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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRIANÇA ÍNDIGO / Richard D. Weber
CRIANÇA ÍNDIGO / Richard D. Weber

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRIANÇA ÍNDIGO

 

                   Londres

A menina se embrenhou pela porta com o que lhe restava de forças. Foi um prazer sentir a chuvinha renitente enquanto atravessava o telhado com seus passos trôpegos. Ao correr, o frio ar noturno fluiu pulmões adentro. Estou chegando, ela pensou. Em poucos metros estarei livre.

Parou subitamente e começou então a rastejar até a beira do telhado.

Parou para piscar os olhos por causa da chuva e foi sacolejada pelo vento; esticou os braços na tentativa de manter o equilíbrio.

Olhou para baixo e mal conseguiu enxergar o fluxo dos faróis dos canos que deslizavam como pirilampos na escuridão. Acenavam para ela.

Alguém lá atrás abriu a porta com uma pancada barulhenta na parede. Acenderam as luzes na escadaria do outro lado do telhado e foram atrás dela.

Ela se virou. Um bando de figuras sombrias surgiu pela porta e pararam, projetando suas silhuetas em contraste com a parca iluminação de fundo.

Mesmo na penumbra ela conseguiu reconhecer o contorno mais alto, com aqueles cabelos louros claríssimos capturando a escassa luz. Sua estatura e seu jeito de andar eram inconfundíveis; tinha em si a crueldade seca de um chicote enrolado. Dava quase para ela sentir o aterrorizante vento negro que emanava de Margot Gant.

O som familiar de outra voz, vindo de um atalho para o telhado, fez a jovem estremecer de pânico.

— Hora de ir para casa, pequena — disse o doutor Craven.

Ela não respondeu.

Outra figura ao lado do médico deu um passo para a frente. A menina rastejou mais para a beirada. Então Margot esticou o braço, im­pedindo que o homem continuasse.

O clarão ofuscante de uma lanterna queimou-lhe a vista.

—        Apague isto, seu idiota do inferno Margot ralhou. Voltou-se para a menina e disse:

—        Ninguém vai lhe machucar, Wendy falou suavemente, com um tom de voz brando, a mão deslizando em direção à pistola com tranqüilizante que estava cuidadosamente encaixada no cós da calça às suas costas.

Por alguma razão Wendy sentiu que ela estava com a arma; dava para ver o metal negro e frio em sua mente.

Mas ela se levantou com os braços ainda estendidos, sentindo como se o vento fosse lhe devolver a sanidade em uma lufada. Começou a cantarolar a cantiga infantil com os lábios entreabertos. Nana neném, voe alto meu bem. Quando o vento soprar, seu bercinho vai balançar...

Wendy deu mais um passo. O vento castigava o telhado, desarrumando-lhe os cabelos.

—        Quando o galho quebrar...

Os olhos de Wendy estavam bem fechados agora, suas pestanas pesadas de memórias que não eram bem memórias, sonhos que não eram bem sonhos, e ela girava a cabeça de um lado para outro.

Ela deu mais um passo.

—        Não! Margot gritou ao ver que ela seguia em frente.

Silenciosa, graciosa e leve como anjo, a menina de oito anos desapareceu diante de seus olhos.

Eles ficaram na beira, olhando para a rua lá embaixo.

O médico de rosto pálido ao lado de Margot deu uma olhada nervosa pelo peitoril e disse, balançando a cabeça: Não dá para enxergar a rua daqui, ja? deu um passo para trás e suspirou aliviado. Teve um momento em que até achei que nossa pombinha soubesse mesmo voar.

Os olhos de Margot cintilaram de ódio. Ela torceu a bochecha do médico com força e a estapeou com as costas da mão. Ela sabe voar, seu idiota. Esta é a droga do problema!


 

                   Berlin, 1940

Entre um grunhido e outro, o homem impulsionava seu corpanzil pela ín­greme escada do edifício acima.

Tinha um encontro com um homem morto.

Uma placa no tijolo adjacente à grande porta vermelha dizia:

Der Vril Gesellschaft. A Sociedade Luminosa.

Tirou a mão do bolso da capa de chuva e ajeitou a enorme aba do chapéu de feltro preto ao se virar novamente para a rua. Olhou ao redor com cautela para ver se fora seguido.

Satisfeito de ver que tudo parecia normal na rua, ele entrou.

A mulher que o recebeu era espetacular. Cabelos longos e louros emoldu­ravam o rosto aquilino. Seus olhos celestes eram claros e ágeis. — Barão, que bom lhe ver.

—        Senhorita Orstic, você continua encantadoramente linda, como sempre. Um leve rubor coloriu aquele rosto suave como pétala.

Ela usava um robe de cetim vermelho que se ajustava ao seu corpo como uma segunda pele. Seus longos cabelos roçavam pela parte de baixo das costas à medida que ela caminhava furtivamente pela sala.

—        Por favor, queira se sentar — a sedução pulsava em sedutoras nuances de voz.

Quando ela estendeu o braço para indicar a mesa forrada com uma toalha preta, o olhar do barão percorreu o decote em V do robe que ela usava. A cur­va inclinada dos seios fartos e o pigmento escuro de uma auréola ameaçavam escapar ligeiramente de uma das bordas do decote. Os seios grandes ondulavam perto da fresta do robe, sacudindo de leve quando ela mexia o braço.

Ele ficou de queixo caído e seu monóculo caiu do olho.

Debaixo do robe, ele percebeu, ela estava nua.

Como se lesse seus pensamentos, a mulher deu um sorriso ardiloso e balan­çou a cabeça.

Ele sentiu o sangue subir ao rosto e desviou o olhar para a mesa, à qual es­tava sentado um homem, suas mãos impecavelmente dobradas sobre o colo.

Lutando para retomar a compostura, ele deu um jeito de dizer: — Herr Hess — curvou-se elegantemente e seus saltos se encontraram em um clique perceptível. — Como vai?

Rudolf Hess levantou-se para saudá-lo. Debaixo da testa proeminente em formato de enxada e sobrancelhas negras protuberantes, seus olhos cinzentos e vazios eram quase como alfinetes. Seu olhar impiedoso se suavizou à medida que as rugas de um sorriso racharam a expressão pétrea. — Faz muito tempo mesmo, velho amigo. Mas vamos dispensar as amenidades e tratar do assunto do dia? Foi com muita dificuldade que consegui fazê-lo voltar incógnito à Alemanha — seu rosto endureceu novamente.

A médium, Maria Ostric, diminuiu as luzes.

A sessão começou.

Sentados à mesa, deram-se as mãos. O barão hesitou, acovardado, ao sentir a mão gelada da médium segurando a sua. Ela fechou os olhos. Por um momento ficaram sentados em silêncio, agarrando-se as mãos com força, apenas com o som de suas respirações ecoando por entre as escuras sombras do recinto.

Ela convocou os espíritos com voz melodiosa.

— Eu apelo à Grande Fraternidade Branca, rogo por sua ajuda para falar com o espírito de nosso companheiro, Dietrich Eckhart.

O Barão Rudolf von Sebottendorff estremeceu ao sentir cair a temperatura do ambiente.

Apesar de respeitar Eckhart, sempre tivera um ligeiro medo do mentor de Hitler. Por debaixo de seus modos excessivamente graciosos e sorriso de vovô, Eckhart ocultava algo de sombrio e visceral.

Aquele olhar gelado e resoluto lhe dava nos nervos.

Olhos que detinham a pessoa com o poder de sua intensidade, capazes de congelar, e Eckhart falava com voz abafada. O efeito da combinação era algo como um presságio de uma picareta de gelo no peito.

Eckhart era coisa séria, não era nenhum charlatão dissimulado. Seu conhecimento do oculto e seu domínio de oratória impressionaram o jovem Adolf Hitler. Com o apoio financeiro da Sociedade Vril, Eckhart criou o Führer e o NSDAP (Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, mais tarde conhecido como Par­tido Nazista). Seu falecimento deixou Hitler nas mãos de gángsteres e carniceiros. Deixou Hitler cercado por um núcleo de criminosos baratos liderados por aque­le idiota narcisista, o atarracado do Heinrich Himmler.

Pensar nos olhos pequenos e brilhantes e na expressão presunçosa daquele ex-criador de galinhas fez o estômago do barão revirar de acidez. O barão o desprezava. Para ele, partira de Himmler, por pura inveja, a ordem para jogá-lo em um campo de concentração e depois deportá-lo para a Turquia.

A profunda arfada vinda de sua esquerda o arrancou de seu devaneio.

Os olhos de Maria reviraram-se sob a testa, o branco dos olhos parecendo flutuar na escuridão. Sua cabeça caiu para trás.

Seu rosto se contorcia de dor enquanto de algum ponto das profundezas de sua garganta vazou um som grave e gutural.

O barão sentiu o estômago revirar de náusea. Hess estava apertando tanto sua mão que suas unhas chegavam a cravar na carne macia da palma.

Crack!

Instintivamente, o barão baixou a cabeça, achando que era um tiro. Choveu vidro do alto.

Seguiu-se uma série de estalos barulhentos e as pequenas lâmpadas do lustre-candelabro foram queimando uma a uma. Uma chuva de fagulhas lhe caiu de leve sobre a cabeça.

Maria ficou com o corpo mole e sem energia; os braços pendurados no corpo.

Seus lábios se entreabriram sedutoramente ao percorrer o lábio superior com a ponta úmida da língua. Suave no começo, seus gemidos foram crescendo em tom e intensidade. O ligeiro contorno de seus mamilos marcou presença no tecido frio quando ela arqueou as costas

O barão ficou olhando, perplexo. Como se ela estivesse sendo atacada por mãos invisíveis, o tecido do roupão se abriu na altura do busto. Por debaixo do tecido do robe, algo lhe torneava o torso. As mãos fantasmagóricas foram puxando o robe de seda cada vez mais alto, expondo-lhe as panturrilhas bem torneadas e os graciosos contornos das coxas firmes.

 

Maria se sente levada por um transe. Sensações agradáveis fluindo-lhe em um sono sem sonho. A escuridão murmurando. Mas então ela sente... uma presença maligna lhe serpenteando pela pele, rastejando como uma cobra.

Seu corpo entra em convulsões ao sentir mãos grosseiras apalpando-lhe os seios e explorando os contornos de seu corpo jovem e perfeito.

Ela se enche de uma sublime mistura de terror e injustificável abandono.

Algo se enrosca em sua garganta, apertando cada vez mais forte. Ela se sente sendo suspensa no ar e então arremessada para o alto, caindo pesada­mente sobre as costas.

A pressão ao redor da garganta diminui, mas dedos penetrantes rasgam o tecido do robe, sondando-lhe a pele. Mãos fortes lhe abrem as coxas...

... então algo lhe adentra bem fundo.

A força maligna aperta sua pegada de morsa no pescoço. Ela fica sufo­cada, engasgando ao tentar respirar.

Tremendo de êxtase, ela está dividida entre o enlevo e a vontade de viver.

 

Eles ficaram olhando, estupefatos, o corpo de Maria ser suspenso por mãos invisíveis, revirar-se violentamente e ser jogado ao outro lado da mesa, caindo pesadamente sobre as costas.

Simultaneamente, levantaram de um pulo e caíram novamente em seus assentos com suas pernas moles como borracha.

Algo lhe rasgou o robe, expondo seu corpo nu.


Suas coxas se abriram e seus quadris começaram a menear ritmicamente.

Então seu rosto começou a se contorcer como se ela estivesse sendo estran­gulada, começando a ficar vermelho, e depois azul. O tecido suave das laterais do pescoço estava marcado por manchas brancas, como se fossem de dedos lhe escavando a pele.

Hess foi o primeiro a conseguir falar. — Gott im Himmel! Faça alguma coisa. Ele a está matando!

O barão respirou fundo e se retesou.

Com sua voz firme e autoritária de barítono, ele disse: — Dietrich Eckhart. Pelo poder da sabedoria de seu nome, eu lhe ordeno que pare com essa loucura de uma vez e se dirija a mim.

O ar pareceu estalar com a energia estática.

O corpo de Maria ficou mole, e ela se esforçava para respirar.

Ela arregalou os olhos.

Enrijeceu o corpo e se levantou da mesa, arqueando a cintura de modo não natural, como se uma tábua rígida lhe estivesse levantando o torso.

Quando sua cabeça girou na direção do barão, seus olhos faiscaram furio­sos, e então se comprimiram como fendas.

Uma voz fria e metálica falou, causando um arrepio na nuca do barão.

—        Hitler vai dançar de acordo com a minha música.

Era a voz de Eckhart, com certeza. Não havia a menor dúvida. O barão es­tava sentado no leito de morte de Eckhart quando ele pronunciou as mesmas palavras finais.

—        Tem uma pessoa em Zurique que conhece o segredo — disse a voz áspera e desencarnada vinda dos lábios de Maria.

O barão e Hess trocaram olhares de soslaio e se aproximaram ligeiramente.

—        Seu poder e conhecimento são maiores que os meus. Em seu diário... encontra-se a chave do poder do Vril.

Visivelmente engolindo em seco, Hess conseguiu dizer: — O nome, Eckhart. Dê-nos o nome dele!

O rosto de Maria se contorceu em uma careta assustadora.

—        Doktor Carl Gustav Jung.

Um grito estridente saiu dos lábios da médium, como se fosse a lâmina de uma faca lhe cortando o peito. Seu corpo oscilou e ela desfaleceu, desmoronan­do sobre a mesa, os olhos fitando o vazio. O pescoço estava retorcido em um ângulo antinatural.

Um pequeno traço de sangue escorria do canto da boca e então começou a escoar também do nariz e das orelhas.

 

                   A BORDO DO EXPRESSO DO ORIENTE

Havia uma multidão na estação de trem de Munique. O doutor Carl Gustav Jung abriu caminho cautelosamente por entre a aglomeração na plataforma para pegar o Expresso do Oriente. Com voz ofegante, pediu desculpas ao esbar­rar na jovem atraente que estava dando um beijo de despedida no namorado. Sentiu uma pontada aguda e penetrante nos joelhos idosos e uma dor pungente na base das costas ao içar as malas para o carregador pela janela do vagão.

— Verzeinhen sie mir, estou terrivelmente atrasado — ele gritou em alemão, pedindo perdão. O funcionário assentiu com a cabeça e abriu um típico sorriso falso.

A fumaça turva coalhou o ar úmido. Ele parou e se virou rapidamente ao subir os degraus do vagão. Algo lhe rebocou os sentidos.

Um carregador gritou: — Todos a bordo!

Ele percorreu o terminal com os olhos. A figura sombria de um homem de capa de chuva se materializou detrás do carrinho de bagagem. Ele empurrava grosseiramente uma bela mulher de vestido azul para dentro do trem.

Em um instante, desapareceram dentro de um vagão de passageiros.

Jung guardou na mente a capa de chuva e o vestido azul da mulher.

Com um toque estridente de apito e o assovio barulhento do vapor, as rodas da locomotiva começaram a girar, fazendo com seu sopro o trem partir, enfim.


Os patrocinadores de sua série de palestras lhe providenciaram um vagão de primeira classe. Apesar de Jung achar que a extravagância do Expresso do Oriente era um pouco exagerada, seus velhos ossos cansados receberam com prazer aquele luxo. Um pouco de paz e tranqüilidade, um pouco de tempo para si mesmo e, é claro, a culinária rebuscada do Expresso do Oriente eram prazeres culpados que ele teria de suportar. Um sorriso excêntrico lhe veio aos lábios ao pensar em sua querida esposa que vivia lhe censurando por pular refeições para ficar trancado em sua torre acastelada de Bolligen.

Dirigiu-se à porta corrediça, deu uma rápida olhada no corredor, forçou um sorriso débil para uma velha com cara de ameixa seca acompanhada por uma matrona corcunda que exibia as gengivas em um sorriso lúbrico ao caminhar pesadamente em sua direção. Ele abaixou a cabeça para entrar no compartimento, segurando a porta atrás de si com grande dificuldade e sentindo dor. Abaixou a tela de seda e começou a desarrumar a mala.

Ao terminar, acomodou-se no sofá-cama com um grosso fólio. As mãos manchadas pela idade tiraram com esforço a fita vermelha do prendedor.

Pegou um documento. As iniciais ESS e a palavra SUPERSECRETO em letras vermelhas lhe encaravam.

Fora procurado pelo novo e inexperiente serviço de inteligência americano, o Escritório de Serviços Estratégicos, para fazer duas coisas. Devido ao seu histórico de psicanalista mundialmente renomado, deram-lhe a missão de fazer algo inédito: o perfil psicológico do pior homem do mundo, Adolf Hitler. Jung sentiu que isto era o mínimo que podia fazer, como ele dizia, para lutar contra as forças das trevas.

Mas havia mais nessa missão. Poder viajar incólume pela Europa, confraternizando com intelectuais, diplomatas e donos de indústrias era o disfarce perfeito para um espião. Ele podia ser olhos e ouvidos da ESS.

Lembrou-se da filosofia e da sugestão do Coronel Donavan, o "Bill Malu­co". Donavan era conhecido pelo linguajar tosco e pela franqueza. — Quem desconfiaria de um excêntrico como você? Um acadêmico apolítico considerado meio biruta por muitos de seus colegas. Ora, diabos, doutor Jung, o senhor se prostrou para os nazistas quando era diretor da Associação Européia de Psiquia­tria, nem levantou a voz!

Jung se retraiu ao ouvir as palavras de Donavan, mas às vezes a verdade, por mais dolorosa que fosse, era mais salutar. Quem sabe até uma chamada à ação, uma chance de consertar alguns erros.

Rabiscara umas anotações a partir do material fornecido pela ESS e simpa­tizantes que ele encontrou. Tirou os óculos de arame e massageou seu comprido nariz. Ele estava exausto. Pôs o fólio dentro da bolsa e se esticou no banco.

Tentou imaginar um espelho negro e vazio sugando-lhe todos os pensa­mentos incômodos que vinham à mente aos borbotões. Ao respirar em padrão rítmico controlado, sua mente acabou se aquietando.

Quando ele começou a pegar no sono, um ronco retumbante tomou conta do compartimento. Um pequeno sorriso lhe veio aos lábios, seguido por um sonho.

Uma pomba branca desce das alturas, gradualmente se transformando em uma jovem. Seu rosto angelical irradia inocência. Ela pára em frente a uma cintilante tábua de esmeraldas, e aponta para ela com sua mãozinha delicada. Ela dá um sorriso discreto e diz. — Estamos indo.

 

O som de alguém batendo na porta o despertou de um sono profundo. Jung tirou as pernas do sofá, pescou os óculos de dentro do bolso do casaco e foi, trôpego, abrir a divisória corrediça.

—        Warteziet... Estou indo ele murmurou, ainda com a visão borrada.

Abriu a porta.

Um jovem corpulento vestindo um terno amassado estava à porta. Jung imaginou que fosse turco. Seu chapéu turco balançava para a frente e para trás a medida que ele olhava nervosamente para cima e para baixo do corredor. O suor corria em seu rosto moreno, os olhos arregalados e tomados pelo pânico.

—        Doktor Jung... Peço que me perdoe pela ríspida intromissão, mas é ques­tão de vida ou morte, por favor disse o turco em alemão passável.

Jung o observou por um momento e então abriu a porta.

Deu um passo para trás e o homem entrou.

—        Penso que talvez não seja prudente fechar a porta, meu jovem.

O homem balançou a cabeça de modo um tanto encabulado e disse: Ah, eu lhe garanto que não quero lhe fazer mal, mas, por favor, tranque a porta.

Jung resmungou algo e trancou.

Queira se sentar.

Muita gentileza do senhor o turco plantou-se no sofá-cama, mas ficou sentado apenas na beira, espremendo ardorosamente as mãos.

Jung tirou um cachimbo do bolso de dentro do casaco e foi enchendo do fumo de uma bolsinha enquanto falava. Em casos como este é sempre bom começar do começo, ja?

O turco fez que sim.


- Então comecemos pelo seu nome.

—        Kerim Bey. Estou a caminho de Istambul, onde moro.

Jung acendeu o cachimbo e soltou uma boa baforada de anéis de fumaça. O turco esfregou os lábios com as costas da mão.

—        Eu encontrei minha irmã, doktor. Mas temo que ela esteja nas mãos do demônio em pessoa. Depois que ela sumiu com aquele capeta, levei seis longos meses, mas consegui descobrir que estavam em Berlim e fui atrás deles. Ela está a bordo deste trem, e está nas garras dele.

Jung adorava aplicar suas teorias no mundo real. Estudou os maneirismos e movimentos de olhos do turco ao falar. Desenvolvera um método simples de detectar quando alguém estava mentindo ou dizendo a verdade, e logo o transmitiria aos interrogadores da ESS. Percebeu que o turco olhava para cima e para a direita ao falar. Não era bom sinal. Chegara à conclusão que quando uma pessoa fazia isto com os olhos era sinal de que ela estava inventando ou falseando uma história.

Por favor, prossiga — Jung atiçou.

Ela se misturou com um grupo maligno chamado Vril. Eles a estão usan­do — ele parou e hesitou brevemente e então choramingou. — Sabe, ela tem um dom... desde criança. Acho que chamam de intuição. Eles praticam atos blasfemos...

Jung balançou a cabeça afirmativamente de propósito, e interrompeu. — Práticas ritualísticas do Vril para invocar espíritos malignos. E sua irmã servindo de guia espiritual deles. Com isto eles se protegem do perigo de se consorciar com essas forças demoníacas.

Isto está ficando interessante, Jung pensou.

O turco disse parte da verdade. Desta vez ele olhou para cima e para a esquerda, indicando que estava relembrando fatos reais. Mas quando fez uma pausa e soluçou, trêmulo, a hesitação indicou que estava representando.

—        Então você acredita em mim? — o turco perguntou.

Jung deu um sorriso caloroso e tranqüilizador. — E quem é este demônio que seduziu sua irmã?

—        Ele usa muitos nomes. Ele tem passaporte turco, mas seu nome de regis­tro é Rudolf Glauer, nascido perto de Dresden. Ele diz que foi adotado por um exilado austríaco pertencente à nobreza. Usa o título de Barão Rudolf von Sebottendorff. Ele estudou no meu país com os dervixes Bektashi, místicos sufis.

Jung se retesou ao ouvir o nome. Ouvira falar do barão, conhecia sua visão distorcida do mundo. O barão sugerira a Hitler que ele tomasse como exemplo para seu novo regime os Ismailitas Assassinos, que seguiam cegamente os caprichos de seu líder, o "Velho da Montanha"; até mesmo pular de despenhadeiros para a morte ao seu bel-prazer enquanto ele se dopava com haxixe. Em outras palavras, eles representavam um modelo para a SS, uma ordem de monges militares fanáticos que seguiam Heinrich Himmler cegamente. Se ele confrontar esse louco e decifrar sua mente doentia, talvez pudesse usar a informação em seu perfil psicológico de Hitler.

Jung decidiu se jogar de cabeça.

— Onde eles estão agora?

O turco levou as mãos à boca. — No trem, eu lhe disse.

Jung soltou um grunhido exasperado. — Ja, e onde exatamente?

 

Foram até o vagão-restaurante.

O turco balançou a cabeça em direção a uma mesa nos fundos do vagão. — Ela está usando vestido azul e está de costas para nós.

Jung limpou os óculos com um lenço velho, colocou-os atrapalhadamente de volta no rosto e deu uma olhada.

O vestido azul lhe acendeu a memória.

Sentado em frente à mulher estava um homem corpulento. Seu rosto re­dondo e gordo se empoleirava sobre um pescoço grosso e gorduroso que sobrava na gola apertada. A papada o deixava pavoroso como um buldogue. Seu terno cinza-escuro era elegante e, sem dúvida, feito por encomenda. Um monóculo fixo em um dos olhos bulbosos cintilava à luz do Sol. Ele formou um cone com os dedos gordos e com eles pressionou o queixo, pondo-se a olhar distraidamen­te para a paisagem que passava.

— Acho que é melhor você não dar as caras, meu jovem. Não quero causar uma cena.

O turco o observou cautelosamente. — Devo esperar em seu comparti­mento?

Jung respondeu com um aceno de cabeça e seguiu pelo corredor. Ao chegar à mesa ele inclinou os ombros e pôs um cartão de visitas com a mão trêmula sobre a toalha de linho branco, perto do vaso de rosas. Ele queria bancar o velho excêntrico, quem sabe pegando o barão desprevenido.

O barão observou o cartão e levantou os olhos de pálpebras pesadas. Le­vantou e fez uma mesura formal. — Qual a razão de nos dar o prazer de sua companhia, doktor Jung?

- Ah, apenas curiosidade de velho, creio. Tenho uma cópia de seu livro Der Talisman des Rosenkreuzers. É só que não podia deixar passar a oportunidade de encontrar o autor, um homem que possui vasto conhecimento sobre os rosacruzes.

O barão pareceu perplexo, mas seu rosto se iluminou. — Por favor, herr doktor, junte-se a nós — estalou os dedos, sinalizando para que o atendente trouxesse uma cadeira.

Jung infiltrou-se à mesa. Seus olhos fotografaram a mulher de azul. Seus olhos castanhos fluidos eram assombrosos, chamejando um calor predatório. O vestido justo e sem ombros conduzia sua beleza a um nível clássico.

Quando seus olhos se encontraram, ela deu um sorriso fraco e críptico. Olhou para Sebottendorff e depois para Jung novamente, e subitamente baixou os olhos. Jung notou seus longos dedos afunilados e seu pulso delicado quando ela levou uma taça de cristal com água aos generosos lábios.

Os olhos afiados de Jung captaram a maquiagem pesada sob o olho esquer­do, que de forma alguma conseguia esconder o roxo.

O barão pediu uma garrafa grande de Dom Pérignon e caviar de beluga. - Aos buscadores da iluminação. Que não sejamos como crianças tolas, com medo da escuridão, pois nela se encontra a luz!

Jung deu um sorriso astuto e levantou os óculos. — Não acredite no olho humano, nem na luz do Sol e nem nas trevas. O teatro de bonecos da visão é a Máscara do Demônio.

O barão soltou uma risada gélida e logo serviu mais uma dose a todos, ape­sar de Jung perceber que a dama de azul não havia tocado na primeira.

Passaram então a se entreter mutuamente com quintilhas humorísticas de progressivo mau gosto à medida que bebiam.

A conversa passou para um dos assuntos favoritos de Jung, alquimia. Ele havia escrito livros sobre o significado subjacente de seus estranhos símbolos e conhecimento oculto.

—        Diga-me, doktor. Você realmente acredita que no final das contas é tudo questão de desejo reprimido?

Jung fez uma careta.

—        Acho que o senhor está confundindo minhas teorias com as de meu colega, doktor Sigmund Freud. Devo confessar que a opinião dele sobre meu interesse em misticismo e alquimia causou uma severa tensão em nosso relacio­namento. Ele me acusa de ter parado em alguma fase da adolescência na qual minha lógica se confunde com o que ele chama de "pensamento mágico".

O barão deu uma risada doentia e então subitamente sua expressão ficou absolutamente séria. Linhas de tensão se formaram ao redor de sua boca en­quanto os olhos perfuraram Jung. — Conheço seu trabalho. Possivelmente mais do que o senhor possa imaginar. Em parte, está correto. O conceito de arquéti­pos profundamente arraigados é correto, como seu conceito do inconsciente co­letivo ao qual todos nós nos conectamos inadvertidamente de vez em quando. Acho, contudo, que o senhor deixou escapar um elemento crucial.

Jung retesou o corpo ao ouvir a reprimenda. — Por favor, prossiga.

O barão olhou ao redor. — Sugiro que continuemos esta conversa em meu compartimento. Tenho um maravilhoso brandy Luís XIV e diferentes tipos de excelentes charutos. O que o senhor me diz?

Jung arrotou ruidosamente, enfiou o dedo na gola da camisa para afrouxá-la e esfregou a mão pelo rosto, que ele sabia a esta altura estar corado por causa do champanhe. Simulou desinteresse, mas não podia deixar passar a oportuni­dade de mudar de assunto para falar de Hitler, caso ele desse abertura.

Bem... Não estou certo se a dama vai gostar disto — o médico respondeu olhando em direção a ela. — Ela provavelmente já está quase chorando de tédio com nossa conversa.

A dama em questão, para ser bem franco, não é dama nenhuma — o barão lhe lançou um sorriso maldoso e voltou-se novamente para Jung. — Ade­mais, ela tem seu próprio compartimento. Por favor, dê-me este prazer.

A dama de azul ficou de pé e pediu licença.

—        Até o próximo encontro, herr Jung — ela disse, oferecendo-lhe a mão. Jung pensou ter notado um sinal de alívio lhe fluir pelo rosto, e sim... havia o indício de um sorrisinho sagaz.

Ela se virou para Sebottendorff. — Divirta-se enquanto pode, querido. — Palavras mordentes com entonação cáustica.

Sebottendorff bufou de raiva e a dispensou.

Jung podia ouvir atrás de si o sussurro e a agitação de seu vestido enquanto ela saía do vagão-restaurante.

 

Sozinho no compartimento privativo do barão, Jung estava começando a perder todas as esperanças de conseguir qualquer insight da mente perturbada de Sebottendorff. Mudou de assunto ao ficar entediado.

—        Fiz um estudo cuidadoso sobre o poder do Vril.

O barão deu um olhar de coruja atônita e se envergou para a frente com as mãos carnudas apoiadas nos joelhos.

—        Agora o senhor está caçoando de mim, doktor. Não seja brincalhão.

Jung deu um tapinha no bolso.

—        Compartilharei isto com o senhor, mas precisa ser quid pro quo. Eu lhe digo algo e o senhor, em troca, me diz algo.

        O que está oferecendo... exatamente?

Jung pegou um caderno vermelho do bolso e folheou as páginas. — Como a maioria daqueles que buscam o caminho da verdade, mantenho um registro de minhas jornadas e experiências.

Coçando o queixo com os dedos dobrados, o barão perguntou: — Quer dizer um diário mágico?

Jung assentiu e riu. — Ah, se Sigmund Freud ouvisse nossa conversa — ele bateu na coxa e piscou. — Precisamente, pode chamá-lo assim. Mas primeiro, me diga o que foi que eu deixei escapar em meu trabalho.

Com isto estarei cumprindo minha parte do acordo?

Claro que não. Lá no vagão-restaurante, o senhor me atraiu à sua gruta com a promessa de revelar minhas falhas.


O barão levantou as mãos. — Muito bem. O senhor desconsiderou o poder maior, a força maior que conduz o universo. O poder da vontade de um homem. Quando canalizado adequadamente, pode mudar o mundo.

Para o bem e para o mal — Jung acrescentou suavemente.

Bem e mal? — o barão zombou. — Vamos lá, doktor. Quem vai dizer qual é qual? O importante é descobrir seu potencial oculto, sua verdadeira von­tade e então agir de acordo com ela.

Os fins justificam os meios a qualquer preço?

O barão deu um sorriso falso. — Não vou debater moralidade com o se­nhor. Seria perda de tempo.

Jung inclinou-se mais para perto, pronto para dar o bote. — O poder do Vril pode ser domado e canalizado. Creio, meu caro barão, que estamos falando da mesma coisa. A ciência está dando grandes passos, nosso conhecimento está crescendo com uma rapidez surpreendente. Digamos apenas que concordamos que a base da energia que conduz a alquimia é de fato a libido. Todavia, a alqui­mia também lida com física e química. Receio que sejam revelados muito em breve os segredos do vasto poder do átomo. Em meu sonho me foi revelado que um Sol Negro vai lançar sua longa e escura sombra por toda a Europa.

—        Tive visões de chaminés vomitando um fedor oleoso, pilhas de corpos macilentos, coisas repugnantes e malignas, obscenas demais para mencionar. E um brilhante flash de luz que consome uma cidade inteira. Receio que o senhor tenha, sem querer, libertado um insano, um demônio que enlouqueceu com o poder do Vril. Jung suspirou profundamente.

Sebottendorff ficou sentado em silêncio, detendo-se em cada palavra.

Jung prosseguiu. — E se eu lhe dissesse que a ciência também abriu outra porta através do estudo de algo a que chamamos de genética? Tive visões de uma mutação evolutiva desenvolvendo uma nova espécie de humanidade.

Jung parou e cravou os olhos nos de Sebottendorff.

—        E se eu lhe disser que os Vril-ya estão chegando?

Jung usou o termo que ele sabia que seria familiar a Sebottendorff. Vril-ya, os Filhos do Sol. — Os Lebensraum ou origem principal da nova raça mestra.

Sebottendorff deu um sorriso oleoso. — A pureza racial vai gerar uma nova espécie.

- Não! Jung o interrompeu - Isto não tem nada a ver com suas teorias racistas de eugenia ou raças inferiores. Estou falando de um novo estado de evolução, uma alteração cósmica, por assim dizer. Um novo começo, a ascensão do Éden. Não será durante nossas vidas, mas será em breve, muito breve.

Sebottendorff arregalou os olhos. Parecia ansioso para falar. — Aonde eles irão... — ele deixou a frase pelo meio e observou Jung com um novo brilho nos olhos. — Eu não acho que somos tão diferentes, meu amigo. Mas qual é sua pergunta para mim?

- Quero sua opinião honesta e bem informada sobre quais seriam as motivações de Adolf Hitler, quero sua análise quanto à maior fraqueza dele.

O Barão Rudolf von Sebottendorff recuou e pôs-se de pé. Ajeitou com os dedos os cabelos longos e finos e caminhou pelo compartimento. Jung lhe deu tempo de recompor os pensamentos.

O taciturno aristocrata finalmente se sentou. Cortou a ponta de um charuto e o acendeu. Deu uma longa tragada e bafejou no rosto de Jung. Assim como o senhor, vou lhe dar uma resposta honesta. É irônico que me faça esta pergunta. Acabo de terminar um livro chamado A Alemanha antes de Hitler, que expressa alguns de meus sinceros pontos de vista. Hitler não passa de um títere ambicioso, um dínamo humano de energia, sim.

Mas energia descontrolada e mal dirigida é uma coisa perigosa. Dietrich Eckhart e eu plantamos uma semente e ela cresceu. Distorcida pela auto-indulgência e pela egomania... Acho que o senhor chamaria assim. O maior defeito dele, o senhor pergunta?

Seu maldito ego, seu orgulho e teimosia! Ele se cerca de patetas e lacaios, homens subservientes que alimentam sua insanidade verborrágica. Ele se deixou obcecar pelo poder. Ele está cego a qualquer coisa que sugira cautela e falta de sorte. Ele traça o rumo do Terceiro Reich pelas estrelas.

Seu astrólogo, Erik Jan Hanussen, convenceu Hitler que podia lhe garantir boa sorte para sempre. Juntos fizeram o "Pacto dos Três", que consistia no führer, Hanussen e um amuleto em formato de homem; uma raiz de mandrágora. No quintal do carniceiro, ao soar a meia-noite em noite de lua cheia, a mandrágora soltou um grito ensurdecedor quando Hanussen a arrancou da terra. O führer leva o pacto escrito pendurado no pescoço e guarda a mandrágora trancada em local seguro.

- Então sua natureza supersticiosa poderia causar sua maior derrocada?

—        Bem possível. Mas receio que o senhor esteja sofrendo do mesmo mal, doktor. O barão enfiou a mão em seu terno e tirou uma pistola semi-automática Luger 08 Parabellum.

Jung encarou, inflexível. Mas quanto mais encarou, mais estranho foi se sentindo. Ficou tonto e pequenas partículas pretas se revolviam nos cantos dos olhos.

Não é veneno, garanto — Sebottendorff explicou. — Apenas um sedati­vo forte. Não tenho estômago para esses métodos afeminados. Não, se não fosse um serviço porco, eu poria a boca desta pistola perto da sua têmpora e faria este cérebro fraco e arrogante explodir para fora do seu crânio. Mas haveria pergun­tas demais. Não, isto não daria certo mesmo.

Acho que você foi muito tolo, meu velho, de brincar de espião. Ademais, acho que você é um patife mentiroso. Você sabe corno acelerar o processo, como desencadear o potencial máximo do Vril. Dê-me seu diário mágico, agora!

Como Jung lutou para ficar com o diário, sentiu os dedos do barão, fortes e assemelhados a salsichas, arrancando-o de suas mãos. E então a escuridão se fechou sobre ele.

Quando Jung voltou a si, viu que estava sozinho no compartimento. Com uma dor de cabeça latejante, pegou o caminho de volta para o seu alojamento com pernas bambas.

Então, lembrou-se subitamente... o turco. Os olhos de Jung notaram uma mala caída no chão. Não era sua. Abaixando-se com um joelho, ele a abriu. Estava cheia de roupas sujas. Presumiu que fosse a valise de Kerim Bey. Jogou o conteúdo no chão e passou os dedos pelo forro da mala. Encontrou um fundo falso e rasgou o forro para abrir.

Dentro havia uma pasta grande que continha páginas amareladas com as margens rasgadas, como se tivessem sido arrancadas de um livro velho. Quando Jung abriu melhor, um bilhete escrito à mão caiu no chão.

Doktor, peço desculpas por minhas mentiras. Precisava que você distraísse o Ba­rão Sebottendorff enquanto fugia com minha irmã.

Perdoe-me, eu também pertenço a um culto antigo e prestei juramento de comba­ter as forças do mal. Deixo-lhe de presente um tesouro raro, que são as páginas per­didas do manuscrito Voynich, que foram encontradas escondidas no Palácio Imperial de Topkaki em Istambul. Elas contém a chave para decifrar o manuscrito. E vão lhe levar ao local do legendário...

Bateram com força na porta.

- Passaporte, por favor — gritaram os funcionários da alfândega.

Jung rapidamente enfiou o bilhete no bolso do paletó e colocou as páginas do Voynich cuidadosamente dentro de sua bolsa.

 

                   ISTAMBUL

O reflexo da lua cheia ondulava sobre a superfície escura do rio Bósforo, erguendo o olhar sobre o Barão Rudolf von Sebottendorff como se o convocan­do a uma sepultura aquosa. Ele arranhou o ombro, lutando para tirar a adaga cravada até o punho.

Um tiro ecoou pela noite e a rótula de seu joelho foi pelos ares. Ele levantou a vista para encarar os olhos cruéis do homem de chapéu turco que segurava com mão forte uma pistola automática Mauser ainda quente.

Na outra mão ele tinha o diário do doutor Jung.

Kerim Bey deu um sorriso seco e sussurrou asperamente: — Essa foi só para chamar sua atenção.

Os olhos furiosos de Sebottendorff espocaram. — Maldito Untermenchen! Devolva meu diário. Se o que você quer é dinheiro, faça seu preço.

Kerim Bey se aproximou, mergulhando os olhos naquele homem brutal e ferido. — Não quero seu dinheiro sujo. Só quero lhe mandar de volta para o inferno, que é o seu lugar.

Os olhos do barão inundaram-se de terror. O ar parecia espumar com o fedor intenso de suor frio e urina.

— Isto é por minha irmã!


A Mauser latiu duas vezes, enchendo as vísceras de Sebottendorff de chumbo quente.

Com o maxilar torto, ficou olhando com incredulidade e terror para a ensangüentada frente de sua camisa. Suas mãos desceram ao estômago e ele caiu de costas nas águas frias.

 

         A Ascensão da Babilônia

 

 

                   Dias de Hoje:Tell Brak Nagar, Síria

O deserto da Síria é uma terra vulcânica tão infernal que parece o solo da necrópole de algum antigo inimigo, um solo faminto e à espera de ser alimen­tado.

A alvorada deslizava pelo horizonte talhado. Yousef estava sozinho, tiritan­do de medo e nervoso.

Shaitan em pessoa, Al-Dajjal, viera àquele lugar. Logo ele e seus soldados iriam encharcar a areia com o sangue dos inocentes, transformando o lugar no Jardim das Delícias Terrenas do Demônio.

Suave como a ameaça do lobo do deserto, o vento noturno correu hirto antes do amanhecer. Ele se assustou com o rugido de um caminhão se aproxi­mando. Os faróis se agigantaram ao chegar mais perto. Yousef quis avisá-los para voltar. Quis balançar os braços freneticamente, pular para cima e para baixo e gritar a plenos pulmões. Mas ao invés disto, sentindo o bico de uma AK-47 na espinha, ele balançou a lanterna, sinalizando que a área estava livre.

A porta do passageiro do caminhão, que exibia o logotipo incrustado de po­eira da Sociedade Arqueológica Britânica, se abriu. O vento jogou o kafeeyeh do passageiro em seu rosto. O vulto alto pulou para o chão e marchou em direção aos fundos do caminhão.

- As salaam aleeikom, doktari Yousef gritou tropegamente pelas costas do vulto. A doutora não respondeu.

A luz matinal começava a tingir com um brilho cálido o deserto e as rochas ao redor.

Quando Yousef chegou à parte de trás do caminhão, uma voz tosca gri­lou, com palavrões e árabe vulgar, mandando os funcionários tomarem cuidado. — Não, não, não. Pare, agora mesmo. Ponha no chão. Aquele primeiro. Allez, certo.

Um dos homens resmungou e ficou encarando.

—        Filho da puta, não ouse ficar me encarando, Rafiq — disse a doutora Kelly. — Assim... levante junto. Alá esteja convosco.

A doutora ficou com um pé escorado no pára-choque, fazendo verdadeiros discursos para os homens que descarregavam os caminhões, como se fossem jóqueis fracassados e enlouquecidos.

Coberta de areia, das botas revestidas de poeira à calça caqui e jaquetão da mesma cor, a doutora Kelly parecia pronta para liderar uma expedição às Minas do Rei Salomão.

Com a maioria da carga descarregada, a doutora Blair Morgan Kelly tirou o lenço e soltou os cabelos.

O soldado com a AK-47 respirou fundo, sugando o ar, quando a doutora Kelly abaixou as costas para soltar os cabelos longos, fartos e ruivos. Ela se apru­mou e ajeitou o lenço no pescoço.

Deu de ombros, acenando com a cabeça para o perplexo guarda.

—        O que há com o mon general aqui? — ela perguntou a Yousef. Para uma mulher, sua voz tinha um tom rouco e grave que era tão sedutor quanto alician­te, como se filtrada por uísque cor de âmbar e filetes de fumaça.

O homem resmungou consigo mesmo em árabe, tropeçou para trás e fez gestos largos e frenéticos para ela com a mão.

Yousef sorriu débilmente. — Ele disse que a senhora é a Prostituta da Babi­lônia. Ele está enxotando o mau olhado.

Revirando os olhos verde-mar, ela disse: — Ah, pah-leez.

O sorriso de Yousef se desfez rapidamente. Ele começou a suar frio e engolir em seco. Furtivamente, olhou para os lados, sentindo o perigo eminente. Estava tentando disfarçar o medo, mas dava para ver que a doutora Kelly estava entendendo tudo, como se estivesse escrito em sua testa.

Intrigada, ela perguntou: O que está havendo, Yousef?

O estalo agudo das pistolas automáticas foi sua resposta.

 

                   Fronteira Síria-Iraque

Às 4h00, dois helicópteros Chinook idênticos levantaram vôo da base de operações no deserto a oeste de Mosul, Iraque, partindo em direção à fronteira. Em tese, a missão era similar àquela executada pelas Forças Especiais no começo da operação Tempestade no Deserto.

Saddam Hussein estava mirando na Arábia Saudita e Israel com mísseis de longo alcance. Apesar de os mísseis serem relativamente ineficientes, eles estavam criando pânico e terror, e as agências de inteligência acreditavam que podiam estar equipados com gases como sarin ou travar uma guerra biológica com agentes como antraz. A despeito dos múltiplos bombardeios, os grandes lançadores móveis de mísseis não foram expostos. Os iraquianos esconderam os lançadores debaixo de pontes ou em celeiros, ou os trocaram por maquetes idiotas como alvos abertos.

Foi tomada a decisão de convocar o Controle Central Iraquiano, que ficava a apenas sessenta e cinco quilômetros ao sul de Bagdá.

Bem como antes, os Chinooks estavam repletos com dois grupos de ope­rações militares. O primeiro grupo destruía o alvo, o segundo estabelecia um perímetro de proteção.

Mas o major Brody Devlin sabia que sua missão era inteiramente diferente. Eles estavam tentando forçar uma rendição. Em linguagem clara, isto queria dizer que eles estavam fazendo um seqüestro/apreensão sem autorização de ci­dadão estrangeiro em solo estrangeiro. O país era a Síria e o homem era co­nhecido como Al-Dajjal, um implacável agente da KGB que se tornou uma força do governo sírio. Al-Dajjal foi classificado como um criminoso de guerra sanguinário pela articulação confidencial entre o presidente dos Estados Unidos e o primeiro-ministro britânico.

Rumores de um genocídio na Síria foram confirmados por fontes locais, com direito a fotos de corpos amontoados em covas coletivas como se fossem toras de lenha, os braços amarrados juntos, enquanto mulheres e crianças me­receram um fim muito mais humano uma bala na nuca.

O major Devlin viajava no helicóptero-líder. Já que as descobertas eram de todos, o mesmo valia para os esquadrões. O esquadrão tinha o nome-código Força Tarefa Negra. Os britânicos contribuíram com veteranos experientes que não estavam na ativa do SAS Serviço Aéreo Especial e das tropas terres­tres de contraterrorismo da Força Aérea Britânica, além de uma equipe do SBS Serviço Naval Especial —, equivalente ao Comando Especial da Marinha Americana. Devlin, que preferia ser chamado de Brody pelos amigos e colegas oficiais, comandava uma equipe de investigadores de um ramo novo do Depar­tamento de Defesa Americano.

No passado, as forças DELTA forneceram a mão-de-obra que era assaz ne­cessária tanto para as operações paramilitares públicas quanto para as secretas. Mas a combinação da publicidade excessiva com a usurpação de sua função no Departamento de Estado pela empresa de capital privado BLACKWATER gerou a necessidade de um novo grupo especial de reação: a FORÇA ÔMEGA. ÔMEGA era a designação perfeita para esta unidade. Sendo a última letra do alfabeto grego, simbolizava o último recurso.

O grupo era composto por ex-membros das forças especiais e uns poucos cérebros, como eram chamados pelos soldados de infantaria. Eram jovens acadê­micos de várias ciências que trabalhavam sob a cobertura da Divisão do Exér­cito de Sistemas de Combates Futuros, ou, se for o caso, de qualquer agência federal requisitada para a missão.

ETA para a fronteira, um minuto, major. Devlin ouviu as palavras do piloto pelo fone de ouvido.

Como antes, os helicópteros estavam voando baixo sob o radar. Apesar de Devlin saber que o espaço aéreo iraquiano era tão fácil de penetrar quanto uma mosca varejeira que entra por uma tela protetora rasgada, apesar de ele saber que os israelenses e os soviéticos haviam praticamente dizimado o sistema de defesa iraquiano, sentiu as vísceras revirando ao cruzar a fronteira.

Devlin concluiu que, se estava nervoso, sua equipe também estava. Es­quadrões Alpha e Beta, conferindo sistemas e armas ele berrou ao microfone. Como ambos confirmaram, ele se arrastou até o helicóptero, conversando amenidades com as tropas e supervisionando o equipamento.

O tenente Braxton, seu segundo em comando, correu para seu lado. - Que nem nos velhos tempos, hein, Brody?

Devlin sorriu e assentiu. — O que conseguimos com a inteligência?

Braxton apontou com a cabeça para seu nerd especialista em comunicações, Scout Thompson, cujos dedos voavam pelos teclados de um laptop field.

Scout lhe disse: — Estamos de olho no céu, um Global Hawk fazendo reconhecimento, cortesia de Langley, e eles dizem que o alvo está em movimento outra vez, mas se dirigindo ao setor norte como planejado — Scout deslizou os óculos de armação de arame para o lugar certo na ponta do nariz.

Scout era o especialista residente da unidade em tecnologia; vinte e tantos anos, um punhado de cabelos ruivos, boa aparência de garotão, bigode ralo sobre o lábio superior. — As imagens de satélite mostram que nosso alvo é fácil. Parece que o imbecil gosta de desfilar por aí em uma antiga Mercedes conversível preta enfeitada com bandeiras no pára-choque como alguma merda de...

—        Nazista? — Devlin interrompeu. — Ouvi falar que ele tem um chicote de cavaleiro e ostenta um lenço de pescoço branco de seda. Ele que é Rommel, a Raposa do Deserto.

Ouvindo a conversa por acaso, o sargento Conner, que era o escocês-de-cara-vermelha da unidade, interveio. — Pois então... vamos dar um chute naquela droga daquela bunda que ele vai parar em Berlim, que nem o velho general Monty fez com Rommel.

Devlin abriu um sorriso e então fuzilou o sargento com um olhar severo.

—        Sim, senhor. Estou cuidando das minhas coisas, senhor — Conners respondeu, tratando de se concentrar em desmontar sua arma. Conners veio de uma unidade especial da Força Aérea Britânica chamada "os Macacos da Pesa­da". E isto era exatamente o que Conners parecia para o major Brody Devlin, um grande macaco peludo. Lembrava um gorila, com sua abundância de pêlos grossos e negros cobrindo-lhe os antebraços e o peito e sua postura simiesca.

Através de seu relatório, Devlin disse que o fascínio de Al-Dajjal com o Terceiro Reich tinha base histórica. Diziam que seu nome verdadeiro era Eric von Raeder. Seu pai era Gregor von Raeder, zoólogo e antropólogo alemão que servia como chefe do infame Deutsches Ahnenerbe (Ahan-ner-ba) ou Sociedade da Herança Ancestral Germânica de Heinrich Himmler. Era um eufemismo engenhoso. Seus projetos na verdade incluíam de tudo, desde bárbaros experi­mentos médicos com humanos à investigação do ocultismo, passando por expe­dições a cantos remotos do mundo em busca de evidências arqueológicas que confirmassem as teorias de Himmler sobre as origens da Superior Raça Ariana.

Sua mãe, Samira, iraniana, era arqueóloga respeitada por mérito próprio. Depois da guerra, Gregor e Samira tomaram um vôo para a Rússia onde lhe pro­meteram diminuir a interferência em sua pesquisa. Eric von Raeder era dono de uma mente perspicaz e fora educado nas melhores universidades que a Rússia e o Reino Unido tinham a oferecer, e era patrocinado pela KGB.

Viajou intensamente pelo mundo com a mãe, visitando muitas escavações arqueológicas em sua expedição. Em uma dessas escavações, sua mãe foi morta durante um ataque de retaliação dos israelenses na Palestina. Desde então, Eric nutre um ódio profundo pelos judeus e, obviamente, por seu mais fiel aliado, os Estados Unidos. Após a morte da mãe, converteu-se ao islamismo e adotou o nome Azrael Al-Dajjal. No começo era um agente secreto da KGB, especiali­zado em Oriente Médio, devido à sua fluência em farsi e árabe. Mas a sedução do dinheiro fez dele um consultor free-lance. Consultor o cacete, Devlin pensou. Verdugo de sangue frio combinava mais.

Devlin estava com mau pressentimento em relação a esta missão, e espe­cialmente em relação a seu alvo. O homem era inteligente, mas mesmo assim era um açougueiro brutal e calculista. Até sua escolha de um nome muçulmano fazia gelar o sangue de Devlin. Al-Dajjal era o nome islâmico do demônio, mais especificamente — o anticristo — sua cria.

A voz do piloto chiou no fone de Devlin.

— Major, preciso de você na dianteira o mais rápido possível.

Na cabine de pilotagem do helicóptero, Devlin examinou a tela do radar enquanto o piloto apontava. — Está vendo aquele sistema se mexendo bem na nossa direção?

Devlin fez que sim com a cabeça. — Tempestade na frente de batalha?

O piloto balançou a cabeça. — Tempestade de areia, das grandes. Surgiu do nada. É realmente estranho, mas esta merda acontece por aqui.

Devlin fechou a cara. — Maldição! O satélite de reconhecimento não de­via ter previsto isto?

O piloto deu de ombros. Era um cowboy deslocado chamado Tex. Devia, major, sabe como é. Só sei que a tempestade é uma filha da puta das grandes e que faz uns... cento e vinte nós.

- Então não podemos ultrapassá-la?

- Cês tão pensando que estão num caça-bombardeiro Raptor ou o que? Bem, nós não vamos... esse gordão desse helicóptero é mais devagar que meu ave com diarréia. Vou consertar o...

O helicóptero começou a se inclinar e dar guinadas violentas, brigando com o vento forte. Tex gritou para o co-piloto: — Arrume um lugar pra descer e JÁ!

—        Onde estamos? — Devlin conseguiu perguntar.

—        Até onde sei, estamos atolados bem no meio da porra de lugar nenhum, ou então no sétimo círculo do inferno. Melhor mandar os garotos apertarem os cintos, que vamos descer com tudo.

Uma ofuscante rajada de luz explodiu a cabine de pilotagem.

A mão de Devlin lhe voou até os olhos.

Quando suas pupilas temporariamente cegas finalmente conseguiram se contrair o bastante para enxergar novamente, ele ficou olhando, atônito.

Tentáculos de relâmpagos branco-azulados formavam uma árvore de fogo que serpenteava pela noite em direção ao chão. O céu explodiu outra vez, cuspindo arcos de descargas elétricas exatamente em direção ao mesmo alvo abaixo.

Um jato de luz azul-claro subitamente pulsou do chão, aparentemente onde os raios caíram. Então o jato se voltou para o céu, crescendo em diâmetro e intensidade.

—        Uau, cara... —Tex gaguejou, os olhos parecendo ver menos quanto mais ele olhava. — Nunca vi nada assim. Veja só aquele babaca.

—        Vamos ver mais de perto — o co-piloto disse com voz inexpressiva.

Uma sensação atemorizante e quase sedutora cresceu dentro do peito de Devlin. Ao dar uma olhada para os pilotos, viu que também estavam sendo afetados. Os raios pulsantes palpitavam como um coração. Eram impressionantes, levavam a mente de reboque como um raio-trator fantasmagórico.

A cor era luminosa, hipnótica.

Trovões como percussões detonavam pancadas ao redor deles, e Devlin viu que eles pareciam chacoalhar os pilotos, acordando-os de seu transe. Devlin procurou clarear as idéias.

Em um borrão de som e movimento, o helicóptero gêmeo passou por eles como uma nuvem, indo diretamente para o feixe azul pulsante.

Tex berrou no microfone. — ZEBRA DOIS CHARLIE, do LÍDER DE GRUPOS, recuar.

Nenhuma resposta. Apenas o zumbido agudo da estática.

— ZEBRA DOIS CHARLIE, responda... recue, não ataque. Repetindo... não ataque!

Devlin e os pilotos ficaram olhando, impotentes, enquanto o outro helicóp­tero desaparecia dentro do cone de luz pulsante.

 

A doutora Blair Morgan Kelly esperou longa e duramente por aquele privilégio. Tell Brak Nagar era a realização de um sonho para uma arqueóloga de trinta e poucos anos como ela. Originalmente descoberto na década de 50, o sítio datava de 6.000 a.C., a última era neolítica, mas culturas sucessivas também foram descobertas: camada sobre camada do segundo, terceiro e quarto milênios. Era um dos maiores sítios considerados pré-acadianos da Antiga Mesopotâmia. Tabletes cuneiformes, que para os leigos deviam lembrar arranhões de galinhas, contavam a história de Tell Brak como cidade dominante.

O Tell, ou monte, tinha forma trapezóide e mais de um quilômetro de com­primento. O sítio antecede a cultura assíria, a dinastia babilônica e até mesmo o império de Hammurabi, o dador da lei. Era a época de Sumer e Ur e depois a época da Caldéia, tempo dos sábios magos, da magia, mas também tempo de grandes avanços tecnológicos na ciência, na matemática e na arte.

Mas os tabletes cuneiformes também contavam uma grande catástrofe. O evento de Brak.

O que Blair Kelly queria descobrir era este evento e o palácio de Narim-Sin, neto do rei sumério Sargon, o Grande.

Ao pôr os pés no acampamento, ela teve uma sensação de incômodo. Des­considerou, atribuindo a um caso de nervos.

Mas agora que ela e Yousef estavam sendo levados por um grupo de crimi­nosos de dentes amarelos que os forçava a caminhar sob a mira de armas, ela se arrependia por não ter aprendido a seguir seus instintos.

Aquilo era sua menina-dos-olhos e ela não iria dividir com uns cretinos oportunistas, armados até os dentes ou não.


O terreno rochoso era irregular; ela tropeçou mais de uma vez, sendo le­vantada aos puxões por mãos rudes. Um dos capangas em particular não parava de olhar atravessado para ela, estuprando-a com os olhos. Se a coisa ficar feia para valer, ela pensou, eu mato esse canalha primeiro.

Yousef veio em sua defesa, colocando-se entre ela e o capanga de olhar lascivo. — Mantenha suas patas imundas longe dela, ya kalb! — ele gritou em árabe.

Ao abrir um amplo sorriso, o guarda revelou um dente frontal de ouro que cintilava à luz do Sol. Deu uma risada que soou como um cacarejo, olhando para Blair da cabeça aos pés. — Vou fazer o que quiser com esta koos.

Então ele se virou para Yousef, os lábios descascados como um chacal raivo­so. — Vai me chamar de cão imundo... vai? — Ele levou o bico de sua submetralhadora ao plexo solar de Yousef e derrubou o defensor dela com uma coronhada no maxilar. Blair ouviu o osso quebrando e Yousef cair desfalecido.

Por reflexo, ela deu um chute com a ponta da bota que lhe atingiu a rótula com força.

O capanga gritou de dor. — Ya sharmuta! — Outro guarda veio por trás e prendeu os braços dela. A fera ferida caminhou mancando até ela. Cuspiu-lhe no rosto e lhe esbofeteou com as costas das mãos, abrindo-lhe o lábio.

Blair fez uma careta de dor, mas o encarou diretamente nos olhos. — Beije sua mãe com essa boca, ibn haram! Se me chamar de puta imunda outra vez eu vou dar esse seu saco encarquilhado de comer para os chacais, seu asqueroso desgraçado.

Ele chegou mais perto, seu hálito era repugnante. Os olhos pequenos e brilhantes dançavam, o corpo emanava um fedor de bicho morto.

Eu vou lhe mostrar quem é o filho da puta. Mais tarde você me paga por esta. Quando estivermos a sós em minha tenda — o capanga olhou com desprezo e lambeu o contorno dos lábios enquanto passava o dedo sujo na parte de cima de sua blusa, detendo-se em um botão, depois subindo ao pescoço para finalmente lhe dar um tapinha nos lábios machucados.

Waj a zibik! — ela gritou, fitando-o com repulsa.

Ele bateu nela mais uma vez, ao que parecia objetando fortemente a alusão de Blair de que ele ia acabar pegando uma boa dose de gonorréia.

O gosto salgado do sangue encheu-lhe a boca quando eles a afastaram do corpo franzino de Yousef.

Quando alcançaram o topo de um penhasco, ela parou de repente. Dava para ver poucos metros à frente uma longa escavação com um buldôzer estacionado na ponta. Um grupo de homens que usavam túnicas pretas e calças onduladas treinava suas AK-47's em um pequeno grupo de mulheres e crianças em fila no alto da escavação. Blair respirou fundo e lutou contra a bílis quente que lhe subia pela garganta.

Um homem alto estava no meio dos matadores. Tinha porte militar com sua postura grandiosa, suas botas pretas alemãs de cano alto, sua calça e jaqueta de couro, pretas e feitas sob medida. Um lenço de seda branco ajeitado frouxamente em seu pescoço refulgia ao vento.

Como se sentisse sua presença, o homem se virou.

Ele inclinou a cabeça e deu um sorriso torto. Com os braços abertos como se surpreso, ele os abaixou, batendo na coxa com um chicote enquanto caminhava rapidamente em direção a ela.

—        Doutora Kelly, eu suponho — ele disse, curvando-se elegantemente. - Acredito que vá... perdoe esta minha pequena intrusão em sua escavação, mas lhe garanto que somos colegas com o mesmo objetivo.

O capanga sexomaníaco a empurrou para a frente, fazendo-a cair de joe­lhos. Quando se levantou, ela cuspiu sangue nos pés do gorila.

O sorriso do líder ficou fino como navalha, seus olhos eriçados de raiva. Movendo-se com a velocidade anormal de uma pantera, em segundos estava bem perto do homem tosco.

Ficou olho no olho com o brutamontes animalesco. Lenta e metodicamente, tirou uma luva, depois a outra.

—        Du archgesicht! — Em um gesto anuviado, usou da força, estalando a luva de couro no rosto do capanga. O marginal fez cara feia e levou a mão ao rosto, onde brotou um vermelho vivo.

O líder se virou e observou o rosto machucado de Blair. Então, como um falcão, girou a cabeça e ficou cara a cara com o capanga.

—        Você é um porco — ele levantou a voz em árabe, chovendo saliva da boca. Mas acabou voltando ao alemão em ato falho. — Esta senhora é nossa convidada. Você me desonra com esse comportamento brutal.

Virou-se, concentrando o olhar em Blair, as lentes espelhadas de seus óculos escuros chamejando como o fogo do inferno à luz estridente do Sol do deserto. Tirou os óculos escuros, revelando penetrantes olhos azul-cobalto, e começou a limpá-los habilmente com um lenço de seda.

Passando para o inglês, disse: — Eu tinha certeza que não seria ferida, doktor Kelly. Minhas sinceras desculpas pela selvageria demonstrada por esse grosseirão.

Ela assentiu, agradecendo, e tocou levemente o sangue que deslizava do canto da boca.

Sem esperar pela resposta dela, ele deu meia-volta. Aconteceu tão rápido que Blair nem viu o homem pegar a arma. O estrondo quebrou a quietude e um buraco bem aberto apareceu na testa do bandido. A cabeça do imbecil caiu para trás levemente como se ele tivesse levado outro tapa, e ele caiu de joelhos como se fosse um troço.

A luz do Sol atingiu a Walther PPK folheada a ouro quando o líder guardou a arma.

Como se nada tivesse acontecido, ele penteou com os dedos os cabelos louro-brancos e deu um sorriso indiferente. Caminhou tranqüilamente, tomou-lhe o braço gentilmente e a guiou em direção às mulheres e crianças. — Tem alguém que eu gostaria que a senhora encontrasse, doktor.

Blair o observou. O monstro era um típico representante da raça ariana. A mandíbula inferior com aquela fenda no queixo, aqueles olhos azuis gelados, aquela testa inteligente. Herman Goering, Reichmarschall da Força Aérea de Hitler, pervertido enrustido e dado a vestir roupas femininas, teria babado só de ver aquele gostosão ariano de bunda dura.

Então ela viu.

Ao parar perto dele, notou a cicatriz irregular que avançava pela bochecha, atravessava o lábio, o que explicava o sorriso permanentemente torto que pa­recia emplastrado em seu rosto. Era como se algum deus invejoso, no processo de moldá-lo no barro, tivesse lhe arranhado o rosto com o dedo, marcando a ele e a seus semelhantes para a eternidade com a marca de Caim. Ela tentou não olhar fixo. Ele parecia sentir e cobriu a boca com a mão ao caminhar, fingindo pensar profundamente.

Ao lidar com um sociopata é melhor aliciá-lo do que confrontá-lo, ela lera em algum lugar. Respirou fundo o lambeu o lábio machucado. — Acho que não fomos devidamente apresentados.

Ele enrijeceu. — Mas é absolutamente imperdoável de minha parte. Sou conhecido como Azrael Al-Dajjal, nome que adotei como muçulmano, é claro. Um nome principesco, aliás... Não concorda?

Procurando desesperadamente não levantar as sobrancelhas, ela sorriu.

Ele falava inglês castiço e jogava charme com a bem treinada sutileza e os modos espontaneamente fortuitos de um perfeito cavalheiro inglês. Mas aquele nazista de segunda era tudo, menos isso.

- A senhora sabe, doktor, que temos a mesma paixão.

—        É mesmo? E qual seria? Botas de cano alto?

Ele soltou uma gargalhada cheia de entusiasmo. — Vejo que a senhora, além de ser uma mulher linda e inteligente, também tem apurado senso de humor.

Eu tento.

Não... Estava me referindo ao meu amor pela arqueologia. Talvez você tenha ouvido falar de minha mãe, Samira al-Bani?

Ela fingiu pensar no nome por um momento.

—        Ah, a doutora von Raeder, você quer dizer?

Ele fez que sim e ela podia jurar que ele corou levemente. — Este seria seu nome de casada, é claro. Sou filho de herr von Raeder, o famoso zoólogo.

—        Incrível. Estudei o trabalho dela sobre as escavações babilônicas quando era estudante de pós-graduação. O que era mesmo que ela estava procurando? A Fonte da Juventude?

Ele apertou os olhos. — Ah, aquele rumor tolo. Ela teve um interesse pas­sageiro por todos os mitos de reinos perdidos... Thule, Shaballa, Lemúria. Mas ela acreditava que todos tinham alguma base histórica concreta.

—        Você não compartilha de sua paixão por civilizações perdidas, pelo que percebo?

Chegaram agora às crianças, que estavam encolhidas de medo, olhando para baixo mais por medo do que por respeito.

Ele a observou cuidadosamente. — De certa forma, Tróia já foi considerada mera lenda até que um amador achou as ruínas da cidade debaixo das areias do deserto. Digamos apenas que sou um saprófago sofrível, certo? - ele se voltou para as crianças e a conduziu ao seu lado ao passar pela fileira de pequenos rostos. Suas idades variavam. Ela calculou que as idades variavam entre seis e quatorze anos. Ao passar por cada criança, ele lhe segurava o queixo, levantando o rosto para encará-lo. Olhava atentamente, metia a mão no bolso e dava um doce, passando então para a próxima.

Algo em seus modos a enojava. Era como se ele estivesse examinando gali­nhas na feira, levantando uma asa aqui, apalpando o peito ali.

—        Quase achei, sabe — ele disse casualmente. — O Templo do Olho do Pecado.

Ele falou com tal suavidade que por um momento ela pensou não ter ou­vido direito.

Seguiu em frente, passando à próxima criança, até chegar à última.

—        Desenterramos um grande monólito — ele continuou. — E no meio, como nas pirâmides do Egito, há um buraco. Como a senhora sabe, o faraó olharia pelo buraco, que se voltava para Sírius, a Estrela do Cão.

Não... ela o havia entendido direitinho.

Ele prosseguiu. — E rastreando o vetor do buraco de volta a... — sua voz foi diminuindo.

Ele parou em frente à última criança, uma menina. Quando ele lhe levan­tou o queixo, ao contrário das outras crianças, ela o encarou com um olhar consciente, um olhar de segurança que só uma mulher madura, e não uma ga­rotinha, teria. Mas a menina não podia ter mais de oito ou nove anos. Todo seu ser parecia irradiar uma luz suave, mas intensa. Seu rosto era do tipo de beleza clássica que adornava pinturas de templos.

Mas foram os olhos da criança que assombraram Blair. Profundas e lumi­nosas piscinas de índigo capazes de dominar a pessoa com sua intensidade, e pareceram-lhe enxergar a alma. E apesar de seu tom de pele ser ligeiramente mais escuro, a garota tinha cabelos louros.

Uma nuvem passou pelo Sol, momentaneamente projetando sua longa sombra pela terra estéril que os cercava.

Al-Dajjal parou e virou a cabeça para o céu. Por um breve segundo, pareceu como se sua mente estivesse a quilômetros e quilômetros de distância, contem­plando cena estranha e distante, outro lugar, outra época.

A sombra passou.

- Notável, não é? - Al-Dajjal disse, a voz alinhavada por entusiasmo. Ele se virou para a garota. Não tema, criança, ninguém quer lhe fazer mal - ele disse suavemente em árabe. Então voltou a falar em alemão sem perceber, balançando a cabeça com satisfação e lentamente segurando-lhe a mão.

- Der Sonnenkinder. Der Vril-ya. O futuro do mundo jaz em sua mãozinha.

- O que disse? Blair perguntou, fingindo que não falava alemão.

- Ah, perdoe-me, doktor ele soltou a garota e voltou-se para Blair. - De vez em quando começo a falar minha língua materna sem perceber. Um hábito excêntrico, eu imagino. Eu estava meramente pensando alto que belo espécime ela é, tão única.

A palavra espécime fez Blair sentir a pele arrepiar e uma espécie de dominó de gelo lhe descer a espinha. Tinha que manter a sutileza. Lembre-se, garota, ela repreendeu a si mesma, este sujeito é do tipo do doutor Josef Mengele, a encarnação do anjo da morte.

Outro homem com roupas de escavador esfarrapadas e cobertas de pó se arrastou em direção a eles. Um capanga o bloqueou com a coronha de seu rifle. Al-Dajjal virou-se e assentiu.

—        Tem notícias? perguntou em árabe.

O homem lambeu os lábios secos e rachados. Suas mãos eram paralisadas e um olho estava turvo de catarata. A entrada do templo. Nós seguimos o caminho do laser que o senhor instalou e... Alá seja louvado... lá está!

—        Bem, então não fique aí parado: mão na massa disse Al-Dajjal, pegando a mão da menininha e seguindo.

Dando uma, olhada por sobre o ombro, ele chamou: Vamos, doktor, a senhora não vai querer perder o espetáculo.

Haviam descido a série de escadas e estavam agora no nível mais baixo da escavação. Blair olhou ao redor, sondando o trabalho. Foi até o monólito e deu uma espiada pelo buraco, deixando a vista seguir o caminho do raio laser que apontava logo abaixo do buraco, apontando para o ponto onde o observador teria de ficar para ver a constelação de... Droga, é claro. Ela foi para o ponto. Olhando para cima, ela percebeu que o buraco focalizava a coxa de Orion.

As estrelas polares fascinavam os antigos porque, ao contrário de outras estrelas que morriam ou afundavam todos os dias, a Grande Ursa e o cinturão de Orion pareciam estáveis, girando em um eixo central.

—        A semelhança com a devoção ao céu egípcio é estranha, não acha, doktor?

Blair soltou um longo assovio e afastou os cabelos do rosto. — Importa-se se eu der uma olhada na entrada?

Ele se curvou — primeiro as damas.

A subida para a entrada ainda consistia em lama atulhada de qualquer jeito, e ela desceu o mais cuidadosamente que pôde. Pegou um pincel e uma lanterna de sua jaqueta safari e começou a tirar o pó do topo da entrada, que ainda estava sendo limpa pelos escavadores.

Ela sentiu o hálito quente e amargo dele em seu pescoço. Causava-lhe náu­seas, como daquela vez no Brasil, quando uma enorme jibóia se enrolou em seu pescoço. Ela olhou por sobre o ombro. — Tem uma inscrição aqui, e é proto-semítica.

Ele se aproximou — deixe-me segurar a luz.

Ela continuou a passar o pincel cuidadosamente até que a inscrição ficasse clara. — Segure a luz em um ângulo para fazer mais sombra para as letras, por favor.

Ele fez isto, e os símbolos pularam da superfície.

De trás veio a voz dele, áspera e grossa. — O Templo do Olho do Pecado. Mein Gott, encontramos!

—        Espere, tem mais — ela disse, tirando o pó da próxima coluna de símbo­los. Eram diferentes, uma variação com a qual ela não era familiarizada. Então lhe ocorreu. Parecia uma forma bastarda de escrita cuneiforme suméria. Ela leu em voz alta. — Muu...II...a Sa...ZU...ZU... Guardião dos doze portais, zelador da ESTRELA DE FOGO.

Um murmúrio alto vindo de trás dela transformou-se em um coro estri­dente de choramingo e de uivos, que então se transformaram em gritos. Ela se virou e viu os escavadores saindo às pressas do fosso gritando "Mulla Sa ZU ZU!" enquanto se batiam e arranhavam para subir os degraus como um bando enlouquecido de macacos das árvores.

O som então distante de tiros de metralhadora cobriu os gritos dos escavadores. O canalha havia mandado os capangas executar o resto das crianças e suas mães. Ela jurou que o veria apodrecer no inferno por isto.

Então subitamente pareceu que seu desejo se concretizaria.

Primeiro ela sentiu um leve tremor, depois o chão sob seus pés começou a se mexer; ela mudou de posição. Esticou o braço e agarrou a mão da garotinha, puxando-a para seu lado. A superfície de pedra acima rachou e irrompeu uma fissura enorme. A fissura cobriu toda a lateral do penhasco, e a talha abriu caminho em sua direção.

Choveu pó sobre ela, coagulando o ar.

O chão começou a se abrir e uma greta enorme começou a se formar. Al-Dajjal soltou um palavrão ao ser derrubado.

Sem pensar, ela meramente reagiu e pulou para a esquerda, ainda agarrando a garota com os braços. Esforçou-se para chegar ao solo mais alto.

As mandíbulas abertas da fenda vinham de baixo com seu olhar perverso.

Um lençol de pedras desmoronou à direita da entrada do templo. Quando a nuvem de poeira levantou, uma estátua emergiu da névoa como se fosse um demônio levantando da cova. Sua cabeça era como a de um lagarto inchado, com olhos grandes e sem pálpebras que encaravam ameaçadoramente. O nariz era grande e achatado, com maçãs do rosto altas, testa protuberante e uma boca pavorosa, cheia de presas afiadas como lâminas. Da mandíbula escancarada debatia-se um pequeno corpo semi-consumido, lutando para escapar.

Símbolos entalhados em pedra mais embaixo pareciam resplandecer à luz do Sol. Ela traduziu mentalmente.

O ENGOLIDOR DE CADÁVERES.

Seus olhos se voltaram novamente para a fissura que crescia abaixo. Al-Dajjal xingava e já tinha puxado uma adaga comprida. Empurrou a pedra com a adaga repetidas vezes, tentando se safar.

A superfície do penhasco cedeu outra vez e mais uma parede de pedras des­moronou, revelando uma coluna imponente. Algo cintilou ao Sol como vidro. Ela não se mexeu. Ficou muda, olhando para um grande crânio de cristal ou provavelmente quartzo. Mas não tinha forma humana. A cabeça era bulbosa, com olhos dilatados, feita de círculos concêntricos.

A rocha se retorceu debaixo dela, que perdeu o chão. Começou a escorre­gar rapidamente para dentro da boca da fenda que rachava o mundo ao meio. Estava vagamente consciente da mãozinha da menina. O aperto de mão da garota ficou mais forte e então veio uma nova sensação; uma leveza de ser, e foi inundada por uma leveza de calmaria.

Baixou os olhos e viu seus pés suspensos no ar.

Levantou os olhos e viu o céu, percebendo que estava subindo em direção a ele, voando mais e mais alto, até que as mandíbulas ferozes estivessem longe, lá em baixo.

Ela viu a menina ao seu lado, fulgurando com uma aura branco-azulada quase transparente. Não dava medo; não era fantasmagórico, e sim reconfor­tante e agradável.

Juntas flutuaram pela beira do penhasco e lentamente começaram a descer. A sensação que agora a preenchia era como algum tipo de onda estranha, um enlevo prazeroso que ela desejava que jamais terminasse. Mas o chão estava chegando debaixo delas. Aterrissaram.

Ela se virou para a garota. Não soube por que, mas perguntou "qual seu nome" em árabe. A menininha respondeu em inglês. — Eles me chamam de... Noor E Alam — suas bochechas fizeram covinhas quando uma risadinha lhe escapou dos lábios.

— Muito bem, senhorita Luz do Mundo. Que acha de darmos o fora daqui enquanto estamos no lucro?

Noor assentiu e segurou com força sua mão.

Blair deu um passo e parou. — Não acha que talvez devêssemos voar?

Noor E Alam sorriu timidamente e balançou a cabeça.

Blair deu um longo suspiro. — Achei que não. Vamos, minha lindinha laeken, estamos bem longe de casa.

Debaixo, uma mão agarrou o punho de uma faca e Al-Dajjal, o verdadeiro demônio do poço, conseguiu emergir, lançando mão de todas as reservas de forças de seu ser, e rastejou para um lugar seguro.

O terremoto se acalmara. Ele ficou de pé e foi até o pedestal. Estendeu o braço e levantou o crânio de cristal, soltando-o de suas amarras.

 

Estavam no chão fazia cerca de trinta minutos. A tempestade de areia uivara por sobre os esquadrões, imobilizando-os temporariamente. Foi a meia hora mais longa que Devlin jamais passou, trancado no helicóptero apertado com um grupo de homens agitados, imaginando o que teria acontecido à outra equipe, seus camaradas.

O tempo clareou.

Não conseguiu ressuscitar o rádio ainda? — Devlin perguntou a Scout.

Com cara de preocupado e deprimido, Scout balançou a cabeça.

Negativo. Tudo que estamos conseguindo é o radiofarol deles, anunciando perigo em alto e bom som. O pessoal do Comando e Controle também não teve sorte, mas estão avisados da situação.

Tex havia subido pela parte de trás. — Bem... Major, vamos dar uma olhada e ver o que conseguimos.

Parado do lado de fora do helicóptero com Scout ao seu lado, Devlin inspecionou o vazio disjunto que os cercava. Claro que não estavam tão longe, mas também podiam estar plantados na superfície da Lua.

Tex apareceu ao seu lado. — Essa areia desgraçada e maldita sujou as tur­binas.

O sargento Conner estava de pé ao lado do piloto.

—        Situação regiamente enrolada, senhor. Não iremos a parte alguma por pelo menos uma hora.

Devlin mordeu o lábio inferior e deu uma olhada na cadeia de montanhas.

—        Scout, você sinaliza bem a oeste sobre aquele monte?


- Difícil dizer com precisão, porque estão perto demais para dar uma posi­ção exata do transmissor. Mas esta é minha opinião. Vamos atrás deles, chefe? Uma voz profunda ribombou detrás deles.

- Vamos direto para esta droga. Nunca os deixe para trás, meu filho.

— Era Clint "Chewie" Raindancer. Ele era um sujeito grande e imponente, um índio americano com olhos pretos como carvão, dotados de claridade cintilante e de franqueza. Tinha cabelos negros compridos fora do regulamento, presos em um rabo-de-cavalo. Suas pronunciadas maçãs do rosto e nariz de falcão lhe davam aparência nobre.

Tinha o apelido de Chewie porque, apesar de conseguir beber sem se embebedar, só ficava calado e de olhos vermelhos e podia subitamente soltar uma espécie de ronco alto que lembrava Chewbacca, o wookiee peludo de Guerra nas Estrelas. Certa vez bastou aquele grito de guerra bestial para fazer um bando de motoqueiros bêbados darem no pé em vez de puxar briga no bar com o pessoal.

Brody e os caras estavam no bar. Chewie estava encostado ao balcão, ves­tindo uma camisa de brim sem mangas e desgastada nos ombros. De pé com os braços cruzados sobre o peito, seus bíceps aplanavam, parecendo flancos de cavalos.

Um grupo de motoqueiros estava brincando de modo meio esdrúxulo com uma garçonete de pernas lindas, assoviando para ela e gritando obscenidades, brincando de lhe beliscar o traseiro enquanto ela se enroscava em meio às mesas.

Então as coisas ficaram pesadas. Um motoqueiro barbado a agarrou e a levantou, jogando-a sobre o ombro e depois sobre a mesa de sinuca. Um deles a imobilizou enquanto outro montava sobre ela.

A voz profunda de Chewie chamou o líder da gangue, que olhou com um sorriso escorregadio. — Solte a moça.

Uma calmaria gelada se abateu sobre o recinto quando os dois motoquei­ros que atacavam levantaram os olhos. O líder da gangue caminhou lenta e deliberadamente em direção ao bar, sem jamais tirar os olhos de Chewie. Uma corrente de motocicleta balançava em sua mão e oscilava contra a perna da cal­ça jeans imunda. A pança de cerveja escapava por debaixo da camiseta, quase abrindo caminho.

Sem avisar, o motoqueiro pançudo com hálito de onça e suástica tatuada na testa balançou a corrente da Harley Davidson em direção a Chewie. Bloqueando a corrente dentada com o antebraço, Chewie a enrolou no braço o deu um puxão.

O motoqueiro não teve a esperteza de soltar. Como um lutador daqueles de arrasar, Chewie recuou e pisou firme. Segurando firme a corrente com ambas as mãos e inclinando-se para trás, ele fez o motoqueiro girar. Quando trouxe o motoqueiro tonto mais para perto, Chewie soltou seu grito de guerra ensurdecedor e deu uma cabeçada das boas no gordo imbecil.

A combinação da imagem do líder da gangue caindo como uma massa amorfa e se borrando todo, mais Chewie arrebentando a corrente da moto ao meio com os dentes, foi suficiente para convencer a gangue a cair fora.

Brody Devlin ficou parado olhando para o grandalhão, coçou o queixo o sorriu.

Chewie bateu no peito com a mão que mais parecia uma pata de urso.

—        Pronto para ir embora, senhor.

Devlin balançou a cabeça e se virou. OK, sargento Conners, você e Tex façam este pássaro sair voando à toda.

—        Certo, senhor Conners disse com seu pesado sotaque escocês. Se os filhotes de Ali Babá mostrarem suas caras feias, nós voltamos.

Para Scout, Devlin disse: Sintonize o satélite, ponha para funcionar e me mantenha informado.

Puxando Braxton para o lado, Devlin sussurrou: Brax, estamos em uma merda de uma tempestade. Estes pilotos eram experientes e perder a paciência deste jeito não faz sentido. Dá má sorte. Posso sentir em meus velhos ossos. Ins­tale firme um perímetro e fique de olho bem aberto está certo?

Pode deixar, capitão ele observou o chão por um momento e então levantou os olhos. Acha que os caras caíram nessa?

Só tem um jeito de descobrir. Chewie e eu vamos fazer o reconheci­mento do território, ver se conseguimos encontrá-los. Mas continue tentando encontrá-los pelo rádio.

O Chinook era um touro para levantar materiais e veículos, mas o interior era apertado demais para acomodar um Land Rover quando cheio de soldados e equipamentos.

O terreno vinha subindo levemente enquanto Devlin e Chewie caminha­vam. Chegando ao topo, podiam descobrir uma trilha que levasse para o vale. Um pequeno Wadi, ou rio, serpeava ao longo, conduzindo a um vilarejo aninha­do na base de mais colinas estéreis.

Apesar de ser perigosa uma missão de resgate com dois homens, eles não eram soldados comuns. Como a força ÔMEGA era reforçada pela Divisão do Exército de Sistemas de Combates Futuros, receberam o que havia de mais mo­derno em hardware e armas. Parte do material parecia saído diretamente de um livro de ficção científica e ainda era material sigiloso.

Eles tinham acesso às tecnologias mais recentes de invisibilidade e comu­nicação. Seus capacetes foram feitos com tecnologia pioneira de indução óssea desenvolvida em pesquisas para capacitar surdos a ouvir. A voz humana vibrava através do crânio do homem escolhido e convertido em cobertura do teto do capacete através do transmissor. Não era preciso microfone. Da mesma forma, a transmissão recebida também era conduzida via crânio, de modo que fones de ouvido eram opcionais. A voz parecia vir de dentro da cabeça do soldado. Era um sistema de comunicação estritamente viva-voz. Um visor dava uma amostra em tempo real tanto em infravermelho como em imagiologia térmica.

Até sua capacidade de fogo era modernizada.

Os britânicos carregavam sua costumeira arma portátil Sig P226, lança-granadas de 40 mm e lança-mísseis antitanque Milan, mas lhes foram distribuídas, assim como à equipe dele, as novas metralhadoras automáticas KRISS SUPER V calibre 45. Batizadas assim por causa de uma espada indonésia de lâmina flamejante, elas eram especialmente projetadas para reduzir o fator pinote, so­lavanco e levantamento do cano da arma, mas tinham poder de fogo de 45 a 1100 projéteis por minuto, capazes de derrubar qualquer um se comparadas a uma 9 mm.

Estavam nas cercanias do vilarejo. O ar fedia a ozônio e algo que não sou­beram identificar.

Chewie bufou e fez careta. Apontou para cima. A sombra de um cadáver estava impressa na estrada, mas não havia cadáver. Devlin tentou conter o cala­frio de horror que fez seus braços se arrepiarem quando passaram pelos arredores desertos do vilarejo.

Demarcando ambos os lados da rodovia, viram as carcaças ensangüentadas de bodes, galinhas e gado.

Foram cobertos por um pesado silêncio.

Nada se mexia.

- Armas biológicas? Quem sabe antraz? — Devlin murmurou, pensando alto.

Chewie balançou a cabeça. — Guerras químicas e biológicas não fazem isso, Brody — então ele apontou com a cabeça para a beira da estrada.

Instantaneamente, Devlin entendeu o que ele estava querendo dizer. Até a vegetação esparsa estava encolhida e murcha, jazendo frouxa e sem vida. Devlin sabia que antraz não tostava a vegetação daquele jeito.

Chewie ajoelhou com uma só perna e estendeu o braço para pegar uma planta; ela esfarelou em seus dedos, largando um resíduo parecido com de carvão. Levantou e esfregou a mão na perna da calça. Olhando diretamente, com tom grave, ele disse: — A morte caminha por aqui.

A paisagem pedregosa pela frente cintilava como se estivesse repleta de cacos de vidro.

Apertaram o passo, com os olhos virando da esquerda para a direita, as armas engatilhadas.

Quando chegaram mais perto, Brody viu que os diamantes cintilantes eram na verdade as cascas brilhantes de gafanhotos mortos. O que quer que fosse esta praga, chegou até a destruir o enxame de insetos em pleno vôo.

Chewie aprumou-se repentinamente e apontou com o cano de sua metra­lhadora. Um corpo, o primeiro que viram, jazia com o rosto virado para o chão, e era como se algo o tivesse derrubado e matado.

Parado ao lado do cadáver, Chewie virou o homem com o pé. O rosto que olhava para o nada era pavoroso; parecia que os olhos tinham sido cauterizados, como se goivados com um cinzel. As roupas não passavam de trapos queimados. Carne carbonizada e uma língua escurecida que pendia de lábios empolados davam boas-vindas.

Devlin ajoelhou-se para examinar o homem. Como não havia luvas ci­rúrgicas, Devlin pegou sua faca guardada na bainha do ombro. Usando a faca, levantou a camisa tostada, expondo o peito do cadáver, e empurrou gentilmente a ponta da lâmina sobre a pele. Estava mole como mingau, como se músculos, tendões e tecidos tivessem sido parcialmente comidos, digeridos por algo que se alimentava de dentro dele.

O estômago de Devlin revirou. Um par de placas de identificação cinti­lou ao Sol chamejante. Identificaram o homem como membro do SAS, cabo Collins. Os olhos de Devlin identificaram as botas militares do homem. Devia ter percebido.

Com um movimento brusco, virou as placas de identificação sobre as coste­las do soldado morto. Debaixo, a pele tinha cor natural, como se o metal tivesse protegido de algum tipo de radiação.

Devlin levantou a vista e se deparou com os olhos fixos de Chewie. O homem forte e grande estava parado em silêncio, com uma expressão aflita no rosto. Sabia que estavam ambos pensando a mesma coisa. Encontrar o resto da unidade, os sobreviventes... e rápido.

No coração do vilarejo agora, o desconforto de Devlin aumentava à medida que eles procuravam minuciosamente pelas ruas. Como se os aldeões tivessem fugido em pânico, todas as casas estavam com as portas abertas. E, por enquan­to, não tinham idéia do que era aquilo. Chewie verificava os edifícios à direita, espiando pela fresta das portas antes de entrar, e saía balançando a cabeça pou­co depois, sinalizando que não havia encontrado ninguém.

Devlin procurava pelo outro lado. Parou em uma porta, achando ter ouvido um som.

Entrou. O recinto tinha forte fedor de alho e tabaco. Havia no primeiro andar pedaços de móveis gastos. Subiu os degraus para o segundo andar. Nos fundos da casa, uma cortina cobria uma porta. Ele sentiu cheiro de comida. A cozinha. Com cuidado, Devlin afastou a cortina para o lado com a mão que estava livre, mantendo empinado o cano de sua KRISS.

Havia comida intacta na mesa. O cozido de carneiro havia engrossado. Por que não havia moscas infestando os lugares abandonados? Onde estava todo mundo? E como haviam desaparecido tão rápido? As perguntas e as prováveis respostas apontavam todas para um fato: o que quer que tenha acontecido por ali atingira a todos os seres vivos, sem poupar ninguém.

Estava matutando sobre os fatos ao sair da casa. Estava tão absorto pelo enigma que não viu o agressor chegar.

O vulto atacou, derrubando Devlin no chão.

O homem estava sobre ele.

Gritando e xingando como um louco.

O agressor enfiou os dedos duros como aço no pescoço de Devlin e apertou sua faringe com os polegares.

Vendo tudo embaçado e com a mente confusa, Devlin juntou as mãos, formando um "V" com os antebraços e levantou os braços. Assim, concentrou a força do ataque contra o ponto mais frágil do abraço mortal, os polegares do agressor. Quando os braços do maluco foram lançados para os lados, Devlin bateu forte na ponta do nariz dele com as mãos juntas.

Urrando de dor, o agressor rolou para o lado.

Rolando rapidamente para a direita, Devlin conseguiu ficar de pé, ainda arfando. Mas o agressor também se levantara. Ficaram em posição de defesa.

Devlin estava olhando nos olhos enlouquecidos de um de seus próprios homens. O rosto demoniacamente deformado distorcia a aparência do soldado.

Carter, sou eu, pelo amor de Deus — gritou Devlin.

Mas os olhos de Carter dançavam como os de um maníaco, como um cão raivoso.

Carter esticou o braço e procurou pela faca. Deu um passo e de repente caiu no chão, retorcendo-se em convulsões, como um epilético, batendo com os calcanhares no chão. Espumava pela boca. Lentamente sua cabeça virou e seus olhos retomaram a humanidade, apelando em desespero. Um grasnado como de gralha saiu de seus lábios trêmulos. Começou a emanar vapor de seu uniforme, que ardeu lentamente. O corpo dele emitia fedor de carne cozida.

Um manto de pequenas chamas azuis carcomeu o tecido das roupas.

Devlin ficou parado, embasbacado. Do canto do olho viu Chewie aparecer e se ajoelhar ao lado de Carter. Ele murmurou algo que soou como um cântico enquanto balançava a cabeça no ritmo das palavras.

Quando Chewie esticou o braço para tocar na mão de Carter, a pele se desprendeu em um só pedaço.

Chewie fez uma careta e se levantou com dificuldade.

Devlin foi para seu lado. — Não há nada que possamos fazer por ele.

O estóico guerreiro assentiu solenemente, com o rosto mortificado de emo­ção contida.

Como se também entendesse seu destino, a garra pelada e esfolada que foi um dia a mão de Carter fez um movimento como se os quisesse enxotar.

Ficaram em silêncio por um momento.

Então gritos de pânico irromperam no ar.

Eles se viraram em direção ao som. Chewie correu para a frente, gritando — Brody, por aqui!

Apesar de estar em boa forma, Brody fez o que pôde para acompanhar Clint Raindancer. Uma vez, depois de várias doses de Jack Daniels, Devlin perguntou a ele por que era chamado de Raindancer[1]. Chewie deu um sorriso travesso e lhe disse que aquele era o nome que se dava ao bravo guerreiro capaz de correr, intacto, por entre os pingos da chuva.

Ouviu ao longe os gritos atormentados de homens.

Tiros soaram.

A cidade fantasma e suas janelas vazias pareciam rir em silêncio quando eles esbarravam nelas ao passar. Como em alguma casa de espelhos, os edifí­cios e caminhos começaram a parecer os mesmos, como se as paredes de pedra estivessem se deslocando e girando para criar uma barafunda sem fim. Devlin seguiu bem na cola de Chewie, percebendo que o homem era um rastreador nato, dotado de sexto sentido para encontrar sua presa.

Quando viraram uma esquina, o segundo Chinook surgiu logo em frente. Estava na praça do vilarejo, e parecia ter aterrissado sem problemas.

Os gritos agonizantes vinham de trás do helicóptero.

Chewie foi pela direita, Devlin foi pela esquerda.

Quando deram a volta pelo helicóptero, Devlin os viu. Um emaranhado de homens e mulheres vestindo trapos chamuscados se encurvava sobre algo.

Devlin localizou Chewie. Ele murmurou suavemente, seu capacete captan­do as palavras e as transmitindo a Chewie.

Como uma pantera, Chewie rastejou em direção ao aglomerado.

Olhando além do conglomerado de corpos contorcidos, Devlin fitou, hor­rorizado, o campo de fogo. Soldados sírios estavam espalhados por toda parte, empunhando armas com rigor letal.

Uma névoa fina e azulada ainda permanecia.

O ar lhe obstruiu os pulmões com o odor de cordite devido ao recente tiroteio, e o penetrante cheiro cúprico de sangue lançou-lhe às vísceras ondas de mal-estar.

Sua pele gelou de terror.

Como um lobo sentindo o cheiro de sua presa, a cabeça de uma velha se levantou do emaranhado de corpos, e Devlin podia jurar que a mulher estava mesmo farejando o ar.

A cabeça dela girou em velocidade anormal.

Olhos bravios capturaram os dele.

O rosto dela estava molhado de sangue.

 

Agarrando com força o volante do Land Rover, Blair praguejava ao sair disparada pelo deserto. Atrás dela, uma nuvem de poeira agitava a paisagem, marcando sua rota de fuga. O volante dava pinotes em suas mãos. Com Noor e Yousef ao seu lado, o veículo era jogado de um lado para outro enquanto ela manobrava pelo terreno.

Encontrara Yousef descendo uma colina aos tropeços, abatido, mas vivo. Optando pela velocidade, pegou emprestado o veículo de um dos guarda-costas de Al-Dajjal.

—        Não podemos ir mais rápido? — Yousef apelou ansiosamente, remexendo-se no banco do carro, procurando freneticamente por seus perseguidores.

O lustre de suor brilhava em seu rosto. Seus olhos estavam arregalados, chocados de terror.

Fui pego de surpresa. Mas acho que a Raposa do Deserto não estará em nosso encalço. Eu arranquei isto de seus veículos — esticou o braço para baixo e levantou a tampa do distribuidor e um emaranhado de fios, e sorriu.

Cuidado! — Yousef gritou.

Girando o volante com força, desviaram de uma pedra enorme por pouco.

Quando ela ia falar, um Land Rover apareceu em seu campo de visão, vin­do com tudo pela esquerda. Ela viu de relance o escudeiro encarapitado detrás da metralhadora; a luz do Sol fez brilhar seus óculos de proteção quando ele os ajeitou na vista. Tatuou o chão em frente a eles com o barulho repetitivo de sua metralhadora .50.

—        Eu diria que você negligenciou o cara com a grande metralhadora — Yousef disse sarcasticamente.


Uma segunda rajada de fogo, e uma esfera foi alinhavada ao redor do capô.

Blair jogou o volante para a direita, depois para a esquerda, cortando em ziguezague.

—        Yousef, pegue este saco aos seus pés.

Ele lhe lançou um olhar desconfiado e tateou à procura do saco. Ao olhar para dentro, seus olhos quase pularam.

—        Vamos, pegue duas, elas não mordem — Blair olhou para o espelho retrovisor e viu seus perseguidores desviando dela por pouco. — Os babacas desgraçados estão dando a volta para o seu lado. Quando eu frear... puxe o pino e jogue neles!

Com as mãos trêmulas, Yousef pegou duas granadas e ficou olhando. Como eu puxo os pinos?

—        Use os dentes, cacete!

Cuidadosamente, ele arrancou os dois pinos.

A metralhadora .50 descascou de novo.

O lado do passageiro do Land Rover foi mastigado por chumbo quente e reduzido a vidro e metal. Explodiu uma chuva de vidro na estrutura do vidro e banco traseiros.

—        Agora! — Blair gritou, pisando fundo no freio.

O Land Rover girou e os quatro pneus guincharam, cortantes.

Yousef apertou bem os olhos e jogou a granada. Por pura sorte, ela voou diretamente para dentro do ninho do atirador. O veículo de seus perseguidores passou por eles atirando.

O Land Rover dela fez uma curva perfeita de 180 graus e pendeu para o lado, fazendo uma parada trêmula em uma turva nuvem de poeira.

Após uma explosão estrondosa, o veículo do bandido entrou em combustão e virou fumaça preta.

Blair ligou a máquina e arrancou fazendo os pneus cuspirem pedras e areia.

Yousef engoliu em seco e gaguejou. — Deixei cair a outra bomba.

Ocupada com a direção arriscada, Blair não havia percebido. Devido ao momento em que escapou, a segunda granada batera na beira da janela do Land Rover e quicou para o banco traseiro.

- Pule! — Blair gritou, empurrando a porta ao seu lado com o ombro e puxou Noor com ela, rolando para fora do veículo, enquanto o Land Rover seguiu em frente lentamente.

Após rastejar um pouco, conseguiram se levantar e saíram correndo. Blair empurrou Noor para o chão e se jogou sobre ela, usando seu corpo como escudo.

Foram envolvidos por uma rajada de calor.

Blair levantou a cabeça e virou para ver uma coluna oleosa de fumaça ne­gra formando uma nuvem em direção ao céu.

—        Agora estamos ferrados, mas estamos bem — ela praguejou e bateu na coxa. Afastou os cabelos dos olhos enquanto se levantava e começou a tirar o pó de sua jaqueta safári.

A voz suave de Noor quebrou seu mau humor. — Acho que Yousef encon­trou alguma coisa!

Yousef! Em sua raiva, acabou se esquecendo dele. Então seu cérebro re­gistrou a informação e ela se virou para Noor, hesitando e franzindo os lábios.

—        Acho que ele não conseguiu sobreviver, pequenininha.

Como se fosse a voz desencarnada de um espírito, a voz de Yousef foi trazida pelo vento vinda de uma elevação próxima.

—        Aqui... por aqui.

Ela se manteve onde estava, procurando encontrar de onde vinha a voz. Puxando-a pelo braço, Noor avançou em direção à colina.

—        Viu, eu tinha razão... ele está nos chamando... vamos.

Seguindo aos tropeços, Blair subiu com dificuldade, levada pela misteriosa garota.

Ao parar no topo, Blair olhou para baixo, piscando os olhos, incrédula e espantada.

Yousef estava de pé, balançando os braços e sorrindo de orelha a orelha. —       Doktari — ele gritou alegremente, gesticulando com floreios dignos de um ilusionista de palco que acabou de materializar um elefante. — Alá pode ter levado nosso jipe, mas ele presenteou a este servo com seu cavalo alado!

Atrás dele, em uma pista de aterrissagem temporária, com bandeiras de direção do vento nos pólos oscilando à brisa, estava um avião de guerra alemão antigo, da Segunda Guerra.

Havia uma suástica preta pintada em um campo branco sobre a fuselagem. Do lado do motor dava para ver um decalque com a imagem da cabeça de um lobo uivando.

Garotos e seus brinquedos, ela pensou. Aposto que o aspirante a nazista do Al-Dajjal tinha alguns submarinos alemães e uma dúzia de mísseis V-2 estocados em algum bunker gigantesco. Se não fosse tão doentio, seria quase engraçado.

Caminhando por debaixo de uma asa, Blair tirou a trava dos freios, cujo suporte estava inclinado para dentro como pernas de mosquitos prontos para decolar. Então levantou Noor.

—        Pode não ser tão maravilhoso ou elegante quanto antes, mas vamos voar novamente, pequenininha.

Noor esticou o braço e deu um leve tapinha na bochecha de Blair. Percebendo que era um avião de dois lugares, Blair imaginou que devia ter sido um avião de instrução. Subindo à asa, ela se agachou e chamou Yousef.

—        A não ser que você pense que Alá lhe concedeu nove vidas, é melhor mexer o traseiro e subir aqui.

Fazendo corpo duro e reclamando baixinho, Yousef foi até o avião. Quando ela pegou em sua mão, trêmula de nervoso, e o puxou para cima, Yousef conseguiu dizer: — Se a senhora pilotar como dirige um carro... Devo precisar mesmo de nove vidas.

Blair meneou a cabeça em direção ao redemoinho de poeira que varria a paisagem em direção a eles.

—        Parece que temos mais companhia.

Yousef se levantou, virando para ver. — Lá vêm eles de novo!

Sentada na cabine do piloto, com Noor plantada no colo de Yousef no banco de trás, colocou o quepe de couro, calçou as luvas correspondentes que iam até o cotovelo e colocou os óculos de vôo que Al-Dajjal fez a gentileza de deixar para ela.

Ligou o motor radial. Ele gaguejou e tossiu, cuspindo uma nuvem de fuma­ça fuliginosa. Ela ajustou o afogador e ligou de novo.

O motor rosnou.

A série de Land Rovers se aproximava com rapidez.

O ronco das metralhadoras ecoou em direção a eles.

E as hélices do avião se manifestaram e gradualmente começaram a revol­ver, finalmente girando indistintamente.

Os tiros mastigaram o solo, por pouco não acertando o avião de caça.

O avião seguiu aos trancos e barrancos enquanto Blair aliviava o manete. O chão lá embaixo estava cheio de crateras e o avião estalou ao ganhar veloci­dade, deixando para baixo a pista de decolagem improvisada.

Blair deu uma olhada para a esquerda e outra para a direita, e viu dois Land Rovers perseguindo-a de ambos os lados.

Blair ficou com medo quando outra saraivada de tiros acertou o vidro da capota, deixando uma rachadura das boas em formato de teia de aranha.

Como o avião decolou, plainando em direção ao Sol ardente, Blair gritou para Yousef por sobre o ombro esquerdo: — Se você sabe alguma oração, é me­lhor usá-la agora!

Já dava para ela ouvi-lo rezar ardentemente do banco de trás, a plenos pulmões.

— Porque se eu tivesse tido algumas aulas de pilotagem que fosse... ao me­nos saberia aterrissar este torpedo.

 

Devlin estava acostumado a mortes e massacres; um tour pelo Vietnã, seguido pelo Iraque, o fizeram aumentar sua resistência à dor. A dor persistente que resultava do testemunho direto do completo horror da guerra. Não obstan te, seu sexto sentido lhe disse que aquilo era um perigo, e de um tipo que ele jamais encontrou. Era algo que desafiava os limites do mundo real e de suas leis, algo talvez de outro mundo, demoníaco.

Ele agarrou sua KRISS. 45 com tanta força que suas juntas embranqueceram e ficou com câimbra nos pulsos. O suor lhe corria espinha abaixo, acumulando-se na borda das costas da camisa. Sua garganta estava seca de apreensão.

As narinas da velha inflaram mesmo quando ela sentiu o cheiro no ar. Ele não estava imaginando coisa nenhuma.

Encurvada e abalada, ela se levantou. Quando ele se virou ela esticou o braço, apontando diretamente para Devlin.

Um berro agudo como o de uma águia gigante explodiu de seus lábios pu­rulentos.

Os outros se levantaram em uníssono.

Um por vez, fixaram em Devlin seus olhares vazios e vidrados.

Foi quando se mexeram em direção a ele que ele viu. O corpo de um sol­dado sírio, ou o que restava dele, jazia obscenamente no chão. Olhando mais de perto, ele viu que o cadáver fora rasgado em pedaços, como se um bando de leões vorazes tivesse arrancado a carne dos ossos.

Mancando com dificuldade, vinham em sua direção.

Uns vinham de pé, outros rastejavam.

Ele levantou a KRISS e mirou na primeira coisa-ruim.


Com a primeira rajada, a cabeça da bruxa velha explodiu em uma chuva de sangue e fragmentos de ossos. O dueto de armamento automático soou enquanto ele e Chewie deitaram fogo na turba com suas 45. Eles se sacudiam e gritavam como animais feridos ao tombar no chão, um por um.

 

O sargento Conners jogou o último dos parafusos na caixa de ferramentas e foi para o helicóptero. Braxton e Scout o encontraram no meio do caminho.

—        Bem... Sargento, a máquina está pronta para partir? — Braxton perguntou.

Retorcendo o bigode de morsa, Conners respondeu: — Ela estava podre como uma puta velha, senhor, estava mesmo. Mas agora está novinha em folha, como uma noiva.

Brax balançou a cabeça e se virou para Scout, que estava vermelho de tão corado.

Algo por parte do major Brody?

A resposta é um grande não. Fiz contato uns dez minutos atrás, mas agora não estou conseguindo mais.

Antes que Brax pudesse responder, o som de tiros automáticos crepitou a distância.

Sem falar, correram para o helicóptero.

Conners se prontificou. — Senhor, ouça.

O zumbido constante tornado familiar por uma centena de velhos filmes de guerra agora parecia irreal com sua nítida intromissão no mundo real.

Os olhos deles se voltaram para o céu, as mãos protegendo os olhos do árido Sol.

—        Bem, estou fodido — Conners balançou a cabeça, incrédulo.

Brax entrou na conversa. — Pelo amor de Deus, o que é...?

A voz aguda de Scout veio em seguida. — Mas é foda...


- Não é foda, rapaz, é um Focke-Wulf FW 190. Coisinha linda, não é? O aviãozinho de caça com hélice e com o motor radial mais veloz que a Luftwaffe já produziu.

—        Hora do Além da Imaginação Scout murmurou enquanto o caça ale­mão passava por cima da sua cabeça, inclinando a asa.

 

À distância, Brody e Chewie viram uma silhueta entrando de cabeça baixa em uma velha mesquita.

Passaram pelo caminho repleto de soldados mortos e ladrões de túmulos.

Dentro da mesquita, ficaram parados, olhando e ouvindo.

Foi quando ouviram a marcha firme de passos arrastados vindos de uma arcada à esquerda em direção a eles. Primeiro um, depois dois, depois uma hor­da de aldeões como zumbis saindo aos montes da abertura, os olhos cheios de desejo por sangue, braços abertos e arranhando o ar enquanto mexiam as man­díbulas, soltando sons guturais animalescos.

Por um instante ficaram parados como toras, embasbacados demais para se mexer. Mas então os olhos de Brody e Chewie se encontram.

Chewie balançou a cabeça. — Corra!

Deram no pé da mesquita, correndo pelo quarteirão, mas ao contrário dos filmes, ao invés de se locomoveram como uma horda de ceguetas mancos, estes mutantes tinham asas nos pés.

Chewie se virou, correndo de costas e atirando com a arma presa na coxa. Brody localizou a construção mais próxima. Na entrada, Brody viu um homem de idade gesticulando loucamente.

—        Por aqui! — Brody gritou para Chewie.

Entraram aos tropeços no edifício. Chewie bateu a porta e passou a trave-mestra, trancando com segurança.

Ficaram parados, com as costas contra a porta, arfando descompassada­mente, recarregando suas armas com munição.

Brody sentiu medo. Um velho emergiu das sombras. Era a mesma figura que antes fez sinais da porta de entrada.

Seus cabelos longos e brancos lhe cobriam os ombros.

Devido às suas viagens pelo Oriente Médio, Brody reconheceu o homem como sendo um sufi, um místico islâmico. A tosca túnica de lã que pendia dos ombros maduros foi a pista, pois Suf em árabe quer dizer lã. Bem ao modo dos monges franciscanos que usavam mantos simples e rudimentares como sinal de pobreza, os santos sufis usavam roupas igualmente austeras.

Apesar de o velho religioso estar alquebrado por causa da idade e ter ombros encurvados, ele transmitia vitalidade e jovialidade. Lentamente dirigiu-se a eles. Os olhos de Brody percorreram a longa barba branca do sufi e seus olhos cintilantes, olhos que resplandeciam de compreensão e sabedoria.

Quando o velho falou, sua voz soou forte e profunda.

—        Foi a Providência Divina quem lhes trouxe aqui. Surpresos pela fluência em inglês do sufi, Brody ficou só olhando.

O velho sorriu, ciente. — Sim, falo sua língua. O Criador lhes trouxe aqui. O destino é como o vai-e-vem das marés em um vasto oceano. Neste caso, ela lhes fez dar na minha praia.

Dando uma olhada pela fenda na porta, Chewie disse: — Há mais deles agora. Estão parados lá fora, fazendo um grande semicírculo.

O velho se aproximou e pôs a mão queimada de Sol no ombro de Brody. — Ele está querendo dizer que vocês presenciaram esta profanação da natureza, esta coisa-ruim. Vocês foram trazidos para cá com um propósito. Os pássaros vão lhes guiar... prestem atenção às rotas dos cucos, que põem ovos para serem chocados nos ninhos de outros pássaros.

Brody começou a falar, mas não conseguia encontrar as palavras. Esse velho estranho, falando por meio de charadas. Parecia doido mesmo. Mas havia algo nos olhos dele que contradizia qualquer idéia de insanidade ou senilidade. A centelha de verdade brilhava com força.

—        Não tema, meu filho. Você precisa ter fé.

Foi quando ouviram. O sinistro e conhecido zumbido do motor de um avião de caça passando sobre suas cabeças, seguido pelos disparos de uma metralha­dora automática.

Como se lesse os pensamentos de Brody, o sufi olhou para cima e apontou para a escada. — Sabe, Deus manda seus anjos para proteger a gente. Por que não vai recebê-los no telhado?

Assim, o sufi deu a volta e lentamente se afastou, desaparecendo pelas sombras adentro.

Chewie deu de ombros. O que temos a perder? Vamos lá. Choveram pedaços de vidro dentro do recinto quando um vulto entrou de um pulo pela janela, caindo nas costas de Chewie.

O mutante gritava e se retorcia, cravando as garras nos cabelos e no rosto de Chewie, tirando sangue. Chewie soltou um grito selvagem e se virou rapida­mente, arremessando violentamente o agressor ao chão por sobre o ombro. Em um instante, o agressor estava caído a seus pés. Ele deu o bote, com fios de baba escorrendo da boca. Chewie agarrou o ombro do homem com sua mão carnuda e bateu com o bico de sua submetralhadora na barriga dele.

Sentindo a pancada lhe rasgar por dentro, o mutante se contraiu em espas­mos, como se tivesse agarrado um cabo de alta voltagem, os braços descontrola­dos, rangendo os dentes. Finalmente, caiu duro no chão.

Correram para a escada, pisando firme com as botas, enquanto subiam a estreita escada, dois degraus por vez.

 

Blair viu o helicóptero e estava voando baixo o suficiente para perceber que os homens que pontilhavam o chão perto dele eram britânicos ou americanos. Com a intenção de voar por eles e voltar para trás, ela sobrevoou a elevação em direção ao Vilarejo.

Da parte traseira, Yousef gritou: Aonde está indo? Aterrisse esta fera. Eles vão nos ajudar!

Cruzando o vilarejo em baixa altitude, Blair sentiu que algo estava fora de controle. Deu uma volta completa e girou sobre o vilarejo. Blair olhou, horro­rizada, uma multidão lá embaixo cercando um grupo de soldados americanos como se fosse um enxame, jogando-os no chão e começando a...

Ela tirou os óculos de vôo, arrancou o quepe de couro e esfregou os olhos.

Não havia como se enganar quanto ao que estava vendo.

Não! Yousef gritou atrás dela, tapando os ouvidos de Noor. Você está nos levando direto para o inferno! Não aterrisse aqui, por favor. Aqueles lá embaixo são os demônios Jinn. Eles estão comendo aqueles homens! Alá, seja louvado, salve-nos!

Apesar da histeria de Yousef, Blair sabia que ele não estava longe de ter razão. A multidão estava se alimentando dos homens lá embaixo, e dane-se, mas ela ia fazer aquilo parar.

Ela respirou fundo, sugando o ar, e se preparou.

Inclinando para a direita e fazendo outra curva ampla, ela deu a volta, a máquina gritando como um índio. Procurou e achou o pequeno botão vermelho na coluna de direção. Ao espiralar para baixo, apertou o botão com o polegar.


Ao aplanar, as armas das duas asas se alargaram e bombardearam o solo que ela sobrevoou. Blair viu a linha de baforadas de poeira alinhavando o caminho pelo chão e adentrando aquele aglomerado de capetas.

A multidão reagiu, espalhando-se em bandos frenéticos.

Reparou nos caminhões ao sair bombardeando. Estavam cobertos de pó, mas ela conseguiu identificar o logotipo de ambos os lados. Lia-se em grandes letras vermelhas: SISTEMAS GENO-DYNE.

Ela deu meia-volta pela segunda vez.

 

Agora no teto, Chewie e Brody observavam a sombra escura do avião de caça sobrevoar o quarteirão abaixo. A barulheira abafada de suas metralhadoras era como tecido sendo rasgado. Saraivadas incendiárias cuspiam munição das asas do avião, traçando o ar e causando explosões de chamas em seus alvos, onde quer que fossem encontrados.

Ao passar com o avião, um novo som lhe atacou os ouvidos: o ruído firme e reconfortante do rotor de um helicóptero.

Do alto, uma sombra se espalhou sobre eles. Lutando para se manter enquan­to o rotor girava com força, cobriram a vista e levantaram os olhos a tempo de ver seus camaradas, jogando uma corda do helicóptero para o teto do edifício.

Brody identificou a cabeça gorda de Conner se inclinando para fora de um dos lados do helicóptero atrás de uma metralhadora, dando um sorriso cheio de dentes e fazendo sinal de positivo com o dedo.

Brax correu em direção a eles.

Que bela surpresa vocês são — gritou Brody.

Parece que vocês se enrolaram direitinho, Brody. Algum sinal de outro esquadrão?

Brody e Chewie trocaram olhares sombrios.

Chewie olhou do teto para o massacre lá embaixo. Então virou-se para Brax com um olhar inexpressivo. Sempre um homem de poucas palavras, Chewie disse: — Vamos considerá-los desaparecidos e deixar por isso mesmo.

Brax pareceu atônito e se virou para Brody como se estivesse buscando explicação melhor.

Brody balançou a cabeça, assentindo - Respondo ao interrogatório mais tarde. Agora vamos dar o fora daqui.

Ao ouvir o som agudo do avião militar, eles se viraram.

A asa do avião de caça se inclinou de novo ao passar por eles e começou a subir lentamente, tomando a direção leste.

Brax distorceu as feições ao dizer: — Aviões de caça nazistas, luzes esquisitas... e um esquadrão inteiro desaparecido. E macacos me mordam se eu não vi uma ruiva bonita pilotando aquele pássaro que acabou de passar.

Chewie resmungou algo e piscou para Brody. — Ou quem sabe ela seja um anjo disfarçado.

 

                     Londres

O padre alto e de compleição avermelhada esperava pacientemente detrás da linha verde em frente ao representante da alfândega. Lia-se em um aviso sobre cabine: Somente diplomatas.

A mãozinha de Noor segurava bem forte a mão grande do padre, apertando-a nervosamente para se tranqüilizar enquanto ficava parada ao seu lado, com seus brilhantes olhos violeta olhando para ele.

Noor estudou seu rosto. Era suavemente caseoso e redondo, e lembrava uma lua cheia salpicada por crateras.

O padre coçou a bochecha, cheia de cicatrizes de acne, e baixou a vista para olhar para ela, os olhos verdes cintilando sob grossas sobrancelhas verme­lhas. Quando ele piscou e fez uma cara engraçada, as sardas em seu rechonchu­do nariz de porco e rosto pareceram dançar.

Agora era a vez deles.

Pararam em frente à cabine e o homem de rosto magro pegou o passaporte do padre. Noor achou o documento bonito. A capa tinha um selo dourado com duas chaves cruzadas sobre ele.

O inspetor da alfândega o analisou.

— Padre Dominic Kelly, ligado ao Vaticano pelo núncio da Corte de St. James, status de diplomata.

O padre Kelly deu um grande sorriso. — Correto, senhor. E permita que eu apresente minha jovem protegida.


Quando o padre empurrou o novo passaporte pelo balcão, cutucou Noor levemente com o joelho.

Noor entendeu a dica e fez uma reverência sem jeito, agarrando a barra do novo vestido azul-ovo-de-pato e se esforçando para não cair. Os sapatos brilhantes de couro envernizado apertavam-lhe os dedos dos pés.

Noor viu o sorriso do homem de rosto magro se transformar rapidamente em careta quando ele enterrou o nariz adunco em seu passaporte. Ela não gostou nem um pouco daquele homem, mas se lembrou das instruções que recebeu de Blair e de seu irmão, o padre Kelly, antes de embarcar no vôo. Ela emplastou no rosto um sorriso cheio de dentes e tentou não demonstrar o quanto estava amedrontada na verdade.

—        E a pequena senhorita seria Gwendolyn Grace Kelly — disse o velho de rosto magro, a voz cheia de desconfiança, os olhos pequenos cintilando.

Um sorriso de covinhas se fez no rosto de Noor, que respondeu: — Ah, pode me chamar de Wendy, senhor.

—        Minha sobrinha, senhor — disse o padre Kelly.

Os olhos do aduaneiro foram e voltaram da cabeça grande com cabelos vermelho-fogo e pele pálida e sardenta do padre para os sedosos cabelos louro claros e pele leitosa de Noor.

O padre Kelly chegou o corpo mais para a frente como quem vai contar um segredo e murmurou: — Ela é adotada.

O inspetor da alfândega bufou e balançou a cabeça. Carimbou ambos os passaportes e disse: — Bem-vindos ao Reino Unido.

Sentada no banco de trás de uma reluzente limusine preta, Noor ficou com o engraçado chapéu do motorista, que tinha no alto uma bolinha vermelha e macia. Ele estava esperando na calçada, e tratou a ela e ao padre Kelly como se fossem príncipe e princesa. Ela gostou daquele homem, de seu sorriso simpático e daquela voz estridente e boba que a fazia dar risada.

Olhou para a paisagem que passava. Tantos carros, tudo parecendo tão limpo e verde comparado com as ruas daquela cidade no Iraque de onde Blair lhe levara. Riu sozinha ao se lembrar da cara do pobre Yousef quando Blair finalmente aterrissou o avião perto do vilarejo do primo dele. Lembrou-se do rebanho de bodes espalhados debaixo deles quando o avião estava para pousar com aquelas asas oscilantes que lhe davam dor de barriga. Então eles rasparam o de palha de uma casinha e, de alguma forma, aterrissaram inteiros, apesar de Blair dizer que o avião era uma "grande porcaria".

Então Blair pegou um telefone e ligou para o irmão. Ele era um homem importante que morava em um lugar chamado Itália, mas estava viajando por uma cidade chamada Istambul, em um lugar chamado Turquia.

Ele ia mandar um avião lhes buscar.

Ao ver as lágrimas que fulgiram nos olhos de ambos assim que finalmente se abraçaram no aeroporto de Istambul, Noor percebeu como o padre Kelly e Blair se amavam.

Passaram a noite em um hotel luxuoso, com lisos lençóis de seda e tapetes tão grossos no chão que Noor riu ao esfregar neles os dedos dos pés descalços. Faziam cócegas.

Foram fazer compras e Blair lhe comprou lindas roupas novas. Noor ficou um pouquinho triste ao pensar em sua família. Com uma xícara de chocolate quente em frente a si, Blair piscou o olho para ela e disse para ela fechar os olhos.

Quando ela abriu, deparou-se com um bicho de pelúcia cor-de-rosa com botões no lugar dos olhos. Blair lhe disse que aquilo se chamava ursinho de pelúcia. Noor adorou aquele ursinho de pelúcia macio e o batizou de Mister Muffins. Ela não o perdeu de vista, ficou comendo com ele, dormindo com ele, e agora estava viajando com ele para um estranho mundo novo.

Sabia que Blair estava a caminho em outro vôo e iria encontrá-los.

Ela lhe prometera que padre Kelly também sabia operar milagres, e ele lhe conseguiu algo chamado passaporte do Vaticano que era como um bilhete má­gico. Um bilhete que lhe permitiria visitar lugares distantes e ir para a casa de Blair em Londres, morar com ela.

Uma pequena lágrima se acumulou no canto do olho de Noor agora, ao pensar em Blair. Sentia tanta falta dela.

Ela se remexeu e o assento de couro macio guinchou debaixo de seu bum­bum.

Noor achou a palavra tão engraçada quando ouviu Blair dizê-la. Blair se le­vantou do chão pedregoso depois da aterrissagem forçada e esfregou o traseiro, dizendo: — Nunca mais serei capaz de pousar meu querido bumbum em uma cadeira.

- Padre Kelly? – ela chamou.

Ele deu um sorriso caloroso. – Por favor, me chame de Dominic. Que está achando de Londres, pequenininha?

- Ah, é tão grande e os edifícios parecem velhos, mas diferentes, como se estivessem em um álbum.

—        Isto é porque foram retratados em muitos álbuns. Espere, tenho uma coisa para você.

Ele se inclinou no banco e falou com o motorista. Padre Benjamim, trouxe aquele livro?

—        Lá vamos nós ele disse, passando o livro para o banco de trás.

O padre Kelly pôs o livro no colo de Noor.

Ela leu o título: Peter Pan.

É sobre uma menina que sabe voar.

Que nem eu? Noor perguntou, folheando avidamente o livro.

Ele sorriu. E o nome dela é que nem seu novo nome de mentirinha.

Noor torceu o nariz e gaguejou. Quer dizer, Gwen-dal-anne?

Ele deu uma risada sincera e vigorosa. Sim, mas o apelido é Wendy.

Quando ela levantou os olhos, estava franzindo a boca nos cantos. Mas estamos indo para sua casa agora? Estou muito cansada e com fome. Quem sabe sua esposa não pode cozinhar um carneiro com arroz para nós?

Ambos os padres riram com gosto, e longamente. Isto deixou Noor intriga­da. Ela não sabia o que havia de tão engraçado em carneiro com arroz.

Seguindo de uma distância discreta, o parrudo sedan Mercedes preto esta­va bem na cola deles. A passageira no banco da frente falava ao celular, os olhos colados na limusine que seguia na sua frente.

Com seus cabelos irreverentes ao estilo dos anos sessenta, suas maçãs do rosto altas e seusolhos amplos e pescoço de cisne, ela era espetacular. Mas o per­feito tom louro-branco de seus cabelos e a linha dura de seu maxilar exalavam uma brutalidade desumana.

Seus lábios finos, cobertos por batom carmesim profundo, eram cruéis.

—        Estamos exatamente atrás deles agora ela disse, falando ao celular. Não haverá engano nenhum.

Ela revirou os grandes olhos de safira ao ouvir.

—        Vamos pegar a garota de qualquer jeito.

Fechou o telefone com força, desligando-o, e acendeu um cigarro, deixan­do a nicotina fluir para dentro de seus pulmões. Soltou a fumaça e observou o filtro do cigarro antes de dar mais um trago.

Um sorriso fino se formou em seus lábios. Ela chegou mais perto do moto­rista. Por debaixo do tailleur cinza Armani ela usava uma blusa de seda branca colada ao corpo que acentuava as protuberâncias de seus seios empinados. Dei­xem os botões superiores abertos de propósito, revelando a fenda intumescida.

Ela massageou com o polegar a concavidade da garganta e suspirou.

Debaixo de suas sobrancelhas de homem de neandertal, os olhos do moto­rista ficavam indo e voltando para seu peito.

Ela sentiu que os olhos dele se prolongavam.

Fez biquinho e piscou com os longos cílios falsos enquanto roçou a coxa na perna do motorista. Então ela passou o dedo da mão esquerda na costura interna da calça dele.

Ele apertou a direção com tanta força que as dobras de seus dedos ficaram brancas, e seus ombros e bíceps fortes retesaram debaixo das costuras de seu paletó.

Quando ela se aproximou para soprar em sua orelha, enfiou a ponta do cigarro aceso nas costas daquela mão enorme, esfregando violentamente, mais e mais fundo.

Ele não esboçou a mínima reação.

Mantendo os embotados olhos cinza-amarelados fixos no que estava à fren­te, ele deu um sorriso escorregadio.

Ainda insatisfeita, ela lhe raspou a bochecha com suas longas unhas ver­melhas.

Quando o sangue começou a escorrer, ele limpou indiferentemente com as costas de sua mão volumosa.

- Du drecksack! Você é muito chato, Ernst — ela disse, voltando mal-hu­morada para seu lado do banco. Pegou uma Sig Sauer do coldre debaixo de seu paletó e carregou a arma, e então olhou fixamente para a limusine, lambendo o lábio superior com a ponta da língua.

Os dois grandalhões de pescoço grosso no banco de trás caíram em vociferante e derrisória gargalhada.

Ela assentiu, ironizando. – Geh fick deine Mutter! E se um de vocês ferrar com tudo, seus babuínos, veremos quem ri por último – ela os avisou, com a voz mesclando simultaneamente uma rouquidão sedutora e uma violência implacável.

 

Blair estava sentada em uma poltrona da classe econômica entre um sujeito que precisava de uma extensão para seu cinto de segurança e uma mulher que insistia em lhe contar a história de sua vida, desde o começo.

Foi um longo vôo.

Contudo, só de pensar em Noor, que esperava por ela em Londres, ficava mais animada. Tomar vôos separados era uma precaução necessária, caso al­guém estivesse procurando por uma ruiva com uma criança.

Ela não estava bem certa como seu irmão Dominic reagiria a seu chamado. Ele estava sempre batendo na mesma tecla, tagarelando sobre como suas expe­dições eram perigosas demais.

Desde que seus pais morreram no acidente, ficaram mais próximos. Do­minic se tornar padre mais tarde foi a realização do sonho da mãe deles, mas por outro lado bem que Blair queria que os pais tivessem lhe apoiado mais na carreira que escolheu. — Não se pode ter tudo... não é mesmo, Blair? — ela ouviu a voz da mãe lhe advertindo pela enésima vez. A lembrança lhe trouxe um sorriso aos lábios.

No fundo do coração, sabia que Dominic as ajudaria. Nunca na vida que ela abandonaria aquela pobre criança. Sentia arrepios só de pensar em Al-Dajjal tocando no queixo de Noor.

E de algum ponto do seu âmago mais profundo vinha a sensação de que aquela não havia sido a última vez que encontrava o desgraçado.

Além do que, Noor não era exatamente uma criança qualquer, era? Estava impressionada com a aura que a garota projetava.

A força.


A calma no rosto diante de sérios perigos.

Não; aquela pequena só podia ser especial, mesmo.

O padre Dominic Kelly, que a imprensa chamava de "detetive milagroso do Vaticano" depois do caso da stigmata que ele investigou no Brasil. Noor era, sem dúvida, o tipo de caso que ele costumava pegar.

Um milagreiro ambulante.

Ela nunca teve a sorte de ter um filho. Os médicos diziam que ela não podia. Foi um passo e tanto pedir a Dominic para usar o respaldo do Vaticano para fazer Noor entrar no Reino Unido.

No final teriam de passar pelos procedimentos de praxe, mas a necessidade mais imediata era garantir a segurança de Noor.

E dar-lhe amor.

O padre Kelly estava lendo a história de Peter Pan para Noor, cujos olhos cresciam mais a cada linha. Pobrezinha, ele pensou. Que ordálio para uma criança.

Foi pego de surpresa pelo telefonema de Blair. Fazia meses que não sabia dela. Mas o medo em sua voz lhe rasgou o coração, e ele moveu céu e terra para dar segurança a ela e à menina.

Valendo-se do sistema de nepotismo que existe até mesmo dentro do Va­ticano, ele conseguiu mexer seus pauzinhos e garantir a viagem da garota. Ele também acreditava que existiam forças do mal neste mundo. Por Deus, ele mes­mo não havia se deparado com elas pessoalmente em diversas ocasiões7

Acariciou os cabelos sedosos de Noor que dormia profundamente acon­chegada em seu colo. Pensou em sua viagem a Istambul e outras cidades, onde aconteceram coisas estranhas. Seu pressentimento se confirmou. Os dervixes estavam com o diário de Jung que ele procurava há tanto tempo. Convencidos de sua sinceridade e boas intenções, eles o deixaram levar o diário.

Os segredos nele contidos poderiam ser a solução para o longo quebra-ca­beça que consumiu uma vida inteira de trabalho do pai, e agora a sua também.

Ele estava ávido para retornar a Londres e voltar ao seu primeiro amor, o estudo de velhos códices de alquimia. Tivesse sua vida tomado outro rumo, ele teria seguido de bom grado os passos do pai, laborando na condição de estudan­te pobre em alguma pequena universidade que lhe desse uma bolsa de estudos.

A Limusine estacionou em uma rua estreita.

Mais adiante havia um caminhão parado em um atalho para a rodovia.

Assim que pararam em frente ao caminhão, ele ouviu o rugido do poderoso motor que vinha dos fundos e o rangido de freios.

Dominic girou o corpo em direção ao som, olhando pela janela de trás.

Uma Mercedes preta parou.

As portas se abriram.

Uma mulher alta, magra, usando óculos de Sol enormes, blazer e calça emergiu do lado do passageiro, e dois homens de ternos negros saíram da parte traseira da Mercedes.

O Sol lhe prateava os cabelos louro-brancos.

Tinha uma pistola na mão.

A esta altura os outros dois homens se posicionaram na limusine com as armas apontando diretamente para eles.

Era pura e simplesmente uma tocaia, ele concluiu. Mas a limusine não era blindada.

Tateando nervosamente para travar as portas, Dominic gritou com o padre Benjamin: — Pé na estrada... eles querem pegar a criança!

O padre Benjamin puxou a marcha à ré por engano. A limusine deu um solavanco para trás, batendo na grade do radiador da Mercedes.

Revirando-se no volante, Benjamin se atrapalhou todo. O grande motor V-8 da limusine uivava enquanto os pneus traseiros faziam barulho e fumaça. Mas a parruda limusine estava enraizada.

Os pára-choques dos carros estavam enganchados.

A janela do motorista subitamente explodiu em gotículas de vidro.

Enfiaram a boca do cano de uma pistola com silenciador.

Em seguida veio o latido abafado do tiro.

O padre Benjamin levou dois tiros no peito, cambaleando no banco do carro ao levar os tiros no tórax e então tombou lentamente.

Dominic reconheceu um dos homens que empunhavam armas reluzentes com desenvoltura. Estava se dirigindo ao lado de Dominic na limusine.

O padre se jogou sobre Noor, protegendo-a do ataque iminente.

— Bam!

Seu lado da janela se esfacelou e choveu vidro sobre ele.

A porta se abriu.

Agora ele ouviu a voz rouca da mulher.

—        Cuidado, du arschgesicht! Não machuque a criança!

Dominic foi arrancado da limusine por mãos brutas e jogado no chão.

Levantou os olhos e viu os homens puxando Noor para fora do carro. Ela não tentou resistir, apenas agarrou seu ursinho de pelúcia cor-de-rosa bem firme junto ao peito. E quando seus olhos pedintes encontraram os dele, o padre se esforçou para ficar de pé.

Ele foi envolvido pelo aroma opressor de perfume que vinha de cima.

A mulher de pernas longas estava parada bem em frente a ele, impedindo que ele visse a menina.

—        Não se levante, padre — ela disse com toda a calma enquanto lhe bicava cruelmente as costelas com a ponta da bota, sem parar. Ele sentiu um osso quebrando.

Grunhiu debilmente.

Em meio a uma névoa escura ele a viu se agachar em frente a si, sentiu seus dedos longos lhe alisando os cabelos, sentiu seu bafo quente no rosto quando ela chegou mais perto.

Agora calma, liebschien. Sentir dor é gut, ja? — ela murmurou, esfregando-lhe a orelha enquanto enfiava o cano de sua pistola nas costelas feridas.

Hand, leve este aqui também — ela gritou para o outro agressor. — Ele me agrada.

 

Brody Devlin acenou com a cabeça para o segurança naval com cara de garoto que estava de prontidão ao lado do elevador. Brody e Chewie pegaram o elevador sem identificação e desceram para as entranhas das instalações sub­terrâneas da Embaixada Americana. Seguiram por um estéril corredor branco e iluminado com luz fluorescente para chegar ao centro de comunicações. Cada um deles levantou a palma da mão para a unidade de leitura e deixou a córnea do olho direito ser escaneada por um óculo.

Câmeras acompanhavam seus movimentos e alimentavam a imagem de suas feições em um computador Face-Indent. Após um zumbido agudo, a pesa­da porta corta-fogo se abriu e eles entraram.

Igualmente ao corredor, o recinto era grande, e artificialmente branco e imaculado; dava para comer no chão. Estantes de equipamentos eletrônicos revestiam as paredes. O ar gelado, combinado ao metal cromado e cintilante e aos computadores industriais, dava ao recinto uma qualidade fria e inumana.

Cadeiras proporcionalmente espaçadas cercavam uma longa mesa de conferências, que por sua vez estava dentro de uma grossa concha de vidro. Uma tela LED pendia de uma moldura de metal de uma das cabeceiras da mesa. Perto dela havia um enorme picador de papéis e um saco de documentos que era incinerado diariamente.

Era uma versão aumentada da "Gaiola", que por sua vez era uma área high-tech à prova de som e de violação de confidencialidade.

O sistema era constantemente vasculhado em busca de falhas e quando estava sendo usado era coberto por uma película descartável.


Alguns riram da idéia de haver um informante bem dentro da embaixada, mas quando acontecen, contramedidas foram tomadas.

Sentados de frente para painéis de controle e workstations de computadores, técnicos se ocupavam de ordenar o tráfego na embaixada.

Detrás de um grande painel no canto ficava um centro de comando e controle que servia de terminal multi-agência para equipes de vigilância e proteção de dignitários.

Um técnico que estava entretido com um manual de códigos de fraude para o último jogo de computador Halo levantou os olhos.

—        O dia está devagar, hein, Reynolds? disse Brody.

O rapaz de vinte e poucos anos deu de ombros. Faz parte do trabalho, major. O que está rolando?

Reunião de inter-agência, e vamos precisar de uma teleconferência no scrambler.

Está na agenda bem aqui ele disse, apontando para uma prancheta pendurada no terminal. Sorenson está chamando, não está? o técnico perguntou com um brilho nos olhos que não passava de deliberada tentativa de escapar de levar uma bronca.

A embaixada era um lugar pequeno e os boatos corriam como fogo na palha.

Brody sabia que o chefe, Bill Sorenson, estava pulando de raiva por causa da merda monumental que ocorreu na Síria. Mas Bill era basicamente um bom líder e um cara equilibrado.

Foram interrompidos pela voz grave de Chewie. Ninguém gosta de ba­bacas petulantes, filho era evidente que seu olhar gelado enervava o técnico, que engoliu em seco e balançou a cabeça de modo exagerado, assentindo.

Tocaram a campainha da porta e Braxton entrou com dois homens.

Brody reconheceu um deles como sendo Adam Newley, inspetor-chefe do SO15, antes conhecida como Special Branch, divisão da Scotland Yard com plenos poderes de prisão e encarregada de lidar com crimes maiores e contra­terrorismo.

O outro cara era baixo, tinha o pescoço duro e olhos azuis aguados que abarcavam o recinto inteiro de uma só olhada. Seu olhar transmitia uma inte­ligência deliberada e brilhante. Ele era brutalmente corpulento; as camadas de banha um tanto disfarçadas pelo corte elegante do terno preto. Ele tinha um rosto redondo, pálido, de expressão monótona e banal. Fazia um estilo mais tradicional, típico "gravatinha" britânico de um clube conhecido como SSM. O Serviço Secreto de Sua Majestade.

Brody sabia, por trabalhar com eles, que a maioria daqueles diabos se apro­ximava mais daquilo que outros ramos chamavam de metrossexuais, esnobes degenerados que usavam ternos feitos sob medida e vinham de universidades de elite, longe da imagem de Sean Connery no papel de James Bond, o infame agente do MI-6. Em português claro, eles eram um bando de escrotos sectaristas que não confiavam em ninguém que não fosse como eles.

Newley foi logo recebê-lo, estendendo-lhe a mão fina e pastosa.

—        Meu chapa, vou lhe dizer, faz muito tempo que a gente não se esbarra.

Brody reparou na pasta amarrada ao pulso esquerdo de Newley. Quando Newley estendeu a mão livre para Chewie, o grandão optou por sua rotina si­lenciosa de índio. Olhar pétreo, e imóvel.

Newley olhou para o corpanzil de Chewie de cima a baixo, a sobrancelha arqueada. Meu Deus, Brody. Com que você alimenta este homem?

Brax interrompeu. Major, este é Sir Nigel Cummings, de...

Nossos amigos de Legoland. Brody usou o apelido do novo quartel-general do SSM no Tamisa, cujo design estranho lembrava lajes para construção.

O prazer é todo meu, major Devlin Cummings disse com um sorriso desrespeitoso.

Então Cummings virou-se para Chewie, que relutantemente estendeu a mão e se apresentou. O gordo arqueou as sobrancelhas e se recusou a apertar-lhe a mão.

Falando como se Chewie sequer estivesse lá, Cummings observou o resto do grupo e disse: Raindancer, hein? Digo, um pele-vermelha americano em carne e osso, que curioso.

O canalha acabara de ferrá-lo, Brody pensou fazendo cara feia, e respirou fundo, expelindo com força.

Rosto sem expressão e queixo firme, Chewie disse EE-TOH SHNEE, WHO-HNAU-YEH.

Cummings pareceu intrigado de início, mas depois a compreensão se fez presente em seu rosto emoldurado pelo queixo duplo. Sua língua nativa, xará. Que encantador, realmente.

Brody mordeu o lábio inferior, segurando o riso. Chewie o ensinara o suficiente de dacota para ele entender que Chewie acabara de chamá-lo de canalha mentiroso.

Chewie estava sorrindo agora enquanto ele resmungava: Te futueo et equum tuum.

Cummings balançou a cabeça, parecendo ainda mais intrigado.

Dando de ombros, indiferente, ele pescou com os dedos gordos e manicurados uma corrente do colete e abriu seu relógio de bolso de ouro. Creio que a reunião está marcada exatamente para as quinze e trinta, o que nos dá exatamente quarenta e oito segundos para começar ele fechou a tampa do relógio e foi em direção à Gaiola, com toda tranqüilidade, as mãos elegantement e enfiadas nos bolsos do casaco.

Brody se virou para Chewie e murmurou: Entendi a primeira parte, mas que diabos quer dizer o final?

Chewie explicou com um olhar acanhado: Tenho tentado diminuir o palavreado ultimamente, chefe. Então aprendi um pouquinho de latim.

E?

Disse ao imbecil para ele e o cavalo que ele monta se ferrarem.

Sentado à mesa de conferência, Brody tocou o interfone. — Tranque-nos e abaixe as persianas, Reynolds.

A porta se fechou com um sibilar pneumático e as cortinas desceram.

O telefone scrambler verde soou.

Devlin pediu licença e atendeu.

Fechou a cara quando viu que Chewie havia se instalado perto do cabeçudo do Cummings. Aquilo cheirava a problema com P maiúsculo.

A voz de Sorenson soou na linha.

Devlin, estamos no viva-voz?

Não, senhor, mas os outros estão aqui, esperando.

- Ótimo, não vai demorar. Não ficamos sabendo mais nada sobre os membros desaparecidos da operação. Negociar com os sírios pela libertação de seus corpos está fora de questão. Imagens de satélite posteriores mostraram que a força aérea síria bombardeou toda a região, varrendo tudo da face da terra, e pra valer! Pelo que conseguimos perceber, o vilarejo era um experimento biogenético que deu terrivelmente errado, e alguém queria apagar todas as pistas. A voz de Brody soou travada. — As famílias foram...?

—        Passadas para nosso pessoal. Não ia querer que fosse de outra forma.

Brody ouviu a dor na voz de Sorenson. Ele era um cara rígido.

Aos negócios. Temos informações que localizam Al-Dajjal na Europa, e à sua procura.

Canalha insolente, não é?

Esta pode ser sua maior fraqueza, explore-a.

Vou guardar esta, Bill. Tem alguma dica forte de quem seja o contato dele aqui?

Por isto que eu arranjei esta reunião de inter-agência. Preciso manter o controle disto ou os garotos em Langley vão querer um pouco da ação.

E nossos convidados não vão querer?

Quando você ouvir o relato completo, conseguirá ver as coisas com mais clareza, major. E mais uma coisa...

Brody completou o pensamento de Sorenson. — Senhor, desta vez eu não vou voltar de mãos vazias.

—        Falou bem. Agora me coloque na caixa.

Cabeças viraram quando a porta assobiou e Scout Thompson se esgueirou acanhadamente para dentro do recinto. Atrasado, como de costume. Scout ti­nha um fraco por mulheres e boates e no momento seus olhos pareciam dois buracos queimados em um cobertor de lã. Mas Scout era basicamente um bom garoto.

Brody lhe lançou um olhar reprovador só de brincadeira. A voz de Sorenson rangeu no Speaker no centro da mesa. — Cavalheiros, podemos prosseguir?

Breves saudações foram trocadas ao redor da mesa.

—        Como os senhores sabem, nossos dois governantes têm um interesse ardente em Al-Dajjal, e ambos os lados já pagaram um preço alto demais em baixas de pessoal para parar agora. O último informativo de nosso serviço de inteligência o localizou semana passada na Turquia, em Istambul. Nossas fontes relataram que ele estava atrás de antiguidades. Infelizmente, perdemos sua pista antes que uma equipe de captura pudesse ser enviada para agarrá-lo. E, como de costume, o Serviço Secreto Turco não cooperou muito.

-           Antiguidades, você disse? — Cummings perguntou, erguendo a cabeça.

—        Correto. Parece que ele estava interessado em um mapa que estava exposto no Museu Palácio Topkaki, o Mapa dos Antigos Reis do Mar. É do século XVI, mas teria tomado por base, se acreditarem na lenda, gráficos da época de Alexandre, o Grande. De qualquer forma, a questão é que um celular da Agência de Segurança Nacional confirmou que ele está indo para Londres, mas não sabemos como nem quando... só sabemos que será em breve.

—        Contatos em potencial? — perguntou o inspetor Newley.

—        Inspetor, tomando por base o serviço de inteligência que lhe requisitei para compartilhar com minha equipe, creio que o senhor já pode imaginar.

Newley assentiu consigo mesmo e pôs uma maleta Zero na mesa, destran­cando a algema de seu pulso.

—        Fiz o reconhecimento da área, dei umas passadas pelo vilarejo, major Devlin... antes de ser destruído — o chefe prosseguiu. — Queiram todos prestar a atenção na tela agora.

Os recursos para teleconferências seguras davam a Sorenson os meios para controlar remotamente a imagem digital do que estava acontecendo em Washington D.C., a quilômetros de lá.

Os pixels convergiram na imagem de uma série de caminhões. Através do zoom, deram close-up no logotipo:

GENO-DYNE SYSTEMS

—        GENO-DYNE SYSTEMS, cavalheiros — prosseguiu Sorenson. — O que seus caminhões estão fazendo neste vilarejo remoto e abandonado na Síria? Senhor Cummings, poderia nos resumir os antecedentes da empresa, por gentileza?

Cummings limpou a garganta. — GENO-DYNE vem a ser um conglome­rado internacional, cuja matriz fica aqui no Reino Unido. Heinrich von Gant é o fundador e principal executivo.

A imagem de Gant apareceu na tela LED.

Gant é natural da Alemanha e imigrou para o Reina Unido depois da guerra. Ele anglicizou o nome. Seu nome verdadeiro é Heinrich Schottendorff vou Gantzinger. Ele é industrial e acadêmico.

Combinação perigosa Newley observou.

Cummings revirou os olhos. Será que posso continuar sem ser interrom­pido, por gentileza?

Brody observou a imagem de Gant.

O homem era tão velho quanto o conceito de pecado, com seus sedosos, longos e brancos cabelos, penteados para trás de um rosto que era todo duro de ângulos e planos. Tinha testa alta e inteligente, lábios finos como lâminas e dentes pequenos e amarelados. Olhando mais de perto, Brody reparou em algo estranho.

Por alguma razão que Brody não sabia especificar no momento, as feições do homem pareciam falsificadas, quase como uma máscara.

Cummings voltou a falar, a voz monótona. Gant formou-se oficialmen­te como engenheiro, mas é, contudo, conhecedor autodidata de assuntos como física e filosofia, e fala seis idiomas fluentemente. Suas paixões são história, ar­queologia e antiguidades, especialmente livros raros.

Durante a guerra, ele estava envolvido no futuro projeto bélico da Ale­manha. Bateu de frente com Werner von Braun por causa do valor constante dos programas de mísseis V-l e V-2.

Mas também há um lado misterioso. Ele era membro de uma organiza­ção ocultista pã-germânica conhecida como Der Vril Geselhchaft, a Sociedade Vril, um desdobramento da infame Sociedade Thule, que se pronuncia DHÚ-LÊI. Este é o mesmo grupo de intelectuais e aristocratas racistas que financiou Hitler em sua ascensão ao poder.

Ele ajudou a fundar a Ahnenerbe, o Departamento Nazista de Ocultis­mo, o que se combina perfeitamente com seu interesse em arqueologia.

Brody interrompeu. Himmler não enviou expedições ao redor do globo em busca da Arca da Aliança ou coisa assim?

—        Mais precisamente Cummings explicou —, Himmler queria desco­brir provas bem definidas da pureza e ancestralidade da raça ariana. Manda­ram expedições à Noruega, ao Tibete e até mesmo à Síria e ao Iraque em mil novecentos e trinta e oito, antes da guerra. Seus amigos, os pais de Al-Dajjal, chefiaram as escavações na Síria.

A palavra Síria era uma punhalada nas vísceras de Brody. Haveria alguma ligação entre a escavação dos nazistas na Síria e os estranhos acontecimentos que ele acabou de testemunhar por lá?

O tenente Braxton acrescentou: — É, major, mas parte do programa deles era de experimentação com seres vivos, ou seja, os pobres prisioneiros judeus dos campos de concentração.

Brax trabalhara para o Escritório de Investigações Especiais do Departamento de Justiça, o ramo encarregado de localizar velhos criminosos de guerra, e assim acabou desenvolvendo um conhecimento enciclopédico sobre a Segunda Guerra. Apesar de advogado por profissão, Brax preferiu ser agente de campo, para grande desgosto de seus superiores, que achavam que ele serviria melhor empunhando um lápis e enfiando o nariz em velhos arquivos empoeirados. Seu talento de pesquisador, fluência em alemão e eslavo e mente ágil lhe garantiram um lugar na FORÇA ÔMEGA.

Brax prosseguiu. — Eles os fizeram formar fila e escolheram aqueles cujo crânio parecia interessante, atiravam neles e colhiam os cérebros para estudos. As experiências genéticas do doutor Josef Mengele eram parte disto. Para estudar o efeito dos ferimentos no corpo humano, eles simplesmente pegavam algum infeliz e lhe davam um tiro na barriga e ficavam estudando o que acontecia enquanto o pobre desgraçado ficava caído, sangrando. E por falar na Sociedade Vril, acho que me lembro ter sido fundada por um sujeito de nome Barão Rudolf von Sebottendorff. Talvez haja laços de sangue com nosso garoto, Heinrich Sebottendorff von Gantzinger?

Cavalheiros, se me permitem! — Cummings fez cara feia. — Esta ideo­logia pervertida não é apenas uma espécie de pesadelo distante. Grupos neo­nazistas e fundamentalistas islâmicos descobriram que compartilham o mesmo ódio pelos judeus, e seu objetivo é varrê-los da face da Terra.

Mas vamos voltar aos fatos. Heinrich von Gantzinger, também chamado de Gant, é mais conhecido como grande comerciante de armas, ultimamente se especializando em Veículos e Armamentos Não-Tripulados, mas ele tem instalações de pesquisa que estão explorando as fronteiras da genética. E ele também acumulou vasta fortuna, garantindo-lhe grande influência no sistema bancário internacional e na arena política de muitas nações.

Chewie havia começado a se remexer na cadeira como um colegial. Agora, subitamente, ele levantou a mão como se fosse mesmo.

Cummings tentou ignorá-lo, mas Chewie persistiu.

—        Muito bem, senhor Raindancer, tem uma pergunta?

Chewie inflou o peito. — Só uma. Quem foi o desgraçado que deixou este Canis filuis entrar no Reino Unido e protegeu seu rabo sujo?

Brody contraiu os músculos involuntariamente. Lá vem ele com esta palha­çada de latim outra vez.

Cummings cedeu a vez a Sorenson, cuja voz veio do speaker.

—        Chewie, já ouviu falar da Operação Paperclip? Escutando atentamente, Chewie fez que sim com a cabeça.

Brody Devlin balançou a cabeça e respondeu ao grandão idiota. — Nosso "bolsista da Universidade de Oxford" residente está fazendo que sim, Bill.

Sorensen prosseguiu. — Após a guerra foi uma loucura. Os Estados Uni­dos, os Russos e Churchill estavam ávidos para pôr as mãos nas pesquisas, nos principais cientistas e engenheiros da Alemanha. Era um mal necessário. E sim, alguns filhos da puta, para usar seu estilo latino, jamais pagaram por sua contri­buição aos crimes de guerra.

—        Heinrich von Gantzinger era financiado pelo Reino Unidos e, bem... os Estados Unidos também ajudaram a financiar sua pesquisa de sistemas avança­dos de armamentos. Isto responde sua pergunta?

O olhar de Cummings voltou para Chewie, seus olhos parecendo fendas e uma expressão condescendente no rosto. Chewie se revirou na cadeira e...

Brody enfiou o rosto nas mãos quando viu Chewie levantar um lado da bunda em direção a Cummings.

... soltar um estrondoso peido que empestou o ar.

Chewie lançou a Cummings seu olhar de "vai encarar?" e disse: — Fabriacate diem, caput steronis. Pago para ver, cabeça de bagre!

Todos ao redor da mesa caíram na gargalhada.

O rosto de Cummings ficou moído e ele tapou o nariz com a mão enquanto dizia com voz nasal: — Que lindo, muito maduro e simplesmente... lindo.

Cummings estava ficando com o rosto vermelho e tenso como um poste de luz, então Newley ficou de pé.

- Obrigado, senhor Cummings. Agora, onde estávamos? Ah, sim, o envolvimento de Gant e seus peculiares antecedentes. Faz anos que tanto nosso escritório de exportação quanto o controle de exportação dos Estados Unidos estavam tentando pôr as garras em Gant por causa das vendas de tecnologia e armamentos controlados e classificados.

-           O Mossad israelense também está na cola dele ultimamente. Parece que está intermediando negócios com todo tipo de fanático no Oriente Médio. Vocês, jovens... como dizem mesmo? Sim, acho que ele "tá no erro", negociando carregamentos não-autorizados de plutônio para Coréia do Norte e Irã.

—        Em suma, ele se tornou um peso morto e uma vergonha para a Coroa.

Brax interrompeu. Parece que seria interessante para todas as partes se o senhor Grant... simplesmente desaparecesse?

Ninguém falou nada, mas Newley fixou os olhos em Cummings.

Lutando com a própria circunferência, Cummings ficou de pé e foi para a frente da mesa. Enfiou os polegares nos bolsos do colete.

Ele suspirou pesadamente. Ah, o diabo que o carregue... um de nossos melhores agentes tentou se infiltrar a GENO-DYNE. Ele desapareceu. Ontem a noite seu corpo apareceu boiando no Tâmisa.

O silêncio caiu pesadamente na Gaiola.

A autópsia mostrou que ele sofreu uma prolongada e pavorosa tortura... Vou pular os detalhes.

Desculpe pela perda Brody disse, certo de estar expressando os pen­samentos de todos sentados ao redor da mesa.

Sorenson interrompeu. Major Devlin, nós sabemos que Al-Dajjal está trabalhando para Gant, deve ter trabalhado este tempo todo. Precisamos desco­brir os podres dele, e rápido, e tomara que consigamos, de quebra, atingir nosso alvo.

Olhares solenes foram trocados no recinto.

Quero que sua equipe se infiltre à paisana na organização de Gant.

Qual é o plano, senhor? Devlin perguntou secamente.

- Tem duas partes. Você vai se passar por um duvidoso comprador de armas. Com seu conhecimento de sistemas de combates futuros, vai ser sopa no mel.

Até parece, Brody pensou.

E o segundo ataque? — ele perguntou.

Seu hobby, sua paixão... será a isca — Sorenson explicou. — Amanhã à tarde, Gant vai comparecer a uma série de mostras e palestras no Museu Britâ­nico. A Biblioteca de Yale está excursionando com um velho códice, um texto alquímico conhecido como o manuscrito Voynich. Quero estar lá para abordá-lo em relação à impostura dos armamentos.

—        Outro agente secreto lhe fará uma oferta que ele não poderá recusar. Brody inclinou-se à mesa e falou com voz suave. — Quem e o que será, Bill?

—        Com a morte do pai, o professor Dominic Patrick Kelly herdou o manto de maior especialista em alquimia do Reino Unido. O padre Kelly oferecerá a Gant as páginas que faltam no manuscrito Voynich, que guardam a chave para decodificar aquela maldita porcaria inteira.

Brody pareceu intrigado. — Você disse... Padre Kelly? E como o encontro?

Sorenson deu risada. — É, ele é padre católico, mas tem doutorado em história. Não será difícil encontrá-lo. Ele estará dando a palestra.

Cummings irrompeu. — Deixe-me dizer ao major Devlin a razão pela qual Gant é tão obcecado com o Voynich e com alquimia.

Ele se virou para Brody. — Eu detectei um olhar questionador em seu rosto quando mostrei a foto de Gant na tela.

Ele bateu na tecla e a imagem reapareceu.

Brody disse: — O rosto dele parece uma máscara. Não tem movimento, é simétrico demais.

Precisamente, major Devlin. Deixe-me explicar. Algum tempo atrás, Gant foi severamente ferido em uma explosão em um de seus laboratórios de pesquisa. Ficou terrivelmente desfigurado. A inteligência de Gant só perde para sua vaidade.

Nós sabemos que ele gastou uma fortuna em cirurgias plásticas; contu­do, de acordo com nossas fontes, não adiantou de nada.

- O que vemos aqui é um protético, um pouco de maquiagem, por assim dizer. Ele contratou os maiores maquiadores de Hollywood para dar um jeito em seu rosto.

- A monstruosidade que jaz debaixo disto, ninguém jamais viu. Chewie grunhiu e Cummings apertou as narinas, refletindo. Chewie revirou os olhos e soltou uma gracinha: — Então ele é o Fantasma da Ópera, é isso?

-           Muito bem colocado, senhor Raindancer.

Chewie pareceu surpreso; Cummings finalmente pareceu gostar de algo que ele disse.

-           Você acertou na mosca ao definir Gant como um sociopata furioso e vingativo. Agora, para piorar a situação, do ponto de vista de Gant, ele não tem herdeiros para continuar o nome da família. Seu filho morreu jovem em um acidente de carro poucos anos atrás. Sua única parente viva é a sobrinha, Margot Gant. Uma mulher atraente que aparentemente herdou os gostos depravados do tio. — Ele balançou a cabeça afirmativamente para Newley.

O inspetor-chefe respirou fundo. — Os rapazes da polícia metropolitana nos disseram que Margot Gant é chegada ao sadomasoquismo, delicia-se com chicotes e ganchos, gosta mesmo. E não faz muita diferença para ela se seus amantes são garotos ou garotas de programa, nem se os parceiros estão de livre e espontânea vontade — Newley corou ao dizer isto.

Como se empurrado por um açoitador de gado, Scout finalmente voltou à vida. — Eu me ofereço como voluntário para investigar os clubes e me aproxi­mar dela, major.

Brody deu de ombros e balançou a cabeça. — Eu seria capaz de apostar que você se ofereceria.

—        Chegue muito perto de uma loba como essa e vai acabar se dando mal, garoto — Brax disse, fingindo uma deformidade na mão e agitando-a sobre o rosto de Scout, que a afastou.

Cummings tomou o comando.

Caso já tenhamos todos satisfeito nossos desejos lascivos e fantasias ado­lescentes, vamos continuar com o Voynich... podemos?

A despeito do que muitos pensam, a alquimia não tem a ver apenas com transformar chumbo em ouro. Ela também tem relações diretas com o mito da Fonte da Juventude. Sabemos que Gant patrocinou expedições em Yucatán, no México, em busca da fonte miraculosa. Sabemos que ele gastou uma fortuna equivalente tentando prolongar a vida e restaurar os traços faciais.

—        A coisa mais estranha é o seguinte. Ele bem que pode ter alcançado certo êxito em sua busca pela juventude eterna.

Cummings fez uma pausa e tocou no teclado mais uma vez. Apareceu na tela a imagem de um documento amarelado.

—        Como é o alemão dos cavalheiros? Peço que atentem para a data de nascimento na certidão de Heinrich von Gantzinger.

A boca de Brax se curvou em um grande sorriso. — Isto é impossível. Ora, diabo, se for assim ele tem...

Cummings acentuou cada sílaba.

—        CENTO E TRINTA E OITO ANOS DE IDADE.

Como não era de deixar ninguém dar a última palavra, Chewie acrescen­tou: — Ou seja, o canalha mais velho do mundo.

 

A fachada imponente do Museu Britânico se erguia como uma sentinela contra o céu cinzento.

Brody e Brax subiram os degraus íngremes e entraram no Grande Pátio. Brody usava sua camisa social branca favorita debaixo de um blazer feito sob medida. Sua calça cinza combinava com a gravata de seda. O Rolex Presidencial cintilou por debaixo da manga de seu blazer azul-real quando ele abaixou os braços. Ele estava dentro do personagem; emanava uma riqueza casual.

Bancando o advogado e banqueiro, Brax usava um terno azul-escuro Brooks Brothers.

Brody olhou para o teto de vidro que cobria todo o grand foyer e soltou um assovio. Bem impressionante ele disse a Brax, que assentiu com a cabeça, concordando.

No meio havia uma grande rotunda cercada por vastas escadarias. As som­bras das telhas de vidro em formato de pirâmide ao alto brincavam pelo chão de mármore branco e pelas laterais da rotunda, entalhando um lúgubre padrão geométrico.

De ambos os lados da escadaria central, como pontos de referência ances­trais, versões menores da fachada acolunada serviam de entrada para os salões de exposição.

Com licença Brax disse para a jovem no posto de informações, exi­bindo seu sorriso impecável. Poderia nos dizer como encontrar uma pessoa de sobrenome Kelly, por favor?

A moça levantou os olhos da revista que estava lendo, abriu a expressão fechada com um sorriso caloroso e pareceu encantada com os duros olhos azuis e com a beleza de Brak. Ela ajeitou os cabelos, os olhos brilhando de interesse. — Americano, hein?

Brax piscou o olho para ela.

Ela corou, baixou os olhos e começou a digitar no teclado do computador.

—        Há alguém com este sobrenome no salão de leitura esta tarde — ela dis­se, olhando demoradamente para ele com olhos de cãozinho carente. — Quer que eu lhe mostre onde fica, meu bem?

Brody interrompeu. — Acho que basta a senhorita nos indicar a direção correta e chegaremos lá.

Ela torceu o nariz, fuzilou-o com os olhos e lhe deu um mapa.

Enquanto caminhavam, Brody deu um sorriso falso para Brax e disse: — Cara, eu tenho gravatas mais velhas que ela.

Eles entraram no cavernoso salão de leitura e se dirigiram à mesa de infor­mações.

Uma mulher de cabelos vermelhos presos em um jeitoso coque estava de pé, de costas para eles. Brax começou a falar, mas Brody o interrompeu. — Cal­ma, tigrão, esta é comigo. — Limpou a garganta. — Senhorita, sabe onde posso encontrar Kelly?

A mulher virou para ele. Mesmo com os cabelos bem puxados para trás e pouca maquiagem, sua beleza natural deixou Brody sem fôlego. Ela tinha uma beleza sutil, com um quê de sobrenatural. Seus olhos, chamativamente grandes no rosto em formato de coração, eram de um verde brilhante e estonteante. Quando ele olhou mais de perto, uma sensação aguda de familiaridade lhe veio à mente. Não se lembrava de quando nem onde, mas com certeza já a vira antes em algum lugar.

Seus olhos verde-escuros o observaram. — Sim, em que posso lhe ajudar?

—        Desculpe.

Ela lhe lançou um olhar confuso. — Por que, o que foi que você fez?

Não, é que estou procurando por Dominic Kelly, o padre.

Bem, por que não disse logo? Você também está à procura dele? — Ela franziu o cenho.

Inquieta e nitidamente irritada com a linha de questionamento de Brody, Brax interrompeu. — Não queremos lhe aborrecer, senhorita. Poderia, por gen­tileza, explicar? É importante. Onde está o padre Kelly?

- Como eu disse, isto é exatamente o que eu gostaria de saber no momento. Meu irmão tem uma palestra para dar daqui a... — olhou para o relógio na parede — ...quarenta e cinco minutos, e ele ainda não chegou.

As palavras "meu irmão" finalmente fizeram sentido e Brody entendeu a confusão. Ela começou a virar para o outro lado e Brody voltou à conversa.

— Então a senhorita é a doutora Kelly?

Ela deu um tapinha no crachá em sua blusa branca, no qual estava escrito Dra. Blair M. Kelly, e se virou. Sem olhar para trás, ela se afastou e disse: — O senhor gosta de afirmar o óbvio, não é?

—        Senhorita, é típico do seu irmão não aparecer para algo como uma palestra sobre o manuscrito Voynich?

Ela parou e deu meia-volta. — Não sei por que isto seria da sua conta, Vocês, americanos, são insistentes demais, hein? — Então sua voz amainou e uma expressão questionadora tomou conta de seu rosto. Ela os observou bem de perto. — Vocês dois estão em forma física boa demais para dois acadêmicos supostamente interessados em uma palestra sobre um códice antigo. E a julgar pelas saliências debaixo dos braços, ou vocês têm sérias deformidades, ou estão escondendo armas.

Garota esperta, Brody pensou. Ele deu um sorriso inócuo e sugeriu: — Existe algum lugar onde possamos ter uma conversa em particular? — A expressão de Brody era séria, mas simpática. — Você parece preocupada com seu irmão.

Ela mordeu o lábio inferior e fez que sim com a cabeça.

—        Vamos para o meu escritório.

Ela destrancou a porta e se jogou sobre uma cadeira detrás de uma escriva­ninha entulhada de livros e papéis sem lhes convidar para sentar. Brody e Brax deram de ombros e se sentaram em duas cadeiras de couro gasto em frente a ela. Com um olhar de quem estava entendendo o que se passava, ela se debruçou sobre a escrivaninha e disse: — Como vocês são ianques, não podem ser da polícia. Quem são vocês, afinal?

Antes que Brody pudesse responder, ouviram uma batida forte na porta. Ela arqueou a sobrancelha, irritada, se levantou e foi à porta.

Brody a acompanhou com os olhos. Com seu corpanzil preenchendo a en­trada da porta, Nigel Cummings balançou a cabeça educadamente, ofereceu-lhe o cartão de visitas e mostrou sua credencial.

Blair leu o cartão e soltou um longo suspiro. — Fantasmas do MI-6[2] e dois agentes americanos sem educação... o que está faltando? — Ela deu um passo para o lado e o gordo passou por ela com seu passo manco.

Cummings olhou ao redor do pequeno escritório e reparou que não havia assento vago. Limpou a garganta e olhou feio para Brax, que relutantemente ficou de pé e foi para detrás da cadeira.

O rechonchudo lentamente se acomodou na cadeira estreita e se contor­ceu, tentando forçar seu amplo traseiro em uma posição confortável. Brody tor­ceu para que a cadeira cedesse ao peso.

É Dominic, não é? — Blair disse, os olhos começando a cintilar. À medi­da que ela se controlava para não entrar em pânico, sua persona de mulher feita de repente deu lugar a uma garotinha indefesa.

Se me deixar prosseguir, caro jovem — Cummings disse sarcasticamente, os olhos zombeteiramente buscando a aprovação de Brody.

Brody deu de ombros. — À vontade.

—        Lamento dizer que tenho notícias preocupantes, senhorita Kelly. Encon­tramos a limusine de seu irmão esta manhã em um terreno abandonado.

O lábio inferior de Blair tremeu levemente.

—        Havia um corpo no porta-malas — Cummings acrescentou friamente.

Blair começou a tremer.

—        Calma, calma, senhorita Kelly. Não era o corpo de seu irmão. Era de outro padre, o padre Benjamin, também ligado ao núncio do Vaticano.

Que grande imbecil, Brody pensou e sentiu um aperto no coração pela mu­lher, mas então viu a expressão de alívio tomar conta do rosto dela.

Blair retesou os músculos. — Não preciso de sua solidariedade condescen­dente. Como meu irmão foi se misturar com tipos como você... — virou-se e olhou para Brody — e este americano bobo?

Brody reparou que o fogo em seus olhos a deixava ainda mais atraente.

—        O padre Kelly tem trabalhado conosco — Cummings respondeu seca­mente. Ele então continuou a explicar sobre a armadilha que fora armada para Von Gant, omitindo a maior parte dos fatos em relação às atuais atividades de Gant e se concentrando em suas razões para ter enorme interesse no manuscrito Voynich.

Ele prosseguiu, fazendo um pequeno esboço do papel de Brody e do tenente Braxton na história, inclusive seu interesse em Al-Dajjal.

Brody a observou, e à forma com que o entendimento brotava em seus olhos inteligentes. Reparou no nariz sardento, no modo como ela o torcia de vez em quando, como um tique nervoso. Quando Cummings mencionou Al-Dajjal, seus olhos cresceram imediatamente, reconhecendo o nome, e Devlin detectou um aumento no batimento cardíaco dela pela pulsação da carótida no belo pescoço. Mas também detectou que ela devia estar escondendo algo mais; era como se, ao ouvir aquilo, algo além da compreensível consternação pela segurança do irmão estivesse lhe rasgando o coração.

Cummings tossiu em um lenço monogramado de seda e assoou o bulboso nariz. — Acho que isto é tudo. O que evidentemente nos deixa com uma pergunta...

Os olhos de Blair encararam os do rechonchudo homem.

—        Pode agir na falta de seu irmão? Tornar-se nossa agente secreta e lançar a isca? Você daria uma espiã e tanto, cara jovem.

Blair ficou olhando para as mãos por um momento, o olhar severo sobre a loto do irmão à mesa. — Eu estava mesmo preparando algumas anotações para a palestra. — Deslizou a mão por sobre a barafunda de papéis espalhados sobre a escrivaninha.

Ela fustigou o gordo com os olhos. — Tenho algumas condições.

Brody sorriu para si mesmo. Isso é que é garota.

Cummings suspirou. — Muito bem, minha cara, mas terá que...

—        Nem mais, nem meio mais. Quero que seja do meu jeito. Quero levar isto até o fim. Não vou ficar de fora e confiar que vocês colocarão a segurança de meu irmão em primeiro plano.

Brody interrompeu. — Bem-vinda a bordo, então. Faremos de tudo que estiver ao nosso alcance para trazer seu irmão de volta são e salvo.

A expressão no rosto dela finalmente se suavizou, mas logo endureceu, como se ela tivesse flagrado a si mesma baixando a guarda. — Pode ter certeza que vai, porque estarei bem na sua cola, o tempo todo.

Blair se virou para Cummings outra vez. — Só tem um problema.

Cummings apertou i is olhos. Ah, como assim?

Acho que Dominic não está realmente de posse das páginas que faltam, nem do segredo para o enigma do manuscrito Voynich.

Isto é lamentável disse o gordo, os olhos fulgurando ligeiramente —, mas não é nenhum problema incontornável.

Apareceu à porta a cabeça de um homem de rosto murcho e ombros caídos. Desculpe, doutora Kelly, mas está na hora da palestra.

 

Enquanto caminhava junto aos outros pelo corredor, Blair ficou em silêncio, imersa em pensamentos. Conteve a vontade de gritar. Sua mente girava com imagens de seu irmão e de Noor, que deviam estar nas mãos daquele maníaco do Al-Dajjal.

Ela decidiu que por enquanto não lhes falaria nada sobre Noor. Respirou fundo e deu uma rápida olhada de rabo de olho naquele homem chamado Devlin. Ele piscou e lhe deu um sorriso confortador.

Seus olhos azul-claros eram simpáticos, ela concluiu. Não guardavam traço de engano ou ambigüidade. Ele era alto, mais de metro e oitenta, e tinha queixo forte. Estava em boa forma para um homem de meia-idade. Seu visual saudável e cabelos grossos e escuros eram bons de olhar, sem dúvida. Quem sabe ela pu­desse confiar nele.

Quanto ao gordo do MI-6, ela não confiava nele, nem morta.

 

Noor acordou assustada. Um barulho metálico a amedrontou. Ela rastreou o pequeno quarto com os olhos. As paredes eram pintadas em suaves tons de azul e rosa, mas não havia janelas. Havia, contudo, um espelho ocupando toda a parede.

Ela observou seu reflexo. Reparou nas roupas.

Estava com um pijama estampado com cachorros.

Torceu o nariz. Deve ser de garoto.

Levantou o braço e a manga caiu pesadamente sobre seu pulso diminuto. E é grande demais para mim.

Outro barulho forte soou de alguma parte fora do quarto. Ela achou que havia alguma espécie de eco no som. Era sinistro.

Girou as pernas e saiu da cama dupla. Não havia maçaneta. Fora de seu alcance, viu uma pequena fenda estreita no meio da porta.

Sentiu a superfície lisa da porta; era gelada ao toque como metal.

Então começou a se lembrar, apesar de estar grogue e sentir que a cabeça parecia recheada de algodão. A idéia a fez rir de si mesma. Então se lembrou de Mister Muffins, o ursinho de pelúcia cor-de-rosa. Em pânico, olhou para os lados.

Debaixo da ponta do estrado da cama ela viu a ponta de uma das orelhas felpudas. Ajoelhou-se, pegou o ursinho, apertou contra o peito.

Uma lágrima começou a lhe descer pelo rosto ao se lembrar do sorriso ca­loroso do padre Dominic e daqueles homens maus. E aquela mulher nojenta e pavorosa de cabelos louros, claros como neve. Ela lhe lembrava Al-Dajjal. Tinha aqueles mesmos olhos de serpente e a risada maligna do Capitão Gancho da história de Peter Pan. O livro! Ela se enfiou debaixo da cama e viu que estava lá, mas não estava alcançando. Lutou para alcançá-lo e finalmente conseguiu tocar a capa com as pontas dos dedos. Puxou o livro para si.

Levantou e olhou ao redor mais uma vez.

A fenda na porta fez um barulho agudo e metálico, e se abriu.

Um par de olhos negros a encararam. Então ouviu mais uma vez o som metálico e subitamente abriram a porta completamente.

Uma figura tenebrosa e atarracada preencheu o umbral da porta, as costas iluminadas por potentes luzes fluorescentes cujos raios vindos de trás se espa­lharam recinto adentro.

 

Em pé no tablado, a doutora Blair Morgan Kelly alisou a saia distraidamente diante do grupo de alunos, historiadores, jornalistas e personalidades patrocinadoras do museu.

Bateu com o dedo no microfone e se aproximou, limpando a garganta nervosamente. Detrás dela havia uma enorme e plana tela LED que exibia imagens de vários códices antigos e uma xilogravura de um alquimista em pleno trabalho, cercado por hieróglifos dourados de símbolos mágicos. O título da exibição aparecia em letras garrafais: Magia e Alquimia.

—        O manuscrito Voynich, ou o doce enigma, como alguns o chamam... - apareceu uma imagem do códice enquanto Kelly falava — ... é cercado por histórias misteriosas.

Histórias de feiticeiros e de alquimia, de anjos e de necromancia. Ela fez uma pausa de efeito.

Uma história de troca de casais e da busca pela juventude eterna.

O manuscrito tem cento e quatro páginas em papel pergaminho, cerca de quinze por vinte centímetros, escrito em algum alfabeto secreto. Examinan­do de perto é possível ver as partes rasgadas das folhas que faltam, não se sabe quantas seriam.

O documento é abundantemente ilustrado com cerca de quatrocentos desenhos misteriosos como plantas, diagramas zodiacais, aquilo que chamaram de diagramas cosmológicos, e é ricamente colorido em azul, verde e vermelho. Há diagramas de mulheres nuas botando pra quebrar no que parece ser uma intrincada rede de banheiras e corredeiras. — Blair sentiu o sangue subindo ao rosto.

- O Voynich foi uma curiosidade até o momento em que um homem chamado Newbold alegou tê-lo decifrado, declarando se tratar do trabalho de Roger Bacon, o alquimista e monge franciscano do século XIII. Ninguém foi capaz de confirmar as conclusões de Newbold, então ele morreu, e não por causa de algum tipo de maldição de Tutancâmon, e sim devido à vergonha e ao ridículo a que foi exposto. Ele não foi o primeiro e nem o último a se tornar vítima do que parece ser a maldição do Voynich. Muita gente que estudou o assunto a fundo enlouqueceu, entregues à obsessão de terem descoberto sabe-se lá o quê. O Voynich, dizem alguns, é como uma sala de espelhos de parque de diversão; reflete de modo sombrio aquilo que jaz na profundeza dos pensamentos e da alma do observador.

Ela fez uma pausa e levantou os olhos em direção à parte dos fundos do recinto, arregalando os olhos ligeiramente.

Brody Devlin virou e os viu entrar. Eram Heinrich von Gant e sua sobrinha, uma mulher alta que caminhava sinuosamente, com movimentos felinos. Estavam cercados por uma falange de brutamontes. Guarda-costas, Brody concluiu, julgando por seus físicos anabolizados, estourados debaixo de seus ternos justos.

Brody ficou impressionado com a aparência de Gant.

O homem era alto, mais alto que ele, até. Seu corpo parecia esguio e rígido, inflexível. Mas quando os funcionários do museu os conduziram a seus assentos, Brody percebeu que fora precipitado em seu julgamento. Gant caminhava rapidamente, com calculada dignidade. O movimento passaria despercebido por um leigo, mas Brody era profissional. Sua postura denunciava flexibilidade e tonicidade escondidas.

Depois que eles se sentaram, Gant olhou para Brody e se sentiu examinado com fria e astuciosa eficiência.

Brody devolveu o olhar e um súbito calafrio lhe correu pelas veias. Inexplicavelmente, Brody se sentiu como se estivesse sendo rebocado, arrastado por alguma força invisível para dentro de uma armadilha para ursos; e aquele homem estranho em sua frente parecia ler os pensamentos de Brody e farejar seu medo.

 

O cordão umbilical visual foi cortado quando Gant se sentou e se virou para o tablado. Brody estremeceu, subitamente sentindo um frio na espinha.

Blair limpou a garganta.

—        O MV, vamos abreviar assim, foi encontrado em um. monastério jesuíta na Itália... em 1912 por Wilfred Voynich, negociante americano de livros. Quando ele faleceu, sua esposa, que parecia querer se livrar do documento, doou-o para a Universidade de Yale, onde agora está catalogado sob o número 408 e cuja Biblioteca de Livros Raros Beinecke teve a gentileza de nos emprestar para exibição.

—        Entre os supostos autores estão Deus, Roger Bacon, Anthony Askam, os Cátaros, os Illuminati... entre os tópicos estão: a nebulosa espiral, contraceptivos, suicídio, pimentões, girassóis e outras novidades botânicas do Novo Mundo que conflitam com a data atribuída ao MV. Os girassóis só chegaram às Américas muitos anos depois.

Um professor velho e cambaleante de cavanhaque pontudo e sotaque francês olhou por detrás de óculos de arame e perguntou: — Quem a senhorita acha que escreveu mesmo o documento? Acha mesmo que é um livro de alquimia?

Blair sorriu, entendendo, e olhou rapidamente para Gant, cujo rosto reagiu amarrotando-se em um sorriso cheio de dentes. — Acho que é um texto alquímico, mas provavelmente não é um texto autêntico de Roger Bacon — disse Blair. — Existe uma teoria segundo a qual é provável que o mesmo livro tenha aparecido em Praga em 1608. Rudolph Segundo era obcecado por ocultismo e converteu seu castelo inteiro em laboratório de alquimia, convidando alquimistas de terras longínquas para transformar chumbo em ouro. Ele comprou o MV de uma dupla de feiticeiros ingleses, o doutor John Dee e Edward Kelly.

—        Mas Dee também era um homem de letras e ciências, matemático euclidiano inglês que servia como astrólogo da corte a Elizabeth I, de quem caiu nas graças.

Um universitário de cara jovial na última fileira levantou a mão. — O doutor John Dee também não era acusado de praticar magia negra?

—        Sim, e é aí que as coisas começam a ficar realmente interessantes. Dee, apesar de talentoso, não tinha nenhuma capacidade mediúnica, de modo que procurou um médium. Bem, ele encontrou. Edward Kelly, um criminoso vagabundo que teve as orelhas arrancadas por falsificação. Kelly se dizia capaz de manter comunicação com anjos e de, através da alquimia, transformar chumbo em ouro. Kelly dizia ter encontrado um manuscrito indecifrável em uma tumba em Wales, junto com uma ampola de pó vermelho que chamava de "elixir da vida", depois do que Kelly ficou versado em divinação — termo antigo para previsão do futuro — na bola de cristal.

Blair apontou para o mostruário suspenso perto do tablado.

—        Senhoras e senhores, a bola de cristal âmbar de John Dee, supostamente entregue a ele pelo arcanjo Gabriel.

Ouviu-se um murmúrio velado que logo se desfez.

Brax sussurrou na orelha de Brody, apontando com a cabeça. — Dê uma olhada na princesa de gelo — os olhos de Brody se voltaram novamente para as demais pessoas.

Sentada ao lado de Gant estava uma mulher estonteante que Brody reconheceu das fotos anexadas ao relatório como sendo Margot Gant, sobrinha do velho esquisito.

Ela estava embalada por um justo conjunto Versace branco de calça e terno que acentuava suas formas bem-feitas. Ele tinha de reconhecer que ela era um espetáculo, mas em sentido perigoso. Com seus cabelos louro-brancos, seu rosto leitoso, de porcelana, e seus lábios cruéis, ela era uma "badgirl" dos pés à cabeça. O vermelho profundo de seus lábios parecia para ele a marca de sangue fresco derramado na neve, uma fina curva de mancha de sangue, tão frígida quanto o gelo ao seu redor.

Como se sentisse a atenção que ele lhe dirigia, seu olhar se voltou para Devlin. Ele engoliu em seco. Ela olhou abertamente e então virou, girando o longo pescoço. Brody sentiu um calafrio ao se deparar com aqueles olhos azul-claros. Só os olhos dela eram estranhos à paisagem congelada do rosto; eles eram vivos, quase selvagens. Pulsavam com uma sensualidade desenfreada e crua. Mesmo contra sua vontade, Brody foi atiçado por um doloroso desejo.

O som da voz de Blair Kelly o despertou de seu devaneio.

—        Em estado de transe profundo, Edward Kelly era capaz de fitar o interior da bola de cristal enquanto Dee transcrevia o que seria uma língua angélica chamada de enoquiana, que os rosacruzes e magos cerimoniais usam em seus rituais até hoje.

Eis onde entra na história a artimanha da troca de esposas. Kelly disse a Dee que as hostes angelicais ordenaram que ele e Dee compartilhassem tudo, inclusive as esposas. E de acordo com as anotações de Dee, foi o que fizeram. O filho de Dee, John, viria a lembrar que seu pai e Kelly passaram meses envoltos com outro sistema divinatório chamado shew-stone, tentando decifrar um livro misterioso escrito em hieróglifos.

Blair foi até o mostruário, levantou a tampa e hasteou um espelho de obsidiana negra.

—        Isto era uma antiguidade asteca que Dee ganhou de alguém, possivelmente de um ocultista rosa-cruz como Francis Bacon.

Blair cuidadosamente pousou a shew-stone novamente em seu apoio e olhou para os fundos do recinto.

Lá estava o gordo, em pé, com suas mãos pastosas e roliças apoiadas em uma bengala. Ela deu um sorriso forçado ao apontar para os fundos.

—        Senhoras e senhores, temos a honra de contar com a presença de Sil Nigel Cummings, um velho expert em códigos e criptologia do Ministério das Relações Exteriores.

Cabeças giraram.

Um tanto aturdido, Cummings apunhalou Blair com os olhos. Então, percebendo que todos os olhos se voltaram para ele, sorriu graciosamente e acenou. Brody teve de dar o crédito à mulher. Ela tinha colhões, com certeza.

—        Sir Nigel... poderia, por gentileza, explicar sobre o envolvimento de Dee com o Serviço Britânico de Inteligência?

Cummings endireitou os ombros enquanto caminhava pelo corredor em direção à frente do recinto. — Eu adoraria compartilhar com vocês... — parou, como se surpreso — ... as informações que li. Talvez todos estejam interessados em um pouquinho de cultura inútil.

As cabeças da platéia assentiram avidamente.

—        Há quem diga que John Dee foi o fundador do Serviço Britânico de Inteligência, ou MI-6, como é conhecido publicamente. Ao viajar por toda a Europa, ele estava na verdade repassando clandestinamente informações à Rainha Elizabeth através de um código secreto, sua língua angélica, chamada enoquiana.

- Sua assinatura era 007, a mesma que Ian Fleming adotou para James Bond, sua licença para malar. Os zeros representavam os olhos predadores, o sete alongado, o sinal da raiz quadrada, além de ser um número de sorte na numerologia.

Alguém perguntou: — Então a magia era um estratagema? Na verdade ele era espião e codificador?

— Bem... em se tratando desses tipos excêntricos, arrisco dizer que a verdade jaz em algum ponto no meio. Robert Boyle, famoso biólogo e estimado membro de nossa Academia Real, declarou em uma palestra que tinha certeza que o alfabeto angélico era, na verdade, um código elaborado. Mas por outro lado, no mundo dos espiões e da alquimia nada é o que parece. Boyle, como Sir Isaac Newton, também estudou alquimia e dizem até que ele viajou a Istambul para obter de uma sociedade secreta turca o Livro de Abraão. Alguns dizem que era uma versão anterior do Voynich, e que continha o segredo da fonte da juventude.

Brody viu que os olhos de Cummings se voltaram propositalmente para Gant ao terminar, como que para enfatizar a frase.

Blair foi para o lado de Cummings. — Há outro mito que envolve uma figura histórica mais recente. Ninguém menos que o doutor Carl Gustav Jung, uma das mentes mais brilhantes de nosso século. Jung também ficou obcecado com alquimia e escreveu vários livros sobre o tema.

—        Como devem saber, Jung era um tanto místico e profundamente versado em ocultismo. Apesar de a maioria de seus escritos ter sido publicada, parte de seu espólio se perdeu.

—        Seu diário mágico desapareceu. Há rumores de que ele teria decifrado o código do Voynich durante um estado de transe, e que a chave para a decodificação estaria em seu diário. Ao que consta, Jung disse aos amigos mais próximos que o MV tem a fórmula da Pedra Filosofal, o segredo da vida eterna.

 

Do canto do olho, Blair viu Gant apertando os olhos como fendas ao se inclinar para a frente na cadeira, o rosto ardendo com o brilho da transpiração. Hora de jogar a isca, ela pensou.

- Pode parecer terrivelmente irrelevante, mas um comerciante de antiguidades de Istambul me procurou recentemente dizendo possuir o diário perdido de Jung.

O rosto dela foi tomado por um amplo sorriso quando percebeu que o rosto de Gant ficou pétreo de concentração.

O professor idoso de chapéu e cavanhaque à la Vandyke levantou a mão repleta de manchas senis e disse: — Mon Dieu! Eu bem que queria um gole desse elixir da vida, doutora Kelly. — Continuou com seu forte sotaque francês, — À vrai dire, adoraria me tornar um jovem mestre Harry Potter, oui? — piscou o olho de modo galante. — Será que Mademoiselle poderia fazer um favor para este velho bobo?

Blair riu. — Quem sabe... mas, por outro lado, se me virem daqui a cinqüenta anos, senhoras e senhores, se eu continuar com a mesma aparência e a lei da gravidade não tiver tomado conta... poderão concluir que eu não quis compartilhar a receita. — Risos soaram por todo o recinto.

— E assim concluímos a palestra de hoje — Blair acrescentou, assentindo com a cabeça em direção a Cummings, que a saudou discretamente. — Caso desejem, por favor, visitem a exposição sobre o MV e John Dee. Coquetéis e canapés serão servidos dentro em pouco. Quanto aos membros do booster club , não se esqueçam de levar seus talões de cheque.

 

Noor quase deu risada quando a figura saiu da sombra em direção à parte clara do quarto. Agora não era mais assustador. Era um homem baixinho e troncudo, e para Noor parecia que tinha pele de rato colada na cabeça. Tinha bochechas vermelhas como maçãs, cara de Lua e usava um longo jaleco de médico. Ela tentou desviar o olhar, mas não conseguia tirar os olhos daquele chapéu engraçado.

—        Acho que ficar olhando fixo assim é um pouco de falta de educação da senhorita, não é? Ou será que nunca viu uma peruca na vida? — o homenzinho explicou. Ele tirou a peruca, revelando a careca lustrosa. — Viu, agora eu pareço um ovo, ja? — seus olhinhos cintilaram jocosamente.

—        Não tive intenção de ser mal-educada, senhor...

—        Por favor, pequena senhorita Noor — ele disse, pondo a peruca de novo na cabeça. — Pode me chamar de... bem, que tal doktor Humpty Dumpty?

—        Não me chame assim! Meu nome é Wendy — ela gaguejou.

Noor achou que ele estava brincando e ela não tinha entendido a piada. Apesar de parecer que o doutor Humpty estava se divertindo pelo jeito com que ele batia palmas animadamente, o rosto corando e passando de rosado a vermelho.

—        Aliás, falando em ovos, aposto que a pequena senhorita... Wendy, se prefere assim... deve estar querendo tomar o café da manhã, ja?

O estômago de Noor roncou ao pensar em comida. Estava faminta.

—        Poderia ser chocolate quente, e ovos, e pão, e mingau, e manteiga, e sorvete, e...?

- Com certeza, mas eu vou ficar de costas enquanto a senhorita veste estas roupas. Não seria elegante se sentar à mesa de pijama — ele lhe entregou uma blusa, calça e sapatos. Apontou para uma pequena pia e um armário no canto. — Por que não se refresca também?

Noor ficou olhando para ele, sem entender, e cheirou as axilas. — Não estou limpa?

Humpty Dumpty bateu na coxa. — Ah, querida senhorita Wendy, estou me referindo a lavar bem o rosto, e não se esqueça de lavar detrás das orelhas e depois escovar essas pérolas branquinhas e escovar esses cabelos sedosos, ja?

—        Certo, mas vire para lá e não espie, doutor Humpty.

—        Sabe o que mais? Vou esperar lá fora, e quando estiver pronta a senhorita me chama, ja?

Noor fez que sim e quando a porta se fechou, ela tirou o pijama e foi até a pia. Olhou para o sabonete, levou-o ao nariz e instantaneamente jogou na pia. Eca, tinha cheiro de queijo velho. Abriu a torneira, molhou as pontas dos dedos e esfregou detrás das orelhas. Depois pegou o creme dental. Fez força para tirar a tampa, e quando conseguiu, apertou o tubo com tanta força que um jato do creme foi projetado sobre o espelho da pia. Ela deu de ombros e passou o dedo na pasta pegajosa e escovou suas "pérolas branquinhas" com o indicador.

Ao terminar, olhou para seu reflexo. Com seus pungentes olhos de tom índigo, olhou atentamente para o próprio corpo. Pôs as mãos na cintura e virou, e desvirou. Imaginou se seu peito ficaria estufado como o de Blair. Puxou um fio de sobrancelha, como vira Blair fazer no hotel. Soltou um gemido de dor. Esqueça isto, ela pensou... deixe-as crescer que nem barba de bode. Então pegou a escova de cabelo e começou a passar as cerdas suaves no cabelo sedoso, contando cada escovada, mais uma vez imitando Blair.

Do lado de fora, o doutor Cravem, também conhecido como Humpty Dumpty, entrou furtiva e rapidamente na sala adjacente. No recinto parcamente iluminado, ele ficou observando Noor através do espelho falso Mirrorpane, e acendeu um cigarro, os olhos agitados. — Um belo espécime, não é mesmo?

O homem alto ao seu lado se virou, agigantando-se sobre ele. Seu rosto não tinha expressão nenhuma. Usava calça caqui, camisa pólo abotoada e mocassins, e seus cabelos estavam agora escuros e ondulados.

Al-Dajjal caracterizou se de "americano típico", dissera ao criado depois de passar pela alfândega de um campo de aviação privado perto de Heathrow e entrar em uma Mercedes.

Ernst tomou seu lugar de direito do lado direito da limusine, a posição correta de guarda-costas. Agora que Al-Dajjal estava de volta, ele não precisava mais ser motorista e cãozinho de estimação de Margot. Era o braço direito de Al-Dajjal, um assassino altamente qualificado e brutal. Ernst era conhecido como "Der Eisaxt", e não era à toa. O machado de gelo era seu instrumento favorito, como ele mesmo dizia.

Copiado da arma de combate corpo a corpo usada pelo SOE, o machado era feito sob encomenda, com liga metálica de alumínio leve, mas forte. Em vez de ter uma adaga cortante na ponta de um cano, tinha uma lâmina dentada retrátil, como um machado de gelo de montanhista. A ponta reversível era reforçada com uma bola de aço. Ao retrair da lâmina, Ernst podia golpear sua vítima com a pesada bola, usando-a como um black jack enlaçado ao pulso e antebraço. Quando ele puxava uma argola na lateral do cano, saía um fio de arame aliado como navalha e a arma se transformava em um verdadeiro garrote.

Para Al-Dajjal, o apelido combinava com o homem. Ele era certamente tão estúpido quanto um saco de machados, mas servia fielmente como um instrumento implacável, em geral derrotando adversários com sua perseverança e sua aparentemente ilimitada resistência à dor. Sentava em um bar, escolhia alguém de quem não gostava por causa do jeito do homem falar, caminhar, ou por não olhá-lo nos olhos. Quer dizer, no olho bom que tinha. O outro fora arrancado em uma briga de bar e substituído por um olho de vidro amarelado que lhe fazia parecer estrábico, pois a órbita de vidro era ligeiramente inclinada para dentro.

Certa noite um halterofilista musculoso cometeu o erro de olhar para der Eisaxt de cima a baixo em vez de olhar para outro lado, o que também seria uma afronta equivalente para o sujeito. Começaram a berrar um com o outro e o halterofilista arremessou der Eisaxt sobre uma janela de vidro e ele foi parar na calçada. Não satisfeito, o homem fez a besteira de partir para cima de der Eisaxt uma segunda vez. Quando der Eisaxt fiou de pé, o homem lhe deu uma porrada com o extintor de incêndio que havia arrancado da parede do bar,

Com olhos duros e sem esboçar reação, der Eisaxt enxugou o sangue do olho bom e do nariz quebrado. Seu "instrumento" saiu de baixo da manga direto para a mão. Com uma angulosa virada de pulso, ejetou a lâmina do machado com sua superfície dentada cintilante e a apontou. Seu olho bom soltava faíscas, ardia em silenciosa raiva, e o outro olhava para o nada, apagado. Ele arremessou contra o outro com o próprio corpo, jogando-o no chão.

Der Eisaxt imobilizou o homem, sentando sobre ele, enquanto atacava o halterofilista cruelmente, martelando-lhe a mandíbula repetidamente, o sangue jorrando sobre o peito de der Eisaxt e lhe cobrindo o rosto. Finalmente, a título de coup de Grace, ele levantou seu instrumento no ar e baixou em um movimento poderoso e indistinto. Cravou fundo na testa do halterofilista. Então tirou, deixou uma cratera como assinatura.

Al-Dajjal sabia que der Eisaxt só tinha uma paixão na vida. Não ligava muito para as mulheres, costumava resolver suas necessidades com alguma prostituta de rua que, por pouco dinheiro ou drogas, satisfizesse suas sombrias preferências, o que implicava dominação; não ligava muito para comida ou bebida, normalmente se virava com fast-food, como se comer fosse uma necessidade maçante, e se fosse o caso bebia apenas bebidas baratas. O que der Eisaxt precisava, a única coisa de que ele realmente precisava na vida era mutilar, torturar e matar. E enquanto Al-Dajjal satisfizesse sua sede de sangue com regularidade, o homem continuaria fiel e leal como um cão.

Baixando os olhos agora para o médico com cara de bebê, Al-Dajjal disse: — Deixe-a tomar o café da manhã com as outras crianças agora. Depois, esta tarde, comece os testes e exames.

O doutor Craven desviou os olhos do espelho falso e encarou o olhar fixo e gelado de Al-Dajjal, bem na hora que Noor terminou de escovar os dentes e escovar os cabelos. - Sim, os testes. Se ela for dotada dessas capacidades peculiares que você diz, é sinal que a Sonnenkinder chegou mesmo, ja? — seus olhos pequenos brilharam.

Num piscar de olhos Al-Dajjal estendeu a mão e agarrou o médico pela orelha, torcendo com força e puxando mais e mais alto. — Verdamnt, du fette schwiennund! Você está tendo a audácia de questionar o que relatei, herr doktor?

O sangue sumiu das bochechas rosadas do médico, que fez careta de dor, ficando na ponta dos pés. — Certamente que não, eu só quis dizer que...

Grunhindo em resposta, Al-Dajjal soltou-lhe a orelha. O médico foi até a porta de pernas bambas e esfregando a orelha.

Al-Dajjal se virou e chamou o monstro taciturno que estava em pé atrás de si. — der Eisaxt, vá pegar o padre. Leve-o para a sala de interrogatórios.

Ernst assentiu obedientemente. — Ja voll, imediatamente, mein herr.

Ernst já estava saindo quando Al-Dajjal acrescentou: — E traga suas ferramentas!

 

Chewie puxou a gravata e abriu o colarinho da camisa. Jamais usava gravata, mas o uniforme de motorista de limusine era parte do disfarce. Para piorar a situação, teve de enfiar seu longo rabo-de-cavalo debaixo do quepe de motorista.

Lá fora, no estacionamento VIP do museu, ele ficou de papo furado com outros motoristas e havia acabado de dar um pouco de café fumegante da própria garrafa térmica para Rolf, motorista de Gant. Já sabendo que motoristas gostavam de tagarelar enquanto esperavam o retorno do chefe por horas a fio, Chewie não teve dificuldade em fazer amizade com o motorista de Gant. Só precisava começar a reclamar das longas horas de espera, que nunca lhe davam nada para comer, nem mesmo uma xícara de café. Chewie selou a amizade ao oferecer a Rolf um pouco de licor Schnapps.

Chewie sugeriu que fossem dar uma volta para ver as garotas locais, explicando que um amigo que trabalhava no museu ficou de ligar para ele quando os convidados começassem a sair. Rolf relutou, mas depois de mais duas doses de Schnapps acabou concordando.

De seu posto em outra limusine, Scout Thompson ouvia a conversa deles, pois Chewie estava com uma escuta escondida. Quando viu que a área estava livre, Scout, que também estava com uniforme de motorista, entrou com toda naturalidade na limusine de Gant. Clicou em um controle remoto universal de alta tecnologia que ele vinha aprimorando desde sua criação na vida passada, a "perda de tempo de uma criança prodígio", como chamou seu advogado quando ele foi preso por fazer ligação direta em carros. O controle fazia sua mágica, desativando o alarme da limusine e destrancando as portas. Quando as travas das portas subiram, ele abriu a porta do motorista e se posicionou ao volante.

Em poucos minutos ele plantou as escutas e instalou um sistema GPS para rastrear o carro. Murmurou em seu microfone na lapela: — A limusine está grampeada, garotão. Você e Rolf podem voltar agora. — Scout voltou para a limusine e abriu seu laptop, procurando pelo sinal.

A voz de Scout chegou ao fone mínimo que Chewie usava, completamente escondido detrás de seus cabelos longos e grossos. Chewie virou em direção a Rolf. Fazendo uma cara tensa, ele resmungou: — Preciso soltar um barro. Vamos voltar.

 

A silhueta esguia de Gant dominava os outros convidados que o rodeavam durante a recepção. Ao seu lado estava Margot, tentando desesperadamente não demonstrar o quanto estava louca de tédio.

Blair pediu licença a uma matrona desconjuntada que mais parecia um pote de carne e seu acompanhante, um gigolô de trinta e poucos anos, e foi desviando das pessoas até chegar a Gant.

Ao chegar mais perto, Blair viu que Gant tinha olhos escuros como ameixas. O rosto daquele homem alto era comprido e anguloso, as maçãs do rosto altas, e bochechas cavadas que contribuíam para sua aparência cadavérica. Seu nariz era forte como uma ponte. O rosto era firme e com poucas rugas. Parecia mais jovem do que era e exalava uma força que camuflava sua compleição esquelética. Mas quando ela olhou para o pescoço, viu as marcas da idade. Era tão animalesco que o colarinho e a gravata não escondiam. Blair teve um calafrio de repulsa ao ver aquela carne oca e pelancuda.

Ele se virou para cumprimentá-la, imediatamente interrompendo a conversa com outro convidado. — Ora, doktor Kelly, que palestra excelente. — Ela estendeu a mão e Gant curvou-se elegantemente e beijou-lhe a mão, seus lábios escabrosos como lixas em sua pele.

—        Apesar de ter que confessar que estamos todos um pouco intrigados.

—        Mas por quê?

—        Esperávamos que seu irmão fosse palestrar. Devo admitir, contudo, que a considero bem mais agradável aos olhos — ele sorriu, venenoso como serpente.

Blair forçou um sorriso - Motivos de força maior - ela observou o rosto de Gant, procurando por uma reação e não encontrando nenhuma. — Sabia do diário de Jung?

Balançando a cabeça enfaticamente, ele se inclinou como quem fala confidencialmente. — Ah, a senhora não tem papas na língua. Como sabe, sempre estou interessado em antiguidades e não teria como não me interessar por esta — acrescentou estas últimas palavras como se não tivesse pensando nisto antes, e Blair concluiu que ele estava simulando desinteresse, mas ela conseguiu enxergar além do disfarce.

Do canto do olho, Blair notou Margot Gant, cuja expressão altiva se transformou em nojo gelado ao ver o tio dar atenção total a Blair, que percebeu que ela não gostou do fato de Gant não ter se dado ao trabalho de apresentá-las.

Apesar de Blair voltar a olhar para Gant e dar um jeito de ficar de costas para Margot, deu para sentir na nuca o olhar fixo e de congelar da princesa de gelo.

Blair flertou desavergonhadamente, agindo de forma exagerada e, como quem não quer nada, tocando o antebraço de Gant vez ou outra enquanto conversavam. — Então imagino que estaria interessado em ver algumas das fotocópias do diário que me foram enviadas por um comerciante de Istambul, não? — ela deixou as palavras soltas, tentando-o.

Gant cresceu os olhos. — Você tem cópias? — sua voz se tingiu de tensão nervosa, traindo seu interesse além do casual pelo diário.

Blair deu um tapinha no bolso de seu blazer. — Guardo-as bem perto do coração — ela disse, piscando.

Um homem que se apresentou como anexo militar interrompeu a conversa. À sua esquerda estavam Brody Devlin e Brax. Gant soltou um pesado suspiro e se virou para o militar. — General Powers, é muito típico de sua pessoa vir me salvar quando sente que estou a ponto de sucumbir aos truques e encantos de uma bela jovem.

Blair corou apropriadamente, tentando não olhar nos olhos de Brody e Brax, pois não tinha certeza de conseguir manter a seriedade.

O militar sorriu e olhou para Blair. Então apresentou Brody e Brax como partes interessadas que representavam um grande comprador de armas.

- Com licença, cavalheiros, mas preciso ir ao toalete. – Blair disse, e deu as costas.

- Doktor Kelly, por favor, volte, sim? — Gant disse com voz sedosa que era quase uma ordem, mascarando a qualidade autoritária de seu olhar.

Gant estendeu a mão a Brody, que a apertou, correspondendo em força ao aperto de alicate de outro. Quando Brody soltou a mão, o homem apertou mais ainda, segurou rapidamente, fazendo pressão de quebrar ossos. OK, se está querendo brincar, meu velho. Brody se esforçou o quanto pôde para se conter, os olhos agora colados aos de Gant, cujos olhos escuros cintilavam, achando graça.

Por estes breves segundos não houve segredos entre eles. Gant pareceu enxergar o interior do outro, e fazia troça do que via. Então Brody lembrou que era Gant quem realmente usava máscara. Olhando atentamente, Brody teve de admitir que olhos leigos mal detectariam a prostética e a maquiagem.

De uma só vez, Gant soltou a mão e Brody até pensou ter imaginado a coisa toda.

O militar disse: — O senhor Devlin representa clientes que procuram armamentos automáticos exclusivos, senhor Gant.

Gant respondeu jocosamente. — Será que não podemos determinar desde o começo quem são esses clientes, senhor Devlin?

—        Creio que terei de invocar a quinta emenda constitucional , senhor — disse Brody, passando a palavra a Brax.

—        Como conselheiro legal dos clientes envolvidos, me foi solicitado que não divulgasse suas identidades até termos certeza que o senhor poderá suprir nossas necessidades. Todavia, me pediram que lhe fossem passadas estas cartas de crédito.

Gant pegou a pasta com as cartas das mãos de Brax e as passou para o guarda-costas sem pescoço, sem sequer olhar para elas e gesticulando desdenhosamente. — Tenho certeza que está tudo em ordem, senhor Braxton. Eu tenho alguns... brinquedos novos, como os chamo, em meus fundos de guerra — deu uma risada rígida. Voltou os olhos novamente para Brody. — Mas você também sabe das instalações para pesquisa genética da Geno-Dyne, percebo - Brody balançou a cabeça, assentindo.

Mas com certeza. Está desenvolvendo algum super-soldado por lá, ou quem sabe um exército de raça superior? — Brody devolveu a provocação e ficou em silêncio enquanto Gant primeiro apertou os olhos e depois os arregalou subitamente.

—        Um pouco de humor americano, hein? Por que não vão ao campo de testes amanhã à tarde para uma pequena demonstração?

Blair sentou-se furtivamente ao lado de Brody. — Com licença, estou interrompendo alguma coisa, senhor Gant? — ela deu seu sorriso mais provocante.

—        De forma alguma, minha querida. Estamos apenas falando de negócios. Mas tenho uma idéia esplêndida. A senhorita, o senhor Devlin e acompanhante podiam ser meus convidados amanhã à tarde. Estou dando uma festa para meus protegidos.

Parecendo intrigada, Blair perguntou: — Protegidos, senhor Gant?

Margot se aproximou do grupo, atraindo para si todos os olhos ao passar. Seu olhar esnobe hipnotizava os homens ao fitar seus rostos, um por um. Blair percebeu como os homens, inclusive Brody, olhavam para ela como colegiais apaixonados. Mas para Blair ela tinha uma aparência rígida, laqueada, como uma boneca de filme de terror, com olhos que não piscam. Uma boneca que exalava o calor de uma cabeça humana pronta para ser exposta como um troféu.

—        Ah, Margot. Cavalheiros, permitam-me apresentar minha adorável sobrinha — disse o negociante de armas em tom presunçoso, como se zombasse do evidente deslumbre dos homens pela mulher.

Os olhos de Margot se voltaram para Blair. — Meu tio é um homem muito generoso. Ele tem uma escola para crianças abandonadas no interior. Nós a chamamos de Éden. Amanhã é o quarto aniversário da escola, de modo que teremos uma festa no jardim para os queridinhos.

O tom de subjacente insensibilidade na voz de Margot fez Blair pensar na bruxa da história de João e Maria. Imaginou os protegidos de Gant trancados em jaulas suspensas do teto e com Margot gargalhando e forçando os pequenos a comer para o grande assado no qual tocaria fogo na casa de pão-de-mel, assando-os vivos para o jantar. Mas ocorreu-lhe que Margot cometera um ato falho. Era capaz de apostar uma garrafa de uísque single-malt Macallan que Éden era exatamente para onde levaram Noor.

Balançaram a cabeça, aceitando o convite de Gant.

- Excelente. Bem, senhoras e senhores, precisamos ir agora — seus olhos espetaram Brody ao se virar. —Tenham uma ótima noite.

Enquanto estudava a imagem de Gant que se retirava com sua entourage, Brody inclinou-se e murmurou na orelha de Blair: — Dou um doce pelos seus pensamentos.

Blair tapou a boca com uma das mãos e respirou ruidosamente. Então se conteve, virou e piscou o olho. — Não sei quanto ao senhor Devlin, mas esta moça aqui precisa de pelo menos umas duas doses. E então?

—        Está me convidando para beber ou tentando me seduzir? — Brody brincou.

Ela revirou os olhos. — Está pagando, senhor gastador?

—        Pode me chamar de velhote ricaço, órfãozinha carente — ele disse, tomando-a pelo braço e levando-a até a saída.

Brax limpou a garganta. — Ah, não ligue para mim. Vou dar uma olhada no local, enviar uns cartões postais, jantar sozinho tranqüilamente, fazer umas palavras cruzadas.

Brody respondeu, vindo por trás: — Vai mesmo, tenente. E vai ficar longe daquela garota do posto de informação lá em baixo, e vai acompanhar Chewie e Scout. Quero todos de cabeça limpa e com todo o gás para amanhã, se é que me entende, garanhão.

Brody parou e se virou. — Se precisar de mim, ligue para meu celular. Tente não precisar!

 

Pegaram um ônibus vermelho de dois andares, depois trocaram duas vezes de condução. Agora seguindo a pé, estavam bem longe do museu, cortando por ruas estreitas e trocando de condução mais uma vez. Brody não disse nada, mas percebeu por que Blair estava recuando. Quando dobraram a esquina, Brody viu de relance as figuras de dois guarda-costas engravatados de Gant lhes seguindo; um vinha por trás e acabou perdendo a pista quando eles deram meia-volta e começaram a andar em direção a ele, enquanto o outro pateta passou por eles em uma rua movimentada.

—        Estamos em marcha acelerada, doutora, ou tem planos de dar uma parada para descansar em algum momento? Será que tem um pub ou coisa assim por aqui?

—        Chame-me de Blair, senhor Devlin.

—        OK, Blair. Mas, por favor, me chame de Brody. Escute, estou faminto e sedento, e então?

—        Tem um pub logo na esquina.

Depois de dar uma olhada ao redor, ele disse: — Tem certeza que não estamos perdidos? Parece que o ambiente está ficando meio esquisito.

—        Isto é Londres... um pub praticamente em cada esquina.

No letreiro estava escrito Ten Bells. Brody entendia de história o suficiente para saber que eles acabaram chegando ao Whitechapel, velho reduto de Jack, o estripador.

Entraram e sentaram nos duros e implacáveis bancos de madeira, bebendo uísque puro com água. Os olhares curiosos dos freqüentadores mal-encarados deixou Brody desconfortável.

- Eu me sinto como se estivéssemos em exposição no zoológico     - disse Brody, com voz grave e olhos inquietos.

- Não somos nós, Brody — ela disse, virando outra dose de um gole só e batendo o copo na mesa. — E só você quem está na gaiola dos macacos, meu bem.

—        Vem sempre aqui? — ele perguntou sarcasticamente.

—        Isto aqui é armadilha para gringos, na verdade, portanto, não. Mas eu me misturo. Você destoa — ela apontou com a cabeça o Rolex de ouro e os mocassins lustrosos. — Aquele pessoal olhando para nós está tentando adivinhar que truque eu estou usando.

—        Truque?

—        Relaxe, valentão. Você está comigo. — Ela se virou e piscou para o grupo de homens sentados no bar, como se estivesse zombando de Brody.

—        Ah, sensacional. São assaltantes e trombadinhas.

—        Você queria comer.

—        Claro, mas gostaria de sair daqui com minha carteira, meu relógio e meus implantes dentários inteiros.

—        Pare de bancar o mariquinha!

A torta Shepherd chegou e Brody tirou uma boa colherada e engoliu, pois sabia que precisava de comida, do contrário ela ia acabar bebendo mais do que ele.

Foi quando um sujeito com olhos dementes de deixar Jack, o estripador, verde de inveja desceu do banco do bar e caminhou com seu corpanzil em direção a eles. Tinha uma enorme barriga de cerveja que esticava o tecido da camisa de tal forma que os botões ameaçavam estourar a qualquer momento. Mas seus braços e ombros eram torneados por músculos. Tinha cicatrizes nas dobras dos dedos e suas mãos pareciam martelos.

Parou junto à mesa com seu tamanho imponente.

—        Não fui com as suas fuças, cara. Ele tá te enchendo o saco?

Blair respondeu. — Está tudo bem por aqui, pedaço de mau caminho — ela riu com seus olhos verdes, tentando esfriar a situação que estava começando a ferver.

Não estava dando certo.

—        Não gosto desse seu risinho de canto de boca nessa cara gorda, ianque!

- Minha mãe gosta disse Brody. — Por que não deixa este ianque estúpido aqui pagar umas cervejas para você e seus parceiros, meu amigo?

O grandalhão fechou os punhos. A oferta de Brody não estava dando certo. Ele percebeu que os amigos do sujeito começaram a descer de seus bancos, seus olhares pétreos focalizando nele enquanto se aproximavam cada vez mais, de forma deliberadamente lenta.

Com os olhos cravados no homem e concentrando sua atenção, Brody teve a agilidade de pegar da mesa um misturador de cerveja e amarrou com força na toalha da mesa.

—        Tô meio que pensando em arrancar esse teu sorriso idiota da droga da tua cara, tô mesmo — apontou a porta com a cabeça. — Por que tu num dá o fora antes que eu te arraste pelo saco?

Por instinto, Brody cobriu a virilha com a mão. Mas Brody Devlin não era de resistir ao inevitável.

—        Você tem razão em relação uma coisa, bonitão. Você está "meio pensando" mesmo, pois só tem metade do cérebro.

O grandalhão levantou Brody pelo colarinho como quem levanta um pequeno saco de batatas e o fez cair do banco.

Brody girou e se livrou do sujeito, puxando a toalha de mesa que estava pesada com o misturador de cerveja, arremessando-o bem no maxilar do grandalhão, fazendo um barulho intenso de algo quebrando.

Piscando os olhos, o gigante balançou a cabeça e sorriu, exibindo uma cerca de dentes amarelados.

Brody ficou boquiaberto, sem acreditar. — Droga! Onde está Chewie quando eu preciso dele?

—        É só isso que tu tem, meu chapa? — zombou o fortão, martelando o maxilar de Brody com o punho, fazendo-o tropeçar e cair sentado.

Blair levantou, pisou com o salto do sapato no peito do pé do sujeito e cravou as pontas dos dedos no pescoço, na altura da garganta.

O grandão ficou sufocado, tropeçou para trás, lutando para respirar.

Blair virou para os homens, que agora pareciam perplexos, todos calados, chocados e boquiabertos. Um teve a coragem de dar um passo em direção a ela. Ela levou dois dedos à boca e deu um assovio agudo. Blair começou a passar um carão. As palavras, pronunciadas em alguma língua estranha que Brody não entendeu, tatuaram o ar.

Acanhadamente, dois homens corpulentos ajudaram Brody a se levantar e sem cerimônia o soltaram em um banco enquanto outro punha duas canecas de cerveja na mesa em frente a ele. Ele então disse, dando-lhe um tapinha nas costas e oferecendo um brinde com uma caneca na outra mão: — Vamos brindar a nossas esposas e namoradas: que elas nunca se encontrem!

Outro homem, mais baixo, foi ajudar a levantar o grandalhão, pesado como urso, levando-o, cambaleante, de volta para os fundos do bar. Pediu duas doses de uísque, olhou para os lados depois de beber a primeira e, relutante, pôs a segunda em frente ao grandão. Brody deu um grande gole em sua caneca de cerveja.

Blair apontou para o bigode de espuma no lábio superior de Brody e riu. Ele franziu o cenho e limpou a boca com as costas da mão.

—        Que língua era aquela que você falou com eles? — ele perguntou, tomando mais um gole da cerveja amarga e massageando o maxilar dolorido.

—        Chama-se shelta thari, a língua dos tinkers e celtas antigos, usada pelos mestres de trabalho em metal.

—        Metalistas?

Ela fez que sim com a cabeça. — Acho que nos Estados Unidos são chamados de viajantes. Alguns os tomam por ciganos, mas eles falam romani — ela respirou fundo, estendeu a mão e tomou um gole da cerveja dele.

Arfou. Tirou os grampos que seguravam o coque e sacudiu a cabeça, soltando os cabelos em profusa cascata sobre os ombros. Empinou a cabeça, juntou a massa de cabelos vermelhos e jogou para um lado do pescoço, virando em silêncio.

Brody admirou a curva graciosa do pescoço dela, e as orelhas belamente esculpidas, quase como de elfos. Deu uma olhadela na linha do cabelo, que se desfazia pescoço abaixo, debaixo do colarinho da blusa, e foi assim que Brody viu a ponta de uma tatuagem. Era uma cruz celta nodosa, desenhada em ricos matizes de vermelho e verde e azul.

Blair o pegou espiando e rapidamente jogou o cabelo novamente no lugar.

Uma rechonchuda garçonete voltou com mais cerveja e comida quente. Brody caiu de boca.

Ele percebeu que agora Blair parecia taciturna. Baixou o garfo e se aproximou. — Você não foi cem por cento sincera comigo, foi?

Ela olhou para o lado.

— Quando você falou sobre Dee e Kelly trocando de esposas isto implicava haver algo mais na alquimia do que dois homens brincando em um laboratório de química com instrumentos defasados?

Ela fez que sim.

—        Se seu irmão realmente se meteu a transformar chumbo em ouro, não podia fazer sozinho... precisava de você. Isto se chama Casamento Alquímico, certo?

Ela corou. — É complicado..., mas você tem razão. Precisa haver dois, um homem e uma mulher. O casal mais famoso era Nicholas e Perenelle Flamel de Paris. Por volta de 1382 eles subitamente apareceram com uma fortuna sem explicação e estabeleceram quatorze hospitais e várias igrejas. Diz a lenda que eles nunca morreram.

—        Isto é crendice.

—        Bem, em 1761 eles foram vistos assistindo uma ópera em Paris. Brody revirou os olhos. — Então eles teriam uns quatrocentos anos.

—        Exatamente — Blair deu um sorriso sagaz que logo se desfez. — Não lhe contei tudo.

Brody balançou a cabeça. — Tem algo a ver com a tatuagem?

Ela deu de ombros. — Mas não estou tentando jogar com você, nem escon¬der coisa nenhuma de propósito. Eu... bem, estava com medo que você pensasse mal de mim. Dominic e eu não somos como você, não somos o que você chamaria de típica família irlandesa. Às vezes me sinto uma amaldiçoada — olhou para o lado novamente; um leve tremor envolveu sua voz quando ela voltou a falar. — A tatuagem. Eu a tenho desde pequena. O que você viu foi só a ponta do iceberg. Ela começa na nuca. Mas se estende sobre as omoplatas e segue espinha abaixo, até a base das costas.

—        É algum tipo de talismã ou símbolo?

—        É mais uma marca. Especificamente, é o sinal dos Thari, que se originam dos antigos Druidas. Nossa língua, shelta, é o que os lingüistas chamam de língua interna que evoluiu de uma língua secreta dos menestréis itinerantes, bardos, sacerdotes druidas e magos. Provavelmente vem da Época do Bronze. - Brody era todo ouvidos, detendo se em cada palavra.

- Meu irmão e eu somos o que resta de uma raça em extinção, Brody. Quando nossos pais morreram no acidente, os thari nos pegaram e protegeram.

- Então o padre Kelly não é só padre católico. Ele é uma espécie de alto sacerdote dos thari, também?

Ela deu um sorriso indulgente. — Não. Os antigos celtas em geral adoravam à Deusa. Eles, como os thari, eram matriarcais.

—        Isto faz de você alta sacerdotisa?

—        Que nem minha mãe.

Brody suspirou profundamente e a olhou nos olhos. — Então está correndo perigo real, senhorita Kelly. Gant é um louco varrido. Se ele sabe disto é atrás de você que vai, não do seu irmão.

—        Talvez..., mas no momento é mais provável que ele queira as fotocópias do diário de Jung que lhe disse que carrego comigo por razões de segurança.

Brody ficou olhando para ela, sem conseguir acreditar. — Você disse a ele que estava com as cópias? Guardadas com você?

Ela riu. — Não fique se preocupando à toa, cabeça-de-bagre. Não há cópias. Não existe diário nenhum. Eu inventei isto.

—        Não é coisa para se brincar, Blair. Tanto seu irmão quanto Al-Dajjal estiveram recentemente em Istambul à procura de antiguidades.

—        Eu não sabia que aquele nazista desgraçado estava na Turquia.

—        Talvez seu irmão tenha levado a melhor. Quem sabe Dominic não encontrou o diário? — fez uma pausa, o rosto bem sério. — Você não percebe que pintou um alvo na própria testa?

Ela ficou tensa. — Bem, era esta a idéia, não?

Brody arregalou os olhos. — Em uma palavra, NÃO!

Blair ficou olhando para as mãos, depois levantou os olhos e engoliu em seco. — Tem mais coisas que eu não lhe disse, senhor Devlin.

Os olhos dele ficaram mais brandos. — Estou ouvindo, mas me chame de Brody, por favor.

—        Tem uma menininha, Noor. Ela é muito preciosa, tem capacidades especiais. Seu pai era irlandês, e a mãe, síria. Eram missionários.

—        Eram? — Brody sondou.

Ela fez que sim, com um nó na voz. — Sim... eram. Al-Dajjal matou os dois, bem na frente dela. Eu a resgatei das garras de Al-Dajjal da Síria, Ela estava com meu irmão quando ele foi seqüestrado. Tenho certeza disto. Você precisa me ajudar a recuperá-la — ela implorou com os olhos.

—        Por que não me disse? — então ele entendeu. — Você disse... Síria?

-           Eu não sabia se podia acreditar em você. Eu estava em uma escavação quando... — Sua voz sumiu e ela olhou por sobre o ombro de Brody.

—        Qual o problema?

Brody começou a se virar, seguindo o olhar dela.

—        Não vire. Os capangas de Gant acabaram de entrar.

—        O que estão fazendo?

Ela se encurvou. — Eles estão dando uma olhada, tentando ajustar a vista à pouca luz daqui, sondando o pub. Mas estão com certeza procurando por nós. Temos que cair fora.

—        Corra para a porta dos fundos, eu vou distraí-los — ele disse, levantando e largando algumas notas de dinheiro sobre a mesa.

Blair agarrou o pulso dele, pegou mais algumas de suas notas e as jogou junto às outras.

—        Generosa com as gorjetas, hein? — Brody disse, sorrindo afetadamente.

—        Não, cabeçudo. Eu cobrirei o prejuízo — ela o puxou pelo braço e foram até o balcão do bar. Ela murmurou algumas palavras em shelta no ouvido do grandalhão, que balançou a cabeça, assentindo. Então foram se esgueirando pelo pub, discretamente, em direção à saída dos fundos.

Um idiota alto os viu.

—        Parem! — ele gritou do outro lado do pub lotado e correu atrás deles.

Enquanto o capanga abria caminho em direção ao bar do pub, o grandalhão se virou e deu-lhe um soco demolidor. O sujeito voou, caindo de costas sobre uma mesa, jogando cerveja em um homem musculoso e sua namorada, e rolou no chão. O homem de ombros largos se levantou, agarrou o capanga pelas lapelas e o levantou do chão. Levantou-o poderosamente e o arremessou de volta ao bar, onde uma azáfama de pulsos em riste o socaram até cair de joelhos.

Quando um segundo capanga correu em direção ao bar, um sujeito de boné e camiseta verde com cara de cão, magro e pequeno, porém forte, tirou uma arma e encaixou bem na garganta do capanga. O agressor perdeu o chão e caiu de costas, sem ar.

Enquanto eles abriam caminho pela cozinha, Brody sorriu ao ouvir os sons de briga no bar.

O barulho de punhos firmes em carne macia...

... foi abafado por gritos e palavreado e vidros quebrando.

Brody fez força para abrir a porta de trás. — Está trancada, recue — ele deu uns passos para trás e investiu com o ombro contra a porta. Não adiantou.

— Cara — ela disse, fazendo careta. Aproximou-se na ponta dos pés, passando os dedos no alto da verga da porta.

Ele fechou os olhos rapidamente enquanto massageava o ombro doído. — Imagino que você tenha uma varinha mágica e...

Ele olhou para cima. Com um clique da fechadura, a porta se abriu.

—        Já ouvi falar em chave, zero zero sete?

Eles caíram na viela, com olhos atentos, piscando muito sob a forte luz do dia.

Viraram à direita e correram para a saída da viela. Mais três capangas apareceram e bloquearam o caminho.

Os olhos de Brody se viraram para o outro lado. Era um beco sem saída, só havia um muro de tijolos alto e sujo de fuligem.

Os três matadores caminharam em direção a eles, com passos lentos e deliberados. Meteram a mão dentro dos ternos, pegaram suas pistolas semi-automáticas e nelas acoplaram silenciadores enquanto caminhavam.

—        Ótimo. E agora, Sherlock? — disse Blair, olhando para os matadores que se aproximavam.

Brody agarrou-lhe o pulso e a levou para uma cerca que se estendia para um lado nos fundos da viela. Mexeu em uma lata de lixo e deu de cara com um gato enorme que sibilou ameaçadoramente e mostrou as garras antes de fugir. Então ele pôs Blair na tampa da lixeira. Ela virou a cabeça e viu os homens correndo a toda velocidade, apontando e mirando com suas armas.

Brody a fez virar e disse: — Desculpe minhas mãos, senhorita Alta Sacerdotisa — enquanto plantava as mãos em seu traseiro e grunhia ao projetá-la pelo alto da cerca.

Um tiro abafado.

Brody sentiu o zunido quente passar raspando na orelha esquerda e outro atingindo a lixeira na altura do pé. Ele deu um salto e pulou a cerca.

Caíram no chão enlameado do outro lado. Brody conferiu a área e viu que era um terreno de desmonte de carros, um ferro-velho.

Deparou-se com a imponência de fileiras e fileiras de esqueletos de carros, praticamente um labirinto; muros feitos de carcaças enferrujadas jaziam para todos os lados. Mais à frente, ao longe, viu uma cerca com malha em forma de corrente, pontilhada por calotas de cromo que cintilavam ao Sol.

Da sua direita Brody ouviu o inconfundível rosnar de cães agressivos correndo e chegando mais perto a cada segundo. — Putz, odeio cães de guarda!

—        Corra! — ele gritou, puxando Blair para trás de si.

Correram o mais rápido que puderam, desviando de pilhas de pára-choques, esbarrando em motores velhos.

—        Ali! — Brody gritou, apontando um buldôzer estacionado a uns seis metros.

Por trás, ouviram os gritos das vozes distantes e exaltadas dos matadores mandando parar.

De mais perto ainda vinham os rosnados guturais e a respiração arfante dos dobermanns e rottweilers.

Brody virou a tempo de ver o líder dos cães saltar com rapidez surpreendente fazendo um arco — bem na direção de Blair. Ele então puxou do bolso oculto na altura do ombro sua pistola Beretta Cougar 8045 calibre 45 ACP e empurrou Blair para longe do cachorro. Quando o animal passou por ela, Brody descarregou dois rounds. O berro agudo do cão confirmou que Brody acertara na mosca.

Já de pé, Blair olhou para o cachorro morto a seus pés.

A explosão de tiros lhe chamou a atenção. Outra besta de quatro patas avançava sobre ela. Brody disparou sua pistola de aço contra o peito enorme do cachorro, que enfiou as patas no chão e tropeçou, virando cambalhota em meio a uma nuvem de pó.

Ela ficou parada, perplexa demais para se mexer, enquanto os dois agressores de quatro pernas formavam um círculo de destruição.

Brody a empurrou em direção ao buldôzer. Ambos se jogaram detrás de uma pilha de carcaças.

- Fique de cabeça baixa! - ele gritou para Blair, que estava espiando do alto da pilha.

Ela gritou — Ah, eles não ousariam começar um tiroteio bem no coração de Londres.

— Acha mesmo que não, hein? — ele disse.

Ouviram o som de tiros abafados atingindo em surdo staccato a superfície da carcaça de carro.

—        Bem-vinda ao mundo do bangue-bangue, irmã! — ele gritou, e espiou rapidamente do alto da pilha, e atirou também.

Mais rounds atingiram o aço, e os ouvidos de Brody zuniram.

—        Então qual é seu plano, gênio? — ela perguntou, os olhos queimando de raiva.

Ele esperou parar a salva de tiros e voltou a disparar mais dois rounds. Procurou na perna da calça e puxou do coldre no tornozelo uma pistola SIG-P250, equipada com mira a laser. Engatilhou a arma, apertou o laser com o polegar e a jogou para Blair, dizendo — Tome, Annie Oakley, basta mirar o ponto vermelho no alvo e apertar. Você tem quinze rounds, então pode cair dentro.

Sem responder, ela ficou de quatro e quando virou, esbarrou o traseiro no rosto dele. Ela se apoiou nos cotovelos para alcançar o topo da pilha de carcaças de carro.

Posicionou-se e olhou para Devlin. — Segure o fogo deles, campeão. Eu faço o resto — ela ordenou, os olhos verdes cuspindo adagas.

Ele inclinou a cabeça e balançou. Direcionando-se ao outro lado da pilha de metal velho, ele se livrou do blazer, estendeu-o ao longo de um cano e o movimentou no alto da pilha.

Instantaneamente, o belo tecido foi detonado por uma saraivada de tiros.

Os tiros pararam.

Blair se levantou, apertando a SIG com as duas mãos, mirando o ponto vermelho de raio laser em um dos dois matadores que apareceram detrás de um abrigo para matar Brody. Ela acionou um tiro duplo; o primeiro formou uma cratera na testa do alvo, o segundo no peito, direto no centro da massa.

O segundo agressor ficou lá parado, pistola na mão, paralisado de choque e perplexidade. Antes que ele pudesse reagir, Blair mandou outro projétil veloz de ponta oca. Aí já era tarde demais para sequer pensar. Um jato rosado formou uma auréola em sua cabeça, brilhando sob a áspera luz do dia. Durou um segundo e então seu corpo caiu no chão em um só tropeço. Uma rajada veio de uma pistola 40SW.

Ela se abaixou, olhou para os lados, as costas apoiadas na pilha de ferro-velho. Com o bico da arma empinado, ela respirava profunda e ruidosamente. Retomou o fôlego, sorriu e disse: — Dois já foram, falta um.

Brody olhou em silêncio, totalmente boquiaberto.

Ouviram o som vindo de trás; um rugido horroroso.

Brody virou.

Um dos capangas estava bem atrás deles, mirando a pistola diretamente na cabeça de Brody. O filho da puta nos pegou pelas costas, Brody percebeu.

Mas o rugido não vinha do pistoleiro. Brody olhou mais para cima. Uns seis metros acima do matador, empoleirado no capô de um velho carro de duas portas que cambaleava na beira de uma pilha de carcaças de carros, estava um rotweiller gigantesco. Seus olhos brilhavam como o fogo do inferno; seus lábios arregaçados exibiam os dentes que rangiam, cintilantes. Dos caninos pendiam cordas de baba.

Enquanto a besta andava para a frente e para trás sobre os escombros oscilantes, ouviu-se o rangido de metal.

Brody exibiu seu sorriso mais soberbo. — Se eu fosse você, não ficava aí — disse ao bandido.

— Cale a boca e joguem as armas no chão, agora! — disse o capanga, apontando a pistola para Blair.

Brody deu de ombros e zombou fazendo som de beijos.

Quando o matador fez cara de quem não estava entendendo nada, os olhos do rotweiller brilharam. Ele saltou. Todo o peso da corpulenta besta caiu sobre as costas do matador, derrubando-o e fazendo-o atirar por reflexo. O tiro passou de raspão no rosto de Brody e atingiu o metal perto de sua orelha, lançando faíscas.

O carro enferrujado rangeu e caiu sobre o cachorro e o matador. O grito do matador saiu do meio de uma nuvem de pó que se formou com o impacto de duas toneladas e meia de chapas metálicas que se tornaram a lápide do sujeito.

Os dois se levantaram, espanando a poeira com as mãos.

As narinas de Blair estavam cheias de poeira.

Ela não conseguiu espirrar normalmente, então soltou um guincho abafado e contido.

Brody tentou segurar o riso, mas não conseguiu.

—        Vai rir, não é, droga? — mas ao falar, um sorriso se abriu em seu rosto.

—        Você podia ao menos oferecer um lenço à moça.

Ele apalpou os bolsos e disse: — Larguei no pub, esqueceu?

Ela fez uma careta e se irritou.

Após tricotarem seu caminho de saída do terreno, finalmente chegaram ao portão da frente.

Sirenes uivavam ao longe, aproximando-se.

Blair lhe ofereceu a pistola SIG pelo cabo. Ele sorriu e balançou a cabeça.

—        Fique com ela. Pode precisar.

Blair sorriu radiantemente e enfiou a pistola leve semi-automática no bolso do casaco. Sem avisar, ela de repente o agarrou pelas lapelas, puxou-o para si e o beijou com força nos lábios. Sua boca era quente e úmida. Apesar do rosto sujo e dos cabelos parecendo um ninho de rato, o perfume dela lhe tomou os sentidos com o aroma de rosas em botão misturado a suor e medo.

Então ela o soltou e recuou. Virou e passou pelo portão destrancado. Brody ficou de pé por um momento, observando-a ir embora. Sabia que estava se apaixonando por aquela mulher tão complexa, o que tornava mais difícil fazer tudo que sabia que tinha de fazer.

Do meio-fio, ele chamou um táxi.

Abriu a porta de trás do pequeno táxi preto e ficou parado.

—        Entre, Blair.

Ela olhou para ele, desconcertada, e recuou. — Vou ficar com você — o tom dela foi incisivo e enfático.

- Não - Brody disse, balançando a cabeça acanhadamente. — Nós nos separamos aqui.

- Então o que aconteceu lá... não representa nada para você — ela disse, afastando os cabelos dos olhos e olhando para ele com raiva. — Você tem uma garota em cada porto.

Brody engoliu em seco. - É por causa do que aconteceu, por causa do que eu sinto que sua participação nisto acaba aqui. Você vai voltar para o seu apartamento e passar o ferrolho na porta. Vou mandar alguém para ficar de olho em você.

Ele fez um gesto para que ela entrasse.

Ela deu mais um passo para trás, recuando involuntariamente do carro. Não fique convencido, senhor Devlin. Aquele beijo foi só por impulso. Não significa droga nenhuma.

Brody ficou olhando por um momento e então entrou no táxi. — Vamos, eu lhe deixo no seu apartamento.

Ela deu meia-volta e foi caminhando pela calçada.

Começou a chuviscar levemente.

O taxista disse: — O taxímetro tá rodando, chefia.

Brody suspirou fundo, soltou um palavrão entre dentes e bateu a porta.

Enquanto dava a partida no carro, o motorista disse: — Probleminha com a patroa, né?

Brody ficou em silêncio, taciturno. Sentiu-se desprezível, mas sabia que estava fazendo a coisa certa. Desde o começo ficara pouco à vontade com o plano de Cummings de usar Blair como isca para Gant. E agora que viu que estava se apaixonando por ela, não podia correr o risco de envolvê-la ainda mais. Ainda eslava fresca em sua mente a dolorosa memória da última vez em que deixou que usassem uma mulher como isca de "operação ferroada", a lembrança de uma mulher que amava tanto, as imagens de sua morte brutal, seu corpo sem vida caído em meio a um mar de sangue.

A voz do taxista lhe despertou do devaneio.

— Melhor dar um tempinho que ela volta, cê vai ver. Daqui a pouquinho cês tão dando umazinha de novo.

Blair parou e deu meia volta; suas bochechas estavam molhadas pela mistura de lágrimas e chuva quente. Ficou olhando para o táxi e para o americano grosso que acabava de pular fora de sua vida.

Caminhou batendo os pés. — Droga de ianque. Muito metido, isso que você é.

Começou a chover a cântaros. Raios clarearam o céu, seguidos pelo estrondo de um trovão.

Ela encolheu os ombros e levantou as lapelas do casaco e pensou "e agora”? Então seus pensamentos se voltaram para o irmão e sentiu um arrepio.

Levou os dois dedos trêmulos à boca e deu um assovio agudo para o próximo táxi que vinha.

Enfiou-se no banco de trás e fechou a porta enquanto o taxista perguntava — Para onde, senhorita?

Ela se ouviu responder — Museu Britânico, e rápido!

 

Um grosso cobertor de fog londrino se formou. Cobriu a fachada do Museu Britânico enquanto Blair chegava de táxi.

Ela havia pedido para saltar do lado da entrada de funcionários.

Ao fisgar seu pass card de dentro da blusa e puxar o cordão no qual ele estava pendurado, hesitou e virou para olhar. O estacionamento de funcionários estava quase vazio agora. Os postes de vapor estavam cercados de névoa e seu brilho amarelado tingia tudo com o mesmo tom.

Encoberta por sombras e neblina, uma figura masculina se movimentou lentamente em direção à entrada. Blair sentiu um calafrio que não condizia com a tarde de outubro.

Passou o cartão pela máquina leitora e a fechadura fez um clique audível. Ela adentrou o edifício, calidamente receptivo. Instintivamente, virou-se para conferir se a porta estava bem trancada.

Seus passos ecoavam sinistramente enquanto ela seguia pelo saguão em direção ao elevador. Àquela hora, os corredores ficavam praticamente desertos.

Ao chegar a um cruzamento, ouviu o som claro e áspero de uma respiração arfante vindo do canto e chegando mais perto.

Ela se aprumou. Balançando a cabeça, Blair ralhou consigo mesma entre dentes dizendo firmemente — Fala sério, vagabundo idiota!

Quando dobrou a esquina do corredor, quase colidiu com o homem.

O encarquilhado segurança arfou e recuou para o lado com a mão no coração. Ficou olhando com os olhos grandes como pires aumentados ainda mais pelos óculos fundo de garrafa.

— Pela madrugada, doutora Kelly, que susto me deu.

Blair deu um suspiro profundo. - Acho que nós dois estamos um pouco sobressaltados, senhor Spivey,

-           Eu esperava que tocasse o interfone ao aparecer depois do expediente - ele acrescentou em tom severo.

-           Acho que esqueci. Mas onde está todo mundo? Não são nem sete horas.

-           Esta noite tem dedetização. Vamos fechar tudo. Não recebeu a circular?

Ela deu de ombros.

—        Bem, não demore, doutora.

—        Não vou demorar.

—        Então vou embora. — Deu um tapinha em seu quepe de vigia e se afastou, arrastando o pé torto.

Ela saiu do velho elevador que rangia e tomou o rumo de seu escritório no corredor parcamente iluminado. Havia uma pilha de correspondências no chão, ao lado da porta. Ela procurou o chaveiro, mas quando enfiou a chave na fechadura, a porta se abriu.

Eu sempre tranco a porta, não? Ao menos achava que sim.

Jogou-se na cadeira e começou a ler a correspondência à luz da luminária da escrivaninha, e só então reparou no objeto que lhe fez sentir o coração vir à garganta.

A maior parte da correspondência era lixo postal que ela deixou de lado, exceto um pacote que ela puxou para perto. Ela estava certa; na frente do enorme envelope de correio aéreo estava carimbado: Istambul, Turquia.

A visão do pacote não só lhe obstruiu a respiração como também lhe encheu de uma súbita sensação de excitação misturada a um terrível perigo.

Olhou para a porta. Levantou e foi até ela, olhou para o corredor em ambas as direções e trancou-a. Pegou um punhal em formato de cimitarra da gaveta da escrivaninha e abriu o lacre.

Após hesitar por um momento, tirou o conteúdo e pôs na mesa.

Havia dois livros.

Um diário bem gasto com uma capa vermelha desbotada e um livro de ficção de capa dura.

Ficou olhando apatetada, simplesmente sem conseguir acreditar. Dominic havia encontrado o diário mágico de Carl Gustav Jung. Ele devia ter resolvido enviar por correio ao invés de correr o risco de carregá-lo, ciente que ela imediatamente o reconheceria e guardaria em segurança. Ela riu sozinha com a ironia da situação. Como se o diário estivesse mais protegido comigo. Que piada!

A lenda alquímica que consumiu a vida de seu pai e agora de seu irmão agora se voltava para ela, provocava-a.

E agora a lenda havia tecido sua misteriosa teia de modo a enredá-la também.

Seus olhos registraram o livro de capa dura. Observou a capa. Aldeia dos Malditos, de John Wyndham. Não lhe dizia nada. Ela pegou o livro e procurou a sinopse, mas não havia sobrecapa.

Ela se recostou à cadeira, tirou os sapatos e massageou os pés doloridos e inchados. Perdida em seus pensamentos, brincou distraidamente com uma mecha de cabelo. Pegou o diário e ao reparar na capa suja, teve outra idéia.

De um pequeno armário no canto do escritório ela pegou uma muda de roupas e foi se refrescar na pia ao lado. Tirou as roupas e pôs as coisas arrumadinhas no braço da poltrona de couro. Muitas vezes dormia no escritório quando ficava trabalhando até tarde, em vez de voltar para seu apartamento pequeno e vazio.

Sentiu o peso da pistola, tirou do bolso do casaco e pôs na mesa perto da pia. Não conseguia deixar de pensar naquele irlandês-americano que lhe dera a arma. Não conseguia deixar de pensar em seus ombros largos, seus olhos cinzentos e penetrantes e seus cabelos grossos e escuros. Não conseguia deixar de se sentir atraída por aquele... aquele burro teimoso. Procurou afastar os pensamentos.

Só de calcinha e sutiã, abriu as torneiras e deixou a água correr. Ela cobriu uma toalha de espuma de sabão e esfregou o rosto. Curvou-se, encheu de água as mãos em concha e enxaguou o rosto.

Quando se levantou, observou o rosto no espelho. Passou os dedos nos lábios, imaginando o beijo dele. O cheiro de sua colônia...

... as luzes subitamente se apagaram. O quarto imergiu na mais completa escuridão.

Ela ficou rígida, seminua, vulnerável e tremendo como uma criança apavorada.

 

Brody acenou com a cabeça para o porteiro de chapéu alto cinza e casaco comprido de cocheiro do mesmo jeito como se apressou para abrir a porta do Dorchester Hotel enquanto o major se aproximava.

Após parar rapidamente no balcão da frente para conferir se havia algum recado, foi pegar o elevador.

Ao sair em seu andar, abriu o envelope que o balconista lhe entregou e leu o convite para a festa na propriedade rural de Gant. No topo do papel de carta havia um brasão em alto relevo e o termo RAVENSCAR atravessado em tinta negra. Ele tinha de reconhecer que Gant tinha pendor ao melodrama.

Dentro do quarto, tirou o blazer empoeirado e se livrou do coldre no ombro, jogando-o na cama junto com o celular. Foi ao banheiro, tomou um banho quente e encolheu os ombros para vestir um grosso roupão atoalhado com a insígnia de Dorchester no peito. Belo souvenir.

No minibar ele se serviu com um uísque single-malt, deu um bom gole, virando quase tudo de uma vez. Caminhou de um lado para outro no quarto e se jogou na cama, exaurido e querendo um pouco de gelo para sua bebida. Da última vez em que pediu ao serviço de quarto que trouxesse gelo, entregaram lhe um pequeno pires com dois cubos semi-derretidos. Europa, vá entender.

Pegou o celular da cama e discou um número da memória do aparelho.

Scout Thompson atendeu imediatamente.

—        Ei, líder destemido.

—        Onde ela está agora? — Devlin perguntou, levantando com dificuldade o pescoço tomado pela cãibra e tomando mais um gole do líquido com cor de âmbar.

—        Parece que ela voltou para o museu, chefe.

Quando se beijaram no portão do ferro-velho, Brody colocou em Blair um transmissor GPS, um aparelho rastreador que permitia que Scoul soubesse exatamente onde ela estava. Aparecia em um pequeno ponto luminoso na tela de um mapa dinâmico da grande Londres, e Scout podia acessar o software pelo laptop.

— Acho que ela é uma workaholic. Mande Brax dar um pulo lá para dar uma olhada nela e ver se ela está em segurança. Se ela trocar de roupa, a perderemos de vista.

—        Quer que ele fique vigiando a noite inteira?

—        E, se ele não estiver ocupado demais passeando ou cantando vagabas, claro — Devlin acrescentou, ironizando. — Pode pôr Chewie na linha?

Pelo celular Brody ouviu resmungos altos ao longe.

—        Ele está dando uma barrigada. Disse que a comida de Limey não lhe caiu bem.

—        Quem sabe se ele não tivesse o hábito de engolir o cardápio inteiro de sobremesas sempre que pode... ah, diabo, conseguiu pegar algo de interessante da escuta na limusine de Gant?

—        Não muito. Ele recebeu um telefonema, ficou "p" da vida, pra valer. Não disse nenhum sobrenome, mas se referiu a um "caro Isaac".

Brody suspirou. — Ele está falando alemão, senhor CALTECHI (Califórnia Institute of Technology). É der Eisaxt, o Machado de Gelo. Provavelmente é algum tipo de código. Que mais ele disse?

—        Disse para alguém... o Machado de Gelo que se livrasse do pacote onde... — a voz de Scout sumiu, e ele pareceu intrigado. — Algo em alemão outra vez, acho.

Brody se levantou na cama, derramando a bebida no colo e soltou uns palavrões ao sentir o uísque caro lhe banhando os ovos. — Toque a gravação para mim, já!

—        Achei que você ia dizer isto. Aqui está.

Brody mordeu o lábio inferior, escutando atentamente ao som da voz de Gant.

- Zum Teufel! Mande der Eisaxt se livrar do pacote no lugar onde das Luder vai pegar a mensagem. Depois que ele testemunhar a reação dela ao seu talento artístico, faça-a entrar.

Aquelas palavras fizeram Devlin sentir um frio no pescoço. Era enervante a maldade tranqüila da voz de Gant ao se referir a uma pessoa como um pacote e a outra como piranha.

E a intuição de Brody lhe dizia que era a Blair Kelly que ele estava se referindo.

Ficou de pé e começou a gritar ordens pelo telefone. Correu para o armário e começou a se vestir às pressas. Ao puxar o zíper da calça atingiu um pêlo pubiano e levantou a voz, contendo as lágrimas e se encurvando de dor.

Em sua mente, em seu coração, considerou que seria melhor tirar Blair de seu campo de visão. Estúpido. Pura estupidez!

 

Depois de se empanturrar com um prato cheio de panquecas quentes e salsichas de porco mergulhadas em mel e manteiga e xarope de bordo, mais duas tigelas de mingau e uma pilha de torradas de canela e passas ensopadas de manteiga, Noor se viu lá fora, na área de recreação.

Vira os meninos saindo da cantina bem na hora em que ela entrou. Os meninos eram clones insípidos e sem cor, todos vestidos à típica moda colegial britânica: blazer cinza com insígnia da escola e calça curta cinza; meias cinza com camisa cinza, gravata listrada branca e cinza e boné escolar com viseira branca e cinza.

Um garoto com bico-de-viúva de duende com seus cabelos ruivos lhe cobrindo a testa parou na porta e virou. Olhos de tom profundamente índigo a estudaram com agudo interesse. Quando ele inclinou e girou a cabeça como um papagaio, Noor reparou nas costeletas dele, que se afunilavam até um ponto perto das orelhas de elfo em ambos os lados do rosto. Mas quando seus olhos se encontraram ele corou, e o pó de canela em forma de sardas deu lugar a bochechas rosadas. Ele deu de ombros e sumiu porta afora.

Na área de recreação ele se ajoelhou no meio de um pequeno grupo de garotos que estavam brincando com alguma coisa.

Ele levantou os olhos e abriu um sorriso desta vez, então olhou para baixo, os olhos profundamente concentrados.

Outro garoto, mais moreno como Noor, ficou de pé e gritou: — Você me perdeu por mais de um quilômetro, Peter. Raji é o vencedor e campeão!

O garoto chamado Peter fechou a cara, o rosto amarrado de raiva. Tirou seu pequeno boné e jogou no chão. Um garoto mais jovem e menor ao lado dele esticou o braço e lhe deu um tapinha nas costas, mostrando apoio.

Quando ela se aproximou, uma quietude caiu sobre os meninos.

Ela olhou por sobre suas cabeças.

Era a visão mais estranha e bela com que ela jamais se deparara. Bolas de vidro multicoloridas pendiam suspensas no ar a menos de um metro do chão, formando um círculo que lembrava uma espécie de miniatura do sistema solar com seus pequenos planetas brilhando aos raios do Sol. Abruptamente, como se a força misteriosa que os mantinha tivesse sido interrompida, caíram no chão.

O pequeno de nome Peter ficou de pé, limpando a lama e grama seca dos joelhos, e olhou diretamente para ela. Com sua mãozinha apertando com força a de Peter, o menino mais novo ficou colado a ele, os olhos brilhantes, mas tímidos. Os outros acompanharam seu olhar e ficaram assistindo.

Não vai dar certo, mas vamos lá, Noor pensou. Engoliu em seco e sorriu com suas covinhas. — Me chamam de Wendy. O que estão fazendo, garotos?

Uma risadinha se formou entre a gangue. Noor se encolheu.

Peter fez cara feia e os mandou ficarem quietos. Ele fez um gesto para que ela se aproximasse. Com passos miúdos, ela foi para o lado dele.

Ele esfregou o nariz com as costas da mão sardenta. — Meu nome é Peter — ele disse e apontou com a cabeça o irmão gêmeo menor. — Este é Gabriel.

O pequeno deu um sorriso tímido e disse alto — Oi, Wendy. — Agora seus lábios não estavam se mexendo, mas mesmo assim ela continuava ouvindo, só que vinha de dentro de sua cabeça. Uma vozinha murmurou — Você é nossa mãe?

Devo estar imaginando coisas, ela pensou.

Mas o rosto dele era tão sincero que Noor ficou tocada por dentro.

Um por vez, Peter apresentou os outros garotos: Michael era magrinho, tinha um pomo-de-adão grande e saliente no pescoço, mas era bonito e seu rosto parecia o de um anjo; seus cabelos louros cintilavam ao Sol; Raji era o mais moreno, com cabelos negros grossos e ondulados e um sorriso resplandecente; Johnboy era ligeiramente rechonchudo e usava óculos grossos e arredondados, e tinha o hábito apatetado de respirar sugando o ar e expirar soprando com os lábios fazendo um ruído de motor de lancha. Peter disse que Johnboy fazia isto sempre que estava nervoso ou com medo. E agora ele estava fazendo exatamente assim, com as bochechas enchendo e esvaziando como um fole humano.

Noor entendeu que Peter, Michael e Raji tinham uns doze anos, Johnboy devia ter oito e o pequeno Gabriel era o mais novo, quem sabe tivesse seus cinco ou seis anos, ela não estava bem certa. Mas Noor reparou que todos tinham algo em comum. Como ela, eles tinham olhos de tom profundamente índigo.

Peter disse a ela que estavam jogando bola de gude. Enquanto ele e os outros meninos se puseram a catar as bolinhas e guardá-las em bolsas de couro, Peter parou e levantou uma das bolas contra o Sol. Como um diamante, capturou a luz solar e as trançando em um arco-íris de cores. — Esta é minha atiradora da sorte — ele disse orgulhosamente.

—        Posso segurar, por favor? — ela perguntou.

Ele sorriu e gentilmente pôs a bola na mão dela. Quando as pontas de seus dedos a tocaram, Noor sentiu uma pequena agitação no peito. Era uma sensação estranha, mas boa, calorosa, como quando da primeira vez que ela segurou um filhotinho de carneiro.

—        É muito linda, mas tome — ela disse, entregando a bola de gude. Peter franziu os olhos ao olhar para a mão de Noor.

Primeiro a bolinha ficou mais quente, depois formigou em sua palma. Lentamente começou a subir, flutuando gradualmente no ar, finalmente fazendo clique ao cair dentro da bolsa de Peter.

Ela brincou e riu com a gangue de garotos por um tempo. Acho que eles gostam de mim, ela pensou. Finalmente os outros garotos correram para os balanços e ela e Peter ficaram passeando em círculos, conversando. Enquanto caminhava, ocorreu a Noor que ela nunca tinha conversado daquele jeito com garoto nenhum. Não sabia bem como agir. Simplesmente seja você mesma, sussurrou uma vozinha em sua mente.

Ela estava se divertindo, mas sabia que algo havia de errado. Quando tentou fazer perguntas a Peter sobre aquele lugar, e como ele tinha feito a bolinha flutuar, ele ficava totalmente quieto e repetia — O Éden é um lugar especial, um lugar bom.

Ficou sabendo que aquele lugar era uma escola chamada Éden. Peter e seu irmãozinho chegaram lá cerca de quatro anos atrás. Ele disse que seus pais morreram em um acidente de avião. Os outros meninos vinham de toda parte, mas eram órfãos, também.

Quando Noor tentou perguntar sobre o cheiro de hospital que ela sentiu quando estava caminhando pelo corredor perto de seu quarto, Peter ficou pálido. Olhou para os lados nervosamente e olhou bem nos olhos e sussurrou – Se você conta, vai para o Quarto Escuro e às vezes... nunca mais volta.

Wendy não sabia por que dissera isto, mas simplesmente lhe escapuliu da boca. — Acho que vocês todos são Garotos Perdidos, como no livro que o padre Dom me deu. Isto aqui pode parecer legal e o médico e os professores podem ter caras felizes e sorridentes, mas é uma falsa Terra do Nunca. E morro de medo daquela loura.

—        Está falando de Cruela Cruel? — Peter perguntou, com um sorriso lhe iluminando o rosto.

Ela soltou um pequeno suspiro, pensativa. Não conseguia entender aqueles ingleses. Eles riam das coisas mais esquisitas. Ela tinha muito que aprender naquele estranho mundo novo. Ficou pensando se algum dia seria como eles. Será que ao menos queria ser como eles? Então pensou em Blair e sentiu um aperto no coração.

Com voz firme, ela disse — Temos que sair daqui, Peter.

Ele mordeu o lábio inferior por um momento e balançou a cabeça. — Você tem razão, Wendy. Mas como?

Começaram a murmurar, desenvolvendo um plano.

Raji foi até eles e ficou batendo papo por um tempo. — A bruxa velha vai nos chamar... — ele olhou para o relógio de pulso, fechando os olhos como se a visualizasse mentalmente — agora mesmo. — Quando ele abriu os olhos e se deparou com os de Noor, ele encarou fixamente, tentando transmitir sua imensa preocupação. — Ela será má com você. Tente ser corajosa, Wendy.

Intrigada, Noor começou a pergunta — Mas como sabe...? — Um barulho forte de metal batendo chamou a atenção de Noor. Uma mulher magra com rosto de falcão apareceu perto da entrada da escola, batendo em um grande triângulo de metal com uma vareta.

—        Esta é a senhorita Baylock — explicou Peter. — Não pise no calo dela, senão ela lhe pega. Ela é uma bruxa velha e má.

Noor cuspiu no chão perto dos pés dele. — Não sou nenhuma medrosa! Mas quando passaram em fila pela senhorita Baylock, Noor se lembrou do aviso de Raji. Tentou não olhar nos olhos da mulher, apenas espiando de canto de olho. Baylock tinha pendurado nos lábios finos e cruéis um cigarro, cuja fumaça subia em espiral. Os olhos de Baylock cintilaram, furiosos, detrás de seus óculos de aro de tartaruga.

- Você aí — disse a bruxa, chamando Noor. Noor evitou os olhos dela e continuou seguindo em frente, rezando silenciosamente para que a bruxa velha não estivesse falando com ela. De repente, a sombra de Baylock se projetou sobre ela como um abutre. Dedos esqueléticos agarraram Noor pelo ombro e a giraram. — Você é nova aqui, por isto vou deixar passar desta vez. Mas quando eu lhe chamar, é melhor vir logo, mocinha.

Apavorada demais para levantar os olhos, Noor fez que sim com a cabeça, humildemente.

—        Então vamos lá. Herr doktor Craven quer vê-la imediatamente.

Do canto do olho, Noor viu Peter piscando o olho e forçou um sorriso. Ele a lembrava sua mãe quando ela mentia com os olhos, fingindo que algo ruim era bom de modo que Noor não ficasse com medo.

A porta se abriu com um rangido e a senhorita Baylock empurrou Noor para dentro do recinto.

Noor olhou ao redor. O recinto era escuro como uma tumba, sinistro. Sombras se fundiam como sangue coagulado. Levou tempo para Noor ajustar a visão. Ela piscou quando uma luz forte veio de repente de cima, como se furasse. Sentada em frente a uma escrivaninha sob um cone de luz estava o doutor Humpty Dumpty. Um sorriso sem forças se abriu em seu rosto pastoso.

—        Senhoritazinha Wendy, entre.

O estômago dela deu um nó de medo. Com o coração batendo, nauseada de terror, ela se aproximou. Em um lampejo de percepção ela entendeu que...

Aquele era o Quarto Escuro!

Ele fez menção a uma poltroninha acolchoada e Noor se jogou nela. Abraçou o próprio corpo e recostou-se.

—        Vamos fazer um joguinho com você agora. Gosta de jogos, não gosta, senhorita Wendy?

Ela assentiu, relutante, os olhos grandes de apreensão.

Mas de repente o rosto dela se contraiu e ela inclinou o corpo para a frente, segurando nos braços da poltrona. As dobras dos dedos ficaram brancas e ela disse, com uma vozinha trêmula — Não!

O doutor Craven se levantou e deu a volta pela escrivaninha e clicou em uma caixinha em sua mão. Parecia o controle remoto de televisão que Noor vira no hotel. Tiras de metal subitamente envolveram os pulsos delicados de Noor, prendendo-os aos braços da poltrona. Ela ficou dura de terror quando o médico pegou uma seringa do bolso do jaleco; aponta afiada da agulha cintilou quando ele foi para o lado de Noor.

Ela começou a suar frio quando ele levantou a manga de sua camisa e ela sentiu suas mãos viscosas lhe causando calafrios no antebraço. Sentiu o álcool frio como gelo com que ele lhe esfregou o braço.

— Vai sentir uma picadinha, ja... — ele explicou. — Pronto, não foi tão ruim assim, ja...?

O médico soltou uma alavanca do lado do braço da poltrona. O encosto da poltrona se inclinou para trás e seus pés foram simultaneamente içados ao nível do corpo.

Noor ficou atada à excruciante poltrona Barcalounger . Ela sentiu as pálpebras começando a estremecer e então sua cabeça rolou para o lado, o mundo ficou todo cor-de-rosa choque, sentiu um nó no estômago que revirou, deixando-a enjoada. Um barulho de apito lhe veio aos ouvidos. Foi tomada pela escuridão.

Enquanto ela era levada pelas ondas negras, uma voz distante parecia chamar seu nome.

Wendy... Wendy. Não se preocupe, criança. Em seu sonho nebuloso, Noor acha que a voz soava maternal e gentil, mais ou menos como uma avó de voz suave e levemente distante. Noor imaginou um rosto redondo e enrugado... olhos úmidos e gentis.

Estamos aqui, criança. Os thari estão esperando por você.

Um zumbido alto afastou a voz da mulher.

Outra voz, distante e difusa, flutuou através da estática. Estranha de início, a voz gradualmente ficou mais clara e reconhecível. Era a voz de Peter.

Wendy, agüente firme. Não vai demorar. Como você disse, nós temos poderes especiais. Wendy pensou nas palavras que ele sussurrou antes, na área de recreação. Eu consigo mexer as coisas com a mente, o Gabrielzinho sabe 1er as mentes das pessoas, Raji consegue ver o futuro, sabe o que vai acontecer nos minutos seguintes... Peter riu alegremente. Johnboy é o melhor de todos, Wendy. Ele é o próprio doutor Doolittle. Herdou da avó. Ele fala com os pássaros e insetos e esquilos...

O zumbido começou a fazer estrondo e a voz de Peter foi ficando mais longe.

Do escuro, outra voz chamou seu nome.

—        Pequena senhorita Wendy. Iurru... abra os olhinhos.

Ela começou a acordar, percebendo que não estava mais sonhando.

Noor deu uma olhada em direção à luz brilhante. A cara branca feito um bicho-de-queijo do médico entrou em foco. Lágrimas quentes corriam pelas bochechas macias da menina. Por entre as lágrimas, a imagem dele tremeluziu e saiu de foco outras vezes, parecendo recuar.

—        Ora, ora. O doutor Humpty Dumpty não lhe machucou. — Ela se virou em direção à voz dele. Suas mãos estavam cobertas por luvas cirúrgicas grossas de borracha, à moda antiga; trazia entre os dedos um tubo de ensaio.

Ele se inclinou sobre ela, chegando mais perto com seus olhos molhados, inquietos, penetrantes. Como se tivesse mergulhado o dedo no mais extraordinário chocolate, o doutor Craven passou o dedo em uma lágrima e lentamente levou a ponta úmida à língua. Olhos fechados, ele respirou fundo e suspirou.

—        Delícia, puro néctar de inocência virginal — ele disse baixinho.

Quando enfim abriu os olhos, seus olhos pesados o deixavam parecendo um suíno maldoso. Ele estava olhando feio para Noor agora. — Vamos ver se dá para encher este tubo, querida, vamos?

Então seu rosto se transformou em um sorriso doentiamente esperançoso. — Pense... em coisas tristes.

Intrigada e confusa, Noor torceu o nariz.

Fazendo um bico exagerado com os lábios, ele acrescentou — Quem sabe a doce senhorita Wendy precise de motivação, ja?

Craven levantou a outra mão e balançou o ursinho de pelúcia dela.

Um sorriso se formou nos lábios de Noor quando ela gritou — Mister Muffins! — Tentou desesperadamente pegar Mister Muffins, mas ela ainda estava amarrada à poltrona.

Ele virou e pôs o tubo de ensaio em um suporte metálico de um carrinho e pegou um bisturi. Ao encará-la novamente, a luz cintilou na lâmina afiada como navalha do aço inoxidável.

Noor ficou pálida e começou a gritar de terror.

Em um gesto lento e deliberado, ele aproximou o bisturi reluzente cada vez mais da cara do ursinho. Subitamente, ele enfiou a ponta no olho de Mister Muffins, torceu violentamente e arrancou o botãozinho brilhante do tecido.

A voz dela sufocada de medo. Um choro baixinho, como um pardal fétido, escapou dos lábios de Noor enquanto lágrimas lhe inundavam os olhos.

Craven deu um sorriso imoral e disse com voz cruelmente suave — Boa menina. — Sacudindo a cabeça de desgosto, jogou o ursinho de pelúcia no chão e pegou o tubo de ensaio.

Zombando dela com sua risada gelada, levou o tubo de ensaio ao canto do olho de Noor para colher a profusão de lágrimas.

 

O senhor Spivey fez a última ronda e pegou o corredor em direção à sala do controle de segurança. Caminhava pesadamente e com os sapatos de sola emborrachada guinchando nos ladrinhos muito polidos, estava pensando no jantar que a esposa lhe preparara: uma lata de biscoitos recém-assados, um pedaço de carne e uma garrafa térmica com chá quente.

Mais à frente, sob um fraco foco de luz, Spivey viu dois homens vestindo macacões com as palavras "Dedetizadores Circo de Pulgas" adornadas na altura das omoplatas. Estavam de costas para ele, voltados para a porta da sala do controle de segurança. Um estava com uma lata de spray, pintando a câmera de vigilâncias.

—        Droga de dedetizadores, vão estragar meu jantar.

O velho vigia da noite levantou o dedo longo e ossudo. — Vocês aí. Já lhes ajudei hoje... o que está pegando agora, afinal?

Eles se viraram lentamente, sincronizados, e ajustaram os bonés.

O senhor Spivey ficou com o rosto ainda mais pálido, os olhos apertados detrás das grossas lentes, e disse — Mas que diabo é isto?

A luz flagrou as perucas vermelhas, crespas, aterrorizantes.

Duas caras demoníacas e brancas de palhaços se voltaram para ele. O vigia olhou da testa grande e enrugada para as negras órbitas dos olhos, para o esgar dois incisivos dentes amarelados debaixo do nariz vermelho, as narinas grandes e infladas. Seu coração martelava no peito, ameaçando explodir.

—        Horns & Hoofs em pessoa! — Murmurou o senhor Spivey, com a respiração entrecortada e difícil, e sentiu a mão de alguém vindo por trás e lhe enfiando um pano úmido no rosto. Quando o cheiro inconfundível de clorofórmio lhe adentrou os pulmões, seus joelhos dobraram.

O líder dos palhaços dementes puxou um molho de chaves da cintura de Spivey. Com um passo largo e gracioso, pulou o corpo inerte do velho. Jogou as chaves para o cúmplice que aguardava, o líder disse com voz abafada detrás da mascara de gás — Abra.

Quando a porta se abriu, um palhaço arremessou uma bomba no recinto e recuou para o lado. Um flash luminoso e uma nuvem de poeira se seguiram, saindo pela porta em direção ao corredor.

O líder entrou na sala do controle de segurança.

Em meio à fumaça, ele viu mais dois vigias se encolherem de medo em um canto, de costas para um grande painel de controle. Um dos guardas cuidadosamente tentava pegar um telefone vermelho, os olhos apavorados e arregalados como a circunferência de um relógio, cravados no invasor.

Uma enorme pistola com silenciador encheu a mão do líder.

Ele fez um movimento com a pistola. Fffftt... Fffftt...

Dois rounds silenciosos sussurraram uma mensagem de morte. Abriu-se um furo na testa de um dos guardas. Quando a cabeça dele bateu com força no painel de controle, o ferimento se transformou em uma névoa vermelha. O outro round atingiu a garganta do segundo vigia. Ele levou a mão ao pescoço destruído, o sangue jorrando dentre os dedos, vermelho e quente, e ele emitiu um som entre o sufocamento e o gargarejo. Então caiu sem vida no chão.

Quando o ambiente começou a ficar mais arejado, Margot Gant tirou a máscara de gás.

Observou o banho de sangue, bebendo dele com os olhos.

Respirando pesadamente e trêmula de desejo sexual, ela soltou um gemido profundo. Estava tendo um orgasmo que vinha da doentia excitação que sentia ao matar. Para Margot, sexo e violência eram a mesma coisa.

Ela suspirou e levou à palma da mão um computador de bolso. — Acabe com a rede elétrica, agora!

As luzes diminuíram, e se apagaram.

Margot deu uma volta ao redor dos outros dois. — Ei, palhaços. Mexam estes rabos e destruam os alarmes, câmeras, fones e gerador de energia — ela pôs a pistola no painel de controle para desocupar as mãos.

Margot saiu de dentro do macacão folgado e o jogou de lado. Seu corpo firme estava revestido por uma roupa preta de pára-quedista de malha resistente que lhe contornava o corpo de modo que mais parecia uma roupa de mergulhador. Guardou sua Magnum Desert Eagle Mark XIX-44 no coldre de sua roupa de combate atado à coxa musculosa e pôs óculos de visão noturna.

Após jogar sobre o ombro um saco de lona preta, Margot passou pelos palhaços rumo à escada.

 

Detrás das janelas embaçadas do Mini Cooper que chacoalhava no estacionamento do museu, o tenente Brax já havia passado bastante das preliminares. Arfando e embrenhado em um emaranhado de pernas e braços no carro apertado, Brax sentiu o hálito quente da garota do posto de informação que ofegava em seu pescoço. Ele lhe agarrou os quadris, trazendo-a mais para perto.

—        Putz! Está vibrando — ela disse num murmúrio aceso.

—        Eu sei, babe. Eu sei. Também estou todo formigando! — Brax se gabou. Ela se desvencilhou dos braços dele, afastando-o.

—        Qual é, Cindy. Não vamos parar agora.

Ela se sentou, puxando a camisa. Ajeitando o cabelo, Cindy apontou para o colo dele.

Brax sorriu acanhadamente. Então entendeu. Seu celular estava vibrando no bolso da calça. Ele fisgou o aparelho e atendeu.

O grito estridente de Cindy fez Brax deixar cair o telefone. Soltando um palavrão, ele se abaixou para procurá-lo no piso do carro. Encontrou o telefone graças ao azul nebuloso que emanava da tela LED. Ao sentar de novo, entendeu por que ela estava apavorada. O estacionamento, o museu e tudo ao alcance da vista havia mergulhado na mais completa escuridão. Um apagão. Os raios da lua cheia filigranavam levemente a chuva que caía.

Scout berrou ao celular.

—        Devlin quer que você fique na cola da doutora Kelly. Ela voltou ao museu. Eles foram seguidos por dois capangas do Gant esta tarde e acabaram metendo o dedo no gatilho.

Com os olhos examinando a escuridão ao seu redor, Brax perguntou — Alguém se feriu?

- Só os atiradores. Mas achamos que Gant pode tentar raptar a doutora Kelly esta noite.

O alarme soou na mente de Brax. Virou-se para Cindy sem baixar o telefone. — Tenho que correr, meu bem. Comporte-se e vá para casa agora.

Com voz intrigada, Scout perguntou — Meu bem? Desde quando você me chama de meu bem?

Cindy ficou de cara feia quando Brax saiu de seu Cooper puxando as calças para cima e fechando o cinto enquanto corria pelo estacionamento debaixo de chuva para alcançar o próprio carro. Procurou nervosamente pelas chaves, ainda com o celular na outra mão, achou-as e abriu a mala.

Cindy veio cantando os pneus no chão molhado e buzinando, irritada, e ao passar por uma grande poça d'água deu um banho nele. Por pouco não o atropelou. Ele ficou olhando as luzes do carro dela desaparecendo na escuridão, passou a mão na calça molhada e sorriu.

Scout berrava ao telefone — Ei, tapado! Que diabo está acontecendo com você?

Em sua afobação, Brax esquecera que Scout ainda estava na linha. — Parece que algo está acontecendo aqui. Fale com o inspetor-chefe Newley. Diga para ele mandar uma equipe da SWAT para o museu, PRA JÁ!

—        Ei, eu sei que você já está no local. Estou com a imagem do seu GPS na minha tela. Mas...

—        Houve um apagão aqui. Parece que a rede toda caiu. Não se esqueça de avisar aos caras do Newley que estou no local à paisana. Não quero levar fogo amigo.

—        Entendido. Chewie vai pegar Brody e correr para aí. Vou avisar.

Brax desligou, arrancou o paletó e vestiu um colete à prova de balas. Puxou uma maleta Zero, bateu a mala do carro para fechá-la e correu para o museu com seus sapatos molhados rangendo a cada passo.

 

Detrás do volante do Jaguar XF prateado reluzente, Chewie reabasteceu e pisou no acelerador em direção ao museu.

O motor V-8 de turbo gêmeo roncou e a traseira do Jaguar deu uma guinada.

Chewie sorriu, notando o rosto pálido de Brody. — Ei, relaxe, Brody. Ponha alguma música legal para tocar. Quem sabe não acalma seus nervos.

Brody fez que sim com a cabeça enquanto seus olhos procuravam algo no painel de instrumentos. Com seu sistema luzidio de iluminação azul-fosforoso e uma miríade de medidores, parecia mais uma cabina de piloto de jatinho do que um carro. — OK, desisto. Onde está o maldito rádio?

Chewie balançou a cabeça e apertou o ícone do CD-player na tela LED do painel.

Os sons ritmados do Danúbio Azul de Strauss bramiram das caixas de som, transformando a caçada louca de Chewie em uma valsa belamente coreografada enquanto ele zunia afobadamente por entre o trânsito lento, tirando finas pelas esquinas.

A pavimentação escorregadia pela chuva refletia a floresta cintilante de faróis e lanternas. Ele passou por uma poça das grandes, espirrando água dos pára-lamas e molhando as janelas dos dois lados.

Brody Devlin levou um banho da cabeça as pés, graças ao cinto de segurança. Tentou se concentrar, tirar Blair Kelly da cabeça, mas no momento ela era o centro de seus pensamentos.

Até que Brody viu o sinal de trânsito...

- Sinal vermelho! - Brody gritou para Chewie, cujas mãos de urso agarraram com toda a força a direção revestida de couro. Chewie ficou sentado com o rosto lívido, os olhos furiosos olhando para a frente, para os pára-brisas girando de um lado para outro.

... e então veio um ônibus vermelho de dois andares.

Brody arregalou os olhos ao ver o ônibus à direita deles, a poucos segundos do cruzamento.

Chewie meteu o pé no freio e o Jaguar girou em alta velocidade para cima e para baixo na rodovia montanhosa.

E a valsa continuou em um crescendo quando o Jaguar embicou, quase ha lendo. Com o motor uivando, o carro se encarapitou sobre um monte e foi projetado para o cruzamento como se arremessado por um estilingue; quase voando, o Jaguar passou pela ponta do ônibus, não batendo por questão de centímetros.

Quando pegaram a próxima lateral, Brody gritou freneticamente — Você tem que pegar a direita...

Chewie virou o volante radicalmente, e com sua força fez uma curva de quase noventa graus.

A traseira do Jaguar foi violentamente sacudida, vertendo jatos d'água enquanto os pneus castigados cantavam.

Mais à frente, foram iluminados por faróis e escutaram uma buzina estridente alertando quando seguiram à toda pela pista do lado direito.

— Pelo amor de Deus, cara. Você está na droga da mão errada! — Brody gritou, metendo os dedos no painel de controle.

Dando de ombros com a maior naturalidade, Chewie virou o volante e passou para a pista da esquerda. — Motoristas britânicos, qualem biennium.

Com o rosto desfigurado de raiva, Brody olhou feio para ele.

Chewie piscou e traduziu: — Que incompetentes.

O grandão olhou para o retrovisor quando luzes azuis e brancas penetraram pela janela de trás do Jaguar. — Acho que arrumamos companhia policial — Chewie disse com um sorriso maldoso — vamos deitar e rolar. — Seu dedo carnudo tocou o painel de controle outra vez e Born to be Wild, do Steppenwolf, saiu das caixas de som.

Devlin se virou e contou três BMWs de patrulha policial colados neles, com as sirenes agudas servindo de acompanhamento uivado ao heavy metal possante que saía das caixas de som.

Brody engoliu em seco ao tirar os olhos do retrovisor e olhar para a cara de desprezo que Chewie estava fazendo. Brody conhecia aquela expressão. Ele estava prestes a jogar a merda no ventilador.

Brody baixou os olhos em direção ao velocímetro enquanto Chewie foi usando a transmissão semi-automática nas rodas para passar as marchas.

O ponteiro passou para setenta... oitenta e cinco... noventa.

O grandalhão rebelde detrás do volante limitou-se a sorrir ao cantar com seu vibrato — Like a true mature’s child ... we can climb so high, I never wanna die ...

— Que diabo está fazendo? — Brody contestou. — Esses meganhas estão pilotando TROJANS, BMWs totalmente turbinadas. O que significa que estão armados até os dentes.

Chewie piscou para Brody e pisou fundo no acelerador. Os compressores duplos tragaram ar avidamente e o solavanco fez Brody dar um pinote no banco do carro. — Sempre quis saber se um Jaguar XF seria capaz de superar a "Suprema Máquina de Dirigir Alemã". Esse modelo novo com motor V8 4-2 litro tem potência de 420 cavalos, chefia.

Passaram disparados por outro sinal vermelho, a um triz da van de uma lavanderia de fraldas. Revirando-se no assento, Brody franziu as polpas da bunda, pensando se tinha "cagado na merda da calça", como diria o sargento Conners com seu sotaque escocês.

Brody virou para ele, fuzilando-o com os olhos. — Ótimo! Assim que eu trocar minha fralda, vou mandar inscreverem "Aqui jaz o índio mais veloz do mundo" em sua lápide!

 

Em seu escritório escuro como breu, Blair conseguiu vestir as roupas e enfiou a pistola SIG no bolso. Foi desviando dos obstáculos no escuro com os braços esticados para a frente, dando passos miúdos, e deu uma topada com o dedão no pé da escrivaninha. Ela gemeu de agonia e frustração, pulando em um só pé, e acabou caindo de bunda no chão. Sentiu uma dor aguda em seu já combalido cóccix. — Cacete do inferno, isto dói — ela gemeu, e então começou a rir do próprio desajeito.

Levantou-se com dificuldade. Usando a ponta da escrivaninha como referência, deu a volta por trás e começou a vasculhar as gavetas.

Sentiu algo com as pontas dos dedos. — Ai, uma lâmina de barbear. Formato familiar. Papelão. Pequeno. Levou ao nariz para cheirar. Sim, era uma caixinha de fósforos. Ficou animada.

O fósforo acendeu na primeira tentativa. Ainda bem que estão secos. E agora! Através da luz fraca da chama oscilante, encontrou o telefone. A linha estava muda.

A chama lhe queimou o dedo. Soltou um palavrão, soltou o palito e acendeu outro. Foi até a porta, tropeçando na cadeira no caminho. Com mãos vacilantes, abriu a porta com dificuldades. Abriu-a lentamente, deu uma espiada e foi para o corredor frio e silencioso.

As luzes de emergência alimentadas a gerador preenchiam o corredor com uma luz fraca. Ela então olhou para os elevadores. Droga, também estão fora de uso.

Deu meia-volta e foi pegar a escada de emergência, sentindo o piso frio sugando-lhe os pés descalços. Esquecera de calçar os sapatos. Sensacional, Blair. Simplesmente sensacional.

Empurrou a porta com o ombro, abrindo-a com uma pancada que a fez bater na parede. O barulho ecoou na caverna oca do vão da escada. Hesitando brevemente, ela pisou na escada. Ela se espremeu no canto do patamar, espreitando o corrimão do outro lado dos degraus. Havia uma única lâmpada acesa ao alto. À esquerda e à direita havia escadarias para cima e para baixo em meio à mais profunda escuridão, e depois vinha mais uma lâmpada de luz fraca em outro patamar. O único som que havia era sua respiração ofegante, e ela lá, parada, pensando... para cima ou para baixo?

Blocos de concreto, sombras que se agigantavam, ar bolorento e frio. Estas coisas pareciam persegui-la.

Ficou trêmula. Estava morrendo de frio. Não só de medo do desconhecido, mas porque sua blusa estava molhada de suor e colada às costas. E pior ainda, o cheiro forte indicava que, no escuro, vestiu por engano a mesma roupa suja.

Ande, Blair. Vá passo e passo, ande.

Criou forças e deu um passo.

Ouviu o rangido de uma porta vindo de baixo e uma porta se abriu para a escadaria.

Um som seco, como algo sendo arrastado ou puxado pelo concreto, subindo em direção a ela. Ela deu uma olhada pela beira do corrimão. A uns quatro andares abaixo, uma sombra se esgueirou pelo patamar anterior, puxando o que parecia ser um saco — não, era um corpo. Instintivamente, ela recuou, encolhendo-se no canto. Com as costas imprensadas contra o frio bloco de concreto, ela se ajoelhou.

O ruído oco e contínuo de passos pesados ecoou repetidamente, flutuando em direção a ela. À medida que se aproximavam, ela ouvia mais claramente uma respiração arfante a cada passo.

Sentiu um nó de tensão no estômago. Estava com a garganta seca. Baixou os olhos para as mãos trêmulas e percebeu que estava cravando as unhas no tecido da calça.

A cada batida de seu coração disparado os passos ficavam mais nítidos e próximos.

Foi possuída por um medo irracional que alguma criatura empalhada e escabrosa da exposição, alguma múmia esfarrapada, tivesse voltado à vida e estivesse agora se arrastando à procura dela, pronta para atacar.

 

Margot caminhou pelo salão de exibição com passos fluidos, mascarada pelas sombras. O luar entrava com dificuldade pela enorme clarabóia acima, adornando o assoalho. A chuva caía em ritmo constante sobre o teto acima.

Ela chegou ao fim do Salão de Iluminação e parou em frente à vitrine número 20: Magia, Mistério e Ritos. Trancados detrás do vidro estavam o manuscrito Voynich e o espelho asteca de obsidiana de John Dee, e uma tabela coberta de cera com impressões de símbolos e hieróglifos estranhos.

O tempo estava contra. Precisava agir rapidamente. Como os alarmes foram silenciados, não era preciso nenhuma finesse.

Margot pegou um bastão carregado de aço da bolsa e com um golpe incisivo quebrou a vitrine. O vidro se dissolveu sob a força do golpe, irrompendo em um jato cintilante.

Enfiou as peças no saco e foi em frente, trocando rapidamente de salão para chegar à outra exposição.

Um totem imenso se agigantava sobre ela.

Tingido pelo tom fantasmagórico de verde causado pelos óculos de visão noturna, ela viu o rosto pavoroso de Quetzalcoatl, o deus-serpente emplumado dos astecas que lhe encarava com olhar atravessado. Os lábios que sorriam cheios de dentes e os lacônicos olhos de serpente pareciam zombar dela.

Margot devolveu o olhar enviesado. — Dane-se! — ela provocou.

Ela fez a luz da lanterna pintar a figura e fez um movimento impetuoso em direção a um crânio de cristal pousado sobre um pedestal de Lucite logo perto.

A caveira de cristal captou a luz da lanterna e a refratou como um diamante. O crânio parecia brilhar por dentro, cegando-a.

Ela tirou os óculos de visão noturna, sensíveis à luz, e esfregou os olhos. Sua visão foi clareando gradualmente.

Uma palpitante luz branco-azulada pulsou de dentro da concavidade dos olhos da caveira. Margot piscou os olhos. Por um momento ela seria capaz de jurar que viu a mandíbula vítrea da caveira se abrir bastante, e depois fechar.

Um dos matadores com máscara de palhaço apareceu ao lado dela, pegando-a desprevenida. Ela se encolheu e olhou feio para ele, com seus cabelos louro-brancos luminosos sob o luar mortiço. — Sheistkopf!

Então ela soltou um palavrão baixinho e tirou o crânio de cristal do suporte. Ao lado dele, nos pedestais de vidro inferiores, havia mais dois crânios. Como se fosse uma menina holandesa colhendo tulipas, ela os recolheu um de cada vez e assoviou para que seu cúmplice trouxesse a maleta de alumínio escovado.

Ela acomodou os crânios dentro das formas de espuma pré-preparadas, encaixando-os, e acrescentou o conteúdo da vitrine de John Dee, apertando-os com prendedores de Velcro para então fechar a pequena tampa.

— Ja... zer gutt! — ela murmurou, e soltou um suspiro.

Levou o rádio portátil aos lábios e disse — Hans, agora vamos pegar das Luder. Onde está ela?

O rádio rangeu. — Fui ao escritório da vaca. Não está lá.

Ela baixou o rádio, virou-se para o palhaço que segurava a maleta e olhou para ele com raiva. — Ótimo, então vamos morder a isca. Der Eisaxt, tire o padre da van e traga-o aqui dentro, já!

Dois cliques agudos do rádio de der Eisaxt sinalizavam que ele havia entendido.

 

Blair passou para o patamar seguinte. Esgueirando-se pelo corrimão, prendendo a respiração que ameaçava explodir nos pulmões.

Lá embaixo os passos pararam.

Ele estava no patamar.

O único som que havia era a respiração arfante dele e o coração trovejante dela, pulsando em seus ouvidos.

Ela segurou a pistola SIC com as duas mãos e encostou a testa no aço frio da arma.

Apertando bem os olhos e se concentrando, ela focalizou sua força de vontade no agressor invisível a apenas alguns passos abaixo dela. Não tem ninguém aqui, vá para o escritório dela, Blair tentou telegrafar mentalmente.

Ele arrastou os pés, depois parou.

Um silêncio assombroso caiu pesadamente no ar gelado da escadaria.

Com todas as forças de seu ser, Blair pediu para que o agressor fosse embora de lá. Então, subitamente, ouviu o rangido alto de alguém abrindo a porta de emergência, e o baque oco da porta batendo.

Sem perder tempo, ela subiu correndo para o próximo andar.

Abriu a porta de emergência e foi para o corredor.

Quando se viu no meio do saguão, parou bem em frente ao ponto embaixo de seu escritório e ouviu a barulhada lá em cima. Móveis sendo jogados no chão, o ruído de vidros quebrando. Ele só pode estar vasculhando meu escritório.

A essa altura ela já tinha removido a grade de ventilação e se enfiado pela rede de condutos. O espaço era estreito, mas dava para ela se virar.

Foi engatinhando o mais rápido que podia pelo conduto.

Após alguns minutos ela chegou a uma curva angulosa e parou. Foi quando lhe ocorreu. Esquecera de pôr a grade de ventilação no lugar. Se o desconhecido que estava lhe perseguindo visse, poderia seguir sua pista. Mas será que ele se daria ao trabalho? Ela duvidava.

Foi se arrastando como um caranguejo pelo que pareceram horas nos claustrofóbicos confins do conduto, mas na verdade passaram-se nada mais que minutos. Seus joelhos estavam doendo e as palmas de suas mãos estavam cobertas de pó e excremento de rato e sabe Deus que mais.

Foi quando algo se mexeu nas costas de uma das mãos. Ela tirou a mão por instinto e bateu com o cotovelo na lateral. Amaldiçoou a si mesma por ser tão maricas.

Um som abafado veio em sua direção.

Ela apertou o passo, seguindo o som pelo labirinto de condutos.

Ao se aproximar, se deu conta que era uma voz.

Na verdade, vozes.

Estrondosas e hostis.

Seguiu-se o som de alguém choramingando.

Eram os apelos angustiados de alguém que fora levado além dos limites normais de dor, além do que o ser humano pode agüentar. Alguém que se agarrando a vida por um fio.

Sentiu um gelo na nuca.

Teria reconhecido a voz dele em qualquer lugar.

Seu torturado pedido de socorro.

Era o padre Dominic.

A voz do irmão veio serpenteando da boca do túnel escuro e infinito à sua frente. Era pura e simplesmente um declive cego em direção ao teto do recinto abaixo. Calculando de cabeça a distância e locação, achou que a distância fosse de uns seis metros, muito provavelmente no Salão de Iluminação.

Seu sexto sentido lhe levara àquele ponto. Agora tudo dependia de ela se arriscar cegamente.

 

Brax foi seguindo pelo corredor, evitando todas as fontes de luz que cruzavam os azulejos brancos fulgentes em cones intermitentes de iluminação de emergência.

Antes ele burlou a fechadura da entrada com uma tira de plástico, pegou a maleta Zero e esvaziou. Agora estava com um computador palmtop LED sobre a mão aberta. Scout tinha feito download dos diagramas esquemáticos da estrutura do museu. A imagem luminosa do rastreador GPS em Blair aparecia como um pequeno ponto verde pulsando na tela.

Levava pendurado no pescoço um CORNER-SHOT. Fabricado pelos israelenses, podia ser equipado com uma pistola ou fuzil de assalto ou lança-granadas de 40 mm. Era basicamente um rifle com uma dobradiça no meio e mecanismo de gatilho remoto.

Levava encaixado à mão um fuzil de assalto APR.

O mecanismo arqueava em ângulos agudos até sessenta graus à direita ou à esquerda, permitindo que o atirador colocasse o armamento em um canto ou esquina sem se expor à linha de fogo.

A parte perigosa da arma tinha uma microcâmera de vídeo cujas lentes grande-angulares reproduziam imagens em tela pequena de alta resolução. A microcâmera incorporava centralização, foco automático e filtro infravermelho, permitindo que o atirador enxergasse à meia-luz. O modelo que ele carregava tinha ainda designador a laser na boca da arma de fogo.

Brax entrincheirou-se em uma esquina.

Passos pesados vinham na direção do cruzamento à sua direita. Ele cravou a boca da arma na esquina e observou a pequena tela.

Deu um pulo com o que viu. Um repugnante palhaço de cara branca com lábios vermelhos como sangue apareceu na tela, quase flutuando na escuridão ao se mover.

Usava macacão.

Uma pistola na mão.

Definitivamente hostil!

O palhaço maligno estava vindo pelo corredor em direção a ele. Mirando nos joelhos do palhaço através do centralizador da tela LED, mandou ver dois rounds, e depois mais dois só para garantir. O palhaço arregalou os olhos.

Um gemido estridente ecoou em direção a Brax e ele viu o homem cair de cabeça no chão, implacável; ele soltou a arma, que saiu rolando pelos ladrilhos e passou ruidosamente pelo posto de Brax na esquina.

Após conferir se havia mais alvos sem encontrar nenhum, Brax deu a volta pelo canto da parede, pegou a pistola que o outro perdera e foi até ele.

Brax puxou o dispositivo frontal e o CORNER-SHOT voltou à posição correta original. Brax pegou do colete um par de algemas de plástico e, depois de plantar o joelho profundamente no meio das costas do palhaço, deixou-o bem algemado. Olhando ao redor ainda com o joelho cravado nas costas do sujeito nefasto, pegou mais um par de algemas do colete tático e atou firmemente os tornozelos do palhaço. Levantou-se e olhou para o otário amarrado.

Ao lado do palhaço que gemia, Brax se ajoelhou. Pegou rudemente o dedo da mão algemada do homem e puxou para trás, torcendo com força. O homem urrou como um porco ferido.

Brax se agachou sobre ele e sussurrou em sua orelha. — Quer mais, babaca? — o palhaço balançou a cabeça violentamente.

— Quantos são e onde estão?

Não houve resposta.

Brax puxou outro dedo até quebrar.

O palhaço bateu com os pés no chão.

Antes que o sujeito conseguisse terminar seu uivo de misericórdia, Brax se levantou e plantou a sola do sapato com força em sua nuca, amassando o rosto contra o chão.

Enquanto jogava cuidadosamente seu peso para a perna direita para não perder o equilíbrio, Brax disse entre dentes trincados — Última chance, Bozo.

O Bozo grunhiu e se contorceu.

Brax tirou o pé.

—        Estou ouvindo.

O Bozo disse com dificuldade, arfando — Mais quatro... no terceiro andar. Torcendo o terceiro dedo, Brax gritou — No terceiro andar, onde? E as armas, Bozo. Que armas eles têm?

—        Salão de Iluminação... semi-automáticas. Juro, é isso.

Brax estudou o Bozo por um momento e então trocou o seletor de sua APR para automático. — Bozo, acho que você está de papo-furado.

Abaixando mais, Brax amordaçou o Bozo com seu lenço.

Brax virou e saiu correndo com o notepad na palma da mão, procurando o Salão de Iluminação no visor enquanto corria para pegar as escadas.

Chegando ao terceiro andar, foi para o corredor.

Procurando alvos com os olhos enquanto corria, ele parou ao ver mais dois Bozos hostis dobrando a esquina.

Vieram rápido e o mais alto tinha nas mãos uma espingarda de cano cerrado. Só revólveres, hein?

Veio um clarão. Brax teve certeza que fora atingido. O chumbo dos tiros lhe rasparam o rosto. O atirador mirou ao alto, à esquerda.

Foi tomado pelo instinto.

Brax se jogou no chão virando cambalhota e derrapando sentado pelo chão altamente encerado com as pernas dobradas enquanto soltava rajadas de metralhadora.

Como em câmera lenta, cartuchos quentes ficavam suspensos no ar e caíram no chão como chuva; um deles escorregou por dentro do colarinho de Brax. Ele odiava quando isto acontecia, pois queimava para diabo.

Os rounds de 5.56mm atingiram o peito do Bozo mais alto, e o segundo explodiu no rosto do agressor mais baixo.

Ele vacilou, caiu de joelhos com o sangue esguichando dos buracos dos olhos da máscara, onde os disparos passaram para atingir o cérebro.

Brax pôs-se de pé.

Ouviu um som de marteladas em metal. Depois um grito como um choro torturado vindo do salão de exposições.

 

A paixão de Blair, além de arqueologia, era o alpinismo. E agora ela estava testando ao máximo seus talentos.

Testava o método de escalar chaminés no sentido inverso. Usando a força contrária, pôs o pé direito na altura do joelho na parede do condutor em frente a ela e manteve o outro pé atrás, espremido debaixo de seu traseiro contra a parede de trás. Com os braços esticados e as palmas das mãos empurrando as paredes opostas, foi descendo ao alternar a posição das mãos e dos pés.

Suas panturrilhas e músculos das coxas ardiam de intensa dor, ultrapassando seu limite de resistência. Estava começando a ter espasmos nos braços de tanta força que estava fazendo. Estava no meio da descida quando não agüentou mais.

O conduto fez um barulho metálico quando o pé dela escorregou. Abraçando a cabeça com as mãos, ela caiu pelo túnel em direção à luz nublada lá embaixo.

 

Margot andava de um lado para outro, nervosa, os olhos ansiosos como flechas atiradas para todos os lados do salão.

Der Eisaxt segurava firmemente seu instrumento enquanto cravava pregos grossos na carne macia das mãos do homem.

A cada golpe, Margot quase desfalecia, gemendo de prazer ao observar, fascinada, o rosto do padre, assolado pela dor, com interesse indiferente, ainda que intenso.

Ela parou.

Jamais imaginou que isto fosse acontecer.

O corpo de Blair caiu do alto pelo respiradouro e caiu como um saco de bigornas sobre Margot, que ficou sem ar e caiu de joelhos.

Blair rolou pelos ladrilhos frios. Torcera o tornozelo com o impacto e estava urrando de dor.

Tossindo, engasgada, Margot se levantou com dificuldade. Desorientada, ela lentamente retomou os sentidos e atacou Blair com seu olhar infernal. — Sua puta!

Margot continuou cambaleando, os olhos tomados de ódio e instinto assassino.

Esfregando o tornozelo machucado, Blair olhou para detrás de Margot e deu um grito.

Na parede ao fundo, detrás da figura gigantesca de der Eisaxt, estava seu irmão, padre Dominic, suspenso por pregos de três centímetros cravados nas palmas abertas das mãos e nos peitos dos pés descalços. Os pregos pareciam adentrar a placa de reboco da parede.

O sangue dele ainda pingava, deixando um rastro pela parede branca e formando uma poça escura no chão abaixo de si.

A cabeça do padre pendia pesadamente sobre o peito. Blair só soube que ele estava vivo por causa de um leve oscilar do peito, e por ouvir sua respiração debilitada e difícil. Voltou os olhos para der Eisaxt, depois para Margot, detendo-a com sua força.

—        Vocês o crucificaram, seus canalhas doentes! — Blair gritou.

—        Ernst trabalhou maravilhosamente bem — disse Margot, emplastrando o rosto com seu sorriso de anfitriã. — Parece uma escultura viva, não acha?

Blair a xingou e lentamente levou a mão ao bolso do casaco, onde a pistola SIG a esperava.

Ernst sorriu, bateu os calcanhares habilmente e fez uma mesura exagerada.

—        Uma crítica de arte, Ernst — Margot zombou.

Blair virou o rosto, repugnada. Flagrou de relance a expressão de choque no próprio rosto, refletido em um pedestal de vidro.

Uma voz flutuou pela escuridão detrás de Ernst, chamando a atenção de Blair.

—        Todos parados aí, onde estão. Abaixe esse machado, babaca.

Do lado de fora, Scout Thompson estava falando com o inspetor Newley, cercado por um verdadeiro nó cego de policiais tensos. O som trovejante de um helicóptero que se aproximava lhe chamou a atenção.

O cone brilhante formado pelo holofote do helicóptero varreu o chão.

Olhando para cima e apontando para o helicóptero que se precipitava, Newley explicou a Scout — Deve ser um dos nossos garotos do SFO, nossa versão de uma equipe da SWAT. Eles farão uma entrada pelo teto e nós botamos pra quebrar por aqui com o resto do pessoal do CO19. — Enquanto ele falava entrou um camburão ARV. As portas se abriram e Newley balançou a cabeça em direção ao veículo, indicando que deviam entrar.

Enquanto se dirigiam ao camburão uma cacofonia de sirenes anunciava aos berros a chegada de Brody e Chewie.

O Jaguar, que estava sendo perseguido por três BMWs da polícia, avançou pelo meio-fio e seguiu a toda em direção a Scout e o inspetor.

—        Parece que Chewie arrumou um fã-clube — Scout disse, balançando a cabeça.

A potência do Jaguar foi contida por uma freada a poucos metros de onde estavam Scout e o inspetor.

Devlin e Chewie abriram as portas do Jaguar e pularam para fora. As viaturas de polícia pararam atrás.

—        Droga! Pelo jeito, vou ter de resolver isto. Estes são TROJANS, veículos de reação armada — disse Newley, correndo em direção às viaturas.

Os policiais em perseguição pularam empunhando submetralhadoras HK-MP-5 e Glock-17 e berrando ordens para que os capturados levantassem as mãos e se ajoelhassem.

Newley interveio, levantando sua identificação de policial enquanto um policial veterano uniformizado se posicionava entre as armas levantadas e Devlin.

Situação contornada, Newley se juntou à equipe ÔMEGA no camburão de comando e controle, o rosto vermelho de raiva. — Vocês gostam de criar confusão, né, seus ianques da porra?

Brody Devlin sorriu acanhadamente e virou para Chewie.

-           Trouxe o Calvário - Chewie ofereceu, apontando com a cabeça as unidades policiais.

—        Com certeza — Newley respondeu. — A situação é a seguinte. Houve tiros. Provavelmente é seu homem, Braxton, cuidando dos intrusos. Em breve teremos a energia elétrica de volta.

Um técnico estava de frente para uma mesa de controle, acessando quadros em um monitor de vídeo. Newley apontou para o diagrama com a estrutura interna do museu. — A unidade aérea do SFO vai entrar de repente... do teto. Já cobrimos todas as saídas por terra.

Brody balançou a cabeça, demonstrando entender, e virou para Scout. — Alguma notícia de Brax desde que ele entrou aí?

—        Não, o sinal de seu Corner-Shot foi cortado pouco depois que ele entrou e eu não quis ligar para o celular porque poderia expô-lo a algum risco, chamando a atenção para a posição dele.

Brody mordeu o lábio inferior e se virou para Newley. — Então estamos literalmente no escuro. Não sei quantos hostis há lá dentro, nem que armas têm.

Newley assentiu com tristeza. — Correto. Encontramos a van de uma companhia de dedetização estacionada ao lado, de modo que meu palpite é que os hostis, como você os chama, ganharam acesso como dedetizadores e renderam o pessoal da segurança. — Ele apontou para a tela. — Vamos mandar duas equipes lá dentro... aqui e aqui.

O técnico à mesa de controle pôs a mão no fone de ouvido, assentiu com a cabeça e interrompeu. — Inspetor, a equipe Air-One diz que identificaram um segundo helicóptero se aproximando rapidamente ao norte.

Newley arrancou o fone da cabeça do técnico, enfiou na dele e gritou — Air-One, aqui é o inspetor Newley do S015. Eu não requisitei uma segunda equipe aérea. Será o helicóptero daquele maldito jornaleco?

Brody e Chewie trocaram olhares desconfiados e pularam para fora da van. Chewie levou aos olhos um par de binóculos infravermelhos com tecnologia digital que pegara na van.

—        Algum sinal? — Brody perguntou.

—        Não... espere aí, parece uma transmissão de tevê.

Brody ouviu o Inspetor Newley na van, gritando ao fone de ouvido. — Helicóptero se aproximando. O espaço aéreo está restrito por ordem policial. Identifiquem-se e recuem imediatamente!

Após várias tentativas, Newley disse — Air-One, Newley falando. Eles não estão respondendo. Pode meter bronca e colocar esses jornaleiros do inferno pra correr!

Dentro de segundos Brody viu o Air-One alçar vôo do teto e travar combate com o helicóptero que se aproximava, jogando nele a luz do refletor e berrando ordens de um alto-falante.

O helicóptero misterioso não diminuiu a velocidade nem mudou de direção. Em vez disso, seguiu bem na direção do Air-One.

Chewie gritou. — Cacete! Estou vendo projéteis com tanques de gasolina naquele helicóptero! Mande-os recuar.

Veio um clarão e o jorro flamejante de um projétil cruzou o céu noturno.

O Air-One foi atingido bem no rotor traseiro e começou a cair em espiral, como um cachorro correndo atrás do próprio rabo.

O helicóptero caiu de bico sobre a grande massa de luzes do Grande Pátio do museu, suas hélices ainda girando e mastigando o teto de vidro e finalmente afundando pelo teto. Veio então uma explosão de estremecer e uma nuvem de óleo projetou-se para as alturas.

Brody e Chewie observaram, impotentes, enquanto o helicóptero atacado se inclinava e caía lentamente no teto, onde Newley indicara que estava posicionado o resto da equipe, esperando para agir.

A vibração ensurdecedora de uma chain-gun atacou os ouvidos de Brody enquanto rounds traçantes de vermelho e laranja vindos do helicóptero misterioso cosiam sua rota mortal pelo teto do edifício.

 

Momentos antes no museu, Blair viu que o homem que saiu das sombras apontando a arma para eles era o tenente Braxton.

Ele olhou para ela. — Está bem, doutora Kelly? — Então seus olhos se voltaram para os outros. Fez uma careta ao ver o padre Dominic.

Blair acenou a cabeça, cansada. - Vou ficar bem. Mas Dominic precisa ser imediatamente... — soltou um gemido agudo ao tentar ficar de pé apoiando-se em um pedestal próximo.

Uma combustão incendiou a clarabóia, tingindo o salão com uma luz quente acendendo o céu noturno acima.

Uma explosão fez enorme estrondo, sacudindo as paredes, seguida rapidamente pela trepidação ensurdecedora de tiros no teto.

Sem tomar cuidado, Brax passou por Ernst para acudir Blair. Com o metal cintilando, o machado desceu em um movimento embaçado que arrancou a arma da mão de Brax. A pistola rolou ruidosamente pelo chão.

Brax deu um bote, mas Ernst virou a ferramenta e arremessou a bola de aço acoplada no plexo solar de Brax, levando-o a se encolher de dor.

Agora que Brax estava indefeso, Ernst usou a ferramenta como se fosse um porrete para bater no crânio de Brax impiedosamente, um golpe atrás do outro, até ele cair no chão.

Blair tirou a pistola SIG do casaco.

Mas os reflexos de Margot foram rápidos demais; ela já estava a meio caminho antes de Blair meter a mão no bolso.

Um violento chute lateral arrancou a pistola das mãos de Blair.

Gritando como um animal raivoso, Margot agarrou Blair pelas lapelas, suspendeu-a no ar, tirando-lhe os pés do chão e arremessando-a do outro lado do salão com força inumana.

Como uma dublê de filme presa por um fio invisível, Blair voou e bateu de costas em uma grande vitrine.

Cacos como navalhas cravaram nas costas de Blair, caída em um monte de madeira e vidro despedaçados.

Quando ela começou a perder a consciência, outro clarão varreu o céu noturno.

Ela ouviu a batida pesada de hélices turbulentas acima. E foi afundando mais e mais fundo na escuridão.

Choveu vidro da clarabóia quebrada e um pano preto estampado foi lançado em uma tentativa final, tudo ou nada.

Cordas envolveram Margot.

Tomando Blair nos braços como se fosse uma boneca de pano, Margot se ajustou à corda. Com Blair no colo, Margot foi içada pelo helicóptero em direção aos raios brilhantes do holofote.

Ernst foi o próximo resgatado quando baixaram uma cesta; desapareceu na luz e pelo céu, levando trancado na segurança da maleta em suas mãos o resultado da pilhagem da noite.

As luzes no interior do museu subitamente se acenderam.

Alarmes baliram e luzes vermelhas pulsaram nos corredores.

Os elevadores zuniram e foram gradualmente subindo.

Botas pesadas subiram as escadas.

Mas no silêncio do salão de exposições, Brax jazia mole e inconsciente debaixo da figura do padre torturado.

 

A frente do Museu Britânico era um espetáculo de devastação, envolvido por raios brancos e quentes de holofotes enormes e os estroboscópios chispantes de um exército de veículos de emergência. Cavaletes e fitas de isolamento fechavam uma das maiores cenas de crime de Londres desde as explosões de bombas terroristas.

Fileiras após fileiras de carros de reportagem de tevê fixaram residência atrás das barricadas, suas longas antenas parabólicas iluminando os repórteres frenéticos, ainda que bem arrumados, relatando as notícias para suas redes de tevê.

O corpo de bombeiros estava apagando o inferno que virou o Grande Pátio, onde o helicóptero rasgara a clarabóia.

Lá dentro os técnicos do FISCD, unidade do departamento de investigação criminal colhiam evidências enquanto sacos eram usados para carregar os restos mortais dos guardas abatidos, da equipe do SFO que estava no teto e dos invasores após devidamente examinados pelos médicos legistas.

O inspetor-chefe Newley e Bordy Devlin estavam no saguão externo do Salão da Iluminação.

Os paramédicos correram para levar o tenente Braxton e o padre Dominic Kelly em macas para os elevadores que aguardavam.

Com uma voz abatida, Brody Devlin perguntou ao médico — Algum prognóstico, doutor?

O médico tirou as luvas de látex e o olhou nos olhos. - O tenente Braxton sofreu uma grave concussão, mas se Deus quiser, não ficará com nenhum dano cerebral irreversível — ele mordeu o lábio inferior. — Só o tempo dirá.

O inspetor Newley entrou na conversa. — E o padre Kelly?

O médico deu um suspiro profundo. — À parte os ferimentos nas mãos e pés, encontrei evidências de lesões e fissuras brutais. Há marcas claras de queimaduras por eletrodos nas coxas e na genitália. Provavelmente aplicados por um aparelho de choque.

Newley fez um careta e engoliu em seco. — Alguma chance de ele nos dizer quem fez isto com ele?

—        A não ser por um possível bloqueio psicológico, talvez dentro de quarenta e oito horas. É difícil para diabo ter certeza em casos assim, inspetor. Sabe, o trauma psicológico afetar mais na recuperação da vítima que os ferimentos físicos em si.

—        Claro — disse o inspetor — obrigado por se esforçar.

—        Muito bem, cavalheiros — disse o médico, virando-se para tomar o elevador. — Agora é com os senhores.

Eles então se viraram para voltar para o salão de exposições.

Chewie estava apoiado em um dos joelhos, examinando o chão cuidadosamente. Seus olhos fotografaram o panorama e depois se voltaram para a clarabóia esfacelada acima.

Equipes de técnicos isolavam a cena do crime.

Scout Thompson estava sentando em um canto com o laptop equilibrado sobre os joelhos.

Brody, que supervisionava a atividade de Chewie com Newley ao seu lado, perguntou — O que tem para nós, garotão?

Chewie avaliou o recinto com seus olhos de águia. Apontando para o teto, explicou — Brax entrou por trás deles, provavelmente estava em desvantagem.

—        Apontou com a cabeça a parte do chão perto de uma poça seca de sangue.

—        Há uma marca de bota na mancha de sangue, eu diria que é tamanho 46. Não é de Brax, ele usava um mocassim tamanho 42, já conferi — Chewie se levantou e movimentou cuidadosamente o corpanzil pelo salão. — Lá está a CORNER-SHOT de Brax. Pelas marcas no cano da arma eu diria que o agressor de botas a arrancou das mãos de Brax com algum instrumento denteado cortante. Os exames de laboratório dirão exatamente de que se tratava.

Newley e Brody assentiram.

Não pare agora, meu velho - Newley atiçou.

Chewie respirou fundo e expirou com força. Apontou para a abertura no teto onde ficava o respiradouro que agora jazia a poucos passos no chão. — Alguém caiu por este conduto e caiu em cima do segundo criminoso.

—        Mas como diabos...?

Chewie prosseguiu. — Há uma marca de palma de mão no chão à direita, e uma mancha de sangue em alguns cacos de vidro. E aqui... duas marcas igualmente distantes, provavelmente dos joelhos do criminoso.

Newley acenou para um perito, chamando-o para perto de Chewie.

—        Meu jovem, trate de tirar fotos e marcar tudo direitinho.

Então Chewie caminhou a passos largos até um pedestal despedaçado. Ele estudou o pedestal e olhou para trás, onde ele estava originalmente. - A segunda criminosa arremessou sua vítima pelo salão. E ela caiu aqui. — Apontou para o pedestal destruído.

—        Agora espere aí, meu velho — Newley acautelou, tirando a mão do bolso da capa de chuva que usava para apontar o dedo ossudo para Chewie. — Você se referiu a uma criminosa e a uma vítima igualmente mulher. Como pode deduzir que ambas sejam mulheres? E como pode especular que ela tenha sido arremessada por seis metros? Papo-furado!

Chewie explicou, fazendo menção ao assoalho ao redor com gestos exagerados. — Não há sinais de luta, mas há uma trilha que vem do vidro de onde a mulher foi arrastada.

—        Ah, pois bem. Vou considerar sua hipótese sobre a ausência de briga..., mas sua conjetura absurda sobre o sexo delas não tem a menor lógica!

Chewie se virou para um dos peritos. — Mostre a ele.

O perito de pescoço fino e rosto radiante mostrou dois sacos com evidências. — O seu Raindancer aqui achou estes fios de cabelo, senhor — levantou um dos sacos plásticos. — Havia folículos louro-brancos por toda parte, perto da marca da palma da mão, e também um brinco de mulher e... — levantou o segundo saco — ... e uma lasca de unha com esmalte e uma mecha de cabelo ruivo com sangue foi achada em uma lasca de madeira da vitrine.

Brody sentiu o pescoço gelar ao ouvir as palavras mecha de cabelo ruivo com sangue. Visualizou Blair sendo arremessada pelo salão e caindo sobre a vitrine com vidro voando para toda parte.

Newley assoviou alto. Acho que só falta você dizer que perfume usavam e suas medidas.

Chewie sorriu levemente e balançou a cabeça.

—        Não..., mas posso dizer os nomes.

Newley ficou boquiaberto.

Brody cortou, apertando o queixo com as dobras dos dedos. — A loura é Margot Gant, sou capaz de apostar meu salário. E a ruiva... sua voz ficou ligeiramente embargada. — A ruiva é a doutora Blair Kelly. Sabemos que ela estava aqui e não há traço dela.

Chewie piscou o olhou. Então, subitamente, seus olhos claros e argutos cintilaram. Ele voltou para o meio do salão, debaixo da clarabóia, como um cão que sente o cheiro da caça.

Parou em frente ao inspetor chefe Newley. — Ei, me dê seu sapato.

—        O quê? Claro que não...

Chewie se apoiou em um joelho, agarrou o tornozelo do inspetor e levantou seu pé direito. Newley procurou manter o equilíbrio, protestando veementemente contra a grosseria.

Chewie disse rispidamente — Pare aí, não fique se mexendo, inspetor.

Chewie gritou para o perito — Rápido, me dê uma pinça.

Brody não conseguiu se segurar. Aquela cena de Newley balançando como uma vaca manca com aquele índio grandão lhe agarrando a perna foi demais. Caiu na gargalhada. Um bem-vindo alívio cômico para a violência daquela noite. Mas quando Brody se recompôs, olhou mais de perto. Tinha um fio colado à sola do sapato de Newley.

Chewie colheu o fio cuidadosamente com a pinça e pôs dentro do saco plástico que o perito estava segurando para ele.

Chewie virou para Scout. — Ei, senhor CALTECH. Você ainda tem aquele microscópio minielétron cem-K sei-lá-o-nome do seu Game Boy?

Agachados ao lado de Scout, ficaram olhando em silêncio enquanto o perito pôs o fio tirado do sapato de Newley no scanner do laptop.

—        Grande merda! — disse Scout, os olhos pulando das órbitas — que gracinha!

Na tela LED apareceu a imagem aumentada das tranças do fio, dançando como pequenos microorganismos.

Brody disse — OK, que diabo é isto?

- Algo em que o sistema de combates futuros vem trabalhando há anos, mas até agora não passa de um sonho.

- Para mim isto é nanotecnologia — Chewie disse sensatamente.

—        Dê um charuto para este homem — disse Scout. — O conceito é incorporar nanofibras em roupas de combate. Quando um soldado flexiona os bíceps ou músculos da perna, o tecido nanoaprimorado multiplica a força do sistema muscular de cinco a vinte vezes.

-           Uma roupa de Super-Homem? — Brody sugeriu. — Isto explica como a loura conseguiu arremessar Blair do outro lado como se fosse um saco de serragem.

Uma voz cáustica veio por trás. — Ora, se não é o Sherlock Holmes e o jovem doutor Watson decifrando a cena do crime para o bobão do inspetor Lestrade enquanto Tonto observa.

Brody virou. Sir Nigel Cummings, obeso e petulante como sempre, caminhava em direção a eles. Brody olhou para o pescoço gorduroso que se dobrava em camadas sobre o colarinho apertado e para os olhos cinzentos e frios. Tinha em uma das mãos um livro e uma carta na outra.

Parou em frente a eles, levantou a cabeça gorda e olhou ao redor do salão. Deu um suspiro e olhou bem nos olhos de Devlin. — Bem, major Devlin. Vejo que você e suas bravatas de cowboy americano estragaram sua missão mais uma vez. Deve estar orgulhoso, hein?

Chewie foi avançando, já trincando os punhos. Mas Brody o segurou pelo Braço, contendo-o.

Brody respondeu moderadamente — Posso ter perdido um bom homem aqui hoje. O fedor de sangue aqui e no teto ainda está fresco nas minhas narinas, Sir Cummings. Seu humor depreciativo ofende os bravos homens que deram suas vidas em serviço.

Cummings fez um sinal desdenhoso com a mão gorducha. — Seja como for, não tive intenção de desrespeitar — virou para o inspetor-chefe Newley e plantou a carta vigorosamente contra o peito. — Aqui está sua notificação formal de demissão, inspetor. O Ministro do Interior decidiu que eu devo consertar esta zona aqui. Não precisamos mais de seus reles serviços.

Newley leu a carta, o rosto se contorcendo de raiva. Tenso, dobrou o documento cuidadosamente e enfiou no bolso frontal. O inspetor virou e acenou discretamente com a cabeça para a equipe ÔMEGA. Então virou a cabeça para Cummings. — Vá para o inferno, seu prepotente inflado... ridículo — então deu meia-volta e foi embora.

Cummings deu de ombros e riu de chorar.

Seu rosto ficou severo, os olhos apertados. — Major Devlin, pode me dar licença por um minuto, por favor?

Do outro lado do corredor externo, longe do tráfego de transeuntes e dos olhos e ouvidos abelhudos, Brody ficou parado encarando Cummings.

—        Major, precisamos deixar nossas rixinhas de colegiais de lado por enquanto. Este caso saiu absurdamente de controle.

Brody começou a falar, mas o gordo lhe interrompeu.

—        Além do que, sei que esteve envolvido em um tiroteio esta tarde. Tive que suar a camisa para impedir que o superintendente do Serviço Metropolitano de Polícia e o Ministro do Interior lhe arrancassem a pele.

—        Os capangas de Hunt estavam atrás da garota. Era matar ou morrer.

—        Pelo que sei, a garota a quem se refere...

Brody girou o pescoço com câimbra e interrompeu. — Doutora Blair Kelly. E agora ela está desaparecida. Provavelmente seqüestrada por Margot Gant.

A papada tripla de Cummings sobressaiu ainda mais enquanto ele ficou olhando para Brody em silêncio antes de falar. — E como você gastou seu maldito tempinho me informando sobre estas travessuras, creio que ao menos teve a presciência de manter seus superiores informados, não é?

Bem naquele momento, o celular de Devlin tocou.

Cummings, com um sorriso escorregadio e consciente, apontou com a cabeça o celular tilintante. — Ah! Parece que não teve, não. Sugiro que atenda, major Devlin. E se no final você não tiver sido rebaixado a cabo Devlin, queira ter a gentileza de me encontrar lá embaixo, em meu carro. É o carro grande e preto, major... — enrugou as sobrancelhas grossas, se inclinou e sussurrou — ... com os vidros escuros.

Logo após, Sir Nigel Cummings foi conduzindo com dificuldade o traseiro gordo e as coxas pesadas pelo saguão, deixando Devlin atender a ligação.

Ele atendeu. — Devlin.

Não foi surpresa ouvir a voz furiosa de Bill Sorenson do outro lado.

- Pelo amor de Deus, Devlin! Que diabo aconteceu aí? Por sua causa escutei todo tipo de esporro do Capitólio e da Casa Branca. Langley está encarando o tranco. Explicando ao Conselho Nacional de Segurança o bando de descontrolados que é a força ÔMEGA, e como saímos por Londres pegando pesado, barbarizando com os ingleses.

- Brax está sob tratamento intensivo — Brody interrompeu. — Ele corre risco de dano cerebral permanente, Bill.

—        Ah, diabo! OK, vá com calma e me substitua. Quero começar botando pra quebrar assim que desembarcar em Heathrow.

—        Vai viajar?

—        En route, como dizemos, meu jovem. Também traremos reforços. Temos que resolver esta situação antes que seja tarde demais, Dev.

Sucinta e concisamente, como fora treinado, Devlin contou a Sorenson o que havia vazado.

Scout correu para o lado de Devlin com cara de cachorro pedinte. Brody tentou descartado, mas Scout persistiu.

—        Espere, Bill. Thompson tem algo urgente.

Retomando o fôlego, Scout conseguiu dizer — Você saiu antes que eu pudesse lhe contar. Coloquei um rastreador na doutora Kelly. O GPS fez uma planilha de seus movimentos. Preciso expandir a rede para que você possa ver e...

Brody sentiu o coração ficar mais leve e sorriu. — Pelo amor de Deus, Scout. Diga logo onde ela está!

—        O lugar se chama North Devon. Interior metido a chique da Inglaterra. Grandes mansões, castelos e fazendas de cavalos. Ela está em algum ponto perto da costa.

Na mente de Devlin a arapuca começou a fazer sentido. Lembrou do ornamentado convite para a festinha de Heinrich Gant em RAVENSCAR — sua mansão — que recebera no hotel, e se lembrou do endereço... North Devon.

—        Estamos com o novo Intel, Bill. Eu lhe informo quando você chegar, OK? É a solução para encontrar a doutora Kelly.

 

No andar de baixo, em meio à barafunda de viaturas policiais e caminhões de bombeiros, com Chewie e Scout ao lado, Devlin procurava encontrar o sedan preto de Cummings. Desistindo, frustrado, Brody se voltou para seus homens.

—        Scout, dê um pulo no hospital para ver como está Brax - disse Devlin. — Chewie, vá pegar o chefe no aeroporto de Heathrow. A noite vai ser longa.

Chewie fez que sim e apontou. — Parece que temos companhia, Brody.

Um homenzinho magro com chapéu de feltro e longo sobretudo de tweed cinza com duas fileiras de botões abriu caminho em direção a eles. Parecia um personagem de filme de espionagem dos anos 40.

—        Major, Devlin, senhor?

— Você é um dos rapazes misteriosos de Sir Nigel? — Devlin perguntou. O homem de chapéu olhou furtivamente ao redor e assentiu. Pôs na mão de Devlin um livro de capa dura.

Devlin recuou, pegando o livro relutantemente.

—        Sir Nigel me pediu para dizer que lamenta, mas ele foi requisitado. Pediu que informasse que ele está organizando uma batida policial ao amanhecer na mansão de North Devon. Pediu-me que o pegasse cedo, senhor. E então, será em Dorchester?

Perplexo e sem palavras, Brody Devlin apenas balançou a cabeça, assentindo.

—        Muito bem, senhor — o homenzinho de chapéu deu meia-volta, cheio de energia, e se retirou.

Devlin levantou o livro e gritou pelas costas do sujeito. — Ei, camarada, não entendi seu nome.

Olhando por sobre o ombro ao caminhar e ajeitando o chapéu, o homem respondeu — Acho que não lhe disse, senhor.

Devlin ficou na ponta dos pés, olhando por sobre a multidão, tentando não perder o homenzinho de vista. — Qual é a deste livro, afinal? — ele gritou, a voz transbordando confusão.

—        Uma leiturazinha leve, major. Algo que a doutora Kelly lhe deixou, creio eu.

Devlin balançou a cabeça e bufou fortemente. Olhou para o livro e leu a capa.

 

ALDEIA DOS MALDITOS (Novela de ficção científica de John Wyndham (The Midwich Cuckoos, "Os Cucos de Midwich" em tradução literal).

 

           Sombras e Névoa

 

Em seu quarto na Escola Éden, Noor estava toda encolhida, com as pernas dobradas e encostadas ao peito. Parara de choramingar agora, mas seu lábio inferior continuava a tremer ligeiramente.

Dentro de sua mãozinha ela segurava com força o olho de botão de Mister Muffins, a única parte do bichinho de pelúcia que ela conseguiu trazer do Quarto Escuro. Ela fingiu cair, fingindo que estava com as pernas moles quando escorregou da cadeira. Quando o doutor Craven não estava olhando, Noor pegou o botão do chão frio ao levantar.

Ela rolou na cama, deitando de costas, e esfregou o botão entre o polegar e os outros dedos. Para ela era uma espécie de pedra de toque mágica, um elo com Blair, sua única ligação com o sentimento de esperança.

E Noor tomou uma decisão. De agora em diante só iria pensar em si mesma como Wendy, deixando para trás, para todo o sempre, o nome Noor e todas as memórias ruins associadas a ele, a perda dos pais e sua vida anterior.

Passos ecoaram no corredor, aproximando-se e parando subitamente em frente à sua porta.

Noor pôs o botão na boca e ficou gelada de medo.

Ouviu um clique na fechadura e a porta se abriu.

A senhora Baylock estava parada à porta, sua figura esquelética iluminada pela forte luz do corredor.

— Hora do jantar, senhorita — disse a senhora Baylock, com seu cigarro aceso esquecido debaixo do nariz aquilino e uma tela de fumaça se enrolando diante dos óculos.

Na sala de jantar, Noor empurrou sua bandeja do carrinho e foi até a mesa onde os Garotos Perdidos estavam sentados.

Sentou-se perto de Peter e observou os rostos dos meninos.

Evitando os olhos dela, ficaram em silêncio, de olhos baixos. Estavam olhando para os pratos como se jamais tivessem visto feijão-de-lima e rosbife na vida.

Wendy olhou para o prato, mas depois da experiência no Quarto Escuro não tinha mais apetite.

Quando a senhora Baylock saiu do refeitório, Peter olhou cuidadosamente para os lados e finalmente falou. — Você está bem, Wendy? Estávamos preocupados.

Distraída, empurrando com o garfo os feijões no prato, Wendy fungou. — Claro, mas qual é o problema, Peter?

Um dos funcionários passou caminhando e Peter se debruçou sobre o prato novamente. Depois que o homem passou, Peter voltou-se novamente para Wendy. — Levaram outro garoto para o Quarto Escuro — simultaneamente, os outros meninos levantaram a cabeça assentindo e confirmando.

Em meio a uma garfada de batatas, Johnboy disse — Arrancaram Michael da sala de tevê. Eu tive um pressentimento muito ruim quando aconteceu.

—        Ele nunca perde o jantar, não é? — Gabrielzinho perguntou a Peter com uma voz tensa.

Peter fez que sim com a cabeça, triste, mas se forçou a dar um sorriso corajoso. — Coma os legumes, Gabe.

Gabriel fechou a cara e, relutantemente, enfiou uma colher de feijão em sua boquinha, cuspindo metade da porção na mesa de propósito. — Oooops! — ele disse, rindo.

Raji, que estava sentado à esquerda de Wendy, debruçou, aproximando-se. — Wendy, você tem que ir embora esta noite. Ouvi uma conversa deles sobre você. O doutor Craven estava de papo com aquela bruxa da Cruela Cruel.

Intrigada, Wendy perguntou — Está falando do doutor Humpty Dumpty?

—        Velho cara de porco... o nome verdadeiro dele é Craven — Raji explicou.

—        Ele é mau e machucou o Mister Muffins — Wendy acrescentou, de cara feia. Pegou o botão brilhante do bolso em que o enfiara e mostrou a Raji.

Raji fez uma expressão tensa rosto e seus olhos irradiavam tristeza ao falar. Wendy o observou em silêncio, seus olhos começando a brilhar levemente, pois sabia que o que ele estava dizendo era verdade, e porque sabia que ela teria de deixar para trás os Garotos Perdidos. Apertou com força o olho de Mister Muffins enquanto ouvia.

Raji explicou que Wendy era diferente das outras crianças, mais importante para o médico e para Cruela, Margot Gant. Raji pensara que eles tinham dito qualquer coisa sobre Wendy ser a chave, aquela com a visão capaz de abrir a porta.

Quando Raji terminou, Peter explicou o plano. — A senhora Baylock vai para casa toda noite depois que as luzes se apagam. Johnboy e eu vamos fazer um escândalo e Raji vai lhe tirar daqui enquanto isto. Como Raji consegue ver o que vai acontecer nos minutos seguintes, ele pode prever o que os seguranças vão fazer antes que aconteça. Ele é terrível no esconde-esconde.

Foi quando a atenção de Wendy se voltou para Johnboy. Algo cor de cobre saiu de dentro de sua camisa pelo colarinho, descendo pelo braço. Ela se encolheu de medo. Era uma enorme barata.

Johnboy percebeu sua reação e deu uma boa gargalhada. — Ei, não seja medrosa, Wendy — a barata estava sentada nas costas da mão dele agora e ele arrulhava para ela, estalando a língua baixinho. — O nome dele é Oscar. Quer segurá-lo?

Wendy deu de ombros e voltou para sua cadeira. Adorava todas as criaturas de Deus..., mas uma barata?

Peter deu risada. — Johnboy sabe falar a língua deles. Oscar é o único bichinho de estimação que ele pode esconder deles.

Wendy balançou a cabeça, mostrando que compreendia.

Peter prosseguiu. — Você pode se esconder na mala do carro de Baylock até ela chegar ao edifício onde mora, e então... prontinho, estará livre!

Gabrielzinho interrompeu. — Você não vai se esquecer da gente, vai, Wendy? — seus grandes olhos azuis e suplicantes a olharam por detrás de uma mecha de cabelo.

Com um nó na garganta, Wendy conseguiu dizer — Eu volto para lhe pegar, Gabe. Prometo.

 

Em seu quarto, Wendy andava de um lado para o outro. Eles lhe tiraram a roupa quando ela voltou do jantar e agora ela vestia uma camisola e chinelos.

Ouviu um som esquisito. Um barulho de sussurros vinha de dentro da parede. Encostou o ouvido à parede, prendeu a respiração e ouviu.

Então veio um som de ranhura, uma raspagem furiosa. Sons de gente ocupada e fazendo força: tinidos, aparafusamentos, desembaraçamento, pancadas.

Subitamente, alarmes soaram no corredor.

A porta se abriu e apareceu o rosto sorridente de Raji.

— Vamos! — ele a pegou pela mão e saíram pelo corredor tingido pelas pulsantes luzes vermelhas dos alarmes que soavam. As pernas curtas de Wendy lutavam para acompanhar as passadas longas das pernas de Raji. Os pulmões de Wendy ardiam de medo à medida que iam dobrando esquina após esquina.

Quando chegaram ao elevador, Raji parou e fechou os olhos em profunda concentração. Rapidamente, puxou Wendy para um canto na sombra. Agacharam-se juntinhos, respiração bem curtinha, torcendo para não arfar e entregar sua posição.

A porta do elevador se abriu sibilando. Homens em uniformes pretos saíram dele, pisando forte com suas botas nos ladrilhos, seguindo na direção oposta.

Com as costas coladas à parede, Raji e Wendy viraram a esquina devagarzinho e entraram no elevador. Raji apertou o botão para a garagem inferior.

 

Na sala de controle do centro de segurança da escola, um segurança que estava devorando um sanduíche ouviu um som arranhado vindo do respiradouro. Afastou a mão da boca e se virou em direção ao barulho. Cravou os olhos no parafuso do respiradouro. O parafuso estava sendo desenrascado, saindo lentamente da superfície do respiradouro. O queixo do segurança caiu.

Achando que era um defeito de luz, ele piscou os olhos e limpou distraidamente o bigode de maionese do lábio superior com as costas da mão. Mas quando olhou mais de perto, achou ter vistos pequenos pontos de luz marrom que pareciam flutuar na escura cavidade detrás da grade.

O parafuso pulou, caiu no chão, rolou pelos ladrinhos e parou em seu pé.

Outro segurança estava apertando botões no circuito fechado de câmeras. - Ei, mas que diabo é isso? Estou com cinco monitores com as telas pretas.

A grade do respiradouro balançou e ficou dependurada pelo parafuso restante.

Um oceano de pêlos negros saiu lá de dentro, entrou no recinto, desceu pela parede e veio correndo pelo chão.

— Ratos malditos! — berrou o segurança que mastigava o sanduíche e se levantou da cadeira de um pulo.

O outro segurança se virou em direção à praga que atacou de repente. Bateu no braço ao sentir ondas de ratos sendo cuspidos pelo conduto, subindo por suas pernas para alcançar os monitores e o painel de controle.

O segurança gritou quando uma massa de pêlos negros e marrons lhe cobriu o peito e os braços, e dentes diminutos, afiados como lâminas, começaram a lhe roer as mãos e braços, forçando-o a soltar sua arma.

O outro segurança tentou alcançar o botão central de alarme, mas um rato enorme lhe cravou os dentes na mão cheia de carne, e ele uivou de terror.

Do lado de fora da sala de controle havia um exército de baratas e centopéias saindo aos montes dos respiradouros de todos os corredores. Tomaram conta dos corredores externos e pintaram de negro as paredes e câmeras, em uma massa viscosa e cintilante de pernas e corpos em movimento.

 

Johnboy e Peter puxaram o último dos alarmes de incêndio e seguiram em direção à área do laboratório. O mar de insetos que cobria o assoalho abriu caminho para Johnboy passar estalando a língua, baixinho.

A pesada porta de aço inoxidável do laboratório se abriu.

Uma mulher de jaleco saiu correndo, gritando e se descabelando. Batia nos ombros, tentando desesperadamente afugentar as baratas e aranhas enlouquecidas que grudavam nela como abelhas na colméia. Ela tropeçou e caiu, levantou e tropeçou de novo. Quebrou o salto do sapato e saiu mancando pelo corredor abaixo com uma crosta cintilante de insetos lhe cobrindo as costas por inteiro.

Os garotos entraram e seguiram por um labirinto de estações de trabalho e equipamentos de laboratório, seus olhos procurando em meio à pouca luz. Peter parou e apontou.

A placa pendurada na porta dizia "AVIÁRIO".

Johnboy balançou a cabeça afirmativamente e eles entraram no recinto.

Pássaros de todas as espécies gorjeavam e chilreavam e grasnavam detrás de fileiras e mais fileiras de gaiolas.

Uma arara de plumas luminosas andava nervosamente de um lado para o outro em seu poleiro. Em sua gaiola havia uma pequena placa onde se lia "FADA SININHO". — Caraca, camaradas! — a ave guinchava e grasnava.

Johnboy ficou de queixo caído. Ele e Peter trocaram olhares perplexos.

A ave grasnou outra vez. — Bichona idiota. Pederasta surdo.

—        Acho que ele está falando com você — Peter disse a Johnboy.

—        A ferramenta mais afiada, aquela — Fada Sininho continuou, inclinando o pescoço. — O gato comeu sua língua, garoto?

—        Você fala! —Johnboy gaguejou, inflando as bochechas e expirando longamente.

—        Que coisa, meu Deus, você é tão esperto quanto uma porta.

Peter se aproximou. — Diga lá. Não precisa ser grosso. Seja educado agora.

Fada Sininho se empinou e ruflou as plumas. — Ah, vá se ferrar! Abra essas gaiolas e vamos dar o fora!

Os garotos foram de gaiola em gaiola abrindo as portas. Os pássaros presos alçaram vôo, desempenhando um balé aéreo ao redor, gorjeando freneticamente enquanto voavam.

Os garotos foram até a gaiola de Fada Sininho e abriram cuidadosamente a porta.

- Caaaaaaa! — gritou o papagaio ao sair da gaiola dourada, repetindo sem parar — Margot é uma Zwitter desgraçada! Eu sei um segredo, eu sei um segredo. Hau ab, Du wichser!

Os garotos saíram do aviário e foram em direção à um grupo de portas duplas de aço do outro lado do laboratório. De trás das portas vinha uma risada estranha. Era quase humana, mas por outro lado não era bem humana; era alta e agitada demais.

Hesitantes, os garotos abriram caminho pelas portas e entraram em uma espécie de zoológico de parque de diversões. Berrando e casquinando como doidos, os habitantes saudaram os intrusos. Os garotos passaram por filas de gaiolas habitadas por primatas tristemente neuróticos e outras criaturas que mal dava para reconhecer: um lêmure de rabo anelado coberto de escamas caiu pesadamente e se contorceu de costas por alguns segundos, então a criatura, que mais parecia uma iguana, se levantou com as patas de longas unhas e deu uma balançada para o lado. Desorientado e lerdo, ele começou a correr em círculos, atrás da própria cauda pontuda; um grande orangotango corcunda coberto de plumas ao invés de pêlo vermelho, agachado no canto da gaiola; parecia mais um filhote de avestruz com sua cabeça disforme empoleirada no pescoço comprido e fino do que um macaco.

Johnboy ficou enjoado só de olhar para eles. Com passos pequenos, os garotos passaram para outra gaiola. Detrás de barras, um chimpanzé de grandes e profundos olhos azuis espiava com expressão torturada. Os olhos do macaco transmitiam uma inteligência enervante que deixou Johnboy apavorado. — Ele parece tão triste — Johnboy disse a Peter com a garganta apertada enquanto olhava para o animal.

— Acho que eles são mutantes — disse Peter, olhando ao redor. — Alguém os fez assim. É uma coisa bestial, satânica.

Os olhos do chimpanzé se encheram de lágrimas e um som baixinho que mal se ouvia saiu do fundo de sua garganta, então ele se virou e abaixou a cabeça tristemente.

Tremendo de medo, Johnboy disse — Você acha que eles farão isto conosco?

Peter envolveu Johnboy com o braço, abraçando-o reconfortantemente. Seja forte agora, meu velho. Não vá bancar o medroso agora. Wendy vai soar o alarme e voltar antes de dar tempo de você dizer...

- Rapidinho — Johnboy respondeu, forçando um sorriso desanimado.

 

Wendy,estava nas dependências claustrofóbicas da mala do carro, respirando curto e ouvindo. Ouviu o clique oco dos saltos da senhora Baylock contra o concreto duro do estacionamento, que se aproximavam. Ouviu-a abrir e bater a porta do carro.

Então foi dada a partida no motor e Wendy sentiu o carro começar a se mover debaixo dela. Momentos antes, prevendo o momento exato da chegada da senhora Baylock, Raji arrombou a mala do sedan mofado e ajudou Wendy a entrar.

A viagem foi cheia de solavancos e o ar fedia. Wendy começou a sentir o estômago subir de elevador e sentiu a bílis quente chegar à garganta. Também estava um pouquinho tonta. E agora estava tremendo, morrendo de frio com aquela camisola fina de algodão que estava vestindo. Seus dedos dos pés pareciam ter virado pedaços de gelo. Ela tentou respirar contidamente, temendo desmaiar sufocada antes que a senhora Baylock parasse e ela pudesse escapar.

Sonhou com céus azuis e a brisa fresca do mar e com Blair.

Após o que pareceram horas, o carro começou a diminuir a velocidade e parou. A porta se abriu e o carro balançou levemente, indicando que a senhora Baylock havia saído do sedan. Rígida de tensão e mordendo o lábio inferior, Wendy esperou. — Cinqüenta e cinco, cinqüenta e seis — ela sussurrou, contando para marcar o tempo. — Trezentos e quarenta, trezentos e cinqüenta, lá vou eu e seja o que Deus quiser.

Movendo-se rapidamente no escuro, seus dedos encontraram a alavanca de emergência da mala do carro. Puxou.

Não saiu do lugar.

Ela tentou de novo, desta vez mais forte. Nada.

Sentiu um frio na nuca. Daria tudo por uma tocha agora; a escuridão parecia lhe engolir.

Usando ambas as mãos, puxou de novo.

Com um leve som de estouro, a mala do carro se abriu.

Espiando pela abertura da mala, Wendy olhou para os lados. A área estava limpa. Ela caminhou mancando até chegar à calçada. Inalou o doce ar noturno, enchendo os pulmões e clareando as idéias. Começou a garoar.

Então ela viu, a distância, as luzes de um carro se aproximando, aproximando-se sinuosamente dela em meio à chuva fina. Com passos involuntários, ela voltou para dentro da sombra. Olhou ao redor. As suas costas havia um enorme edifício residencial de tijolos vermelhos.

Voltou os olhos para a rua.

As luzes estavam se aproximando muito rapidamente. Ela saiu correndo da sombra e subiu os degraus da frente. Sob luz fraca da única lâmpada sobre a porta da frente, agarrou a maçaneta. Trancada.

Ficou com os braços arrepiados e tremendo sob o úmido ar noturno. De trás veio uma voz, quase lhe matando de susto. — Pode me ajudar, mademoiselle! — Ela se virou e deu de cara com o rosto sorridente de um idoso com os braços cheios de sacolas de compras. Usava uma boina, óculos antiquados de armação de arame e cultivava um cavanhaque bem aparado.

Acenou para as chaves penduradas nos dedos de sua mão esquerda que refletiram à luz quando ele as sacudiu. — Poderia fazer a gentileza de destrancar a porta, s'il vous plaît?

Os olhos de Wendy registraram o homem que se aproximava de carro. Era uma enorme limusine preta.

Ela pegou as chaves e tentou enfiar na fechadura, errando o alvo com suas mãozinhas frias e trêmulas.

Conseguiu, enfim, e pisou na portaria aquecida.

O idoso entrou atrás dela, atrapalhando-se com as sacolas ao bater a porta com o pé.

Wendy ouviu o som de freios cantando no meio-fio em frente ao edifício. Quando os faróis altos da limusine iluminaram o rosto do velho, Wendy percebeu que seu rosto era cortado por rugas e frágil como um papel de seda. Uma diminuta gota de chuva caiu de seu cavanhaque.

O velho lentamente se virou em direção ao som e balançou a cabeça em desaprovação. — Mon Dieu! Veja só o jeito que ces idiots estacionaram o carro, bloqueando a rua inteira.

O barulho sólido de portas de carro batendo veio da rua.

Antes que o velho pudesse virar o rosto para ela novamente, Wendy soltou as chaves e correu para as escadas, gritando — Minha mãe está me chamando, tenho que correr.

O velho ficou olhando enquanto Wendy desaparecia escada acima. Ele deu um sorriso de quem estava entendendo tudo e murmurou com um brilho travesso nos olhos — Voe, ma petite ave.

Os gritos e batidas frenéticas lhe voltaram a atenção para a porta da frente. Virou-se e viu dois homens de pescoços grossos. Suas figuras monstruosas tomaram toda a portaria e eles destruíram a luminária externa com socos violentos. Então, com gestos exagerados, ele se aproximou e deu uma olhada.

Suas vozes abafadas gritaram com ele, mandando que abrisse a porta. Ele olhou para as escadas, virou-se novamente para a porta e balançou a cabeça, dizendo que não. Deu de ombros e lentamente deu meia-volta e foi andando com dificuldade.

— Derrube agora! — gritou o líder dos perseguidores.

Com um pesado chute de bota na fechadura, a porta explodiu para dentro, fazendo enorme estrondo contra a parede interna, quebrando vidros que se espalharam em cacos pelo chão. Eles entraram correndo no edifício. O líder ordenou — Agarre este velho idiota! — quando o idoso desapareceu ao dobrar um corredor.

Dois perseguidores foram atrás dele. Mas segundos depois, quando dobraram uma esquina, pararam de repente, deixando marcas de derrapagem das botas no assoalho de ladrinhos claros.

Ficaram pasmados.

O coroa tinha ido embora, como se tivesse desaparecido no ar gelado.

 

A menina se embrenhou pela porta com o que lhe restava de forças. Foi um prazer sentir a chuvinha renitente enquanto atravessava o telhado com seus passos trôpegos. Ao correr, o frio ar noturno fluiu pulmões adentro. Estou chegando, ela pensou. Em poucos metros estarei livre.

Parou subitamente e começou então a rastejar até a beira do telhado.

Parou para piscar os olhos por causa da chuva e foi sacolejada pelo vento; esticou os braços na tentativa de manter o equilíbrio.

Olhou para baixo e mal conseguiu enxergar o fluxo dos faróis dos canos que deslizavam como pirilampos na escuridão. Acenavam para ela.

Alguém lá atrás abriu a porta com uma pancada barulhenta na parede. Acenderam as luzes na escadaria do outro lado do telhado e foram atrás dela.

Ela se virou. Um bando de figuras sombrias surgiu pela porta e pararam, projetando suas silhuetas em contraste com a parca iluminação de fundo.

Mesmo na penumbra ela conseguiu reconhecer o contorno mais alto, com aqueles cabelos louros claríssimos capturando a escassa luz. Sua estatura e seu jeito de corpo eram inconfundíveis; tinha em si a crueldade seca de um chicote enrolado. Dava quase para ela sentir o aterrorizante vento negro que emanava de Margot Gant.

O som de outra voz familiar, vindo de um atalho para o telhado, fez a jovem estremecer de pânico.

—        Hora de ir para casa, pequena — disse o doutor Craven. Ela não respondeu.

Outra figura ao lado do médico deu um passo para a frente. A menina rastejou mais para a beirada. Então Margot esticou o braço, impedindo que o homem continuasse.

O clarão cegante de uma lanterna queimou-lhe a vista.

—        Apague isto, du wichser — Margot ralhou.

Voltou-se para a menina e disse:

—        Ninguém vai lhe machucar, Wendy — falou suavemente, com um tom de voz brando, a mão deslizando em direção à pistola com tranqüilizante que estava cuidadosamente encaixada no cós da calça às suas costas.

Por alguma razão Wendy sentiu que ela estava com a arma; dava para ver o metal negro e frio em sua mente.

Mas ela se levantou com os braços ainda estendidos, sentindo como se o vento fosse lhe devolver a sanidade em uma lufada. Começou a cantarolar a cantiga infantil com os lábios entreabertos. Nana neném, voe alto meu bem. Quando o vento soprar, seu bercinho vai balançar...

Wendy deu mais um passo. O vento castigava o telhado, inflamando-lhe os cabelos.

—        Quando o galho quebrar...

Os olhos de Wendy estavam bem fechados agora, suas pestanas pesadas de memórias que não eram bem memórias, sonhos que não eram bem sonhos, e ela girava a cabeça de um lado para outro.

Ela deu mais um passo.

—        Não! — Margot gritou ao ver que ela seguia em frente.

Silenciosa, graciosa e leve como anjo, a menina de oito anos desapareceu diante de seus olhos.

Eles ficaram na beira, olhando para a rua lá embaixo.

O médico de rosto pálido ao lado de Margot deu uma olhada nervosa pelo peitoril e disse, balançando a cabeça: — Não dá para enxergar a rua daqui, ja? — deu um passo para trás e suspirou aliviado. — Teve um momento em que até achei que nossa pombinha soubesse mesmo voar.

Os olhos de Margot cintilaram de ódio. Ela torceu a bochecha do médico com força e estapeou com as costas da mão. — Ela sabe voar, seu idiota. Esta é a droga do problema!

 

Blair começou a acordar, sentindo as costas e o pescoço latejando, doendo profundamente. Parecia que sua cabeça tinha sido estufada com algodão, a língua estava pastosa e colada ao céu da boca, a garganta estava seca. Ela foi se levantando lentamente, sentindo a luz gritar em seus olhos. O som abafado de vozes murmurantes flutuava ao seu redor. Ela tentou se concentrar, clarear as idéias. Mas não estava conseguindo.

Vieram-lhe imagens em rápidos flashes: o museu, a loba loura voando pelo salão em direção a ela, e então... o corpo torturado de seu irmão, crucificado na parede.

Sentiu vontade de vomitar, mas não tinha nada no estômago.

Alguém lhe acariciava os cabelos com a mão.

Um odor almiscarado familiar lhe encheu as narinas.

Uma voz familiar murmurou suavemente — Ora, ora, senhorita Kelly.

Um arrepio lhe subiu pela espinha quando abriu os olhos.

Al-Dajjal estava debruçado sobre ela. Seu sorriso torto zombava dela. — Nos encontramos novamente, doutora Kelly.

Ergueu um copo com um canudo curvo que levou aos lábios dela. — Está desidratada por causa das drogas, senhorita Kelly. Por favor, beba um pouco de líquido.

Ela bebeu com os lábios secos no canudo.

— Calma. Não vamos exagerar, senão será pior — Al-Dajjal disse, afastando o copo. — O doutor Craven lhe colocou no soro.

Blair olhou para o braço, viu o tubo em sua veia e olhou para o resto do corpo. Um emaranhado de fios ligados a eletrodos estavam ligados a aparelhos de monitoramento em vários pontos de seu corpo. Ela estava amarrada a uma mesa cirúrgica inclinada; os pés estavam em nível mais baixo que o corpo.

Instintivamente, seus pulsos tentaram se livrar das amarras de couro. Levantou as costas da mesa, retorcendo-se com o pouco de forças que lhe restavam. Bateu com os pés na mesa, lutando contra as tiras apertadas ao redor dos tornozelos.

Uma risada gelada e familiar flutuou sobre ela pela escuridão. — Ora, senhorita Kelly. Não adianta nada lutar.

Ouviu o zumbido de um motor elétrico e a mesa cirúrgica começou a reclinar.

Então ela entendeu. Estava usando um roupão hospitalar.

Desesperada, olhou ao redor do recinto. Uma figura saiu das sombras profundas. Ela se lembrou daquele sorriso traiçoeiro, do olho de vidro virado para dentro. Era o homem que estava com o machado no museu.

Al-Dajjal perguntou — Ernst, está com as ferramentas prontos?

Assentindo prontamente com a cabeça, Ernst foi para o lado de Al-Dajjal. Seus olhos amarelados dançavam sob a luz clara da lâmpada cirúrgica ao alto, com sua luz ofuscante. — Não se preocupe, mandei suas roupas para lavar a seco — ele disse a Blair. Ernst deu uma risada derrisória e olhou para ela de cima a baixo, estuprando-a com os olhos.

Ela tremeu mais de raiva do que de medo, ou talvez um pouco de ambos. — Se tocar em mim outra vez, seu desgraçado maldito, eu corto seu... — sua garganta travou e ela teve uma crise de tosse.

Al-Dajjal fora para a parede ao lado, onde estava pendurada uma grande tela LED. Quando ele clicou no controle remoto, a terra foi preenchida por uma montagem de imagens vacilantes. A mente dela começou a dar voltas ao ver aquilo.

Era seu corpo nu, capturado de todos os ângulos imagináveis.

— Ernst, você não realizou sua verdadeira vocação — brincou Al-Dajjal, pegando um cigarro de uma caixa dourada, encaixou em uma, prendeu nos lábios e acendeu. — Que fotos magníficas — voltou os olhos para Blair, o rosto encoberto por uma tela de fumaça. — Especialmente esta aqui! — ao clicar o controle remoto, a tela projetou a imagem das costas de Blair, com a elaborada tatuagem capturada em toda sua glória.

—        Infelizmente, apesar de multo bela de se ver, lamento dizer que precisaremos de sua ajuda para interpretai este intrincado desenho — Al-Dajjal explicou. — Sabe, estávamos operando sob a falsa premissa que seu irmão tinha a chave. E infelizmente para seu irmão, perdemos um tempo e energia preciosos tentando induzido a nos contar seus segredos. Você viu o resultado desta obstinada tenacidade. Vamos torcer, querida dama, que você não force meu amigo aqui — Al-Dajjal apontou Ernst com a cabeça — a chegar a tais extremos.

Blair ouviu o ranger de rodas sem óleo quando o carro cirúrgico foi trazido para seu campo de visão, à direita. Ernst estava colocando-o do seu lado. Ele ficou ao lado do carro, de modo que Blair pudesse ver claramente as ferramentas depositadas cuidadosamente. Ernst passou lenta e deliberadamente os dedos das mãos envolvidas por luvas de látex sobre a luzidia série de ferramentas, hesitando um pouco no escalpelo e depois passando para alicates pavorosos e parando então em uma serra cheia de dentes afiados.

—        Eu me orgulho muito de meu trabalho, fraulein — explicou der Eisaxl, tentando controlar o olho de vidro, os lábios arregaçados sobre os dentes amarelados. — E quase como uma sinfonia que começa devagar, refluindo sobre a pele macia do seu corpo sólido, depois galgando um crescendo à medida que vou adentrando as cavidades interiores.

O tímpano de Blair pulsou enquanto seu coração furioso enviou torrentes de sangue para as veias. Um zumbido forte veio em seguida, e ela começou a desmaiar.

Um cheiro forte e cáustico lhe tomou as narinas.

Seus olhos se abriram, confusos. Ela se revirou ao ver o falso olho de der Eisaxt sobre ela como um planeta devastado. Ele estava balançando uma garrafa debaixo de seu nariz e dando um largo sorriso. — Não vou lhe deixar secar, liebschein. Ao menos não tão cedo, ja?

 

Ginny Doolittle falava a língua dos gatos. Na verdade, ela era multilingue. Ela podia ser vista em qualquer domingo à tarde passeando vagarosamente pela Cross Road, acenando para o próximo com seu chapéu de feltro de abas largas enquanto empurrava o carrinho cheio de garrafas e latas de alumínio.

Ginny Doolittle nunca parava de papaguear, a não ser que um esquilo cinzento tagarela ou algum pombo chilreante a chamasse. Ocasionalmente, algum transeunte se sentia desqualificado com sua falta de interação humana, mas quando ela estava envolvida até a raiz dos cabelos escutando um esquilo tagarela lhe contar alguma fofoca das boas, simplesmente não podia ser perturbada. Afinal, seus amigos peludos e emplumados não podiam simplesmente entrar no pub da esquina para bater um papo reto com os amigos entre uma cerveja e outra.

A vizinhança a considerava meio doida. Claro que a opinião dela sobre os humanos tampouco era das mais abonadoras.

Uma pessoa que lhe desse uma olhada superficial concluiria que qualquer senhora que usasse uma estola de pele roída por traças em pleno verão seria mesmo um pouquinho esquisita. E naquela tarde em particular, um poodle francês chegou à mesma conclusão.

A senhora Doolittle estava fazendo de tudo para consolar uma pomba cujo companheiro, que sofria de Alzheimer, acabou perdendo o rumo de casa.

— Bem, eu sei que você está aborrecida demais de tanta preocupação, minha pombinha querida — a senhora Doolittle disse com voz suave. — Mas os homens são uns canalhas, sempre pulando a cerca com alguma jovenzinha. Quando vêem que as plumas estão começando a ficar grisalhas... lá vão eles.

A pomba ficou olhando sem expressão.

A senhora Doolittle advertiu-lhe, dedo em riste. — Você não está querendo ver, querida. Às vezes nós, mulheres, precisamos arcar com as conseqüências.

Um poodle francês, fazendo jus à famosa indelicadeza de conterrâneos, dobrou a esquina e passou por entre os joelhos tortos de Ginny e a derrubou na calçada. Ele nem virou para avaliar o estrago.

A senhora Doolittle gritou — Seu francês do inferno, não tem educação?

De repente, como mágica, a estola peculiar em seu pescoço criou vida. Os olhos se abriram, o gato malhado ressuscitado lhe escapuliu do pescoço saiu correndo rua abaixo atrás do francês apressado.

— Oswald, volte aqui agora mesmo! — chamou a senhora Doolittle, ajeitando a aba do chapéu de feltro na cabeça e se levantando.

Nem ela nem Oswald viram o caminhão que virava a esquina. O barulho histérico dá buzina e chiado dos freios selaram o destino de Oswald.

Com força e velocidade que ela não sabe de onde tirou, a senhora Doolittle seguiu na direção de onde vinha o som.

Ginny Doolittle emitiu um som grave e gutural da garganta ao parar, paralisada, olhando para o corpo amassado de Oswald.

O sininho que foi arrancado de seu pescoço pela força da colisão saiu rolando lentamente na direção de Ginny e parou aos seus pés.

Estupefata e com os olhos turvos de lágrimas, ela se inclinou para pegar o sininho.

O motorista de caminhão apareceu ao seu lado. As linhas duras do rosto daquele homem enorme amainaram imediatamente. — A senhora tem um gato malhado que nem... — ele fez uma pausa, tirando um pano oleoso do bolso e pressionando levemente os olhos. — Eu juro, tia, a droga do bichinho simplesmente...

Quando os olhos de Ginny encontraram os dele, sentiu a vibração calorosa e compreensiva que nem mil palavras conseguiriam expressar. O motorista fez um gesto solene com a cabeça e se afastou.

Juntou-se uma pequena multidão.

Quando Ginny se ajoelhou diante do que restou de Oswald, falou, mais para si mesma do que para alguém específico — Garoto bobo. Eu lhe avisei, Oswald, não avisei? Você já não é mais jovem e ligeiro como antes. E quantas vezes já disse que você não precisa mais defender minha honra - com um nó na voz, acrescentou — meu bravo, valente Sir Oswald. Cuidadosamente, esticou o braço e o levantou. Seu corpinho mole se aninhou em seus braços.

Então veio de trás uma bela voz de criança. — Posso dar um jeito nele, sabe? Sou boa nisso, curar coisas doentes. — Ao se virar, Ginny a viu, uma menina de olhos penetrantemente azuis como o céu de junho e pele clara como ar de verão, descalça e de camisola. O rosto era angelical, o cabelo era diáfano. Mesmo que não estivesse de camisola no meio de uma calçada agitada, pareceria deslocada.

A garota tinha uma aura calma. Esticou os braços, oferecendo-se para pegar o gato. Hesitando de início, e sem saber direito por que, a senhora Doolittle pôs Oswald nas mãos pequenas, mas elegantes, da menina.

A senhora Doolittle deu um sorriso desanimado. — Lamento, mas Oswald está nas mãos do Senhor.

Apesar de a menina ser linda e projetar inocência como a maioria das meninas novinhas, Ginny não pôde deixar de se impressionar com a natureza incomum do rosto da garota. Ela projetava uma natureza virginal e tranqüila que só se encontra nos grandes trabalhos de arte.

—        Não se preocupe, Ginny. Eu sei como dar um jeito nele, vou deixá-lo novinho em folha — disse a garota com voz suave, mas cheia de segurança.

Ginny balançou a cabeça involuntariamente. — Acredito que sim, filha. Você tem nome? Pelo jeito, sabe o meu.

—        Wendy... pode me chamar de Wendy.

A sirene de um carro de polícia que se aproximava lhe afogou as palavras. Wendy demonstrou estar com medo.

Parecia visivelmente abalada, os olhos lançando flechas furtivas, a voz ligeira e nervosa. — Tenho que...

Percebendo a reação da garota, Ginny a pegou pelo braço, conduzindo-a através do monte de curiosos em direção a um beco. — Por aqui, minha querida — disse Ginny enquanto se enfiavam no beco. — Discrição é a alma do negócio.

Quando se encontravam em uma distância segura, pararam. Ginny caiu sentada sobre um caixote, levando a mão ao peito. — Meu velho coração não agüenta mais tantas emoções, minha querida — deu um tapinha no espaço ao lado. Wendy se sentou, encolhendo as pernas junto ao peito. (Gentilmente pôs Oswald a seus pés.

Sons ligeiros vieram de dentro do caixote debaixo delas.

Os olhos pequenos e brilhantes de um rato espiaram por uma fresta do caixote.

—        Ora, olá, meu jovem — disse Ginny, sorrindo. — Espero que não se importe de nos sentarmos sobre você sem sermos convidadas, mas estamos com um probleminha.

O rato mexeu o focinho. — Ah, quanta gentileza de sua parte, mas já almocei, além do que não sou muito fã de queijo Limburger.

O roedor pulou em seu colo e se acomodou confortavelmente.

—        Acho que não podemos chamar seus pais, não é, Wendy?

Wendy mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça, sem olhar nos olhos. — Não... mamãe está no hospital — ela mentiu.

Ginny deu um tapinha na mão de Wendy. A menina respondeu pegando a mão trêmula tomada pela artrite da outra. Ginny olhou para Oswald. — Acho que não há hospital que possa ajudá-lo agora.

Wendy fez uma expressão séria. Encarou o gato atentamente enquanto acariciava ternamente seu peito ensangüentado.

Quando Ginny enfiou a mão na bolsa para pegar um lenço, percebeu que sentiu um formigamento esquisito e quente na mão.

Tirou a mão da bolsa e levantou em frente ao rosto, observando-a. Lentamente, começou a alongar os dedos retorcidos, um por um. Logo estava esticando e flexionando os dedos. A dor constante não estava mais lá. Ela ficou olhando em silenciosa perplexidade, primeiro para a mão e depois para Wendy.

Primeiro ouviu-se um suave ronronar, depois um "miau" bocejante quebrou o silêncio.

Assustada, Ginny baixou os olhos.

Oswald levantou lentamente a cabeça, esticou o corpo e se levantou. Balançou a cabeça, pulou no colo de Ginny e lambeu-lhe o rosto.

O rato, nada contente com a miraculosa recuperação de Oswald, saiu do colo de Ginny e desapareceu dentro da segurança de seu caixote.

Lágrimas quentes de felicidade encheram os olhos da senhora Doolittle.

Levantando-se, ela disse — Você é uma criança especial, não é? - ela pegou a mão ele Wendy. — Vamos nos livrar desta sua roupa e lhe arrumar algo mais alegre, minha pequenina laeken. Nós vamos para uma festa.

— Laeken? — Wendy perguntou.

- É uma palavra celta antiga, quer dizer "garota". Mas no fundo você já sabia, não é?

Wendy fez que sim e a expressão intrigada desapareceu de seu rosto, substituída por um amplo sorriso.

Enquanto a senhora e a menina caminhavam de mãos dadas para fora do beco, o som cortante de asas foi enchendo o ar à medida que se aproximou um bando de pombos vindos do alto. Projetavam-se e giravam em um balé aéreo, depois se juntaram em formação como se abrindo caminho. Uma pomba totalmente branca pousou no ombro de Wendy, arrulhando suavemente.

Quando dobraram a esquina, saindo do beco, Ginny viu que mais pombos se enfileiravam nos tetos dos dois lados da rua. Olhando para cima e enxotando-os com o chapéu de feltro, ela disse — Afastem-se, meus queridinhos. Assim vocês acabam nos entregando.

 

Bill Sorenson aninhou-se confortavelmente no banco de trás da limusine, bebericando uma boa taça de Jack Daniels. Ao lado dele, vestindo calça sob medida Anne Klein, estava Madison Dare, fitando a paisagem que passava enquanto eles seguiam velozmente pela rodovia.

Madison também era membro da FORÇA ÔMEGA. Sua beleza levava muitos agentes a subestimar sua astúcia e inteligência. Mas Madison achava que isso era uma vantagem. E ela não era contra usar esse trunfo se a situação requeresse. Convocada pela Agência de Segurança Nacional, detinha graduações avançadas em matemática e física, e falava seis línguas com fluência. Sua mente era aguçadíssima. E diziam à boca pequena que suas coxas não ficavam atrás.

— Por favor, queira transmitir a Sir Nigel minha satisfação por mandar seus companheiros nos receber no aeroporto de Heathrow.

O homem no banco da frente balançou a cabeça e ajeitou o tipicamente britânico chapéu redondo de feltro. — Fico feliz em servi-lo, senhor Sorenson. Estamos todos no mesmo time. Fiz reservas para o senhor e a senhora Croft. Creio que as acomodações estão de seu agrado, senhor.

Sorenson inclinou o tronco para a frente. — Acho que ainda não sei o seu nome — ao olhar para trás, piscou o olho para Madison, que sorriu.

O homem de chapéu de feltro virou o pescoço desagradável e olhou para o banco de trás. — Pope, senhor — ele apontou o motorista com a cabeça, deu um sorriso contido e acrescentou — e senhor Miles, a seu dispor.

Sorenson se recostou no banco e deu uma olhada no relógio. Pensou em ligar para Devlin, mas acabou decidindo o contrário. Sir Nigel Cummings parecia estar com a situação sob controle o não queria fazer mais onda na atual conjuntura. Coisas demais já haviam dado errado.

Imaginava que um pouquinho de descanso antes de pôr em prática a próxima fase da operação não faria mal a Devlin. Madison estava chegando novinha em folha, com as baterias totalmente recarregadas. Se fosse preciso, ele podia contar com ela para fazer o trabalho dele. Ademais, Pope explicara que Sir Nigel queria conversar cara a cara com Sorenson sem Devlin de plantão. Sorenson deu risada pela expressão que ele usou, de plantão. Esses britânicos sabiam levar a pessoa na valsa e dar uma facada nas costas sem derramar uma gota de suor. Canalhas elegantes de sangue frio, isto que eles eram, capazes de sorrir finamente enquanto davam uma porrada na sua avó e apostavam de que lado ela ia cair.

Mas ao menos por enquanto Sorenson ia fingir que concordava, não criaria atrito.

Ele deu uma olhada no relógio outra vez e olhou pela janela. — Com licença, senhor Pope.

—        Sim, senhor?

—        Parece que estamos nos afastando da cidade. Aonde exatamente vamos nos encontrar com Sir Nigel?

Sem deixar de olhar para a frente, Pope disse — Sir Nigel preparou uma surpresa especial para o senhor. Na verdade, o senhor será o convidado de honra.

Sorenson revirou os olhos cansados. — Estou lisonjeado, mas você não respondeu à minha pergunta, não é?

Bem no momento em que Sorenson pegou seu celular, a divisão de vidro fume subiu subitamente.

As portas travaram fazendo um clique barulhento.

Instintivamente, Sorenson levou as mãos à pistola SIG escondida em um bolso debaixo do ombro. Mas o sistema de ventilação começou a soltar gás, coagulando o ar.

Do canto do olho, Sorenson viu Madison pegando sua arma, mas também foi um gesto vão. A limusine tinha vidros à prova de bala. Não havia jeito de eles conseguirem explodir as janelas; as balas ricocheteariam neles e as janelas estavam bem fechadas.

Madison ser encurvou no banco.

Sorenson tossiu violentamente, sentindo o gás tóxico agindo e forçando lágrimas a brotar em seus olhos. Ele tentou prender a respiração, mas a pistola caiu de sua mão e ele foi envolvido pela escuridão.

A porta da sala de interrogatórios do complexo principal se abriu com estrondo e Margot Gant marchou sala adentro, xingando a cada passo. Foi direto até Ernst.

— Baixe os alicates, seu palhaço idiota. Quero experimentar as drogas primeiro. Se tivermos que apelar para seus métodos cruéis, vamos esperar o queridinho dela chegar primeiro.

Ela fuzilou Al-Dajjal com os olhos, esperando por sua intervenção.

Al-Dajjal tragou profundamente seu cigarro e acenou com a cabeça para der Eisaxt, que suspirou pesadamente e pôs os alicates de volta na mesa. — Não vai aliviar meu lado, não é, Margot? — Al-Dajjal disse sarcasticamente.

Margot olhou furiosa e contraiu os lábios. — Os hipnóticos do doutor Craven são mais eficazes — tirou as luvas de couro e bateu com elas na coxa.

—        Perdemos a pirralha e as crianças da escola fizeram uma operação para desviar a atenção, fizeram o maior inferno — ela murmurou ao se virar e encarar Al-Dajjal nos olhos. — A pirralhinha se escondeu no carro da senhora Baylock. Fiquei sabendo por causa do GPS que Craven implantou no braço dela.

Al-Dajjal retesou os músculos. — Heinrich vai ficar bem desapontado com você, querida. Mein brüder, ser passado para trás por uma criança de nada.

Ela se virou para ele. — Ela fugiu de você na Síria, querido brüderlein. Eu não julgaria tão prontamente.

O doutor Craven entrou, os olhos brilhando ao ver Blair amarrada à mesa de cirurgia. — Vejo que minha paciente está esperando, ja? — ele trazia uma maleta médica preta.

Blair desmaiou novamente e ficou imóvel.

O médico passou por Ernst, olhando com desgosto para os instrumentos cirúrgicos enquanto colocava a maleta na mesa, parando ao lado de Blair. Seu olhar se voltou para os monitores que mostravam os sinais vitais dela e sorriu.

—        Ela é uma moça saudável.

Em seguida ele tirou uma seringa da maleta, enfiou a agulha em um frasco e puxou o líquido para a seringa.

Batendo no antebraço dela com os dedos, ele disse - Ja, veias saudáveis, das is gut - um sorriso fino lhe enrugou o rosto ele cera quando encaixou a agulha.

O celular tocou e Al-Dajjal atendeu. Depois de falar rapidamente, ele desligou e se voltou para Margot. — Nossos convidados chegaram.

Margot assentiu com a cabeça. — Sem complicações?

Al-Dajjal balançou a cabeça. — Nenhuma — ele virou para Ernst. — Por que você não providencia para que nossos convidados estejam... confortáveis?

 

Scout Thompson estava deixando o hospital quando seu celular tocou o tema de Guerra nas Estrelas, indicando que Chewie estava na linha. Ele havia programado um toque diferente para cada membro da FORÇA ÔMEGA.

—        Fale comigo, grande — disse Scout.

—        Os pescoçudos esquisitos de Cummings pegaram Sorenson e Madison no aeroporto.

—        Madison está aqui?

—        Sim, Bill falou com Customs. Disse que devemos recuar até ele entrar em contato novamente.

Scout detectou algo na voz do grandão excêntrico. — Ei, o que há com você? Todos sabemos que você tem uma queda pela Madison, companheiro. Calma, que logo você vai se encontrar com ela.

Chewie resmungou. — Como vai Brax?

—        O doutor disse que ele vai sobreviver. Mas vai ficar fora de combate por um tempo. O padre Kelly saiu do CTI.

—        OK, me encontre no hotel. Quero falar com Brody. Este Cummings é cheio de bovis sterus.

—        É, ele é cheio de merda jorrando pelos poros daquele traseiro nojento, pode crer — Scout guardou o celular e fez sinal para um táxi.

 

No hotel, Devlin estava virando e revirando em um sono intermitente quando o telefone tocou. Ele levantou os lençóis molhados de suor e piscou os olhos olhando para o relógio de cabeceira.

Seis da manhã.

Tateou para pegar o telefone. Uma respiração áspera soou do outro lado da linha. Depois veio um choramingo baixinho. Em meio ao torpor do semi-sono, esforçou-se para se concentrar.

Ele reconheceu a voz. Era voz de mulher.

A voz de Blair.

Devlin tirou as pernas de cima da cama e ficou de pé. Ficou petrificado, sentindo as vísceras virar geléia.

—        Bom dia, senhor Devlin. Acredito que tenha tido boa noite — a voz irônica e rouca de Heinrich Gant lhe adentrou o ouvido.

—        Ponha Blair na linha, Gant!

—        Ah, o senhor a encontrará muito em breve, senhor Gant! E a seus amigos também.

Devlin cerrou os punhos nas laterais.

—        Se quiser ver a senhorita Kelly... viva, venha imediatamente para RAVENSCAR, e venha sozinho, senhor Devlin. Não entre em contato com seus associados, nem com as autoridades. Está perfeitamente claro, meu jovem?

Antes que ele pudesse responder, a linha caiu. Ouviu uma batida forte na porta do quarto de hotel.

Devlin pegou sua pistola Beretta debaixo do travesseiro e caminhou pelo carpete até a porta.

Ele ficou com as costas contra a parede à direita da porta, com a pistola .40 engatilhada, nua como uma ave predatória.

 

Chewie chegou no Dorchester Hotel e viram Scout parado na entrada com seu fiel laptop dentro da maleta que ele segurava com firmeza. Puxou um dispositivo do Jaguar e baixou a janela do acompanhante. Ele se inclinou sobre o banco e gritou — Ei, senhor CALTECH, qual é a boa?

Scout correu até o Jaguar. Inclinou-se pela janela e disse, respirando nervosamente — Acabei de ver Brody saindo.

—        Sozinho? Para onde ele estava indo?

—        Não sei, mas dois dos homens de Sir Nigel estavam com ele.

—        O inglês com chapéu de feltro de ontem à noite?

—        É. Eles saíram em um Bentley negro poucos minutos atrás. Eu tentei ligar para você, mas meu celular está sem bateria.

—        Entre aí!

Scout mal entrou no banco do passageiro e Chewie arrancou; a porta se fechou com o ímpeto da virada do carro, batendo na tíbia de Scout.

O Jaguar lustroso cantou os pneus, deixando marcas no asfalto e um longo rastro de borracha, por pouco não atropelando um porteiro.

 

Quando o Bentley negro mudou de direção, saindo da estrada A39 para pegar uma rodovia estreita, Brody Devlin ficou espiando pela janela lateral traseira. Os homens de Sir Nigel compartilharam poucas informações com ele, se é que compartilharam alguma, garantindo apenas que haviam dado uma batida na propriedade de Gant, e não havia mais necessidade de Devlin se preocupar com nada.

Era uma manhã fria e as nuvens pendiam escuras e nefastas no horizonte. Nem o céu nublado cor de ardósia e nem os rostos pálidos e sombrios dos homens do serviço de inteligência ajudaram a consolar Devlin. E o telefonema ameaçador de Gant era besteira nenhuma sobre a história dos homens da inteligência e sobre o ataque-surpresa. A esta altura, Devlin percebeu que só teria que rolar os dados.

A estrada serpenteava à esquerda, alargando de súbito, e uma antiga igreja dava boas-vindas. Era uma estrutura cinzenta de pedra com um campanário alto empoleirado em um morro no centro de um pequeno vilarejo.

Enquanto seguiam de carro ele se ocupou com a leitura de Aldeia dos Malditos. Foi o livro que o senhor Pope lhe enfiou na mão na noite anterior.

Ele levantou os olhos do livro e olhou pela janela para a paisagem que passava. Estavam passando por uma cidadezinha isolada e de aparência serena que o fez pensar na Aldeia de Midwich onde se passava o livro. Voltando ao livro, ele abriu novamente a capa interna, onde havia uma anotação escrita à mão que dizia:

 

             Irmã querida,

Os cucos põem seus ovos nos ninhos de outros pássaros para serem chocados. Estou fazendo meu melhor para tomar conta de sua rolinha.

                         Com amor, Dominic

 

Devlin foi lendo o livro rapidamente, pegando a essência da história com sua leitura dinâmica. Deve ter parecido esquisito fazer isso numa hora daquelas, dadas as circunstâncias, mas em certo sentido a leitura lhe fazia se sentir menos indefeso, agarrando-se à esperança desesperada de que alguma chave, algum dom mágico se encontrasse dentro dessas capas, de modo que ele fosse capaz de resgatar Blair daquela situação impossível.

Basicamente, o tema da história eram mutantes e o instintivo medo mortal de quem era tão diferente. Um dia, todos os habitantes de Midwich caíram em sono profundo. Na verdade, qualquer pessoa que tentasse entrar no vilarejo sucumbia ao mesmo destino, perdendo os sentidos e caindo pesadamente no chão. O "dayout", de acordo com o livro, só durava vinte e quatro horas. Nove meses depois, contudo, todas as mulheres de Midwich deram à luz. Casadas, solteiras, viúvas — não fazia diferença. Mas estes pequenos "cucos" que nasceram não eram comuns sob nenhuma perspectiva. Seus QI's eram extraordinários e tinham capacidades telepáticas desde a infância. Sabiam fazer as coisas se mexerem com o poder da mente. Mas o pior era que podiam induzir desafetos a cometer suicídio; um com uma arma, outro jogando o carro contra um muro de pedras.

Sendo pré-adolescentes, as crianças alienígenas eram egocêntricas; pareciam não ter desenvolvido nenhum tipo de consciência, nenhum conceito de certo e errado, nenhum sentimento de remorso ou pena. Os "cucos" tinham mentes de colméia. O que um aprendia, todos aprendiam simultaneamente. E sua única motivação era a sobrevivência.

Devlin jogou o livro no banco traseiro, frustrado. Se ao menos ele tivesse tido mais tempo junto a Blair. Se ao menos ela tivesse dado mais detalhes sobre a menininha, sobre a visão de mundo distorcida de Gant. Será que o padre Kelly estava querendo dizer que as crianças que estavam nas garras de Al- Dajjal eram algum tipo de "cucos"?

Olhou pela janela outra vez. O automóvel começou a diminuir a velocidade. Uma árvore grotescamente retorcida se erguia ao lado de um pequeno muro de pedra, um galho nodoso parecendo apontar para pegar a grande mansão acima com sua garra seca.

A enorme casa de campo inglesa cercada por calmos ornados por áreas densamente arborizadas parecia alguma mansão cinematográfica. Mas o taciturno mar cor de bronze de canhão em frente à casa gerava um fundo nuvioso, como num filme de Hitchcock; ameaçador e perigoso, fazendo Devlin sentir calafrios gelados.

Mau presságio, Devlin pensou quando o carro ganhou velocidade em uma trilha comprida e diminuiu para passar por um enorme portão de ferro que se abriu automaticamente. Ao passarem, Devlin percebeu a guarita de segurança abandonada e um canil. Detrás da cerca feita de correntes, pastores alemães musculosos e esguios andavam de um lado para outro em silêncio, sem jamais desviar dele seus olhares glaciais. Devlin contraiu os músculos involuntariamente. Cães de ataque! Um neonazista como Gant tinha mesmo de ter um bando de pastores alemães sedentos de sangue. Não que ele odiasse cachorros, era mais uma questão de fobia. Quando garoto, seu melhor amigo foi atacado até a morte por um grande pastor alemão. Seu melhor amigo em questão era um golden retriever de ar triste chamado Sam.

O automóvel Bentley parou na entrada. Pope saiu e conduziu Devlin até a porta. Ao entrarem, Devlin olhou ao redor. Havia muitos carros estacionados no pátio de acesso da mansão, mas não se via uma só alma viva em lugar nenhum.

Ao olhar para cima ela viu no teto gárgulas de olhar ameaçador. Em uma das janelas superiores uma persiana solta balançava, bolorenta, ao vento. Quando ele baixou os olhos e deu um passo à frente, um grande gato negro veio correndo, miando assustadoramente, como um choro infantil, e passou rapidamente por uma cerca viva.

Foram recebidos na casa por um empregado de cabelos grisalhos cujas feições foram esterilizadas pela idade; a única indicação de seu sexo era a calça que usava debaixo de um avental negro.

A coisa toda era surreal; a única coisa que eslava faltando via uni acorde dissonante menor vindo do alto, tocado por algum fantasma demente ao órgão.

Parado no meio do salão de entrada, ocorreu a Brody que ele podia dar meia-volta, enfiar o rabo entre as pernas e voltar a Londres para pedir reforço, e quem sabe trazer uma sacola com crucifixos e estacas de madeira não fosse tão ridículo nem insano, e seria boa precaução. Mas como ficariam Blair e a garotinha?

Adiante, Sir Nigel vinha descendo uma grande escada dupla, tão rapidamente quanto permitiam suas pernas curtas e grossas.

Sir Nigel estendeu a mão para cumprimentá-lo com um sorriso gordo na cara suína.

Retomando o fôlego, Sir Nigel Cummings disse — Que felicidade em lhe ver, garotão. Estava terrivelmente preocupado de ter lhe ofendido ontem à noite. Queira, por favor, aceitar minhas desculpas.

Devlin olhou ao redor e deu de ombros. — Não me ofendi. Está tudo tranqüilo demais, Sir Nigel — ele disse, com a voz carregada de desconfiança.

Sir Nigel sorriu com suas fartas bochechas rosadas.

—        Está tudo sob controle, major. No final tudo deu certinho.

Devlin olhou nos olhos dele franzindo o cenho. — É mesmo? Onde estão o resto dos homens e onde está Blair?

Sir Nigel piscou o olho. — Ela está ótima, meu velho. A doutora é um exemplo de saúde perfeita.

—        Então você descobriu o que Gant quer, a invasão do museu e tudo mais?

Sir Nigel piscou o olho novamente e disse — Ah, sim..., mas cada coisa a seu tempo, major. Venha comigo agora. Vamos levá-lo até a doutora Kelly, certo? — após dispensar Pop, o gordo conduziu Devlin pelo cotovelo e o empurrou gentilmente em direção a duas portas grandes de carvalho do outro lado do salão de entrada, no fim de um corredor.

Ele bateu na porta, inclinou-se e puxou as alças de metal. Ao abrir as portas ele fez um gesto de cabeça para que Devlin entrasse.

Brody Devlin passou pelo solado da porta e encarou os olhos pequenos e irônicos de Heinrich Gant, cansado demais daquela brincadeira de gato e rato para fingir surpresa.

- Senhor Devlin, que maravilha revê-lo. Simplesmente não tenho palavras — Gant estava de frente para uma cavernosa lareira acesa. Com as flamas crepitando atrás de si, o corpo de Gant se transformara em uma silhueta com o contorno tingido de vermelho.

Devlin lançou um olhar presunçoso. — Sinceramente, duvido disto, senhor Gant.

Brody deu uma olhada ao redor do recinto. Havia um rosto familiar e outros desconhecidos. Mas todos os olhos agora se voltavam para ele, estudando-o atentamente como se ele estivesse sendo exposto na vitrine de algum Armário de Curiosidades. Ele se sentiu desconfortável.

Reconheceu Margot Gant sentada em um luxuoso sofá de couro preto que contrastava diretamente com a calça de couro branco que se encaixava em seu corpo como uma luva. Sua postura era de uma modelo com uma perna cruzada sobre a outra, distraidamente balançando o tornozelo calçado por uma bota. Quando ela virou, seu cabelo louro-branco floresceu com luzes vermelho-alaranjadas, refletindo as chamas adejantes da lareira.

Um homem mais alto, trajando um elegante terno cinza escuro cujos traços eram quebrados por botas de equitação feitas sob medida, se aproximou dele estendendo a mão. — Acho que não tive o prazer de lhe ser apresentado.

—        E não terá — disse Brody, fuzilando-o com os olhos e de braços cruzados sobre o peito.

—        Ora, ora, senhor Devlin, que modos são estes? — Gant ralhou. — Deixe-me apresentá-lo ao homem que, pelo que sei, você foi incumbido de matar, Azrael al-Dajjal.

Al-Dajjal acenou com a cabeça, e então, sem qualquer aviso, enfiou a mão no terno de Brody e lhe arrancou a pistola Beretta do esconderijo debaixo do ombro.

O braço de Devlin reagiu reflexo, agarrando o punho do homem como se fosse um tomilho.

—        Solte-o, garotão — disse uma voz familiar detrás dele, seguida pelo inconfundível ruído de um revólver sendo engatilhado. Devlin ficou imóvel, soltou o pulso de Al-Dajjal e virou em direção à voz. Deu de cara com o cano da pistola Bulldog .44 Webley de Sir Nigel.

Devlin sorriu e gargalhou, apontando com a cabeça o velho revólver balançando na mão pastosa de Sir Nigel. —Cuidado para onde aponta esta antiguidade, meu velho. Provavelmente tem mais chumbo neste cano do que em você.

O gordo estava tranqüilamente encostado à porta dupla, com a mão livre detrás de suas amplas costas agarrada à maçaneta, como se seu corpanzil fosse uma barricada para o caso de Devlin tentar sair correndo. Sir Nigel deu um riso nervoso e pareceu aliviado quando Devlin baixou os olhos.

Um latido raivoso veio da direção de Margot.

Devlin deu meia-volta. Dois pastores alemães robusto e brilhantes estavam encoleirados do outro lado do recinto, olhando para ele, mostrando as presas e rosnando ameaçadoramente.

Ah, droga, não! Mais cachorros, não! Devlin pensou, congelando de medo.

Al-Dajjal soltou um assovio agudo e chamou os cães em alemão — Wotan, Siegfried, parar! — os cães pararam ao seu lado. Balançou a cabeça com aprovação para os pastores alemães, acrescentou — Observem!

Com as cabeças baixas e ombros encolhidos, sentaram-se arfando e babando, olhando para Devlin como se ele fosse um corte de carne de primeira.

Ignorando os cães completamente, Al-Dajjal olhou superficialmente para a pistola Beretta de Devlin. Conferiu que estava carregada e a levantou, apontando para a barriga de Devlin.

Devlin olhou com desprezo. —Já conheço o texto... nada de movimentos súbitos, certo?

Os pastores rosnaram.

Devlin olhou para os cães, tentando engolir com a boca seca.

O criminoso de botas fuzilou Devlin com seu sorriso torto. — Por favor, nada de heroísmo, major. Tenho a mão bem firme.

Sem se virar para incluir Sir Nigel, Devlin olhou por sobre o ombro de Al-Dajjal e disse — Estou vendo que o inglês da bunda de porco passou para o seu lado, senhor Gant.

Gant sorriu com maliciosa satisfação. — De fato, major. Os recursos de Sir Nigel foram de grande ajuda. Enquanto você e os outros estavam distraídos, ele pegou o diário de Jung do escritório de doktor Kelly no museu. Mas não seja modesto, major. Seus esforços foram de grande ajuda.

Devlin retesou os músculos - De grande ajuda para você? Vá para o inferno, Gant. Se você estivesse pegando fogo, eu não me daria o trabalho de atravessar a rua para mijar em você. Agora, onde está Blair?

—        Paciência, major. E antes do fim do dia, você e seus colegas serão de grande ajuda, quanto a isto pode ficar descansado.

Sombras dançavam, projetadas pelo fogo crepitante, brincando pelo teto alto do recinto, lançando formas sinistras que jamais paravam. Um homem pequeno e rechonchudo se levantou da cadeira. Seus olhos aguados e apertados cintilavam.

—        Doutor Craven — disse Gant, fazendo um gesto em direção ao homenzinho de jeito suíno cuja face brilhava de suor — o bom doktor tem conduzido experiências extraordinárias no campo da genética, major Devlin. Ele está muito à frente de todos os outros.

—        Imagino que aquilo na Síria tenha sido obra sua... os aldeões zumbificados? — Brody perguntou a Craven, zombando do médico com os olhos e com a voz. — Que benção para a humanidade e para a ciência.

Craven arqueou a sobrancelha de raiva, fazendo um bico com o lábio inferior. — A mutação genética que induzimos teve um efeito colateral não-previsto. Ele revolucionava o metabolismo dos sujeitos. O instinto, a vontade de sobreviver e sua fome cega fizeram tudo dar errado e eles viraram bestas selvagens e carnívoras.

Margot Gant lentamente ficou de pé, passou por Craven e parou ao lado de Gant. Olhou para Devlin, os olhos suaves e brincalhões por um momento, e homicidas no momento seguinte. Com a voz rouca e pingando de provocante sexualidade, ela disse — Chega de charadas, cavalheiros. Vamos levar o queridinho para ver sua princesinha irlandesa.

—        Muito bem — Gant concordou. Ele acenou para Sir Nigel com a cabeça. — Deixe os namorados curtirem o momento. Por favor, leve o senhor Devlin ao quarto de doktor Kelly.

Margot levantou a mão e caminhou lentamente em direção a Devlin com os olhos repletos de satisfação e sem jamais desviar dos dele. —Não. Eu mesma o levo.

Quando ela se aproximou, Devlin não teve como deixar de reconhecer que ela era espetacular. Os saltos finos de suas botas clicavam sedutoramente no assoalho duro e encerado, e seus quadris oscilavam ao sabor dos passos das longas pernas como se ela fosse modelo de passarela. A forma com que ela deixou o zíper da roupa de couro aberto logo abaixo da divisão dos seios completava a imagem de sexualidade agressiva.

Quando Margot e Devlin saíram, Gant parou e se debruçou sobre a lareira para aquecer as mãos. — Que jovem teimoso, este — de olhos fechados, Gant levantou o pescoço, girando para aliviar a tensão. — Crave, por favor, banque o voyeur e fique de olho no senhor Devlin e na putinha irlandesa, certo?

Craven assentiu brevemente e se retirou.

Com os olhos cravados no gordo e em Al-Dajjal, Heinrich Gant deu um sorriso fino e bateu palmas. — Mas nós estamos negligenciando os demais convidados. Que falta de educação. E ainda fomos deixá-los com aquele bruto degenerado do Ernst — Gant suspirou. — Se... o senhor Sorenson ainda estiver no mundo dos vivos, tenho uma pequena experiência para testar sua bravura e sua resistência à dor.

 

Pegaram o elevador e agora estavam caminhando por um corredor. Devlin estava desnorteado com a atitude indiferente de Margot Gant. Ela não lhe apontou arma nenhuma, e Devlin não conseguia imaginar como aquela mulher poderia estar escondendo uma arma debaixo daquela roupa colada ao corpo.

Subitamente ela parou e o empurrou para dentro de um quarto. Entrou rapidamente atrás dele e fechou a porta.

Ela se jogou sobre ele como uma tigresa, apertando seus lábios fartos contra os dele, explorando com a língua a cavidade da boca de Devlin, apalpando e apertando com as mãos seu traseiro atlético e gemendo.

Mesmo contra a vontade dele, a sensualidade crua daquela mulher atiçou o fogo do desejo em sua virilha. Ele estava ficando excitado.

Ela começou a mordiscar o lábio dele, depois a mastigar de brincadeira, com os olhos bem abertos, felinos.

Subitamente ela mordeu com força o lábio inferior de Devlin, tirando sangue. Ele deu um grito e a empurrou.

Os olhos dela eram ferozes e emanaram escárnio quando ela jogou a cabeça para trás e riu.

Ela estalou a língua e fez biquinho. — O namoradinho não gosta de brincadeiras pesadas — ela disse, lambendo lentamente o sangue de Devlin dos lábios.

—        O que você quer? — Devlin perguntou desaforadamente.

—        Você me interessa. Homens cruéis são muito atraentes.

Então, quase deslizando em direção a ele, ela desceu o zíper da roupa de peça inteira até a altura do cinto, na parte mais baixa da cintura, expondo os seios fartos e a barriga reta.

Ele deu um passo involuntário para trás. — Acredite no que digo, doçura. Não sou seu tipo.

Ela se aproximou mais um pouquinho, olhando seriamente para ele. — Quem sabe eu lhe ajudo a escapar.

—        Por que você iria querer fazer isto?

—        Se nós fôssemos amantes eu poderia convencer Heinrich a confiar em você.

—        Vá sonhando! — Devlin engoliu em seco. Ela estava perto dele agora; aproximou-se de modo quase imperceptível enquanto falava. O olhar de Margot era hipnótico, puxando-o para si enquanto ela diminuía a distância e apertava o corpo contra a carne firme do peito dele. Seus olhos azuis claros o fitavam sem piscar, atraindo-o aos pouquinhos, e a cabeça dele começou a se inclinar em direção à dela, os lábios buscando os dela.

Margot estava testando sua força de vontade, e ele sabia disso. Seu olhar tenebroso o estava atraindo para um redemoinho ruidoso de luxúria e abandono e devassidão. Ela pegou a mão dele e levou ao seio, e ele segurou com força o seio rijo de mamilo duro e ereto.

Então ela deu um pulo, trancando os braços ao redor do pescoço dele e lhe envolvendo bem o corpo com as pernas, apertando as coxas firmes quando os lábios dele encontraram os dela.

Devlin cambaleou pelo recinto cegamente com as coxas de ferro de Margot apertando cada vez mais forte quando ela apoiou os quadris no chão.

A força esmagadora de suas pernas ao redor de seu torso estava tirando o ar de seus pulmões. Ele não estava conseguindo respirar. Ele tropeçou, conseguiu manter o equilíbrio, se contorceu e revirou e lutou para se soltar.

Margot segurou firme, afundando as unhas na nunca de Devlin e tirando sangue.

Desesperado, Devlin a fez bater de costas contra a parede repetidamente, até que finalmente ele conseguiu se soltar dela.

Ela gemeu sentindo as pernas dormentes e se arrastou por sobre os quadris dele, apoiando os pés no chão.

Devlin a pegou pelos ombros e a imobilizou contra a parede. Seus olhos tremeluziram e se arregalaram.

Quando ela deu um sorriso irônico e uma risada de desprezo, Devlin afastou a mão para esbofeteá-la, mas mudou de idéia no meio do caminho. Era contra seus princípios ficar com raiva e bater em mulher. A imagem de seu padrasto bêbado espancando a mulher na cozinha lhe veio à mente num flash.

— Isso, bate com força. Bate até arder! — Margot provocou entre gemidos altos, estremecendo de expectativa.

Ele se afastou dela, com nojo e repulsa substituindo a dor do desejo. — Você é doente, sua vaca.

Os olhos dela cintilaram de ódio e ela esticou o braço de modo mecânico, batendo com a base da palma da mão bem no meio do peito dele.

Devlin voou para o outro lado do quarto, batendo com as costas na parede com toda força.

Balançando a cabeça, ele avançou, chocado, tossindo e tentando retomar o fôlego. — Mas é uma vaca doente, maluca e forte.

Como uma gata selvagem, ela o atacou, diminuindo a distância com um salto. Ele viu o brilho de um punhal na mão dela e deu um passo para a lateral. A ponta do punhal alcançou sua bochecha de raspão.

Ele caiu no chão e se encurvou, equilibrando-se nas solas dos pés e nas palmas das mãos. Girou o corpo e deu uma rasteira que derrubou Margot no chão.

Ela caiu de costas de um jeito que lhe expulsou o ar dos pulmões; o assoalho foi como um tapa na nuca e seu impacto na parte traseira do crânio causou forte estrondo.

O punhal voou de sua mão e caiu, inútil, no assoalho descoberto.

Devlin ficou de pé e pegou a arma. Xingou a si mesmo. Achou ter sentido uma protuberância dura quando Margot encaixou os quadris nele. Agora estava entendendo o que era. Era uma faca afiadíssima escondida no cinto. A fivela servia de guarda-espadas e a ponta cortante ficava escondida detrás da lingüeta do cinto. Era mortal se manejada por mãos experientes. Escondida à primeira vista, estava facilmente à mão do usuário. Se Margot tivesse alcançado seu pescoço ele estaria agora mergulhado em uma poça de sangue, retorcendo-se em espasmos, estrebuchando e sangrando. Mas ela não acertou.

Ele se endireitou e ficou sobre ela. Ela abriu os olhos rapidamente; um sorriso maldoso lhe encheu o rosto e desapareceu enquanto ela focava os olhos novamente.

Devlin baixou os olhos em direção aos seios expostos dela, ondulantes. Debaixo das bordas da roupa de couro, em contraste flagrante com a pele perolada, dava para ver a trama intrincada do tecido escuro. A roupa de nanofibras, é claro. Não admira que ela tenha coxas de Donzela de Ferro.

A porta se abriu abruptamente e Pope entrou no quarto com uma sapa nas mãos.

O homenzinho tentou bater com a sapa em Devlin, mas ele bloqueou o golpe com o antebraço esquerdo, interveio com o pé direito enganchou o braço direito ao redor e debaixo do antebraço de Pope. Torcendo o braço de Devlin em um ângulo impossível, Devlin agarrou o pulso de Pope com a mão livre e puxou para trás, estalando. Devlin ouviu o ruído típico dos ossinhos do pulso quebrando enquanto o baixinho musculoso gritava de dor. Pope soltou os dedos da sapa.

Mas Devlin estava em desvantagem. Três seguranças de pescoço grosso, mais o senhor Miles, o outro homem do SIS, correram para o quarto e precisaram de apenas três minutos de espancamento para deixá-lo sem sentidos.

 

Devlin recuperou a consciência e piscou os olhos, sentindo a luz áspera da manhã cegá-lo momentaneamente ao penetrar pela janela.

Piscou os olhos novamente e começou a enxergar melhor. Olhos verde-garrafa lhe fitavam. Era Blair.

Ele tentou se sentar, mas a dor na parte de trás da cabeça latejou e ele caiu de volta.

—        Ei, devagar aí, Sherlock — a voz tranqüilizante de Blair era como uma espécie de coro angelical para seus ouvidos. Ela estava sentada na cama, com a cabeça dele no colo e pressionando um pano úmido em sua testa.

Ela tocou de leve o rosto dele com a ponta do dedo. Ele hesitou e gemeu de dor. — Ei, isto dói.

—        Que bebê chorão. Que diabo aconteceu com você?

Ele fez uma careta e limpou a garganta. Blair pegou um copo da mesa de cabeceira e levantou delicadamente a cabeça dele, levando-lhe o copo aos lábios.

Quando ele terminou de beber ela pôs o copo de novo na mesa e começou a limpar o rosto dele com uma toalha limpa.

—        E então? — ela insistiu.

—        Pope e os capangas de Gant sapatearam na minha cabeça, presumo.

Ela revirou os olhos. — Imagino que você tenha vindo me salvar?

Ele deu um sorriso desanimado e fez que sim.

—        Maravilha — Blair balançou a cabeça de leve e observou o pescoço dele. - Não sei quem é Pope, mas a não ser que ele seja um travesti com unhas de vinte centímetros, é melhor você se explicar, cavalheiro.

Brody levou a mão à nuca e sentiu os arranhões profundos com uma crosta de sangue coagulado.

Então se lembrou de Margot e do pequeno entrevero sadomasoquista entre eles. Tentando fazer cara de inocente sem conseguir, ele explicou — Tive um pequeno conflito com Margot Gant, também. Luta como uma gata do inferno.

Blair puxou o colarinho dele e balançou a cabeça afirmativamente, apertando os olhos. — Claro, isto explica as manchas de batom no colarinho, seu mentiroso desgraçado! — ela o afastou do colo e ficou de pé. Foi para o outro lado do quarto, fuzilando-o com os olhos. — Você é um deles, não é?

Devlin sentou-se com dificuldade. Sentiu-se completamente desprezível. Foi quando ele percebeu que Blair estava usando uma camisola estilo antigo, presumia que do século XVI. Ela estava tão bonita, tão elegante, apesar dos olhos furiosos com que o encarava agora.

Mas por detrás daquele gênio irlandês Devlin viu medo em seus olhos. Deus sabe o que ela deve ter passado na mão daqueles lunáticos. Paranóia era uma reação natural de cativos. Arrancados da segurança de sua existência cotidiana, eles logo ficavam desorientados — e às vezes o nojo e o ódio que sentiam por seus seqüestradores se transformava em co-dependência e até mesmo em romance. Ele tinha de fazer com que ela entendesse que podia confiar nele.

—        Eu não tive escolha, Blair. Acho que cheguei bem perto de ser espiritualmente estuprado. Ela deu um jeito de enfiar suas garras em meu cérebro.

Blair ficou olhando por um momento, incrédula, mas então a expressão de seu rosto se suavizou. Seus olhos começaram a cintilar com lágrimas não derramadas. Ela se ajoelhou, soluçando. Foi quanto ele reparou nos hematomas roxos nos braços, pulsos e tornozelos dela.

Brody foi até ela com as pernas bambas e caiu no chão em frente a ela. Ele a pegou nos braços e a beijou delicadamente na testa.

Quando ele lhe levantou delicadamente o queixo lágrimas quentes desceram pelo rosto dela. — Blair, eu amo você. Não importa o que aconteceu. Estamos juntos agora, e isto é tudo que importa.

—        Mas aquele homem fez coisas...

Devlin pressionou a ponta dos dedos delicadamente nos lábios dela e balançou a cabeça, o coração destruído só de pensar em Blair sendo torturada, mas sabia que qualquer coisa que dissesse acabaria sendo totalmente inadequada.

—        Tudo bem, essas pessoas são monstros. Estamos um pouco abalados, mas, ao menos por enquanto, você está em segurança — ele deu um beijo de leve em seu lábio machucado.

Então ela começou a rir, apesar de lágrimas furiosas lhe descerem o rosto. Um pequeno sorriso se fez e ela limpou o rosto com as costas da mão. — Acho que somos mesmo uma dupla e tanto — ela fungou e lhe acariciou o rosto. — Eu odeio você, Brody Devlin. Você é um teimoso.

—        Não, sou apenas persistente.

—        E mente mal demais.

—        Nada, apenas uma mentirinha sem graça e totalmente estúpida de vez em quando.

—        Típico... homem! — Blair sorriu e lhe beijou longa e fortemente. Então chegou mais perto e sussurrou em sua orelha: — Tenho certeza que há escutas neste quarto.

Brody assentiu, concordando. Então tirou um pequeno revólver Derringer do salto falso do sapato, com cuidado para esconder o gesto com os corpos de ambos, e pôs na palma da mão de Blair.

Ela arregalou os olhos brevemente e continuou a beijá-lo, encaixando o pequeno revólver por dentro do vestido.

Ele recuou e a levantou em seus braços, deitando-a gentilmente na cama. Abaixou-se em direção aos lábios dela que esperavam, e a beijou outra vez. Ela fungou e ele tirou um lenço de dentro do bolso do paletó e limpou o nariz dela.

Ela sorriu. — Esta é minha garota - ele disse. Se serve de consolo, seu irmão saiu do CTI e os médicos dizem que a condição dele é estável. Liguei para o hospital a caminho daqui.

Ela suspirou pesadamente. — Graças a Deus.

Ele saiu da cama. Foi até a janela, olhou para o pátio lá embaixo. Equipes de seguranças com pastores alemães encoleirados patrulhavam os arredores. Deus, por que cães de guarda?

—        Está tudo trancado a sete chaves lá em baixo e os vidros são de Plexiglas à prova de bala. Eu tentei — ela apontou para uma cadeira quebrada no canto do quarto.

Ele olhou para ela, perplexo, e virou para a porta.

Blair revirou os olhos. — Verdade, Brody. Eles têm uma guarda nazista lá fora. Você realmente acha que as mulheres não entendem destas coisas, não é? Para seu governo, eu tive um Land Rover no Iraque que era blindado e com janelas à prova de bala. Satisfeito?

Ele deu meia-volta e se jogou na cama ao lado dela.

—        OK, então no momento estamos ferrados, Mata Hari.

Ela torceu o nariz arrebitado. — Ela era holandesa e meio gordinha. Além do que, ela não foi morta por um pelotão de fuzilamento?

Brody sorriu e apontou para sua camisola. — Mas ao menos você está vestida de acordo com a ocasião. Como ela, você pode morrer com estilo.

Blair fechou a cara. — Muito engraçado. Então, qual é o plano?

—        Hora das perguntas. Conte tudo que aconteceu. Não deixe nada de fora.

Seus olhos se arregalaram e ela murmurou — Mas as paredes têm ouvidos.

—        Você não vai falar nada do que eles já não saibam, não é? — ele deu um sorriso caloroso e tocou-lhe o pulso. — Por que não começa... — ele fez menção à camisola — ... com o modelito que você está usando?

Ela alisou as dobras da camisola com a mão. — Encantador, não é mesmo? Mas, honestamente, eu não faço idéia. Parece estranhamente familiar, como se eu já tivesse usado antes. Louco, não? Seja como for, eu estava apagada, completamente nua debaixo das cobertas. A camisola estava jogada na cadeira. Era isto ou andar por aí como vim ao mundo.

Devlin a imaginou de pé, nua, com seus longos cabelos vermelhos caindo em cascata por sobre os ombros de alabastro. Como se lesse seus pensamentos, Blair franziu a testa e o repreendeu. — Você gostou da idéia, não é? Seu velho sujo.

Ela contou a ele da fuga no museu, do homem que eles chamavam de der Eisaxt, ficou com a voz embargada ao relatar a cena na sala de interrogatórios. Contou do doutor Craven, da fascinação que ele e Al-Dajjal tinham pela tatuagem dela. E finalmente contou sobre a garotinha que agora se chamava Wendy.

Ao terminar, ela se sentou empinando as costas. — Não podemos ficar aqui simplesmente sentados, droga! Wendy precisa de mim!

Devlin olhou ao redor do recinto. Deu um amplo sorriso e acenou para as câmeras escondidas. Então a tirou da cama e a conduziu em direção à porta. — Não se mexa.

Ele caminhou até o centro e começou a inspecionar as gavetas de uma mesa velha. Com as mãos cheias de artigos de escritório, ele ajoelhou com um dos joelhos, enfiou a papelada em um cesto de lixo e pegou um isqueiro do bolso.

—        Estou morrendo de frio, mas não acho que uma fogueira seja a resposta, Davy Crockett — ela disse.

Chamas lamberam o cesto de lixo e a fumaça começou a subir ao teto. Devlin correu para o lado dela e puxou para a porta.

Ele começou a socar a porta e a gritar para o segurança

—        Ei, herr Arschloch. Fogo!

 

No quarto adjacente, o doutor Craven estava de costas para o monitor de vigilância. Entediado com a conversa de Devlin e Blair, que estava sendo gravada mesmo, ele também tirou os fones de ouvido. Estava entretido com uma xícara de Earl Grey quentinha e enchendo as bochechas gordas de biscoitos empapados de marmelada.

Ele torceu o rosto e sentiu o cheiro no ar. Será que tinha alguma coisa queimando? Ele olhou para o fogão elétrico. Nada incomum lá. Nenhum fio exposto.

Quando olhou na tela de TV a xícara caiu de seus dedos de salsicha e despedaçou no chão. Ele engasgou com o pedaço de biscoito que estava engolindo e tropeçou sobre a mesa. A imagem na tela era uma grossa camada de fumaça. Pegou o controle freneticamente e girou a pequena câmera ao redor do quarto.

Quase nem conseguiu enxergar nada por entre a densa fumaça. A porta da sala estava totalmente aberta e não estava vendo Devlin nem Blair em parte alguma.

 

Ginny Doolittle e Wendy estavam dando a volta na esquina para a rua ao lado, onde ficava o apartamento de Ginny. — Há tanta coisa que tenho a lhe dizer. Mas você está em segurança agora, pequenininha. Está entre amigos.

Wendy olhou nos olhos calorosos de Ginny e balançou a cabeça. — Amigas, Ginny?

Um reluzente Rolls-Royce Phantom parou ao lado e estacionou no meio-fio.

Ginny não reparou, mas Wendy sim. Ela puxou a saia esfarrapada da velha senhora e apontou para a limusine.

— Ora, veja, aqui estão nossos amigos — disse Ginny.

O motorista, envergando um uniforme muito bem passado, saiu calmamente do comprido veículo, abriu a porta traseira e fez um gesto para que entrassem.

Elas entraram na limusine e o motorista fechou a porta. Ele então retornou à direção, sinalizou cuidadosamente e pôs o carro na rua habilmente.

Wendy se sentiu tão pequena sentada no luxuriante assento de couro. Quando ela esfregou o traseiro para se acomodar, o couro fez um barulho guinchante. Ela deu risada.

O casal de idosos sentados no banco em frente a ela e Ginny deu risinhos.

Wendy os observou. Ambos tinham cabelos brancos como neve e olhos azul-claros. Usavam roupas à moda antiga. Wendy achou que parecia um conto de fadas. Eles pareciam ter saído das páginas de um livro de histórias, direto de alguma velha fotografia para o mundo moderno. O idoso descansava as mãos em uma bengala preta e brilhante que estava entre seus joelhos, e a mulher matinha as mãos pacificamente dobradas sobre o colo.

- Bonjer, Mon-swer - disse Wendy, lutando com seu francês e não conseguindo muita coisa.

Os olhos do idoso cintilaram quando seus dedos longos coçaram o cavanhaque. — Então nos encontramos novamente, mademoiselle.

Apesar de agora ele estar com roupas elegantes, Wendy o reconheceu como o mesmo senhor com as sacolas de compras que ela ajudou a entrar no edifício marrom.

Wendy baixou os olhos e, acanhada, deparou-se com o olhar dele. — Desculpe. Tive de mentir ao senhor quando disse que minha mãe estava me chamando. Meu nome...

Ele ajeitou a boina. — Pedir desculpas é desnecessário, minha querida. E não precisa se apresentar. Nós sabemos exatamente quem você é. Mas meu nome é Nicholas, e esta é minha adorável esposa, Perenelle.

Wendy abaixou a cabecinha.

Ele piscou o olho. — Na verdade, já faz um tempinho que estamos de olho em você.

Desconcertada, Wendy virou para Ginny. — Nicholas é meu anjo guardião?

—        Bem, algo do tipo. Estes são os amigos de quem lhe falei, minha queridinha. Você é uma menina muito especial e agora faz parte do Thari, filha.

—        Do Thari? — Wendy perguntou.

—        Sim, filha — disse Perenelle. — Hoje em dia, amigos nunca são demais... não mesmo.

O idoso se inclinou para frente. — Os Thari são um grupo muito antigo de pessoas sábias e gentis, filha. Eles vêm de anos atrás, de um grupo antigo que chamavam de Druidas. Os Druidas conheciam os segredos da natureza, os mistérios do universo. E eles transmitiram esse conhecimento aos Thari. Os Thari, por sua vez, conhecem os segredos dos elementos.

Wendy ergueu a cabeça. — Os elementos?

—        Os metais e o poder que mora dentro de todos nós. Pelo que sei você também tem dons especiais.

Wendy deu de ombros. — Às vezes posso ver as coisas em minha mente. E às vezes, quando fico com muito medo, posso voar.

Perenelle abaixou a mão e tirou o sapato de salto alto e começou a massagear o pé. — Bem que eu poderia voar em vez de andar com estes pés inchados.

O homem deu um tapinha no pé da esposa. - Pezinhos delicados e adoráveis que ela tem. Minha bailarinazinha.

Wendy gostava daquela gente. Eles eram que nem Ginny, meio doidinhos, mas divertidos e gentis. A senhora franziu o cenho e deu um olhar de cima a baixo em Wendy. — Nicholas, meu Deus, a menina não pode ficar andando por aí descalça e de camisola.

—        Maurice — Nicholas disse ao motorista. — Queira ter a gentileza de entregar aquela caixa para esta jovenzinha, por favor.

Wendy recebeu a grande caixa de roupas no colo.

—        Vá em frente, filha — Nicholas persuadiu. — Acho que as roupas vão lhe cair como luvas. Perenelle tem olho bom para essas coisas.

Wendy levantou a tampa e deixou cair no chão da limusine. Arrancou o papel de embalagem e se deparou com um lindo vestido branco e sandálias de cetim no mesmo tom.

—        Parece um vestido de princesa — Wendy disse, levantando a camisola. O velho senhor se voltou para Wendy; seu tom permaneceu gentil, mas ela detectou uma nova seriedade em sua voz. — Filha, deixe-me ver seu braço, por favor.

Ela abaixou o vestido e olhou nos olhos dele.

Gentilmente, o homem pegou o braço dela e passou os dedos longos e estreitos. — Isto basta — ele disse. — Aquelas bestas implantaram um rastreador no braço dela, mas eu acabei de inutilizá-lo.

Perplexa, Wendy olhou para o antebraço.

—        Você é uma boa menina — disse o velho, sorrindo calorosamente. — Amorosa e de boa índole. Você e os Garotos Perdidos da Escola Éden são Crianças índigo, todos igualmente agraciados com dons mágicos. E à medida que vocês forem crescendo, vão aprender a controlar esses dons. Lembre-se sempre que esses dons trazem uma grande responsabilidade.

Wendy escutou quietinha, prestando atenção a cada palavra.

—        Mas há, contudo, um perigo em potencial. Já vi alguns índigos ficarem bem cabeçudos ao crescer — Nicholas percebeu o cenho franzido de Wendy. — O que foi, filha?

Seus belos olhos irradiavam sinceridade. — Deus, você quer dizer que minha cabeça vai inchar que nem um melão gordo?

Nicholas sorriu suavemente. - Não, filha. Cabeçudo no sentido de vaidoso. Você nunca pode se achar melhor que os outros, nem superior em sentido algum. Porque no momento em que você abrir essa porta, as forças das trevas estão à espreita neste universo de Deus para lhe pegar.

A garotinha torceu o nariz. — Portanto, nada de soberba e devo sempre manter minha porta fechada, certo?

Ele balançou a cabeça e sorriu. — Quero dizer a porta de suas emoções que dá no seu coração, na sua alma.

Ela deu risada. — Opa!

—        Querido, francamente — Perenelle disse ao marido, fazendo uma careta. — Você está confundindo a pobrezinha — virou para Wendy. — Sabe, docinho, tem gente muito ruim neste mundo, gente que quer roubar seus dons. Pessoas maldosas que só buscam poder e fortuna.

—        Acho que eu sei o que você quer dizer — Wendy disse. — Pessoas como o Capitão Gancho ou a senhora Baylock da escola.

—        Sim, minha querida — respondeu Perenelle. — Suas almas eram como as nossas quando eles nasceram, brilhantes como diamantes reluzentes. Mas suas más ações as transformaram em um pedaço de carvão.

Eles conversaram por algum tempo. Nicholas explicou que as Crianças índigo tinham esse nome por causa da radiante cor azulada que emanava da aura deles, que só podia ser vista por almas sensíveis dotadas de sexto sentido. Ele disse a ela que essas crianças normalmente tinham maravilhosas capacidades mediúnicas: poderes de telecinésia e telepatia.

O homem virou a cabeça e Wendy deslizou para dentro do vestido novo. Nicholas apareceu com uma caixa de docinhos, uma garrafa térmica com chá para os adultos e para Wendy uma garrafa de leite resfriado em balde de gelo. O recheio do doce caiu no banco do carro.

—        Ah, meu Deus, sinto muito — Wendy disse à senhora.

—        Ah, Maurice vai limpar isto num instantinho. Não preocupe essa cabecinha linda — a velha senhora calçou o sapato novamente com dificuldade e olhou pela janela.

A limusine estacionou.

—        Santo Deus, Maurice — ela disse ao motorista. — Já chegamos?

—        Sim, senhora — respondeu o motorista.

Wendy se ajoelhou no banco e espiou pela janela, onde estamos... — as palavras entalaram em sua garganta. — À distância, depois de um bosque de carvalho, estava o Solar RAVENSCAR, com o mar negro e feio ao fundo.

Wendy sentiu o sangue fugir do rosto e seu coração bateu tão forte que parecia a ponto de explodir do peito.

—        Ah, não precisa temer, filha — disse a mulher suavemente. — Blair e os Garotos Perdidos precisam de nossa ajuda. Afinal de contas, você prometeu que ia voltar para ajudá-los, não é?

Wendy sentiu a presença de Blair antes de escapar da Escola Éden. Mas achou que fosse mera esperança. Agora, contudo, a sensação estava forte. E seu medo começou a se dissipar, substituído pela autoconfiança de uma garotinha que tinha um bom senso além de sua idade, uma garotinha que sabia seu propósito na vida.

Wendy parou ao lado de Ginny, apertando com firmeza a mão da velha senhora e acenando com a outra para a limusine que se afastava.

—        Os Flamel não são pessoas maravilhosas? — Ginny disse.

Wendy torceu o nariz. — Eles são bem velhinhos mesmo, não são? Mais velhos do que parecem.

Ginny deu uma risada esfolegada. — Sim, minha pequenininha, velhos como a necessidade.

Como um velho cão sentindo cheiro de guaxinim, Ginny levantou o pescoço, sentiu o cheiro da brisa fria e virou a cabeça na direção do solar. — Lá vamos nós, meu amor.

Com a princesinha a reboque, a velha mendiga foi cambaleando em meio ao bosque tão rápido quanto lhe permitiram suas pernas finas cobertas por meias.

 

Quando o segurança arrombou a porta Devlin estava esperando de um dos lados da porta, de costas para a parede. Blair havia abaixado a parte de cima da camisola para mostrar bem o colo. Ficou parada em frente à porta.

O idiota de olhos abobalhados foi direto até Blair, e Devlin pulou e deu uma pancada forte na nuca dele com a base de uma pesada luminária.

Eles estavam correndo pelo corredor abaixo quando Blair disse — Pensei que caras como você usassem golpes de karatê.

—        Eu tenho mãos frágeis — Brody explicou.

—        E se ele não tivesse aberto a porta? Qual era o plano B?

Devlin a puxou para outro corredor, os passos deles soando como trovões no chão de madeira dura. — Não tinha plano B, na verdade.

Ela quase tropeçou quando dobraram para pegar outro corredor e Devlin a segurou pelo braço para ela não cair.

—        Que droga! Calma aí, Tarzan.

—        Jogue fora esses malditos sapatos de salto alto! — ele disse.

Ela jogou. — Sabe, você é brilhante mesmo. Aparece aqui sozinho, não relata à sua unidade onde foi, não notifica as autoridades que eu fui seqüestrada...

Passos pesados ecoaram no corredor mais à frente.

Eles deram meia-volta e pegaram uma escadaria. No patamar foram recebidos por um cavaleiro de armadura. Devlin arrancou a espada da mão da imitação de cavaleiro medieval.

Blair zombou. — Você sabe usar este negócio?

—        Bem, eu vi Coração Valente seis vezes.

- Mel Gibson sabe dançar. Você sabe.

—        Que diabo isto tem a ver?

- Tem um velho ditado celta que diz "nunca dê uma espada para um tolo que não sabe dançar". Bem... você sabe?

Ouviram o som das botas dos seguranças subindo as escadas atrás deles.

Devlin encolheu os ombros e baixou os olhos em direção à escada. — Dois pés esquerdos.

—        Dê isto aqui — ela gritou e arrancou a espada das mãos dele, subindo as escadas atrapalhadamente.

Devlin seguiu atrás dela.

Quando chegaram ao próximo andar, Blair esticou a mão habilmente e o agarrou pelo colarinho, empurrando-o para ficar perto dela, bem colado à parede.

Arfando, com a cabeça encostada à parede, segurou a espada acima da cabeça. Quando a boca de uma submetralhadora apareceu no canto, Blair desceu a espada. Fagulhas voaram quando a espada enorme jogou a H&H MP-5 no chão.

Atônito, o agressor ficou parado, olhando para ela com os olhos esbugalhados e despreparados. Blair girou a espada de novo e bateu na cabeça dele com o lado chato da espada. Ele caiu desmaiado no chão aos pés dela.

Devlin pegou a MP-5.

—        Ah, com licença — ele disse, oferecendo a arma a Blair. — Imagino que você também queira isto aqui.

Ela içou a Derringer. — Isto vai dar conta.

Pularam o corpo desfalecido do segurança e foram seguindo pelo corredor. Ao longe apareceu outra aglomeração de seguranças. Eles os viram e levantaram as armas.

A parede ao lado de Devlin fora crepitada por saraivadas de tiros e seu cabelo ficou coberto por partículas de argamassas.

—        Nossa, esses cretinos gostam mesmo destas metralhadoras, empurrando Blair para baixo e se ajoelhando em um só joelho para soltar uma rajada de tiros, acertando em dois dos seguranças. Soltou uma segunda rajada, e outro agressor caiu duro. — Vamos dar o fora. Eu lhe dou cobertura.

Blair foi engatinhando pelo corredor e dobrou em uma curva. De repente, Devlin apareceu de pé ao seu lado.

—        Que diabo está fazendo aí embaixo? Levante! Vamos embora!

Bufando com as bochechas vermelhas, ela ficou de pé e o cercou. Levantou a mão e bateu com força no rosto dele. Ele esfregou a bochecha dolorida. — Por que diabo fez isto?

—        Eu gostava demais daqueles sapatos!

Ela caminhou com toda determinação em direção a um par de portas enormes revestidas com couro ornamentado com metal. Devlin ficou parado, olhando para o rebolar daquele belo traseiro.

Alcançou-a logo em frente às portas. — Que acha?

Blair olhou feio e pôs o ombro na porta. Ela se abriu para um segundo vestíbulo. As paredes e o chão cintilavam de tão brancos e mais além havia um segundo par de portas de aço inoxidável.

—        Não estou gostando disto — disse Devlin.

Vozes vinham de trás das portas, aos berros.

Sem uma palavra, ambos correram em direção às portas duplas, que se abriram totalmente com um sibilar pneumático quando eles se aproximaram.

Veio um fluxo de ar frio, antisséptico e pesado ao entrarem na sala.

A sala tinha pouca luz e eles foram passando por fontes de luz que abriam um caminho pouco auspicioso no breu. Devlin sentiu que a sala era cavernosa. Ao longe dava para ele enxergar, embora não muito bem, dois vultos do outro lado da sala comprida, de costas para eles.

Correndo, Devlin levantou a MP-5, apontando para as costas dos homens.

Subitamente um banco de luzes ao alto se acendeu, inundando o recinto de luz ofuscante. Piscando e tentando ajustar os olhos à luz intensa, Devlin agarrou o braço de Blair e pararam no piso duro e encerado.

Os dois homens viraram lentamente.

Al-Dajjal e Heinrich Gant ficaram olhando atravessado para eles.

—        Ora... major Devlin — disse Gant. — Que gentileza a sua se juntar a nós.

Al-Dajjal deu um passo à frente, diminuindo a distância, os braços ao lado do corpo com as palmas estendidas como quem se rende. — Senhor Devlin, vejo que está armado. Suponho que gostaria de me dar um tiro bem no coração, certo?

— Eu faria isto, se achasse que você realmente tem coração, seu açougueiro de sangue frio.

Al-Dajjal jogou a cabeça para trás e soltou uma risada gélida. — Que verve sardônica, major. Realmente sentirei sua falta.

Devlin mirou nele.

Do alto veio o som arrepiante de armas sendo engatilhadas por mãos que não se via. Do canto do olhou, Devlin viu Blair olhando para cima e depois novamente para ele. Ela esticou a mão e fez Devlin baixar a arma.

Devlin olhou para cima. Pendurados em uma passarela de aço logo acima havia uma fila de seguranças com suas metralhadoras automáticas apontadas para Blair e para ele.

Dois seguranças vieram por trás e pegaram a MP-5 que ele segurava. Uma pancada nas panturrilhas fez Devlin cair de joelhos.

Um segurança com cara de touro forçou Blair a se ajoelhar.

Al-Dajjal agigantou-se sobre eles.

Puxou Blair pelo queixo rudemente e a fez encará-lo.

Ele se inclinou, encostou o nariz aos longos cachos caídos sobre o rosto dela, respirou fundo, fechou os olhos e beijou-lhe a ponta do nariz.

Ela recuou, repugnada, e cuspiu no rosto dele, xingando-o entre dentes.

O louro grandão levantou a mão, preparando-se para esbofeteá-la com as costas da mão, mas Gant falou lenta e vigorosamente — Não marque o rosto dela!

Al-Dajjal recuou, soltou o queixo de Blair. Gritou para um guarda — Traga-os! —, deu meia-volta em suas botas e saiu marchando, os passos ecoando na escuridão.

Os guardas os levantaram brutalmente e os empurraram para a frente, espetando as costas dos dois com as bocas de suas armas à medida que eles cambaleavam adiante.

Blair zombou de Devlin entre dentes enquanto seguiam. — Você sabe que nós somos como ratos em um labirinto. Eles fizeram tudo para que acabássemos exatamente aqui. Brilhante, realmente brilhante!

Presumo que você tinha algum plano melhor..., mas achou melhor guardar para si mesma, não é, princesa?

—        Seu idiota teimoso. Homens... quem precisa deles? Escrotos! — Blair respondeu.

—        Ah, é? Pois digo o mesmo em dobro, irmã.

 

Depois de perder o Bentley preso no trânsito, Chewie e Scout presumiram que Devlin fora levado para a propriedade de Gant em Devon.

Chewie levou o Jaguar ao limite de velocidade, quebrando a nova lei britânica de trânsito enquanto corria disparado pela rodovia interiorana, virando pescoços e causando revolta de motoristas desavisados.

Ao fazerem a última curva, Scout estava grudado ao banco, morto de medo, rezando orações que achava ter esquecido muito tempo atrás enquanto dava as direções ao índio maníaco detrás do volante.

—        Quanto falta? — Chewie gritou.

Scout engoliu com dificuldade quando o Jaguar passou por um declive na estrada e depois por uma elevação, fazendo o chassi do carro voar momentaneamente e cair na estrada outra vez, quase fazendo o crânio de Scout bater no teto do automóvel. — Caraca! Aqui, entre nesta estrada lateral!

O ágil veículo esporte virou com tudo na curva, ágil como um tubarão feroz e depois voltando ao meio da ruela estreita.

—        Maldição do inferno, Chewie. Sou novo demais para morrer!

Um estouro gutural veio do escapamento duplo e Chewie grunhiu e diminuiu a velocidade.

Do nada, dois enormes Land Rovers com sinalização militar atravessaram os canais e vieram dos dois lados, pegando a estrada com seus grossos pneus enlameados. Eles frearam cantando os pneus e bloquearam a estrada. As portas dos dois Land Rovers se abriram e saíram soldados apontando metralhadoras automáticas para o Jaguar.

—        Cara, eles estão levando essa história de limite de velocidade muito a sério hoje em dia — Chewie conseguiu dizer, puxando o freio de emergência com a mão que mais parecia uma pá, enquanto a outra virava o volante na direção anti-horário até ele travar. A traseira do Jaguar girou rapidamente, os pneus mastigando o asfalto enquanto Chewie executava um perfeito giro de 180 graus.

- Ah, Deus! Não me diga que vamos... — Scout disse.

—        OK, não vou! — Chewie gritou enquanto afundava o pé tamanho 46 no acelerador, fazendo o Jaguar tomar a direção oposta, afastando-se do bloqueio.

—        Ah, diabo — Chewie disse com uma voz triste, mas sob controle. — Este carro é alugado!

Scout ficou olhando com olhos grandes como pires enquanto um grande helicóptero preto sobrevoava a estrada em frente a eles.

Uma rajada de metralhadora .50 rasgou o asfalto na direção deles. Os disparos não atingiram a frente do Jaguar por questão de centímetros.

—        Isto basta! — Chewie disse, franzindo o cenho e freando — estou ferrado se tiver de comprar outro Hertz e um Jaguar novinho em folha.

O helicóptero aterrissou e a porta lateral se abriu.

De cabeça baixa, com seus pequenos tufos de cabelo e as abas da capa de chuva voando sob o impulso das hélices do helicóptero, o inspetor-chefe Newley correu até eles com dois policiais prontos para atacar logo atrás.

Chewie abriu a janela do Jaguar e sorriu cheio de dentes para o inspetor. Acho que você não vai acreditar se eu disser que estou com minha esposa grávida quase dando à luz no banco de trás e eu estava correndo para levá-la ao hospital, não é?

Newley ficou olhando, as mãos enfiadas nos bolsos da capa de chuva. — Em uma só palavra, NÃO!

—        É, foi o que eu pensei — Chewie disse enquanto dois soldados o faziam sair do carro sob a mira de armas.

Sentados no banco de trás do Land Rover com as mãos algemadas para trás, Scout ficava balançando a cabeça, enquanto Chewie assoviava o tema de M.A.S.H. Suicide is Painless.

De sua posição à direita da dianteira, Newley virou para trás fazendo cara feia. — Agora, se os dois camaradas aí prometerem se comportar, mando abrir suas algemas.

Chewie fez que sim, triste.

Newley mandou o policial soltá-los

Enquanto Scout massageava os pulsos, Newley explicou — Nós temos ficado de olho em Sir Nigel Cummings já faz um certo tempo. Precisávamos que ele deixasse pistas. Temos a prova, mas infelizmente sua unidade foi pega de surpresa. Parece que o motorista de Sir Nigel agarrou seu chefe Bill Sorenson e a senhorita Madison Dare ontem à noite.

Chewie perguntou, ansioso — Onde ela está?

—        Calma, meu velho, suspeitamos que ela, mais o major Devlin e a doutora Kelly, estão sendo mantidos contra a vontade em RAVENSCAR.

O Land Rover sacolejava pelo campo não-asfaltado enquanto ele falava. Scout estava com o estômago na garganta.

Finalmente, pararam. Um policial do SAS os encontrou e saiu caminhando com Newley. Chewie saiu do carro e começou a seguidos, mas um policial armado até os dentes parou na frente dele, bloqueando o caminho.

—        Caiu fora senão te quebro a... — Chewie parou no meio da frase.

Era o sargento Conners. — É, rapazinho. Ouvi dizer que você anda dando muito trabalho.

Newley parou e virou. — Sargento Conners, ponha-os a par da situação — e saiu.

O sargento Conners parou perto de uma mesa coberta por mapas e fotos de satélite e começou a mostrar a Chewie e a Scout o esboço da mansão enquanto bebericavam café em copos de isopor.

Basicamente, dois esquadrões do SAS foram convocados, pois Heinrich Gant era um traficante de armas com acesso a armamentos avançados. Conners explicou que o reconhecimento do território inimigo mostrou que havia uma caverna no lado litorâneo do solar que dava na praia. Isto exigia uma equipe do SBS, Comando Naval Especial, contrapartida britânica ao Comando Especial da Marinha Americana, para fazer uma entrada sub-reptícia. Mas a equipe do SBS, entretanto, estava no momento, ocupada com outra operação, o que significava que eles teriam que resolver a situação com um ataque frontal do SAS.

—        Você faz alguma idéia do que eles vão enfrentar? — Chewie perguntou.

O sargento Conner balançou a cabeça e disse com voz grave - É, aí que está o problema, rapazinho. Gant é uma espécie de Professor Pardal maldito em se tratando de projetar novos armamentos. Especialmente lindas desgraças automáticas.

Scout olhou nervosamente para o relógio de pulso.

—        São quase dez. Quando Newley vai entrar?

Conners puxou o bigode de leão-marinho e deu um suspiro.

—        Quando ele estiver bem pronto, filho — piscou os olhos nervosamente para Chewie, que olhou nos olhos dele com o rosto pétreo e o queixo duro.

Scout conhecia aquela cara. Queria dizer que Chewie era um fio desencapado e estava a ponto de gerar uma explosão a qualquer momento.

Conners os conduziu até o inspetor Newley, que estava com uma unidade de controle de comando e comunicação.

Um jovem e pálido oficial do SAS com fones de ouvido virou para seu oficial de comando, interrompendo a conversa. Limpando a garganta, ele começou — Senhor, me perdoe, mas...

O capitão fez cara feia. — Desembuche, homem!

—        Senhor, o posto de observação seguinte acaba de informar que há uma aeronave não identificada.

—        Está me dizendo que eles localizaram uma aeronave vindo em nossa direção, soldado?

O jovem engoliu em seco.

—        Não exatamente, senhor — ele se encolheu como quem espera levar um soco. — Eles dizem que uma criança e uma mendiga velha acabam de voar por sobre a posição deles ao nível da copa das árvores, rumo à escola. — Ele deu um passo para trás e fechou os olhos.

O capitão soltou uma saraivada de palavrões.

O jovem soldado esticou o braço e virou um monitor com vídeo em tempo real da câmera do posto de observação. A imagem da garota de vestido branco brilhante sob o Sol luminoso, de mãos dadas com uma velha senhora cuja outra mão estava firmemente plantada no alto da cabeça, como se segurando o chapéu frouxo, planando por sobre os carvalhos e cruzando uma campina.

Os homens ficaram olhando para a tela, boquiabertos. Todos, menos Newley, Scout reparou.

O sargento Conners riu alto. - Ora, se não é a Mary Poppins em pessoa. A câmera voltou para o nível do chão e deu close-up.

—        Senhor, algo está acontecendo!

Como se um buraco gigante tivesse se aberto na superfície, um pedaço enorme de terra cedia e caía enquanto um aparelho metálico surgia debaixo da terra.

Scout disse em altos brados — Caraca, é um Samsung Sentinel. E está equipado com um lançador de mísseis!

Newley perguntou — Ah, que diabo você disse, filho?

A besta de metal subiu cerca de metro e meio, parecendo um robô mortífero. Lentes grandes em forma de caixa olhavam fria e desumanamente pelas laterais. Começou a girar com movimentos lentos, fotografando o panorama.

Scout explicou. — Os coreanos desenvolveram essa máquina e colocaram no mercado. Funciona como um robô-sentinela. Tem visão infravermelha e térmica e alvo a laser... aqui, deixe lhe mostrar — Scout foi ao teclado e abriu em um website. — Aqui tem um vídeo do velhaco em ação.

Na tela, do ponto de vista do robô-sentinela, dois homens foram localizados. As lentes do robô seguiram seus movimentos. Uma caixa quadrada marcava o alvo do robô. Uma luz vermelha piscava no meio da imagem do alvo, sinalizando que a mira estava certa.

Em segundos ele atirou a primeira vez emitindo um flash luminoso, depois mirou no segundo alvo e atirou outra vez. A voz de um narrador coreano explicava de modo bem direto com seu inglês ruim que o robô não comia, não dormia, não precisava descansar. Depois veio uma demonstração de seu sistema de defesa do solo ao ar.

—        Ah, meu Deus! — disse Newley.

Todos os olhos se voltaram para o vídeo ao vivo assim que o robô mirou seu alvo em direção ao céu.

—        Desligue esta máquina maldita antes que atirem na menina e na velha! — Newley gritou.

A atenção de Newley foi atraída pelo urro alto de um motor em funcionamento. Ele se virou bem a tempo de ver Chewie detrás do volante de um Land Rover que estava perto, dando tchauzinho e sorrindo de orelha a orelha enquanto o sargento Conners entrava do outro lado batendo a porta do carona.

Newley saiu correndo atrás deles e gritou - Maldição do inferno! Ah, você não vai fazer isto não, seu índio maluco filho da puta. Cansei das suas estripulias.

Mas depois de avançar o Land Rover desacelerou violentamente, cantando os pneus e cobrindo o inspetor Newley de lama da cabeça aos pés.

O capitão foi para o lado de Newley, entregou-lhe seu lenço de bolso, apontando para o rosto enlameado do homem.

Detrás dele o jovem soldado gritou — Senhor, o robô acabou de lançar um míssil Starstreak!

 

Os Garotos Perdidos estavam agachados e agrupados, olhando pela cerca com malha em forma de corrente ao redor do complexo da Escola Éden.

Gabriel sentiu a presença de Wendy, então os garotos saíram correndo para o playground.

Peter e Gabriel ficaram parados, com os dedos segurando firmemente os aros da cerca contra a qual apertavam os narizes, procurando desesperadamente por vislumbre de Wendy.

Johnboy gritou e apontou para o céu — Olha! Lá em cima... ela está voando.

Como espectadores de um show aéreo, os Garotos Perdidos levantaram os olhos simultaneamente, protegendo os olhos do Sol forte com as mãos.

—        Estou vendo — Peter disse, animado.

—        Eu também! — disse Gabrielzinho, querendo participar. — E ela está com a fada-vovó.

Raji disse em tom grave — Ah, Deus, Wendy está em perigo. Estou vendo um míssil sendo lançado em poucos minutos e ela e a velhinha vão explodir em pedacinhos quando forem atingidas!

Gabriel levantou os olhos marejados e apertou o braço de Peter. — Faça alguma coisa, Peter. Use seus poderes.

Peter baixou os olhos. Seus olhos se encontraram e Peter balançou a cabeça.

De repente um míssil deixou um rastro pelo céu azul.

Johnboy gaguejou — Cara! O míssil está indo bem na direção delas!

Peter endireitou e ficou olhando fixo para o míssil. Levou as mãos às têmporas e franziu o cenho em intensa concentração.

Como se guiado por uma força invisível, o míssil virou abruptamente à direita, deixando de atingir Wendy e a velha senhora por pouco. Deu meia-volta e desceu. Ricocheteou no robô-sentinela fazendo um estrondo ensurdecedor e brilhando forte como um raio, obliterando a máquina por completo.

Gabriel gritou de alegria, pulando para cima e para baixo — Você conseguiu!

Raji bateu nas costas de Peter e sorriu. — Mandou bem, meu velho.

—        É, você é o maior, Peter — Johnboy acrescentou.

Peter soltou a respiração ruidosamente e balançou a cabeça.

—        Não tinha certeza se eu conseguiria mexer algo tão grande e tão longe.

Ouviram ao fundo o rangido penetrante da voz da senhora Baylock os chamando. Eles viraram e a viram chegar com seu passo sinistro como um chacal faminto, os olhos amarelados ardendo, homicidas. Dois funcionários a acompanhavam, um de cada lado.

Ao se aproximar, Baylock ordenou — Pegue estes bastardinhos! Leve todos para o Quarto Escuro.

Os funcionários brutamontes seguiram em frente.

Os Garotos Perdidos deram-se as mãos e estavam lado a lado, encarando com raiva os agressores que se aproximavam. A cor de seus olhos passou de índigo profundo a branco rezulente.

Um som muito agudo encheu o ar e uma nuvem negra de vespas saiu das árvores e atacou os funcionários. Gritando e batendo os braços, os homens lutaram em vão para espantar o ataque dos insetos. Caíram no chão, envolvidos por crostas de vespas marrom-amareladas.

Baylock estava como uma estátua, os olhos arregalados de terror.

Baylock ficou parada que nem uma estátua, os olhos arregalados de terror.

Gabrielzinho, que ainda estava com os olhos brilhando, radiantes, disse baixinho — É melhor você nos deixar em paz, sua bruxa velha.

Caminhando lentamente para trás com seu olhar apavorado cravado nos Garotos Perdidos, Baylock começou a fugir. Soltou um uivo de frustração e disse — Depois eu lido com vocês, seus diabinhos.

Usando do poder de ver segundos à frente do tempo, Raji gritou — Ela está armada!

Em seguida apareceu um revólver na mão esquelética de Baylock.

Peter olhou bem nos olhos da mulher, detendo-a com sua força luminosa. — Não olhe até eu mandar, Gabe — ele disse ao irmão menor, sem tirar os olhos da mulher.

—        Está certo — disse Gabrielzinho, fechando os olhos e virando a cabeça. A arma de Baylock começou a sacudir violentamente e o pulso dela virou lentamente, apontando o cano do revólver para seu próprio peito.

Peter ficou olhando, seus olhos com um forte brilho branco-azulado, olhos de fogo e gelo. Em sua mente, ele visualizou os rostos dos outros meninos e meninas que a senhora Baylock havia arrastado para o Quarto Escuro para nunca mais voltar.

Em um último esforço para deter o inevitável, Baylock agarrou o cano da arma com a mão livre para afastar a arma do corpo; mas era como se seu braço estivesse possuído, imóvel e determinado a encostar a boca do revólver em seu coração.  

O olhar quente de Peter começou a pulsar, primeiro lentamente, depois tão rápido quando um estrobo de luz pulsante.

O rosto da bruxa velha se contorceu em uma careta de horror quando o cano do revólver começou a levantar lentamente.

Um estampido barulhento ecoou pelo playground quando saiu o tiro, e a senhora Baylock caiu de costas no chão.

—        Acabou? — Gabriel perguntou com sua vozinha.

—        Sim, ela nunca mais vai levar ninguém para o Quarto Escuro — respondeu Peter, enchendo os pulmões de ar fresco, e o brilho em seus olhos foi lentamente desaparecendo.

—        E lá vamos nós de novo, companheiros. Wendy está indo para a casa principal — Raji explicou. — Ela precisa de nós.

 

Devlin ainda estava fervendo de ódio por ter sido levado para a armadilha de Gant como se fosse um rato num labirinto. Puxaram-lhe os braços para trás e os amarraram com fortes tiras de plástico no encosto de madeira da cadeira em que estava sentado, e havia dois capangas armados ao seu lado.

Ele olhou ao redor.

Foram levados a uma sala que parecia um vasto depósito. Ele piscou os olhos. A luz intensa lhe cegou momentaneamente.

Andaimes, passarelas e passadiços formavam uma torre circular de aço ao seu redor. Técnicos com seus compridos jalecos brancos tripulavam equipamentos eletrônicos de aparência sofisticada que cobriam o assoalho encerado. Um grupo de cabos serpenteava em direção ao centro do vasto recinto, que não estava iluminado por canhões de luz. Devlin imaginou que os cabos seguiam pelas sombras para se conectar ao que parecia ser algum tipo de aparelho gigantesco.

Mas onde estava Blair?

Assim que eles entraram, os seguranças o separaram dela.

Um banco de refletores brilhou ao alto, iluminando a parte escura do recinto bem em frente a ele.

Blair estava sentada em uma cadeira em frente a uma mesa antiga com Al-Dajjal parado atrás dela, repousando uma das mãos no ombro exposto dela.

Heinrich Gant resvalou das sombras. — Achei que você gostaria de presenciar minha pequena experiência, major Devlin. Agora sei que você está morrendo de curiosidade.

Percebendo que era melhor ganhar tempo, Devlin disse — Você realmente batalhou muito para conseguir seus intentos. Dizem que você é um gênio, Gant.

Gant deu de ombros e foi até uma mesa com material de laboratório. Levantou uma pequena gaiola e foi para perto de Devlin, parando com a gaiola bem perto de seu rosto. — Que tal minha pequena criação?

Devlin sentiu todos os músculos se retesando.

Uma cabeça desfigurada de rato olhou para ele com seus olhos marrons. Uma língua bifurcada saía da boca da criatura, revelando diminutas fileiras de dentes afiados. A língua era preta e tinha aparência áspera. Mas a cabeça estava ligada ao corpo de um lagarto com garras e uma cauda achatada. Sua pele era viscosa e tinha um tom negro-amarelado. Pavoroso.

—        O cruzamento entre um réptil e um mamífero — Gant explicou. — Um rato e uma salamandra.

Devlin fez uma careta. — Você desenvolveu algum método novo para juntar os genes? E dizem que não é possível fazer isto...

—        Seu sarcasmo não lhe cai bem, major. O cruzamento entre espécies não pode ser alcançado por este método. Nós descobrimos que o DNA pode ser alterado em nível quântico. Ao colocar o zigoto de um roedor no raio laser e depois passar este mesmo raio pelo zigoto de uma salamandra nós conseguimos...

Devlin interrompeu. — Um monstro pavoroso. Gant, se você não é completamente louco, está a meio caminho de ser.

Gant baixou a gaiola e a entregou a um assistente.

—        Para o senhor pareço louco, major? Estou delirando descontrolado como se fosse algum lunático? Eu juntei uma fortuna enorme, ou isto tudo é apenas algum delírio meu e seu? Um delírio no qual seu governo está tão interessado que mandou você e esta mulher aqui para roubar meus segredos.

—        Ah, quanto a isto você está muito enganado, Gant. Eu vim aqui para lhe matar. Mas a doutora Kelly não tem nada com isto. Deixe-a ir embora. Seu problema é comigo.

—        Está jogando seu latim fora. Sabe, foi o destino quem me trouxe a senhorita Kelly — ele virou e foi até a mesa, e então acenou com a cabeça para o segurança. — Traga o major mais para perto, por favor.

Os guardas arrancaram Devlin da cadeira e o arrastaram para outra cadeira perto da mesa.

Seus olhos encontraram os de Blair. Ela estava com o rosto pálido, e o lábio inferior tremia ligeiramente.

Ela levantou os olhos para Gant. Em tom de galhofa, disse — Pelo que vejo você trouxe sua coleção de antiguidades roubadas para que eu possa admirá-la.

O manuscrito Voynich estava aberto sobre a mesa. O espelho asteca de obsidiana do doutor John Dee e uma tabuleta coberta de cera jaziam entre longas e finas velas pretas encaixadas em candelabros de ouro.

— Ah, vamos lá, senhorita Kelly. Você é modesta demais. Sabe, é a sua intuição, a clarividência que você herdou que será usada para, através destes aparatos, decifrar o manuscrito Voynich e me trará a chave do segredo.

Um assistente apareceu ao lado dele, segurando o que parecia uma imagem envolvida em um pano preto. Com um leve movimento de pulso, Gant tirou o pano, revelando um retrato a óleo com moldura dourada.

Brody não conseguia acreditar em seus olhos.

O rosto de Blair estava no retrato, trajando uma camisola do século XV idêntica à que estava usando agora. Ao ver mais de perto, contudo, Brody percebeu as reveladoras rachaduras no retrato, indicando que das duas uma; ou a pintura era uma falsificação das boas, ou era autêntica.

Gant disse a Blair — Vejo por sua expressão que você nada sabia de sua amada ancestral. A história foi injusta para com ela e seu marido. Eles a rotularam de ladra e falsificadora de documentos e moedas, a chamaram de charlatã. Só se referiam a ela ao recontar o episódio da troca de casais, sem falar de seus verdadeiros talentos. Tipicamente machista da parte das pessoas, não concorda? Ou talvez fosse para esconder o verdadeiro segredo da Grande Obra Alquímica, a soror mystica.

Blair engoliu em seco e então lhe dirigiu um olhar inquisidor. — Está dizendo que esta mulher é...

Gant deu risada e fez que sim com a cabeça. — A mulher de Edward Kelly. Sua antepassada, minha querida. Sabe, na verdade, era Johanna Cooper Kelly a médium, a Profeta de Mortlake, lar inglês de Dee. Era ela quem se comunicava com os anjos, não Edward. Era ela quem, em transe profundo, ditava a linguagem dos arcanjos para o doutor John Dee enquanto tirava a shew-stone. E ela conseguia fazer isto por ser, como você, Alta Sacerdotisa dos Shelta Thari.

Blair olhou com furiosa perplexidade. Mas sua mão foi direto ao rosto, explorando as próprias feições enquanto olhava para o retrato, mesmerizada.

Gant virou e estalou os dedos outra vez.

Mais refletores se acenderam detrás dele.

Pedestais de vidro adornavam um grande espelho inclinado no centro. A superfície do espelho era polida como um diamante. Havia um crânio de cristal encarapitado no topo de cada pedestal.

—        Os Doze Crânios Perdidos — disse Gant, quase sussurrando. — As caveiras magicamente fossilizadas dos Mestres Ascencionados, os altos adeptos Fraternidade Branca Secreta. — Então ele foi até o centro do círculo onde foi acompanhado pelo doutor Craven, que lhe deu uma maleta de metal. Gant levantou os trincos e abriu a maleta. Pegou outra caveira de cristal e segurou às vistas de Devlin e Blair. Ao virar e encaixar cuidadosamente o crânio na concavidade central de um grande espelho, ele disse — Pronto, e assim temos treze. Um verdadeiro coven de caveiras.

Blair arregalou os olhos. — Então a lenda dos Treze Crânios de Cristal também é verdade? A lenda que diz que quando eles estivessem reunidos em círculo com o décimo-terceiro no centro, dariam ao dono o poder dos deuses?

Gant se aproximou dela, os olhos cintilando de satisfação pelo interesse aparentemente renovado de Blair. — Passei por muita coisa e gastei muito para conseguir estes totens sagrados nos recantos mais distantes do planeta. Foram levados de um monastério tibetano no alto dos Himalaias e escondidos por segurança em lugares temíveis ao redor do mundo. O saque de ontem ao museu completou o conjunto.

—        Mas mesmo assim, você precisa cumprir seu destino e me guiar. Só você pode traduzir o Voynich com a ajuda daquela linda tatuagem em suas costas, minha querida. Não tenho talentos mediúnicos; portanto, é você quem vai ser minha soror mystica, minha chave para o outro lado.

Blair aliviou a expressão do rosto e acenou para que Gant se aproximasse. Quando ele se inclinou por sobre a mesa, ela lhe cuspiu no rosto. — Pode ir para o inferno, seu canalha desgraçado!

Al-Dajjal agarrou os longos cabelos dela e puxou-lhe a cabeça para trás. Foi para o lado de Blair, inclinou-se e a beijou com força, Blair lutou e se contorceu, arfando, sufocada, mas com a mão livre Al-Dajjal a empurrava sobre a cadeira, mantendo-a sentada, enquanto a outra mão continuava puxando os cabelos.

Brody se levantou, mas levou uma coronhada de rifle no lado direito do rosto. Caiu sentado na cadeira e levantou os olhos para sua agressora. Margot Gant zombava dele com seu sorriso atravessado. Após imitar sons de beijos com os lábios, ela disse — Pobrezinho. Doeu? Espero que sim. Você pediu por isto, namoradinho.

Brody fez cara feia e a encarou. — Isto não é jeito de tratar o homem que lhe deu uma rasteira, meu bem.

Ela apertou os olhos e o esbofeteou com força, fazendo a cabeça dele girar e lhe abrindo o lábio.

Al-Dajjal recuou e Brody viu que o lábio inferior daquele sujeito asqueroso estava sagrando. Blair havia lhe mordido.

Os olhos de Blair arderam de fúria quando ela cuspiu o sangue do canalha.

Brody se remexeu na cadeira ao ver que o asqueroso estava tendo um orgasmo.

Al-Dajjal sorriu e limpou o lábio ferido com as costas da mão. — Gosto de mulheres fogosas. Mais tarde continuamos com isto.

Balançando a cabeça e suspirando pesadamente, Gant olhou para Margot e para Al-Dajjal. — Acho que chega de ficar brincando! — como crianças encabuladas, eles baixaram as cabeças e deram um passo para trás.

Então ele se voltou para Blair. — Senhorita Kelly, vejo que vai precisar de um pouco de motivação — Gant acenou com a cabeça para o doutor Craven, que estava com um enorme controle remoto na mão pastosa. Craven deu um sorriso demoníaco e apertou o botão.

Refletores se acenderam em seguida.

E o que Devlin viu fez seu estômago revirar.

 

O esquadrão do SAS já tinha invadido a mansão e estava em meio a um tiroteio com os seguranças de Gant. Newley e Scout estavam firmes detrás de uma ala extra, mandando fogo.

Tiraram de combate um bom número de seguranças, cujos corpos ficaram caídos ao redor. Canos de metralhadoras cuspiram bala do telhado da mansão e franco-atiradores mantinham as tropas da SAS rigidamente posicionadas ao redor do pátio Newley espiou pela quina do edifício. Uma saraivada de tiros mastigou os tijolos, borrifando pó em seu rosto e pulverizando seu cabelo com lascas de argamassa e tijolo.

—        Maldição do inferno! — ele gritou, recuando bruscamente. — Cacete, como eu queria que pudéssemos esperar pela cobertura da noite. Os canalhas atiram melhor que a gente e estão por cima.

Outro esquadrão do SAS estava deitado no chão detrás de um longo muro de pedra à direita deles.

Newley berrou ao rádio — Mande o helicóptero acabar com esses babacas no telhado. Estamos todos aqui com o rabo na reta!

—        Roger — a voz do capitão guinchou pelo rádio.

Scout ouviu o zumbido constante dos rotores quando o helicóptero sobrevoou. O helicóptero investiu rumo à mansão como uma vespa furiosa com suas armas disparando balas de 20 mm.

Os homens do SAS exultaram quando os disparos quentes mastigaram a face da mansão, explodindo as janelas de vidro com a série de tiros que vinham do helicóptero. Então começaram a disparar contra o teto. Corpos se empilhavam na lateral, mergulhando no gramado e nos canteiros de flores abaixo.

As tropas saltaram por sobre o muro de pedia quando os outros esquadrões lançavam uma repressora cobertura de tiros.

Do telhado veio um míssil a toda velocidade.

— Ah, Deus! É um míssil Stinger lançado do ombro — Scout gritou.

Dentro de segundos, o míssil alcançou seu alvo. O helicóptero foi atingido em cheio e explodiu em uma bola de fogo e pedaços de projéteis e escombros choveram sobre o jardim.

O tiroteio parou momentaneamente.

Scout ouviu o barulho de um motor a diesel. Virou em direção ao som. Ao longe viu as portas de um barracão Quonset se abrindo com estrondo. O pedaço de aço entortava debaixo do peso de um veículo parecido com um tanque.

O troço era uma carreta rebaixada e cuneiforme com três tiras excessivamente grandes de cada lado. Rugia em direção a eles, mirando no muro de pedra. Adentrou o muro como se fosse uma maquete de papie mâché.

Emergindo da nuvem de pó, fez uma curva radical para a esquerda, depois outra para a direita, como se tivesse perdido a consciência depois da colisão de cabeça. Tomando então um rumo reto, seguiu pelo perímetro externo do pátio.

Virou um grande sedã preto, amassando-o como se fosse lixo triturado. Então bateu precipitadamente em outro veículo, virou rápido demais e bateu com a traseira em um caminhão. O motor a diesel fez um barulho mais alto, como um lamento. Parecendo uma fera furiosa, investiu para a frente e para trás até finalmente se livrar.

Newley gritou para um esquadrão de tropas agachadas detrás de outro muro que bloqueava o caminho do tanque. — O troço pirou! Tirem seus rabos da reta!

As outras tropas borrifaram o telhado de tiros enquanto o esquadrão ameaçado saiu correndo em busca de lugar seguro.

O tanque bateu contra o segundo muro logo depois que o último homem do SAS caiu fora.

A besta mecânica parou, estremecendo, no meio do pátio. Sua torre de canhão lentamente se voltou para onde Newley e Scout estavam. Paralisado de medo, Scout disse — A gente já era! Newley disse — Olha! Está virando.

A torre de canhão fez uma volta de 180 graus e parou. Com o motor ronronando, o canhão foi levantando de forma constante em direção ao teto.

Um estrondo ensurdecedor partiu o ar quando o tanque atirou. O canhão fotografou o panorama e atirou novamente, soltando fumaça pelo cano.

Scout gritou — Não sei quem está dirigindo esse troço, mas dá para ver que está do nosso lado, afinal.

Ainda abrigado em um ponto seguro, Newley balançou a cabeça e enfiou os dedos nas orelhas e tirou como quem abre uma garrafa de espumante. — O que foi isto? Não consigo escutar droga nenhuma.

A porta da frente se abriu por completo e saiu um bando de homens de Gant, empunhando suas armas de mãos levantadas.

Os esquadrões do SAS atacaram, descarregando suas armas na gangue e ordenando aos berros que eles se ajoelhassem.

Newley ficou de pé e ajeitou os ombros. Estava endireitando a gaveta ao marchar em direção ao tanque com Scout ao seu lado.

Um homem do SAS estava no topo do tanque com um olhar perplexo no rosto.

O capitão quebrou o gelo para Newley e perguntou ao soldado — Qual é o problema?

Ele balançou a cabeça e fez um gesto largo com a mão sobre o topo do veículo. — Esta coisa não tem entrada.

—        Companheiros — o capitão gritou para outro grupo de homens do SAS. — Verifiquem se há portas nas laterais. E rápido.

Scout interrompeu. — Acho que não será necessário. Isto é um THOR, um ARV.

—        É o quê?

—        Um veículo de resgate blindado — Scout explicou. — No começo eu não tinha certeza, mas quando reparei nos movimentos erráticos... bem, pareceu lógico. Dá para ver que é um modelo diferente do nosso e...

O capitão interrompeu Scout. — Se não for pedir demais, filho, será que você se importa de me dizer... quem é o desgraçado que está dirigindo esse animal?

Um líder de esquadrão do SAS correu para o lado do capitão. - Perdão, senhor, mas...

O capitão olhou com raiva. — O que é agora, sargento Peters? A área está segura ou não está? Que droga, cara.

Peter virou e apontou para uma tropa de garotos sendo conduzidos por dois soldados de caras austeras.

Os meninos pararam em frente a eles e o queixo de Newley caiu.

Um dos meninos, que usava óculos de armação pontuda, estava sorrindo de orelha a orelha. Segurava na mão um enorme controle remoto com botões de câmbio. O garoto saudou o capitão incisivamente e disse — Johnboy se apresentando para o dever, almirante.

Um garoto mais alto o corrigiu. — Eles são do SAS, seu babaca. Serviço Aéreo Especial.

—        Ah, não importa, Peter. Eu esperava que eles também tivessem navios de guerra.

Scout se aproximou e pegou o controle remoto da mão do garoto. — Você dirigiu o tanque com isto aqui? — ele perguntou, incrédulo, examinando o aparelho.

O menino olhou acanhado e deu de ombros. — Acho que me empolguei um pouco. — Com a voz já pedindo perdão, ele disse — Espero que aquele carro não seja seu, senhor.

Scout riu e deu um tapinha nas costas do menino. — Você fez um belo serviço, garoto.

Radiante, o menino disse — Foi maneiro. Bem melhor que o HALO, pode crer.

—        De que diabo ele está falando agora? — Newley perguntou.

—        De um novo jogo de computador — Scout explicou, sorrindo.

O garoto mais alto de pele morena chegou mais perto. — Senhor, meu nome é Raji. Nós escapamos da Escola Éden e estamos aqui para salvar Wendy. Não sei explicar como sei disso, mas ela e seus amigos estão correndo grave perigo. Temos de correr.

Os rostos dos Garotos Perdidos ficaram subitamente solenes e todos viraram ao mesmo tempo e foram caminhando em direção à porta da frente da mansão.

- Agora esperem aí, rapazes - Newley gritou. — Não podem entrar aí, é perigoso demais. Deixe isto para...

—        Nós, profissionais, garotos — o capitão interrompeu. Gabrielzinho parou e virou. Ficou olhando diretamente para o inspetor Newley. O inspetor tentou falar, mas gaguejou como se tivesse perdido a linha de raciocínio.

Os olhos dele se agitaram e depois ficaram arregalados, como se ele tivesse acabado de ter uma idéia brilhante. Limpou a garganta e retesou os músculos.

—        Capitão, veja bem. Estes meninos podem nos levar diretamente ao major Devlin e a Gant.

O olhar do capitão foi do inspetor para Gabriel, cujo olhar fixo e sem piscar conteve o capitão com sua intensidade. Fazendo contraste, os olhos do capitão ficaram entorpecidos e desfocados, e então piscaram rapidamente. Engolindo com visível esforço e assentindo desajeitadamente, o capitão disse — Magnífica idéia, inspetor. — Então sinalizou para suas tropas e gritou — Vamos nessa.

 

Wendy e Ginny estavam aninhadas em segurança nos galhos de um enorme carvalho, onde decidiram esperar pelo fim do tiroteio, olhando para o teto da mansão lá embaixo.

Trêmula, Ginny pegou seu xale. — Que frio maldito faz aqui em cima.

—        Puxou cuidadosamente sua meia elástica. — Estas meias estão simplesmente destruídas. Puxou o fio nos galhos quando pousamos aqui.

Wendy estava olhando atentamente para a cena abaixo.

O galho em que Ginny estava rangeu e gemeu sob seu peso. Ela segurou mais firme e olhou para baixo. — Céus, eu simplesmente preciso controlar minha ingestão de macarrão.

O galho envergou, sacudindo Ginny, que se esforçava para manter o equilíbrio. Passou a mão livre distraidamente na cabeça. — Pela madrugada, perdi a droga do meu chapéu, também.

Wendy segurou na mão de Ginny. — Está na hora de irmos.

Ginny assentiu. — Agora seus Garotos Perdidos estão aqui.

—        Ahã. Você também os sente.

Ginny deu um sorriso caloroso. - Podemos sentir estas coisas, não é, querida?

Wendy deu de ombros. — Parece que eles vieram me salvar.

 

Chewie e Conners percorreram rapidamente o perímetro da mansão e abandonaram o Land Rover. Abriram caminho pelo bosque a pé e agora estavam agachados atrás de um muro de pedra na parte de trás do terreno.

Os tiros que vinham da parte da frente da mansão haviam parado por completo.

Chewie avaliou a situação com seu olhar belicoso. — Está tudo quieto demais.

— E porcaria de guarda nenhum — Conners concordou, fechando a cara e puxando o bigode de leão-marinho. — Será que os filhos-da-mãe deram no pé?

Chewie grunhiu e balançou a cabeça.

Conners deu de ombros. — Não tá pegando nada, rapazinho — ele disse, ficando de pé e correndo como uma serpente em direção a uma porta sem guarda.

Chewie deu cobertura, os olhos de aço alertas e velozes. Foram abrindo caminho dentro da mansão através de uma passagem mal iluminada e deserta, silenciosa como uma tumba, e seus passos penosos eram os únicos sons que ouviam ao seguir.

Uma sombra, algo levemente metálico, passou rapidamente por um corredor de interseção em frente a eles.

Chewie por baixo e Conner por cima apontaram suas submetralhadoras KRISS no alvo móvel.

Com a respiração tensa e o suor correndo pelo rosto, Conners sussurrou — Ouviu isto?

O som de um motor auxiliar vinha ao longe, aproximando-se cada vez mais. Era como se algo tivesse balançado ao redor deles, de alguma forma sentindo sua presença e seguindo seu rastro.

O barulho monótono crescia a cada segundo, parecendo ganhar velocidade.

Atrás deles, de repente, a porta se fechou com força com um sibilar pneumático. Conners olhou para trás e soltou um palavrão. — Armadilha explosiva! E nós caímos nela direitinho. - Então ele ouviu o barulho de água corrente. Um líquido oleoso jorrava dos bocais do rodapé, inundando o chão. O fedor de borracha ardida lhe invadiu as narinas.

Ele baixou os olhos e viu que saía fumaça das solas de seus sapatos, como se estivessem sendo comidas por ácido. Olhou para Chewie, que estava se esforçando para levantar o pé, se mexer, mas não conseguiu. Quando levantou o pé viu que estava imobilizado por fios de borracha, como se fosse queijo derretido sobre uma pizza.

Chewie fez uma cara amargurada. — Algum supercáustico, provavelmente C-plus, está derretendo a borracha de nossas botas. Temos que tirá-las!

Tiraram.

Os bocais soltaram agora uma espécie de espuma.

—        E agora? — Conners reclamou — eles vão nos lavar até nos matar?

—        Espuma antitração — Chewie disse e deu uma risada desanimada.

O barulho de uma pancada atraiu sua atenção. Olharam para cima.

Um troço robotizado se sacudiu mecanicamente lá perto, colidindo com a lateral da parede, arrancando um pedaço ao passar. Então o troço se aprumou e foi igual a um zumbi em direção a eles. O motor funcionava a toda, barulhento como um tanque. Chewie reparou que a espuma só cobria a parte imediatamente ao redor deles, de modo a não inibir o robô de se movimentar. Esse filho da puta do Gant era esperto mesmo.

Estava a cerca de 15 metros... e se aproximando rapidamente.

Raios laser se acenderam em lentes com formato de lanternas instaladas no alto de seu tronco metálico, lançando caóticos jatos de luz verde pelo corredor, procurando por eles.

—        Que diabo é isto? — Conners perguntou.

—        Isto é um robô RAD25 — Chewie explicou com a voz cansada, apontando a arma para o troço a caminho.

Sete metros, e chegando mais perto.

Chewie segurou bem sua KRISS com a mão suada e piscou os olhos para espantar as gotas de suor que se acumulavam.

—        OK, rapazinho. Vamos estourar esse fugitivo do ferro-velho em mil pedacinhos! — Conners disse.

Quatro metros...

Então, abruptamente, o RAD parou.

Por um momento o silêncio caiu como uma cortina.

Sem hesitar, abriram fogo, os canos das armas tremendo a cada estouro, e um som de ensurdecer dominou aquela parte do corredor. Mas seus disparos de 45mm soltaram faíscas que apenas arranharam a parte externa da besta metálica.

Ela continuou em silêncio enigmático, como quem está zombando deles. Os canos das armas ainda soltavam fumacê quando eles interromperam a chuva de chumbo e levantaram as armas.

—        Não fez nem cócegas no miserável!— Conners espumou, ficando vermelho de raiva.

Como se estivesse lhe respondendo, o RAD soltou um som oco, como se fosse uma bola de tênis sendo cuspida por um tubo. Então um projétil rolou, parando aos seus pés.

Antes que pudessem reagir, ventosas se abriram na lateral da bola imaculada, expelindo um gás.

Eles haviam esquecido de trazer máscaras de gás.

O RAD abruptamente deu meia-volta e saiu à procura de novos alvos.

Chewie respirou fundo e viu a névoa esverdeada subir em sua direção. Ele era um ex-SEAL e foi às olimpíadas com a equipe americana de natação. Alguns diziam que ele era o novo Jim Thorpe. Batera o recorde de nado de peito, além do recorde não-oficial de quem prendia a respiração por mais tempo debaixo d'água.

Conners, por outro lado, fumava como uma chaminé, e o único sinal de atletismo que tinha era a capacidade de lutar com um urso-pardo com uma das mãos e com a outra segurar uma cerveja Guinness Stout. E Chewie viu que o gás já estava começando a fazer efeito nele.

E pelos sintomas, Chewie se deu conta que o gás continha um agente psicofísico.

Conners começou a ficar branco como giz e tropeçar - com as pálpebras trêmulas — e então se curvou, vomitou abundantemente e começou a caminhar em círculos lentos.

Chewie deu uma olhada, prendendo bem a respiração e sentindo os olhos lacrimejaram devido ao gás.

A expressão do escocês ficou inerte, os olhos vazios.

Como se fosse um paciente mentalmente perturbado em um quarto acolchoado, ele ficou encostado à parede como morto, então foi escorregando lentamente até desmoronar, intoxicado.

Chewie percebeu que estava presenciando os efeitos de um agente sedativo, provavelmente uma mistura de torazina e benzodiazepina projetada para deixar o invasor não-combativo e inofensivo como um filhotinho de cachorro.

O recorde de Chewie era de sete minutos e meio sem respirar. Mas isso era ficando sentado sem se mexer no fundo da piscina. Ao jogar Conners sobre o ombro, percebeu que seria merecedor de uma medalha de ouro se conseguisse carregar o escocês desmaiado antes que a dor nos pulmões o obrigasse a respirar.

 

                    Alice Através do Espelho

 

Wendy e Ginny escorregaram e pousaram suavemente em uma saliência. Após escalar até uma janela que dava para o sótão, foram abrindo caminho pela mansão, guiadas puramente pelo instinto.

Ginny estava se ocupando em fazer comentários sobre os luxuosos móveis e tapeçarias. Foram subindo andar por andar. Encontraram algumas empregadas correndo de malas na mão, fugindo do solar após o ataque do SAS.

Ginny balançou a cabeça, cumprimentando educadamente as empregadas que continuaram correndo e não responderam. Quase sem fôlego, ela foi tropeçando tão rápido quanto lhe permitiam as pernas finas, com Wendy lhe puxando pela mão.

Espanando uma teia de aranha do cabelo, Ginny disse — Que pessoal mais sem educação. Incapazes de parar para dizer "oi". Ora, eu perguntei àquele mordomo bonitão onde fica o toalete e ele me olhou como se eu fosse louca de pedra.

Quando subiram ao patamar seguinte, Wendy subitamente parou e se curvou de dor.

Com uma expressão pesada, Ginny envolveu a garota com seu braço flácido e a abraçou bem forte. — E a Blair?

—        Alguém está machucando Blair. E os outros também. Temos que ir rápido, Ginny.

—        Bem... então vamos, senhorita — ela pegou a mão de Wendy — Minhas velhas pernas não agüentam. É melhor voarmos.

Wendy se aprumou e respirou fundo. De mãos dadas, voaram escadaria abaixo e fizeram a curva no primeiro andar.

 

Devlin sentiu um aperto no coração. O corpo torturado de Bill Sorenson balançava ao alto, suspenso por uma comprida corrente.

Pairava como um anjo ferido. Eles lhe tiraram a roupa, e sua pele espancada e cheia de manchas de sangue coagulado parecia uma espécie de sudário.

Gant fez um gesto em direção a Sorensen, que parecia um pêndulo balançando para lá e para cá, entrando e saindo do foco da luz. — O aparelho se chama Strappado. Era um utensílio de tortura muito usado pelos dominicanos durante a Santa Inquisição.

—        É bem engenhoso, sabe. Eles pegavam o infiel ou judeu, o que para eles dava no mesmo, amarravam as mãos nas costas, acorrentando os pulsos a roldanas. O herege era puxado pelo teto com pesos amarrados aos pés.

Brody sentiu vontade de vomitar. Fez uma cara de falsa indiferença e disse Você vai queimar no inferno, Gant.

— No final das contas, acho que vou, sim. Mas isto ainda vai levar muito, muito tempo, senhor Devlin. Sabe, assim como Fausto, fiz meu pacto com o demônio. Todo mundo faz acordos, todo mundo tem um preço. Estou simplesmente negociando meu tempo até chegar minha hora e o demônio requisitar minha alma para o abismo de fogo.

—        Mas seu amigo aqui... — apontou para Sorensen e soltou uma risada maligna — ... já chegou lá. — Ele abaixou a mão e virou uma válvula. Jatos de chamas azuis começaram a cair sobre Sorensen. Brody olhou mais de perto e viu que os jatos de gás jorravam de uma cama de estacas brutalmente pontudas ao alto. Se Sorensen fosse libertado de sua agonia, seria empalado pela floresta de farpas afiadas e tostado vivo pelo gás flamejante.

—        É melhor diminuir isto aqui um pouquinho. — As chamas diminuíram. — Pronto, ninguém aqui quer apressar a morte de seu amigo, sabe.

Brody disse — Você é realmente um excelente anfitrião.

Gant deu risada. — Ah, vejo que você não perdeu o espírito esportivo. Ótimo, pois vai precisar dele. Mas como eu ia dizendo... o simples peso do corpo está deslocando as articulações do senhor Sorensen, uma a uma. Mas isso não é nem metade.

Gant fez um sinal de positivo com o polegar para der Eisaxt, que agarrou uma alavanca de metal. A alavanca era conectada a uma série de engrenagens em ziguezague que controlavam o carretel de uma corrente esticada para cima através de uma roldana, cuja outra ponta terminava nos pulsos de Sorenson.

Quando der Eisaxt empurrou a alavanca, o corpo de Sorenson foi puxado cada vez mais alto, e as correntes chacoalhando e reverberando enquanto a vítima indefesa subia. Gant levantou a mão aberta, sinalizando para parar.

Com os olhos brilhando, Gant disse — Agora vem a melhor parte!

Fez mais um sinal, agora com o polegar para baixo. Der Eisaxt torceu a maçaneta da alavanca. A corrente saiu do cilindro, quase soltando fumaça. Sorenson caiu. Então de repente, com um puxão na alavanca, o corpo de Sorenson foi içado com violência, pendendo no mais opaco e doloroso tormento.

Os pulsos se abriram. Tendões se esgarçaram. Toda vez que subia e descia. Repetidamente.

O estômago de Brody foi até a garganta e voltou.

Gant continuou, as mãos unidas em frente a si como se ele estivesse rezando. — Agora você está entendendo, não é? É a temerosa ansiedade. Ela estica os limites da sanidade humana, o que é muito pior que a agonia em si. A mente perde a parede antes que o corpo possa se render.

Blair se remexeu na cadeira, firmemente contida por Al-Dajjal. — Você é um veado sádico. Solte-o que eu faço o que você quiser.

O corpo de Bill Sorenson brilhava de suor. Sua cabeça pendia frouxa, o queixo colado ao peito.

Um barulho estrondoso veio de cima. Um segurança correu para o lado de Gant e murmurou em sua orelha. Gant revirou os olhos e suspirou. — Al-Dajjal, parece que a cavalaria chegou para resgatar nossos convidados. Pode conferir se as portas estão bem fechadas? E veja se os robôs da área de negação estão funcionando direito.

Al-Dajjal balançou a cabeça rapidamente e saiu às pressas, mas outro segurança assumiu sua posição ao lado de Blair.

Ah, não nutra esperanças, senhorita Kelly - Gant disse suavemente. - Esta sala é impermeável. E eu tenho muitos caminhos secretos por onde escapar. Agora, tenho certeza que você vai cooperar integralmente, minha querida, mas espere, tem mais. Vamos ver a garota!

Ele estalou os dedos e outra luz se acendeu acima.

Debaixo do forte jato de luz, Brody viu outro membro desaparecido da equipe, Madison Dare. Ela estava presa em um cilindro de vidro de uns quatro metros de altura. Ele percebeu então que se tratava de uma versão atualizada da infame Câmara de Tortura Chinesa com Água de Houdini. Ela estava pendurada pelos tornozelos, de cabeça para baixo, a poucos metros do fundo da prisão de vidro, com os longos cabelos balançando debaixo de si.

— Madison!— Brody gritou.

Ela estava de frente para ele e Brody viu perfeitamente a expressão em seu rosto. Ela não parecia nada bem. Estava com o rosto vermelho. O sangue estava correndo para o cérebro sabe Deus por quanto tempo.

Ao ouvir o som da voz dele, ela começou a se contorcer, lutando freneticamente para se levantar, tentando alcançar os tornozelos. Finalmente, soltando um gemido alto, ela desistiu e se deixou cair, balançando indolentemente.

Gant se voltou para Margot. — Traga-o mais para perto, por favor, para que ele possa enxergar melhor. E solte as mãos dele.

Margot puxou Brody, fazendo-o ficar de pé e lhe espetou o cano de sua pistola MP-5 na coluna. Na outra mão ela tinha um canivete. Ela manejou e a longa lâmina chispou. Ela fez um movimento incisivo com a faca e cortou as algemas de plástico. Ela se inclinou e sussurrou na orelha dele com a voz pingando de insinuação erótica. — Acho que ela fica bem sexy assim, não acha, namoradinho? Está pegando ela, também?

Brody começou a dar a volta ao redor dela, mas ela apertou o cano da arma incisivamente em suas costas. — Vá em frente, namoradinho. Tente fazer isto outra vez e uma bala lhe parte a coluna. E você fica aleijado para o resto da vida, se sobreviver.

Brody ficou parado em silêncio ao lado do cilindro, esfregando os pulsos doloridos. Ele reparou que havia uma série de canos PVC conectados a pontos na base do tubo de vidro gigante.

Ele se encolheu, colocando-se ao nível dos olhos de Madison.

Os olhos azul-coral dela encontram os dele. Com a voz levemente abafada pela câmara de vidro, ela disse embotadamente — Deus, Brody, é você mesmo?

Ele balançou a cabeça afirmativamente e sorriu. Mas ele conhecia Madison suficientemente bem para entender que palavras de conforto eram inúteis. O que ele precisava era alimentar a adrenalina com raiva.

— Agüente aí, filha. Está numa boa?

Madison fez uma careta e lançou um olhar furioso. —Ah, você é hilário, Brody. Por acaso parece que estou numa boa, porra?

Gant se juntou a Devlin perto da câmara de vidro. — Eu mesmo projetei a câmera de tortura com água — ele bateu no vidro com a dobra do dedo. — É à prova de bala, mas tão claro quanto o melhor cristal. — Ele pousou seu olhar pesado sobre Devlin. — Eu estudo o comportamento humano, major. Como eu disse, todo mundo tem seu preço. E todo mundo tem seus medos mais sombrios. Doktor Craven tomou a liberdade de colocar a formosa senhorita Madison em estado de hipnose induzida por drogas. Ela contou tudo, não é mesmo, doktor?

Craven foi para o lado de Gant. — Ja, ela nos confidenciou seus sonhos, suas fantasias sexuais — um sorriso se abriu em seu rosto suíno — e mais importante de tudo, seus piores pesadelos. Acontece que, quando criança, a senhorita Madison Dare quase se afogou. E ela também tem um medo mortal de roedores e répteis, o que serve muito bem a nossos propósitos.

Gant foi para perto de Brody. — Major Devlin, você tem um dilema em frente a si. Dois de seus amigos mais próximos estão correndo perigo mortal. Você conhece o velho clichê de escolher entre a esposa e o filho. Bem... você terá a sorte de fazer este tipo de escolha hoje.

A voz de Blair se interrompeu. — Chega. Solte-os e eu faço o que você quiser. Pare de torturá-los.

Gant balançou a cabeça afirmativamente para Craven, que foi para o lado de Blair. Ele enfiou uma seringa no ombro dela e recuou. — Ela vai apagar dentro de poucos segundos — ele disse a Gant.

Gant se sentou à mesa em frente a ela. Empurrou o espelho de obsidiana para perto de Blair, junto com o manuscrito Voynich.

A cabeça de Blair começou a pender, seus olhos reviraram.

Em tom monótono e abafado, Gant começou a induzi-la a um transe hipnótico.

Algum tempo se passou e então sua voz se levantou o bastante para Brody ouvi-lo.

- Estou lhe conduzindo de volta ao ventre, e agora voltando no tempo mais ainda, para a época de sua concepção, outra época, outro lugar, uma vida passada.

Blair se remexeu e gemeu. Então ela assentiu rudemente com a cabeça. As palavras de Gant a transportaram. — O ano é 1586. Seu nome é Johanna Cooper Kelly, Alta Sacerdotisa dos Shelta Thari. Está me ouvindo, Johanna?

Blair respondeu em um antigo e pesado dialeto inglês. — Eu vos ouço.

- Olhe bem no fundo do espelho negro — Gant ordenou enquanto empurrava o espelho para ela. — Qual é o segredo que abre o código do manuscrito Voynich que está na sua frente?

Ela abriu os olhos.

O olhar pesado de Blair ficou passeando entre o espelho asteca e o livro. Ela esticou a mão e passou os dedos sobre o texto do manuscrito Voynich enquanto olhava profundamente para o espelho negro.

Sua voz era um suave sussurro. — É a Pedra de Roseta. A chave para a primeira língua, a língua universal. A língua única falada antes da Torre de Babel.

Gant se debruçou sobre a mesa, com sua voz gutural e engasgada de expectativa. — Onde está esta chave?

Ainda em transe profundo, os dedos de Blair chegaram à última página do manuscrito. Então, enquanto seus dedos passeavam pelo livro, ela disse — Aqui está a chave... "Uriel me concedeu o segredo do portal". — Suas pálpebras estremeceram e ela acrescentou — O Selo da Verdade esconde a chave que abre o portão.

Estarrecido, Gant empurrou para a frente dela a tabuleta de cera de John Dee. — Eu já li e entendi os símbolos e hieróglifos entalhados na superfície da tabuleta de cera. São selos ou nomes de anjos e demônios, oferecendo pouco mais que módica proteção ao conjurador que o usa para evocar espíritos.

A cabeça dela pendeu ligeiramente. — Sob o Selo da Verdade está a chave.

Gant esfregou o queixo, perdido em profundos pensamentos. Então seus olhos se acenderam. Pegou uma faca do bolso. Quando ele começou a raspar furiosamente a cera virgem da tabuleta, virou para Craven para explicar. — Eu devia ter pensado nisto! Na época de Roma eles costumam esconder mensagens secretas debaixo do texto normal na forma de textos minimamente entalhados na cera.

Ao terminar, ele levantou a tabuleta e leu em voz alta — LUX... luz. Dentre todas as cores do arco-íris, o dourado é a mais preciosa. Olhe para as Rosetas para descobrir onde ele fica. Entre no portão espelhado. Dentro da Tomba de Hermes jaz a fonte que flui. O elixir da juventude eterna.

Ele baixou a tabuleta e cuidadosamente virou as páginas do manuscrito Voynich, parando na parte sobre cosmologia. — Ah, o Diagrama de Roseta — ele disse. Abriu uma dobra que se abria em seis páginas. Parecia um mapa. O diagrama tinha nove esferas que pareciam ilhas conectadas por tubos ou trilhas em meio a terreno lamacento. Na esfera superior direita estavam desenhados um castelo com torres. Em outra esfera havia um vulcão.

—        Deixe-me ver a tatuagem! — ele ordenou.

Craven levantou Blair, fazendo-a ficar de pé, girou-a pelos ombros, e puxou seu vestido para baixo brutalmente, com suas mãos gordurosas, expondo suas costas.

Gant se aproximou dela e segurou o diagrama perto da tatuagem.

—        Sim — ele disse, excitado. — Sabe, esta parte é quase idêntica. Parece um mapa-múndi medieval. Esferas lado a lado em forma de T. — Passou o dedo comprido pela pele suave, deixando uma feia marca vermelha com sua unha comprida e amarelada, e Blair tiritou.

—        A tatuagem é um mapa. E é bem semelhante ao Mapa dos Antigos Reis do Mar que Al-Dajjal conseguiu com os turcos em Istambul — Gant explicou. Ele traçou o contorno de uma esfera dourada e apontou para a imagem de uma torre se erguendo de dentro de um profundo precipício de um dos lados de uma montanha. Ele leu as letras que havia debaixo e deu um sorriso de satisfação. — Veja as cores, Craven. Elas seguem a fórmula alquímica. Era tão simples, estava bem debaixo do meu nariz.

Ele deu uma olhada para Blair e fez cara feia. — Craven, cubra-a e a ponha sentada de novo. Já tenho o que preciso por agora.

Craven obedeceu, colocando o próprio casaco manchado de suor sobre os ombros dela e fazendo-a se sentar.

Subitamente, como se estivesse totalmente esgotada, Blair caiu inerte na cadeira. A cabeça pendeu para a frente e ela balançou na cadeira. Abruptamente, ela levantou os olhos e ficou olhando para o ar sem piscar.

Com a voz de um homem idoso, Blair disse — Aqui está a sabedoria de Al-Jabir. Eu entrei na câmara oculta onde havia um velho sentado em um trono de ouro segurando uma tábua de esmeralda. Ele tinha a forma de uma pedra. Foi-me revelado por uma visão que aquela era a Tumba de Hermes. E o significado da tabuleta que ele segurava, a Tábula Smaragdina, ficou claro para mim. A primeira passagem era um aviso medonho para aqueles que entrassem na caverna. "Não me traga aquele que carece de sabedoria nem os fracos de propósito, pois eles são profanos e sofrerão morte terrível". A inscrição propunha uma charada.

"Eu que venho da terra de Atlantis, eu que fui reverenciado como Thoth pelos faraós, não falo de coisas fictícias e sim do que é verdade; o que está abaixo é como o que está acima, e o que está acima é como o que está abaixo.

"Como todas as coisas são feitas com a palavra do Único, o Contador do Universo, Aquele cujo pai é o Sol e cuja mãe é a Lua, de modo que todas as coisas são feitas pelo Único através de adaptação; busque a matéria-prima, pois assim obterá a chama da vida eterna, e a obscuridade se afastará. Este é o caminho da Pedra Filosofal.

"Ela foi forjada pelo fogo, levada pela água, trazida dos céus pelo vento e nutrida pela terra. Ela está em toda parte; as donas de casa a jogam fora, as crianças brincam com ela.

"Aqueles que seguem o caminho da ambição, da hipocrisia e da imoralidade entrarão..."

A voz de Blair falhou, seu queixo caiu junto ao peito e ela desmaiou.

Gant virou e foi até ela. — Meu Deus, ela canalizou a alma de Al-Jabir, o famoso alquimista árabe, inventor da álgebra. Ela falou sobre a Tábua de Esmeraldas de Hermes Trismegistus, o Três Vezes Grande. Ela falou sobre a caverna e sobre a chama da juventude eterna!

Ele se voltou para Craven. — Não fique aí parado, faça-a voltar. Dê-lhe uma boa dose de anfetamina. Preciso que ela fique lúcida e acordada.

Craven obedeceu a ordem. Quando ela voltou a si, Craven a pôs de pé. Com as pernas moles, Blair foi até Gant do outro lado da sala, que ficou parado no meio do círculo de caveiras, perto de um grande raio laser.

—        Lux, ou luz, é a resposta. Minha querida, eu seria capaz de beijá-la.

Blair afastou os cabelos dos olhos e fechou a cara. — Experimente, meu chapa, e eu lhe quebro a fuça.

Gant riu com gosto. — É claro que foi só modo de dizer, querida. Mas sua tatuagem e sua canalização de Al-Jabir me esclareceram tudo.

Ao alto, Sorensen deu um gemido doído, como um animal ferido preso em uma armadilha.

Brody gritou — Ei, Gant. Você prometeu soltar nossos amigos se ela lhe ajudasse.

Gant estava ocupado com o laser, ajustando seletores e fazendo programações com um teclado. Sem levantar os olhos, ele disse com um tom irônico — Sim, Craven. Depois que eu passar pelo portal, você pode cuidar de nossos convidados. Afinal, dei minha palavra de honra.

Craveh balançou a cabeça afirmativamente e um sorriso lhe esticou os lábios finos.

Brody reparou na expressão presunçosa de Craven. — Escute, Gant. Você conseguiu o que queria. Solte-os.

Blair acrescentou — Você deu sua palavra de honra.

Gant olhou para cima brevemente e riu. — Mas eu não tenho honra, minha querida. Você não devia confiar em ninguém que seqüestrou e torturou seu irmão.

Blair bufou, seus olhos brilhando de ódio, e soltou o ar com força.

A parte frontal do laser tinha um tubo de latão polido, segmentado por largos anéis feitos de gemas de diferentes cores. Encurvado e fazendo força, Gant girou cuidadosamente um recartilhado de opala como se estivesse focando um telescópio gigante.

—        Pronto — Gant disse a Craven, esfregando as palmas das mãos. — As lentes estão calibradas com precisão. — Pegou do bolso um livro de capa vermelha de couro e virou-se para Blair. — Doktor C. G. Jung projetou este aparato maravilhoso em seu diário, diário este que o querido irmão, padre Kelly, teve a gentileza de achar para nós em Istambul — ele passou os dedos finos pelo tubo comprido com admiração, quase o acariciando. — Jung disse ter lido sobre um aparelho misterioso que incorporava lentes e gemas para amplificar as ondas de luz. O projeto lhe veio em sonho. Jung o chamava de "Tocha de Órion".

Gant ajustou um seletor e o laser emitiu um som pulsante e percussivo. Então apertou um botão que começou a soltar faíscas. Um fino jato de luz branca saiu e atingiu a primeira caveira que brilhou em tom carmesim, depois a segunda emitiu brilho amarelo, depois atingiu a terceira, que brilhou em tom verde-esmeralda. Os raios de luz retrataram as caveiras, uma por uma, cada uma delas se transformando assustadoramente nas cores do espectro.

O ar começou a sibilar devido à eletricidade estática.

Pulsou.

Estremeceu.

Gant se afastou do círculo com Blair a reboque quando a luz da última caveira foi transmitida ao ápice do espelho, acendendo uma luz pura e vibrante na décima terceira caveira.

O laser começou a esquentar demais e soltar fumaça. Piscou, e o padrão dodecaédrico formado pelos raios de luz refletido das caveiras diminuiu e se apagou.

Uma explosão visível de corrente elétrica correu pelos cabos de força. Os isolamentos das linhas de comunicação começaram a derreter, pingando grossas gotas de borracha e plástico derretido sobre as pessoas abaixo. Os cabos se soltaram dos enormes transformadores, serpenteando e chicoteando o chão e soltando arcos de corrente branco-azulada das pontas esfiapadas. O equipamento computadorizado do enorme laboratório ficou sobrecarregado. Parecendo fritar, cuspiu fagulhas sobre as passarelas como fogos de artifício no 4 de Julho. Os técnicos e seguranças largaram suas posições e saíram correndo desordenadamente para se proteger.

Brody olhou para o círculo de caveiras.

O espelho gigante começou a vibrar; emitia minúsculos fótons de luz que flutuavam no ar e floresciam cada vez maiores e mais largos; as fagulhas de luz se derramavam cada vez mais velozes. Era como se os fótons estivessem crescendo, se expandindo com uma elasticidade sobrenatural.

Um arrepio subiu pelos braços de Brody.

Uma trovejante explosão balançou tudo e uma turbulenta coluna de luz começou a girar em um vórtex que se ampliava cada vez mais. Cada vez mais alto.

Então a luz começou a nublar. Foi escurecendo cada vez mais.

Começou a tomar forma definida, a forma de uma superfície negra, oleosa e elíptica de cerca de quatro metros de diâmetro. Fagulhas incandescentes dançaram, transbordantes, e subitamente sumiram.

Como se manipulado por alguma força invisível, as lentes negras gigantes começaram a girar e balançar como se fosse uma moeda atirada em uma mesa de mármore. Começou a se endireitar lentamente, até que ficou ereta. Parou suspensa no ar.

Fascinada e parecendo puxada pelo magnetismo do espelho negro, Blair foi em direção a ele.

Gant e Graven trocaram olhares e se aproximaram. Craven passou uma lanterna para Gant e jogaram os intensos raios de luz das lanternas LED simultaneamente no centro do losango negro cintilante.

O que momentos antes era um espelho brilhante, fulgente, agora era um vácuo de obsidiana.

Liso como óleo fundido.

A luz de suas lanternas não era refletida, parecia antes absorvida, como se estivesse caindo em um poço profundo.

Gant ficou tremendo, de pé. Mas apesar do medo que demonstrava claramente estar sentindo por dentro, Gant parecia compelido a tocar aquela superfície lisa que parecia suja de tinta.

Enfiou a lanterna no bolso e esticou a mão em direção ao espelho.

Das profundezas das sombras, Wendy gritou — Não, não toque nisto! Vá para trás, senhor, por favor.

Gant virou em direção ao som.

Ginny e Wendy adentraram a luz e pararam sobre uma passarela ao alto.

Blair começou a correr em direção à menina, mas Gant a impediu, apertando seu pulso com sua mão esquelética e torcendo com força. Prendeu-a pelo braço e enfiou a mão que estava livre no bolso do casaco. A mão saiu do bolso segurando uma adaga.

Ele tocou o pescoço dela com a ponta da lâmina.

Olhou para Wendy e gritou — Criança índigo amaldiçoada. Eu lhe dei casa, lhe dei um teto, e agora você me trai. Eu podia ter ensinado a você e aos garotos, mein sonnenkinder, a usar seus poderes. Seu destino era se tornar a origem de uma nova raça, os Vril-ya. Habitantes do novo Éden. Mas não! Vocês são todos iguais. Você tinha de ficar com pena destas almas miseráveis que infestam a terra como vermes, destes suínos que se reproduzem como gado, misturando as raças.— Gant olhou para o vasto salão com olhos velozes, cintilando de loucura.

- Tente usar seus poderes contra mim — ele ameaçou Wendy — que eu corto esta piranha irlandesa que nem carne de segunda.

Ele girou a adaga e a lâmina afiada cintilou à luz pungente.

Gant estava apertando a faca com tanta força no pescoço de Blair que uma gotinha de sangue começou a descer.

Brody tirou os olhos de Gant para olhar para a velha senhora que estava ao lado da garotinha lá em cima, na passarela. — Se você entrar aí será condenado - ela avisou. — Depois não diga que ninguém lhe avisou, Heinrich Gant. Só os puros de coração podem entrar. Apenas aquele que for justo e correto, e que entender o verdadeiro objetivo da Grande Obra Alquímica, a purificação da alma, sobreviverá aos testes.

— O lixo dos metais, o chumbo, simboliza os instintos básicos do homem: ambição, hipocrisia e imoralidade. Ao rejeitar a buscar por poder e riquezas e fazer o bem, não sendo desonesto e andando sempre ao lado da verdade, e abandonando os desejos mundanos para encontrar o equilíbrio, você transmuta o mal pesado como chumbo que lhe pesa na alma e o transforma no ouro mais puro.

Gant foi caminhando de costas em direção ao espelho, puxando Blair consigo. — Está mentindo, velha. Não me encha o saco com suas baboseiras religiosas. Eu li o texto sagrado da tabuleta de cera, ouvi a voz de Al-Jabir com meus próprios ouvidos. Do outro lado deste espelho está a Tumba de Hermes e a vida eterna.

Enquanto Gant continuava, Blair foi por trás, agarrou-lhe os testículos e puxou com toda força. Enquanto ele urrava de dor, escapou de suas garras e pegou a pistola Derringer que Brody havia lhe dado.

—        Você é um otário mesmo — ela disse, apontando a arma para Gant. — Eu não estava em transe. Minha força de vontade é maior do que você imagina.

—        Você está blefando, também — Gant disse olhando nos olhos dela.

—        Não, seu veado teimoso. Eu menti. Eu só lhe disse metade do aviso na Tábua de Esmeraldas. Mas vá em frente. Veja por si mesmo.

Margot começou a se aproximar de Blair.

Brody gritou — Cuidado!

Blair virou a cabeça e desafiou a outra. — Se você der mais um passo, sua amazona imoral, eu enfio uma azeitona preta bem no meio da testa deste lagarto velho.

Margot parou, os olhos em combustão de tanta raiva.

Quando Blair tirou os olhos de Gant, ele viu se abrir uma oportunidade e aproveitou.

Gant rangeu os dentes e deu o bote nela, com a faca brilhando ao atacar. Ela recuou e apontou bem para o meio do rosto dele. Mas quando ele se jogou sobre ela, a bala apenas passou de raspão no rosto.

Gant levou a mão ao rosto, tocando o lado que sangrava. O apetrecho de látex e a maquiagem caíram em sua mão como uma cobra trocando de pele. Ele soltou um bramido de raiva e arrancou o que restava de sua máscara.

Blair fez uma careta de nojo ao ver o monstro repulsivo que olhava atravessado para ela.

O rosto de Gant era uma massa disforme e esbranquiçada de pele repleta de cicatrizes entremeadas a veias vermelhas e roxas. Seu olho esquerdo era deformado, parcialmente coberto por um gordo tumor. Seus lábios pareciam cortados a navalha, deixando à mostra fileiras de pequenos dentes que formavam um sorriso sardônico e permanente.

Ele olhou rapidamente para o outro lado e então a encarou com olhos molhados e tristes, quase implorando. — Agora você entende por que eu preciso ser curado — Gant disse suavemente.

Mordendo o lábio inferior e trêmula, Blair demonstrava sentir uma ponta de compaixão pelo demônio demente em frente a si.

Brody percebeu que ela estava descuidando da segurança quando a Derringer começou a baixar lentamente.

Brody deu um pulo. Mas ao passar por Margot, ela o fisgou, agarrando-o pelo pescoço. Ele caiu de joelhos, tossindo e segurando o pescoço.

Blair virou outra vez, distraída pela tentativa fracassada de Brody.

Ágil como uma aranha, Gant deu um tapa na mão de Blair e derrubou a pistola Derringer. A arma caiu, inofensiva, no chão de concreto. Ele apertou o pulso dela e a puxou para si. Berrou para Craven — Mate todo mundo! —, deu meia volta e pulou dentro do espelho imaculadamente negro.

A escuridão absorveu a primeira metade do corpo dele tão completamente durante a travessia que parecia que ele estava sendo cortado em dois. Um corpo arrancado, metade nesta dimensão e metade na próxima.

Com a mão que se via, ele puxou Blair para dentro da areia movediça negra e desapareceu.

Ela também pareceu momentaneamente segmentada ao escorregar pela superfície oleosa adentro.

Mais uma ondulação de tinta negra e ela desapareceu.

 

Quando Gant a puxou para o espelho negro Blair se retorceu para se soltar, mas Gant enfiou os dedos cruelmente na pele do pulso com uma força desumana.

Ela sentiu a mão, depois o braço e o ombro começando a mergulhar nas lentes negras como se eles estivessem mergulhando em uma piscina de água gelada, sendo envolvida pelo frio que lhe deslizava na pele, exercendo uma pressão desumana.

Devido ao peso que vinha de todos os lados, ela não conseguia mais sentir a pressão da mão de Gant lhe agarrando o pulso. Era como se ela estivesse sendo sugada para o esquecimento por uma onda profunda que dava em alguma praia infernal.

Blair se debateu loucamente e sentiu seu ombro deslizando rapidamente. Sentiu o beijo gelado do espelho cintilante em seu rosto. Imediatamente, sua mente foi invadida por terrores de ser sufocada, de ficar cega, de ser queimada viva em um túmulo de vidro fundido.

Ela fechou bem a boca e os olhos, mas a gelada insistência começou a lhe abordar os lábios, rastejante, e a testa, subindo o couro cabeludo, os olhos. Então, subitamente, ela sentiu a lambida gelada da areia movediça na nuca, e percebeu que fora completamente devorada pelo espelho.

Na fração de segundo anterior à submersão, ela engoliu mais uma última dose de ar.

Prendeu a respiração bem firme, com os pulmões queimando, e flutuou em silêncio mortal. Sentiu ligeiras cócegas nos cantos das pálpebras, mas não conseguia abrir os olhos. Era como se tivessem sido colados.

Sentiu uma tontura e ouviu um zunido alto nas orelhas. Sentiu que ia desmaiar. Abriu a boca em prece silenciosa e o gosto frio e metálico da areia movediça negra lhe inundou a boca.

Ela estava engasgando e sufocando.

Cuspiu. Enquanto ela tentava desesperadamente se livrar do líquido de gosto ruim, era sepultada pelas águas opacas.

 

Na passarela ao alto, Ginny ficou pálida. Virou-se para Wendy. — Só você pode salvá-la, pequena laeken. Sua inocência e pureza lhe protegerão. Apesar de Blair ser uma boa mulher com muita força de vontade e conhecedora dos caminhos dos Thari, ela também não vai resistir.

Wendy sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. — Não se preocupe, Ginny. A garota maravilha está aqui.

Apesar de Wendy estar tentando ser corajosa, sua voz saiu fininha e embotada. Quando Ginny a ajudou a subir no corrimão, a menina estava tremendo incontrolavelmente.

Ginny a consolou. — Não tema, minha queridinha. Siga seu coração, deixe que esta vozinha em sua cabeça lhe guie. — Wendy fechou os olhos e respirou profundamente. Vou conseguir, ela pensou. Sou tão corajosa quanto Wendy Darling e bem mais corajosa que o bobo do Peter Pan. Levava em sua mãozinha apertada o olho de botão de Mister Muffins, seu cordão umbilical com Blair.

Olhou para baixo. Como que atraídos pela aura da garotinha, todos lá embaixo estavam olhando para cima.

Ela oscilou ligeiramente e, esforçando-se para manter o equilíbrio, Wendy ficou empoleirada no corrimão, com as mãos caídas nas laterais e o rostinho duro de determinação.

Wendy deu uma olhadinha por sobre o ombro à procura de um último olhar encorajador de Ginny, mas a gentil senhora se fora. Era como se ela tivesse, como uma fada madrinha, cumprido seu propósito de guia e mentora, sacudido sua varinha mágica e desaparecido no espaço.

Em sua mente, Wendy visualizou o rosto levemente enrugado e gentil de Ginny Doolittle, seu sorriso cálido e olhos gentis que irradiavam amor. E como um anjo guardião sussurrando em sua orelha, ela ouviu a voz etérea de Ginny. Siga seu coração, siga seu coração.

Ela parecia um anjo com aquele vestido branco e chinelos de cetim. — Estou indo, Blair — ela gritou. Com a graça natural de uma nadadora olímpica, ela pulou da passarela. Jogou os braços para trás como se fosse uma esquiadora saltando em queda livre. Foi caindo e ganhando velocidade.

Al-Dajjal saiu das sombras com uma pistola automática nas mãos e correu, apontando para Wendy. Mas o anjinho o viu e deu uma virada digna de avião de caça quando ele atirou. Saiu atirando para toda parte, errando o alvo e acertando nas vigas mestras dos andaimes.

Gritou um palavrão e, num gesto inócuo de raiva, atirou a arma na direção dela, que voava em círculos sobre ele.

Subitamente, Wendy virou à esquerda, passou voando por Brody e foi entrando, sem fazer o menor esforço, no espelho negro, para encontrar o País das Maravilhas ou sei lá o que do outro lado.

 

Com os homens do SAS assumindo seus postos, Scout e Newley e os Garotos Perdidos foram se embrenhando no solar.

—        Por onde agora? — Scout perguntou a Gabrielzinho, que podia sentir a presença de Wendy.

—        Estamos quase lá — Gabe respondeu. — Dobrando a esquina tem uma escada escondida. Detrás de uma grande estante. — O garoto franziu o cenho, concentrando-se. — É, tem que tirar um livrão... Estou vendo o nome, é Main canf ou algo assim.

Estarrecido, Scout deu de ombros e disse — Na hora a gente resolve isso. Raji interrompeu. — Dentro de um segundo, um homem gordo vai dobrar a esquina.

O capitão e Newley viraram a cabeça para Raji.

—        Estou vendo o que vai acontecer — Raji explicou acanhadamente.

—        O rapaz disse que tem um raio X vindo em nossa direção, garotos — o capitão avisou ao próximo esquadrão, usando o termo do SAS para forças inimigas.

Sir Nigel Cummings dobrou a esquina mancando, de terno rasgado, com o rosto sangrando e machucado. Acenava com um lenço branco, tossindo muito.

—        Graças a Deus vocês estão aqui — Sir Nigel conseguiu dizer ao se aproximar deles.

Os homens do SAS continuaram com suas MP-5 apontadas para ele.

—        Serviço Secreto de Inteligência, rapazes. Podem abaixar essas armas. Sou um dos reféns.

Não abaixaram.

Newley deu um passo à frente. - Onde estão seus lacaios, Pope e Miles?

- Traidores desgraçados, aqueles dois — Sir Nigel disse, tossindo no lenço de seda — Eles eram pagos por Gant, espionaram para ele esse tempo todo. Quando eu me dei conta do que eles estavam fazendo, vim atrás deles.

Newley deu um sorriso forçado. — Totalmente sozinho, imagino. Você ia prendê-los, e destruir o plano de Gant sozinho?

Sir Nigel fez uma careta e balançou a cabeça. — Não seja impertinente, Newley. Nós do Serviço Secreto lavamos roupa suja em casa. E você não tem que se meter neste caso. Eu tirei você da jogada. Você é carta fora do baralho.

O gordo se voltou para o capitão do SAS. — Sou hierarquicamente superior a vocês todos. Capitão, prenda o inspetor Newley imediatamente! Estou sabendo que ele é outro traidor da Coroa.

 

No laboratório lá embaixo, Brody estava aterrorizado, ainda piscando os olhos, confuso, sem conseguir acreditar que tinha acabado de ver a garotinha voar.

Margot passou por ele, correndo para o lado do cilindro. Ela acenou com a cabeça para Craven, que girou uma válvula. Começou a sair água dos canos nas laterais da câmara de vidro onde Madison Dare estava presa.

Ela havia desmaiado, mas o barulho da água a despertou. Brody viu o pânico em seus olhos e se encolheu. A água estava subindo rapidamente. Em questão de minutos, Madison podia se afogar.

—        Aqui, major — chamou Machado de Gelo.

Brody Devlin olhou nervosamente para o assassino, que ainda operava o Strappado. Machado de Gelo deu um tapinha em um interruptor e as chamas se acenderam na direção de Sorensen, que continuava pendurado pelas correntes.

Craven recuou, deu meia-volta e saiu correndo, desaparecendo em meio às sombras.

Devlin voltou os olhos para Margot, que o chamava.

—        Vai fazer o quê, namoradinho? Salvar a vaca ou o seu amigo, antes que ele caia nas chamas e na cama de pregos? — então ela fez um sinal com a cabeça para Ernst, que puxou a alavanca e a corrente foi movendo lentamente o guindaste, baixando o corpo torturado de Sorensen em direção às chamas lá embaixo.

Enquanto Devlin olhava de um lado para o outro, de Madison para Sorensen, Margot zombou — Tique-taque... tique-taque. O tempo está passando, namoradinho. É melhor escolher logo. —Jogou sua magnum e sua MP-5 longe. Mostrou as palmas das mãos vazias e acenou. — Vamos lá, não quer me dar outra rasteira?

Ernst abriu a lâmina de seu machado de gelo com um peteleco e arremessou em direção a Devlin. A arma de aparência maligna derrapou no chão de concreto e parou aos pés de Devlin.

—        Vamos, pegue, namoradinho — Margot disse.

— Ja, não fique aí parado, herr arschgesicht — der eisaxt zombou, inclinando a cabeça para o lado de modo que seu olho de vidro ficou fitando o nada.

Devlin olhou de novo para Madison. A água já subira até as sobrancelhas de Madison, que estava pendurada de ponta-cabeça na câmara da morte.

 

O capitão ficou olhando para Sir Nigel e balançando a cabeça.

—        Sir Nigel, já terminou? — Newley perguntou sarcasticamente.

Estarrecido, Sir Nigel inflou o peito e tentou passar pelo capitão. Não funcionou. — Saia do meu caminho, seu idiota. Vou ligar para o Primeiro Ministro e acabar com a sua raça, marmanjo!

Newley esticou o braço e fez o gordo girar. O capitão então prendeu Sir Nigel nos pulsos.

Sir Nigel reagiu gritando — Isto é um ultraje. Você está cometendo um erro terrível!

Então um dos homens do SAS gritou — Temos dois corpos logo ali.

Com o gordo a reboque, Newley e o capitão dobraram a esquina. Havia dois corpos no chão. Newley foi até eles e se ajoelhou. — Tiros na cabeça. — Ele virou os corpos.

Eram Pope e Miles.

Sir Nigel gaguejou — Não tive escolha. Eram eles ou eu.

Newley se levantou agilmente, correu para o lado do gordo e enfiou a mão no bolso do casaco de Sir Nigel. Tirou um revólver Webley Bulldog e cheirou o cano. — Foi usada recentemente. E aposto que depois do exame de balística descobriremos as balas nos crânios deles vieram da sua arma, seu veado mentiroso.

Newley agarrou Sir Nigel pelas lapelas, quase levantando do chão o homem, que já se debulhava em lágrimas.

O capitão pôs a mão no ombro de Newley. — Calma aí, meu chapa.

Newley, com o rosto explodindo de tão vermelho, olhou rapidamente para o capitão e soltou o outro.

Sir Nigel deu uma risada condescendente. — Quando vocês os alcançarem, já não vai restar mais ninguém.

Newley abriu calmamente o cilindro do revólver e tirou quase todas as balas, menos uma. Girou e fechou o cilindro. Então enfiou a arma debaixo do queixo de Sir Nigel e engatilhou. Ao redor dele, o capitão e seu esquadrão ficaram olhando boquiabertos. Um soldado começou a se mexer, mas o capitão o fez parar com um gesto silencioso.

—        Gosta de jogos, Sir Nigel?

O gordo balançou a cabeça.

Newley lançou-lhe um olhar furioso. — Você vai me dizer exatamente o que está querendo dizer com isto, senão eu vou puxar o gatilho. Pode sair bala, pode não sair. Mas vou puxar o gatilho cada vez que você mentir. Até sua sorte acabar e os pedacinhos de seu cérebro se espalharem sobre a parede, seu gordo arrogante de merda.

Sir Nigel engoliu em seco. — Você não ousaria, ainda mais na frente de todas estas testemunhas.

—        Então olhem para o lado, rapazes — Newley disse, enfiando o revólver na papada mole e cheia de carne. Os soldados obedeceram.

Sir Nigel arregalou os olhos e disse — Al-Dajjal e Margot são sádicos. Eles vão torturar e matar toda a equipe ÔMEGA se você não os detiver.

Newley ficou com o rosto mais vermelho. — Escrotos! — Ele fez um clique com a arma. — Percebo em seus olhinhos que tem algo que você está me escondendo.

O gordo tremeu, aterrorizado, e apertou bem os olhos.

Quando Newley clicou a arma mais uma vez, Sir Nigel se urinou.

—        Abra os olhos, seu merda - Newley ordenou.

Ele obedeceu e gritou — Eu instalei uma bomba. Para acabar com as provas. O calhorda traidor do Gant não me pagou. Não ganhei minha parte. Ele ameaçou me entregar.

O capitão gritou — Quanto tempo temos?

—        Que hora são, senhor? — O gordo perguntou.

O capitão enfiou o relógio de pulso no rosto de Nigel. Newley cuidadosamente abaixou o revólver.

—        Bem... Eu diria que uns dez minutos. Clicou a pistola Webley outra vez.

—        OK, uns vinte minutos no máximo, talvez um pouco menos — Sir Nigel desembuchou.

Newley o fez virar, empurrou-o para a frente e gritou — Então é melhor mexer essa bunda gorda. Você vai na frente, e tomara que você conheça algum atalho.

Um Homem do SAS interrompeu. — Capitão, aqueles garotos e o camarada americano.

—        O que tem eles?

—        Sumiram.

 

Parado em frente à estante, Scout procurou nas prateleiras qualquer coisa que soasse como main canf. — Está vendo o livro, camaradinha?

—        Sou muito pequeno, senhor Scout — Gabriel disse.

Peter se abaixou e o levantou nos braços.

—        Nossa, assim é melhor — Gabe disse, procurando pelos títulos. Até que balançou a cabeça afirmativamente. — Aquele, no fim.

Scout olhou para o livro. — Mein Kampf— ele disse, rindo. — Bem, você chegou bem perto. — Esticou o braço e pegou o livro. A enorme estante se abriu para eles. Scout foi abrindo caminho e eles foram atrás.

Encontraram um elevador.

Mas não havia botão de chamada, só havia na parede um sensor para ler a palma da mão.

Scout procurou uma chave de fenda nos bolsos.

Peter pôs a mão. Olhou para a porta do elevador com os olhos brilhando de tão brancos e a porta subitamente se abriu. Olhando estarrecido para Peter, Scout deu de ombros, balançou a cabeça e os fez entrar.

Virou-se para ver Peter, que piscou para outro sensor no painel no interior do elevador. Quando as portas se fecharam com um sibilo, o elevador desceu como um foguete.

Devlin olhou para Sorensen, que estava agora a poucos metros daquele inferno, com línguas de fogo à sua espera. O rosto dele estava borrado pelo calor oscilante.

Os únicos sons eram o crepitar das chamas e a água correndo.

Devlin pegou o machado de gelo do chão e correu em direção ao Strappado. Pensou que poderia reanimar Madison através de ressuscitação cardiopulmonar, mas Sorensen estaria literalmente frito em questão de segundos.

Um grito agudo de guerra cortou o silêncio.

Pendurado em um cabo de força inativo, Chewie desceu de uma passarela e deu um chute nas costas de Margot com suas botas tamanho 46, derrubando-a no chão. Passou por seu corpo caído e soltou o cabo, pousando entre Devlin e Ernst.

—        Onde você estava, seu traste? — Devlin perguntou, dando um largo sorriso e correndo para tirar Madison do tubo de vidro.

—        Longa história, agora jogue essa machadinha para mim. Ele jogou.

Chewie agarrou as mãos fortes de Machado de Gelo e torceu, e a expressão do outro mudou, passando de sorriso seboso para medo em um instante. Ele começou a andar para trás, distanciando-se do índio com cara mais enfezada que ela já devia ter visto na vida.

Subitamente, a mão treinada de Machado de Gelo puxou uma pistola SIG das costas.

Mas os reflexos de Chewie eram afiadíssimos. Apesar de o outro levantar a pistola em sua direção, Chewie já havia puxado o machado como se fosse míssil Tomahawk. Quando ele esticou o braço em um movimento suave, a arma do outro saiu voando pelos ares. A lâmina cravou fundo na testa de Machado de Gelo. Der Eisaxt, golpeado por sua própria arma, caiu no chão, a testa esguichando sangue como um chafariz.

Chewie correu até os controles do Strappado e apagou as chamas. Pegou um cano comprido e empurrou a cama de espinhos, tirando-a de baixo de Sorensen. Desceu o arrebentado agente e tirou as correntes. Quando ele estava deitado no chão, Chewie conferiu o pulso. Estava bem fraco, mas ao menos Bill Sorensen estava vivo. Bill abriu os olhos. Ao levantar os olhos marejados para Chewie conseguir forçar um sorriso, gemeu de dor e desmaiou outra vez.

Chewie puxou uma seringa de sua roupa tática e injetou morfina em Bill Sorensen para aliviar a dor.

Enquanto isto, Devlin tinha problemas com a válvula de água do cilindro de vidro. Não estava virando, e Madison já estava com a cabeça submersa.

Pior ainda, algo preto e viscoso estava vazando dos orifícios de onde vinha a água e correndo em direção a Madison.

Horrorizado, Devlin viu a água escurecendo com as criações diabólicas de Gant — as salamandras mutantes com cabeça de rato. Elas levavam as cabeças à superfície, nadando e exibindo os dentes famintos.

Chewie o empurrou de lado. Agarrou a válvula com as mãos enormes, flexionando os músculos sólidos dos braços e ombros sob a camisa. Com o rosto brilhando de tão vermelho, ele disse — Está duro que nem cimento. Não gira. — Com lágrimas nos olhos, Chewie gritou — Madison, agüente firme!

- Inferno! — Devlin gritou olhando para o tanque de vidro. Um lagarto mutante estava mordendo o cabelo de Madison.

Em puro desespero, Chewie correu para o lado do tubo de vidro e começou a socar, gritando a plenos pulmões até as articulações das mãos sangrarem.

Uma vozinha veio de trás. Com os lábios trêmulos, Johnboy gaguejou — Meu nome é Johnboy, senhor. Posso fazê-los parar. — Apontou para os lagartos mutantes. — E o Peter pode resolver o problema da água.

Depois de ver uma garotinha voar como uma pássaro, Brody Devlin começava a acreditar que qualquer coisa era possível com essas Crianças Índigo.

Ele puxou Chewie para o lado e os dois se afastaram.

Johnboy ficou de joelhos e plantou as palmas das mãos nas laterais do cilindro de vidro. Murmurou suavemente, conversando com os lagartos pelo que Brody pôde entender. Pelo jeito estava dando certo, porque os lagartos mutantes foram se afastando de Madison, um por um, e nadando para a lateral do tanque com seus olhos marrons fixos em Johnboy.

Então Peter, o garoto mais alto, subiu no tanque e olhou fixamente para a válvula emperrada. A válvula começou a virar lentamente e a água parou de jorrar para dentro do tubo.

Então Peter virou e concentrou os olhos na água. Levantou as mãos espalmadas e, à medida que as levantava mais, a água ia subindo, desafiando a lei da gravidade e passando pela cabeça de Madison, pelo torso até o alto do tanque, onde ficou suspensa.

Peter estava com uma das mãos levantada, comandando assim a água, para que permanecesse naquela posição. Com a mão livre, Peter deu um tapinha na lateral do cilindro com o dedo indicador. Quando o vidro começou a rachar, pequenas fissuras como teias de aranha se formaram no ponto que Peter tocou. As rachaduras aumentaram até que finalmente Peter disse — Virem a cabeça, vai explodir.

Pequenos estilhaços de vidro explodiram junto com uma torrente de água, mas com um rápido movimento de cabeça Peter os deteve e a água ficou suspensa no ar. Ele piscou os olhos e os cacos caíram no chão, inofensivos, enquanto a água caiu como chuva, fazendo poças a seus pés.

Devlin deu uma olhada para Chewie, que sacudiu os ombros largos e correu para libertar Madison.

—        Com licença, cavalheiros. Mas há um assunto urgente — disse um garoto de pele mais escura.

Chewie estava ocupado aplicando a ressuscitação cardiopulmonar, então Devlin respondeu ao garoto. — Se está preocupado com sua amiga Wendy, ela voou para dentro daquele espelho negro ali. Qual seu nome, filho?

—        Raji, senhor. Oh, eu já sabia de Wendy, estava falando da bomba.

O queixo de Devlin caiu.

—        Aqui em cima, Brody.

Devlin olhou para cima e viu Scout acenando para ele de uma passarela. Ao seu lado estava um garotinho que sorriu e acenou timidamente.

—        Este troço está em plena contagem regressiva, chefe. Está bem ao lado de algumas das principais linhas de gás.

Devlin suspirou pesadamente e passou os dedos por entre os cabelos. - Uma bomba. Nossa, qual é a próxima? Dá para desarmá-la?

Peter foi para perto de Devlin. — Major Devlin, se Scout me disser exatamente o que fazer, posso usar minha telecinesia para desarmá-la.

Brody perguntou — Como sabe meu nome?

Eu passei algumas informações básicas para os garotos, chefe — Scout gritou. Mas estamos com um problemão. Mesmo que Peter possa ajudar, não tenho raio-x portátil para olhar dentro desta droga. Se não consigo ver por dentro, não posso dizer ao garoto o que fazer.

Gabrielzinho puxou a calça de Scout. Estarrecido, Scout baixou os olhos. Que foi, camaradinha?

— Senhor Scout, eu posso enxergar lá dentro. E contar a vocês e a Peter o que vejo.

Major Devlin levantou as mãos e disse — Manda ver, Scout. Mas fique sabendo... estes garotos vão tirar nossos empregos quando crescerem.

Madison tossiu, cuspiu um pouco de água e vomitou.

Chewie gentilmente limpou sua boca e seu rosto com as costas da mão enorme. Limpou-lhe o queixo com a manga da camisa e então lhe acariciou os cabelos amorosamente.

Ela levantou os olhos para o rosto sorridente de Chewie, depois olhou para a própria blusa desabotoada. — Oh, meu Deus, não — ela disse com a voz rouca e fraca. — Por favor... não me diga que você fez respiração boca a boca.

Chewie balançou a cabeça afirmativamente e deu um sorriso tímido. E assim, Madison desmaiou em seus braços.

 

Uma explosão sacudiu o laboratório, e o estrondo ecoou pela vastidão do recinto, seguido por gritos agudos.

Um fumacê vinha ruidosamente na direção da equipe ÔMEGA oriundo do ponto na passarela onde Scout e os Garotos Perdidos trabalhavam fervorosamente para desarmar a bomba.

Brody Devlin pensou o pior ao olhar para as escadas, achando que Scout e os meninos tinham sido despedaçados. Seu coração trovejou no peito ao subir as escadas pulando degraus, respirando com dificuldade no ar enfumaçado.

Do outro lado do espelho, Blair e Gant estavam lado a lado. Olhavam para cima, para uma torre que parecia um minarete coberto de ouro que se elevava de um vasto precipício no terreno rochoso. Foram transportando para alguma paisagem distante e estavam no alto de uma montanha, em outra dimensão, onde o tempo corria mais lentamente.

Apesar da brisa cortante, soprar a crina ruiva de Blair, o Sol estava de tostar. Blair baixou os olhos e olhou para as mãos, para o torso e então apalpou o peito.

Satisfeita por estar inteira, sã e salva, ela se aproximou da beira do precipício e deu uma olhada na borda. Parecia sem fundo, como se acabasse no centro da Terra. O chão começou a remexer debaixo dos seus pés e ela recuou.

A risada irônica de Gant veio por trás e ela se virou. — Cuidado, doktor. Afinal, pelo que sei, você não voa como a garota.

Blair fechou a cara. De mãos na cintura, avaliou o cenário ao redor.

— Já faz idéia de onde estamos?— Gant perguntou presunçosamente, zombando dela com seu sorriso torto.

Ela respirou fundo. A julgar pelo terreno, diria que é alguma parte do Oriente Médio, mas a torre é estranha, de aparência meio bizantina e meio islâmica.

—        Perto disto, minha querida. Podemos continuar agora? — ele começou a caminhar ao redor da borda do barranco. — Se não me falha a memória, acho que existe uma escadaria entalhada na lateral da rocha bem aqui.

Blair ficou parada, de braços cruzados, com o lábio inferior saliente. Ele olhou para trás. — Seja uma boa menina e não faça bico.

—        Você me arrastou para este pesadelo, e não vou dar nem mais um passo se você não me disser como diabo pretende me levar de volta para o outro lado do espelho.

— É um pouco complicado, mas, para voltar, precisamos seguir em frente. O portal fica lá embaixo. Agora vamos, você está esgotando minha paciência.

Blair observou os arredores. Descer a montanha não era uma opção viável. Ela não tinha água, não fazia idéia de onde estava, e não fazia idéia do que havia naquele vale lá embaixo, se é que havia alguma coisa. Daquela altura uma grossa nuvem cercava a montanha e lhe tapava a visão. Mas não havia qualquer sinal de civilização.

Ela foi atrás de Gant.

Eles já haviam descido a íngreme escada de pedra e chegaram a uma ponte que termina na torre do outro lado. Depois que a cruzaram, passaram por uma larga arcada; Blair piscou os olhos e parou, aterrorizada. De onde estavam antes só conseguiu ver um lado da torre. Agora ela se deu conta que aquilo era apenas uma fachada que escondia a verdadeira estrutura que havia detrás das paredes.

Uma enorme escadaria inclinada se elevava até um zigurate gigante. Suas bordas não eram mais quebradas e sim arredondadas e envelhecidas. No geral, ainda era uma visão e tanto. Ela já havia visitado um daquele em Tallil, Iraque, e o zigurate mais antigo de que se tem notícia, que fica em Sialik, Iran, mas o que estava vendo agora não se parecia com mais nada.

A cor era de um branco e índigo fulgentes que cintilavam quando batia a luz do Sol.

Blair sabia que zigurates eram templos considerados eixos cósmicos, portais verticais e ligações entre o céu e a Terra, e a Terra e o submundo, além de ser o laço horizontal entre as terras da Terra.

Ela não precisava ser coagida por Gant; correu até a escadaria e começou a subir. A arqueóloga que havia nela estava encantada com aquela descoberta única.

Quando chegou ao topo, estava sem fôlego e parou com as mãos nos joelhos, arfando. Uma voz etérea chamava — Blair do Shelta Thari. — Ela virou, mas não viu ninguém. — Não se deixe seduzir pela sede de conhecimento.

Apesar de seu aspecto decrépito, Gant tinha força e resistência de jovem. Subiu a escadaria aos pulos e logo apareceu ao seu lado. Ela o observou. Havia qualquer coisa de diferente nele. Ele parecia em melhor forma, mais corado.

Apesar da advertência da voz sobrenatural, ela virou e entrou na entrada em forma de boca escancarada.

Foram confrontados por duas passagens. Ela disse — Esta parece levar ao lado externo da estrutura que vai subindo em espiral. A outra...

Gant seguiu pela segunda entrada sem olhar para trás e disse — leva para o portal lá embaixo. — Enfiou a mão no bolso do paletó, tirou uma lanterna e acendeu.

Blair hesitou, suspirou e foi atrás dele. Seguiu o jato de luz oscilante da lanterna. Teve de apertar o passo para acompanhá-lo.

Eles entraram por uma passagem estreita onde o chão ia se inclinando gradualmente para baixo. Blair tentou entender as construções em pedra e a arquitetura, pescar alguma dica através do estilo. Algumas partes lembravam a Suméria, outros lembravam o estilo da Babilônia. De qualquer forma, em sua mente ela já visualizava o que lhes esperava: imagens de um submundo de enxofre com piscinas borbulhantes emanando o cheiro pungente de gás sulfúrico; ou quem sabe uma caverna com paredes de cristal que cintilavam nas cores do arco-íris.

Quanto mais eles desciam nas entranhas do zigurate, mais íngreme ficava. Finalmente, quando chegaram no que parecia a parte mais baixa, o chão não estava mais íngreme.

Uma fraca luz verde e branca vinha do ventre da caverna diante deles.

 

Devlin pegou a passarela e foi na direção de Scout e dos meninos, e o chão de aço furado como colméia ecoava a cada passo que ele dava. Deslizou para o canto de um equipamento grande.

Ouviu vozes gritando e jatos de luz cegante girando, caóticos, em meio à grossa fumaça. Algo lhe bateu no peito e ele caiu sentado.

Quando olhou para cima viu o cano de um fuzil automático e uma cegante lanterna LED apontados para sua cabeça.

A voz familiar disse — Ele é um ianque, rapazes, baixem as armas. — A arma foi baixando e lhe estenderam a mão. Brody pegou a mão e lhe puxaram para ficar de pé. O inspetor-chefe Newley sorriu para ele.

Quando as coisas começaram a se esclarecer, Brody olhou para trás do inspetor. Um monte de homens com Nomex-3 pretas e roupas táticas que ele imaginou serem do SAS estavam garantindo a área próxima, e logo atrás estavam Scout e os meninos.

Suspirou aliviado. — Merda! Achei que uma bomba tivesse explodido.

Newley balançou a cabeça. — Ah, tivemos que entrar com tudo, major. A explosão foi quando arrombamos a porta e os rapazes jogaram umas granadas por precaução.

Brody esfregou o peito.

Newley deu de ombros, acanhado. — Lamento que tenham lhe dado uma porrada, major.

— Acho que foi sorte minha não ter levado saraivada de balas de 9 mm.

Scout e o capitão apareceram ao lado de Newley. O capitão estava com cara de estupor. — A maior desgraça que já vi na vida...

Scout levantou um cronômetro LED acoplado à tampa de uma caixa de ferramentas preta. Os números estavam paralisados em 00:04.

Brody olhou da caixa para Scout e para a caixa outra vez. Assoviou baixinho. — Por quatro segundos. É perto para cacete.

Peter espiou pelo ombro de Scout, então ele desceu sorrindo.

Brody balançou a cabeça afirmativamente para Peter. — Trabalho seu, pelo que entendi.

Peter olhou para os sapatos por um momento, então olhou para cima e piscou o olho.

Brody virou-se para o capitão. — Tenho dois agentes lá em baixo que precisam de cuidados médicos imediatamente. E um escocês maluco dopado com torazina e esfriando as idéias em algum lugar da mansão.

O capitão balançou a cabeça afirmativamente e falou no microfone do fone de ouvido. — Situação dos ianques? — ele perguntou, usando o termo do SAS para reféns.

Após um momento, ele respirou fundo e olhou nos olhos de Brody. — Já estão sendo atendidos por dois médicos. Também encontraram o sargento Conners tirando uma soneca em um quarto lá em cima.

Brody deu risada, imaginando o grande leão-marinho aninhado em uma montanha de travesseiros como a bela adormecida. Chewie explicou sobre os ataques do robô. Mas então fez uma expressão dura. — Como estão os outros dois?

O capitão balançou a cabeça afirmativamente. — A mulher está em bom estado, mas o homem está por um fio. Estamos chamando um helicóptero Medevac e deixando a emergência do hospital de sobreaviso. — Ele pôs a mão no ombro de Devlin. — Anime-se, major. Vamos levá-los daqui o mais rápido possível.

Um homem do SAS levou Sir Nigel, com as mãos algemadas nas costas, até eles.

Brody deu risada ao ver o gorducho com o rosto coberto de ferrugem e expressão circunspeta. — Bem, velhinho. Parece que você se deu mal mesmo.

Virou para o inspetor Newley. — Ainda mandam os traidores para a execração pública na Torre de London?

Newley balançou a cabeça. — Como eu queria que ainda mandassem. Amarrado no pátio com a calça arriada e os corvos bicando seu saquinho até eles se fartarem.

O capitão interrompeu. — Major, nós mandamos uma busca atrás dos técnicos e o que restou dos seguranças de Gant, mas pelo jeito não havia sinal do senhor Gant e...

Brody interrompeu. Capitão, confie em mim Você não acreditaria se eu dissesse. - No meio daquela confusão, Brody não pensou mais em Blair. Sentiu uma dor aguda nas vísceras ao pensar nela passando pelo espelho negro.

- Eu estava para dizer que não há sinal deste tal de Al-Dajjal nem de Margot Gant.

Brody virou e se apoiou no corrimão. Viu Chewie ao lado de Madison enquanto um médico do SAS a atendia. Ao lado dela estava deitado Bill Sorensen. Estava recebendo fluidos vitais na veia e uma máscara lhe cobria o rosto.

Brody chamou Chewie. — Ei, seu traste. Deixa os caras trabalharem. Margot e Al-Dajjal estão passando a perna na gente.

Chewie olhou para cima, ficou de pé e bateu no peito, soltando um grito de guerra de gelar os nervos. Brody virou para Newley e o capitão. Olharam ao mesmo tempo para Sir Nigel, que engoliu em seco e disse — Não olhe para mim. Não faço a menor idéia de seu paradeiro, sinceramente, cavalheiros.

Newley torceu a orelha do gordo meteu a mão no casaco dele e puxou um revólver Webley da cintura.

Estarrecido, major Devlin reparou que o rosto do capitão ficou branco quando ele e outros homens do SAS se afastaram.

Sir Nigel estremeceu. — Isto não vai ser necessário, inspetor. Tem um aerobarco parado na entrada do solar em frente à praia. Suspeito que enquanto conversamos, eles estejam saindo por lá.

— Capitão — Brody gritou. — Tem um helicóptero aí?

Um homem do SAS olhou de onde estava e disse — Senhor, tem um helicóptero no teto.

Sir Nigel limpou a garganta. — Tem um elevador expresso secreto que vai do térreo ao teto.

O inspetor o observou cuidadosamente. — Se você estiver mentindo...

Uma vozinha disse — Não é mentira, senhor. Mas é melhor correr, porque a Cruela e aquele mesquinho estão embarcando agora mesmo.

Brody baixou os olhos para Gabrielzinho, então deu de ombros e virou-se para Scout.

Scout se ajoelhou, encarando o garoto. — Camaradinha, você consegue ler as mentes deles e dizer aonde estão indo?

Gabriel fechou os olhos, apertando-os bem por um segundo e então os abriu. — É um barco grande e preto e está debaixo d'água.

Os homens trocaram olhares perplexos.

Então Brody, apesar de no fundo já temer o que o garoto tinha a dizer, perguntou devagarzinho — Quer dizer um submarino, homenzinho?

— Ahã... e tem uma espécie de cruz torta pintada do lado.

Scout se contraiu, surpreso. Então levantou os olhos para Brody Devlin com um olhar petulante de quem diz "eu avisei".

Brody balançou a cabeça e levantou a mão aberta. — Nem fale.

Com um olhar cretino no rosto, Scout disse mesmo assim — Uma droga de um... submarino com uma suástica pintada na lateral.

O inspetor-chefe Newley puxou o gordo pelo cotovelo e balançou a cabeça em direção à saída. — OK, queridão. Lá vamos nós.

Enquanto Brody e um grupo de tropas do SAS foram atrás deles, Scout correu para o lado de Brody e enfiou uma arma Taser no bolso do paletó. Brody olhou estarrecido para Scout. O nerd murmurou uma rápida explicação na orelha do major.

Sorrindo largo, Brody deu-lhe um tapinha nas costas e disse — Esta vai cortar o barato dela... para valer.

 

Blair e Gant entraram na caverna e chegaram a uma entrada em forma de caixa.

—        Colunas dóricas — Blair disse. — Aposto que se trata de uma tumba grega ou macedônia

Em ambos os lados ao alto de um pedestal havia um globo verde brilhante. Blair chegou mais perto e aproximou a mão a poucos centímetros do globo.

—        Não emana calor nenhum — pegou a esfera brilhante e a levantou. Ao passá-la cuidadosamente entre as mãos, ela reparou que dentro havia um líquido iridescente sacudindo de um lado para outro.

Ao levantar a esfera em frente a si, brincando com ela como uma criança com um brinquedo novo, ficou impressionada com sua beleza sutil.

Em frente a si, uma figura de pedra pareceu gingar ao ser atingida pela luz do globo. Era a estátua de um homem, tamanho real, com barba farta. Seu robe era decorado com símbolos alquímicos: o Sol, a Lua e as estrelas; enxofre, sal e mercúrio. A mão direita estava levantada com a palma aberta em um gesto de advertência, enquanto a mão esquerda os chamava.

—        Surpreendente — Gant disse — Hermes, o Três Vezes Grande.

Blair teve de admitir a si mesma que Gant tinha razão, mas sentiu um arrepio nos pêlos na nuca.

Ela olhou para a inscrição em grego e leu lentamente — Portal da Consciência. A jornada começa com o conhecimento, mas termina na fé. V-I-T-R-I-O-L. — Fez uma pausa. — Esta última parte lhe diz alguma coisa, Gant?

—        Vista Interiora, Terraie, Rectificando, Inveniens Occultum Lapidem - Ele respondeu murmurando suavemente. — "Visite as partes internas da Terra e retificando descobrirá a pedra oculta".

Eles entraram e se viram em um salão de doze lados, sem saída. Representações de um processo alquímico estavam nas laterais de uma alcova dominada por fornalhas e alambiques, frascos e destiladores.

Blair baixou os olhos. O chão era feito de um mosaico entrelaçado de por pedras de seis pontas. Cada pedra tinha um dos doze signos do zodíaco entalhada. As pedras, como as paredes ao redor, pareciam cristalinas. Mas em vez de serem claras, eram obnubiladas por traços brancos, como se uma aranha tivesse projetado sua teia sedosa e sido presa dentro de um bloco de gelo.

Blair se aproximou alguns centímetros e deu um passo à frente. Subitamente, a pedra debaixo de seu pé começou a mexer, então se soltou e caiu abismo adentro. Gant a puxou pelo braço e o globo caiu da mão dela.

A pedra perdida foi deixando um rastro considerável. Blair olhou pela beira da fenda, observando a esfera brilhante desaparecendo ao cair dentro da fenda sem fim, até finalmente sumir.

—        Isto é uma maluquice! — ela disse.

—        Quer encontrar o portal ou não quer?

Blair respirou fundo e parou para pensar por um momento. — Está claro que a astrologia não é a chave. Será que estes símbolos zodiacais podem representar algo além dos meses do ano? Uma progressão ou ordem distintas que pudéssemos usar como caminho?

—        Certamente — Gant disse. — A seqüência alquímica. Cada símbolo representa um processo.

Blair virou e o observou. — OK, então. Vamos usar essa ordem.

—        Calcinação é a primeira — Gant disse. — Então seria Áries.

Pisaram juntos na pedra com o signo do carneiro. O chão inteiro estremeceu e afundou, deixando a pedra sobre a qual estavam cerca de meio metro acima das outras.

Olhando ao redor cuidadosamente, Blair perguntou — E agora?

—        Coagulação. Touro.

Pisaram no Touro. As pedras retumbaram afundando mais meio metro, deixando Touro a meio caminho entre o chão e Áries mais ao alto.

- Está formando uma escada para baixo - Blair disse, empolgada.

Foram em seqüência: Gêmeos para fixação, em seguida Câncer para dissolução. Depois veio Leão, Virgem e Libra — digestão, destilação e sublimação e Escorpião para separação. O chão estava agora a oito metros e meio abaixo do piso, e o topo de uma entrada aparecia sobre o chão.

Depois que passaram pelo resto dos signos do zodíaco a entrada se revelou completamente. Blair olhou para trás. As doze pedras leitosas que foram escolhidas permaneciam em diferentes níveis, como se subindo de volta ao piso atrás deles.

—        É fabuloso — Gant disse. — É a famosa Escadaria do Céu.

—        Ou do... Inferno — ela disse, olhando para cima nervosamente. — E não gostei nada do que está escrito acima da porta: O Teste do Caos.

Ao afastarem as grossas teias de aranha e entrarem, uma grande aranha rastejou em direção a ela. Ela abaixou a cabeça e se enfiou em uma longa e estreita passagem. As paredes também eram cristalinas e tinham um tom ardido de vermelho alaranjado. Tinha uma curva, depois uma descida, depois outra curva. Foram descendo cada vez mais.

—        Isto me lembra as passagens da Grande Pirâmide — Blair disse a ele.

—        É uma pirâmide invertida, minha querida doktor. Ela termina no cume. O que está Acima... é como o que está Abaixo.

Blair reparou algo de incomum no brilho carmesim das paredes. — Há goivas profundas nas paredes. Curioso, não acha?

—        Marcas de escultores, quem sabe? — ele palpitou.

Com a ponta do dedo ela examinou um entalhe na parede. — Parecem relativamente recentes, mas parecem ter sido gradualmente aprofundadas. É como se algo tivesse repetidamente desenterrado estas goivas ao longo do tempo.

Quando dobraram para um lado, viram a passagem terminar abruptamente em uma parede sem nada. Blair passou as mãos na parede, procurando alguma sutura. Bateu com as dobras dos dedos.

—        Ai — ela disse. — Sólido — ela olhou mais de perto. — O que é este material branco preso à parede?

Gant observou à luz da lanterna. Ao baixar a lanterna, veio um brilho verde. Ele virou a luz da lanterna para o chão e tapou a lente com a mão. — Tem um monte disto no chão também.

Ele se ajoelhou e pegou com a mão, deixando escorrer entre os dedos. Então provou do resíduo que ficou nas pontas dos dedos. — Cálcio. Fósforo, daí o brilho.

Blair sentiu um arrepio em todos os pêlos do corpo, um frio lhe subindo pelas costas e se instalando no pescoço. — Pó de ossos — ela cutucou o monte no chão com os dedos dos pés e ele foi diminuindo de tamanho, escorrendo por uma espécie de funil no chão, como um relógio de areia.

—        Silêncio — Gant murmurou e esticou a cabeça.

Um estrondoso rugido veio detrás deles.

O chão tremeu e revirou.

Eles deram meia-volta. Algum terror desconhecido vinha se arrastando pelo corredor, fazendo um som aterrorizante de pedra contra pedra.

Eles continuaram imóveis, olhando para a última esquina em que dobraram.

Começou a chover pó sobre eles, devido ao teto baixo que se soltava devido à vibração.

Voltaram para espiar do canto em que dobraram. Uma pedra enorme contornava a passagem, avançando centímetro a centímetro.

—        Maldito Gant — Blair disse sucintamente e abaixou a cabeça.

Gant procurava freneticamente pelas paredes. — Isto não era para estar acontecendo. Tem de haver alguma alavanca escondida por aqui, alguma coisa. Você não está entendendo? Estamos presos aqui e nossos corpos vão virar pó de ossos e escorrer por este buraco no chão!

O som da pedra se arrastando agora era como uma trovoada.

 

O helicóptero decolou do teto de nariz para baixo e sobrevoou o solar. O céu estava sinistro e taciturno e a escuridão começava a cair.

Brody Devlin gritou para o piloto pelo fone de ouvido. — Ali!

Newley e Brody viram Chewie escalando uma janela e correndo pelo teto de um nível mais baixo da mansão que estava iluminado por holofotes. Ele virou, olhou para cima e acenou loucamente com as mãos.

—        Pegue-o — Brody ordenou.

O helicóptero empinou e desceu. Ao pairar sobre ele, Chewie pulou para cima e enganchou o braço na tábua de deslizamento modificada.

- Pegamos — Brody disse. — Levante.

Com Chewie segurando firme, o helicóptero levantou e voou sobre o solar, pegou a direção do canal e do mar revolto.

Enquanto voavam ao nível das copas dos carvalhos e elmos, o vento golpeava o rabo-de-cavalo do índio.

Brody olhava para baixo, procurando por um sinal do aerobarco e de Al-Dajjal.

Subitamente, o aerobarco disparou de trás de uma ancoreta pedregosa.

Brody havia dirigido uma versão menor daquilo no Vietnam, onde costumavam patrulhar o Mekong Delta, mas jamais vira algo como aquilo.

Dois grandes pontões encaixados por um grosso contorno de borracha estavam ligados aos dois lados de uma cabine cuneiforme acima. Debaixo do contorno, um enorme ventilador sugava o ar, comprimindo-o e fazendo-o explodir debaixo do aerobarco. Ele deslizava sobre um colchão de ar na água enquanto duas hélices propulsionavam a água. Brody estimava que estivesse a mais de 70 nós.

O capitão, que estava sentado perto de Newley, avisou — Já notifiquei a Marinha Real. Estão mandando uma equipe do SBS com outro helicóptero.

—        E lá vem eles! — Newley gritou no microfone.

Um segundo helicóptero voou na direção deles, inclinou-se agudamente e desceu na direção do aerobarco. Foi atrás do barco, planando sobre as ondas.

Dois botes infláveis de borracha motorizados caíram pesadamente sobre a arrebentação, seguidos por esquadrões dos SEAL. Em poucos momentos os homens pularam dentro dos barcos, cujos motores rugiram, lançando-se atrás da presa.

—        Leve-nos mais perto — Brody gritou ao piloto.

Ele fez isso. Mas bem quando os botes estavam alcançando o aerobarco, dois botes cuneiformes foram lançados da popa, avançando em direção às equipes do SBS.

—        Nossa! — Brody disse ao olhar pelo binóculo. — São PROTECTORS!

—        Desgraça — o capitão disse e avisou o helicóptero do SBS.

—        Que diabo está dizendo? — Newley perguntou.

Brody explicou. — São veículos de superfície não-pilotados, barcos-robô de patrulha equipados com metralhadoras automáticas de 7.62 mm., chamadas Typhoon-Station. Seu sistema ótico Toplite permite rastrear os alvos automaticamente através de raios laser. São rápidos como o diabo, e mortais.

—        Projetados pelos israelenses, inspetor — o capitão acrescentou. — Estamos acabando de colocá-los a serviço. Veados malditos. Vão destroçar nossos garotos.

Como tubarões famintos, os PROTECTORS os cercaram e cortaram as ondas, mirando a toda velocidade nos barcos de ambos os lados. Os canos das metralhadoras brilharam e elas fizeram sua saudação às equipes do SBS.

—        Ah, meu Deus — o capitão lamentou, angustiado.

—        Leve-nos para baixo, já — Brody ordenou ao piloto. — É nossa única chance. Coloque-nos bem sobre a ponte desse corno enquanto os animais estão ocupados atirando nos botes...

 

Wendy caiu do outro lado do espelho como um albatroz, machucando o ombro. Levantou-se e sacudiu a poeira. Seu sexto sentido sentiu o ar, procurando por Blair.

Ela virou e correu para a borda do profundo precipício. Respirou fundo e tomou coragem. Esticou os braços e mergulhou como um cisne, pegou impulso para cima e planou sobre o barranco fundo até chegar à torre.

Sem parar, ela foi voando por um quebra-cabeça de pedra e subiu mais até achar os degraus íngremes que levam à entrada do zigurate.

Como um pombo-correio, ela estava sendo guiada pelo puro instinto ao voar, penetrando a passagem escura que descia em espiral cada vez mais profunda.

 

Blair sentiu antes de ouvir: uma presença na passagem estreita, logo perto do ombro. Ela virou e viu uma forma sombria. Começou a tomar forma, pulsando com uma aura branco-azulada. Era uma velha mendiga.

Uma voz gentil de senhora a chamou, a mesma voz que ouvira antes.

Blair, querida. O homem sábio dá boas-vindas a morte, só os tolos a temem.

A radiante visão desapareceu.

Blair disse a Gant — Se quer viver, siga-me. — Ao dobrarem a esquina, o pilão gigante estava a menos de três metros deles, e continuava a se aproximar. A direita estava o corredor de onde vieram.

Blair deu uns passos para trás e examinou a parede atrás da curva fechada, esfregando as mãos sobre ela. — Não há ranhuras. Este é o único ponto onde a pedra não arranhou a parede — examinou o chão. — Aqui também não tem pó de ossos.

Ela retesou os músculos. — Vamos ficar aqui. Encarar a morte pela frente...

—        Acho que devemos voltar à parede que fica bem no fim da passagem — Gant argumentou.

—        Por mim eu lhe diria para ficar à vontade, mas infelizmente preciso de você para me levar até e através do portal, por isso fique quieto, lagarto velho.

O moedor gigante passou bem no canto da esquina.

Um metro, e se aproximando.

Menos de um metro.

Gant mexia-se nervosamente.

Meio metro... a pedra lhes roçou as roupas e Gant tentou sair do caminho, mas Blair o agarrou pelo braço, segurando com força.

Uma pedra então lhes abraçou o peito, e o que começou como leve pressão estava ficando insuportável. Blair virou o rosto, e a superfície arenosa lhe beijou o rosto com lábios de lixa. Foi se aproximando mais, quase lhe espremendo a vida dos pulmões.

—        Parece que não foi boa idéia — ela disse.

Ouviu-se uma barulhenta pancada e algo se encaixou, de modo que a parede atrás deles começou a recuar, aliviando a torturante pressão em seus peitos. Então o moedor mudou de direção, deu uma estremecida e em vez de continuar na direção de antes, virou à esquerda, rumo à parede vazia.

Blair sentiu uma brisa fria no pescoço e virou. Onde antes havia uma parede, agora havia uma passagem que descia suavemente. De algum ponto bem no fundo ela ouviu o som reconfortante de água corrente.

Emergiram pela passagem, que dava em uma sala. A arquitetura era a mesma de um templo grego. Havia um lago grande e luminoso na frente. Do meio jorrava uma fonte perolada em formato de árvore; suas águas claras e azuladas fluíam por sobre os lábios de conchas que cercavam o jorro central.

Gant correu para a beira do lago e ficou de joelhos. Começou a pegar água com as mãos em concha para beber. Então enfiou o rosto na água radiante e tirou, com a água lhe escorrendo pela face.

Ao virar e olhar para Blair, ela quase engasgou com o ar.

A pele cheia de cicatrizes, as veias medonhas, os gordos tumores, tudo foi curado como por mágica. Blair viu a jovial vitalidade de Gant emergir debaixo da máscara destruída pela idade e pela deformação. Ele sorriu para ela com o rosto de um homem jovem, de seus vinte e poucos anos. Era bonito, com cabelos negros ondulados e brilhantes, e olhos azul-claros.

Ele se levantou e foi até ela. Estava ereto, não era mais encurvado.

—        A Fonte da Juventude. As águas primordiais da criação. Sabe, eu estava certo o tempo todo.

—        Acho que estava — Blair disse, com inveja. — Mas será que vale a pena? Toda dor e sofrimento que você causou, todo o sangue em suas mãos...

Ele olhou para ela com desprezo e fez um som com a língua. — Minha cara, os fins sempre justificam os meios. E os mansos só vão herdar a ponta da chibata. Sempre foi assim, e sempre será

—        Então seus deuses ainda são a ambição, a hipocrisia e a imoralidade? — ela perguntou.

Ele deu uma risada maligna.

—        Sim, não me arrependo de nada.

Do canto do olho, Blair viu Wendy do outro lado das águas.

Gant virou também, acompanhando seu olhar, e fechou a cara. — Eu avisei para ficar longe de mim, criança insolente.

Blair notou um leve tremor na bochecha dele, e sua pele pareceu perder seu brilho jovial.

Ao flutuar sobre o lado, os olhos de Wendy estavam fixos em Blair. O rosto dela estava tão sereno, seus olhos tão radiantes e cheios de vida que ela mais parecia um querubim.

Quando alcançou Blair, pulou em seus braços abertos.

Blair sentiu um amor maternal, um consolo de ao se agarrar àquele anjo, e lágrimas quentes lhe desceram pelo rosto. Limpou as lágrimas com as costas da mão e disse a Wendy — Você não devia ter vindo, minha doçura. Não sei se vamos conseguir voltar

Wendy passou o dedo no rosto de Blair, se debruçou, esfregou o nariz arrebitado no de Blair e piscou o olho.

Ela pôs Wendy no chão e segurou sua mão.

Gant tinha virado e estava caminhando pela água para atravessar o lago. Parecia raso, mas quanto mais Gant avançava, mais fundo ficava. A água começou a mudar. Sua luminosidade se apagou e o tom claro de azul foi ficando cada vez mais esverdeado, depois escureceu até ficar parecendo petróleo. Quando ele alcançou a metade do lago, o líquido oleoso estava batendo em seu peito.

Blair olhou atentamente. Até que reparou na inscrição com uma palavra em latim em uma placa de pedra do outro lado do lago, IMMCISTINANTUR. Depois vinha o acrônimo: VITRIOL.

Chegando mais perto, ela viu que debaixo da placa havia um cano de boca larga. Uma torrente de líquido viscoso cor de esmeralda estava se misturando às águas. Havia uma série de canos parecidos com inscrições correspondentes que diziam: NATRON, LIQUOR HEPATIS, RED PULVIS SOLARIS ...

Olhou para Gant, que parecia estar em dificuldades, como se a água tivesse ficado grossa como piche. Ele levantou os braços e começou a se debater violentamente.

Pequenas chamas azuis começaram a sair dos cantos da piscina de óleo. Foram aumentando de tamanho, as flamas lambendo mais alto e começando a alcançar a superfície.

Primeiro foi o cheiro de piche que invadiu as narinas de Blair. Mas então Blair ouviu uma espécie de sibilo alto. O vapor se transformara em um gás amarelado que brotava da superfície da água turva. O ar agora cheirava a ovo podre.

As palavras na placa lhe vieram à mente num rompante.

IMMCISTINANTUR... era uma palavra codificada do Voynich, da qual se lembrava de ter canalizado uma vez em transe. Estava escrita em voynichês debaixo das imagens de mulheres nuas se banhando em uma piscina alimentada por múltiplos tubos ou canos. Em inglês significava apenas "estão misturados"! A intuição lhe veio com um frio na nuca. E a próxima palavra na placa era...

VITRIOL... Ácido sulfúrico

Ela se deu conta que as águas curativas da piscina foram criadas por um processo permanente de combinação de uma série de substâncias químicas letais.

Pegou Wendy nos braços. — Temos que sair daqui. Sabe onde fica o portal?

Wendy torceu o nariz. — Eca, isto aqui fede pra valer. Você soltou pum que nem os meninos ou algo assim?

—        Meu amor, como veio parar aqui?

—        Ah, isso é moleza. É só pegar a direita daquela parede ali. — Ela apontou para o outro lado da piscina em chamas.

Mas agora as chamas pulavam da superfície de líquido oleoso, cobertas por uma pesada nuvem amarela.

—        Agora vamos lá — ela disse a Wendy, tossindo. Ainda apertando a garotinha firme contra o peito, ela apertou bem os olhos, levantaram vôo e sobrevoaram aquele inferno.

Ao invés do calor de matar que estava esperando, Blair sentiu uma brisa fria ao sobrevoarem as chamas. E pensou ter escutado a voz amável da velha mendiga outra vez, sussurrando-lhe na orelha.

Tenha fé. A menina vai lhe conduzir.

Wendy projetou a base da palma da mão para a frente, parecendo empurrar algo ao voar, e bateu na parte inferior da parede a toda velocidade. Aquela parte da parede fora construída sobre colunas de sustentação, e a parte de cima balançou para dentro e para baixo com a pressão da mão da menina. Passaram pela abertura.

Do outro lado havia um espelho negro idêntico.

Ela foi até ele e olhou para a superfície.

Em vez de seu reflexo, Blair viu a imagem apagada do laboratório de Gant. Olhando mais de perto, viu homens do SAS andando de um lado para outro. Baixou os olhos para Wendy, que ainda estava em seus braços.

—        Está pronta? — perguntou.

—        Ahã.

Ouviram um grito lancinante que vinha de trás.

Ela virou e viu o corpo carbonizado de Gant cambaleando na direção delas. O cheiro de carne tostada lhe revirou o estômago.

Saía fumaça dos farrapos que restavam das roupas, ainda colados à carne. Seu rosto estava cheio de bolhas e vermelho como um camarão; os cabelos negros ondulados estavam queimados e caíam da cabeça aos tufos, e as mãos esticadas estavam feridas e da cor do carvão, com a carne pingando dos dedos como cera pingando de uma vela quando ele sacudia os dedos, tentando alcançá-la.

Blair virou e pulou dentro do espelho. A superfície ondulou quando elas desapareceram pela passagem.

Usando o que lhe restava de força, Gant xingou como louco e se jogou no espelho.

Um estrondo sacudiu a câmara e clarões se acenderam ao redor do espelho.

Quando Gant estava bem no meio do caminho o espelho negro começou a se fechar com força ao redor dele.

A parte inferior de seu torso foi cortada como se atingida pela lâmina de uma guilhotina.

Caiu pela superfície lisa do espelho fazendo um barulho molhado e caindo no chão.

Do outro lado do espelho, a parte superior do torso de Gant se projetou do espelho. Como um verme parcialmente enterrado na maçã, esforçando-se para chegar à superfície, ele recuou da superfície do espelho com suas mãos tostadas e cheias de bolhas. A se dar conta que não conseguia sair, ficou com medo.

Seus olhos apavorados giravam de um lado para outro, freneticamente.

Estava totalmente cercado por uma impiedosa escuridão.

Então ele se deu conta que estava preso na eternidade entre os mundos. A Terra do Nada. Ao olhar para o vasto vazio, um terror enlouquecedor lhe embolou a mente. Gritou, debateu-se, e seus gritos foram engolidos pelo infinito abismo.

 

Do outro lado, Blair e Wendy saíram do espelho gêmeo e rolaram pelo chão duro, batendo no pé de um homem do SAS que se assustou e caiu.

Ao se levantar, Blair deu a mão ao soldado e o puxou. Wendy estava agora ao seu lado. Ela deu seu sorriso com covinhas e disse — Perdoe-nos. Acho que devíamos ter olhado para onde íamos. — Então ela levou a mão à boca e deu risada.

Wendy viu que um homem e uma mulher estavam deitados em macas levadas por médicos que agora estavam no pé da escada. Wendy olhou para Blair com expressão triste e uma pergunta nos olhos.

Blair confirmou com a cabeça solenemente.

Wendy foi até eles.

Um coro de vozes chamou do alto.

Ela levantou os olhos e viu os Garotos Perdidos, que estavam na passarela logo acima, espiando com os cotovelos apoiados no corrimão e as mãos nos queixos. — Oi, pessoal. Sentiram minha falta? — ela respondeu. Gabrielzinho, que espiava por entre as pernas de Peter, sorriu e acenou todo animado.

Wendy ouviu a doce voz de Gabe telegrafando uma mensagem diretamente para dentro de sua mente. Oi, Wendy. Senhor Scout contou que Bill, o cara, está muito ferido. Por favor, ajude-o. E ela é a senhorita Madison, que engoliu muita água.

Um grunhido atraiu a atenção de Wendy para o homem ferido. Ao pegar a mão de Sorensen, ele abriu os olhos rapidamente e pareceu implorar ao pequeno anjo. Sua respiração estava curta e difícil, com seu som rascante amplificado pela máscara de oxigênio que lhe cobria o nariz e a boca.

Um médico começou a afastar Wendy. — Saia agora, senhorita. Este homem está muito mal.

Scout desceu as escadas. Pôs-se entre o médico e Wendy. Com o rosto determinado, disse — Ei, Mac. Deixe a garota. Este homem e esta mulher são nossos, e eu sei o que estou fazendo.

Então Scout virou para Wendy e deu um sorriso caloroso. — Meu nome é Scout. Bill, meu amigo aqui, precisa demais de sua ajuda. Os garotos acham que você pode dar um jeito nele.

Ficou parado, sondando com os olhos. Ficou confuso ao ver, por um breve momento, um halo brilhar ao redor da cabeça da garotinha. — Quem sabe você não consegue dar jeito em Madison também? — ele apontou a senhorita Dare com a cabeça, e ela tossiu.

Ela olhou para os olhos tristes dele e balançou a cabeça. Já dei jeito em uns dois pássaros, mas nunca fiz isto com uma pessoa - olhou para os meninos.

-           Pessoal, vou precisar da ajuda de vocês. Somos mais fortes juntos.

- Roger, Wendy — Raji gritou. Os Garotos Perdidos, inclusive Gabriel, se deram as mãos, fecharam os olhos e abaixaram as cabeças.

Wendy reparou que Blair foi para perto dela. Blair pôs a mão em seu ombro em sinal de apoio, o que lhe deu mais força.

Wendy baixou a cabeça e segurou a mão de Sorensen com toda a força de suas mãozinhas.

Então virou para Madison e pôs as mãos no peito da mulher.

Madison limpou a garganta. Respirou fundo. Sorriu para Wendy e disse —           Meus pulmões não estão mais doendo. Estou conseguindo respirar.

Wendy perguntou a Bill Sorensen — Está se sentindo um pouquinho melhor, senhor? — os olhos dele se abriram abruptamente. Ele se apoiou nos cotovelos e olhou ao redor, com uma expressão de surpresa no rosto.

Sentou-se esticando os braços e as costas.

Esfregou o ombro. Ainda estarrecido, ele disse — Não sinto mais dor nenhuma.

Os dois médicos ficaram tão perplexos com a recuperação total e instantânea de Sorensen que quase deixaram cair a maca.

Atrás de si, Wendy ouviu alguém arfar profundamente.

Virou a tempo de ver Blair desmaiar, caindo primeiro de joelhos e deitando no chão.

Quase chorando, Wendy foi para o lado dela.

O pequeno anjo tocou a testa de Blair.

Está ardendo em febre. Tenho que curá-la. Ela lembrou do aviso de Ginny. — Apesar de Blair ser uma boa mulher, com muita força de vontade e conhecedora dos caminhos do Thari, ela também não vai resistir.

Olhou dentro dos olhos de Blair. Não tinham mais o tom verde-mar brilhante, estavam vazios e embotados. A menina olhou para o peito de Blair. Estava respirando com dificuldade, fazendo um ruído parecido com um chocalho a cada respiração. Pior ainda, o tom rosado lhe fugiu do rosto. Estava pálida como papel, mas seus lábios estavam ficando roxos.

Wendy começou a sentir raiva, seu rosto foi ficando vermelho e ela sentiu as lágrimas se formando nos olhos e escorrendo pelas bochechas coradas. — Não ouse morrer, Blair Kelly!

Fechou os olhos outra vez, visualizando-a saudável e esbanjando vitalidade. Deu uma olhada para ela. Para consternação de Wendy, Blair continuava imóvel.

Ela franziu o cenho em profunda concentração, desejando que ela ficasse boa.

Em sua mente, Wendy visualizou coisas felizes: a luz do Sol, prados cheios de flores selvagens ondulado à brisa suave, filhotes de cachorro e um bebê enrolado em cobertas de tom pastel, embalados pelo acalanto nos braços maternos.

Blair virou a mão. Começou a se mexer.

Wendy visualizou uma luz vermelha pulsante da base da espinha para cima, passando para alaranjado brilhante, para amarelo, para azul e chegando ao coração. Continuo subindo, e, ao chegar ao ponto entre as sobrancelhas, desbotou e se acendeu na mais pura luz branca lhe envolvendo a cabeça, descendo pelos ombros e fluindo pelas mãos que ela foi passando lentamente sobre o corpo de Blair.

Wendy abriu os olhos.

Em meio à cerração causada pelas lágrimas, ela examinou Blair de perto, e ela continuava parada, sem vida.

Do fundo de sua garganta saiu um suave arrulho, como um filhote chamando a mãe.

Ela pôs a mão no rosto de Blair. Estava melhorando.

A cor estava lhe voltando.

Seu peito começou a oscilar em ritmo suave.

Quando Blair abriu os olhos com pálpebras trêmulas e respirou fundo, Wendy a abraçou com vontade de não soltar nunca mais. Agarrou-se à mulher que se tornou sua razão de viver, que se tornou sua nova mãe.

 

A bordo do submarino, o obersteurmann, ou tripulante contratado, virou para o capitão em meio às luzes vermelhas da sala de controle.

- Estamos chegando ao ponto combinado, senhor — ele disse, falando alemão.

Kapitain Gunther Hessler balançou a cabeça afirmativamente. — Pare tudo. Aviões e navios.

—        Tudo parado — confirmou o tripulante.

—        Aviões e navios — respondeu o superior dentre timoneiros que estavam atados a seus assentos, com as mãos nos lemes que operavam os hidroaviões que controlavam a profundidade do submarino.

O submarino era uma versão totalmente reprojetada do velho German XXI. A fortuna de Gant fora usada para criar um navio de corpo elegante e hidrodinâmica, revestido com uma substância que servia de radar e era a última novidade tecnológica do ramo. Seu reator nuclear garantia uma velocidade incrível tanto na superfície quanto debaixo d'água.

—        Sonar? — o capitão perguntou baixinho.

—        Captando sinal de aerobarco e dois barcos-patrulha PROTECTOR na direção Zero-Quatro-Zero. Espere aí, tem um terceiro sinal. Motores externos, algo pequeno, como botes infláveis, senhor

—        Zum teufel, maldição! — O capitão Hessler sibilou entre dentes. — Deve ser um esquadrão do SAS atrás de Al-Dajjal.

—        Baixar periscópio — o capitão murmurou, observando a atmosfera silenciosa do submarino.

Os timoneiros locaram de leve nos lemes que mais pareciam fazer parte de uma aeronave, levando o submarino para perto da superfície, e relaxando então.

—        Periscópio para baixo, sir.

—        Suba o periscópio.

A sólida estrutura tubular subiu fazendo um ruído sibilante e Hessler puxou as alavancas para baixo e ajustou os controles digitais. Foi analisando o panorama até mirar perfeitamente no aerobarco.

As ordens do capitão Hessler tinham por objetivo proporcionar uma fuga discreta para Gant, sua sobrinha Margot e Al-Dajjal. Mas sob nenhuma circunstância ele arriscaria que capturassem sua embarcação. Outros — as Forças que São — de dentro do Vril também o orientaram para eliminar Al-Dajjal caso sua captura seja iminente. E no momento Hessler não estava gostando do rumo que as coisas estavam tomando. A presença do SAS indicava que as coisas tinham descido pelo ralo.

Ele cancelou as instruções de localização do aerobarco e disse — Preparar torpedos!

 

O helicóptero diminuiu a distância e estava sobrevoando a popa do aerobarco. Devlin foi descendo do helicóptero do outro lado de Chewie para chegar à defensa do barco. Encolheram-se sob o vento que lhes golpeava os rostos e soprava os cabelos. Combinaram de pular quando Newley desse o sinal.

O helicóptero deu uma guinada e embicou, quase fazendo Devlin perder o chão e cair no mar.

Newley fez um sinal de positivo com o polegar e eles pularam ao mesmo tempo, caindo no deque da embarcação abaixo.

Devlin sentiu o borrifo gelado do mar e do vento ao ficar de pé. Deu uma olhada para Chewie, que estava de pé ao lado dele. Fizeram um gesto firme para o helicóptero, para que avançassem em direção à porta da cabine.

Segurando com firmeza as pistolas SIG que pegaram emprestado do SAS, Brody e Chewie foram até a porta.

Subitamente a escotilha se abriu. Al-Dajjal gritou — Wotan, matar!

Como se lesse os pensamentos do outro, Chewie se jogou para a esquerda enquanto Brody rolou para a direita e levantou a pistola.

Um pastor alemão apareceu, rosnando. Quando os dentes de Wotan agarraram sua arma, Brody viu de relance Margot atrás de Al-Dajjal, e mais um pastor alemão — Siegfried — na coleira.

Brody sentiu a dor da mordida de Wotan na parte de baixo do braço, fazendo os dedos da mão direita se abrirem involuntariamente, e a arma caiu no deque fazendo barulho.

Além da dor, Brody estava consciente de uma série de coisas — a voz crua de Margot gritando mais alto que os rosnados dos cães; Al-Dajjal xingando em alemão; o fedor assassino do bafo de Wotan em seu rosto, e o peso do cão — que ainda rosnava cruelmente e balançava a cabeça de um lado para outro, como se quisesse arrancar o braço de Brody do corpo.

Instintivamente, lembrando dos treinamentos, levou a mão livre aos testículos do cão e esmagou com força. No treinamento era tão fácil. Ao menos os braços estavam protegidos no treinamento, e o treinador estava por perto para tirar a fera de cima depois que você faz sua parte. Mas aquilo era a vida real. Primeiro, Wotan não reagiu, como se tivesse ovos de ferro. Então ele puxou de novo, espremendo com toda a força que tinha.

O rosnado do cão virou um choro, e por um segundo ele soltou as mandíbulas do braço de Brody.

Brody usou esse breve momento para agarrar o pescoço do bicho. Enfiou os dedos na traquéia, pressionando e afundando como se fosse arrancar a laringe do cão. Deu uma gravata no animal, agarrando-o pela nuca. Mas o desespero deu uma injeção de adrenalina no cão, e Wotan cravou as mandíbulas e puxou com fúria cega.

Os uivos viraram uma série de rosnados pavorosos e Brody precisou usar de todas as reservas de força para agüentar. Dava para sentir a dor se aprofundando na parte do braço que Wotan estava mordendo, e começou a perder as forças.

Mas assim como o cão ele sabia que estava lutando pela própria vida e aumentou a pressão dos dedos. — Devlin, nunca se enforca o inimigo como se vê no cinema, com as duas mãos. Aperte sempre com uma só mão. — Ele lembrou do sargento Gunny da escola de treinamento tão claramente como se ele estivesse ao lado agora mesmo. E o lema de Gunny: Matar ou morrer.

Vamos lá, enfie a mão na traquéia e puxe o pescoço do bicho por trás com toda sua força — ele agiu, e Wotan se debateu loucamente, lutando para se soltar.

Ao lutar, sentindo a dor intensamente, e o barulho e a confusão ao seu redor, a mente de Brody se agarrou àquilo que lhe manteria em ação — Wotan queria sangue. O sangue dele.

— Siegfried, pegue-o! — Margot ordenou ao cão aos gritos.

Ainda agarrando Wotan para matar, Brody olhou para a direita e via a pistola SIG caída, fora de alcance por muito pouco. E depois da arma estava Chewie, caído de costas. A carne de suas mãos pesadas estava moída e inchada, os braços machucados e molhados de sangue. E Siegfried estava pulando sobre ele com as presas à mostra, salivando profusamente, pronto para mastigar a garganta do índio se ele não se defendesse.

Estava na cara que Chewie não estava disposto a arriscar nem um fio da sobrancelha.

Sua atenção se voltou para Wotan, que começava a perder a consciência. Então Wotan revirou os olhos e parou de morder, e seu corpo virou peso morto.

Brody sabia que era melhor agir como se ainda estivesse lutando com o bicho, fazendo Al-Dajjal e Margot abrirem a guarda o suficiente para lhe dar uma brecha.

Esforçou-se para coordenar bem os movimentos antes de agir, pois sabia que era sua única chance.

Mas não era caso de esperar pelo melhor momento, porque o momento era agora.

Escudando-se com o corpo de Wotan, Brody lutou para controlar a dor de seu braço ferido. Rolou para a direita, pegou a pistola SIG, rolou outra vez e atirou — dois tiros em Siegfried; outro que pegou Al-Dajjal no ombro de cheio, fazendo-o girar. Quando ele caiu, Brody atirou novamente, atingindo-o no alto e à esquerda, bem acima das costelas, jogando-o com força contra o tabique. Debaixo de tiros, Al-Dajjal soltou um grito sufocado que misturava ódio, frustração e agonia. Então ele foi escorregando pela parede e se esparramou no deque como um peso morto.

Aproveitando a distração de Margot, Chewie se levantou para agarrá-la.

Por um segundo Margot baixou a guarda, mas virou instintivamente no ultimo segundo pegou o índio que vinha dar o bote, agarrou o grosso pulso e girou o braço e o empurrou, de modo que o grandão de repente se deu mal e foi arremessado do outro lado do que, batendo no corrimão e emitindo um som de ossos quebrados.

 

Na ponte do submarino o capitão Hessler espiava pelo periscópio com os braços apoiados em suportes.

Ele perguntou ao operador de rádio — Algum contento de rádio do aerobarco?

—        Negativo, senhor.

—        Algo novo no sonar? — o capitão perguntou.

—        Nada, a não ser... Gott im Himmell— O operador do sonar parou de repente e um barulho agudo soou nos fones de ouvido, e apareceu uma mancha na tela. — Temos companhia, senhor.

O capitão afastou o fone. — Como assim?

—        Avistando Zero-Seis-Quatro. Localizaram nossa posição e algo está vindo a toda velocidade. Acho que é um torpedo destroyer.

—        Lançar torpedo número um — Hessler ordenou — depois vamos descer o mais rápido e fundo possível.

O torpedo estava longe, correndo na direção do aerobarco. Ao cortar a água como um tubarão faminto, deixava um rastro letal como cartão de visita.

 

Margot virou para Brody com olhos fervendo de ódio, queimando como carvão. — Você é o próximo, namoradinho. E desta vez sem preliminares.

Ela começou a se aproximar dele, sem jamais desviar seu olhar hipnótico.

Al-Dajjal se mexeu e gritou debilmente — Faça-o sofrer, mein brüder. Corte pedaço por pedaço. Jogue-o aos tubarões.

Brody teve um insight e entendeu a palavra ... Brüder!

Mas quando Brody levantou a pistola, Margot pulou, atingindo-o como se fosse um saco de tijolos e puxando-o para o deque. A pistola voou de sua mão e caiu, inútil, do outro lado do deque.

Ela se sentou sobre ele e com suas pernas de aço lhe apertando as laterais do torso, espremendo os ossos com força esmagadora. Ela chegou o rosto mais perto, os cabelos louro-brancos lhe roçando o rosto, com seu perfume exagerado e enjoativo. Seus olhos de fera soltaram faíscas de ódio e luxúria. Estava sexualmente excitada, e tremendo.

Ele agora se contorceu como o pastor alemão, sentindo a vida lhe escapar dos pulmões.

Então, quando começava a ver tudo escurecer, lembrou das instruções de Scout quando estava pegando o helicóptero. Fiz alguns testes com as nanofibras que encontramos no museu. Elas têm efeito colateral mortal. Se você aplicar uma carga de alta voltagem, as nanofibras se contraem como o aperto de um tomilho.

No limite da consciência, Brody pegou o Firefly do bolso onde Scout enfiara antes. Era a versão de Scout de uma pistola Taser.

Usando o resto de força que tinha, ele puxou o gatilho, e o nitrogênio comprimido soltou dois condutores pontudos que saltaram e morderam fundo a roupa de nanofibras de Margot.

Ela soltou as pernas instantaneamente, permitindo que Brody respirasse outra vez o ar frio. Ele puxou o gatilho do Firefly outra vez e mais outra, e Margot saiu rolando pelo deque.

Ele virou para o lado e se deparou com o olhar aterrorizado dela. Cada vez que puxava o gatilho a arma emitia 600.000 volts pelas fibras que lhe envolviam o corpo. Ao invés de amplificar a força dos músculos de Margot, a alta voltagem fazia as nanofibras se contraírem.

Margot gemeu de agonia sentindo a roupa colada ao corpo lhe esmagar, comprimindo-a como se ela estivesse a milhares de milhas no fundo do oceano, sua cobertura externa se entortando para dentro como se esmagada pelas toneladas de mar ao redor de si.

O rosto de Margot se contorceu em uma repulsiva máscara mortuária, os olhos antes luminosos e claros agora estava turvos — e sua estranha profundidade e magnetismo já não estava mais lá.

Brody Devlin olhou sem pena, sem remorso. Apesar de ter jurado jamais bater em mulher nenhuma por raiva e sempre ter achado difícil matar mulheres em combate, Margot Gant não era mulher.

Ela era homem.

Quando Al-Dajjal a chamou de irmão, ele entendeu tudo. Margot era o irmão gêmeo dele. Uma transexual que ainda tinha o aparato de homem. Quando ela o atacou na mansão, ele achou na parte masculina de seu corpo uma arma escondida.

Chewie o puxou pelo braço e o fez levantar bruscamente. Brody reclamou quando Chewie o empurrou para o corrimão, mas então viu o torpedo. Pularam.

O aerobarco desapareceu em meio a um cegante fogo branco que foi se avermelhando.

 

                     Cartago, Costa Rica:

DEPOIS QUE O AVIÃO DELES pousou no Aeroporto Internacional Juan Santamaria em San Jose, Costa Rica, Blair e Devlin pegaram a bagagem enquanto Madison e Bill Sorensen seguiam até a beira da calçada. Ficaram esperando, com o suor pingando do rosto, as roupas colando nas costas com o clima humedo y caliente de agosto. Um Range Rover preto estacionou no meio-fio.

Assim que Blair e Devlin apareceram com as malas, Chewie saiu do Range Rover que alugara ao chegar primeiro e foi até eles. Com seu grande chapéu de palha e camisa branca comprida, seria difícil reconhecê-lo se ele não se destacasse dos mestizos locais devido ao seu tamanho.

Puseram as malas no carro, entraram na receptiva frescura do ar-condicionado do carro e partiram.

Chewie diminuiu ligeiramente a velocidade ao passarem pelo Mercado Central com seus camelos torrados de Sol orgulhosamente vendendo suas verduras: pimentas de todos formatos, tamanhos e cores; pilhas verde-amareladas de plátanos e abacates.

Rapidamente saíram da cidade, tomando o rumo do sul em direção ao campo. Enquanto dirigiam, Madison, que estava no banco de trás com Sorensen, comentou sobre os montes férteis nas fazendas, com fileiras e mais fileiras de plantações de café. Uma colcha de retalhes de cultivos que se misturava às florestas densas e verdes.

Brody segurou na mão de Blair e perguntou — Para onde estamos indo mesmo?

Blair respondeu - Cartago, uma pequena cidade a cerca de vinte e quatro quilômetros de San Jose. Wendy e os Garotos Perdidos e os demais já estão lá.

Devlin sorriu e disse — Não sei como conseguiu isto, mas você é mesmo uma mulher misteriosa, Blair Kelly.

Ele esticou um braço e deu um tapinha no ombro de Chewie. — Você não pegou umas geladas, não é, meu chapa? — Ao dizer isto, ele massageou o braço direito com a mão livre. Ainda estava engessado e pendurado pela faixa. As mordidas do cachorro ainda lhe doíam.

Chewie respondeu apontando com a cabeça o cooler no chão. Madison abriu e pegou cervejas geladas para todos. Abriram as garrafas e fizeram um brinde.

—        Salud — Blair brindou. — Que cheguem todos ao céu, meia hora antes do demônio perceber que morreram.

Estacionaram para fazer um pit stop.

Brody gritou para Sorensen e Madison de dentro do veículo — Não vão longe, a não ser que queiram ser devorados por preguiças de três dentes ou por uma tropa de macacos-esquilo.

Blair enfiou a cabeça para fora da janela e acrescentou — Ou então uma manada sedenta de araras vermelhas e um iguana gigante! — A risada de Blair ressoou pelo campo.

—        Qual é, Blair. Iguanas não são perigosas — Brody disse.

—        Bem, araras e macacos também não, Tarzan.

Chewie balançou a cabeça e suspirou longamente.

Brody bateu em seu ombro. — Ei, que cara é essa?

Chewie deu de ombros, olhou para Madison, que voltava para o Land Rover.

—        Brody Devlin, juro que você é o maior cabeça-dura deste lado do Atlântico — Blair disse. — Não vê que o senhor Raindancer está magoado? — ela apontou Madison com a cabeça.

—        Ah — Brody disse acanhadamente —, deixe-me dar um empurrãozinho, companheira. — Então ele pulou para abrir a porta do acompanhante para Madison e piscou o olho. Ela olhou para ele, e para Chewie, que estava sentado, sorrindo como um colegial, e para Brody novamente. Ela deu um sorriso de quem estava entendendo e entrou.

Com Sorensen dormindo no banco de trás e Chewie finalmente arrumando coragem de falar com Madison sobre algo além de conversa fiada, eles seguiram.

Falando sério por um momento, Brody disse — Tem certeza que Wendy e os Garotos Perdidos estão em segurança lá? E como foi que você conseguiu? Deve ter custado uma fortuna, ou você girou seu compasso mágico sobre um mapa e puf... descobriu onde estava enterrado um tesouro cheio de moedas de ouro?

Blair riu. — Sou Alta Sacerdotisa ... não sou nenhuma bruxa do mar.

Brody fez bico. — Sério, onde conseguiu o dinheiro?

Ela se sentou, sorrindo e brincando com uma mecha de cabelo, cantarolando para si mesma. Finalmente ela disse — Bem, meu irmão e eu somos alquimistas, você sabe.

— Ah, claro. Por que não pensei nisso antes? Você transformou chumbo em ouro e...

Ela sorriu e piscou o olho. — Vamos dizer que os Shelta Thari cuidam dos seus. E temos alguns benfeitores bem ricos...

O Range Rover parou na plaza e eles saíram.

Do outro lado do pátio estava a Basílica de Los Anjoes. No alto de seus pilares brancos havia anjos de asas abertas. Guardiões atentos. A luz do Sol refletia em duas janelas rosáceas que ficavam lado a lado na entrada.

Lá estava Ginny Doolittle acenando loucamente, com as pelancas do braço balançando como gelatina. A larga aba do seu chapéu mole lhe cobria parte do rosto.

Perto dela estavam o padre Dominic Kelly, Scout, Conners e o tenente Braxton. Ginny estava vestida como as outras cinco damas de honra, irlandesas do Shelta Thari, que, apesar de lindas, estavam um pouco estranhas vestindo roupas nativas das Bailarinas Criollas: blusas brancas de camponesa, saias rodadas douradas, azuis e verdes presas por grandes cintos vivamente coloridos e Guaria Moradas, orquídeas cor de lavanda, presas nas orelhas.

Os Garotos Perdidos estavam lado a lado, de terno e gravata, parecendo pequenos cavalheiros, mas terrivelmente desconfortáveis. Gabriel ficava puxando o colarinho enquanto Peter se atrapalhava para manter os cabelos penteados.

Atrás deles agora, Devlin perguntou a Peter — Ei, cadê Wendy?

Peter deu um largo sorriso e apontou para o céu.

Wendy sobrevoava girando preguiçosamente. Johnboy levou dois dedos aos lábios e assoviou alto. Wendy desceu, quase escorregando no chão.

Olhando bem nos olhos de Blair, ela saiu correndo pelo pátio de braços abertos, com um Golden Retriever vindo atrás. Parou em frente a Blair e a abraçou.

—        Woof — latiu o cão, chamando a atenção de Brody. Quando Devlin se abaixou para brincar com o cão, perguntou — E você é quem, peludo?

Wendy recuou e virou-se para Devlin. — Ah, é o Sam. Ele não é maravilhoso? O senhor Nicholas e a senhora Perenelle me deram de presente.

Devlin ficou pasmo com o nome do cachorro e lágrimas lhe brotaram dos olhos. Olhou mais de perto, observando os olhos tristes do cão. Era seu velho companheiro, seu melhor amigo, Sam, que fora morto pelos cães de ataque, e reencarnara magicamente e agora estava ali de pé, em frente a ele. O cão balançou a cauda e lhe lambeu o rosto. Feliz como um garoto comemorando a hora do recreio na escola, Brody saiu correndo e brincando com Sam.

Blair ficou olhando com as mãos nos bolsos e balançando a cabeça. Homem típico! Saiu correndo com a droga da loura! Ao ver os pés de Wendy, Blair caiu na risada. Estava com um vestido de seda com um arco-íris bordado, parecendo uma dama de honra, a não ser por uma coisa. Estava de tênis vermelhos de cano alto e desamarrados.

—        Senhorita Wendy Kelly, aonde vai com esses tênis? — Blair perguntou, fazendo cara feia.

—        São de Ginny. Ela disse que são que nem os chinelos de rubi de Dorothy. Se um dia eu quiser visitá-la, só preciso bater os calcanhares três vezes — então o sorriso desapareceu de seus lábios e ela ficou aborrecida. — Já resolvi que não quero me chamar mais Wendy.

—        Está certo, meu bem, mas por quê?

Ela cutucou o chão com a ponta do tênis e disse — Porque aqui estou em segurança. Não tenho mais que me esconder nem usar aquele nome falso tirado de um livro.

Blair se ajoelhou e a abraçou forte. — Certo. Então seu nome vai ser Noor Kelly.

A cerimônia transcorreu perfeitamente.

Não foi um casamento tradicional per se e sim um velho costume dos Shelta Thari chamado Casamento Pagão.

Comandados pelo padre Kelly, Blair e Devlin trocaram votos, juraram ficar juntos na alegria e na dor, e professaram seu amor mútuo. Dali a um ano e um dia eles voltariam lá para renovar seu compromisso e se casar definitivamente, renovar por mais um ano, ou se separar.

Durante a cerimônia, Madison ficou ao lado de Chewie. Ele pegou a mão dela com sua mão enorme, gentilmente. Ela deu um olhar caloroso para ele e suspirou, e então viram.

Trajando saia escocesa, Conners tocou sua gaita-de-foles.

Depois ofereceram uma recepção na grande hacienda que seria sua nova casa. Nicholas e Perenelle Flamel lhes doaram uma de suas muitas casas para servir de abrigo para as Crianças Índigo.

Devlin se afastou da festa e foi procurar Blair na varanda. Ao ver a garotinha arrulhando suavemente no colo de Blair, lhe veio uma compreensão intuitiva. Ele entendeu por que o padre Kelly queria que a irmã lesse Aldeia dos Malditos.

Como se por um milagre da evolução, Wendy desenvolvera poderes extraordinários. Além de poder voar, ela tinha outras características dos pássaros. Um filhote separado da mãe no nascimento costuma transferir os laços emocionais para outra, que passa a ser a mãe postiça.

Como um pequeno cuco, posto em outro ninho para ser criado e nutrido, este pequeno pássaro encontrou paz e consolo ao se aninhar em meio às asas cálidas e amorosas de sua nova mãe-pássaro, Blair.

Blair olhou de repente para cima, encontrando os olhos de Devlin. Seu sorriso brilhante desvaneceu-se em um olhar tenso e ansioso.

— Você acha realmente que nós podemos protegê-los... deles?

Devlin sabia que ela estava se referindo, não ao Vril, mas em parte aos seus serviços de segurança de governo e dela. Ele inclinou-se, e apertando os lábios, disse — Podemos tentar.

 

                         REFERÊNCIAS

 

A alquimia, antiga protociência que foi a base da química moderna, tem iodos os elementos clássicos da busca humana: conhecimento secreto, rituais arcanos e a promessa de poderes e riquezas inimagináveis. É igualmente voltada para a matéria, através da transmutação de metais básicos em ouro por meio da lenda da pedra filosofal, e com o espiritual, um caminho pelo qual os adeptos buscam purificar suas almas.

Histórias bem-sucedidas de alquimia são invariavelmente apócrifas, como a lenda de Nicholas e Perenelle Flamel, que tiveram sucesso por terem corações puros, mas essas histórias foram o bastante para atrair gerações de praticantes ao estudo de textos obscuros e a passar longas horas em laboratórios fedorentos. E apesar de a alquimia parecer coisa de bobo para as mentes de hoje em dia, ela tem sido levada a sério por um número surpreendente de praticantes.

O interesse na alquimia foi renovado recentemente neste século por Lord Rutherford, o famoso médico inglês que conseguiu transformar nitrogênio em oxigênio através do uso de alta radioatividade, contrariando o que a ciência acreditava até então de que essa transmutação era impossível.

Apesar de as origens da alquimia serem obscuras, parece que ela surgiu ao mesmo tempo no Egito e na China, cerca de dois mil anos atrás. O conceito da pedra filosofal vem da China, onde a alquimia foi associada ao taoísmo. Acreditava-se que o ouro produzido pela pedra filosofal tinha o poder de curar doenças e prolongar a vida, idéia adotada por alquimistas árabes. Conceitos de outras filosofias foram assimilados, como o conceito aristotélico dos quatro elementos básicos (terra, água, ar e fogo), bem como a teoria árabe de que todos os metais são compostos de uma mistura de enxofre e mercúrio. A maior parte do aspecto espiritual da alquimia vem dos gnósticos, que previram uma luta de vida e morte entre os processos alquímicos negativos e positivos.

A alquimia virou uma curiosa mistura de religião, ciência e crença cultural. Por volta do século II, Alexandria se tornou o centro internacional para o estudo da alquimia, onde os segredos da transmutação de chumbo em ouro estavam cuidadosamente guardados pelos sacerdotes. Com o fim do estudo institucional da alquimia no século IV, devido à destruição da academia e da grande biblioteca de Alexandria, os alquimistas entraram na clandestinidade. Os textos alquímicos se tornaram propositalmente obscuros, enigmáticos e cheios de códigos que só o iniciado conseguiria decifrar.

Durante a Idade Média e a Renascença, atribuiu-se a invenção da alquimia a Hermes Trismegistus. Cerca de 36.000 textos alquímicos (cujo maior deles é a Tábua de Esmeraldas) foram atribuídos a Hermes, figura enigmática associada ao deus egípcio Thoth. Hermes, na verdade, aparece sob disfarces tão diferentes que é impossível relacionar todos. Sua atribuição da alquimia a alguma linhagem ancestral conferiu à alquimia a credibilidade necessária a todas as histórias de buscas e pesquisas.

Apesar de os praticantes da Grande Obra usarem os aparelhos usados nos laboratórios modernos, os destiladores e alambiques são herança dos alquimistas. Os adeptos de outra época devem reconhecer também os símbolos de sua pesquisa que foram incorporados à psicologia e ao misticismo moderno. Carl G. Jung era fascinado pela riqueza do simbolismo alquímico: dragões, cobras, pelicanos rasgando o próprio peito, o casamento incestuoso de irmão e irmã. E nessa riqueza de mitos e metáforas, talvez, que se encontra a mais duradoura contribuição da alquimia.

O diário mágico — ou Livro Vermelho — do doutor Jung é também um documento histórico, apesar de permanecer em enigmático mistério, já que parece ter desaparecido dos arquivos da família de Jung.

 

                         A CONEXÃO OCULTA COM O NAZISMO

 

Os nazistas e os fascistas italianos fizeram sérias investigações sobre a transformação de chumbo ou outros materiais em ouro, com objetivo de financiar suas máquinas de guerra.

Erich von Ludendorff, co-conspirador de Hitler durante o levante de Munique, organizou a Compania 164 para dar apoio aos esforços do alquimista alemão Franz Tausand para fundar o Partido Nazista. Tausand foi preso em 1928 por fraude. Em 1931, após um sensacional julgamento, Tausand foi condenado a quatro anos de prisão. Mas enquanto aguardava o julgamento, Tausand disse que era capaz de fazer ouro sob a supervisão da Casa da Moeda de Munique.

As sociedades secretas mencionadas existiram mesmo: a Sociedade Vril e a Sociedade Thule, também conhecida como Thule Gesellschaft. Esses grupos praticavam rituais de ocultismo baseados em arquétipos pã-germânicos parecidos com os rituais secretos usados pela infame Ordem da Golden Dawn inglesa. Dietrich Eckhart e o Barão Rudolf von Sehottendorff eram os dois líderes mais conhecidos da ordem dos Thule. Os Sonnenkinder e Vril-ya, crianças míticas da Raça-Mãe, foram um sonho louco desses grupos.

O MANUSCRITO VOYNICH

 

O Voynich, ou MV, talvez seja o mais misterioso manuscrito oculto da história, já tendo sido estudado sem sucesso por gerações de videntes, catedráticos e decifradores de códigos. Ele chamou a atenção da mais secreta organização de inteligência dos Estados Unidos, a National Security Agency. O manuscrito se encontra desde 1968 no Beinecke Rare Book Room, em Yale. Tem valor estimado de cerca de duzentos e cinqüenta a quinhentos milhões de dólares.

A história do MV até 1933 é basicamente a apresentada neste livro. Em 1921, por exemplo, o erudito William Newbold chegou às manchetes ao alegar que o manuscrito era fruto do trabalho de Roger Bacon, razão pela qual as ilustrações do MV mostravam imagens às quais só se podiam enxergar com microscópios e telescópios, um século antes de eles serem conhecidos do público em geral. Mas isto, assim como a maior parte das afirmações de Newbold, simplesmente não era verdade.

Os ocultistas ingleses John Dee e Edward Kelly, que se acredita terem vendido o MV em Praga por volta de 1608, são também figuras históricas que costumam aparecer em uma curiosa mistura de histórias de charlatanismo e crendices ocultistas. A Shew-Stone, o Selo da Verdade, e a bola de cristal de Dee eram artefatos reais, atualmente no Museu Britânico junto com pequenas quantidades de ouro que, de acordo com as histórias, teriam sido produzidas pelos alquimistas ingleses. A língua dos anjos ou língua enoquiana dos arcanjos, canalizada por Edward Kelly, é um alfabeto complexo usado até hoje por machistas cerimoniais.

No livro eu faço menção à Página Roseta, que foi decifrada como sendo um mapa. Uma explicação possível é que ela seria de fato a arte final de diatomáceas, algas de uma só célula como plânctons, vistas pelo microscópio.

 

Esta poderia ser uma explicação plausível, mas não para as torres, muros e castelos representados dentro das esferas como mencionado no livro. Alguns sugeriram uma ligação entre a Nova Atlântida de Bacon e a Utopia de Thomas Moore. Ambos foram considerados grandes rosa-cruzes e possíveis alquimistas.

 

Eis aqui a imagem da Utopia de Moore, decifrada na página abaixo:

Há uma declaração mais recente que propõe a solução para o enigma do MV. De acordo com ela, através do uso de um instrumento chamado Caradon Grille, que implica em usar o Voynich como se fosse uma tabela com um cartão furado para formar palavras. Dee e Kelly poderiam facilmente forjar uma fraude usando modelos com buracos diferentes para formar palavras por meio de números distintos de letras.

De acordo com essa teoria o MV é apenas – se tanto – uma bobagem que parecia mais misteriosa devido à dificuldade de ser decifrado.

Para os interessados em leituras mais detalhadas sobre os símbolos e teorias sobre o MV, sugiro The Voynich Manuscript: Na Elegant Enigma, de Mary D’Emperio, estudo encomendado pela Agência de Segurança Nacional. Infelizmente, como todos que a precederam, a senhorita D’Emperio concluiu apenas que o MV permanece um profundo mistério.

 

[1]Dançarino da chuva. (N. do Trad.)

[2]Serviço Britânico de Inteligência. (N. do trad.)

 

                                                                                Richard D. Weber  

 

                      

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