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CRIME PASSIONAL / Mary Higgins Clark
CRIME PASSIONAL / Mary Higgins Clark

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRIME PASSIONAL

 

- Cuidado com a fúria de um homem paciente - observou Henry Parker Britland IV com tristeza, examinando a fotografia do seu ex-secretário de estado. Acabava de saber que seu grande amigo e aliado político havia sido indiciado pelo assassinato da amante, Arabella Young.

— Então acha que o pobre Tommy fez isso? — disse Sandra O’Brien Britland com um suspiro, passando geléia feita em casa num bolinho recém-saído do forno.

Era bem cedo ainda e o casal estava confortavelmente aninhado em sua cama king-size em Drumdoe, propriedade rural em Bernardsville, Nova Jersey. The Washington Post, The Wall Street Journal, The New York Times, The Times (Londres), L’Osservatore Romano e The Paris Review, todos estavam espalhados pelo quarto, em vários estágios de leitura, alguns sobre o acolchoado diáfano com flores delicadas, outros caídos pelo chão. Bem na frente do casal havia bandejas idênticas com o café da manhã completo e um vaso de prata, com uma única rosa.

— Na verdade, não — disse Henry depois de alguns minutos, balançando a cabeça lentamente. — Acho impossível acreditar nisso. Tom sempre teve muito autocontrole. Por isso foi um secretário de estado tão bom. Mas desde a morte de Constance, no meu segundo mandato, não parecia mais ele mesmo. E tornou-se óbvio para todos que quando conheceu Arabella apaixonou-se perdidamente por ela. É claro que depois de algum tempo ficou patente também que havia perdido um pouco daquele controle de aço. Nunca esquecerei o dia em que ele se distraiu e chamou Arabella de ”Poopie” na presença de Lady Thatcher.

- Gostaria de tê-lo conhecido nessa época - disse Sandra pesarosa. - Claro que nem sempre concordo com você, mas achei que foi um ótimo presidente. E, naquele tempo, quando fez seu juramento pela primeira vez, tenho certeza de que se aborreceria comigo. Até que ponto uma estudante de direito pode interessar o presidente dos Estados Unidos? Quero dizer, gosto de pensar que você me consideraria atraente, mas sei que não ia levar-me a sério. Pelo menos, quando me conheceu como membro do Congresso, teve de encarar-me com um certo respeito.

Henry olhou afetuosamente para a mulher com quem estava casado há oito meses. O cabelo dela, cor de trigo no inverno, estava despenteado. A expressão dos seus olhos intensamente azuis conseguia reunir inteligência, calor, sagacidade e humor ao mesmo tempo. E, às vezes, também um deslumbramento infantil. Ele sorriu lembrando-se da primeira vez que a viu: perguntou se ela ainda acreditava em Papai Noel.

Foi na véspera da posse do seu sucessor, quando Henry ofereceu um coquetel na Casa Branca para todos os novos membros do Congresso.

- Acredito no que Papai Noel representa, senhor - respondeu Sandra. - O senhor não?

Mais tarde, quando os convidados já estavam se retirando, ele a convidou para um jantar tranqüilo.

- Sinto muito - ela disse. - Tenho um encontro com meus pais. Não posso desapontá-los.

Jantando sozinho em sua última noite na Casa Branca, Henry pensou em todas as mulheres que nos últimos oito anos tinham mudado os planos delas prontamente, numa fração de segundos, e percebeu que finalmente tinha encontrado a mulher dos seus sonhos. Casaram-se seis semanas depois.

No início, parecia que o assédio da mídia não acabaria nunca. O casamento do solteiro mais cobiçado do país - o ex-presidente de quarenta e quatro anos - com a bela e jovem deputada, doze anos mais nova que ele, desencadeou um frenesi tremendo entre os jornalistas. Há muitos anos que um casamento não arrebatava de forma tão completa a imaginação coletiva do público daquela maneira.

O fato de o pai de Sandra ser maquinista da Ferrovia Central de

Nova Jersey, de ela ter de trabalhar para sustentar os estudos no St. Peters College e na Faculdade de Direito Fordham, passado sete anos na defensoria pública e depois, com uma virada espetacular, conquistado uma cadeira na Câmara da Cidade de Jersey, já transformava Sandra numa campeã para as mulheres, além de ser a queridinha da mídia.

A posição de Henry como um dos dois presidentes mais populares do século XX, além de possuidor de uma fortuna particular considerável, combinada com o fato de aparecer com regularidade no topo, ou quase no topo, da lista dos homens mais sensuais da América, fazia dele uma fonte também favorita da imprensa, assim como alvo da inveja de outros homens que gostariam de saber por que os deuses o favoreciam tanto, e tão abertamente.

No dia do casamento, um tablóide publicou a seguinte manchete: ”Lorde Henry Brinthrop se casa com a nossa garota Sunday”, referência à popularíssima novela de rádio que diariamente, cinco dias por semana, anos a fio, fazia a mesma pergunta: Uma garota de uma cidade de mineração no Oeste pode ser feliz casada com Lorde Henry Brinthrop, o nobre mais belo e rico da Inglaterra?

Sandra imediatamente passou a ser chamada por todos, inclusive seu apaixonado marido, de Sunday. No princípio detestou o apelido, mas acabou se resignando quando Henry observou que para ele o nome tinha um duplo sentido, que ele a considerava ”um amor de Sunday (domingo)”, letra de uma de suas músicas preferidas.

— Além do mais — ele continuou —, combina com você. Tip O’Neill tinha um apelido que era perfeito para ele; Sunday é perfeito para você.

Essa manhã, olhando para o marido, Sunday lembrou dos meses que passaram juntos, dias que até aquela manha tinham sido quase despreocupados. Agora, vendo a preocupação concreta nos olhos de Henry, ela pôs a sua mão na dele.

— Você está preocupado com o Tommy. Dá para ver. O que podemos fazer para ajudá-lo?

— Pouca coisa, eu acho. Antes de mais nada vou certificar-me de que o advogado que ele contratou está à altura do caso, mas não importa quem vai representá-lo. As perspectivas não são boas. Pense só. E um crime especialmente cruel e, quando observamos as circunstâncias, é difícil não concluir que foi Tom que o cometeu. A mulher levou três tiros, da pistola do Tom, na biblioteca do Tom, logo depois de o Tom ter dito para as pessoas que estava muito aborrecido porque eles tinham terminado.

Sunday pegou um dos jornais e examinou a foto de um Thomas Shipman radiante, com o braço no ombro da deslumbrante mulher de trinta anos, que ajudou a secar as lágrimas dele depois da morte da esposa.

— Quantos anos o Tommy tem? — perguntou Sunday.

— Não sei ao certo. Sessenta e cinco, imagino, mais ou menos. Os dois estudaram a fotografia. Tommy era um homem magro

e elegante, cabelo grisalho que começava a rarear e feições inteligentes. Em contraste, o cabelo eriçado de Arabella Young emoldurava um rosto de uma beleza atrevida, e seu corpo possuía o tipo de curvas que costumavam enfeitar as capas da Playboy.

- Um relacionamento relâmpago, se é que já vi algum - comentou Sunday.

— Provavelmente andam dizendo a mesma coisa de nós — disse Henry com humor, forçando um sorriso.

— Ah, Henry, fica quieto — disse Sunday, segurando a mão dele.

- E não finja que não está muito preocupado. Podemos ser recém-casados, mas já o conheço bem demais para ser enganada.

- Tem razão, estou preocupado - disse Henry em voz baixa. Quando penso nos últimos anos, não consigo me imaginar sentado no Salão Oval sem o Tommy ao meu lado. Fiquei apenas um período no cargo de senador, antes de ser eleito presidente, e era muito inexperiente em muitas coisas. Graças a ele amadureci naqueles primeiros meses sem passar vergonha. Quando estava pronto para acertar as contas com os soviéticos, Tommy, com seu jeito calmo e deliberado, mostrou-me que seria um erro forçar um confronto, e publicamente conseguiu dar a impressão de ter sido apenas uma caixa de ressonância para a minha decisão. Tommy é um verdadeiro estadista, mas mais objetivamente é um completo cavalheiro. E honesto, inteligente e leal.

- Mas certamente também é um homem que deve ter percebido que as pessoas faziam piadas sobre o seu relacionamento com Arabella, e até que ponto ele ficou ressentido com ela por isso? E, quando ela finalmente resolveu terminar tudo, ele pirou — observou Sunday. — É mais ou menos assim que você vê a coisa, não é? Henry deu um suspiro.

— Talvez. Insanidade temporária? E possível. — Ele pegou a bandeja com o café da manhã e pôs sobre a mesa-de-cabeceira. — No entanto Tommy estava sempre lá quando eu precisava, e farei o mesmo por ele. Ele tem direito a fiança. Vou procurá-lo.

Sunday afastou sua bandeja apressadamente e quase não conseguiu segurar a xícara com um resto de café que ia derramar no edredom.

— Eu vou com você — ela disse. — Só preciso de dez minutos na Jacuzzi e estou pronta.

Henry observou as pernas longas da mulher enquanto ela levantava da cama.

— A Jacuzzi. Que idéia esplêndida — ele disse entusiasmado. — Vou com você.

Thomas Acker Shipman tinha tentado ignorar o exército de repórteres acampados lá fora, perto da entrada da casa. Quando chegou com seu advogado tratou simplesmente de olhar fixo para frente e abrir caminho do carro até a casa, procurando desesperadamente não ouvir as perguntas com que era bombardeado enquanto passava. Já dentro de casa, finalmente, foi atingido pelos acontecimentos do dia e desmoronou visivelmente.

— Acho que preciso de um uísque — ele disse em voz baixa. O advogado, Leonard Hart, olhou para ele com simpatia.

— Acho que você merece um — ele disse. — Mas primeiro quero deixar claro que se você insistir, vamos em frente e negociamos a alegação, mas devo frisar mais uma vez que poderíamos montar uma defesa muito forte com base em insanidade, e gostaria que você concordasse em ir a julgamento. A situação é tão clara que qualquer júri entenderia: você passou pela agonia de perder a esposa que amava muito e, ainda de luto, apaixonou-se por uma jovem atraente, que no início aceitou vários presentes seus e depois o desprezou. É uma história clássica, que acho que seria recebida com simpatia se combinada com uma alegação de insanidade temporária.

A voz de Hart ia ficando cada vez mais empolgada à medida que ele falava, como se estivesse diante de um júri.

— Você pediu para ela vir aqui conversar, mas ela zombou de você e começaram a discutir. De repente você perdeu a cabeça e, vítima de uma raiva tão intensa que chegou a obliterar sua memória quanto aos detalhes, atirou nela. A arma ficava normalmente trancada, fora de alcance, mas naquela noite estava com você, porque a depressão que sentia era muito grande e tinha pensado em se matar.

O advogado fez uma pausa no discurso, e nesse momento de silêncio o ex-secretário de estado olhou para ele com cara de espanto.

— É assim mesmo que você vê as coisas? — ele perguntou. Hart reagiu com surpresa.

- Ora, é, é claro - respondeu. - Há alguns detalhes que ainda temos de acertar, algumas coisas que não estão bem claras. Por exemplo, teremos de explicar como você pôde simplesmente deixar a Srta. Young sangrando lá no chão e ter ido para a cama, para dormir tão profundamente que nem ouviu a empregada berrar ao descobrir o corpo na manhã seguinte. Mas baseado no que eu sei, creio que no julgamento podemos alegar que você estava em estado de choque.

— Você faria isso? — Shipman perguntou, abatido. — Só que eu não estava em estado de choque. Na verdade, depois daquele drinque, foi como se eu estivesse flutuando. Mal consigo lembrar do que Arabella e eu dissemos um para o outro, que dirá de ter atirado nela.

Uma expressão de tristeza passou pelas feições do advogado.

— Eu acho, Tom, que devo implorar para você não fazer esse tipo de declaração para ninguém. Promete, por favor? E também devo sugerir que no futuro próximo vá devagar com a bebida. É óbvio que isso não está fazendo bem para você.

Thomas Shipman espiava pela janela, de pé atrás das cortinas, observando seu rotundo advogado tentando livrar-se de um ataque dos repórteres. Era como assistir aos leões atacando um cristão solitário, ele pensou. Só que nesse caso não queriam o sangue do advogado Hart. Queriam o dele. Só que ele não tinha vocação para o martírio.

Felizmente, tinha conseguido avisar a tempo a governanta, Lillian West, para ficar na casa dela aquele dia. Soube na véspera, quando foi indiciado, que as câmeras de televisão iam acampar na frente da sua casa, a fim de testemunhar e registrar cada passo seu: algemado, depois a citação, a tomada de impressões digitais, a alegação de inocência e a volta nada triunfal para casa aquela manhã. Não, entrar na sua casa hoje tinha sido como enfrentar um corredor polonês; não queria que a empregada se sujeitasse a isso também.

Mas gostaria de ter alguém por perto. A casa parecia quieta demais, e solitária. Mergulhada em lembranças, a mente de Shipman voltou ao dia em que Constance e ele compraram a propriedade, cerca de trinta anos antes. Tinham saído de carro de Manhattan para almoçar no Bird and Bottle perto do Monte Bear, depois voltaram calmamente para a cidade. Num impulso resolveram pegar um desvio pelas aprazíveis ruas residenciais de Tarrytown, e foi lá que viram a placa de Vende-se na frente da casa da virada do século XX, debruçada sobre o rio Hudson e com vista para os rochedos Palisades.

E nos vinte e oito anos, dois meses e dez dias seguintes vivemos aqui muito felizes, pensou Shipman.

— Oh, Constance, se ao menos pudéssemos ter mais vinte e oito anos juntos... — ele disse baixinho enquanto ia para a cozinha, resolvendo tomar café em vez de uísque.

Essa casa era um lugar especial para eles. Mesmo quando servia como secretário de estado e tinha de viajar a maior parte do tempo, os dois conseguiam passar alguns fins de semana juntos ali, e era sempre uma espécie de repouso para a alma. E então uma manhã, dois anos atrás, Constance disse:

— Tom, não estou me sentindo bem. E pouco tempo depois ela se foi.

Trabalhar vinte e quatro horas por dia ajudou a anestesiar um pouco a dor. Graças a Deus tinha o trabalho para me distrair, ele pensou, sorrindo ao lembrar do apelido que recebeu da imprensa: ”O secretário voador.” Mas não me ocupei apenas; Henry e eu conseguimos fazer coisas boas. Deixamos Washington e o país melhores do que eram há anos.

Na cozinha, mediu cuidadosamente café suficiente para quatro xícaras e fez o mesmo com a água. Estão vendo, posso cuidar de mim mesmo, pensou. Pena não ter feito isso mais vezes depois que Constance

morreu. Mas então Arabella entrou na história. Tão carinhosa, tão sedutora. E agora, tão morta.

Lembrou daquela noite, dois dias atrás. O que tinham dito um para o outro na biblioteca? Recordou vagamente que ficou furioso. Mas será que poderia ficar assim tão furioso, a ponto de levar a cabo um ato de violência tão terrível? E de que forma poderia ter deixado Arabella sangrando, caída no chão da biblioteca, enquanto cambaleava para a cama? Balançou a cabeça. Não fazia sentido.

O telefone tocou, mas Shipman só ficou olhando para ele. Quando parou de tocar, tirou o fone do gancho.

O café ficou pronto, serviu uma xícara e com os dedos levemente trêmulos levou-a para a sala de estar. Normalmente teria sentado na sua grande poltrona de couro na biblioteca, mas não naquele dia. Ficou imaginando se um dia teria coragem de entrar naquela sala outra vez.

Ia sentar quando ouviu uma gritaria lá fora. Sabia que os repórteres continuavam acampados na rua, mas não imaginava o motivo de tanto alvoroço. Mas antes mesmo de afastar as cortinas o bastante para poder dar uma espiada já tinha adivinhado o que causava aquele furor todo.

O ex-presidente dos Estados Unidos acabava de chegar para oferecer sua amizade e consolo.

O pessoal do serviço secreto tentou bravamente abrir caminho para os Britland, desbravando a multidão de repórteres e operadores de câmeras. Protegendo a mulher com o braço Henry parou, demonstrando disposição para dar pelo menos uma breve declaração.

— Como sempre acontece neste grande país, um homem é inocente até que se prove o contrário. Thomas Shipman foi realmente um ótimo secretário de estado e continua sendo um grande amigo. Sunday e eu viemos aqui hoje como amigos.

Tendo dito isso, o ex-presidente virou-se e caminhou para a entrada da casa, ignorando a enxurrada de perguntas que os repórteres faziam. Logo que pisaram no último degrau da entrada, Tom Shipman destrancou e abriu a porta da casa, e seus visitantes entraram sem maiores incidentes.

Só depois que os Britland entraram, que a porta foi fechada e ele sentiu o abraço forte e seguro do amigo, Thomas Shipman começou à soluçar.

Sentindo que os dois precisavam de algum tempo sozinhos para conversar, Sunday foi para a cozinha, insistindo em preparar um almoço para os três, apesar dos protestos de Shipman. O ex-secretário ficou repetindo que ia chamar a governanta, mas Sunday fez questão de cuidar de tudo.

— Vai sentir-se muito melhor quando puser alguma coisa no estômago, Tom — ela disse. — Vocês dois conversem à vontade e depois venham juntar-se a mim na cozinha. Tenho certeza de que aqui tem tudo de que eu preciso para fazer uma omelete. Ficará pronta em poucos minutos.

Shipman recuperou rapidamente a compostura. A simples presença de Henry Britland na sua casa dava a sensação, pelo menos naquele momento, de que podia enfrentar tudo o que tivesse pela frente. Eles foram para a cozinha e já encontraram Sunday fazendo a omelete. Seus movimentos rápidos e certeiros na tábua de picar trouxeram de volta para Shipman uma lembrança recente de Palm Beach, e de estar observando outra pessoa preparando uma salada, sonhando com um futuro que jamais existiria.

Olhando pela janela percebeu subitamente que a veneziana estava aberta e que se alguém resolvesse se esgueirar para os fundos da casa, teria uma oportunidade perfeita de tirar um instantâneo dos três ali. Então, atravessou rapidamente a cozinha e abaixou a proteção.

Virou para Henry e para Sunday e sorriu com tristeza para os dois.

- Sabem, recentemente quiseram me convencer a instalar um mecanismo eletrônico nas persianas em todos os outros cômodos, com o qual eu poderia fechá-las através de um timer, ou simplesmente apertando um botão num controle remoto. Mas nunca pensei que poderia precisar disso aqui. Não entendo quase nada de cozinha e Arabella não era nenhuma Betty Crocker.

Ele fez uma pausa e balançou a cabeça.

— Ah, isso não importa agora. E além do mais, jamais gostei dessas coisas mesmo. Na verdade as persianas da biblioteca nem funcionam direito. Toda vez que se aperta o botão de abrir ou fechar, ouve-se um estalido muito forte, quase como o estampido de um tiro. Bem apropriado, não acham? Quero dizer, já que uma arma foi realmente disparada lá há menos de quarenta e oito horas. Vocês já ouviram falar de acontecimentos que projetam suas sombras antes de eles acontecerem? Bem...

Ele afastou o olhar por um momento e fez-se silêncio, interrompido apenas pelos ruídos que Sunday fazia preparando o omelete para pô-lo na frigideira. Então Shipman aproximou-se da mesa da cozinha e sentou diante de Henry. Lembrou quase imediatamente das vezes em que ficavam assim, cara a cara, à mesa do Salão Oval. Olhou bem nos olhos do homem mais moço.

- Sabe, Sr. presidente, eu...

— Tommy, deixa disso. Sou eu. Henry.

— Tudo bem, Henry. Só estava pensando que nós dois somos advogados, e...

- E Sunday também é - lembrou Henry. - Não se esqueça disso. Ela foi defensora pública antes de se candidatar.

Shipman deu um sorriso triste.

— Então sugiro que ela seja nossa especialista interna — ele virou-se para ela —, Sunday, você já teve de preparar a defesa de um cliente que estava completamente bêbado quando o crime foi cometido, que além de atirar na sua... a... amiga, três vezes, deixou-a lá estirada no chão sangrando até a morte, enquanto se arrastava para o quarto para dormir?

Continuando de frente para o fogão, ela respondeu.

— Talvez não nessas circunstâncias exatamente, mas defendi várias pessoas que estavam tão chapadas com drogas na hora, que nem se lembravam de ter cometido o crime. Mas como costuma acontecer, havia testemunhas que depuseram contra elas. Era muito difícil.

- Então foram consideradas culpadas, não é? - Shipman quis saber.

Sunday olhou para ele e sorriu com tristeza.

- A lei caiu em cima delas - ela admitiu.

— Pois é. Meu advogado, Len Hart, é um cara bom e capaz, que quer que eu me declare culpado alegando insanidade, temporária, é claro. Mas na minha opinião o único recurso que me resta é tentar um acordo na esperança de o estado não apelar para a pena de morte em troca de uma alegação de culpa.

Henry e Sunday observavam o amigo enquanto ele falava, olhando fixo para frente.

— Vocês sabem — continuou Shipman — que eu tirei a vida de uma mulher jovem, que devia ter mais uns cinqüenta anos de vida neste planeta. Se eu for para a prisão, provavelmente não durarei mais de cinco, talvez dez anos. O confinamento, por qualquer período de tempo, pode ajudar a expiar essa culpa horrível antes de eu ser chamado para conhecer o meu Criador.

Os três ficaram em silêncio enquanto Sunday acabava de preparar a refeição — temperando a salada, derramando os ovos batidos na frigideira quente, acrescentando tomates picados, cebolinha e presunto, dobrando as bordas do omelete borbulhante e finalmente virando do outro lado. As torradas saltaram da torradeira quando ela pôs o primeiro omelete num prato aquecido diante de Shipman.

— Coma — ela ordenou.

Vinte minutos depois, quando empurrou o resto de salada para cima de um pedaço de torrada e ficou olhando para o prato vazio diante dele, Tom Shipman observou.

— É uma sorte redundante, Henry, que com um ckef francês empregado na sua cozinha, você também seja abençoado com uma mulher que também é mestre em culinária.

— Obrigada, gentil senhor — disse Sunday animada. — Mas a verdade é que qualquer talento que eu tenha na cozinha se deve ao tempo em que trabalhei como cozinheira para fazer a faculdade na Fordham.

Shipman sorriu, ainda olhando distraído para o prato vazio diante dele.

- É um talento que deve ser admirado. E certamente um que Arabella não tinha — ele balançou a cabeça lentamente de um lado para o outro. — E difícil acreditar que eu pudesse ter sido tão tolo.

Sunday pôs a mão em cima da mão dele e disse, com a voz bem suave:

— Tommy, certamente deve haver algumas circunstâncias atenuantes que podem funcionar a seu favor. Você dedicou tantos anos ao serviço público, e esteve envolvido em tantos projetos de caridade... Os tribunais vão procurar qualquer coisa que possam usar para suavizar a sentença, supondo, é claro, que de fato haja uma. Henry e

eu estamos aqui para ajudar em tudo o que for possível, e ficaremos ao seu lado para o que der e vier.

Henry Britland colocou a mão com firmeza no ombro de Shipman.

— É isso mesmo, velho amigo, estamos aqui com você. E só pedir e tentaremos fazer acontecer. Mas antes de podermos fazer qualquer coisa, precisamos saber exatamente o que aconteceu por aqui. Tínhamos ouvido dizer que Arabella resolvera terminar o namoro com você, então o que estava fazendo aqui aquela noite?

Shipman não respondeu imediatamente.

- Ela simplesmente apareceu - ele disse, com um tom evasivo.

— Então não estava esperando por ela? — Sunday perguntou logo. Ele hesitou.

— É... não... não estava. Henry inclinou-se para frente.

— Tudo bem, Tom, mas como disse Will Rogers: ”Só sei o que está escrito nos jornais.” Segundo as reportagens, você ligou antes para Arabella e implorou para ter uma conversa com ela. Ela chegou aqui aquela noite por volta das nove horas.

— Foi isso mesmo — ele respondeu sem mais explicações. Henry e Sunday trocaram olhares de preocupação. Era óbvio

que Tom estava escondendo alguma coisa.

— E quanto à arma? — perguntou Henry. — Francamente, fiquei surpreso de saber que você tinha uma, especialmente que estava registrada no seu nome. Você foi um defensor tão fervoroso da lei Brady, considerado inimigo pela Associação Nacional do Rifle. Onde é que a guardava?

- Para dizer a verdade, eu tinha esquecido completamente que tinha essa arma - disse Shipman sem emoção na voz. - Comprei logo que nos mudamos para cá, e ficou no fundo do meu cofre durante anos. Então, por coincidência, eu a vi lá outro dia, logo depois de saber que a polícia estava circulando pela cidade, pedindo para as pessoas trocarem suas armas por brinquedos. Por isso tirei a arma do cofre e deixei-a em cima da mesa da biblioteca, com os cartuchos ao lado. Planejava entregá-la na delegacia de polícia na manhã seguinte. Bom, a polícia acabou ficando mesmo com ela, só que não do jeito que eu tinha planejado.

Sunday sabia que Henry estava pensando a mesma coisa que ela. a situação começava a parecer ruim demais: além de atirar em abella, Tom tinha carregado o revólver depois que ela chegou.

— Tom, o que você estava fazendo antes que Arabella chegasse qui? - perguntou Henry.

O casal viu Shipman analisar a pergunta antes de responder.

— Eu tinha ido à reunião anual de acionistas da American Micro. Tive um dia exaustivo, piorado pelo fato de eu estar gripado. Minha

governanta, Lillian West, serviu o jantar às sete e meia. Comi só um pouco e fui diretamente para cima porque ainda não me sentia muito bem. Na verdade, estava tendo até calafrios, por isso tomei uma ducha demorada e bem quente, e fui para a cama. Não dormia bem há algumas noites, e resolvi tomar um sonífero. Depois acordei, de um sono muito profundo, devo dizer, quando Lillian bateu na porta do meu quarto dizendo que Arabella estava lá embaixo e que queria me ver.

— Então você desceu outra vez?

— Desci. Lembro que Lillian estava saindo quando cheguei lá embaixo, e que Arabella já estava na biblioteca.

- Ficou satisfeito ao vê-la?

Shipman demorou um pouco para responder.

- Não, não fiquei. Lembro que ainda estava meio grogue por causa do sonífero e que mal conseguia manter os olhos abertos. Também estava zangado porque depois de ter ignorado meus telefonemas, ela simplesmente resolveu aparecer sem avisar. Como devem lembrar, há um bar na biblioteca. Bem, Arabella já estava completamente à vontade e havia preparado um martíni para cada um de nós.

— Tom, por que você foi inventar de beber um martíni em cima de um comprimido para dormir? — perguntou Henry.

— Porque sou um idiota — disse Shipman rispidamente. — E porque estava tão farto da risada e da voz irritante da Arabella que achei que ia enlouquecer se não bebesse.

Henry e Sunday olharam espantados para o amigo.

— Mas pensei que você era louco por ela — disse Henry.

— Ah, eu fui, durante um tempo, mas no fim fui eu que resolvi terminar tudo — respondeu Shipman. — Só que, sendo um cavalheiro, achei que seria mais educado dizer para todo mundo que a decisão tinha sido dela. E, certamente, levando em conta a nossa diferença de idade, qualquer um acharia que foi isso mesmo que aconteceu. A verdade foi que eu finalmente... temporariamente, aliás... recuperei o juízo.

— Então por que telefonou para ela? — perguntou Sunday. — Não estou entendendo.

- Porque Arabella começou a telefonar para mim no meio da noite, algumas noites várias vezes, toda hora. Normalmente desligava assim que ouvia a minha voz, mas eu sabia que era ela. Por isso liguei para avisar que aquilo não podia continuar. Mas com certeza não a convidei para vir à minha casa.

— Tom, por que não contou nada disso para a polícia? Baseado em tudo que li e ouvi, todos pensam que foi um crime passional.

Tom Shipman balançou a cabeça pesarosamente.

— Porque acho que no fim das contas provavelmente foi mesmo. Naquela última noite Arabella me disse que ia entrar em contato com um dos jornais e que ia vender para eles uma história sobre festas da pesada que supostamente você e eu dávamos juntos, durante a sua administração.

— Mas isso é ridículo — disse Henry indignado.

— Chantagem — disse Sunday baixinho.

— Exatamente. Então vocês acham que contar essa história pode ajudar o meu caso? — perguntou Shipman, balançando a cabeça. — Não, e apesar de não ter sido assim, pelo menos existe alguma dignidade em ser punido por assassinar uma mulher, por tê-la amado demais e não suportar a idéia de perdê-la. Dignidade para ela e talvez até um pouquinho de dignidade para mim também.

Sunday insistiu em arrumar a cozinha enquanto Henry levava Tommy para cima para descansar.

— Tommy, gostaria que tivesse alguém aqui com você, neste momento — disse o ex-presidente. — Detesto deixá-lo sozinho.

— Oh, não se preocupe, Henry, estou bem. Além do mais, não me sinto mais sozinho depois da sua visita.

Apesar da advertência do amigo, Henry sabia que ia ficar preocupado, como já começara a ficar assim que Shipman foi para o banheiro. Constance e Tommy não tiveram filhos, e muitos amigos do bairro tinham se aposentado e ido morar em outro lugar, a maior lia na Flórida. Os pensamentos de Henry foram interrompidos pelo som do seu bipe, sempre presente.

Com o celular, ele respondeu imediatamente. Quem o chamava era Jack Collins, o responsável pela equipe do serviço secreto designada para protegê-lo.

— Desculpe incomodá-lo, senhor presidente, mas uma vizinha insiste em dar um recado ao Sr. Shipman. Diz que é grande amiga dele, uma tal de condessa Condazzi, que mora em Palm Beach, diz que está tentando falar com ele, mas que ele não atende o telefone e aparentemente a secretária eletrônica está desligada, por isso não conseguiu deixar uma mensagem. Acho que ela ficou meio confusa e insiste para que avisemos ao Sr. Shipman que está aguardando um telefonema dele.

- Obrigado, Jack. Darei o recado para o Sr. Shipman. E Sunday e eu iremos embora dentro de alguns minutos.

- Certo, senhor. Estaremos a postos.

Condessa Condazzi, pensou Henry. Que interessante. Quem será ela?

A curiosidade aumentou quando Thomas Acker Shipman ficou com os olhos brilhantes e esboçou um sorriso ao receber o recado.

— Betsy telefonou, é? — ele disse. — Que gentileza dela. — Mas o brilho nos seus olhos desapareceu quase tão rápido quanto surgiu, e o sorriso sumiu. — Talvez você possa informar à minha vizinha que não estou atendendo telefonemas de ninguém — ele disse. — Nessas circunstâncias me parece inútil conversar com qualquer pessoa que não seja o meu advogado.

Poucos minutos depois Henry e Sunday eram escoltados às pressas pelo meio da multidão de repórteres, quando um Lexus estacionou na entrada da casa ao lado do carro deles. O casal viu uma mulher pular do carro e, utilizando o alvoroço criado pela saída dos dois como distração, conseguir chegar até a casa sem ser importunada, usar sua própria chave e entrar.

— Deve ser a governanta — disse Sunday, observando que a mulher, que parecia ter seus cinqüenta anos, estava vestida simplesmente e tinha o cabelo preso num coque formado por uma trança. — Ela está bem caracterizada e, além disso, quem mais teria a chave? Bom, pelo menos Tom não ficará sozinho.

— Ele deve estar pagando muito bem a essa governanta — observou Henry. — Aquele carro é caro.

No caminho para casa, ele contou para Sunday a história do telefonema da condessa de Palm Beach. Ela não fez nenhum comentário, mas pelo modo que inclinou a cabeça e franziu a testa Henry percebeu que sua mulher estava intrigada, raciocinando.

O carro em que estavam era um Chevrolet indescritível, um modelo fabricado oito anos antes, um automóvel de segunda mão extraordinariamente equipado, que Henry mantinha para uso do casal, em especial para evitar que fossem descobertos quando assim desejassem. Como sempre, havia dois agentes do serviço secreto, um dirigindo, o outro ao lado. Uma divisória de vidro bem espesso separava o banco da frente do de trás, dando liberdade a Henry e Sunday para conversarem sem a preocupação de alguém ouvir.

Quebrando o que para ela era um silêncio prolongado, Sunday disse:

— Henry, tem alguma coisa errada nesse caso. Dava para sentir pelas descrições do jornal, mas agora, depois de conversar com o Tommy, tenho certeza.

Henry balançou a cabeça, concordando.

— Concordo inteiramente. No início pensei que os detalhes do crime talvez fossem tão terríveis que ele precisasse negá-los para si mesmo. — Fez uma pausa e balançou a cabeça. — Mas agora percebo que não é uma questão de negação. Tommy realmente não sabe o que aconteceu. E nada disso combina com ele! - exclamou. - Por maior que tenha sido a provocação, ameaças de chantagem, seja lá o que for, não posso aceitar que, mesmo confuso com a combinação de um sonífero com um martíni, Tommy ficaria tão fora de controle a ponto de matar a mulher! O simples fato de vê-lo hoje fez com que eu entendesse que tudo isso é extraordinário demais. Você não o conheceu naquela época, Sunday, mas ele era dedicado a Constance. No entanto, quando ela morreu, demonstrou um autocontrole admirável. Sofreu sim, mas permaneceu calmo o tempo todo. - Ele parou de falar um pouco e balançou a cabeça novamente. — Não,

Tommy simplesmente não é o tipo de homem que perde a cabeça, por pior que seja a provocação.

— Bem, ele pode ter mantido a compostura admiravelmente bem quando a mulher morreu, mas cair de quatro por Arabella Young quando Connie mal tinha esfriado na cova denota alguma coisa sobre o homem, você tem de admitir.

— E, mas talvez uma repercussão? Ou negação?

- Exatamente - respondeu Sunday. - É claro que às vezes as pessoas se apaixonam quase imediatamente após uma grande perda e de feto isso pode funcionar, mas em geral não funciona.

— E, você deve estar certa. O fato de Tommy não ter casado com Arabella depois de ter dado um anel de noivado para ela... o que, há quase dois anos?... indica que praticamente desde o começo ele já devia saber que isso era um erro.

— Bom, tudo aconteceu antes de eu entrar em cena, é claro — ponderou Sunday —, mas eu estava sempre em dia com muita coisa pelos jornais, que na época criaram um rebuliço em torno do fato de o secretário de estado estar tão apaixonado pela bela relações-públicas que tinha a metade da idade dele. Mas depois lembro de ter visto duas fotos dele publicadas lado a lado, uma em público, abraçando Arabella, e a outra no enterro da mulher, obviamente flagrado num momento em que a máscara caiu. Ninguém tão abalado e sofrendo tanto poderia estar tão feliz apenas dois meses mais tarde. E as roupas que ela usava, simplesmente não parecia o tipo de mulher que Tommy apreciava.

Sunday sentiu, sem olhar, que o marido ergueu a sobrancelha.

— Ora, Henry. Eu sei que você lê os jornais do princípio ao fim depois que eu termino de lê-los. Diga a verdade. O que você pensava da Arabella?

— Francamente, pensava nela o mínimo possível.

- Você não respondeu à minha pergunta.

— Procuro não falar mal dos mortos — ele fez uma pausa. — Mas já que quer saber, achava Arabella escandalosa, vulgar e antipática. Possuía uma mente aguçada, mas falava depressa demais, sem parar, e seu cérebro não conseguia acompanhar a língua. E quando dava risada eu sempre achava que os cristais do lustre iam explodir.

— Bem, isso certamente confere com o que li sobre ela — comentou Sunday.

Ela ficou calada um tempo, depois virou para o marido.

— Henry, se Arabella se rebaixava a ponto de chantagear o Tommy, você acha possível que ela tivesse tentado isso antes, com outra pessoa? Isto é, será possível que entre a pílula para dormir e o martíni Tommy tivesse apagado e alguém mais tivesse entrado na casa sem que ele soubesse? Alguém que podia estar seguindo Arabella e que de repente viu uma oportunidade de livrar-se dela e pôr a culpa no pobre Tommy?

— E depois carregar o Tommy para cima e pô-lo na cama? — Henry ergueu a sobrancelha outra vez.

Os dois ficaram em silêncio enquanto o carro se aproximava da Garden State Parkway. Sunday olhou pela janela o sol do fim de tarde brilhando nas folhas acobreadas, douradas e vermelhas das árvores.

— Eu adoro o outono — ela disse pensativa. — E dói pensar que no outono da vida de Tommy ele tenha de passar por essa provação — ela fez uma pausa. — Tudo bem, vamos experimentar uma outra cena. Você conhece bem o Tommy. Vamos supor que ele estivesse com raiva, até furioso, mas também tão grogue que não conseguisse pensar direito. Ponha-se no lugar dele naquele momento. O que você teria feito?

- Eu teria feito o que Tommy e. eu fazíamos quando estávamos nessas condições nas reuniões de cúpula. Quando percebíamos que estávamos cansados ou furiosos demais, ou os dois, e que não conseguíamos pensar direito, íamos dormir.

Sunday segurou a mão de Henry.

— É exatamente aonde quero chegar. Vamos supor que o Tommy realmente tenha subido a escada trôpego, com os próprios pés, deixando Arabella lá embaixo. E vamos supor que outra pessoa realmente tenha seguido Arabella até a casa, alguém que sabia o que ela ia fazer aquela noite. Temos de descobrir com quem Arabella esteve horas antes. E devíamos falar com a governanta do Tommy. Ela saiu logo depois que Arabella chegou. Talvez tenha notado algum carro estacionado na rua. E a condessa de Palm Beach que telefonou, querendo falar com o Tommy com tanta urgência. Precisamos conversar com ela. Provavelmente não é nada, mas nunca se sabe o que ela pode revelar.

— Concordo — disse Henry admirado. — Como sempre, estamos sintonizados na mesma onda, só que você está mais adiantada do

  1. Na verdade nem pensei em falar com a condessa. — Ele passou o braço em volta de Sunday e puxou-a para perto. — Venha aqui. Sabia que não beijo você desde as onze e dez da manhã? — ele perguntou baixinho.

Sunday acariciou os lábios dele com a ponta do dedo indicador.

— Ah, então sua atração não é só pela minha mente aguçada?

— Você notou.

Henry beijou a ponta do dedo de Sunday, segurou e abaixou a dela, livrando-se de qualquer obstáculo entre os lábios dos dois. Sunday recuou.

— Só mais uma coisa, Henry. Você precisa fazer com que Tommy não resolva apelar para um acordo antes de pelo menos tentarmos ajudá-lo.

— E como é que eu vou fazer isso? — ele quis saber.

- Com uma ordem do executivo, é claro.

— Querida, eu não sou mais o presidente.

— Ah, mas para o Tommy você é sim.

— Tudo bem, vou tentar. Mas aqui vai outra ordem do executivo: pare de falar.

No banco da frente, os agentes do serviço secreto espiaram pelo espelho retrovisor e sorriram um para o outro.

Henry levantou ao nascer do sol na manhã seguinte para dar uma volta em uma parte de oitocentos hectares da propriedade, com o administrador. De volta às oito e meia, juntou-se a Sunday na sala do desjejum, com vista para o clássico jardim inglês nos fundos da casa. A decoração da sala complementava a vista, com uma fartura de gravuras botânicas sobre um fundo de linho belga nas paredes. Dava a impressão de que a sala estava constantemente cheia de flores, e Sunday com freqüência observava como tudo era tão diferente do apartamento no andar superior da casa que era dividida por duas famílias em Jersey, onde foi criada e onde seus pais ainda moravam.

— Não esqueça que o Congresso entra em sessão na semana que vem — disse Sunday, servindo-se de uma segunda xícara de café. — O

que eu puder fazer para ajudar o Tommy terá de começar agora mesmo. Acho que devo começar descobrindo tudo sobre Arabella. O Marvin já terminou a investigação completa que pedimos?

O Marvin ao qual Sunday se referia era Marvin Klein, o homem que administrava o escritório de Henry, situado na antiga casa das carruagens da propriedade. Dono de um senso de humor brincalhão, Marvin se autodenominava chefe de pessoal de um governo em exílio, referindo-se ao fato de que logo depois do segundo mandato de Henry Britland começou uma campanha para modificar a restrição imposta ao presidente dos Estados Unidos de exercer o cargo apenas por dois períodos. Um plebiscito na época demonstrou que oitenta por cento do eleitorado queria que fizessem uma emenda na proibição, para que constasse a denominação períodos consecutivos. Era óbvio que a maioria dos americanos queria que Henry Parker Britland IV voltasse a ocupar o número l.600 da avenida Pennsylvania.

— Está aqui comigo — disse Henry. — Acabei de ler. Parece que a falecida Arabella conseguiu esconder muito bem grande parte do seu passado. Algumas partes mais picantes que as fontes de Marvin revelaram incluem um casamento anterior que terminou em divórcio, no qual ela limpou o ex, e que o antigo namorado com quem vivia atando e desatando, Alfred Barker, passou algum tempo na prisão por ter subornado atletas.

— É mesmo? E ele já está fora da prisão?

— Não só está fora, minha querida, como jantou com Arabella na noite em que ela morreu.

Sunday ficou boquiaberta.

- Querido, como foi que o Marvin conseguiu descobrir isso?

- E como é que o Marvin descobre qualquer coisa? Tudo o que sei é que ele tem suas fontes. Além do mais, parece que Alfred Barker mora em Yonkers que, como você deve saber, não é longe de Tarrytown. Dizem que o ex-marido dela está feliz num casamento novo e que não mora por aqui.

— Marvin descobriu tudo isso da noite para o dia? — perguntou Sunday animada, com um brilho nos olhos.

Henry fez que sim com a cabeça, enquanto Sims, o mordomo, servia café para ele.

— Obrigado, Sims. E não é só isso — continuou —, ele também descobriu que aparentemente Alfred Barker ainda gosta muito de Arabella, por mais improvável que isso possa parecer, e que recentemente andou alardeando para os amigos que agora que ela havia descartado o velhote, ia voltar a ficar com ele.

— O que Barker faz agora? — perguntou Sunday.

— Bem, tecnicamente é o dono de uma loja de bombas hidráulicas, mas as fontes de Marvin dizem que na verdade não passa de fachada para uma banca de apostas clandestina, que ele administra praticamente sozinho. Mas a minha informação preferida é que o nosso Sr. Barker é famoso por seu temperamento violento quando contrariado.

Sunday franziu o nariz, a boca e a testa, como se meditasse profundamente.

— Hum. Então vejamos. Ele jantou com Arabella logo antes da sua ida para a casa do Tommy. Ele detesta ser contrariado, o que provavelmente significa que também deve ser muito ciumento, e tem um gênio terrível. — Ela olhou para o marido. — Você está pensando a mesma coisa que eu?

— Exatamente.

— Eu sabia que era um crime passional! — disse Sunday animada.

— Só que tudo indica que a paixão não era da parte do Tommy. Tudo bem, então vou procurar Barker hoje, e a governanta do Tommy também. Qual é mesmo o nome dela?

— Dora, eu acho — respondeu Henry, mas depois se corrigiu. — Não, não, esse era o nome da governanta que trabalhou muitos anos para eles. Uma senhora maravilhosa. Acho que Tommy disse que ela se aposentou logo depois da morte de Constance. Não, se não me falha a memória, a que está com ele agora, que vimos de relance ontem, se chama Lillian West.

— É isso mesmo. A mulher de tranças, do Lexus — disse Sunday.

— Então eu fico com o Barker e a governanta. O que você vai fazer?

— Vou voar para Palm Beach para conhecer essa condessa Condazzi, mas estarei em casa na hora do jantar. E você, minha querida, tem de me prometer que tomará cuidado. Não esqueça que esse Alfred Barker é definitivamente um tipo indigesto. Não quero que você dê trabalho para os caras do serviço secreto.

— Está bem.

- Estou falando sério, Sunday - disse Henry com a voz baixa e o tom sério que usava com a maior eficiência diante de seus ministros, que chegavam a ficar com as pernas bambas.

— Oh, você é um hombre durão — disse Sunday sorrindo. — Tudo bem, prometo. Ficarei grudada neles que nem cola. E você, faça um bom vôo.

Ela beijou a testa dele e saiu da sala de desjejum cantarolando baixinho: ”Salve o cacique”.

Cerca de quatro horas mais tarde, tendo pilotado seu jato até o aeroporto West Palm Beach, Henry chegou à mansão de estilo espanhol da condessa Condazzi.

— Esperem aqui fora — ele instruiu o grupo de agentes do serviço secreto.

A condessa parecia ter sessenta e poucos anos, uma mulher pequena e magra, com feições exóticas, olhos cinzentos e tranqüilos. Ela recebeu Henry com simpatia cordial e foi direto ao assunto.

- Fiquei muito contente quando recebi seu telefonema, senhor presidente - ela disse. - Li as notícias sobre a terrível situação do Tommy e ando aflita para falar com ele. Sei que ele deve estar sofrendo muito, mas não responde aos meus telefonemas. Olha, eu sei que o Tommy não pode ter cometido esse crime. Somos amigos desde a infância, estudamos juntos até o segundo grau e em todo esse tempo ele jamais perdeu o controle. Mesmo quando os outros o provocaram ou criaram confusão perto dele, o que é comum num baile de formatura, e mesmo bebendo, Tommy foi sempre um cavalheiro. Ele cuidou de mim e, quando a festa terminou, levou-me para casa. Não, Tommy simplesmente não pode ter feito isso.

- É exatamente assim que eu penso - disse Henry, concordando. — Então vocês cresceram juntos?

- Ele morava do outro lado da rua em Rye. Namoramos quando estávamos no segundo grau, mas então ele conheceu Constance e eu conheci Eduardo Condazzi, que era espanhol. Casei-me e, um ano depois, quando o irmão mais velho do Eduardo morreu, ele herdou o título e os vinhedos da família, mudamos para a Espanha. Eduardo faleceu há três anos. Meu filho é o conde agora e ainda mora na

Espanha, mas achei que era hora de voltar para casa. E assim, depois todos esses anos, reencontrei o Tommy quando ele veio visitar uns amigos por aqui, num fim de semana de partidas de golfe. Foi maravilhoso estar com ele novamente. Parece que os anos se fundiram. E o amor reacendeu, pensou Henry.

— Condessa...

— Betsy — ela instruiu com firmeza.

- Está bem, Betsy, eu tenho de ser direto. Tommy e você recomeçaram de onde pararam anos atrás?

- Bem, sim e não - disse Betsy devagar. - Deixei bem claro que estava muito contente de vê-lo novamente, e acho que ele sentiu a lesma coisa em relação a mim. Mas sabe, também acho que Tommy nunca se deu a chance, realmente, de lamentar a morte de Constance. Na verdade, falamos muito sobre isso. Para mim era que o envolvimento com Arabella Young foi uma forma que file encontrou para tentar escapar do período de luto. Eu o aconselhei a esquecer Arabella e se dar um tempo para lamentar a morte de Constance, de seis meses a um ano mais ou menos. E, depois, disse , ’que ele tinha de me convidar para um baile.

Henry observou o rosto de Betsy Condazzi, o sorriso triste, os olhos cheios de lembranças.

— E ele concordou? — ele perguntou.

- Não totalmente. Disse que ia vender a casa e que vinha morar aqui permanentemente - ela sorriu. - Disse que estaria pronto muito antes de seis meses para me levar a um baile.

Henry pensou um pouco antes de fazer a pergunta seguinte.

— Se Arabella Young tivesse procurado os jornais com uma história de que durante a minha administração, e antes mesmo da morte da mulher dele, Tommy e eu promovíamos orgias na Casa Branca, qual seria a sua reação?

— Ora, eu saberia que não era verdade — ela disse simplesmente.

- E Tommy me conhece suficientemente bem para ter certeza de que poderia contar com o meu apoio.

No vôo de volta para o aeroporto Newark, Henry deixou seu piloto assumir o controle do avião. Passou o tempo todo pensando.

Estava ficando cada vez mais claro que tinham armado uma cilada para Tommy. Era óbvio que ele tinha consciência de que seu futuro apresentara uma segunda chance de felicidade e que não precisava matar para salvaguardar essa chance. Não, não fazia sentido Tommy ter matado Arabella Young. Mas como iam provar isso? Imaginou se Sunday estaria tendo mais sorte na procura de um motivo provável para o assassinato de Arabella.

Alfred Barker era um homem que não inspirava simpatia imediata, pensou Sunday, sentada diante dele no escritório da loja de equipamentos hidráulicos.

Parecia ter uns quarenta e cinco anos, barrigudo, cenho carregado, pele amarelada e cabelo grisalho, penteado de um lado para o outro da cabeça num esforço óbvio para esconder a calvície. Mas a camisa aberta revelava, ao contrário, uma profusão de pêlos no peito. A única outra coisa marcante que Sunday notou nele foi uma cicatriz irregular nas costas da mão direita.

Sentiu-se grata por um breve momento ao lembrar do corpo magro e musculoso de Henry, da boa aparência dele, inclusive do seu famoso maxilar de pessoa ”teimosa”, e dos olhos castanhos que revelavam ou, se necessário, ocultavam as emoções. E apesar de muitas vezes zombar dos homens onipresentes do serviço secreto — afinal, nunca foi uma primeira-dama, então por que precisaria deles agora? —, naquele momento, naquela sala apertada com aquele homem hostil, era bom saber que eles estavam ali, do outro lado da porta parcialmente aberta.

Tinha se apresentado como Sandra O’Brien, e era óbvio que Alfred Barker não tinha a menor idéia de que seu sobrenome era Britland.

— Então, por que quer conversar comigo sobre a Arabella? — perguntou Barker acendendo um charuto.

- Antes de mais nada quero dizer que fiquei muito triste com a morte dela - disse Sunday sinceramente. - Sei que vocês eram muito íntimos. Mas conheço o Sr. Shipman. - Ela fez uma pausa e depois explicou: - Meu marido já trabalhou com ele. E parece que existem versões conflitantes quanto a quem terminou esse relacionamento com a Sra. Young.

- Que importância tem isso? Arabella estava farta do velhote disse Barker. - Arabella sempre gostou de mim.

- Mas ela ficou noiva de Thomas Shipman - protestou Sunday.

— Ê, mas eu sabia que isso não podia durar muito. Tudo que ele tinha era uma carteira recheada. Sabe, Arabella se casou, aos dezoito anos, com um sujeito tão idiota que precisava ser apresentado a ele mesmo toda manha. Mas Arabella foi esperta. O cara podia ser burro, mas valia a pena ficar com ele porque havia muito dinheiro na família. Por isso ela esperou três ou quatro anos, deixou que ele pagasse a faculdade para ela, o dentista para arrumar seus dentes, qualquer coisa, até o tio rico dele morrer, fez com que ele declarasse a herança em comunhão de bens com ela e aí deu o fora. Tirou tudo dele no divórcio.

Alfred Barker reacendeu a ponta do charuto, soprou ruidosamente a fumaça e recostou-se na cadeira.

— Ela foi muito astuta. Nasceu para isso.

— E foi então que vocês se encontraram? — Sunday arriscou.

— Foi. Mas na época eu tinha um probleminha com o governo e acabei em cana por um tempo. Ela conseguiu um emprego numa firma badalada de relações públicas e quando surgiu a chance de ser transferida para a filial de Washington uns dois anos atrás, ela aproveitou.

Barker inalou profundamente o charuto e tossiu com estardalhaço.

- Não, não era possível dominar a Arabella, não que eu quisesse. Quando me soltaram, no ano passado, ela telefonava sempre para mim, contando sua vida com aquele infeliz, o Shipman, mas era um bom arranjo para ela, porque ele lhe dava muitas jóias e ela conhecia muita gente famosa. - Barker inclinou-se para frente por cima da mesa e disse, muito sério: - Inclusive o presidente dos Estados Unidos, Henry Parker Britland IV.

Ele fez uma pausa e recostou na cadeira novamente. Olhou para Sunday com petulância.

— Quantas pessoas neste país já sentaram à mesma mesa e partilharam piadas com o presidente dos Estados Unidos? A senhora já fez isso? — ele a desafiou.

- Não, com o presidente, não - disse Sunday honestamente,

lembrando da primeira noite na Casa Branca, em que recusou o convite do Henry para jantar.

— Está entendendo o que eu quero dizer? — grasnou Barker

triunfante.

— Bem, é óbvio que, como secretário de estado, Thomas Shipman podia representar ótimos contatos para Arabella. Mas segundo o Sr. Shipman, foi ele quem quis terminar o relacionamento. Não

Arabella.

- É. E daí?

- Entio por que ele iria querer matá-la?

Barker adotou uma expressão ameaçadora e socou a mesa.

— Eu avisei a Arabella para não ameaçá-lo com aquela história dos jornais. Disse ’para ela que dessa vez estava lidando com uma gente diferente. Mas tinha dado certo para ela antes, por isso ela não

me deu ouvidos.

— Ela aplicou esse golpe antes! — exclamou Sunday, lembrando que tinha sido exatamente essa história que tinha sugerido para Henry. — Quem mais ela tentou chantagear?

— Ah, um cara para quem trabalhava. Não sei o nome dele. Ninguém importante. Mas nunca é bom se meter com um cara com o tipo de influência que Shipman tem. Lembra o que ele fez com

Castro?

- Quanto andou dizendo sobre seus esforços para chantageá-lo?

— Pouca coisa, e só para mim. Sempre a aconselhava a não fazer isso, mas ela achava que valia um bom dinheiro. — Lágrimas incoerentes afloraram nos olhos de Alfred Barker. — Eu gostava mesmo dela. Mas era muito teimosa. Simplesmente não me ouvia. - Ele fez uma pausa, aparentemente perdido em suas lembranças. — Eu a avisei. Teve até aquela citação que mostrei para ela.

Sunday levantou a cabeça bruscamente, reagindo sem querer à afirmação surpreendente de Barker.

— Gosto de citações — ele disse. — Costumo ler para me divertir ou para esclarecer alguma idéia, sabe o que quero dizer.

Sunday concordou balançando a cabeça.

- Meu marido também gosta muito de citações. Diz que são

sábias.

- É, é isso mesmo que eu quero dizer! O que o seu marido faz?

— No momento, está desempregado — respondeu Sunday, olhando para as mãos.

— Isso é ruim. Ele entende alguma coisa de encanamentos?

— Não muito.

— Acha que ele saberia fazer a contabilidade? Sunday balançou a cabeça com ar de tristeza.

— Não, ele costuma ficar em casa a maior parte do tempo. E lê muito, coisas como as citações que mencionou — ela disse, tentando fazer a conversa voltar aos trilhos.

- É, a que li para Arabella se encaixava tão bem com ela que nem acreditei. Ela falava muito. Falava demais. Encontrei essa citação e mostrei para ela. Eu sempre dizia que sua boca grande ia acabar criando problemas para ela, e criou mesmo, pra valer.

Barker vasculhou a primeira gaveta da mesa e tirou um pedaço de papel amassado.

— Está aqui. Leia isso.

Ele passou para Sunday a folha que obviamente tinha sido arrancada de um livro de citações. Uma tinha um círculo vermelho em volta.

Sob essa lápide, um monte de terra, Jaz Arabella Young, Que, no dia 24 de maio, Começou a conter sua língua.

— É de um antigo túmulo inglês. Exatamente dessa maneira! A não ser pela data, é uma coincidência, ou não? — Barker suspirou bem fundo e afundou na cadeira. — É, vou sentir muita falta de Arabella. Ela era divertida.

— Jantou com ela na noite em que ela morreu, não é? -É.

— Deixou-a na casa do Shipman depois?

- Não. Disse que ela devia parar com aquilo, mas ela não quis saber. Por isso chamei um táxi. Ela planejava pegar o carro dele emprestado para voltar para casa. — Barker balançou a cabeça. — Só que não pretendia devolver. Tinha certeza de que ele daria qualquer coisa para evitar que ela falasse com os jornais — ele se calou por alguns segundos. — Em vez disso, olha só o que ele fez com ela.

Barker ficou de pé, o rosto contorcido de raiva.

— Espero que façam churrasquinho dele! Sunday também levantou da cadeira.

— A pena de morte no estado de Nova York é administrada através de uma injeção letal, mas entendo o que quer dizer. Sr. Barker, o que fez depois que pôs Arabella no táxi?

— Sabe, eu estava esperando que perguntassem isso, mas a polícia nem se incomodou de falar comigo. Eles sabiam quem era o assassino de Arabella desde o princípio. Então, depois que a pus no táxi, fui para a casa da minha mãe e levei-a ao cinema. Faço isso uma vez por mês. Cheguei à casa dela mais ou menos quinze para as nove e já estávamos na fila para comprar as entradas quando faltavam dois minutos para as nove. O cara da bilheteria me conhece. A moça que vende pipoca no cinema me conhece. A mulher que estava sentada ao meu lado é amiga da minha mãe e sabe que fiquei lá o filme inteiro. Por isso não matei Arabella, mas sei quem matou!

Barker deu um soco na mesa e derrubou uma garrafa vazia de refrigerante que se espatifou no chão.

— Quer ajudar o Shipman? Decore a cela dele.

Num piscar de olhos os seguranças do serviço secreto estavam ao lado de Sunday, olhando intensamente para Barker.

— Eu não daria um soco na mesa na presença dessa senhora — sugeriu um deles friamente.

Pela primeira vez desde a sua chegada no escritório, Sunday notou que Alfred Barker ficou sem palavras.

Thomas Acker Shipman não ficou satisfeito com a ligação de Marvin Klein, assessor de Henry Britland, dizendo que o presidente pedia para ele adiar o processo do acordo de apelação. Para quê?, pensou Shipman, desgostoso de não poder continuar. Sua ida para a prisão era inevitável e só queria acabar logo com isso. Além do mais, aquela casa já assumira ares de prisão. Quando terminasse o acordo de alegação a mídia teria um interesse imediato nele, mas depois seria deixado de lado em troca de algum outro pobre coitado. Um homem de sessenta e cinco anos que vai preso por dez ou quinze anos não era notícia que ficasse muito tempo em evidência.

A única coisa que os mantém tão alvoroçados, pensou dando mais uma espiada na turba de repórteres que continuava acampada na frente da sua casa, é a questão de eu ir ou não a julgamento. Quando isso estiver resolvido, e é claro que receberei meu castigo sem lutar, eles perderão o interesse.

A governanta, Lillian West, tinha chegado pontualmente às oito horas aquela manhã. Ele esperava poder dissuadi-la de trabalhar aquele dia pondo a corrente de segurança na porta, mas parece que isso só tinha servido para reforçar a determinação da mulher de entrar. Quando percebeu que não ia conseguir entrar só com a chave, ela apertou com firmeza a campainha e gritou seu nome até Shipman abrir a porta.

— O senhor precisa dos cuidados de alguém, apesar de achar que não — ela disse, descartando bruscamente a objeção dele na véspera, de que não queria que a vida privada dela sofresse a invasão da mídia e que, na verdade, realmente preferia ficar sozinho.

E assim ela cuidou dos seus afazeres diários, limpando cômodos que ele nunca mais usaria e preparando refeições para as quais ele não tinha nenhum apetite. Shipman ficou observando enquanto ela andava pela casa. Lillian era uma bela mulher, excelente governanta e cozinheira de mão cheia, mas tendia a ser autoritária e isso às vezes fazia com que Shipman lembrasse de Dora com saudade, a governanta que trabalhou para Connie e ele durante cerca de vinte anos. Às vezes queimava o bacon, mas isso não importava, pois era sempre uma presença agradável na casa.

Além disso, Dora pertencia à escola tradicional, enquanto Lillian obviamente acreditava na igualdade de empregado e patrão. No entanto, Shipman percebeu que durante o breve tempo que ainda ficaria na casa antes de ir para a prisão poderia conviver com a atitude dominadora de Lillian. Faria o melhor possível, procurando aproveitar o conforto e as refeições deliciosas com vinho corretamente servido que a criatura proporcionava.

Reconhecendo que não podia manter um isolamento completo do mundo lá fora, e sabendo que na verdade precisava estar ao alcance do seu advogado, Shipman ligou a secretária eletrônica e começou a receber telefonemas, descartando os que não eram necessários. Mas ao ouvir a voz de Sunday, atendeu alegremente.

- Tommy, estou no carro a caminho da sua casa, vindo de Yonkers - explicou Sunday. - Quero falar com a sua governanta. Ela está aí hoje? Se não, sabe onde posso encontrá-la?

- Lillian está aqui.

- Maravilha. Não deixe que ela saia antes de eu ter uma chance de conversar com ela. Devo estar chegando aí daqui a mais ou menos uma hora.

- Não imagino o que ela pode dizer para você que a polícia já não saiba.

- Tommy, acabei de falar com o namorado da Arabella. Ele sabia dos planos dela de extorquir dinheiro de você e, pelo que ele disse, imagino que já tinha aplicado esse golpe em pelo menos mais uma pessoa. Temos de descobrir quem é essa pessoa. É possível que alguém tenha seguido Arabella até a sua casa aquela noite, e esperamos que quando saiu Lillian possa ter visto alguma coisa, um carro, talvez, que não parecia importante na hora, mas que pode ser agora. A polícia não investigou outros possíveis suspeitos, e já que Henry e eu estamos convencidos de que você não cometeu o crime, vamos farejar por aí para tentar descobri-los. Por isso levante a cabeça! Isso só vai terminar quando terminar.

Shipman desligou o telefone, deu meia-volta e viu Lillian ”West de pé na porta do escritório. Era óbvio que tinha ouvido a conversa. Mesmo assim ele sorriu com simpatia.

- A Sra. Britland está vindo para cá para conversar com você ele disse. - Parece que o presidente e ela acham que posso não ser o culpado do assassinato de Arabella afinal, e estão fazendo algumas investigações por conta própria. Eles têm uma teoria que pode ser de grande ajuda para mim, e é sobre isso que ela quer conversar com você.

- Isso é maravilhoso - disse Lillian ”West, com a voz impessoal e um tom gelado. - Mal posso esperar para falar com ela.

O segundo telefonema que Sunday fez foi para Henry, no avião dele. Trocaram informações sobre o que tinham descoberto até aquele momento, ele da condessa e ela de Alfred Barker. Depois que Sunday contou do hábito que Arabella tinha de chantagear os homens com quem saía, ela acrescentou uma advertência.

— O único problema em tudo isso é, independentemente de quem tenha querido matar Arabella, provar que essa pessoa entrou

na casa do Tommy sem ser vista, carregou a arma que por acaso estava largada por lá e depois puxou o gatilho, vai ser difícil.

Pode ser difícil, mas não impossível - disse Henry para não perder o ânimo. — Vou pedir agora mesmo para o Marvin começar a verificar os últimos empregos da Arabella e talvez possamos desconfiar com quem ela se envolveu nesses lugares.

Henry despediu-se de Sunday e ficou ponderando sobre o que tinha acabado de ouvir a respeito do passado de Arabella. Ficou muito apreensivo, mas não conseguiu chegar a nenhuma conclusão, sentia que havia alguma coisa errada, mas não sabia o que era. Recostou na poltrona giratória que era seu lugar preferido no avião, depois da cabine de comando. Resolveu que devia ser alguma coisa que Sunday tinha dito, mas o quê? Lembrando de quase tudo, palavra por palavra, ele repassou a conversa com ela. Mas é claro, Concluiu quando recordou aquele ponto do relato de Sunday, foi a observação sobre a dificuldade de provar que alguém tinha entrado na casa do Tommy, carregado a arma e puxado o gatilho.

Era isso! Não precisava ser alguém de fora. Havia uma pessoa que poderia, ter feito isso, que sabia que Tommy estava nauseado e completamente exausto, e que Arabella estava lá, que na verdade abriu a porta para ela. A governanta!

Ela era relativamente nova. Tommy não devia ter verificado as referências, provavelmente não sabia grande coisa sobre a mulher.

Rapidamente Henry discou o número da condessa Condazzi. Que ela esteja em casa, ele pediu mentalmente. Ao ouvir a voz que já era familiar Henry não perdeu tempo e foi direto ao assunto.

— Betsy, o Tommy alguma vez disse alguma coisa sobre a nova governanta dele para você?

Ela hesitou um pouco antes de responder.

— Bem, disse, mas só de brincadeira.

- Como assim?

— Ah, você sabe como é — ela respondeu. — Há muitas mulheres com cinqüenta, sessenta anos, sozinhas, e poucos homens. Da última vez que falei com Tommy, foi na manhã do dia em que aquela pobre moça foi assassinada, eu disse que tinha uma dúzia de amigas viúvas ou divorciadas que poderiam ficar com ciúmes por causa do interesse dele por mim, e que se ele aparecesse por aqui, seria o centro das atenções. Lembro que ele disse que, fora eu, pretendia ficar longe de mulheres desimpedidas e que, na verdade, tinha acabado de ter uma experiência muito desagradável justamente por causa disso — ela fez uma pausa antes de continuar. — Parece que naquela manhã mesmo ele tinha dito para a nova governanta que ia pôr a casa à venda e que se mudaria para Palm Beach. Contou para ela que tinha acabado com Arabella porque outra pessoa tinha se tornado mais importante para ele. Mais tarde, lembrando dessa conversa e da reação dela, ele percebeu que a governanta deve ter tido a idéia maluca de que essa outra pessoa podia ser ela. Por isso ele tratou de explicar que, obviamente, não precisaria mais dos seus serviços quando vendesse a casa e que, naturalmente não a levaria com ele para a Flórida. Ele contou que no início ela pareceu chocada e que depois ficou fria e distante. - A condessa parou de falar mais uma vez e continuou com a voz entrecortada. — Minha nossa, você não está achando que ela pode ter tido alguma coisa a ver com essa confusão em que Tommy está metido, está?

— Temo que estou começando a achar isso mesmo, Betsy — respondeu Henry. — Olha, eu volto a ligar. Preciso pôr meu investigador nisso agora mesmo.

Ele desligou e discou imediatamente o número de Marvin Klein.

— Marvin — ele disse. — Tenho um palpite sobre a governanta do secretário Thomas Shipman, Lillian West. Faça uma investigação completa da vida dela. Imediatamente.

Marvin Klein não gostava de desobedecer à lei como ia fazer, penetrando em arquivos particulares de computador, mas sabia que quando seu patrão dizia ”imediatamente” queria dizer que o assunto

era urgente mesmo.

Foi questão de minutos conseguir um dossiê de Lillian West, cinqüenta e seis anos, inclusive uma extensa lista de infrações de trânsito e, mais a propósito, seu histórico profissional. Marvin franziu a testa quando começou a ler. West era formada na faculdade, tinha um bacharelado, e foi professora de economia doméstica em alguns colégios, o último o Wren College de New Hampshire. Então, há seis anos, saiu de lá e aceitou um emprego de governanta.

Desde então teve quatro empregos diferentes. Suas referências — E que citavam a pontualidade, o alto padrão do seu trabalho e qualidades na cozinha — eram boas, mas sem muito entusiasmo. Marvin resolveu verificar pessoalmente.

Menos de uma hora depois da ligação de Henry, Marvin já esta va ao telefone com o ex-presidente, que ainda estava no avião voltando da Flórida.

— Senhor, os registros indicam que Lillian West, enquanto trabalhava como professora de segundo grau, teve um histórico de relacionamentos problemáticos com seus superiores. Seis anos atrás ela largou o último emprego de professora e foi trabalhar como governanta de um viúvo em Vermont. Ele morreu dez meses depois, aparentemente de um ataque do coração. Ela então foi trabalhar para um executivo divorciado que infelizmente morreu naquele mesmo ano. Antes de trabalhar para o secretário Shipman, seu patrão era um milionário de oitenta anos de idade. Ele a despediu mas lhe deu boas referências mesmo assim. Eu falei com ele. Disse que apesar da Sra. West ser uma excelente governanta e cozinheira, também era muito presunçosa e não era adepta de um relacionamento mais tradicional entre o dono da casa e a empregada doméstica. Na verdade ele disse que foi quando descobriu que ela havia decidido casar-se com ele que resolveu despedi-la, e logo depois mandou-a embora.

— Esse homem mencionou ter tido algum problema de saúde? — perguntou Henry calmamente, enquanto raciocinava sobre as possibilidades que surgiam com a história problemática de Lillian West.

— Eu lembrei de perguntar isso para ele, senhor. Ele disse que agora sua saúde está ótima, mas que nas últimas semanas em que a Sra. West trabalhava para ele, especificamente depois de ter-lhe dado o aviso prévio, sentiu uma fadiga enorme, seguida de uma doença não diagnosticada que culminou numa pneumonia.

Tommy tinha falado de uma gripe muito forte e de um cansaço avassalador. Henry apertou o fone.

— Bom trabalho, Marvin. Obrigado.

— Senhor, ainda tem mais. Segundo os registros, o hobby da Sra. West é a caça, e aparentemente conhece armas muito bem. E para finalizar, conversei com o presidente do colégio Wren, onde ela teve seu último emprego de professora. Ele lembrou que a Sra. West foi forçada a pedir demissão. Disse que ela apresentava sintomas de profundo distúrbio mental e que recusava todas as tentativas de ajuda.

Henry encerrou a conversa com seu assistente e foi tomado por uma angústia enorme. Sunday estava indo, naquele exato momento, ao encontro de Lillian West, ignorando totalmente a história que Marvin tinha descoberto. Sem saber ia alertar a governanta quanto ao fato de estarem examinando a séria possibilidade de outra pessoa, não Thomas Shipman, ter assassinado Arabella Young. Não dava para adivinhar como a mulher ia reagir. A mão de Henry não tremia nunca, nem nas reuniões de cúpula, mas naquele momento mal conseguia digitar os números do telefone do carro de Sunday.

Quem atendeu foi o agente Art Dowling, do serviço secreto.

— Estamos na casa do secretário Shipman agora, senhor. A Sra. Britland está lá dentro.

- Vá chamá-la - disse Henry rispidamente. - Diga que preciso falar com ela.

— Agora mesmo, senhor.

Alguns minutos se passaram antes de o agente Dowling voltar ao telefone.

— Senhor, creio que há um problema. Tocamos a campainha repetidamente, mas ninguém atendeu.

Sunday e Tommy estavam sentados lado a lado no sofá de couro da biblioteca, olhando para o cano de um revólver. Diante deles Lillian West, sentada muito ereta e firme, estava apontando a arma. O toque persistente da campainha da porta da frente não foi capaz de distraí-la.

— Seu guarda do palácio, sem dúvida — ela disse sarcasticamente.

A mulher é maluca, pensou Sunday, reparando o olhar alucinado da governanta. Ela é doida e está desesperada. Sabe que não tem mais nada a perder se nos matar, e é suficientemente maluca para fazer isso.

Sunday pensou nos agentes secretos esperando lá fora. Art Dowling e Clint Carr estavam com ela aquele dia. O que vão fazer ao ver que ninguém abre a porta? Provavelmente arrombar, raciocinou. E quando fizerem isso, ela vai atirar em Tommy e em mim, concluiu Sunday, cada vez mais assustada. Eu sei que ela fará isso.

- Você tem tudo - disse Lillian West para Sunday, com os olhos na prisioneira, a voz baixa e furiosa. — Você é bonita, é jovem, tem . função importante e é casada com um homem atraente e rico. Jem, eu espero que tenha aproveitado o tempo que passou com ele.

— Aproveitei sim — disse Sunday calmamente —, ele é um homem um marido maravilhoso, e quero mais tempo ao lado dele.

Que pena, isso não vai acontecer, e a culpa é sua. Nada disso seria necessário se não tivesse se intrometido. Que diferença faz, se ... — Lillian West fez uma pausa, olhando rapidamente para Fommy — se ele for para a prisão? Ele não vale o seu trabalho. Não presta. Ele me enganou. Mentiu para mim. Prometeu que me levaria para a Flórida, íamos nos casar. - Ela parou de falar de novo, dessa vez olhando furiosa para o ex-secretário de Estado. - Claro que não era rico como os outros, mas tem o suficiente. Verifiquei toda a papelada dele aqui, por isso eu sei. — Um sorriso brincou em seus

- lábios. — E ele é mais gentil que os outros também. Gostei especialmente disso. Poderíamos ter sido muito felizes.

— Lillian, eu não menti para você — disse Tommy em voz baixa.

— Pense um pouco em tudo que eu disse para você, e acho que vai concordar comigo. Mas eu gosto de você, e acho que você precisa de ajuda. Posso providenciar essa ajuda. Prometo que Sunday e eu faremos tudo que pudermos por você.

— O quê, vão arranjar outro emprego de governanta? — retrucou Lillian irritada. — Limpar, cozinhar, fazer compras. Não, muito obrigada! Troquei as aulas que dava para meninas bobas por esse tipo de trabalho servil porque achei que alguém finalmente saberia apreciar o que eu sou, tomaria conta de mim. Mas isso não aconteceu. Depois de servir a todos eles, continuavam me tratando como lixo.

- Ela olhou para Tommy outra vez. - Pensei que você seria diferente, mas não, é exatamente igual ao resto.

Enquanto travavam esse diálogo a campainha parou de tocar. Sunday sabia que os homens do serviço secreto deviam estar procurando uma maneira de entrar na casa, e não tinha dúvida de que conseguiriam. Então ficou apavorada. Quando Lillian West tinha ido abrir a porta para ela, tinha religado o alarme.

— Não queremos que um desses repórteres invente de entrar aqui

— ela explicou na hora.

Se Art ou Clint tentarem abrir uma janela, o alarme vai disparar, pensou Sunday, e quando isso acontecer, Tommy e eu estaremos perdidos. Sentiu a mão de Tommy encostando na sua. Ele está pensando a mesma coisa que eu, Sunday compreendeu. Meu Deus, o que podemos fazer? Muitas vezes tinha ouvido a expressão ”ver a morte de perto”, mas só naquele momento descobriu o que queria dizer. Henry, pensou, Henry! Por favor, não deixe que essa mulher destrua a nossa vida.

Tommy já estava segurando a mão dela. Com o dedo indicador ele cutucava insistentemente as costas da mão de Sunday. Estava tentando passar um sinal. Mas o que era? O que ele queria que ela fizesse?

Henry continuou na linha, aflito para não interromper a ligação com o agente do serviço secreto que estava do lado de fora da casa de Tommy Shipman. O agente Dowling usava, seu celular e continuava a falar com o ex-presidente enquanto dava a volta na casa, com muito cuidado.

- Senhor, todas as cortinas e persianas estão fechadas, em praticamente todos os cômodos. Contatamos a polícia local e eles devem chegar a qualquer momento. Clint está nos fundos da casa, subindo numa árvore cujos galhos alcançam algumas janelas. Podemos conseguir entrar sem sermos vistos por lá. O problema é que não temos como saber em que lugar da casa eles estão.

Meu Deus, pensou Henry. Levariam pelo menos uma hora para levar para o local o equipamento especial que permite seguir os movimentos dentro da casa. Só tenho medo de não termos esse tempo todo. O rosto de Sunday surgiu na mente dele. Sunday! Sunday! Você tem de estar bem. Ele queria sair e empurrar o avião para chegar mais depressa. Queria chamar o exército. Queria estaria.. Agora! Henry balançou a cabeça. Nunca se sentiu tão impotente. Então ouviu Dowling vociferando, furioso.

- O que foi, Art? - ele gritou. - O que foi?

- Senhor, a persiana do cômodo da frente, à direita, no andar de baixo, acabou de abrir, e tenho certeza de ter ouvido tiros lá de dentro.

— Aquela mulher idiota forneceu a oportunidade perfeita para mim — Lillian West estava dizendo. — Sabia que meu tempo estava se esgotando, que não poderia matá-lo lentamente, do jeito que eu queria. Mas na verdade isso foi tão bom quanto. Assim, além de puni-lo, castiguei aquela mulher horrível também.

— Então foi você que matou Arabella? — exclamou Tommy.

- Claro que fui eu - ela retrucou com impaciência. - E foi muito fácil. Sabe, não fui embora aquela noite. Eu a trouxe até aqui, fui despertá-lo, disse boa noite, fechei a porta e me escondi no armário dos casacos. Ouvi tudo. E sabia que a pistola estava lá, pronta para ser usada. Quando você subiu a escada se arrastando, sabia que era apenas uma questão de minutos para perder a consciência. — Ela fez uma pausa e deu um sorriso maligno. — As minhas pílulas para dormir são muito mais eficientes do que as suas, não são? Elas contêm ingredientes especiais. - Sorriu novamente. - E alguns vírus interessantes também. Por que acha que sua gripe melhorou tanto desde aquela noite? Foi porque não me deixou dar os comprimidos. Se os tivesse tomado, sua gripe já seria uma pneumonia a essa altura.

— Você estava envenenando o Tommy? — exclamou Sunday. Lillian West olhou indignada para a mulher mais jovem.

— Eu o estava punindo — disse com firmeza, depois virou-se para Shipman. - Quando você já estava no seu quarto, voltei para a biblioteca. Arabella estava vasculhando a sua mesa e ficou constrangida quando a peguei em flagrante. Disse que procurava as chaves do seu carro, que você não estava se sentindo bem, que tinha dito para ela ir no seu carro para casa, que devia devolver o carro de manhã. Então, ela perguntou o que eu estava fazendo aqui, já que tinha me despedido dos dois. Disse que tinha voltado porque prometi entregar sua velha pistola para a polícia, mas tinha esquecido de pegá-la. A pobre tola ficou lá parada, observando enquanto eu carregava a arma. Suas últimas palavras foram: ”Não é perigoso carregá-la assim? Tenho certeza de que o Sr. Shipman não ia querer isso.”

Lillian West começou a rir alto, um cacarejo agudo, quase histérico. Lágrimas escorriam dos seus olhos, e o seu corpo tremia todo, mas com tudo isso ela ainda conseguia manter o revólver apontado para os dois.

Ela está se empolgando para nos matar, pensou Sunday, percebendo pela primeira vez que não podiam ter muita esperança de escapar. O dedo de Tommy continuava batendo em sua mão.

- Não é perigoso carregá-la assim? - repetiu West, imitando as últimas palavras de Arabella, com a voz alterada pela risada áspera e escandalosa. — Tenho certeza de que o Sr. Shipman não ia querer isso!

Ela apoiou a mão que segurava a arma no braço esquerdo, para firmar a pontaria. Parou de rir.

— Será que poderia abrir a persiana? — perguntou Shipman. — Deixe-me pelo menos ver a luz do sol mais uma vez.

Lillian West deu um sorriso triste.

- Por que se preocupar com isso? Vocês logo verão o brilho da luz no fim do túnel - ela disse.

As persianas, Sunday pensou de repente. Ei a isso que Tommy estava tentando dizer para ela. Na véspera, quando ele fechou a da cozinha, mencionou que o equipamento eletrônico que movimentava as persianas ali, naquele cômodo, estava com defeito e fazia um barulho parecido com o de um disparo quando era ligado. Sunday olhou em volta atentamente. O controle das persianas estava no braço do sofá. Tinha de pegá-lo. Era a única esperança para eles.

Sunday apertou a mão de Tommy para indicar que finalmente compreendia. Então, fazendo uma prece mental, estendeu a mão e com um movimento mais rápido que um raio apertou o botão para abrir as persianas.

O som, alto como o disparo de uma arma de fogo, correspondendo à expectativa, fez Lillian West virar a cabeça. Naquele instante, Tommy e Sunday pularam do sofá. Tommy jogou-se contra a parte de baixo do corpo da mulher, mas foi Sunday que empurrou a mão de West para cima na hora em que ela ia apertar o gatilho. Durante a luta foram disparados vários tiros. Sunday sentiu seu braço esquerdo queimar, mas não esmoreceu. Sem poder arrancar a arma da mão da mulher, jogou-se em cima dela e chutou a cadeira, que tombou e derrubou os três, bem na hora em que o estilhaçar do vidro de uma janela sinalizou a chegada bem-vinda dos seus guarda-costas do serviço secreto.

Dez minutos depois, com um lenço enrolado no ferimento superficial do braço, Sunday falava ao telefone com o desesperado ex-presidente dos Estados Unidos.

- Eu estou bem - ela disse pela décima quinta vez -, estou bem. E Tommy também está. Lillian West está numa camisa-de-força, já saindo daqui. Por isso, pare de se preocupar. Está tudo resolvido.

- Mas ela podia ter matado você - disse Henry, e não pela primeira vez.

Ele não queria desligar o telefone. Não queria deixar sua mulher parar de falar. O risco tinha sido grande demais. Não suportava a

idéia de nunca mais poder ouvir a voz dela.

- Mas não matou - disse Sunday impaciente. - E, Henry, nós dois estávamos certos. Foi definitivamente um crime passional. Só que fomos um pouco lentos para descobrir de quem era a paixão que provocou o crime.

 

     TODOS CORRERAM ATRAS DA MULHER DO PRESIDENTE

 

— Ligação do Salão Oval, senhor presidente.

Henry Parker Britland IV suspirou. Não desanime, pensou ele. Marvin Klein, seu braço direito há muito tempo, ainda era incapaz de chamar o seu sucessor, o atual presidente dos Estados Unidos, de qualquer outra coisa que não fosse ”Salão Oval”.

A chamada chegou quando Henry estava sentado à sua mesa na biblioteca de Drumdoe, sua casa de campo em Nova Jersey. O sol daquele fim de tarde de inverno penetrava pelas janelas altas com caixilhos de chumbo e brilhava sobre o revestimento acetinado da magnífica decoração neogótica. Tentava escrever suas memórias, mas percebeu subitamente que sonhava acordado. Sunday, com quem estava casado há menos de um ano, era membro do Congresso e estava em Washington, por isso Henry torcia para os próximos três dias passarem voando, para ela voltar logo.

Como sempre, pensava nela com muita saudade. Sunday. Não havia no mundo ninguém mais linda, inteligente, espirituosa e compassiva. Havia momentos em que achava que ela era a materialização de um sonho seu. A sua Sunday, a deputada elegante e loura que, obedecendo a um impulso, ele resolveu paquerar na última recepção que deu na Casa Branca, logo antes do fim do seu segundo mandato. Sorrindo, lembrou da resposta calma e reprovadora que ela deu.

— Hum. O Salão Oval, senhor presidente — insistiu Klein, pigarreando e interrompendo a divagação de Henry.

Henry pegou o telefone.

— Senhor presidente — ele disse, calorosamente.

Podia visualizar Desmond Ogilvey — Dês, como era chamado pelos amigos - sentado à sua mesa de trabalho, a aparência de intelectual, a mecha de cabelo branco, alto, magro e empertigado, vestindo terno e gravata bem sóbrios, azul-escuros.

Sabia que seu antigo vice-presidente nunca esqueceu o fato de que nove anos antes Henry tirou-o do anonimato, quando era deputado pelo Wyoming, escolhendo-o para candidatar-se com ele. Foi uma decisão inicialmente contestada pela mídia, e muitos a consideraram uma jogada.

- Para vocês pode ser uma jogada - Henry respondeu na época -, mas para mim esse é um homem que serviu dez mandatos no Congresso, que discretamente foi responsável por algumas leis muito eficientes aprovadas pelo Congresso nesses dez períodos. Tenho plena convicção de que se eu for eleito, e se alguma coisa acontecer comigo durante o meu mandato, irei ao encontro do meu Criador sabendo que o país que amo estará nas mãos mais capazes que eu poderia encontrar.

Percebendo que o silêncio depois do cumprimento inicial estava se estendendo por um tempo extraordinariamente longo, Henry falou outra vez.

-Dês?

— Senhor presidente — respondeu Desmond Ogilvey, mas sem o tom jocoso habitual.

Henry sentiu na mesma hora que aquele não era um telefonema social e foi direto ao assunto.

- Qual é o problema, Dês? Outra pausa.

- É a Sunday. Henry, eu sinto muito.

- Sundayl- Henry parou de respirar.

Sentiu de repente que seu coração tinha parado de bater, que todo o seu corpo estava num limbo, paralisado naquele momento.

- Henry, não sei como dizer isso a você. A situação é terrível. Sunday desapareceu. Os agentes do serviço secreto foram encontrados inconscientes, ainda dentro do carro. A mesma coisa aconteceu com o grupo que ia no outro carro. Parece que usaram algum tipo de anestésico para derrubá-los, o suficiente para imobilizar todo mundo nos dois veículos. Quando os agentes recuperaram a consciência, Sunday tinha desaparecido.

— Algum motivo aparente? — Henry voltou a respirar, esforçando-se para ficar calmo.

Sabia que sua voz estava tranquila, que Marvin olhava para ele preocupado, que estava apertando o botão para chamar a equipe do serviço secreto à sua espera lá fora.

- Achamos que sim. Fizeram uma ligação para a central telefônica do Ministério da Fazenda. A pessoa disse que Sunday estava em seu poder, ou que pelo menos sabia onde ela estava. Você pode nos dizer se essa ligação é verdadeira. A Sunday está com uma mancha roxa no braço direito, perto do cotovelo?

Henry fez que sim com a cabeça, depois murmurou.

- Está.

— Então isso significa que a ligação deve ser legítima. Aparentemente ela não falou do machucado para ninguém da sua equipe, porque eles dizem que não viram nenhuma mancha.

— Ela caiu do cavalo quando estava montando sábado passado — disse Henry, lembrando do susto que levou naquele dia, comparando com a sensação quase paralisante de mau pressentimento que sentia agora. Percebeu que os cinco agentes do serviço secreto a serviço naquele momento estavam de pé, formando um meio círculo, em volta da sua mesa. Acenpu com a cabeça para Jack Collins, o mais experiente, indicando que ele devia pegar a extensão do telefone na mesa ao lado do grande sofá marroquino de couro vermelho.

- Collins está na linha, Dês - disse Henry. - A Sunday está começando a aprender a montar. Quando se machucou, brincou que se contasse para alguém, os jornais iam começar a me chamar de marido violento, que espanca a mulher. — Ele percebeu atônito que estava divagando. Precisava se concentrar. — Dês, quanto é que eles querem? Vou arranjar agora mesmo, sem questionar nada.

- Quem dera fosse dinheiro, Henry. Infelizmente eles anunciaram que se não libertarmos Claudus Jovunet até amanhã à noite, podemos começar a dragar o oceano Atlântico à procura do corpo de Sunday.

Claudus Jovunet. Era um nome que Henry Britland conhecia muito bem. Um terrorista especialmente cruel; ex-mercenário; um matador de aluguel. Seu crime conhecido mais recente, e o que finalmente levou à sua captura, foi a explosão bem-sucedida de um jato da companhia Uranus Oil, uma tragédia que tirou a vida de vinte e dois executivos do primeiro escalão. Depois de uma carreira de quinze anos de terror, Jovunet finalmente foi levado à justiça e cumpria agora sentenças consecutivas de prisão perpétua no presídio federal de Marion, Ohio. Henry não atuara de fato na prisão do assassino, mas ficou muito satisfeito de ter acontecido durante o seu mandato.

— Quais são os termos da permuta? — perguntou Henry, sabendo, no momento em que pronunciou a pergunta, que Dês poderia achar que não devia permitir que o governo fosse posto contra a parede por uma organização terrorista.

— As instruções são para pôr Jovunet no novo avião supersônico. Como deve saber, ele está atualmente numa exibição no National aqui em Washington, sendo preparado para o vôo inaugural. Eles estipularam que só pode haver dois pilotos a bordo. A única outra instrução é um pouco bizarra: dizem que devemos abastecer a cozinha por completo e que, agora entre aspas, podemos ”esquecer o caviar”. - O presidente fez uma pausa. - Eles dão sua, mais uma vez entre aspas, ”palavra de honra” que depois que o avião pousar, os pilotos poderão transmitir pelo rádio os detalhes do local onde Sunday poderá ser encontrada, aspas novamente, ”viva e com saúde”.

- ”Palavra de honra” - repetiu Henry com amargura. Oh, Sunday, Sunday!

Ele olhou para Jack Collins, que formava a palavra ”armas” com a boca.

— Que tipo de armamento eles estão exigindo, Dês? — perguntou Henry.

- Nenhum, por incrível que pareça. Se é que podemos acreditar nessa gente...

- Se podemos acreditar nessa gente? - perguntou Henry, interrompendo.

Dês deu um suspiro.

— Não temos muita escolha, Henry.

— Quais são os planos? — Henry prendeu a respiração depois de fazer essa pergunta, com medo do que ia ouvir.

— Henry, o Jerry está aqui comigo — disse Dês. Jerry era Jeremy Thomas, ministro da fazenda. Henry interrompeu mais uma vez.

Dês, por quanto tempo podemos arrastar essa negociação, recendo que estamos aceitando?

— Devemos receber outra mensagem em um dos departamentos i cinco horas. Achamos que podemos esticar até a tarde de quinta-feira, pelo menos. Felizmente o Washington Post publicou uma reportagem essa manhã sobre alguns ajustes mecânicos menores que ^precisam ser feitos antes que o novo avião faça seu primeiro vôo na sexta-feira. — Ele parou de falar um instante. — E para tranqüilizá-lo, nem que seja só um pouquinho, pode estar certo de que vamos levar adiante a troca.

Henry estremeceu quando se permitiu respirar de novo, depois de alguns minutos sem ar. Olhou para o relógio. Eram quatro horas da tarde de quarta-feira. Com sorte teriam vinte e quatro horas.

- Estou indo para aí, Dês - disse Henry.

Tom Wyman, o segundo agente na hierarquia de comando, quebrou o silêncio que seguiu o desligar dos dois aparelhos de telefone.

- O helicóptero está à sua espera, senhor. O avião está pronto para decolar imediatamente.

Sunday ficou tão confusa e desorientada por tanto tempo, que quase teve de fazer um esforço para lembrar o próprio nome. Onde estou?, pensou ela, adquirindo aos poucos a consciência de que alguma coisa estava muito errada. A sensação física imediata era de estar amarrada. Os braços e as pernas doíam, mas havia também uma sensação de entorpecimento. Alguma coisa mantinha seu corpo enrijecido. Contorceu-se um pouco e surgiu uma imagem mental de toalhas e lençóis batendo ao vento gelado no telhado do prédio do apartamento da sua avó em Nova Jersey. Um varal de roupas, ela pensou. A corda áspera e abrasiva que a prendia parecia aquelas cordas dos varais antigos.

Ainda estava zonza e sentia um peso na cabeça, como se tivesse uma pedra enorme em cima. Fez força para abrir os olhos mas não viu nada. Deu um grito sufocado ao perceber que alguma coisa cobria seu rosto, um pano grosso que espetava, esquentava e fazia seu rosto coçar.

Mas o resto do corpo estava frio. Os braços estavam gelados. Contorceu-se mais um pouco e percebeu que estava sem o casaco.

Aquele jeito de se mexer revelou também que o braço direito doía onde a corda cortava o machucado produzido pela queda do Appleby.

Sunday avaliou rapidamente a sua situação. Vejamos, então estou com um saco de aniagem ou lona, ou qualquer coisa na cabeça, e toda amarrada como um peru de Natal. E num quarto frio em algum lugar. Mas onde? E o que aconteceu? Não conseguia lembrar de nada. Será que houve um acidente? Será que estava num centro cirúrgico, presa a uma mesa de operação, acordando no meio da cirurgia?

Então lembrou. Alguma coisa aconteceu quando estava no carro.

Era isso! Alguma coisa tinha acontecido no carro. Mas o quê?

Esforçou-se para lembrar, tentando repassar calmamente os acontecimentos do dia. A sessão na Câmara foi suspensa às três horas. Art e Leo esperavam por ela como sempre, perto do vestiário. Ela não retornou à sua sala como sempre fazia, porque tinha de ir a uma recepção na embaixada francesa e precisava ir para casa trocar de roupa. Por isso entraram no carro e partiram. E daí?

Sunday procurou conter o gemido que escapava dos lábios. Sempre se orgulhara de não ser manhosa. Irracionalmente lembrou do tempo em que tinha nove anos de idade, estava balançando numa barra de ferro na escola e caiu. Viu o chão subindo a toda velocidade na sua direção antes de bater com a testa no piso de pedrinhas e concreto. Não chorou naquela hora. E não ia chorar agora. Só que nessa ocasião havia alguns meninos por perto assistindo à queda, por isso não podia chorar na frente deles, e agora estava sozinha.

Não, não esmoreça, pediu mentalmente. Pense. Apenas pense. Quando aconteceu o acidente? Refez os passos que tinham dado. Art abriu a porta de trás do carro para ela e esperou até ela sentar. Ele então sentou ao lado do Leo, que estava dirigindo. Ela acenou para Larry e Bill, que aguardavam no segundo carro, logo atrás.

A neve tinha parado de cair, mas as ruas ainda estavam enlameadas e traiçoeiras. Passaram por duas batidas de pára-lamas. Apesar da hora, já estava escuro, ela acendeu a luz de leitura do banco traseiro e começou a ler as anotações que tinha feito durante o discurso do orador naquele dia, então ouviu um barulho muito forte, como uma explosão abafada. E, foi isso mesmo, uma explosão!

E ela levantou a cabeça. Lembrou que estavam passando pelo Kennedy Center e que estavam quase chegando na Watergate. A cara do Art. Lembrou que ele estava olhando para trás, para ela, depois para trás do carro, pela janela traseira, para o outro carro. Ele gritou: ”Pise fundo, Leo!” Mas então a voz dele desapareceu. Sunday não conseguia lembrar se ele tinha parado de gritar, ou se tinha sido ela que deixara de ouvir, porque teve uma sensação súbita de fraqueza. Sim, lembrou que tentou ficar sentada e que o carro estava parando. Então a porta do lado do motorista se abriu. E isso era tudo que conseguia lembrar.

Mas bastava para compreender que não estava num hospital. Porque o que houve não foi nenhum acidente. Não, era óbvio que tinha acontecido de propósito. Tinha sido seqüestrada. Mas por quem? E por quê?

Fosse qual fosse aquele lugar, era úmido e gelado. O pano que cobria sua cabeça deixava Sunday muito desorientada. Ela balançou a cabeça, tentando afastá-lo um pouco. A droga que os seqüestradores usaram para derrubá-la estava perdendo o efeito, mas o resíduo provocava uma forte dor de cabeça. O que sabia realmente era que estava muito bem amarrada ao que parecia ser uma cadeira de madeira. Será que estava sozinha? Não tinha certeza. Sentia que havia alguém por perto, talvez até observando seus movimentos.

Lembrou de repente dos agentes do serviço secreto, Art e Leo. Será que estavam ali também? Se não, o que tinha acontecido com eles? Tinha certeza de que fariam qualquer coisa para protegê-la. Por favor, meu Deus, não permita que eles estejam mortos, rezou silenciosamente.

Henry! Sabia que ele devia estar histérico. Será que já sabe que fui sequestrada? Quanto tempo fazia? Imaginava que podia ser qualquer período de tempo, de poucos minutos a alguns dias. E por que isso aconteceu? Que benefício alguém poderia ter seqüestrando a mim? Se era por dinheiro, sabia que Henry pagaria quanto pedissem. Mas por algum motivo ela achava que dinheiro não era a questão.

Sunday engoliu em seco. Havia alguém ali com ela. Dava para ouvir uma respiração fraca, chegando mais perto. Alguém debruçou-se sobre ela. Dedos grossos e insistentes traçavam o contorno do seu rosto através do tecido espesso, acariciando sua face, subindo para o cabelo.

Uma voz baixa e rouca que mal conseguia ouvir sussurrou.

— Todos estão à sua procura. Eu sabia que ia ser assim. Seu marido. O presidente. O serviço secreto. Neste momento estão farejando por toda a parte. Mas são como ratos cegos. E, como três ratinhos cegos. E não vão encontrá-la. Pelo menos não até a maré subir, e aí não terá mais importância.

Henry não disse nada no vôo para Washington. Ficou sentado sozinho no compartimento privado do avião, fazendo força para se concentrar no que sabiam sobre o seqüestro de Sunday e no que podiam deduzir a partir daí. Tinha de se distanciar do turbilhão emocional que sentia por dentro e fazer sua cabeça analisar a situação como tinha analisado dezenas de situações tremendamente críticas, durante o tempo que passou na Casa Branca. Precisava ser guiado pela razão e não ficar simplesmente imobilizado pela emoção. Tinha de ser como um cirurgião, analítico e lúcido.

Mas sob uma onda de sofrimento, Henry lembrou que exceto nos casos de emergência absoluta, nenhum cirurgião operaria a própria mulher, por temer que as emoções prejudicassem sua capacidade de julgamento.

Um fragmento de poesia passou pela mente dele: ”Essas mãos mortais, levadas pelo amor, pousaram como música em seu colo. Mas a música da alma é delicada, remota...” Não tinha idéia de onde eram aqueles versos, mas sabia que, por algum motivo, naquele momento, eram pertinentes.

Pensou em Sunday, na facilidade com que ela adormecia, enquanto ele gostava de ler, às vezes durante horas, depois de ir para a cama. De vez em quando ela cochilava quando ele lia para ela, ou quando criticava em voz alta algo que achava especialmente incorrigível em um dos muitos jornais que lia diariamente.

Lembrou que no último domingo, à noite, quis partilhar alguma coisa com Sunday, mas percebeu que ela tinha adormecido. Mesmo assim, acariciou de leve seu pescoço, esperando que não estivesse dormindo tão profundamente a ponto de não despertar para ouvir.

Ela suspirou e ainda dormindo virou de costas para ele, com as mãos embaixo do rosto, o cabelo louro espalhado em volta da cabeça. Estava tão linda que ele ficou ali observando, por pelo menos meia hora, encantado.

Tomaram café da manha bem cedo no dia seguinte, antes de Sunday voltar para Washington. Henry recordou que a provocou por tê-lo rejeitado. Ela riu e disse que sempre dormia profundamente por ter a consciência muito tranqüila. Qual era o problema dele? Sunday perguntara, com um sorriso malicioso.

E ele na hora respondeu que era culpa dela, que era tão louco por ela que dormir ao seu lado parecia perda de tempo. E ela sorriu e disse:

- Não se preocupe, temos todo o tempo do mundo.

Ele balançou a cabeça, abalado pela ironia daquelas palavras. Oh, Sunday, será que nos veremos de novo?, ele pensou, cedendo a um raro momento de fraqueza.

Pare com isso!, ele se recriminou. Não vai trazê-la de volta perdendo seu tempo desse jeito. Apertou o botão no braço da poltrona. Em questão de segundos Marvin e Jack já estavam sentados à sua frente.

Tinha querido deixar Marvin Klein em Nova Jersey, caso houvesse algum contato direto por parte dos seqüestradores, mas Marvin implorou para ir, e Henry acabou cedendo.

- Tenho de ficar ao seu lado, senhor - argumentou Marvin. Sims vai monitorar os telefones daqui. Manterá uma linha aberta para nós.

Sims, o mordomo de Drumdoe desde o décimo aniversário de Henry, trinta e quatro anos atrás, tinha dito:

— Sabe que pode contar comigo, senhor.

Disse isso com sua calma habitual, apesar do brilho das lágrimas nos olhos. Henry sabia que Sims gostava muito de Sunday.

Agora percebia que estava feliz de ter levado Marvin com ele. O assistente possuía exatamente o tipo de atitude analítica e objetiva diante dos problemas de que Henry tanto precisava naquele momento. Foi precisamente essa qualidade, quando Henry foi eleito para o Senado há quase quinze anos, que o fez promover o jovem da categoria de voluntário.

Sem esperar a pergunta, Klein disse:

- Mais nenhum contato, senhor. O operador do Ministério da Fazenda que recebeu a ligação foi suficientemente esperto para ir direto à cúpula, por isso a notícia do seqüestro não se espalhou. Até agora não vazou nenhuma informação.

Jack Collins, o agente mais graduado do serviço secreto de Henry, podia ser confundido com um atacante de um time profissional de futebol americano. Era uma muralha bem disciplinada, mas também tinha um ponto fraco no que dizia respeito à Sunday. A raiva e a indignação que tentava controlar se evidenciavam na sua voz ao relatar para Henry o que tinham apurado sobre os acontecimentos até aquele momento.

— Ninguém viu o seqüestro propriamente dito, senhor. Parece que o carro de Sunday... quero dizer, o carro da S rã. Britland e o segundo carro foram alvo de um explosivo acoplado a um cilindro de um tipo de gás asfixiante. Pode muito bem ter sido detonado por controle remoto, dada a rapidez com que os seqüestradores surgiram no local. Apesar da hora, não houve testemunhas, mas a neve fez com que muitos escritórios e lojas fechassem mais cedo, de modo que o tráfego não era mesmo muito intenso.

— Então, acham que Sunday ficou ferida com a explosão? — perguntou Henry.

— Não, eles acham que ela, assim como Art e Leo, os agentes que estavam com ela hoje, ficou inconsciente com o gás, mas que a explosão inicial não foi tão grande. A única coisa que aconteceu quando a bomba foi detonada foi que os carros reduziram a marcha e pararam, e parece que o gás imobilizou todo mundo imediatamente. Quando os nossos agentes voltaram a si, os dois só lembravam da tontura e depois do desmaio.

- Mas como foi que alguém chegou até o carro antes, para plantar a bomba? Não é mantido num lugar seguro? - Henry quis saber.

- Ainda não temos certeza absoluta, senhor. Não era um artefato muito sofisticado, na verdade era mais do tipo de coisa que qualquer <um pode montar com algumas peças de uma Radio Shack. O gás, é claro, é uma outra história. Ainda estão analisando, por isso não sabemos de onde pode ter vindo. Os artefatos certamente foram postos embaixo dos carros quando estavam no estacionamento de segurança do Capitólio; um simples ímã grudou-os no lugar.

- E ninguém viu quando fizeram isso? - perguntou Henry.

— Até agora não encontramos nenhuma testemunha. Disseram que o apartamento de um guarda foi arrombado e que levaram o uniforme dele. Parte do problema pode ser que o próprio carro da Sra. Britland é tão discreto que não atraiu a atenção de ninguém, e partiram nele na mesma hora — disse o agente. — Qualquer pessoa por perto concentraria a atenção no carro da retaguarda, com os dois agentes inconscientes dentro.

Henry já sabia que o carro de Sunday com os outros agentes inconscientes tinha sido encontrado perto do Memorial Lincoln. É claro, pensou ele com amargura, que ninguém ia prestar atenção num carro que parecia ter sido comprado numa revendedora de carros usados e baratos. Era idéia dele. Esqueça as limusines, tinha dito. Chamam atenção demais. Não, para Sunday ele mandou providenciar um veículo de última geração, disfarçado de ”automóvel familiar”.

Minhas pequenas pretensões, ele pensou. Minhas brincadeiras. Esperto, certo? Errado. Se Sunday estivesse numa limusine, certamente teria atraído alguma atenção, parada à beira da rodovia.

Mas ele sabia que a verdade era que Sunday adorava aquele tipo de carro. Ela teria se recusado a aparecer algum dia na casa dos pais dela de limusine. Henry lembrou de repente que na pressa tinha deixado de avisar aos pais de Sunday. Preciso fazer isso logo, resolveu. Eles têm de saber e por mim.

- Telefone para os pais de Sunday - disse para Klein.

Foi o telefonema mais difícil que ele deu na vida, mas quando desligou, depois de falar com os dois, só conseguia pensar que era óbvio de onde Sunday tinha tirado sua coragem.

O telefone tocou e o som repentino interrompeu seu devaneio. Henry afastou a mão estendida de Marvin e atendeu ele mesmo. Era Desmond Ogilvey, que foi direto ao ponto.

— Henry, eu sinto muito. Quem seqüestrou Sunday fez contato com a CBS. Dan Rather acabou de pedir confirmação. Sabe de todos os detalhes com exatidão, por isso temos certeza, de que são eles mesmos. Pedimos para ele segurar a história por enquanto, e ele concordou. Mas avisou que se houver algum vazamento em qualquer outro lugar, vai transmiti-la.

— Se o seqüestrador ligou para Dan Rather, é porque quer publicidade - disse Henry asperamente.

— Não, segundo o que disse para Rather. Disse que estava ”testando a integridade da mídia”, seja lá o que queira dizer com isso.

- Há quanto tempo aconteceu essa ligação?

— Eu diria que há menos de dez minutos. Liguei para você logo depois de falar com Rather. Onde é que você está?

— Quase aterrissando no National.

- Bom, venha diretamente para cá. Temos uma escolta policial à sua espera.

Vinte minutos depois, com Marvin Klein e Jack Collins, Henry estava à porta do Salão Oval. Dês Ogilvey estava sentado à sua mesa, o distintivo presidencial na parede atrás dele. O secretário do tesouro, o promotor geral e os diretores do FBI e da CIA também estavam sentados, formando um semicírculo em volta do presidente. Todos ficaram de pé assim que Henry entrou.

Eram seis e vinte.

— Houve mais uma comunicação, Henry — disse o presidente. — Os seqüestradores devem estar gostando de brincar conosco. Ligaram outra vez para o Rather e disseram que resolveram que querem que ele transmita suas exigências no ar. Deram provas da sua sinceridade.

Ele desviou o olhar de Henry por um instante. Depois, olhando diretamente nos olhos do outro, ele falou.

— A carteira e um cacho do cabelo de Sunday foram deixados num envelope de plástico lacrado no balcão da Delta no National. E Desmond Ogilvey continuou em voz mais baixa. — Henry, o cabelo dentro do envelope estava encharcado de água do mar.

Quando sentiu que tiravam o pano da sua cabeça, Sunday primeiro respirou fundo e depois abriu os olhos, esperando poder dar uma boa olhada no seu captor. Mas o quarto era pouco iluminado e ela não conseguia ver quase nada. Ele usava uma espécie de manto monástico com um capuz caído para a frente, que escondia a maior parte do seu rosto.

Ele desamarrou as cordas que a mantinham presa à cadeira. Então, deixando os pés ainda amarrados com uma pequena folga, ele a fez ficar de pé. Sunday estava sem as botas e sentiu o frio do piso de concreto nos pés. Notou que ele tinha de sete a dez centímetros a mais que ela de altura. Por isso devia ter cerca de um metro e oitenta e dois. Os olhos cinza-escuro do homem, estreitos e fundos, possuíam uma expressão astuciosa e malévola, mais assustadora ainda porque ardiam com inteligência. Ela sentiu a força de suas mãos e braços enquanto a movimentava, dizendo:

— Imagino que você queira utilizar o banheiro.

Avançando aos tropeços, Sunday esforçou-se para avaliar sua situação. Era óbvio que estava em algum tipo de porão. Era tremendamente frio e tomado pelo cheiro de bolor que os porões mal ventilados, que não recebem a luz do sol, acabam adquirindo e mantendo. O piso era de concreto, desnivelado e com rachaduras. A única outra peça de mobília além da cadeira era uma televisão portátil, com uma antena portátil formando um ângulo em cima.

Ele segurou com firmeza o braço dela enquanto atravessavam o cômodo. Uma ponta especialmente afiada de cimento quebrado espetou-lhe a sola do pé e Sunday fez uma careta de dor. Ele levou-a por um estreito vestíbulo que dava numa escada. Pararam num cubículo atrás dessa escada. A porta estava aberta e lá dentro Sunday viu um vaso sanitário e uma pia.

— Pode ter a sua privacidade, mas não invente nada — ele disse. — Estarei bem aqui, segurando a porta. É claro que já revistei você, quando a trouxe para cá. Sei que as mulheres às vezes escondem uma arma, e até aerossóis químicos dentro do corpo.

— Não tenho nada — ela disse.

- Ah, eu sei - ele disse, calmamente. - Talvez ainda não tenha notado que tirei todas as suas jóias. Devo dizer que fiquei muito surpreso com o fato de serem excepcionalmente discretas, a não ser pela aliança de ouro maciço. Imaginava que seu ex-presidente rico fosse mais generoso com sua adorável e jovem esposa.

Sunday lembrou vagamente das gerações de pedras preciosas da família Britland que agora eram dela.

— Meu marido e eu não acreditamos em ostentação, nem em consumo conspícuo — ela respondeu, animada ao descobrir que, apesar dos membros adormecidos e da terrível preocupação com Henry e com o que ele devia estar sofrendo, estava recuperando o controle.

Sozinha no minúsculo lavabo, passou água no rosto. A torneira de água quente liberou apenas um borrifo intermitente, mas ela agradeceu aquela sensação na pele. Uma única lâmpada pendendo do teto — não podia ter mais de vinte e cinco watts, pensou — emitia apenas luz suficiente para ver a palidez e o estado desmazelado em que estava, no espelho descascado e sujo pendurado sobre a pia. Já ia virar para a porta quando percebeu que havia mais alguma coisa, algo diferente nela. O que era?

Ficou olhando para o seu reflexo no espelho alguns segundos e notou que um tufo de cabelo tinha sido cortado do lado esquerdo da cabeça, deixando uma falha no corte bem-feito.

Por que ele cortou o meu cabelo?, imaginou.

Sentiu um frio na boca do estômago que não tinha nada a ver com a temperatura da prisão gelada no porão. Havia alguma coisa decididamente estranha no seu captor. Ele parecia quase um robô, programado para cumprir instruções precisas e inexoráveis. Um robô, só que auto-programado. Ele não recebe ordens de ninguém. Quem era ele, e o que esperava ganhar fazendo aquilo?

Ouviu uma batida na porta.

— Sugiro que se apresse, deputada. Haverá um comunicado na televisão daqui a um minuto que tenho certeza de que achará interessante.

Ela empurrou a porta desgastada, que abriu para fora. O seqüestrador com hábito de monge segurou seu braço num gesto quase cortês de apoio.

— Não quero que você caia — ele disse.

Arrastando os pés meio desajeitada para chegar ao outro lado do porão, Sunday pensou sentir um leve cheiro de bacon fritando. Será que havia alguém lá em cima? Quantas pessoas estavam envolvidas nessa operação? Perto da cadeira ele apertou a palma da mão no ombro dela para indicar que devia sentar-se.

Com movimentos rápidos e habilidosos, amarrou Sunday no encosto da cadeira outra vez, só que deixou os braços livres.

— São seis e meia — ele disse. — Você já deve estar com fome. Mas primeiro quero que veja o comunicado de Dan Rather. Espero, pelo seu bem, que ele tenha seguido as instruções.

O Jornal da Noite da CBS começou. Dan Rather, com uma expressão muito séria, comunicou a notícia de primeira mão.

- A deputada Sandra O’Brien Britland, de Nova Jersey, mais conhecida como ”Sunday”, mulher do ex-presidente Henry Parker Britland, foi seqüestrada. O seqüestrador, ou seqüestradores, exige que o terrorista e assassino internacional Claudus Jovunet seja posto a bordo do novo American SST, que o levará para um local ainda indeterminado. As instruções estipulam que as únicas pessoas admitidas no vôo serão os dois pilotos. Se essas condições não forem cumpridas, os seqüestradores afirmam que a deputada será jogada no oceano Atlântico. Conversei com o ex-presidente Henry Britland, que está no Salão Oval com seu sucessor, Desmond Ogilvey. Ele me garantiu que as exigências serão cumpridas e que o governo está cooperando em tudo para assegurar a integridade da Sra. Britland.

O seqüestrador sorriu.

— Tenho certeza de que continuarão a dar mais notícias sobre você. Deixarei a televisão ligada enquanto vou pegar o seu jantar. Divirta-se com o programa.

Sunday concentrou-se na TV e no que Dan Rather dizia:

- Estamos transmitindo ao vivo da Casa Branca, onde o ex-presidente fará um apelo pessoal aos seqüestradores da sua esposa.

Alguns segundos depois Sunday viu, indefesa, o medo e o sofrimento no rosto do marido. O som parecia diferente e ela teve de tentar inclinar-se para frente para poder ouvir o que ele dizia.

O apelo apaixonado de Henry foi abafado pelo som de alguém cantando. Pareciam duas vozes, de um homem e talvez de uma mulher idosa. Sunday mal conseguia entender as palavras. ”... ratinhos...”, foi o que ouviu, e então compreendeu: ”Três ratinhos cegos... veja como correm...”

”Todos correram atrás da mulher do fazendeiro”, ela continuou mentalmente.

Mas não era isso que estava ouvindo. As vozes ficaram mais nítidas e mais próximas, descendo pela escada.

— ... todos correram atrás da mulher do presidente, mas ela se afogou e virou comida de peixe...

A cantoria parou de repente. Ela ouviu a voz do seu captor:

— Muito bem. Mas agora vão lá para cima.

Um segundo depois ele estava diante dela, segurando uma pequena bandeja.

— Está com fome? — ele perguntou amavelmente. — A mãe não é uma grande cozinheira, mas tem boa vontade.

Tentando conter as lágrimas, Henry Britland deu as costas para a câmera. A sala de imprensa que normalmente era tumultuada estava estranhamente quieta. Os olhares das pessoas ali reunidas refletiam solidariedade.

Olhando para o ex-presidente com compaixão, Jack Collins ficou pensando que se houvesse um único pensamento que todos naquela sala deviam estar compartilhando era que Henry Parker Britland IV devia ser um dos homens mais simpáticos, inteligentes, ricos e carismáticos do mundo, e que tudo isso deixaria de ter sentido para ele se perdesse Sunday.

— Nunca vi um cara tão apaixonado pela mulher — Collins ouviu um jovem assistente da Casa Branca sussurrar para uma jovem ao lado dele.

Você tem toda razão, pensou Jack, toda razão. Que Deus o ajude a superar isso.

O presidente Ogilvey juntou-se a Henry.

- Vamos para o gabinete - ele disse, levando o companheiro mais moço pelo braço.

Impaciente, Henry passou a mão nos olhos para secar as lágrimas. Preciso me controlar, pensou. Tenho de concentrar-me, usar a cabeça para ter Sunday de volta. Se não fizer isso, terei de lamentar o resto da vida.

Na sala do gabinete sentaram-se à longa mesa de reuniões como Dês e ele tinham feito tantas vezes, durante seus oito anos na presidência. Todo o ministério juntou-se aos dois, assim como o presidente da Junta do Estado-Maior e os diretores do FBI e da CIA.

O presidente Ogilvey passou a palavra a Henry.

— Todos sabemos por que estamos aqui, Henry. Você assume.

— Obrigado a todos por terem vindo — disse Henry rapidamente. — Por favor saibam que compreendo como se sentem e sei que compreendem como me sinto. Agora vamos ao plano de ação. Quero dizer que fiquei muito emocionado com o fato de o presidente concordar em trocar Jovunet pela minha mulher, e também sei que temos de providenciar a sua recaptura assim que a tivermos de volta. Este governo não pode ser forçado a ceder a terroristas, nem a situações com reféns.

Um assistente entrou na sala de reuniões na ponta dos pés e murmurou alguma coisa ao pé do ouvido do presidente. Ogilvey olhou para Henry.

— Henry, o primeiro-ministro britânico está ao telefone. Ele expressou seu pesar e oferece toda a ajuda que considerarmos necessária.

Henry indicou que tinha entendido com um aceno de cabeça. Por um momento recordou a viagem que Sunday e ele fizeram a Londres. Ficaram hospedados no Claridges. A rainha convidara os dois para jantar no Castelo de Windsor. Teve muito orgulho de Sunday na ocasião. Ela era a mulher mais charmosa e bela no jantar. Estavam tão felizes...

Henry percebeu subitamente que Dês continuava falando com ele.

— Henry, Sua Majestade quer falar com você pessoalmente. O primeiro-ministro disse que ela está muito preocupada. Ela disse para ele que o que precisam na família real é de uma mulher como a Sunday.

Henry pegou o telefone e ouviu a voz familiar da soberana da Grã-Bretanha.

— Majestade... — ele disse.

Outro assistente murmurava para o presidente Ogilvey.

— Senhor, prometemos que o senhor responderá aos telefonemas dos presidentes do Egito e da Síria. Ambos insistem que nenhuma organização terrorista de seus países é responsável pelo seqüestro e os dois ofereceram suas forças-tarefa de elite para auxiliar no resgate da deputada, em segurança. Até Saddam Hussein ligou para expressar sua revolta e para garantir que não tem idéia de quem possa estar por trás desse incidente. Ele até prometeu que

se Jovunet aterrissar no Iraque, e se Sunday não for resgatada com vida, que ele pessoalmente providenciará para que o homem seja decapitado na mesma hora.

”Recebemos ligações de muitos outros chefes de estado, senhor — continuou o assistente. — Até o presidente Rafsanjani telefonou para dizer que apesar das conclusões precipitadas às quais possamos chegar, graças ao que Jovunet comentou sobre ’desistir do caviar’, que o Irã não está envolvido nesse episódio terrível. Até agora parece que Jovunet é um homem sem pátria. Quem quer que esteja por trás desse seqüestro ainda precisa aparecer e declarar-se disposto a dar asilo a ele.”

Ogilvey olhou para Henry. Precisavam resolver isso logo. O tempo estava se esgotando.

Henry terminava sua conversa com a rainha.

— Agradeço muito a. sua preocupação, majestade e sim, prometo que em breve Sunday e eu teremos a honra de jantar com a senhora novamente.

Henry devolveu o telefone para um assistente e olhou diretamente para o seu sucessor.

- Dês, sei o que tenho de fazer. Vou partir agora mesmo para falar com Jovunet. Depois vamos traze-lo de avião do presídio em Marion para cá. Ele é a chave de tudo. Talvez até consiga alguma pista de quem está por trás disso.

- Ótima idéia - disse solenemente o diretor do FBI. - Lembro muito bem que sua habilidade como negociador é incomparável, senhor. - E atinando que as comparações eram abominadas, especialmente naquela sala, ele cobriu a boca com a mão e tossiu.

O bacon fritou demais, ficou praticamente cremado. A torrada, fria e quebradiça, fez Sunday lembrar das habilidades culinárias da avó, que eram sofríveis. Vovó sempre insistiu em usar uma torradeira antiga e sempre esperava até nuvens de fumaça darem o sinal de que era hora de virar as torradas. Então, quando um lado ficava bem queimado, ela raspava a superfície negra na pia e servia alegremente o que sobrava.

Mas Sunday estava com fome e, por pior que fosse a comida, pelo menos enchia o estômago. Por outro lado, o chá estava muito forte, exatamente como Sunday gostava. Com a ajuda do chá sua cabeça começou a clarear. A sensação de irrealidade estava passando e naquele momento pôde entender quão precária era a sua situação. Aquilo não era um pesadelo e nem uma brincadeira. O homem com o manto de monge, sozinho ou com a ajuda de cúmplices, tinha conseguido sabotar o seu carro, que ficava praticamente o tempo todo estacionado numa área protegida, anular seus agentes muito experientes do serviço secreto e seqüestrá-la. Ele — ou eles — era ousado e muito inteligente.

Devia passar um pouco das três horas quando aconteceu, ela pensou. Dan Rather entrara no ar às seis e trinta, de modo que devem ser sete e pouco agora, concluiu. Isso quer dizer que fiquei inconsciente por menos de uma hora. Então há quanto tempo estou aqui? E que distância tivemos de percorrer para chegar a esse lugar? Encaixando tudo, Sunday chegou à conclusão de que ainda devia estar relativamente perto da área de Washington. Dadas as condições do tempo, seu captor não poderia ter ido muito longe fora da cidade.

Mas onde estou? E o que é esse lugar? Será que é a casa dele? É possível, ela pensou. E quantas pessoas estão envolvidas nessa operação? Até ali só tinha visto o homem com o manto de monge, e ouvira a voz de alguém que parecia ser uma mulher idosa. Mas isso não significava que não podia haver outros. Era improvável, apesar de possível, que ele tivesse executado o seqüestro sem ajuda. Esse cara certamente era muito forte e podia ter transferido seu corpo de um carro para outro sozinho, com a maior facilidade.

E então a pergunta mais importante de todas surgiu na sua mente, que ainda estava um pouco confusa. O que vão fazer comigo?

Ela olhou para a bandeja com a xícara e o prato que continuava no seu colo. Gostaria de poder abaixar e pôr a bandeja no chão. A dor no ombro estava piorando, sem dúvida agravada por estar amarrada com corda de varal ali naquele porão frio e úmido. Mas era óbvio que tinha sofrido mais do que uma simples pancada. Devia ter deixado Henry levá-la para tirar raios X depois que caiu do Appleby. Talvez tivesse mesmo uma pequena fratura afinal...

Espere! Estou enlouquecendo, pensou ela. Aqui estou eu, preocupada com uma pequena fratura, se posso nem viver o bastante para consolidá-la! Não vão me soltar até aquele terrorista Jovunet chegar ao lugar para onde tem de ir. E mesmo quando ele estiver a salvo, quem garante que vão me soltar?

- Deputada.

Sunday virou a cabeça rapidamente para o lado. Seu captor estava parado na porta do vestíbulo. Não ouvi quando ele desceu a escada, ela pensou. Há quanto tempo será que está me observando?

A voz dele parecia risonha.

— Um pouco de comida faz maravilhas, não é mesmo? Especialmente com a droga que tive de usar em você. Imagino que esteja sentindo um pouco de dor de cabeça, mas não se preocupe, não vai durar muito.

Ele foi para perto dela. Instintivamente Sunday tentou se afastar ao sentir a mão dele no ombro. Mas a mão continuou lá, quase uma carícia, e ela fez uma careta.

— Seu cabelo realmente é muito bonito — ele disse. — Só espero não ter de cortar muito mais para convencer aquele seu marido e a todos os seus companheiros que estou falando sério. Agora deixe-me pegar essa bandeja.

Ele tirou a bandeja do colo de Sunday e pôs em cima do aparelho de televisão.

— Ponha suas mãos para trás — ele ordenou.

Não havia nada que ela pudesse fazer, a não ser obedecer.

— Vou procurar não apertar muito esses nós — ele disse. — E, por favor, avise se suas pernas começarem a formigar. Quando o nosso homem estiver a salvo no seu destino, será uma infelicidade se eu tiver de arrastá-la para o lugar onde vou deixá-la, não acha?

— Espere um pouco, antes de amarrar meus braços para trás — disse Sunday apressadamente. - Você está com o meu casaco. Está frio demais aqui. Gostaria de vesti-lo.

Foi como se ele não tivesse ouvido o que ela disse. Continuou a puxar seus braços para trás. A corda cortava os pulsos de Sunday, juntando as palmas das mãos. Ela rilhou os dentes com a forte pontada de dor que desceu do ombro direito.

Era óbvio que, mesmo com a luz muito fraca, seu captor tinha visto ou percebido a reação dela.

— Não pretendo causar-lhe nenhuma dor desnecessária — ele disse. — Vou afrouxar um pouco essas cordas. E você tem razão, sei que é muito frio aqui. Vou aquecê-la com um cobertor.

Em seguida ele se abaixou para pegar alguma coisa no chão. Sunday virou a cabeça e engoliu um protesto. Era o capuz escuro que estava usando quando despertou naquele lugar. O homem era muito solícito com ela, mas Sunday não confiava nele. Alguma coisa estava errada. Teve a sensação desesperadora de que ele só estava se divertindo com ela, que algo verdadeiramente terrível a aguardava. A idéia daquele capuz sufocante outra vez quase fez Sunday gritar, mas ela resistiu ao ímpeto de reclamar. Não ia dar a satisfação de implorar para aquele homem.

Em vez disso ela perguntou com a voz mais controlada possível.

— Para que eu preciso disso? Não há nada para ver aqui e, certamente, não posso chamar a atenção de nenhum transeunte.

O seqüestrador deliciou-se com essas palavras. Ele sorriu. Um sorriso triste, com um efeito depressivo, que revelou dentes fortes mas irregulares.

— Talvez eu simplesmente ache divertido vê-la desorientada — ele disse com maldade. — Vendas nos olhos fazem isso, você sabe.

A luz da lâmpada fraca do teto brilhou nas mãos dele. Logo antes de perder a visão com o capuz na cabeça, Sunday notou o anel que ele usava, largo, de ouro, do tipo sinete. Era parecido com muitos outros, só que tinha um pequeno orifício no centro, como se faltasse uma pedra.

Ela resistiu ao impulso de engolir grande quantidade de ar e forçou-se a respirar bem devagar quando o pano caiu sobre seus ombros. Ainda caloura na faculdade, Sunday tinha feito terapia para ajudá-la a superar uma certa dose de claustrofobia que havia herdado do pai.

Procurou lembrar das consultas, mas infelizmente os exercícios não estavam funcionando naquele momento. Não conseguia concentrar-se neles. A única coisa na qual pensava era naquele anel.

Tinha visto antes, em algum lugar. Mas onde.

Eram nove e meia da noite e Henry, na companhia de Jack Collins, precedido e ladeado por guardas, caminhava pelo longo e lúgubre corredor que conduzia à pequena sala de visitantes, reservada para contatos pessoais com os criminosos mais perigosos do presídio de Marion.

Marion tinha a reputação de ser o mais duro de todos os presídios federais, e Henry tinha a sensação fantasmagórica de que não eram só os gritos dos prisioneiros, mas também os das suas vítimas, que pareciam permear aquelas paredes espessas e indestrutíveis.

Sunday é vítima de Claudus Jovunet, pensou Henry. E eu também sou. Os guardas à sua frente pararam diante de uma porta de aço. Um deles digitou uma combinação de números para abri-la.

Jovunet estava sentado a uma mesa de metal, de um lado da sala. Henry reconheceu o terrorista pelas fotos que tinham aparecido nos jornais na época que foi capturado, e pela entrevista que ele deu em 60 Minutos, um discurso violento, autolaudatório e arrogante de quinze minutos, felizmente equilibrado pela inteligência rigorosa de Lesley Stahl, que esvaziava os balões egocêntricos toda vez que ele tentava soltar um.

Usando o uniforme pardacento da prisão, contrastando totalmente com as roupas requintadas que vestia quando ainda era livre, e acorrentado pela cintura, pelas mãos e pés, Jovunet mesmo assim conseguia transmitir o efeito de estar muito à vontade e confortável. E, por incrível que pareça, também parecia ter o controle da situação nas mãos.

Seu rosto rechonchudo começava a formar uma papada no queixo, seus olhos azul-claros brilhavam a ponto de denotar alegria, os lábios finos de menino cantor eram rosados e virados para cima nos cantos, como se moldados pela experiência de sorrisos constantes. Para Henry era decididamente um rosto detestável.

No avião a caminho de Ohio, Henry tinha lido um resumo do considerável histórico de Jovunet. Ninguém tinha certeza da origem dele. Agora com cinqüenta e seis anos, ele afirmava ter nascido na Iugoslávia. Falava fluentemente cinco idiomas, tinha iniciado sua carreira na adolescência, vendendo armas na África, foi assassino de aluguel pela maior oferta em uma dúzia de países, não merecia a confiança de ninguém e possuía a habilidade de modificar radicalmente a sua aparência. Havia fotos dele nas quais tinha vinte quilos a mais do que nas outras, havia fotos em que parecia um soldado, outras, um lavrador, e outras ainda em que parecia ser um aristocrata.

A única coisa que Jovunet não conseguia disfarçar em seus vários personagens era seu amor por roupas de costureiros famosos. O mais irônico foi ser finalmente capturado quando assistia a um desfile de moda de Calvin Klein.

Agora, diante de Henry, Jovunet arregalou os olhos.

- Senhor presidente! - ele exclamou, fazendo uma mesura exagerada, inclinando-se para frente até onde as correntes permitiam. — Que surpresa agradável. Perdoe-me por não ficar de pé, mas as atuais circunstâncias não permitem que eu faça esse gesto de respeito.

— Cale a boca — disse Henry friamente.

O ex-presidente estava com os punhos fechados. Queria arrebentar o sorriso largo no rosto de Jovunet. Queria estrangulá-lo. Queria apertar os dedos em torno do pescoço dele e sufocá-lo até ele soltar a localização do cativeiro de Sunday.

Jovunet deu um suspiro.

- E eu estava pronto para ajudá-lo. Tudo bem, eu desisto. O que você quer saber? Sei que muitas das minhas atividades passadas continuam ignoradas até pela sua ruidosa mídia. É claro que essa não é uma visita social, e obviamente você está aqui porque precisa de mim. Talvez eu possa ajudar em alguma coisa. Mas o que vou receber em troca se ajudá-lo agora?

- Recebe exatamente o que exigiu. A viagem em segurança no nosso novo SST para onde quiser ir. Estamos preparados para atender às suas exigências. Mas você deve atender aos nossos termos ao efetuar a troca.

Um ar confuso passou pelo rosto de Jovunet.

— Está brincando? — ele disse, e fez cara de quem refletia. — Muito bem, senhor presidente. Quais são exatamente os seus termos?

Henry sentiu a mão pesada de Jack Collins encostar no seu braço com força proposital. Era a primeira vez que Collins fazia isso. Ele está dizendo para eu ir com calma, pensou Henry. E está certo.

— Eu sou piloto formado e habilitado para o SST. Eu, e só eu, pilotarei o avião até o seu destino. Você não desembarcará até a minha mulher ser solta e estar a salvo nas mãos do nosso pessoal. Se ela não for liberada em segurança e bem, o avião explodirá com nós dois dentro. Está claro?

Jovunet ficou calado algum tempo, como se absorvesse tudo o que tinha acabado de ouvir.

— Ah, o poder do amor! — ele disse finalmente, balançando a cabeça devagar.

Henry olhou fixo para o homem à sua frente e percebeu que os cantos da boca dele se moviam. Incrédulo, compreendeu que Jovunet estava rindo dele. E tudo que posso fazer é ficar aqui parado como um mendigo, esperando que ele concorde, pensou. Cheio de ódio viu que o rosto de Jovunet brilhava com a transpiração, apesar de a pequena sala estar bem refrigerada.

Onde seria o cativeiro de Sunday?, imaginou. Será que era numa cela como essa? O dia tinha sido muito frio. Será que ela estava aquecida?

Henry fez um esforço para se concentrar no homem diante dele. Pelo menos Jovunet estava avaliando os termos que acabara de delinear. Henry percebia isso porque o terrorista franzia a testa.

- Temos de levar em consideração mais urna coisa - disse Jovunet lentamente.

Henry ficou esperando.

- Como você, eu não gostaria que nada acontecesse com a sua esposa. Não tive o prazer de conhecê-la, é claro, mas como todo mundo nesse belo país acompanhei o namoro e o casamento de conto de fadas de vocês. De tudo que já ouvi dizer sobre ela, tenho de afirmar que é admirável. No entanto, como sabe, dadas as atuais circunstâncias, alguém na minha posição não pode ter o controle absoluto. Posso perguntar qual será a hora exata da decolagem?

Henry sabia que tudo dependia de Jovunet acreditar na sua resposta.

— Antes de a minha mulher ser seqüestrada esta tarde, o Washington Post noticiou que alguns ajustes mecânicos precisavam ser feitos antes do vôo inaugural do SST, marcado para a manhã de sexta-feira. Vão levar todo o dia de amanhã para terminar esses reparos. Em vez de naquele vôo inaugural pretendido, você e eu partiremos no SST.às dez horas da manha de sexta.

Jovunet olhou para Henry com ar paternal.

— Imagine só quantas câmeras e aparelhos de escuta e chips de satélite vocês vão instalar, enquanto fazem esses ajustes mecânicos...

— ele disse suspirando. — Ora, ora, mas não tem importância, não é?

— Seu sorriso ficou mais relaxado e depois desapareceu. — Eu insisto em ser transferido para Washington imediatamente. E sei que vocês possuem várias casas seguras por lá, de modo que quero ser levado para uma delas, e não para alguma prisão. Já fiquei tempo suficiente nesse tipo de lugar, muito obrigado.

— O plano é exatamente esse — disse Henry com frieza. — Você será filmado enquanto estiver na casa, em segurança, e essa fita de vídeo será uma mensagem para os seus cúmplices não fazerem nenhum mal à minha mulher. E eles terão de enviar uma fita mostrando que ela está bem. O prazo final para isso será três horas da tarde de amanhã.

Jovunet fez que sim com a cabeça meio distraído, depois olhou com desprezo para o uniforme de presidiário que usava.

— Tem só mais uma coisinha. Como sem dúvida já deve saber, aprecio muito roupas boas. Já que todo o meu guarda-roupa, cuidadosamente escolhido, há muito desapareceu, e já que o lugar para onde vou não é, digamos assim, muito conhecido por seus salões de alta-costura, vou precisar de um guarda-roupa inteiramente novo. Gosto especialmente de Calvin Klein e de Giorgio Armani. Quero um guarda-roupa generoso e completo de suas últimas coleções, e precisarei da presença de alguns mestres alfaiates, capazes de adaptar as peças segundo as minhas especificações até a manhã de sexta-feira. Antes de sair daqui pedirei para a direção do presídio fornecer todas as minhas medidas. Meu novo guarda-roupa deve ser transportado para o avião num baú Vuitton, com malas do mesmo fabricante. — Fez uma pausa, olhou bem para Henry, com um leve sorriso nos lábios. - Estou sendo claro?

Antes de Henry responder Jovunet sorriu novamente, um sorriso mais largo dessa vez.

— Certamente nada disso pode surpreendê-lo. Já esqueceu das circunstâncias em que fui capturado? No desfile de Calvin Klein? — Ele deu uma risada. — Tão constrangedor... e o desfile nem foi muito bom. Toda aquela roupa de baixo! As vezes acho que Calvin Klein está perdendo o dom.

Henry sabia que tinha de sair dali. Não podia ficar na mesma sala com aquele homem por mais dez segundos que fossem.

- Verei você em Washington amanhã - ele disse.

Dava para sentir a respiração de Collin no seu pescoço quando saíram. Está com medo que eu o mate, pensou Henry. E tem razão. Quando a porta de aço já estava se fechando atrás deles, Henry ouviu Jovunet fazer uma última exigência.

— Olha, não se esqueça da Dom Pérignon e do caviar, senhor presidente. Montes de caviar. Mesmo num avião supersônico, será uma longa viagem.

Dessa vez Jack Collins teve de conter Henry fisicamente para evitar que ele corresse de volta para a sala de visitas. Felizmente a porta se fechou, isolando a visão e o som da voz de Claudus Jovunet.

— Senhor presidente — Collins disse aflito. — Se alguma coisa der errado, eu juro que pego esse cara antes de ele se arrastar de volta para cá.

Mas Henry não estava ouvindo.

— Caviar? — disse ele em voz alta. — Está acontecendo alguma coisa aqui que tem a ver com caviar. Alguém já tem alguma idéia do país que vai asilá-lo?

No meio da noite, Sunday despertou de um sono angustiado com o súbito lampejo de uma luz tão intensa que passou através do tecido grosso que ainda cobria sua cabeça.

— Estou apenas tirando uma foto sua — disse baixinho o seu captor. — Você parece terrivelmente desconfortável e desamparada. Perfeito. Tenho certeza de que o coração do seu marido vai se partir quando compreender visualmente a sua situação.

Ele tirou o pano da cabeça dela.

— Agora mais uma, e depois pode voltar a dormir.

Sunday apertou os olhos tentando apagar os pontos brancos que a ofuscavam depois do segundo flash. Descobriu que em algum momento nas últimas horas a fraca lâmpada do teto tinha sido apagada. Agora, quando ele a acendeu de novo, até aquela luz pálida doía em seus olhos. A decisão de parecer estoicamente calma arrefeceu. Ela olhou furiosa para seu captor.

- Vou dizer uma coisa, quando eu sair daqui, se eu sair daqui, é melhor você estar no avião com seu amigo assassino. E se for capturado, irei até as últimas conseqüências para trancafiá-lo na prisão Sais horrível e desconfortável que houver.

Um outro flash ofuscante fez Sunday piscar novamente. — Desculpe. Não tinha planejado tirar essa, mas não fará mal se ; O seu marido puder ver como você está aborrecida — ele disse. ’     Não, você está errado, pensou Sunday. Não estou aborrecida, limplesmente furiosa. Henry tinha visto recentemente aquela fúria a todo vapor quando ela fez um sermão sobre a crueldade da caça à raposa. Quando incorporava a irlandesa, conforme ele descrevia, Sunday podia ser um dínamo.

Se essa última foto chegar ao Henry, ele saberá que não estou arrasada, Sunday pensou, procurando se tranqüilizar.

- Parece que seu marido está movendo céus e terra para garantir a sua segurança — disse o seqüestrador. — Todas as estações de rádio e de televisão estão transmitindo a notícia de que Claudus Jovunet está sendo transferido para Washington e que uma fita de vídeo vai provar que ele está lá, e será transmitida às onze horas da manha. Eles também anunciaram que uma mensagem sua em vídeo está sendo exigida. Querem ter certeza de que você está bem.

Ele examinou as fotos polaróide.

- Ótimas. Essas, junto com uma fita de áudio, devem convencer seu marido e todo o governo do fato de que você está viva e bem, só que em circunstâncias nada confortáveis.

Ele deixou o capuz cair sobre o rosto de Sunday. Dessa vez, apesar de fechar os olhos para protegê-los da superfície áspera do tecido, ela estava bem alerta. Tinha certeza de que se esperava ver Henry um dia outra vez teria de descobrir uma maneira de ajudar a si mesma. Estava com a estranha sensação de que aquele homem se dedicava a uma brincadeira mortal de gato e rato com ela, e com Henry também. Parecia completamente apolítico. Nada de declarações de ódio contra o governo por crimes imaginários, nenhuma tentativa de justificar os atos contra ela em seu esforço para libertar Jovunet. Sim, aquilo era como gato e rato, e Sunday não gostava de fazer o papel de rato.

Mas o que podia fazer? O fato de estar amarrada e mantida literalmente no escuro oferecia pouquíssimas opções. Talvez não houvesse nada que pudesse fazer fisicamente, mas a mente ainda podia vagar livremente. Ela lembrou de novo do anel que tinha notado no dedo do seu captor. Tinha absoluta certeza de tê-lo visto antes. Mas onde? Será que foi no dedo desse homem mesmo, ou será que pertencia a outra pessoa?

Avançando milímetro a milímetro em sua mente, ela começou a considerar todas as pessoas que poderiam ser aquele homem com o anel. Equipe do Congresso? Ridículo. Além do mais, a lembrança parecia ser ainda mais antiga. Entregadores? Empregados da casa de Nova Jersey? Não. Só conheço Henry há menos de um ano, pensou Sunday. E todos que trabalham para ele estão lá desde sempre.

Então quem era?

Vou acabar descobrindo, prometeu para si mesma.

É melhor se apressar, avisou uma voz interior. O seu tempo está se esgotando.

Será que ainda sairei daqui viva?, pensou Sunday. Será que verei Henry novamente? Sunday sentiu um abalo longo e profundo no seu íntimo. Desejou estar ern casa, em Drumdoe, com Henry. Tinha encontrado uma receita nova e maravilhosa de galinha com alho num livro de receitas provençal e pretendia experimentá-la no fim de semana. O trabalho como cozinheira para se sustentar, enquanto fazia a faculdade de Fordham, ensinara Sunday a gostar muito de culinária. Tinha feito um curso de gourmet no Instituto de Culinária. Agora pelo menos uma noite cada fim de semana o chef cordon bleu que trabalhava para Henry há muito tempo se ausentava para ela assumir o controle da cozinha.

Devia comparecer à reunião do comité do Congresso aquela manhã. A lei que tratava dos benefícios de saúde para filhos de imigrantes ilegais ia ser discutida novamente. Ficava louca de raiva com o homem que liderava a luta para negar esses direitos, pois ele sempre exibia fotos dos próprios netos. Sunday planejava partir para cima dele contestando isso.

Mas primeiro tinha de sair dali, ou pelo menos fazer alguma coisa para escapar! O Senhor ajuda a quem se ajuda, pensou. Era a frase preferida do pai dela.

E que Deus ajude a quem for pego no ato. Era o que eu costumava pensar quando tentava livrar meus acusados, pensou Sunday. Então ela respirou fundo.

É isso, pensou ela animada. Não vi aquele anel em Drumdoe ou em Washington. Foi muito antes disso. Foi quando eu era defensora pública. Um dos caras que defendi o estava usando.

Mas qual? Qual das centenas e centenas de casos que defendeu naqueles sete anos foi o que tinha o acusado com um anel largo, do tipo sinete, com um buraco no centro?

Agora ela estava completamente acordada, lembrando de todos os casos que passaram pelas suas mãos. Quando as últimas fichas do seu arquivo mental caíram, ela balançou a cabeça. Tinha certeza absoluta de nunca ter defendido seu captor. Mas também tinha certeza a respeito do anel. Mas talvez não fosse exatamente aquele anel. Será que podia ser o símbolo de algum grupo terrorista? Sei que nunca tive um caso envolvendo um terrorista, pensou Sunday, e mais uma vez refletiu que o seqüestrador parecia totalmente apolítico. Tudo bem, então ele não é um terrorista, e jamais foi um dos meus ”clientes”. Então quem é esse cara?

Onde estava Sunday a noite passada? Henry pensou, entrando na sala do gabinete da Casa Branca às onze horas da manhã seguinte. Percebeu imediatamente que se tinha havido alguma mudança, a atmosfera estava ainda mais sombria do que na reunião da véspera. Viu que além de Dês Ogilvey, todo o ministério e os diretores da CIA e do FBI, havia mais dois recém-chegados: o líder da maioria no Senado e o orador do Congresso. Sempre procurando uma oportunidade de aparecer nas fotos, pensou Henry. Nenhum dos dois ocupava uma posição muito airosa em sua lista.

Tinha nevado um pouco durante a noite e a previsão do tempo anunciava uma forte tempestade que atingiria a capital antes do fim de semana, provavelmente na sexta-feira. Por favor, meu Deus, não nos deixe aqui ilhados, impedidos de voar. Quanto mais tempo Sunday ficar nas mãos deles, maiores serão as probabilidades de algo sair errado.

Ele lembrou da reunião na noite anterior, com o infame Jovunet. Por que a contradição sobre o caviar?, pensou mais uma vez, intrigado. Era uma coisa pequena, mas soava como algo significativo. Henry tinha ido para o gabinete diretamente da casa segura onde Jovunet, cercado de alfaiates, alegremente bebia champanhe e comia caviar beluga. Não fazia sentido os seqüestradores de Sunday terem insistido em instruí-los para eliminar o caviar. A não ser que, claro, houvesse algum sentido oculto por trás da mensagem deles. Ele balançou a cabeça. Apesar de todos os anos de experiência, esses jogos eram novos para ele. Era evidente que não havia regras verdadeiras, e tudo era possível.

Henry percebeu que estava de pé diante da cadeira que indicaram para ele e que era o centro dos olhares de todos.

- Senhor presidente - ele disse -, desculpe por tê-lo feito esperar. Desmond Ogilvey, um monumento de paciência, o presidente que em geral era comparado ao ”calmíssimo” Calvin Coolidge, disse energicamente:

- Henry, digo isso na presença daqueles que rapidamente informarão à imprensa... — Ele fez uma pausa para olhar para o orador do Congresso. - ...Não me venha com essa formalidade toda, a menos que esteja brincando. Eu nasci nutrindo o maior respeito pelo governo e pelos estadistas. Mas você me ensinou o que realmente é a presidência.

E Sunday me ensinou o que é a felicidade, pensou Henry.

Desmond Ogilvey pôs as mãos na mesa de conferência exatamente na posição que os chargistas políticos do país gostavam de caricaturá-lo.

- Creio que estamos todos a par da situação - ele começou. - O SST está recebendo o equipamento mais sofisticado do nosso arsenal. O objetivo, obviamente, é poder monitorar Jovunet, de modo que seus futuros movimentos estejam precisamente à nossa disposição. Se tudo correr conforme os planos, a partir de sexta-feira, se Jovunet estiver numa floresta, saberemos dentro de que árvore ele está, e até em que galho. Localizá-lo não será problema.

Ogilvey bateu com as mãos cerradas na mesa de conferência.

- No entanto, o problema é aqui. Apesar de alguns sustos, ou ”bu-bus”, como minha mãe costumava chamar, nossas duas super-agências de detetives graças a Deus estão mais uma vez no páreo e atualizadas. Todos os nossos agentes da inteligência informam claramente que nenhum país, inclusive nossos maiores aliados e nossos inimigos declarados, apresentou-se para oferecer asilo para Jovunet. Na verdade, praticamente todos indicaram que preferiam ver o avião explodir a ver Jovunet pisando em seus territórios. Infelizmente uma das conclusões que podemos tirar dessa situação é que agora mesmo, em algum país ignorado por nós, estão preparando uma revolução que derrubará o governo existente, e que pode muito bem representar uma verdadeira ameaça à paz internacional.

Henry ouvia com um aperto no coração. Era como se estivesse vendo Sunday tentando nadar contra uma correnteza furiosa, incapaz de salvá-la.

- Portanto - continuou Desmond Ogilvey -, temos de concluir que está no ar uma emergência nacional, que um pais cujos sinais de aviso foram ignorados está prestes a explodir.

O olhar do presidente para o diretor da CIA fez o infeliz dignitário empalidecer. Em seguida o presidente olhou para o outro lado da mesa, para o seu predecessor e anunciou:

— Não sei como dizer isso, mas tudo indica que a sua esposa, a estimada deputada de Nova Jersey, está nas mãos de um inimigo incógnito. Temo que até eles revelarem quem são, pouco podemos fazer, a não ser esperar.

Henry levantou abruptamente.

- Dês, preciso rever a declaração que Jovunet vai fazer na fita de vídeo.

Ele deu meia-volta para sair da sala, mas teve de parar, preso num abraço solidário.

- Henry - Desmond Ogilvey prometeu -, vamos trazê-la de volta. Todos os meios que pudermos empregar estarão empenhados em tornar isso possível.

Não, Dês, pensou Henry. Temos de jogar o jogo dessa maneira, mas meu instinto me diz que estamos fazendo tudo errado.

Ele estava ficando perturbado. Sunday sentia a mudança sutil no comportamento do seu seqüestrador. Tinha ouvido ele gritar lá em cima da escada com a mulher que chamava de ”mãe”. Será que era realmente mãe dele, ou não passava de mais uma peça naquele ardil? Como o manto de monge, ela pensou. Aquele disfarce parecia alugado para uma festa à fantasia.

O barulho do andar de cima fez Sunday acordar. Agora ela estava imaginando que horas deviam ser. Deve ter passado muito tempo

desde aquelas fotos, pensou. Será que Henry já viu alguma? Será que ele ia perceber a raiva no rosto dela e saber que continuava lutando para se libertar? Que ela nem sequer imaginava entregar os pontos?

Fez força para ignorar a dor no braço e no ombro, que já estava terrível. Por que os braços não ficavam insensíveis como as pernas, que ela não sentia mais? Circulação zero, pensou. Se Henry estivesse aqui, ele...

Sunday balançou a cabeça. Não podia pensar nisso. A imagem de Henry cortando aquelas cordas, ajudando-a a ficar de pé, massageando suas pernas torturadas para a circulação voltar... era uma idéia maravilhosa demais e se permitir a esse luxo poderia significar o desespero. Tinha de ser forte. Aquilo era uma luta, e não ia cair sem sangrar de alguma maneira.

Na revisão mental de todos os casos em que tinha trabalhado nos seus sete anos de defensora pública, já estava no quarto ano. Todos os casos significativos, corrigiu-se. Rapazes idiotas que se metiam em brigas com leões-de-chácara em bares não estavam incluídos naquela revisão.

Sou abençoada com uma memória fantástica, Sunday pensou, enquanto balançava a cabeça e tentava desprender o capuz que ficava grudando na sua testa. Mamãe sempre disse que eu era como sua tia Kate. ”Muito observadora, nunca perde nada”, explicou minha mãe para Henry quando contava as histórias dos nossos parentes. ”E abelhuda. Jamais esquecerei o dia em que Kate me perguntou se eu tinha alguma ’notícia para ela, claramente querendo saber se eu estava em estado interessante. Meu Deus, acho que eu tinha descoberto que estava esperando a Sunday há menos de uma semana, e não tinha intenção de contar para ninguém ainda. Acho que...’

Sunday tinha terminado a frase para ela. ”Você acha que é mais educado a mulher esperar até o quarto mês de gravidez para anunciar para o mundo. Talvez a sua tia Kate tivesse uma mente suja. Ouvi dizer que é comum na família.”

Mas eu sou como a velha Kate, Sunday concluiu. Sou observadora, dou muito valor aos detalhes, e aquele anel é definitivamente um detalhe que observei no tribunal.

Aquela divagação foi interrompida pelo som de passos na escada. Sunday sentiu um tremor de nervoso percorrer seu corpo. Não sabia bem o que era pior: quando o seu captor se esgueirava silenciosamente escada abaixo, ou quando ele anunciava sua chegada com passos pesados, deliberados.

Tinha de ser de manhã. Percebeu que estava com fome. Será que traria comida para ela? Ele tinha dito alguma coisa sobre gravar uma fita de áudio. Quando seria isso?

Os passos rasparam o piso de cimento. Sunday sentiu tirarem o pano da sua cabeça. A figura de manto estava de pé diante dela. Ele estendeu o braço e acendeu a lâmpada pendurada no teto, e por alguns segundos Sunday ficou novamente cega com a luz. Quando a visão se ajustou ela olhou fixo para o seu captor, esforçando-se para enxergar alguma pista das suas feições. O rosto dele era uma sombra, mas ela continuou a fitá-lo, exigindo do seu subconsciente a lembrança, se já o tivesse visto antes. Olhos fundos, ossos salientes. Provavelmente cinqüenta e poucos anos.

— A mãe devia trabalhar melhor — ele disse com raiva. — Ela deixou o leite fora da geladeira a noite toda e agora está azedo. Temo que você tenha de se contentar com cereais sem leite, e café. Mas primeiro vou ajudá-la a chegar até o lavabo.

Ele deu a volta na cadeira e começou a desatar os nós. A mãe devia trabalhar melhor...

Aquela voz. O tom de voz. Já ouvi antes. Ele falou assim comigo uma vez, pensou Sunday. Disse que eu devia trabalhar melhor.

Como uma foto no revelador, a lembrança entrou em foco. Tinha acontecido no tribunal, quando ela defendia Wallace ”Sneakers” Klint, apenas mais um no desfile de perdedores que ela representara naqueles anos iniciais. Sunday tinha resolvido ser defensora pública porque apoiava ferozmente o conceito segundo o qual todos mereciam seu dia no tribunal. Isso significava, é claro, que todos mereciam ser representados legalmente. O caso Klint tinha sido um dos que menos gostou. Apesar de acusado de assassinato, ela conseguiu convencer o júri a considerá-lo culpado de homicídio culposo, o que significava que em vinte anos, quando ele tivesse sessenta anos, sairia da prisão.

O julgamento não foi especialmente longo, em parte, ela achava, porque a promotoria sabia que não tinha um caso muito forte. Lembrou que o irmão mais velho de Klint tinha aparecido alguns dias no tribunal. Ela olhou de novo para o seqüestrador. Não admira que eu não o tivesse reconhecido, pensou, tentando não deixar nenhuma emoção ficar registrada em seu rosto. Na época o irmão de Klint tinha cabelo comprido e barba, parecia muito um hippie mais velho. É isso mesmo, ele fazia parte da ”contracultura”, e ela lembrava desse fato porque tinham pensado em chamá-lo para testemunhar, mas ela achava que ele provavelmente prejudicaria mais do que ajudaria no caso do Sneakers.

Sunday fez um esforço para lembrar do dia em que ele falou com ela. Saía do tribunal e ele foi atrás dela pelo corredor que levava aos elevadores. Ele pôs a mão no seu ombro. Ela lembrou que o anel que ele usava encostou no seu pescoço, e que afastou a mão dele bruscamente. Foi então que notou o desenho especial do anel.

Ele disse que o veredicto significava uma sentença de morte para a mãe deles, que ela jamais viveria o bastante para ver Sneakers em casa de novo. E foi aí que ele disse que eu devia trabalhar melhor, ela pensou.

Na hora não soou como uma ameaça. Na verdade Sunday achou que o cara era um imbecil. Devia estar beijando seus pés por manter o irmão punk fora da câmara da morte. Graças a ela Sneakers agora fazia placas de automóvel para o estado de Nova Jersey.

Então esse homem era o irmão mais velho. E a mulher lá em cima tinha de ser a mãe idosa. Não deixe ele saber que você sabe, Sunday pensou.

Mas quando tentou encaixar as peças de tudo o que sabia, não entendeu nada. O que é que o irmão do Sneakers Klint tinha que ver com o terrorismo internacional? Era a pergunta que ficava martelando a sua cabeça. O seqüestro pareceu muito profissional, mas aquele homem diante dela parecia mais um lunático solitário.

Seus braços estavam finalmente livres. Ansiosa, apertou-os contra o corpo e tentou massageá-los.

Seu captor estava desamarrando as cordas em volta das pernas. Ao levantar da cadeira, ela cambaleou. Mais uma vez vasculhou a memória. O nome dele. Qual era? Constava dos documentos do tribunal. Um primeiro nome incomum. Começava com W. Warfield... Woolsey... Wexler? É isso! Ela lembrou de repente.

Wexler Klint. Sunday disfarçou um pequeno sorriso de vitória.

— Pronto, eu ajudo — disse Wexler Klint passando o braço em volta da cintura dela.

Sunday tentou não demonstrar nenhuma reação quando ele encostou no seu quadril. Mais uma vez ele a levou para o banheiro e de volta, repetindo o ritual de amarrá-la à cadeira, deixando as mãos livres até ela terminar de comer o que ele chamou de café da manhã — cereal seco e café puro.

Ele ficou impassível, observando Sunday comer. Ela terminou, ele pegou a bandeja com os pratos e a colher, e amarrou metodicamente suas mãos para trás. Antes de sair, ligou a TV.

— A televisão fará o tempo passar mais depressa — ele disse. — Jovunet vai aparecer às onze. - Ele sorriu despreocupadamente. Você ainda está no noticiário, sabe? E acho que vai continuar a ser o centro das atenções por algum tempo ainda. Pense bem, você conquistou um lugar na história e tem de me agradecer por isso.

Sunday não respondeu. Estava ocupada demais vendo Henry ser levado às pressas para um helicóptero no jardim da Casa Branca. Um locutor dava as informações.

— Soubemos que o transtornado ex-presidente está indo para o prédio do Serviço Secreto onde estão mantendo Claudus Jovunet. Informaram também que houve uma mudança nos planos. Em vez de uma mensagem gravada, Jovunet será visto fazendo seu discurso ao vivo na televisão. Isso servirá para provar aos seqüestradores da deputada Britland que estão cooperando em todos os sentidos para atender às suas exigências.

Sunday viu Henry chegar ao helicóptero. Ele subiu os degraus, mas antes de entrar na cabine, virou de frente para as câmeras. Deram um microfone para ele.

- Rezem por ela - ele disse.

Wexler suspirou.

— Idéia simpática. Mas não vai adiantar nada, sabe?

— Senhor Jovunet, nós temos de pôr esse microfone no senhor — disse Sydney Green, produtor executivo de mídia da Casa Branca, com impaciência.

Estavam em Arlington, na Virgínia, bem próximo de Washington. A charmosa casa em estilo federal aninhada em hectares de terreno cercado era ostensivamente o lar de um recluso potentado do Oriente Médio. Na realidade era uma casa segura usada para abrigar dissidentes políticos dos escalões mais altos.

A sala elegantemente mobiliada estava repleta de agentes da CIA de aparência muito austera e de técnicos de mídia do governo. As câmeras estavam voltadas para uma poltrona ainda desocupada.

Claudus Jovunet estava de pé numa alcova ao lado da sala principal. Com ar de desprezo, dispensou o produtor que gesticulava.

— Daqui a pouco. Como pode ver, estou ocupado com outra coisa. — Ele desviou sua atenção para o alfaiate que ajustava a manga de um paletó de smoking. — Acho deplorável o fato de que até um artesão tão capaz como o senhor não tenha percebido que o meu braço esquerdo é um centímetro mais comprido do que o direito.

- Eu notei sim. Meu pai e meu avô eram mestres alfaiates, senhor, como eu sou.

Apesar dos alfinetes que tinha na boca, o alfaiate, encurvado e ajoelhado conseguiu imprimir um tom gelado às suas palavras.

Jovunet balançou a cabeça, demonstrando aprovação.

— Um homem deve ter segurança da sua especialidade. Confio nas suas boas mãos.

Ele acenou para o garçom, que serviu mais do borbulhante Dom Pérignon gelado.

— Largue isso e sente-se, senão vou estrangulá-lo eu mesmo — disse Henry Britland, com a voz baixa e ameaçadora.

Jovunet deu de ombros.

— Como quiser. — Ele pôs a taça numa mesa e dirigiu-se ao alfaiate: — Creio que por causa do tempo devemos considerar que esta é a última prova da roupa para a noite. O resto das roupas de trabalho e esportivas não devem levar mais do que algumas poucas horas para ficarem prontas. Depois disso, precisamos examinar com todo o cuidado os acessórios apropriados. Estou satisfeito de ver que vocês conseguiram algumas daquelas gravatas Belois, maravilhosamente divertidas.

Ele pegou uma gravata com carinho do mostruário que estava em cima da mesa e mostrou para Henry.

— Praticamente uma pintura manual, mas muito sofisticada. Notando a expressão de Henry, ele pôs a gravata na mesa.

— Sim, a entrevista!

— Temos de gravar a sua fita de áudio agora. Eu diria que o seu marido está ficando bastante preocupado, não acha? — perguntou Wexler Klint.

Sunday recusou-se a comentar a expressão de dor nos olhos de Henry quando ele fez uma declaração com força silenciosa depois que Claudus Jovunet confirmou que tinha a promessa do governo dos Estados Unidos de que seria transportado para o lugar que escolhesse, e que iria para lá no SST, pilotado pelo ex-presidente. Então poderia desembarcar do avião assim que a segurança de Sandra O’Brien Britland ficasse comprovada. Qualquer passo em falso da parte dos seqüestradores seria fatal para ele.

Depois Henry fez a sua declaração.

- Tenho de enfatizar - disse ele - que essa viagem de Claudus Jovunet para a liberdade não terá início até recebermos uma fita de vídeo confirmando que a minha mulher continua viva e saudável. Para a viagem se concretizar temos de receber essa fita até as três horas desta tarde.

Klint desligou a televisão e virou para Sunday. Estava segurando um microfone conectado a um velho gravador. Pôs o microfone quase encostado nos lábios dela e sorriu.

— Diga alguma coisa pessoal que convença o seu marido de que acabou de ver Jovunet e ele na televisão agora. Depois peça para ele cooperar. Diga que qualquer tentativa que fizerem para nos enganar custará a sua vida. Pense no que deseja dizer. Não quero ter de repetir isso.

Sunday já havia pensado bastante no que ia dizer, só que antes de descobrir quem era seu captor. Apesar de ainda não ter conseguido entender qual era o jogo de Klint, tinha certeza de que ele não pretendia cumprir nenhuma promessa de libertá-la. Sua mente funcionou à velocidade da luz. Ela respirou fundo. Se espera ver Henry novamente, é melhor trabalhar bem, pensou.

Sunday começou a chorar.

— Acho que não vou conseguir fazer isso — ela disse para Klint com voz de menininha. — Quando vejo o meu marido sinto uma saudade enorme. Não quero ficar aqui. Quero estar com ele.

A lâmpada pendurada no teto criava sombras negras no porão lúgubre, mas ela conseguia ver que o gravador já estava ligado. Deu um suspiro, resignada.

— Tudo bem, você disse que devo mencionar que o vi na televisão agora mesmo — ela parou de falar e voltou a soluçar, chegando ao tipo de voz que queria usar, da chorona da sua turma no St. Al’s, a que se derretia em lágrimas mais ou menos três vezes por dia.

— É claro que o vi! — ela gemeu. — E, Henry, eu só conseguia lembrar que você sempre prometeu me defender. Por isso sei que não vai deixar que nada aconteça comigo agora. Você vai me defender, não vai? Para eu poder voltar para casa? E, Henry, quando vi você, notei que estava com o mesmo mocassim preto inglês que usou na primeira vez que mostrou Drumdoe para mim. Lembra, querido? Ah, são tantas as lembranças... E ainda me sinto muito perto de você. E preciso tanto de você que... — ela ficou com a voz entrecortada de tanto soluçar.

Balançando a cabeça, Sunday olhou para Klint. Ela conseguira produzir algumas lágrimas.

— Tudo bem, estou melhor. Está pronto para começar? Ele sorriu para ela.

- Não, na verdade já terminamos. Pode descansar agora. Posso demorar um pouco. Não saia daqui — ele disse, dando uma risadinha e pondo o capuz na cabeça dela.

- Você vai mesmo me soltar quando Jovunet aterrissar a salvo, não vai? Eu sei que Henry e o governo vão cumprir as promessas que fizeram — ela mordeu a língua, pois tinha usado sua voz normal.

Mas aparentemente Klint não notou a súbita mudança. Em vez de dar uma resposta direta, ele cantarolou.

— Três ratinhos cegos; veja como eles correm. — Ele arrumou o capuz na cabeça de Sunday, encostando os dedos no rosto dela. Depois pôs a boca perto da orelha dela e murmurou: — Você sabe quem são os três ratinhos cegos, não sabe? Não? Então vou contar para você. O primeiro é o seu marido; o segundo é todo o governo dos Estados Unidos, e o terceiro é... — Ele fez uma pausa. — O terceiro é Claudus Jovunet.

Da casa segura em Arlington, Henry foi diretamente para o centro de comando recém-criado no auditório da Casa Branca. O leve movimento negativo de cabeça do diretor da CIA tinha indicado que não havia nenhuma novidade. Até ali todos os esforços para traçar a origem do artefato que imobilizara os carros e os agentes do serviço secreto tinham sido em vão. E apesar de parecerem convencidos de que Sunday ainda estava por perto, ninguém tinha conseguido nenhuma pista. O mau tempo limitava o número de pessoas trabalhando nas ruas e ninguém tinha visto nada suspeito. A única coisa que tinham até o momento eram algumas pegadas na neve, perto de onde o carro de Sunday tinha parado. Não podiam ter certeza, mas tudo indicava que deviam ser do seqüestrador. Fizeram moldes e cópias das pegadas e estavam analisando.

Na Casa Branca, com Jack Collins e Marvin Klein sempre por perto, Henry foi até a sala do gabinete onde, pela quarta vez, telefonou para a casa dos O’Brien em Nova Jersey para falar com o pai de Sunday.

Depois de desligar comentou com os assistentes, sem nenhuma inflexão na voz.

— A mãe de Sunday e todas as tias, tios e primos estão na igreja. O pai dela disse que sua menininha é inteligente demais até para uma horda de terroristas. E depois começou a chorar.

— Precisa comer alguma coisa, senhor — disse Klein em voz baixa, apertando a campainha embaixo da mesa.

— Jovunet certamente não perdeu o apetite — disse Collins com amargura. - Os rapazes disseram que ele consumiu mais champanhe e caviar do que qualquer dissidente russo que tivemos o prazer de hospedar. Até tiveram de encomendar mais. E agora estão dizendo que ele quer que o chefão Lê Lion d’Or prepare o seu jantar.

— Não sei por que ele precisa se entupir assim agora — disse Henry, demonstrando toda a sua irritação na voz. — Tenho certeza de que ele terá uma recepção de herói preparada para ele, qualquer que seja o seu destino. — Ele fez uma pausa. — Alguma notícia de que lugar pode ser esse?

— Não, ainda não — respondeu Klein. — O Salão Oval pode ter razão, algum golpe deve estar para acontecer em algum lugar, e algum governo recém-formado dará as boas-vindas para ele, mas até

agora ninguém apareceu para oferecer esse novo lar. O que quer que esteja para acontecer, é melhor que aconteça logo. O nosso tempo está acabando.

Pouco antes das três horas os membros do ministério e os outros começaram a retornar para a sala do gabinete. O presidente Ogilvey e o secretário de estado foram os últimos a chegar.

— Ninguém, ninguém mesmo admite ter engendrado essa fuga de Jovunet — disse o secretário.

O prazo de três horas da tarde que Henry havia imposto chegou e passou, enquanto os homens permaneciam sentados, em silêncio. Às três e dez o âncora do noticiário da NBC, Tom Brokaw, telefonou para a Casa Branca pedindo para falar urgentemente com o ex-presidente Britland.

— Complete a ligação — disse Henry aflito.

Os Brokaw costumavam jantar com freqüência em Drumdoe. Brokaw não perdeu tempo com amenidades.

— Senhor, há poucos minutos recebi uma ligação de alguém que se dizia membro do que chamou de Esquadrão de Defesa e Resgate de Jovunet. No início pensei que era um trote, mas a informação que recebi do nosso escritório em Washington parece confirmar a autenticidade. Um pequeno pacote, embrulhado com papel pardo e endereçado ao senhor, foi, conforme o prometido, encontrado no chão, embaixo do primeiro banco da Catedral de São Mateus. Todos nós sabemos que muita gente tenta participar desse tipo de situação trágica, mas parece que esse é verdadeiro. Disseram que embaixo do seu nome no pacote escreveram um número de telefone. Vou dar esse número para o senhor.

— E o número do nosso telefone na casa em Provence — disse Henry. - Pouca gente o conhece, mas, é claro, pode estar no caderno de telefone que Sunday leva na bolsa. Onde está o pacote agora?

— Já instruí o nosso pessoal da segurança para enviá-lo para o senhor, para o caso de ser legítimo - disse Brokaw. - Deve estar chegando à Casa Branca a qualquer minuto.

— Tom, você é um grande amigo. Obrigado por não abrir o pacote — disse Henry com veemência.

Ele levantou da cadeira e deu o telefone para Marvin Klein, que estava de pé logo atrás dele.

- Senhor Brokaw - disse Klein -, o senhor sabe que o presidente Britland deve muito ao senhor. É claro que vamos providenciar para que o senhor seja informado imediatamente de qualquer desdobramento dessa terrível situação.

Henry já estava na porta, esperando impaciente a chegada do pacote. Pelo menos eles parecem ansiosos em mostrar que estão cooperando, ele pensou, tentando se animar.

— É uma fita de áudio, senhor — disse Collins entrando na sala. — Mas veio junto com uma foto.

A expressão impassível de Collins tinha servido a Henry muito bem durante as reuniões de cúpula, mas falhou naquele momento, quando pegou a foto. Ver Sunday amarrada com tanta crueldade à cadeira naquele buraco horrível e escuro foi insuportável. Desesperado, notou como os braços dela estavam puxados com muita força para trás. O ombro deve estar doendo demais, ele pensou.

Mas quando olhou para o rosto dela, ficou quase animado. É claro que sentia alívio só de vê-la viva. Mas havia mais uma coisa, algo na sua expressão que justificava uma esperança. O desconforto de Sunday sem dúvida era imenso, mas ainda tinha capacidade de lutar. Era óbvio que não tinha entregado os pontos. Naquela foto ela estava mais furiosa do que Henry tinha visto em todo o tempo que a conhecia.

- Quero ouvir a fita - disse ele.

Inclinado para frente sobre a mesa, de olhos fechados, ouviu a voz soluçante da mulher implorando para que ele a defendesse. Quando terminou ele disse:

— Quero ouvir de novo.

Ouviu atentamente mais duas vezes, depois encarou os homens com os olhos marejados de lágrimas à sua volta.

— Não percebem? — ele disse com impaciência. — Sunday está tentando dizer algo para nós. As coisas que está dizendo devem indicar alguma coisa. Lembro claramente da primeira vez que a levei para Drumdoe. Nós dois estávamos com roupas esporte. Eu não estava calçando mocassins ingleses. Usava tênis [sneakers em inglês]. Ela está tentando passar uma mensagem.

— Mas Henry — disse o presidente —, ela está obviamente perturbada.

— Isso é uma encenação, Dês — disse Henry convencido. — Conheço a minha garota. Você poderia enfiar parafusos nela, e ela não gemeria desse jeito. — Ele fez um gesto de frustração. — Mas eu não sei o que ela está tentando dizer. Deve ser algum tipo de pista, ou um código, alguma coisa assim. Mas o que é? Meu Deus, o que ela está tentando me dizer?

Ainda era noite de quinta-feira, ou manhã de sexta? Sunday não tinha certeza. Estava cochilando quando sentiu que alguém desamarrava suas mãos.

— Eu estava assistindo à CNN — sussurrou Wexler Klint. — Fizeram uma matéria enorme sobre você. Não sabia que você tinha sido salva-vidas quando estava no segundo grau. Quem sabe? Talvez isso seja útil para você em breve. — Ele fez uma pausa e amarrou as mãos dela juntas de novo, só que dessa vez na frente do corpo. Talvez não. De qualquer forma, vamos dar um passeio agora.

Enquanto falava ele ia tirando o capuz da cabeça dela. Sunday sentiu um pano sendo amarrado em volta da sua boca. Seus protestos furiosos primeiro ficaram abafados, depois silenciaram. O capuz cobriu sua cabeça outra vez. Então ela sentiu Klint cortar as cordas que a prendiam à cadeira. A faca arranhou sua perna direita e ela sentiu o calor do sangue escorrendo. Deliberadamente esfregou a perna no pé da cadeira. ”Kilroy esteve aqui”, ela pensou, lembrando da história que seu pai costumava contar, que os soldados, na Segunda Guerra Mundial, escreviam essa mensagem nos campos de batalha.

Uma risada histérica ficou presa na sua garganta. Você esta se descontrolando, pensou. Acalme-se.

Mas o que é que ele ia. fazer com ela?, ela desejou saber.

Foi puxada para cima, para levantar, e depois teve de deitar no áspero piso de concreto. O cheiro de mofo por causa da umidade era quase sufocante, mesmo com a proteção do tecido grosso do capuz. Estava sendo enrolada em alguma coisa, provavelmente o cobertor que Klint tinha jogado em cima dela mais cedo. Quando foi isso? Há horas? Dias? Talvez pudesse acabar descobrindo, mas percebeu, desanimada, que estava bastante desorientada. Tinha de se controlar se queria ter alguma esperança de sobreviver àquela provação.

De repente sentiu que a estavam levantando e carregando.

Tinha razão. Ele era muito forte. Segurou-a nos braços como se ela não pesasse nada. Os pés dela rasparam na cadeira e depois no que parecia uma parede. Será que ia levá-la para o andar de cima?

Mas ele virou para a direita, não para a esquerda. Ela ouviu quando ele mexeu numa tramela. Então uma rajada de vento açoitou o cobertor fino. Estavam saindo da casa. Ela ouviu um motor funcionando.

— Acho que o porta-malas não será muito confortável — Klint disse para Sunday -, mas terá de servir. É claro que as celas dos presídios também não são nada confortáveis. Creio que com a má condição das estradas, levaremos pelo menos cinco horas para chegar ao nosso destino. Mas não se preocupe, chegaremos com tempo de sobra para testemunhar o teatro no Aeroporto National.

Sunday ficou tensa ao sentir que estava sendo jogada no porta-malas do carro. Ele ajeitou seu corpo de modo que ficasse toda encolhida. Ela tentou esticar as pernas, mas encontrou uma sólida resistência com os pés. Sentiu o cobertor sendo puxado e arrumado para cobri-la toda. O capuz grudou nas suas narinas e o nó da mordaça incomodava na nuca. Seu ombro irradiava ondas terríveis de dor. Se já tivesse alguma vez sentido tanto desconforto, não era capaz de lembrar.

Então sentiu que ele estava pondo coisas em cima dela. Pelo som e pelo tato adivinhou que Klint estava arrumando o que havia no porta-malas para ela ficar quase toda coberta. Mas fazia isso com cuidado e em silêncio, como se tivesse medo que alguém ouvisse. Onde é que eles estavam? Sunday gostaria de saber. Talvez em algum bairro no qual alguém podia estar observando de uma janela? De algum lugar por perto dava para ouvir um cachorro latindo. Por favor, meu Deus, ela rezou, que alguém esteja olhando para esse carro agora.

A tampa do porta-malas foi fechada quase sem fazer ruído algum. Um segundo depois o arranque do carro foi a prova angustiante para Sunday de que a fase seguinte do seu seqüestro tinha começado.

— O senhor sabe que o tênis Milano que o senhor calça é um tipo exclusivo de calçado, com um preço que está bem acima do poder de compra do homem comum.

Às cinco horas da manhã de sexta-feira Conrad White, analista das prioridades da CIA, dava para Henry Britland uma atualização dos esforços da agência para determinar o quanto era significativa a claramente equivocada referência que Sunday tinha feito aos sapatos que Henry calçava na primeira vez que a levou para visitar Drumdoe. À medida que ele ia explicando, Henry ia ficando cada vez mais irritado. White conseguia de alguma forma dar a impressão de estar dando uma aula, passo a passo, para um aluno lerdo. Eis o problema; essas são as perguntas; essas são as soluções possíveis.

Só que você está completamente errado, pensou Henry, ouvindo com desdém. Piscou os olhos lentamente, tentando reduzir o ardor incômodo.

Conrad White observou.

— Posso sugerir, senhor, que até algumas horas de sono fariam bem, antes de o senhor iniciar o que certamente será uma longa viagem.

— Você não pode sugerir nada — retrucou Henry, encarando o homem. - Vá logo ao ponto. Creio que está tentando dizer que eu não estava usando mocassins ingleses, e que tênis da marca Milano são, obviamente, feitos na Itália. Portanto acha que a referência da minha mulher significa que devemos procurar os seqüestradores na Itália.

— Ou uma das seitas violentas que atualmente perturbam nossos amigos italianos — corrigiu White. — Possivelmente a máfia. Na verdade, provavelmente a máfia. Eles têm uma longa história de sequestros e assassinatos. Oh, desculpe, senhor, não quis dizer...

Mas ele tinha perdido sua platéia. Henry dirigiu-se a Jack Collins e a Marvin Klein.

— Salão leste — ele disse rispidamente.

Subiu a escada do recém-criado centro de comando para o andar principal na frente dos dois, depois virou para a esquerda e entrou no magnífico salão, onde retratos de George e Martha Washington olhavam para ele com simpatia. Por que tinha escolhido aquela sala?, ele pensou ao sentar na sua poltrona preferida quando era o residente mais importante da avenida Pennsylvania, 1.600. Era óbvio que algum instinto o impelia para lá.

Será que era por causa da festa maravilhosa que Dês e Roberta deram para ele e para Sunday algumas semanas depois do casamento dos dois? Coquetéis naquela sala, seguidos de um jantar no salão de jantar e depois a volta para um breve concerto. Henry lembrou daquela noite. Sunday usava um vestido longo de cetim azul-gelo de mangas compridas e o colar de diamantes que o bisavô dele tinha comprado de um marajá. Ela estava especialmente linda aquela noite.

Henry quase sorriu recordando como as pessoas diziam o tempo todo que era uma pena ele não ter conhecido e casado com Sunday oito anos antes, que ela seria uma primeira-dama maravilhosa.

O embaixador inglês disse isso para nós dois, Henry lembrou. Então ele disse alguma outra coisa, Sunday respondeu e todos nós rimos.

Você precisa lembrar, sussurrou uma voz em seu subconsciente.

Henry inclinou o corpo para frente e cruzou os dedos das mãos. Talvez White tivesse razão. Talvez estivesse mesmo cansado. Talvez tudo aquilo não passasse da sua imaginação. Ele balançou a cabeça. Não, sei que tem alguma coisa aí, disse para si mesmo. É vital lembrar aquela conversa. Só sei que tem algo a ver com a mensagem que Sunday estava tentando passar naquela fita, ele pensou com um novo alento de esperança. Foi por isso que todos os meus instintos disseram para eu vir para cá...

Percebeu que Collins e Klein estavam de pé, a uma distância respeitosa, e acenou para que se sentassem diante dele.

- Estou deixando minha mente divagar, fazer uma livre associação de idéias. Agora é a sua vez. Fluxo de consciência - ele pediu.

Era um exercício que todos conheciam, que os três tinham feito juntos regularmente quando tentavam resolver um problema. Collins foi o primeiro.

- Senhor, há algo de podre no reino da Dinamarca.

Henry sentiu uma onda de energia renovada percorrer suas veias. Instintivamente sabia que aquilo ia levá-los a algum lugar.

- Prossiga.

- Os agentes da CIA estão perdendo tempo. E o que é mais importante, estão desperdiçando o nosso tempo. A máfia está atolada em problemas agora que o código da omerta não vale mais nada. Eles jamais enfrentariam o governo dos Estados Unidos seqüestrando a mulher de um ex-presidente. Além disso, senhor, não há grupos terroristas, novos ou antigos, que não estejam dispostos a jurar com

sangue que não estão envolvidos nisso. Ninguém jamais ouviu falar desse Esquadrão de Defesa e Resgate de Jovunet. E também, senhor, não temos registro de algum grupo terrorista que esteja atualmente usando a palavra defesa em seu nome.

Defesa... defender...

Henry de repente lembrou de tudo. Foi ali mesmo, bem naquela sala, pensou, perto dos retratos dos Washington. Depois que o embaixador britânico disse para Sunday que era uma pena o presidente Britland e ela não terem se conhecido antes, Sunday respondeu: ”Naquela época acho que Henry não ia nem reparar em mim. Quando ele foi eleito presidente pela primeira vez, eu estava no segundo ano da faculdade de direito. Quatro anos depois, quando ele foi reeleito, eu era defensora pública, batalhando pelos meus pobres clientes, alguns merecedores, e outros, infelizmente, cidadãos não tão corretos...”

Henry pensou: E então eu disse que depois das histórias que ela havia contado sobre alguns daqueles casos, prometi defendê-la de quaisquer clientes perturbados dos quais ela não conseguisse livrar-se.

Ele ficou de pé muito animado, com o rosto vermelho de excitação.

- Era isso que estávamos procurando - disse em voz alta e virou para os dois companheiros atônitos. — Sunday está tentando dizer que alguém de um dos seus casos como defensora pública está nessa jogada! Vamos! Não temos muito tempo.

Sunday sabia que a sua capacidade de adormecer em praticamente qualquer circunstância era uma bênção invejável. Só esperava que não funcionasse contra ela dessa vez. Mas a estrada acidentada atacava seu ombro com tanta força que depois de cerca de uma hora ela utilizou as aulas de ioga que teve há anos para se alienar da consciência da dor. Espantosamente, depois disso caiu no sono.

Mas isso significava que tinha perdido a noção do tempo. Há quanto tempo estavam rodando?, ela pensou. E para onde estavam indo? Klint tinha mencionado o Aeroporto National, mas como seus instintos diziam que a casa em que estava ficava próximo de Washington D.C., sabia que já deveriam ter chegado lá há muito tempo. Não, estavam indo para longe do aeroporto.

Apesar de não conseguir ver nada, Sunday tinha consciência do som bem-vindo de outros carros. Isso queria dizer, pelo menos, que tinham de estar numa estrada principal. Será que adiantaria alguma coisa tentar bater na tampa do porta-malas?, ela imaginou. Não, a não ser que parassem para pôr gasolina ou qualquer outra coisa. Mas se ia tirar vantagem de tal oportunidade, precisava suportar a dor e ficar acordada e alerta.

Pouco tempo depois ela sentiu que estavam diminuindo a marcha. Sunday se contorceu, procurando uma posição para poder chutar a tampa do porta-malas. Mas mal o carro parou, sentiu que começou a avançar novamente.

Um pedágio, pensou. Mas naquela estrada? Em que estado? Para onde estavam indo?

Uma hora mais tarde ela teve a resposta. Quando Klint abriu o porta-malas e a tirou lá de dentro, mesmo através do tecido do capuz e do cobertor Sunday pôde sentir o cheiro do mar.

Não sabia que você tinha sido salva-vidas quando estava no segundo grau. Quem sabe? Talvez isso seja útil para você em breve. Klint tinha dito isso para ela na casa. Agora ela sabia: ele ia afogá-la.

Enquanto era carregada, Sunday começou a rezar mentalmente: ”Perdoe-me por pensar que fui vítima de injustiça algum dia, Senhor. A maioria das pessoas não tiveram nem uma hora do tipo de felicidade que conheci com Henry. Cuide dele, por favor. E cuide da mamãe e do papai também. Ninguém teria feito melhor por mim.”

Sentiu quando Klint transferiu seu peso para o outro braço e ouviu o tilintar de uma chave. Uma porta rangeu ao se abrir. Segundos depois ela estava sentada numa cadeira.

As pontadas contínuas de dor no ombro não tinham diminuído, mas perderam a importância. Nada mais importava naquele momento, a não ser o fato de ter sua execução adiada. Sunday modificou sua oração: ”Por favor, meu Deus”, murmurou do fundo da alma, ”que aquele homem renascentista com quem me casei tenha o discernimento de que precisa para entender a mensagem que enviei para ele. Diga para ele que ’defesa significa ’defensora pública. Diga para ele trocar ’mocassins’ por ’tênis’ [sneakers}. E então dê-lhe força para dar o salto daí para Sneakers Klint e seu irmão maluco.”

Tinham levado mais de uma hora, um tempo precioso que não podiam desperdiçar, para juntar as pistas que Sunday enviou para Henry, mas reunindo os recursos da CIA e do FBI para ajudar na busca, conseguiram determinar a qual dos clientes não-tão-corretos ela podia estar se referindo com suas pistas cuidadosamente articuladas, mas ainda frustrantes e complicadas. O uso da palavra ”defesa” levou-os a verificar todos os muitos clientes que ela representou enquanto servia como defensora pública. Foi a referência aos sapatos de Henry que demorou mais a ser desvendada. Finalmente, utilizando a mais pura lógica, Henry conseguiu deduzir que quando ela mencionou seus mocassins Gucci, que ele não estava usando naquele dia, estava, na verdade se referindo ao tênis que de fato usou. Compreender isso finalmente fez com que descobrissem a qual dos muitos clientes Sunday se referia: Sneakers Klint.

Henry mal entrou na sala onde Claudus Jovunet roncava ruidosamente e já começou a berrar.

- Acorde, seu assassino imprestável. Chega de joguinhos. Você tem de falar e vai falar agora!

Jovunet abriu um olho e instintivamente pôs a mão embaixo do travesseiro.

— Não tem nenhuma arma aí — resmungou Jack Collins com os dentes cerrados. — Esse tempo acabou, idiota. — Ele arrancou Jovunet da cama e empurrou-o contra a parede. — Queremos respostas. Agora!

Jovunet piscou e com ar de tristeza alisou o pijama listrado Calvin Klein que estava usando.

- Então vocês adivinharam - ele disse, suspirando. - Bem, tenho certeza de que John Gotti teria feito qualquer coisa para testemunhar esse dia maravilhoso.

Marvin Klein acendeu a luz do teto.

— Fale — ordenou ele. — Para onde você seria levado no SST? Jovunet coçou o queixo e depois olhou para cada um dos homens e deu de ombros.

- Eu não sei.

Henry empurrou Collins para o lado.

— Quem seqüestrou a minha mulher? — perguntou. Jovunet ficou olhando para ele.

- Quem seqüestrou minha mulher? - berrou Henry. Jovunet abaixou-se e sentou na beira da cama, esfregando a testa.

— O conhaque foi definitivamente um erro — ele disse, suspirando. — Mas nunca consegui resistir a um Rémy Martin VSOP. E o garçom foi muito generoso ao servir ontem à noite. — Ele olhou nos olhos de Henry e subitamente adotou uma expressão mais alerta. — Você sabe tão bem quanto eu que ninguém daria um centavo para me tirar da prisão - ele disse enfaticamente. - Nos últimos trinta e cinco anos não houve nenhum país ou grupo político insignificante demais para eu atraiçoar. Não sinto nenhum orgulho especial por isso. Era só o que eu fazia para viver. - Ele fez uma pausa e olhou para os outros dois homens, depois encarou Henry novamente. — Posso muito bem dizer que se fôssemos adiante com isso, senhor presidente, quando entrássemos naquele avião amanhã eu não saberia o que dizer. Não tem ninguém em lugar algum à minha espera. Não sei que tipo de jogo alguém está pretendendo com vocês, mas sei que não tenho para onde ir daqui. A não ser voltar para o presídio, é claro. Tenho total consciência de que é melhor ser morador permanente de Marion, Ohio, do que de qualquer outro lugar do mundo. Esse breve dia de liberdade foi uma grande farra, especialmente o caviar, que foi incrível, e aproveitei ao máximo porque sabia que ia acabar logo. Sabia que iam descobrir tudo, e foi o que aconteceu.

Henry olhou bem para o homem diante dele. Ele não está mentindo, pensou, com o coração apertado.

- Tudo bem, Jovunet, o que o nome Sneakers Klint significa para você?

— Sneakers Klint? — Jovunet parecia verdadeiramente confuso. — Absolutamente nada. E deveria?

- Temos motivos para acreditar que ele pode estar envolvido no seqüestro da minha mulher ou, o que é mais provável, o irmão mais velho dele, Wexler Klint, pode estar envolvido. Sneakers Klint atualmente está cumprindo pena na prisão. O irmão dele nunca foi julgado culpado de nada, mas achamos que ele pode ter algum ressentimento contra a minha mulher.

Jovunet balançou a cabeça.

— Sinto muito ter de desapontá-los, cavalheiros. Conheci muitos caras repugnantes na vida, mas infelizmente o seu Sr. Sneakers Klint e o irmão não estão entre eles.

Cerca de duas horas depois, quando o sol da manhã lutava para penetrar nas nuvens sombrias que pareciam determinadas a jamais irem embora, a atmosfera no centro de comando na avenida Pennsylvania, l.600 estalava de tanta eletricidade.

O presidente, trajando sua roupa esporte preferida, calça jeans e uma camisa de brim Fred Imus Auto-Body Express, acabava de sair dos seus aposentos particulares dois andares acima e estava de pé ao lado de Henry, que tinha alternado uma chuveirada quentíssima com outra gelada numa tentativa de clarear a cabeça. Um agente da escolta do serviço secreto tinha ido ao apartamento presidencial de Watergate e voltado com equipamento de aviação, além de um suéter e calça comprida. Henry também tinha feito a barba pela primeira vez em dois dias. A barba e as roupas limpas eram concessões que só estava fazendo porque tentava se convencer de que iam encontrar Sunday naquele dia, e não queria estar com má aparência nesse encontro.

Um outro analista da CIA acompanhava o agente Conrad White, que mais cedo desenvolvera a teoria da máfia para explicar o seqüestro de Sunday. Os dois homens discutiam em voz baixa sobre o modus operandi que deviam seguir, quando notaram que o expresidente se aproximava.

White, que continuava a elaborar seu argumento sobre o envolvimento da máfia, dirigiu-se a Henry.

- Senhor - ele disse animado. - Sneakers Klint sempre esteve à margem da máfia, um ladrãozinho barato que freqüentemente prestava favores para eles. Acho que o irmão dele também deve ter trabalhado para eles. É provável que tenham considerado Wexler Klint instável demais. A sua insistência em conseguir a ficha dos delitos juvenis de Wexler provou ser muito valiosa. Quando jovem ele se envolveu em muitas enrascadas. Parece ter abraçado a cultura hippie no fim da década de 1960 e por um tempo suspeitou-se que tenha se envolvido com grupos clandestinos mais radicais, mas temos a impressão de que o fato de não ter se associado a nenhum colega na época transformou-o em persona non grata para eles, por isso jamais

reconheceram sua participação efetiva. Mas o último item da ficha é o mais revelador. Parece que alguém que se dizia membro do SDL, um dos grupos mais violentos de universitários, deixou uma carta no balcão de passagens da Pan Am no aeroporto de Newark, ameaçando seqüestrar o prefeito de Hackensack, Nova Jersey. Wexler Klint era um dos suspeitos, mas o caso nunca foi solucionado.

”Depois disso, a não ser por delitos ocasionais no trânsito e duas citações por distúrbio da paz, o nome de Klint desaparece dos registros da polícia. Mas nós sabemos que teve vários empregos. Seu QI é quase de gênio. Isso, associado ao fato de que uma vez trabalhou numa fábrica em que misturava produtos químicos para fazer desodorante e que mais tarde também trabalhou como mecânico de automóveis, nos faz pensar que...”

— Por que você está dizendo tudo isso? — perguntou Henry Britland, visivelmente frustrado, com a voz estridente, num tom perigoso. — Nada disso importa. Sabemos quem é o nosso homem.

— Mas senhor — interrompeu White —, nós temos de...

— Vocês têm de me ajudar a encontrar a minha mulher. Depois que fizerem isso podem analisar a situação o quanto quiserem. Estou sendo bem claro? Não quero um perfil psicológico. Quero um plano de ação. - Ele fez uma pausa, com o rosto a poucos centímetros do rosto do atônito agente da CIA. - E agora, vocês dois já chegaram a um acordo quanto à estratégia?

O analista que ficou em silêncio durante a explicação de White respondeu.

— Com toda a simpatia pelo sofrimento da Sra. Britland e pela frustração do senhor, temo que a única coisa que podemos fazer é dar uma estimativa do que achamos que Klint deve estar pensando e como pode reagir. — Fez uma pausa e apontou para White com um movimento da cabeça. — Meu colega e eu achamos que devemos anunciar para a mídia que sabemos que o homem que estamos procurando é Wexler Klint, e incluir nessa declaração a promessa do governo de que ele será bem tratado quando se entregar e, é claro, devolver sua esposa a salvo.

— Vocês dois concordam com isso? — Henry quis saber. White falou outra vez.

— Só que eu acho que é óbvio que existe um forte sentimento de

família entre os irmãos Klint, e que um estímulo extra para a rendição pacífica pode residir na nossa promessa de que os dois tenham direitos de visitação de um presídio para outro.

A sugestão ficou pairando no ar, e Henry continuou olhando fixo para o analista.

Com uma expressão que denotava desprezo e incredulidade, ele se afastou dos dois homens e aproximou-se do seu sucessor, que conversava com outras pessoas.

- Dês, precisamos ir. Tenho um pressentimento terrível de que não dispomos de muito tempo. Não temos notícia daquele infeliz há horas. Não dá para imaginar onde Sunday possa estar agora. — Ele virou para Marvin Klein. - Marv, ninguém descobriu ainda onde Klint estava morando?

— Ainda não, senhor. Nosso pessoal está pressionando Sneakers no presídio estadual de Trenton, mas ele insiste que não sabe onde o irmão está. Diz que não o viu, nem soube dele desde aquele último dia no tribunal. Infelizmente os homens com quem falei acham que ele deve estar falando a verdade.

Jack Collins se adiantou.

- O que sabemos de fato é que a família não vive mais em Hoboken, onde moravam quando Sneakers foi condenado. Encontramos a casa. Parece que houve melhorias no bairro e eles tiveram de sair. Sneakers contou que a mãe dele tinha uma irmã doente que era proprietária de uma casa no município de Washington D.C., e suspeita que ela mudou para lá. Quanto ao irmão, disse que sempre teve planos mirabolantes para ”dar o troco” ao governo por todo tipo de injustiças que acha que sofreu, e para fazer alguma coisa que ficaria na história. Disse que a mãe deles sempre foi um pouco maluca e que acha que o irmão deve ser também. — Collins balançou a cabeça. — De qualquer forma, estamos verificando essa pista de Washington D.C., à procura de algum documento da irmã, e de onde ela mora.

Do outro lado da sala soou um grito exultante.

— Senhor, localizamos a casa da irmã. Ela faleceu há pouco tempo, mas achamos que a mãe dos irmãos Klint está lá, e muito provavelmente Wexler Klint também.

— Então vamos! — gritou Henry. — Aposto que é lá que vamos encontrar Sunday.

Vinte minutos depois Henry Britland, muito abatido, estava de pé no porão de uma casa caindo aos pedaços no bairro de Georgetown. Tinha na mão o casaco de Sunday. A cadeira na qual Sunday estava sentada na fotografia tinha pontas de cordas ainda amarradas aos pés e no encosto. Estava observando o agente que tinha fotografado tudo quando ele parou de repente e abaixou-se ao lado da cadeira.

— O que é? — perguntou Henry. O agente hesitou.

— É sangue, senhor.

Profundamente infeliz Henry visualizou o que tinha acontecido. Ao cortar sem cuidado as cordas que prendiam Sunday à cadeira, o seqüestrador cortou a perna dela. Trêmulo de raiva, o ex-presidente virou para o outro lado. Vou matá-lo, jurou em silêncio. Vou encontrá-lo e vou matá-lo.

Jack Collins examinou a mancha de sangue.

— Senhor, eu não me preocuparia muito com isso. Como a quantidade de sangue é muito pequena, suponho que o corte deve ter sido superficial. Parece até que ela esfregou a perna na cadeira de propósito para deixar a mancha aqui — ele levantou. — Senhor, são nove horas. O que resolveu fazer?

Henry fechava e abria as mãos segurando o casaco de lã que ainda exalava o leve aroma de um dos perfumes favoritos de Sunday.

— Quero conversar com a mãe dele.

- Não vai conseguir grande coisa dela, senhor. Está assustada e confusa. A única coisa que foi capaz de contar foi que o filho trouxe uma mulher para cá, mas não deixava que ela descesse ao porão para conhecê-la.

Henry encontrou a senhora idosa sentada num sofá esfarrapado, na pequena sala de estar da exígua casa popular. Tinha uma expressão distante e vagamente triste, balançando o corpo e cantarolando baixinho.

Ele sentou ao lado dela e segurou sua mão. Ricos ou pobres, pensou, dá tudo na mesma quando perdemos o juízo. Sua própria avó tinha sofrido do mal de Alzheimer.

Lembrando de como falava com a avó, ele segurou a frágil mão da Sra. Klint nas suas.

— É uma bela canção que está murmurando — ele disse. — Três ratinhos cegos, não é? Por que está cantando isso?

Ela olhou para ele.

— Todo mundo está zangado comigo — ela disse.

— Ninguém está zangado com você — disse Henry, procurando acalmá-la com a voz bem suave. Sentiu a tensão na mão dela começar a diminuir.

- Eu deixei o leite estragar. Meu filho disse para eu cantar com ele. Mas então ficou zangado comigo. Eu estraguei o leite.

- Isso não é tão mau assim. Ele não devia ter se zangado - Henry disse para ela. - Onde é que o seu filho está agora?

- Ele disse que ia levar a amiga dele para nadar.

Henry sentiu a garganta apertar de medo. O envelope com o cabelo de Sunday molhado em água do mar - claro, devia ter feito a associação.

- Quando foi que ele a levou para nadar? - ele conseguiu perguntar.

— Eles vão nadar quando o avião decolar. Eu queria ir também, mas ele disse que era muito longe. Nova Jersey é muito longe? Eu sou de lá, sabe?

— Nova Jersey - disse Henry. - Sabe em que lugar?

— Eu sei. Mas é longe demais. - Ela fez uma pausa e olhou para as mãos. - Long Branch é muito longe? Eu gostava de lá. Gostava mais da casa que tinha lá do que da que tivemos em Hoboken. Era perto do mar. Depois que o avião for embora, eles vão nadar.

Ela fechou os olhos e começou a cantarolar baixinho outra vez. Dando uns tapinhas na mão da mulher, Henry levantou-se.

— Seja gentil com ela — ele instruiu o agente que estava à porta. — E pelo amor de Deus, sente perto dela, converse com ela e ouça o que ela tem a dizer.

Faltavam dez minutos para as dez horas e, de uma distância segura, câmeras de televisão filmavam a procissão de dezenas de agentes do serviço secreto escoltando o ex-presidente dos Estados

Unidos, Henry Parker Britland, e o terrorista Claudus Jovunet pela pista, até o SST.

Chegaram à escada, os agentes recuaram e ficaram observando enquanto Britland e Jovunet subiam os degraus sozinhos e depois fechavam a porta do avião.

— Jovunet informou ao governo que não revelará seu destino antes de servirem um almoço para ele — disse Dan Rather para os telespectadores. — O cardápio que ele exigiu inclui ostras na concha, um omelete de caviar, um chateaubriand com aspargos e uma seleção de tortas, tudo acompanhado de vinhos adequados, seguido de vinho do Porto. O chefão Lê Lion d’Or esteve a bordo do avião mais cedo para os preparativos e vai, é claro, descer da aeronave quando terminar o serviço. Então o ex-presidente comunicará seu plano de vôo e eles partirão.

”Não recebemos mais notícias dos seqüestradores que mantêm a esposa do Sr. Britland, a deputada Sandra O’Brien Britland, como refém, mas nossas fontes indicam que eles esperam que ela só seja liberada quando o avião tiver aterrissado no destino que ainda está para ser anunciado.

”E, assim — Rather continuou —, o drama se desenrola. Graças à cortesia de um espectador, tivemos a sorte de receber uma fita de vídeo doméstica da deputada Britland em seu recital de dança da quarta série. Temos o prazer de compartilhar esse filme com vocês agora.”

Oh, meu Deus, pensou Sunday quando se viu trotando no palco, com um saiote verde e uma varinha cintilante na mão. Eles devem estar brincando.

Ainda estava com a cabeça coberta quando Klint a levou para lá, mas parecia que estavam em outro porão, só que, se era possível, ainda mais destruído que o outro. Klint tinha levado o aparelho de televisão e ligou na mesma tomada em que estava pendurada uma lâmpada bem fraca.

A cadeira de metal à qual estava presa tinha arestas afiadas e enferrujadas, mas já não ligava mais. A única coisa que importava era se Henry tinha entendido a sua mensagem. Tinha certeza de que aquele não era Henry, de macacão e jaqueta de aviador. Provavelmente devia ser o agente que às vezes se fazia passar por ele, quando queria que as pessoas pensassem que tinham visto o presidente entrando num helicóptero a caminho de Camp David.

Também compreendeu que a conversa sobre o almoço devia ser para ganhar tempo. Mas será que Wexler Klint suspeitava de alguma coisa? Com todo cuidado deu uma espiada no canto do porão, onde ele estava sentado num colchão bolorento, com o manto de monge ao lado. Estava usando uma roupa de mergulhador e ficava beliscando a borracha grudada no corpo com impaciência.

Sunday tentou controlar uma onda de pânico crescente. Se Henry seguiu as minhas pistas e foi verificar meus antigos arquivos, o nome de Sneakers deve ter aparecido, ela pensou, fazendo um esforço para se acalmar. Tenho certeza de que ele está me procurando nesse exato momento. Senão estaria naquele avião.

A cerca de oitenta quilômetros dali, o helicóptero particular de Henry voava em círculos sobre Long Branch, Nova Jersey. Dúzias de agentes vasculhavam cada centímetro das propriedades da praia. Outros tocavam campainhas e examinavam cada casa que parecia vazia.

— Senhor, se ela estiver aqui, vamos encontrá-la — disse Marvin Klein pela quinta vez em menos de meia hora.

- Mas se existe alguma verdade no que aquela pobre senhora disse, então por que não encontramos nada que provasse que eles moraram aqui? Não há registro de qualquer imóvel em nome de Klint, nem em Long Branch nem perto daqui - disse Henry, deixando transparecer a frustração na voz. — A coisa toda deve ter sido apenas invenção da cabeça dela.

O tempo está se esgotando. O tempo está se esgotando, ele não parava de pensar. Não há nenhuma prova que indique que isso não é uma busca inútil. Klint já pode estar com ela na praia da Carolina do Norte a essa altura. Eles podem nem ter tido uma casa aqui. Talvez tenham apenas alugado. Ou então usavam um nome diferente. Simplesmente não temos tempo para eliminar todas as possibilidades.

— Telefone ”para o presídio estadual de Trenton — ele disse para Klein. - Quero falar com Sneakers de novo.

O tempo ia passando e absolutamente nada acontecia. Os noticiários se limitavam a repetir as partes conhecidas da crise, inúmeras vezes. A câmera continuava focalizando o SST estacionado na pista distante.

- Agora que já é quase meio-dia, o almoço deve estar quase acabando — informou Tom Brokaw para seus espectadores. — Devemos ver o chef saindo do avião a qualquer momento.

O que ele não disse foi que ele, assim como muitos outros repórteres experientes, tinha começado a suspeitar que aquilo era apenas ação retardada.

— Se aquele avião não decolar até meio-dia e meia, você não estará mais por aqui para dar adeus para o seu marido - disse Wexler Klint com raiva. — Estou cansado dessa história. Estou começando a achar que estão brincando comigo. — Levantou, caminhou até a porta do porão e olhou lá para fora. - Está ficando nublado outra vez. E ventando muito também. Melhor assim. Não vai ter ninguém na praia hoje.

Ele saiu e voltou com um relógio despertador antigo. Deu corda no barulhento mecanismo e ajustou os ponteiros para a hora apropriada. Então ligou o alarme. Pôs o relógio no chão na frente da cadeira dela, olhou para Sunday e sorriu.

— Às doze e trinta você e eu vamos nadar.

Claudus Jovunet acabou de comer o caviar que tinha levado para o avião. Não havia, na verdade, nenhum chefz bordo do SST, apenas o duble do ex-presidente e um bando de agentes federais, inclusive aquele que se fez passar pelo chefzos olhos da mídia. Mesmo assim ele aproveitou a refeição que conseguiu preparar, juntando as sobras da véspera.

- Minha nossa, como sinto falta da boa vida - ele disse, suspirando.

Olhou com saudade para a confortável cabine do avião. Então viu a bagagem Vuitton, com seu adorado guarda-roupa. Já que isso fazia parte de todo o embuste, os agentes acabaram cedendo ao seu pedido para seguir com ele para o avião.

— Você acha que quando me levarem de volta para Marion permitirão que eu fique com as gravatas Belois como agradecimento pela minha cooperação? - ele perguntou para o duble de Henry.

— Senhor presidente, se pudesse, eu ajudaria — Sneakers Klint disse com tristeza. — Quero dizer, esses guardas aqui nem sempre são as pessoas mais fáceis para se lidar, se é que me entende. — Ele fez uma pausa. — Olha, isso é tudo que eu sei. Mamãe teve Wex quando tinha quarenta e três anos, e eu quando tinha quarenta e cinco. Nosso pai? Quem sabe? Nunca o vi e mamãe nunca falou sobre ele. Deu o fora em algum momento depois que eu nasci, eu imagino.

— Eu conheço a história da sua família — disse Henry, aflito para ouvir alguma coisa diferente, alguma novidade.

- Mas quero afirmar mais uma vez... porque não foi culpa da minha mãe. Wex e eu nos metemos com más companhias, mas mamãe tentou. Ela nos mandou para a escola, e por algum tempo Wex até fez amizade com alguns tipos do colégio. Éramos ambos inteligentes, e quero dizer inteligentes mesmo. Mas o que se pode fazer? Certo?

— Olha, a sua mãe já teve uma casa em Long Branch, Nova Jersey? — Henry perguntou irritado. — É só isso que eu quero saber.

— Ouça, mamãe está chegando aos noventa anos. Deixe-a em paz. Ela não sabia se eu estava indo para a prisão ou para um cruzeiro de carnaval. Ela não regula. E o meu irmão também, é claro, só que ele não pode pôr a culpa na idade. Ele é simplesmente maluco.

— Pare com isso — disse Henry, quase gritando. — Eu não me importo com isso! Só quero saber se o seu irmão pode ter tido uma casa em Long Beach.

- Você disse Long Branch antes. De que lugar está falando? disse Sneakers. — Por falar nisso, nós costumávamos mesmo ir para a ilha de Long Beach. Wex e mamãe gostavam de lá. Eu estive pensando. Ele sempre dizia que um dia as pessoas iam saber quem ele era. Sempre teve idéias temerárias, dizia que faria alguma coisa e entraria na história por isso. Uma vez ficou encrencado porque ameaçou seqüestrar o prefeito de Hackensack... O nome dele era... olha só, Obie Good. Apelido de Obious Good. Que apelido, hein? Wex sempre usava esse nome idiota como disfarce. O ponto, B ponto, Good.

Henry não estava mais ouvindo. Long Beach Island. Será que a Sra. Klint também cometeu o mesmo erro? Pelo menos ela tinha uma boa desculpa, ele pensou.

Long Beach Island ficava a apenas oitenta quilômetros ao sul de Long Branch, mas podiam ser mil com o pouco tempo que restava.

Rabiscou um bilhete para Marvin Klein. Dizia simplesmente: ”Long Beach Island. Verifique o nome O. B. Good.”

Dez segundos depois toda a frota de helicópteros ia para o sul, bem rápido para cobrir a distância entre Long Branch e Long Beach Island, Nova Jersey. Eram doze horas e vinte e oito minutos.

Dan Rather apareceu na televisão dessa vez, com a imagem do SST numa tela atrás dele. Continuava estacionado na pista e parecia não haver nenhuma atividade em volta dele. Rather mexeu em alguns papéis que tinha à sua frente, depois olhou para a direita como se esperasse instruções. Virando novamente para a câmera ele disse:

— Bem, segundo as últimas informações que recebemos o plano de vôo foi registrado, mas um problema inesperado nos motores retardou a partida da aeronave. O presidente Desmond Ogilvey fará em breve um apelo pessoal aos seqüestradores da deputada Britland, pedindo paciência e que dêem um tempo para a equipe cuidar desse problema mecânico.

A televisão era a única iluminação do porão na praia de Nova Jersey. O som da voz do presidente Ogilvey provocava um som vazio, ecoando das paredes. Não havia ninguém lá para ouvi-lo.

  1. S. Eliot escreveu que o mundo não vai acabar com uma explosão, mas com um gemido, pensou Sunday enquanto era empurrada na areia da praia para o oceano Atlântico, ameaçador e cinzento, mas nada me fará gemer agora! Seus braços estavam amarrados na frente do corpo e apesar de os pés também estarem amarrados, havia folga suficiente na corda para caminhar arrastando os pés pela areia. Wexler Klint ia atrás dela, empurrando, com a roupa de mergulhador completa, máscara de mergulho e tanque de ar. Com o braço em volta de Sunday ele a apressava para a beira do mar.

A água deve estar congelada, pensou Sunday. Mesmo se eu tivesse uma chance, não teria chance alguma. Acabaria com hipotermia. Ou será que é hidrotermia? Oh, Henry, pensei que ia fazer alguma coisa na minha vida. Achei que faria coisas boas para pessoas boas e depois voltaria para casa, para você. Teria sido maravilhoso e sinto muito perder isso tudo.

Chegaram à beira da água e ela sentiu a espuma gelada batendo nos pés.

Meu Deus, está muito fria, pensou, cada vez mais assustada.

Uma onda bateu nos seu joelhos.

Desde quando era pequena, sempre adorei o mar, ela lembrou, pensando por um momento na época em que era uma menininha na praia de Jersey, sempre caminhando para o mar. Mamãe costumava dizer que precisava de olhos nas costas para não me perder na praia, pensou. Seria bom ter aqueles olhos me vendo agora. Adeus, mamãe, adeus, papai.

Já estava com a água na cintura. A corrente começava a puxar seus pés. Henry, eu te amo, ela pensou.

Com o olhar distante e mecanicamente frio, Klint continuou a forçar Sunday a avançar para longe da praia. O fator isolante da roupa de mergulho e o rugido do mar evitavam que ele ouvisse o ruído distante de motor que se aproximava do lado norte da praia, crescendo a cada segundo.

O plano de Wexler Klint era arrastar Sunday até o fundo, afogá-la longe da praia, depois empurrar o corpo, flutuando mar adentro, até alcançar a corrente. Podia dar em alguma praia depois de alguns dias, ou depois de um mês, mas que diferença isso poderia fazer? Ela estaria morta e só isso importava. Ele nem se importava de ser capturado depois de algum tempo. Teria deixado a sua marca. Teria o seu lugar nos livros de história.

— Senhor, à esquerda! Veja!

Henry foi rápido para o outro lado do helicóptero. Com binóculos conseguiu* ver uma pessoa no mar, a pelo menos vinte metros da praia. Ajustou o foco para ter uma visão melhor. A pessoa parecia estar segurando alguma coisa embaixo da água. Não dava para saber o que estava acontecendo, se era apenas mais um pescador solitário tentando pegar seu peixe a qualquer custo. O tempo era precioso demais para desperdiçar com a coisa errada.

Estavam mais perto. Ele acertou o foco outra vez e finalmente viu: cabelo louro, flutuando na superfície agitada do mar! Sunday, pensou. Tem de ser a Sunday!

— Mergulhe! — ele gritou.

O helicóptero iniciou uma descida vertiginosa.

Klint a segurava com força, e Sunday lutava mas não conseguia manter a cabeça fora da água. Adeus, Henry, ela pensou.

Foi então que Klint ouviu o barulho dos helicópteros que se aproximavam, olhou para cima e entendeu o que estava acontecendo. Desesperado, passou os braços em volta do pescoço de Sunday e puxou-a para o fundo. Ele ainda teria tempo para acabar com ela. E mesmo sendo preso, teria seu lugar nos livros de história. Ia mostrar para aqueles imbecis. O quanto os odiava.

Aqueles imbecis em Washington.

Foi a última coisa que Wexler Klint pensou antes de acordar alguns minutos depois, firmemente detido.

O mergulho como bala de canhão que Henry deu no mar permitiu que ele voltasse imediatamente à superfície. Ele agarrou Sunday com um braço. Com o outro arrancou a máscara do rosto de Klint e apertou o pescoço dele até deixá-lo paralisado. Espero que ele morra afogado, pensou Henry. Os helicópteros despejaram uma tropa de agentes na água em volta deles.

- Meu amor, meu amor - Henry dizia o tempo todo para Sunday enquanto nadava para a praia atravessando a arrebentação, puxando-a ao seu lado.

— Henry, querido — Sunday murmurava, tremendo, para ele, passando os braços no seu pescoço. — Não ouse me beijar até eu poder escovar os dentes.

Em toda a sua vida, Henry Parker Britland IV dificilmente tinha dito para alguém calar a boca, mas chegou perigosamente perto naquele momento. Estava também perigosamente perto de chorar quando chegou à praia e rolou na areia, segurando sua adorada

Sunday aninhada nos braços. Ignorando o pedido dela, beijou seus lábios e sussurrou.

— Fique quieta, querida.

Foi recompensado com uma risada fraquinha que surgiu por trás de dentes que tiritavam de frio.

Ele olhou bem nos olhos dela. Está histérica, pensou.

- Solte-se - ele disse, querendo confortá-la. - Você passou por momentos terríveis. — E depois acrescentou, incrédulo: — Por Deus, você está rindd

— Ah, não é de você, querido — ela disse, afundando o rosto no pescoço de Henry enquanto uma onda molhava os dois. — Estava só pensando que essa é uma época muito louca do ano para estarmos aqui brincando de Burt Lancaster e Deborah Kerr.

— Do que é que você está falando? — perguntou Henry, espantado.

— A um passo da eternidade.

 

     SALVE, COLUMBIA

 

THE NEW YORK TIMES. 8 de novembro

O ex-presidente Henry Parker Britland IV adquiriu o iate Columbia, reavendo a posse da sua família. Construído para a família Britland e lançado ao mar pela primeira vez em 1940, o Columbia foi vendido em 1964 para Hodgins Weatherby, já falecido. Logo antes dessa venda a embarcação foi cenário do desaparecimento misterioso e ainda não solucionado do primeiro-ministro de Costa Barria, Garcia dei Rio.

Nas três décadas que ficou longe das mãos dos Britland, o iate adquiriu a reputação de ser assombrado, em parte devido ao desaparecimento de dei Rio, e em parte por causa do comportamento um tanto excêntrico e às vezes incoerente do proprietário mais recente.

Maior e considerado muito mais luxuoso do que o iate presidencial oficial Sequoia, o Columbia tem sido o lazer preferido dos presidentes americanos, de FDR a Gerald Ford.

No salão eduardiano do Plaza Hotel de Manhattan, Congor Reuthers, um homem magro, musculoso, de cinqüenta e poucos anos, obedeceu trêmulo às ordens que recebeu e leu a notícia do jornal em voz alta. Depois olhou com expressão de medo para a patroa.

Estavam sentados a uma mesa perto da janela com vista para o Central Park, e as carruagens puxadas por cavalos do outro lado da rua povoavam o salão discreto e elegante com os sons suaves de cascos batendo no asfalto. Enquanto aguardava uma reação, Reuthers lembrou por um instante de sua primeira caça à raposa. Quando jovem ficava imaginando o que a raposa devia sentir ao ser encurralada. Agora sabia.

A reação foi exatamente a esperada. A patroa pôs a xícara de café lentamente no pires.

Nem as lentes de contato azuis conseguiam disfarçar a fúria daqueles olhos negros e gelados. Como sempre, Angélica viajava incógnita. Neste momento usava seu disfarce de Sra. Roth-Jones, com as lentes azuis, uma peruca loura bem-comportada, um conjunto de lã e sapatos clássicos.

Ela continuou a olhar fixo para ele, e Reuthers abaixou os olhos.

- Sinto muito - ele murmurou, e depois desejou ter mordido a língua.

— Você sente muito — ela disse com frieza na voz. — Eu esperava uma resposta mais apropriada. Onde é que o Carlos estava?

— Estava lá, como foi ordenado.

— Então por que ele não deu um lance pelo iate? Não, dar um lance não. Por que ele não comprou o iate?

— Ficou com medo de que um dos homens do serviço secreto o reconhecesse. Ninguém sabia que Britland planejava ir ao leilão. Não tínhamos previsto a concorrência. Carlos saiu correndo para chamar Roberto para fazer os lances. Quando finalmente Roberto conseguiu passar pelo sistema de segurança, o presidente Britland já havia triplicado o lance inicial. Um segundo depois o iate já era dele. A arrecadação ia para a caridade, sabe...

A patroa olhou para ele em silêncio e depois perguntou:

— Quais são os planos do Britland para o iate?

Dessa vez Reuthers teria preferido engolir a língua em vez de responder.

— Dizem que vai zarpar imediatamente para sua marina particular em Boca Raton, na Flórida. Ele é formado em arquitetura, sabe, e dizem que ele mesmo planeja reformar todo o interior, depois dá-lo de presente para o governo para, novamente, servir de ponto de encontro para estadistas que venham visitar o país. Junto com o presente parece que vai um considerável dote para a manutenção.

— Nós sabemos o que isso significa.

Reuthers fez que sim com a cabeça, sem dizer nada.

— O Carlos e o Roberto são inúteis para mim agora.

Os dedos que tinham segurado a delicada xícara de porcelana crisparam-se subitamente, apoiados na mesa.

— Certamente... — Reuthers fechou a boca para abafar o protesto.

— Certamente? — um sussurro venenoso ecoou em Reuthers. — Cuidado para não ter de juntar-se aos seus amigos. Que utilidade você tem para mim? Você é quem devia saber que Britland planejava comprar o Columbia no leilão. — Os olhos duros fixaram-se em Reuthers com uma frieza assustadora. — Saia da minha frente!

— Henry, querido, ainda não estou acreditando — suspirou Sunday apoiada no guarda-mancebo do Columbia, tentando avistar Belle Maris, a propriedade dos Britland na costa da Flórida.

Ela esticou o pescoço e afastou uma mecha de cabelo louro, soprado pelo vento, dos olhos azuis cintilantes.

”Minha linda, minha esposa, minha última descoberta, providência divina, melhor dádiva, meu deleite eternamente renovado!”, refletiu Henry Parker Britland IV olhando para ela enquanto estudava a planta do Columbia, sentado na espreguiçadeira. Desde o recente seqüestro de Sunday sempre lembrava daquelas suaves palavras de Milton.

— Por que não acredita? — ele perguntou carinhosamente.

— Porque quando eu tinha nove anos, li um livro sobre o Columbia e tentei visualizar como devia ser quando o presidente Roosevelt e Winston Churchill navegavam nele no Potomac. Dá para imaginar o que eles conversavam? E o presidente Truman costumava tocar piano para seus convidados quando Bess e ele davam festas aqui. E os Kennedy e os Johnson adoravam esse barco, e você sabia que o presidente Ford praticava suas tacadas de golfe no convés de proa?

— Uma vez atingiu o capitão — Henry observou secamente. — Na verdade, a piada era que a equipe dele recebia salário de combate quando o presidente Ford usava seus tacos de golfe.

Sunday sorriu.

— Eu já devia saber que você conhece toda a história do Columbia. Foi praticamente criado nele. - Ela ficou séria. - Mas o que eu sei é que você nunca esqueceu a noite em que o primeiro-ministro dei Rio desapareceu. Posso compreender isso. Continuamos vivendo os efeitos do desaparecimento dele.

— Eu tinha doze anos — disse Henry pensativo. — E fui a última pessoa que falou com ele antes de ele sair para fumar no convés. O homem mais interessante que conheci.   Ele me pediu para acompanhá-lo.

Sunday percebeu que o olhar do marido ficou triste. Ela foi até a espreguiçadeira e sentou na beirada.

Henry afastou as pernas para dar mais espaço para ela e segurou sua mão.

- Como era o único membro dessa geração dos Britland, meu pai me incluía em todas as ocasiões possíveis. Nossa, até voei com ele na visita que fez ao xá, no auge da monarquia no Irã.

Sunday nunca se cansava de ouvir as histórias das aventuras de Henry quando criança e quando jovem. Era tão completamente diferente da sua experiência, tendo sido criada na cidade de Jersey, filha de um motorneiro de trem da Central de Nova Jersey.

Naquele momento, apesar de querer descobrir o que tinha acontecido quando Henry esteve com o xá, Sunday estava mais interessada em saber o que tinha acontecido no Columbia naquela noite.

— Eu não sabia que você tinha sido a última pessoa mesmo a conversar com o primeiro-ministro dei Rio — ela disse calmamente.

— O jantar foi muito agradável — contou Henry. — O primeiro-ministro tinha anunciado o plano do meu pai de mandar sua firma de engenharia para construir uma série de pontes, túneis e estradas em Costa Barria; metade do custo do empreendimento seria um presente pessoal para o país. Teria dado um impulso enorme na economia. Todos naquela sala perceberam que aquele desenvolvimento na economia ia significar que dei Rio poderia se manter no poder e assim evitar que Costa Barria retrocedesse para uma ditadura.

— Del Rio e seus auxiliares devem ter ficado muito contentes — disse Sunday. — Você acha possível que ele tenha cometido suicídio? — Observando a testa franzida do marido, acrescentou: — Henry, querido, acho que sei que é muito penoso falar sobre isso. Então pode me mandar passear, se quiser.

Henry olhou para ela.

— Meu amor, se você fosse passear, teria de nadar muito até a praia. E apesar de não ter mencionado, ainda, sei que não resolveu como vai votar quanto à lei do Congresso que determina a retomada do auxílio a Costa Barria.

Sunday respondeu na defensiva.

— Sei que você acha que seria melhor continuar com o embargo, mas é difícil ignorar uma ilha com oito milhões de habitantes, muitos dos quais vivem na pobreza e precisam desesperadamente da nossa ajuda.

— Bobby Kennedy deu uma versão desse argumento para a abertura da China.

— Em 1968, não foi? — perguntou Sunday.

-Junho de 1968, para ser mais exato - disse Henry. - Quanto ao primeiro-ministro, ele era um grande amigo do meu pai e vinha sempre nos visitar. Orgulho-me de dizer que ele se afeiçoou a mim, e como eu tinha resolvido aprender tudo o que pudesse sobre o país dele, inclusive a situação política, além da econômica, ele gostava de fazer questionários para mim. Naquele último dia, nadamos juntos na piscina externa. A tarde estava linda, mas ele parecia meio triste. E então disse uma coisa muito estranha. Muito sério, me contou que por algum motivo as últimas palavras de César o estavam perseguindo.

— E tu Brutus. Por que ele diria isso?

- Não sei. Ele vivia sob a ameaça de ser assassinado, é claro. Era uma constante. Mas no Columbia sempre se sentiu seguro. No entanto, eu sei que era dado a crises de depressão, e pelo que entendo agora, aquela apreensão constante pode ter levado a melhor naquela noite.

— Isso é possível — concordou Sunday.

— Como eu disse, o jantar foi bem agradável e terminou às dez e quinze. A madame dei Rio retirou-se imediatamente, mas o primeiro-ministro ficou conversando. Então, quando eu ia saindo da sala de estar ele apareceu ao meu lado e convidou-me para dar um passeio pelo convés. Respondi que minha mãe esperava que eu telefonasse para ela às dez e meia. Mamãe hospedava sua velha amiga a rainha Juliana da Holanda, em visita a Nova York aquela semana. Então, olhando para o rosto dele, compreendi que por baixo daquela aparência jovial, dei Rio estava profundamente angustiado. Mais do que depressa eu disse que minha mãe ficaria honrada se eu aceitasse o convite e fosse caminhar com ele.

— Então você não pode se culpar — insistiu Sunday. Henry olhou para o mar atrás dela.

— Lembro que ele deu um tapinha no meu ombro e disse que eu não devia desapontar minha mãe, que talvez eu tivesse feito a melhor opção para nós dois. Ele disse que precisava ficar sozinho, que tinha algo muito urgente para pensar. Então me abraçou e no mesmo momento tirou disfarçadamente um envelope do bolso e pôs no meu. Disse bem baixinho para eu guardá-lo até ele pedir de volta.

”E foi assim - ele continuou - que eu desci para a minha cabine e liguei para a minha mãe para contar como tinha sido o jantar, e depois acordei na manhã seguinte com os gritos histéricos da madame dei Rio. E soube que qualquer coisa que tivesse acontecido, eu poderia ter evitado.”

— Ou poderia ter tido o mesmo destino de dei Rio, tentando salvá-lo — disse Sunday rapidamente. — Seria bem o seu estilo mergulhar atrás dele. Você acha que um menino de doze anos, mesmo sendo você, poderia modificar o que aconteceu? Está sendo duro demais com você mesmo.

Henry balançou a cabeça.

— Acho que você deve ter razão. Mas é que fico revivendo aquela noite, sabendo que poderia ter observado alguma coisa, algum sinal, que não compreendi na hora.

- Ora, o que é isso, Henry? - Sunday protestou. - Você está parecendo algumas pessoas que representei como defensora pública: ”O cara que atirou na minha mulher foi para lá.”

- Não - disse Henry. - O que você não entende, querida, é que meu pai tinha dito para eu escrever todas as impressões que tive aquela noite, como tinha feito com todos os outros acontecimentos significativos aos quais estive presente. Meu diário era um prendedor de papel com folhas soltas, de modo que no futuro pudesse juntar aquele capítulo com os outros que tratassem de assuntos similares. O que, é claro, estou fazendo agora, enquanto escrevo as minhas memórias.

— O meu diário era um caderno espiral — disse Sunday.

— Eu gostaria muito de lê-lo.

- De jeito nenhum. Mas de qualquer maneira, você estava me contando...

- Depois que falei com a minha mãe - apesar de estar tremendamente cansado -, esforcei-me para anotar tudo, nos mínimos detalhes. Deixei o diário na minha mesa com o envelope do primeiro-ministro em cima. Durante a noite aquelas páginas e o envelope sumiram enquanto eu dormia.

Sunday olhou para ele atônita.

— Quer dizer que algum desconhecido entrou no seu quarto enquanto você dormia e furtou o envelope e as suas anotações sobre aquela noite?

-É.

- Então, Henry querido, uma palavra me vem à cabeça: crime.

- Eles chegaram, Sims - gritou Marvin Klein, de pé perto das janelas da frente do salão de Belle Maris, vendo o iate elegante lançando âncora.

Sims saiu de perto da mesa de centro onde arrumava um arranjo de flores e atravessou a sala com passos majestosos.

- É, chegaram - ele disse afetuosamente. - E fico feliz de saber que está tudo em ordem para recebê-los. Minha nossa, o Columbia é um lindo barco, não é? Já passeei nele algumas vezes, sabia? - ele deu um suspiro. - Até aquele acontecimento terrível.

- Você estava a bordo do Columbia naquela noite? - exclamou Marvin.

- Estava. Trabalhava para a família há pouco menos de dois anos. O senhor Henry Parker Britland IV foi suficientemente generoso para achar que eu sabia cuidar dos pequenos detalhes que cercam um serviço de fino trato e sempre me levava no iate durante eventos especiais, como aquele fim de semana. O presidente ainda era apenas um menino, mas lembro que ficou muito abalado com o desaparecimento do primeiro-ministro. Naturalmente. De fato, ele até ficou doente alguns dias depois. Tentou, com seu jeito e entusiasmo de jovem, determinar o que tinha acontecido, mas o pai dele ordenou que esquecesse o assunto.

O olhar pensativo de Sims desapareceu e ele se permitiu um sorriso contido diante da visão de Henry e Sunday descendo para a lancha.

— Estou muito contente porque os siris estão uma perfeição — ele disse para Klein. - O presidente ficará satisfeito, eu sei.

— Tenho certeza de que sim — concordou Marvin. — Mas só quero fazer uma pergunta, Sims. Você disse que o assunto do desaparecimento do primeiro-ministro estava encerrado. Mas deve ter havido uma grande investigação, não?

— É, houve sim, especialmente pelo fato de que o corpo do primeiro-ministro nunca foi encontrado. Mas o que poderiam dizer? Todas as medidas possíveis de segurança tinham sido tomadas. Como pode ver, a suíte maior fica meio andar acima das outras cabines e tem um convés particular. O Sr. Britland ofereceu essa suíte para o primeiro-ministro naquele fim de semana. Os guarda-costas do primeiro-ministro estavam ao pé da escada que levava para a cabine. Naturalmente o iate foi totalmente examinado antes de zarpar e todos a bordo, desde a tripulação até a equipe pessoal, eram pessoas acima de qualquer suspeita. O primeiro-ministro também tinha com ele quatro guarda-costas pessoais.

— E a mulher dele também foi?

— Foi. Na época eles eram recém-casados e ela sempre viajava com ele.

- Pelo que sei, ela tornou-se muito poderosa - observou Klein.

- Isso mesmo. Ela ocupou o cargo de Garcia dei Rio. O senhor Henry Parker Britland IV não esperava que ela conseguisse manter-se no posto, mas ela jogou habilidosamente com o amor que o povo tinha pelo falecido marido e acabou fortalecendo sua posição. Conseguiu anular grande parte da oposição dizendo que os inimigos do marido o levaram à morte. Agora, claro, ela é praticamente uma ditadora.

Marvin Klein ficou pensativo.

- Estive com ela sete anos atrás, quando o presidente Britland participou de um encontro dos países da América Central. Ela acabara de completar cinqüenta anos e continuava linda. O presidente Britland se referia a ela como a ”madame Castro”. Mas sempre acrescentava que se o marido não tivesse morrido, sua vida seria completamente diferente.

Sims deu um suspiro.

— O que, claro, é um dos motivos de o presidente Britland sempre ter se sentido culpado. Tenho certeza de que ele acha que se tivesse acompanhado o primeiro-ministro ao passeio pelo convés aquela noite, poderia ter evitado a sua morte de alguma maneira.

— Soube que o primeiro-ministro tinha sempre um mesmo sonho, no qual ele era assassinado.

— Bem ao estilo de Lincoln, você não acha? — comentou Sims. — E talvez ele tivesse se antecipado aos inimigos tirando a própria vida, como acredita o presidente. Quem sabe? Agora, com sua licença, senhor Klein, devo cuidar dos meus afazeres. A lancha que transporta o presidente e a senhora Britland está se aproximando do cais.

Congor Reuthers registrou-se no Hotel Boca Raton dando a impressão para todo o mundo de que era um jogador de golfe maduro, de férias. O paletó de linho azul-claro caía casualmente sobre uma calça jeans branca com corte impecável. A bolsa com os tacos de golfe tinha a aparência de ser bem usada e estava encostada no conjunto de malas Boyd. Como um toque para finalizar ele tinha uma capa de couro de câmera fotográfica pendurada no ombro, mas que em vez da câmera continha um telefone celular ultra-potente, de última geração.

A bolsa de golfe e os belos tacos eram verdadeiros, mas nas mãos de Reuthers não passavam de meros acessórios para compor a pose de turista. Os tacos, na verdade, tinham sido de um industrial de Costa Barria que cometeu o erro de criticar a madame dei Rio em público, e foram deixados para trás com praticamente todos os seus bens quando ele teve de fugir da ilha.

Reuthers de repente percebeu que o empregado do hotel falava com ele. O que o cara estava dizendo?, pensou irritado. Alguma coisa sobre golfe.

— Sim, sim — ele disse apressadamente. — Mal posso esperar para jogar alguns sets de golfe. Adoro o jogo, sabe?

Sem perceber que cometera uma gafe, Reuthers deu meia-volta e seguiu o rapaz até a suíte da qual pretendia dirigir sua operação a mando da patroa, à procura do Columbia.

Às quatro horas o telefone tocou.

Era Lenny Wallace, também conhecido como Len Pagan, mas cujo verdadeiro nome era Lorenzo Esperanza, que Reuthers tinha conseguido plantar na tripulação do Columbia.

Com satisfação Reuthers lembrou do rosto completo de bebê do homem, com sorriso angelical e tudo, uma penugem no lugar do bigode, sardas no nariz e orelhas grandes. Len parecia o jovem Mickey Rooney, quando fez o papel de Andy Hardy num filme muito antigo.

Na verdade ele era um assassino frio e cruel.

— Não vai ser fácil — disse Len com a voz arrastada.

Reuthers mordeu o lábio, lembrando que aquele bandido violento era especialmente favorecido pela primeira-ministra Angélica dei Rio. Então lembrou também que ela jamais falhava em punir qualquer fracasso.

— Por que não? — retrucou com rispidez.

- Porque a mulher do presidente Britland é bisbilhoteira, está sempre metendo o nariz em tudo. E também porque ela está fazendo um monte de perguntas sobre aquela noite.

Reuthers começou a transpirar nas mãos.

— Como o quê?

— Eu fingi que estava polindo alguma coisa na sala de jantar quando ela e o Britland estavam lá. Ouvi a conversa deles. Falavam sobre o jantar com dei Rio. Ela perguntou em que lugar da mesa cada um sentou.

— Ele só tinha doze anos na época — protestou Reuthers. — O que poderia lembrar que faria alguma diferença para nós agora?

— Ela comentou alguma coisa a respeito de nunca ter ouvido ele falar tanto, me refiro ao marido dela, de estar muito cansado. Foi mais ou menos assim: ”Você estava cansado, o primeiro-ministro estava cansado, seu pai estava cansado. O que vocês comeram de sobremesa aquela noite, valium?

Reuthers fechou os olhos, ignorando a esplêndida visão do sol iniciando sua majestosa descida para o horizonte. Seu pior pesadelo estava virando realidade. Eles estavam chegando perto demais.

— Você tem de encontrar aqueles papéis — ele ordenou.

— Olha, o lugar está infestado de agentes do serviço secreto. Terei uma chance, uma única chance, por isso é melhor que a sua informação esteja correta. Tem certeza de que escondeu os papéis no camarote A?

— Seu assassino insolente, é claro que tenho certeza — disse Reuthers irritado.

A lembrança daquela noite provocou calafrios. Ao revistar o paletó do primeiro-ministro descobriu que o envelope não estava mais com ele. Eu sabia que o menino tinha sido a última pessoa a estar com ele. Sabia que o primeiro-ministro devia ter dado o envelope para ele. Precisava encontrar seu camarote naquela escuridão. O menino estava no camarote A. Com meu péssimo senso de direção, abri aporta errada. E se tivesse alguém no camarote B?

Reuthers ainda suava frio lembrando de como tinha entrado na cabine do menino na ponta dos pés, rezando para que o camareiro não voltasse, descobrisse que a luz do corredor estava apagada e resolvesse investigar. Então, armado com uma lanterna em forma de lápis ele foi até a mesa e pegou o envelope de dei Rio. Por sorte viu de relance o diário aberto. Leu, percebeu a importância do que continha e tirou as últimas anotações do prendedor de papel.

Mas aí ouviu a maçaneta da porta girando e o menino começou a se mexer na cama. Rapidamente foi se esconder no armário. Sentindo que estava encurralado, tateou no escuro à procura de uma possível saída. Descobriu um buraco na parede. Temendo ser descoberto e revistado, jogou as páginas do diário e o envelope de dei Rio no buraco.

De dentro do armário ouviu alguém entrar no camarote, caminhar até a cama, dar meia-volta e sair. Mas quando tentou recuperar os papéis não conseguiu alcançá-los. Lutou quase uma hora com o braço lá dentro, sentindo as pontas dos dedos roçarem na pontinha do envelope, sem poder segurá-lo. Então a madame dei Rio deu o alarme. Mal tinha saião do camarote, o menino acordou, ele lembrou. Ela berrava como uma alma penada. Ele soube que no dia seguinte instalaram cofres em todos os camarotes. Era por isso que tinham feito aquele buraco no fundo do armário.

— Essa vai ser dureza — dizia Len. — Os caras do serviço secreto do Britland são espertos. Têm olhos nas costas, esse tipo de coisa. O mandachuva já gritou comigo por eu ter entrado na sala de jantar quando os Britland estavam lá.

- Isso não é problema meu! - reagiu Reuthers. - Deixa eu esclarecer uma coisa. Se você conseguir recuperar aqueles papéis e escapar, terá o agradecimento de uma patroa poderosa. Se estragar tudo, sua mãe idosa e as oito irmãs dela serão despachadas para o além.

Len começou a choramingar.

— Eu amo a minha mãe e as minhas tias.

— Então sugiro que recupere aqueles papéis, não importa o que tenha de fazer. Está entendendo? Aquele buraco estava lá na parede porque iam instalar um cofre no dia seguinte. A reforma que já está programada pode revelar os papéis. Quebre a folha de madeira do fundo do armário do camarote A. Estão lá dentro! Não me importa como você vai fazer, simplesmente faça, e não cometa nenhum erro.

— Henry, quando você contou para o seu pai que os papéis tinham sumido, o que ele fez! - perguntou Sunday tomando um gole de champanhe no salão envidraçado do Columbia.

Em forma de semicírculo na popa da embarcação, esse salão tinha espaço para acomodar dez pessoas confortavelmente e, como Henry havia explicado, era o local preferido de muitos dignitários para conversar, ler ou simplesmente observar o horizonte.

- Acho que com a calamidade do desaparecimento do primeiro-ministro papai não ficou muito impressionado com a minha história dos papéis que sumiram. O primeiro-ministro tinha o hábito de rabiscar nos cardápios ou nos discursos impressos, e sei que meu pai pensava que talvez ele tivesse dado um desses rabiscos para mim de brincadeira.

- E as páginas do seu diário?

- Ele disse para eu escrever tudo de novo quando me sentisse melhor. Eu tinha acordado com dor de cabeça, algum vírus, imagino, e é claro que estava tudo na maior confusão. Havia muitos helicópteros sobrevoando a área à procura do corpo. Barcos, mergulhadores da marinha, tinha de tudo.

— Você acha que dei Rio lhe deu algum tipo de rabisco sem importância naquele envelope?

— Não, não acho.

- Fizeram uma busca para encontrar os papéis?

- Para ser justo com meu pai, sim, fizeram. Obedecendo às instruções dele, Sims vasculhou pessoalmente o meu camarote para ter certeza de que eu não tinha me enganado quanto a ter deixado o envelope junto com o diário em cima da mesa. Mas não encontrou nada.

— E é claro que como você escrevia em folhas soltas, com um prendedor de papel, não podia mostrar um diário com as páginas arrancadas.

- Exatamente.

Henry olhou para a mulher afetuosamente. Sorriu e depois disse:

- A propósito, se os seus eleitores pudessem vê-la agora, nunca votariam em você. Parece que tem doze anos de idade.

Sunday usava uma saia longa, tipo envelope, florida, camiseta branca sem mangas e sandálias. Ela ergueu a sobrancelha.

— Neste momento posso não estar parecendo um membro do Congresso - ela disse com dignidade -, mas para sua informação, todas essas perguntas não são resultado de uma curiosidade pueril, de falta do que fazer, porque, querido, sei que ainda fica abalado com o que aconteceu aquela noite. Sinto exatamente a mesma coisa que você a respeito da madame dei Rio. Gostaria de ver Costa Barria com um governo justo, não repressivo. Mas para isso seria necessário ir contra ela e a menos que algo dramático aconteça, ela ganhará fácil aquela eleição. É praticamente arranjada.

— E fico louca de pensar que alguém do grupo de Garcia dei Rio pode ter furtado seu bilhete de suicídio, se é que era isso, do seu quarto, enquanto você dormia. Não há como saber, mas poderia fazer uma grande diferença.

- Fico mais louco ainda de pensar que eu podia ter salvado a vida do primeiro-ministro se tivesse ido passear pelo convés com ele. Na verdade foi por isso que comprei o Columbia. Fora aquele incidente, sua história é grandiosa e distinta. Quero dar um jeito de tirar essa mancha.

Sims entrou na sala em silêncio carregando uma bandeja com bolinhos de queijo. Ofereceu para Sunday. Ela aceitou um e disse para ele:

— Sims, você já esteve nesse iate antes?

— Já, madame.

— O que acha dele agora? Sims franziu a testa.

— Está muito bem cuidado, madame, mas se me permite fazer uma observação, é incrível notar que quase nada mudou. Estou me referindo ao forro das paredes, à roupa de cama, aos estofados, às cortinas. Durante os trinta e dois anos em que o Columbia foi propriedade do Sr. Hodgins Weatherby, ele obviamente cuidou do iate como se fosse um santuário.

Henry deu uma risadinha.

- Isso eu posso explicar. Weatherby não era nenhum marinheiro. Na verdade, a simples visão de uma crista de onda já era uma tortura para ele. Pagou uma fortuna para dragar o porto para poder chegar ao barco a pé pelo cais, e fora o pessoal da manutenção, ninguém mais ia a bordo, a não ser ele e seu consultor espiritual. Sentava sempre aqui — Henry bateu com a palma da mão no braço da cadeira em que estava sentado, depois apontou para a de Sunday -, e o médium ali.

”Não cheguei a contar para você, querida, mas está sentada na cadeira de 5/>Winston Churchill. Segundo o que meu pai me disse, quando Roosevelt pegou o iate emprestado para levar Churchill para um passeio, ele foi direto para essa cadeira. Através do médium, o velho Weatherby afirmava que conversava com o primeiro-ministro, e com Roosevelt, de Gaulle e Eisenhower também, para mencionar apenas alguns. No entanto eu soube que não se comunicava com Stalin de jeito nenhum.”

— Tratava o iate apenas como uma espécie de caramanchão exótico — disse Sunday. — Posso entender por que a família de Weatherby quis logo doar o barco para o leilão de caridade quando ele morreu.

- Eu também. Mas é claro que foi daí que surgiu a história de o barco ser mal-assombrado. Parece que o médium era um ótimo imitador.

Ouviram uma batida na porta. Marvin Klein entrou meio hesitante.

— Senhor presidente, tentei não interromper, mas o secretário de estado quer falar com o senhor.

— Tony? — disse Henry. — Deve ter acontecido alguma coisa.

Ele pegou o telefone da mão de Klein e sussurrou: - Sims, não vá embora. Quero esses bolinhos de queijo.

Ele engoliu um rapidamente, depois falou cordialmente ao telefone.

- Olá, Tony. Ranger está mantendo você ocupado, espero? Ranger era o codinome dado pelo serviço secreto ao chefe executivo.

O secretário de estado Anthony Pryor tinha sido escolhido para aquela posição no primeiro escalão do governo pelo sucessor de Henry, o presidente Desmond Ogilvey. Amigo de Henry desde os anos de Harvard, Pryor gostava de dispensar as formalidades quando conversava com ele.

- Henry, estou mais ocupado do que raposa em galinheiro - ele disse - mas isso você já sabe. Olha, você comprou o Columbia de volta e agora esperamos que possa nos ajudar em uma coisa. Você receberá uma ligação da parte de Miguel Alesso. Ele quer vê-lo. Ranger quer que vocês se encontrem.

- Alesso? Ele está concorrendo contra a primeira-ministra de Costa Barria nas eleições.

- Pode apostar que está. E está incógnito em Miami. Jura que Angélica dei Rio foi a mandante do assassinato do marido há trinta e dois anos, e que os agentes dela estavam tentando comprar o Columbia no leilão, só que você chegou primeiro.

- Como é que ele soube disso? - Henry perguntou em voz baixa.

- Porque a viúva de um dos caras que impossibilitou a compra na semana passada telefonou para ele. O fato é que Ranger acha que você, mais do que ninguém, seria capaz de descobrir falhas na história de Alesso. Se concluir que há um fundo de verdade, isso poderá determinar a nossa posição quanto às eleições. Apesar de já terem se passado trinta e dois anos, Garcia dei Rio é considerado praticamente um santo no país dele. E não esqueça que Angélica dei Rio deve vir para cá em visita oficial para acertar que garantirá os direitos humanos e que libertará os dissidentes. Ranger não quer acabar com um ovo na cara se alguém provar que ela foi o cérebro do assassinato do marido.

- Quer dizer que Dês acha que isso pode ser uma tática para evitar que a primeira-ministra dei Rio consiga a nossa aprovação logo antes das eleições?

— E isso mesmo. Meu Deus, Henry, esses malditos países pequenos nos deixam loucos, não é?

— Não mais que os grandes — Henry disse. — Mas é claro que vou estar com Alesso. Amanhã de manhã, aqui no Columbia.

— Ótimo. Tomaremos todas as providências.

Henry devolveu o telefone para Marvin Klein e olhou para Sunday.

— Minha querida — ele disse —, é possível que, como sempre, você esteja com a razão.

— Sobre o quê?

— Sobre a morte de Garcia dei Rio.

Congor Reuthers tinha aprendido há muito tempo que mesmo um homem sob a mira de uma arma precisa se alimentar. Era segunda-feira. Lenny tinha informado que os Britland viajariam de avião para Washington na manhã de quarta-feira, quando a deputada Sandra O’Brien Britland tinha de estar em Capitol Hill para o debate final sobre o auxílio a Costa Barria. Quando os Britland deixassem o iate, todos os membros extraordinários da tripulação seriam dispensados, inclusive Lenny. Isso significava que tinham pouco tempo. Lenny precisava entrar no camarote A no dia seguinte.

Mas, por enquanto, Reuthers não podia fazer mais nada. Só comer. Gostava especialmente do ambiente do restaurante da torre do Hotel Boca Raton, e resolveu ir para lá. Certamente alguns martínis e uma lagosta fariam bem ao seu humor. Pegou o telefone, discou o ramal da torre e reservou com arrogância uma mesa perto da janela, com vista para o canal.

Quando consultou o maítre, ficou furioso ao ser informado de que não poderia ter a mesa da sua escolha. Forçado a decidir se saía ultrajado ou se ficava e aceitava a situação, ele deixou o estômago tomar a decisão?

— Estou certo de que o senhor compreende por que tivemos de fazer uma nova distribuição dos nossos lugares — disse o maítre com um sorriso nervoso, acompanhando Reuthers até uma mesa na qual

o único sinal mais próximo de água era a da jarra. — O senhor entende por que tivemos de manter algumas mesas vazias... — ele sussurrou, apontando para a parede envidraçada.

O coração de Reuthers deu um pulo. Sozinhos ali sentados, conversando e bebendo coquetéis, bronzeados e sorrindo, estava o casal favorito da América, o ex-presidente dos Estados Unidos e a sua mulher, membro do Congresso.

Reuthers enfiou a mão no bolso para pegar a cigarreira que ocultava seu aparelho de escuta. Deixou disfarçadamente a caixa aberta sobre a mesa e apontada na direção dos Britland. Fingindo que coçava a cabeça, inseriu o minúsculo receptor na orelha e pôde ouvir satisfeito o que Henry Britland IV dizia.

— Estou interessado nesse encontro com Alesso amanhã. Alesso!, pensou Reuthers. Alesso! Por que Britland ia encontrar Alesso?

Pôs a mão em forma de concha na orelha para bloquear o burburinho das mesas próximas e então percebeu que alguém falava com ele.

- Sinto muito, senhor, mas não é permitido fumar aqui.

Reuthers levantou a cabeça, viu o olhar de desaprovação do gerente do restaurante e nessa hora perdeu algo que Sunday Britland tinha dito sobre Alesso levar as provas...

— Eu não estou fumando — retrucou Reuthers. O gerente olhou para a cigarreira aberta.

— Deixo-a aí só para provar a minha força de vontade — disse Reuthers asperamente.

— Nesse caso, senhor, com a sua permissão...

O gerente mudou a caixa de lugar, de forma que ficou quase escondida entre o vaso e a cesta de pão que um rapaz acabara de pôr na mesa.

— Agora o senhor pode dar urna olhada nela, mas os outros fregueses não vão vê-la, e assim não terão a impressão de que essa é uma área de fumantes. Lembre que o senhor pode não ser o único por aqui que está resistindo à tentação. Minha nossa, isso não seria um problema e tanto? Senhor, já pensou em reduzir a sua necessidade de nicotina mascando chiclete? Ajuda muito.

— Saia daí seu idiota. Britland está olhando para você.

Reuthers deu um pulo na cadeira ao ouvir a voz familiar queimando seu tímpano com fúria ácida.

— Ele pode reconhecê-lo, imbecil.

Reuthers olhou em volta, examinando aflito o restaurante. Que disfarce Angélica estava usando aquele dia? Ela devia estar histérica de preocupação para ter ido ao restaurante em vez de ir de Nova York diretamente para Costa Barria. Ele avistou uma mulher solitária, de cabelo grisalho, com o cotovelo apoiado na mesa, olhando fixo para sua taça de vinho. Lá estava ela, Vilma Solitária, outro personagem de Angélica. Em seguida Reuthers desviou o olhar para uma mesa perto da janela e encontrou o olhar intenso do ex-presidente dos Estados Unidos. Tinham se passado trinta e dois anos desde que se conheceram. Reuthers estava na viagem maldita, ostensivamente como um dos guarda-costas pessoais de Garcia dei Rio e, teoricamente, tinha sido executado com o resto da equipe por não cumprir seu dever de proteger o primeiro-ministro.

Será que Britland poderia reconhecê-lo depois de todos esses anos?

Com medo de arriscar a possibilidade de ser descoberto, Reuthers ficou de pé de um pulo e deu as costas para o ex-presidente.

— Não quero mais jantar aqui — ele vociferou, saindo apressado do restaurante.

Já estava no elevador quando o gerente o alcançou.

— Esqueceu sua cigarreira, senhor — ele disse. — Continue resistindo à tentação. Coragem!

O agente sênior do serviço secreto, Jack Collins, estava inquieto. Sentado a uma mesa de distância do ex-presidente Britland, aquela voz interior que sempre avisava do perigo estava berrando com ele agora.

Alguma coisa estava acontecendo. Seus olhos percorreram o restaurante agitados, examinando as pessoas intensamente. Os fregueses eram obviamente pessoas ricas, muitos casais mais velhos, alguns grupos de famílias com crianças pequenas. Todos bronzeados, relaxados e sorridentes. Alguns grupos trocavam histórias.

Provavelmente estavam disputando partidas de golfe que seriam cobradas das firmas como reuniões de trabalho, pensou Collins com amargura.

Ficou observando quando um homem muito empertigado, demonstrando irritação em cada centímetro do corpo, saiu do restaurante, quase colidindo com quatro senhoras bem vestidas que deviam ter mais de sessenta anos. Collins viu as mulheres seguindo o métre pelo restaurante e depois demonstrar insatisfação quando ele as acompanhou até uma mesa nos fundos, situada entre grupos de famílias. Se tivesse um homem com elas, isso não aconteceria, ele pensou.

Notou uma mulher na menor mesa perto da janela, olhando pensativa para a água. Cabelo grisalho, rosto cheio de rugas, óculos escuros simples, uma expressão desolada. Parecia alguém abalado por alguma desgraça recente.

O olhar de Collins passou por ela e seguiu a fileira de mesas. Não gostava das vibrações que estava captando. Sentia que havia alguma coisa errada ali. Foi um grande alívio quando os Britland levantaram da mesa para ir embora, uma hora depois.

Ao passar pelo balcão de reservas o ex-presidente comentou com Collins.

— Jack — ele disse —, um homem saiu do restaurante intempestivamente, sem almoçar. Você o viu? Achei que tinha algo de familiar nele. Veja o que consegue descobrir.

Collins inclinou a cabeça indicando que tinha entendido, sinalizou para os quatro agentes cercarem os Britland e mandou todos seguirem na frente, enquanto parava na recepção do restaurante.

Ao retornar para Belle Maris, uma hora depois, já tinha providenciado a vigilância vinte e quatro horas do hóspede do hotel registrado com o nome de Norman Ballinger. A história que o gerente do restaurante contou sobre a cigarreira aberta, e a descrição bem-humorada do camareiro sobre os planos de Ballinger de jogar ”sets de golfe” — não admira que seus instintos piscassem o vermelho de alerta, pensou.

Seu bip soou segundos depois de entrar na mansão.

- Você esbarrou em alguma coisa, Jack - informaram do quartel-general —, Ballinger na verdade é Congor Reuthers, a única pessoa da confiança de Angélica dei Rio. Está sempre por trás do cenário político, mas dizem que continuou sendo favorecido por ser o solucionador de problemas.

- O que ele está fazendo em Boca Raton? - Collins quis saber.

- Achamos que ele sabe que Alesso está aí e quer controlar os movimentos dele. Ficaremos na cola dele, mas fique atento. Reuthers não suja as próprias mãos. Pode ter outros com ele.

Collins desligou o telefone e desejou poder livrar-se do mau pressentimento que sentia quanto a Henry Parker Britland IV ter comprado o Columbia.

Na terça-feira de manhã, Lenny Wallace verificou, desconsolado, que a segurança do Columbia estava muito reforçada.

Às sete horas comunicou-se com Reuthers e soube que Miguel Alesso, o líder dissidente que concorria com a primeira-ministra nas eleições da semana seguinte, ia almoçar com o ex-presidente Britland no iate.

— Você precisa recuperar aqueles papéis — disse Reuthers irritado para ele. - A primeira-ministra está pessoalmente envolvida nisso. O fracasso não é uma opção.

Ele então instruiu Lenny para descobrir uma maneira de entrar na sala de jantar para tentar escutar o que era dito durante o almoço.

Lenny fez um esforço enorme para não dizer para Reuthers que só um imbecil acreditaria que um ajudante de convés, a não ser que fosse invisível, poderia entrar numa sala onde estivesse em andamento uma reunião confidencial do primeiro escalão do governo. Em vez disso pensou na mãe e nas tias e prometeu fazer o melhor possível.

Mas observou que quando o ex-presidente estava a bordo do Columbia, o chefe dos agentes do serviço secreto, Jack Collins, estava sempre ao seu lado, e parecia ter a capacidade de saber exatamente o momento em que qualquer pessoa no barco espirrava.

Reuthers deu um último aviso.

- Você devia saber que sua mãe e as irmãs dela estão sob prisão domiciliar... apenas temporariamente, estou certo disso. Faça o que achar melhor.

Precisamente ao meio-dia, Lenny estava no convés da tripulação, com binóculos colados aos olhos, observando uma limusine chegando ao cais. Viu dois homens e uma mulher descendo do carro e subindo a bordo da lancha: os Britland e, com eles, o líder da oposição de Costa Barria, Miguel Alesso.

Uma possibilidade inexplorada passou pela cabeça de Lenny. Alesso estava conquistando popularidade. Em todo lugar que aparecia, o povo vibrava. E se eu não puder encontrar os papéis? Poderia simplesmente desaparecer. Se por alguma sorte maluca, ele vencesse as eleições, eu poderia entrar em contato com ele, revelar o que me mandaram fazer. Então diria para ele onde os corpos estão enterrados. Talvez Alesso me recompensasse por isso.

Mas não, não podia ser assim. Ele sabia. Quando a eleição terminasse seria tarde demais para sua mãe e suas tias, aquelas mulheres maravilhosas que eram conhecidas como as ”Irmãs Alfabeto”. Mamãe, a mais velha, era Antonella, logo depois vinha Bianca, a terceira era Concetta e assim por diante, até a mais nova, lona.

Lorenzo Esperanza, também conhecido como Lenny Wallace, teve renovado seu senso do dever enquanto secava as lágrimas dos olhos.

O que ele diz soa como verdade, pensou Sunday. Ela emana dele. Henry e ela estavam sentados com Miguel Alesso no salão. Henry tinha sugerido que Alesso ocupasse a cadeira preferida de Sir Winston.

— Estou fora do meu ambiente — disse Alesso com um leve sorriso —, apesar de que, de certa forma, possa até comparar o estado precário do meu país com o da Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial.

Sunday sabia que Alesso completara trinta anos de idade há pouco, mas seu ar maduro e sério, o cabelo escuro com mechas grisalhas e a expressão triste mas sábia dos olhos castanhos colaboravam para fazer com que parecesse pelo menos dez anos mais velho.

Ele inclinou o corpo para frente, com uma postura tensa.

- Angélica dei Rio planejou e executou o assassinato de um grande homem - ele disse com veemência. - O pai dela, como o senhor sabe, comandou o exército de Costa Barria. Ela se casou com o primeiro-ministro obedecendo às ordens do pai, tendo desde sempre, estou convencido disso, a intenção de eliminá-lo. Ela era e continua sendo uma mulher muito bela, e também bastante carismática. E afinal de contas, como se diz, um homem é um homem...

Ele sacudiu os ombros com tristeza.

— Ela trocou os guarda-costas pessoais dele, substituindo-os pelos bandidos que o traíram, inclusive seu primo inglês, que agora é conhecido como Congor Reuthers.

”Segundo as informações que consegui, ela drogou o marido, seu pai e o senhor também, com a sobremesa especial que seu cozinheiro pessoal preparou. Foi ela que deixou Garcia dei Rio inconsciente. Os guarda-costas dele, liderados por Reuthers, amarraram pesos e jogaram o corpo no mar. Ele deve ter descido até o fundo.

”Os guarda-costas esperavam receber uma recompensa. E receberam. Quando retornaram para Costa Barria com a viúva de luto, foram executados por não terem cumprido seu dever. Todos exceto Reuthers, é claro.”

— Eu ainda não entendi por que ela escolheu aquela noite, neste iate - observou Henry.

Sunday estudou o marido. Estava sentado com as costas bem retas em sua cadeira de capitão, com o queixo apoiado na mão esquerda, concentradíssimo em Alesso. Quase dava para ouvir os acordes de ”Salve o chefe” flutuando no ar.

— Angélica tinha recebido um telefonema do pai, o general, dizendo que o marido dela sabia de uma tentativa iminente de assassinato envolvendo seus guarda-costas. Também informou para ela que dei Rio tinha conhecimento dos milhões de dólares que ela desviara das organizações de caridade que controlava. Ele estava planejando mandar prendê-la quando voltassem para Costa Barria. Não havia opção. Ela precisava agir imediatamente.

Faz sentido, concordou Sunday mentalmente.

- Planejaram que o pai de Angélica assumiria o governo. Mas o general sofreu um ataque do coração na semana seguinte e ela aproveitou a oportunidade para assumir o posto. Governou até o fim do mandato do marido e depois, capitalizando o amor que o povo nutria por ele, conquistou o poder absoluto.

- Que provas existem de tudo isso? - perguntou Henry. - O senhor falou de provas.

Alesso deu de ombros.

- A prova está no envelope que Garcia dei Rio passou para o senhor quando era um menino de doze anos.

— E como sabe de tudo isso? — perguntou o ex-presidente.

— Um dos guarda-costas tentou subornar um funcionário do presídio para escapar da execução — respondeu Alesso. — Ele contou para o funcionário a história do assassinato de dei Rio e disse que Reuthers tinha examinado o corpo de dei Rio à procura de um envelope antes de jogá-lo ao mar. O envelope continha uma declaração de dei Rio, a que ele planejava fazer, acusando a mulher. Ela chegou a ver o documento, mas não teve tempo de tirá-lo do paletó do marido antes do jantar.

- E por que nada disso transpirou? - perguntou Sunday. Alesso ficou espantado com a pergunta.

- O funcionário do presídio teria assinado a própria condenação se admitisse que sabia que o primeiro-ministro foi assassinado — ele disse. - Mas quando ficou mais velho e passou a beber mais vinho, como alguns homens mais velhos costumam fazer, começou a dar com a língua nos dentes. E acabou falando demais. Depois desapareceu.

— E agora, tantos anos depois, o quebra-cabeça finalmente foi montado - concluiu Henry.

- Não, senhor - corrigiu Alesso -, o quebra-cabeça não estará terminado até que aqueles papéis sejam encontrados, se é que ainda existem. Mas no momento atual, peço que vocês dois apoiem a minha candidatura. Eu imploro, deputada Britland, que não vote a favor do auxílio ao meu país enquanto Angélica dei Rio permanecer no poder. Apoiá-la é apoiar a repressão.

Sunday não conseguiu sustentar o olhar intenso de Alesso. Ela olhou para longe, com medo de que ele visse a indecisão no próprio olhar.

— E o senhor — disse Alesso, olhando para Henry —, imploro que o senhor peça ao presidente dos Estados Unidos para cancelar qualquer plano de homenagear Angélica dei Rio com um jantar oficial. O imprimátur da sua grande nação não deve dar força a uma tirana.

Lenny sabia que não havia esperança de conseguir chegar ao convés superior enquanto a reunião estivesse em andamento. Mas soube que depois do almoço os Britland iam voltar para Belle Maris e ficar lá até a partida, de manhã cedo, para Washington. Isso significava que o onipresente serviço secreto estaria guardando a mansão, não o iate.

Lenny ia ser dispensado às cinco horas da tarde. Sabia que pareceria estranho se não fosse imediatamente para terra. Enquanto esfregava o convés de teca, teve uma idéia. Ninguém ia esperar que alguém com intoxicação alimentar deixasse sua cabine.

Uma hora mais tarde ele se apresentou ao comissário de bordo. Gotas que pareciam transpiração cobriam seu rosto, as pálpebras estavam a meio pau e cambaleava.

— Foi alguma coisa que eu comi — ele gemeu, apertando o estômago.

Dez minutos depois estava na sua cabine no convés da tripulação, deitado no seu beliche e reunindo coragem para esgueirar-se até o camarote A. Teria de deixar isso para mais tarde, pensou, para aproveitar a cobertura da escuridão da noite e a segurança menos concentrada.

Os acontecimentos futuros lançam suas sombras no presente, pensava Henry aquela noite, enquanto bebia um café expresso.

Sunday e ele estavam jantando na varanda cheia de flores de Belle Maris. Velas finas projetavam pontas suaves e tremeluzentes de fogo à luz da lua cheia que banhava o Columbia com majestade fantasmagórica.

— Querido, você está tão quieto — observou Sunday acenando para Sims servir mais uma xícara de café expresso.

- Mesmo você não vai conseguir dormir depois de todo esse café — reclamou Henry carinhosamente.

- Você me conhece, Henry. Eu consigo dormir sobre uma cerca de estacas. O segredo é a minha consciência limpa. - Ela deu um gole e estalou os lábios. — Como diziam antigamente: ”Cara, isso é que é café.”

Ela ficou séria.

— Henry, eu ainda não perguntei, mas vou perguntar agora. Você acredita na história de Alesso, não acredita?

— Sim, acredito, e por vários motivos. A noite passada no restaurante dei uma boa olhada no homem que parecia tão familiar. Como você já sabe, eu estava certo. Tinha realmente visto aquele homem

antes. Ele é o braço direito de Angélica dei Rio. E estava no Columbia naquela noite, há trinta e dois anos, perto do primeiro-ministro e de mim, quando dei Rio me deu o envelope. Obviamente, não encontrando com dei Rio, suspeitou que estava comigo. Se ele sabe que Alesso descobriu a verdade, moverá céus e terras para reaver o envelope. Se eu pudesse desmontar o iate, centímetro por centímetro, faria isso. Mas esteve fora das minhas mãos por trinta e dois anos. Quem sabe se alguma camareira não o encontrou e enfiou em algum lugar, ou simplesmente jogou fora?

— Você vai sugerir ao Dês que cancele a visita oficial da madame del Rio? — perguntou Sunday.

— Não é fácil cancelar uma visita oficial, querida, só por motivos muito graves. Se a madame dei Rio ganhar a eleição nessa terça-feira e assinar o acordo de direitos humanos, as histórias espalhadas pelo seu oponente derrotado perderão força. Sem provas, elas simplesmente perderão a credibilidade. E, neste momento, Alesso não tem nenhuma chance de derrotá-la.

Sunday olhou para o Columbia.

— Henry, sabe de uma coisa? Gostaria de passar mais uma noite no iate. Adoro dormir lá. Você se importa?

Henry sorriu.

— Suponho que eu esteja incluído no seu plano. Acho que gostaria de ser ninado pelo mar também, meu amor. É claro que vamos. Quem sabe, talvez o Columbia revele seus segredos para nós. Isso não seria motivo de comemoração?

Às nove horas, antes de sair da cabine para recuperar os papéis perdidos, Lenny arrumou seu beliche para dar a impressão de ter alguém dormindo nele.

Tinha observado muitas lanchas pequenas em volta do Columbia e alegremente lembrou que enquanto garantiam que ninguém entraria no iate, ele já estava lá!

Agora era hora de fazer o trabalho e seus nervos formigavam. O perigo era chegar ao camarote A. Uma vez lá dentro, estaria seguro. Não havia motivo para alguém se preocupar com o camarote aquela noite.

A parte mais difícil seria cortar o espesso revestimento de carvalho sem fazer barulho. Reuthers tinha dito que o envelope e as páginas do diário tinham caído no buraco feito para o cofre, por isso não poderiam ter passado do nível do assoalho, e devia encontrá-los lá, atrás da parede de madeira.

Por isso fazia sentido começar perto do chão, ele raciocinou. Seria mais fácil esticar o braço para cima do que para baixo, se os papéis estivessem presos na parede.

Armado com uma serra, um pequeno martelo e uma furadeira que furtara do compartimento de ferramentas, ele saiu com todo cuidado da cabine da tripulação.

No primeiro e no segundo convés não havia ninguém. Era óbvio que os guardas estavam no cais ou nas lanchas. No convés superior por pouco não esbarrou num agente do serviço secreto estacionado na escada que levava à suíte particular dos Britland.

Desperdício de mão-de-obra, pensou Lenny, já que o casal estava na casa. Mas o fato de quase ter sido apanhado preocupou Lenny. Eles iam passar a noite na casa, não iam?, pensou.

Três minutos angustiantes depois ele entrou sorrateiramente no camarote A. Não teve coragem de acender a luz, mas felizmente a noite estava clara e a lua cheia iluminava tudo. O camarote era vinte vezes maior do que o cubículo que tinham dado para ele. Tinha uma cama de casal com cabeceira, uma mesa embutida, cômodas embutidas, um sofá e poltronas, tudo para garantir que mesmo com mar bravio o ocupante não ficaria desconfortável.

O armário era bem fundo. Lenny entrou nele e fechou a porta. Só então pôde acender a lanterna com segurança. Lá estava ele, na parede: o cofre! Com formato redondo para parecer uma escotilha, a porta pintada como uma visão de mar calmo, o segredo antiquado imitando uma bússola. Lenny concentrou toda a sua atenção no cofre.

Passou os dedos nele, refletindo que qualquer jóia que estivesse trancada ali dentro não teria a metade do valor do que havia escondido embaixo dele.

Sentou no chão e bateu no painel de madeira para avaliar a espessura. Grossa, pensou, bem grossa! Muitas árvores foram derrubadas para construir este barco, pensou ele, prevendo uma longa noite de trabalho. Claro, se tivesse um grande machado e uma serra elétrica - e quisesse atrair todos os guardas e membros da tripulação que estavam a bordo -, poderia completar o trabalho bem depressa, mas não era essa a realidade. Com todo o cuidado começou a abrir um buraco com a furadeira poucos centímetros acima do assoalho.

A cada quinze minutos ele parava para descansar. Quase duas horas depois Lenny estava alongando os músculos e pensou ter ouvido um estalido. Apagou a lanterna e abriu um pouco a porta do armário. Arregalou os olhos assustado.

De pé no quarto silencioso, de costas para ele, o corpo esguio, de camisola, iluminado por uma lâmpada de mesa, a deputada Sandra O’Brien Britland tirava a colcha da cama. Enquanto Lenny observava incrédulo, ela deitou e apagou a luz.

Como sempre, Henry tem razão, pensou Sunday suspirando, enquanto se acomodava na cama, tendo deixado o marido dormindo profundamente na suíte do casal no convés superior. Café demais. Seu cérebro estava a mil. Mas não era só o café. Havia alguma coisa que Henry tinha dito sobre aquela noite que passou naquele camarote trinta e dois anos atrás que martelava seu subconsciente. O que era?

Se ao menos encontrassem aqueles papéis, ela pensou. Se Alesso estivesse certo, uma mulher tinha assassinado o marido naquele iate e a prova pode ter sido tirada da mesa daquele camarote.

Era óbvio que dormir, nem pensar. Era Henry que costumava ficar lendo horas depois de Sunday adormecer, mas aquela noite ele caiu num sono pesado assim que encostou a cabeça no travesseiro.

Acontecia tão raramente que ela resolveu sair na ponta dos pés para a sala de estar da suíte, em vez de ficar lá deitada se mexendo e arriscando perturbar o sono dele. Foi então que teve a idéia de descer para aquele camarote. Afinal, foi ali que ocorreu o furto.

Henry tinha dito alguma coisa importante sobre o que houve naquele quarto na noite em que dei Rio desapareceu. Mas o quê? Devia ser algo aparentemente bem trivial para ninguém ter percebido.

Ela raciocinou que se fosse para a cabine onde os papéis tinham sumido, isso poderia ajudar a esclarecer os fatos. Antes de sair da suíte ela rabiscou um bilhete para Henry e deixou no travesseiro. Ele se preocupa demais comigo, Sunday pensou enquanto punha o papel ao lado dele, resistindo ao impulso de cobri-lo melhor com a coberta. Ele podia acordar. E não querer que ela fosse.

Art, o agente do serviço secreto que estava ao pé da escada, ficou surpreso ao vê-la, mas só assentiu com um movimento de cabeça quando Sunday disse onde ia ficar.

Espero que ele não imagine que Henry e eu brigamos, pensou, achando graça da idéia de os dois brigarem. Nós apenas debatemos algumas coisas de vez em quando, só isso. Discussões intelectuais, ela racionalizou. Mas certamente nenhuma briga.

Desistindo de dormir, Sunday esticou o braço e acendeu a luz novamente. Sentou na cama, afastou o cabelo do rosto e socou os travesseiros. Sims tinha dito que não tinham trocado a mobília do barco. Ela imaginou Henry sentado à mesa, escrevendo os detalhes do que tinha acontecido aquele dia, apesar de estar tão cansado que mal conseguia manter os olhos abertos, conforme ele mesmo disse.

Será que quando estamos realmente cansados, não fazemos quase que uma psicografia de nós mesmos, em vez de pensar conscientemente?, cogitou Sunday. Ora, ela pensou, suspirando, isso não vai me levar a lugar algum. É melhor tentar dormir de novo.

Apagou a luz mais uma vez. Estava tudo tão quieto!

Henry me disse que não tem tantas lembranças daquela noite, e sim impressões. De sentir que havia alguém no quarto, de alguém de pé ao lado dele. Nós sabemos que o pai dele foi dar uma olhada no filho. Mas será que havia mais alguém?, ela ficou imaginando.

O que mais ele disse que não consigo lembrar? Por que tenho uma sensação arrepiante com tudo isso?

O silêncio foi quebrado por um pequeno rangido quando o ritmo do balanço do barco começou a acelerar. Outro rangido, esse menos genérico e bem mais próximo. Sunday virou instintivamente para a parede do armário.

Tinha ouvido um som, como alguma coisa deslizando pelo chão. E parecia vir de dentro do armário. Soava como se houvesse alguém lá dentro. Tinha certeza disso.

Com todo cuidado passou a mão pela mesa-de-cabeceira procurando o botão para pedir ajuda, mas nesse momento a porta do corredor se abriu, a luz acendeu e ela viu o olhar preocupado do marido.

Quem está dentro daquele armário obviamente não esperava que eu viesse para cá, ela pensou. Ele está procurando alguma coisa.

— Sunday!— exclamou Henry. — O que deu em você...?

— Ah, querido — ela interrompeu, com a voz mais aguda que o normal. — Agora estou pronta para voltar lá para cima. Também não consegui dormir aqui.

— Eu avisei a você sobre o café — reclamou Henry.

— Eu sei, querido, você tem sempre razão. Foi por isso que o elegeram presidente.

Sunday pulou da cama, pegou seu robe e quase empurrou Henry para fora da cabine, fechando a porta com uma batida decisiva.

No corredor ela pôs a mão na boca dele, quando Henry ia perguntar que diabos estava acontecendo.

— Encurralei o nosso homem — ela sussurrou entusiasmada. — Ele está lá dentro, no armário. Eu tinha acabado de descobrir quando você chegou. Aposto que está procurando os papéis que desapareceram aquela noite, e deve saber que estão em algum lugar do armário. Vamos deixar que ele os encontre para nós.

Uma hora mais tarde Lenny continuava serrando o buraco que só aumentava na parede de trás do armário do camarote A. Reuthers devia estar sonhando, ele pensou, cada vez mais frustrado e à beira de um ataque de nervos. Aqueles papéis não estão aqui. Simplesmente não estão aqui!

Mamãe! Minhas tias! Tia Bianca, tia Concetta, tia Desdêmona, tia Eugênia, tia Florina, tia Georgina, tia Helena, tia lona...

Lágrimas de frustração começaram a escorrer pela face de Lenny. Os papéis não estavam lá e poriam a culpa nele. Teria de descobrir algum jeito de salvar o pescoço de todo mundo, o dele inclusive, mas naquele momento precisava voltar para a sua cabine. Não dava para saber se alguém não ia aparecer no camarote de novo.

Ele saiu do armário, fechando bem a porta. Foi pé ante pé até a porta do camarote e abriu com todo o cuidado. Então ficou paralisado.

Estava olhando diretamente nos olhos do agente do serviço secreto Jack Collins.

- Passe para cá o tesouro - ordenou Collins, enquanto os outros agentes agarravam Lenny pelos braços.

Atendendo aos apelos insistentes de Collins, Henry e Sunday estavam no fim do corredor, separados da ação por quatro agentes corpulentos. A um sinal de Jack um deles disse para o ex-presidente.

— Por aqui, senhor... — e saiu da frente.

Collins empurrou Lenny de volta para o camarote.

— E óbvio que ele estava procurando alguma coisa, senhor — ele disse, apontando para o fundo destruído do armário. - Ele é um dos ajudantes da tripulação. Um lapso deplorável da segurança.

— Deixe isso para lá — interrompeu Henry. — Ele encontrou os papéis?

— Não há papéis com ele, senhor.

Lenny sabia que sua única esperança era fazer um acordo, e rápido.

— Eu conto tudo — implorou ele —, mas se contar, será que vocês podem impedir que eles machuquem minha mãe e minhas tias?

— Podemos tentar — prometeu Henry. — Fale!

— Senhor presidente, seu roupão de banho, senhor — disse Sims, que apareceu na porta.

O homem parece imponente até de pijama, pensou Sunday. Sims estava usando um paletó matinal sobre o pijama, meias de seda pretas e mocassins pretos.

- Só um minuto, Sims - Henry encarou Lenny - Eu disse, fale!

—... e assim Reuthers sabe que vocês vão desmontar o barco para a reforma. Sabe que, se o senhor encontrasse o envelope e as páginas do seu diário daquela noite, seria o fim da linha para Angélica dei Rio. O povo ia querer linchá-la. Ele disse que os papéis estariam dentro da parede, embaixo do cofre, mas está errado. Os papéis devem ter evaporado. Simplesmente não estão lá.

Sunday viu o peso do próprio desapontamento refletido na expressão do marido.

- Seu roupão, senhor - insistiu Sims. - O senhor vai pegar uma gripe. — Ele estremeceu de repente. — Meu Deus! Déjà vul Isso me lembra aquela noite terrível há trinta e dois anos. Depois do desaparecimento do primeiro-ministro, eu trouxe o seu roupão e acompanhei o senhor até a suíte do seu pai...

— Espere um minuto! — exclamou Sunday. — O que foi que acabou de dizer?

- Eu disse que trouxe o robe do senhor Henry... era assim que eu o chamava naquela época... e depois...

- É isso que eu quero dizer - disse Sunday. - Você trouxe o robe dele. Por que o robe não estava nesse camarote?

Sims franziu a testa, depois relaxou.

- Ê claro. Claro. O que aconteceu foi o seguinte. Eu tinha trazido pessoalmente seu leite com biscoitos, senhor, e dei uma olhada para ver se estava tudo em ordem. Notei o som irritante de água pingando no banheiro do camarote A e resolvi instalá-lo no camarote B aquela noite.

Sims franziu a testa pensativo.

- É, eu me lembro muito bem. Levei seu pijama para o camarote B e abri a cama. Transferi para lá o leite com biscoitos. Sabendo que o senhor ia querer escrever o seu diário, também pus o diário e a caneta na mesa do camarote B.

- Claro! - exclamou Henry. - A porta estava aberta, você estava aqui e eu estava tão zonzo que nem notei que estava indo para o camarote B.

Sunday virou para Jack Collins.

- Jack, vamos atacar a parede do armário aqui do lado com um machado.

Quinze minutos depois o ex-presidente dos Estados Unidos terminou de ler as páginas amareladas.

- Está tudo aqui - ele disse emocionado. - Jack, traga o telefone especial para mim. Preciso falar com o presidente Ogilvey imediatamente.

Em três minutos Henry já estava ao telefone com seu sucessor no Salão Oval, lendo as últimas palavras que Garcia dei Rio tinha escrito:

E com um grande peso no coração que ordeno a prisão da minha esposa, a senhora Angélica dei Rio, e do pai dela, o generalíssimo José Imperate, sob as acusações de traição e de furto qualificado.

Eu soube que haverá um atentado contra a minha vida na próxima terça-feira. O informante não pode precisar se acontecerá quando eu sair do palácio e estiver a caminho do Congresso, onde farei um pronunciamento, ou mais tarde, no jantar particular que oferecerei aos líderes do meu partido. O novo cozinheiro que a minha mulher escolheu pode estar planejando envenenar a todos nós. Acredito que minha mulher e o pai dela asseguraram a falta de proteção ao registrarem acusações contra os homens bons e honestos que me protegeram durante anos. Substituíram esses homens pelos seus capangas, liderados por um que agora sei que é primo distante de Angélica, um tal de Congor Reuthers, criado na Inglaterra.

Num processo separado acuso a minha esposa do crime de furto qualificado. Ela desviou milhões de dólares das fundações beneficentes que controla, dólares que foram doados e eram destinados aos destituídos do nosso país. Como prova dessa acusação apresento abaixo a lista de suas contas numeradas na Suíça.

— É isso, Dês — concluiu Henry. — No meu diário eu observo que quando meu pai se levantou para falar durante o jantar, Garcia dei Rio disfarçadamente trocou seu prato pelo da mulher dele. Imagino que apesar de não esperar ser envenenado naquela noite, ele estava sempre de guarda. Depois, anotei uma observação sobre o creme brülée que o chef pessoal da madame del Rio, que a acompanhou por insistência dela, preparou na ocasião, que achei que estava com um leve sabor de remédio. Creio que fomos todos drogados com um sedativo para ninguém poder ajudar dei Rio. Notei que ela nem tocou na sobremesa. Mas que insistiu para ele provar do prato dela, e ele provou.

Henry fez uma pausa e deu um suspiro.

— Obviamente ele ficou em desvantagem, apesar de ter comido bem pouco da sobremesa. E agora, meu amigo, a bola está no seu campo.

Ele passou o telefone para Jack Collins e virou para Sunday.

— Acabou, querida.

- Isso é maravilhoso, não acha? - perguntou Sunday emocionada para Henry quando, uma semana depois, assistiam ao primeiro-ministro eleito, Miguel Alesso, acenar para a multidão eufórica em Costa Barria.

- Ele será um ótimo líder - concordou Henry. - E tornará realidade o sonho que Garcia dei Rio tinha para o seu país, direitos humanos, um governo democrático, economia forte, oportunidade de educação para todos.

Estavam na biblioteca de Drumdoe, assistindo à reportagem especial que transmitiram depois do noticiário das onze horas. Sunday segurou a mão de Henry.

- Agora você está convencido de que não poderia modificar o que aconteceu, mesmo se tivesse acompanhado dei Rio no passeio pelo convés aquela noite?

— Sim, estou convencido — concordou Henry. — Ainda bem que naquele último minuto algum instinto fez com que ele pusesse o envelope no meu bolso. Senão, jamais saberíamos.

— E pelo menos Angélica e o primo vão pagar pelos crimes que cometeram — disse Sunday. — Acho que aquela senhora não vai gostar da prisão perpétua.

— Tenho certeza de que não — Henry sorriu. — Vamos dar um último passeio no Columbia antes de a reforma começar?

- Eu gostaria muito - disse Sunday.

- Mas dessa vez procure ficar no camarote comigo. Não gosto de sair à sua procura no meio da noite.

- Ficarei quietinha. Nunca se sabe quem podemos encontrar nos armários daquele iate, não é? - disse Sunday, sorrindo.

 

             FELIZ NATAL / JOYEUX NOEL

 

Empilhem mais lenha! - o vento está gelado; Mas pode uivar quanto quiser, Nosso Natal será sempre feliz.

A deputada Sandra O’Brien Britland olhou para o marido declamando poesia, o ex-presidente dos Estados Unidos, de pé, na porta do seu aconchegante escritório em Drumdoe, a casa de campo do casal em Bernardsville, Nova Jersey.

Ela sorriu afetuosamente. Mesmo de jeans, blusão e botas curtas bem gastas, Henry Parker Britland IV exalava uma personalidade nascida para esse papel. As mechas grisalhas no cabelo castanho-escuro e as rugas de expressão na testa eram praticamente os únicos sinais de que Henry se aproximava do quadragésimo quinto aniversário.

— Então está citando Tennyson — ela disse, se esticando no sofá, onde lia a pilha interminável de material sobre projetos de leis. Imagino que ”O maioral” deve estar tramando alguma coisa.

- Tennyson não, meu amor. Sir Walter Scott, e cuidado, pois vou pendurá-la pelos polegares se me chamar de ”O maioral” outra vez.

- Mas a revista People acabou de elegê-lo pelo quinto ano consecutivo. E um verdadeiro recorde. Muito em breve terão de criar um prêmio ”O maioral eterno” e você terá de se retirar da disputa.

Vendo o olhar ameaçador de brincadeira de Henry, Sunday disse logo.

— Tudo bem, tudo bem. Só estava brincando.

- A sua serra, senhor presidente.

Sims, o mordomo, apareceu na porta com uma serra nova e brilhante, apoiada nas palmas das mãos. Apresentou-a para Henry com

a mesma reverência que teria se estivesse carregando as jóias da Coroa.

- Por Deus, o que significa tudo isso? - exclamou Sunday.

- O que você acha, querida? - disse Henry, analisando a ferramenta com muita atenção. — Muito bem, Sims. Acho que esta servirá perfeitamente.

— Está pretendendo serrar-me ao meio? — perguntou Sunday.

- Orson Welles e Rita Hayworth fizeram bastante sucesso encenando isso. Não, meu amorzinho, você e eu vamos até a floresta. Esta manhã, quando cavalgava, vi um pinheiro maravilhoso que será perfeito para a nossa primeira árvore de Natal. Fica no extremo norte da propriedade, bem depois do lago.

— É você que vai cortá-lo? — protestou Sunday. — Henry, você está levando essa história de ”maioral” a sério demais...

Henry ergueu a mão que estava livre.

— Nada de discussão. Ouvi você dizer, algumas semanas atrás, que uma das suas lembranças mais felizes era de quando saía com seu pai para comprar a árvore de Natal, ajudava a carregá-la para casa e depois a enfeitá-la. Este ano você e eu vamos dar início à nossa tradição.

Sunday prendeu um cacho de cabelo rebelde atrás da orelha.

- Está falando sério, não está?

— Seríssimo. Vamos caminhar afundando na neve até a nossa floresta. Vou cortar a árvore e juntos a arrastaremos para cá.

Henry estava muito entusiasmado com seu plano.

— Amanhã é véspera de Natal. Se trouxermos a árvore hoje, podemos começar a enfeitá-la esta noite e terminar amanhã. Sims trará as caixas do depósito e você poderá escolher os enfeites que quiser.

— Temos uma boa variedade, madame — disse Sims. — No ano passado os decoradores do Lanning vieram, como sempre, e criaram o efeito azul-prata. Muito lindo. No ano anterior tivemos um Natal branco. Ah, sim, foi muito elogiado.

— Lanning deve estar tendo um ataque do coração por não ter sido chamado este ano — observou Sunday, largando os arquivos e o bloco de notas, e levantando do sofá.

Ela se aproximou de Henry e pôs o braço na cintura dele.

- Conheço você muito bem. Sei que está fazendo isso por mim.

Ele segurou o rosto dela com as duas mãos.

- Essas últimas semanas foram duras para você. Acho que vamos providenciar exatamente o Natal de que você precisa. Com todos os empregados da casa fora, menos o Sims, e os agentes do serviço secreto em seus lares, com suas famílias. Seremos só nós dois e o Sims.

Sunday engoliu o nó que sentiu de repente na garganta. Sua mãe tinha posto três pontes de safena de emergência há algumas semanas. Estava se recuperando na propriedade dos Britland nas Bahamas, aos cuidados do pai de Sunday. Mas por um tempo a situação ficou crítica e o medo de perder a mãe abalou Sunday profundamente.

— Se não se importar, madame, que eu fique... — disse Sims, em tom de pergunta, sério, a postura sempre imponente.

— Sims, esta casa tem sido seu lar há mais de trinta anos — disse Sunday. — Pode apostar que queremos que fique.

Ela apontou para a serra.

— Pensei que lenhadores usavam machados.

- Você leva o machado - disse Henry. - Está frio lá fora. Ponha sua roupa de esqui.

Atrás do largo tronco de um carvalho centenário, Jacques virou a cabeça bem devagar para observar o homem alto cortando o pinheiro. A mulher ria e parecia estar tentando ajudar, enquanto o outro homem, que devia ser um grand-père, só observava.

Jacques não queria ser visto. Eles podiam levá-lo de volta para Lily, e tinha medo de Lily. Na verdade tinha medo dela desde o dia que chegou para tomar conta dele, quando maman e Richard foram viajar.

Maman e Richard tinham se casado há uma semana. Jacques gostava muito do seu novo papai, mas um dia Lily disse que maman e Richard tinham telefonado para dizer que não o queriam mais, que ela devia levá-lo embora. Então saíram no carro de Lily e rodaram um longo tempo. Jacques lembrava que estava dormindo e acordou com um barulho forte, o carro rodopiou e saiu da estrada. A porta do seu lado abriu e ele fugiu.

Por que maman não o deixou com grand-père, se não o queria mais? Grand-père tinha voltado para Paris aquela manhã. Antes de partir grand-père disse para Jacques que ele seria muito feliz morando naquele lindo lugar chamado Darien, na casa nova do Richard.

Grand-père prometeu que passaria um mês com ele na casa de campo em Aix-en-Provence no próximo verão e até lá ia mandar muitas mensagens para Jacques pelo computador.

Ele ia fazer seis anos em breve, e apesar de maman chamá-lo sempre de ”meu homenzinho”, era demais para Jacques compreender. A única coisa que sabia era que maman e Richard não o queriam, e que não queria ficar com a Lily. Se ao menos pudesse falar com grand-père, talvez grand-père pudesse ir pegá-lo. Mas e se grandpère dissesse que ele tem de ficar com a Lily? E melhor não falar com ninguém, pensou Jacques.

A grande árvore caiu com estrondo diante dele. O homem alto, a mulher e o homem que parecia o grand-père aplaudiram e depois começaram a arrastá-la para longe.

Sem fazer barulho, Jacques seguiu atrás deles.

— Uma conífera bem satisfatória, senhor — observou Sims —, mas talvez pudesse ser um pouco mais centrada.

— Não está certa no suporte — disse Sunday. — Na verdade está um pouco torta. É por isso que parece fora do centro.

Ela estava sentada de pernas cruzadas no chão da biblioteca examinando as caixas bem arrumadas de enfeites de Natal.

— Mas, levando em consideração a energia que vocês dois despenderam para pôr a árvore na base — ela acrescentou —, sugiro que a deixem assim mesmo. Ficará ótima.

— E isso mesmo que eu pretendo fazer — disse Henry. — Que padrão de cores você vai usar?

- Nenhum - Sunday disse para ele. - Será tudo misturado. Luzes multicoloridas. Ouropel. Gostaria que você tivesse alguns enfeites usados que lembrassem a sua infância.

— Melhor do que isso, eu tenho os seus enfeites usados — disse Henry. — Antes de os seus pais partirem para Nassau, seu pai os deu para mim.

— Vou pegar a caixa, senhor — disse Sims —, e talvez o senhor e a madame queiram uma taça de champanhe enquanto decoram a sua árvore.

— Por mim, está ótimo — disse Henry esfregando as mãos meio calejadas. — Você quer um pouco de borbulhante, não quer, querida?

Sunday não respondeu. Olhava fixo para um ponto logo atrás do pinheiro de Natal.

- Henry - ela disse baixinho -, por favor, não pense que estou maluca, mas por um segundo achei que vi o rosto de uma criança encostado no vidro da janela.

Richard Dalton olhou para a mulher com quem havia se casado há sete dias, quando saíam da Merritt Parkway de Connecticut e entraram na estrada que ia para Darien.

— Eu lhe devo uma lua-de-mel de verdade, Giselle — ele disse fluentemente em francês.

Giselle DuBois Dalton pôs a mão no braço do marido e respondeu em inglês, com forte sotaque.

— Lembre-se, Richard, que a partir de agora você deve falar só inglês comigo. E não se preocupe. Teremos uma verdadeira lua-de-mel mais tarde. Você sabe que eu não ia querer deixar o Jacques com uma babá estranha por mais de algumas horas. Ele é muito tímido.

- Ela fala francês fluentemente, querida, e isso é importante. Foi muito bem recomendada pela agência.

- Mesmo assim. - A voz de Giselle denotava preocupação. Tudo foi feito tão às pressas, não foi?

Foi mesmo às pressas, pensou Dalton. Giselle e ele tinham planejado casar em maio. Mas tiveram de adiar a data quando ofereceram para ele a presidência da All-Flav, uma fabricante mundial de refrigerantes. Antes ele era diretor da Coll-ette, principal competidora da divisão francesa da All-Flav. Concordaram que ninguém com apenas trinta e quatro anos de idade recusaria esse tipo de emprego, especialmente com um bônus substancial na assinatura do contrato. Giselle e ele casaram-se na semana anterior e poucos dias depois foram para a casa que a firma alugou para eles em Darien.

Na sexta-feira à noite a governanta, Lily, que eles sabiam que não poderia começar a trabalhar para eles até depois do Natal, apareceu inesperadamente. Por isso, na manha de sábado, o pai de Giselle, Louis, insistiu para que os dois fossem para Nova York passar uma breve lua-de-mel de um fim de semana.

— Ficarei aqui com o Jacques até o meio-dia de segunda-feira.

Depois disso Lily certamente poderá cuidar dele por algumas horas até vocês voltarem à tarde, depois do almoço da firma — ele tinha dito.

Mas o almoço de Natal da empresa demorou mais do que esperavam e agora, quase chegando à casa em Darien, Richard podia sentir a tensão de Giselle aumentando.

Ele compreendia a preocupação dela. Viúva aos vinte e quatro anos, com um filho pequeno, ela começara a trabalhar no departamento de publicidade da Coll-ette. Foi lá que eles se conheceram, um ano antes.

Não foi um namoro fácil. Giselle protegia Jacques com muito afinco, com medo de que um padrasto - qualquer padrasto - não fosse bom para ele.

Também esperavam poder morar em Paris indefinidamente. Mas então, em questão de poucas semanas, ela teve de modificar seus planos de casamento e mudar de casa. Mas Richard sabia que a maior preocupação de Giselle era de que a mudança — um novo pai, um novo lar — fosse repentina demais para Jacques. Além do mais, ele só estava começando a aprender a falar inglês.

— Lar doce lar — disse Richard alegremente, na longa entrada para automóveis da casa.

Giselle já estava abrindo a porta do carro, antes mesmo de Richard puxar o freio.

— A casa está às escuras — ela disse. — Por que Lily não acendeu as luzes?

A sugestão irreverente de que Lily obviamente era uma senhora francesa pão-dura morreu nos lábios de Richard. Até ele achou agourento o ar deserto da casa. Já era quase noite, mas não havia nem uma única luz brilhando em nenhuma janela.

Ele alcançou Giselle na porta da frente. Ela remexia na bolsa à procura da chave.

— Tenho a chave aqui, querida — ele disse. A porta aberta revelou um vestíbulo escuro.

— Jacques — chamou Giselle —, Jacques.

Richard acendeu a luz. No claro ele viu uma folha de papel sobre a mesa da entrada. Dizia: ”N’appelez pás Ia police. Attendez nos instructions avant de rienfaire.”

Não chamem a polícia. Aguardem instruções.

— Senhorita La Monte, como está se sentindo?

Ela abriu os olhos lentamente e viu um guarda da polícia montada muito solícito olhando para ela. O que tinha acontecido?, ela pensou. Então uma lembrança muito viva voltou. O pneu tinha furado e ela perdeu o controle. O carro saiu da estrada e desceu uma ribanceira. Ela batera a cabeça na direção.

O menino. Jacques. Será que tinha falado dela para eles? O que devia dizer? Seria presa.

Sentiu uma mão no seu ombro. Percebeu que havia um médico do outro lado da cama.

- Calma - ele disse para tranqüilizá-la. - Você está no pronto-socorro do Hospital Geral de Morristown. Deu uma batida forte com a cabeça, mas no mais está bem. Tentamos avisar a sua família, mas ninguém respondeu ainda.

Avisar a família? É claro. Ainda tinha a carteira que Pete tinha furtado, com a verdadeira carteira de motorista, identidade, cartões de seguro-saúde e de crédito de Lily La Monte.

Apesar de a cabeça estar latejando, Betty Rouche recuperou a capacidade de mentir com a velocidade de um raio.

— Ainda bem. Estou indo ao encontro da minha família para passar o Natal com eles, e não quero assustá-los com essa notícia.

Em que lugar ela devia dizer que ia encontrar a família? Onde estava o menino?

— Estava sozinha no carro?

Uma imagem imprecisa da porta do lado do passageiro abrindo passou pela memória enevoada. O menino deve ter fugido.

— Estava — ela murmurou.

— Seu carro foi rebocado para o posto mais próximo, mas temo que esteja muito danificado — disse o policial. — Talvez seja perda total.

Ela precisava sair dali. Betty olhou para o médico.

- Vou pedir para o meu irmão vir até aqui e cuidar do carro. Posso ir embora agora?

— Pode. Mas vá com calma. E consulte o seu médico na semana

que vem.

Com um sorriso tranqüilo, o médico se afastou.

— Preciso da sua assinatura no registro de ocorrência — disse o policial. — Alguém virá pegá-la?

- Sim. Obrigada. Vou telefonar para o meu irmão.

— Bem, boa sorte. Poderia ter sido muito pior. O pneu estourado e sem air-bag... — o policial não terminou a frase.

Dez minutos depois Betty estava num táxi, a caminho de uma locadora de automóveis. Vinte minutos mais tarde já estava a caminho de Nova York. O plano era levar o menino para a casa do primo Pete em Somerville, mas agora não ia mais para lá.

Esperou até estar em segurança, fora da cidade, parou num posto de gasolina e telefonou. Agora que estava um pouco mais segura, tinha de descarregar sua fúria no primo, que a convencera a entrar naquela história maluca.

— É canja — ele havia dito para ela —, o tipo de oportunidade que só aparece uma vez na vida.

Pete trabalhava para a Best Choice Employment Agency em Darien. Dizia-se estagiário, mas Betty sabia que o que ele fazia variava de contínuo a cortador de grama das propriedades para alugar que a agência administrava.

Como Betty, ele tinha trinta e dois anos. Eram vizinhos de porta quando pequenos e com o passar dos anos meteram-se juntos em muitas encrencas. Ainda davam risada ao lembrar de quando praticavam atos de vandalismo no colégio, e outros alunos levavam a culpa.

Mas ela devia saber que aquele plano maluco não era para o bico do Pete.

- Olha - ele tinha dito para ela -, ouvi falar sobre eles na agência, um casal com um filho pequeno. O cara, Richard Dalton, acabou de depositar um cheque de seis milhões de dólares. O bônus do contrato de trabalho, disseram. Eu até trabalhei na casa alugada em que eles estão morando agora. Há seis meses quem morava lá era um outro executivo. E conheço Lily LaMonte. Ela já trabalhou para outras pessoas através da agência e é a única pessoa certa que eles têm para esse emprego. Precisam de uma babá que fale francês fluentemente. Bom, acontece que sei que ela vai passar o Natal no Novo México. Aí você toma o lugar dela. Vocês duas têm o mesmo tipo e a mesma idade, e você fala bem francês. Quando o casal viajar, você leva o menino para a minha casa em Somerville. Eu cuido de pegar o resgate e tudo o mais. Será uma troca. Nós recebemos um milhão de dólares? e dividimos meio a meio.

— E se eles chamarem a polícia?

— Não vão chamar, mas mesmo se chamarem, qual o problema? Ninguém conhece você. Por que suspeitar de mim? Não vamos machucar o garoto. Além do mais, poderei observar o que está acontecendo. Parte do meu trabalho é manter a grama aparada e limpar a neve naquele lugar. Teremos mais neve. Assim saberei se houver algum sinal da polícia por lá. Eu telefono e digo para o Dalton deixar o dinheiro na caixa de correspondência deles amanhã à noite e o menino volta para casa antes do Natal. Se chamarem a polícia não telefono mais para eles.

- E se eles chamarem a polícia, o que faremos com o menino?

- A mesma coisa que faremos se conseguirmos o dinheiro. Qualquer coisa que aconteça, você deixa o garoto numa igreja em Nova York. As orações deles serão atendidas.

Para Betty parecia um ato de vandalismo no colégio, do qual escapariam com facilidade. Pete não machucaria o menino, e ela também não. Assim como jamais ocorreu a nenhum dos dois de incendiar a escola. Não teriam feito isso.

Quando atendeu o telefone, Pete parecia desconfiado.

— Achei que você estaria aqui em Somerville há horas.

— Eu estaria sim, se você tivesse providenciado pneus decentes para o carro - disse Betty irritada.

— O que está querendo dizer?

Ela sentiu sua voz ficando mais alta, enquanto contava o que tinha acontecido. Ele interrompeu.

— Cale a boca e ouça. O negócio acabou. Esqueça o dinheiro. Nada de contato com eles. Onde está o garoto?

— Eu não sei. Acordei num hospital. Acho que o menino já tinha fugido quando os policiais me encontraram.

— Se ele falar, vão associá-lo a você. Eles sabem que você ia alugar outro carro?

— O motorista do táxi sabe.

- Tudo bem. Largue o carro em algum lugar e trate de sumir.

Fique escondida. Lembre que não há nada que nos ligue ao menino desaparecido.

— Claro que não há — exclamou Betty com amargura ao bater com o fone no aparelho.

— Senhor, ainda não há registro de uma criança desaparecida — disse o policial para Henry. - Mas vou levar o menino para a central. Uma representante dos Serviços de Família tomará conta dele se ninguém aparecer. Mas é muito provável que nesse momento tenha gente muito preocupada procurando por ele.

Estavam na biblioteca de Drumdoe. O cômodo era dominado pela árvore de Natal imensa, ainda sem enfeites e levemente torta, exatamente do mesmo jeito que estava quando Sunday avistou o rosto de Jacques na janela. Percebendo que o tinham visto, o menino tentou fugir, mas Henry correu lá para fora bem a tempo de agarrálo. As perguntas gentis que fizeram só resultaram em silêncio, então Henry ligou para a polícia enquanto Sunday tirava o casaco do menino. Ela suavemente esfregou os dedinhos gelados dele para esquentar, sempre falando suavemente, na esperança de ganhar sua confiança, penalizada com o terror que via nos seus olhos azul-esverdeados.

O policial ficou de cócoras na frente do menino.

- Deve ter cinco ou seis anos, o senhor não acha? É a idade do filho da minha irmã, e ele é mais ou menos desse tamanho — ele sorriu para Jacques. — Eu sou um policial e vou ajudar a encontrar sua mamãe e seu papai. Aposto que agora mesmo eles estão procurando você por toda a parte. Vou levá-lo no meu carro para o lugar onde eles poderão ir pegá-lo, está bem?

Ele pôs a mão no ombro de Jacques e puxou o menino um pouco mais para perto. Com o rosto contorcido de medo, Jacques recuou e olhou para Sunday, agarrando a saia dela com as duas mãos como se implorasse por proteção.

- Ele está apavorado - disse Sunday.

Ela ajoelhou ao lado do menino que tremia e passou o braço em volta dele.

— Policial, será que não pode deixar o menino ficar aqui? Tenho certeza de que receberá um telefonema sobre ele logo. Enquanto esperamos, ele pode nos ajudar a enfeitar a árvore de Natal. Não pode, mocinho?

Sunday sentiu o menino encolher ao seu lado.

— Não pode? — Sunday perguntou gentilmente e como ele não respondeu, ela disse — Acho que ele pode ser surdo.

— Ou mudo — concordou Henry. — Policial, acho que a minha mulher tem razão. O senhor sabe que ele estará seguro e bem cuidado aqui. Jantará conosco e certamente até lá vocês já saberão de onde ele vem.

- Sinto muito, mas não posso fazer isso, senhor. Tenho de levá-lo para a central. Precisamos tirar uma foto dele e ter a descrição física exata para o alerta que enviaremos por teletipo. Depois caberá ao pessoal dos Serviços de Família resolver se podemos deixá-lo com vocês até alguém aparecer.

Maman tinha ensinado há muito tempo que se um dia ele se perdesse, devia procurar um gendarme, dizer seu nome e seu endereço, e o número do telefone de casa. Jacques tinha certeza de que aquele homem era um gendarme, mas não podia dizer seu nome, endereço ou telefone. Maman e Richard o tinham dado para Lily, e ele não queria que ela fosse lá pegá-lo, nunca.

Essa senhora lembrava a maman. O cabelo era da mesma cor e o jeito que ela sorria para ele era o jeito que maman sorria. Ela era gentil. Não como a Lily, que não sorria, e que fez com que ele vestisse aquelas roupas apertadas que estava usando agora. Jacques estava faminto e cansado. E com muito medo. Queria estar de volta em Paris, com maman e grand-père.

Logo seria a Fête de Noel. No ano passado Richard tinha chegado em casa com um trenzinho para ele. Jacques lembrou que juntos eles armaram os trilhos, instalaram a estação e as pontes, e as pequenas casas ao longo da linha. Richard tinha prometido que os dois montariam o trem este ano na casa nova. Richard mentiu para ele.

Jacques sentiu que alguém o pegava no colo. Iam levá-lo embora, de volta para Lily. Apavorado, escondeu o rosto nas mãos.

Duas horas depois, como Lily não apareceu, e o gendarme levou-o de volta para a casa grande, Jacques sentiu que o medo começava a diminuir. Sabia que Lily não estava naquela casa. Ficaria seguro ali.

Lágrimas de alívio encheram seus olhos. Abriram a porta, e o homem que parecia o grand-père os recebeu e levou-os de volta para a sala com a árvore de Natal. O homem alto e a senhora estavam lá.

- O menino foi examinado - disse o policial para Henry e Sunday. - O médico disse que ele está bem e que parece bem cuidado. Ele ainda não falou e recusou-se a comer qualquer coisa, mas o médico diz que é muito cedo para dizer se é um problema físico ou se está apenas assustado. Temos a fotografia e a descrição dele no teletipo. Aposto que alguém virá procurá-lo logo, mas enquanto isso não acontece, o representante dos Serviços de Família permitiu que ele fique com vocês.

Jacques não sabia o que o gendarme tinha dito, mas a senhora que parecia maman ajoelhou-se e deu um abraço nele. Sentia que ela era boa. Sentia-se seguro com ela, quase como quando maman o amava. O nó gigantesco que apertava sua garganta começou a se desfazer.

Sunday sentiu o menino estremecer.

— Pode chorar — ela murmurou, acariciando o cabelo castanho e sedoso de Jacques.

Richard Dalton observou impotente a mulher olhando fixo para o telefone. Giselle estava em estado de choque. As pupilas enormes, o semblante inexpressivo. À medida que as horas iam passando sem receber notícias dos seqüestradores de Jacques, seu instinto dizia que deviam chamar a polícia. Mas quando sugeriu isso, Giselle ficou praticamente histérica.

— Non, non, non, você não pode fazer isso, você não vai fazer isso. Eles vão matá-lo. Temos de fazer o que eles disserem. Precisamos aguardar as instruções.

Ele devia saber que havia alguma coisa errada quando aquela mulher apareceu inesperadamente, Richard pensou amargurado. A agência explicou claramente que ela ia viajar no Natal e que não poderia começar a trabalhar antes do dia vinte e sete. Devíamos ter verificado, ele pensou. Era questão de simplesmente telefonar para a agência e confirmar. Mas como foi que a mulher que se identificou como Lily LaMonte soube que devia comparecer? Obviamente foi tudo planejado, ela devia seqüestrar Jacques na primeira oportunidade. E o pai de Giselle tinha convencido o casal a aceitar a mulher que dizia ser Lily LaMonte, e insistido para que passassem o fim de semana em Nova York. Era uma grande ironia, pois ele ficaria muito abalado se qualquer coisa acontecesse com o Jacques. Não, não tinha sido culpa dele, pensou Richard. Provavelmente deixaríamos Jacques com aquela mulher hoje, quando fôssemos ao almoço da firma. Ele balançou a cabeça. Talvez sim, talvez não, pensou. Agora é tarde demais para ficar pensando nisso.

Mas tinha de fazer alguma coisa. Se ficasse parado ia acabar enlouquecendo. Tinha de acreditar que a questão era dinheiro e que teriam Jacques de volta no dia seguinte.

Amanhã.

 

                   Véspera de Natal!

Ele suspirou. Talvez não seja tão rápido. O bônus que recebeu com o contrato de trabalho foi bastante divulgado. Era lógico que o seqüestrador ia supor que ele podia pôr as mãos em seis milhões de dólares. Mas certamente ninguém podia esperar que tivesse essa quantidade de dinheiro à disposição, a curto prazo. O máximo que podia sacar de um caixa eletrônico eram algumas centenas de dólares.

O seqüestrador, ou seqüestradores, deviam estar planejando ficar com Jacques durante a noite. Se telefonassem de manhã ele poderia pegar o dinheiro no banco. Mas quanto? Quanto iam pedir? Se fossem milhões, ia levar dias para conseguir. Nenhum banco tinha esse dinheiro todo de uma vez. E retiradas vultosas significavam perguntas.

Giselle estava chorando, as lágrimas escorriam silenciosas pelo rosto. Os lábios formavam o nome do filho. Jacques. Jacques.

A culpa é minha, pensou Richard. Giselle e Jacques me aceitaram de braços abertos, e vejam só o que eu fiz. Não podia suportar mais ficar ali parado, sem fazer nada. Tinha prometido para Jacques que iam armar o trem a tempo para o Natal. Olhou em volta. As caixas estavam num canto da sala íntima.

Richard levantou, foi para perto das caixas e abaixou-se ao lado delas. Rasgou a fita da primeira caixa com dedos fortes, enfiou a mão e tirou partes dos trilhos. No ano passado, na véspera de Natal, quando Jacques abriu os embrulhos de papel colorido na casa do graná-père, Richard explicou que Papai Noel tinha deixado aquele presente mais cedo para que ele pudesse ajudar Jacques a montá-lo.

Quando os trilhos, os vagões, as pontes e as casas estavam todos armados, ele indicou o botão para Jacques.

— É isso que faz funcionar — explicou. — Experimente.

Jacques apertou o botão. As luzes dentro das casinhas acenderam, os apitos soaram, as cancelas se abriram, e quando ele acelerou a antiga locomotiva Lionel com seis vagões atrelados fez o ruído de descarga da máquina por alguns segundos e depois partiu veloz.

O olhar de deslumbramento de Jacques foi indescritível.

Vamos lá, Jacques, Richard rezou, vou armar esse trem outra vez e você tem de voltar para brincar comigo.

O telefone tocou. Ele deu um pulo e conseguiu tirar o fone da mão de Giselle antes de a mulher ter tempo de falar.

— Richard Dalton — ele disse aflito.

Uma voz grave e rouca, obviamente disfarçada, perguntou.

— Quanto dinheiro você tem em casa? Richard pensou depressa.

— Cerca de dois mil dólares — ele disse.

Pete Schuler tinha mudado de idéia. Talvez pudesse conseguir algum dinheiro afinal.

— Vocês chamaram a polícia?

— Não, juro que não.

— Tudo bem. Deixe o dinheiro na caixa de correspondência agora. Depois feche todas as persianas. Não quero que olhe para fora, compreendeu?

— Sim, sim. Faremos tudo que você disser. O Jacques está bem? Quero falar com ele.

- Falará com ele em breve. Ponha o dinheiro lá fora, no lugar que eu disse, e o garoto estará enfeitando a árvore de Natal com vocês amanhã à noite.

- Cuide bem dele. Você tem de cuidar dele.

- Vamos cuidar sim. Mas lembre que a qualquer sinal da polícia ele vai parar na América do Sul para ser adotado. Entendeu?

Não ameaçaram matá-lo, pensou Richard. Pelo menos não ameaçaram matá-lo. Então ele ouviu o ruído do telefone sendo desligado. Pôs o fone de volta e abraçou Giselle.

- Eles vão devolvê-lo amanhã - ele disse.

A janela do quarto central no segundo andar proporcionava uma visão direta da caixa de correspondência na calçada. Foi nessa janela que Richard montou seu posto de observação, espiando através de uma fresta na cortina. O telefone, com um longo fio de extensão, estava bem ao lado dele. Ele sabia que Giselle podia não entender as instruções que a voz rouca do seqüestrador ia dar. Era óbvio que ela estava à beira de um colapso, mas Richard conseguiu fazer com que ela deitasse na cama perto da janela, enrolada num cobertor. O preparativo final foi ajustar sua câmera para o ambiente com o mínimo de luminosidade.

Instalado no seu posto de vigia, Richard percebeu desesperado que ia descobrir pouquíssima coisa sobre a pessoa que tentasse pegar o dinheiro. A rua não tinha iluminação, o céu estava cheio de nuvens pesadas e ameaçadoras. Teria sorte se conseguisse determinar o tipo de carro que a pessoa usaria. Eu devia chamar a polícia, pensou. Provavelmente é a única chance que teríamos de seguir quem vier pegar o dinheiro.

Ele deu um suspiro. Mas se avisasse a polícia e alguma coisa desse errado, jamais se perdoaria, e sabia que Giselle também não.

Sua mente voltou para os seus nove anos e para as aulas de piano que sua mãe o obrigou a frequentar. Uma das poucas canções que ele conseguia tocar inteira, sem erros, era ”Ali Through the Night”. Lembrou que a mãe às vezes sentava ao seu lado no banco do piano e cantava enquanto ele tocava:

Dorme, meu filho, dorme em paz A noite inteira.

Deus vai mandar seus anjos da guarda A noite inteira.

Que os anjos da guarda tomem conta do nosso menininho, Richard rezou mentalmente, ouvindo Giselle soluçar baixinho.

Um fragmento do final da canção passou pela cabeça dele: ”E eu ficarei aqui, na minha vigília de amor, a noite inteira’’

O jantar foi simples. Salada, pão francês, macarrão com manjericão e molho de tomate. O menino sentou à mesa com Henry e Sunday na sala de jantar pequena. Ele pegou o guardanapo que estava ao lado do prato e pôs no colo, mas não olhou para Sims quando ele ofereceu pão, e não tocou na comida.

— Ele tem de estar com fome — disse Henry. — São quase sete e meia. — Ele comeu um pouco do macarrão e sorriu para Jacques. — Ummm... delicioso.

Jacques olhou para ele muito sério e depois desviou o olhar.

— Quem sabe ele não quer um sanduíche de pasta de amendoim com geléia? — sugeriu Sims. — O senhor gostava muito quando era rapaz.

- Vamos apenas ignorá-lo por alguns minutos e ver o que acontece — disse Sunday. — Acho que ele está terrivelmente amedrontado, mas concordo, deve estar com fome. Se não começar a comer daqui a uns dois minutos, trocamos o cardápio. Sims, se tivermos de experimentar o sanduíche de pasta de amendoim e geléia, substitua a Coca-cola por leite.

Ela enrolou o macarrão no garfo.

— Henry, você não acha muito estranho a polícia não ter sido notificada de nenhuma criança desaparecida? Quero dizer, se ele mora em alguma casa por aqui, qualquer pai ou mãe normal ligaria imediatamente para a polícia para informar que o filho desapareceu. A questão é, como ele veio parar aqui? Você acha que ele pode ter sido deliberadamente deixado na nossa porta?

- Não posso acreditar nisso - disse Henry. - Qualquer pessoa que planejasse deixar o menino aqui teria de ser um médium para saber que demos folga para os agentes do serviço secreto por alguns dias. Senão essa pessoa seria vista e questionada nos portões. Acho que o mais provável é que por algum motivo incrível ainda não tenham sentido a falta dele.

Sunday olhou para Jacques e depois rapidamente de volta para Henry.

— Não olhe agora — ela disse baixinho —, mas um certo rapazinho está começando a comer.

Henry e Sunday passaram o resto da refeição conversando, ostensivamente ignorando Jacques, que comeu todo o prato de macarrão, a salada, e bebeu a Coca-cola.

Sunday notou que ele olhava para o pão, fora do seu alcance. Disfarçadamente ela empurrou a cesta para perto dele.

- Outra observação - ela disse. - Ele queria o pão, mas não pediu nem esticou o braço para pegar. Henry, quer você reconheça ou não, esse menino tem ótimos modos à mesa.

Depois do jantar voltaram para a biblioteca para terminar de enfeitar a árvore. Sunday apontou a última caixa cheia de enfeites para Jacques e ele começou a passá-los para ela. Ela observou o cuidado com que ele tirava cada enfeite, um por um, dos separadores de papelão. Isso é mais uma coisa que ele já fez antes, ela concluiu. Depois Sunday notou que os olhos de Jacques estavam começando a fechar.

Quando o último enfeite foi tirado da caixa e pendurado na árvore Sunday disse:

- Acho que alguém está precisando dormir. A questão é, onde vamos acomodá-lo?

— Querida, há pelo menos seis quartos nesta casa.

— É, mas onde é que você dormia quando era do tamanho desse rapazinho?

- Na suíte infantil.

- Com a sua babá por perto?

- É claro.

- Exatamente.

Sims estava empilhando as caixas vazias.

— Sims, acho que vamos pôr o nosso amiguinho no sofá da nossa sala íntima - disse Sunday. - Assim podemos deixar a porta do quarto aberta para ele nos ver e ouvir.

- Muito bem, madame. E quanto ao pijama?

- Uma camiseta do Henry servirá muito bem.

Mais tarde, naquela noite Sunday acordou com um pequeno movimento na sala ao lado. Num segundo estava fora da cama, atravessou o quarto e chegou à porta da sala íntima da suíte.

Jacques estava de pé perto da janela, olhando para o céu. Um ruído surdo chamou a atenção de Sunday. Era um avião passando. Ele deve ter ouvido, pensou. O que será que significa para ele?

Enquanto Sunday observava, o menino voltou para o sofá, entrou embaixo das cobertas e escondeu o rosto no travesseiro.

A véspera de Natal amanheceu fria e luminosa. Uma leve rajada de neve antes de o sol nascer deixou uma camada cintilante e limpa nos jardins e nos campos já brancos. Henry, Sunday e Jacques saíram para uma caminhada matinal.

— Querida, você sabe que não podemos ficar com ele indefinidamente - disse Henry.

Um cervo passou correndo pela floresta e Jacques correu na frente deles para ver a fuga rápida do animal.

— Eu sei, Henry.

- Você estava certa quando resolveu mantê-lo perto de nós a noite passada. Acho que estou começando a entender como vai ser quando tivermos filhos, querida. Todos eles vão dormir no sofá da sala íntima?

Sunday deu uma risada.

- Não, mas também não vão ficar em outra ala da casa. Você já terminou seus votos de Natal pela Internet?

— Já. Tanta gente, de todos os cantos do mundo, escreveu para nós este ano, que acho que é uma boa hora para desejar felicidades e agradecer.

— Eu acho também — então a voz de Sunday mudou. — Henry, olha!

Jacques subitamente parou de correr e ficou olhando tristonho para o céu.

Ouviram o barulho de um avião lá em cima.

— Henry — Sunday disse lentamente —, uma outra pista. Acho que aquele menininho esteve recentemente num avião.

Pete Schuler não ficou mais tranqüilo de saber que tinha dois mil, trezentos e trinta e três dólares no bolso, apesar de essa sorte inesperada significar que poderia tirar o resto do inverno de folga e ir esquiar em algum lugar. Várias perguntas ainda o incomodavam.

Onde estava o menino? Por que não aparecia? Sua prima idiota, Betty, tinha perdido o garoto em algum lugar de Nova Jersey. Como é que algum cidadão bondoso e responsável não tinha encontrado o menino e levado para a polícia? E se ele sofreu um acidente? Pete revirava as perguntas na sua mente, com os nervos aos pulos.

Betty estava no apartamento de uma amiga em Nova York, aquele buraco em East Village. Pete discou o número. Betty atendeu. A voz dela parecia amargurada.

— O menino já voltou para casa? — ela perguntou.

— Não. Onde diabos você o perdeu?

— Bernardsville. Era esse o nome da cidade. Você acha que ele foi atropelado, ou qualquer coisa assim?

— Como é que eu vou saber? Foi você que o perdeu — Pete hesitou, pensando um pouco. — Tenho certeza de que os pais não chamaram a polícia. — Ele não ia contar para Betty que tinha conseguido algum dinheiro. - Mas temos de saber o que está acontecendo. Caso eles tenham posto algum investigador no encalço dele, você pega um ônibus para Nova Jersey, telefona para a central de polícia de Bernardsville de um telefone público e pergunta se alguém deixou um menino de cinco anos com eles. Entendeu?

— O que isso vai adiantar? O que você acha que vão me dizer? — perguntou Betty.

Por que eu fui me meter nisso?, ela pensou. Se alguma coisa acontecer com esse menino, posso passar o resto da minha vida na prisão.

- Faça isso. Agora! Mas tenha cuidado. Se estiverem com o menino vão fazer um monte de perguntas — disse Pete irritado.

Às duas horas Betty ligou de volta para ele.

— Não tenho certeza se estão com ele ou não — ela disse. — Pediram para eu descrever o menino. Desliguei na mesma hora.

— Isso foi burrice — disse Pete com grosseria, desligando o telefone. Se os Dalton ainda não tinham procurado a polícia, era óbvio

que iam fazer isso logo, especialmente se não recebessem mais notícias dele. Parou num posto de gasolina em Southport e trancou-se numa cabine de telefone. Teria de dar o próximo passo sozinho. Atenderam o telefone no primeiro toque.

— Richard Dalton.

- Tivemos um pequeno atraso - disse Schuler com a mesma voz disfarçada que usara antes, falando através de um lenço, como tinha visto nos filmes. — Não entre em pânico, entendeu? Não entre em pânico!

Richard Dalton ouviu o clique quando Pete desligou. Alguma coisa deu errado, pensou. A pessoa que pegou o dinheiro foi a pé. Por isso não tinha visto ninguém. Ficou acordado a noite toda, vigiando um carro que desceria a rua. O carro não apareceu. Mesmo assim, de manhã o dinheiro tinha sumido. De algum modo ele não tinha visto a pessoa que foi lá pegar.

O telefone tocou de novo. Dalton atendeu, identificou-se, ficou ouvindo e depois cobriu o fone com a mão.

— É o seu pai — ele disse —, quer falar com o Jacques.

— Diga que Jacques saiu comigo, que fomos fazer as compras de Natal de última hora — sussurrou Giselle.

O rosto dela era uma máscara de medo e de dor. Richard mal suportava olhar nos olhos dela.

— Louis, eles foram fazer compras — disse Richard. — Falamos com você amanhã, com certeza.

Quando ele pôs o fone no gancho, Giselle gritou.

— Diga para ele que Jacques e eu fomos fazer compras de Natal. Ela caiu desmaiada no chão, batendo acidentalmente no botão do trenzinho elétrico. As luzes acenderam, as cancelas abriram nos cruzamentos, a locomotiva fez barulho e partiu.

Dalton atravessou a sala com passos largos, desligou o brinquedo e segurou a mulher nos braços.

Às cinco horas, véspera de Natal, o chefe da polícia de Bernardsville telefonou e pediu para falar com Henry.

— Senhor presidente — ele disse —, estamos distribuindo folhetos sobre o menino em todos os bairros vizinhos. O FBI e todos os cinqüenta estados já têm a fotografia e a descrição dele. Entramos em contato com o Centro Nacional de Crianças Desaparecidas. Até agora, nada. Mas posso dizer que recebemos uma ligação estranha hoje, perguntando se alguém tinha deixado um menino de cinco anos conosco. Está começando a parecer que isso é um caso de criança abandonada. Ele falou alguma coisa?

— Nem uma palavra — admitiu Henry.

— Então acho que é melhor a polícia assumir a custódia do menino. Temos de levá-lo para o hospital para fazerem uma avaliação completa e ver se ele realmente não pode falar, ou se está sofrendo de algum trauma.

— Espere um pouco, por favor.

Sunday tinha mandado Sims para a loja local da Toys-R-Us e ele voltara carregado de presentes. A maioria ainda estava embrulhada. Mas tinham aberto alguns, inclusive uma grande caixa de peças de plástico para montar, com as quais Jacques e ela estavam construindo uma torre elaborada. Ela ouviu desapontada Henry repetir o recado do chefe de polícia.

- Henry, é véspera de Natal. Esse menino não pode acordar amanhã num hospital.

— E não podemos ficar com ele indefinidamente, querida.

- Peça para deixarem que ele fique conosco até quinta-feira. Deixem pelo menos ele ter um Natal. Ele está bem aqui, eu sei que está. E mais uma coisa, Henry. Sims trouxe algumas roupas novas. As que ele estava usando parecem novas, mas não servem. Tem alguma coisa estranha acontecendo. Não acho que ele foi abandonado. Acho que a família dele não sabe onde procurar. Diga isso para a polícia.

Jacques não sabia o que a senhora simpática que se parecia um pouco com a maman estava dizendo. Mas sabia que era bom estar com ela, com o bondoso homem alto e com o senhor mais velho que era parecido com o grand-père. Talvez, se fosse um bom menino, deixassem que ele ficasse com eles. Mas também queria estar em casa com maman e Richard. Por que o mandaram embora? Subitamente ele não conseguia mais esconder a tristeza. Largou a peça que ia pôr bem no topo da torre e começou a chorar. Lágrimas silenciosas, indefesas e solitárias, que nem mesmo a bondosa senhora que o embalava nos braços era capaz de evitar.

Aquela noite ele não conseguiu jantar. Realmente tentou, mas a comida entalava na garganta. Mais tarde voltaram para a sala da árvore de Natal e ele só conseguia pensar no trenzinho que Richard e ele iam montar na casa nova em Darien.

Sunday sabia o que Henry estava pensando. Não estavam ajudando o menino. Ele sofria, um sofrimento silencioso e insistente, que nem todos os brinquedos do mundo poderiam aliviar. Talvez seu lugar fosse mesmo num hospital, onde teria ajuda profissional.

Ela teve a mesma sensação de impotência quando ficou esperando, com Henry e seu pai, a operação da mãe terminar.

— No que está pensando, meu amor? — perguntou Henry baixinho.

— Que é melhor deixar os profissionais cuidarem do caso amanhã. Você estava certo. Não estamos fazendo favor nenhum mantendo-o aqui.

— Concordo.

- Não parece muito véspera de Natal - disse Sunday com tristeza. - Uma criança perdida... Não posso acreditar que não tenha ninguém procurando por ele. Dá para imaginar como nós nos sentiríamos se o nosso menininho tivesse desaparecido?

Henry já ia responder, mas inclinou a cabeça.

— Ouça. O coral de Natal está chegando.

Ele foi até a janela e abriu o vidro. O vento frio entrou pela sala e os cantores se aproximaram da casa. Estavam cantando ”God Rest You, Merry Gentlemen”.

Não desanime nunca, pensou Sunday. Cantarolou baixinho junto com eles quando passaram a cantar a conhecida ”Noite Feliz”.

Henry e ela aplaudiram, e o grupo atacou ”Deck the Halls with Boughs of Holly”.

Então o líder dos cantores chegou à janela e disse:

- Senhor presidente, aprendemos uma canção especial para o senhor, porque lemos em algum lugar que era a sua preferida na escola. Se nos der licença...

Ele soprou o diapasão e o grupo começou a cantar suavemente:

Unflambeau, Jeannette Isabelle, Unflambeau, courrons au berceau. C’est Jesus, bonnes gens du hameau Lê Christ estné...

Sunday ouviu um som atrás dela. Jacques tinha ficado encolhido na poltrona diante do sofá, onde estava quando os cantores apareceram. Ela viu o menino levantar de repente. Arregalou os olhos que estavam quase fechando. Seus lábios mexeram junto com o canto.

— Henry — ela disse baixinho —, olha. Vê o que eu estou vendo?

Henry deu meia-volta.

— Do que está falando, querida?

- Olha!

Sem parecer que estava olhando para Jacques, Henry observou o menino com toda a atenção.

— Ele conhece essa canção.

Henry se aproximou e pegou o menino no colo.

- Mais uma vez, por favor - ele pediu, quando os cantores pararam de cantar.

Mas quando cantaram aquela canção de novo, Jacques ficou mudo.

Os cantores foram embora, Henry virou para o menino e começou a falar francês.

— Comment t’apelles-tu? Ou habites-tu? Mas Jacques apenas fechou os olhos.

Henry olhou para Sunday e sacudiu os ombros.

— Não sei mais o que fazer. Ele não responde, mas acho que entende o que estou perguntando.

Sunday olhou pensativa para Jacques.

- Henry, você deve ter notado como o nosso amiguinho ficou fascinado quando um avião sobrevoou a casa esta tarde.

— Você chamou a minha atenção.

— E a mesma coisa aconteceu ontem à noite. Henry, vamos supor que esse menino acabou de chegar de outro país. Não admira que não tenha sido dado como desaparecido. Sims trouxe um dos folhetos com a foto e a descrição dele, não trouxe?

- Trouxe.

— Henry, você ia pôr uma mensagem de Natal na Internet, não ia?

— Minha mensagem anual. Eu vou. À meia-noite.

- Henry, faça-me um favor - Sunday apontou para Jacques. Este ano ponha o cartaz com a foto e a descrição dele também, e peça para o povo da França e de outros países cuja língua é o francês para prestar atenção. E, a partir de agora, converse comigo em francês. Posso não entender grande coisa, mas quem sabe conseguimos nos comunicar com ele.

Eram seis e quinze da manha em Paris quando Louis de Coyes, com a xícara de café na mão, entrou no seu escritório e ligou o computador. Passar a manhã de Natal sozinho era um projeto triste. Pelo menos mais tarde ia se juntar aos amigos para a ceia de Natal. A casa ficava vazia sem Giselle e Jacques, mas Louis estava muito satisfeito com o marido que a filha escolhera. Richard Dalton era o tipo de homem que qualquer pai gostaria de ter como genro.

E iam poder estar sempre juntos, tinha certeza disso. Tinham prometido que as aulas que começara a dar para Jacques de como operar a Internet iam continuar. Algum dia, dali a pouco tempo, o neto e ele poderiam se comunicar regularmente por e-mail. Mas era quase meia-noite na costa leste dos Estados Unidos e ele queria ler a mensagem de Natal que Henry Parker Britland IV ia enviar pela rede. Louis tinha conhecido o ex-presidente numa recepção na embaixada americana em Paris e ficou muito impressionado com a sua inteligência e seu comportamento afetuoso e sincero.

Cinco minutos depois o incrédulo Louis de Coyes olhava espantado para a fotografia do neto, que o ex-presidente descrevia como uma criança desaparecida.

Seis minutos mais tarde, Richard Dalton, que ensaiava uma desculpa para o fato de Giselle não poder falar com o pai dela ao telefone, começou a gritar.

— Oh, meu Deus, Louis, oh, meu Deus!

Às duas horas da madrugada tocaram a campainha. Henry e Sunday estavam à espera dos pais de Jacques.

— Ele está lá em cima, dormindo.

Jacques estava tendo um sonho, mas dessa vez era um sonho muito bom. Maman estava dando um beijo nele e sussurrando:

— Monpetit, mon Jacques, mon Jacques, je t’aime, je t’aime. Jacques sentiu que o pegavam no colo, enrolado no cobertor.

Richard o segurava com força e dizia:

— Menininho, nós vamos para casa.

No sonho Jacques dormia no colo de maman num carro um longo tempo.

Quando acordou, abriu os olhos bem devagar, com a sensação de tristeza pairando sobre ele. Mas não estava no sofá na casa grande. Estava na sua própria cama. Como tinha ido parar ali? Será que o sonho não tinha sido sonho, afinal? Será que maman e Richard tinham ido buscá-lo porque o amavam?

— Maman! Richard! — Jacques chamou animado, pulando da cama e indo para o corredor.

— Aqui embaixo, Jacques — avisou maman.

E então ele ouviu um outro som flutuando escada acima. O barulho ritmado do seu trenzinho e o apito soprando para as cancelas se abrirem. Os pés de Jacques mal tocaram nos degraus quando ele desceu correndo.

— Dormimos pouco essa noite — observou Henry quando Sunday e ele voltavam da igreja.

- É, pouco mesmo - Sunday concordou alegremente. - Henry, vou sentir falta daquele rapazinho.

— Eu também. Mas daqui a pouco teremos um nosso, ou dois.

— Espero que sim. Mas não é incrível como a vida é frágil? Quero dizer, aquele telefonema sobre a minha mãe no mês passado?

- Ela está indo bem.

- É, mas podíamos tê-la perdido. E o pequeno Jacques. Imagine se aquela mulher que o raptou não tivesse sofrido aquele acidente aqui na cidade. Só Deus sabe se ela não teria entrado em pânico e talvez machucado o menino. Espero que a encontrem logo. Todos nós estamos aqui por um fio.

— É, estamos sim — Henry concordou. — E para alguns de nós esse fio será cortado muito em breve. Não se preocupe, a polícia não terá dificuldade para encontrar aquela mulher e seu cúmplice. Os dois foram incapazes de esconder seus rastros.

Passaram pelos portões abertos de Drumdoe e seguiram pela longa estrada para a casa. Henry estacionou o carro na frente dos degraus. Sims devia estar observando a chegada deles, pois abriu a porta logo que cruzaram o pórtico.

— O pequeno Jacques está ao telefone, senhor. A mãe dele me disse que ele esteve brincando a manhã toda com seus trens. Ele quer

agradecer por terem sido bons para ele. — Sims estava feliz. — Ele deseja um joyeux Noel.

Henry correu para o telefone e Sunday deu um sorriso radiante para Sims.

- Sua pronúncia do francês é quase tão ruim quanto a minha ela disse.

 

                                                                                Mary Higgins Clark  

 

                      

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