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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRIME IMPUNE / Georges Simenon
CRIME IMPUNE / Georges Simenon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

   "Tenho a impressão de que os homens não se amam por desconhecimento e medo. Detestamos o que tememos. Em tempo de guerra, odiamos o inimigo - que na maioria das vezes foi nosso amigo antes e voltará a sê-lo em dez anos - porque o tememos. Se você conhecer todos os homens, se apegará a eles. É essa a minha paixão. Há quem colecione selos. Eu coleciono homens."
   As declarações de Georges Simenon ao radialista André Parinaud se adaptam perfeitamente ao tema central de Crime impune.
   Em 1926, numa hospedaria de Liège - cidade natal do autor -, Elie, jovem polonês, estudioso e pobre, prepara com serenidade um doutorado em ciências matemáticas.
O rico romeno Michel Zograffi, recém-chegado ao mesmo local, tenta em vão obter sua amizade. Ele, no entanto, se fecha cada vez mais em si mesmo. Dos conflitos entre os dois nasce um estranho crime que um deles tentará vingar a todo custo, sem se importar com a distância no tempo e no espaço.
   Escrito em Connecticut, em 1953, Crime impune se inicia na Bélgica e termina em Carlson-City, no Arizona, na década de 50. Composto em duas partes distintas, como também, aliás, Maigret em Nova Iorque, recentemente lançado pela Editora Nova Fronteira, mostra a atmosfera de dois quadros físicos e psicológicos antagônicos, porém igualmente ricos em observações dignas da atenção do leitor. Perfeito conhecedor da Europa e do continente americano, onde passou um longo período, Georges Simenon tem mais uma oportunidade de revelar seu talento de recriador do mundo. Nisso ele parece seguir as tendências de Gogol, um dos escritores russos que, um dia, escolheu para padrinho de sua carreira - o outro foi Tchecov, que, assim como Simenon, dava a impressão nítida de sofrer por ver sofrerem os seus personagens e cuidava de lhes reparar o destino, na medida do possível. Em Crime impune, Georges Simenon volta a abordar outro de seus temas favoritos: a pequena burguesia do Norte europeu, temerosa da multidão e da sociedade, amante do segredo e do mistério do silêncio.

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  1 - O inquilino do quarto verde e o novato do quarto grená
  GRITOS de criança explodiram no pátio da escola em frente e Élie compreendeu que faltavam quinze para as dez. Havia ocasiões em que aguardava com impaciência beirando
o mal-estar aquela brutal quebra do silêncio pelas vozes de duzentos garotos a irromperem das salas de aula na hora do recreio. Podia-se jurar que todas as manhãs,
momentos antes daquele espocar sonoro, a quietude se fazia mais profunda no bairro. Como se todo ele estivesse à espera.
   Nos dez minutos anteriores, naquele dia, Élie só se lembrava de ter ouvido o ruído da sua caneta sobre o papel. Não ouvira o bonde passar na esquina da rua. Um,
pelo menos, teria passado, uma vez que transitavam de cinco em cinco minutos. Não ouvira nada, nem mesmo as idas e vindas da proprietária, e decidiu prestar atenção.
   Não tinha relógio. Possuíra um único em sua vida, o relógio de prata do pai, que lhe fora solenemente entregue quando saíra de Vilna. Vendera-o há muito tempo
e no quarto não existia despertador.
   Quando há instantes a Sra. Lange subira com o balde e as escovas, isso significava que eram cerca de nove horas. Ela subia logo após a passagem do verdureiro.
   Como de hábito, começava pela arrumação do quarto rosa, o da Srta. Lola, cujas janelas davam para a rua. Depois devia ter passado para o amarelo, ocupado por
Stan Malevitz, onde o seu primeiro cuidado era sempre acender o fogo na estufa a carvão. Para acelerar o processo despejava gasolina na estufa e o cheiro alcançava
Élie, misturado ao das cavacas em combustão.
   Estava atrasada. Já devia ter batido à sua porta. O quarto, que era verde, ficava a meio caminho entre o terreno e o primeiro andar, um aposento construído sobre
a cozinha e cujo teto de zinco transformava-o em estufa no verão e geladeira no inverno.
   Era novembro e fazia frio. Élie, para escrever à mesa diante da janela, vestira o sobretudo e interrompera-se após alguns minutos para enfiar o gorro na cabeça.
   Ela perguntaria novamente:
   - Que está fazendo aí, Sr. Élie? Por que não desceu para estudar na cozinha?
   E ele responderia:
   - A senhora não me convidou.
   - Preciso repetir todas as manhãs? Não se habituará nunca a se considerar em casa?
   Às vezes, ao subir, ela se lembrava de deter-se à porta para chamá-lo.
   - Sr. Élie! Importa-se de ficar lá embaixo e vigiar a minha sopa?
   Outras vezes esquecia-se. Ela pensava muito. Acontecia-lhe falar em voz alta, testa franzida, enquanto fazia a limpeza do quarto. Duas vezes por semana Élie tinha
aulas pela manhã na universidade, não necessariamente nos mesmos dias, e isso a desorientava. Para ela a universidade era como a escola em frente, onde se entrava
diariamente à mesma hora.
   Estava resfriado. Todos os invernos pegava um resfriado que se arrastava por meses seguidos, com altos e baixos. A fatia de céu recortada pelas chaminés das casas
vizinhas era azul clara, mas o ar estava frio, principalmente no quarto, e ele suspirou de alívio quando uma porta se abriu no corredor e os passos da Sra. Lange
soaram na escada.
   - Está aí, Sr. Élie?
   Com forte sotaque polonês ele respondeu, levantando-se:
   - Sim, senhora.
   Conforme previa, ela resmungou como se estivesse aborrecida:
   - Poderia descer, em lugar de ficar aí tremendo de frio debaixo do sobretudo. Quantas vezes preciso repetir? Desça depressa! Instale-se na cozinha e ponha carvão
no fogo.
   Era magra, tinha cabelos de um louro desbotado, tez pálida, olhos cinzentos e um eterno ar de cansaço.
   - Não precisa levar o sobretudo.
   Ele sabia que ela abriria imediatamente a janela porque não gostava do seu odor. Não o dissera nunca, mas observara um dia:
   - É estranho como cada pessoa tem um cheiro diferente. Cada quarto também, por falar nisso. Talvez as pessoas não liguem muito para isso antes de se casar. Eu
nunca me habituei ao cheiro do meu marido.
   Ele morrera há dez anos, na guerra de 1914, e desde então ela passara a aceitar pensionistas estudantes.
   - Gosto mais do cheiro dos homens que do das mulheres. O da Srta. Lola me dá náuseas. Toda vez que entro no quarto dela escancaro as janelas.
   Era também o seu primeiro cuidado quando entrava no de Élie.
   Levando os livros, as anotações, desceu para a cozinha, cuja porta envidraçada estava embaciada de vapor. No panelão esmaltado de marrom, a sopa cozinhava e no
meio do fogão de metal negro, entre as suas bocas, o orifício oval pelo qual se atiçava o fogo estava de um vermelho incandescente.
   Depois de fechar a porta, atirou ao fogo uma pá de carvão, instalou-se finalmente à mesa coberta com uma toalha impermeável e soltou um suspiro de alívio. O calor
começava a penetrá-lo, fazendo o sangue subir-lhe ao rosto, beliscando-lhe a pele. O cheiro que flutuava na cozinha era o de uma boa sopa de cebolas e batatas; os
ruídos eram discretos e familiares: o ronronar do fogo, às vezes a queda de cinzas rubras pela grelha, o fremir da tampa da caçarola.
   Tudo isso o envolvia melhor do que o sobretudo originário de Vilna, e era tão tranqüilizador como mergulhar na cama e procurar com os pés a garrafa de água quente.
   Dentro de vinte minutos ou meia hora, a Sra. Lange desceria para colocar algo numa panela, depois tornaria a subir para fazer a limpeza dos quartos do segundo
andar, ocupados por ela e pela filha.
   Também em Vilna a vida cotidiana tinha um ritmo regular, marcado pelos ruídos da serra e da plaina na oficina do pai. Mas detestava aquele ritmo e vivia sonhando,
no decorrer da infância e adolescência, em fugir dali.
   Do alto da escada uma voz chamou:
   - Tem alguma coisa queimando, Sr. Élie? Entreabrindo a porta envidraçada, respondeu:
   - Não, senhora.
   Desde que o Sr. Lenizewski, terminados os últimos exames, voltara à pátria, Élie era o mais antigo locatário da casa, onde chegara há três anos sem falar uma
só palavra de francês. Vira chegar Stan Malevitz, que dava aulas de ginástica para custear parte dos estudos; depois, um ano mais tarde, em 1925, Lola Resnick, nascida
no Cáucaso e levada pelos pais a Istambul na época da revolução. Os dois continuavam vivendo no Oriente e ela os visitara nas últimas férias. Stan também voltara
à Polônia. Somente Élie era pobre demais para pagar a viagem. Se tivesse dinheiro seria obrigado a ir.
   Leah, a irmã mais velha, havia escrito:
  
   "Papai gostaria de saber se Liège parece Vilna, como são as casas, como é a comida e se existe sinagoga.''
  
   Em Vilna moravam na Rua Oszmianski, a duzentos metros da sinagoga Tagorah, que representava papel importante na vida da família e do bairro. Existia uma sinagoga
também em Liège. Descobrira-a por acaso e nunca pusera os pés nela.
   Ouviu o balde, os passos da senhoria que ia depositar os utensílios no pátio e, em seguida, entrava na cozinha enxugando as mãos no avental.
   - Pôs carvão no fogo?
   Acrescentou mais algum, por conta própria. A casa, como a de Vilna, tinha seus ritos. O fogão, por exemplo, era flanqueado por dois baldes de carvão, que não
era o mesmo usado para cozinhar ou quando se queria calor brando. E era preciso saber em que ângulo girar a chave que regulava o fogo.
   - Vai ficar aqui? Posso subir ao meu quarto?
   No fundo sentia-se feliz porque ao menos um dos locatários era mais pobre que ela.
   - Pode se servir de um prato de sopa. Ainda não está bem cozida, mas se pegar a parte que fica no fundo...
   - Muito obrigado, Sra. Lange.
   Sabia que ela se irritava porque recusava invariavelmente o que lhe oferecia, mas era incapaz de agir de outro modo. Ela o sabia e os dois chegavam a discutir.
Um dia até havia chorado.
   - Desço daqui a quinze minutos.
   Ele nunca subira ao segundo andar, domínio das duas mulheres. Não havia aquecimento lá em cima, pois ninguém levava carvão, e a claridade provinha de orifícios
abertos no telhado. Fatalmente os melhores móveis estariam nos quartos dos inquilinos.
   Depois de arrumar a cama da filha e a sua, a Sra. Lange mudava de roupa, penteava-se e trocava de avental.
   Tinha subido há dez minutos e estava, sem dúvida, mudando de roupa, quando bateram à porta da rua. Era alguém que não conhecia a casa, pois tocou a campainha
com muita força, ameaçando arrancá-la da corrente.
   Élie esperou um instante, ouvido atento aos ruídos de cima.
   - O senhor se importa de abrir a porta?
   - Vou já, Sra. Lange!
   Gostava particularmente de certas expressões francesas e "vou já" era uma de suas prediletas.
   Enquanto percorria o corredor pintado em imitação de mármore, viu a sombra de duas pernas na risca de luz que se infiltrava sob a porta. Abriu e deu com um homem
de sua idade. E, como que tomado de um pressentimento, sentiu um recuo interior. Se ousasse dar ouvidos ao seu instinto teria fechado a porta e respondido à Sra.
Lange, quando ela o interrogasse, que era um mendigo. Passava um todos os dias.
   O pátio da escola em frente estava deserto. Não havia ninguém na rua, exceto o rapaz de pé no limiar, que fixava Élie com ar surpreso e intrigado.
   Em vez de dizer imediatamente o que desejava, refletia. Seu olhar passeou pelos cabelos ruivos e quase crespos de Élie, os olhos saltados, os lábios cheios, as
roupas que, como o sobretudo, ainda datavam de Vilna. Quando falou, sorria de leve.
   - Suponho que seja polonês.
   Falava em polonês com um sotaque que Élie reconheceu.
   - Sou. Que deseja?
   - Quero alugar um quarto.
   E designou com o queixo um cartaz aplicado a uma das janelas do térreo, anunciando um quarto mobiliado.
   - Suponho que também seja estudante - prosseguiu.
   Pareceu surpreendido porque Élie não respondeu ao seu sorriso, deixando-o na calçada sem convidá-lo a entrar. A voz da Sra. Lange perguntou do alto da escada:
   - Quem é, Sr. Élie?
   - Alguém que deseja alugar quarto.
   - Quer convidá-lo a entrar? Desço num instante.
   O recém-chegado escutou, mas aparentemente não compreendeu, pois conservou a expressão interrogativa. Não era polonês, mas romeno.
   - Entre. A proprietária vai descer logo.
   Élie recuou no corredor para ceder lugar ao estrangeiro e esteve a ponto de voltar à cozinha, deixando-o sozinho. Poderia abrir a porta do quarto da frente, justamente
o que estava desocupado.
   Era o mais bonito da casa. Antigamente servia de salão. O papel pintado era grená. Além da cama havia uma espreguiçadeira, que Élie sempre olhava com inveja.
   - Fala francês? - perguntou o romeno, antes que ele pudesse se afastar.
   Ele fez que sim.
   - Eu, não. Acabo de chegar. Devia ter vindo há um mês, para o início das aulas. No último instante precisei ser operado de apendicite.
   Falava com simplicidade, com certa satisfação, contente por encontrar alguém que o compreendia. E ao ver a Sra. Lange descer a escada acrescentou:
   - Importa-se de ficar para servir de intérprete? Antes mesmo de chegar ao último degrau, a Sra.
   Lange, que cheirava a sabão, protestou:
   - Não o convidou a entrar no quarto? Desde quando se recebem as pessoas no corredor?
   Sabia que Élie era ciumento. Ele sabia que ela sabia. Os dois conheciam-se muito bem e às vezes eclodia entre ambos uma guerrinha. Sentia-se embaraçada, por exemplo,
de assumir diante dele o seu ar mais gentil para receber um eventual inquilino.
   - Desculpe, senhor. O Sr. Élie é tão distraído que esquece as boas maneiras.
   Empurrou a porta do quarto grená, enquanto Élie dizia, satisfeito:
   - Ele não entende francês.
   - Ê verdade que não entende francês?
   O jovem romeno meneou a cabeça, sorrindo, e perguntou a Élie:
   - Que foi que ela disse?
   - Perguntou se fala francês.
   Era também judeu, mas de tipo diferente do de Élie. Tinha cabelos castanhos e lisos, olhos profundamente negros,' tez morena, e vestia-se com mais elegância que
a maioria dos estudantes. Entre os milhares de estrangeiros que cursavam a universidade haveria apenas duas ou três dezenas iguais a ele, filhos de pais ricos, e
que freqüentavam mais as salas dos cafés que as de aula.
   - Diga-lhe, Sr. Élie, que é o melhor quarto da casa. Ê um pouco mais caro que os outros, mas...
   Élie traduziu sem eloqüência.
   - Que foi que ele disse?
   - Pergunta se a senhora dá a pensão completa.
   - Sirvo o café da manhã e o senhor sabe como é o jantar. Quanto à refeição do meio-dia...
   Ele voltou a traduzir e o romeno respondeu.
   - Que foi que ele disse?
   - Que prefere a pensão completa.
   O quarto estava desocupado há três meses e, como as aulas já haviam recomeçado, havia poucas esperanças de alugá-lo antes do ano seguinte.
   - Responda que isso depende. Em geral não preparo almoço. Mas poderíamos fazer um trato.
   Teria observado que o recém-chegado cheirava a perfume? Élie notara-o com secreta satisfação, sabendo que a Sra. Lange desprezava os homens que se perfumavam.
   - Ele disse que não é exigente. Faz questão de viver em família para aprender mais depressa o francês. No primeiro ano não freqüentará as aulas.
   A negociação durou dez minutos.
   - Como se chama?
   - Mickail Zograffi. Prefere que o chamem de Michel.
   - Uma vez que concorda com o preço, pergunte quando pretende se mudar.
   Élie continuava a traduzir, voltando-se ora para um, ora para outro.
   - Assim que for conveniente para a senhora. Logo depois do almoço, se possível. A bagagem está no Hotel da Estação.
   Quando estava para sair, Michel Zograffi inclinou-se, e, para surpresa da Sra. Lange, tomou-lhe a mão e beijou-a. Ela corou, talvez de embaraço, talvez de prazer.
   Mal a porta se fechou, murmurou:
   - Rapaz bem-educado.
   Finalmente, manifestou sua alegria.
   - O quarto está alugado, Sr. Élie! Que me diz de uma coisa dessas? E eu que temia que ficasse vazio o inverno inteiro! Por que é que, sendo romeno, conforme disse,
fala polonês como o senhor?
   - Talvez seja da fronteira. Ou quem sabe a mãe é polonesa? É possível também que o pai seja de origem polaca.
   - Ele não discutiu o preço. Eu devia ter pedido mais.
   Considerava Élie mais uma pessoa da casa que um inquilino.
   - Acha que ele é rico? Reparou no anel que ele tinha no dedo?
   Voltaram ambos à cozinha. Tirando um bife do guarda-comida, ela pôs manteiga para derreter numa caçarola e descascou uma cebola.
   - Não precisa subir para o quarto. Vou deixá-lo estudar.
   De mau humor, ele fingiu absorver-se nos livros.
   - Vou ter mais trabalho preparando as refeições dele, mas vale a pena. Acha que os romenos comem as mesmas coisas que nós?
   Ninguém se preocupara jamais em saber o que ele gostava ou desgostava. Verdade que não era pensionista e comprava seus mantimentos. Nunca houvera verdadeiros
pensionistas na casa pela simples razão de que nenhum dos inquilinos tinha dinheiro para isso.
   A Srta. Lola, Stan Malevitz e Élie, cada qual tinha a sua cafeteira ou bule de chá, e sua lata para o pão, a manteiga, os frios e os ovos.
   Para que ninguém sujasse os quartos com fogareiros a álcool e principalmente por causa de incêndios, a Sra. Lange permitia que usassem a cozinha e se instalassem
depois na mesa comum.
   A Srta. Lola e Stan almoçavam fora. Somente Élie ficava em casa e ingeria diariamente um ovo cozido.
   - Devia comer carne, Sr. Élie. Na sua idade precisa-se de energia.
   Baixando a cabeça, ele respondia:
   - Não como carne de animais. Um dia acrescentou:
   - Ê repugnante.
   E era exato que por algum tempo, no início, fora vegetariano por convicção. Depois sentia as narinas fremirem ao cheiro do bife grelhado, mas estabelecera seu
orçamento de uma vez por todas e os cardápios eram invariáveis: de manhã, iogurte, um pãozinho e uma xícara de chá; ao meio-dia, pão, ovo e margarina; à noite, pão
e ovo.
   - Acha que ele se habituará à casa?
   - Por que não?
   - Deve estar acostumado a uma vida mais luxuosa.
   A Sra. Lange dava a entender que não gostava dos ricos, que eram todos egoístas, mas não deixava de tratá-los com respeito.
   - A Romênia é bonita?
   - Como todos os países.
   - Estou atrapalhando o seu estudo? Ele, frio:
   - Está.
   Aborrecida, pôs-se a andar de um lado para outro sem dizer palavra.
   Meia hora depois, uma chave girou na porta de entrada. Era Louise, a filha da Sra. Lange, que vinha almoçar e isso significava que era meio-dia e vinte, pois
levava cerca de vinte minutos entre a central telefônica onde trabalhava e a casa.
   No corredor despiu o casaco, tirou o chapéu, afofou os cabelos e olhou no espelho o rosto sempre cansado, como o da mãe.
   A Sra. Lange entreabriu a porta da cozinha.
   - Uma boa notícia! - anunciou.
   - Qual? - perguntou a filha, indiferente.
   - Aluguei!
   - O quarto grená?
   Não havia outro disponível, o que tornava supérflua a pergunta.
   - Sim. Você não é capaz de adivinhar como. Verdade que tenho que dar pensão completa.
   - Ah!
   Louise entrou sem cumprimentar Élie, a quem vira de manhã e que estava habituada a encontrar na cozinha. Levantando a tampa de uma panela, perguntou:
   - Onde vai servir as refeições?
   - Na sala de jantar, naturalmente.
   - E nós?
   - Continuaremos a comer na cozinha.
   Fixou Elie, que levantara a cabeça, e os dois se entenderam. Todos os hábitos da casa se alterariam por causa do novo inquilino.
   - Faça o que quiser. Não tenho nada com isso. Mas você vai se queixar de cansaço.
   - Se ele pagar sozinho o mesmo que pagam os outros três, vale a pena, não acha?
   A conversa criou como que um nevoeiro em torno deles. Nada se alterara ainda na casa, os objetos e odores continuavam nos seus lugares. Havia uma mancha de sol,
como todos os dias àquela hora, na parede branca do pátio. Recolhendo livros e cadernos para que se pudesse arrumar a mesa, Élie pensou que as vozes e as atitudes
já não eram as mesmas.
   - Para onde vai, Sr. Élie?
   - Vou levar minhas coisas para cima.
   Do corredor julgou ouvir a Sra. Lange dizendo à filha em voz baixa:
   - Ele está com ciúme.
   Quando desceu, o impermeável fora recoberto com uma toalha de xadrez vermelho e Louise punha os pratos na mesa. Viria a parecer-se com a mãe, um dia? Era mais
alta, não muito, também magra, e tinha os mesmos cabelos louros e olhos cinza desbotado.
   Em lugar da decisão que se lia nos traços da Sra. Lange, os da moça expressavam surda melancolia. Mesmo quando sorria, e sorria apenas a meio, raramente, parecia
ter medo de despertar a má sorte.
   Por duas vezes, na infância, estivera de cama durante meses por causa de uma moléstia que lhe atacara os ossos; levara anos usando um colete metálico.
   Os médicos diziam que estava curada e que uma recaída era mais que improvável. Ela acreditaria?
   Élie achava-a bonita. Nunca vira ninguém de pele tão fina e macia ou que desse tal impressão de fragilidade. Não a namorava. A idéia sequer lhe passava pela cabeça.
E embora suas irmãs não lhe inspirassem afeição particular, a idéia de que Louise era para ele como uma irmã proporcionava-lhe confusa satisfação.
   Ao meio-dia, na ausência da Srta. Lola e de Stan, almoçava-se na cozinha, o que evitava acender o fogo na sala de jantar e levar e trazer pratos e travessas.
Era a hora preferida de Élie. Cada qual tinha o seu lugar à mesa, Louise na sua frente, a Sra. Lange de costas para o fogão. Ele tirava do armário a sua lata, armava
a pequenina grelha que lhe pertencia, e preparava o ovo frito, colocando o pão e a margarina na mesa.
   - Não se come carne na sua terra?
   - Os outros comem.
   - Com que idade deixou de comer?
   - Dezesseis anos.
   Era exato. Tivera então uma crise de misticismo, que o enternecia diante de tudo o que era vivo.
   - Espero que não seja exigente demais.
   Estava pensando no novo inquilino com certo receio, pois não resistira ao atrativo de uma quantia suplementar, mas embaraçava-se à idéia de que os outros se considerariam
traídos pela sua decisão.
   - Deve ser de boa família. Não quer mesmo um prato de sopa, Sr. Élie?
   - Obrigado, Sra. Lange.
   - Quantas vezes pretende fazer a mesma pergunta, mamãe?
   - Não compreendo por que é tão orgulhoso.
   Provocava uma discussão justamente porque não sentia a consciência tranqüila. Acontecia-lhe discutir de vez em quando com Élie, que nesses dias saía da cozinha
batendo a porta e se trancava no quarto. Certa vez arrebentara um dos vidros.
   A Sra. Lange levava uma ou duas horas para se acalmar e sentir remorsos.
   Ã tarde ficavam de novo sozinhos em casa. Ela acabava subindo na ponta dos pés até o jirau e inclinava a cabeça para escutar.
   - Sr. Elie! - chamava a meia voz.
   Ele fingia não escutar e ela se decidia a bater à porta. Sem se levantar, Élie perguntava:
   - Que é?
   - Posso entrar?
   Nesses dias trancava-se a chave, fazia-se rogar.
   - Estou estudando. Fale através da porta.
   Ela sabia que Élie era sujeito a crises de raiva infantis. Atirava-se à cama, mordia o travesseiro sem chorar, murmurando palavras que soavam ameaçadoras. Quando
se resolvia a descer, tinha o rosto inchado e os olhos, ainda mais redondos que de costume, pareciam saltar das órbitas.
   Quando Élie se instalara na casa há três anos, ela anunciara à filha:
   - Não olhe fixamente para ele. É tão feio! Poderia adivinhar o que você está pensando.
   Já não reparavam mais nisso. E ele já não pensava em comparar-se a um sapo.
   - Sabe que o novato não fala uma palavra de francês, Louise? Deve ter chegado ontem ou anteontem e com certeza alguém indicou nossa casa.
   Voltava sempre ao assunto, mais preocupada do que gostaria de parecer.
   - É sempre assim. De início a gente pensa uma porção de coisas por não conhecer as pessoas. Quando o Sr. Lenizewski chegou há seis anos pensei que não o agüentaria
uma semana. Lembro-me de que no segundo dia observei-lhe que seria capaz de derrubar as portas se as batesse com tanta força. E ele respondeu: "Quando eu quebro,
pago!" Chorei por causa disso. Ainda assim, ele ficou aqui quatro anos e a mãe viajou até a França para me agradecer.
   Estava sempre se levantando para pegar alguma coisa no fogão, servir a filha e a ela própria.
   - Está resfriada?
   Louise fingiu que não. Também ela se resfriava todos os invernos, mas a moléstia atacava os brônquios e durava semanas.
   - Você está respirando mal.
   - Talvez porque aqui esteja quente demais.
   Fazia sempre calor demais na cozinha; as vidraças estavam eternamente enevoadas, justo o que Élie apreciava. Às vezes, durante a tarde, enquanto a Sra. Lange
corria as lojas do quarteirão, ele ficava sozinho em casa e, instalado numa cadeira diante do fogão, apoiava os pés no forno.
   - Quando é que ele chega?
   - Hoje à tarde.
   Louise tornava a sair a uma e dez, pois recomeçava o trabalho a uma e meia. Élie guardou suas coisas na lata, lavou o prato e os talheres, enquanto a proprietária
tirava a mesa.
   Também isso era motivo de discussão.
   - Para mim é pior ficar de pé à sua espera que lavar a sua louça.
   Ele não respondia, assumindo logo o seu ar obstinado.
   - Quer me dizer por que é tão teimoso? Um prato a mais ou a menos...
   Ele tinha uma idéia fixa: não queria nada em troco de nada. Ademais, poderia replicar que um dia ela acabaria por censurá-lo. Acontecera com um locatário que
ficara apenas três meses na casa. Também era pobre e, de início, a Sra. Lange o apresentava aos outros como um modelo.
   - É tão discreto!
   Cometeu o erro de aceitar o prato de sopa das onze da manhã e, uma ocasião em que adoeceu, um balde de carvão que não lhe foi cobrado.
   Um dia anunciou que estava se despedindo para instalar-se numa pensão da mesma rua, onde os inquilinos tinham o direito de receber mulheres.
   A Sra. Lange passou oito dias sem lhe dirigir a palavra e falou no assunto mais de um ano.
   - Quando me lembro do que fiz por ele! Estava sempre de meias rasgadas e eu as consertava às escondidas. Acham que me agradeceu? Fingia não perceber. Um dia em
que recebeu carta de sua terra e parecia deprimido, perguntei: Más notícias, Sr. Sacha? Espero que não haja ninguém doente na sua família. Limitou-se a responder:
"Não é da sua conta."
   A cozinha estava novamente em ordem.
   - Vá pegar seus livros, Sr. Élie, e instale-se aqui. Ele fez que não.
   - Que é que há?
   - Nada. Preciso sair.
   Não era exato, ela sabia. Era um modo de irritá-la. Ele não tinha amigos. Não tinha nada que fazer na universidade àquela hora. Não era rapaz que gostasse de
passear na rua, principalmente quando fazia frio.
   Se decidira sair era para não estar em casa quando chegasse o novo inquilino.
   - Como quiser!
   Viu-o descer pouco mais tarde, cachecol de tricô enrolado no pescoço, mãos nos bolsos do sobretudo longo demais, de uma cor esverdeada que por si só apontava-o
como estrangeiro.
   Bateu a porta com força, outro sinal de que estava zangado.
  
  2 - Cartas de Bucareste e cortinas de renda
  
   O céu manteve a lividez da alvorada no decorrer do dia e às três horas caíram alguns flocos de neve, tão leves que se dissolveram sem deixar vestígios. Em frente,
as luzes acenderam-se nas salas da escola.
   Como todas as quintas-feiras, a Sra. Lange, envergando suas melhores roupas, saía para fazer compras no centro da cidade e só voltava às cinco horas; às vezes
passava para buscar Louise na central telefônica, que ficava no caminho.
   Havia uma hora que Élie estava sozinho em casa, instalado com seus livros na cozinha superaquecida. Sentia a cabeça quente, os olhos brilhantes por causa da gripe.
Em casa não usava gravata e às vezes mantinha o camisolão de dormir sob o casaco o dia inteiro. Só se barbeava duas ou três vezes por semana, e naquele dia os fios
ruivos da barba deviam ter meio centímetro de comprimento.
   Nos primeiros tempos a Sra. Lange dizia:
   - Não compreendo por que um rapaz da sua idade não é mais vaidoso.
   Hesitara imperceptivelmente antes da palavra vaidoso. O que pensava de fato era "mais limpo". E acrescentara:
   - Às vezes me pergunto se não faz de propósito.
   Não tornara clara a idéia, mas seu olhar pousara nas unhas de Élie, sempre tarjadas de preto.
   Talvez o romeno estivesse na universidade, onde se matriculara na Escola de Minas. Era possível também que estivesse num café do centro, em companhia de compatriotas,
pois encontrara dois ou três.
   Não se integrara ainda completamente na vida da casa e, no entanto, uma semana depois de ultrapassar pela primeira vez o limiar da entrada, tornara-se ali o principal
personagem. Mesmo na sua ausência, em geral era dele que se falava.
   De manhã, por exemplo, a proprietária evitava fazer barulho porque ele se levantava tarde, e recomendava à Srta. Lola ou ao Sr. Stan, de saída:
   - Atravessem o corredor na ponta dos pés. Fechem a porta sem fazer barulho.
   Antes de subir para arrumar os quartos voltava-se para Élie:
   - Pronto! Arrumei o lugar dele. Diga que a manteiga está no armário. Quer vigiar o fogo?
   Ao contrário de Élie, o novo inquilino era de uma limpeza meticulosa e gastava muito tempo se arrumando. Como não havia banheira na casa, ia diariamente ao estabelecimento
de banhos do bairro.
   O pai e a mãe eram como ele, pessoas que pertenciam a um mundo que Élie só via de longe. Numa manhã em que Michel havia saído, a Sra. Lange, que tirava o pó do
quarto, trouxera até a cozinha onde Élie "estudava duas fotografias enquadradas em prata maciça.
   - Olhe a mãe dele. Parece ter a idade do filho. O retrato é recente, vê-se pelo vestido.
   Era de uma beleza especial, que só se encontra nas atrizes; ou mais precisamente, por causa de sua atitude, dê uma certa altivez, lembrava uma cantora.
   O pai era também, à sua maneira, um belo homem, baixinho e seco, rosto magro, voluntarioso.
   Já na segunda noite Élie precisou servir de intérprete, traduzindo as perguntas da Sra. Lange.
   - Pergunte se o pai é comerciante.
   Ele repetia as frases em polonês e Michel respondia de boa vontade.
   - Meu pai negocia com tabaco. Viaja muito. Na verdade está quase sempre viajando, pois tem escritórios na Bulgária, na Turquia e no Egito.
   - Sua mãe o acompanha? - perguntou a proprietária.
   Michel respondeu com um leve sorriso:
   - Raramente. Ela fica em casa.
   - Tem outros filhos?
   - Somente uma filha de quinze anos.
   De dois em dois dias, a Sra. Zograffi escrevia ao filho uma longa carta, e o primeiro cuidado dele ao levantar-se, ainda de pijama, cabelos caídos na testa, era
abrir a caixa do correio.
   - Eles têm muitos criados?
   - Apenas três, além do chofer.
   Entretanto, Louise costurava no seu canto, sem levantar a cabeça. Nunca fazia perguntas, parecia não escutar e, ao ver o romeno, limitava-se a um cumprimento
de cabeça e um ligeiro movimento de lábios, simulando dar bom-dia. Parecia evitar fixá-lo de frente.
   Ao meio-dia estabelecia-se certo mal-estar. Élie e as duas mulheres continuavam a almoçar na cozinha, enquanto Michel fazia as refeições sozinho na sala de jantar,
e a Sra. Lange levantava-se constantemente para servi-lo. Havia sempre um prato especial para ele, que tinha direito a sobremesa de frutas secas ou doces folhados.
   À noite, como antes da sua chegada, todos jantavam na sala. Os antigos traziam suas latas e faziam a refeição, enquanto apenas a Michel era servido um prato quente.
   Michel não fazia qualquer observação. Se não o interrogassem evitava falar ou fitar os companheiros com muita atenção. Ã noite, aliás, só quem falava era a Sra.
Lola, contando histórias num francês misturado de russo e turco, rindo por qualquer motivo e movimentando o busto opulento.
   No seu gênero era moça magnífica, gorda, mas esfuziante, sempre de bom humor. Comia bombons da manhã à noite. Fazia-se passar por estudante, mas na realidade
não freqüentava a universidade. Seria incapaz de passar num exame. Estudava numa escola comercial particular, sobre a qual preferia não falar.
   Terminada a refeição, cada qual se retirava para seu quarto, enquanto a Sra. Lange lavava a louça e, por discrição, Élie era em geral o primeiro a sair, embora
fosse o único a não ter aquecimento no quarto.
   Stan estudava até tarde, ele o sabia, pois via luz do outro lado do pátio. A Srta. Lola ou lia ou não fazia nada. Talvez se deitasse e ficasse olhando o teto,
devaneando e comendo bombons.
   Michel Zograffi havia saído duas vezes e na primeira a Sra. Lange tivera que se levantar para abrir-lhe a porta, porque ele esquecera a chave.
   Uma noite, ao levantar-se da mesa, perguntou a Élie:
   - Quer vir tomar um copo de vinho comigo na cidade?
   E corou imperceptivelmente quando o polonês respondeu:
   - Não bebo.
   O que, aliás, era exato.
   - Podíamos tomar um chá.
   - Não gosto de cafés.
   Para ser exato não os conhecia. Limitava-se a lançar-lhes de passagem um olhar furtivo. Alguns tinham atmosfera tão serena e tranqüilizadora quanto a cozinha
da Sra. Lange. Viam-se estudantes que passavam horas inteiras tagarelando diante da consumação e outros que jogavam bilhar nos fundos.
   Preferia não dever nada a ninguém, nem mesmo um copo de cerveja ou uma xícara de chá. Michel teria compreendido? Estaria aborrecido com a recusa? Impossível saber.
   Naquela quinta-feira, desde cedo Élie pensava no que faria quando a proprietária saísse e há uma hora hesitava, esforçando-se por estudar, temendo a tentação
à qual acabaria por ceder, tinha certeza.
   Quando se levantou para atiçar o fogo e viu flocos de neve flutuando no ar imóvel do pátio, decidiu não resistir. Saiu da cozinha, enveredou pelo corredor e abriu
a porta da frente para dar uma espiada na rua fria e deserta.
   Nem uma só vez durante a semana Michel voltara antes das cinco da tarde e quase sempre eram quase seis quando enfiava a chave na fechadura.
   Pela primeira vez desde que o novo locatário se instalara na casa, Élie entrou no quarto grená, onde o calor era ainda mais suave e envolvente que na cozinha,
e de outra qualidade, por causa da estufa permanentemente acesa, onde dançavam chamas através das grades.
   Ainda não havia escurecido, mas, por causa das cortinas que velavam as janelas, reinava penumbra no aposento. Nos cantos, os contornos dos objetos começavam a
perder a nitidez.
   Uma vez que se tratava do antigo salão, as janelas do quarto eram mais trabalhadas que as outras. Primeiro, cortinas de renda cobriam inteiramente as vidraças;
em seguida, pesados reposteiros de veludo, franzidos como os vestidos de antigamente, eram cerrados à noite. No peitoril jardineiras de metal trabalhado continham
vasos de plantas.
   As duas fotografias enquadradas em prata, a do pai e a da mãe de Michel, achavam-se sobre a lareira. Entre elas, caixas de cigarros turcos. A mesa de carvalho
escuro, antiga mesa da sala de jantar, estava atulhada de papéis e livros, entre os quais um dicionário francês-romeno, cujos vocábulos o novo estudante repetia
em voz alta, caminhando de um lado para outro.
   Foi às gavetas da cômoda que Élie se dirigiu, na ponta dos pés, como se fosse importante não fazer ruído, como se não estivesse sozinho em casa; gestos furtivos,
voltava-se às vezes bruscamente para as janelas, através das quais a rua lhe parecia envolta em nevoeiro.
   O primeiro objeto que descobriu foi uma caixa matizada, que Michel recebera dias antes e que continha rahat-loucoums. Faltavam cinco ou seis. De início Élie fechou
a caixa sem tocar nos bombons e pegou uma das cartas empilhadas na mesma gaveta.
   Seria por causa das cartas que se achava ali como um ladrão, sensação de angústia no peito e membros tomados de tremor incontrolável? Ele próprio seria incapaz
de dizer. Obedecia a um impulso. E o impulso incluía a necessidade de fazer um gesto ridículo, infantil: abrir de novo a caixa e pegar um rahat-loucoum, enfiando-o
inteiro na boca.
   Sabia por intermédio de Michel que a Sra. Zograffi era de Varsóvia e escrevia ao filho em polonês.
  
   "Mickail querido, meu amor.
   Se seu pai soubesse que escrevo de dois em dois dias ficaria zangado, dizendo que me obstino em tratá-lo como criança. Ele chegou ontem a Istambul. Recebi um
telegrama esta manhã. A casa, apesar da presença de sua irmã, que no momento toca Chopin ao piano, parece-me mais vazia que nunca.
   Pergunto a mim mesma se me habituaria a viver longe de você... "
  
   Élie não precisava erguer a vista e fixar a foto da lareira para imaginar aquela que dirigia ao filho palavras tão apaixonadas como as que escreveria a um amante.
   Saltou páginas, ansioso, buscando os vocábulos mais vibrantes e mais íntimos, que lhe faziam o sangue subir ao rosto. Depois de percorrer a primeira carta, pegou
outra, mas teve que aproximar-se da janela por falta de claridade.
  
   "Mickail, minha vida,
   Há doze dias você partiu e..."
  
   Sua mãe não podia escrever-lhe, uma vez que falecera há dois anos. Ele não voltara à Polônia para o enterro. A viagem seria demasiado dispendiosa. Aliás, não
tinha vontade de ir.
   As mães, no bairro de Vilna, onde morava, não eram do tipo da de Michel. A sua tivera quatorze filhos e nos últimos anos aparentemente mal os distinguia uns dos
outros. Colocava-os no mundo no quarto contíguo à oficina, enquanto os meninos brincavam lá fora e as meninas permaneciam em casa, imóveis e pálidas. Os pequenos
fervilhavam em torno dela e os mais velhos cuidavam dos mais moços. Ao completarem três anos, ela os mandava à rua, limitando-se a deter-se à porta, mãos "nos quadris,
para chamá-los na hora das refeições.
   Todas as mulheres do bairro, após alguns partos, engordavam, tornavam-se disformes, envelhecidas, seios pendentes sobre o ventre, tornozelos inchados que as impediam
de caminhar.
   Talvez, à sua moda, gostassem também dos filhos. Lavavam-nos, punham-nos para dormir, serviam a sopa como se esta fosse a sua razão de ser na vida. À noite, depois
de se deitar, Élie ouvia por longo tempo a mãe movimentando-se na cozinha enquanto o pai lia o jornal.
   O pai também não lhe escrevia, provavelmente por envergonhar-se da sua ortografia; mas as cartas da irmã Leah começavam invariavelmente por
  
   "Papai manda dizer que...
  
   Quase todas as cartas da irmã, mais ou menos mensais, eram escritas em nome do pai. Em seguida, Leah acrescentava por conta própria:
  
   "Eu estou bem. Trabalho tanto para a família inteira que acho que não me casarei nunca. Cuide da saúde. Não se canse demais. Não esqueça que nunca teve os pulmões
fortes.
   Sua irmã."
  
   Não era deles que recebia o dinheiro para custear os estudos, e sim de uma organização judaica que lhe oferecera uma bolsa quando ele terminara o secundário.
Mais tarde, depois de se diplomar, teria que devolver uma parte da quantia recebida.
   Seu professor de matemática em Vilna dizia que ele era o aluno mais dotado que passara por sua classe. Também em Bonn, Alemanha, onde ficara um ano, tinham-no
considerado um estudante excepcional, e em Liège gozava da mesma reputação. Se raramente ia à universidade era porque já preparava a sua tese e dentro de dois anos,
talvez um, completaria o doutorado.
   Então seria, por sua vez, professor. Não voltaria a Vilna, nem mesmo à Polônia. Ficaria com certeza ali pelo resto da vida, onde havia de certo modo cavado o
seu refúgio. E, se possível, jamais sairia da casa da Sra. Lange.
  
   "Meu filhinho crescido, que eu gostaria tanto de abraçar... "
  
   Gostaria de ler todas as cartas e ao mesmo tempo se envergonhava de estar ali, temendo que o surpreendessem.
   No momento exato em que a idéia lhe passou pela cabeça, ergueu a vista por ter ouvido passos na calçada e reconheceu a silhueta de Michel, que se dirigia à porta.
   Foi tão rápido e ele se sentiu de tal modo paralisado que não soube se ó romeno havia relanceado para as janelas ao passar. Pareceu-lhe que seria natural, quase
maquinai, mas não teve tempo de refletir. A seu favor existia o fato de que o aposento estava mais escuro que a rua. A transparência das cortinas era, portanto,
menor num sentido que no outro. Mas quem sabe a mancha branca de seu rosto era visível de fora?
   Com mãos trêmulas enfiou as cartas na gaveta e fechou-a, procurando não fazer barulho.
   Michel estava na soleira da porta, invisível, procurando a chave no bolso.
   Élie não tinha tempo de chegar à cozinha, mas saiu do quarto, fechou a porta e estendeu o braço para a da rua, abrindo-a no momento preciso em que o outro introduzia
a chave.
   Michel surpreendeu-se visivelmente e Élie balbuciou:
   - Mexeu na caixa do correio?
   Na rua via-se apenas uma velha de preto, na calçada em frente.
   - Não.
   - Julguei ouvir...
   Talvez a surpresa de Michel fosse resultado de vê-lo tão perturbado. Élie nunca fora capaz de esconder as emoções. Era traído pelo sangue que lhe subia ao rosto,
deixando-lhe as orelhas rubras. Às vezes chegava a gaguejar.
   - Estou sozinho em casa... - murmurou, voltando as costas ao outro e dirigindo-se à cozinha.
   Ouviu o estudante entrar no quarto e teve a impressão de que não fechava a porta. Na cozinha sentou-se no seu lugar, tomou um lápis e assumiu a atitude de quem
estuda. Mas tinha a mão trêmula e sentia o sangue pulsar nas têmporas. Não saberia dizer quantos minutos se passaram. Sequer ouviu a porta envidraçada abrir e sobressaltou-se
quando Michel disse, junto dele:
   - Eu o interrompo?
   Lançou-lhe uma olhadela furtiva. O romeno não parecia aborrecido. Pelo contrário, era ele quem estava embaraçado. Talvez não tivesse aberto a gaveta ou a caixa
de rahat-loucoums.
   - Importa-se de conversar um pouco? Sei que está estudando mas...
   Era impossível que tivesse voltado cedo proposital-mente, sabendo que a Sra. Lange saía à tarde. Um pouco sem jeito sentou-se do outro lado da mesa, no lugar
de Louise.
   - Você que está há muito tempo na casa...
   Élie recuperava lentamente o autocontrole; seus olhos tornavam-se menos brilhantes.
   - Promete responder com franqueza às minhas perguntas?
   Ele fez que sim.
   - Desde que estou aqui tenho a impressão de que causo embaraço. É tão desagradável que já no segundo dia tive vontade de procurar outra pensão.
   Élie não ousou indagar por que não o fizera. Ainda não havia recuperado serenidade suficiente.
   A penumbra acinzentava-se e logo seria hora de acender a luz. O perfil direito do romeno estava iluminado pela janela junto à qual se sentara e Élie percebeu
que era extremamente parecido com a mãe, a ponto de ter algo de afeminado. Ou seria antes infantil? Os olhos negros e brilhantes fixavam o interlocutor com ingênua
sinceridade. Pareciam dizer:
   - Estamos os dois aqui sentados e eu gostaria de revelar o que me preocupa, pedir ajuda! Você tem três anos de vantagem sobre mim, conhece a casa, as pessoas...
   Não foi o que ele disse. Em seu polonês meio cantante, falou:
   - Todo mundo é gentil comigo, talvez até demais. Tratam-me como se eu fosse alguém diferente. Não percebem que isso me deixa embaraçado. Ao meio-dia, por exemplo,
almoço sozinho, na sala de jantar, e tenho a impressão de estar de castigo.
   - É servido sozinho porque não come o mesmo que os outros.
   - Mas eu gostaria de comer o mesmo que os outros! E ter também a minha marmita.
   - Pediu pensão completa.
   - Porque não sabia. Pensei que fosse sempre assim. Não quero ser diferente, compreende? Não ouso falar com a Sra. Lange, que é tão desconfiada.
   Súbito, Élie não resistiu a uma maldade.
   - Porque você representa lucro maior que todos nós reunidos.
   Não era exato. Ou melhor, era exato e falso. Ela interessava-se por dinheiro, sem dúvida alguma. Ao mesmo tempo gostava de agradar, de fazer felizes as pessoas,
de se impor pequenos sacrifícios em benefício dos outros.
   - É exato? - murmurou Michel, perturbado.
   - Até hoje só teve inquilinos mais ou menos pobres. Stan dá aulas de ginástica para custear os estudos. A Srta. Lola, que é a mais rica, não poderia pagar pensão
completa. Para pessoas como você há outras pensões.
   - Gosto daqui. Gosto do meu quarto, da atmosfera da casa. Não quero me mudar.
   Se tivesse descoberto a indiscrição cometida por Élie falaria com tanta sinceridade?
   - Vim lhe pedir um conselho. A Sra. Lange ficaria aborrecida se eu deixasse de fazer refeições especiais e comesse com os outros?
   - Ficaria decepcionada.
   - Por causa do dinheiro?
   - Sim. E também porque se orgulha de ter um verdadeiro pensionista. Eu a ouvi falar a respeito com uma vizinha.
   - Que dizia ela?
   - Que você é muito rico e que sua mãe deve ser uma ex-atriz.
   - Ela nunca trabalhou no teatro. Então, não me aconselha a...
   - Não. Não modifique coisa alguma.
   - Não posso nem mesmo almoçar na cozinha com vocês?
   Seria fácil resolver o assunto, mas Élie não queria que nada se resolvesse. Pelo contrário, preferia que o romeno permanecesse um estranho na casa.
   - Fale com ela, se quiser. No seu lugar, eu não falaria.
   Pela primeira vez Élie percebeu que estava com ciúmes. Não saberia dizer de quê. Orgulhava-se daquele sentimento, que era mais forte que ele. E acrescentou:
   - A Sra. Lange e a filha precisam do dinheiro que lhes paga. São muito suscetíveis. Se julgassem que...
   Surpreendeu-se ao ver o interlocutor tão abalado. Parecia sofrer uma grande decepção por não participar mais estreitamente da vida dos outros.
   Sua pergunta embaraçou Élie:
   - Não gosta de mim, não é?
   E como Élie não soubesse imediatamente o que responder, acrescentou:
   - Sinto que não quer ser meu amigo.
   Era quase noite e o orifício oval da estufa brilhava mais intensamente.
   - Percebi há dias quando se recusou a ir à cidade comigo.
   - Nunca vou à cidade, exceto para estudar na casa do meu professor.
   - Por quê?
   - Porque sou pobre.
   Era a sua vez de falar, com voz trêmula que não conseguia controlar.
   - E também porque prefiro ficar aqui sozinho no meu canto. Não preciso de ninguém.
   Irritou-se ao ver que o outro o observava com curiosidade, como se não acreditasse.
   - Nunca precisei de ninguém, nem mesmo de meus pais.
   Era por causa das cartas que falava com uma espécie de maldade.
   - Não adianta alimentar ilusões para descobrir um dia que, apesar de tudo, a pessoa está sozinha na vida.
   - É infeliz?
   - Não.
   - Não ama seus semelhantes?
   - Mais do que eles me amam.
   - Nunca amou ninguém?
   - Ninguém.
   - Mulher alguma?
   Houve ligeira hesitação.
   - Não.
   A imagem de Louise apresentou-se ao seu espírito, mas, com toda sinceridade, não parecia amar a jovem. Sentia-se bem junto dela, mas não experimentava a necessidade
de falar com ela. Sua presença tinha algo de suave, tranqüilizador. Ela fazia parte da casa. Aos olhos de Élie personificava-a, e os dois poderiam viver ali a vida
inteira, protegidos do tumulto exterior.
   Em Vilna jamais conhecera a sensação de paz e segurança. A agitação das pessoas do seu bairro, do seu meio, tinha caráter áspero e violento. A cada passo sentia-se
a luta pela vida. Nas ruas as crianças já tinham olhar de velhos e aos cinco anos as meninas deixavam de brincar de boneca. No tempo frio, nos longos invernos que
duravam seis meses ou mais, patinhavam descalças na neve, e em sua casa brigava-se entre irmãos por causa de botas.
   De longe tudo isso parecia-lhe uma fermentação implacável. As pessoas eram como insetos obrigados a se devorar uns aos outros para sobreviver.
   Talvez por causa dos meses de neve e das nevascas, ele era tão friorento e passava horas com os pés no forno da cozinha.
   Por causa daquele tumulto trancafiava-se na casa da Sra. Lange como se finalmente houvesse encontrado um abrigo.
   Louise tinha pele alva, olhar tranqüilo, resignado. Ia e vinha silenciosa, mal parecia dar-se conta da vida que fluía à sua volta.
   Num dia de febre, ela havia pousado a mão na sua testa e Élie não se lembrava de jamais ter conhecido serenidade tão profunda.
   Entretinha um sonho que lhe parecia infantil: quando fosse professor continuaria a viver na mesma casa e Louise cuidaria dele. Não a imaginava como esposa, apenas
como companheira. Estudaria no mesmo lugar, junto de tampas frementes, com carvões em brasa tombando a intervalos pela grelha da estufa.
   Stan Malevitz e a Srta. Lola nunca o perturbariam. Eram como os móveis da casa onde subitamente Michel penetrara como inimigo. Élie sentia ímpetos de maltratá-lo.
Havia instantes em que gostaria de obrigá-lo a sair, e noutros parecia-lhe que se tornara também necessário.
   - Que vida pretende viver? - perguntou o romeno, sonhador.
   Ele respondeu, orgulhoso:
   - A minha.
   - Pois eu não sei. Gostaria de fazer qualquer coisa por mim mesmo, não depender de meu pai. É estranho que não queira ser meu amigo.
   - Não disse que não queria.
   - Digamos que não possa.
   Élie estava a ponto de se levantar para girar o comutador, pois mal se enxergavam. Se o fizesse, o futuro de ambos teria sido com certeza muito diferente.
   Era a penumbra que dava às palavras uma sonoridade diferente, uma espécie de sentido oculto; era também a penumbra que tornava o rosto moreno de Michel tão emocionante
como o de uma pintura antiga. E foi ainda a penumbra que o encorajou, após um longo silêncio, durante o qual lutou consigo mesmo. Desviando o rosto, balbuciou:
   - Esteve no meu quarto, não esteve?
   - Você me viu?
   Sem saber, Élie assumiu um tom agressivo.
   - Não tinha certeza. Julguei ver alguém se movendo atrás das cortinas. Enquanto procurava a chave, olhei pela fechadura e não havia ninguém no corredor.
   Élie fixou-o sem responder e foi o romeno quem, embaraçado, hesitou, escolhendo as palavras:
   - Que estava fazendo? Parecia temer a resposta.
   - Roubei um rahat-loucoum - replicou Élie, incapaz de continuar sentado.
   Mas não acendeu a luz.
   - E não foi só isso.
   O outro esperava que ele confessasse ter procurado dinheiro. A idéia irritou-o e com voz vibrante continuou:
   - Li suas cartas. As cartas de sua mãe! Foi para lê-las que entrei no seu quarto como um ladrão. Se peguei um rahat-loucoum foi por desafio. Li as cartas. Quer
que diga o que contêm?
   Baixinho, olhos fixos na silhueta que se agitava na penumbra, Michel falou, assustado:
   - Não.
   Não esperava aquela explosão, não esperava o que percebia oculto na voz, nas palavras do polonês.
   - Foi o que roubei. Pois roubei algo. Você não compreenderia. Não importa. Logo em seguida veio- me propor amizade. E sabia. Não das cartas. Imaginava que eu
havia entrado no seu quarto para roubar dinheiro porque sou pobre e às vezes sinto fome. Porque uso até hoje as velhas roupas que trouxe de Vilna. E você me estendeu
a mão. Sentiu pena.
   Michel estava imóvel, olhos arregalados, dedos crispados sobre a mesa.
   - Não preciso de dinheiro e menos ainda de compaixão. Não preciso de ninguém, nem de você, nem da Sra. Lange, nem de...
   Como alguém prestes a perder o controle, que solta uma blasfêmia para desabafar, quase pronunciou o nome de Louise.
   Não precisava também de Louise. Nunca precisara de mulher.
   - Você me pediu conselho com voz mansa e já sabia! Tenho certeza de que mal entrou no quarto foi direto às gavetas e...
   - Não abri as gavetas.
   - Li as cartas.
   - Não contêm segredo algum.
   - Fiz um roubo.
   Com gesto seco, por necessidade de sair daquela espécie de túnel onde se debatia, girou o comutador e os dois pestanejaram na claridade crua, fixaram-se, ambos
envergonhados, e desviaram o rosto como que de comum acordo.
   Não só a penumbra desapareceu subitamente. Uma certa exaltação evolou-se de um segundo para outro, deixando-os esvaziados, sem o que dizer um ao outro, a ponto
de ficarem algum tempo imóveis.
   Quando Élie se moveu foi para retirar a tampa da estufa e despejar carvão no fogo. Em seguida inclinou-se para atiçá-lo e consultou o relógio de pêndulo de cobre,
que marcava o ritmo da casa.
   Michel não saiu do lugar, não esboçou um gesto, mas foi ele quem rompeu o silêncio.
   - Gostaria de ser seu amigo - falou, acentuando cada sílaba.
   - Apesar do que confessei?
   - Principalmente pelo que confessou. <
   - Preferia não ter dito coisa alguma.
   - Pois não lamento. Agora conheço você melhor. Talvez um dia venha a conhecer você totalmente.
   - Que espera de mim?
   - Nada. Que me ajude a me adaptar. Élie esteve a ponto de indagar:
   - A quê?
   Mas conhecia a resposta. Michel precisava habituar-se à casa, com certeza. Precisava, acima de tudo, habituar-se à vida. Uma das cartas continha esta frase reveladora:
  
   "... se seu pai soubesse que escrevo de dois em dois dias... afirma que me obstino a tratá-lo como criança... "
  
   Olhos escuros, suaves e ansiosos como os de um cão em busca de dono estavam fixos nele e talvez nesse instante fosse a sua vez de sentir compaixão. Ou agiria
inspirado pelo orgulho de ser o mais forte?
   - Podemos tentar - murmurou, desviando o rosto.
   Então, para dissipar o embaraço, o romeno, como um garoto, falou de brincadeira:
   - Quem sabe um dia terei também a minha marmita?
   Vozes no limiar recriaram em torno deles a atmosfera de todos os dias. Reconheceram o timbre agudo da Srta. Lola.
   - Entre, senhorita - disse a Sra. Lange.
   A caucasiana girou o comutador e a lâmpada elétrica que pendia sobre a escada acendeu-se, iluminando o lustre de vidrinhos coloridos, vermelhos, verdes e amarelos,
que lembravam uma igreja.
   A Sra. Lange, como sempre que voltava da cidade, vinha carregada de embrulhos, que deixou cair na mesa da cozinha com um suspiro de alívio.
   - Já de volta, Sr. Michel? - espantou-se, esquecendo que ele não compreendia francês.
   Fixou-os alternadamente. Na aparência nada revelava o que se passara, mas ela franziu as sobrancelhas e observou Élie com mais atenção.
   - Está esquisito - falou. - Espero que não tenham brigado.
   - Não.
   - Apareceu alguém?
   - Ninguém.
   Verificou se havia carvão no fogo e, antes de tirar o casaco e o chapéu, pôs água para ferver.
   - Agora, vão embora daqui os dois, para que eu prepare o jantar.
   A Srta. Lola já havia subido. Élie murmurou em polonês:
   - É melhor sairmos.
   Junto à escada separaram-se sem uma palavra, Michel para dirigir-se ao quarto grená, onde reinava suave calor e havia cartas e guloseimas nas gavetas. Élie para
subir ao quarto verde, onde vestiu o sobretudo e enfiou o gorro na cabeça para não sentir frio.
  
  3 - Um casal nas sombras
  
   CERTA manhã, o carteiro, em vez de atirar a correspondência na caixa com o ruído que se ouvia da cozinha, tocou a campainha, o que só acontecia em caso de carta
expressa ou de encomenda postal.
   Eram oito e vinte. Louise, que começava o trabalho às oito e meia, saíra há poucos minutos, abrigada no seu casaco escuro de gola e enfeites em pele de esquilo
e chapeuzinho do mesmo material. Sob pretexto de que o vento que soprava era glacial, a Srta. Lola decidira não ir à aula, o que acontecia com freqüência e aparentemente
não tinha importância. Descera de penhoar rosa parecendo uma imensa boneca, e a cada gesto revelava um pouco mais do busto, que tinha estranha firmeza.
   A Sra. Lange fazia-lhe sinais enquanto ela tomava o café; a caucasiana não os compreendia ou fingia não compreendê-los.
   - Srta. Lola! - a Sra. Lange decidiu-se a falar em voz baixa. - Cuidado! Vê-se tudo.
   - Vê-se o quê?
   - A senhorita!
   Ela desatou numa sonora gargalhada.
   - E há mal nisso?
   - Há senhores presentes.
   Stan Malevitz, comendo em silêncio como de hábito, olhos no livro aberto junto ao prato, parecia não ouvir.
   - E isso os embaraça? - perguntou a moça gorducha.
   - No seu lugar, eu é que ficaria embaraçada.
   - Nas praias do mar Negro, rapazes e moças tomam banho nus e ninguém se espanta.
   - É revoltante.
   A Srta. Lola aborreceu-se de repente, o que lhe acontecia de vez em quando. Levantando-se, falou a caminho da porta:
   - Seus pensamentos é que são revoltantes!
   No momento em que a campainha tocou, ela acabava de entrar no quarto. Michel ainda não saíra do dele ou não ouvira o barulho, sinal de que dormia. Élie, diante
do fogão, preparava seu chá vigiando o ovo e àquela hora o cheiro da gasolina usada pela Sra. Lange para acender o fogo ainda flutuava no ar.
   - Vou atender - anunciou a proprietária, quando Élie fez um gesto na direção da porta.
   Era o único inquilino que atendia à campainha, abastecia o fogão e sabia em que canto do armário se achavam as moedas para dar aos mendigos. Era quase sempre
ele quem abria a porta para o leiteiro, entregando-lhe o latão de folha e dizendo:
   - Dois litros.
   Pela porta envidraçada viu a Sra. Lange receber das mãos do carteiro um pacote e assinar o recibo. O carteiro partiu e ela ficou por um instante imóvel no mesmo
lugar, olhando surpreendida o endereço, e voltou à cozinha sem bater à porta do romeno.
   Stan levantou-se e parou no limiar, onde, batendo os calcanhares, fez uma inclinação. Por discrição, uma vez que a Sra. Lange fazia menção de abrir o pacote,
retirou-se, pois sua delicadeza incluía complicados refinamentos.
   Nunca falava a seu respeito ou sobre sua família. Deixara entender que o pai era professor de um liceu de Varsóvia e, por dedução, Élie descobrira que na realidade
era apenas um vigilante, talvez o porteiro.
   Stan era louro e vestia-se com exagerada correção, sem uma dobra na roupa. Todas as noites colocava as calças debaixo do colchão para manter o vinco. Portava-se
e caminhava como um militar. Nas paredes do seu quarto havia floretes e uma máscara de esgrima.
   - Pode ficar, Sr. Stan. Sabe muito bem que aqui não há segredos.
   - Tenho que ir ao curso, Sra. Lange.
   Nos primeiros tempos, todas as manhãs, ainda que a proprietária estivesse engraxando sapatos, ele se dobrava ao meio para beijar-lhe a mão.
   - Aqui não é lugar para uma coisa dessas, Sr. Stan! Diga bom-dia, como todo o mundo.
   Nunca mencionava o assunto dinheiro. Ignorava-se quanto ganhava por mês, uma vez que a correspondência e os vales iam para uma caixa postal. No seu quarto não
havia fotografias, exceto a de um grupo de alunos de liceu, boné de veludo na cabeça no final do curso.
   Quando intrigada ou emocionada, a Sra. Lange ria como que para disfarçar e, ao abrir o pacote, murmurou:
   - Que será que me mandaram da Romênia? Talvez rahat-loucoums como os que o Sr. Michel ganha todas as semanas!
   Súbito, com um grito de surpresa:
   - Veja, Sr. Élie! Meu Deus! Como é bonita!
   Sem transição, desdobrou uma blusa de fino tecido com bordados multicoloridos, do tipo usado pelas mulheres dos Bálcãs, e desatou a rir nervosamente:
   - É capaz de me imaginar fazendo compras com essa blusa?
   Estava encantada e decepcionada ao mesmo tempo.
   - É bonita demais para mim!
   Élie olhava sem pronunciar palavra. Levando o chá e o ovo para a mesa, sentou-se.
   - E veio uma carta também. Foi com certeza o Sr. Michel quem sugeriu o presente.
   Leu a carta e passou-a ao inquilino.
   - Leia! É em francês. Que será que ele disse a meu respeito para que ela me escreva assim?
   A caligrafia era de pessoa culta.
  
   "Cara senhora,
   Permita que lhe diga o quanto me sinto feliz e tranqüilizada porque meu filho encontrou uma casa como a sua. Em todas as cartas fala-me da senhora e dos cuidados
que lhe prodigaliza. Confesso que fiquei preocupada e aflita quando o pai decidiu enviá-lo ao exterior. Estou mais calma agora que o sei em suas mãos.
   Em certo sentido Michel ainda é uma criança, a senhora já deve ter percebido. Assim, não tema censurá-lo, caso necessário.
   Envio-lhe uma babiole do meu país. Meu francês, com o passar dos anos, tornou-se tão precário que pedi a uma amiga que escrevesse para mim esse bilhete.
   Receba meus sinceros cumprimentos e creia, cara senhora, na minha profunda gratidão.
   Sua... "
  
   A assinatura era em caligrafia e tinta diferentes.
   - Não acha muito delicado da parte dela? Eu não poderia usar urna blusa dessas, Louise também não. Mas me sinto tão contente como se fosse um objeto de utilidade.
   Fixou Élie que, carrancudo, lhe devolveu a carta.
   - Continua com ciúmes?
   - Não tenho ciúmes de ninguém.
   - Então, não gosta de ninguém. Não acredito. Vou esperar o Sr. Michel se levantar. Preciso mostrar o presente da mãe dele. Hoje foi a minha vez de receber uma
carta e um pacote. Isso não me acontece com freqüência.
   Do corredor chamou:
   - Sr. Michel! Sr. Michel! Posso entrar? E entrou com a blusa.
   Para evitar encontrá-lo, Élie tomou às pressas o desjejum e subiu para o quarto. Desde o incidente do rahat-loucoum e das cartas, no dia em que caíra a primeira
neve do ano, a vida na casa permanecera a mesma, e aparentemente as relações entre Élie e o romeno não se haviam modificado. Verdade que raro se encontravam sozinhos
no mesmo aposento.
   Élie continuava a traduzir as perguntas da Sra. Lange e as respostas de Michel. Num meio-dia de sol, a proprietária chamou:
   - Sr. Élie! Quer descer um instante?
   Michel, no meio da rua, acertava a máquina fotográfica focalizando a casa.
   - Ele quer me fotografar na porta, mas faço questão de que esteja ao meu lado. É para a mãe dele, compreende? Para que saiba em que tipo de casa ele mora.
   Estava de avental limpo e se penteara. Bastou a Élie apertar o botão da máquina; Michel enviou a foto mais tarde para a Romênia.
   - Tire também uma do Sr. Élie - sugeriu a proprietária.
   Élie replicou secamente:
   - Nunca me deixo fotografar.
   Michel fixou-o sem surpresa, como se compreendesse e não guardasse rancor, revelando apenas um pouco de tristeza no olhar. Com freqüência Élie sentia pousados
nele olhos que diziam:
   - Então, ainda não somos amigos?
   O romeno parecia seguro de si, certo de que um dia conseguiria amansar o estudante de Vilna. Habituado a ser amado, surpreendia-se porque alguém, sem motivo,
persistia em se mostrar hostil para com ele.
   Paciente, evitava tomar conhecimento quando Élie o tratava com frieza; dos dois era Élie nem se perturbava primeiro e, para disfarçá-lo, refugiava-se no quarto.
   Já não era possível estudar ali. Naquele dia, por exemplo, por causa do vento, estava tão frio quanto na calçada e Élie, completamente vestido, enfiou-se debaixo
das cobertas, esperando que o outro saísse para a universidade.
   Mal ouviu a porta da rua bater e passos se afastarem pela calçada, pegou os livros e desceu, ar agressivo, como toda vez que estava descontente consigo ou com
os outros.
   Na cozinha, a Sra. Lange recebeu-o com uma censura:
   - Acha que é sensato ficar zangado lá em cima, com um frio desses? Está roxo! Aqueça-se depressa!
   Ele estendeu as mãos para o fogão, sacudido por um inesperado calafrio.
   - Está vendo? Um dia desses, por causa de sua teimosia, não vai pegar apenas um resfriado, mas uma pneumonia. Será ótimo! Já disse que o Sr. Michel ficaria muito
satisfeito se estudasse no quarto dele quando sai de casa. Não compreendo por que não permite que eu fale no assunto.
   - Não aceito favores de ninguém. Ela teve vontade de replicar:
   - De mim bem que aceita.
   Descia para estudar na cozinha a fim de se aproveitar do calor. Verdade que, por sua vez, retribuía abastecendo a estufa, vigiando a sopa e atendendo à porta
quando ela estava em cima.
   - Não vale a pena discutir novamente. Quero falar de um assunto que está me preocupando. Não pretendia mencioná-lo, mas desde que recebi a carta da mãe, demonstrando
tanta confiança, não sei o que fazer. Venho pensando nisso a manhã inteira. Quase o censurei quando tomava o café, mas não tive coragem.
   "Para uma mulher é difícil. No seu caso é diferente. Sabe o que se passa, Sr. Élie? Descobri há três dias, quando tirava o pó do quarto.
   "O Sr. Michel freqüenta prostitutas! Pode verificar pessoalmente..."
   E, sem esperar a reação dele, precipitou-se para o quarto grená e voltou trazendo fotografias. Essas não estavam enquadradas. Tinham sido tiradas com a mesma
máquina que fotografara a casa.
   - Nunca pensei que alguém se deixasse fotografar dessa maneira!
   Eram seis ao todo, quatro de uma mulher e duas de outra. Estavam nuas, ora na cama, ora perto de uma janela.
   Tinham sido fotografadas em locais diferentes, quartos mobiliados do gênero mais vulgar, desses alugados por hora, onde não se via nenhum objeto pessoal.
   Por falta de boa iluminação não eram nítidas.
   Uma das mulheres, a mais jovem e mais bonita, mostrava-se desajeitada, embaraçada com a nudez, enquanto a outra, de seios tão volumosos como os da Srta. Lola,
escolhera poses de um cinismo devasso.
   - Pensaria que ele é capaz de uma coisa dessas? Não sei como veio a conhecer moças desse tipo quando mal chegou aqui e não sabe vinte palavras de francês. Temo
que um dia desses pegue uma doença feia.
   Em sua boca as palavras tinham algo de tão cru, tão embaraçoso como o triângulo negro nas mulheres das fotos.
   - Creio que tenho o dever de escrever à mãe dele, tão gentil e confiante em relação a mim. Contudo, não quero inquietá-la.
   - Não deve escrever - disse ele a contragosto.
   - Acha que será melhor falar com ele? Estou certa de que não tem a mais leve idéia do risco que corre. Gostaria de falar com ele?
   - Isso não é da minha conta.
   - É mais moço que o senhor.
   - Dois anos.
   - Moralmente é bem mais moço. Percebe-se que não tem nenhuma experiência da vida. Essas mulheres só querem o dinheiro dele. Vão arruinar a saúde dele. Depois
que me disse que encontrou amigos romenos fiquei inquieta, porque, se fossem rapazes corretos, não haveria motivo para deixar de trazê-los aqui.
   Estava realmente preocupada.
   - Pense no caso, Sr. Élie. Faça isso por mim. Tenho certeza de que ele o escutará. Tem consideração pelo senhor... Preciso subir para arrumar os quartos. Quer
receber os dois litros de leite, como de costume, por favor?
   Tendo esquecido as fotos na mesa, voltou para pegá-las e devolvê-las ao seu lugar. Élie, que as observava, recuou vivamente. Ela teria percebido? Ao vê-las há
instantes, sentira o sangue subir-lhe ao rosto e, quando a proprietária falara em doenças feias, desviara a cabeça para que não percebesse o seu embaraço.
   Sofrerá de uma dessas doenças ali mesmo, há dois anos, e fora difícil cuidar-se de modo que a Sra. Lange não percebesse. A moça que o contaminara parecia tanto
com a do busto volumoso na fotografia que perguntou a si próprio se não seria a mesma. Era bem possível. Ambas assumiam poses de um erotismo vulgar e desajeitado.
   Em Vilna, num bairro onde rapazes e moças começavam cedo a vida sexual, nunca tivera contato com uma mulher. Em Bonn a idéia sequer lhe passara pela cabeça.
   Só em Liège isso acontecera pela primeira e única vez em sua vida, ao descobrir por acaso, uma noite, que se enganara de caminho, enveredando por uma rua onde
cada janela enquadrava uma mulher mais ou menos despida, fazendo sinais aos transeuntes. Havia algumas na soleira das portas, adiantando-se para os homens, pendurando-se
no braço deles, usando palavras grosseiras.
   A princípio sentira medo e passara depressa, evitando olhar e desembaraçando-se bruscamente sempre que lhe agarravam o braço. Chegando a uma rua mais tranqüila
parou, a fim de recuperar o fôlego, surpreendido porque o coração pulsava com tanta força.
   Certa vez em Vilna - tinha sete ou oito anos -, numa noite em que os pais o mandaram fazer uma compra longe de casa, ouvira atrás de si passos precipitados na
neve endurecida. Não ousara voltar-se, persuadido de que o perseguiam, provavelmente para matá-lo. E desatara a correr, enquanto o ritmo dos passos se acelerava
às suas costas.
   Correra durante cinco minutos pelo menos até chegar a um cruzamento iluminado, onde se detivera, respiração curta e quente, junto a um cocheiro adormecido no
banco do trenó.
   Seu coração batia tal como bateria mais tarde em Liège, na rua das mulheres. Ninguém o alcançara e ele não ouvira mais os passos que deviam ter-se afastado em
outra direção.
   Naquela noite impusera-se passar pelo mesmo caminho e, ao chegar em casa, não dissera uma palavra de sua aventura.
   Ali havia contornado o quarteirão e, dominando a angústia que fazia tremer seus joelhos, percorrera novamente a rua em passo mais lento, lançando às vezes um
olhar furtivo às janelas iluminadas. Lembrava-se ainda, após dois anos, da pianola tocada numa dessas casas de portas abertas, de uma mulher horrível que tentara
apoderar-se do seu chapéu e a quem ele repelira encolerizado.
   Mais uma vez chegou à esquina da rua e deu a volta para percorrê-la no mesmo sentido.
   Acabava de decidir que seria naquela noite e esperava recuperar a serenidade. Dessa vez foi capaz de fixar rostos, silhuetas; observou numa das janelas uma moça
cosendo, inclinada sobre o trabalho. Quando ele passou, ela ergueu a cabeça e dirigiu-lhe um sorriso tranqüilizador.
   Era morena, mais jovem que as outras. Não teria mais que vinte anos e seu rosto expressava a mesma suavidade e resignação que o da filha da Sra. Lange. Louise,
ao coser, parecia não escutar o que se dizia em torno.
   Não ousou voltar atrás. Decidiu dar outra volta e parar na próxima vez. Outros homens percorriam a rua e quando ele voltou daí a instantes a cortina estava baixada
e a porta fechada.
   Não percorreu nem mais uma vintena de metros. Uma mulher gorda e loura, encostada à moldura da porta e tricotando com lã clara, interpelou-o com voz rouca. Entrou
sem fixá-la, fechou a porta, baixou a cortina e retirou a colcha que cobria a cama.
   Quando ela tornou a abrir a porta e na obscuridade da calçada desejou-lhe boa-noite, acrescentou:
   - Não se aflija. Isso acontece.
   Três dias depois constatou que estava doente. Para evitar a despesa do médico e não falar a algum estudante que poderia ajudá-lo, consultou livros da biblioteca
da universidade e tratou-se sozinho.
   Até o momento não tinha certeza de estar curado. Não tivera outros contatos com mulheres. Perdera a vontade.
   A sopa começava a ferver na panela. Os primeiros carvões em brasa tombaram da grelha. O vento soprou na chaminé e a Sra. Lange desceu ao porão para buscar um
balde de carvão para a Srta. Lola.
   Foi um dia cinzento. No dia seguinte, a geada cobria as ruas como verniz negro e Stan calçou galochas. Uma velha senhora escorregou na esquina e duas pessoas
a ajudaram a levantar-se.
   Élie não falara a Michel, conforme pedira a Sra. Lange. Quando o romeno se preparava para sair naquela noite, ela o fixou como se quisesse dizer:
   - Vamos! É uma boa oportunidade.
   Ele permaneceu imóvel, fisionomia carrancuda.
   - Não devia sair com um tempo desses, Sr. Michel. Faz um frio de rachar pedra.
   - Vou só tomar um trago com meus amigos e volto logo.
   Trouxera do seu país um casaco de gola de astracã que, numa cidade onde só os velhos usavam agasalho semelhante, emprestava estranheza à sua silhueta. Em contraste,
parecia ainda mais jovem. O frio acentuava-lhe a tez morena e tornava rosadas suas faces.
   - Cílios como os dele fariam feliz qualquer mulher! - observou a Sra. Lange, mal ele fechou a porta.
   Élie passou o serão no térreo, sozinho com as duas mulheres. Louise havia estendido um tecido sobre a mesa, recobrindo-o com um molde de papel pardo. Empunhando
uma tesoura comprida, alfinetes presos nos lábios, cortava com cuidado.
   Um tanto afastada, a Sra. Lange, balde no chão entre as pernas, descascava batatas, que caíam uma a uma na água fresca, enquanto as cascas se acumulavam no seu
avental.
   Élie não falava. Era raro conversar. Estava mergulhado num dos seus livros e ora mexia os lábios, ora fixava mãe ou filha, aparentemente sem vê-las.
   - Parece que o inverno vai ser tão frio como o de 1916.
   A Sra. Lange falava sem precisar de respostas. A intervalos pronunciava uma frase, às vezes inacabada, e isso lhe bastava.
   - Foi o inverno em que mais sofremos com o racionamento. Lembro-me de ter andado vinte quilômetros a pé para buscar batatas numa fazenda, e às vezes precisava
me esconder de uma patrulha. Foi nesse inverno que meu marido tombou em Flandres.
   O Sr. Lange fora suboficial de carreira. Dois quarteirões adiante havia um quartel onde passara a vida exercitando recrutas. Sua foto em uniforme pendia da parede
e a condecoração que recebera achava-se num quadro com moldura dourada.
   Sem Michel, a vida seria a mesma todos os serões e Élie continuaria feliz. A Sra. Lange não o compreendia. Pensava que ele tinha ciúmes do romeno.
   As fotografias a que dava tanta importância eram apenas um dos sinais da sua falta de discernimento. Ele soubera desde o primeiro instante que um elemento estranho
se introduzira na casa e que nada de bom poderia resultar daí.
   - Tem certeza de que cortou as cavas bastante folgadas?
   - Tenho, mamãe.
   - Você me disse isso da outra vez e depois teve que desmanchar o vestido.
   Mesmo frases curtas como essas proporcionavam a Élie um sentimento de segurança que não conhecera em parte alguma. Ao contrário do que imaginava a Sra. Lange,
não sentia ciúme de Michel. E não sofria por ser pobre. Não se sentia tentado a procurar amigos num café para conversar ociosamente. Também não estava interessado
em fotografar moças nuas num quarto.
   Semanas antes não desejava nada além de continuar a viver como naquele momento, e então isso lhe parecia fácil.
   - Sua tese está progredindo, Sr. Élie?
   - Está, sim, senhora. Não muito rápido, porque cheguei à parte mais difícil. Amanhã preciso trabalhar na biblioteca.
   Havia períodos em que trabalhava na biblioteca da universidade, onde encontrava referências que lhe faltavam em casa. Era uma atmosfera que também lhe agradava,
com seus abajures verdes projetando círculos de luz sobre as mesas e as cabeças inclinadas.
   - Será que o Sr. Michel vai demorar?
   - Não se preocupe tanto com ele, mamãe - disse Louise, em tom de voz que surpreendeu Élie.
   - A mãe dele foi a primeira a me pedir para vigiar o filho.
   - Ele tem vinte e dois anos.
   - Ainda assim é uma criança.
   - Ultimamente até parece que só ele existe no mundo.
   Ela também estaria com ciúmes? Falava com um nervosismo que não lhe era habitual e Élie não soube se devia alegrar-se ou se inquietar.
   - Mais tarde você compreenderá - suspirou a mãe.
   E não se falou mais no assunto, pois a Sra. Lange acabou de descascar as batatas e foi lavá-las sob a torneira antes de despejá-las na panela da sopa.
   Durante uns quinze minutos Louise e Élie ficaram sozinhos na sala de jantar, onde a moça montava o vestido com a ajuda de alfinetes. Ele não falou. Ela também
não.
   Mas, ao erguer a vista, ele via o perfil pálido, a linha frágil do pescoço, a ligeira curvatura das costas e alegrava-se com isso. Nunca perguntara a si mesmo
como seria aquele corpo sob o vestido de lã. Jamais lhe passara pela cabeça que um homem pudesse ter o desejo de abraçá-la.
   - Vai demorar muito, Louise?
   - Uns quinze minutos, mamãe.
   - Vou subir. Tive um dia longo. Você apaga a luz?
   A Sra. Lange não temia deixar a filha sozinha com Élie.
   - Boa-noite.
   Stan saíra para dar aulas num ginásio. À noite os bondes passavam na rua próxima a intervalos de quinze minutos. Ouvia-se o ruído dos freios quando paravam e
era fácil imaginar as luzes amareladas, os vultos dos raros passageiros enveredando pelas ruas onde os postes de iluminação eram distantes uns dos outros. Eram dez
horas quando Louise enrolou as pecas de fazenda e as enfiou sob a capa da máquina de costura. Naturalmente, como se falasse a um irmão, perguntou:
   - Vai subir?
   - Vou.
   Raramente acontecia saírem juntos da sala, apagando a luz. Ela apagou a da cozinha também, depois de verificar se o registro do fogão estava regulado, e ele a
aguardou, livros na mão, no corredor que o abajur iluminava em amarelo, verde e azul, com manchas vermelhas projetadas no teto.
   Deixou-a passar à frente na escada. À altura do jirau deteve-se para desejar-lhe boa-noite e, em seguida, penetrou na atmosfera glacial do seu quarto, mergulhando
na cama o mais depressa possível.
   Quando Michel voltou passava de meia-noite e Élie ainda não conseguira dormir.
   Choveu no dia seguinte e também no outro, uma chuva deprimente e fria, parecendo eterna, e nas ruas comerciais algumas vitrinas ficaram acesas o dia inteiro.
   À tarde, Élie enfrentou a chuva para estudar na universidade. Teve uma longa entrevista com seu professor", matemático de fama mundial, para discutir um ponto
importante da tese.
   - Vai passar o Natal em casa?
   Élie disse que não. O professor fixou-o, curioso, através dos óculos de lentes espessas. Fazia-o com freqüência desde que trabalhavam juntos. Era como se examinasse
um fenômeno.
   Foi no quinto dia, após o vácuo de um domingo, que Élie fez a descoberta.
   Passara a manhã na cozinha da Sra. Lange. Logo depois do almoço fora à universidade, saindo de casa às pressas para evitar que Michel propusesse fazerem juntos
o trajeto. Continuava a chover e alguns flocos de neve cinzenta misturavam-se à trama da chuva. Caminhava de mãos enfiadas nos bolsos do estranho sobretudo e o cachecol
não impedia que a água lhe escorresse pelo pescoço.
   Na biblioteca pegadas úmidas formavam pistas em direção às cadeiras ocupadas, e a água corria pelas vidraças, deformando a ramagem seca que se projetava para
o céu.
   Às cinco e meia Élie se levantou, vestiu o sobretudo e dirigiu-se à saída sem falar com ninguém. Limitou-se a levar a mão ao boné quando passou pelo porteiro.
   A ponte não ficava longe, envolta no rumor monótono da correnteza e nas luzes que iluminavam aqui e ali a superfície móvel do rio. Em vez de tomar pela rua movimentada
à direita, onde os bondes roçavam a calçada e quase todas as semanas havia um acidente, cortou caminho por uma rua deserta, tendo por companhia o ruído da chuva
e o de suas próprias passadas.
   A cada cinqüenta metros, os lampiões a gás criavam uma zona de luz e nos intervalos reinava a mais completa escuridão.
   Havia um terreno baldio pouco distante, com recuo em relação às casas, protegido por um tapume. Ficava justamente no limite entre uma zona escura e uma iluminada.
   Élie olhava direto em frente. Era provável que fixasse o solo para evitar poças d'água, coisa maquinai que ele não percebia. Seria incapaz de dizer em que pensava,
ou por que, de repente, ao erguer a cabeça, voltou-se para a direita, cônscio de passar por uma pessoa imóvel.
   Por causa da chuva caminhava junto às casas e teve a impressão de quase esbarrar em alguém encostado a uma reentrância.
   Não era uma pessoa, eram duas. O homem estava encostado ao tapume do terreno baldio e a mulher, de costas para Élie, aninhava-se contra ele, rosto erguido, lábios
colados aos dele.
   Não olhara de propósito e sentiu-se tão embaraçado que quase murmurou um pedido de desculpas. No mesmo instante reconheceu o chapéu, a gola de esquilo e o perfil
de Louise, que lhe era tão familiar.
   Reconheceu também Michel, não só pelo casaco, como pela silhueta, pelos cabelos negros escorridos de chuva, pois tirara o chapéu.
   A cena durou segundos. Élie não se voltou. Estava certo do que vira. O que ignorava era se o tinham reconhecido. A imagem fluida e pálida dos rostos de lábios
colados perseguiu-o pelo caminho.
   Precisou de mais de cinco minutos para se acalmar, mas, quando entrou em casa, ainda estava vermelho. A Sra. Lange resmungou:
   - Vai ter febre. Aposto que seus sapatos estão encharcados.
   Ele percebeu que tinha os olhos brilhantes, um pouco úmidos, o corpo como que intumescido. Não podia fazer nada. Fora sempre assim. Quando era pequeno bastava
a mãe fixá-lo para dizer:
   - Você aprontou alguma. Talvez por isso quase a detestara.
   - Vá calçar os chinelos antes de jantar. À noite eu lhe darei dois comprimidos de aspirina.
   Viu-se de passagem no espelho e preferiu não se deter. A porta da rua se abriu. Louise entrou, parou no cabide para deixar a capa e as galochas.
   - Vamos jantar? - perguntou, com sua voz de todos os dias, ao passar pela porta envidraçada da cozinha.
   - Vamos esperar o Sr. Michel. Não deve demorar.
   Élie, na escada, hesitava descer, tentado a fingir-se de doente, enfiando-se na cama. Teria deitado, não fosse o frio úmido que reinava no quarto.
   Quando descia, uma chave girou na fechadura e ele se dirigiu rápido à sala de jantar, onde a Srta. Lola já se achava no seu lugar, retirando provisões da marmita.
   Cumprimentou-a sem uma palavra, apanhou sua marmita e passou junto de Louise sem fixá-la.
   - Sentem-se, meninos. Ouvi o Sr. Michel entrar.
   Preparava batatas fritas só para o romeno. A gordura fervilhava no fogo e uma fumaça azulada enchia a cozinha.
   - Que é que você está esperando, Louise?
   - Nada.
   Acompanhando Élie, sentou-se à mesa e, quando ele arriscou um olhar na sua direção, surpreendeu-se e decepcionou-se ao vê-la a mesma de todas as noites.
   Pareceu-lhe apenas que os lábios estavam um pouco mais coloridos que de costume, o olhar mais animado. Ninguém teria notado diferença tão ligeira, que podia ser
atribuída à chuva e ao frio.
   - O Sr. Stan não desceu?
   - Estou descendo, Sra. Lange! - falou ele, da escada.
   Levava sempre algum tempo para que cada qual se instalasse à mesa diante de sua refeição. Michel foi o último a sentar-se e Élie teve a impressão de que, ao contrário
de Louise, procurava fixá-lo com um sorriso imperceptível. Um reflexo ligeiro de bom humor flutuava em seus lábios cheios como os de uma mulher.
   A Sra. Lange, ao servi-lo, observou:
   - Espero que não saia novamente com um tempo desses.
   Ele fixou Élie, aguardando a tradução como de costume, mas o outro, esquecido de seu papel, olhava em frente de modo vago.
   - Perdão! - murmurou ao notar que todos o fixavam. - Que disse, Sra. Lange?
   - Espero que ele não saia esta noite. Não quero passar o Natal cuidando de gente gripada.
   Ao traduzir surpreendeu um cintilar alegre nos olhos do romeno.
   - Não sairei - disse, em tom satisfeito.
   Não precisou traduzir. A Sra. Lange havia compreendido pelo tom de voz e a expressão fisionômica. Élie teve a impressão de que Louise também queria esboçar um
sorriso, mas conteve-o com esforço.
   Apenas ele, durante a refeição, compreendeu aquele jogo. Evitavam dirigir-se a palavra. Na verdade, foi a Srta. Lola quem falou sem parar, contando, uma vez que
se falava em Natal, passagens natalinas das montanhas de sua terra.
   Às vezes, como que por acaso, cruzavam-se os olhares de Louise e Michel. Não se fixavam. Pelo contrário, deslizavam com leveza de pássaros, enquanto uma expressão
de alegria contida, quase infantil, refletia-se no rosto do romeno, que logo inclinava a cabeça sobre o prato.
   A mudança nos traços da moça era mais sutil, quase invisível; não era alegria, não havia vibração, e sim uma satisfação tranqüila.
   Era como se tivesse amadurecido, como se de repente nela eclodisse uma tendência a maior plenitude.
   - Querem fazer uma ceia ao voltarem da missa da meia-noite? - perguntou a Sra. Lange.
   A Srta. Lola começou a enumerar os pratos tradicionais do seu país, enquanto Élie tomava o seu chá e Michel, segundo lhe parecia, olhava-o com censura.
  
  4 - A missa das seis e a bênção
  
   A casa, como a natureza, tinha as suas estações, que Élie aprendera a identificar. Todos os anos, por exemplo, primeiro nas imediações do Natal, quando se aguardam
as crianças que entoam os cantos do Advento, e depois no início da Quaresma, a Sra. Lange passava por um período de religiosidade.
   Em vez de se contentar, como no restante do ano, com a missa matinal de domingo, assistia diariamente à missa das seis e voltava à igreja no final da tarde para
a bênção.
   Acontece que Élie, que tinha sono leve, ouvia o despertador tocar no segundo pavimento às vinte para as seis. Era mais ou menos a hora em que os sinos da igreja,
cujo telhado se avistava sobre o da escola em frente, tocavam a primeira chamada; pouco depois a proprietária descia de sapatos na mão, o que não a impedia de arrancar
sempre estalidos do mesmo degrau.
   Élie ficava de olhos abertos no escuro, ouvindo a pulsação da casa e, após algum tempo de imobilidade, tinha a impressão de ouvir a respiração dos que dormiam
nos quartos, o estremecimento de um estrado quando alguém se mexia.
   Antes da missa, a Sra. Lange não passava pela cozinha. Calçava-se sentada no último degrau e quando fechava a porta para mergulhar na rua fria e deserta os sinos
tocavam a segunda chamada.
   A missa era breve. Deviam ser poucos os fiéis, velhos ou viúvas trajadas de preto como ela, espalhados pela nave imensa, olhos fixos nas velas do altar. Às seis
e meia já estava de volta e seu primeiro cuidado antes de tirar casaco e chapéu era acender o fogo.
   A casa iniciava pouco a pouco sua vida. matinal, começando pelo cheiro de madeira queimada e de gasolina, que a invadia toda, depois pela movimentação ruidosa
do quarto amarelo do primeiro andar, onde Stan Malevitz, antes de se lavar, fazia ginástica.
   O cheiro do café vinha mais tarde e, em seguida, os passos de Louise na escada.
   Na semana seguinte, Louise passou a descer um pouco mais tarde. Como nos outros invernos, pegara uma gripe complicada por bronquite e dor de garganta. Já que
não podia aquecer a mansarda onde não havia lareira, ficava de cama ou passava o dia numa poltrona junto à estufa da sala de jantar.
   Em geral só se acendia a estufa da sala para o almoço do Sr. Michel e a refeição da noite.
   - Pode estudar na sala, Sr. Élie. Ficará melhor do que na cozinha e minha filha não vai perturbá-lo.
   Louise não se queixava; não era uma doente que dava trabalho. A mãe fora buscar alguns livros na biblioteca do bairro e ela lia o dia inteiro, interrompendo-se
apenas para olhar o céu cinzento sobre o muro branco do pátio.
   Desde que Élie surpreendera os dois no ângulo da rua, Michel não dissera palavra, não aludira ao incidente, mas Élie tinha certeza de que fora reconhecido. O
romeno fixava-o às vezes com olhar de cumplicidade, com certa alegria pueril, como se dissesse:
   - A vida é bela, não acha?
   Brincava com ela, saboreava-a, revelando os dentes muito brancos num sorriso desarmante.
   Sabia um pouco de russo e às vezes, no jantar, provocava a Srta. Lola, que nunca se zangava e ria a ponto de perder o fôlego, com o seu estranho riso gutural,
aproveitando-se de todas as oportunidades para tocar no ombro ou no braço do rapaz.
   - É louco! - exclamava. - É totalmente louco, Sra. Lange! Me dá vontade de ter um irmão igualzinho a ele.
   E a proprietária replicava:
   - Tem certeza de que é um irmão que gostaria de ter?
   Louise parecia às vezes não escutar. Prosseguia no meio do grupo a sua vida pessoal, que lembrava um longo devaneio interior, de modo que Élie chegava a duvidar
dos seus sentidos, perguntando a si mesmo se era a moça de lábios colados aos do romeno, encostada no muro.
   Gostaria de odiar o novo locatário e esforçava-se nesse sentido. Por causa dele a vida já não era a mesma na casa; perdera a serenidade e rondava como um gato
que não encontrava seu cantinho predileto.
   Michel perceberia? Vivia intensamente demais a sua vida para se preocupar com os outros e, já que era feliz, os que o rodeavam deviam ser também.
   Élie passava agora quase o dia inteiro na sala de jantar, à sós com Louise. A intervalos subia ao jirau para buscar um livro ou um caderno. As vezes, ao descer,
ela não ouvia seus passos e sobressaltava-se dando com ele tão próximo.
   - Eu a assustei?
   - Não. É a única pessoa nesta casa que anda de um lado para outro sem fazer barulho.
   - Porque vivo de chinelos. Usava chinelos de sola de feltro.
   - Quando calça sapatos também é silencioso. Não sei como consegue.
   Não era de propósito. Datava da infância. Deus sabe o quanto a casa de Vilna era barulhenta. Lembrava-se de ter por várias vezes assustado a mãe, que um dia lhe
disse:
   - Você é tão silencioso quanto um peixe no aquário.
   A frase o entristeceu na época porque lhe deu a impressão de conter um sentido mais profundo. Ali na rua, num dia em que se detivera para observar crianças jogando
gude, elas tinham se voltado de repente e, ao vê-lo num lugar onde julgavam não haver ninguém, tinham desatado a correr, assustadas.
   Se não tivesse visto Louise nos braços de Michel, deixaria talvez para mais tarde o trabalho a que se dedicava todas as tardes na biblioteca, a fim de ficar com
ela o tempo em que a gripe a mantinha em casa.
   Agora isso já não fazia sentido, não tinha sabor. Michel também não ficava em casa. Continuava a sair à noite para se encontrar com os amigos ou talvez as moças
que fotografava nuas no quarto. Somente a intervalos Élie julgava surpreender uma rápida troca de olhares entre ele e a filha da Sra. Lange, mas não tinha certeza,
e perguntava a si mesmo se o abraço sob a chuva não fora fortuito.
   Raro chegava em casa antes das cinco. No entanto, sabia que a proprietária, depois de abastecer e regular a estufa, vestia o casaco, punha o chapéu e precipitava-se
para a igreja, caminhando junto às casas.
   A bênção era mais longa que a missa, pois recitavam-se intermináveis orações, cujo murmúrio chegava à rua. A Sra. Lange voltava às seis menos vinte, hora em que
os inquilinos regressavam um a um e a vida em comum recomeçava. Em geral era Michel o último a chegar, trazendo às vezes no hálito um leve odor de aperitivo.
   Numa segunda-feira, lá pelas quatro horas, quando estudava sob um dos abajures verdes da biblioteca, Élie foi acometido de dor de cabeça tão violenta que desistiu
de continuar a pesquisa. Por causa da proximidade das festas, as ruas estavam apinhadas de gente e um fluxo ininterrupto desfilava diante das vitrinas, iluminadas,
cheias de mercadorias.
   Quando passava pela igreja, ouviu a voz sonora de um padre recitando orações que os fiéis repetiam murmurando. Por um instante sentiu a tentação de subir os degraus,
empurrar uma das portas trabalhadas que ele nunca ultrapassara, mas cujo ranger conhecia. Por preguiça e também por discrição não o fez. Nunca havia entrado numa
igreja católica. Por diversas vezes a Sra. Lange insistira em que a acompanhasse, dizendo:
   - Verá como é bonito! E vai ouvir os órgãos!
   Ouvia-os da rua ao passar no domingo, principalmente quando, no final da missa solene, escancaravam-se as portas e a multidão de fiéis saía com surdo rumor de
passos.
   Ã medida que se aproximava de casa, as ruas tornavam-se mais sombrias, mais desertas e, ao dobrar a última esquina, não havia ninguém na calçada além dele.
   Estava a alguns passos da porta quando notou um pálido risco de luz filtrando-se por entre as cortinas do quarto grená. Mal passava das cinco. Era surpreendente
que Michel já tivesse voltado. Abriu a porta silenciosamente, mas não o fez de propósito; na realidade sequer percebeu que não fazia ruído e, com seu passo habitual,
dirigiu-se ao fundo do corredor, onde a porta da sala estava aberta.
   Notou imediatamente que a poltrona de Louise estava desocupada. A filha da Sra. Lange também não se achava na cozinha. A porta de comunicação da sala de jantar
com o quarto de Michel estava fechada.
   O que mais o surpreendeu, o que lhe provocou um aperto no coração foi não ouvir ruído algum. Mesmo quando se aproximou da porta e encostou o ouvido ao batente
não surpreendeu o mais leve ruído de vozes, um só cochicho. Ficou imóvel por um instante, ouvido atento, contração dolorosa estampada no rosto.
   Á contragosto acabou por ceder à tentação de espiar pela fechadura e, quase de joelhos, apoiou a mão na moldura da porta.
   Não se moveu diante do que viu e teve a impressão de que deixava de respirar enquanto olhava. Sentia apenas o sangue pulsar nas veias dos pulsos e do pescoço.
   A claridade do quarto era avermelhada, como que protegida por um abajur de seda. A cama ficava à direita, bem alta, e na borda estava Louise de joelhos afastados,
exatamente na pose da mulher que contaminara Élie, enquanto Michel, de pé, penetrava-a com longos movimentos ritmados.
   Via-os a ambos de perfil. A moça, talvez por causa da iluminação, estava muito pálida, lábios da mesma cor da pele, narinas contraídas, olhos fechados. Seu rosto
não expressava nada. De tão imóvel parecia morta.
   Michel não falava, não sorria e, de onde se achava, Élie ouvia-lhe a respiração em sintonia com os movimentos.
   Só no fim Louise sofreu dois ou três estremecimentos nervosos. Seu rosto crispou-se sem que ele soubesse se de dor ou prazer; o homem ficou um instante imóvel,
recuou um passo, teve um risinho seco e estendeu-lhe a mão para ajudá-la a levantar-se.
   Élie ergueu-se também, saiu da sala e parou no corredor para pendurar o sobretudo, enquanto ouvia vozes no quarto.
   Subiu e, sem acender a luz, atirou-se à cama, punhos contraídos, maxilares tão rígidos que os dentes chegavam a ranger. Idéias fantásticas passavam-lhe em desordem
pela cabeça com a violência de uma explosão e a intervalos ocorria-lhe uma expressão que não teria necessariamente significado, mas exprimia tudo o que sentia:
   - Vou matá-lo!
   Matar! Com a incoerência de uma criança que acaba de sofrer cruel decepção repetia a meia voz, dentes cerrados:
   - Vou matá-lo!
   Não era um projeto e menos ainda uma decisão. Não tinha vontade de agir e sim de falar, e isso o aliviava. Era incapaz de chorar. Nunca havia chorado em toda
a sua vida. Quando a mãe lhe dava uma surra acabava por enfurecer-se diante do que julgava indiferença e gritava:
   - Chore! Chore! Você não é feito do mesmo material que os outros? Orgulhoso demais, não é?
   Não era exato. Ele não era orgulhoso. Não agia de propósito. Não era por sua culpa que enrubescia e ficava de olhos brilhantes, mas secos; só se externava dessa
maneira.
   Esquecera a dor de cabeça. Sentia dor no corpo inteiro, como se todo o seu ser fosse uma só ferida. Conseguiria finalmente odiar Michel. Odiava-o. Até morrer
veria Louise tal como acabava de vê-la, tão próxima que não perdera um só estremecimento de seu rosto.
   Seria a primeira vez que o fato acontecia? Não se abraçavam. Não existia amor, ternura na atitude. Logo em seguida, enquanto Élie ainda estava no corredor, já
falavam no tom de voz costumeiro.
   No momento Louise devia ter voltado ao seu lugar na poltrona. Ouviam-se diversas vozes, o ruído do atiçador no fogão, a porta que se abria para Stan Malevitz.
Só faltava a Srta. Lola.
   Perguntou a si mesmo se desceria. Gostaria de fazer algo de extraordinário, fosse o que fosse, tão dramático quanto a sua descoberta, mas nada lhe ocorria.
   - Sr. Élie!
   A proprietária chamava da escada e, para surpresa dele, acrescentava:
   - Srta. Lola! Hora do jantar!
   De fato, a Srta. Lola saiu do quarto onde já devia estar antes da chegada de Élie. Não saíra, com certeza. Louise sabia. O casal não se preocupara com isso. Quem
sabe tinham ouvido também Élie entrar, mas isso não os detivera.
   Alguém subia a escada. Passos aproximaram-se da porta. Ele saltou da cama, enquanto a Sra. Lange resmungava:
   - Que está fazendo aí no escuro?
   - Estava descansando.
   E acrescentou, embaraçado:
   - Estou com uma terrível dor de cabeça.
   - Desça depressa para não se resfriar. Obedeceu.
   Ela falava, como sempre, em tom de zanga, mas Élie sabia que o estimava. Era a única pessoa no mundo que manifestava por ele interesse ou mesmo afeição.
   - Chegou há muito tempo?
   Encontravam-se ambos na escada. As portas estavam abertas. Lá de baixo poderiam ouvi-los. Para inquietá-los, Élie sentiu ímpetos de responder que chegara uma
hora atrás, mas não teve coragem.
   - Pouco antes da senhora.
   Os outros, Louise inclusive, estavam à mesa. A porta do quarto grená, pela qual entrou Michel, ficou entreaberta e Élie sentiu-se embaraçado no decorrer de toda
a refeição. Embora não se visse coisa alguma, pois a luz estava apagada, não podia deixar de evocar a cama.
   Ficou muito tempo incapaz de fixar Louise e esta, quando finalmente lançou-lhe um olhar envergonhado, tinha a fisionomia normal, menos pálida que há instantes,
e respondeu calmamente a uma ou duas perguntas da mãe.
   - Recomeçou a gear - anunciou a Sra. Lange. - Não me surpreenderei se amanhã nevar de verdade e por muito tempo.
   E voltando-se para Élie:
   - Pergunte se neva na terra dele.
   Quase recusou. Tudo aquilo parecia-lhe ridículo, odioso. Por um momento o ambiente, os rostos em torno da mesa, a iluminação, o ruído de facas e garfos, a própria
casa e aquela cidade estranha que o rodeava perderam a realidade.
   Que fazia ali, tão longe do lugar onde nascera, entre pessoas desconhecidas, que não falavam sua língua e não tinham com ele nenhuma ligação?
   - Não quer traduzir?
   - Sim. Desculpe.
   Sua própria voz soou-lhe estranha. Para que traduzir uma pergunta cuja resposta conhecia?
   Tão logo Michel se calou, a Sra. Lange indagou:
   - Que foi que ele disse?
   - Há invernos em que cai mais de um metro de neve.
   - No entanto, é mais quente que aqui.
   - Faz muito calor no verão e muito frio no inverno.
   - Acho que não gostaria do clima.
   Louise não parecia escutar com mais atenção que nos outros dias. Como sempre que lhe davam oportunidade, a Srta. Lola começou:
   - No Cáucaso, na minha terra...
   Por que ele não falaria da sua terra? A Sra. Lange chegara a observar um dia:
   - Até parece que tem vergonha.
   Não era vergonha. Mas não tinha vontade de voltar ao seu país porque nenhuma recordação agradável o atraía.
   - Não fala a respeito de seus pais e não chorou quando sua mãe morreu. Não gostava dela?
   E ele respondera simplesmente:
   - Não.
   Por causa da resposta, ela o tratara friamente durante semanas. Louise amaria a mãe? Amaria Michel? Este sentiria por ela a mais ligeira afeição? Existiria no
mundo inteiro um ser capaz de amar realmente o outro?
   Comia maquinalmente, pois não sentia fome. Percebia que estava vermelho e a proprietária acabaria por perguntar o que sentia. O fato nunca lhe passava despercebido.
Mas não perguntava à filha, por exemplo, em que pensava quando a via nas nuvens.
   Aconteceu logo após uma frase pomposa de Stan Malevitz a respeito dos ringues de patinação de Varsóvia.
   - Alguma coisa errada, Sr. Élie? Espero que não tenha recebido más notícias.
   - Não, Sra. Lange - disse, enquanto Louise voltava o rosto para ele, fixando-o com atenção.
   Perturbou-se, tomou depressa o chá, tossiu, e levou o guardanapo ao rosto.
   - Está diferente. Há dias percebo que não anda bem.
   - Nunca passo bem no inverno.
   - Se ao menos engordasse! Não é possível manter a saúde estudando como estuda, sem comer quase nada.
   Era o que mais a preocupava. Sabendo que ele não tinha" dinheiro para se alimentar melhor, repetia:
   - Se estivesse no seu lugar, faria qualquer coisa, nem que fosse varrer as ruas. Poderia dar aulas a estudantes mais atrasados.
   Oito dias antes havia sugerido:
   - Por que não dá aulas de francês ao Sr. Michel? Ele está procurando professor. Pagaria o que pedisse, pois não sabe o que fazer do dinheiro. Perderia apenas
uma ou duas horas por dia e poderia comer à vontade.
   - Não, senhora.
   - Orgulhoso demais, é esse o seu defeito. Vai adiantar muito quando o orgulho o levar ao cemitério!
   Não podia voltar-se para Louise, pois, se o fizesse, tinha certeza de que ela compreenderia. Talvez já tivesse compreendido. Continuava a observá-lo com insistência
e ele se embaraçou, desejando que alguém falasse para desviar dele a atenção.
   Não queria também fixar Michel, cujo perfume um tanto sem graça chegava-lhe às narinas, atravessando a mesa.
   - Observei muitas vezes que, quando se aproximam as festas, os estrangeiros se entristecem. Compreende-se. Vêem todo mundo preparar-se para festejar em família.
Pergunte, Sr. Élie, se na casa dele fazem a ceia de Natal.
   E acrescentou logo:
   - Desculpe. Não me lembrei de que também é judeu.
   A frase provocou silêncio.
   Naquela noite só adormeceu pelas três ou quatro da manhã, depois de passar uma eternidade sem ouvir o mais leve ruído na casa ou na cidade. Ouvira passar o último
bonde, bem mais tarde a voz de um bêbado, e depois os sinos da igreja tocando as horas e as meias horas. Evitava mexer-se, pois só o lugar ocupado pelo seu corpo
estava aquecido e, se estendesse o braço, encontraria o lençol gelado.
   Várias vezes disse consigo mesmo que estava com febre e que ia adoecer. Sabia que não era exato. Também não era exato que mantivesse os olhos abertos e que suas
idéias se embaralhavam, deformavam, mergulhavam no irreal, que pouco a pouco assumia lugar mais importante que a realidade.
   Havia momentos, por exemplo, em que tinha a impressão de se desdobrar. Seu corpo permanecia encolhido nas cobertas puxadas até o nariz, e as idéias tumultuavam-se
na sua grande cabeça ruiva. Ao mesmo tempo via esse corpo, examinava-o com uma espécie de repulsa, estudando friamente os famosos pensamentos que desfilavam em rosário.
Não eram mais belos que o rosto inchado, os olhos de peixe ou de sapo. Talvez por achá-lo tão feio no íntimo quanto exteriormente a mãe não o tivesse amado. Ele
nunca tivera amigos e mulher alguma o fixara como as mulheres fixam os homens.
   De quem tinha ciúmes? Na casa não passava de um inquilino como os outros, nem mesmo isso, uma vez que era mais pobre, e a Sra. Lange não lucrava com ele. Aproveitava-se
do calor da cozinha, da sala de jantar. Aproveitava-se da presença de todos, do som de suas vozes. Era ele quem conscientemente agarrava-se aos outros porque no
fundo não confessaria jamais a ninguém o que lhe repugnava confessar a si mesmo: temia a solidão.
   Roubava a todos, a Louise mais que aos outros. Por falta de coragem de cortejá-la e dar com uma recusa passava por ela, contentando-se com sua presença, o ritmo
de sua respiração, a visão de seu rosto incolor.
   Agora, porque fazia amor com um homem, coisa natural entre macho e fêmea, sentia ciúmes. Já sentia antes disso. Estaria com ciúmes ainda que nada se tivesse passado
entre ela e Michel.
   Por que se incrustara na vida dos outros, não permitindo que essa vida mudasse?
   Que esperava sem nada formular claramente? Não pretendia, terminados os estudos, voltar para a sua terra. Não tinha intenção de ir a parte alguma.
   Como uma criança que imagina que nunca sairá de perto dos pais, achava natural ficar ali pelo resto da vida, enquanto a Sra. Lange prosseguia na rotina diária
e Louise lhe dava a sua presença.
   Ridículo. Michel tinha razão. E, por percebê-lo, Élie ressentia-se com a presença dele e até com sua existência.
   Acusavam-no de ser orgulhoso. Todo mundo, a começar pela mãe, enganava-se, inclusive aqueles que, como seu professor, imaginavam-no auto-suficiente e o observavam
com admiração mesclada de inquietude.
   Não era orgulhoso. Não era auto-suficiente. Aquilo que precisava dos outros, tomava-o sorrateiramente. No fundo era um ladrão. E um covarde.
   Quanto a Louise, apropriava-se dela tanto quanto Michel. Não da mesma maneira. Não a atirara sobre a cama, isso não o atraía. Causava-lhe medo.
   Nem por isso deixara de entretecê-la em sua vida sem que ela soubesse, mais estreitamente que o romeno, a ponto de sentir de repente a impressão de que lhe haviam
cortado as raízes.
   Precisava odiar Michel. Era indispensável. Seria um alívio odiar alguém que não fosse ele próprio.
   Sonhava estar acordado, examinando a consciência com olhar frio e impessoal. Os sinos badalaram. A Michel não ocorrera sequer que tinha feito algo de mal. Era
inocente e, quando tentava condená-lo, todas as vozes em torno dele, à mesa, repetiam:
   - Inocente!
   Uma campainha tocou, pés descalços entraram em contato com o assoalho frio e ele mergulhou num sono de verdade até que bateram à porta e a voz da Sra. Lange perguntou:
   - Está doente, Sr. Élie?
   Devia ter respondido com voz rouca.
   - Estou chamando há dez minutos pelo menos. São oito horas. O Sr. Stan já saiu.
   Sentia a cabeça oca, o corpo moído. Quando desceu, esforçou-se por olhar Louise de frente e ela limitou-se a dizer:
   - Espero que não tenha pegado minha gripe.
   Quando terminava a refeição, Michel sentou-se, cheirando a colônia, com um pouco de talco no lóbulo da orelha. Dirigiu um vago bom-dia à moça, sem a fixar particularmente,
e meia hora depois seu passo alegre soou na rua.
   Conforme anunciara a proprietária, nevava forte. Os flocos caíam em turbilhão e começavam a formar uma camada branca nos telhados, mas dissolviam-se ao contato
com a pedra cinzenta do calçamento.
   Dez vezes no decorrer da manhã, trabalhando a dois metros da moça, Élie pensou:
   - Vou matá-lo.
   Não acreditava. Era como a Sra. Lange a repetir sem pensar:
   - Jesus, Maria, José!
   Não pensava certamente no Cristo, na Virgem e no pai adotivo.
   Uma voz gritou lá de cima:
   - Quer comprar dois quilos de batatas e um molho de cenouras, Sr. Élie?
   Realizava maquinalmente os ritos como se neles já não acreditasse.
   - Está zangado comigo?
   Fixou Louise aturdido, sem saber o que responder, sem notar que não lhe havia dirigido a palavra a manhã inteira.
   - Não.
   - Pensei.
   Mais uma vez corou, sentindo as orelhas arderem. O verdadeiro motivo de sua perturbação era o fato de naquele, momento exato, ao fixar o rosto pálido e sereno,
ter perguntado a si mesmo se naquela tarde aconteceria o mesmo que na véspera.
   Ela teria adivinhado? Seria como a mãe que tinha o dom de descobrir os pensamentos vergonhosos que cada qual escondia dentro de si?
   Dirigiu-se à biblioteca depois do almoço. A neve começava a se colar às solas dos sapatos e os trilhos do bonde eram riscas negras na brancura da rua.
   Às quatro e meia levantou-se, devolveu os livros à bibliotecária, rumou para o rio e atravessou-o à mesma hora que na véspera.
   Ao passar pela igreja ouviu as mesmas vozes e quando se aproximou da casa estava mais silencioso que nunca e introduziu com cuidado a chave na fechadura.
   Viu a risca de luz avermelhada entre as cortinas. Erguendo a cabeça, notou que as janelas da Srta. Lola não estavam iluminadas. Deteve-se um instante no corredor
para tirar o gorro e o sobretudo úmidos e instantes depois sentiu certo alívio ao entrar na sala, não porque Louise estivesse presente, e sim porque estava ausente
   Devia ter o ar de um ladrão. Não passava de um ladrão, uma vez que tinha consciência disso. Ainda assim aproximou-se da porta e, sem perder tempo a escutar, inclinou-se
logo para colar o olho à fechadura.
   Provavelmente por ser mais cedo que na véspera viu outros gestos e as imagens eram tão nítidas, os detalhes tão precisos como se os visse através de uma lente.
   No dia seguinte e no outro achou-se no mesmo lugar na mesma hora, e quando todos estavam reunidos à mesa mostrou-se distraído, cônscio de que sua voz soava estranha,
de que o olhar deslizava assustado pelos rostos, e que todos percebiam.
   Não ousava voltar-se para Michel por causa do sorriso do rapaz. Enquanto Louise portava-se como sempre; enquanto ninguém adivinharia coisa alguma pela sua expressão
e seu olhar não se desviava ao encontrar o dele, nos lábios do romeno havia um sorriso de sutil ironia.
   No terceiro dia Élie estava tão persuadido de que Michel sabia que ele espiava pela fechadura, que passou a se perguntar se não seria para provocá-lo que exigia
da moça determinados gestos.
   - Começo a achar que está mesmo doente, Sr. Elie. Se fosse o senhor, consultaria um médico.
   - Não, senhora.
   - Não está se vendo a si mesmo. Hoje à noite, antes de subir, tire a temperatura.
   Era sua mania. Mantinha um termômetro na sopeira do aparelho que não era usado, presente de casamento, onde guardava pequenos objetos, botões, parafusos, contas
de eletricidade.
   Todas as manhãs, seu primeiro cuidado, assim que Louise descia, era enfiar-lhe na boca o termômetro, vigiando-a com o canto do olho para impedi-la de falar.
   - Trinta e seis.
   Não tinham chamado o médico para a moça porque era a mesma coisa todos os anos. A mãe preparava refeições leves, principalmente ovos com leite, e mantinha junto
à poltrona um jarro de limonada.
   Duas vezes por dia pincelava a garganta de Louise com tintura de iodo.
   - Estou certa de que sua temperatura está mais alta que a dela. Mas é orgulhoso demais para...
   Sempre a mesma palavra, cuja estupidez forçava-o a cerrar os punhos.
   - Se eu fosse sua mãe...
   Não era. Era mãe de Louise e não reparava no sorriso de Michel que, da manhã à noite, expressava satisfação. Élie não conseguia definir aquele sorriso. Não podia
compará-lo a coisa alguma, exceto ao sorriso de um prestidigitador que acabava de fazer um truque impressionante e a quem o público olha com estupefação.
   Se o sorriso era endereçado mais a Élie que aos outros não seria por Michel saber que era o único capaz de apreciá-lo?
   Fazia prestidigitação, atirava as bolas ao ar e elas voltavam documente às suas mãos. O público só via fogo. Engraçado.
   A vida era engraçada. Achavam-se todos em torno da mesa, sob o lustre que iluminava igualmente todas as cabeças, falando de coisas sem importância; cada qual,
exceto Michel, comia o que retirava da marmita; a Sra. Lange, que tinha quarenta e cinco anos, viúva que julgava saber de tudo, tratava-os como se fossem crianças,
distribuía conselhos sem desconfiar que uma hora antes, para além da porta então entreaberta, na cama que poderia ser vista por quem inclinasse a cabeça, sua filha
assumia as mesmas poses, fazia os mesmos gestos que as mulheres a quem ela tanto temia!
   Terminada a refeição, Michel sentia necessidade de sair novamente. Voltava à meia-noite. Devia beber, pois tinha dificuldade em encontrar o buraco da fechadura.
   De manhã dormia, ficava na cama saboreando o meio-sono, enquanto a proprietária reavivava o fogo na lareira. ^
   - Chegou uma carta de sua mãe, Sr. Michel.
   Lia sem sair das cobertas, fumando o primeiro cigarro de fumo claro que lhe era enviado do seu país. Mandavam-lhe todos os tipos de inutilidades. Todos conspiravam
para que sua vida fosse um jogo inconsistente.
   Não procurava Louise com o olhar quando entrava na sala, sabendo que ela estava presente e era dele. Bastava entreabrir a porta mais tarde e fazer-lhe um sinal.
Ela se adiantaria, dócil e contente, disposta a tudo que ele pedisse.
   - Está se sentindo bem? - perguntou naquele dia o professor com quem Élie fora trabalhar.
   Até ele! A mesma pergunta! O mesmo olhar inquieto, menos talvez por seu estado físico que por algo que sentiam sem saber expressar.
   - Não estou doente.
   - Não tem febre?
   As palavras voltavam-lhe à mente.
   - Vou matá-lo.
   E agora começava a se perguntar se isso não aconteceria um dia.
   Por uma razão precisa. Sem razão. Por que... Precisava sair às quatro e meia.
  
  
  5 - Tarde de domingo e noite de segunda
  
   FOI depois do que se passou na tarde de domingo que a idéia de castigo insinuou-se na mente de Élie e logo ampliou-se, substituindo outras que lhe vinham fervilhando
ultimamente na cabeça. Com tal idéia tudo se tornava simples e claro. Era apenas uma questão de justiça.
   Após o almoço, a Sra. Lange subiu à mansarda e passou uma hora se arrumando, como fazia sempre que pretendia visitar a irmã, dona de uma confeitaria do outro
lado da cidade, na rua que conduzia ao cemitério. Ao descer trajava seu melhor vestido, calçava os sapatos apertados e estava discretamente perfumada.
   - Nunca sai, Sr. Élie.
   - Sabe muito bem que saio quando é necessário.
   - O Sr. Michel está no quarto?
   - Não o ouvi sair.
   - Importa-se de esquentar a sopa lá pelas cinco e meia?
   Louise ainda não se recuperara. Mesmo quando estava com saúde, relutava em acompanhar a mãe à casa da tia, onde as duas irmãs contavam uma à outra, interminavelmente,
as suas misérias.
   O tempo estava sombrio e triste, a cidade silenciosa; os mais leves ruídos assumiam maior intensidade que durante a semana e os passos da Sra. Lange soaram nítidos
até que ela dobrou a esquina onde fica o ponto do bonde.
   A Srta. Lola fora ao cinema. Stan Malevitz, como todos os domingos, devia estar no clube dos estudantes poloneses, instalado por cima de uma cervejaria do centro.
Ele jogava xadrez.
   Élie, sentado diante de suas anotações na sala de jantar, sabia que Michel não havia saído. Louise estava inclinada sobre um livro, cujas páginas não virava;
permanecia imóvel, sem impacientar-se, enquanto os minutos corriam lentos e se ouviam através da porta as batidas do relógio da cozinha.
   Contudo, sem se mover, ela relanceou para o polonês com ar pensativo, como se procurasse compreender, resolver um problema. E aquele olhar embaraçou-o.
   Havia prometido a si mesmo ficar na sala e resistiu meia hora, sem conseguir concentrar-se no trabalho. A atmosfera parecia tão sufocante, tão calma, as pessoas
e as coisas tão imóveis, que ele tinha a impressão de viver um pesadelo; do outro lado da porta, Michel não se movia também. E Élie perguntou-se, quase angustiado,
o que deveria fazer.
   Não havia ruído ou vida em parte alguma, nem na rua, nem na casa e, à exceção do bonde que aos domingos transitava a grandes intervalos, a pessoa poderia julgar-se
num universo extinto.
   Ele foi o primeiro a mover-se e o gesto assumiu o ar de uma fuga. Erguendo-se bruscamente, fixou seus papéis, hesitando em levá-los para cima, dirigiu-se à porta
sem uma palavra, e subiu para o quarto onde não tinha nada para fazer. De pé à janela, ficou a olhar o pátio e os fundos das casas.
   Vivia há uma semana sem ponto de apoio, sem nada de sólido sob os pés ou em torno de si. Até as palavras já não tinham sentido, uma vez que passava os dias repetindo,
e principalmente à noite, na cama:
   - Vou matá-lo!
   Tinha os ouvidos alertas. Estava no quarto há cinco minutos quando ouviu um estalido lá embaixo, seguido de sons demasiado leves para serem identificados.
   Fez o possível para não descer. Também na véspera esforçara-se quase dolorosamente para ficar até cinco e meia sob o abajur da biblioteca, mas não conseguira.
   Dessa vez resistiu alguns minutos, dez quem sabe, impossível verificar, pois não tinha relógio ou despertador, e quando se moveu soltou um suspiro que parecia
uma queixa.
   Impossível que não o ouvissem descer a escada; um dos degraus estalou. Sem fazer qualquer esforço para que não o ouvissem, voltou à sala, que estava deserta,
com a poltrona de Louise desocupada. Sua presença em casa não impedia coisa alguma.
   Gostaria de resistir, mas, como nos outros dias, acabou por aproximar-se da porta de comunicação. Era a primeira vez que isso acontecia à luz do dia. Inclinou-se,
apoiou um joelho no chão, o olho encontrou a fechadura, descobrindo o quarto que, cortinas abertas, parecia diferente.
   Não viu Michel de imediato; estava fora do seu campo de visão, mas Louise se achava bem em frente, de pé entre as duas janelas, já quase despida, livrando-se
da roupa de baixo, que logo em seguida apanhou para colocar numa cadeira.
   Nunca a vira totalmente nua, ombros angulosos, coluna vertebral saliente e uma reentrância na parte interior das coxas, como as de uma menina. Estava embaraçada,
principalmente por causa dos seios, que ocultou com as mãos durante algum tempo, enquanto o romeno permanecia invisível.
   Élie compreendeu o que ele fazia ao ouvir o clique da máquina fotográfica.
   Tinha sido antecipadamente combinado. Quando Louise entrou no quarto, o aparelho já estava preparado sobre o tripé. Em seguida Michel deslocou-o, instalou a moça
perto de uma janela, de modo a receber a claridade da rua. Ele vestia calças de flanela e estava de torso nu. Pêlos negros e encaracolados cobriam-lhe o peito.
   Antes de tirar outra foto, entregou a Louise um cigarro aceso, que ela fumou, desajeitada. Ele disse algo que Élie não compreendeu e que provocou um sorriso na
moça.
   Durante meia hora gastou dois rolos de filme, enquanto ela assumia documente as poses indicadas. Às vezes ele lhe oferecia um rahat-loucoum. Quando a fotografou
na cama, aproximou-se duas vezes para afastar mais ainda a perna esquerda, sorrindo satisfeito.
   Na última vez que entrou no campo de visão de Élie estava nu e, sem transição, deitou-se sobre ela.
   Foi nesse momento que se voltou com ar zombeteiro para a porta de comunicação e murmurou qualquer coisa ao ouvido de Louise.
   Ela o fixou maquinalmente, desviou logo o rosto e daí em diante evitou olhar para a porta.
   Os dois sabiam que ele estava ali. Tinha certeza de que Michel sabia desde o primeiro dia e era de propósito, por bravata ou brincadeira, que sugerira determinadas
poses à filha da Sra. Lange.
   Naquele dia, por causa da janela que se achava no eixo da porta, o rosto de Élie devia projetar sombra na fechadura, que sem ele seria um orifício luminoso.
   Isso provocou o riso do romeno, que continuou a rir, movimentando-se sobre Louise, enquanto esta mantinha o rosto desviado para o lado.
   Foi então que, espiando os dois, Élie pensou, como se fizesse uma descoberta:
   - É preciso castigá-lo.
   Tornava-se uma questão de justiça. Ainda não era capaz de explicá-lo com clareza, mas no seu íntimo fermentava uma revolta, a mesma, sem dúvida, que o vinha perturbando
há dias sem que conseguisse analisá-la.
   É o que acontece no caso de um furúnculo, por exemplo. A princípio a pele fica sensível em certa extensão, até que o mal se defina e surja uma cabecinha dura.
   - É preciso castigá-lo.
   Castigar era uma palavra precisa. Era inadmissível que Michel gozasse indefinidamente de impunidade. Havia algo de escandaloso, de insolente, na felicidade que
alardeava e que realmente o dominava, banhando todas as fibras do seu ser.
   Élie nunca tivera oportunidade de observar um homem totalmente feliz em tudo, sempre, a cada momento do dia, e servindo-se inocentemente do que o rodeava para
aumentar seu prazer.
   Não era apenas de Louise que Michel se servia hoje e nos dias anteriores, trias também de Élie. Era de Élie que falava em voz baixa, de pé, junto à cama, nu e
sem pudor, brincando negligentemente com os seios pequenos da moça.
   Por duas ou três vezes voltou-se em direção à porta e era como se quisesse falar com Élie, chamá-lo talvez. Esteve a ponto, em determinado momento, de abrir a
porta. Deu um passo, sorrindo sempre, mas Louise suplicou:
   - Não, Michel! Isso não!
   Que teria feito se ela não o detivesse? Não se dando por derrotado, pronunciou uma das raras palavras francesas que havia aprendido:
   - Por quê?
   Ela repetiu, quase chorando:
   - Por favor!
   Tinha pressa em vestir-se e, sem se voltar para o lado da sala, deslizou da cama e aproximou-se da cadeira onde estavam suas roupas. Michel deteve-a. Debateu-se
sem forças e o que se passou em seguida só existiu por causa da presença de Élie. Louise fez que não com a cabeça diversas vezes, assustada com o que ele pedia,
e o companheiro, despreocupado, sorrindo sempre, continuou a falar-lhe ao ouvido.
   Que teria dito a Élie se ela não o impedisse de abrir a porta?
   Élie não ousou esperar, temendo que a idéia lhe voltasse à cabeça. Estava convicto de ter chegado ao extremo. A decisão fora tomada.
   Haviam sacudido suas, bases. A ele, que nada possuía, tinham roubado algo. Tornara-se impossível viver naquela casa. E talvez por causa do riso de instantes atrás,
já não poderia viver consigo mesmo.
   Aquele crime não podia ficar impune. Na véspera, quando pensava em matá-lo sem acreditar realmente na idéia, Élie não sabia por que, imaginando que o motivo fosse
Louise.
   Era por causa dele, sabia agora. Não era questão de ódio, era um sentimento de justiça. Se ele não interviesse, Michel continuaria feliz e, a partir do momento
em que isso era possível, o mundo perdia o sentido, e uma existência como a de Élie tornava-se uma espécie de monstruosidade.
   Mas não era ele o monstro, era o outro, que roubava de todos, recebendo ainda por cima a simpatia geral.
   De agora em diante podia repetir com serenidade:
   - Vou matá-lo!
   Pois estava disposto a fazê-lo. Tomou a decisão a meio caminho do jirau, na escada, quando a porta do quarto grená abriu-se às suas costas. Não se voltou. Sabia
que Michel, nu, observava-o insolente, enquanto ele batia em retirada.
   - Vou matá-lo.
   E, ao entrar no quarto, acrescentou:
   - Amanhã.
   Mais tarde talvez recuperasse parte da sua altivez; caso contrário, pelo menos estaria vingado.
   Uma única pessoa no mundo saberia o que ele havia feito: Louise. Compreenderia?
   Não importava. Nada mais importava, uma vez que a decisão estava tomada. Já se sentia menos infeliz.
   Em vez de pensar no bem e no mal, naqueles que nada têm e nos que tudo possuem, precisava entregar-se a coisas mais precisas, aos gestos que faria chegada a hora,
não naquela noite, porque era domingo e Michel raramente saía nos domingos à noite, mas no dia seguinte, quase com certeza.
   Deviam ter se surpreendido no quarto grená ao ouvi-lo descer, parar diante do cabide de cana-da-índia e sair batendo a porta. Não se voltou para as janelas a
fim de verificar se, por trás das cortinas, viam-no afastar-se.
   Quem sabe Louise temia que ele falasse com sua mãe? Não percebia com certeza que o importante não era ela, que sua historiazinha estava ultrapassada, que as contas
que Élie acertaria nada tinham a ver com ela.
   Tratava-se de saber quem venceria: Michel ou ele.
   E enquanto caminhava pelas ruas onde eram raros os transeuntes e o crepúsculo se adensava, o próprio Michel ia perdendo pouco a pouco a personalidade.
   O importante era, em suma, Élie e os outros, Élie e o mundo, Élie e o destino. De um lado estava ele, com seus cabelos ruivos, cabeça de sapo, dois ovos por dia,
bule de chá esmaltado de azul e sobretudo que provocava olhares curiosos dos garotos da rua; Élie que se perguntava há anos se existiria algures um lugar para ele
e que, quando finalmente julgava tê-lo encontrado, via-se expulso. Do lado oposto havia o resto, e era Michel quem representava esse papel.
   Élie não o odiava. Já não tinha necessidade de odiá-lo. Talvez a culpa não fosse do romeno. Mas se não fosse culpa dele, de Élie também não era.
   Precisava salvar-se. A justiça era indispensável.
   Quando voltou para casa, anoitecera há muito tempo, e surpreendeu-se ao ver a Sra. Lange com suas melhores roupas, chapéu na cabeça, reativando febrilmente o
fogo na cozinha.
   - Onde esteve, Sr. Élie?
   Falava em tom de censura, como se ele tivesse contas a prestar-lhe.
   - Fui passear.
   A palavra era tão surpreendente em sua boca, era tão estranho para ele enfrentar o frio da rua sem necessidade, que ela o fixou um instante, sem saber o que replicar:
   - Deixou o fogo se apagar - murmurou finalmente. - E não se lembrou da minha sopa. Quanto à minha filha, nem sequer teve a idéia de dar uma espiada na cozinha.
Se mergulha num romance...
   Os livros e cadernos de Élie continuavam na mesa da sala de jantar e Louise, que voltara à poltrona, evitou-lhe o olhar sem saber que ele evitava o dela.
   Causava-lhe pena e, ao lembrar-se do que Michel fazia com o seu corpo branco demais, sentiu repugnância.
   Seria possível que dias antes sua presença lhe proporcionasse um tranqüilo bem-estar e que ele achasse natural passar a vida junto dela?
   O calor e a claridade da sala de jantar já não eram os mesmos e durante o jantar a Sra. Lange pareceu-lhe uma estranha que, sem razão plausível, tratava-o com
familiaridade.
   - Diga o que fez de bom, Sr. Élie.
   O grupo estava completo, à exceção de Stan, que jantaria no clube.
   Michel parecia menos animado que à tarde e, depois de distribuir sorrisos sem respostas a Élie, observou-o com certa inquietação. Não exatamente inquietação,
pois era incapaz disso. Contrariedade. Perplexidade. Élie não reagiu como desejaria. Em lugar de jogar o jogo, enrubescer e fazer gestos desajeitados como nas noites
anteriores, quando não sabia para onde olhar, parecia subitamente seguro, olhar frio e firme.
   - Fiz um passeio, Sra. Lange, conforme já disse.
   - Sozinho?
   - Sim, senhora.
   - Tem certeza?
   - Pouco importa que acredite ou não.
   - É a primeira vez na vida que sai sem ser indispensável. Estará apaixonado, por acaso?
   - Não, senhora.
   - Que acha, Srta. Lola?
   - Não me preocupo com o que fazem os outros. Já basta me preocupar comigo mesma.
   Há três anos participava de conversas semelhantes àquelas todas as noites, e estava farto. Caso encerrado. Já não fazia parte da casa. Era como se tivesse deixado
de existir. Também a casa de Vilna, tão logo partira, havia perdido a realidade, e ele sentia dificuldade em crer que o hotel de Bonn onde passara um ano não se
tivesse evolado.
   Os que estavam em torno da mesa nada percebiam. Se o rosto de Louise sofria uma crispação, era à idéia de que poderia estar grávida; a menos que fosse apenas
por causa de alguma contração do corpo castigado.
   Quanto a Michel, julgava viver e estava quase morto. O que pensava já não tinha importância. A mó girava no vácuo. Pouco importava o que aconteceria aos outros
e ao próprio Élie.
   - Não acha, Sr. Élie?
   - O quê, Sra. Lange?
   - Não ouviu o que eu disse? Estava falando de saúde. Dizia que o Sr. Michel não deve ser doente dos pulmões.
   Élie voltou-se para o romeno, com ar indiferente.
   - Aposto que nunca sofreu de bronquite, nem mesmo de gripe, não é verdade? - prosseguiu a Sra. Lange.
   E para Élie:
   - Traduza.
   Ele traduziu palavra por palavra, voz clara como a de um juiz lendo o veredicto ao condenado.
   - Que foi que ele disse?
   - Que nunca esteve doente.
   - O que eu pensava. Há pessoas de sorte.
   Justamente! Era isso que Élie queria acertar e já sabia como. Tinha um plano na cabeça, plano que ele ia ajustando ali, no meio de todos, sem deixar de ouvir
o que diziam e de responder quando necessário.
   A arma estava no aposento, na gaveta esquerda do armário onde a Sra. Lange guardava os objetos pertencentes ao marido: um canivete, cachimbos quebrados, um par
de esporas, um revólver militar e uma caixa de munição. Assim como os demais móveis da casa, a gaveta não era fechada a chave e no decorrer da refeição Élie fixava-a
com sensação de bem-estar.
   Não faltava muito. Perguntou a si mesmo como conseguira esperar tanto tempo, como podia ter sido cego a ponto de não descobrir verdade tão evidente.
   O grande erro seria a impunidade, porque então tudo estaria falseado, e os inocentes seriam considerados culpados e no fundo, por fraqueza, tornavam-se de fato
culpados.
   Durante oito dias tivera a impressão de ser um ladrão toda vez que se ajoelhava diante da porta de comunicação para espiar Michel, que se divertia cinicamente,
provocando-o ao mesmo tempo.
   - Em que está pensando, Sr. Élie?
   - Eu?
   Todos desataram a rir, de tal modo que parecia vir de longe.
   - Parece enfurecido. Como se estivesse disposto a brigar.
   Isso também provocou risadas.
   - Não se aborreça. Estou brincando. Não quis magoá-lo.
   Então, como quem dissesse algo de definitivo, ele anunciou:
   - Ninguém é capaz de me magoar.
   Se fosse capaz de chorar, quem sabe teria desatado a soluçar naquele instante e tudo seria diferente.
   Não sabia chorar. Foi Louise quem chorou de repente, de nervosismo. Saiu da sala escondendo o rosto nas mãos e refugiou-se na cozinha.
  
   *
  
   De manhã, no quarto mal iluminado, as coisas pareceram-lhe menos nítidas que na véspera; mas já que estava tudo resolvido, não se preocupou.
   Ouvira a Sra. Lange levantar-se e sair para a missa das seis. Minutos depois levantou-se, conforme decidira, pois era o único momento do dia em que tinha certeza
de não encontrar ninguém na sala de jantar.
   Não calçou os chinelos e vestiu o sobretudo por cima do pijama. Nunca tivera roupão. Sem precisar acender a luz, movimentou-se às apalpadelas; não fez um só movimento
em falso; silenciosamente abriu a gaveta, pegou o revólver e as balas, e subiu ao quarto.
   Por causa do frio tornou a se deitar, mas ficou de olhos abertos. Embora houvesse detalhes a ajustar, não precisava questionar o princípio.
   Pensar nos detalhes seria útil. Assim evitava deixar-se deprimir pelo mundo que naquela manhã parecia-lhe um imenso vácuo, no qual era o único a se debater sem
saber a razão.
   Enquanto a Sra. Lange, regressando da missa, acendia o fogo, e o cheiro familiar de madeira queimada e gasolina infiltrava-se por debaixo da porta, ele pensou:
   - Para quê?
   Correria o risco de questionar novamente todo o caso? Amanhã, depois de amanhã, ou no ano seguinte, teria que recomeçar.
   Era por isso que se esforçava por definir os detalhes do plano. Sua primeira idéia foi dar a impressão de sair logo de manhã. Poderia tornar plausível a saída.
Enquanto a Sra. Lange estivesse arrumando os quartos, por exemplo, abriria a porta da rua e ficaria um instante no limiar. O momento ideal seria quando ela se achasse
no quarto de Stan, nos fundos da casa.
   Subiria correndo para dizer:
   "Tenho que partir agora mesmo. Acabo de receber um telegrama dizendo que meu pai está muito mal."
   Não estaria com o telegrama na mão. Bastava fingir que o enfiara no bolso. Quando se fala em morto ou moribundo, as pessoas não ousam fazer perguntas e menos
ainda mostrar-se desconfiadas. A notícia lhe daria todos os direitos.
   Arrumaria a mala. Ela o ajudaria. Não teria motivos para tocar no sobretudo, em cujo bolso estaria o revólver.
   Tomaria o bonde para a estação, onde deixaria a bagagem no depósito e aguardaria o anoitecer em qualquer lugar onde não corresse risco de encontrar alguém conhecido.
   Quanto à verdadeira partida seria à noite, pelo trem que passava em Liège às onze e quarenta e cinco. Compraria passagem para Berlim, saltaria em Colônia, onde
tomaria um trem para Hamburgo. Sonhara muitas vezes com Hamburgo por ser um grande porto. Nunca tinha visto um porto em sua vida. Sequer conhecia o mar.
   Comeu o ovo como todas as manhãs, esquecendo de prestar atenção em Louise e pensando apenas em Michel, que dormia como de costume no cômodo ao lado.
   Seu plano não era bom, conforme descobriu pouco mais tarde, quando estudava na sala de jantar. Era melhor que a história do telegrama ocorresse depois, não antes,
primeiro porque à noite seria mais fácil. Ademais, nada provava que Michel sairia naquela noite.
   Pensou muito em outras coisas. À tarde foi à biblioteca e manteve o sobretudo nas costas da cadeira porque o revólver estava no bolso e não ousou deixá-lo no
vestiário.
   Mesmo com o cair da noite, o passar das horas e o calor que o envolvia, não recuperou a exaltação. Tinha a impressão de que nunca se sentira tão calmo na vida.
   Consultando o relógio da biblioteca às quatro e meia, sentiu certo mal-estar. Era o momento em que, nos outros dias, levantava-se, quisesse ou não, para espiar
pela fechadura, e sentiu-se tentado a fazê-lo pela última vez. Estranho: sofreu pensando que os dois se achavam no quarto sem que ele estivesse presente para observá-los.
   Não era ciúme. Não queria ser ciumento. Desde a véspera tudo se tornara bem claro e ele não admitiria questionar suas idéias.
   Era simplesmente um momento desagradável que precisava passar. Acompanhou o curso dos ponteiros no mostrador do relógio, imaginando a Sra. Lange reabastecendo
o fogo e ajustando o registro antes de sair, depois caminhando pela rua e entrando na igreja vibrante de preces.
   Viu Louise erguer-se como se obedecesse a um sinal, dirigir-se à porta de comunicação e, em seguida, como se não pensasse em coisa alguma, sentar-se na beira
da cama.
   Às cinco e meia o mal-estar dissipou-se porque tudo já estaria terminado. A Sra. Lange teria voltado e ele poderia, por sua vez, precipitar-se para a rua. Passou
pelo local escolhido, o tapume do terreno baldio, não por causa da cena que evocava, não por um sentimentalismo que estragaria tudo, e sim por ser de fato um lugar
estratégico.
   Para começar, aquele recanto estava quase sempre deserto. Além disso, a menos de vinte metros começava um emaranhado de ruas estreitas por onde seria fácil enveredar
sem ser seguido.
   Sua primeira idéia foi esperar Michel na ponte usada por todos os inquilinos para irem e voltarem da cidade e onde em determinada hora não passava quase ninguém.
Depois pensou que a água era um bom condutor de sons. A detonação seria ali mais ruidosa que em outro lugar e nitidamente ouvida nos dois extremos da ponte.
   Pena. Havia nevoeiro. Precisava evitar qualquer romantismo. O crime não devia ter qualquer semelhança com um drama passional.
   Durante o jantar anunciou:
   - Vou sair para visitar meu professor.
   E como a Sra. Lange nada dissesse, perguntou a si mesmo se teria escutado e esteve a ponto de repetir a frase. Mas seria melhor não fazê-lo. Três ou quatro minutos
depois, aliás, ela revelou que havia escutado.
   - Quando ficará pronta a sua tese?
   - Não sei. Talvez dentro de um ano. E sentiu-se impelido a acrescentar:
   - Talvez nunca.
   - Sabe muito bem que conseguirá. Estuda muito e merece. E tem necessidade disso.
   Enquanto Michel não tinha necessidade 1
   Para que se preocupar com o que se dizia à mesa? Para que fixá-los, uns após outros, como se fios os unissem a ele?
   Já estava de partida. A caminho. Tinha que estar fora de casa antes de Michel, caso este se decidisse a sair. Nada até então fazia supor que pretendia ficar em
casa.
   A Sra. Lange chamou-o quando estava no fim do corredor.
   - Sr. Élie!
   - A senhora chamou?
   - Quer pôr uma carta no correio? Fica no seu caminho.
   Não seria um sinal? Sem o saber, dava uma explicação plausível para o telegrama, que até então era o ponto mais fraco. A agência central situava-se nas imediações
da ponte e ficava aberta a noite inteira. Seria extraordinário não encontrar numa das cestas um telegrama amarrotado. Diariamente há pessoas que recebem telegramas
pela caixa postal e não os levam necessariamente para casa.
   Tinha que apressar-se para voltar a tempo ao muro do terreno baldio.
   Não precisava pensar no assunto. Bastava agir mecanicamente.
   Era o mais fácil. O doloroso período de gestação estava encerrado e também o da decisão.
   Atravessou a ponte e bastou espiar em duas cestas, como alguém que atirou fora qualquer coisa por engano, para encontrar um telegrama que dizia:
  
   "Chego amanhã oito horas. Beijos. Lucile. "
  
   Esteve a ponto de sorrir. E no exato momento em que saía do correio, avistou Michel que se dirigia ao centro da cidade.
   Agora era obrigado a esperar pela volta. Todas as ruas naquele ponto eram bem iluminadas, os transeuntes numerosos. Michel não o viu e ele pôde acompanhá-lo a
distância.
   Na rua principal, a maioria das casas comerciais eram cafés ou cervejarias. Michel entrou num estabelecimento bem iluminado, com mesas de mármore, onde estudantes
bebiam cerveja sob uma cortina de fumaça.
   O mais difícil seria permanecer no frio durante uma hora, talvez duas ou mais, sem desanimar. O nevoeiro, que deformava as luzes e a silhueta dos transeuntes,
emprestava à cidade um ar irreal.
   A intervalos Élie aproximava-se das grandes vidraças da fachada e avistava Michel sentado à mesa com dois rapazes. Os três conversavam, fumando cigarros. Michel
não tomava cerveja e sim um cálice de licor amarelado.
   Às vezes soltava gargalhadas. Quem sabe estaria contando o que acontecera na véspera e falava a respeito de Élie, da cara que faria do outro lado da porta?
   Num portal mais adiante, dois namorados se abraçavam no escuro. Ficaram imóveis quase uma hora antes de se separarem sem uma palavra rumo ao bonde, que -só a
mulher tomou, enquanto o homem, de pé na calçada, a acompanhava com o olhar.
   A umidade era fria. Élie começava a sentir dor de garganta e isso o preocupou, porque, se pegasse uma angina, levaria semanas para se curar.
   Às dez e quinze, finalmente, os três rapazes se levantaram. Foi Michel quem pagou. Foi ele quem, na calçada, caminhou entre os dois. Tendo feito provisão de calor
não se apressavam, insensíveis ao frio. Um deles levava até o sobretudo aberto.
   Élie enveredou por um caminho mais curto à direita, a fim de chegar mais depressa à ponte e, quando a atravessou, o nevoeiro era tão espesso sobre o rio que os
lampiões a gás pareciam discos amarelados.
   Caminhava rápido, com pressa de chegar ao muro, ansioso para acabar com a história.
   Colou-se ao ângulo da parede, no local onde Michel se encostara na noite em que beijara Louise. Não podia vê-lo aproximar-se. Só o distinguiria a uns dois metros,
e caso voltasse a cabeça para o lado.
   No cruzamento onde se despedia dos amigos, Michel devia tagarelar ainda, antes do aperto de mãos final. Demorou. Passou-se um quarto de hora.
   Súbito ouviu os passos de Michel ecoando na calçada. Tirou o revólver do bolso e verificou se estava destravado. Já não podia deter-se. Tinha que castigá-lo.
Já não era um caso entre ele e Michel. Era uma questão de justiça. Os passos eram rápidos, como os de uma pessoa alegre. Teve a impressão de que o rapaz cantarolava.
Não sabia por que sentiu zoeira nos ouvidos.
   Decidiu esperar até o último segundo e só atirar à queima-roupa, a fim de não errar o disparo.
   Percebeu uma silhueta, um rosto; adiantou-se um passo e viu-se perto de Michel, tão perto que quase não podia estender o braço.
   Atirou imediatamente e não foi de propósito que alvejou o rosto. Na verdade, não alvejou. Foi como se a arma explodisse no extremo do seu braço, que sofreu um
impacto. Ao mesmo tempo, a boca e o queixo de Michel desapareceram numa espécie de buraco negro e vermelho. O romeno não caiu imediatamente. Fixou-o, surpreendido
e súplice, como se ainda houvesse tempo de fazer algo por ele.
   Acabou por tombar, girando sobre si mesmo, e a cabeça bateu com força nas pedras do calçamento.
   Élie não se moveu. Esqueceu de fugir. Estava a ponto de esquecer também uma parte essencial do plano.
   Para a passagem de trem precisava de dinheiro que não possuía, mas encontraria na carteira de Michel. Ademais, retirando-lhe os documentos de identidade, retardaria
o momento em que a polícia bateria à porta da Sra. Lange. Era o mais difícil. Inclinou-se, quase se ajoelhou, como se estivesse atrás de uma porta. Enfiando a mão
no colete, sentiu o coração bater com pulsar estranho, percebeu um gorgolejo na garganta de Michel, julgou surpreender um movimento das pálpebras e, carteira em
punho, desatou a correr.
   Perdeu-se no dédalo de becos e emergiu num local que não reconheceu. Precisou dar uma grande volta para achar a casa, onde já não havia luzes acesas.
   Subiu logo ao segundo andar, enganou-se de porta. A voz de Louise perguntou no escuro:
   - Quem é?
   A Sra. Lange também estava deitada e não acendeu imediatamente a luz. Ele teve tempo de dizer antes o que havia planejado.
   - A que hora sai o trem?
   - Dentro de trinta e cinco minutos.
   - Vou ajudá-lo a fazer a mala.
   Viu-a de camisolão, cabelos presos em papelotes, ouviu a voz de Louise perguntando:
   - Que é, mamãe?
   - É o Sr. Élie que vai viajar. O pai está muito mal.
   Minutos depois, mala em punho, seguia em grandes passadas rumo à estação. Ao atravessar a ponte atirou o revólver no rio, conforme previsto.
   Já não pensava em Michel, somente no trem, que não podia perder de maneira alguma.
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  
  SEGUNDA PARTE - O proprietário de Carlson City
  
  
  1 - O apartamento 66
  
   V campainha do telefone rompeu o silêncio com tal violência, que mesmo os que estavam lá fora a ouviram; alguns voltaram lentamente a cabeça e encostaram o nariz
no vidro para espreitar a escuridão do vestíbulo. Élie, ocupado com as contas, lançou um olhar maquinai ao aparelho, mudou um plugue de lugar e atendeu.
   - Hotel Carlson - falou, como alguém que repete há anos as mesmas palavras.
   - Fala Craig.
   Houve uma pausa e Élie sabia o que viria a seguir.
   - Ela não chegou?
   - Ninguém, Sr. Craig.
   - Nenhum recado?
   - Eu o teria prevenido.
   Há três dias Harry Craig, o diretor da mina, telefonava de três em três ou quatro em quatro horas, e não era a única pessoa impaciente em Carlson City.
   Gonzales, que acumulava as funções de porteiro, carregador e boy, levantou-se do seu banco junto ao elevador, onde lia uma revista ilustrada, e atravessou o hall
deserto e sonoro, onde seus passos despertavam ecos semelhantes aos de uma igreja. Para avistar Élie tinha que se aproximar do balcão da recepção, atrás do qual
ele se achava sentado a uma mesa, com os terminais telefônicos à sua frente e os escaninhos de chaves e correspondência dos hóspedes ao alcance da mão direita.
   Gestos lentos, corpo entorpecido, Gonzales acotovelou-se no balcão e falou em voz tão indolente que mal se distinguiam as sílabas:
   - Que foi que ele disse?
   - Quem?
   - Craig.
   - Não disse nada. Está esperando.
   - Você acredita?
   Élie, mergulhando novamente nas contas, já não escutava. Gonzales fixou-o por algum tempo, suspirou, esfregou o nariz e voltou ao banco, onde tornou a abrir a
revista, ar resignado.
   O relógio da recepção marcava dez e dez e Manuel Chavez, o gerente, ainda não descera do seu apartamento. Limitara-se a telefonar cerca das oito e meia, pouco
depois da chegada do correio. Élie percebeu pela voz que ainda estava deitado.
   - Nada de novo?
   - Nada, Sr. Chavez.
   Meia hora depois, sua mulher desceu à cozinha para pedir ò desjejum.
   O jovem casal de Vermont, que chegara na véspera à noite, descera para a sala de refeições onde se achava sozinho, embaraçado, oprimido pelo vazio e o silêncio
do hotel. Logo em seguida pagaram a conta e prosseguiram caminho rumo ao México, depois de encherem o tanque.
   Dos quarenta quartos do hotel havia apenas cinco ocupados, todos por pessoas que trabalhavam para a companhia. Também elas aguardavam. Duas haviam anunciado que
partiriam no final da semana caso não houvesse novidades. Todo mundo dizia isso, inclusive Chavez, que nada sabia além dos outros, e também Harry Craig, que, dos
escritórios instalados num prédio pouco adiante, não tentava deter os que queriam partir.
   Três meses antes, só no que se referia ao hotel, a metade dos quartos estava ocupada. Havia períodos de lotação completa e o movimento de pessoas no hall era
de quatro a seis hóspedes, da manhã à noite, a maioria sentados nas poltronas de couro preto dispostas em torno das colunas. Na hora do aperitivo era quase impossível
aproximar-se do bar.
   A cidade parecia agonizar. As sirenas já não soavam anunciando a troca de turnos, os vagonetes, que em determinados locais passavam por cima das ruas, suspensos
por cabos, achavam-se imobilizados juntos às pilastras, e as quatro grandes chaminés dos fornos, no extremo do vale, já não viviam coroadas de fumaça esverdeada.
   Acontecera de um dia para outro, quando as máquinas que há vinte anos escavavam a montanha, onde tinham aberto uma gigantesca cratera, haviam descoberto um lago
subterrâneo, de cuja existência ninguém suspeitava. Harry Craig, engenheiro-chefe e diretor da mina, telefonara imediatamente ao chefão, Lester Carlson, que se achava
em Nova Iorque. Este, imperturbável, limitara-se a responder como se pensasse noutra coisa:
   - Verei. Enquanto isso, faça o que puder.
   Craig, arquejante, tentou explicar ao interlocutor sentado no apartamento de Park Avenue que era impossível continuar a exploração nas atuais condições, que havia
importantes decisões a tomar, que a eventual drenagem do lago apresentava problemas e que...
   - Veremos, Harry. Ligo para você daqui a alguns dias.
   Craig não compreendia tanta indiferença e, não a compreendendo, como a explicaria aos subalternos? Os contramestres pensariam que ele estava de posse de informações,
mas queria esconder a verdade.
   - Abandonamos a exploração?
   Tinha acontecido ali no Arizona, no Novo México e também no México, do outro lado da cadeia de montanhas que fechava o horizonte. Por toda parte viam-se minas
abandonadas como aquela, fossem de prata ou de cobre.
   O capim invadia o que fora rua, as casas permaneciam de pé, vazias e inúteis, placas informativas erguiam-se ainda à margem de estradas que não conduziam a parte
alguma.
   Quase sempre acontecia porque o teor de minério não era bastante elevado para justificar o gasto da exploração. Outras vezes o veio se esgotava.
   Os operários mexicanos que voltavam todos os sábados ao seu país tinham sido os primeiros a não regressar, uma vez que já não havia trabalho para eles, e erravam
pelos vales à procura de emprego nas fazendas. Outros, os americanos, quase todos especialistas, tinham ido tentar a sorte noutro lugar.
   Os que moravam no bairro residencial, na margem oposta do regato, quase todos casados e com família, passavam a maior parte do tempo nas imediações da sede, onde
formavam grupos silenciosos.
   - Que decidiram?
   - Ninguém sabe. Nem se sabe onde ele está. Saiu de Nova Iorque.
   Lester Carlson teria seus cinqüenta e cinco anos e herdara a mina do pai, juntamente com outras nos Estados Unidos e no Canadá. Possuía também uma fazenda de
quinze mil hectares a uns vinte quilômetros de Carlson City, e antes de casar passava ali um ou dois meses, trazendo trinta ou quarenta convidados, para os quais
fretava um avião.
   Restavam cinco mil pessoas nos arredores do hotel, todas dependentes dele, e que diariamente pediam notícias.
   Uma vez que não podia entrar em contato telefônico com o chefe, Craig enviara telegrama após telegrama. Na segunda semana decidira viajar a Nova Iorque, mas encontrara
fechado o apartamento de Park Avenue.
   Ao regressar, achara por acaso, ao ler o noticiário social, uma explicação:
  
   "Dolly Carlson, a ex-dançarina de boate que casou com Lester Carlson, o magnata das minas de cobre, está em Reno para pedir divórcio. Os advogados de ambas as
partes procuram chegar a um acordo financeiro. O casamento foi celebrado na Califórnia há oito anos, sob o regime de comunhão de bens. "
  
   Após longas discussões, Craig conseguira do banco local os fundos necessários para pagar os técnicos que fazia questão de manter e sustentar os operários com
família, que não queriam partir sem um destino definido.
   Chavez, o gerente do hotel, entregue à própria iniciativa, resolvera despedir metade do pessoal.
  
   "Quando o divórcio estava para ser assinado, novas exigências de Dolly Carlson obrigaram a um reexame do acordo e os advogados se aprestam a novos litígios. "
  
   Foram precisos dois meses e meio para chegarem a um acordo, durante os quais Carlson City esvaziou-se cada dia mais. Era maio e o termômetro na porta do hotel
oscilava, de acordo com a hora, entre 32 e 45 graus. Os imensos ventiladores do teto giravam silenciosamente noite e dia.
   De manhã o hall era quase fresco, pois o sol incidia sobre o outro lado da rua, onde o velho Hugo embalava-se devagar na cadeira de balanço entre o balcão dos
charutos e a banca de jornais e revistas. Exceto à noite, quando se baixavam as portas metálicas, coisa alguma separava a loja da calçada, que não passava de uma
espécie de varanda sem vidros, onde a cidade em peso se detinha um instante no decorrer do dia.
   Hugo, que pesava mais de cento e vinte quilos, não se levantava para servir os fregueses. Eles próprios pegavam o que queriam, pagavam-lhe e ele enfiava moedas
e notas nos bolsos de suas vastas calças de tecido caqui.
   Aceitava apostas para as corridas e pegava às vezes um telefone que ficava a mão para transmiti-las, só Deus sabia onde, a um bookmaker a que se filiara.
   À entrada, um garoto negro engraxava sapatos, e era ele que Hugo mandava ao hotel de vez em quando para buscar notícias.
   - Ele não chegou? Não telefonou, nem telegrafou?
   Dez, quinze homens, segundo a hora, encostavam-se às janelas do hall pelo lado de fora, sem nada que fazer, exceto fumar e cuspir, vestidos mais ou menos da mesma
maneira, calças de brim azul e camisa branca, os mexicanos de chapéu de palha, os americanos de chapéu de cowboy.
   Mac, o barman, havia cortado os créditos, e estava quase sempre sozinho no bar, escutando um radiozinho.
   Élie começava a trabalhar às oito da manhã e só terminava às oito da noite, quando era substituído pelo recepcionista noturno. Na semana seguinte seria seu turno
de trabalhar à noite. Antes eram três a se alternar, mas o terceiro conseguira emprego num hotel de Tucson.
   Chavez desceu finalmente, não pelo elevador, e sim pela escada, pois seu apartamento ficava no primeiro andar. Vestia, como sempre, terno branco bem passado,
estava barbeado com apuro e seus finos bigodes pareciam desenhados a tinta.
   Também ele veio encostar-se ao balcão da recepção, olhando vagamente Élie trabalhar.
   - Suponho que não haja nenhuma novidade.
   - Nada, Sr. Chavez.
   - Eu me pergunto se vale a pena substituir as flores do apartamento.
   Enquanto as residências da cidade tinham apenas dois ou três pavimentos, às vezes um simples térreo, o hotel, construído quarenta anos antes pelo pai de Carlson,
o fundador da mina, era um prédio de tijolos de seis andares. O sexto, recuado, era cercado de um terraço. Era ali que o velho Carlson se instalava quando ia a Carlson
City. Só bem mais tarde, alguns anos depois de sua morte, o filho comprara a fazenda, da qual, por assim dizer, não se aproveitava.
   O filho também ocupara com freqüência o apartamento número 66.
   Três dias antes chegara um telegrama, não do Reno e sim de Nova Iorque, dizendo:
  
   "Prepare apartamento 66. "
  
   Estava assinado por Dolly Carlson.
   Craig não fora prevenido de coisa alguma. Ninguém compreendera nada, e todo mundo fizera suposições, até que Mac, o barman, apresentou a chave do enigma:
   - Ora, o divórcio foi decretado e os documentos estão assinados. Acabam de anunciar no rádio.
   - A quem pertence a mina?
   - Só disseram que os dois dividiram os bens. Quando Craig telefonou, mais uma vez, para Park
   Avenue, uma voz desconhecida respondeu:
   - O Sr. Lester Carlson partiu ontem à noite para a Europa.
   A linha do sol na rua vencia pouco a pouco a sombra e daí a instantes, no início da tarde, seria preciso baixar as venezianas e os ventiladores soprariam apenas
ar quente.
   Como a maioria dos habitantes de Carlson City, à exceção de Chavez, o único que usava terno branco imaculado, Élie trabalhava sem colete, mangas de camisa arregaçadas
nos antebraços cobertos de sardas e pêlos claros. Contudo, uma vez que se achava na recepção, estava sempre de gravata.
   - Ainda assim, talvez seja melhor colocar flores frescas.
   Ninguém na cidade jamais vira Dolly Carlson, de quem, aparentemente, a vida de Carlson City dependeria daí em diante. Se não ganhara a mina, por que telegrafaria
mandando preparar o número 66?
   Mal Chavez se afastou para se dirigir ao florista, a duas portas do hotel, o telefone tocou.
   - Carlson Hotel.
   - Fala Craig.
   A voz soava mais excitada que há instantes.
   - Manuel está aí?
   - Saiu agora mesmo. Foi ao florista. Não deve demorar.
   - É você, Élie? Peça a ele que me telefone assim que chegar.
   - Alguma novidade?
   - Talvez.
   Élie também dependia de uma mulher sobre quem nada sabia, exceto que há dez anos constituía uma das atrações de Nova Iorque. Como tantos outros, há dezessete
anos vivia ali numa casa branca de madeira, rodeada de ampla varanda, no local mais fresco da colina, do outro lado do rio.
   O bairro comercial e o residencial eram fronteiros, ambos em declive, e da porta do hotel Élie avistava o telhado de sua casa.
   Quando o telefone tocou era para ele. Carlota, sua mulher, perguntava com forte sotaque mexicano:
   - Ela chegou?
   - Ainda não.
   - Deu notícias?
   - Ainda não se sabe de nada.
   Gonzales levantou-se do banco junto ao elevador para repetir aos homens encostados na janela:
   - Nenhuma notícia ainda.
   Mas alguém sabia de alguma coisa. Quando Chavez voltou, Élie disse:
   - Craig pediu que telefonasse para ele.
   - Notícias?
   A palavra fora repetida até a exaustão nos últimos três meses, a ponto de embaraçar certas pessoas que ainda a pronunciavam. Havia quem só o fizesse batendo na
madeira ou cruzando os dedos.
   - Ele não disse.
   - Ligue para ele.
   Havia um aparelho no balcão. Élie discou e enfiou um plugue no orifício da mesa telefônica.
   - Ele está no aparelho.
   - Alô, Harry? Fala Manuel... Como? Sim... Sim... Ouvi. Quem? O capataz? E ele não sabe se ela virá para cá? Não, não compreendo... Quando? Esta noite? Vou ligar
para ele. Não há mais nada a fazer. Não vejo razão para deixar de pedir instruções. Claro! Não direi como soube. Qualquer um pode tê-lo visto e mencionado o fato
na cidade. Sim, agora mesmo.
   Desligou, cenho franzido, ar preocupado, e anunciou a Élie:
   - Ela está aqui.
   - Onde?
   - Na fazenda. Chegou esta noite de carro com o chofer, a criada e a secretária. Craig acaba de saber pelo capataz. Ninguém a esperava. Só souberam quem era pelas
fotos publicadas nos jornais.
   - Não pretende vir até aqui?
   - É o que preciso saber. Vou telefonar. Ligue para a fazenda.
   Chavez tomou o fone.
   - ALÔ! Alô!
   Alguém tinha tirado o fone do gancho, mas aparentemente não havia ninguém no outro extremo do fio. Contudo, daí a algum tempo ouviu-se uma voz de mulher.
   - Sra. Carlson? Não estou ouvindo bem. A secretária? Eu poderia falar com a Sra. Carlson? Sim, compreendo... Desculpe se insisto. Dentro de uma ou duas horas?
É a respeito do apartamento que recebi ordem de reservar. No Carlson Hotel... Não... Não apareceu ninguém...
   Escutou, surpreendido, brincando maquinalmente com fósforos, enquanto Élie não desviava dele os olhos e Gonzales o observava de longe.
   - Perdão... Não sabia... De modo algum! Não recebi nenhuma instrução... Vou esperar... Combinado. Sim. Obrigado, senhorita.
   Enxugou a testa, confuso, e, sem dar explicações a Élie, limitou-se a ordenar:
   - Ligue para Craig. Agora mesmo. E acendeu, nervoso, um cigarro.
   - Harry? Acabo de telefonar para a fazenda. Não! Não consegui falar pessoalmente com ela porque saiu a cavalo com o capataz há cerca de meia hora. Foi a secretária
quem atendeu. Ela perguntou se o novo proprietário chegou, disse um nome que não compreendi e não tive coragem de pedir que repetisse. Sim, o novo proprietário...
Foram as palavras que ela usou. Não me deu detalhes, mas, ao que tudo indica, a mina foi vendida. Não sei mais nada. Ela parecia admirada porque ele ainda não chegou.
   Voltou-se para a'rua, enquanto Élie se levantava e inclinava-se por sobre o balcão para espiar também, e Gonzales dirigia-se à porta, muito ágil. Lá fora, os
homens, num só movimento, acabavam de se voltar para o alto da rua, aparentemente excitados. Atravessou o ar uma corrente elétrica quando um grande automóvel coberto
de poeira surgiu finalmente, deslizando sem ruído, e parou junto à calçada.
   Todo mundo reparou que a placa tinha número de matrícula do Estado de Nova Iorque.
   Antes que Gonzales pudesse intervir, o chofer de uniforme preto saltou e abriu a porta. Um homem alto e forte, cerca de quarenta anos, cabeça descoberta, cabelos
louros e tez rosada, foi o primeiro a saltar, seguido de um homem magro e seco, mais baixo, que olhou em torno sem uma palavra, atravessou rapidamente a calçada
e entrou no hall do hotel.
   - Creio que é ele, Harry - disse Chavez ao telefone no momento em que os recém-chegados entravam. - Ligo mais tarde.
   O chofer, lá fora, tirava a bagagem da mala traseira. O gerente precipitou-se ao encontro dos homens.
   - Suponho que foi para os senhores que a Sra. Carlson mandou reservar o número 66.
   O mais alto respondeu:
   - Certamente.
   - Se quiserem preencher a ficha, eu os conduzirei ao apartamento.
   Élie, sem saber o que fazer, empurrou o livro de registros para o viajante, esquecendo-se de lhe dar a caneta. O homem usou a dele.
   Há anos Élie usava óculos de lente grossas, sem as quais não conseguia ler. Mas de longe, em lugar de serem úteis, as lentes embaralhavam as imagens.
   Olhar fixo no mais baixo dos recém-chegados, tirou os óculos e os traços do rosto dele precisaram-se. Um fluxo de sangue subiu-lhe à cabeça e teve a impressão
de que seus olhos saltavam das órbitas. Não se moveu, não disse palavra. O resto do mundo cessou de existir. Perdeu consciência até da parte do globo em que se encontrava.
Tempo e espaço desapareceram.
   Vinte e seis anos acabavam de ruir no momento em que, olhos arregalados, zoeira nos ouvidos, fixou Michel, que olhava para ele.
   Com o passar dos anos, Élie havia engordado. Seus cabelos estavam ralos no alto do crânio e mais crespos principalmente nas têmporas, de uma cor indefinível,
entre o raivo e o grisalho.
   Ainda assim Michel ò reconhecera, tinha certeza, assim como ele o reconhecera também. Mas o outro sequer estremeceu. Franziu de leve as sobrancelhas escuras,
revelando no rosto certa surpresa. Ligeiro sorriso, que poderia ser uma careta, distendeu-lhe os lábios.
   Impossível saber, já que toda uma parte do rosto não era a mesma de antigamente. A testa e os olhos permaneciam intactos; toda a parte inferior, o nariz, a boca,
o queixo, pareciam feitos de outro material, algo cinéreo, menos móvel, dependente dos músculos, onde havia suturas quase imperceptíveis.
   Sem óculos, Élie nada viu da ficha do primeiro hóspede, exceto traços indistintos. Michel já se aproximava com naturalidade, tomando a caneta e escrevendo por
sua vez, sem pronunciar palavra.
   - São só os dois? - perguntou Chavez, obsequioso. - Devem estar com fome.
   O mais alto fixou Michel, que inclinou a cabeça. Foi o primeiro quem respondeu:
   - Mais tarde.
   - Gostaria de beber alguma coisa?
   A mesma pantomima, após a qual Michel lançou um olhar a Élie, sem insistência, e dirigiu-se ao elevador. Chavez subiu com eles, assim como Gonzales levando a
bagagem, de modo que Élie viu-se sozinho no hall, que oscilava como um navio em alto-mar, até que a porta se abriu e entraram três ou quatro homens, depois mais
outros, encorajando-se mutuamente.
   - Era ele?
   Élie não os viu nem pensava em responder. Mac apareceu, vindo do bar.
   - É o novo patrão? Qual dos dois? O pequeno, aposto!
   As pálpebras sempre avermelhadas de Élie fremiam. Colocando maquinalmente os óculos, inclinou-se sobre as fichas:
  
   Mickail Zograffi, Hotel Saint-Régis, Quinta Avenida, Nova Iorque.
  
   Não foi surpresa. No primeiro instante recebera um choque que interrompera por alguns segundos a circulação do sangue em suas veias.
   Há vinte e seis anos sabia que um dia aquilo aconteceria. Já naquela noite de dezembro, quando se afastava do muro junto do qual tombara o corpo estranhamente
dobrado em dois, tivera o pressentimento, a quase certeza de que o homem viveria.
   Revia, nunca deixara de rever, a parte superior do rosto, principalmente os olhos a fixarem-no, surpreendidos e súplices, enquanto o resto, a partir do nariz,
era apenas um orifício escuro onde se destacavam os dentes.
   Naquele instante Michel não lhe suplicara a graça de liquidá-lo? Havia compreendido e estivera a ponto de disparar o segundo tiro no peito, não para sua própria
segurança, porque Michel sabia, mas por compaixão, para que ele não continuasse a sofrer.
   Fora impossível. E enquanto pegava a carteira no bolso do colete sentira-se incapaz de fixá-lo. Desviara o rosto com a impressão de que se ficasse ali mais algum
tempo desmaiaria.
   Nunca soube o que sucedera mais tarde. Em Hamburgo, onde chegou no dia seguinte enquanto o rio arrastava blocos de gelo, não havia jornais belgas e os alemães
não mencionavam o drama ocorrido em Liège.
   Passara três anos esperando diariamente que o prendessem e só bem mais tarde, seis anos depois de sair da Bélgica, em Nova Iorque, por carta datilografada incluindo
um dólar para a resposta, pediu a um jornal de Liège que lhe enviasse o número de 5 de dezembro de 1926.
   Não recebera coisa alguma. Durante várias semanas fora diariamente à caixa postal, sem resultado.
   Ainda assim estava convicto de que Michel não morrera. Anos e anos mais tarde, uma guerra mundial eclodiu, dezenas de milhares de judeus foram massacrados, e
tanto a Polônia como a Romênia viram-se isoladas do resto do mundo pela cortina de ferro.
   De seus parentes, do pai, dos irmãos e irmãs nada soubera. Deviam estar todos mortos, a menos que alguns se achassem exilados na Sibéria.
   Os Zograffi teriam tido a mesma sorte?
   Não sabia de nada, exceto que Michel vivia em alguma parte do mundo e que um dia os dois se encontrariam frente a frente.
   Sua vida não passava de uma espécie de liberdade condicional. Um dia teria que ajustar contas. Um dia Michel surgiria, como havia surgido naquele momento, e o
fixaria sem uma palavra, esperando que ele falasse.
   - Que está fazendo, Élie?
   Como se não o visse fixou Chavez que acabava de descer e expulsava os curiosos do hall. Sem saber o que dizia, respondeu:
   - Nada.
   - Ligue imediatamente para Craig.
   Tentou compor o número e, como acabava de tirar os óculos para enxugar os olhos, os algarismos pareceram-lhe indistintos.
   - Craig?
   Falava com voz natural, o que não o surpreendeu.
   - Chavez quer lhe falar.
   - Craig? Eles chegaram. Digo "eles" porque são dois. A princípio não soube quem era o chefe, mas adivinhei logo que era o que não falava. Na verdade não pronunciou
palavra. O outro fala por ele. Como? Um momento...
   Pegou uma das fichas.
   - Mickail Zograffi. É a primeira vez que vejo esse nome. E você? Ah! O outro se chama... Um momento...
   E para Élie:
   - A outra ficha. Élie entregou-a.
   - Eric Jensen. Ambos deram o mesmo endereço. Hotel Saint-Régis. Nova Iorque. Vieram de carro com motorista. Você o conhece? Veio aqui há um mês? Jensen? Então
não me admira ter tido a impressão de que já o vi em algum lugar. Sim, louro e alto, uma espécie de gigante. O chofer ficou com eles. Perguntei se queriam comer
alguma coisa e responderam que pediriam se quisessem. Espero me enganar, mas esse Zograffi tem jeito de ser difícil. Que foi que você disse? Se quiser... Vou mandar
perguntar, não saia do telefone.
   Contornando o balcão, Chavez postou-se junto à mesa telefônica.
   - Ligue para o 66 e pergunte se querem falar com Craig - disse a Élie. - Sim, transfira a ligação, mas deixe na linha este aparelho.
   Élie inseriu o plugue.
   - 66?
   - Eric Jensen.
   - O Sr. Harry Craig pergunta se pode falar com o senhor.
   - Faça a ligação.
   Chavez escutava a ligação e Élie ouvia as duas vozes no aparelho.
   - Jensen?
   - Sim.
   - Craig.
   Silêncio embaraçado da parte de Craig.
   - Soube que acabam de chegar.
   - Sim.
   - Ê verdade que a mina foi vendida?
   - É quase exato.
   - Para quem?
   - Para meu chefe.
   - Ele está?
   - Está.
   - Quando poderei vê-lo?
   - Ele avisará.
   - Deve saber tão bem quanto eu que há decisões urgentes a tomar, não é?
   - Sei.
   - Se a situação se prolongar, dentro de alguns dias não terei nenhum técnico à minha disposição.
   - Ligarei antes disso.
   - Muito obrigado.
   - De nada.
   Chavez esperou que o telefone de cima fosse desligado.
   - Craig? Decidi escutar. Esse homem é glacial.
   - Não há nada a fazer senão esperar. Que idade tem ele?
   - Zograffi? Uns cinqüenta anos. Deve ter sofrido um grave acidente, porque a parte inferior do rosto dele é imóvel, parece artificial. Ele será capaz de falar?
   Sem comentários, Craig desligou. Alguém entrou trazendo as flores que Chavez encomendara pouco antes.
   - Levo ao 66?
   - Gonzales leva.
   Gonzales descolou-se do banco, recolheu os dois buquês e fechou a porta do elevador. Debruçado no balcão, o gerente não se moveu, preocupado, inquieto.
   - As coisas não estão acontecendo como esperávamos - murmurou consigo mesmo.
   E voltou-se para Élie, sentindo necessidade de um interlocutor.
   - Jensen veio aqui há um mês, passou dois dias com Craig, que o conheceu na universidade, e parece que almoçaram e jantaram no hotel. Tive a impressão de que
já o conhecia. Estava evidentemente a serviço. Estudou a situação, de modo que o chefe estava a par de tudo quando comprou a mina da Sra. Carlson.
   Élie não se moveu. Impossível saber se tinha escutado.
   - Que é que você tem?
   - Nada. Acho que é o calor.
   A porta do elevador abriu-se e Gonzales, atrapalhado, surgiu com os dois buquês.
   - Que foi que disseram?
   - Que eu levasse as flores.
   - Qual deles falou?
   - O menor. Fala de modo estranho, com voz sibilante, como água que começa a ferver.
   - Você disse que era gentileza da gerência?
   - Disse. Fez sinal para que eu saísse e fechou a porta.
   Gonzales permanecia no mesmo lugar, aturdido, segurando as flores.
   - Que faço com elas?
   - Ponha no jarro azul.
   Era um enorme jarro de faiança que se achava na mesa de centro do hall, ao lado das revistas da semana.
   Era meio-dia. Antigamente, naquele instante preciso, soavam as sirenas em torno da cidade.
   Os homens que pouco antes se achavam encostados à fachada acabaram entrando no bar, decididos a tomar um trago, já que o trabalho tinha chances de recomeçar.
   O pequeno engraxate atravessou a rua.
   - Ê o novo proprietário? - perguntou, a mando de Hugo.
   - Parece que sim - respondeu Chavez, impaciente.
   - Qual dos dois?
   - O mais baixo.
   - Como se chama?
   - Zograffi.
   O garoto saiu correndo e através das vidraças avistou Hugo a escutar o relatório. Logo em seguida pegou o telefone. Seria provavelmente o primeiro a obter informações,
uma vez que tinha contatos em toda parte.
   O telefone tocou. Élie escutou e disse:
   - Um momento... E a Chavez:
   - Sua mulher.
   - Alô, Célia? Desculpe, não tive um momento livre. Ele chegou. Sim, um homem... Não, não é ela. Ela está na fazenda. Peça o almoço aí em cima. Prefiro não subir
agora. Não sei... Ainda não sei de nada...
   Um garçom surgiu com uma bandeja onde se via um sanduíche de queijo, outro de atum com molho de tomate, e pousou-a, juntamente com uma xícara de café, na escrivaninha
de Élie.
   - Que quer de sobremesa? Temos torta de maçã e frutas.
   Élie fixou-o com ar de quem não tinha compreendido e quando lhe voltou as costas o garçom deu de ombros, fazendo a Chavez sinal de que o recepcionista devia ter
recebido uma paulada na cabeça.
  
  2 - A cabana às margens do Elba e chocolates na gaveta
  
   QUANDO o chofer desceu, Gonzales indicou-lhe o restaurante, mas ele não se dirigiu imediatamente para lá. Entrou antes no bar, onde os presentes se afastaram
para ceder-lhe lugar junto à barra metálica.
   - Uísque de centeio! - pediu, olhando em volta com curiosidade.
   E ao barman que o servia:
   - Meu nome é Dick.
   - O meu é Mac.
   Era como se trocassem as palavras de uma senha, reconhecendo-se como irmãos.
   - Nova Iorque?
   - Queens.1
   - Brooklyn.2
    1 Bairro de Nova Iorque.
    2 Outro bairro de Nova Iorque.
   O chofer exagerava propositalmente, uma vez que estava tão longe, o sotaque arrastado dos moradores do Brooklyn, o ar de quem não se espanta com coisa alguma,
fixando com olhar divertido os grandalhões que o rodeavam, alguns com mais de um metro e noventa e cinco, reparando nas calças de brim azul coladas às coxas, nos
chapéus de abas largas e nas botas de couro multicolorido.
   - Exato como no cinema! - observou em voz baixa.
   - Nunca veio ao Oeste?
   - Nunca ultrapassei Saint-Louis.
   - Vai ficar muito tempo?
   - Com ele nunca se sabe. Às vezes um dia, às vezes um ano.
   Sabia que parte do prestígio do novo patrão que acabavam de entrever refletia-se nele e representava seu papel como bom ator.
   - Beba comigo, Mac. Ponha na conta do chefe.
   Quando se instalou no restaurante, Chavez, que o espreitava, postou-se de pé nas proximidades da mesa, com a esperança de saber mais alguma coisa a respeito do
novo proprietário, e mais tarde deslocou-se para acompanhar o chofer até a calçada, apontando a alameda pela qual deveria conduzir a limusine ao pátio traseiro do
hotel, onde se achava a garagem e a bomba de gasolina.
   A mulher do gerente raramente descia antes do final da tarde. Passava o dia de penhoar no apartamento. Chavez era apaixonado por ela e, muito ciumento, tinha
o hábito de subir a todo instante para vê-la.
   Naquela tarde mal saiu do hall e limitou-se a almoçar um sanduíche. Os dois hóspedes do 66 tinham pedido o cardápio ao maître d'hôtel e foi Jensen novamente quem
falou ao telefone.
   - Que foi que eles pediram?
   - Bifes e uma garrafa de vinho tinto.
   Alguns metros adiante, na sede da companhia, Craig também não ousava sair do escritório, esperando ser chamado a qualquer minuto. Telefonara duas vezes em menos
de uma hora para Chavez, a quem Élie não precisou procurar muito.
   - Que estão fazendo?
   - Acabando de almoçar. O chofer está lavando o carro.
   - Perguntaram por mim?
   - Até agora não.
   Na segunda vez havia notícias, que não eram de molde a tranqüilizar o engenheiro-chefe.
   - Bill Hogan acaba de chegar.
   - O professor?
   - Sim.
   Hogan, professor de geologia da Universidade de Tucson, era um rapaz alto e magro, fisionomia de adolescente, do tipo que se encontra com freqüência viajando
a cavalo ou de jipe pela região, rumando até o México e não hesitando em dormir no deserto. Não teria mais que trinta e dois anos e quando estudante ganhara vários
prêmios em rodeios.
   - Ele tinha entrevista marcada? - perguntou Craig.
   - Pediu que o anunciassem. Mandaram-no subir. Trazia uma pasta de couro.
   Gonzales baixara as cortinas, de modo que já não se via o que se passava na rua. A intervalos o gerente' enxugava a testa. Élie, que continuava sentado à sua
mesa, tinha círculos de suor sob as axilas.
   À sombra, o termômetro devia marcar 46 graus. Não soprava brisa, não se viam nuvens no céu, que há semanas se apresentava do mesmo azul uniforme. A estação das
chuvas só chegaria daí a dois ou três meses, talvez mais tarde, como acontecia às vezes; ocorria inclusive chover apenas três dias no ano inteiro. Até as chuvas
o sol brilhava diariamente, a claridade era de cegar e a linha da sombra, lá fora, deslocava-se lentamente da loja de Hugo até os janelões do hotel.
   - Faz calor suficiente para você?
   Era a piada ritual, porque Élie nunca se queixava do calor e, quanto mais quente o dia, mais satisfeito ficar. Parecia muito contente de transpirar, embora seu
suor tivesse cheiro pronunciado. Chavez, ao entrar no cubículo da recepção, principalmente pelas quatro ou cinco da tarde, sentia um frêmito nas narinas.
   Élie percebia, mas não se importava. Aspirava com delícia seu próprio odor. Engordava ano a ano, e sua carne adquiria consistência malsã. Não fazia exercício
algum. Limitava-se a percorrer duas vezes ao dia, sem se apressar, o meio quilômetro que o separava de casa. Comia demais, principalmente à noite, estava sempre
com fome e guardava bombons e chocolates na gaveta.
   Seria porque durante tantos anos, na época em que morava na casa da Sra. Lange, tivera que contentar-se com dois ovos e algumas fatias de pão diários, vivendo
eternamente com fome?
   Nos três anos que passara em Hamburgo, o frio, mais que a fome, marcara sua vida, e quando pensava naquele tempo tinha dificuldade em convencer-se de que fatalmente
houvera verões. Estes eram breves e chuvosos. Em suas recordações, o sol figurava de raro em raro, mas revia com nitidez as manhãs nevoentas do Elba, julgava escutar
ainda as sirenas das embarcações escuras e úmidas buscando ansiosamente a rota, e, o que era mais penoso, os dias em que a neve se fundia e se infiltrava nos sapatos
e nas roupas.
   Nos primeiros tempos vivia certo de que o caçavam. Não ousava procurar emprego e mudava diariamente de um quarto mobiliado para outro, no bairro perto do cais.
Durante o dia caminhava infindàvelmente pelas ruas e, para evitar ser reconhecido, deixara crescer a barba que, desigual, mostrava claros entre os tufos de pêlos
ruivos.
   A multidão preparava-se para o Natal, que ele passara tiritando de frio sob um único cobertor. Dias depois, tendo-se acabado o dinheiro de Michel, reuniu-se a
um grupo de homens que andavam pelas ruas levando nas costas cartazes de propaganda.
   A sensação de frio era às vezes tão aguda que dava a impressão de queimadura, e ele precisava conter-se para não chorar.
   Ignorava o que se passara em Liège depois de sua partida, exceto que Michel não havia morrido. Revia os olhos fixos nele com expressão suplicante. Ainda que tivesse
vivido apenas alguns minutos, diria seu nome aos vizinhos que se haviam inclinado sobre ele. Ou fora encontrado por um transeunte ou um policial que fazia a ronda.
Élie recusava-se a crer que o tivessem deixado caído a noite inteira na calçada, gemendo e suplicando com o olhar o golpe de misericórdia.
   Élie pagava o crime. Tinha a sensação de pagar e não se queixava, não falava com ninguém. E finalmente decidiu-se, um dia, a atravessar o Elba para ir aos estaleiros
de Altona.
   Ali viveu três anos inteiros, num mundo de polias e gruas, de oficinas e docas, onde só havia metal e pedra, um universo negro e branco, contornado pelo cinza
ainda mais implacável do rio, às margens do qual piscavam à noite as luzes de Hamburgo.
   De início haviam-no atirado a um canteiro onde dois homens carregavam chapas de zinco de rnanhã à noite. Sua constituição não tinha robustez suficiente para resistir
a isso. Embora cerrasse os dentes e usasse de energia que provocava dor em todos os músculos, o contramestre riscara-o da lista.
   Passara então semanas fazendo compras para os operários em troca de alguns trocados, buscando cigarros ou café quente na cantina, onde em seguida lavava as mesas
e o chão, até que o contrataram como guarda do canteiro no dia em que o velho que ocupava o posto foi encontrado morto de manhã.
   Trabalhava à noite, fazendo rondas regulares, lanterna em punho, obrigado a percorrer uma tábua estreita sobre uma espécie de esgoto que lhe provocava vertigens.
Em compensação gozava da cabana e da pequena estufa que ele aquecia até o metal ficar em brasa e sua pele brilhar de calor. Esperava assim abastecer-se para não
passar o dia a tiritar, mas acontecia o contrário, segundo verificava. Isso não o impedia de voltar à rotina na noite seguinte.
   Desconhecendo seu endereço, que tivera o cuidado de ocultar, a irmã deixou de escrever-lhe. Já não tinha notícias da família, ignorava quem vivia e quem tinha
morrido; seu objetivo era amealhar dinheiro bastante para comprar uma passagem num dos navios que via sair quase diariamente para a América.
   Uma vez na América, conforme pensava, tudo estaria resolvido. Não perguntava a si mesmo por que ou como. Era uma linha que havia traçado no futuro desconhecido,
uma fronteira além da qual a vida seria diferente.
   O dia chegara três anos após, dos quais seis meses passara no hospital com uma pleurisia que não conseguia curar.
   Quando desembarcou em Nova Iorque estava magro e temia que a Imigração o recusasse por questão de saúde. Apresentou-se com o seu verdadeiro nome, Élie Waskow,
pois não conseguiria passaporte com outro nome; as autoridades não o tinham interrogado sobre o que se passara em Liège; aparentemente ninguém se preocupara em encontrá-lo.
   Na primeira noite, sem saber para onde ir, dormira num pardieiro da Rua 14 ou 15, na parte da cidade que formigava de judeus e estrangeiros semelhantes a ele,
e onde se sobressaltava continuamente ao ouvir falar iídiche. Sentia-se tão deslocado como em Hamburgo. Não estava curioso por conhecer o resto da cidade e encontrou
imediatamente trabalho de lavador de pratos num restaurante. Levou meses para se aventurar fora do bairro.
   Em Liège também não saía da casa da Sra. Lange, do círculo familiar. Tinha a impressão de que um perigo o espreitava se por infelicidade se afastasse di casa,
e esta era tão grande para ele que se escondia na cozinha, colado ao fogão, sob cujo calor passara a maior parte da sua estada no país.
   Acontecia o mesmo ali. Não visitava ninguém e sequer fazia projetos. Sabia apenas que um dia, se tivesse sorte, viveria numa região onde o inverno não existia
e o sol brilhava o ano inteiro. Gozaria então do seu calor.
   Levaria tempo. Precisava antes aprender a língua, pois a América inteira não se compunha de pessoas que falavam o iídiche e o polonês. Comprou uma gramática e
um dicionário. Enquanto trabalhava com as mãos mergulhadas em água gordurosa mas quente, escutava o que se dizia à sua volta e gravava na memória um número cada
vez maior de vocábulos.
   Num dia em que folheava por curiosidade o catálogo telefônico, fez uma descoberta que o perturbou. Em Vilna não conhecia outras famílias com o nome de Waskow;
sabia apenas que o pai tinha primos na Lituânia. Pois ali o nome figurava com freqüência no catálogo, assim como a maioria dos sobrenomes que conhecera na infância.
   Morava num quarto de hotel barato, mas onde, como em todos os hotéis da cidade, havia um balcão na recepção. O hall era escuro e as lâmpadas ficavam acesas o
dia inteiro. Uma noite, o gerente, que era alemão e se chamava Goldberg, aguardou a sua chegada.
   - Que acha de trabalhar aqui como recepcionista noturno?
   Instalara-se num cubículo mais sujo e mais estreito, porém do mesmo gênero do que ocupava no momento em Carlson City, com mesa telefônica, quadro para as chaves
e escaninhos para a correspondência dos hóspedes.
   Em Nova Iorque os invernos também eram frios, quase tão frios quanto os de Hamburgo. O aquecimento funcionava mal, ninguém conseguia ajustá-lo, e ora se morria
de calor, ora de frio.
   Paciente, ele agüentava a comida de má qualidade. porém mais abundante do que tivera até então. E passou a sonhar que desempenharia, anos mais tarde, as mesmas
funções num hotel de Miami. Na Flórida, finalmente, sentiria calor o ano inteiro e não precisaria pensar em viajar para mais longe.
   Viver aquecido e comer à vontade, até sentir o estômago cheio, a cabeça pesada! Via gente bebendo e se tornando cada vez mais vermelha; olhos brilhantes, corpo
entorpecido. A comida produzia-lhe o mesmo bem-estar, o mesmo sentimento de plenitude e segurança, principalmente quando desfrutava ao mesmo tempo de calor.
   Nem uma vez desde que saíra de Liège sentira a tentação de abrir um livro de matemática e não compreendia como passara anos dedicando tempo e energia exclusivamente
ao estudo.
   - Você é instruído, não é?
   Quando o gerente fez a pergunta não soube o que responder.
   - Se conhece um pouco de contabilidade poderá cuidar dos livros durante a noite e eu lhe darei dez dólares a mais.
   Para ganhar mais dinheiro e, por conseguinte, aproximar-se da Flórida, comprou barato um livro de contabilidade. Bastou uma semana para dominar o suficiente e
confiaram-lhe os livros do hotel. Um ano depois, o estabelecimento foi vendido para ser demolido, cedendo lugar a um arranha-céu. O gerente arranjou emprego em Chicago.
Élie acompanhou-o e dias depois trabalhava em outro hotel.
   Na lista telefônica da cidade encontrou também Waskow, Malevitz e Resnick, sobrenome da Srta. Lola. Inquieto, procurou a letra Z e encontrou Zograffi, mas nenhum
se chamava Michel ou Mickail.
   Quase não ouviu o telefone. O que o tirou do torpor foi ver Chavez precipitar-se para o balcão.
   - Recepção!
   Era do apartamento 66, voz de Jensen.
   - Quer pedir ao gerente que suba?
   Élie voltou-se para Chavez, que aguardava.
   - Pedem que suba ao 66.
   Passando diante do espelho, Manuel ajeitou a gravata, penteou-se e entrou no elevador. Gonzales fechou a porta. No mesmo instante o telefone tocou e uma voz feminina
pediu:
   - Quer ligar para o Sr. Zograffi, por favor?
   - Da parte de quem?
   - Da Sra. Carlson.
   - Um momento. Vou saber se está no apartamento.
   E mergulhou o plugue.
   - A Sra. Carlson quer falar com o Sr. Zograffi. Foi um alívio para Élie ouvir a resposta na voz de
   Jensen.
   - Transfira para mim a ligação.
   Sentira medo de que o próprio Michel atendesse. O que mais o preocupava desde o meio-dia era ouvir a voz que lhe tinham descrito, uma voz sibilante, que lembrava
o silvo da água fervente.
   Michel mal o fixara, não tentara dirigir-lhe a palavra, mas era impossível que, por mais gordo que Élie estivesse, deixasse de reconhecê-lo. Aliás, percebera
como que um estalido no seu olhar. Seria capaz de jurar que era menos a surpresa de encontrá-lo que o fato de que também Michel esperava um dia dar com ele neste
mundo. O que o teria surpreendido era vê-lo gordo e rosado, de queixo duplo, bochechas redondas e luzidias, atrás do balcão de um hotel no Arizona.
   Que pensaria Michel? Sofrerá fatalmente uma reação. Élie estava demasiado perturbado para julgá-lo, hipnotizado pela parte inferior do rosto, onde, uma noite,
há vinte e seis anos, havia apenas um buraco sangrento.
   Não lhe parecia ter visto ódio no olhar de Zograffi. Dos dois era ele o mais mudado, o olhar principalmente,que outrora era satisfeito e agora fixava-se com peso
temível nas pessoas e nas coisas.
   A Sra. Lange repetira muitas vezes:
   - Pena que sejam de um homem esses olhos!
   Que sentira Zograffi ao reconhecer Élie? Não desviara a cabeça, não dissera palavra. Subira logo para o apartamento e depois, aparentemente, começara a ocupar-se
de negócios. Estaria atendendo ao telefonema da Sra. Carlson?
   Élie poderia verificar, escutar a conversa. Não o fez e, após alguns minutos, reparou que a luz sobre o plugue passava do branco ao preto, indicando que a ligação
estava terminada.
   Ao descer, Chavez terminou primeiro a conversa iniciada no elevador com Gonzales e Élie teve a impressão de que ele o observava de maneira especial.
   Apoiando-se no balcão, falou:
   - Precisam de uma mesa comprida para estender planos. Gonzales foi buscar no porão uma das mesas desmontáveis que servem para banquetes.
   O apartamento 66 compunha-se de dois quartos de dormir, cada qual com seu banheiro, um amplo salão e uma sala menor, que podia ser transformada em escritório.
   - Que estão fazendo? - perguntou Élie.
   - Quando entrei, ele estava ao telefone.
   - Qual dos dois? V
   - Jensen. Se bem entendi, foram convidados para jantar hoje na fazenda.
   Chavez continuava preocupado e agora a preocupação relacionava-se com Élie, este estava convicto.
   - Conhece-o? - perguntou finalmente.
   - Quem?.
   - Zograffi.
   - Por quê?
   - Porque enquanto o outro falava ao telefone fez duas perguntas a seu respeito.
   - Disse meu nome?
   - Acho que não. Não. Falou do empregado da recepção.
   - Que queria saber?
   - Primeiro, quanto ganhava. Eu disse. Não podia fazer outra coisa, uma vez que, pelo que se sabe, o hotel lhe pertence agora. Depois perguntou há quanto tempo
está aqui e quando respondi que há dezessete anos, sorriu aparentemente. Ê difícil saber por causa da rigidez do rosto. Quando fala percebe-se que o maxilar deve
ter sido fraturado. Há metal no interior da boca e ele não tem metade da língua.
   Élie estava imóvel, olhos fixos no grande fichário.
   - Você o conhece? - perguntou Chavez novamente, sem saber como tratá-lo.
   - Creio que sim.
   - Por que não disse antes?
   - Não tinha certeza.
   - E agora tem?
   - Talvez. Tenho.
   - Faz muito tempo que não o vê?
   - Muito tempo.
   - Nos Estados Unidos?
   - Na Europa.
   Se mentisse, o gerente perceberia. Ademais, Michel poderia ter dito outras coisas. Talvez voltasse a mencioná-lo à noite, no dia seguinte, a qualquer momento.
Tudo era possível de agora em diante e para Élie seria inútil fugir.
   A idéia passara-lhe pela cabeça há instantes. Viera-lhe a tentação de pegar seu velho carro e precipitar-se para o México sem falar com Carlota. Mas seria inútil
a partir do momento em que Michel o encontrara; bastava pegar o telefone e fazer a sua descrição para que ele fosse preso deste ou do outro lado da fronteira.
   Nem uma vez em vinte e seis anos tivera a curiosidade de abrir o Código Penal, sabendo que no dia em que Michel o encontrasse teria o direito de decidir a sua
sorte. Mesmo sem leis, sem polícia, bastava de fugir!
   Fosse como fosse, não protestaria. Estava resignado. Aguardaria.
   - Estudaram juntos?
   - Na universidade.
   Chavez não se espantou porque o recepcionista havia estudado numa universidade. Estava interessado em Zograffi.
   - Que estudava ele?
   - Minas.
   - Começo a compreender.
   O telefone tocou e Élie atendeu.
   - Para o senhor. É Craig.
   O gerente foi dizendo, sem esperar a pergunta do interlocutor:
   - Estão trabalhando lá em cima, com plantas espalhadas no tapete, cobrindo o chão. Pediram que mandasse subir uma mesa grande.
   - Hogan está com eles?
   - Está.
   - Falaram a meu respeito?
   - Até agora não. Tenho a impressão de que a Sra. Carlson convidou-os para jantar na fazenda.
   Craig desligou embaraçado, furioso, sem saber o que dizer aos seus funcionários graduados, que desde a chegada do novo patrão não saíam dos escritórios, aguardando
notícias.
   Todo mundo esperava. Élie também. Maquinalmente, porque sentia um vago mal-estar, comia chocolate, e Chavez via-o com nojo enfiá-lo na boca.
   Não fumava e nunca tinha bebido. Enquanto outros sentiam necessidade de um copo de bebida alcoólica ou de um cigarro, ele enchia o estômago. Antigamente era a
Srta. Lola quem comia o dia inteiro, indiferente aos avisos da Sra. Lange, que repetia:
   - Vai ver! Aos trinta anos estará tão gorda que não poderá andar.
   O mais estranho era que Carlota também era assim. Quando a conhecera não era mais gorda que a maioria das mexicanas de sua idade e limitava-se a comer nas refeições.
   Eram três irmãs: Carlota, Dolores e Eugênia, e as duas últimas trabalhavam como empregadas na casa de Craig. O pai, tipo acentuadamente índio, era oleiro, e construíra
com as próprias mãos a casa onde viviam nos arredores da cidade. Fora ali que, ao chegar, Élie alugara um quarto.
   Não fazia com eles as refeições, pois tinha direito a comer no hotel. Só voltava para dormir, de dia quando trabalhava à noite e de noite quando trabalhava de
dia. Havia sempre galinhas cacarejando e beliscando a terra vermelha do pátio. Nos fundos, numa oficina, o oleiro produzia de manhã à noite um zumbido de inseto
gordo. As sirenas marcavam o curso do tempo, mas o que dominava os demais ruídos era o falatório de Carlota e da mãe que, na varanda, lavavam e passavam roupa para
os vizinhos e de cinco em cinco minutos riam às gargalhadas.
   Carlota tinha quase a mesma risada da Srta. Lola, um riso grave e sensual.
   A mãe era imensa, pernas inchadas, e era provável que um dia a filha viesse a ficar como ela.
   Não fora pelos atrativos que se casara com a moça. Quando pensara em ter o seu cantinho precisara arranjar alguém que cuidasse dele.
   Os pais haviam proposto Carlota. Fazia muito tempo que voltava para casa todas as noites, o que era desagradável porque seu trabalho começava à meia-noite, não
lhe permitindo encontrar ninguém.
   Em Nova Iorque não vivia tão sozinho. Ouvia gente se movimentando e respirando atrás de todas as portas e paredes do seu quarto, sentia-lhes o cheiro. Para não
viver sozinho decidira casar com Carlota. A transformação da moça fora rápida. Na véspera do casamento era uma jovem alegre, que ia e vinha o dia inteiro e desatava
a rir por qualquer motivo, exibindo os dentes brancos.
   Um mês depois, mal se levantava da poltrona, ou da cama, onde passava o dia comendo doces e escutando rádio. Às vezes, quando ele voltava para casa, encontrava
seis ou sete mulheres mexericando, e à noite reuniam-se na penumbra da varanda.
   A mãe e as irmãs visitavam Carlota. Primas vindas do México passavam uma semana ou um mês na casa onde havia sempre algo de comer na mesa.
   Ele se habituara. Havia as galinhas em volta da casa e pelo menos meia dúzia de gatos ruivos; era preciso tomar cuidado para não pisar-lhes as patas.
   Engordavam os dois, Carlota mais ainda que ele, e na proximidade dos quarenta, já quase tão volumosa quanto a mãe, andava de pernas abertas.
   O telefone tocou novamente. Voz de Jensen.
   - Ligue para 242.
   - Em Carlson City?
   - Sim.
   Conhecia o número. Pertencia a um negociante de imóveis, um irlandês chamado Murphy, de quem comprara a casa.
   - Murphy?
   - Sim.
   - Fique na linha. Ligo já.
   Trocaram umas dez frases e a ligação estava encerrada. Murphy residia seis casas abaixo do hotel. Minutos depois aparecia, muito excitado.
   - Sr. Zograffi - falou, importante.
   - No 66. Tem entrevista marcada?
   - Ele está me esperando. Élie verificou.
   - Mande subir.
   Chavez, que não se afastava da recepção, fumando cigarro após cigarro, procurou entender o que se passava.
   - Não sei como ouviu falar nesse velho caloteiro do Murphy. Sabe o número do telefone dele como se os dois já tivessem estado em contato.
   O telefone de novo.
   - Mande subir uma garrafa de uísque e copos, por favor. Não esqueça o gelo.
   - Soda?
   - Não.
   O tempo passava devagar. No decorrer do dia formara-se um grupo em torno do velho Hugo, que observava o hotel em frente com seus olhinhos maliciosos.
   O mais aturdido, o mais infeliz era Craig, que tivera tanto trabalho para conservar seus melhores colaboradores em Carlson City e que até então fora ignorado.
   Cerca das quatro e meia apresentou-se outra pessoa, um criador de gado, com fazenda a uns vinte quilômetros da periferia da cidade.
   - Sr. Zograffi!
   - Ele esta à sua espera?
   - Creio que sim. Telegrafou-me para que viesse conversar com ele depois do meio-dia.
   Era exato, Jensen mandou-o subir. Meia hora depois pediu outra ligação telefônica, o advogado Delao, amigo pessoal de Craig. Delao, que também conhecia Chavez,
limitou-se a apertar-lhe a mão de passagem, não disse palavra e não fez alusão ao motivo da visita ao 66.
   Foi Delao quem finalmente ligou quinze minutos mais tarde, querendo falar com seu próprio escritório, de onde veio a secretária com uma máquina de escrever portátil.
   - Compraram a fazenda - murmurou Chavez, que fazia esforços para reunir as peças do quebra-cabeças. - Foi para datilografar um documento legal, evidentemente,
que Delao chamou a secretária.
   Ligando para Craig, repetiu:
   - Acho que vão comprar a fazenda de Ted Brian.
   - Ted está com eles?
   - Está. E também Delao, que mandou chamar a secretária. E também o velho patife do Murphy, o primeiro a ser chamado e que parece estar por dentro de tudo.
   - Vou para aí.
   Craig já não tinha coragem de esperar no escritório, onde não conseguia manter-se quieto. Era um rapaz alto e robusto, de maneiras bruscas. Arrastou Chavez para
o bar.
   - Preciso de um trago.
   Já tinha tomado mais de um, era evidente pelo rosto vermelho. Alguém devia ter levado uma garrafa para o escritório, a fim de ajudar a passar o tempo.
   Encostou-se ao bar, enquanto o gerente, junto dele, não bebia e continuava a vigiar o hall, precipitando-se para Élie toda vez que o telefone tocava.
   Craig bebeu dois uísques duplos, olhar cada vez mais sombrio, e acabou por desfechar um soco violento no bar.
   - Vamos ver o que ele tem em mente! - falou, voz sonora, dirigindo-se ao hall.
   Ordenou a Élie:
   - Ligue para o 66. E fone em punho:
   - Jensen? Preciso falar com o chefe...
   Do seu lugar Élie ouviu a voz calma de Jensen.
   - Tenho a impressão de que esqueceram que até nova ordem sou o diretor da companhia... Como? O quê?
   Exaltou-se. Parecia prestes a provocar um escândalo, mas foi se acalmando progressivamente, a voz amansou, baixou a cabeça, murmurando:
   - Sim... sim... compreendo... sim... Finalmente:
   - Combinado. Amanhã às dez.
   E repetiu como se os outros não tivessem ouvido:
   - Vou conversar com eles amanhã às dez horas. Fingiu saber de tudo, mas era evidente que sabia
   tanto quanto Élie ou Chavez.
   Era um espertalhão!
   Voltou ao bar. Dessa vez o gerente não o acompanhou. Foi Ted Brian, o fazendeiro, o primeiro a sair em companhia de Delao e da secretária.
   - Vamos tomar um trago? - propôs, no meio do hall.
   Delao respondeu:
   - Aqui não.
   - Agi direito?
   - Conversaremos mais tarde.
   Murphy saiu do elevador daí a instantes, ar satisfeito e misterioso, e apertou longamente a mão de Chavez.
   - Que sujeito! - murmurou com admiração.
   Às seis da tarde, Craig, que estava embriagado, telefonou para a mulher anunciando que não voltaria para jantar. Ela inquietou-se com o estado do marido, que
repetia:
   - Não tenha medo! Sei o que faço! Verá que é minha última palavra.
   Voltou ao bar com andar hesitante e lançou um olhar de desafio ao chofer que estava tomando um trago. Não disse palavra. Limitou-se a examiná-lo dos pés à cabeça,
enquanto Mac, o barman, fazia-lhe sinais para que se mantivesse tranqüilo.
   Às seis e quinze, a limusine estava à porta. Minutos depois chamavam o elevador do sexto andar e Gonzales precipitou-se para a cabina.
   Zograffi foi o primeiro a sair, seco, impecável em um summer jacket de um branco cremoso. Enquanto Jensen deixava a chave na recepção, ele ficou no meio do hall
sem olhar para ninguém, fumando um cigarro achatado, cujo odor Élie seria capaz de jurar que reconhecia.
   Gonzales impeliu a porta giratória. Dick, o chofer, que aguardava na calçada, abriu e fechou a porta do carro.
   As luzes acabavam de se acender. No horizonte, o céu era de um vermelho violáceo e as montanhas coloriam-se de lavanda.
   Silencioso, o carro desceu a rua em declive, acompanhado por todos os olhares. Somente Élie não se levantou para vê-lo partir. Estava vermelho e tinha a testa
coberta de suor.
   Michel não lhe dera a menor atenção.
  
  3 - A defesa de Élie
  
   ÀS sete horas, Célia, a mulher de Chavez, saiu do elevador e ficou um instante imóvel, olhando o hall quase deserto, pestanejando como se tivesse entrado num
salão e todos os olhares nela se fixassem.
   Era a mulher mais bonita de Carlson City, segundo a opinião geral, e ela bem o sabia. Sabia também que um dos seus maiores encantos era a sua expressão infantil
e, quando lhe dirigiam a palavra, arregalava os olhos com exagerada candura.
   O marido precipitou-se para ela e conduziu-a para o restaurante, onde tinham mesa à direita da porta.
   Ela passava horas se arrumando diariamente, cuidava com dedicação incansável do rosto, dos cabelos, das mãos, de cada parte do corpo, pelo qual tinha o mesmo
culto que o marido. No restante do tempo ficava deitada num diva, lendo romances. Uma vez que não conseguia habituar-se a andar senão seminua no apartamento, Chavez
exigia que trancasse a porta a chave e subia com freqüência, verificando silenciosamente se ela havia obedecido.
   Outras vezes, penhoar cruzado no busto, debruçava-se à janela para acompanhar com os olhos o movimento indolente da rua.
   Às vezes o marido, a caminho da loja de Hugo para buscar os jornais ou cigarros, avistava-a, e por meio de sinais ordenava-lhe que entrasse e fechasse as persianas,
pois sentia ciúmes até dos olhares que os homens lhe lançavam.
   Um ano antes, quando tinham rodado um filme nas montanhas e o ator principal se hospedara no hotel por duas semanas, Chavez proibira Célia de descer até mesmo
para jantar. Faziam a refeição juntos no apartamento e as empregadas diziam que durante esse período ele guardava a chave no bolso o tempo todo.
   Serviram o jantar de Élie numa bandeja, atrás do balcão da recepção. Quando terminou, telefonou para Emílio, que morava no outro extremo da cidade e que às oito
horas viria substituí-lo. Em voz baixa disse:
   - Não precisa vir me substituir hoje, Emílio. Vou passar a noite aqui.
   - Não pode ficar vinte e quatro horas plantado na recepção.
   - Não pretendo dormir.
   - É verdade que o novo patrão chegou?
   - É.
   - Como é ele?
   - Não sei.
   - Combinado. Amanhã trabalho de dia. Obrigado.
   - Não será necessário, provavelmente.
   Não queria afastar-se do hotel. Parecia-lhe impossível que Michel deixasse de ter algo a dizer-lhe, fosse o que fosse, uma mensagem qualquer a transmitir-lhe.
Compreendia que até então os negócios tinham-lhe ocupado todo o tempo; no entanto, arranjara meio de fazer duas perguntas a seu respeito. Duas apenas, e era a primeira
que mais o perturbava. Por que Zograffi, que era quase certamente o novo proprietário do hotel e da mina, teria indagado quanto ele ganhava? Até Chavez, que desconhecia
o passado de ambos, ficara intrigado. E por que Michel não lhe dirigira a palavra, limitando-se a fixá-lo?
   Talvez naquela noite, ao regressar da fazenda, agisse de outro modo, principalmente se Élie estivesse sozinho no hall, o que era bem provável.
   Michel devia fazer-lhe ao menos uma pergunta:
   - Por quê?
   Porque não sabia, disso Élie estava certo. Lembrava-se do espanto manifesto em seu olhar no momento do disparo.
   Élie explicaria. Ele sabia. Tivera vinte e seis anos para pensar no que diria quando se encontrasse frente a frente com Michel. E esse dia chegara. Tinha pressa
de terminar. Zograffi aparentemente não percebia a crueldade que constituía passar pela recepção sem lhe dirigir a palavra. Entretinha falsas idéias. Tão logo desse
a Élie uma chance de se explicar, compreenderia.
   Pouco importava que fosse o novo proprietário de Carlson City. Ainda que fosse um mendigo das ruas, a situação seria a mesma.
   Quase se esqueceu de telefonar para Carlota.
   - Alô, é você? - disse no mesmo tom de voz que adotara para Emílio.
   Ouvia-se música no outro extremo do fio. Ela escutava rádio ou discos.
   - Que aconteceu? Você não vem jantar?
   - Não. Vou passar a noite aqui no hotel.
   - Compreendo. O novo proprietário chegou. Toda a cidade sabia. E ela fez a mesma pergunta:
   - Como é ele? E acrescentou:
   - Ê verdade que comprou a fazenda dos Brian?
   - Acho que sim.
   - Você vai conseguir dormir um pouco?
   - Sem dúvida.
   O recepcionista noturno passava horas sem ter o que fazer e era costume de quem estivesse de plantão trancar a porta e cochilar numa das poltronas de couro. Emílio
sempre tirava os sapatos.
   Ao sair da sala de refeições, Chavez surpreendeu-se ao ver que Élie não se preparava para sair.
   - Emílio está doente?
   - Telefonei dizendo que não precisava vir. Prefiro passar a noite aqui.
   Célia, por trás do marido, fixou Élie, desconfiada.
   - Vocês dois se entendiam bem na universidade?
   - Por quê?
   - Não sei. Gostaria de saber.
   As antigas relações entre o novo patrão e o recepcionista inquietavam-no. Sentia confusamente que lhe escondiam algo. Contudo, deu de ombros.
   - Como quiser. Vou ao cinema com minha mulher. Não creio que voltem da fazenda antes das onze.
   Avistando Craig sozinho no bar, tomou-lhe o braço e instalou-o no carro para deixá-lo em casa de passagem, enquanto Célia os seguia sem fazer perguntas. Por falta
de clientes, o barman fechou a porta e retirou-se. Dois hóspedes subiram para seus quartos. Restaram dois outros no hall, Gonzales e Élie estavam a cerca de dez
metros um do outro.
   Os livros estavam em dia. Não haveria nenhum trabalho a fazer durante horas, a noite inteira. Élie, estirado na cadeira, olhos semicerrados, começou a repetir
as frases que diria quando finalmente lhe permitissem defender-se.
   Ignorava a sorte de Louise e calculava que teria então quarenta e cinco ou quarenta e seis anos. Era mais velha que Carlota, uma mulher madura. Estaria casada
e com filhos? Quem sabe sofrerá uma recaída e fora internada no sanatório? Apesar das tímidas negativas da Sra. Lange, estava certo de que ela sofria de tuberculose
óssea.
   A Sra. Lange seria bem idosa. Mas não se surpreenderia ao saber que a casa continuava a mesma, com outros inquilinos no quarto rosa, no quarto amarelo, no quarto
verde e, quem sabe, um pensionista rico no antigo salão transformado em quarto grená, onde havia plantas em vasos de cobre no peitoril das janelas.
   De todo o seu passado esta era quase a única parcela que conservava certa vida em sua memória e às vezes, observando Carlota, achava que ela tinha um pouco de
Louise e da Sra. Lola.
   Assustou-se de repente à idéia de que Michel, que acabara com sua vida em Liège, pudesse agora acabar com sua vida em Carlson City, obrigando-o a deslocar-se
novamente. O pensamento provocou-lhe angústia física mais intolerável que o frio de Hamburgo e de Altona, que as noites mais negras do estaleiro. À perspectiva de
mais uma vez partir, foi tomado de pânico e, sozinho no seu canto, protestou, debateu-se, a testa coberta de suor gorduroso.
   Não tinham o direito de exigir-lhe isso. Havia pago tão caro o seu lugar quanto seria possível a um homem.
   Michel compreenderia. Precisava compreender. Élie contaria tudo, colocaria seus sentimentos, pensamentos e sentidos a nu, e aquela nudez seria ainda mais patética
que a de Louise no domingo das fotografias.
   Zograffi precisava saber que ele chegara ao extremo e não poderia ir mais longe. Depois era o nada. O vazio.
   Podiam fazer com ele o que bem entendessem. Impor-lhe qualquer castigo. Mas que não o obrigassem a partir. Seria incapaz. Preferia sentar-se no meio-fio e deixar-se
morrer ao sol.
   Sentia-se cansado. Para os outros, para um homem como Zograffi, a palavra teria um sentido tão terrível como para ele?
   O telefone tocou. Ligação de Nova Iorque. Era voz de mulher.
   - Carlson Hotel? Quero falar com o Sr. Zograffi.
   - Ele não está no momento.
   - Ainda não chegou?
   - Chegou, mas saiu.
   - Disse quando voltaria?
   - Cremos que chegara tarde. Quer deixar recado?
   - Não vale a pena. Ligarei mais tarde.
   A voz era jovem, sem sotaque estrangeiro. Élie perguntou a si mesmo se Michel teria casado, o que o levou a outras indagações a seu respeito. Estranho pensar
ora em "Michel", ora no "Sr. Zograffi", com mais freqüência Zograffi que Michel, provavelmente por causa da alteração no olhar.
   - São dez horas - anunciou Gonzales, encostando-se ao balcão da recepção.
   - Pode ir.
   Desde que fora suspensa a exploração da mina, não permanecia empregado no hall a noite inteira, e quando um hóspede voltava tarde era o recepcionista quem manobrava
o elevador.
   - Acha que devo ficar?
   - Por quê?
   - Por causa do chefão.
   - Não vale a pena.
   - Foi o Sr. Chavez quem disse?
   - Assumo a responsabilidade.
   Gonzales dirigiu-se ao vestiário para mudar de roupa. Ao atravessar o hall, vestia velhas calças e levava na cabeça um chapéu de palha deformado que lhe emprestava
aparência lamentável.
   - Boa-noite.
   - Boa-noite.
   Élie estava agora quase certo de que conduziria Zograffi e seu auxiliar ao sexto pavimento e pelo menos por alguns instantes ficariam frente a frente no elevador.
   Contrariou-se ao ver Chavez e a mulher voltarem cedo. Esperava que subissem juntos e que o gerente decidisse ir para a cama. De passagem, lançando um olhar ao
relógio, Chavez perguntou:
   - Nada?
   - Nada. Todos os outros já voltaram.
   Passada meia hora, Chavez tornou a descer com o rosto sujo de batom. Percebeu-o ao passar pelo espelho, que sempre consultava de esguelha; usou o lenço e veio
apoiar-se no balcão como quem tivesse intenção de permanecer ali. A princípio os dois se mantiveram calados.
   - Sabe se ele é casado? - perguntou finalmente o gerente.
   - Não era quando o conheci.
   E lembrando-se da chamada de Nova Iorque:
   - Uma mulher telefonou há cerca de uma hora.
   - Disse o nome?
   - Falou que ligaria mais tarde.
   - Há uma foto lá em cima na lareira. Mulher morena, muito bonita, tipo estrangeiro. A foto parece antiga, não pode ser a mulher dele.
   - Numa moldura de prata?
   - É.
   - Viu também um retrato de homem? Chavez fixou-o surpreendido e desconfiado.
   - Sim, um homem com quem ele se parece de modo surpreendente. Devem ser o pai e a mãe.
   - Sim.
   - Eram ricos?
   - O pai era negociante de tabaco e tinha representantes por toda parte dos Bálcãs e no Egito.
   - Teriam conseguido fugir a tempo?
   Por que Élie estava certo de que Michel não era casado? Se fosse, não haveria uma terceira foto na lareira, e também retratos de crianças?
   A mulher de Nova Iorque não falava em tom de esposa. A idéia de que Zograffi era celibatário assustava Élie, pois levava-o a pensar no maxilar artificial, na
língua pela metade, na voz que não passava de um assobio. De repente, ele, que conhecera tão bem a solidão, descobria um isolamento diferente.
   - Por que insistiu em esperá-lo?
   - Por nada.
   Temia agora, temia realmente o encontro frente a frente que aguardara com tanta ansiedade desde a manhã. Chavez não se decidia a subir para reunir-se à mulher.
Era evidente que resolvera ficar por perto quando Zograffi e o assistente voltassem da fazenda.
   Desandou a caminhar pelo hall, fumando cigarros que em seguida atirava à areia das escarradeiras, e toda vez que se voltava para a recepção observava Élie com
a mesma curiosidade.
   - Você completou os estudos?
   - Não.
   - Por quê?
   - Razões pessoais.
   - Falta de dinheiro?
   Se Chavez não estivesse no hall, Élie prepararia chá, pois começava a sentir-se sonolento, as pálpebras pesadas. Com apenas metade das lâmpadas acesas, toda uma
parte do hall estava mergulhada na escuridão.
   - Chegaram!
   Ouviu-se um carro dobrar a esquina e, de fato, parar diante do hotel. Uma porta bateu, depois outra. Élie levantou-se de modo a ficar bem visível, enquanto o
gerente se precipitava para a entrada.
   Zograffi foi o primeiro a surgir e era exato que de longe parecia de modo quase alucinante com a foto do pai. A meio caminho do elevador deteve-se e Jensen dirigiu-se
ao balcão para pegar a chave. Garganta cerrada, Élie havia decidido pronunciar ao menos as palavras "boa-noite". E conseguiu-o com esforço, dirigindo-se a cada um
dos hóspedes.
   Michel fixou-o surpreendido, franziu o cenho como se procurasse compreender e finalmente, com imperceptível encolher de ombros, esboçou o gesto que devia dirigir
a todos os seus empregados. Do seu lugar, Élie julgou ouvir:
   - Boa-noite.
   Não tinha certeza. O som fora indistinto, uma espécie de gorgolejo, e os três desapareceram no elevador, cuia porta metálica Chavez fechou.
   Do seu próprio apartamento, dez minutos depois, o gerente telefonou:
   - Eles não precisam de nada e não querem ser incomodados. Se telefonarem de Nova Iorque peça que liguem de novo amanhã a partir das dez.
   Michel continuaria a levantar-se tarde como antigamente, mantendo o hábito de circular de roupão e chinelos? Só de pensar nisso Élie recordava o odor especial
que reinava no quarto grená, misto de fumo claro e água-de-colônia.
   Mantinha a esperança de ser chamado. Era impossível que Zograffi não dissesse coisa alguma a Chavez e que dentro de minutos chamasse Élie pelo telefone, pedindo-lhe
que subisse. Talvez, para evitar a presença de Jensen, resolvesse descer.
   Nervoso, saiu do seu cubículo e se pôs a andar pelo hall.
   Todos os hóspedes haviam regressado ao hotel. Nada o impedia de trancar a porta e deitar-se num dos sofás de couro.
   Dez minutos depois saiu para a rua, atravessou.-a, e da calçada oposta olhou o prédio onde havia apenas duas janelas acesas. O céu cintilava de estrelas. Ouvia-se
ao longe o cricri dos grilos da montanha. Do outro lado do rio, no bairro residencial, raras janelas, duas ou três, destacavam-se em amarelo, mas não na sua casa.
Carlota dormia, como de costume, com dois ou três gatos na cama.
   Se o telefone tocasse, ele ouviria da rua. Ficou muito tempo de olhos fixos nas janelas do sexto pavimento, que de repente se tornaram tão negras como as outras.
   Sentia o rosto vermelho e os olhos ardentes, era sua maneira de chorar. Empurrou a porta, trancou-a e não soube para que lado dirigir os passos no hall mais vasto
que nunca.
   Acabou por entrar no vestiário e descer a escada de, ferro que conduzia à cozinha. Acendeu a luz. Acontecia quase sempre quando trabalhava à noite e vinha acompanhado
de sentimento de culpa. Abria as geladeiras, uma após outra, comia qualquer coisa, uma coxa de galinha, queijo, sardinhas - havia sempre uma grande lata aberta -
e antes de subir enchia os bolsos de frutas.
   Poderia, como Emílio, mandar preparar uma refeição fria para a noite. Tinha o direito, mas a idéia não lhe passava pela cabeça e quando de manhã ouvia o cozinheiro-chefe
resmungar porque a comida havia desaparecido não confessava que fora ele.
   Como nas outras noites, não se sentou, ouvido alerta, temendo ser surpreendido.
   Comia ao subir a escada, engolindo o último bocado sem mastigar, quando lhe ocorreu a idéia de que poderia encontrar-se frente a frente com Michel.
   Mas não havia ninguém no hall quando o percorreu, desconfiado, como se esperasse dar com alguém escondido atrás de uma poltrona.
   Tinham que lhe conceder a oportunidade, mais cedo ou mais tarde. Estava demasiado cansado para ficar de pé e não se sentia seguro fora do seu cubículo. Preferia
passar o resto da noite numa cadeira desconfortável que numa poltrona do outro lado do balcão.
   Era uma das coisas que precisava explicar, ignorando se os outros seriam como ele: tinha necessidade do seu cantinho.
   Por mais ridículo que fosse, quem sabe era essa a razão de tudo o que havia acontecido? Não começaria por aí. A primeira frase, marcando o ponto essencial, seria:
  
   - Apesar de tudo o que tenha pensado, Michel, eu nunca odiei você.
  
   Tratara-o por "você" antigamente? Não se lembrava. Era detalhe que lhe fugia à memória e que o aborrecia. Não era estranho também que estivesse pensando em polonês?
  
   - Tentei. Fiz de tudo para odiá-lo porque então seria fácil. Não consegui. Não era uma questão de ódio. Não era também uma questão pessoal. Sabia que você não
podia agir de outra maneira, mas a verdade é que me arrebatou tudo o que eu tinha.
  
   O "você" não soava bem. Fechou os olhos, esforçando-se por evocar a atmosfera da sala de jantar de Liège, onde se ajoelhava diante da fechadura.
   Não conseguiu. Reviu-se sentado à mesa diante dos livros e dos cadernos, ouvindo o ronronar da estufa, distinguindo o perfil de Louise sentada na poltrona e,
embora aquela imagem o perseguisse no passado, a ponto de fazê-lo chorar sozinho no quarto, via-se incapaz de imaginar na cama a parte inferior do corpo nu e pálido.
   Nada disso tinha importância, descobrira mais tarde. Louise não tinha importância alguma. O que importava...
   Michel tornara-se personagem famoso, avaro de seu tempo, com certeza.
   Não ficaria bem impacientá-lo. Precisava encontrar frases definidas; caso contrário, ele o fixaria como o tinha fixado há instantes, perguntando a si mesmo o
que fazia ele no seu caminho.
   Era assim que pensava? Sentiria por ele tal desprezo que nem lhe daria oportunidade de explicar-se?
   Não o denunciara, caso contrário a polícia o teria prendido. Havia listas de nomes conservadas ano após ano e enviadas a todos os países. Para viajar aos Estados
Unidos tivera que se apresentar aos consulados da Polônia e dos Estados Unidos, obter um certificado da polícia de Altona e em parte alguma haviam erguido as sobrancelhas
ao vê-lo ou ao estudar seu nome.
   Michel calara-se, portanto. Teria compreendido e sentido compaixão?
   Mas nesse caso por que não lhe concedia um minuto de conversa? Ficara ocupado a tarde inteira, é claro. Ã noite, ao voltar, não estava ocupado, e subira para
se deitar sem ter a curiosidade de fazer a Élie uma única pergunta.
   Por que o fixara surpreendido? Porque engordara e seus cabelos ruivos estavam ralos? Ou porque passava a vida no cubículo da recepção de um hotel sem importância?
   Por sua causa Michel tinha a metade inferior do rosto desfigurada, deformada, e só se expressava por meio de sons ridículos e todos os que o fixavam sentiam-se
embaraçados. Seria possível que não guardasse rancor?
  
   - Minha vida também se modificou por sua causa. Eu também senti rancor, esforcei-me por detestá-lo e decidi castigá-lo.
  
   Que Michel o castigasse, caso se sentisse bem com isso. Tinha o direito. Exigisse uma punição e Élie a aceitaria antecipadamente.
  
   - Mas, por favor, não me force a partir novamente.
  
   Isso ele não agüentaria.
   Que dessa vez ao menos o deixassem no seu canto. Ou então que o matassem. Tinha medo da morte. A idéia de estar caído no chão, inerte, olhos abertos, com pessoas
caminhando em volta, que o levariam antes de se decompor, era mais aterradora que a idéia do frio. Que o matassem, caso fosse preciso. Mas rápido.
   Michel não seria cruel a ponto de impor-lhe propositalmente aquela expectativa. Era um homem ocupado, de múltiplas responsabilidades.
  
   - Sei que tem muita coisa na cabeça, decisões a tomar, pessoas à espera, mas bastam alguns minutos para decidir meu caso.
  
   Era muito simples. Bastava que lhe desse permissão de explicar-se.
   Encontrara a palavra para definir o sorriso do Michel de outrora, sua leveza, sua satisfação, que impediam as pessoas de guardar-lhe rancor. Ele gozava e nem
o percebia. Esmigalhava as pessoas sob o calcanhar, como se esmigalham insetos ao caminhar, e não sentia remorso porque desconhecia o mal.
  
   - Compreende o que quero dizer? Você era inocente, ignorava o sofrimento, ignorava o que era sentir frio, fome, medo, saber-se feio e sujo e se envergonhar disso.
Você precisava de tudo porque desejava tudo, e eu, que possuía apenas meu cantinho na cozinha da Sra. Lange, e que imaginava passar ali o resto da vida...
  
   Não era isso. Não conseguia encontrar a idéia clara, simples, descoberta nas noites de Altona. Absurdo que tivesse esquecido uma coisa tão importante. Então,
tudo lhe parecia luminoso e, se encontrasse Michel naquela época, tinha a certeza de que o convenceria.
   A idéia de inocência fazia parte do conjunto, mas não se expressava da mesma maneira. Era urgente encontrá-la para que a explicação fosse justa, pois não queria
enganar Michel e não era para sua compaixão que pretendia apelar.
   Era para seu juízo. Queria falar-lhe de homem para homem, com tanta sinceridade ou mais ainda que a usada para falar consigo mesmo.
  
   - Somos homens, nada além de homens, e de repente me senti infeliz, vendo desabar tudo o que havia imaginado...
  
   Como explicar-lhe que era conseqüência do que vira pelo buraco da fechadura, dos gestos que Michel fizera com uma jovem doentia?
   Há muito tempo deixara de pensar em Louise. Michel se lembraria dela, sem dúvida, e perguntaria:
  
   - Por quê?
  
   Impossível responder. A verdade era mais simples. Diria sem comentários:
  
   - Tentei matá-lo. Consegui apenas feri-lo e não tive coragem de liquidá-lo. Tem o direito de se vingar.
  
   A palavra vingança chocaria Michel. Não era também a que ocorria a Élie.
  
   - Pode me castigar.
  
   Como ele próprio o castigara antigamente. Era preciso. Claro. Se Michel exigisse outras explicações faria um esforço para apresentá-las. Tanto pior se não conseguisse.
   Ele dormia lá em cima. Talvez, ao respirar pela boca, emitisse o mesmo assobio que ao falar.
   Os Chavez também dormiam. Todo mundo dormia. Carlota, na sua casa, dormia com os gatos.
   Élie não pedia nada a ninguém, exceto que o deixassem no seu canto. Nada pedira a Louise, à Sra. Lange, contentando-se com o calor que transmitiam à casa. Carlota
não havia compreendido de início que ele não se aborrecesse ao voltar para casa e encontrar tudo desarrumado só porque as irmãs e vizinhas a tinham ido visitar.
   Habituara-se a vê-lo varrer, colocar tudo em ordem, às vezes preparar as refeições e devia considerá-lo um homem anormal, perguntando a si mesma por que decidira
viver com ela.
   Para que tentar uma explicação? Não queria estar sozinho, era só.
  
   - Julgue-me! Rápido!
  
   Que a história acabasse de uma vez! Que se sentisse finalmente em paz!
   Comeu em protesto não sabia contra o quê. E quando as frutas guardadas no bolso se esgotaram, desceu novamente à cozinha.
   Sentia-se tranqüilo de estômago cheio. Era uma prova de que existia.
   Cochilou um pouco, não adormeceu, mas perdeu consciência o suficiente para se sobressaltar quando o dia começou a clarear e ouviram-se os primeiros ruídos da
cidade.
   Teve a impressão de que acabara de viver a pior noite de sua vida. Sentia-se abatido física e moralmente. Desviou o rosto ao dar com seus olhos glaucos no espelho
e saiu para lavar o rosto e as mãos.
   Duas mulheres, mexicanas pobres e magras, chegaram às seis e meia para fazer a limpeza do hall; em seguida o engraxate abriu a porta metálica da loja de Hugo,
onde pouco depois um ciclista atirou um monte de jornais que acabavam de chegar à estação.
   Quando ouviu barulho na cozinha, Élie pediu pela porta entreaberta que mandassem trazer café forte.
   Percebia, à luz diurna, que talvez ainda tivesse que esperar muito tempo. Perdeu a esperança de que Zograffi se interessasse imediatamente pelo seu caso. Tornara-se
um homem de negócios. Isso não lhe parecia estranho.
   Emílio telefonou.
   - Quer que eu o substitua?
   Hesitou. Havia prometido a si mesmo só sair do hotel após uma explicação com Michel. Perguntava-se agora se teria forças.
   Daí a pouco pediriam lá de cima o café da manhã, começariam os telefonemas. Craig seria chamado, outros também, sem dúvida, enquanto Chavez, ansioso, passaria
a manhã encostado ao balcão da recepção.
   Haveria oportunidade para o seu caso?
   - Está bem. Venha.
   Não desistiu. Experimentava apenas a depressão do início da manhã. O sol já brilhava, aquecendo a atmosfera. Sentiu vontade de se deitar, fechar os olhos e dormir.
Dormir de fato, sem pensar em coisa alguma, sem sonhar. Dormir em casa, na cama ainda úmida do corpo de Carlota, na claridade dourada que se infiltrava pelas venezianas,
janelas abertas, rodeado pelos ruídos familiares vindos lá de fora, o cacarejar das galinhas, o ladrar do cão, as buzinas e a voz aguda das mulheres que se apostrofavam
em espanhol, falando tão depressa que se esperava parassem de repente por falta de fôlego.
   Era o seu cantinho. Suaria, sentiria o cheiro de sua epiderme oleosa, e se veria gordo, sujo e desleixado.
   Mergulharia no sono como se jamais devesse acordar e, quando abrisse os olhos, tornaria a sentir desprezo de si mesmo como se tivesse passado a noite a beber.
Nunca sentira necessidade de álcool para se embriagar e ter ressaca. Justo naquela manhã seus olhos pareciam olhos de bêbado e as mulheres que faziam a limpeza do
hall o tinham fitado de esguelha.
   O caso estaria encerrado. Soubera sempre que um dia terminaria assim. Debatia-se ainda por falta de coragem de se resignar.
   No 66 Michel perceberia tudo aquilo? Não teria compaixão? Alguém, um dia, fosse onde fosse, teria pena dele?
   Emílio chegou de bicicleta e guardou o chapéu de palha no vestiário. Era magro, e usava bigodinho escuro no rosto de traços oblíquos, o que lhe dava aparência
de bandido de cinema.
   Élie cedeu-lhe lugar no cubículo. Inclinando-se sobre a escrivaninha, Emílio consultou as fichas.
   - Estão lá em cima?
   - Estão.
   - Alguma recomendação?
   - Não incomodá-los antes das dez horas, ainda que telefonem de Nova Iorque.
   Hesitava em sair, aborrecido por ter cedido à fraqueza da madrugada. Já não sentia vontade de dormir, de se afastar do hotel. Parecia-lhe que, perdendo contato,
corria perigo.
   - Você está com mau aspecto. Doente?
   - Não.
   - Ouvi dizer que ele vai comprar as fazendas do vale com a idéia de fertilizá-las com a água do lago, compreende? Vai bombear a água para reativar a mina. Levará
um ano pelo menos. A água correrá pelo vale e de repente as terras que não valiam quase nada produzirão múltiplas colheitas de alfafa, amendoim e até algodão. Diz-se
que Ted Brian se deixou ludibriar e que outros também já venderam.
   Élie fitava-o com olhar tão vago que Emílio interrompeu-se.
   - Não se interessa por nada disso?
   Que importância tinha tudo aquilo para Élie? Michel Zograffi talvez se achasse em Carlson City para fazer negócios. Mas esses negócios já estavam em segundo plano.
   Era impossível que deixasse de ser assim, tanto para Michel como para ele.
   - Até a noite. Durma bem.
   Viu o velho Hugo já instalado na sua cadeira fazer-lhe sinal para se aproximar. Fingiu não percebê-lo e dirigiu-se à parte baixa da cidade, atravessou o rio,
que ficava seco durante quase o ano inteiro, e subiu lentamente o aclive na outra margem.
   A porta estava aberta, assim como todas as janelas. Soprava ligeira brisa. Carlota dormia e ele teve tempo de se despir antes que ela percebesse sua presença.
Quando estavam juntos, falavam quase sempre em espanhol. Ou então ele falava inglês e ela respondia no seu idioma.
   - É você?
   Recuou para ceder-lhe lugar. A cama estava quente e úmida. Ela afastou um dos gatos, que rolou miando para o tapete.
   - Está muito cansado?
   Fixou-a com a mesma indiferença com que olhava o próprio corpo.
   - Você dormirá melhor se eu me levantar.
   Ele não protestou e ela sentou-se na beira da cama, coçando-se debaixo dos seios. Levantou-se finalmente e vestiu o penhoar antes de se dirigir à cozinha.
   Ele diria a Michel:
   - Sabe de uma coisa?
   Devia ou não tratá-lo por você?
   A última coisa de que teve consciência foi Carlota, atirando milho às galinhas, que se precipitaram para ela, cacarejando.
  
  4 - Zograffi, um homem de sorte
  
   AO acordar, Élie ouviu na varanda as vozes de Carlota e de uma de suas irmãs, Eugênia, casada com um mexicano contramestre da mina e mãe de seis filhos. Só os
dois mais velhos estavam na escola e aos outros ela arrastava agarrados à sua saia, com aparente despreocupação. Carlota e ela eram capazes de mexericar o dia inteiro
sem se cansar, falando de qualquer coisa, descobrindo motivos para rir e interrompendo-se apenas quando Élie aparecia.
   Ele se perguntava com freqüência se Carlota e a família não o temiam um pouco. As mulheres perdiam a alegria e a naturalidade na sua presença, como se ele fosse
um estranho, e mais, um ser de outra espécie, a quem não compreendiam. A outra irmã, Dolores, tinha quatro filhos; teria cinco se um deles não houvesse morrido e
mais ainda se não abortasse naturalmente uma vez por ano.
   Os maridos caçoavam dele pelas costas, sabia-o muito bem, usando de um termo preciso para dizer que não era homem, já que não dava filhos a Carlota.
   Dois meninos e uma menina de Eugênia brincavam agachados diante da janela, realizando misteriosos ritos com calhaus irisados.
   Quando ele apareceu na varanda, depois de vestir as calças e enfiar os pés em chinelos, as duas mulheres, conforme esperava, calaram-se, não terminando sequer
a frase iniciada, com ar de quem foi surpreendido em falta. Estirada na cadeira de balanço, Eugênia havia tirado um seio da blusa vermelha e amamentava o caçula.
O bebê fixou Élie com seus grandes olhos negros, como certos filhotes de animais fixam no jardim zoológico as pessoas que os observam curiosas, paradas diante da
jaula.
   - Quer comer alguma coisa?
   Carlota, instalada em outra cadeira de balanço, embalava-se contemplando a cidade ao sol, na margem oposta do rio.
   Ele preferia servir-se pessoalmente, levantar a tampa das panelas, abrir a geladeira. Encontrou arroz com pimenta e costeletas, esquentou uma boa quantidade e
sentou-se a um canto da mesa onde os outros já haviam comido, sem retirar depois a louça.
   Ao ver que já eram duas da tarde perturbou-se sem motivo preciso, talvez porque fosse capaz de jurar que tinha dormido uma hora no máximo. Carlota aproximou-se,
mãos nas cadeiras.
   - Vai se deitar de novo? - perguntou.
   Acontecia, quando trabalhava à noite, dormir o dia inteiro, levantando-se apenas para almoçar. Ele meneou a cabeça negativamente.
   - Vai voltar ao hotel?
   Fez que sim. Fora um erro ter saído, cedido a um instante de fadiga, a uma depressão momentânea.
   - Pensei há pouco que vinham chamá-lo - disse ela.
   Falava como se o fato não tivesse importância, exatamente como se dissesse algo apenas para encher um silêncio.
   - Foi cerca das onze da manhã. Eugênia ainda não tinha chegado. Eu estava na varanda quando uma limusine preta passou devagar, diminuindo a velocidade na frente
das casas, enquanto o chofer examinava os números como se estivesse à procura de alguém. Parou completamente diante da nossa casa e vi que lia seu nome da caixa
do correio. Fui até a calçada para perguntar o que desejava e ele me viu. Quando estava a uns dois metros, pisou no acelerador, o carro dobrou a esquina e desapareceu.
   - Havia mais alguém no carro?
   - Ninguém. Só o chofer, de uniforme preto, como o carro.
   Só podia ser Dick, o chofer de Zograffi.
   - Não parou diante de nenhuma outra casa?
   - Não. Pensei que precisavam de você no hotel e que tinham mandado buscá-lo.
   Ele continuou a comer, mas tinha pressa de sair.
   - Por que acha que vieram olhar a casa?
   - Não sei.
   Julgou compreender. Na véspera, Zograffi havia perguntado ao gerente quanto Élie ganhava e há quanto tempo vivia em Carlson City. Continuava a informar-se. Queria
saber, sem dúvida, como ele vivia e para isso mandara o chofer.
   Por que, já que seria mais simples interrogá-lo pessoalmente?
   - Volta hoje à noite?
   - Acho que não.
   - Vai passar de novo a noite no hotel?
   As duas o acompanharam com o olhar e somente quando se achava fora do alcance de suas vozes retomaram os intermináveis mexericos de mulher.
   As ruas estavam mais movimentadas que de costume; grupos de homens de camisa branca formavam-se diante dos escritórios da companhia, aguardando notícias. O carro
de Zograffi não estava à porta do hotel. Três técnicos que trabalhavam para Craig se achavam estirados nas poltronas do hall, chapéu jogado para trás, fumando. Havia
alguns clientes no bar.
   Não vendo o gerente, Elie dirigiu-se ao balcão, onde Emílio continuava no seu posto.
   - Nada de novo?
   - Muito movimento desde cedo.
   - Saíram?
   - Há uma hora, com Craig e dois engenheiros. Parece que foram visitar a mina.
   - Ninguém perguntou por mim?
   - Ninguém.
   - Onde está Chavez?
   - Acaba de subir para o quarto da mulher.
   - Pode ir. Assumo o serviço.
   - Vai ficar até amanhã?
   - Vou. Não precisa voltar de noite. Mas gostaria de que o gerente não soubesse que fui eu quem pediu. Diga que sua mulher está doente.
   Ela adoecia com freqüência e Emílio não ousou recusar. Encantado com a folga, sentia-se, ainda assim, inquieto com a atitude de Élie. Era a primeira vez que alguém
se oferecia para fazer seu trabalho. Esforçando-se para compreender o motivo, adivinhou que teria alguma ligação com a chegada do novo proprietário. Mas que ligação?
   - Chegaram dois hóspedes de Nova Iorque - falou, indicando as fichas.
   - Alguma mulher?
   - Não.
   - Telefonou uma mulher de Nova Iorque?
   - Telefonou. Às onze e quinze. Para o 66. Falaram mais de dez minutos. Os dois novos hóspedes, que parecem homens de negócios ou advogados, estão no 22 e 24.
Estiveram no 66 durante uma hora e desceram para almoçar. Acho que agora estão dormindo a sesta porque chegaram pelo vôo noturno. É só. Nenhuma partida. Nenhuma
reserva.
   Com um olhar rápido indicou que Chavez descia a escada.
   - Devo mesmo falar com ele?
   - Sim.
   - Sr. Chavez, estou desolado. Minha mulher acaba de telefonar dizendo que sofreu uma crise e...
   Mentia bem. Ainda assim o gerente lançou a Élie um olhar desconfiado e foi a ele que perguntou:
   - Pretende passar novamente a noite aqui? Assim como Emílio, não compreendia a história.
   Por outro lado, estava impressionado com o fato de que o porteiro conhecera Zograffi na juventude. Ignorando quais seriam essas relações e quais viriam a ser
no futuro, preferia mostrar-se prudente.
   - Como quiser.
   Emílio saiu, passando antes pelo vestiário. Élie examinou as fichas, transcreveu nomes e algarismos num dos livros, enquanto Chavez permanecia encostado ao balcão
na sua pose costumeira.
   - Não me perguntou ontem quando ele chegou aos Estados Unidos?
   - Não me lembro.
   Era exato. Desde a véspera tantas idéias lhe tinham passado pela cabeça, que já não distinguia entre o que pensara e o que dissera em voz alta.
   - Desembarcou em 1939, dois meses antes de Hitler invadir a Polônia e da Inglaterra e a França declararem guerra. Devia estar prevendo o que viria a acontecer.
   Élie não ousava interrogá-lo. Em suspenso, esperava que o gerente continuasse.
   - Já era rico, possuía interesses em minas de cobre do Congo Belga. A mãe e ele instalaram-se no Saint-Régis e ele conservou o apartamento ali, mesmo depois de
comprar uma propriedade em Long Island.
   Élie não pôde deixar de indagar:
   - Foi ele quem contou tudo isso?
   - Soube por Hugo. Um dos clientes dele, que tem minas no México a sessenta quilômetros daqui, negociou com Zograffi. Diz que ele é mais um jogador que um homem
de negócios. Sua primeira jogada assim que chegou à América foi adquirir um volumoso pacote de ações de uma mina canadense que não achava comprador no mercado sequer
a dez cents. Oito meses depois descobriram pechblenda e hoje as ações estão cotadas a dezoito dólares. E fez o mesmo em quase todos os seus empreendimentos.
   - A mãe ainda é viva?
   - Creio que sim. Deve morar em Long Island. Hesitou, mas fez a pergunta:
   - É casado?
   - Não. Não é que deteste as mulheres, pois em Nova Iorque, Miami e Las Vegas está sempre cercado de moças lindas. Uma delas telefonou de manhã.
   - Eu sei.
   A frase escapou-lhe. Confessava assim que já havia interrogado Emílio.
   - Falou em modernizar o hotel para o próximo inverno e esperam-se para amanhã empreiteiros de Tucson. É provável que a Sra. Carlson lhe venda a fazenda, .se é
que já não vendeu. Craig permanece diretor da mina e Jensen vai supervisionar os trabalhos nos primeiros meses.
   Tudo isso animava Chavez, cujo temor era ver-se substituído por alguém de confiança do novo proprietário. Continuando a observar Élie, perguntou:
   - Gostaria de conversar com ele?
   Élie corou. Não conseguiu dominar-se. Corava sempre que tinha a impressão de ser surpreendido em falta, mesmo que nada fizesse, e o gerente tornou-se ainda mais
desconfiado, a ponto de pôr as cartas na mesa de certo modo.
   - Acredito que não tenha intenção de se aproveitar de seu antigo conhecimento para...
   Era direto demais. Se Élie não tivesse tido a idéia, seria imprudente sugeri-la.
   - Gostaria de trocar de função?
   - Não, de modo algum.
   - Tem certeza?
   - Absoluta.
   Desta vez falava com animação. E acrescentou:
   - Ainda que me oferecesse um lugar dez vezes melhor, pediria para continuar na recepção.
   Chavez não ousou perguntar por quê. Não compreenderia, evidentemente. Depois da conversa passou a rondar em torno de Élie, tentando formar uma opinião. Élie percebeu-o
e, quando se sentia observado, corava e assumia ar de culpado.
   Zograffi voltou às cinco horas e, além de Jensen, vinha acompanhado de dois homens. De acordo com seu hábito parou no meio do hall. Os que aguardavam sentados
nas poltronas levantaram-se. Craig adiantou-se para apresentá-los um a um. De longe Élie não ouviu o que diziam. Aparentemente trocavam gentilezas.
   Ao voltar a cabeça quando Jensen pegava a chave, Zograffi encontrou o olhar de Élie e franziu o cenho como havia feito na véspera. Súbito, dirigiu-se apressadamente
ao elevador.
   Élie teve a impressão de que acabava de fazer uma descoberta, mas estava tão aturdido que se recusava a crer.
   Zograffi teria medo dele?
   Reviu nos menores detalhes, como se rodasse um filme em câmara lenta, os movimentos que fizera no centro Ao hall até o elevador de Gonzales, a linha dos ombros,
a expressão fisionômica. Era a expressão de alguém que vê de repente um cão raivoso e se afasta às pressas. Alguém que já tivesse sido mordido por aquele cão, por
exemplo.
   Era inacreditável. Michel sabia que Élie era inofensivo. Vira seu rosto logo após o disparo, sabia-o incapaz de apertar pela segunda vez o gatilho, ainda que
ele suplicasse.
   Michel estava enganado. Élie não passava de um homem gordo, sem outras ambições além de viver no seu cantinho. Chavez também se enganava, se julgasse que ele
queria substituí-lo.
   Não ambicionava o lugar de ninguém, nem o de Zograffi, pois não saberia o que fazer com ele.
   Precisava dizer-lhe isso, ele tinha que saber para acabar com as falsas idéias que alimentava a seu respeito.
   Chegaria o momento em que Zograffi, por mais importante que fosse, teria que lhe conceder cinco minutos do seu tempo. Três minutos bastavam!
  
   - Perdão, Michel. Sinto muito. Sofri tanto quanto você, mais ainda. Nunca mais farei coisa semelhante.
  
   Ridículo? Nem tanto. Michel compreenderia. Se fosse incapaz de compreender não o fixaria daquela maneira ao tombar junto ao tapume e o teria denunciado mais tarde.
   Não precisava ter medo. Élie não guardava rancor nem inveja no coração, mesmo depois do que Chavez lhe contara a respeito da sorte do seu antigo companheiro.
Tal sorte era de se esperar. Michel continuava a jogar, só que hoje com minas e com o destino de milhares de pessoas.
   Antigamente todo mundo gostava dele e no momento era depositário da confiança geral. Gente acorria de toda parte à sua procura e em breve Carlson City renasceria.
Viriam pessoas de Nova Iorque, outras já estavam a caminho para ficar à sua disposição.
   Era absurdo que Michel sentisse medo dele. Medo de quê? De que tentasse novamente matá-lo?
   Seria para espioná-lo que mandara o chofer rondar sua casa?
   Enganava-se com certeza. Não era medo. Ele não representava o papel de um cão raivoso e sim o da mosca inoportuna.
   Irritava Michel ver seu rosto vermelho e olhos saltados cada vez que atravessava o hall. De longe, Élie devia parecer um mendigo. Que esperaria exatamente? Que
Michel lhe apertasse a mão, afirmando que não lhe guardava rancor, que o perdoara há muito tempo, que estava encantado por saber que trabalhava para ele?
   A verdade é que Michel o desprezava, desprezara-o sempre, o suficiente para não se dar ao trabalho de condená-lo. Era por desprezo que, quando estava com Louise
no quarto grená, lançava a intervalos um olhar para a fechadura da porta, junto à qual um miserável judeuzinho de Vilna se ajoelhava.
   Agora que voltara a encontrá-lo no seu caminho franzia as sobrancelhas, impaciente. Tinha outras preocupações na cabeça. Sozinho, com sua própria energia e confiança,
estava para recriar uma cidade que sem ele estaria morta, já teria morrido dois dias antes.
   Tinha o poder de despedi-lo. Bastava pegar o telefone e dizer a Chavez:
   - Despeça o recepcionista.
   Élie teria que partir, sair da cidade onde ninguém lhe daria trabalho daí em diante e provavelmente sequer lhe apertaria a mão. Carlota não o acompanharia, pois
tinha mais necessidade das irmãs e dos sobrinhos que do marido.
   O telefone tocou. O 66. Voz de Jensen.
   - Quer pedir ao Sr. Kahn para subir?
   Era um dos hóspedes chegados de Nova Iorque de manhã.
   - Alô, Sr. Kahn? Aqui da recepção. O Sr. Zograffi está à sua espera.
   Os três homens que haviam sido apresentados a Zograffi há instantes festejavam no bar o futuro subitamente assegurado só por se terem aproximado do chefe e apertado
sua mão.
   Durante a tarde inteira houve idas e vindas. Hugo, em frente, instalado na sua cadeira de balanço, parecia uma agência de informações. Cem pessoas vinham buscar
notícias aguardando a vez, inclusive o médico da companhia, o último a ser prevenido do que ocorria e que lançava um olhar às janelas do sexto pavimento, para além
das quais se achava seu novo patrão.
   Zograffi e Jensen não desceram para jantar. Mandaram servir a refeição no apartamento, que devia cheirar a tabaco claro. Às oito horas, Zograffi desceu sozinho
e atravessou o hall sem relancear para a recepção. O carro não estava à porta. Ele se aproveitava do frescor relativo da noite para fazer algum exercício. Todos
o acompanharam com o olhar, mas ninguém ousou dirigir-lhe a palavra.
   Quando voltou meia hora depois, Élie, que estava jantando, boca cheia, levantou-se e contornou o balcão tão precipitadamente que machucou o quadril, e esboçou
dois ou três passos. Não lhe importava parecer ridículo com as bochechas infladas de comida.
   Michel avistou-o. Impossível não vê-lo adiantar-se, mas, conforme fizera à tarde, apressou o passo para entrar no elevador e Gonzales fechou a porta.
   Então, sem terminar a refeição, Élie pegou uma folha de papel e escreveu em polonês, sem buscar palavras:
  
   "Preciso falar-lhe. Élie."
  
   Jensen acabava de descer ao bar, onde se encontrou com Craig e outras pessoas. Michel estava sozinho lá em cima no apartamento, ocupado sem dúvida com a leitura
dos jornais comprados na loja de Hugo e que trazia ao voltar. Há cerca de quinze minutos Chavez tinha subido para se reunir à mulher, que não saíra do apartamento
o dia inteiro. O gerente não queria que Zograffi a visse.
   Para surpresa de Gonzales, Élie, bilhete em punho, entrou no elevador.
   - Sexto!
   - Não prefere que eu leve?
   - Não.
   E lá em cima:
   - Espero?
   - Não vale a pena.
   O corredor era mal iluminado. A porta do 66 tinha dois batentes e no centro do da direita, uma fenda para cartas.
   Ao ver-se sozinho diante da porta, Élie perdeu a coragem e a mão já estendida para a campainha tornou a cair. Ficou um instante imóvel à escuta, tentando adivinhar
o que Michel faria lá dentro.
   Não lhe ocorreu a idéia de se inclinar para espiar pela fechadura. Seria impossível. A contragosto, num gesto lento, introduziu na fenda o bilhete e ouviu-o cair
no chão, do outro lado.
   Passaram-se alguns segundos, minutos talvez. As molas de uma poltrona ou sofá gemeram de leve. Finalmente escutou o roçar do papel no chão, o ruído do envelope
rasgado.
   Se Michel tivesse percebido a sua chegada, saberia que não se afastara. Separava-os um metro apenas. Lia sem voltar imediatamente para, a poltrona, tão imóvel
quanto Elie.
   Recusaria a graça de abrir-lhe a porta?
   Élie balbuciou, tão baixo que mal se ouvia:
   - Michel!
   Escutou e repetiu um pouco mais alto:
   - Michel!
   Enquanto o silêncio se prolongou do outro lado da porta de carvalho, ele alimentou esperanças. Seu coração pulsava forte. Michel continuava imóvel. Estenderia
o braço para girar a maçaneta? Élie calou-se, contendo a respiração e, em meio a tanto silêncio, ouviu o estrondoso latejar de suas têmporas.
   Finalmente, quando se sentia cheio de esperanças, os passos se afastaram, tornaram-se macios ao passar do assoalho para o tapete e a poltrona voltou a gemer.
Ouviu o virar das páginas de um jornal.
   Não tocou, não insistiu, não disse coisa alguma. Devia ter ficado algum tempo no mesmo lugar para reassumir expressão mais normal. Lentamente, cabeça baixa, dirigiu-se
ao elevador e apertou o botão.
   Evitou olhar para Gonzales, que o observava. Tinha consciência de seu ar estranho. No W/ andou meio de lado. Chavez, que descera há instantes, viu-o aproximar-se
com uma pergunta engatilhada:
   - Esteve lá em cima?
   Élie murmurou, voltando-lhe as costas:
   - Levei uma carta.
   Não havia distribuição àquela hora, mas o gerente não fez objeções. Perguntou apenas:
   - Falou com ele?
   - Não toquei a campainha.
   Que explicação poderia dar? Não tinha nada a explicar a Chavez. Subira, enfiara a carta na caixa, aguardara e chamara:
   - Michel.
   Ninguém lhe abrira a porta. Era só.
   Se não tivesse despachado Emílio, forçando-o a uma mentira, estaria em casa tentando dormir. Michel não tornaria a descer naquela noite. A menos que fosse de
repente dominado pelo remorso.
   Não era homem que sentisse remorso. Era inocente. Não precisava envergonhar-se e nunca pedira perdão a ninguém, com certeza.
   Pediria perdão por ser ele mesmo?
   Tinha medo de Élie, não ousava enfrentá-lo! Ou então desprezava-o. Ou sentia compaixão, o que vinha a
   dar no mesmo. Existia no mundo alguém que o obrigava a franzir as sobrancelhas e apressar o passo. Sem coragem de ir pessoalmente, enviara o chofer para verificar
como era a casa, como era a mulher.
   - Pretende passar a noite aqui?
   - Pretendo.
   - Ã vontade. Não posso impedi-lo, uma vez que Emílio afirma que a mulher está doente. A partir de amanhã quero que volte ao horário normal.
   A história recomeçava. Quem sabe era a última noite que lhe permitiam passar no hotel. Seria fácil desembaraçar-se de um homem como ele! Bastava despedi-lo sem
uma palavra, ainda que não tivesse para onde ir.
   Ultima ou não, viveu aquela noite com tanta intensidade como a anterior, com a diferença de que o bar ficou aberto até meia-noite e um dos nova-iorquinos que
havia saído voltou alguns minutos depois da uma hora.
   Élie manobrou o elevador e o outro o observou curioso, como se ele tivesse uma espinha no nariz. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas fechou-a sem uma
palavra.
   Em seu tom mais profissional, Élie perguntou:
   - A que horas quer que o acorde amanhã?
   - As oito.
   - Boa-noite.
   - Boa-noite.
   Desceu à cozinha para jantar e encontrou na geladeira um pedaço de bolo feito especialmente para Zograffi.
   Comeu-o. Comia os restos de Michel. Como um cão!
   Será que se dá a um cão que mordeu a oportunidade de explicar-se? Cães não se explicam. Um muro de silêncio erguia-se entre eles e os homens. Ninguém procura
compreendê-los. Mordem porque são rancorosos. Ou então, conforme se diz, porque são raivosos.
   Empanturrou-se de comida e de idéias humilhantes, sem precisar procurar muito para encontrar motivo de humilhação.
   O outro dormia lá em cima, com o canto dos grilos a entrar pelas janelas abertas e dentro de mil anos as mesmas estrelas cintilariam no céu. Haviam-lhe ensinado
antigamente a calcular sua velocidade. Nada era imóvel. O mundo parecia estático, mas, em movimento vertiginoso, lançava-se só Deus sabia aonde, arrastando seres
minúsculos como Élie, agarrados às suas mais ínfimas aspe-rezas.
   Dormiu de boca aberta, porque as pessoas acabam sempre por adormecer. Chora-se, grita-se, vibra-se ou desespera-se; em seguida come-se e dorme-se como se nada
tivesse acontecido.
   Quando abriu os olhos de madrugada e se olhou ao espelho onde Chavez não deixava de se examinar de passagem, viu um rosto inchado, olhos que pareciam saltar das
órbitas.
   Quem sabe chegaria a parecer um cão raivoso? Fosse como fosse, não partiria. Permaneceria ali, quisessem ou hão, agarrado à sua mesa.
   Emílio só voltaria ao meio-dia, conforme recomendara na véspera. Chavez não podia fazer nada.
   Michel não descera durante a noite. Não ousara. E daí a instantes, quando atravessasse o hall, viria ladeado pelo imenso Jensen, que parecia ter o encargo de
protegê-lo.
   Não olharia para Élie, não lhe falaria, isso agora era certo.
   Não temeria justamente aquilo que Élie tinha a dizer? Não temeria que o vissem nu interiormente, voltado pelo avesso como pele de ovelha, pálido e coberto de
manchas sanguinolentas?
   - Continua aí? - espantou-se Gonzales, iniciando o serviço.
   Deu de ombros e desceu à cozinha para tomar café. Retiravam pãezinhos do forno, e de pé, para provocar o cozinheiro, comeu tantos quantos seu estômago conteve
sem explodir.
   Sentia-se melhor. Agora podia enfrentá-los.
   Não eram ainda oito horas quando o 66 pediu o café da manhã.
   Voltariam à mina, provavelmente, ou então iriam comprar fazendas. Que importava? Só uma coisa Zograffi não faria: a esmola de cinco minutos do seu tempo a Élie,
que dela precisava para finalmente estar em paz consigo mesmo.
   Não sabia o que isso significava. Não saberia jamais.
   O chofer estava a postos e um quarto de hora mais tarde a limusine preta estacionou à porta.
   Iriam mais longe naquela manhã? Quem sabe Zograffi terminara todas as negociações em Carlson City e partia definitivamente?
   Tudo aconteceu muito rápido, enquanto o garoto arrumava os jornais no mostruário de Hugo. O 22 telefonou pedindo o café, seguido do 24. Dois antigos hóspedes
instalaram-se na sala, reclamando bacon e ovos. Estavam com pressa. Todo mundo parecia apressado.
   Gonzales se achava à porta do elevador. Tocaram lá em cima, ele entrou e subiu.
   Durante alguns segundos Élie viu-se sozinho no hall, mas logo ouviu os passos de Chavez no primeiro andar e descendo a escada. O elevador descia ao mesmo tempo.
Pareciam apostar corrida. Percebia-se quando se aproximava do térreo, pois soltava uma espécie de suspiro antes de parar.
   A porta abriu-se no momento preciso em que o gerente surgiu na curva da escada. Zograffi, de chapéu panamá, foi o primeiro a sair. Deu alguns passos no hall e
parou no mesmo lugar dos outros dias, sem olhar para a recepção, enquanto Jensen adiantava-se para depositar as chaves no balcão.
   Não percebeu coisa alguma. Elie, num gesto natural, abriu a gaveta na qual há dez anos, desde que o hotel fora assaltado, guardava-se um revólver carregado. Para
não atingir Jensen deu um passo para o lado. Soaram quatro detonações. Zograffi girou sobre si mesmo ao tombar e se as duas balas que ficaram no tambor não explodiram
foi porque a arma enguiçou.
   O jarro azul, sobre a mesa, espatifou-se. Os três outros disparos haviam atingido o objetivo e Michel, no chão, quase na mesma posição em que tombara junto ao muro, não se moveu.
   Dessa vez estava morto.

 

 

                                                                  Georges Simenon

 

 

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