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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRIME / Irvine Welsh
CRIME / Irvine Welsh

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ela quis contar à mãe que esse cara não era legal. Como aquele lá em casa, em Mobile. E aquele babaca em Jacksonville. Mas sua mãe estava maquiando os olhos em frente ao espelho, dizendo para ela se apressar e certificar-se de que todas as janelas estavam bem trancadas porque avisaram que havia uma tempestade chegando do nordeste naquela noite.
A garota foi até a janela e olhou para fora. Tudo estava calmo. O disco brilhante da lua pulsava com sua luz azul entrando no apartamento. A luminosidade era quebrada apenas pelos galhos de um carvalho seco no quintal; espalhando finas sombras varicosas, trepando pelas paredes, escuras e vitais. Puxando para baixo a mola do fecho para prender a barreira de alhetas de madeira e pensando nos dedos machucados da outra vez, ela estrategicamente levou a mão para trás, pensando na coisa como um camundongo esperto roubando queijo de uma ratoeira. Depois olhou para a intensidade vazia da mãe refletida no espelho. Ela costumava gostar de observar a mãe se maquiar, toda bonita, daquela forma em que ela realmente se concentrava, com pouco pincel e carregando no escuro das grandes sobrancelhas.
Mas não naquele momento. Alguma coisa azeda revolvia seu estômago.
– Não saia essa noite – disse a garota baixinho, entre desejando e implorando.
A mãe pôs para fora rapidamente sua pequena língua rosada, umedecendo o pincel dos olhos.
– Não se preocupe comigo, benzinho, tudo vai correr bem. – Aí ouviram alguém buzinando lá embaixo, e o termostato do ar-condicionado, esfriando mais o quarto. Ambas sabiam que era ele.
– Temos sorte que esse apartamento tenha venezianas – disse a mãe, levantando-se e pegando a bolsa na mesa. Ela beijou a filha na cabeça. Afastando-se, seus grandes olhos maquiados olharam para a criança. – Lembre-se, cama antes das onze. Provavelmente já estarei de volta por essa hora, mas se eu demorar, quero que você vá dormir, mocinha.
Aí ela foi embora.

 


 


Durante algum tempo a garota ficou com a piscina brilhante da tela da televisão ligada para tornar seguras as coisas ao redor, banhando tudo com sua luz suave, sombria.
Mas fora do alcance da TV, ela sentia alguma coisa espreitando. Aproximando-se.
Um vento refrescante do leste fazia tremular com firme insistência as venezianas, sinistro o bastante para ser o arauto de uma força mais maligna. As chuvas começaram
poucos instantes depois, a princípio tamborilando nas janelas. Em seguida ela pôde ouvir o vento serpenteando e chicoteando. Os angustiados braços negros da árvore
agitavam-se freneticamente. De repente houve o ribombar do trovão, e, em algum lugar lá fora, um objeto caiu no solo e se espatifou. Uma luz amarela aclarou a sala
com um brilho sulfuroso durante uns três segundos inteiros. A garota aumentou o volume da TV enquanto a tempestade estrondeava, o vento e a chuva açoitando a janela.
Depois de algum tempo ela foi para a cama, apavorada com a escuridão que precisou atravessar vacilante, mas com mais medo ainda de prolongar a agonia, procurando
um interruptor de luz.
Sem conseguir dormir, ela sabia que já era tarde quando ouviu a porta do andar de baixo abrir com um clique e um pé bater nos degraus de pedra do lado de fora. O
relógio digital na sua mesinha de cabeceira marcava 2:47, num tom de acusação. Ela rezou para que fosse um determinado conjunto de passos, os dele eram sempre tão
suaves, ele nunca usava outro calçado a não ser tênis, mas depois ela ouviu vozes e risos abafados. Sua mãe dormiria profundamente com as pílulas que tomava, mesmo
em plena tempestade. Mas ela teria que enfrentar a coisa. Puxando a camisola para baixo e agarrando a bainha com um punhado de roupa de cama, a garota retesou o
corpo.
DIA UM
1
Férias
Ray Lennox estava entrando agora numa área de turbulência. Levando a mão direita enfaixada ao nariz adunco, ligeiramente enviesado, mal consertado depois de ter
sido quebrado alguns anos atrás, ele olha para sua imagem refletida na tela apagada da sua televisão pessoal, fornecida para entretenimento dos viajantes a bordo
do avião. Um pequeno sopro de ar luta para sair de seu nariz entupido, provocando um arquejo de protesto no peito. Tentando desviar sua mente agitada, ele esquadrinha
o corpo derreado ao seu lado.
É Trudi, sua noiva, cabelo cortado à altura dos ombros, tingido de um louro-mel elegante, indicando os cuidados de uma cabeleireira de estilo. Ela ignora o desconforto
dele. Uma unha feita, pintada, vira a página de uma revista. Além dela, há uma outra pessoa. Em torno deles, mais corpos.
Só agora ele registra: agora, enquanto viaja apertado naquele assento da classe econômica, no voo de Londres à Flórida. O discurso que ele ganhou de Bob Toal antes
de sair em licença do trabalho por estresse. Foi o anúncio sobre a altitude da aeronave que desencadeou a coisa.
Nós estamos agora viajando a 10.500 metros de altitude.
Você é um viajante das alturas, ele se lembrou de Toal dizendo, enquanto olhava para os pelinhos negros se projetando para fora do nariz do chefe. Um filho mimado.
Foi um caso complicado. Você trabalhou bem; tem o filho da mãe trancafiado. Resultado. Tire umas férias prolongadas. Olhe para a frente. Muitos de nós investimos
pesado na sua carreira, Ray. Não nos prove que estamos errados, filho. Não quero que você siga o mesmo caminho de Robertson, dissera ele, se referindo ao suicídio
do antigo mentor de Lennox. Não se afunde.
E Ray Lennox, magro, rosto branco, bem barbeado, a marca registrada de sua franja rebelde aparada no barbeiro John’s, na rua Broughton, revelando uma testa curta,
inclinada, sente sua pulsação aumentar de repente.
Estamos agora entrando numa área de turbulência. Por favor, permaneçam sentados com os cintos de segurança bem apertados.
Não caia.
Perigo. Ameaça.
No aeroporto, ele recebera o terceiro grau. Não se parecia nada com a foto do seu passaporte. O cinza pálido de sua pele escocesa, cruelmente iluminada pela tecnologia
capenga da cabine de fotografia, contrastando com o espesso cabelo, sobrancelhas e bigode negro-corvo, tornando falsa sua aparência de loja de mágicas. Agora tudo
reduzido a uma sombra de pós-recruta que se espalha por sua cabeça antes de circundar o maxilar.
Ficara envergonhado pelas atenções recebidas por parte da segurança do aeroporto, pois ele era um agente da lei, mas eles tinham razão em se preocupar. Sua identidade
da Polícia Territorial da área de Edimburgo o ajudara a passar sem maiores contratempos pelo miniestado que os americanos haviam estabelecido no aeroporto de Heathrow
para proteger preventivamente suas fronteiras.
– Desculpe, senhor, são tempos difíceis – exclamara o funcionário da Segurança Doméstica, desculpando-se.
Agora os olhos de Ray Lennox esquadrinham urgentemente a cabine. Não havia nada com que se preocupar. Ninguém parecia um afiliado da al-Qaeda. Mas aquele cara parece
indiano, maometano? Mais provavelmente um hindu, com certeza. Mas podia ser paquistanês. Pare com isso. Ele próprio era branco, mas não era cristão. Igreja Escocesa,
era como se registrara no formulário do recenseamento para controle oficial, mas não religioso, até que embarcasse num avião. O carrinho dos drinques se aproximando
vagarosamente; tão devagar que ele não queria pensar no assunto. Ele se vira, girando a cabeça, olha para os companheiros de viagem. Nada fora do óbvio: pessoas
em férias, à procura de sol. Um voo baratinho.
A seu lado, Trudi, indiferente, com seu cabelo penteado para trás e preso bem firme a um pente. Aqueles olhos castanhos, escuros, intensos, devorando quase que psicoticamente
a revista Noiva Perfeita, enquanto a ponta da unha vermelha brinca com a ponta da página seguinte.
Todas as garotas sonham com o grande dia, sobre ser a noiva perfeita: a realização do ideal da princesa do conto de fadas.
Será que aquela garotinha também?
Neca, não aquela almazinha...
A turbulência sacode o avião e os poros de Lennox se abrem a todo vapor, quando ele de repente fica consciente do fato de que está viajando num tubo de metal a quase
mil quilômetros por hora, dez quilômetros sobre o mar. Uma gota no oceano: apenas um cisco esperando cair e desaparecer. Ele fica observando Trudi, imperturbável,
o pequeno sulco escarlate de uma boca, só levantando ligeiramente uma sobrancelha, finamente depilada, de desprezo. Como se um desastre do avião fosse uma mera inconveniência
para seus planos de casamento.
As sacudidelas do Boeing 747 param, enquanto os motores estrondeiam no ar. Um zumbido que permeia a aeronave constantemente nos seus ouvidos. Lançando-se para a
frente. Na escuridão. Os pilotos não vendo nada à frente deles. Os instrumentos na cabine de comando piscando e rodopiando no painel.
Você pode ver por que terroristas e governos – aqueles com maiores apostas no nosso medo, pensa Lennox – estão tão focados na viagem aérea. Nós ficamos mortos de
medo antes da partida. Tudo que eles precisam fazer é trabalhar a sintonia fina desse medo por meio de atrocidades terríveis ou da acompanhante destas, a segurança
mão-pesada.
Trudi tem um cobertor cobrindo os pés.
A escuridão magnética o envolvendo. Ele pode senti-la lhe acenando.
Por que ele deveria se preocupar? Está de férias. Já fez seu trabalho. O que há para lamentar? É a autocomiseração. Mas ele não consegue evitá-la. O gosto de metal
na boca. Não consegue evitar se ferir com os pensamentos. Nervos alfinetando debaixo da pele. Ele tem medo de si mesmo de novo. Deseja ter tomado mais pílulas.
– E se cairmos? – sussurra Lennox, engolfado com ideias de morte como um vasto e desolado nada. – Nós ficaríamos livres de tudo.
– Ainda estou pensando em pervinca para as damas de honra – diz Trudi, sem levantar o olhar da revista –, mas não quero que Adele roube a cena de mim. – Depois ela
se volta para ele, realmente amedrontada. – Você não acha...
Ray Lennox sente uma onda de emoção quando se lembra de uma foto de Trudi bem jovem ainda, na lareira da casa dos pais dela. Uma filha única: a jogada solitária
do casal para a imortalidade. E se nada fosse...
Outra pontada de emoção o acomete.
– Trudi, eu nunca deixarei que ninguém faça mal a você, você sabe disso, não é? – anuncia ele numa urgência desesperada.
Os olhos dela se alargam num terror afetado, de heroína de novelas.
– Você acha ela bonita, não acha? Não tente negar, Ray, a gente vê a quilômetros de distância.
Trudi lança os seios na direção dele e ele vê o padrão da curva do seu suéter marrom justo, quase implausivelmente de uma maneira que antes o excitava. Umas poucas
semanas atrás.
Ela quer ser a noiva perfeita. Como a pequenina Britney Hamil poderia também ter sonhado ser.
Ele a agarra, puxa-a para si, aspirando seu perfume, a fragrância do xampu no cabelo. Alguma coisa na garganta o está sufocando. Como se fosse um corpo estranho
metido ali. Sua voz é tão baixa que ele fica imaginando se ela o pode ouvir.
– Trudi, eu amo você... eu...
Ela se contorce nos braços dele, se liberta e empurra-o para longe. Pela primeira vez no voo, seus olhos penetrantes se ligam aos dele.
– O que há de errado, Ray? O que é que há?
– Aquele caso no qual eu estava trabalhando... aquela garotinha...
A cabeça dela balança com força e ela põe um dedo sobre os lábios dele, para fazê-lo calar.
– Nada de conversa sobre trabalho, Ray. Nós combinamos. Você tem que se desligar do seu trabalho. Era esse o plano. Foi o que Bob Toal disse. Se eu me lembro corretamente,
as palavras exatas foram: Nem mesmo pense sobre trabalho. Não pense. Divirta-se. Relaxe. A finalidade dessas férias é relaxar e planejar o casamento. Mas você está
bebendo de novo, e você sabe como eu me sinto a respeito desse assunto – exclama ela, num discurso prolongado e irritado. – Mas é isso que você queria e a filha
da mãe que eu sou, eu, relutantemente, concordei. Você tem as suas pílulas para controlar a ansiedade.
Ocorreu a Lennox que ela usara o termo americano “férias” em vez de “folga”, comum na Grã-Bretanha. Aquilo ficou martelando na cabeça dele. Folgar. Partir.
Mas ir aonde?
Aonde você foi quando partiu?
Chega a aeromoça com o serviço de drinques. Trudi pede vinho branco. Um Chardonnay. Lennox, dois Bloody Marys.
Trudi se ajeita de novo no assento. A cabeça inclina-se para o lado. A voz arrulhando, como que cantarolando.
– Todos os empregos são estressantes hoje em dia, e com essa idade. É por isso que temos férias.
De novo!
– Logo, logo teremos duas esplêndidas semanas de sol, praia, mar e coisas assim. – Ela dá uma pequena cotovelada nele, depois fica amuada. – Você ainda tem uma queda
por mim, Ray? – E ela faz aquela coisa com os seios de novo.
– Claro que tenho. – Lennox sente uma contração dos músculos em torno do peito e da garganta. Sua laringe parece um canudinho. Ele está preso numa armadilha; imprensado
contra a janela, pequena demais para escapar para o esquecimento do céu. Ele olha para sua mão direita aleijada, enfaixada, um bolo de nós dos dedos, falanges e
metacarpos quebrados. Quantos mais dias passariam, quanto tempo demoraria para os dois punhos se fortalecerem e ele poder furar com um soco a janela desse avião?
Entre ele e o corredor estão sentadas, primeiro Trudi, depois uma velha com cara de faca, magra, mãos ossudas. Provavelmente da idade da própria mãe dele. Ele aspira
o ar sujo, seco e reciclado do avião. A pele da velha é como plástico derretido. Como se tivesse secado pela ação do ar-condicionado. Há manchas alaranjadas. Ele
fica imaginando quantas horas um voo de oito horas envelhece você. Ele não quer que Trudi saiba que ele só trouxe umas poucas pílulas; que ele estava planejando
parar de tomá-las em Miami.
Trudi diminui a voz.
– Eu faço isso se você quiser, Ray. Se é realmente o que você quer...
Ele leva o copo à boca e dá um gole insignificante na vodca. Sua mão treme. Depois o corpo. Quantos conteúdos dessas garrafinhas serão necessários para parar com
aquilo, para fazer o vício desaparecer? – O problema é... – ele consegue tossir.
– ... porque eu quero satisfazer você daquela maneira, Ray, eu realmente quero – implora ela, talvez um pouco alto demais, pois ela tomara alguns drinques no bar
do aeroporto, e, com o vinho e a altitude, eles estavam fazendo efeito. Ela se volta para a velhinha sentada ao lado dela e troca sorrisos falsos, seguidos de um
cumprimento.
Lennox pensa no crime. Na sua mesa, na manhã em que ele ouviu e...
O cotovelo de Trudi cutuca suas costelas. A voz dela agora é um sussurro baixo. O mais tênue de pelinhos macios em cima dos lábios de um rosa brilhante.
– É só que a coisa me chocou a princípio. Estava tentando reconciliar o fato de que você é um homem heterossexual, normal, de sangue quente, com o fato de você querer
ser... penetrado daquela maneira.
Lennox se fortifica com outro gole do Bloody Mary. Quase tudo desapareceu.
– Eu não quero jamais que você faça qualquer coisa com que se sinta desconfortável – diz ele, arrumando as feições num sorriso vazio.
– Você é um doce. – Ela o beija no rosto, o beijo de uma tia, pensa ele. Ela mantém aberta Noiva Perfeita, numa página que mostra, em diversos estilos de caligrafia,
o mesmo anúncio de um casamento fictício. – O que é que você acha desses convites aqui? – A unha grande dela bate numa caligrafia azul, estilo de Charles Rennie,
da Mackintosh.
Olhando para os convites, Lennox pensa em Glasgow, com um ressentimento mesquinho.
– Glasgowniano demais. – Ele aponta para as ilustrações em estilo gótico. – Gosto mais deste aqui.
– Ah, meu Deus, de jeito nenhum! – Ela arqueja e ri. – Você está completamente doido, Raymond Lennox! Estes são anúncios fúnebres! Eu não sou a Noiva de Frankenstein.
– Ela levanta os olhos e enche o copo com vinho. – É melhor você deixar que eu organize esse casamento. Eu morro de medo em pensar que tipo de piada a cerimônia
seria se fosse deixada a seu cargo. – Ela se volta para a velhinha cujo sorriso adocicado, intrometido, começava a causar náuseas em Lennox. – Homens. Francamente!
Não servem para nada!
– Eu sempre disse isso – acrescenta a velhinha, como encorajamento.
As duas tagarelam entusiasmadamente sobre o conteúdo da revista, e as descrições extasiadas de Trudi sobre seu vestido, enquanto Lennox ajusta seu assento na pequena
inclinação possível, os olhos ficando pesados de sono. Dentro em pouco sua mente está deslizando para o crime. Seus pensamentos são como uma avalanche; parecem desaparecer
e se acomodar, e então, antes de ele perceber, eles estão de volta, dirigindo-se para o mesmo destino, morro abaixo. O crime. Sempre mergulhando inexoravelmente
na direção do crime.
Você recebeu o telefonema naquela manhã.
Na sua mesa, na sua pequena e espartana sala de trabalho na sede da polícia de Edimburgo, em Fettes. Era uma quarta-feira gelada no final de outubro, seu triste
pé de violetas africanas no peitoril da janela, lutando na parca luz contra o frio, enquanto o barulhento equipamento de aquecimento central, ajustado para ligar
tarde por motivo de economia, entrava relutantemente em ação, estalando e retinindo. Preparando um caso para o tribunal. Dois jovens haviam brigado depois de beberem
o dia inteiro: um esfaqueara o outro até a morte, num apartamento. Alguma coisa foi dita e o caldo entornou. Uma ameaça; uma contra-ameaça, a coisa esquentou. Uma
vida terminada, a outra arruinada. Tudo no tempo que se leva para comprar um litro de leite. Você se recordava do assassino na sala de interrogatórios, sob as luzes
fluorescentes, agora privado das drogas que dão coragem; tão jovem, alquebrado e apavorado. Mas esse caso não o perturbou. Você já vira muitos assim.
O que o perturbou foi o telefonema, cerca de onze e quinze. Um policial uniformizado, Donald Harrower, contando para você sobre uma garota de sete anos de idade,
Britney Hamil, partindo para a escola às 8:30 da manhã e não chegando ao destino. A escola informara à mãe, Angela, sobre a ausência dela, pouco antes das dez. A
mãe, depois de telefonar para algumas amigas e parentes, chamara a polícia meia hora mais tarde. Harrower e um outro policial foram conversar com a mulher, bem como
com a professora de Britney e alguns vizinhos e colegas de escola. Duas garotas mais velhas do que ela a haviam visto descendo a rua na frente, mas quando dobraram
a esquina uns poucos minutos depois, Britney sumira e elas viram uma van branca sair em disparada.
– As garotas, Andrea Jack e Stella Hetherington, foram as únicas testemunhas, e a van branca o único veículo que elas lembravam ter visto na vizinhança – Harrower
explicara com a sua voz fanhosa. – Então eu achei que você gostaria de ser informado disso.
As palavras “van branca sem identificação” estalaram no seu cérebro como se fosse estática. Aquele veículo grande tipicamente britânico: sempre problema para um
policial. Você agradeceu a Harrower, achando que seu aspecto pertinaz, taciturno, frequentemente escondia de seus chefes uma aplicação ao serviço bem ponderada.
A van o obrigava a ir direto para o seu chefe, superintendente-chefe interino Bob Toal, e pedir para investigar o desaparecimento e possível sequestro de uma criança.
Você trabalhou com Harrower, conversando com vizinhos, amigos, a equipe da escola e as crianças com quem Britney poderia ter passado quando a caminho da escola.
E com Angela. Você se lembrou da primeira vez em que pôs os olhos na mãe da criança, quando ela saía para fazer compras no shopping center local. Ela deveria estar
no serviço de faxineira no Escritório Escocês naquela tarde, mas explicou que tirara uma folga para ver sua outra filha, Tessa, que sofrera uma intoxicação alimentar.
Tessa era a irmã de onze anos que normalmente acompanhava Britney à escola. Em vez de pedir a Angela para parar, alguma coisa fez com que você fosse caminhando com
ela. Você a seguiu na Iceland enquanto ela enchia o carrinho com hambúrgueres, filés de peixe, batatas fritas de forno e cigarros. Tudo barato. Você se viu avaliando
cada compra que ela fazia, como se estas a fizessem não apenas cúmplice da intoxicação de Tessa, mas também do desaparecimento de Britney.
– Ela não é jovem demais para ir andando para a escola sozinha?
– Eu ia levá-la, mas Tessa começou a se sentir mal de novo, vomitando tudo. Britney... ela não queria se atrasar. Me disse que já era crescidinha. – Angela lutou
para não chorar enquanto ia empurrando seu carrinho de compras pelos corredores banhados pela luz neon amarela. – É uma caminhada só de cinco minutos – ela se desculpou.
– Você vai encontrá-la, não vai?
– Estamos fazendo tudo que podemos. Então Tessa estava doente hoje de manhã?
– Estava sim. Eu levei as duas para comerem hambúrguer numa lanchonete ontem à noite, ali no centro. Uma pequena extravagância, depois fomos ao cinema, no multiplex,
para ver o novo Harry Potter. Tess se sentiu mal lá dentro. Ah, é claro que Britney ficou muito triste por ter que ir para casa.
Certo, você dissera, sentindo que não assistir a um filme talvez fosse a menor das preocupações da garota.
Deixando Angela de volta no apartamento dela, você percorreu o caminho até a escola e descobriu que o trajeto levava na verdade catorze minutos. Saindo das proximidades
da casa, passando pela rotunda de Loganburn, dobrando a esquina para entrar na rua Carr (onde Britney desapareceu), e seguindo o comprido e austero muro de tijolos,
atrás do qual ficava uma fábrica desativada. Depois, dobrando outra esquina, um quarteirão de prédios residenciais e os portões de ferro preto estilo gótico da escola
estilo vitoriano.
Todo mundo na Sede da Polícia sabia que as próximas poucas horas eram cruciais, o tempo de alguma-coisa-ou-nada. Um chamado de alerta foi enviado a todos os carros
para que ficassem atentos à presença da garota e do motorista de uma van branca sem identificação. Mas, à proporção que a manhã se estendia para a tarde, não houve
novidades, e, a não ser por Andrea e Stella, as garotas que caminhavam atrás de Britney, apenas um pequeno número de vizinhos – uma tal de sra. Doig a caminho do
trabalho, e um tal de sr. Loughlan passeando com o cão – puderam especificamente se recordar da garota naquela manhã.
Você voltou a Bob Toal e perguntou se você poderia reunir uma equipe de investigação adequada. Numa era de conscientização de crimes sexuais, uma criança desaparecida
era uma grande notícia, e Toal, antenado com a mídia, rapidamente concordou. Leve com você Amanda Drummond, dissera ele, e Ally Notman.
Você agradeceu. Drummond era minuciosa e tinha jeito para lidar com pessoas, enquanto Notman tinha um verdadeiro motor nele e era perito no gerenciamento de dados.
Como você, ele tinha um diploma em tecnologia da informação conseguido na universidade Heriot-Watt, mas você invejava o modo mais eficiente com que seu colega mais
moço usava essa capacidade.
Depois Toal acrescentara:
– E Dougie Gillman.
Você sentiu seus pulmões esvaziarem. Acontecera uma séria desavença entre você e Gillman alguns anos atrás. Mas você não disse nada, pois fora uma coisa pessoal.
Você não deixaria que o problema afetasse o trabalho.
Você pegou Harrower e um outro tira confiável, Kenny McCaig, em roupas civis. Pediu uma sala na Sede da Polícia e começou sua investigação formal. McCaig e Harrower
continuaram batendo nas portas. Notman examinou os filmes do pardal de tráfego e da câmera de segurança da rua para identificar quaisquer vans brancas filmadas na
vizinhança ou nos arredores da rua Carr na hora do desaparecimento, extraindo todos os números de placas possíveis e checando a lista de proprietários contra o banco
de dados da Agência de Licenciamento de Veículos, em Swansea. Drummond e Gillman levaram uma equipe de peritos forenses para fazer um levantamento de impressões
digitais na esquina da rua Carr, onde Britney desaparecera. Nem os peritos nem a tecnologia da informação eram o forte de Gillman, um tira das antigas, formado nas
ruas, mas ele seguiu suas ordens sem reclamar.
Quanto a você, você se ocupou com o “registro”: o banco de dados de criminosos sexuais. Vendo quem já saíra de prisão, quem estava em liberdade condicional e quem
estava sob vigilância; quem era considerado de alto risco e de baixo risco. Naquela quarta-feira você ficou examinando os rostos no computador, na sua sala, enquanto
a luz diminuía sobre o chuvisco que caía em Castle Hill, telefonando para Trudi e dizendo a ela que chegaria tarde ao encontro marcado em Filmhouse. Quando chegou
lá, você tossiu uma desculpa.
– Desculpe, meu bem, um dia de cão no trabalho. Esse tempo não ajudou.
Ela pareceu não se importar.
– Graças a Deus nós temos Miami nos aguardando!
Mas você não estava aguardando nada. Você sentira uma onda de ansiedade crescendo dentro de você depois do telefonema de Harrower; no trabalho, você aprendera a
definir o mal não apenas como a presença de algo maligno, mas a ausência de algo bom. A experiência lhe ensinara que a única infelicidade pior do que ter um ente
querido assassinado é ver esse ente querido desaparecer sem que seu destino jamais venha à luz. O tormento da incerteza, onde o coração disparava cada vez que soava
a campainha da porta ou que tocava o telefone, e os olhos desesperados, famintos, devoravam cada rosto em cada multidão. A inevitabilidade da morte da pessoa querida
pode ser mentalmente racionalizada, mas era mais difícil sufocar o grito desafiador da alma, achando que continuam vivos. Mas eles voltarão para casa ou desapareceram
para sempre? Depois de algum tempo passado nesse limbo infernal, quaisquer notícias, não importa quão dolorosas, eram bem-vindas, no lugar da espera e da busca intermináveis.
Na mãe de Britney, sozinha, sem marido, Angela Hamil, você viu uma mulher lentamente mergulhando nessa terrível loucura.
Ao anoitecer daquele dia, vocês todos já sabiam que alguém sequestrara Britney. No dia seguinte, Toal decidira ir a público e comunicar o caso aos jornais. Se a
situação não podia ser controlada, então as notícias teriam que ser. As últimas edições do Evening News, em Edimburgo, traziam a foto da garota sorridente, aparência
saudável, que se tornaria emblemática. Os adultos olhariam para seus filhos com uma dor terna, lançando olhares desconfiados para estranhos. A expressão “como um
anjo” foi usada muitas vezes na imprensa. Você se lembrou de seu avô dizendo isso.
Os centros telefônicos da polícia ficaram congestionados com a costumeira ladainha de bisbilhoteiros e psicóticos, bem como com os sinceros, mas largamente equivocados,
membros do público. E aquela inquietação arrepiante, como ela se espalhara como um vírus pela sua equipe de investigação. Não interessa o que vocês todos dissessem
na frente de batalha das relações públicas, ou para a família, vocês sabiam, como agentes profissionais da lei, que depois de vinte e quatro horas vocês provavelmente
estariam lidando com um assassinato infantil de caráter sexual.
A equipe entrou rapidamente em ação. Gillman foi o primeiro a encontrar alguma coisa, uma única página molhada de um bloco de notas amarelo na sarjeta, do outro
lado da rua onde Britney desaparecera. Angela confirmou que a página era do bloco de notas escolar da filha. Aquela simples presença indicava algum tipo de luta
entre a criança e o sequestrador.
O canalha precisava de algum tipo de tangibilidade nas mentes de seus perseguidores, e ele recebeu os costumeiros apelidos, “Monstro”, “Pedô” ou “Animal”. Mas um
outro apelido na cantina da polícia era “sr. Confeiteiro”. A coisa surgiu com o anúncio do chocolate Toblerone na televisão: Ah, sr. Confeiteiro, por favor... me
dê um Toblerone. Os rapazes do Bert’s Bar acharam que o confeiteiro do cartaz tinha a aparência de um pedófilo estereotipado, subornando crianças com doces.
Pare com isso.
Nada de crimes...
Férias...
As ações dele sufocaram nossa empatia, assim como haviam feito com a vida de...
Porque...
Porque ele nasceu assim, tinha que ser, a porra de um animal. Aquele canalha sujo foi posto nesta terra para nos caçar...
Precisávamos ser fortes e estar vigilantes e alertas para fazer com que parem; com que parem de destruir nossa carne...
Ele volta subitamente a algo como a total consciência quando o copo se parte na sua mão. Uma mistura gosmenta de vodca e suco de tomate se derrama sobre sua mão
não machucada. Ele repousa o copo e dá uma lambida na mão, enxugando-a com um guardanapo. Trudi não percebeu; ela está engolfada na revista, junto com a velhinha.
Ele tenta pensar sobre alguns dos jogos a que assistiu durante esses anos no parque Tynecastle. Seu pai levando-o para assistir aos Hearts vencerem Leipzig por cinco
a um. Curtis Park, um de seus colegas da escola, e torcedor dos Hibs, vendo o jogo na televisão e dizendo a ele que “O inglês”, Alan Weeks, estava narrando a partida.
Iain Ferguson fazendo o gol da vitória contra o Bayern de Munique. Aquela vitória de três a dois na Copa da Escócia sobre os Rangers. Levantando o troféu em Parkhead.
As várias vitórias de John Robertson em clássicos. Apertando a mão do homenzinho no departamento de tapetes da loja John Lewis. John Colquhoun se equilibrando para
quase entrar na classe mundial por uma temporada. A fatídica tarde em maio de 1986, quando eles estragaram tudo. O jantar de caridade, uns poucos anos atrás, quando
ele se sentou ao lado de Wallace Mercer, o ex-presidente, que lhe contou algumas histórias interessantes sobre jogos do passado e aquele terrível dia em Dundee.
Agora quem será que era o presidente?
Um milionário russo como presidente. Um criminoso sexual condenado, como administrador.
O Heart Futebol Club, de Midlothian.
Tradição.
Tudo isso não significa nada agora com nossa hedionda decadência. Até quando demorará para termos pedófilos nos reality shows da TV? Michael Jackson, Gary Glitter
e aquela gente toda da BBC, como o ex-jogador profissional de futebol dando uma de erudito. Aqueles que estavam do lado certo da linha e trouxeram suas perversões
antes de podermos perceber.
Ele fecha os olhos. Com o som dos motores é como atravessar um túnel longo, escuro. Espera que eles fiquem fechados até ele pisar na luz com o sangue de outros homens
nas mãos. Mesmo que isso leve uma eternidade.
2
Miami Beach
Quando eles chegam à gloriosa salvação do chão, Lennox percebe como o poderoso jato 747 devora os quilômetros da cidade de brinquedo debaixo deles. Os Estados Unidos
não são um país grande, ele se lembra. Ele já o atravessou antes de avião: Nova York-Chicago-Nova Orleans-Las Vegas-San Francisco-Los Angeles. Era como circundar
a Escócia de ônibus, só que ao nível do chão você pode perceber a vastidão do país na paisagem que vai mudando. Uma das funções da riqueza é encolher o mundo. E,
como a pobreza, ela tem pelo menos o potencial de fazer nascer a insatisfação. Flórida, ele sabe, ele a encontrará como a Escócia, imensa e irredutível vista do
avião. Um tremor de excitação passa por ele, enquanto espera pela grandeza da Flórida. Bem lá longe do vidro da janela, ele vê Miami, construções reluzentes branco-prata
se abarcando à borda de um mar turquesa-leitoso e suas baías. A água é entremeada de sombras verde-arroxeadas lançadas para cima pelas ilhas submersas. Pequenos
barcos a vela enxameiam como pequenos pontos amarelos contra um fundo de tela de radar, deixando uma esteira evanescente atrás deles.
As pessoas aplaudem quando a aeronave aterrissa, tão suavemente que ele mal percebe o toque na pista, para o qual vinha retesando o corpo havia horas, desde o difícil
levantar voo e a turbulência. A despeito dessa sensação de anticlímax, a mão machucada e enfaixada de Lennox aperta suavemente a de Trudi.
Seu quarto é num pequeno hotel no distrito art déco de Miami Beach. O histórico bairro art déco, como parece anunciar por toda parte. Histórico? Art déco? Onde está
a história nisso tudo? Ele entra no box para uma chuveirada, e percebe que precisa muito urinar, e deixa a urina correr solta ali mesmo, enquanto se molha. Os pesados
filetes dourados da urina se contorcem na direção do ralo. O banheiro tem espelhos nas paredes opostas. Ele observa seu corpo nu, clonado, mergulhando no infinito.
Então, sem qualquer aviso, ele é atingido por uma aguda ânsia de sair dali. O banheiro, o quarto, tudo parece pequeno demais. Ele deixa o corpo pingar sobre a pia.
Esfrega-se com uma toalha. Enche um copo com água e engole dois antidepressivos que trouxera. O Seroxat. Consumido aos montes. Pelo menos cem miligramas mais do
que a dose máxima recomendada. A ansiedade já não pesa tanto quando você toma o remédio. Sim, ela está sempre ali, você ainda consegue senti-la, só que não o incomoda
tanto. Mas ele não trouxe muitas pílulas; quer parar com aquilo. Acha que o sol vai ajudar. A luz é boa para a depressão. Uma cura natural. Uma boa dose de sol de
inverno fará mais bem do que todas as pílulas do mundo. Alguém dissera isso. Trudi? Toal? Ele não consegue se lembrar. Mas eles tinham razão. Foi um alívio deixar
o frio e escuro inverno de Edimburgo. Acontecera o horror do funeral. Depois, o Natal foi um fracasso. O Hogmanay, o Ano-Bom escocês também. Lennox não tinha cabeça
para aquilo. As multidões cantando, as pessoas parecendo entediadas e raivosas enquanto tentavam se divertir. Debaixo do bom humor superficial havia o desespero,
um medo mal disfarçado de que o ano seguinte seria tão miserável quanto o último. Ele sai do banheiro, a toalha em torno dos quadris. O copo de água ainda na mão.
Ele repousa o copo na mesinha de vidro perto do telefone.
Trudi está deitada na cama com sua roupa de baixo preta, ainda lendo Noiva Perfeita. Refrescando-se debaixo do ventilador de teto que diminui ainda mais a temperatura
do ar-condicionado. Lennox fica admirando os pés dela, com as unhas pintadas de vermelho.
Ele pega o cortador de unhas no seu chaveiro. Depois liga a televisão. É isso o que você faz nos Estados Unidos. Aquelas férias prolongadas, anos atrás: com Caitlin
Pringe, um antiga namorada, pré-Trudi. O pai dela trabalhava na British Airways; alto executivo. Alasdair Pringle. Viagem barata. Caitlin: filha do alto-executivo-Alasdair-da-Linha
Aérea. Uma relação sexual, uma flâmula de beisebol comprada em cada cidade onde os dois transaram. Uma bebedeira. Las Vegas para assistir a um casamento: dessa
vez com Trudi. De quem era o casamento? Ele não consegue se lembrar. Mas a cada vez ele assistia um montão de TV. Aqui você ia assistir à TV automaticamente, como
não se fazia em nenhum outro país do mundo. Aquele único clique com o controle remoto e você estava nos Estados Unidos. As notícias de última hora. Os intervalos
comerciais. A novela da tarde com manequins ambulantes. A série sobre tribunais. Aquelas pessoas gordas gritando umas para as outras enquanto Jerry, Ricki ou Montel
mantêm a ordem. Até mesmo tentava ajudar. Tentava compreender os problemas com que se defrontavam os pobres e os gordos. Simpatizar com a necessidade que eles têm
de gritar e apontar seus dedos gorduchos uns para os outros em público. Os shows de encontros amorosos à tarde. Os gostosões corpulentos, expressão aborrecida, referindo-se
cansadamente a si mesmos como “jogadores” enquanto vão vagarosamente sufocando seu próprio tédio. Moças entediadas, unhas feitas, rostos imobilizados, incapazes
de se mover por qualquer coisa a não ser os salários dos rapazes. Como essas futilidades loucas foram capazes de se tornar compreensíveis, até mesmo palpáveis, pelo
contexto.
Enquanto ele apara as unhas, já quase em carne viva, vozes enchem o quarto. Elas sufocam o lento chocalhar e o zumbido do ar-condicionado. Há um canal que parece
dedicado à cultura na área de Miami. Para Lennox, aquilo parece significar principalmente imóveis e compras. Uma série de apresentadores cafonas, impecavelmente
paramentados, expõe, em frases curtas que leem num teleprompter, diversas oportunidades em diferentes lançamentos de edifícios de apartamentos. É claro que alguma
coisa de excitante está acontecendo. Perder aquela oportunidade não é uma das opções. Os atores fracassados e modelos com rostos de Botox enfatizam o conceito elevado,
as qualidades arquitetônicas do que para Lennox parece ser um esquema escocês de venda de torres residenciais banhadas pelo sol.
– Você não pode continuar aparando suas unhas, Ray – diz Trudi –, seu polegar está sangrando! Que comportamento compulsivo!
Ele se volta para observá-la deitada na cama, lendo a revista.
– Eu tenho que fazer isso, ou então roer as unhas. Tenho que mantê-las curtas.
Mas ela não está mais interessada; a boca ficou redonda e os olhos se fixam na revista, como que vendo algo que não consegue compreender, ou então acreditando muito
no que está lendo. Anteriormente ele talvez achasse sexy aquele olhar dela. Acariciasse a parte interna da sua coxa bronzeada. Subindo até os diversos pelos púbicos
que se enroscavam sedutoramente fora da calcinha. Pusesse a mão entre as pernas dela. Ou talvez nos seios. Seus lábios apertando os dela. A rebeldia de seu pênis
comprimindo a coxa de Trudi.
Mas agora ela parece uma extraterrestre.
– Um casamento alienígena – diz Lennox baixinho, remexendo sua maleta, que está no final da cama, num suporte dobrável, com tiras. Será que essas coisas têm um nome
especial? Seja como for, em algum lugar ali dentro há uma camiseta marca Motörhead. Ace of Spades. Ele tira a camiseta que está em cima de uma outra com a palavra
BELIEVE em grandes letras marrons.
Lennox olha para a rua e vê uma van branca, a luz do sol refletindo o branco-magnésio do veículo, quando este para no sinal de tráfego.
Trudi abaixa a revista, observa Lennox remexendo na maleta. Seus movimentos têm a atração do homem desajeitado que aprendeu a compensar esse defeito fazendo tudo
devagar. Parece um gato em seus movimentos lânguidos, com os ombros ligeiramente curvados, mãos um pouco grandes para o corpo, como se ele nunca soubesse o que fazer
com elas. Pernas talvez um pouquinho curtas para a estrutura, acompanhadas de uma tendência à curvatura e à abundância de pelos, elas poderiam ocasionalmente lembrar
algo simiesco. Mas ele sempre tinha aquela expressão de um grande mamífero ferido, como se os potenciais de vulnerabilidade e violência nunca estivessem muito afastados
dele.
É fácil para ela atribuir à elegância um destino mais do que uma condição. Há uns poucos anos decidira eliminar o açúcar e os carboidratos de sua dieta, seguir um
programa regular de ginástica, gastar mais dinheiro em roupas decentes e maquiagem, e investir tempo na aparência. Foi um choque para ela ver que começavam a surgir
novas maçãs do rosto, um corpo delgado, atlético. Seguiram-se a tintura loura no cabelo, e sua maior surpresa foi que o mundo poderia reclassificá-la, preguiçosamente,
como uma beleza convencional. Foi um desapontamento perceber como a beleza feminina percebida relacionava-se com a dieta, exercício físico e aparência pessoal.
Não obstante, Trudi ficara encantada com a futilidade de tudo aquilo; o poder fácil que seu “investimento” conferia. A atenção exaltada das outras pessoas; quantos
homens em grupos nos bares abriam gentilmente caminho para ela, como o Mar Vermelho para Moisés. Como o despeito brilhava nos olhos e nas línguas das outras mulheres,
que viam apenas a maquiagem, as roupas, dieta e exercício físico; o esforço que elas não conseguiam ou não queriam fazer. Como os homens e mulheres da repartição
pública onde estava empregada lhe cediam a cadeira em reuniões muito cheias. Ela era a primeira a ser perguntada por qualquer novato no trabalho o que queria que
encomendassem para o almoço. O bonitão Mark McKendrick, um jovem executivo sênior, desafiava-a na hora do almoço para partidas de squash. Vieram facilmente as diversas
promoções no local de trabalho, levando-a rapidamente para o terraço envidraçado. A evolução sem descanso de Trudi Lowe: de funcionária júnior a ícone feminino gerencial
corporativo.
E agora de volta a Ray Lennox. Um jovem soldado alquebrado. Ela observa seu corpo musculoso, mas esbelto, que cai bem nas roupas, calça comprida de sarja e a camiseta
Motörhead. Observa um pequeno engrossamento em torno da cintura; não, ela não está imaginando. A ginástica cuidaria daquilo.
O programa de TV muda de foco, discutindo os museus e monumentos de Miami. Lennox não consegue acreditar quando eles mostram um memorial do Holocausto, situado aqui
em Miami Beach.
– Para que nunca nos esqueçamos – diz o locutor, com sinceridade, evidentemente mais desanimado do que quando fala sobre preços de condomínios. – Um lugar para a
cura.
– Por que diabos eles precisam daquilo em Miami Beach? – pergunta ele, incrédulo, apontando para a tela. – É como ter alguma coisa comemorando as atrocidades de
Ruanda em Las Vegas!
– Acho que é bacana. – Trudi larga a revista. – Deveria haver um desses em cada cidade do mundo.
– O que é que Miami tem a ver com o Holocausto? – Lennox levanta as sobrancelhas. A luz do sol subitamente penetra entre as venezianas, lançando barras douradas
através do quarto. Ele vê partículas de poeira flutuando nos raios solares. Quer ir para o ar livre: fora do ar-condicionado.
– É como disse o cara, um lugar para a cura – Trudi contesta. – Além disso, eu acho que o Rough Guide mencionou que havia muitos judeus em Miami. – Ela se reclina
de costas na cama. Isso é o que ela faz. Ele conhece aquele gesto de reclinar. Costumava adorar aquilo. Mas, por favor, Deus, não agora.
– Preciso pegar um pouco de ar – diz Lennox, evitando contato com os olhos dela, cheios de esperança. Em vez disso, sua mão enfaixada abaixa umas ripas da veneziana
e olha para as fachadas sorridentes, refletindo o sol, dos apartamentos verde-amarelados do outro lado da rua. Eles parecem estar acenando para ele, para sair e
brincar. Ele pega o telefone na mesa de vidro escura. – Eu disse que telefonaria para Ginger Rogers. É um bom parceiro. – Ela percebe o tom de súplica na voz dele.
– Não vejo o safado há séculos.
– Tem que ser bem agora? – Uma rigidez interna distorce o ronronar sexy de Trudi em algo muito agudo e estranho. Ela vira a cabeça e dá uma olhada para o lado vazio
da cama. Talvez veja o clímax fantasma que poderia desencorajá-la. – Não quero ficar sentada jogando conversa fora com gente velha. Não tenho nada para falar com
eles.
– Nem eu. Mas vamos nos livrar dessa merda enquanto estamos defasados com esse tal de fuso horário – Lennox diz, balançando o telefone.
– Está bem – Trudi aceita –, acho que temos muito tempo.
– Isso é que é garota – responde ele, percebendo no mesmo instante como fora inadequada a expressão. Lennox não consegue olhar para ela, enquanto telefona para seu
amigo Ginger. Trudi pode ouvir a voz do velho policial aposentado saindo do receptor: rascante e alta, carregada do perigoso entusiasmo que liga os escoceses.
Lennox descansa o telefone. Informa a Trudi que Ginger vem pegá-los mais tarde, e que eles irão tomar um drinque e comer alguma coisa. Ele observa alguma coisa afundar
dentro dela. Defensivamente, ele olha para a mesa. O copo d’água parece ter mudado alguns centímetros de posição, para a direita.
Aí Trudi solta um grande suspiro de resignação.
– Eu só vou se você prometer não falar sobre assuntos de polícia.
– Feito – diz Lennox, sentindo os músculos do rosto relaxarem de alívio. – Mas vamos descer para aquele coquetel primeiro. É cortesia. – Ele pega o voucher que recebeu
na recepção quando fizeram o check-in. Mostra a ela.
Boas-vindas de South Beach
Coquetel de cortesia à tarde – 2:00 às 4:00
– Você precisa controlar a bebida, Ray. É tão idiota isso. Você se esforçou tanto no AA...
Ele vai até a mesa. O copo daquele ângulo parece normal.
– Eu só quero beber socialmente. Não quero ficar em recuperação todo o tempo. Não é como se eu fosse cheirar cocaína aqui – ele balança a cabeça, percebendo onde
está, acrescentando timidamente –, mesmo que eu quisesse, coisa que certamente não quero.
Ela revira os olhos. Muda de assunto completamente.
– Por que você não telefona para sua mãe? Apenas para dizer a ela que chegamos bem. Ela pode estar preocupada.
– De jeito nenhum – diz Lennox, enfaticamente. – Vamos pegar esse coquetel – insiste ele, tentando manter a necessidade longe da voz.
Durante o check-in, Lennox já decidira que o hotel-boutique não fazia seu gênero. As superfícies escorregadias de metal e cromados, obras de arte exuberantes nas
paredes, espelhos com cortinados e candelabros finos não o perturbaram; ele não tinha nada contra o luxo e a decadência. Era apenas que se sentia muito exposto,
e quando eles desceram para o coquetel o bar já estava apinhado de gente. Ele mata sua vodca com martíni bem rápido. Depois tem um pressentimento de que, com a respiração
ligeiramente mais profunda dela, e seu controle sobre o copo de modo a que este não faça ruído toda vez que ela o coloca de volta na mesa de mármore, Trudi está
tão tensa quanto ele. O comportamento dela machuca seus nervos com maior eficiência do que qualquer explosão violenta, e faz com que ele queira ir lá para fora.
As pessoas, tanto a equipe do hotel quanto os hóspedes, empertigadas e bem-vestidas como modelos numa passarela, todo mundo examinando furtivamente cada um, cultivando
o tempo inteiro uma expressão de indiferença estudada. Ele olha para a porta.
– Vamos explorar um pouco antes que Ginger venha nos buscar.
Lá fora está quente. Ele se lembra da previsão do tempo na TV, dizendo que estava inusitadamente quente para o inverno. Geralmente fazia em torno de 24°C em janeiro,
mas que podia saltar para em torno de 35°C. Lennox está assando. É assim que ele se sente. Como se estivesse assando num grande forno. Seus miolos, um ensopado na
caçarola do seu crânio. Está quente demais para andar até longe. Eles se sentam no pátio do bar-restaurante. Com um floreio, uma garota com sorriso de lâmpada de
flash lhes entrega um cardápio.
– Está fervendo – diz ele preguiçosamente de detrás de suas persianas, enquanto ele e Trudi se sentam, refrescados, bebericando outro coquetel, dessa vez no Sea
Breeze. Eles só caminharam um quarteirão. Avenida Collins até a Ocean Drive. Jovens passam por eles, se pavoneando, de férias, aproveitando o tesouro de seus anos
de juventude e riqueza; garotos luzidios metidos a machão, os músculos marombados, dando risadinhas e fazendo trejeitos com a boca para garotas de biquíni e sarongues,
mulheres mais velhas tentando imitá-las com alguma ajuda de pílulas, bisturis e produtos químicos. Homens latinos, elegantes em roupas tropicais, ternos brancos,
fumam charutos cubanos da mesma cor de suas namoradas. Sons de mambo e salsa enchem o ar, e um baixo programado pulsa vindo de algum lugar. O mar está próximo, do
outro lado da movimentada rua de mão dupla. Atrás das laterais da rua, cobertas de grama das Bermudas, um pouco de asfalto e algumas palmeiras, fica a faixa de areia
e depois o oceano. Você não pode vê-lo, mas sabe que ele está ali.
– Ray! – A mão de Trudi na testa dele está escaldante. Ele se encolhe. Como se ela o tivesse marcado com um ferro de brasa. – Você tá pelando!
Levantando e correndo até a loja mais próxima, Trudi volta com um boné de beisebol dos New York Yankees. Ela põe o boné na cabeça dele. Ele se sente melhor.
– Ficar sentado frita seus miolos! Com esse seu corte de cabelo, você não tem proteção nesse sol!
Ela remexe na bolsa de palha tirando um tubo de bloqueador solar e passa o preparado no pescoço e nos braços dele, desprezando o fato de sujar a camiseta com Ace
of Spades estampado nela.
– Uma camiseta preta! Nesse calor! E eu não sei por que você não quer usar bermuda!
– Coisa de garotinhos – resmunga ele.
Lennox se lembra de sua própria mãe fazendo aplicações semelhantes quando ele era criança, em casa, no pequeno jardim com o gramado bem aparado e uma trilha sinuosa
que levava a um barracão de ferramentas desmantelado. Ou naquele verão em Dingwall: uma rara onda de calor nas Highlands, quando estavam hospedados com sua tia.
De novo em Lloret De Mar, nas primeiras férias da família no exterior, com o amigo e colega de trabalho do pai, Jock Allardyce, e sua esposa, que logo seria sua
ex-esposa, Liz. Foram também as últimas férias no estrangeiro, pois a barriga de Avril Lennox ficou inchada com seu irmão mais moço, e sua irmã mais velha, Jackie,
já estava quase grandinha demais para esse tipo de excursão. Ele encontrara um cachorro velho e sarnento na praia e eles ficaram amigos. Ele apresentara o animal
ao pai, e ficou horrorizado quando o pai enxotou o cão.
– Fique longe daquele malandro sujo. – Raiva, John Lennox explicara, alarmado. – Os padrões de higiene na Espanha são diferentes dos da Escócia.
Ele tira o boné e olha para o símbolo NY, de uso em toda parte. Relutantemente, volta a pôr o boné, fazendo uma expressão de amargura. Alguma coisa naquele boné
o deprime. Era o tipo de chapéu que poderia ser usado por alguém que nunca fora a uma partida de beisebol ou à cidade de Nova York. O tipo de chapéu que o sr. Confeiteiro
poderia ter no seu guarda-roupa.
– O que é que há com você? – pergunta Trudi.
– Não gosto dos Yankees. Não tinha um boné dos Red Sox, de Boston?
– Há um montão deles lá. Eu não sabia qual você queria. Eu só comprei esse para evitar que você cozinhasse seus miolos! É de Nova York – insiste ela.
– Aqui é a Flórida – diz Lennox, dando de ombros. Ele tenta se lembrar de um time de beisebol desse estado. O nome Merlins parece lhe recordar qualquer coisa. The
Magical Merlins.
– É, mas é tudo americano, e é aqui que estamos – diz ela, e depois dá um gole no seu Sea Breeze e volta para suas notas. – Vá ver se eles trocam o boné, se você
quiser... Acho que Mandy Devlin e o namorado dela deveriam vir à noite, em vez de ir à igreja e ao almoço... O que é que você acha?
– Concordo – diz Lennox. Ele se levanta, se espreguiça, e entra na loja. Algumas camisas de clubes de futebol: Real Madrid, Manchester United, Barcelona, Milan.
Os bonés de beisebol. Ele escolhe um número do Boston Red Sox e o põe na cabeça. Voltando ao pátio, ele mete o boné dos Yankees na cabeça de Trudi. Sua mão encosta
nela, como se fosse desmanchar o cabelo dela, depois ele para.
Ela dá um sorriso afetado e depois aperta de leve a mão boa dele. Alguma coisa o invade, uma onda de otimismo, que se espatifa quando ela fala.
– Eu estou realmente feliz, Ray – diz ela, mas a frase soa como uma ameaça. – Você está relaxando?
– Preciso saber o placar do jogo dos Hearts. Estamos jogando com o Kilmarnock em casa, na Copa. Será que vamos encontrar um cybercafé logo?
Por um breve instante, Trudi faz uma expressão de desgosto, depois seu rosto se ilumina.
– Há uma coisa que eu quero mostrar a você nesse website, algumas bandas que animam festas realmente boas.
Ela está lendo outra revista sobre a atriz de televisão Jennifer Aniston: sua pronta recuperação depois de seu divórcio do ator Brad Pitt, agora com uma atriz diferente,
Angelina Jolie. Lennox dá uma olhada para cada uma das revistas na mesa. Ambas sobre relacionamentos: uma focalizando um dia de felicidade, e a outra tratando de
uma vida toda de infelicidade e incerteza. Ele já dera uma olhada nesta última no avião. Jennifer Aniston já devia estar com outro ator agora, cujo nome ele não
conseguiu recordar. Trudi aponta para a foto dela na capa.
– Deve ser muito difícil para ela. Isso apenas mostra que o dinheiro não compra felicidade. – Ela olha para Lennox, que cruzou o olhar com a garçonete e pediu mais
dois Sea Breezes.
– Estamos bem ainda, não estamos, Ray?
– Hum – murmura ele para si mesmo, tentando se lembrar do último filme decente em que Brad Pitt aparece. Decide que a refilmagem de Onze homens e um segredo não
foi tão ruim assim.
– Bem, obrigada por esse voto de confiança! Nós vamos apenas passar o resto de nossas vidas juntos! – Ela olha para ele, expressão dura, perspicaz. Ele pode ver
nela a mulher velha. Era como se ela tivesse avançado no tempo quarenta anos rapidamente. Ela joga o bloco de notas na mesa. – Pelo menos finja que está interessado.
Jennifer Aniston e Angelina Jolie. Mulheres diferentes, rostos, corpos.
O corpo parecia ter encolhido na morte, jogado pelas ondas sobre as rochas, ao pé do penhasco. Era estranho, mas a visão não o perturbara na ocasião. Bem, perturbara
sim, mas não obsessivamente. Ele pensa no seu antigo parceiro, Les Brodie. Como eles costumavam atirar nas gaivotas com seus rifles. Como quando atiravam numa ave,
era diferente de atirar num pombo. Les e seus pombos. A gaivota, no entanto, apenas se reduzia, virava um nada, como um balão, todo cheio de ar. A diferença entre
um corpo adulto morto e o de uma criança (e Britney fora a primeira criança morta que ele já vira) era a sensação de redução. Talvez você estivesse apenas vendo
pela primeira vez como elas são realmente pequenas.
Lennox sente sua pulsação aumentar de novo, o suor cobrir as palmas das mãos. Ele força uma inspiração profunda. O corpo azulado e sua misteriosa, inflexível opacidade;
mas era apenas um corpo, Britney desaparecera; o que contava era levar à barra dos tribunais o canalha que fizera aquilo a ela. Mas agora ele via a coisa mais nítida
do que nunca antes; os olhos pulando para fora das órbitas, a hemorragia dos vasos sanguíneos nas pálpebras onde ele a estrangulara, enquanto penetrava nela, espremendo
a vida dela para sua própria gratificação passageira.
Uma vida humana trocada por um orgasmo.
Ele ficou pensando se tudo acontecera mesmo assim. Foi quando tentou imaginar o pavor da garotinha, seus últimos momentos, aqueles em que as imagens corpóreas voltam
velozmente. Mas será que ela realmente tinha aquela aparência? Será que não era sua imaginação preenchendo as lacunas?
Não. O vídeo. Estava tudo lá. Ele não devia ter assistido ao vídeo. Mas Gillman estava presente, olhando friamente para as imagens que o sr. Confeiteiro filmara.
A postura dele exigindo que Lennox, como seu superior na força policial, ficasse sentado tão implacável quanto sua acusação, mesmo que cada segundo daquilo o aleijasse
por dentro.
Ele pensou no momento antes de puxar o gatilho, a gaivota na sua mira. Aquela pausa eterna antes de o tiro partir: a sensação de desgaste, de vazio, dentro dele
depois do tiro, enquanto a ave jazia pequena e sem vida no asfalto ou nas rochas, no estuário do rio Forth, em Seafield.
Les Brodie. Os pombos.
De repente, uma voz:
– ... você não fala comigo, Ray, você não me toca... na cama. Você não está interessado. – Trudi balança a cabeça. Fica de perfil. Seus olhos e lábios estão apertados.
– Às vezes eu acho que nós deveríamos simplesmente desistir de tudo. É isso que você quer? É isso?
Uma brasa de raiva se acende no seu peito. Parece estar vindo de muito longe, cortando através de um labirinto de paralisia. Ray Lennox olha impassível para ela,
querendo dizer “Eu estou me afogando, por favor, por favor, me ajude...”, mas a coisa sai como:
– Nós só precisamos pegar um pouco de sol. Um pouco de luz, coisa assim.
Trudi inala uma grande quantidade de ar.
– Esta é uma época estressante, Ray. E nós realmente precisamos tomar uma decisão sobre o que fazer. Acho que é isso que está pesando sobre nós. – E aí ela arqueja.
– Faltam apenas oito meses e pouco para setembro!
– Vamos nos acalmar hoje de noite. – O tom de voz dele é tranquilizador. – Vamos encontrar Ginger lá no hotel.
– E o placar do jogo do Hearts?
– Isso pode esperar até que eu leia os jornais. Estamos de férias, afinal de contas.
Trudi pisca, seu rosto se iluminando ainda mais quando um carro alegórico apinhado de crianças fantasiadas avança barulhento pelo tráfego da Ocean Drive.
3
Fort Lauderdale
As nuvens mosqueadas de fim de tarde vinham do Atlântico e as palmeiras se moviam preguiçosamente na brisa suave. Trudi e Lennox se ajeitaram numa mesa no pátio
fronteiro do hotel para esperar Ginger. Eles observam as pessoas que passam na avenida Collins, Lennox tomando uma água mineral para tentar provar alguma coisa,
quando deseja álcool tão ardentemente que poderia cometer quantos crimes fosse por uma vodca.
Ele troca a outra roupa por uma camisa azul de mangas curtas e calças de sarja amarelo-bronze. Trodi usa um vestido amarelo e sapatos brancos. A cobertura de nuvens
ficara mais espessa, e, embora o sol ainda aparecesse ocasionalmente, ela podia sentir o frescor nos membros. Então um sotaque familiar grita o sobrenome que Trudi
vinha praticando assinar às escondidas, mas tudo que ela consegue ver é um Dodge 4x4, que estacionara em frente ao hotel. Embora o vidro escuro da janela estivesse
abaixado, o motorista permanecia escondido. A porta se abre e um homem gordo usando uma camisa espaventosa amarela e verde aparece, estreitando os olhos ao sol,
antes de olhar para ela.
– Ei! Princesa! – exclama ele. Ela adivinha que ele esqueceu seu nome, pois os dois só haviam se encontrado uma vez, lá em Edimburgo, na cerimônia de aposentadoria
do homem gordo.
– Ginger! – Sorri Lennox. Ele se levanta e abraça seu velho amigo. Sente a barriga aumentada. Ginger é uma enorme mala de couro marrom enrolada numa camisa havaiana.
Ele devolve um sorriso discreto.
– Olhe aqui, Ray, eu gostaria que você não me chamasse desse jeito aqui. Nunca gostei, me faz sentir como se eu fosse um puta viadinho.
Lennox faz uma aquiescência tensa enquanto Trudi faz uma revisão de seu parco conhecimento sobre Eddie “Ginger” Rogers. Policial aposentado de Edimburgo com quase
quarenta anos de serviço à instituição. A primeira esposa morrera um ano antes de sua aposentadoria. Ele se casara com Dolores Hodge, uma americana que encontrara
numa sala de bate-papo virtual sobre jogos e dança. Depois de namorar um pouco pela internet e umas poucas visitas transatlânticas, eles se amarraram, Ginger se
mudando para a casa de sua nova noiva em Fort Lauderdale.
– O que é isso? – Ele percebe a mão enfaixada de Lennox. – Machucou tocando punheta? – Depois, consciente da presença de Trudi, ele dá um sorriso contrito. Eles
sobem no 4x4, Trudi no banco traseiro, e vão descendo a avenida Washington e a rua 54. Logo eles cruzam a comprida ponte que os leva no que Ginger diz que é Miami
propriamente dita. Trudi observa um navio-tanque, enferrujado, bordo baixo, carregado de lama, que vai se arrastando ao longo dos rebrilhantes transatlânticos brancos
atracados nas docas, como um bêbado penetrando num casamento grã-fino, e depois eles entram numa via expressa de cinco pistas. Está uma bagunça: as pistas não se
organizam como um espaguete, mas como tagliatelle.
Ginger dirige da maneira agressiva de um policial da TV, saltando constantemente de uma pista para outra. Trudi achava que os americanos geralmente eram bons motoristas
comparados com os britânicos, sendo eles acostumados a dirigir em estradas realmente projetadas para essa finalidade. Ginger parece ter a intenção de confirmar sua
reputação agressiva atrás do volante. Ele se coloca na frente de uns universitários num conversível com a capota abaixada. A despeito de estar errado, sua reação
às fortes buzinadas é fazer um gesto indecente para os garotos, ao jeito americano.
– Moleques mimados – diz ele, dando uma risada, antes de bufar. – Pensam que estão com tudo. – Depois, descuidadamente, serpenteia em frente a outro carro e recebe
mais buzinadas. – Nada de hesitação: reservas são para yuppies e índios – diz ele, dando uma risada larga, olhando para trás, para Trudi. – Tudo certo, princesa?
O sorriso espremido, mostrando os dentes, de Trudi na sua nuca. Uma das mãos checa o cinto de segurança; a outra, os nós dos dedos brancos, agarra a barra acima
da porta.
O bairro onde Ginger mora, em Fort Lauderdale, está situado bem perto da praia. O apartamento é no Carlton Towers Condominiums, um prédio de vinte andares atrás
da Holiday Inn, apenas a um quarteirão do oceano Atlântico. Lennox notou a relativa proximidade da estreita faixa de praia em relação à rua, quando comparado com
o bairro art déco. Externamente, e vista de longe, a torre poderia dar a impressão inicial de apartamentos ingleses de baixo custo construídos pela municipalidade,
mas um exame mais de perto faz com que Lennox reconsidere essa impressão. O andar térreo se abre com janelas de vidro que vão do chão ao teto. Eles entram no grande
saguão e na área de recepção, o soalho e as paredes de mármore impressionando a ele e a Trudi também, ele pode ver pelo arqueamento das sobrancelhas dela, finamente
delineadas. O recinto está mobiliado com sofás e mesinhas de centro cheias de revistas luzidias, e decorado com exóticos e luxuosos arranjos de flores, e Lennox
precisou dar mais do que uma olhada para se certificar de que eram realmente de plástico. A porteira, uma enorme mulher negra, está sentada atrás de uma mesa de
recepção. Ela sorri para Ginger, que acena alegremente de volta.
– Boa mulher – diz ele, com humildade, como que se desculpando com Lennox por seu racismo prévio, na cantina da polícia, e enfatizando que aquilo foi uma coisa do
passado.
Lennox sufoca uma risadinha. Os escoceses têm uma visão esquizofrênica sobre essa questão de etnias. Como a maioria deles nunca vê um rosto negro de um dia para
outro num país extremamente branco, eles se sentem livres para serem ou racistas ou seja lá o que for, como gostarem, apreciando a extravagância de uma certeza não
merecida.
No elevador, Ginger aperta o botão do décimo quarto andar. Num gesto brincalhão, ele gentilmente e em câmara lenta aperta o ombro de Lennox, depois dá uma piscadela
para os dois. Trudi faz uma careta, num sorriso nervoso. Eles saem num corredor apertado, parecendo anunciar uma uniformidade deprimente de tocas de coelho, de portas
marrons, antes de ter suas expectativas de novo frustadas quando entram num apartamento tão espaçoso quanto luxuoso. O imóvel tem uma sala de estar ligada à cozinha,
que leva, através de portas corrediças de vidro, para uma varanda. Há dois quartos de dormir, ambos com banheiro, além de um outro banheiro maior.
Lennox não pode acreditar que uma casa com dois quartos de dormir possa ter três banheiros. Está a ponto de dizer algo quando a porta se abre atrás dele e uma mulher
elegante, bem-vestida, aparentando cerca de sessenta anos, entra com um terrier West Highland na coleira. Ao ser solto, o cão pula para cima de Trudi e Lennox, o
rabo abanando, e cheirando as mãos das pessoas à procura de agrados e guloseimas.
– Esta é Dolores. – Ginger faz as apresentações para Lennox e Trudi, ambos sendo cumprimentados com grande entusiasmo. – E esse patifezinho aqui é Braveheart.
O animal evidentemente não gosta de Lennox; o fato de os dois compartilharem uma descendência escocesa não significa nada. Agressivamente, ele arreganha os pequenos
dentes dianteiros debaixo de gengivas que parecem borracha. É um safadinho, pronto para atacar, pensa ele.
– Braaay-ve-heart! – avisa Dolores.
Aí o cão parece se agachar uns centímetros e vai se esgueirando vagarosamente na direção de Lennox, quando este senta num sofá. O animal levanta um olhar breve,
como se fosse latir, e depois pula nas patas, rodopiando em torno de si mesmo. Dolores cantarola em triunfo.
– Ele gosta de você!
– Vamos, Braveheart – diz Lennox, cautelosamente, inclinando-se um pouco para frente e batendo de leve no pescoço do animal, ficando mais corajoso quando sua mão
afunda nos pelos e ele percebe como o cão é realmente magro. Fácil de estrangular, pensa ele, relaxando de volta no suntuoso sofá com uma alegre expressão de malícia.
Dolores parece fascinada por Trudi.
– Puxa, você é tão bonita! – Ela observa enfática, examinando a outra de alto a baixo com olhar apreciativo. O embaraço tímido de Trudi é evidente, enquanto sua
mão se move involuntariamente para o próprio cabelo. Depois o rosto fica mais rígido, na expectativa de ver sua lista de convidados para o casamento aumentar ainda
mais.
Dolores pega a bolsa que está carregando e dá uns passos de valsa graciosamente na área da cozinha. Ginger dissera que ela costumava ensinar dança. Lennox observa
que ela tem ligeireza nos pés e uma excelente condição física, à parte um estômago um pouco dilatado. Como Ginger, ela tem o olhar brilhante debaixo do cabelo cheio
de laquê, ao qual Lennox e alguns dos outros rapazes da polícia habitualmente se referiam como sendo “brilho de gafurinha”. Não ficariam mais aplastrados com a velhice.
Dolores e Ginger levam Trudi e Lennox separadamente para ver o apartamento. Tudo ali é novo: pristino, reluzente e sem a mínima poeira. Lennox nota o cheiro: aquele
aroma ligeiramente queimado que muitos lugares nos Estados Unidos parecem ter. É provavelmente resultado de produtos de limpeza que eles usam. Ele fica imaginando
se o Reino Unido tem um cheiro característico para os visitantes americanos e como seria esse cheiro. No quarto de dormir principal, Ginger mostra com orgulho seu
separador eletrônico de moedas.
– Você coloca todas as moedas aí dentro e ele separa elas todas, até vinte de uma vez. O aparelho automaticamente empilha e embrulha as moedas em invólucros de papel.
Incrível, não é?
– Se você acumula tantas moedas, então por que não levar elas para trocar no banco?
– Que se fodam os bancos. – Ginger abaixa a voz, bate de leve na cabeça e dá uma piscadela. – Aqueles babacas tiram o couro da gente, isso é que é.
No outro quarto, a despeito de si mesma, Trudi está se acostumando com a rude franqueza dessa mulher americana, que é mais velha do que sua própria mãe.
– Minha mãe casou com um tira, e ela me disse para não cometer o mesmo erro – Dolores se lamenta. – Eu cometi esse erro. Duas vezes. Um conselho: rédea curta.
– Vou me lembrar disso.
Ouvindo conversa sobre casamentos, vestidos e coisas semelhantes filtrando-se pelas paredes, Ginger sussurra para Lennox.
– As garotas parecem que se entrosaram. Que tal se nós fugirmos de nossos marcadores e eu levar você a uma coisa especial?
– Muito bem – concorda, ansioso, Lennox, pensando como vender esse peixe para Trudi. O problema em concordar com a ideia de que ele está deprimido, ou mesmo seu
mais benevolente sinônimo, “sob estresse”, é que, intrinsecamente significa o abandono de suas certezas morais. O potencial pelo menos existia sob a forma de cada
comentário que ele fez para ser encarado como um sintoma da doença. E ele sente que o gerenciamento de Trudi de sua suposta condição é sobre o controle (dela) e
o abandono de seus direitos (dele). A lógica dela é que os pensamentos dele o levarão de volta ao antigo trauma de seu trabalho, e em consequência, toda deliberação
independente por parte dele é inerentemente má. Ela substituirá isso por seus próprios projetos, com coisas boas sobre as quais pensar, como o casamento, a nova
residência, a mobília, os futuros filhos, a próxima casa, essa limitada narrativa para a morte que tanto o aterroriza.
Nesse exato momento, Dolores aparece e anuncia.
– Vou levar comigo esta linda senhora sua por algum tempo, Ray; mostrar a ela algumas das lojas de noivas na cidade. Acho que vocês, rapazes, terão um pouco de tempo
para pôr a conversa em dia.
– Muito bem, bem pensado. – Lennox registra o sorriso envergonhado e depois a piscadela safada de Ginger.
Eles esperam uns poucos minutos depois da partida das mulheres, e depois saem e voltam para o Dodge. Seguindo para oeste pelo Broward Boulevard, passam por uma grande
delegacia de polícia antes de parar no clube masculino Torpedo, na 24ª Avenida. Param no estacionamento atrás do prédio de concreto de um andar, o qual, visto do
lado de fora, parece uma caixa de comprimidos. Na entrada da frente está anunciado “Dança de Fricção”.
– Este lugar é o máximo – Ginger informa.
Um enorme cara hispânico numa camiseta preta, marombado de tanto puxar ferro e consumir esteroides, está de pé na porta. Sua ameaçadora expressão de desprezo se
dissolve num largo sorriso quando vê Ginger.
– Oi, Buck, como vai indo, cara?
– Ótimo, Manny – Ginger diz, batendo nas costas grandes, largas do homem. – Este aqui é meu chapa Ray, da Escócia.
– Ei! Bacana! – Manny cantarola, enquanto a boca de Lennox se abre num sorriso forçado, e eles são introduzidos num espaço escuro, cavernoso. Lennox avalia o lugar
como sendo aquele do tipo frequentado por tiras, bandidos, rapazes adoidados e velhos tristonhos em todo o mundo ocidental. Aí ele fica imaginando exatamente em
que categoria ele próprio se enquadra. Um palco alongado, tipo passarela, se ramificando em diversos pódios com postes, avança sinuosamente na direção da Meca de
um bar grande, rebrilhante, montado numa ilha. Embora ainda seja cedo, o lugar está razoavelmente cheio e um número bastante grande de mesas alinhadas de cada lado
do palco já está ocupado. Lennox vê instantaneamente, pela estranheza das roupas deles, aquela sensação de estar sendo vestido por uma outra pessoa que todos os
homens em uniforme projetam, que os ocupantes de um determinado espaço são, todos eles, policiais de folga.
As garçonetes usam camisetas brancas, apertadas, que fazem um zumbido elétrico sob as luzes neon, e elas trabalham duro, mantendo o fluxo constante de drinques enquanto
as garotas dançam. A coisa é comportada de início, mas conforme o pessoal vai entornando a cerveja, elas se tornam mais atrevidas e explícitas. Ginger e Lennox pedem
costelas e batatas fritas.
– Diga a Dolores que comi um prato de salada de atum – diz ele, com convicção –, nada de maionese. Ela quer que eu fique controlando meu peso. É a final da dança
de salão da qual nós vamos participar semana que vem.
Lennox assente vagarosamente. Esfrega seu crânio raspado.
– O cara na porta chamou você de Buck. Por que isso?
– Buck Rogers; é assim que todos eles me chamam aqui – Ginger fala numa expressão orgulhosa, enfática, desafiadora.
Lennox pensa no assunto. Levanta o copo para brindar com o amigo.
– Este aqui é para o século XXV – ele brinda.
As cervejas descem redondo, bem como as doses de tequila. Lennox se levanta para ir ao banheiro. Com os drinques e seus antidepressivos, ele se sente um pouco perturbado.
Ele se equilibra com uma das mãos enquanto urina, um líquido pesado, espesso e vaporoso caindo na latrina.
A vida não é tão ruim. Nós pegamos o filho da mãe que atacou Britney. Ele já era.
– Já era, como o safado que você é. – Lennox cospe no espelho que cobre toda a parede, embutido na parede de azulejos. Ergue a mão direita como se fosse fazer um
juramento e cerra o punho dentro da atadura frouxa, passando por cima da dor que a bebida amorteceu.
Saindo de novo do banheiro, ele se dirige ao seu lugar enquanto a canção de Tina Turner “What Love Has To Do With It” explode nas caixas de som. Mas uma das dançarinas
intercepta sua caminhada, se esfregando nele, a pélvis se lançando na direção da virilha dele. O rosto da moça tem uma maquiagem berrante, quase como um palhaço
sob sua pintura de guerra, e camadas de base não conseguem esconder as brutais marcas de varíola sob a luz crua dos holofotes acima deles. Olhos alucinados e uma
boca contorcida, cruel, lança um desafio.
Lennox fica paralisado, o corpo todo empertigado, a não ser onde ela o quer. Essa é a dança de fricção. Ela não vai parar de girar o corpo até conseguir conquistá-lo.
Ele sente uma onda de raiva invadi-lo. Isso é para velhos e fracassados, para necessitados e retardados. Percebendo o desespero amargo nos olhos dela, Lennox vê
como ele é agora um desafio, e que ele será conquistado e cederá. Forçá-lo a tomar parte no circo e torná-lo tão desesperado e degradado pela encenação quanto ela;
é a única maneira de essa dançarina drogada manter seu cartaz. Ele entende isso já que participou de versões desse teatro muitas vezes, lá em Edimburgo, nas festas
de solteiro dos policiais. Percebe a tensão nos rostos dos homens. Sabe que ele os está prejudicando, se recusando a participar do jogo, sendo melhor do que os outros,
e humilhando aquela mulher, rejeitando a única coisa que ela tem para vender, sua sexualidade, ou sua versão caricata dessa sexualidade. Era menos uma questão de
autoestima do que um orgulho profissional; era assim que ela ganhava a vida.
Mas ele não pode fazer nada senão vencer aquele terrível impasse.
Por fim ela desiste, o rosto contorcido.
– Bichona – sussurra ela, desdenhosamente, no ouvido dele, e depois se vira com um sorriso alegre para ir se esfregar na próxima virilha suada. Os homens no bar
aplaudem em uníssono, num evidente alívio.
Ele se senta ao lado de Ginger, cuja cabeça pulsa numa luminosidade roxa, refletindo a luz do teto. Seu velho amigo olha para ele, primeiro de modo hostil e depois
numa admiração untuosa.
– Porra, Lennox, aquela dança me custou vinte pratas e você nem mesmo ficou de pau duro! Aquela garota, a Trudi, ela deu um jeito em você, hein? A fera foi domada!
Lennox se arrepia com a terminologia de Ginger.
– Desculpe ter feito você gastar a grana. – Depois ele pensa: é melhor deixar que ele acredite no que quiser. Mas agora seu próprio fluxo mental está divergindo
de novo, para longe da dançarina, de Trudi e Ginger. A bebida que fizera o crime se distanciar está fazendo com que o assassinato borbulhe de novo na sua cabeça,
como café sendo coado.
Britney Hamil. Agora a fera fora domada. Como é que o sr. Confeiteiro estará se virando na prisão? O que estará fazendo neste momento? Isolado de todos os outros
prisioneiros para sua própria segurança, até mesmo de outros pedófilos, será que sua arrogância teria se evaporado? Subitamente Lennox sente necessidade de saber.
– Você pensa de vez em quando nesses filhos da puta que nós pegamos na Divisão de Crimes Hediondos? – ele pergunta a Ginger. – Como é que eles podem viver com o
que fizeram?
– Eles vivem com o que fizeram porque eles são a escória. Eles não dão a mínima. Que se fodam, que apodreçam lá. – O rosto dele fica vermelho num rosnar, enquanto
ele faz sinal à garçonete para trazer mais cerveja.
Lennox tem a impressão de que essa reprimenda é tão dirigida a ele quanto aos criminosos dos quais Ginger se lembra. Eles bebem mais, mas ele percebe que as coisas
azedaram um pouco.
Quando Ginger fala é para pedir uma pausa nos procedimentos.
– Melhor não beber mais, eu já ultrapassei bastante o meu limite a essa altura – ele arqueja. Uma garota lambe ostensivamente os dedos que usou para abrir a si mesma,
enquanto rebola na passarela do palco à sua frente. – Vamos voltar para a minha casa e deixar o carro – diz, olhando para a garota e levantando o copo de modo apreciativo
–, mas só depois dessa belezinha de bunda grande acabar seu número. Por Deus, Ray, se eu fosse vinte anos mais moço...
– Você ainda assim seria bastante velho para ser o pai dela.
– Gostosinha atrevida.
A maneira com que Ginger dirige melhora depois de ele beber; ele toma mais cuidado e realmente observa a estrada, enquanto ela segue para a área junto à orla da
praia. A região parece meio abandonada no lusco-fusco turvo. Parece que muito do comércio local faliu ou então vai se segurando como pode. No quarteirão atrás da
Holiday Inn, jovens de férias, bêbados, além de operários em trânsito e desocupados que vivem por ali na praia sobrevivendo de esmolas e da despreocupação, enxameiam
nos bares e nas lanchonetes baratas. E por toda parte há gente velha, solitária e deprimida. Lennox comenta isso enquanto ele e Ginger entram no bar de um pátio
ao ar livre, bem longe da sujeira e sordidez do brilho estéril dos estabelecimentos de Miami Beach.
– Um bando de gente pobre se aposentou e veio para cá com um parceiro ou parceira, que depois bate as botas, e agora ele ou ela não tem dinheiro para se mudar para
outro lugar. Eu conheço um montão de velhotes nessa situação. – Ginger entorna um grande gole de cerveja e faz sinal ao garçom para trazer duas doses de tequila.
– O sonho da aposentadoria se transforma num pesadelo – devaneia ele. Dois homens entram, de mãos dadas, e se sentam num canto do bar. – Esse lugar se destina a
aposentados. Agora, dá uma olhada para isso. Ponto de encontro da viadagem.
Eles entornam mais uns drinques e andam um pouco ao longo da faixa de areia antes de voltarem para encontrar as esposas, presente e futura.
É evidente que Trudi e Dolores gostaram da sessão de compras da tarde.
– É a melhor hora para se fazer isso nesse calor – explica Dolores, enquanto Trudi mostra algumas compras a Lennox, de modo desafiador. – São coisas que eu preciso,
Ray. Eu sei que deveríamos estar economizando... mas eu nunca pergunto onde é que você gasta o seu dinheiro.
O ressentimento fervilha em Lennox. Como se eu me importasse onde gasta o dinheiro dela.
– Quem está perguntando? Eu não disse a porra de uma palavra.
– Eu conheço esse olhar, Raymond Lennox.
– Que olhar? – Lennox protesta através de seu nevoeiro de meio bêbado. – Você está levantando uma tempestade em copo d’água. Isso é ridículo – ele diz, apelando
para Ginger.
Mas é Dolores quem se intromete.
– Fazer compras é o que fazemos de melhor, filho. Vá se acostumando – ela repreende, jocosamente, mudando o olhar para Ginger –, certo, benzinho?
– É sim. – Ginger enrubesce com seu drinque. Lennox acha que pode ter sido por orgulho ou vergonha, ou talvez um pouquinho de cada coisa.
Então Ginger Rogers apresenta duas alternativas a seus convidados: ou Dolores pode levá-los de volta a Miami Beach, pois ele admite que bebeu um pouco mais da conta,
ou eles podem sair para jantar no restaurante favorito dele, e depois passar a noite no quarto de hóspedes.
– Nós podemos pegar um táxi – sugere Trudi.
– Nem pensar. Cinquenta paus? É um roubo! Eu ou Dolores levaremos vocês amanhã de manhã.
– Muito bem – Lennox concorda, dirigindo-se à varanda e olhando por cima do balaústre. O Holiday Inn não atrapalha totalmente a vista do mar. A escuridão está aumentando,
mas ainda há calor na atmosfera, a despeito de uma leve brisa causando frescor nos seus braços. Lá embaixo, o ritmo surdo da música vinda de uma discoteca. Ele pode
ver que Trudi não está feliz. Como ela mesma diria para si própria: ele conhece aquela cara.
Ginger sai para se juntar a ele, fechando a porta do pátio atrás dele. Ele tem duas latas de cerveja Miller na mão, dá uma para Lennox.
– Um paraíso, não é? – diz ele, observando a reação do amigo.
– Bacana – diz Lennox, e eles batem as latas de cerveja, à guisa de brinde. Ele sabe que ficaria maluco ali, mas cada um com sua mania.
– Então, por que esse bico todo, Raymond?
– O bico é por causa dela ali. – Lennox se vira e encara o outro, a mente enevoada e agressiva por causa da bebida. – Eu não dou a mínima para que porra ela compra.
E isso faz com que ela fique pior. O que eu deveria dizer é, “Que isso, meu bem, nós deveríamos estar economizando para o casamento”, para que então ela pudesse
rebater, “Então não gaste todo o seu dinheiro na bebida”. Ah, eu não dei a ela esse prazer, então ela ficou emputecida e discutiu de qualquer maneira: com ela mesma.
Só que agora é pior porque supostamente eu não dou a mínima para essa porra de casamento.
Os olhos de Ginger assumem um brilho maníaco enquanto dançam na sua cabeça. Lennox tem a impressão de que ele está observando algo se movendo atrás dele.
– Essa é a primeira noite de vocês aqui?
– É. – Ele dá uma olhada rápida em torno, mas não há nada.
– E você está de férias?
– Estou.
– E você está de licença médica por colapso nervoso devido ao trabalho?
Lennox pode ver aonde aquilo está levando.
– Estou.
– E você veio visitar o velho amigo que você não vê há cinco anos?
– É – replica Lennox, relutantemente –, mas é o mesmo. Eu...
Ginger o interrompe.
– E ela vem chateando você com os planos do casamento?
– Bem, é, acho que sim...
– Diga para ela aquelas três palavras mágicas que toda mulher precisa ouvir de vez em quando. – Ele dá um sorriso desafiador. – Vá se foder!
A porta desliza, se abrindo, e Braveheart avança para a varanda, latindo de maneira brincalhona, em círculos, enquanto Dolores grita:
– Buck! Tira sua bunda escocesa daí. Você também, Ray! Bill e Jessica chegaram!
Bill Riordan é aposentado, da força policial da cidade de Nova York. Magro, mas parece talhado em granito duro, todo seu corpo parecendo um grande osso. O tipo de
homem que a idade parece cinzelar, em vez de inchar. Sua esposa, Jessica, é uma mulher esbelta, de olhos sinuosos e um sorriso preguiçoso. O tempo deu a ela aquele
leve saco de gordura debaixo do queixo, mas pouco mais em outros lugares. Eles participam do concurso de dança de salão, e Lennox já está descartando as chances
de Ginger. Eles vão para a cozinha, onde Ginger conduz Lennox para o equipamento de preparar cachorro-quente.
– Ponha os pães e as salsichas nas ranhuras verticais, e eles saltarão fora quando prontos – anuncia ele, com orgulho. – Dolores não gosta que eu fique entusiasmado
demais com isso – sussurra, olhando para Bill, que conversa com as mulheres –, ela gosta que eu mantenha meu peso baixo, por causa da final do concurso em Palm Beach,
semana que vem.
Seguem-se mais drinques, enquanto o crepúsculo se dissolve em torno deles. Eles decidem não ir comer fora e telefonam pedindo pizzas. O grupo vai de volta para a
varanda e as cadeiras de plástico. A voz de Ginger se eleva, atingindo um tom rascante, sibilante. Lennox se lembra vagamente das doses já tomadas e de uma atitude
antipática que seu amigo pode assumir quando fica emputecido.
– Seus irlandeses de merda – diz Ginger para Riordan –, tudo que vocês fornecem para o Novo Mundo são números, a mão de obra descartável. Porra de formigas trabalhadoras.
Os escoceses, nós fornecemos o know-how. – Ele bate no peito. – Não é verdade, Ray?
Lennox dá um sorriso forçado.
– Essa é uma perspectiva enevoada de um escocês, Buck – Riordan fala, alegremente.
– E quanto a Yeats, Joyce, Beckett, Wilde? – Trudi intervém. – Os irlandeses já contribuíram muito para a cultura ocidental.
A essa altura Ginger já está bastante bêbado para zombar dela abertamente.
– Não dariam autógrafo nem em cheque de banco, se comparados ao bardo. Robert Burns, não é, Ray?
– Vou me manter fora dessa discussão.
– Para com isso – grita Dolores, inclinando-se para a frente na cadeira e dando um soquinho no peito de Ginger. – Eu sou irlandesa. E dinamarquesa. E escocesa. Meu
avô paterno veio de Kilmarnock.
Ela pronuncia Kil-mir-nok.
– Uma sábia decisão ao entrar no barco – caçoa Ginger, mais brando com a intervenção dela.
Lennox se volta para Riordan.
– As rondas em Nova York devem ser uma parada, Bill.
Riordan faz um gesto de cauteloso assentimento.
– A cidade está muito diferente agora, Ray. Mas eu adorava a época em que estive na polícia. Não teria mudado em nada.
– Deve ser perigoso, comparado com a Grã-Bretanha, com todas essas armas – diz Trudi estremecendo, olhando rapidamente para Lennox.
Dessa vez é Riordan que gesticula negativamente.
– Eu certamente não gostaria de trabalhar na Grã-Bretanha sem ter uma pistola no meu coldre.
Trudi bate os dentes de leve. Ela costuma fazer isso quando está nervosa ou excitada, Lennox pensa.
– Mas não é perigoso? Não torna você muito mais propenso a usar uma arma? Você deve ter atirado em algumas pessoas, não é?
Sorrindo amistosamente para ela Riordan descansa o copo.
– Meu bem, em todos os anos que trabalhei na polícia eu não atirei em ninguém. Eu trabalhei em algumas das delegacias mais perigosas do Bronx, Queens. Pode citar
qualquer uma. Pessoalmente eu nunca conheci um policial de Nova York que tenha atirado em alguém. Puxei minha arma duas vezes em trinta e cinco anos.
Lennox observa que ela quase que ronrona como um gato diante dessas frases tão gentis que poderiam ter sido ditas por um tio. Ele vê a lista de convidados aumentada
em duas pessoas.
– Uh, uh, conversa de tiras – diz Dolores, irritada –, hora de cairmos fora, meninas. – Ela se levanta, jogando a cadeira de plástico para trás com força, deslizando
nos azulejos da varanda. Jessica a acompanha. Trudi hesita por um momento, preferindo a companhia de um jovem e de dois velhos à de duas velhas, mas percebe que
o protocolo sexista da Escócia é que está mandando na agenda da noite, e as acompanha pela sala de estar.
Ginger vira o pescoço para observar a porta corrediça deslizar pelos trilhos, antes de fechar com um pequeno ruído.
– É claro que está tudo fodido agora – resmunga ele, enquanto pega umas doses de uma garrafa de tequila que abriu –, o trabalho. É a mesma coisa em todo lugar. Os
jovens ambiciosos entram e dizem a nós, os velhos profissionais, como fazer a coisa, não é, Bill?
– Acho que sim. – Riordan sorri desconsoladamente. Como Lennox, ele parece interessado em evitar a discussão que o anfitrião está louco para ver acontecer.
– Ray? – desafia Ginger, os olhos se estreitando para seu antigo colega.
Lennox se sente entornando um bom gole da cerveja. Aquela promoção aconteceu há oito anos. Sua carreira ficou estagnada desde então, mas uns filhos da puta não deixaram
ele sair. Ele dá de ombros de novo de uma maneira a não se comprometer.
– Eu penso que é assim que o mundo é, Buck. – Bill Riordan dá uma risadinha.
– É, mas não devia ser. – Ginger fecha um dos olhos, focando o outro de maneira acusatória em cima de Lennox. – Poliça, é como eles chamam. Aquele emprego que você
arranjou, deveria ter sido dado a alguém como o Robbo. Sim, aquilo é que era um policial!
Lennox aspira fundo, ficando agradavelmente surpreendido quando seu nariz espouca.
– Robbo era um cara exaurido, maluco – diz ele com veemência. E ele quer acrescentar, e agora eu sou exatamente igual a ele. Exatamente como um bando de vocês.
– Uma merda de um bom policial – resmunga Ginger, parecendo ter acabado seu gás. Depois pergunta:
– Como está Dougie Gillman? Gente boa ele, hein, Ray... – Não termina a frase.
– Está na mesma – diz Lennox, os lábios apertados.
– Claro... ah, eu esqueci que você e Gilly tiveram aquele pequeno desentendimento. Já fizeram as pazes?
– Não.
Cai um silêncio no ar. Em vez de deixar a coisa se prolongar, Lennox se levanta e passa para a sala de estar onde Jessica brinca com o cachorro enquanto Dolores
ensina alguns passos de dança a Trudi.
– Vou para meu berço – anuncia ele. – O fuso horário está batendo.
– Ah... fracote – implica Trudi, agora já absorvida na bebida e na dança.
No banheiro de sua suíte, Lennox engole as duas últimas pílulas do antidepressivo e se prepara para mais uma noite, esperando ter bebido o bastante para obliterar
os horrores. Deslizando para a cama, ele ouve as conversas e risadas vindas da sala da frente se dissolver na loucura dentro de sua cabeça. Embora exausto, um cálculo
duro, regressivo, parece ordenar que o sono lhe será negado de novo. Em vez disso, ele pensa.
O que será que Toal disse na entrevista com Angela Hamil?
– Um filho da puta promíscuo, arrisca ele, pondo o cachimbo de volta na boca e chupando a madeira. Desde a proibição, ele não podia mais fumar na própria sala, mas
trazia o cachimbo como uma muleta, mascando a haste quando estava nervoso. Depois ele acrescentou:
– Eu imagino que foi algum vagabundo que a espreitava. Você sabe o tipo de lixo humano que gente do tipo daquela mulher é propensa a atrair.
Lennox pisca, agarrando o edredom. Imagens de Angela, de seu cabelo cor de palha e o rosto abatido se formam na claridade em torno dele, não como um sonho, porque
ele está dolorosamente consciente de que está na sua própria cama.
Então ele vê o sr. Confeiteiro: seus olhos frios, de peixe, seus lábios monstruosos, parecendo de borracha, escandalosos, e Britney, desamparada, a seus pés.
E Ray Lennox pensa naquela varanda lá fora, distante da reunião alegre. Basta um passo além do balaústre e acabou. Estar longe de tudo aquilo: do Pedô, de Britney.
Quão difícil poderia ser?
4
Edimburgo (1)
Foi na manhã seguinte ao desaparecimento. Você interrompera uma longa sessão de seleção de dados, tirando umas poucas horas de sono no seu apartamento de Leith.
Acordando de repente desorientado na escuridão, a lista de chamadas não atendidas dizendo que Keith Goodwin telefonara. Você se esquecera da reunião de ontem à noite
nos Narcóticos Anônimos. Não eram ainda 6 horas da manhã quando você estava de volta à sede do laboratório TI da Polícia, mergulhando de novo no exame das fitas
das câmeras de segurança.
Não que houvesse muita coisa a ver ali. A espantosa rede de câmeras que registravam todos os movimentos dos britânicos, numa média entre dez e quarenta vezes por
dia, dependendo de sua fonte, ficava mais tênue quando você se afastava do centro da cidade e tornava-se extremamente escassa quando chegava à zona de residência
de Britney. Havia um pouco de filmagem daquela manhã de ontem: uma tomada granulada num filme de segurança que durava menos de um minuto, quando a garota saía do
seu edifício em direção à escola, depois uns poucos metros adiante, cortesia de uma câmera de fiscalização de tráfego, quando ela seguia vagarosamente na direção
da rotunda. Você acionou todos os programas e procedimentos que poderiam melhorar as imagens ruins. Você as esticou, passou-as mais lentamente, deu close e escaneou
as margens e todos os cantos mais remotos onde alguém poderia estar espreitando. Da nuca de Britney e da lateral do rosto dela você tentara traçar uma linha de visão
para ver o mundo através dos olhos dela. Como um garimpeiro atacado, você vasculhou a enxurrada de dados, esperando encontrar um pixel de ouro que pudesse fornecer
uma pista da identidade do sequestrador. Ninguém da Polícia de Loth e Fronteiras sabia mais sobre criminosos sexuais. E ninguém estava mais inclinado a lançar a
rede mais longe.
Entre as repetidas cenas em preto e branco da pensativa garota, o nome de Robert Ellis continuava ressonando no seu crânio. Um homem que estava na prisão havia três
anos pelo assassinato de duas jovens, uma em Welwyn Garden City, Hertfordshire, a outra em Manchester. O caso de Britney parecia ter muitas das características dos
assassinatos de Nula Andrews e Stacey Earnshaw. Como era previsível, Ellis protestara sua inocência naqueles crimes hediondos.
O outro nome que veio à sua memória foi o de George Marsden, um policial que fizera parte da equipe de Hertfordshire e que pusera Robert Ellis atrás das grades pelo
sequestro e o assassinato de Nula, de doze anos de idade. O promotor decidira que Ellis costumava perambular pelo parque local onde a garota fora vista pela última
vez, numa trilha arborizada que ela estava atravessando a caminho da casa da tia.
Apenas George acreditava que eles haviam pegado o homem errado. Havia semelhanças com o caso de Stacey Earnshaw, cujo corpo fora encontrado atirado na mata, no distrito
de Lake, dois anos antes. Quando a polícia de Hertfordshire prendeu Ellis, eles descobriram que ele tinha uma namorada em Preston, a quem visitara regularmente pela
época do assassinato de Stacey. A moça, Maria Rossiter, revelara alguns detalhes bem íntimos do relacionamento dos dois para um tabloide, detalhes esses que foram
reformulados e apimentados com maledicência. Uma fita perturbadora, que Ellis involuntariamente gravara, ajudou a estabelecer sua culpa. George Marsden estava certo
de que a pessoa que sequestrara Nula Andrews era a mesma que pegara Stacey Earnshaw em Manchester. Ele era o único absolutamente convencido de que não fora Ellis.
Em Welwyn Garden City, havia o relato de uma van branca deixando a rua transversal adjacente à área arborizada do parque no momento do desaparecimento de Nula. Agora
Ellis estava dentro e o Homem da Van Branca estava de volta.
Você sentira um peso perturbador se apossar dos seus membros ao erguer os olhos para o relógio na parede por volta de 9 horas da manhã. Fazia agora mais de vinte
e quatro horas que Britney desaparecera. Você decidiu dar um descanso a seus olhos que ardiam, ir até a delicatéssen Stockbridge e tomar outro café, além de telefonar
para George Marsden. Vocês tinham uma relação amistosa, tendo tomado um porre juntos depois de um curso de treinamento em testes com DNA em Harrogate, vários anos
atrás.
– Uma van branca, não é? – George indagou, cautelosamente, depois que você explicou o crime em largas pinceladas. Recusando-se a confirmar ou negar esse detalhe,
enquanto um sorriso surgia nas suas feições, você esperava que seu silêncio não falasse alto demais.
Quando voltou ao exame das fitas, você deu a impressão de que obtivera uma imediata recompensa com o intervalo do trabalho tirado. Mais uma vez Britney descia a
escadinha de sua casa, mas dessa vez você percebeu que ela parecia dar uma meia-volta; um reconhecimento furtivo de que alguém se aproximava dela pela direita. Um
ajuste da imagem confirmou essa impressão. A pessoa estava fora da imagem captada pela câmera, mas parecia estar se dirigindo para os degraus. Você examinou a lista
de nomes dos vizinhos. Depois você carregou no computador o registro dos criminosos sexuais e a imagem de Tommy Loughran saltou à vista.
Quando você foi visitar a casa da família Hamil com Notman, descobriu-se que Loughran era o homem imediatamente fora do alcance da câmera. Ele estava levando seu
cachorro para passear ontem de manhã. E ele era o escolhido das pessoas, com votos sob a forma de tijolos lançados contra suas vidraças e uma campanha de pichações
no seu muro:
MORTE AOS TARADOS
O guarda de segurança, um velho exibicionista sexual, era um ex-alcoólatra que virara um cristão abstêmio. Ele tinha o ar de um pecador que se arrependera com entusiasmo,
mas que ainda esperava mais retribuição antes que sua ficha pudesse ser considerada limpa. A autoflagelação masoquista de Loughran era de tal ordem que você achou
que ele poderia ter sido facilmente induzido a admitir que cometera o crime. O único problema era que, depois de levar o cão de novo para casa e ver Britney partir
para a escola, ele embarcou num ônibus apinhado de gente para ir ao cinema, onde estudantes locais haviam fundado um clube de cinema matutino. A transação feita
no seu cartão do Banco da Escócia e os registros do cinema indicavam que Loughran estava assistindo ao documentário de Werner Herzog, O homem urso. Você se lembrou
como o filme – sobre um ambientalista radical, comido pela criatura que ele tentava proteger – fora muito comentado na cantina da polícia. Você se lembrou de Herzog
repudiando as alegações do ambientalista quanto à superioridade espiritual do urso. Defrontado com a fera, o cineasta alemão viu apenas “a cruel indiferença da natureza”.
– Na sua opinião, qual era a mensagem do filme? – você perguntara ao preocupado Loughran.
Billy Lumsden, um faxineiro da escola de Britney, que conversava regularmente com a garota, embora ele também conversasse com a maioria das crianças, chegou tarde
para o trabalho no dia do desaparecimento, e foi levado para ajudar no inquérito. Você soube que seu casamento se desfez no ano anterior, quando ele abandonou a
esposa e seus três filhos. Lumsden já fora suspenso por ficar embriagado quando de serviço, e ele confessou para você seus sentimentos de solidão e desespero. A
compaixão que você experimentou pelo homem lhe chocou pela intensidade. E se Lumsden fosse o animal? Mas ele parecia tão alquebrado, tão tranquilamente desesperado.
Depois foi verificado que a mãe dele sofrera uma forte queda na casa dela. Vizinhos e um lojista local confirmaram a presença do faxineiro a seis quilômetros e meio
de distância na hora do desaparecimento de Britney.
O caso continuou a porejar debaixo de sua pele. O relógio continuava sua marcha. O desaparecimento de uma criança já causava bastante desgaste. Mas o caso também
mostrava a você como os vulneráveis estavam se alinhando para ser devorados pelo sistema judiciário criminal. O potencial para o fracasso era tão forte por toda
parte. Ele semeava um relativismo moral doentio na sua psiquê, espalhando uma erupção de dúvida e incerteza. Você se blindava com o pensamento de que alguém pegara
Britney. Ela não poderia ter simplesmente se vaporizado no ar enevoado naqueles três minutos em que dobrou a esquina entrando na rua Carr, ficando fora das vistas
de Stella e Andrea. Alguém fora malvado. E você jurava para si mesmo que ia pegá-los.
O ponto de partida fora checar com os homens que estiveram em contato com a garota, na escola, em casa e no trabalho, e vagarosamente ir eliminando-os da investigação.
O pai biológico de Britney estava fora da lista; há muito afastado da família e estava numa plataforma de petróleo do mar do Norte. Um homem permanecia desaparecido,
o que era impressionante, pois ele desaparecera na mesma hora que a garota. Eles não conseguiam encontrar seu avô, Ronnie Hamil, no seu apartamento em Dalry. Vizinhos
informaram que aquilo não era absolutamente uma novidade; Ronnie às vezes podia desaparecer por dias quando chegava seu cheque de aposentadoria. Fora Gillman quem
primeiro se dera conta da conexão do avô.
– Esse safado está aprontando alguma – disse ele, debochando, ao ver uma fotografia de Ronnie com Angela e as garotas. – O velho pervertido parece aquele cantor
Gary Glitter.
Você põe todo mundo da equipe numa busca em tempo integral por Ronnie Hamil. Todos os carros do esquadrão foram instruídos para ficarem de alerta em relação ao velho.
Seu apartamento ficou sendo vigiado 24 horas por dia. A equipe gastou horas visitando os lugares que ele frequentava: as casas de apostas, locais não licenciados
e bares das ruas Dalry e Georgie. Mas você não quis se juntar à caçada. Por mais que tentasse, você não podia parar de perseguir uma outra direção.
– Eu vou sair para dar uma olhada por aí – informou você a Toal.
Toal lhe lançara um olhar de limão azedo, sua marca registrada. Ele sabia que você tinha alguma pista. De alguma forma, você suspeitava que esse não seria um caso
típico de agressão sexual a uma criança; um fervilhar nas suas entranhas lhe dizia que a pista não levaria a um pedófilo britânico tradicional. Você estudara as
fotos dos rostos de cada pedófilo no registro: os padres, professores e chefes de escoteiros, os tios pervertidos, padrastos oportunistas e pais biólogicos tarados,
com suas racionalizações arrogantes e deprimentes. Ninguém preenchia os requisitos. Parecia um crime ao estilo americano, ou melhor, o tipo de crime de uma história
de ficção americana, pois você supunha que os verdadeiros crimes americanos fossem como os ingleses. Mas era culturalmente americano: um vagabundo solitário, um
predador, não dirigindo um veículo por longas e isoladas rodovias expressas entre os estados num vasto continente, mas ciscando por ali numa van branca através da
densamente povoada e barulhenta Inglaterra.
O que você fez foi dirigir até o aeroporto, embarcando sorrateiramente num voo de hora de almoço para Gatwick, e depois pulando para um trem até Eastbourne, onde
George Marsden morava agora. Ele pedira demissão depois do caso de Nula Andrews e atualmente instalava sistemas de segurança e assessorava aposentados nervosos.
Você nunca pensara em George como um rebelde. Ele fora militar, nos Fuzileiros Reais, lutara na primeira Guerra do Golfo. Um divorciado de costado duro com uma estrutura
de jogador de rúgbi, uma espessa cabeleira grisalha desgrenhada e um sorriso esportivo que sugeria que ele não passava muitas noites sozinho. Com suas calças bem
passadas e camisas sempre frescas da lavanderia, tudo nele sugeria uma firme aderência à rotina. Exceto que, quando vira as evidências e não achara sentido, deixou
de acreditar.
Tomando expressos em um café, você e George assistiram a seus possíveis clientes perambulando pela orla marítima, enquanto ele explicava que Ellis fora o “bad boy”
da cidade, lá em Welwyn. Um jovem carismático e furtivo, ele não era um caso difícil, mas, de alguma forma, convencera gente mais durona a ajudar nos seus lances.
Ellis cometera diversas transgressões, principalmente latrocínio, mas também houvera uma acusação de estupro, arquivado por falta de provas. Embora não houvesse
nada que o ligasse a menores de idade, ele era fácil de ser detestado; o tipo de escória humana que toda comunidade consegue produzir. Ninguém, nem a polícia nem
o público, lamentaria se ele ficasse preso bastante tempo. Nula Andrews era o oposto: pequena, frágil, rosto de elfo, uma inocente parecendo muito mais moça do que
seus doze anos. Você se lembrou da foto que foi posta a circular, e aqueles olhos brilhantes de corça que verrumaram a psiquê do público inglês. Nula estava a caminho
para ajudar sua tia num trabalho de decoração. Ela foi fácil de ser associada ao Chapeuzinho Vermelho e Ellis ao Lobo Mau. Assim Robert Ellis tornou-se o homem mais
odiado da Inglaterra: um Huntley, um Brady. E, de uma maneira doentia, ele acabou fazendo uma espécie de confissão voluntária.
Mas fosse o que fosse, Ellis não era culpado daquele crime. George Marsden não se conformou com a coisa e a honra o obrigou a pedir demissão, terminando sua carreira
na polícia de maneira amarga. Ele tinha uma noção problemática do certo e do errado. Se era religião, não era essa coisa de apólice de seguro que a maioria das pessoas
tem comparecendo à igreja aos domingos. Então George falou sobre o caso de Nula Andrews com você: as semelhanças e diferenças do caso de Britney. Depois vocês haviam
discutido o caso de Stacey Earnshaw, sequestrada perto do shopping center Salford.
– Não foi Ellis – ele disse, de modo enfático.
Toda cidade produz sua cota de Ellises. Bob Toal estava ansioso para ver se alguém em Edimburgo poderia estar ligado de alguma maneira a Britney. Ele próprio vinha
tentando se aposentar há anos, e agora, com a compulsória se aproximando, ele queria fazer isso saindo por cima. Uma parte da imprensa, que originalmente crucificara
Ellis, agora, à luz do caso Britney, começara a insinuar que houvera um grande engano judiciário. Nesse ínterim, o público estava fazendo o que o público fará nesses
casos: exigir um corpo.
Você não contara a absolutamente ninguém sobre a visita a Eastbourne e temia pelo telefonema que poderia forçá-lo a dizer a verdade, mas não recebeu nada a não ser
mensagens de rotina informando-lhe que o paradeiro do vovô Ronnie ainda não fora descoberto. A culpa começava a pesar forte; você sentia que deveria ter batido nas
portas e ficado sentado, com câimbras, em vans, vigiando com os outros. Você adormecera no avião de volta a Edimburgo, não acordando senão quando pegou o jornal
local num estande do aeroporto e viu o rosto de Britney, com um sorriso vibrante, insolente, olhando para você. Amanhã a notícia correria o país inteiro. Você pegou
um táxi de volta para seu apartamento em Leith, no novo conjunto habitacional junto às docas. Estava planejando falar com Toal sobre o caso de Ellis. Aí você percebeu
que, no cansaço, você esquecera de desligar o celular depois de descer do avião. Havia uma mensagem de Trudi e duas do seu chefe.
– Acho que pegamos nosso homem, Ray, ele confessou na última mensagem.
Você tinha certeza de que sabia quem era, mas quando chegou à chefatura de polícia você ficou surpreendido de saber que Ronnie Hamil ainda estava desaparecido e
um jovem chamado Gary Forbes estava sob custódia. Forbes confessara que ele pegara Britney, matando-a e enterrando o corpo na mata, em Pertshire. Aí você olhou para
Bob Toal, agora totalmente desanimado; entre enviar aquela mensagem e você chegar até lá, a confiança nessa prisão se evaporara completamente. Não foi surpresa:
Forbes era um idiota, desesperado em atrair a atenção. Um jovem com ar de retardado, introvertido, obcecado por assassinatos e assassinos em série, mantendo cadernos
de recortes documentando as façanhas deles. Você observara aquele adolescente triste, socialmente marginalizado, se vangloriar com seu falso status de bandido. Ele
já estava claramente fantasiando sobre as mulheres loucas que lhe escreveriam e o visitariam na prisão. O pior de tudo, entretanto, era o modo com que a equipe de
investigação tentara desesperadamente encaixá-lo no modelo. Colhendo suas historietas patéticas; o vizinho que alegou que ele torturara um passarinho, o jovem primo
que recebera uma queimadura feia nos pulsos.
– É isso o melhor que podemos fazer? – perguntou você, olhando para os rostos na sala: Harrower, Notman, Gillman, Drummond, McCaig.
Enquanto isso, Toal permanecia sentado num silêncio tenebroso.
– Nós podemos passar um pente fino na Escócia com essa investigação imbecil, e estaremos simplesmente desperdiçando mão de obra, Bob – disse você. – Vamos fazer
com que ele mostre a uns tiras onde supostamente escondeu o corpo, e depois vamos indiciá-lo por estar desperdiçando o tempo da polícia.
– É – interrompeu Toal, contrariado, quase sem se mexer. – Faça isso – ordenou ele a Gillman, assentindo secamente. Os outros aproveitaram a dica para ir embora.
Toal fechou a porta atrás deles, a expressão do rosto e a linguagem do corpo avisando a você que se preparasse. – Onde diabos você esteve? Por que deixou o telefone
desligado?
– Você não vai gostar do que eu vou dizer.
Toal não moveu um músculo.
– Eu tomei um avião até Gatwick para me encontrar com George Marsden. Ele foi o investigador no caso de Nula And...
– Eu sei quem ele é, porra, Ray – cuspiu Toal. – Ele significa problema! – Aí o seu chefe balançou a cabeça, não acreditando. – Você se manda para o Sul para encontrar
um ex-tira amargurado, um civil, enquanto sua equipe está procurando uma garota desaparecida e um suspeito de primeira ordem? Estou desapontado com o seu senso de
avaliação, Ray. Muito, muito desapontado.
Você gostaria de discutir Welwyn e Manchester, mas não era a hora. Qualquer um que tivesse feito um estudo sério desse último caso teria visto que não havia meio
de Robert Ellis ter sequestrado Stacey Earnshaw. E as provas ligando-o a Nula Andrews eram altamente controversas. Mas isso significava criticar policiais de nível
superior e também juízes. Era uma guerra que você sentia que nem mesmo poderia começar àquela altura, muito menos com esperança de vencer.
Toal estava incrédulo.
– Você sabe que Ronnie Hamil ainda está desaparecido?
– Estamos fazendo todo o possível para achar o sujeito – você disse, desgastado.
– Não. Sua equipe está fazendo tudo que pode para encontrar o sujeito. – A voz de Toal estava ficando aguda e excitada. – Você não vai solucionar esse caso perambulando
em Welwyn Garden City ou Manchester. A chave é a família, lembre do que eu estou dizendo! Encontre Ronnie Hamil, Ray!
Você assentiu humildemente para seu chefe e ficou na expectativa de uma outra longa noite.
DIA DOIS
5
Duas damas
Na hora do almoço o tráfego é leve na via expressa, enquanto Lennox senta ao lado de Ginger, que tem estado macambúzio e silencioso, o que não é sua característica.
“Isso cai bem para Lennox; ele se sente bem com outra pessoa se sentindo mal.” Ele está exausto, mas ficou contente quando a aurora encheu o quarto, liberando-o
de seu tormento suarento. Lembra-se vagamente de um dos últimos de seus tortuosos sonhos da véspera. Estava na varanda de Ginger. Dentro do apartamento, através
do vidro, o sorridente sr. Confeiteiro com a aterrorizada Britney, que então se transformara numa amedrontada Trudi. A própria mãe de Lennox, Avril, estava sentada
numa cadeira, assistindo, como que quase encorajando o Pedô. Lennox forçara a porta, mas ela não abrira. Ele socou a porta até ambas as mãos sangrarem. Quando ele
olhou para trás de si mesmo não havia um balaústre na varanda. E a área da varanda encolhera até se transformar numa pequena laje.
Uma buzina estrondeia, arrancando-o de seus pensamentos.
– Seu débil mental! – Rogers ruge, enquanto corre veloz em frente a um enorme caminhão que ofusca Lennox com uma magnífica explosão de cromados na luz solar refletida.
Ele se volta para Trudi, no banco traseiro. – Eu fiz alguma besteira ontem à noite?
– Não, absolutamente não – diz ela, um pouco enfática demais. – Vocês foram excelentes anfitriões e foi uma ótima noite. Eu estou apenas sofrendo um pouquinho agora,
com o fuso horário e tudo o mais.
No pátio dos fundos do hotel – uma pequena floresta de ciprestes, carvalhos, pinheiros e as ubíquas palmeiras, destinadas a permitir tresnoitados a se esgueirar
discretamente – eles se despedem. Lennox e Trudi estão obviamente arrasados quando o concierge lhes dispensa um obsequioso e conivente sorriso de isto é South Beach.
– Eu preciso deitar – geme Trudi, metendo o cartão-chave de plástico na fechadura, felicíssima de ver que a luz verde aparece imediatamente.
Ela está com uma bruta ressaca, pensa Lennox, enquanto se dirige para o banheiro. O período de sono que ele tirou no apartamento de Ginger praticamente não existiu,
e agora ele não tem mais antidepressivos. Ele não pode contar isso a Trudi. Alguma coisa vai acontecer. Ele pode sentir isso enquanto está sentado no vaso. Mas não
é nada com seus intestinos. Nada acontecerá com seus intestinos.
Quando ele volta para o quarto, Trudi está deitada na cama. O braço dela está atravessado sobre o rosto, protegendo os olhos da luz solar. Ela está usando apenas
um fio dental azul-celeste. A roupa contrasta muito bem com sua pele bronzeada pelo sol. Por que ela não se meteu debaixo das cobertas? A luz banha seu corpo. Ele
pode ver como ela é enxuta. Academia e dieta. Agora ele sente alguma coisa nas entranhas. Ele começa a salivar.
Ele sobe na cama e agarra o seio dela; um ataque desajeitado e de adolescente que o surpreende tanto quanto a ela. Trudi afasta o corpo, se encolhendo.
– Os bicos estão ardendo – resmunga, em protesto. – É a menstruação que está chegando.
Lennox sente o corpo relaxar, aliviado. Foi evitado o sexo de novo. Ele não consegue acreditar; na verdade está até feliz. Está fazendo tudo que pode para evitar
transar com ela. Geralmente isso é tudo que ele quer. Há quanto tempo acontece? Um suor frio surge de repente na sua testa, nas costas. Ele sabe que, se não transar
logo, o relacionamento deles vai terminar.
Ele se mete debaixo do edredom. Ela vira para o outro lado e Lennox se enrosca nela. Envolve-a com os braços. Ela costumava gostar disso. Fazia com que se sentisse
segura e amada, ela dizia. Logo ela começa a se contorcer e suar, afastando-o de si.
– Não me toque, Ray. Estou com calor demais.
Agora ela está se sentindo acuada por ele. Confinada. Ele rola o corpo e fica esticado. Ela logo adormece. Lennox fica ali acordado, tremendo no seu inferno particular.
Lembra-se daquele garoto no bar Jeanie Deans, na zona sul de Edimburgo. Apenas um outro babaca idiota contando piadas doentias para seus parceiros: ainda jovem demais
para ter aprendido algo sobre mágoa, perda e gosto. Um jogo de sinuca no bar. Esqueceu onde ele estava.
Um garoto chamado Martin McFarlane morrera recentemente depois de um transplante de medula óssea. Ele era um garotinho corajoso, rosto delicado, e sua triste história
fora amplamente divulgada pela mídia local. A comunidade se mobilizou, realizando atividades em proveito da coleta de fundos para operações a fim de salvar vidas
em clínicas americanas e holandesas. Mas a coisa não funcionou: Martin sucumbira à doença. O jovem no bar perguntou em voz alta a um amigo:
– Qual é a diferença entre Martin McFarlane e Britney Hamil? – Quando o amigo balançou a cabeça, o jovem respondeu enfaticamente: – Martin McFarlane morreu virgem!
O extremo mau gosto e o aspecto contemporâneo local fizeram com que a maioria dos amigos virasse o rosto, enojados, ou estremecessem. Lennox, que estava sentado
no canto com alguns rapazes da Divisão de Crimes Hediondos lotados na delegacia de South Side, levantou-se e atravessou o recinto, indo até o jovem. Este viu que
havia se excedido e imediatamente gaguejou uma desculpa.
Eles sabiam que Ray Lennox estava mal quando ele não tentou agredir o piadista ou nem mesmo atacá-lo verbalmente. Quando tentou falar, Lennox começou a sufocar.
– Eu fiz o que foi possível... – implorou ele ao aterrorizado gracejador do bar – eu fiz o que foi possível para que aquela garotinha...
Foi só quando ele sentiu alguém puxá-lo pelo ombro, quando ouviu a repetição de seu nome e focalizou uma rachadura na madeira do soalho, e mediu a proximidade desta,
que ele percebeu que havia caído de joelhos. Seus amigos o levantaram do chão do bar. Um deles levou-o para o apartamento de Trudi. Ela chamou um médico e o pessoal
do departamento de bem-estar da polícia.
Agora ele estava deitado na cama, naquele hotel-boutique em Miami Beach, pensando em Britney. Tentando não pensar no momento em que a virgindade fora tirada da garota.
Obrigado a fazer isso, como que virando as costas para a magnitude do terror dela, era, em si mesmo, uma forma de desrespeito e covardia.
Talvez tenha sido essa a loucura... talvez tenha sido esse o problema, envolver-se demais dessa maneira...
Ele treme no seu verdadeiro âmago. O tremor só para quando ele tenta, em vez disso, pensar na mãe da garota. Ele pode ver Angela Hamil, cigarro na mão. O começo
da investigação; sua filha desaparecida. A vontade incontrolável de sacudi-la com violência e dizer: Britney sumiu. E você fica ali sentada fumando cigarros. Isso
mesmo. Você ficou sentada lá e fumou cigarros, e deixa para nós a tarefa de encontrá-la.
O suor brota em seu corpo, encharcando a cama. O coração bate firme no peito, como uma série de golpes curtos num saco de areia no ginásio de treinamento de boxeadores.
Sua garganta está contraída com a tensão, e ele tenta encher os pulmões com o ar estéril do quarto. Seu corpo se revolta contra ele e ele pode ouvir Trudi roncando;
roncos altos, truculentos que poderiam estar vindo de um operário bêbado. Os demônios do sonho estão se formando enquanto os olhos se fecham, puxando sua alma exausta
para o reino deles. Ele não quer ir para lá, mas sua mente fatigada está se rendendo.
A tarde já vai no meio quando eles acordam. Ambos estão esfomeados. Lennox sente seu cérebro se expandir e contrair no crânio, esgarçando as bordas exteriores contra
o osso áspero, inflexível.
Eles se aprontam para sair, para o calor. Lennox usa sua camiseta do álbum End of the Century, dos Ramones. Ele a preferira em lugar da camisa de futebol do Hearts;
o material é grosso demais para aquele calor. A melhor aposta é o algodão. Há também a camisa marrom e branca com BELIEVE. Mas ele decide que não vai querer ficar
explicando nada a ninguém, conversar com escoceses no exterior e mentir sobre seu trabalho, como todos os tiras têm que fazer quando lidam com gente real. Ele põe
uma outra calça leve de lona, elegante o bastante se eles quiserem ir almoçar em algum lugar um pouco mais sofisticado. O boné dos Red Sox fica bem atrás na cabeça.
Trudi usa uma saia curta, branca, pregueada. Suas pernas são longas e bronzeadas. Um corpete cor-de-rosa muito elegante. Os braços também estão bronzeados, o cabelo
amarrado atrás. Óculos escuros. Lá fora o braço dele enlaça a cintura dela enquanto caminham em silêncio. É a primeira vez que ela usa aquela saia sem que ele tenha
uma ereção. Um medo imprevisto se apossa de novo dele.
Eles estão famintos, mas não conseguem concordar em o que comer. A ressaca e a localização no estrangeiro conspiram contra a tomada de decisão; não têm confiança
nem sua própria escolha, nem de alguém que valha a pena. Um pedido errado significaria recriminação: ficam ruminando num silêncio interminável. Ambos estão cientes
disso. Mas precisam comer. Os cérebros estão enevoados pelas doses maciças de tequila da noite anterior.
Passam por uma cantina mexicana chamada Senior Frog’s. Lennox se lembrou de que alguns dos rapazes haviam estado num lugar semelhante numa viagem de férias só de
policiais homens em Cancún. Havia uma piada de cantina correndo há tempos sobre aquele evento. Ele quisera ir com os colegas, mas aí foi quando ele e Trudi tinham
acabado de se reconciliar, e as coisas corriam bem. Eles estavam sempre indo bem. Além do mais, Gillman fora na viagem a Cancún, o que, na verdade, o deixaria de
fora. Ele mostra a ela o restaurante. A essa altura ele só quer sentar em algum lugar, em qualquer lugar, fora daquele calor. Uma moça latina de expressão circunspecta
os leva a lugares em mesas de madeira e lhes dá cardápios plastificados. O lugar está meio cheio, alguns grupos e casais jantando. No bar, um bando de caras usando
camisas de futebol listradas de vermelho e branco estão bebendo. Trudi pega um jornal local grátis, e resmunga alguma coisa sobre um show no teatro Jackie Gleason.
– Minnesota Fats – diz Lennox, lembrando-se do desempenho de Gleason em Desafio à corrupção.
As mesas são grandes. Como aquelas nas salas de interrogatório da polícia. A distância entre ele e Trudi é bastante adequada. Ele precisa de um drinque. Quer fazer-lhe
perguntas. Em vez de fazer perguntas a si mesmo de novo.
Acordando. Tomando o café da manhã. Caminhando. Dobrando a esquina. O sequestro. As fitas das câmeras. As fotos.
Agora ele já está desesperado por um drinque. Precisa de um. A garçonete parece ocupada.
– Preciso de uma cerveja – informa ele a Trudi, apontando para o bar –, minha garganta vai fechar em um minuto. Quer uma?
– Essa é última coisa que quero, Ray Lennox. Você deveria estar em recuperação! Nós deveríamos estar planejando nosso casamento! E se esperarmos pela garçonete?
– Pede uma margarita para mim.
Trudi olha com desprezo para ele, depois estala a língua em desaprovação e procura sua bolsa de ombro branca. Pega lá dentro um exemplar de Noiva Perfeita e seu
pequeno bloco de notas.
Lennox vai até o bar e pede uma caneca de meio litro da cerveja Stella. Ele fica espantado e aliviado de eles servirem a cerveja sob pressão. Aquele fundo vermelho
com as letras brancas: é como encontrar um velho amigo. Basta um primeiro gole pequeno para ele sentir aquele gosto seco, de álcool, na boca. Depois ele entorna
metade da caneca de um só gole. Um dos caras com camisas de futebol capta seu olhar. Eles têm sotaques da Inglaterra. Da Zona Oeste do país. Estão um pouco bêbados.
As listras são do clube de futebol Exeter City. Ele pergunta aos rapazes se eles sabem algum resultado. Eles respondem que o Exeter venceu. Não ouviram nenhum resultado
de jogos na Escócia. Eles batem papo, os rapazes do Exeter desejando sorte ao time dele, o Hearts. Lennox fica surpreendido em ouvir que o Exeter não está mais na
Football League. Agora ele joga na Conference. Um presidente maluco. Uma crise financeira. Essas coisas acontecem.
Ele atravessa o recinto de volta para a mesa onde já serviram batatinhas de milho e salgadinhos. Depois, para seu espanto, surgem duas margaritas geladas.
– Bem, estamos de férias – informa Trudi, com um sorriso tenso e derrotado, chegando tão perto quanto ela certamente poderia da leveza. Chega a comida: fajita de
frutos de mar para ela, burrito de carne de vaca para ele.
Lennox fica olhando Trudi montar sua fajita com cuidado. O queijo e os feijões fritos duas vezes são desprezados, postos de lado. O resto é enrolado numa tortilha
de baixo teor de carboidratos estilo South Beach. Trudi come com garfadas pequenas, econômicas. Ele, ao contrário, engole grandes porções de seu burrito. Num determinado
momento, ele queima a garganta tão intensamente que quase desmaia.
No bar, o grupo de Devon já obviamente atingiu o nível bêbado de algazarra. Eles irrompem numa cantoria:
– UURR-AAR, EX-E-TEER! UURR-AAR, EX-E-TEER!
Uma garçonete e o barman dão sorrisos indulgentes, diante de um gerente afobado que se aproxima do grupo, apontando diplomaticamente para os outros fregueses. Os
rapazes da Zona Oeste fazem um brinde educado e se mandam para outro lugar. Um deles acena para Lennox, que devolve o cumprimento.
– Caras bacanas – diz ele a Trudi. – Garotos de Exeter.
– Era melhor que você ficasse com eles – zomba ela, lendo a mente dele enquanto os rapazes de Devon vão embora –, amigos de futebol ficando de porre e fazendo papel
de idiotas.
– Não seja boba – diz Lennox, apertando a mão dela com sua mão boa.
A refeição cai mal no estômago quando eles voltam para a Ocean Drive. Trudi quer ver a praia, mas Lennox objeta:
– Vamos passar um dia inteiro na praia amanhã – propõe ele, quando eles passam por um bar-discoteca com decoração de floresta. As garotas do lado de fora estão vestidas
com corpetes e calças de pele de leopardo, dançando na calçada, tentando atrair as pessoas para o local. Lennox não precisa de muito encorajamento. Ele precisa de
outro drinque.
Ele vai entrando, Trudi seguindo-o relutantemente. Eles encontram uma mesa e dois tamboretes, e Lennox pede dois coquetéis Sea Breezes.
– Eu não quero ficar sentado aqui bebendo todo o tempo, Ray, eu...
– Você não vem a um lugar como este procurando cultura.
– Você não vai a lugar nenhum procurando coisa nenhuma, a não ser bebida. Você devia ter ficado naquele clube de atletismo!
A cabeça excitada de Lennox se enche com a ideia de que nossos corpos e almas desejam o veneno, anseiam pela promessa super-humana e a loucura temporária que ele
oferece; a chance de lançar fora as algemas da decência, certamente o prerrequisito para a verdadeira inteligência e amor.
– Pelo menos eu estou tentando me divertir.
– É assim que você chama isso?
E aquilo o fere, o olhar e o tom dela, tendo em vista quão desesperado ele realmente está. Ele quer dizer “Estou morrendo, me ajude, por favor”, mas a coisa sai
num monótono dar de ombros, como:
– Eu só estou fazendo o que eu quero fazer nas férias. Se você não gosta, foda-se.
Horrorizada, ela olha para ele com os olhos esbugalhados. Enquanto ele observa as feições de Trudi se encolherem numa expressão tensa, malévola, ele deseja chupar
de novo as palavras para dentro de si.
– Não, foda-se você, seu babaca inútil! – Ela levanta repentinamente e, pegando a bolsa, vai embora rapidamente.
Lennox fica grudado na cadeira, os membros pesados, observando a partida enfurecida dela. Ele olha para a mesa, notando que ela deixou para trás o bloco de notas
e a Noiva Perfeita. Uma suave rajada de vento agita as páginas de uma maneira controlada, uma de cada vez; é como se o espírito dela permanecesse na mesa. Mas ele
pensa: ela não está sendo idiota. Uma pequena consolação pulsa em seu cérebro: pelo menos eu não critiquei o trabalho dela no Poder Escocês. Ela odeia quando eu
faço isso.
A garçonete, embaraçada, que observou a cena, chega com os drinques, e os coloca na mesa, partindo rápido em seguida. Pegando o coquetel destinado a Trudi, Lennox
logo o termina. Depois ele vai bebendo vagarosamente o seu próprio. Contemplando a beleza turva, azulada da bebida, ele quase que não quer tocá-la. Um casal numa
mesa contígua lança um olhar breve para ele, antes de virar os rostos. Eu sou o maluco que todo mundo quer evitar, pensa ele numa alegria desesperada. Depois ele
chama a garçonete e paga a conta. Lennox sente seus ombros tremerem num riso nervoso, alegre, mas quando se levanta da mesa, as lágrimas – terríveis, espessas, salgadas
– correm por seu rosto por debaixo dos óculos escuros, secando nas maçãs do rosto, no calor, queimando a pele.
Quase sem perceber que está levando a revista e o bloco de notas, ele sai para a rua. Tudo em que pode pensar é o drinque de que precisa. Não apenas o drinque, o
lugar para beber. O sol já se escondeu por detrás dos arranha-céus que delineiam a baía de Byscaine, e partículas turvas de escuridão se acumulam no ar quente em
torno dele.
Ele continua andando, sem qualquer senso real do que está fazendo ou para onde está indo. Sente-se bem em caminhar. Olha para as coisas. Gente. Prédios. Carros.
Cartazes. Lojas. Edifícios de apartamentos. Caminha até que percebe que a fadiga está se instalando com o calor, os músculos das pernas ficando nodosos e dormentes.
Ainda está de férias e aquela é a zona da praia, mas ele já passou os hotéis baixos, estilo colonial do bairro art déco e entrou numa zona mais feia, mais cheia
de acomodações para o fluxo principal de turistas. Hotéis em arranha-céus e prédios residenciais brotaram em torno de clubes de golfe e complexos à beira da praia.
Lennox fica imaginando quanto tempo levaria para caminhar até a casa de Ginger em Fort Lauderdale. Muito tempo, se, na verdade, fosse possível fazer isso. Todo o
lugar parece ter sido construído com foco no automóvel. Então ele percebe que os numerosos postes verde e branco pelos quais ele passou são na verdade paradas de
ônibus. A maioria das pessoas sentadas nesses pontos não parece ser nem branca nem rica: diferentes dos ocupantes dos conversíveis que desfilam sem parar. Essas
pessoas o encaram com expressão inquieta. Aquilo não o aborrece. Chega um ônibus e ele embarca, imitando o negro magro como uma estaca à sua frente, colocando o
que ele acha que é uma nota de um dólar na ranhura da roleta.
– Isso aí é cinco, amigo... vai passar direto – diz o motorista, com ar desdenhoso –, e não vai dar troco. Você acabou de desperdiçar três pratas e meia, cara.
Lennox faz um sinal de aquiescência e toma um lugar. Ele olha para os negros no ônibus com o mesmo olhar furtivo, curioso, com que eles o encaram. As poucas pessoas
negras que ele conheceu durante sua vida na Escócia tinham até então parecido exóticas, mas agora ele vê como eles eram apenas escoceses. Os negros aqui o fascinam,
o modo como seus corpos se movimentam, num ritmo diferente. Suas vozes são diferentes das dos brancos e das dos latinos, é como se eles fossem de Marte. Ele sente
alguma coisa nos ossos e atribui isso à curiosidade, mais do que ao racismo.
Sensação nos ossos. Sensação nas entranhas. Instinto.
Procedimento. Projetado para eliminar cientificamente a parcialidade. Siga a força da probabilidade. Setenta por cento dos assassinos conhecem suas vítimas. Trinta
e três por cento vêm da mesma família.
O ônibus sacoleja atravessando uma faixa de rolamento irregular. Lennox estremece. Precisa estar seguro. Precisa estar perigoso. Eles estão por toda parte, os pedófilos.
Nesse ônibus provavelmente há um. Ele olha em torno, para olhos desconfiados. Ele pode identificá-los pelo cheiro, o fedor deles.
O veículo não vai a parte alguma; depois de umas poucas voltas ele está retornando pelo caminho que acabou de passar. Lennox mantém o olhar de falcão. Há uma dor
a ser combatida. A afogar na bebida. Depois ele o vê, na rua 14, entre as avenidas Collins e Washington. O lugar que ele sabe para onde quer ir. É um bar. O Club
Deuce.
Ele vai até a frente do ônibus, o pânico o engolfando enquanto o veículo acelera num certo trecho, e parece que já passou bastante do bar, antes de diminuir a marcha
e fazer uma parada. Lennox desembarca e vai andando para trás na direção da casamata creme que é o Club Deuce. Fora do clube, um carrinho de compras cheio de pertences
de um sem-teto. O bar escurecido com venezianas que ele acha estarem permanentemente fechadas. Ele passa por uma porta de madeira e vidro, e entra no clube. Está
tão escuro que ele leva alguns minutos para acomodar sua visão dos objetos.
O recinto é dominado por um comprido balcão que serpenteia como o rio Formica, com duas bordas tipo ilha, contorcendo-se numa dupla ferradura na frente e seguindo
direto, acompanhando o fundo do salão. No canto, há uma grande TV de plasma pendurada na parede. Perto da mesa de sinuca, ao fundo, está sentada uma mulher sem-teto,
ocasionalmente olhando para fora por detrás das venezianas, vigiando seu carrinho. É realmente um balcão projetado para socializar os fregueses que vêm ali beber;
as curvas têm o propósito de tornar quase impossível a uma pessoa sentar longe demais da outra. Um espelho percorre todo o salão, sendo duplamente difícil evitar
o contato visual com outro freguês. Ele verifica a hora no relógio emoldurado de uma luz verde, acima da vitrola.
Duas silhuetas de mulher em neon, ambas deitadas de bruços, peitos e bundas destacando-se no vermelho brilhante, chamam a atenção de Lennox. Poderiam ser sereias,
mas uma perna levantada sedutoramente anuncia que ambas são terráqueas.
O efeito é o de um lugar um pouco decadente, mas de classe, com uma antiga atmosfera clandestina de sexo na época da Lei Seca, que sua atual encarnação como um tugúrio
de beberrões não disfarça muito. Lennox se senta no fundo do U da ferradura, perto da porta, atrás de dois retratos de Humphrey Bogart e um de Clark Gable. Ele olha
para os dois antigos espelhos e seus entalhes elaborados. Percebe então que aquele Club Deuce deve ser um dos maiores e mais lindos bares desse tipo do mundo, na
verdade, de qualquer tipo.
O barman é um cara grandão, tatuado, com cabelo comprido, barba e bigode. Um ex-motoqueiro, há muito na vida civil, pensa Lennox. Ele tem um sorriso largo, mas ligeiramente
tímido.
– O que é que vai? – pergunta o barman, levantando as sobrancelhas.
– Uma vodca Stali e soda. – Lennox esfrega o lábio superior procurando o bigode, que já não está mais ali. Ele usou bigode durante anos, e agora, como um amputado
com o membro que falta, ele sente o bigode ausente coçar.
O barman olha apreciativamente para a camiseta de Lennox enquanto serve os drinques.
– Inglês? – ele pergunta.
– Escocês.
– Queima, não é?
– Queima sim. – Lennox olha para a vermelhidão no seu pulso que as luzes do bar salientaram, e toma um gole da vodca.
O barman o examina, esperando uma explicação; depois muda de ideia.
A dose de vodca é generosa; Lennox gostava dessa particularidade sobre os Estados Unidos, doses generosas. Não ficavam com aquela porcaria mesquinha de medir e pesar
cada dose. Bastava esse tipo de coisa para fazer com que a Revolução Americana tivesse valido a pena. Ele suplementa a vodca com uma garrafa de cerveja europeia
importada, aceitável.
Ele gira o corpo no tamborete do balcão e levanta os olhos para a tela de televisão. Futebol americano; os Bears contra os Packers. Lennox não consegue distinguir
se é ao vivo ou um replay. Ele tem vontade de perguntar, mas raciocina que, se é um jogo importante, ele logo vai descobrir. Põe a cópia de Noiva Perfeita em cima
do balcão e mete o bloco de notas e a caneta no bolso de trás da calça. O primeiro drinque não consegue banir as ansiedades não específicas que fazem tremer sua
mente e corpo; elas apenas cristalizam aquelas ansiedades num nó tumoroso dentro dele, que vai deslizando para baixo, através de uma via expressa psíquica que corre
numa simbiose rústica com seu trato intestinal, chegando a um descanso pesado no final do intestino.
O bar está quase vazio. Dois jovens brancos, que ele percebe estarem bebendo sob a cobertura de falsas identidades devido aos olhares nervosos que eles lançam cada
vez que a porta se abre, jogam sinuca no canto. Um pouco adiante deles duas mulheres estão sentadas junto ao balcão; provavelmente com pouco menos do que trinta
anos, mas ambas com as marcas da vida já visíveis. Uma senhora sem-teto senta a um canto, o olhar de águia checando seus pertences pela janela. Do outro lado de
Lennox, um cara gordo conversa com o barman num guinchar de protesto sobre algum imposto que ele acha inconstitucional.
Lennox pede outra vodca. Depois, mais outra. Suas boas gorjetas fazem com que o barman encha os copos até a borda. Aquele homem evidentemente compreende que certas
pessoas, apenas porque vêm a um bar sozinhas, bebendo desbragadamente, não precisam necessariamente de companhia. Eles querem ver se a merda que estão passando fica
melhor se se embebedarem.
Ele está pensando que provavelmente fez mal em abandonar o aconselhamento. Mas ele fechara o bico. Não dissera nada a esses safados abelhudos sobre si mesmo, nada
que fosse parar na sua ficha, a despeito do que eles dizem que tudo será confidencial. Lennox comparecera ao aconselhamento duas vezes depois que eles o levantaram
do chão, no bar Jeanie Deans. A mulher, Melissa Collingwood, só tentara ajudar, dar uma opinião, mas ela o enfurecera. Foi quando eles começaram a falar sobre a
morte. A morte de Britney.
– Eu não posso suportar a ideia de ela morrer sozinha, amedrontada – disse-lhe ele. – É isso que me põe maluco.
– Mas não é assim que nós todos morremos, no final? Sozinhos? Amedrontados? – dissera Collingwood, os olhos se arregalando numa sinceridade que parecia dolorosa
demais para ser algo mais do que planejada. E ele reagira àquilo.
– Ela era uma criança, porra, sua débil mental – gritara Lennox para ela, e saíra desembalado pela porta, não parando até chegar ao Bert’s Bar, em Stockbridge. Era
aí que ele ia desde que começara o caso. Ignorando as mensagens de voz de seu mentor dos Narcóticos Anônimos, um bombeiro alegre chamado Keith Goodwin, cujos apelos
cada vez mais fortes eram uma voz invisível na sua descida para o esquecimento.
Agora ele não tinha antidepressivos e queria cocaína.
Uma música country, do Oeste, começou a tocar na vitrola, um número espirituoso sobre álcool. Imperceptivelmente, o bar ficara mais cheio. Talvez umas quinze pessoas
no salão. A senhora sem-teto sumira. Lennox dá um gole na cerveja. Primeiro a conversação é mais alta e depois a música domina. Vai e vem. Algumas pessoas vêm e
vão, mas a maioria permanece, os cotovelos apoiados no balcão.
Com a visão periférica ele percebe uma das mulheres olhando para ele, enquanto a amiga a encoraja. Ele imediatamente põe aquela percepção de lado: não pode confiar
em seus próprios sentidos. Mas ela desliza para fora do tamborete do balcão e se aproxima dele. Esbelta, ela usa uma saia curta de brim e um corpete verde-limão,
amarrado no meio, apoiando os seios. A frente do estômago está nua e um excesso de gordura cai sobre o cós da saia, um piercing no umbigo chamando a atenção para
aquilo.
– Tem fogo? – Ela pronuncia “fogo” de modo engraçado. Seu sotaque é evidentemente mais do Sul do que o sotaque padrão americano que parece ser o maior recorrente
em Miami.
– Tenho. – Lennox puxa um isqueiro que ele apanhou no hotel. Tem FLORIDA gravado nele, com umas palmeiras. Ele acende a chama e ela se aproxima.
Uma loura oxigenada com a pele branca quase translúcida, o corte de batom vermelho na boca é como uma ferida aberta. Os olhos são fundos, com bolsas escuras debaixo
deles, que Lennox acha que são machucados até que a proximidade com a luz mostra que são causadas pela fadiga. O rosto é encovado. Um pouco mais de músculos teria
realçado uma boa estrutura óssea. A quase total ausência de carne faz com que ela pareça esquelética. Lennox vê uma mulher modelada por drogas, embora ele suponha
que uma má dieta alimentar, baseada em café e cigarros, possa produzir o mesmo efeito.
– De onde é esse seu sotaque? – pergunta ela, naquela entonação fumacenta, melosa.
– Escócia.
– Que legal! – exclama ela, com uma vivacidade excessiva, que a anima ao ponto de Lennox imediatamente sentir que deve suspender a avaliação. – Você está de férias?
– Férias... é... – diz Lennox, pensando em Trudi. Será que ela voltou para o hotel? Talvez já esteja voando de volta? Certamente não. Ele não consegue decidir. Sua
perspectiva desapareceu. Ele olha para a mão enfaixada que segura o copo de cerveja. É um corpo estranho.
– Sou Robyn – declara ela. – Com Y.
– Ray, com A-Y – ele retruca. – Engraçado, são somente homens que têm esse seu nome lá na Escócia – diz para ela. Fica com vontade de lhe explicar que geralmente
são mauricinhos que têm esse nome, mas decide não fazer isso. – Você é daqui de Miami?
Robyn-com-Y balança a cabeça.
– Ninguém é de Miami, todo mundo apenas acaba vindo para cá. Minha cidade natal é Mobile, Alabama. – Ela se volta para a companheira, obrigando Lennox a fazer o
mesmo. – Essa é minha amiga, Starry.
Ele se depara com uma mulher de cerca de um metro e setenta de altura, com um rosto alongado e cabelo comprido, negro, encaracolado na altura dos ombros. Ela tem
as feições latinas clássicas que ele vem silenciosamente apreciando em muitas das mulheres ali em Miami, desde que desembarcou do avião; sobrancelhas depiladas em
linhas finas, realçando olhos enormes, extremamente escuros que podiam vaporizar os desprevenidos. O nariz era comprido e reto, do tipo que raramente se vê na Escócia.
A idade, o estilo de vida e possivelmente as circunstâncias quase que haviam eliminado uma beleza clássica, mas no que restara ainda se podia notar uma força vivaz.
Ela usa com graça uma calça jeans apertada e Lennox observou o tênis Converse All Star apenas porque o calçado tinha a mesma aparência daqueles usados por pessoas
que andavam em gangues, quando ele era adolescente. O olhar dele ia e voltava dos olhos dela para o corpete cinza-prateado que mal conseguia esconder os formidáveis
seios dentro dele.
Starry lança para ele um sorriso de avaliação, lento, gracioso. É obviamente forjado, mas demonstra uma inteligência calculista, que provoca respeito nele, contra
sua vontade. A mulher é dura que nem unhas, mas alguma coisa lhe diz que sua força foi tão conseguida na dureza da vida quanto recebida como um dom de Deus.
Uma sobrevivente, pensa Lennox. Como esse termo se tornou tão barato e deturpado. Sou um sobrevivente das compras de Natal. Sou um sobrevivente do Holocausto. Sou
um sobrevivente de férias com parentes afins. Sou um sobrevivente de abuso sexual infantil. Ele faz sua própria lista: crimes sexuais, vício de drogas, rompimento
de relacionamentos, frustração de carreira, colapso nervoso, vida.
Era coisa demais. Ele estava cansado de sobreviver. Já era tempo de viver. Lennox vê que Robyn está de pé, esperando, numa antecipação clara.
– Alguma de vocês, moças, gostaria de um drinque?
Elas assentem e declaram suas escolhas. Enquanto o barman serve as bebidas, Lennox sente que foi coagido, mas seu único ressentimento suave vem da aparente crença
das garotas de que ele não percebeu isso.
– Este aqui é Ray-com-A-Y, da Escócia – Robyn ri.
– Que tipo de trabalho você faz, Ray? – indaga Starry.
– Vendas – Lennox mente. Ele nunca diz que é policial quando está na companhia de outras pessoas. A menos que ele queira se livrar das pessoas.
Starry lança um sorriso furtivo ao aceitar a bebida. Ela dirige Robyn, quase a empurrando sobre Lennox. As mulheres sorriem uma para a outra. Não há dúvidas sobre
quem comanda o show ali, pensa ele. As vitórias insignificantes. Ele já viu isso tantas vezes antes, em tantas das mulheres que encontrou durante seu trabalho.
Angela Hamil pedia tão pouco. Ela foi destruída com a sua filha sequestrada, estuprada e assassinada. Mas parecia não haver uma verdadeira raiva. A vida já a derrotara
havia muito tempo; ela agia como ela mesma esperava agir e até mesmo como se merecesse esse horror que caíra sobre ela, que lhe era devido. Era apenas mais uma infelicidade
empilhada sobre aquelas que ela já tinha que suportar.
Crimes Hediondos.
Lennox pensa no nome do departamento e nas atividades reais que lhe deram o título. Assassinato. Estupro. Agressão grave. Sequestro. Roubo a mão armada. Obviamente
a maioria das pessoas que cometia crimes hediondos já estava no mau caminho. Mas tantas vítimas compartilhavam dessa característica. Com enorme frequência era o
mesmo conjunto de circunstâncias que lançavam a vítima e o criminoso juntos.
– A Escócia deve ser um país bacana pra caralho – está dizendo Starry para ele na sua voz mais genericamente americana.
Lennox dá um sorriso contido.
– É legal.
– Porque parece que a sua cabeça ainda está lá. Vou contar a você o que acho. Há geralmente apenas uma coisa que faz um homem estranho entrar num bar estranho sozinho
e entornar uns drinques como você vem fazendo. E essa coisa é uma mulher estranha.
Angela Hamil. Trudi Lowe.
– Mulheres estranhas. É, há algumas delas por aí – retruca Lennox.
– Então, como vão as vendas nesses dias? – indaga Starry, dando a essa inócua declaração uma enigmática entonação imoral.
– Bem, não vão mal. Você sabe como é – responde Lennox, vagamente, entrando no jogo.
Ela olha para ele como convidando-o a acrescentar alguma coisa mais. Depois ela pergunta:
– Então, o que é que você vende?
– Eu nunca converso sobre trabalho quando estou numa reunião social – diz ele. – Tudo que direi é que não é a mercadoria que é importante, é o freguês.
Starry parece gostar da resposta inócua dele. Ela empurra a amiga para a frente de novo, e Lennox fica tentando adivinhar qual é o jogo, enquanto as garotas se agitam
em torno dele com a energia nervosa de pessoas meio derrotadas, velhas competidoras traumatizadas numa academia caindo aos pedaços, evidentemente prontas a filar
um jantar.
– Você é bonitão – diz Robyn com uma risadinha. Lennox vê que ela está bêbada, ambas provavelmente estão. Starry segura a barra melhor.
Conforme vão conversando, os ouvidos dele começam a ficar insensíveis ao glamour superficial do sotaque americano, e ele agora pode ver aquelas mulheres num sórdido
bar de Edimburgo metido num beco. Uma vida inteira de consumo de cigarros parece fazer com que toda a fumaça do local se acumule em torno da pele cinzenta de Robyn
e de sua roupa barata, espalhafatosa, como limalha de ferro em torno de um ímã.
– Então você conhece algumas mulheres estranhas – diz Starry, os olhos indo na direção da mão enfaixada. – Isso faz de você um homem estranho? Quem estou enganando,
há outro tipo?
Lennox já enfrentou muitos desses “mercados sexuais” em Edimburgo, onde as mulheres sacaneiam os homens, para ser derrubado por umas tiradas feministas apolíticas.
– Nós fazemos muitas coisas estúpidas muito bem – diz ele, acrescentando –, mas vocês, garotas, nos vencem longe, de mãos amarradas, quando se trata de fazer loucuras.
É assim que o mundo é.
Starry ri, abre tanto a boca que parece poder engolir o bar e tudo que está nele. Lennox fica olhando para a caverna cor-de-rosa, ladeada de dentes, a língua vermelha
proeminente parecendo um tapetinho de boas-vindas, rapidamente se enroscando numa cobra ameaçadora.
– E não esqueça disso!
– As moças vão me dar licença, mas eu tenho que atender a um apelo da natureza. – Lennox desliza para fora do tamborete e se dirige aos toaletes no canto do balcão.
Por que eles chamam toalete de sala de descanso [restroom]?
Lennox se sente como se quisesse realmente descansar. Deitar no soalho de azulejos coberto de urina dos homens, couro de sapato, terra, cinza de cigarro, e dormir
ali como um bebê. Em vez disso, ele estica a mão ruim e começa a desenrolar a atadura elástica com a mão boa. A gaze está descolorida e exuda um cheiro ruim. Um
espasmo de medo se apodera dele, e ele quase fica na expectativa de se confrontar com um objeto murcho, negro e verde, gangrenoso. No caso de sua mão, ela está endurecida,
vermelha, um pouco inchada e com um mau aspecto em torno dos nós dos dedos, e seus olhos lacrimejam quando ele tenta fechar o punho. Mas visivelmente ainda é sua
mão, e está provavelmente sarando. Ele confia a ela a tarefa de segurar e apontar o pênis e não consegue aguentar a visão do jato de urina escura e estagnante contra
o metal do mictório.
Lennox lava as mãos com cuidado, apreciando a volta da outra mão à família.
Ele levou trinta e cinco segundos para agarrá-la, enfiá-la na van, amordaçá-la, amarrá-la com fita isolante e partir no veículo.
Põe as mãos debaixo do secador elétrico. Gosta da sensação do calor contra sua mão dormente, dolorida.
As duas mulheres olham para Lennox quando ele volta para o salão do bar. Starry pegou a cópia de Noiva Perfeita e está folheando a revista. Mas agora há alguém mais
na cena, um outro homem que saiu das sombras do fundo do recinto e que se aproxima das mulheres ao mesmo tempo em que Lennox retorna. Este olha para Starry, confuso.
Lennox vê que o cara é mais ou menos da mesma altura que ele, um metro e oitenta e oito, e também com trinta e tantos anos.
– Eu estou nesse negócio de vendas – diz ele para Starry e Robyn, ignorando Lennox, que fica meio agitado. Esse babaca esteve ouvindo minha conversa, e agora quer
me passar para trás.
Puxando o homem pelo ombro, Lennox o faz virar.
– Eu vou dizer em que negócio você está se você não se mandar imediatamente. Você se meteu numa fria. Numa grande roubada. Estou sendo claro?
O cara pisca, espantado.
– Ei... – começa a falar Starry, pondo a revista no balcão – não há necessidade disso!
– Escuta aqui, amigo... – começa o cara, mas Lennox pode ver que qualquer certeza que o outro tinha está se evaporando.
Ele se sente fervendo de ímpeto violento. Aquele cara o aborreceu.
– Não sou seu amigo. Entendeu?
– Como quiser...
– Quero mesmo. Agora se manda.
O homem dá de ombros, as palmas levantadas como num apelo e retorna ao fundo do bar.
– Por que tudo isso? – diz Starry, evidentemente perturbada.
– Eu não gostei dele – diz Lennox para ela, enquanto mantém os olhos no homem, que rapidamente termina seu drinque e vai embora.
– Ele parecia um cara legal – diz Starry, olhando para Robyn.
– Sei não, achei ele meio esquisito.
– Acho que você deveria saber tudo sobre isso, meu bem.
Robyn estreita os olhos um pouco e dá de ombros, lançando para Lennox um sorriso apertado.
Starry parece deixar sua raiva amainar.
– Vem cá, vamos para um outro lugar.
Eles ficam discutindo aonde ir. Lennox acha que deve voltar para o hotel. Fazer as pazes com Trudi. O cansaço está se fazendo sentir. Mas ele não tem coragem de
confrontar-se com a noiva. Melhor esperar até que ela adormeça.
– O que é isso? – Starry olha para Lennox. Ela mostra para ele a cópia de Noiva Perfeita. – Você está planejando um casamento?
– Estou. Mas não é o meu próprio – diz ele, surpreso de como as mentiras brotam de sua boca sem esforço. A diferença entre um tira e um bandido é que nós recebemos
um salário e somos melhores mentirosos, lhe disse uma vez seu mentor Robbo. – É isso que eu vendo – ele especifica. – Casamentos; todo o pacote.
– Você planeja casamentos? Como naquele filme de Adam Sandler? – Robyn solta gritinhos de felicidade.
– Bem, é isso sim. – Ele olha para Starry que está forçando o sorriso largo, antes que o celular dispare a tocar “Won’t get fooled again”. Ela se desculpa e vai
até a porta do bar para atender.
– Acho que deve ser um trabalho alegre. Muito divertido – diz Robyn.
– É estressante, mas tem seus momentos de satisfação.
Starry volta e insiste em ir a um lugar chamado Club Myopia, mas Robyn está relutante.
– Tenho que voltar logo para Tia.
– Ela vai ficar bem – diz Starry. – Apenas mais um drinque. Eu tenho uma coisinha para nós.
Os olhos de Robyn se iluminam.
– Quer dizer que você foi... – ela interrompe a fala.
Lennox percebe que a “coisinha” é cocaína. É o que ele quer. Precisa. Uma carreira de pó branco. Alguma coisa que o faça mais forte. Para fazer com que ele não pense
em crianças mortas. Para fazer com que ele não se importe. Robyn diz a ele que o Club Myopia fica apenas a uns poucos quarteirões para o sul. Ficava localizado no
seu caminho de volta para o hotel.
– Eu vou guardar isso com segurança, para você – diz ela, sorrindo, pondo a Noiva Perfeita na bolsa pendurada no ombro –, está ficando toda emporcalhada aqui em
cima do balcão.
– Ótimo. – Lennox sorri, agradecido, e eles saem do bar e vão caminhando pela avenida Washington até o clube.
À guisa de identidade, Starry e Robyn apresentam ao porteiro suas licenças de motorista. Lennox mostra sua carteira de Autoridade da Polícia de Loth e das Fronteiras,
completa, com a antiga foto dele com bigode. O leão de chácara, um negro enorme, o encara com um aceno de cabeça afirmativo, mínimo, severo. Lennox mete a carteira
de volta no bolso, tomando cuidado para não mostrá-la às garotas. Ele quer muito que elas consigam a cocaína. Já pode imaginá-la, molhando dentro do invólucro, dentro
da bolsa de mão de Starry. Robyn, ele percebe pelo foco dos olhos dela, também.
Myopia é um clube de música dançante, e, atirados no meio de um mar de jovens malhados, atléticos e bonitos, eles são as pessoas mais velhas no recinto. Starry e
Robyn não perdem tempo em se dirigir para os toaletes. Elas já foram há bastante tempo, e Lennox teme que elas possam ter escapulido. Ele vai ficando inquieto, depois
ansioso, sozinho de pé ali no bar, inundado pela música pulsante e pelas luzes estroboscópicas, com jovens bem-vestidos examinando-o, com ar de desaprovação. As
moças usam saias curtas, colantes, a maioria de uma única cor, que se plasmam a seus corpos como se fossem eletricidade estática. As roupas predominantemente elegantes
dos rapazes realçam o encardido de sua camiseta Ramones. Ele pensa: Michael Douglas na cena da boate em Instinto selvagem, escusando-se em saber que nunca pareceria
tão ridículo como o ator.
Seu nervosismo aumenta. Mais para a extremidade do balcão, ele tem consciência de que está sendo vigiado. É o cara do Club Deuce, o vendedor babaca. Deixando que
a raiva lhe traga energia, Lennox desce do tamborete, se esgueirando no meio da multidão dançante até o fundo do salão, e depois se virando de repente, de modo a
ficar atrás do cara, que está esticando o pescoço, esquadrinhando o recinto à procura dele.
– Está procurando alguém? – grita por sobre a vibração do sistema de som, fazendo com que o homem se assuste. – Quer dançar ou alguma porra assim?
– Olha aqui, eu... – O homem começa, parado pela mão de Lennox, aquela boa, com força nos dedos, que agarra o outro pela garganta fina, não o deixando falar.
– Não. Olha aqui. Eu não sei qual é a porra do seu jogo, mas você vai dar a volta e se mandar pra fora da porra daquela porta, agora – ele ordena, aliviando um pouco
o aperto. – Entende o que estou dizendo?
Nos olhos amedrontados do homem ele pode avaliar a extensão de seu próprio rancor assassino. Ciente de que algumas pessoas estão observando a cena, ela solta o aperto.
O homem, a respiração acelerada, recua, esfregando o pescoço. Um leão de chácara observou parcialmente o que acontecia, mas, como Lennox, ele se contenta em simplesmente
acompanhar o vendedor com os olhos por todo o trajeto até o letreiro de Saída.
Pedindo um outro drinque para compensar inutilmente a adrenalina liberada, ele espera aflito pelas garotas. Ele se obriga a ficar parado e a não fazer nada, dizendo
a si mesmo que o autocontrole chegará de volta se ele aguentar bastante tempo. Quando finalmente elas voltam, Robyn parecendo particularmente corada e animada, elas
apresentam discretamente a Lennox a droga, numa pequena bolsa que podia ser vedada mais de uma vez.
– Achei que vocês tinham fugido de mim – sorri ele.
– Sem chance disso acontecer – diz Robyn. Ele vê a confiança que a cocaína dá a ela. Uma cheirada e ela pode voltar a ser a pessoa que sempre quis ser. Ele compreende.
Starry não precisa daquilo, realmente. Ela joga para trás sua juba encaracolada e sorri abertamente para Lennox. Ele vai até o toalete masculino. Os cubículos são
mal protegidos por pequenas portas. Não há tanta privacidade quanto na Inglaterra. Você pode olhar para dentro pela fenda nas portas, ou mesmo olhar por cima delas,
se tiver essa intenção. Nada de preocupante. Ele arruma uma boa fileira em cima da tampa do vaso. Parece mercadoria boa. Corta ela mais fina com a identidade da
polícia. Ele pensa um segundo sobre Trudi, provavelmente de volta no quarto do hotel, depois pensa em Keith Goodwin nos Narcóticos Anônimos e todo o bom trabalho
que ele tem feito. Será que era um bom trabalho? Agora ele vai despachar a coisa para longe. O rosto de Britney: frio, azul e machucado. A malícia doentia do sr.
Confeiteiro. Ele vai despachar tudo isso para longe.
A carreira de cocaína oblitera aquelas lembranças e Lennox sai para o salão de dança como um colosso, o maxilar para a frente. Starry e Robyn estão dançando, e ele
se move facilmente com elas, voluptuoso e invencível. Os outros dançarinos, eles podem sentir o poder dele, seu desprezo radiante por todos eles. Eles se encolhem
como pigmeus que são. Ele recorda sem dor suas infidelidades do passado, que arruinaram o relacionamento entre ele e Trudi na primeira vez; cada conquista, um badulaque
na pulseira-talismã de ouro falso, cada uma delas executada quando ele se sentia exatamente como agora.
Por que ele está fazendo isso, pergunta ele, à parte do pique da cocaína? Sua noiva já voltou para o hotel, ou pelo menos é o que ele presume. Lennox se vê sempre
perseguido pela ideia de que o grande acontecimento, a verdadeira festa, está acontecendo num outro lugar. Seu radar, aquele sentimento angustiado debaixo de sua
pele, lhe diz que é esse o caso agora. Então ele percebe que é um policial e que a grande festa está sempre acontecendo em algum outro lugar, isto é, entre os “paisanos”.
E se ele descobre onde ela é, seu papel não é juntar-se a ela, mas sim interrompê-la. Agora, entretanto, durante essas duas semanas, ele é paisano. E é bom estar
nessa situação. O mundo está desmoronando em torno de nós e graças a Deus, porra, há gente ou muito nova ou completamente idiota para entrar naquela pista de dança
e agir como se a festa tivesse começado agora.
Starry empurra o cabelo para trás e encontra o olhar de predador de Lennox com seus próprios olhos duros, de granito.
– Nós vamos voltar para a casa de Robyn. – Ela olha para a amiga.
– Você está convidado – diz Robyn. – Vamos até lá dar mais um tapa?
Por “dar um tapa” ele entende que ela se refere à cocaína, não à maconha, que ele detesta.
– Está bem. Onde é? – grita ele acima da confusão.
– Eu moro lá em Miami.
– Eu pensei que aqui fosse Miami.
– Não, aqui é Miami Beach, burrinho – adverte Robyn, brincando. – Miami é do outro lado do elevado.
– É mesmo. – Ele se lembra como Trudi, e depois Ginger, haviam explicado isso para ele.
Eles vão para fora do clube, alvoroçados com a cocaína. Lennox vai fazer sinal para um táxi mas Starry o impede.
– Vem aí um ônibus – diz ela, fazendo sinal para o veículo que se aproxima. – É mais barato.
Dessa vez ele paga a quantia adequada. O ônibus está cheio de gente bêbada: o onipresente teatro móvel de transporte público do fim da noite. Eles encontram assentos
no fundo, Lennox na janela com Robyn a seu lado. Starry na frente deles. Ela está conversando com alguém em espanhol pelo telefone celular. Robyn parece agitada,
e isso logo começa a afetar Lennox. O ônibus não tem janelas na traseira, o que o torna mais inquieto. É pouco natural, você não pode ver de onde você está vindo.
– Com quem você estava falando? – pergunta Robyn, com ar desconfiado quando sua amiga termina o telefonema.
– Apenas alguns amigos do restaurante. – Starry paparica Robyn, esfregando o pescoço da amiga, enquanto relata para ela algumas futricas do local de trabalho. –
Aquele Mano, ele é tão babaca...
Depois de passar pela orla, o veículo subitamente dá uma guinada, cruzando um trecho de água por uma comprida ponte, e entra no que Lennox acha que é Miami propriamente
dita. A unha de Starry raspa alguma coisa brilhante que aderiu à janela do ônibus, antes de perceber que é algo colado pelo lado de fora. Aparecem as docas com seus
gigantescos guindastes, depois os petroleiros. Porém, mais impressionantes são os transatlânticos, cerca de uns doze, como prédios de apartamentos flutuantes, grandiosos
ainda que parecendo pequenos, diante das enormes torres do centro de Miami, sentinelas imensas guardando o porto. Lennox fica impressionado, enquanto a cocaína martela
sua cabeça, deixando-o forte. Seus dentes rilham fortemente. Ele quer aquelas misteriosas luzes amarelas que brilham na água do outro lado da baía suja, pegajosa,
negra. Quer fazer parte de tudo aquilo: longe da luz do sol e das noivas imaculadas, brancas, perfeitas.
6
Festa
Através de uma turva mortalha de quase escuridão, iluminada apenas pelo pipocar de luzes vindas dos arranha-céus sobranceiros da zona comercial, o centro de Miami
parece para Lennox não apenas escabroso e dilapidado, mas também sinistramente deserto. Essa impressão é confirmada quando eles entram no saguão do terminal de ônibus
no Centro do Governo. Muitos dos arranha-céus adiante estão ainda sendo construídos. Eles se postam ali de pé como um exército silencioso de zumbis, surgindo da
terra em diversos graus de composição, mas inseguros sobre o que fazer em seguida. Gigantescos guindastes esqueléticos parecem estar se alimentando daquelas estruturas,
como monstruosas aves de rapina.
– É mais barato pegar um táxi aqui – explica Starry quando eles cambaleiam como se estivessem embriagados na direção de uma fila de táxis, adjacente ao ponto do
desembarque de ônibus. A maioria dos passageiros havia desembarcado no porto de Miami, na Estação Omni, na Arena da American Airways e no bairro decadente das pequenas
joalherias. Agora apenas um bêbado solitário cambaleia diante deles, o olhar confuso, de boca aberta, enquanto o ônibus parte, indicando que ele saltou ali por acidente.
Lennox olha para as pilastras e os trilhos suspensos do Metromover que vai serpenteando por ali, entre os edifícios da cidade; Miami lhe faz lembrar mais Bangcock
do que qualquer cidade americana ou europeia que ele já visitara. O único edifício mais antigo que ele vira fora o grandioso tribunal de justiça do condado de Dade,
de vários andares, impressionante e lindo com seus degraus e pilares, uma construção imponente cercada de imitações sem gosto.
Eles embarcam num dos três táxis que esperavam no ponto e Robyn tosse com o cigarro, anunciando com voz rascante um endereço ao motorista de olhar desconfiado, um
endereço que parece todo formado de números para Lennox sentado no assento da frente. Uma flâmula pende do espelho do motorista, que Lennox acha ser de Porto Rico.
O policial nele rapidamente deduziu que a profissão mais perigosa de Miami não seria de um policial ou de um bombeiro. O assassinato seria um risco de trabalho para
motoristas, a maioria deles imigrantes pobres. Os postos de gasolina funcionando 24 horas eram agora do tipo autosserviço, enquanto os atendentes nas lojas de conveniência
ficavam invariavelmente trancados em cubículos à prova da balas, as mercadorias sendo distribuídas através de portinholas de segurança. Mas trabalhar nessas ruas
desertas com chamadas falsas por telefone, pagamentos em dinheiro vivo, parecia um empreendimento particularmente arriscado.
Eles atravessam o que é uma área estéril da cidade, sem nenhuma residência, tudo parecendo ser lojas de varejo barato e cafona. Há uma abundância de lojas com cortinas
de aço encardidas, mas Lennox ainda não viu um bar ou qualquer coisa indicando a possibilidade de vida social. Sua preocupação aumentando, ele sente que já avançou
bastante, e percebe o nervosismo do motorista através da divisória de plástico. Pela agudeza das vozes ele sente que Robyn e Starry estão discutindo no banco traseiro.
Elas mencionam uma criança morta. O filho de Starry. Aquilo o queima por dentro. Ele procura desviar a conversa para a cidade que os cerca. Miami propriamente dita
parece um animal muito diferente de Miami Beach, a cidade tendo muitos viadutos, como o que eles cruzam por cima agora, e, durante algum tempo, parece que eles estão
indo para o aeroporto. Então, subitamente, eles entram numa via de concreto, descendo uma ladeira escorregadia e entram num bairro perto da rua 17. É como cair pela
borda de um mundo e aterrissar em outro mundo.
– Bem-vindo à Pequena Havana – diz Starry, levantando uma única sobrancelha curva, recuperando a efervescência que Lennox temia tê-la abandonado desde o acidente
com aquele cara estranho, mais cedo.
– Aqui não é realmente muito longe da Pequena Havana – diz Robyn, a voz um pouco estridente. – É mais como Riverside.
– Bobagem, você simplesmente não quer que as pessoas saibam que você mora num bairro cubano – diz Starry, implicando com Robyn, apenas brincando, o sotaque dela
mudando para o de Rosie Perez Latina.
– Notícia rápida – diz Robyn. – Isso é Miami. Todos os bairros aqui são cubanos.
Lennox se encolhe com o epíteto suave usado por Robyn, “Riverside”. Os projetistas na Escócia haviam tentado renomear Leith e as outras comunidades de “Orla Edimburgo”.
Embora ele fosse sócio do Hibernian Futebol Clube e torcedor do Hearts, ele gostava de se referir a seu novo apartamento como ficando na “Orla de Edimburgo”.
– Vê isso – diz Starry, olhando para Lennox –, vocês gringos não percebem a diferença entre os bairros latinos!
Lennox tem que reconhecer que seus olhos não percebem muita diferença entre ruas mal iluminadas pelas quais vão passando, todas elas dividindo quarteirões uniformes.
Aquela área não parece muito rica, mas também não é um gueto. A maioria das residências nesses quarteirões são construções baixas, de um andar. Quando eles passam
nas ruas secundárias, as luzes do interior e das entradinhas iluminam algumas casas, mostrando a ele, num exame mais atento, que não há dois domicílios iguais. Alguns
jardins da frente das casas são bem cuidados, a um ponto que beira a obsessão. Outros são pontos de despejo de lixo. Lennox acha que há uma mistura de ocupação,
algumas são moradias dos proprietários, enquanto outras casas são alugadas. A casa de Robyn é diferente; ela fica num prédio de apartamentos cercado, com um portão,
a frente de estuque pintada de um pastel-laranja, iluminada por lâmpadas suspensas nas paredes, com uma entrada de veículos para estacionamento. Um painel de alumínio
de intercomunicação com cigarras anuncia doze residências, confirmado pelo número de caixas de correio num corredor austero, funcional, que se pode percorrer à luz
de luminárias fracas.
Ele está acostumado a subir as escadas do seu prédio em Edimburgo, mas a impaciência química e o leve gradiente dessas plataformas de azulejos o levam a subir de
dois em dois degraus em passadas compridas, como que saltando. O apartamento de Robyn é no último andar, dois acima do andar térreo. Pegando uma chave no caos que
é sua bolsa, ela sussurra “Sshh”, enquanto abre a porta. Lennox sente a mão de Starry acariciando sua bunda. Ele deixa a coisa correr por um instante, depois vai
andando pelo corredor, passando por uma mesa com telefone em cima dela, onde está um grande quadro branco cheio de números e mensagens. Melindrado, Lennox rapidamente
se afasta, entrando numa sala da frente, onde uma mistura de móveis baratos sugere que o local foi alugado mobiliado; o sofá de couro negro, com capa amarela, e
as cadeiras combinando pertencem a um depósito de móveis ubíquo que parecem fornecer móveis alugados para cada cidade que ele visitou. Os móveis estão num soalho
de compensado de carvalho, com um tapetinho no meio que parece mais caro do que realmente é. Uma mesinha de centro de vidro fosco está abarrotada de revistas; o
brilho espaventoso da luz acima, refletindo naquele acessório de cocaína que parece apresentar-se como um desafio para ele. Uma alcova, ladeada de luzes de Natal
de fantasia, leva a uma pequena cozinha com as paredes de terracota.
– Lugar bacana – Lennox observa.
Robyn diz a ele que ela mora ali há um ano. Ela veio do sul do Alabama e se mudou para Jacksonville com sua filha – a pronúncia sulista para a palavra “filha” soando
esquisita aos ouvidos dele – à procura de trabalho. Depois de vãs tentativas, ela viajara mais para o sul, primeiro para Surfside, onde trabalhou por pouco tempo
como empregada numa residência, e depois indo para ali, para Miami. Ela explica que o aluguel é barato e que era conveniente para o seu trabalho numa creche.
– Mas eu tive que parar de trabalhar lá – diz ela, com expressão de culpa –, para passar mais tempo com minha filha.
– Quantos anos ela tem?
– Dez. – Ela enrubesce de orgulho, e depois sai para ver a garota.
Lennox percebe Starry olhando para a amiga que sai com uma malevolência primeva tão venenosa, que isso a deixa embaraçada quando vê que ele percebeu o sentimento.
Defensivamente ela joga a cabeça para trás, avançando os lábios cobertos de batom brilhante.
Robyn volta, fechando a porta atrás dela.
– Dormiu logo – ela anuncia, aliviada. Diz que tem tido problemas com a filha na escola. A maioria das crianças falava espanhol em casa e no recreio, e assim Tianna,
que é o nome da garota, se sente isolada. – Ela tem se mostrado tão retraída ultimamente – diz Robyn, com tristeza, e depois ela vê a expressão de desprezo de Starry
e rapidamente muda para uma entonação mais leve –, mas, ei, isso aqui é uma festa, não é?
– É sim – concorda Lennox, caindo derreado no sofá, o olhar notando uma mancha escura no soalho de compensado, que sai de debaixo do tapete. Prestes a comentar aquilo,
ele rapidamente se corrige. Era uma festa, e ele estava de férias. Investigar um assassinato, não. Planejar um casamento, não. Férias, sim.
Starry lança um outro olhar de desdém para Robyn, que deixa Lennox e vai até o aparelho de som. Ele a acompanha com os olhos para evitar o olhar maldoso de Starry,
mas a nuca magra, angustiada, de Robyn o faz lembrar, perversamente, do seu último encontro com o pai. Ela coloca um disco e, quando o som cafona de música pop enche
o ar, ela o faz ficar de pé. A música é suave, inundando a sala com os clássicos retrabalhados do rock and roll, forçando Lennox a pensar no seu antigo parceiro
Robbo, um aficionado de soft rock, em supermercados e no que os americanos chamam de elevadores.
Robyn se cola nele, e enquanto eles dançam bem juntos, ele sente o esgoto se esvaindo de sua mente; ele sufocando sob o manto restringente da luxúria com o qual
ela o envolveu. De maneira automática ele reage à boca apertada dela quando ela morde seus lábios dormentes, a cocaína tornando a fumaça de tabaco do hálito dela
apenas tolerável. Os olhos dela estão tão vidrados e mortos como os de Jackie, a boneca favorita de Marjorie, a irmã mais velha dele. Lennox se lembra de “amar”
e “querer casar” com Marjorie, quando ele era uma criança pequena, cobiçando o brinquedo pelo menos tanto quanto sua irmã mandona.
Ele já contara essa história a Trudi uma vez.
– Vocês gostam que as mulheres sejam passivas como brinquedos – reagira ela cruelmente, antes de montar em cima dele nu.
Trudi. Ele não podia se deixar anestesiar pelos beijos de Robyn. Pegando o olhar de Starry e o aceno dela na direção da mesinha de centro, ele se afasta de Robyn
e vai na direção de onde estão arrumadas as carreiras. Ela já colocou ali a cópia de Noiva Perfeita; a revista se misturou a um desfile de outras publicações sobre
mulheres, televisão e celebridades. Lennox pega uma revista grossa, rebrilhante, chamada Ocean Drive, que ele suspeita ser uma cortesia de algum hotel-boutique.
Uma mulher que parecia ser famosa por ser uma herdeira e também por não estar exatamente gostando muito enquanto o namorado transa com ela diante da câmera, discutia
sua música e como isso era a coisa que ela fazia melhor. Lennox se lembra de ter assistido ao vídeo, disponível no comércio, em uma reunião de policiais, todos homens.
A mulher não era grande coisa; ele esperava que a música dela fosse melhor.
Ele enrola uma nota e enche as narinas, usando a generosa cavidade. A onda de narcótico invade sua cabeça. É mercadoria boa. Ele levanta o olhar para Robyn, que
sorri para ele.
– Como está a sua voz? Você consegue cantar alguma coisa? – ele indaga.
– Ah, acho que sim. – Ela inclina a cabeça timidamente, provocando tanto atração quanto náusea nele.
Ele se dirige ao banheiro, dessa vez observando sua urina, de tão espessa que conseguiria sustentar uma colher, manchar a água de um ouro-alaranjado profundo. Sozinho,
suas faculdades críticas substituem as sociais. Agora boas intenções e fraca força de vontade estão sinalizando por toda parte: um vidro vazio de desinfetante oral,
coberto de poeira, está ali há meses, obviamente. Um tubo ainda não aberto de tinta isolante está ali perto de um chuveiro cujo pinga-pinga faz uma poça d’água nos
azulejos de terracota do chão. Uma bateria enferrujada de ponta amarela pende do fundo de um depilador feminino elétrico quebrado.
Quando volta, ele vê Robyn sentada, olhando para suas próprias coxas e para o espaço entre as pernas. Ela acompanha sua linha de visão e se recosta no sofá, alisando
a saia curta numa paródia de falsa modéstia.
Ela é um caso perdido: voz de garotinha e faceirice vazia. Uma vítima patética. Sua filha provavelmente seguirá o mesmo caminho. Mas eu preciso tomar cuidado com
a minha onda: foderia até aquele buraco na cabeça de um golfinho.
Starry preparou os drinques; cerveja Miller para todos com vodcas e Pepsis, e ela está arrumando mais carreiras de cocaína na mesinha de centro. Mais é bom: é a
primeira lei do capitalismo consumista. Segunda lei: bom é ser de imediato. Lennox sente uma ânsia chegando. Starry percebe a fome nos olhos dele.
– Vamos, seu escocesinho. – O jeito dela é gracioso. Ele pensa em Braveheart, o cão, e está a ponto de testar sua narina mais fechada, quando uma garotinha, usando
camisola, aparece na porta da sala.
Sua pele faz um contraste moreno com a palidez da mãe, e contudo a garota ainda tem uma aparência quase espectral. O cabelo castanho cai dos lados de um rosto alongado,
até os ombros. Ela esfrega os olhos de sono de uma maneira óbvia, teatral. Envergonhado, Lennox imediatamente cessa sua atividade, e se levanta.
– Oi, eu sou Ray – diz ele, ficando entre a criança e a cocaína na mesa.
– Tianna Marie Hinton... você volte para a cama, minha jovem, agora é hora de adultos – declara Robyn numa voz de pânico, que ele imagina ser de mulheres dos comerciais
de imóveis em South Beach apresentados particularmente, talvez depois de ouvir uma baixa no mercado. Todo o tempo ela fica olhando para Lennox, com um ar de imbecilidade
oscilando entre ovino e bovino. Pela primeira vez, a criança lança um olhar para Lennox. É um olhar frio. Avaliando mais do que julgando, mas se apoiando em algo
que ela já viu antes. Alguma coisa que não era boa.
Ocorre a Lennox que ela ficou sozinha enquanto eles estavam se divertindo no Club Deuce e no Myopia, lá em Miami Beach. Aquilo não era certo. Crianças não devem
ser deixadas sozinhas dessa maneira. Britney Hamil nunca deveria ter recebido permissão para ir à escola sozinha. Ele sente a raiva se apossar dele e luta para suprimir
a sensação com um gole de cerveja. Todo o tempo ele mantém o corpo entre a garota e a mesa. Quando ela fica distraída pelas admoestações da mãe, Lennox coloca a
cópia de Noiva Perfeita sobre as carreiras brancas. Percebe Starry dando um olhar de deboche para Robyn, de novo.
– Eu não conseguia dormir – diz a garota. – Eu ouvi vocês chegando. – Ela olha para Lennox de novo e cutuca a mãe, procurando confirmação.
– Esse é Ray, meu bem. Ray é um amigo da Escócia.
– É onde os homens usam saia – Starry ri –, não é, Ray?
– É, sim. – Lennox praticamente a ignora, os olhos fitando novamente a garota. Os braços e pernas são longos demais para o corpo. O cabelo é uma gaforinha desgrenhada
e ela parece toda angulosa. Uma espécie de patinho feio, sem graça. Mas os olhos... – ele capta o rápido brilho de um terrível conhecimento nos olhos da garota.
Durante um segundo, Lennox tem a sensação deprimente de que eles estão pedindo socorro ao mundo. Depois essa sensação desaparece, e ela é de novo uma criança cansada,
carente de afeição, segurança e sono.
– Você vai pra cama agora, ouviu, meu bem? – diz Robyn.
A criança dá meia-volta resmungando e acenando um adeus superficial sem se virar. Quando ela sai da sala, Starry muda o CD e eleva o volume, enquanto a música cubana
enche o ar. O conhecimento que Lennox tem desse gênero de música começa e termina em Buena Vista Social Club, que ele viu com Trudi, que comprou o CD para ele. Ele
gostou do disco, embora tenha ficado embaraçado quando Ally Nortman, um vigoroso jovem policial de sua equipe com uma queda para a galinhagem, vira o filme e criticara
Lennox, acusando-o de ser um liberal, leitor de The Guardian. Alguns dos rapazes haviam vindo a seu apartamento para tomar um último drinque. Ele se lembra da presença
de Dougie Gillman, olhos frios, com sua ânsia de vingança amarga e perturbadora, a qual perdurou durante toda a noite. Mas essa música, agora, não tem nada disso,
ela é a coisa mais triste que ele já ouviu. Embora com vocalistas cantando em espanhol e presumivelmente cubanos, ele tem uma certa impressão de que o disco foi
produzido localmente, naquele bairro de Miami. Ele sufoca a tentação de perguntar sobre o artista; ficaria aliviado de nunca mais ouvir aquela horrível beleza novamente.
Esporadicamente ele fica imaginando o que houve com Trudi. O que é que ela estará fazendo agora? No quarto do hotel. Entregando-se a uma de suas patéticas reações:
“doente de preocupação” ou “não dando a mínima”. Talvez ocupando ambos os estados simultaneamente.
– Isso é uma merda – sussurra Lennox, derreando o corpo no sofá, num sorriso melancólico, antes que Starry venha rebolando na sua direção e o ponha de pé de volta.
Eles dançam juntos um pouco, antes de Robyn se intrometer. As mulheres estão adotando uma postura sexual. Lennox pensa especulativamente sobre ménage à trois. Será
que não é isso que ele necessita para sentir sua masculinidade de novo: extremis? A coisa funcionou da última vez, quando o trabalho e a droga se combinaram para
cauterizar seu corpo e sua alma. Mas uma corrente ruim se estabelece entre Starry e Robyn. Elas estão competindo forte e abertamente por ele. Ficando mais perto,
olhares sugestivos se arregalando com a necessidade, as bocas cerradas com ar agressivo. Ele pensa sobre a véspera, no Torpedo. Sente Robyn se encostar nele, os
braços em torno de seu pescoço. Pendurado nele, como um terno numa loja de caridade, numa aposta despudorada para isolar Starry.
Então a campainha toca e enquanto Lennox fica ciente de mais gente ter aparecido, ele sente suas narinas, mesmo que elas espouquem com catarro, impregnando-se do
perfume do cabelo de Robyn. O efeito da cocaína age duplamente com a música, a bebida e o efeito do fuso horário. Uma onda de exaustão, quase de tirar o fôlego,
atinge o fundo de seus olhos. Deixando-os fechados por uns segundos ou minutos, ele observa as nódoas roxas rodopiarem no universo dentro de sua cabeça.
Aí ele percebe que Robyn se afastou dele. Ele abre os olhos e se vê confrontado com um rosto pálido e fino, com um cabelo grisalho curto aplastrado para trás por
sobre o couro cabeludo; gelatinoso e dividido, podendo-se ver as marcas do pente. O rosto pertence a um homem branco magro, mas que parece resistente e forte, e
os olhos ofidianos verrumam Lennox, e este observa que o homem olha para Robyn também. A proximidade do outro faz Lennox dar um passo atrás. Depois ele vê uma camisa
de sarja metida dentro de uma calça do mesmo tecido. Olha para baixo, para tênis brancos, brilhantes, ou pelo outro nome que dão a esse calçado aqui desse lado do
Atlântico. O homem faz um cumprimento de cabeça seco para Lennox com um sorriso tão ligeiro que seria necessária uma câmera de filmagem em câmera lenta para registrá-lo,
e o recém-chegado diz então para Robyn num sotaque sertanejo sem exageros.
– Você teve fazendo compras de novo?
– Esse aqui é Ray – replica Robyn, em tom de desculpas. Lennox já detectou não apenas uma história, mas algum negócio não terminado.
– Meu nome é Lance, Lance Dearing. Prazer em conhecer você, Ray. – E ele sorri, estendendo a mão. Estrategicamente, Lennox pega a mão do homem com a sua boa, a esquerda,
a despeito da falta de jeito, aliviado de ter apresentado esta quando sente a força no aperto do outro. – Andou arrebentando uma boceta? – pergunta Dearing, apontando
com a cabeça para a outra mão pendente.
– Acidente industrial – retruca Lennox, corajosamente.
Mas Lance Dearing pôde evidentemente ler a trepidação no rosto dele, pois ele diz, calmamente:
– Não se preocupe, Ray; você não tá tomando o lugar de ninguém aqui. Nós vivemos nessa área há bastante tempo pra aproveitar dos prazeres da vida onde encontramos.
Ninguém faz perguntas. Não é assim, garotas?
Os dentes perolados de Starry brilham, as sobrancelhas se arqueando como um executivo de uma empresa de fast-food que vendeu a aparência bem como a alma para a loja
da companhia. Robyn dá um sorriso fraco, obsequiosamente servindo drinques para Lance e para um outro homem presente. Este é atarracado e troncudo, um latino, cabelo
oleoso comprido até o colarinho e um queixo áspero. Seu olhar para Lennox é de indisfarçável hostilidade.
– Esse aqui é Johnnie – sorri Lance.
– Você deve ser o cara de fora da cidade – diz Johnnie, numa voz arranhada, examinando Lennox de alto a baixo. Sua cabeça parece um pouco grande demais para as feições
espremidas sem generosidade no meio dela. A idade, avalia Lennox, aumenta esse efeito, como se uma catraca dentro do cérebro houvesse empurrado o topo, os lados
do crânio e o maxilar para fora, para os pontos cardeais. As enormes mãos de açougueiro parecem formidáveis; juntamente com o corpo compacto e os olhos esquivos,
elas sugerem um homem preparado para se apoderar do que quer sem esperar muita discussão. Essa ideia é contrabalançada por uma barriga mole, apertada dentro da camiseta
que tem os dizeres: EU FODO ALGUÉM POR COCAÍNA.
– Acho que ele não é o mesmo cara que você está pensando, Johnnie. – Lance sorri para Lennox. – Mas ouvi dizer que você lida com vendas.
A porra das vendas, pensa Lennox. De onde saiu isso?
– É mesmo.
– Eu também – Lance sorri, arrancando um risinho de Starry.
– Mas eu acho que esse cara aqui não é do mesmo tipo de vendedor que você. – Johnnie dá uma risada.
– Acho que provavelmente não – Lance diz com uma tristeza fingida. – Mas então, por falar nisso, eu acho que só há dois tipos de vendedores: os bons e os maus. Não
é isso, Ray?
Lennox permanece em silêncio, o sorriso caprichoso de Starry lhe dizendo que era com eles que ela falara ao celular antes. A presença deles é certamente uma surpresa
para Robyn, e não é uma coisa agradável, ao que parece. Lennox se afasta, sentando no sofá. O silêncio é sempre a melhor saída nessas situações, ele já descobriu.
Seus olhos esquadrinham a sala, parecendo sempre voltar para as pernas, as coxas ou a bunda de Robyn. Ele está ciente de que quer foder com ela, mas acha, envergonhado,
que isso acontece provavelmente apenas por causa de a presença de Lance e Johnnie ter adiado a oportunidade. Mas agora qualquer uma servirá. Alguma coisa disparou
atrás de seu pau.
Em vez disso, ele separa uma outra carreira da massa grande do pacote maior que Starry colocou na mesa, todo o tempo atento ao reaparecimento da criança, e aspira
a droga. Olha para a gravura de uma mulher seminua na parede. Depois pensa em Johnnie e Lance de novo. A preocupação de que ele fora acometido quando da intrusão
dos dois desaparecera agora. Seu medo se evaporando, ele imagina esse medo indo embora. Agora tudo que há dentro dele é uma raiva negra, parada e uniforme. Ele não
pensa mais em Britney Hamil, mas ele sabe que quando faz isso, ele pode matar qualquer um pelo falecimento dela.
E ele sente vontade de matar. Apenas ferir não seria suficiente. Seu humor sombrio percorre as veias como um veneno. Conhece aqueles rostos: o sorriso reptiliano
de deboche de Dearing, o olhar espesso, vazio, de Johnnie. Se pelo menos esses homens soubessem o perigo que correm. Rilha os dentes até que imagina ouvir o esmalte
quebrar. Mas ele é um policial. No exterior. Acalme-se, porra.
Então ele vai até a cozinha e pega outra cerveja na geladeira. Atenua esses ímpetos da cocaína. Robyn o acompanha. Ele quer foder com ela e matar todos os outros.
Até mesmo Starry. Principalmente Starry. Alguma coisa nela o perturbou. Aquela presença versátil: num minuto sexy, no minuto seguinte maligna e controladora. Ela
mudou quando os caras entraram. Ele pôde sentir isso. Perceber isso nos olhos dela. Talvez fosse só a cocaína. É boa mercadoria. Não tem muita química. Talvez fosse
porque ele estava usando toda a droga dela. Fica pensando se deve oferecer a ela dinheiro. Apalpa um maço de notas de vinte no bolso.
Não consegue pensar lateralmente. Seu fluxo de pensamentos é linear, como uma locomotiva em alta velocidade, avançando para um destino.
Tudo que ele pode fazer para cessar com aquilo é aspirar um pouco mais de cocaína. A droga ajuda. Você pode sobrepujar seus pensamentos. Volta para a sala de estar.
Robyn ainda o persegue, arengando alguma coisa sobre signos astrológicos, e ele levanta a cópia de Noiva Perfeita. As carreiras que ele escondera da criança ainda
estão intactas. Starry se aproxima e aumenta as carreiras, para Lance e Johnnie. Eles não representam nada agora, os outros três, nenhuma ameaça, apenas uma fonte
de drogas. Uma sensação desafiadora de exercício de um direito o invade. De férias. Trudi, a hipócrita. Starry tem uma outra bolsa grande cheia de cocaína. Uma massa
grande. Talvez seja uma noite longa. Uma noite comprida, comprida que dura apenas meia hora. Cada um deles aspira mais uma carreira. Lennox precisa da droga agora
mais do que nunca. Ele se lembra de como eles se sentavam perto do toalete no Grapes, o bar dos policiais jovens, ou no apartamento de alguém, frequentemente no
dele, cheirando e se vangloriando de como haviam prendido esse safado, ameaçado aquele outro, terminado com um terceiro, e iriam pegar mais um outro. Entretanto,
as críticas mais acerbas não estavam reservadas para os criminosos, mas sim para os seus chefes: na polícia, oficiais superiores, e políticos locais e nacionais.
Eram esses débeis mentais que fodiam tudo, que fodiam com o serviço deles.
Lennox fizera aquilo que ele chamava de “aquela coisa de reabilitação”, e ainda comparecia às reuniões regulares dos Narcóticos Anônimos. Ele sabe como a droga pressiona
você como se fosse uma flor silvestre, transformando-o em alguma coisa que se parece com você, mas que é uma representação unidimensional sua. Ouriçado e volátil,
todos os risos e zombarias deixando para trás seus limites de violência verbal, física e sexual.
Aquela garota na Tailândia; ela era apenas a porra de uma criança.
As férias dos rapazes em Bangkok. As garotas eram muito jovens, mas você não consegue distinguir isso com as asiáticas, tão esbeltas e mignons. E, afinal de contas,
nós estávamos de férias. Bêbados naquele bar Patpong, a garota tailandesa com o cabelo louro oxigenado, que sentara no meu colo. Notman, bêbado, sussurrando:
– Se você quer saber a cor dos pentelhos de uma vadia, olhe para as sobrancelhas, não para o cabelo.
Será que o empertigado George Marsden, com seu blazer impecável, teria se comportado como nós? Ou ele teria se comportado como policiais devem se comportar? E como
devem os agentes da lei se comportar quando de folga? Trabalham juntos. Se divertem juntos.
Aí eu vi a que estava com Gillman: ela era apenas uma criança. Eu disse a ele para soltar a garota.
– Ela foi paga para foder, então ela vai ser fodida – disse ele.
Eu estava bêbado. Nós discutimos. Eu afastei a loura que estava comigo. Tirei a outra, a criança, do colo de Gillman. Ele pulou de pé. Depois a cabeça dele atingiu
meu rosto e eu caí no chão, antes de ser metido num táxi por Norman. Esperei séculos num hospital de Bangkok para remendarem mal meu nariz. Mais tarde eu ouvi dizer
que ele descontou minha intervenção canhestra em cima da garota. Ela era só uma criança. Já que era uma criança, então foi reduzida, como Britney...
Você tem que parar de pensar.
A carreira sobe por seu nariz. O rosto de Britney se dissolve, transforma-se numa mulher com uma atitude atrativa e devassa diante de você.
Robyn. A voz nauseante, irritante, infantil, de alguma forma fica sexy. Uma beleza sulista: Scarlett O’Hara para seu Rhett Butler. Way down in Alabama. Uma entonação
leitosa perguntando:
– Você não quer deitar um pouco, meu bem?
E Lennox sabe que, mesmo sentindo vontade de foder todo o mundo, vai ser preciso uma sensação extrema, violenta, perversamente extrema, para fazer seu pênis frouxo
chegar perto de um pouquinho duro para cumprir a missão.
– Num segundo – diz ele, enchendo seu copo de vodca de uma garrafa. Ele se sente coagido, num vórtex imundo que ele mesmo construiu.
Lance Dearing se aproximou, arengando para ele. Ostensivamente falando a ele sobre pesca, mas Lennox sabe o poder explosivo das palavras quando se está sob o efeito
da cocaína, e que Lance está tentando estabelecer presença, poder e domínio. – Eu tirei um puta peixe do mar ontem. Levou algum tempo e eu pensei em cortar a linha
num certo momento, mas eu puxei o puto. A coisa foi assim: eu aguentei o filho da puta. Um otário não tem vez depois de morder meu anzol.
E então Lennox devolve com um sorriso mínimo nos lábios, e dá respostas monossilábicas. Enquanto ele olha para o rosto coriáceo do homem, observa a saliva saindo
pelo canto da boca, ele não sente nada agora: ele nem gosta nem desgosta de Lance. Como é possível isso? Eles são estranhos, estão cheios de cocaína. Rilhando os
dentes. Obstáculos para cada um deles ultrapassar: pilotos de Fórmula Um tentando contornar cones de tráfego em alta velocidade. Eles arengam em frases curtas, explosivas,
um para o outro, numa intimidade feia, cada um mostrando o nervo exposto do seu próprio ego para o outro. Aí Lance se levanta para dançar com Robyn, que obviamente
tem medo dele, e uma sorridente Starry, enquanto Lennox pensa no seu destino.
Ele não pode se casar com Trudi. Se eles estavam destinados a se casar, então eles já teriam feito isso. Ele a conheceu quando ela estava com dezoito anos e ele
vinte e sete. Oito anos atrás. Ele tinha acabado de receber sua segunda grande promoção. Detetive-inspetor Lennox. Seria o mais jovem Chefe dos Patrulheiros da Escócia,
eles que meio gozavam com ele. Mas, depois daquilo, nada. Enxugando gelo. Aspirando mais cocaína. E então os dois haviam se separado.
Três anos mais tarde, contudo, eles começaram a sair juntos novamente. Ele voltara da Tailândia e estava tentando se recuperar, frequentando os Narcóticos Anônimos,
e voltara a lutar o boxe tailandês. Eles se encontraram numa nova academia que ele estava experimentando. Sem que ele soubesse, ela era sócia do lugar. Um café.
Pondo a vida em dia. Ambos descompromissados. A centelha. Ainda estava lá. Pondo a vida em dia. Jantar. Um filme. Café. Cama. Pondo a vida em dia. O sexo: foi melhor
do que antes. Trudi: agora uma mulher entre vinte e trinta anos, esbelta, confiante, ratazana de academia e não uma adolescente ligeiramente gordinha. Ele: uma máquina
rude, sóbrio; a obsessão carnal dominando tudo. Pondo de lado as palavras de diversos caras da polícia: comida requentada. Cuidado. É uma fria.
Mas ela o amava. Ela o amava porque ele era uma causa perdida e sua própria vaidade era forte o bastante para convencê-la de que com sua marca de amor forte, Ray
Lennox, Projeto Lennox, poderia ter êxito. Ele poderia se tornar um super-homem obsoleto, um semeador de bons filhos escoceses protestantes, que se distinguiriam
não apenas nos estudos, mas nas lanchonetes grã-finas e nos esportes escolares, e seriam cidadãos-modelo do mundo, como os escoceses sempre foram. Ou pelo menos
os destinados a serem exportados.
Trudi viu como ele mudara. Amadurecera, era o termo que ela frequentemente usava. A primeira vez que ela o tocou de novo foi para correr o dedo pelo nariz.
– Está um pouco torto – dissera ela.
– Acidente na Tailândia. Quebrei o nariz – explicou ele, olhando-a nos olhos. – Foi isso que me fez deixar a droga. Eu percebi o que ela estava fazendo comigo. O
que eu perdera.
Ela gostou do que viu.
Mas ela vira o que queria ver. Ele estava uma mixórdia. Aparentando uma cara blasé eu-já-vi-tudo, quando seu interior estava como fígado picado. O frio Lennox com
os nervos em pandarecos. Seu velho parceiro Robbo sempre viu isso nele.
Às vezes dar uns socos e pontapés nos sacos de areia ajudava. Treinar com luvas. Adquirindo força, velocidade e confiança que vinham com a prática. Ganhando desenvoltura,
sabendo que os outros homens sentiam que ele não estava vazio, que havia algo atrás dele. Às vezes, contudo, quando acontecia alguma coisa realmente ruim, só a conversa
ajudava. Mas, em Edimburgo, você só falava bêbado, e a cocaína ajudava você a beber e a falar mais tempo. O caso Britney Hamil era algo ruim. Logo ele estava lutando
nos Narcóticos Anônimos, se debatendo e suando na academia, meio contra a vontade. Toda vez que ele folheava os registros, se defrontando com todas aquelas caras
de pedófilos, ele queria cocaína mais do que nunca.
– Vamos, meu bem – diz Robyn, frustrada, decidindo pela caça direta – eu quero foder –, o desespero selvagem dela fazendo-o lembrar da dançarina de striptease em
Fort Lauderdale, ou mesmo Trudi. – Isso é tão ruim? Tão egoísta?
Lennox pensa: é assim, sua porra de prostituta, a sua filhinha no outro quarto.
– Não. Mas eu não quero transar com você. Quero dizer – enrola ele, saboreando a força da rejeição por um instante –, eu não posso, cheirei cocaína demais.
Robyn lança um olhar temeroso para Lance e Starry, enroscados numa dança latina lasciva. Com suas caretas pegajosas e sussurros debochados, eles parecem estar conspirando
para destruir os dois, Robyn e Lennox. Nesse ínterim, Johnnie está sentado na poltrona, ensimesmado e mal-humorado, os olhos despejando fluidos malévolos. Lennox
olha para o rosto fundo, fantasmagórico, de Robyn.
– Vamos só para o outro quarto deitar um pouco – murmura ela, num apelo indisfarçável. – Preciso ficar com alguém, Ray. Estou fodida, minha vida está ficando uma
merda. Não sei o que vou fazer. Se não fosse por Tianna... ela é a única coisa boa que eu fiz na porra dessa minha vida fodida, miserável...
Ela não percebeu que sua voz aumentou de volume e que os outros estão escutando a troca de palavras.
– Isso parece muito divertido – zomba Starry –, uma vítima profissional e um cara que não consegue foder com ela!
– Você é uma linguarudazinha. – Lance revira os olhos e Johnnie ri com gosto. Agora, oficialmente, a casa está dividida.
– Por que – a fala de Robyn é um guincho, enquanto ela puxa Lennox pela mão ruim deste, obrigando-o a acompanhá-la para a porta – as pessoas têm que ser tão mesquinhas
assim? Por quê? É tão cruel, porra!
– Ah, nos poupe – interrompe Starry, desdenhosa. Lennox ouve ela rir. – Ela vai voltar quando precisar de mais pó.
– Eu calculo uns vinte minutos a partir de agora – acrescenta Lance, numa entonação esperta, de zombaria.
Lennox se vê conduzido para longe da bolsa de cocaína, a fonte de seu poder. Como nós amamos aquilo que nos mata. Ele ainda está por toda parte menos onde mais importa,
enquanto Robyn o arrasta para cima da cama, a saia levantada revelando um fio dental cor de carne ornamentado com os dizeres: EU TENHO A BOCETA, EU FAÇO AS REGRAS.
Ela arranca o fio dental pelo lado, expondo um tufo espesso de pelos púbicos ao estilo punk, todo arrepiado, e beija Lennox na boca. Ele sente o cheiro sujo, azedo,
de fumo velho no hálito dela, sente seu próprio maxilar trancar. Robyn se afasta de seus lábios fechados, defensivos, e deita de costas na cama. À luz do quarto
ele vê a mandíbula de Robyn afundar no rosto dela, derretendo-se na carne obscena inchada do pescoço, que parece ter surgido do nada, fazendo-o pensar naquela rã
exótica com sua instantânea e chocante expansão da garganta. Lennox fica paralisado, um inseto na proximidade daqueles olhos hipnóticos, esbugalhados. Então ela
salta para a frente e monta nele, abrindo o zíper, a mão dentro da calça e da cueca, os dedos ansiosos fazendo a mesma pergunta repetidamente, sem obter a resposta
que eles desejam tanto.
Um bocejo de exaustão espouca no meio das ondas provocadas pela cocaína. Lennox tenta prendê-lo, mas o bocejo se liberta de seu rosto, quase levando a mandíbula
a um espasmo. Ele pode ouvir a respiração ofegante, desesperada, de Robyn.
– Sexy... garoto sexy...
Provavelmente não passou muito da meia-noite, e contudo ele sente a madrugada da manhã seguinte rodopiando incessantemente sobre ele, vinda do espaço.
Um olhar para Robyn revela os olhos dela ainda protuberantes, como os de um cientista louco.
– Eu vou fazer com que você consiga, Ray. Eu sei do que vocês gostam, cara!
Ela se lança por cima da mesinha de cabeceira e de uma gaveta ela tira um par de algemas forradas de pele.
– Nós podemos fazer qualquer coisa que você quiser. Você quer me prender na cama? Você pode fazer qualquer coisa que você qui...
Robyn é interrompida quando um grito terrível enche o ar. O grito não para. O primeiro pensamento de Lennox é que o grito parece ser de uma criança. Depois tanto
ele quanto Robyn percebem que o grito é da filha dela. Ela está gritando. Lennox fecha o zíper e corre na direção do barulho, com Robyn atrás dele. Ele empurra a
porta do quarto da garota, abrindo-a. Johnnie está ali, em cima da criança que se debate, tentando colocar a mão sobre sua boca. As cobertas estão afastadas e a
outra mão está dentro da camisola.
Lennox avança e agarra o cabelo escorrido com ambas as mãos, seu punho enfraquecido primeiro lutando para segurar com firmeza a brilhantina no cabelo de Johnnie,
e depois sentindo uma pontada de dor na mão ruim, quando ele puxa o homem de cima da garota e da cama. Johnnie berra, seus gritos juntando-se aos guinchos intermitentes,
tipo alarme sonoro, de Tianna, enquanto Lennox o arrasta para o chão, dominando-o com os pés.
Aí Lennox sente seu braço torcido para trás, seguido de uma dor cegante, cruciante se espalhando do ombro para machucar sua alma, enchendo-a de náusea. Seu calcanhar
gira para trás e bate num joelho, e o aperto é aliviado. Ele se liberta e fica cara a cara com Lance Dearing, o rosto num esgar, mancando.
– Basta! – avisa ele, empurrando o peito de Lennox, jogando-o de volta à sala de estar, enquanto Lennox balança o braço, tentando dissipar a dormência que sente
no membro. Ele fica de perfil, pondo o peso do corpo atrás do ombro, para firmar-se e resistir naquela posição, o braço, ainda inútil, pendendo à sua frente. – Tire
esse safado da porra do quarto! – ele grita, e consegue ouvir a garota chorando, enquanto a mãe e Starry discutem histericamente. Ele se lança para a frente, passando
por Lance Dearing. Este o agarra, tentando de novo uma chave de braço, mas Lennox prevê o lance e ele começa a sentir o braço de novo. Ele se livra do aperto de
Lance e eles se atracam, cambaleando para a frente e caindo em cima da mesinha de centro, de vidro.
– A porra da minha merc... – grita Starry, enquanto a cocaína e os pedaços de vidro partido se espalham pelo tapete e pelo chão de madeira.
Ambos os homens, miraculosamente sem ferimentos, se levantam. Lennox fica de pé primeiro, correndo de volta para o quarto de dormir. Ele golpeia Johnnie no lado
da mandíbula com um cruzado de direita, que faz queimar os nós dos dedos machucados. Robyn está perseguindo Starry, gritando e, observando uma expressão de apelo
no rosto da garota que grita, Lennox a tira da cama pela mão, correndo para o banheiro e trancando a porta atrás deles.
– Mantenha eles longe de mim! – uiva a garota, Tianna, para ele, sentada, amedrontada, no vaso, agarrando o próprio cabelo com os punhos cerrados.
– Está bem, boneca, está tudo bem. – Lennox a acalma enquanto sua mão direita lateja e o braço esquerdo dói. – Todo mundo bebeu demais. Ninguém vai machucar você.
– Ele tentou... eu disse a ele para me deixar em paz! Por que eles não me deixam em paz?
– Está bem... – Lennox tenta produzir uma entonação tranquilizadora enquanto ouve a discussão correndo solta do lado de fora; a histeria aguda de Robyn, o deboche
implicante de Starry. Depois a voz de Lance vinda de detrás da porta, fria e autoritária.
– Nós já nos acalmamos. Você pode sair daí agora.
– Não! – grita Tianna.
– Tia, meu benzinho – choraminga Robyn.
Lennox encosta o rosto na porta e grita através da madeira:
– Ouçam aqui vocês, levem embora a porra desse gordo. Estou dizendo a vocês, agora!
Talvez as chances dele contra aqueles dois e a maluca da Starry sejam muito desfavoráveis. E ele não quer que a criança veja mais coisas. Ele mantém a porta trancada.
Tianna olha para o homem que a está protegendo. Mas talvez ele seja igual aos outros. Quer fazer algo ruim com ela. Ele está cheio desse pó maluco que eles todos
tomaram. Ela se vira e olha para o papagaio de plástico colocado no peitoril de azulejos da janela. Aquele que ela ganhou no Mundo do Papagaio, com Chet e Amy. Se
pelo menos eles estivessem no barco agora, longe desse lugar terrível.
Vindo do ninho de víboras do lado de fora, Lennox ouve Johnnie protestar, murmurando, alguma coisa que soa como:
– Eu só gosto de bocetinha jovem.
– TIRA ELE DAQUI, PORRA! – berra ele, encostado à porta, dando uma olhada ligeira para a garota sentada no vaso.
Aí vem a voz de Dearing de novo: calma, conciliatória, no controle da situação.
– Está bem, está bem. Vamos fazer como você quer, Ray. Vamos fazer como você quer. Nós todos ficamos um pouco perturbados com essa porra. Não queira tornar as coisas
piores. Johnnie está indo embora. Eu vou levar ele embora e vou levar as garotas para tomar um café num restaurante que fica aberto dia e noite. Só dando um pouco
de tempo para deixar as coisas se acalmarem. Está ouvindo?
– Estou. Leva ele embora.
Há uma troca de palavras e a porta da frente bate forte. Fora: sons de vários pés nos degraus da escada de azulejos.
Lennox percebe que seu coração está arrebentando dentro do peito. Ele se senta na borda da banheira. A garota, tremendo, sentada no vaso, chora baixinho, infeliz.
Uma criança não devia passar por toda essa merda.
– Você está bem?
Ela faz um aceno de cabeça afirmativo, expressão infeliz, as feições atormentadas pouco visíveis entre as mechas de cabelo.
– Ele machucou você?
Tianna balança a cabeça ligeiramente, obviamente em choque, calcula ele.
Ela deixa o cabelo cair à frente do rosto, observando Lennox por detrás desse escudo. Ele tem aqueles olhos malucos que todos eles têm. Pode ser a bebida ou as drogas.
Mas ele parece forte: talvez até mesmo mais forte do que gente como Johnnie e Tiger.
Eles esperam algum tempo. Ele está quase convencido de que todo mundo já se foi mas de repente ele ouve a porta de um armário bater, depois uns passos solitários
seguidos do fechamento da porta da frente.
Furtivamente Lennox abre a porta do banheiro. Ao sair ele ouve o fecho trancar atrás dele. Ele examina o apartamento.
– Não há ninguém aqui. Todos eles foram embora – ele diz para Tianna. Depois de alguns minutos, ela surge cautelosamente do banheiro. – Sua mãe logo estará de volta,
vá para a cama. Vamos – insiste ele. – Eu não vou deixar ninguém voltar para casa. Só sua mãe.
– Você promete? Apenas mamãe?
– Prometo – Lennox insiste. – Por favor, vá para a cama.
Enquanto ela se dirige hesitante para o quarto, Lennox atravessa a sala da frente e tenta arrumar a bagunça formada pelo vidro quebrado. A Noiva Perfeita está caída
ali no meio dos destroços, o sorriso de sacarina na noiva de branco da foto da capa, agora espetacularmente deslocado naquele ambiente. É óbvio que Starry efetuou
uma operação de salvamento para recolher os restos de cocaína, mas há ainda resíduos dela no tapete. Durante um segundo, ele pensa em recolher aquilo com uma nota
de um dólar, mas depois ele chuta e pisa nos resíduos com a bota.
Lennox vai até o hall de entrada e passa o fecho na porta da frente. Qualquer um que quiser entrar vai ter que passar por ele primeiro. De volta à sala ele vê o
sofá e, esgotado, se joga agradecido em cima dele.
7
Edimburgo (2)
A despeito de sua exaustão, você saiu cauteloso, com a ponta dos pés, do seu apartamento em Leith naquela manhã de sexta-feira como um ladrãozinho iniciante, carregado
de culpa por ter desperdiçado umas poucas horas de sono. Lá fora fazia um tempo bom e estava fresco, com as folhas de outubro ficando marrons, e você parou para
um café expresso duplo na Stockbridge Deli, mandando a bebida para dentro antes de cruzar a rua e se dirigir para a sede da polícia. O pessoal lotado lá chamava
o lugar de Fettes, mas, para a população em geral, o prédio nunca se livrara daquele manto da antiga escola particular do outro lado da rua. Conforme os pássaros
gorjeavam na luz cada vez mais forte que se espalhava tenuemente pelas calçadas cinzentas, você pensou sobre como aquela pequena área de Edimburgo definia não apenas
a cidade, mas o Reino Unido. A grandiosa instituição educacional para os ricos, em frente à sede da polícia, como que supervisionando sua própria observação elevada
de Broughton, o estado abrangente às massas.
Britney Hamil já estava desaparecida havia dois dias, mas a equipe da livraria Forbidden Planet na South Bridge levou apenas cinco minutos para estraçalhar as fantasias
sobre Gary Forbes ser o Homem Mais Cruel de toda a Grã-Bretanha. Eles declararam para Amanda Drummond que Gary estava folheando livros lá, como fazia todo dia, quando
Britney desapareceu. Ele foi, como você previu, indiciado por desperdiçar o tempo da polícia depois de levar dois policiais uniformizados a passar metade de uma
tarde em algumas matas em Perthshire.
Ronnie Hamil era algo diferente. Ainda não chegara nada da equipe que vigiava seu apartamento em Dalry. Os vizinhos confirmaram suas perambulações erráticas, e um
consenso surgiu de que ele era uma personalidade mal-humorada, de aparência suja, que levava uma vida marginal e habitualmente fedia a tabaco e álcool. Você sabia
que ele logo apareceria, estava provavelmente escondido bêbado em algum lugar, e você tinha a esperança, além da sua expectativa, de que ele estaria com a neta,
vivo e bem.
O desaparecimento de Britney chegara à mídia nacional. Na sala pequena, claustrofóbica, que a equipe de investigação compartilhava, uma mentalidade de sítio fazia-se
sentir nos rostos tensos, boca aberta para Angela Hamil na Sky News, fazendo um apelo tranquilo mas emocional pela volta de sua filha em segurança. Gary Forbes nunca
fora um candidato a criminoso levado muito a sério, mas o desapontamento de sua equipe ainda era evidente. Com a possível exceção de Amanda Drummond, eles olhavam
para você como um bando de bebuns costuma fazer quando um deles pede um suco de laranja. Eles tinham sangue em suas bocas. Não iriam parar de se alimentar. Não se
diria a um grupo de leões famintos que eles acabaram de abater a zebra errada. Você nunca estivera tão próximo de Guillman desde as férias na Tailândia. Por vezes,
você viu seus dedos tamborilando no nariz nervosamente.
Mas o homem que todo mundo queria continuava desaparecido. Acompanhado de Amanda Drummond, você foi visitar Angela Hamil. O desespero e culpa por não estar entusiasmado
com um candidato óbvio obrigaram você a jogar duro. Você se sentou no sofá gasto de Angela, uma caneca rachada de chá com leite na mão.
– O seu pai está desempregado e você trabalha todo dia. Mas ele nunca ajuda você com as crianças?
Em resposta às suas dicas, Angela baixara os olhos cansados, pisados.
– Ele não é bom com as crianças – murmurou ela, dando outra confortável tragada no cigarro e depois apagando a guimba.
A resignação passiva dela o irritou, e você precisou se esforçar para não mostrar esse sentimento.
– Por que você não confia em seu pai para ajudar com suas filhas?
A respiração de Angela era curta e apertada enquanto ela acendia outro cigarro; como se ela temesse que inspirar o ar para dentro dos pulmões sem o acompanhamento
da fumaça de tabaco poderia ser fatal. Você pôde imaginá-la algum dia esquecendo de levar cigarros e caindo morta com um ataque, a caminho da loja da esquina.
– Ele não é bom com esse tipo de coisa – ela gemeu.
– Você não acha que ele poderia ficar com elas por algumas horas? – você pressionou, lançando um breve olhar para Drummond, os olhos dela como dois pires. – Para
ajudar você.
– Minha irmã Cathy ajuda... ele aparece de vez em quando... – lamuriou-se Angela; ela não era uma boa mentirosa. Amanda Drummond a olhou com simpatia.
Suas exigências ficaram mais duras.
– Ah, é? Quando foi a última vez?
– Eu não sei. Não consigo me lembrar!
Você aspirou forte, tentando encontrar algum oxigênio entre os rolos de fumaça em torno de você.
– Vou ser direto, Angela. Estou fazendo isso porque sua filha está desaparecida, e seu pai não é visto há alguns dias. Você me compreende?
A mulher meditou no silêncio pendurado no ar. A mão que segurava o cigarro queimando lentamente mexeu-se num espasmo.
– Você me compreende?
Angela Hamil assentiu lentamente para você, e depois para Drummond.
– Será que seu pai alguma vez deu qualquer razão para que você acreditasse que ele se comportou de maneira não apropriada em relação às meninas? – Uma breve pausa.
– Ele se comportou da mesma maneira com você quando era mais nova? – você acrescentou, sem alterar o tom de voz, examinando atentamente o terrível silêncio da mulher.
Sentiu que ela desmoronava lentamente por dentro. – Por favor, me responda – continuou em voz baixa, como um cachorro pronto para irromper num uivo –, a vida de
sua filha pode estar em perigo.
– Sim... – ela arquejou, sem respirar. – Sim, sim, sim, ele fez. Eu nunca fora apalpada por ninguém antes... – As maçãs do rosto dela afundaram sob a maciça inalação
de fumaça do cigarro. Você quase não conseguiu acreditar na velocidade em que o cigarro queimou. Ela esmagou a guimba num cinzeiro azul, de bar, e acendeu outro
cigarro. O pânico grudava na superfície da pele pálida dela. Você ficou observando a mulher murchar sob a barragem de acusações. – Você não acha... – e ela desmontou
–, que ele e Britney... não Britney... não... – e Drummond deslizou para o sofá e colocou o braço em torno dos ombros magros da mulher. – Se ele a tocou – o rosto
marcado dela ficou ameaçador –, ah, quando eu puser as mãos nele...
Aquelas ameaças vazias, impotentes, você pensou com desdém.
– Sei que isso é perturbador. Amanda, você ficará com Angela? – Você assentiu, mas a sua piscadela traiçoeira para Drummond acrescentou: descubra o que puder.
Você não tinha a menor inclinação por detalhes. Você foi para fora do prédio, telefonando para Bob Toal. O chefe tinha razão, você estava errado. Ronnie Hamil era
um pedófilo, e sua caçada era agora apenas atrás dele, abandonando os outros. Você escavou tantas fitas das câmeras de segurança quanto pôde, cobrindo a área de
Dalry nos últimos poucos dias, trabalhando com elas para a frente e para trás desde a hora do desaparecimento de Britney. Dessa vez a dificuldade estava na abundância
de material; a casa de Ronnie era perto do estádio Tynecatle, e havia câmeras à beça nas vizinhanças. Tentar identificar uma imagem do avô nas multidões de torcedores,
fregueses das lojas e bêbados era como procurar uma conta de poliestireno numa geleira.
E quanto ao restante da sua vida? Havia Trudi. De volta à sua sala, você abriu uma gaveta trancada e pegou o rebrilhante anel de noivado que ficara ali por uns quatro
meses. Nunca parecia que era a hora certa. Talvez, você pensou, fosse melhor fazer aquilo na hora errada, se permitir o impulso de que você tanto precisava. Sentado,
olhando para o brilhante, deixando que ele o mesmerizasse. Dougie Gillman meteu a cabeça pela porta da sala.
– Ainda nenhum sinal de Gary Glitter?
– Nenhum. – Fechando vagarosamente a caixa do anel e colocando-a na mesa, abaixando a cabeça para os papéis, você podia sentir os olhos de Gillman em você durante
umas poucas frias pulsações antes de ouvi-lo ir embora. A violeta africana parecia ter murchado ainda mais. Você pôs a caixa no bolso, furioso com a intervenção
de Gillman.
Depois de um doloroso mas infrutífero turno de serviço, você foi até o bar e tomou o seu primeiro drinque em muito tempo. O segundo o obrigou a deixar seu carro
em Fettes e tomar um carro para a casa de Trudi. A caminho, uma estação de rádio estava irradiando um debate morno no que deveria ser feito para comemorar o tricentenário
da união entre Escócia e Inglaterra, em 1707, a ocorrer daí a uns dezoito meses. Ninguém parecia saber disso, nem se importar. A sua atenção foi desviada quando
você avistou Jock Allardyce subindo a rua Lothian, e, por um segundo, você pensou que ele vira você acenar, mas você estava obviamente enganado, pois ele não fez
nenhum sinal de reconhecimento.
Quando chegou à casa de Trudi, você encontrou-a ocupada com um relatório do trabalho, sobre uma restruturação da seção onde ela trabalhava. Ela ficou contando para
você o que fazia e você ficou escutando.
– O que é que há, Ray? – ela indagou. – Em que é que você está pensando? – Olhou para você focalizando melhor os olhos. – Você esteve bebendo?
– Estive – você disse, com um sorriso no rosto.
– Mas os Narcóticos Anônimos... Keith Goodwin...
– Eu tenho estado com a cabeça ocupada.
– O trabalho? O caso com aquela garotinha?
A emoção derreteu-se nele ao olhar para ela.
– Estive pensando que nós deveríamos nos casar.
E você foi rastejando nos joelhos pelo soalho e enterrou a cabeça no colo dela, tirou o anel, levantou o olhar para ela e fez o pedido. Ela disse sim e mais tarde
vocês foram para a cama e transaram por quase toda a noite. É estranho para você pensar que aquela foi a última vez.
Porque, quando você acordou na manhã de sábado, Britney desaparecera, sem deixar vestígios durante três dias inteiros. A consciência disso acabou com seu gás. E
a coisa ficou pior com Trudi andando de cá para lá na sala, falando no telefone celular, tremendo de excitação ao anunciar a novidade para suas amigas. Você poderia
ter ido embora sem que ela dissesse:
– Eu reservei lugares para o Obelisk domingo. Somente eu, você, nossas mamães e papais, Jackie e Angus, e Stuart e quem quer que seja...
Ela captou a sua expressão congelada.
– Eu não poderia conseguir nada decente numa noite de sábado num prazo tão curto!
– Não é que... será que não poderíamos manter a notícia um pouco mais discreta durante algum tempo...?
– Nós temos que comunicar a eles, Ray. É a família – insistiu Trudi enquanto ela o silenciava com um beijo –, essa deve ser uma ocasião feliz! Já telefonei para
todo mundo e acho que eles sabem o que vem por aí! – Depois ela declarou: – Tudo que você precisa fazer é aparecer às oito horas amanhã, e ser agradável!
– Está bem.
Então um telefonema de Notman chegou pelo seu celular.
– Ronnie Hamil acabou de chegar ao apartamento dele. Ele parece fodido. Prendo ele?
– Não. Eu estou em Bruntsfield, encontro você em dez minutos. Quero checar o dossiê dele.
O olhar implorativo de Trudi, tentando preencher os seus espaços frios, brancos.
– Desculpe, benzinho, mas eu acho que pegamos o filho da puta – você disse, e se lembrando que deixara o carro em Fettes, teve que pedir as chaves do Escort dela.
Notman estava esperando na van azul fora do conjunto de prédios. A residência de Ronnie Hamil era no último andar de um prédio de segunda categoria que escapara
miraculosamente das renovações da área, a qual vinha acontecendo durante grande parte dos últimos trinta anos. Com lixo, iluminação parca e degraus gastos, parecia,
como o vovô, ser um remanescente dos anos 1970.
Duas batidas firmes trouxeram Ronnie Hamil até a porta. Era um homenzinho malvestido, furtivo, cara de sanfona, seus dentes negros e amarelos expondo uma deliberada
malícia debochada. Com o chiado de bronquite que o acompanhava, ele parecia o retrato falado do miserável velho pervertido que constava no Arquivo Central da Polícia.
Você pensou em Angela, em como os dedos manchados de nicotina do velho a tinham violado quando criança. Mas seria ele agora responsável pelo fato de que as próprias
mãos dela, também marcadas pelo fumo, aconchegavam somente uma das suas crianças à noite?
– Polícia – dissera você, quase engasgando com a palavra, quando entrou no apartamento, você e Notman fisicamente se encolhendo sob o impacto do tremendo mau cheiro,
os olhos dos dois lacrimejando. Surpreendentemente, Ronnie Hamil não percebeu isso quando os convidou a se acomodarem na sala de estar.
Empurrando para o lado jornais velhos para abrir espaço, você achou uma cadeira quebrada. Você nunca vira tantas pilhas arrumadas e outras desarrumadas, espalhadas
pelo chão e pelos móveis, alguns amarelados pelo que você esperou que fosse a idade. Tudo parecia ser cópia do Daily Record e do Edimburgo Evening News. Era uma
bela ratoeira, pensou você, mas havia coisas mais importantes com que se preocupar.
– Onde é que o senhor tem estado, sr. Hamil?
– Isso é coisa minha.
– Não, é nossa. O senhor não lê os jornais? – você disse, sem pensar, e depois olhou em volta da sala e levantou as sobrancelhas. Você pôde ver que foi só o cheiro
penetrante que impediu Notman de dar uma risada.
– Um anjo, aquela garotinha – disse Ronnie Hamil, com ar triste. Depois a animosidade encheu seus olhos. – Se eu colocar minhas mãos nesse safado...
– Onde é que o senhor esteve desde quarta-feira?
– Fui fazer uma viagenzinha. – O pedófilo incestuoso deixou que um sorriso aflorasse nos lábios. – Não dou muita importância a isso.
– Você é íntimo das crianças? – perguntou você, tossindo conforme o cheiro ficou mais forte, adquirindo uma maior densidade, irritando suas narinas.
– Sou, vou lá de vez em quando tomar uma xícara de chá e bater um papo.
– Mas elas nunca vêm visitar você?
O rosto dele afundou tão violentamente que foi como se um objeto invisível houvesse atingido sua mandíbula. A voz ficou uma oitava mais grave.
– Não com muita frequência.
– O que é isso? Uma vez por semana? Uma vez por ano? Você diria que gostaria de vê-las mais vezes? – Você desafiou, olhando em torno com nojo para o papel de parede
velho, a bagunça de invólucros de quentinhas e embalagens, mas principalmente para os jornais. O pior de tudo, entretanto, era aquele cheiro de azedo violento! Você
tossiu, depois se viu quase vomitando de novo. Notou que Notman abrira os botões de cima da camisa e que seu olho esquerdo tremia incontrolavelmente. O fedor estava
além de qualquer coisa que lixo velho, comida queimada, pão azedo e fumo poderiam produzir. Alguma coisa maligna fazendo aquele lugar feder. Estava matando você.
Um terrível pensamento se apoderou de você.
– Por que todas essas perguntas? – rosnou Ronnie Hamil, de alguma forma ainda indiferente ao seu desconforto e à fonte que o produzia.
– O senhor vai até a delegacia para nos ajudar com os interrogatórios, sr. Hamil – você disse, tentando parecer indiferente, enquanto o cheiro pungente continuava
seu ataque cruel, assoberbante, enchendo sua boca. Você viu as sobrancelhas de Notman se levantarem, sua fúria aumentando, e você não iria a lugar nenhum até que
descobrisse a resposta para outra pergunta: a origem do cheiro ali, e você se levantou e começou a olhar em torno. Seus primeiros pensamentos foram para o forro
do teto.
– Ah, é, achei que vinha do vizinho...
Notman localizou a fonte: um gato preto morto, que havia se eletrocutado roendo um fio que corria para um abajur, e jazia debaixo de uma pilha de jornais debaixo
do sofá. Estava coberto do que parecia ser arroz. A princípio você achou que o animal fora envenenado por um velho invólucro de comida chinesa jogado fora, mas depois
viu que os grãos estavam se movendo. Você se inclinou para mais perto: o gato morto estava enxameando de vermes.
– Emlyn – despejou Ronnie Hamil, aparentando um genuíno sofrimento – então foi aí que você se meteu, seu idiotinha... – ele caiu de joelhos em frente ao cadáver
em decomposição do animal.
Você saiu rapidamente, fazendo um lembrete mental para telefonar tanto para o Escritório de Saúde Ambiental quanto para a Real Sociedade de Prevenção à Crueldade
com os Animais. Ao sair havia gente reunida andando por ali, se dirigindo ao estádio. Metendo Ronnie na traseira da van, Notman voltou-se para você e reclamou:
– Líder do campeonato da Liga e estamos perdendo o jogo graças a uma porra de um pedófilo.
Você embarcou na van, pegaria o carro de Trudi mais tarde, deixando que Notman dirigisse passando pela arquibancada feita de amianto projetada por Archibald Leith,
a última parte sobrevivente do velho estádio. No campo, mercenários estrangeiros vendendo sanduíches em bandejas marrons haviam substituído os rapazes locais. Em
vez das escadas íngremes onde homens gritavam, bebiam, brigavam, se abraçavam e urinavam uns nos outros, havia agora arquibancadas cor-de-rosa. A cervejaria ao lado
fechara, removendo o cheiro prevalente de lúpulo da área.
Ronnie Hammil forneceu seu próprio cheiro particular no caminho para a sede da polícia em Fettes, onde você conduziu o interrogatório. Na manhã de quarta-feira,
quando Britney desapareceu, ele disse que saíra para beber, depois caminhou ao longo do canal. Não tinha testemunhas. Tudo que dizia se lembrar era ter acordado
de manhã no chão de um conhecido de bebedeiras, em Caplaw Court, um prédio alto de apartamentos em Oxgangs, já programado para ser demolido. De novo, as carroças
formavam um círculo contra o ataque dos índios. Mas você tinha suas dúvidas. O velho era frágil. Até mesmo com o elemento surpresa, ele seria forte o bastante para
dominar Britney tão rapidamente? Não havia nada que ligasse o avô ao que Toal via como a sua obsessão prejudicial, a van branca. Ronnie Hamil sabia dirigir, mas
ele não possuía um veículo e não foi possível desenterrar registros de que houvesse recentemente alugado ou tomado emprestado um.
Da mesma forma como fizera com Angela Hamil, você fizera Amanda Drummond interrogar a irmã mais velha de Britney, Tess. A garota, tendo se recobrado do envenenamento
alimentar, confirmou que lhe haviam dito para evitar seu avô.
– Mamãe diz que nós não devemos nos aproximar dele. Diz que ele não tem a cabeça boa.
Você e Notman, felizes com a notícia de que o Hearts ganhara de dois a zero, estendendo sua série invicta para onze jogos, intensificaram o interrogatório de Ronnie
Hamil. Enquanto riachos carregados de bebida corriam pelo rosto dele, você teve a sensação de que o velho se dissolvia debaixo das compridas luzes do teto. O fato
de ele desaparecer, e a confissão de Angela de que ele abusara dela, quase eram o bastante para Bob Toal, mas não havia um corpo. Assim o alcoólatra estuprador de
sua única filha não foi indiciado, mas foi colocado sob vigilância 24 horas por dia. Você o queria fora da prisão, na esperança de que ele o levaria a Britney, ou
a seus restos mortais.
Escoltando Ronnie Hamil até a recepção da delegacia, você o observou seguir em passo incerto para desaparecer na escuridão do crepúsculo, e depois voltou à sua sala.
Notman meteu a cabeça na fresta da porta.
– Mais novidades – disse ele, mal-humorado, e por um segundo você ficou esperando a notícia de que haviam encontrado o corpo da garota –, Romanov acabou de demitir
Burley.
Você girou o corpo na cadeira.
– Você está de brincadeira, porra!
– Não, deu na Sky.
– Mas nós somos líderes do campeonato e invictos! Que porra é essa dele agora?
– Ninguém sabe, porra.
De repente você ficou calmo. Sua raiva não era realmente dirigida aos Hearts, embora você não contivesse um arquejo.
– Também tem a porra do clássico semana que vem.
O seu time de futebol dera um tiro no pé, de novo, mas você sentia que agora eles podiam nomear qualquer um para o cargo de técnico e isso não tinha importância:
a glória dos últimos anos da década de 1950 e os primeiros da década de 1960 não iriam voltar. As equipes da área de Glasgow, onde falam um dialeto específico deles,
haviam se posicionado melhor, usando o preconceito para alavancar seus interesses, e depois indo para o lado certo do consumismo. Mas eles e seus torcedores-seguidores
eram bem-vindos a ela, a glória vazia por procuração. Tudo que interessava a você era achar uma criança ilesa.
No dia seguinte, duas pessoas que caminham aos domingos, encarando um vento frio cortante e uma chuvinha intermitente, haviam visto algo jogado pelas ondas nas rochas
de uma enseada pedregosa, nos penhascos perto de Coldingham. Eles avistaram o corpo desnudo azul-acinzentado de uma garota.
– Parecia uma boneca – disse um deles. – A princípio não pude acreditar que era uma criança.
Você estava no apartamento de Trudi, em Bruntsfield, quando recebeu a notícia. A caminho, seguindo pela rodovia AI, você se sentira extremamente calmo. Depois olhou
para a criança morta, a água batendo de leve contra a pele fria.
– Desculpe, querida – você sussurrou, prendendo a respiração, sentindo suas próprias mãos geladas e dormentes. A parte do trabalho que você mais odiava era conversar
com as vítimas dos criminosos sexuais. Geralmente eram mulheres, de modo que as normas departamentais e o protocolo frequentemente o poupavam dessa provação. Mas
aquela criança nunca poderia lhe dizer quem fizera aquilo com ela. Colocando as mãos em concha no rosto, você soprou sua respiração quente nelas. A alguns metros
de distância, a bolsa escolar de Britney, com os livros, fora jogada fora. Como não havia sinais das roupas da garota, a coisa parecia deliberada, em vez de ser
um ato descuidado, mas fora de sintonia com o restante do crime.
Uma equipe de helicóptero retirou o corpo que foi levado para o necrotério. Britney morrera a menos de catorze horas, mas já desaparecera havia três dias. O assassino
a estrangulara antes de atirá-la do penhasco, na esperança de que as marés a levassem para o alto-mar. Mergulhadores vasculharam a costa, porém nada mais foi encontrado.
Três horas mais tarde, por volta da hora do almoço de domingo, Ronnie Hamil foi formalmente indiciado pelo assassinato de sua neta.
Aquilo não bastara para você. O avô cheirava a bebida azeda, estivera obviamente embriagado durante dias. Será que permanecera sóbrio o suficiente para fazer tudo
aquilo? A não ser pelo estranho descarte dos livros, aquilo parecia o trabalho de um meticuloso planejador. Alguns traços de lubrificante vaginal estavam presentes
no corpo, mas não havia esperma. O assassino usara uma camisinha. Não havia sangue ou nada mais que pudesse servir de prova de DNA, apenas algumas marcas de fita
isolante nos pulsos e tornozelos. Nada no corpo da garota poderia ligar Britney a Ronnie Hamil. Algumas impressões digitais deste foram encontradas nos livros, mas
também as de muitas outras pessoas. Era plausível que ela os houvesse mostrado a ele quando fora visitá-la na semana anterior, como ele alegava. Em vez disso, tudo
parecia muito com o caso Ellis.
Assim, você telefonou para alguém que conhecera no ano anterior num curso de treinamento sobre como traçar o perfil psicológico de criminosos sexuais. Você se lembrava
dele como um homem com aparência de tuberculoso, com uma corcunda que indicava um terrível fardo, mas aqueles olhos nervosos sugeriam que uma escotilha invisível
de escape de uma aposentadoria iminente estava na sua visão periférica. Will Thornley era o policial que investigara o caso Stacey Earnshaw, em Manchester. Diferentemente
de George Marsden, Will era decididamente um homem gregário. Ele estava de folga e não gostou de ser interrompido na sua jardinagem. Ele foi de tão pouca ajuda que,
ao final do telefonema, convencera você, totalmente, de que Ellis não tinha absolutamente nada a ver com o assassinato de Stacey.
O ambiente de celebração na sede da polícia não contagiou você. Graças a Deus Gillman não estava por ali no pequeno bar-salão de Fettes, quando Notman bateu com
força nas suas costas.
– Bem, nós pegamos o filho da mãe, Ray.
– Ah, é, ele é mesmo um filho da mãe – concordou você, certamente contente por, pela primeira vez, estar sendo esperado para o jantar com Trudi e as famílias naquela
noite.
E você deixou a equipe lá, primeiro tendo que engolir aquele sapo e depois se dirigindo à sala de Bob Toal. Seu chefe lhe ofereceu um charuto cubano, que você recusou.
– Não gosto desse seu olhar, Ray – alertou-o Toal. – É hora de fazer uma cara alegre.
– Bob, eu sei que não é isso que você queria ouvir, mas é meu dever contar a você sobre o que aconteceu em Hertfordshire e Manchester, pois foi parte da minha investigação.
– Quer estragar nossa festa, Ray; vá lá, desembucha.
Houve um momento de silêncio sinistro entre vocês quando os olhos se entrecruzaram. Ele queria que você ficasse em silêncio. Você também. Mas você falou.
– Estou preocupado com essa história de Ellis. Não é seguro. A coisa vai estourar.
– Então você quer solapar as convicções de duas forças policiais?
– Se eles tivessem feito um bom trabalho, eles não teriam nada com que se preocupar. – E no mesmo momento em que saíram da sua boca as palavras soaram ridículas
aos seus ouvidos.
Toal não estava a fim de poupar você.
– Fico imaginando em que planeta você esteve andando, Ray. Porque não pode ter sido a porra da Terra.
– A ligação de Ellis com o caso Earnshaw é idiotice. É de se jogar no lixo. E não há provas substanciais por parte dos legistas que o liguem ao caso Welwyn.
Toal balançou a cabeça com tanta violência que suas bochechas tremelicaram, lembrando a você rapidamente um cão bloodhound emergindo de um rio.
– Você ouviu ele naquela fita, ao lado da sepultura da garota? Você escutou? – Os olhos se esbugalharam. – As coisas que ele fez com ela?
Você se encolheu com a lembrança.
– Ele é um filho da puta doente, mas não matou Britney. Não há nada que o ligue à van branca.
– FODA-SE A VAN BRANCA – berrou Toal. – Todo sujeito na Grã-Bretanha que está fazendo biscate, fodendo alguém que não devia ou tocando uma punheta vendo as estudantes
passarem, todos eles têm uma van branca! Esqueça a van, Ray! Nós pegamos o homem!
Você sentiu o formigamento da humilhação depois desse desabafo. Depois, a primeira pessoa que viu no corredor foi Gillman, sorrindo.
O restaurante Obelisk era um local classificado como luxuoso, duas estrelas no guia Michelin, pouco iluminado com luminárias de cobre fixadas nas paredes de terracota
e colocadas nas grandes mesas de madeira. Você não estava no melhor dos humores quando chegou. Sua mãe Avril e sua irmã Jackie chegaram um pouquinho antes de você,
o maître atabalhoado com os casacos delas. Sua mãe cumprimentando você com uma trepidação de olhos esbugalhados.
– E aí? Tudo bem?
– Está sim – disse você, dissipando a agitação dela. – Tudo será esclarecido.
– Que bom – falou ela numa concessão aliviada, virando o corpo e esquadrinhando você antes de lhe oferecer o rosto para beijar, coisa que você obedientemente fez,
com um outro beijo para sua irmã, de feições tensas, que estava menos impressionada com o ambiente.
– Angus não pôde vir, ele está participando de uma conferência em Londres – informou Jackie para você. Você fez um aceno de cabeça contido, mal conseguindo conter
o sorriso no rosto.
Donald e Joanne Lowe já estavam sentados ao lado da filha. Trudi usava um vestido azul que você ainda não vira e o cabelo mostrava que ela fora a um salão. Você
a beijou, elogiou-a e piscou, e depois cumprimentou os pais dela. Você gostou de ambos. Eram um casal jovem, de cerca de cinquenta anos, mas parecendo mais próximos
da sua própria idade do que seus pais. Donald era um homem bonito, feições finas, com uma calvície incipiente, e cabelo ficando grisalho. Ele trabalhava como gerente
de transportes de uma empresa de ônibus, e fora jogador de futebol profissional, goleiro dos times Morton e East Fife. Joanne era uma mulher esbelta, com olhos penetrantes,
um sorriso do tipo de quem ganhou na loteria, e era gerente de uma loja de cartões de congratulações e presentes em Newington.
Os Lowes cumprimentaram Avril e Jackie com entusiasmo, obrigando ambas as mulheres a se desculpar pela ausência dos maridos. Avril enfatizando que o caso dela era
temporário.
– Ele está no escritório – disse ela, revirando os olhos –, domingo! – acrescentou, um pouco alto demais para seus nervos estressados.
Seu pai sempre trabalhou aos domingos, ele dizia que esse era o dia mais movimentado no transporte ferroviário de cargas. John Lennox supervisionava as operações
locais a partir de um pequeno escritório em Haymarket. Fora transferido para aquele cargo depois que um ataque cardíaco havia muito tempo o obrigara a deixar a profissão
de condutor de trens. Você gostava do jeito antiquado, gótico, do escuro escritório dele, e ocasionalmente ia visitá-lo lá para levá-lo a almoçar num dos bares locais.
Apesar de as operações serem controladas há muito tempo por computador, seu pai mantinha arquivos bastante arrumados de cópias em papel de ordens de despacho, bilhetes
de entrega e planos de itinerários, sentindo prazer em saber que poderia continuar as operações quando os sistemas caíssem.
Chegando alguns minutos mais tarde, ele cumprimentou você com um aceno de cabeça, beijou Trudi e apertou as mãos de Donald e Joanne, acenando de maneira superficial
para a esposa e a filha, antes de se sentar.
– Nada de Stuart? – perguntou John.
Que se foda Stuart, pensou você, o babaquinha mimado que logo faria a noite toda girar em torno dele.
– Ele vai chegar quando chegar – você disse, pedindo champanhe para a mesa. Você se divertiu em observar todo mundo fingindo que não sabia o que estava acontecendo.
Eles olhavam furtivamente para Trudi, que mantinha as mãos cobertas por luvas cor de creme. – Nós temos uma coisa para anunciar – você disse, decidido a acabar com
o constrangimento com o menos de blá-blá-blá possível –, nós vamos nos casar ano que vem, provavelmente em setembro.
Trudi tirou as luvas, revelando o anel para arquejos e comentários de felicidade. Você tentou avaliar as reações: ninguém ficou abertamente revoltado. As reações
menos entusiásticas pareceram vir de seus próprios pais, e, quando Trudi foi abraçada e beijada pelos pais dela, você sentiu o impacto da inveja. Seu pai simplesmente
fez um aceno de cabeça com o mesmo olhar de silencioso apoio que mostrou quando o técnico dos Hearts finalmente cedeu e fez a substituição que ele vinha pedindo
toda a tarde. Você quase que podia ouvir o “já era em tempo”, vindo dos lábios do velho. Você viu algo semelhante no pescoço nodoso de sua mãe, subindo e descendo
como uma carabina de êmbolo. Ela manteve aquele movimento até o momento que achou a voz:
– El Mondo... meu pequeno El Mondo – choramingando o seu apelido de infância, aquele escrito nos pôsteres de touradas, trazidos das férias na Espanha e que enfeitavam
a parede do seu quarto de dormir.
A refeição já ia adiantada quando o seu irmão meio bêbado chegou. John Lennox se afastou da esposa para que seu filho mais moço pudesse sentar entre eles, como se
fosse uma criança que eles se revezassem tomando conta.
– Tive uma audição ontem em Glasgow – explicou ele. – Pernoitei na terra do Weedge e meu trem ficou retido. Problema de engenharia.
Você arma seu rosto com um sorriso desconcertado, virando-se para seu pai.
– O declínio das ferrovias, hein, pai?
John Lennox era um homem dado a discursos atrabiliários quando se tratava de algo em que a Grã-Bretanha errara, invariavelmente rastreando a causa até as ferrovias.
As palavras “redução de custos” e “privatização”, ele as pronunciava como outros talvez falassem de doenças sexualmente transmissíveis, mas naquela noite seu pai
preferiu o silêncio.
– Stuart, seu irmão mais velho vai casar – disse Jackie. A tentativa de apaziguamento de Stuart soou mal: como uma advogada criminalista durona, ela nunca se comportava
dessa forma com ninguém mais.
– Ora, não brinca, Sherlock – riu Stuart. – Eu tive uma espécie de premonição de que era esse o motivo dessa reunião – e ele se serviu de uma taça de champanhe.
– A Ray e Trudi – brindou ele –, que a força esteja com vocês!
– Stuart! – avisou Jackie.
Seu irmão ignorou a irmã, examinando a futura noiva.
– Bem, Trudi, eu não posso evitar ser irmão de um tira – disse ele –, mas casar com um deles? É uma escolha muito corajosa, eu não invejo você, não.
Você casaria se pudesse encontrar um do qual você gostasse, pensou você, mas mordeu a língua. Em vez disso você se contentou com:
– Eu sinto muito que eu tenha sido um fardo tão grande para você.
– Eu o carrego com dignidade – disse Stuart, rindo alto. Ele lançou um olhar para Donald, que tinha uma sobrancelha levantada, e para Joanne, que parecia estar apreciando
a performance do rapaz. Os olhos dela ferviam como aspirina num copo d’água. – Sabe, há anos, um grupo nosso do teatro da faculdade ia toda manhã a Dundee para se
juntar ao piquete da fábrica Timex. Eu disse para meu irmão “Como é você fazer esse trabalho: proteger os ricos, e foder os pobres?”
– Estou certo de que você vai contar a todo mundo o que eu disse. – E você fingiu estar entediado, tamborilando os dedos na mesa e olhando para o teto.
– Claro. Você disse que se fazia a mesma pergunta todo dia. – Stuart fez uma pausa, olhando em torno para a mesa em silêncio. – Todo dia – repetiu ele.
– É. – Você tentou aparentar cansaço.
Mas Stuart agora entrara no modo ator, divertindo-se com a plateia.
– Não, eu não invejo você; você disse algo como: “Eu faço isso para apanhar os safados que estão por aí. Perguntem às pessoas mais vulneráveis em Muirhouse ou Niddrie
quem eles realmente temem e eles contarão a vocês que são os piores canalhas em seu próprio meio.” Então eu disse algo como: “Muito bem, Raymond, mas, e os canalhas
ricos?” – e ele olhou fixo para você, encorajando todo o restante a fazer o mesmo.
Você fez um ruído de peido exasperado expulsando ar por seus lábios.
– Eles se safam, a menos que sejam realmente descuidados – você admitiu. – Esse é o departamento de Jackie, o sistema judiciário criminal. Eu sou apenas um funcionário
sem importância.
– Me deixe fora disso – disse Jackie.
Você se lembrou como Stuart não ficou absolutamente satisfeito com essa resposta. E ele tinha razão para não ficar. Embora aquilo fosse verdade, havia um outro fator,
um elemento pessoal, que você nunca incluiria no seu discurso padrão. Agora Stuart, com seus olhos abertos, sinceros, implorando, sentia patentemente a omissão,
e não pela primeira vez, mas a revelação teria que ser arrancada de seus lábios.
– Me ajude a sair dessa, Ray – implorou ele. – Estou tentando compreender você.
Agora os Lowes, prudentemente, pensou você, já estavam engajados na sua própria conversa com o seu pai na outra extremidade da mesa. Enquanto a comida e a bebida
desciam sua mãe ficou encurralada, os filhos discutindo por cima dela.
Aí você disse:
– Se lembra daquela boneca, qual era o nome? – Embora você se lembrasse de que era Marjorie o nome.
Jackie lançou um olhar venenoso para você.
– Raymond – implorou Avril.
– Está bem, mamãe – disse Jackie. – É isso que acontece quando nós nos reunimos como uma família. Stuart tem inveja de Ray pelo que ele é e Ray sente inveja pelo
que eu sou.
Você ficou chocado com isso. Ainda mais porque você percebeu que era verdade. Você vinha tentando rebater Stuart de maneira indireta. Preparando para desenvolver
o tema de que você amara aquela boneca tanto que seu pai ficou preocupado que você fosse gay. Quando Stuart chegou (e ele era realmente gay), John Lennox ficara
mais descontraído no seu jeito de ser pai e esquecera sobre o incidente Marjorie-e-caneta esferográfica, que tanto envergonhara você e sua irmã.
– Ela era um rapazinho tão adorável – anunciou sua mãe em desespero para todos. – Meu rapazinho El Mondo.
Você sabe tudo sobre mim, porra, pensou você amargamente, olhando em torno da mesa para a família.
Donald Lowe colocara um braço na cintura de Trudi.
– Bem, eu tenho que dizer que esta aqui nunca nos deu um dia de problema, não é, Joanne? A noiva perfeita – anunciou com orgulho.
– Eu não chegaria a ponto de dizer isso! – riu Joanne, contando uma pequena história trivial de infância, e você ficou encantado que agora era a vez de Trudi se
encolher. Então, durante um segundo ou dois, a mesa se desvaneceu e tudo que você conseguia ver era uma laje com um pequeno corpo azul sobre ela.
A hiperventilação sacudiu seu corpo e você lutou contra ela, olhando para a lâmpada com formato de cunha aparafusada na parede.
– Você está bem, filho? – perguntou sua mãe, notando o seu desconforto.
Você dirigiu o seu olhar para Stuart. O garotinho cara de anjo engatinhando que se transformaria num irritante imbecil que todo mundo achava o máximo.
– Eu tenho sorte de ter você me contando como a Escócia seria agora uma utópica república livre socialista se eu não tivesse entrado para a polícia.
Stuart levantou as mãos fingindo rendição.
– Muito bem, Ray, eu peço desculpas. Eu estava errado. Eu sou só um sujeitinho emputecido por não ter conseguido aquele papel no seriado Taggart na televisão. Eu
queria o papel.
– Mas você já representou em Taggart antes, filho – consolou Avril.
– Sim, mãe, mas aquele foi um papel diferente.
Mas você não ia deixar ele ficar por cima desta vez.
– E eu fico contente com o fato de você conhecer meu trabalho o bastante para me dizer que eu oprimo os pobres. Aqui estou eu ficando alucinado, pensando no corpo
morto de uma garota de sete anos, abusada sexualmente e torturada, que eu tirei do mar. E tudo por minha culpa. Ela foi criada num ambiente caseiro; talvez eu a
estivesse oprimindo.
– Basta! – John Lennox interrompeu. – Um pouco de respeito da parte de vocês dois. Vamos!
Um entreolhar cansado de trégua relampejou entre você e Stuart, no momento em que o garçom se aproximou da mesa para anunciar as sobremesas. Enquanto enchia novamente
seu copo, você ouviu a conversa desviar-se para os Hearts e a demissão de George Butley. Você estava a ponto de se intrometer com prazer na conversa quando seu celular
tocou. Era Keith Goodwin.
– Ei, Ray. O que há? Onde você está?
– Estou sentado tomando champanhe com minha família – disse você. – Acabei de ficar noivo.
– Parabéns, mas, ei, e o álcool, isso é legal? Quero dizer...
– Te ligo mais tarde, Keith – disse você, desligando abruptamente o telefone. Um chato no bar é um chato no bar, com ou sem álcool e drogas. Você tinha jurado naquela
noite beber moderadamente. É o que as pessoas fazem quando ficam noivas e põem os assassinos de crianças atrás das grades.
A coisa bateu de frente na cara de todo mundo naquela manhã de segunda-feira. A equipe estava de ressaca depois da celebração e você também estava meio mareado depois
do seu jantar de noivado.
Ronnie Hamil não conseguiu apresentar um álibi, mas os registros do Departamento de Emergência e Acidentes do hospital Western General conseguiram. Um homem o “pescara”
do canal Union depois de ele ter caído ali, bêbado, em seguida a uma sessão de vinhos fortes na noite de terça-feira, antes do desaparecimento de Britney. Eles o
retiveram no hospital até as dez horas da manhã do dia seguinte, quando ele retomou a farra no apartamento de um amigo, entrando em coma alcoólico, sem saber que
era o homem mais procurado da Escócia. Ele estava alcoolizado demais para se lembrar desse incidente, mas seu “salvador”, um corredor que passava, se recordava muito
bem.
Em seguida à soltura do avô, a primeira coisa que você fez foi telefonar para George Marsden e colocá-lo a par da situação.
– Muito bem – foi a resposta seca de George.
Talvez um pouco dessa presunção tenha passado para você. O cheiro de fracasso pairou no ar naquela noite, quando a sua equipe de Crimes Hediondos entrou cansada
no Bert’s Bar. Você não estava ciente de ter no rosto aquela expressão de “eu avisei”, mas também não poderia jurar absolutamente que ela não estava lá. No bar,
a tensão foi aumentando como uma fogueira durante toda a noite até que Ally Notman resmungou:
– Ele é a porra de um pedófilo. Poderia ter sido ele.
– Ele é um merda, mas não é assassino de crianças, e imputar o crime a ele significaria impunidade para o verdadeiro culpado – retrucou você. Uma ou duas cabeças
na mesa assentiram. A maioria evitava fazer contato visual com você. Não pela primeira e última vez, você ficou isolado pelo crime de não seguir com os outros.
Na noite seguinte, quando você saía da sede da polícia, depois de uma outra noite solitária esquadrinhando registros, declarações e fitas de vídeo, uma figura de
cabelo grisalho metida num sobretudo passou pelas portas automáticas e se aproximou de você:
– Você está bem? – perguntou seu chefe.
– Desculpe, Bob. Nós não temos nada. Zero à esquerda – disse você. Era a primeira vez que você via Bob Toal desde que a conexão de Ronnie Hamil levara o caso a um
beco sem saída. Agora seu chefe parecia tão desanimado quanto você.
– Vamos em frente – assentiu Toal, e o soquinho no ombro, o soquinho paternal do técnico de futebol, foi o bastante para atirá-lo de volta à fina escuridão de uma
fria noite em Edimburgo.
Você se sentia terrivelmente inútil. O tira como filósofo popperiano: desaprovando toda hipótese apresentada por seu departamento. Enquanto os dias seguintes se
desenrolavam, você demonstrou compaixão pelo chefe. A aposentadoria estava tão perto, e Toal queria alcançar a linha de chegada com a reputação em alta. Uma cultura
de “achar-um-culpado” sempre floresce em qualquer departamento policial em que um caso importante parece não chegar a lugar nenhum. São essas as regras. Ele operava
com um orçamento muito restrito. Já estavam sendo planejadas medidas de contenção de custos. Haveria inquirições disciplinares. Acusações de negligência grosseira.
Demissões sumárias. A única questão pendente era até que ponto, descendo na hierarquia, o pau iria cantar.
Começaram a ser ouvidas vozes discordantes. Uma investigação abrangente apareceu na primeira página do Independent. Levantava dúvidas sobre o peso das acusações
contra Robert Ellis, confirmando sua crença de que um assassino múltiplo andava à solta. Mas a pressão de Toal o obrigou a manter vigilância sobre Angela Hamil e
os homens da vida dela.
– Tem merda feia escondida aí, ela está encobrindo algum safado – disse Toal, seu sotaque de Morningside tendendo para Tollcross, mostrando a você um diferente conjunto
de possibilidades do seu patrão. – Pressione ela, Ray – dissera ele. – Eu já vi que isso funciona com mulheres fracas como aquela. Elas ficam hipnotizadas, dominadas
por algum canalha. Descubra quem é ele!
Então, como o restante da equipe de Crimes Hediondos, você ficou obcecado com a vida sexual de Angela. Zombando dela abertamente de uma maneira incrédula quando
ela disse que nunca trouxera homens de novo para casa por causa das crianças. Sabendo que a mulher estava alquebrada demais para desafiá-lo. Você odiava a passividade
dela, viu você mesmo – sentiu você mesmo – atormentando, tornando-se um valentão, talvez como muitos dos outros homens na vida dela, mas incapaz de parar. Você conseguiu
arrancar um nome dela, um tal de Graham Cornell, que trabalhava no Scottish Office. Ele foi descrito como “apenas um amigo”.
Uns poucos dias depois, você voltara à sala de Crimes Hediondos e estudara o terrível quadro branco de novo. Depois de algum tempo Ally Notman convidou-o para um
drinque. Quando entrou no Bert’s Bar, todos estavam lá. Era uma armação. Relaxado a princípio, e depois Gillman e Nortman fizeram a bola rolar.
– É ele. Cornell – concordaram eles.
Era a dica para Harrower e McCaig se juntarem ao coro. Você é nosso garoto. Nosso líder. Nosso chefe. Não nos deixe na mão. Ele está fazendo todos nós de babacas.
E parte da coisa acendeu uma luz em você. Porque havia algo a respeito desse homem. Mas depois você falou com Cornell na noite de Halloween. Você o pegou saindo
do apartamento dele, metido numa fantasia vermelha com chifres e um rabo em forquilha. Mesmo descontando a vestimenta, a postura de Graham Cornell o denunciava claramente
como gay. Para sua mente era absurdo pensar que ele sequestraria uma garota. Mas para alguns dos rapazes, como Gillman, gay era igual a pervertido, igual a pedófilo.
Você podia incluí-los em tantos cursos de treinamento de oportunidades iguais quanto quisesse, mas o preconceito, há muito formado, não podia ser totalmente eliminado,
e estava sempre esperando retornar. E retornou com uma vingança do grupo fatigado e desesperado, suando debaixo das lâmpadas fluorescentes compridas na pequena sala,
queimando os olhos nas telas dos computadores, batendo em portas para fazer as mesmas perguntas inúmeras vezes. Você ficou com receio de ser a única exceção da psicose
coletiva que mantinha todos eles com o punho cerrado. Eles silenciavam sempre que Drummond, a única policial mulher da equipe, entrava na sala. Até mesmo Notman,
que estava morando com ela.
Sua resposta para as vozes que o atacavam foi concentrar-se em seus próprios aborrecimentos, crescentes e urgentes. Numa escura tarde do início de novembro, um trem
levou-o até Newcastle, do outro lado da divisa da Escócia. Aí, um curto trajeto de táxi e você estava numa decadente taberna no West End daquela cidade, onde, como
um tira escocês, você se sentia bastante seguro para cheirar suas primeiras gramas de cocaína em mais de quatro anos.
E você precisava da droga como o resto dos rapazes parecia precisar de Cornell. Não se podia admitir que um assassino em série de crianças estivesse à solta. As
milhares de carreiras legais e policiais que haviam sido construídas com a prisão e indiciamento de Robert Ellis estariam maculadas para sempre. E uma figura odiada
estaria vivendo o resto da sua vida nas Bahamas à custa do contribuinte. O grupo pensante da organização burocrática entrou em acelerada marcha destrutiva: Cornell
era o homem. E, da sua maneira, você fez o mesmo.
DIA TRÊS
8
Tudo menos a garota
Trudi Lowe está sentada no quarto do hotel, ostensivamente assistindo à televisão, mas imersa na rememoração de incidentes do que ela habitualmente chama de a “última
vida” deles. Anos atrás, quando ele apareceu bêbado, odiando a si mesmo, usando insultos grosseiros e pré-fabricados como um escudo rude contra sua própria culpa.
Ela sabia onde ele estivera. Eles haviam discutido sobre o comportamento dele e ele gritara:
– Você não tem a mínima noção de como os homens são, não é?
Agora a última vida voltara. E eu pensei que ele havia mudado. Esse pútrido clichê escorrega para baixo no peito dela, enquanto uma voz debocha de dentro de sua
cabeça: filho da puta de merda.
Mas a raiva que sobe nela, de alguma forma se recusa a transbordar. Ela se levanta para dar uns passos, olha para fora. Sua raiva é maior quando sentada. De modo
que ela cai na cadeira de novo e sente o veneno percorrer seu corpo.
“Limpo” quando eles se reconciliaram, ele pôs toda a culpa na cocaína. E os Narcóticos Anônimos pareciam ter funcionado com ele. A vida dos dois juntos foi como
um verdadeiro renascimento. Eles passaram a frequentar a academia de ginástica, assistiam a aulas de francês, iam ao cinema, faziam um sexo vigoroso, engajaram-se
em excursões com acampamento e montanhismo. O trabalho dele estava sempre presente, mas parecia tratar dele como se fosse só isso: um emprego, embora um emprego
intrusivo e exigente. Mas então ele começou a beber de novo. Ele culpou o horrível caso da garotinha assassinada, e era óbvio que havia o pai dele e o subsequente
relacionamento difícil com sua família. Mas, quaisquer que fossem as causas, a bebida estava lá e levou depois à cocaína, e isso levou-o a outras mulheres. E aí
eles romperam.
Você não tem a mínima noção de como os homens são, não é? No quarto do hotel vazio, essa proclamação contundente do passado ressoa mais ferina do que nunca. Mas
o pai dela não é assim, e ela se lembra de sua própria mão enluvada na dele, esperando na fila do cinema nas ruas azul-cinzentas de Tollcross. Pode visualizar isso
tão claramente, ele mais moço e seu cheiro, que quando para, ela sente uma dissonância como se estivesse reencarnada no corpo de uma futura descendente. E o próprio
pai dele era um homem amável e decente. Tentando parar de cutucar nervosamente a pele em torno das unhas feitas, tudo em que Trudi consegue pensar é: eles deveriam
estar ali para fazer amor. Para colocar nos trilhos de novo sua vida sexual. Ela está produzindo hormônios, está pré-menstrual, e precisa dele. E ele desapareceu.
Ela sabe do desprezo que ele tem pela carreira dela e, pensando naquela penca de serviços que dão ao país sua vitalidade, ela subitamente acha um meio de converter
em energia toda a raiva que a paralisou. Aquilo a impulsiona para descer até o bar do hotel, mas está vazio e ela não fica, saindo para a rua. Caminhando um pouco,
ela entretém a vaga ideia de que pode fazer qualquer coisa que ele pode, mas não está disposta a frequentar as hospedarias locais, homens irritantes, roucos de tanta
cerveja; parece não haver uma categoria aceitável entre a juventude entediante e a meia-idade sórdida. Na avenida Lincoln, ela vai ficando cada vez mais consciente
de seu estado solitário, quando as cores vibrantes de uma obra de arte em exposição numa galeria a atraem para dentro. O lugar está quase vazio. Os originais são
caros, mas ela vê uma gravura emoldurada num cavalete que tem um preço razoável. Fica por ali observando a gravura, pensando se Ray gostaria. Provavelmente não.
Pensa que talvez seja uma razão para comprá-la. Então ele se aproxima dela.
Ruídos na cabeça, enquanto o teto branco vai entrando em foco através de um único olho. O outro é mantido fechado por secreções pegajosas. Ele esfrega esse olho;
sente as molas de um sofá espetar suas costas. Está coberto com a capa do sofá. Ele se desembaraçara de pensamentos ruins durante a noite e atingira uma espécie
de paz exausta. Os acontecimentos da noite anterior são como convidados penetras na sua cabeça. Você fodeu as coisas de novo, num mantra pungente, de autoflagelação.
A luz do sol explode através da velha renda amarela das cortinas enquanto uma neuralgia apunhala o interior de seu crânio.
Trudi.
Os ruídos. A televisão. Ele se ergue para uma posição sentada. Vê a criança, Tianna, deitada no chão, assistindo à TV e bebendo de uma lata de Pepsi. Tenta levantar.
Consegue. Se coça e boceja. Olha para baixo, para a garota.
Ela está focada na tela, mas ficara observando-o enquanto ele dormia. Seu rosto contorcido, como se ainda estivesse lutando, mas nos seus sonhos. Seu roncar tão
alto, que ela precisou aumentar o volume. Mas ela também queria acordá-lo. Para avaliá-lo.
– Onde está todo mundo? – Lennox pergunta, enquanto registra o vidro quebrado da mesinha de centro. Ele se recorda ter tentado arrumar a bagunça, mas ainda havia
muitas lascas de vidro por ali.
Cacete, os pés descalços da criança.
Deitada de bruços no tapete, assistindo à televisão, a garota está usando um short azul e um corpete amarelo. Algum tipo de vergão: vermelho, queimaduras feitas
em uma canela. Ela nem mesmo se vira enquanto a perna direita acompanha um ritmo batendo na esquerda. É como se ele praticamente não existisse. Não existe ou esteve
sempre ali, imagina Lennox.
– Onde está Robyn?
– Não sei. – Tianna se senta. Gira o corpo. Seu corpete tem CADELA gravado em letras douradas brilhantes. Ela olha rapidamente para ele, antes de girar de novo para
a posição junto à televisão.
Ela não é uma criança que você pode gostar logo de cara, pensa Lennox. Ele perambula pelo apartamento. Está vazio. Dá de ombros para uma audiência invisível e se
dirige à porta. Para. Não pode deixá-la sozinha dessa maneira ali, não sem descobrir quando Robyn estará de volta. Aquele gordo nojento de merda podia voltar de
novo.
Ele pensa em Trudi. Será que ela está preocupada com ele? Possivelmente. Provavelmente. Uma vez se acalmando, será que ela não pensaria: “Onde está Ray?” Lennox
acha quase impossível alguém sentir falta dele.
Mas é claro que ela sentiria. Ela é sua noiva. Ele tem estado doente. Está doente.
Eu estive fora toda a noite. Que merda eu fiz?
Eu tenho a boceta, eu faço as regras. Jesus, Todo-Poderoso, porra.
Não. Trudi ficaria magoada. Talvez até mesmo tenha voltado para casa, pegado um voo de volta para Edimburgo, talvez contando para sua família... O que sobrou dela...
que você teve um outro colapso. Talvez a polícia esteja procurando por ele! Ou talvez ela estivesse com Ginger e Dolores.
Mas ele não pode deixar a garota sozinha.
Não é direito. A mãe dela é...
– Costumam deixar você sozinha? – Lennox pergunta à figura deitada de costas enquanto ele começa a catar o restante dos cacos de vidro. A mesa tão fragmentada quanto
a última noite na sua mente. Sua cabeça lateja como um ninho de vespas. As cavidades nasais e a garganta parecem em carne viva.
– Não sei – responde ela.
– Quando sua mãe deve voltar?
– Como se você se importasse – ela diz, e ele quase que reage, mas, junto com uma reprimenda, a entonação de voz dela carrega um tantinho de interrogação.
Então ele desiste de catar os pedaços de vidro e se senta de volta no sofá. Tem vontade de ir embora. Mas, se elas foram para uma outra festa e se esqueceram da
garota? Você cheira bastante cocaína, você esquece de todo mundo e de todas as coisas. E Robyn parecia ter cheirado bastante da droga. Um maço de cigarros vazio
no chão: aquilo fazia com que ele se sentisse miserável.
Ele se levanta e vai até a cozinha. Sobraram algumas cervejas na geladeira, latas de Miller. Como ele deseja uma. Apenas uma. Mas não é certo beber na frente da
criança. Não é certo porque é isso que todos eles faziam. Vão se arrastando até a geladeira, todo cara que alguma vez veio até o apartamento da mãe dela, em todas
as horas. Ele pode vê-los. Traçar seu caminho a partir do sofá, como um biologista traçaria o itinerário de um urso à procura de salmão. Ele quer mostrar à garota
que isso não é uma coisa normal. Não considerar uma coisa normal que uma criança visse sujeito após sujeito entrar na sua casa, na sua vida, com a boca cheirando
a cerveja. Porque se achar que isso é normal, aí ela crescerá e sairá com os caras que cheiram a cerveja o dia inteiro, todo dia. E caras que cheiram a cerveja o
dia inteiro, todo dia, eles são encrenca para as mulheres. Que mais eles poderiam ser?
Que mais?
Assim, Ray Lennox prepara para si mesmo uma xícara de café e espera.
E espera.
Minutos se prologam em blocos de quartos de hora, esticando os nervos como cordas de piano até o seu limite tênsil e depois se contraindo rapidamente, deixando uma
aguda sensação de fadiga latejando, que vaza do cérebro até as cavidades sinoidais e os olhos. Cada um dos blocos temporais parece um trecho de oceano e ele se sente
como que algemado, um escravo remando nos intestinos de um navio-caixão que tenta atravessar um trecho de mar encapelado. Penitência pela bebida e drogas, a divertida
dissociação entre tempo e espaço da noite da véspera. Pensamentos de estratégia vêm devagar, hesitantes.
Ele devia telefonar para Trudi. Apalpa a chave do quarto, o cartão de plástico no bolso. Ela tem uma duplicata. Um cartão separado com o endereço. Ela estará dormindo
a sono solto. Ainda é cedo: o relógio digital marca 8:33. Talvez ela não lhe agradeça. O que é que ele pode fazer? Não há desculpa. É isso que ela vai lhe dizer.
Não há desculpa para esse tipo de comportamento. Que desculpas você pode dar? Ele tem motivos, mas em que ponto eles deixam de se transformar em desculpas?
Quando você já tem idade o bastante para saber como proceder. Ele fará trinta e cinco no próximo aniversário. Oficialmente, meia-idade, se você aceitar o velho lema
de três vintenas mais dez. Ele recosta, olha para os desenhos animados que passam na tela: o Coelho humilha o Coiote pela milionésima vez.
Ocasionalmente Tianna lança um olhar para ele. Ela se levanta uma vez, para encher novamente o copo de refrigerante. O brilho pulsante da narrativa, as circunstâncias
que o levaram até aquela sala surgem intermitentes na sua cabeça, mas sob a forma da voz invisível de uma outra pessoa. A permanência da sanidade mental obriga à
ação, e Lennox faz um balanço do que existe na cozinha. Não há comida na casa.
Porra de um monte de cerveja; mas nada para o café da manhã da criança.
Ele se senta de volta e fica observando Tianna mudando rapidamente de canal. Ela está ficando inquieta, Lennox pode ver. Não é apenas a química do refrigerante.
Esticando-se e curvando-se para testar seus músculos doloridos, ele pega a Noiva Perfeita no chão. Lê sobre etiqueta de casamentos. Pensa sobre quem poderá ser seu
padrinho. Seu velho amigo, Les Brodie, como eles fizeram um pacto quando eram crianças. Brincando no velho balanço de Tarzan lá em Colinton Dell. Concordaram que
um seria o padrinho de casamento do outro, se alguma vez viessem a se casar. Mas aí veio o incidente no túnel e eles pararam de ir até o Dell. E ele não vê Les há
anos, pelo menos até umas poucas semanas atrás: no enterro do pai dele. Quando ele armou um belo espetáculo. Mas eu tinha razão, porque os filhos da puta dessa vida,
eles arrasaram com a porra do seu coração. Eles tinham que levar uma lição. Mas aqui estava ele. Casamento. O padrinho. Era inevitável que ele convidaria um dos
rapazes da polícia, se não por outro motivo, pelo fato de que não havia ninguém mais. Não Les, nem Stuart. Provavelmente seria Ally Notman, baseado no fato de que
ele seria o menos provável de ficar ofendido. Isso era, se casar continuasse nos seus planos.
Ele sente o volume do bloco de notas de Trudi no bolso traseiro da calça. Agarrado na sua bunda como a mão dela costumava fazer. Ele tira o bloco e o examina: todo
cheio de entradas de uma ou duas palavras. Listas. Sites da internet. A caligrafia dela, fina, cheia de curvas e expressiva. A vivacidade da escrita o faz ficar
ansioso. Depois ainda mais quando ele folheia as páginas e vê Trudi Lennox escrito diversas vezes; o mesmo “L”, o “o” e o “e” do atual sobrenome dela. Talvez seja
hora de telefonar, tentar explicar.
Não aconteceu nada.
Mas isso não é verdade. Aconteceu muita coisa. Ainda está acontecendo.
Tianna desvia o olhar da TV para olhá-lo, como se preparando para dizer alguma coisa. Antes que possa fazer isso, o estridente tintilar do telefone no chão causa
um sobressalto a ambos. Eles olham um para o outro ansiosamente. Ambos querem que o outro atenda.
– Pode ser sua mãe, é melhor atender – diz Lennox, chocado com a presença de uma criança amedrontada na sua própria voz.
Tianna levanta o receptor. Há uma falha nos dentes da frente dela; ele não notara isso antes. O detalhe fazia com que ela parecesse mesmo como uma criança.
Melhor que...
Aquilo faz com que ela pareça mesmo uma criança americana. Os Waltons. Uma cerca de madeira branca. Ela é o tipo de criança que, se tivesse uma, o quê?, mamã, mamãe,
mãe americana, ela teria um aparelho nos dentes. Sofrendo nos pré-e-iniciais-anos-da-adolescência com a zoação “máscara de contenção de Hannibal Lecter”, a fim de
ganhar aquele sorriso vencedor de apresentador de programa de vendas na televisão.
– Oi, meu amor... – Tianna fica aliviada ao ouvir a voz da mãe, mas ela conhece aquele tom angustiado, aquele que vai despejar um milhão de desculpas até fazer merda
de novo. E mamãe vai ficar numa grande encrenca por causa daquela mesa que se quebrou toda.
– Oi – diz Tianna. Do ponto de vista de Lennox ela parece relaxar claramente. Os ombros, que estavam tensionados para a frente, agora estão derreados para trás.
A voz do outro lado da linha, contudo, é cheia de pânico e nervosa. Ele consegue perceber isso de onde está sentado. Sabe a quem pertence. Depois Tianna olha para
ele. – Aquele cara que fala engraçado, é. É... – e ela segura o receptor numa mão e o fone na outra, como que num apelo.
Quando ele pega o telefone, Tianna, num súbito movimento rápido, se lança pela porta.
– Alô?
– Ray... é você?
É Robyn. Ele não se enganara.
– É. Onde você está está? Eu devia...
– Ouça aqui, Tia está bem?
– Está, ela está vendo desenhos na TV. A que horas você vai...
Ela o interrompe de novo.
– Ela está escutando?
Ele checa. Ela desapareceu.
– Não, acho que está no quarto dela...
Quando Robyn fala de novo com ele pela terceira vez, ele percebe que o tom peremptório dela é impulsionado mais pelo desespero do que pela cocaína.
– Ray, por favor, me ouça – sua voz, em tom implorativo e urgente, cai sobre ele como uma nuvem escura, sinistra. – Não tenho muito tempo para falar. Você tem caneta
e papel à mão?
– Você está bem?
– Não, eu não estou bem, Ray. Eu não estou bem. Não posso voltar pro apartamento ainda, mas preciso que você tire Tianna daí imediatamente! Imediatamente, ouviu?
– O que é que há? Onde você está? – Lennox interrompe, com raiva de mais uma imposição. – Se você se meteu em algum tipo de encrenca, você deve telefonar para a
polícia. Aqueles caras ontem à noite...
– Não! Prometa, Ray, me prometa que você não vai telefonar pra po-lí-cia. Eles vão tirar Tianna de mim, vão pôr ela num abrigo! Por favor, Ray, por favor – ela implora
numa entonação rascante, quase estrangulada –, não telefone pra polícia nenhuma. Me prometa!
– Está bem.
– Quero que você me faça um favor, por favor! Você tem caneta e papel?
– O quê? – Lennox diz, com uma mímica de “tomar nota” para Tianna, que está entrando na sala da frente, mas a garota se encolhe e recua para trás da porta. É claro...
O pequeno bloco de Trudi, com a caneta metida na lombada de espiral. – Tenho sim. O que está acontecendo?
– Eu preciso que você leve Tianna para um lugar. Imediatamente.
– Eu... você não pode deixar sua filha comigo – protesta ele. – Você não sabe absolutamente nada sobre mim!
– Eu confio em você, Ray – sussurra Robyn, ansiosamente, e despeja o endereço.
Ele já viu o tipo de homens em quem ela tem confiado, encarcerados muitos deles, homens que de certa maneira conseguiram ganhar a confiança de uma mulher. Até você
ver as mulheres em questão, e aí tudo faz perfeito sentido. Relutantemente Lennox toma nota do endereço. Prepara-se para repeti-lo para Robyn, quando um guincho
gutural vem pela linha e depois esta fica em silêncio.
Um espasmo de tremor percorre seu corpo, juntamente com a ideia de discar 999, antes de se lembrar que é 911 nos Estados Unidos.
– Robyn? – Um arquejo falho enquanto sua garganta queima.
Detrás da porta, Tianna se contorce. Ela pode ver Lennox pela fresta, o rosto preocupado, os olhos dançando, enquanto ele segura o telefone. Talvez ele possa mandar
embora todos eles, aquele Lance esquisito, aquele porco do Johnnie e aquela cadela safada da Starry, deixando mamãe e eu sozinhas. Mandar todos eles embora!
Lennox percebe que ela o está observando, mas aí uma outra voz entra na linha.
– Alô. Quem está aí?
– Quem está falando?
O interlocutor de Lennox responde friamente, anunciando Ray.
– Nosso amigo escocês, Ray?
Aquele cara Lance, relembra Lennox com um tremor gelado, Lance Dearing. Eles haviam quebrado a mesa de Robyn. A mesa do proprietário.
– É. Onde está Robyn?
– Nós temos um pequeno problema aqui – diz Dearing calmamente. – Ela ficou meio maluca com aquela parada. Isso não é certo com uma criança por perto, você sabe.
– Eu sei – diz Lennox, enquanto sua mente dá cambalhotas. Ele olha para Tianna, espreitando parcialmente atrás da porta. Metade do rosto e metade do braço e da perna
são visíveis para ele. O lábio inferior tremelicando, a pele dos membros toda arrepiada.
– E não sei o que vocês estavam fazendo naquele banheiro noite passada – Lance ri, e Lennox sente a bile se elevar em sua barriga –, mas tenho certeza de que você
não vai abrir a merda da boca. Nossa amiga Robyn, ela estava se estragando mesmo. Se meteu numa enorme encrenca.
– Para mim, não parece que foi Robyn quem estava se estragando.
– Bem, acho que todos nós meio que estávamos. Aquela mesa ficou mesmo quebrada – diz Lance Dearing, forçando Lennox a olhar para a armação de metal frio e as pernas
da mesa. – Mas sem ressentimentos, não é, amigão?
Lennox deixou o silêncio perdurar.
Dearing pareceu não ter pressa em preencher o vazio e Lennox quase imaginou se ele desligara, antes de o americano finalmente falar.
– Eu vou voltar aí logo, logo. No momento, vou mandar Johnnie pra ficar esperando.
– Você está maluco? Não. De jeito nenhum! – Lennox berrou. Ele olha para Tianna, que voltou e se sentou no sofá. Ela leva os joelhos até a altura do peito, descansando
a cabeça neles. O cabelo cai para a frente, escondendo o rosto.
– Ontem à noite o velho Johnnie estava só bagunçando o coreto. Um pouco chapado demais.
– Eu vi a bagunça que ele fez – disse Lennox calmamente –, e se ele chegar perto da garota de novo – a voz dele pausa, devagar e deliberadamente –, eu corto a porra
dos colhões dele e meto na boca do safado. Será a última refeição dele nesta Terra – sibila Lennox, e depois se sobressalta, percebendo que Tianna está presente
e ele não quer olhar para ela.
– Uau... espere aí, Ray, amigão, que tipo de papinho é esse?
– Não sou seu amigão – cospe Lennox.
Dearing levanta a voz ligeiramente, mas continua controlado.
– Eu acho que você entendeu tudo errado aí. Desculpe o nosso pequeno desentendimento ontem à noite, mas você precisa saber que Robyn é uma mulher muito perturbada.
– Lennox se sente atraído pelo tom racional, razoável da voz. – Ela atrai problemas e eu acho que sou apenas um pouco superprotetor, é isso. Mas eu vejo que no fundo
você tem as melhores intenções.
Depois ele pensa em Johnnie.
– A questão aqui é quem você está protegendo. Agora ponha Robyn de novo no telefone.
– Ela está histérica, Ray. Você viu ontem à noite.
– É a filha dela – insiste Lennox enquanto Tianna empurra o cabelo para trás. – Ponha Robyn na linha.
– Eu chego aí daqui a pouco, compadre. Por que você não se acalma um pouco...
– Eu estou dizendo para fazer isso imediatamente. Se você não botar ela na linha, eu vou até a polícia.
– Ótimo! – Lance dá uma risadinha e Lennox o vê, mentalmente, deixar o telefone, a voz mudando de volume e direção, se dirigindo a uma outra pessoa, que estaria
entreouvindo a conversa. – Está ouvindo isso aqui, sua puta maluca? Ray está pensando em fazer o mesmo que eu e ir até os homens com a garotinha!
– NÃÃO! – O lancinante grito de Robyn, esmagado no seu ouvido para evitar que Tianna o ouvisse. A voz morre, e o braço de Lennox fica rígido. O receptor agarrado
com força na mão machucada. Afastando o aparelho, com o silêncio do outro lado da linha, ele põe o receptor no berço de novo, com um clique.
Os olhos da garota são dois tições.
– Que aconteceu? Onde está mamãe?
Que será que vou dizer a ela?
– Sua mãe está doente. Não está se sentindo muito bem.
As palavras esvaziam o ânimo da garota. Os olhos dela ficam vidrados enquanto ela cai derreada na cadeira.
– São as drogas? – a voz dela demonstra desânimo, resignação. – Ela não pode ficar tomando aquele pó.
– O que é que você sabe sobre isso?
Tianna olha para ele de maneira estudada e pergunta:
– Não sei. E você?
– Nada. – A voz dele é fraca e hesitante.
– Pelo modo que você funga sem parar me parece que você sabe muita coisa – diz Tianna, e ele odeia o desprezo na entonação de voz dela, decorrente da experiência
da vida.
Ele tenta ser frívolo.
– Eu estou resfriado. Sou da Escócia. Não é como na Flórida.
Ela afasta o cabelo da frente do rosto de novo, enquanto os olhos de falcão examinam Lennox.
– É, é mesmo.
Lennox se sente desanimado e mal consigo mesmo.
– A sua mamãe... já ficou doente antes? Sabe... – ele não consegue dizer “por causa das drogas”.
– Ela acabou de sair da reabilitação.
– Quem tomou conta de você enquanto ela estava internada?
– Acho que foi a Starry.
– Você não tem uma vovó ou vovô, como a mãe ou o pai de sua mãe?
Ela balança a cabeça de maneira negativa e abaixa os olhos.
Lembrando-se de Ronnie Hamil, Lennox abandona o assunto; a última coisa que algumas crianças queriam era ter contato com os avós.
– Você não gosta muito de Starry, Johnnie e Lance, não é?
Tianna lança um olhar feroz para ele.
– Eles dizem que são amigos de mamãe, mas eles não são.
Isso o convence da urgência de sair daquele lugar. Ele não quer ver Lance Dearing e Johnnie de novo.
– O que é que você quer fazer? Você está com fome? – pergunta ele. Robyn lhe deu um endereço. Se for um endereço local, ele poderia aceder ao pedido dela e deixar
a criança lá. Depois voltar ao hotel. Fazer as pazes com Trudi. Ir para a cama. Até mesmo ficar deitado na areia da praia.
Trudi. Jesus, Deus Todo-Poderoso, porra.
– Não quero ficar aqui. – Evidentemente Tianna sente o mesmo que ele. – Quero ficar com Chet.
– Quem é Chet?
– Tio Chet. Ele é bastante bacana – diz ela, o sorriso sugerindo o poder que as crianças têm em purificar o azedume.
Lennox olha para o bilhete rabiscado no bloco. Ele mal consegue reconhecer sua própria caligrafia. CHET LEWIS, OCEAN DAWN, GROVE MARINA, BOLOGNA.
Robyn não fornecera um número de telefone, mas pelo menos Tianna sabia quem sua mãe queria que tomasse conta dela e isso era bom para a criança.
– Você tem o telefone do tio Chet?
– Acho que está perto do outro telefone – ela aponta para o hall de entrada – no quadro grande.
Lennox vai até onde o quadro branco está fixado na parede. Ele fica paralisado de pânico quando vê o quadro, completamente limpo, olhando para ele. Antes o quadro
estivera repleto de números e recados.
– Quem limpou isso?
Tianna o seguiu e olha de Lennox para o quadro e de volta para Lennox.
– Não sei.
Ele se lembra de Ally Notman, limpando o quadro branco no trabalho, passando uma esponja na superfície, em longos e abrangentes movimentos. Apagando tudo. Fim da
investigação. O nome grande, nítido, BRITNEY, erradicado em definitivo.
Seu corpo estremeceu quando ele viu o quadro todo apagado. Agora, no hall de entrada daquele apartamento em Miami, ele sentiu um calafrio familiar.
Com seu treinamento de policial ele procura sistematicamente por letras, bilhetes, contas, extratos bancários, qualquer coisa. Tudo apagado. Lennox sabe que uma
pessoa tão caótica como Robyn não poderia ser tão meticulosa. Aquilo era um trabalho de limpeza bem-feito, mesmo que tivesse sido feito às pressas, enquanto ele
estivera trancado com a criança no toalete. Dearing. A última pessoa a deixar o local tinha que ser ele. A tarefa de limpar tudo lhe tomara segundos e colocar todos
os papéis com o nome dela num saco de lixo se ele soubesse onde procurar.
Tianna estava de pé um pouco afastada dele. Esperando. Os braços cruzados.
– Nós vamos até o tio Chet?
– A que distância fica?
– Não sei.
– Podemos ir a pé até lá?
O olhar murcho dela mostrou que havia pouca chance de isso acontecer.
– Vamos tomar café da manhã e tentar saber a que distância fica. Estou com fome. E você?
– Acho que sim.
Ele olhou para os braços nus dela. O corpete dela e os dizeres indecentes.
– Melhor vestir uma jaqueta. Acho que está mais frio do que parece – diz ele, se dirigindo para a sala e pegando o exemplar de Noiva Perfeita.
9
Polícia
O sol brilha sobre uma fina malha de nuvens, mas um vento frio, persistente, rouba o calor do ar. Lennox está certo; não está tão quente como anunciado. Tianna,
carregando uma mochila com o formato de um carneiro achatado e usando uma jaqueta azul-clara jeans, faz nascer um certo ciúme nele; ele bem que poderia ter algo
para cobrir seus braços. Perdeu o chapéu dos Red Sox e os óculos escuros, provavelmente esquecidos num dos bares ou então no ônibus. Sua mão boa agarra a revista
de noivas. Ele não tem ideia para onde está indo, ou por quê. Uma van branca faz arrepiar seus pelos da nuca quando o veículo estaciona em frente ao prédio. Um homem,
metido num macacão, sai da van com um estojo de metal nas costas e é cumprimentado ligeiramente por Tianna.
– Quem é aquele? – Lennox pergunta.
– É o exterminador – explica ela, a expressão idiota dele forçando-a a acrescentar: – Eles jogam spray nos apartamentos para matar os insetos.
Eles vão caminhando pelas ruas de quarteirões quadrados, por cima de enormes calçadas de concreto rachadas, passando por casas e pátios, chegando a uma rua principal
e a várias lojas encarreiradas. Não há nada de interessante: uma agência imobiliária, uma firma de segurança e um salão de cabeleireiro. Não é uma vizinhança ruim,
contudo. Ele já viu coisa muito pior. A garota vai caminhando a seu lado, imersa em pensamentos. O cabelo dela se levanta um pouco com a brisa, e ele a imagina indo
para a escola, como Britney costumava fazer.
Para Tianna, ir para a escola era sempre Alabama. Aspirando a mistura de formas, sons e movimentos ao longo da estrada que acompanha o rio Tallapoosa, os aromas
do pântano tirando a urgência das vozes excitadas do dia. Era diferente em Miami, aquela viagem sem alegria no ônibus da escola, sacolejando pelas avenidas bordeadas
de palmeiras. Importunada desde o início por seu espanglês rudimentar. Sua mochila tomada à força no primeiro dia por dois garotos que ficaram jogando-a um para
o outro. Ela sabia que eles queriam exasperá-la e humilhá-la, fazendo com que ela tentasse recuperar a mochila. Mas ela foi acometida subitamente pela terrível lembrança
do que ele lhe dissera sobre ser uma mulher, não uma garotinha, e ela ficou simplesmente esperando, com desdém, até que os garotos se cansaram da brincadeira. Eles
a xingaram em espanhol quando largaram a mochila a seus pés, mas ela ficou despreocupada quando eles foram embora rapidamente à procura de uma vítima mais estressada.
Pappy Vince, ela se lembrou, lhe mostrara coisas boas também.
O apartamento, um palácio de moderado luxo útil, fica a um curto trajeto de carro do bar do coquetel. Uma piscina e uma banheira de água quente embutidas num pátio
envidraçado têm vista para o oceano ali em frente, o azul-escuro dos dois quase se mesclando imperceptivelmente na noite. Ele sugerira fechar a noite na casa dele,
e quando Trudi pensou em Ray, enchendo a cara de cocaína, e provavelmente nos braços de alguma puta, ela concordou alegremente.
Aaron Resinger parecia tão planejado quanto sua casa. Cabelo preto e ondulado. Corpo pesado e musculoso, construído e malhado na academia desde os dias de faculdade.
Um assumido viciado em trabalho, ele diz a ela que é um dos poucos habitantes do sul da Flórida que nasceu ali. Estudou Finança Imobiliária e Planejamento Urbanístico
na Universidade de Miami e fez dinheiro no boom de construção de condomínios no início dos anos 1990. O sucesso veio a um custo, pois, há alguns meses, ele se desentendera
com seu parceiro de longa data.
– Acho que desde então eu venho lambendo minhas feridas – ele fala com uma ponta de melancolia através de uma fileira de dentes brancos perfeitos.
Depois de servir um drinque para Trudi e mostrar-lhe sua coleção de obras de arte, eles na varanda, olhando para onde a baía de Byscaine encontra o oceano Atlântico.
– Quando eu construí este prédio, decidi que simplesmente não encontraria lugar nenhum melhor para morar – explica ele. Trudi se sente como uma estrela de cinema,
engrandecida e exaltada pelas atenções daquele homem. Quando ele a beija, ela retribui. A princípio hesitantemente, e depois com um abandono feroz, quando ela pensa
em como Ray Lennox a tem tratado. Quando eles se separam, ele afasta o cabelo dela do rosto, olha nos olhos dela, e diz com uma sinceridade que ela acha canhestra:
– Eu realmente gostaria de fazer amor com você.
Trudi sorri e permite ser conduzida para a cama pela mão, no quarto principal. Ela percebe, naquele momento, que, quando contar essa história para as outras moças
numa rodada de vinhos num bar, de volta para a Escócia, todas elas soltarão incontroláveis gargalhadas. Mas, naquele exato momento, naquele luxo, sob o luar, com
as ondas quebrando lá fora, ela queimando com o álcool ingerido e com os pensamentos de um noivo traiçoeiro e negligente, aquele é, de longe, o melhor programa da
cidade.
Ele marca um ritmo nervoso na coxa com a Noiva Perfeita enquanto caminham. Lennox tentara conversar, mas a garota não estava a fim. Era mais fácil conseguir informação
de um tênis velho. Ele não insistiu porque sentiu que ela carregava o tipo de mágoa que induz à introspecção.
Sua boca tinha um gosto ruim, e ele pensa em comprar goma de mascar. Há uma tensão com a garota americana e ele fica aliviado quando chegam a uma delegacia de polícia
local. Ele não quer alarmá-la. Felizmente há um restaurante do outro lado da rua.
– Eu já estive aqui antes – diz Tianna, inquieta, apontando para o estabelecimento. – Starry trabalha aqui.
Talvez Starry pudesse ajudar a dar um jeito naquela situação complicada. Na noite passada, ela se comportara como uma completa filha da puta, mas também estava completamente
chapada. E ela é amiga de Robyn. Ou será que não? Logo ele vai descobrir.
Mano’s Grill talvez pudesse ser considerado um bom lugar para uma garçonete trabalhar. Um espaço muito estreito, em forma de L, não há propriamente mesas, apenas
um balcão que corre ao longo de uma única parede, com cadeiras dispostas na sua extensão. Os fregueses podem quase estender a mão e tocar os cozinheiros para fazerem
pedidos pequenos: um destes ele acredita ser o próprio Mano. Um outro balcão com mais banquinhos corre ao longo da periferia do restaurante, na extensão das grandes
janelas de vidro e metal. Lennox pode imaginar Starry se estendendo para passar os pratos para esses fregueses por sobre as cabeças dos pobres outros, sentados no
balcão.
Mas ele apostaria que ela nunca faz isso quando Mano está por perto. Uma caricatura agressiva colocada sobre o balcão mostra uma versão do proprietário: mais moço,
com mais cabelo, mais magro, mas ainda assim instantaneamente reconhecível. Um aviso embaixo do desenho dizia: ISSO AQUI NÃO É O BURGER’S KING – AQUI NÓS FAZEMOS
AS COISAS DO MEU MODO.
Com Tianna relutante ao seu lado, Lennox fica observando Mano em ação. Amargura exuda dele quando ele grita com uma garçonete, o bastante para manchar cada pedaço
de comida que ele cozinha. Depois Lennox vê que há uma espécie de corredor levando aos toaletes, e em seguida um espaço maior. O império de Mano se estende até uma
área movimentada de mesas, cadeiras e um outro balcão com uma caixa registradora. Até mesmo uma cozinha separada parece estar funcionando.
Lennox se recorda vagamente de Starry lhe dizendo na noite da véspera que ela trabalhava ali há quatro anos. Era provavelmente uma vida inteira, levando-se em consideração
o lugar, pensa ele. Numa semiembriaguez cáustica, ela lhe dissera, num meio-termo entre basófia e lamento, que era o emprego mais duradouro que já tivera na vida.
Não importa o quão louco seu estilo de vida fosse, Starry afirmara que nunca deixara de comparecer a um turno de trabalho. Aquilo parecera a Lennox algo duvidoso,
na hora. Fica patente a bobagem quando ele pergunta à garçonete, aquela que Mano repreendera, se Starry estava ali. A mulher o encara desafiadoramente.
– Você conhece a filha da puta? Onde está ela?
– Eu tinha esperanças de que você pudesse me dizer.
– Ah! Como é que eu vou saber? Eu tenho que cobrir o turno dela – despeja ela numa raiva indomável.
Lennox senta com Tianna, que parece aliviada com a ausência de Starry. Ele tem vontade de tomar um milkshake. Lembra-se daqueles que tomava no Howard Johnson’s,
no Times Square em Nova York com os rapazes. Eram bons. Mas eles logo se voltaram para os Bloody Marys.
Ele pede um shake de chocolate, torradas e ovos. Tianna pede uma coca, hambúrguer e batatas fritas. O apetite de Lennox é imenso. E derrama os ovos em cima das torradas,
deixando cair acidentalmente um pouco da gema em cima da Noiva Perfeita, e sorve o chocolate, que acalma a ardência na garganta. A garota está faminta. Há uma vontade
metódica, rápida, no modo com que ela ataca a comida. Ele fica imaginando quando foi a última vez que ela se alimentou.
– Você fica aqui – diz ele, se levantando. – Vou só comprar cigarros aqui do lado – despeja a mentira fácil do policial infiel.
– Hum, hum – replica ela, e agora seus olhos parecem tão grandes. – Isso seria bem legal.
– Para mim – ele interrompe, no desespero. – Espere aqui – reitera.
Saindo do restaurante, Lennox atravessa a rua na direção do elegante prédio novo com o letreiro indicando Departamento de Polícia do Condado de Miami-Dade. A construção
ocupa boa parte do quarteirão. Dentro haveria homens e mulheres, como seus colegas lá na Escócia, ganhando a vida fazendo cumprir a lei. É uma situação maluca. Ele
é um policial experiente, mas não sabe o que vai dizer. Sem autoridade ou status, ele fica reduzido à sua essência: cheio de dúvidas, agindo num mundo onde esses
luxos são malvistos. Lennox para fora das portas de vidro. Agora não é hora de dúvidas. Agora é hora de agir.
Pessoas como Dougie Gillman entrariam e relatariam o sequestro, abandono, abuso sexual e tentativa de estupro de uma menor ao policial na recepção. Não apenas isso,
ele enfrentaria uma expressão de desdém que dizia: “De onde diabo você é?” e é para isso que ele se prepara, pensando no seu irmão ator, Stuart, dizendo-lhe como
ele “assume” um papel.
Quando abre a porta, seus olhos veem uma enorme mulher inclinada sobre o balcão de recepção. Sua bunda gigantesca, metida em meias-calças cor-de-rosa esticadas,
se projeta no ar e bloqueia parcialmente a visão que Lennox tem do policial atrás do balcão e que a atende. Aí o homem se inclina para um lado, levanta a cabeça
e Lennox e ele se entreolham, mutuamente chocados.
É Lance Dearing quem fala primeiro, enquanto a ânsia de fuga explode em Ray Lennox como uma pistola de partida numa competição, e ele vira de costas para o balcão.
– Ei, você espera um minutinho só, Ray – começa Lance, mas o canhão da mulher está disparando contra ele: – Você vai ter que tirar ele da minha casa! Ele não tem
nada que se meter na minha casa!
– Senhora, se a senhora não se importa... – diz Dearing, saindo de detrás do balcão.
Ray Lennox atravessa rapidamente as portas de vidro e sai da delegacia. Sua descida nervosa em stacatto pelos degraus evoca um pianista tocando “Chopsticks”. Ao
chegar à calçada ele irrompe num trote e depois corre a toda velocidade. O descuido com atividades esportivas fica dolorosamente evidente: seu peso oprime o coração
e pulmões, e os músculos das pernas doem. Sob suas solas, as lajes das calçadas são rachadas e irregulares, e ele tem medo de cair. Aí a massa biliosa parece ficar
mais leve, o peito inflando com o ar, tornando-o mais leve, e Lennox voa.
Tianna está sentada onde ele a deixou, terminando de comer, olhando para a revista de casamentos. A urgência mostrada pela entrada de Lennox a faz enfiar umas poucas
batatas fritas cheias de ketchup na boca antes de ele chegar à mesa.
– Nós precisamos ir – ele arqueja, contando umas notas na mão.
– E mamãe? – pergunta Tianna, fazendo com que Lennox pense brevemente na sua própria mãe.
– Sua mãe não está bem, mas ela vai ficar boa. – Ele descansa as mãos no balcão, os ombros subindo e descendo. Ele é recompensado por um olhar de suspeita de Mano
que o faz lembrar de uma cena de um certo filme. – Nós precisamos ir agora, procurar o Chet – enfatiza, pegando a revista e impulsionando Tianna na direção da porta.
– Você tem que me contar sobre aqueles dois caras que foram lá na noite passada. Johnnie e Lance.
– Não quero falar sobre eles. – Ela vira o rosto em movimentos rápidos, firmes. – Eu não gosto deles!
– Quem são eles? – ele insiste. – Eles já tentaram machucar você?
A linha de visão da garota passa por ele, os olhos arregalados na expectativa de um eminente trauma. Ela está em algum outro lugar e ele precisa dela ali. Com suavidade,
mas de maneira firme, ele segura os ombros dela e a faz olhar para ele.
– Eu sei que você já ouviu essa besteira antes na sua vida e eu garanto, com toda certeza, que vai ouvir de novo. Mas agora é hora de acreditar: confie em mim.
Uma centelha se acende nela e Tianna olha por sobre o ombro dele de novo.
– Rápido. – Ela o pega pelo braço e o leva pelas portas até os toaletes. Seguindo-a, ele dá uma olhada para o restaurante cheio. Na outra porta Lance Dearing entrou
e está esquadrinhando o lugar. Seus olhos se encontram e as sobrancelhas de Dearing se fecham, o lábio inferior se curvando. Pensando que o homem teria os colhões
e o desespero para atirar nele num restaurante cheio, e depois alegar que ele sequestrara uma menor na Flórida, Lennox deixa a porta de molas se fechar atrás deles.
Evidentemente Tianna sabe que os toaletes levam também à extensão do restaurante, cujos fundos dão para um estacionamento. Eles passam rapidamente pelo local, que
contém apenas uns poucos carros e uma caçamba. O terror de receber a bala de um atirador de elite nas costas o faz encolher-se na expectativa do impacto. A cabeça
dele se vira para Tianna, mas ela o acompanha num passo firme e medido, conforme correm até chegar a uma outra rua. De novo, ele olha para trás, procurando sinais
de Dearing, mas não há nada. Em vez de caçá-los a pé, ele teria voltado para seu carro, tentando rastreá-los. A rua principal se abre de volta em mais um conjunto
de ruas transversais dividindo os quarteirões, e eles seguem por uma destas. Para Lennox, elas parecem sem características próprias na sua uniformidade, enquanto
eles seguem rapidamente, olhando para trás, à procura de veículos em perseguição. Agora o ar está mais quente e mais pesado, depois do esforço que ele dispendeu
fugindo de Dearing. O sol se espalha por sua nuca e pescoço, o cérebro anestesiado e carente de oxigênio, enquanto eles diminuem a corrida para um trote e depois
começam a andar, mudos de medo e sem fôlego, apenas esperando serem presos.
Contudo nada acontece e eles continuam a caminhar numa tranquilidade obscurecida, contentes com a parca cobertura das árvores que surgem na rua e nos jardins, permitindo
pelo menos alguma proteção tanto da luz do sol quanto dos olhares dos transeuntes.
Tianna está pensando nos garotos do ônibus escolar. Ela não se importa de eles a xingarem de puta. Eles dizem o mesmo para as latinas católicas de meias brancas
e uniformes escolares plissados, até quando estas estão saindo da igreja. Aquela velha igreja de estuque com o vitral grosseiro, a cor esmaecida pelo sol constante
brilhando por entre as folhas de palmeira. Tianna pensara mesmo em entrar ali, imaginando se outras garotas compartilhavam de sua sorte, e se elas haviam encontrado
a paz ali dentro. Mas a mãe dela não tinha tempo para isso, para os velhos sujos com rostos piedosos, metidos em batinas e sapatos velhos. Os únicos homens para
os quais ela não tinha tempo. Agora ela está olhando para o escocês alto, Bobby é como ela vai chamá-lo, à semelhança do escocês Bobby, jogador de beisebol, mas
ele está falando para si mesmo como um verdadeiro babaca maluco, os olhos esbugalhados: com toda certeza, um lunático. Ela o escuta dizendo baixinho algo estranho,
sobre a necessidade de continuar andando, sobre crianças, sobre como ele sempre tem que tomar conta de crianças, e quem, com os diabos, ele pensa que é, esse escocês
esquisito que não sabe bulhufas sobre ela. Andar foi sempre o que ela fazia em Mobile, no Alabama. Ele não sabe disso?
Um pensamento na cabeça de Lennox: eu sou o silêncio desconfortável. Ainda que provavelmente estivesse a resmungar, delirando por causa do calor, do esforço e da
rebordosa das drogas, talvez dizendo alguma coisa sobre a necessidade de andar.
Porque agora Tianna está gritando com ele. A princípio ele não consegue ouvi-la, apenas um ruído tão uniforme quanto o silêncio. Ele tem que parar, e fazer um esforço
consciente para entrar em sintonia.
– ... e eu gosto de caminhar e eu não sou criança – ela declara violentamente, o rosto contorcido de raiva –, então não fique me tratando como uma!
– Está bem – diz ele, humilde. Eles caminham em silêncio pelo que parecem ser séculos, desconfiados um do outro e saem de novo na rua 7, piscando como fugitivos
acorrentados num deserto. Todo carro-patrulha que passa faz bater acelerado o coração de Lennox. A revista bate numa cadência mais forte contra sua coxa.
O guarda-florestal virou caçador clandestino.
Ele sente que as pessoas o estão observando. Roupa, postura, cor da pele, ele não se encaixa naquele contexto. Talvez seja a garota; seus olhos lentos de anjo acompanhando-o
na sua inexorável missão de misericórdia. O ar fica mais espesso no calor e a revista lustrosa faz sua mão suar. Eles parecem ser os pedestres solitários: o homem
branco e essa garotinha. De repente uma coisa o intriga, o fato de que ele nem mesmo pode dizer, pelas feições e a cor de pele de Tianna, nada sobre a procedência
étnica do pai dela. Há possibilidade de que seja negro, asiático, branco ou latino. Tenta mentalmente usar o Photoshop nas feições de Robyn para delas chegar às
da filha, e ver o que sobra, mas ainda assim nenhuma imagem marcante se apresenta. A única coisa que lhe vem à mente, para seu desgosto, são os pelos púbicos de
Robyn.
Na vizinhança de Britney ninguém nos notaria. As animosidades ali eram contra o refugiado da Bósnia que recebeu uma nova casa por parte do conselho municipal, ou
o quieto entusiasta de trens-modelo, que morava nas cercanias. Ou o pintor de casas que, apesar disso, recebia seguro-desemprego. Ou a imbecil da mulher que levou
o último pacote de bifes congelados da loja de esquina e o safado do paquistanês magro que vendeu o produto para ela. Ou o brutamontes que arrombou a porta a pontapés
e levou a televisão e o som estéreo enquanto o esquelético e cadavérico delegado de polícia sacudia o mandado de busca frente aos rostos pasmos dos donos dos aparelhos.
Ou o marido bebum, cheio de culpa, torrando mais um mês de aluguel na bebida e nos cavalos. Suas animosidades eram uns com os outros e eram desgastantes; nascidas
do subemprego, pobreza e privação. Nesse ínterim, um monstro verdadeiro deslizara pelo seu meio sem ser detectado.
O sr. Confeiteiro nunca encontraria guarida em um bairro de classe média alta, com seus “bisbilhoteiros” e vizinhos prontos para chamar a polícia caso vissem uma
van branca estacionada em suas ruas.
Então um estádio esportivo, uma visão jubilosa para um escocês, surge imponente à frente deles. Tianna lhe diz que é o Orange Bowl. Caminhando naquela direção, eles
dão com um outro shopping curto e decadente. Mas neste aqui há um táxi e o aviso indica que está livre.
No táxi calorento, a paranoia já o fez perder duas camadas de pele. Lennox está determinado a manter a criança longe de Dearing, Johnnie e Starry; essas pessoas
representam perigo para ela e Robyn não pode protegê-la. Mas talvez esse tal de Chet pudesse. O problema é que ela enfiou-se num mutismo. De modo que ele mostra
o endereço ao motorista. O homem fala mal o inglês e não sabe onde é. Ele explica que é da Nicarágua.
– Não, não daqui – continua o homem dizendo.
Estou perdida com gente retardada que não conhece este país, Tianna está pensando, mas Bobby Escocês está tentando ajudá-la, levá-la até Chet, então ela suaviza.
– É bem longe.
Lennox primeiro estuda as palavras dela, e depois sente uma pontada de ânimo. É a primeira vez que ela disse alguma coisa voluntariamente.
– A que distância? Fora do estado?
– Não, é na Flórida. Perto do mar, mas meio que do outro lado da grande via expressa.
Lennox pensa no aeroporto: as concessionárias de aluguel de carro. Não é tão longe. Eles vão para lá, enquanto ele tenta concatenar seus pensamentos. A cabeça gira.
Ele não tem antidepressivos. Está apavorado. Pense como um policial, diz a si mesmo, tentando colocar em ordem suas ideias desarrumadas. Os olhos parecem cheios
de areia fantasmagórica causada pela falta de sono e a cabeça lateja.
Lance Dearing. Pense como um policial. Como é que ele pensa? Qual é o jogo dele?
Faz sentido o fato de Dearing ser policial. A chave de braço é um golpe padrão da polícia em todo o mundo. A voz: cheia de uma autoridade fácil.
Lennox sabe que deveria ter suspeitado imediatamente. Mesmo que aquela fosse a primeira vez que ele houvesse sofrido o golpe, o fato de ele não ter percebido isso
lhe mostra como ele está mal preparado para a coisa.
Os lábios de Tianna tremem.
– Nós estamos fugindo da polícia, ou só de Lance?
Uma boa pergunta.
– Só de Lance – ele arrisca. – Sua mãe queria que eu levasse você para Chet, não deixar você com qualquer outra pessoa. Então não me importa se ele é policial; é
isso que eu vou fazer.
Isso parece acalmá-la, de modo que Lennox conversa num inglês estropiado com o motorista, que confirma o que suspeitava sobre a triste sina dos motoristas de táxi
de Miami.
– Não trabalho de noite de jeito nenhum. Eu tenho família. Meu patrão, ele é um muitíssimo pão-duro pra mandar colocar vidros blindados!
Lennox ouve um roncar e levanta o olhar, vê um avião aterrissando. Fica imaginando quantos homens Lance Dearing, com ou sem o emblema da polícia, matou.
10
O melhor milkshake da Flórida
Todas aquelas vezes ela ficara ali sentada praticando denúncias, afiando-as para intensificar seu efeito devastador. O número de vezes que você me deixou na mão,
Ray. Mudar? Você nunca mudará. Você não consegue. Você mesmo já disse isso: você é o que é. Eu passei por otária de novo. E agora, na cama desse estranho, todo aquele
ensaio fora posto a perder.
O homem adormecido ao seu lado. Respirando de leve, quase sem roncar; em harmonia com o condicionador de ar quase silencioso. Ele se levantara durante a noite para
retirar a camisinha. Como fizera com as outras duas. Como se fosse impróprio para ela colocar os olhos naquilo. Mas ela observara o sangue na última camisinha, quando
ele discretamente a retirara de seu pênis exaurido. Trudi vira aquilo como que uma dica para se levantar, usar o bidê e inserir um absorvente de reserva que ela
carregava na bolsa. Uma mancha de sangue dela nos lençóis dele, de aparência corrosiva; ela sentira a umidade quando voltara para a cama, achando-se suja. O que
é que eu fiz? Porque surgiu o pensamento em Trudi Lowe, num violento e intransigente choque de claridade, de que Ray Lennox, seu noivo, está doente.
Mentalmente doente. De uma maneira que transcende a habitual imbecilidade, egoísmo e fraqueza dos homens. Afogando-se em pânico crescente, ela desliza para fora
da cama do estranho, mete-se de qualquer maneira, porém silenciosamente, nas roupas jogadas a esmo, e escapole furtivamente do apartamento. Emerge numa área comum
suntuosamente mobiliada e cheia de plantas do condomínio. Um porteiro compreensivo, um homenzinho ágil, que parece e se movimenta como um lutador de boxe peso-mosca,
chama um táxi para que ela possa voltar ao hotel. Eles conversam um pouco, e quando o táxi chega, ele lhe dá o braço e a leva, como um pai faria com a filha no dia
do casamento desta, fantasia ela, até a escada que desce meio andar até sair numa rua ornamentada de palmeiras do outro lado da baía. Estranhamente, o ato não pareceu
bizarro ou intrusivo, o homem se movendo com uma elegância controlada, sem qualquer sensação de indecência. O táxi estava esperando e ela entra no veículo, agradecida.
Seu sentimento de culpa se desvanece quando ela pensa em Lennox. Ansiosa, mas determinada, ela lhe dará o troco, noite por noite, acontecimento por acontecimento.
Ah, você encontrou alguém e foi a uma festa? Engraçado, eu também. Como é que foi a sua? Boa. A minha? Ah, não foi ruim, não.
Ela precisa estar ali, sorver mais dor se for preciso. A infidelidade descontrolada de que ela gozara na maior parte da noite a excita e lhe causa repulsa. Chegando
ao quarto do hotel, ela sente um alívio mesclado com uma horrível tristeza e raiva, pelo fato de ele ainda não estar ali, que merda, mas segue direto para o chuveiro,
agradecida, para lavar completamente o seu homem de imóveis. A luzinha permanente da secretária eletrônica mostra que não há mensagens. Nenhum bilhete. O canalha
nem mesmo telefonou. Não voltou. Bom, pensa ela enquanto fica deitada de costas na cama e sente uma pulsação entre as pernas. Um homem grande, duro e forte. Que
você se foda, Lennox.
Você não tem a mínima noção de como são os rapazes.
Mas, e se... se Ray Lennox estiver num hospital, ou morto num beco?
Trudi se senta. O quarto ainda sem Ray. Meu raio de sol. Até mesmo naquela depressão calma e pesada, a presença dele torna tudo aleatório e caótico, como uma tempestade
elétrica sem o som do trovão. A tendência dele de supercomplicar a vida a entristece; aquela alternância arbitrária passando de uma pesada alienação para o engajamento
apaixonado. Qual é a graça?
Um sol causticante torna branco uma parte do pálido céu azul. Um olho fechado para o fulgor que o atinge lateralmente, seu nariz torto aponta o outro olho para uma
fileira de casas de pintura brilhante, do outro lado da rua, com seus pátios quebrados, irregulares. Um homem de cabelo desgrenhado, usando uma camisa amarela suja,
empurra um carrinho de supermercado numa marcha lenta, uniforme, a cabeça curvada sobre o conteúdo do carrinho, apenas levantando a cabeça ocasionalmente, enquanto
o tráfego zune, estrondeia e guincha na direção do cruzamento. Uma série de vasos grandes de plantas cheios de eucaliptos havia sido colocada em frente a um prédio
de escritórios de tijolos cinzentos, para evitar que os carros estacionem ali. Tianna está sentada num desses vasos, as pernas cruzadas, lendo a revista no seu colo.
Lennox acompanha o vagabundo com o carrinho de supermercado, seguindo a linha de visão do homem até um letreiro.
BARCLAY E WEISMAN
NÓS CONSEGUIREMOS INDENIZAÇÃO PARA VOCÊ PELOS SEUS DANOS
Próximo à entrada do escritório, um pneu velho jogado fora com um pombo morto dentro de seu círculo preto faz com que Lennox se sinta de certa forma animado, como
se aquilo mostrasse a determinação da vida selvagem local em resistir à incursão desse pássaro de clima temperado, encontrado por toda parte. Ele se coça e boceja,
afasta a camisa da pele. Sente que a parte superior do corpo sorve o ar.
Dentro do escritório, T.W.Pye sente a cadeira acolchoada gemer sob sua corpulenta estrutura quando ele desaba no assento. Ele sorve a sua gigantesca coca-cola e
avança no Big Mac, enquanto o molho corre por seus dedos suarentos, descendo por três queixos tremelicantes, manchados de salsicha de fígado, que se derramam como
trufas de debaixo da boca até o alto do peito. Agora com quarenta anos, Pye era cronicamente obeso desde a adolescência, o que se devia em grande parte ao seu amor
por alimentos fast-food e refrigerantes tipo cola. Há pouco tempo ele percebera que isso lhe roubara a saúde, o vigor e a sexualidade. Nunca se relacionara com uma
mulher que não tivesse pago.
Agora sua atrevida atitude de desafio está se desmoronando diante dessa compulsão, a consequente falta de ar, as dores no peito e nos braços, e os ataques de depressão
e de ansiedade arrasadores que o afligem à noite. Mais do que tudo, seus sentimentos são solapados pela enxurrada inesgotável de informação. Chegando a eles de todos
os ângulos, dizendo-lhe em vozes inequívocas: a comida com que ele foi criado o está matando. Ele não consegue ligar uma TV sem que apareça um presunçoso nutricionista
liberal avisando-o de que ele é o causador de sua própria ruína.
O mundo, ou a parte do mundo que entra em contato com ele, pagará por isso. A reputação da franquia Qwick Car Rental, como um operador menos exigente que as grandes
firmas, faz com que os clientes de Pye sejam sempre gente desesperada, com pressa. Ele sofre pelo menos uma investigação da polícia por semana. Mas T.W. Pye adora
fazer perguntas; aprecia sua sensação de poder sobre seus clientes mais desafortunados. O telefone na sua mesa toca agudo exatamente quando Ray Lennox entra no escritório
vazio. Um cordão de veludo de boate, completamente fora do contexto, mantém os fregueses inexistentes numa fila bem organizada. Pye abaixa seu sanduíche, pega o
fone, olhando curiosamente para Lennox, com um ar de petulante desaprovação.
– Hei! Gus! Como vão as coisas? Em nome de Deus, quem é esse viado de bundinha magra...? É isso... claro que é, Gus...
Lennox olha para o homem obeso, levantando os olhos para a gravura de uma garota de seios enormes, obviamente siliconados, que explode dentro de um maiô de duas
peças, em um calendário pendurado na parede atrás dele.
– Estranho, Gustave, muitíssimo estranho. Certo, amigão. Traga eles hoje à noite. Estarei em casa.
A impaciência brilha nos olhos de Lennox quando estes se cruzam com os de Pye. No instante que se segue, nasce uma animosidade recíproca.
– Vejo você hoje à noite. Até mais, Gus. – Pye deixa o receptor escorregar de sua mão até o descanso. Olhos fundos encaram Lennox com um ar de alegre malícia.
– Bem – diz ele, abrindo um sorriso obsequioso.
– Preciso de um carro. Vou para Bologna.
– Ótimo – sorri Pye, enquanto Lennox lhe entrega a carteira de habilitação. Ele examina o documento durante alguns segundos, levantando-o contra a luz, como se fosse
uma nota de dinheiro de alto valor. – Não está planejando cruzar a divisa do estado, não é?
– Não, Bologna, Flórida. Preciso do carro apenas um dia ou dois.
T.W. Pye abaixa a cabeça, sente seu sorriso se estendendo na direção dos limites da perfídia.
– É que eu simplesmente não posso dar a você nenhum carro se você está planejando cruzar a divisa do estado, pelo fato de você ser estrangeiro. São novas regras
da guerra contra o terror. Os graudões, Hertz, Avis, eles poderão ajudar você nisso.
– Nada de divisa. Bologna, Flórida – repete Lennox, inquieto com o seu papel de suplicante. – Dois dias no máximo.
– Bem, eu tenho um Volkswagen Polo. – O sorriso de Pye se sustenta, mesmo que um pouquinho de suor escorregue de sua têmpora através da bochecha, como se fosse um
corte lento da navalha de um psicopata. – Europeu. Econômico. Deve servir. De onde você é?
– Quanto? – Lennox puxa seu cartão de crédito Visa platinum.
Pye se recosta, franze as sobrancelhas, despejando taxas, termos e condições. Lennox acena num consentimento gélido, quando a porta se abre. Tianna entra atabalhoadamente,
a jaqueta pendurada no dedo, arrastada casualmente atrás dela. Ela bate com a revista na perna, imitando Lennox. Pye dá uma olhada para o short azul-escuro e o corpete
cor de mostarda com seus dizeres brilhantes. Vê os membros magros, ossudos saindo da roupa. Ele reage com a expressão desconfiada do predador: estreitamento dos
olhos, o rosto endurecendo e ficando mais pálido. Lennox capta aquele cheiro de luxúria adormecida, fazendo rilhar seus dentes de novo.
Pye sente essa reação e se volta para ele, fingindo uma indiferença educada, enquanto Tianna se balança encostada no balcão.
– Sua filha? – pergunta ele.
Lennox olha para o homem com expressão muda, ameaçadora. Suas mãos se crispam na borda do balcão. A mão ruim atacada de uma dor urgente, quebrada, que ele controla.
– Ele é meu tio Ray – intervém Tianna com voz doce, virando-se para Lennox com um ar perturbador de conspiração. – Tio Ray da Escócia.
– Eu vi que você tinha um sotaque – declara Pye untuosamente, sorrindo para Lennox, e depois para Tianna.
– Todo mundo tem um sotaque – diz Lennox, a voz calma, afrouxando o crispar das mãos, e gostando da crescente diminuição da dor. – As chaves estão com você?
– Vem cá. – O obeso funcionário se levanta e vai para o outro lado do balcão. Lennox e Tianna o seguem através de um soalho grosseiro de tacos marrons cobertos de
carpete, alguns perigosamente soltos, que cobrem o chão cimentado. A porta de vidro fosco, montada numa divisória de carvalho falso, é feia e cheia de sujeira na
maçaneta. Lennox evita tocá-la; ele imagina que fazer isso seria como tirar o pau de Pye da calça e apontá-lo para o mictório meia dúzia de vezes por dia.
Eles seguem por um corredor, atravessam dois conjuntos de portas corta-fogo abertas, presas com calços, e saem num estacionamento. No caminho, Lennox vê na parede,
relacionando os carros devolvidos: um outro quadro branco institucionalizando a idiotice, apresentando pornograficamente os meandros previsíveis do pensamento. Ele
tem vontade de arrancar o cartaz.
A distância o quadro que corria pelas paredes da sala da Unidade de Crimes Hediondos lembrava uma representação do Carnaval feita para um jardim de infância. O quadro
fora ficando ornamentado com dados até chegar a um ponto em que assumia uma vida própria. As canetas e marcadores de tinta fluorescente, as fotografias e mensagens
em bilhetes gomados produziam um efeito divertido, incongruente com a história sinistra: a morte de Britney Hamil. Havia uma qualidade múltipla, ligeiramente ofensiva,
no modo como Drummond e Notman mantinham o quadro meticulosamente atrativo.
Depois o quadro branco na casa de Robyn; completamente limpo. A despeito de toda a cocaína, eles haviam ficado juntos o bastante para remover tudo, todo nome ou
número de contato. Somente Dearing, apenas um policial, poderia ter sido tão meticuloso e premeditado. Apenas um policial, ou um canalha.
E agora aí ia ele, afastando-se de um cara esquisito numa firma de aluguel de carros, com uma garotinha, uma criança que ele nem mesmo conhecia. Mas eu estou fugindo
dos pedófilos, e eles estão atrás de nós. Aquela toupeira do aluguel de carros, será que ele conhecia Dearing? Talvez, aquilo é uma rede. Os pedófilos estão por
toda parte: é uma franco-maçonaria de pedófilos. Uma confraria de pedófilos.
Isso é ridículo. Sua capacidade de julgamento está reduzida a cacos. A situação está acima de sua capacidade.
Mas as crianças precisam de proteção. Maníacos sexuais: eles têm que ser detidos. É para isso que ele é policial, a certeza sem ambiguidades, sem erros, dessa cruzada
particular. Os pedófilos tornam real a profissão de policial: uma vida viável e justificável. Dessa vez não se trata de fazer cumprir leis prejudiciais, antiquadas,
ou de proteger a propriedade dos riscos. Trata-se realmente da batalha direta entre o bem e o mal, o oposto daquela regra rotineira de tentar controlar as consequências
da pobreza, tédio, estupidez e ganância.
Agora eles já estão no Volkswagen alugado, Lennox dirigindo cuidadosamente ao longo de uma larga avenida, com tráfico constante. A garota em silêncio ao lado dele,
remoendo os pensamentos, mordendo o lábio inferior. Preso a uma pista lateral, eles acabam entrando numa via expressa. Percebendo que não sabe para onde está indo,
Lennox deixa a via expressa na primeira saída.
– Então, a que distância é essa tal de Bologna?
A cabeça de Tianna está metida no exemplar de Noiva Perfeita, o vestido de noiva manchado pelas digitais de Lennox.
– É longe, de carro.
– Quantas horas?
– Não sei, talvez duas ou três. Talvez mais.
Merda. Ele tinha que achar uma garagem. Um posto de gasolina. Comprar um mapa.
O rádio toca “Like Toy Soldiers”, de Eminem. O coro desencadeia uma onda tremenda de emoção em Lennox. Suas mãos ficam lívidas no volante. A direita ainda dói. Aquele
babaca é a porra de um gênio, pensa ele, quase sufocando de emoção. Lágrimas enchem seus olhos. We all fall down.
O corpo de Britney, frio e sem vida. Machucados por toda parte, especialmente na garganta. Olhos esbugalhados, congelados no seu último momento de dor e terror.
Arrancar a alma de uma criança daquela maneira terrível era a transgressão mais cruel, maligna, na qual ele podia pensar. O sr. Confeiteiro. Tão frio.
Ele pensa em Britney no necrotério, olha para Tianna no assento do carro. Fica imaginando o que Johnnie, e, ao que tudo indica, Lance e Starry, haviam planejado
para ela. Não o mesmo que o sr. Confeiteiro planejou para Britney, certamente. Mas ele é um estrangeiro num carro alugado com uma criança que é quase uma estranha
para ele. Esclarecer suas ações para um policial, se ele fosse parado, será tão difícil quanto explicá-las a Trudi.
Tianna avalia o homem dirigindo a seu lado. Ambos são foras da lei, fugindo de Dearing. Chet nunca deixaria Lance pegá-la, isso é certo. Nem também o Bobby Escocês,
pensa ela. Ela imagina o que aconteceria se ele tentasse tocá-la. Lembra-se de Vince, com sua delicadeza maleável, a vagarosidade de suas carícias, aquelas palavras
portadoras de confiança enquanto ela sufocava a ânsia de gritar, interminavelmente chorando e morrendo nas mãos macias dele, mãos de mulher. Esse é o tipo de monstro
que este aqui seria, transformado por um veneno negro exudando de suas veias para tornar seus olhos vítreos e os ouvidos surdos; não como Clemson, sempre uma força
hostil com aquele sorriso enrugado, sugerindo um enxame de tormento, e cujo olhar poderia pôr para correr uma matilha de cães selvagens. Ela fecha os olhos para
ver Bobby Escocês com mais clareza. Heard around the world. Ela abre os olhos e pergunta:
– Então nós vamos realmente até a casa de Chet?
– Em Bologna? Sim, acho que vamos.
– Legal – diz ela, surpreendida com seu próprio arroubo inesperado de entusiasmo.
– Preciso encontrar um posto de combustível, um posto de gasolina; arranjar um mapa.
Tianna morde o lábio inferior, pensativamente.
– Um posto de combustível – ela imita, achando a expressão divertida.
– Você sabe o número da casa dele? A sua mãe me deu um endereço, mas não havia número. – Ele coloca o bloco de notas, com seus rabiscos, no colo dela.
Ela examina o que está escrito e balança a cabeça.
– Ele meio que mora num barco. É uma coisa bem legal.
Lennox olha de novo para o endereço. Um lento e fragmentado reconhecimento, atrasado, no seu tórax: não há número da casa porque é um barco. Está lá nos seus próprios
rabiscos acusatórios: marina. Por alguma razão ele imaginara que aquela palavra não teria significado no país: apenas um termo usado no ramo imobiliário para indicar
um lançamento que ficava a pelo menos uns poucos quilômetros do mar. O desânimo se abate sobre ele; é um mau policial, ainda ignorando o óbvio, pronto para se lançar
em voos idiotas da fantasia. O mito de “obter resultados” era exatamente aquilo, e suas promoções distantes haviam sido obtidas jogando com a política da organização,
escolhendo o chefe certo a quem servir no momento certo. Os lados de seu rosto começam a se colorir.
– Preciso também encontrar um café com internet, de modo a que eu possa ver o resultado do jogo dos Jambos na Copa da Escócia – ele explica, indo de encontro ao
olhar vazio dela. – Hearts. É um time de futebol; que vocês chamam de soccer. Você gosta de soccer?
– Acho que sim. Eu costumava jogar.
– Por que parou?
– Não sei. É meio paradão. Não compreendo o jogo bem, toda aquela coisa de impedimento.
– Eu nunca deixo de me espantar como as mulheres nunca entendem esse negócio da regra de impedimento. É tão simples, o atacante principal precisa estar pelo menos
na altura do último defensor quando a bola é jogada de trás, e se isso não acontecer ele está impedido. Entretanto, se o atacante mais à frente for considerado pelo
juiz não estar interferindo na jogada, como no caso, digamos...
– Uau! Meu cérebro está explodindo!
Lennox ri e pensa nos esportes americanos. Beisebol é o mais popular. Ele nunca assistiu a um jogo. Ele se lembra de uma conversa de bêbados em Las Vegas, com um
garoto da confraria de alunos e um velho irlandês, um valentão da Associação Atlética Galesa. O garoto americano havia dito que a coisa mais difícil no esporte é
acertar uma bola rápida com aquele bastão. O valentão irlandês gorgolejara como um ralo entupido desmentindo o outro, dizendo a eles que no hóquei irlandês eles
tinham que pegar a bola com um bastão, controlá-la e correr a toda velocidade com ela, enquanto um bando de malucos tentava derrubá-lo. Lennox pensou na versão do
jogo que eles jogavam na Escócia, com bastões maiores. Kingussie e Newtonmore se enfrentando na Shinty World Series.
– E o beisebol? Os Merlins. Assim chamados porque eles são mágicos, sem dúvida.
– O nome é Marlins.
– Como Marilyn Monroe?
– M-A-R-L-I-N-S – ela soletra, fazendo uma careta, mas ela está sorrindo um pouco. – São peixes, sabe, como... peixe-espada, eu acho.
Lennox acena afirmativamente com a cabeça, subitamente ciente da necessidade de se concentrar nas rodovias estranhas, o tráfego e a cafeína fazendo balançar seus
nervos. Ele está longe de sentir confiança para mudar de faixa; caminhões passam em estrépito, conversíveis rodam zunindo com um meneio arrogante e os utilitários
esportivos estrondeiam com sua ameaça vagarosa, os instáveis valentões do mundo automobilístico.
Tianna está pensando em quando jogava T-ball no parque. Aqueles corpetes e calças de poliéster que eles usavam sempre cheirando tão bem. Como ela ia entrar para
o time de softball. Mamãe sentada na arquibancada, o cabelo puxado para trás, por dentro de um boné de beisebol, a camisa e a calça jeans mais apertadas do que as
das outras mães, os olhos inquietos namorando debaixo da viseira. Aí, um dia, um outro rosto apareceu ao lado dela; Vince, com seu enorme sorriso fácil. Depois eles
estavam em Jacksonville, em seguida Surfside, depois ali em Miami, seguindo sempre para o sul, como que sendo atraídas pelo oceano. Empurrada para jogar soccer com
as animadas garotas latinas, o jogo se desenrolando em torno dela. Mamãe assistindo, o cabelo mais curto, o rosto mais cheio, ela tentando controlar a bola enquanto
procurava o parceiro seguinte ao lado de sua solitária mãe.
No rádio, Lennox ouve uma gravação de Elvis dizendo quanto ele amava a vida no exército. Ele se lembra de ter escutado o discurso inteiro numa exposição em Graceland;
na sua antipatia respeitosa, a coisa soava completamente diferente daquela irradiação de propaganda mal editada para motivar os atuais jovens empobrecidos americanos
a entrar para o serviço militar. Mas para a safra atual de pracinhas não haveria quartos particulares na Alemanha ou uma Priscilla de quatorze anos de idade. Como
o exército, os pais dela fechavam os olhos para o pedofilismo do Rei em cima de sua filha. Ele era um cavalheiro, diziam.
Lennox para num posto de gasolina. O cheiro dos vapores da gasolina se casa com os odores químicos das frituras fortes de um McDonald’s próximo. Naquele calor, são
provavelmente mais tóxicos do que a cerveja fraca que um anúncio de neon azul faz com que ele sonhe em tomar. A loja anexa é um lugar desmazelado de variedades restantes
que vende ímãs de geladeira de diversos estados, jornais variados e alimentos fáceis de levar, como batatas fritas e uma coisa com aspecto amedrontador chamado “sanduíche
de carne-seca”. Embrulhado como um filho bastardo de carne num pão barato, aquilo nunca poderia ser uma comida sadia. Galinhas assadas no espeto dentro de uma vitrine
de vidro. Um “banco” de cigarros dentro de uma máquina de vendas automática, encostada a uma parede atrás do balcão, e revistas pornô em prateleiras altas indicadas
por suas capas uniformes, os títulos e imagens cobertos.
Tianna olha para os ímãs de diversos estados. Sua mãe colecionava essas coisas de maneira meio desorganizada; duas de Illinois enfeitavam sua geladeira. Era maluquice
colecionar coisas desse tipo, as porcarias sempre sumiam, você nunca consegue um conjunto completo.
Lennox compra um livreto com mapas, cobrindo a área dos condados de Miami-Dade, e um encarte mostrando as estradas e cidades principais no estado da Flórida.
– Há algum café com internet por aqui? – pergunta ao atendente.
– Não, não conheço nenhum. Você é de onde?
– Escócia.
– Sean Connery!
– Isso. Eu só queria saber o resultado de um jogo de futebol.
O atendente dá uma olhada em torno para se certificar de que o lugar está vazio e faz sinal para que Lennox o acompanhe até uma salinha assinalada com ACESSO PERMITIDO
SOMENTE A EMPREGADOS. Ele liga um computador e entra online.
– Sou mexicano. A Escócia não vai à Copa do Mundo, não é? – Balança a cabeça numa expressão de tristeza e faz o login para o site oficial dos Hearts. Foi dois a
um contra o Kilmarnock. Ótimo, poderemos empatar na próxima rodada. Ele olha rapidamente para o Kickback, o fórum dos torcedores. Maroon Mayhem colocou uma mensagem
de novo.
Aquele babaca está criticando, não, insultando Craig Gordon por causa da porra de um erro. Ele não vai deixar passar isso.
Lennox coloca sua mensagem sob o pseudônimo de Ray of Light.
O que é que há com alguns idiotas? O melhor goleiro que a Escócia já teve em décadas e por algum motivo ele não é bom o suficiente para os Hearts, ele está aqui
apenas para ser esculhambado por debiloides como Maroon Mayhem?
Ele agradece ao atendente da garagem, desejando a melhor sorte possível para o México na Copa do Mundo, antes de se lembrar que eles jogam no Hiberniam Green. Lá
fora, piscando à luz do sol, Lennox estuda o mapa de ruas do condado de Miami-Dade, não encontrando nada que o aproxime do local de moradia desse tal de Chet, ou
onde está atracado seu barco, em Bologna. Depois ele examina o mapa da Flórida. Bologna está do outro lado do estado, no litoral do golfo do México. O quadro de
distâncias nas costas do livreto lhe diz que a garota estava certa. O percurso de carro vai provavelmente durar pelo menos três horas.
– Você volta para o carro. Eu preciso dar um telefonema.
– Você vai telefonar para mamãe?
– Você sabe o número do celular dela?
Tianna balança a cabeça.
– Por que não?
– Eu simplesmente não sei – diz ela, franzindo as sobrancelhas. – É que ela não tem créditos, e muda muito de telefone.
– Muito bem, nós podemos telefonar para ela quando chegarmos à casa de Chet. Ele provavelmente sabe o número e ela talvez já tenha dado um jeito nas coisas.
– Talvez – diz a garota, desanimada. – Eu preciso usar o toalete.
Enquanto Tianna vai na direção dos toaletes ao lado da loja, Lennox atravessa o pátio do posto de gasolina até o telefone público. Uma inspiração profunda o prepara
para telefonar para o quarto no Hotel Colonial.
– Alô! – É um grito agudo.
– Trudi, sou eu.
– Ray? Onde diabos você tem estado? Estou morta de ansiedade! Eu ia telefonar para a polícia daqui, percorrer os hospitais; ia até mesmo telefonar para sua mãe e
Bob Toal – ela geme. O sentimento de culpa a atinge como um trem e ela fica contente de ele não poder ver seu rosto. – Você está bem?
– Estou sim, estou bem. – Lennox tem que afastar uma outra onda de fadiga. – Não entre em contato com a polícia.
– Você tomou alguma coisa? – ela indaga, num tom de pânico agudo, urgente. – Cocaína?
Ele hesita. Decide ser sincero até onde pode.
– Eu cheirei umas carreirinhas numa festa. – Ele faz uma pausa, querendo despejar toda a mentira. A psicologia popular, os tons autoanalíticos que tintilam dentro
dela. Ele fica contente com o fato de ela não poder ver seu rosto. – Mas eu estava bem. Acho que eu só queria saber se podia me livrar disso. Foi só uma vez – seu
tom de voz é grave –, e eu sei que isso parece estranho, mas eu senti que precisava me certificar de que a droga não vai me prender mais. Ter certeza de que eu podia
me afastar dela.
– E é isso que você fez, se afastar, Ray? Ficando fora toda a noite? Onde é que você esteve, Ray?
– Eu sei... Desculpe... Eu só precisava de tempo para pensar... Foi um erro.
– Tempo para pensar? Você tem tido tempo para pensar, Ray. É esse negócio de tempo para pensar que tem causado toda essa porra de problemas! – Então ela desiste
por um momento. – O que é que está acontecendo, Ray? Você está numa encrenca? Onde você esteve, Ray? Onde você está? Você está encrencado? Está?
– Não, eu não. É outra pessoa. Ontem à noite eu fiquei um pouco bêbado. Encontrei umas pessoas... um casal, e fui a uma festa no apartamento deles. Chegaram uns
caras, um deles tentou se meter com uma criança. A mãe dela está meio encrencada. O namorado dela foi embora, eles foram embora e ela quer que eu leve a criança
para a casa do tio. Fica a cerca de duas ou três horas de carro, e nós estamos a caminho agora. Eu aluguei um carro.
– O quê?
– Eu aluguei um carro. Não podia deixar a criança. Ela estava completamente sozinha.
– Mas onde está a mãe? E por que você se envolveu nisso? Veja, eles têm sua própria polícia aqui, Ray. Isso não tem nada a ver com você!
– Não posso largar a criança – protesta Lennox. – Só vou entregar ela na casa do tio.
A linha virou um rastilho de pólvora, o receptor no ouvido dele sendo o explosivo e a voz dela se elevando como uma chama que se aproxima.
– Quem você pensa que é? Isso não tem nada a ver com você. Eu sou alguma coisa que tem a ver com você. Eu sou sua noiva! Essas são as nossas férias!
– Há uma merda de uma coisa suspeita acontecendo por aqui. Eu preciso me certificar de que a criança vai estar em segurança. – Numa súbita ânsia, ele olha através
do pátio. Tianna está conversando com dois garotos. Ela parece uma mocinha. Ela parece uma vagabunda cantando caminhoneiros.
– Você precisa! Você precisa! Você está falando besteira! Porra! Você não ouve a si mesmo, Ray? Você nunca para por uns poucos segundos e realmente escuta; escuta
a besteirada que sai da sua boca? Vai ser desse jeito a nossa vida de casados? – Trudi geme de infelicidade. – Você não consegue parar de bancar o policial? Que
tipo de idiota você é?
Aqueles safadinhos de merda. Um garoto na idade de perceber que não é propriedade de alguém, uma violenta reviravolta nas suas características. Com ele, um garoto
mais velho, repleto dos hormônios da juventude, procurando um buraco para encher com seu ego importuno.
– Eu tenho que ir. Está tudo bem – exclama ele. Os dois jovens. Conversando com Tianna. Eles não podem ver que ele os está observando.
– Tudo bem? Com você brincando de Miami Vice? Que porra você pensa que é? – Trudi sibila de ódio. – Você fica fora a noite inteira, por aí se metendo com se sabe
lá que porra...
– Há pessoas encrencadas. Isso pode não significar nada para você, mas eu não trabalho para a porra da companhia de eletricidade – ele ruge, mantendo os olhos na
garota. Será que ela vai entrar no carro com aqueles caras? Certamente que não!
– Muito bem! Dane-se eu e o que eu faço! Você, seu honestinho todo importante, pomposo! Tudo que eu queria era viajar e planejar nosso casamento. Desculpe por isso,
Ray. – O sarcasmo corre solto pela linha telefônica. – Desculpe de todo o coração. Desculpe por eu querer umas férias com meu noivo. Desculpe por eu ter ficado alterada
com o fato de ele ficar festejando a noite inteira com alguma mulher que eu não conheço, e agora está rebocando a filha dela. Desculpe por ser essa porra de esquisita
tão grande!
Tianna namorando, recostada no capô do carro em atitude provocativa como uma modelo, enquanto brinca com o cabelo. O rapaz mais velho, o rosto sério: os pés balançando
devagar no lugar. O mais novo: olhando para ela, a boca aberta de espanto.
– Olha aqui, Trudi, eu...
No quarto do hotel Trudi bate com o telefone no gancho. Depois ela entra em pânico e quer telefonar de volta para ele. Disca o número da recepção e pede para ligar
para o número que acabou de chamar.
Lennox bate com o receptor no gancho e atravessa o pátio rapidamente. Os jovens observam, ficam alarmados com a rapidez com que Lennox avança em sua direção.
– Sabe de uma coisa, Tianna? – Um som seco, de lixa, distorce sua voz, reduzindo-a a um rosnar. – Foi dois a um para os Hearts. Em Tynecastle. Não sei quem marcou
os gols. Mas vou lhe dizer uma coisa! Eu contei para vocês? Acho que não – diz ele, agora falando diretamente para os rostos dos rapazes. – Ah, eu não contei porque
não sei quem vocês são, porra. Vão me dizer?
– Nós estamos só conversando, senhor – diz o mais novo dos rapazes, agora apenas um garoto legal. O mais velho é mais durão; olhos empedernidos olham taciturnamente
para Lennox, ganhando uma confiança astuta quando um casal mais velho se aproxima. O homem, que ele presume ser o pai dos garotos, é um cara musculoso metido numa
camisa de mangas curtas e bermuda verde-cáqui. Uma barba um pouquinho crescida assinala uma noite dura. A mãe está com um vestido apertado que mostra um estômago
de grávida. Os braços são grandes e flácidos.
– O que é que está havendo aqui? – pergunta o homem.
– Pergunte aos seus garotos – diz Lennox. Ele vê que o homem tem terra debaixo das unhas. Sente algo tintilar dentro de seu cérebro.
– Nós estávamos só conversando – diz o garoto legal.
– É isso?
– Eu não sei por que você está todo alterado e metido a valente, senhor. – O homem olha para Tianna. – Você deixa sua filha se vestir dessa maneira? Que idade ela
tem? Sabe o que eu acho? Eu acho que é melhor você se mandar daqui antes que eu chame a polícia. Ela põe filhos da puta como você atrás das grades, sabe disso?
– O quê...
Tianna fica ruborizada, de vergonha.
– Eles estavam, quero dizer, nós estávamos todos só conversando, como ele disse. – E ela faz um meneio de cabeça para o garoto mais moço.
Lennox olha para o homem, depois para Tiana. Ele percebe, pela primeira vez, que ela está usando maquiagem e batom. Não parece uma garota de dez anos de idade. Deve
ter aplicado aquilo no toalete. Esvaziado o insulto, ele dá um passo atrás, mentalmente.
– Não há mal em conversar, hein? Vamos, meu bem – ele olha para Tianna –, não podemos deixar o tio Chet esperando.
O casal o olha de maneira suspeitosa enquanto eles voltam para o carro. Lennox treme por dentro a cada passo que dá. Eles provavelmente chamarão a polícia e eu estou
frito. Eu não podia ser mais idiota. Não com Dearing na minha cola. Ele pensa no homem de Edimburgo, Kenny Richey, mantido agora por vinte anos no corredor da morte
numa prisão em Ohio, por um crime que até mesmo o estado reconheceu que não era possível ter sido cometido por ele. O sistema judiciário é tão medieval aqui como
em qualquer outra parte, se você não tem dinheiro e ligações, e bate de frente com os donos do poder. A coisa tinha uma cor, e essa cor era verde. Havia uma justiça
para Rodney King e uma justiça para O.J. Simpson.
Ignorando o tintilar triste, solitário, do telefone público, eles voltam para o carro e Lennox pisa no acelerador, observando a família ultrajada se afastar pelo
espelho retrovisor. Eles passam por quarteirões residenciais, interrompidos por estacionamentos e shoppings baixos ocupados por firmas modestas, como pequenas companhias
de seguros, oficinas de consertos em equipamentos elétricos e lojas de artigos para animais de estimação.
Fazendo uma curva errada no lado norte da 27ª Avenida, eles passam por um bairro cheio de jovens negros com olhares brilhantes, ameaçadores, nas esquinas das ruas,
ou nas entradinhas de casas decadentes. Por instinto, ele compreende a terrível raiva daqueles jovens; presos numa quarentena econômica e social no gueto, premidos
por essa necessidade de abrir buracos num mundo tão confinado e insensível.
– Tente não parar nos sinais de tráfego – insiste Tianna. – Acho que isso aqui é Liberty City.
Fazendo o máximo possível do que ela pede, Lennox segue para oeste, depois para o sul, depois para oeste de novo, quando ele pergunta a Tianna:
– Você sempre se veste assim?
Um desafio amargo tolda as feições dela.
– Acho que sim.
– As outras garotas da sua escola se vestem assim?
– Claro que sim.
Lennox se vê fazendo um muxoxo de desaprovação, quando a malha de ruas de acesso às rodovias começa a diminuir, as construções ficando mais esparsas. Tianna tira
alguma coisa da bolsa. São cartões: cartões de beisebol. Enquanto ela folheia os cartões, ele liga o rádio.
Um ritmo de discoteca soa debilmente nos alto-falantes do carro. Ele melhora a sintonia até que o som saia mais forte. A música se infiltra nele, fazendo faiscar
seu corpo com os nervos estressados, como a excitação inútil da onda de cocaína. O ritmo o atinge entre as costelas como uma lâmina. Lennox tem a sensação de que
está fazendo alguma coisa ilegal e fica imaginando se isso é verdade ou não. Luta para controlar um súbito espasmo do lado esquerdo do rosto. Sente falta da força
bruta das pílulas. Quer que o tempo passe rápido, para quando a ressaca já terá passado e ele se abrirá como uma flor para sorver a bondade do mundo.
Tianna sabe que o aborreceu, conversando com os garotos. O mais velho, ela sabia o que ele queria. Mas de jeito nenhum ele me teria tido, ou me enganado, ou nada.
Ele era apenas uma criança. E o escocês, esse Bobby, Ray, foi como se ele tivesse ciúme de mim. Talvez se uma garota podia ser uma mulher, então um homem podia ser
um garoto. Ela abaixa a vidraça, jogando o cabelo para a brisa, apoiando o cotovelo na borda da porta, desejando ter um par de óculos escuros bacana.
Depois de um momento, eles entram num estacionamento de um grande shopping.
– Por que estamos parando aqui? – indaga Tianna.
– Vamos comprar roupas novas para você.
– Legal!
– Eu vou escolher as roupas – diz Lennox, abrindo a porta do carro –, ou pelo menos vou vetar. Você está viajando comigo – diz ele com firmeza, em resposta a um
muxoxo de desagrado.
Tianna salta do carro e bate a porta com força. Ela olha para ele por cima do veículo, apertando os olhos por causa do sol. A pose de modelo de novo.
– O que é que eu vou comprar?
Seu tom de voz é provocativo de uma maneira que o faz sentir-se enjoado quando ela vai na direção dele.
– Você vai comprar um milkshake. – Ele aponta para uma das franquias, um estande de sorvete. – Eles dizem que fazem o melhor milkshake da Flórida.
Tianna gira o corpo, projetando e rebolando os quadris, e proclamando:
– Eu faço o melhor milkshake da Flórida!
Lennox quer rir porque a garota é engraçada. Mas ela não é dançarina de cabaré e é errado ela se comportar daquela maneira. Ele converte o impulso nervoso de rir
em uma expressão de desaprovação.
Ela percebe seu evidente desagrado.
– Jesus, alegria, alegria.
Ele vai falar, mas não consegue pensar em nada para dizer. Ele é apenas um policial escocês com um problema de saúde mental e uma noiva nervosa, controladora, que
precisa da fraqueza dele para que ela possa bancar a Madre Teresa de vez em quando. Isso não o torna equipado para lidar com a atual situação.
– Eu apenas gostaria que você cobrisse seu corpo um pouco mais, só isso.
– Por quê?
– Bem, quando as pessoas veem muita pele exposta, elas reagem a isso. Você é uma garota inteligente, mas as pessoas não veem isso. Elas apenas veem pele. Elas não
levam você a sério, elas não veem você como uma pessoa... – Ele ouve o mais extremado dos feminismos combinar com a filosofia talibã na sua voz.
Tianna sente um forte golpe dentro do peito. Pele. Era isso com Vince e Clemson, com todos eles. Pele. Ela fica pensando nesse mistério simples, os olhos perspicazes
e sofridos.
– Mas você me vê como uma pessoa?
A garota compreendeu. A garota percebeu, porra. Pela primeira vez Lennox sente que, lá bem no fundo, ela percebe a coisa. Talvez ele esteja apenas vendo o que ele
quer ver.
– Sim, é claro, eu vejo – ele sorri, dando uns tapinhas nas costas dela, e rapidamente retirando a mão, como se tivesse tocado em brasas quentes. Quantos pedófilos
bem-vestidos começam dessa maneira, com o contato humano normal, antes de mudarem de marcha?
O shopping é sem graça e estéril visto do lado de fora, mas, quando as portas automáticas se abrem com o ruído característico, a superioridade do seu sistema de
ar-condicionado é evidente, quando comparado com um local equivalente na Inglaterra. O encardido do shopping center Salford, perto de onde Stacey Earnshaw desapareceu,
estava a um milhão de quilômetros em relação àquele ali, brilhantemente decorado em tons laranja-pastel, verde-limão e rosa-salmão. Havia uma loja de discos em frente
a uma fileira de telefones. Lennox dá a Tianna duas notas de vinte dólares.
– Eu tenho que dar um telefonema. Você vai até aquela loja de discos e compra umas músicas para ouvirmos no carro.
– Legal – diz Tianna, de novo, pegando as notas e atravessando o corredor.
Lennox pega um catálogo telefônico com um atendente no balcão de informações. Há numerosos registros para as delegacias locais do departamento de polícia da cidade
de Miami. Ele quer ver se consegue obter alguma reação de Dearing, o policial que parece estar dando todas as cartas. Olha primeiro para Allapattah 1888 NW na rua
21. Não. Ele está tão cansado agora, sentindo os efeitos do fuso horário, da abstinência da cocaína. Quer os antidepressivos quando ondas de pânico o atingem de
maneira irregular. Essas ondas têm que ser encaradas agora, mas elas ferem sua psiquê como um curry apimentado faria na sua garganta. Ele fica preocupado em dirigir
nessas condições, com a garota. A recepcionista lhe diz que nenhum Lance Dearing trabalha ali. Então ele tenta West Little Havana apenas porque o nome da rua Flagler,
onde a delegacia está relacionada, lhe parece familiar. Uma voz hispânica, de mulher, fala ao telefone.
– O senhor tente North Leel Havana. Vai encontrar Lance lá – ela o informa, a voz alegre. Ele confere o registro e o endereço de North Little Havana. Starry tinha
razão sobre as pretensões de Robyn sobre morar em Riverside. Ele telefona para o número e pede para falar com Lance.
– Aqui é o policial Lance Dearing, da delegacia de North Lil’Havana. Em que posso ajudá-lo?
A voz de Dearing lhe causa um arrepio. Mas Lennox busca força na sua repulsa e se prepara. É hora de pôr o máximo de pressão.
– Você pode rezar para que alguém ajude você agora, Dearing. Isso é tudo que você pode fazer a essa altura.
– Quem diabos está...
Lennox sente o reconhecimento da voz por parte do outro correr pelo fio. Fica confortado com o fato de Dearing ser apenas um policial comum, não um sargento. Um
débil mental uniformizado descartável. Mas ele deve ter sua bunda protegida por um outro pedófilo safado mais alto na hierarquia. Lennox se lembra da expressão intimidadora
de Maroon Mayhem, e suas observações ameaçadoras para os outros que colocavam mensagens no Kickback. Embora ele fosse, evidentemente, um retardado que morava com
a mãe, Lennox se viu imitando seu estilo.
– Eu agora sei quem você é, seu cara de pica. Eu sei quem você é, onde mora e onde trabalha. O que é mais importante, eu sei exatamente o que você está a fim de
e com quem você está tramando as coisas. Vou derrubar você, bonitão.
Se Lance Dearing está desconcertado, sua capacidade de disfarçar é perfeita.
– Nosso amigo escocês. Ouça aqui, Ray: você está metido numa grande encrenca. Deixa eu lhe dizer isso: se você não devolver essa garota à custódia da mãe, uma amiga
minha de longa data, eu vou lançar um alerta geral de apreensão, acusando você de ter sequestrado uma menor do estado da Flórida. Você não quer isso, Raymond; pode
ter certeza que faço.
Ótimo, pensa Lennox. Tom profissional. Me informando sobre a gravidade da situação, mas, ao mesmo tempo, usando meu nome de batismo para indicar amizade e aceitação.
Tentando isolar você enquanto, simultaneamente, apresenta-se como seu único aliado.
– Eu compreendo então que isso significa divulgar minha descrição a todos os carros de patrulha – diz ele. Talvez Dearing não esteja blefando.
– É exatamente isso o que eu farei. Eu só me contive em tomar essa atitude até agora porque significaria encrencar ainda mais Robyn e Tianna com o serviço social.
Além disso, e eu posso estar sendo um completo idiota, eu acho que você está querendo o melhor para elas. Mas deixa eu dizer para você uma coisa, Ray: você está
mal orientado e vai trazer muita encrenca para você, para Robyn e para aquela criança, se continuar a mantê-la longe de casa.
– Casa? Um lugar cheio de pedófilos da porra – ele se ouve dizer –, aquilo não é um lugar para uma criança!
Lennox se espanta em perceber que cada átomo de seu corpo está pulsando no mesmo sentido: que ele tropeçou em algo maior do que um bêbado pervertido e uma mãe cheia
de cocaína, de vida marginal, que abandonara de novo a filha. Ele só não sabe o quê, nem pode elucidar o papel de Dearing naquilo.
– Eu acho que você compreendeu tudo errado, Ray. Você está por fora, completamente por fora da coisa.
Ele precisa pensar, descobrir com a criança. E com aquele cara, o Chet.
– Eu telefono para você de novo num instante. Pode ser nesse telefone ou no seu celular. Você decide.
– Onde é que você está, Ray? – pergunta Lance, calmamente.
Lennox já suportou o bastante de perguntas pelo telefone.
– Me dá o número do seu celular. Agora. Ou eu desligo.
Depois de uma pausa Lance Dearing parece um pouco mais cuidadoso quando fala novamente.
– Está bem, Ray, mas toma conta direito da garotinha, está me ouvindo? – Depois ele diz o número pausadamente e Lennox o escreve no bloco de notas de Trudi, sentindo
o gosto de uma pequena vitória.
– Faça a coisa certa, Ray – diz Dearing –, por causa da garotinha e da mãe dela.
Ele foi muito rápido em ceder o controle. Será que está blefando ou tem todas as cartas na mão? Lennox não pode confiar no seu próprio julgamento para saber.
Aí, num flashback violento, seu cérebro queima com a imagem de Johnnie em cima de Tianna, tentando estuprá-la. Eu apenas queria sentir o gosto da bocetinha jovem.
E a postura calma, imperturbável de Lance: Nós todos estamos por aqui nas vizinhanças para saber gozar dos prazeres onde podemos achá-los. Nada de perguntas.
– Você leva essa garota para o outro lado da divisa e você vai se meter numa bruta encrenca... – começa Lance.
– Cala a porra da sua boca de merda, seu babaca – fala Lennox, com desdém na voz. – E a encrenca será toda sua, isso eu posso garantir. – E ele bate o telefone no
gancho. Vê Tianna caminhando ansiosa na sua direção. Tenta parar de tremer.
– Eles não têm muita variedade. É um shopping muito mixuruca, mas eu comprei umas coisas boas – e ela puxa uma bolsa de plástico da mochila com feitio de cabeça
de carneiro.
– Hum... – Lennox dá uma olhada nos CDs. Vai ser uma viagem longa. Então ele olha para Tianna. – Vamos ver alguma coisa para vestir. Para cobrir um pouco de pele.
– Acho que sim.
É segunda-feira de manhã e muitas das lojas estão fechadas, inclusive a Macy’s, que, conforme o letreiro informa, está fechada para fins de inventário de estoque.
– A Sears está aberta – diz Lennox, apontando para a grande loja.
As feições de Tianna se fecham.
– Nem mesmo mamãe entraria ali. É verdade; ali dentro só dá velhos. Se minha mãe fosse americana, é aqui que ela faria as compras – reflete Lennox. Tentando vestir
Tianna adequadamente ele se sente como se tivesse se transformado de um cafetão em uma tia velha solteirona e atabalhoada. Mas ela é só uma criança, não posso permitir
que se vista como uma piranha.
Lennox compra umas roupas folgadas para Tianna, um boné de beisebol para substituir o dos Red Sox que ele perdera e também uns óculos escuros. Depois Tianna vai
para o toalete do shopping, saindo de lá de jeans e camiseta. Está melhor, mas ele pede a ela que tire a maquiagem do rosto e ela relutantemente volta ao toalete
para obedecer.
– Ótimo – diz Lennox, encorajado pelo resultado, quando a garota volta. Ela parece uma garota de dez anos de idade.
– Eu pareço uma cdf – diz ela, mas é um protesto só para constar.
Eles vão até um quiosque de sorvetes e fazem seus pedidos. Lennox ganha o melhor milkshake da Flórida, de chocolate. Tianna vai de sorvete batido no refrigerante.
Ele olha para ela novamente, ambos gostando do barulho que faz o canudinho quando sorvem o resto das sobremesas. Ela é só uma criança. Por que ele está com ela?
Eu sou um policial.
Não sou um bom policial. Já cheguei até onde posso ir.
Não. Não é verdade.
Ele chegou até onde precisava ir. Longe o suficiente para assombrar os canalhas e tomar a frente da investigação. Uma outra promoção e ele seria um outro Toal: preso
a uma mesa. Sua triste sina era que ele fora atraído para o lado sinistro do trabalho policial; tudo o mais seria uma perda de tempo para ele, mas ele deixou que
a coisa o puxasse. Para fazer aquele tipo de trabalho, dormir profundamente, acordar e repetir o processo no dia seguinte, você tinha que ser como Dougie Gillman.
Gillman nunca seria promovido. Ele compareceria defronte de uma junta de engravatados e despejaria respostas monossilábicas para suas perguntas idiotas e faria uma
avaliação silenciosa deles. Eles sentiriam seu ódio desdenhoso por eles e seu desprezo. Não conseguiriam encarar aqueles olhos gélidos, raivosos. Porque Gillman
falava a verdade, uma verdade particularmente sombria e brutal, mas uma verdade que ainda tinha o poder de envergonhar e condenar os mentirosos em torno dele.
E como Robbo, antes de seu colapso nervoso, Gillman era um bom policial. O medo que ele inspirava fez com que você ficasse contente de ele estar na sua equipe. Lennox
nunca seria como ele. Numa disputa leal ele arrasaria Gillman no boxe tailandês. Mas nunca o mataria. De modo que Gillman se levantaria, viria para cima dele e o
apagaria, como se fosse a chama de uma vela. Diferentemente de Lennox, Gillman não conhecia limites. Como superior a Gillman na hierarquia, Lennox era tão impotente
quanto um pai liberal que não acreditasse na punição corporal lidando com um rebento calculista e psicótico.
Era estranho ele pensar em Gillman naquele momento, enquanto olhava preguiçosamente para a bonita garçonete hispânica, esbelta e graciosa que circulava como um pequeno
pássaro entre as mesas, servindo café.
– Você acha ela bonita? – Tianna pergunta.
– Acho que sim – diz, vendo que a garota não perdia nada. Aquilo reforçou sua decisão de nunca ter filhos, especialmente uma menina. Que se foda.
A voz de Tianna ficou musical.
– Quero cortar meu cabelo para fazer uma franjinha.
Lennox decodifica o brilho nos olhos dela como algo de duplo sentido e o sangue gela nas suas veias. Rapidamente Tianna percebe sua reação. Ela puxa as mechas de
cabelo para que caiam na sua testa.
– Dessa forma – ela explica.
Ela levanta os olhos para ele com uma frieza inesperada, fazendo com que algo dentro dele se esvaia. A disposição amorosa, paternal que estava se instalando nele
se evapora quando ele vê a si próprio através dos olhos dela; na ferocidade maliciosa, desdenhosa no olhar dela, ele poderia muito bem ser um policial principiante
orelhudo dizendo a uma mulher esnobe e rica que ela não pode estacionar ali.
Tio Chet será o homem, pensa ele, a cabeça fervilhando. Chet vai acertar as coisas. Ele pede a conta. O quiosque de sorvetes vai se enchendo de mães e filhos, policiais
e vendedores. Tianna fala sobre o barco grande de Chet na costa do Golfo. Depois a conversa deles muda abruptamente de rumo.
– Os homens que mamãe traz para casa são uns filhos da puta – diz ela, numa voz baixa, trêmula, como se ela esperasse que Lennox a punisse por ter dito um palavrão.
– Mas Chet não é como eles?
A cabeça dela balança vigorosamente.
– Ele é irmão de sua mãe ou irmão de seu pai?
– Ele é apenas Chet. – E ela mergulha de novo no mutismo. A garçonete apresenta a conta, olhando para a fila que se formou na porta. Lennox percebe o movimento e
deixa o dinheiro, depois se levanta e se dirige para a saída.
Um outro tio substituto. Mas será que isso tinha que ser uma coisa ruim? Ele próprio estava agora tentando preencher esse mesmo papel, e não sabia praticamente nada
sobre garotinhas. Tenta se lembrar de como era sua irmã Jackie na idade de Tianna. Era diferente avaliar alguém quando se olha para ele ou ela da perspectiva de
uma criança. Cinco anos mais velha, Jackie era aquela que eles achavam que ia ser bem-sucedida. Suas lições de equitação eram um sucesso na família, e ela fazia
grande alarde delas. E ela fora bem-sucedida. Formou-se em advocacia; depois casou com um dos maiores advogados do país, um homem que fazia Lennox lutar contra cada
impulso que tinha de detestá-lo abertamente; ele tinha a crença inabalável de que quem ganhava a vida falando era um merda de um enrolador.
Ele percebia o desprezo crescente que Jackie sentia por todos eles com cada lição de equitação que ela completava. Ele odiava o orgulho perverso da mãe pelo desdém
que a irmã sentia por eles, encarando como uma vitória o fato de eles terem criado uma criança que aprendera a ser condescendente com eles e que os odiava, simplesmente
por seu status de trabalhadores.
Jackie e sua casa estilo georgiano avarandado e sua casa de campo em Deeside, seu marido bem-sucedido e seus filhos educados, alunos de uma escola de primeira categoria.
Era a vida dela e, até onde Lennox sabia, ela apreciava aquela vida. Mas ele sentia que Trudi invejava aquela situação de vida, como se acreditasse que Lennox era
fruto da mesma cepa, e que com seu amor tipo bisturi ela conseguiria raspar os pedacinhos ruins e colocar esse policial problemático de novo no bom caminho.
As lições de equitação. Amor a cavalos, amor a cavalos.
Enquanto Jackie montava a cavalo, Lennox e seu amigo Les Broodie circulavam por toda parte. Forçados a se ater às estradas principais, eles iam de bicicleta para
Colinton Dell, ao longo da trilha através da mata, perto do rio, na boca escura daquele velho túnel de pedra.
Subitamente Lennox se esquiva enquanto algo passa rente ao seu rosto. Seu batimento cardíaco se normaliza: três garotos estão jogando frisbee, atirando e pegando
o disco de plástico na área do estacionamento, enquanto a mãe põe as compras da mercearia no carro.
– Desculpe, senhor – diz um garotinho, rosto rosado. Com seus olhos ansiosos, mas tristes, de filhote de cachorro, ele é o tipo de criança, pensa Lennox, que sempre
invocará um ligeiro sentimento de piedade, até mesmo fora de sua melancólica corrente de pensamento. Ele pega o disco do chão e o lança girando para o garoto, que
o apanha e lança de volta para Lennox, com um brilho nos olhos que indica que um verdadeiro jogo começou. Lennox lança o disco na direção de Tianna, mas esta não
se move para interceptá-lo e o disco passa voando por ela.
Ela quer entrar no jogo, mas eles são garotos bobos. Foi isso que ele disse a ela: Não seja uma criança burra, você é uma mulher, uma linda jovem. Ele explicara
a Tianna como a idade numérica não significava nada, tudo tinha a ver com a maturidade. Algumas crianças de dez anos têm dez. Algumas pareciam ter cinco. Algumas
jovens de vinte anos parecem ter quatro. Não Tianna, ela sempre fora uma mulher: forte, orgulhosa e sensual, não tinha nada do que se envergonhar. Vince, Pappy Vince,
disse que ela nunca deveria se envergonhar de não ser uma garotinha idiota.
E a infância passou por ela voando como o disco do frisbee, destinada às mãos dos outros.
11
Pegando a estrada
Enquanto o mapa treme na sua mão trêmula e inchada, Lennox se vê simultaneamente espremido pela sensação de que ele está desperdiçando muito tempo. Tentando dirigir
enquanto estuda o mapa de ruas de Miami e um mapa rodoviário da Flórida é procurar problemas. Para seus olhos fatigados, a cartografia urbana consiste apenas de
linhas mal impressas, de diferentes cores: uma rede quadricular em preto, algumas vermelhas, umas poucas azuis e aquela única verde. A impressão é tão pequena que
ele quase não consegue decifrá-la. O que significa tudo aquilo? Ele se sente desconfortável em perceber que está dirigindo para oeste na Rodovia 41, afastando-se
de seu pretendido itinerário, a Rodovia Interestadual 75, que eles chamam de Estrada do Jacaré. Pior, parece que o percurso os está levando de volta para o bairro
de onde vinham fugindo, onde moravam Robyn e Tianna. A garota está tensa no banco do carona, de volta àquele mundo silencioso ao qual ele não tem acesso.
Tudo que ele consegue fazer é continuar viajando para oeste. As duas ou três horas para chegar a Bologna pela rodovia interestadual serão mais longas do que se tomassem
a Rodovia 41, a chamada Trilha Tamiami. Cai sobre eles o frustante anúncio do limite de 85 quilômetros por hora, enquanto uma divisória de alumínio, insensivelmente
mostrando as cicatrizes de acidentes passados, divide as pistas de concreto da rodovia.
Lennox fica surpreendido ao perceber como os arredores de Miami se transformam rapidamente em pântanos das Everglades. Aves de rapina que ele nunca vira antes, como
corvos gigantescos resultantes de cruzamentos com falcões, pairam no céu acima deles. Muitas jazem esmagadas debaixo das rodas, comendo carniça dos atropelados e
terminando, elas mesmas, como vítimas, sujando a rodovia em graus variados de pulverização. Algumas áreas de mata estão desflorestadas pelo que Lennox pensa ser
a força de furacões. Árvores encurvadas, retorcidas e murchas, como se atingidas por calor intenso e não pelo vento, e há extensões da cerca perimetral que foram
arrancadas. No pântano, grandes garças brancas se equilibram de maneira inacreditável em árvores secas, fazendo-o pensar de novo em Les e as gaivotas.
Tianna pegou de novo seu velho conjunto de cartões de beisebol e está contando-os.
– Você gosta desses cartões, não é mesmo? Você coleciona?
– Hum, hum. Eu só tenho esses aqui. Eram de meu pai. – Ela olha para ele pelo escudo de seu cabelo, esperando ver a reação de Lennox. – Eles não valem nada, mas
ele tinha alguns valiosos. Você gosta de beisebol?
– Não, na verdade. Para ser honesto, não gosto muito dos esportes americanos. Quero dizer, o beisebol é só correr em círculos, um jogo de crianças – ele zomba, antes
de se lembrar da idade dela. – Quero dizer, nunca houve um escocês que jogasse beisebol!
– Ah, é? – Tianna rebate, passando-lhe um cartão.
BOBBY THOMSON
(nascido em 23 de outubro de 1923, Glasgow, Escócia) 264 home-runs em 14 temporadas. Famoso pela “rebatida ouvida em todo o mundo”, e que garantiu o título da Liga
Nacional para os New York Giants contra os Brooklyn Dodgers em 1951.
O “Escocês de Staten Island” era o mais jovem de uma família de seis que imigrou para os Estados Unidos quando ele ainda era criança. Jogou pelos Giants, Braves,
Cubs, Red Sox e Orioles. Atualmente aposentado, mora em Savannah, estado da Geórgia.
Lennox dá espiadelas enquanto continua segurando firme no volante.
– Não me diga!
Tianna ri, pegando o cartão de volta, e fica de repente distraída por um carro que passa com duas bicicletas de corrida penduradas num suporte no teto do veículo.
– Legal – diz, apontando para as bicicletas. – Você andava de bicicleta quando era criança?
– Andava sim. – Lennox sente uma pontada de emoção quando se lembra da esplêndida Raleigh azul e branca que ele ganhou de presente no seu décimo primeiro aniversário.
Como seus pais enfatizaram que ele deveria cuidar dela, não emprestá-la a nenhum de seus amigos no conjunto habitacional.
– Como é que ela era?
– Só uma bicicleta. – Sua resposta seca, quando ele se lembra do lar; a garganta com gosto acre da bebida da véspera, o cérebro reabrindo velhos circuitos neurais
superdesenvolvidos. Ele engole em seco e o músculo do esfíncter se contrai. – De que mais você gosta? – indaga, mudando de assunto. – Quero dizer, você gosta de
bichos?
Tianna fica pensando na pergunta durante alguns instantes. Sua delicadeza em dar à questão uma gravidade que esta não merece paradoxalmente o faz se sentir ainda
mais um simplório por ter perguntado aquilo.
– Acho que gosto de golfinhos. Nós vimos alguns quando saímos no barco de Chet. E eu meio que gosto também de focas, jacarés, peixes e peixes-boi; todas essas coisas
do mar.
– Morando aqui você deve ter visto muitos desses animais.
– A maioria só lendo sobre eles.
– Sim, mas você deve ter visto um jacaré.
– Nada, nunca vi um de verdade – diz ela. – Nós atravessamos as Everglades um monte de vezes, mas eles sempre diziam que não tínhamos tempo de parar e procurar répteis.
Acho que estavam sempre com pressa para chegar às festas. Mamãe e Starry e... – ela se vira para a janela, incapaz de terminar a frase.
Ele consegue imaginar Robyn e Starry doidas de cocaína, indo para alguma festa noturna, Tianna toda cheia de sono no banco de trás.
– Quem? – ele pergunta. – Quem ia dirigindo? Sua mãe?
– Mamãe e algumas outras pessoas.
Lennox vê que ela está mordiscando o cabelo e olhando para o soalho do veículo.
– Como Lance e Johnnie?
– Não quero falar sobre eles, Ray. – O rosto dela fica murcho e a voz mais aguda. – Podemos não falar sobre eles, por favor?
– Está bem, querida, não se preocupe. – Desajeitadamente Lennox dá uns tapinhas no ombro da garota. Ele decide não pressionar esse ponto. É uma viagem longa; ela
vai lhe contar quando estiver pronta. É a primeira vez, percebe, que ela o chamou diretamente pelo nome. Que porra. Eles não deixavam a criança parar nem mesmo na
porra das Everglades, para observar os jacarés. Quem são essas pessoas?
Lennox deixa que uma música de jazz avant-garde o acalme, mas o som logo se transforma em uma mixórdia melosa tipo casa de repouso, que solapa sua confiança e realmente
irrita Tianna, que estende rapidamente a mão para o painel cortando o som.
– Isso está realmente me irritando!
– Que tal os discos que você comprou no shopping?
Ela mete a mão na bolsa estilo carneiro que está no colo, logo tirando um CD de Kelly Clarkson, que ela enfia no aparelho de som. Lennox fica aliviado quando o aparelho
expulsa o CD. Acontece o mesmo com os outros que ela comprou.
– Isso é tão chato!
– Isso é uma coisa que devemos comunicar à locadora do carro – ele diz, lutando para não sorrir. Ele não consegue, ela percebe e bate de brincadeira no braço dele.
– Você!
Eles mudam para a rádio 101.5 Lite FM, que se anuncia como “a rádio número um do sul da Flórida”. Começa a tocar “So hard to say I’m sorry”, de Chicago, e ele pensa
em Robbo.
Seguem-se numerosos anúncios falados por vozes sinceras, mas exaltadas, oferecendo empréstimos pessoais e facilidades de crédito para praticamente tudo, mas principalmente
para a compra de imóveis e carros. Depois uma pletora de agências oferecendo ansiosamente pacotes de consolidação de dívidas e serviços de redução das mesmas. Provavelmete
as mesmas pessoas, pensa Lennox, levando um garrafa de Evian aos lábios, uma outra barragem de artilharia na sua luta contra a sede efervescente.
Uma voz misteriosa interrompe a falação sibilando: “Você está sentado num quarto escuro segurando uma espingarda, pensando em matar seu patrão, acenda a luz. Sintonize
a Lite FM.”
A pedido de Tianna, ele muda de canal. Os Beatles cantam “Love me do”. Lennox está pensando em Trudi, quando eles passam um caminhão com um adesivo de “Apoiem nossos
Pracinhas”, e ele começa a cantar alto, com um sotaque exageradamente escocês. Tianna se junta a ele, primeiro baixinho, depois com vontade crescente. Muito antes
de chegarem ao fim, eles estão alegremente cantando um para o outro.
Quando a música para, ambos ficam envergonhados com a recém-descoberta, e brega, intimidade, como um casal num musical de Hollywood que acabou de realizar um espetacular
número de dança. Tianna afasta o cabelo do rosto e timidamente pergunta a ele:
– Lá no posto de gasolina, acho que foi para sua namorada que você estava telefonando, não é?
– Isso. Isso mesmo.
– Lá na Escócia?
– Não, bem, ela está aqui em Miami. – Ele acena com a cabeça para a revista no colo dela. – Nós vamos nos casar no final do ano.
Tianna fica em silêncio e parece pensar sobre o assunto durante algum tempo. Aí, depois de um instante, ela pergunta:
– Como é que ela é?
– Ela é legal – diz Lennox, instantaneamente sentido a timidez de sua resposta. Ele a fez passar por tanta coisa, e ali está ele, fugindo dela com uma criança que
mal conhece.
Tianna olha para ele, como que o vigiando.
– Você não é, tipo, um dos namorados da mamãe?
– Não – diz ele, enfaticamente, enquanto a visão dos pelos púbicos à semelhança de lagarta, e a mão dela metida na sua calça, masturbando-o, quase o faz contorcer-se
–, nós somos apenas amigos.
Isso parece alegrar a garota.
– Eu meio que gosto de você, Ray – ela diz, mostrando os dentes num sorriso. Então o corpo dele fica tenso quando sente os braços da menina envolvendo seu tórax
num abraço despreocupado. Percebendo a agitação dele, ela imediatamente se retrai, encontrando a mão dele que, simultaneamente, a empurra de volta para o assento.
– Não faça isso – exclama Lennox, acrescentando –, estou dirigindo.
Ele agarra o volante firmemente com a mão direita, sentindo os pequenos ossos fraturados mergulharem nos tendões, enquanto Tianna se recosta no seu banco, os olhos
brilhando. Ela puxa de novo os cartões de beisebol de dentro da mochila.
Lennox percebe que ele tem medo dessa garota: medo da sua proximidade física, da mágoa que ela pode lhe infligir, agora que ela sente sua própria força. Ele frequentemente
observou o tirano calculista que pode surgir daqueles que sofreram abusos injustificados; tudo que ele pode fazer é tentar manter a inteligência e humanidade dela
em primeiro plano.
O rádio toca “Angel of the morning” e Lennox põe a mão rapidamente no sintonizador. Ele acaba escolhendo uma estação com ritmos urbanos estilo hip-hop, onde o locutor
diz numa voz esganiçada: “Esta é Beyoncé com seus grandes peitos.”
Tianna ri enquanto Lennox se encolhe e põe a mão de novo no sintonizador. Enquanto dirige ele pode sentir o olhar de avaliação dela. O silêncio continua, mas quando
eles se aproximam de um vilarejo indígena com comércio, Lennox para o carro. Ele precisa apear e se esticar. Enrijecimento e torpor o vêm perseguindo. Ele põe seu
novo boné dos Red Sox, se atrapalhando com a tira de ajustagem, não conseguindo fazê-lo tão confortável quanto o antigo. Vê um cartaz anunciando excursões pelos
pântanos. Os dois estiveram conversando sobre jacarés e ele nunca viu nenhum, bem como Tianna. Isso era uma coisa maluca, com uma garota morando na Flórida. Mais
uma hora parados não faria mal. Tianna se inclina para a frente para pôr a revista sobre o painel, e Lennox vê seu hálito quente dobrando os pelinhos finos do pulso.
Ele salta do carro, ciente, quando se levanta, de que sua camisa está presa às costas como uma segunda pele. Ele sacode os ombros e tenta soltá-la, e depois aceita
a futilidade de tudo aquilo. Estende os membros retorcidos, deixando a luz do sol farta banhá-lo.
– Vamos dar uma olhada naqueles jacarés – sorri, observando os olhos arregalados de Tianna, esperando que ela diga “maneiro” de novo, e ela não o desaponta.
Eles compram uma excursão no pântano: é uma lancha com motor de popa, com uma gaiola metálica em volta da área dos passageiros, que é tanto um implemento de mau
agouro como de inspirar confiança. Além do guia magricela, olhos furiosos, que se senta em frente a eles, tão perto de Lennox que ele pode sentir seus joelhos se
tocarem, há também duas senhoras idosas e dois casais jovens, um deles com uma criancinha. O motor entra em ação e a embarcação se afasta, enquanto o guia, que se
apresentou como Four Rivers, alerta:
– Mantenham os dedos dentro da gaiola se quiserem voltar com eles!
Enquanto eles seguem esguichando água pelo pântano cheio de mangues, Tianna fica impressionada pela presença generalizada de jacarés de todos os tamanhos. Alguns
passam por eles, seguindo a correnteza como troncos, somente os olhos acima da linha da água, outros ficando parcialmente submersos nas partes mais rasas. A maioria
dos répteis apanham sol nos bancos de lama, debaixo dos mangues, com aparência silenciosa e sinistra.
– Isso é genial! – Tianna guincha, deliciada.
Lennox não tem tanta certeza sobre os jacarés. Especialmente quando eles passam por um grupo de animais grandes. Essas criaturas gordas, dentes à mostra, parecem
tão contentes e com ar de conspiração quanto baderneiros veteranos dos jogos de futebol relaxando debaixo dos guarda-sóis nos cafés da Europa continental. Eles não
vão se lançar por ali à procura de presas. Eles esperam pacientemente pela oportunidade de se levantar, antes de atacar sem piedade. Não admira que Lacoste seja
tão popular entre os baderneiros, pensa ele.
Aí um som longo, gutural, estrondeia e chega aos seus ouvidos. Aproveitando-se da inquietação reinante, Four Rivers sorri.
– É um jacaré.
– Eu não sabia que eles faziam ruídos assim – diz Tianna, surpresa com a ressonância, semelhante à de mamíferos.
– Eu diria que isso é muito raro durante o dia. Mas quando escurece aqui no pântano, você pode ouvir os bichos muito bem, chamando uns aos outros na noite. Eu não
recomendaria a ninguém vir aqui nessas horas – diz o guia, e começa a contar histórias mirabolantes e amedrontadoras sobre os répteis. A grande proximidade e os
olhos fantasmagóricos do guia enervam Lennox, que sente que há algo não muito bom com o sujeito. É sua voz; parece uma fusão de diferentes sotaques que Lennox não
consegue localizar, isso e o fato de que ele está mostrando um interesse particular em Tianna. – E você, minha jovem, nunca viu um jacaré vivo antes? E não estou
falando de zoológico, mas dele solto na natureza.
– É, eu nunca via nenhum porque ficava dormindo no banco de trás, mas minha mãe estava dirigindo na estrada e nós quase atropelamos um. Mamãe disse que ele saiu
rastejando e voltou para a margem da estrada, ao longo dos barrancos do pântano. Nós paramos o carro, mas ele não voltou.
A risada de Four Rivers expõe uma boca cheia de dentes cariados e Lennox pode sentir o álcool no hálito dele. Isso o faz pensar na Escócia e no trabalho.
– Bem, isso foi muitíssimo certo. Porque os jacarés podem crescer até mais de cinco metros de comprimento e, em distâncias curtas, eles se movimentam tão rapidamente
quanto um leão e...
– Cinco metros, hein? – Lennox exclama. – Você já viu algum grande assim?
– Quase desse tamanho. Vi uma criatura, devia ter perto de quatro metros e meio – sorri o malicioso Four Rivers. – Então, de onde o senhor é?
Aquela paralisia familiar se abate sobre Lennox; o que dizer quando no estrangeiro. Escocês? Britânico? Europeu.
– Sou da Escócia, no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, na Comunidade Europeia – diz ele, espantado com sua própria pomposidade.
– Bem, britânico ou escocês, ou o que quer que você chame isso, agora ela é apenas uma ilhazinha, e com certeza você não vai ver animais selvagens de qualquer tamanho
lá – diz Four Rivers desdenhando da sua condição de estrangeiro e encorajando outros turistas a se juntar ao seu coro.
– É. Não é uma massa de terra grande comparada com os Estados Unidos – concorda Lennox. – Você vê, quando eu estive no Egito seguindo o rio Nilo, nós vimos crocodilos
que fazem seus jacarés parecerem iscas de peixe.
Algumas risadinhas partem do grupo. Evidentemente eles estão apreciando a contenda verbal, especialmente Tianna.
– Crocodilos são maiores do que jacarés, hein, Ray?
– Um jacaré, como nosso amigo aqui declarou – e Lennox se espreguiça exuberantemente no sol, enquanto acena com a cabeça para Four Rivers, que agora o olha com expressão
taciturna –, pode crescer até cinco metros. Mas um crocodilo pode atingir mais de dez metros, duas vezes o tamanho deste barco.
Lennox percebe que está se sentindo bem agora, ainda muito cansado, mas cansado de uma maneira gostosa, com a ressaca se dissipando. Ele não reagira apenas ao que
Four Rivers dissera, mas não se arrependera disso; raciocinando que, se gostasse de todo mundo numa corrida de guerreiros outrora orgulhosos que fediam a bebida,
ele nunca teria feito uma única prisão lá na Escócia. Mas ele não podia acreditar que estava, pateticamente, competindo com o barqueiro pela atenção de Tianna.
Quando a lancha encosta no pequeno ancoradouro, Lennox fica paralisado. Um carro da radiopatrulha está esperando, com dois policiais e três americanos de origem
indígena bem-vestidos no apoio. Um dos homens aponta para ele, e ele sente Tianna agarrando seu braço, em pânico. Os dois compartilham uma aceleração do batimento
cardíaco até que eles percebem que é de Four Rivers que eles estão atrás. Este baixa a cabeça e é levado pelos dois policiais, que o enfiam na traseira da radiopatrulha.
Enormemente aliviado enquanto observa o veículo partir, Lennox indaga a um dos homens de terno, que o informa de que Four Rivers não tem permissão para operar aquela
lancha e está invadindo a reserva indígena.
– Ele não é da tribo Miccosukee, então?
O homem faz um ruído de desdém.
– Ele não é nem mesmo um americano nativo, é apenas um irlandês maluco que ganhou a embarcação num jogo de pôquer.
Lennox e Tianna se entreolham; acalmam os nervos com uma risadinha compartilhada.
Eles almoçam no restaurante contíguo ao vilarejo indígena. Lennox gosta muito do bagre frito e dos moluscos que se alimentam de sedimentos marinhos, parecidos com
camarão, mas há qualquer coisa diferente no gosto. Eles fariam sucesso na Escócia, e ele imagina o prato servido num restaurante especializado em frutos do mar,
com bananas da terra e batata-doce: seria uma boa troca cultural para o empadão de carne servido no jantar. A isso se segue sorvete e Lennox engole um expresso duplo,
antes que a estrada os chame.
Tianna parece mais feliz. Fala a ele sobre Mobile, Alabama. Como a cidade é uma Nova Orleans em miniatura. Quando fala, sua voz adquire um sotaque mais sulista.
Ela admite que sente falta da antiga escola e das amigas. Depois de um período de tempo ela fica em estado contemplativo e lê mais coisas em Noiva Perfeita.
Numa página, um noivo todo bem-vestido enlaça sua prometida. Na expressão alegre dele, Tianna pode ver Vince, e pode sentir aquela recarga fantasma de desespero
prolongar a suprema explosão de ternura dele, mas a transformação para o rosto de boneco se aloja no olho da mente, e ela fica pensando sobre o que ela tinha que
fazer para trazer o amável Vince de volta. Ela sempre lhe implorara, dizendo que não gostava daquilo. Que não se sentia bem. Bem, algum dia você se sentirá, benzinho,
ele lhe assegurara. É tudo novo para você, meu amor, você só precisa se acostumar, se acostumar a ser uma mulher. Depois, mais tarde, ele passaria o braço na cintura
de mamãe, e esta olharia para ele com tanto amor, e ele sorriria para nós duas como se nada houvesse acontecido.
– Olhe. – Uma voz no seu ouvido e Ray, o Bobby-Ray Escocês, está apontando para uma grande garça branca, e depois para muitas outras, no pântano ao lado da estrada.
Então ele para o carro para ver alguns jacarés no canal atrás da cerca da rodovia, um grande bando deles, até mesmo mais do que haviam visto da lancha. De novo aqui
também eles são de diferentes tamanhos, apanhando sol ou deitados nas margens debaixo das árvores do mangue. Tianna vê Lennox tirar os óculos escuros e espremer
os olhos devido à luz do sol. Ela queria muito uns óculos escuros para ela, mas ele já foi bastante bom em comprar roupas e tudo o mais, e ela não quer se aproveitar
da boa vontade dele.
A vegetação, mais esparsa e marrom desde que deixaram os arredores de Miami, ficou mais densa e luxuriante quando eles entram na Reserva Nacional do Grande Cipestre.
– Foi aqui que filmaram Tarzan – diz Tianna.
– É mesmo?
– É sim. O primeiro Tarzan, o cara da Europa que pegou o papel porque ele podia soltar aquele grito, como os montanheses.
– Johnny Weissmuller? – diz Lennox surpreendido. Tanto ele quanto Trudi eram fãs do cinema e membros de uma organização chamada Friends of the Filmhouse Cinema,
em Edimburgo. Uma sala de cinema é o único lugar em que ele podia simplesmente sentar, totalmente relaxado e absorvido, não importa quão ruim fosse o filme, e não
sentir a atração do bar. Às vezes ele assistia a três projeções numa noite, frequentemente mergulhando numa espécie de ligeiro torpor, onde a trilha sonora se mesclava
com seus pensamentos e sonhos, criando ocasionalmente uma combinação potente e transcendental da narrativa, som e imagem, que era mais satisfatória do que o filme
propriamente dito.
– Acho que sim.
É estranho, uma criança da idade dela, conhecer esse tipo de coisa.
– Como você soube disso tudo? Sobre Johnny Weissmuller?
– Tio Chet me contou. Ele sabe tudo sobre a Flórida.
Lennox fica pensando no assunto. Fica imaginando o quanto esse cara, Chet, sabe sobre Robyn. Sobre os problemas dela com a droga e seu desaparecimento. Ou sobre
Starry. Ou Lance Dearing e Johnnie. Ajuda pensar em Chet como uma força benigna, e ele vê uma imagem de seu próprio pai. Lembra-se de ficar observando o velho contando
piadas para os netos quando ele os traz para casa de uma visita ao museu. Ele imaginara que ser o receptor daquela bondade fácil e amorosa era algo reservado a ele,
sua irmã Jackie e seu irmão Stuart. Durante um instante ou dois odiou as crianças usurpadoras de Jackie.
– Ali, olha! – Tianna grita, quando o primeiro dos letreiros rodoviários da cidade aparece diante dele:
Bologna 51 km
Punta Gorda 95 km
Lennox sente o beijo do alívio. Eles conseguiram, cruzaram o estado do oceano atlântico até o golfo do México. Flórida sempre aparece nos mapas como se fosse mais
ou menos do mesmo tamanho do Reino Unido, mas ele acha que é menor. Começa a relaxar. Deixa a exaustão esvair-se de seus ombros. Dirigir nos Estados Unidos é uma
brincadeira quando você se acostuma com a coisa. As estradas são maiores, melhores e, melhor do que tudo, são retas. Ele vai checar se esse cara, o Chet, está à
altura de receber Tianna. Depois ele vai telefonar para Trudi, pedir desculpas por seu comportamento e voltar direto para Miami.
A necessidade de saber o que aconteceu com Robyn o preocupa. Mas esse é o departamento de Chet; ele cumpriu mais do que sua obrigação. Graças a ele, essa pequena
Tianna estava agora a salvo de marginais como Johnnie e daquele tipo, Lance. E ele vai encontrar um jeito de pegar aqueles canalhas. Há contatos internacionais no
mundo da lei e ele vai pôr a boca no trombone. Sempre há caminhos e meios.
Aquela canção voltou de novo: “Alcohol”, de Brad Paisley. Agora os dois vão cantando juntos. Ele fica um pouco perturbado pelo modo experimentado como Tianna canta
a letra. Não é certo para uma mocinha. Mas ela não é uma mocinha. Ela é alegre e esperta, espirituosa, e você não pode pegar ela. Ela merece coisa melhor.
Tianna está fascinada com a revista de Trudi.
– Vocês vão se casar num castelo? Como seria legal!
– É muito caro.
– É tão caro – diz ela, entendendo erradamente o que ele disse. – Madonna, ela casou num castelo na Escócia.
– É mesmo. Em algum lugar nas Highlands – confirma Lennox. Casou com um cara inglês que fez filmes de crime. Lennox fora assistir a um. Gostara do filme. Era uma
bobagem, é claro, como a maioria dos crimes nas obras de ficção e na televisão, mas havia ação durante todo o tempo. Foi divertido.
Crime é fundamental, pensa ele, para fornecer essa extravagância tão divertida? Onde estaríamos sem as fragilidades humanas? Hollywood estaria fodida. Talvez devêssemos
muito aos gângsteres e criminosos. Fornecendo o crime, eles criaram demanda. Para guardas de segurança, policiais, carcereiros, advogados, construtores, administradores,
políticos, escritores, atores, diretores. Onde estaríamos sem eles?
Mas ele não consegue se lembrar do nome do castelo.
– É um castelo grande. Lá em Perth ou nos arredores. Eles têm uma porção de castelos por lá.
– É perto de onde você mora?
Ele fica pensando no assunto. Três horas de carro? Sim e não. Será que Muirhouse é perto de Barnton? Sim e não.
– Mais ou menos.
Agora Tianna está explicando o jogo de beisebol para ele. Ela pega um bloco de notas da bolsa e desenha um losango, explicando tudo com cuidado e paciência. Innings:
o alto e o baixo deles. Lançadores, rebatedores e jogadores do campo. Quatro bolas. Três rebatidas. Enchendo as bases. Home runs. Bullpen. Ela gosta dos Bravos,
de Atlanta, Geórgia, porque eles são o time da Primeira Divisão mais perto de Alabama.
Ela mostra os cartões para ele. Lennox vê que eles não são valiosos, todos reedições modernas com a Kitemark de 1992. Scots Bobby. Mickey Mantle. Joe DiMaggio. Babe
Ruth. Reggie Jackson. Willie Mays. A maioria deles provavelmente já mortos antes mesmo de ela pensar neles. Mas os nomes significam pouco para Lennox quando fora
dos filmes. Ele parece se lembrar de que Marilyn Monroe transava com um deles. DiMaggio. É isso aí, a canção de Simon e Garfunkel. Ela também transou com gente como
JKF e Arthur Miller. Será que era uma “maria-poder”, atraída por homens poderosos, ou um simples troféu para ricos aproveitadores de mulheres? Ou será que era, como
os escritores-jornalistas poderiam explicar, a atração mutuamente devastadora de pessoas carismáticas, à qual ambos os parceiros são incapazes de resistir?
– É, acho que você devia casar num castelo – insiste Tianna. – Seria maneiro.
Lennox se diverte com o pensamento: ele, em trajes de gala nas Highlands, Trudi, em que mais, senão num vestido de noiva branco. Contudo, para ele as noivas todas
se parecem, especialmente quando têm o cabelo penteado para trás; aquele olhar severo, de ídolo. Ele não quer ver Trudi assim. Ela poderia dizer algo com seu cabelo
preso atrás que o atingiria dez vezes mais profundamente do que as mesmas exatas palavras fariam com o cabelo solto e esvoaçando. Ele lera um artigo em Noiva Perfeita
dizendo que a noiva britânica média está, no dia do casamento, quatro quilos acima de seu peso normal. A sabedoria convencional do bebum; elas passam fome para aparecerem
bem nas fotos do casamento, depois se fartam na lua de mel e se engajam numa batalha de toda vida contra a obesidade. Aparentemente isso não acontecia. O nervosismo
de pré-casamento estimula comer demais, e assim elas sobem ao ringue mais gordas. Isso parece verdade: explica o número de gorduchas nas fotos do Evening News.
– Eu não sei. É uma coisa engraçada – considera Lennox, mordendo os lábios –, Trudi, minha namorada... minha noiva – ele se corrige –, ela quer um grande casamento.
Eu preferiria gastar o dinheiro numas boas férias, sabe, numa lua de mel.
– Vocês vão tentar fazer um bebê na sua lua de mel? – O conhecimento inquisitivo dela o magoa e depois lhe causa náusea. Ela é apenas uma garotinha, provocando-o.
Com a pele formigando, ele olha de novo para a estrada. Um carro cor de prata passa por eles, diminui a marcha. É a segunda ou terceira vez.
– Esse é o tipo de coisa que as duas pessoas envolvidas conversam entre si. Não é para ser discutido em público. – Seu tom de voz é autoritário e ele pode ouvir
sua própria irmã dentro dele.
Tianna fica intrigada com a resposta.
– Mas as pessoas falam, sim, sobre esse assunto. Brad Pitt contou a todo mundo que Angelina Jolie vai ter um bebê deles.
– Mas isso é coisa das estrelas de Holywood. Elas querem contar tudo a todo mundo porque a publicidade é como uma droga... como doce pra eles. Eles precisam dela.
Atualmente há muita gente fazendo isso, mas aí elas descobrem que a coisa é parecida demais com doce: ficam doentes depois – reflete ele, olhando para o carro prateado
adiante. Que porra de babaca. Onde é que o babaca estava indo?
Tianna olha para o outro lado e passa uma escova na juba. Pondo o cabelo para trás, ela o prende com um elástico. O cabelo parece macio nos seus dedos, tão diferente
do cabelo de Clemson; aquele cabelo que cresce como espinhos na pele molhada dele. A pele dela se arrepia quando se lembra do toque de seus lábios pútridos. Depois
tremendo no vão do telhado, a escada puxada para ela, e ele gritando: Onde você se meteu, sua putinha da porra, a mãe dormindo no andar de baixo, com os sedativos
que ele dera a ela. Pensando que seria melhor descer e terminar com aquilo do que viver com aquele medo.
12
Bologna
Trudi sorve o café amargo enquanto observa um casal sorridente na televisão, em roupas de ginástica, praticando vagarosamente exercícios de gato-alongamento, com
dois grandes felinos domésticos dóceis. A ideia é que essa prática dá a profissionais muito ocupados a oportunidade de combinar a manutenção da forma física com
convívio com animais de estimação. A mulher sustenta o peito do gato amarelo-avermelhado numa das palmas abertas, a outra mão debaixo da barriga do animal. Ela levanta
o gato em movimentos lentos, ritmados, repetitivos.
– Vinte para este lado, vinte para o outro – diz ela.
– Ótimo, Melanie – sorri o homem, e Phoebe parece estar gostando da coisa também, quando há um corte para um close da câmera mostrando a cara sonolenta do gato.
Quando voltamos para o homem, ele está sentado numa cama e levanta a grande gata malhada apoiada em suas canelas. – Esse aqui é um pouco complicado, mas lembrem-se,
se o seu gato ficar desconfortável e for embora, é que você está praticando o exercício depressa demais – e ele levanta o animal vagarosamente estendendo a perna.
– Devag... gar... é assim, quase imperceptível. Felizmente, Heidegger está um pouco cansado agora. Um... dois... três... Nunca é demais enfatizar a importância de
manter o movimento lento e controlado... Melanie?
Trudi Lowe arruma sua roupa de ginástica numa pequena bolsa e se dirige à academia Crunch, na Avenida Washington. Ela se lembra de Aaron Resinger dizendo: “Eu frequento
a Crunch. É funcional e o ambiente é amistoso. Todas as silhuetas, todos os tamanhos, mas todo mundo malhando com seriedade. Eu não gosto de academias onde as pessoas
vão lá simplesmente para fazer pose.”
Um jovem afeminado na recepção tentou manter um ar empertigado de indiferença, mas como reação ao que ele claramente percebe ser o exotismo da voz dela, decide adotar
aquela atitude teatral que agora lhe cai tão melhor.
– Meu Deus, eu amo esse sotaque, de onde você é?
Trudi lhe explica pacientemente que quer um passe de um dia por vinte e quatro dólares. Briosa filha da Caledônia, ela volta para as libras para calcular o valor
relativo. Pensa em possíveis encontros amorosos, mas é pouco provável que Aaron esteja por ali. Ele estará trabalhando, vendendo imóveis de luxo. Com certeza. Que
bom encontrar você aqui. Desculpe, eu tive que partir sem dizer adeus. Me perdoa? Café. Ótimo.
Trudi tem que pensar em Aaron porque quando ela pensa em seu noivo tudo que ela experimenta são ondas de raiva, frustração e desespero. Ele teve a coragem, a porra
dos colhões, de perguntar a ela sobre os homens com quem ela se encontrara no hiato de seu relacionamento, que a traição dele precipitara. Agora Ray está conduzindo
uma criança estranha, uma garotinha, daqui para só Deus sabe onde.
Enquanto sobe a estreita escada que leva da área de recepção até o local de exercícios, um frio arrepio a assalta. Ela se lembra de Ray sentado no chão, cabeça nas
mãos, murmurando coisas perturbadoras sobre garotas muito jovens na Tailândia. A emoção faz nascer um pensamento que repercute no seu cérebro, incendiando uma seção
sombria da mente, apenas ganhando potência quando ela percebe que seu medo não é por causa de Lennox.
A via expressa 41 cruza as Everglades até Bologna, onde ela se transforma numa rodovia litorânea em todo o trajeto até Tampa. A despeito do ar-condicionado do carro,
a mão de Lennox umedece a capa de couro do volante. Trudi está cada vez mais afastada, e a garota a seu lado caiu no mutismo de novo, examinando os cartões. Parece
que há uma sistemática: ele levanta cautelosamente a cabeça sobre o parapeito, aí alguma coisa do presente faz lembrar a fruta estragada do seu próprio passado,
e o recolhimento para dentro de si mesma é indiscutível. Não importa: ele sabe esperar.
A trilha Tamiami, na sua seção no sudoeste da Flórida, é uma fileira feia de shoppings, pequenas lojas de fast-food e revendedoras de carros usados, que se estendem
até dentro da cidade de Bologna. Algumas notas rudimentares de orientação no mapa do estado explicam que, embora tenha recebido o nome de uma cidade italiana, Bologna
foi modelada com base num outro milagre que é Veneza. A semelhança com Veneza é que tanto Bologna como seu modelo se apoiam em um extenso sistema de canais para
o trânsito. Entretanto a diferença é que esse meio de transporte é usado principalmente para o lazer em Bologna, Flórida. Aposentados e proprietários de embarcações
de recreio, que lhes servem de segunda casa, usam a rede de canais, que chega até os jardins do fundo das casas, com barcos atracados nas dez mil ilhas e mais além,
no golfo do México.
Lennox contempla as estradas bem sinalizadas que levam a comunidades planejadas, seus portões com guardas de segurança, vistas de gramados e lagos dragados.
As agências de propaganda inventaram nomes bucólicos e tropicais, como Prado da Primavera, Cascatas do Oceano e Recife de Coral, desconectadas de qualquer realidade
geográfica. Mas, para os aposentados dos estados do Norte, com seus invernos impiedosos, a ideia de um santuário no sol exerce um apelo arcadiano nas brochuras lustrosas
e nos websites. Assim, os incorporadores derrubam toda a vegetação luxuriante do terreno e erguem as estruturas das casas pré-fabricadas, levantam os painéis e as
paredes de tijolos cinzentos, e os acabamentos de PVC e compensado. Depois eles cercam as residências com muros altos, a despeito de vendê-las com a promessa de
que a criminalidade na região tem níveis insignificantes. Terminam a obra erguendo invariavelmente a bandeira americana num poste, mostrando um frouxo título de
posse.
Lennox e Tianna seguem de carro na direção do centro da comunidade, que tem mais prédios do que a maioria das pequenas cidades que surgiram no sudoeste da Flórida.
As casas variam em escala de riqueza e grandiosidade, muitas cercadas por palmeiras adultas, mangues e vegetação menos tropical. A pequena área do centro da cidade
tem lojas de varejo de boa qualidade, apinhadas debaixo de balcões de ferro fundido em prédios de dois andares, seguindo o modelo de cidades sulistas mais antigas,
como Savannah, Charleston e Nova Orleans. Mais na direção da marina, o casario fica de novo sem graça; exércitos de condomínios se alinham nas bordas de vegetação
grosseira e nos gramados. Lennox abaixa a vidraça da janela enquanto eles cruzam as ruas estreitas debaixo do sol, o Volkswagen verde completamente deslocado entre
os grandes 4x4 e os conversíveis elegantes que proliferam no local. A riqueza fulgurante, ostensiva, deve impedir o crime. Aqui todo mundo parece ter dinheiro, mas
as pessoas com dinheiro frequentemente querem outras coisas. A mais sedutora destas sendo a ilusão de que não é apenas o dinheiro que as coloca à parte do restante
da humanidade.
A rua termina num muro, com um portão de entrada e um letreiro sobre este: GROVE BEACH CLUB E MARINA PARTICULAR.
– É aqui – diz Tianna, excitadamente.
Lennox entra no estacionamento fora de uma fileira de escritórios e lojas. A marina está movimentada; a maioria das embarcações são gigantescas, com diversas outras,
imaculadas, nos pátios das revendedoras adjacentes. Novas construções de torres de condomínios se alteiam sobre a baía. Uma delas é um prédio ainda em construção,
com operários hispânicos andando de lá para cá nos andaimes.
O estacionamento está movimentado. Exatamente quando eles conseguem uma vaga para estacionar e deixar o carro, um Porsche preto, dirigido por um homem branco de
camisa vermelha tenta sair da vaga mas dá a marcha a ré e bate numa picape que está parada. O conversível sofre pequenos danos na parte traseira. Furioso com sua
própria negligência, o motorista desce do carro e começa a gritar com o homem que está na picape.
– Seu maldito idiota! Em nome de que... meu carro!
O relutante receptor da atenção do homem do Porsche é um latino pequeno, corpulento, de capacete e roupas de operário da construção civil, que faz um espantado apelo.
– Mas... mas... O senhor recuou direto no meu veículo!
– Eu não... você não... que diabo... onde é que você trabalha? Naquela obra ali adiante? – A cartilagem da tiroide na laringe do homem branco sobe e desce enquanto
ele aponta por sobre a enseada para um prédio em construção.
O operário olha para o edifício apontado e fica em silêncio.
O homem branco lança um olhar na direção de Lennox e Tianna, que estavam observando a troca de palavras. Lennox vira o rosto.
– O senhor viu isso? Desculpe, senhor? – A insistência do homem irrita Lennox que para e se vira para ele. – O senhor foi testemunha? – A boca aberta: um falso ar
de animosidade invocando apoio de mais alguém.
– Eu vi. – Lennox esquadrinha vagarosamente o queixoso, depois olha para o operário. Ele retira os óculos escuros e os pendura na gola da camisa Ramones, enquanto
fixa com olhar duro o cara branco. – E eu aconselho muito ao senhor que peça desculpas a ele. – Ele faz um aceno de cabeça na direção do operário hispânico.
A autoridade na voz de Lennox espanta o homem. As manchas escuras nos sovacos de sua camisa avançam um milímetro. A pele do rosto, em torno dos óculos escuros, adota
uma cor vermelha mais profunda.
– Mas eu...
– O senhor está sem razão. Eu sugiro que peça desculpas ou vou ser obrigado a levar esse caso adiante.
– Quem diabos é você...
Lennox se aproxima mais do homem, de modo a poder ver seus olhos oscilando e enchendo-se de água, atrás do vidro escuro dos óculos. Percebe que a raiva e a certeza
o estão abandonando. Agora já há diversos transeuntes se interessando pela cena.
– Eu estou de folga. Se o senhor me fizer entrar de serviço, aí a coisa adquire um tom pessoal entre mim e o senhor. Um simples “desculpe” para o cavalheiro ali
e nós todos vamos embora cuidar de nossas vidas. Ou o senhor prefere ver aonde vamos levar o caso. O que vai ser?
O homem louro olha para Lennox, depois para o operário da construção civil, que parece tão embaraçado quanto ele.
– Desculpe... Eu acho que dei marcha a ré... Eu acabei de pegar esse carro na semana passada... essa porcaria de estacionamento está sempre tão movimentada...
– Está bem – diz o operário, a palma da mão virada para Lennox num gesto desconfortável de reconhecimento, antes de entrar de novo no seu veículo.
O homem branco esgueira-se para dentro do conversível e vai embora.
Lennox levanta o olhar para o sol, aperta os olhos contra o calor enevoado e coloca de novo os óculos escuros. Dá uma olhada por sobre o estacionamento para um lugar
com o nome de Cunningham’s Lobster Bar; o centro social da marina.
– Você deu mesmo uma lição naquele babaca – observa Tianna, apreciativamente.
– É exatamente isso o que ele é – diz Lennox, com um sorriso de cumplicidade no rosto.
– Você é policial? Lá na Escócia? – Tianna indaga, com certa preocupação. – O que é que você quis dizer com não estando de serviço?
– Pior do que isso – diz Lennox, deslizando de novo para seu esquema de investigador que mente. – Eu trabalho com seguros. Aquele cara no carro elegante teve sorte.
Ele poderia acabar pagando muito caro durante anos.
– Você gosta do seu trabalho?
Uma pausa desconcertada. Lá na Escócia os filhos de operários eram geralmente encorajados, frequentemente por boas razões, para não contar nada à polícia. Provavelmente
não seria diferente nos Estados Unidos, e Tianna sabe qual é o meio de vida de Dearing.
– É, gosto sim, mas eu estou de férias e é bom tirar uma folga do serviço. – Ele se interrompe para evitar ficar amontoando mentiras. – Eu estou com sede. Quer uma
bebida? – E indica o bar-restaurante com o polegar.
– Mas... – Tianna se vira e aponta para o porto – o barco de Chet está logo ali adiante, dobrando a esquina.
– Minha garganta está quase fechando – ele implora.
– Certo. – Ela sorri. – Você está com dor de garganta, hein?
– É isso aí.
– É – canta Tianna, jogando o cabelo para trás. – É isso aí! Eu gosto quando você diz “é isso aí”. Diz de novo!
– É isso aí. – Lennox dá de ombros e ela dá uma risadinha enquanto eles vão atravessando o estacionamento.
A garganta dele está dolorida e seca, sempre está, mas ele quer saber o que ela sabe antes de entregá-la a Chet.
Dentro do bar, a riqueza os atinge como ozônio. A humanidade foi varrida da equação, sugada como um peido para dentro do ventilador-extrator do toalete de um hotel
caro. Eles se sentam. Tianna pede à garçonete uma Pepsi Diet e Lennox a acompanha no pedido, embora o que ele realmente deseje seja uma cerveja. Nós nunca vamos
ter filhos. Eu vou suportar a cerimônia. Vou construir uma linda casa. Mas nada de filhos.
Ele fica imaginando como Trudi está se saindo lá em Miami Beach. Parece que já decorreram dias desde que ele se meteu nisso. Mas uma terrível sensação de felicidade
fervilha dentro dele, intensificada pelo encontro com o sujeito no estacionamento. Ele está melhorando: lidou com o problema mais satisfatoriamente do que no conflito
com a família no posto de gasolina. Que se foda. É preciso. É terapia. Ele está começando a se sentir vivo, como se sentia no trabalho na Escócia, com aquele travo
familiar de ódio vingativo na boca. Estimulando a sensação de que alguém vai pagar pelo crime.
E havia um crime: o ataque de Johnnie à criança. Será que iriam condená-lo? Será que Robyn serviria de testemunha? Que diriam Lance e Starry se fossem chamados a
prestar depoimento como testemunhas? Seria um caso difícil. Sua capacidade de julgamento está em pandarecos, mas suas entranhas lhe dizem que seria difícil conseguir
uma prisão e condenação, com Dearing evidentemente decidido a proteger Johnnie a qualquer custo. Mas por quê?
Lennox examina o cardápio. A abstinência de álcool produziu nele uma demanda insaciável por alimentos ruins. Ele tenta afastar a tentação. Faz um gesto de desdém
para o cardápio.
– Para um lugar elegante destes o rango parece bem comum. Frutos do mar e carnes, hambúrgueres...
Tianna não liga para o olhar interrogativo dele.
– Este é um lugar para velhos com dinheiro. Eles não vão querer nada muito enfeitado.
Ele olha em volta e faz uma reavaliação. Na verdade, os babacas estressados, nas suas casas de verão, como o yuppie no estacionamento são uma minoria. Ali está,
principalmente, gente mais velha que trabalhou toda a vida, economizando um pouco, e conquistaram seu lugar ao sol. A garota não é boba. É uma garotinha muito inteligente.
Nas circunstâncias corretas, ela poderia desenvolver seu potencial para se livrar da pobreza, como acontece com a maioria das crianças quando se tornam adultos.
Seguir estudando. Desenvolver confiança e verdadeiras habilidades sociais. Não apenas essa linguagem empertigada falsa que terminaria jogando-a nos braços de um
espancador de esposas. Essa garota poderia, se fosse estimulada, quebrar o ciclo de abusos que vêm possivelmente acontecendo há gerações na sua família. Ou talvez
não, talvez Robyn tenha se fodido apenas por ser o elo fraco.
– Sua mãe não teve uma vida fácil, não é?
Os olhos e os lábios de Tianna se crispam enquanto ela esfrega um cacho de cabelo entre o indicador e o polegar.
– Mamãe é legal... ela tem sido realmente boa para mim. Eu acho que porque ela ainda é nova, ela meio que quer viver só em festas e tudo mais. Mas ela sempre parece
conhecer os caras errados. Quero dizer, eles começam bem, no início, mas logo mudam. Você é o único que tem sido legal comigo.
Lennox sente a laringe mudar. Ela deixara Trudi, saíra e cheirara um monte de cocaína com duas mulheres estranhas. Um arrepio percorre sua espinha. Em que porra
eu estava pensando?
– Como é a sua mãe, Ray? – ela pergunta, e depois acrescenta, com uma expressão de humor sôfrego – ela é tão maluca quanto Robyn?
– Ela é uma mãe. – Ele ouve a rispidez de sua própria resposta, pensando como seria estranho chamá-la pelo primeiro nome. Avril. Avril Lennox, née Jeffreys. Uma
mãe. Que porra é essa?
– Aposto que ela é legal – Tianna está dizendo, tirando Lennox de seus próprios pensamentos, forçando-o a olhar para ela brevemente com a boca semiaberta de incompreensão.
– A sua mãe. Eu posso dizer isso, porque você é legal... não é como os outros caras com quem mamãe anda... Aquele Vince; ele era legal no início.
– Ele era namorado da sua mãe?
Ela acena afirmativamente com a cabeça e cai em silêncio, baixando a cabeça.
Lennox se retrai, ele quer mantê-la falando, não induzi-la a se trancar no mutismo.
– E que tal seu pai, você vê ele?
– Ele morreu num acidente de carro quando eu era bebê – diz, olhando para ele para ver a reação.
– Sinto muito – ele diz. Ele sabe que a garota está mentindo.
– Eu não me lembro muito dele.
É essa a verdade. Era a extremis da ausência do pai que tornava a presença de Lennox tão importante. Lennox olha para os cartões de beisebol enquanto luta para controlar
um bocejo de fadiga. Olha para a mochila, na forma de um carneiro achatado.
– É por isso que você gosta dos cartões.
– Os cartões... é sim – diz ela, evitando de novo o olhar dele.
Ela merece mais, mas primeiro ela precisa sobreviver. Gente como Dearing e Johnnie precisam ser evitados. Marginais, mas não lobos solitários, como o sr. Confeiteiro.
Há algo de errado nisso aí. Dá a impressão de que os pedófilos estão por toda a parte: é como se uma matilha de pedófilos incompetentes estivessem enxameando em
torno de Robyn e da filha. Não é apenas paranoia. Esse cara, Vince; será que ele conhece Dearing? Johnnie?
Eles terminam as bebidas e saem do restaurante. O sol já se escondeu no horizonte, mas ainda se mostra forte no céu sem nuvens. Lennox esfrega a coceira nos olhos
pesados e põe o boné de beisebol, ajustando-o, de acordo com o contorno do seu crânio. Tianna não consegue reconhecer o Ocean Dawn, mas ele percebe que para ela,
aquelas embarcações reluzentes, brancas, opulentas talvez se pareçam todas umas com as outras. Olhando através da enseada para o prédio em construção, ele vê os
operários gozando uns instantes de folga nos andaimes. Um deles acena vagarosamente para ele: o cara do incidente no estacionamento. Ele retorna o gesto.
O escritório principal da marina fica numa faixa de firmas de corretagem de seguros de iates. O gerente da marina é um homem dos seus sessenta anos, metido numa
calça jeans, botas e uma camisa de algodão, cheias de bolsos, para fora da calça, que se apresenta como Donald Wynter. Um homem de entusiasmo desenfreado, de cabelo
branco repartido do lado, ele tem uma semelhança espantosa com o ator-comediante Steve Martin. São tão parecidos que Lennox tem vontade de contar piadas. Em vez
disso ele pergunta:
– Você conhece Chet Lewis?
– Todo mundo conhece o velho Chet – diz Wynter, levando-os para fora e mostrando onde o Ocean Dawn fica usualmente atracado.
Só que o barco não está ali.
Don Wynter lê o desapontamento na expressão de Ray Lennox.
– Chet está percorrendo o litoral, lançou umas cestas para pegar caranguejo e camarão fresco. A pesca está mais intensa, tem que lançar a rede um pouco mais longe,
hoje em dia. Eu diria que ele vai estar de volta amanhã de manhã cedo. De fato, eu sei que ele vai, porque tem que pegar uns equipamentos que comprou aqui no meu
escritório. Geralmente ele vai visitar o velho Mo lá na casa dele, numa das ilhas. Eles vão jogar baralho e beber cerveja.
Wynter fala como um homem com medo de vacilar antes de ter falado todas as palavras que deseja.
– Como é que se chega lá?
– Não dá, a menos que você tenha um barco e conheça essas águas. – Wynter balança a cabeça. – É, provavelmente ele já ancorou agora em algum lugar ao longo da costa.
Lennox agradece a ajuda, mas está tão esgotado e a verbosidade do homem machuca quando este se lança numa discurseira ensaiada sobre marés e o tempo. E um olhar
para o rosto dolorido de Tianna lhe diz que o limiar do tédio foi ultrapassado. Enquanto Wynter continua a arengar, Lennox se vê pensando no passado, nas testemunhas
idosas que ele entrevistou quando investigava o caso Britney. Elas falavam pelos cotovelos, discorrendo sobre o papel central que haviam desempenhado no drama da
curta vida da garota. É claro, elas eram apenas pessoas solitárias e inicialmente você não podia deixar de sentir compaixão, mas elas logo conseguiam exaurir aquele
seu manancial de boa vontade. No final, ele já estava com vontade de quebrar aquela cabeça dura e gritar: Isso não tem nada a ver com você, seu babaca egoísta. Essa
é uma investigação de assassinato.
Ronnie Hamil, o avô de Britney que cheirava a chaminé, ele era o pior de todos.
E depois Angela, e agora Robyn. Você não podia nem mesmo confiar na porra da sua mãe.
Para com isso.
O aparecimento de uma mulher bem-vestida, de meia-idade, dá a Lennox e Tianna o álibi para escapulir do gerente do porto, que ficou distraído. Eles saem da marina
e vão de carro para a cidade, e depois entram na via expressa. Lennox se sente perdido sobre o que fazer. Ele se maldiz. Se eu não tivesse me encantado com a viagem
de barco para ver os jacarés e com os milkshakes!
– Não quero voltar. – A voz sussurrada de Tianna, os olhos arregalados nas órbitas de medo. – Quero ficar com Chet.
Logo iria escurecer e eles não encontrariam Chet senão no dia seguinte. Lennox avalia as opções. O apartamento de Robyn em Miami estava fora de cogitação. Eles haviam
chegado até Bologna para fugir daquele lugar e das pessoas que estavam lá. Ele poderia levá-la de volta para o hotel em Miami Beach durante a noite, ou para a casa
de Ginger em Fort Lauderdale, e depois trazê-la de volta a Chet. Subitamente um caminhão buzina forte e o corpo de Lennox parece perder cinco camadas de pele enquanto
ela pisa com força no freio, agradecendo aos céus não haver nenhum veículo atrás dele. Quase entrou na traseira do caminhão. Isso e a reação amedrontada de Tianna
fizeram com que ele tomasse a decisão. Está cansado demais; precisa de sono. No seu atual estado de fadiga, ele é um perigo maior para a garota do que qualquer outra
pessoa. Entra no posto de gasolina seguinte e telefona de novo para Trudi.
– Ray, onde diabos você está? Você disse que voltaria...
– Eu estou com a garotinha sobre a qual falei com você. Ela tem dez anos. Sua mãe e ela também estão muito encrencadas. Não posso abandonar elas, Trudi, não como
eu fiz com Angela e Britney. Simplesmente não posso.
– Eles não têm polícia aí?
– Têm. Eu conheci um deles. É ele que está importunando elas. Assim, não posso arriscar procurar a polícia nesse momento, não sei de que esse policial está a fim.
Tenho que encontrar alguém que seja definitivamente confiável. Vou precisar dormir aqui esta noite. De manhã eu posso deixar a garota com o tio dela; é quando o
barco dele vai voltar. Você sabe o que eu estou dizendo?
– Você está com essa garotinha agora?
– Isso, Tianna.
– Você vai passar a noite, passar a noite, com essa garotinha num hotel?
– Um motel – diz Lennox, pensando sobre aqueles que ele usara antes, metidos nos shoppings da rodovia 41. – Quero dizer... vamos ficar em quartos diferentes, é claro!
Porra, dá um tempo.
– Você me dá um tempo, Ray – diz Trudi. – Me diz onde você está e vou aí buscar você! Ginger pode vir me pegar.
– Não é seguro.
– Você é maluco. Você é maluco e está delirando, você... – ela arqueja, subitamente visualizando Lennox sendo ajudado por ela no seu apartamento, a mão quebrada,
seu balbucio incoerente sobre o caso Britney Hamil, Tailândia, e só Deus sabe o que mais, e vê seus próprios dedos com o anel de noivado, segurando o pau cheio de
veias, circuncidado, de um incorporador de imóveis. Seu tom de voz fica mais brando. – Ray, por favor, me ouve. Você... você passou por um terrível período. Eu sei
que não está com suas pílulas, Ray. Você precisa delas. Se você não quer voltar, deixa eu ir até onde você está...
Lennox é derrubado pela reviravolta de Trudi. Quando a raiva dela se dissipa, ela mostra que está verdadeiramente preocupada com ele. Ele não percebeu tudo que ela
tem feito por ele. Não percebeu que o fato de ela se esconder nos planos para o casamento era uma manifestação do próprio estresse pessoal dela. A voz dele parece
um grasnido, cheia de emoção.
– Não, meu bem. Eu volto amanhã à tarde. Nós vamos às lojas de roupas, vamos sentar e terminar a lista de convidados...
– Não estou interessada no casamento! Estou interessada em você! – diz Trudi, tremendamente infeliz, pensando naquele estúpido encontro amoroso com o cara esnobe,
incorporador de imóveis. Ray a ama. Ele precisa dela. – Eu não percebi, meu bem, não percebi que você ainda estava desmoronando por dentro. Pensei que estava recuperado.
Por favor, volta para mim, meu bem, por favor!
Lennox se encolhe e inspira fundo.
– Preciso que você tenha confiança em mim. Estou pedindo que confie em mim.
Você não sabe como os homens são, porra.
– Eu preciso que você confie em mim, Ray. Pelo menos me diga onde você está – soluça Trudi.
– Eu estou a três horas de carro, mais ou menos, a oeste de onde você está, atravessando as Everglades, do outro lado da costa, no golfo de México. É o máximo que
posso dizer a você. Eu telefono logo, prometo.
Segue-se um excruciante longo silêncio. Por fim, a voz de Trudi:
– Promete?
– Prometo.
– Muito bem. Tenha cuidado – diz ela. – Tchau para você agora. – A voz dela é sem emoção, e quando ela acrescenta eu amo você, é quase como se estivesse vindo da
cripta, na sua resignação cansada.
Então a linha fica muda. Lennox fica ali de pé, olhando para o receptor, as entranhas se revolvendo.
Ela fica deitada na cama, o corpo dolorido daquele modo agradável depois de uma boa sessão de ginástica, quando a adrenalina foi gasta e se estabelece uma deliciosa
fadiga. Não houve um Aaron, que representou boas e más notícias para ela, mas um outro homem a atingira; também com boas e más notícias. Há a vida sem Ray; potencialmente
uma vida muito boa. Ela é jovem. É essa a sua hora. Será que ela poderia se dar ao luxo de desperdiçar sua vida com um cara que talvez nunca se endireitasse?
Aquela obsessão com os maníacos sexuais. Aquela obsessão com sexo. A estranheza com o sexo.
Aquela coisa que ele dissera, no túnel, quando ele teve o colapso nervoso. Sobre a Tailândia. Sobre mocinhas na Tailândia.
Ray tem segredos. Não segredinhos bobos. Segredos grandes. Talvez segredos ruins. Trudi Lowe estremece e se senta. Toma um gole d’água. Levanta-se e vai diminuir
o ar-condicionado.
Anteriormente eles haviam passado pela American Inn, com seus blocos em forma de H, de um só andar, uma bandeira americana malcuidada, e um letreiro de neon, feio
e vermelho, que zumbia com a palavra VAGAS. As paredes pareciam abrigar todos os tipos de desespero e sonhos desfeitos. Agora Lennox imagina que pode sentir o cheiro
de esperma velho de mil canalhas impregnado na textura do prédio. Aquilo o obriga, o desafia a enfrentar o motel. Tianna parece nada notar, não mostra emoção quando
ele diz, com falsa despreocupação:
– Parece um lugar bom, como qualquer outro.
Eles vão a uma loja Walgreens para comprar sabonetes, pasta de dentes e escovas. Na sua exaustão, irritado, Lennox fica ofendido com a discrepância entre o preço
marcado e o cobrado; ainda não se acostumou com o imposto de consumo, e depois voltam para o motel, prontos para o check-in.
O recepcionista é um homem branco, cadavérico. A pele dele é transparente e o rosto tão cansado e dolorido que dá a impressão de que se poderiam ver os tumores dentro
dele, se ele tirasse a camisa. Ele pede um documento de identidade a Lennox. Dessa vez ele tira seu passaporte. O corpo do recepcionista se retesa como uma corda
de carrasco sendo usada, enquanto ele gira na cadeira para apresentar um livro de registro simples, que ele pede a Lennox para assinar. Enquanto este acede ao pedido,
o velho olha para Tianna, que está folheando as espaventosas brochuras que repousam num antigo suporte de plástico na parede, abaixo de um mapa da área, o qual parece
datar de antes dos tempos de colonização da região por parte dos brancos. Ele se volta atentamente para Lennox.
– Filha?
Lennox o encara.
– Não, sou amigo da família – declara ele, acrescentando. – Precisamos de dois quartos.
O recepcionista levanta brevemente as sobrancelhas, avalia Lennox por um segundo e depois baixa a cabeça, ensimesmado, e registra os dois. Lennox estremece, sentindo
agora que aquela não foi uma boa ideia. Mas ele está estourado e precisa desesperadamente descansar. Percebe um comprido bocejo em Tianna. Fica imaginando quanto
de sono ele teve naqueles últimos dias, semanas ou meses.
Enquanto eles voltam para examinar os quartos, um sol ocre, parecendo uma placa de metal, um logotipo para a vida perdida, está se pondo diante dos olhos doloridos
de Lennox. Debaixo do sol, observa ele, através da tênue luz que esmaece, o brilho de boas-vindas do letreiro de neon de um quiosque da cadeia Roadhouse no shopping,
do outro lado da rodovia. Não é tão tarde assim. Umas duas cervejas, não mais, seria ótimo, assegurando um sono profundo. Mas ele não pode abandonar a garota, mesmo
que ela adormeça logo. Em vez disso, ele vai até a máquina de vender refrigerantes na recepção, pegando uma Pepsi para ela e uma água mineral para ele.
Acentuando sua exaustão, Lennox diz a Tianna que vai se recolher e aconselha que ela faça o mesmo. Ela hesita por um segundo, antes de se dirigir a seu quarto, duas
portas distante do dele.
O quarto de Lennox é desmazelado e funcional: cama, mesinha de cabeceira com abajur, mesa e cadeira, banheiro com vaso, pia e chuveiro. Duas poltronas verdes, em
mau estado, com almofadas amarelas, podendo contar mais histórias do que alguém gostaria de ouvir, ficam perto de uma grande, mas venerável, televisão. Andando sobre
um carpete anêmico, marcado por queimaduras de cigarro, ele abre a cortina da janela dos fundos, revelando a vista nada inspiradora da rodovia à frente. Fileiras
de prédios pré-fabricados de uma empresa de armazenagem e distribuição, rodeados de altas cercas, brilham desafiadoramente ao sol evanescente, atores secundários
gozando seus pequenos papéis debaixo dos refletores.
Ele encontra o controle remoto implausivelmente surrado e liga a TV. Aumentando o volume para abafar o ruído industrial do antiquado condicionador de ar, uma grande
caixa de metal embutida na parede, ele pega um copo na mesa e o levanta contra a luz. Parece limpo e ele o enche com água da garrafa e o coloca de volta na mesinha
de cabeceira. Bebe o restante da água na própria garrafa, arriando o corpo numa das poltronas, a perna passada sobre o encosto do braço, enquanto olha para a televisão.
Mudando os canais, ele sente sua mente tensa relaxar e se esvaziar, o pensamento girando no vazio. Trudi estava bem, melhor do que bem. Ela foi leal, é uma mulher
rara.
Uma batida na porta o traz de volta àquele quarto desmazelado. Ele abre a porta e vê Tianna de pé diante dele. Os olhos dela estão bem abertos e esperançosos.
– Não estou cansada. Posso sentar aqui e ver televisão com você?
– Claro – diz Lennox –, mas só por meia hora, porque estou realmente estourado.
Ela se senta na outra poltrona. Ele realmente não precisa de companhia, mas raciocina que a garota ficou abandonada tanto tempo que ele deve tentar fazer aquele
esforço. Além do mais, ela talvez se sinta relaxada o bastante para querer, por livre e espontânea vontade, fornecer alguma informação sobre aquela gente de Miami,
e sobre esse tal de Vince, em Mobile. Pegando o controle remoto, Tianna escolhe a MTV. Lennox sente náusea quando vê diante de si o antigo vídeo de Britney Spears
como uma escolar. Ela estava dizendo ao mundo que era virgem quando o vídeo foi feito. Na época, ele encarara aquilo com desdém, mas agora a cena fazia um certo
sentido. Tianna fica transfixada com o que assiste. Por fim, ela se vira para ele e pergunta:
– Você acha que Britney ainda é gostosa? Eu vi ela numa revista da minha mãe e ela parecia gorda e desajeitada. Hug!
E ele pensa no corpo estrangulado de Britney Hamil, estendido, morto, na mesa do necrotério. Uma criança com o nome de uma estrela da música pop, a qual viveria
mais do que a criança.
– Ela é só uma criança – diz Lennox –, dá uma oportunidade a ela.
Ele não se sente confortável assistindo à cena com Tianna, e insiste para que ela mude de canal com o controle remoto.
– Está um pouco defasado – explica ele, desajeitadamente. Tianna corre pelos programas, parando excitada na apresentação de um show.
– As gostosas e os Geeks! – ela grita.
Lennox se vê apreciando secretamente o programa de encontros amorosos, embora ele preferisse assistir a ele sozinho. A ideia do programa era que aquelas supostas
“gostosas”, a maioria das quais eram na realidade moças bem comuns e de pouca educação, fariam par com jovens feios, obsessivo-compulsivos, reprimidos, mas inteligentes,
que geralmente tinham obtido sucesso nos negócios, nas ciências ou na informática.
A princípio, a simpatia de Lennox é para com os rapazes desajeitados, pouco articulados, que pareciam presa fácil para as vivas, mas incultas, interesseiras. Depois
fica patente que tudo que aqueles rapazes queriam fazer era melhorar suas habilidades sociais, de modo a que pudessem transar. As mulheres, debaixo de sua superficialidade,
frequentemente pareciam estar procurando por relacionamentos sinceros. Embora ansiosas em encontrar um parceiro com dinheiro e boas perspectivas, e querendo que
aqueles bobocas se vestissem, parecessem e agissem com bastante desenvoltura para tirarem boas fotos de casamento, elas em geral acalentam a possibilidade de algo
além de uma transa. No final, entretanto, a previsibilidade banal de tudo aquilo começou a deprimi-lo. O fato de Tianna estar fissurada no programa o perturba. Logo
começa a ser uma luta manter os olhos abertos.
– Você gostou de As gostosas e os Geeks? – ela pergunta, quando começam a rolar os créditos na tela.
– É, foi bom.
– Eu e mamãe adoramos esse programa.
Ele agora vê Robyn, um ícone frouxo de maternidade fria, luminosa com as promessas não cumpridas. Apresentando-se como uma substituta de irmã maior, sujeitando a
garota à ladainha desses reality-shows na TV, particularmente aqueles com um elemento de encontros amorosos. Inundando os neurônios da filha com aquela porcaria,
iria, juntamente com o comportamento da própria Robyn, forjar o modelo de visão do mundo da garota. Enquanto elas vão pulando de canal, à procura de programas semelhantes,
parece que a televisão exuda mais tédio do que as ruas e bares, os apresentadores lutando para despejar emoções suficientemente grandes para fazer seus assuntos
alçarem voo. É como se as emissoras de TV não pudessem encontrar pessoas estúpidas o bastante para não ficarem um pouco envergonhadas com o fato de estarem lidando
com uma extrema banalidade, enquanto as coisas realmente importantes estão por aí, à vista, mas não expostas à discussão, como que cercadas por uma invisível cerca
elétrica. Uma raiva desanimada comprime seu peito.
– Você devia estar assistindo a coisas a que garotas da sua idade assistem.
– Como o quê?
– Não sei. Deve haver alguma coisa. Desenhos?
– Os Simpsons é engraçado. South Park é ótimo. Eu gosto de Uma família da pesada.
– É mesmo – diz Lennox. Ele apela de novo. – Estou mortinho da silva. Vou me deitar agora. – Ele faz um gesto para a porta.
Tianna mostra-se relutante em sair. Lennox precisa levantar-se e abrir a porta e depois acompanhá-la até o quarto dela. Mas, cerca de dez minutos depois, há uma
batida. Ele sabe quem é. Ela está mordiscando o cabelo e sorrindo estranhamente para ele. – Não consigo dormir – sorri ela, a expressão inocente.
O sorriso e a linguagem dela têm uma qualidade que o deixa enjoado. Ele não vai permitir que ela ultrapasse esse limite.
– Olha aqui. Vai para o seu quarto assistir à televisão.
– Não posso ir para a cama com você? – implora ela.
O coração dele bate acelerado no peito, acompanhando o ritmo do condicionador de ar. Ele segura a porta com força, como um leão de chácara confrontado com uma clientela
agressiva.
– Não. Por que você ia querer fazer isso?
– Porque eu gosto de você. Você não gosta de mim? – ela arregala os olhos, num apelo.
– Gosto, mas somos amigos. Não somos...
– É por causa de Trudi. Você ama ela! Eu finalmente desejo de verdade ficar com alguém e ele ama outra pessoa! – ela geme, batendo o pé em desespero.
Que porra...
– Não – diz Lennox secamente, em pânico, lançando um olhar em torno. O lugar está deserto. Ele respira fundo. – Olha aqui, ela é minha namorada, mas mesmo que não
fosse, você é uma mocinha. Caras da minha idade... – começa ele, e aí os anos que ela tem ressoam nele – ... caras de qualquer idade, não vão para a cama com garotas
da sua idade!
Ela lança um olhar penetrante para ele.
– Alguns vão.
– É – diz Lennox –, e eles são chamados de pedófilos. Eu já encontrei uma porção deles. Alguns são malvados, outros são só fracos e patéticos. Mas eles estão errados:
todos, até o último deles. Porque eles não têm o direito de fazer isso. Agora, por favor – diz ele com força –, vá para o seu quarto!
Ele fica observando com desânimo ela partir e desaparecer no quarto dela, e depois ele fecha sua própria porta e desliga o ar-condicionado. A máquina vai parando,
fazendo cliques cansados, decrescentes, de protesto, enquanto ele deita na cama. Estranhamente, seus pensamentos vão para os pelos púbicos luxuriantes de Robyn.
Seu cérebro está em guerra consigo mesmo quando parte dele, numa obscenidade renegada, fica imaginando a filha, depois os genitais sem pelos da criança assassinada,
em Edimburgo. Embora isso felizmente não o tenha feito ficar excitado, ele amaldiçoa esses pensamentos fora do seu controle. Fica abatido por sua baixeza e pela
ideia de que não é melhor do que eles.
Duas portas adiante, Tianna vai para a cama. A alma está triste, a testa molhada no travesseiro pegajoso e desbotado. Ela lança para fora da cama o lençol torturante,
sufocante, para deixar o ar frio soprar sobre seu estômago, peito e pernas, mas o quarto está cheio de sombras nas paredes que suscitam um milhão de pesadelos. A
jaqueta pendurada na porta do banheiro assumiu a forma de um corcunda de ar maligno. Ela ouve um guincho lá dentro e puxa as cobertas de volta até o queixo, esperando
cair na areia movediça do sono. E isso acontece, e minutos depois ela está se afogando e luta de volta, arquejante, para um estado de consciência.
Umas poucas paredes adiante, Ray Lennox tem a sua atenção distraída para um bater de asas no ouvido. Algum inseto de merda. Um som agitado. De novo. Parece se acalmar.
Ele toma um gole de água do copo perto da cama. De repente, senta-se reto num estado forte de pânico, incapaz de inspirar. Alguma coisa ficou presa na garganta.
Ele começa a tossir. A coisa está viva, movimentando-se e fazendo um ruído dentro dele. Ele cambaleia até o banheiro cheio de esporos, os olhos queimando e lacrimejando
como se ele estivesse chorando sangue. Ele tenta sufocar o invasor, mas não consegue. Depois suas entranhas se revolvem violentamente, mas o jato queimante de vômito
parece ter batido em alguma coisa na sua garganta e o ácido da bile queima quando cai de novo em cascata para o estômago.
Um pensamento na sua cabeça: é assim que acaba.
Agora, já desesperado, sentindo-se tonto e apavorado, a cabeça latejando como se fosse explodir, ele tenta vomitar de novo e tudo sobe num acesso de tosse forte
e angustiante. Ele olha para o vaso e vê a coisa, mais um hamster voador do que mariposa; os olhinhos negros que nem carvão no corpo de pele dourada, lutando dentro
do milkshake vomitado, uma única asa batendo.
– Se foder – ele meio que arqueja, meio ofegando para a enorme mariposa e aciona com força a válvula de descarga, observando a criatura rodopiar e girar como uma
manobra de skate, antes de desaparecer.
Durante alguns minutos, ele fica de joelhos e coloca o rosto quente contra a superfície vítrea e fria da pia.
Levanta-se cambaleante e volta para a cama, o zumbido ainda trovejando na sua cabeça, como se o fantasma da mariposa fosse fazer parte dele para sempre, e então
desaba num sono exaurido, como de embriaguez, onde pensamentos sombrios e conscientes se mesclam com sonhos desconexos. O tempo passa, quanto tempo ele não sabe.
Depois de uma narrativa fragmentada, febril, ele pode ver Trudi com nitidez, à sua frente.
– Eu quero você, Ray, da maneira como você quiser – ela está dizendo. Ele quase pode tocá-la.
Ele pode quase que tocá-la porque ela está aqui.
A porta de seu quarto se abriu. Por um segundo ou dois ele pode ver a silhueta dela iluminada por trás pela luz da lua, até que uma brisa fecha a porta com força,
jogando-o de novo na escuridão. Ele lança um olhar para o mostrador do relógio: 2:46. Ela está – alguém está – deitando-se na cama com ele.
– Você sabe que eu amo você – A voz ofegante sussurra. – Você pode fazer tudo que quiser. Eu sei que você não vai me machucar.
O corpo de Lennox fica paralisado. Ele pula da cama e acende a luz. Tianna está ali, sentada, metida na camiseta e na calcinha amarela com uma borboleta branca bordada
nela. Ele estende a mão para pegar a calça, dobrada na cadeira, vestindo-a sobre a cueca.
– Que merda de brincadeira é essa!
Ela levanta os olhos para ele com um biquinho triste.
– Não consigo dormir.
– Você precisa tentar, porque você não pode ficar aqui! – Lennox grita. Ela começa a soluçar. Ele diminui a voz. Um medo feio, desesperado se apossa dele: se o cara
na recepção ouvir ela. Ele pode ver Lance Dearing ouvi-lo, “Ah, então, eu acabei de levar a mamãe dela para acalmá-la, deixei o velho amigo Ray tomando conta da
garota. Não sabia que ele ia se apoderar dela e atravessar todo o estado com ela. Acho que meio que devo me culpar...”. O terror corrói as entranhas de Lennox.
– Olhe, volte para assistir à televisão. Por favor – ele implora –, você vai adormecer logo.
Ela faz uma careta e balança a cabeça. Ela não se move.
– Não quero. Por favor, deixa eu ficar aqui, não vou tocar em você...
– Não! Vá para o seu quarto. Agora!
Tianna puxa as pernas e o cobertor para si mesma e levanta o olhar para ele. Num instante a pequena predadora perturbada desapareceu e ela é, de novo, uma criança
com uma falha nos dentes.
– Mas... eu acho... eu acho que meio que baguncei as coisas. No meu quarto.
Lennox inspira fundo.
– Está bem, está bem. Você fica aqui. – Ele se dirige à porta. – Vou dormir no seu quarto e vejo você de manhã – arqueja ele, a garganta ardendo, queimando. – Por
favor. Tente dormir!
Ele sai com os pés nus para o frio passadiço externo, que cheira a óleo diesel e gasolina. Ainda faz calor e não há ninguém à vista, o único sinal limitado de vida
é a luz noturna que brilha tenuamente na recepção. À distância o fraco burburinho de um comboio de grandes caminhões passando ruidosamente pela rodovia, e as luzes
do quiosque da Roadhouse piscando. Uma rajada de vento esfria seu tronco nu. Ele boceja, se espreguiça e pega uma outra garrafa de água da máquina antes de se dirigir
para o quarto de Tianna, dessa vez fechando a porta por dentro com o trinco. Dentro, os cobertores parecem desarrumados mas todo o restante parece estar nos seus
lugares. Tirando a calça, ele mergulha debaixo das cobertas, puxando rapidamente a perna para trás quando esta atinge algo úmido.
– Merda... – resmunga ele, saindo apressadamente da cama. – Que porra!
Ele afasta os cobertores e se ajeita num pequeno sofá, apertado e desconfortável. Levanta-se de novo e tira o colchão da cama, apalpando o outro lado. Felizmente
a urina de Tianna não atravessou o colchão. Depois de inverter a posição deste, ele embrulha o lençol molhado e puxa os cobertores para cima de si de novo. Embora
exausto, seus nervos estão agora esticados como uma corda de piano e ele não consegue dormir. Acaba levantando-se outra vez, procurando refúgio novamente na televisão,
mudando rapidamente de canal até que no Discovery encontra um programa sobre a natureza.
O documentário preocupa-se com a crescente extinção dos ursos panda na China e as tentativas para salvar a espécie. Essas tentativas dizem respeito, principalmente,
a cientistas abusando dos ursos e de seus filhotes. Separando as jovens criaturas de suas mães, etiquetando seus ouvidos com transmissores, tatuando-as dentro da
boca. Uma americana, acompanhada de seu filho, narra o programa, descrevendo uma “jornada pessoal”. Eles assistem a zoologistas chineses perturbando os pandas, para
evidente prejuízo dos animais. Lennox pensa que se essas criaturas pudessem se comunicar, elas simplesmente diriam: “Vão se foder, nos deixem comer nossos bambus
e nos extinguirmos em paz.”
Mas esse não é o modo como os humanos agem. Nossa ambição está matando vocês, então nossa vaidade exige que os salvemos.
Tianna. Será que ela é seu filhote de panda pessoal? Será que ele está fazendo isso por ela, ou porque seu próprio ego se recusa a permitir que pedófilos se apoderem
dela? Gente como o sr. Confeiteiro ou Dearing? No final, pensa ele, o motivo não tem importância. O que é importante é a ação. Fazer a coisa certa.
Lennox desliga a televisão e tenta se acomodar de novo na cama. Ainda não consegue dormir. A bolsa de Tianna está na mesa. A cara idiota do carneiro caçoa dele.
Ele estende a mão e pega a bolsa. Não quer remexer nas coisas dela, mas ele é um policial, e ela está correndo perigo. Ele precisa saber coisas sobre ela. Abrindo
as diversas divisões e compartimentos da bolsa, ele sente o vergonhoso poder e agonia aguda dessa mais nova violação da garota. O policial e o pedófilo: irmãos na
atrocidade. À parte os cartões de beisebol, uma escova de dentes e alguns cosméticos, há o bloco de notas encadernado de preto. Na página seguinte àquela em que
desenhou o losango, há uma anotação rabiscada:
Oi, Nooshka,
Desculpe mas já faz algum tempo que não encontro oportunidade para escrever para você. Acho que estou ficando preguiçosa. Eu nunca pensei que isso ia acontecer comigo.
Eu encontrei um cara. O nome dele é Ray. Ele mora num castelo na Escócia, do outro lado do mar. Eu chamo ele de Bobby Ray. A grande novidade é que estamos muito
apaixonados e que vamos nos casar! Eu quero que você seja minha dama de honra! Num castelo na Escócia onde nós dois vamos morar. Você pode vir nos visitar, ficar
hospedada lá. Você e mamãe. Nós vamos deixar ela morar num chalé nos terrenos do castelo onde poderemos cuidar dela. Ela pode assistir a televisão conosco e fazer
refeições conosco no grande salão.
Ray não é como os outros, como você-sabe-quem. Ele é mais como tio Chet, mas mais moço e mais bonito. Tem o cabelo meio castanho, cortado muito rente, como se fosse
um fuzileiro americano ou coisa assim.
Acho que estou preocupada com mamãe. Rezo por ela. Mas eu sei que Ray vai ajudar ela. Sei que meu Bobby Ray e Chet farão com que tudo fique bem. Eu queria que tivéssemos
ficado em Mobile. Mas o mentiroso do Vince está lá e, de qualquer forma, eu assim nunca teria encontrado meu doce Bobby Ray.
Sua melhor amiga,
Tianna Marie Hinton
Ele deixa o bloco de anotações cair na mesa. Levanta-se uma vez mais e espreme o restante da urina da bexiga. Nooshka parece ser uma amiga imaginária. Parte dele,
entretanto, sente-se lisonjeada pelo modo como a garota o vê, a confiança que tem nele. É apenas uma paixonite tola. Como a que ele teve por sua professora na escola
primária, a srta. Milne, simplesmente porque ela era boa para ele. Mas na época ele era uma criança sem sexo; já Tianna fora assediada por pedófilos, o que dá à
fantasia um viés perigoso. Mas mesmo que a coisa se apresente misturada, o fato é que a garota acredita nele, quer acreditar nele, muito. Ele não pode deixá-la na
mão. Contudo ele ainda está afrontado com o episódio, arrastando-se para a cama, agachando nas mãos e joelhos.
Lennox põe o bloco de volta na bolsa e olha para os cartões de beisebol de novo. Babe Ruth. Reggie Jackson. Mickey Mantle. Joe DiMaggio. Scots Bobby. Ele lê os detalhes
das carreiras dos jogadores no verso dos cartões. Bobby Thomson não era da mesma divisão que os outros, que eram obviamente gigantes do esporte. Seu status legendário
baseava-se naquele seu único arremesso, mais do que nos feitos de toda sua carreira. Contudo ela o mantinha ali. Ele não entende o beisebol. Talvez seja preciso
ser americano. Um bocejo enorme abre sua mandíbula, o sono o está roendo de novo.
Feliz em sucumbir, ele afunda como água da chuva num ralo.
13
Edimburgo (3)
Você pensava sobre os últimos dias de Britney, sentado na delicatéssen Stockbridge, o céu prateado e incerto lá fora não lhe oferecendo qualquer garantia. Parecia
que o corpo dela fora jogado do alto do penhasco coberto de relva para a pequena enseada cheia de seixos naquela traiçoeira noite de sábado, antes de os resistentes
andarilhos o terem encontrado na manhã seguinte. O sr. Confeiteiro a mantivera prisioneira durante três dias e meio que foram um inferno, as evidências deste meticulosamente
levantadas por patologistas e cientistas forenses.
Uma velha olhava para você no café; você estava chacoalhando sua xícara de café preto contra o pires. Você parou e esquadrinhou os ocupantes do local: um mar de
cabeleiras louras, avermelhadas e pretas desvanecendo-se no universal cinza-rosa. Todas as pessoas ali pareciam tanto o arquétipo norte-europeu quanto ligeiramente
maltrapilhas, talvez um truque que só os escoceses conseguem dominar com propriedade.
Para a investigação sobre o caso Nula Andrews, a polícia municipal de Welwyn Garden montara uma sepultura falsa, completa com uma lápide e publicidade, convocando
os jornais locais. Era uma tática que as forças policiais frequentemente usavam. Eles sabiam que a compulsão de confessar o crime era forte, e que o assassino muitas
vezes sentia a ânsia irresistível de visitar a sepultura da vítima e conversar com esta. Câmeras de segurança e microfones foram escondidos nas árvores que sombreavam
o local, filmando e registrando a presença dos visitantes póstumos de Nula.
George Marsden defendera essa tática, mas agora ele tinha reservas a respeito, como você descobriu quando voltou à sua sala para dar um outro longo telefonema para
Eastbourne.
– Nós prendemos o homem errado, Ray.
Mas você estava começando a achar que aquela era a última oportunidade; a não ser pelo beco sem saída representado por Graham Cornell, o rastro se perdera. Robert
Ellis fora apenas um dos desajustados que canhestramente “confessara” à vítima no túmulo em Hertfordshire. A fita gravada com a voz de Ellis dava engulhos. A inocente
Nula foi cruelmente escarnecida como sendo uma puta raivosa que adorava todo tipo de práticas sexuais. Embora as costas dele estivessem voltadas para a câmera, parecia
que Ellis se masturbava sobre a sepultura dela, enquanto fazia seu discurso tresloucado. O fato confirmou-o como sendo um indivíduo perturbado que, num certo ponto
da vida, seguira um caminho totalmente errado, mas, as cabeças frias perguntavam, “será que era ele o assassino?” Logisticamente, de acordo com a cronologia de seus
movimentos, isso teria significado que ele possuía habilidades organizacionais sobre-humanas e uma capacidade de concentração extraordinária. Mas os investigadores
sabiam que o público sentia o cheiro de sangue e os chefões já estariam há muito aposentados antes que a imprensa, que liderara a multidão linchadora, tivesse a
inclinação ou a coragem de fazer uma investigação completa. Pensar no assunto com frieza logo se tornou algo fora de moda.
Você estudou novamente os arquivos da polícia de Welwyn, tomando particular interesse numa pessoa que não fora checada. Ele fizera apenas uma única aparição, usando
um casaco com capuz cor de pele, e ficara em silêncio junto à sepultura até que foi perturbado, ironicamente, pela presença de Robert Ellis. O desconhecido se agachara
diante da lápide, olhara para ela durante um momento, e depois, quando Ellis ficou no campo de visão das câmeras, ele se levantou e foi embora. Os dois trocaram
breves palavras. Os comentários de Ellis foram gravados, mas as costas do outro homem e seu capuz alongado fizeram com que nada fosse gravado da parte dele.
Você pulou no seu carro e foi até Manchester. Ellis estava na penitenciária da Strangeways. Ele fora umas poucas vezes àquela cidade, a caminho quando vinha da casa
de sua namorada em Preston, e agora ele passara a conhecer muito bem um pequeno canto da cidade. Você queria ver se o tempo melhorara sua memória.
Robert Ellis tinha porte atlético e seus olhos brilhavam intensamente. Você nunca fumava, mas sempre levava um maço de cigarros quando entrevistava prisioneiros.
Ellis recusou a oferta educadamente. Você odiou o fato daquilo o ter impressionado, mas ficou patente que Ellis passara por algum tipo de transformação psicológica.
Ele estava bem ciente da ironia de sua situação: a prisão na qual ele estava erradamente encarcerado, e de onde passara os últimos poucos anos tentando escapar,
perversamente o formara.
– Mesmo que eu não devesse estar aqui, este lugar me salvou – admitiu ele. – Eu era uma porra de um idiota. Mas assassino de criança? – Ele riu, desdenhoso. – Faça-me
o favor.
– O homem de casaco.
– Eu não vi muita coisa dele. Ele usava um cachecol sobre a boca. Tudo que percebi foram aqueles olhos enlouquecidos me encarando de dentro de um grande capuz. Geralmente
sou muito bom em encarar pessoas, mas eu senti um arrepio com aquele olhar, estou contando isso a você em troca de nada.
– O que foi que ele disse?
– Depois que eu disse “É uma coisa triste”, ele respondeu: “Crianças morrem a todo instante. Subnutrição. Doença.”
– Você se lembra de alguma característica da voz dele: agudeza, sotaque?
– Não consegui identificar nenhum sotaque. Não era como... escocês. – Ellis sorriu para você, depois acenou com a cabeça para o guarda silencioso que assistia à
entrevista. – Nem nortista, nem mesmo como o meu. Era meio sofisticado, mas não do tipo mauricinho, apenas bastante indeterminado.
– Por que você disse aquelas coisas sobre Nula? Junto à sepultura dela?
O maxilar de Ellis se fechou com força e alguma coisa enevoou seus olhos. Você pensou que poderia ser vergonha.
– Porque eu era um sádico. Fodido, cheio de raiva e desesperado por atenção. E, sabe o que mais? – Ele olhou em volta para seu ambiente espartano e deu um sorriso
largo. – Funcionou! – Depois o sorriso diminuiu um pouco. – Mas eu não quero ficar tão à vontade aqui.
– Ah, é?
– Porque você vai me tirar daqui, não vai?
Talvez a transformação psicológica não tivesse sido tão grande quanto você supusera. Debaixo da fachada educada, você sentiu o cheiro da antiga encarnação subindo
à superfície.
– Eu vou descobrir o canalha que matou Britney Hamil.
– Mesma coisa, parceiro – disse Ellis.
Mas durante uns poucos dias excruciantes, a pressão continuou a se acumular sobre Cornell, que acabou desmoronando e confessando. Mas não o assassinato de Britney.
Ele revelou que vinha mantendo um caso com uma parlamentar escocesa, e que ele maliciosamente deixou vazar para os jornais. A parlamentar teve que passar pela indignidade
de confirmar essas ligações e destruir sua própria carreira, a fim de livrar um homem inocente da barra da justiça. Toal ficou arrasado com isso; ele concordou então
em deixar que você montasse o esquema da falsa sepultura, no cemitério de Stockbridge, usando as câmeras de vigilância.
O falso enterro de Britney transformou-se, então, no enterro oficial. Angela, tão fria, implorara:
– Vocês não poderiam também, assim, fazer o enterro verdadeiro da Britney? Eu nunca poderia dar a ela nada parecido...
Assim, o conselho de contribuintes local cobriu o buraco orçamentário da polícia. E então, depois que os restos mortais de Britney baixaram à terra, você ficou esperando
na van, observando nas telas cada alma que chegava perto do local de descanso dela. Aquele era um serviço triste e frustrante para qualquer um. Era impossível não
ficar com dor nas costas ou com o pescoço duro. Novembro havia chegado e o mundo além da vidraça parecia frio como um mármore curvo.
Num determinado momento você foi urinar. Quando voltou, viu Notman de pé do lado de fora, conversando com uma mulher. Enraivecido, você correu até seu colega.
– Que porra vocês estão fazendo aqui?
Notman pediu desculpas, enquanto a mulher, confusa, se afastava.
– Eu só saí uns cinco minutos para esticar as pernas.
Você entrou na van, recuou a fita num dos monitores. Nada. Seu batimento cardíaco voltou ao normal. Você pensou na sua equipe. Aquilo não significava nada para eles,
fora das risadas no bar ou das bravatas na cantina. Era apenas a porra de um trabalho: havia arestas a serem aparadas, tempo que precisava ser recuperado. E você
sabia disso porque você se sentia exatamente assim com tudo o mais que não fosse aquele crime. Também Notman, que agora tomara dolorosamente consciência da coisa.
– Isso é algo especial para você, não é, Ray?
– Quero pegar o canalha.
– Espero que você não pense que estou sendo inconveniente – disse Notman –, mas, porra, você está com uma aparência horrível. Tem dormido?
– Não. Aquela garotinha, ela está nos monopolizando, a ambos.
Você dobrava os turnos. Cansado e psicótico, engolia benzedrina e cheirava carreiras de cocaína para permanecer acordado na van não identificada que fazia a vigilância
ali perto da sepultura. Você sabia que só teria uma oportunidade.
Ao mesmo tempo, um outro drama local se desenrolava. A maioria dos policiais eram torcedores do Hearts Football Club, e ficaram chocados ao saber que o substituto
do popular técnico George Burley seria Graham Rix, um inglês que cumprira uma sentença de prisão por ter praticado sexo com uma menor de quinze anos. Era a tarde
que se seguiu a esse anúncio e você estava na sua sala, na sede da polícia, preparando o roteiro da vigilância em Stockbridge. Dougie Gillman entrou com uma nova
xícara de café da Escócia, jogando a que tinha o emblema dos Hearts na cesta de lixo.
– O que é que há com a caneca do Hearts? – perguntou Notman.
– Eu não ponho a porra da minha boca perto dela enquanto um pedófilo for o técnico. É uma ofensa contra tudo o que representamos – explodiu Gillman.
Exausto, você levantou o olhar para ele.
– O que é que nós representamos, Dougie? O que é que você representava na Tailândia?
– Nós estávamos de férias. É diferente.
– Diferente porra nenhuma.
Mas Gillman não estava inteiramente na defensiva.
– E quanto a você, aí? E Robbo? Aquela garotinha?
Você lutou contra o impulso de engolir em seco.
– Aquilo foi uma bobagem... Robbo era um retardado da porra!
Houve uma vez em que você e Robbo estavam numa investigação e interromperam um casal de jovens que transava. A garota era menor, o garoto não muito mais velho. Robbo
mandara você interrogar o garoto no outro aposento, enquanto ele falava com a garota no quarto de dormir. Ele encontrou pílulas. Ecstasy, na bolsa dela. Ele saíra
do quarto por um breve momento para pedir a você que confirmasse o achado. Depois voltou para o quarto e fez um trato com a garota. Você frequentemente estremecia
quando pensava que tipo de trato fora aquele, mas não houve indiciamento.
– Robbo estava sempre na cantina com essa história. Fez sexo oral com a garota – disse Gillman. – Ouvi dizer que a garota tomou uma overdose depois. Teve que fazer
lavagem estomacal.
– Se isso aconteceu, eu não tive nada a ver com isso.
– Você não podia saber como Robbo era. Como você disse, um retardado. Você deixou ele sozinho com uma menor. Pense nisso – falou Gillman com desdém, manhoso e falso.
– Pense nisso quando você vier todo cheio de graça e começar a contar histórias por aí. Sai fora, seu certinho. – Gillman bateu de leve do lado do nariz, em atitude
provocativa. E você sentiu seus olhos se encherem de lágrimas, como acontecera naquele bar de Bangkok, quando a testa de seu colega trombou com o seu nariz.
Mas havia outras coisas para pensar além da sua guerra crescente com Gillman. Quase às quatro horas, numa tarde já mergulhando numa escuridão miserável e nebulosa,
aqueles dias solitários, aborrecidos e as noites de dar câimbra no pescoço de tanto ficar sentado na van finalmente compensaram. Você fora até o Greggs, e estava
gozando o agudo e breve prazer de ficar sozinho enquanto trazia até a van tortas cor de areia e café para você mesmo e para Notman. De repente, do nada, você foi
assaltado por uma chuva de granizo. As pedrinhas brancas e frias o atingiam como balas de chumbo de um rifle. Você mergulhou na van, onde Notman estava com o olhar
vidrado nos monitores. A intempérie cruel tamborilava no teto de metal do veículo. Vai passar, pensou você, e isso aconteceu, mas não antes da chuva de granizo ficar
furiosamente mais intensa. Vocês bebericavam o café, contentes, enquanto conversavam sobre os Hearts e a predileção de seu novo proprietário, da Europa Oriental,
pela controvérsia. Sob a orientação de Rix, o time vinha crescendo tão silenciosamente quanto as árvores sobranceiras no cemitério, com as atividades já encerradas
devido ao inverno.
Aí você o avistou na tela. O homem de casaco. O mesmo casaco. O mesmo homem. De pé junto à sepultura de Britney. O homem que estava junto à sepultura de Nula antes
de ser perturbado por Ellis. Aquele capuz com pele de animal, e o granizo que castigava: será que o microfone pegaria algo? Não interessava, você já estava voando
na direção dos portões de entrada, gritando para Notman passar pela entrada lateral do cemitério e interceptar o sujeito.
Você correu pela trilha úmida, num determinado momento quase caindo. Mas o homem não percebeu você avançando por detrás dele. Diminuindo a marcha, você fechou em
cima de sua presa, chegando sorrateiramente tão perto que podia ver o hálito congelado sair pelo lado do capuz.
– Senhor! – gritou você, puxando sua identidade. – Polícia!
E Notman se aproximando, vindo da outra direção. Vocês o pegaram num movimento de pinça. Você esperava uma luta, talvez uma luta desesperada. Mas o homem não correu.
Em vez disso, ele se virou vagarosamente, como se estivesse esperando aquele momento.
Você sabia que era o sr. Confeiteiro. Olhos incisivos, mas ao mesmo tempo estranhamente mortos. Cabelo castanho abundante, ligeiramente grisalho nas têmporas. Tez
corada. Corpo baixo, largo e compleição forte, como se fosse trabalhador rural, embora provavelmente nunca houvesse visto uma fazenda na vida.
Agora Notman já estava junto de você. O homem olhou de um policial para o outro.
– Vocês correram bastante. – Ele meio que deu de ombros, com um meio sorriso, como se tivesse sido apanhado furtando uma loja.
Aquela arrogância despreocupada. O mundo detestável e horrendo que ele habitava, que ele havia normalizado para si mesmo. Por extensão, nutria um desprezo e ódio
pela sociedade humana em geral, dos quais você sentiria o contínuo impacto. Ele amedrontou você. Fez com que você se sentisse fraco e pequeno, mesmo com seu escandaloso
senso de justiça e todo o Estado e os cidadãos britânicos a seu lado. E agora o sr. Confeiteiro tinha um nome.
– Sou Gareth Horsburgh – ele sorriu, com alegria. – Pode me chamar de Horsey.
Você foi até o escritório de seu pai, em Haymarket; você não o via há algum tempo. Ia levá-lo para tomar uma cerveja. Isso asseguraria que você só tomaria uma: você
sempre se continha na companhia do velho. Você sorriu para Jasmine, a assistente-administrativa que trabalhava com ele e que levou você através do pequeno escritório
do seu pai, onde ele acabava de terminar um telefonema. Você podia ouvir sua respiração entrecortada. Você pôde ver, através de seu próprio estado de saúde, como
seu pai estava mal. Emocionalmente ele demonstrava pouca coisa. Mas havia sinais físicos. Durante algum tempo você vinha observando um esticamento e avermelhamento
da pele do rosto. A idade estava cozinhando-o e reduzindo-o; as marcas escarlates onde as maçãs do rosto pressionavam de baixo, elas se espalhavam e ficavam visíveis.
Mas enquanto seu pai falava, sua mente estava no “Horsey”, o funcionário público divorciado que morava perto de Aylesbury com sua mãe inválida. Logo surgiu um consenso
entre os conhecidos e colegas de trabalho: Gareth Horsburgh era um homem que sofria de depressão. Bastante agradável para se cumprimentar com um “olá”, embora um
pouco pomposo e pedante quando reunido com outros. Ele poderia ter sido um entediante sócio de um clube de golfe de um subúrbio elegante, o tipo com quem você não
se importa de tomar um drinque antes de se desculpar e ir embora.
Você sentiu que estava nos espasmos de alguma poderosa alucinação auditiva, uma ressaca das conversas sinistras com Horsburgh e o horror das revelações lúgubres
do animal, quando a voz grave de seu pai o informou.
– A coisa vem rolando há pelo menos dez anos, Ray – dissera ele com um ar ostensivamente ofendido, enquanto despejava uma caixa de arquivo na mesa –, ela e Jock
Allardyce. Fodendo pelas minhas costas por dez anos. A minha Avril – sua mãe – e Jock Allardyce.
Foi a palavra “fodendo” que o espantou. Nem mesmo pelo fato de que seu pai nunca dizia palavrão na frente de qualquer membro da família, a não ser um maldito “safado”
que você o ouviu arquejar em triste descrença quando o primeiro chute de Albert Kidd chegou ao fundo da rede, a favor do Dundee, lá no Parque Dens, no ano de 1986.
Era a imagem de sua mãe, suarenta e vigorosa, transando com o amigo da família e vizinho, o há muito divorciado Jock Allardyce, o homem que você crescera chamando
de “Tio Jocky”. Sua pele se arrepiou com o puritanismo de filho confrontado com a sexualidade dos pais. Olhando fixo para os olhos de cabra de seu pai, beligerantes
embora conturbados, você teve que lutar contra o desejo de rir alto.
– O que vai fazer? – Você sentiu seu dedo se levantando nervosamente para o lado do nariz. O escritório atulhado tinha ficado ainda menor.
– O que é que eu posso fazer? Nós tínhamos parado de fazer sexo – disse ele, sem demonstrar emoção –, depois que eu tive aquele troço no coração. Era a medicação.
Ela afina o sangue. Ah, eu não podia... – ele gaguejou e deu de ombros. – Tentei Viagra, mas disseram que era perigoso para mim. Comecei até a assistir a filme pornô,
para ver se a coisa voltava, mas não adiantou, apenas dá uma dorzinha. Sua mãe ainda quer transar, que direito tenho eu de me colocar no caminho dela?
– Ela é sua esposa – você disse, agora com raiva pela primeira vez, tanto pela falta de respeito do velho para consigo mesmo como pela traição de sua mãe.
– Que tipo de marido eu sou?
Você limpou a garganta. Aquilo era demais para você assimilar. Horsburgh, roubando sexo de crianças com violência. Seu pai, incapaz de dividi-lo com sua mãe. Sua
mãe, transando com o vizinho e amigo da família. Você não teve vontade de ouvir o desenrolar dos detalhes.
– Você conversou com Stuart sobre isso?
O velho olhou para você, surpreso.
– Por que eu faria isso?
Tente, porra, porque eu já ouvi muito mais, do que eu queria, pensou você.
– Stuart é bom nesse tipo de coisa. Um ator. Compreende as pessoas. Suas motivações.
– Eu achei que você, como policial...
– Nós prendemos pessoas, pai.
Seu pai assentiu, desapontado, enquanto você se despedia, dizendo que estava ocupado demais com esse caso para uma cerveja, que só viera dar um olá enquanto passava
por ali. E aquela seria a última vez que o veria. Uns poucos dias mais tarde ele caiu morto, o corpo descoberto por Stuart naquele mesmo chão do escritório. Ele
estava tentando contar a você sobre o terrível segredo que o perseguira por toda a vida, e tudo em que você conseguia pensar era num desprezível assassino de crianças.
DIA QUATRO
14
Viagens marítimas
As salas de leilão estavam abafadas, cheias de corpos. Lennox levanta os olhos para o rosto triste, edemaciado, de Bob Toal, que está de pé atrás do atril, martelo
na mão. O lote à venda é uma figura de mulher tamanho natural. A figura está em posição vertical num caixão de defunto, rígida e morta. Tem o mesmo cabelo louro
de Trudi, mas o rosto é de uma boneca Jackie.
– Desde a era vitoriana – diz Toal, a voz grave –, e uma história tão triste. Uma linda jovem sequestrada e morta em circunstâncias cruéis. O cadáver foi preservado
em formaldeído e os ossos ligados por barras de alumínio muito leve... – ele vai até a boneca, tomando a mão desta e a sacudindo. O pulso continua na posição esticada.
– Como podem ver, nossa trágica mocinha foi transformada em algo perfeitamente flexível. Será uma companhia ideal para pessoas doentes e solitárias, ou para qualquer
um que valorize as antigas qualidades femininas de passividade e obediência...
Lennox vira um pescoço rígido e pesado para avistar Amanda Drummond na plateia, enxugando uma lágrima dos olhos.
– ... Eu gostaria de começar os lances em mil libras – continua Toal, e depois olha para uma mão levantada no fundo da sala. Ela pertence a Ronnie Hamil. – Mil libras.
Eu ouvi mil e quinhentas...?
Uma outra mão levantada. É a do sr. Confeiteiro.
– Parem com esse leilão – grita Lennox. – Você não pode vendê-la para eles! Você sabe para que eles a querem!
Ninguém parece ouvi-lo. Mais uma mão se levanta. Lance Dearing, de chapéu Stetson e terno de caubói, flanqueado por um sorridente Johnnie.
– Duas mil – Toal sorri –, e quero aproveitar a oportunidade para lembrar ao nosso amigo, o sr. Dearing dos Estados Unidos, que o pagamento é em libras esterlinas
e não em dólares americanos – brinca ele, provocando um riso educado por parte da plateia.
Lennox tenta caminhar até a plataforma, mas suas canelas subitamente parecem ter a densidade de barras de metal.
– É minha noiva... é minha...
Alguma coisa se prende na sua laringe, transformando seu grito num arquejo baixo, frustrado.
Tudo o que ele consegue fazer é olhar para o perfil de Dearing, banhado numa luz verde, o que lhe dá uma aparência de jacaré.
– Eu estou ciente da moeda usada na transação, sr. Toal – e ele se vira e pisca para Lennox –, mas estou certo de que, se eu não dispuser da soma toda, então meu
velho amigo Ray aqui presente ficará contente em me ajudar nessa pequena quantia.
– Vamos elevar os lances – grita uma voz com forte sotaque de Midlands, vinda do fundo do salão. – Dois milhões de paus.
Lennox olha em torno, mas o homem parece estar se movimentando para corresponder, sempre por pouco fora de seu raio de visão. Há outros, mas eles permanecem na sombra.
A exasperação e o medo tomam conta dele.
Toal está prestes a encerrar os lances quando Lennox vê seu velho parceiro Les Brodie agora garoto, olhando para ele, puxando-o pela manga, insistindo para que ele
faça um lance.
– Diz alguma coisa, Raymie!
Mas sua garganta se fechou e Lennox não consegue falar. O martelo de Toal desce com um estrondo. Com o som Lennox é puxado para um outro lugar, melhor. De novo.
Um lugar melhor.
Durante alguns segundos Lennox pensa estar vendo flamingos, embrulhados numa suave névoa branca, dançando nas árvores dos mangues. Piscando, fica evidente que ele
simplesmente acordou mergulhado num esplendoroso nascer do sol rosa, o quarto banhado numa onda coral quase parecendo neon na sua intensidade.
Aquelas suaves batidas na porta; cuidadosas mas insistentes. Ele percebe que ainda tem os cartões de beisebol na mão. Rapidamente ele os coloca na bolsa de carneiro
em cima da mesinha de cabeceira. Está quente e ele está banhado de suor. Sua garganta devastada quase não consegue dizer:
– Um minuto – enquanto ele se levanta, anda até a porta e a abre, dando um olhar em torno.
É Tianna. Ela veste a camiseta End of the century dele.
– Pedi emprestado isso – diz, a boca voltada para baixo, numa expressão de odiar-se-a-si-mesma, de desculpas, por ter bebido demais. – Eu tenho que pegar minhas
coisas.
– Está bem. Me dá um segundo.
Ele fecha a porta e veste a calça, ligando o ar-condicionado antes de deixá-la entrar.
– Tudo bem – diz ele para a garota envergonhada, assaltado por sua falsa culpa enquanto lança um olhar de adeus à bolsa de Tianna e pensa nos segredos que ela contém.
Lennox vai até o lado de fora, espera um pouco, antes de pegar furtivamente a camiseta que o braço estendido dela passa para ele. Voltando ao seu quarto original,
ele faz uma pausa na entrada para se maravilhar com o céu salmão e romã, e goza por uns instantes o suave trombetear das buzinas dos caminhões vindo da rodovia distante.
No quarto ele tranca a porta e joga a camiseta e a calça num monte de roupa a seus pés. Ainda há um certo cansaço nele, atrás dos olhos, nos membros, mas ele se
sente mais forte e mais composto. Faz uma série completa de alongamentos de boxeador, e, atento em colocar o peso do corpo nas palmas das mãos, cem flexões no carpete
gasto, sentindo o metabolismo satisfatório nos músculos, antes de se jogar debaixo do chuveiro, enebriando-se ali até que a água fique morna. Enxugando-se rapidamente,
ele se veste, percebendo o fraco e adocicado perfume da garota na sua camiseta, quando a veste.
Pouco tempo depois, Tianna volta para o quarto dele. As mãos estão agarradas castamente à frente do corpo.
– Eu quero pedir desculpas por ontem à noite.
– Você não devia ter se comportado daquela maneira, não é correto. Por alguém ter feito alguma coisa ruim com você, você não tem que compensar isso fazendo alguma
coisa ruim com uma outra pessoa – diz ele. – Você sabe o que eu estou dizendo?
Tianna senta na cama, ainda agarrada à bolsa.
– Desculpe, Ray – diz ela, o ar triste. – Você tem sido muito bom para mim. – Os olhos dela se enchem de água antes de rapidamente adotarem uma expressão de pânico.
– Você não vai contar isso à mamãe?
Lennox olha para ela.
– Você procedeu errado fazendo aquilo, mas estou aceitando seu pedido de desculpas. Não vou contar nada a ninguém.
– Como se fosse nosso segredo?
Segredos entre adultos e crianças: moeda de pedófilos de novo. Lennox se arrepia.
– Como eu disse, fica entre nós dois. Você fez uma coisa ruim, mas você foi bastante crescida para pedir desculpas, então estou sendo crescido o bastante para aceitar
suas desculpas: fim da história.
Tianna coloca a bolsa na cama. Ela tenta um sorriso forçado, amável, para ele.
– Vê, Ray... quando ele, quando Vince, quando ele me tocou e me beijou e tal... eu não me senti bem, sabe?
Lennox acena afirmativamente com a cabeça, constrangido.
– Eu sentia que tudo aquilo era sujo. Mas eu pensei que, se eu tivesse que fazer aquilo com alguém que eu gostasse, aí eu me sentiria bem. Como se a coisa não fosse
indecente, como se aquelas coisas não fossem esquisitas.
– Não. A coisa toda deve ficar estranha e ruim porque você é muito jovem – afirma Lennox. – Coisas boas vão acontecer com você, mas vão acontecer quando você estiver
pronta para elas. Não deixe que elas levem embora sua infância. – Ele pensa em si mesmo mais ou menos com a idade dela, com Les Brodie, empurrando a bicicleta para
o túnel escuro.
– Não há nada errado em ser criança – diz ela, meio caminho entre uma declaração e uma pergunta.
– É claro que não. Não se você é criança. É essa a questão – diz ele. – Nós começamos como bebês, gostamos de certas coisas. Você não vai esperar que um bebê goste
de peixe, chocolate maltado ou As gostosas e os Geeks, não é?
A boca de Tianna forma um sorriso e ela faz um aceno de cabeça, concordando.
– Mas não há nada errado em ser um bebê se é isso que você é. Depois nós crescemos, viramos crianças, gostamos de coisas diferentes. Depois já somos adultos, e há
coisas diferentes, de novo. – Ele fica observando ela acenar afirmativamente, entendendo. – Esse tal de tio Chet, você pode me contar alguma coisa sobre ele?
– Ele é... da minha mãe... – começa ela, antes de admitir – é um amigo. Ele é um amigo. A neta dele Amy é minha amiga. Ela é muito legal. Chet não é meu tio de verdade.
Mas ele tem sido bom para nós. Não é como Vince.
– Quem é Vince?
– Eu não gosto de falar sobre ele com ninguém – diz ela, e depois, olhando intensamente para ele, acrescentando –, a não ser para Nooshka.
Ela sabe que eu andei remexendo nas coisas dela. Ou pelo menos acha que eu devo ter mexido e está se defendendo de todas as maneiras.
– Quem é Nooshka? – pergunta ele, friamente, a despeito de estar com uma sensação funda na barriga.
Tianna olha cautelosamente para ele antes de responder.
– Minha melhor amiga.
– Ela é sua colega de escola?
Ela balança a cabeça.
– É de uma outra escola?
Tianna deixa o corpo cair para trás, na cama, olhando para o ventilador de teto.
– Acho que sim. Ela está sempre lá quando eu mais preciso dela. Posso escrever para ela sobre coisas.
– Como uma amiga correspondente?
Ela parece não ter ouvido, como que hipnotizada pela rotação do ventilador. Quando finalmente fala, é numa voz sem emoção mas cantada, como se estivesse passando
pelo ritual de um jogo que a aborrece.
– Sabe, quando eu escrevo para ela, as coisas não parecem tão ruins depois. Sabe, quando as coisas não vão bem e você não tem ninguém com quem conversar. Eu posso
conversar com mamãe às vezes, mas apenas sobre certas coisas.
– Você alguma vez contou à sua mãe sobre Vince?
Ela gira o corpo até ficar de bruços na cama, depois alça o corpo nos cotovelos. Os dentes da frente empurram para baixo o lábio inferior. Depois ela olha para ele
e acena afirmativamente com a cabeça devagar.
– O que aconteceu? – Lennox pergunta, esforçando-se para não deixar a sua voz assumir o tom de interrogatório policial.
Tianna se senta e puxa os joelhos na direção do corpo, segurando as canelas com força. Deixa o cabelo cair sobre o rosto. Depois de ficar em silêncio durante algum
tempo, quando finalmente recupera a voz, esta é fraca e fantasmagórica, pertencente a uma criança mais moça.
– A primeira vez que eu contei à mamãe sobre ele, ela começou a só chorar. Depois ela ficou muito zangada comigo. Disse que eu estava enganada – e agora sua voz
era cheia de raiva –, que eu era uma menina má. Que eu estava apenas com ciúme e tentando impedir que ela fosse feliz. Então não pude contar mais nada pra mamãe.
Ela amava aqueles caras, eu acho que ela precisava que eles amassem ela – seu tom de voz agora exalando uma autoridade bizarra, quase enérgica.
Eles. Uma sensação de desconforto se infiltra debaixo da pele de Lennox.
– Como é que ele era, esse Vince? – Lennox sente sua voz assumir aquela característica desencarnada, como se fosse de um outro eu, separando-a de uma fonte física
comum.
Esse mecanismo já lhe servira antes para distanciá-lo dos aspectos desagradáveis do seu trabalho; Tianna também apresentava a sua versão do mesmo artifício.
– Vince foi muito bom comigo no início. Ele e mamãe se conheceram pela internet. Ele costumava tratar ela muito bem, e no princípio me tratou bem também. Me disse
que amava a mamãe. Depois me disse que eu era uma garota especial e que ele me amava também. Às vezes me comprava coisas ou me levava ao cinema. Tinha que ser um
segredo nosso, pois mamãe gritaria, achando que ele estava me mimando. Esses foram os melhores tempos – diz ela, na verdade se entusiasmando com a lembrança. – Eu
costumava chamar ele de Pappy. Ele gostava disso, mas me falou para nunca falar assim na frente de mamãe. Então um dia ele disse que precisava confessar que me amava
mais do que qualquer outra pessoa, até mesmo mamãe. Ele disse que não gostava de mostrar isso muito na frente dela, pois podia magoar a mamãe. Às vezes, quando saíamos
juntos, para um jantar, se uma garçonete perguntasse, “É sua filhinha?”, ele sorria, olhava para mim e dizia: “Com certeza.” Aquilo me fazia sentir tão bem que eu
teria feito qualquer coisa por Pappy Vince. – Havia sombras escuras debaixo dos olhos dela, embora provavelmente fosse por causa da luz.
Por favor, pare...
Lennox não aguenta ouvir as palavras de Tianna. Contudo ele não consegue protestar; sua própria voz presa em silêncio na laringe ressecada. Precisa que ela fale
e quer que ela pare. Sentado imóvel na cadeira verde, paralisado, num quarto aparentemente sem oxigênio, tudo que ele pode fazer é esperar que ela continue.
Férias...
– Então nós começamos a jogar jogos secretos. Esconde-esconde, pique-esconde. Ele começou a me dar beijos. Diferentes dos que ele me dava antes. Beijos úmidos que
eram demorados, com a língua dele na minha boca. Aquilo não parecia certo e eu não gostei do modo como ele mudou – o rosto dela vincado de dor ficou completamente
sério, como se estivesse num transe. – Não era nada como Pappy Vince. E o único modo que podia fazer com que ele voltasse a si era tocar nele; tocar as partes de
homem dele até que saísse aquela gosma. Depois ele ficava legal de novo. Mas depois ele começou a fazer coisas diferentes... coisas de homem e mulher.
Coisas diferentes...
Casamento...
– Aí eu acho que mamãe ficou triste com Pappy Vince e quis se mudar. Foi quando nós fomos para Jacksonville e ela conheceu Clemson, e depois nós viemos pra cá e
conhecemos Starry, Johnnie e Lance. – Os olhos dela subitamente se arregalam de raiva. – Eu odeio eles, Ray! Eu odeio eles todos!
Lennox ouviu impassível, as entranhas e a mente fervilhando. Clemson. Ele não consegue perguntar. Encontra a voz.
– Você não precisa me contar nada mais agora.
– Ray?
– O que é?
– Posso dar um abraço em você? – ela pede, levantando-se e andando na direção dele.
– É claro que pode, princesa. – Lennox se levanta e pega a criança nos braços. Quer dizer a ela que ele vai tomar providências para que nada a magoe, mas prefere
ficar em silêncio. Quantos animais haviam dito isso antes?
Animais como o sr. Confeiteiro. Eles conhecem todas as fraquezas.
Até mesmo quando eu o tinha sob custódia. Quando o interrogava.
Eu o interroguei: aquele canalha de pedófilo, desdenhoso, mau, arrogante. Eu devia tê-lo esmagado, machucado, fazer com que ele se sentisse como ele as fizera sentirem-se.
– Uau, você está quase me esmagando.
A mente de Lennox voa de volta da sala de interrogatório, cruza o oceano e desaba em seu crânio como uma flecha. Ele solta a garota que tem nos braços.
– Desculpe... – ele dá um passo para trás.
Ela força um sorriso triste enquanto esfrega os ombros.
Ele olha constrangido para ela.
– Ouça aqui, Tianna. Eu realmente gostaria muito que você fosse uma das minhas damas de honra no meu casamento lá na Escócia. Será que você faria isso por mim? –
Ele engole de horror ante suas próprias palavras. Ele ultrapassou a marca com a criança, e agora a está subornando. Exatamente como eles. Exatamente como os canalhas
dos pedófilos.
– Isso seria tão legal! – grita ela, dançando entusiasmadamente no mesmo lugar. – Eu tenho que usar um vestido, não é?
– É... quero dizer... se sua mãe permitir.
– E viajar de avião?
– É isso aí. – Ele tenta calcular o custo de uma passagem de avião em setembro.
Ela levanta a mão e eles batem as mãos com os cinco dedos estendidos.
– É – diz ela, imitando o sotaque dele. – Você é o máximo, Ray Lennox.
Eu não sou o máximo, mas não sou como eles, pensa Lennox. Nunca, nunca serei como eles. Ele tem a esperança de que ela nunca tenha essa opinião sobre ele. Mas é
como o recepcionista do motel o vê que é importante agora; ele não está disposto a ficar por ali e levantar suspeitas. Cada hora que seu corpo tenta relaxar, a enormidade
da situação lhe traz uma pontada no peito; ele é um homem de mais de trinta anos num motel de um país estrangeiro com uma garota pequena que não é sua filha. Eles
fazem o check-out por volta de nove e quarenta.
Olhando para o próprio rosto no espelho do carro, ele percebe um pouco de cabelo grisalho surgindo nas têmporas, onde o cabelo está crescendo de novo. Trudi o havia
prevenido sobre o fato de raspar tanto a cabeça. Mas ele está estranhamente eufórico. Ali estava ele, deprimido, solitário, curtindo uma ressaca num lugar estranho,
sem sua medicação e possivelmente mais vulnerável do que jamais fora na sua vida. Bem, quase. E com alguém que confiava nele, seu impulso sexual voltando enquanto
a ação dos remédios se esvaía. Ele sabia, contudo, que era melhor cortar o pau do que o colocar perto de Tianna ou de qualquer outra criança. Ironicamente, o comportamento
inadequado e triste dela o ajudara. Ajudara-o a ver que, não importa quão baixo tivesse caído, ele tinha uma linha abaixo da qual nunca submergiria. A barra de separação
não fora levantada muito alto. Mas estava lá. Agora ele tinha que ajudá-la. Ele podia elevar aquele limite ajudando Tianna.
Ele se viu pensando em alguns dos homens que ele conhecia; homens que ele chamava de amigos, uns poucos que haviam abusado das parceiras, outros que saíam com prostitutas,
que voavam para lugares como Praga, Kiev e Bangkok para “férias sexuais”. O que eles teriam feito se estivessem no lugar dele?
Um súbito dilúvio de negra escuridão sufoca a luz em segundos, seguido de uma veia amarela que estrondeia no céu adiante. Depois a explosão do trovão ribombeia em
seus ouvidos, espantando-o e fazendo com que ligue os faróis. Agora a chuva desaba forte, batendo frenética, terrível, no teto do carro. Os limpadores de para-brisa
não aguentam tanta água; Lennox está prestes a estacionar em desespero quando a chuva para como se fosse uma torneira sendo fechada, e o céu azul-rosa reaparece.
Não há como dizer quando chegará ao barco de Chet, mas talvez ainda demore um pouco. O café da manhã está nos planos, e a Interestadual 107 os leva a um outro shopping
do subúrbio, cheio de pequenas lojas de fast-food. Tianna escolhe a International House of Pancakes para aquela refeição, Lennox concordando que aquela parecia a
menos ofensiva do conjunto infernal de franquias onde eles entraram.
A garçonete se aproxima, uma mulher latina corpulenta, de meia-idade, enérgica e eficiente.
– Querem fazer seu pedido?
– Quero suco de laranja, dois ovos estrelados revirados com batatas amassadas, bacon e um pouco de café – diz Lennox, com um sorriso apertado e um brilho nos olhos.
A mulher o deixou excitado. Ele olha para as coxas fortes dela e fica imaginando que porcaria sairia de seus próprios lábios se ele estivesse com ela.
– Pois não – exclama a garçonete, petulante, percebendo alguma coisa na aura de Lennox. – E você, senhorita? – ela se volta para Tianna.
– Eu quero a mesma coisa.
A garçonete se afasta, para logo voltar com dois copos grandes, de meio litro, de suco de laranja.
– Aproveitem – ameaça ela.
Lennox faz isso. Ele nunca provara um suco de laranja como aquele. O sol da Flórida explode nas suas papilas e um copo pequeno seria muito pouco. A comida é uma
maçaroca congelada, saturada; é a forragem padrão da obesidade e ele dá uma beliscada.
– Nos Estados Unidos eles não servem pimenta moída na hora, só essa coisa em pó.
– Não há uma cultura de comida temperada aqui.
– Pare de reclamar, Ray Lennox – diz Tianna, o uso de seu nome completo fazendo-o lembrar-se de Trudi –, pelo menos o seu resfriado escocês está melhor!
Lennox sucumbe ao sorriso dela. É bom vê-la feliz, encontrar a criança de volta, depois da ninfeta desorientada da noite da véspera e da velha alma perturbada do
início da manhã.
– O sol da Flórida está fazendo funcionar sua mágica – diz ele, se levantando. – Agora, se você me permite, eu vou até o toalete dos homens.
Quando sai, ele fica imaginando exatamente quanto é que ela sabe. Quantos “resfriados escoceses” Robyn apanhou ao longo dos anos?
Dentro do toalete masculino: pia, privada e mictório com uma tela plástica nele com o lema DIGA NÃO ÀS DROGAS gravado. Agora as pessoas podiam fazer fila e mijar
na mensagem. Sua urina parece mais clara; livre das drogas prescritas por ele mesmo e por outros. A ação de mijar, entretanto, o fez perceber que ele necessita de
um toalete mais extenso, de modo que ele senta no vaso, finalmente aliviado por poder executar a ação. Ele lê algumas das pichações sobre o suporte do papel higiênico:
AQUI EU SENTO, ME ARREGANHANDO PRA PARIR MAIS UM TEXANO
Ele sente a satisfação apertar seus lábios quando eles deixam o restaurante e voltam para a estrada. Passam por uma picape com uma fita amarela e um adesivo com
os dizeres “Buzine se você apoia nossas tropas”.
– Não vai buzinar? – Tianna pergunta, enquanto a luz do sol jorra feito grãos de enxofre por sobre seu rosto.
– Não. Que diabos as tropas americanas e inglesas têm a fazer no Iraque? Eu nunca vi qualquer tropa iraquiana nos nossos países, jogando bombas sobre nós – responde
ele.
Tianna fica pensando naquilo por uns segundos. Depois ela olha inexpressivamente para Lennox e diz:
– Eu acho que é simplesmente muito errado interferir em alguém menor do que você, apenas porque você é maior e mais forte do que eles... E pode enrolar eles com
palavras.
– É – replica ele, sentindo de novo que está adotando um tom de voz lamuriento. Então ele olha pela janela para um galhardete flutuando fora de uma igreja: NÃO HÁ
NINGUÉM MAIS ALTO QUE O ALTÍSSIMO.
Seus olhos são atraídos mais para cima, para mais nuvens brancas sedosas no céu azul claro. As cavidades nasais de Lennox estão ficando desobstruídas. Sua ressaca
está definitivamente terminando. O longo período de sono o ajudou. Ele não está mais ansioso por cocaína, ou mesmo por um drinque. O sol está fazendo tudo isso por
ele.
Eles ficam escutando uma estação com música country enquanto passam por uma longa extensão de revendedoras de carros usados a caminho de volta para Bologna. Mais
uma vez ouve “Alcohol”, de Brad Paisley, no rádio.
Quando chegam de volta à marina, uma grande embarcação está entrando. Tem um casco de fibra de vidro, preto e branco, e leva o nome de Ocean Dawn. Não é o maior
dos barcos no porto, mas é bastante grande, cerca de doze metros de comprimento, avalia Lennox. Depois um homem acena da ponte e Tianna começa a acenar freneticamente
para ele.
– Tio Chet!
– Olha, você aqui, Tianna Marie! – berra o marinheiro. – O que é que você está fazendo aqui? – Ele olha desconfiadamente para Lennox e depois de novo para Tianna.
– Onde é que está aquela maluca da sua mãe?
– Eu acho que ela está meio doente.
– Veja só, isso é muito ruim – diz Chet, enquanto manobra o barco de ré para atracar. Don Wynter, que saiu do escritório, o ajuda a prender a embarcação com segurança
nos moirões de atracação. Como o mais jovem e presumivelmente o mais apto fisicamente dos homens, Lennox acha adequado ajudar. Ele dá um passo para a frente mas
depois hesita; eles parecem saber o que estão fazendo. Don dá um tapinha nas costas de Chet e eles trocam gentilezas rápidas, antes de Don mergulhar de novo no seu
escritório, explicando que precisa dar uns telefonemas.
Que bom, porra, pensa Lennox, enquanto Tianna e Chet se abraçam. Ele sente a genuína emoção do encontro; não há nenhuma sordidez de pedófilo da parte de Chet Lewis.
Então ele olha para o outro lado da baía. Uma águia-pescadora de peito branco mergulha e alça voo de novo com um peixe se debatendo nas garras. Mas não há ali uma
sensação de ameaça humana. Chet é a decência benigna personificada. Acabou, e Tianna está agora em boas mãos.
Aquelas mãos pertencem a um homem nos seus sessenta anos, com um rosto forte, bonito, sob um boné de pescaria de pala longa, que ele retira para mostrar um cabelo
cortado rente, grisalho. Uma pequena papada é evidente no seu rosto bem barbeado, mas há um brilho juvenil enigmático nos olhos azul-cinza. Ele tem um jeito informal,
fácil, e uma força suave que Lennox associa com as cidades pequenas americanas retratadas no cinema, embora uma corrente oculta de dinamismo pareça fundir sua estrutura,
sustentada por ombros fortes. Ele é uma contradição; seu sotaque e postura sugerem dinheiro, mas sua estrutura musculosa e o estômago achatado parecem indicar que
ele não é estranho ao exercício físico. Usando uma camisa tropical, calça de flanela branca e tênis, ele estende a mão.
– Chet Lewis.
Quando diz seu nome, Lennox sente uma outra rã sabotadora entupindo sua garganta.
– É um prazer conhecer você, Lennox – diz Chet, obviamente deixando de entender o nome de batismo.
Chet olha fixo para Lennox. Normalmente ele não receberia muito amavelmente alguém o avaliando de maneira tão ostensiva, mas nas circunstâncias aquilo parece inteiramente
apropriado. Ele conta a Chet a história, omitindo mais uma vez sua verdadeira situação profissional. A velha história dos seguros serve.
O marinheiro ouve pacientemente. Ele parece à altura e Tianna gosta dele, mas Lennox precisa estar cem por cento certo, por isso ele fica contente quando Chet o
convida para subir a bordo. Enquanto eles sobem para o tombadilho da popa, o anfitrião diz:
– Muito obrigado por ter cuidado dessa mocinha – enquanto Tianna explora o barco, descendo para os camarotes. A voz dele abaixa de tom, para que a garota não o ouça.
– Não tenho certeza se conheço esse tal de Lance, embora eu ache que já ouvi Robyn mencionar esse nome. Ele e seus asseclas não parecem pessoas muito palatáveis.
Robyn é uma moça legal, mas ela tem... coisas.
A expressão de Lennox concorda com aquela verdade irrefutável.
– Então, de onde é que você conhece ela e Tianna?
– Eu agradeço a Amy por isso. Verão passado, ela estava passando uma semana comigo e eu conheci Robyn e Tianna, que é da mesma idade de Amy, no Mundo do Papagaio,
em Miami. As crianças adoraram, mas Robyn parecia um pouco perturbada. Então convidei elas para o barco no dia seguinte. Nós nos divertimos muito e elas foram uma
ótima companhia. A amizade simplesmente cresceu – sorri Chet, antes que seu maxilar se movimente subitamente para baixo. – Mas eu preciso dizer que ela parece atrair
um tipo de companhia masculina de reputação muito duvidosa. Eu já recebi uns telefonemas com ela chorando, falando sobre isso.
Lennox acena afirmativamente com a cabeça, concordando.
– De modo que me desculpe se eu pareço um pouco desconfiado.
– É perfeitamente compreensível. Eu conheci esses caras.
– Tianna ficará em segurança aqui até eu descobrir o que aconteceu com a mãe dela. Mas agora eu tenho que examinar uns covões de caranguejos e cestos de lagostas
que distribuí há uns dias, e que esqueci estupidamente de recolher, de modo que, por favor, junte-se a nós numa curta viagem pelo mar.
– Eu gostaria muito, mas tenho que voltar para Miami Beach.
Tianna sobe a escadinha de volta, para no portal, e implora:
– Por favor, fique um pouco. Você tem de navegar no barco de Chet, não é, Chet?
– Acho que Lennox está ocupado, meu bem.
– Quanto tempo vai levar?
– Ah, uma hora mais ou menos – diz Chet.
– Está bem – responde ele, jovialmente. – Eu gostaria de ver um pouco do golfo. – Ele pensa em Trudi. As coisas parecem estar correndo bem, de novo. – Eu estou de
férias, não é?
– Legal! Isso é maneiro, da porra – diz Tianna, e depois põe a mão na boca, quando Chet se encolhe e segue para o tombadilho superior.
– Ai, ai, cuidado com a linguagem – diz Lennox –, isso mostra falta de imaginação e de vocabulário.
– Desculpa...
– Estou me referindo a você dizer “maneiro” todo o tempo.
– Você não se importa de eu falar “p... ”?
Lennox levanta os olhos para Chet, que pisca para Tianna.
– Da próxima vez diga apenas “AEF”. É um termo que usamos lá na Escócia. São as iniciais de nossa muito amada Associação Escocesa de Futebol.
– AEF... – diz ela, os olhos adquirindo uma luminescência mercurial. – Você falava a sério quando disse que eu poderia ser sua dama de honra?
– É isso aí. – Ele dá uma piscadela para ela. Uma outra coisa para acertar com Trudi.
O desprazer de Chet com o palavrão de Tianna foi bastante real, mas ele se recupera suficientemente para proporcionar a Lennox uma rápida turnê pelo barco. – Este
é um Express Cruiser 410. Bom tanto para pescarias como para cruzeiros de longa distância. De vez em quando eu vou até às ilhas do Caribe; e até mesmo Key West.
– É bem grande.
– Treze metros e meio.
Foi o que calculei, pensa Lennox enquanto eles saem da área aberta, com bancos, no tombadilho da popa. A passagem leva a uma porta num dos lados, que depois desce
para os camarotes. Perto da porta, alguns degraus levam para cima, para o timão. Lennox segue Chet, que sobe e lhe mostra os controles e os sistemas de navegação
por satélite da embarcação. Ele nunca subira num barco antes em toda sua vida, a não ser uma lancha da polícia, que saíra para interceptar The Lassie of the Forth,
um velho ferry-boat alugado para uma festa particular, que eles apreenderam com drogas. Não gostara muito da experiência, curtindo, como estava na época, uma brutal
recaída de cocaína.
Estendendo-se diante deles está a área do tombadilho principal, cercada por uma balaustrada de metal. O deque tem três claraboias cortadas no soalho para fornecer
luz natural às dependências debaixo. Há mais duas claraboias na cobertura sobre o timão. Lennox observa que em cima do telhado há um rádio receptor-transmissor com
antena, e uma caixa com um disco que ele presume fazer parte do equipamento de navegação.
Agarrando-se à balaustrada com sua mão boa, ele acompanha Chet a uma descida do tipo rala-bunda num pequeno lance de degraus de carvalho. A cabine cheira a madeira
envernizada e a óleo diesel, mas brilha com pristina opulência quando emergem numa cozinha e sala de jantar de paredes de painéis de madeira, equipada com móveis,
guarnições e eletrodomésticos aparentemente caros. A área para se sentar, em frente, é forrada em couro branco.
– Você tem este barco há muito tempo?
– Somente quatro meses. Fiz uma troca pelo meu antigo. O vendedor é meu amigo pessoal, de modo que consegui um bom negócio.
– Mas aposto que ele passou você para trás.
– Nem queira saber, amigo – ri Chet.
É, eu quero, pensa Lennox, eu sou um babaca bisbilhoteiro. A cozinha é pelo menos tão grande quanto a que ele tem lá na Escócia, em Leith. Da cozinha se passa ao
que Chet chama pomposamente de camarote formal, o dormitório principal debaixo do tombadilho da proa. O camarote é dominado por uma cama king-size e uma televisão
de plasma, e há mais armários de carvalho, no mesmo estilo do restante da embarcação.
Há um camarote menor na outra extremidade do barco, com um teto mais baixo pois fica diretamente debaixo da área do tombadilho própria para sentar, na popa. O aposento
tem uma cama e um sofá comprido que corre ao longo da cabine e que pode ser usado como cama por uma criança ou um adulto pequeno.
– Bacana – diz Lennox, dando uma olhada no toalete, com sua pia, vaso e um chuveiro completo. – É maior do que meu andar, quer dizer, meu apartamento. – Ele se corrige.
– Você mora aqui o tempo todo?
– Quase. – A aura de Chet se expande. – Tenho um pequeno apartamento num condomínio aqui perto, mas é mais um lugar de armazenagem de alto nível e caixa postal.
Nós vamos partir dentro de meia hora, mais ou menos, e tenho que reabastecer e checar algumas coisas no escritório. Como eu disse, o passeio vai levar cerca de uma
hora, uma hora e meia se pararmos para almoçar. Você tem certeza de que pode ficar esse tempo?
– Posso sim – diz Lennox, checando o relógio digital embutido na parede. Ainda é cedo, então ele decide que vai telefonar para Trudi e avisar a ela que está tudo
bem, antes que surja algum pensamento não bem-vindo. – Há alguma loja com internet ali fora?
– A melhor aposta é o café a poucos quarteirões da estrada do porto.
Lennox sai do barco e atravessa o estacionamento na direção do carro. Tianna aparece correndo atrás dele.
– Aonde é que você vai, Ray?
– Vou apenas encontrar um cyber café. Volto em meia hora, e aí nós vamos velejar e almoçar. Você fica aqui.
– Está bem – diz ela, afastando-se uns poucos passos antes de se virar. – Mas você vai voltar, não é, Ray?
– Vou sim! Só vou dar um telefonema e depois saber os resultados da Copa da Escócia, sua boboca!
– É isso aí! – Ela bate de leve no olho com o dedo indicador. – Você é que é um boboca safado! – ela grita antes de pular para o barco.
– AEF! – Ele ri, observando-a partir enquanto entra no Volkswagen. Ele se encolhe quando o assento quente queima seus braços nus. Ao dar a partida no motor, ligando
o ar-condicionado no máximo, ele não pode deixar de pensar no contraste com a vigilância “gelada” na van, estacionada fora do cemitério de Edimburgo, apenas dois
meses atrás.
Lennox acha o cyber café com bastante facilidade e checa o que foi postado no quadro do Jambos’Kickback. A discussão sobre o mesmo assunto continua, já agora com
dezoito páginas. Ela está centrada em se é desejável ter um homem que foi condenado por sexo ilegal com uma menor de idade como treinador do Heart of Midlothian
FC.
A diretoria do clube nomeou um tarado como chefe do time. Ele tinha pedigree como técnico, disseram.
Lennox não consegue decidir. O puto cometeu um erro. Se ela tem quinze anos, você é um tarado. Se ela tem dezesseis, você tem uma tremenda sorte. Mas não: você pode
dizer isso quando tem vinte anos, mas não quando tem quarenta. Ele sabia a idade da garota. Era um predador. Mas o cara vivia separado da esposa e da família. Era
um solitário. Ele cometeu um erro humano. Puta que pariu...
Ele segue o próximo assunto.
Com toda a honestidade, será que alguém achou que havia uma suspeita de impedimento na vitória de Skacel contra o Kilmarnock, no sábado?
Depois ele viu que Maroon Mayhem estava online. O assunto Craig Gordon; uma resposta à última opinião dele.
Quem você acha que é para criticar minha opinião? Você devia tomar cuidado com o que diz, meu amigo. Está levando as coisas um pouco para o lado pessoal. Eu tomaria
cuidado, se fosse você.
Quem é esse puto?
Lennox entra no site e digita.
Não sou seu amigo. Você é um p... de um imbecil. Isso é pessoal o bastante?
Então vai para o site da BBC Sports. O Hearts empatou com o Aberdeen em casa. Espantoso, o Celtic perdeu para o Clyde! Hibs empatou com o Rangers em Ibrox, portanto
seu pesadelo na Copa da Escócia inevitavelmente continuaria. As coisas estavam se encaixando bem. Ele volta para o quadro de mensagens.
O cretino voltara a entrar em contato.
Você não sabe com quem está se metendo. Eu conheço muita gente. Tome cuidado. Você pode ser encontrado facilmente.
Lennox sente uma raiva queimando dentro dele: aquele babaca é conhecido por já ter feito ameaças pela internet antes.
Eu vou poupar você do esforço, e contar exatamente onde estou. Miami. Mas estarei de volta a Edimburgo no dia 21 de janeiro. No dia 22 estarei no Vodka Bar, em Shandwick
Place a uma hora da tarde usando uma jaqueta de couro preta. Vou até mesmo dizer a você meu nome: Raymond Lennox. O número da minha entrada para a temporada é O52
no Wheatfield. Por favor, me revele sua identidade para que possa acabar com a sua raça. Ficarei muito surpreendido se você fizer isso. Você e qualquer um outro
que queira se divertir agindo dessa maneira são geralmente virgens de quatorze anos de idade ou retardados mentais antissociais que moram na casa da mamãe. Mas eu
ficarei muito satisfeito se você mostrar que estou errado. Vamos. Me dê o seu nome e o lugar onde você quer que eu o encontre para um calmo drinquezinho. Em qualquer
lugar. Diga onde. Eu estarei lá.
Leva tempo para checar, enviar e postar a mensagem. Depois, quando ele clica Refresh o moderador do grupo entra em cena.
Muito bem, vocês dois, já é hora de parar com isso.
Subitamente Lennox olha para o relógio no canto da tela. Ele está atrasado. Seu peito se enche de pânico. E se...
Eu não devia tê-la deixado. Não, até estar absolutamente seguro. Mas Chet é... Não, como o Confeiteiro parecia também! Talvez eles já tenham partido, ela amarrada
lá embaixo, ele levando o barco para um covil secreto de pervertidos. Ela queria vir comigo, mas foi deixada lá, porra!
Ray Lennox atira com força uma nota de vinte dólares no balcão à frente de um vendedor perplexo, enquanto sai correndo do café.
15
Pescando amigos
Lennox sai cantando os pneus do carro ao longo do quarteirão e entra rasgando na marina, estacionando o Volkswagen o mais perto possível das embarcações atracadas.
Pulando fora do veículo, ele dobra a esquina correndo até as lojas dos corretores, o coração acelerado e um gostinho de metal na boca. Britney... Tianna... fiz merda
de novo... A porra do barco...
Eles todos parecem iguais, esses símbolos iridescentes de riqueza; aquele brilho opalino contra a água escura da baía, a esterilidade lustrosa. Então seus olhos
registram uma figura familiar e um grande arquejo explode nele quando para, deixando as mãos se apoiarem nos joelhos. Chet.
Ele ainda está ali. O barco. Chet está saindo do escritório do administrador do porto. Tianna está...
Ela está em cima de um dos passadiços, observando um grande pelicano de pé num poste de atracação que se levanta da água.
Chet é o primeiro a ver o esbaforido escocês.
– Vamos, Lennox, nós estávamos esperando por você. Pensamos que você tinha fugido de nós!
Somente quando ele saboreia o evidente alívio no rosto de Tianna, é que Lennox percebe que não telefonou para Trudi. Todo o objetivo de sair do barco era para telefonar
para ela, e ele fica remoído pelo remorso enquanto seu sistema respiratório se normaliza. Às vezes eu acho que você se importa mais com o seu time Hearts do que
comigo, Ray. Ela aprendera a não dizer mais aquilo vendo o modo como ele respondera da última vez: Eu me importo mais com o Hibs do que com você. Era uma velha e
gasta piada passada de geração em geração, mas ela não entendera o humor ali contido. Talvez Chet tivesse um telefone no barco ou um celular que ele pudesse pegar
emprestado.
Subindo na embarcação, eles partem, Lennox dessa vez ajudando Chet, que o informa de que as aves esmagadas nas rodovias e que ficam girando lá no alto são urubus
negros. Há uma beleza fúnebre em seus círculos preguiçosos e mergulhos súbitos e explosivos. Chet providencia uma faixa com fechos de crocodilo em cada extremidade,
com a finalidade de prender o boné Red Sox à parte de trás da gola da camiseta de Lennox.
– Um velho truque de marinheiro – explica ele –, de outra forma você vai perder alguns bonés desses no mar.
Lennox aceita agradecido a oferta enquanto eles se dirigem ao sistema de canais, em vez de atravessar direto a baía para o mar aberto.
– É um atalho – diz Chet ao leme.
Eles passam ao largo de residências com fachadas de vidro e grandes jardins com laranjeiras ladeando o labirinto de canais. A água é de um azul-esverdeado forte.
O itinerário coalhado de manchas é acompanhado de palmeiras de diversos formatos e tamanhos; repolho, real e coqueiro. Veem-se grandes pelicanos pousados nas árvores
do mangue, que os suportam bem, Chet informa, devido à leve massa daquelas aves. De novo Lennox pensa nas gaivotas que ele e Les Brodie explodiam com aquele espírito
de crueldade adolescente que alguns nunca conseguem esconder.
Um raio de luz branca passa por baixo da viseira do boné Red Sox, atingindo seus olhos, obliterando aquela comédia divina. Quando ele recupera a visão, os gritos
e cores dos pássaros o fazem pensar em romance e ele deseja que Trudi estivesse ali para compartilhar aquilo com ele, para ver como tudo funcionava bem. Ele pensa
em Edimburgo, na experiência ornitológica geralmente limitada de espantar gaivotas, pombos, arrulhantes e oleosos, e gorjeantes pardais pulando como petecas nas
calçadas de ardósia.
Chet Lewis está contando a Ray Lennox como ele e sua esposa Pamela, que morreu dois anos atrás, foram para a Flórida quando se aposentaram do trabalho em Long Island.
Eles sempre haviam amado embarcações e haviam comprado um lote de terreno, construindo ali sua casa própria. A construção fora parcialmente destruída por Charlie,
ele explica. Lennox, pensando na cocaína, está prestes a dizer “isso acontece”, quando percebe que Chet está se referindo ao furacão com aquele nome.
A despeito de seu bom humor e saúde superficiais, Lennox pode agora discernir que Chet está definhando, no vazio deixado por sua esposa. Há um aspecto como que “oco”
nele, mostrado pela terrível tristeza que repousa em seus olhos.
As casas e jardins dando para a água são logo suplantados pelos mangues, que vão se agrupando para formar um denso pântano. Chet explica que os arbustos medram realmente
na água doce; chuva, orvalho e a matéria da terra, as raízes das plantas penetrando fundo nesta. Aí Lennox fica espantado quando, subitamente, a apenas uns poucos
metros do barco, um pato mergulha com estrépito no canal, a cabeça para baixo.
Quando se aproximam do mar aberto, um grupo de homens está pescando de cima de um píer. Lennox fica com inveja do espírito de camaradagem despreocupada deles, e
os imagina envelhecendo e engordando sem se importarem muito com isso. Talvez a idade lhe dê aquela dignidade, onde, com a morte à espreita, você realmente aprende
a não dar a mínima para outra coisa senão o sol nascendo, você e os seus podendo apreciar cada inspiração de ar toda manhã. Ou talvez eles sejam pobres infelizes,
sofredores, a morte se apresentando quando nós finalmente vemos a futilidade de enfrentá-la. Ele logo descobrirá isso, se Deus quiser. Pela primeira vez ele quer
se apressar em atingir uma idade mais avançada, pelo menos a versão boa daquela como ele a percebe; afastar os vestígios do desejo, do ego, das mentiras e da insegurança.
Encontrar aquele poço de contentamento de cuja água você quer beber, e simplesmente fazer isso todo dia.
Tianna está no tombadilho da proa, esparramada no colchão de ar, lendo Noiva Perfeita. Ray está aqui e Chet está aqui, e eles estão no barco e velejando, longe de
Johnnie e Lance e do restante deles, mas há uma inquietação bem lá no fundo de suas entranhas. Não é Ray, não é Chet, mas é o próprio barco. Ocean Dawn a está deixando
enjoada, pela primeira vez.
Chet grita para ela descer.
– Vai balançar um pouco agora – diz ele, astuto e conhecedor. Abalada, Tianna se reúne a eles no deque da popa, fechado, enquanto Lennox se acomoda no assento ao
lado de Chet, conforme as instruções do comandante. Chet empurra o acelerador para a frente, o motor ruge alto, entrando em ação, enquanto a embarcação corta as
ondas.
Eles vão avançando debaixo de um sol branco e enevoado do meio do dia, enquanto Lennox olha de volta para a marina que se afasta, escaldante e cintilante na borda
da água. Barcos brancos estão ali, imóveis nas suas vagas, como estantes de sapatos de corrida numa loja de artigos esportivos. Um bando de íbis desliza sobre a
baía como se fossem aviões a jato em formação, transformando-se num brilho de magnésio etéreo quando a luz do sol bate em suas plumas. Aí o ar fica subitamente escuro,
quando o barco passa debaixo de nuvens escuras e espessas que revoluteiam. Chet explica que a luz fica frequentemente turva do final da manhã até o início da tarde.
Ele desliga o motor, mergulhando todos num silêncio misterioso, e lança a âncora. Lennox vem mantendo o olhar no equipamento de navegação e no scanner sonoro, que
mostra a distância entre o casco da embarcação e o leito do mar. Na faixa entre o litoral da Flórida e as Dez Mil Ilhas, ele observou que o intervalo entre o fundo
do barco e o solo do oceano pode cair a apenas uns trinta centímetros, raramente excedendo dez metros.
Chet levanta o cesto que deixou ali e fica agradavelmente surpreendido ao verificar que ele contém apenas lagostas, e o covão uma variedade de caranguejos: aranha,
ferradura, azul, calico. Ele se volta para Tianna e Lennox, que observam suas atividades, deliciados com a satisfação que se expressa no rosto do marinheiro, batido
pelas intempéries.
– Geralmente você apanha a porcariada toda junta; cavalos-marinhos, gunelos, tunicados, peixes-papagaio, águas-vivas. Uma vez já peguei até uma arraia com o cesto.
Tianna aponta para Lennox, se esbaldando de rir. Uma risada recíproca sai dele. Chet fica perplexo mas imagina que seja uma piada particular dos dois e se apresta
a recolher o produto da pescaria, lançando os menores exemplares de volta à água. Ao final, Tianna decide descer com sua revista enquanto ele dá partida ao motor,
e a embarcação avança pelo mar. Logo o que parece ser uma ilha aparece à vista.
Ao se aproximarem, Lennox só consegue distinguir os restos de um antigo vilarejo, que fica no lado direito da baía, perto de uma outra marina nova e de uma comunidade
planejada. Chet afasta o barco das luzes e entra numa enseada não identificada e quase sem sinalização. Ela se abre para um porto escondido, antediluviano, e é como
navegar num mundo perdido. Passando pelas velhas casas e ancoradouros de madeira, surge à frente um decrépito pátio de barcos, com algumas embarcações de pesca encardidas
e uma garagem de alumínio, algumas outras construções rústicas num terreno mais elevado. À esquerda, os grandes condomínios da nova comunidade olham sinistramente
para a pequena colina, um gigante pronto para devorar tudo em torno de si.
Tianna saiu do salão inferior, segurando um único cartão de beisebol. Ela tem um intenso ar de concentração. Essa expressão perturba Lennox. Ele vai dizer alguma
coisa, mas Chet precisa de ajuda para atracar o barco. Enquanto prende sua ponta da corda, ele observa Tianna tirar o restante dos cartões de beisebol da bolsa e
colocar aquele primeiro, solitário, de novo no meio dos outros. Os íbis voam em torno do pátio dos barcos. De uma árvore sobranceira, uma águia-pescadora chilreia
como um pequeno papagaio.
Em um silêncio solene, Tianna desembarca no ancoradouro de madeira. Os dedos das mãos estão cerrados. A mão forma um punho enquanto ela morde as articulações. Lennox
sente alguma coisa se movimentando dentro dele. Acha que talvez esteja imaginando coisas. Ele olha em torno, o ar apreciavelmente mais quente depois de estar no
mar aberto.
O conjunto acinzentado de construções dá a impressão de estar com os dias contados. O bar-restaurante, com telhado de zinco, uma estrutura de madeira pintada de
cinza, é o centro de uma instalação cheia de rangidos, e se apoia precariamente em pilotis, num semicírculo de bancos de lama que formam o porto. Com sua fulgurante
irmã adjacente, a velha baía se curva na direção do escuro enevoado cinza das Dez Mil Ilhas que protege o litoral de mangues da Flórida das águas do Golfo do México.
O restaurante é um estabelecimento caipira à moda antiga da Flórida, o tipo de lugar do qual Lennox já ouviu falar muito, mas que é agora quase tão difícil de se
achar, sem um guia, quanto um bom lugar para pescaria. Quando eles sobem os degraus de madeira, Tianna atrás deles, perdida em seus pensamentos, Chet diz que, apesar
do ambiente parecer uma ilha, eles na realidade atracaram numa península.
– Embora pudesse mesmo ser uma ilha. Todas as estradas decentes levam a comunidades planejadas e marinas cheias de embarcações elegantes. A não ser pelo mar, alguns
desses velhos lugares só podem ser alcançados por trilhas de terra. É muito fácil não notar essas estradinhas que saem da via expressa.
Dentro do restaurante, uma mulherona branca os cumprimenta e os acomoda numa mesa. Lennox pega o cardápio laminado macio, de cores berrantes, e lê os dizeres de
boas-vindas no cabeçalho.
PESCARIA PARA AMIGOS
BAR E RESTAURANTE DE FRUTOS DO MAR
“Para os frutos do mar serem mais frescos que os nossos, é porque estão sendo servidos no leito do oceano.”
Os pratos do cardápio dançam diante de seus olhos.
– Você está a fim de quê, Tianna? – Lennox pergunta à garota, imaginando se ele pode aguentar mais bagre. Aí a caranha-vermelha chama sua atenção.
– Acho que vou querer galinha – diz Tianna, sem entusiasmo.
Chet faz uma expressão de desdém para ela e balança a cabeça na direção de Lennox.
– Isso é sacrilégio num lugar como esse, mocinha. Meu Deus, pode levar essa garota de volta para o Alabama...
Lennox sente vontade de protestar, em defesa de Tianna, mas Chet está apenas brincando; tentando estimular um pouco do gosto sofisticado dos adultos. Chet percebe
seu olhar atento e tem educação o bastante para não se sentir ofendido e poupar embaraço ao outro.
– Então, em que tipo de negócio você trabalhava? – Lennox pergunta rapidamente a ele.
– Não é um trabalho muito popular, Lennox – confessa Chet, com expressão meio deprimida. – Eu era um investigador da Receita Federal. Lidava com empresas. Eu era
um homem muito odiado em Wall Street.
Lennox olha para os grossos antebraços e fortes bíceps do outro.
– Você não parece ser um homem que trabalhava em escritório.
– Ah, bem, eu fui halterofilista por muitos anos. Competi por toda parte. – A reminiscência jovial dele se dissolve num lamento. – Por um triz, deixei de competir
com a equipe que foi às Olimpíadas de Munique, em 1972, o que provavelmente foi uma bênção. Fui selecionado para Montreal nos jogos seguintes, mas lesionei o ombro
e tive que desistir. – Ele levanta e massageia o ombro para acentuar o problema. Talvez o lugar ainda o incomode. – Acho que não era para ser. Eu ainda tento fazer
ginástica duas vezes por semana, e geralmente consigo, quando o destino e as marés permitem. Você parece em grande forma. Você malha?
– Boxe tailandês – replica Lennox, com um certo sentimento de culpa, pensando que Chet foi generoso na avaliação dele –, embora eu tenha relaxado um pouco ultimamente.
– Eu não digo que tenho vivido como um monge, mas procuro me manter em forma. Você percebe, quando se fica mais velho, que vale a pena. – Ele sorri, descansando
o cardápio e examinando o quadro para ver os pratos especiais. – Acho que vou querer o golfinho.
Lennox se encolhe, enojado com a ideia de comer golfinho. Aqueles pobres-diabos têm um sonar. Não são animais estúpidos, como carneiros ou vacas. É pior do que comer
cachorro. Os ianques estão cruzando a linha aqui.
Chet percebe a inquietação dele.
– Não se preocupe, Lennox, não são os golfinhos mamíferos. É um antigo nome para um grande peixe verde, comumente chamado mahi-mahi, mas que nós chamamos de golfinho
aqui. Essa era a palavra espanhola antes de chegarem os colonizadores ingleses, que deram ao animal inteligente o mesmo nome. É uma confusão sem-fim com os visitantes
ingleses. Não que tenhamos muitos deles nesta parte do estado. Então me conta, como está o negócio dos seguros?
– É um trabalho.
O meio-sorriso matreiro de Chet mostra a aceitação àquela camaradagem sinistra que implicitamente une aqueles que trabalham para patrões.
– É tão lucrativo no Reino Unido como é aqui?
Antes que Lennox possa responder, seu anfitrião já se lançou, num instante, num discurso sobre os danos causados pelos furacões, e a inépcia, venalidade e avareza
dos governos federal e estadual. Ambos os irmãos Bush, particularmente Jeb, estão se candidatando.
– ... a corrupção; a ganância de seus associados aproveitadores. É a mesma coisa na Grã-Bretanha, Lennox? É assim?
Lennox faz um movimento com os ombros, descompromissado. Seu trabalho o tornou avesso a discutir política com estranhos, pois as suas opiniões estavam geralmente
fora de sintonia com aquelas expressas por qualquer outra pessoa. Mas aí, um único e simples movimento da parte de Chet lhe faz gelar o sangue. Ele toca em Tianna.
Apenas alisando uma mecha emaranhada de seu comprido cabelo castanho, mas o gesto o faz sentar-se rigidamente na cadeira. Porque ele percebe a ponta de tensão marcando
o rosto dela, e o breve olhar de apelo na sua direção, antes que o cardápio laminado esconda seu rosto.
Ambas as reações não foram percebidas por Chet, um prisioneiro de suas próprias preocupações.
– Eu temo pelas crianças. Eu realmente tenho medo – continua ele. – Que legado estamos deixando para elas, Lennox. Gente como você ainda é bastante jovem para mudar
o mundo para melhor, mas eu agora sou um cara velho. Só quero navegar no meu barco, pescar um pouco, e no fim do dia pôr meus pés para o alto, com um bom livro e
uma boa taça de vinho tinto. Não é tão errado assim, não é?
Lennox concorda que não é, mas isso não parece satisfazer Chet.
– O que é que podemos fazer, Lennox? – pergunta ele, a expressão triste.
A comida chegou, mas Lennox, embora faminto, percebe que Tianna quase não tocou na dela. Seu garfo mexe distraidamente na perna da galinha, girando no prato.
– Gostaria de saber – diz ele, descartando a pergunta com um outro movimento de ombros, enquanto avalia a situação por um segundo. Ajustando e fazendo a sintonia
fina; corrigindo com a regularidade do sistema de navegação por satélite de Chet. Ele não consegue se decidir. Sua visão do mundo, de policial escocês, reducionista
e misantrópica, parece um salva-vidas inadequado. As velhas certezas que ele tinha: os ricos moralmente falidos, malevolentes; os pobres ignorantes, sem energia;
a burguesia temerosa, mesquinha, reprimida; até mesmo reunidas, essas certezas não parecem bastante impressionantes no seu cretinismo para esculhambar o mundo na
extensão que parece agora estar acontecendo. E ele está muito cansado para até mesmo pensar em Deus. Qual era a visão do mundo de Robbo? Cinquenta por cento das
pessoas são honestas. Você pode esquecer tudo sobre elas. Elas podem cometer pequenas transgressões, mas basicamente vivem suas vidas fazendo o que outras pessoas
lhes dizem para fazer. As outras 50 por cento estão divididas entre as malvadas, cerca de 10 por cento, e as fracas e estúpidas, outros 40 por cento. Aqui novamente,
as malvadas não eram tão importantes no cálculo; elas estavam lá simplesmente para serem caçadas. O grupo-chave era constituído pelas pessoas fracas e estúpidas.
Elas eram os principais perpetradores e vítimas do crime.
Quanto mais velho ele fica, mais inclinado ele se torna a se ater a esses paradigmas banais, como alguém se afogando ficaria com um pedaço de um destroço encharcado
de água, boiando. Aquilo o deprime e ele sente que precisa de uma carreira de cocaína de novo. Para dar uma aceleradinha no coração, é tudo que ele deseja.
– Por favor, pode trazer mais uma Coca? – Tianna pergunta à garçonete, quando soam os acordes de “Home lovin man”, avisando uma chamada no celular de Chet, fazendo
lembrar a Lennox que ele precisa telefonar para Trudi.
– Desculpe – diz Chet, levantando rapidamente e saindo do salão. Sua pressa dá a Lennox e Tianna a impressão de que o telefonema é importante; eles ficam acompanhando-o
pelas janelas do restaurante enquanto ele anda de lá para cá no cais, passando pelas garagens de alumínio dos barcos, a fala ao telefone acompanhada por uma gesticulação
frenética.
Lennox observa o rosto de Tianna, refletido no vidro juntamente com o dele. Ele percebe que ela o está imitando, copiando suas ações. Ele se sente tanto perturbado
quanto honrado de ser o mentor dela. Será que ele é, em alguma medida, melhor do que Robbo fora para ele? Porque isso tem que parar agora: essa suspeita sobre Chet.
Como o cara na agência de aluguel de carros, ou o Four Rivers no barco; nem todos eles podem ser pedófilos. Nem todas as pessoas no mundo com um pau, ou com uma
xoxota, porque havia Starry, podem ser animais. As pobres crianças na garagem! Trudi tinha razão. Ele está cansado. Aborrecido. Não ele. Até mesmo com medo. Vendo
coisas que não existem. O fantasma de Britney. Suas mãos tremem. Ele precisa de antidepressivos. Foi um idiota em descartar as pílulas. Está doente, clinicamente
deprimido, e não há quantidade de sol de inverno que possa dar jeito nisso. Chet é kosher. Com certeza. Ele se volta para Tianna.
– Ele parece um cara legal. Eu só tinha que ter certeza, tendo em vista aquela outra gente com que estávamos naquela noite. Você compreende?
– Obrigado por tomar conta de mim – ela responde, mas numa voz tão baixa, o rosto agora de uma criança mais moça, um excesso de emoção sobre o raciocínio, que ele
sente sua certeza se evaporar. Alguma coisa não está certa; não está, desde que ela desceu para o deque inferior.
– É isso aí – Lennox engole um bocado de saliva. Uma visão terrível, pungente, de levá-la para a Escócia inunda sua mente. Ela deveria frequentar uma boa escola,
com boas colegas, dando risadas no ringue de patinação de Murrayfield ou na piscina Commie, progredindo nas séries da escola, fazendo coisas próprias de uma família.
Não com ele e Trudi. Não na sua Escócia; isso seria, para ela, pular da frigideira e cair no fogo. Lennox é bastante realista sobre suas próprias circunstâncias,
mas ele gosta da etiqueta de Tio Ray. Jackie e Angus têm dois filhos. Ele gosta dos meninos, já os levou a Tynecastle, mas eles não se mostraram muito interessados.
Uma vez a mãe contou a Lennox, antes que Angus fizesse a vasectomia, que o que ela queria realmente era uma menina. Ele não tinha jeito para o esquema vinte-e-quatro-horas/sete-dia
s-por-semana, mas poderia ser uma influência positiva; o tio engraçado, levando a criança para passeios esporádicos. Eles poderiam ser amigos.
Ele se livra de suas fantasias de livros de histórias. O máximo que Tianna poderia esperar era um bom par de pais adotivos ali na Flórida. Mesmo assim, ela tem que
se esforçar muito se não quiser se transformar numa ruína miserável como sua mãe.
Chet volta, com um seco aceno de cabeça para Lennox. Ele conta algumas moedas de 25 centavos e as dá a Tianna.
– Põe alguma coisa boa na vitrola, meu bem, antes que este lugar fique cheio desses malucos da Flórida com suas músicas sertanejas alucinadas. Talvez os Beatles
ou os Rolling Stones.
Tianna pega o dinheiro em silêncio e vai até a grande vitrola Wurlitzer, perto dos toaletes.
– Era Robyn no telefone. – Agora Chet sorri, mas seus olhos estão arregalados. – Ela se meteu numa bruta enrascada e acabou sendo presa. Mas eu já pus meu advogado
no caso, e ela deve ser solta amanhã de manhã. De modo que eu tomarei conta de Tianna hoje à noite e levo ela para Robyn amanhã de manhã.
Lennox sente uma pontada de inquietação que vai do osso esterno até a barriga. Instinto de policial ou paranoia de viciado, ele não sabe nem dá importância. Ele
não está absolutamente convencido do que Chet disse.
– Robyn... eu quero falar com ela.
O rosto de Chet fica com a expressão típica de funcionário público.
– Acho que isso não vai ser possível.
– Por quê? Por que ela não pode falar comigo ou com Tianna?
A expressão de Chet é agora marcada pela impaciência.
– Porque ela está sob a custódia da polícia lá em Miami. Ela teve direito a um telefonema. Mas eu contatei meu advogado em Fort Myers; um amigo dele já está tratando
do caso, é um fera de Coconut Grove. Ela vai ser libertada sob fiança amanhã. – Ele expira forte, em desespero. – Mulher idiota. Foi uma porra de revista de cocaína.
Se o conselho tutelar descobre isso, ela perde a guarda da criança.
Vespas rastejam e zumbem na colmeia do cérebro de Lennox. Ele não sabe nada sobre o sistema judiciário criminal americano. Mas o senso comum lhe diz que as coisas
não estão batendo. Certamente que uma pessoa detida passaria uma noite na cela dos bêbados, sendo libertada pela manhã sem ser indiciada. Não podia significar passar
trinta e seis horas numa cela. E provavelmente fora Lance Dearing que a levara até lá. Qual era o papel dele nisso tudo? E, se a prisão tivesse sido por apreensão
de cocaína, Robyn teria sido formalmente indiciada.
Então a mão de Chet está em seu ombro, e com ela, a força oculta do halterofilista. Isso e o tom de voz diminuindo uma oitava são o bastante para fazer Lennox estremecer.
– Você fez um bom trabalho, filho. Poucos caras teriam livrado a garota desse modo, não um estrangeiro. Mas eu posso assumir agora. – Chet alivia o aperto, a despreocupação
volta à sua voz. – Você tem muito a fazer, uma noiva para tomar conta e um casamento para planejar!
E aquilo fazia sentido. Lennox já interviera o bastante. Você tinha que deixar a coisa fluir, saber quando é hora de soltar. Ele mantivera Tianna longe de Johnnie
e Lance, que era seu objetivo. Ele a levara até a segurança do barco de Chet, que era o que a mãe desejara. Ele salvara Tianna, mas apenas Robyn poderia salvar-se
a si mesma, desenvolvendo o sentimento de se manter fora de situações ruins e a habilidade para tomar conta de sua filha.
– Eu vou falar com ela e dar adeus – diz ele, seguindo até a vitrola.
Ele tira o bloco de notas de Trudi, soltando a caneta da lombada, escrevendo dois números de telefone, e o endereço e o e-mail. Arranca a página e entrega a ela.
– É aqui que eu estou, se você precisar de mim. Você tem e-mail, não tem?
– Mamãe tem – diz Tianna numa afirmação triste, pegando o papel, olhando para ele e virando-se para Lennox, exatamente no momento em que o sol penetra pela janela
e a emoldura num banho de luz dourada. – Vou sentir falta de você, Ray Lennox.
Ele pode ver a intemporal humanidade nela. Ela poderia ser de qualquer idade e de qualquer sexo. Parece uma experiência religiosa.
– Ah... eu vou sentir sua falta.
Ela está com os cartões de beisebol na mão. Lennox ainda não vira o que está por cima. Dá uma olhada. Hank Aaron. Tianna olha para o cartão, o dedo acompanhando
lentamente a borda. Sua voz é baixa e balbuciante de novo, fazendo a temperatura de seu sangue cair vários graus.
– Eu achei que queria ir no barco com Chet – diz ela, num sussurro, que ele quase não consegue ouvir –, mas eu não gosto mais do barco. Quero ficar com você.
Uma voz diz a Lennox que você não pode deixá-la. Mas uma outra diz: deixa ela ir. Você está fazendo isso por você, não pela garota. As palavras de sua noiva ressoam:
você é um vaidoso, comodista. Ela não é Britney Hamil. Mas então Tianna está olhando para o sorridente Chet que veio até eles e Lennox está dizendo para ela.
– Você pode vir comigo, se quiser. Ficar com meu amigo Ginger, em Fort Lauderdale, conhecer a esposa dele e Trudi, e depois nós iremos encontrar sua mamãe amanhã
de manhã.
Tianna acena afirmativamente com a cabeça, numa sensação de alívio triste.
Chet está agora junto deles, e ele ouviu a proposta.
– Acho que ela vai ficar bem aqui – diz ele, autoritariamente. – Você mais do que ajudou, Lennox, e nós realmente não queremos impor mais obrigação a você.
Ray Lennox olha direto nos olhos do outro.
– Posso assegurar a você, não é imposição, em absoluto – replica ele, a voz de emoção, de novo o policial.
– Acho que quero ir com Ray – diz Tianna, em tom apaziguador, e agora Lennox percebe que ela não está fazendo contato visual com Chet Lewis. Alguma coisa aconteceu
no barco. Ele não poderia ter tocado nela; Lennox estava com ele. Ela vira alguma coisa lá embaixo. Encontrara alguma coisa. O outro cartão de beisebol.
Aí Lennox percebe uma abrupta mudança na expressão de Chet; ele já a viu antes, em inumeráveis outras pessoas. As feições estendidas para fora, um sorriso reflexo;
toda a boca e os olhos permanecendo imóveis e calculadores.
– Certamente. Se é isso que você quer.
– Parece que temos um consenso – declara Lennox, provocativamente. Ele ainda não detectou o animal em Chet, mas se ele está lá, ele vai expulsá-lo. Despreocupadamente
ele insiste em pagar a conta, antes de voltarem para o barco. Ele ajuda Chet a soltar as amarras e desatracar. Eles vão seguindo preguiçosamente pela baía, mas passando
os baixios, Chet empurra o acelerador, transformando o Ocean Dawn numa máquina que corta veloz a agitada água verde.
Tianna está sentada de novo no tombadilho inferior, olhando para o espaço, o maxilar tenso vibrando em sintonia com o movimento sacudido da embarcação por sobre
a superfície de pequenas ondulações do golfo. O mal-estar está de volta, pensa ela, e depois no brilho do sol e com os motores trovejando, seus dedos percorrem o
casco liso, moldado, do Ocean Dawn, e ela tem a sensação de que seu estômago está 20 centímetros mais alto. Está enjoada, não enjoada por causa do mar, mas enjoada
como mamãe; estúpida e febril, e sem saber em que diabo de lugar ela está.
Na ponte, Chet notou o cenho carregado de Lennox, enquanto este examina os instrumentos.
– Nós vamos voltar por um itinerário diferente pois tenho um outro cesto de lagostas para checar. Não vai levar um segundo – explica ele, cortando o motor e lançando
a âncora.
O cesto tem pescado. Lennox fica com pena da lagosta, funcionando inocentemente no seu próprio meio ambiente, só para ser sequestrada, cozida viva e devorada por
alienígenas.
Tianna desce até a cabine, seguida por Chet. Preocupado, Lennox está a ponto de segui-los, mas nota o celular de Chet num recuo do console. Ele pega o aparelho e
examina a lista de chamadas. Ali estava; nem mesmo precisou checar os algarismos contra aqueles que anotara no bloco de Trudi. A chamada recebida estava identificada
como LANCE D.
Lennox coloca o telefone de volta no suporte. Não havia telefonema para um advogado, provavelmente nem prisão. Robyn soube de algo e Dearing e seus asseclas estão
mantendo-a sequestrada até que decidam o que fazer com ela. E provavelmente Dearing está a caminho da Grove Marina naquele momento.
Fora do camarote principal Tianna estremece quando olha para dentro e arqueja, vendo a grande cama. Fecha a porta e se senta à mesa, olhando fixo para a noiva sorridente
na capa da revista, enquanto a bunda da calça de flanela de Chet desce os degraus. Ele se volta para ela com um sorriso cansado.
– Eu falei com Amy pelo telefone na semana passada. – A voz agourenta é pesada com uma sensação de tristeza. – Ela está perguntando por você. Ela está pensando em
vir até aqui dentro em pouco. Você não acha que ficaria melhor aqui, no barco?... Quero dizer, Lennox parece um cara legal, mas a sua mãe disse mesmo para ele trazer
você até aqui, de modo que eu realmente não posso deixar você voltar com ele.
– Eu quero ir com ele!
– Coloque-se na minha posição, meu bem – começa Chet, levantando as espessas sobrancelhas brancas –, sua mãe...
– Não quero ficar aqui!
– Mas você sempre gostou...
– Será que podemos ir, Chet? Pode ser agora? Minha noiva, como você diz, está me esperando – grita Lennox, meio que descendo os degraus.
– É, é claro. Me desculpe. – Chet se volta para ele. – Você está com pressa – e ele olha em vão de novo para Tianna, antes de acompanhar Ray Lennox, subindo os degraus
para o tombadilho superior.
Eles chegam até o timão e um suplicante Chet dá a partida ao motor.
– Mas você tem certeza de que não quer deixar Tianna aqui?
– Eu acho que ela não quer ficar. Você acha? – Lennox olha para o perfil sério do homem mais velho que ele. Nota que os nós dos dedos daquelas mãos grandes estão
brancos, agarradas ao leme.
– Como quiser.
A jornada de vinda fora uma linha reta, atravessando a baía de um porto a outro. Mas agora Chet não tem pressa.
– Será que não podíamos ir direto para a marina, em vez de acompanhar o litoral?
– As marés mudaram. Temos que evitar os baixios ou vamos encalhar. – Chet aponta para o sistema de navegação e o sonar. – Em alguns lugares a profundidade é de apenas
30 centímetros, e esse barco é muito pesado.
Lennox se volta para a tela. Há um itinerário em linha reta onde a linha da água está no máximo.
– Naquela direção – diz ele, agarrando a mão de Chet na sua mão esquerda forte e dobrando dois dedos do outro para trás. Um dor excruciante ilumina o rosto do capitão
do barco, como se fosse uma vitrola. Chet força um sorriso para Tianna, que está agora no tombadilho na popa do barco, quando a voz tensa, entrecortada, do policial
escocês alcança seus ouvidos.
– Não brinca comigo, seu babaca. Você não sabe com o que está se metendo aqui. Fui bem claro?
– Claro como água – diz Chet, enquanto Lennox alivia o aperto. Ele modifica o curso e dentro de vinte e cinco minutos eles estão de volta.
Ray Lennox sabe que não quebrou os dedos de Chet. Mas alguma coisa nele rachou, enquanto ele fica sentado ali, a expressão triste, acenando dolorosamente um adeus
para eles no barco, na Grove Marina.
Lennox e Tianna entram no carro e vão embora. Ele resistiu à tentação de usar o celular de Chet para telefonar para Trudi; isso significaria que apareceria o número
do hotel, e ele não queria a noiva perto dos acontecimentos de modo algum. Agora ele não vai se meter na Trilha Tamiami. Descobriu exatamente como alcançar a Rodovia
Interestadual 75: Everglades Parkway ou Alligator Alley.
16
Alligator Alley
O tráfego é esparso e sinistro enquanto eles percorrem as estradas, bordejadas de casas estreitas e tabuletas verdes que mostram os números das ruas e os nomes de
cidades distantes. O local, por sua vez, se abre em um outro shopping comprido e baixo, de negócios mal-intencionados. O boné dos Red Sox está em cima do painel
do carro. Ele desistira do boné, duas depressões ainda visíveis nas têmporas. Lennox olha para Tianna, sentada silenciosamente a seu lado, os cartões na mão.
– Alguma vez Chet se engraçou com você?
– Não. – Ela balança a cabeça, depois cerra as sobrancelhas numa confusão tortuosa. – Eu acho que não, mas eu simplesmente não sei dizer. Eu me sentia muito esquisita
naquele barco.
– Bem, você está bem agora. – Lennox ensaia um sorriso largo, encobrindo sua angústia. – Foi bom você encontrar aquele cartão, aquele que seu pai deixou para você.
O olhar dela parece colocá-lo apenas como um outro colaborador contra ela, mas a raiva dela não é contra ele, é a precursora de uma outra revelação.
– Meu pai não me deixou nenhum cartão.
– Ah.
– Eu nunca conheci meu pai. Ele deixou mamãe antes de eu nascer. Isto é, se é que eles realmente viveram juntos. Eu descobri esses cartões no vão do telhado na casa
em que moramos em Jacksonville. Eu costumava subir lá para fugir de... – ela quase não consegue dizer a palavra. – ... Clemson.
Clemson. Quem é o canalha...
Lennox sente suas palavras congelarem no agora infinito vazio entre o pensamento e a fala. Quando consegue encontrar a voz, Tianna já voltou a falar, seu tom de
voz agora alto e esperançoso.
– Mas eu meio que senti que ele gostaria de beisebol, e isso meio que me fez sentir que sou parte dele. Acho que isso é maluquice, não?
– Não – diz Lennox –, não mesmo. – Ele se lembra de colecionar as moedas da Esso da Copa do Mundo quando era criança, seu pai o ajudando. Olhando para o triste lábio
inferior da garota americana, ele experimenta um momento inundado de emoção que talvez o sufocasse se ele não disparasse uma expiração insistente. – Quem é Clemson?
– Tiger Clemson; seu nome verdadeiro é Jimmy – diz Tianna, os olhos carregados de um ferocidade elétrica. – Ele foi namorado de mamãe. Era sempre bom para ela, mas
muito ruim mesmo para mim. Eu tinha muito medo dele. Ele sabia tudo sobre mim... com Vince. Disse que eu era assim mesmo; que um homem podia sentir o cheiro daquilo
em mim. – Subitamente ela arqueja, uma expressão de pânico terrível. – Quando fazia essas coisas comigo, ele costumava dizer que era para isso que Deus me tinha
posto no mundo. Ele me fazia um favor, dando a mim uma vantagem inicial sobre as outras garotas. Mas ele era diferente de Vince; eu sei que ele não dava a mínima
pra mim. Então era mais fácil eu apenas pensar sobre outra coisa e deixar ele fazer o que quisesse. Mas às vezes ele me machucava. Às vezes me fazia sangrar. Ele
ficava esperando até mamãe dormir com as pílulas dela, e aí ele vinha até mim. Me dizia que, se eu contasse qualquer coisa à mamãe, ela acreditaria nele e não em
mim. Porque eu sei o que você aprontou antes, dizia ele. Eu costumava fugir para o vão do telhado, me esconder dele.
Lennox diminuíra a marcha do carro e entrou numa saída asfaltada que se abre num espaço cimentado, previsto como estacionamento, mas que ficou ali sem fregueses,
as plantas já aparecendo na superfície rachada. Ele parou por causa de si próprio e também por causa dela. As mãos, fervilhando, ainda agarram no volante com força,
enquanto o sangue lateja nos ouvidos.
– Como é que ele sabia? Sobre o que Vince fez com você?
– Não sei... – A garota dá de ombros. – Costumava dizer que conhecia garotas como eu, o tipo que eu era. Que ele podia dizer a um quilômetro de distância que eu
não era virgem. Que eu era o que ele dizia.
A bile corrói as entranhas de Lennox.
– Será que é verdade, Ray? Será que os homens podem dizer como você é? É isso que eu sou? – Os olhos dela se arregalam, em desespero.
Lennox agarra as mãos dela com suavidade.
– Não. Não, eles não podem. Ouça aqui, eu acho que você realmente não teve sorte e conheceu pessoas muito, muito más. Você não fez nada de errado. Você é uma garota
boa. São eles que fizeram a coisa errada e eles vão pagar por isso. Eu prometo a você. Você entende o que estou dizendo? – Ele olha bem fixo nos olhos dela.
– Entendo.
– Muito bem – Lennox diz, e dá a partida no motor.
Tianna.
Ela deveria estar acordando nas manhãs de Natal, para ver os presentes, numa casa como a de Jackie, e...
Lennox não acredita que está alimentando esperanças para o futuro da garota, sonhos improváveis. Ele faz desenrolar cenários confortadores na sua mente, apenas para
repreender a si mesmo, por eles serem idiotas: a quilômetros de distância de onde ela provavelmente terminará. O equilíbrio das probabilidades. Mas é esse o problema
com os sonhos: eles mudam, porra. E quanto mais vívidos ficam, mais ação eles estimulam.
Enquanto ele pensa no seu próprio futuro e no de Trudi, um abrupto espasmo atinge seu peito: ele percebe que deixou a cópia de Noiva Perfeita no barco de Chet.
– Você não pegou aquela revista de noivas, pegou?
– Não – Tianna responde, preocupada. – Acho que deixei ela lá embaixo. Era importante?
– Não, eu posso arranjar um outro exemplar – ele diz, sem emoção, mas não consegue impedir seus molares de rilharem. Trudi preenchera alguns cupons anexos à revista.
O endereço. Eles têm o endereço dela.
Aquilo não significará nada. Mas o pensamento o incomoda. Deixa eles tentarem qualquer coisa lá em Edimburgo, pensa ele rilhando os dentes com mais força, galvanizando
a si próprio em cenários de violência, até que ele verdadeiramente saboreia a perspectiva. Aí seu olhar deslocado, protetor, cai novamente sobre Tianna enquanto
eles entram num posto de gasolina com um telefone.
Lennox procura um cartão de telefone nos bolsos, não consegue encontrar nenhum e pragueja, e depois seus dedos catam alguns trocados, os olhos fixos num esquadrinhamento
periférico, para evitar a aproximação sinistra de Lance Dearing. A lógica lhe diz que é muito improvável, quase impossível, que seus itinerários pudessem se cruzar
numa estrada, num lugar como aquele. Paranoia, a força mais forte, está simultaneamente informando-o dessa inevitabilidade.
As moedas de 25 centavos saem ruidosamente de suas mãos untuosas, chacoalhando para dentro da máquina. Quando Lennox calcula que elas alcançaram o estoque, seus
dedos endurecidos comprimem as teclas de metal. Um rosnido vem da outra extremidade da linha.
– Eddie Rogers.
– É Ray. Preciso de um favor. De você e de Dolores – ele diz, raciocinando que seria mais fácil deixar Tianna com uma mulher. Ele tenta firmar o mapa que suas digitais
suarentas borraram. – Você pode me encontrar na parada de caminhões na Saída 49 da Rodovia Interestadual 75?
– Isso é no meio das Everglades – a voz de Ginger fica mais aguda –, na Reserva Indígena de Miccosukee. Mas por que você...
– Reservas são para yuppies e índios, se lembra? Preciso de um favor – Lennox repete.
Ginger faz uma longa inspiração, que se transforma em estática no ouvido de Lennox.
– Está bem. Posso chegar lá em uma hora e meia. Trudi me telefonou e me disse que você se meteu numa encrenca. Você precisa tomar jeito, filho. Está pensando que
isso é CSI:Miami?
Lennox solta um pequeno arquejo com a piada de Ginger, e depois lhe diz:
– Eu ouvi. Mas esteja lá. Não me deixe na mão, Ginger.
Um silêncio cresce na cabeça de Lennox. Depois as palavras são como algo fino perfurando seus tímpanos.
– Não vou deixar – Ginger rosna –, e, pela porra da última vez, é Eddie!
– Certo, Eddie – Lennox diz, o nome como uma fruta azeda na sua boca. – Obrigado, parceiro.
– Muito bem, vou partir agora mesmo. Aperta a porra desses seus parafusos, Raymie – ele previne, e desliga.
Durante a volta, Tianna fica sentada no carro, o rosto entumescido, o branco dos olhos manchados de rosa, de sangue, onde ela os tivera esfregando. Lennox pensa
em dizer alguma coisa, mas não lhe vem nada à mente, então ele decide deixar correr. Dá a partida no motor e eles deixam o posto de gasolina.
Chegam a um posto de pedágio no início da Interestadual 75. Um letreiro indica que Miami está a pouco mais de 200 quilômetros, Fort Lauderdale a pouco menos daquela
distância. O ponto de encontro na Saída 49 parece estar a meio caminho, portanto, eles deveriam chegar mais ou menos na mesma hora que Ginger. Lennox olha o atendente
do pedágio, um homem negro, baixo com uma barba grisalha, que tem o nome escrito no distintivo acima do título EMPREGADO.
– Canalhas – Lennox diz, se afastando, e depois pede desculpas a Tianna. – Quero dizer, eles fazem com que as pessoas vejam que esses homens não são os diretores-executivos
da empresa de pedágio. Por que eles têm que esfregar isso na cara deles?
Tianna olha de novo para o homem, depois para Lennox.
– Você é um cara legal, Ray. Quero dizer, fazendo isso por mim, e tudo mais. – Ela faz uma pausa, e depois pergunta: – Por que você está me ajudando?
– Nós somos parceiros – e Lennox dá de ombros –, amiguinhos – ele explica.
– Mas você nem mesmo me conhece, na verdade.
– Eu conheço você o bastante para perceber que, neste momento, você precisa de um amigo. – Ele aponta para o rádio. – E eu preciso de uma música.
Pegando a dica, Tianna pega o sintonizador e gira até encontrar uma estação com música de discoteca. Um remix forte, ritmado, de “Lost in music”, de Sister Sledge,
sacode o Volkswagen. O verso pego numa armadilha, não há caminho de volta, faz com que eles olhem um para o outro numa dolorosa sincronia.
Aquela podia ser uma rodovia interestadual com limite de 110 km/h em vez de 80, mas, a não ser por isso, a chamada Alligator Alley é igual à Autoestrada 41: uma
via expressa de duas pistas, com um grande espaço de arbustos no meio. Há poucas evidências da passagem do furacão ao longo da estrada quase deserta. Cercas dos
dois lados da rodovia mantêm afastada a vegetação densa, como que desesperada para engolir o concreto, como uma multidão de adolescentes rodeando um astro da música
pop. Lennox quase não deixa o Volkswagen ficar abaixo de 140 quilômetros por hora. Ginger não iria ficar esperando, e ele agora realmente precisa voltar para Trudi.
As árvores que vão passando se transformam numa mancha, os olhos de Tianna piscando enquanto eles seguem velozmente. Aí ela pode vê-lo, Tiger Clemson, parado, de
pé na porta de seu quarto. Olhando para baixo, para sua cama. Sua mãe está dormindo a sono solto, diz ele, com sua voz suave, lasciva. Ela se contorce no banco de
couro quente do carro, sente o calor na nuca, ouve os sons do motor girando, tão altos, como os do barco de Chet. Mas parte dela está na cama e Clemson está lhe
dizendo que ele vai fazer uma coisa realmente boa com ela agora, mostrar alguns dos truques dos quais ela nunca se esquecerá, mas não é Clemson, é uma outra pessoa
e ela grita...
Lennox fica tão chocado que quase perde o controle do carro.
– Jesus, porra! O que é que há? – Ele diminui a marcha e para num acostamento. Os gritos dela diminuem enquanto ela se encosta nele, forçando-o a consolá-la.
– Eu estou sempre vendo um rosto. O rosto de um homem. – Ela levanta os olhos para ele, as feições tensas, vincadas.
– Está tudo bem – diz ele, rígido e constrangido, batendo de leve nas costas dela. – É apenas uma recordação, como um sonho ruim quando se está acordado.
Ela enterra o rosto no peito dele.
– Será que vão parar algum dia? – indaga sua voz abafada.
– É claro que vão – diz ele, agora com as mãos nos ombros dela, fazendo-a ficar ereta e olhar para ele. – Quem você viu? Foi aquele cara, o Clemson?
– Não... – e ela se empertiga e se afasta, enxugando na bolsa de carneiro o nariz que escorre, olhando meio sem graça para ele até que ele afasta sua preocupação.
– Eu achei que era, mas não era.
– Muito bem. Quem quer que fosse, eles não vão magoar você.
– Promete?
– Prometo. – Ele sorri e ela tenta imitá-lo, mas o medo paralisou os músculos de seu rosto. Ele dá a partida no motor.
Eles mantêm um silêncio tenso enquanto engolem os quilômetros, contentes em deixar que sons vindos de longe encham o veículo. Explodem vozes, cidadãos tão orgulhosos
de demonstrar seu intelecto no anonimato do rádio quanto ficam ao apresentar sua estupidez à frente das câmeras de TV. Depois Lennox gira o sintonizador e um som
hip-hop de guitarra elétrica sacode o Volkswagen, num crescendo tal que parece estar impulsionando o veículo em aceleração. Logo um letreiro na rodovia anuncia a
iminente presença da Saída 49.
Eles saem do carro meio zonzos, levando alguns segundos para se ajustarem à abrupta interrupção da velocidade, e batem de frente com o ar quente e úmido. A escuridão
sombria está diluindo o milagre diário da luz marrom e verde que explode da grande extensão de capim-coco e água. Não há sinal de Ginger e Dolores. O antigo posto
de gasolina, um alpendre enferrujado de zinco ondulado, com três bombas, tem um letreiro de neon moribundo da Coca-Cola que pulsa fracamente na janela. Não há nenhum
sinal de vida: muito provavelmente só funciona em horas irregulares. A solidão é fantasmagórica: um silêncio difuso, sem pássaros canoros nas árvores ou carros na
rodovia. Tianna vai até um trecho rompido da cerca que margeia o pântano de manguezal.
– Não se afaste muito do carro – Lennox avisa. Four Rivers vem à sua lembrança, provavelmente porque a entrada para a reserva indígena está próxima.
Ela avança e se encosta na carroceria do carro, brincando com o cartão solitário. Vendo que Lennox a observa, ela levanta o olhar, tirando o cabelo da frente do
rosto e diz:
– Eu encontrei esse cartão que pensei ter perdido. Estava no barco. Hank Aaron. Ele também era de Mobile, sabe. Mas eu não me lembro de ter perdido ele. Eu estava
com ele da última vez que estive no barco, e meio que me lembro... eu estava meio enjoada... podia ver a água. Era como num sonho.
O silêncio em volta é quebrado por um farfalhar vindo dos arbustos do mangue, seguido de um breve grito, logo abafado, de algum animal, e um rouco urro de triunfo.
Lennox olha nervosamente para o pântano, depois de volta para ela, como que não dando importância à coisa. O incidente dá início a um rápida cacofonia de sons de
pássaros vindos da mata espessa, que depois cai no silêncio.
– O que é que você quer dizer com isso? É como se você estivesse no barco, enjoada? – indaga ele, sentindo o cheiro da salinidade na brisa que aumenta de intensidade.
– Era como se eu estivesse no barco, e era um sonho... mas meio que não era – diz ela, num estonteante momento de percepção.
A pulsação de Lennox se acelera e ele engole mais um vazio na garganta.
– Provavelmente foi apenas um sonho ruim.
Tianna está mais do que disposta a concordar. Sentindo que ela necessita de espaço mental, Lennox fica em silêncio, permitindo que ela lhe pergunte:
– Você tem sonhos ruins, Ray? Quero dizer, sonhos realmente tão, tão ruins que você não consegue contar a ninguém sobre eles?
Agora é a vez de Lennox se espantar. Ele olha para cima. Espera ver uma escuridão de breu, em vez de um azul manchado. Passam-se alguns segundos.
– Sim – diz ele, finalmente, a voz trêmula e fraca. – Tenho.
– Você me contaria esses sonhos?
– Talvez mais tarde, amiguinha.
Ela afasta de novo o cabelo do rosto. À luz pálida de lua que se filtra pelas árvores atrás da cerca, ela tem a gravidade de um profeta espectral.
– Você promete?
– Prometo... – Lennox ouve sua voz oscilar entre um sussurro e um arquejo. Ansioso para mudar o rumo da conversa, ele faz um gesto para ela passar o cartão de beisebol,
e depois lê:
HANK AARON
(nasc. 5/fevereiro/1934, Mobile, Alabama)
755 home-runs em 23 temporadas. Um recorde na Primeira Divisão de Beisebol, ele superou o legendário Babe Ruth.
Hank Aaron era o filho favorito de Mobile. Seus pais mudaram-se para o Sul, vindos de Selma para trabalhar nos estaleiros. Originalmente jogando nas Divisões de
Negros, Aaron se lembrava como o pessoal do restaurante quebrava os pratos onde ele e seus colegas haviam comido. Sua carreira na Primeira Divisão se estendeu por
duas gloriosas décadas, divididas entre os Milwaukee Brewers e os Atlanta Braves.
Lennox se lembra do nome. Lembra-se vagamente de ter lido sobre a triste perseguição do recorde de Aaron por algum gigante bombado a esteroides.
– Ele parece ter sido um grande homem. Tipo do cara que nunca deixava que nada o derrubasse. Os babacas que quebravam aqueles pratos, que diziam a ele que ele não
valia nada, onde estão eles agora? Quem se importa com que eles pensam? – Ele faz um pausa, entrega o cartão de volta. – Você sabe o que estou dizendo?
Ela o encara com seu próprio olhar fixo.
– Acho que sim.
– Lembre-se disso. Sempre se lembre disso.
Ele se inclina para dentro do carro para dar a partida no motor e ligar o rádio. Eles ouvem a estação de rock clássico de Miami, Big 105-9; está tocando “Is there
something I should know”, de Duran Duran. Depois eles mudam para um canal de animadas músicas espanholas, de dança; rápida, inebriante diversão, que faz com que
ele sinta desejo de uma tequila ou mojito.
Ambos ficam contentes com o desvio da conversa, mas aí começa uma balada triste e Tianna fala de novo.
– Ninguém nunca vai casar comigo – diz ela, tentando mostrar tristeza, as sobrancelhas se erguendo. – Supondo, apenas supondo, que eu fosse mais velha e você fosse
mais novo, você casaria comigo, Ray?
Lennox dá um sorriso tenso.
– Você não pode me perguntar isso. Você não sabe como eu era quando mais novo – e, por alguma razão ele relembra uma foto dele numa calça Falmer, uma jaqueta com
capuz e uma cabeleira comprida, fofa. E aquele bigode. Aquela coisa idiota, estúpida de que todos caçoavam, até mesmo na polícia. O bigode crescera em correspondência
com o vício da cocaína. Trudi adorara quando ele raspara o bigode, mas ele instantaneamente se arrependera. Sentia-se exposto sem ele; nu e sujo. Um lábio pingando
cuspe.
Ele entrara para a polícia uns poucos anos depois de trabalhar como aprendiz de marceneiro numa firma construtora em Livingston, que usava painéis. Os vetores da
oportunidade educacional e o entusiasmo jovem se cruzavam no programa de graduação da polícia, e ele foi mandado para a Universidade Heriot-Watt, com patrocínio
de uma bolsa de graduação em ciências no campo da tecnologia da informação. Seu companheiro de infância Les Brodie, juntamente com seu curso de aprendiz de bombeiro
hidráulico, o levara para idas eventuais aos Hearts como uma válvula de escape para a testosterona explodindo dentro dele. Mas a polícia era um meio, mais do que
um fim. Lennox tinha uma missão; uma busca enterrada, mal definida, que adquirira uma intensidade mais acentuada do que nunca.
A vida de policial fora difícil para ele. A etiqueta de solitário antissocial que ele desenvolvera na escola, e depois como jovem marceneiro, continuava acompanhando-o
insistentemente. Ele era o primeiro da nova geração, o tira educado que via o trabalho da polícia como um conglomerado de ciências – psicologia, sociologia, criminologia,
tecnologia da informação, medicina legal e relações públicas – e incorrera no ódio dos tipos da escola antiga, para quem o trabalho policial permaneceria sempre
uma arte das ruas. E depois havia a natureza solitária da vida policial. Um dos momentos mais excruciantes de Ray Lennox veio quando ele principiava o serviço na
delegacia de polícia de Haymarket. Les Brodie fora apanhado com alguns outros caras depois de um tumulto num jogo de futebol. Os olhos dos dois se entrecruzaram
rapidamente, depois os amigos, constrangidos, viraram as costas, envergonhados, mas não antes que fossem testemunhas da humilhação do outro. Lennox se escondeu de
volta na sua sala pelo resto do plantão, retorcendo-se de vergonha, aliviado por Brodie já ter sido libertado quando ele veio trabalhar no dia seguinte.
Agora, ao lado da rodovia que corta o pântano banhado pelo luar, Tianna está olhando para ele com uma expressão inquieta de tímida indulgência.
– Aposto que você era delicado quando era mais jovem.
– Muita gente não concordaria com isso – diz ele, mal-humorado. – De qualquer maneira, nós não sabemos como você será quando for mais velha. Talvez você vá para
uma faculdade, consiga um bom emprego e uma carreira – especula esperançoso, e depois lança um olhar intenso para ela e pergunta: – O que faz você pensar que ninguém
vai casar com você?
– Vince... depois Clemson. Disseram que se eu contasse a qualquer pessoa o que eles tinham feito... o que aconteceu, aí eu estaria estragada para o casamento.
– Você não fez nada. Foram aqueles canalhas que agiram errado, não você. – Ele bate no capô do carro, lívido de raiva. – Nunca esqueça disso – diz –, nunca.
Os grandes olhos de Tianna ficam contemplativos à luz prateada, mas Lennox sabe que sua própria raiva a está assustando tanto quanto as palavras com que ele afirma.
Suavizando o tom, acrescenta:
– Quando você pensar em casar, e você provavelmente vai conseguir isso, será com um cara legal, que ama e respeita você.
– Como você ama e respeita Trudi, não é?
– É isso aí – ele arqueja.
– Trudi tem um bom emprego e uma carreira?
– Tem, acho que tem, quero dizer, sim – concorda Lennox, fraco quando confrontado com sua própria arrogância egoísta. Ele deprecia as realizações de Trudi. Ela vem
se saindo bem na Scottish Power, conseguiu algumas promoções, era tida como bem-sucedida. Ele valorizava seu próprio trabalho, irradiando autoimportância e desprezo
pelos outros. Ele sente a leve dor de remorso e, se Trudi estivesse ali, ele pediria desculpas, e faria isso do fundo do coração.
As conversas com Tianna, se bem que mínimas, são como rajadas de um intenso fogo de uma AK47. Elas o deixam cheio de buracos: muito mais desconcertantes do que quando
ele fala, como policial, para vítimas de abuso sexual. Aqui não há um papel a desempenhar, não há um distintivo atrás do qual se esconder. Mas enquanto ela estiver
com ele, ela não está nas mãos de monstros como Dearing, Johnnie e, por tudo que sabe, Chet. Ele pensa no cartão de Hank Aaron.
– Quando sua mãe estava doente e você foi ficar com Starry, ela tratou você bem? – Sua cabeça gira quando um carro solitário passa zunindo pela rodovia.
– Acho que sim – diz Tianna, em dúvida. – Mas aquele Johnnie, o irmão dela, ele sempre estava por perto. Sempre com conversas indecentes. Eu odiava quando ele procurava
mamãe ou Starry.
– Johnnie é irmão de Starry?
– É sim. Eu fiquei com pena de Starry, o filho dela sendo baleado fora da 7-Eleven, e essa coisa toda. Mas eu não gostava de mamãe saindo com ela e Johnnie.
Ele não percebeu nenhuma semelhança entre Johnnie e Starry.
– E que tal Lance?
– Lance é policial. Você meio que tem que pensar que ele é uma pessoa boa, não é?
– É – diz Lennox, a voz fraca, olhando para cima, enquanto o vento faz barulho nas árvores. Cadê a porra do Ginger?
E a revista está de volta ali. Está esperando. Noiva Perfeita. Seu cartão de visitas: sua desculpa para voltar ao ninho de víboras dos pedófilos. Ele tem todas as
razões. Agora não se trata apenas de Tianna. Deixem que eles tentem pará-lo. Deixem que eles tentem.
– Você ama Trudi?
Aquela pergunta simples lhe tira o fôlego. Sua cabeça gira.
– Eu sei que eu costumava amá-la – diz ele, depois de um momento –, mas às vezes eu fico pensando se nosso tempo já terminou. É... bem, nós temos tanta... história.
Agora, eu não sei se é amor, ou apenas um certo tipo de vida com o qual nós nos acostumamos. Às vezes eu acho...
– O quê?
– ... que talvez seja a hora de terminarmos. Não é fácil.
Aí uma visão de Trudi enche sua mente. Quando eles o levaram para o apartamento dela, depois de ele ter o colapso nervoso no bar. E de novo, quando ela viu o estado
dele no túnel, depois do enterro: as lágrimas nos olhos dela. Ó, meu benzinho, meu Ray, chorava ela. Lennox sente algo subir dentro dele.
– Eu amo mesmo Trudi – diz, com uma certeza revestida de tristeza, porque o que realmente o está sufocando é seu próprio senso de inutilidade. – Sempre vou amá-la.
– O pior de todos que mamãe trouxe foi Vince – diz Tianna, tensa, inspirando fundo –, porque ele me disse que me amava. Era tudo mentira, mas eu acreditei, e não
é correto dizer isso para alguém quando não é verdade. – Ela rola o lábio inferior para baixo. – Então, se você ama ela, você tem que tratar ela bem.
– É – concorda Lennox, quase enjoado de melancolia. – Eu tenho que tratar ela bem.
Os arbustos em movimento com suas sombras, os estranhos sons vindos do pântano, entrando e saindo do campo auditivo, dão nos seus nervos, enquanto eles esperam naquela
parada deserta. Antes de perceber, ele está pensando de novo em suas pílulas: as cápsulas, tão lisas, escorregando pela garganta de um homem que odeia engolir qualquer
coisa. Ele se lembra de sua mãe gritando para ele quando ele não conseguia comer o guisado, a gordura na ponta da carne lembrando-o de meleca, a carne lembrando-o
de carne. Mantendo a porção na boca, pedindo desculpas e indo até o banheiro para cuspir ou vomitar a coisa. Jackie o denunciando. “É nojento”, dizia ela, verdadeiramente
revoltada. A compaixão cansada nos olhos de seu pai. “Pelo menos coma um pouco, filho. Você precisa comer.” Depois sua mãe o atazanando, desatinada com o comportamento
dele: “É ensopado da melhor carne!”
Mesmo depois ele ficava imaginando como uma carne boa apenas para um ensopado poderia ser descrita como a “melhor”.
Passa um outro carro isolado e Lennox fica a princípio animado, depois paranoide. Está ficando tarde. Onde está Ginger? Talvez ele não venha. Ele poderia ter explicado,
enfatizado como aquilo era crucial. Talvez Dolores tenha dito não. Ela poderia pensar que era um encontro de bêbados.
A menos que...
A menos que a rede de policiais pedófilos se estendesse por toda a Flórida e Ginger também fizesse parte dela. O modo como ele olhara para a garota no clube de striptease.
Tinham a porra do controle.
Lennox sente sua respiração apertar. Ele está inspirando aos arrancos, de novo. O ar é pesado como se estivesse cheio de partículas de ferro, pulverizando seus pulmões.
Ele quer se afastar de Tianna. Ela não pode vê-lo naquele estado. Ele está fazendo mais mal do que bem a ela.
Nesse momento, um veículo diminui a marcha e encosta. Lennox não consegue saber quem é na escuridão pastosa do pântano. Parece um 4x4. Ele sente todos os músculos
do corpo ficarem tensos enquanto o carro para a uma certa distância deles. Não parece o motor do carro de Ginger; é Dearing, ele tem certeza.
– Entre no carro – grita ele para Tianna. Ela faz o que ele manda e ele vai atrás dela rapidamente. Aquelas janelas na escuridão e as sombras lançadas pelas árvores;
ele não consegue ver nada.
Então há umas batidinhas na vidraça.
– Lennox! Que diabos você está fazendo?
O grande rosto redondo de Ginger entra em foco. Tianna arqueja em choque, Lennox em alívio, enquanto sai do carro.
– Ginger? Obrigado, porra... – ele enlaça a estrutura de barril do outro com os braços. Ginger está com Dolores. O cachorro, Braveheart, pulou do carro atrás deles
e late freneticamente. Ele tem como resposta um rosnido longo, gutural, vindo de detrás da escura parede de mangues.
– Ginger? – Dolores indaga, sorrindo com a intriga, antes de gritar para Braveheart, que cheira tudo em volta no posto de gasolina.
– Quantas vezes, porra – exclama Eddie Rogers aborrecido, virando-se para Dolores que se afasta, em perseguição ao cão. – É só uma piada, hein. – Diz ele, e depois
olha de volta para Lennox. – Desculpe pela demora. Tivemos que pegar...
Lennox olha adiante para ver Trudi sair do banco traseiro do Dodge. Ela usa uma saia comprida azul-escura e tem o cabelo solto.
Sua vaga expressão de reprimenda se dissipa quando ele vai hesitante na direção dela.
– Ray...
– Desculpe – ele geme, compelido a diminuir a distância entre eles, e a tomá-la nos braços, sentindo seu próprio corpo estremecer quando os membros finos, resistentes,
mas fortes como uma cobra píton, o envolvem, seu perfume penetrando por suas pálpebras fechadas, indo até o cérebro. – Eu tinha que tentar ajudar. Tive que me envolver.
Não sei por quê – diz, e repete –, não sei por quê.
A voz suave de Trudi no seu ouvido, Lennox percebendo quanto ama as entonações de voz dela, seu hábito da classe média de Edimburgo de pronunciar claramente cada
palavra.
– Não foi culpa sua, no caso de Britney Hamil, Ray. Não foi culpa sua.
– De quem foi a culpa, então? – E ele pensa na época em que foi suspenso das aulas na escola por ter inundado um corredor com uma mangueira de incêndio, sua consternada
mãe dizendo, em resposta a seus protestos canhestros: “De quem foi a culpa, então, se não foi sua?”
– Do animal que a matou – diz Trudi, suavemente, meio que lendo uma história para uma criança na hora de adormecer –, foi culpa dele.
Agora ele se lembra da mãe de Britney, Angela Hamil, dizendo para ele: “Está tudo bem. Você fez o melhor que pôde... ”
Então Ray Lennox, num terrível acesso de honestidade, admitira para aquela mulher destruída: “Eu não sabia... eu cometi um erro. Eu não, porque fiz um julgamento
errado a seu respeito. Eu pensei... Eu podia ter feito melhor! Ele ficou com ela por mais de três dias, porra... Eu podia ter salvado sua filha.”
E o rosto de Angela estava contorcido e marcado pela dor quando ela deu as costas para ele. “Não”, insistiu ela, a voz baixa, “você fez o melhor que pôde. Desde
o início, eu vi que você realmente se importava com Britney.”
Agora ele pode ouvir uma vozinha baixa, persistente.
– O quê? – Tianna indaga. – O que não foi culpa sua?
Um sentimento de culpa exuda dele. Ele não consegue olhar para a garota americana. Se fizer isso ele verá uma garota escocesa no lugar dela. Ele abraça Trudi com
mais força.
– Ele era um canalha – sibila ele no fino pescoço da noiva. – Eu não fiz, eu não podia fazer melhor do que aquilo. Esperar que ele fizesse melhor era esperar que
ele fosse o ser humano que ele nunca fora. Era eu que devia ter sabido...
– Não. Você fez o seu trabalho, Ray. Você tentou ajudar – diz Trudi.
Depois ela sente alguém puxar seu braço. É Tianna. Ela olha para Trudi com os olhos cheios de lágrimas.
– Ray me ajudou – diz ela, em voz baixa. Trudi sorri, e põe o braço em torno da garota. – Ele disse que você era linda – observa Tianna, fazendo com que o rosto
de Lennox mostre ainda mais dor, pois ele não se lembra de ter dito nada assim.
– Oi, você é... Tianna, não é? – Ela olha para o carneiro pendurado nas costas da garota. – Eu gosto muito da sua bolsa.
– Ray me ajudou – repete Tianna, lágrimas finas brilhando nos olhos. – Ele me ajudou.
Lennox sente sua garganta se fechar. O rosto de Tianna parece irradiar todas as possibilidades do mundo. Ela poderia crescer e tornar-se alguém forte, viva e linda,
ou encolher-se sobre si mesma, doentia e assombrada. E ela tem tão pouco tempo para desvendar aquele cruel enigma que outras pessoas fizeram malignamente de sua
vida.
– Está bem, meu amor, está bem. Esses são Ginger e Dol...
– Eddie! – Ginger cospe, e ele vê Dolores brincando pensativamente com o nome.
– Desculpe... Eddie. – Lennox força um sorriso fraco, derrotado. Maus hábitos, eles são tão difíceis de parar, tão, tão difíceis. – Tianna, esses são bons amigos
meus, Eddie e Dolores Rogers. Quero que você fique com eles e com Trudi. Eu volto mais tarde.
– Eu quero ficar com você – diz ela, firmando pé.
As palmas de Lennox se abrem, apelando, imitando os cem bandidos escoceses que ele pôs atrás das grades.
– Eu volto antes de você perceber que eu fui.
Dúvida e desconfiança colorem o rosto de Tianna; agora ela poderia ser sua mãe. Ele fica aliviado de Trudi estar ali, e também Dolores, e pergunta a Tianna:
– Você gosta de golfinhos e da vida marinha?
– Acho que sim – diz ela, enquanto Braveheart se aproxima, cheirando a perna dela, o rabo abanando.
– Eu e Trudi vamos fazer uma viagem ao Ocean World amanhã de manhã.
– E você pode me ajudar a olhar os vestidos – diz Trudi, pegando a mão de Tianna enquanto vai levando-a para o 4x4. Mas a garota olha de volta para Lennox.
– Lance é policial. Ele vai prender você! Tenha cuidado!
– É claro que vou ter.
Trudi larga a mão de Tianna e corre de volta para ele.
– Já é hora de largar essa coisa, Ray. De deixar a coisa com a polícia local – ela insiste, enquanto Braveheart segue seu faro até a borda do canal.
– Eu não posso. Preciso...
– Você precisa organizar a sua própria vida. Tentar dar jeito na vida dos outros não vai salvar você, Ray.
– Mas eu...
Eles têm a atenção desviada por um ruído, um rosnar. O cão desapareceu, cheirando um amontoado de arbusto do mangue perto da cerca. Uma Dolores desesperada sai do
carro e segue atrás do animal.
– Olha aqui, seu metido, você vai se haver comigo!
Aí alguma coisa acontece tão rapidamente, que eles quase acreditam ser uma brincadeira. O jacaré que sai do pântano parece um brinquedo de plástico, o focinho se
projetando para fora dos arbustos, mas ele se lança para a frente com velocidade, e suas mandíbulas, num terrível estalar, agarram o cachorro.
– BRAVEHEART! – Dolores grita e corre na direção da cerca e do pântano, mas é contida por Ginger.
– Não, Dolly, pelo amor de Deus!
A princípio parece que o réptil vai engolir o pequeno mamífero por inteiro, mas depois ele dá várias mordidas, repetidamente esmagando os ossos do cão que guincha.
O jacaré meio que engole a presa, regurgita e bate duas vezes com o cão no solo, como se fosse um boneca de pano, e então se lança velozmente por uma seção da cerca
derrubada pelo furacão, o corpo de Braveheart inerte nas mandíbulas.
Lennox e Trudi avançam em perseguição cautelosa. Ela para na borda do pântano enquanto Lennox prossegue alguns passos adiante, mas ele para quando sente a escuridão
folhuda, de limites indefinidos, se multiplicando a seu redor. Eles voltam para onde Dolores, agarrada a Ginger, grita angustiada. Lennox a segura enquanto Ginger
corre de volta para o veículo, dizendo a Tianna para não se mover e logo voltando com uma lanterna, mas ambas as criaturas se desvaneceram na noite. O silêncio volta
a reinar no pântano, embora Lennox imagine que ainda possa ouvir um rosnar suave, vitorioso, vindo da água. Uma Dolores abalada se encolhe contra o Dodge, onde Trudi
e Tianna tentam confortá-la.
– Então acabou – observa Ginger, olhando nervosamente de novo para a brecha na cerca.
– Desculpe, Eddie – diz Lennox, sentindo-se miserável. – Eu me sinto responsável. Fui eu quem trouxe vocês aqui.
Ginger diminui o tom de voz e se aproxima bem dele, de modo a que os outros não possam ouvi-lo.
– Não fique assim – sibila ele, com alegria mal disfarçada. – Não diga nada a Dolores, mas a porra daquele cão me atazanava a vida. Eu sempre quis um cachorro grande,
como um pastor-alemão, um cão de verdade. Bem, acho melhor levar as garotas para casa. Você vem?
– Não. Vou voltar. Vejo vocês mais tarde.
– Ray – Trudi salta de novo do carro –, por favor, venha conosco.
– Volte para o carro! É perigoso! – Lennox grita. Mas Trudi não se move.
– Ela tem razão – diz Ginger. – Você já fez a sua parte. Daqui por diante tudo que você pode fazer é se transformar num otário completo. E com isso eu quero dizer
um otário ainda maior do que você já está sendo.
– De jeito nenhum – diz Lennox. Ele está pensando em Robyn. E em Dearing, Johnnie, Starry e Chet. Ela sabe alguma coisa e eles a estão mantendo em silêncio até decidirem
o que fazer com ela. O que eles farão, dados os recursos que têm? Agora, ali naqueles pântanos, a coisa parece assustadoramente óbvia para ele. O mar. Eles a jogarão
no mar. Lance e Johnnie vão levar Robyn no barco de Chet e a atirarão no mar em algum lugar do golfo do México. Uma ação de alto risco, é claro. Guarda-costeira,
alerta de ações terroristas, equipes de controle de imigração ilegal, helicópteros da Agência Antidrogas. Mas agora eles talvez estivessem desesperados o bastante
para tentar.
Mas não tão desesperados quanto ele. Porque ele quer pegá-los: Lance, Johnnie, Starry, essa trindade com más intenções. Chet também, embora a natureza de seu envolvimento
seja difícil de avaliar. E a terrível possibilidade da culpabilidade de Robyn não sairá de sua mente já superaquecida. A música na sua cabeça está nos acordes finais
porque sua participação na terrível balada de Tianna terminou. Agora há uma nova música começando, ou uma recauchutagem de uma antiga, já esquecida. E não é sobre
Britney. É sobre um garoto amedrontado, preso num túnel escuro. E a despeito dos gritos de Dolores e dos protestos de Trudi, isso é tudo que ele consegue ouvir.
– Vamos, Ray – implora Ginger.
Lennox pensa na revista Noiva Perfeita, com o endereço de Trudi ali.
– Eu deixei uma coisa para trás – e ele entra de novo no Volkswagen alugado.
17
Edimburgo (4)
Você via a sede da polícia em Fettes como uma fábrica, uma fábrica que media e distribuía as unidades de humanidade necessárias a todo mundo que entrava por suas
portas. Os suspeitos. Os membros de sua equipe: Gillman, Drummond, Notman, Harrower, McCaig. Você.
Durante todo o processo em trâmite, os sistemas de cumprimento da lei e da justiça criminal, no qual ele era réu, Horsburgh mostrou apenas arrogância e desprezo.
As buscas por propriedades e bens. Os testes periciais íntimos. Os interrogatórios. Os laudos psiquiátricos. As acusações oficiais. Ele apreciou tudo isso como se
fosse um jogo; saboreou o constrangimento geral quando confessou os crimes de Welwyn Garden City e de Manchester. Tudo aquilo significava tão pouco para ele. Mas
significava muito para você, e o sr. Confeiteiro sabia disso.
A coisa veio à tona numa quarta-feira de meados de novembro, três semanas depois de Britney ter sido sequestrada. Você gastara horas com esse homem, tentando descobrir
o que o transformara naquilo que ele era agora. Olhou dentro da alma dele. Não viu nada. Exasperação tomou conta de você.
– Por quê? Por que ele fez isso?
– Porque eu podia – replicou o Confeiteiro, com franqueza improvisada, tirando os óculos que usava para a leitura, balançando-os suavemente para enfatizar o que
dizia. – Foi principalmente pelo esporte. Ah, não me entenda errado. Eu tive muito prazer com o aspecto sexual, mas essa não foi a principal motivação. Muito fugaz,
esse tipo de coisa. Além do mais, ela era um pouco moça demais. Eu prefiro que elas tenham algum tipo de percepção do que vai acontecer com elas. – Os lábios dele
tremiam de satisfação, sabendo que havia chocado você. – Era mais a emoção da caça, vigiando-as, montando seus dossiês, fugindo de vocês. Nós todos somos criaturas
que procuramos emoções fortes, não somos?
Você lutou para manter o silêncio e um olhar tranquilo, para se manter longe das emoções, visando obter pistas. Você estudou nossos assassinos em série, pedófilos
e assassinos, do mesmo modo como fazemos com nossos cientistas, intelectuais e artistas, procurando respostas para o mistério de nossa natureza.
E o Confeiteiro reconheceu em você essa curiosidade fatal, e usou-a para brincar com você.
– Você é diferente dos outros – declarou ele, pomposamente. – Eles querem simplesmente saber como foi. Como eu atraí, dominei, fodi, matei e escondi. Mas você está
realmente desesperado em saber por quê. Quer que eu lhe diga que fui estuprado por meu pai ou pelo padre da igreja local ou por quem quer que seja. Na sua mente
tacanha, deve sempre haver uma causa e efeito. Mas você está apenas protegendo pessoas fracas como você, Lennox. Não consegue aceitar o fato de que o homem é um
caçador, um predador. A sociedade civil está organizada para proteger os fracos e os covardes, sejam eles ricos ou pobres, dos fortes e virtuosos que têm a coragem
de realizar plenamente o destino de sua espécie. Que têm a coragem de pegar o que querem.
O sinistro sorriso de contentamento. Aquela boca elástica que você queria arrancar do rosto dele.
– Você sabe, eu tive no meu encalço todas as polícias da Grã-Bretanha durante a maior parte de cinco anos e você não teve uma porra de pista de quem eu era. Todo
esse tempo eu preenchia queixas na minha delegacia local sobre vandalismo ou barulho vindo de bares, e vocês se desdobraram em me ajudar.
Era verdade. O sr. Confeiteiro, “Horsey”, o pedante funcionário público do Ministério do Interior, do qual ninguém gostava de ficar junto no trem do subúrbio de
manhã, que vinha de Aylesbury a Marylebone, havia ludibriado todos eles. Sua persona, por inteiro, era um ato teatral, escondendo uma mente distorcida, mas calculista.
Fotografia era seu suposto interesse, mas a câmara escura do andar de cima de sua casa, fora do alcance de sua mãe inválida, era realmente um laboratório. Todo fim
de semana e a época de férias eram gastos em planejar seus sequestros e assassinatos. Seu verdadeiro hobby era sequestrar, satisfazer seus instintos animais e matar.
Horsburgh alugava um bangalô a umas poucas horas de distância de carro de sua pretendida área-alvo. Nula Andrews foi levada a um lugar nas Fenlands, Stacey Earnshaw
para o Lake District, e Britney Hamil para o litoral de Berwiskshire. Horsburgh também lhes disse onde o corpo de uma jovem francesa fora enterrado na Normandia.
– Um romance de férias – dizia ele, num gorjeio, encarando, com um sorriso de locutor de TV animando um programa de jogos, a sua raiva fervilhando. – Eles nunca
duravam.
Essa revelação resultou na libertação de um agricultor que ficara sete anos numa prisão na França. Entretanto, o que era crucial, o Confeiteiro se recusou a cooperar
quando você lhe mostrou fotos de outras crianças desaparecidas.
– Não estou muito disposto a ajudar vocês com isso – disse ele, de modo ameno. Mas você sabia que havia mais vítimas.
Nenhuma das crianças desaparecidas fazia parte da abrangente base de dados de jovens mantida por Horsburgh, ou constava de suas detalhadas anotações. Mas também
ausentes eram os registros de Nula, Stacey e Britney; ele obviamente os apagava quando completava sua abominável missão. Quantas outras mais havia?
Você realmente encontrou a van branca. Horsburgh também tinha uma outra, de cor preta, mantendo ambas numa garagem trancada a um quilômetro e meio de sua casa, só
as usando para os crimes. Ele selecionava as vítimas de modo aleatório, tentando se espalhar geograficamente. O Confeiteiro também conservava as fitas que fazia.
Se é que havia uma coisa mais perturbadora para você do que conversar com o Confeiteiro, esta coisa fora assistir à fita de Britney naquela manhã cedo, com Dougie
Gillman.
– São cinco vezes – foi a observação ferina, gélida, dele. – Ele a fodeu, estrangulou-a até ela ficar inconsciente, e depois a reanimou, para outra metida. Essa
era a dele.
A voz de Gillman e as imagens estalavam na sua cabeça enquanto você olhava para as mãos de Horsburgh. Você inspirou com força enquanto ouvia, vindo de algum lugar
profundo do seu próprio ser, o apelo suave e infantil.
– Ela era apenas uma garotinha.
O assassino olhou para você como se você fosse simples: com piedade e desdém. Então você percebeu que Bob Toal entrara na sala de interrogatórios. Ele acenou com
a cabeça para que você o seguisse até fora do recinto, levando-o a uma sala vazia e fechando a porta.
– Está perdendo a serenidade, Ray – alertou ele. – Vá almoçar. Eu quero que Dougie o interrogue esta tarde.
Você agarrou com força o antebraço dele.
– Só mais uma sessão – você implorou.
Toal olhou por sobre o ombro para um ponto a meia distância.
– Está bem, Ray – disse ele, finalmente –, foi você que o prendeu, você merece uma oportunidade de levar a coisa até o fim. – Depois abaixou os olhos para a sua
mão, fazendo você se envergonhar de estar agarrando-o com força. – Mas isso vai contra meu bom-senso: você está um lixo.
E você não pôde contradizê-lo. Na noite da véspera, você chegara à casa de Trudi completamente bêbado. Houve uma discussão e você acordou no sofá, e foi direto para
o trabalho.
– Desculpe – disse ao seu chefe –, vou dar um jeito na minha vida.
Toal olhou para você duvidando.
– Deixe os porquês para os psicólogos. Descubra sobre aquelas outras crianças.
– Obrigado. Vou me prender aos detalhes, como você disse – enquanto vocês se entreolhavam, num impasse, ambos sem saber o que dizer em seguida. Por fim você deixou
escapar a sua intenção de ir almoçar e seguiu para Stockbridge.
Depois, no Bert’s Bar, você assistia a Sky News quando Robert Ellis apareceu na tela. Fora da prisão, autodidata, boa cultura. Gozando seu recém-estabelecido status
de ser o mocinho articulado.
– Peço desculpas às famílias de Stacey Earnshaw e Nula Andrews. Elas mereciam uma verdadeira conclusão, mas, em vez disso, foram forçadas a viver uma mentira todos
esses anos. Acima de tudo, eu sinto sinceramente pela família de Britney Hamil. Enquanto eu apodrecia na cadeia, esse monstro estava solto por aí, livre para fazer
suas inomináveis coisas àquela criança. Cabeças vão rolar – ele ameaçou.
Ellis era agora um herói para aqueles que esqueceram sua abjeta arenga na sepultura de Nula Andrews. Mas você teve a desconfortante sensação de que se Ellis fosse
eloquente vários anos atrás, em vez de instigar brigas nos bares, ele poderia ter sido um homem que levasse nações à guerra.
Você não conseguiu aguentar: foi até o toalete e cheirou uma carreira de cocaína.
Quando voltou a Fettes, você saboreava a chama fria nas veias. Sentia que agora tinha a medida do animal. Na sala de interrogatórios, manteve distância na voz.
– Você ficou remexendo na traseira da van, vigiando para ver se não havia sinais de vida nas janelas. Esperando até que Britney passasse andando por você e ficasse
bloqueada, pelo corpo da van, dos olhos curiosos do outro lado da rua. Você agarrou a garota, meteu-a na traseira do veículo, fechou a porta, amarrou-a, provavelmente
com fita isolante, talvez forçando-a a engolir Rohypnol ou clorofórmio, e depois tomou o assento do motorista, certo?
– E me mandei para meu covil sinistro para devorá-la lentamente. – Horsburgh sorriu. – Você é esperto, detetive-inspetor Lennox. Provavelmente tem treinamento em
tecnologia da informação. Estou chutando. Uma graduação com honras em alguma universidade de segunda classe, mas ainda assim bastante decente. Talvez até mesmo um
mestrado em...
– Cala a porra da boca.
Horsburgh pareceu ofendido, e depois meio desapontado enquanto levantava as sobrancelhas, desdenhosamente.
– Mas você perdeu alguma coisa. As fitas das câmaras de segurança junto à sepultura. Provavelmente você olhou para milhares de metros. Mata os olhos, esse tipo de
coisa. Como está a sua vista?
Você teve a sensação de que estava sendo manipulado. Ficou subitamente bem consciente dos olhares de seus colegas através do espelho.
– O quê?
– Você alguma vez olhou para a primeira aparição do Homem de Casaco?
– Em Welwyn...
– Desculpe, eu me refiro à minha primeira aparição em Edimburgo. – Ele fez uma pausa, capitalizando o efeito do que dissera. Você sentiu a sala aumentar, Horsburgh
se afastando de você. – A filmagem da câmara de segurança no Burger Palace, no terrível shopping center... você não notou, não é?
Você lutou para manter a compostura.
– Continue.
O sr. Confeiteiro riu como uma cachoeira, sacudindo os ombros e fazendo você calar.
– Acho que superestimei você. Cheque as fitas. Na noite da véspera em que peguei a garota, quando ela foi com a mãe e a irmã a um lugar decrépito de fast-food. Se
você tivesse checado as fitas, você me teria visto lá. Usando o casaco de confiança. Você foi relaxado, detetive-inspetor Lennox.
Você pôde sentir os olhos dos outros, Toal, Gillman, através do espelho. Sabia que os olhares não estariam em Horsburgh.
– Eu joguei meu pequeno dispositivo fora, na lata de lixo, pela janela. Um pequeno ruído para atrair a atenção de todos, depois aquela lata pegando fogo. Como as
crianças adoram um incêndio! Foi tão fácil para mim trocar a bebida de Tessa por minha mistura “batizada”; eu sabia que ela pediria um Sprite, ela sempre fazia isso.
Eu esperava que Britney fosse sozinha para a escola no dia seguinte, e com toda certeza... – ele gozou com o autoelogio. – O restante se desenrolou mais ou menos
como você descreveu. O meu ato de descartar os livros da escola e a bolsa foram basicamente um artifício para confundir vocês. Uma pequena provocação. Me entusiasmei
em pensar em você imaginando com fervor o profundo significado desses atos completamente brincalhões. Mas... vocês não pensaram em checar a filmagem da idiota da
câmara de vigilância do bar, na noite anterior? Trabalho policial de segunda categoria, Lenno...
Você voou sobre a curta distância entre você e ele, e colocou suas mãos em torno do pescoço do sr. Confeiteiro. Mas embora o corpo dele ficasse inerte e não oferecesse
resistência, o medo estava ausente de seus olhos esbugalhados. Em vez disso, um sorriso doentio brincava em seus lábios elásticos; ele era um aterrorizante boneco
de ventríloquo. E você ouviu sua voz áspera, fina, fantasmagórica:
– Faz você se sentir bem, não é?
Depois, num movimento lento, de carícia, a mão de Gareth Horsburgh foi até seus órgãos genitais. Você parou, imobilizado pelo toque do pedófilo no seu pênis; aquele
contato, quando você percebeu, horrorizado, que tinha uma ereção. Você afrouxou o aperto e recuou, exatamente quando Gillman e Notman irromperam pela porta.
– Agora você está começando a compreender – disse o sr. Confeiteiro, esfregando a garganta.
Aí você viu como a coisa deveria ser feita. Viu Gillman se movimentar vagarosamente por detrás de Horsburgh. Observou a apreensão substituir a altivez no olhar do
animal. Viu o pedófilo impassível tentar se retesar e ele estava a ponto de falar quando Gillman disse, numa voz neutra, sem emoção, como se estivesse falando do
tempo:
– Agora você é meu.
– Nada de marcas, Dough, Ally – disse você em voz baixa, tentando pateticamente manter a autoridade que você sabia já o abandonara quando fechara a porta, melindrado
pela informação mútua que existia adesivamente entre você e seus colegas policiais, tão íntima e maliciosa quanto o sexo clandestino.
Você foi para a antecâmara, derreou o corpo numa cadeira perto de Toal. Ficou observando, derrotado, através da tela. Há muitas maneiras pelas quais você pode machucar
alguém sem deixar marcas. Todo interrogador em toda força policial do mundo aprende essas técnicas, ou formal ou informalmente, dependendo da natureza do regime.
Você estava certo que Gillman, de pé atrás do agora inquieto sr. Confeiteiro, uma toalha branca nas mãos, conhecia cada uma dessas técnicas.
– Toda essa porcaria sobre um caçador – sorriu ele com desdém, juntando com ruído as duas pontas da toalha –, me fizeram rir, aquela coisa.
Pelo silêncio, Gareth Horsburgh reconheceu que o verdadeiro terror se abateria agora sobre ele, por alguém que entendia o que era castigo.
– Você sabe, eu não vejo esse caçador. – Gillman balançou a cabeça. – Vejo um cara de meia-idade que mora em casa com a mãe dele.
Você não conseguiu ficar. Saltou de pé, saiu da sala e desceu a escada, de novo envergonhado pelo animal. Um Toal diligente veio em seu encalço e alcançou-o no caminho,
já do lado de fora. No penetrante ar frio, seu chefe fez um sermão sobre ser um homem bom, que fizera um bom trabalho. Sobre não seguir o mesmo caminho de Robertson
e decair. Depois ele sussurrou:
– Você foi flagrado por uma câmera saindo de um bar em Newcastle frequentado por traficantes.
– Chefe, eu...
– Não diga nada, Ray. – A cabeça de Toal girou para a frente e para trás. – Já tomei providências. Não converse com ninguém sobre isso. Marquei uma consulta de aconselhamento
para você com Melissa Collingwood. Você está oficialmente de licença até segunda ordem. Vá ver Trudi, Ray.
Você acenou afirmativamente, seguiu pela avenida Comely Bank e embarcou num táxi até o bar Jeanie Deans. Tudo em que podia pensar era: eu não pensei na câmera no
centro, na porra daquele bar. Eles tinham uma lá, para checar quem entrava e saía dos toaletes, e sobre os balcões para dar conta de furtos e agressões aos atendentes.
Eu simplesmente não pensei sobre a noite da véspera. Por quê? Porque eu só pensava em Angela, aquela sem-vergonha suja, preguiçosa, que ela era, que envenenou sua
própria filha com alimento estragado.
Então você foi até o bar que costumava frequentar com Robbo e diversos outros policiais descontentes e esgotados de trabalho. Encontrou alguns dos rapazes lá e bebeu
um monte de vodca, antes de ser abatido por uma piada doentia.
18
No tombadilho
Lennox vai de carro de volta à costa do golfo a uma velocidade constante de quase cento e trinta quilômetros por hora; o ar-condicionado desligado e as janelas abaixadas,
sorvendo o cheiro da noite, enquanto sai da via expressa para a bifurcação que leva à Rodovia 41, passando para a sinuosa e escorregadia estrada para Bologna.
Aos trinta e cinco anos, ele se sente subitamente mais velho, sentindo as estações passarem por ele velozmente. Dos vinte e oito aos trinta e quatro o tempo parecia
ter parado, um hiato bem-vindo, depois de duas décadas de avassaladora volatilidade, mas então os seus trinta e cinco anos lhe deram um salto quântico para a meia-idade.
Massacrado pela angústia, ele imagina o seu próximo cataclísmico aniversário, e a ânsia para desfrutar quase o sufoca. Lennox sente que ele deveria estar olhando
para a eminência das estrelas fulgurando através das copas nuas e escuras das árvores, mas está prestando atenção demais em dirigir naquela estrada sinuosa e traiçoeira,
pelas fáceis rodovias dos Estados Unidos, que esperam para se apossarem dele. Sua necessidade de concentração é uma reação à fadiga, mas também porque ele sente
uma atração inquietante espreitando naqueles céus; as estrelas parecem mais próximas agora, fogos de artifício detonados, congelados, amontoadas no ar com um aspecto
crítico, perigoso.
O ar ao nível do solo está ainda quase diáfano na sua umidade, mas as palmeiras farfalhantes acima dele sinalizam um vento que aumenta de intensidade enquanto a
estrada segue suas curvas cada vez mais tortuosas. Então, à sua direita, luzes de variada potência tremeluzem entre as árvores quando a cidade surge acima do pântano
de mangues.
Quando ele entra no porto, a marina fica à sua esquerda; as lâmpadas do postes, como luas, lançam ondulações na água, as estrelas agora um brilho pálido no céu de
breu acima, e ele pode ver nuvens de trovoadas se amontoando sinistramente através da escuridão manchada para o norte. Passando por sobre os pântanos, elas puxam
os ventos dos arbustos do pântano ao se avolumarem numa aproximação ameaçadora.
Entrando no estacionamento quase vazio, ele vê o barco de Chet atracado debaixo de uma lâmpada acesa. Quando Lennox sai do carro, uma figura solitária emerge do
escritório na fileira de corretoras de seguros.
– Você teve sorte em encontrar o velho Chet. – Don Wynter roda um molho de chaves, olhando para a embarcação atracada. – Acho que ele está planejando fazer uma viagem
longa. Até as Keys, ou talvez as Bahamas. Muitos suprimentos; eu sei disso porque vendi tudo pra ele. – O homem ri. – Boca fechada sobre isso tudo. Acho que ele
tem alguma coisa gostosa escondida aí.
– Tem mais alguém no barco? – Lennox pergunta.
– Acho que não – diz o tagarela administrador do porto, e começa a faladeira, mas Lennox virou-se abruptamente e partiu na direção da embarcação. Subindo na prancha
de embarque, ele olha para baixo, para a água oleosa, antes de pular para dentro do imaculado barco. Está escuro, mas sai luz da cabine embaixo. Entretanto Chet
está na ponte de comando, e ambos os homens se espantam com a inesperada presença do outro.
– Lennox. O que... O que é que você está fazendo aqui?
– Eu esqueci uma coisa aqui – diz, ríspido, e se dirige sem convite para baixo, para a área da cozinha e das refeições. A cópia amarfanhada de Noiva Perfeita está
na mesa, onde Tianna a deixou; aparentemente intocada. Ele pega a revista, o rosto sorridente da noiva-modelo estranhamente acolhedora. Depois ele observa que a
porta do camarote maior está fechada. Ele a abre e olha para dentro. Vazio. Assim ele sobe os quatro degraus de carvalho e volta para o tombadilho da ré da embarcação.
Chet fica de pé diante dele, trêmulo, mas embora a brisa esteja aumentando de intensidade, ela ainda não conseguiu mudar a umidade do ar, e não faz frio. Ele olha
para a revista na mão de Lennox.
– Deve ser valiosa, para você voltar para pegá-la.
– É – reconhece Lennox –, é mesmo. – Depois ele levanta o olhar para o céu. – O tempo está mudando um pouco.
– Mas a previsão não é muito ruim. As nuvens de chuva devem passar por cima de nós, sopradas pelo vento – diz Chet, distraidamente. – Tianna está bem, e em segurança?
A antena de Lennox dá um sinal. A segurança de Tianna tornou-se uma reflexão tardia.
– Está sim. Ela está com amigos meus.
– Que bom – diz Chet, inquieto.
Lennox sente alguma coisa espetar seu braço. Ele bate com a revista que está na outra mão, acertando a pele queimada de sol, mas esmagando o mosquito que se empanturrava
com seu sangue.
– Safado – exclama ele.
– Você fica imunizado, e além disso eles não transmitem malária aqui.
– Não pretendo ficar por aqui tempo o bastante para ganhar imunização – diz Lennox. – Somente uma pergunta – embora ele saiba, pela tradição policial, que outras
se seguirão –, Lance Dearing já esteve neste barco?
Enquanto as palavras saem de seus lábios, ele percebe que Chet está na realidade olhando por cima de seu ombro. E então ele ouve um arrastar de pés atrás dele. Mas
Lennox não consegue reagir a tempo e sente alguma coisa colidir contra ele com força, e é como se seus dentes estivessem sendo empurrados para fora do rosto por
alguém de trás. Ele cambaleia para a frente, lutando para continuar consciente, mas uma explosão de cor laranja na cabeça vai se transformando em negrume. Lute contra
essa merda. Lute. Ele não sente nada, mas vê uma misturada de peixe e batatas fritas se derramando dele no tombadilho. Aí alguém está em cima dele, forçando seu
rosto contra o próprio vômito. Ele não consegue resistir; é um títere com os cordéis cortados. Imediatamente ele pensa em Dearing e Johnnie, quando ele sente os
pulsos sendo amarrados com alguma coisa, que ele suspeita seja linha de pesca, e depois o mesmo acontecendo com seus tornozelos. Agora ele está ciente do espasmo
na garganta, e conta silenciosamente, esperando por uma trégua que lhe permita ou engolir ou expelir suas regurgitações parciais. Então ele parece estar respirando
ar fresco por um buraco no peito.
Conforme sua visão clareia, ele recua os joelhos e examina os tornozelos, confirmando suas suspeitas quanto à natureza dos liames que o prendem. Aí a silhueta de
uma dançarina de boate e um slogan EU APOIO MÃES SOLTEIRAS entra no seu campo de visão, e Johnnie está agachado sobre ele. Além da camiseta ele usa calça de poliéster.
Os olhos injetados de Lennox esquadrinham, numa busca entrecortada: nenhum sinal de Dearing. Ele vê o logotipo azul de Noiva Perfeita, a revista virada para cima
sobre seu vômito.
Johnnie empunha uma chave inglesa ajustável, grande, enferrujada, e ele está gritando alguma coisa para Chet. Lennox não consegue distinguir as palavras. Seu crânio
lateja e o fedor de seu próprio vômito permanece no nariz e na garganta. Sua respiração ganhou a velocidade de uma locomotiva a vapor. Cada inspiração ou expiração
exige sua atenção. Descansando a cabeça no tombadilho, ele fecha os olhos e fica ali deitado em choque pelo que talvez fossem horas, mas, ao abri-los, a distância
das luzes do porto indica a passagem de apenas uns poucos minutos.
Ele tenta engolir. A saliva não se acumula na sua boca e garganta, áridas. Sua cabeça pulsa, os tímpanos espoucam, o cheiro acre de seu próprio vômito se levanta
de sua camisa. Os tendões de sua nuca estão esticados, como se seu crânio fosse de chumbo. A peia apertada nos pulsos não deixa que ele enxugue o suor que arde nos
olhos. Ele pensa na sua localização, firmado no assento do tombadilho na popa da embarcação. Ele consegue ver Chet ao leme enquanto o barco segue adiante. O velho
auditor de impostos não olha para Lennox, como se testemunhar sua humilhação fosse uma cruz grande demais para carregar.
Um profundo medo se apossa dele. Lidar com pessoas que foram assassinadas em circunstâncias suspeitas o tornou ainda menos disposto a se juntar a essas últimas.
Os policiais queriam saber o que a pessoa morta comeu, o que vestia, bebia, lia, quem ela conhecia, quem fodia com ela, e como gostavam de fazer isso. Eles examinavam
debaixo de suas unhas, dentro de sua boca, na sua bunda, em torno dos órgãos genitais, e dentro do estômago. Depois eles fuxicavam suas correspondências, diários,
e-mails, contas bancárias e investimentos, até que eles conhecessem você melhor do que você mesmo conhecia. Lennox sempre ficava atormentado com o sentimento de
mortificação a que seu próprio espírito seria obrigado ao prestar testemunho do inominável abuso de seus restos mortais.
A última coisa que ele deseja é ser tocado, mas é estranhamente confortante sentir uma mão debaixo de seu sovaco o colocar de pé. Porém, seu crânio dói tanto que
ele imagina sua cabeça como se ela estivesse fisicamente partida em dois, a massa encefálica se derramando pela nuca, escorrendo para dentro do mar pela fibra de
vidro lisa e branca do barco. O enjoo percorre seu corpo como uma âncora lançada à água. Ele comprime as solas dos pés metidos em tênis, tentando conseguir tração
no tombadilho agora escorregadio pelo seu próprio vômito. – Está tudo bem – diz uma voz no seu ouvido. Sua bunda sente o assento moldado e ele gira os quadris para
ajudar a força que o guia para cima do assento.
– Você está bem? – Johnnie pergunta, a preocupação genuína na voz surpreendendo Lennox.
– Acho que você fraturou meu crânio. – Ele olha para a barbicha já crescida no queixo de Johnnie. – Preciso ir a um hospital.
– Se você está bem o bastante pra falar assim, então você não precisa de hospital nenhum. – A maneira de Johnnie é agora adversa e parece infantil.
– Então você é médico?
Johnnie não empunha mais a chave inglesa, mas Lennox vê uma faca de mergulhador metida na bainha, presa ao cinto, uma visão estranha contra uma calça de poliéster.
– Eu não queria machucar você – diz ele, balançando a cabeça –, mas por que você foi meter a porra do seu nariz grande nos assuntos de outras pessoas?
– É uma questão de território – diz ele, flexionando os membros contra as amarras. A natureza rígida destas lhe traz um acesso de pânico contra o qual ele luta.
Ele vai se afogar. Ser jogado por sobre a amurada. Ter o ar impedido de sair dos pulmões pela força do mar. Ele pode imaginar o último ar que expelirá, uma bolha
se tornando tangível e mensurável pela água em torno dela. Ver a bolha explodir, liberada na superfície, enquanto seu corpo sem vida flutua lá embaixo.
– Que território é esse? – Johnnie pergunta.
Lennox não consegue pensar no que dizer. Aí Chet diminui a marcha do barco, levando os motores para uma lenta velocidade de cruzeiro. Pensando na mariposa, Lennox
estremece. Enquanto o terror dança diante de seus olhos, ele percebe que suas ideias de uma morte digna eram fantasiosas.
Como é que eu vim parar aqui?
O sr. Confeiteiro, foi ele que fodeu minha cabeça. Toda vez que Lennox encontrava Horsburgh ele queria que o mundo engolisse um dos dois. Depois, ele ia até o bar;
bebendo para tentar obliterar a merda que ouvira sair da boca daquele homem. Uma carreira de cocaína ajudava. Foi “Horsey”, o sr. Confeiteiro, que o levara até ali?
– Por que essa parada, porra? – Johnnie berra para Chet. – Nós não estamos aqui para procurar os porras dos golfinhos!
Uma ave marinha solta um guincho e Lennox sente a espuma feita pelo barco limpar seu rosto. Uma calma impressionante desce sobre ele, os pensamentos parecendo se
tornar abstratos. Um pensamento estranho mas urgente o acomete: a peça que faltava do quebra-cabeça tinha que ser um goleador de mais de vinte gols na temporada.
Atualmente havia uma cobrança demasiada de gols nos dois homens do meio do campo, Skacel e Hartley. Aí ele vê que Chet está perdendo o comando, relatando para Johnnie
o rotineiro medo de encalhar.
– Nós estamos na porra dos baixios e esse barco pesa mais de 12 toneladas, e isso antes de sua bunda gorda entrar nele. A menos que você queira que eu encalhe e
tenha que chamar a guarda-costeira para nos resgatar, eu sugiro que avancemos com precaução, porra!
Johnnie faz uma expressão aborrecida para Chet; ele vai dizer algo, depois para. Em vez disso, segurando a balaustrada que circunda a embarcação, ele se vira para
Lennox.
– Muito bem, babaca. Quem é você, porra?
Lennox ainda está pensando no sr. Confeiteiro, Gareth Horsburgh. A arrogância do animal zombeteiro: como se aquilo fosse um ato que ele houvesse ensaiado em muitas
ocasiões, em particular. Ele se lembra de ter perguntado a Stuart como ele se preparava para seus papéis como ator: o corrupto jovem advogado de Taggart, o veterinário
estagiário em Take the high road, o marginal usuário de várias drogas em The vice.
Encontre a essência do personagem. Torne-se um com ele, encarne-o.
O que faria Horsburgh se ele fosse o cativo? Ele seria debochado, rindo desdenhosamente para aqueles insetos. O sobranceiro funcionário público, com sua maleta e
sanduíches, se deliciaria em ser o maior, o mais inteligente, o mais maligno dos animais naquela selva.
– Eu nunca pensei em me meter nisso tudo, Johnnie. – Ele ouve os tons de sua voz saírem curtos e precisos. – Agora eu vou pedir a você para fazer uma coisa por mim.
– O quê... que porra você vai querer que eu faça por você?
– Eu vou pedir a você que se livre de mim.
E Ray Lennox, o sr. Confeiteiro, tenta se levantar. Sua bunda se levanta uns poucos centímetros do assento, antes que o movimento do barco o jogue para trás, machucando
sua espinha.
– Fique onde você está ou isso é exatamente o que eu farei – diz Johnnie –, lançar a porra da sua miserável bunda por sobre a amurada.
– Mas eu quero que você faça isso. Quero facilitar as coisas para você – insiste Lennox, o Confeiteiro, tentando levantar-se de novo. – É só me ajudar e eu pulo.
– Do meu barco você não vai fazer isso – deblatera Chet por sobre o ruído do motor. – Eu nunca perdi ninguém no mar e não pretendo...
– Fecha a porra da matraca! – Johnnie berra, empurrando Lennox de volta para o assento com uma das mãos, segurando a balaustrada com a outra. – Estou avisando, seu
filho da mãe!
Lennox olha para Johnnie agora, com os olhos deliciosamente meio fechados, sentindo o pulsar do poder nos seus membros amarrados.
– Você sabe o que quero. Porque você sabe que sou como você e só há espaço para um de nós.
Os ombros de Chet se eriçam e as costas enrijecem enquanto ele segura o timão com força. Quando se volta, seus olhos estão esbugalhados e despejam fogo.
– Que diabos você está dizendo...?
Johnnie olha estupefato para Lennox, depois há uma centelha de interesse.
– Quando eu tropecei no seu pequeno ninho de víboras eu estava tão excitado – explica Lennox, num balbucio, seus sentidos agora meramente um meio de condução para
a voz de um outro: alguém que ele odiava. – Sabe, eu tinha mandado e-mails para casa, para minha própria organização, tentando entrar em contato com almas irmãs
aqui nos Estados Unidos. Mas não tive sorte. Eu estava caçando por conta própria quando eu encontrei ela, por acidente. A mãe. Eu pude sentir o cheiro da coisa nela;
você sempre pode. E a garota. Você sabe como eles me chamam lá na Escócia, Johnnie? O sr. Confeiteiro. Mas eu nunca tentei uma criança com balas. Mas as mães delas,
ah, elas podem ser compradas com uns poucos drinques e uma conversinha mole.
Ele pode ver sua própria fealdade refletida nos olhos de Johnnie. Era como se estivesse olhando para Horsburgh.
Como ele me marcou, como eles sempre marcam você.
– Uma mulher zonza, negligente, com baixa autoestima, e uma deliciosa ninfeta, ensinada a dar prazer e não dizer nada. Eu estava fazendo minha jogada quando você,
Johnnie – e ele faz um movimento contido na direção do outro –, você quase arruinou tudo com sua abordagem de troglodita. Mas eu devo realmente agradecer a você.
Foi sua ação que entregou a garota aos meus cuidados. Eu passei uma noite deliciosa naquele quarto de hotel, Johnnie. Foi esse o resultado, e eu fiquei muito agradecido.
– Você está falando merda – diz Johnnie, ambas as mãos brancas, agarradas com força à balaustrada, mas seu desdém fraco não pode esconder a atração que Lennox exerce
nele.
– Calem a boca – grita Chet. – Calem a boca, suas porras de pervertidos – e ele se desintegra num uivo agonizante. – Já ouvi bastante disso. Toda a porra de sua
chantagem! ISSO TERMINA AGORA!
Johnnie olha de Lennox para Chet.
– Se eu conto a Dearing isso, você está fodido até a porra, meu velho!
– Então, ao vencedor as batatas – arqueja Lennox, atraindo de novo a atenção de Johnnie para ele. – Ela é sua e eu nunca verei a beleza de uma bocetinha sem pelos
de novo.
– Nós vimos ela primeiro, seu porra: nós rastreamos aquela puta imbecil da mãe durante meses... você acha que eu gostei de trepar com aquela mocreia cheia de estrias?
– Ele aponta para a dançarina da boate no peito. – Eu gosto de bocetinha jovem, é tudo. Eu fiz a porra do trabalho sujo e aí Dearing entra na jogada... – Johnnie
para, como que percebendo que falou demais.
– É justo – diz Lennox, enquanto Chet geme alguma coisa que ele não consegue entender. – Então, que se foda: pode me lançar aos peixes. Eu também gosto de uma bocetinha
jovem; na verdade, não posso passar sem ela. Foi uma tremenda onda enquanto durou!
A cabeça de Johnnie balança com vigor.
– Ninguém vai parar na boca da porra dos peixes...
– Mas é Lance quem está mandando. Ele vai querer se livrar de mim, depois vai destruir você, muito antes da hora marcada para você morrer, Johnnie.
– Você não sabe nada sobre nós...
– Eu sei pelo que você está dizendo que você está fazendo o trabalho sujo e ele é quem sai com os lucros.
Johnnie se empertiga, põe uma mão no quadril.
– É isso mesmo – reconhece ele.
– E eu sei que eu poderia dar a você mais opções do que isso. – Lennox olha para as águas escuras, paradas. – Os Estados Unidos estão acabados, Johnnie. O país está
rastejando com os federais e o pessoal da Agência Contra Drogas. Drogas, terrorismo, imigrantes ilegais; toda essa paranoia frustrante sobre as fronteiras. No meu
esquema, nós pegamos garotas realmente lindas: da Europa Oriental, asiáticas. Os controles nas fronteiras são limitados, os alertas de terrorismo quase zero. A maioria
delas nem mesmo sabe falar inglês. Aquelas garotas tailandesas, Johnnie – diz ele, enquanto o adversário lambe os lábios –, elas são um outro padrão. Não são dondoquinhas
saturadas de MTV que esperam retribuição; elas são silenciosas e obedientes, exatamente do modo como nós gostamos delas, não é?
Um sorriso enorme racha o rosto bochechudo de Johnnie em dois.
– Parece coisa de primeira para mim – diz Johnnie. Depois seu rosto fica duro, de novo. – Mas Dearing...
– Esqueça Dearing. Ele é um tira. Se você começa a se livrar dos corpos e, parece que essa coisa toda vai dar merda, aí quem é que vai pagar o pato? O tira ou as
marionetes? – Ele grita para Chet. – E você? Você não é assassino. Você vai deixar Dearing levar você pela coleirinha?
– CALEM A BOCA! CALEM A BOCA, SEUS PORRAS DE PERVERTIDOS DESVIRTUADOS!
Johnnie se vira e olha para Chet.
– Vai se foder!
– Passe para meu lado, Johnnie! – grita Lennox. – E eu não vou deixar você na mão.
Johnnie acena afirmativamente com confusa cumplicidade, e Lennox não consegue acreditar. O porra do simplório. E agora ele está chegando por detrás de Lennox e está
cortando as duas peias com uma faca serrilhada. Ele não regula bem. Enquanto seu rosto fica amassado no peito flácido de Johnnie, ele quase sente pena de Dearing,
metido com um auxiliar trapalhão desses.
– Eu bem que poderia ter um pouco de ajuda, Ray. As coisas saíram um pouco fora de controle. Dearing acha que sabe tudo, mas...
Johnnie arqueja quando seus olhos se esbugalham e depois reviram na cabeça e ele desaba para a frente, esmagando Lennox, que tenta inutilmente deslizar para fora
do corpo do outro. De pé, acima, segurando um extintor de incêndio, está Chet. Lennox fica imobilizado com o peso de Johnnie, inerte e arquejante no seu colo, incapaz
de se livrar da última das peias nos pulsos. Transtornado de fúria, Chet mantém o extintor preparado para outro golpe.
– Seus porras de canalhas! JÁ OUVI O BASTANTE DE VOCÊS! – Ele levanta o cilindro de metal acima da cabeça, enquanto Johnnie desliza de cima do corpo de Lennox, rolando
pelo tombadilho com os movimentos de um peixe retirado da água.
– PARA! – berra Lennox. – Eu NÃO sou o que você pensa!
Chet faz uma pausa, cambaleia, mas mantém o equilíbrio, enquanto Lennox percebe que ninguém dirige o barco.
– Eu inventei aquela merda para ganhar tempo com esse filho da mãe. – Ele lança um olhar para Johnnie, que geme.
– Ninguém está jogando limpo, porra – resfolega Johnnie, em delírio –, apenas o Johnnie aqui está tentando jogar limpo...
Chet não afrouxa a mão que segura o extintor.
– Já ouvi bastante besteira e mentiras...
– OLHE! Pelo amor de Deus, olhe minha identidade na minha carteira. Sou policial! – grita Lennox. – Tianna está em segurança, ela está com a minha noiva, Trudi.
Tenho um número na minha carteira com a identidade, se você quiser fazer contato com ela lá!
Chet finalmente abaixa o cilindro de metal. Seu poderoso punho agarra o pescoço de Lennox.
– Eu devia... – ele começa a falar, enquanto Lennox sente sua garganta se contrair, mas a outra mão do marujo já está tirando a carteira de seu bolso. Ele afrouxa
o punho e lê um cartão enquanto Lennox engole ruidosamente um sorvo de ar. – Polícia de Loth e Fronteiras? Que diabo é isso? Isso nem mesmo é Alasca... ou Utah...
você não tem jurisdição aqui! Que diabo isso tem a ver com você?
– Nada – arqueja Lennox, lutando para encher os pulmões. – Absolutamente merda nenhuma. Sou um policial de férias com minha noiva. Estamos planejando nosso casamento.
Tivemos uma discussão séria e eu saí irritado e encontrei Robyn e a amiga dela num bar. Depois, bem, você sabe o resto. – Ele acena com a cabeça para Johnnie, que
geme, ainda esparramado no tombadilho.
Chet olha para ele por uns segundos.
– Eu acredito em você – diz ele, finalmente –, vou libertar você e depois...
Mas subitamente Johnnie salta de pé, sangue escorrendo pelas costas, agarrando a faca no cinto. Ele dá um golpe na direção de Chet e erra.
– SEU IDIOTA DA PORRA! PODIA TER ME MATADO, PORRA!
Chet grita e corre para o deque superior, com Johnnie em seu encalço.
– Não fuja desse babaca gordo, você é halterofilista; quebra a porra do pescoço dele! – Lennox berra. Depois, há uma parada inevitável e estrondosa, e, com o impacto,
ele é jogado para fora do assento, enquanto vê Chet e Johnnie desaparecerem do tombadilho como assistentes de mágico. Não há tempo para pensar no que está acontecendo;
ainda amarrado, ele se movimenta pelo deque inferior, batendo com as costas primeiro nos degraus que levam à ponte de comando.
As coisas se movem mais devagar depois da estridente perda de impulsão. Lennox balança a cabeça e tenta clarear os pensamentos. Um ruído de engrenagens vindo dos
motores lhe diz que a embarcação encalhou. Ele tenta recuperar o fôlego. Não consegue determinar onde estão Johnnie e Chet, enquanto os mecanismos de propulsão continuam
a rosnar e sibilar, impotentes, mas parece provável que o impacto jogou os dois por cima da balaustrada. Ele se adianta na direção dos degraus que levam para baixo,
para a cabine, passando as pernas por cima. É uma caída abrupta e ele está com os tornozelos amarrados, mas não tem escolha. Respirando forte, ele inala profundamente
para livrar-se de tudo supérfluo ao pulo. Seu corpo parece deixar a essência para trás quando ele percorre a distância caindo, mas ele se recupera quando seu corpo
bate no deque, os pés na frente, e caindo para o lado, um brutal sinal de dor fazendo-o pensar que quebrou o braço. Forçando o corpo contra o armário da cozinha,
ele se põe de pé, esticando a linha de pesca que prende seus pulsos contra os dentes do abridor de latas eletrônico. Não podendo ligar o aparelho, ele vai serrando
o liame de maneira grosseira. Quando consegue se libertar, a dor no braço quase o faz desmaiar. Equilibrando-se com a mão direita inchada, Lennox inspira profundamente,
tentando diminuir o ritmo das pulsações. Depois ele vasculha as gavetas vazias, encontrando uma outra faca serrilhada e levando-a aos tornozelos, contorcendo-se
quando consegue se libertar.
Por toda parte em torno dele, a embarcação, agora inclinada a vinte graus, emite gemidos e rangidos soprados pelo vento, balançando violentamente e rangendo enquanto
o casco vai sendo despedaçado. As portas dos armários se abriram num dos lados, jogando as provisões desordenadamente pelo chão.
Lennox esfrega a parte de trás da cabeça com a mão direita, que lateja. Há uma inchação oval, macia ao toque, mas não há sangue. Ele sente uma dor insuportável no
braço esquerdo; não consegue levantá-lo acima do peito. Não obstante, ele sente uma carga de adrenalina e sobe os degraus, saltando para a proa. Johnnie está acima
dele; no deque superior, a estibordo, faca em riste, ameaçando, mas sem tentar golpear Chet, que se segura na balaustrada, tentando subir de volta ao barco inclinado.
– Deixa eu subir ou o motor vai queimar – ele previne.
Ainda bem que são amadores, não sabem o que estão fazendo, se consola Lennox. Pedófilos nojentos, sim, mas diferentes de um assassino perturbado como Horsburgh.
Pedofilia é seu passatempo, puro e simples; eles não têm planos de contingência, nenhuma estratégia de fuga. As coisas estão saindo erradas para eles, como ele descobriu
que no fim acontece com toda atividade criminosa. Era como nos agentes de apostas ou nos cassinos: a grande tacada ocasional apenas apressando sua nova perda devastadora.
Mas um sentimento fervilha nele, e ele anseia pela liberação da violência.
– Então vem, gordão – grita ele. – Deixa eu pegar você!
Johnnie se vira e avança contra Lennox, a faca na mão, lutando para se equilibrar no tombadilho inclinado. A despeito de sua corpulência, Lennox pode ver que o homem
transpira medo. Ele julgara mal aquele viciado punheteiro, pensando que era o valentão do pedaço, mas Johnnie está tão perdido quanto o barco encalhado.
Lennox adota o método de ataque pelo lado, e, embora seu braço esquerdo ainda doa, ele consegue levantá-lo na posição de bloqueio. Ele consegue fazer entrar uns
socos fracos que o machucam mais do que ao oponente, mas o simples choque do contato quase desmonta Johnnie. Este lança um golpe largo e fraco com a lâmina, mas
isso faz com que ele perca o equilíbrio, permitindo que Lennox dê um passo para o lado, afastando-o com a direita, para proteger seu pulso avariado. Ele prossegue
atingindo Johnnie com uma rasteira, mandando-o cambaleante às cegas sobre o tombadilho. Depois de mais alguns golpes, Johnnie largou a faca e está lentamente sendo
vencido.
– Eu vim com minha noiva de férias PARA FICAR LONGE de marginais como você. E esse babaca do Dearing é uma merda de policial. – Seu pé atinge com força a cara do
homem gordo, extraindo dele um ganido tipo canino. – Onde está ela, Johnnie? – Lennox intervala suas perguntas com chutes. – Onde está Robyn? Onde está Dearing?
Onde está a porra da Starry?
Os gemidos de Johnnie quase não podem ser ouvidos sobre o barulho dos motores. Mas quando eles de repente são cortados, ele ouve o outro uivar:
– NÃO SEI!
Lennox olha para o tombadilho superior, a estibordo. Chet subiu de volta ao barco e foi até a ponte de comando, desligando os motores.
Johnnie agora se contorce como uma boneca, com Lennox sentado em cima dele, a mão machucada em torno da garganta do outro, a outra mão pronta para martelar mais.
Por fim o miserável concorda.
– Robyn está na casa dela; Starry está com ela. Lance está se reunindo com umas pessoas... no Embassy Hotel hoje à noite... em Miami.
Ajudado por Chet, Lennox devolve o tratamento que Johnnie lhe infligiu, amarrando seus pulsos e tornozelos com linha de pesca.
– Eu não ia machucar ninguém – diz Johnnie, humildemente.
– Cala a porra da boca – grita Lennox, golpeando-o no rosto com as costas da mão esquerda. Um líquido amarelo se espalhando pela calça de poliéster o encoraja a
levantar-se. O modo vagaroso como a urina se derrama na direção do exemplar de Noiva Perfeita o faz perceber que o ângulo do barco está quase normalizado desde que
Chet desligou os motores.
Lennox chuta a revista para fora do alcance da urina e faz um gesto para Chet, e eles descem para a cabine. Os dois homens se sentam enquanto Lennox esfrega o braço
e depois massageia seus globos oculares doloridos através das pálpebras fechadas.
– Quero saber o que está havendo.
Chet acena afirmativamente e olha para a bagunça no chão, depois se dirige até um armário trancado, dali tirando uma garrafa de uísque maltado e dois copos lapidados.
Lennox faz uma careta para a bebida oferecida, enjoado com o cheiro.
– Eu não bebo essa coisa.
– Um escocês que não bebe uísque?
– É assim que são as coisas – diz ele, mas certamente ele precisa de um drinque. – Alguma outra coisa?
– Eu tenho uma vodca ucraniana.
– Serve.
– Com soda?
– Ótimo – diz Lennox, imaginando por que motivo ele está bebendo com aquele homem, até mesmo quando engole o líquido rapidamente, apresentando o copo para mais uma
dose.
Depois de encher novamente o copo de Lennox, Chet põe para fora seu modo de ver os acontecimentos.
– Eles estão mantendo Robyn no apartamento dela, com Starry. Eles parecem acreditar que ela manjou qual é o negócio deles, mas, na minha opinião, eles pensam que
ela sabe mais do que realmente sabe... se é que você está me entendendo.
Lennox faz um gesto afirmativo com a cabeça, insistindo para que o outro continue.
– Eu preciso cair fora disso, Lennox. Essas pessoas são doentes e más. São pedófilos e só Deus sabe o que mais. Dearing me disse que você era um deles, um cara de
fora do esquema tentando entrar no clube de sexo...
– Não. Eu não sou mesmo.
– Desculpe. Eu não podia ter certeza.
– E, quanto a você? Como é que você...
– Eles estão me chantageando. Eu não sei pra onde me virar. Dearing é policial, pelo amor de Deus.
Lennox solta um pouco de ar, vagarosamente. Logo que ele soube de Dearing, percebeu que nunca poderia ter procurado a polícia em Miami. Seria como um policial das
ilhas Fiji entrando na sede da polícia escocesa em Fettes e dizendo a um policial na recepção: “Um de seus policiais está controlando uma rede de pedofilia.”
– Depois que eles descobriram minha fraqueza...
– Ah, é mesmo? – Lennox exclama, ameaçador. – E que fraqueza é essa?
Chet olha para ele com expressão triste.
– Não é o que você está pensando. Eu juro para você que nunca toquei em Tianna nem em qualquer outra criança, nem fiz com que elas fizessem qualquer coisa. – Ele
diz aquilo com tanta ênfase que Lennox pode ver que o pensamento causa repulsa ao marujo. – Eu nunca fiz ninguém fazer nada. Eu apenas gostava de observar, não com
crianças, é óbvio. Eu não sabia nada sobre isso. Por favor, acredita em mim! – ele implora.
– Continua.
– Pamela se foi, Lennox, e eu fiquei solitário. Isso era para ser o nosso paraíso da aposentadoria; eu trabalhei, economizei e investi cuidadosamente toda a minha
vida, para que pudéssemos gozar desse sonho juntos. Nós vivemos esse sonho durante dezoito meses até que ela ficou doente e morreu cinco meses mais tarde. Eu estava
muito deprimido quando conheci Robyn e Tianna.
Lennox levanta as sobrancelhas.
– Não havia nada entre mim e Robyn. Ela tornou claro que não estava interessada, e para dizer a verdade, eu também não estava. Mas por meio dela eu conheci Johnnie
e Lance. Eu sabia que eles eram marginais, especialmente Johnnie – a cabeça dele se vira na direção da proa –, e que faziam o que fazem. A princípio eram somente
mulheres. O máximo que cheguei a fazer foi deixarem eles usarem o barco, e assistir à estranha fita que eles haviam gravado. Mas eles são uns filhos da puta safados;
eles filmaram a coisa de uma maneira que todo mundo soubesse que as cenas estavam sendo filmadas no meu barco. Eles sabiam que essa embarcação era a minha vida e
que eu estaria acabado se a coisa viesse à tona.
– Então você mergulhou tão fundo na coisa que não tinha como escapar – diz Lennox. Aquilo era muito comum. Pessoas sendo chantageadas muitas vezes capitulam, pensando
que podem ganhar tempo, mas geralmente terminam piorando o problema, envolvendo-se ainda mais no esquema.
– É – geme Chet. – Eu nunca faria nada. Eu nunca trairia a memória de Pamela. Eu estava apenas tão solitário e aborrecido. Eu só assisti à fita umas poucas vezes!
– Ele olha para Lennox, como que fazendo um apelo.
É esse o problema. Muita, muita gente gosta de assistir.
– Quando você soube que eles eram pedófilos, em vez de serem apenas garanhões fazendo filme pornô?
Chet dá um bom gole no uísque.
– Eu sabia que a coisa iria levar a algo ruim, mas eu não tinha ideia de que envolvia crianças. Aí, quando eu vi uma fita que eles haviam feito com garotas bem novas,
aquilo foi a gota d’água para mim. Eu comecei a fazer cópias daquelas que eles mantinham aqui, para servir de prova. Eu ia derrubar os animais antes que pusessem
as mãos em Tianna. Ela é amiga da minha neta, Lennox!
O dedo indicador de Lennox se estende e acaricia o nó do osso retorcido na lateral do seu nariz.
– Acho que você chegou tarde demais.
– O quê? – Chet arqueja, a expressão derreada.
– Onde estão as fitas?
– Eu guardo elas aqui. – Chet olha nervosamente para o camarote principal.
– Alguma coisa mais?
– Ah, sim – diz ele. – Eu tenho uma lista de nomes. Desses monstros e suas pretensas vítimas. Eu entrei no site deles na internet. Johnnie era desleixado. Ele começou
a vir aqui com cartonados de cerveja, botando banca. Exigindo que eu levasse ele para pescar. Ficava sentado lá embaixo assistindo às fitas, ou entrando no site.
Eu encorajava ele, esperava ele ficar bêbado e deixar a janela aberta no computador dele. Está tudo codificado, é claro. Eles têm sua própria linguagem, tudo está
disfarçado em jargão de termos executivos. Tudo é “vendas”, “marketing” e “fechando o acordo”. Mas o que eles realmente estão falando é de ciladas. – Ele salta de
pé. – Se aquele canalha tiver feito algo com aquela criança...
– É mesmo – concorda Lennox, mas ele se levanta e agarra Chet pelo pulso. – Mais tarde, ele não vai a lugar nenhum.
Lennox pensa no Club Deuce e no Club Myopia, e o cara que ele disse para se mandar. Era óbvio que Starry tomara a ele, Lennox, por um pedófilo, e tentara fazê-lo
se engraçar com Robyn.
– Eu percebo a coisa. – Ele bate de leve com o copo na mesa. – Eu preciso de uma cópia dessas listas, para prova.
– Eu tenho uma porção delas, Lennox – diz Chet, cruzando a cabine. Lennox o segue, observando Chet tirar umas chaves, abrir um armário trancado e dele puxar uma
caixa cheia de disquetes. Há uma cópia com uma lista de nomes; uma outra com datas de acontecimentos. Lennox examina o material. Este é apresentado como se fossem
documentos de uma conferência de vendas, chamando as forças-tarefa de “agentes”, “fregueses em potencial” e “dicas”. Um dos “gerentes locais de vendas” que se destaca
de uma lista é: VINCENT MARVIN WEBBER III, MOBILE, AL.
Depois ele vê uma listagem com o nome de JAMES “TIGER” CLEMSON, JACKSONVILLE, FLA.
E: JUAN CASTILIANO, MIAMI, FLA.
– Não há nada relativo a Lance Dearing. Ele é muito esperto para deixar seu próprio nome registrado – diz Lennox, observando que há uma sessão de treinamento agendada
para aquela noite no hotel onde Johnnie dissera que Lance estaria.
– É. Com Lance sendo policial eu sabia que seria crucificado a menos que eu tivesse provas concretas. É por isso que eu estava montando esse dossiê – diz Chet, ansioso,
aflorando nele agora o investigador da Receita Federal. – Com as ligações policiais dele, em quem eu poderia confiar?
– É mesmo – admite Lennox –, às vezes é difícil saber em quem você pode acreditar.
Mas agora havia assuntos mais urgentes a considerar. Chet explica que eles estão presos num banco de areia, e que, para se livrar dele, precisam do auxílio de Johnnie.
Eles vão até a proa e amarram os pulsos dele à frente do corpo, e depois soltam a peia das pernas. Ele começa a dar pontapés, em pânico, quando Lennox faz um gesto
para ele passar pela balaustrada e entrar na água.
– De maneira nenhuma! – berra ele. – De maneira nenhuma! Vocês vão me afogar!
– Nós devíamos afogar você – rosna Chet.
– Não quero morrer!
– Foda-se – diz Lennox. Ele tira as meias, tênis e calça e desce a escada de mão até entrar nas águas do golfo. O choque do frio quase lhe tira a respiração. Ele
olha para baixo, para sua cueca e se põe ereto, e fica aliviado quando sente os pés tocarem o fundo lodoso, uns poucos centímetros antes do nível da água alcançar
sua virilha. – Certo, você – grita ele para Johnnie –, traz a porra da sua bunda para dentro d’água!
Johnnie, com uma rude ajuda de Chet, segue Lennox relutantemente. Chet sobe de volta ao barco enquanto Lennox e Johnnie seguram as cordas, puxando-o de cada lado
da popa. Com o frio cercando-o, Lennox sente suas forças se esvaindo. Seu braço esquerdo lateja; a mão direita é inútil. Nada está acontecendo; a embarcação parece
muito presa. Johnnie discute, seus solilóquios de autocomiseração em espanhol dando nos nervos.
– Cala a porra dessa boca, ou nós vamos deixar você aqui – ameaça Lennox, e Johnnie vê que ele não está brincando e redobra os esforços.
Sem prévia indicação do que iria acontecer, o barco perversamente se livra do banco de areia e começa a deslizar à frente deles. Eles largam as cordas e ficam observando
o barco seguir através de raios fragmentados de luar que cintilam na água fria e rósea do mar. Aí os motores partem, estrondeando, e Lennox sente o coração afundar
quando vê o barco se afastar deles com força. Ele vê Johnnie, dentro da água até a cintura, a uns quatro metros dele, e ambos os homens olham instintivamente para
as cordas, mas elas sumiram na água escura, fora da vista e do alcance. Chet os deixou naquele banco de areia, presos ali até que a maré subisse e eles se afogassem.
Ele não era bom nadador e duvidava que pudesse chegar até a costa, especialmente com o problema no braço. Johnnie não tinha a menor chance a menos que pudesse ser
solto das peias. O pescoço de Lennox gira de um lado para o outro, o olhar procurando freneticamente as luzes de outros barcos, e depois helicópteros acima dele.
Mas não há nada através da escuridão turva além da lua pálida e da iluminação fraca e distante de Bologna.
Ele cruza o olhar com Johnnie, somente a tempo de ser ridicularizado pela presença do medo que lampeja entre os dois. Sua pulsação se regulariza quando ele se assegura
de que Chet está apenas manobrando o barco, livrando-o do banco de areia para águas mais profundas, antes de lançar âncora.
– Venham – grita ele, e eles percorrem gelados e cansados os poucos metros através do mar raso e se jogam a bordo. Chet, de má vontade, ajuda Johnnie e eles o prendem
no camarote da popa, embaixo. Lennox se seca e veste a calça e os tênis antes de partirem.
Ele se senta junto ao timão com Chet. Está com muito frio, a despeito do impermeável com capuz que Chet lhe deu. Está quase escuro como breu no mar agora, e ele
não consegue ouvir nada além do motor do barco. Mas tem a atenção distraída por algo que precisa fazer.
Embaixo, no camarote principal, ele retira a caixa de fitas, e assiste rapidamente a elas usando a tecla FAST-FORWARD. Johnnie está entre diversos homens que praticam
sexo com diversas mulheres em cenas de cinema pornô de produção doméstica, gravadas com duas câmeras e editadas entre tomadas a meia distância e outras em close.
As locações parecem variar, mas o barco aparece abundantemente, o camarote principal e o tombadilho superior dividindo a preeminência. Numa das cenas ele vê o rosto
de Robyn, o olhar vago, mas intenso, enquanto Johnnie a fode por trás. Mas a fita seguinte mostra uma garota latina, que parece ter doze ou treze anos de idade.
Ela faz boquete em dois homens, um deles sendo Johnnie.
Depois Lennox vê uma mochila preta, suja, junto à cama. Ele pega a mochila e olha dentro. Alguns objetos pessoais identificam o proprietário como sendo Juan Castiliano.
Depois ele puxa um tambor com diversos CDs de vídeo. Todos têm nomes e datas gravados neles com um marcador. Vasculhando os discos, a alma de Lennox fica aliviada
quando vê o nome, Tianna Hinton.
Ele insere o disco no aparelho, mas desliga dentro de segundos quando vê Tianna, nua, os olhos arregalados em estupor, suando, na cama onde ele está sentado agora.
Aparecendo na tomada da câmera e se aproximando dela com expressão traiçoeiramente lasciva, estava o policial Lance Dearing.
Mas as figuras se apagando apenas desencadeiam um outro conjunto na sua mente. O horrendo show de Horsburgh: ele teve que assistir a ele por completo. Na era do
vídeo digital, tudo é registrado; pecados mais do que triunfos, em fones e câmeras, para serem exibidos pelo mundo online. Por que os criminosos sexuais, de todas
as pessoas, seriam imunes a essa demonstração de narcisismo? Assassinos eram as maiores divas: a tendência de Raskolnikov estimulada por tecnologia de gravação acessível
a todos e à cultura confessional. O criminoso, o artista, o cidadão, todos levados por uma necessidade imperiosa de ter seus feitos registrados, de conseguir uma
fatia da imortalidade digital. E Horsburgh tinha a sua plateia, quando um Gillman com a expressão gélida virara-se para Lennox, acenara com a cabeça e ligara a fita.
O vídeo de Horsburgh, no chalé em Berwickshire, era de má qualidade. Uma tomada a meia distância de uma câmera montada num tripé, focalizando duas figuras numa cama,
a menor delas amarrada ali, presa pelos pulsos e tornozelos à armação de ferro da cama. Na maior parte, só se via o corpo dele, fazendo movimentos repetidos em cima
dela, mas depois ele virava seu rosto frio, cruel, e olhava para a câmera, esbugalhando os olhos e lambendo os lábios numa doentia caricatura teatral. A princípio,
apenas o horrendo mantra de descrença aterrorizada informava que a criança estava viva. Seus gritos eram menos implorando a ele para parar a incansável agressão,
e mais uma tentativa de negar estoicamente o que estava acontecendo com ela. Depois ela começara a gemer:
– Está doendo, você está me machucando, eu quero mamãe, eu quero minha...
Era insuportável assistir, mas ele precisava aguentar. Lutando para respirar, ele olhava para a etiqueta da marca do monitor logo abaixo do final da tela, tentando
cortar o som que lhe chegava à cabeça, tentando se concentrar nos incidentes na arquibancada Wheatfield no estádio Tynecastle, pensar qual teriam sido os recentes
resultados desanimadores se George Burley tivesse continuado como técnico...
Depois o Confeiteiro esbofeteou o rosto de Britney e a forçou a focar o olhar, gritando:
– Olha para mim! Olha para mim, porra! – Antes de virar o rosto para a câmera e obrigando Lennox a encarar os aterrorizados olhos da criança condenada. – Olha para
a câmera! Deixa eles verem quem está fazendo isso com você!
O dedo de Gillman espetou o ar.
– Aquele anel que ele está usando. É assim que ele arrebenta a vagina da criança, certo? Está todo lambuzado, certo? Foi Eddie Atherton quem fez isso? Ele perdeu
bastante coisa no caso Conningsburgh, sabe.
Era como se Gillman estivesse vendo na tela os melhores lances de um jogo de futebol monótono que Lennox vinha tentando imaginar mentalmente.
E agora Britney é Tianna e ele não consegue olhar. Mas é preciso olhar. Ele não pode deixar de olhar. Ele aperta a tecla play de novo.
É diferente. Horsburgh é Dearing. É bem filmado; há até mesmo um fundo de música de elevador, suave. As flautas de Pã. Ele pensa na viagem de carro. Essa música
como que me dá arrepios. O rosto sorridente de Dearing, sua concentração benevolente. Como se ele estivesse fazendo amor. A garota, estupefata, sonolenta, tornada
vazia e um joguete pelo efeito de drogas; era à Tianna que ele estava fazendo aquilo. A pequenina Tianna, com falha nos dentes, com sua bolsa de carneiro e seus
cartões de beisebol, e as mãos agarradas à colcha da cama, e ele sente as lágrimas no próprio rosto, que ele nunca mostrara quando assistira ao vídeo do Confeiteiro.
Mas agora uma ponta de dedo na sua pele seca revela, as lágrimas eram fantasmas.
Lennox para a máquina. A raiva aperta sua garganta como se fosse um torno. Ele sente algo no peito entrando e saindo espasmodicamente. Ele se levanta, cambaleando,
tira o DVD, olhando para o disco prateado sem marcas, simples, parecendo tão inócuo. Sobre o ruído dos motores, ele consegue ouvir gritos vindos do outro camarote.
Os gritos param abruptamente quando sua fonte vê Lennox no umbral da porta.
– Continua, por favor. Eu realmente quero que você continue gritando – diz ele a Juan Castiliano. – Basta dizer mais a porra de uma única palavra. Porque isso é
tudo que preciso para cortar a porra da sua cabeça fora. – E seu olhar frio, assassino, encara o pedófilo, que se encolhe apavorado.
Bologna vai chegando perto quando Lennox aparece na ponte atrás de Chet. A marina, quando eles saltam e amarram a embarcação, está quase deserta, embora o bar Lobster
esteja aberto. Eles voltam para o camarote principal onde Lennox mostra a Chet, com auxílio da tecla fast-forward, uma seleção dos discos de Johnnie, embora não
aquele em que Tianna aparece, que ele guardou. Há outras três garotas bem jovens; pela aparência das roupas que logo vão tirar elas parecem pobres, na maioria, ele
suspeita, imigrantes da América Central.
Chet está estonteado, como um zumbi, carregando a caixa para o Volkswagen. Eles seguem de carro por dois quarteirões, parando num prédio onde há um letreiro branco
e azul iluminado por trás, anunciando o Departamento de Polícia de Bologna.
– Você me fez dirigir até um cybercafé quando tinha todas essas facilidades a bordo – Lennox disse.
– É muito caro no mar. Johnnie estava me arruinando.
– Algum sangue escocês?
Chet curva um pouco a boca enquanto os dedos de Lennox tamborilam na caixa no seu colo.
– Leve tudo isso à delegacia. Conte a eles tudo. Como você veio a conhecer Robyn. Como Lance e Johnnie estavam chantageando você. Leve eles até o barco; eles identificarão
Johnnie em alguns desses vídeos. Um bom policial vai fazer ele confessar em segundos.
Uma flexão dos ombros mostra o alívio de Chet em ter se livrado de seu terrível fardo, mas a incerteza em seus olhos trai o conhecimento de uma nova provação, um
resultado incerto, ainda que precise ser enfrentado.
– Você não vai entrar e testemunhar por mim, Lennox? Dizer a eles que eu estava sendo chantageado?
– Eu ficarei feliz em fazer isso, Chet, mas não neste momento. Eu preciso ir.
– O que é que você vai fazer?
– Eu tenho que tirar Robyn das garras de Starry e Dearing antes que a polícia chegue lá. Ela precisa ter uma oportunidade de lutar para manter a guarda de Tianna
e consertar sua vida. Ela merece isso, com as provas que você tem aqui. – Ele balança na mão uma cópia das listas. – Eu não tinha pensado nisso antes, mas agora
estou pensando. Entretanto, a justiça e o pessoal do conselho tutelar da criança talvez tenham opinião diferente. Os pedófilos estão se reunindo no Embassy Hotel
exatamente agora. Você pode orientar a polícia para lá.
– Está bem – diz Chet, em tom lamurioso. – Mas você vai me apoiar?
– Você tem a minha palavra.
Chet esfrega o topo da cabeça grisalha.
– Ela não tinha chance, Lennox. Eles a rastrearam: vindo do outro lado da divisa do estado, ainda em Alabama.
– Eu sei – e Lennox bate de leve no ombro dele, enquanto Chet dá um sorriso forçado –, meu primeiro nome é Ray, Raymond Lennox.
– É mesmo? Ah... desculpe... Ray... – gagueja ele, saindo do carro com a caixa. Depois ele olha para Lennox, como se lembrando de algo. – Sua revista; aquela da
noiva. Acho que você deixou ela no barco.
– Eu arranjo um outro exemplar. Aquele ficou todo lambuzado.
– É mesmo...
– Boa sorte – Lennox grita enquanto observa o marinheiro, uma figura espectral, dirigindo-se para os degraus da delegacia como se estivesse caminhando para o cadafalso.
Lennox dá a partida no Volkswagen. Robyn podia esperar. Ele primeiro vai derrubar a gangue. Suas mãos formigam no volante, enquanto recorda por que odeia aqueles
canalhas, e por que ele faz o que faz.
19
Edimburgo: dois verões sombrios
1981
Ninguém gosta de valentões praticantes de bullying. Até mesmo outros valentões, especialmente e com frequência, se sentem obrigados a pelo menos confessar que os
odeiam. Contudo, todos fomos agredidos e agredimos outros na escola. Está em todos nós: com as nações nós chamamos isso de imperialismo. Você começa a pensar sobre
si mesmo.
Quem é você? Seu nome é Raymond Lennox e você tem onze anos de idade. É verão, e você está animado porque ganhou uma nova bicicleta como presente de aniversário,
e o seu time de futebol, o Hearts, foi promovido à primeira divisão. Você aguarda com ansiedade a nova estação, e tem estudado muito para conseguir uma bolsa de
estudos num bom colégio de ensino médio.
Embora houvesse chovido muito, o verão finalmente tinha, com a costumeira relutância escocesa, cedido lugar a uma onda de calor. Era uma bela tarde de domingo de
julho, dois dias depois do seu aniversário, 7/7/1970, ao que Curtis Park, seu amigo torcedor do Hibs, estava inclinado a não dar muita importância já que no mesmo
dia o time dele havia derrotado o Hearts por sete a zero no famoso clássico de Edimburgo. A trilha arborizada de Water of Leith, em Colinton Dell, estava luxuriante
com todos os matizes de verde, enquanto você e seu melhor amigo, Les Brodie, metidos em camisetas e bermudas cáquis, seguiam nas suas bicicletas. Você, agarrado
ao guidão, ainda não conseguia tirar os olhos da esbelta beleza de sua Raleigh azul. Les tivera um pneu furado, atrasando o progresso de vocês, mas vocês já tinham
coberto uma distância maior do que a de costume, atraídos pelas histórias de um espetacular balanço “Tarzan” mais adiante, subindo o rio. Agora o túnel escuro e
comprido se apresentava adiante, não longe da estrada principal acima de vocês, mas a natureza submergida do vale e a densa cobertura das árvores abafavam o ruído
do tráfego, embora vocês pudessem ouvir o rumorejar do rio abaixo.
Mas você é Ray Lennox.
E quem é ele? Será que ele sempre tinha medo? Estava sempre zangado? Não, mas talvez Ray fosse apenas um pouco irritável quando menino. Claro que ele estava nervoso
com o grande túnel. Ele já o conhecia de antigos passeios dominicais com seu pai John e sua irmã Jackie. Aquele local no meio onde o túnel fazia uma curva, mergulhando
em total escuridão; nenhuma luz visível vinda da saída adiante ou da entrada, atrás dele. Ele sempre entrava em pânico naquele ponto, como se a escuridão onipresente
pudesse engoli-lo. Seu pai e sua irmã gostavam de parar ali, apreciar o silêncio absoluto, também sentindo a apreensão de Ray, e demorando ali para inquietá-lo.
Ele logo percebeu que, com apenas uns poucos passos para a frente ou para trás, dependendo de onde o sol se encontrava, ele podia voltar à luz e quebrar o tenebroso
feitiço.
Na boca do túnel, Ray e Les olharam para as gavinhas da hera que balançavam acima deles.
– O Tarzan do outro lado deve ser legal – disse Les, com entusiasmo, embora o sol agora houvesse se escondido atrás de uma nuvem suja. Aí eles ouviram palavras obscenas
e risos vindo de dentro do túnel. Os garotos olharam um para o outro, primeiro com apreensão, depois com expressão resoluta, eles continuaram, nenhum dos dois querendo
demonstrar medo. Ray queria dizer: vamos simplesmente voltar e dar uma olhada no pombal. Mas Les saberia que ele estava com medo. Ele sabia que Ray não gostava dos
pombos que ele e o pai criavam. Depois os rosnados vindos lá de dentro aumentaram um pouco; obviamente todos eles masculinos. Ele ficou imaginando quantos eles eram,
e as idades que teriam.
Tão rápido e terrivelmente ele saberia a resposta. Ao registrarem o avanço hesitante dos dois, as vozes caíram num silêncio sinistro. Ray Lennox olhou para as luzes
acima dele, separadas por um intervalo de 10 metros, lançando um brilho fraco, laranja-amarelo, que mostrava o solo úmido de cascalho, debaixo de seus pés. Ao se
aproximarem da zona de escuridão, eles conseguiram distinguir as silhuetas escuras nas sombras. Três homens: pouco mais de trinta anos, vinte e muitos e pouco mais
de vinte. A princípio Ray ficou aliviado com o fato de que eram adultos e não garotos mais velhos do que eles. Ele podia ouvir o ruído mecânico das engrenagens da
bicicleta girando enquanto ele a empurrava. Um olhar rápido, nervoso, revelou que o trio estava de pé, fumando cigarros e bebendo de uma pequena garrafa de uísque.
Não estavam malvestidos, certamente não eram pobres. Mas aí um deles, que tinha um nariz adunco e cabelo fino, rareando, lançou aos garotos uma abominável risada
de seu rosto grande, não barbeado. Aquele sorriso nunca seria esquecido; ele os puxou para um outro mundo. Ele avançou e ficou de pé em frente a Ray no túnel escuro.
– Linda bicicleta – disse ele, com um sotaque que o garoto não conseguiu identificar.
Ray ficou em silêncio. O homem pegou a Raleigh azul pelo guidão, depois empurrou Ray para o lado e montou na bicicleta. Pedalou alguns metros para dentro da seção
escura do túnel, Ray atrás dele, esperando que ele parasse assim que tivesse terminado a brincadeira. Então ouviu um grito e olhou para trás. Um dos outros homens,
cabelo espesso escuro cortado bem rente, agarrara Les pelo cabelo e o imprensara na parede, murmurando ameaças pavorosas. Les lançou um golpe, tentando se defender,
mas o homem jogou-o no chão.
– Dá uma ajuda aqui! – gritou o homem, embora tivesse dominado Les com facilidade. – Esse abusadinho da porra – sua risada estridente abrasando as extremidades do
jovem Ray Lennox.
Ainda segurando a garrafa de uísque, o homem não barbeado saltou rapidamente da bicicleta, deixando-a cair no chão, e depois agarrou Ray pelo cabelo, forçando-o
a ficar de joelhos. Estes ficaram ralados dolorosamente no cascalho e na terra, e o garoto olhou para a frente, numa parede de escuridão total.
– Agarra os ombros dele – instruiu o homem mais moço, que tinha uma mecha grande de cabelo louro. Ele avançou e obedeceu quando o homem não barbeado afrouxou a pegada.
Lennox olhou para um lado, depois para o outro. De onde ele estava não se via nenhuma luz em qualquer das pontas do túnel.
O homem não barbeado colocou a tampa na garrafa de uísque e meteu-a no bolso. Com os olhos se ajustando ao fraco brilho que vinha de cima, Ray Lennox podia ver meias-luas
espessas e pretas, de terra, enchendo as unhas compridas que se projetavam dos dedos amarelos de nicotina. O homem então afrouxou o cinto e desabotoou a braguilha.
– Você está querendo isso, porra – sibilou ele enquanto gritos e urros de Les ecoavam pelo túnel.
– Não... eu tenho que voltar para o chá... – implorou Ray, rezando para que aparecesse alguém.
O homem riu.
– Você vai tomar a porra do seu chá. – Ele arriou a calça e puxou o pau para fora da cueca. Era grande e mole, mas foi ficando endurecido diante dos olhos do garoto.
Uma criatura animalesca, serpentina, com uma vontade ligada a seu hospedeiro, porém distinta deste, como um familiar do demônio. Foi a sensação de Ray diante do
que o encarava. – Abre a porra da boca – rosnou o homem.
Ray Lennox fechou os olhos. Então ele sentiu as costas da mão grande e pesada do homem quando esta roçou por seu maxilar. Fogos de artifício dispararam na sua cabeça,
seguidos por uma breve, mas quase libertadora, sensação de dormência nos sentidos.
– Abre a porra da boca!
Ele balançou a cabeça, olhando para o homem nas sombras, tentando localizar os olhos dele com suas próprias órbitas implorativas.
– Não, senhor, por favor, não... Eu preciso voltar para minha mãe.
Não havia nada no olhar do homem a não ser uma indiferença amedrontadora, flamejante. Ele pegou a garrafa de uísque do bolso, sorveu a bebida até o último gole,
e depois bateu-a contra a parede do túnel, quebrando a base do vidro. Segurou então a garrafa com as arestas em frente ao rosto de Ray, e encostou o lado frio, liso,
contra a bochecha do garoto.
– Abre a boca ou eu corto a porra de sua cara.
Ray Lennox abriu a boca. O homem meteu o pênis duro na boca dele, fazendo-o engasgar-se a princípio com o gosto e o cheiro de urina, e depois de novo quando o homem
enterrou o pênis no fundo da garganta. Tudo em que Ray conseguia pensar era no seu nariz, para continuar respirando por ele. Seus pequenos dentes tentaram ameaçar,
mas o homem mostrou-lhe a garrafa de novo e ele deixou a mandíbula afrouxar enquanto lágrimas salgadas queimavam suas maçãs do rosto e as mãos nos seus ombros empurravam
seus joelhos mais ainda na terra.
Engasgado e lutando por respirar, ele quase desmaiou. Fraco demais para compreender as instruções que a voz zombeteira lhe passava, um fundo musical sinistro para
sua provação, só conseguia tentar obedecer enquanto o renovado puxão no cabelo ameaçava separar o couro cabeludo do crânio. O sotaque do homem ele mais tarde pensaria
ser de Birmingham. Rememorar cada sílaba na mente. Jogar a rede mais para longe: West Midlands, Black Country.
Então os gritos do outro cara, o que lutava com Les, ficaram mais insistentes.
– Ei, eu pedi uma ajuda aqui! Temos um garoto abusado! – Surgiram sons de concordância e ele disse um nome que soava como “Bill” ou “Bim”, um apelido ou algo assim,
talvez.
O homem não barbeado prontamente recuou, deixando Ray arquejando e sufocado, lutando para encher os pulmões de ar. Seus ombros doíam, os joelhos estavam ralados
e o couro cabeludo latejava. Olhando em volta, viu que o homem de cabelo cortado rente estava em cima de Les, lutando, tentando imobilizá-lo. Les gritava, praguejava,
berrando:
– VAI SE FODER! VAI SE FODER! RAYMIE!
Seu próprio adversário olhou para Ray e deu-lhe um soco forte no nariz, fazendo com que sua cabeça girasse de novo e os olhos esbugalhassem. Ele deixou escapar um
longo gemido, como que rezando, quando viu o sangue caindo no chão em gotículas.
– Continue segurando esse puto – disse o Homem Não Barbeado para o cara louro. – Eu vou cuidar dele depois que eu dominar esse garanhãozinho!
E aí ele se dirigiu para o amigo de Les.
Os olhos arregalados, como os de uma corça, em busca de misericórdia, Ray esquadrinhou o jovem à procura de traços de humanidade.
– Por favor, deixa eu ir. Eu não vou dizer nada a ninguém. Por favor – implorou ele. Viu que os olhos do homem jovem eram suaves, úmidos e hesitantes, e continuou,
no desespero. – Eu só preciso ir para casa. Eu não direi nada. Eu prometo!
Ambos olharam para onde estavam os dois homens com Les. Estava escuro, mas Ray podia ver a perna nua de Les dando pontapés. Nós vamos morrer, pensou ele. Olhou de
volta para o cara louro, que acenou afirmativamente e largou Ray, que se pôs de pé, cambaleando. De repente, tudo em que ele pôde pensar foi na sua bicicleta e nas
consequências de sua perda. Ele pegou a Raleigh, montou nela e saiu pedalando freneticamente enquando ouvia os gritos desafiadores de Les diminuindo de intensidade,
transformando-se em pedidos.
– Para com isso, para com isso – e depois um desanimador – não... não... Raymie...
– Seu idiota de merda, vai atrás dele – gritou um dos homens, que parecia ser o Homem Não Barbeado, e que segurava o rosto de Les contra o solo. O homem louro saiu
correndo atrás de Lennox que pedalava a toda, os músculos das pernas explodindo e os pulmões no fio quando emergiu do túnel escuro, para a luz do sol que se filtrava
pelas árvores sobranceiras. Ele seguiu freneticamente, não olhando para trás até que o túnel e todos seus habitantes estivessem fora de vista. Quando parou, estava
numa plataforma que se erguia sobre o molhe anguloso do rio abaixo dele. Gritando por socorro na trilha deserta, procurou alguma coisa que pudesse servir de arma,
embora soubesse que estava apavorado demais para voltar sozinho. Pegou e deixou cair alguns pedaços fracos de madeira, inúteis nas suas pequenas mãos de menino.
Então ele os viu subindo os degraus verdes de metal que levavam da ponte de madeira sobre o rio até a trilha; dois homens, uma mulher e um cachorro.
– SENHOR! – gritou, enquanto eles subiam os degraus correndo até ele. Sem fôlego, explicou freneticamente que alguns homens estavam machucando seu amigo no túnel.
Seguiu-se uma discussão nervosa sobre se eles deveriam ir em socorro de Les ou encontrar um telefone e chamar a polícia. Por fim, seguiram de volta pela trilha,
Ray tremendo de medo, o estômago revirado enquanto tentava imaginar o que aquele grupo de pessoas bem-intencionadas poderia fazer contra a aterrorizante gangue que
os havia pegado. O túnel era mais longe do que pensara. E exatamente quando chegavam na boca Les saiu de lá, empurrando a bicicleta e mancando. O rosto estava cortado
e manchado de lágrimas e terra.
Ao se aproximar do grupo, Les parecia em estado de choque, quase como se não os tivesse visto.
– Você está bem? – perguntou um dos homens.
– Estou – disse Les.
Não havia sinal dos agressores. Ray ficou aliviado em ver que eles haviam recuado na outra direção. Os adultos queriam chamar a polícia, mas Les insistiu que estava
bem. Eles acompanharam os garotos de volta à estrada principal, antes de os deixarem, a uma curta distância de casa.
– O que é que eles fizeram? – Ray perguntou, temeroso, olhando para seu amigo de perfil, as lágrimas misturadas com lama nas maçãs do rosto, enquanto Les olhava
impassivelmente para a frente. – Eles bateram em você?
Les parou abruptamente e se virou como que vendo Ray Lennox pela primeira vez.
– Bateram, mas não deixei levarem minha bicicleta, Raymie.
– Isso foi tudo que eles fizeram? Porque eu pensei...
Então o rosto de Les se contorceu de raiva.
– Eles bateram mesmo! Bateram mesmo, sim – e soltou um soluço breve, antes que a fúria explodisse de novo. – Agora é melhor não contar nada a ninguém sobre isso,
Raymie!
– Eu não vou contar nada – protestou Ray.
– Nada para Curtis, ou sua mãe e seu pai também – insistiu Les. – Promete?
– Sim... mas nós devemos pôr a polícia atrás deles.
– Foda-se a polícia! – Les gritou na cara do amigo. – Promete, Raymie!
– Eu prometo – dissera o jovem Ray Lennox.
Naquela noite, ele ficou sentado no seu quarto olhando pela janela. Seus livros da escola estavam à frente numa mesinha onde ele normalmente fazia seu trabalho de
casa. Havia também duas folhas de papel: um formulário de inscrição para uma das mais prestigiosas escolas da cadeia Merchant, em Edimburgo, e uma lista de romances
clássicos para leitura, que ele deveria completar antes de fazer o exame de admissão para aquela instituição. Ele rasgou o formulário em pedacinhos, e amassou a
lista de livros na mão fechada, pondo tudo nos bolsos da bermuda, que enfiou então na gaveta mais baixa do guarda-roupa, para nunca mais usá-lo.
Ele não percebeu que seu pai entrara no quarto enquanto ele olhava para fora, apenas ouviu a tossida de John Lennox e viu o pai apontando para uma pilha de livros
escolares e dizendo:
– São essas as suas janelas, filho. Não há nada lá fora a não ser casas malcuidadas e narizes melequentos.
1986
A promessa a Les foi mantida; eles nunca mais voltaram a Colinton Dell, ou falaram com qualquer pessoa sobre o incidente. Apenas uma vez o assunto foi mencionado
entre eles. Foi em 1986, numa sexta-feira, no início de maio.
A família de Les se mudara recentemente para Clermiston, um outro conjunto habitacional. Os Lennox haviam comprado uma casa construída pelo município, venderam-na
com lucro, e haviam se mudado para um modesto conjunto particular em Colinton Mains. Os garotos estavam quase com dezesseis anos e haviam bebido escondido vodca
com Coca-Cola, com Shirley Feeney e Karen Witton, duas garotas de Oxgangs, que eles haviam conhecido antes e com quem já haviam saído para uma matinê na boate Buster
Brown. Eles foram até o canal para beijar e dar uns amassos. Insatisfeito com o fim das bebidas, frustrado porque não tinham nenhum outro lugar para ir, Les começou
a pressionar Karen, exigindo que ela fizesse um boquete nele. Ele foi ficando mais insistente, passando a importuná-la abertamente e a ameaçá-la. O evidente medo
da garota levou Ray Lennox de volta ao túnel. Ele percebera que ele e Les estavam se afastando um do outro cada vez mais, unidos apenas pelo futebol. O comportamento
do amigo deixa Lennox amedrontado e enojado, enquanto Les ficava zangado com ele por não compactuar e submeter Shirley à pressão semelhante. Afastando-o das garotas,
cada vez mais perturbadas, Lennox disse:
– Lembra-se daquela vez lá na Dell? Aqueles três malucos?
– O que é que eles têm a ver? Que é que aquilo tem a ver com qualquer coisa?
Mas Lennox viu a vergonha que estimulava a atitude agressiva do amigo. Ele encarou Les com firmeza, até que o olhar do amigo fraquejou.
– Babacas – disse Les Brodie, resmungando baixo. – Eu realmente gostaria de encontrar aqueles porras de novo, agora.
Não era uma fala vazia. Eles haviam permanecido amigos desde aquele dia em Dell, mas Les estava mudado. Uma agressão descontrolada fazia agora parte de seu modo
de ser, e a marca do valentão começou a manchar a sua alma antes tão jovial. As gaivotas. Ele adorava atirar nas gaivotas. Mas Ray Lennox também mudara. Diziam que
ele era antissocial na escola. Não um membro de gangue cada vez mais adaptado, como Les. Mais um solitário. Retraído. Até mesmo esquisito.
Lennox se sentia intimidado com os novos amigos de Les em Clermiston; eles pareciam mais com os débeis mentais de temperamento meio selvagem que eles evitavam cuidadosamente
lá em Oxgangs. E no dia seguinte, ele estava no trem para Dundee com alguns deles.
Naquela manhã ele dera uma olhada na relação de livros amarfanhada que mantivera em segredo todos aqueles anos. Na época, ele não lera os livros. Não sabia explicar
por quê. Não conseguia explicar que queria tanto, mas precisava descobrir por si mesmo. Não queria ninguém indicando os livros para ele. Atualmente ele estava fascinado
por Moby Dick, de Melville, e desejava estar lendo o livro, em vez de estar indo para o Dens Park. Quando largou a lista, ele se sentiu mal dos nervos.
Havia vinte e tantos grupos de amigos ligeiramente relacionados que viajavam no trem. Como todas as multidões de garotos de quinze anos aprendendo a ser homens,
o grupo tinha aqueles que queriam só diversão bem como outros fascinados, mesmo que de modo passageiro, pela excitação e as possibilidades que uma cena assim lhes
podia oferecer. Uns poucos já estavam inseridos naquela vida, esse traço evidenciado pela imobilidade opaca e fria de seus olhos, e a rigidez da boca e dos maxilares.
Les parecia estar evitando Ray Lennox, cercando-se de elementos mais perigosos. Havia uma hierarquia, cujos degraus Lennox sentiu que precisaria galgar. Mas ele
realmente perguntou ao velho amigo sobre o pombal.
– Estamos nos livrando dele – disse Les, a voz tensa, mal fazendo contato visual. – A porra daquelas aves doentes.
Dez mil torcedores do Hearts tinham entradas para o jogo e ficaram amontados atrás de um dos gols e do alambrado ao longo do fosso. Todos estavam olhando para o
túnel debaixo da arquibancada quando seu nervoso time, de camisas de listras prateadas e verdes e calções marrons, entrou em campo sob aplausos explosivos. Eles
acreditavam que o troféu do Campeonato da Liga estava indo para Tynecastle. Afinal de contas, o Hearts vinha agora de vinte e sete jogos da Liga sem derrota, trinta
e um, se fosse contada a Copa Escocesa.
O lendário comentarista da Escócia, Archie MacPherson, estava empoleirado em uma grua ainda mais rudimentar e menos segura do que aquela em que ele ficava no Dens
Park, microfone na mão. Nenhum especialista para ajudá-lo, era terra virgem para lavrar, mas sempre profissional e entusiasta, ele pegou a grande inauguração para
fazer justiça à ocasião.
– Bem, quem, lá em agosto, abençoado com premonição, o sétimo filho de um sétimo filho, poderia prever os Hearts no último dia da temporada, jogando pelo campeonato,
precisando de apenas um ponto...
Enquanto dez mil vozes cantavam “Oi, oi, nós somos os Garotos de Gorgie”, o presidente do clube, Wallace Mercer, estava sentado no camarote da diretoria, com o sorriso
afetado do homem resignado com o fato de que ele nunca fora amado como achava que devia ser. Mas alguma coisa se evaporara dentro de Mercer. Diferentemente de quase
qualquer outra pessoa no estádio, ele não acreditava que seu time pudesse vencer. Surgira um vírus no vestiário precipitando a ausência de Craig Levein, um elemento-chave
da defesa. Mercer notara uma letargia em muitos dos jogadores. Quando ele olhara em seus olhos antes de eles irem trocar de roupa, não lhe pareceram homens que desejavam
ganhar o título. Pareciam homens que já haviam feito sua parte e agora ansiavam por um longo descanso, avessos a mais deveres.
Lá embaixo, na geral, o cheiro de caldo de extrato de carne, tortas. Cerveja azeda, uísque e fumo. De homens agitados, cheios de álcool, nervosos. O juiz apita e
o Dundee faz o primeiro ataque, enquanto a temerosa defesa do Hearts consegue jogar a bola por cima da trave. O primeiro tempo passa voando, e aí as coisas começam
a andar devagar. Lennox percebe isso durante o intervalo. Aquela sensação da velocidade da vida se desvanecendo como a luz do outono. O Hearts conseguiu resistir
a um entusiasmado Dundee, mas não mais do que isso. Nasce uma sensação de que o dia da celebração está se transformando numa outra coisa. Se vai haver glória, deve
haver sofrimento antes. Desapontamento, depois uma raiva quase não contida fica subitamente pendente no ar.
No intervalo, a barriga de Mercer está tão revolta que ele não consegue tocar na comida, hospitalidade da diretoria, ou emborcar outro drinque. Ele ouviu o noticiário
de Paisley, onde o St. Mirren está sendo vergonhosamente derrotado pelo Celtic, que está anulando a vantagem de um gol do Hearts. Agora um gol do Dundee fará o Hearts
perder o campeonato. Como todos os torcedores do Hearts ali presentes, Mercer sente a necessidade de marcar, para assegurar o empate. Ele ouviu do banco de reservas
que Alex MacDonald tirou os meios de campo Whittaker e Black, ambos cansados. Sentindo o suor brotar na testa, Wallace Mercer vai até o banheiro para enxugá-lo e
recolocar seus poucos fios de cabelo no lugar. Ele urina, lava as mãos e xinga quando a água escaldante da torneira vermelha lhe queima as mãos. Percebe tardiamente
que há um letreiro sobre a pia dizendo CUIDADO. ÁGUA MUITO QUENTE.
Deixando de lado o desconforto, ele olha para o espelho, recompõe seu rosto afivelando o sorriso que é sua marca registrada. Mercer já esteve bastante tempo em frente
às câmeras e no mundo dos negócios para saber que o medo e a ansiedade são emoções que é melhor que fiquem escondidas. Ele endireita a gravata que não percebera
ter tirado do lugar durante os primeiros quarenta e cinco minutos. Um advogado da força do pensamento positivo, ele pensa: estávamos a noventa minutos de distância
do troféu, e agora estamos apenas a quarenta e cinco. Então está tão longe, tão bom. Mas outras emoções se introduzem: ele já viu um número bem grande de jogos para
perceber como o esporte inflige distorções temporais, como um gol cedido logo no início dá tempo a seu time para reagrupar e reagir. Mas um contra-ataque no final...
Ele pensa no sentimento que a conquista confere àqueles que a alcançaram; duvida de que o Celtic, ou o Rangers, ou mesmo o Aberdeen, sob o comando de Alex Ferguson,
fraquejariam naquela altura.
Pior de tudo, o homem de negócios, um lógico avaliador de riscos, começa a murmurar na sua cabeça; se você está invicto em trinta e um jogos consecutivos, isso não
torna a probabilidade de perder o trigésimo segundo ainda maior? Ele pensa naquela fantástica série invicta, comparando os desempenhos, tentando compilar uma folha
de equilíbrio entre as vitórias devastadoras nas quais o adversário foi estraçalhado, contra as ocasiões em que ganharam na sorte. Ele percebe que o time não tem
classe. Eles têm os ataques fulminantes de Robertson, a correria elétrica de Colquhoun, a elegância e a avaliação distante de Levein na defesa, mas o restante é
de “operários” e velhos profissionais jogando no sacrifício num grupo bem organizado montado com eficiência ao longo de um trabalho. E o vírus cobrou sua parte no
motor do time. Uma prece silenciosa saindo de seus lábios quando ele sai do banheiro, Mercer volta para o camarote na arquibancada. Les Porteous, o secretário do
clube, diz alguma coisa que ele não entende, mas registra a boa intenção com um aceno afirmativo de cabeça e um sorriso. Começa o segundo tempo.
Numa multidão de conhecidos, jovens grosseiros, Raymond Lennox se sente de repente culpado por não estar ali com seu pai. A inferência silenciosa é que seria conveniente
para pai e filho assistirem ao jogo juntos; o jogo que ia fazer história e dar o troféu de campeão ao Hearts. Ele anuncia sua intenção de ir procurar o velho. Quando
sai, ouve um comentário pejorativo. Vira-se para ver alguns dos rapazes, incluindo Les, rindo dele, mas sua impulsão o leva a descer os degraus e ele continua a
avançar sinuosamente pela multidão, não olhando para trás. Toca o buço debaixo do nariz. Murmura um xingamento contra o traiçoeiro Les, o durão com seus novos parceiros
durões. Continua sua procura pelo pai. Num mar de dez mil, ele sabe que o encontrará facilmente atrás do gol, para a esquerda. Em algum lugar ali.
Lennox olha para o relógio. Quinze minutos já decorridos , agora, no segundo tempo. Dois terços do jogo já se foram. St. Mirren em Paisley se dobrando que nem uma
cadeira de tombadilho quebrada, mas o Hearts ainda é líder. Se pelo menos pudéssemos chegar aos vinte e cinco minutos, ele implora por um poder mais alto. Dundee
está indo para cima. O Hearts está começando a parecer preguiçoso, até mesmo abatido. Lennox teme que um número muito grande de jogadores não queira estar ali. Eles
chegaram perto umas poucas vezes em contra-ataques, mas o Dundee está pressionando. O Hearts ganhou apenas dois de onze contra esse time de meleca. No noticiário
da imprensa, Archie Knox, o combativo técnico do Dundee, disse que gostaria muito de fazer aquele ponto.
Knox manda o bigodudo Albert Kidd, um verdadeiro sósia do comediante Bobby Ball da dupla Cannon e Ball, substituir Tosh McKinlay. Lennox solta um rápido suspiro
de alívio, pois McKinlay é um dos melhores jogadores do Dundee. Mas ainda assim o time da casa avança em bloco. Depois Henry Smith faz uma brilhante defesa para
o Hearts, desviando para o lado um ataque de Mennie que penetrou numa parede de jogadores. Lennox grita de alívio e prazer quando ele e um estranho ao seu lado se
abraçam. Lennox sente o destino traçado naquela defesa. Ele não é o único. O estádio se anima, cantando vitória de “lá vamos nós”, e já se foram trinta minutos do
segundo tempo. Depois mais roer de unhas e um terrível silêncio cai sobre a multidão quando ficamos a dez minutos entre o Hearts e o troféu de campeão. Ray Lennox
está quase sufocando quando avista seu primo Bill, depois seu tio. O pai está à esquerda deles. Ele chega ao lado de John Lennox e toca o ombro do pai.
Aos trinta e oito minutos o tiro de escanteio batido da direita é afastado por Brown. Albert Kidd escapa da marcação e manda um chute de direita que Smith não consegue
defender. É seu primeiro gol no campeonato da Liga, naquela temporada. Lennox ouve uma série de arquejos na multidão e um palavrão vindo do pai, a primeira vez que
ele ouviu o velho usar aquela determinada palavra.
– Faltam sete minutos – geme seu primo Billy.
Lennox pensa em 7/7/1970. Por toda a Grã-Bretanha o serviço de resultados da BBC designa erroneamente o gol para o Hearts e seu capitão, Walter Kidd.
Notícia de última hora... Dundee 0... Hearts 1 (Kidd, W.)
E depois:
Correção... Dundee 1 (Kidd, A.)... Hearts 0
Lennox sente a perda do campeonato naquele momento. A multidão canta apoiando desafiadoramente o time, insistindo no empate, mas os jogadores parecem à beira da
exaustão. Aí John Lennox sente alguma coisa repuxando no peito enquanto seu braço fica dormente. Ele quer contar isso às pessoas à sua volta, seu filho, irmão e
sobrinho, para parar com os empurrões e abrirem espaço para ele.
Ray Lennox vê seu pai derreado na arquibancada, como se fosse dormir. Uns caras gritam “Que porra!”, mas abrem espaço para ele.
– É MEU PAI! – grita Lennox para ninguém em particular, ajoelhando-se ao lado de John. – Pai, você está bem? – Ele olha para o tio Davie, para o primo Billy e de
novo para o pai. John Lennox lhe dá um sorriso lento, nervoso.
– Está tudo bem – diz, numa voz patentemente fraca, vinda do homem que ele era, despreocupado e forte, capaz de apreciar, ou pelo menos aguentar assistir a tardes
como aquela, derramando-se inesquecivelmente no passado.
Albert Kidd marca um maravilhoso segundo gol em jogada individual a quatro minutos do final. Ele corre pela lateral, passa por diversos jogadores do Hearts, faz
um um-dois e arremata no ar contra a rede de Smith. Ele não vai saber que alcançou seu nadir como esportista profissional; colocado nesta Terra para torturar o Hearts
e evitar que este conquiste o campeonato. Aqueles poucos minutos serão os mais longos nas vidas dos jogadores de prata e marrom, que naquele momento desejam estar
em qualquer lugar que não fosse o estádio. Billy Lennox sai empurrando as pessoas na multidão para chamar o socorro médico postado à beira do campo.
Algumas pessoas vão embora. Muitos mais continuam ali, sem saber o que fazer. Juntamente com a dor da derrota, um reconhecimento compartilhado vai vagarosamente
se acendendo dentro dos torcedores. O sentimento de terem vivido um acontecimento importante. Uma percepção não articulada, mas quase tangível, de que aquilo é,
de longe, mais crucial do que os rituais habituais dos caçadores de glórias em Paisley, celebrando uma outra conquista na Liga em frente às câmeras. Há um sentimento
de que esse drama em Dens Park, do qual eles todos fazem parte, é uma aproximação da vida da qual tantas pessoas que acompanham o esporte pretendem na realidade
escapar. A realidade se abateu duramente sobre elas e elas têm que compartilhar aquele momento, mas não há meio de expressar isso. Tudo que eles podem fazer é aplaudir
o Hearts, elogiar o time pela valentia que no fundo do coração, eles sabem que os jogadores não mostraram; eles são uns veados que estragaram tudo no último dia.
Mas o que a multidão está realmente tentando expressar é uma comunhão muito mais profunda com nada menos dos que a beleza e o terror da própria vida. Mas Ray Lennox
perde tudo isso. Ele está numa ambulância com seu pai infartado, além do tio e do primo, seguindo para o hospital Ninewells.
Um toque de consolação no braço por parte de Ian Gellatly, presidente do Dundee F.C. Mercer faz um aceno afirmativo de cabeça, num agradecimento sóbrio, cheio de
dignidade. Com tristeza ele pensa no técnico do time, Alex MacDonald, que ele viu se dirigir cabisbaixo para o túnel depois do apito final. Ele debate internamente
se deveria ou não descer até o vestiário e ficar ali com os jogadores, ou dar-lhes um pouco de tempo. Ele se retrai para algum lugar, rapidamente, para reprogramar
o sorriso. O homem de negócios calcula a perda em termos econômicos, antes de reemergir com postura irradiante.
No domingo, Ray Lennox levantou, depois de um sono intermitente. Seu pai sofrera um pequeno infarto e ainda estava em Dundee. Seria transferido no dia seguinte para
a Royal Infirmary, em Edimburgo. Teria que entrar num novo regime: mudança de dieta e remédios, anticoagulantes para o sangue. Havia um sentimento de vingança afligindo
Ray Lennox. Uma necessidade de justiça. As emoções batalhavam dentro dele. Estava determinado a acertar as contas com Les. Conseguir o esclarecimento: amigo ou inimigo.
Ele não se importava mais qual das duas coisas seria, apenas queria saber.
Pegou o ônibus para Clermiston e saltou na pista lateral que ia dar na porta dos fundos da casa de Les. Mas, enquanto percorria a estreita passagem pavimentada que
corria entre as casas, Lennox foi acometido por aquela imobilidade que ele agora conhecia tão bem; o pressentimento de que alguma coisa não estava certa. Em seguida,
a calma foi rompida por urgentes gritos de terror enchendo o ar. Ray Lennox pôde ver um lampejo de fogo, e algo que vinha voando na sua direção. Incapaz de evitar
o projétil flamejante, ele fechou os olhos, dando graças pela coisa não ter atingido seu rosto, embora tenha passado tão perto a ponto de ele sentir a carne em fuligem
na garganta, e os pelos debaixo do nariz ficarem chamuscados. Ele se virou a tempo de observar a coisa ricochetear na parede coberta de pedrinhas da casa atrás dele,
e cair no chão. A bola começou a dançar freneticamente e um olho aterrorizado no meio das chamas implorava por misericórdia enquanto o fedor de carne queimada e
penas sujas enchia suas narinas.
Lennox recuou enquanto a criatura tombava, enroscando-se em silêncio. Na direção do pombal, os olhos de Les Brodie pareciam tão pequenos e irracionais quanto os
do pombo queimado, enquanto ele já segurava outro pássaro perturbado com o braço esticado e o banhava de gasolina vinda do bico de uma pequena lata. Lennox sentiu
a pele queimar debaixo do fulgor do olhar do outro. Virando-se rapidamente, ele saiu correndo pela pista lateral na direção da rua da frente, o riso zombeteiro de
seu amigo de infância perseguindo-o todo o tempo.
Um outro cometa flamejante, guinchando, subiu nos céus acima dele, passando por cima do telhado da casa, antes que a bola de fogo caísse, ricocheteando na rua. Lennox
não olhou para trás; seguiu rapidamente na direção da parada de ônibus quando já se aproximava um veículo marrom e prata, de dois andares. Les lhe dera a resposta
de que precisava.
20
Conferência de vendas
O calor da noite emana dos pântanos de mangues quando Lennox toma a Interestadual 75 na direção leste. Ele dirige atingindo os 160 quilômetros por hora, o Volkswagen
ressoando perigosamente enquanto voa pela quase deserta Alligator Alley, na direção de um hotel perto do aeroporto de Miami, e para um curso de treinamento.
Ele já leu sobre grupos de sujeitos, geralmente idiotas, que se reúnem em seminários, compartilhando técnicas de como escolher mulheres. Eles se apoiavam em uma
mistura de abordagens comportamentais e situacionais: análise transacional, programação neurolinguística e pseudopsicologia pop. A maioria dos participantes queria
simplesmente aumentar seu poder de atração no mercado sexual; inteligentes, fracassados obsessivos, eles tentavam vencer sua falta de jeito com as mulheres. Para
outros, as mulheres eram puramente incidentais; seus objetivos diziam mais respeito a ligações e competição entre homens, a basófia dos pátios de recreio nas escolas
sobre conquistas sexuais, reais ou imaginárias, trazidas até a idade adulta.
Para alguns dos mais extremados membros desses grupos, a emoção de escolher mulheres e compartilhar técnicas e triunfos logo se torna passé. Muitos são abertamente
disfuncionais; vítimas óbvias de abuso, com aspecto amargurado e vingativo quanto ao caráter. São velhos procurando companhia de jovens, que se juntam e sua raison
d’être é procurar e fazer amizade com pais solitários de crianças pré-adolescentes.
O seminário é uma casa de pedófilos, e pelo menos um deles é policial. Lennox se tornara policial porque odiava valentões. Depois ficou desiludido em descobrir que,
como em todos os outros lugares, a polícia tinha sua cota de gente assim. Do outro lado do mundo, homens como Dearing, atraídos pelo ostensivo poder sobre outras
pessoas, se escondiam atrás do distintivo de serviço. Ele não podia fazer nada para pará-los, e então, no seu cinismo, ele mesmo quase se tornara um deles.
Sem o fogo justiceiro de sua cruzada antipedofilia, Lennox era sensível demais para lidar com a selvageria que o cercava na Divisão de Crimes Hediondos. Somente
através da bebida e da cocaína ele podia falar a linguagem deles, entender seu código mudo no nível emocional requerido, mesmo se as substâncias que lhe davam a
energia exigida pela cultura da violência reduzissem sua eficiência na prática. As artes marciais, o boxe tailandês, essas práticas só ajudavam quando ele estava
fisicamente capaz de treinar três vezes por semana. Depois, os punhos enluvados de outros homens no seu rosto ficaram reduzidos a aborrecimentos, a serem pegos,
bloqueados, fintados e contra-atacados.
Lennox fica paralisado quando o ritmo de hélices cortando o ar acima dele assinala a presença de um helicóptero se aproximando. O farol de busca a laser ilumina
a estrada atrás dele. É claro que Dearing não poderia... Mas o som está se desvanecendo sobre as Everglades, a maior extensão de terra desabitada, sem estradas,
nos Estados Unidos. É claro que os helicópteros poderiam esquadrinhar sua luxuriante densidade; tirando fotografias, procurando contrabandistas de drogas, imigrantes
ilegais, terroristas ou apenas civis com comportamento não convencional.
Os pântanos uniformes dão lugar à intransigente cidade dentro do alcance de um disco de frisbee, e Ray Lennox, o deslocado policial escocês, que sabe que nunca fará
aquele trabalho de novo, entra no estacionamento do hotel Embassy, o seminário já acontecendo há uma hora. Depois do funcionalismo feio da zona do aeroporto de Miami,
entrar no pátio ornamentado de mármore rosa e folhas douradas, cheio de chafarizes e pilastras, é como entrar num Éden corporativo. As plantas diversificadas são
plantadas tão criteriosamente e conservadas meticulosamente que, através de seus olhos vidrados, elas parecem uma reluzente brochura submetida ao Photoshop. Ele
estuda o quadro-negro coberto de fitas de veludo, quase esperando ver CONFERÊNCIA DE PEDÓFILOS mostrado em letras de plástico branco.
CONFERÊNCIAS NO HOTEL EMBASSY DO AEROPORTO
Quinta-feira, 12 de janeiro
JONES BOATYARD INC.
Salão Palm Beach
8:00 – 17:00 horas
FEIRA DE EMPREGOS HISPÂNICA
Key Largo 3&4
10:00 – 20:00 horas
TREINAMENTO DE CONCESSIONÁRIO DA SONY ELECTRONICS
Atrium Superior
11:00 – 13:00 horas
SUNDANCE MEDIA
Binini
15:30 – 21:30 horas
REVISÃO DE ENFERMAGEM FEUER
Key Biscayne
15:30 – 16:30 horas
SOBREVIVENTES DE SUICÍDIO
Key Largo 2
19:00 – 21:30 horas
SEMINÁRIO DE TREINAMENTO DA EQUIPE DE VENDAS 4
Key Largo I
20:00 – 23:30 horas
Key Largo. Lennox pensa no filme. Bogart e Bacall. Pede à recepcionista que indique o caminho. Ela o faz lembrar-se de Trudi, com sua linguagem corporal e o sorriso
precavido, ligeiramente artificial, a ponto de uma oblíqua mas comovente ereção quando ela indica um lance de escadas. Subindo os degraus rapidamente, ele chega
a um mezanino, anunciado como Key Largo. Metendo a cabeça sorrateiramente pela porta, ele olha, pelos fundos, para uma pequena sala: cinco homens sentados em torno
de uma mesa. Dearing não está presente, mas os outros parecem furtivos e traumatizados. Ele entra, confrontando os presentes.
– Então, é aqui o lugar, não é?
Um homem de óculos, dos seus trinta anos, suando apesar do ar-condicionado, observa a aproximação de Lennox.
– Desculpe, senhor...
– Lennox. Então, onde está o nosso amigo Dearing?
– Sou Mike Haskins – apresenta-se o homem. – Não há nenhum Dearing aqui. – Ele levanta os óculos para cima da cabeça e examina uma pasta. – Desculpe, mas parece
que seu nome não consta daqui, sr. Lennox...
– Não. Não deve constar. Eu só quero que vocês digam a Dearing...
O homem pôs os óculos de volta no nariz e está focalizando Lennox.
– Acho que talvez o senhor esteja na sala errada. Aqui é o grupo de Sobreviventes de Suicídio.
– Ahn... Key Largo... Vendas... – diz Lennox, timidamente.
– Aqui é Key Largo 2 – informa o homem, pacientemente. – Key Largo 1 é do outro lado do corredor.
– Desculpe... desculpe. – Lennox sai para o corredor. Com profundas inspirações, ele se recompõe, e decide fazer a coisa com calma. Deixar a polícia fazer o grande
show. Põe a cabeça pela porta do que é uma sala de seminário maior. Um homem de pé na frente está fazendo um apresentação usando o PowerPoint. Ele vê as nucas de
oito cabeças, num semicírculo. Apenas um deles se vira, olhando para Lennox, estreitando os olhos, e depois olhando de volta para o apresentador. Lennox se retira.
Ele já viu aquele homem antes, em South Beach: nos bares Deuce e Myopia. Perto dele, uma outra figura reconhecível. Esta última não se virou, mas não há dúvida que
eram as costas de Lance Dearing, vestidas de jeans.
Lennox se esconde rapidamente atrás de umas cadeiras empilhadas no corredor. Ele pode ouvir claramente o apresentador falando:
– O que é que eu faço quando pego uma pista? Nada. Eu me sento e planejo. Descubro tudo que posso sobre o cliente, antes de apresentar o produto. O produto inicial
não é as suas próprias carências e desejos. Isso é crucial: a princípio o produto é completamente talhado de acordo com o cliente. Apenas quando o cliente está completamente
fisgado é que nós começamos a pensar em modificar o comportamento dele.
Aí uma voz familiar faz seus nervos tintilarem: Lance Dearing.
– Um cachorro velho sabe que você deve caçar as pulgas mais gordas, mais suculentas, com uma língua úmida e não com dentes afiados.
– Amém – concorda uma outra voz.
Ele já o ouviu bastante para saber que a confrontação será inútil, e a ausência de qualquer presença ostensiva da polícia o faz ponderar sobre a capacidade de Chet
em dar o alarme. Mas ele tem provas, e Chet, e Johnnie. Ele decide encontrar Robyn e deixar os homens reunidos lá.
Então ele ouve o sinal para a pausa do cafezinho, e os sons contentes dos homens se espreguiçando e se levantando ansiosamente, as cadeiras deslizando no envernizado
soalho de madeira. Em vez de descer, ele rapidamente se dirige ao banheiro, trancando o pequeno cubículo, sentando-se e esperando. Dois homens entram: jatos de urina
contra a porcelana e o cheiro dos sais no fundo dos vasos vizinhos.
– Como é que vai, Tiger?
– Vou bem.
Tiger. Lennox sua, sentindo o sangue latejar, como se seu coração estivesse no lugar onde deveria estar o cérebro. Ele comprime a válvula de descarga e sai do cubículo;
fica de pé ao lado de um dos homens, que está lavando as mãos, enquanto o outro ainda urina. Ele olha para o distintivo de delegado na lapela do homem: C.T. O’HARA.
É um sujeito grande, rosto cheio, com um sorriso benevolente. Aliança de casado. Parece um paizão comum. Bem longe de casa, trabalhando duro na área de vendas para
juntar o fundo que vai sustentar os filhos na faculdade. Quem casou com esse monstro, dormindo com ele toda noite? Será que pelo menos sabem? Por que saberiam?
O cara grande passa as mãos ligeiramente sob o secador elétrico e ao sair ele caçoa com o colega que foi até a pia, perto de Lennox.
– Você vai perder aqueles biscoitinhos de chocolate, Tiger.
– E eu não sei. Aqueles caras têm um apetite! – sorri Tiger, revelando uma fileira de dentes com jaqueta, enquanto seu amigo vai embora.
Lennox olha para o cabelo negro oleoso do outro, suas feições falsas, reptilianas, e a etiqueta com o nome confirmando: J.D. CLEMSON. Ele o imagina pagando drinques
para Robyn num bar. E o vê sozinho com Tianna...
Lennox põe o braço atrás das costas para coçar a omoplata quando se aproxima de Clemson. Vê o animal levantar o olhar, com um sorriso ligeiro nos lábios, parecendo
não compreender, antes de mandar o cotovelo com velocidade contra o rosto de Clemson. Um satisfatório som de algo esmagado é seguido por um guincho e pela erupção
de sangue, derramando-se por sobre a pia branca. Lennox gira o corpo para trás de Clemson e força o rosto dele até a borda da pia, martelando o rosto repetidamente,
enquanto dentes e ossos racham e o homem fica inerte em suas mãos agora indolores, emitindo nada mais que um gemido baixo, gorgolejante.
– Saboreie esse momento – diz Lennox para ele –, porque é isso que você vai receber daqui para diante. Sua antiga vida terminou. Foi para isso que você foi posto
aqui.
Lennox afrouxa o aperto. Enquanto o ensanguentado Clemson cai vagarosamente, deslizando para baixo, como um bêbado tentando se agarrar à pia, Lennox dá um chute
no rosto, assistindo a ele se esparramar no chão de mármore. Ele não consegue parar de chutar Clemson, não pode terminar aquela intimidade, e contudo ele se faz
parar. Mas não antes que seus sentidos tenham sido assaltados por aquela rápida perspectiva que talvez todos os homens tenham antes de se tornarem assassinos, que
o êxito naquele objetivo produzirá uma irreparável queda emocional.
Sereno, como um fantasma, ele abre a porta e olha para baixo, para o estreito corredor do mezanino. Ele se sente como se estivesse observando a si próprio num sonho,
onde a perspectiva da narrativa muda da primeira para a terceira pessoa, geralmente quando o pesadelo se torna insuportável. Ele passa pelas salas do seminário.
A porta de Key Largo 2 está fechada. Ele se intromete pela porta de Key Largo 1, meio aberta, sem olhar para dentro, o burburinho dos homens conversando no café
não se alterando quando ele passa. Então a adrenalina cresce dentro dele com a percepção de que a polícia talvez tenha acabado de chegar para testemunhar a brutal
agressão. Ele desce a escada, atravessa o saguão do hotel, vagamente ciente de “Don’t go”, de KC and the Sunshine Band, tocando no estilo de música de elevador,
e corre pelo estacionamento para o carro verde.
Enquanto vai dirigindo se afastando do aeroporto, ele pensa de novo sobre o que Les suportou, imaginando como ele mesmo lidaria com tratamento semelhante. Como policial
ele foi atraído pela Divisão de Crimes Hediondos, e frequentemente examinava o banco de dados de agressores sexuais, para ver se conseguia reconhecer os três sujeitos
que o haviam assaltado. Sua mente lhe pregava peças; às vezes ele ficava convencido de que conseguira identificar um deles, para logo adiante ficar certo de que
era um outro. Mas ele sabia que odiava todos os agressores sexuais: cada um desses terríveis, miseráveis espécimens. Levá-los à barra dos tribunais era a única coisa
que ele acreditava ser o verdadeiro trabalho da polícia. O sistema funcionava unicamente como alavancagem destinada a pegá-los, os verdadeiros canalhas. Esse poder
era ambicionado porque ele declarara guerra aos pedófilos. Nunca fora um policial: Ray Lennox era um caçador de animais e agora ele, que sentira o cheiro da presa,
sentia-se obrigado a levar aquilo o mais longe possível.
21
Cartas na mesa
Lennox percebe que sua atribulada e apressada retirada de onde se achava Dearing tornara confuso seu mapa mental de Miami. Ele se encontra indo na direção leste,
na faixa Calle Ocho da Rua 8 SW em Pequena Havana, passando por padarias e lojas de móveis cubanos, onde grupos de velhos batem papo e fumam no ar meio frio, enquanto
os arranha-céus do distrito comercial central brilham ao longe.
A cor e a palavra “laranja” queimam em sua cabeça: o estádio Orange Bowl e a decoração exterior do prédio do apartamento de Robyn. Parando o carro fora do Museu
de Arte Latino-Americana, ele se orienta com um jovem casal. Eles lhe dizem para dobrar à esquerda na 17ª Avenida, e a grandiosidade já esmaecida do campo de futebol
universitário entra em seguida no seu campo de visão. Mas localizar o apartamento de Robyn no tabuleiro difuso das ruas o faz lembrar-se da tentativa de encontrar
as lentes de contato perdidas por Notman no campo de futebol do Departamento de Parques de Edimburgo. Conforme ele percebe que está dirigindo em círculos, a raiva
se apossa dele, desencadeando uma frustração biliosa em suas entranhas. Seria mais fácil comer sushi fresco em Brigadoon. Está prestes a acionar a buzina com força
em completo desespero quando um prédio de cor laranja parece surgir de repente à sua frente.
– Graças a Deus, porra – arqueja, agradecido, estacionando do outro lado da rua.
Lennox hesita em sair do carro; inspeciona os dedos sanguinolentos, latejando como dor de dentes. Atravessar a Pequena Havana de carro fez com que aquele senso de
alienação e desalento voltasse a acometê-lo. Aqui ele não é um policial. Graças a Deus não vê sinal de polícia na rua silenciosa. Mas eles podem chegar a qualquer
momento; o depoimento de Chet ou a surra que ele deu em Clemson fazem disso uma certeza.
Então Lennox se retesa, sai do veículo, vai em direção ao prédio e aperta algumas campainhas que não a de Robyn, gritando pelo interfone:
– Controle de insetos! – E espera pelo ruído característico antes de empurrar a porta de entrada. Ele sobe a escada e bate na porta do apartamento onde estivera
há duas semanas. Starry abre a porta, agitada. Seus olhos se arregalam, em choque, quando ela vê Lennox.
– Que porra você...
Ela não chega a terminar a frase pois ele lhe dá uma testada no rosto. O ruído do osso quebrando seguido de um espirro de sangue vermelho lhe diz que partiu o nariz
dela. Starry grita, inclinando-se para a frente e depois cambaleando para trás, soltando palavrões em espanhol, enquanto insistentes gotas grandes de sangue caem
no soalho de madeira por entre seus dedos. Lennox agarra a mulher pelos cabelos com sua mão esquerda e pula para dentro do apartamento, girando e batendo a cabeça
dela contra a moldura da porta. Ela cai no chão, onde fica atordoada e gemendo, enquanto ele fecha a porta atrás de si.
Robyn vem correndo da sala de estar, os olhos molhados e hesitante.
– Ray! Onde está Tia? Ela está segura? – Ela olha para Starry, tremendo, espantada. – O que é que você fez?
– Uma coisa que você ou algum outro babaca deveriam ter feito há muito tempo. Há mais alguém aqui?
– Não... mas o que aconteceu? Onde está Tianna?
Lennox percebe que nunca teve um contato violento com uma mulher antes, se você descontar a garota obesa sobre a qual ele teve que sentar-se na delegacia de South
Side, depois que ela perdeu o controle e arrancou com os dentes parte da orelha de um policial de movimentos espásticos imbecil. Mas aquela mulher ali não contava,
pois era um animal, como os outros.
– Há armas de fogo em casa?
– Não... – Os olhos de Robyn parecem uma máscara de Halloween. É como se ela tivesse sido apanhada num ciclo de chorar e aplicar mais delineador de olhos, sem nem
pensar em lavar o rosto. Ele fica nauseado em pensar que poderia ter tido sexo com aquela mulher: ainda mais quando pensa na filha dela e na sua própria noiva. Robyn
cruza os punhos à frente do peito.
– Onde está Tianna?
– Ela está bem. Está com amigos. Que porra eles fizeram com você? Onde levaram você?
– Foi Lance... ele disse que meu problema com drogas estava fora de controle... uma intervenção – ela diz de maneira desconexa, e depois a paralisia toma seu rosto
e ela fica assoberbada pela inaptidão de suas próprias palavras. – Eles eram meus amigos... sabiam o que era melhor. Eu... – ela implora, parando de falar quando
sua tênue convicção a abandona.
Para ele, ela é uma fábrica de lágrimas grotesca, afligida pela estranha ideia de que se chorar bastante, ele no final exudará a fonte de dor. Diferentemente do
rosto de Starry, com maçãs do rosto latinas e lábios carnudos, que ficavam mais atraentes num acesso de raiva, as feições anglo-saxônicas, pequenas e delicadas de
Robyn ficam repuxadas, insignificantes e feias. O estoicismo de lábio superior rígido é o jeito da nossa raça, a demonstração de raiva sempre nos diminui, pensa
Lennox. É o medo que diminui Starry. Ele a agarra e a põe de pé, arrastando-a para a sala de estar e jogando-a na cadeira.
– O que é que você fez com ela? – Robyn pergunta de novo.
– Você sabe o que eu fiz e por que eu fiz – ele diz, dedo em riste para ela, antes de se virar para sua presa na cadeira. – Você mexe a porra de um músculo e eu
estrangulo você até a morte só com as minhas mãos. Entendeu?
Ela força um trejeito de desafio, ainda segurando o nariz.
O rosto de Lennox se contorce quando ele se aproxima dela.
– ENTENDEU BEM A PORRA DO QUE EU DISSE?
E ele se lembra quando ficou perdido no último interrogatório, mas agora não há Horsburgh, apenas a casca abjeta de Starry, acenando afirmativamente numa deferência
triste. Ele avança até o banheiro, pega uma toalha suja e pensa nos usos que poderia ter antes de lançá-la a Starry. Depois, lembrando-se das algemas de Robyn, ele
vai até o quarto de dormir e as tira da mesinha de cabeceira. Ele experimenta a presença de Robyn como um som lamurioso ao fundo enquanto prende a mão de Starry
a um cano de radiador atrás dela.
– Está quentíssimo, porra – ela guincha, através da toalha.
– Ótimo – diz Lennox, enquanto olha de novo para Robyn.
– O que é que está havendo, Ray? – pergunta Robyn, pegando nervosamente tufos de sua cabeleira verde esmaecida. – Onde está meu bebê? Você levou ela para Chet?
– Eu já disse a você, ela está bem. Não fica fazendo performance para mim, Robyn. Eu já vi você fazer isso. – E ele tira o disco do bolso.
– Você encontrou as fitas... – A mão dela vai até o cabelo, e Lennox tem que reprimir a ânsia de gritar com ela.
Ela pensa que eu estou com ciúmes, porra! A idiota da babaca pensa realmente que é disso que se trata!
– Encontrei.
– Eu e Johnnie nos conhecemos por meio de Starry. Ele gostava de filmar quando nós... estávamos juntos.
Lennox acena afirmativamente com a cabeça, pensando nos caras que queriam se tornar astros do cinema pornô, até que percebiam que não conseguiam ficar de pau duro
quando estavam sendo filmados. Mais duas gerações, ele pensa, e nós não seremos capazes de ficar de pau duro a menos que estejamos sendo filmados.
Robyn choraminga.
– Aí Lance entrou no jogo.
– Lance era meu namorado, sua puta – Lennox ouve Starry dizer, a voz abafada pela toalha.
Robyn parece não ter ouvido.
– ... e a coisa simplesmente ficou mais maluca e selvagem. Depois eu descobri que havia outras mulheres, outros vídeos.
– Ah, sim, havia outros – concorda ele, sarcástico.
Robyn olha para Starry, de nariz quebrado, segurando a cabeça com a toalha, gemendo de dor, e depois se vira para Lennox.
– Quem... quem é você, Ray? Quem? – Os soluços ásperos de Robyn são pontuados apenas pelo som de muco deslizando pela garganta, em grandes sorvos.
– Mais tarde – ele diz, imaginando se alguma vez será capaz de responder àquela pergunta de maneira satisfatória para ele mesmo.
– Você viu algum dos outros vídeos?
– Não, é claro que não...
– Alguns deles foram feitos no barco de Chet.
– Não – arqueja Robyn. – Não. Não! Não acredito... Chet não... onde está Tianna?
Lennox coloca o disco no aparelho de DVD.
– Aqui está um a que você não assistiu.
– O quê? Nós vamos assistir a um desses filmes? Agora? Que porra...
– Você precisa ver este. Precisa ver em que as pessoas que você escolhe como amigos estão realmente interessadas.
Ele não quer assistir às cenas de novo e fica sentado estudando a reação enquanto as imagens aparecem na tela. A voz da filha drogada:
– Eu estou enjoada... quero ir pra casa...
A resposta amável de Dearing:
– Está tudo bem, meu amor, apenas relaxe...
– NÃO! Ó, meu Deus... Não! – O peito de Robyn arfa. Mas seu terror é real: ele sabe que ela não faz parte do esquema de abuso de Tianna.
– Desculpe. – Ele para o disco com o controle remoto. – Eu tinha que ter certeza de que você não estava envolvida nisso.
– O quê? O que você... quem... – Os olhos de Robyn se arregalam, o peito arfa enquanto ela luta para respirar.
A vergonha se acumula nele, que baixa os olhos para o chão.
– Provavelmente eles deram a Tianna alguma coisa, algum tipo de sedativo. Não no barco, mais provavelmente no carro, a caminho de lá, na Alligator Alley. – Ele olha
de novo para ela. – Enquanto você estava na clínica de recuperação.
– Mas ela estava com Sta... – Robyn começa, olha para a poltrona e o rosto coberto pela toalha. – Não... NÃO! O QUE É QUE VOCÊ FEZ COM MEU BEBÊ, SUA FILHA DA PUTA
MALVADA DA PORRA?!
– Robyn – diz Lennox –, você se lembra de Vince, lá em Alabama?
– Sim. – A voz de Robyn é quase inaudível enquanto seus olhos cheios de ódio verrumam Starry que conserva a toalha à frente do rosto como uma máscara.
Ele aperta a mão de Robyn para fazer com que ela olhe para ele.
– Você saiu de Mobile para fugir dele. Levou Tianna, pois você sabia como ele era? Ela contou para você, e você acreditou nela, não foi?
– Eu... Sim... Ele me disse que me amava!
– Vince estava envolvido em uma rede organizada de pedofilia; a mesma de Lance e Johnnie. A mesma da qual Jimmy Clemson fazia parte em Jacksonville.
– Não... como é que pode...? – Ela geme, mas uma terrível compreensão está começando a se assentar nos seus olhos.
– O negócio é que eles identificam mulheres solteiras, marginais, solitárias, com filhas bem moças. Trocam informações principalmente pela internet, mas também nesses
seminários de treinamento de vendas. Eu consegui a lista dos membros por meio do computador. Eles planejam uma estratégia de controle, passam as informações para
outros pedófilos, um ou mais dos quais então vigiam a mulher e tentam manipulá-la para ter relações sexuais com eles. Uma vez conquistado esse objetivo, eles rapidamente
se apresentam à criança. Se a mãe desenvolve qualquer suspeita sobre quais são seus objetivos, eles simplesmente se retraem, passando os detalhes de contato com
a mulher para o membro seguinte, que entra em cena e tenta o golpe de aproximação de novo.
– Ó, meu Deus... – choraminga Robyn através das mãos que lhe cobrem os olhos. – Tianna... O que é que eu fiz... O que é que eu fiz para minha Tia?
A bola na garganta de Lennox queima de novo, mas ele se força a continuar.
– O código do grupo é não correr riscos. Ganhando a confiança da mãe, eles fazem amizade com a criança, ficando interessados, transformando-se no pai substituto
que a criança deseja ter por perto, construindo lentamente a intimidade emocional e o contato físico. Pegue minha mão. Me dá um abraço. Um beijinho. Depois eles
declaram amor, mas dizem à criança que aquilo tem que permanecer em segredo. Toda hora a elogiam, insinuando-se de modo a que elas acreditem que o amor que eles
compartilham é algo especial, racionalizando assim a necessidade de manter aquilo em segredo e exclusivo. É assim que a coisa termina. – Lennox acena com a cabeça
para a tela.
Soluços tristes, baixos, rítmicos partem de Robyn, os olhos ainda cobertos pelas mãos. Os poros dela parecem ter se aberto, como que a fim de absorver tudo do ar
fétido. Então ela lança um olhar terrível para Starry, que está sentada em silêncio, uma figura estranha, com a toalha agora sobre a cabeça.
– PÕE O DISCO DE NOVO, EU QUERO VER O QUE ELES FIZERAM, PORRA!
– Não – diz Lennox. – Se você quer assistir mais, faça isso sozinha. – Ele olha para Starry, que o faz lembrar de um falcão com capuz, um predador tornado passivo
pela cobertura. – Essa rede de pedófilos tem uma estratégia de passar a coisa adiante. Depois que você descobriu a jogada de Vince em Mobile, ele entrou em contato
com Clemson, em Jacksonville.
– Eu não sabia... como é que eu poderia saber?
– Não podia. Quando você percebeu alguma coisa anormal com aquele cara, o Clemson, ele entrou em contato com Johnnie e depois com Lance, em Miami.
– Ele era um canalha – cospe Robyn. – Vince, eu nunca teria imaginado... mas Clemson era uma porra de um canalha.
– E mais que isso. Assim, quando eles começavam a ficar mais e mais esquisitos, por essa hora, pelo simples processo de erosão, você estava pensando: “É assim que
os caras são, talvez sejam apenas um pouco infelizes.” Naquele momento você já estava isolada de todas as suas amigas e da família, na sua cidade natal. E eles têm
essa filha da puta aqui – e ele aponta para Starry –, trabalhando para eles, dizendo para você que tudo está às mil maravilhas. Você começa a ficar desconfiada,
mas eles já se apossaram de tudo que queriam de você. – Ele acena com a cabeça para o disco de vídeo.
– Eles me arrasaram, me deram toda a porra de graça: cocaína, metamina, maconha, relaxantes...
– Starry levou você para aquele determinado bar naquela noite, para encontrar alguém que, se tudo corresse bem, seria seu próximo namorado. Você se lembra do cara
com quem eu tive uma discussão?
Um aceno afirmativo triste seguido de um terrível:
– POR QUÊ? – Para Starry. – Só me diga por quê?
Starry, escondida pela toalha ensanguentada, está sussurrando o que parece ser uma prece em espanhol.
Lennox fala para elas.
– Ela me tomou pelo cara. Aí, quando a coisa estourou, ela percebeu que havia feito merda. Depois de tentar nos aproximar, ela começou a disputar a minha atenção
com você, lembra-se?
– Não posso acreditar. Todos eles... Vince, Jimmy, Johnnie, Lance... todos eles metidos nisso. – Os olhos dela se arregalam de puro terror. – Chet! Tianna está com
ele?
– Não, ela está em segurança. De qualquer modo, Chet é diferente. Ele era um velho solitário que sentia falta da esposa. Eles fizeram amizade com Chet a fim de usar
o barco. Eles o usaram como usaram você. Empregaram táticas semelhantes. Ficaram amiguinhos. Dearing era policial. Como muita gente, Chet confiava em policiais –
diz ele, e ela ouve suas palavras tão ansiosamente que ele se sente como um pássaro-pai alimentando seus filhotes. – Eles lhe mostraram alguns filmes com cenas pornô,
como amigos às vezes fazem. – Lennox se encolhe ao pensamento: às vezes amigos fazem mais. – Depois foi: “Nós gostaríamos de fazer nossos próprios filmes. Podemos
usar o seu barco?”
Por um momento, Robyn não consegue falar. Quando ela finalmente recupera a voz, gagueja:
– Meu bebezinho, meu bebezinho, meu bebezinho...
– Ela está em segurança agora. Ela é uma criança forte – ele diz, secamente –, e ela precisa de você, nós precisamos que você mostre alguma força agora. A polícia
logo estará aqui.
Ela acena com a cabeça, concordando, mas a expressão é de desânimo, enquanto Lennox continua:
– Chet gostava de assistir a filmes pornô feitos em casa, de adultos. Quando ele viu que você aparecia num deles, ele saltou fora do esquema. Mas aí Johnnie e Lance
começaram a ficar mais estranhos. As mulheres ficaram mais moças. Às vezes nem eram mulheres. Chet ficou assustado com aqueles visitantes no seu barco, mas a coisa
aí virou pura chantagem. Ele é um cara direito, orgulhoso. Não queria que a polícia ou seus respeitáveis vizinhos da Grove Marina pensassem que ele frequentava esse
tipo de círculo. Mas eles ficaram descuidados e desleixados, especialmente Johnnie. Começaram a guardar os vídeos no barco.
Starry chacoalha as algemas contra o cano do radiador.
Lennox inspira fundo. Cerra o punho que se arrebentou em fragmentos. Nunca será o mesmo de novo. Lascas boiando em torno de cartilagens e tendões.
– Chet encontrou o website deles. Não era incriminador, mas continha a relação dos membros e a programação das reuniões. Há oito deles, inclusive Dearing, no Hotel
Embassador neste exato momento, ou mais provavelmente fugindo da polícia do condado de Miami-Dade. O assunto da reunião deles provavelmente era você e umas outras
poucas mães solteiras do sul da Flórida.
Robyn solta um longo arquejo, segurando os ombros e balançando o corpo.
– Por que Chet...?
– Ele estava planejando ir à polícia. Estava tomando coragem – explica ele em resposta à confusão dela –, reunindo provas. Você se lembra de que Dearing é policial,
não é?
– Então Chet ainda é meu amigo...
– Em certo sentido – concorda Lennox, e se recorda de uma antiga frase que seu pai frequentemente usava –, mas você sempre está melhor com um inimigo astucioso do
que com um amigo imbecil – antes de permitir que o policial nele assuma a frente das coisas, de novo. – Entretanto ele estava inadvertidamente ajudando a eles, e
terá que enfrentar as consequências disso.
As mãos de Robyn voltam a cobrir o rosto. Depois sua voz sibila por entre os dedos:
– O que é que eu fiz, Ray?
– Você foi vítima de uma quadrilha particularmente sórdida – diz ele, enquanto outra ladainha em espanhol sai de dentro da toalha ensanguentada.
– Mas por que... por que eu?
– Você tem uma filha mocinha. Seu estilo de vida torna você vulnerável. Expõe ela e você.
– Eu não sou uma pessoa má – ela implora –, eu apenas...
Lennox não a deixa terminar.
– Eu não posso criticar o seu modo de vida porque o meu próprio é bem parecido. A diferença crucial é que eu não tenho uma criança pela qual zelar. Reúne os cacos,
enquanto ainda há alguma coisa inteira.
– Você... você é do FBI?
– Não, sou de Edimburgo, em férias. Planejando meu casamento, como eu disse a você.
O rosto confuso de Robyn encontra seu foco novamente encarando Starry, agora espreitando pela toalha, como se esta fosse uma burca.
– Você armou tudo. Você! – Ela olha para Lennox. – Ela me odeia! Me odeia porque eu tenho Tianna!
– Meu filho tinha dezesseis anos quando morreu baleado – geme Starry.
– Ele era membro de uma gangue! Ele mereceu! Angel não prestava – grita Robyn, e depois se lança através do quarto, os punhos fechados visando Starry. É só quando
ela vai pegar um grande vaso de vidro com listras de tigre, que Lennox sente que é o momento de segurá-la. – ME SOLTA! VAMOS! EU QUERO MATAR ESSA MISERÁVEL FILHA
DA PUTA!
Não é fácil contê-la; a fúria deu a Robyn uma força sobrenatural para sua frágil estrutura. Por fim, ela cessa de lutar e se dissolve nos braços de Lennox, permitindo
que ele a conduza através do quarto e a faça sentar no sofá.
– Ela vai ter o que merece, não se preocupe. – Ele se agacha e bota as mãos dela nas dele. Um sentimento de culpa transborda dele. Eu perdi Britney porque julguei
mal Angela Hamil. Agora eu perdi Robyn porque a julguei mal... ou porque simplesmente a julguei; é a mesma coisa.
Por alguma razão ele se lembra da época quando, num acesso de raiva de seus doze anos, inexplicavelmente irrompera no quarto de dormir de sua irmã Jackie, interrompendo-a,
sem intenção, no boquete que ela fazia num namorado. Na sequência, houve um briga na família. Não por causa da sua intrusão ou da indiscrição dela, porém mais tarde,
quando ela achou sua velha boneca Marjorie no sótão, e aquela que era a favorita dos dois irmãos. PUTA CHUPADORA DE PAU estava escrito no rosto de plástico da boneca,
em grandes letras.
Ele olha a face vincada de Robyn, manchada pela maquiagem e pelas lágrimas.
– Agora eu tenho que ir pegar Tianna antes que a polícia chegue.
Robyn vai fazer um aceno afirmativo, concordando, quando ela vê a porta se abrir atrás de Lennox.
– Ela já chegou – diz uma voz para eles.
Lennox se volta para defrontar-se com Lance Dearing, que balança uma duplicata da chave na mão.
– Confiança de amante – ele sorri. A segunda coisa que Lennox registra é que há alguma coisa diferente nas lentes bifocais que dividem seus olhos em uma seção escura
impenetrável e uma parte inferior baça. A terceira coisa é que Dearing tem uma arma apontada para ele.
– Quem diabos é você, Ray? E não vem com aquela merda de planejar o casamento. Você deu uma baita surra no Tiger. Encontramos ele todo arrebentado no chão daquele
banheiro: sangue, cocô e dentes por toda parte. – A cabeça acena, em cautelosa aprovação. – Então, que porra de cara é você!
– Isso interessa agora? Acabou, Lance.
– Tanto para mim quanto para você.
– Lance, meu benzinho, me liberta, querido, vamos só dar o fora – implora Starry.
Por alguma razão, Lennox examina Dearing de alto a baixo, repentinamente desprezando sua camisa preta de tecido jeans lavado, metido em calças brancas de lona, com
aqueles tênis espaventosos.
– Você não vai atirar em mim. Você nunca atirou em ninguém – diz ele calmamente, pensando em Bill Riordan, o policial aposentado de Nova York. Mas ali era o Sul.
Será que Flórida era mesmo o Sul? Será que aquele era um estado de caçadores? De pescadores, certamente que era.
Dearing faz um trejeito de deboche e alguma coisa opaca nos seus olhos, atrás das lentes inferiores de seus óculos bifocais.
– Com os diabos, como você poderia saber disso?
Em desespero, Lennox percebe que ele não tem meio de saber. Ele pensa em seu pai. Em Britney. Imagina, num instante, se ele os verá do outro lado, se a morte realmente
for assim.
– Lance – implora Starry.
– MINHA GAROTINHA, SEU MONSTRO DA PORRA! – ruge Robyn, levantando-se.
Dearing aponta a arma para ela.
– Senta sua bunda nojenta aí, sua puta maluca, ou eu faço dela a porra de uma órfã!
Robyn estremece e senta de novo no sofá, os braços enlaçados no próprio corpo, um rastro de catarro escorrendo do nariz para o peito.
– Acabou – repete Lennox, olhando para o disco, que se projeta para fora do aparelho de DVD, debaixo da televisão. – Johnnie está preso. Tente telefonar para ele
se não acredita em mim. Ou então você talvez tente Chet. Ele se entregou e também entregou você, obviamente. Eu achei que você tinha sido preso no hotel. Não importa,
a polícia local já terá enviado a lista para o FBI. – Ele aponta para as folhas de papel no sofá. – Seu nome não está ali, mas eles têm uma gravação de você estrelando
seu próprio show. Johnnie foi relapso. Levava esses DVDs para toda parte; uma verdadeira locadora sobre pernas. Acabou, Lance.
O maxilar inferior de Dearing treme um pouco.
Starry continua a implorar, miseravelmente.
– Me solta, Lance, por favor! Vamos dar o fora daqui, porra!
Lance Dearing a ignora e abaixa o olhar para os papéis, e depois para o DVD. Seus olhos se arregalam e uma incandescência branca parece iluminá-lo por dentro.
– Nunca imaginei que isso terminaria dessa maneira. Eu só queria fazer um bom trabalho, é tudo. Me diverti e a coisa fugiu um pouco do controle.
– Não era diversão – diz Lennox.
– Talvez não – concorda Dearing, desanimado. – Acho que todos nós podemos dar azar.
– A melhor coisa que você pode fazer agora é...
Lennox é interrompido quando Lance Dearing levanta a arma e puxa o gatilho.
22
Faxina geral
Espouca um trovão e por um segundo Lennox acha que foi baleado. Então ele vê Dearing saltar para trás, passando pelo umbral da porta e por parte do hall de entrada,
sangue jorrando de seu queixo. Lennox avança rapidamente, agarrando uma colcha do sofá e colocando-a sobre o rosto de Lance Dearing, embora não sem antes verificar
que o orifício, de onde partiu o projétil, está na bochecha, estilhaçando parte de seu maxilar superior. Dentes se esparramam pelo chão como pérolas de um colar
quebrado.
Robyn vê pouco da cena, sua visão obstruída pela abertura da porta que separa a sala de estar do hall de entrada. Tudo que seus olhos veem são as pernas de Dearing,
contorcendo-se lentamente no chão. Lennox a pega pela mão, levantando-a do sofá. Ela está em estado de choque, quase tão incapacitada quanto Dearing, esparramado;
Lennox sabe que seu próprio fim está próximo. Ele tira o disco do aparelho de DVD e apanha a lista.
Ele lança um olhar para Starry. A cana do nariz está inchada e os olhos começam a ficar enegrecidos. Lennox mal pode olhar para ela; sua própria decadência evidenciada
na ruína em que a mulher está. Em pânico, ela puxa desesperadamente a algema recoberta de pele de animal que a prende ao radiador.
– Não me deixem aqui!
Lennox a ignora; ela pode ficar ali até a polícia chegar e então explicar tudo a eles. Ele levanta a cabeça de Robyn, forçando-a a não olhar para Dearing ou para
as marcas de sangue na parede ou para a gosma escorrendo pelo umbral da porta, quando passa por cima do policial animalesco ensanguentado.
– Agora vamos ver Tianna, certo? – diz ele enquanto cruza o portal. Ela está aturdida, uma expressão de animal selvagem contido pela parede de tijolos cinzentos
e o corrimão de metal frio. – Espere aqui só um minuto – diz Lennox, entrando novamente e fechando a porta atrás dele.
Ele se agacha sobre Lance, estupefato de vê-lo ainda segurando a arma, arrastando-a pelo chão e manobrando-a na direção de sua própria cabeça. Parte da colcha se
separou do rosto sanguinolento. Ele atira de novo, antes que Lennox tenha tempo de reagir. A bala raspa o alto do seu próprio crânio e ricocheteia no hall, penetrando
na base da porta do banheiro.
O próximo tiro de Dearing penetra assobiando no rodapé. Lennox puxa de volta o restante da colcha, expondo o rosto arrebentado.
– Me ajuda – geme Lance Dearing, a voz baixa –, termina isso.
Lennox abana vagarosamente a cabeça.
– Eu já ajudei você, Dearing. Mas eu me ferro se ajudar você a terminar isso. Não tem jeito – diz ele, pisando no pulso de Dearing, e depois, com o outro pé, soltando
a arma da empunhadura frouxa do homem caído. – Eu não vou ajudar a porra de um pedófilo. Com o sangue que você está perdendo, eu só espero que a ambulância chegue
aqui a tempo de remendarem esse estrago em você. Eu não quero que você morra, porque você não merece isso, porra. Você deve viver com o que você fez. – Lennox se
sente assaltado por uma terrível energia. – Ajudar um canalha como você? Um pequeno roedor? Um policial animalesco? Eu pareço uma pessoa doce, porra – ele cospe,
sabendo que os policiais de Miami o tratarão de modo mais duro do que qualquer bala, e ele quer que esse homem tenha o mesmo destino que o Confeiteiro: viver com
o medo de ser esfaqueado, currado, humilhado – e ele fica envergonhado com essa percepção. Eles venceram. Humilharam-nos. Puxaram-nos para baixo, até seu nível,
com nossa patética sede de sangue. Vocês poderiam varrê-los da face da Terra, e ainda assim vocês perderiam.
Os gritos de Starry e os gemidos roufenhos de Dearing enchem o apartamento numa terrível orquestração de tristeza.
– CALA A PORRA DA SUA BOCA! – Lennox berra numa catarse, e por alguns segundos o ruído diminui. – Calem a porra das suas bocas, seu pedófilos canalhas, e pensem
como vocês estão completamente fodidos agora – e ele ouve o rosnar flamejante de satisfação raivosa vindo de suas entranhas mais profundas.
Ele sai do apartamento e vê Robyn. Tremendo e se acariciando, ela agora parece mais ou menos da mesma idade de Tianna. Mas o negócio é que ela não é.
Um jovem de colete e calça de atleta sobe aos pulos pela escada quando Lennox fecha a porta.
– Eu achei que tinha ouvido barulhos – diz ele. – Pareciam tiros, eu...
Ele vê o sangue na roupa de Lennox. Olha para ele boquiaberto.
– Foi isso mesmo – concorda Lennox. – Alguém deu um tiro em si mesmo. Talvez seja uma boa ideia chamar a polícia e uma ambulância – diz ele, empurrando Robyn escada
abaixo, o braço em torno de seus ombros magros.
– Certo! – O sujeito desce apressadamente as escadas na frente dele.
Eles saem do prédio e entram no Volkswagen, e Lennox dirige até a firma de aluguel de carros. No caminho ele ouve as sirenes e fica pensando se elas vão atrás de
Dearing. Talvez não. O choque está se instalando, e ele sente uma constante dormência assaltando-o. Depois, quando vê sinais de um posto de gasolina, um pensamento
frívolo o assalta: encher o tanque.
– Eu preciso devolver o tanque cheio de gasolina – ele fica espantado de dizer isso a uma Robyn perplexa, entrando no pátio.
T.W. Pye está trabalhando no turno da madrugada. Ele olha desconfiado para Lennox, quando este entra no escritório. Depois seus olhos ficam esbugalhados quando nota
o sangue e o vômito seco na frente do corpo do estrangeiro. Eles saem para o estacionamento de devolução dos carros, onde está o carro alemão. Pye caminha em torno
do veículo, inclina seu grande porte suarento para dentro do carro, e examina um pouco. Lennox nota que um arranhão enferrujado, como manchas surgindo no rosto de
alguém depois de uma farra alcoólica, surgiu na carroceria verde ao longo do aro acima da roda. Ou isso escapou ao exame do atendente, ou não tem importância para
ele.
– É, o carro parece estar bem – ele diz, levantando-se e olhando para Robyn, trêmula. – E você tem um tanque cheio – resmunga para Lennox. – Mas você parece ter
se metido em confusão, amigo.
– O outro cara mataria para estar no meu lugar.
Os lados do rosto de Pye queimam.
– Muito bem, eu vou só... bem. – Ele se arrasta até o escritório, seguido por Lennox, e remexe na gaveta, contando nervosamente os quinhentos dólares.
– Um grande carro, por falar nisso – diz Lennox, pegando o dinheiro e colocando-o no bolso, e começando a sentir pena do homem gordo, que iria para casa onde o esperava
seu único amigo mortal, silencioso, branco e imutável, a geladeira, que o estava matando toda vez que o cumprimentava com um sorriso grande, insolente, lâmpadas
acesas. Robyn e ele se dirigem para o ponto de táxi. Pensando em Starry e Clemson, ele pode sentir sua adrenalina se esvaindo, e a depressão assaltando-o, a economia
de palitos seguida de gasto perdulário; a matemática emocional de praticar a violência e o abuso sexual. Eles entram no táxi.
– Fort Lauderdale.
Sentados no banco traseiro do táxi, Lennox explica a situação para Robyn, fazendo com que ela não tenha dúvida sobre quem está no controle.
– O negócio é o seguinte; você vai ver Tianna em Fort Lauderdale comigo. Depois nós vamos até a delegacia e contamos tudo à polícia. Tianna vai ficar com meus amigos
por uma semana mais ou menos, até que essa merda toda fique esclarecida.
– Mas eu preciso dela comigo...
Pensando em Tianna, Lennox enfatiza:
– Nesse momento o que você precisa não vale porra nenhuma, nadica de porra nenhuma. Aquela garotinha não será mais a sua irmã. Ela é apenas uma criança e você é
uma mulher adulta. Se você começar a agir como criança, eu digo às autoridades que você é uma vagabunda viciada em cocaína, e pode acreditar que eles vão me ouvir.
Você vai cumprir pena por colocar em risco a segurança de uma criança se eu mostrar a gravação a eles. Pode acreditar.
O rosto dela se encolhe ainda mais com a veemência verbal dele.
– Mas eu pensei que você era meu amigo.
– Eu sou amigo dela, não seu. Você tem que começar a arranjar amizades e respeito. – O tom de voz de Lennox fica mais suave enquanto um sentimento de autocensura
se infiltra nele. – Endireite sua vida e você sairá disso como uma heroína aos olhos de Tianna. Faça com que ela acredite em você, Robyn.
Ela acena afirmativamente através das lágrimas. E aí ele se vê divagando, dizendo a ela que ele é apenas um policial escocês que queria estar com a noiva em Miami
Beach, se recuperando de uma experiência ruim. E planejando um casamento. Talvez pegar um pouco de sol, juntamente com umas pescarias e passeios de barco a vela.
Então Robyn conta a ele sua própria história, e esta a torna mais humana, como acontece com todas as histórias, e ele vê uma pessoa extremamente infeliz, vitimizada
e destroçada como carniça por hienas. E ele se lembra da trindade de marginais que o transformaram num policial.
Você pode fazer melhor. Quando eles o levantaram do chão daquele bar em Edimburgo, arrasado pela piada doentia e cômica do local, estava tão arrasado quanto Robyn
está agora. Mais ainda quando ele foi encontrado espreitando no túnel depois do enterro do pai, a mão reduzida a uma polpa, tagarelando como um alucinado, protestando
que tinha a cocaína sob controle, enquanto uma carga queimava no bolso da calça jeans e nas suas narinas. Mas Trudi assumira o encargo, levando-o para Bruntsfield
e indo a Leith para pegar a correspondência dele. Ela entrou em contato com Toal, concordando com que Lennox entrasse em licença de saúde, e mandou-o consultar o
médico dela, não o médico da polícia, pois ele nunca se dera ao trabalho de se registrar no serviço. O doutor prescrevera antidepressivos. Ela já reservara hotel
no sol da Flórida, e agora as férias serviriam adicionalmente para executar os planos do casamento. Mas primeiro houvera o enterro do pai.
No dia anterior ao funeral ele fora até a casa da irmã; era uma tarde sombria, úmida e fria, a queda das folhas progredindo, a avenida cinzenta numa guerra de atrito
túrgida contra um vento amaldiçoado. Jackie permanecera forte durante todo o período antes do enterro. Ela se encarregou das providências, lidando com tudo com seu
costumeiro modo prático, e demonstrando pouca emoção. Naquela manhã, quando Lennox foi até a casa dela, ela o censurou asperamente, agarrando-o no corredor, aquele
com o tapete Axminster verde-garrafa, que sempre cheirava ligeiramente a umidade, embora tivesse sido levantado, arejado e limpo diversas vezes.
– Ray... meu irmãozinho. Você sabe que eu sempre amei você – ela disse.
Aquilo veio como um choque para ele, ainda mais quando sentiu cheiro de gim no hálito dela.
– Eu nunca suspeitei de nada – disse ele, e ela pensou que ele estava brincando.
– Você deve ir visitar mamãe, Ray. Ela precisa de todos nós.
– Ela não tem o Jock cuidando dela? – perguntou ele, a voz calma.
– Graças a Deus ela tem Jock, ele é uma luz.
De modo que ela não sabia. Lennox ocultou sua raiva.
– É mesmo.
– Você deve ir visitá-la – sua irmã repetiu, dessa vez com a firmeza de um advogado.
– É mesmo, eu vou lá mais tarde, está bem? – ele disse com a voz de policial, expelindo as vogais duras e o jargão que habitualmente usava com a irmã, para contrabalançar
a afetação sofisticada dela. Aquilo matou o que restava da intimidade entre eles. Aí ele pediu desculpas e foi embora, de novo sob as ordens de Trudi.
Às vezes um déspota benigno é melhor do que autodeterminação, pensa ele, particularmente se você é um fodido de marca maior. Ele olha para Robyn, e a vê olhando
fixo para a frente, focada em algo invisível.
– Vai dar tudo certo – Lennox diz para ela, e espera que tenha razão.
A reunião em Fort Lauderdale é cheia de emoção e lágrimas, bem como a partida subsequente. Lennox informa a Tianna que a mãe dela vai ajudar a polícia a afastar
os sujeitos maus como Vince, Clemson, Lance e Johnnie. O que é provavelmente a maior verdade que ele tem para contar à garota.
SEIS DIAS DEPOIS
23
Holocausto
Os espelhos de corpo inteiro do banheiro reproduzem ao infinito, para seus próprios olhos críticos, um milhar de Ray Lennox nus; cada um carregando a mancha maternal
da infidelidade. Avril Lennox foi o pacote-surpresa; ele esteve observando seu pai para ver como ele se viraria e a velha se esgueirara para o lado obscuro, com
uma vida clandestina e segredos lascivos. Desde a adolescência, passando pelos seus vinte anos, o negócio era deixar sua marca como indivíduo, escondendo seu legado
hereditário no processo. Então, subitamente, você estava no palco como uma dançarina de striptease sob luzes fortes; descartando-se de toda cobertura para revelar
o seu DNA.
Ele desliga as luzes embutidas do banheiro, fica observando-as ficarem negras, abre a porta com um meneio. A energia está de volta; aquela ânsia sexual, não, aquele
imperativo sexual. Será que vou conseguir fazer a coisa certa com Trudi? Ele imagina, emergindo na luz pulsante do quarto do hotel.
Ele puxa um cordão, fechando a veneziana, enquanto acende uma lâmpada de cabeceira, como um mestre de xadrez enfrentando com perícia uma manobra do oponente. Ela
está nua, assim como ele, recebendo sua aproximação com um golpe desafiador contra ele, agora revestida com um novo bronzeado artificial. Seu corpo, nas mãos trêmulas
dele, está até mais rígido do que ele se lembra. À luz das lâmpadas embutidas sobre a cabeceira da cama, ele consegue ver pelos branco-leitosos, mais finos do que
seda, sobre os braços castanho-claros dela, interrompidos por algumas pequenas manchas rosadas perturbadoras. Ela parece tão fresca que apertá-la deixaria marcas,
uma garota pão de mel saída do forno. Um onda de ternura o assalta e ele tem a ânsia irresistível de bater no rosto dela. Interpretando mal o gesto, Trudi o empurra
suavemente para trás na cama, girando o corpo, sua língua aguda, pontuda, lambendo seu peito recém-banhado, seguindo para baixo. Por uns poucos e torturantes segundos
ela se aloja no umbigo dele. Uma ou duas lambidas rápidas e a coisa continua enquanto os lábios dela se abrem em torno do pênis dele.
Lennox solta um arquejo, sentindo o corpo retesar, o pênis crescendo dentro da boca de Trudi. Ele olha para ela, ajustando-se ao status quo mais novo e mais formidável,
uma gratificante surpresa aos olhos dela, que acompanham o encontro de um velho amigo. Ele põe o cabelo dela atrás das orelhas para apreciar a festa em seu rosto.
Ambos estão decididos, a ereção será longa, e ela se envolve ansiosamente no jogo enquanto ele geme.
– Não quero gozar ainda – e ele puxa o pênis e monta nela, enquanto transam de uma maneira controlada, precária, quase encantados por estarem fazendo isso, respeitando
a maravilhosa força construtora de cada momento como algo próximo a uma intensidade investigatória.
Eles chegam juntos ao orgasmo, de maneira selvagem; Lennox deixando escapar ejaculações tão espessas e pesadas que quase o machucam. Trudi revira os olhos, e um
uivo colossal, que ele temia nunca mais ouvir, enche o quarto. Exaustos, eles rapidamente mergulham numa profunda modorra pós-coito. Ele se sente carregado através
do oceano até que vê Toal atrás do púlpito nas salas do leilão. O manequim silencioso e rígido está de pé no caixão. Eles estão fazendo lances, os outros; todos
na sombra, mas parecem mais fracos. Porque Les Brodie está a seu lado, e eles não são mais garotos. A voz do pedófilo atrás dele diz:
– Dois milhões.
– Três milhões! – Les grita.
– Quatro milhões! – vem o grito, mas há agora uma incerteza nas vozes dos homens nas sombras. Elas parecem estar vindo de mais longe ainda.
Lennox examina o rosto de Brodie. Pega o sinal:
– CINCO MILHÕES! – eles gritam em uníssono no meio daquele ruído. Escoceses fazem, com suas invenções e bebedeiras, a dádiva deles ao planeta Terra: o seu hino,
“Auld Lang Syne”: o som ouvido em todo o mundo.
– Seeeiiiss milhõõõeess... – As vozes dos pedófilos se desvanecem.
– Eu não ouvi esse lance. Pode repeti-lo? – Toal pergunta. – Não? O último lance foi cinco milhões. Dou-lhe uma, dou-lhe duas... vendido... para Ray Lennox!
A moça no palco está agora usando um vestido de noiva branco. Ela levanta a mão e retira a máscara, enquanto Lennox voa para a superfície vindo das profundezas do
sono, do suadouro e do edredom. Abre os olhos, o rosto de Trudi perto do seu no travesseiro. Olhos fechados, um sorriso retorcido. Ele inspira fundo, agradecido,
feliz. Depois de saborear por alguns momentos a intensa emoção e adoração, ele a acorda com um beijo.
Ela fica tanto contente quanto irritada de ser acordada daquele modo.
– Ah, Ray... O que é que há, benzinho? Você teve um daqueles sonhos horríveis de novo?
– Não, sonhos lindos com noivas de branco – diz ele, estendendo as mãos para ela.
Trudi se aninha nele, e depois de uma pausa, onde ela fica tão quieta e silenciosa que ele pensa que ela adormeceu de novo, ela diz:
– Pelo menos dê um telefonema para Stuart, Ray.
– Mais tarde – ele força um sorriso, tirando um braço de detrás da cabeça dela no travesseiro, sentindo o desgaste e encolhimento de seu músculo do bíceps, e pensando
em malhar, malhar, malhar –, nós estamos de férias.
– Muito bem – diz ela, e sai da cama e vai para o banheiro. Ele fica observando-a se movimentar com a graça ágil de uma potranca, admirando a rigidez esbelta de
suas nádegas, as omoplatas e a pequena curvatura que a coluna vertebral faz nas costas. Depois ela desaparece e ele ouve o sibilar dos jatos de água.
Stuart.
O que aconteceu com o garoto de olhos de elfo, pele clara e cabelo encaracolado castanho-dourado?
O enterro do pai deles. O rosto de Stuart ficando vermelho depois de cada uísque, aquela bebida maldita, doentia. As migalhas do pão com salsicha que ele estava
comendo caindo dentro do copo, sem que ele percebesse. Puxando Lennox para um canto na recepção do enterro e sussurrando numa excitação nervosa. O rosto cor de beterraba
e as narinas tremendo com aquela proximidade. Como Stuart não tinha noção de espaço pessoal quando estava bem e o quão exatamente e asfixiantemente perto ele ficava
quando estava bêbado.
– Foi embaraçoso ir lá arrumar o escritório dele. Encontrei filme pornô escondido na escrivaninha.
Lennox levantara uma sobrancelha cansada, querendo que ele parasse, mas esgotado demais para insistir. Sua pele estava arrepiada por ter ficado toda a noite sem
cocaína no seu apartamento em Leith, para onde ele fora depois de sair da sessão de aconselhamento com Melissa Collingwood.
Stuart entendeu errado aquele sinal como sendo de espanto.
– Tudo ali, Raymie. Não estou de sacanagem. Não consegui acreditar. Papai! Eu levei Jasmine para tomar um drinque. Ela admitiu que se sentia péssima porque quando
ela olhou através da janela do escritório e o viu todo tenso, ela pensou que ele estava se masturbando. Ele deve ter sido conhecido por isso! Aí ela virou as costas
rapidamente, e então ouviu alguma coisa se arrebentando. Ela abre a porta e vê papai caído sobre a escrivaninha. Ele não estava ejaculando. Tinha tido um infarto.
O pobre canalha do velho. Tentando tanto encontrar sua sexualidade, aquele componente fundamental do ser, mas enterrado nas pílulas que o mantinham vivo.
Lennox olhando para seu irmão mais moço, vendo manchas na pele que ele não notara antes. Deviam ser novas. Olhando para um boneco de pano de boca frouxa; um ator,
um artista, sempre no palco. Quanto mais porra de drama, mais o pequeno e mimado Stuart absorve, floresce.
– Você vai falar com mamãe?
– Mantenha ela longe de mim, porra – ele disse, observando a mãe lacrimosa. Trudi de pé ao lado dela, consolando-a. Tentando explicar o inexplicável. Por que Ray
não fala comigo, Trudi? Ele contou a Trudi, é claro, mas ele não tinha certeza se ela acreditara nele ou atribuía isso a uma fantasia de um homem perturbado, a ser
jogada na lata de lixo do “estresse”.
Depois Jock Allardyce viera até ele, e com ele veio Avril Lennox, a mão trêmula segurando inconscientemente um copo de vinho tinto. O grande tufo de cabelo branco
de Jock, penteado para trás com gel, seus olhos tristes, azuis.
– Olha aqui, Lennox, eu só quero dizer...
– Você dá o fora, sr. Confeiteiro da porra, e leva ela com você. – Ele se virou para a mãe. – O corpo de meu pai ainda está quente, seus canalhas doentios!
Ele se lembra do horror e espanto de Jock, e de sua mãe, lacrimosa, olhos ovalados, tentando expelir algumas palavras, mas irrompendo em choro, em vez disso, e sendo
confortada por Trudi e Jackie. Até mesmo no momento em que ele sabia que era extremamente mesquinho e impróprio chamar Jock pelo apelido que eles haviam dado ao
pedófilo assassino Horsburgh. “Tio Jock” nunca fora empregado dessa forma, nem ele tinha uma queda para doces. Nem mesmo Horsburgh usara balas para atrair sua presa,
apenas fogo e Sprite.
Então Stuart se aproxima, o rosto camaleônico e um andar que procura imitar o de um leão de chácara de boate.
– O que você me conta?
– Você adora isso – ele veio para cima do irmão mais moço. – Bem, você pode confraternizar com seu “padastrinho” aqui, eu fui.
Stuart ficara furioso com ele. Ele se recorda do irmão levantando os punhos cerrados, na ponta dos pés, o bafo de uísque a uns poucos centímetros dele.
– Você pensa que porque tem essa porra de emprego fascista você conhece tudo sobre a natureza humana? Você é uma porra de um noviço, Raymie. Você não tem a mínima
ideia do que mamãe precisa ou quer da vida!
E Avril Lennox, de olhos fechados, repetindo uma prece:
– Foi minha culpa, foi minha culpa, foi minha culpa...
Lennox plantara a mão calmamente sobre o peito de Stuart, afastando-o de si uns poucos metros.
– Tenho certeza de que você sabe. Vai pegar a porra de umas dicas de maquiagem. – Ele se virou e saiu para o estacionamento, seu humor ficando mais sombrio como
as nuvens escuras que revoluteavam acima. Caminhando um pouco, sem saber onde estava indo, ele terminou voltando ao cemitério, e sentando num banco. Pensando em
como ele nunca pôde contar ao seu pai, ou a qualquer outra pessoa, o que acontecera com ele no túnel. Imaginando o que teria sido preciso para John Lennox revelar
seu grande segredo.
Depois de um momento, houve o som de cascalho sendo pisado sob uns pés, e uma sombra magra passou por Lennox, fazendo-o consciente de que alguém havia se juntado
a ele no banco, sentado a uma distância respeitável. Les Brodie, cigarro na mão, olhava fixo para a frente, espremendo os olhos para o sol fraco que tentava se firmar.
Lennox ia pedir que o deixasse sozinho, mas Les não dizia nada, apenas olhava para o céu turvo.
Agora Lennox podia sentir o ar frio na sua nuca, que latejava com a pulsação.
Por fim, Les falou.
– Vento frio, El Mondo.
Seu apelido de infância. Usado apenas por membros próximos da família e por Les. Como éramos íntimos, pensou ele.
– As coisas tão fodidas quanto podem ficar – resmungou Lennox, olhando em torno.
– Elas sempre podem ficar mais fodidas ainda. – Les Brodie balançou a cabeça. Então um sorriso percorreu seus lábios e ele se virou para Lennox, encarando o amigo.
– Mas nós também podemos fazer com que melhorem.
– Aquele babaca, e a minha velha, trepando com ele, trazendo ele aqui enquanto meu velho ainda está quente na sepultura.
– Jock era parceiro dele, Raymie.
– É mesmo, que parceiro da porra, não é, trepando com a esposa do velho. E aquele babaquinha, o Stuart...
– É mesmo, as pessoas podem ser um pouco estranhas. – Les Brodie acenou afirmativamente como as pessoas fazem nessas ocasiões; banais e vazias diante do enigma insolúvel
da mortalidade.
– Eu é que o diga.
– Mas você tem que relevar, Raymie.
– Como? Como, porra... – Lennox começou, e sua mente voou de volta para o túnel e um Les todo machucado surgindo à luz com sua bicicleta – como você pode relevar?
Les limpou a garganta.
– Você sabe o que aqueles babacas fizeram comigo, Raymie? Eles me estupraram. Dois deles, um depois do outro. Eu nunca contei isso a você, não é? Nunca vim diretamente
e contei o que houve. Dois deles – Les disse de novo, os olhos se espremendo em torno das rugas de expressão. – Logo que eu achei que a coisa tinha acabado, o outro
começou. Eu estava esperando pelo terceiro, o cara mais jovem, mas ele se mandou.
– Que porra, Les, eu... – e ele não conseguiu falar mais. Ele fugira. Se ele tivesse ficado, lutado, gritado e apanhado, como eles dizem, como um homem, ao lado
de Les? Essa pergunta o havia atormentado por toda sua vida adulta.
– Eu podia entrar em mais detalhes, mas não vou fazer isso. – Les pegou uns cigarros e ofereceu um a Lennox, que recusou. – Mas eu vou contar a você como eu fiquei
com raiva, como eu procurava pessoas que eu pudesse machucar por causa do que tinha acontecido comigo, e procurava me magoar também. Eu perdi a linha, perdi muito
a linha – sorriu ele numa lembrança amarga. – Todo aquele ódio, não tinha lugar nenhum para escoar. Eu cheguei mesmo a odiar você, por ter dado o fora de lá.
– Eu odiei a mim mesmo por causa daquilo, Les. Tentei procurar ajuda, dar o alarme. Consegui que aquelas pessoas fossem lá, mas já era tarde.
Les deu um profundo trago no cigarro.
– Preciso deixar isso – disse ele. – Veja, parceiro, você fez a coisa certa. Se você não tivesse fugido eles iam demorar ainda mais, e o outro cara talvez pudesse...
– Les levantou as sobrancelhas –, você sabe.
Lennox abaixou a cabeça uns poucos graus. Ele percebeu que sua intimidade com Les nunca fora ameaçada, que os anos separados apenas a deixaram incubada. Les não
o rejeitara, eles estavam apenas em extremidades diferentes daquele túnel comprido, escuro, que se estendia entre eles.
– Você sabe a razão pela qual eu fui ser policial? Eu queria pegar aqueles canalhas, Les. Eu ainda quero muito isso, porra. Se você soubesse quantas fotos de criminosos
eu examinei nas minhas horas de folga desde que entrei para a polícia. Todo agressor sexual nos nossos arquivos, em todo o Reino Unido. Nada. Foi por isso que fui
trabalhar na Crimes Hediondos, para ter esse tipo de acesso a esses canalhas. Para caçar os filhos da puta. Mas nadinha. – Ele balançou a cabeça. – Talvez eles tenham
simplesmente se evaporado no ar.
O sorriso de Les Brodie ficou mais amplo.
– É mesmo, talvez tenham.
Lennox olhou para ele, surpreendido. O policial nele veio à superfície, antes que ele pudesse evitá-lo.
– O quê! Você está dizendo que você...
Seu velho amigo soltou uma risada longa, vazia, deixou cair a guimba do cigarro e esmagou-a no cascalho sob o calcanhar.
– Não, eu bem que desejei. Durante muito tempo eu teria dado qualquer coisa para encontrar os caras. Mas agora eles não fazem mais parte da minha vida. Não me entenda
mal. Espero que estejam num lugar onde não possam fazer mal a outros garotos, mas eu tomei a decisão de lavar as minhas mãos disso, completamente.
– Mas como é que você conseguiu?
– Porque eu tive – disse Les, metendo a mão na jaqueta e puxando uma carteira com uma fotografia familiar, de sua esposa e filhos. – Eu tenho outras pessoas com
quem me preocupar. Não quero que o marido da minha esposa e o pai dos meus filhos seja um marginal fodido. Eu tenho que estar lá para eles, não obcecado com velhas
vendetas. Sua garota, Ray, é excepcional. Não vá perdê-la. Não para um bando de uma porra de pedófilos, isso sim seria uma tragédia.
Você podia ouvir palavras como aquelas um milhão de vezes e captar o sentido delas, mas até que você estivesse emocionalmente pronto para abraçá-las, era como tentar
plantar sementes numa rodovia asfaltada. Depois de um outro silêncio, Lennox se levantou do banco como um reserva de futebol que vai substituir um colega machucado,
sem nenhuma missão senão deixar correr o relógio, e apertou a mão do velho amigo. Les se levantou e puxou-o para si, mas Lennox ficou rígido no abraço, conseguindo
apenas dar um tapinha superficial nas costas do outro.
– Preciso dar uma caminhadazinha, Les, clarear os pensamentos – ele disse, afastando o corpo.
– Quer companhia?
– Não, estou bem.
– Ray? – Les Brodie fez uma pausa. – Deixa para lá, parceiro.
– Até logo, Les.
Lennox saiu andando sem perceber aonde estava indo; lama e cascalho debaixo de seus pés, a água rumorejando abaixo, o rio visível através das árvores desfolhadas
de inverno. O túnel à frente, agora tão pequeno e benevolente para sua estatura de adulto. Ele entrou no túnel, seguiu até a zona morta no meio, querendo que funcionasse
a mágica do lugar e que o transformasse de novo. Fazê-lo voltar ao que era. Depois ele desejou o reaparecimento deles, os três monstros muito humanos que haviam
mudado o menino, que voltassem e enfrentassem o homem. Desejando que alguma coisa acontecesse. Que surgissem vozes. Qualquer um. Qualquer coisa.
– VAMOS LÁ! – ele berrou. – VAMOS LÁ, SEUS PUTOS! – Lançou a mão direita para a frente, golpeando os grandes tijolos, inexoráveis, da parede. Houve uma carga vacilante
de dor, mas ele a suportou, e depois não conseguiu sentir nada a não ser um latejar doentio no peito, a respiração convulsiva, soluçante, e viu o sangue de sua mão
arrebentada cair no solo duro.
Ele não fez ideia de quanto tempo ficou sentado no túnel, a cabeça entre os joelhos, perdido em divagações psicóticas, mas Trudi e Ally Notman o encontraram ali.
– Ray... ó, meu Ray, meu benzinho... Les disse que você estava aqui... – começou Trudi, antes de ver o estado da mão dele, a boca paralisada num oval de terror.
Mas Les sabia que ele estaria ali.
A gente se vê, Les.
E ele resolve que vai tentar. Quando voltar a Edimburgo ele vai procurar Les. Tirar a amizade para fora daquele tanque de armazenagem de vidro enquanto ainda tinham
tempo para apreciá-la. Estica os dedos da sua mão machucada. Pega o controle remoto e clica.
Sua atenção é absorvida pelo programa. O canal local do condado de Miami-Dade: um programa chamado Observatório do Agressor Sexual. Marginais de olhar selvagem e
expressão dura designados ou como “agressores sexuais” ou “predadores sexuais”, Lennox não sabe a diferença, desfilam numa roda com nome, raça, cor dos olhos, cor
dos cabelos, data de nascimento e são acompanhados por uma cafona versão instrumental de supermercado de “Caravan of love”.
A revolução não será televisionada, mas o registro será, ele pensa enquanto assiste um pouco, sem reconhecer nenhum dos homens da conferência dos tarados. Eles eram
todos brancos, enquanto todos aqui são negros ou hispânicos. Lennox ri amargamente e passa para o programa imobiliário. Uma voz rouca feminina arrulha:
– Quem mora em casa de vidro – e ela dá uma frívola risada forçada – se diverte mais!
Parece que um apartamento de luxo num condomínio com vista para South Beach, Biscayne Bay e o centro de Miami está vinte mil dólares mais barato do que estava na
semana passada. Então começa um novo anúncio: um sujeito forte e jovem, parecido com Christopher Reeve, está sentado com um laptop e um celular a uma mesa junto
de uma piscina, terminando uma ligação fingida. Ele encara a câmera e diz:
– Em Bonaventure, a ênfase é em aventura...
Ele se levanta e olha para um píer onde um barco atraca, acenando para a família que desembarca e amarra a embarcação. A câmera dá uma panorâmica até o espigão.
Então cortamos para um luxuoso apartamento, onde somos ciceroneados pelo sujeito.
Trudi sai do banheiro, nua, exceto pela toalha em torno da cabeça, e olha para a tela quando o tal vendedor de feições esculpidas diz:
– Eu sou Aaron Resinger, e não estou apenas vendendo um sonho... Estou vivendo esse sonho. É isso mesmo. Quando falo que este complexo tem um projeto da mais alta
qualidade e é o máximo em termos de estilo de vida, não se trata de papo de vendedor. Quando construí este lugar, decidi que simplesmente não conseguia encontrar
outro melhor para viver. Portanto, venham dar uma olhada...
Ele dá um sorriso cheio de dentes, e encolhe os ombros de forma levemente autodepreciativa, arrematando.
– E os vizinhos também são ótimos...
Trudi fica tensa e dá as costas ao televisor.
– Aposto que você gostaria disso aí! – Lennox diz.
– O que...? – ela arqueja.
– Bancadas de mármore na cozinha, assoalhos de tábua corrida, consoles embutidos, varanda ensolarada, vistas deslumbrantes, ancoradouros e estacionamentos. Eu vi
você arregalar os olhos... – provoca Lennox, pousando uma das mãos no centro das costas de Trudi, e passando a outra entre as pernas dela. – Ei, você acha que daria
tempo...
Trudi se afasta dele.
– Precisamos nos aprontar. Vamos a Fort Lauderdale almoçar com Ginger e Dolores, e apanhar a Tianna... lembra? – ela diz, desligando o televisor.
– Certo – diz Lennox relutantemente, indo ao banheiro confabular com outros eus, que cantarão todos juntos a mesma canção.
Robyn comparecera, dando um depoimento completo. Johnnie e Starry haviam sido colocados sob custódia policial, sem fiança estipulada. Ele seria informado da data
do julgamento, e precisaria voltar a Miami. Várias acusações haviam sido impetradas em três estados. Eles o haviam questionado sobre a situação de um dos homens
que haviam prendido, James Clemson, encontrado num hospital municipal depois de ser brutalmente agredido.
– Imagino que aquele pessoal tenha brigado violentamente quando a coisa fedeu – comentara Lennox com expressão impassível para o oficial que o interrogava. O sujeito
lançara-lhe um olhar penetrante, mas obviamente tudo terminaria ali mesmo.
Lance Dearing conseguira chegar à ambulância antes de apagar de vez. Tecnicamente, ainda permanecera três dias no limbo, mas o corpo acabara sucumbindo ao envenenamento
séptico causado pelos ferimentos. Lennox rezara para que Dearing houvesse conseguido sentir tudo cada segundo, e que o pessoal do hospital houvesse poupado a morfina.
Para aqueles que saciavam seus impulsos distribuindo sentenças de morte para crianças, ele era parcimonioso em sentir pena.
Ele senta num restaurante, aguardando a chegada de Tianna enquanto conversa com Nadia, professora e neta de Dolores. Ela está passando algum tempo com a avó, que
não absorveu bem o falecimento de Braveheart. Dolores não é a mesma desde o torneio de dança de salão na noite anterior: Bill e Jessica Riordan derrotaram facilmente
a dupla Dolores e Ginger, que continua irritado por isso.
– Vocês já ouviram falar de algum irlandês que saiba dançar? – Ginger pergunta ao grupo formado por Lennox, Nadia, Dolores, Bill e Jessica em torno de drinques antes
do almoço na sua cantina mexicana predileta.
– Michael Flatley? – Jessica retruca.
– Bichas e gays sempre sabem dançar – Ginger debocha. – Estou falando de irlandeses normais e heterossexuais feito o Bill aqui.
– O Flatley não é gay. Ele é casado – Jessica diz, erguendo aos lábios uma margarita.
– Ele dança daquele jeito e é normal? – Ginger ri de escárnio.
El Hombre de el Cantina de Fettes, Lennox pondera. Então, pensando em Tianna, que está a caminho depois de um desvio imprevisto para fazer compras com Trudi, ele
pergunta a Nadia como se vestem as meninas na escola dela.
– É a minha maior dor de cabeça – ela diz, mastigando um biscoito coberto de salsa. – Vivo mandando as crianças de volta para casa. Aos dez, onze anos, elas já usam
saias curtas, e dá para ver as calcinhas delas. Eu falo para elas “Você precisa se cobrir, menina”. A maioria não faz isso de caso pensado... é só a moda, e olham
para mim como se eu fosse uma velha solteirona malvada.
Ela afasta a cabeleira encaracolada do rosto e continua:
– Mas o que acontece se a gente deixar a coisa rolar? Os jovens, e até os já não tão jovens, começam a dar atenção a elas. Elas gostam, então começam a fazer todas
as estripulias sexuais por aí, sem saber ao certo o que estão fazendo.
Lennox se pegara prestando atenção aos hábitos consumistas de meninas ao longo da semana anterior: como elas se vestiam, o que liam, os discos que compravam, e como
falavam umas com as outras. Lera que elas andavam entrando na puberdade e ficando menstruadas mais cedo. Parecia que crescer estava cada vez mais estressante. Ele
reflete sobre sua própria infância. Tudo parecera ótimo, até a cortina escura descer abruptamente naquele dia de verão lá no túnel. Mas talvez até mesmo as lembranças
felizes estivessem tingidas de rosa.
Les Brodie. Ele poderia lhe contar como era a vida antes daquilo. Porque Les não ficara fodido com o que acontecera. Sim, ele descarrilhara durante a adolescência,
fora um pouco rebelde, mas agora virara um homem de família, com uma firma de encanamento bem-sucedida. Ray Lennox é que era o perturbado. Les simplesmente absorvera
tudo, e fora em frente. O que teria acontecido se ele, Ray, houvesse sido sacaneado por aqueles tarados fugidos da cadeia? Ele só chupara um pau. Lennox se pega
sacudindo os ombros num riso perverso: a ideia agora parece tão fugazmente farsesca e benigna quanto uma pantomima no Teatro do Rei; certamente não merece uma cruzada.
Como ele teria reagido, e o que teria virado, caso os papéis houvessem sido invertidos? Provavelmente até pior do que Les, ele reflete morbidamente bebericando um
suco de laranja, enquanto anseia pela margarita que não tem confiança para pedir. Ele era o verdadeiro pirado, tão consumido por seu próprio medo que não percebera
o quanto assustara Dearing e a gangue dos tarados desde o começo.
De uma coisa ele tem certeza: a América é um lugar muito mais complicado do que ele achara em suas visitas anteriores. Não é só um país de carros grandes e esportes
estranhos. Nem um lugar onde romancistas festejados não conseguem escrever um livro sem mencionar gelatina, ou onde animais brilham atleticamente em filmes. E ele
também já descobriu algumas coisas sobre si mesmo. Muitas vezes já se escondeu atrás daquela cortina de melancolia calvinista que sua tribo usava feito tecido xadrezado,
sabendo que o coração aprenderia lições amargas apesar de todas as nossas presunções. Mas agora viu que certas condutas acarretam certos desenlaces. E já acharia
difícil manter a indiferença de um estoico passivo ano após ano.
– Graças a Deus chegaram, estou esfomeado – Ginger diz, pegando um cardápio, enquanto Trudi e Tianna entram animadamente no restaurante, carregando sacolas que contêm
o tipo de histórias que Lennox despreza. Elas haviam passado bastante tempo juntas na semana anterior, a ponto de terem assumido um apelido corporativo: “as meninas”.
Tianna tem o cabelo preso atrás, com grandes óculos de sol pousados na testa. Está usando um vestido com bolas brancas na altura do joelho, um lenço de seda em torno
do pescoço, meias cor de creme e sapatos pretos. Parece ter dez anos e ser a filha descolada de alguém.
– Esses óculos são da AFE – Lennox diz a Tianna.
– Associação de Futebol Escocês – ela sorri, dando-lhe uma bitoca de sobrinha.
Trudi segue com um beijo estalado nos lábios de Lennox, enfiando matreiramente parte da língua lá dentro. Depois pega um hidratante que comprou para ele, passando
um pouco naquele rosto seco e assado, enquanto diz:
– Você precisa cuidar da sua pele, Ray.
A afirmação faz sentido para a mente de Lennox, dada a especulações brincalhonas: sua pele vem tentando fugir dele há tanto tempo que talvez ele devesse estar lhe
dedicando um tratamento um pouco melhor. Ele está sendo tratado feito bebê, até mesmo um tanto humilhado, mas não se importa. O sexo retornou à vida deles de forma
tão enfática, que já é impossível conceber que um dia os havia deixado. Outra muralha desmoronou; eles logo estariam fodendo com agradecida desinibição. E como qualquer
droga, anestesia as preocupações com outras questões. Lentamente, a vida estava voltando ao que ele poderia considerar normalidade.
– E como estão os proprietários... continuam tratando você bem? – Ray Lennox pergunta a Tianna Hinton, piscando para Eddie e Dolores Rogers.
– Eles são legais – diz ela com uma risadinha.
– Que bom. E aonde você gostaria de ir hoje à tarde?
– À Escócia.
Uma capa de tristeza cai sobre os ombros de Lennox. Eles vão partir para casa amanhã, e ele vai sentir saudades da garota. Trudi também já se afeiçoou a ela. Lennox
começou a gostar da conspiração brincalhona das duas contra ele, em geral relacionada a planos para o casamento iminente. Mas há algo que ele quer fazer com ela
antes de partir. E para isso os dois precisam estar sozinhos.
A comida chega. Trudi olha para o noivo, vendo como ele parece docemente idiota quando come algo, como que perdido naquilo. Ele finalmente vestiu um short, coisa
que ela aprova, pois as pernas dele já estão perdendo aquela brancura de garrafas de leite. Tianna remexe numa bolsa a fim de exibir algo para a mesa.
Lennox vira para Ginger.
– Como anda a coisa, Eddie?
– Uma garotinha muito gentil, que não criou incômodo algum – diz Ginger. – Na verdade, a presença dela aqui até ajudou a Dolores, porque ela adora a porra daquele
cachorro.
Depois de algum tempo, Trudi ergue o pulso coberto de penugem para conferir o relógio, e Lennox percebe a insinuação. Trudi, Tianna e ele se despedem, saem, entram
no carro alugado por Trudi, e partem para Miami Beach. Quando saem do viaduto Julia Tuttle e passam pelas ruas margeadas por palmeiras, com belas casas de estuque
e jardins tropicais luxuriantes avançando baía adentro, Lennox pensa que aquilo é um lugar ao qual um recém-chegado poderia levar seus familiares colombianos, haitianos,
cubanos ou escoceses, e eles diriam orgulhosamente: “esse puto se deu bem”. E que o sonho americano não é só propriedade dos americanos, mas pertence a qualquer
cidadão do globo com aspirações; e que murchará e morrerá quando os Estados Unidos fecharem suas fronteiras, como inevitavelmente farão.
Trudi estaciona numa garagem em Alton, e os três partem para Lincoln, o moderno trecho de restaurantes, bares, galerias e lojas de grife que constitui o cintilante
coração de Miami Beach. Com uma mochila preta e alaranjada pendurada no ombro, Lennox quer parar e visitar rapidamente a galeria Britto Central, só para apaziguar
Trudi, acreditando que se vemos algo que nos move, é melhor não nos demorarmos muito, a fim de não arruinarmos parte de nossa capacidade de deslumbramento. Mas Trudi
não está a fim, e em vez disso entra com Tianna numa loja de roupas ali perto. Depois disso, eles vão até um cybercafé em Washington, onde tomam café e navegam na
internet. Tianna e Trudi conferem os sites de casamento escoceses, enquanto Lennox navega até Jambos’ Kickback. Ele vê a última postagem de Maroon Mayhem na linha
de Craig Gordon, que tinha pouco a ver com o goleiro escocês.
Lamento profundamente as coisas que disse a Ray of Light. Isso não é desculpa, mas eu estava bêbado na hora. Todos que me conhecem podem afirmar que não tenho o
hábito de me comportar assim.
Lennox digita uma resposta na linha.
Sem problemas. Essas coisas acontecem. Minha cabeça não estava no melhor lugar, portanto peço desculpas pela minha reação exagerada. Também sei o que a bebida pode
fazer conosco. Se um dia nos encontrarmos vou pagar uma cerveja pra você... ou talvez a gente fique só no suco de tomate!
Seu de coração,
Ray
Depois que eles abandonam os terminais e se acomodam na parte do café propriamente dito, Tianna diz para Lennox:
– Então, aonde você vai nos levar? Não é aqui!
– Não, é pertinho daqui. Mas primeiro eu preciso explicar uma coisa – ele responde. – Aqueles sonhos de que a gente falou, lembra que eu prometi contar a você?
– Lembro.
Trudi intervém:
– Ray, a Tianna não precisa ficar ouvindo...
– Por favor, só um instante – insiste Lennox. – Eu quero que você ouça isso também. Nunca contei a ninguém. Nem a minha mãe, nem a meu pai... a ninguém. Sonho muito
com isso, essa coisa que aconteceu...
Ele lança um olhar sobre o ombro. O lugar está quase deserto, e eles estão sentados num canto apertado, bebericando café ou leite, enquanto comem biscoitos de chocolate.
Lennox fala baixo, mas com autoridade. Ao menos para os seus próprios ouvidos, não assume um tom de policial.
– Eu tinha um grande amigo, que se chamava Les – ele diz a Tianna. – Um dia, quando tínhamos mais ou menos a sua idade, saímos de bicicleta e passamos por um túnel
comprido e escuro, feito um túnel ferroviário abandonado. Uns caras maus e muito perturbados estavam esperando lá e nos pegaram. Primeiro nós achamos que eles queriam
roubar as nossas bicicletas...
Lennox olha para Tianna em busca de compreensão. Ela molha o biscoito no leite, e ergue o olhar cautelosamente. Trudi contrai o maxilar inferior e aproxima o corpo
de Lennox, dizendo:
– Isso foi com o Les Brodie e você?
– Foi – diz ele, virando de volta para Tianna. – Eu consegui fugir, mas antes eles fizeram uma maldade comigo. Nunca contei isso a alguém, mas um dos homens me fez
chupar o pau dele.
– Ray – Trudi arqueja. – Isso é horrível... você não podia contar para a polí...
Ela se cala e olha para Tianna.
A jovem garota americana tem a cabeça baixa de vergonha. Mas uma pequena voz desafiadora brota dentro dela.
– Eu sei... O Vince... vivia...
Lennox ergue a cabeça dela.
– Não é culpa sua. Você é uma criança. Eu também era só uma criança. Nunca contei a ninguém porque tinha vergonha. Mas não sou eu quem devia se sentir assim. Não
fiz nada de errado. Não foi culpa minha.
Ele afasta a mão. Tianna mantém a cabeça erguida, encarando Lennox fixamente, e diz:
– Não. Não foi culpa sua. Não foi culpa nossa, Ray.
– Eles agarraram o Les. Ele não conseguiu fugir. Eu tentei buscar ajuda, mas demorou demais. Eles fizeram maldades horríveis com o Les.
Lançando um olhar para o café a fim de garantir privacidade, Tianna sussurra:
– Fizeram coisas do tipo... coisas sexuais, com o pênis de um homem dentro dele?
– Fizeram – diz Lennox. – Fizeram sim. Depois disso, o Les passou muito tempo com raiva. Ficou com raiva porque foi uma injustiça o que fizeram com ele. Mas ele
ficou tão enfurecido que causou muita mágoa a si mesmo e a outras pessoas. Até perceber que, ao fazer isso, deixava os caras ganharem. Os caras ainda estavam controlando
o Les. Toda aquela raiva não ia para as pessoas que tinham causado a coisa, só voltava para o próprio Les e as pessoas que ele amava, certo?
– É – assente Tianna. – É isso mesmo.
– Eu tentei encontrar o pessoal que fez aquilo com o Les. E comigo. Ainda não consegui. Mas vou conseguir. Nunca vou desistir.
– Você não vai desistir porque é bom, Ray. É uma pessoa boa – diz Tianna.
– Não, eu não vou desistir porque não gosto do que eles fazem. O meu amigo Les é que é uma pessoa boa, porque teve grandeza para superar tudo. Você entende?
Sim, era verdade. Trudi compartilha uma percepção simultânea com ele: o crescimento emocional de Ray Lennox foi abortado. Um lado dele sempre será aquele garotinho
medroso no túnel. O resto, o kickboxing, o trabalho policial, a caça aos tarados, não passa de uma tentativa frustrada de negar isso. Enquanto ele tiver que fazer
o serviço, estará preso a isso. Ele precisa deixar tudo para trás.
Eu preciso deixar tudo para trás.
Trudi sente a honestidade assustadora que explode dentro dele, compelindo-a a adotar a mesma conduta e confessar, para os dois começarem uma vida casada com ficha
limpa. O cara da imobiliária; eu preciso dizer...
Eles saem do café em silêncio. Lennox quer parar numa Walgreens sem especificar o motivo, e Trudi fica desconcertada quando ele sai da loja carregando uma pequena
lata de gasolina. Eles voltam por Lincoln, mas Lennox vira à esquerda na avenida Meridian, e eles percorrem a pé alguns quarteirões de aspecto comum.
– Aonde nós vamos, Ray? – Trudi pergunta, cada vez mais preocupada.
– Não é muito longe – Lennox diz, enquanto o clima art déco da vizinhança vai lentamente dando lugar à paisagem de condomínios espigados do norte de Miami Beach.
Ao passarem pelo centro de Convenções, as duas precisam se esforçar para acompanhar o ritmo forte de Lennox naquele calor.
Mas Tianna Marie Hinton subitamente se lembra de que gosta de caminhar, de que adorava caminhar em Mobile, e sai correndo atrás dele, sentindo os pés baterem no
chão e os braços balançarem, com sua essência brotando em seu corpo. Não enterrada tão profundamente dentro dela que os conquistadores da sua carne jamais conseguiriam
escavá-la, mas ondulando e estalando em torno dela à luz do sol. Ela pensa no que Ray falou sobre Hank Aaron e os quebradores de pratos no restaurante. Fodam-se
aqueles babacas! Inspirada pela animação renovada da garota, Trudi Lowe se apressa a acompanhar os dois.
Então, quando eles cruzam a rua 19, deparam-se com uma visão espantosa: à direita, uma imensa mão verde ergue-se no ar. À primeira vista, parece que a mão pertence
a um corpo que se afoga, mas sua posição no céu azul é tão desafiadora quanto sofrida. O que inicialmente parece ser mato emaranhado em torno do pulso revela-se,
após um exame mais detido, um confuso nó de corpos humanos em tamanho natural, todos subnutridos e se retorcendo de agonia. Ao chegar mais perto, uma sensação repentina
de algo tumultuoso estala nos ossos deles e no ar em torno. A mão brota de uma ilha no centro de um lago escavado nas lajotas de uma praça. Quando eles avançam sobre
a área pavimentada, são emboscados pelas estátuas de uma mãe lacrimejante e duas crianças. Atrás da família petrificada, lê-se um lema gravado no muro: “Então, apesar
de tudo, eu ainda acredito que as pessoas têm bom coração.” A citação é atribuída a Anne Frank.
Um guarda uniformizado, com os traços e o tom de pele radicais de um africano, e não de um afroamericano, está sentado ao sol diante de uma cabine. Ao longo da Avenida
Meridian, o trânsito parece trovejar com uma reverência abafada. Imóveis e solenes, as palmeiras assomam acima do lago, que é parcialmente cercado pelas pilastras
de um pátio intercaladas com plantas de flores brancas, formando uma cobertura sobre um muro de mármore, nu e cândido feito osso. Sobre esta construção, foram gravadas
palavras e imagens à prova de vândalos, contando a história do Holocausto. Um quadro-negro que nada pode embranquecer, toldar ou apagar; uma biblioteca de último
recurso. E então veem-se os nomes: centenas, milhares, milhões deles: os adultos e as crianças que pereceram nos campos de morte.
Uma ponte coberta divide o arco, levando à ilha e à mão verde. Dentro do túnel, os nomes dos campos, conhecidos como Auschwitz e Buchenwald, surgem montados em blocos
ao longo das paredes, perto de outros de que Lennox jamais ouviu falar: Belzec, Ponary, Westerbork.
Ao contrário do outro túnel gravado em sua memória, ali raios de sol se projetam feito lasers a partir dos espaços no alto. Na outra ponta, eles são recebidos na
ilha por mais vultos verdes ressequidos e ainda mais nomes, gravados em outro círculo de mármore interior. Lennox olha para os nomes de família, tantas vidas jovens
aniquiladas, e fica imaginando se algum dia ocorreu aos nazistas e àqueles que os serviam que eles estavam trabalhando para uma gigantesca quadrilha de abuso infantil.
– Preciso conversar com a Tianna – diz Lennox para Trudi, emendando depois para as duas. – Vocês entendem?
– Tá legal – diz Tianna. – Mas a Trudi pode vir também...
– Todos nós erramos, Ray – diz Trudi, olhando cautelosamente para ele. – Todos nós...
Ela se cala e pensa naquela noite idiota, baixando o olhar para a relva ao lado da trilha. Cerra os punhos, pronta para dizer algo, mas quando ergue a cabeça vê
que ele já se afastou. Lennox está caminhando pesadamente para fora do memorial, passando por um portão ao lado de Tianna. O primeiro impulso de Trudi é ir atrás
dos dois, mas algo se impõe, congelando suas sinapses e paralisando seu corpo ali. Pensamentos perigosos surgem descontroladamente em seu íntimo. Ray e Tianna passaram
tanto tempo juntos. As pessoas faziam coisas estranhas a sós. Ele fora molestado e nunca, jamais, contara a ela aquele segredo sombrio. Que outros segredos ainda
guardava?
Subitamente, Trudi Lowe fica assustada, e parte em busca de seu noivo. Fica pensando se conhece Lennox além da fachada, além do que conhecia aquele corretor sorridente
e cheio de dentes naquela noite de fantasia torturada. Até que ponto conhecemos verdadeiramente alguém, se só vemos as pessoas através da lente do eu? Ela passa
pelo portão. O sol arde em seu rosto feito uma máscara cosmética que já passou do ponto e está descascando. Já nos jardins, ela estreita os olhos, mas não consegue
enxergar Lennox ou Tianna. O ar continua imóvel e denso devido ao calor.
Então ela esbarra com uma clareira. Para seu alívio, eles aparecem parados perto de um banco. Ela ouve Lennox dizer para Tianna:
– Lembra quando aqueles escrotos deram coisas para deixar você sonolenta, e depois ficaram de sacanagem com você no barco? Você lembra disso, não lembra?
Escutando atentamente, mas mantendo distância, Trudi ouve as trêmulas palavras de Tianna:
– Lembro. Eu achei que era um sonho, mas não era sonho nenhum. Foi a Starry que me levou de carro para lá. Eles me deram uns trecos para tomar. Eu vivo sonhando
que ele, o tal do Lance Dearing, está me tocando... Achava que eram sonhos, e que eu era suja por sonhar isso. O Dearing disse que era policial, que ficaria sabendo
se eu fosse uma garota ruim, e que podia prender gente ruim... ele ficaria sabendo se eu fosse suja...
– Não, você não. Você não é suja. Eles são. Aqueles caras são pedófilos. São tarados. O que você faz quando alguém tenta tocar você, ou dizer coisas sujas pra você?
– Você se afasta, ou foge – ela diz, mordendo o lábio inferior.
– É isso aí. E você manda eles se foderem – Lennox diz, tremendo ao ver aquele pau suado diante de seu rosto, e sentindo o gosto daquilo em sua boca. Ele toca os
pelos embaixo do nariz. Cultivados para cobrir o lábio. Pôr mato no terreno. E afugentar as feras. O bigode que dizia, com certo desespero excessivo: Eu sou um homem.
– Você diz: “Vá se foder, seu tarado de merda!”
– Vá se foder – grita Tianna. – Vá se foder, seu tarado de merda!
Trudi se aproxima deles e toca o braço de Lennox, que está enrijecido feito uma parada de ônibus.
– Ray...
Lennox vira com um olhar sofrido, que ela imagina ser de acusação. Ele sabe. Aquele cara com quem eu transei. Ele sabe. Dá para ver.
Então ele se vira bruscamente de volta para Tianna. Trudi percebe que ele criou um laço terrível com essa menina, um laço que ela jamais poderá compartilhar.
– É isso mesmo. Vá se foder, você fala para ele – insiste o noivo policial de Trudi. – Vá se foder, seu monstro de merda. Você grita e urra, com toda a força dos
pulmões. Você faz as pessoas escutarem, faz todos ouvirem, no mundo inteiro...
Ray Lennox fecha os olhos, vendo os homens no túnel, os homens que o puxaram para esse mundo estranho e aterrorizante, que fizeram dele um policial; vê Gareth Horsburgh,
Lance Dearing, Johnnie e Starry, enquanto solta um rugido primevo do meio das tripas e do fundo da alma, denunciando todos os vigaristas, covardes, e monstros pervertidos
que ele ou qualquer um jamais encontrariam.
– VÁ SE FODER, SEU TARADO SUJO!
O rugido ecoa e reverbera no jardim plácido e pacífico. Um senhor e uma senhora que caminham por uma trilha param alarmados, e rapidamente recuam.
– Ray, precisamos ir – diz Trudi.
Mas Tianna começa a urrar feito maníaca junto com ele.
– VÁ SE FODER, SEU TARADO SUJO, E ME DEIXE EM PAZ!
Lennox ofega, soltando arquejos que parecem socos. É hora de se livrar daquilo, de começar a expelir as folhas negras e a água morta que enchem seu coração. De insistir
nesse processo, por mais tempo que leve. Eles continuam gritando juntos até perderem o fôlego. Então Trudi põe o braço em torno dos ombros da garota soluçante.
– Ray, precisamos ir agora!
– Espere. – Um Lennox ofegante ergue a palma da mão, olha para Tianna, e pega a pequena mão dela entre as suas. – Aqueles tarados tinham uma lista. A lista das crianças
que eles estavam planejando magoar. Iam chegar a elas pelas mães, assim como enganaram Robyn. A polícia tem uma cópia dessa lista...
Ele tira da mochila um maço de folhas brancas que reluz de forma ofuscante sob o sol. Depois pega a lata de gasolina e despeja o conteúdo sobre as folhas, colocando
os documentos ensopados numa cesta de lixo vazia, feita de aço, e continua:
– Não é certo fazer isso num parque, mas nesse caso até se justifica.
Tianna assente, enquanto Lennox abre um isqueiro. Trudi olha nervosamente em torno. Ele percebe a objeção dela, e diz:
– Só precisamos fazer mais isso.
Trudi se enfurece.
– Sempre tem mais uma coisa, Ray! – ela responde exasperada, agarrando e sacudindo os ombros de Lennox. O que ele quer? Dizer-lhe que prendeu um dos mais famosos
assassinos de crianças da Grã-Bretanha ou desbaratou uma quadrilha de pedófilos espalhada por três estados americanos seria um insulto aos seus ouvidos. Eternamente,
ele só conseguirá ver as Britneys, as Tiannas, os Leses, e o seu eu mais jovem que foi incapaz de proteger. É um homem que sempre se definirá pelos seus fracassos.
– E então o quê? O que nós fazemos? O que você faz?
Lentamente, Lennox abre um sorriso.
– Então nós... nós voltamos para o hotel, eu dou uma ligada para minha mãe, e digo a ela que sinto muito. – Lennox esfrega o rosto, prendendo a respiração. – Depois
faço a barba.
Trudi engole em seco, extasiada diante dos olhos castanhos de Ray, marejados de remorso, balançando a cabeça lentamente em reconhecimento.
– Só sobrou isso deles – Lennox diz para Tianna, olhando para os documentos na cesta de lixo. – Sua mãe colocou todos onde eles jamais poderão pegar você... Vince,
Clemson, Dearing, Johnnie e um monte de outros como eles. É lixo, porque é isso que eles são.
Ele entrega o isqueiro a ela, e arremata:
– Queime tudo. Ande. Queime os miseráveis.
Com o queixo tenso, Trudi inspira um pouco de ar entredentes.
Tianna olha para Lennox, e depois para os documentos, com os olhos ferreamente focalizados. Ela pega o isqueiro e se agacha, alisando o vestido sobre os joelhos.
A princípio é difícil ver a chama na forte claridade, e só quando sente o calor e afasta a mão é que ela percebe que há ignição. Eles ficam vendo os documentos se
retorcerem, enegrecendo, e depois saem dos jardins numa procissão silenciosa.
Deixando o parque, passam por um portão de ferro ornamentado de flores, retornando ao memorial do Holocausto. Voltam aos arcos de mármore e à praça de lajotas diante
da mão verde. Na avenida Meridian, o trânsito já está mais intenso. Contudo, Lennox ainda precisa erguer o olhar para o céu azul e as varandas dos apartamentos do
outro lado da rua, a fim de perceber que não está parado num campo na Polônia. Na realidade, do outro lado da rua fica a Câmara de Comércio de Miami Beach, com seu
próprio centro de visitantes.
O choro de Tianna se intensificou; seus soluços lentos e hesitantes começam a virar uivos em alto volume. Então Lennox percebe, pela reação preocupada de Trudi,
que há lágrimas correndo pelo seu rosto. Ele olha para Tianna e vê Britney Hamil, naquela foto marcante que chegou às capas de todos os jornais britânicos.
– Sinto muito não ter estado ao seu lado – ele diz com tristeza.
Trudi abre a boca para falar, mas Tianna se antecipa.
– Você estava, Ray. Você foi o único que já esteve – ela diz, abraçando Lennox.
Ele vê que aquela é uma criança diferente, do outro lado do mundo. E que estava viva, como todas as crianças devem estar. Fica pensando por que nós temos histórias,
canções e poemas; e por que sempre aspiraremos a algo que chamamos de amor. Então ele soluça em uníssono com ela, de dor, mas também de simples gratidão por estar
livre, limpo e presente, embaixo de uma grande mão verde sob o sol da Flórida.
Agradecimentos
Muito amor para Elizabeth, como sempre, pela assistência emocional e prática (pesquisando, bancando a motorista por todo o estado da Flórida, e dizendo que minha
primeira versão era uma bosta). Um grande agradecimento outra vez para Robin, Katherine, Sue, Laura e todo o pessoal da minha editora por sua (aparentemente inesgotável,
mas não vou forçar a sorte) indulgência comigo.
Um brado de apreço para os meus colegas escritores escoceses, Andy O’Hagan e Alan Warner, por inadvertidamente inspirarem este título durante um drinque relaxado
em um dos meus hotéis preferidos em Wicker Park, Chicago. Para Mike e Dawn Quinn, de Punta Gorda, Flórida, por sua generosa hospitalidade, bem como sua disposição
para compartilhar seu conhecimento do sudoeste do estado. Para John Gee, John Hood e Janet Jorgulesco, três nativos do sul da Flórida que ajudaram este sujeito de
Edimburgo a ficar à vontade em Miami.
Escolhi, por razões óbvias, não pesquisar este assunto na internet. Em vez disso, limitei minhas fontes a documentos publicados em textos acadêmicos, de assistência
social, e de psicologia clínica, bem como material de autoajuda. Conversei com sobreviventes de abuso sexual infantil; seus relatos eram tão perturbadores quanto
inspiradoras eram sua coragem e força. Um dos livros britânicos que achei especialmente valioso como ponto de partida e referência constante foi Breaking Free: Ajuda
para Sobreviventes de Abuso Sexual, de Carolyn Ainscough e Kay Toon. Embora respeite sua óbvia necessidade de anonimato, preciso registrar a generosidade de alguns
policiais e assistentes sociais nos estados de Illinois e Flórida, que me doaram tempo e informações sobre o modus operandi de quadrilhas de abuso sexual organizadas:
essa ajuda foi de grande valor.
Gratidão eterna às costumeiras gangues de Edimburgo, Londres, Dublin, São Francisco e outras partes. Todos que ou me elogiaram ou me esculhambaram: obrigado por
gastarem tempo se importando. Para quem é indiferente: muita gratidão por me deixarem em paz.
Bologna, na Flórida, é produto da minha imaginação, mas eu me apoiei fortemente nas cidades do sudoeste da Flórida, como Naples, Punta Gorda, e Fort Myers, como
inspiração física para essa composição.
Tristemente, na vida real os piores males tendem a ocorrer bem perto de casa. A maior parte dos casos de abuso de jovens, sexual ou não, acontece dentro da família
ou da comunidade. As quadrilhas e seitas ocultas de abuso sexual organizadas, embora perturbadoras e frequentadoras de manchetes, não são um problema generalizado
na sociedade moderna. Este livro, como obra de ficção, não tenciona sugerir que são.

 

 

                                                                  Irvine Welsh

 

 

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