguém cm movimento.
Stefan caminhou pela avenida Jornada, mantendo os olhos na pazza. Na Zona Oeste, as pessoas roubavam comida da boca dos outros. Era uma coisa lamentável. Se esta era a Cidade do Futuro, Stefan aceitaria o passado a qualquer momento.
Estava de mau humor, e não era só por causa da poluição. Apesar de todos os seus esforços, o grupo tinha apanhado outro desgarrado. Tudo bem, o garoto tinha a Visão. Mas não estava com mais de 14 anos, e não possuía absolutamente nenhuma experiência de sobreviver na cidade. Mona também era nova, mas conhecia as manhas das ruas e tinha coragem. Cosmo parecia a ponto de ser comido pelas ruas em minutos. Stefan já se sentia responsável pelo garoto, mesmo sem querer. Mal tinha idade para ser responsável por si próprio. Uma coisa era arriscar a vida perseguindo os Parasitas, mas colocar outra pessoa em perigo era totalmente diferente. Em especial alguém tão verde quanto Colin Cosmo.
Cinco quarteirões adiante chegou ao Crematório Consolo. O prédio era inevitavelmente cinza ferro fundido, mas o gerente havia conseguido animar o local com anjos feitos em computador subindo e descendo pela fachada.
Stefan foi pelos fundos até o Salão do Descanso Eterno. Pegou seu cartão de residente e passou pela roleta. O cartão ativou o que parecia ser uma parede de espelhos, mas na verdade era um carrossel de dez andares com pequenas caixas de vidro. A tira magnética no cartão chamou uma caixa do último nível. Ele acompanhou o progresso da caixa pelas fileiras, brilhando e descendo até uma cabine vaga no nível térreo.
Selecionou a opção sem música na tela sensível ao toque e entrou na cabine. A caixa deslizou para fora de seu compartimento e foi até uma almofada de veludo.
— Eu não gosto disso tudo, mamãe — murmurou Stefan, sem graça. — Veludos e fadas. Mas, acredite ou não, há lugares muito piores do que este.
A caixa era um cubo com 15 centímetros de lado, translúcida, com uma placa de latão na frente. A inscrição era curta e simples. Sete palavras. Mamãe querida. Muito amada. Partiu cedo demais.
Stefan tirou o buquê de flores de dentro do sobretudo e colocou na almofada diante das cinzas da mãe.
— Lírios, mamãe. Sua flor predileta.
O cabelo espetado de Stefan tinha caído sobre os olhos. Isso o fez parecer anos mais novo.
— Nós pegamos outro com a Visão, mamãe. É um bom garoto. Inteligente. Salvou Mona esta noite. Tem raciocínio rápido. Definitivamente apto a ser Supernaturalista. Mas é só um garoto, um sem-patrocínio saído direto do Clarissa Frayne.
Stefan pousou a cabeça nas mãos.
— Mas, mesmo com o Cosmo, há muitos daqueles demônios azuis. Cada dia mais e mais. Agora eles saem à luz do dia, você sabe. Mesmo que a pessoa tenha um corte ínfimo no braço, é melhor ter cuidado. Ninguém está em segurança. Toda noite a gente mata uns cem, e no dia seguinte há cem novos Parasitas para ocupar o lugar deles.
A testa jovem de Stefan se franziu com rugas de preocupação dignas de um homem com o triplo de sua idade.
— Eu sou maluco, mamãe? Nós todos somos malucos? Os Parasitas existem mesmo? E, se existem, como alguns garotos podem lutar contra eles? Os outros acham que eu sou o líder. Eu vejo como eles se viram para mim, como se eu tivesse todas as respostas. Até o garoto novo, Cosmo, já está olhando para mim, e só está acordado há algumas horas. Bem, eu não tenho nenhuma resposta. Há mais Parasitas a cada dia, e nós só podemos salvar algumas pessoas de cada vez.
Stefan pousou a cabeça nos braços. Sabia o que sua mãe teria dito. Todo mundo que você salva é filho de alguém, ou mãe de alguém. Quando você os salva, você me salva.
Se ao menos, pensou Stefan. Se ao menos eu pudesse ter salvado você! Tudo poderia ter sido diferente.

CAPÍTULO 03
BOLHAS

MONA VASQUEZ se sentia como se suas entranhas tentassem abrir caminho a socos para fora da barriga. Estava deitada na cama, o suor bombeando de cada poro do corpo. Conseguia se lembrar de ludo que tinha acontecido na noite anterior, mas as imagens eram turvas, como se vistas por baixo d'água. A polícia particular a acertara com um dardo. Stefan e Dito conseguiram trazê-la no carrinho até aqui. E depois, o quê?
Depois o garoto novo a havia salvado. E em seguida ela vomitou durante seis horas contínuas. E se a ginástica intestinal em sua barriga indicasse alguma coisa, ela ainda não estava acabada. Mona permanecia imóvel como uma estátua. Talvez, se não se mexesse, os tremores fossem embora.
Esse tipo de coisa vinha acontecendo cada vez mais ultimamente. Não se podia esperar que alguém saísse disparando bastões pela Cidade-Satélite sem repercussão. Nos últimos 16 meses ela havia acumulado 77 pontos em ferimentos, três ossos quebrados, um disco da coluna deslocado e agora um ferimento de dardo na perna. Tinha sorte em estar viva, mas não se sentia particularmente felizarda nesse momento. A verdade nua e crua era que as chances eram contrárias, e cresciam cada vez mais.
Mas que opção havia? A batalha de Stefan era a sua batalha. Alguém tinha de impedir os Parasitas. Seus próprios pais tinham morrido jovens. Talvez os Parasitas tivessem roubado os últimos anos deles. E as criaturas estavam ficando mais ousadas a cada dia. Eram atraídas por qualquer doença ou ferimento, por menor que fosse, e atacavam as vítimas em plena luz do dia.
Mona não compartilhava o ódio intenso de Stefan contra os Parasitas. Depois de uma noite estourando as criaturas com os Supernaturalistas, ela não tinha problema para dormir oito horas seguidas. Mas Stefan podia ficar quebrando a cabeça diante da bancada, consertando armas ou equipamento de rapei. Freqüentemente a obsessão dele o mantinha acordado 48 horas seguidas.
A garota se sentou devagar, esperando que o estômago desse uma cambalhota. Não deu. Talvez finalmente ela estivesse se curando. Examinou o rosto no espelho ao lado da cama. Estava verde, sem dúvida. Não de um verde profundo, mas havia um tom definitivo. Havia até mesmo uns fiapos verdes em seus globos oculares. Que tipo de veneno estava naquele dardo? Se não fosse Cosmo, agora ela não passaria de um arbusto com algumas folhas murchas.
Suspirou, esticando a pele da bochecha entre o indicador e o polegar. Houve um tempo em que se preocupava em ser bonita. Sua mãe dizia que ela era bonita como uma flor exótica. Mona sempre se lembrava da expressão. Flor exótica. Mesmo que algumas vezes não conseguisse mais se lembrar da mãe e do pai. Eles tinham morrido num tumulto para conseguir comida no Bushka.
Foi até a área comum, coçando a cabeça. Stefan, claro, já estava numa bancada, derramando líquido de limpeza nas lentes de seus óculos de visão noturna. Mona ficou um momento olhando-o. Stefan seria um enorme sucesso com as garotas, se parasse de trabalhar por tempo suficiente para sair com alguma. Tinha todos os ingredientes certos. Alto, moreno, bonito apesar do jeito de quem já apanhara demais. Mas Mona sabia que Stefan não tinha tempo nem para si mesmo, quanto mais para outra pessoa. Só tinha tempo para os Parasitas.
Stefan notou-a parada ali, e um sorriso genuíno iluminou seu rosto.
— Ei, Vasquez, você está de pé outra vez.
Mona assentiu; o movimento fez seu estômago dar um salto mortal.
— Mais ou menos. Graças ao garoto novo.
— Está pronta para o trabalho?
— Sempre estou pronta para o trabalho, Stefan — respondeu ela, tentando juntar algum entusiasmo.
Stefan jogou-lhe um bastão.
— Bom. Mostre ao Cosmo como usar isso. Temos um alerta a três quarteirões de distância.
— Você acha que os Parasitas vão aparecer? Stefan olhou-a através das lentes de seus óculos de visão noturna.
— O que você acha?
Cosmo estava na metade de um pesadelo particularmente ruim envolvendo dois Parasitas, Ziplock e um secador de cabelos, quando Mona o sacudiu, arrancando-o do sono. Ele abriu os olhos, esperando ver o bedel do dormitório do Clarissa Frayne vigiando-o. Em vez disso viu Mona Vasquez. Incrivelmente, ela conseguia parecer bonita apesar da pele verde e oleosa.
— Você está bonita — murmurou ele no sono. Mona esticou o lábio inferior.
— O que foi?
Cosmo gemeu. Tinha dito aquilo em voz alta?
— Você está... com uma bonita... cor verde. Bonita cor verde. E o vírus. Não se preocupe, isso passa.
Mona sorriu.
— Ouvi dizer que você é um tremendo especialista médico.
O sorriso acordou Cosmo mais depressa do que um adesivo de adrenalina.
— Não exatamente um especialista. Tive sorte.
— Eu também — Mona se empertigou. — Tudo bem. Acabou-se o momento sentimental. Tire essa careca da cama. Temos trabalho a fazer.
Cosmo jogou para longe o cobertor velho.
— Eu sei. Treinamento.
— Treinamento? Vai querendo. Temos um alarme a três quarteirões de distância.
Ela entregou um bastão a Cosmo.
— O botão verde carrega. O vermelho dispara. A ponta mais fina tem de estar apontada para a criatura azul. Sacou?
Cosmo segurou o bastão cautelosamente.
— Verde, vermelho, ponta fina. Saquei. Mona sorriu de novo.
— Bom. Considere-se treinado.
Os Supernaturalistas estavam vestindo os kits. Uma estranha combinação de equipamento policial e de mineração. Alguns instrumentos pareciam mantidos com fita adesiva e rezas. Tudo parecia ultrapassado. Stefan estava gritando enquanto trabalhava.
— O Edifício Stromberg. São principalmente unidades residenciais. O Satélite repassa os tempos de rotação para as unidades. Parece que dois apartamentos giraram para o sul ao mesmo tempo. Uma tremenda colisão. — Mona explicou a situação a Cosmo enquanto prendia às costas uma ponte telescópica.
— A Grande Fundida é uma cidade que funciona 24 horas por dia, de modo que as fábricas giram os prédios junto com os turnos. Todo mundo tem oito horas de silêncio e oito horas virados para o sul e a claridade. Nas outras oito você está trabalhando, então não importa onde seu apartamento esteja. O Satélite tentou enfiar dois apartamentos no mesmo espaço. Foi feio.
Cosmo estremeceu. O Satélite tinha feito besteira de novo. Estava se tornando um acontecimento comum.
Dito lhe entregou grandes óculos plásticos de visão noturna, que cobriam a maior parte do rosto e do cocuruto.
— Todos nós usamos essas placas distorcedoras. O raio X ricocheteia nelas. Se a polícia particular fizer um raio X do seu crânio, eles podem gerar seu rosto por computador. Hoje em dia isso é aceito como prova nos tribunais.
— Ah... certo — murmurou Cosmo. Ele se sentia como se estivesse andando para a borda de um penhasco, com toda a intenção de pular. No orfanato tudo era tão previsível quanto o dia vir depois da noite. Com os Supernatu-ralistas cada momento trazia novas aventuras. Era essa a vida que ele queria? Ele tinha alguma opção?
— Todo mundo pronto — gritou Stefan. — Então vamos.
Espremeram-se no elevador, tensos e empolgados. Cosmo não podia acreditar que ia atirar em criaturas sobrenaturais. O resto do grupo realizava seus rituais pré-batalha. Dito pintava o braço com tinta de camuflagem, Mona estalava cada nó dos dedos e Stefan abria um buraco na parede com seu olhar.
Cosmo notou que eles estavam subindo.
— Nós temos um helicóptero? — perguntou esperançoso.
— Helicóptero? Ah, claro — riu Dito. — Dois helicópteros e um Transformer.
— Então por que estamos subindo?
— Porque os advogados estão no chão — disse Mona. — E os Parasitas estão no alto.
— Ah — disse Cosmo, nem um pouco tranqüilizado. Recentemente não tivera muita sorte nos telhados.
O armazém dos Supernaturalistas ficava num prédio relativamente baixo, pelos padrões internacionais. Meros 140 andares. Eles saíram no terraço, numa nuvem de fumaça verde de poluição.
Na Zona Oeste, todos os prédios tinham mais ou menos a mesma altura, com diferença de um ou dois andares. Isso garantia um sinal limpo do Satélite às parabólicas dos telhados; também tornava mais fácil que vigilantes se movessem entre os prédios, desde que estivessem preparados para arriscar a vida ou uma parte do corpo.
A Zona Oeste se estendia diante deles como uma caixa de dominós em pé, com apenas gráficos e letreiros de néon distinguindo um arranha-céu do outro. Acima, pássaros da polícia e da TV brigavam por espaço, soprados pelos ventos que se espremiam entre as colunas de ferro fundido.
Stefan tirou das costas uma ponte telescópica. Cosmo prestou atenção; obviamente não havia tempo para treinar isso. Tinha visto os limpadores de janela no Clarissa Frayne usando aquele tipo de equipamento, correndo entre os prédios com uma tranqüilidade suicida, e sempre havia pensado: nem em um milhão de anos! As coisas mudam. As circunstâncias mudam.
Dobrada, a ponte parecia uma bandeja de aço com duas fileiras de buracos semicirculares. Havia um rolo de cabo preso numa das extremidades. Stefan prendeu a outra extremidade firmemente embaixo do calcanhar, enrolando os dedos na alça do rolo. Soltou alguns metros de cabo, depois apertou o botão de disparo no rolo. A ponte se esticou imediatamente, alimentada por uma pequena lata de gás, lançando-se pelo espaço entre os prédios. Stefan manipulou habilmente o cabo, mantendo o nariz da ponte no alto, até ela passar por cima do parapeito do outro edifício.
— Vão! — ordenou ele, ficando de lado.
Mona e Dito atravessaram correndo, com cuidado, mas confiantes.
— Não olhe para baixo — aconselhou Dito, do outro lado.
Cosmo respirou fundo e atravessou, mantendo a respiração presa como se estivesse embaixo d'água. Atravessar uma ponte nessa altitude não é fácil como pode parecer. O vento chama a gente para pular, o metal estala debaixo dos pés e o tempo provoca, esticando cada segundo até virar uma hora. Cosmo se concentrou em Mona sorrindo para ele.
Chegou ao outro lado, descendo cautelosamente do parapeito. Stefan veio atrás e fez a ponte encolher apertando outro botão. Ela voltou ao tamanho reduzido e saltou para a mão de Stefan como se fosse um ioiô.
Na borda sul do edifício, Dito já havia baixado outra ponte. Não havia tempo para pensar, não havia tempo para tomar decisões. Apenas para seguir o grupo e ficar apavorado.
— Não fique para trás! — aconselhou Stefan por cima do ombro. — Nós não temos um segundo de folga. Os Parasitas já devem estar lá.
Os Parasitas! Cosmo quase tinha se esquecido deles. Será que estariam esperando? Como ele reagiria quando estivessem cara a cara de novo?
Correu atravessando a segunda ponte; o medo já havia diminuído. Não achava que algum dia se sentiria à vontade percorrendo os telhados, mas pelo menos não estava paralisado de terror.
Mona veio correndo ao seu lado.
— Olha — disse ela ofegante. — A toda volta. Está vendo, Cosmo?
E como. Dezenas das criaturas azuis corriam pelos telhados, sendo atraídas para um único ponto como esgoto escorrendo pelo ralo. São muitas, observou, com os pensamentos tão sem ar quanto os pulmões. Deviam ser milhares. Mas continuou indo, para a frente, apesar do instinto que mandava fazer meia-volta e fugir.
Um quarteirão ao sul, dois apartamentos de cobertura estavam virados na vertical, ambos ainda tentando ocupar o mesmo local do Edifício Stromberg. Engrenagens gigantescas gemiam, e fagulhas elétricas lambiam a lateral do prédio. Os Parasitas saltavam sem esforço pelo espaço aberto, arrastando-se para dentro das unidades residenciais.
— Nós vamos para lá? — perguntou Cosmo, incrédulo. Stefan assentiu bruscamente.
— Vamos. E depressa. Os pássaros da TV estão se aproximando, e eu estou ouvindo sirenes.
Cosmo também ouvia. O uó-uó constante da polícia e os bips estridentes das empresas jurídicas. Os bips eram mais altos. Eles tinham no máximo uns dois minutos.
Mona estendeu uma ponte, pisando numa das bordas.
Stefan sacou seu bastão elétrico, carregando-o.
— Tudo bem, vamos entrar pela caixa do telhado. Vamos pegar só um apartamento. Trinta segundos e saímos de lá. Quero que estejamos a quilômetros de distância quando a polícia particular do Stromberg chegar ao telhado. Entendido?
— Entendido! — gritou Cosmo, tendo visto isso na TV Mona e Dito simplesmente assentiram, carregando as armas.
Stefan pôs a mão no ombro dele.
— Calma, Cosmo. Lembre-se, não se preocupe com os Parasitas, eles não contra-atacam, desde que você não esteja ferido. Fique preocupado com os advogados e a polícia particular. Eles lutam sujo.
— Tá
Mona deu-lhe um soco de leve no ombro.
— Você vai se dar bem, Cosmo. Eu cuido de você.
Atravessaram a última ponte. Cosmo sentia as costelas estremecendo quando o coração batia de encontro a elas. A única coisa que o mantinha ali era a sensação de que nada daquilo estava acontecendo de verdade. Na realidade ele provavelmente estava deitado em algum hospital, muito sedado, com o bedel Redwood parado perto dele. Pense nisso como um videogame. Vá, arrebente uns alienígenas e confira a pontuação depois.
A superfície do terraço era irregular, amassada por gigantescos dentes de engrenagem. Gêiseres de vapor e óleo quente brotavam de rachaduras na carapaça de concreto. O poço da escada estava bloqueado por degraus amassados. Stefan enrolou um pedaço de fita queimante em volta das estruturas de metal. A fita queimante fora desenvolvida por companhias madeireiras da América do Sul antes de se tornar ilegal usar madeira como material de construção.
— Protejam os olhos.
Cosmo obedeceu, uma fração de segundo tarde demais. Stefan acionou o pavio e uma tira de magnésio se incendiou, luzindo num branco brilhante e alimentando um balão de oxiacetileno. A fita cortou as estruturas de metal como um arame atravessando queijo, e Cosmo ficou com a imagem gravada nas retinas durante vários minutos. Um trecho de escada caiu no poço, bloqueando os andares inferiores.
— Pontes — disse Stefan.
Os membros da equipe prenderam os instrumentos em trechos de corrimão e habilmente guiaram-nos para o caos embaixo. Um a um desceram na cobertura instável. Cosmo desceu por último, pela escada de Mona, piscando por causa das estrelas nos olhos.
Entrou no pandemônio. Pessoas corriam em pânico para a escada de incêndio, sem perceber as criaturas azuis grudadas curiosamente nas paredes. Nem todo mundo deixava de perceber. Stefan sacou seu bastão elétrico e começou a disparar. Parasitas explodiam em bolhas azuis, ricocheteando no espaço confinado como fliperamas da era espacial. Não faziam qualquer som nem demonstravam surpresa, simplesmente inchavam e estouravam.
Mona começou a disparar com uma precisão mortal, e também com um jorro de palavras em espanhol que Cosmo suspeitou de que não eram ensinadas no jardim de infância. Ela rapidamente limpou uma parede de qualquer criatura que restasse, abrindo caminho pela confusão até os apartamentos deslocados.
Cosmo sacou seu bastão, carregou-o, apontou e hesitou. Os Parasitas o espiavam com os olhos redondos, a cabeça inclinada. Vivos. Ele não podia fazer isso. Nem mesmo a lembrança da criatura azul agachada em seu peito, sugando sua força vital, podia fazê-lo apertar o botão.
No fim do corredor o apartamento não tinha conseguido se encaixar no lugar. Uma fenda de dois metros se arreganhava entre ele e a estrutura principal. Stefan estendeu uma ponte, usando-a para entrar no apartamento emborcado. Parasitas corriam em volta dele, ansiosos para chegar aos feridos.
O rapaz olhou para trás.
— Trinta segundos, lembram? — Seus olhos estavam arregalados, possessos. Agora só uma coisa era importante para ele.
Correu pela ponte, atirando ao mesmo tempo. Sua equipe seguiu-o até a toca do leão. O apartamento obviamente havia batido com força considerável. Cada pedaço de móvel estava empilhado numa das paredes. TVs, cadeiras e robôs domésticos estavam reduzidos a pouco mais do que fios e entulho.
As pessoas não tinham se saído muito melhor. Pelo menos uma dúzia de homens, mulheres e crianças estavam empilhados num canto do cômodo, com os membros embolados. Os Parasitas estavam em cima deles como moscas na carne, devorando famintas sua força vital.
A dúvida de Cosmo desapareceu. Ele apontou o bastão elétrico para a criatura azul mais próxima e apertou o botão vermelho. Houve um coice surpreendentemente fraco no bastão, quase como o de um brinquedo. Mas o efeito não foi nem um pouco brincalhão. A descarga chamuscou o ar enquanto passava, afundando na cintura do Parasita. A criatura absorveu cada volt, sem conduzir sequer uma fagulha para sua vítima. A cobiça por energia era seu ponto fraco. O tiro bombeou-a acima do limite, despedaçando a criatura numa dúzia de globos cheios de fagulhas.
Dito não estava atirando. Ele era o médico, fazendo o possível pelos feridos. Fechava cortes com grampos, colocava anti-séptico em feridas abertas e derramava analgésico líquido pela garganta dos que estavam conscientes. Para alguns era tarde demais.
Dito pôs a mão no coração de um velho.
— Choque — disse ele com tristeza. — Simplesmente choque.
Mona era meio ninja, meio pistoleira. Disparando uma descarga atrás da outra contra as criaturas azuis. Não errava uma. Em instantes o cômodo oscilante estava cheio de bolhas azuis, como balões de festa. Elas subiam até o teto e o atravessavam com um chiado elétrico.
Cosmo disparou de novo e de novo. Os Supernaturalistas estavam certos. As criaturas sugavam a vida daquelas criaturas infelizes. E ele nunca soubera disso. Nunca tinha visto. Como era possível vencer adversários assim?
Mona apareceu junto do seu ombro, com o queixo meio queimado por um disparo do bastão.
— Anime-se, Cosmo. Você acabou de salvar uma vida. Era esse o modo de ir em frente. Salvar uma vida de
cada vez. Cosmo apontou para uma criatura brilhando prateada de tanta força vital absorvida. Disparou. A criatura se dissolveu em bolhas.
De repente o piso sob seus pés começou a esquentar. As solas de borracha das botas deixavam tiras derretidas onde ele pisava.
— O chão está queimando! — gritou. Stefan pôs a palma da mão no tapete.
— Advogados — declarou. — Estão vindo pelo piso. Nós bloqueamos o poço da escada. Hora de ir.
— Mas os Parasitas! Ainda tem mais. Stefan agarrou Cosmo pela gola.
— Nós fizemos o possível. Se você for preso, não poderá ajudar ninguém.

Um facho laranja, de corte, atravessou o piso a dois centímetros do pé de Cosmo, abrindo um pequeno círculo na superfície. O facho se recolheu e foi substituído por uma câmera de fibra ótica.
Mona agarrou o cabo, puxando-o repetidamente até que ele se separou da caixa.
— Vamos nessa! Está na hora de ir!
O facho reapareceu, desta vez azul, para corte rápido. Os estalos ásperos de várias armas sendo carregadas emanaram do buraco.
Stefan liderou a retirada, atirando enquanto ia. Para os moradores, os Supernaturalistas deviam parecer loucos, atirando para o nada, no ar, quando havia pessoas que precisavam de ajuda.
Atravessaram a ponte retrátil entrando na área principal do edifício. Cosmo olhou para baixo, pela abertura. Uma dezena de advogados-comandos estavam encolhidos numa plataforma abaixo, com o logotipo da balança da justiça grudado nos capacetes, esperando que o facho de corte terminasse de fazer um buraco. Um deles viu Cosmo.
— Você aí — gritou ele. — Não fuja do local de um acidente. Há documentos para assinar.
— Continue em frente — falou Dito. — Esses caras têm equipamento melhor do que o nosso.
O advogado puxou uma tira de velcro de sua roupa de combate, revelando um cabo com gancho de escalada.
— É ilegal fugir do local de um acidente! — gritou ele. — Parado! Caso contrário a Corporação Stromberg não será responsável por seus ferimentos.
O advogado se enfiou por baixo do corrimão de segurança da plataforma e disparou o gancho através de uma abertura entre as barras retorcidas do poço da escada. Cosmo se abaixou e o gancho se cravou no teto acima. O advogado apertou um botão no instrumento e o cabo puxou-o para cima em alta velocidade. Ele atravessou duas camadas de divisória de gesso, pousando no corredor atrás de Dito.
— Parado, réu — disse ele, apontando um bastão. — Você tem o direito de ser seriamente prejudicado se tentar fugir.
Os olhos de Dito se arregalaram. Imitação perfeita de um menino de seis anos.
— Seriamente prejudicado? Mas, moço, eu sou menor de idade.
O advogado deu um risinho.
— Não será quando o seu processo chegar ao tribunal.
— Protesto — reagiu Dito, dando uma cabeçada na barriga do adversário. O advogado perplexo caiu pelo buraco no piso, e apenas seu cabo de escalada o impediu de despencar até o chão.
Stefan e Mona já estavam no terraço.
— Andem, vocês dois. Os helicópteros estão vindo.
Era um caleidoscópio de caos. Crises diferentes giravam, entrando e saindo da visão de Cosmo antes que ele pudesse enfrentar qualquer uma delas. Advogados mortais e agora helicópteros. Tudo porque eles estavam tentando ajudar pessoas. Não haveria alguém a quem pudessem contar?
Cosmo subiu pela ponte até o terraço. O céu noturno estava cheio de helicópteros convergindo. Dezenas de faróis de busca percorriam o prédio. Na maioria eram pássaros de TV Os desastres eram notícias importantes. Até mesmo desastres pequenos como esse chegariam certamente às manchetes de todos os boletins.
Mona e Stefan estavam agachados perto do parapeito do Edifício Stromberg. Stefan pegou no cinto um walkie-talkie à prova de choque, colocando o volume no máximo. Jogou o rádio no prédio ao lado.
— Precisamos de uma ponte — disse Stefan. — Mona?
— Eu não. Já coloquei três. Estou quase sem gás.
— Dito?
— Eu também. Stefan franziu a testa.
— Cosmo. Ponte. Agora.
— Eu?
— Não há tempo melhor do que o presente. Ninguém tem gás que dê para um espaço grande. E não há tempo para trocar as latas.
O Supernaturalista novato tirou sua ponte do suporte às costas. Parecia bastante simples: pisar na barra, disparar o nariz e guiá-lo com o cabo. Bastante simples. Não tão simples quanto cair de um prédio, mas mais fácil do que enfiar macarrão num buraco de agulha.
Pisou na barra.
— Ponha o calcanhar atrás — aconselhou Mona. — Use seu peso como âncora.
Ele ajeitou o pé.
— Mantenha o nariz da ponte levantado; é melhor errar para mais.
Nariz levantado. Certo.
Ruídos vindos de baixo. Comandos gritados e o som de botas correndo.
— Eles estão vindo.
Cosmo enrolou os dedos no cabo e disparou. A ponte deu um coice contra seu pé, lançando tremores pelo joelho novo. Ele ignorou a dor, concentrando-se em guiar o nariz. Era mais pesado do que parecia, e mais descontrolado. Retorcendo-se no vento de alta altitude. Cosmo fez contrapeso com o corpo, puxando o nariz da ponte para cima. Então ela chegou, sessenta centímetros acima do prédio ao lado. Cosmo relaxou, a ponte tocou o outro lado com uma pancada, e dois prendedores em gancho brotaram da outra extremidade.
A equipe não perdeu tempo dando os parabéns, todos correram para a segurança do outro terraço. Cosmo foi atrás, recolhendo a ponte com o toque de um botão.
O sorriso de Mona brilhou nas sombras.
— Nada mau para a primeira vez, Cosmo. Dito sorriu também.
— Nada mau? Na primeira vez em que Mona estendeu uma ponte a gente precisou cortar a corda, caso contrário iria arrastá-la para baixo.
Mona franziu a testa.
— É, bem, pelo menos eu tenho altura suficiente para guiar uma ponte numa abertura grande.
— Quietos! — ordenou Stefan. — Temos companhia.
A equipe jurídica estava chegando ao terraço adjacente, deslizando pela caixa despedaçada sobre o telhado. Luzes montadas nos ombros atravessavam o buraco como faróis de época de guerra. Vários advogados estavam trocando seus cartuchos de celofane por cintos de munição ilegal, munição letal.
O esquadrão se reuniu num círculo, procurando sinais dos fugitivos.
Stefan sussurrou num segundo walkie-talkie.
— Todo mundo abaixado. Tem advogados no terraço. — A frase foi captada pelo primeiro rádio, a dois telhados de distância, e amplificada de modo a ficar claramente audível.
— Por aqui — rosnou o líder do grupo jurídico. — Não interroguem ninguém antes de eles assinarem a renúncia aos direitos.
Os advogados seguiram o som da voz de Stefan. Agora estavam todos metidos a besta, mas logo iriam se sentir bem estúpidos.
Dito deu um risinho:
— O truque mais velho que existe. Nós temos um caixote de walkie-talkies daqueles no armazém. Eu me lembro da época em que os advogados eram mais espertos.
Mona espiou por cima do parapeito.
— Alguns são.
Dois advogados vinham na direção deles, com fuzis-bastões elétricos apertados contra os ombros.
— Lindo equipamento — comentou Dito. — Aquele equipamento de escalada não precisa das mãos. E os bastões podem atirar para sempre. Só um Pulso Eletromagnético pode impedir aquelas armas de disparar.
Cosmo estava ocupado demais com seu pavor, para admirar o equipamento deles.
— Eles estão vindo. O que vamos fazer?
Stefan soltou a mochila, pondo seu bastão elétrico no chão.
— Vamos nos render. Mona riu.
— Olha isso, Cosmo. Uma beleza.
Cosmo notou que Mona e Dito estavam trocando os cartuchos nas armas.
Stefan se levantou devagar, as mãos erguidas acima da cabeça.
— Não atirem! — gritou ele. — Eu estou desarmado. Os advogados se separaram, tornando-se dois alvos.
Ambas as armas estavam apontadas para a cabeça de Stefan.
— Você fugiu do local do acidente — gritou um. — Nós temos o direito legal de embrulhá-lo.
— Eu sei, mas qual é, pessoal. Eu só queria ver o show. Não encostei em nada. De qualquer modo, meu pai é embaixador. Nós temos imunidade diplomática.
Os advogados levaram um susto. A imunidade diplomática era mais ou menos redundante desde o Tratado de Um Só Mundo, mas ainda havia algumas repúblicas remotas que se agarravam aos seus direitos. Se você embrulhasse um diplomata genuíno, passaria os próximos cinco anos no tribunal, e os vinte seguintes na prisão.
— Se você tem imunidade diplomática, por que está usando essa placa distorcedora?
Placa distorcedora era a gíria para as máscaras de visão noturna que Stefan e sua equipe estavam usando. O baixo nível de radiação no plástico significava que elas não somente podiam repelir raios X, mas também apagar vídeo. Mesmo que os Supernaturalistas fossem captados por câmeras, a cabeça deles apareceria apenas como distorção estática.
— É proteção ultravioleta, só isso. Juro. Não quero ter o cérebro frito.
Um dos advogados engatilhou a arma.
— Ultravioleta? A noite? Certo, Sr. Imunidade. Vejamos sua identificação diplomática. E é melhor que não seja falsa, caso contrário você não vai ficar num tanque até amanhã de manhã.
Stefan enfiou a mão no sobretudo e, usando apenas dois dedos, pegou uma carteira de identidade.
— Vou jogar. Estão prontos? Não fiquem animados com esse gatilho. Meu pai conhece o prefeito Shine.
— Use uma das mãos. Ponha a outra em cima da cabeça.
Stefan obedeceu, jogando a carteira de identidade para cima. O vento pegou-a, girando o retângulo de plástico mais uns vinte metros para o alto.
— Idiota — disse o advogado número um, com os olhos acompanhando o cartão.
— Peguei — disse o número dois.
Nesse momento, enquanto os dois advogados olhavam o cartão, Dito e Mona se levantaram simultaneamente, disparando uma carga com os cartuchos novos.
Duas balas verdes atravessaram até o Edifício Strom-berg, deixando trilhas viscosas. Estouraram no visor dos advogados com gosma verde se espalhando pela cabeça e pelos ombros. Os dois advogados-comandos se dobraram, lutando contra a gosma que os cegava.
— Balas de goma — explicou Mona, dando seu sorriso ofuscante. — A substância mais nojenta do planeta. Aqueles capacetes não servem para mais nada. Eu fui atingida com uma bala de goma uma vez, ela acabou com meu colete à prova de balas predileto. Aqueles caras estão fora do jogo até que o esquadrão deles apareça.
Stefan olhou o cartão plástico em branco girar na direção das ruas da Cidade-Satélite. Então seu telefone pulsou de leve no bolso. Ele tirou-o, consultando a telinha.
— Mensagem do computador. Um cidadão apertou seu botão de pânico na esquina de Jornada com Oitava. Andem. Vamos para a rua.
— Um segundo — pediu Dito. Em seguida baixou uma ponte e rapidamente aliviou os advogados de seu equipamento de escalada e das armas. Os Supernaturalistas tinham orçamento apertado, e esse equipamento era bom demais para deixar passar. Em segundos o Bebê Bartoli estava de volta com os outros.
— Eu pensei que você estava sem gás — disse Cosmo, em tom acusador.
Dito deu de ombros.
— Sem gás? Eu? Eu disse isso, foi? Bem, você aprendeu, não foi? E ninguém morreu.
Os Supernaturalistas juntaram suas coisas e guardaram as pontes e os bastões. Cosmo foi atrás, com o coração em algum lugar entre o estômago e a garganta. Os outros pareciam completamente calmos, sem perceber a insanidade das aventuras noturnas. Talvez estivessem caçando Parasitas há tanto tempo que essa fosse uma noite normal para eles. Ou talvez — muito mais provável — fossem todos malucos.
Cosmo apertou o cinto da mochila, seguindo Dito pela porta da caixa do terraço.
Isso significava que ele era maluco também.

OS SUPERNATURALISTAS chegaram exaustos ao armazém às cinco da manhã. O botão de pânico na avenida Jornada tinha sido alarme falso. Um velho enfiou a mão no microondas ligado, fazendo disparar seu alarme pessoal. Muitos cidadãos levavam alarmes pessoais que podiam ser ativados em caso de perigo ou doença, atraindo uma equipe médica ou de proteção. Era caro, mas equipes particulares costumavam chegar em média dois minutos antes da polícia da cidade. E esses dois minutos podiam significar a diferença entre vida e morte.
Na volta da avenida Jornada, o computador do armazém tinha notificado sobre um tiroteio do lado de fora de um banco, na parte cara da avenida. Os Supernaturalistas acamparam num terraço e atiraram contra os Parasitas que correram para o local.
O sol estava espiando através de uma fumaça cor de arco-íris quando finalmente chegaram em casa. Até Dito estava cansado demais para piadas, com o rostinho sério, as calças de criança manchadas com o sangue das pessoas de quem havia cuidado.
Sentaram-se em volta da mesa, jantando pacotes de ração rápida. Cosmo puxou a etiqueta de seu pacote, esperando dez segundos para o calor se espalhar pela comida.
— Acho que a gente se deu bem esta noite — disse ele. — Ninguém se machucou e a gente estourou mais de cem criaturas.
Stefan largou sua colher do exército.
— E amanhã à noite serão mais duzentas ocupando o lugar delas.
Cosmo terminou de comer em silêncio, mastigando devagar.
— Sabe o que eu acho?
Stefan se recostou na cadeira, os braços cruzados. Sua linguagem corporal devia estar dizendo a Cosmo para calar a boca.
— Não, Cosmo, o que você acha?
Mona lançou um olhar de alerta para Cosmo, mas ele foi em frente.
— Acho que se a gente descobrisse onde elas vivem, poderia causar um dano de verdade.
Stefan deu uma gargalhada, cocando o rosto com as duas mãos.
— Há quase três anos eu venho fazendo isso, e nunca tive essa idéia. Uau, você deve ser algum tipo de gênio, Cosmo. Descobrir onde elas vivem. Incrível.
De repente o joelho novo de Cosmo começou a cocar.
— Eu só pensei...
Stefan se levantou abruptamente, fazendo a cadeira deslizar no chão. Controlou o mau humor, mas com dificuldade.
— Eu sei o que você pensou, Cosmo. Já pensei nisso também. Descobrir o ninho e acabar com todas ao mesmo tempo. É uma idéia perfeitamente boa, a não ser por uma coisa: a gente não pode achá-las.
Stefan jogou o garfo nos restos marrons de seu pacote de comida.
— De repente não estou mais com fome — disse ele. — Vou dormir.
O rapaz alto foi arrastando os pés até seu cubículo, fechando a cortina depois de entrar. Dito conseguiu dar um risinho.
— Bom trabalho em pegar no pé do chefe, garoto novo.
— Deixe-o em paz, Dito — disse Mona. — Ou eu faço você ficar de castigo no canto.
Dito riu, levantando os punhos minúsculos.
— Eu sei que sou pacifista, Mona, mas farei uma exceção para você.
Cosmo empurrou sua comida para longe.
— Eu não queria chatear o Stefan.
Mona colocou o resto das duas refeições em seu prato de papel.
— Não é sua culpa, Cosmo. Esta é a vida do Stefan. Acordado e dormindo. Ele só vive para isso. E toda noite tem de enfrentar o fato de que nós não estamos conseguindo nada.
— Eu fico achando que há alguma coisa que eu não sei. Há algum outro motivo para a gente estar fazendo isso?
Dito abriu uma cerveja, engolindo meia garrafa num gole só.
— Nós estamos ajudando pessoas; não basta?
— Nós estamos ajudando pessoas? Não há outro motivo?
Mona e Dito se entreolharam. Cosmo captou o gesto.
— Entendi. Eu ainda não faço parte do grupo. Mona passou o braço pelo seu ombro.
— Sabe de uma coisa, Cosmo? Você está tenso demais. Precisa sair para um passeio.
De repente Cosmo pensou em Ziplock.
— Eu não saio para dar um passeio há 14 anos.
— Não há tempo melhor do que o presente — disse Mona, pegando sua jaqueta. — Eu posso ficar acordada mais algumas horas, se você puder. Vamos.
Cosmo acompanhou-a até o elevador.
— Aonde nós vamos?
— Espere para ver.
— Dito, você vem?
O minúsculo Bebê Bartoli se acomodou em sua poltrona, ligando a TV
— Se eu vou? Não, obrigado, eu fui passear com Mona uma vez. Tive sorte de voltar com todos os dedos.
Cosmo deu um riso débil.
— Ele está brincando, não é?
Mona o empurrou para a gaiola do elevador.
— Não, Cosmo — disse ela fechando a grade. — Não está. Mas afinal quem precisa de dez dedos?
Mona guiou Cosmo pelo labirinto de tubos de suprimento e linhas de montagem abandonadas até uma grande porta de carga e descarga no térreo. Havia um enorme caminhão escarrapachado sobre a suspensão, na rampa de estacionamento. Mona bateu no pára-choque, espalhando um enxame de ferrugins. Os ferrugins eram um novo tipo de insetos que tinham evoluído na Cidade-Satélite. Os especialistas na TV diziam que eram o novo superinseto da natureza, e viveriam mais até do que as baratas.
— O Fundimóvel. Esse entulho salvou nossa pele mais de uma vez.
Cosmo chutou um dos pneus.
— Nós não vamos andar nisso, não é? Mona bateu no capô.
— Não se engane com a aparência externa; eu prefiro velho a roubado. Mas hoje não vamos com ele, Cosmo. O distribuidor está ferrado. Precisamos de um novo, ou pelo menos de um que não seja tão de segunda mão.
— Pensei que a gente só ia andar um pouco.
— Nós vamos andar — grunhiu Mona, tirando o distribuidor tubular do suporte. — Não temos escolha. Só preciso de fazer umas coisas no caminho.
— Então para que precisa de mim? — perguntou Cosmo, ainda que na verdade estivesse mais do que feliz em acompanhar Mona aonde quer que ela fosse. Afinal de
contas, tinha 14 anos, e Mona era a primeira garota que falava com ele sem supervisão.
Mona enrolou o distribuidor num trapo.
— Cosmo, eu preciso de você para dar apoio.
Bushka era a gíria para roubo de veículo na Grande Fundida. Havia tantos automóveis roubados na região da Zona Oeste que toda a área recebera o nome desse passatempo.
Os adolescentes partidários do Bushka roubavam BMWs, Kroms e Mercedes de seus suportes nos estacionamentos nos bairros ricos e os envenenavam para corri-! das off-road. Toda noite grupos de jovens se reuniam em armazéns abandonados para corridas ilegais.
Bushka, a praia de Mona Vasquez.
Demorou quase uma hora para os dois andarem da rua Abracadabra até o Bushka. Seguindo pelo sul pela Jornada, depois atravessando o rio até a velha Barreira da polícia. Assim que passassem pela fileira de carros incendiados os dois estavam por conta própria. Nenhum policial responderia a um alerta vindo do Bushka.
Cosmo tentou ficar invisível; era um truque que tinha aprendido no Clarissa Frayne. Ombros curvados, passos pequenos e sem fazer contato visual com ninguém. Mona não compartilhava a teoria da invisibilidade.
— Por aqui, Cosmo, você precisa andar parecendo alto. Qualquer um desses abutres fareja fraquezas, e eles ferram você mais rápido do que açúcar num tanque de gasolina.
Os abutres em questão eram grupos de adolescentes indo para casa depois de uma noite de corridas de carro.
Eles se demoravam na calçada ou chacoalhavam pelas ruas em seus automóveis com suspensões alteradas. Aqui embaixo não havia orientação pelo Satélite, tudo era manual. A maioria dos abutres parecia conhecer Mona.
— Ei, chiquita — gritou um sujeito num grupo grande, um rapaz musculoso com lenço amarrado sobre um dos olhos. — Quando você vem correr de novo, Mona? A gente está sentindo falta.
Mona riu.
— Hola, Miguel. Talvez eu venha correr quando você montar alguma coisa que valha a pena. Eu posso andar mais rápido do que aquele monte de lixo.
Miguel gemeu, pondo a mão no coração como se tivesse levado um tiro.
— Você me pegou, Vasquez. Mas um dia eu pego você. Mona continuou rindo, mas também continuou andando.
— Só em sonhos, Miguel. Só em sonhos.
Quando tinham virado uma esquina, Mona estremeceu. Sua bravata era da boca para fora; por baixo, a garota estava preocupada.
— Achei que eles iam me pedir para voltar. Miguel é um Doce.
Cosmo piscou.
— Você acha, mesmo?
Mona deu-lhe um soco no ombro.
— Não, idiota, não esse tipo de doce. Os Doces são a maior gangue do Bushka. Eu andava com eles. Eu era a mecânica, cuidava dos carros envenenados. Se você olhar
debaixo daqueles lenços vai ver uma tatuagem como a minha. — Mona apontou para a tira de DNA em cima da sobrancelha.
— E uma tatuagem de gangue, não é? O que ela significa?
Mona chegou perto, para Cosmo ver melhor a tinta sobre seu olho.
— É uma tira de DNA feita com peças de carro. Está vendo as rodas e pistões? Significa que bem no fundo todos os Doces são iguais. Nós vivemos para correr.
Andaram por vários quarteirões, passando pelas fileiras de moradias de ferro fundido e lojas com barricadas. Os camelôs estavam esquentando os fogareiros, protegendo as mercadorias com cães grandes ou armas visíveis na cintura. Vários outros membros de gangues gritaram para Mona. E não eram apenas Doces. Eles passaram por grupos de Celtas, Anglos, Eslavos, Africanos e Orientais. Mona explicou enquanto andavam.
— Aqueles são os I's Irlandeses, especializados em roubar caminhões no cais do outro lado da ponte. — Ela apontou para dois africanos com roupas pretas. —Aqueles caras altos são os Zulus. Principalmente guarda-costas; todos aprendem uma espécie de arte marcial africana. Se um daqueles caras jogar uma coisa pontuda, você está acabado.
Cosmo tentou ficar ainda mais invisível.
— Aqueles caras com piercing são os Buldogues. Podem desmontar uma moto em segundos. Você se abaixa para amarrar o cordão do sapato e, quando se vira de novo, sua moto é só um esqueleto.
— Como você saiu dos Doces? — perguntou Cosmo. — Eu achava que fazer parte de uma gangue era por toda a vida.
— Stefan me salvou. Há 18 meses eu tive um acidente numa corrida. Foi ruim. Um dos meus pulmões tinha furado e eu estava sangrando até morrer. Os Parasitas iam chegando para me sugar e, claro, meus irmãos Doces se espalharam assim que eu bati naquele poste. Stefan estava numa patrulha noturna e ouviu a explosão. Desceu e estourou aqueles monstros bem em cima do meu peito. Dito inflou meu pulmão e eles me deixaram no Hospital Geral. No caminho eu fiquei falando de criaturas azuis sugando minha vida, por isso uma semana depois Stefan apareceu no hospital e me ofereceu uma vida nova. Eu aceitei. Não havia motivo para ficar no Bushka. Meus pais morreram e Stefan tem 18 anos, por isso ele me patrocina. Não dá para acreditar como é bom ser uma cidadã legalizada. Não preciso passar a vida inteira esperando a polícia estadual me jogar em alguma instituição.
— E os Doces deixaram você ir embora assim? A melhor mecânica deles?
Mona parou numa barraca e comprou dois Zakuskas. Os dois se sentaram em latas de lixo viradas, comendo o pão quente.
— Não foi tão fácil. Miguel apareceu na rua Abraca-dabra uma noite com um punhado de valentões. Stefan deixou que eles entrassem na área de carga, depois acendeu os refletores. Disse a Miguel que os Doces tinham aberto mão do direito aos meus serviços quando me deixaram para morrer.
— E os Doces aceitaram? — perguntou Cosmo, cético.
— Não. Stefan ofereceu a eles um protótipo de corrida Myishi Z12 em troca de minha saída da gangue.
— Stefan comprou você?
Mona deu-lhe um soco no ombro outra vez.
— Não, Cosmo. Ele comprou minha liberdade. Por isso a gente anda de Fundimóvel atualmente. E por isso a gente está aqui procurando um distribuidor antigo.
Mona terminou de comer e jogou o embrulho num incinerador de rua.
— Vamos. Temos de fazer uma negociação. Cosmo acompanhou Mona por um beco estreito que fedia a esgoto e óleo de motor. Ratos remexiam em restos de comida e ferrugins se enfiavam em vigas nas paredes de ferro fundido. Mona afastou um pano pendurado, sujo de óleo. Atrás havia uma porta de aço com câmera de vigilância.
Mona bateu na tela do monitor de segurança.
— Hola, Jean Pierre, abra.
Por um momento, nada, depois veio um estalo de estática.
— Mona Vasquez, ainda está viva. Quem é o garoto?
— Cosmo está comigo. Eu respondo por ele.
As barras da tranca foram abertas remotamente e a porta se abriu.
— Entrem, mas não toquem em nada.
Os dois entraram num sonho de um mecânico. As próprias paredes pareciam construídas de peças de carro. Tudo, desde os últimos conversores de plasma até antiqüíssimos componentes de motores a combustão. Passaram por um labirinto com paredes de peças de automóvel e vários carros em diferentes estágios de reparo.
Um homem alto e magro estava enterrado até a cintura no motor de um Krom com tração nas seis rodas. Seu fino cabelo louro estava amarrado num rabo-de-cavalo, e cada centímetro da pele exposta estava empretecida por óleo e fumaça de cano de descarga.
— Ei, Jean Pierre, o que está acontecendo?
O sujeito saiu de dentro do motor, tirando os óculos de aumento.
— Vasquez, ça va? O que está acontecendo é que você vai me pagar os cem dinares que me deve por aquela caixa de descarga.
Mona riu.
— Vaya ai infierno, Jean Pierre. Aquela caixa de descarga estava cheia de massa de enchimento. Estourou depois de cem quilômetros. O que eu deveria fazer é chutar seu traseiro francês por toda essa oficina.
Jean Pierre deu de ombros.
— Três bien. Certo, não se pode culpar alguém por tentar.
— Você me deve uma e eu vim cobrar. — Mona jogou o distribuidor numa bancada. — Consiga um desses e eu considero tudo empatado.
— Empatado? Está brincando, Mona. Isso aí não é fácil de achar. Oitenta dinares, se eu conseguir arranjar um.
Mona cruzou os braços.
— Trinta dinares, hombre. E você já sabe se tem ou não.
Jean Pierre deu um sorriso largo, com os dentes brilhando em contraste com o óleo.
— Mona, senti saudade de você. Certo, trinta, mas só porque você me faz rir.
Jean Pierre desapareceu entre dois corredores metálicos.
— Ele é o único vendedor de peças pelo menos um pouco confiável no Bushka — disse Mona a Cosmo. — O que quer que você precise, Jean Pierre pode conseguir ou fazer. As gangues o deixam em paz, porque sem ele os carros cairiam aos pedaços.
Jean Pierre voltou, girando um distribuidor como se fosse um bastão. Havia um parasita empoleirado em seu ombro. Cosmo recuou, derrubando uma torre de calotas.
— Mona! Olha! Não está vendo? O francês franziu a testa.
— Ei, mon ami, cuidado com a mercadoria. Qual é o seu problema?
Mona não tremeu uma pálpebra.
— Ignore o cara, Jean Pierre. Ele é maluco. Engoliu fumaça demais nas corridas. As vezes ele vê coisas.
Cosmo não conseguia afastar os olhos da criatura aga-chada ali, esperando.
— A gente não pode fazer nada? Não pode matar ela? Mona empilhou as calotas, olhando-o furiosa.
— Cala a boca, Cosmo. Não tem nada ali! Nada, entendeu?
Cosmo tentou ler o que diziam os olhos castanhos de Mona. A garota estava vendo a criatura, ele tinha certeza.
— Nada, entendi.
— Bom. — Ela contou as fichas de dinares sobre a bancada. Do lado de fora da Barreira a maioria das pessoas usava cartões de crédito, mas no Bushka o dinheiro vivo era o rei. — Aqui, trinta dinares.
Jean Pierre jogou as moedas numa gaveta.
— Tudinho? Está ficando mansa comigo, Vasquez? Mona pegou o distribuidor, ignorando decididamente o Parasita de olhos arregalados sobre o ombro de Jean Pierre.
— Não, é só que eu reconheço um bom trato quando vejo um. — Ela parou, com os olhos no chão. — Como você anda se sentindo ultimamente?
Jean Pierre levou um susto.
— Engraçado você falar disso. Meu peito está apertado. Nas últimas semanas. Provavelmente não é nada. Eu deveria ir a um médico na cidade, mas quem confia nos médicos, n'est-ce pas?
Mona olhou o francês nos olhos.
— Cuide disso, Jean Pierre. Todos nós ficaríamos perdidos sem você.
— Certainement. O cliente sempre tem razão. — Ele abriu uma gaveta na parede. — Aqui, um jogo de buchas por conta da casa, para minha cliente predileta.
Mona enfiou as buchas no bolso, depois deu um beijo no rosto de Jean Pierre. O parasita saiu casualmente de seu caminho.
— Tchau, Jean Pierre. E obrigada. O francês coçou o queixo.
— Um beijo? De Mona Vasquez? Você está doente, é?
Mona deu um olhar maligno para o Parasita.
— Não, Jean Pierre. Eu não estou doente.
Mona se recusou a dizer outra palavra até que ela e Cosmo estivessem a dois quarteirões de distância da oficina de Jean Pierre.
— Aqueles monstros. Algumas vezes eles sabem quando a pessoa está prestes a se dar mal.
— Por que a gente não fez alguma coisa?
— O quê? Dar um tiro no ar em plena luz do dia? Jean Pierre atiraria em nós. Não há nada que a gente possa fazer aqui, assim como não é possível sair dando tiros em hospitais. Talvez Jean Pierre tenha um ataque cardíaco e o Parasita o empurre pela beirada do precipício. Ou talvez o Parasita apenas sugue alguns anos. Esta é a beleza da raça deles, ninguém nunca sabe. Não há crime, nenhum jogo sujo, nem suspeito, nem vítima. Sabe, há apenas um ano a gente nunca veria um Parasita durante o dia. Mas agora está acontecendo cada vez mais.
Cosmo examinou o número de pessoas aumentando nas ruas. Era difícil ver os Parasitas à luz do dia, mas eles estavam ali, agachados nos ombros de seus alvos ou se-guindo-os do alto.
Mona o viu olhando.
— Isso mesmo. Eles não gostam muito da luz, mas estão aqui. Também não gostam de água. Ela não mata, mas uma boa encharcada pode sugar a energia deles. Por isso é que eu rezo todo dia pedindo chuva.
— Então é isso? Quando um Parasita escolhe a gente, acabou?
— Não necessariamente. Você pode ser salvo por paramédicos, ou vencer a aposta, ou, como nós, não sair de patrulha naquela noite. Em geral os Parasitas só aparecem quando o incidente acontece, mas algumas vezes o cheiro da morte é forte demais para resistir.
Os dois atravessaram o Bushka rapidamente, indo para a Barreira. Cosmo mantinha a cabeça baixa, aterrorizado com a possibilidade de atrair atenção dos Parasitas. Com medo de seu olhar atrair um deles e a criatura montar no seu ombro.
— Indo embora tão cedo? — disse uma voz. Miguel e os Doces estavam empoleirados num trilho, a três andares de altura.
— Preciso ir — disse Mona. — Tenho trabalho a fazer.
— Você deveria dar um tempo, chiquita. Esta noite vai acontecer uma coisa grande. Vamos revelar o Myishi Z12. Vamos fazer uma limpeza nos caras.
— Verdade? Talvez vocês devessem dar um tempo. Ouvi dizer que a poluição fica ruim mais tarde.
Miguel riu.
— O que você está falando, garota? Os Doces não estão nem aí para a poluição. Esta noite a gente precisa cuidar de umas coisas.
Cosmo olhou para o alto, com o canto do olho. Meia dúzia de Parasitas estavam grudados à parede acima da cabeça dos Doces, os olhos redondos espiando seus alvos quase com carinho.
Mona continuou andando.
— Parece que vamos estar ocupados esta noite também.

CAPÍTULO 5
D0CES E BULDOGUES

DOZE HORAS depois Cosmo estava de volta ao Bushka. Desta vez na traseira do Fundimóvel com os outros Supernaturalistas. Mona parou à sombra de um toldo de metal corrugado diante do quartel-general dos Doces: uma delegacia de polícia abandonada dentro da Barreira. Do lado de fora tudo havia sido trancado para a noite e as ruas estavam desertas, a não ser por alguns grupos de jovens e vagabundos sem-teto.
Stefan não estava feliz com a situação.
— Os Parasitas podem ter errado. A gente pode estar desperdiçando a noite inteira.
— Eram muitos, Stefan — respondeu Mona. — Um poderia ser um erro, mas as criaturas estavam esperando um grande desastre. Miguel disse que os Doces iam colocar o Myishi Z12 para fora esta noite. Eles podem ganhar, e as outras gangues vão ficar furiosas. Stefan deu de ombros.
— As gangues sempre ficam furiosas. Os olhos de Mona relampejaram.
— Esses caras foram a minha família durante muito tempo, Stefan. A gente precisa cuidar da família, você de- ] veria entender isso.
— Tudo bem — disse Stefan de má vontade. — Vamos ficar vigiando por umas duas horas, mas depois voltamos ao computador.
— Obrigada.
Dito deu as costas para a janela.
— Certo, todo mundo. Olhem só.
Os Doces estavam saindo do estacionamento subterrâneo da delegacia numa série, de Kroms recauchutados, liderados por Miguel num Myishi Z12 com muita camuflagem.
— Aí está ele — disse Mona. — O preço da minha liberdade.
Cosmo esfregou a janela suja para enxergar.
— Não parece grande coisa.
Mona ligou o motor do Fundimóvel; era surpreendentemente silencioso apesar do tamanho.
— Esta é a parte inteligente. Se os Doces chegassem com o Myishi Z12, ninguém apostaria contra eles. Desse modo eles podem ganhar mais dinheiro. — Ela guiou o furgão para a rua, ficando bem atrás do comboio dos Doces. — Você nunca me contou como conseguiu aquele carro, Stefan.
Stefan riu.
— Eu o liberei da divisão experimental da Myishi. Eles estavam testando dois, e um não fez a curva. Foi direto para um depósito de combustível. Eu segui um enxame de Parasitas até lá e comecei a atirar. Os advogados chegaram meio perto de mim, por isso eu peguei o outro carro. Aquele negócio é incrível, está anos adiante da concorrência. Tem até encaixes para asas, se você quiser aprimorar. Realmente doeu quando tive de me separar dele.
Mona deu-lhe um soco no peito. Um gesto de carinho para ela.
— Certo, Stefan. Obrigada. Quantas vezes você quer que eu diga isso?
— Mais umas duas mil.
Os Doces seguiam desfilando pela avenida, usando buzinas personalizadas para acordar todo mundo. Logo havia multidões reunidas nas varandas no alto, agitando lenços. Miguel acenava regiamente pela janela.
Mona manteve o Fundimóvel bem atrás, até saírem da Praça Vermelha. O comboio virou para o leste.
— Tudo bem. Leste. É área dos Buldogues. Eles vão correr na velha fábrica da Krom.
Dito digitou essa informação no computador de bordo e em segundos o servidor do armazém mandou de volta uma planta da fábrica.
— É perfeito. Se eles usarem as linhas de montagem, são duas pistas de cinco quilômetros sobre asfalto sólido.
— E o acesso? — perguntou Stefan.
— Seis portas no térreo, que eu presumo que não usaremos.
— Correto.
— Então recomendo as fileiras de painéis solares no telhado. Sem dúvida os moradores tiraram os painéis há muito, então a gente deve poder entrar no vigamento superior.
Cosmo gemeu. Mais telhados. Mas não disse nada em voz alta.
Stefan pareceu ler seus pensamentos.
— Não se preocupe, Cosmo. Você se saiu bem da última vez. Estendeu aquela ponte como um bombeiro. Também não foi nada mal com os bastões elétricos, se bem que acertou mais paredes do que Parasitas.
— Um elogio de Stefan Bashkir? — perguntou Mona, fingindo surpresa. — Você deveria gravar isso e tocar toda noite, porque provavelmente não vai receber outro.
Cosmo riu. Mas as palavras de Stefan tinham significado alguma coisa para ele. Pela primeira vez, quase se sentia parte do grupo.
Mona espremeu o Fundimóvel por vários becos estreitos, batendo os retrovisores laterais nas portas. A fábrica da Krom se erguia adiante, com a luz laranja tremulando em painéis vazios no telhado.
— Acho que aqui — disse Mona, desligando o motor. Em seguida foi para a parte de trás. — Deve haver pelo menos cinqüenta Buldogues ali dentro. Todos com armas antigas, a pólvora, e talvez alguns bastões com celofanes ou chocantes. Acho que vai haver algum tipo de acidente; isso ou uma briga de gangues.
Stefan assentiu.
— Tudo bem. Não vamos nos envolver enquanto não acontecer o que quer que seja. Então cuidamos de nossos amigos espíritos.
Mona não gostou do plano.
— A gente não deveria acabar com esse negócio? Impedir o desastre?
— Não. Não podemos adivinhar o futuro. Talvez, quando a gente tentar acabar com a coisa, acabe causando o desastre.
Fazia sentido, ainda que Mona não ficasse satisfeita. Stefan pôs a mão em seu ombro.
— Você está legal, Mona? Vai conseguir fazer o serviço? Mona colocou uma célula de energia em seu bastão elétrico.
— Não se preocupe comigo, Stefan. Eu sei o que viemos fazer aqui.
— Bom. Vamos subir pela escada de incêndio, passar pelo telhado e entrar no vigamento interno. Fiquem atentos, as gangues podem ter desenvolvido um pouco de cérebro e posto sentinelas no telhado.
Dito prendeu um kit de primeiros socorros no peito, usando velcro.
— E mais fácil um boi voar.
O beco era tão estreito que eles tiveram de desembarcar pela traseira do Fundimóvel, depois subir ao teto do carro para chegar à escada de incêndio. O som de motores rugindo e aplausos era apenas ligeiramente abafado pelas paredes da fábrica. O primeiro degrau da escada de incêndio estava um metro acima do alcance de Stefan. Em vez de esticar uma escada, ele agarrou Dito pelo cinto.
— Pronto?
Dito concordou com a cabeça.
— Subindo.
Stefan levantou o minúsculo menino-homem até ele agarrar o degrau de baixo. Seu peso puxou a escada retrá-til ao nível do chão. Eles subiram um a um, com Stefan indo atrás. Se alguém podia quebrar um degrau, era o rapaz alto.
A escada de incêndio suportou o peso, e minutos depois os Supernaturalistas estavam de bruços no telhado levemente inclinado, espiando pela estrutura vazia de um painel solar. Abaixo deles se estendiam os restos caniba-lizados de uma megafábrica que já havia empregado mais de vinte mil moradores da Cidade-Satélite.
As linhas de montagem elevadas se apoiavam em vigas de ferro soldadas. Todos os componentes úteis de andrói-des construtores haviam sido retirados e pendiam frouxos em seus suportes, como esqueletos robóticos. Complicadas passarelas no alto e sistemas de monotrilhos magnéticos serpenteavam pelo ar, com ganchos, braçadeiras e luminárias pendendo como jóias mecânicas.
Os Buldogues e os Doces estavam frente a frente, no clássico estilo tribal. Pelo menos cem membros das gangues posavam em volta de seus veículos, os peitos estufados, queixos empinados, encolhendo a barriga. Os veículos em si eram o equivalente automotivo de caudas de pavão. Enormes aerofólios com gráficos digitalizados, antiquados pneus de borracha e capôs retirados para revelar os motores latejando. Só o Myishi Z12 não tinha adornos. Uma pantera em repouso.
A corrida já havia começado. Dois carros de cada vez disparavam pela linha de montagem, rasgando a faixa de cinco quilômetros, queimando gasolina e nitroso. As regras eram simples. Havia um portão eletrificado em cada pista. Quando o portão era erguido, o motorista pisava fundo. Se saísse tarde demais, a corrida estava perdida, se saísse cedo demais a descarga do portão arrancaria carro e piloto da pista. O primeiro a passar pelo posto de chegada recebia as honras e a bolsa do vencedor.
Os Supernaturalistas não eram os únicos seres nas regiões elevadas. Várias dezenas de Parasitas se grudavam como aranhas à infra-estrutura, baixando para sugar algumas gotas de vida de algum piloto ferido. Como sempre, os pilotos não percebiam as atenções do grupo.
Cosmo sacou seu bastão.
— Espera — instruiu Stefan. — Este não é o acontecimento principal. Agente não vê tantos Parasitas assim por causa de uns ferimentos pequenos. É preciso se segurar até que aconteça alguma coisa grande. — Os dedos de Stefan estavam cocando em seu bastão. Estava óbvio que deixar que os Parasitas roubassem ao menos uma gota de vida era a morte para ele. Algumas vezes os líderes precisam fazer escolhas difíceis.
Dito examinou o altímetro de seu relógio.
— Estamos a pelo menos sessenta metros do chão. Se alguma coisa acontecer, não vou poder ajudar ninguém. E o único motivo de eu estar aqui é para remendar pessoas. Vocês sabem como me sinto com relação a estourar Parasitas, por isso, se não puder curar, é melhor voltar ao velho trabalho. O pagamento é melhor e eu não tenho de agüentar o humor adolescente de vocês.
O olhar de Stefan seria capaz de abrir buracos em titânio.
— Dito. Esta não é a hora. Dito o encarou de volta.
— Não é a hora? Agora nós só salvamos vidas quando você manda? Bem, se eu soubesse disso ficaria em casa tomando umas cervejas.
Stefan trincou os dentes. Tanto por frustração quanto para não sorrir.
— Dito, um dia desses eu vou matricular você no jardim de infância, portanto me ajude. Tudo bem, pegue a Mona e desça perto do nível do chão. Mas sem se arriscar. Esse não é o tipo de gente com que nós lidamos em geral. São assassinos armados. Se você puder ajudar alguém, ajude, mas meu conselho é tranqüilizar a pessoa primeiro. E usem suas placas distorcedoras; nunca se sabe.
Dito riu.
— Stefan, você é um doce.
O Bebê Bartoli desceu por um poço de escada, à vontade como um cabrito montes. Mona correu atrás dele xingando em espanhol. Os dois desceram por tubos e trilhos até montarem num conduíte de cabos, diretamente acima da linha de montagem. No caso de um desastre, seria simples estender uma ponte até o chão.
Stefan acompanhou o progresso deles usando um binóculo militar.
— Estão em segurança.
Cosmo estava deitado ao seu lado, no vigamento.
— A gente não deveria descer com ela... com eles? Stefan manteve o olhar na cena abaixo.
— Um conselho, Cosmo. Não fique muito ligado à Mona. Ela tem a melhor Visão que eu já encontrei, mas algum dia vai sair dessa. E, respondendo a sua pergunta, nós podemos dar cobertura daqui. Se eles forem vistos, podemos criar uma distração, atrair o fogo para longe.
Cosmo suspirou. Atrair o fogo parecia ainda mais perigoso do que tudo que já tinham feito até agora. Stefan interpretou errado o suspiro.
— Não se preocupe com isso, garoto — disse ele, dando um tapinha na placa robotix de Cosmo. — Acho que não ensinam tática militar no Clarissa Frayne.
Abatida lembrou a Cosmo que partes de seu corpo não eram originais. Quanta coisa tinha mudado em uma semana! Novo joelho, nova testa, novos amigos, vida nova. Olhou para a centena de arruaceiros armados. Vida nova... por quanto tempo?
Dito se equilibrava facilmente no conduíte. Era um ginasta natural, apesar do tamanho. Talvez fosse mais fácil se acostumar ao corpo se ele não mudasse em décadas.
— Então, você gosta do garoto? — disse ele num tom provocador que não combinava com seu rosto angelical. — Do seu pequeno chico?
— Gosto. Claro que eu gosto do Cosmo. Ele é um garoto legal. Aprende rápido.
Mona estava deitada no conduíte, examinando a multidão embaixo, à procura de Miguel. Ele a havia apanhado na rua quando dois de seus rapazes surpreenderam-na fazendo uma ligeira bushka num carro dos Doces. Em vez de puni-la, Miguel colocou-a para trabalhar.
Dito deu um risinho.
— Ele é um garoto legal? Qual é, Vasquez, é comigo que você está falando. Você anda um pouquinho menos carrancuda desde que o Cosmo chegou.
— É companhia, certo? É legal ter alguém da minha idade na rua Abracadabra.
Dito continuou cutucando.
— Não que ele seja bonito. Não tem cabelo, e parece que está com um porco-espinho escondido debaixo da testa.
— Bom, pelo menos ele é alto — disse Mona, incomodada.
— Olha só quem está toda protetora! Será que estou sentindo uma rachadura na carapaça de Vasquez?
Mona jamais admitiria ao Bebê Bartoli, mas de certo modo ele estava certo. O garoto órfão era interessante. Tinha feito uma entrada sensacional na vida deles, como fumaça num telhado. Em seguida salvou a vida dela. Depois disso teria de ter a personalidade de um urso faminto para ela não gostar dele.
— Cosmo é um amigo. Só isso. Talvez esse conceito seja grande demais para você entender.
Dito riu, deliciado porque suas cutucadas estavam causando efeito.
— Ah, piadas grandes agora, não é? Eu posso ser pequeno, Vasquez, mas tenho mais cérebro na cabeça diminuta do que o resto dos Supernaturalistas juntos.
Mona apontou seu bastão para o companheiro miniatura.
— Pára de encher o saco, Dito. Acha que eu não atiraria uma bala de goma em você? É isso que você acha? Porque se é, está enganado.
Dito levantou as mãos.
— Ameaças de violência? Eu não sabia como isso tinha ficado sério. E tão depressa! Quem adivinharia? — Ele parou, dando um sorriso genuíno. — Mas sério. Esse tal de Cosmo é legal. Fico feliz por você ter arranjado um amigo.
Mona fez "tsk tsk".
— Você faz com que ele pareça um cachorrinho.
— Estou tentando falar a sério. Você é jovem, Mona. E uma adolescente. Precisa de alguém com quem conversar. Pode não parecer, mas eu sou velho demais. E Stefan, bem, na maior parte do tempo ele não está no clima para bater papo.
O telefone de Dito vibrou em seu bolso.
— Texto vindo de cima — disse ele, lendo a tela. De que vocês estão brincando? Fiquem de boca fechada e olhos abertos. O Bebê Bartoli acenou na direção de Stefan. — É melhor ficar com a mente no trabalho, Mona, senão eu terei de usar minha patente.
Mona riu.
— Sabe de uma coisa? Se você não tivesse noventa centímetros de altura...
— Noventa e cinco — reagiu Dito, fazendo beicinho.
No piso da fábrica abaixo deles as coisas estavam esquentando. As corridas menos importantes haviam sido disputadas e agora os carros principais eram levados pelas rampas até a linha de montagem. Os Buldogues estavam reunidos em volta de um carro de corrida de seis rodas, gritando e soltando cargas chocantes no ar. O carro tinha pneus largos, decalques de plasma e dois canos de descarga duplos vibrando na traseira. Como os Buldogues em si, era barulhento e musculoso. Os Buldogues eram obcecados pela aparência. O vencedor da corrida desta noite provavelmente usaria os ganhos para implantar alguns sacos de músculos salinos debaixo da pele.
O Myishi parecia débil, em comparação. Sua carroceria era curva em direção à traseira e um único cano de descarga se projetava abaixo do pára-choque, e havia apenas quatro rodas. Ridículo. Os Buldogues não ficaram impressionados. Uivaram para o teto, seu método tradicional de exprimir desprezo.
Mona revirou os olhos.
— Buldogues. O retalho da natureza.
Mona não estava calma como parecia. O que quer que fosse acontecer, aconteceria logo. A morte estava se reunindo no próprio oxigênio. Os Parasitas também podiam senti-la, agrupando-se ainda mais baixo nas paredes da fábrica.
O telefone de Dito vibrou de novo.
— Outro texto — gemeu ele. — O que o Stefan acha? Que eu sou o secretário dele? — Tirou o telefone do bolso e leu o recado.
— É melhor você ler isso — disse numa voz tensa. Mona estendeu a mão para o telefone, mantendo um olho na cena abaixo. As letras se destacavam pretas na tela verde.
"O boi voou", dizia o texto. "Os Buldogues colocaram uma sentinela. Está atrás de vocês."
Mona ouviu uma célula de energia disparando atrás de seu ouvido.
Cosmo saltou de pé.
— Precisamos ajudá-los.
Stefan segurou-o pela gola, puxando-o de novo.
— Fique abaixado, Cosmo, você está se transformando num belo alvo.
— Mas eles vão ser mortos!
Stefan rolou, apertando uma das mãos na boca de Cosmo.
— Escute com atenção, Cosmo. Eu sei o que estou fazendo. Venho fazendo isso nos últimos três anos. Você passou a vida inteira num orfanato. O que sabe sobre missões de combate poderia ser escrito na cueca de Dito. Sacou?
Cosmo confirmou com a cabeça.
— Bom. Vamos ver como a coisa acontece. Mona e Dito podem ter algumas idéias próprias.
Stefan tirou a mão. Cosmo sugou o ar numa respiração entrecortada.
— E se atirarem neles?
Stefan olhou para a cena abaixo, pensando depressa, e suas mãos apertavam as barras da passarela. Não estava tão controlado quanto fingia.
— Se atirarem neles, vão pagar.
Talvez, pensou Cosmo. Mas não tanto quanto nós.
A sentinela dos Buldogues era um sujeito seminu, vestindo apenas short preto, e tinha a pele escura. De um jeito pouco natural. Depois de examinar por vários segundos, Dito percebeu que a pele do sujeito fora quase completamente tatuada. Inicialmente não dava para ver nada na tinta, mas então os estranhos redemoinhos e padrões hipnóticos se revelaram.
— Gosta? — perguntou a sentinela. — Cobertura corporal total com hipnopadrões jamaicanos; só três e noventa e nove na oficina de tatuagem Mancha Negra. Pergunte por Sasha.
— Uau—exclamou Dito. Os padrões estavam em toda parte. Como tinha deixado de ver antes?
Mona estalou os dedos diante dos olhos dele.
— Não olhe para a tatuagem, idiota. Os hipnopadrões vão pirar você.
— Verdade — disse a sentinela. — Uma vez um chofer de táxi ficou me olhando pelo espelho. Caiu no sono ao volante.
Ele apontou o cano de sua arma para Mona.
— Agora aos negócios. De pé. Você tem tempo para marcar seu último compromisso.
Dito abriu a boca para fazer um comentário e Mona apertou a mão sobre ela.
— Sem problema, amigo. Mostre o caminho.
A sentinela tatuada cutucou-os para descerem uma escada íngreme até o piso da fábrica. Os outros Buldogues pareciam muito mais altos vistos de baixo para cima. Ficaram empurrando os intrusos, brandindo armas e pedindo sangue.
Seu líder se adiantou. Dava para ver que era o líder porque as palavras "Macho Alfa" luziam com luz subcu-tânea em seu peito nu.
— O que foi que a gente achou, Sombra? — rosnou ele, com um topete moicano metálico estremecendo no crânio. E Macho Alfa rosnava mesmo. Provavelmente tinha feito cirurgia nas cordas vocais para obter o efeito.
Sombra empurrou os prisioneiros para dentro do círculo.
— Dois ferrugins pendurados nas traves. Macho Alfa avaliou os intrusos.
— Tá legal. Amarrem os dois nos tampos dos motores, eles vão servir como enfeites de capo.
Dezenas de mãos agarraram os dois, levantando-os com brutalidade acima das cabeças.
— Espera — disse Miguel, bloqueando o caminho dos Buldogues. — Nada vai ser amarrado no meu capo, Macho. Essa máquina é aerodinâmica. Esse tipo de pára-choque vai estragar a velocidade. Comprende?
Mona olhou furiosa para ele, acima de um mar de braços.
— Muito obrigada, Miguel. E eu pensei que você gostava de mim.
As engrenagens cerebrais de Macho giraram com ruído, fazendo a conexão.
— Você conhece essa garota?
Miguel soltou um suspiro fundo. Outra noite estragada.
— É claro. Ela é... minha irmã mais nova. Eu mandei ela ficar em casa, mas a garota gosta de corridas. Acho que está no sangue. Faz um favor e solta ela.
As luzes do peito de Macho Alfa piscaram mais depressa, acompanhando seus batimentos cardíacos.
— Não sei, cara. Regras são regras. Miguel insistiu:
— Qual é, hombre. Eu não posso ir para casa sem a nena.
— Por que não, meu chapa? Os adolescentes não passam de desperdício de espaço e ar.
— É, mas essa garota é um dos melhores pilotos que nós temos. É quase tão boa quanto eu. Seria uma pena desperdiçar todas as horas que nós investimos pilotando. Em dois anos ela vai estar queimando as pistas.
Um sorriso maligno se espalhou no rosto de Macho. Seu topete de aço vibrou enquanto ele ria.
— Tá legal, meu chapa. Ofereço um trato. A garota pilota na última corrida.
— Que no! De jeito nenhum. Esse carro é o meu neném.
— Você é que decide. Ela vai dentro do carro ou em cima dele.
Miguel tirou seu lenço de cabeça, torcendo-o com as duas mãos.
— Certo. Ela pilota. — Ele apontou o dedo rígido para Mona. — Se fizer besteira, Mona, vai pagar muito caro.
Na verdade não era uma grande escolha. No carro ou em cima dele? Não que Mona tivesse opção. Dezenas de mãos estranhas levaram-na pelo alto até o Myishi Z12. Ela se sentiu sendo dobrada quase ao meio e enfiada pela janela do carro. Dito foi posto no banco do carona.
— Pode levar o seu mascote também — disse Macho, prendendo-se com o cinto de segurança no carro dos Buldogues. — Vocês vão precisar de toda a sorte que conseguirem.
— Mascote — reclamou Dito trincando os dentes. — Aquele saco de implantes imbecil. Eu gostaria de apagar aquele cara a socos. Literalmente. — Ele olhou seu cabelo louro no retrovisor. — Você sabe dirigir essa coisa, não é?
Mona examinou a confusão de mostradores e medidores.
— É. Talvez. Em teoria.
— Acha que eles vão deixar dar uma treinadinha? Do lado de fora do carro, grupos de líderes de gangues, cheios de adrenalina, pulavam de ansiedade. Uma turba de rapazes cheios de pique, tatuagem e testosterona que apostaram uma grana preta na corrida.
— Não. Nada de treinadinhas.
Mona era capaz de dirigir ou consertar praticamente qualquer coisa com rodas, mas esse era um carro de corrida movido a nitroso, e não o Fundimóvel. Em geral os carros de corrida colocavam uma mistura de óxido nitroso no combustível comum, para obter velocidade extra quando necessário. Mas essa coisa usava oxido nitroso aquecido como combustível normal. Como o nitroso era I consumido depressa demais, todo o carro fora convertido num tanque de combustível. Cada estrutura e cada painel estava cheio da mistura explosiva. Ninguém sabia realmente como dirigir um carro assim. Miguel se encostou na janela.
— Diga ao Stefan que ele me deve um grande favor.
— Diga você mesmo — respondeu Mona. — Dentro de dez segundos eu serei uma mancha de carvão no asfalto.
— Só mantenha o bicho firme, deixe o nitroso fazer o serviço. Os pedais são padrão, mas freie cedo. O carro é um terror para parar. Se você perder esse aí, Vasquez, é I melhor abandonar a cidade debaixo de vergonha.
Macho tocou a buzina, impaciente.
— Duas perguntas — disse Miguel. — Onde está Stefan, e por que vocês estão aqui?
Mona pôs a mão no braço dele.
— Quando chegar a hora você vai saber. Só fique de cabeça baixa e pronto para correr.
Miguel ajeitou seu lenço de cabeça em estilo gângster.
— Nós somos os Doces, neném. Nós nunca fugimos. — E com esse papo de machão ele foi embora, descendo com seus rapazes até o piso da fábrica.
O telefone de Dito vibrou. Ele o tirou disfarçadamente. Na tela havia um único ponto de interrogação. Dito escreveu uma mensagem de resposta.

Fiquem frios. Tudo sob controle.
Mona inclinou o pescoço para ler o texto.
— Sob controle? Então avise quando a gente tiver encrenca.
Os portões foram baixados por braços robóticos Krom, acionados por um gerador portátil. Uma grade cheia de fagulhas parou diante de cada carro. Agora Macho estava uivando, e os digicalques de seus pára-choques mostravam buldogues correndo e babando. Os outros Buldogues imitaram seu chamado canino, até que toda a fábrica ecoava com os sons dos rapazes alucinados.
— Não sei o que é mais saudável — observou Dito. — Ganhar ou perder.
Mona apertou o botão de ignição, aumentando os giros do carro em ponto morto.
— Não vou esperar para descobrir. Dito se agarrou nervoso ao painel.
— Não faça nenhuma bobagem, Mona. Eu sou só um bebê.
— Segure-se. E aperte o cinto.
Os portões se levantaram devagar, soltando uma cascata de fagulhas na platéia embaixo. Macho estava dando socos no teto de seu carro, amassando a lataria. Se ele ficasse mais agitado talvez tivesse um curto-circuito.
Mona pôs o carro em primeira. O câmbio manual fora instalado pelos Doces, mas dificilmente haveria tempo para chegar até a sexta; teria de pular algumas marchas. O Z12 queria saltar para a frente como uma pantera ansiosa; ela o segurou com a embreagem.
Agora havia um metro de espaço livre entre o portão e a superfície. Uma cachoeira de fagulhas brancas dançavam obscurecendo a visão de Mona. Buldogues atiravam para o ar. Os Parasitas estavam chegando mais perto, talvez por causa dela. O que quer que estivesse para vir, estava chegando. Por mais ridículo que parecesse.
Os portões subiram mais um pouco.
— Vai! — gritaram os Doces numa só voz. — Vai! Vai! Mona acelerou, mas não foi.
— Ainda não.
Macho não teve esse tipo de reserva. Pisou no acelerador, disparando por baixo do portão. Era cedo demais: seu aerofólio traseiro bateu no portão. Mas não houve explosão, não houve condução de milhares de volts pelo chassis. Em vez disso, o aerofólio se derreteu numa gosma preta, meio cobrindo o vidro traseiro. Macho foi em frente.
— Borracha — disse Mona cheia de desprezo. —Aquele trapaceiro.
— Vai! — uivavam os Doces, quase chorando. Macho já estava a um quilômetro adiante na pista, e ainda nem havia disparado seu nitroso.
— Ainda não.
Dito bateu no ombro dela com as mãos minúsculas.
— O que você está fazendo, Vasquez? Está maluca?
— Mais um segundo.
Macho estava dois quilômetros adiante. Dois e meio. Fazendo pelo menos trezentos quilômetros por hora, com os pneus soltando fumaça preta. Os Doces estavam convergindo para o carro, sacando as armas dos bolsos. Os lábios de Miguel se repuxavam, mostrando os dentes.
— Hora de ir — sussurrou Mona, pisando no acelerador e soltando a embreagem. O Z12 disparou como o Martelo de Tor pelo céu. A injeção de nitroso jogou Mona e Dito de encontro aos bancos. Se os suportes de cabeça não tivessem almofadas, o crânio deles teria se partido como casca de ovo. A visão era distorcida, as cores corriam e se fundiam. Nada era claro, a não ser a pista.
Mona apertou os punhos, mantendo o volante firme. Tudo de cada lado se dissolvia em riscos de velocidade, mas à frente a pista era uma tira sólida e preta, com o carro de Macho ficando cada vez maior no pára-brisa de cristal. Comparado ao Z12, era como se o carro de Macho estivesse de ré, embora o Buldogue não pudesse saber disso. Já estava disparando tiros de vitória pela janela.
Olhe o retrovisor, seu retardado, pensou Mona. Veja o que está chegando em cima de você.
Parece que Macho fez exatamente isso, porque seus canos de descarga dispararam em azul quando ele injetou 0 nitroso no motor. O carro dos Buldogues saltou para a frente, com mais 50 km/h adicionados à velocidade. Tarde demais, o Z12 era uma bala robótica disparando pela pista como um raio saindo da barriga de uma nuvem de tempestade.
— Incrível — disse Mona, com a palavra estremecendo pelos dentes trincados. — Esse negócio é um animal.
Dito riu para Macho enquanto passavam por ele. Um riso presunçoso e irritante que faria com que qualquer pessoa do outro lado quisesse lhe causar danos sérios. Possivelmente Macho não conseguia ver o outro carro, quanto mais a cabeça risonha do Bebê Bartoli, mas isso fez Dito se sentir melhor.
Dispararam pela linha de chegada, ativando os fogos de artifício da vitória. Cinco quilômetros em menos de um minuto. A parede da fábrica se erguia enorme diante deles.
— Você esqueceu de frear — gritou Dito acima do rugido do motor. — Seu ex-namorado disse para frear cedo.
Mona pisou fundo o acelerador, indo na direção de um estrondo sônico.
— Ele não é meu ex-namorado, e você quer mesmo parar para bater papo com o tal de Macho?
— Não é a melhor idéia. Mas que opção nós temos?
— Podemos passar por aquele portão.
Dito apertou o nariz e soprou até seus ouvidos estalarem, para o caso de a pressão estar interferindo com a audição.
— Passar pelo... você está completamente maluca?
— Pense bem. Nós vamos sair da rampa a uns trezentos por hora. Aquele portão não passa de polímero plástico, o carro é de liga enrijecida. Temos uma boa chance de conseguir.
— Deve haver outro modo.
— Sou toda ouvidos: você tem três segundos.
— Mona, não me faça bater em você.
— Se você tiver uma marreta no bolso, eu começo a me preocupar.
Dito ficou na posição para o choque, com a cabeça entre as pernas.
— Estamos mortos — murmurou.
A parede de ferro fundido crescia diante deles, a segundos de distância. Uma procissão acelerada de carros das gangues vinha pelo piso da fábrica. No alto, os Parasitas chegavam ainda mais perto do nível térreo. E havia mais um fator, algo que ninguém poderia ter previsto. Algo raramente visto no Bushka: parajurídicos.
O motor do Z12 se desligou.
— O quê? — disse Mona.
Todas as quatro rodas se travaram simultaneamente e dois minipára-quedas saltaram do aerofólio traseiro.
— Nada bom — murmurou Mona, lutando com o volante imóvel.
O painel do Z12 se acendeu revelando um texto iluminado por trás. Trava remota Myishi Z12. Saia do veículo.
O carro girou e parou, com uma das rodas pendendo sobre a beira da pista.
Dito levantou a cabeça devagar.
— Estamos mortos?
— Não, fomos travados.
Dito se empertigou cautelosamente.
— Graças a Deus.
Mona saiu do carro, sacudindo a cabeça para afastar a tontura da velocidade. A situação estava rapidamente se aproximando do nível crítico, e só podia piorar. As gangues chegariam a qualquer segundo e Miguel não poderia salvá-los de novo, mesmo se quisesse. Ela se virou para os céus. Stefan era a única chance, lá em cima vigiando-os como seu anjo da guarda particular. Ele viria. Ela sabia que sim.
Mas havia mais uma coisa. Acima do poleiro de Cosmo e Stefan. Várias coisas.
Dito saiu cambaleando do Z12.
— Estive pensando, Vasquez. Se nós fomos travados, quem travou?
Mona apontou para várias dezenas de figuras sombrias descendo em queda livre na direção das estruturas dos painéis solares.
— Eles.
Lá em cima, no vigamento da fábrica da Krom, Cosmo e Stefan assistiam à corrida com uma mistura de terror e fascínio. Num determinado momento, o telefone de Stefan vibrou. Ele verificou a tela.
— O que é? — perguntou Cosmo. Stefan apagou o texto.
— Está tudo bem. Vejo você daqui a pouco.
— Tudo bem, saquei. Não perguntar.
Stefan assistiu ao fim da corrida através do binóculo.
— Estranho.
— Estranho? — perguntou Cosmo. — O quê? Stefan passou o binóculo.
— Eles pararam. E foi uma parada de emergência. Eu tinha certeza de que Mona iria atravessar o portão. Por que ela parou na pista como um alvo fácil? A não ser...
Cosmo sentiu um frio na testa enquanto o sangue sumia do seu rosto. A não ser o quê? Esperou que Stefan terminasse o pensamento.
— A não ser que alguém tenha parado o carro para ela.
Através do binóculo, Cosmo viu Mona apontar para o teto acima deles. Virou-se de costas, forçando a vista através dos gigantescos painéis até o céu noturno do outro lado. Dezenas de figuras sombrias atravessavam o ar na direção dos buracos do teto.
— Essas coisas são de verdade? Ou são outras criaturas que só nós podemos ver?
Stefan pegou o binóculo, apontando-o para o teto. Várias figuras vestidas de preto entraram em foco. Pára-quedas de combate se estendiam atrás delas, e havia jatos de gás direcional presos a cada calcanhar. Aninhados nos braços das figuras havia pesados fuzis de assalto. E um logotipo de empresa gravado em cada capacete. O mesmo logotipo que piscava no Satélite.
— Corporação Myishi — disse Stefan. — Parajurídicos. Estão aqui por causa do Z12.
— O quê? Tudo isso por causa de um carro? Stefan se ajoelhou na grade, puxando o sobretudo acima da cabeça.
— Aquele carro custou bilhões de dinares para ser desenvolvido. Perdê-lo foi um verdadeiro chute nos dentes da Myishi. Provavelmente essa é a primeira vez que ele fica fora de um cobertor de chumbo por tempo suficiente para ser rastreado.
Stefan levantou a aba do casaco.
— Entre aqui embaixo, depressa, e reze para não sermos vistos.
Cosmo se arrastou para baixo do couro, sob a axila de Stefan. O casaco cheirava a trabalho árduo e disparos de
— Preciso ir mais baixo — murmurou Stefan. — Não posso ajudar daqui de cima.
Cosmo bateu na grade de metal com o punho.
— Por que não chove quando a gente quer? Stefan olhou-o estranhamente.
— Chuva? Claro, nós precisamos de água para afastar os Parasitas. Pelo menos podemos fazer isso.
— Agora você está dizendo que é capaz de fazer chover?
Stefan estava de pé, indo na direção de uma escada de acesso.
— Eu não, mas eles podem.
— Eles? — gritou Cosmo, correndo atrás do Super-naturalista. — Eles quem?
— Lá. Na porta. Volte ao Fundimóvel; tente se juntar a Mona e Dito se eles conseguirem sair.
Cosmo continuava sem entender. A única coisa na porta era um tanque de assalto com dez metros de altura. Sem dúvida Stefan não pretendia tomar um deles. Cosmo seguiu Stefan escada abaixo. Não tinha intenção de voltar ao Fundimóvel. Se Stefan ia atacar um tanque de assalto, ele ia junto. Afinal de contas fazia parte do time.
— Parajurídicos — ofegou Mona. — Os piores dos piores.
Os parajurídicos eram um cruzamento triplo entre advogados, pára-quedistas e pit bulls. Significavam o último recurso das corporações, e só eram soltos quando havia muito dinheiro em risco.
Mona deduziu imediatamente.
— Eles estão querendo o carro. — E agarrou Dito pelo colarinho, arrastando-o até a borda da pista. — A Myishi desligou o carro. Deve haver algum tipo de rastreador no equipamento. Precisamos procurar cobertura.
— Cobertura?—grasnou Dito, meio estrangulado pelo aperto da colega. — Eles só estão atrás do carro.
— E de qualquer um que o tenha visto ou trabalhado nele. Eles não podem se arriscar a que outra corporação roube as idéias da Myishi. Todo mundo aqui vai ser levado para interrogatório.
— Interrogatório? Algumas perguntas educadas e uma xícara de café sintético?
Mona fez "tsk-tsk".
— Claro. Algumas chocantes e uma xícara de sódio pentatol. Vamos ter sorte se conseguirmos contar até dez depois de eles terminarem.
Dito confirmou com a cabeça.
— Cobertura. Boa idéia.
Pularam da linha de montagem, serpenteando entre as colunas de ferro que a sustentavam. O asfalto estava cheio de embalagens de suco e chiclete. O fedor de gerações de lixo variado era pungente nas narinas.
Dito bateu na manga da camisa como se isso pudesse desalojar o cheiro.
— Essa jaqueta está arruinada. Nunca vou tirar o fedor. Mona se arrastou mais fundo nas sombras.
— Pelo menos você vai ter nariz para sentir o fedor.
Os tiros começaram. Enormes bolhas de celofane líquido estouravam, cobrindo os líderes das gangues e seus carros, seguidas por ruidosos jatos de eletricidade.
— Estão recebendo o tratamento de alcatrão e fagu-lha — exclamou Dito. — Quase tenho pena deles.
Macho passou a toda pelo esconderijo dos dois, com as luzes do peito piscando furiosamente. Uma chocante acertou seu cotovelo, lançando uma carga que se espalhou pelo tronco. As lâmpadas embaixo de sua pele explodiram como balas. Em menos de um segundo havia um Parasita em cima dele. Macho continuava lutando, sem notar, gritando de fúria contra qualquer um. Por fim, um parajurídico o acertou casualmente com uma bala de celofane. O líder dos Buldogues se sacudiu debilmente sob uma camada de líquido pegajoso.
Um rugido baixo veio dos fundos do salão, como um lobo rosnando num túnel.
Mona conhecia o som de cada motor que havia.
— Tanques de assalto. Vieram limpar a sujeira. Temos de sair desse lugar.
A cabeça de Dito balançou num fingimento de felicidade.
— Não diga!
Arrastaram-se em meio a anos de lixo, procurando uma abertura nas forças da Myishi. Mas os parajurídicos eram eficientes, além de mortais. Obviamente tinham demorado algum tempo examinando o prédio antes do ataque. Cada centímetro quadrado era coberto por um soldado da Myishi. Eles se prendiam ao corrimão dos níveis superiores, triangulando o fogo para isolar o prédio. Em questão de minutos a maioria tinha chegado ao chão e estava arrebanhando qualquer vítima consciente para dentro das cadeias dos tanques.
Enquanto isso, os Parasitas sugavam força vital com um prazer horrendo, luzindo em dourado com energia redemoinhante. Era quase insuportável de ver. Boa parte de Mona queria se embolar sob uma trave metálica e dormir. Dormir e sonhar com paz e felicidade. Se eu sair dessa, pensou, vou desistir de vez. Talvez vá para a América do Sul ganhar a vida mergulhando para pegar conchas. Claro, se houver no planeta um litro de água do mar que não corroa minha pele.
— Não estou vendo saída — bufou Dito.
Mona notou Miguel sendo levado para longe, com as feições praticamente irreconhecíveis debaixo da camada de celofane. Havia um Parasita grudado em seu peito.
— Nem eu. Stefan vai fazer alguma coisa. Ele não iria nos deixar aqui. Ou talvez Cosmo possa tirar outro milagre do bolso.
Dito fez uma careta.
— Eu gosto do Cosmo, mas ele é uma criança. O negócio da Calafrio foi sorte, ele não vai salvar ninguém.
Mona coçou a testa com o nó de um dedo.
— Errado, Dito. Há alguma coisa naquele garoto. Ele tem coragem. E miolos. Cosmo vai tirar todos nós daqui. Sei que vai.
Cosmo seguiu Stefan descendo por uma escada de metal rodeada por uma gaiola tubular. Stefan ouviu os passos dele batendo nos degraus.
— Achei que eu tinha mandado você voltar ao Fundimóvel — sussurrou, cauteloso com os dois parajurídicos uns 12 metros abaixo.
— Mona e Dito estão presos lá embaixo — respondeu Cosmo simplesmente. — Tenho de ajudar. Ninguém mais está fugindo, por que eu deveria fugir?
Stefan levantou sua placa distorcedora por um momento. Parte da tensão saiu de seus ombros. Estava feliz por ter Cosmo junto.
— Certo, bom, você é um Supernaturalista. Cabeça-dura, como o resto de nós. Eu tenho de chegar àquele tanque de assalto no canto nordeste. Você pode abrir um buraco para mim.
— Abrir um buraco?
— Vamos descer ao próximo nível e pegar emprestados uns bastões Myishi. Eu vou correr para o tanque e você derruba qualquer um que apontar uma arma para mim.
Cosmo engoliu em seco. Isso era guerra. Stefan estava falando de guerra.
— E você?
Stefan baixou a máscara sobre o rosto.
— Eles provavelmente vão me pegar, mas você pode sair pelo mesmo lugar por onde nós entramos. Uma distração é o único modo de salvar Mona e Dito.
Cosmo arrancou uma decisão de algum lugar.
— Tudo bem. Vou fazer o possível. Vamos. Stefan piscou por trás das lentes vermelhas.
— Bom. E se por acaso você acertar alguns Parasitas, não vou ficar muito chateado.
Cosmo engoliu em seco, tentando destravar o coração que parecia agarrado na garganta, e seguiu Stefan escada abaixo. Os pés de Stefan não pareciam fazer som algum, mas para os ouvidos de Cosmo suas próprias botas pareciam sinos de igreja nos degraus.
Abaixo, os dois parajurídicos estavam se divertindo, disparando um cobertor de celofane num canto da fábrica. Seus fuzis davam coices enquanto eles mandavam os cartuchos em arco na direção de um grupo de Doces.
— Que nem pescar num barril — disse um deles.
— Tirar doce de uma criança — concordou o outro. Stefan desceu os últimos metros, parando atrás dos advogados. Sem parar para uma frase engraçadinha de herói, bateu a cabeça dos dois, uma contra a outra, e os homens escorregaram pelo poço da escada sem soltar um gemido.
— Advogados — grunhiu Stefan, soltando os fuzis deles. — Eu gostava mais deles quando lutavam com pastas. — Em seguida dobrou um deles em cima do corrimão, removendo seu equipamento de rapei. Depois soltou as tiras até o limite máximo, prendendo o arnês no peito.
— Vou o mais rápido possível. Espero que quando eles notarem que não sou da Myishi, já seja tarde demais.
Cosmo se deitou na passarela. Stefan enfiou um bastão pesado em seus braços.
— Está ajustado para balas de celofane. Aponte mais alto do que o alvo, essas balas costumam cair um pouco. Sessenta centímetros acima da cabeça está bom. Você tem umas vinte balas nesse bastão, e talvez umas trinta no outro.
Cosmo examinou a espantosa variedade de válvulas, canos e botões.
— Não sei mexer nisso.
Stefan girou o bastão, encostando a culatra no ombro de Cosmo.
— Pense nele como um computador: não é necessário saber como ele funciona, nem usar todas as funções. Só precisa da mira, do cano e do gatilho. — Ele fez uma lente se levantar do nicho no cano, usando a almofada de sucção para grudá-la ao olho direito de Cosmo.
— A mira dá a distância do alvo, as condições do vento e o número de balas no pente. Deite-se na passarela e atire em qualquer um que me olhe esquisito.
Cosmo se deitou.
— Mas e se...
— Não tem tempo para e se — interrompeu Stefan, prendendo o gancho do rapei numa grade. — Faça o melhor possível. Lembre-se de que Mona e Dito dependem de nós.
Sem pressão, pensou Cosmo, sombrio.
Stefan pulou por cima do corrimão, mergulhando para o piso da fábrica, trinta metros abaixo. Cosmo acompanhou seu progresso com o cano do bastão, enquanto a mira eletrônica passava imagens ampliadas para seu olho direito. Stefan estava descendo para um mundo de loucura. Tanques de assalto rugiam pelo piso, atirando com balas de canhão contra qualquer fugitivo desgarrado. Parasitas sugavam força vital dos feridos, e membros das gangues lutavam em balões de celofane como almas presas no inferno.
O equipamento de rapei reduziu a queda de Stefan, mas a corda terminou quando ele ainda estava a uns seis metros de altura. Seu peso fez o carretei se soltar e o rapaz caiu no chão. Felizmente um esquadrão de parajurí-dicos interrompeu sua queda. Stefan já estava sem o arnês e correndo antes que os gemidos parassem.
Um parajurídico conseguiu ficar de pé, cambaleando atrás de Stefan. Cosmo moveu o cano do bastão e a mira o acompanhou. Centralizou as barras cruzadas na cabeça do parajurídico, depois se lembrou do conselho de Stefan e levantou o cano uns sessenta centímetros.
— Ei, você! — gritou o advogado para Stefan, e Cosmo disparou.
Uma bala saiu do cano e acertou entre as omoplatas do sujeito. Um mar de gosma explodiu da bola minúscula, grudando o homem ao piso da fábrica.
Stefan continuou correndo, estourando um mar de Parasitas no caminho. Globos azuis subiam como balões de festa. Ele estava indo direto para um tanque de assalto. Mas por quê? O que poderia conseguir?
Não havia tempo para perguntas, e menos ainda para respostas. Mais dois parajurídicos tinham notado Stefan e, soltando os pára-quedas, levantaram ás armas.
Cosmo apontou e atirou. Baixo demais. As balas espir-raram no chão. Sessenta centímetros acima da cabeça. Concentre-se. Concentre-se.
Disparou outra vez. Dois tiros em rápida sucessão. O bastão deu um coice em seus braços e os parajurídicos se viram emaranhados num invólucro de celofane.
Um à esquerda. Abaixado. O parajurídico disparou uma bala que acertou Stefan entre as omoplatas, fazendo-o cambalear três passos para a frente. Cosmo não podia afastar os olhos do outro Supernaturalista. A experiência o salvou. Stefan tirou o sobretudo. Em segundos o casaco de couro estava lacrado, mais apertado do que uma bola de futebol.
Sorte, pensou Cosmo. Sorte. Disparou cinco balas contra o atirador. Três acertaram o alvo.
Stefan tinha quase chegado ao objetivo. Faltavam vinte metros para o tanque. Havia um ajuntamento de soldados numa passarela um andar acima. A horda final, afora o tanque em si. Stefan disparou algumas chocantes para a passarela. A maioria dos parajurídicos usava isolamento completo, mas dois tinham retirado as luvas e estavam segurando o corrimão. Desmoronaram soltando fumaça. Cosmo cobriu o resto com uma rajada de balas de seu bastão emprestado.
Um logotipo vermelho piscou na mira de Cosmo. Um pente de munição. Estava sem balas. Pôs o bastão de lado e puxou o segundo pela alça. Rapidamente trocou de mira e focalizou Stefan.
Era difícil ignorar o caos em volta. Enxames de parasitas, membros das gangues lutando, carros circulando pela fábrica numa tentativa inútil de achar uma saída. Celofa-ne cobrindo o chão e as paredes.
Concentre-se, ordenou Cosmo a si mesmo. Uma emergência de cada vez.
O artilheiro do tanque notou Stefan e girou a torre principal na direção dele. O Supernaturalista tentou se desviar, mas o cano da arma estava travado nele e acompanhava seus movimentos com facilidade fluida. Stefan pareceu desistir e ficou imóvel com as mãos levantadas. Através da mira do bastão, Cosmo viu o indicador da mão direita de Stefan. Estava apontando para o cano do canhão do tanque. Um recado. Atire no cano!
Era um tiro em um milhão, mesmo com a mira.
Cosmo se levantou para obter um ângulo melhor, pousando a arma no corrimão. Sessenta centímetros acima do buraco do cano. Não havia sentido em ser delicado. Atirou contra o tanque tudo que havia no pente. Pelo menos uma bala acertou o alvo, indo em espiral para a barriga do veículo. Neste exato momento um obus chocante tentou sair da câmara do canhão. Não conseguiu, dispersando a carga no próprio tanque. Quem estava com a mão no painel de controle deve ter recebido um choque suficiente para ficar apagado por pelo menos um minuto.
Stefan estava agindo de novo. Deu um salto, agarrou o cano do canhão e foi se movendo, pendurado. Abaixo do canhão principal havia um cano secundário. Curto, com buraco ajustável. Um canhão d'água para controle de multidão. Claro! Água!
Stefan balançou de novo e de novo, batendo com as botas na torneira de regulagem. Atrás daquela válvula estavam vinte mil litros de água pressurizada esperando para ser liberada. A torneira gemeu, se sacudiu e finalmente saltou, permitindo que a água jorrasse num jato poderoso. Espalhou-se rapidamente pelo chão da fábrica. Soldados, veículos e membros de gangues se espalharam diante do dilúvio, mas, mais importante, os Parasitas abandonaram suas vítimas, espalhando-se depressa nos níveis superiores. Qualquer um que era apanhado na torrente chiava e soltava fagulhas antes de se juntar, grogue, ao resto do bando.
Cosmo virou a arma vazia na direção do esconderijo de Mona. A mira revelou a garota projetando a cabeça por baixo da pista. Então, aproveitando a confusão completa criada por Stefan, ela enfiou Dito embaixo do braço e correu para um túnel de ventilação na parede mais próxima. Nenhum soldado da Myishi a viu. Os dois entraram e desapareceram na escuridão. Não havia mais nada que Cosmo pudesse fazer por eles.
Enquanto isso Stefan tinha se soltado do cano do canhão, caindo no piso da fábrica. Agora estava desarmado e em espaço aberto. Sua atitude tinha atraído a atenção de vários parajurídicos da Myishi, que o cercaram como chacais, com os bastões apontados para o adolescente.
Stefan levantou os braços, com os dedos abertos, mas os parajurídicos não iriam deixá-lo se entregar calmamen- te depois da destruição que tinha provocado. Acertaram- no com pelo menos uma dúzia de cartuchos de celofane, e cada um deles se espalhou sobre seu corpo como um óleo grudento. Cosmo viu o Supernaturalista cair, os dedos claramente gadanhando a gosma que ameaçava espremer a vida para fora dele. Na parede, vários Parasitas sentiram sua dor e deram passos hesitantes na direção dele. Mas havia água demais.
Cosmo bateu com os punhos no corrimão. Não havia nada que pudesse fazer além de olhar.
— Belo tiro, garoto — disse uma voz.
Cosmo se virou. Um parajurídico Myishi estava parado mais adiante na passarela, com o bastão apontado para seu peito. Dois fios de luz vermelha se cruzavam em sua jaqueta. A essa distância não havia necessidade de mirar alto.
— Você tem alguma idéia de quantos dinares vai custar para consertar aquele tanque de assalto?
Cosmo balançou a cabeça. Não falou porque estava prendendo o fôlego, inflando o peito o máximo possível. Isso tornaria mais fácil respirar, se fosse embrulhado.
O advogado notou a tática.
— Ei, garoto. Não se preocupe, não vou embrulhar você. Você vem em paz, não é?
— Tudo bem — disse Cosmo, cauteloso.
— Então está bem — disse o parajurídico, puxando o gatilho. Uma bala de celofane veio em arco por sobre a passarela, chocando-se no peito de Cosmo. Ele ficou olhando desamparado enquanto o vírus se espalhava pelo tronco. Em segundos estava dentro de um casulo maligno que espremia cada osso de seu corpo até quase estalar.
Através do tom prateado do celofane, Cosmo viu o advogado se curvar sobre ele.
— Opa — disse o sujeito, com a voz abafada pelo plástico. — Meu dedo escorregou.

CAPÍTULO 6
ESP-NOCAT 4

Torre Myishi
COSMO não se lembrava da viagem até a sede da Corporação Myishi na avenida Jornada. As balas de celofane tinham algum tipo de sedativo leve, o que era bom, porque se a pessoa ficasse muito agitada ali dentro podia partir as costelas respirando forte demais.
Foi tirado da traseira de um tanque de assalto e jogado num enorme tanque de plastividro cheio de um solvente viscoso e amarelo. Já estivera num tanque antes, no Instituto. O solvente iria deixá-lo com ânsias de vômito durante horas, assim que entrasse em seu organismo. O nariz e a boca de Cosmo eram mantidos acima do líquido por um negócio parecido com um desentupidor de pia grudado no topo de sua cabeça. Se aquilo fosse retirado antes de o solvente agir, ele poderia ser queimado pelo desentupidor
e terminar com uma grande careca redonda. Mas não havia sentido em se preocupar com isso agora. Não podia fazer nada, nem que o sedativo lhe permitisse reunir força de vontade. A melhor coisa a fazer era flutuar ali e manter a respiração estável. Respirações curtas e constantes que não pressionassem as costelas.
De certa forma era um alívio não ter o que fazer. Nenhuma missão louca, nenhuma cabriola que desafiasse a morte à meia-noite e nenhuma criatura sobrenatural espiando-o com olhos redondos.
Então um Parasita se grudou do lado externo do tanque, olhando através do plastividro. Mas Cosmo estava seguro ali dentro. As criaturas não podiam enfrentar o líquido.
Em qualquer outra ocasião, seria enervante ter aquele demônio tão perto. As almofadas azuis brilhantes das mãos com quatro dedos se grudavam ao plastividro. Eles se en-treolharam, garoto e criatura, através de uma névoa amarela. Na mente de Cosmo, os olhos do Parasita falavam com clareza absoluta. Não há como fugir de mim, diziam.
Depois de vários minutos encarando-se implacavelmente, o Parasita se desgrudou do plastividro. Sem dúvida existia vida a ser sugada em outro lugar.
Cosmo se deixou afundar numa espécie de transe. Os acontecimentos dos últimos dias ricocheteavam em sua cabeça como bolhas de óleo numa lâmpada de lava. Quem ele era agora? Colin Cosmo, sem-patrocínio fugitivo, ou Colin Cosmo, o Supernaturalista? Quem era Colin Cosmo, afinal de contas? Produto do Clarissa Frayne, sem algo que pudesse ser chamado de personalidade. Com 14 anos e nunca tinha beijado uma garota.
Mona Vasquez. O que havia nela que fazia seu estômago se revirar? Uma vez tinham injetado em Cosmo uma cepa fraca de malária como parte de um teste de vacina. A malária causava praticamente o mesmo efeito de Mona. Era uma pena. Seus sentimentos não tinham sentido. Que garota com a cabeça no lugar notaria Cosmo, mesmo que ele estivesse em cima de um bolo de aniversário e com um coração de néon?
Mesmo assim a imagem de Mona cresceu em sua cabeça até deslocar todas as outras. O sorriso, o cabelo preto se encaracolando sobre a gola. Aqueles olhos escuros como dois botões de chocolate. Ela parecia flutuar no líquido diante dele, estendendo a mão para acariciar seu rosto.
O sedativo fez Cosmo falar. Bem que podia ser, raciocinou ele. É só uma alucinação.
— Mona — disse ele, e estranhamente não havia mais celofane cobrindo seu rosto. — Eu realmente gosto de você.
— É mesmo? — disse o homem grandalhão e barbudo que cuidava do tanque e estava levantando o equipamento que segurava Cosmo. — Eu também gosto de você, queridinho.
O homem lavou Cosmo com uma mangueira, com um riso de desprezo o tempo todo, depois jogou-o tremendo numa cela almofadada. Quando saiu, jogou um beijo por cima do ombro.
— Adieu, meu príncipe, até a gente se encontrar de novo.
Cosmo estava ocupado demais vomitando no cocho de alumínio para responder. Não que fosse dizer alguma coisa, mesmo que pudesse. No Clarissa Frayne aprende-se a ficar de boca fechada. Todos os sem-patrocínio sabiam disso, menos Ziplock.
Quando se recuperou o bastante, rasgou um pedaço de papel de um rolo preso à parede e se enxugou. Depois arrastou um catre de aço pelo cômodo até estar diretamente abaixo da entrada de ar, e se deitou.
Seus hábitos do orfanato estavam retornando, como se ele nunca tivesse ido embora. Afinal de contas, o que eram alguns dias em 14 anos? Nem mesmo um por cento. Nem de longe. E no entanto sentiu que tinha vivido mais nos últimos dias do que em todos aqueles anos juntos.
Quando alguém era jogado na solitária no Clarissa Frayne, havia certos métodos de sobrevivência que todos os sem-patrocínio conheciam. Em primeiro lugar: durma o máximo possível. Isso afastava a mente da comida e da situação em geral. Um órfão experiente era capaz de dormir até 16 horas por dia.
Em segundo lugar não pense na liberdade. Desejar que os dias passem só faz com que eles pareçam mais longos. E por fim tente não querer nada, especialmente pais. Isso só vai partir o coração.
Cosmo ficou deitado de costas, olhando o teto. O sono não queria vir. Havia coisas demais acontecendo em sua cabeça. Supernaturalistas, Parasitas, Doces, Buldogues, um Bebê Bartoli e, claro, Mona.
Graças a Deus ele só havia declarado seu afeto ao homem que cuidava do tanque. Mona provavelmente riria na sua cara. Provavelmente. Não que fosse vê-la de novo. Cosmo não tinha dúvida de que, assim que examinassem seu DNA e descobrissem quem ele era, estaria no primeiro metrô de volta ao Clarissa Frayne e ao bedel Redwood.
Algum tempo depois o homem do tanque voltou, ainda com um riso enorme. Um homem feliz com seu trabalho.
— Muito bem, queridinho — disse ele, cocando um trecho de barba crescida entre duas papadas. — De pé. Alguém quer falar com você.
— Quem? — perguntou Cosmo pousando as botas úmidas no chão.
O homem do tanque levantou o queixo do garoto com um cassetete.
— O que você disse? Você fez uma pergunta?
— Não — respondeu Cosmo depressa. — Quero dizer, não, senhor.
— Assim está melhor. — O carcereiro virou as costas. — Venha atrás de mim e fique entre as linhas amarelas, caso contrário um dos guardas vai embrulhar você de novo.
O homem do tanque o guiou por um corredor comprido até uma fileira de elevadores. Havia duas grossas linhas amarelas no chão, e entre elas um piso de linóleo gasto. O linóleo nas laterais era impecável.
Cosmo parou diante do primeiro elevador.
— Não, não, queridinho. Você vai ao Observatório. — Ele disse isso num tom de reverência. Como se fosse uma coisa importante. Cosmo o acompanhou até o último elevador, um bloco dourado sem botão de chamada, só um videofone.
O funcionário do tanque parou diante da câmera, ali-sando o cabelo com a mão lambida.
— Estou com o garoto. O que estragou o tanque. Não houve resposta, mas a porta se abriu sem ruído.
— Entre, queridinho — disse o sujeito empurrando Cosmo para dentro.
— Já estou sentindo saudade de você — respondeu Cosmo enquanto a porta se fechava. Por que não? Era improvável que fosse ver o sujeito de novo. De um modo ou de outro.
O elevador subiu tão depressa que parecia ficar totalmente imóvel. Cosmo não percebeu que estava se movendo até que uma das paredes deslizou, revelando uma janela de cristal. O elevador ficava do lado de fora do prédio e disparava para cima como um projétil saindo de um canhão. Do lado de fora a cidade passava rapidamente em linhas turvas de luz. Logo a caixa dourada tinha ultrapassado os outros prédios e navegava para o céu. Cosmo achou que, se o elevador parasse agora, ele continuaria subindo, perdendo-se no universo.
Não havia tempo para pensar em fuga nem para onde fugir. Era o mesmo que falar em fugir de um pára-quedas. Antes que a idéia ao menos lhe ocorresse, o elevador começou a desacelerar, até que parou em algum lugar perto da borda da atmosfera. Parecia que, se estendesse a mão, Cosmo poderia tocar o Satélite Myishi.
A porta deslizou e uma mão muito grande se estendeu para dentro, agarrando Cosmo pela garganta. Ele foi arrastado para a sala mais opulenta que já vira na vida. Na parede havia cabeças de animais empalhadas, coisa totalmente ilegal. Elefantes, ursos, um gorila e centenas de pássaros. Até um golfinho extinto, nadando animatronicamente num tanque de líquido preservativo azul. Sofás baixos acompanhavam as paredes, cobertos por mantas luxuosas. Arte de aparência cara buscava atrair a atenção, inclusive um holograma de um mímico num cubo suspenso.
— Bem-vindo à Corporação Myishi — disse uma voz feminina.
Cosmo olhou para uma pequena área de estar, do outro lado do espaço gigantesco. Havia uma mulher magra reclinada num sofá forrado de pele, passando um dedo pela borda de uma taça de cristal. Pelo menos meia dúzia de guarda-costas estavam a menos de dois metros dela. Cosmo podia sentir os olhos deles através das lentes dos óculos escuros. Óculos escuros à noite. Cada vez mais estranho.
Um dos guarda-costas ajustou um minúsculo mostra-dor na haste dos óculos.
— Ele está limpo — disse o sujeito num tom capaz de lixar madeira. — Nenhuma arma.
Então não eram óculos escuros comuns. A mulher se levantou. Era alta e magra. Mas sem cirurgia. Parecia capaz de fazer mais supinos do que alguns dos seguranças. O bronzeado devia ser pintado, porque ninguém com a cabeça no lugar ficaria ao sol. Seu cabelo era curto, louro com mechas grisalhas nas têmporas. Vestia um terno de linho largo, quase como um pijama, e usava sandálias baixas, de tiras de couro, com um anel de ouro no segundo dedo do pé.
— Então foi você que estragou um tanque de assalto — disse ela. Sua voz era musical, quase hipnótica. — Sabe quanto custa um tanque daqueles?
Cosmo balançou a cabeça.
— Uma fortuna absoluta. Não faz mal, nós temos seguro. A questão é que existe um lacre no cano do tanque para impedir que esse tipo de coisa aconteça. Ele só se abre por um centésimo de segundo antes do disparo de cada projétil. Você conseguiu mandar uma bala de celofane por ali naquela hora. Impressionante, se fez de propósito. Nós examinamos seu DNA, jovem Sr. Colin Cosmo, sem-patrocínio. Você deveria estar morto.
Cosmo decidiu que este seria um bom momento para mudar de assunto.
— Você é a Srta. Myishi?
A mulher riu, uma gargalhada suave que fez com que Cosmo quisesse rir junto.
— Srta. Myishi? Não. Não há um Myishi no comando da corporação há quase cem anos. Nós só mantemos o nome por causa do reconhecimento público. O zaíbatsu Myishi não servia para o mundo empresarial moderno. Muita moral oriental. Meu nome é...
Nesse momento exato a porta do elevador se abriu e Stefan apareceu. Sua testa estava franzida do jeito de sempre, até que ele notou a mulher loura.
— Ellen... Professora Faustino? — disse inseguro. — O que está fazendo aqui? Eles pegaram você também?
Stefan se soltou de dois seguranças que prendiam seus cotovelos e atravessou o salão. Com o gesto de um dedo, Faustino mandou os seguranças de volta para o elevador. Stefan captou o gesto. Parou.
— Você trabalha aqui, professora Faustino? Para a Myishi?
— Agora sou a presidente Faustino, Stefan.
A confusão estava impressa no rosto de Stefan. Essa mulher era uma velha amiga ou uma nova inimiga?
— Presidente? Nunca imaginei que você fosse trabalhar para as corporações, especialmente a Myishi.
— Lutar por dentro, Stefan. Atacar pela retaguarda.
— Bem, você certamente está do lado de dentro. Faustino estendeu as mãos e segurou os ombros de Stefan.
— Bem, bem, bem. O pequeno Stefan Bashkir. Você cresceu.
Cosmo piscou. Pequeno Stefan Bashkir? Quem era essa mulher?
Stefan pareceu sem graça diante daquela atenção. Ele estava mesmo ruborizando?
— Faz mais de dois anos que eu saí do lar de viúvas e órfãos. Na última vez em que a vi você ainda estava na polícia municipal. Agora passou para o outro lado.
A Srta. Faustino pegou um controle remoto fino como I um biscoito na mesinha de centro.
— Não acredite em tudo que ouve falar sobre a Myishi, ] Stefan. Nós fazemos mais bem do que mal. — Ela passou 1 o dedo elegante por um botão e todo o teto da suíte deslizou, revelando as estrelas acima e, claro, o Satélite.
— O Satélite que salvou...
— Que salvou o mundo — completou Stefan. — Todos nós vemos isso pela TV Aparentemente a cada vinte segundos.
Ellen Faustino sorriu.
— Deste jeito, você não viu. Venha aqui, Stefan, e você também, jovem Sr. Cosmo. Sentem-se, a vista é esplêndida.
Cosmo atravessou o tapete fofo, serpenteando entre os guarda-costas que rosnavam. Os sujeitos provavelmente ainda não tinham pegado no pé de ninguém hoje, e só estavam esperando uma desculpa. Ele ocupou um lugar entre Stefan e Ellen Faustino num sofá baixo. O perfume dela o envolveu como algo que tinha sentido uma vez num sonho, mas não conseguia lembrar.
— Confortável? — perguntou ela.
Cosmo assentiu hesitante. Nunca tinham lhe feito essa pergunta. Os bedéis do Clarissa Frayne não eram inclinados a cair no choro se um órfão estivesse desconfortável. Freqüentemente eles eram a causa do desconforto.
Ellen Faustino apertou um segundo botão no controle remoto e o sofá se inclinou para trás, e alto-falantes deslizaram de trás dos apoios de cabeça. Agora estavam olhando direto pelo teto transparente, para o Satélite do outro lado. O teto se flexionou um pouquinho, e de repente tudo foi ampliado mil vezes. Parecia que o Satélite ia se chocar contra o prédio.
Cosmo pulou no assento.
— Relaxe, garoto — disse Ellen, pousando dois dedos finos em seu pulso. — O Observatório costuma ter esse efeito em quem vem pela primeira vez.
Os detalhes eram espantosos. Cosmo podia ver cada painel solar nas asas do satélite. Podia ver jorros de gás dos estabilizadores e jóqueis de antena flutuando diante da superfície da grande parabólica. Era imenso, atordoante.
Stefan não se impressionou tão facilmente.
— O que estamos fazendo aqui, professora Faustino? De que se trata isso?
— Seja paciente, Stefan. Esse sempre foi o seu defeito. Algumas vezes uma história é grande demais para ser contada num fôlego só.
Ellen Faustino apertou uma combinação de botões e várias telas surgiram na lente gigantesca. As telas transmitiam antigos noticiários do início do milênio. Cenas da Europa e do Oriente Médio arrasados pela guerra, fome na África e terremotos na América do Sul. O som envolvente saía dos alto-falantes.
Ellen Faustino fornecia os comentários.
— Não faz muito tempo, o mundo estava se despedaçando. Simplesmente não havia espaço para todos nós no planeta. O Satélite Myishi avançou um bocado na solução desse problema.
Stefan cruzou os braços e apoiou uma das botas sobre a outra, com ruído: a linguagem corporal internacional para Corta essa.
— Eu sei qual é sua opinião sobre o Myishi, Stefan. Mas só me dê uma chance e acho que você vai descobrir que estamos lutando contra o mesmo inimigo.
— Duvido — murmurou Stefan.
— O problema é que os países não estavam sendo governados por empresas. As decisões eram tomadas a partir de religião ou de história, que são notoriamente motivos pouco sensatos para fazer qualquer coisa. Estados desmoronaram por causa do fanatismo e disputas antigas de séculos. A Corporação Myishi assumiu todos esses problemas, e acho que estamos vencendo.
— Como pode dizer isso? — exclamou Stefan. — Partes da cidade estão no caos. Pessoas morrem de fome.
— Não estou dizendo que as coisas são perfeitas, Stefan. Tem havido pequenos entraves. Mas este é um novo sistema. As cidades-satélites podem resolver o problema de população no mundo. O armazenamento no espaço é o futuro, Stefan, esta é a verdade. Cada casa tem uma média de dez equipamentos comandados por computador. Você percebe quanto espaço de memória isso ocupa? Numa cidade deste tamanho, isso significa dez quarteirões, só para os equipamentos domésticos. E nós temos a administração, viagens, comunicações. Armazenamos tudo isso num satélite em órbita geoestacionária sobre a cidade, constantemente se atualizando, constantemente consertando a si mesmo.
Cosmo foi o primeiro a perceber onde isso ia levar.
— Consertando a si mesmo até agora — disse ele. — Ultimamente o satélite vem fazendo muita besteira.
Ellen Faustino desligou as imagens dos noticiários.
— Isso mesmo. A coisa está ficando cada vez pior. Como vocês podem ver, nós temos esquadrões de jóqueis de antena trabalhando dia e noite. Algumas coisas nós pudemos encobrir, mas a notícia está se espalhando. As ações da Myishi estão caindo tremendamente.
— Os doentes e os sem-teto não se incomodam muito com as ações — disse Stefan.
Um lapso de irritação franziu os lábios de Ellen Faustino por um instante, e desapareceu.
— Essas coisas estão sendo abordadas, Stefan. Nós temos projetos de longo prazo, em desenvolvimento. Abrigos, esquemas de emprego, clínicas de reabilitação. Estou fazendo o máximo para levantar dinheiro da Myishi International em Berlim. De fato, a Central assinou uma verba de quarenta bilhões de dinares para o serviço social da cidade, até que este último problema surgiu.
— Que problema? — perguntou Stefan, tentando fingir apenas um interesse casual.
— Ah, acho que nós dois sabemos qual é. — Ellen Faustino se levantou do sofá, ajeitando o terno de linho.
Stefan já estava fora do sofá, olhando os olhos da mulher.
— Eu perguntei: qual é o problema, professora? Ellen o encarou de volta, nem um pouco intimidada.
— Não fale comigo assim, Stefan. Sua mãe não aprovaria. Por esse motivo você e seu ajudantezinho não estão no bloco de interrogatórios agora mesmo.
Ela passou outras imagens nas telas do teto.
— Olhe, Stefan. Estão tocando a sua música.
Stefan se acomodou no sofá. Em cima, uma cena familiar foi projetada digitalmente. Mostrava os Superna-turalistas explodindo Parasitas em cima do Edifício Stromber, em gloriosas cores reais.
Stefan piscou para Cosmo.
— Isso não prova nada. Aquelas pessoas estão usando placas distorcedoras, não dá para ver quem elas são. E, mesmo que desse, elas não estão machucando ninguém.
Faustino olhou em volta dramaticamente.
— Isto aqui não é um tribunal, Stefan. Não estou vendo nenhum advogado. Se eu quisesse acusar você, teria feito isso há dois anos.
A surpresa de Stefan atravessou sua máscara de indiferença.
— Você o quê?
— Isso mesmo, rapaz. Estou com o olho eletrônico vigiando você há um bom tempo. Um visor especial no satélite, dedicado às suas atividades noturnas. Bem, se você insistir em ficar correndo pelos telhados. Tenho muitas imagens de seu rosto sorridente sem uma placa distorcedora. Para não mencionar a Srta. Mona Vasquez e um certo Lucien Bonn, vulgo Dito. Tenho provas suficientes contra seu grupinho para enterrá-los mais fundo do que um túnel de mineração.
Stefan apertou os punhos com tanta força que os nós dos dedos estalaram.
— O que está acontecendo?
— Você não quer saber por que nunca o prendi?
— Até esta noite — corrigiu Stefan. Ellen Faustino balançou as mãos.
— Esta noite foi um erro. Vocês se misturaram com a operação de outro departamento. Se soubesse dos favores que tive de cobrar para trazer os dois para minha custódia! Eu estive tentando achar você nas últimas duas semanas.
— Pensei que você era a presidente. Sem dúvida podia nos rastrear com seu Satélite que tudo vê, não é?
— Eu sou apenas a presidente dos Projetos de Desenvolvimento. O prefeito Ray Shine é o chefão. Ele nem sabe que nós estamos trabalhando juntos.
De novo Stefan ficou perplexo.
— Agora nós estamos trabalhando juntos?
— Claro que você não sabia. Você vem cuidando do problema de infestação da cidade, ou pelo menos era o que pensávamos.
Arrá, pensou Cosmo. Aí vem o motivo para nós não estarmos sentindo dor agora mesmo.
— Infestação? — perguntou Stefan com inocência. Ellen Faustino sorriu.
— Ah, qual é, Stefan. Não banque o sonso comigo. Eu também os vejo, sabe?
— Vê quem? Vê o quê?
Ellen Faustino foi até sua mesa, ativando uma projeção em 3D no chão. Em seguida transferiu as imagens do
Stromberg da tela do teto, e uma projeção em alta definição em 3D dos Supernaturalistas saltou para a vida no centro da sala. Filmados de cima, eles pareciam personagens em um videogame. Um único Parasita se arrastava por uma parede adjacente. Ellen congelou a imagem, manipulando o vídeo até que só restasse o Parasita.
— Eu os vejo, Stefan. Esp-nocat 4. Os devoradores de vida.
Pela terceira vez em poucos minutos, Stefan estava perplexo.
— Você vê? Esp-nocat o quê? Ellen ampliou a imagem do Parasita.
— Esp-nocat 4. Espécie Não-categorizada Quatro. As outras três são criaturas do fundo do mar que temos bastante certeza de que existem, mas ainda não pudemos capturar. Uma espécie é vista como não-categorizada enquanto não é capturada e examinada. Claro que nem todo mundo pode ver isso. Para uma pessoa normal, nós estamos olhando uma projeção vazia, mas para alguns poucos, inclusive seu grupinho, a verdade é clara demais.
Ellen se virou para os seguranças.
— Fora. Todos vocês.
O chefe dos seguranças deu um passo à frente.
— Presidente Faustino, isso vai contra os regulamentos. Ela não disse nada, só olhou para as lentes do sujeito.
O gorila de cento e tantos quilos recuou em menos de cinco segundos.
— Muito bem, presidente. Estaremos no elevador.
Ellen sentou-se na beira da mesa e ficou quieta até que a porta do elevador se fechou.
— Quando entrei para a polícia, antes de começar a dar aulas, o Bushka era a minha área. Na época ainda havia algum tipo de ordem por lá. Uma noite levei uma facada nas costelas quando averiguava um caso de violência doméstica. Quase morri: saí do corpo, entrei na luz, etcétera e tal. Mas naquela noite vi uma coisa. Uma coisa que desde então consigo ver...
Cosmo sentou-se empertigado.
— Você tem a Visão. Como eu. Stefan suspirou pelo nariz
— Por que simplesmente não assina uma confissão, Cosmo?
— Eu guardei segredo desses avistamentos — continuou Ellen —, convencida de que estava louca. Mas então ouvi falar de outra pessoa que arengava sobre criaturas azuis. Você, Stefan, depois do acidente. Você virou uma tremenda piada na academia de polícia durante um tempo. Seção oito, era o que todo mundo dizia. Como sua tutora pessoal e amiga da família, tentei ajudá-lo a superar o trauma. Esperava que você se abrisse comigo.
Os olhos de Stefan se arregalaram.
— Todas aquelas sessões de terapia. Todas aquelas perguntas sobre estresse pós-traumático e alucinações.
Ellen suspirou.
— Mas você não quis se abrir comigo. Aparentemente havia percebido que ninguém queria escutar.
— Todo aquele tempo juntos na academia, e nós dois tínhamos o mesmo problema. Por que não me contou?
— Deveria ter contado, eu sei, mas tive medo de que a coisa fosse revelada, e isso acabaria com minha carreira. — Ela baixou os olhos. — Eu não confiei em você; sinto muito. Depois de você sair da academia para montar seu esquadrão de vigilantes, terminei meu segundo doutorado e vim trabalhar na Myishi, em pesquisa e desenvolvimento. Um dos meus trabalhos era um projeto de baixo orçamento para rastrear minúsculas fontes de energia que se chocavam contra a parabólica do Satélite, vindas da superfície do planeta. Nada sério. Pequenas cargas, insuficientes para causar interferência. Deduzi em cerca de dez minutos de onde vinham as cargas. Os Esp-nocat 4 estavam liberando-as. Naturalmente nunca revelei a descoberta: tinha de pensar na carreira. Até que as cargas foram atribuídas a descargas industriais da Cidade-Satélite. Continuei com meu trabalho, tentando melhorar as coisas ao meu modo pequeno. Mas há alguns anos as cargas começaram a aumentar. A princípio lentamente, mas depois numa taxa alarmante, tanto que começaram a danificar as placas da antena. Agora a descarga é tão grande que forma um jorro constante. Estamos perdendo conexões com a superfície. Pessoas estão morrendo. É uma crise do tipo alerta vermelho para a corporação.
— As pessoas vêm morrendo na Cidade-Satélite há anos, e a Myishi nunca fez nada a respeito, e de repente vocês estão interessados.
Pela primeira vez a voz de Ellen Faustino assumiu um tom duro.
— Não seja tão ingênuo, Stefan. O dinheiro consegue fazer as coisas. Assim que o Satélite perdeu a primeira conexão, todos os projetos de desenvolvimento foram congelados. Eu tinha dois hospitais e um centro de reabilitação na minha verba. Que agora se foi, a não ser que a gente consiga resolver o problema da Esp-nocat. — A irritação de Ellen desapareceu tão rapidamente quanto havia surgido. — Vocês vêm enfrentando as criaturas há anos. Destruindo-as com bastante eficiência. Não havia necessidade de montar uma equipe, ou pelo menos foi o que pensei.
Stefan se empertigou.
— O que isso significa?
— Os bastões elétricos. Muito inteligente, a carga residual pega a criatura.
— Os Parasitas — interrompeu Cosmo. — Nós chamamos de Parasitas.
Ellen assentiu.
— Parasitas. Isso é bom. Vocês vinham acabando com os Parasitas com uma determinação que os empregados da Myishi nunca poderiam imitar, por isso fiquei de olho e deixei que fizessem seu trabalho em paz: nosso trabalho. Mas depois do recente aumento das cargas montei uma pequena equipe para investigar. Na minha opinião há dois fatores que produzem a capacidade de vê-las: as experiências de quase-morte, junto com uma exposição durante toda a vida à poluição da Cidade-Satélite. O computador fez uma busca nos arquivos do pessoal da Myishi e eu entrevistei todos da lista. Encontrei mais três que tinham a Visão, todos com menos de 25 anos. Eu sou a única com mais de quarenta. Começamos um estudo aprofundado dos Parasitas, especialmente do que acontece depois que vocês atiram neles. E descobrimos uma coisa que talvez vocês queiram saber...
Ellen Faustino foi até a porta do elevador e verificou se estava fechada. Depois passou um equipamento de varredura de grampos nas paredes e telefones, procurando algum equipamento de vigilância. Quando teve certeza de que ninguém estava ouvindo nem vendo o Observatório, pegou na carteira um chip cristalino de vídeo e o apertou no projetor 3D.
— Tecnologia de última geração — explicou. — Podemos colocar duzentas horas de vídeo num chip de cristal. A Myishi vai chutar o traseiro da Phonetix nos próximos 25 anos.
Uma representação em 3D de um Parasita, em tamanho real, se materializou na sala. Stefan enfiou a mão automaticamente dentro da jaqueta, procurando um bastão elétrico.
Ellen riu.
— Relaxa, Stefan. A qualidade é incrível, eu sei. É a primeira geração de lentes que pode fotografar os Esp-nocat 4. O que vou mostrar é resultado de meses de vigilância. Eu diria que é material sigiloso, mas a quem vocês vão contar?
O Parasita começou sua caminhada curiosa por uma parede projetada.
— Os Esp-nocat 4 parecem ser feitos de pura energia, que obviamente é gasta com a atividade. Nós notamos que a luminosidade do Parasita se desbota quanto mais longe ele vai. — Ellen ligou uma ponteira a laser. — Esse centro luminoso aqui é o equivalente do coração do Esp-nocat 4. Quando ele fica sem energia, o coração bate mais devagar. Por fim o coração se alimenta do corpo da criatura, absorvendo-o para continuar batendo.
O Parasita em 3D desbotou até um azul pastel. Sua pele perdeu a coesão e pouco depois o coração em si não tinha energia suficiente para continuar intacto. Ele desapareceu num clarão azul.
— Esse clarão — disse Cosmo. — É com isso que a Myishi está preocupada?
Ellen balançou a cabeça.
— Gostaria de que fosse. Esses clarões mal são registrados por nossos medidores. Não, os Esp-nocat 4 só soltam uma fagulha de verdade depois que absorvem energia.
A imagem mudou. Desta vez era um Parasita agachado no peito de um ser humano caído. Um jorro de energia branco-dourada fluía para as palmas das mãos da criatura. O Parasita luzia como um saco de estrelas, depois foi para uma parede próxima. O cinegrafista acompanhou a criatura até um parapeito de janela, onde ela descansou brevemente. A energia absorvida corria por seus órgãos com velocidade e agitação cada vez maiores. Depois de vários segundos de inquietação, uma descarga de energia atravessou os poros da pele da criatura, espiralando para o céu.
— Isso eu nunca tinha visto — disse Stefan.
— Nós achamos que os órgãos do Parasita processam a energia, depois a liberam completamente limpa.
A mente adolescente de Cosmo percebeu primeiro.
— Então você está dizendo que todo esse problema é causado por cocô de Parasita?
Ellen sorriu.
— Exato. Algumas pessoas tentaram dizer isso de modo melhor, e não conseguiram. E um pouco como as árvores absorvendo dióxido de carbono e liberando oxigênio. Os filtros da natureza. As próximas imagens são a parte em que vocês vão ficar realmente interessados. Nós só conseguimos no mês passado; desde então venho tentando rastrear vocês.
Uma nova imagem apareceu no raio do projetor. Esta mostrava Stefan Bashkir obcecado no meio de uma zona de desastre. Veículos de emergência convergiam de todos os lados e Parasitas se alimentavam das vítimas de um : tumulto de rua.
— Eu me lembro disso. Tumulto por comida no Bushka, perto da Barreira — disse Stefan. — Foi medonho. Na projeção, Stefan estava atirando para todo lado com seu bastão, estourando Parasitas empoleirados. A câmera do Satélite captou um Parasita no momento em que explodiu em uma dúzia de esferas luminosas. Em seguida rastreou uma única esfera durante vários minutos, seguindo sua ascensão pela atmosfera.
— Você faz alguma idéia de quanto custou essa filmagem? Tive de comprar tempo da câmera durante um dia inteiro.
Stefan nem ouviu a reclamação, estava concentrado demais na esfera. Ela parou de subir depois de mais um quilômetro, pairando ligeiramente no vento. A câmera deu um zoom até que a esfera ficou do tamanho de uma bola de basquete, pairando entre a terra e o espaço.
— Para fotografar os Parasitas, nossas novas lentes são cobertas por um composto químico — disse Ellen. — Minha equipe levou meses para achar a solução correta. Nós dissemos ao escritório central que era um spray anti-reflexo.
Stefan não respondeu. Seu olhar estava grudado na projeção.
A superfície da esfera começou a ondular ligeiramente; dentro, a energia se enrolou numa espécie de corda, perseguindo a própria cauda em nós intricados.
— O que está acontecendo? — perguntou Cosmo. Stefan estendeu as mãos, enfiando-as na projeção.
— Não — ofegou ele.
As cordas se solidificaram, tornando-se mais complexas. Uma estrela prateada brilhou no centro.
— Não pode ser. Não depois de tudo isso!
Dois olhos redondos apareceram. Depois dedos azuis, pressionando contra a superfície da esfera, forçando a pele.
— O que eu fiz?
A superfície da esfera se partiu e um Parasita novo em folha apareceu. Totalmente formado e pronto para sugar vida de um ser humano em sofrimento. Ele abriu os braços e pairou para a terra, no vento.
O rosto de Stefan era uma máscara de angústia.
— Esse tempo todo. Esse tempo todo eu os estava ajudando. E não destruindo. Ajudando-os a se reproduzir.
Ellen Faustino desligou o projetor.
— Não é sua culpa, Stefan. Como você poderia saber? Você só via criaturas que tinham destruído sua vida. Você lutou contra elas como eu lutaria. — Ela ajudou Stefan a se sentar no sofá. — O que precisamos decidir agora é como continuar a luta.
— Não existe luta — disse Stefan, sombrio. — Eles venceram. Acabou. Como posso continuar? Demoraria o tempo de várias vidas só para desfazer o dano que causei.
— Não necessariamente. Para derrotar os Esp-nocat 4 você precisa entendê-los. Deixe-me contar o que minha equipe descobriu depois de centenas de horas de vigilância pelo Satélite. A Esp-nocat 4 é uma espécie parasita que se alimenta de energia, de preferência a força vital humana, e esconde suas atividades alimentando-se dos doentes e feridos. Eles absorvem a energia por osmose, metabolizam-na pelos filtros corporais e depois liberam energia limpa. Essa liberação cresceu até proporções perigosas devido ao número crescente de Parasitas. Em geral os Parasitas se dividem em duas entidades depois de vários anos, mas devido aos seus esforços eles estão se reproduzindo rapidamente em números gigantescos. Contribuindo para o problema das explosões de energia. É um círculo vicioso.
A cicatriz de Stefan fez seu rosto se esticar na imitação cruel de um sorriso.
— Você se esqueceu de dizer que não há como matá-los. Ellen não conseguiu resistir a dar um sorrisinho também.
— Ah, eu não disse isso.
Ela reativou o projetor, acelerando a imagem até outro arquivo. Outro Parasita apareceu nos fachos de luz. Este era sem cor e quase completamente transparente. Seu coração-estrela estava reduzido a uma brasa trêmula.
— Este está morrendo.
O entusiasmo de Stefan voltou num jorro.
— Como? O que causou isso?
— Nós causamos — respondeu Faustino. — Sem intenção. Algumas vezes um Parasita faminto recorre à energia elétrica; não é a refeição preferida, você entende, mas algumas vezes não há sofrimento suficiente por perto. Este aí se agarrou a uma haste de urânio de um reator nuclear de uma de nossas usinas que estão sendo desmontadas. Havia muita energia contaminada. A criatura não pôde reciclá-la e ela entupiu seu organismo. Esta imagem é de uma câmera de segurança, nós só a conseguimos por acidente. Ninguém reclamou; afinal de contas, para eles não há nada na imagem, além de equipamento velho. Por sorte nossa, uma lente nova tinha sido instalada durante uma atualização de rotina.
— Então nós só precisamos... — disse Stefan, pensando alto.
— ... bombear energia contaminada neles — completou Cosmo.
— Exato — disse Ellen, batendo palmas. Em seguida pegou uma pasta de alumínio embaixo do sofá, colocando-a cuidadosamente na mesinha de centro. — Esta é a solução que propusemos.
Ela abriu a pasta, revelando um cubóide metálico aninhado num pacote de gel-resfriador. O cubóide estava ligado a um cronômetro digital.
— Não é muito bonito, eu sei. Mas não estamos tentando colocar isso à venda.
Stefan examinou o instrumento.
— Algum tipo de instrumento de pulso. O esquadrão antitumulto da polícia usa isso para desligar a energia nos prédios que vai invadir. Desliga os geradores principais e locais.
Ellen assentiu.
— Pulso de Energia. Eficaz até quinhentos metros. A bateria foi carregada com radiatividade. Nada sério, é seguro para os seres humanos, mas mortal para os Esp-nocat 4. Se você puder disparar um desses no lugar onde eles moram, poderá causar um tremendo dano em nossos amigos invisíveis.
— Você rastreou o esconderijo deles? — perguntou Stefan.
— Não tive essa sorte — suspirou Ellen. — Eles se dispersam mais depressa do que nós podemos rastrear. É nisso que estamos trabalhando.
— Então voltamos à estaca zero.
Ellen fechou a pasta, empurrando-a por cima da mesa na direção de Stefan.
— Não, Stefan, estamos muito longe da estaca zero. A partir desta noite você e seu bando têm uma nova missão. Descobrir onde eles vivem, e quando descobrirem, entregar um presentinho meu.
Stefan pegou a pasta.
— Eu vou caçá-los, professora. A partir de agora é só isso que vamos fazer. Mas não vai ser fácil, e vai demorar.
Ellen Faustino rodeou a mesa, abraçando Stefan com força.
— Senti saudade de você, meu jovem aluno. E sinto saudade de sua mãe todo dia. Ela trouxe luz a esta cidade.
Stefan devolveu o abraço.
— Também sinto saudades dela.


CAPÍTULO 7
OBAA

Rua Abracadabra

DITO ESTAVA dominado pela culpa. Ele era a coisa mais parecida com um adulto no grupo, no entanto fugira da fábrica deixando Stefan e Cosmo para se virarem sozinhos. Stefan jamais iria abandoná-lo se a situação fosse invertida, tinha certeza. Talvez não houvesse muito que alguém de seu tamanho pudesse fazer contra os tanques Myishi, mas isso não o levava a se sentir melhor. No máximo o deixava pior, porque Stefan tinha enfrentado o tanque para salvá-lo junto com Mona. Mas havia outro motivo para a culpa de Dito. Havia coisas que Stefan precisava saber sobre ele. Certos talentos que ele possuía. Deveria ter confessado ao amigo há anos, mas a hora nunca tinha aparecido. E ele havia se acostumado a manter os dons em segredo. Nas histórias cm quadrinhos, as pessoas com dons viravam super-heróis; na vida real, viravam párias. E Dito não queria ser um pária no único grupo de pessoas que gostavam dele.
Lucien Bonn fora apelidado de Dito por uma garota de língua afiada no Instituto Bartoli. Não era um apelido muito esperto. Na verdade era óbvio. Dito tinha o hábito de repetir tudo que as pessoas diziam. Isso lhe dava um momento para pensar numa resposta. Não que fosse lento, pelo contrário. Só queria ter certeza de que nada que dissesse revelaria seus talentos especiais. Já era bastante ruim ser um Bebê Bartoli, sem que além disso todo mundo o achasse maluco. Ei, você soube? O anão acha que vê fantasmas. Não, obrigado.
As suspeitas de Dito, de que era anormal, foram confirmadas quando fez nove anos. Até então esperava que fosse apenas baixo para a idade. Mas quando fez nove anos estava ficando bastante óbvio que a mutação do desenvolvimento físico interrompido, tão comum entre os Bebês Bartoli, estava começando a afetá-lo.
O próprio Dr. Bartoli tinha-o chamado ao seu consultório para as medições mensais. Dito parou perto da porta do homem importante, tremendo em seu macacão de papel. O Dr. Bartoli gostava de manter o ar condicionado a oito graus Celsius. Dizia que o frio era bom para o intelecto.
— Bom, Lucien — disse Bartoli, abrindo a pasta de Dito no computador. — Vejamos como você está progredindo. Pare no lugar.
Dito se posicionou no círculo vermelho no centro da sala. Bartoli o envolveu com uma fita métrica e calibradores cranianos. Cantarolava baixinho enquanto media cada um dos membros, o tronco e o tamanho do crânio de Dito.
— Outro fracasso — disse por fim, deixando-se cair na cadeira do consultório. — Como o resto. Onde foi que eu errei?
Dito não respondeu. O médico estava falando sozinho, como sempre.
Por fim Bartoli se dirigiu ao menininho trêmulo.
— Bom, Lucien. Sinto muito dizer que, com toda a probabilidade, você não vai crescer mais. Sua cabeça é um quarto do tamanho de seu corpo; com nove anos ela deveria ser apenas um quinto. O bug Bartoli atacou de novo.
Dito sentiu o coração se encolher. Tinha esperado tanto uma vida normal fora do instituto!
— Mas nem tudo está perdido. Talvez você tenha outros dons. Algo para elevá-lo acima de nós, seres humanos normais. Talvez o Dr. Bartoli tenha aberto uma porta em algum lugar de sua mente, não é? E então, Lucien? Você tem algum outro dom?
Bartoli estava fingindo que a pergunta era casual, mas todo o seu corpo estava tenso, esperando a resposta do garoto.
Dito tinha apenas nove anos, mas não era idiota. Anos de drogas e exercícios para estimular a inteligência tinham-no deixado com uma boa percepção. Sabia a importância daquela pergunta. Também sabia o que acontecia com os Bebês Bartoli que admitiam ter dons. Eram levados a outra ala do Instituto e observados 24 horas por dia. Eram medicados, recebiam injeções e eram interrogados enquanto Bartoli pudesse retê-los.
O doutor se inclinou para a frente na cadeira.
— Você vê coisas, Lucien? Algumas das outras crianças dizem que vêem criaturas estranhas. Você vê criaturas, Lucien?
Dito poderia ter dito a verdade. Sim, doutor, eu vejo todas elas em volta de nós. As criaturas azuis. Elas também podem me ver. Algumas vezes me visitam. E não é só isso. Eu posso ajudar as pessoas. Fazer com que se sintam melhor, só tocando-as.
Ele poderia ter dito tudo isso, mas não disse, porque revelar seus talentos significaria passar o resto da vida como uma experiência de laboratório. Por isso Dito olhou Bartoli direto nos olhos e disse:
— Uma vez eu vi um lobisomem, do lado de fora da minha janela. Achei que era um sonho.
O médico suspirou.
— Ótimo, Lucien. Não há nada de extraordinário em você. Como favor especial vou garantir pessoalmente que você seja mandado a uma escola estatal e não para o Clarissa Frayne. Pode ir.
E foi isso. Sem pedido de desculpas. Sem compensação por ter nascido como um mutante. Em seis meses Dito foi transferido do Instituto para uma escola estatal, onde ficou até os 16 anos. Em todo esse tempo jamais contou a ninguém sobre nenhum de seus dons. Seus segredos continuaram secretos até que Stefan entrou em sua vida. E nem mesmo Stefan sabia de tudo. Mas logo saberia, e ele pagaria caro quando seu amigo descobrisse.
Ellen Faustino mandou Cosmo e Stefan para casa numa limusine Myishi Prestige. O luxuoso carro de dez rodas tinha metade do tamanho de um quarteirão da cidade, com janela de TV, geladeira cheia e sofá-cama. Stefan não ficou impressionado. Curvou-se para a frente no banco, franzindo a testa como se pudesse fazer as idéias saírem mais depressa.
— A Srta. Faustino estava certa, sabe — disse Cosmo, hesitante. — Não é sua culpa, Stefan. Você estava fazendo o melhor que podia. Como iria saber que a eletricidade estava fazendo com que eles se reproduzissem?
Stefan não respondeu. Depois de dizer adeus à antiga professora, a culpa e a impotência tinham-lhe dado um golpe duplo. Era uma combinação difícil de suplantar.
Então Cosmo fez o que qualquer adolescente faria. Atacou a geladeira, enchendo os bolsos com o máximo de petiscos que conseguiu enfiar. O que não coube, ele comeu. Quatorze anos no Clarissa Frayne tinham ensinado a jamais deixar comida para trás. Era bem possível que a combinação do ácido do tanque com o alimento pouco saudável o deixasse vomitando pelos próximos dias, mas se ele deixasse alguma coisa iria se arrepender durante anos.
Stefan rompeu o silêncio seis ruas a oeste da Abracadabra.
— Em qualquer lugar por aqui está bem.
— A presidente Faustino disse que eu deveria deixá-los na sua porta.
— Talvez tenha dito. Mas eu ainda não estou disposto a revelar o lugar de meu quartel-general.
O motorista riu.
— Rua Abracadabra 1.405. Já mandei as coordenadas para o Satélite.
Stefan afundou mais ainda em seu mau humor. Os Supernaturalistas não eram mais uma organização secreta. Agora havia adultos envolvidos. As corporações estavam envolvendo-os em seus esquemas. Dali a pouco eles teriam planos de saúde dentária e de aposentadoria.
Mona e Dito estavam esperando ansiosos quando Cosmo e Stefan saíram do elevador. Mona correu para recebê-los, mas Dito ficou para trás, num silêncio pouco característico, sem ao menos uma piadinha sarcástica para dar as boas-vindas aos dois. Seu segredo estava fermentando por dentro, louco para ser liberado.
— Onde vocês estiveram? — perguntou Mona, passando um braço pelos ombros de Stefan e outro pelos de Cosmo. — Nós pensamos que estavam em cana.
Stefan afastou-a.
— Monte a Parábola no telhado. Quero ela funcionando 24 horas por dia, sete dias por semana.
Mona recuou, como se tivesse levado um tapa.
— Nós ficamos preocupados com vocês dois, Stefan. Será que não merecemos uma explicação? Será que a gente não é uma equipe?
Então Stefan quase falou. Quase compartilhou seu fardo, mas a culpa e o desamparo ainda eram fortes demais.
— Agora não, Mona, certo? Só monte a antena.
— A Parábola? — perguntou Mona. — Ela nunca funcionou antes. Eu nem sei se está carregada.
— Só monte, Mona — disse Stefan, com a voz que era pouco mais do que um sussurro. — Por favor.
O rapaz foi cambaleando até seu cubículo, sem dizer mais nada. A cada passo parecia mais baixo. O grupo ficou olhando-o se afastar em silêncio.
— O que aconteceu com ele? — perguntou Mona quando o eco dos passos de Stefan tinha sumido. — Eu já vi esse cara chateado antes, mas não assim. Parece que a vida dele acabou.
— Não acabou — respondeu Cosmo. — Só tem de começar de novo.
E explicou o que tinha acontecido na Torre Myishi. Que explodir os Parasitas só acelerava seu processo de reprodução. Três anos ajudando os inimigos a povoar o planeta. As palavras pareceram flutuar no ar do armazém. Condenando as ações do grupo. Quantas pessoas tiveram a força vital sugada por causa deles?
— Não acredito — ofegou Dito. — Aquelas bolhas azuis eram bebês Parasitas?
— Não bebês. Eles saem totalmente crescidos e com sede de força vital.
Dito subiu num banco perto da mesa.
— É a parte do processamento da energia que me interessa. Essas criaturas fazem parte da natureza. Como nós. Talvez devêssemos pensar no que significa para a ecologia ajudar a reproduzi-las.
Mona se virou para ele, irritada.
— Para a ecologia! Esses monstros estão sugando a força vital das pessoas! Você não se preocuparia com a natureza se tivesse tido um deles sentado no seu peito.
— Ei, qual é, Mona, não vá estourar uma veia. Só estou dizendo que temos de descobrir outro modo. Acelerar o processo de reprodução dos Parasitas não é bom para ninguém.
Mona respirou fundo várias vezes, depois deu um soco de leve no ombro de Dito.
— Está certo. Claro. É um choque, só isso. Eu achava que nós estávamos fazendo a coisa certa. Salvando pessoas. Agora não sei, e Stefan, bem, ele nem quer falar com agente...
Dito foi até o outro lado da mesa e envolveu os ombros de Mona com seus braços curtos.
— Ele deve ser nosso líder. Mas algumas vezes esquecemos como é jovem. Stefan vai ficar bem de manhã, você vai ver. Agora monte a antena. Pode demorar, a gente não vai sair para caçar esta noite.
Mona fungou.
— Tudo bem. — Em seguida se virou para Cosmo. — Desculpe o drama. Estou feliz em ver você de volta em segurança. Vamos subir no telhado e eu mostro como operar a Parábola.
Cosmo assentiu, sorrindo, mas Dito grudou uma tira termométrica em sua testa.
— De jeito nenhum. Cosmo precisa dormir um pouco. Ah, tenho certeza de que vocês adorariam passar o dia falando de disjuntores, sob a névoa de poluição. Mas este jovem não se curou direito da aventura no telhado. Se não descansar, poderemos estar diante de uma febre ou até mesmo de uma rejeição. Ele deve estar morto de cansaço.
Assim que Dito falou isso, Cosmo começou a se sentir exausto. De repente sua testa doeu e o joelho lançou pon-tadas de dor do tornozelo até o quadril.
— Na verdade estou meio cansado. Talvez dê para eu subir lá mais tarde...
— Tudo bem — disse Mona. — Durma o quanto precisar. Dito está certo, você passou por muita coisa. Eu posso mostrar a Parábola amanhã.
Cosmo assentiu. Agora iria dormir, mesmo que adorasse passar o dia falando de disjuntores com Mona Vasquez.
Depois do tempo passado no tanque, Cosmo mal tinha energia para se arrastar até a cama. O catre estreito já parecia seu lar. Uma coisa sua. Ainda que seu corpo estivesse na rua Abracadabra, os sonhos percorriam outros lugares, parando no Clarissa Frayne e na Torre Myishi. O homem do tanque e Redwood fundidos numa só pessoa, sacudindo o punho para ele. Um punho de onde pingava gosma de celofane. Volte para nós, dizia o homem misturado. Volte, Cosmo, nós temos uma sala escura esperando por você. Uma sala escura cheia de coisas pontudas.
Cosmo acordou com um susto, caindo da cama no piso de ferro fundido. O cobertor verde-oliva estava emaranhado nas suas pernas e por um momento o rosto insano de Redwood pairou diante de seus olhos.
Ficou sentado imóvel, deixando a consciência dominar sua visão. Gradualmente a realidade suplantou os sonhos. O sono, ainda que perturbado, tinha feito bem.
O inchaço da testa havia diminuído e o joelho pratica-mente não doía.
Assim que meu cabelo crescer de novo vou parecer uma criatura quase humana, pensou com um sorriso torto.
Levantou-se, vestindo a calça estilo exército dada por Stefan. Aparentemente o número de bolsos nunca era demais. O armazém estava silencioso, a não ser por um ronco áspero vindo do cubículo de Dito. Olhando-o, não dava para pensar que os pulmões do Bebê Bartoli tivessem tamanho suficiente para produzir um barulho assim. A cortina de Stefan continuava fechada, mas a cama de Mona estava vazia e arrumada. Ou ela já havia acordado ou não tinha ido para a cama.
Havia outra coisa incomum. Uma ausência do ruído que fazia parte do armazém da rua Abracadabra tanto quanto as cortinas. A conexão externa do computador. Claro que era. Não haveria mais excursões noturnas. Nem bastões elétricos, nem esferas azuis. As pessoas simplesmente teriam de perder a força vital, como provavelmente vinha acontecendo há milhares de anos.
Cosmo serviu um pouco de café sintético do bule. Mais pelo calor da caneca nas mãos do que pelo gosto. Havia outra caneca na mesa. Sua alça cromada lembrava um cano de descarga. Mec-lube, diziam as letras na lateral. Cosmo encheu a caneca e foi para o elevador.
Sair no telhado era como pular de um avião. Um mero prédio não parecia ter força suficiente para impedir uma pessoa de despencar para a terra. Só respire, disse Cosmo a si mesmo, e não olhe para baixo. O sol estava se pondo, transformado em roxo pela poluição química. É por isso que a gente pode ver os Parasitas. Produtos químicos e experiência de quase-morte. O trauma desperta o sexto sentido, e as substâncias químicas na nossa corrente sangüínea o mantêm acordado, em certos casos.
Havia um pequeno barracão de blocos de concreto no telhado. Quadrado e básico, sem luxos além de quatro linhas de força que passavam retorcidas por um buraco cheio de espuma de isolamento na parede. No teto baixo havia um microfone e uma antena parabólica. Parecia uma antiga antena de TV digital, mas uma inspeção mais próxima revelava três modernas caixas de circuitos soldados à base. Obviamente isso era a Parábola da qual Stefan havia falado.
Mona estava dentro, num banco de plástico, enrolada num saco de dormir feito de laminado metálico. Leves e superisolados, os sacos tinham sido usados primeiro por astronautas, e popularizados por sem-teto no mundo inteiro. A cabeça de Mona estava recostada numa grande almofada com bolinhas de isopor vazando num dos cantos.
Cosmo demorou um momento examinando-a. Para ele, era bonita, mas não como as garotas da TV. Bonita como uma pessoa real, como se houvesse sentimentos por trás do rosto.
— Você vai entrar ou só vai ficar aí parado? — disse Mona sem abrir os olhos.
Cosmo tentou falar. Diga alguma coisa inteligente, ordenou ao cérebro.
Isso não vai acontecer, respondeu o cérebro. Você tem células de reserva suficientes para uma palavra. Que seja boa.
— Café — disse bruscamente. Poderia ter sido muito pior, nas circunstâncias.
Mona se espreguiçou como um gato, com os dedos dos pés se retorcendo e espiando por baixo do saco de dormir que estava com o zíper aberto.
— Porquinhos — disse a boca de Cosmo antes que ele pudesse impedir.
Mona abriu os olhos, girando-os para cravar no garoto desafortunado.
— O que foi, Cosmo?
— Esse porquinho foi ao mercado... É uma brincadeira de neném, que a gente faz quando vê os dedos dos pés deles.
Mona recolheu os dedos dos pés para baixo do tecido laminado.
— Eu não sou neném, Cosmo.
— Desculpa. Havia um garoto no orfanato. Ele costumava dizer isso sempre que via um porquinho.
— Então agora eu sou um porquinho.
— É. Não, não, você não. Os dedos dos pés. Como é que você seria um porco? Você é muito...
Ele rezou em silêncio para que Mona o interrompesse antes que pudesse terminar a frase, mas ela não tinha intenção de fazer isso. A garota se recostou, inclinando a cabeça de lado.
— Sou muito o quê?
Cosmo sentiu que seu cérebro estava se expandindo. Sem dúvida a placa na cabeça iria saltar longe agora mesmo.
— Muito... é... humana. Mona o encarou.
— Algum dia você já teve, sei lá, uma conversa com outra pessoa?
Cosmo deu de ombros.
— Na verdade, não, a não ser que você conte o "Sim, Sr. bedel. Não, Sr. bedel. Como quiser, Sr. bedel".
Mona aceitou a caneca de café sintético e felizmente deixou o assunto morrer.
— Obrigada, Cosmo. Que horas são?
— Pôr-do-sol.
Mona espiou pela janela do abrigo.
— Esta noite está roxo. Quem tem alergia vai sofrer. Já viu um pôr-do-sol no cinema, Cosmo? Todo laranja e lindo. Você acha que um dia já houve um pôr-do-sol assim?
Cosmo deu de ombros.
— Talvez. Duvido. Hoje em dia podem fazer qualquer coisa com efeitos especiais.
Mona tomou um gole de café sintético.
— Provavelmente está certo.
Ela deixou o saco de dormir escorregar, inclinando-se para a frente até uma caixa de controle equilibrada em dois blocos e uma tábua. Uma luz verde piscava no mostrador.
— Excelente. Totalmente carregado. Agora podemos ver qualquer Parasita num raio de um quilômetro da rua Abracadabra.
Cosmo examinou a caixa. Não parecia sofisticada o bastante nem para fazer uma torrada, quanto mais para rastrear criaturas fantasmagóricas.
— Se esse negócio rastreia Parasitas, sem dúvida a gente vai descobrir onde eles vivem, não é?
— Isso pode encontrá-los — corrigiu Mona. — Não rastrear. Assim que saem do alcance da antena, eles somem. A Parábola foi inventada pelas grandes empresas de eletricidade para identificar vazamentos, e não para rastrear Parasitas. Ela opera com o mesmo princípio de um bico de ornitorrinco, que usa sensores internos para identificar cargas elétricas geradas por seres vivos. Eu vi num daqueles vídeos do mundo animal que Stefan obriga a gente a assistir como parte de nossa educação.
A caixa de controle da Parábola era ligada a um antiqüíssimo laptop. Mona inicializou o computador, abrindo um programa de grade em 3D.
— Sempre que a antena da Parábola capta o espectro de, um Parasita, ela marca a posição, a velocidade e a direção dele. Com o tempo nós podemos montar uma informação.
— Isso poderia levar a gente até onde os Parasitas vivem?
— Não. É uma perda de tempo completa. Eles podem vir de qualquer lugar, a qualquer momento. A direção depende do desastre para onde estão indo. E a antena só tem alcance de um quilômetro.
— Então por que estamos fazendo isso?
Mona olhou para trás, verificando se estavam sozinhos.
— Medidas desesperadas. É possível rodar esse programa por mais de um ano sem descobrir nada. A gente deveria estar lá fora, caçando as criaturas.
— Mas mesmo que a gente descubra, o que pode ser feito? Os bastões elétricos só ajudam a reprodução deles.
Mona passou os dedos pelo cabelo revolto.
— Não sei. Que tal água? Talvez a gente possa borrifar neles. Deve haver alguma coisa.
Um ponto azul apareceu na tela.
— Ali está um, olha. Cem metros a nordeste. Andando a sessenta quilômetros por hora.
Cosmo correu até a janela. A distância, um Parasita solitário desapareceu por cima da borda de um prédio.
— De que isso adianta? — disse Mona irritada. — Nada, a não ser que a gente possa pegá-lo. — Ela se recostou na almofada, abraçando com força o cobertor de tecido metálico. — Nós precisamos é de um milagre.
Cosmo sorriu.
— Bem, nós estamos no lugar certo.
— Você entendeu, Cosmo. Rua Abracadabra. Sabe por que o nome é esse?
Cosmo se sentou ao lado dela no banco, balançando a cabeça.
— Há anos os gênios que projetaram a Cidade-Satélite decidiram que haveria bairros específicos para os artistas. Por isso há a Arcada Van Gogh e a Colina Whitman. Todos os pintores morariam na Van Gogh e todos os poetas na Whitman. A rua Abracadabra era para o pessoal de Las Vegas. Mágicos, cantores e dançarinos de boate. Foi uma idéia estúpida. Não se pode colocar arte numa caixa. Ninguém com talento de verdade quer que lhe diga onde morar. Stefan conseguiu este lugar por uma pechincha.
Nem paga impostos. É um cara esperto, na maior parte do tempo.
— Na maior parte do tempo — disse a voz de Stefan atrás deles. O tom não ressoava de alegria. Ninguém pediria a Stefan para representar Papai Noel numa peça de Natal, nem se houvesse mais de uns dois milhões de pessoas que ainda comemorassem essa festa.
— Você se incomoda se eu assumir? Preciso conversar com o novo membro do bando.
Mona se levantou, segurando o cobertor em volta dos ombros.
— Claro. Seria bom ficar umas duas horas numa cama de verdade. Quem sabe, talvez eu até saia à luz do dia, agora que temos as noites de folga.
Mona se abaixou tanto que seu rosto ficou na altura do de Cosmo.
— Foi um belo tiro no tanque. Você me salvou de novo. Ela lhe deu um beijo no rosto.
— Obrigada.
— De nada — murmurou Cosmo. Seu rosto parecia ter sido ligado numa tomada elétrica.
Mona riu.
— Continue assim e vai passar o dia inteiro sendo beijado.
Cosmo finalmente conseguiu montar uma frase.
— Talvez na próxima vez você me salve. Aí vou ficar lhe devendo um beijo. — Era uma obra-prima gramatical, dadas as circunstâncias.
— Talvez — disse Mona, com os olhos brilhando. — Talvez eu salve.
Ela foi até Stefan.
— Vai falar comigo agora?
Stefan não parecia mais feliz do que na noite anterior.
— Escuta, Mona. Ontem à noite eu estava péssimo. Meu trabalho foi destruído.
Mona cutucou o peito dele com o nó do dedo.
— Nosso trabalho. Nós somos os Supernaturalistas. Uma equipe.
— Está certa. Uma equipe. De agora em diante não vou esquecer.
Ela apertou o antebraço dele com suavidade.
— Faça isso, Stefan.
Mona correu pelo telhado frio, dando passos minúsculos dentro do casulo prateado de seu saco de dormir. Stefan entrou no abrigo, fechando a porta sanfonada. Sentou-se ao lado de Cosmo.
— E aí, Cosmo, como está se sentindo? Cosmo deu de ombros.
— Não sei. Estou me sentindo como uma tela de TV onde não passa nada. Vazio. Não tive tempo de virar uma pessoa.
— A Cidade-Satélite faz isso com a gente. Este lugar não tem respeito pelos indivíduos. Encaixe-se, obedeça e não faça perguntas. — Ele mexeu um botão na caixa da Parábola. — Agora você tem tempo, Cosmo. Tempo para fazer parte do grupo.
— Eu faço mesmo? Parte do grupo?
Cosmo pensou por muito tempo, intensamente, antes de falar.
— Você não fracassou com ela. Os Parasitas são naturais. Não se pode lutar contra a natureza.
Stefan passou um dos braços pelo ombro de Cosmo.
— Obrigado, Cosmo. É uma coisa legal de se dizer, mas as baleias eram naturais e a gente conseguiu se livrar delas.
Comparados à semana anterior, os dias seguintes foram extremamente calmos. Mona monitorava atentamente a Parábola, mas o computador não conseguia converter os avistamentos num padrão.
Por fim Stefan chamou todo mundo depois de ir ver as cinzas de sua mãe. Ele a visitava quase todo dia desde o encontro com Ellen Faustino. Agora, mais do que nunca, sentia falta de sua força e sua orientação.
— Estive pensando em tudo isso — disse com um gesto para o armazém e a variedade de equipamentos. — É loucura. O que eu achava que a gente poderia fazer contra... a natureza? Cada vez que a gente estourava um Parasita, criava uma dúzia de outros para ser predadores de nossa espécie. Quantas vidas isso custou?
— Mas agora temos o Pulso de Energia — contrapôs Mona. — Só precisamos descobrir o ninho e podemos desfazer tudo isso.
— Não, você estava certa, Mona. A Parábola nunca funcionou. Eu não tenho direito de colocar vocês em perigo. — Ele fez uma pausa, olhando cada um do grupo. Havia alguma coisa grande vindo. Mona enfiou a mão debaixo da mesa e apertou a de Cosmo. O que quer que Stefan dissesse em seguida iria afetar a todos. O líder dos Supernaturalistas respirou fundo.
— Tomei uma decisão. De agora em diante somos oficialmente pessoas normais.
A declaração ecoou no armazém. Pessoas normais? Isso existia?
— Você nunca me colocou em perigo — disse Cosmo. — Ninguém me obrigou a fazer nada. Eu fiz o que achei certo. Tudo que vocês fizeram foi salvar minha vida.
— Eu também — disse Mona. — Se não fossem os Supernaturalistas, eu seria uma mancha de óleo ao lado de uma pista de corridas por aí.
Stefan balançou a cabeça;
— Chegou a hora de eu acordar. Minha mãe se foi, tenho de aceitar isso.
Mona saltou de pé.
— Nós não podemos simplesmente desistir, Stefan! Você sabe qual é o nosso destino. Lutar contra essas coisas até não poder mais. Fala com ele, Dito.
Os olhos do Bebê Bartoli estavam baixos.
— Talvez o chefe esteja certo — disse ele. — Talvez a gente devesse parar.
Mona levantou as mãos.
— Não acredito. Uma operação dá errado e todo mundo desmorona.
Dito acendeu um cigarro sintético.
— Desmorona? Não é isso, Mona. Não é isso mesmo. Nós fizemos o máximo possível, mas é como tentar enxugar o oceano com um lenço. Quem diz que não podemos ser felizes como gente comum por um tempo? O rosto de Mona estava vermelho de raiva.
— As pessoas normais estão sendo sugadas até o fim por essas criaturas, só que não sabem. Você quer ficar olhando sem fazer nada enquanto os Parasitas agem?
Stefan segurou Mona gentilmente pelos ombros.
— Não é o que eu quero. Mas nós fomos derrotados. Somos um punhado de moleques. O que podemos fazer?
— Agora a Myishi está conosco — sussurrou Mona. — Nós temos o Pulso de Energia e a Parábola.
— Ela não funciona. Nunca funcionou. Eu demorei muito tempo para ver, mas agora vejo.
— Uma pena, aquela Parábola — disse Cosmo pensativamente, quase consigo mesmo.
Mona se virou de costas para Stefan.
— O que você quer dizer, Cosmo?
— Uma coisa que a professora Faustino comentou. Os Parasitas freqüentemente se alimentam de energia elétrica. Aposto que, se encontrarmos vazamentos de energia, vamos achar Parasitas. — Ele apoiou o queixo na mão. — Se ao menos tivéssemos uma parabólica maior!
Mona correu até a janela mais próxima, puxando as cortinas pesadas.
— A Myishi tem uma antena bem grande — disse ela, apontando para as estrelas. — Mais uma tentativa, Stefan. Só mais uma.
A resignação de Stefan se rachou como uma camada de lama seca, revelando a velha determinação por baixo.
— Dito — perguntou ele. — Onde está o meu telefone?
— Absolutamente não — disse Ellen Faustino.
Stefan não conseguia acreditar no que estava escutando.
— Professora Faustino. Só estou pedindo uma porta de dados no Satélite. Uma conexão, que mal vai fazer?
O rosto de Ellen estava sério na tela do telefone.
— O Satélite está fora de cogitação, Stefan, até mesmo para mim. Eu sou apenas presidente do departamento de pesquisa. Não poderia conseguir nem mesmo um cargo para limpar o chão do Satélite.
O telefone quase estalou na mão de Stefan.
— Ótimo, você faz a varredura. Uma concentração de vazamentos de energia no centro da cidade, é só isso que estou procurando.
Ellen Faustino consultou uma agenda digital em sua mesa.
— Esta é uma idéia muito melhor. Posso conseguir uma vaga dentro de uns dois meses.
— Dois meses! Você tem idéia de quantas pessoas serão sugadas em dois meses?
— Não posso fazer nada — protestou Ellen, girando a agenda digital para que Stefan pudesse ver a tela. — Olhe os clientes que temos esperando: Nike, Disney, Krom. O Satélite custa milhões por cada conexão. Você percebe o poder de publicidade de uma única transmissão? Dois meses é absolutamente o mínimo que consigo, e mesmo assim vou estar cobrando cada favor que me devem. Stefan lutou para ficar calmo.
— Como é que vou usar seu Pulso de Energia se não posso localizar os Parasitas?
Ellen Faustino não se abalou.
— Stefan, toda esta operação é clandestina. Os Esp-nocat 4 não existem. Nem o Pulso de Energia modificado. Nem, por sinal, você ou seu bando de vigilantes. O que você quer que eu faça? Ir ao Escritório Central com uma história sobre criaturas azuis que estão comendo energia?
— Não — admitiu Stefan, torcendo a boca para a tela do telefone. — Acho que não. Mas o que você quer que eu faça?
— Que descubra outro modo. Stefan fechou o aparelho.
— Não se preocupe — disse ele. — Vou descobrir.
Região da Bushka, além da Barreira, Cidade-Satélite
Mona guiava o Fundimóvel através da vida agitada do Bushka. Tecnicamente não deveria estar dirigindo em modo manual, mas aqui não haveria nenhum policial para verificar sua carteira—ou sua falta de carteira. As gangues noturnas tinham sido substituídas por multidões de pessoas comuns e pacíficas. À luz pálida e azulada do dia, a vida continuava como em todo o mundo. Quaisquer que fossem as circunstâncias, as pessoas ainda tinham de comer, viver e amar.
Barracas de camelôs brotavam na beira da rua como mesas de mágicos. Alfaiates africanos ficavam lado a lado com hackers orientais e sapateiros europeus. O comércio era movimentado e as barganhas eram animadas.
Em seu banco no Fundimóvel, Cosmo olhava o mundo passar.
— Não é um mau lugar para se viver.
— Durante o dia — disse Stefan. — E vai ser muito melhor se a professora Faustino conseguir de volta as verbas para o serviço social.
Dito estava olhando o próprio queixo num espelho pequeno. Esperando que surgisse algum fio de barba.
— Claro. É por isso que nós estamos agindo pelas costas dela.
— A professora Faustino está do lado de dentro — disse Stefan. — Ela precisa seguir as regras; nós não. Se os Supernaturalistas puderem cuidar do problema dos Parasitas, o Satélite vai se estabilizar e as verbas do serviço social vão fluir. Todo mundo vai ficar feliz.
— Especialmente a Myishi — concordou Dito, guardando o espelho no bolso. — Acho muito legal de nossa parte fazermos o serviço para eles, especialmente porque eles vêm tentando nos matar há anos.
Mona gritou do banco do motorista:
— Você tem alguma idéia melhor, Dito? Tem? — Ela lhe deu cinco segundos inteiros para responder. — Não? Foi o que pensei.
— Eu nunca tenho. E só um ceticismo saudável. Nem todos podemos ser carneirinhos. Toda essa situação fede. De repente nós estamos trabalhando para a corporação. Não gosto disso.
— Também não gosto — disse Stefan. — Mas a professora Faustino é em primeiro lugar minha amiga, e em segundo funcionária da corporação. Podemos confiar nela.
— Tem certeza? Você apostaria nossa vida nisso?
— A única vida que vou apostar, no futuro, é a minha. Assim que rastrearmos a toca dos Parasitas, eu é que vou armar o Pulso de Energia. A partir de hoje vocês, crianças, são jóqueis de computador.
Mona quase bateu com o Fundimóvel.
— Crianças? Quem você está chamando de criança? Você só é uns anos mais velho do que nós. Se eu tenho idade para correr pelos telhados, tenho idade para armar Pulsos de Energia. Não estou aqui para ver as coisas através de um monitor.
— Você vai se envolver; de uma distância segura. E se não gostar do novo arranjo, pare o carro e saia. Tenho certeza de que os Doces vão ficar bem felizes em receber você de volta.
Mona pisou fundo no acelerador.
— Sabe de uma coisa, Stefan? Algumas vezes você é um saco.
Seguiram durante três horas até que o Fundimóvel estava na estrada que circulava a Cidade-Satélite. Próxima parada, o deserto. Cosmo podia ver o fim da cidade, e isso o fascinou. Havia um fim para a cidade? Por algum motivo sempre havia imaginado que toda a cidade era uma prisão gigante. E, mesmo que fosse possível sair, como as pessoas sobreviviam aqui no campo?
Isso não se parecia com o campo que ele viu em vídeos antigos. Não havia cavalos galopando em câmera lenta nem balanços pendurados em árvores. A maior parte da vida vegetal perto da cidade fora morta pela poluição química ou pelo derramamento das fábricas.
Aqui as pessoas existiam fora do alcance do Satélite e livres de suas influências. A maioria dos habitantes morava em pequenas casas de um andar, montadas com qualquer tipo de material que ficasse de pé pelo maior tempo possível. Para Cosmo, as casas pareciam loucamente exóticas. Depois de uma vida inteira cercado de ferro fundido, era revigorante ver paredes construídas de tijolos reforçados tirados das auto-estradas e telhados feitos de antigos outdoors.
Dito estremeceu.
— Esse lugar me dá arrepios. Sabe, eles não têm TV por satélite. Algumas casas só têm dez ou 15 estações piratas. O que eles fazem o dia inteiro?
— Ficam vivos — disse Stefan apontando para uma montanha de lixo à distância. — Ali, Mona. É para lá que estamos indo.
À medida que se aproximavam, Cosmo percebeu que a montanha de lixo era na verdade um pátio cercado, cheio de coisas descartadas da cidade. Dois guardas armados estavam à sombra de uma torre coberta, com as armas tão antigas quanto as coisas que eles guardavam.
Mona parou o Fundimóvel diante de um portão de ferro decorado que, numa vida anterior, tinha sido entrada de um parque temático chamado Domínio dos Dinossauros.
Stefan abriu a porta lateral e saiu para o calor e a poeira. Havia dois fuzis apontados para ele, de cima.
— É melhor continuar em frente, garoto — disse um dos guardas. Um espécime pálido, com no máximo três dentes. — A não ser que tenha alguma coisa para vender. Não ligue para o que está escrito na entrada, aqui não é um parque de diversão.
— Cala a boca e ouve — respondeu Stefan com seu tato de sempre. — Preciso falar com Lincoln. Diga que é Bashkir. E se esse portão não estiver aberto em dois minutos vou considerar você responsável.
O guarda pensou em argumentar, até que Stefan olhou para o relógio. Então decidiu chamar Lincoln. Se aquele rapaz alto queria alguém com quem ficar furioso, o guarda preferiria que não fosse ele. Havia alguma coisa naqueles olhos penetrantes e na cicatriz torta se projetando da boca.
O segundo guarda cuspiu quando o colega se afastou.
— Corre que nem um coelho, seu covarde. Você tem menos coragem do que uma minhoca. — Obviamente o sujeito gostava de usar imagens com animais.
Stefan subiu de novo no carro.
— Acho que estamos dentro.
— Deve ser a sua personalidade fascinante — disse Mona, ainda chateada com o comentário de pare o carro e saia.
— Bom, quando a gente entrar, quero que todo mundo seja extremamente cuidadoso. Já viram aqueles filmes sobre o Velho Oeste, onde os tiroteios começam por causa de qualquer bobagem?
Cosmo assentiu.
— Bem, o Ferro-velho é assim, só que com balas de verdade. Dito, você é um garotinho, até que eu diga o contrário.
Dito gemeu.
— Ah, Stefan, odeio ser criança.
— Talvez a gente precise de um ás na manga. O ás é você.
Em muito menos de dois minutos os portões do Domínio dos Dinossauros se abriram, puxados de cada lado por um dos estranhos guardas. Vistos de perto, Cosmo percebeu que os homens eram muito melhores vistos de longe.
— Pode entrar com essa carroça, Sr. Bashkir. Pára na frente do saguão.
— Eeeepa — disse o outro. — Você é mesmo feio que nem um porco.
Cosmo não sabia se o sujeito estava falando do Fundimóvel ou de seu próprio reflexo. Mas, afinal de contas, não estava em condição de zombar dos outros. Sua cabeça não era nenhum quadro a óleo desde que Dito a havia remendado, se bem que pelo menos agora havia alguns fios para cobrir os calombos.
Mona guiou o veículo através de uma pista de obstáculos feita por esqueletos de automóveis, parando na frente de um pórtico construído com parabólicas enferrujadas. Aparentemente era o escritório.
— Lembre-se — disse Stefan a Dito —, banque o imaturo.
Mona riu.
— Bancar? Só seja você mesmo, Dito. Ninguém vai notar a diferença.
Os gêmeos feios os escoltaram através de uma cortina de porcas e parafusos presos em fios de cobre. Dentro era ainda mais sujo do que fora. Cada centímetro da superfície era coberto por uma mistura fedorenta de óleo, terra e ferrugem. Milhões de ferrugins corriam pelo teto, e suas atividades faziam flocos de ferrugem caírem flutuando como mariposas robôs.
Atrás de uma mesa feita de estrados de madeira estava sentado um homem, claramente à vontade no meio da imundície. Seus pés estavam apoiados na mesa, com os dedos descalços sendo lambidos por um obeso gato laranja.
— Belo gato — disse Stefan. — Qual é o nome dele?
— Camuflagem — respondeu o sujeito. — Quando esse gato fecha os olhos, você não consegue achá-lo aqui nem com um par de sabujos.
Stefan empurrou os pés do sujeito para fora da mesa, sentando-se diante dele. O gato sibilou, correndo pela perna do homem até a barriga.
— Vejo que você não acredita em bons modos.
— Modos não compram muita coisa na Grande Fundida, nem fora dela, Lincoln.
O rosto de Lincoln era magro, com olheiras fundas parecendo carne derretida. Ele podia ter qualquer idade ou ser de qualquer raça, mas o sotaque era decididamente de classe alta. Usava terno risca-de-giz, com colete; infelizmente tinha pelo menos uns vinte anos.
— Você sabe o meu nome, garoto, mas eu não sei quem você é. Você usou o nome de uma amiga minha para entrar, mas certamente não é a Dra. Aeriel Bashkir.
— Sou o filho dela, Stefan. Ela me falou de você. Lincoln o examinou durante alguns instantes.
— E, você tem os olhos dela. Como vai sua mãe? Stefan baixou o olhar.
— Morreu. Há três anos.
Lincoln ficou quieto por vários instantes.
— Lamento ouvir isso. Ela era uma boa mulher.
— Era mesmo. Pelo que ela me contou, você lhe deve um favor.
Lincoln riu. Seus dentes eram da mesma cor do resto do corpo.
— Talvez. Mas eu certamente não devo nenhum favor a você, caro garoto. Os favores não são transferíveis.
Stefan pôs os cotovelos na mesa.
— Lincoln, há cinco anos minha mãe saiu da cidade e operou seu apêndice supurado. Nenhum outro médico teria feito isso. Enquanto estava aqui, ela viu uma OBAA subindo. Ela me contou tudo. Nós dois sabemos que você é o pirata que está lançando OBAAs ilegais há anos, sem nenhuma licença, seja de segurança ou de qualquer outro tipo. Basta um telefonema meu e os advogados da Myishi
vão cortar esse lugar em cubos com lasers espaciais. E os gêmeos feios aqui não vão ser de nenhuma ajuda. Lincoln não ficou impressionado.
— Você conheceu Floyd e Bruce. Eles são meus garotos. Eu tirei os dois da rua quando mal tinham saído das fraldas. Acredito que na época tinham 26 anos. Estúpidos que nem pedras, coitados, mas certamente sabem atirar. Na verdade eles estão com velhos fuzis apontados para sua cabeça agora mesmo.
— Ah, verdade? Bem, eu aconselharia os dois a olhar para baixo.
— Olhar para baixo? — disse Floyd. — Você não quer tirar nossos olhos do alvo, não é?
— Você deve pensar que a gente nasceu na terça-feira passada — acrescentou Bruce, com a voz assobiando ligeiramente através dos espaços entre os dentes. — Nós estamos cobrindo todos vocês. Você e os dois delinqüentes juvenis.
— E o bebê? — perguntou Stefan. Floyd deu um muxoxo.
— O que é que tem? O que ele vai fazer? Cuspir pra cima?
Floyd e Bruce sentiram dois bastões elétricos se chocando dolorosamente contra suas rótulas. Dito estava rindo para eles.
— Vocês é que vão estar cuspindo para cima, se eu esvaziar uma carga inteira.
Lincoln teve de rir.
— Bartoli?
Dito assentiu.
— Um dos últimos.
— Certo, seus idiotas — disse Lincoln. — Guardem os fuzis antes que o pequenino frite vocês.
Floyd e Bruce obedeceram de má vontade.
— Um genuíno Bartoli — disse Lincoln. — Quais são as suas muts?
Dito fez um muxoxo.
— Eu prefiro a expressão talentos especiais.
— Mutações, talentos especiais, a expressão que você quiser. O que você consegue fazer?
— Eu sou o médico do nosso grupo.
— Mãos que curam. Ouvi falar disso. Você é sensível também?
— A quê?
— Ao mundo espiritual. Os cientistas da TV dizem que Bartoli despertou partes do cérebro que estavam adormecidas durante milênios.
— Sei o que os sabe-tudo dizem — reagiu Dito com uma ferocidade pouco comum. — Não, não sou sensível. Sou bonito, só isso.
Lincoln se recostou em sua poltrona puída.
— Parece que você me pegou, Stefan. Então vamos aos negócios. Em que posso ser útil?
— Eu preciso de uma nave de Órbita Baixa e Alta Altitude — disse Stefan peremptoriamente.
Lincoln riu. Flocos de ferrugem caíram das rugas de seu rosto.
— Uma OBAA. Assim. Sem jogar conversa fora antes?
— Não tenho tempo para jogar conversa fora. Preciso de uma OBAA agora. Hoje.
— O que eu estaria fazendo com uma OBAA? Isso seria ilegal. A polícia pública e a privada estariam tentando me prender. Sua mãe deve ter se enganado. Uma alucinação do deserto, talvez.
Stefan bateu com o punho na mesa.
— Minha mãe era fanática por espaçonaves. Costumava me levar ao Cabo para assistir aos foguetes decolando. Conhecia cada modelo que já foi feito. Ela não se enganou. Você é o pirata do espaço que toda a polícia particular está procurando.
— E se for? Não que eu esteja admitindo nada. Quem mais limparia o espaço? Quem mais resgataria todos aqueles satélites que viraram lixo? Na minha humilde opinião, quem estiver mandando essas OBAAs sem licença está fazendo um favor à terra. O primeiro lixeiro cósmico do mundo. As transmissões ocasionais de TV pirata são um preço pequeno a pagar por um espaço limpo.
— Certo, certo, você merece uma medalha. Agora, onde está a nave?
De repente o rosto de Lincoln ficou de uma seriedade mortal.
— Por que eu entregaria uma nave a vocês? Um punhado de crianças? Você não têm idade para dirigir aquele monte de lixo lá fora, quanto mais uma OBAA.
— As pessoas crescem depressa na Grande Fundida— retrucou Stefan com amargura. — Nós sobrevivemos por
conta própria há anos. A única coisa que os adultos fizeram por nós no passado recente foi tentar nos matar. Você pode programar a OBAA daqui. Ela vai subir e voltar sem que a gente precise encostar em nenhum instrumento. Só queremos estar a bordo.
— Você ainda não disse por que eu iria querer lhe entregar minha nave, se eu tivesse uma. O que eu ganho?
Stefan tirou do bolso do casaco uma carteira-computador. Colocou-a na mesa.
— E o que é isso? — perguntou Lincoln, tentando parecer desinteressado. — O último videogame em 3D?
— Não, Lincoln, é um painel transportador. Com tela de energia solar Lockheed Martin e capacidade de memória de dois milhões de gigabytes. Adquiri recentemente de um amigo.
Lincoln cutucou o painel.
— Painel transportador. Ah, verdade. O que há na memória?
— No momento, nada. Há memória suficiente aí para rodar uma estação de TV pirata.
Lincoln sopesou o painel.
— Em teoria. Mas é preciso um satélite grande no qual se ligar.
— Nós temos um. O maior de todos.
— Não tente brincar, Stefan. Ninguém chega perto do Satélite sem códigos de acesso corporativo. Se chegar a menos de um quilômetro sem os códigos, eles explodem a gente.
Stefan enfiou o painel no bolso.
— Deixe os códigos comigo. Esta é a oportunidade de toda uma vida, Lincoln. Eu posso ligar você com um painel do Satélite. Você vai transmitir durante meses antes que eles possam rastrear.
Lincoln coçou um trecho limpo do queixo.
— E tudo que eu tenho de fazer é...?
— Me dar o cartão de partida da OBAA que eu sei que está estacionada nos fundos.
— Dois milhões de gigabytes, foi o que você disse?
— Todinhos seus. Eu lhe dou um chip de conexão e você está feito.
Lincoln estava convencido, mas lutou contra isso.
— Você sabe quanto custa um desses chips, Stefan?
— Mais ou menos um décimo do que você vai ganhar das empresas de TV independentes.
— Isso tudo pode ser mentira, Stefan. Talvez você só precise da minha nave e não tenha nenhum código.
O olhar de Stefan atravessou o ar cheio de partículas.
— Você tem minha palavra, Lincoln. Juro pela alma da minha mãe.
Lincoln balançou as mãos.
— Não precisa ficar mórbido, jurando por almas. Esse negócio é baixo astral.
— Então, estamos combinados?
Lincoln se levantou; a ferrugem caiu de suas roupas como pele seca de cobra.
— Sim, jovem Bashkir. Estamos combinados. Stefan estendeu a mão.
— Um aperto para selar.
Lincoln ignorou o gesto.
— Podemos apertar as mãos quando você trouxer minha nave de volta inteira.
Lincoln guiou os Supernaturalistas para os fundos do Fer-ro-velho até o que parecia uma parede sólida feita de carros arrebentados. Em seguida pegou um controle remoto de garagem pendurado ao pescoço e apertou o botão. A parede se partiu ao meio, deslizando em trilhos precários. Imediatamente meia dúzia de cachorros atarracados saltaram, presos por correntes. Os lábios estavam repuxados, revelando dentes amarelos, e fios de baba pendiam das mandíbulas como cordas de rapei.
Lincoln apertou outro botão no controle remoto e as correntes foram enroladas.
— Não me importa o quanto a tecnologia evolui, nada pode vencer um vira-lata faminto quando se trata de segurança.
Os cachorros eram de uma raça estranha, com focinhos curtos e pêlo vermelho.
Lincoln jogou um punhado de ossos tirados de um balde.
— Gostam dos meus nenens? Custaram uma grana. Encomendei em Cuba, são de proveta. Na maior parte os genes são de pit bull. Um pouco de urso, também, e algumas cepas de camaleão, para dar a cor.
A OBAA estava sobre uma grade, rodeada por uma gaiola de gelo. Bombas de refrigeração lançavam cristais
abaixo de zero na superfície brilhante. O casco da nave tremeluzia dentro dos painéis congelados.
— Você tem muita sorte, rapaz — disse Lincoln. — Nós tínhamos um lançamento planejado para esta noite. Nada de especial, só uma voltinha de rotina para ver o que dava para pegar. Caso contrário levaria alguns dias para congelar a estrutura.
Cosmo chegou perto de Mona.
— Para que é o gelo?
— Camuflagem, Cosmo. A OBAA precisa de dois lançadores com combustível líquido para subir os primeiros oitocentos metros antes que a aliança solar seja acionada. Esse calor apareceria nas câmeras do Myishi. Eles não têm paciência com os piratas fazendo besteira no espaço. O gelo impede que o local de lançamento apareça na tela. Os piratas vêm usando caixas de gelo há décadas.
Floyd e Bruce puxaram um dos painéis de gelo usando ganchos. A OBAA estava sobre quatro blocos, como um carro sem rodas.
Os Supernaturalistas entraram na cobertura de gelo. Cosmo tocou o painel frio da nave.
— Esse negócio voa?
Lincoln deu-lhe um tapa no ouvido.
— Claro que voa, garoto metido. Ela voa, plana, desliza. Mas, mais importante, ela pousa. — Ele entregou o cartão de partida com um floreio. — Imagino que não vão revelar o motivo da viagem.
Stefan guardou o cartão no bolso, entregando o painel solar Lockheed Martin.
— Imaginou certo, Lincoln, meu velho. Vamos partir ao crepúsculo, portanto você tem três horas para transferir para o painel qualquer software de que precise.
— Você tem um mecânico?
Mona já estava ocupada com uma chave de fenda num dos painéis de acesso.
— Temos um mecânico. Me dê meia hora e eu digo se temos uma nave.
Mona relatou vinte e quatro problemas eletrônicos, de computador e mecânicos em sua lista de verificação da OBAA.
— Vinte e quatro — disse Stefan, cocando o queixo. — Alguma coisa crítica?
Mona consultou a lista.
— Principalmente itens de conforto. Os filtros de ar estão precisando ser trocados, mas se for uma voltinha rápida a gente deve ficar bem. Fiz testes de pressão nos trajes espaciais. Todos precisam de remendos, menos um. De modo que você vai sair sozinho da nave, Stefan.
— Bom. A partir de agora nada de riscos desnecessários para ninguém.
— Os flaps mal se mexem, então não dá para fazer curvas fechadas. A maioria dos circuitos está presa com fita adesiva do século passado, e o pára-brisa está imundo.
— Tem limpadores?
— Não.
— Tudo bem. Arranje uma esponja e um pouco d'água. Vamos decolar em uma hora.
A OBAA pesava 14 toneladas e tinha forma aproximadamente cônica. Era guiada por flaps de cauda e uma dúzia de jatos de gás, seis dos quais estavam funcionando. Em algum momento o casco fora pintado de azul União Européia, mas a maior parte da tinta havia se descascado durante várias missões de coleta. Na base da nave havia dois lançadores fixos que dariam a propulsão para romper a gravidade, e depois disso a Aliança de Casamento assumiria. A Aliança de Casamento era um aro de painéis solares folheados a ouro que oscilavam continuamente enquanto a nave se movimentava. Cada painel se carregava seqüencialmente, depois se movia para trás e fazia contato com um anel magnético no casco, para depositar sua carga e abrir espaço para a próxima célula. No espaço, a OBAA parecia uma garota brincando de bambolê.
— Até onde nós vamos, no espaço? — perguntou Cosmo.
Mona estava fazendo uma verificação final dos sistemas, com uma pequena ajuda de um manual velho e amassado.
— Tecnicamente não vamos chegar ao espaço exterior: só vamos passar a borda da atmosfera. Qual é a diferença, Cosmo? Uma queda de qualquer distância acima de 15 metros, mata. De qualquer modo é muito mais provável que a gente morra de um vazamento de pressão do que de uma queda.
— Obrigado. Agora estou me sentindo melhor.
— Ainda bem, porque você é o meu co-piloto. Cosmo apertou a jaqueta de combate para se proteger
do frio dos painéis de gelo.
— Co-piloto? Mona, eu nem sei mandar as coordenadas de um automóvel para o Satélite.
— Não se preocupe, Cosmo. O computador faz a maior parte do serviço, e, quando chegarmos suficientemente perto, o Satélite vai nos guiar.
— Se conseguirmos os códigos de acesso — lembrou Cosmo.
Mona franziu a testa quando uma luz vermelha apareceu no console. Bateu nela com o nó de um dedo e a luz ficou verde.
— Se Stefan não está preocupado com isso, também não vou me preocupar.
Lincoln enfiou a cabeça pela escotilha.
— O Lockheed — disse ele, entregando a Mona o painel transportador. — Não deixe de fazer um contato firme. Decolagem em dez minutos.
Mona não era boa em receber ordens.
— Decolagem em dez minutos? Há um controle de missão em algum lugar aí, que eu não notei?
Lincoln deu um sorriso doce.
— Não, minha duendezinha sarcástica, não há controle de missão. Mas as bombas da minha geladeira estão sem gás, portanto vocês vão partir em dez minutos, caso contrário o gelo derrete e vocês não vão de jeito nenhum. Vou deixar você explicar isso ao Stefan, tá bom?
Mona voltou à checagem final.
— Bem lembrado. Serão dez minutos.
Nove minutos depois os Supernaturalistas estavam presos em cadeiras giroscópicas, com as costelas protegidas da força-G por coletes blindados. Acima deles, as placas de gelo tremeluziam ao crepúsculo.
— O gelo vai se quebrar, não vai? — perguntou Cosmo. — Ele parece bem grosso.
O dedo de Mona pairou acima do botão de ignição.
— Deve quebrar, em teoria. A proa tem um quebra-gelo. Dito e Stefan estavam atrás. Na verdade havia apenas
três assentos, portanto Dito estava no colo de Stefan, preso por um arnês extra.
O Bebê Bartoli não ficou satisfeito.
— Dentre todas as humilhações que meu estado me forçou a suportar, esta é a pior.
Stefan deu-lhe um tapinha na cabeça.
— Calma, calma, amiguinho. Quer que eu conte uma história?
— Stefan. Não é hora para isso. Eu posso ser pequeno, mas ainda posso causar algum dano.
Mona se virou na cadeira giroscópica.
— Você parece meio irritado, Dito. Deve estar com gases.
Dito saltou para a frente, mas o arnês o manteve preso.
— Vamos, Mona — disse Stefan. — Antes que ele se solte.
Mona levantou a capa de segurança da ignição.
— Já fomos — disse apertando o botão vermelho.
Com um rugido enorme, os lançadores foram acionados, fazendo o gelo virar vapor em segundos. O invólucro se derreteu em volta. O vapor subia ao redor da OBAA, obscurecendo a janela frontal.
A nave saiu lentamente da base de lançamento, lutando contra a gravidade. Os mostradores de potência chegaram ao vermelho enquanto o computador aumentava o empuxo. O nariz corta-gelo rompeu o painel congelado acima, e depois o atravessou. Abaixo a água fervia e se recondensava, formando uma névoa densa.
Cosmo se sentiu sendo despedaçado. Não era como os vôos mostrados nos vídeos de férias pela TV Mas, afinal, esta não era uma nave de lazer controlada pelo Satélite. A OBAA era uma nave pirata de vinte anos, com lançadores duplos e memória que mal dava para alimentar um sistema de entretenimento doméstico.
O nariz se inclinou ligeiramente.
— Essa é a hora perigosa — disse Mona com os dentes chacoalhando. — Se a queima inicial for forte demais, a traseira vai mais rápido do que o nariz.
— E aí o quê?
— Aí a gente dá um cavalo-de-pau.
— Cavalo-de-pau não parece coisa boa.
— Não é.
O computador reduziu a queima ligeiramente, ajeitando a nave.
— Tudo bem, estamos na vertical. Agora vem a parte divertida.
Cosmo, o novato, ia fazer mais uma pergunta. A parte divertida, pretendia dizer. Qual é a parte divertida?
Então a Aliança de Casamento foi acionada, acrescentando a energia das células solares supereficientes aos lançadores, cuja potência ia caindo, e às baterias de lítio da OBAA. A nave partiu a 2.400 quilômetros por hora através de um aglomerado de nuvens esverdeadas, como uma pedra saltando de uma atiradeira. A força-G enfiou as palavras de Cosmo de volta na garganta.
Mona conseguiu falar, embora os tendões do pescoço parecessem as longarinas de uma ponte:
— A parte divertida.
Céu azul, pensou Cosmo quando os tremores pararam. O céu é mesmo azul. Fiapos de poluição viscosa ainda se grudavam ao pára-brisa, mas além disso havia um céu azul pontilhado de estrelas. Era uma visão espantosa. Azul, como nos cartões-postais antigos. A vista do Observatório Myishi tinha sido impressionante, mas isso era ainda melhor, porque o céu estava a toda volta. Cosmo até viu uma nuvem branca pairando na borda do espaço.
Uma mensagem soou num alto-falante do computador.
— Gravidade a um quinto do normal na terra. Ativando gravidade artificial.
— Bom — disse Mona. — Esse negocio de flutuar não está sendo bom para o meu estômago.
Então o computador avisou:
— Falha na gravidade artificial.
Mona bateu várias vezes no botão da gravidade, sem sucesso.
— Ah, fantástico — murmurou ela. — Cometa do vômito.
— O quê? — perguntou Cosmo, e então sentiu o conteúdo do estômago subindo
— Fique bem parado — alertou Mona. — Demora um pouco para a gente se acostumar à baixa gravidade. Não tire os cintos de segurança. — Ela espiou por cima do ombro. — Não temos gravidade. Tentem não se mexer muito.
— Tarde demais — disse Stefan.
Dito estava pendurado para a frente, preso ao cinto. Seu rosto estava verde e havia uma poça meio marrom flutuando no ar diante dele.
— Eu não deveria ter comido aquela pazza de manhã — gemeu.
Stefan pegou um pequeno aspirador de pó embaixo do banco e sugou o vômito.
— Obrigado, Dito. Esse é exatamente o tipo de serviço que eu gosto de fazer. Pode ter certeza de que eu não vou me esquecer disso.
O computador acionou o freio, ou, mais precisamente, os jatos dianteiros, reduzindo a velocidade da OBAA para seiscentos quilômetros por hora. O Satélite pairava na borda do espaço como uma nave-mãe alienígena. O logotipo estilizado da Myishi pulsava suavemente na barriga côncava da parabólica.
— Eu li que a energia necessária para alimentar aquele logotipo daria para iluminar vinte quarteirões da cidade — disse Mona.
A medida que se aproximavam, o Satélite encheu todo o campo de visão, e eles podiam ver centenas de jóqueis de antena trabalhando em reparos na superfície da parabólica. Usavam botas magnéticas e eram presos à estrutura com cabos e ferragens de alpinismo. Seus movimentos eram hábeis e graciosos enquanto se lançavam ao espaço e em seguida ricocheteavam, retornando exatamente ao ponto onde precisavam estar.
— Aposto que não é tão fácil quanto parece — observou Dito, enxugando a boca. — Fico feliz porque não sou eu que vou lá.
O console do rádio soltou três bips.
— Comunicação chegando — disse Mona, abrindo um canal. Uma voz saiu pelos alto-falantes. Era fria como o próprio espaço.
— OBAA não identificada, aqui é o Comando do Satélite, vocês estão em espaço da Myishi.
Stefan removeu seus cintos, puxando-se, junto com Dito, pelo corrimão preso ao piso.
— Estamos ouvindo, Satélite — disse ele junto ao microfone vermelho. — Só estamos pegando o código de acesso.
— Trinta segundos — respondeu a voz. — Então iniciaremos a mira.
Stefan tirou seu videofone do bolso e abriu o menu de chamadas. Selecionou a ligação que tinha feito para Ellen S Faustino na Torre Myishi e rodou o vídeo. Na minúscula tela do telefone Ellen apareceu, explicando por que não podia conseguir uma conexão com o satélite. Para ilustrar o que dizia, girou a tela de seu computador e mostrou os dados. A lista de empresas estava claramente visível, e ao lado de cada empresa havia o código de acesso e a tabela de horários.
— Certo, Satélite. Nós somos uma equipe de manutenção dos Automóveis Krom.
— Vocês são da Krom? — disse o segurança. — Nesse balde de parafusos?
— Ei, a gente é da manutenção, não da realeza — respondeu Stefan tentando parecer magoado. — O anúncio das cinco da tarde está tremendo, por isso eles mandaram a gente colocar um painel novo.
— A gente podia ter consertado. É um caminho muito longo até aqui.
— Sem ofensa, mas vocês cobram os olhos da cara só para polir os painéis solares, e nós estávamos passando por perto. Nós temos o código, então só ilumine a baia.
— Primeiro mande o código. Depois falamos de sua baia de manutenção.
Stefan entregou o telefone a Mona, que digitou duas vezes o código de dez números. A segunda vez para garantir.
— Certo — disse o segurança de má vontade. — Estão liberados. Baia 75. Sigam as luzes de pouso e não saiam de sua baia.
— Entendido, Satélite. Tenha um bom dia.
A ordem de seguir as luzes de pouso era desnecessária, já que era o computador que se ligava à freqüência dos faróis vermelhos e dirigia a OBAA à baia 75. Os faróis eram arrumados em círculos concêntricos que agiam como um alvo, puxando-os cada vez mais perto de uma passarela de aço que se projetava da antena; uma dentre as várias centenas ligadas nesta área. O logotipo da Krom estava pintado na passarela. A nave engatou com um som raspado, e dois jóqueis de antena vieram prender os cabos de proa e popa.
— Chegamos — disse Stefan soltando Dito. — Preparem os cabos enquanto eu visto o traje. — Em seguida pegou a caixa com um traje espacial e desapareceu no banheiro.
Dito desenrolou um conduíte da área de carga. Dentro havia dois cabos. Um cabo de força e uma conexão de modem. A nave antiga não era equipada com conexão sem fio para um volume de informações tão grande.
— Para a Myishi, nós só estamos carregando as baterias e substituindo o chip de vídeo da Krom, mas enquanto o chefão estiver lá fora ele coloca o cabo de modem e a gente invade o satélite para uma busca sorrateira.
— Quanto tempo isso vai demorar?
— Não muito, Cosmo. Mais ou menos um minuto deve ser suficiente. Qualquer tempo a mais, a Myishi vai perceber o que estamos fazendo. Além disso, há o fato de que a equipe da Krom deve chegar aqui logo.
Stefan saiu do banheiro. Não estava usando o traje.
— Não dá—disse ele. — Temos de achar outro modo.
Mona girou a cadeira para encará-lo.
— O quê? Outro modo? Por quê?
Stefan estendeu o traje. O nome Floyd estava rabiscado com tinta vermelha no crachá.
— Esse traje. É pequeno demais.
— Não — disse Mona. — Os trajes espaciais são tamanho único. Os braços e as pernas são sanfonados.
Stefan suspirou.
— Em geral, sim. Mas este é do século passado. Feita sob medida para um indivíduo. Um indivíduo baixo. Não vai dar certo. Vamos embora antes que sejamos descobertos.
Mona soltou as presilhas de seu colete-G.
— Então eu vou, Stefan.
— Mesmo que eu gostasse da idéia, não é prática. Você é a piloto, Mona. Se o computador pifar, o que pode muito bem acontecer nesse ferro-velho voador, você é que tem de levar a gente para casa, ou pelo menos a menos de cem quilômetros de lá.
Mona mordeu o lábio. Stefan estava certo.
— Dito. Você já mexeu com computadores. Vá você.
O Bebê Bartoli cruzou os braços no peito. A linguagem corporal era clara para quem quisesse ver. Mas para o caso de haver alguma incerteza, ele disse:
— Nem sonhando, Vasquez. Nem um caixote cheio de hormônios do crescimento me tentaria a entrar naquele traje. De qualquer modo, como o Stefan disse, o traje não é ajustável. Se eu me enfiar naquilo, vou parecer um bebê brincando de adulto.
A garganta de Cosmo ficou subitamente seca. Ninguém iria pedir que fosse. Ele era o novato. Era ele quem deve-ria se oferecer.
— Eu faço — disse bruscamente. Stefan apontou um dedo rígido.
— Não — disse num tom consideravelmente definitivo. — Cala a boca, Cosmo. Você não sabe o que está dizendo.
O cérebro de Cosmo concordava. Ele não tinha idéia do que estava dizendo, mas fazia parte da equipe, e esse serviço precisava ser feito.
— Eu vou. O traje vai servir em mim. Só preciso conectar uns cabos, não é?
Mona não estava tão em êxtase quanto Cosmo pensou que ela ficaria.
— Não sei, Cosmo. Pode ser perigoso. Talvez a gente devesse deixar para lá.
Dito flutuou até a altura da cabeça dos outros.
— Escute a Vasquez, garoto. Não é com o serviço que eu me preocuparia, é com a possibilidade de ficar flutuando no espaço durante toda a eternidade.
Cosmo apontou para o pára-brisa. A passarela tinha menos de seis metros de comprimento.
— Dá para ver a baia daqui. Eu vou estar amarrado o tempo todo. O que pode dar errado?
Dito bateu na própria testa.
— Você tinha de dizer, não tinha? Agora vai se ferrar com certeza.
— Eu sei como isso é importante — argumentou Cosmo. — Se a gente voltar à Cidade-Satélite sem a varredura, quanto tempo vai se passar até que venha outra chance? Não vejo qual é o problema. Isso é muito menos perigoso do que correr pelos telhados, e vocês não se incomodavam com aquilo.
— Eu sei, Cosmo — disse Stefan. — Mas aprendi muita coisa na última semana. Passei a pensar direito.
Cosmo estendeu a mão para o traje.
— Em cinco minutos vamos ter o mapa de cada ninho de Parasitas na cidade.
Stefan entregou-o.
— Cinco minutos, Cosmo. Depois vamos puxá-lo.
Cosmo tinha o mundo aos pés. Olhando para baixo, por entre a estrutura da passarela, dava para ver a terra oitenta quilômetros abaixo. Daqui de cima ela parecia danificada. Através de aberturas entre as nuvens de poluição multicolorida, era possível identificar claramente os incêndios florestais em Los Angeles que já estavam há um mês no noticiário internacional.
A antena do Satélite pairava como um maremoto congelado, pronta para despencar em cima dele e de todas as naves estacionadas nas várias docas. Havia pelo menos quarenta naves ancoradas somente neste nível. Dezenas de jóqueis de antena faziam exatamente o mesmo que ele, ligando o computador das naves com o Satélite.
Não havia interfone no capacete de Floyd, de modo que a única coisa que Cosmo podia ouvir era a própria respiração amplificada pela bolha do capacete. Pelo menos o visor fora coberto com spray antipoluição, e graças a isso a visão permanecia clara, a não ser por vários arranhões e manchas no cristal.
Começou a falar sozinho, para ter companhia.
— Tudo bem, Cosmo. Não é nada. Pegue o conduíte e conecte na baia. Ligue o painel transportador, espere sessenta segundos e depois enrole o conduíte de volta. Moleza.
As botas de Floyd não eram magnéticas, por isso Cosmo tinha de se arrastar pelo casco da nave centímetro a centímetro. O espaço parecia sugá-lo gentilmente, querendo que ele se soltasse. Mas, mesmo que se soltasse, havia uma corda elástica prendendo-o à OBAA.
— Nada pode dar errado. Ao trabalho.
Stefan e Mona estavam diante da escotilha, olhando-o ansiosos. Cosmo sinalizou com o polegar para cima, depois se abaixou para pegar o conduíte no tubo estanque através do qual Dito o estava passando. Puxou o cabo branco e estriado e prendeu numa tira de Velcro no peito. Seus movimentos eram vagarosos e desajeitados na baixa gravidade.
Foi na direção da baia, lutando para controlar os membros, enquanto ao redor os jóqueis de antena ricocheteavam e faziam piruetas na superfície da parabólica.
O corrimão de segurança parecia minúsculo dentro das luvas grossas, e ele verificava constantemente para garantir que estava segurando-o. Centímetro a centímetro foi se puxando pela passarela, com as botas flutuando atrás e o cordão umbilical ondulando como um balanço em câmera lenta.
Finalmente chegou à antena do satélite. O primeiro serviço era prender a placa pirata de Lincoln. Tirou o painel Lochkeed de um bolso com aba e o grudou diretamente em outro. Os painéis eram tão finos que era quase impossível vê-los à distância. Faltavam apenas três metros para as baias das conexões com a terra. Corrimões se entrecruzavam atravessando a superfície da antena, e Cosmo se puxou para cima, arrastando os dois cabos atrás. Agora faltava um metro e meio, quase alcançando.
Os conectores do modem e de energia tinham uma capa de segurança removível. Cosmo só precisava abri-la e plugar os dois cabos. Simples, só que não conseguia alcançá-la. Com a curva da antena, a capa de segurança ficava mais distante do que os painéis solares, e o cordão umbilical de Floyd era uns sessenta centímetros mais curto do que deveria. Cosmo esticou a corda até o limite da elasticidade, mas ainda era muito curta. Parecia incrível chegar tão longe e ser frustrado pelos últimos centímetros.
Virou-se lentamente para a nave. Dentro, Mona estava chamando-o de volta.
— O que eu posso fazer? — perguntou a si mesmo, com a voz ricocheteando no capacete. — Não há outro modo.
A não ser soltar a corda elástica. Só por um segundo.
A idéia saltou em sua cabeça, vinda de lugar nenhum. Desamarrar a corda. Loucura.
Só por um segundo. Prendê-la no corrimão e ir plugar. Dois passos e você chega.
Talvez, mas um movimento em falso e você está perdido no espaço. Dois passos.
— Idiota — disse Cosmo a si mesmo, soltando a corda. Viu Stefan com o canto do olho. Uma leitura labial básica mostrou que o Supernaturalista concordava com a opinião que Cosmo fazia de si mesmo. Mona estava batendo com a palma da mão no painel de plastividro. Também não estava muito impressionada com ele.
Cosmo usou uma das mãos para prender sua corda elástica no corrimão, tendo o cuidado extremo de não soltar a outra. Não que fosse transformar isso em hábito. Era só uma vez. Desde que não perdesse a concentração, tudo daria certo.
Meros dois passos depois estava diante da baia. Passou o braço pelo corrimão, prendendo o cotovelo. Agora nem dois rinocerontes puxando suas botas poderiam obrigá-lo a se soltar. Desprendeu o conduíte do Velcro no traje e o conectou na baia. Dentro do conduíte, um cabo de força e um de modem se encaixaram. Uma luz piscou verde num painel ao lado do conector. Contato. Agora só precisava contar até sessenta.
Stefan estava curvado sobre o laptop que tinha ligado ao computador de bordo.
— Está funcionando? — perguntou Mona com as mãos e o rosto encostados no vidro.
Stefan levantou um dedo.
— Espera!
— Não acredito que ele se desamarrou. Idiota. Espero que ele não ache que isso vai me impressionar, porque não vai. Está funcionando?
Stefan bateu palmas.
— Está. Agora só precisamos de sessenta segundos. Ainda que Mona estivesse fingindo que não se impressionava, Dito estava impressionadíssimo.
— Lá se vai outro membro do grupo. Vamos ter de colocar um anúncio na TV Procura-se garoto maluco com vontade de morrer. Fornecemos placas Robotix.
— Pense positivo — disse Mona com rispidez. — Ele só precisa se segurar por sessenta segundos.
Dito deu um risinho.
— Sessenta segundos. Do jeito que a sorte de Cosmo anda ultimamente, pode ser uma vida inteira. Eu não ficaria surpreso se um meteoro escolhesse este momento exato para acertar a antena.
E isso, claro, não foi o que aconteceu.
Cosmo estava contando.
— ... cinqüenta e oito elefantes, cinqüenta e nove elefantes, sessenta... elefantes.
Um elefante extra, só para garantir. Hora de voltar para o cabo umbilical. Estava desatarraxando o conduíte quando um minúsculo tremor atravessou todo o Satélite.
Cosmo olhou para cima. Uma unidade residencial no alto parecia ligeiramente torta. Dentro, pessoas se trombavam do outro lado das janelas. Outro tremor. Dessa vez muito mais forte. Em volta dele, os jóqueis de antena eram deslocados e flutuavam até o fim dos cabos. A unidade residencial definitivamente não estava bem. Dois de seus cantos tinham se soltado completamente da estrutura principal. Houve um terceiro tremor, monstruoso se comparado aos outros dois. O cubo residencial se soltou completamente. E Cosmo também.
Com um grito de surpresa que ninguém mais podia ouvir, os dedos do adolescente foram arrancados do corrimão e ele flutuou para o espaço.
À sua volta, luzes de emergência começaram a piscar nos capacetes de cada trabalhador, alertando-os do perigo. A unidade residencial se afastou ainda mais da estrutura do Satélite, impulsionada pelo gás que saía de seus tubos de suporte de vida. Cosmo só podia olhar e tentar não entrar em pânico. O pânico significaria respirar mais fundo, e sua leitura de oxigênio já estava indo para o vermelho.
O resgate foi fantástico. Dezenas de jóqueis de antena se lançaram no vácuo, prendendo-se à unidade antes que ela estivesse fora do alcance. Eles enrolavam os membros em qualquer protuberância, grudando-se como âncoras humanas. Vários outros saltavam repetidamente numa das extremidades do cubo, girando-o, de modo que os jatos de gás o empurrassem de volta para o Satélite. Foi estupendo. Aquelas pessoas eram caubóis do espaço. Cosmo sentiu vontade de aplaudir. Então se lembrou de que estava encrencado.
Alguma coisa bateu em seu peito. O primeiro pensamento foi rápido e ridículo. Alienígena! Mas não, era um jóquei de antena. O rosto do sujeito estava vermelho e ele gritou soltando cuspe dentro do visor.
Cosmo apontou para os próprios ouvidos, balançando a cabeça.
O jóquei tirou um sugador sônico do cinto e grudou o minúsculo microfone no capacete de Cosmo. O contato foi imediato.
— ... que diabo você está fazendo, rapaz? Se desamarrando assim. É maluco?
— E... desculpa.
— Você não lê a correspondência da empresa? O Satélite está instável. Ultimamente essas quebras estão acontecendo cada vez mais. Sorte sua eu ter visto você. De que empresa você é?
Cosmo revirou o cérebro.
— É... Krom. Eu sou da Krom. O jóquei revirou os olhos.
— Krom. É típico. Aposto que você não tem mais do que umas duas horas de espaço. Empregar amadores e economizar é o lema da Krom. Você não passa de um garoto. Quantos anos você tem?
— Vinte e dois — murmurou Cosmo, esperançoso. — Eu bebo muita água, para ficar com aparência jovem.
— Vinte e dois — repetiu o jóquei, acionando o carretei para puxá-los de volta à antena. — Devo estar ficando velho.
O jóquei completou um giro no espaço e os dois chegaram de volta à plataforma. Em seguida prendeu Cosmo ao seu cabo.
— Vou ter de anotar isso — disse ele, tirando um minicomputador preso no pulso. — Qual é o seu nome?
Bem na hora Cosmo se lembrou do nome escrito no traje.
— É... Floyd. Floyd Faustino.
— Bem, Floyd — disse o jóquei, digitando no teclado do computador. — Isso vai significar uma multa para a Krom, e provavelmente para você. — Ele imprimiu um cartão e enfiou no bolso do traje espacial de Cosmo.
— Você tem 14 dias para pagar a multa, caso contrário sua licença de jóquei de antena vai ser revogada.
— Sim, senhor — disse Cosmo humildemente. — Desculpe, senhor.
O jóquei não ficou impressionado.
— Deixe as desculpas para lá, só pague a multa.
E com isso o jóquei se projetou pela antena para ajudar a prender a unidade residencial. Cosmo se puxou, trêmulo, até a nave.
Mona estava esperando dentro do compartimento estanque.
— Imbecil — disse ela, dando-lhe um soco no ombro.
— Eu sei — respondeu Cosmo arrasado, com as pernas bambas dentro do traje. — Podemos voltar à Terra, por favor? Por favor?
Stefan estava olhando os resultados da varredura.
— Não sei, Cosmo. Quando você ouvir os resultados dessa varredura, talvez queira ficar aqui em cima.
Cosmo tirou o capacete.
— O que é? — riu ele. — Não diga que o ninho de Parasitas fica debaixo do Clarissa Frayne.
Ninguém mais riu. Nem mesmo um sorrisinho.


CAPÍTULO 8
PULSO

Rua Abracadabra

COSMO não tinha falado grande coisa durante toda volta do espaço. Não estava exatamente com raiva, porque não havia de quem sentir raiva. Só ficou imaginando quando tudo aquilo terminaria. Quantas vezes uma pessoa tem de escapar da morte em uma semana? E agora lhe pediam que voltasse ao local de seus pesadelos. O local de onde tinha passado os últimos 14 anos tentando fugir.
— Você topa? — perguntou Stefan, quando se juntaram em volta da mesa.
Cosmo examinou os rostos que o encaravam. Os Supernaturalistas. Agora era um deles; afinal de contas, tinha ido ao espaço por eles. Mas a coisa não tinha a ver com ele, nem mesmo com o grupo. Esse Pulso de Energia precisava ser detonado em nome de cada ser humano do planeta. Quando a gente cresce órfã, algumas vezes é difícil pensar em outra pessoa. Mas agora ele tinha Mona em quem pensar, e Stefan e Dito.
— É um plano simples — continuou Stefan.
— É, como o último plano simples — disse Cosmo.
— Aquele era um plano simples, até que você começou a improvisar. Dessa vez você só vai estar apontando o caminho.
— Você faz com que pareça simples, mas vai acontecer alguma coisa, sempre acontece. Eu notei que meu joelho novo começa a cocar sempre que vem encrenca, e agora está cocando feito maluco.
— Confie no joelho, Cosmo — sugeriu Dito numa voz fantasmagórica.
— Cala a boca, Dito — reagiu Mona. — Isso é importante.
— Claro, é realmente importante que a gente coloque a bomba da Myishi para eles.
— É um pulso. Um Pulso de Energia.
— É o que eles dizem. Quem sabe o que essa coisa faz de verdade?
Stefan abriu a pasta, girando-a para o Bebê Bartoli.
— É um pulso, Dito, está bem? Eu mesmo verifiquei. Dito ignorou o instrumento.
— É, tanto faz. A Myishi te deu opção de comprar ações também?
Mona ficou mais irritada.
— Você não consegue dizer nada positivo? Estou começando a me perguntar de que lado você está.
Dito saltou de pé, o que não fez muita diferença.
— O que você quer dizer?
Stefan pôs a mão no ombro de Mona.
— Deixa para lá.
— Não. Eu estou começando a achar que você não quer que a gente pegue os Parasitas.
O rosto de Dito ficou vermelho vivo.
— Talvez eu não queira que a gente pegue Parasitas para a Myishi.
— Bem, então talvez você deva arranjar outra linha de trabalho.
Os dois se encararam por vários segundos, depois Dito rompeu o contato visual, indo furioso para o elevador.
— Você passou dos limites, Mona — disse Stefan quando os ecos da discussão tinham sumido.
Mona cruzou os braços, teimosa.
— Ele também.
Stefan ficou de pé, escolhendo um terno num suporte de cabides.
— Você vai ter de pedir desculpa antes de eu voltar.
— Antes de nós voltarmos, não é? — disse Cosmo. — Você nunca vai entrar lá embaixo sem mim.
Stefan jogou-lhe um terno menor, que também estava pendurado.
— Muito bem, Cosmo. Eu preciso de você para me guiar à toca do leão. Você vai voltar ao Clarissa Frayne, pela última vez.
Instituto Clarissa Frayne para meninas com deficiência de pais
O ex-bedel Redwood não ficou muito preocupado quando os dois sujeitos de terno entraram pela porta da frente. Provavelmente eram representantes de laboratórios farmacêuticos querendo testar algum produto novo. Um alto e um baixo. Para Redwood, poderiam até ser traficantes de escravos. Se quisessem seqüestrar os órfãos, Redwood os ajudaria a encher o caminhão. Não devia absolutamente nada ao Clarissa Frayne. Especialmente depois que o tinham colocado atrás de uma mesa na cabine de segurança, esperando o fim de uma investigação. E tudo por causa daquele sem-patrocínio escorregadio, o Colin Cosmo. Aparentemente Cosmo tinha sobrevivido ao mergulho daquele telhado, e agora estava listado como fugitivo. Se Cosmo tivesse sido um bom garoto e morrido quando devia, Redwood não precisaria ficar aqui com os outros imbecis, assistindo à TV de circuito fechado oito horas por dia.
Fred Allescanti, provavelmente o maior imbecil da Cidade-Satélite, estava tomando café sintético sentado na única cadeira decente da cabine de segurança.
— Ei, Fred. Deixa eu usar um pouco a cadeira giratória? Fred tomou outro gole ruidoso do líquido marrom.
— Não dá, Redwood. Minha coluna fica terrível se eu não tiver um bom apoio.
Redwood franziu a testa.
— E se eu pegar a cadeira? Digamos que eu fique maluco e jogue você direto pela janela e ocupe a cadeira enquanto você está recebendo suturas?
— Vá em frente, grandão — riu Fred. — Eu adoraria ganhar o dinheiro da compensação.
Talvez Allescanti não fosse tão imbecil quanto parecia.
— Bem, pelo menos pare de fazer barulho tomando esse café. Juro, Fred, você está me deixando demente. Quem sabe o que eu posso fazer?
Fred apontou para a câmera acima da cabeça dos dois.
— Não se esqueça de fazer isso diante da câmera, Redwood. Eu posso usar a filmagem no tribunal.
O rosto de Redwood ficou vermelho de fúria. Até Fred Allescanti estava ficando metido desde que ele fora rebaixado. Precisava voltar à rua, onde tinha algum poder. Se ao menos desse um jeito de recuperar o Colin Cosmo!
Um alerta vermelho começou a soltar um bip fraco num computador de segurança. O ícone tinha a forma de um homem correndo. Um dos sem-patrocínio estava fora de uma área designada. Finalmente alguém contra quem lançar a frustração. Redwood ativou o programa de rastreamento de padrões. Um a um os órfãos foram eliminados, já que estavam nas camas ou em áreas de lazer designadas. Quem estava solto por aí? Quem restava? O sinal era muito fraco, como se a maior parte das micro-partículas eletronegativas usadas para rastrear os órfãos tivesse sido retirada, ou entrado em curto.
Entrado em curto? O coração de Redwood acelerou. Só dois órfãos poderiam ter dado curto em suas micropartículas. Um estava morto, e o outro era Colin Cosmo.
Baixou o padrão de Cosmo no computador. Estava muito fraco, um pulso extremamente débil, mas definitivamente ativo. O ex-bedel duvidava de que os rastreadores o tivessem captado se o garoto não estivesse perto. Bem perto. Indo para o porão, aparentemente.
Consultou as telas de segurança, verificando os dois sujeitos de terno que tinha confundido com pesquisadores médicos. O baixo devia ser Cosmo. Por algum motivo insano o garoto tinha voltado. Redwood não sabia por que e não se importava. Era a chance do ex-bedel de se redimir. Poderia pegar Colin Cosmo e seu cúmplice. Claro que precisaria falar sozinho com Cosmo primeiro, para se certificar de que combinassem as histórias sobre a noite do acidente. Redwood se levantou, pegando um bastão no armário de armas.
— Ei, Redwood — disse Fred. — O que você está fazendo com um bastão? Você não é mais bedel.
Redwood nem olhou para ele.
— Vou fazer a ronda.
— Ronda? O que você é, médico? A gente é segurança, a gente não faz rondas. Por isso a gente tem câmeras.
— Não no porão. Está na hora de alguém dar uma olhada lá embaixo. Quer ir?
Allescanti se recostou na cadeira giratória, envolvendo uma caneca quente com as mãos.
— Não, obrigado, Redwood. Fique à vontade.
— Foi o que eu pensei. — Redwood enfiou o bastão no coldre.
Cosmo e Stefan passaram direto pela porta da frente. Os joelhos de Cosmo quase se dobraram assim que o cheiro
do desinfetante barato do instituto atingiu suas narinas. Ficou parado um momento, deixando as lembranças o dominarem. Ziplock, Redwood e anos de experiências médicas. Respirou fundo várias vezes, reunindo forças.
Stefan encarou-o por baixo da aba do chapéu de feltro.
— Você está legal, Cosmo? — perguntou, com os pêlos do bigode falso balançando ligeiramente.
— Tudo bem. Vamos.
— Tem certeza? Cosmo assentiu.
— Em dez minutos a gente entra e sai.
Aproximaram-se da cabine de entrada e Stefan mostrou duas carteiras de identidade falsas para um guarda que jogava videocubo portátil. Cosmo ficou de cabeça baixa, à sombra do chapéu.
— Komposite — disse o guarda, tentando parecer que se importava. — Vocês armaram um tremendo incêndio aqui na semana passada.
Stefan assentiu.
— É. Acabou com toda a cantina. Azar.
O guarda balançou a cabeça com simpatia.
— O que vão testar desta vez? Stefan bateu na pasta debaixo do braço.
— Eu poderia dizer, mas aí teria de matá-lo. O guarda entregou dois crachás de visitante.
— É, claro. Essa foi boa. Podem pegar as carteiras de identidade na saída.
Stefan prendeu um crachá na lapela, entregando o outro a Cosmo. O guarda estava de volta ao videogame antes que eles tivessem dado meia dúzia de passos.
— Ele nem olhou para mim — sussurrou Cosmo. Stefan sorriu.
— Esses guardas não recebem o suficiente para prestar atenção.
Cosmo o guiou por uma área de recepção abobadada, cheia de fotos em 3D da há muito falecida Clarissa Frayne fazendo coisas nobres com jovens. Caminhando, lendo, cavando buracos, dentre muitas outras atividades ao ar livre. Não havia nada de nobre no Instituto Frayne. As autoridades eram mais inclinadas a mergulhar os sem-patrocínio em tanques de experiências do que a levá-los para fazer montanhismo.
Passaram por vários guardas, mas ninguém os questionou. Eram simplesmente mais dois executivos de alguma empresa médica. E, de qualquer modo, quem poderia ter motivo para invadir um orfanato? Cosmo manteve os olhos baixos e a gola erguida, esperando que as pessoas achassem que ele era um homem baixo, e não um garoto alto.
— Aqui — disse ele, empurrando com o ombro uma frágil porta de plástico atrás de uma estátua de Clarissa Frayne. Nessa estátua em particular, a fundadora tinha no colo um bebê abandonado. Cada criança do orfanato ouvira histórias sobre a Srta. Frayne. Parece que a mulher odiava crianças e que tinha inventado a expressão sem-patrocínio.
A porta se abria para um corredor claustrofóbico, sem enfeites e apenas com luzes de emergência.
— Lindo — disse Stefan.
— Você deveria ver os dormitórios.
O corredor ficou mais frio à medida que descia abaixo do nível do mar. As luzes de emergência ficaram cada vez mais antigas, até que por fim o caminho era iluminado por lâmpadas de filamento presas às paredes.
— Lâmpadas — riu Stefan. — Não se vê mais disso, a não ser, talvez, do lado de fora de um cinema.
— Toda a energia é roubada das linhas elétricas principais. O Clarissa Frayne vem fazendo isso desde que eu posso me lembrar. Por algum motivo, aqui embaixo é o único lugar onde os sem-patrocínio podem vir sem ser detectados.
Stefan assentiu.
— Claro. O vazamento de energia anula os padrões de rastreamento de vocês.
O corredor descia cada vez mais, até que eles finalmente chegaram a um local sem saída, flanqueado por dois tubos de drenagem.
— Nos velhos tempos, quando a cidade costumava se inundar, esses tubos garantiam a drenagem do porão.
— E agora?
Cosmo puxou uma escotilha de manutenção. Ela se abriu com facilidade surpreendente.
— Agora os órfãos o usam para ficar um tempo longe. Dentro do tubo havia vários níveis construídos de papelão e restos de ferro fundido. Escadas precárias conectavam cada nível, descendo cada vez mais no escuro.
Stefan testou uma escada com seu peso. Ela desmoronou.
— Não tenho mais 12 anos — disse ele, abrindo o paletó. Preso ao peito havia um dos coletes que Dito havia roubado dos advogados no teto do Edifício Stromberg. Ele abriu o Velcro que cobria o kit de rapei e enrolou a corda num suporte firme.
Stefan bateu nas próprias costas.
— Tudo bem, Cosmo. Suba. Cosmo obedeceu.
— Na próxima prometa que vamos usar a escada. Só uma vez.
Stefan piscou.
— Verei o que posso fazer — falou, lançando-se na escuridão do tubo.
Pareceram cair eternamente em direção ao centro da terra. Na verdade a corda terminou antes do tubo. Stefan pegou uma lumiluz num dos bolsos. Sacudiu-a para ativar os cristais luminosos antes de jogá-la ao chão. O fundo do tubo estava a centímetros de distância.
— Talvez esta seja a nossa noite de sorte — disse ele.
— Já estava na hora.
Soltaram-se da corda e caíram no chão com um ruído surdo. O tubo estava quase totalmente corroído, por isso eles foram tateando até um piso de rocha. Cosmo bateu com o pé num cabo grosso. Ajoelhou-se e o acompanhou até uma caixa de conexão.
— Achei alguma coisa aqui. Um interruptor.
— Faz sentido. Se o pessoal do Clarissa Frayne está roubando energia, vão querer saber o que estão fazendo. Ligue, Cosmo.
Cosmo enrolou os dedos no interruptor grosso e puxou até ouvir um estalo forte. A caverna foi instantaneamente iluminada por uma dúzia de refletores halógenos. Estavam num túnel vasto, originalmente aberto com explosivos pelas equipes de construtores da Cidade-Satélite, há quase um século, para acomodar tubulações de gás, água e eletricidade. Os cabos de alta voltagem, de cem metros de altura, tinham sido descascados até o fio em alguns lugares e estavam alimentando vários geradores pequenos. Um zumbido grave emanava dos fios desencapados.
Os cabos não estavam exatamente descobertos. Estavam vestidos com um tapete azul luminoso. Parasitas adormecidos. Milhões deles. O coração prateado de cada criatura pulsava no mesmo ritmo da corrente alternada.
Stefan apertou o Pulso de Energia com mais força.
— O lugar deve ser esse — sussurrou.
O primeiro pensamento de Cosmo foi correr. O segundo também.
Stefan pousou a mão em seu ombro.
— Não se preocupe, Cosmo. Nós não estamos morrendo nem sentindo dor. Se estivéssemos, eles viriam para cima de nós. Só precisamos andar com cuidado, e não há motivo para os Parasitas notarem. Puxa, a gente podia cantar uma ópera e isso não iria acordá-los. Eles não reagem ao som, só à dor.
— Tem certeza? Você tem provas?
— Não exatamente. Mas sinto por dentro. Cosmo riu com mais do que uma leve histeria.
— Eu também estou sentindo alguma coisa por dentro.
— Você só precisa ficar aqui. Eu vou colocar o Pulso de Energia, depois saímos por onde viemos. Dois minutos. Só isso.
Stefan caminhou com cuidado através do labirinto de tubos e cabos, passando por cima de Parasitas enquanto andava. Seu objetivo era colocar o Pulso o mais perto possível do centro do grupo, onde causaria mais dano. Poderia detoná-lo da rua, soltando uma tempestade elétrica sobre as criaturas. Se a teoria de Ellen Faustino estivesse correta, a energia suja rasgaria o coração dos Parasitas mas não afetaria os seres humanos, desde que não estivessem perto da explosão.
Subiu numa escada antiga, enfiando com cuidado a maleta embaixo da curva inferior do tubo principal. Havia Parasitas a toda volta, respirando, brilhando, vivendo.
Stefan desceu da escada e se virou para Cosmo, com o polegar levantado. Não completou o gesto porque Cosmo não estava sozinho. Um homem grandalhão havia agarrado o pescoço dele por trás, com um bastão apertado contra a pele de seu rosto.
— Oi — disse o sujeito. — Gentileza de vocês aparecerem assim para colocar uma bomba debaixo da gente.
Stefan estava acostumado a agir sob pressão. Se fosse apenas ele e o estranho, pegaria seu bastão elétrico, mas agora havia outra vida em perigo.
— Faça isso — disse o homem, rindo. — Pegue sua arma e esse garoto vai estar sugando plástico mais rápido do que você pode piscar.
— Vá com calma, Redwood—ofegou Cosmo. — Você não sabe o que está acontecendo aqui.
— Sei muito bem. Vocês estão tentando explodir o Instituto e me deixar sem emprego. Agnes vai adorar isso.
Stefan deu um passo mais para perto.
— Redwood? Ouvi falar a seu respeito. Você gosta de bater em crianças. Quer se arriscar com alguém do seu tamanho?
Redwood riu.
— Do meu tamanho? Garoto, você é 15 centímetros menor do que eu. Não sou estúpido. Pegue sua arma e jogue para cá.
Stefan sentiu uma gota de suor escorrer pela coluna. Estavam a salvo das criaturas, a não ser que alguém se machucasse, e então os Parasitas acordariam.
— Certo, Redwood, vá com calma. Aqui está o meu bastão de raios.
Stefan tirou a arma do coldre usando dois dedos. Pôs o bastão no chão e chutou-o para longe.
— Pronto. Estou desarmado.
— E o detonador — ordenou Redwood. — Não diga que vocês iam se explodir junto com o prédio. Você tem um detonador aí, em algum lugar, jogue para cá.
Stefan trincou os dentes, frustrado.
— Redwood, isso não é o que você acha. Só escute um minuto...
Redwood apertou o bastão sob o queixo de Cosmo.
— Escuta você, imbecil. É bastante simples. Me dá o detonador ou eu embrulho o garoto, só para começar.
— Tudo bem, tudo bem. Aí vai.
Stefan desabotoou a tampa de um bolso na calça e tirou um cilindro de metal com um botão vermelho em cima. O botão vermelho era protegido por uma capa de plastividro. À prova de erro. Sem temporizador, era só levantar e apertar.
Fez uma última tentativa de diplomacia.
— Redwood... Bedel Redwood. Isto não é uma bomba. É um Pulso de Energia. Há criaturas em volta de nós...
— Cala a boca! — Redwood apertou o bastão dolorosamente no pescoço de Cosmo. Dolorosamente. Dor.
Os parasitas começaram a se sentar. A eletricidade era muito boa, mas se houvesse dor ao alcance...
— Jogue o detonador agora!
Uma onda de Parasitas saltou como dominós ao contrário, com os olhos pensativos procurando a fonte da dor. Um milhão de olhos pousou em Cosmo. Mais de um milhão.
— Redwood — gaguejou Cosmo. — Nós temos de sair daqui agora. Eles estão vindo.
Os Parasitas saltaram de seus poleiros, avançando em ondas pelo chão rochoso. Ignoraram Stefan completamente e se concentraram em Cosmo.
Stefan levantou a capa do detonador.
— Solte-o, Redwood, ou todos nós vamos explodir.
— Você está blefando! — cuspiu Redwood. — Não vai fazer isso. Vocês não são fanáticos.
O polegar de Stefan pairou sobre o botão.
— Sabe de uma coisa? Você está certo. Nós não somos fanáticos. Na verdade nós estamos aterrados.

Os parasitas fluíam ao redor dele, saltando por cima de sua cabeça. Stefan mal era visível num mar de azul.
Aterrados?, pensou Cosmo. O que ele quer dizer?
Então entendeu. Aterrados, claro. Cosmo se certificou de que suas botas de sola de borracha fizessem contato com o piso do túnel e fechou os olhos. Isso ia pinicar.
O polegar de Stefan se apoiou no botão.
— Ultima chance, bedel. O que vai fazer?
Os parasitas estavam a centímetros do pescoço de Cosmo.
— Vou embrulhar esse garoto primeiro, e depois você — disse Redwood.
— Resposta errada — discordou Stefan, e apertou o botão
O Pulso de Energia detonou, soltando no túnel um cogumelo azul de energia suja. Com o uivo de um furacão, o cogumelo cresceu, enchendo o espaço, depois afundou na rocha. As luzes halógenas estouraram imediatamente, lançando fagulhas como neve de néon. Raios partiram do centro da explosão, tendo como alvo o coração prateado dos Parasitas. Eles foram atravessados, dezenas por cada raio, vibrando enquanto a energia suja passava por seus filtros orgânicos. Os raios se dividiam como uma teia de aranha, cravando-se em cada parasita. As criaturas tentavam lidar com o súbito influxo de energia, mas era demais para seus organismos. Um a um eles luziram em azul e depois desmoronaram no piso de rocha, com os corações de prata frios e negros.
Os seres humanos se saíram ligeiramente melhor, especialmente Cosmo e Stefan. Suas solas de borracha conduziram o pior do choque para longe do corpo. Mesmo assim receberam uma boa chacoalhada com o jato de energia. Cosmo sentiu os olhos se revirarem para trás, e as pernas das calças começaram a soltar fumaça. O cabelo de Stefan ficou espetado e seu paletó pegou fogo. O rapaz tirou-o, batendo com ele na pedra.
Redwood não teve tanta sorte. Tinha soltado Cosmo rapidamente quando percebeu que Stefan não estava blefando. Se ao menos tivesse se segurado por mais um segundo, o jato de energia teria passado direto por ele e entrado no garoto. Do jeito que aconteceu, ele sentiu toda a carga. O efeito, embora não tão espetacular quanto o criado com os Parasitas, não foi menos permanente. A eletricidade incendiou o viscoso óleo capilar que ele passava em suas preciosas madeixas e queimou cada folículo piloso. Não somente isso, queimou também os poros, de modo que o cabelo não cresceria de novo. Então a eletricidade pegou o ex-bedel num punho gigantesco e o jogou contra a parede do túnel. Enquanto ele estava tombado, suas roupas viraram carvão e caíram, até que o sujeito ficou apenas com uma ceroula do Pernalonga.
Cosmo afastou o choque que sentia.
— O que é aquilo?
O lugar estava iluminado por raios. Stefan pegou seu bastão.
— O Pernalonga. Um coelho em 2D. Ele vivia falando: "O que é que há, velhinho?"
A luz foi sumindo à medida que os Parasitas caíam. Seus corações estavam pretos e encolhidos como pedaços de carvão.
— Conseguimos — disse Stefan, com o riso sério à luz que ia se esvaindo.
— É. A gente pegou os bichos direitinho. Stefan sacudiu uma lumiluz.
— Nem todos. Mas é o começo. Sabemos que o negócio pode ser feito. Precisamos sair daqui, caso contrário nós vamos ser culpados por isso, e não o bom bedel.
Cosmo assentiu. Redwood ficaria com a culpa pelo corte de energia. Era um belo bônus.
Uma das pálpebras do ex-bedel se abriu. Cosmo se inclinou perto dele.
— Isto foi pelo Ziplock, Pernalonga — disse ele.
O Instituto Clarissa Frayne para Meninos com Deficiência de Pais estava num caos total. Não somente o gerador principal havia pifado, mas também a energia de emergência. Os portões dos dormitórios foram desativados e o programa de rastreamento estava morto. Os sem-patrocínio tinham escapado de suas camas, empilhando os colchões de espuma no chão e usando-os para amortecer o pulo. Agora criavam o tumulto. A maioria dos guardas estava fora de serviço, de modo que um único esquadrão ficou para manter a ordem.
Fred Allescanti havia assumido o comando, com resultados desastrosos. Até agora tinha conseguido embrulhar dois de seus próprios homens e deixar que vários órfãos passassem pela porta principal. Para sorte da equipe de segurança, as portas corta-fogo se trancavam imediatamente no caso de um corte de energia. Finalmente ocorrera a Allescanti construir uma barricada ao pé da escada principal. Eles manteriam os órfãos ali até que a energia fosse restaurada.
Cosmo e Stefan se aproximaram da loucura vindos de trás. Fred Allescanti estava disparando balas de celofane contra qualquer um que enfiasse a cabeça na esquina do corredor. O poço da escada estava coberto por tanta gosma de celofane que parecia o interior de um lenço.
— Ouçam, sem-patrocínio, é melhor voltarem para a cama — rugia ele —, senão vão passar o dia de amanhã num tanque; não estou brincando.
Cosmo sentiu a irritação crescendo.
— Essas crianças vão sofrer — disse a Stefan. — Cada vez que alguma coisa dá errado, os guardas culpam a gente.
Stefan entregou seu paletó queimado a Cosmo.
— Desta vez, não.
O rapaz alto sacou seu bastão e o carregou com um pente de balas de goma. Acertou três guardas por trás e colocou outros três fora de combate com tiros precisos. No total levou uns quatro segundos.
Os órfãos desceram a escada como uma maré, derrubando a barricada e se juntando ao redor das botas de Stefan.
— Algum de vocês já esteve lá fora sozinho? — perguntou Stefan.
Um garotinho se adiantou arrastando os pés, com os olhos praticamente invisíveis por trás de um tufo de cabelos pretos.
— Eu escapei para a rua durante umas duas semanas antes de eles me pegarem.
— Qual é o seu nome?
— Meu apelido é Pula-cerca, porque é isso que eu faço. Stefan segurou a mão dele e escreveu um número na palma.
— Vão para o sul, garotos, para além da Barreira. Pula-cerca sabe o caminho. Quando chegarem ao canal, liguem para este número.
Pula-cerca levantou a mão que estava livre.
— O que é, Pula-cerca?
— Eles colocaram algum tipo de rastreador na gente. Na última vez os bedéis me pegaram assim que eu pus o pé fora do Bushka.
— Vocês sentiram um choque agora há pouco?
Os garotos assentiram; alguns ainda estavam com os cabelos arrepiados.
— Isso foi um Pulso de Energia: ele provocou um curto na eletricidade e nas micropartículas rastreadoras nos seus poros. Vocês estão livres.
Os órfãos ficaram em silêncio por um momento, digerindo a notícia importante. Então explodiram em aplausos e gritos espontâneos, subindo pelo corpo gigante de Stefan como se fossem esquilos.
— Calma aí — disse Stefan. — Vocês têm de ir antes que os reforços apareçam. Liguem para esse número: o sujeito que vai atender é meu amigo. Ele sempre está procurando garotos para o mercado. Ele vai dar trabalho e um lugar para vocês ficarem. O salário não é alto, mas é justo. Pula-cerca franziu a vista.
— Isso pode ser outro truque. Como a gente sabe que pode confiar em você?
Cosmo se adiantou.
— Lembra de mim, Pula-cerca? Pula-cerca afastou o cabelo dos olhos.
— Colin Cosmo! Podem me embrulhar se não for. A gente pensou que você estava morto. O que aconteceu com a sua cara?
Cosmo coçou a inchada placa Robotix na testa.
— É uma longa história, Pula-cerca, talvez mais tarde. Faça o que Stefan disse. Podem confiar nele. Ele salvou minha vida, e de qualquer modo a vida lá fora tem de ser melhor do que aqui dentro. É a única chance que vocês vão ter de se livrar numa boa.
A notícia se espalhou pela escada. Cosmo estava vivo e aquele homem era amigo dele. Se Cosmo pôde sobreviver lá fora, todos poderiam.
— Tá legal — disse Pula-cerca. — Eu ligo para esse número, mas se você estiver armando para a gente, eu caço você.
O garotinho estendeu a mão. Stefan apertou-a.
— É justo.
Uma sirene soou à distância. Obviamente a notícia da fuga tinha se espalhado para as autoridades.
— Hora de ir — disse Cosmo. — É agora ou nunca.
— Agora — decidiu o minúsculo Pula-cerca, guiando os sem-patrocínio para a noite, como um moderno Flautista de Hamelin.
Rua Abracadabra
Mona sabia que teria de pedir desculpa a Dito, só estava embromando ao máximo possível. A hora fatal veio quando Stefan ligou dizendo que estavam indo para casa. A missão fora um sucesso total e eles chegariam à garagem em minutos. Se ela não afastasse o mau humor agora mesmo e pedisse desculpas, Stefan iria arrastá-la até o telhado.
— Ah, tudo bem — gemeu para ninguém em particular. — Vou pedir desculpas, mas só porque sou a pessoa maior, em vários sentidos.
O elevador estava no telhado, assim, para economizar tempo, Mona pegou a escada de incêndio. O elevador era tão antigo que ainda tinha cordas e polias, em vez de campo magnético. Quando chegasse ao seu andar, ela teria terminado de pedir desculpas a Dito e preparado uma refeição com cinco pratos.
Mona saiu para o exterior do prédio 1.405 da rua Abracadabra, mantendo-se perto da parede para evitar a névoa ácida que pairava descendo em direção à terra. Logo essa névoa iria se transformar em gotas de chuva do tamanho de bolas de naftalina, e o som dos alarmes dos carros reverberaria pela Cidade-Satélite.

Chegou ao telhado no momento em que Dito ia saindo de lá. O Bebê Bartoli havia estendido uma escada e estava atravessando até um prédio adjacente.
— Ei, Dito, o que você está fazendo? — Mas o vento afastou suas palavras e Dito não se virou. Muito estranho. De que ele achava que estava brincando? Mona sabia que o que deveria fazer era voltar mais tarde. Mas também sabia que não faria isso. Toda a situação era intrigante demais. Assim, movendo-se com graça e silêncio felinos, seguiu seu colega Supernaturalista até o outro edifício.
Dito havia deixado a escada, o que significava que pretendia voltar. Mona precisaria ter cuidado. Se não voltasse antes dele poderia ficar presa naquele telhado, com a chuva chegando.
O Bebê Bartoli correu pela superfície de ferro fundido, contornando as poças de óleo que vinham corroendo o telhado com o passar dos anos. Mona subiu na caixa de máquinas. Dali podia ver tudo, mas Dito não podia vê-la.
O minúsculo Supernaturalista atravessou até o canto norte do prédio. A Estátua do Empreendedor pontuava a silhueta da cidade atrás dele, com a luz vermelha piscando na mão. Havia uma luz azul também. Mais perto. No telhado. Mona respirou fundo. Um único Parasita estava à sombra da borda do telhado. Isso explicava. Dito devia ter visto a criatura pela Parábola e tinha vindo investigar.
O que ele faria agora? Dito nunca andava armado e Stefan já havia detonado o único Pulso de Energia. Mona ia pular da caixa de máquinas e se juntar ao companheiro quando Dito fez uma coisa estranha. Ajoelhou-se diante da criatura e estendeu a mão. O Parasita, fraco pela falta de energia e com o coração pulsando num azul opaco, estendeu a mão de quatro dedos para o menininho. Os dois estavam se cumprimentando. Comunicando-se.
Mona quase caiu do telhado. Incrível! Quem era Dito? O que ele era? Tinha sido um traidor no meio deles durante todo esse tempo? Ela tentou pegar o telefone no bolso e ligar para o número de Stefan com o botão de discagem automática. Mas não. Não bastava. Ainda seria a palavra dela contra a de Dito. Precisava de mais.
O telefone de Mona era bem antigo, sem grandes tecnologias. Mas podia gravar imagens. Sessenta segundos de vídeo ou cem fotos. Ela selecionou vídeo e apontou a lente olho-de-peixe do telefone na direção de Dito e seu amigo azul. Bem a tempo de ver Dito cortar deliberadamente o dedo com um estilete e oferecer o ferimento ao Parasita. A criatura envolveu os quatro dedos no ferimento, sugando um jorro prateado de força vital. Em segundos sua cor azul natural tinha sido restaurada. Ele soltou Dito e flutuou, ficando de pé.
Mona verificou o vídeo, para se certificar de que tinha visto direito. Agora tudo fazia sentido. Claro que Dito nunca andava armado; claro que tinha argumentado contra o Pulso de Energia. Ele estava do lado dos Parasitas.
Dito estava chupando o ferimento no dedo quando a porta do elevador se abriu. Stefan e Cosmo tinham voltado. Estavam reunidos com Mona, olhando alguma coisa. A tela do telefone dela.
— Ei, o que é? — perguntou o Bebê Bartoli. — Um daqueles e-mails engraçados? Tem uns que são hilários.
Stefan segurou o telefone com as mãos trêmulas. Seu rosto estava tenso e pálido.
— É, Dito. Quer dar uma olhada? É de morrer de rir. Por sinal, o que aconteceu com seu dedo?
Agulhas se encaram nas costas de Dito.
— Prendi no painel da porta do elevador. Sabe qual é, aquele que está meio solto.
— Sei. Aqui, dê uma olhada.
Dito pegou o telefone e apertou o triângulo do play. Por um momento não percebeu o que estava olhando, mas então a coisa ficou terrivelmente clara. Fora apanhado. Descoberto. Finalmente. Depois de todo esse tempo, tinha chegado a hora da verdade.
— Certo — disse devolvendo o telefone. — Isso parece ruim, eu sei, mas posso explicar.
Stefan olhou direto em frente, evitando os olhos de Dito.
— Pegue suas coisas e dê o fora. Quero você longe daqui de manhã.
— Espera um minuto. Escuta o que eu tenho a dizer. Mona avançou para cima do Bebê Bartoli.
— Esse tempo todo, como foi que eu não vi? Não era de imaginar que você não atirasse nos Parasitas. Não era de admirar que questionasse tudo que pudesse dar certo.
Dito recuou um passo.
— Tudo que pudesse dar certo? Não era assim.
— Então como era, Dito? Todo dia esfaqueando a gente pelas costas. Esfaqueando todos os humanos pelas costas. Por que não vai ao Clarissa Frayne curar todos aqueles Parasitas que o Cosmo acaba de explodir?
Dito baixou a cabeça.
— Eu gostaria de poder — murmurou.
O comentário enfureceu Stefan. Ele pegou Dito pelo colarinho, colocando-o de pé sobre uma bancada.
— Você gostaria de poder! Há quanto tempo vem nos traindo, Dito? Desde o início? Há três anos?
As acusações caíam sobre Dito como marretadas. O sujeitinho parecia encolher ainda mais, curvando-se. Stefan cutucou seu peito.
— Se eu vir você de novo, vou tratá-lo como inimigo, e acredite, você não quer isso.
— Você não entende, Stefan — protestou o Bebê Bartoli. — Você não vê o que está acontecendo.
Stefan riu na cara dele.
— Ah, deixe-me adivinhar: outra teoria da conspiração? A Myishi está usando a gente? Ellen Faustino estava mentindo na maior cara de pau.
A verdade explodiu de Dito como um míssil.
— Eles sugam a dor! — falou de súbito.
Cosmo sentiu que alguma coisa grande estava chegando. Qualquer coisa que Dito falasse em seguida mudaria a vida de todos eles para sempre.
— Os Parasitas sugam a dor. Não a força vital, só a dor. Eles nos ajudam. Eles sempre nos ajudaram.
Stefan deu as costas a Dito. Não queria ouvir.
— Besteira. Você vai dizer qualquer coisa para salvar a pele.
— Você se lembra do que Lincoln me perguntou no Ferro-velho?
Mona lembrava.
— Suas mutações. Ele perguntou se você era sensível. Dito se sentou na bancada.
— Os Bebês Bartoli costumam ter certos dons. Eu tenho mãos curativas. Posso tirar a dor dos outros.
— Eu sabia — disse Cosmo. — Depois do meu acidente você tirou minha dor de cabeça. Disse que era um remédio, mas foi você.
Dito confirmou com a cabeça.
— Esse dom é uma coisa que eu tenho em comum com os Parasitas. Nós fazemos a mesma coisa; talvez por isso eu seja tão sensível a eles. Eu sinto o sobrenatural, e eles me sentem. As pessoas chamam isso de segunda visão.
Cosmo se lembrou de uma coisa.
— Lá no Ferro-velho, Lincoln disse que você tinha mãos curativas, mas ele sabia que tirar a dor era uma mutação Bartoli.
Dito examinou as palmas das próprias mãos.
— Elas não são realmente curativas. Nada se cura mais depressa do que o próprio corpo. Eu só afasto a dor.
Stefan se recusava absolutamente a acreditar.
— Besteira. Tudo isso é besteira.
— Os Parasitas fazem parte da natureza! — insistiu Dito. — São conversores de energia, como eu. Como todo ser no planeta, de um modo ou de outro. Durante toda a vida eu pude vê-los. Senti-los. A princípio tinha medo, até perceber que eles só estavam fazendo o que eu fazia. Eles não são uma espécie maligna. São atraídos pela dor. Tiram-na e convertem em energia. É o ciclo de toda a vida. Stefan girou. Seu rosto estava vermelho com uma raiva mal contida.
— E quanto à minha mãe? Eu vi o que os Parasitas fizeram com ela.
— Ela estava morrendo — respondeu Dito em voz baixa. — Eles a ajudaram. Eles ajudaram sua passagem. Os Parasitas tiram a dor quando é tarde demais para o corpo se curar. Era o que acontecia quando eles começaram a se multiplicar fora de controle. Antes de nós alterarmos a ordem natural.
— Um motivo. Dê um único bom motivo para a gente acreditar em você agora, quando mentiu durante tanto tempo.
Dito sentou-se à mesa, cocando os olhos com a palma da mão.
— Desde que eu consigo me lembrar, as criaturas estão por aí. Nós não nos comunicamos exatamente. Não como os seres humanos, mas sentimos uns aos outros. Sei quando elas estão agitadas ou sonolentas. Havia outro Bebê Bartoli com a mesma capacidade. O número 82. Mas a segunda visão o deixava aterrorizado, ele enlouqueceu. Agora vive no Bushka e usa uma venda nos olhos. Nunca tira. Eu não enlouqueci porque suspeitei de que as criaturas estavam ali para ajudar: ajudar a tornar a dor suportável, a nos preparar para a outra vida.
Cosmo interrompeu:
— Existe uma outra vida?
— Sim. De vez em quando eu capto algum vislumbre dela.
Até Mona ficou interessada.
— Como é? Dito pensou.
— Diferente.
— Silêncio! — gritou Stefan. — Todos vocês. Se isso é verdade, por que não me contou há anos?
Dito levantou os olhos.
— Quase contei um milhão de vezes, mas não tinha prova real, a não ser o que eu sentia. Pela primeira vez eu fazia parte de uma família, e se dissesse o que achava ia destruir tudo isso. E em troca de quê? Você nunca teria acreditado sem prova. Era, no mínimo, mais fanático no início. O tempo está começando a suavizar você, Stefan. Recentemente começou até a se preocupar com as tropas: isso é uma novidade.
— Você poderia ter tentado.
— Eu sei que deveria, mas decidi fazer o possível por dentro. Vocês não estavam realmente destruindo os Parasitas, isso eu sentia o tempo todo, e podia fazer o possível pelas vítimas dos acidentes. Não sabia que estávamos ajudando as criaturas a se reproduzir.
— Lutar por dentro — murmurou Cosmo. Dito confirmou com a cabeça.
— Exato, e teria ido tudo bem se a Myishi não tivesse se envolvido. Você sabe o que fez esta noite, Stefan? Se o
que você diz é verdade, vocês mataram um número gigantesco das criaturas. Eu gostaria de ter tido coragem de contar antes, mas nunca pensei que esse negócio do Pulso de Energia iria funcionar: cientificamente, não deveria. Quantos seres humanos estão sentindo dor agora mesmo porque eu fiquei quieto? Seres humanos como sua mãe? Stefan começou a tremer.
— Cala a boca!
— Você não quer ouvir, Stefan, porque durante anos teve alguém para culpar pela morte de sua mãe. Esta é a verdade, Stefan, aceite.
— Não sei o que é, mas não é a verdade. Nada que você já contou a gente era verdade. Você não saberia da verdade nem se ela pulasse de um buraco e mordesse o seu traseiro Bartoli.
Dito pegou seu telefone.
— Ligue para Faustino. Diga que você tem dúvidas. Peça que a equipe de cientistas dela estude a possibilidade de essas criaturas não drenarem força vital, e sim a dor. Anestesia natural.
— Por que eu deveria fazer isso?
— Porque, se eu estiver certo, milhares de pessoas que não deveriam estão aleijadas de tanta dor. Exatamente como sua mãe não ficou, no final. Exatamente como você não ficou, caso se permitisse lembrar.
Cosmo se lembrou de como, depois da queda no telhado, a dor tinha desaparecido no momento em que a criatura tocou nele. Lembrou-se de que tudo que sentiu foi calma. E não medo.
— E se você estiver errado? — perguntou Stefan. Dito se levantou na bancada, ficando de pé.
— Se eu estiver errado, vou pular de um buraco e morder meu próprio traseiro Bartoli.
Ellen Faustino estava no carro quando Stefan ligou.
— Achei que teria notícias suas, Stefan — disse ela, com um sorriso repuxando o canto dos lábios. — Foi você, no Satélite, não foi? Floyd Faustino, imagina só. Como foi que conseguiu aqueles códigos de acesso? Certamente eu não deixei que você visse acidentalmente a tela do meu computador.
— Não sei do que você está falando — disse Stefan cheio de inocência.
— Eu achei que talvez você tomasse as rédeas do negócio. Na verdade esperava que fizesse isso. Algumas vezes a burocracia é enrolada demais.
— Está começando a parecer que eu trabalho para você, professora Faustino.
O sorriso de Ellen se alargou.
— Bem, parece, não é? Foi você no Clarissa Frayne também, presumo. Os Supernaturalistas não perdem tempo, não é?
Stefan escolheu as palavras com cuidado.
— Se fomos nós, e não estou admitindo nem por um segundo, talvez tenhamos um pequeno problema.
Ellen franziu a testa.
— Problema? Mas o Pulso de Energia funcionou perfeitamente. Eu teria preferido que você não tivesse cortado a força em dez quarteirões, mas foi a curto prazo, e minha equipe esteve recolhendo corpos dos Esp-nocat 4 durante toda a manhã.
Foi a vez de Stefan franzir a testa.
— Recolhendo corpos? Por quê? Para quê? Ellen estava com um dedo nos lábios.
— Não quero dizer mais nada pela linha da empresa, já falei demais. Acho que me empolguei. Você poderá ver sozinho, na próxima visita.
— Para pegar meu cheque de pagamento? — disse Stefan com um riso torto.
— Eu sou uma mulher ocupada, Stefan. Que problema é esse que o deixa tão preocupado?
— Um dos membros da minha equipe, futuro ex-membro, acha que os Parasitas, os Esp-nocat 4, podem não ser tão malignos quanto nós achávamos. Acha que eles simplesmente aliviam nosso sofrimento. Que tiram a dor. Se for verdade, não precisamos lutar contra eles.
Faustino pareceu genuinamente preocupada.
— O quê? — Ela fez uma pausa. — Não imagino como seria possível, mas vou colocar toda a minha equipe nisso imediatamente. Chega de Pulsos de Energia até a gente determinar a verdade. Por enquanto sejam discretos, até a gente fazer algumas experiências. Não deve demorar mais do que umas duas semanas para obter os resultados. Você pode esperar tanto assim?
— Eu esperei três anos. Posso esperar duas semanas. Os olhos de Ellen Faustino estavam baixos.
— Sei que isso deve ser difícil para você aceitar, Stefan. Mas lembre-se, nada foi provado ainda. Talvez nós ainda estejamos na trilha certa.
— Duas semanas — disse Stefan, fechando o telefone. Dito soltou o ar que vinha prendendo durante quase todo o telefonema.
— Duas semanas. Eu estou certo, você vai ver. Stefan jogou o telefone para ele.
— Não quero saber, Dito. Qualquer que seja o resultado das experiências da professora Faustino, você vem mentindo para a gente há anos. Nós pusemos nossa fé e nossa vida em suas mãos, e essas coisas nunca foram sua prioridade.
— Eu nunca fiz nada para ferir ninguém. Não vou pedir desculpas por isso.
— É tarde demais para desculpas, Dito. Você enganou a todos nós. Não podemos confiar mais. Logo de manhã cedo quero você fora daqui.
Dito olhou para os olhos de Stefan. Estavam duros e doloridos.
— Muito bem. Se é o que você quer, é como vai ser. Stefan deu as costas para o Bebê Bartoli.
Cosmo ficou deitado na cama, olhando um punhado de ferrugins comer uma cabeça de parafuso no teto. Parecia que assim que os Supernaturalistas saíam de uma crise, outra caía do céu sobre suas cabeças. Cosmo se sentia um rato num labirinto, jamais sabendo que curso de ação aparentemente inocente levaria ao desastre. E em troca de quê?
De poderem perseguir um grupo de criaturas sobrenaturais que só estavam tentando ajudar a humanidade. Se o que Dito falou fosse verdadeiro.
Veja o lado bom, disse a si mesmo. Pelo menos seu cabelo está crescendo. Dentro de uns dois meses você não vai parecer mais o traseiro de um bicho-papão.
Mona apareceu na porta de seu cubículo.
— Oi. Está acordado? Cosmo se sentou na cama.
— Estou. Dormi umas duas horas, mas sonhei com Dito. Mona se empoleirou na beirada.
— Sei como é. Acho que Stefan não pode enfrentar isso. Primeiro ele estava ajudando os Parasitas a se multiplicar; agora eles só estavam tentando aliviar nossa dor.
— Se Dito estiver certo.
— É, se Dito estiver certo.
Mona puxou o cabelo fazendo um rabo-de-cavalo, e enrolou uma faixa em volta.
— Estive pensando em ir embora, Cosmo. Talvez arranjar um emprego com o Jean Pierre no Bushka; ele vem tentando me contratar há anos. De qualquer modo, se ele não vai ficar vivo por muito mais tempo, alguém tem de manter os carros das gangues na rua.
Cosmo sentiu o estômago se revirar. A idéia de Mona ir embora nunca havia lhe ocorrido.
— Tem certeza? Você parece uma garota de ação. Mona sorriu.
— É, eu adoro esse negócio de sair dando tiro. É como um videogame. Estoure os alienígenas azuis. Mas não são Na verdade, muitos dos parajurídicos se sentiram meio decepcionados. Tinham ouvido falar de Stefan Bashkir e esperavam que ele lutasse de verdade. Mas parecia que isso seria feito do modo fácil. Ninguém iria resistir. Nem parecia que havia alguém acordado.
Cosmo abriu os olhos e viu três parajurídicos da Myishi em seu cubículo. Um estava colocando um pente no bastão. Cosmo respirou fundo para inflar o peito.
— Você já fez isso antes — disse o parajurídico, puxando o gatilho.
Mona, que sempre tinha sono leve, conseguiu sair da cama antes que a pegassem. Espantosamente para alguém sem treinamento formal de combate, conseguiu incapacitar dois parajurídicos antes que o terceiro a acertasse com uma chocante. Esperaram até que ela parasse de tremer para atirar uma bala de celofane.
Stefan ouviu a luta no reservado de Mona. Saiu pela porta do seu cubículo caindo direto nos braços de uma dezena de parajurídicos. Vários outros estavam pegando as armas e os computadores dos Supernaturalistas. Pela primeira vez na vida, Stefan Bashkir se entregou sem luta.
— Vocês estão cometendo um erro — falou, cruzando os dedos na nuca. — Nós estamos trabalhando para a Myishi. Contate a presidente Faustino no departamento de P&D. Estou dizendo, isso é um equívoco.
Um parajurídico o embrulhou à queima-roupa.
— É o que todo mundo diz.
Dito estava acordado na cama, totalmente vestido. Sua bolsa de lona estava no chão, pronta para a manhã.
— Entrega de pazza? — disse ao primeiro parajurídico que passou pela porta.
— Ninguém gosta de gente metida a espertinha — disse o sujeito, e o embrulhou.

CAPÍTULO 9
RATOS DE LABORATÓRIO

NA Instalação de Pesquisa e Desenvolvimento da Parque Industrial Prefeito Ray Shine, Cidade-Satélite Os Parajurídicos da Myishi leram os direitos dos Supernaturalistas, depois os guincharam até um Cóptero Sussurro que esperava no telhado. Fizeram uma viagem de dez minutos para o norte até o Parque Industrial Ray Shine, pousando num heliponto no teto de uma instalação da Myishi. O homem do tanque predileto de Cosmo o esperava ao lado do reservatório de plastividro na área de detenção do prédio.
— Olá, queridinho — disse ele, grudando o copo de sucção à cabeça de Cosmo. — Tive a sensação de que a gente ia se ver de novo. Eles me mandaram para cá especialmente para esse serviço. Estou fazendo serão.
Os Supernaturalistas foram jogados sem cerimônia no tanque de ácido amarelo, pendurados numa série de copos de sucção. O sedativo no celofane já havia penetrado no organismo deles, por isso não ofereceram resistência, relaxando na prisão líquida. A solução ácida passou a funcionar imediatamente nos invólucros de celofane, comendo o vírus. Era um processo lento, e demoraria pelo menos uma hora antes que eles tivessem qualquer mobilidade. Até então não tinham escolha além de ficar ali pendurados, com belos pensamentos. Qualquer luta só faria o celofane se apertar no peito.
Assim que terminou de pendurar o último Supernaturalista, o homem do tanque fez uma ligação pelo interfone do prédio. Dentro de minutos Ellen Faustino chegou flanqueada por dois guarda-costas. Quando viu os Super-naturalistas suspensos no líquido, deu um tapa no peito do homem do tanque.
— O que você acha que está fazendo? Essas pessoas deveriam estar mortas! Eu só queria ver quatro corpos para ter certeza de que estavam mortos. Esses aí estão bastante vivos.
Dentro do tanque, as palavras de Ellen atravessaram o atordoamento de Stefan. Mortos! Devia haver algum erro. O que estava acontecendo? Por que a professora Faustino iria querê-los mortos? Ellen Faustino não ia querer ninguém morto. Ela era uma cientista.
O homem do tanque não fez exatamente uma reverência, mas chegou perto disso.
— Desculpe, presidente Faustino. Ninguém me disse. Vou baixá-los imediatamente. Em 12 horas não restará nada além de moléculas.
Stefan tentou falar, mas sua respiração mal ondulou o celofane. Sacudiu-se debilmente no tanque de ácido, mas o invólucro o retinha com força.
— Então você está acordado, Stefan — disse Ellen Faustino, encostando as palmas das mãos no plastividro.
A boca de Stefan não podia perguntar por quê, por isso seus olhos fizeram isso.
— Está confuso? — perguntou ela. — Não entende o que está acontecendo?
Todos estavam ouvindo, lutando contra o sedativo.
— É como eu disse, Stefan, vocês estavam trabalhando para mim. Todos vocês. Fazendo serviços para os quais eu levaria meses até conseguir autorização. E eu não tenho tanto tempo assim.
Ela parou a narrativa, ordenando que o homem do tanque fosse para o outro lado da sala.
— Isso é altamente secreto — explicou. — Se ele ouvir mais, terei de matá-lo, e bons funcionários de tanque são difíceis de achar. As coisas estavam indo muito bem até que você desenvolveu uma consciência. Você descobriu os Esp-nocat 4, como eu sabia que iria acontecer, e acionou o Pulso de Energia. Se eu tentasse fazer essas duas coisas sorrateiras, certamente seria descoberta.
Stefan não se sentia muito sorrateiro no momento. Sentia-se crédulo e ingênuo.
— Poderia ter sido perfeito: os Supernaturalistas des-troem os Parasitas e minha equipe os recolhe. Eu teria desenvolvido uma fonte de energia limpa e salvado o Satélite. Mas agora, de repente, depois de três anos, o obcecado Stefan Bashkir muda de idéia e não quer lutar mais contra os Parasitas. Agora os Supernaturalistas não são mais trunfos, são pontas soltas. E todos nós sabemos o que acontece com as pontas soltas. São cortadas. Dentro de algumas horas não haverá rastros seus ou de seu pequeno grupo. Até mandei meus rapazes confiscarem seu equipamento na rua Abracadabra. Não haverá sequer um arquivo de computador ou uma impressão digital quando eu terminar.
Stefan balançou a parte inferior do corpo contra a parede do tanque, mas suas botas com solas de borracha ricochetearam inofensivamente no plastividro.
Ellen Faustino riu.
— Continua o mesmo Stefanzinho. Lutando o tempo todo. Como sua mãe. — Ela se inclinou para perto do tanque. — Há mais duas coisas que você deveria saber, só para puni-lo por ter reduzido a velocidade do meu plano. Primeiro, seu colega de equipe está correto. Claro que a Esp-nocat 4 não suga força vital. Só um obcecado como você poderia acreditar nisso. Nós fizemos testes com ratos de laboratório. Vários ratos foram feridos. Os que foram mantidos num ambiente subaquático, longe dos Esp-nocat 4, não sobreviveram mais do que os que foram ajudados pelos Parasitas. Também fizemos testes com seres humanos, em... é... voluntários. Os resultados foram os mesmos. A intervenção dos Esp-nocat 4 diminuiu o nível de estresse dos feridos. Eles retiram apenas a dor. Para completar, a emissão de energia deles parece estar consertando a camada de ozônio. Esse negócio de desestabilizarem o Satélite foi apenas outra mentira para agarrar você. A energia não pode ser destruída: ciência básica. O Pulso realmente parece tê-los deixado estéreis, de modo que os níveis vão baixar rapidamente ao normal.
Cosmo sentiu as pálpebras baixarem. Fique acordado, disse a si mesmo. Caso contrário talvez nunca mais acorde. Ao seu lado Mona já estava inconsciente. Mas os olhos de Stefan ficavam mais brilhantes a cada minuto. O ódio o mantinha atuante, como acontecera durante três anos.
— Você vai realmente adorar essa segunda informação, Stefan — continuou Ellen Faustino. — Caso se incomodasse em verificar minha ficha na academia, talvez tivesse visto que vários outros cadetes sofreram experiência de quase-morte.
Ellen observou Stefan atentamente, esperando que ele entendesse. De repente o rapaz entendeu, sacudindo-se com violência no casulo de celofane.
Ellen bateu palmas.
— Muito bem. A ficha caiu. Isso mesmo, Stefan. Eu já estava trabalhando para a Myishi, mesmo naquela época, e você fez parte de uma experiência. Eu adquiri a Visão por causa de um acidente genuíno, mas você foi criado. Percebi como a Visão era provocada e decidi provocá-la em mais alguns. Você nunca achou estranho o fato de a ambulância estar ali na esquina? Tudo foi arranjado. No fim eu o teria recrutado para o meu grupo, mas você abandonou a polícia e formou um grupo particular. O que aconteceu com sua mãe foi uma fatalidade, mas é contra os regulamentos levar passageiros num carro da polícia, então você só tem a si mesmo para culpar.
Stefan parou de lutar abruptamente, pendendo no copo de sucção. Lágrimas amargas escorriam por suas bochechas, acumulando-se no celofane.
— Ai — cantarolou Ellen. — Deixei você arrasado? Que pena!
Ela estalou os dedos, chamando o homem do tanque.
— Afunde-os — ordenou. — Não quero que reste nem mesmo um molar para ligá-los ao Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento.
— Sem problema, presidente. Considere que estão fora da sua vida. — Ele subiu a escada até os guinchos que prendiam os copos de sucção, liberando as travas de cada um deles. As engrenagens giraram livremente, submergindo a cabeça dos Supernaturalistas no gigantesco tanque de ácido.
— Muito bem — disse Faustino. — Espere um pequeno bônus em seu pagamento.
— Obrigado, presidente, é sempre um prazer.
Mas o homem do tanque estava falando consigo mesmo. Ellen fora embora. Havia trabalho a ser feito e ela não tinha algumas horas livres para ver os Supernaturalistas se dissolverem em ácido.
Claro que se dissolver era o menor dos problemas dos Supernaturalistas. Eles iriam sufocar muito antes que o ácido pudesse agir em sua pele e em seus ossos. O celofane tinha se afrouxado um pouco, mas não o bastante para permitir que saíssem do tanque. Quando seus membros estivessem livres, qualquer bolsão de ar preso no celofane teria vazado há muito.
Cosmo lutava para ficar acordado. O resto do grupo já havia sucumbido ao sedativo do celofane; ele só podia supor que seu organismo estava desenvolvendo uma resistência ao produto químico porque já fora embrulhado três vezes.
Pense, disse a si mesmo. A coisa está por sua conta. Deve haver uma boa idéia em algum lugar da sua cabeça. Deve haver alguma coisa nessa cabeça remendada... Espera um minuto. Uma coisa na sua cabeça.
Uma lembrança relampejou na visão de Cosmo. No armazém, depois do seu acidente. Mona tinha falado alguma coisa: Por sorte Dito tinha duas placas robotix guardadas; usou uma para remendar seu crânio fraturado. Essas placas robotix são feitas do mesmo material usado nos tanques de artilharia blindados. Quando sua pele se curar, Dito falou que você vai poder abrir caminho num muro de tijolos usando a cabeça.
A placa robotix.
Cosmo se retorceu até chegar à parede do tanque, recuando a cabeça o máximo possível. Lutando contra o sono, a falta de ar e o líquido denso, deu uma cabeçada com toda a força no plastividro. A parede do tanque se flexionou ligeiramente e um relâmpago de dor atravessou sua testa.
O homem do tanque se aproximou curiosamente.
— Ei, queridinho — disse ele, rindo. — Está tentando fugir? Acho que pele e osso não vão bastar. — Ele bateu com o punho no tanque. — Plastividro. Só um tanque de assalto vai tirar você daí.
Claro que Cosmo não ouviu nada disso. Só conseguia escutar o guincho agudo de sua dor de cabeça. Não havia opção além de tentar de novo. Trincando os dentes, deu outra cabeçada no plastividro. Quando a dor recuou, ele notou uma rachadura minúscula no tanque.
— Pára com isso — disse o homem do tanque esfregando a rachadura com o polegar. — Eu tenho de limpar essa coisa.
Mais urna, pensou Cosmo. Tenho fôlego para mais uma.
Recuou e, com toda a força que restava na cabeça, no pescoço, no peito e na coluna, deu uma pancada exatamente no mesmo ponto do plastividro. Um estrondo re-verberou nas paredes transparentes.
A rachadura se alargou, espalhando-se até a face externa do tanque.
Uma gota. Só uma gota.
— Desista, garoto — riu o homem do tanque. — Vá dormir. Torne a coisa mais fácil para você mesmo.
A rachadura aumentou mais um pouco, como uma teia de aranha. Uma única gota de ácido passou pela fenda, comendo o interior não tratado do painel de plastividro.
O homem do tanque franziu a testa.
— Como foi que você...
A placa estourou. Provavelmente as rachaduras demoraram alguns segundos para destruir a frente do tanque, mas a coisa pareceu instantânea. O queixo do homem do tanque teve apenas tempo suficiente para cair, incrédulo, antes que sua boca se enchesse totalmente de ácido. Vários milhares de litros de ácido jorraram no primeiro jato, espalhando-se pelo chão da sala até chegar a vários cantos. Os Supernaturalistas e seus equipamentos de suspensão foram arrastados com o dilúvio, jogados nos ladrilhos como peixes caindo de um aquário.
O homem do tanque sofreu o pior. Recebeu de cabeça a marretada líquida, para não mencionar vários pedaços de plastividro que o lançaram à meia altura de uma parede adjacente. Ele escorregou de volta até o chão submerso, com um calombo já crescendo na cabeça.
Agora posso muito bem dormir, pensou Cosmo. Todo mundo está dormindo.
Claro, os Supernaturalistas ainda não estavam livres, atrapalhados pela inconsciência e pelos embrulhos de celofane. A qualquer momento outro funcionário da Myishi poderia entrar no departamento do tanque e descobrir o desastre, ou um segurança poderia ligar um monitor e perceber que as coisas não estavam nem um pouco tranqüilas no porão. Mas pelo menos os Supernaturalistas estavam vivos por enquanto, uma coisa em que nenhum apostador teria colocado dinheiro.
Minutos se passaram devagar, tiquetaqueando ao som da gosma amarela que pingava do tanque despedaçado. A medida que o tempo seguia, o ácido trabalhava, comendo lentamente os invólucros de celofane. Demorou quarenta minutos, mas por fim Stefan se viu livre. Enquanto o ar retirava o sedativo de seus pulmões, a consciência retornou. Ele abriu caminho para fora das últimas tiras de celofane, como uma borboleta se livrando do casulo. Lutou para ficar
de joelhos, tossindo uma mistura de celofane e vapores do ácido. Lentamente seus sonhos foram substituídos por lembranças recentes.
— Ellen — ofegou ele, soltando cautelosamente o copo de sucção da cabeça.
Dito foi o próximo a acordar.
— O que eu disse? Quem é o traidor, agora? Stefan arrancou o resto do celofane do corpo do Bebê
Bartoli.
— Parece que ultimamente todos os meus amigos estão mentindo para mim.
Dito limpou os pulmões com força.
— A ambulância que pegou você. Você tem de acreditar. Eu não sabia.
Stefan deu-lhe um tapinha no ombro.
— Claro que não. Ela usou todos nós.
O rapaz tirou Mona de debaixo de uma placa de plastividro.
— Como foi que a gente saiu daí? — perguntou ele. — Achei que estávamos mortos, com certeza.
Dito girou Cosmo. Uma lasca de metal era visível através da pele rasgada de sua testa.
— Acredite ou não, acho que o novato salvou a gente de novo. Ele usou a cabeça.
Dito pôs a mão na testa de Cosmo. Um leve brilho prateado brincou em volta do contato.
— Posso tirar parte da dor, por um tempo. Ele terá de fazer a cura sozinho.
Stefan ajudou Mona a se sentar.
— Você deveria ter me contado, Dito.
— Está certo, deveria. Mas agora que você sabe, o que vai fazer?
Stefan tirou uma cápsula de sais medicinais do kit de primeiros socorros preso ao cinto. Estourou-a debaixo do nariz de Mona.
— Vou descobrir por que Ellen Faustino está coletando Parasitas.
Mona acordou gritando:
— De jeito nenhum, mamãe. De jeito nenhum vou usar esse vestido.
Stefan pegou-a nos braços e a colocou numa mesa cirúrgica baixa.
— Certo, Mona. Tudo bem. Você está com amigos. Mona franziu os olhos, cheia de suspeita.
— Nada de vestidos?
— Não. Nada de vestidos. Só relaxe. Tente não se mexer.
O rosto de Mona estava decididamente verde.
— Tudo bem se eu vomitar?
— A casa é sua — disse Stefan, recuando dois passos. Cosmo se sacudia no chão como um peixe, lutando contra um inimigo de pesadelo.
— Esse garoto passou por muita coisa nas últimas semanas — observou Dito.
Stefan levantou Cosmo e o colocou em outra mesa cirúrgica.
— Depois desta noite, acabou. Vida normal para todo mundo.
Dito sacudiu fiapos de composto ácido das mãos.
— Verdade? Onde foi que eu ouvi isso antes?
O homem do tanque não estava muito ansioso para compartilhar qualquer informação, mas um olhar para o rosto dos Supernaturalistas enfraqueceu sua decisão.
— Eu nem trabalho aqui em tempo integral. Algumas vezes faço serviços especiais para a presidente Faustino. Por baixo dos panos, vocês entendem.
— Entendo — disse Stefan. — Nós também quase ficamos debaixo dos panos.
— Não é nada pessoal, eu só estava fazendo o meu serviço.
— É, é, nada pessoal. Qualquer coisa por um dinheirinho extra no final do mês.
O homem do tanque estava deitado numa poça de ácido. O líquido amarelo começava a queimar as dobras de sua pele.
— Duas perguntas — disse Stefan. — E é melhor responder direito, caso contrário as conseqüências vão ser feias.
O homem do tanque assentiu tão rápido que seu queixo pareceu um borrão.
— Tudo bem, pergunte.
— Um: onde está o nosso material?
— Material? Quer dizer, o equipamento, bastões e computadores?
— No momento a prioridade são os bastões. Onde estão?
O homem do tanque levantou um dedo.
— Essa é a segunda pergunta?
Stefan fechou um dos olhos; o outro se arregalou perigosamente. A cicatriz que se estendia da boca estremeceu.
— Não, idiota. Essa ainda é a primeira. Diga onde está o nosso material. Agora!
— Tá legal, tá legal. Ali, nos tambores azuis. Eu deveria incinerar tudo, depois de ter lavado suas moléculas ralo abaixo. Sem ofensa.
Stefan assentiu para os colegas de equipe. Eles remexeram nos tambores azuis, escolhendo bastões, prendedores, coldres e telefones.
— Melhor levar as placas distorcedoras também — disse Mona. — Não queremos ser apanhados pelas câmeras de vigilância.
Cada um lavou o outro usando uma mangueira, e todos prenderam seus equipamentos, sentindo-se como raposas na toca, rodeados por cães. Raposas bem-armadas.
— Segunda pergunta — disse Stefan, levantando o homem do tanque pela gola. — Onde está Ellen Faustino?
A angústia nos olhos do sujeito mostrou que ele não queria realmente responder à pergunta.
— Eu gostaria de poder dizer, gostaria mesmo. Mas...
— E melhor que esse mas seja realmente bom — alertou Stefan. — Seu futuro imediato depende dele.
O pomo-de-adão do homem do tanque subiu e desceu na garganta como um minúsculo Alien tentando sair.
— Essas instalações são grandes. A presidente Faustino pode estar na sala dela, ou na de reuniões, ou fazendo a ronda. Não sei.
— A esta hora da noite? Besteira.
O homem do tanque verificou o relógio de parede.
— Quando a presidente Faustino vem para cá assim tão tarde, em geral é para algum trabalho por baixo dos panos, meio como eu. Em geral ela se concentra no projeto Esp-nocat 4, o que quer que isso seja.
— É isso aí. Onde?
O homem do tanque suspirou. Isso iria lhe custar o emprego.
— No Laboratório Um. No fim do corredor, vire à direita. Você vai saber pelos dois guardas na porta. São os únicos seguranças à noite.
Stefan largou o sujeito de novo numa poça de ácido.
— Bom. Agora me olhe nos olhos e garanta que não vai soar o alarme no segundo em que nós sairmos pela porta.
— Eu? Soar o alarme? De jeito nenhum. Você tem minha palavra.
— Levante a mão quem acredita nele — disse Stefan. Ninguém levantou a mão.
— Foi o que pensei — murmurou Stefan, verificando seu bastão em busca de balas de celofane.
Dito estava sendo um bebê de verdade. Foi cambaleando pelo corredor, abrindo o berreiro.
Os dois guardas do lado de fora do laboratório não puderam deixar de notar.
— Ei, olha — disse o guarda A, uma mulher forte, com implantes de músculos em todo o corpo e globos oculares de visão noturna. — Um garotinho. Como foi que ele entrou aqui?
— Não faço idéia — respondeu o guarda B, um homem igualmente forte, com barba densa que ia quase até os olhos. — Mas você conhece as regras. Ele tem de ser embrulhado.
A guarda A deu-lhe um soco no ombro. O soco teria despedaçado a clavícula da maioria das pessoas.
— Ei, não seja mau. Você não está com medo de um garotinho, está?
— Claro que não. Eu não tenho medo de garoto nenhum.
O menininho deu um riso maligno que parecia distante de sua idade aparente.
— Deveria ter — disse tirando um bastão de dentro da camisa.
Os guardas A e B foram embrulhados antes que tivessem chance de dizer: Onde está sua mamãe?
Os Supernaturalistas se agacharam diante da porta do laboratório, com placas distorcedoras cobrindo o rosto. Havia dois painéis de vidro fosco na porta. A luz que emanava do laboratório era azul.
— Odeio ser criança — fungou Dito.
— Concentração — disse Stefan. — Essa situação é perigosa.
— Uns dois cientistas no meio da noite? Muito perigoso. O pessoal da segurança já está embrulhado.
— Não se esqueçam de Ellen. Nunca conheci alguém que pudesse bater com mais força ou atirar com mais precisão. Ela era uma das principais treinadoras de combate na academia.
— Entendi. O plano de sempre? Stefan pôs a mão na maçaneta.
— Não. Cosmo e Mona ficam na porta. Pode haver mais seguranças no prédio. Dito, você entra comigo no laboratório. Vamos dar uma olhada rápida, se possível sem embrulhar ninguém, gravar alguns segundos de vídeo e depois voltamos à rua Abracadabra para planejar o próximo passo. Teremos de cuidar dessa situação, mas não hoje. Não estamos prontos.
— Mas Stefan! — reagiu Mona.
— Outro dia — disse Stefan com firmeza. — Hoje só vamos dar uma olhada.
Cosmo sentiu que não seria tão simples. Alguma coisa inesperada iria acontecer, e antes que ele soubesse onde estava, os Supernaturalistas se enfiariam em outra encrenca até o pescoço.
A porta do laboratório estava destrancada. Stefan e Dito passaram sem fazer qualquer ruído. Mona colocou o pé junto ao portal, mantendo-a entreaberta.
— Nunca se sabe — sussurrou para Cosmo. — Eles podem precisar da gente.
A porta se abria numa passarela elevada, dando para um laboratório gigantesco abaixo. As paredes eram pintadas de branco estéril, e lâmpadas tubulares de vinte metros se estendiam no teto. Técnicos corriam de um lado para o outro como formigas albinas, e no meio daquilo tudo havia uma construção rebaixada, gigantesca, que parecia simplesmente um enorme nível de pedreiro. Havia um sólido maquinário dos dois lados, com uma parte azul transparente no meio.
— Só para confirmar: nós vamos gravar alguns segundos de vídeo e depois ir com o rabo entre as pernas até a rua Abracadabra? — perguntou Dito.
— Falei isso por causa dos outros dois. Você e eu sabemos que nunca vamos ter uma chance como esta de novo. Assim que Ellen descobrir que escapamos, esse lugar vai estar mais lacrado do que as narinas de um camelo numa tempestade de areia. Temos de descobrir agora o que está acontecendo.
Dito assentiu.
— Foi o que pensei. O que você acha daquela coisa lá embaixo?
— É algum tipo de gerador. Eu diria que nuclear.
— Mas a energia nuclear foi banida em todos os continentes.
Stefan assentiu, pensativo.
— Talvez, mas não no espaço.
Dito e Stefan sacaram as armas e começaram a descer lentamente a escada. Dito abriu seu telefone e gravou algumas imagens do laboratório.
— Para o caso de Mona estar olhando — sussurrou. Um estalo súbito rachou o ar. Um som parecido com o de um bambu batendo em madeira. Dito reconheceu imediatamente. Um tiro. Uma bala de verdade, disparada com pólvora. As gangues do Bushka costumavam modificar os bastões elétricos para atirar projéteis. As balas eram subsônicas, mas cobertas de Teflon para compensar a lentidão. Stefan segurou o peito, cambaleando de costas contra a parede. Então ricocheteou para a frente de novo, tombando por cima do corrimão. Seu corpo alto caiu seis metros até o piso.
— Stefan! — gritou Dito com a voz infantil cheia de angústia. O rapaz estava caído no chão de rosto para baixo, com uma poça de sangue se espalhando por baixo do tronco. Não estava se mexendo.
Abaixo, no piso do laboratório, Ellen Faustino ergueu os olhos do painel de leitura que estivera inspecionando.
— Por que é que não estou surpresa? — murmurou, balançando a cabeça.
Dito sacou seu bastão.
— Faustino! — gritou ele.
— Sr. Bonn, ou será que devo chamá-lo de Dito, dê uma olhadinha em seu peito.
Dito olhou. Havia um brilhante ponto de laser vermelho tremendo sobre o tecido da camisa. Ellen se aproximou da escada.
— A vozinha de minha consciência disse para eu tomar precauções. Vocês, Supernaturalistas, se mostraram escorregadios no passado. Por isso deixei um homem cobrindo a porta, só para garantir. Parece que tomei a decisão certa. Ele vai atirar em você também, Dito. Não há câmeras nesta sala. Nada para nos incriminar depois. Agora largue sua arma.
Dito obedeceu, olhando-a cair ruidosamente por entre as barras, até chegar ao chão. Ellen Faustino ergueu a voz.
— Agora diga aos outros dois para se juntarem a nós, ou meu homem nas sombras será forçado a puxar o gatilho outra vez.
Dito ficou tenso.
— Ande, dê a ordem. Pelo menos dois de nós vão viver para falar.
Cosmo e Mona passaram pela porta.
— Não! — exclamou Cosmo. — Estamos aqui. Não atire.
— Imbecis — sibilou Dito. — Agora estamos todos mortos.
Mona levantou as mãos.
— Só estamos tentando ganhar um pouco de tempo. Dito desceu a escada lentamente. O ponto de laser permaneceu em seu peito.
— O que você está fazendo aqui, Ellen? Que loucura é essa?
Ellen apontou para Stefan.
— Cheque o seu líder primeiro. Se eu tiver de explicar esta máquina, não quero fazer isso duas vezes. Vocês dois, crianças, desçam para onde eu possa vê-los. Lembrem-se, ao menor sinal de heroísmo, vocês herdam o laser do Sr. Dito.
Dito correu para ajudar Stefan. Com esforço considerável, virou o rapaz e verificou seus batimentos cardíacos. Estavam fracos, mas continuavam ali.
O reator era um tormento de fusão. As criaturas que deveriam estar cumprindo seu papel natural como analgésicos se retorciam nas entranhas de um reator nuclear.
Ellen Faustino não se abalava com sua crueldade.
— O reator em si é um modelo a água, mas substituímos a água por criaturas vivas: Esp-nocat 4.
Stefan se esforçou para não cair de joelhos.
— Você está perturbada, Ellen. Completamente louca. Ellen Faustino franziu as duas sobrancelhas na direção de seu guarda-costas, como se essa fosse a declaração mais inteligente que já ouvira.
— Louca? Você tem alguma idéia do que eu realizei aqui?
— Não — respondeu Dito, ansioso para ganhar tempo. — Conte.
— Ah, sim, Sr. Lucien Bonn, o Bebê Bartoli. As pessoas também chamaram Bartoli de louco, você sabe. — Ellen foi até o painel de plastividro que lacrava a seção central do reator ao nível do piso. Abaixo de seus pés, centenas de milhares de Parasitas estremeciam. — O problema com o Reator de Água Fervente era que ele contaminava a água, e por fim as lâminas das turbinas. Os Esp-nocat 4 cuidam desse problema. Não somente isso, mas são muito mais eficientes em reduzir a velocidade dos nêutrons e mandá-los de volta para o núcleo de urânio. Eles mantêm o reator completamente limpo, cem por cento eficiente, e usam um décimo da quantidade de urânio. Os Esp-nocat 4 são um milagre natural.
— Mas sem eles as pessoas estão sofrendo — ofegou Stefan.
— Ah, cresça, Stefan — reagiu Ellen rispidamente, com sua verdadeira natureza selvagem atravessando a imagem sofisticada. — Pessoas sofrem o tempo todo. Eu não causo o sofrimento. Com o NuSol Faustino, posso ajudar às pessoas. Posso até dar início a alguns daqueles projetos sociais fictícios dos quais falei a vocês. Embora o negócio de ajudar seja um efeito colateral, eu estou fazendo isso principalmente pelo dinheiro.
— NuSol Faustino — disse Stefan amargamente. Em seguida cambaleou até a borda do gerador. Turbinas gigantescas zumbiam abaixo dos pés de Ellen, fagulhas de energia pura brincando em volta das lâminas em camadas.
— Por que, professora? Todos aqueles acidentes? Arriscando tantas vidas. Minha mãe é um dos mortos.
Os últimos vestígios de educação caíram dos olhos de Ellen Faustino como se fossem escamas.
— O Satélite está despencando, seu idiota! — gritou ela. — Caindo do céu porque é pesado demais e está baixo demais. Há muitas unidades comerciais para que a estrutura original sustente. Para mantê-lo na órbita atual, a órbita comercialmente viável, a Myishi precisa de um novo gerador, um gerador mais leve e mais eficiente. Se não conseguir, perde todos os contratos de publicidade. Bilhões de dinares. Bilhões. E isso é somente a ponta do iceberg. A Myishi tem contrato para fazer mais dez satélites. Dez! É o maior contrato que o mundo já viu. E o NuSol Faustino vai alimentar cada um deles.
Stefan balançou as mãos na direção de Cosmo e Mona. Eles correram para ajudá-lo, apoiando-o sob cada braço.
— Me levantem — sussurrou ele, com a voz pesada de agonia. A dor estava voltando. Os jovens Supernaturalistas obedeceram, ajudando-o a subir na plataforma.
O guarda-costas de Ellen Faustino aproximou-se um passo.
— Já está perto o bastante, garoto. Não me faça deslocar algumas coisas.
— Não se preocupe com isso, Manuel — disse Ellen, erguendo o calcanhar de um dos pés calçados com sandálias. — Stefan nunca conseguiu me vencer no tatami. Agora eu tenho um bocado de sangue a mais do que ele, e não tenho um buraco no peito.
Stefan se ajoelhou no plastividro. Abaixo dele havia um inferno azul. Um oceano de Parasitas que ondulavam com os olhos opacos e vítreos.
Ellen se ajoelhou.
— É assim que a coisa termina, Stefan? Um gemido no chão? Você deveria ter ficado no tanque.
O guarda-costas tirou os óculos.
— Presidente Faustino, estou nervoso agora. Tenho de dizer. E eu não fico nervoso facilmente.
— Relaxe, Manuel. Cubra os garotos. Acha que consegue?
Manuel pousou os óculos no nariz que fora quebrado tantas vezes a ponto de ficar quase totalmente chato.
— Sim, senhora presidente. Estou com os garotos. Ellen chutou as sandálias para longe, balançando-se como um boxeador.
— Bem, Stefan, ainda consegue lutar um round?
Espasmos sacudiam o peito de Stefan.
— Não vou lutar com você, professora.
— É mesmo? Ah, qual é. Eu sou a responsável pela morte da sua mãe, lembra?
Stefan não aceitou a provocação.
— Há um modo melhor de pegá-la.
Ellen parou de se balançar e o riso presunçoso hesitou.
— E qual é?
— Lutar por dentro — disse Stefan, com a voz quase inaudível. — Atacar por trás. Lembra-se?
As mãos de Stefan estavam se movendo, escondidas nas dobras do casaco.
— O que você está fazendo? O que tem aí?
— Nada perigoso. Só o meu telefone. Nada que preocupe a presidente Ellen Faustino.
— Um telefone? A quem você pode pedir ajuda?
— A ninguém. Não estou pedindo ajuda a ninguém. Só mandando um e-mail.
Faustino chegou mais perto.
— E-mail?
— Eu tenho um amigo no V" news, que venderia os braços para assistir ao vídeo que estou transmitindo agora mesmo. Ele vai me dever de montão.
Ellen Faustino demorou um instante para perceber o que estava acontecendo, mas quando percebeu seu rosto se retorceu numa máscara do Dia das Bruxas.
— Ele está transmitindo vídeo! Se a imprensa vir imagens do nosso reator antes de estarmos prontos, a c oisa acabou. — Ela mergulhou para o rapaz ferido, com as mãos em garras se enfiando abaixo de seu tronco. Ela puxou as mãos de Stefan. Estavam vazias.
— Surpresa — disse ele, envolvendo Ellen num abraço de urso. Ela bateu no peito dele com os punhos. Sem resultado.
— O aperto do morto — grunhiu Stefan, com o suor se juntando na testa. — A última coisa que farei na vida.
Qualquer pessoa com treinamento policial conhecia o aperto do morto. Se um suspeito estiver morrendo, e souber disso, fique fora de alcance, porque a última coisa que ele agarrava costumava ir para a sepultura com ele. Era espantoso como alguém com apenas alguns segundos de vida podia arranjar força para curvar metal e estalar ossos.
O atirador no alto transferiu o ponto de laser para a cabeça de Stefan.
Manuel falou num microfone escondido na manga.
— Não. Não atire. Repito. Não atire. Eu cuido disso.
— Não sou eu que estou transmitindo o vídeo — sussurrou Stefan. — É Dito.
— Pegue o garoto! — guinchou Faustino. — O louro. Manuel apontou seu bastão para Dito.
— Você está com um telefone, garoto? Entregue.
— Claro, eu tenho um telefone. Fique frio, Manuel. Só vou enfiar a mão no bolso e pegar.
Manuel assentiu.
— Tudo bem. Faça isso. Muito devagar. Não me faça embrulhar você.
Dito ficou com uma das mãos no ar e enfiou a outra no bolso. Tirou o telefone com dois dedos.
— Olha, aqui está. Sem problema. Eu estou levando.
— Não. Fique onde está. Jogue o telefone.
Dito assentiu quase imperceptivelmente para Cosmo.
— Quer que eu jogue?
— Foi o que eu disse. Você é o quê? Baixinho e idiota?
— Certo, Manuel, não entre em pânico. Aqui vai. Dito jogou o telefone para o alto. Muito mais alto do que o necessário. Um par de olhos acompanhou o arco do movimento. O de Manuel. Cosmo e Mona sacaram os bastões de raios do cinto e acertaram o guarda-costas com pelo menos quatro balas de celofane. O vírus se espalhou pelo seu corpo, embrulhando-o completamente em segundos. Dito sorriu.
— Uma beleza — disse, recuperando o telefone.
— Idiota — gritou Ellen Faustino, com a voz abafada pelo corpo de Stefan. — Retardado.
— Você está ficando sem opções, professora — disse Stefan debilmente.
Ellen se retorceu para encará-lo.
— Não se engane, Stefan. Eu ainda tenho o meu atirador. Ele pode manter seus Supernaturalistas longe do plastividro até você morrer. Isso não deve demorar muito.
O ponto de laser do atirador pulava de um alvo para o outro. O sujeito nas traves não tinha certeza de quem deveria cobrir.
— Desista, Stefan. Não há como vencer.
O ponto vermelho se desviou para o plastividro. Cosmo, Mona e Dito se enfiaram para baixo de uma fila de vagões de monotrilhos.
Stefan sorriu. Havia sangue em seus lábios.
— Agora eles estão em segurança. Somos só eu e você.
— Nada mudou. Ainda é um jogo de espera.
A voz de Dito atravessou o zumbido do gerador.
— Não faça isso, Stefan. Deve haver outro modo.
— Do que ele está falando? — perguntou Ellen Faustino.
Stefan a ignorou.
— Desculpe, Dito. Vocês todos. Agora vocês estão por conta própria.
Cosmo agarrou o ombro de Dito.
— O que ele quer dizer?
Dito apoiou a cabeça nas mãos.
— Stefan está morrendo. A bala acertou muito perto do coração. Ele quer que sua morte signifique alguma coisa.
— Que signifique alguma coisa? — perguntou Mona. — O quê?
Dito levantou a cabeça um pouquinho acima do vagão.
— Um fim para a dor.
Com absolutamente o último grama de força que restava nas pernas, Stefan lutou para ficar de joelhos, trazendo junto Ellen Faustino.
O ponto de laser balançou diante de sua visão, pousando na testa.
— Eu vou matá-la — gritou para as traves. — Ela matou minha mãe.
Ellen tentou gritar, mas seu rosto estava apertado contra o peito de Stefan.
— Eu falei sério. Vou matá-la.
O ponto estremeceu. O atirador não tinha certeza.
— Ela é uma mulher morta.
O atirador escondido tomou a decisão. Um cano re-lampejou no escuro, lançando uma bala subsônica do cano do bastão. Girando ao longo do facho de laser, liberando sua capa de gel enquanto viajava.
Stefan viu o clarão. Estivera esperando. Contando com ele. Deixou os joelhos se dobrarem, desmoronando no chão um milésimo de segundo antes que a bala subsônica passasse junto ao seu ouvido, atravessando direto a camada dupla de plastividro.
Ellen viu o gel borbulhar através dos buracos.
— Não! — gritou.
A bala partiu para o interior do gerador, tirando uma lasca de uma turbina. A lasca voou em espiral, cortando o plastividro como um dedo passando na areia. Mais e mais hidrogel pingou, espalhando qualquer Parasita que tivesse energia para se mover. Luzes de alarme piscaram numa dúzia de painéis, desligando e fechando automaticamente as partes nucleares do reator. Mas a área dos Esp-nocat 4 estava irremediavelmente rompida. Rachaduras dispararam pela superfície, competindo umas com as outras para chegar à borda. Cada rachadura fazia nascer um milhão de outras, até que não havia uma área de cinqüenta centímetros quadrados inteira. O hidrogel pingava em ondas, provocando uma dezena de incêndios no piso. Parasitas se arrastavam para longe do caminho, mas não podiam fugir sem ter energia limpa.
O rosto de Ellen Faustino encostou no plastividro.
— Me solta — implorou. Stefan soltou-a.
— É tarde demais, professora. Não se preocupe, você não vai sentir nada.
Ellen ficou de pé, mas, antes que tivesse dado meia dúzia de passos, a superfície transparente desmoronou por completo, fazendo os dois mergulharem na barriga da parte central do reator. Cada janela do galpão explodiu, fazendo o hidrogel pingar dos painéis de vidro duplo.
Stefan caiu de costas, mas não sentiu dor. Não havia dor porque um único Parasita havia se enrolado em seu peito. A agonia passou do Supernaturalista para a criatura.
— Tome — disse Stefan, as palavras raspando nos lábios. — Seja livre.
O Parasita sugou a dor numa corda de prata luminosa. Em segundos seu coração ressecado pulsava de modo vibrante outra vez. Os olhos redondos e lamentosos do Parasita espiavam os de Stefan.
— Agora entendo — disse Stefan. E mais uma palavra depois disso. Uma palavra ou um último sopro de ar. — Mãe.
O Parasita estendeu uma mão de quatro dedos, apoiando-a no ombro de um irmão que sofria. Um jorro de energia fluiu para o outro, liberando-o. E assim a dor de Stefan se espalhou, racionada entre mil Parasitas, dando a cada um a energia para escapar do reator nuclear e encontrar energia para liberar outros Parasitas. Eles subiram pelas paredes, evitando áreas com hidrogel, e se espalharam pelo laboratório como folhas apanhadas num redemoinho.
O coração de Stefan tinha parado de bater, mas ele tivera tempo suficiente para vê-los ir. E no meio de todo aquele azul, havia outra coisa. Outro lugar. Um lugar diferente.
Cosmo e Dito estavam curvados sobre a borda da área central do reator. Dito parecia uma criança de verdade, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
— Você tinha de fazer isso, Stefan — soluçou ele. — Tinha de ser o grande herói estúpido. Nenhuma outra coisa serviria.
Cosmo, como sempre, não podia acreditar no que estava acontecendo.
— Quer dizer que ele enganou o atirador?
— Claro. Uma bala era a única coisa que poderia atravessar o plastividro. Ele estava esperando o clarão do cano. São balas lentas, veja bem.
Parasitas redemoinhavam ao redor deles, caçando energia. Alguns já haviam retornado pelas janelas despedaçadas, trazendo energia para libertar os outros. Um único parasita pairou acima do ombro de Cosmo, com a cabeça inclinada, cheia de expectativa.
Cosmo recuou.
— Ele está sentindo alguma coisa.
Um ponto vermelho apareceu em seu peito.
— Ah, não! — exclamou Dito. — O atirador ainda está lá em cima. Não se mexa. Vou tentar negociar.
Dito levantou as mãos, virando-se para a fonte do facho.
— Ellen Faustino está acabada — gritou para as sombras. — Você não precisa fazer isso. Nós temos dinheiro.
Por um momento não houve reação, então veio o uup uup familiar de uma bala de celofane sendo disparada e alcançando o alvo. Mona saiu do escuro, lá em cima nas traves.
— Aproveitei a confusão — disse ela. — Foi o que Stefan me ensinou. — Ela parou um segundo, juntando coragem para perguntar. — Ele se foi?
— Sim — respondeu Cosmo. — Ele se foi.
E o mesmo aconteceu com o Parasita que flutuava.
Mona ficou quieta por vários instantes. Cosmo pensou ter visto o corpo magro da garota estremecer. Depois disso ela se controlou.
— Então é melhor a gente ir também. Há alarmes disparando em todo o prédio. Os parajurídicos vão chegar a qualquer minuto.
Era verdade. Cosmo já ouvia sirenes à distância. Deu uma última olhada na borda, depois correu para a escada e a liberdade.

CAPÍTULO 10
NOVA CHANCE
Condomínio utopia
Arredores da Cidade-Satélite, duas semanas depois

INCRIVELMENTE, Ellen Faustino sobreviveu para ser levada diante do chefão da Myishi. Assim que as suturas de sua pele foram retiradas, ela foi levada de helicóptero até a propriedade do prefeito Ray Shine, no Condomínio Utopia.
O prefeito Ray Shine, que por acaso também era o diretor executivo das Indústrias Myishi na Cidade-Satélite, parou um jogo de golfe especialmente para falar com ela. Ray era uma figura espalhafatosa que não acreditava em se vestir de acordo com a ocasião. A roupa de hoje era um suéter xadrez amarelo e cor-de-rosa com boné combinando, calções de tweed e meias de tricô com padrão em losangos.
O prefeito estacionou sua enorme gordura atrás de uma mesa com pernas de marfim e serviu-se de um copo de água purificada, deixando Ellen Faustino se retorcer. Bebeu com gosto, arrotou suavemente e suspirou.
— Ellie, Ellie, Ellie, o que você andou aprontando no P&D? — Sua voz era gentil, mas Ellen sabia que ele era o homem mais implacável que já conhecera.
— Ray... presidente Shine, com todo o respeito, o senhor sabe exatamente o que estava acontecendo. Eu lhe contei.
— Contou? — disse Shine com inocência.—Acho que não me recordo dessa conversa. E não parece haver um registro dela. Não. Creio que desta vez você está sozinha, Ellie. Uma pena a imprensa ter conseguido aquele vídeo. Desenvolvendo um reator nuclear, o que você estava pensando?
Ellen Faustino se irritou.
— Estava pensando que poderia salvar esta empresa. O senhor viu os números, eu teria conseguido...
— Eu sei, se não fosse pelos naturistas que ficam correndo pelados por aí.
— Os Supernaturalistas — disse Faustino trincando os dentes. — E são muito mais perigosos do que o senhor acredita, mesmo depois de o líder ter morrido.
— Sim, bem, talvez eu fique de olho neles. De qualquer modo, você não precisa se preocupar com isso, já que está morta.
O coração de Ellen pulou na garganta.
— Morta? Puxa, Sr. Prefeito, não há necessidade de... Shine silenciou-a com um gesto.
— Não morta morta, Ellie. Morta para a imprensa. Nós tivemos de entregar um bode expiatório, que é você. Felizmente o corpo estava desfigurado demais para ser identificado, e não creio que haja alguma chance de você ser reconhecida, não com o rosto novo.
Ellen Faustino ficou vermelha, coisa que não acontecia desde que era uma colegial.
— Então, o que a Myishi planejou para mim? Shine se recostou na poltrona até que ela estalou.
— O fato, Ellie, é que o seu reator era a nossa melhor esperança. Não sei como você conseguiu, mas de algum modo os números dos seus testes eram promissores. Suas criaturas Esp-nocat 4 sem dúvida estavam fazendo o serviço.
Ellen se empertigou.
— Então não vai cancelar o projeto?
— Claro que não, mas teremos de ser muito mais sorrateiros.
— Sorrateiros até onde? Shine sorriu.
— Até o pólo Sul.
Ellen quase fez uma objeção, mas sabia bem demais o que acontecia com as pessoas que discutiam com Ray Shine.
— Tudo bem para você? Ela forçou um sorriso.
— Pólo Sul. Isolado. Sem interrupções. Ótimo.
O prefeito Ray Shine ficou de pé, ajeitando o suéter xadrez.
— Bom. Há um helicóptero esperando para transportá-la para as instalações na Antártida. Faça uma boa viagem.
— Excelente. Obrigada, Sr. Prefeito. — Ellen Faustino se levantou com a ajuda de uma muleta e foi mancando até a porta da sala.
— Ah, Ellie?
— Sim, Sr. Prefeito?
— Você só tem mais uma chance. Estrague esta e talvez você mesma precise de algumas daquelas criaturas Esp-nocat 4. Fomos claros?
— Claríssimos, Sr. Prefeito.
Rua Abracadabra I.4D5
Não restava muita coisa do armazém da rua Abracadabra além de janelas e paredes. E a maioria das janelas tinha buracos por onde os parajurídicos tinham entrado. Durante duas semanas os Supernaturalistas fizeram limpeza, consertos e lamentaram a perda, tentando consertar os danos causados pela Myishi. Ainda havia um longo caminho pela frente.
— Ainda temos as camas — disse Mona, fazendo cara de coragem no fim de um dia particularmente cansativo.
Dito chutou os restos quebrados da geladeira.
— Uh-lá-lá. Camas, graças aos céus temos isso! Mas não comida.
Cosmo estava tentando conectar um disco rígido recuperado num computador com as entranhas expostas.
— Mona trouxe algumas pazzas antes. Deixou no motor do Fundimóvel. Talvez você não se interesse mais por pazzas, depois do incidente no OBAA.
O Bebê Bartoli esfregou as mãos.
— Está brincando? Eu não consideraria que uma comida perfeitamente boa foi responsável por meu estômago fraco. — Ele deu um risinho, indo para o elevador. — Pazzas e camas. O que mais um jovem poderia querer?
De repente um cansaço profundo baixou nos ossos de Cosmo. Ele desvirou uma cadeira e se acomodou nela. Mas sentar-se não pareceu ajudar. Mal tivera quatro horas seguidas de sono desde que haviam perdido Stefan. Algumas vezes tudo aquilo parecia não ter sentido.
— O que vamos fazer agora? — perguntou a Mona depois de vários minutos em silêncio. — Sem ele.
Mona deu de ombros.
— Viver o dia-a-dia, como estamos fazendo, como todo mundo faz. Mudanças grandes vão acontecer na Cidade-Satélite. Mais e mais pessoas vivendo fora das áreas controladas. Dentro de alguns anos talvez nem exista um Satélite. Teremos de nos virar sozinhos. Pelo menos estamos vivos. Pelo menos temos amigos.
Cosmo ainda não estava preparado para experimentar consolo.
— Mas ele nos mantinha juntos. Ele nos mantinha em frente.
Mona pigarreou.
— Sabe, Cosmo, tecnicamente, lá no laboratório, eu salvei sua vida.
Cosmo ainda estava olhando o chão.
— Isso mesmo. Com o atirador. Eu quis agradecer, mas tudo aconteceu tão...
De repente Cosmo se lembrou de uma conversa que tinham tido no telhado.
Talvez da próxima vez você possa me salvar, tinha dito a ela. Então vou lhe dever um beijo.
Ele ergueu os olhos. Havia lágrimas nos de Mona, mas ela estava sorrindo. Cosmo se levantou devagar, subitamente imaginando se a placa em sua testa ainda estava se destacando.
— Eu lhe devo um beijo. Mona apontou para a bochecha.
— Isso mesmo. Deve.
A placa no joelho de Cosmo começou a cocar.
— Na verdade eu nunca... quero dizer... Mona deu um sorriso maroto.
— Talvez a gente deva esquecer isso. Cosmo assentiu.
— Talvez.
Então deu-lhe um beijo.
Claro que Dito escolheu esse momento para voltar com uma braçada de pazzas.
— Ah, me poupem — disse ele, jogando uma embalagem vazia no reciclador. — Agora vou ter de agüentar vocês dando olhares melosos cada vez que a gente for caçar criaturas sobrenaturais.
— Criaturas? — perguntou Cosmo. — Que criaturas? Os Parasitas são amigos, lembre-se.
Dito começou a mexer na parte de trás de sua TV predileta.
— Parasitas? Quem falou neles? Deixem-me dizer, há coisas muito piores do que Parasitas. Só porque vocês dois não vêem, não significa que não estejam por aí. Eu sou sensitivo, lembrem-se. Um Bebê Bartoli. Nada se esconde de mim.
Dito deu uma mordida enorme em sua segunda pazza.
— Acredite — murmurou de boca cheia. — O trabalho dos Supernaturalistas está longe de ter acabado. Mas precisamos de equipamentos. O que sobrou?
Mona tirou um cartão de partida do bolso.
— Temos o Fundimóvel. Dito confirmou com a cabeça.
— E um começo.

 

 

                                                                  Eoin Colfer

 

 

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