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As estradas perdem-se de vista desde Washington, via Manassas, até Culpeper; depois, para sul, até Goochland, e a partir daí, um caminho direito e estreito sulcando campos nus a reluzir ao brilho da geada. Uma Lua esverdeada flutuante, estrelas fixas e um vento cortante.
Em tempos que já lá vão, foi um armazém de tabaco, onde o cheiro ainda persiste. As prateleiras de secagem, lascadas, estão a cair: o Inverno penetra-lhes pelas tábuas velhas. À sua volta, acham-se estacionados uma dúzia de automóveis, uma carrinha, duas motos.
Lá dentro, os peregrinos, vestidos de sobretudos, anoraques, peles, aconchegam-se, sentados em bancos toscos compridos.
Há um palco improvisado: os lados de um grande caixote apoiados em tijolos. Uma caixa de madeira mais pequena, coberta de um pedaço de veludo muito usado, serve de púlpito. A cena é iluminada por candeeiros de petróleo de pavios fumegantes, que lançam uma luz trémula, fazendo dançar as sombras. Um cão descorado, trémulo de frio, abafa-se junto do homem que está no palco.
O Irmão Kristos fala:
- Fomos todos criados à imagem de Deus. Está escrito. E como Deus não tem pecado, nós também não. Os homens e as mulheres são divinos. O único Inferno é resistir à nossa vontade.
Está de pé; é um homem atarracado vestido com hábito de burel atado por um cordão; uma barba hirsuta cobre-lhe as faces e o pescoço; o cabelo oleoso e com caspa, de risca ao meio, chega-lhe aos ombros; as unhas estão sujas, e os pés descalços, cheios de lama.
- Se não podeis aceitar a dor da vossa existência - diz ele -, acreditai no que eu digo, pois trar-vos-ei a graça e a purificação. Carrego aos ombros os vossos crimes e vícios, os vossos pecados e secretas luxurias. Estou em união com Deus. Acreditai em mim e lavarei as vossas almas de toda a culpa.
A voz é monocórdica, sem timbre, mas os olhos são surpreendentes. À medida que fala, vai virando lentamente a cabeça, de modo a fitar cada um dos membros da assembleia. Aqueles olhos são mais faiscantes que lanternas, com uma intensidade tão abrasadora que derrete e funde.
- Que possais ser curados - prossegue o Irmão Kristos. Ide com alegria, sem culpa, sem pecado e livres. Dai-me a vossa tristeza e alegrai-vos, porque estou em união com Deus e por meu intermédio entrareis no Reino dos Céus.
Faz um rápido sinal-da-cruz e desce do palco. O cão deslavado segue-o furtivamente até à porta, coberta por uma cortina de pano cru. Homem e cão desaparecem.
As duas jovens vestidas de hábitos feitos de lençóis brancos passam por entre os fiéis com caixas de charutos sem tampa. As contribuições fazem-se em moedas e notas. Os fiéis saem lentamente, levantando golas, calçando luvas.
Uma mulher de meia-idade enfiada num casaco comprido de visão fica para trás e troca algumas palavras com uma das acólitas. A jovem faz um sinal afirmativo com a cabeça e dirige-se à porta coberta pela cortina, ao fundo do armazém. Entra na sórdida e atravancada divisão, um antigo estábulo para carroças. Num fogão barrigudo ardem carvões vermelhos. O ar está pesado de fumo.
- Uma mulher quer falar contigo - informa a assistente. Tem entre cinquenta e cinco e sessenta anos, casaco de visão, mala de crocodilo. Nunca a tinha visto.
O Irmão Kristos levanta-se do divã desfeito e fica de pé junto à mesa de cozinha, coberta por um oleado velho. A cortina da porta afasta-se e a mulher entra, hesitante,
tentando sorrir.
- Irmão Kristos - começa ela, com voz trémula -, obrigado por me receber. Espero que possa ajudar-me. - Os seus olhos ficam presos no olhar ardente do Irmão e não
consegue desviá-los. - Mrs. Lenore Mattingly sugeriu que recorresse a si - continua a mulher. - O senhor curou-a das enxaquecas e ela tem muita confiança em si.
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- Sim - diz ele, naquela voz sem timbre. - Ela tinha fé. Não posso ajudar quem não acredita. A senhora tem fé?
- Tenho, tenho. O seu sermão desta noite foi a coisa mais inspiradora que ouvi em toda a minha vida. vou voltar mais vezes. -
É uma mulher robusta e corada, de pele
rosada. Anéis em três dedos com grandes diamantes. - Está calor aqui dentro - observa ela, com um ligeiro riso nervoso. Posso tirar o casaco?
O homem não responde e não a ajuda a despir o casaco de visão, que ela dobra sobre o braço. Traz um vestido de crepe de seda preto, um colar de pérolas que se move
entre os seios volumosos e sapatos de cabedal de salto alto.
- Como é que se chama? - pergunta-lhe ele.
- Kate Downley. Mrs. Katherine Downley. Vivo em Washington, D. C. O meu marido é advogado e trabalha para o Governo.
- E veio cá ter comigo porque está a sofrer, a sofrer fisicamente.
- Sim. Por vezes, chega a um ponto que não consigo...
- Nos joelhos - antecipa-se ele. - A dor é nos joelhos. Os médicos não podem fazer nada. Dizem-lhe que é artrite e receitam medicamentos. Mas o efeito das drogas passa e as dores voltam.
Ela fica estupefacta.
- Como é que sabia?
O Irmão abana a cabeça.
- Não sei explicar. - O Irmão Kristos tira-lhe então das mãos o casaco de visão e a mala de crocodilo, deixando-os cair em cima da mesa. Puxa duas cadeiras e coloca-as frente a frente. Sentam-se tão perto um do outro que os joelhos de ambos quase se tocam. O seu hábito de burel abre-se e deixa ver as pernas nuas, peludas, de veias salientes e marcadas por cicatrizes. Mrs. Downley apercebe-se do seu cheiro. Ele inclina-se para a frente e segura-lhe ambas as mãos. - Olhe-me bem nos olhos - ordena-lhe. Ela obedece, pestanejando perante o brilho intenso do seu olhar. - Tem fé em mim? Mrs. Downley faz um sinal afirmativo com a cabeça. - Diga-o - insiste ele. - Diga: "Acredito em si, Irmão Kristos."
- Acredito em si, Irmão Kristos - repete ela, com um trejeito.
Ele solta-lhe as mãos e levanta-lhe a ponta da roupa. A malha é preta, quase opaca.
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- Puxe as meias para baixo.
- Não são meias... são collants.
- Puxe-os para baixo.
Ela põe-se de pé e, metendo as mãos por debaixo da saia, desce os collants até lhe ficarem enrolados aos tornozelos. Senta-se mais uma vez e de novo ele lhe levanta abruptamente a saia. Os joelhos nus estão inchados.
O Irmão Kristos ergue a cabeça e fixa-a novamente nos olhos com olhar de fogo. Agarra-lhe nos joelhos. As suas mãos são fortes, de pele grossa, as costas e os dedos cobertos de pêlos.
- Tenha fé. Deixe aumentar a sua confiança em mim. vou tomar sobremim a sua dor. O seu sofrimento vai passar de si para mim. À medida em que a sua fé aumenta o seu castigo torna-se mais suave. Acredite nisso. Acredite em mim.
Enquanto fala, os olhos dilatam-se-lhe e ela sente sobre si aquele olhar penetrante, tão quente e vermelho como o fogão... queimando.
O Irmão Kristos apalpa-lhe a carne dos joelhos. Os seus dedos de pele áspera e rugosa vão-se movendo ao longo da parte interior das coxas.
- Não existe pecado, não existe culpa - entoa ele. A senhora foi criada à imagem divina e não pode errar. Pode fazer o que quiser, sem medo. As suas dores não vão desaparecer imediatamente, mas, à medida em que a sua fé for crescendo, o desespero do seu corpo irá diminuindo. Entregue-se a mim de corpo e alma e o seu sofrimento acabará por desaparecer.
Mrs. Downley pestaneja e fecha os olhos. A voz de Kristos prossegue, chegando-lhe fraca aos ouvidos, como se viesse de longe. Sente dedos fantasmas afagarem-na e retirarem-se devagar, com carinho. Sente as coxas envolvidas, agarradas, acariciadas. Depois, aquelas mãos sem corpo retiram-se.
Abre os olhos e torna a enfrentar aquele olhar fixo.
- Eu sou a luz - diz-lhe ele - trazida à Terra para mostrar o único caminho. Acredita em mim? - Mrs. Downley faz um sinal afirmativo com a cabeça. - Diga-o.
- Acredito em si, Irmão Kristos.
Kristos levanta-se e afasta-se dela. Mrs. Downley põe-se também de pé, trémula, e puxa os collants para cima. Veste o casaco de peles, procura qualquer coisa na mala e conta cem dólares em notas pequenas, que coloca em cima do oleado que cobre a mesa.
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- Está bem assim? - pergunta, ansiosa.
- Não tem importância - responde ele. - O que é importante é acreditar.
- Posso voltar?
O Irmão Kristos encolhe os ombros.
- Se quiser.
Depois de ela sair e fechar a cortina, ele dirige-se a um armário velho na parede interior do armazém e tira de lá uma garrafa de
vodca. Leva-a à boca e bebe dois
goles, deitando depois um pouco num prato de alumínio que está no chão; o velho cão levanta-se e vai lambê-lo sofregamente.
As suas assistentes entram, trazendo as caixas das esmolas.
- Quase quarenta e seis - informa uma delas, mostrando ao Irmão Kristos um monte de notas e um punhado de moedas. - O que é que conseguiste?
Ele fez um gesto de cabeça em direcção ao dinheiro que está sobre a mesa.
- Cem. Pearl, amanhã de manhã, leva a carrinha e vai à cidade. Enche o depósito. E precisamos de
vodca.
- E de comida - diz Agnes Brittlewaite.
- E de mais carvão para o fogão - acrescenta Pearl Gibbs. - E de petróleo para os candeeiros. Precisamos de tudo.
- O Senhor no-lo dará - responde o Irmão Kristos. Há um monte de costeletas quentes grelhadas num prato
de alumínio, em cima do fogão, assim como algumas batatas manchadas, já cozidas e descascadas. Há também um pão de centeio duro inteiro.
Os três despem os respectivos hábitos. O Irmão Kristos tem vestidas umas ceroulas acinzentadas, amarrotadas e sujas. As mulheres têm biquinis de algodão e os seios nus.
Atiram-se, esfomeados, aos ossos das costeletas. Metem batatas inteiras na boca, partem pedaços do pão de centeio para limparem os lábios, antes de os engolirem ou de os atirarem ao cão.
Todos bebem vodca, passando a garrafa de mão em mão. Só as mulheres é que falam enquanto comem e bebem. Kristos debruça-se sobre a comida, de cabeça baixa, deixando
cair no chão pedaços de cartilagem. Não come, devora, separando dos ossos restos de gordura de porco com os seus fortes dentes amarelados.
As mulheres atiram-se à comida com igual voracidade, mas
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param, de vez em quando, para trocar impressões sobre um ou outro dos indivíduos presentes no serviço da tarde. Todos empurram a comida com goles de vodca. As batatas acabaram, as costeletas grelhadas ficaram reduzidas a um monte de ossos gordurentos, deitados para o chão para o cão roer.
O Irmão Kristos recosta-se na cadeira e faz sinal a Pearl, que se levanta e vem sentar-se-lhe no colo. Kristos acaricia-lhe o peito, fazendo com a mão livre sinal
à outra mulher para que se aproxime. Esta dá a volta à mesa e vem colocar-se ao lado da sua cadeira. Agnes é uma mulher forte, de seios descaídos, sem cintura e
de coxas flácidas. Agarra-se a Kristos quando este lhe mete a mão por debaixo do hábito e fica de pé, de pernas abertas, acariciando-lhe o cabelo.
Kristos afasta-a e levanta-se, deixando cair Pearl do colo. Leva a garrafa de
vodca à boca e bebe um longo trago. Deita-se, nu, no divã, exibindo-se perante as duas mulheres, que se riem.
Pearl deita-se junto dele. Agnes pega numa pequena pá cheia de carvão e deita-a no fogão, retirando depois o biquini e ajoelhando-se junto do divã.
Ó ar está pegajoso, devido ao calor, ao fumo do carvão a arder, à comida, à
vodca, ao suor. Os candeeiros de petróleo deitam fumo, a sua luz vacila e as sombras vão e vêm pelas paredes.
Kristos rosna como um animal acossado, balançando-se e arranhando. Usa a sua grande força como cacete, brutalizando as duas mulheres. Penetra, despedaça, rompe e rasga, os lábios grossos afastados mostrando dentes ferozes, unhas afiadas.
A cena continua até à meia-noite, até a bebida ter acabado e a paixão se ter esgotado. Os seus corpos húmidos não conseguem refrescar-se naquele inferno de vapor. Kristos afasta as mulheres aos pontapés e levanta-se a cambalear. Depois, ainda nu, sai pela porta das traseiras.
As duas mulheres levantam-se com dificuldade e enfiam os hábitos brancos.
Pearl: - Onde é que ele está?
Agnes: - Lá fora.
Pearl: - Na retrete?
Agnes: - Não sei.
Pearl: - Talvez tenha desmaiado.
Agnes: - Impossível.
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Pearl: - Talvez fosse melhor irmos ver.
Saem, sentindo o ar frio como uma chicotada. Uma Lua gelada dá ainda ao céu uma tonalidade leitosa. As estrelas giram e o vento corta.
- Lá está ele! - exclama Agnes. - No cimo da encosta.
Ambas o vêem então, de joelhos, nu, cabeça inclinada, perto de um velho carvalho, agora negro e despido de folhas. Os braços do Irmão Kristos envolvem o tronco rude e parece muito pequeno, vulnerável, o corpo esbranquiçado ao luar.
- O que é que ele está a fazer? - pergunta Pearl.
- A rezar - responde Agnes. Pearl solta uma gargalhada.
- É doido.
Agnes vira-se para ela.
- Sua vaca estúpida! Não voltes a dizer isso. - Depois acrescenta, em voz mais suave: - Mas divertimo-nos, não foi?
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O ambiente está confortavelmente quente, mas o chefe de gabinete está encolhido, de mãos nos bolsos, como se estivesse de pé à porta de entrada. Lá fora, o guarda dos Marines tem um sobretudo vestido e luvas calçadas.
- Aquele filho da puta! - exclama amargamente Henry Aaron Folsom. - Aparece, com uma regularidade infalível, de três em três meses. E sabe porquê? Para tirar uma fotografia com o patrão. Manda-a para a merda do país donde vem, para ser publicada nos dois jornais de lá. A ideia é fazer parecer que é tu cá tu lá com o presidente dos Estados Unidos. Avisou o fotógrafo?
- Está à espera - responde John Tollinger.
- Ainda bem. Vamos despachar aquela miniatura de imbecil, que temos um dia muito ocupado hoje. O Conselho de Estado está marcado para daqui a dez minutos.
- É verdade - responde o seu assessor. - A informação sobre a situação nas Marianas.
- Quem me dera lembrar-me das coisas como você!
- Tomo comprimidos para a memória.
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- Ah, sim? Que comprimidos?
- Não me lembro do nome - responde o assessor em tom solene, e Folsom solta uma gargalhada.
Um enorme automóvel preto pára lá fora.
- Lá está o zé-ninguém - observa o chefe de gabinete. Aquele carro chegava para dar de comer a metade do país dele durante uma semana.
Os dois homens vão até à entrada. O motorista apressa-se a abrir a porta de trás do carro. Um homem baixo e macilento sai e começa a subir os degraus.
- Senhor embaixador! - exclama Folsom, estendendo a mão. - Tenho muito prazer em voltar a vê-lo!
O embaixador ri.
- Espero que você e o senhor Presidente estejam ambos bem!
- Não podíamos estar melhor - responde, afável, o chefe de gabinete. - Sei que ele está ansioso pela sua visita. Por aqui.
Levam-no pelos corredores até ao Gabinete Oval. O presidente Abner Randolph Hawkins levanta-se quando eles entram. Aperta a pequena pata que lhe estende o embaixador e ambos ficam um instante de pé, juntos, trocando observações sobre o terrível Inverno e o estado caótico da economia no país do embaixador.
- Há pessoas a morrer de fome - diz o diplomata, com tristeza.
Porque, gostaria o Presidente de dizer, a nossa ajuda está a ser sugada por aquele bando de patifes para quem trabalhas. Mas limita-se a esboçar com a cabeça um sinal de compreensão e a prometer estudar o assunto.
Manda-se chamar o fotógrafo, que tira a tão desejada fotografia. Uma dúzia de exemplares serão enviados para a residência oficial do embaixador, uma surre de luxo no Hotel Plaza, de Washington. O chefe de gabinete fica no Gabinete Oval. John Tollinger acompanha o comissário até ao automóvel.
No preciso momento em que vão a sair, o embaixador olha com cuidado à sua volta e aproxima-se, tocando ao de leve com os dedos no braço de Tollinger.
- O senhor Presidente está bem? - pergunta em voz baixa.
- O Presidente está de óptima saúde - responde friamente o assessor do chefe de gabinete.
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Mas parece tão em baixo - persiste o embaixador -,
tão cansado e talvez preocupado. E pareceu-me distante. Não teve sequer um sorriso. Nem um único.
- Tem andado a trabalhar muito - responde Tollinger em tom formal. - Aquela questão do Peru...
- Ah, sim! - exclama o diplomata, que apenas tem uma noção vaga de onde fica o Peru e nenhuma ideia do que possa ser a "questão"
- E o filho, como é que está?
- Está a reagir bem ao tratamento - responde Tollinger. Mais tarde, nesse mesmo dia, o assessor entra no gabinete
do chefe, para o informar da conversa com o embaixador.
- Então, ele reparou! - exclama Folsom. - Aquele anão idiota! bom, é verdade, o patrão parece um desenterrado. Vamos cancelar todas as hipóteses de o fotografar durante uns tempos. Não convém nada que o Times publique fotografias dele com ar de morto em pé. E vamos adiar conferências de imprensa e fazer circular que ele está demasiado ocupado com aquilo do Peru.
- Ninguém vai engolir essa.
- A longo prazo, não - concorda o chefe de gabinete -, mas é uma maneira temporária de controlar os estragos. Já me começam a fazer perguntas lá no Capitólio. Tenho um mau pressentimento acerca de tudo isto. O homem hoje parecia um fantasma. Nem sequer ouvia. Há uma série de coisas, de coisas importantes, à espera de uma decisão sua, um simples sim ou não, mas de repente parece que não consegue decidir-se. Nem parece ele.
- É por causa do filho?
- É - responde o chefe, preocupado -, e da mulher. Ela também não ajuda. Importa-se de trabalhar até mais tarde, hoje?
- Claro que não.
- Não tem planos? Algum encontro com alguma jovem?
- Parece-me que para mim já passou o tempo de tais encontros.
- Que ideia, está só a passar por uma DPD. Sabe o que isso quer dizer?
- Depressão pós-divórcio?
- É isso mesmo. Mas, quando se cai de um cavalo, deve-se levantar e voltar a montar, quanto mais cedo melhor. Eu sei, já passei por isso duas vezes. bom, fim do sermão. A ra-
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zão por que lhe pedi para ficar a trabalhar até mais tarde é a seguinte: o Dr. Stemple passa por cá às sete; primeiro, pensei em ter uma conversa a sós com ele, mas tenho estado a pensar nisso e cheguei à conclusão de que é melhor ter uma testemunha. Não se importa?
- De que é que se trata... do patrão?
- Sim. Quero saber a opinião do médico. Talvez tenhamos aqui um problema grave.
- Compreendo.
- Então, não se importa de assistir, só para ouvir?
- Lá estarei. Quer que tome notas?
- Pelo amor de Deus, não! - responde o chefe de gabinete. - Nada de notas nem de gravações. Só conversa. Assim, podemos negar, negar, negar... não é?
- Estou a ver.
Não seria nada bom que os meios de comunicação social viessem a saber que a Administração emprega um psiquiatra, razão por que o Dr. R. Judd Stemple está oficialmente a trabalhar para o Conselho Nacional de Segurança. A sua função oficial é a de dirigir uma equipa de cinco elementos que prepara psicobiografias de líderes estrangeiros, diplomatas, terroristas, revolucionários nacionais e, ocasionalmente, membros do Congresso.
Na realidade, Stemple serve sobretudo de psicólogo consultor do pessoal da Casa Branca. Está disponível quando o stress ultrapassa os convencidos, quando o álcool ou as drogas se tornam demasiado importantes, ou quando alguns daqueles cérebros começam a preocupar-se com a descompressão que se seguirá inevitavelmente à perda
do livre-trânsito e do número de telefone da Casa Branca.
Stemple é um homem jovial, meio careca, com a reputação de ser o melhor jogador de bilhar da capital. Diz-se que treina todas as noites, o que talvez seja a razão
pela qual não perde tempo em conversas de salão.
- Olhem - diz ele a Folsom e a Tollinger -, vocês estão perante um tipo que se viu de repente lançado numa panela de pressão. Talvez esta seja a função mais difícil que há no mundo. É claro que ele subiu por todos os escalões, serviu o seu Estado e foi governador durante dois mandatos. E depois? Não há treino algum que prepare uma pessoa para o momento em que se senta por detrás daquela enorme secretária no Gabinete Oval.
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Ele tem estado a sair-se bem, já há um ano - observa o
chefe de gabinete.
- Tem? - pergunta o médico. - Claro que tem estado a funcionar, e a funcionar bem. Mas tem estado a pôr de lado os problemas pessoais. Talvez não a pô-los de lado,
mas a enterrá-los bem fundo.
- Deve pensar que o país está primeiro - diz Folsom, na defensiva. - Olhe, o patrão é um patriota. Nos tempos que vão correndo, isto é um lugar-comum, mas ele é um patriota.
- Acredito. Mas o custo psíquico tem sido enorme e está a começar a ser demasiado para ele. Que idade tinha quando nasceu o filho?
O chefe de gabinete olha para o seu assessor.
- John?
- Quarenta e dois - responde Tollinger. - E a mulher, trinta e seis.
- Já eram um pouco velhos para um primeiro filho - observa o médico. - Imaginem como se sentiram felizes, depois de tantos anos de tentativas. Mas mais tarde descobre-se que o miúdo é hemofílico. É um choque, mas tentam reagir, viver uma vida normal, o que é difícil quando se tem um filho que pode esvair-se em sangue se cair da bicicleta. Seja como for, Abner Randolph Hawkins consegue chegar à Casa Branca. Agora tem milhares de problemas graves, mas nenhum tão grave como o do seu único filho, George Powell Hawkins, cuja vida corre constantemente perigo.
- Não é assim tão mau - contrapõe Folsom. - O miúdo é doente, é verdade, mas tem tratamento especial, você sabe disso muito bem. Há sempre alguém a tomar conta dele. Não está nunca muito longe de onde possa ser submetido a uma transfusão de sangue, se for preciso. E agora estão a testar uma nova substância coagulante.
- Está a dar resultado? - deseja saber Stemple.
- Ele está a reagir ao tratamento - esclarece o chefe de gabinete.
- Não me venha com essas tretas. Isso é tão mau como dizer "a operação foi um êxito, mas o doente morreu". O rapaz continua doente, e você sabe disso. E ainda me pergunta por que é que o pai mostra sinais de stress? Ele gosta muito do filho. Não consegue deixar de se preocupar com o estado do miúdo. Até admira como é que ainda consegue funcionar. Eu, por acaso, não concordo com a sua filosofia política, mas o facto é que ele é humano, adora o filho.
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- E a mulher? - acrescenta Folsom.
- A mulher sente exactamente o mesmo que ele, mas com muito mais intensidade. Até porque se sente responsável pela doença do filho, o que, de certo modo, é verdade. A hemofilia só afecta pessoas do sexo masculino, mas é transmitida pelas mães. Vocês imaginam o sentimento de culpa dela? Helen sente que é ela a causadora da infelicidade do filho. Li algures que ela não fazia ideia nenhuma de que possuía tal característica genética recessiva. A mãe teve duas raparigas e a avó três. Só quando chegaram à bisavó é que encontraram um rapaz. Era hemofílico e morreu com quatro anos. Por isso, devem compreender como está a torturar-se a si própria.
- Está bem - concorda o chefe de gabinete. - Obrigado pelo diagnóstico médico. Agora diga-nos a verdade, qual é o pior cenário possível? É o de o miúdo morrer?
O Dr. Stemple recosta-se na cadeira e passa a palma da mão pela careca.
- Como eu gostava que a regra de não fumar por estas paragens fosse menos estrita - diz ele, um tanto nervoso. Quem me dera poder fumar agora um charuto. Não, não me parece que a morte do rapaz seja o pior caso. Já houve outros presidentes que perderam filhos enquanto estavam na Casa Branca e sobreviveram. É evidente que há sempre um terrível período de dor, mas o desgosto pela morte de um ente querido pode ser terapêutico.
- Terapêutico ?- interroga Folsom.
- É verdade. É como tomar um emetizante. A morte do miúdo seria um grande abalo, mas ao mesmo tempo libertaria o Presidente de uma constante ansiedade.
- Mas, então, o que é que é pior? - inquire Folsom. O médico fita-o.
- É ele não aguentar.
- Pelo amor de Deus, não me diga isso!
- Mas estou a dizê-lo. Um completo esgotamento nervoso é uma possibilidade muito real.
- Não acredito - opõe Folsom, com raiva. - Estive com o patrão nos Marines e sei que ele passou por coisas terríveis, sem nunca fraquejar. Isso não vai acontecer agora.
- Chefe - contrapõe Stemple, em tom compreensivo -, em combate o inimigo está a tentar matar-nos e nós a ele. É acção. Nós ripostamos. Mas como é que se dispara contra o destino? Não compreende? Uma parte do problema do homem é o facto de não poder agir, mas apenas sofrer.
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O chefe de gabinete abana a cabeça.
Um esgotamento? Como é que podemos preparar-nos
para tal, meu Deus? - Ficam sentados, em silêncio, a escutar os sons do fim da tarde na Casa Branca, ainda em actividade: mensageiros apressados pelos corredores, uma gargalhada súbita, um porta a bater. Sabem que no andar de cima o Presidente e a mulher, juntos pela primeira vez em todo o dia, estão sentados perto um do outro, de mãos dadas, talvez a chorar. - John - chama o chefe de gabinete -, quer fazer alguma pergunta?
Tollinger vira-se para o psicólogo.
- Há um factor que não mencionou, doutor Stemple: a religiosidade deles. Como creio que sabe, tanto o Presidente como a primeira dama são muito devotos. Isso não irá ajudá-los a superar tudo isto?
- Não falei com nenhum deles, pelo que apenas posso conjecturar, mas talvez sintam que devem ter pecado, para Deus estar a castigá-los, e isso faz aumentar o seu sentimento de culpa. Não posso dar-lhe uma opinião mais concreta. Não me parece que alguém possa consegui-lo, nem mesmo Helen e Abner Hawkins.
- Mas eles vão todos os domingos à igreja - insiste Tollinger. - Dão importantes contributos. Por vezes, organizam pequenos-almoços de oração aqui, na Casa Branca. O seu pastor é o reverendo Jonathan Smiley. Conhece-o?
- Já me foi apresentado. É o estupor de um beato.
- Seja como for, se acreditam nele, não seria bom recrutá-lo? Talvez ele pudesse convencê-los de que o sentimento de culpa que têm é um disparate.
- Talvez pudesse dar algum resultado, mas duvido. Já alguma vez ouviu um sermão de Smiley?
É um daqueles tipos do "que seja feita a vontade de Deus". Nada de explicações
para o facto de haver inocentes que morrem de fome, bebés que nascem com sida e pessoas mortas a tiro nas ruas por estranhos: é apenas a vontade de Deus. Acha que o Presidente e a primeira dama vão nessa? Não me parece. Podem não ser as pessoas mais inteligentes do mundo, mas têm espírito prático. Pensam que, quando se tem um problema, deve-se tentar resolvê-lo, seja como for. Uma pessoa não deve limitar-se a encolher os ombros e a dizer "que seja feita a vontade de Deus". Não, não me parece que o reverendo Smiley seja a solução.
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- Mas então, que diabo, qual é a solução? - roga Folsom, irritado.
O médico olha para ele com ar benevolente.
- O que é que o faz pensar que todos os problemas têm solução? Não têm, mas, por vezes, se se esperar o tempo suficiente, acabam por desaparecer.
- Tretas! - exclama o chefe de gabinete.
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Muita gente crê que John Tollinger é um homem sem alegria. A verdade é que tem espírito refinado, mas tão seco que é ele o único a achar-lhe graça. No caminho de regresso da Casa Branca para Spring Valley, recorda a reunião com o chefe de gabinete e o Dr. Stemple. Sente-se divertido, mas não ri alto nem sequer sorri perante a imagem de três lacaios a avaliar a saúde mental do Presidente dos Estados Unidos.
Antes de se tornar a sua ex, Jennifer disse-lhe um dia:
- Supõe-se que há dois tipos de pessoas no mundo: as que encaram a vida como uma tragédia e as que vêem nela uma comédia. Mas tu não pertences a nenhum deles. Tu encaras a vida como uma catástrofe.
- O que estás a dizer não é justo - respondeu ele - e não é verdade. Eu apenas tenho uma noção muito exacta do absurdo da existência.
- E utilizas demasiadas palavras caras - acrescentou ela. Relembrando aquela conversa, Tollinger pensa de novo na
razão do seu divórcio. Não foi dinheiro, nem sexo (ambos concordavam que era óptimo), nem infidelidade (ambos foram rigorosamente fiéis durante os três anos de vida em comum). Foi, pensa ele, a incompatibilidade emocional que deu cabo deles. Deviam ter sabido disso antes, mas durante o namoro tinham concordado em que "os opostos se atraem" e esperado que o seu casamento pudesse durar para sempre. Não durou.
- És um homem frio - acabou ela por acusá-lo. - Tens água gelada nas veias. Se sentisses as calças a arder, serias capaz de dizer: "Bolas!" Não tens vivacidade.
Levas a vida a pensar como o Puck: "Meu Deus, que idiotas são estes mortais!"
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Séneca já o tinha dito - observou ele, em tom calmo. -
E tu és tão mal-humorada que quase atinges um estado maníaco-depressivo. Já te vi chorar por não saberes onde puseste as chaves do carro.
És tão instável, emocionalmente, que acho que andas à procura de crises e, quando não encontras nenhuma, inventas.
- Seja como for - serenou ela -, tu sabes preparar um óptimo Martini seco.
- E eu adoro o teu pesto1.
E assim se divorciaram, continuando a ser mais ou menos amigos e vêem-se ocasionalmente, para tornarem martinis e pesto. Além disso, Jennifer, que voltou a usar o nome de solteira (Jennifer Raye), é secretária da primeira dama e encontra-se muitas vezes com John Tollinger em cerimónias várias na Casa Branca. Não há qualquer mal-estar nesses encontros.
John admite que Jennifer foi um pouco generosa no acordo de divórcio. Ele ficou com a casa de Spring Valley e ela com a maior parte da mobília, o suficiente para mobilar um apartamento dúplex em Georgetown, que Jennifer partilha com uma mulher da área de estatística no Ministério do Trabalho.
Mas aquele acordo amigável fez com que ele ficasse quase literalmente com uma casa vazia. Uma cama e uma cómoda no quarto. Nada no quarto de hóspedes. A sala tem ainda dois maples e uma mesa baixa. A sala de jantar acha-se vazia. Mas na cozinha há um balcão com um banco alto.
A única divisão não saqueada por Jennifer, por saber o que significava para John, é o escritório. Parece uma sala de leitura de um daqueles enfadonhos clubes de cavalheiros: um sofá de couro e maples de orelhas, estantes metidas na parede, um fogão de sala, um candeeiro antigo e um aparador com tampo de mármore.
- A única coisa que falta - afirmou Jennifer um dia - é um estereoscópio vitoriano com retratos de mulheres gordas vestindo meias pretas.
Mas aquela é, sem dúvida alguma, a divisão da casa que John Tollinger prefere. E não apenas porque é lá que estão as bebidas, os livros e uma colecção de cachimbos James Upshall, mas porque é um refúgio onde se pode sentir em paz com o mundo e, por vezes, consigo próprio.
1 Espécie de molho de consistência pastosa, feito com basílico, alho, óleo, pinhões e queijo ralado. (N. da T.)
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John pensa que talvez fosse melhor nunca se ter casado. Devia ter percebido que nasceu para solteirão, um homem que aprecia a solidão, que tem de fazer um esforço consciente para conviver. Atribui aos pais a culpa desse facto: a relação de rancor entre ambos fê-lo apreciar a calma satisfação de estar só.
Por isso, aí está ele, confortavelmente refastelado num maple de couro, com um copo de Glenfiddich na mão. Está mais uma vez a pensar na conversa com Folsom e Stemple, tentando perceber a quem deve lealdade. Primeiro que tudo, ao chefe de gabinete. Claro, porque aquele homem rude e profano foi o seu mentor. O chefe de gabinete defendeu mais de uma vez a sua posição, conseguindo obter-lhe aumentos de ordenado e categorias profissionais de maior prestígio. Tollinger deve-lhe favores.
E quanto ao Presidente? Que é que John lhe deve? Tal como o Dr. Stemple, não concorda inteiramente com a filosofia política do patrão, mas não pode negar que Abner Hawkins é, no essencial, um homem honesto, com todas as virtudes do escuteiro. Mas é um homem simples, sem subtileza, sem profundidade intelectual. Estas não são necessariamente características negativas num chefe de Estado. Tollinger pensa que a maior parte dos Americanos desconfiam, por instinto, dos intelectuais e podem muito bem ter razão. E qual é, pensa John, a sua lealdade para com essa enorme e amorfa entidade a que se chama país? Será a essa família, que muitas vezes comete erros e actos de violência, que John Tollinger deve, no fundo, fidelidade? Em tempos, pensou que sim. Mas, após uma década enfiado naquela barafunda da política, a sua fé na nobreza do funcionalismo público ficou um tanto enfraquecida.
O telefone, que está em cima da mesinha ao lado do maple, toca. Sente-se tentado a não responder, mas é verdade que está ao serviço do "rei". Levanta o auscultador.
- John Tollinger.
- Olá, John Tollinger - a voz de Jennifer tem um tom vivo. - Que tal dares de beber a uma pessoa cheia de sede?
- Porque não? - responde ele, no mesmo tom. - Onde e quando?
- Ai mesmo onde estás sentado. Daqui a mais ou menos uma hora, está bem?
- Está óptimo.
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Tollinger mistura martinis secos num jarro, tira para fora os cubos de gelo e coloca o jarro no congelador do frigorífico. Os martinis preparados com antecedência, mesmç dois ou três dias antes, ficam com uma textura aveludada. É uma das coisas em que mais profundamente acredita.
Jennifer, como sempre, chega atrasada. Mas ele está habituado, e isso já não o irrita. Quando chega, por fim, e John lhe abre a porta, Jennifer entra em passo rápido, vestida com o seu precioso casaco de pele de raccoon dos anos 20 (comprado num saldo) por cima de um saia-casaco de veludo preto.
- Preparaste o martini? - avança. - Venha ele, venha ele, venha ele! - Depois, dá-lhe um beijo rápido no queixo. John instala-a num maple e deita-lhe a bebida num copo, sem azeitona, nem cebola, nem casca de limão. Jennifer bebe um pequeno gole e fecha os olhos com prazer. - Não perdeste o jeito!
E bebe dois grandes tragos.
- Meu Deus! Tem calma. Já sabes que efeito essa droga tem em ti.
- Não - retruca Jennifer, em tom de desafio -, qual é o efeito que tem em mim?
John ergue as mãos.
- Vá lá, tem calma. Não vieste de tão longe para arranjar discussão, pois não?
- Não me chateies - continua ela, com irritação. - Não estou para isso.
- Bem vejo. Tiveste um dia mau?
- Todos os dias são maus. Posso ficar cá a dormir? John bebe um gole de uísque antes de responder.
- Achas que é uma ideia sensata?
- Por amor de Deus, achas que todas as decisões têm de ser sensatas? Nunca fazes nada por impulso?
- Às vezes. Mas arrependo-me sempre depois. Vá lá, Jen, qual é o problema agora? Alguma coisa que eu fiz ou que não fiz?
- Não - esclarece ela, esvaziando o copo. - Não é nada de que tenhas culpa. Desculpa ter gritado contigo, mas tive um dia horrível. Dá-me outro martini e deixa ficar aqui o jarro. Acho que vou precisar.
- Estou a ver que é mesmo sério.
Só quando já vai a meio do segundo copo é que Jennifer pára de se mexer de um lado para o outro na cadeira.
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- Já comeste alguma coisa? - indaga John.
- Uma sanduíche de atum. Não me apetecia mais nada.
- Posso fazer-te uns ovos mexidos, se tiveres fome.
- Não tenho fome, obrigada. O que é que se está a passar no Peru?
- Nada, espero. Pensa-se que agora eles vão libertar os reféns. Já conseguiram a publicidade que pretendiam nos jornais e na televisão. Seja como for, é o Departamento de Estado que está a tratar disso, a crise é deles. Qual é a tua?
- Nem vais acreditar. Ela diz que está em Nova Iorque para falar com a Fundação para a Hemofilia. A ideia é boa, acho eu, e não é só porque fui eu que a tive. A primeira dama irá tornar-se o principal porta-voz na angariação de fundos para investigação e tratamento da hemofilia. É genial. Toda a gente sabe que o miúdo dela tem a doença. Recebe centenas de cartas por semana do estilo "nós rezamos por si e pelo seu filho", e coisas assim. bom, é por isso que Maude está em Nova Iorque, para organizar a operação: entrevistas para a televisão, cassettes, autocolantes... a tralha toda. Vai ser a sua cruzada pessoal, tal como a campanha antidroga o foi para Nancy Reagan.
- Parece-me óptimo - opina Tollinger. - Enorme cobertura da comunicação social e bons dividendos políticos.
- Sim - concorda Jennifer. - Ai é que está. Mas enquanto Maude se encontra em Nova Iorque, eu estou a consolar Helen Hawkins. É uma experiência perturbadora. A pobre mulher está à beira do esgotamento. Fica horas e horas no Walter Reede, quase não come nada. Perdeu peso, não dorme e chora durante horas a fio.
- Isso não é nada bom.
- E ainda não é o pior - acrescenta Jennifer. - Ontem, estava com ela no hospital. O rapaz não tem dado qualquer sinal de melhoras com aquela nova droga que lhe estão a dar, por isso tentam reajustar a dosagem. bom, por volta das três da tarde aparece Audrey Robertson, a secretária para os Assuntos Sociais.
- Eu sei.
- Vem lembrar a Helen que tem um compromisso às quatro, um chá de caridade no Hotel Four Seasons. Helen não quer ir, mas, por fim, Audrey e eu conseguimos convencê-la a ir lá, nem que seja só por instantes. Estás a ficar chateado?
- Não, sou todo ouvidos.
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bom, o chá corre bem, com Audrey e eu sempre coladas
a Helen, para o caso de lhe dar um dos seus ataques de choro. Mas ela está bem até que as pessoas começam a ir-se embora. Nessa altura, é apanhada por um par de metediças: Mrs. Katherine Downley e Mrs. Lenore Mattingly. Conhece-
-las?
- Não.
Tens sorte. Rios de dinheiro e miolos de galinha. E claro que perguntam a Helen como está o George, e ela responde que não está melhor. Começam então a falar-lhe de um homem maravilhoso, lá na Virgínia. Parece que é uma espécie de pregador que trabalha num antigo armazém de tabaco. Afirmam que é vidente e curandeiro. Parece que curou as enxaquecas de Mattingly e a artrite de Downley.
- Meu Deus! - exclama Tollinger, deitando no copo mais um Glenfiddich. - Já sei o que se vai seguir.
- Bem podes crê-lo. Audrey e eu tentámos arrastar Helen para longe daquelas duas galinhas, mas não tivemos sorte nenhuma. Ela tinha que ouvir a história toda: exactamente onde vive o tal charlatão, que idade tem, quantas pessoas há na sua congregação e se pensavam que ele poderia ajudar o George. Em resumo, a primeira dama dos Estados Unidos decidiu que tem de consultar esse aldrabão. Audrey e eu tentámos dissuadi-la, mas sem resultado. Ela insistiu, dizendo que nunca perdoaria a si própria se não fosse, mesmo que só houvesse uma hipótese num milhão de ele poder curar o filho.
Tollinger respira fundo.
- Desta vez tens razão, Jen. Estás, de facto, a braços com uma crise. Quando é que ela vai visitar o tal tipo?
- Deixa-me acabar a história. O chá foi ontem. Acabei por convencer Helen de que, antes de ela ir consultar o tal maluco, seria bom que me deixasse ir lá primeiro com um homem dos serviços secretos. Podíamos dar uma vista de olhos na tal espécie de igreja, ver quais as medidas de segurança a tomar e, de um modo geral, ver que tipo era aquele.
- Boa ideia.
- Por isso, o agente dos serviços secretos e eu fomos lá, esta manhã. Levámos quase quatro horas. Pensei que íamos ter dificuldade em dar com o sítio, mas toda a gente da região o conhecia. Por incrível que pareça, os agricultores com quem falámos juram todos pelo tal espécime. Afirmam que nunca conheceram ninguém tão bom para tratar dos animais
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e que consegue curar tudo, desde uma galinha doente até um boi.
- Jennifer, o que é que o tipo é? Fundamentalista? Evangelista? Quero dizer, que religião é a dele?
- Ninguém sabe. Eu nunca o ouvi dizer sermão, e aquelas duas respeitáveis matronas, Downley e Mattingly, dizem que ele tem uma fé muito própria, muito inspiradora. Foram exactamente estas as palavras que empregaram. bom, encontrámos o armazém. Tem aspecto de poder ser levado por um vento um pouco forte. Nenhum sinal, nenhuma decoração.
- Uma cruz?
- Não vi nenhuma. Lá dentro, há bancos toscos de madeira, uma espécie de palco improvisado e um pequeno púlpito. Há um quarto nas traseiras, onde vive o homem, com duas mulheres.
- Oh, oh! Novas?
- Não são adolescentes, mas são autênticas vadias. Uma delas deve ter uns vinte e oito ou vinte e nove anos, a outra deve andar pelos trinta e cinco. Ambas usam hábitos feitos de lençóis sujos. Parecem membros do Ku Klux Klan, sem as máscaras.
- Encontraste o tipo?
- Sim. Um bicho desmazelado. Não é tão alto como tu, mas parece maior. Largo de tronco e de ombros. Um bigode oleoso e barba comprida. Mãos e pés enormes. Não é um tipo feio, mas os olhos é que atraem. Juro que são fosforescentes. Fixou-me com o olhar e fiquei presa. Não conseguia deixar de olhar para ele. Sabes qual foi a primeira coisa que me disse?
- Não, qual foi?
- "Porque é que deixou o seu marido?"
- Estás a gozar.
- Juro que foi isso que ele disse. Mas como é que sabia?
- Bem - atalha John Tollinger, com toda a calma -, talvez tenha reparado na marca da aliança de casamento no teu dedo. Ou talvez fosse apenas palpite. De qualquer maneira, enganou-se. Tu não me deixaste, separámo-nos de comum acordo.
- Deixa-te de disparates - replica Jennifer, com rispidez, bebendo em seguida um gole de martini. - Ele não me conhecia, nunca me tinha visto, mas sabia que eu acabara de deixar o meu marido. Foi um choque. Por fim, disse-lhe que
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uma senhora muito conhecida o queria consultar em particular e, visto que seria provável ele reconhecê-la, perguntei-lhe se podia contar com a sua discrição.
O que é que ele respondeu?
Não respondeu. Limitou-se a continuar a olhar fixamente para mim. Inquiri depois quanto cobrava por uma consulta e ele declarou: "Nada ou tudo." Como é que interpretas isto?
- Não interpreto.
- bom, depois fui-me embora. Aquele seu olhar fixo fazia-me transpirar. Helen tem o tempo muito ocupado. Há um jantar oficial na sexta-feira e ela e o Presidente vão para Camp David passar o fim-de-semana. Se os médicos autorizarem, levam o George para lá de ambulância, só para o miúdo mudar um pouco de ares. O rapaz é tão corajoso! Nem imaginas. Sempre que penso nele, dá-me vontade de chorar. Mas Helen insiste em querer ir ter com o tal curandeiro na segunda-feira. Os serviços secretos dizem que tratam da segurança, que vão passar uma busca cuidadosa ao armazém antes de a primeira dama entrar. Ah, uma coisa que me esqueci de dizer, o homem cheira mal.
- Cheira mal? A quê?
- Ao seu próprio cheiro. Traz vestido um hábito de burel, e os pés, descalços, não estão lá muito limpos. E parece-me que utiliza a barba como guardanapo. Foi por isso que, à saída, dei cem dólares às duas fulanas e lhes pedi para tentarem fazer com que até segunda-feira o chefe fique uni pouco mais limpo. Por exemplo, tirarem-lhe a crosta de porcaria, darem-lhe um banho de mangueira, apararem aquela barba e talvez até desinfectarem-no com spray antibaratas.
Tollinger deita o que resta do martini no copo de Jennifer e acrescenta um pouco de uísque no seu.
- Agora percebo porque estás tão perturbada. Sabes qual é o grande problema, não sabes?
- Raios te partam - grita ela, em tom enraivecido. Agradeço que reconheças que tenho cabeça, está bem? Claro que sei. O grande problema está em a comunicação social vir a saber disto e, num instante, se ver em grandes letras no Washington Post: "A primeira dama consulta um curandeiro." Bem sabes o que é que o astrólogo de Nancy fez aos Reagan.
- Exacto. É melhor começares a pensar como é que podes virar isso de modo que ela saia bem vista. Se a Fundação para
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a Hemofilia o vier a saber, lá se vai a tua campanha. Pensa nisso.
- Nem consigo pensar noutra coisa. Sinto-me encurralada. Se visses como o tipo olhou para mim!
- Dá pelo nome de Irmão Kristos. Podemos ir agora para a cama?
- Vamos - aceita John Tollinger.
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É um dia austero de Janeiro, o Sol brilha mas a terra está ainda gelada. A caravana parte da Casa Branca às nove horas da manhã. O programa da primeira dama, de que foi dado conhecimento à imprensa, informa que ela tenciona passar o dia com o filho no Hospital Walter Reed. Este é um facto de tão pouco interesse, tão sem novidade nem oportunidades de fotografia que nenhum repórter segue os três carros.
Uma carrinha preta vai à frente: quatro agentes dos serviços secretos armados e acompanhados de equipamento electrónico e de um pastor-alemão treinado em detectar explosivos. Segue-se-lhe o automóvel preto com motorista, cuja capota e vidros são à prova de bala. A primeira dama vai encolhida no banco de trás, ao lado de Jennifer Raye, e parece dormitar. Na retaguarda segue um outro carro preto, levando mais um homem dos serviços secretos e o médico particular de Helen Hawkins.
Os veículos seguem em andamento rápido em direcção ao Sul, atravessando a paisagem desolada da Virgínia, suficientemente próximos uns dos outros, para não permitirem que qualquer automóvel estranho se interponha no meio deles. Atravessam Manassas e Culpeper e seguem depois em direcção a Goochland.
Os agentes dos serviços secretos são os primeiros a entrar no armazém, com o pastor-alemão pela trela. Ficam lá dentro quase meia hora, após o que o chefe sai e se dirige ao automóvel grande. Abre a porta de trás.
- Está tudo em ordem - vem dizer à primeira dama -, mas não é o sítio mais limpo do mundo. Tem a certeza de que quer mesmo entrar?
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Tenho.
Sai do carro, seguida de Jennifer Raye. Três guardas são colocados à volta do armazém e os restantes no interior. Helen Hawkins dirige-se, resoluta, para a porta da frente. Veste um casaco de cordeiro persa preto de corte antiquado.
Agnes, vestida de hábito branco lavado, vem ao seu encontro.
- O Irmão Kristos pode recebê-la agora - anuncia, como se fosse a empregada do consultório de um médico.
- Posso entrar também? - pergunta Jennifer.
- Não - responde Helen. - Quero falar a sós com ele.
- Não o aconselho - diz o chefe dos serviços secretos. Helen lança-lhe um olhar penetrante.
- Sei muito bem tomar conta de mim própria - afirma, com rispidez -, se precisar de ajuda, grito. Eu sei gritar.
Entra no quarto das traseiras. O chefe olha para Jennifer e encolhe os ombros.
O Irmão Kristos vê uma mulher magra e decidida, de rosto marcado pelo desgosto. Ela apenas vê a chama do seu olhar.
- Sabe quem eu sou? - interroga Helen.
- Sim, mãe - diz ele na sua voz sem timbre. - O seu filho está doente. Uma doença do sangue.
- Pode fazer alguma coisa por ele?
O Irmão Kristos fica em silêncio, puxa uma cadeira e faz-lhe sinal para se sentar. Helen abre o casaco e senta-se. O lume do fogão encontra-se apagado e está frio no quarto. O Irmão Kristos fica de pé em frente dela, fixando-a no olhar.
Veste uma camisa de ganga nova, em que se vêem ainda as marcas das dobras da embalagem; jeans cor caqui, sem cinto, com as pontas metidas por dentro de umas botas de cabedal preto; cabelo e barba lavados, mas não aparados, e olhos selvagens, que parecem arder no meio de uma floresta. Senta-se em frente de Helen e pega-lhe nas mãos geladas.
- O que é que pretende? - indaga.
- A saúde do meu filho.
- Acredita em Deus?
- Acredito, sim, acredito.
- Porque é que Deus consentiu que tal lhe acontecesse?
- Porque eu pequei? - sonda ela, hesitante.
- A senhora foi criada à imagem de Deus. Deus não tem pecado, a senhora também não. Acredita na redenção?
- Claro que acredito.
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- Mas como pode ser redimida se não pecou?
Helen é uma mulher devota, com uma certa propensão para o misticismo, mas as palavras do Irmão Kristos deixam-na confusa.
- Não compreendo. Ele aperta-lhe as mãos.
- Eu falo em nome de Deus. Sou irmão de Cristo, enviado à Terra para ensinar a Sua vontade. A senhora está confusa. Leva uma vida pura, e, no entanto, foi-lhe infligida uma dor assim, pelo que pergunta a si própria se Deus a terá abandonado.
- Sim - anuiu Helen, com voz fraca sim. É tal-qual isso que eu sinto. O que é que eu fiz para merecer isto?
- Deus põe à prova a sua fé todos os dias, de maneiras diferentes. Deus está a pô-la à prova. Você diz que acredita, mas será que acredita realmente?
- Acredito - reafirma ela, de forma enérgica -, acredito.
- Então tem que demonstrar a sua fé, se quer ser aliviada da sua dor. Acredita em mim? - Helen cala-se. - Eu sou o apóstolo de Deus na Terra. Se duvida de mim, então também duvida dEle.
- Acredito - murmura Helen.
- Em Deus?
- Sim.
- Em mim? - O "sim" de Helen é ainda mais fraco. Mãe, diga: "Acredito em si, Irmão Kristos."
- Acredito em si, Irmão Kristos - repete ela, em voz baixa.
- Se não acredita com força suficiente, então não posso fazer nada pelo seu filho. Quanto mais forte for a sua fé, mais fortes se tornarão os poderes de Deus. Compreende? - Helen faz um sinal afirmativo com a cabeça. Não conseguiu nem uma única vez afastar os olhos daquele olhar escaldante. Dê-me um sinal - implora. - Um sinal que prove que o senhor é realmente o que diz ser.
- A senhora tentou suicidar-se, há vários anos. O seu marido encontrou-a a tempo.
Helen começa a chorar em silêncio.
- Como é que sabia? Nunca veio nos jornais. Como é que sabia?
- Há alguma coisa que se possa esconder de Deus?
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Ficam sentados em silêncio. De repente ouve-se a voz de Jennifer Raye, lá fora:
Mrs. Hawkins! Está tudo bem?
Está, está! - grita Helen. - Vá-se embora, vá-se embora!
O Irmão Kristos levanta-se e vem colocar-se atrás dela. Puxa-lhe o casaco de peles para baixo e pousa as suas mãos grandes nos ombros de Helen. Começa a massajá-los com os seus dedos fortes, chegando até à parte de trás do pescoço. A cabeça de Helen rola para a frente, pendendo, sem força.
- Vai ajudar o meu filho? - insiste ela.
- Tenho que o ver, falar com ele, tocá-lo como estou a tocá-la a si.
- Posso combinar isso - diz ela, sem fôlego.
- Se quiser. Mas não vai acontecer nada, se não acreditar em mim.
- Mas eu acredito. Acredito mesmo!
- E o seu marido?
- vou explicar-lhe tudo. Se houver uma hipótese, qualquer que seja, tenho a certeza que ele vai estar de acordo.
- Ele tem muitas responsabilidades, muitas obrigações. Mas será que tem tempo para ter fé?
- Tem. Nós rezamos juntos todas as noites.
- Algumas orações ficam sem resposta. Mas é essa precisamente a resposta de Deus: "Não." - O Irmão Kristos acaricia-lhe com os dedos o pescoço, por detrás das orelhas, a linha vincada do maxilar. Apalpa-lhe os ombros e os braços. Acredite em mim - entoa -, eu tomarei sobre mim o sofrimento do seu filho e ele renascerá.
- vou arranjar uma maneira - promete -, qualquer que ela seja. Quero que veja o meu filho, que lhe toque com as suas mãos.
- Se assim o quiser - corresponde o Irmão Kristos, afastando-se.
Helen levanta-se, trémula, e volta a abotoar o casaco.
- Trouxe-lhe uma contribuição... - e acrescenta de imediato: - É para a sua igreja, para as suas boas obras. O Irmão Kristos inclina a cabeça, sério, e ela deixa um maço de notas amarrotadas em cima do oleado que cobre a mesa.
- Obrigada, Irmão Kristos - diz Helen, com fervor. Obrigada por tudo. Deu-me uma nova esperança.
Depois de Helen sair, ele continua de pé. Ouve vozes no
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armazém e momentos depois o ruído de motores a arrancarem. Abre a porta das traseiras. O cão pálido esgueira-se para dentro, a tremer.
Kristos tira uma garrafa de vodca do armário e deita um pouco no prato do cão. O animal lambe-o devagar. O dono bebe pela garrafa e vai em seguida ao armário buscar um prato de alumínio com pepinos descascados. Senta-se à mesa, engolindo
vodca e mastigando pedaços de pepino cru.
Agnes entra pelo vão de porta tapado com uma cortina.
- Já se foram embora - informa. - Como é que te saíste? Ele faz um gesto em direcção ao dinheiro que está sobre a
mesa. Agnes agarra nele e conta-o de forma rápida.
- Duzentos. Nada mau. Que tipo de mulher é ela?
- Muito magra. Mas há uma febre na sua pele.
- Pearl deve estar a chegar. Vai trazer comida. Vamos comer peixe de caldeirada hoje à noite. com muita pimenta. O teu prato preferido.
- Óptimo! - exclama ele, começando a comer outro pepino.
- Ernie McAllister passou por aqui. Tem uma vitela doente e quer que vás lá o mais depressa possível.
O Irmão Kristos levanta os olhos para ela. Algo muda no seu olhar, cujo brilho se apaga.
- Já não ia a tempo. O animal morreu.
Agnes já se habituou a não pôr em dúvida as suas afirmações. Vai para junto de Kristos e encosta o seu ventre macio ao ombro do homem.
- Ficas tão bem com essa roupa nova! Gostava que nos tivesses deixado cortar-te o cabelo e a barba.
Ele sorri com cinismo.
- E desiludir as senhoras finas? Elas ficam excitadas à vista de um selvagem. Um pastor barbeado, civilizado, ia fazê-las pensar que estavam a gastar dinheiro mal gasto.
Agnes acaricia-lhe o cabelo, penteando-o com os dedos.
- Ela é mesmo só osso? - Kristos pousa a mão na perna da mulher e começa a anediar-lhe primeiro a barriga da perna, subindo depois até à coxa carnuda. Agnes estremece
de prazer e abre as pernas.
Está nua por debaixo do hábito feito de lençóis. O dedo médio de Kristos esfrega-lhe a vulva coberta de penugem até ficar molhada. Depois, penetra lá dentro.
- Mais fundo - pede ela, ofegante.
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Mas ele retira a mão e, com um sorriso matreiro, levanta-se e desabotoa a camisa nova. Agnes tira o hábito por cima da
cabeça. Nunca te fartas, não é? - continua ela.
Não - consente o Irmão Kristos. - Nunca.
É um homem tão devoto - comenta a primeira dama,
no caminho de regresso à Casa Branca. - Nem sei explicar como fiquei impressionada.
Mrs. Hawkins - começa Jennifer, tentando manter um
tom de voz calmo -, tem a certeza de que quer prosseguir com isto?
- Tenho, tenho. E sei que quando o contar a Ab ele vai estar de acordo. Jen, eu sei que isto é apenas uma hipótese, mas é, de facto, uma hipótese, e acho que devemos tentar tudo, não é verdade?
- Claro - admite Jennifer. - Compreendo. Mas estou a pensar nas complicações, como, por exemplo, publicidade negativa, repercussões políticas.
- Percebo muito bem a sua preocupação - explica Mrs. Hawkins, pousando ao de leve uma das mãos no ombro da outra mulher. - Mas não podemos deixar que essas coisas nos influenciem, não é? O que é importante, a única coisa importante, é a saúde do meu filho. E não vou permitir que alguma coisa, seja o que for, me impeça de fazer tudo o que for possível.
- E como é que pensa conseguir isso? - deseja saber Jennifer, sentindo vontade de ter ali um copo com martini seco preparado por John Tollinger.
- Por amor de Deus! Tenho a certeza de que vou descobrir uma maneira de o Irmão Kristos poder encontrar-se com o George. Parece-me que não seria sensato pedir-lhe que fosse ao hospital.
- Não - apressa-se a concordar Jennifer -, não seria sensato. Os médicos levariam a mal o facto de levar lá um consultor de fora, se é que se pode chamar isso, e as enfermeiras e empregados iriam de certeza dizer alguma coisa sobre uma tal visita. O Irmão Kristos não tem propriamente ar de ser amigo íntimo do Presidente e da família.
- Ou - avança Helen Hawkins, sem prestar atenção talvez pudéssemos levar o George à igreja do Irmão Kristos. O passeio ia fazer-lhe bem.
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- Acho que isso não ia resultar - desaconselha Jennifer, desesperada. - De certeza que a imprensa iria seguir a ambulância, para ver para onde íamos levá-lo. Se queremos fazê-lo, tem de ser de forma muito discreta, com o mínimo de risco de fuga.
- Já sei! - exclama, com ar alegre, a primeira dama. Vamos convidar o Irmão Kristos a passar um fím-de-semana em Camp David. Pode ficar num dos bangalós dos hóspedes. Convidamos igualmente outras pessoas na mesma altura, para disfarçar. E levamos o George, claro, de modo que os dois possam passar algum tempo juntos. Que lhe parece?
- Óptimo - aceita Jennifer, infeliz.
Mal regressa ao seu gabinete, Jennifer telefona a John Tollinger.
5
- Chefe - diz John Tollinger, no dia seguinte -, preciso de falar consigo durante pelo menos uma hora. Henry Folsom levanta os olhos da secretária.
- Uma hora? Meu Deus! Eu hoje não tenho nem cinco minutos! De que é que se trata?
- Do patrão.
- É aquilo que discutimos com o Dr. Stemple? - Tollinger faz um sinal afirmativo. - E é importante?
- Catástrofe.
O chefe de gabinete solta um suspiro e começa a verificar a sua agenda.
- Reunião do Conselho de manhã. Hoje, à tarde, tenho de ir ao Capitólio, para uma reunião com aqueles imbecis da Comissão do Orçamento do Senado. E entre as duas coisas tenho o habitual almoço semanal com o vice-presidente, aquele anormal lamuriento! vou ter de ouvir as suas queixas e dizer-lhe mais uma vez que tencionamos fazer tudo para o manter no primeiro plano, seja ele qual for. E você quer que eu lhe dê uma hora?
- Acho que é melhor - insiste o seu assessor.
- Se assim é. Mas se está a criar uma tempestade num copo de água, dou cabo de si. bom, vou cancelar o almoço
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com o vice-presidente. Ele vai dar gritos como o porco na matança, mas que se lixe. Quer encontrar-se comigo aqui?
Não, aqui não. Há demasiadas interrupções e demasiados ouvidos. Será que podemos usar a Sala de Reuniões?
Folsom olha-o nos olhos durante um instante.
É assim tão grave?
Bastante. vou encomendar almoço para nós. Quer o habitual pastrami em pão de centeio?
Sim, está bem. com uma salada a acompanhar e picles.
O que me sabia bem com isso era uma cerveja; quem me dera que o patrão não tivesse proibido as bebidas alcoólicas aqui! Imaginas o que é servir gasosa nos jantares oficiais? O que é que ele julga que somos, uma cambada de muçulmanos?
- Consegui trazer uma embalagem de seis cervejas hoje de manhã. Carlos tem-nas no frigorífico da cozinha. Só tive que lhe dar uma lata. Já sabia que gostaria de uma cerveja com o seu pastrami.
- O chefe de gabinete sorri.
- Estava muito seguro de si, não estava?
Por volta da uma hora da tarde, ei-los sentados a uma ponta da grande mesa de reuniões da Sala de Briefings, na cave. É talvez a divisão mais segura da Casa Branca, com sistema electrónico de segurança, revistada todos os dias, para se ter a certeza de que não existem dispositivos de escuta. É uma sala neutra, pintada daquela cor que Folsom define como "vomitado bege".
O chefe de gabinete está sentado diante de duas sanduíches de pastrami em pão de centeio judeu (com sementes), de uma taça de salada e de outra de picles às rodelas. As latas de cerveja encontram-se no chão, escondidas.
- Não quer almoçar? - pergunta.
- Não, não consigo comer e falar ao mesmo tempo.
- Isso nunca me incomodou. bom, comece lá.
O assessor é bom a elaborar resumos de situações; já expôs muitos. Fala com fluência, em frases curtas, completas, descritivas, sem hesitações. A sua narrativa é organizada, sem introdução de opiniões pessoais.
Conta ao chefe de gabinete tudo o que lhe disse Jennifer Raye: como a primeira dama soube da existência do Irmão
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Carne de rês defumada e muito condimentada. (N. do E.)
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Kristos, a sua decisão de visitar o curandeiro, a visita preliminar de Jennifer, acompanhada de um agente dos serviços secretos, para verificar a segurança, e a entrevista pessoal de Mrs. Hawkins com o pastor.
Sempre que possível, utiliza as palavras de Jennifer para descrever Kristos e o armazém delapidado em que faz os seus sermões. Para concluir, conta a Folsom o plano da primeira dama de convidar o homem para ir a Camp David, de modo a poder encontrar-se com o filho doente e fazer talvez uma das suas "curas milagrosas".
O chefe de gabinete ouve tudo isto sem interromper, ao mesmo tempo que vai fazendo desaparecer o almoço. Quando Tollinger termina, Folsom afasta-se da mesa. Abre duas latas de cerveja e empurra uma delas pela mesa além, na direcção do seu assessor.
- As vezes, gostava de voltar a Wichita Falis. Esta é uma delas.
- Achei que tinha de saber - diz Tollinger, impassível. O chefe de gabinete faz um sinal de assentimento.
- Claro. Obrigado por me ter posto ao corrente. Foi Jennifer que lhe contou tudo isto?
- É verdade.
- Quem mais é que sabe?
- Você, eu, Jennifer, a primeira dama. Os homens dos serviços secretos e o médico dela acompanharam-na na visita ao armazém, mas duvido que saibam da finalidade
dessa visita.
- Há mais alguém que sabe, o Irmão Kristos. E talvez as suas comparsas. Jennifer sabe que você me está a contar tudo isto?
- Não.
- Como é que acha que ela vai reagir quando souber? Tollinger bebe um gole de cerveja antes de responder.
- Provavelmente vai ficar furiosa. Considera-se uma mulher forte, capaz de resolver os seus próprios problemas.
- Mas você não está de acordo?
O assessor move-se na cadeira, constrangido.
- Ela é muito emotiva. O facto de me ter contado tudo sobre a primeira dama e o Irmão Kristos parece-me ser um pedido de ajuda. Ela sabe quais podem ser as consequências.
- Sim, por exemplo, os meios de comunicação social virem a saber que a primeira dama anda a conviver com um tipo de turbante que lê a sina em folhas de chá.
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Não me parece que ele seja assim tão mau, mas é-o o
suficiente. A nossa primeira preocupação não pode ser a imagem pública de Mrs. Hawkins. Temos de proteger o patrão. Se ela insistir em convidar Kristos a ir a Camp David, acha que o Presidente vai estar de acordo?
Acho que sim. Quando se trata de tretas destas, do poder miraculoso de Deus, ele é tão crédulo como ela. E a imprensa vai acabar por saber, não se consegue manter uma coisa destas escondida para sempre, e vamos ter então algum membro do Congresso, no seu primeiro mandato, a fazer insinuações indecentes sobre a sanidade mental do patrão. Não acredito que me tenha contado tudo isto sem ter descoberto maneira de limitar os estragos.
- Fiquei acordado quase toda a noite - reconhece Tollinger. - Fumei e bebi de mais. Aqui vai o que sugiro: Até agora, o que sabemos é a versão de Jennifer sobre o que se está a passar. Acho que o nosso primeiro objectivo devia ser conseguir um retrato completo do tal Irmão Kristos. Quem é, quais os seus antecedentes, de onde veio, se tem cadastro. Se se descobrir que é um aldrabão completo, com uma enorme folha de cadastro na polícia, podemos mostrar as provas ao patrão, e demonstrar que o homem deve ser...
- É... - interrompe Folsom, devagar - é uma possibilidade.
- Em minha opinião - prossegue Tollinger -, é melhor mantermos isto secreto. Em circunstâncias normais, poderíamos pedir ao FBI para averiguar. Mas quanto menos pessoas souberem disto, melhor.
- Concordo, mas quem é que vai apanhar esse tipo, se não usarmos os fantasmas?
- Tem confiança em mim?
- Que pergunta! Se não tivesse, você não estaria aí sentado.
- Então deixe-me tratar do caso. A única coisa que tem a fazer é assinar uns valezitos, destinados a investigação. Assim, se o tecto cair, não será em cima de si.
Folsom sorri de esguelha.
- Obrigado, John, mas não quero. Não vou deixá-lo arcar sozinho com toda a responsabilidade. Se você se meter nisso, su também me meto. Trate de tudo, mas mantenha-me sempre informado. Relatórios, só orais. Nada de gravações e nada por escrito.
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- Assim farei.
Tollinger volta para o seu gabinete, consulta o ficheiro e descobre o número de telefone do seu contacto na Agência Federal de Investigação, Fred C. Hechett, director adjunto. Telefona e os dois trocam algumas piadas.
- Ouça lá, Fred, esta chamada não é oficial, trata-se apenas de um assunto pessoal, em que espero me possa ajudar. Lembra-se de um agente chamado Marvin Lindberg? Vocês correram com ele há cerca de seis meses.
- Claro que me lembro dele, mas nós não corremos com ele; foi-lhe dada a possibilidade de se demitir.
- Ele metia-se nos copos, não era?
- Olhe lá - atalha o homem do FBI -, não espera que eu lhe responda a uma tal pergunta, pois não?
- Ouvi dizer que ele abriu uma agência de detectives privados - prossegue Tollinger. - Nada de divórcios, mas cheques e coisas do estilo. Ele já nos ajudou uma vez e, tanto quanto me lembro, é um tipo que percebe disso.
- O melhor que há. Tivemos pena de o perder.
- Bem, o meu problema é o seguinte: tenho um amigo que quer investir num novo banco que está a ser organizado em Silver Spring. Mas antes de o fazer gostaria de saber um pouco mais sobre os tipos que estão a tentar o negócio. Pediu-me ajuda, e, como não posso fazer nada oficialmente, lembrei-me de Marvin: assim proporcionava-lhe também oportunidade de ganhar alguma coisa. Por acaso sabe o nome da firma dele?
- Sei, tem sede em Alexandria, com o seu próprio nome. Não tenho o número de telefone, mas é provável que venha na lista.
- Obrigado, Fred. Fico em dívida para consigo. Hechett desliga e fica a olhar, pensativo, para o telefone.
Em seguida, pega de novo no auscultador e pede à secretária que lhe ligue para a sede do Governo.
Naquela tarde, às quatro horas, Tollinger está sentado num banco de madeira no Jardim Enid A. Haupt, da Smithsonian Institution. Traz um sobretudo assertoado, chapéu de feltro preto, lenço de seda branco e luvas de camurça.
Poucos minutos depois das quatro, Marvin Lindberg aproxima-se em passo lento e Tollinger levanta-se, para o cumprimentar. Os dois homens apertam as mãos e sentam-se lado a lado no banco.
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Que sítio óptimo para nos encontrarmos - exclama
Lindberg olhando para o jardim deserto à sua volta. - Não podia ter escolhido um sítio aquecido?
Suponho que estou a ficar paranóico - responde o assessor do chefe de gabinete.
Alguém que nesta cidade não esteja paranóico é doido.
Qual é o seu problema?
Tenho um trabalho para si. Mas antes de mais nada,
preciso de saber uma coisa.
Lindberg olha para ele com um sorriso retorcido ao canto dos lábios.
- Quer saber se ainda bebo, não é? Não, mas sou alcoólico e sê-lo-ei até morrer. Fiz-me sócio dos alcoólicos anónimos e vivo um dia de cada vez. Até agora, tudo bem.
Em tempos, Lindberg era um homem forte, de ombros pesados e com barriga. Agora, parece ter encolhido, o pescoço é demasiado magro para o colarinho e os pulsos parecem nadar nos punhos da camisa. Ainda tem nariz de bêbedo e a sua voz é uma voz de uísque.
Tollinger decide apostar naquela ruína.
- Este trabalho é pessoal - explica ele ao ex-agente do FBI. - Não tem nada a ver com o Governo.
- Uhm, uhm. Se você o diz!
- Quero o perfil de um homem. Nome completo, data e local de nascimento, educação, currículo profissional, estado civil, possível cadastro... tudo. Por outras palavras, um dossier completo. Tenho a certeza que sabe de que é que eu preciso.
- Sei muito bem - declara Lindberg, mais uma vez com um sorriso ao canto dos lábios. - São mil por semana, mais as despesas.
- Isso é um pouco caro, não é?
- Claro que é - concorda o detective. - Pode sempre contratar outro por muito menos.
- Quanto tempo acha que vai levar?
- Eu sei mexer os cordelinhos, por isso não deve levar mais de um mês. Isso inclui viagens, se necessário.
- É provável que vá ser necessário. Pode apresentar-me relatórios diários?
- É uma perda de tempo. É possível que não consiga saber nada de novo todos os dias. Que tal uma vez por semana? Mais vezes, se surgir algo de importante?
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- Está bem. Quero que os relatórios sejam enviados pelo correio para minha casa.
- Se está mesmo paranóico - sugere Lindberg -, pode alugar uma caixa postal com nome falso.
- Não, envie-me os relatórios directamente. Como é que quer que eu lhe pague?
- Pode dar-me um adiantamento?
- Tenho aqui mil.
- Chega. Quando precisar de mais, telefono-lhe.
- Para casa - apressa-se a avisar Tollinger. - Não para a Casa Branca.
Lindberg solta um suspiro.
- Eu não sou estúpido de todo! bom, agora que já tratámos da parte chata do dinheiro, diga lá quem é o tipo.
- Não sei o nome completo. Dá pelo de Irmão Kristos. Diz ser pregador, curandeiro, vidente.
- Lindo. E por onde é que o fulano anda?
- Está na Virgínia. Tenho aqui tudo escrito. Tudo o que sei dele. A igreja é num antigo armazém de tabaco. Parece que vive com duas mulheres jovens. Tente saber os nomes delas, está bem, e qual é a relação que têm com o Irmão Kristos.
- Eu sei muito bem qual é... sexual. Está bem, dê-me a informação e a massa e vou pôr mãos à obra. - Tollinger mete a mão no bolso de dentro do casaco e tira de lá uma carteira Mark Cross de pele com os cantos dourados. Retira uma única folha de papel de rascunho dobrada, que entrega a Lindberg. De outra divisória retira um maço de notas de cem dólares. São no vinhas em folha e ele tem de lamber o dedo para as separar. - Vieram do Tesouro há uma hora, não?
- Quase - admite Tollinger, com um sorriso amarelo. Não vou pedir-lhe que jure guardar segredo nem nada do estilo. Contratei-o porque tenho confiança em si.
- Eu não sou tagarela - tranquiliza Lindberg.
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Michael Oberfest, adjunto pessoal do vice-presidente, Samuel Landon Trent, acredita piamente na teoria conspiratória da história. Está convencido de que Lyndon Johnson maquinou
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o assassínio do presidente John Kennedy, que Gerald Ford obteve a vice-presidência em troca da promessa de perdoar ao presidente Richard Nixon, que o presidente Ronald Reagan prometeu a um conluio de californianos ultraconservadores fazer aumentar a dívida dos Estados Unidos de tal modo que nenhum presidente nas próximas décadas pudesse lançar novos programas sociais.
Que piada tem a história sem intrigas picantes?
Oberfest não tem qualquer objecção quanto a conspirações, apenas deseja entrar e tirar proveito delas. Mas durante os seus seis anos como membro da equipa de Samuel Trent não surgiram oportunidades de participar em nenhuma conspiração importante. O vice-presidente é um homem obstinado e severo, que, como escreveu um conhecedor de assuntos políticos, "parece ter recebido uma transplantação de carisma de Andrei Gromyko".
Michael serviu Trent com fidelidade enquanto este foi governador do Massachusetts. Depois, o seu patrão foi escolhido como candidato à vice-presidência, para contrabalançar Abner Hawkins, originário do Midwest. O partido conseguiu obter uma pequena vitória, tanto mais preciosa por ser por uma margem mínima, e Michael Oberfest trabalha agora na sede do Governo, vai a recepções diplomáticas, tem um livre-trânsito da Casa Branca e é assediado por membros de lobbies e peticionários. Descobriu que o poder tem sabor a mel.
O telefonema de Hechett, do FBI, é um enigma. Fred e Michael não são amigos íntimos, ambos pertencem a um grupo informal de funcionários do Governo que se reúnem ocasionalmente para trocar videocassettes de filmes pornográficos. Hechett telefonou para informá-lo da chamada que recebera de Tollinger.
- Ele quer apanhar Marvin Lindberg porque diz que um amigo dele está interessado em meter dinheiro num novo banco que está a ser organizado em Silver Spring. Sei que você está metido em questões de investimentos; por isso, lembrei-me de lhe contar isto, para o caso de também querer entrar no negócio. E talvez eu próprio possa ganhar alguma coisa.
- Claro, Fred, obrigado pela informação, vou averiguar. E Oberfest, ganancioso, averigua, na realidade. Telefona ao
seu corretor, ao contacto que tem no seu banco e ao do Banco
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Central. Todos prometeram verificar a informação e voltar a entrar em contacto com ele o mais depressa possível. E todos o fazem porque ele é o principal adjunto pessoal do vice-presidente dos Estados Unidos da América e um homem a quem não se pode, sem mais nem menos, recusar alguma coisa.
Cerca das quatro horas da tarde, depois de ouvir os relatórios dos seus informadores, Oberfest fica convencido de que não está a ser organizado nenhum novo banco em Silver Spring. Isso significa que o telefonema de Tollinger a Hechett encobria outra coisa. Ou Tollinger em particular ou a Casa Branca tinham necessidade de um detective privado, alguém que não estivesse ligado às vias oficiais. E procuraram um exigente do FBI corrido por ser bêbedo.
O vice-presidente está no seu gabinete a ser entrevistado por um repórter jovem e inexperiente de Missoula, Montana.
- Senhor vice-presidente - pergunta o rapaz, com aspecto sério -, acontece-lhe, por vezes, discordar das políticas do presidente Hawkins?
- É evidente que há, de vez em quando, divergências de opinião sem importância - responde Trent, com o seu sorriso glacial. - Mas são sempre sobre questões de táctica, e não de estratégia. Isto significa que os conflitos sobre política são muitíssimo raros, para não dizer inexistentes. Quando há um debate sobre a implementação de uma política, a discussão é franca e é inevitável que se chega a um consenso. Eu gosto de jogar em equipa, participo de forma activa nas reuniões do Conselho de Ministros e do Conselho de Segurança e pode ter a certeza de que o meu principal objectivo é o apoio aos planos desta Administração para criar uma nação mais forte, feliz e justa.
- Muito obrigado, senhor vice-presidente - conclui o repórter, em voz fraca, fechando o seu bloco de notas.
Quando sai do gabinete do vice-presidente, Oberfest acompanha-o até ao corredor. O adjunto do vice-presidente olha para o jornalista com simpatia. Reconhece os sintomas de alguém que se viu pela primeira vez exposto aos efeitos entorpecedores da retórica de Trent: olhar vago, maxilar um pouco descaído e um ligeiro tremor das mãos.
Em seguida, Oberfest volta ao gabinete do vice-presidente, bate uma vez à porta e entra.
- Pode dar-me uns minutos? - solicita.
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A arte leva tempo e o tempo voa - responde Trent. -
De que é que se trata?
O seu adjunto informa-o do curioso telefonema de Fred Hechett e da sua posterior investigação. Depois de terminar, permanece parado em frente da secretária de Trent. O vice-presidente prefere que os seus subordinados fiquem de pé, como se fossem meninos de escola chamados ao gabinete do director para serem castigados.
É verdade que Samuel Landon Trent desfruta de um nível de educação superior ao da maior parte dos homens e das mulheres que dirigem o Governo dos Estados Unidos e tem nítida consciência disso. É um homem terrivelmente ambicioso, cujas aspirações se tornaram um tanto azedas pelo facto de se encontrar numa situação de segundo plano em relação a um homem que considera estúpido. "Abner Hawkins", disse ele um dia à mulher, "é um chato que veio de um daqueles estados que começam por uma vogal."
Sendo um brâmane de Boston, Trent acha que o mais alto cargo do mundo lhe deveria pertencer por direito, não apenas devido à sua inteligência e capacidades, mas
por uma espécie de direito divino. Pode descobrir-se a família de Hawkins, duas gerações atrás, no convés de um navio de imigrantes. Os antepassados de Trent cobrem
um período de dois séculos da América e incluem três bispos, quatro reitores de faculdades, um general, um almirante, dois juizes federais e um ladrão de cavalos. A mulher, cujo nome de solteira era Matilda Sopley Arbuthnot, é igualmente de boas famílias.
- É um incidente curioso - observa Trent, depois de o adjunto ter acabado de contar a história. - Deixe-me agora esclarecer uma série de acontecimentos bastante enigmáticos. Primeiro - começa ele a enumerar, acompanhando a palavra com um gesto de dedos -, você recebe uma estranha chamada telefónica que, é lógico, nos leva a pensar que a Casa Branca anda à procura de um detective privado fora dos canais oficiais. Segundo, o chefe de gabinete telefonou hoje apresentando um pedido de desculpas por se ver na obrigação de cancelar o nosso habitual almoço semanal. O pretexto que apresentou foi "trabalho urgente", mas eu não acredito. Terceiro, a minha mulher recebeu ontem uma cópia do horário da primeira dama onde se mencionava a intenção de Mrs. Hawkins de passar o dia no Hospital Walter Reed, com o filho doente. Matilda decidiu ir fazer companhia à primeira
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dama, durante uma ou duas horas, mas, quando telefonou para o hospital, para perguntar se a primeira dama já tinha chegado, disseram-lhe não só que Mrs. Hawkins não estava lá mas também que não estavam à sua espera.
- Cada vez mais curioso - observa Michael Oberfest. Então, mostrando ainda três dedos esticados, o vice-presi-
dente conclui:
- Cada um de per si, estes três incidentes podem ser facilmente explicados pelo acaso. Mas, sendo assim, três acontecimentos estranhos num período de vinte e quatro horas, não se pode deixar de suspeitar de que aqui há sinergia em acção. Você arrisca um palpite quanto ao que isto pode augurar?
- Não, não faço ideia.
- Nem eu.
Em seguida, dobrando os dedos, dá um forte murro no tampo da secretária.
- Tudo o que posso dizer é que, como sempre, me estão a deixar na ignorância daquilo que pode ser um desenvolvimento importante, com possíveis consequências para o bem-estar do país. Não vou consentir que se mantenha por mais tempo esta negligência deliberada do meu cargo. Tenho de saber o que se está a passar. É uma obrigação moral e legal que devo aos cidadãos desta grande nação. Estou a ser claro?
- Sim, senhor vice-presidente - declara Oberfest. Quer que eu descubra o que diabo está a acontecer.
- Exacto. Quanto mais cedo, melhor.
- vou tratar já disso na quinta-feira de manhã - promete o adjunto. - Amanhã, a minha mulher e eu vamos a Nova Iorque às compras. Quer que lhe traga alguma coisa?
- Não, obrigado - agradece Samuel Trent, com um sorriso amarelo. - Em minha opinião, Nova Iorque é o exemplo-tipo da decadência e queda da civilização ocidental.
- Tem razão. Mas as latas de carne da Carnegie Delicatessen continuam a ser óptimas.
Volta ao seu gabinete, felicitando-se por lhe ter saído tão facilmente aquela treta de Nova Iorque. Telefona à mulher, para lhe perguntar se gostaria de passar uma tarde em Manhattan, jantar no restaurante italiano que preferem, na Rua Cinquenta e Oito, e regressar a Washington num voo nocturno. Ruth fica encantada.
- É alguma ocasião especial? - procura ela saber.
- É só para nos divertirmos - explica Michael.
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E assim tomam o avião para Nova Iorque na quarta-feira, apanham um táxi no aeroporto e separam-se no passeio em frente do Hotel Plaza. Combinam encontrar-se no Oak Bar, às quatro horas. Michael entra depois no hotel e procura uma cabina telefónica. Faz uma chamada.
Sim? - atende uma voz masculina.
. Daqui fala Arnold - "identifica-se" Oberfest. - Já tenho as duas peças de tecido que encomendou.
- Deve ser engano - clarifica o homem, mal-humorado, e desliga.
Satisfeito, Michael sai do hotel e pára, para acender um charuto, antes de começar a percorrer devagar a Quinta Avenida.
Quando lhe foi atribuído o nome de código "Arnold", Oberfest perguntou:
- Como Benedict?
E Marchuk, com o seu sorriso bem-disposto, respondeu:
- Claro que não. Como Mathew.
Leonid Y. Marchuk é o adido de Imprensa da delegação da União Soviética nas Nações Unidas. É também o major Leonid Y. Marchuk. Oberfest presume que seja do KGB ou
de uma dessas agências de espionagem russas com nomes esquisitíssimos. Michael não está interessado em saber e nunca perguntou.
Esta traição não tem qualquer fundamento ideológico. De facto, Michael pensa que o sistema político da URSS está condenado ao fracasso, uma vez que nega o grande
motor do esforço humano: o interesse privado. Mas, se aqueles parvos estão dispostos a pagar-lhe mil dólares por mês por boatos e informações sem importância sobre as fraquezas dos funcionários do Governo, esse é um dinheiro fácil, e só um tolo é que não o aproveitaria.
Tenta de vários modos racionalizar a sua traição. Nunca lhe pediram para entregar cópias de documentos secretos e, de qualquer maneira, não pode fornecer informação confidencial sobre questões militares, do espaço ou de investigação científica, pelo simples facto de não ter acesso a ela.
Na realidade, Oberfest é mais um cronista social do que um espião, e o facto de os camaradas estarem dispostos a pagar por isso ultrapassa o seu entendimento. Mas pagam, em dinheiro, todos os meses. Em geral, pouco depois de submeter os seus relatórios orais ao major Marchuk, aparece
informação
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idêntica no Post, no Times, nalgumas revistas. Por isso, que mal poderá Michael Oberfest estar a causar ao país?
Está um dia cinzento e frio em Nova Iorque, com uma temperatura bastante baixa. Aconchegando-se no seu sobretudo de tweed marca Burberry, fumando o seu charuto, dirige-se para sul, ao longo da Quinta Avenida. Como de costume, fica espantado com a actividade e energia frenética desta cidade. Nova Iorque é um antro de gente incansável, à procura de dinheiro fácil, e Oberfest sente-se perfeitamente à vontade.
Vê as montras e em seguida entra no Saks, para comprar um lindo lenço Hermes para a sua actual "namorada". Paga em dinheiro e manda entregá-lo directamente no apartamento dela, em Foggy Bottom. Compra também um lenço de pôr ao pescoço para si próprio, de seda amarela com símbolos yin-yang estampados.
Uns minutos antes das duas horas, Michael entra num pequeno hotel na Rua Quarenta e Seis, oeste, mesmo junto à Sexta Avenida. É um sítio confortável, mas sem luxo, onde se alojam sobretudo profissionais ligados à televisão, ao teatro e, de forma ocasional, ao tráfico de cocaína.
Entra no elevador de portas de ferro e sobe ao sexto andar, percorrendo em seguida um corredor até chegar ao quarto número 612, à porta do qual bate duas vezes. A porta abre-se de imediato e o major Leonid Y. Marchuk cumprimenta-o com um largo sorriso e um abraço que quase esborracha Michael.
- O tempo está como em Moscovo! - exclama Marchuk, depois de fechar a porta. - Não acha que está óptimo? E veja o que eu trouxe para aquecer.
Mostra uma garrafa de vodca Pertsovka, com sabor apimentado, enchendo depois um copo para cada um.
- Pelo amor de Deus! - brada Oberfest. - Eu não posso beber isso tudo. Tenho de me encontrar com a minha mulher no Plaza dentro de duas horas.
- E depois? - volve o major, encolhendo os ombros. Beba o que quiser. Eu acabo o meu copo e depois o seu. Pode crer que nada se perde. - É uma suite com aspecto de bastante usada, paredes forradas de papel decorado com papagaios, um maple e um sofá de veludo castanho usado e cheio de lustro. Os dois homens sentam-se lado a lado no sofá. - Então!
- começa Marchuk, levantando o copo. - Na zdorovye!
- Cheers! - corresponde Oberfest. E continua: - Meu Deus! Isto é dinamite líquida!
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Vai pôr chumbo no seu lápis! - exclama jovialmente o
major.
E quem é que quer um lápis de chumbo? Prefiro hélio.
O russo solta uma enorme gargalhada e dá uma palmada na sua coxa grossa.
- Arnold, você tem imensa piada. Tenho sempre um enorme prazer nestas nossas conversas. Agora, diga-me, o que é que há de novo em Washington?
Tudo coisas sem importância, pensa Oberfest, e que serão em breve do domínio público: o nome do emissário que irá ser enviado ao Peru, para negociar a libertação dos reféns; os termos do compromisso sobre legislação comercial que está a ser discutido com o presidente do Congresso; a decisão de nomear um economista para consultor do Conselho Nacional de Segurança; o boato que diz que o presidente da Comissão das Forças Armadas tem uma colecção fabulosa de vestidos de noite e sapatos de salto alto; o relatório que diz que dois membros do Supremo Tribunal chegaram a andar à pancada por causa do direito de os presos das cadeias federais processarem o Governo.
Tudo sem importância, pensa Michael, enquanto o vai dizendo. E chato, chato, chato. Mas Marchuk não parece aborrecido. Vai bebendo pequenos goles de
vodca apimentada e ouve, atento, com uma expressão de compreensão e um sorriso no seu rosto largo.
E ri com facilidade: enormes, sinceras gargalhadas, como se ele e Arnold fossem parceiros numa farsa deliciosa. Ambos sabem como tudo isto é ridículo, mas têm de desempenhar os respectivos papéis com uma careta e um sorriso.
- Por último - conclui Oberfest -, aconteceu ontem uma coisa que é um verdadeiro mistério. - Conta ao major os incidentes respeitantes à primeira dama, a John Tollinger e ao chefe de gabinete da Casa Branca. - Agora o vice-presidente quer que eu investigue o assunto - informa ele.
É possível que seja tudo uma porcaria sem importância.
- Sim - aceita o russo. - Mas a porcaria cheira mal. Seja porcaria capitalista ou comunista, cheira mal. O seu vice-presidente... não gosto nada dele. É demasiado
orgulhoso, e que razões tem ele para se orgulhar? O facto de não ter nascido hotentote? Além disso, é inimigo figadal da União Soviética. Isso ajudou a sua carreira política, não é verdade? Pensa que nós não fazemos outra coisa senão beber
vodca, comer couves
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e mandar gente para a Sibéria. - E solta mais uma das suas estrepitosas gargalhadas. Acaba a sua bebida e em seguida tira um sobrescrito do bolso interior do casaco e entrega-o a Oberfest. - Invista-o bem - aconselha - e mantenha-me ao corrente do que for descobrindo com a sua investigação. Esta é... qual é a palavra em inglês? Significa ao mesmo tempo estranho e divertido.
- Droll? - sugere Michael. Marchuk bate-lhe no ombro.
- É isso mesmo! Droll. Será interessante saber o que vai sair daí. Como gosto do meu trabalho, Deus meu! E deste país! Arnold, devo dizer-lhe que aquilo que mais receio é vir a ser transferido. Talvez para Madagáscar ou para a Islândia. Se assim fosse, fugia! Sabe uma coisa, durante dois anos estive em Los Angeles. Aquelas mulheres da Califórnia! Têm umas pernas tão compridas! E aquela pele bronzeada parece veludo. Sim, gosto imenso das mulheres da Califórnia e de tudo o mais neste maravilhoso país. Quero ficar aqui o resto da vida.
- Boa sorte - deseja-lhe Oberfest, levantando-se.
O russo acompanha-o até à porta, pousando um braço gordo nos ombros de Michael.
- Fixou o número de emergência? - certifica-se. - Pelo sim, pelo não...
- Claro, não me esqueço.
- bom - diz o major, com uma última gargalhada -, agora vá lá ter com a sua mulher e goze a vida.
Depois da saída de Oberfest, Marchuk fecha a porta à chave. Dobra-se e puxa um gravador miniatura (made in Taiwan) de debaixo do sofá. Desliga-o e retira a cassette.
Senta-se, pensativo, batendo de vez em quando com a cassette no queixo.
Em seguida, pega no cálice de vodca de Arnold, ainda quase cheio, e começa a beber devagar. Como disse àquele idiota ganancioso, nunca se desperdiça nada.
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O Salão da Família na Casa Branca tem sido decorado de novo por cada primeira dama nos últimos cinquenta anos,
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mas algumas peças de mobiliário, candeeiros, quadros e bricabraque sobreviveram a estas alterações. A sala é agora uma mistura ecléctica, composta de grupos de sofás, cadeiras e mesas baixas, que sugerem uma família enorme, capaz de fazer este refúgio formal zunir com conversas e risos.
Neste momento, a sala acha-se tenuemente iluminada. O Presidente e Mrs. Hawkins estão sentados junto um do outro num sofá forrado de chita. Parecem perdidos na sombra,
numa casa vazia, onde nada lhes pertence. Lá fora, no corredor, o homem do fato negro com uma pasta presa ao pulso por uma algema conversa em voz baixa com um agente dos serviços secretos.
- Mas ele é mesmo pastor? - pergunta o Presidente à mulher. - Foi ordenado?
- Não sei - confessa Mrs. Hawkins. - Nem sequer sei qual é a sua religião. Mas será que isso é importante?
- Talvex não. Há lugares neste país onde se pode obter um certificado de ordenação por cinco dólares e um diploma de doutor em Teologia por dez. Tudo pelo correio. Não quero que sofras. Esse homem pode ser um autêntico vigarista.
- Eu sei - replica ela, pegando-lhe na mão. - Mas sinto, sinto mesmo que pode ser a resposta às nossas orações. Não podíamos dar-lhe uma oportunidade? Eu tenho, de facto, fé nele. - O Presidente fica pensativo, com a consciência dos riscos: para si políticos, para ela espirituais, pois quantas vezes se vêem as esperanças destruídas antes de se mergulhar no desespero? Mas Abner Hawkins vem de uma família crente e tem um respeito enraizado pelos homens do clero, sejam eles de hábito de seda ou de burel. - Se ele não conseguir fazer nada pelo George - diz Helen -, prometo que nunca mais o volto a ver. Mas tenho tanta vontade de fazer isto. Penso que quando o conheceres vais ficar tão impressionado como eu.
Abner Hawkins respira fundo.
- Está bem, se isso significa assim tanto para ti. Vamos convidá-lo a passar um fim-de-semana em Camp David.
- Obrigada - agradece a mulher, em voz rouca, contendo as lágrimas. - vou tratar de tudo, não é preciso fazeres nada.
- Tem cuidado - avisa ele. - Quanto menos pessoas souberem disto, melhor.
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"Tollinger:
A respeito de: Irmão Kristos.
O nome completo do tipo é Jacob Everad Christiansen. Nasceu em Bethlehem, Nebrasca. (O que é que acha disto?) Até agora, descobri três datas de nascimento diferentes.
vou tentar tirar isto a limpo, mas parece que tem entre trinta e oito e quarenta e um anos. Não há registo de serviço militar. Não tem número de segurança social sob o seu nome verdadeiro. Não consta da lista do Centro Nacional de Informação Criminal, o que não significa necessariamente que não tenha cadastro.
Para o caso de querer saber como consegui saber isto, comecei pela matrícula de uma velha e enferrujada carrinha Ford que ele tem. É também dono do antigo armazém de tabaco e de dez acres à volta. Apareceu há cerca de um ano e comprou tudo a dinheiro.
As duas tipas com quem vive são Agnes Brittlewaite e Pearl Gibbs. São meias-irmãs: filhas da mesma mãe e de pais diferentes. Quando Kristos apareceu na Virgínia, já as levava a reboque. Ainda não sei onde e como as conheceu. Tem também um cão pulguento, que parece um fantasma desidratado.
É um tipo grande, robusto, com bigode e barba. O cabelo é castanho e comprido como o dos hippies. Não tem voz nenhuma, mas os olhos são outra coisa. Quero dizer com isto que cintilam. Um verdadeiro olhar hipnótico.
Prega todas as noites às oito horas. Depois, as companheiras fazem a colecta. Dá também "consultas" privadas, suponho que pagas. Não me parece que esteja a enriquecer. A gente da zona diz que a sua congregação está a crescer. Começou com meia dúzia de pessoas e agora, nas noites melhores, consegue juntar até cinquenta. Mas não está ainda preparado para o Madison Square Garden.
Não consigo descobrir nada que indique que ele pertence a qualquer religião organizada, mas quero continuar a investigar. Neste momento, penso que tenta levantar voo. Tem reputação de verdadeiro curandeiro junto dos vizinhos (brancos e negros). Diz-se que consegue prever o futuro e dizer às pessoas o que lhes aconteceu no passado, coisas que, aparentemente, não podia saber.
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Consta também que é o melhor veterinário que existe lá na zona e que faz milagres quando se trata de animais doentes.
Assisti a dois dos seus sermões. É uma coisa de doidos, não tenho a certeza de ter percebido tudo, mas presumo que o que ele diz é que todos estamos livres de
pecado porque fomos criados à imagem de Deus. Mas se na realidade nos sentimos culpados de ter pecado, então é só mudar a carga para os ombros do Irmão Kristos,
que ele está disposto a assumir os pecados do mundo. Tudo um disparate, não é verdade?
Para ter uma melhor ideia deste espécime, é preciso vê-lo e ouvi-lo em acção. Recomendo-lhe que faça a viagem. É muito melhor que uma sessão da meia-noite.
Quanto a mim, vou até Bethlehem, Nebrasca, para lhe seguir o rasto desde o início. Começo a ficar interessado.
Lindberg"
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Tollinger, homem magro e desengonçado, encaixa-se ao volante do seu Jaguar XJ-S coupé preto. (Ainda faltam mais vinte e duas prestações mensais para que seja realmente seu.) Sai cedo, na esperança de evitar o trânsito intenso na ponte, mas só quase às quatro horas é que consegue chegar ao outro lado do Potomac e à estrada que vai para sul, para a Virgínia.
O degelo de Janeiro chegou, por fim. Está uma tarde esplendorosa, com um sol magnífico, um céu manchado de nuvens e uma brisa de tal forma amena que ele pode baixar os vidros, respirar fundo e acreditar na vida eterna.
Tollinger adora guiar: seja de dia, seja de noite, com nevoeiro ou chuva, com neve ou riscos de furacão. Sente-se aconchegado quando se vê fechado conquistando o tempo e a distância pela velocidade.
- É o teu vício - disse-lhe em tempos Jennifer. - Em vez de te embebedares, de correres atrás das mulheres ou de escreveres poesia haiku, és viciado na condução.
- Talvez - consentiu ele.
A tarde vai avançando, enquanto ele segue o seu caminho, com o céu tomando uma cor de ferrugem e a luz do entardecer adquirindo a cor de um beaujolais nouveau. John Tollin-
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ger desconfia das impressões sensoriais agradáveis, pois é daqueles que dizem, com pesar: "Todos os prazeres têm preço neste mundo." Mas, mesmo assim, é-lhe difícil
resistir a este suave crepúsculo.
Encontra sem dificuldade o armazém do Irmão Kristos. O terreno descoberto à sua volta está cheio de automóveis, motos e carrinhas estacionados. Tollinger arruma o carro longe da barafunda, tranca a porta e dirige-se ao armazém. Ainda não são oito horas e ainda há carros que estão a chegar.
Arranja lugar num dos rudes bancos ao fundo, pensando conseguir assim sair sem dar nas vistas, caso ache o sermão de Kristos aborrecido. Aguarda com paciência, observando as pessoas; uma estranha mistura de lavradores de fato-macaco, de mulheres de casacos de peles, alguns adolescentes, alguns negros, um homem que parece director de um banco, uma mulher com ar de prostituta, dois maricas que conversam em voz baixa, de mãos dadas.
O Irmão Kristos entra pela porta que dá para o quarto das traseiras, seguido do cão pelado. Sobe para o palco e fica de pé, em frente do púlpito improvisado, apoiando-se nele com ambas as mãos. Começa a falar, sem qualquer cumprimento ou preâmbulo.
- Estais aqui porque vos sentis atormentados. Na carne ou no espírito. Entre vós há uns que sofrem da decadência do corpo e outros do desespero da alma. Mas todos vós tendes uma doença em comum, uma doença que faz desaparecer a esperança e transforma o dia mais claro na mais escura noite. Estou a falar-vos da solidão.
"É um tormento que vos rouba a felicidade e se ri do sucesso. Podeis estar rodeados de família ou de amigos, mas sei que nos recantos secretos do vosso coração existe um ácido de solidão que corrói os tecidos saudáveis da vossa vida e tira o sabor ao mundo.
"Será que podeis negá-lo? Negar que vos sentis sós e vulneráveis? A vossa família pode abandonar-vos, os amigos trair-vos, e que vos resta para além da solidão que vos enche o espírito como um tumor maligno que tudo devora?
"Porque haveis de sofrer assim? A solidão é apenas vaidade. Vós credes ser o centro do universo, esquecendo-vos de que sois um com Deus, pois fostes criados à Sua imagem. Ele faz parte de vós e vós dEle. Acreditai em Deus e não estareis sós. - Enquanto fala, naquela voz isenta de sentimento, o Irmão
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Kristos fixa nos olhos cada membro da assistência. John Tollinger sente o ardor daqueles olhos, que não pestanejam.
Não choreis a vossa solidão - continua. - Chorai a vossa
ignorância. Pois Deus espera-vos de braços abertos, para ouvir as vossas queixas, renovar as vossas esperanças e retribuirvos dez vezes mais todo o amor que lhe ofereceis.
"Ouvi-me com os vossos corações. Afirmo que a vossa solidão continuará a diminuir e a desgastar a vossa vida até que procureis o consolo de Deus. Pois Ele será esposo,
amigo, confidente, conselheiro e amante. E, mais que tudo isto, fará parte de vós e vós parte dEle, bastando para tanto que deis o vosso amor ao Ser Supremo.
"Falo em nome de Deus. Acreditai em mim."
Prossegue o sermão durante mais um quarto de hora, parando entáo de modo abrupto, descendo do palco e afastando-se, seguido do cão pálido. As duas mulheres vestidas de hábitos brancos passam por entre os bancos, estendendo caixas de charutos. John Tollinger dá um dólar.
Fica impressionado com o sermão do Irmão Kristos, sobretudo porque não se tratava do convencional tom "vinde até junto de Jesus e sereis salvos" de que estava à espera. E os seus ouvintes sentiam-se visivelmente afectados.
Tollinger espera até a multidão se ter dispersado, aproximando-se então de uma das assistentes.
- Posso falar a sós com o Irmão Kristos? - informa-se. A mulher inspecciona-o de alto a baixo.
- Espere aqui - diz, por fim -, vou perguntar. Desaparece durante um ou dois minutos, voltando então
para fazer a Tollinger um sinal em direcção ao vão de porta tapado por uma cortina.
O Irmão Kristos despiu o seu hábito de burel. Veste calças de ganga, camisa azul e botas de motociclista. Parece cansado, mas os seus olhos têm uma expressão penetrante e o olhar não vacila. Tollinger compreende agora o que Jennifer Raye e Marvin Lindberg queriam dizer: não consegue afastar os olhos daquele olhar fixo.
- Irmão Kristos - começa ele, surpreendido pelo tremor da sua própria voz -, achei o seu sermão de hoje muito inspirador. - O homem não responde e Tollinger continua. Ouvi dizer que cura os doentes. Eu estou muito doente. Tenho cancro do cólon. Os médicos querem operar-me. Mas, antes de ser operado, queria perguntar-lhe se pode ajudar-me.
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O pregador vira as costas, tira uma garrafa de vodca de um armário, destapa-a e bebe, sequioso.
- Você não está doente. Quer pôr-me à prova. É meu inimigo. Não é crente. Não tem fé em mim. Nem em Deus.
- Deixe-se dessas tretas da religião - volve Tollinger, em som seco. - Quer dizer que sou mau actor. Dê-me uma bebida, está bem? Eu pago.
Inesperadamente, o Irmão Kristos ri-se. É um riso silencioso, mas deita a cabeça para trás e mostra os dentes amarelos. Passa a garrafa a Tollinger.
- Sirva-se. Gosto de você. É franco. Pensa que eu sou um aldrabão, não é?
- É verdade - confessa Tollinger, escaldando a garganta com um gole de vodca. - Acho que você está a levar uma série de pessoas inocentes e a ganhar bem com isso. É um impostor.
Kristos concentra de novo o olhar, fixando-o nos olhos do outro homem e não o deixando afastar o seu. Volta a pegar na garrafa e a beber.
- com que então eu sou um impostor? E você é um idiota. Pensa que eu tencionava falar hoje da solidão? Não. Tinha pensado falar da culpa. Mas, quando entrei, a primeira coisa que vi foi você sentado sozinho num banco lá ao fundo. Parecia tão desolado que decidi então falar do pecado da solidão. Porque é um pecado. Você é um homem solitário e, o que é pior ainda, tem orgulho nisso.
- Não sou solitário - protesta Tollinger -, tenho muitos amigos e uma mulher ocupada.
Kristos sorri-lhe, um pouco de lado.
- Você perdeu a sua mulher e julga-se feliz na sua solidão. Tem vontade de se tornar eremita. Porquê? Acha que a causa disso foi... foi o quê? A sua infância infeliz? As brigas entre os seus pais?
Tollinger fica estupefacto, tão chocado que mete as mãos nos bolsos, para que não se veja que estão a tremer.
- Engana-se redondamente - retruca, em voz trémula.
- Não. Tenho toda a razão. Mas não é demasiado tarde para mudar, para procurar o amor e retribuí-lo.
- O amor de Deus?
- Ou de uma mulher - contrapõe Kristos, encolhendo os ombros. - É a mesma coisa.
- Posso beber mais um pouco? - suplica Tollinger, em
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voz rouca. - Bebe um grande gole, depois coloca uma nota de cinquenta dólares em cima da mesa. Começa a dirigir-se à porta, mas pára e volta-se de novo. - Sabe, nada do que você diz faz sentido. Ouvi dizer que acredita que fomos todos criados à imagem de Deus e por isso somos livres de pecado. No entanto, acaba de me acusar do pecado da solidão. Diz às pessoas que estão livres de culpa, mas oferece-se para assumir a sua culpa, desde que acreditem em si. As suas crenças não são racionais. Não têm qualquer lógica.
- E você acha que a lógica e a razão vão resolver os problemas deste mundo? Não vão. Acha-se uma pessoa lógica e racional, mas os seus problemas irão persistir, enquanto não reconhecer o poder da fé, que não tem lógica nem razão, a não ser a do amor de Deus.
De súbito, parece perturbado. A testa começa a ficar banhada em suor. Apoia-se à mesa, para não cair, e o fogo do seu olhar esmorece.
- Que é que se passa? - pede Tollinger uma explicação.
- Vi a minha morte - revela o Irmão Kristos, com a voz alterada. - E a sua. Estão ligadas. Como é que você se chama?
- Isso tem alguma importância?
- Não. Você é o mensageiro.
- Que quer dizer com isso? - Kristos não responde e Tollinger volta-se de novo, para sair. - Como é que se chama o cão? - termina Tollinger.
- Nick - informa o Irmão Kristos.
Tollinger guia devagar e com cuidado no regresso a Washington. Não por causa da vodca (aguenta bem o álcool), mas por causa do que lhe disse o Irmão Kristos. Como podia o homem ter sabido aquelas coisas íntimas: o seu gosto pela solidão, as discussões dos pais, a perda de Jennifer?
Tenta encontrar uma explicação racional, mas sem êxito. Kristos nunca o viu, não sabe o seu nome, não lhe podia de modo algum ter investigado o passado, A sua capacidade de ver a vida de John Tollinger é um mistério, e, por razões que não consegue compreender, este sente uma excitação quase sexual.
Quando regressa a Spring Valley, é quase uma e trinta da madrugada, mas ali, tapando a entrada da garagem, está o Toyota vermelho de Jennifer Raye.
- Onde diabo estiveste tu? - pergunta ela, meio a dormir.
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- Andei em festas. Dois bailes de embaixada e um jantar de bufete no N AM. Devo ter engordado mais de dois quilos. Mas o que é que tu fazes aqui?
- Não faço a mais pequena ideia - declara Jennifer, amuada.
- com um braço à volta da cintura, John ajuda Jennifer a ir até à porta.
É uma mulher pesada, com bastante carne, mas Tollinger não tem nada contra isso. Despem
os respectivos casacos e instalam-se no escritório.
- Apetecia-me um pequeno cálice de brande - diz ele. E a ti?
- Também.
John enche dois pequenos cálices de Remy Martin e deixa a garrafa em cima da mesa, entre os dois maples de orelhas.
- Pareces estafada - observa ele.
- Não estou estafada - contesta Jennifer, triste. - Estou completamente arrasada. Lembras-te do que te falei, da intenção da primeira dama de convidar o Irmão Kristos para Camp David? Bem, está combinado. É de sábado a oito dias.
- Merda! - exclama Tollinger.
- Bem podes dizê-lo outra vez.
- E digo. Merda!
- E eu tenho de organizar tudo. Que honra, não é? Isso significa que tenho de acompanhar os convidados até lá, coordenar tudo com o pessoal de Camp David, combinar com os homens dos serviços secretos e certificar-me de que o frade maluco chega a tempo.
- Como é que vais fazer isso?
- Fui autorizada a oferecer-lhe cinco mil dólares. Deve ser o suficiente, não achas?
- Aposto que sim. Ele vai concordar. Mas não vai acompanhado das duas tipas, espero.
- Santo Deus, não! Ou vai sozinho ou nada feito. Vamos pôr um carro com motorista à sua disposição. Isso deve ajudar a convencê-lo.
- Quem são os outros convidados?
- A filha do conselheiro-geral do presidente e o noivo, a presidente da Organização Nacional das Mulheres e o maridinho, e o congressista Louis Gehringer e a nova noiva. A ideia é que, sendo todos novos, vão passar o fim-de-semana a passear na mata, não prestando assim grande atenção ao Irmão Kristos.
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Já fizeste asneira. O congressista Gehringer é do mesmo
estado que Samuel Trent. O vice-presidente faz dele o que quer. Se Gehringer descobre Kristos, a primeira coisa que vai fazer na segunda-feira de manhã é contar tudo ao vice-presidente.
- Tarde de mais para me preocupar com isso. Já toda a gente foi convidada e já todos aceitaram. Afinal de contas, quantas oportunidades se podem ter de passar um fím-de-semana com o Presidente e a família? Agora, o que tenho a fazer é tratar com o hospital, para que dêem alta ao rapaz durante esses dois dias. Possivelmente irá de ambulância até lá.
- Acompanhado de um médico, espero.
- Pelo menos de um. E da enfermeira que fica com ele. É o que temos estado a fazer durante estes três dias, enquanto tu andaste em festas, patife! Diz-me que não vai ser a maior bronca de todos os tempos.
- Não vai ser a maior bronca de todos os tempos.
- Não pareces muito convencido.
- Não estou. Acho que é uma loucura. Os jornalistas vão descobrir, e então vai ser uma grande merda. Imaginas qual vai ser a reacção da Associação dos Médicos Americanos?
- Imagino - afirma Jennifer. - Suponho que só tenho duas hipóteses: concordar ou demitir-me. Não me vou demitir. Gosto do meu trabalho e gosto de Mrs. Hawkins. Ela pode estar a fazer asneira agora, mas é uma senhora simpática e precisa de ajuda. Não posso abandoná-la.
- Claro que não - concorda Tollinger. - Aguenta-te aí, miúda! Talvez não venha a acontecer nada assim tão mau.
- Acreditas realmente nisso?
- Não. Ouve, vamos beber mais um copo e depois vamos para a cama.
- O quê? - exclama a sua ex, surpreendida. - O que é que se passa contigo? Ficaste excitado de repente?
- Não tenho direito?
- Claro que tens.
Levam ambos um segundo conhaque para o quarto. Enquanto Jennifer se despe, Tollinger vai à casa de banho e esfrega o corpo com um toalhete molhado em água quente. Continua a pensar na conversa que teve com o Irmão Kristos. O que quereria o homem dizer com "você é o mensageiro"?
Entra nu no quarto iluminado. Jennifer já está deitada entre os lençóis, à espera.
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- Lindo! - brada ela, olhando-o fixamente. - Podia pendurar aí uma toalha molhada.
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Uma ligeira camada de neve cobre a terra de branco e faz as sempre-vivas parecerem polvilhadas de açúcar. Os guardas de Camp David vestem sobretudos com cintos,
barretes de orelhas e batem com as pesadas botas no chão enquanto patrulham. Está um dia claro e um vento cortante. As lareiras da casa grande e dos bangalós dos
convidados estão acesas.
O automóvel vai buscar o Irmão Kristos na sexta-feira de manhã cedo. Se o motorista fica surpreendido com o aspecto do seu passageiro barbudo, não o mostra. Kristos traz vestida a sua camisa azul e jeans com as dobras metidas por dentro das botas. Tem ao pescoço uma tosca cruz de madeira presa por um cordão. Não traz nada na cabeça. Veste um casaco escocês velho, que lhe chega até meio da coxa. Não tem qualquer bagagem, nem sequer uma bolsa de artigos de toilette.
Recusa-se a sentar-se no banco de trás do confortável Lincoln, insistindo em se instalar ao lado do motorista. Durante o longo caminho até Camp David, os dois homens falam sobretudo da casa que o motorista está a construir. Kristos dá-lhe conselhos sobre a colocação de mosaicos de cerâmica.
Chegam a Camp David ao fim da tarde de sexta-feira. O motorista tem um livre-trânsito, mas os guardas de serviço telefonam para o chefe da segurança, para verificarem. E antes de os deixarem continuar o Lincoln é revistado e os dois homens passam por um detector de metais do estilo dos que há nos aeroportos.
Jennifer Raye, vestida com um enorme casaco de pele de raccoon, é a única pessoa disponível para cumprimentar o Irmão Kristos. Acompanha-o até ao bangaló que lhe está destinado e explica-lhe, um tanto nervosa, que jantará sozinho, mas que a ementa é muito completa. Se quiser dar um passeio a pé, deverá informar pelo telefone o chefe da segurança. Além disso, devido às restrições impostas pelo Presidente, não há bebidas alcoólicas, mas pode pedir café, chá, leite ou refrescos a qualquer hora do dia ou da noite.
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Os outros só chegam amanhã de manhã, de helicóptero. informa Jennifer. - O rapaz vem de ambulância com o
médico e a enfermeira. - Kristos faz um sinal de assentimento, vagueando pelo quarto. Há uma estante com livros e outra com cassettes de vídeo. O bangaló não está luxuosamente mobilado, mas é quente e alegre, decorado em estilo de rancho. - Se precisar de alguma coisa - diz-lhe ela -, não tenha medo de pedir. Bem sei que tudo isto parece rústico, mas na verdade está muito bem organizado e dizem que a comida é óptima.
- Já cá tinha estado?
- Não, é a minha primeira visita. Mrs. Hawkins recomendou-me especificamente que fizesse todo o possível para tornar a sua estada agradável.
- Está cá sozinha? - indaga Kristos, fixando-a olhos nos olhos.
- Não - responde Jennifer, embaraçada. - Bem, sim, de momento estou, mas Audrey Robertson, a secretária da primeira dama para os Assuntos Sociais, chega amanhã com ela e ficamos as duas no mesmo bangaló.
Kristos fita-a por mais um instante, desviando depois o olhar, o que proporciona a Jennifer uma sensação de alívio.
- Tenho fome - anuncia ele. - Será que eles têm peixe?
- Peixe? Tenho a certeza que sim, afinal de contas é sexta-feira. Como é que o quer? Grelhado? Frito?
- Guisado, gosto de peixe guisado.
- vou perguntar - diz Jennifer, em tom de dúvida. Talvez o possam fazer. Quando é que quer comer?
O homem encolhe os ombros.
- Assim que estiver pronto.
- Quer uma salada a acompanhar?
- Não. Só pão.
Volta a fixar o seu olhar sobre ela. Jennifer pensa que é como se se encontrasse perante uma fornalha de que abrisse de repente a porta. O calor atinge-a numa explosão sufocante, mal consegue respirar.
- Você vai jantar comigo - diz Kristos, mais em tom de ordem que de pedido.
Jennifer hesita.
- Está bem. vou pedir que o sirvam aqui. Jantamos e depois eu vou-me embora. Estou estafada, foi um dia muito cansativo.
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Kristos não responde. Ela sai, para falar com o cozinheiro. Quando fica só, Kristos começa a deambular pelo quarto. Inspecciona a casa de banho, impecavelmente limpa, experimentando a torneira de água quente, apalpando as toalhas turcas, espessas e macias. No pequeno quarto, experimenta a cama com a mão, deitando-se em seguida sobre a colcha de cetim. Agarra na cruz de madeira e fica muito tempo a olhar para as traves do tecto.
- Obrigado - diz, em voz alta.
Levanta-se e vai de novo para a sala. Quando Jennifer Raye volta, Kristos está a examinar o aparelho de vídeo. Atrás dela vêm dois criados de casaco branco. Trazem recipientes de aço inoxidável envolvidos num tecido acolchoado, para manter a comida quente, assim como caixas com a toalha e os guardanapos, talheres e louça de porcelana branca com o selo presidencial.
- Bouillabaisse! - comunica Jennifer. - Não acha óptimo?
- O que é isso? - interpela o Irmão Kristos. Jennifer olha para ele.
- O que você queria. Peixe guisado.
Os criados põem a mesa num recanto perto da janela, destapam a comida e retiram-se. Kristos faz sinal a Jennifer para se aproximar. Esta puxa uma cadeira, perguntando a si própria se ele irá rezar antes de começar a comer.
Não o fez, tirando de imediato para o prato metade do guisado. Parte pedaços do comprido cacete quente e, debruçado sobre a comida, mete mãos à obra. Jennifer serve-se de uma pequena porção e prova-a com delicadeza.
- Mmm - diz ela -, é bom, não é?
- Precisa de mais pimenta - opina Kristos, começando a polvilhar o prato de pimenta.
Jennifer observa-o, fascinada. Ele come como um grande bicho peludo... um bicho esfomeado. Solta roucos grunhidos de satisfação à medida que enche a boca, mastiga
com voracidade e cospe pedaços de concha. O molho escorre-lhe pela barba. O bigode fica gorduroso. Mas não pára; o guardanapo permanece cuidadosamente dobrado.
1 Prato provençal (caldeirada) preparado a partir de vários peixes cozidos em água ou vinho branco e temperado com alho, azeite, cebola, salsa, louro, açafrão, etc. (N. do E.)
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Jennifer tenta comer, mas não consegue. Sente-se mais cativada que enojada à vista daquele homem adulto devorando como uma criança esfaimada. Kristos lança um olhar em direcção ao seu prato cheio, servindo-se em seguida de mais guisado. Devora camarões, mexilhões, lulas, caranguejo, lagosta, peixe, cebolas, aipo, batatas cortadas em dados, cenouras, alho... tudo. O seu maxilar forte trabalha sem parar, enquanto o molho lhe escorre pela barba e a pilha de restos cuspidos continua a crescer.
Só pára quando a terrina está vazia, limpando-a então com um pedaço de pão. Jennifer empurra o seu prato cheio na direcção de Kristos.
- Vá lá, coma, eu não tenho fome. - Ele não protesta, limitando-se a comer também o que está no prato dela. Jennifer oferece-lhe sobremesa, fatias de tarte, mas ele abana a cabeça e afasta a cadeira da mesa. Num impulso, Jennifer desdobra o guardanapo dele e, inclinando-se para a frente, limpa-lhe o bigode e a barba. Kristos deixa-a fazer isso, mostrando os seus grandes dentes manchados no que Jennifer espera seja um sorriso. - Vejo que gostou do jantar - diz ela, em tom tão ligeiro quanto possível. - Estava bom, não estava?
- Qualquer comida é boa. E também qualquer bebida. São uma dádiva.
- Há café. Quer? - Kristos abana de novo a cabeça, levanta-se e afasta-se da mesa, deixando-a ficar ali sentada sozinha. Jennifer tenta pôr um pouco de ordem na mesa, com vergonha de os criados verem a porcaria que ele fez, quando vierem buscar os pratos. - Acho que vou beber um café - diz ela, em voz alta. - E talvez coma uma fatia de tarte. Depois vou-me embora.
Ele não dá resposta. Jennifer volta-se, mas a sala está vazia. Vai à sua procura, receando que tenha saído sem avisar a segurança. A porta da casa de banho está
aberta, mas Kristos não está lá. Encontra-o ajoelhado junto à cama, de cabeça inclinada. Ouve-o murmurar e presume que está a rezar. Volta até junto da mesa e bebe o café, agora morno, que não a ajuda nada a acalmar os nervos.
"Vai-te embora", aconselha-se a si própria. "Vai-te embora!"
Mas fica.
Acaba de beber o café e volta ao quarto. O Irmão Kristos está de pé em frente do toucador de pinho, olhando de forma fixa para o espelho.
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- Acho que me vou embora agora - avisa Jennifer, admirada pela timidez da sua voz. - Tenho a certeza de que você fica bem. Pode dormir até à hora que quiser.
Kristos volta-se, muito devagar, e aproxima-se dela. Tem o habitual fogo no olhar e as mãos que pousa nos seus ombros são pesadas e quentes.
- Fique comigo - diz ele.
- Não. Tenho de me ir embora.
- Não existe pecado - afirma Kristos. - Por isso, não pode existir culpa. Não ligue ao que lhe diz o pensamento. Isso não é nada. Obedeça apenas à sua vontade. Acredita
em mim?
- Bem, eu... não tenho a certeza... que você diz... - Não consegue afastar os olhos daquele olhar cintilante, que queima. - O que é que está a ver? - investiga,
ofegante.
- Medo. Não de mim, mas da vida. Você finge ser forte, mas duvida. Sonha com monstros.
- Não é verdade... - contrapõe ela, mas não consegue continuar.
Kristos puxa-a na direcção da cama.
- Eu não sou um monstro, sou o irmão de Cristo, que veio à Terra para mostrar a única verdade.
- Você é... - começa Jennifer, não conseguindo, mais uma vez, prosseguir.
Quando ficam ambos nus, Kristos transforma-se de novo no selvagem que Jennifer viu à mesa. Ela é uma mulher robusta, bem fornecida de carne, mas Kristos manipula-a
como se fosse um brinquedo. Sente-se perdida, tão primitiva e selvagem como ele.
O corpo de Kristos é rude, sem graça. É tão desajeitado como um urso de circo. Mas a força bruta lá está, gritos animalescos, e um cheiro acre, selvagem, emana da
sua carne.
Possui-a com uma paixão insensível, mordendo, arranhando, até ela começar a chorar, sem saber se de dor ou de prazer. A cruz de madeira que ele tem ao pescoço cai
por sobre o rosto de Jennifer e ela mete-a na boca, mordendo-a enquanto ouve os uivos do homem.
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O helicóptero chega pouco antes das dez da manhã, trazendo o Presidente e a família, o pessoal e os convidados. Todos são
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transportados em carrinhos de golfe, no meio de uma grande Efusão de risos, enquanto se dividem bagagens, os hóspedes se instalam nos respectivos bangalós e o pessoal
da cozinha fica pronto a receber ordens para o almoço.
Pouco depois das onze, chega a ambulância que traz George Hawkins, acompanhado do médico e da enfermeira. O rapaz gosta imenso de Camp David, onde o deixam passear a pé, devidamente acompanhado, e de visitar os postos de segurança, onde travou amizade com os guardas dos serviços secretos. . . ,
Às onze e quarenta e cinco o Presidente e a primeira dama deixam a casa grande e dirigem-se ao bangaló destinado ao Irmão Kristos. Este foi avisado por Jennifer da sua chegada, e, embora venha acompanhado do habitual contingente de guardas dos serviços secretos, o casal entra sozinho.
Se o Irmão Kristos fica impressionado pelo estatuto dos visitantes, não dá qualquer sinal disso. O Presidente e a mulher sentam-se lado a lado num sofá, enquanto Kristos se afunda negligentemente num maple. Ao longo de toda a conversa vai passando devagar os dedos pela barba, fixando aqueles olhos ardentes ora num, ora noutro, conforme vão falando.
- A minha mulher falou-me de si, Irmão Kristos - começa o Presidente -, mas, se não se importa, gostava de lhe fazer algumas perguntas.
- Claro, pai - responde Kristos.
- Porque é que me chama "pai"? - quer saber Hawkins, com um leve sorriso. - Washington é que foi o pai do nosso país, e não eu.
- O senhor é o pai de todo o povo e deve preocupar-se connosco como se fôssemos seus filhos.
- Sim, suponho que assim é - aceita Hawkins, mas em tom de dúvida. - A primeira coisa que lhe quero perguntar
é o seguinte: é membro de alguma religião organizada ou de alguma igreja?
Só existe uma religião, uma Igreja, tal como existe apenas um Deus, seja qual for o nome que se Lhe atribua.
Há quanto tempo anda a pregar?
Eu já falava da glória de Deus em criança. Mas só há pous anos é que essa se tornou a minha missão.
. Voce fala como pessoa instruída, Irmão Kristos - interP e a primeira dama. - Frequentou a universidade?
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- Não, mãe. Nem sequer acabei o liceu. Quaisquer conhecimentos que possa possuir foram adquiridos pela leitura e por ouvir as pessoas que me pareciam sensatas.
- A minha mulher disse-me que você tem dons fora do comum, que consegue curar os doentes. É verdade?
- Se a sua fé for suficientemente forte...
- Fé em Deus ou fé em si?
- É a mesma coisa - esclarece o Irmão Kristos.
- Consegue predizer o futuro? - insiste Mrs. Hawkins.
- Por vezes, vejo coisas que irão acontecer.
- E o passado? - continua ela, quase sem poder respirar. - Você consegue ver o passado. Quando nos encontrámos pela primeira vez, falou-me de uma coisa que aconteceu na minha vida e de que apenas o meu marido e eu tínhamos conhecimento.
Kristos não responde, mas dirige o seu olhar ao Presidente. Aquele homem forte muda de posição, pouco à vontade, mas não desvia o olhar. Há um momento de silêncio, e em seguida o pregador diz, na sua voz sem timbre:
- Vejo uma altura da sua vida, pai, em que conseguiu amar a Deus. Era de noite, depois de uma batalha em que muitos dos seus amigos tinham morrido. Mas o senhor não procurou Deus, por medo do que a manhã traria. Procurou-o em acção de graças, prometendo que, se fosse morto na manhã seguinte, aceitaria esse facto, sem que o seu amor por Ele diminuísse, e que, se a sua vida fosse poupada, o seu amor persistiria e aumentaria.
- Sim - confirma Hawkins, pálido. - Foi isso que aconteceu.
- Essa fé ajudou-o, e o senhor resolveu que ela nunca enfraqueceria. Mas, mais tarde, preocupado com a sua carreira, a fé tornou-se uma coisa rotineira, um hábito de domingo de manhã que perdeu a paixão que sentira em combate. Agora, com o fervor desaparecido, a sua fé está a ser posta à prova. A doença do seu filho corrói-lhe o espírito. Pergunta-se a si mesmo que pecado cometeu para merecer um tal castigo. Mas o senhor não cometeu pecado algum e nem deveria sentir-se culpado. Foi a sua fé que enfraqueceu, e Deus enviou-lhe este desgosto para a fortalecer.
- Sim! - exclama o Presidente, com fervor. - Oh, sim!
- O acreditar em Deus é um músculo da vontade - termina o Irmão Kristos - e deve ser constantemente exercitado
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para se manter saudável e firme. Prestem atenção ao que eu digo, pois trago-lhes a Sua palavra.
Por favor, Irmão Kristos - suplica Helen Hawkins -,
venha visitar o nosso filho! Ele está agora a almoçar e depois tem de dormir a sesta. Mas podemos pedir-lhe que o vá ver quando ele acordar?
- Se quiserem - declara-se Kristos disponível.
Pouco depois das duas e trinta da tarde, Jennifer vem ter com Kristos, para o acompanhar à casa grande. No caminho, passam por um grupo de convidados, que ficam a olhar, curiosos, para aquele homem barbudo, mas Jennifer não faz qualquer menção de o apresentar.
A primeira dama espera-os e acompanha o Irmão Kristos até um pequeno quarto decorado com cartazes de personagens de banda desenhada, em cores vivas. Há brinquedos espalhados, mas a cama é de hospital, e num canto vê-se um armário de vidro e esmalte branco fechado à chave. Contém medicamentos; a parte inferior é refrigerada.
Lá se encontram um médico e uma enfermeira de guarda, mas Mrs. Hawkins diz-lhes qualquer coisa em voz baixa e eles retiram-se no momento em que o Presidente entra. A família e o Irmão Kristos ficam então a sós no quarto. George está deitado na cama, coberto até à cintura por um lençol e um cobertor fino. O rapaz segue toda esta actividade com os olhos muito abertos.
O Presidente e Mrs. Hawkins ficara de pé, junto à parede, a observar. O Irmão Kristos aproxima-se lentamente da cama. Olha para o rosto magro e lívido do rapazinho. De súbito, faz abanar a barba, que se move para cima e para baixo. George desata a rir, e Kristos ri também. Em seguida, ajoelha-se junto à cama e pega numa das frágeis mãos da criança.
- Quem és tu? - pergunta o rapazinho. - O Pai Natal?
- Não - explica Kristos. - Sou teu irmão.
- Eu não tenho irmãos.
- Mas eu quero sê-lo. Posso?
- Está bem - concorda George. - Se quiseres. És médico?
- Sou um médico especial. Diz-me, irmão, ensinaram-te quem é Deus?
- Claro que sim. Sei como Ele é. Tem uma grande barba como a tua, mas a dEle é branca e tem cabelo branco também.
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- E o que é que Deus faz?
- Manda no Céu.
- Sim. Manda no Céu e nesta Terra e em todas as estrelas. Sabes rezar, irmão?
- Sei. Mas às vezes adormeço antes de acabar. :
- Eu sei. Mas Deus compreende. ;(
- Como é que te chamas?
- Irmão Kristos.
- Onde é que moras?
- Longe daqui. Moro num armazém antigo.
- com animais?
- Só um cão.
- Eu gosto de cães - continua George -, mas não me deixam brincar com eles. Podem morder.
- O meu cão não te ia morder. Havia de gostar de ti.
- Achas que sim? - interroga o rapazinho, ansioso. Então, eu também havia de gostar dele. Como é que se chama?
- Nick.
- Nick? É um nome esquisito para um cão.
- É um cão esquisito. Sabes escrever?
- Claro que sei.
- Porque é que não escreves uma carta ao Nickí Ele não sabe ler, mas eu posso ler-lhe a carta e ele percebe.
- A sério? Ele percebe mesmo o que dizes?
- É um cão muito esperto.
- Está bem - aceita George. - vou escrever-lhe uma carta. O que é que devo dizer?
- O que quiseres. Como te sentes, o que tens andado a fazer, o que gostarias de fazer.
O miúdo ri-se.
- É uma coisa estranha isso de escrever a um cão. Mas vou fazê-lo. E ele responde?
- Claro - entusiasma o Irmão Kristos. - Ele ladra, mas eu interpreto o que ele diz e escrevo por ele.
- Ena, pá! Uma carta de um cão!
Kristos levanta-se. Debruça-se sobre a cama e, segurando a barba com uma das mãos, para que não caia sobre o rosto de George, dá-lhe um beijo na testa.
- Que Deus esteja contigo, irmão - conclui ele, com ternura, antes de se afastar.
À saída do quarto, a primeira dama pega-lhe com força no braço e olha-o nos olhos.
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Ele gosta de si, bem se via.
É um lindo rapaz.
. Seja sincero - pede o Presidente. - Acha que ele vai
viver?
Os olhos de Kristos mudam de foco, o olhar torna-se mais profundo, mais escuro, como se procurasse algo dentro de si próprio.
. Vai viver muitos anos - sossega-os, por fim. - Uma
vida feliz.
.- Obrigada - retribui Helen, começando a chorar.
Jennifer acompanha Kristos de volta ao seu bangaló.
- Fica comigo? - sugere-lhe Kristos.
- Não - decepciona-o ela, com rispidez. E acrescenta, em seguida, em voz fraca: - vou estar ocupada com os convidados. Já pediu o jantar?
- Não.
- Hoje não têm peixe guisado. Mas pode comer uma salada de lagosta, costeleta de vitela panada ou steak au poivre.
- O que é isso... esse último?
- Steak au poivre? É um bife do lombo com molho bastante apimentado.
- É isso que eu quero. Dois.
- Legumes? Salada? Kristos encolhe os ombros.
- O que tiverem. E pão. Jennifer pára à porta do bangaló.
- Como é que correu a sua conversa com o George?
- Bem. - Olha-a de maneira fixa. - vou voltar a vê-lo muito em breve.
Em seguida entra, deixando-a ficar ali parada, amedrontada por razões que não consegue compreender.
Kristos despede-se e vai à casa de banho. Está por completo equipada para convidados: sabonete perfumado, champô, pasta de dentes e uma escova nova em embalagem de plástico selada, um pente selado, espuma de banho, água-de-colónia, um estojo de unhas. Kristos inspecciona toda esta panóplia, cheirando o sabonete e a água-de-colónia.
Enche a banheira com água tão quente que solta vapor. Deita lá dentro espuma de banho e observa a sua formação. Mete-se dentro da água e fica com a pele vermelha. Por fim, deixa-se imergir até ao queixo. A barba flutua por sobre a espuma. Fecha os olhos, sentindo o corpo dissolver-se.
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Fica mergulhado na banheira durante quase meia hora. Depois, quando a água já está mais fria, levanta-se e despeja a banheira. Não faz qualquer esforço para se esfregar com o sabonete ou com uma luva de banho nem toca em si próprio, limitando-se a abrir o chuveiro, para tirar a espuma. Utiliza duas espessas toalhas para enxugar
o corpo e a barba, deixando-as cair em seguida no chão.
Quando aparece um criado com o jantar e começa a pôr a mesa, Kristos já está completamente vestido. O criado é um homem gorducho, com um bigode que parece ter sido
desenhado com um lápis de sobrancelhas. Mexe-se devagar, com indolência.
- Vai precisar de mais alguma coisa?
- vou - responde o Irmão Kristos, fitando-o. - Quero qualquer coisa para beber.
O criado pestaneja.
- Trouxe-lhe café. Prefere chá, leite ou uma Coca-Cola?
- Vodca. Prefiro vodca.
- Isso não pode ser - contraria o homem, com correcção. - O Presidente e a senhora não permitem a entrada de bebidas alcoólicas aqui.
- Eu sei - replica Kristos. E metendo a mão no bolso retira de lá algumas notas e conta cinquenta dólares.
- Vodca - repete - de qualquer marca.
- vou perder o emprego se alguém descobre - lamenta o homem, pegando no dinheiro. - São muito severos. Ainda o mês passado, um dos guardas da segurança... - interrompe-se,
ao ver o olhar de Kristos. - Volto já.
Quando o criado volta, dez minutos mais tarde, com a garrafa escondida dentro de um recipiente para comida, o Irmão Kristos já devorou um dos bifes, pegando-lhe com as mãos e reduzindo-o a pedaços com os seus grandes dentes.
Abre a garrafa de vodca, bebe um grande trago e ataca o segundo bife, parando de quando em quando para comer um pedaço de batata assada ou de feijão verde. Bebe mais vodca e acaba o pequeno pão de centeio estaladiço, utilizando-o para limpar o resto do molho do bife.
Levanta-se da mesa e vai sentar-se num maple. Um outro criado vem levantar a mesa, e, se estranha o facto de os talheres não terem sido utilizados, não o mostra nem fala.
Por volta da meia-noite, a garrafa fica vazia e o Irmão Kristos deixa-a cair para o chão. Vai para o quarto e deita-se sobre
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a colcha de cetim, sem sequer descalçar as botas. Adormece quase de imediato, um sono sem sonhos, durante o qual nunca se vira ou mexe, permanecendo deitado tão inerte e silencioso como um cadáver.
Por volta das duas e quarenta da madrugada, acorda, ao ouvir pancadas na porta. Levanta-se rápido e dirige-se à sala iluminada. Abre a porta. É Jennifer. A extremidade da camisa de noite aparece por debaixo do casaco de raccoon.
- É o George - informa ela, nervosa. - Acho que está a ter uma hemorragia. Querem que você vá lá imediatamente.
Kristos não responde, mas acompanha-a até à casa. Está uma noite muito fria, clara, com o céu negro estrelado. Sopra um vento cortante de oeste e as passadas dos dois fazem ranger a neve no chão.
- Devia ter trazido o seu casaco - observa Jennifer.
Uma vez mais ele não responde, pegando na cruz de madeira que tem pendurada ao pescoço e olhando para o céu brilhante. A noite tem uma claridade selvagem e a abóbada celeste parece girar, enquanto as estrelas cintilantes dão a impressão de descerem, como se fossem esmagar e queimar tudo.
À porta da casa principal estão três agentes dos serviços secretos, com as mãos metidas nos bolsos dos sobretudos. Afastam-se em silêncio, para deixarem passar Jennifer e o Irmão Kristos. Quando estes abrem a porta, depara-se-lhes Abner Hawkins. Vê-se o rosto do Presidente sombrio.
- E o George. Está a sangrar e eles não conseguem estancar o sangue. Parece que passou uma das pernas por cima da borda da cama enquanto dormia e cortou-se no mecanismo de aço. Não é um corte profundo, mas é o suficiente. Já utilizaram compressas, coagulantes e uma injecção daquele novo produto, mas nada dá resultado. O médico quer chamar uma equipa para fazer uma transfusão, mas não sei se vão chegar a tempo. O rapaz perdeu muito sangue.
- Está consciente? - informa-se Kristos.
- Está, está, sabe o que está a acontecer. Já passou por isto. O senhor pode fazer alguma coisa?
- Leve-me até junto dele.
Entram todos no quarto alegre decorado com cartazes do Rato Mickey e do Pato Donald. A cama foi levantada e o médico e a enfermeira estão a tratar da perna do George. As ligaduras, as toalhas, o lençol estão encharcados em sangue vermelho.
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O médico levanta a cabeça quando eles entram.
- Por favor, senhor Presidente - pede ele, em tom irritado -, deixe-me telefonar para o hospital, para pedir uma equipa.
Hawkins olha para Kristos, que faz um sinal de assentimento.
- Sim - diz o Presidente -, vá lá telefonar. E, por amor de Deus, diga-lhes que venham depressa.
A primeira dama está de pé junto à parede, mordendo um punho. O Irmão Kristos aproxima-se dela, pega-lhe no braço e dirige-lhe algumas palavras em voz baixa. Ela, confusa, faz um sinal afirmativo com a cabeça.
- Por favor, deixem-nos sozinhos - pede ela à enfermeira. - Jennifer, não se importa de sair também?
A enfermeira começa a protestar, mas Mrs. Hawkins faz-lhe sinal para que saia. O Presidente e a família ficam a sós com o Irmão Kristos. Este dirige-se à cama.
- George - chama ele, em voz suave. O rapazinho abre os olhos.
- Olá - cumprimenta ele, em voz fraca. - Achas que vou morrer?
Kristos debruça-se sobre o miúdo.
- Disseste-me que sabes quem é Deus.
- Claro.
- Acreditas em Deus, irmão? O rapaz faz um sinal afirmativo.
- Tenho a certeza de que acreditas. Sabes, Deus mandou-me trazer-te o Seu amor e curar-te.
- Deus sabe da minha existência?
- Claro que sabe. Agora, quero que rezes.
- O que é que devo dizer?
- Diz: acredito em Ti, Deus, e amo-Te.
- Acredito em Ti, Deus - repete George, com a sua voz aguda -, e amo-Te.
- Acredito em ti, Irmão Kristos, e amo-te.
- Acredito em ti, Irmão Kristos, e amo-te - pronuncia o rapaz, obediente.
- Deus gosta disso. Ele ouviu a tua oração e vai fazer parar o sangue.
- Vai?
- Fecha os olhos e pensa só no teu amor por Deus e na tua fé em mim.
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George fecha os olhos. O Irmão Kristos pousa as mãos na perna do rapaz, uma acima e outra abaixo da ferida. O Presidente e a mulher ajoelham-se e, de mãos dadas, observam com olhar receoso.
Os vigorosos dedos de Kristos enterram-se nas ligaduras cheias de sangue. Fecha os olhos, o seu corpo é percorrido de tremuras. O suor começa a brotar-lhe da testa. Os seus lábios movem-se, mas não emitem qualquer som.
As quatro pessoas que se encontram no quarto estão imóveis, como que apanhadas em poses de súplica silenciosa. Passam quase cinco minutos antes que o Irmão Kristos se endireite. Retira com lentidão as mãos das ligaduras ensanguentadas. Então, com extremo cuidado, retira as toalhas encharcadas, as ligaduras e as compressas.
Volta a inclinar-se, para examinar a ferida, levando então a cruz de madeira aos lábios, com uma mão cheia de sangue.
Vira-se para Abner e Helen Hawkins.
- Pai, mãe, venham testemunhar a glória de Deus. Eles levantam-se, aproximam-se, precipitados, e ficam a
olhar para o filho. O sangue parou de correr.
- É um milagre! - exclama o Presidente, abraçando o Irmão Kristos.
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O chefe de gabinete está inclinado para a frente, com os cotovelos em cima da secretária e a cabeça apoiada nas palmas das mãos.
- Você soube tudo isto pela Jennifer? - pergunta.
- Sim - responde John Tollinger. - Ela voltou ontem à tarde e passou por minha casa, para me contar. Estava quase histérica.
- Compreendo-a muito bem - observa Henry Folsom. Eu estou quase histérico.
- Olhe, chefe, há uma explicação perfeitamente racional para o que aconteceu. O médico tinha tratado da hemorragia do rapaz com coagulantes. Enquanto trabalhavam, chega o Irmão Kristos recita uma lengalenga qualquer e o sangue pára de correr. É provável que tivesse parado mesmo que se
encontrasse
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a quilómetros de distância, mas ele é que fica com os louros.
- Você sabe disso e eu também, mas vá lá tentar dizê-lo ao patrão. O que foi que ele lhe chamou? O milagre de Camp David?
- Acho que foi Mrs. Hawkins quem utilizou primeiro essa frase, mas o Presidente pegou-lhe na palavra.
- Quem é que sabe disto?
- O Presidente, a primeira dama, George, Kristos, o médico, a enfermeira e Jennifer, claro. Talvez alguns dos tipos da segurança e convidados tenham ouvido o que se passou.
- É verosímil que sim - diz Folsom, com um suspiro. Bem, o que é que vamos fazer agora?
- Tem a certeza de que não quer avisar o advogado do Presidente e o conselheiro de segurança, chefe? Se houver uma tempestade publicitária acerca disto, será melhor estarmos todos de acordo.
- Não - discorda Folsom -, ainda não. Mas vamos contar tudo isto ao secretário de Imprensa. Talvez possamos abafar o caso dizendo que o Presidente e a família têm direito à privacidade no que diz respeito a questões religiosas.
- Não me parece que isso possa dar resultado - objecta Tollinger, com ar de dúvida. - Há uma coisa que ainda não lhe disse.
- Ai, meu Deus! - exclama o chefe de gabinete, resmungando. - Mais notícias boas? Está bem, desembuche.
- bom, segundo Jennifer, o patrão e a mulher decidiram que querem ter Kristos mais à mão, para o caso de o George ter outra hemorragia. Vão pagar-lhe um apartamento na cidade.
- Mas que bom! - observa Folsom, com azedume. Onde é que o vão meter? Numa suite no Complexo Watergate? E será que ele vai trazer consigo as duas tipas dos lençóis brancos?
- Ainda não foram decididos os pormenores. Neste momento, Jennifer anda à procura de um sítio para o tipo viver. Mas há uma coisa que eu fiz: disse-lhe que de modo algum pode o nome do Presidente figurar no arrendamento. Se ele insistir em pagar a renda do Irmão Kristos, então o mais sensato é dar dinheiro ao tipo. Podemos sempre dizer que se trata de uma contribuição de caridade para uma religião organizada.
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- Sim, mas algum bisbilhoteiro vai acabar por descobrir de onde vem o dinheiro de Kristos. Já conseguiu saber mais alguma coisa sobre ele?
- Não soube mais nada depois de ter recebido a carta que lhe mostrei. Lindberg está no Nebrasca, possivelmente a gelar. Tiveram uma tempestade de neve no outro dia. Espero ter notícias dele esta semana.
- Assim que souber alguma coisa, diga-me. Quanto mais depressa pudermos desmascarar o Irmão Kristos, melhor.
- O chefe de gabinete levanta a cabeça e olha para cima. Vem aí um helicóptero. Deve ser o patrão. Vamos lá cumprimentá-lo. E nem uma palavra sobre tudo aquilo que sabemos. Se ele nos quiser contar, conta-nos. E, se tivermos hipótese, é melhor reunirmo-nos com o secretário de Imprensa esta tarde.
- Está bem.
No preciso momento em que os funcionários da Casa Branca cumprimentam o Presidente e a família, Samuel Trent está no seu gabinete a atender uma interessante chamada telefónica e a dizer, de vez em quando:
- Sim?... Incrível!... Acho difícil acreditar nisso.
A pessoa que se encontra do outro lado é, como Tollinger previra, o congressista Louis Gehringer.
O telefonema termina com os obsequiosos agradecimentos de Trent e a promessa de tudo fazer para promover a construção de um hospital na região natal de Gehringer. Em seguida, o vice-presidente chama Michael Oberfest e, enquanto espera que este chegue, balouça-se com lentidão para a frente e para trás, na sua cadeira giratória, sem deixar de olhar para um quadro a óleo na parede oposta. É um retrato, pintado por Copley, de um dos antepassados de Trent; o almirante, não o ladrão de cavalos.
Quando Oberfest chega, ficando de pé quase em posição de sentido, em frente da sua secretária, o vice-presidente inquire, de imediato:
- Que progressos tem estado a fazer na sua investigação daquele assunto curioso que discutimos na semana passada?
- Muito poucos, senhor vice-presidente - confessa o adjunto. - Não consigo descobrir o que se está a passar.
- Pois eu consegui - informa Trent, satisfeito.
Conta então a sua conversa telefónica com o congressista Gehringer.
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- Meu Deus! - brada Michael. - O Presidente anda a consultar um curandeiro?
- Não se trata de consultar - esclarece o vice-presidente, com o dedo indicador apontado para Michael. - Parece que o contratou, embora a Casa Branca gostasse de guardar segredo disso. Segundo Gehringer, o homem é um tipo bastante ordinário.
- Mal posso acreditar - confessa Oberfest, abanando a cabeça. - Se isto se sabe, nem imagino o que...
- Pois eu imagino - interrompe Trent, muito alto. Permita-me que lhe explique as possíveis consequências de este assunto se tornar do domínio público:
"Primeiro: todo o eleitor bem-pensante irá ter o Presidente dos Estados Unidos da América na conta de um idiota, por não fazer caso dos mais recentes avanços da ciência e optar pelos serviços de um aldrabão barbudo que utiliza a oração para curar uma unha encravada.
"Segundo: os nossos amigos do outro lado do oceano vão ficar chocados e espantados por esta prova evidente da incapacidade de pensamento lógico e racional do Presidente.
"Terceiro: os nossos inimigos, em especial os Russos, vão achar tal notícia muito divertida e torná-la pública, como mais uma prova da ignorância supersticiosa das sociedades capitalistas.
"Quarto: os médicos deste país, e até a comunidade científica em geral, vão sentir-se insultados por esta rejeição da sua profissão.
"Quinto: o Congresso, que já está consciente da lamentável tendência que Hawkins tem para simplificar demasiado os problemas complexos, vai aproveitar este incidente como confirmação de que o homem é um pateta e não lhe devem ser confiadas as importantes questões do Estado.
"É verdade que uma certa camada do eleitorado se sentirá solidária com Hawkins e não irá achar nada de anormal no facto de ele pedir ajuda a um vendedor de banha da cobra religiosa. Mas estas pessoas, fundamentalistas, evangelistas, carismáticos, são, na sua maior parte, das classes baixas. Garanto-lhe que a maioria dos eleitores das classes mais importantes deste grande país vai considerar a conduta de Hawkins um insulto à sua inteligência. As eleições intercalares já estão à porta e esta asneira dá-me vontade de chorar pelo futuro do nosso partido.
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Oberfest tem um momento de hesitação, não sabendo ao certo se o vice-presidente acabou a sua oratória ou não. Acaba por romper o silêncio.
- Bem, senhor vice-presidente, o que diz é verdade e tudo o que prevê pode acontecer. Mas apenas se este assunto vier a ser do domínio público. E se a Casa Branca conseguir manter tudo isto secreto?
O vice-presidente volta a baloiçar-se para a frente e para trás, na cadeira giratória.
- Oberfest, você conhece alguém no New York Times, não conhece?
- Conheço. Um antigo colega.
- Então porque não lhe telefona - sugere Trent, em voz suave. - Pode ser que ele esteja interessado.
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"Tollinger:
A respeito de: Irmão Kristos.
Se tudo correr bem, espero enviar-lhe este relatório de Omaha, onde conto apanhar um avião para o Sul. Acabo de passar três dias em Bethlehem, Nebrasca, não porque quisesse, mas porque fiquei retido pela neve. Finalmente, limparam as estradas e devo poder partir amanhã de manhã cedo, no meu carro alugado, em direcção a Omaha.
A propósito, vou pôr tudo isto na conta; por isso não se admire de ela ser choruda, mas vou discriminar todas as rubricas quando voltar a Washington.
Bethlehem é algo mais do que uma cidade encruzilhada, mas não muito mais. A população actual é de cerca de duas mil e oitocentas pessoas. Há vinte anos era de onze mil, o que lhe dará uma ideia do que aconteceu a este sítio. Já não há banco, nem cinema, nem hotel. Mas há imensas lojas fechadas e a maior parte dos habitantes são velhos. Os poucos miúdos que restam têm de ir de autocarro para uma escola secundária a quase vinte quilómetros daqui.
Fiquei num motel rasca (o único aqui na zona) chamado Hillcrest e comi todas as refeições no Café Ace-High. Nunca mais vou ser capaz de olhar para uma costeleta de porco frita.
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Mas estou satisfeito comigo mesmo: não bebi e, se consegui suportar ficar aqui retido pela neve durante três dias, suponho que consigo manter-me sóbrio onde quer e quando quer que seja.
Mas vamos ao que interessa... Eis o que consegui descobrir:
Jacob Everard é o terceiro filho da família Christiansen (quatro rapazes e cinco raparigas), que era dona de uma quinta de cento e sessenta e dois hectares a oeste de Bethlehem. Cultivavam sobretudo trigo, mas tinham também vacas leiteiras, porcos e galinhas. A quinta foi vendida e está agora dividida em parcelas mais pequenas. A mãe e o pai morreram e todos os filhos se foram embora. Compreendo-os, esta região é agreste.
Seja como for, os Christiansens tinham boa reputação como agricultores. Eram trabalhadores (mesmo os miúdos) e o leite, nata e manteiga produzidos por eles eram os melhores. Pagavam tudo o que compravam em dinheiro, nunca ficaram a dever nada, tinham um pequeno pecúlio no banco (agora fechado). Quando os pais morreram, os filhos decidiram vender e separar-se.
Era esta a reputação que tinham como agricultores. Como vizinhos e bons cidadãos, não se saíam tão bem. Parece que era uma gente desconfiada, com espírito de clã, nunca participavam em actividades, nunca visitavam ou convidavam ninguém, incluindo os amigos dos filhos (se é que os tinham).
Mas o que na verdade fazia Bethlehem tratá-los como párias era a sua religião. Esta região é predominantemente luterana. De facto, soube quase tudo isto por um pastor luterano do sítio, que é um ano mais novo que Deus e gosta imenso de falar.
Os Christiansens pertenciam a uma seita radical que é um ramo dos swedenborguianos, religião legal que afirma que a divindade é amor infinito. Mas a seita a que os Christiansens pertenciam exagerava esse aspecto e proclamava que os ensinamentos de Jesus Cristo apenas podiam ser seguidos através do amor (em especial do sexo).
(Houve muitos destes cultos e seitas malucas no Midwest durante o século xix e princípios do xx, mas a maior parte acabou por desaparecer.)
Os Christiansens eram conhecidos na região como crististas e havia imensos mexericos sobre o que na realidade faziam durante os serviços religiosos. Havia cerca de cinco ou seis famílias
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desta religião aqui na zona e todas se juntavam aos fins-de-semana na quinta de um dos membros, numa base de rotatividade.
Dizia-se que homens e mulheres (não casados) dormiam juntos, para provar que o sexo não é pecado, visto que todos fomos criados à imagem de Deus e Ele não tem pecado.
Soa-lhe a algo que já ouviu?... Além disso, falava-se em que os membros mais tímidos, que se recusavam a participar nessas paródias, eram chicoteados. E havia também boatos sobre relações incestuosas.
No que respeita a Jacob Everard, diz-se que era um miúdo jeitoso, trabalhador e bom aluno. Parece ter atraído a atenção das raparigas, e mais de uma pessoa me disse que Jacob tinha muitas namoradas, mas nenhum amigo da sua própria idade.
Tinha fama de ter péssimo feitio, sempre a meter-se em bulhas e já em criança tinha aquele olhar selvagem que referi na minha primeira carta. Além disso, o rapaz falava bem e ganhou vários concursos de oratória. Afirmaram-me que, se quisesse, Jacob era capaz de, com palavras, convencer um pássaro a sair de uma árvore, mas que utilizava sobretudo o seu dom da palavra para convencer as namoradas a irem com ele para o palheiro para uma sessão de "tu mostras-me a tua e eu mostro-te a minha".
Jacob tinha dezoito anos e estava no último ano do ensino secundário quando, ao que parece, meteu uma rapariga "em sarilhos". Segundo me disseram, o pai e o irmão da moça estavam para ir atrás dele com uma espingarda, quando ele fez o que qualquer outro rapaz americano de sangue na guelra que se preze faria em tais circunstâncias: pôs-se na alheta.
Deve ter apanhado boleia até uma cidade próxima (New Castle). Nessa altura, estava lá uma feira ambulante e diz a história que Jacob conseguiu arranjar lá trabalho. Quando os elementos da feira deixaram a cidade, uns dias mais tarde, Jacob foi com eles. Isto é o que se diz, claro, mas eu acredito em tudo.
Por isso, telefonei ao xerife de New Castle, identificando-me como agente do FBI (é só uma pequena mentira), e pedi-lhe o favor de verificar nos ficheiros e de me dizer qual era a feira itinerante que estava no terreno de feiras na data em questão. O xerife respondeu-me que não era preciso ir consultar os ficheiros, porque nos últimos quarenta anos houve apenas uma única feira itinerante em New Castle: a Ryan-
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-Goldfarb All-Thrill Monster Extravaganza. Que espanto de nome!
O meu telefonema seguinte foi para uma pessoa que conheço na revista Billboard. Prometeu-me verificar aquilo e voltar a contactar-me, o que fez umas horas mais tarde. Acontece que a dita feira ainda existe e passa o Inverno em Sarasota, na Florida. Assim, é para lá que vou, logo que consiga sair deste frigorífico. Vai ser óptimo descongelar entre palmeiras.
Até agora, o ré trato que consigo fazer de Jacob Everard Christiansen é o de um rapaz forte, desregrado, com patuá... e aprendiz de dom-joão. Teve uma severa educação religiosa, mas isso não significa nada, se o que ouvi dizer dos crististas for verdade. Toda a gente diz que ele tinha o dom de curar animais doentes e, a julgar pelo sucesso que tinha junto das moças, deve ser muito bem apetrechado.
Nota final: desde a tenra idade de catorze anos, era do conhecimento geral que gostava da pinga, neste caso aguardente de maçã de fabrico caseiro, que tem fama de ser uma bomba. O nosso Jacob foi visto várias vezes com uma piela de caixão à cova. Nem eu próprio comecei tão novo!
Próxima carta, da Florida...
Lindberg"
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Estão a jantar numa mesa de canto no Chez Belle, em Georgetown. As cabeças de ambos estão próximas uma da outra, falam em voz baixa e mostram sorrisos fixos. "Que casal simpático!", poderiam comentar os outros clientes, não se apercebendo de que Jennifer e John estão a dilacerar-se mutuamente.
- Quantas vezes é preciso explicar-te? - acentua ele. O médico tratou o rapaz com coagulantes. Enquanto estavam a fazer efeito, aparece o Irmão Kristos, resmunga uma oração e a hemorragia pára. Ele não teve nada a ver com isso. As drogas fizeram o que deviam fazer. Não houve milagre. Tenho muita pena.
- Tretas! - contesta Jennifer. - Tu não estavas lá e não sabes o que aconteceu. Eu estava e sei e estou a dizer-te que o
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Irmão Kristos fez parar a hemorragia. Ouve, o médico estava a telefonar para mandar vir uma equipa de emergência, para fazer uma transfusão de sangue ao garoto. Tê-la-ia feito se pensasse que as drogas iam dar resultado?
- Vá lá, Jennifer, sei que tens cabeça. Tenta servir-te dela. O médico estava apenas a precaver-se. Queres mais vinho?
- Quero, quero - aceita ela, servindo-se. - Está bem, não acreditas nos dons do curandeiro. Eu acredito.
- Não disse que não acreditava. Muitas pessoas doentes sentem-se melhor quando lhes dão um placebo se estiverem convencidas de que se trata de um remédio milagroso. A religião não tem nada a ver com isso.
- Não? - duvida Jennifer, em tom de desafio. - E se uma pessoa devota que está doente se convence de que Deus a vai curar, se a sua fé for suficientemente forte? Reza e fica curada. Isso é psicoterapia ou religião?
- Come a tua costeleta.
- Mais uma coisa - continua Jennifer. - Contei-te que quando nos conhecemos o Irmão Kristos sabia coisas a meu respeito que não tinha hipótese de conhecer. Mrs. Hawkins disse-me que aconteceu o mesmo com ela. E Katherine Downley e Lenore Mattingly disseram o mesmo. Se ele não tem poderes especiais, como é que podia saber essas coisas?
- É fácil. São truques usados por qualquer pessoa no mundo que lê a sina na palma da mão, numa bola de cristal, em folhas de chá ou por qualquer falso médio. Ouve, eu monto um negócio desses. Entra um estranho e eu digo-lhe qualquer coisa como: "Você teve um grande desgosto na sua vida. Um amigo íntimo ou um familiar morreu recentemente. Muita gente o tem traído." Algumas destas coisas são verdadeiras para noventa e nove por cento da população, mas os parvos dizem: "Caramba, este adivinho é mesmo bom; sabe tudo sobre mim!" E é assim que o Irmão Kristos engana os papalvos.
- Para tua informação, espertinho, o Irmão Kristos não disse nada dessas coisas. Sabia que Kate Downley tinha artrite nos joelhos e que Lenore Mattingly sofria de enxaquecas. Como é que podia saber tais coisas?
- Muitas mulheres de certa idade sofrem de artrite ou de dores de cabeça. E já te disse como é que ele podia ter adivinhado que acabaras de te divorciar. Já provei que não é curandeiro. Agora, estás a dizer-me que é vidente. Este tipo caiu-te de certeza no goto, não foi?
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Jennifer pousa o garfo.
- Isto é comida de mais - diz, em voz fraca. - Não consigo acabar. Vamos tomar café e brande, está bem?
- De acordo - corresponde John, olhando para ela. Meu Deus, estás tão pálida! Sentes-te bem?
- Não vou morrer - tranquiliza Jennifer, com um vago sorriso.
John pede café e brande ao empregado e volta-se de novo para Jennifer.
- Como é que vai isso de encontrar um sítio para o Irmão Kristos morar?
Jennifer volta a animar-se.
- Bingo! Não conseguia encontrar um apartamento num bom sítio e com uma renda razoável. Nem imaginas os preços que pedem agora! Depois lembrei-me de que Lenore Mattingly tem uma casa na Rua Dezoito.
É viúva e vive com Emily, a filha solteira, numa enorme casa de três andares. Fui falar com ela, fi-la jurar segredo e perguntei-lhe se estaria disposta a alugar um quarto ao Irmão Kristos. Só a ele, não às assistentes. Ela ficou eufórica. Disse que o andar de cima estava vago e que o Irmão Kristos podia ficar com ele. Uma grande sala, um quarto, uma casa de banho. Não tem cozinha, claro, mas Lenore declarou que o irmão Kristos tinha possibilidade de comer consigo e com Emily. Isso não lhe dá mais trabalho, pois ela tem uma governanta que vive lá. Parece ser a solução ideal.
- Pode ser - comenta Tollinger, pensativo. - Quando é que o Irmão Kristos se muda?
- Talvez dentro de uma ou duas semanas. A primeira dama está encantada, é claro. Fala já em convidá-lo para ir à Casa Branca dirigir um dos seus pequenos-almoços de oração.
- Meu Deus! - vocifera John, com desespero.
- Já sei que achas que ele é um aldrabão - contrapõe Jennifer, bebendo o seu brande -, mas estás enganado. Acontece que é um homem superior, com talentos muito especiais.
- Se tu o dizes... - replica John, olhando-a fixamente. Acabam de beber o café em silêncio. Tollinger paga a conta, vão buscar os casacos e saem para a rua.
- Convidava-te a subir - diz Jennifer -, mas Martha trabalha no computador e a casa está um caos.
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Não faz mal. Queres vir até Spring Valley tomar mais
um copo?
Fica para a outra vez.
- Como queiras.
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O vice-presidente, Samuel Landon Trent, gosta de dizer à mulher e aos amigos mais íntimos:
- Lembrem-se de que o que me separa da presidência é apenas um passo.
com isso em mente, e decidido a perseverar até conseguir que o anel de bonze lhe pertença, Trent tem trabalhado muito para estabelecer uma rede nacional de dirigentes partidários e de contribuintes compreensivos. A maior parte dos ricalhaços encontra-se em Manhattan, e Oberfest é muitas vezes despachado para Nova Iorque, para combinar a realização de discursos do vice-presidente junto de associações de comerciantes, de dirigentes de bancos de investimento e de outros responsáveis corporativos.
É por ocasião de uma destas viagens que Oberfest tem tempo de fazer o seu enigmático telefonema. Três horas mais tarde, encontra-se encerrado com o major Leonid Y. Marchuk naquele sujo quarto de hotel na Rua Quarenta e Seis, Oeste.
Ô estado de espírito do russo é o mais jovial possível, contando a Michael histórias escandalosas sobre os seus colegas nas Nações Unidas, rindo às gargalhadas e
dando frequentes palmadas na sua coxa gorda. Mas depois fica sério.
- Vamos lá a ver, Arnold - diz -, o que é que você tem para mim?
O adjunto pessoal do vice-presidente conta alguns mexericos de Washington: o problema de droga da mulher de um membro do Governo, a provável aprovação de uma lei sobre cuidados médicos, o desacordo existente no Conselho Nacional de Segurança acerca do envio de material de guerra para a Suazilândia, as fraudes, a revelar em breve, de um juiz do Supremo Tribunal.
"Nada do que está a revelar é susceptível de ter impacte mundial", pensa Oberfest para consigo, "e nada disso afecta a
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segurança dos Estados Unidos". Mas o major ouve sem interromper, sorrindo, acenando com a cabeça e parecendo satisfeitíssimo por tomar conhecimento destas trivialidades.
- E acho que é tudo - conclui Michael.
- Ah, sim? - interpõe Marchuk. - E aquele assunto que discutimos da última vez? Em que é que ficou?
O americano tivera esperança em que o major se tivesse esquecido. Falar nisso fá-lo sentir-se pouco à vontade. "Talvez seja", pensa ele, "por o seu próprio papel naquele assunto ter sido bastante vergonhoso. Mas não há qualquer razão para o russo não poder saber: toda aquela questão irá decerto vir a público."
Assim, conta toda a história a Marchuk, não omitindo o facto de Trent lhe ter sugerido que contasse os pormenores ao seu amigo do Times.
- Suponho que vai ser um autêntico circo - diz ele, para terminar. - Montes de entrevistas, editoriais, caricaturas e debates na televisão. Uma enchilada completa.
- Enchilada? - pergunta o russo, intrigado. - Isso é um prato mexicano, não?
- É, mas é também o termo de calão para confusão, barafunda.
Marchuk suspira.
- Por vezes, penso que nunca vou entender os Americanos, mas acho esta enchilada muito interessante. Primeiro que tudo, sei muito bem o que são curandeiros. Também os temos no meu país, mas só os camponeses ignorantes e supersticiosos é que acreditam neles. Fico espantado ao saber que o vosso Presidente é capaz de recorrer à ajuda de um tal... trapaceiro? É essa a palavra correcta?
- Serve - aceita Oberfest.
- Em segundo lugar, não compreendo as razões que o vosso vice-presidente tem para querer tornar público tal assunto. Quer prejudicar o presidente Hawkins?
- Não exactamente prejudicar - contesta Oberfest, hesitante -, mas não se importaria que Hawkins se tornasse alvo de troça. O meu patrão é um animal político. Não estou a revelar nenhum segredo ao dizer-lhe que ele está já a pensar nas próximas eleições presidenciais. Já mais de um comentador deu a entender que se Hawkins fizer um mau trabalho Trent estará à espera nos bastidores.
- Então ele acha que se o Presidente fizer figura de parvo tanto melhor.
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É mais ou menos isso.
Marchuk faz um sinal de assentimento.
- Também temos homens assim na União Soviética. Muito ambiciosos. Pensando apenas na sua glória pessoal, no seu poder. E, para conseguirem o que julgam pertencer-lhes por direito, fazem tudo, agindo de forma sub-reptícia, de modo desonesto e, por vezes, criminoso.
- Ei! Espere aí! Trent não é um criminoso. Mas, como alguém disse um dia, a política não é brincadeira de crianças. O vice-presidente joga duro. Ele é dos que acham que os fins justificam os meios.
- Um homem perigoso...
- Não, não acho. Apesar do modo como fala, tem cabeça. É mesmo muito esperto. Está sempre um passo à frente da oposição.
- E um passo à frente do Presidente?
- Bem, Hawkins é um homem tão bem-intencionado quanto um político consegue ser e sobreviver. Mas não tem malícia alguma. Porque é que julga que ele foi nomeado? Porque a sua honestidade e sinceridade eram evidentes na televisão e os tipos importantes do partido sabiam que era possível manipulá-lo. E foi isso que aconteceu. Ele é leal para com os amigos (demasiado leal), até mesmo para com os patifes.
O homem do KGB fica um instante pensativo, afirmando por fim:
- Diga-me lá, Arnold, se, como Trent espera, o Presidente se tornar alvo de troça será que isso irá arruinar qualquer hipótese de vir a ser reeleito?
- Duvido. As eleições são só daqui a três anos e os Americanos são conhecidos por terem memória curta. Não, penso que, por muito embaraço que o tal curandeiro venha a causar à Casa Branca, tudo isso passa e aparece sempre outro escândalo nos títulos dos jornais.
- Mas, se não passar? Se, com a ajuda do seu patrão, tudo piorar, é possível que o actual vice-presidente venha a ser Presidente daqui a três anos?
- Na nossa política, tudo é possível. De facto, se está a procurar descobrir o pior cenário, digo-lhe já que a reputação e capacidade de governar de Hawkins podem resultar de tal modo prejudicadas que ele se veja forçado a demitir-se, e nesse caso Trent assumiria o cargo antes das próximas eleições.
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- Não gostaria nada que isso acontecesse.
- Também não pensei que gostasse - continua Oberfest, com um sorriso complacente. - Neste momento, vocês têm um amigo no Gabinete Oval. Hawkins é adepto ferrenho
da paz. Mas Trent é outro tipo de pássaro. Você conheceu-o na Casa Branca e sabe que vai ser de novo a guerra fria.
- E você acha isso bem, Arnold? - investiga Marchuk, curioso.
- Não acho bem nem mal. Sabe, não sou eu que estabeleço políticas, apenas ajudo a implementá-las.
- Também eu - concorda o major, com ar sério. - Somos ambos funcionários. Que seja o governante a tomar a responsabilidade, não é assim?
- Claro. O presidente Truman tinha um dístico em cima da secretária que dizia: "Aqui parou."
Marchuk solta uma enorme gargalhada.
- Mas no meu Governo nunca se pára!
Depois de Michael Oberfest se ir embora, com o sobrescrito branco metido no bolso, o agente soviético retira o gravador de debaixo do sofá e senta-se, por instantes, pensativo. A primeira regra do seu negócio é a da conservação ou, como dizem os Americanos, a de precaver-se. Decide que é melhor mandar de imediato uma mensagem. Que sejam os homens de Moscovo a decidir o que deve fazer a seguir.
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SEGUNDA PARTE
1
A casa de Lenore Mattingly, na Rua Dezoito, Noroeste, é, tal como a descreveu Jennifer, um verdadeiro elefante. Construída em calcário cinzento marcado pelo tempo, tem janelas de sacada, uma entrada em arco, cinco degraus acima do passeio e um torreão no alto do telhado que não serve rigorosamente para nada. A casa foi construída durante o mandato do presidente Harding e diz-se que serviu de residência ao ministro da Guerra.
Se o exterior tem um aspecto triste, o interior não é muito mais alegre. As janelas têm cortinados de veludo castanho. A mobília maciça, em grande parte com armações gravadas e estofos com desenhos de fetos, parece tão pesada que é impossível movê-la, o que é quase verdade. Em consequência disso, os tapetes foram perdendo a cor, ao longo dos anos, mas, por debaixo de cada pesado sofá e maple, há um pedaço de carpete que mantém as suas cores originais, vivas e brilhantes, se alguém as pudesse ver.
A sala de estar fica no rés-do-chão, mesmo junto à entrada. Portas de correr de madeira escura de nogueira separam-na da sala de jantar e de uma pequena divisão, que foi em tempos biblioteca, mas que Mrs. Mattingly converteu numa salinha alegre, com móveis de verga branca, estofos de chita às flores e reproduções de Audubon encaixilhadas.
No andar principal ficam também a cozinha e a copa, uma casa de banho e uma pequena arrecadação, completamente cheia de exemplares da National Geographic de há quarenta anos. Há três quartos no primeiro andar, ocupados, respectivamente, por Mrs. Mattingly, pela filha Emily e pela governanta, Brenna OGara.
O segundo andar, que vai ser alugado ao Irmão Kristos,
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compreende uma sala grande, um quarto e uma casa de banho. Como no resto da casa, a iluminação é em grande parte dada por candelabros de metal embaciado. Dado que os tectos estão a mais de três metros de altura, a luz destes candeeiros é fraca e de tom ocre. Mesmo durante o dia, toda a casa parece ser da cor de pergaminhos velhos e ter um cheiro a biblioteca fechada.
O que Jennifer Raye combinou quanto ao alojamento do Irmão Kristos foi o seguinte:
Ele vai ocupar sozinho o segundo andar, tendo a sua própria chave da porta de entrada. Se quiser, pode tomar as refeições com a família Mattingly, sem custo adicional. A renda mensal do apartamento será de quinhentos dólares, pagando adiantadamente um mês de caução.
Ficou também combinado que Kristos irá passar a noite de sexta-feira e o dia de sábado no armazém de tabaco da Virgínia, regressando a Washington no domingo de manhã. Isto foi motivo para mais de uma discussão entre Jennifer e John Tollinger.
- Não se pode censurá-lo por não querer abandonar a sua igreja - observa ela. - Afinal de contas, o rebanho precisa dele.
- Rebanho? - Tollinger solta um riso cínico. - Até parece que o homem é guardador de rebanhos. Sabes porque é que ele quer voltar todas as semanas àquela espelunca? Por causa do dinheiro. Tem ali um bom negócio, com as suas duas acólitas a fazerem a colecta naquelas incríveis caixas de charutos. Para além do que recebe dos seus encontros particulares com pessoas doentes e perturbadas, que ele engana. É óbvio que não vai prescindir desse rendimento, mudando-se em definitivo para Washington, Assim, tem o melhor de ambos os mundos: pode continuar a enganar os papalvos da província aos fins-de-semana, enquanto aldraba Mrs. Mattingly e os seus amigos ricos durante a semana. Kristos vai ter sucesso, como ladrão que é.
- Como é que podes ser tão cínico? - acusa Jennifer, indignada. - Lá porque não acreditas nele, isso não significa que os outros não possam acreditar. Contam com ele, o qual sente que deve continuar a sua pregação.
- Foi ele quem te disse isso?
- Foi.
- Uhm, uhm! - resmunga Tollinger, olhando-a pensativo.
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- Claro que outra explicação possível é a de ele querer voltar ao armazém para poder divertir-se à vontade com as duas discípulas.
- Tu metes nojo! - grita Jennifer.
O Irmão Kristos chega à dita casa da Rua Dezoito, Noroeste, um pouco antes do meio-dia de uma segunda-feira, conduzido à capital por Pearl Gibbs, ao volante da carrinha Ford. Ela. obedece à ordem de o deixar a dois quarteirões do seu destino. E, assim, aparece a pé, carregando uma mala velha de pele atada por um pedaço de corda.
É recebido de forma calorosa por Mrs. Mattingly, matrona corpulenta, e por Emily e Brenna OGara, ambas altas e magras, de modo que as três mulheres, lado a lado,
com Mrs. Mattingly no meio, parecem formar o número 181. A filha e a governanta são-lhe apresentadas e Kristos despe o casaco escocês, que pendura num bengaleiro de madeira de carvalho.
OGara acompanha-o aos seus aposentos. É uma mulher de sessenta anos, no mínimo, que sobe, saltitante, a íngreme escada coberta por uma carpete como se fosse uma jovem adolescente. Mostra-lhe a sua nova casa, enquanto vai proferindo uma torrente de comentários.
- A cama e as toalhas são mudadas todas as semanas. Há um cobertor a mais numa prateleira do guarda-fatos, se precisar. Não se esqueça de pôr a cortina por dentro da banheira quando tomar duche. A gaveta de baixo da cómoda está encravada. Vamos mandar instalar um telefone para si. O número será diferente do nosso, pelo que vai ter de o pagar. O pequeno-almoço é às oito horas, o almoço ao meio-dia e meia e o jantar às sete. Se quiser comer connosco, seja pontual; de outro modo, não esperamos por si. Tem fome?
- Não - responde o Irmão Kristos, olhando devagar à sua volta.
- Nós deitamo-nos todas por volta da meia-noite; por isso, se chegar mais tarde, tente não fazer barulho. O correio chega normalmente por volta do meio-dia. Esta casa é antiga, mas quente. A caldeira fica na cave. A patroa gosta da casa quente, razão por que fica acesa dia e noite. Se quiser mais frio, pode desligar os radiadores ou abrir uma janela. O senhor é jeitoso?
- Jeitoso?
- Sim, se tem jeito para manipular ferramentas. Sabe alguma coisa de canalização, de electricidade e coisas assim?
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- Sei alguma coisa.
- Ainda bem. O tubo de escoamento do lava-loiça, na cozinha, não funciona.
- Eu arranjo-o - promete ele.
- E a torneira da sua banheira pinga. Deve precisar de uma anilha nova. Talvez também possa fazer isso. - O Irmão Kristos faz um sinal afirmativo com a cabeça. Veste camisa branca lavada e as extremidades dos seus jeans estão metidas por dentro das botas. Traz uma grossa corrente de ouro ao pescoço, presente da primeira dama, em sinal de gratidão pelo milagre de Camp David. - Devo dizer-lhe - continua Brenna OGara, com firmeza - que sou católica e não quero saber da sua religião.
- Somos todos filhos de Deus - sustenta ele.
- Nem todos - objecta Brenna OGara, em tom categórico. - Conheci alguns que eram filhos do Diabo. Agora, tenho de ir para baixo fazer o almoço. Salada de fruta com queijo fresco. Vai almoçar connosco?
- Não, obrigado.
- Então, vou-me embora. Se precisar de alguma coisa, pode pedir-me mais tarde. Antes das três horas. A essa hora, vou dormir a sesta. A sua porta de entrada tem fechadura, se quiser utilizá-la. Se comprar comida, pode guardá-la no frigorífico. Vai ter que tratar da sua roupa, eu não o faço.
O Irmão Kristos faz de novo um sinal afirmativo. Ela detém-se a olhar para a sua barba, que lhe chega até meio do peito.
- O meu pai, que Deus tem, usava barba. Há quanto tempo é que tem a sua?
- Desde sexta-feira passada - afirma ele, inexpressivo. Brenna abre muito os olhos e depois exclama:
- Ah, você gosta de piadas! Eu também sei algumas. A patroa está sempre a apregoar as suas virtudes: como curou as suas dores de cabeça e tudo o mais, pelo que espero que goste de aqui estar e que se porte bem.
- com certeza.
Quando, por fim, Brenna OGara se vai embora, Kristos fecha a porta de entrada à chave. Coloca a velha mala em cima da cama e desata a corda. Lá dentro vem uma garrafa de vodca por abrir, embrulhada na roupa interior. Destapa-a, bebe um grande trago e, levando a garrafa na mão, inspecciona o apartamento.
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O tecto alto, com traves de madeira, precisa de ser pintado, e o chão da sala carece de ser lavado e encerado. Mas a velha casa de banho está impecavelmente limpa
e o quarto arrumado e limpo, apesar de parecer ter sido mobilado com os restos da mobília da casa.
A mobília da sala é composta por uma mesa grande, um sofá, dois maples, uma estante vazia, quatro cadeiras e um armário, tudo escuro, sendo o sofá e os maples forrados
de cabedal velho estalado. O candeeiro de metal mal consegue iluminar os cantos da sala, obscura, e cobrem as janelas cortinados de áspero tecido castanho.
O Irmão Kristos senta-se à mesa, bebendo devagar e passando as pontas dos dedos pelo sólido tampo de carvalho. A sala está quente, o que ele aprecia como apenas
o pode apreciar quem conheceu a terrível mordedura do frio.
Quando já bebeu quase metade da vodca, batem com hesitação à porta de entrada. O Irmão Kristos levanta-se devagar e vai abri-la, não fazendo qualquer esforço para
esconder a garrafa. É Emily Mattingly, que traz um tabuleiro coberto por um guardanapo.
- Desculpe interrompê-lo, Irmão Kristos - diz ela, ofegante. - Brenna disse que o senhor não queria almoçar, mas a minha mãe achou que poderia gostar de comer uma
fatia de tarte de cereja. Fui eu que a fiz.
O Irmão Kristos tira o tabuleiro das suas mãos estendidas.
- Obrigado - responde ele, na sua voz sem timbre. De repente, os seus olhos ficam brilhantes e Emily dá um
passo hesitante para trás.
- Espero que goste - continua ela, em voz fraca, não conseguindo desviar o olhar. E prossegue, com um pequeno riso nervoso: - Porque é que está a olhar para mim
dessa maneira? O que é que vê?
- Solidão - responde ele.
Da garganta de Emily sai um som rouco, como um grito, e ela vira-se e foge.
Kristos volta a fechar a porta à chave, leva o tabuleiro para a mesa, põe de lado o guardanapo e o garfo. Debruçando-se, mete na boca grandes pedaços de tarte de cereja, mastigando e engolindo com frenesim. O molho escorre-lhe dos lábios para a barba. Alguns pingos de sumo vermelho mancham o tampo da mesa, brilhando como gotas de sangue.
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2
Os meios de comunicação social fazem uma cobertura discreta do assunto. A primeira notícia sobre o Irmão Kristos aparece numa pequena coluna (três parágrafos) na página "Ecos de Washington" do New York Times. Informa apenas que a família do Presidente convidou Kristos para passar um fim-de-semana em Camp David e refere que o "pregador itinerante" tem fama de curandeiro e de vidente. Não diz nada acerca do milagre de Camp David.
A história do Times é retomada por vários jornais em todo o país. A maior parte trata o caso com cautela; não aparece nenhum editorial, ninguém levanta a questão
de saber porque é que o presidente dos Estados Unidos deseja relacionar-se com um vidente. As cadeias de televisão não fazem qualquer referência ao Irmão Kristos.
O vice-presidente, Samuel Trent, fica furioso com o que considera ser uma falta de iniciativa por parte da comunicação social.
- Esta é uma notícia de primeira página - diz ele, furibundo, à mulher. - E um desastre que está à espera de acontecer. Não consigo perceber porque é que a imprensa e em especial os noticiários da televisão estão com pezinhos de lã. É uma vergonha.
- Porque é que não lhes telefonas? - sugere a mulher, em tom calmo, continuando a tricotar um enorme xaile de lã.
- É só dares-lhes um toque. tom Watkins é muito teu amigo. Não tem qualquer coisa a ver com a televisão?
- Esse linguareiro? - resmunga o vice-presidente. Nem por isso. Faz parte da direcção de uma cadeia de televisão.
- Mesmo assim - insiste Matilda Trent, olhando para o marido - talvez ele pudesse alertar alguém.
- É possível.... - responde o vice-presidente, devagar. Talvez valha a pena tentar. vou dizer-lhe que estou preocupado com o facto de os noticiários poderem vir
a fazer a cobertura do caso, pois isso pode prejudicar a imagem favorável que o Presidente tem actualmente junto do público. vou pedir-lhe que use a sua influência
para manter o Irmão Kristos fora dos ecrãs.
- É - observa Matilda, com um sorriso frio. - Acho que é essa a melhor forma de tratar do assunto.
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A primeira reacção dos meios de comunicação social à relação do chefe do Executivo com o Irmão Kristos preocupa também alguns membros do pessoal da Casa Branca, mas por razões diferentes.
- Está tudo descoberto - diz o chefe de gabinete, Folsom, sombrio - e não vejo maneira de abafar a questão. Conferencia na Sala de Reuniões com John Tollinger e o secretário de Imprensa, Pete K. Umbaugh. - Pete - pede ele -, pode ver se consegue descobrir quem é que deu a notícia ao Times?
- Já tentei - responde Umbaugh, homem com aspecto de suíno, usando lacinho ao pescoço e risca ao meio. - A única resposta que consegui obter foi a habitual treta da "protecção das fontes confidenciais".
- Está bem de ver - observa o chefe de gabinete. John, você tem alguma ideia sobre isto?
- Tenho uma ideia maluca. Estou a ver a aristocrática mão italiana de Trent no meio de tudo isto.
- Não é uma ideia assim tão maluca - replica Folsom. Acho que foi o sacana quem originou a fuga. Não seria a primeira vez. Depois, admira-se de não o mantermos ao corrente do que se passa.
- Olhe - diz Umbaugh -, mais cedo ou mais tarde vão fazer-me perguntas sobre isto. Como é que devo responder?
- Como combinámos - instrui o chefe. - De maneira muito séria, muito solene. As convicções religiosas e espirituais do Presidente têm carácter muito pessoal e não
são assunto próprio para perguntas.
- Isso podia dar resultado se o Irmão Kristos fosse um bispo anglicano - contrapõe o secretário de Imprensa. Mas, ao que parece, a sua igreja é composta por ele
próprio, que, além disso, lê a sina. Vai ser difícil fazer engoli-lo a ele e à santidade das convicções espirituais do patrão, tudo ao mesmo tempo.
- Faça o que puder - continua Folsom. - Pelo menos, as cadeias de televisão ainda não falaram do assunto.
- É só uma questão de tempo. Até estremeço cada vez que penso que estou a ver aquele barbudo no ecrã.
- E isso não é o pior - informa o chefe de gabinete. Agora, o patrão quer organizar um pequeno-almoço de oração na Casa Branca sob a direcção do Irmão Kristos.
- Meu Deus! - brada Umbaugh.
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- Você já sabia disto, John?
- Jennifer disse-me qualquer coisa, mas pensei que fosse uma ideia passageira.
- Não era. O patrão queria organizar uma grande cerimónia, com membros do Governo, congressistas, diplomatas, toda a gente que possa imaginar. Mas acho que consegui convencê-lo a fazer uma coisa pequena. Sugeri que limitasse os convites ao pessoal da Casa Branca, que a primeira apresentação do Irmão Kristos fosse feita em ambiente familiar. Ele concordou. Você conhece Audrey Robertson, a secretária para os Assuntos Sociais de Mrs. Hawkins, John?
- Claro que conheço. É uma senhora esperta.
- Bem, não se importa de falar com ela? Explique-lhe o problema. Tentem limitar a um mínimo a lista de convidados. E só pessoal da Casa Branca.
- Está certo.
- Nada de fotógrafos, Pete, a não ser que Mrs. Hawkins insista. Vamos fazer de toda esta cerimónia uma reunião de família.
- Não vai resultar - comenta Umbaugh, sombrio. Uma hora depois de o Irmão Kristos dizer "ámen", já toda a cidade o vai saber.
Folsom encolhe os ombros.
- É o que o patrão quer. Mas, sabem, o mais chato é que nunca o vi com tão bom aspecto. Desde o encontro com o Irmão Kristos que ele está todo dinâmico, ao corrente
de tudo, como era costume. Está a despachar toda a papelada e a tomar todas as decisões difíceis.
- Chefe, será que ele faz ideia do que a relação com o Irmão Kristos pode fazer à sua carreira política? - pergunta Tollinger.
- Não. Não me parece que tenha sequer pensado nisso. Parece estar enfeitiçado.
Depois de a reunião acabar, Tollinger vai à procura de Audrey Robertson. Já se encontra na Casa Branca há mais de um ano, mas ainda se perde naquele enorme edifício. E, para tornar as coisas ainda mais difíceis, as pessoas que lá trabalham estão sempre a mudar de gabinete e a lista de uma semana já está desactualizada na seguinte.
Acaba por encontrar a secretária para os Assuntos Sociais num cubículo onde apenas há espaço suficiente para uma secretária, uma cadeira giratória, um maple e um ficheiro.
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A porta está aberta e Audrey Robertson, sentada à secretária, fala ao telefone. É uma mulher pequenina que usa um chapéu próprio para ir a uma festa ao ar livre.
Quando vê John de pé à porta, cumprimenta-o com um aceno de mão e aponta para o maple.
- Claro - está ela a dizer -, compreendo perfeitamente. Mas trata-se de uma recepção diplomática e não posso de modo algum incluí-la na lista. Pode ter a certeza de que se ia aborrecer imenso com todos aqueles chatos. Mas vamos ter uma coisa divertida em Março: uma soirée musical com pessoas giríssimas em cena. Garanto que vou incluir o seu nome na lista para essa noite, está bem? Vá dando notícias! - Desliga e olha para Tollinger, franzindo o nariz.
- Era Mrs. Edith Todd. Conhece-a? - Tollinger abana a cabeça. - É doida - explica Audrey. - Não é apenas excêntrica, é louca, por completo. Há quem esteja internado por menos. Telefona-me pelo menos três vezes por semana, tentando ser convidada para tudo. Aposto que se pudesse até aparecia nas reuniões do conselho de ministros.
- Porque é que você a atura?
- Dinheiro, só por causa do dinheiro. Ela já foi casada quatro vezes e recebeu dinheiro de todos os maridos. Todos pagaram de boa vontade para se verem livres dela. É uma das pessoas que, individualmente, mais contribuem para o partido, logo, tenho de a tratar bem. Mas qual é o seu problema?
Tollinger explica-lhe o que se passa em relação ao pequeno-almoço de oração, que o chefe de gabinete deseja ver limitado ao pessoal da Casa Branca, sem publicidade
nem fotógrafos.
- Vamos tentar que seja uma coisa pequena - pede ele. Não somos agentes publicitários do Irmão Kristos.
- Olhe - replica Audrey -, eu já sabia disso, por Mrs. Hawkins, e estou do seu lado. Acho que esta ideia é de todo maluca, mas não nos cabe a nós dar qualquer opinião. Não penso convidar mais de vinte ou trinta pessoas. Estou a pensar servir o pequeno-almoço primeiro; assim, há uns poucos de cravas que se vão embora antes de o serviço religioso começar.
- Boa ideia - concorda Tollinger, com admiração. Não se importa de ir buscar o Irmão Kristos e de fazer com que ele chegue a horas?
- Eu não vou. O tipo faz-me sentir arrepios. Mas Jennifer ofereceu-se para ir buscá-lo. Aqueles dois parecem achar-se muy simpáticos.
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- O quê?
A secretária olha para Tollinger por um instante.
- Ouça lá... não lhe parece possível que sejam amantes, pois não?
- Como é que eu posso saber?
Tollinger volta para o seu gabinete e fica a trabalhar até tarde, a ler o monte de memorandos e notas internas daquele dia, que nada têm a ver com o Irmão Kristos. Resolve ele próprio a maior parte das coisas e põe de lado apenas cerca de uma dúzia de documentos para tratar com o chefe de gabinete.
No caminho para casa, pára num bar, para comer uma sopa, um hamburger com batatas fritas, dois cafés e uma fatia de tarte de maçã. É a primeira refeição sólida que come em todo o dia, mas nada daquilo lhe sabe bem e não contribui em nada para o acalmar.
De regresso a casa, enche um copo de Glenfiddich, mas nem isso ajuda. Senta-se, levanta-se, anda pela casa, tira da estante um exemplar de Um Conto de Duas Cidades, tenta ler, desiste e volta a pôr o livro no lugar, acaba de beber o uísque, deita outro no copo e decide enfrentar o que o está a tornar tão desinquieto.
É aquela última pergunta de Audrey Robertson: "Não lhe parece possível que sejam amantes, pois não?"
A ideia não constitui um choque completo para John Tollinger, pois a possibilidade de Jennifer ir para a cama com o Irmão Kristos já lhe ocorrera. Muitas coisas apontavam para isso: a sua entusiástica defesa do homem, quando a reacção inicial fora tão céptica como a dele; a sua alegria por encontrar um sítio em Washington para Kristos viver, a sua recente relutância em partilhar a cama de John.
"E depois?", pergunta Tollinger a si próprio. Está divorciado. Não tem quaisquer direitos sobre aquela mulher; ela pode ir para a cama com toda a Câmara dos Representantes (incluindo os contínuos), se é isso que a excita. John reconhece tudo isso, mas uma possível ligação com o Irmão Kristos ofende-o. Qualquer outro homem, está bem, poderia aceitá-lo, mas a Kristos não.
Tenta compreender porque é que acha a ideia tão desagradável, quase dolorosa. Não é por causa da infidelidade de Jennifer, ela não lhe deve nada. Assim, o seu ressentimento
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deve ser provocado pelo homem. O que é que aquele tipo desmazelado tem que faz com que Tollinger se sinta tão receoso?
Só depois de ter bebido um terceiro uísque é que John consegue admitir a verdade. Apesar de ter com frequência exprimido o seu desprezo pelo Irmão Kristos, o medo de que o homem possa, na realidade, ter poderes sobrenaturais vai pouco a pouco começando a roe-lo. Como é que o tipo adivinhou os segredos de tanta gente? O que é que o fez atribuir a solidão de Tollinger a uma infância infeliz e às constantes e ferozes discussões dos pais?
Muitas vezes John proferiu, trocista: "bom palpite." Mas as provas, se bem que circunstanciais, começam a acumular-se, apontando para o facto de aquele feiticeiro de meia tigela ter um estranho dom de olhar para o passado, predizer o futuro e talvez, talvez, curar os males físicos dos outros, pela força da sua fé e da dos seus doentes.
Até o facto de admitir a possibilidade de tudo aquilo o inquieta, embora sem acreditar totalmente. Porque, se Kristos tem razão, então até mesmo Tollinger está enganado, e o seu mundo ordenado de pensamento, lógica e raciocínio é apenas um mundo. Existe outro para além da sua percepção, um mundo de fé, de vontade demoníaca, de autoridade espiritual, que consegue curar os doentes e, quem sabe, ressuscitar os mortos.
Tollinger lembra-se de súbito de uma velha história acerca de um físico famoso que recebe no seu laboratório a visita de um estranho.
- Eu sou capaz de levitar - afirma o estranho.
- Ah, sim? - comenta o cientista, divertido. - Demonstre-o lá.
com um pequeno impulso das pontas dos pés, o visitante começa lentamente a flutuar, subindo até travar o seu movimento ao colocar as palmas das mãos contra o tecto. O físico, embasbacado, sabe que o seu mundo está a desmoronar-se à sua volta, pois onde estão agora as suas leis, teorias, equações, provas... todo o esqueleto, todo o músculo, toda a carne e sangue da sua existência? Tudo negado e reduzido a nada.
É assim que John Tollinger se sente, com o copo de uísque vazio na mão, a olhar para cima e vendo o Irmão Kristos a flutuar sobre a sua cabeça.
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3
com autorização de Kristos, Mrs. Mattingly convidou três amigas íntimas para tomarem chá com ele, o qual prometera responder então a perguntas sobre pecado, oração e redenção.
Êmily organiza tudo, mas é Brenna OGara que faz todo o trabalho. Sobe quatro vezes até à sala de Kristos, trazendo toalha e guardanapos, louça, talheres, uma placa eléctrica, bule, limão, açúcar, natas, uma lata de chá de Fortum Masons e um bolo de queijo num prato enfeitado com um nagperon de papel.
A última vez, depois de a mesa grande estar posta, as cadeiras dispostas ao redor e a água ao lume, Brenna dá um passo atrás e contempla a sua obra.
- Espero que esteja satisfeito - diz ela, em tom mordaz.
- Estou - devolve o Irmão Kristos, olhando para a mesa. A toalha e os guardanapos são cor-de-rosa. - Está tudo muito bonito.
A governanta olha para ele com um sorriso de esguelha.
- É pena que tenha de beber chá, em vez daquela coisa que tem escondida debaixo da cama.
Kristos não fica nada atrapalhado.
- Sirva-se sempre que quiser - oferece.
- Eu não - replica ela, com aspereza -, sei muito bem o que essas bebidas fortes fazem às pessoas.
- Ah, sim? E o que é que fazem?
- Põem-nas fora de si - explica ela. Kristos aproxima-se da governanta. É uma mulher sem graça, de ossos salientes, toda ela dentes, cotovelos e joelhos. O Irmão Kristos pousa-lhe uma mão no pescoço, fazendo-a em seguida deslizar pelas costas magras. A mulher estremece e dá um salto para trás. - Seu demónio! Que grande sacerdote que você me saiu! Tire as mãos de cima de mim, se não digo à patroa. Seu filho de Satanás!
Sai a correr do apartamento. Ele fica de pé durante um instante, imóvel, e em seguida vai para o quarto. Tira a garrafa de vodca de debaixo da cama e bebe um grande gole. Volta a tapá-la, esconde-a de novo, depois coloca-se de pé em frente do espelho da cómoda, observando a sua imagem. Tira um pequeno pente do bolso das calças pretas e penteia o cabelo, o bigode e a barba, todos perfumados com uma água-de-colónia que Jennifer Raye lhe ofereceu.
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Veste camisa de seda castanha, à cossaco, abotoada até ao pescoço, com mangas largas e punhos estreitos. É comprida atrás e usada por fora das calças. É apertada à cintura por um largo cinto de cabedal preto, com uma fivela de prata trabalhada. A camisa foi-lhe oferecida por Mrs. Katherine Downley. Emily Mattingly deu-lhe o cinto e a fivela.
E Emily é a primeira a chegar, trazendo uma taça de botões de rosa entremeados com folhas de feto. Coloca-a no centro da mesa.
- Assim - diz ela. - Não são lindas?
- Sim, muito bonitas.
- As outras convidadas já chegaram e devem estar a subir. Penso que já conhece Kate Downley.
Kristos faz um sinal afirmativo.
- As outras duas senhoras são Mrs. Edith Todd e Mrs. Cynthia Jorgenson. Têm ambas um papel activo na vida social de Washington. Estão tão desejosas de o conhecer! E ainda mais depois daquela história que veio nos jornais sobre Camp David. Meu Deus! Não fazia ideia de que fosse tão famoso. Tem visto o Presidente?
Kristos não chega a responder, pois as outras senhoras chegam entretanto. Entram em fila, com Mrs. Mattingly à frente. As quatro mulheres são todas singularmente parecidas: de meia-idade, gordura apertada por uma cinta, vestindo simples vestidos pretos, que julgam ser apropriados para um encontro com um sábio da religião.
Fazem-se as apresentações, e toda a gente se senta. O Irmão Kristos fica num dos topos da mesa. com o seu cabelo longo, barba e bigode, o seu olhar directo, parece um homem com autoridade e vontade inflexível. É mais novo do que as mulheres, à excepção de Emily, mas todas se mostram submissas para com ele, inclinando-se para a frente em posição deferente.
Emily serve o chá e fatias de bolo de queijo. O silêncio mantêm-se até todos terem sido servidos e ela se ter sentado, no seu lugar, no outro topo da mesa.
- Irmão Kristos - começa Mrs. Todd, um pouco sem fôlego. - Nem imagina o que significa para mim conhecê-lo pessoalmente. - Kristos inclina a cabeça, sério. - Dizem continua ela, com um sorriso - que consegue ver o passado das pessoas, é verdade?
- É - responde Kristos. - Mas só revelo tais coisas em
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particular à pessoa a quem dizem respeito, nunca em presença de outrem.
- Vá lá - diz ela, rindo. - Nunca fiz nada na minha vida de que me envergonhe. Pode dizer o que quiser de mim que não vou ficar embaraçada.
Kristos olha-a nos olhos e uma pequena chama aparece-lhe no olhar. Fica um instante em silêncio, enquanto as outras pessoas esperam, retendo a respiração.
- Quer que toda a gente saiba? - acaba ele por perguntar, na sua voz sem timbre. - Daquele incidente da sua infância que pode ou não ter-se repetido? E da culpa que sentiu em não contar aos seus pais. Quer que estas senhoras saibam disso?
De súbito, Mrs. Edith Todd começa a soluçar, tapando o rosto com um guardanapo cor-de-rosa.
- Por favor - murmura, entre lágrimas -, não diga mais nada, não diga mais nada!
As outras olham para ela com espanto, ocupando-se em seguida do chá e do bolo.
- Esse erro foi um erro de infância - explica Kristos a Mrs. Todd. - Deus já lhe perdoou.
- E Deus perdoa todos os nossos pecados? - pergunta Cynthia Jorgenson.
- O pecado não existe - defende ele, e as senhoras ficam boquiabertas.
- Mas com certeza que, quando fazemos algo que sabemos ser errado, alguma coisa contra os mandamentos de Deus, então isso é pecado - diz Mrs. Downley.
- Sim - concorda Mrs. Mattingly -, por exemplo, o homicídio. Deus diz: "Não matarás." Por isso, o homicídio é um pecado, não é?
- O homicídio não é pecado, mas sim um crime contra Deus. É falta de fé.
- E os pensamentos? - pergunta Emily, em voz baixa. Por vezes, os pensamentos são pecado, não são?
Kristos fita-a.
- Os seus desejos secretos, as suas pequenas e não concretizadas luxurias, todas essas coisas são reprimidas pela culpa. Mas pergunte a si própria: "De onde vêm estes desejos ditos maus?" A resposta é: de Deus; tudo o que somos vem das Suas mãos.
- Então podemos fazer seja o que for - indaga Mrs. Jorgenson
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-, mentir, enganar e roubar, porque foi Deus que nos deu todos esses desejos?
- Não. Tal como o homicídio, essas coisas são crimes contra Deus e mostram uma convicção insuficiente na omnipotência do Ser Supremo. Para se ser isento de culpa,
deve-se tentar atingir a fé total. Então, tornamo-nos parte do amor infinito de Deus e as nossas vidas parte da divindade.
Mrs. Todd, que entretanto recuperou do seu ataque de choro, volta-se para Kristos.
- E o sexo com uma pessoa com quem não se está casado? Também é um pecado contra Deus?
- Não. O amor faz parte da divindade, e isso inclui o amor físico.
- Irmão Kristos - interrompe Mrs. Downley -, se isso é verdade, então porque é que o sexo fora do casamento torna tanta gente infeliz?
- Culpa. É o castigo dos que são infiéis a Deus.
A discussão continua por mais uma hora. Por fim, as senhoras levantam-se para se irem embora e, após terem remexido nas respectivas malas, deixam notas dobradas por debaixo dos pratos.
- É para a sua igreja - murmuram.
Kristos aceita estas contribuições com dignidade e abraça cada uma das mulheres antes de sair.
- Vão com Deus - diz ele.
Em seguida, pega no dinheiro e mete-o no bolso. Emily fica para trás, para levantar a mesa.
- Não pode ser Brenna a fazer isso? - interroga-a Kristos.
- Ela está a dormir a sesta - justifica-se Emily, com ar alegre. - Eu não me importo. Bolas, o senhor não comeu nem bebeu nada. Não tinha fome?
- Não - declara ele, deixando-se cair num maple e observando-a enquanto ela anda de um lado para o outro.
- Nem imagina como gostei desta tarde - diz-lhe Emily. Foi uma tarde de inspiração. Obrigada por partilhar connosco a sua fé. - Kristos não responde. Por fim, quando tudo está arrumado, Emily olha à sua volta.
- Assim está melhor - continua ela, sorridente. - Agora, é melhor ir-me embora. Tenho a certeza de que gostaria de ficar um pouco sozinho.
Kristos levanta-se e aproxima-se dela. Pega numa das suas mãos magras, de dedos compridos, beijando-lhe a palma.
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- Concorda com o que eu disse? - pergunta-lhe.
- Concordo - responde Emily, com fervor. - Concordo inteiramente.
- Não tem medo de um mundo sem pecado? - Emily faz um sinal negativo com a cabeça.
- Diga: acredito em si, Irmão Kristos.
- Acredito em si, Irmão Kristos - repete ela, com voz ténue.
Kristos leva-a até ao quarto, e ela segue-o de boa vontade.
4
"Tollinger:
A respeito de:
Irmão Kristos.
Afinal, a Florida soalheira está encoberta, ventosa e chuvosa, mas pelo menos estou a descongelar, embora ainda não tenha visto um único biquini. Sarasota fica na
costa oeste, no golfo, e aquela água tem ondas altas de aspecto traiçoeiro.
Acabei por descobrir o sítio onde a Ryan-Goldfarb All-Thrill Monster Extravaganza passa o Inverno. Já não há nenhum Ryan nem nenhum Goldfarb: ambos estes senhores já lá estão, na terra da verdade, há vários anos. O dono é agora um homem novo, tipo yuppie, Simon K. Masilla, sujeito que passa completamente despercebido, mas que tem ao todo seis shows itinerantes e os dirige a todos por computador.
Masilla comprou a Ryan-Goldfarb All-Thrill Monster Extravaganza há cerca de oito anos e não sabe nada de Jacob Everard Christiansen. Mas tinha o nome e morada do antigo gerente, agora reformado e que vive em Sarasota. O nome do tipo é, prepare-se, Billy Feinschmecker. Se o meu alemão não me falha, Feinschmecker significa provador de vinhos ou qualquer coisa assim.
Encontrei Billy num lar para idosos. Estava a chover demasiado para se poder andar na rua, pelo que ele não se importou de ficar sentado a contar-me tudo acerca do jovem Irmão Kristos. Resumo a história, porque ele esteve a falar três horas seguidas. O homem coxeia um pouco e a mão direita treme, mas a memória e as cordas vocais estão óptimas.
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Lembra-se muito bem de Jacob Everard Christiansen. Quando o rapaz apareceu pela Ryan-Goldfarb, em New Castle, Nebrasca, à procura de emprego, no fim dos anos 60,
Billy aceitou-o porque estava sempre a perder empregados em todas as cidades por onde passavam.
Fosse como fosse, segundo Billy, pôs Jake a trabalhar como uma espécie de aprendiz, deduzindo que o rapaz era menor e tinha fugido de casa, mas não se importando
com isso. Era um rapaz forte, trabalhador e que aprendia depressa.
Billy diz que era um rapaz calado, taciturno, que fazia o que lhe mandavam e não se metia em sarilhos graves. Mas gostava da pinga, embora tenha aprendido a aguentá-la tão bem como qualquer tipo com o dobro da sua idade. Tinha também fama de dom-joão. Billy afirma que o miúdo papou todas as mulheres que viajavam com a Ryan-Goldfarb All-Thrill Monster Extravaganza, incluindo a Dama Gorda (mais de duzentos e cinquenta quilos) e as gémeas siamesas (ambas).
Acompanhou a feira durante quase dez anos, juntando-se a eles na Primavera e partindo no fim do Outono. Perguntei-lhe o que é que Jake fazia no Inverno, e ele encolheu os ombros, respondendo: Andava pelas praias. Vivia sobretudo à custa das mulheres, de Naples a Tampa. Nunca ouvi dizer que tivesse arranjado um emprego de Inverno.
Mais coisas interessantes que Billy me contou:
O jovem Jake lia com avidez, e sobretudo coisas pesadas: religião e filosofia.
Arranjava imensas brigas (sobretudo ao meter-se com as namoradas dos outros) e ganhava-as quase todas. Era muito bom com os punhos e com os pés. Mas o marido da contorcionista deu-lhe uma facada na barriga antes que ela pudesse pôr-lhe os palitos.
Fosse qual fosse a cidade em que estivessem a actuar, Jake ia sempre à igreja ao domingo. Que igreja, de que religião, não parecia ser coisa de grande importância para ele.
Perguntei a Feinschmecker (sempre que escrevo este nome começo a rir-me) se Jake tinha amigos íntimos entre os elementos da feira itinerante. Respondeu-me que não, só mulheres.
Uma das mulheres com quem andou foi Madame Olga, cujo verdadeiro nome é Lorna Burgoos. Muitas das barracas das feiras são concessões, e Madame Olga alugava uma delas:
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uma pequena tenda onde predizia o destino com as cartas, não com cartas de tarot, mas com um baralho normal. Jake passava muito tempo com ela.
Dormia com ela?, perguntei eu.
Billy olhou para mim como se eu fosse um idiota: Claro que dormia, respondeu ele. Ela tinha idade para ser sua mãe, mas Jake não fazia discriminação de idade, cor, religião ou defeitos físicos.
O ex-gerente pensa que foi no décimo primeiro ano após Jake ter começado a acompanhar a feira que ele não voltou. Billy procurou-o, mas Jake disse-lhe que tinha resolvido desistir. Conseguira dinheiro suficiente para comprar uma carrinha em segunda mão e assim que o tempo melhorasse ia começar a percorrer a Cintura Bíblica, vendendo o seu estilo particular de religião. Billy desejou-lhe boa sorte e nunca mais o viu.
Parecia que já não podia fazer mais nada, mas por curiosidade perguntei-lhe se Madame Olga ainda era viva. Disse-me que sim, que devia andar agora pelos setenta e muitos anos e que vivia em Fort Myers. Ele e Lorna Burgoos trocam cartões de boas-festas todos os anos, pelo que pôde dar-me a morada dela. Fort Myers não fica muito longe daqui. vou a caminho.
A coisa mais extraordinária da minha entrevista com Billy foi que ele nunca me perguntou porque é que eu queria saber tudo sobre Jacob Everard Christiansen. Tinha uma história preparada: que Jake se tinha inscrito para entrar para o FBI e que eu andava a tirar informações. Mas não foi preciso contá-la. Acho que ele ficou demasiado satisfeito por poder falar dos bons velhos tempos. vou tentar a mesma história com Madame Olga, se necessário, e ver até que ponto ela é boa vidente,
Lindberg"
5
Cinco mesas, cada uma para seis pessoas, estão postas no Salão Este da Casa Branca. O Presidente e a primeira dama presidem à mesa principal, com o Irmão Kristos. O vice-
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-presidente, Trent, e a mulher presidem a outra mesa e o chefe de gabinete, Folsom, a uma terceira.
Os outros convidados são quase todos funcionários de segunda ordem da Casa Branca, incluindo John Tollinger, Jennifer Raye, Audrey Robertson, Michael Oberfest, o
Dr. Stemple e o secretário de Imprensa, Umbaugh. As pessoas que não estão presentes são os membros do Governo, o director da CIA e o do FBI.
Há um vago murmúrio de conversas, na sua maior parte tendo por assunto o convidado de honra. Este está sentado, direito, entre o Presidente e Mrs. Hawkins, falando em voz baixa.
Alguém repara, com algum desdém, que Kristos veste camisa de seda preta à Nehru. A cruz de ouro brilha, pendurada ao pescoço por um cordão. com a sua longa cabeleira, bigode e barba, é uma figura impressionante, embora um tanto desmazelada. Os funcionários podem sorrir do seu fato, mas a maior parte deles tem uma consciência aguda da sua presença física.
- Parece um muzhik- observa Tollinger.
- O que é um muzhik? - pergunta Jennifer.
- É algo como Muzak1, mas sem music.
- Parvo - diz ela. - Eu acho que ele tem um ar romântico.
- Sim... Achas que ele vai rezar?
- Não - responde Jennifer, de imediato. - Ele nunca reza antes de começar a comer. Acha que essas são orações de rotina. Não acredita no culto mecânico. E como os rituais: ele diz que são as teias da religião, sem o espírito e a alma.
- Meu Deus! - exclama Tollinger, com malícia. - Temos aqui a religião do Irmão Kristos segundo a Irmã Jennifer.
Ela fica tão ofendida que o ignora por completo durante o resto da manhã.
Enquanto toda a gente toma com sofreguidão um pequeno-almoço composto de meloa, ovos mexidos, arenque fumado e pequenos peixes fritos, o Irmão Kristos bebe uma chávena de chá.
1 Jogo de palavras intraduzível, efectuado a partir da pronúncia similar entre muzhik (mujique, camponês russo), Muzak (inventor de um sistema de música ambiente) e music (música). (N. da T.)
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- Talvez esteja a fazer jejum - diz Michael Oberfest a Pete Umbaugh. - Ou talvez esteja demasiado nervoso para conseguir comer.
- Nervoso não está ele - replica o secretário de Imprensa. - Isso posso eu garantir. Já lhe foi apresentado?
- Não.
- É cá uma destas experiências. Não aperta a mão e deixou-me ficar ali especado com a pata estendida. Mas olhou para mim como se conseguisse ler-me o pensamento. É cá uma experiência. Se tiver oportunidade, apresente-se-lhe.
- Acho que é isso que vou fazer. Diz-se que ele consegue predizer o futuro. Talvez me dê uns palpites para a bolsa.
Os convidados acabam de tomar o chá ou o café e aguardam que o presidente se levante, sinal de que a refeição terminou.
- Vamos todos daqui a pouco para a Sala do Conselho de Ministros - diz Audrey Robertson ao Dr. Stemple. - Se se quiser pôr a andar, compreendo perfeitamente.
- Eu não. Quero ouvir o sermão. Este homem fascina-me. Era de esperar que se sentisse intimidado por estar a partilhar uma refeição com o presidente dos Estados Unidos. Mas ele parece achar que isso não é nada de especial. Repare no modo como ele passa devagar a mão pela barba! Parece um profeta do Antigo Testamento. Tenho de conhecer este tipo. Você apresenta-me?
- Se quiser. Será que ninguém se vai pirar? Ninguém o faz.
Na Sala do Conselho de Ministros, o convidado de honra está sentado naquela que normalmente seria a cadeira do Presidente, a meio de um dos lados da longa mesa polida. As pessoas mais importantes ocupam as restantes cadeiras à volta da mesa e as menos importantes ficam com as desconfortáveis cadeiras encostadas à parede, em geral ocupadas pelos assessores dos ministros. Quando já todas as cadeiras estão ocupadas, verifica-se que há vários convidados que ficam de pé. Audrey Robertson, contando rapidamente, chega à triste conclusão de que o seu plano falhou, toda a gente ficou.
A sala vai ficando pouco a pouco em silêncio. O Irmão Kristos levanta-se. Pela primeira vez, o pessoal tem
consciência
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da intensidade do seu olhar. Alguns mexem-se, um tanto nervosos, baixam os olhos.
- Olhai todos para mim - ordena ele. - Eu sou Kristos, irmão de Cristo, apóstolo enviado por Deus para vos trazer a salvação. - Um suspiro de surpresa percorre a sala. - Perguntai-vos a vós próprios: "Quem é este homem que se atreve a afirmar a sua divindade?" Olhai bem para os meus olhos. O que vedes é o fogo divino da fé.
"Sei que todos vós sois instruídos. Julgais ser racionais. E a vossa lógica não pode aceitar a minha divindade, pois o que vedes perante vós é um ser humano como qualquer outro, de carne e osso, e, assim, pensais que eu devo ser como vós, mas não sou. Eu não tenho lógica, mas sim o poder da fé.
"Digo-vos que fé e lógica são duas linguagens diferentes e nenhuma delas pode ser traduzida para a outra. Hoje peço-vos que ponhais de parte os vossos princípios de raciocínio formal e disciplinado e que entreis num mundo em que a fé, e não o pensamento, é o motor e o amor de Deus a única fidelidade que é necessário conhecer."
Consegue prendê-los, e eles inclinam-se para a frente, esforçando-se por seguir a sua mensagem. Kristos fala com uma convicção tão profundamente sincera que ninguém ri, e até a dúvida parece ser condescendente e desprezível.
- Será a fé assim tão difícil de compreender e de seguir? Acordastes hoje de manhã com fé de que o Sol iria nascer. Viestes até esta magnífica casa com fé de que chegaríeis sãos e salvos. Agis com fé em centenas de maneiras diferentes. O vosso presente e o vosso futuro dependem da fé. Será então impossível reconhecer o seu poder e o seu milagre, se pode ser também o caminho para a felicidade, que a lógica e o pensamento racional não podem oferecer?
"Por isso, peço-vos para ouvirdes o que tenho agora para dizer com o coração cheio de convicção. A minha mensagem é curta. Diz-se que este país é um país de leis, não de homens. Mas são os homens que fazem as leis: elas são resultado do esforço humano e sujeitas ao erro humano. Em tempos, era legal neste país vender homens e mulheres como escravos. E as criancinhas eram obrigadas a trabalhar em fábricas e minas. E pensai nos males que a lei permite hoje em dia.
"As leis feitas pelos homens são uma droga para o espírito, condenadas a perecer, a não ser que sejam feitas com total fé
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em Deus. As nossas leis, as nossas leis humanas, são falíveis e mortais. Só a lei de Deus é infalível e imortal. E a Sua lei é
o amor.
O Irmão Kristos senta-se de forma abrupta. Os seus ouvintes, extasiados, apanhados em posições de total atenção, ficam surpreendidos pelo súbito final do sermão. Depois, começam a mover-se e olham, nervosos, uns para os outros, não tendo a certeza de que tenha acabado. Mas o presidente Hawkins levanta-se.
- Obrigado, Irmão Kristos - diz ele, em voz rouca, olhando para o pregador. - Deu-nos muito em que pensar. - Dirige-se em seguida ao pessoal reunido. - Obrigado por terem vindo. Peço a todos que meditem na mensagem do Irmão Kristos e que discutam uns com os outros a melhor maneira de servirem melhor o país, seguindo a fé que ele exprimiu de forma tão eloquente.
- Vamos embora - diz o vice-presidente, Trent, à mulher, mal Hawkins sai. Faz um sinal com o queixo na direcção do Irmão Kristos, agora rodeado de pessoas ansiosas por lhe fazerem perguntas. - O homem é louco! - exclama Trent, com raiva. - É praticamente um comunista. É uma vergonha que tenha sido autorizado a proferir tais disparates na Casa Branca.
- Ouvi dizer que ele bebe muito - observa Matilda Trent, com voz suave. - Achas que ele está bêbedo neste momento?
- Isso não é desculpa - resmunga o vice-presidente.
- Não te importas de o levar a casa? - pede Audrey Robertson a Jennifer Raye.
- Claro que não. Não há problema. Não achaste o sermão uma maravilha?
- Maravilhoso - responde Audrey. - Achas que o consegues convencer a rapar a barba?
- Duvido.
- Bem, talvez seja melhor assim. Dizem que os homens que usam barba têm queixo de fraco. Como é o dele?
- Como é que eu posso saber? - replica Jennifer, com dureza.
- Muito interessante - comenta o Dr. Judd Stemple, falando com Pete Umbaugh. - Ali há monomania, sem dúvida alguma.
- A mim pareceu-me sincero - opina o secretário de Imprensa.
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- Ah, sim, é, é; assim como o são todos os que se julgam Napoleão ou Peter Pan. Mas o que me impressionou foi a sua fluência. Dava um óptimo vendedor de carros usados.
- Era o que eu gostava que ele fosse - concorda Umbaugh, desanimado. - Tenho a impressão de que ele vai causar sarilhos dos grandes.
Os convidados vão-se dispersando gradualmente, ficando apenas alguns. Folsom leva o Irmão Kristos para um canto da sala. Os dois homens ficam aí de pé e Kristos parece ser quem mais fala.
- Desculpa - diz Tollinger a Jennifer Raye. - Não tinha intenção de me armar em engraçado.
- Estás desculpado - corresponde ela, em tom alegre. Mas dá uma oportunidade ao tipo, está bem?
- Está.
- O que é que achaste do sermão?
- Impressionante. E óbvio que acredita piamente em tudo o que diz.
- Claro que acredita. Não é hipócrita. Ah, parece que o conciliábulo com Folsom está a acabar! Tenho de ir levá-lo
a casa.
- Posso telefonar-te depois? - solicita Tollinger. Jennifer tem um instante de hesitação.
- Está bem - aceita, por fim. - Mas é melhor ser só à noite.
Leva o Irmão Kristos consigo. Este, no caminho, pára e olha para Tollinger.
- Gostei do seu sermão - diz John. - Para um homem que desdenha da lógica, estava organizado de forma muito lógica.
- Vai dizer-me que o meu raciocínio era excelente - observa Kristos -, mas que a minha hipótese de partida está errada.
- Sim, era isso mesmo que eu ia dizer.
- Temos que ter uma longa conversa.
- Tinha muito prazer nisso - consente Tollinger, surpreendido com a sinceridade desta afirmação. Depois, ficam apenas ele e Folsom. O chefe de gabinete deixou-se cair numa das cadeiras junto à mesa grande. - Que manhã, chefe!
- exclama Tollinger, alegre, ficando em seguida surpreendido com o aspecto de Folsom. O homem está muito abalado: rosto pálido, olhos vítreos. - Sente-se bem? - pergunta-lhe John.
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Folsom levanta os olhos.
- Falei com ele à parte - responde este, em voz baixa e disse-lhe que pensava que ele não passava de um aldrabão. Comuniquei-lhe que, como tinha fama de conseguir ver coisas no passado das pessoas, então podia contar-me algum segredo escuro do meu passado.
- E então?
O chefe de gabinete olha para cima, com os lábios retorcidos num terrível sorriso.
- Contou-me. Olhou para mim com aqueles olhos de louco e contou-me uma coisa que se passou há anos, uma coisa de que não me orgulho. E juro que, tão certo como eu estar aqui sentado, não há ninguém vivo que saiba disso. Ninguém podia saber, mas o Irmão Kristos sabia.
- Não lhe vou perguntar o que era - diz Tollinger -, mas tem a certeza absoluta de que nunca o contou a ninguém?
Folsom abana a cabeça.
- As outras pessoas implicadas já morreram. Morreram quando aquilo aconteceu. - Tollinger fica calado. Seria disparatado comentar: "bom palpite." O chefe de gabinete olha com receio para ele. - John, o homem é perigoso.
6
Pearl Gibbs está na carrinha, à espera de Kristos.
- Que elegante que tu estás! - exclama ela.
Kristos veste um casaco de cabedal preto, novinho em folha.
- Gostas? - pergunta ele, instalando-se a seu lado.
- É muito bonito. Deve ter custado um balúrdio.
- Também vais ter um - informa ele, de maneira abrupta. - Cala-te e guia.
O trânsito de sexta-feira à tarde é intenso. É um pára-arranca constante, até saírem da cidade em direcção à Virgínia.
- Como está Agnes? - continua Kristos.
- Está boa. Jake, porque é que não podemos viver contigo?
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- Estou a tratar disso. E Nick, como está ele? Pearl ri-se.
- Não vais acreditar, mas o cão recebeu ontem uma carta de um miúdo qualquer.
- Esse miúdo é o filho do Presidente. Espero que tenhas guardado a carta.
- Claro que guardei. É muito gira.
- Tenho que responder. O miúdo é o meu passaporte.
- Ah, sim? Para onde? - Kristos não responde, e ela sabe que é melhor não repetir a pergunta. - Jake - recomeça Pearl -, agora que tens massa não achas que devias fazer obras no armazém?
- Não. As pessoas vão lá porque não parece uma igreja. Parece o estábulo onde Cristo nasceu.
- Olha, já alguma vez te deste conta de que tens as mesmas iniciais que Jesus Cristo, J. C.?
- Já me tinha ocorrido - afirma ele, em tom seco. O armazém está muito bem como está. Prova que se pode encontrar a salvação numa baiuca qualquer, não é preciso ser uma catedral.
- Bem, desde que veio nos jornais aquela história sobre ti, tem lá ido imensa gente perguntar quando vais dizer sermão. Podíamos, pelo menos, arranjar mais bancos.
- Não. Deixa-os ficar de pé. O que é que há hoje para o jantar?
- Peixe guisado. Já está feito. Só falta aquecer. E tem muita pimenta.
- Óptimo.
- Jake, se não queres fazer obras no armazém, que tal comprarmos uma carrinha ou um carro novo? Esta sucata custa mais em reparações do que o que vale.
- Também estou a tratar disso - anuncia ele.
- Que sermão vais dizer amanhã à noite?
- Ainda não pensei.
- Porque é que não dizes aquele sobre o sexo ser a vontade de Deus? Gosto desse.
- Já sei. Não podemos ir mais depressa? - Naquela noite antes de jantarem, Kristos dá dinheiro a Agnes e a Pearl. Comprem roupa - diz-lhes ele. - Coisas simples. Saias compridas e nada de decotes. Se vocês forem para Washington, não quero que tenham ar de putas.
- Quando? - pergunta Pearl. - Quando é que vamos?
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- Já te disse que estou a tratar disso.
- E o armazém? - inquire Agnes. - Vais ficar com ele?
- vou. Esta continua a ser a minha igreja. Embora ande com gente do poder, nunca vou desprezar os pobres, os mansos, os solitários que procuram a palavra de Deus. Aqueçam o guisado.
As mulheres metem mãos à obra. Kristos sai pela porta de trás, seguido de perto pelo cão. Meia hora mais tarde, Agnes vai à sua procura. Encontra-o no terreno vago por detrás do armazém, de joelhos, a cabeça inclinada, as mãos postas.
- Jake! - grita ela. - Vem comer!
Sentam-se à volta da mesa, enchendo os pratos de alumínio. Passam a garrafa de vodca de mão em mão. O Irmão Kristos come vorazmente. As mulheres contam-lhe os mexericos da vizinhança, mas ele não diz nada.
Por fim, Kristos limpa a boca e tira uma nova garrafa de vodca do armário.
- Que boa comida! - comenta ele. - É do que mais saudades tenho na cidade.
- Não tens saudades de mais nada? - sugere Agnes. O seu sorriso é feroz.
- Isso fez-me lembrar - corresponde ele. - Dêem espectáculo.
Rindo, as duas mulheres começam a despir-se.
- Jake, é verdade o que disseste sobre nós irmos para Washington? - certifica-se Pearl.
Ele faz um sinal afirmativo.
- Não nos vais deixar, pois não? - implora Agnes.
- Não - apazigua o Irmão Kristos, aproximando-se delas. - Não posso deixá-las. Vocês são o meu Inferno.
7
No fim de Fevereiro, George Hawkins tem alta do Hospital Walter Reed e volta para o seu próprio quarto. Os quartos contíguos são ocupados pela enfermeira e pelo seu guarda-costas particular, um sargento dos Marines, enorme, chamado Dennis McShane, que anda muitas vezes com o frágil rapazinho às cavalitas.
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A presença do rapaz influencia todo o ambiente da Casa Branca. Recebe tantos brinquedos que são feitas entregas regulares do excedente a orfanatos e hospitais infantis da zona de Washington, fazendo George pessoalmente as doações.
- Oportunidades estupendas para fotografias - observa Pete Umbaugh, entusiasmado.
O rapaz recebe lições particulares quatro vezes por semana, mas a primeira dama leva-o sempre que possível a visitar edifícios oficiais, monumentos, bases militares vizinhas e, bastantes vezes, o Irmão Kristos no seu apartamento da Rua Dezoito, Noroeste.
É durante uma destas visitas, no princípio de Março, que Kristos oferece a George um presente que o torna a pessoa preferida do rapaz. É um conjunto de quebra-cabeças e truques de magia.
O Irmão Kristos puxou as cortinas castanhas para os lados e a sala, habitualmente escura, está inundada pela pálida luz da tarde. Brenna OGara trouxe chá para Mrs.
Hawkins, um copo de leite para George e um prato de biscoitos caseiros, voltando em seguida para a cozinha, para continuar a conversa com o sargento McShane.
A primeira dama está sentada num dos mapíes, bebericando chá e observando George e o Irmão Kristos, sentados à mesa grande. Fica encantada com o bom entendimento
de ambos: o rapaz louro e frágil, o homem moreno e corpulento. Brincam juntos, riem juntos; George puxa a barba do pregador e Kristos aperta-lhe ao de leve o nariz.
O irmão de Cristo está a mostrar ao rapaz como funciona a "Maravilhosa Máquina de Dinheiro", incluída no conjunto de magia. Mete-se uma folha de papel em branco
numa impressora em miniatura, dá-se à manivela e... vejam só!... uma genuína nota de dólar sai de
um dos lados. George está fascinado, mas, depois de ter percebido
como é que isto é feito, põe a máquina de lado e começa a tentar resolver um quebra-cabeças de cinco anéis de metal interligados.
O Irmão Kristos faz-lhe uma festa na cabeça, aproximando-se em seguida de Helen. Senta-se numa almofada de couro velho junto da primeira dama e pega nas suas mãos
ossudas.
- Mãe, a senhora está feliz - observa ele, olhando-a nos olhos. - O facto de ter o rapaz em casa, com saúde, alegrou a sua vida. Vejo-o na sua cara.
- O meu marido e eu temos muito que lhe agradecer por
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isso - responde ela. - Como é que alguma vez lhe vamos poder pagar?
- Já me pagaram. A vossa generosidade tem-me permitido continuar a levar a palavra de Deus aos que dela necessitam, e estou-vos grato por isso. Rezo todas as noites por vós e pela vossa família.
- Obrigada - agradece Helen, em voz fraca. - E nós rezamos sempre por si, Irmão Kristos.
Kristos sorri, pouco à vontade.
- E o Presidente? Espero que esteja bem.
- Está de saúde, graças a Deus, mas anda a trabalhar tanto! Sabe, as pessoas pressionam-no constantemente, toda a gente quer alguma coisa. Toda a gente tem ideias diferentes sobre o que deveria ser feito.
O Irmão Kristos, sério, faz um sinal de assentimento.
- Deve ouvir a todos. Mas no fim deve fazer o que sentir que está certo. Precisa apenas de ouvir a sua voz interior, pois é a voz de Deus.
- Acredito. Mas Ab tem tantas responsabilidades! As decisões que tem de tomar são tremendas.
- Sim, sim. Mas o seu poder também é tremendo.
- O que quer dizer é que ele se devia afirmar mais? Já pensei isso mesmo muitas vezes.
Kristos solta-lhe as mãos.
- O Presidente tem um poder imenso. Mas o poder é um músculo que não deve cessar de se exercitar, para não enfraquecer. Acha que o seu marido se apercebe de toda a amplitude do seu poder?
- Não. Não me parece. E é por isso que algumas pessoas se aproveitam dele.
- Há tanta coisa que ele podia fazer! Tanta!
- Por exemplo - desafia Helen. - Diga-me, Irmão Kristos, o que é que o senhor faria se fosse presidente?
Kristos abana a cabeça.
- Não sei nada de política nem de como funciona o governo.
- Mas conhece as pessoas, e é isso o mais importante. Por favor, gostava de saber o que é que faria se tivesse o poder do presidente!
Kristos levanta-se e começa a andar pela sala. Pára ao lado de George, tira o quebra-cabeças das mãos desajeitadas do rapazinho e, num ápice, separa os cinco anéis de metal.
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- Agora, volta a juntá-los - diz-lhe ele. Volta para junto de Mrs. Hawkins, ficando de pé à sua frente e fixando-a com o olhar. - Se eu fosse presidente? Faria o que peço de modo encarecido ao Presidente que faça: obedecer à vontade de Deus.
- Mas a política é tão complicada! - exclama Helen. Como é que Ab pode ter a certeza de estar a obedecer à vontade de Deus?
Os olhos do Irmão Kristos abrem-se mais e deles emana um brilho ardente.
- Eu sou o apóstolo de Deus na Terra - diz. Deixa-a então e volta a sentar-se junto de George. - Irmão, recebeste uma carta do meu cão? - pergunta ele ao rapaz.
George ri, encantado.
- Recebi. Era uma carta tão engraçada. Nick disse realmente tudo aquilo?
- Claro que disse, com latidos e pequenos uivos. E eu escrevi tudo. Não acreditas que um cão percebe as coisas e fala na sua própria língua?
- Acho que sim.
- É verdade. E eu percebo-o a ele. Acreditas em mim, não acreditas?
- Acredito.
- Ainda bem - continua o Irmão Kristos. E em seguida, em voz mais alta, de modo a ser ouvido pela primeira dama: - Se uma pessoa acredita, de verdade, tudo é possível.
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Aparecem mais algumas histórias em jornais e revistas semanais e uma cadeia de televisão passa um pequeno filme do Irmão Kristos na sua visita à Memória de Lincoln,
mas a cobertura feita pelos meios de comunicação social acerca do "pregador itinerante" e da sua relação com o Presidente e a família é, em geral, breve e cautelosa.
O vice-presidente, Trent, fica muito irritado.
- Podia ser um escândalo ainda maior do que o Watergate ou o Irão-"contras" - declara ele, furioso. - Por muito que tente, não consigo perceber porque é que os meios de comunicação
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social, cujo papel se supõe ser o de guardiães das nossas mais preciosas liberdades, não investigaram este patife em profundidade.
- Isso, senhor vice-presidente, talvez seja - sugere Oberfest, com timidez - porque acham que as convicções religiosas do Presidente não dizem respeito à imprensa.
Afinal, Hawkins tem direito a alguma privacidade.
- Que disparate - brada o vice-presidente. - A vida de um presidente, e até mesmo a sua religião, devia ser um livro aberto. A minha é-o, com certeza. bom, eu não vou permitir que esta situação escandalosa continue e venha até a prejudicar o partido nas eleições intercalares. Estou decidido a fazer incidir a dura luz da publicidade sobre toda esta triste história, e, se Hawkins vier a ter de responder perante o tribunal da opinião pública, que o faça.
Como é habitual, Trent aconselha-se com a mulher. Aquela senhora austera leu muito, inclusive O Príncipe, e dá conselhos excelentes.
- Primeiro que tudo, querido - diz ela, tricotando -, os teus próprios motivos ao iniciar tal acção devem estar acima de qualquer censura. Não disseste a ninguém o que pensas de tudo isto, pois não?
- Não completamente - responde ele, começando a ficar preocupado. - E verdade que referi a Mike Oberfest que a amizade do Presidente pelo Irmão Kristos pode ser prejudicial ao partido...
- Mas Michael não sabe nada do que estás a pensar? Trent começa a sentir-se incomodado, tentando lembrar-se
com exactidão até que ponto fez revelações ao seu adjunto.
- Só me lembro de lhe ter dito que este escândalo pode afectar o futuro do partido. É verdade que lhe dei instruções para que telefonasse a uma pessoa que ele conhece num jornal e lhe contasse a história da visita do Irmão Kristos a Camp David. Mas isso foi só para alertar a opinião pública, que poderia então forçar Hawkins a ver-se livre desse charlatão.
Matilda Trent suspira.
- Sam, estás a jogar um jogo muito perigoso. Penso que é um jogo que vale a pena jogar, mas isso deve ser feito com inteligência e discrição. Por um lado, queres tornar pública a íntima relação do Presidente com o Irmão Kristos, estando, como estás, convicto de que esta relação só pode ser uma catástrofe
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política para Hawkins. Por outro lado, dizes às pessoas que essa publicidade irá prejudicar o partido.
- Não tinha analisado as coisas desse ponto de vista - confessa ele. - O que é que devo fazer, Matilda?
Ela volta a pegar no tricô.
- As duas políticas não são necessariamente incompatíveis. Mas uma deve ser seguida em público e a outra em particular. Nas conversas com dirigentes do partido e contribuintes, podes sugerir com discrição que estás preocupado com o Irmão Kristos, porque, se se provar que é um vigarista, isso irá prejudicar o Presidente e, em consequência, o partido.
- Sim, posso fazer isso.
- Mas, em segredo, podes continuar a chamar a atenção para a relação do Presidente com o Irmão Kristos.
- E como é que vou fazer isso? - argumenta Trent. Não posso mandar chamar o meu conselheiro de Imprensa e dizer-lhe: "É isto que eu quero."
- Não - concorda Matilda, que permanece calma -, claro que não o podes fazer. Quanto menos gente souber das tuas actividades particulares, melhor. Tens confiança em Michael Oberfest?
- Tenho, mas não é o homem mais esperto que tem passado por aqui. Tirou o curso numa universidade estadual e acho que isso é visível.
- Então talvez seja exactamente o homem indicado para tratar disto. com certeza que não queres um homem com suficiente inteligência para questionar as tuas razões. Oberfest obedece a ordens?
- Sim, é muito bom nisso.
- Então serve-te dele. Diz-lhe o que pretendes, em particular, claro, e deixa-o tratar dos pormenores. Se ele conseguir, óptimo. Se não conseguir, substitui-o.
- Sim... - aprova Trent. - Acho que é o que devo fazer.
- E, de certo modo, ele pode servir-te de escudo. Se o escândalo Kristos vier, na realidade, a ser do conhecimento público, podes negar qualquer envolvimento nele. Será a tua palavra contra a de Oberfest. Só é preciso certificares-te de que nada fica escrito ou gravado.
- Esse é um excelente conselho! - exclama o vice-presidente. - Acho que tens mesmo jeito para a intriga, Matilda.
- Claro que tenho - volve ela, com aspereza. - Isso impede-me
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de ficar estúpida. Bem, Sam, tu fazes a tua parte e eu faço a minha. Tanto quanto sei, o tal Irmão Kristos está a morar num apartamento em casa de Lenore
Mattingly. Conheço-a há anos. Não suporto aquela mulher, mas isso não tem importância. Acho que vou convidá-la para almoçar, para ver o que consigo descobrir sobre o hóspede. Talvez ela me convide a conhecê-lo. Tenho imensa curiosidade nisso.
- Acho bem, querida - confirma Trent, levantando-se. Ouve todos os mexericos que puderes. Vens agora deitar-te?
- Não vou ainda - declara a mulher. - Quero ficar mais um bocado a tricotar.
Na manhã seguinte, o vice-presidente chama Michael Oberfest ao seu gabinete.
- Sente-se, Mike - diz-lhe ele, em tom cordial, o que surpreende o adjunto a tal ponto que fica convencido de que está prestes a ser despedido.
- Mike - prossegue Trent -, sei que você nunca repetiu nada do que ouviu entre estas quatro paredes. Tenho inteira confiança em si, de outro modo você não estaria aqui hoje. Não tenho dúvida alguma quanto à sua lealdade.
- Obrigado, senhor vice-presidente.
- Mas o que vou dizer-lhe é tão delicado que me vejo forçado a pedir-lhe que guarde completo segredo. Dá-me a sua palavra de honra?
- com certeza, senhor vice-presidente.
- Óptimo. Como sabe, Mike, tenho andado muito preocupado com a relação entre o Presidente e o Irmão Kristos, esse falso religioso, e com as repercussões que pode vir a ter sobre o futuro do partido. Cheguei à conclusão de que o melhor que há a fazer é exacerbar o escândalo, de tal modo que, tão depressa quanto possível, os dirigentes do partido possam exercer pressão sobre Hawkins de forma a convencê-lo de que o facto de manter uma relação com aquele vigarista representa uma clara ameaça. Está a perceber?
- Muito bem, senhor vice-presidente.
- E concorda comigo?
- Inteiramente.
- O que eu quero que faça, de facto, é deitar uma acha na fogueira, chamando a atenção do público para toda esta triste história. Então, depois de Kristos ter saído de cena, a campanha do partido pode continuar de vento em popa, sem o impedimento causado pelo escândalo, que poderia significar
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uma catástrofe para a Administração, se lhe fosse permitido continuar. O bem do partido é a nossa única preocupação. Concorda?
- Claro, senhor vice-presidente - responde Oberfest, completamente estonteado por todo aquele palavreado.
- Ainda bem - continua Trent, com cordialidade -, pois quero que você trate disso. Você, e mais ninguém. Eu devo ficar de fora, como é óbvio, por causa do prestígio do meu cargo. Mas conto consigo para fazer com que a verdade sobre o Irmão Kristos e sobre a sua relação com o Presidente e a família seja conhecida de todos, o mais rápido possível. Então, quando Hawkins for forçado a ver-se livre desta carraça, o partido pode esperar confiante as próximas eleições. O modo como vai fazer isso é lá consigo. Escolhi-o, Michael Oberfest, de entre todos os membros da minha equipa, para levar a cabo esta tarefa delicada, porque respeito o seu bom senso, admiro a sua inteligência e invejo o seu espírito de iniciativa e entusiasmo. O que é que me diz a isto, aceita este importante desafio?
- vou fazer os possíveis - consente o adjunto, começando só,agora a ter uma ideia vaga do que se passa.
- Óptimo! - exulta Samuel Trent, levantando-se e estendendo a mão a Michael. - Isso para mim é o suficiente.
Oberfest volta para o seu gabinete e senta-se à secretária, em estado de choque, até conseguir pôr as ideias em ordem. Então, sente uma enorme admiração pela intensidade
da ambição do vice-presidente de chegar à presidência.
Cinco minutos mais tarde, apercebe-se, com satisfação, de que está, finalmente, envolvido numa verdadeira conspiração.
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A porta que dá para o patamar está fechada à chave. Para além disso, fechou também a porta do quarto. Senta-se na cama desfeita, contando o dinheiro. No chão, a
seus pés, vê-se uma garrafa de vodca acabada de abrir.
Conta quase seis mil dólares, a maior parte em notas pequenas: doações feitas na sua igreja na Virgínia, presentes do Presidente, contribuições das senhoras que conheceu, no que Mrs. Mattingly chama agora "sermonettes".
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O dinheiro faz um grosso maço de notas, que ele prende com um elástico e mete em seguida no pé de uma meia de lã, na última gaveta da cómoda. Vai para pegar na garrafa
quando o telefone, que está em cima da mesa-de-cabeceira, começa a tocar. Volta a sentar-se na cama e atende.
- Sim?
- Irmão Kristos?
- Sim.
- O presidente Hawkins deseja falar consigo. É só um momento.
Tem tempo para beber um pequeno gole de vodca antes de ter o Presidente em linha.
- Irmão Kristos?
- Sim, pai, aqui estou.
- Esperava já ter podido falar consigo, mas acontecem sempre coisas que me impedem de o fazer.
- Eu compreendo.
- vou agora mesmo a caminho da festa de anos do presidente da Câmara dos Representantes. Vai durar provavelmente até altas horas, mas tenciono vir-me embora mais cedo. Acha que às onze horas é muito tarde para se encontrar comigo?
- Às onze horas está bem.
- O que sugiro é o seguinte: quando sair da festa, paro em frente de sua casa. Não entro porque os agentes dos serviços secretos iam insistir em fazer uma busca. Daria menos trabalho se o senhor pudesse descer, para conversarmos um bocado no meu carro. Não se importa de fazer isso?
- Claro que não, pai. Fico à espera no passeio às onze horas.
- Obrigado. Vai ser bom voltar a vê-lo.
Kristos leva a garrafa de vodca para a sala e coloca-a numa das extremidades da mesa. Depois, volta para o quarto. Tinha posto uma embalagem de arenque salgado no parapeito da janela, para refrescar. Traz o peixe para a sala. Em seguida, pega numa Bíblia nova, oferta de Mrs. Cynthia Jorgenson. É um bonito livro, com encadernação de couro e os bordos das páginas dourados.
Utiliza a fita vermelha que marca as páginas para abrir a Bíblia nos Salmos. Bebericando vodca, mordiscando arenque salgado, o Irmão Kristos lê com avidez, encantado com aquelas harmonias sublimes, com aquela poesia perfeita. Comove--o
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como mais nada o consegue fazer, nem a bebida, nem a comida, nem os corpos nus de mulheres complacentes.
Por fim, volta a arrumar o livro e tira para fora uma grossa pasta de correspondência. Quando a sua pregação se limitava ao armazém, recebia ocasionalmente cartas
de pessoas pedindo conselhos sobre problemas espirituais, familiares ou financeiros. Ou, por vezes, apenas a pedir a sua bênção. Estas cartas continham sempre dinheiro ou um cheque. Não eram grandes quantias, apenas alguns dólares. Mas Kristos respondia a todas elas.
Agora, desde a publicação dos artigos de jornal e desde que apareceu na televisão, o seu correio aumentou imenso. Algumas cartas são enviadas para a Casa Branca, de onde as fazem seguir. Algumas vêm directamente para casa de Mrs. Mattingly. E uma, que ele muito aprecia, que foi simplesmente dirigida a "Irmão Kristos, Washington, D. C.", mas, fosse como fosse, lhe chegou às mãos.
A maior parte das cartas recentes contêm também dinheiro, cheques ou, em alguns casos, moedas coladas com fita adesiva em cartão. Muitas pedem o auxílio dos seus poderes para curar males que vão desde o acne ao cancro. Todos afirmam a sua total fé no poder de Kristos lhes devolver uma saúde perfeita.
Kristos responde-lhes, exortando-os a porem a sua fé em Deus e a rezarem todos os dias. Assina: "Seu em Cristo, Irmão Kristos."
Mete mãos à obra para responder ao monte de cartas mais recente. Falou a Emily Mattingly na grande quantidade de correio que recebe, e ela sugeriu que mandasse imprimir uma carta-modelo, que apenas seria necessário endereçar e assinar. Ofereceu-se para tomar a seu cargo a tarefa de endereçar e colar os selos nos envelopes, e ele pensa agora que é melhor aceitar a oferta.
Escreve catorze cartas, pondo depois a correspondência de lado. Acaba de comer o arenque, bebendo um pouco mais de vodca para o empurrar. Depois, lava a boca, chupa uma pastilha de mentol e esfrega o bigode e a barba com água-de-colónia. Veste um blusão de cabedal novo e desce à rua, para esperar pelo Presidente dos Estados Unidos.
Alguns minutos depois das onze, três carros param em fila, vendo-se o automóvel preto do Presidente no meio. Kristos dirige-se ao Cadillac, mas um agente dos serviços secretos corta-lhe o caminho.
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- Desculpe, padre. São ordens. - E apalpa-o de alto a baixo com tanta destreza e rapidez que Kristos mal se apercebe do que se passa.
Em seguida, entra para o banco de trás do automóvel e aperta a mão a Abner Hawkins. O Presidente carrega num botão e o vidro sobe, silencioso, separando-os do motorista.
Kristos inclina-se, a fim de conseguir ver Hawkins no escuro.
- O senhor parece cansado, pai.
- Estou cansado. O trabalho e as preocupações parecem nunca acabar. A minha mulher e eu estamos constantemente a falar em tirar férias, mas acabam sempre por ficar adiadas; há sempre uma nova crise. Mas suponho que são ossos do ofício. O que na realidade me preocupa é ter de passar tanto tempo a tratar de coisas que ultrapassam o meu controlo. Esperava uma Administração mais activa.
- Mesmo assim, há muita coisa que pode fazer.
- Sim, é precisamente disso que lhe queria falar. A minha mulher contou-me a conversa que teve consigo sobre o poder da presidência e de como eu poderia fazer mais coisas. Interessante, muito interessante.
- Tal como o disse a Mrs. Hawkins, pai, sei muito pouco de política. Mas concordo em que actualmente o senhor parece estar prisioneiro dos acontecimentos, incapaz de planear e levar a cabo políticas que sabe serem benéficas para os seus filhos.
- Exacto! - exclama o Presidente, juntando as mãos. Quero ser um chefe de Executivo inovador. Mas parece que nunca consigo ter tempo.
- Delegue alguns poderes que digam respeito a assuntos de rotina - aconselha o Irmão Kristos. - Sei que tem pessoas competentes a trabalhar consigo e que partilham dos seus objectivos. Deixe-os tomar mais responsabilidades, não é necessário que verifique todos os pormenores. Claro que deve ser o senhor a tomar as decisões finais, mas tente dar-se a si próprio a oportunidade de sonhar com o futuro.
- Nem imagina como gosto de conversar consigo. Está bem, suponhamos que eu consigo ter o estilo de administração equilibrada que me aconselha, e depois? Há tantas coisas que quero fazer, mas é óbvio que não posso dedicar-me a todas ao mesmo tempo. Preciso de um sistema de prioridades, de um método para seleccionar as políticas que são mais importantes e que têm uma hipótese razoável de êxito.
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- com o devido respeito, pai, penso que precisa de um guia, de um padrão segundo o qual possa julgar todos os seus projectos. Não se preocupe demasiado com as hipóteses de êxito de um plano. O mais importante é que seja conforme à sua linha directriz.
- E qual deve ser?
- Os mandamentos de Deus. Este é único teste verdadeiro segundo o qual deve julgar da conveniência e rectidão das suas acções.
- Há por aí muitos cépticos, Irmão Kristos, e bastantes no Congresso.
- Eu sei. O caminho que sugiro não é fácil de seguir. Mas penso que nesta terra há uma grande ânsia de fé transcendente. Penso que a maioria das pessoas procura a fé que dará significado ao presente e uma promessa de futuro. Eu sei que as minhas palavras podem parecer tolas, pai, talvez até loucas, mas acredito verdadeiramente que, se o senhor empreender uma grande cruzada religiosa para tornar o nosso governo conforme à vontade de Deus, milhões de discípulos aparecerão para o seguirem.
O Presidente fica calado, sentado com a cabeça inclinada para a frente. Por fim, mudando de posição, volta-se para poder olhar directamente para o Irmão Kristos.
- O senhor pede muito - diz-lhe ele, em voz baixa. Os riscos são enormes.
- Não há qualquer risco para si - contesta Kristos, com firmeza. - Mesmo que falhe, ficará com a satisfação de estar a realizar a obra de Deus na Terra. E não sou eu que lhe peço isto. Trago-lhe a mensagem de Deus.
- Se eu, na realidade, empreender uma remodelação na forma de governar, como descreveu, qual deveria ser, especificamente, o primeiro passo?
O Irmão Kristos fala com fluência durante cerca de cinco minutos. Quando termina, Hawkins respira fundo.
- Não sei como isso poderia ser feito ou se poderia ser feito. Mas não lhe posso dar uma resposta agora. Seria um enorme empreendimento e tenho de o discutir com a minha mulher.
- Claro. Não tome qualquer decisão de ânimo leve, pois o que Deus exige é uma fé absoluta e uma total dedicação.
O Presidente faz um sinal de assentimento.
- A decisão mais importante da minha vida - confessa
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ele, em tom solene. - Antes de nos despedirmos, podemos rezar juntos?
- Rezemos - aceita Kristos, pegando em ambas as mãos de Hawkins. - Que Deus seja louvado! Que Ele seja louvado por vós, poderosos, e pelos que estão em lugares de
destaque! Que os reis e governantes deste mundo louvem ao Senhor! Que os detentores da riqueza e do poder se ajoelhem todos e louvem ao Senhor!
- Que o Senhor seja louvado!
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- Ouve bem - pede Tollinger -, não há nenhum milagre de Camp David nem nunca houve.
- Não sei - discorda Jennifer, com firmeza. - Tu não estavas lá.
- Mas tenho andado a ler umas coisas sobre hemofilia e faço uma ideia bastante clara do que aconteceu.
- Não quero ouvir.
- Não te importas de prestar atenção só por um instante? sugere ele, irritado. - Não é verdade que os hemofílicos possam morrer por causa de um simples arranhão ou golpe. A sua pele cicatriza normalmente. Claro que sangram, tal como quando tu ou eu nos cortamos. Mas, com os habituais tratamentos de primeiros socorros, o sangue pára e a ferida fecha-se e cicatriza.
- Mas não parava - contesta Jennifer. - George estava a sangrar, e a sangrar muito. Eu vi.
- Por isso, os pais entraram em pânico. É compreensível, quem é que gosta de ver um filho sangrar? Mas deviam saber que o perigo de uma ferida superficial é mínimo. O grande problema dos hemofílicos é uma hemorragia interna; têm falta de agentes coagulantes para a fazer parar. Mas George não tinha nenhuma ferida interna; tinha apenas um simples golpe na pele. Por isso, não fales em milagre de Camp David. O Irmão Kristos limitou-se a utilizar um acidente sem importância para enganar o Presidente e a primeira dama.
- Não pretendo convencer-te. Eu acredito que houve um milagre, os Hawkins acreditam, assim como imensa gente. Devias ver o correio que chega.
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- Mas isso não significa que seja verdade. Pelo amor de Deus, Jen, tu mais que ninguém devias ver a diferença entre realidade e percepção. Tu e eu passamos metade do nosso tempo de trabalho a tecer os acontecimentos, de tal modo que o público os veja de um ponto de vista favorável. Por outras palavras, nós deformamos a verdade. Isso pode estar correcto em política, mas não gosto de te ver fazer o mesmo na vida privada. Tenta compreender que o milagre de Camp David é uma miragem. Não existe na vida real.
- Não esperava que acreditasses - replica ela, com desdém. - Tu não acreditas em nada.
- Tenho uma convicção. É a de que noventa e oito por cento dos seres humanos são perfeitos idiotas, e todo este burburinho acerca do Irmão Kristos o demonstra. Pessoas que tinham obrigação de ter mais juízo tratam-no como o santo homem da cintura da capital. Vi-o no outro dia, quando se dirigia ao Gabinete Oval, e funcionários supostamente inteligentes e sofisticados aguardavam-no à entrada, fazendo-o parar para lhe pedirem autógrafos. Um nojo!
Jennifer olha pensativa para John.
- Acho que tens ciúmes.
- Ciúmes? Porque é que eu havia de ter ciúmes daquele aldrabão?
- Porque não é aldrabão: acredita com sinceridade no que diz. E essa fé provoca-te ciúmes.
- Que disparate! - brada ele, furioso. - O homem é um vigarista com olho para o negócio. Repara na maneira como anda agora vestido: casacos de cabedal, camisas de seda, barretes de peles. O que é que pensas que ele utiliza para comprar essas coisas? Doações feitas pelos papalvos que engana com aquelas suas tretas sobre não haver pecado se se tem fé. E tu? Deste-lhe dinheiro?
- Fiz uma contribuição para a sua igreja - responde Jennifer, na defensiva.
- Espero que tenha sido o suficiente para comprar uma caixa de garrafas de vodca - observa Tollinger -, pois é provável que o dinheiro tenha ido para aí. - E acrescenta, de forma casual: - Tens andado a vê-lo ultimamente?
- O que é que tu tens a ver com isso?
- Já fomos casados, lembras-te? E agrada-me pensar que ainda somos bons amigos. Sei o que sentes em relação a Kristos, e não quero que venhas a sofrer.
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- Ah, ah! - exclama Jennifer, olhando-o nos olhos. Não só tens inveja do Irmão Kristos, por causa da sua capacidade de acreditar, mas também por causa da sua amizade pela tua ex. Nunca te passou pela cabeça que eu pudesse encontrar um homem que fosse superior a ti. E digo superior em rodos os sentidos.
Tollinger olha para ela com uma careta.
- com que então ele também te converteu a ti! Jen, por amor de Deus, não ouves o que se diz por aí? O homem tem fama de devasso.
- Não me interessa o que se diz. Isso não vai afectar em nada a minha relação com o Irmão Kristos. O que sei é que ele me faz sentir viva; muito mais do que alguma vez me senti na minha vida. E o que ele diz da fé é em absoluto verdade. Fez-me ver as coisas de maneira diferente. Nunca me senti tão feliz, tão cheia de alegria por estar viva e por poder obedecer ao que Deus ordena. E devo tudo isto ao Irmão Kristos.
- Estás perdida - diz-lhe John Tollinger, desesperado. Completamente perdida.
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No labirinto do Capitólio há muitas portas com pequenas tabuletas, que dão para os gabinetes dos legisladores. Há também menos portas, não assinaladas, que dão acesso a pequenos esconderijos. Os congressistas que têm a sorte de dispor deles, por direito de antiguidade, podem descansar das preocupações do Estado, livres de importunos.
De facto, grande parte dos assuntos do governo é tratada nestes santuários. Repetem-se boatos, trocam-se mexericos, votos, estabelecem-se acordos e bebe-se muito uísque com água gasosa.
É num destes gabinetes escondidos que tem lugar uma reunião informal cujos participantes viriam mais tarde a recordar como um marco.
Sentados à volta de uma velha mesa de pinho encontram-se: o presidente da Câmara dos Representantes, o líder da maioria no Senado, Henry Folsom e Luther Dunkirk, elemento
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de ligação entre o Presidente e o Congresso e que é conhecido familiarmente por quase toda a gente no Capitólio por Padreca.
O presidente da Câmara dos Representantes, em cujo esconderijo se encontram, verifica se cada um tem o copo cheio e começa a falar do que os levou ali:
- Hank - diz ele, dirigindo-se ao chefe de gabinete -, que diabo pretende o Presidente com este plano de distribuição de comida?
Folsom bebe um gole, abanando em seguida a cabeça.
- Não sei do que está a falar.
- Padreca?
- Passo. Para mim, é novidade.
O líder da maioria, homem enorme, com triplo queixo e um nariz cor de tomate, mexe-se um tanto nervoso na cadeira.
- Não vale a pena estarmos com rodeios - diz. - O meu espião no Ministério da Agricultura diz-me que o Presidente pediu um relatório sobre as quantidades de leite em pó, manteiga, queijo e outros alimentos que o Estado tem em armazém, onde se encontram, em que condições e quanto tempo demoraria a enviá-los aos pobres e esfomeados. Quer um plano extraordinário para esvaziar os armazéns e distribuir os excedentes de comida.
- Já tinha ouvido falar - acrescenta o presidente da Câmara dos Representantes - que ele pediu ao conselheiro-geral que investigasse se pode distribuir essa comida por edicto presidencial ou se é preciso legislação especial. Vá lá, vocês dois, o que é que há? Gostamos de saber das calamidades antes de elas acontecerem.
Os homens do Presidente olham um para o outro.
- Fala lá tu, Padreca - pede Folsom a Dunkirk.
- Bem - começa este, cauteloso -, o Presidente mencionou, na realidade, qualquer coisa acerca disso, mas está ainda em fase de conversa, não foi tomada qualquer decisão. O que eu palpito é que tudo isto vai acabar por ficar esquecido.
- É bom que assim seja - comenta o líder. - Sabe o que é que uma distribuição de toda aquela comida iria provocar nos preços de mercado? Um desastre imediato.
- Enorme - acrescenta o presidente. - E íamos ter dez mil agricultores aglomerados às portas da cidade, dispostos a darem-nos para baixo. Que diabo anda Hawkins a pensar, se é que pensa?
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- Espere aí um pouco - objecta Folsom. - Isso já foi feito antes, sabia? Creio que durante a Administração Reagan.
- Sim - confirma o presidente. - Uma distribuição limitada de queijo. Mas Hawkins fala em distribuir tudo, desde sopa a nozes. Nem quero pensar nas consequências que isso vai ter no mercado de bens de consumo. E quem diabo é que vai receber todas estas dádivas?
- Senhor senador - informa o chefe de gabinete -, há imensa gente com fome neste país. Não quero dizer que estejam a morrer, mas a verdade é que não comem o suficiente.
- Sempre houve gente com fome - volve o presidente, com rudeza - e sempre haverá. E o que é que acontece depois de os excedentes do Estado se acabarem? Vai continuar a haver imensa gente com fome, tal como antes. Só tiveram a barriga cheia durante alguns dias. Dar comida à borla não vai resolver o problema da pobreza e da fome. Só a criação de postos de trabalho o pode fazer.
"Chefe - continua o presidente, olhando directamente para Folsom -, o que é que pensa disto? Esqueça a sua lealdade para com Hawkins e dê-nos a sua opinião pessoal. Sabe que não passa daqui.
- O que é que penso, de facto, disto? - repete o chefe de gabinete. - Penso que é uma completa loucura.
- Estou perfeitamente de acordo - adere o Padreca. É um disparate.
- bom - começa o líder -, e vocês dois não conseguem convencer o Presidente de que a ideia não pega? Se ele a apresentar no Capitólio, vai perder a pouca cobertura
que ainda lhe resta.
- Espere aí - atalha Dunkirk. - Suponha que Hawkins decide levar isto por diante e vai à televisão, com imagens de pessoas a dormir no "metro" e em fila para a sopa dos pobres. Vai conseguir um enorme apoio por parte de todos os grupos ligados a igrejas e de todos os liberais de coração sensível deste país. E pode também conseguir apoio apresentando como base razões de ordem económica. Sabe quanto nos custa continuar a comprar excedentes de comida e quanto custa armazená-los? Elimine esses gastos e terá um bom corte no défice orçamental. E, então, que argumentos vos restam? Objectar a que se dê de comer a americanos com fome é como estar contra
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a bandeira, a mãe e a tarte de maçã. Vão acabar por fazer figura de avarentos. E isso que pretendem?
Os dois congressistas olham inexpressivos para ele. Folsom acaba de beber o que resta no copo e inclina-se para a frente.
- Olhem - começa ele, em tom grave -, o que o Padreca disse é bem certo, mas não começa sequer a aflorar o verdadeiro problema. Sei que não devia lavar roupa suja em público, mas tenho de ser franco com vocês: a ideia não partiu de Hawkins, mas sim do Irmão Kristos. Já ouviram falar do tipo?
- Sim, já ouvi - revela o líder, com ar severo. - O pretenso santo.
- E você está a dizer-nos - interpõe-se o presidente, incrédulo - que o presidente dos Estados Unidos anda a seguir os conselhos deste autoproclamado messias?
Folsom, carrancudo, faz um sinal afirmativo.
- Vocês sabem como o patrão é religioso. Ele e a primeira dama estão convencidos de que o homem lhes salvou o filho.
- Por amor de Deus, Hank! - pede o líder, elevando a voz. - Você não consegue fazer com que Hawkins ouça a voz da razão?
- Já tentei - explica Folsom, com ar infeliz -, mas ele não quer ouvir. Acredita, na realidade, que Kristos é o irmão de Cristo, vindo à Terra para trazer a mensagem do Senhor.
- Essa é forte! - grita o presidente. - E não há uma maneira de eliminar o tipo?
- Tenho um detective a investigar o passado dele e espero que descubra alguma prova de cadastro ou alguma coisa que possa utilizar para convencer o patrão de que o homem é um vigarista.
- E até agora não descobriu nada? - interroga o presidente.
Folsom abana a cabeça.
- Ainda não.
- Você está convencido de que o homem é um vigarista, não está, Hank?
- Não sei em que deva acreditar - confessa Folsom, em voz muito baixa, após alguns instantes de silêncio.
- Meus senhores, não estou a gostar disto - declara o líder, com voz de trovão, batendo com a grossa palma da mão em cima da mesa. - A política e a religião formam uma combinação mortífera. Bem sei que temos a inscrição "Temos
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fé em Deus" na nossa moeda e que abrimos as sessões do Congresso com uma oração. Mas, se começamos a aprovar leis porque julgamos serem a vontade de Deus, então caímos na merda.
- E isso iria provocar o caos no país - acrescenta o presidente. - Temos mais religiões neste país do que equipas de basebol e muitas delas têm convicções diametralmente opostas. Por isso, misturar religião e política é uma situação com a qual ninguém tem a ganhar.
- E julga que eu não sei disso? - inquire Folsom, indignado. - Quero tanto quanto vocês ver-me livre do Irmão Kristos. Mas como?
Ninguém tem resposta, e os quatro homens permanecem um momento sentados em silêncio, cabeças inclinadas, até que por fim o líder fala:
- Talvez... - diz ele, com um sorriso amarelo -, talvez devêssemos rezar.
No caminho de regresso à Casa Branca, Folsom diz a Dunkirk:
- Aqueles tipos estão mesmo preocupados. E com razão. Têm recebido muitos ataques políticos acerca do Irmão Kristos?
- Bastantes. Telefonemas do dirigente nacional do partido, dos dirigentes estaduais, de importantes contribuintes.
- E o que é que lhes tem dito?
- Tão pouco quanto possível. Sim, o Presidente conhece o Irmão Kristos. Sim, encontra-se por vezes com ele no Gabinete Oval. Sim, contribui com dinheiro para a sua igreja. Mas não, o Irmão Kristos não vai ser nomeado para um novo posto no Governo. Não, não é ele quem dirige a Casa Branca. E não, a primeira dama não anda a ser comida por ele. Mas de onde vêm estes boatos disparatados?
- Eu digo-lhe de onde vêm - descobre Folsom, furioso. Há um filho da mãe, com algum cargo importante no governo, que quer que isto se torne um escândalo à escala mundial. Não sei quem é nem as razões por que o faz, mas, se consigo apanhar o sacana, dou cabo dele.
- Calma, calma - aconselha o Padreca. - Há a fé, a esperança e a caridade, e a caridade é a maior de todas.
- Que se lixe a caridade - resmunga o chefe de gabinete. - O que eu quero é sangue!
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Brenna OGara, aquela mulher beata e azeda, sobe ao apartamento de Kristos para mudar a roupa da cama e as toalhas turcas, para limpar e, pelo menos uma vez por
semana, para fazer os preparativos para os seus sermonettes, a que assiste um pequeno e selecto grupo de senhoras, convidadas por Lenore Mattingly.
A mulher, sem papas na língua, faz troça da fé do Irmão Kristos.
- com que então é o irmão de Cristo? E eu sou a rainha da Primavera!
- E pode muito bem ser - concorda ele, olhando-a de forma fixa. Mas ela não baixa os olhos.
Ao encontrar as toalhas sujas no chão da casa de banho, diz-lhe:
- Você é um bicho porco!
- E você é uma criada azeda - acusa Kristos, estendendo a mão para lhe tocar. Ela dá um salto para trás, furiosa. Mas ele persiste, rindo da sua fúria. - Quanto é que deu ao papa esta semana? - pergunta Kristos, com ironia.
Prova a comida que ela lhe preparou e empurra o prato para o lado, enojado.
- Isto é comida de porcos!
Brenna aprendeu a andar com cuidado quando está perto dele, pois as suas mãos tomam demasiadas liberdades.
- Não ponha as suas patas sujas em cima de mim! - grita ela. - vou contar à patroa.
- Então conte - tenta Kristos dissuadi-la. - Ela não vai acreditar.
Brenna fá-lo, e ele tem razão: a patroa não dá ouvidos a nenhuma informação depreciativa sobre aquele homem de fé, que tem ajudado tanta gente e que trouxe a Mrs. Mattingly uma popularidade de tal forma acrescida que tornou a sua casa famosa.
- Você ainda é virgem? - atira Kristos a Brenna OGara. Ela começa a chorar.
- Aproveite enquanto é tempo!
Todas as noites Brenna pede a Deus que Kristos seja destruído por um raio vindo dos céus. Mas ele continua florescente, com as suas camisas de seda bordadas pelas senhoras,
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o cabelo com gel e a barba perfumada. Brenna está persuadida de que ele vendeu a alma ao Diabo.
Uma manhã, nos princípios de Abril, vê-o sair de casa. Sobe as escadas até ao seu apartamento, para mudar a roupa. Quando se encontra curvada sobre a cama, sente as ancas estreitas agarradas com força. Kristos voltou em silêncio e está agora a apertar o sexo contra as magras nádegas de Brenna, dizendo coisas tão horríveis que ela nunca será capaz de repetir no confessionário.
Brenna solta-se e Kristos vai atrás dela. Esta foge, saindo do quarto, pela escada abaixo, correndo, tropeçando e soluçando.
Várias horas mais tarde, Kristos vai ao andar de baixo e deparam-se-lhe Mrs. Mattingly e Emily conversando muito nervosas na sala de estar.
- Ai, Irmão Kristos! - lamenta-se Lenore. - Aconteceu uma coisa terrível. Brenna foi-se embora.
- Fez as malas e foi-se embora assim, sem mais nem menos - explica Emily, intrigada -, e não nos quis dizer porquê. Não conseguimos perceber porque tomou tal atitude.
- É uma mulher muito perturbada - diz Kristos. - Coitadinha!
- Esteve cá em casa tantos anos! - exclama Mrs. Mattingly, queixosa. - E agora, o que é que vamos fazer? Precisamos, em absoluto, de uma cozinheira e de uma governanta.
O Irmão Kristos acena com a cabeça, em sinal de compreensão.
- Talvez eu possa ajudar.
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Michael Oberfest nunca sonhara que conspirar pudesse ser tão divertido. E, mais do que isso, descobriu que tem jeito para a conspiração. Seguindo as instruções do vice-presidente, planeou uma campanha para chamar a atenção para a amizade entre o presidente Hawkins e o Irmão Kristos, de modo a transformá-la num scandale majeur1.
1 Em francês no original: escândalo maior. (N. da T.)
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Envia cartas anónimas para os jornais. Telefona para as cadeias de televisão dando nomes e moradas falsos. E telefona para toda a gente que conhece na capital.
- Já sabes a última? Não digas que fui eu que te contei, mas parece que...
Numa cidade que vive de notícias falsas, e quanto mais estranhas melhor, os boatos levantados por Michael têm um enorme sucesso. Ele diverte-se com a rapidez com que são espalhados, até voltarem a chegar-lhe aos ouvidos.
Um dia, às dez e quarenta e cinco da manhã, telefona a uma pessoa que conhece no Pentágono.
- Já sabe a última, senhor tenente? - excita-lhe a curiosidade Oberfest. - Uma mulher que trabalha no Ministério do Comércio acaba de me telefonar e contou-me que ouviu dizer que o Irmão Kristos anda a comer a primeira dama.
- A sério? - duvida o tenente.
Às onze e trinta e três, Michael recebe uma chamada de Fred Hechett, do FBI.
- Já sabe a última? - investiga Fred. - Parece que Helen Hawkins e o Irmão Kristos andam a rezar juntos... na cama.
- A sério? - finge que duvida Oberfest.
Assim, aquela verdadeira mentira conseguiu a taxa de retorno de boatos de quarenta e oito minutos; nada mau.
O vice-presidente parece satisfeito com os progressos conseguidos pelo adjunto. Sorriu-lhe por duas vezes, por duas vezes lhe deu uma palmada amigável no ombro e uma vez lhe murmurou: "Muito bem!" Michael já se está a imaginar promovido, aumentado e, se as ambições de Trent se realizarem, com um futuro que parece não ter limites.
Numa quinta-feira à noite, em fins de Abril, Michael telefona à mulher, dizendo-lhe que fica a trabalhar até tarde e não vai, com toda a probabilidade, chegar a casa muito antes da meia-noite.
- Oh, Mike! - exclama ela -, outra vez? De que se trata agora?
- De planear o itinerário do vice-presidente para a viagem que vai fazer à América do Sul. Trent deu-me o trabalho todo a mim.
- Ele faz-te trabalhar de mais. Devias dizer-lhe que precisas de outra secretária.
- Boa ideia - concorda Michael. - Acho que é isso que vou fazer.
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Depois desta conversa, Michael compra uma pizza gigante com todos os recheios e uma garrafa de Chianti Clássico e dirige-se ao apartamento da sua amante, em Foggy Bottom. Leva-lhe igualmente uma pulseira de ténis, um círculo de pequeníssimos diamantes que trouxe da sua última viagem a Nova Iorque.
Oberfest, homem mole e gorducho, que faz uma massagem facial e vai à manicura uma vez por mês, está longe de ser a resposta aos anseios de qualquer moça. Mas a falta de homens na capital é tanta que as hordas de funcionários do Estado se vêem obrigadas a procurar companhia onde podem.
- Quando não há muito por onde escolher, uma pessoa tem de se contentar com o que consegue arranjar - disse um dia Shirley Bowker, a amante de Michael, a uma amiga. Lembra-te de que metade de um pão é melhor que nenhum. E, se tivesses visto Mike nu, saberias exactamente o que quero dizer com metade de um pão.
Shirley é mais alta que Michael, mais nova e muito mais esperta. Trabalha como secretária do presidente do Conselho de Consultores Económicos e toca muito bem viola, com uma preferência pelas canções folk. A sua ligação com Michael dura há já quase um ano e, apesar dos seus presentes, Shirley está a pensar a sério em dar-lhe tampa. Há um jovem garanhão no heahh dub que frequenta que tem andado atrás dela, e, se isso der alguma coisa, então, adeus Mike.
Comem a pizza, bebem o vinho e depois saltam para entre os lençóis, com pouco cerimonial e ainda menos paixão. Michael, que é fã de videocassettes pornográficas, tem tendência a ter gostos um tanto esquisitos. Tal como Shirley comenta para uma amiga:
- Ele sabe a letra, mas não apanhou a música.
Mais tarde, Shirley, nua, toca viola para Michael ouvir. Ele aprecia isso porque, à medida que ela vai dedilhando as cordas, um dos seus volumosos seios vai balançando encostado ao instrumento. Alguns dos momentos mais felizes da sua vida foram passados a admirar aquela glândula vibrando e a ouvi-la cantar Old Folks at Home.
Terminado o miniconcerto, Michael toma duche, veste-se e oferece a pulseira de ténis a Shirley. Esta abre muito os olhos ao ver os diamantes e pensa que vai fazer esperar o garanhão do heahh club durante mais algum tempo.
Oberfest deixa o apartamento, desce no elevador e sai para
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a noite escura. Dirige-se ao parque de estacionamento do prédio. Quando vai para pegar na sua carteira de charutos, vê um homem corpulento sair da sombra, surpreendendo-o.
- Olá, Amola! - cumprimenta o major Leonid Y. Marchuk.
Michael demora um pouco a responder.
- O que é que anda a fazer por aqui? - consegue finalmente perguntar.
- Vamos conversar para o seu carro - explica o russo, colocando uma mão pesada no braço de Michael. É o Eldorado verde, não é? - Oberfest deixa cair a carteira de charutos e curva-se para a apanhar. A bolsa dos óculos cai-lhe do bolso do casaco e ele apanha-a também. Quando chegam junto do Eldorado, Michael perde o controlo das chaves do carro, que caem. - Arnold, Arnold! - tranquiliza Marchuk, com um riso divertido. - Calma, calma! Não é o fim do mundo!
Faz um sinal e Michael entra no carro primeiro, instalando-se por detrás do volante. Em seguida, o major entra com dificuldade para o seu lado, trazendo um embrulho volumoso. Fecha a porta.
- Que óptimo automóvel - comenta ele, passando a mão pelo estofo de couro. Eu ando com um Lincoln, mas é um carro de serviço.
O adjunto do vice-presidente está a recuperar do choque.
- O que é que anda a fazer por aqui? - repete.
- Fui transferido para a nossa embaixada em Washington
- explica Marchuk, muito satisfeito. - Não acha óptimo? Agora vamos poder encontrar-nos muito mais vezes.
- Mas como é que sabia que eu estaria precisamente aqui? Em Foggy Bottom? Neste parque de estacionamento?
- Vá lá, Arnold - diz o homem do KGB, pondo uma das suas pesadas mãos sobre a coxa de Michael -, eu tento saber tudo sobre os meus rapazes. Aquela Shirley Bowker parece ser muito simpática. Tem pernas compridas. É da Califórnia?
- Não.
- bom, acho que é uma mulher atraente, aprovo o seu bom gosto e invejo-lhe a sorte. Mas não vim aqui para discutir a sua querida; você e eu temos algo mais sério sobre que conversar.
- Ela não é a minha querida.
- Se você assim o diz... Arnold, esta questão do Presidente e do homem que se diz curandeiro preocupa-nos muito.
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Admiramos o senhor presidente Hawkins e desejamos-lhe felicidades. Não gostaríamos que alguma coisa pusesse em perigo a sua administração e talvez também a sua reeleição para um segundo mandato.
- Isso é porque vocês acham que ele é um homem que podem manipular - afirma Oberfest, com coragem.
- Não - contesta Marchuk, escandalizado. - Mas Hawkins é um homem sensato, podemos negociar com ele. O vosso vice-presidente, Trent, por seu lado, é um fanático de vistas curtas, que tem um ódio quase patológico à União Soviética. Não está de acordo?
- Bem... - começa Michael. - É verdade que ele não tem lá uma grande admiração pelo comunismo.
- Então compreende porque é que queremos evitar a queda de Hawkins e a ascensão de Trent à Casa Branca.
- Do vosso ponto de vista, suponho que isso faz sentido.
- Não é só do nosso ponto de vista. A hostilidade de Trent para com o povo russo representa uma ameaça para a paz no mundo. Estou a dizer-lhe isto porque sei que é um homem inteligente, que pode compreender as trágicas consequências da paixão do vosso presidente por esse tal "santo homem". - Oberfest permanece silencioso. - Fico com a impressão, por aquilo que você me disse, Arnold, e por aquilo que leio nos jornais e vejo na vossa televisão, de que isto se está a tornar uma cause célebre1. Quando me falou no caso pela primeira vez, pensei que era apenas uma... uma... qual é a expressão que me falta e que significa uma grande confusão por causa de uma coisa sem importância?
- Uma tempestade num copo de água?
- Isso mesmo, obrigado uma tempestade num copo de água. Foi isso que eu pensei a princípio. Mas agora toda a gente fala nisso. Até já apareceram comentários na imprensa europeia. Porque é que acha que isto está a ter tanta publicidade?
- Não faço ideia - responde Oberfest.
O major solta uma estrondosa gargalhada e aperta dolorosamente a coxa de Michael.
- Claro que faz ideia. Alguém lançou uma campanha secreta para exagerar uma coisa sem importância. E você sabe quem é esse alguém, não é verdade?
1 Em francês no original: causa célebre. (N. da T.)
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Oberfest não responde.
- Não o censuro Arnold - continua Marchuk, quase com ternura. - Como já me disse, você não lança políticas, limita-se a obedecer a ordens. Eu estou em idêntica situação. Mas, com certeza que, depois do que acabo de lhe dizer, deve ter-se tornado óbvio para si que as ambições do vosso vice-presidente constituem uma verdadeira ameaça, não apenas para a futura segurança da União Soviética, mas para o futuro de todo o mundo.
- Agora, acho que é você que está a exagerar.
- Penso que está errado. As pessoas para quem trabalho gostam de olhar para a frente. Não nos agrada ver Samuel Trent dirigir o vosso grande país.
- É um país livre - replica Michael, encolhendo os ombros. - com eleições livres. Não podem fazer grande coisa.
- Vá lá - prossegue o major, com rispidez -, deixe de ser infantil. Claro que podemos fazer alguma coisa. O nosso primeiro passo é eliminar, ou pelo menos restringir, a campanha de difamação lançada contra Hawkins. Não se pode permitir que a sua relação com o tal Irmão Kristos lhe diminua o prestígio de tal modo que venha a ser um presidente de um único mandato ou, pior ainda, que seja forçado a demitir-se.
- E o que é que pensa fazer?
- Pensei que já tivesse adivinhado, Arnold. Você, meu amigo, vai ser a peça principal nos nossos esforços para sabotar a maldosa campanha de Trent. Você vai ajudar-nos a fazer com que as ambições do seu patrão sejam frustradas.
- Isso não. Não podia fazer isso. Antes de mais, vocês exageram o meu poder. Sou apenas um empregado. Não posso de modo algum influenciar o vice-presidente.
- Penso que você é mais do que um empregado. É o adjunto pessoal de Trent. Tem conhecimento dos seus planos e de como ele tenciona implementá-los. E não estamos a pedir-lhe que o influencie. Penso que isso seria impossível, mas você está em posição de frustrar os seus planos. E dos que não conseguir fazer parar pode informar-nos com antecedência, para nós podermos procurar outras maneiras de lhe dar xeque-mate.
- Não, não posso de modo algum fazer isso.
- É evidente que a sua recompensa mensal seria aumentada - informa Marchuk.
- Não - repete o adjunto do vice-presidente -, está fora
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de questão. Estaria a pôr em perigo a minha carreira, a minha reputação, tudo. Não posso fazer isso. O homem do KGB solta um suspiro.
- Bem - começa ele -, tentei falar consigo de modo directo e razoável. Mas a cenoura não deu resultado. vou ter de utilizar o pau. Tem um gravador ou um vídeo?
- O quê?
- Tem máquinas que façam a leitura de cassettes vídeo e áudio?
- Claro. Tenho um leitor de cassettes aqui mesmo. Porque é que deseja saber?
O major atira o embrulho para o colo de Michael.
- Quando chegar a casa, desembrulhe isso. Sugiro que o faça sem ninguém o ver. Não me parece que lhe agradasse que a sua mulher... como é que ela se chama?... Ruth? Não me parece que gostasse que Ruth visse ou ouvisse isso.
Oberfest, nervoso, toma o peso ao pacote.
- O que é isto?
- Quatro cassettes áudio das nossas conversas naquele horrível quarto em hotel de Nova Iorque. E duas cassettes vídeo que o mostram a entrar e sair do hotel e a entrar e sair do quarto número seiscentos e doze.
- Meu Deus! - exclama Oberfest.
- Pode destruir as cassettes, se quiser - prossegue Marchuk, falando com rapidez, como se se tratasse de um discurso de antemão preparadç e que já pronunciara muitas vezes.
- São apenas cópias. É óbvio que nós temos os originais. E seria nosso triste dever, se persistir na sua recusa em colaborar, enviar um outro conjunto destas gravações ao FBI. É evidente que antes de o fazermos eu já estaria fora do país. A única pessoa a sofrer seria você. Por isso, pense bem. Dentro do pacote está um número de telefone para onde me pode contactar. Diga apenas que é Arnold e desligue. Em seguida, eu telefono-lhe. Espero que me telefone até amanhã à meia-noite. Se não... - O major dá uma palmadinha no ombro de Michael e sai do carro. Antes de fechar a porta, inclina-se para dentro. - Eu gosto de você, Arnold, gosto mesmo. Por isso, espero que tome uma atitude responsável. Ficaria muito triste se o perdesse.
Em seguida, fecha a porta com força e desaparece. Michael fica ali sentado, na escuridão, a olhar para o embrulho que tem ao colo como se fosse uma bomba de relógio.
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De repente, as conspirações deixaram de ser divertidas.
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Matilda Trent convida Lenore Mattingly para almoçar e acha a sua convidada tão cheia de importância que é quase insuportável. Tudo porque o Irmão Kristos vive em sua casa e ela controla a lista de convidados para os sermonettes semanais do profeta.
- É um grande, grande homem - proclama Lenore. Tem tanto talento! É literalmente uma dádiva de Deus. Curou por completo as minhas enxaquecas e Emily nunca mais teve
alergias de origem nervosa. Tenho a certeza de que se sofre de alguma coisa ele faria maravilhas por si.
- Sinto-me muito bem, obrigada - responde Matilda, com dureza. - Mas gostava de conhecer o homem e de o ouvir dizer sermão.
- Ah, isso é capaz de ser difícil - explica Lenore. Ele está muito ocupado, sabe. Esta semana, tenho a casa cheia, mas talvez consiga lugar para si na próxima terça-feira.
- Agradeço-lhe - afirma a mulher do vice-presidente. Ele faz colecta?
- Ah, não! - exclama Mrs. Mattingly, horrorizada. Mas é costume deixar-lhe uma doação por debaixo do prato. Sabe, é para a sua igreja.
"Claro que, se desejar uma audiência particular, tem de combinar isso você mesma. Tenho-lhe apresentado tantas mulheres com problemas, e toda a gente tem ficado inteiramente satisfeita. O homem é uma maravilha."
Na terça-feira seguinte, último dia de Abril, Matilda junta-se a um grupo de mulheres de meia-idade, na sala do Irmão Kristos. Há cadeiras de dobrar dispostas em filas. Estão presentes mais de vinte pessoas, e Matilda reconhece-as quase todas: altas funcionárias, mulheres de senadores, uma jornalista, uma conservadora de museu e a embaixatriz negra de um país da África ocidental.
Duas mulheres jovens, vestidas com hábitos de seda branca, servem chá e fatias de bolo às senhoras. Pearl Gibbs distribui os pratos de papel com o bolo e Agnes Brittlewaite deita
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chá forte em chávenas de plástico. Em seguida, as duas acólitas vão colocar-se de um e outro lado da porta fechada que dá para o quarto, ficando de pé, de cabeça
inclinada e mãos postas.
Matilda está à espera de uma entrada espectacular, mas o Irmão Kristos entra na sala, vindo do quarto, quase com hesitação. Pára durante um longo instante, virando
devagar a cabeça para inspeccionar o público. com excepção das botas negras, está inteiramente vestido de branco. A pesada cruz de ouro pende-lhe ao peito, por debaixo da longa barba.
Dirige-se à cadeira vazia no topo da mesa, mas não se senta; fica de pé, de modo que todas o possam ver, segurando as costas da cadeira com as suas grandes mãos. Mais uma vez vira a cabeça, olhando para cada uma das convidadas, que permanecem num silêncio de expectativa.
Matilda pensa que ele é mais atraente do que havia julgado anteriormente. Não é uma beleza clássica, mas é muito atraente, com aquela pele bronzeada e enrugada e os lábios grossos. Não pode negar o seu magnetismo selvagem. É tão seguro de si. E os olhos são tão impressionantes como quando o viu no pequeno-almoço de oração na Casa Branca.
Kristos começa a falar num tom quase monótono, e mais tarde Matilda viria a perguntar-se como é que uma voz sem timbre como aquela podia comunicar tal fervor.
- Hoje - começa o Irmão Kristos -, vou falar-vos dos milhões de pessoas que vivem em desespero. Não é apenas a desolação dos que não têm comida nem casa, mas também o desespero daqueles que, um pouco como vós, podem desfrutar das bênçãos materiais da riqueza, e cujas vidas são, no entanto, vazias e sem alegria.
"Quando entrei, há momentos, nesta sala, senti a presença de uma de entre vós que sofre desta desgraça no mais alto grau. Está, no entanto, tão habituada à sua infelicidade que já não consegue conceber uma vida de prazer e de esperança. É a essa mulher que me dirijo, para que saiba que não está só e que a sua vida não está perdida. - Faz então uma pausa e mais uma vez dirige o seu olhar ardente a cada uma das mulheres. Todas se sentem destacadas, escolhidas pela compreensão e compaixão especiais do Irmão Kristos. - Perguntais-vos a vós mesmas - prossegue o Irmão Kristos -: Será que não existe nada mais? Pois os vossos dias são tão vazios que questionais a própria finalidade da vossa existência. Será
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que fostes postas neste mundo apenas para suportardes uma vida inteira de tédio esgotada pela pequenez de tudo o que a rodeia?
"Onde está a grande paixão? Onde está o grande amor? As horas que passais acordadas, desperdiçai-las em tarefas sem significado. O vosso sono é desassossegado e sem sonhos. Apenas conheceis um vago desejo, incapaz de vos fazer acreditar que nascestes apenas para vos arrastardes até ao túmulo, sem alguma vez sentirdes paixão, sem alguma vez conhecerdes um amor tão grande que vos subjugue e, desse modo, vos permita triunfar.
"Digo-vos que a paixão e o amor vos esperam. Falo-vos do esplendor da fé incondicional, do êxtase que conhecereis através de uma obediência total à vontade de Deus. - Ouvindo atenta este homem intenso, Matilda tem a sensação de que ele está a falar apenas para si; de que conhece o seu segredo, compreende o seu isolamento e lhe oferece a salvação. A medida que ele continua, Matilda reconhece a magnitude do que ele pede, e, como se lesse o seu pensamento, Kristos diz: Sei que o que vos peço não é fácil. O risco é enorme, pois Deus exige que refaçais a vossa vida. Quando tiverdes cedido à vontade de Deus, novos deveres recairão sobre vós. Mas, em troca, ser-vos-á dada uma felicidade tal que elevará a vossa alma até entrardes, cantando, num mundo novo.
A voz de Kristos tem um tal poder, com a sua promessa de renascimento, que a desconfiança de Matilda se dissolve e começa a acreditar que poderia, como uma borboleta saindo do casulo, deixar cair a sua existência embrutecedora e emergir, jovem e brilhante, levada pelo vento.
O Irmão Kristos continua a falar, durante mais dez minutos, para aquele público fascinado. Termina abruptamente e, antes de as convidadas se poderem aglomerar à sua volta, algumas trazendo presentes em lindos embrulhos, retira-se para o quarto e fecha a porta.
Matilda permanece sentada na cadeira desconfortável, enquanto as outras se vão retirando. Tem a cabeça baixa e olha muito séria para as mãos, enquanto dá voltas à aliança de casamento. Pergunta a si própria se terá coragem, receia tê-la, e receia ainda mais uma vida inteira de arrependimento se a não tiver.
Por fim, levanta-se e aproxima-se de uma das jovens vestidas de branco.
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- Posso falar em particular com o Irmão Kristos? - solicita.
Agnes Brittlewaite olha-a durante um instante.
- vou perguntar - responde ela. Em seguida, aproxima-se da porta do quarto, bate uma vez e entra.
- Está aqui uma mulher que quer falar contigo - informa. - Tem entre cinquenta e cinco e sessenta anos. Montes de diamantes. Dos verdadeiros.
- Estola de visão? - pergunta o Irmão Kristos. - Cabelo grisalho curto?
- É essa mesmo.
- É a mulher do vice-presidente. Lenore tinha-me dito que ela estaria hoje presente. Manda-a entrar. Verifica se toda a gente já saiu e depois tu e Pearl pirem-se.
Matilda entra no quarto, hesitante. Kristos está de pé em frente da cómoda, passando com gestos lentos os dedos pela barba.
- Obrigada por me receber - começa Matilda, numa voz tão ténue que ele quase não a reconhece. - Queria dizer-lhe que o seu sermão me afectou imenso. - Kristos inclina gravemente a cabeça. - Sou eu a mulher a quem se dirigia
- diz ela, com fervor. - Não é verdade?
- Sim, é a senhora.
- Já sabia! - exclama ela. - Quando falou de uma vida de tédio e de dias vazios, estava exactamente a descrever a minha existência. - Kristos faz-lhe sinal para se sentar na única cadeira, uma simples cadeira de madeira com encosto de couro. Matilda senta-se, deixando cair a estola para o chão. Olha com curiosidade à sua volta, observando o quarto, mobilado com simplicidade. Por cima da cómoda está uma garrafa de cristal cheia de um líquido incolor. Ao lado estão dois copos. - Aquilo é alguma bebida? - inquire Matilda, com um riso nervoso.
- É vodca.
- Acha que seria demasiado atrevimento da minha parte pedir-lhe que me desse um pouco? O seu sermão deixou-me perturbada. Preciso de qualquer coisa para os nervos.
- Kristos enche os dois copos e dá-lhe um deles. - Isto é de mais - protesta ela. - Não vou conseguir beber tudo.
- Beba o que quiser - declara ele, encolhendo os ombros.
Senta-se na cama, em frente de Matilda. Os joelhos de ambos
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quase se tocam. Kristos espera que ela beba um gole, esvaziando em seguida o seu próprio copo. Matilda respira fundo.
- Já me sinto melhor. Estava, na realidade, com uma sensação de opressão. - Faz uma pausa e prossegue: - Posso perguntar-lhe uma coisa?
- O que quiser.
- Quando falou de criar uma vida nova, não chegou a dizer como é que isso poderia ser feito. De forma gradual? Pela leitura e a aprendizagem? Ou por meio de uma súbita conversão?
Kristos levanta os olhos, para a fitar, e ela não consegue desviar os seus. Imagina ver uma chama nos olhos do interlocutor, qualquer coisa quente e cintilante.
- Ao longo da sua vida, sempre tem admirado aqueles que conseguem criar. Pintores, escultores, compositores, poetas. Tem invejado a sua magia, porque se sente plena de energia criadora, que não consegue canalizar para obras de arte.
- Sim, sim, - concorda ela -, é exactamente assim. Como é que sabia?
- A sua vida também pode tornar-se uma obra de arte
- continua Kristos. - Uma obra-prima que ninguém mais pode criar a não ser você. Se amar a Deus com sinceridade e for retribuída, verá a sua vida como uma realização única, tão esplendorosa como qualquer quadro, sinfonia ou poema. Mas tal esplendor, só o pode atingir por uma fé plena. E esta fé será posta à prova. Muitas vezes.
Matilda consegue finalmente desviar o olhar e bebe mais um gole de vodca.
- Não sei se terei coragem - confessa.
- Deixe-me guiá-la. Acredita no que eu lhe disse hoje?
- Sim, sim, acredito!
- Então, tem fé em mim?
- Sim, tenho fé em si, Irmão Kristos. Nunca pensei vir a pronunciar tais palavras, mas é verdade.
- Eu sou o irmão de Cristo e o apóstolo de Deus na Terra. Sou menos do que Ele, mas acreditar em mim é acreditar nEle e seguir-me é segui-Lo. Deixe-me trazer-lhe uma vida nova. - Kristos levanta-se e vai colocar-se por detrás da cadeira de Matilda. Pousa as suas fortes mãos no pescoço da senhora e massaja-lhe os ombros. - Uma vida nova - repete -, um mundo de fé e amor, radioso e sem pecado. En-
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tregue-se ao Senhor. com a sua devoção, descobrirá significado e finalidade e encontrará alegria nos seus deveres. - A litania continua, mas Matilda apenas se apercebe
da pressão das suas mãos e do cheiro da sua barba quando ele se inclina para a beijar no pescoço. - Renda-se - entoa ele -, pois só pela total submissão pode conhecer
o êxtase que a fé dá aos filhos de Deus.
Matilda despe-se com mãos trémulas e quando fica nua ele encoraja-a a desabotoar-lhe a camisa, a desapertar-lhe as calças, a descalçar-lhe as botas, a tirar-lhe as meias e o slip. Kristos leva-a pela mão até à casa de banho. Fá-la lavar-lhe as partes íntimas e os pés com um toalhete molhado, dizendo-lhe que se trata de um teste, que ela está a entrar num mundo sem pecado e que ao lavá-lo prova a sua força e a sua fé.
Leva-a de volta para a cama, murmurando continuamente palavras sobre sacrifício, obediência e total submissão à vontade de Deus.
O corpo firme de Kristos deita-se sobre o dela, as suas fortes mãos agarram-na, a sua pele rude arranha-a. Matilda entrega-se às suas ordens e, através dele, às de Deus, pensando atingir assim o reino esplendoroso. A fé transforma-se em frenesim e a sua paixão iguala a de Kristos, ambos perdidos num paroxismo de êxtase.
Mais tarde, quando ambos se encontram relaxados e esgotados, bebendo mais vodca, Matilda vira-se de lado e puxa-lhe ao de leve a barba.
- Deixe-me oferecer-lhe um presente, Irmão Kristos
- murmura. - Para lhe agradecer.
- Está bem.
- De que é que gostava?
- De um carro - sugere ele. - Para a minha igreja.
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"Tollinger:
A respeito de: Irmão Kristos.
Desculpe não ter escrito mais cedo, mas estive uns dias de cama com gripe. Consegue imaginar que apanhou a gripe numa Florida cheia de sol? Bem, eu apanhei, e deixou-me de rastos. Mas agora já estou bom e vou de novo a caminho.
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Fui a Fort Myers entrevistar Lorna Burgoos, conhecida em tempos por Madame Olga. Está velha, mas mais ágil do que eu, e tem ainda os parafusos todos. Disse-lhe que gostaria de falar com ela acerca de Jacob Christiansen, e a senhora mandou-me entrar para dentro da casa. Suponho que Madame Olga economizou dinheiro na altura em que lia a sina na feira itinerante.
Abriu uma garrafa de rum escuro, que eu recusei, e encheu com ele um copo de água, encheu-o por completo! Aquela velhinha bebia a valer, mas, tanto quanto me apercebi, não lhe fazia o mínimo efeito.
Perguntou-me porque é que queria informações sobre Jacob, e eu impingi-lhe aquela história de ele se ter inscrito para entrar para o FBI, pelo que andava a recolher informações. Riu-se tanto que quase lhe caía a dentadura de cima.
Tretas!, exclamou, Jake nunca iria querer entrar para o FBI. Qual é a verdadeira história?
Por isso mudei de táctica. Disse-lhe que Jake queria casar com a milha filha e eu andava a tentar saber alguma coisa sobre ele.
Isso também é mentira, replicou ela. Jake nunca foi casado e não quer casar nunca. Porque é que havia de comprar uma vaca quando o leite é tão barato? Não está metido em nenhum sarilho, não?
Respondi-lhe que, tanto quanto sabia, Jake não se tinha metido em sarilhos, nem com a lei, nem com ninguém. Mas andava a ficar muito amigo do Presidente, e os opositores políticos de Hawkins queriam desenterrar o seu passado, quer fosse bom, mau ou sem interesse. Isto está bastante próximo da verdade.
Sim, disse-me ela, li isso no jornal. Jacob dá agora pelo nome de Irmão Kristos e usa barba, mas eu reconheci-o logo. Suponho que está a sair-se bem. Eu sempre tive a certeza disso; aquele homem tem uma sorte dos diabos!
Fiz-lhe imensas perguntas, a que ela respondeu de boa vontade. Penso que disse a verdade, ou pelo menos a verdade tal como a recordava.
Contou-me que ela e Jake se tinham tornado bons amigos durante as viagens. Ele nunca teve outros amigos íntimos. Só mulheres. Jake montava-lhe a tenda quando paravam, e à noite, quando fechava a feira, vinha geralmente para junto de si e bebiam e conversavam durante horas.
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E se está a perguntar-se a si mesmo se ele me saltou para cima, disse Madame Olga, fê-lo, sim, muitas vezes, que Deus o abençoe. E estou aqui para lhe dizer que ele é o melhor amante do mundo, sem excepção.
Durante um período de vários anos, Madame Olga ensinou a Jake todos os truques da leitura de sinas, a pedido insistente deste. A primeira coisa que lhe ensinou foi o modo de estabelecer deduções acertadas sobre os clientes, com base na sua aparência e modo de falar.
Por exemplo, explicou-me Lorna Burgoos, eu acho que você é um alcoólico que deixou de beber. Suponho que é viúvo ou divorciado e já foi uma espécie de polícia. E
nasceu na Nova Inglaterra, provavelmente em Maine.
Acertou em cheio! Disse-lhe que tinha razão em todos os pormenores e perguntei-lhe como é que sabia. Mas ela limitou-se a sorrir e a beber mais um pouco de rum,
dizendo. Truques do ofício.
Depois de Jake ter aprendido a analisar os clientes, ensinou-lhe sinas que podiam predizer, em grande parte, o que as pessoas queriam ouvir. Os homens iriam conseguir
um emprego melhor ou um aumento. As mulheres encontrariam um novo amor. As grávidas teriam um rapaz. As moças novas casar-se-iam durante esse ano. E toda a gente iria receber uma herança inesperada. Após algum tempo, disse-me ela, Jake já sabia a lengalenga de cor e substituía-a na leitura de sinas, sempre que ela precisava de tempo livre.
Ele tinha um palavreado magnífico. Cobrávamos cinquenta cêntimos por cinco minutos, um dólar por dez. Mas Jake recebia gorjetas! Imagine! Eu nunca recebi uma gorjeta na minha vida, mas ele recebia, em geral, uns bons cêntimos extra. Era muito bom naquilo. Dava-me sempre as gorjetas, isso posso eu dizer em seu favor.
Á certa altura, segundo me contou Madame Olga, começou a passar-se algo de estranho: Jake começou a dizer aos clientes coisas sobre o seu passado, coisas que não podia ter deduzido da sua aparência. Contava-lhes segredos que eles juravam que mais ninguém sabia. E, por vezes, previa coisas para o seu futuro que os assustavam. Mas quando as gorjetas deixaram de aparecer, ele parou.
Perguntei a Lorna como é que ele fazia aquilo, mas ela limitou-se a abanar a cabeça: Ele nunca me quis dizer, respondeu
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ela. Fartei-me de lhe perguntar, mas ele limitava-se a rir e a responder: "Truques do ofício".
Investiguei se achava possível que Jake tivesse poderes sobrenaturais. Mas ela apenas sorriu e não quis dizer nada.
Contou-me que, durante o Inverno anterior a Jake deixar a feira, ele lhe disse que ia percorrer a Cintura Bíblica com o seu próprio show religioso. Ela sempre soubera que ele tinha a mania da Bíblia: Juro que a sabia de cor, mas não imaginava como é que ele iria poder fazer aquele tipo de show sozinho e ganhar alguma coisa. Mas desejou-lhe boa sorte.
Indaguei se tinha voltado a ter notícias dele, e ela respondeu-me que sim, que durante dois ou três anos tinha recebido postais, enviados de pequenas cidades por todo o Sul: Texas, Oclaoma, Arcansas, cidades de que nunca tinha ouvido falar antes.
Não dizia grande coisa nos postais. Apenas que estava a sair-se menos mal e que esperava que eu o estivesse também. Uma vez, escreveu-me para me dizer que, quando a feira parasse em Bear Junction, no Dacota do Sul, eu não devia abrir a minha barraca. Pensei que ele estivesse a gozar e abri, como de costume. Na última noite em que lá estivemos, um tipo qualquer entrou na tenda, de pistola em punho, e levou-me tudo quanto tinha, o sacana!
Solicitei-lhe que me revelasse como é que Jake sabia que uma coisa má lhe iria acontecer em Bear Junction. Ela encolheu os ombros e respondeu: Puro palpite. Mas eu devia ter-lhe dado ouvidos.
Então quis saber se ainda tinha os postais que o Irmão Kristos lhe enviara, e ela respondeu-me que sim, que nunca deitava nada fora, nem mesmo recibos de lojas de bebidas de há cinquenta anos!
Recusou-se a dar-me os postais, mas deixou-me elaborar uma lista dos nomes das terras escritos nos carimbos. Por isso, aluguei um carro e pus-me a caminho, seguindo as pegadas de Jake através da Cintura Bíblica, o que justifica o facto de a minha carta ser enviada de Boaz, no Alabama.
Deixei Madame Olga a sonhar com o melhor amante do mundo, sem excepção.
Quanto a mim, estou agora convencido de que Kristos é um aldrabão e um vigarista.
Lindberg"
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Depois daquele terrível encontro com Marchuk e após passar em revista as cassetres que o major lhe deixara cair no colo, Michael Oberfest está à espera de passar
pelo menos uma noite sem dormir, a pensar na sua situação.
Porém, em menos de uma hora chega à conclusão de que não tem hipótese de escolha. Se sabotar a campanha de Trent, arrisca-se a perder o emprego e todas as coisas
maravilhosas que advêm de ser o adjunto particular do vice-presidente. E, se tornar pública a conspiração secreta do patrão, o homem sofrerá sem remédio, as suas ambições ver-se-ão contrariadas e a sua carreira irá por água abaixo.
Assim, Trent e Oberfest estão à mercê um do outro. Se o vice-presidente ameaçar retaliar, por saber que o seu adjunto mudou de campo, este tem munições suficientes para o fazer explodir.
Marchuk, por seu lado, representa um problema muito mais sério. Michael não tem qualquer dúvida de que o russo é capaz de fazer exactamente o que ameaçou: informar o FBI da relação de Oberfest com um governo estrangeiro.
Se isso vier a ser do conhecimento público, o adjunto do vice-presidente não só perderá o emprego como verá a sua reputação arruinada e as possibilidades de emprego futuro duvidosas. E se o FBI quiser levar o caso por diante, não é de pôr de parte a possibilidade de um processo penal e de uma pena de prisão.
Assim, uma hora mais tarde, Michael Oberfest compreende que a sua única hipótese é colaborar com o KGB. Tranquiliza a consciência pensando que não está a pôr em causa a segurança nacional. Não está a vender segredos militares nem nada disso. E é muito possível que, ao ajudar os Russos, acabe por ficar bem com Deus.
Entra em contacto com Marchuk e combinam um encontro num centro comercial muito frequentado, próximo de Bowie, no Maryland. Oberfest recebe aí as suas ordens:
Deve cessar de imediato todos os esforços pessoais para publicar a relação do presidente Hawkins com o Irmão Kristos;
Deve contrariar todas as iniciativas sub-reptícias tomadas por Trent para propagandear a influência do curandeiro sobre o Presidente e a primeira dama;
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Deve dar conta, semana a semana (com maior frequência, se necessário), de qualquer novo plano do vice-presidente para abalar a credibilidade e prestígio do Presidente;
E tem de prestar ajuda a quaisquer indivíduos ou entidades da Administração Pública que procurem proteger a reputação de Hawkins, minimizando o papel do Irmão Kristos na estruturação de políticas da Casa Branca.
- Aí está! - exclama Marchuk, com um sorriso de simpatia. - Não é assim tão mau, não é verdade, Arnold?
Michael Oberfest tem de confessar que não é. E, para além do mais, é bem pago.
No dia seguinte, telefona a Tollinger, tencionando convidar o assessor do chefe de gabinete para almoçar. Não é um encontro que lhe agrade muito. Ouviu dizer que Tollinger se referiu uma vez a ele, Michael, em termos pouco lisonjeiros. E, por seu lado, considera John um homem frio.
- Desculpe - explica Tollinger, com rispidez -, mas hoje não posso. Estou completamente inundado de trabalho.
- Ouça - insiste Michael -, é importante. Penso que seria melhor encontrarmo-nos o mais depressa possível.
- Ah, sim? De que é que se trata?
- Preferia não o dizer pelo telefone, mas tem a ver com o Irmão Kristos. - Tollinger fica calado. - Olhe - continua Oberfest -, se não pode perder tempo, que tal vir até aqui? Posso encomendar uma pizza.
- Venha você até cá - sugere Tollinger - e eu encomendo uma pizza. À uma hora?
- Está bem - concorda Michael.
Tollinger desliga, pensando no que é que aquele parvo poderá ter em mente... se é que tem alguma coisa. Ele e Folsom suspeitam do papel que o vice-presidente tem tido em espalhar boatos. Agora, o adjunto particular de Trent quer comer uma pizza consigo. Tollinger decide ter muito, muito cuidado.
Telefona para o Domino e encomenda uma Extravaganza grande, uma pizza com tudo. Não quer pedir à secretária que o faça; por isso, às doze e quarenta e cinco de manhã, faz a pé o longo trajecto desde a ala oeste até ao portão da Pennsylvania Avenue, para ir buscar a pizza, na sua embalagem isolante vermelha.
- Cheira bem - observa o guarda.
- E não tem calorias - responde-lhe Tollinger.
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- Ah, claro! - exclama o guarda. - É tal-qual como o esparguete com almôndegas.
Oberfest chega a horas, trazendo uma embalagem de seis latas de Diet Coke geladas. Começam a comer a pizza, colocando guardanapos de papel em cima da secretária de Tollinger, para evitar que caiam pingos.
- Não tenho muito tempo, Mike. É melhor ir direito ao assunto, seja ele qual for.
- O seu gabinete não está sob escuta, pois não? - inquire Oberfest, rindo, um tanto nervoso. - O assunto é delicado.
John olha para ele.
- Não seja idiota. Claro que não está sob escuta. Quer procurar, para ver se encontra microfones?
- Não, não! Acredito na sua palavra. bom, ouça, sei que vocês estão muito preocupados com o Irmão Kristos.
- Preocupados? Porque é que havíamos de estar preocupados? O Presidente tem direito a procurar orientação religiosa junto de quem muito bem entende.
- Sim, eu sei. Mas toda esta publicidade não pode deixar de ser prejudicial. Os boatos que correm...
Tollinger encolhe os ombros.
- Há-de sempre haver boatos, e você sabe-o. Não há nada a fazer senão ignorá-los. Os desmentidos só servem para os fazer parecer importantes, o que não é verdade.
- Ê os jornalistas? - argumenta Oberfest. - Estão a dar a entender que aquele padre de meia tigela se está a transformar em eminência parda.
- Disparates - nega Tollinger, abrindo uma lata de Coca-Cola. - Acredite no que lhe digo, o patrão ainda dirige o espectáculo. Nunca esteve tão em cima dos acontecimentos.
- Isso diz você. Mas o que se diz por aí é que ele segue os conselhos políticos de Kristos. E muita gente não está a gostar disso.
- Que se lixem - argumenta o assessor, em tom calmo. Não sabem o que dizem. Foi por isso que você aqui veio, para me avisar de que as pessoas andam a levantar mexericos?
- Não exactamente - contesta Oberfest, percebendo que assim não chega a lado nenhum. - Só queria dizer-lhe que, se houver alguma coisa que eu possa fazer para abafar esta história, terei muito prazer em colaborar.
Tollinger olha fixamente para ele.
- Qual história?
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A calma do outro enfurece Michael.
- Ouça lá - prossegue ele, precipitado -, acha que eu não sei o que se passa? Esta coisa de distribuir excedentes de comida está a causar burburinho no Capitólio. As consequências políticas podem ser desastrosas.
- E é por isso que vem oferecer-se para ajudar. Está preocupado com as eleições intercalares?
- Claro que estou. Não quero ver o partido derrotado só por causa do tal curandeiro, ou lá o que ele diz ser.
Tollinger começa a comer mais um pedaço de pizza.
- Você tem cá uma lata! - observa Tollinger, tranquilo. É provável que o seu patrão ficasse encantado por ver o partido perder as eleições. Isso dar-lhe-ia vantagem se decidisse candidatar-se ao Gabinete Oval. Foi ele que lhe disse para vir almoçar comigo?
- Não, nem sabe de nada.
- Se isso for verdade, significa que você está a oferecer-se sozinho. Isso faz-me pensar em quais possam ser as suas razões.
- Já lhe disse: não quero ver o partido...
- Deixe-se de tretas! - brada Tollinger, ficando, finalmente, irritado. - Isso é um insulto à minha inteligência. Diga-me o que é que veio cá fazer ou então vá-se embora. Não tenho tempo para misteriozinhos.
- Está bem - apressa-se a explicar Oberfest. - vou contar-lhe a verdade. Estou aqui porque não me agrada o que Trent tem andado a fazer. Mete-me tanto nojo que decidi arriscar o emprego, oferecendo-me para ajudar no que puder.
Em seguida, conta pormenores do plano do vice-presidente para desacreditar Hawkins.
- E você está a contar-me tudo isto, Mike, porque de repente se tornou um homem de elevados princípios morais, é isso? Não pode suportar ver um homem tão bom e honesto como Abner Hawkins ser sacaneado. Certo?
- E isso - aceita Oberfest, satisfeito. - Foi por isso que vim cá.
- Terá que arranjar melhor - decepciona-o Tollinger. Como, por exemplo, provar a sua conversão, confessando a parte que teve na sórdida maquinação de Trent.
- Eu limitei-me a cumprir ordens - replica o adjunto.
- Onde é que eu já ouvi isso? Foi você que deu as notícias à imprensa?
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- Algumas.
- Espalhou boatos falsos?
- Talvez alguns.
- O que é verdade é que você fez todo o possível para ajudar a detestável campanha de Trent, até que, de repente, se fez luz no seu espírito. E como é que foi isso?
- Não acha que estou a ser sincero? - pergunta Michael.
- Claro que está. A não ser que Trent o tenha mandado cá vir para espiar o que se está a passar.
- Juro que isso não é verdade! Já lhe disse, ele nem sequer sabe que eu estou aqui a falar consigo.
Tollinger, sombrio, olha-o fixamente.
- Não sei porquê, mas agora penso que está a dizer a verdade. Não toda a verdade; você não é convincente no papel de pecador arrependido. Acredito quando você diz que Trent não o mandou cá vir, mas não acredito que esteja a fazer isto porque decidiu subitamente armar-se em escuteiro. Tem outra razão qualquer. Mas isso não tem importância.
- Então, deixa-me ajudá-los? - insiste Oberfest, ansioso. Posso contar-lhes tudo o que Trent tramar.
- vou pensar. Agora, vá-se embora e deixe-me voltar ao trabalho. Por hoje já chega de melodrama.
Mas depois de Oberfest sair (levando o resto das latas de Diet Coké), Tollinger não toca no seu cesto de correio. Sai do gabinete e vai procurar o chefe de gabinete, para o informar daquele estranho almoço.
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George Hawkins foi autorizado a ficar a pé até mais tarde, para brincar com o Irmão Kristos. Este está de gatas, e George a cavalo nele, batendo-lhe com os calcanhares nas costelas. O Presidente e a mulher assistem, com ar benévolo, a esta cena.
- Anda, cavalinho! - grita o rapaz, divertidíssimo; e lá vão eles: o cavalo a espinotear e o cavaleiro, segurando-se-lhe ao colarinho, a gritar de alegria.
Depois, caem ambos por cima do tapete, abraçando-se e rindo.
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- Espero que ele não seja demasiado pesado para si - diz Helen Hawkins.
- O George, pesado? - interroga, com ar brincalhão, o Irmão Kristos, levantando-se. - Não, o George é leve como uma pena. - Inclina-se e ergue o rapaz no ar, fazendo-o balouçar para trás e para diante. - Tu és uma pena, é o que tu és! - Em seguida, deposita com cuidado o miúdo no sofá, entre os pais. - Para falar verdade - afirma Kristos, sorridente -, o nosso herói está de facto a ficar mais pesado. Não vamos poder brincar aos cavalos por muito mais tempo. Vá, irmão, mostra lá esses músculos! - George dobra, obediente, o braço magro e Kristos apalpa-lhe o bíceps. Eh, lá! - exclama. - Estás a ficar grande. Já não quero lutar mais contigo.
- Aposto que era capaz de te obrigar a render - gaba-se o rapaz.
- Aposto que sim - corresponde o Irmão Kristos, fazendo-lhe uma festa no rosto. - Estás a ficar demasiado forte para mim.
O Presidente Hawkins olha para o relógio, por cima da lareira.
- Já passa muito da hora de te ires deitar - diz ele ao filho. - Helen, não te importas de tocar, para chamar o sargento McShane?
O sargento, que estava à espera lá fora, à porta, entra a sorrir. Veste a farda da gala, e George nunca se cansa de o ouvir dizer o nome de cada uma das suas fitas de marine e contar como foram ganhas.
O rapaz dá um beijo à mãe e outro ao pai e, em seguida, estende com cerimónia a mão a Kristos, que a aperta com igual gravidade.
- Não te esqueças das tuas orações, irmão - recomenda ele -, e dorme bem.
Dennis McShane leva o rapaz e fecha a porta em silêncio.
- Ele está a engordar um pouco - concorda o Presidente -, mas eu gostava que fosse mais. Acho que nunca vai ser muito grande.
- Talvez não fisicamente - distingue o pregador -, mas tenho a certeza de que o seu espírito será forte. Vai ter orgulho nele. Gostava que o rapaz seguisse as suas pegadas ao serviço do Estado?
- É um caminho difícil - responde Hawkins, em tom de dúvida. - O que é que tu achas, Helen?
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- Acho que é muito cedo para decidir - sustenta a mulher. - Ele às vezes quer ser bombeiro, ou piloto, ou polícia. Hoje disse-me que vai ser marine, tal como Dennis McShane.
- Podia dar-lhe para pior - comenta o marido. - Pelo menos, está a pensar no futuro.
- E devemo-lo ao Irmão Kristos - observa a primeira dama. - Nunca vamos poder pagar-lhe a ajuda que nos deu em Camp David.
Kristos abana a cabeça.
- Foi a ajuda de Deus - replica -, não a minha.
- Ámen - concorda o Presidente. - Mas agora preciso do seu conselho sobre um assunto de ordem mais temporal. Irmão Kristos, uma das razões por que lhe pedi que viesse cá hoje foi para lhe dar conta do pé em que está o nosso plano de excedentes de comida. As pessoas do Ministério da Agricultura estão a elaborar um programa de distribuição que envolve pessoas das igrejas e de organizações de caridade. O que é que acha disto?
- Acho bem.
- Pedi também ao gabinete do conselheiro-geral para me dar uma opinião legal sobre se posso distribuir a comida por decreto presidencial ou se é preciso legislação específica.
- Fico muito satisfeito por saber que o projecto está a ir por diante.
- Mas tão devagar! - lamenta-se Hawkins. - Sabe, é fácil um presidente dar uma ordem, mas já aprendi que tenho de a seguir continuamente até que tenha sido de facto levada a cabo. Esperava que me pudesse sugerir uma maneira de dar a este programa a importância que ele merece.
O Irmão Kristos fica um instante pensativo.
- Como já lhe disse, pai, não sei quase nada de política. Mas parece-me que seria bom não se preocupar em convencer as pessoas ligadas ao Governo e levar o seu plano directamente até ao público. Estou certo de que os seus filhos o iriam aprovar. Talvez possa ir à televisão e explicá-lo pelas suas próprias palavras. Mostre filas à porta da sopa dos pobres, com aquela boa gente à espera de uma esmola de estranhos, o orgulho vencido pela fome.
O Presidente volta-se para a mulher.
- O que é que achas, Helen?
- Sim, sim - aconselha ela. - Ficas tão bem na televisão!
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- E em pessoa, não? - pergunta ele, trocista. - Bem, é uma opção viável, mas vou ter que pensar nela.
- Dirigindo-se ao público em directo - diz Kristos - e obtendo a sua aprovação e apoio, pode fazer pressão sobre os burocratas que obedecem às suas ordens com tanta lentidão.
Hawkins sorri.
- Acho que sabe mais de política do que aquilo que afirma.
- Não de política, mas conheço as pessoas e sei como é difícil instigá-las à acção, especialmente quando essa acção implica mudança. E por isso que sugiro que guie a força moral do seu povo por meio de urri apelo na televisão.
- Talvez possa organizar isso - responde Hawkins, pensativo. - Penso que podemos talvez obter cerca de meia hora no horário nobre nas várias cadeias de televisão, se eu lhes disser que se trata de uma declaração de importância nacional. vou ter que falar com as pessoas que tratam das relações com os meios de comunicação social. Está disposto a aparecer no programa, Irmão Kristos? Tenho a certeza de que as suas palavras teriam uma atracção muito especial.
- Ah, não, pai, não posso fazer isso. Primeiro, não desejo de modo algum a publicidade. A distribuição de comida deve ser apresentada como sendo ideia sua. E eu não gostaria de dar armas aos seus inimigos, ao partilhar a sua apresentação na televisão. Estes iriam afirmar que eu o influenciei.
Abner Hawkins lança-lhe um olhar penetrante.
- Não há muita coisa que lhe escape, pois não? Acho que já se anda por aí a dizer alguma coisa do género. Está bem, se você não quer aparecer no programa, está pelo menos disposto a colaborar com os que escrevem os meus discursos, para dar ao texto uma eloquência religiosa? Quero frisar que o que estou a propor é correcto sob o ponto de vista moral.
- Claro. Tenho muito prazer em ajudar no que for possível.
O Presidente fica um instante pensativo.
- Penso - diz ele, por fim - que antes de pedir tempo de antena devia fazer uma sondagem confidencial. Vamos saber com exactidão qual a percentagem do público que estaria de acordo com a distribuição. Afinal de contas, os excedentes de comida pertencem realmente ao povo americano.
O Irmão Kristos fita directamente Abner Hawkins, com os olhos a arder de fervor.
- Posso já dizer-lhe - adianta ele, na sua voz monocórdica
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- que mais de dois terços dos seus filhos apoiarão o plano.
- Dois terços! - exclama a primeira dama. - Isso é esplêndido!
- Vamos ver primeiro até que ponto o Irmão Kristos acerta. A sondagem não deve demorar mais de um ou dois dias. E se os resultados forem tão favoráveis como esperamos, vamos para a frente com o programa de televisão.
Passam quase duas horas a discutir o programa proposto: quais os video-clips que deverão ser incluídos; qual a estrela de teatro a convidar, para fazer a narração, e se se deveria ou não mostrar, como contraste, cenas de banquetes caros e de restaurantes elegantes, ou se isso seria ir longe de mais.
Por fim, depois da meia-noite, Hawkins diz:
- Acho que é melhor ficarmos por aqui. Tenho o tempo muito ocupado amanhã e quero organizar a sondagem de opinião. Agradeço-lhe mais uma vez a sua ajuda, Irmão Kristos. Como sempre, tudo o que aconselha é de bom senso e, ao mesmo tempo, uma expressão da vontade de Deus.
- Não gosto nada que o Irmão Kristos vá sozinho de carro a esta hora - diz Helen.
O Presidente volta-se, sorridente, para Kristos.
- O que é que me diz a passar a noite no Quarto de Lincoln? - pergunta.
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Henry Folsom levanta os olhos, espantado.
- Acertou em cheio - diz ele. - O Irmão Kristos previu que dois terços do público iriam aprovar, e a sondagem deu
65,4, com uma margem de três pontos para cada lado. Como diabo é que ele conseguiu isto?
- Não sei - responde Tollinger.
- Digo-lhe uma coisa, John, apesar do que Lindberg escreveu na última carta, começo a pensar que o homem é mais do que um simples malandro. Acha que ele tem algum poder estranho?
- Já deixei de tentar perceber.
- Não, não deixou. Este é o tipo de enigma intelectual de
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que você gosta. Seja como for, depois de terem sido recebidos os resultados da sondagem, o patrão decidiu avançar em força com o programa de televisão.
- A ideia foi dele ou do Irmão Kristos?
- Sabe-se lá! Nos tempos que correm, é difícil dizer onde Hawkins acaba e Kristos começa. Tive uma longa conversa com os dirigentes do partido ontem à noite. Heggerman veio de avião de Minneapolis, Olson de Kansas City, Planey de Denver e Leibowitz de Los Angeles. Tivemos uma sessão num motel em Baltimore que durou seis horas.
- E então?
- É aqui que você entra em cena.
- Oh, oh!
- Sim. O consenso foi o seguinte: Hawkins pode conseguir o apoio dos piegas para a sua distribuição de comida, mas os produtores vão matá-lo. E isso inclui os agricultores, industriais, distribuidores, comerciantes e todos os supermercados e mercearias do país. Se isto for avante, podemos dizer adeus ao Midwest nas eleições do próximo Outono.
- Disse que era aqui que eu entrava em cena.
- Bem, todos concordaram em que o problema principal era o Irmão Kristos. Se pudéssemos ver-nos livres daquele sacana cantor de salmos, então o problema deixaria de existir. Assim, fui autorizado a perguntar-lhe se se encarregaria por nós de uma incumbência. Queremos oferecer ao Irmão Kristos uma bonita quantia em dinheiro, notas pequenas não marcadas, na condição de ele desaparecer. Gostaríamos que ele saísse do país. Que vá pôr o seu reverendíssimo eu ao sol na Riviera Francesa, por amor de Deus! Mas, se o não fizer, pelo menos que saia de Washington e prometa não voltar a contactar o Presidente.
- Quanto é que lhe vão oferecer?
- Decidimos que um milhão é o máximo dos máximos, mas é claro que esperamos que ele aceite muito menos. Olhe, o homem continua a contar os tostões lá naquela sua igreja. Vamos oferecer-lhe mais dinheiro do que ele jamais viu em toda a sua vida. Seria parvo se o não aproveitasse, e não me parece que ele seja parvo.
- Nem a mim - concorda Tollinger, devagar -, mas não tenho a certeza de que ele morda o isco.
- Porém, não se importa de tentar? Se alguém pode conseguir isto, é você.
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- Está bem. vou fazer o que puder.
- Obrigado, John. Sabia que podia contar consigo. Faça isso o mais depressa possível, está bem?
- com certeza. Talvez o convide a ir a minha casa, é um lugar suficientemente privado.
- Boa ideia, Ouça, já teve mais notícias de Mike Oberfest?
- Já, ele está sempre a dar-me pedaços de notícias, mas quase tudo são coisas que eu já sabia. Trent continua a telefonar a todos os seus contactos no partido, em todo o país, dizendo-lhes que Hawkins se transformou em zumbi.
- Grande filho da mãe! Bem, se você conseguir subornar o Irmão Kristos para que desapareça, eu trato de Trent. Vai ter sorte se conseguir ser nomeado para presidente de um clube de futebol rasca. Boa sorte, John. E tente, se puder, não chegar ao milhão.
O assessor volta para o seu gabinete, não tão optimista como Folsom quanto ao suborno, mas decidido a fazer o melhor possível. Pede a Audrey Robertson o número de telefone do Irmão Kristos.
- Para que é que quer o número dele? - pergunta a secretária para os Assuntos Sociais da primeira dama. - Está a precisar de confessar os seus pecados?
- Que pecados? - contesta John - Estou puro como uma criança. Sabe o que isso significa.
- Claro.
Mas ninguém atende as repetidas chamadas telefónicas de Tollinger até quase às quatro da tarde. Então, finalmente, o Irmão Kristos atende e ele identifica-se.
- Sim, lembro-me de si - responde o pregador. - O cínico.
- Não exactamente. Mais céptico do que cínico. Seja como for, da última vez que esteve aqui, na Casa Branca, naquele pequeno-almoço de oração, disse-me que poderíamos ter uma conversa um dia.
- Lembro-me muito bem.
- Não poderia ser hoje à noite? Podia vir até minha casa, em Spring Valley! Bebem-se uns copos e talvez fiquemos a conhecer-nos melhor.
- Talvez - assenta Kristos. - A que horas?
- Por volta das nove.
Tollinger dá a sua morada a Kristos, assim como indicações para lá chegar.
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- A não ser que precise de transporte - acrescenta. Nesse caso, terei muito gosto em o ir buscar.
- Não é preciso - dispensa a oferta o Irmão Kristos. Eu tenho carro; um carro novo.
- Ah, sim? E que carro comprou?
- Um Scorpio. Tem quatro portas e é prateado. Nessa noite, a caminho de casa, Tollinger faz uma paragem
para comprar uma garrafa de Glenfiddich para si e um litro de vodca Absolut para Kristos. Então, divertido, compra também uma garrafa de vodca apimentada. Está decidido a pôr à prova os boatos sobre o facto de o curandeiro ser bêbedo. E, mesmo que não seja verdade, talvez a bebida ajude a convencer o Irmão Kristos a aceitar um gordo maço de notas para se pôr a mexer.
Kristos chega às nove horas em ponto. Veste uma túnica de seda preta com cinto por cima de calças de seda largas, cujas extremidades esvoaçam por fora das botas. Tollinger acha que o fato parece um pijama, mas não tece comentários. Instala o convidado num maple, no escritório.
- Obrigado por ter vindo assim, por combinação à última hora - diz-lhe. - Já há tempos que tenho vontade de ter uma conversa consigo.
O Irmão Kristos sorri, mas não responde.
- Tenho cerveja, vinho, uísque, vodca, gim, e posso preparar-lhe um Martini, se quiser. Ó que é que prefere?
- Vodca, se faz favor.
- com gelo? Água?
- Vodca só.
- Descobri uma coisa fora do vulgar - continua Tollinger, passando-lhe para a mão a garrafa de vodca apimentada. - Quer experimentar?
O homem observa a garrafa. Destapa-a, leva-a aos lábios, bebe um gole.
- Muito bom - comenta.
Tollinger dá-lhe um copo grande, e Kristos enche-o, enquanto John deita um pouco de uísque de malte para si próprio.
- À sua saúde! - brinda ele, levantando o copo. Bebe um pequeno gole. Quando volta a levantar o olhar, verifica que Kristos tem na mão um copo vazio.
- Para onde é que foi? - pergunta Tollinger, estupefacto. - bom, sirva-se à vontade, a noite ainda é uma criança.
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- Porque é que me convidou a vir aqui esta noite? - indaga o Irmão Kristos, enchendo de novo o copo.
- Só para nos ficarmos a conhecer melhor. Não pensei que aceitasse. Sei que deve estar muito ocupado com os seus... como é que lhes chama? Sermonettes?
- Há pessoas que lhes chamam isso, mas eu não. Um sermão é um sermão. Alguns dos melhores são muito curtos. Nas Escrituras, o sermão de maior impacte consiste em duas palavras: "Jesus chorou."
- Tirado do Evangelho segundo São João. - Você conhece a Bíblia?
- Só São João - declara Tollinger, rindo. - Porque é o meu nome. Õ seu é Jacob, não é?
- Sim.
- É um bom nome bíblico.
- E foi para isso que me convidou a vir cá? Para falar de nomes?
- Não. Queria saber o que pensa da relação entre governo e religião.
- É o Juramento de Fidelidade: "Uma nação única em Deus."
- Eu sei e suponho que só os ateus levantariam objecção ao reconhecimento oficial de um Ser Supremo. Mas que influência acha que deveria ter a religião no funcionamento diário do governo?
- Penso que a obediência aos mandamentos da lei de Deus deveria ser o guia de toda a actividade governamental.
- Ah, mas é aí mesmo que começam os sarilhos. Há dezenas de religiões e centenas de seitas neste país. As suas interpretações dos mandamentos de Deus são, por vezes, contraditórias. Como é que um presidente pode saber qual é a interpretação correcta da vontade divina? Seria fácil se tivéssemos uma religião de Estado, mas os homens sensatos que escreveram a nossa Constituição viram o perigo disso e proibiram-no.
- A fé não pode ser proibida, e você está a ver problemas onde eles não existem. As contradições entre as doutrinas das diferentes religiões dizem respeito, na sua maior parte, a questões menores de ritual e de cerimónias de culto.
- Essas ditas "questões menores" têm sido a causa de imensas guerras de religião.
O Irmão Kristos fica um instante a olhar para Tollinger,
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bebendo em seguida um gole de vodca, directamente da garrafa.
- Há muitos falsos profetas. Matar não é um dos mandamentos de Deus.
- Então, se os nossos governantes acreditam, de verdade, na mensagem de "paz na Terra" do Todo-Poderoso, deveriam adoptar o desarmamento unilateral. E isso que está a querer dizer?
- Não, não é isso que quero dizer. Num mundo perfeito, o desarmamento faz sentido. Mas, num mundo imperfeito e perigoso, é prudente preparar-se uma defesa.
Tollinger deita mais um pouco de Glenfiddich no copo.
- Já esperava que dissesse isso. Num mundo imperfeito, as armas de guerra são necessárias, mesmo que vão contra a vontade do Senhor. A fé em Deus não pode ser o único guia para os políticos e homens de Estado. O mundo é demasiado complexo. Não há uma solução única. Em vez disso, há discussões, debates e gritos. O compromisso é a única forma de se conseguir fazer alguma coisa.
- Você fala com a cabeça e eu falo com o coração. O compromisso pode ser justificado em questões temporais, mas não em questões de fé, pois essa é uma rocha que não se pode partir.
John fica espantado ao ver que a garrafa de vodca apimentada está vazia. No entanto, o Irmão Kristos continua sentado direito no maple e fala com fluência e eloquência. Tollinger traz-lhe a garrafa de Absolut, pensando que, se tivesse sido ele a consumir tal quantidade de bebida com oitenta graus de teor alcoólico, já deveria ter sido levado de ambulância para uma unidade de cuidados intensivos.
- Irmão Kristos - começa Tollinger, em tom indiferente -, deixe-me dar-lhe um exemplo específico de uma política proposta que estaria seguramente de acordo com o seu elevado padrão de religiosidade, mas que seria inconveniente sob o ponto de vista político. Tenho a certeza de que já ouviu falar do plano do Presidente para dar excedentes de comida aos necessitados.
Kristos sorri, destapa a garrafa de Absolut, bebe um grande trago.
- Ah! - exclama ele. - Agora já sei porque é que me convidou a vir cá hoje.
Tollinger não dá resposta.
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- Embora o objectivo do programa esteja certamente de acordo com os mandamentos de Deus, o resultado pode muito bem ser assustador. Estou a falar no enorme prejuízo
para os rendimentos dos agricultores e de todas as outras pessoas que se dedicam à produção e venda de alimentos. Acredita, na realidade, que vão suportar sem objecção
um prejuízo pessoal, só porque é aquilo que um cristão deve fazer?
- Se tiverem fé, suportá-lo-ão de boa vontade, sabendo que o seu sacrifício individual irá beneficiar muita gente.
John Tollinger solta um suspiro.
- A ideia da distribuição de comida foi do Presidente
- atalha ele, de súbito - ou sua?
- Surgiu durante uma discussão sobre o modo como o governo poderia estar mais de acordo com a vontade de Deus.
- Estou a ver. Mas concorda com o facto de que pode ter os resultados
prejudiciais que acabo de referir?
O Irmão Kristos sorri.
- E de que pode ser também prejudicial ao partido político do Presidente?
- com certeza. Isso é evidente. Acontece que é, em minha opinião, um partido que tem beneficiado muito o país e que fará ainda mais, se lhe permitirem continuar a controlar a Casa Branca. Mas agora esse controlo está a ser ameaçado pela intromissão da religião, no que deveria ser uma administração puramente secular. Tem consciência do que fez?
- Diga-me, o que é que eu fiz?
- Provocou indignação e divisões na véspera das eleições intercalares. Se continuar por esse caminho, os líderes do partido só vêem no futuro a derrota.
- E então?
- Então, querem que você desapareça. Querem que saia de Washington e que cesse as suas relações com o Presidente e a família.
O Irmão Kristos olha para Tollinger com a maliciosa astúcia de um negociante de cavalos.
- E você, também o quer?
- Sim - desilude-o Tollinger, peremptoriamente -, quero. As minhas objecções são mais filosóficas que políticas. Penso que a sua íntima relação com o Presidente representa uma perigosa intromissão da religião nos assuntos do Estado. Esse é o mundo de César, e muito bem.
O profeta permanece em silêncio durante um longo momento,
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olhando, pensativo, para Tollinger. À medida que vai ruminando ideias, não pára de beber.
- Quanto? - sonda ele, por fim.
- Muito dinheiro. Duzentos e cinquenta mil dólares. Em dinheiro, notas pequenas. - Kristos dirige-lhe um sorriso trocista. - Pode ser que consiga convencê-los a ir mais longe confessa Tollinger.
- Quanto?
- Meio milhão. - O pregador abana a cabeça. Envergonhado por estar a regatear de forma tão vulgar, Tollinger acrescenta rapidamente: - Estou autorizado a oferecer um milhão. E é tudo.
- Não - recusa o Irmão Kristos, e agora os seus olhos estão quase fechados. - Nem um milhão, nem cinco, nem dez, nem qualquer quantia.
John acaba de beber o que tem no copo, enche-o de novo, bebe de um trago e deixa o copo vazio.
- Nenhuma quantia? Então, o que é que você quer?
- O outro fica mudo. E Tollinger inclina-se para a frente: Já sei o que é - avança este, numa voz estrangulada de fúria. - Quer poder.
O Irmão Kristos levanta-se de um salto, ergue a garrafa de vodca bem por cima da cabeça e exclama, com voz de trovão:
- O poder de Deus! O poder de Deus!
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TERCEIRA PARTE
1
- E agora... o presidente dos Estados Unidos.
O símbolo presidencial desaparece do ecrã. Abner Hawkins aparece, sentado por detrás da sua secretária no Gabinete Oval, com bandeiras de ambos os lados. Veste sobriamente de escuro. Tem as mãos postas sobre a secretária. Fala com firmeza, no seu sotaque do Midwest.
- Caros compatriotas - começa ele -, obrigado por me convidardes para vossas casas. Quero hoje discutir convosco um problema que nos afecta a todos, na nossa família nacional. Estou a falar da fome na América.
O Presidente refere então as estimativas do número de crianças, mulheres e homens que se alimentam da sopa dos pobres, em organizações religiosas e outras instituições de caridade.
- Fazem o que podem, mas os seus fundos são limitados e as filas de pessoas esfomeadas crescem dia após dia. Aqueles a quem alimentam são gente boa, irmãs e irmãos nossos, mães e pais, nossos filhos e nossos avós, que, devido ao infortúnio, se vêem forçados a abandonar a dignidade e o respeito por si próprios e a pedir esmola, para alimentarem o corpo e a alma.
"Deixem que vos mostre algumas das sopas dos pobres que estão a fazer os possíveis, por modestos que sejam, para fornecerem refeições aos pobres e necessitados. Aviso desde já que são imagens tristes e aflitivas, mas, por favor, não vireis as costas nem desligueis os televisores. Tendes obrigação, para convosco próprios e para com o país, de ver como alguns membros desta nação se vêem forçados a viver.
O ecrã mostra então uma longa fila de gente em Nova Iorque a andar devagar, de modo que cada um possa receber
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uma magra sanduíche e uma maçã; a cave de uma igreja em Los Angeles, onde os necessitados recebem alimentos que não se vendem, doados por supermercados e restaurantes; uma garagem em Chicago, onde latas ameigadas e alimentos a apodrecer são distribuídos duas vezes por semana.
- E agora - prossegue Hawkins - gostaria de lhes apresentar alguns compatriotas para quem morrer de fome é uma ameaça bem real.
O ecrã mostra então breves entrevistas gravadas com um trabalhador siderúrgico no desemprego, em Pittsburgo; com um carpinteiro do Oaio que já não pode trabalhar, devido à artrite; com uma mulher jovem, mãe de três filhos, da Florida, abandonada pelo marido; com um casal idoso do Colorado, cujas pensões da segurança social não chegam para cobrir a renda, as despesas médicas e uma alimentação adequada.
- As senhas de comida não são solução - afirma o presidente Hawkins. - É claro que são uma ajuda, mas o problema da fome na América tornou-se tão persistente que os programas existentes não conseguem resolver a crise, e utilizo esta palavra deliberadamente, pois trata-se, na verdade, de uma crise.
"Então, o que há a fazer? Porque é que há-de haver gente com fome neste país de abundância? O problema não está na produção e sim na distribuição.
"E onde se encontra a comida para alimentar todos estes americanos com fome? Encontra-se depositada em armazéns do Estado. E de quem é esta riqueza? É de todos vós! vou agora mostrá-la.
Então, com a ajuda de gráficos, o Presidente mostra como muitas centenas de toneladas de alimentos são propriedade dos Estados Unidos. Os gráficos são seguidos de video-clips que mostram silos e armazéns de cereais, manteiga, queijo, açúcar, leite em pó, vegetais, nozes, latas de conserva, comida de todos os tipos.
- Esta é a despensa de todos vós, a copa nacional, que existe enquanto há americanos com fome que procuram nos caixotes de lixo ou imploram que lhes dêem mais um prato de guisado aguado.
O Presidente propõe, de seguida, que as toneladas de excedentes de comida na posse do Estado sejam dadas. A distribuição será feita por igrejas e por outras instituições da caridade, públicas e privadas. Ninguém tirará proveito financeiro do programa; só os que têm fome beneficiarão.
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- Ao dar os nossos excedentes de comida aos necessitados - sustenta ele, com sinceridade -, estamos a afirmar a nossa existência como nação, una e indivisível, e como família, em que cada um é responsável pelo outro. Vamos mostrar ao mundo que não permitiremos que os nossos filhos chorem com fome, enquanto os nossos celeiros e armazéns estão a transbordar. - O Presidente respira fundo, junta mais as mãos e inclina-se para a frente. - Mas há ainda outra razão para dar de comer aos que têm fome - aprofunda ele, com solenidade - para além do orgulho nacional. - Profere então as palavras de conclusão escritas com a ajuda do Irmão Kristos: - Este país foi criado por homens e mulheres com uma fé inabalável num Ser Supremo. A nossa história ilustra a nossa crença em Deus e a nossa obediência aos seus mandamentos.
"É por isso que devemos ir para a frente com este plano de dar de comer aos que têm fome. Parafraseando a Bíblia: Como pode aquele que possui bens deste mundo e que, ao ver o seu irmão necessitado, lhe fecha a porta da compaixão ter em si o amor de Deus?
"Acredito que o amor de Deus está nos corações de todos os Americanos. Hoje,
peço-vos que deis prova desse amor, aprovando a dádiva da vida aos nossos irmãos e irmãs necessitados.
"Boa noite, e que Deus vos abençoe.
Mal a imagem do Presidente acaba de desaparecer do ecrã, os telefones da Casa Branca começam a tocar.
2
A vida de Lenore Mattingly mudou. Tornou-se a dona de casa que uma coluna social referiu por "A Pequena Casa Branca". O telefone não pára de tocar. Vê-se assediada por repórteres de jornais e revistas, fotógrafos e até por membros do clero.
Os sermonettes têm agora lugar quatro vezes por semana, na sala do Irmão Kristos, e os pedidos para o ouvir falar aumentaram de tal modo que as reservas têm de ser feitas com semanas de antecedência.
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Mrs. Mattingly é agora com frequência convidada para almoços e chás. Toda a gente quer saber do Irmão Kristos. Que tipo de homem é ele na realidade? É verdade que consegue ver o passado de uma pessoa, prever o futuro, curar os doentes? É verdade que bebe muito e fornica com frequência e sem qualquer complexo de culpa?
Mrs. Mattingly defende o Irmão Kristos com firme resolução. Ele é, afirma ela aos curiosos, um verdadeiro homem de Deus, muito religioso e com raros poderes.
É evidente que há alguns inconvenientes em ter um santo a morar em sua casa, embora Lenore nunca os mencionasse a ninguém, nem sequer a Emily. Por exemplo:
Aquele cão malcheiroso dorme por debaixo do lava-louça, na cozinha, e tem de ser com frequência levado lá fora ao pequeno quintal das traseiras, onde já deu cabo de quase todos os rododendros.
As duas mulheres que fazem de cozinheira e governanta vestem-se com decência suficiente, mas não se pode negar que são negligentes nos seus hábitos. Pearl Gibbs trata da casa sem brio; não sabe pura e simplesmente limpar o pó. E as refeições preparadas por Agnes Brittlewaite são demasiado condimentadas.
Mas o seu maior ressentimento, nunca mencionado, diz respeito ao próprio Irmão Kristos. O homem tornou-se uma celebridade. Não só é convidado para cerimónias na Casa Branca mas também para jantares em embaixadas, espectáculos no Kennedy Center e inaugurações de exposições no Smithsonian.
E nem uma vez, nem uma única vez, convidou Lenore para o acompanhar. A benfeitora sente-se ferida por esta falta de atenção e, aparentemente, de gratidão por tudo o que tem feito por ele. Mas a ideia de que o Irmão pretende proteger a reputação dela, não a acompanhando para toda a parte, conforta-a. Afinal de contas, ele é um homem de igreja, pelo que deve tentar sempre dar ao público uma impressão de celibato e espiritualidade.
Um dos acontecimentos sociais em que com mais desespero Lenore deseja estar presente, mas para o qual não foi convidada, é um cocktail na Embaixada italiana, em honra de Marcello Mastroianni. O Irmão Kristos vai e chama sobre si quase tanta atenção como o astro do cinema.
Kristos, inteiramente vestido de negro, é rodeado por politicos,
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todos ansiosos por discutir o controverso programa de distribuição gratuita de comida do Presidente e por descobrir, se possível, qual o papel de Kristos
no seu planeamento.
Kristos responde às perguntas com tanta brevidade quanto possível, afirmando não ter tido nada a ver com o programa de Hawkins, para além das palavras bíblicas utilizadas
na conclusão do seu discurso.
Alguém a seu lado diz em voz alta:
- Tiradas da Primeira Epístola de São João. - E cita em seguida: - "Meus filhos, amemos não por palavras ou discursos, mas por actos e em verdade."
Kristos volta-se devagar e olha para ela. É uma mulher negra, baixa e magra, de cabelo cor de chumbo. Usa óculos com aros de metal e um vestido de seda cor de malva,
sem forma.
- Sim - responde Kristos -, tem razão.
- E o senhor, Irmão Kristos, ama por actos e em verdade? - pergunta ela, em voz dura.
- Deus julgar-me-á.
- Não neste mundo - replica ela, e algumas pessoas riem. O cavaqueio político continua, e, após algum tempo, Kristos pede desculpa e vai à casa de banho dos homens. Fica lá uns momentos penteando o cabelo, o bigode e a barba. Quando sai, a mulherzinha negra está à sua espera no corredor alcatifado. Tem na mão uma taça de champanhe cheia e um folhado. - Quer um bocadinho? - oferece ela.
- Não, obrigado.
- Podemos conversar os dois?
Kristos fita-a nos olhos. Tem aspecto de pessoa enérgica e prática, como se estivesse mais habituada a falar do que a ouvir e que não está disposta a aturar disparates.
- Estava mesmo a preparar-me para ir-me embora - afirma ele.
- É só um minuto - tranquiliza ela, decidida, e mostrando o caminho pelo corredor fora, até onde se encontram dois sofás. - Chamo-me Lu-Anne Schlossel - informa ela. Sou representante da Jórgia, décimo segundo distrito. Estou no meu quarto mandato e espero ser reeleita em Novembro. Faço parte de várias comissões parlamentares, mas a fome é o meu assunto preferido. Até agora, não conseguimos obter qualquer ajuda por parte da Administração, e eu tinha chegado à conclusão de que Hawkins não prestava para nada. De repente, aparece ele com aquele discurso. É exactamente sobre
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isso que eu há anos ando a gritar no Congresso. Agora, com a Casa Branca a apoiar-nos, talvez consigamos fazer alguma coisa. Queria agradecer-lhe pessoalmente.
- Foi exclusivamente uma ideia de Hawkins.
- Essa é uma boa deixa, e acho bem que continue a utilizá-la. Não seria nada bom se se começasse por aí a dizer que o feiticeiro anda a ensinar o Presidente.
- Feiticeiro?
- É o que costumávamos chamar a tipos como você, lá para o interior da Jórgia. Olhe, não sei o que é que pretende e nem quero saber. Talvez você seja, na realidade, sincero, mas eu já estou nesta cidade há tempo suficiente para não tomar à letra aquilo que as pessoas dizem. Mas o que é importante é que você está do meu lado. Acho que podemos fazer algum bem um ao outro. Ao que parece, o Presidente ouve-o e eu própria tenho alguma influência na Comissão para a Fome e na Facção Negra do partido. As pessoas chamam-me o "Moscardo de Ébano", o que tomo como um elogio. Então, o que é que me diz? Acho que lhe faz falta, pelo menos, um amigo no Capitólio, não lhe parece?
- Sim.
- Então podemos trabalhar juntos? - Kristos faz um sinal afirmativo. - Ainda bem. Podemos encontrar-nos com frequência, para trocar ideias. Se Hawkins pedir ao Congresso que legisle sobre isto, vai ter pela frente um verdadeiro sarilho. Vai ser precisa uma boa organização para conseguir fazer passar esta questão.
- Porque é que alguém havia de levantar objecções a uma distribuição de comida?
- Padre, você pode saber muito de pregação, mas não sabe nada de política. A primeira coisa que tem de fazer é deixar de lhe chamar "distribuição". Ninguém gosta da ideia de dar gratuitamente aquilo que é propriedade do Estado. Parece estúpido. Mas, se lhe chamar "partilha de comida", as pessoas já aceitam.
- E - responde ele, sério -, tem razão.
- Okay - termina ela, levantando-se -, então somos comparsas nisto. Ainda bem que você é um homem prático.
- A mulher acaba de comer o folhado, limpa as mãos ao vestido de seda e estende uma delas a Kristos. - Obrigada por esta conversa, Irmão Kristos. Eu entro em contacto consigo. - Kristos aperta-lhe a mão, mas não a solta logo. Em vez
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disso, olha-a bem fundo nos olhos, e ela tem consciência da intensidade daquele olhar. - Bolas - exclama ela,
trocista -, está a deitar-me um olhar de feiticeiro.
- Só porque aquele de quem gostava se casou com outra, não há razão para perder a esperança em todos os homens.
Ela puxa a mão que Kristos aperta como se, de súbito, esta se tivesse queimado.
- Filho da mãe! - brada ela, furiosa.
3
"Tollinger:
A respeito de: Irmão Kristos.
Isto devia chamar-se Percorrendo a Cintura Bíblica com Arma e Máquina Fotográfica; só que eu não tinha máquina fotográfica. Seja como for, já andei por oito estados e mais cidades, vilas e aldeias do que em toda a minha vida. Penso que tenho agora uma ideia bastante razoável de como o Irmão Kristos trabalhava antes de aparecer no tal armazém na Virgínia e estou prestes a fazer as malas e a voltar para Washington.
É óbvio que ele seguiu sempre por estradas secundárias e vendia a sua banha da cobra religiosa em pequenas comunidades agrícolas com populações entre duzentas e vinte mil cabeças, no máximo. Parece ter evitado as cidades maiores, talvez por pensar que aí os cidadãos seriam demasiado sofisticados para irem na sua conversa.
Chegava a uma vila, montava a tenda e colava cartazes nos postes telefónicos e nas cancelas. Todos tinham a sua fotografia e anunciavam que o reverendo Jacob Christiansen
acabara de chegar e pregava sermões à noite sobre o pecado, a tentação e o amor de Deus. Mas era suficientemente esperto para falar primeiro com o xerife e com os
pastores das igrejas locais. Se havia aqui algum quiproquó, com Jacob a prometer partilhar os seus lucros, ninguém o confessou. Suponho que ele deve ter pago.
Todos parecem lembrar-se dos seus sermões, em especial devido ao tema principal: toda a gente pode andar por aí a foder até cair para o lado, pois fomos todos feitos à imagem de
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Deus, e Ele não tem pecado. Isto era uma coisa óptima para os labregos, que na sua maior parte eram baptistas praticantes.
Antes de começar o sermão propriamente dito, e para atrair a atenção do público, escolhia alguns agricultores e conta va-lhes coisas do seu passado que eles juravam que o reverendo, como estranho, não podia de modo algum saber. Dizia-se também que ele fazia milagres com animais doentes.
Toda a gente com quem falei me pareceu ter ficado impressionada com o reverendo, embora confessassem que havia algo de estranho nele. Todos mencionaram o seu olhar selvagem. Muitas mulheres ficavam sem fôlego ao falar dele, razão por que penso que Jake se saiu bem no campo de amá-las e deixá-las.
Cerca de dois anos antes de deixar de percorrer a Cintura Bíblica, para se instalar na Virgínia, mudou o nome para Irmão Kristos, deixando crescer o cabelo, o bigode e uma longa barba. Para além disso, o seu reportório de sermões tinha-se alargado e incluía então afirmações de ser o irmão de Cristo e o apóstolo de Deus na Terra. Um pastor baptista com quem falei no Arcansas ia sempre ouvir-lhe os sermões quando ele estava na cidade. Afirmou que Kristos conseguia, com os seus sermões, fazer com que houvesse trovoada e convencer o seu público de que era verdadeiramente um santo homem. O pastor baptista afirmou-me que tinha dúvidas quanto a isso, mas o Irmão Kristos tinha uma dádiva de Deus, que era o dom da palavra, e, ao que parece, curou a impotência do eclesiástico.
No Tennessee recolheu um cão doente, chamado Nick, tratou-o e levou-o consigo na carrinha. Foi em Traviston, Missuri, que o Irmão Kristos se encontrou com as meias-irmãs, Agnes Brittlewaite e Pearl Gibbs. Agnes andava a passar haxixe num restaurante local (o Waldorf, onde a fina-flor se encontra para comer), e Pearl vendia bilhetes no cinema da terra, o Bijou. Mas, ao que parece, andavam em negócios escuros fora das horas de trabalho. Quando o Irmão Kristos saiu da cidade, foram com ele e começaram a fazer o peditório depois dos seus sermões.
Lamento informar que não consegui descobrir qualquer registo referente a actividade criminal, a não ser uns apuros sem importância, de que o Irmão Kristos se safou graças à sua lábia. Tanto quanto consegui apurar, nunca foi condenado
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por razão alguma. Os chuis não gostam de prender homens de hábito, mesmo quando são perfeitos aldrabões.
Mas, à medida que ia seguindo o rasto do Irmão Kristos, cheguei à conclusão de que ele é culpado, sem remissão. Mas não de alguma coisa de que você o possa acusar. É como aqueles evangelistas da televisão, que sacam as pensões da segurança social a pobres velhotas do campo e vão depois comprar BMW e sapatos de crocodilo. O Irmão Kristos fazia, e faz, a mesma coisa: ganha umas coroas tirando proveito da fé religiosa das pessoas e do seu amor a Deus. É nojento. Teria mais respeito por ele se assaltasse um banco ou arrombasse um cofre. Estou a começar a detestar o tipo, de verdade.
Quero falar um pouco mais consigo acerca disto quando regressar a Washington. Lindberg"
4
Depois de recusar vários convites, Jennifer Raye acaba por aceitar ir jantar, e John Tollinger fica tão contente que reserva uma mesa no Maison Blanche, próximo
da Casa Branca. Já está a imaginar uma mesa num canto discreto, à luz das velas, champanhe para começar, talvez vitela à cordon-bleu, conhaque para a sobremesa,
e depois o regresso a casa, a Spring Valley, para uma paródia calorosa na cama.
Mas quando Jennifer aparece, apenas com vinte minutos de atraso, traz um vestido de linho preto, estilo saco, que esconde por completo as suas formas. E ao pescoço tem um crucifixo de prata.
- O que é isto? - pergunta Tollinger, afastando uma cadeira, para ela se sentar. - Chegou a hora de ires para um convento?
- Não comeces - responde Jennifer, com rispidez.
- Começar o quê? Estava apenas a fazer um comentário inofensivo sobre o teu fato virginal. vou beber champanhe. Também queres?
- Preferia uma água Perder com uma rodela de limão. A visão que Tollinger tivera daquela noite começa a desvanecer-se.
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- Então - inquire ele, sentando-se à mesa em frente de Jennifer -, o que é que tens andado a fazer ultimamente? Tens estado muito ocupada?
- Muito.
- Estás envolvida na tal distribuição de comida?
- Estou.
- Podes dar respostas de mais de uma palavra, não podes?
- Desculpa - justifica-se Jennifer, tentando sorrir -, mas tenho muito em que pensar.
- É isso que estou a tentar descobrir - explica, com paciência, John. - Em que é que está a pensar.
- É de facto um programa de excedentes de comida, mas não lhe chames "distribuição". Nós dizemos "partilha de comida".
- A semântica é uma coisa maravilhosa. A ideia foi tua?
- Não.
- Deixa-me adivinhar: foi o Irmão Kristos que a sugeriu.
- E que mal tem isso? - interroga Jennifer, indignada. John, apaziguador, levanta uma das mãos.
- Nenhum, nenhum! Acho que é um bom esquema de marketíng. Qual é o teu papel?
- Estamos a tentar organizar um programa para a primeira dama. Ela quer percorrer todo o país, visitar as sopas dos pobres, conversar com os famintos. Vai fazer todo o possível para levar o programa por diante.
- Boa ideia. Cobertura televisiva. Muitas oportunidades para fotografias. com ela sentada ao lado de um desgraçado sorvendo uma malga de caldo.
- Agora estás a ser indecente - observa Jennifer. Como sempre.
- Deformação profissional - desculpa-se John. - Talvez já esteja metido na política há tempo de mais. Tudo me começa a cheirar a esturro.
Chega a vitela.
- Isto parece muito temperado - comenta Jennifer, em tom de dúvida. - Estou a fazer dieta.
- Estás em regime de jejum e abstinência? - graceja John, e ela lança-lhe um olhar furibundo.
Comem devagar e em silêncio.
- Mas acreditas no programa da partilha de comida, não acreditas? - sonda ela, por fim.
- Desta comida não - restringe ele, olhando para o prato.
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- É demasiado boa. Mas acredito na ideia básica. Despachar os excedentes, custa-nos uma fortuna armazená-los. Mas o conceito é demasiado simplista. Nem todos
os resultados serão benéficos. Os agricultores vão sofrer e os industriais também.
- E depois? - censura-o ela, irritada. - As pessoas com fome são quem mais precisa de ajuda. De que lado estás tu?
- Do teu. Estou só a tentar dizer que por vezes a generosidade tem consequências imprevistas e desastrosas.
- Tens sempre que analisar tudo. Para quê? Se dás um dólar a um vadio, isso é um acto de caridade, não é? Se ele quiser gastá-lo em vinho, o problema é dele. Mas não altera em nada o facto de teres praticado uma boa acção.
- Não tenho assim tanta certeza disso. Por exemplo: se eu souber ou suspeitar que o vadio é viciado em droga, será o facto de lhe dar dinheiro um acto de caridade cristã?
- Mas os famintos não são viciados, têm apenas fome. Por isso, não tens de te preocupar com os terríveis resultados de lhes dar comida à borla.
- Quem me dera que fosse assim tão simples! Mas não é. Vai ser a maior bronca política que já viste em toda a tua vida.
- Tenta não pensar tanto - aconselha Jennifer - e sentir mais.
- Onde é que eu já ouvi isso? - retruca John. - Não pode ter sido ao Irmão Kristos, pois não? No pequeno-almoço de oração, na Casa Branca?
- Devias tentá-lo pelo menos uma vez - insiste Jennifer, furiosa. - Se pelo menos te deixasses sentir, poderias descobrir que a vida é mais do que um jogo de palavras.
- E o que é isso? O Evangelho segundo São Kristos?
- Tenho pena de ti. Julgas-te tão superior quando, afinal, não passas de um homem pequenino. Como te aguentei durante três anos é que nunca vou perceber.
- Mas teve os seus momentos bons.
- Poucos e pouco frequentes - decepciona-o ela, mordaz.
- Vai para o diabo! Ou, pior ainda, volta para aquele vendedor de santidade barbudo e finge que o pecado não existe.
- Metes nojo! - vocifera Jennifer.
Levanta-se, pega na carteira e nas luvas e vai-se embora.
- Quer que sirva agora o brande? - pergunta o criado.
- Quero - responde Tollinger. - Os dois.
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Mais tarde vai sozinho no carro a caminho de casa, sente-se envergonhado pelo modo como agiu, pelas coisas que disse a Jennifer. E também confuso, pois sempre se
orgulhou de conseguir manter as suas paixões sob controlo.
Foi, admite John, um triunfo das glândulas sobre o bom senso. Não conseguia suportar a religiosidade de Jennifer, mas, mais do que isso, não conseguia suportar a ideia de Jennifer nos braços daquele messias de pacotilha. E por isso não teve tento na língua e disse-lhe coisas com uma animosidade que sabe que ela nunca perdoará.
Solta um gemido de frustração. Nunca teve medo da concorrência de qualquer homem ao amor de Jennifer. Mas como é que se pode concorrer com um autoproclamado santo?
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No princípio de Junho, o Presidente envia uma proposta de lei para o Capitólio que, se for aprovada, autorizará o chefe do Executivo, "ou aqueles em quem delegar", a dispor de todos os stocks de comida "considerados excedentes" que sejam actualmente propriedade dos Estados Unidos.
A introdução da legislação sobre partilha de comida provoca um alvoroço político ainda maior do que a apresentação feita por Hawkins na televisão. Os membros do Congresso apressam-se a reagir, com opiniões apaixonadas, a favor ou contra.
Na Câmara dos Representantes, a proposta de lei desce à Comissão para a Fome, onde terá lugar a primeira batalha. A congressista Lu-Anne Schlossel torna-se a defensora da nova legislação. Consegue marcar audições que incluem o testemunho de membros do clero, de agricultores, de dirigentes de organizações de caridade, de nutricionistas e de várias testemunhas que afirmam ter realmente fome. A congressista Schlossel consegue também convencer a Facção Negra a votar a resolução que aprova a partilha
de comida.
No Senado, a proposta é enviada ao Comité para a Agricultura, Nutrição e Florestas, à falta de melhor lugar para onde mandá-la. O presidente, um senador já antigo
do Cansas, jura abafá-la dentro do Comité ou, se isso não for possível, deitá-la por terra em pleno Senado.
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Enquanto se estão a traçar destinos no Congresso, está a ter lugar um debate público muito mais rancoroso. No Capitólio, forma-se uma coligação ad hoc para manobrar a favor da proposta do Presidente e organizar uma campanha publicitária com vista a persuadir os cidadãos de que aquela partilha de comida (que não exige qualquer gasto de fundos públicos) é, ao mesmo tempo, correcta do ponto de vista fiscal e do ponto de vista moral.
Embora a oposição seja, a princípio, cortês, os motivos de ordem religiosa de Hawkins não tardam em ser postos em questão em público e a influência do Irmão Kristos condenada com severidade.
É esta última situação que provoca discussão quando Michael Oberfest se encontra com o major Marchuk no tal centro comercial no Maryland.
- Olhe lá - diz Oberfest -, eu fiz o que me pediu, não fiz? Tentei, na realidade, abafar a relação entre Hawkins e Kristos. Mas é impossível. Ontem à noite vi um cómico na televisão fazer uma imitação do Irmão Kristos. Conseguiu-o na perfeição. O seu parceiro só lhe perguntava como é que tinha tido a ideia de ajudar os pobres e necessitados, enquanto dormia no Quarto de Lincoln e comia no Salão Este da Casa Branca. Se os actores já estão a fazer rábulas cómicas sobre isto, é demasiado tarde para se fazer alguma coisa.
- Rábulas? - pergunta Marchuk. - O que são rábulas?
- É um termo da gíria teatral para um pequeno número...
- Ah, sim! - exclama o major. - Acho que tem razão, já não podemos alimentar a esperança de abafar a questão. Suponho que o vice-presidente, Trent, deve estar satisfeito com o que se está a passar.
- Pode ter a certeza. Está convencido de que, mesmo que consiga a aprovação da proposta, Hawkins vai arranjar tantos inimigos que o partido acabará por deixar de o apoiar.
- E você pensa que ele tem razão?
- Talvez. Já sabe que uma associação de agricultores está a planear uma marcha sobre Washington? Hawkins ganhou o Midwest nas últimas eleições; nunca mais o vai conseguir, e os dirigentes do partido sabem-no.
- E podem então virar-se para Trent?
- É uma possibilidade muito real.
O major puxa, pensativo, o lábio inferior.
- É um recuo, claro - observa ele -, mas a guerra não está perdida.
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- Sim... mas eu estou fora disso, não é verdade? Quero dizer, fiz um trabalho para vocês, o melhor que pude. Mas não posso fazer mais nada.
- Ah, não, Arnold. Você é muito valioso. Ainda precisamos de informação confidencial sobre os planos de Trent. Você está numa situação ideal para nos fornecer essa informação.
- Que é lá isso! Quanto tempo é que vamos continuar nisto?
- Tanto quanto necessário. Você, meu rapaz, está a fazer história, não se apercebe disso? Está a desempenhar um papel importante em assuntos de Estado. Devia sentir-se orgulhoso.
- Mas não sinto. Tenho imenso medo. Não sou nenhum herói. Se o vice-presidente descobre o que ando a fazer, dá cabo de mim.
- Se você for esperto - incita-o o homem do KGB -, ele nunca vai descobrir - e acrescenta - e mais ninguém o descobrirá.
- Está bem - aceita Michael, com um suspiro -, estou a perceber.
6
Pearl vai a conduzir com Agnes sentada a seu lado. O Irmão Kristos vai refastelado atrás, com o cão pálido a dormir a seus pés. Cantam canções libertinas, a caminho do armazém de tabaco da Virgínia. É como nos velhos tempos, na carrinha, mas agora vão num óptimo carro com estofos de couro.
Está-se no fim de Junho e o ar condicionado funciona com um ruído de fundo. Passando uma garrafa de vodca de mão em mão, vão cheios de contentamento, sabendo que
bem merecem tudo isto, depois daqueles anos de privações.
No sábado à noite, a multidão começa a reunir-se muito antes das oito horas, hora prevista para o início do sermão. Há agora bons carros no parque de estacionamento, e até um autocarro alugado que trouxe um grupo de pessoas de Richmond. Todos os bancos de madeira estão apinhados e as pessoas em pé tapam toda a entrada do fundo. Os atrasados ouvem à porta ou às janelas.
O Irmão Kristos veste o seu velho hábito de burel e fala
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descalço, com o cabelo e a barba habilmente despenteados. Insistiu em que o armazém continuasse como dantes, iluminado por candeeiros de petróleo e sem qualquer ornamento religioso.
- Hoje - começa ele -, vou falar-vos do carácter divino do amor, do amor infinito que agrada a Deus. Ele ordena-nos que nos amemos uns aos outros, pois só assim podemos aprender a amar de verdade a Deus e a sermos retribuídos com o Seu amor.
"O amor exprime-se de várias formas: devoção, sacrifício, dever, afeição, obediência, patriotismo, ternura, paixão. Todas as formas de amor são de carácter divino, mas o êxtase de prazer físico entre um homem e uma mulher é uma oração sagrada ao Ser Supremo.
O Irmão Kristos floreia este tema durante quase vinte minutos. A sua linguagem é eloquente, mas o público sabe muito bem que ele está a falar em foder e todos se inclinam para a frente, ansiosos por não perderem uma só palavra.
O peditório dessa noite dá resultados particularmente bons.
Começa a multidão a dispersar-se quando um homem baixo e gordo se aproxima de Pearl Gibbs.
É quase por completo careca, com um charuto grosso por acender seguro entre os dentes amarelos.
- Quero falar com o reverendo - diz ele.
Pearl observa-o. O fato de xadrez é feito por medida e as mocassinas vêm impecavelmente engraxadas. O casaco está desabotoado e ela repara no monograma bordado no bolso da camisa: "LBT".
- De que é que se trata? - pergunta Pearl.
- É um assunto particular - responde o homem. - Diga-lhe que eu conheço Billy Feinschmecker, da Florida.
Pearl entra no quarto das traseiras e passa a informação.
- Billy Feinschmecker! - exclama o Irmão Kristos, sorrindo. - Ele ainda é vivo? Que aspecto tem esse homem?
- Acho que deve andar metido em negócios escuros - opina Pearl. - Tem mesmo cara de passador de droga. Mas deve ter massa, tem um Rolex dourado.
- Está bem, manda-o entrar. Se dentro de quinze minutos ainda não tiver saído, entras e dizes que vens lembrar-me de uma reunião que tenho marcada.
- Okay.
O homem careca entra. Estende um cartão a Kristos.
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- O meu nome é Lamar B. Tumulty - anuncia ele. Sou representante pessoal.
- E o que é um representante pessoal? - inquire o Irmão Kristos. - Um agente?
- É uma coisa parecida, reverendo. Mas é algo mais.
- Você conhece Billy Feinschmecker?
- Conheço. Sempre que passo por aquelas bandas, vou ter com ele para passarmos algum tempo a jogar às cartas.
- Como é que ele está?
- Sobrevive. Coxeia e as mãos tremem-lhe, mas continua a falar pelos cotovelos.
- Sim. Billy é mesmo assim. O que é que posso fazer por si, Mr. Tumulty?
- Do que se trata é do que eu posso fazer por si. Podemos sentar-nos por um bocadinho?
- Está bem, mas não por muito tempo. Tenho uma reunião marcada.
- Percebo perfeitamente. Importa-se que eu acenda o charuto?
- Importo-me, sim.
- Okay - concorda o agente -, então não acendo. Tem cá alguma coisa que se beba?
- Vodca apimentada.
- Essa para mim é novidade, mas aceito. - O Irmão Kristos oferece-lhe a garrafa destapada. Tumulty bebe um gole e pisca os olhos, que se enchem de lágrimas. - Tem
a certeza de que não é ácido de pilha? - Mas bebe mais um gole antes de voltar a pôr a garrafa em cima da mesa. - vou dizer-lhe qual é o negócio, reverendo: eu represento clientes, na sua maioria artistas, e ensino-lhes a maneira de ganhar dinheiro a sério. Neste momento, tenho três cantores, um grupo de rock punk, duas bailarinas exóticas, uma equipa de malabaristas e um ginasta olímpico. Só trato com gente de futuro e trabalho em estreita colaboração com eles. Cobro trinta por cento dos lucros brutos, não negociáveis, mas vale-lhes a pena porque nunca servi de agente a ninguém que não tivesse duplicado o lucro depois de começar a trabalhar comigo. Posso fazer o mesmo para si.
O Irmão Kristos pega na garrafa de vodca e bebe um gole.
- Obrigado, mas não estou interessado.
- Mas devia estar, reverendo. Posso fazer de si um milionário.
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- E como é que ia fazer isso?
- Começava com esta espelunca a que chama "igreja". Se calhar, você acha que é fantástica. Parecida com o estábulo onde Jesus nasceu, não é? Esqueça isso! As pessoas vêm a uma lixeira e dão o que acham que a lixeira vale. Vão à Catedral de St. Patrick, vêem todos aqueles dourados e sentem-se envergonhadas se não derem pelo menos uma nota. Precisa de um sítio decente. Talvez não como St. Pat, mas atraente e confortável, onde as pessoas não tenham que se preocupar com ratos ou baratas. E com ar condicionado. Fartei-me de suar aqui esta noite. A propósito, foi um sermão e pêras! Soava tudo de modo perfeitamente correcto e os pássaros gostaram imenso. Você deu-lhes mesmo no goto.
- Obrigado.
- Não tem de quê. Mas o negócio que tem aqui não é nada. O campo estava cheio de carros arrumados cada um para seu lado. Se pusesse alcatrão e instalasse parquímetros, tinha aqui uma mina de ouro. E porque é que não escreve um livro? Qualquer coisa como Orações do Irmão Kristos para Todas as Ocasiões. Não é preciso ser muito longo, mas faça uma encadernação em imitação de couro vermelho e pode vendê-lo à porta por cinco ou até por dez dólares.
- Boas ideias - comenta Kristos, acenando com a cabeça.
- Está a ver como é que eu trabalho? - interroga Tumulty, pegando na garrafa. - Isto é apenas o princípio. O principal é dar um nome à sua igreja. ê que quiser, não faz diferença. Ponha qualquer coisa com a palavra "sagrado" no título, as pessoas gostam disso. Depois, pode registá-la como organização sem fins lucrativos. Não paga impostos. É assim que se fica milionário. Você tem algum diploma ou algum papel de uma escola religiosa? Não? Bem, isso não é importante. Conheço meia dúzia de tipos na Califórnia que lhe vendem um pergaminho emoldurado por cinquenta dólares.
- Estou a ver que já pensou muito nisto.
- Um bocado. Eu não sou um artista de conversa fiada, reverendo. Faço o que prometo pelos meus trinta por cento. Mas ouça, o melhor ainda está para vir. Uma vez instalado numa igreja decente, com tudo perfeitamente legalizado quanto a licenças municipais, estaduais e federais, então começamos na rádio local. A borla. Talvez uma vez por semana, ao domingo de manhã. Aposto que ia conseguir ter muitos ouvintes. Depois criávamos a Hora do Irmão Kristos, é aí
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que está a massa. Se tudo correr bem, podemos pô-lo na televisão, e nem é preciso dizer-lhe quanto se ganha com isso. Vamos ter de contratar uma equipa só para abrir o correio e para ir depositar os cheques ao banco. Que é que lhe parece?
- Beba mais um pouco - oferece o Irmão Kristos, empurrando a garrafa em direcção a Tumulty e observando em seguida o homem a beber, sequioso.
- Então? - sonda o agente, limpando a boca com as costas da mão. - O que é que me diz a isto? Quer que eu o guie pelo caminho da fama e da fortuna?
- Mr. Tumulty - responde o Irmão Kristos, devagar e com cuidado -, não duvido de que seja capaz de cumprir ponto por ponto o que propõe. Tem algumas ideias muito interessantes e penso que todas elas são viáveis, mas há uma coisa em contrário.
- Ah, sim? E qual é?
Kristos inclina-se para a frente, olhando fixamente para o
outro homem.
- Pode achar difícil de acreditar, mas não tenho qualquer interesse em acumular riqueza e estou perfeitamente satisfeito com a minha vida tal como é. Sim, esta igreja é feia e velha, mas as pessoas que vêm ouvir-me não estão à espera de um sítio luxuoso nem o desejam. Vêm ouvir as palavras do apóstolo de Deus na Terra. Tento ensinar-lhes o amor, a fé e a compreensão de qual é a vontade de Deus. É um rebanho pequeno, mas não pretendo alargá-lo com a vista a obter um ganho pessoal. O dinheiro não significa nada para mim. Tenho o suficiente para comer, beber e vestir-me. Todas as manhãs acordo satisfeito por Deus me ter concedido mais um dia para continuar a Sua obra. Não, Mr. Tumulty, não quero fama nem fortuna. Tudo o que pretendo é ser digno do amor de
Deus.
O agente levantasse de repente.
- Você é bom! É mesmo muito bom! É verdade que Billy Feinschmecker já me tinha dito isso, e agora acredito. Tem o meu cartão, reverendo. Se mudar de ideias, escreva-me ou telefone-me. Podemos fazer grandes coisas juntos.
Depois de ele sair, Pearl e Agnes entram e os três acabam de beber a garrafa de vodca e começam outra, enquanto contam os lucros da noite. Somam um pouco mais de seiscentos
dólares.
Em seguida desembrulham os frangos de churrasco que trouxeram
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e comem, bebem e fazem uma autêntica farra até altas horas da noite. Põem-se a caminho de volta a Washington pouco depois do meio-dia de domingo, com o Irmão
Kristos ao volante, Nick enroscado no banco a seu lado e as duas mulheres a dormir no banco de trás.
Nessa noite, na sua sala, o Irmão Kristos encontra-se refastelado num maple, com as pernas afastadas. Emily Mattingly acha-se de joelhos na sua frente e com a cabeça entre as suas coxas.
- Minha querida - diz-lhe ele, fazendo-lhe festas na cabeça -, hoje, no caminho de regresso, estive a pensar em como podia estar junto do meu rebanho mesmo quando não posso falar com eles pessoalmente. Pensei que podia escrever um livro. Uma coisa pequena e de bom gosto. Talvez com capa de couro vermelho e os bordos das páginas dourados. Podia chamar-lhe Orações do Irmão Kristos para Todas as Ocasiões. Não te importas de contactar amanhã umas tipografias, para ter uma ideia de quanto custaria publicar um livro assim?
Emily faz um sinal afirmativo e ele solta um gemido e segura-lhe a cabeça com mais firmeza.
- E, além disso - acrescenta Kristos -, não te importas de ver se há alguma empresa por aqui que venda parquímetros?
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Durante aquele Verão, o debate sobre o plano de partilha de comida do Presidente sobe de tom e de agressividade. Os observadores estrangeiros concordam em afirmar que nada dividiu tanto a opinião pública americana desde a guerra do Vietname.
Como se esperava, a maior parte dos apoiantes do programa do Presidente são negros, imigrantes asiáticos, sindicalistas, organizações de pobres e desalojados e eleitores com melhor situação financeira e ideias políticas liberais. Mas, para surpresa de muitos, as fileiras da esquerda são reforçadas por milhões de fundamentalistas.
Estas pessoas profundamente religiosas em geral apoiam a
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direita, com ideias conservadoras sobre tudo, desde o aborto à oração nas escolas do Estado. Mas o apelo de Hawkins a uma partilha de comida galvanizou os devotos.
Mais de um jornalista já se referiu ao facto de o plano de partilha de comida ter produzido as mais estranhas alianças. Até já se sugeriu que, se esta coligação entre liberais e fundamentalistas se mantiver, poderá ter consequências profundas nas próximas eleições intercalares.
Esta possibilidade está bem presente no espírito do vice-presidente, Samuel Trent.
- Os vermelhotes de mãos dadas com os santarrões - comenta ele, enojado, para a mulher. - Era só o que faltava a este grande país.
- Sim, querido - responde Matilda, serena, tricotando -, mas tenho a certeza de que só estão de acordo quanto a esta questão.
- É melhor não teres assim tanta certeza. Podem tornar-se um bloco que é preciso ter em conta. - Trent olha para ela, franzindo o sobrolho. - O que é isso que estás
a fazer?
- Um cachecol de caxemira - explica ela, levantando-o. Gostas?
- É muito bonito. Mas bem sabes que eu nunca uso cachecol. É muito amaricado.
- Então fica para presente de Natal para alguém - volve ela, com um sorriso de quem tem um segredo. - Samuel, apetece-me beber qualquer coisa.
- Excelente ideia! Brande?
- Ah, esqueci-me de te dizer, a loja de bebidas tinha uma coisa nova em promoção: vodca apimentada. Comprei uma garrafa.
- Vodca? - repete ele, indignado. - Russo?
- Sim, querido. Mas é muito saboroso. Não queres provar?
- Não, obrigado - recusa ele, com firmeza. - Fico-me pelo bom velho brande da Califórnia. - Trent traz as bebidas e vai colocar-se junto da lareira apagada, apoiando-se no rebordo de mármore, com os pés cruzados. - Matilda - começa ele, em tom solene -, tenho andado a pensar muito no meu futuro político.
- Bem sei que tens, Samuel.
- Penso que os meus esforços para chamar a atenção do
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público americano para a relação entre Hawkins e Kristos tiveramum êxito notável.
- É verdade.
- É claro que Oberfest deu um contributo importante, sou homem para o reconhecer, mas fui eu que engendrei tudo isto e que levei as coisas a bom termo. Agora, todo
o país, todo o mundo até, tem consciência da influência perniciosa que este fanático da religião está a exercer sobre as políticas da Casa Branca.
- Samuel - diz a mulher, levantando os olhos do tricô -, acho que a proposta de lei do Presidente vai ser aprovada.
- Devo dizer-te com franqueza, Matilda - comenta ele, com firmeza -, que neste caso acho que estás enganada. A proposta de lei para distribuição de comida não vai ser aprovada. O lobby dos agricultores vai chumbá-la.
- Mesmo assim, penso que não seria sensato opores-te.
- Não tenciono fazê-lo. Já deves ter reparado que eu não fiz qualquer comentário sobre ela em público. Mas o que mais me preocupa são as consequências que pode vir a ter sobre o futuro do partido. "Este é o momento de todos os homens de boa vontade se unirem para ajudar o partido." Estas palavras são tão verdadeiras hoje como da primeira vez que foram ditas.
- Não me parece que alguém as tenha dito - observa Matilda, bebericando vodca. - É só uma frase que se utiliza para ensinar a escrever à máquina.
- Bem, mas percebes o que quero dizer. Tenho estado a pensar na possibilidade de uma reunião com um pequeno grupo de dirigentes estaduais e de contribuintes para discutir o problema. Ainda há muitos homens bem-pensantes que reconhecem o perigo que o Irmão Kristos representa.
- Acho que estás a exagerar a sua influência.
- Não estou nada a exagerar! - grita o vice-presidente, indignado. - Eu nunca exagero. Digo-te que aquele lunático barbudo, na prática, tomou conta da política interna da Casa Branca. Consegue fazer de Hawkins o que quer. Se eu permitir que esta situação se mantenha, as eleições intercalares podem já estar perdidas e o partido sofrerá um revés de que levará vinte anos a recompor-se. E tudo por causa de um santo de pau carunchoso que afirma ter uma linha directa para Deus.
Matilda olha para ele durante algum tempo.
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- Como já te disse, conheci-o em casa de Lenore Mattingly. Pareceu-me ser um homem muito sincero.
- Tretas! Também Jack, o Estripador, era sincero, pensando livrar o mundo das prostitutas.
Mádida pousa o tricô, levanta-se e dirige-se ao móvel-bar. Deita mais um pouco de vodca apimentada no copo e junta-lhe uns cubos de gelo.
- Não te percebo - declara ela, com severidade. - O teu objectivo inicial era tornar públicas as actividades do Irmão Kristos, com vista a desacreditar Hawkins. Conseguiste, na realidade, ajudar a chamar a atenção do público para o Irmão Kristos, mas agora pareces levar a mal a sua relação com o Presidente, por receares que possa prejudicar o partido. Se isso acontecer, não será possível que uma derrota nas eleições venha a beneficiar o teu futuro político?
- Não, se os loucos tomarem conta do partido. Recuso-me a ficar sentado a olhar enquanto o partido é tomado de assalto pela malta, comandada por um vidente de meia-tigela que pode muito bem estar a receber ordens do Kremlin.
- Agora estás a dizer verdadeiros disparates.
Ficam a olhar um para o outro, com raiva. Ambos são bem-educados e nunca levantaram a voz. Mas apercebem-se agora de que estão em desacordo, de que estão quase a ter uma discussão. As suas paixões exacerbadas surgem-lhes como uma surpresa, quase exitante.
- Deixa-me repetir - afirma Trent, com rispidez -, para que não haja qualquer mal-entendido quanto ao que tenciono fazer. Passei toda a minha carreira aderindo com firmeza e lealdade às plataformas e convicções do partido político que considero o mais capaz de governar este grande país. Agora, essa organização está a ser ameaçada por um influxo de malta da ralé e de fanáticos da igreja. Não vou aceitar isso de braços cruzados. Não vou permitir que o partido em que empenhei a minha vida, a minha fortuna e a minha honra se torne refúgio para a escória da sociedade, que não tem inteligência, linhagem e coragem nobre para dirigir o navio do Estado através dos escolhos de um mundo complexo e muitas vezes hostil.
- Ah, tens cá uma mania das importâncias! - observa Matilda.
E aí é que começa a verdadeira briga. Durante o seu encontro seguinte com o Irmão Kristos, Mrs. Trent informa-o dos planos do marido.
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Um Sol imenso brilha com intensidade num céu de celofane, mas o vento marítimo refresca e ao meio-dia é preciso ainda vestir uma camisola. Aquela extensão da costa
do Maine é um amontoado de seixos e o mar está bravo. Mais para o largo parece calmo, esbatendo-se na bruma do horizonte.
A grande casa cinzenta situa-se no alto da falésia. É uma espécie de castelo encantado, todo ele torreões, minaretes, janelas salientes e uma varanda com a largura
suficiente para lá se colocarem cadeiras, sofás, uma mesa comprida e um velho escaler cheio de terra, onde foram plantados gerânios.
A casa pertence ao embaixador americano no Reino Unido, mas, neste Verão, foi cedida ao Presidente e família, para lá passarem duas semanas de férias, a começar
no feriado do Dia do Trabalho. A equipa pessoal do Presidente e uma guarda montada do Maine estão de serviço.
O Presidente e Mrs. Hawkins ocupam o quarto principal. George partilha um quarto mais pequeno com o sargento McShane. Os outros ficam dois a dois em quartos mais pequenos. Mas a maior parte do séquito, incluindo jornalistas e fotógrafos, tomou de assalto o único motel da cidade mais próxima, o Bears Head.
Na terça-feira de manhã, uma hora antes de o almoço ser servido no relvado do lado oriental da casa, George e o guarda-costas saem em reconhecimento. Há largos hectares de floresta que descem da falésia até à estrada e o rapazinho fica fascinado pela natureza selvagem de troncos de árvore retorcidos, mato emaranhado e tufos inesperados de flores e frutos silvestres.
O sargento McShane veste calças de camuflado com um cinto de couro entrelaçado e botas de combate. George traz vestido um uniforme igual, em miniatura, acrescido de um capacete de plástico verde-azeitona. Traz também uma faca de mato de borracha presa à cintura e uma espingarda de brinquedo que dispara faíscas de cada vez que se preme o gatilho.
Movem-se devagar, ao longo de um estreito carreiro de terra, e o marine vai explicando a arte de patrulhar em ambiente florestal: evitar pisar galhos, não deixar que os ramos rasguem a roupa, olhar sempre para todos os lados e parar com frequência, para ouvir qualquer ruído suspeito.
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George vai à frente, de arma em riste. Seguem com cautela durante quase dez minutos, com a floresta a tornar-se mais densa à sua volta, a casa invisível, o ruído do mar atenuado. De súbito, um esquilo gordo dá um salto louco, atravessando o carreiro. O rapaz levanta a arma e dispara duas rajadas de faíscas.
O animal esconde-se no mato e, antes de McShane ter tempo de intervir, o miúdo lança-se em sua perseguição. Segundos depois, desaparece e o guarda-costas, surpreso, vai atrás dele, gritando:
- George! George, volta para trás!
Atravessa um emaranhado de pequenas árvores, trepadeiras e arbustos, tropeçando em troncos caídos, o rosto arranhado e cortado por ramos mais baixos.
- George! George! - grita Dennis McShane, em desespero crescente.
Mas não consegue ver o rapaz. Pára subitamente e põe-se à escuta. Nada. Continua então a sua busca frenética, receando o pior e imaginando um conselho de guerra, por negligência do dever, se o pior vier a acontecer.
Continuando a gritar pelo miúdo, atravessa a correr um tufo de pequenas árvores e consegue segurar-se mesmo a tempo de não cair. Fica a balançar-se à beira de uma ravina cheia de pedras. E lá no fundo, caído de costas, está o corpo contorcido do filho do Presidente.
Praguejando, McShane desce e inclina-se sobre o corpo do miúdo. Não vê sinais de sangue, mas os olhos de George estão fechados e este não se mexe. Pelo menos, o tórax move-se e os braços e as pernas parecem intactos.
- George? - chama o sargento, mas não recebe resposta. Sem tocar no rapaz, Dennis sobe de novo a ravina e volta
até ao carreiro de terra. Tira o cinto e deixa-o pendurado num ramo, para marcar o caminho. Em seguida, começa a correr de volta até à casa, para dar o alarme.
Depois disso, tudo é muito rápido. Vai-se ao Bears Head chamar uma ambulância.
O helicóptero do Presidente, que está no aeródromo de Bangor, é mandado vir e aterrar no campo de futebol do liceu.
O sargento McShane volta à ravina com o médico particular do Presidente e dois agentes dos serviços secretos.
Os jornalistas são informados de que o filho do Presidente
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sofreu um acidente, ignorando-se ainda a gravidade dos ferimentos.
George não voltou a recuperar a consciência, mas o sangue escorre-lhe num fluxo constante pelo canto da boca. O médico receia uma hemorragia interna, faz-lhe um tratamento contra o choque e prepara uma injecção de coagulante.
McShane organiza uma equipa dos homens mais fortes que encontra. Equipados de machados, pás, etc., começam a abrir um caminho através da floresta, a partir da ravina e até ao carreiro de terra.
Um hospital em Bangor é alertado e fica a postos para receber um "importante" doente na sua unidade de urgência.
O médico particular de George e a sua enfermeira preferida no Walter Reed, em Washington, são levados de urgência até à base aérea de Andrews e metidos num avião para Bangor.
O filho do Presidente, ainda inconsciente, é colocado numa maca, tapado com cobertores e levado com cuidado da ravina até à ambulância. Os pais vão com ele até ao helicóptero.
No aeroporto de Bangor está outra ambulância à espera e o rapaz é levado para o hospital.
Um exame mais pormenorizado confirma o diagnóstico inicial: embora tenha sofrido contusões na queda, George não tem qualquer fractura. Mas tem, ao que parece, lesões internas e está com uma hemorragia grave. Os médicos estão a considerar a hipótese de uma operação.
Às nove e quarenta e seis da noite de terça-feira, o Presidente telefona ao Irmão Kristos.
Quando o telefone toca, Kristos está deitado ao comprido na cama desfeita, nu e num estado de completa embriaguez. No chão, há uma garrafa de vodca vazia. O quarto cheira a sexo. Kristos levanta-se, cambaleante, e atende o telefone.
- Irmão Kristos?
- Sim.
- É só um momento, por favor, o Presidente quer falar consigo.
- Irmão Kristos?
- Sim, pai, estou aqui. Hawkins conta-lhe o que aconteceu.
- Não podem dar-nos a certeza de que a hemorragia irá parar. Pensam que talvez devessem operar.
- Não - aconselha Kristos -, não os deixe fazer isso.
- Tem a certeza de que o meu filho vai recuperar sem ser operado?
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- Tenho. - A hemorragia vai parar e o rapaz vai ficar bom.
- Obrigado - diz o Presidente, em voz rouca. - Temos inteira fé em si. A minha mulher diz que lhe está eternamente grata.
O Irmão Kristos pousa o auscultador. Levanta-se a tremer, vai aos tombos até ao espelho da cómoda e observa a sua imagem. Cabelo, bigode e barba molhados de suor. Lábios secos. E pele com cheiro a suor seco. Tem marcas de dentadas avermelhadas na parte interior das coxas.
Descobre as calças e, com as mãos a tremer, tira-lhes o cinto. Enrola-o à volta da mão até que, quando aperta os dedos, um pedaço de couro fica solto, tendo na extremidade a fivela de prata.
Coloca-se de pé em frente do espelho, olhos flamejantes fixos nos da sua imagem. Começa a chicotear-se, lançando o cinto alternadamente por sobre cada um dos ombros. A fivela finca-se na carne das costas. Mas não com força suficiente, de modo algum.
Os golpes tornam-se mais rápidos e frenéticos. Por fim, sente o sangue começar a correr e, de forma quase alegre, flagela-se. O braço levanta-se, baixa-se, levanta-se, baixa-se. A fivela fere mais fundo e ele conhece o êxtase da dor.
Chicoteia-se em silêncio, com os lábios afastados, numa expressão felina. Não geme nem grita, mas continua em ritmo constante: ombro direito, esquerdo, direito, esquerdo. As suas costas feridas estão agora cobertas de sangue. Mas ele continua a chicotear-se até o braço ficar tão cansado que já não consegue levantá-lo e as pernas lhe ficarem a tremer.
Por fim, cai de joelhos, ao lado da cama, agarra nos lençóis manchados e inclina a cabeça. Reza, não pedindo perdão, ou misericórdia, ou outra qualquer dádiva de Deus para além da salvação do rapaz.
Tollinger nunca viu o chefe de gabinete de tão mau humor.
- Isto é o fim! - exclama Folsom, furioso. - É evidente
que me sinto satisfeito por o George estar a recuperar. Toda a
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gente se sente. Mas o patrão jura que foi tudo graças ao Irmão Kristos, muito embora o rapaz se encontrasse no Maine e Kristos em Washington. O que é que você acha disto? Cura milagrosa a distância?
- Chefe - responde John -, se se aceita a viabilidade de uma cura milagrosa, então suponho que se deve acreditar que possa ter lugar à distância.
- Mas você não aceita isso?
- Não, não aceito. Penso que o George é um rapaz com sorte, que não ficou muito gravemente ferido e que teria recuperado de qualquer modo, sem recurso à cirurgia e sem as orações do Irmão Kristos.
- Mas vá lá dizer isso ao patrão! - brada Folsom, com azedume. - Ele põe-no na rua. Está absolutamente convencido, e a mulher também, de que o filho deve a vida ao Irmão Kristos. E não há nada que alguém lhe possa dizer para o convencer do contrário. Por isso, acho que o melhor que temos a fazer agora é tentar não ligar importância ao Irmão Kristos e planear o controlo dos estragos em relação à proposta da partilha de comida.
- Não vai ser aprovada, pois não?
- Não. O Padreca e eu estivemos esta tarde no Capitólio a contar cabeças, e não tem hipótese. Os estados agrícolas vão chumbá-la. Para evitar a vergonha de uma derrota, o patrão devia passar palavra para a deixar morrer na Comissão. Mas ele insiste em levá-la à votação. Talvez pense que se o Irmão Kristos resmungar uma oração, a proposta será aprovada sem luta. Deve ter cá uma sorte!
Tollinger volta para o seu gabinete, desanimado com o que ouviu. Ele que sempre foi um homem de introspecção verifica agora que não consegue ordenar ideias a respeito do Irmão Kristos. Aquilo que começou como fúria, por o homem ter "convertido" Jennifer, transformou-se numa emoção muitíssimo mais complexa. E um dos ingredientes, admite ele, envergonhado, é o medo.
Em cima da secretária de Tollinger espera um recado. Marvin Lindberg telefonou e deixou um número de telefone de Alexandria. Tollinger fica a olhar para a nota, pensando em qual será a urgência que fez o ex-agente do FBI telefonar-lhe para a Casa Branca. Mas quando Lindberg atende o telefone, não parece haver qualquer urgência.
- Já estou de volta há algumas semanas - informa ele. -
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Tenho estado a pôr o correio em dia e a tirar a poeira do campo de cima de mim. Estava a pensar se nos poderíamos encontrar. Quando lhe convier. Não é nada de importante, é só para conversarmos.
- Claro que podemos encontrar-nos - responde Tollinger, devagar. - Ouça, está prevista uma noite amena. Que tal se você fosse até minha casa e eu fizesse uns bifes no churrasco? Não sou muito bom cozinheiro, mas não deixo queimar os bifes.
- Acho bem - concorda Lindberg. - Por volta das oito?
- Está muito bem. O que é que você bebe agora?
- Água com gás.
- Faz muito bem.
A caminho de casa, John pára no supermercado, para comprar dois bifes grossos, uma embalagem de salada mista de legumes, uma lata grande de batatas novas (prontas a comer), uma embalagem de seis garrafas de água com gás, para Lindberg, e uma de cerveja Molson para si. Fazer compras põe-no mais bem disposto e ele dá consigo satisfeito por desempenhar o papel de anfitrião.
A primeira coisa que faz em Spring Valley é preparar um Martini duplo, o que o põe ainda mais bem-disposto. Despe o fato e veste umas calças de caqui e uma camisola
de algodão de gola alta, preta. Depois começa os preparativos.
Nas traseiras da casa há um pátio empedrado que dá para um pequeno relvado. John abre o churrasco, deita-lhe um monte de carvão, acende o lume e fica à espera de
que os carvões fiquem cobertos por uma camada cinzenta. Salpica os bifes com alho em pó, deita a salada e as batatas em taças de vidro e põe a mesa. Por essa altura,
o copo de Martini já está vazio, mas não prepara outro.
Lindberg chega com apenas alguns minutos de atraso. O detective vem magro, pálido e com olheiras. Mas os olhos brilham com bastante vivacidade e deixa-se cair numa
das cadeiras de jardim com um suspiro de satisfação. Observa Tollinger enquanto este espeta os bifes no churrasco.
- Se você soubesse o que tenho comido durante os últimos meses, vomitava. Papas de aveia! Estou cheio delas até às orelhas. As minhas papilas gustativas sofreram
um duro e singular castigo.
- O que é que aconteceu à boa velha comida caseira do Sul?
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- Deve ter-se perdido a arte, não a encontrei.
- Gosta do bife mal passado?
- Gosto. Não se importa que eu vá mastigando umas batatinhas destas enquanto esperamos?
- Claro que não. E sirva-se de mais água e gelo quando quiser. Pus tudo no balde. Está uma noite óptima, não acha?
E é verdade. A noite está morna, com uma brisa suficiente para afastar os insectos e uma Lua cheia num céu sem nuvens. E o cheiro do alho e dos bifes grelhados também ajuda.
- Recebeu o dinheiro sem problemas? - pergunta Tollinger.
- Recebi. Foi uma verdadeira perseguição. Gostei imenso até ao fim.
- Podemos conversar sobre isso enquanto atacamos esta carne vermelha. Eu vou beber cerveja. Não o incomoda, pois não?
- É evidente que me incomoda ver outra pessoa beber e lembrar-me do sabor. Mas já aprendi a viver com isso. Um dia de cada vez. Vá lá, beba a sua cerveja. Só lhe
peço que não faça muitos estalos com os lábios.
John lembra-se de levar os pratos ao churrasco, e não o contrário. Uma vez, deixou cair o que trazia no garfo, quando tentava levá-lo para a mesa. Serve ambos, e em seguida abre uma garrafa e deita cerveja num copo.
- Você ainda vai aos Alcoólicos Anónimos?
- Ainda - responde o ex-agente do FBI, cortando a carne. - Enquanto andei na estrada, sempre que parava numa cidade que tinha um grupo, ia a uma reunião. Isto está óptimo!
- Quer molho ou outra coisa assim?
- Não, está muito bom assim. Ouça, lamento não ter conseguido descobrir nada do que queria sobre o Irmão Kristos. Acredite que tentei, mas, conforme lhe disse na minha última carta, ele parece estar perfeitamente limpo, em termos legais. Assim, você gastou imenso dinheiro para nada.
- Não. Os seus relatórios disseram-nos muita coisa que não sabíamos. Isso ajuda-nos a perceber melhor o homem.
- Sim, sim - aceita o detective, tirando uma mão-cheia de batatas. - Ele está de facto a subir na vida, não é?
- É.
- Tu cá, tu lá, com o Presidente, visitas ao Gabinete Oval, dando conselhos sobre a política da Casa Branca. É muito
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bom para um aldrabão de feira que começou a carreira a deitar cartas na tenda de Madame Olga, não acha?
- É verdade, ele chegou longe.
- Longe de mais, quanto a mim. Alguém devia dar cabo daquele tipo.
- Quem? E como?
- Tem de haver uma maneira. Suponho que estou fora do caso, não?
- Sim. Você fez um óptimo trabalho, mas não faz sentido continuar a investigar. Já tem jornalistas que cheguem atrás dele. Não é fácil pegar num jornal ou numa revista que não traga alguma coisa sobre o homem.
- Sim. Mas talvez eu vá continuar a vigiá-lo. Tollinger olha para ele, com curiosidade.
- Para que é que havia de fazer isso?
- Ah!... Só para me divertir.
Terminam a refeição e afastam as cadeiras da mesa.
- Tenho gelado - diz John. - Está interessado?
- Não, obrigado. Mas gostava de um café.
- Não se importa que seja instantâneo?
- Não, é sempre desse que bebo.
- Quer o café gelado?
- é uma óptima ideia! Bastante forte.
Tollinger vai à cozinha, dissolve café instantâneo em dois copos altos, por debaixo da torneira de água quente. Em seguida, enche os copos de cubos de gelo e água
fria. No último minuto, bebe um pouco do seu e junta-lhe umas gotas de conhaque. Leva os cafés gelados para o jardim.
Lindberg bebe um gole.
- Está óptimo! - exclama ele. - Você deitou brande no seu, não deitou?
- Como é que sabe?
- Cheira-me. O brande tem um cheiro intenso e desde que deixei de beber e de fumar o meu olfacto melhorou cem por cento.
Ficam um bocado sentados às escuras, gozando a calma da noite. Ouve-se uma súbita gargalhada, vinda do jardim de um vizinho; a vida continua e alguém a está a apreciar.
- Estou interessado em saber porque é que quer continuar a investigar o Irmão Kristos - diz Tollinger, por fim.
- Não estou a tentar arranjar outra missão. vou fazer isso por mim próprio.
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- Mas porquê?
- é uma longa história.
- Temos toda a noite.
- Já vem de há anos. Eu era agente na delegação de Wichita. Um tipo raptou uma miudinha de seis anos. Levou-a por quatro estados, violando-a pelo caminho. Depois,
estrangulou-a, cortou o corpo em pedaços e embrulhou-os em jornais velhos. Deixou os embrulhos em caixotes do lixo em Little Rock. Apanhámo-lo num celeiro abandonado, não muito longe de Memphis. Mandámo-lo deitar a arma fora (ele tinha uma pistola Luger) e sair com as mãos no ar. O homem fez o que lhe mandámos, e eu matei-o. Foram disparos certeiros. Meti-lhe três balas no peito, de tal modo que podiam ser cobertas pelo ás de espadas. Todos os outros tipos, tanto do FBI como da polícia local, juraram que o homem me tinha apontado a pistola, e tudo ficou por ali.
Tollinger mexe-se na cadeira, pouco à vontade.
- Já alguma vez se sentiu arrependido? - pergunta.
- Nunca - confessa Marvin Lindberg. - Mais tarde, houve outros casos, alguns ainda piores. Cheguei à conclusão de que todos podemos ser iguais perante a lei, mas que há pessoas pura e simplesmente más. A hereditariedade e o ambiente nada têm a ver com isso. Nascem más, vivem más e morrem más.
- Será o pecado original?
- Talvez. Seja como for, decidi que certas pessoas não merecem viver; foi tão simples como isso.
- Foi então que começou a beber? - inquire John, em voz calma.
Lindberg olha-o nos olhos.
- Você às vezes é demasiado esperto. O que na realidade aconteceu foi que comecei a beber quando a minha mulher morreu. Mas isso não é para aqui chamado. O FBI acabou por me pôr na rua. Uma noite, acordei numa sarjeta em Baltimore. Estava nojento e tinha sido roubado, claro. Até me tiraram os sapatos. Sabia que me estava a matar com a bebida, e isso meteu-me medo. Por isso, na noite seguinte, fui aos Alcoólicos Anónimos e nunca mais bebi. Acha a história romântica?
- Nem por isso. É mais deprimente que romântica.
- Sabe alguma coisa dos Alcoólicos Anónimos?
- Pouco.
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- bom, têm uma forte base religiosa. Tem de se acreditar num poder maior do que nós próprios, se se quer de facto corrigir o vício. Os Alcoólicos Anónimos não estão ligados a qualquer religião ou seita em particular, mas pedem que se acredite em Deus como cada um O entende. Isto pode parecer-lhe um grande disparate, mas devo dizer-lhe que no meu caso tem dado resultado.
- É isso que importa.
Lindberg acaba de beber o seu café gelado e começa a esmagar os cubos de gelo.
- A razão por que estou a maçá-lo com esta confissão é para que compreenda o que sinto em relação ao Irmão Kristos. Reconhecer a realidade de Deus salvou-me a vida, e não me agrada um tipo que faz negócio com esta ideia para ganhar uns cobres.
- Antes de continuar - interrompe John -, devo dizer-lhe que sou agnóstico.
- Cada um é como é. Mas quando acabei a investigação sobre Kristos percebi que aquele tipo é um autêntico verme. Anda a utilizar a coisa mais preciosa desta vida, a fé, para ganhar dinheiro, comprar bebidas e saltar para cima das mulheres. Para ele, a religião não é mais do que um jogo viciado numa feira, para enganar os papalvos.
- Bolas! Você não pode mesmo com o homem!
- Odeio-o. E é por isso que vou continuar a segui-lo durante algum tempo. Até conseguir desmascará-lo e mostrar o demónio que ele é.
- Ah? E como é que pensa fazer isso?
O detective fica em silêncio durante tanto tempo que Tollinger começa a pensar que ele não vai responder. Por fim, Lindberg abre outra garrafa de água gasosa, bebe um gole e inclina-se para a frente, os braços apoiados nas pernas.
- Você confiou em que eu guardaria segredo. Por isso, penso que também posso confiar em si. Aqui vai outra história. Não estive pessoalmente envolvido nela, mas ouvi-a da boca de um agente que trabalhava em San Diego. Os protagonistas são um aldrabão e a mulher, ambos com trinta e bastantes anos, bem-parecidos, bem vestidos. Ganhavam bem a vida vendendo falsas acções de companhias petrolíferas a viúvas e fazendo batota ao jogo em navios de cruzeiro.
"Tinham uma filha que, segundo o meu colega, era uma beleza. Tinha apenas quinze anos, mas era alta, esguia, e,
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quando se pintava e usava um vestido de noite elegante, passava por vinte e um. Por isso, arranjaram esta versão do velho jogo da chantagem.
"A família instalava-se num hotel onde estivesse a ter lugar um congresso. A filha percorria o bar e tentava engatar um tipo de meia-idade, meio impotente e desejoso de provar que era muito bom na cama. Avisava a mãe quando tinha apanhado o peixe e subia para o quarto do homem.
"Os pais davam-lhe uns dez minutos para ela se despir e para o homem despir as calças. Então começavam a bater à porta do quarto, ameaçando arrombá-la. Uma vez lá
dentro, a mãe mostrava a certidão de nascimento da filha e o pai fingia ser polícia, com um crachá falso e identificação também falsa. O participante no congresso era acusado de tentar desviar uma menor.
"Depois de toda aquela histeria, o parvo estava, em geral, plenamente disposto a pagar todo o dinheiro que tinha ou que podia pedir emprestado. O esquema funcionava sobre rodas e o lucro por vítima ia desde umas centenas até mais de três mil dólares de uma vez. A família percorria a costa oeste de uma ponta à outra, conforme os locais onde se realizavam congressos. Tiveram um bom negócio durante mais de um ano.
- Mas foram apanhados?
- Acabaram por ser. Houve vários tipos que tiveram a coragem de apresentar queixa, depois de tudo se acalmar, e o FBI foi pouco a pouco compilando um dossier com as descrições do trio. Quando voltaram a aparecer em San Diego, o homem que a filha engatou no bar era o tipo que me contou a história, o agente do FBI.
- Muito interessante - comentou Tollinger -, mas o que é que isso tem a ver com o Irmão Kristos?
Lindberg olha-o fixamente.
- É assim que o vou tramar - explica ele. - vou vigarizar o vigarista. Ouça, já pensei muito bem nisto. Kristos tem três pontos fracos: a ganância do dinheiro,
a sede de vodca e o desejo de mulheres. Não posso fazer grande coisa quanto aos dois primeiros, mas acho que posso apanhá-lo por meio do terceiro. Segundo me consta,
o homem não consegue manter o fecho das calças apertado. Por isso, vou enganá-lo com uma menor. Acho que vai morder o isco. Só que ele não vai escapar pagando em dinheiro, como os participantes nos con-
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gressos. A mãe irá divulgar a acusação de tentativa de violação aos jornais. Isso vai fazer o Irmão Kristos cair do pedestal. - Lindberg recosta-se na cadeira e bebe, sequioso, o resto da água. - O que é que pensa disto?
- Piroso - observa John -, mas eficaz... se der resultado.
- Vai dar resultado - replica Lindberg, confiante. - Tenho de limar algumas arestas, mas já tenho em vista uma mãe e uma filha para desempenharem o papel. São perfeitas. Nem em Hollywood faziam melhor.
- Querem que lhes paguem para o fazer?
- Evidentemente.
- E é por isso que me está a contar todo o plano. Quer que eu o financie.
- Não pessoalmente. Mas aqueles que você representa.
- E quanto é que custa?
- Dois mil adiantados. A mãe e a filha ficam com esse montante, mesmo que o esquema falhe. Mais cinco mil, se der resultado. Nada para mim. Basta-me a satisfação.
- Acho que preciso de mais um brande. - Tollinger vai à cozinha, deita uma boa dose de conhaque no seu copo de café gelado vazio e bebe-o de um trago. Apercebe-se de que a sua boa disposição desapareceu. Pergunta-se a si próprio se a melancolia será devida à sua transformação de homem de reflexão em homem de acção. Volta ao jardim. - Está bem. Vamos a isso.
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Encontram-se na sala de estar de Mrs. Mattingly, com o Irmão Kristos, sentado na cadeira de verga maior, fitando as outras pessoas com o seu olhar implacável.
A primeira dama está presente, com Jennifer Raye à sua direita. Lu-Anne Schlossel mexe-se, nervosa, num sofá forrado de chita, ao lado de Lenore Mattingly. Emily Mattingly está sentada num pufe de verga que tem por cima uma almofada forrada de bombazina.
Kristos não come nem bebe nada, mas Agnes Brittlewaite serve, com indiferença carrancuda, chá e biscoitos de gengibre às senhoras.
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Lu-Anne espera que Agnes saia da sala para continuar o que estava a dizer.
- Lamento ser portadora de más notícias, Mrs. Hawkins, mas pode dizer ao Presidente que a proposta de lei sobre a partilha de comida está em graves apuros. Vamos aprová-la na Comissão, mas, se for levada a plenário, perde. No senado, ao que me consta, nem sequer irá passar da Comissão.
- O meu marido vai ficar desiludido - lamenta Mrs. Hawkins, com tristeza. - Tal como eu. Não há nenhuma maneira de a salvar? Há tantas pessoas com fome que precisam dela.
- Concordo, mas o iobby dos agricultores caiu-nos em cima.
- Montaram uma campanha extraordinariamente bem organizada e financiada - acrescenta Jennifer. - Tenho a certeza de que todos viram os anúncios nos jornais e na televisão. O que dizem é que a proposta deve ser derrotada, para preservar a quinta familiar. O que não dizem é que, nos tempos que correm, a maior parte dos alimentos são produzidos por grandes empresas, que têm receio de que a lei da partilha de comida as faça perder lucros.
- Não é justo! - brada Emily. - Vejo aquelas fotografias de famílias com criancinhas esperando em fila à porta de uma sopa dos pobres, para lhes darem um pouco de guisado aguado e um pedaço de pão, e dá-me vontade de chorar.
- Nós, pessoalmente, fazemos o que podemos - interpõe a mãe - e tenho a certeza de que todos os nossos amigos também contribuem. Mas as instituições de caridade privadas são limitadas. Li no outro dia que há agora vinte milhões de pessoas com fome em todo o país. Imaginem! Vinte milhões!
- Irmão Kristos - suplica a primeira dama -, há alguma coisa que possa sugerir para fazer com que a proposta seja aprovada? Afinal de contas, as sondagens mostram que a maioria da população é a favor.
As senhoras olham com esperança para ele e Kristos fecha os olhos devagar. Todas esperam em silêncio, pensando que talvez ele esteja a rezar. Quando Kristos abre de novo os olhos, as senhoras observam que o seu olhar se intensificou.
- Irmãs, a proposta vai ser aprovada - anuncia ele, na sua voz monocórdica. - Os que têm fome serão alimentados. É uma promessa que vos faço.
O ambiente fica mais leve; as senhoras entreolham-se com sorrisos aliviados.
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- Posso dizer isso ao meu marido? - pede autorização Mrs. Hawkins.
- Pode. Diga ao pai que vai conseguir e que o seu acto de misericórdia será abençoado. - Levanta-se de súbito. Traz vestida a sua camisa de cossaco, de seda preta, e usa cruz de ouro, anel de diamante e uma pulseira de ouro com símbolos entrelaçados. - É a vontade divina -, proclama ele - e o Pai Eterno alimentará os seus filhos. Tende confiança em Deus e a vossa fé será recompensada. Agora, deixo-vos, pois tenho muito que fazer para cumprir as ordens do Senhor. Congressista Schlossel, não se importa de me acompanhar?
Surpreendida, Lu-Anne Schlossel levanta-se, pega no casaco e na mala e apressa-se a sair da sala, atrás de Kristos. Segue-o pela escada acima, até ao seu apartamento. Kristos faz-lhe sinal em direcção à grande mesa da sala e fecha a porta à chave. Entra no quarto e volta com um frasco de cristal cheio de vodca e dois copos.
- É assim que cumpre as ordens do Senhor, padre? - interroga-o ela, trocista.
- Isto ajuda - responde ele, sem sorrir.
- Para mim, só um pouco. O Congresso tem uma sessão marcada para esta noite.
Kristos deita um pouco de vodca para Lu-Anne e enche um copo para si. Puxa a sua cadeira para mais perto dela.
- Acredita de verdade naquilo que nos disse lá em baixo?
- deseja saber Lu-Anne. - Sobre a proposta de lei de partilha de comida ser aprovada, ou é só conversa, para dar esperança aos fiéis?
- Vai ser aprovada.
Lu-Anne bebe um pequeno gole de vodca.
- E depois de conseguir que seja aprovada, vai dar um passeio no rio Potomac?
Kristos ignora esta observação.
- Quero falar consigo acerca de outra coisa. Você trabalhou muito na proposta de lei do Presidente e merece saber. O vice-presidente, Trent, é meu inimigo figadal. Pensa que eu tenho uma influência nefasta sobre o Presidente.
- Isso não é segredo nenhum. Há meses que ouço boatos sobre Trent.
- Mas o que não sabe é que Trent está a planear encontrar-se com os mais altos dirigentes do partido para combinarem destruir-me.
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- Ah, sim? - replica ela, olhando-o com curiosidade. E como é que soube disso, foi uma voz do Céu?
Kristos bebe um longo trago de vodca.
- Soube-o, como diriam os jornalistas, de "fonte bem informada". Trent não gosta do que se está a passar no partido. Acha que este está a ser tomado pelas minorias
e por aqueles a quem ele chama "os loucos".
- Quer ele dizer pessoas que vivem do seu trabalho. Ele herdou o dinheiro que tem.
- bom, a finalidade do encontro é convencer os manda-chuvas do partido a abandonarem Hawkins e a apoiarem Trent como candidato à presidência.
Lu-Anne Schlossel esvazia de repente o copo.
- O homem tem mais ambição que miolos. Mas neste caso devo confessar que tem algumas hipóteses. Se o partido sofrer uma derrota nas eleições intercalares, toda a
gente vai andar à procura de um bode expiatório e Abner Hawkins é o candidato perfeito.
- E há mais - prossegue o Irmão Kristos, voltando a encher o seu copo. - Se Trent conseguir o acordo dos homens da massa, pode ser que se demita de imediato. Depois,
vai dar cabo de Hawkins, por este se deixar manipular por mim e por trair as tradições do partido ao atender a grupos de interesses particulares.
Lu-Anne Schlossel fita-o, atónita.
- Você é mesmo um feiticeiro. Trent demitir-se? Tem a certeza?
- É uma hipótese muito provável. Ela fica um momento pensativa.
- É - acaba por concordar -, faz sentido, do ponto de vista de Trent. Vai utilizá-lo a você como bode expiatório. E, quando a proposta de lei tiver sido reprovada,
Trent achar-se-á em posição ainda mais forte.
- Mas a proposta não vai ser reprovada.
- Isso é o que você diz. Mas como é que pensa que a vai fazer passar?
- Depois das eleições, espero alguns meses e sugiro então ao Presidente que retire a sua proposta original e submeta uma nova ao Congresso. A segunda proposta incluirá as mesmas disposições da anterior, mas também um aumento dos preços pagos ao agricultor.
Os olhos de Lu-Anne abrem-se muito. Levanta-se de um salto, abraça o Irmão Kristos e beija-o nos lábios.
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- Ah, você é um génio! Que óptima ideia! Assim, a proposta será aprovada sem qualquer dificuldade. Como é que os agricultores se podem opor a uma coisa que lhes enche mais os bolsos?
- A minha família era uma família de agricultores - explica Kristos, impassível. - Eu sou a favor de se distribuírem os excedentes de comida do Estado, mas isso não deve prejudicar os preços que os agricultores recebem por aquilo que produzem com o seu suor. Isso não está certo.
- com isso estou de acordo - declara Lu-Anne, acenando com a cabeça. - Ouça, se alguma vez decidir candidatar-se a um cargo público, avise-me primeiro. Que maravilha, padre! Uma verdadeira maravilha! Mas, diga-me uma coisa: porque é que quer esperar até depois das eleições para convencer Hawkins a alterar a proposta? Se ele o fizer já, o partido tem uma boa hipótese de ganhar.
- Porque o destino do partido não me diz respeito - esclarece em tom frio o Irmão Kristos. - Eu quero que perca as eleições. Porque quero que Samuel Trent se demita de vice-presidente. Depois, Hawkins submeterá a proposta revista, que será aprovada. Hawkins será de novo nomeado pelo partido.
- Por outras palavras, você quer dar cabo de Trent, não é?
- Quero. O homem não é religioso. Lu-Anne ri com gosto.
- Não é religioso? Essa é a melhor razão que já ouvi para lixar um político. Ainda bem que sou sua amiga, e não sua inimiga. Sou realmente sua amiga, não sou?
- É - tranquiliza-a Kristos, com o seu sorriso felino. Uma amiga valiosa.
- Então, de que é que estamos à espera? - explode ela, levantando-se e puxando-o em direcção ao quarto. - Selemos a nossa amizade. Ouvi dizer que você é terrível na cama. O pequeno corpo de Lu-Anne é todo osso, tendão e músculo. Tem força e a pele parece veludo negro. - Sem mamas nem eu - diz-lhe ela -, mas com suco. Seja bruto à vontade: eu vergo-me, mas não me parto. - Enrola-se à volta dele, explorando-lhe a pele: - O que é isto? - investiga Lu-Anne, acariciando a cicatriz que Kristos tem no ventre.
- Uma facada.
- E estas? - continua ela, tocando nas feridas cobertas de crosta nas suas costas. - Parece que levou com o chicote.
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- Foi.
- Que grande homem de religião que você me saiu - comenta ela, trocista. - Vá lá, feiticeiro, mostre-me a sua magia. - Lu-Anne corresponde inteiramente à excitação de Kristos. Os seus esforços demoníacos fazem-nos rolar no chão. Ela recebe o peso do homem com grunhidos de prazer, puxando-lhe o cabelo, a barba e os ombros peludos, para o ter mais perto, mais apertado. - Meu Deus! - exclama ela uma vez, sem fôlego, aceitando em seguida os seus furiosos movimentos, de olhos fechados e mostrando os dentes.
Por fim, exaustos e cobertos de suor, ficam deitados, imóveis.
Lu-Anne abre os olhos e levanta a cabeça de Kristos, para lhe contemplar o rosto.
- O Senhor é meu Pastor - murmura ela. - Nada me faltará.
- Ámen - responde o Irmão Kristos.
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No avião para Nova Iorque, Trent pergunta, pela terceira vez:
- Preparou tudo?
- Sim, senhor vice-presidente - acalma-o Oberfest, com paciência. - Vai estar um carro à nossa espera no aeroporto, para nos levar directamente ao Bedlington. Reservei uma surre em meu nome. Haverá bebidas, cocktails, gelo, charutos, cigarros.
- Talvez devêssemos ter pensado em servir um jantar diz Trent, preocupado.
- Não me parece. Comer seria uma distracção. E o senhor foi o primeiro a dizer que a reunião não deve demorar mais de duas ou três horas.
- Sim, é verdade. Deve ser tempo mais do que suficiente para eu os convencer, não acha?
- Acho.
- Não se importa de servir de barman? Aqueles tipos estão habituados a ter quem os sirva.
- Está bem, senhor vice-presidente.
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- E não fale, a não ser que lhe façam perguntas directas.
- Sim, senhor vice-presidente.
A suite no Hotel Bedlington não é luxuosa, mas mostra-se bastante confortável. Trent acha que está demasiado aquecida e manda Oberfest abrir uma janela. Inspecciona o bar e fica satisfeito ao ver que tem uma larga variedade de garrafas. E a vodca é americana. Verifica também que há um rolo de papel higiénico intacto na casa de banho.
- São as pequenas coisas que contam - explica ele a Michael.
Os quatro homens que chegam, um de cada vez, durante a meia hora seguinte, podem não ser os membros mais ricos do partido, mas são bastante ricos, activos no partido e com grande influência na sua política e organização. Todos eles milionários à sua custa, há muito tempo que reconheceram que poder não utilizado é poder recusado.
É evidente que todos se conhecem, e, depois de Oberfest lhes ter distribuído bebidas e charutos, estabelece-se entre os quatro uma troca de piadas obscenas, que Trent considera mais próprias do vestiário de um clube desportivo do que de uma importante reunião política.
Os homens são Weisbard, Nugent, Packinho;íse e Whitman, todos membros dos conselhos de administração de grandes empresas. Quando aquela conversa rouca se acalma, Trent levanta-se e espera que todos estejam atentos. Lança-se então num discurso ensaiado já por duas vezes, uma das quais na presença de Matilda, cuja reacção foi: "Tens a certeza que sabes o que estás a fazer?"
- Em primeiro lugar, quero agradecer-lhes por terem vindo - começa ele. - Sei que são todos pessoas muito ocupadas. Mas o assunto que quero discutir é de tal importância que achei essencial a realização de um encontro confidencial.
- Conta-lhes então aquilo que eles já sabem: as sondagens mais recentes indicam que nas eleições de Novembro o partido perderá o controlo do Senado e a sua maioria na Câmara dos Representantes ficará reduzida de dez a quinze membros. Para além disso, prevê-se que o partido perca três ou quatro lugares de governador e um enorme número de outros postos estaduais e locais. - Este triste estado de coisas - continua Trent, começando a empolgar-se - deve-se a um único indivíduo, Abner Randolph Hawkins, o chamado "Presidente dos Estados Unidos".
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- Eh lá, Sam! - interrompe Nugent. - Essa é um tanto forte!
- A ocasião exige-o - responde Trent, impetuoso. - Se ninguém o quer dizer, faço-o eu: Abner Hawkins está a destruir o partido. Se não forem tomadas medidas enérgicas agora, estaremos perante uma erosão do apoio público, uma derrota de que poderemos levar vinte anos a recuperar. - Os seus ouvintes, de rostos fixos, numa rigidez de máscara de jogadores de póquer que têm apenas um par de dois, não se manifestam. - Há gente com fome neste grande país? - recomeça Trent. - Claro que há. Sempre houve. Mas este plano impensado não é a maneira própria de resolver o problema. Um programa alargado de senhas de comida teria efeitos mais benéficos, durante um período mais longo, sem estas desastrosas consequências políticas. - Trent explica então que, como é do conhecimento geral, o Presidente se transformou num fantoche manipulado por um suposto curandeiro, homem conhecido como bêbedo e dom-joão, que dita na actualidade, e de facto, a política interna do governo. - Esse tal Irmão Kristos - prossegue Trent, quase sufocando de cólera - é um aldrabão, um impostor, um charlatão, um ladrão! E, no entanto, tem amplo acesso ao Gabinete Oval e já dormiu no Quarto de Lincoln. Eventualmente, o país inteiro compreenderá que temos um demónio na Casa Branca.
- Aí tens uma certa razão, Sam - interpõe Packinhouse, voltando a acender o charuto. - No meu clube, toda a gente especula sobre se o Irmão Kristos anda a comer a primeira dama ou não.
- E esse tipo de conversa vai continuar até este governo se tornar motivo de troça geral. Eu sei que, como vice-presidente, é meu dever dar apoio entusiástico às políticas do chefe do Executivo. Mas uma das razões pelas quais lhes pedi que viessem hoje aqui foi para lhes dizer com sinceridade que já não posso dar tal apoio.
Faz-se uma pausa, enquanto Oberfest volta a encher os copos e a distribuir mais charutos. Trent toma a sua primeira bebida, um brande com soda, mas apenas um pequeno gole.
- Sam - objecta Nugent, olhando pensativo para ele -, estás a pintar um quadro muito negro. Não quero dizer que estejas de todo errado, mas não me parece que as coisas estejam assim tão mal. Talvez alguns de nós pudéssemos conversar com Hawkins e convencê-lo a voltar a seguir o bom caminho.
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- Impossível - contesta o vice-presidente, peremptório. Ele e a mulher estão inteiramente convencidos de que o Irmão Kristos salvou a vida do filho por duas vezes.
Não querem ouvir nada contra ele.
- Está bem - afirma Packinhouse -, penso que todos estamos de acordo em que este é um problema sério. Qual é a solução que propões?
Samuel Trent respira fundo. Agora é que é.
- Quando se sofre de um tumor maligno, a única esperança de sobrevivência é recorrer à cirurgia. Sugiro que o partido extraia Hawkins tão depressa e de maneira tão
pouco dolorosa quanto possível. Temos de ter a coragem de enfrentar os factos, meus senhores: Hawkins é um Presidente para um só mandato. Não é demasiado cedo para
começarmos a procurar um candidato mais atraente para a presidência, que é já para daqui a dois escassos anos.
- Tu, por exemplo? - sonda Weisbard.
- Sim, eu - propõe-se Trent, com muita dignidade. Não quero tentar enganá-los com falsas modéstias. Considero-me um homem racional, com muitos anos de experiência em todos os níveis da função pública. Para além disso, tenho sido um membro leal do partido desde que cheguei à idade de votar. As minhas contribuições, em dinheiro, em tempo, em energia, têm sido consideráveis. Tenho muitas pessoas leais que me seguem pessoalmente, sobretudo em Boston. E acho que não é preciso lembrar-lhes que tenho fortuna pessoal suficiente para financiar eu próprio uma grande parte dos custos da minha pré-campanha. - Os quatro homens entreolham-se. - O que lhes peço - continua Trent - é um acordo tácito sobre o caminho que tracei para mim próprio. Admito de boa vontade que não conseguirei segui-lo sem a aprovação de todos vós. Mas devo também acrescentar que tenciono perseverar, aconteça o que acontecer. Levo tanto a peito o que lhes disse aqui hoje que estou a pensar seriamente em me demitir de vice-presidente dos Estados Unidos.
As suas palavras têm o efeito dramático desejado. Os seus quatro ouvintes esvaziam os copos.
- Estás a falar a sério, Sam? - inquire Nugent.
- Nunca falei tão a sério na minha vida. Os meus inimigos têm-me acusado de muitas coisas, mas nunca de ser hipócrita. Não posso continuar a defender e apoiar um governo no qual já não acredito e não respeito.
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- Quem é que sabe disto? - indaga Packinhouse.
- Só a minha mulher. E agora vocês e o meu adjunto particular.
- Sam - fala Weisbard, com simpatia. - No caminho para cá, reparei que há um bar sossegado mesmo ao lado da entrada do hotel. Estava a pensar se poderíamos pedir-te,
a ti e ao teu adjunto, que nos deixassem a sós e passassem uma meia hora lá em baixo. Isso dar-nos-ia a possibilidade de termos aqui uma pequena discussão em particular,
sobre o que nos disseste, e de chegarmos a uma conclusão. Espero que não te ofendas.
- Claro que não - volve Samuel Trent, de imediato, ofendido. - Compreendo perfeitamente. Michael, venha comigo, por favor.
Depois de os dois saírem da suíre, os quatro convidados levantam-se e abrem mais a janela, para fazerem sair o fumo dos charutos.
- Deixemo-nos de tretas - discorre Weisbard -, o que ele disse faz muito sentido.
- Mas será que ele ganha? - duvida Nugent. - Prefiro apoiar um ganhador sem um tostão do que um perdedor rico.
- O homem é um perfeito idiota - comenta Packinhouse.
- Sim - replica Whitman, falando pela primeira vez -, mas é o nosso perfeito idiota.
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Oberfest deixa-se cair no banco da frente do carro de Marchuk, olhando com desconfiança para o rádio no tablicr. Tem a certeza de que contém um gravador e de que todas as palavras que disse sobre a reunião de Trent em Nova Iorque estão agora gravadas em fita magnética.
- Acabe a sua história - diz o russo, impaciente -, com certeza que ainda há mais.
- Quando voltámos do bar, informaram Trent da decisão tomada. Não era um acordo total, mas também não era uma negativa completa. Disseram-lhe que fizesse o que achava que devia fazer. Foram muito sinceros. Disseram que não se queriam comprometer a apoiá-lo antes de saberem os resultados
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finais das eleições. Então, se o partido sofrer uma derrota e Trent se demitir e anunciar a sua disponibilidade em se candidatar à presidência... Se fizer isso e a reacção do público for favorável, os quatro prometeram que ele pode contar com a sua colaboração.
- Estou a ver - comenta o major. - Abandonam o presidente Hawkins para apoiarem este desprezível vice-presidente.
- É isso mesmo.
- Muito desencorajador.
- Bem, o vice-presidente fez uma boa exposição do caso e a ideia de um pregador como conselheiro do Presidente não lhes agrada nada. É por isso que estão dispostos a ver até onde, e com que rapidez, Trent consegue ir.
- Não gosto nada disto - observa Marchuk, inquieto. Trent vai decerto pelar a todos os anticomunistas deste país. Esperava que esses tempos tivessem acabado.
- Mas não acabaram - diz Oberfest, com alguma satisfação. - E quando a proposta de Hawkins para a partilha de comida for derrotada, isso será mais um ponto a favor de Trent. Vai herdar os votos dos agricultores.
- Acha que ele tenciona deliberadamente levar o partido a fazer uma viragem à direita?
- Pode ter a certeza disso. O russo respira fundo.
- vou passar toda esta informação e deixar as cabeças em Moscovo preocuparem-se. Eles vão decidir qual deverá ser a nossa reacção. Entretanto, mantenha-me ao corrente dos planos de Trent. Continua em contacto com John Tollinger?
- Continuo. Tinha pensado passar pelo gabinete dele amanhã e repetir tudo o que acabo de lhe contar.
- Acho bem. Os homens do Presidente devem ter conhecimento da traição de Trent.
- Pode acreditar que não será surpresa nenhuma.
13
Um vento outonal sopra de nordeste e a tarde é iluminada
por um sol fraco, num céu onde correm pequenas nuvens.
Não há muito trânsito na estrada e Marvin Lindberg puxa
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pelo seu velho Buick, sem prestar atenção aos pneus meio carecas e ao fecho do porta-bagagens, que bate, preso por um pedaço de corda.
- Acho que já era tampo de mandar esta lata para a sucata - comenta Tollinger. - É um perigo para si e para toda a gente.
- E comprar um Mercedes ou um BMW? Não é que me importasse. O Irmão Kristos tem dinheiro para um Scorpio, eu não.
Tollinger, compreendendo perfeitamente a sordidez do que concordou que fosse feito e está a ajudar a financiar, sente-se tentado a deixar tudo nas mãos do ex-agente do FBI. Mas chega à conclusão de que seria uma cobardia e, além disso, se o estratagema tiver êxito, quer ser testemunha da queda de Kristos.
Sentadas no banco de trás do carro vêm Mrs. Tessie Lapchick e a filha, Judy. A mãe, mulher gorda, de faces vermelhas e um emaranhado de cabelo pintado de ruivo, afirmou, ao ser apresentada a John, não ter qualquer objecção a que ele a tratasse por Babe. Por seu lado, prometeu tratá-lo por Jack. É um nome que ele detesta.
É difícil acreditar que Judy tem apenas quinze anos, embora Mrs. Lapchick tenha mostrado uma certidão de nascimento que o comprova. Tollinger calcula que ela deve medir um metro e setenta e dois centímetros e pesar talvez uns sessenta quilos, na sua maior parte peito e rabo. O cabelo liso, que lhe chega à cintura, é louro e as feições, um tanto marcadas, configuram uma curiosa mistura de inocência infantil e de astúcia adulta.
John tem a certeza de que a moça consegue passar por vinte anos ou mais. O vestido ajuda a dar uma impressão de sofisticação. Tem mangas compridas e decote subido,
mas ajusta-se ao corpo como uma segunda pele, terminando oito centímetros acima do joelho. As pernas estão nuas, são bem feitas e não têm pêlos.
O fato de Mrs. Lapchick, para o seu papel de mãe vingadora, é um vestido preto, largo e enfeitado com uma pregadeira de latão manchado, do feitio de um golfinho.
Veste um casaco leve, de popelina castanha manchada, mas Judy não traz nada por cima do seu vestido provocante e, segundo Tollinger supõe, nada por baixo. Tem um grande saco de couro castanho a tiracolo.
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Durante a maior parte do caminho para a igreja do Irmão Kristos, Lindberg ensaia mais uma vez os papéis que as duas mulheres devem desempenhar, e John fica surpreendido pela naturalidade e credibilidade do seu diálogo. Tem cada vez mais confiança em que o Irmão Kristos não conseguirá deixar de cair na armadilha que lhe estão a montar.
Chegam ao armazém de tabaco ao mesmo tempo que outros carros, que vão parando para descarregar pessoas. Os terrenos em volta foram alcatroados e no chão aparecem traços de tinta branca a marcar lugares de estacionamento.
- Olhem para isto! - exclama Marvin, quase com admiração. - Instalou parquímetros! O tipo não perde uma! Arruma o carro e, através da janela, estica o braço para introduzir duas moedas na máquina. Em seguida volta-se e pega no saco de Judy, pousando-o no banco da frente. Tira dois dispositivos electrónicos do porta-luvas e mostra-os a Tollinger.
- Este mais pequeno é ao mesmo tempo microfone e emissor. Tem um alcance de quase trezentos metros. Funciona a pilhas. Interruptor para ligar e desligar. Controlo de volume. Este é o receptor-gravador. Tem um altifalante. Também funciona a pilhas. Tem fita suficiente para noventa minutos. Verifiquei-os dezenas de vezes e sei que funcionam. A recepção é boa e não há muitas interferências. Fabricado no Japão, claro.
"Não mexas no controlo de volume - recomenda ele. Quando o sermão tiver acabado, é só meteres a mão e ligares o interruptor. Depois, tenta conseguir um encontro em particular com o Irmão Kristos, e a seguir já sabes.
- Está bem - responde Judy, em tom de enfado. - Eu sei o que tenho a fazer.
- Já sei que sabes. Nós vamos ficar aqui a ouvir e, se o tipo te começar a tocar, entramos logo, pelo que não há razão para teres medo.
- E quem é que está com medo? Eu sei tratar do tipo.
- Está bem - replica Lindberg. - Vá, vai lá. Lembra-te, não ligues o microfone antes de ter acabado o sermão. As pilhas são novas, mas não queremos que se acabem antes de tempo.
A moça sai do carro, puxa a saia para baixo e põe a mala ao ombro.
- Mãe - pergunta ela -, achas que chegamos a casa a tempo de ver a Ilha de Gilligan?
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- Eu programei o vídeo para gravar - acalma-a Mrs. Lapchick. - Assim, se chegarmos atrasadas, não perdes nada.
Ficam a ver a jovem afastar-se. Esta mistura-se com a multidão de fiéis que entram na igreja e desaparece lá dentro.
- Os sermões dele demoram em geral uns vinte minutos
- informa Lindberg. - Meia hora, no máximo. Por isso, ainda temos algum tempo de espera.
- Acho que vou dar uma volta e fumar um cachimbo diz Tollinger.
- Vá à vontade - consente o detective. - Babe e eu ficamos aqui a contar mentiras um ao outro sobre as nossas relações amorosas.
- Ah, seu maroto! - exclama ela.
John sai do parque de estacionamento e dirige-se a um campo vazio, coberto de erva seca cortada. Não veste sobretudo, mas o vento de nordeste traz já um friozinho de Inverno e, andando de um lado para o outro, cachimbo entre os dentes, John vira a gola do casaco para cima e enfia as mãos nos bolsos das calças.
Admira mais uma vez o absurdo da vida. Nunca, nem nos seus mais estranhos sonhos, poderia ter imaginado passar uma noite como esta; esperando para apanhar um religioso fanático, oferecendo-lhe para isso o corpo maduro de uma adolescente atraente. É uma nova forma de ser chulo, pensa ele, mordaz, o que não contribui em nada para o seu amor-próprio.
Mas escolheu a função pública como carreira, e nunca ninguém lhe prometeu que fosse uma profissão limpa. Já há muito tempo que aprendeu que discorrer sobre se os fins justificam ou não os meios é tão inútil como discutir sobre quantos anjos podem dançar a rumba numa cabeça de alfinete.
A função pública é quase um oxímero. O bem da maioria fica demasiadas vezes atrás dos interesses de alguns. Não porque todos os funcionários públicos e políticos sejam corruptos; não são. São simplesmente humanos.
Imerso nestes pensamentos melancólicos, mal dá por o tempo passar. Mas o cachimbo, que se apagou, faz barulho quando o aspira, e John bate com ele na palma da mão para fazer sair a cinza, apressando-se então a voltar para o Buick.
Esperam ainda durante quase cinco minutos, olhando para a porta da igreja. A fita da cassette, no seu invólucro de plástico transparente, começa a rodar devagar.
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Silêncio durante mais um instante, até que o altifalante em miniatura faz um ruído.
- Ligou o microfone - observa Lindberg. - Assim é que é.
Ouvem o ruído confuso de muitas vozes, o arrastar de bancos de madeira e então, inesperadamente clara, a voz de Judy dizendo:
- Desculpe, mas posso falar com o Irmão Kristos em particular durante uns minutos? Preciso mesmo de falar com ele.
Pausa. Uma mulher responde:
- Espere aqui. vou ver se ele a pode receber. Esperam no carro, em silêncio, tentando visualizar o que se
está a passar no armazém.
Judy fica pacientemente de pé, costas direitas e cabeça erguida. Calça sapatos de salto alto e os pés começam a doer-lhe. Pearl Gibbs volta por fim.
- O Irmão Kristos pode recebê-la - anuncia ela. - Tente não demorar muito. Ele tem marcada uma reunião importante.
- Eu não demoro - promete Judy.
No quarto das traseiras, Kristos está de pé, uma mão apoiada na mesa de madeira. Tem ainda vestido o seu hábito de burel. O cão pálido descansa enroscado a seus pés.
- Irmão Kristos - começa a jovem, um pouco ofegante -, queria dizer-lhe que o seu sermão desta noite foi a coisa mais importante que me aconteceu em toda a minha vida. - Ele acena com a cabeça, mirando-a com atenção e começando a cofiar a barba com os dedos. - Tenho um problema pessoal
- prossegue Judy - e pensei que um homem como o senhor, tão compreensivo e isso tudo, me podia dizer o que fazer.
Kristos volta a acenar com a cabeça e faz um gesto em direcção a uma das cadeiras. Judy põe o saco no chão, senta-se e cruza as pernas nuas, subindo ainda mais a saia curta. O Irmão Kristos puxa outra cadeira para perto dela e senta-se na sua frente.
- Qual é o teu problema, filha?
Judy baixa o olhar, fixa-o nas mãos, torcendo os dedos.
- É difícil falar nisto - diz ela, com um riso nervoso. Se calhar, vai rir-se de mim.
- Prometo não me rir.
- Bem, eu tenho vinte anos, ou melhor, vou fazê-los para
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o mês que vem, e... nunca estive com nenhum homem... Sabe o que quero dizer, não sabe?
- És virgem?
- Sim, sou. Conheço muitos homens, alguns deles bem simpáticos, e saio bastante. Mas a maior parte daqueles com quem saio querem ir para a cama comigo. Eu não tenho
ideias antiquadas sobre o sexo, nada disso, mas, sabe, tenho medo. O que quero dizer é que é um passo importante na minha vida. Todas as minhas amigas o fazem, e eu acho-me uma idiota por sentir o que sinto. Digo-lhes que quero esperar até me casar, mas a verdadeira razão é que tenho medo. Sei que o que sinto não é normal e espero que o senhor possa fazer alguma coisa para me livrar deste medo. Como disse hoje, o que acontece entre um homem e uma mulher agrada a Deus.
O Irmão Kristos inclina-se para a frente e pega nas mãos macias de Judy.
Lá fora, no carro, todos ouviram este diálogo, sustendo a respiração. Lindberg levanta um pouco o som.
- Está a sair-se muito bem - comenta Tolliger, em voz baixa.
- Tal-qual como ensaiámos - acrescenta Lindberg.
- A minha filha é muito esperta - gaba-se Mrs. Lapchick, orgulhosa.
Voltam a ficar em silêncio, prestando a maior atenção às vozes que saem da caixinha preta.
Kristos: - Não tens razão quando dizes que o que sentes não é normal, minha filha. Toda a gente, homem ou mulher, tem esse mesmo medo. E, embora possa diminuir com a experiência, nunca desaparece por completo.
Judy: - Não sei se estou a perceber o que quer dizer.
- Agora é que ele se vai atirar - diz Lindberg. Kristos: - A intimidade física entre um homem e uma
mulher é uma experiência mística. E por isso é, em parte, um mistério. É natural sentir-se medo do desconhecido. Mas os nossos medos não nos devem impedir de procurar o caminho da felicidade espiritual.
- Felicidade espiritual? - pergunta Lindberg, incrédulo. Uma pranchada? Porque é que ele não se mexe?
Judy: - Acha que eu o devia fazer?
Kristos: - Faz o que o teu coração te ditar, minha filha.
Judy: - A ideia de sexo faz-me sentir calafrios na espinha.
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Talvez se eu tivesse a certeza de que o homem seria carinhoso e que teria cuidado para não me magoar...
- Grande frase! - exclama Tollinger. - Essa deve excitá-lo.
Kristos: - Tu és uma jovem linda. Isso é uma dádiva de Deus, e deves estimá-la. Não procures o êxtase de que falei até te certificares de teres encontrado o homem certo. O teu corpo é um templo, um lugar sagrado, e só amando ao serviço de Deus é que poderás encontrar a felicidade.
- Acabamos de o perder - nota Tollinger, tentando, sem êxito, controlar a fúria.
Kristos: - Vai, minha filha, e procura um homem com quem possas partilhar a glória de Deus. E decide-te a vencer o medo e a descobrir a unidade com o Todo-Poderoso que só o amor físico pode dar.
- Merda! - reage Lindberg, furioso. - Ele topou que Judy é muito nova. Repararam no tom paternal com que falou? Como é que ele sabia?
Kristos: - E agora tens de me deixar sozinho, porque eu tenho a missão de Deus a cumprir. Vai com a minha bênção e descobre a felicidade que mereces.
Judy (em voz fraca): - Obrigada, Irmão Kristos.
Ouve-se o arrastar dos saltos de Judy no chão do armazém. O detective desliga o gravador e ficam à espera, num silêncio pesado.
A jovem sai da igreja e dirige-se, saltitante, ao carro. Traz um pequeno livro e mostra-o antes de entrar no Buick.
- Olhem o que ele me deu! - regozija-se ela. - Orações do Irmão Kristos para Todas as Ocasiões. Não foi simpático? Ele é um amor.
- Ah, sim! - brada Lindberg. - Filho da mãe!
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Na noite das eleições há três televisores no Gabinete Oval, ligados e sintonizados para três canais nacionais. Há igualmente refrigerantes e aperitivos em cima de um móvel e folhas de registo à disposição de quem quiser tomar nota dos resultados, à medida que vão chegando. :
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Os principais adjuntos do Presidente vão a pouco e pouco enchendo o Gabinete. Não há cadeiras que cheguem para todos, mas ninguém se queixa, porque ninguém tenciona
ficar até depois da meia-noite.
- Afinal de contas - comenta o chefe de gabinete, Folsom -, quanto tempo pode demorar uma execução?
O Presidente senta-se à secretária, escutando as piadas trocadas com um sorriso fixo, mas dizendo muito pouco. De vez em quando, olha para o outro lado da sala, onde o Irmão Kristos, vestido de negro, se encontra de pé junto da parede. O pregador observa toda aquela actividade no Gabinete Oval, mas não faz qualquer menção de falar com os homens do Presidente.
Depressa se torna evidente que as sondagens feitas antes das eleições estavam correctas: o partido está a sofrer uma grande derrota.
Por volta das dez da noite já estão perdidos o Senado e três lugares de governador e a maioria do partido na Câmara dos Representantes diminuiu de doze lugares, com a previsão da perda de mais cinco quando se completar a contagem no Oeste. Para além disso, muitos outros lugares, a nível local e estadual, estão a ser ganhos pela oposição. Não é a derrota completa, mas é com certeza um sério revés.
As piadas alegres há muito que se transformaram em humor negro, e, como as bebidas em cima do móvel são todas não alcoólicas, a sala vai ficando a pouco e pouco vazia, à medida que o pessoal se vai indo embora.
O último a sair é Henry Folsom.
- Hão-de vir melhores dias, Senhor Presidente!
Alguns empregados levam os televisores e as bebidas e aperitivos, que quase ninguém provou. Então Hawkins e Kristos ficam a sós. O Presidente faz-lhe um sinal e Kristos senta-se num cadeirão ao lado da secretária.
- O Senhor o deu - diz Hawkins, com um sorriso forçado - e o Senhor o levou.
- Sim, pai - adere Kristos -, e o resto desse versículo é: "Bendito seja o nome do Senhor."
O Presidente, cansado, passa a mão pela testa.
- Já esperava uma derrota nestas eleições, mas esta é pesada. - Levanta-se e começa a andar de um lado para o outro no Gabinete, apagando luzes. - É preciso poupar o dinheiro dos contribuintes - comenta ele, com ironia, deixando-se
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cair de novo na cadeira giratória forrada de couro. - Acho que a perda do Senado significa que a proposta de lei sobre a partilha de comida morreu. Sei que o senhor disse à minha mulher que seria aprovada, mas agora não me parece que tenha qualquer hipótese.
- Vai ser aprovada - afirma o Irmão Kristos. - Cada coisa a seu tempo.
- Quem me dera ter a sua confiança!
Ficam sentados em silêncio, na obscuridade, com o Presidente a olhar para o tampo da secretária e a revirar um lápis de bico partido com dedos nervosos.
- Pai - consola-o o Irmão Kristos, tranquilo -, esta é uma desilusão temporária, nada mais. Eu sei que o senhor é um homem de fé, de coragem e de decisão. Não deve deixar que esta má notícia o deprima. Há ainda muito trabalho útil a fazer. Eu acredito em si e todos os seus filhos também. O senhor não é homem para hesitar. Tem o poder da rectidão.
O Presidente endireita-se na cadeira e olha directamente para o outro homem.
- Obrigado. O senhor tem razão, como sempre. Não posso deixar que este contratempo me faça retroceder. Os meus inimigos no Congresso e nos meios de comunicação social vão dizer que perdi força, que já não consigo obter resultados. Mas tenciono manter-me firme e continuar a lutar. Este gabinete ainda é o posto de comando do país.
O Irmão Kristos inclina-se para a frente, atento.
- Continue a apoiar a proposta sobre a partilha de comida
- aconselha ele. - Viaje pelo país. Fale com os que têm fome, tal como o fez sua mulher. Faça com que todos os Americanos tenham conhecimento da situação desta pobre gente. Ao mesmo tempo, anuncie noutro discurso na televisão a sua intenção de conseguir legislação que permita ao governo federal construir centenas de habitações sociais. E, finalmente, nomeie uma comissão para estudar a melhor forma de reparar e restaurar as pontes, estradas, barragens e canais deste país, assim como todas as coisas materiais que mantêm o nosso sistema em funcionamento.
- As infra-estruturas.
- Sim. Tenho viajado muito e posso garantir-lhe que o país precisa de novas fontes de água potável, de novas formas de tratamento de lixo. O senhor é a única pessoa que pode exigir um país mais limpo, mais seguro, mais saudável.
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- Concordo com tudo o que está a dizer, Irmão Kristos, mas há dezenas de razões pelas quais o que sugere é, sob o ponto de vista político, impraticável. Pode ser que o senhor acredite que a fé move montanhas. Mas não no governo! A primeira reacção de qualquer político vai ser: e de onde é que vem o dinheiro? E como é que eu respondo a isso? com impostos mais elevados? Isso é um suicídio político.
- Pai, se a sua fé for suficientemente forte, e se conseguir comunicar essa fé ao país, o dinheiro aparece.
- O senhor é um idealista.
- Não! - replica o Irmão Kristos, categórico - Sou realista, pois sei que estas coisas se podem fazer: Nunca foram tentadas devido à ganância, à indiferença e à
falta de fé. Pai, o senhor é um homem com tanta sorte! Tem o poder de provocar um renascimento.
O Presidente fica calado. Kristos levanta-se e dirige-se à porta, devagar.
- O senhor pede muito - explica-lhe Hawkins. O pregador volta-se e olha-o com ar severo.
- Não sou eu que peço. É Deus quem o ordena.
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Samuel Trent tem uma longa conversa com Oberfest, planeando a conferência de imprensa em que Trent tenciona anunciar a sua demissão.
- Penso que não devia ter lugar no Auditório nem em nenhum outro sítio que seja propriedade do Estado - aconselha Oberfest. - Pode parecer estranho que utilize um local oficial para anunciar que vai abandonar o governo.
- Num salão de baile de um hotel? - sugere o vice-presidente.
- Não me parece bem. com todos aqueles dourados e candelabros de cristal, pode dar uma impressão errada. O melhor é um sítio simples, com um cenário que o faça parecer um homem do povo.
Por fim, Michael sugere uma ideia com que o vice-presidente concorda: a conferência de imprensa terá lugar ao ar livre, à entrada da sua casa antiga, próximo de Chevy Chase Circle.
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- Se chover - diz o adjunto -, podemos transferi-la para dentro de casa. E, se estiver muito frio, corta-se nas perguntas; toda a gente vai querer apanhar a história e pôr-se a mexer o mais depressa possível.
- Boa ideia - anui Trent. - Acha que a minha mulher deve estar a meu lado quando anunciar a demissão?
- Não o recomendo. Ela iria apenas provocar distracção. Queremos manter o interesse centrado em si.
- Claro. O que é que sugere que eu vista?
- Um fato completo, azul-escuro, camisa azul-clara, por causa das câmaras, e talvez uma gravata castanha ou às riscas. Acho que não faz mal que leia o texto, mas deve dar a impressão de ser um homem de princípios.
- Um homem de princípios... - repete Trent, pensativo. - Sim, acho que consigo fazer isso.
A manhã do dia 9 de Novembro está húmida, fria, encoberta. Mas, por volta do meio-dia, as nuvens afastam-se, o céu fica azul e um sol alaranjado aquece a brisa. Trent considera isto um bom presságio.
Oberfest fez os possíveis por chamar a atenção dos meios de comunicação social, assegurando que o vice-presidente vai fazer uma comunicação que irá espantar o mundo.
- Está grávido? - pergunta um jornalista.
Cerca de vinte jornalistas e duas equipas de operadores de câmara da televisão amontoam-se à entrada da casa, e às doze e trinta em ponto Trent sai pela porta da frente. É quase logo rodeado por jornalistas, de gravadores em riste. Mais tarde dir-se-á que tinha um aspecto "severo" ou "irritado".
- Em primeiro lugar, tenho uma breve declaração a fazer
- informa ele. - Depois, responderei tão abertamente quanto possível às vossas perguntas. Cópias da declaração estarão à vossa disposição, mais tarde. - Começa a ler: - Esta manhã entreguei pessoalmente ao Presidente Abner Hawkins a minha carta de demissão de vice-presidente dos Estados Unidos. - Ouve-se um murmúrio de espanto e a multidão aproxima-se mais. - Uma vez que já não posso apoiar e defender as políticas deste governo, decidi que a única via honrosa a seguir seria pedir a demissão, com efeito imediato. Foi o que fiz, com tristeza, mas ao mesmo tempo com alívio, por poder agora exprimir perante o público americano os meus próprios pontos de vista sobre os graves problemas que se nos deparam. - Há um tal tumulto que Trent se vê forçado a esboçar
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um gesto com as mãos, pedindo silêncio. - Por favor, isto é demasiado importante para se transformar num circo. Uma pergunta de cada vez.
- Quando é que entregou a carta de demissão?
- Esta manhã, por volta das nove e trinta.
- Entregou-a pessoalmente ao Presidente?
- Sim.
- Onde?
- No Gabinete Oval.
- Quem mais estava presente?
- O chefe de gabinete, Folsom.
- Qual foi a reacção do Presidente?
- Leu a minha carta e perguntou-me se eu tinha a certeza de que era isto que queria fazer. Respondi-lhe que sim.
- E ele tentou dissuadi-lo?
- Não.
- Como é que lhe pareceu que ele estava? Irritado? Desiludido? Triste?
- Isso é melhor perguntarem-lhe a ele.
- O senhor disse que se demitia por já não poder apoiar e defender as políticas deste Governo. O Presidente estava consciente disso?
- Tenho a certeza que sim.
- Quais foram os seus desacordos com ele?
- Houve muitos.
- Tais como?
- Por exemplo, a proposta de lei sobre a partilha de comida.
- Mais alguma coisa?
- A polarização que a proposta de lei provocou no partido. Estou inteiramente convencido de que o Presidente está a levar o partido para a esquerda. Acontece que eu acredito que o seu futuro está no centro, fazendo apelo a todos os eleitores inteligentes deste grande país que não são radicais, nem de direita, nem de esquerda.
- E sobre o Irmão Kristos?
- O quê?
- Diz-se que ele influencia a política da Casa Branca. Tem objecções quanto a isso?
- É evidente que sim. Será uma tragédia para este grande país se a religião e a política se ligarem de forma inextricável. Leia a Constituição. As primeiras palavras da Declaração de Direitos, as primeiras de todas, são: "O Congresso não legislara
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em nada que respeite ao estabelecimento de uma religião..." Os nossos antepassados, com visão, sabiam muito bem quais os perigos de a religião se intrometer
no governo. É óbvio que tenho objecções quanto à suposta influência do Irmão Kristos, tal como tenho objecções quanto ao facto de um representante seja de que religião
for ditar as políticas do governo.
- A sua demissão significa que se vai retirar da política?
- De maneira nenhuma. Vejo-a, de facto, como o início de uma nova carreira ao serviço do Estado.
- Então é possível que volte a candidatar-se a um cargo público?
- Muito possível.
- À presidência?
- É demasiado cedo para dizer alguma coisa.
- Mas não põe de parte essa possibilidade?
- Recuso-me a pôr de parte qualquer possibilidade. Agora, minhas senhoras e meus senhores, penso que já cobrimos todas as questões importantes. Obrigado pela vossa atenção.
Trent volta a entrar em casa. Oberfest fica para trás, a distribuir cópias da carta de demissão, de uma única frase, e da declaração à imprensa.
- bom! - diz Trent, alegre, à mulher. - Acho que me saí muito bem.
- Tenho pena de não ter podido ouvir.
- com certeza que vão dar tudo na televisão. Matilda, vou começar de imediato a planear a minha campanha. Tenciono viajar muito. A única coisa que me preocupa é ser forçado a deixar-te sozinha muito tempo. Espero que não te sintas demasiado só.
- vou tentar aguentar, querido - responde ela, com um sorriso terno.
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É a primeira neve que cai neste Outono, mas não é muita, apenas uma leve poeira branca, que se derreterá por certo ao sol da manhã. Mas enquanto dura as árvores vestem-se de gaze e a terra, fria e negra, cobre-se de branco.
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O helicóptero presidencial chega a Camp David ao fim da tarde de sexta-feira, trazendo o Presidente e a família, vários dos seus assessores, Jennifer Raye, que foi promovida a assessora de Helen, e o Irmão Kristos. A chegada do pregador faz com que o cozinheiro-chefe comece a preparar uma panela de guisado de peixe, com muita pimenta.
Kristos vai directo para o seu bangaló. Há agora uma grande cruz de madeira na parede da sala comum e um bonito genuflexório instalado no quarto. Kristos desfaz a sua nova mala de couro, que contém mudas da roupa para o fim-de-semana e três litros de vodca, embrulhados com cuidado.
Ele e Jennifer jantam com o Presidente e a família, ocasião animada pelo repertório de adivinhas de George, aparentemente inesgotável. ("Porque é que um peru atravessa a estrada? Porque pensa que é uma galinha!") Antes de ser servida a sobremesa, o Presidente pede desculpa e retira-se para começar a despachar a sua papelada. Depois de acabados o gelado de limão e os bombons, George vai com o sargento McShane preparar-se para dormir.
Helen, Jennifer e Kristos vão para a sala, onde as senhoras tomam uma segunda chávena de café.
Quando o criado sai, Kristos vira-se para Helen.
- Parece estar deprimida, ansiosa. É por causa do Presidente?
- É - responde Helen, tentando sorrir. - Ele tem andado tão deprimido desde que Trent se demitiu. Diz que é apenas política, mas sei que levou a coisa para o lado pessoal.
- Trent é um idiota - comenta Jennifer, com rispidez. A ambição cega-o. O homem sonha ser eleito presidente. Nunca, nunca, nunca!
Kristos olha-a nos olhos.
- Por vezes, os idiotas podem ser perigosos. Os meios de comunicação social classificaram-no de homem de princípios por se ter demitido, em vez de continuar a servir um governo que não pode apoiar.
- Esta publicidade favorável não vai durar muito - profetiza Jennifer. - O homem é parvo. Acho que o Presidente fica melhor sem ele, Mrs. Hawkins.
- Não sei - duvida Helen. - Ab pensa que Trent pode causar muitos estragos, excitando a hostilidade entre ricos e pobres. O meu marido sempre acreditou no consenso político, embora haja certos princípios fundamentais de que nunca irá abdicar.
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- O seu marido é crente - diz-lhe o Irmão Kristos. Tenta persuadir as pessoas apelando para o que de melhor há nelas. Trent explora o lado escuro das pessoas, os
seus medos, preconceitos, ganância e crueldade. O Presidente tem razão em se preocupar com tal homem, pois ele vira irmão contra irmão e ignora a harmonia que Deus
exige.
- Pelo menos - observa Jennifer -, a demissão de Trent permitirá ao Presidente nomear alguém que esteja de acordo com as suas convicções.
- Sei que Ab tem uma lista de vinte candidatos possíveis
- informa Helen. - Tem algum nome a sugerir, Irmão Kristos? Há alguém em particular que gostasse de ver como nosso próximo vice-presidente?
Kristos não se mostra surpreendido pela pergunta. A sua expressão mantém-se inalterável e o único movimento que faz é uma lenta passagem dos dedos pela barba.
- Sim - declara ele -, gostaria de propor alguém à consideração do pai, alguém que ambas as senhoras conhecem. A congressista Lu-Anne Schlossel. - Olham ambas para ele, atónitas. - Pensei muito nisto - prossegue Kristos - e pedi a Deus que me guiasse. Antes de me dizerem o que pensam, deixem-me explicar o que sinto.
"Em primeiro lugar, penso que o Congresso confirmaria a sua nomeação. Ela é negra e acaba de ser reeleita por uma ampla maioria. O Congresso tende não só a apoiar os seus membros mais populares, mas muitos senadores e congressistas do Sul devem a sua eleição aos eleitores negros dos respectivos estados. Não gostariam de arriscar o seu futuro político por uma ofensa feita a esses eleitores. Além disso, Lu-Anne Schlossel receberia um enorme apoio da parte de organizações de negros e de mulheres fora do Governo.
"Quanto a qualificações, Lu-Anne é uma congressista experiente, que adquiriu, nos seus muitos anos no Capitólio, um conhecimento profundo de como funciona o governo. Poderia ser um auxílio precioso para fazer aprovar a legislação proposta pelo Presidente.
"Finalmente, Lu-Anne é uma mulher devota e interessada, que não esqueceu o seu passado. Está do lado dos pobres, dos que têm fome, dos desalojados. Toda a sua carreira política tem sido dedicada a ajudar os necessitados.
Há um momento de silêncio, ao fim do qual Jennifer exclama, entusiasmada:
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- Acho que é a melhor ideia que ouvi em toda a minha vida! Lu-Anne Schlossel! É claro! Porque é que não pensei nela? Não acha que seria um óptimo vice-presidente, Mrs. Hawkins?
- Não sei - objecta Helen Hawkins, hesitante. - Ela é muito capaz, é verdade, mas será que o país está preparado para uma mulher, para mais negra, como vice-presidente?
- Se não estiver agora - continua o Irmão Kristos -, quando é que estará?
- É, na realidade, uma ideia interessante - concede a primeira dama -, mas não irá dividir o partido ainda mais do que está agora?
- Penso que neste caso o seu marido terá apenas em consideração o bem do país, não o bem do partido.
- Bem, acho que Ab deve ter conhecimento da sua sugestão. Diz-lhe o senhor, Irmão Kristos?
Kristos responde naquele tom professoral que adoptou recentemente:
- Em toda a consciência, não me parece que deva. Afinal, não sou funcionário público, nem membro do governo, e sei tão pouco de política. É melhor que seja a senhora a apresentar a sugestão; sei até que ponto o seu marido conta com os seus conselhos sensatos. Está disposta a apresentar o nome de Lu-Anne ao Presidente como sendo ideia sua? Estou certo de que a sua recomendação terá mais peso do que a minha.
Mrs. Hawkins fica um instante a pensar.
- Está bem - concorda, por fim -, se é assim que acha que se deve tratar a questão. vou tentar mostrar-me tão entusiástica em relação a Lu-Anne como o senhor e Jennifer. Mas tem de compreender que a decisão final virá de Ab.
- É evidente - exprime-se com gravidade o Irmão Kristos. - Eu nunca tentaria influenciar o Presidente.
Pouco tempo depois, Kristos deixa as duas mulheres e volta para o seu bangaló. Abre uma das garrafas de vodca e enche um copo. Vai bebendo pequenos goles enquanto se despe. Pendura com cuidado no armário o seu novo casaco de caxemira e conta o dinheiro que tem na carteira, antes de despir as calças escocesas Black Watch. Esconde a carteira debaixo do colchão.
Tira a gravata e a camisa de flanela cinzenta. Não usa camisola interior, mas veste ceroulas de seda. Não as despe e senta-se na cama, colocando o copo de vodca no chão a seus
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pés. Tira um dossier de correspondência de um compartimento secreto da mala.
No seguimento da visita de Lamar B. Tumulty, e depois de ter instalado os parquímetros e publicado o livro de orações, o Irmão Kristos contactou uma pequena estação de rádio em AM que cobre a maior parte da Virgínia e parte das Carolinas, do Tennessee, do Kentucky e da Virgínia Ocidental. Assinou um contrato para a compra de seis meias horas de tempo de antena (quinhentos dólares por cada meia hora), a começar às oito e trinta da manhã de domingo.
O programa intitula-se Tempo de Oração do Irmão Kristos e consiste num sermão, numa oração e num apelo a donativos para manter o programa no ar. O pregador grava cada Tempo de Oração com antecipação, de modo a não ser necessário estar presente no estúdio de rádio ao domingo de manhã.
Depois de ouvir a primeira gravação apresentada, o técnico de som da estação de rádio comentou:
- Parece um pato com prisão de ventre.
Mas, graças à magia da electrónica moderna, o técnico consegue dar timbre e
ressonância à voz do Irmão Kristos. A voz que chega aos ouvintes é totalmente diferente
da que ouvem as pessoas que vão à igreja instalada no armazém de tabaco.
Seja devido às novas sonoridades do pregador ou ao conteúdo problemático dos seus sermões, o facto é que o Tempo de Oração do Irmão Kristos é um êxito. Os donativos (enviados pelo correio para uma caixa postal) são, em média, de mil e oitocentos dólares por semana, e a estação de rádio recebe um enorme volume de correspondência entusiástica.
O director da estação escreveu ao Irmão Kristos, aconselhando-o a comprar uma hora de tempo de antena aos domingos de manhã (mil dólares por hora) e a alargar o programa. Poderia, sugere ele, chamar-se a Hora da Família do Irmão Kristos e incluir coros, cantores de espirituais e um período em que o pregador daria conselhos espirituais sobre problemas apresentados pelos ouvintes.
Sentado em ceroulas, bebendo vodca morna, o Irmão Kristos relê a carta do director e chega à conclusão de que o que este sugere tem muito mérito. Mas, antes de produzir um programa de rádio de uma hora, Kristos compreende que seria sensato pôr em prática mais algumas das ideias de Tumulty: dar um nome à sua igreja, registá-la devidamente como instituição religiosa sem fins lucrativos, registar a autoria dos
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sermões e das orações, estudar a possibilidade de transmitir a Hora da Família do Irmão Kristos a nível nacional.
Mas tudo isso exige o estabelecimento de uma empresa que funcione, com uma sede, empregados, contabilidade, etc., questões em que Kristos não tem experiência. Sempre dirigiu um negócio a solo e reconhece agora que irá precisar de apoio legal e financeiro, se espera tirar proveito da sua boa sorte actual. Pergunta-se a si próprio, pesaroso, se foi boa ideia despachar Lamar B. Tumulty.
Está ainda a ruminar sobre qual a melhor forma de planear o seu futuro, quando se apercebe de umas leves mas persistentes pancadas na porta da rua. Dirige-se, descalço, à sala comum, na penumbra, e fica de pé ao lado da porta.
- Sim?
- Jennifer - responde esta, em voz baixa.
Kristos abre a porta apenas o suficiente para ela entrar e volta a fechá-la à chave.
- Estava a dormir? - pergunta ela.
- Não.
- Trouxe uns cubos de gelo - diz Jennifer, mostrando um saco de plástico. - Que tal dar de beber a uma jovem com sede? - Vão para o quarto. Kristos enche-lhe um copo de vodca, água e gelo, mas bebe a sua simples e morna. Sentam-se na cama e Jennifer repara no dossier de correspondência. - Estava a trabalhar? Desculpe tê-lo interrompido.
- Não é nada de importância. A estação de rádio da Virgínia quer que eu prolongue o programa de domingo de manhã para uma hora.
- Isso é óptimo! Como é que pode dizer que não tem importância? Acho que se devia sentir feliz e entusiasmado.
Kristos encolhe os ombros.
- Há muito tempo que sei o que é importante. Comida na mesa e um tecto. Essas são coisas básicas e significativas. Dinheiro, haveres, fama, poder, não significam nada. "Não amontoeis tesouros neste mundo, onde os vermes e as intempéries os corroem e onde os ladrões entram, para os roubarem. Mas amontoai tesouros no céu."
- Suponho que a sua maior felicidade está em ajudar os outros - observa Jennifer. - Tal como o fez hoje com Lu-Ann Schlossel.
Kristos olha para ela, pensando noutras coisas.
- Você tem um advogado?
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- Só o que tratou do meu divórcio.
- E ele trata de outras coisas: contratos comerciais, questões fiscais?
- Acho que sim, mas a sua especialidade são os divórcios.
- Então, acho que não me serve. Mas vou encontrar alguém.
- Porque é que não pergunta ao chefe do Gabinete Jurídico do Presidente? Tenho a certeza de que ele lhe pode indicar alguns nomes.
- Uma mulher - diz o Irmão Kristos -, preferia que fosse uma mulher.
Jennifer faz uma careta.
- Você não tem homens amigos, pois não? Sempre que o vejo, está rodeado de mulheres. Não gosta dos homens?
- Claro que gosto, de alguns. Mas raro encontrei um homem em quem pudesse confiar.
- E confia nas mulheres?
- Confio.
- Confia em mim? - Kristos olha-a fixamente, pega-lhe na mão livre e coloca-a sobre o seu sexo. Os dedos de Jennifer acariciam a seda macia. - Está a fazer uma tenda.
- Entre na minha tenda.
- Quer que o lave?
- Quero - responde o Irmão Kristos. - Limpe-me.
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Já não se encontram no centro comercial no Maryland.
- Neste negócio - diz o major Marchuck -, não se pode estabelecer rotinas. Os hábitos são a morte do artista.
Por isso, vão em carros separados até Annapolis, saem da auto-estrada e encontram-se num caminho de terra batida que o russo considera suficientemente escuro e deserto para um encontro à meia-noite.
Está quente de mais para meados de Dezembro, e os dois homens podem sair dos carros e andar de um lado para o outro naquele caminho solitário, enquanto Michael põe o homem do KGB ao corrente das actividades de Samuel Trent.
- Alugou uma suite no Madison - informa ele - e o que
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está a organizar é, na realidade, o esqueleto de uma equipa para a campanha eleitoral. Anda a entrevistar pessoas para os lugares de conselheiro e secretário de Imprensa.
- Mas você vai continuar a ser o seu adjunto pessoal?
- Claro... Até tive um pequeno aumento para compensar as vantagens que perdi quando saí do serviço do Estado.
- Diga-me, Arnold, Trent tem dinheiro suficiente para pagar todas essas despesas?
Michael ri-se.
- Tem dinheiro que nem consegue contar. Da última vez que vi publicada uma estimativa dos seus bens, era de quase cinquenta milhões. Agora, já deve ser mais. Nunca ninguém o acusou de perdulário. Já alguma vez lhe disse que ele guarda os saquinhos de chá? Usa-os duas ou três vezes antes de os deitar fora. Não é de morte?
- Eu faço o mesmo - revela o russo.
- Ah!
Permanecem um momento em silêncio, andando para trás e para diante, sem nunca se afastarem muito dos carros.
- Tem andado a viajar com ele? - indaga Marchuk, por fim.
- Tenho. Fomos a Detroit, Chicago, Denver, São Francisco... a toda a parte.
- Diga-me uma coisa, como é que ele tem sido acolhido?
- Tenho muita pena de o desiludir, mas até agora tem tido um enorme êxito. Tem um tipo novo, um génio, a escrever-lhe os discursos, é um ex-catedrático de Inglês de Bowdoin. Convenceu Trent a cortar a conversa idiota, a tentar utilizar palavras de uma ou duas sílabas e a deixar de dizer "grande país" como se fosse uma só palavra. Seja como for, quando fala, o público reage de forma favorável. Até já vi uns autocolantes que diziam "Trent para Presidente".
- Não estou a gostar disto - observa o russo.
- Também me pareceu que não ia gostar - afirma Oberfest, satisfeito.
- Mas o que é que ele diz que faz para que as pessoas gostem dele?
- A princípio, era a conversa habitual, sabe como é: "Pôr o país de novo a andar" e "O nosso maior perigo é a falta de coragem". E, como é evidente, tem andado a dar para baixo na União Soviética. Até agora, chamou ao seu país "a maior prisão do mundo", "uma selva terrível" e "uma casa de doidos
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dirigida pelos doentes". E refere-se ao vosso líder como "Napoleão Vermelho."
- Já esperávamos isso - declara o major, acabrunhado. O homem está obcecado pelo ódio a tudo quanto é russo.
- Se isso o pode fazer sentir-se melhor, não é o dar tacada nos comunistas que provoca os maiores aplausos. Isso acontece quando critica o presidente Hawkins por seguir os conselhos do Irmão Krístos.
- Sim, já sabemos das suas referências malevolentes em relação ao curandeiro. E o público reage a isso?
- Adora! Trent está a pendurar o Irmão Kristos à volta do pescoço de Hawkins como se fosse um albatroz.
- E também isso que pensam os meus superiores em Moscovo - concorda Marchuk. - Eles acham que, se queremos ver Hawkins reeleito, devemos fazer todo o possível por acabar com a sua relação com esse tal "santo".
- E o que é que se propõe fazer?
- Comprá-lo - descobre o russo, sem hesitação. - Qualquer homem tem o seu preço, e suponho que um pregador itinerante irá achar uma oferta generosa de dinheiro muito tentadora.
- E o que é que ele tem de fazer em troca? Desaparecer?
- Exactamente! Deixar Washington, dizer adeus ao Presidente.
- E quanto é que está a pensar oferecer-lhe?
- Fui autorizado a ir até aos cem mil dólares.
- Bonita quantia - aprecia Oberfest, devagar. - Talvez resulte. Quem é que vai fazer a oferta?
Marchuk pára e espera até o outro homem ter parado também. Então olha-o de frente.
- Pensei que já tivesse adivinhado, Arnold - ordena-lhe ele, com suavidade. - É você quem vai subornar o Irmão Kristos.
- Eu? Mas eu nem sequer conheço o tipo!
O russo pousa uma mão pesada no ombro de Michael.
- Faça o que puder - sossega-o. Depois, com um sorriso, tira um envelope branco do bolso interior do casaco e entrega-o a Oberfest. - Este dinheiro não é para Kristos,
é um pequeno presente de Natal para si.
- Obrigado - corresponde Oberfest. - Mas, quanto a Kristos, não me parece que eu...
- Tenho muita fé em si - interrompe o homem do KGB. - Espero que não me desiluda.
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- Não está a perceber - insiste Michael, com desespero. Porque é que não me quer ouvir? O homem não me conhece de lado nenhum.
A mão pousada no ombro de Michael aperta-o mais.
- Nós temos um ditado que diz: "O urso dança, mas também tem garras." Não me obrigue a mostrar-lhe as garras, Arnold.
- Está a ameaçar-me? - inquire Michael, em voz fraca.
- Estou - declara o major Marchuk. - E faça o trabalho, que lhe pagamos para isso. O fracasso é inaceitável.
No regresso a Washington, sozinho, Oberfest acende um charuto com mãos trémulas. Mas sabe-lhe a palha, pelo que abre a janela do carro e deita-o fora.
No seu espírito sucedem-se com rapidez cenários possíveis: deixar a mulher e fugir para Hong Kong; ir ao FBI e confessar tudo; dizer a Marchuk que tentou o suborno, mas sem resultado. Este último parece ser o mais agradável, até se lembrar do frio aviso do russo: "O fracasso é inaceitável." Começa a rir, histérico.
Mas, uma hora depois de chegar a casa, encontrando-se Ruth já a dormir e a ressonar, decide o modo como vai efectuar o suborno: não será ele próprio a fazê-lo, mas sim John Tollinger.
Michael pensa que os membros da equipa do Presidente já devem estar mortos por se verem livres do Irmão Kristos. Tem a certeza de que John não se importará nada de falar com o homem. Tendo assim tomado uma decisão, Michael começa a imaginar explicações para a origem do suborno.
Na manhã seguinte, cedo, telefona para a Casa Branca, mas Tollinger está numa reunião. Telefona de novo por volta do meio-dia, mas a reunião ainda continua. Finalmente, às duas horas, Tollinger está de volta ao seu gabinete. Não parece muito satisfeito ao ouvir a voz de Oberfest.
- O que é que você anda a fazer por cá? - pergunta-lhe. Pensei que estivesse não sei onde com o seu patrão, espalhando o seu veneno.
- Não é o meu veneno - protesta Michael -, é o dele. Ouça, preciso de falar consigo.
- E não está a falar?
- Quero dizer em particular.
- Sobre quê?
- Sobre o tal veneno que diz que Trent anda a espalhar. Sei como acabar com isso.
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- Ah, sim? Como?
- Podemos encontrar-nos?
- Está bem - responde John, com resignação. - Venha a minha casa hoje às nove da noite.
- Lá estarei - afirma Oberfest, satisfeito, pensando ter Tollinger no papo.
Mas, nessa noite, sentado no escritório de John, Michael descobre que não vai ser fácil enganar aquele homem calmo e reservado, que teve, pelo menos, a decência de lhe servir uísque de primeira qualidade.
Oberfest começa por contar a John os esforços que Samuel Trent anda a fazer para formar uma equipa de campanha. Pensa que tal revelação será uma prova da sua sinceridade, mas Tollinger ouve-o sem interesse aparente.
- Mas onde é que quer chegar? - pede explicações a Michael. - Trouxe muito trabalho para casa e quero começar a despachá-lo.
- Olhe - começa Michael, gravemente. - Sei o que pensa de mim. Trabalho para um tipo que está a querer dar cabo do seu patrão. Mas para mim é apenas um emprego; não significa que esteja de acordo com o que ele está a fazer.
- Mas recebe o dinheiro dele.
- Claro. E você trabalha para o chefe de gabinete. Isso significa que concorda com tudo quanto ele faz?
- Não - confessa Tollinger, com relutância. - De vez em quando, temos os nossos desacordos. Mas dizem, em geral, respeito a questões de estilo, não de fundo. Pelo que me está a dizer, você discorda de toda a actuação de Trent.
Oberfest bebe um gole de uísque.
- É isso mesmo. E, se soubesse quantas vezes já consegui minorar os efeitos dos discursos mais venenosos de Trent sobre Hawkins e Kristos, não estaria tão pronto a condenar-me. Na realidade, estou em estreito contacto com um grupo de pessoas que estão de acordo com Hawkins.
- Há muita gente que está de acordo com Hawkins. Foi assim que ele foi eleito - replica Tollinger, encolhendo os ombros.
- Mas as pessoas de quem falo são especiais. São liberais e querem que Hawkins se vire mais para a esquerda. Por exemplo, são a favor da tal proposta de partilha de comida e estão a manobrar em seu favor, não como uma frente organizada, mas individualmente. John, estes homens de negócios, editores,
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jornalistas, altos dignitários da Igreja não querem que se saiba das suas actividades. Pensam que podem ser mais eficazes nos bastidores.
Tollinger mostra-se interessado. Volta a encher os copos de uísque.
- São membros do partido? - investiga.
- Alguns são, outros não. Mas todos estão preocupados com a publicidade que o Irmão Kristos está a ter. Pensam que isso pode deitar por terra qualquer hipótese de Hawkins fazer passar legislação de carácter social.
- Têm razão. E Trent não está a ajudar nada.
- Por isso pensaram numa maneira fácil de resolver o problema. Acham que Kristos poderá aceitar um suborno para sair da cidade e todos contribuíram para juntar uma boa quantia de dinheiro. O que é que pensa disto?
Tollinger, impassível, bebe mais um gole de Glenfiddich.
- E porque é que você me está a contar tudo isto?
- Porque as tais pessoas estão convencidas de que você é o homem certo para negociar com Kristos. Você conhece-o e, o que é mais importante, sabe o prejuízo que está a causar à reputação de Hawkins.
- Estou a ver. E quanto é que estão a pensar oferecer-lhe?
- Estão dispostos a ir até aos cem mil dólares. - Tollinger já não consegue aguentar mais. Deita a cabeça para trás e desata à gargalhada. Oberfest olha, espantado, para esta cena. - Qual é a piada? - interroga.
- Você já chega atrasado e não traz dinheiro que chegue. Já se tentou o suborno. Ofereceu-se um milhão ao Irmão Kristos para se evaporar, e ele não aceitou. Tenho muita pena. - Tollinger espera que Oberfest fique aborrecido, mas tem um choque ao ver aquele homem gorducho começar a chorar, com as lágrimas a correr-lhe pelo rosto. - Tenha calma - tranquiliza-o Tollinger. - A culpa não é sua. Era uma boa ideia, mas Kristos simplesmente não está interessado. Então, Oberfest inclina-se para a frente, esconde o rosto nas mãos, continuando a soluçar com convulsão. Tollinger levanta-se, pousa uma mão no ombro do companheiro. - Tenha calma - repete, com suavidade. - Beba mais um pouco. Pouco a pouco, Michael vai-se acalmando e consegue levantar o rosto banhado de lágrimas. John dá-lhe o copo para a mão e fica a ver Michael beber com avidez. - O que é que provocou isso, Mike? - indaga, em tom calmo. - com certeza
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que o grupo de pessoas que você representa vai compreender que não foi culpa sua.
- Não há grupo nenhum - confessa Michael, acabrunhado. - Eu menti-lhe. Era tudo uma aldrabice.
- Ah! E então de onde é que vinham os cem mil dólares? - Michael respira fundo. Começa a falar, cada vez mais depressa, numa torrente de palavras. Conta a Tollinger tudo sobre o major Marchuk, como é que se envolveu com o KGB, porque é que os Russos estão tão desejosos de ver Trent derrotado. Tollinger ouve, com incredulidade e nojo, e, quando Oberfest termina, exclama: - Grande burro!
- Eu sei - concorda Michael, contristado. - Mas, quando tudo começou, parecia um jogo.
- Um jogo? - indigna-se Tollinger. - Meu Deus! Ele enganou-o. Foi por causa do dinheiro, Mike?
- bom, é claro que sim, em parte. A bolsa tem andado a dar cabo de mim nestes últimos tempos. Mas juro, John, que não pensei que o que estava a fazer tivesse assim tanta importância.
- Mas agora com certeza que tem. É melhor você ir ao FBI, o mais depressa possível. Conte-lhes com exactidão o que me revelou a mim. O FBI trata de pôr Marchuk fora do país, mas não me parece que dêem cabo de si. Você não foi exactamente um traidor. Só foi estúpido, estúpido, estúpido!
Oberfest abana a cabeça.
- Não posso ir ao FBI. Mesmo que não vá a tribunal, estou tramado. Sabe o que é esta cidade. E eu preciso de ganhar dinheiro.
- Faça conferências. Escreva um livro.
- Sobre quê? Se eu tivesse vendido os planos do nosso novo míssil de cruzeiro, talvez o público se interessasse. Mas limitei-me a negociar em escandalozinhos. Isso não dá para um livro.
- Aí, tem razão - concorda Tollinger. - Então, só há uma coisa a fazer: vá ter outra vez com o tal major Marchuk e diga-lhe que tentou subornar o Irmão Kristos, mas não conseguiu. O que é que ele vai fazer? Matá-lo?
- Sim - responde Michael, olhando fixamente para Tollinger -, é exactamente isso que ele vai fazer.
- Está a gozar.
- Juro que o faz ou que o manda fazer. O meu fracasso seria o seu fracasso, e ele não o aceita. Eu ia pagar por isso.
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Ficam então em silêncio, a beber devagar.
- Está bem - diz por fim Tollinger -, deixe-me pensar no assunto. Não sei porque é que me havia de meter, quando você foi tão idiota, mas não me agrada a ideia de
os Russos tentarem meter-se nas nossas eleições presidenciais. Nós não tentamos influenciar a escolha do secretário-geral deles.
- Mas o que é que eu faço?
- De momento, tente ganhar tempo. Diga a Marchuk que está a Tentar encontrar-se de modo informal com Kristos, numa recepção numa embaixada ou num cocktail. Diga-lhe qualquer coisa, mas continue a adiar. Dê-me tempo para eu ver o que posso fazer.
- Você acha mesmo que me consegue safar, John?
- Talvez - consola Tollinger, olhando para ele com ar suspeito.
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Quatro dias antes do Natal, Henry Folsom organiza uma festa para os membros da sua equipa. A festa tem lugar no grande apartamento do chefe de gabinete no Watergate. Começa às cinco da tarde e prolonga-se por muito tempo. Há muitas bebidas alcoólicas à disposição e a comida (presunto, assado, rosbife e frango frito) é suficientemente sólida para evitar que as pessoas fiquem embriagadas.
Aparecem mais de cem convidados, mas não todos ao mesmo tempo, pois há muitas outras festas a ter lugar em Washington durante a semana do Natal. Mas há sempre gente suficiente para que as conversas tenham de ser em voz alta e haja bastantes encontrões no bar.
John Tollinger chega cedo e tenciona sair cedo, mas não antes de ter comido algumas fatias de rosbife mal passado com salada e de ter bebido o suficiente para ficar um pouco tocado. Não tem feitio para festas, a conversa fútil aborrece-o e não vê qualquer razão para se rir de piadas sem graça. Não é que seja propriamente anti-social, mas, sempre que se encontra num sítio assim barulhento, pensa que teria muito mais prazer em estar em casa sozinho, com um cachimbo, um livro e a sua marca preferida de uísque.
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Mas aguenta com coragem durante quase uma hora, conversa com algumas pessoas, come o seu rosbife com salada e prepara-se para sair com discrição quando o dono da casa lhe aparece pela frente e o agarra por um braço.
- Não se vá já embora, John - diz-lhe o chefe de gabinete. - Quero falar consigo.
- Aqui? - pergunta John, olhando para os grupos em conversa à sua volta. - Porque não no Kennedy Center?
- Tenho um sítio mesmo bom. Venha comigo.
Volta a meter-se pelo meio das pessoas, abrindo caminho, e Tollinger segue-o. Dirigem-se às traseiras do apartamento, atravessam um quarto com duas camas cobertas, por completo, de casacos e chapéus e entram numa casa de banho com paredes de mosaicos brancos. Folsom fecha a porta à chave. Senta-se por cima do tampo da sanita. John fica de pé, encostado ao lavatório.
- Óptima festa, chefe - comenta Tollinger.
- Acha? Quem me dera poder gozá-la, mas não é possível. O patrão estragou-me a vida esta tarde. Disse-me quem pretende nomear para vice-presidente. Quer tentar adivinhar? Ah! Para que é que lhe estou a colocar tal pergunta? Nunca lhe passaria pela cabeça uma ideia tão parva: a congressista Lu-Anne Schlossel.
- A preta?
- Essa mesmo. Duas minorias pelo preço de uma. Tollinger senta-se na borda da banheira.
- Quem é que sugeriu o nome dela?
- Quem? Quem havia de ser? Tinha que ser o Irmão Kristos. Nenhum político iria sugerir uma dessas ao patrão. Raios partam o homem, isto vai dividir o partido por completo.
- Não estou assim tão certo disso - contesta Tollinger, devagar. - Acho que o seu nome vai ser confirmado. O Congresso vai achar que, sob o ponto de vista moral, não tem outra alternativa.
- Meu Deus! John, as morais vão e vêm, mas a política é para sempre. Acha que alguém no Capitólio se vai sentir feliz por o porem perante uma escolha moral? Isso é precisamente o que todo o político tenta evitar. É óbvio que Schlossel vai ser confirmada, porque votar contra ela seria o mesmo que votar contra a Declaração da Independência, a Constituição ou coisa parecida. Mas o Congresso nunca vai perdoar a Haw-
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kins a sua escolha. Ele está a forçá-los a fazer uma coisa que, no fundo, não querem fazer: confirmar uma mulher, ainda por cima negra, num lugar que está a um passo da presidência.
- Não tenho a certeza de que a sua visão seja correcta, chefe. Penso que muitos congressistas verão essa escolha com bons olhos e votarão nela, por ter capacidades e experiência e porque acreditam, na realidade, que é tempo de termos uma mulher a ocupar aquele lugar.
- Tretas! - Ouve-se uma pancada hesitante na porta da casa de banho, alguém roda o puxador. - Está ocupada!
- grita Folsom. - Vá fazer chichi a outro lado! Ouça, John, você acha que Schlossel vai ser confirmada e eu também. Mas deixe-me perguntar-lhe uma coisa: se o Congresso votasse por voto secreto, só "Sim" ou "Não" escrito num pedaço de papel, sem assinatura, acha que ela seria confirmada?
Tollinger fica um longo momento a pensar.
- Não - responde, por fim.
- É claro que não! - exclama o chefe de gabinete, furioso. - Ai está o que vale a sua escolha moral. O eleitorado que temos é composto por indecisos. E digo-lhe
que Hawkins o vai perder a partir do momento em que apresentar o nome de Lu-Anne Schlossel ao Capitólio. As pessoas vão dizer que não têm preconceitos e que qualquer pessoa, seja mulher, negro ou judeu, deve ter hipótese de ser presidente. Mas, quando se encontram na privacidade da cabina de voto, acha que votam segundo o que dizem? De maneira nenhuma! Votam segundo o que sentem, e que é: sim, talvez um dia uma mulher, um negro ou um judeu possa vir a ser presidente. Mas por enquanto não. É por isso que lhe estou a dizer que o patrão vai cavar um fosso dentro do partido. Nunca vai voltar a ser nomeado. Ofereceu a nomeação a Trent de bandeja. E tudo isto porque dá ouvidos àquele parvo daquele guru, o Irmão Kristos. - Tollinger parece tencionar falar, mas arrepende-se. - John, eu sei que o patrão dá ouvidos a Kristos porque pensa que o tipo salvou a vida do filho. Além disso, o homem parece ser religioso e você é intelectual e sabe como Hawkins é devoto. Diga-me, pois, uma coisa: será possível ser-se demasiado devoto, ter demasiada fé em Deus?
- Claro - confirma Tollinger. - É assim que uma pessoa se torna fanática e começa a planear uma segunda edição da Santa Inquisição. Mas não me parece que o Presidente seja
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fanático. E apenas um homem muito religioso, que tem confiança no seu conselheiro espiritual.
- É - lastima Folsom, sombrio -, mesmo que isso signifique desfazer o partido aos bocadinhos e arruinar o seu futuro político. Você, que sabe tudo, diga lá quem era aquele velho rei que queria ver-se livre de um pregador.
John fica um momento pensativo.
- É provável que esteja a querer referir-se a Henrique II. Este tinha problemas com Thomas à Becket, o arcebispo
de Cantuária, e diz-se que perguntou aos seus súbditos: "Quem é que me livra deste padre turbulento?" Foi o que eles fizeram.
- É assim mesmo, grande Henrique! - brada Folsom. Quem me dera ter alguns súbditos à minha disposição. Sabe, John, tenho estado a pensar: talvez fosse altura de alguém fazer como Trent e pedir a demissão.
- Não - objecta Tollinger. - Não faça uma coisa dessas. O patrão precisa de si.
- Para quê? - contesta o chefe de gabinete, com azedume. - Tem o Irmão Kristos, não tem?
Quando saem da casa de banho, depara-se-lhes uma fila de convidados que desejam entrar. Tollinger leva vinte minutos a encontrar o chapéu e o sobretudo, a abrir caminho por entre o aglomerado de pessoas e a sair, no preciso momento em que chega mais um grupo barulhento.
É quase um prazer físico passear sozinho no Jaguar, a caminho da sua casa vazia. A solidão permite-lhe passar em revista aquela inquietante conversa com o chefe de gabinete. Pergunta-se a si próprio qual será o seu futuro se Folsom pensar a sério em demitir-se.
Finalmente pode fumar um cachimbo e beber um Glenfíddich, tendo uma estante de livros à sua espera. Mas o prazer que esperava retirar desta situação foge-lhe. Em vez disso, sente o cérebro fervilhar e reconhece que o seu pensamento está tão confuso que não consegue chegar a conclusão alguma nem tomar qualquer espécie de decisão.
com um esforço equivalente ao de endireitar as costas e levantar a cabeça, obriga-se a pensar com lógica e seguimento e a pôr em ordem os sentimentos em relação ao Irmão Kristos.
Sexuais: tem-lhe rancor, por ter seduzido Jennifer Raye e posto fim a qualquer esperança que Tollinger pudesse ter numa reconciliação.
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Religiosos: tal como Marvin Lindberg afirma, indignado, o pregador perverteu a fé num Ser Supremo em benefício próprio e para satisfazer os seus insaciáveis desejos físicos.
Políticos: embora as ideias de Kristos quanto à legislação de carácter social não se configurem como mais radicais do que as de muitos outros liberais, o modo como tentou converter as suas convicções em lei dividiu o partido e é possível que tenha condenado Hawkins a um único mandato como Presidente.
Filosóficos: aqui, o Irmão Kristos ofendeu-o de várias maneiras. Ao ignorar a separação tradicional e, segundo Tollinger crê, fundamental entre a Igreja e o Estado.
Ao confundir os seus seguidores com uma conversa que esconde o verdadeiro significado e importância da fé, do pecado e da redenção.
E, mais importante que tudo, este homem estranho conseguiu, pelos seus inexplicáveis actos de adivinhação, pôr em dúvida todo o pensamento racional e fazer com que John Tollínger questione princípios lógicos e racionais em que acredita e segundo os quais vive.
Tollinger revê várias vezes, a seu modo persistente, este acto de acusação, e de cada vez os crimes de que o Irmão Kristos é culpado parecem mais horrendos. Levanta-se e dirige-se à estante para procurar um livro em particular.
Encontra o livro que procura e trá-lo para junto do candeeiro. Folheia-o devagar, tentando encontrar uma citação de que se lembra de forma vaga.
Por fim, descobre-a, lê-se duas vezes e repete-a em voz alta: "O assassínio é a forma mais sincera de lisonja."
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QUARTA PARTE
1
- Suponho que não me devia importar - diz Matilda Trent -, mas importo-me. Traí-lo assim! O que me incomoda mais é que a minha traição não me incomoda. Já vi mulheres do meu meio mudarem por completo de vida, deixarem os maridos e fugirem com um flautista para o Brasil, ou coisa assim, e costumava perguntar a mim mesma o que é que elas estariam a pensar. Mas agora aqui estou eu a espiar o meu próprio marido.
- É a espia de Deus - tranquiliza o Irmão Kristos. O que está a fazer está certo, irmã.
- Diga isso mais vezes - implora Mrs. Trent, com um sorriso triste. - Não consigo deixar de pensar que o meu procedimento é o que Samuel classificaria de "totalmente indigno" .
Estão sentados perto um do outro, junto da grande mesa da sala de Kristos, e ele pega na mão de Matilda. Kristos tem no pulso uma pesada pulseira de platina, presente de Natal dela, de onde pende uma pequena medalha que tem gravado Amor vincit omnia.
- Continue o que estava a dizer-me - pede Kristos, em voz suave. - O seu marido contratou um conselheiro de Imprensa?
- Contratou. É um homem com experiência, que já esteve envolvido em várias campanhas presidenciais. Convenceu Samuel de que seria contraproducente atacá-lo a si na sua pessoa. Aconselha que é melhor Samuel continuar a insistir na tradicional separação entre Igreja e Estado. A ideia de um governo demasiado ligado à religião não agrada às pessoas.
O Irmão Kristos solta-lhe a mão e começa a passar de forma lenta os dedos pela barba sedosa e perfumada.
243
- Vi o seu marido na televisão. Parece estar a atrair muito público.
- O homem que lhe escreve os discursos tem feito maravilhas. Fê-lo cortar com os disparates que diz normalmente. E Samuel deixou crescer um pouco o cabelo e veste-se de modo mais jovem. É tudo um cultivar de imagem, sabe. E a verdade é que ele tem uma mensagem alarmante a transmitir: o facto de você, um sacerdote não ordenado, na prática um místico, estar a dizer ao Presidente como deve governar o país.
Kristos mexe-se na cadeira, inquieto.
- Quanto a não ser ordenado, já tomei medidas para o remediar. Já tenho advogado e em breve vou obter os devidos documentos, através de uma pequena igreja da Califórnia.
- Como é que conseguiu isso? Kristos mostra os dentes.
- com um generoso donativo para as boas obras deles. Além disso, durante os últimos meses tenho visitado muitos dos dirigentes de igrejas estabelecidas em Washington. Os contactos têm sido excelentes, e eles estão de acordo com o que eu estou a tentar fazer.
- Evidentemente. E o facto de você se encontrar com frequência com o Presidente impressiona-os.
- Estou a tentar minorar as acusações do seu marido, deixando que as minhas sugestões sejam feitas a Hawkins através dos seus outros conselheiros.
- Você é mesmo esperto!
- O Presidente é um homem bom e honesto. Se me pede um conselho, eu não hesito em dar-lho. Mas prefiro que as recomendações sobre decisões políticas lhe sejam apresentadas por outros. Não se pode ser dono de ninguém. Eu não sou Svengali e ele não é com certeza o meu Trilby.
Matilda olha para ele durante algum tempo.
- Não - replica ela. - Eu é que sou o seu Trilby, não é?
- Se é, é porque assim o quer.
- Sim - consente ela, em voz baixa. - Quero.
Os cortinados estão abertos, mas está-se na última semana de Dezembro e a luz da tarde que entra pela janela é uma luz pálida. Como de costume, o apartamento está demasiado aquecido, o ar abafado. O Irmão Kristos desabotoou a camisa; a cruz de ouro brilha por entre os pêlos do peito.
- Tem vodca? Daquela apimentada? Apetece-me uma be-
244
bida. - Kristos faz um sinal afirmativo com a cabeça, levanta-se e dirige-se ao quarto. Mas, quando se volta, Matilda está mesmo por detrás dele, seguindo-o. Aproxima-se e olha-o nos olhos. - Faça amor comigo.
Kristos começa a desapertar o cinto e a abrir o fecho das calças.
- "Nunca te escondas dos necessitados" - afirma ele. Isaías.
Matilda está viciada nele, e não há nada que ele lhe peça que ela não faça. Esta mulher orgulhosa e austera transformou, de facto, a sua vida, tal como Kristos lhe prometera. Encontrou um mundo de alegria e cor, de tal intensidade que quando está nos seus braços sente todo o seu ser vibrar, como se tivesse descoberto uma nova música, uma nova harmonia.
Não se trata apenas de prazer físico, mas de um fundir da alma. Sente-se jovem, esbelta, nua, os anos desaparecidos, o riso e a ligeireza reencontrados.
A luz pálida está a desvanecer-se no quarto quando Matilda pega num pente e começa a pentear o cabelo, o bigode e a barba de Kristos, que a deixa fazê-lo com docilidade, acariciando-lhe as costas nuas.
- Acho que vou divorciar-me de Samuel - anuncia ela, de súbito. - Há muito tempo que ando a pensar nisso e decidi que devo fazê-lo. O que é que acha?
- Siga o que lhe ditar o coração, irmã.
- Você fez-me perceber como a minha vida tem sido limitada e sufocante. Preciso de cortar com tudo.
Kristos pega-lhe na mão.
- Isso vai prejudicar a carreira política do seu marido. Sabe disso, não sabe?
- Claro! Mas, pelo menos, uma vez na vida quero ser completamente egoísta. É assim tão horrível?
- Acabar com um casamento sem amor é um acto de honestidade. Já falou com o seu marido sobre o assunto?
- Não, ainda não. Anda neste momento em viagem pelo Oeste. vou falar com ele quando voltar.
- Espere algum tempo - acautela-a Kristos. - As coisas devem ser feitas na altura exacta, e este não é ainda o momento. Vai esperar?
- Se me diz para o fazer... Mas acha bem que me divorcie, não acha?
- Sim, acho.
245
- Diz-me quando devo fazê-lo?
Kristos faz um sinal afirmativo com a cabeça e levanta-se da cama. Toma-a nos braços, e ela aperta-se contra ele. A sua força envolve-a, pressionando-lhe os dedos fortes a carne macia. Matilda encosta a cabeça ao ombro de Kristos e suspira de satisfação.
- Aqui está o Evangelho segundo Santa Matilda - diz ela. - E tão boa uma carícia como uma pranchada.
2
Estão sentados num banco no Parque de Lafayette, mãos enfiadas nos bolsos dos sobretudos e golas levantadas como protecção contra o frio. Vêem a Casa Branca brilhar à luz translúcida da manhã. Parece tão perfeita e imóvel como um cenário de teatro, construído como pano de fundo para as peças da capital: comédia, tragédia, farsa, epopeia.
- Aquele filho da mãe! - exclama Lindberg, com amargura. - Está a fazer exactamente o que eu pensava. Ouça... Está a alargar para uma hora aquele programa de rádio ridículo ao domingo de manhã, Hora da Família do Irmão Kristos. O que é que lhe parece? Tem um produtor que está a estudar a conversão para um programa de televisão. E, como se ainda lhe não chegasse, tem andado a dar graça a todos os bispos, rabis e pastores da cidade e arredores, para ter a certeza de que ninguém se lhe vai atirar.
- Como é que descobriu tudo isso? - pergunta Tollinger, maravilhado.
- Você sabe que não há segredos nesta cidade. Seja como for, Jacob Everard Christiansen anda à solta. Mais papalvos a enganar e mais massa a extorquir dos verdadeiros crentes. Pode ter a certeza de que um dia destes vai abrir uma conta na Suíça. A única parte da Bíblia em que ele acredita é a que diz: "Procura e encontrarás." Vai ter de me desculpar, mas, sempre que começo a falar daquele patife, perco a cabeça.
- Na realidade, foi por isso que lhe pedi para se encontrar comigo, para falarmos do Irmão Kristos.
- Ah, sim? O que é que se passa?
- bom, as pessoas que financiaram as viagens que o senhor
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fez pelo país esperavam descobrir alguma coisa no passado de Kristos que permitisse pôr termo à sua amizade com o Presidente. Como tal não aconteceu, autorizaram-me
a oferecer uma boa maquia ao Irmão Kristos para se pôr a mexer daqui para fora. Ele recusou.
- Não admira - observa Lindberg, irritado. - A sua relação com Hawkins vai fazer dele um multimilionário.
- Por isso, agora - prossegue John, falando devagar e deliberadamente -, tiveram uma ideia que querem que eu investigue.
- E que ideia é essa?
- Essas pessoas acreditam sinceramente que Kristos representa um perigo real e iminente para o governo constitucional.
Tollinger fica calado durante tanto tempo que o ex-agente do FBI acaba por dizer:
- Continue.
- Querem que eu estude a possibilidade de mandar assassinar o Irmão Kristos - expele Tollinger, de um jacto.
Lindberg fixa-o nos olhos e os seus lábios juntam-se num assobio silencioso.
- Essa é forte!
- É - concorda Tollinger. - Mas já não têm mais opções. De qualquer maneira, eu concordei em estudar o assunto. Você é a primeira pessoa a quem falo nisto. Não só tenho confiança na sua discrição como você tem a experiência de que precisamos, se estiver disposto a ajudar-nos.
- Ajudar como? Ensinando-lhe como se planeia o crime perfeito?
- Não sabia que existia tal coisa. Lindberg sorri de esguelha.
- Cometem-se imensos crimes perfeitos; são aqueles de que nunca se ouve falar.
- Então? O que é que me diz? Se a sua resposta for não, compreendo perfeitamente e nego que esta conversa tenha tido lugar. Se concordar, então podemos discutir os meios. É evidente que será bem pago.
- O que é que está para aí a dizer? - interroga-o Lindberg, ofendido. - Eu não sou um assassino profissional. Se resolver envolver-me nisso, é porque quero, e não
pelo dinheiro. Isso tornar-me-ia pior que o Irmão Kristos.
Ficam de novo em silêncio, observando o movimento do
247
trânsito ao longo da Pennsylvania Avenue. Um grupo de protesto qualquer, equipado com bandeiras e cartazes, reúne-se em frente do portão da Casa Branca. Dirige-o um homem com um megafone, mas eles os dois não conseguem ouvir o que aquele está a gritar.
- Continua a não beber? - pergunta Tollinger, distraído.
- Continuo, sim. Olhe, deixe-me pensar no assunto. Não me quero precipitar. Compreende, não é verdade?
- Claro. Quando é que posso esperar uma resposta? Amanhã?
- Amanhã é véspera do ano novo, lembra-se?
- Ah, é verdade! Quer acredite, quer não, já me tinha esquecido. Acho que tenho demasiadas preocupações. Vai a alguma festa?
- vou, com o meu grupo dos Alcoólicos Anónimos. Bebemos refrigerantes e comemos biscoitos com chocolate. Mas não está mal, sempre nos rimos um bocado. E você?
- Eu fico em casa. Talvez beba uma taça de champanhe à meia-noite.
- Faz bem. Não ande pela rua e pode viver até ao novo ano. Talvez eu lhe telefone no dia do ano novo. Está bem?
- Óptimo. Pelo menos, não me está a dar com os pés de imediato.
Os dois homens levantam-se e apertam as mãos. Lindberg afasta-se devagar, com um andar que parece de um homem muito mais pesado. Tollinger fica a vê-lo afastar-se, depois enterra mais o chapéu na cabeça e dirige-se ao portão oeste.
No caminho, pára um instante, para olhar para a mansão do Executivo. Tem umas proporções tão perfeitas, um aspecto tão sereno que, vista do exterior, é difícil recordar a actividade caótica do seu interior.
Durante o resto daquele dia, Tollinger faz trabalho de rotina e o mesmo acontece até ao meio-dia da véspera de ano novo. Folsom está em Camp David com o Presidente e a família e John imagina como o chefe de gabinete se deve sentir frustrado numa festa sem bebidas alcoólicas.
Vai ao restaurante de Duke Zeibert para almoçar, já tarde, e come rapidamente uma quantidade de picles, carne de conserva e batatas fritas que lhe dá para o dia inteiro. No caminho para Spring Valley pára para comprar uma garrafa de Dom Perignon e pergunta-se a si próprio, com ironia, se deveria também comprar uma cegarrega, um chapéu, uma língua-de-sogra
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ou um pacote de confetti para a sua solitária cerimónia de fim de ano.
Por volta das oito da noite, já tomou metade da garrafa de Dom Perignoa, bebendo-o por um cálice, pois Jennifer levou todas as taças, como parte do acordo de divórcio.
Começa a telefonar-lhe de meia em meia hora, só para lhe desejar feliz ano novo, como manda a boa educação, diz ele a si próprio, mas ninguém responde. Às onze horas, desiste, tentando não imaginar onde é que ela poderá estar. Acaba o champanhe e enche um cálice de conhaque.
Antes da meia-noite, já está na cama. Adormece rápido. A última coisa que lhe ocorre é uma pergunta: porque é que disse a Marvin Lindberg que o plano para assassinar o Irmão Kristos era iniciativa de um grupo de VIP e não confessou que a proposta era tão-só sua? Teria sido por cobardia ou tratar-se-ia apenas de um acto de prudência da parte de um homem que estava a desenvolver um talento e um gosto pela conspiração?
Acorda no dia de ano novo sem qualquer ressaca, mas com uma vaga sensação de inquietação, de desorientação tão perturbadora como uma febre persistente. Mas prepara um pequeno-almoço substancial, que devora, e começa a ler um monte de revistas acumuladas desde há dois meses. Por volta do meio-dia, as suas incertezas evaporam-se e festeja o novo ano com a sua primeira bebida: um uísque com soda fraco.
Lindberg telefona, deseja-lhe feliz ano novo e pergunta se pode vir ter com ele às três horas. John responde-lhe que venha e vai ao frigorífico certificar-se se tem água gasosa. Nem sequer pensa no que irá fazer se Lindberg recusar.
O ex-agente do FBI vem de humor sério e cheio de energia.
- Ouça: quando me atirou com aquilo, suponho que não estava à espera de que me oferecesse para ser eu próprio a limpar o sebo ao tipo.
- Claro que não - responde Tollinger -, só queria tirar proveito da sua experiência.
- Espremer-me todas as ideias que tenho.
- É mais ou menos isso.
- Está bem, assim está bem. Mas, se não for eu, quem é que vai fazer o trabalho sujo?
- Eu - declara Tollinger. Marvin olha-o por algum tempo.
249
- Tem coragem para o fazer?
- Acho que sim. Como nunca fiz uma coisa dessas, não posso ter a certeza absoluta, mas acho que o consigo fazer, desde que o plano tenha hipótese razoável de êxito.
Não tenho qualquer interesse em passar o resto da vida na cadeia.
- Não vai ter de passar, mas não consegue fazer isso sozinho. São precisas, pelo menos, duas pessoas. Três era o ideal, mas talvez nos possamos arranjar só com duas.
- Falou em nós. Isso significa que está disposto a colaborar?
Lindberg ignora a pergunta.
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa sobre o homicídio. Trabalhei em imensos casos, falei com agentes que trataram de outros e li muitos processos. A melhor maneira de
se cometer um crime e não se ser descoberto é o corpo desaparecer e nunca ser encontrado.
- Como? Queimá-lo?
- Não. Isso atrai demasiado a atenção. Alguém pode ver o fogo ou o fumo. Ou sentir o cheiro. E é provável que os ossos e os dentes fiquem intactos.
- Deitar o corpo ao mar, num lago ou num rio?
- Podia acabar por vir ao de cima. Mesmo com pesos. Demasiado arriscado.
- Cortá-lo aos bocadinhos e espalhá-los?
- E onde é que ia cortá-lo? E como? Você não é carniceiro nem cirurgião profissional, pois não? E gostava de fazer um trabalho desses? Eu não. Não, a melhor solução
é o enterro. Dois metros debaixo de terra num local isolado. A campa escondida com cuidado, de modo a não se distinguir do terreno à volta.
Tollinger acena, pensativo, com a cabeça. É disto que ele gosta: um desafio intelectual, um problema a resolver pela lógica.
- Está a ver - prossegue Lindberg, bebendo pequenos goles de água gasosa -, um homicídio bem sucedido tem de ser planeado do fim para o princípio. A maneira de nos vermos livres do corpo: essa é que deve ser a primeira preocupação. A descoberta de um cadáver põe a polícia de sobreaviso, e tudo se segue daí: identificação, arma do crime, meios, oportunidade, motivo. A lei não considera um inquérito sobre uma pessoa desaparecida tão importante ou tão urgente como a investigação de um homicídio.
250
- Está bem - aprova John, bebericando o seu uísque. Partindo do princípio que você arranja maneira de enterrar a vítima, o que é que se segue?
- O transporte. O corpo tem de ser transportado para um local isolado, a fim de ser enterrado, não é? Quero dizer, não vai abrir uma cova num sítio público. Isso
significa arranjar um carro ou uma carrinha, o que determina a escolha da arma. Se se utilizar uma pistola ou uma faca, o tipo vai sangrar, largando talvez pedaços de carne ou osso para além do sangue. Como é que vai conseguir que não deixe marcas no carro ou na carrinha? Usar um grande saco de lixo? Pode deixar passar, e meter um cadáver num saco de lixo não é tarefa que eu recomende seja a quem for. Para além disso, se ficarem balas no cadáver, os chuis conseguem descobrir o calibre da arma utilizada e talvez até descobri-la, através das fichas de balística. Até golpes ou feridas podem fazê-los descobrir o tipo de faca utilizada para dar cabo da vítima. Porque é que está a olhar para mim com esse ar tão esquisito?
- Acabo de me aperceber que estamos para aqui a falar de vítima, de corpo, de cadáver. Nem eu nem você utilizámos uma única vez o nome. Estamos a falar de matar o Irmão Kristos, lembra-se?
- Sim, está bem, eu estou a falar como polícia. Fala-se sempre de vítima, de criminoso, de assaltante ou agressor, de corpo, cadáver ou restos mortais. É raro os polícias utilizarem nomes, o que seria demasiada personalização. Tem de se manter a calma, e uma maneira de o fazer é utilizar termos jurídicos. Se se chamar "homicídio múltiplo" a um massacre sangrento, é mais fácil tratar dele.
- Suponho que sim - concorda Tollinger, com um suspiro -, está bem. Segundo percebo, você pôs de parte a pistola e a faca. O que é que resta?
- Veneno - responde de pronto Marvin Lindberg. Hoje em dia, há coisas sem cheiro, sem cor e quase impossíveis de detectar, em especial se o corpo já tiver estado enterrado muito tempo e os vermes tiverem feito o seu dever. Umas gotas são o suficiente. Mas mesmo o melhor dos venenos tem inconvenientes, tais como a maneira de o fazer atingir o alvo.
Tollinger fica a pensar nisso durante um momento.
- Não deve ser demasiado difícil. O Irmão Kristos já cá esteve, sentado no preciso lugar onde você está agora.
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- Acha que conseguia fazer com que ele cá viesse outra vez?
- Acho que sim. Ele gosta de vodca apimentada.
- Então, só resta um problema: onde é que vamos arranjar o veneno?
Tollinger fica a pensar, levanta-se, deita mais um uísque no copo e volta a sentar-se.
- Acho que consigo arranjar o veneno.
- Sim? Onde?
É uma longa explicação, que, quando termina, já Marvin acabou de beber outra água gasosa e John o seu uísque.
- Uhm, uhm! - exclama Lindberg. - É capaz de dar resultado. E ao mesmo tempo arranjamos a terceira pessoa. Olhe, comece a tratar do veneno e entretanto eu dou umas voltas por aí a ver se encontro um sítio bom para uma campa. Talvez na parte ocidental do Maryland. Há sítios desertos por lá. É um longo caminho para se levar um cadáver no banco de trás, mas é capaz de valer a pena, se conseguirmos encontrar o lugar ideal. Lembro-me de que há um sítio perto da fronteira com a Virgínia Ocidental chamado Backbone Mountain1.
- É um nome sugestivo.
- Tem razão. Se vamos fazer isso, então mãos à obra. Depois de Lindberg sair, John fica sentado durante quase
dez minutos, dando voltas ao copo vazio, a pensar na conversa. Chega à conclusão de que está a tornar-se conspirador e pergunta-se a si próprio se teria subido mais no mundo da política nacional se isso tivesse acontecido mais cedo. Pega no telefone e liga para Michael Oberfest.
3
Terminado o frenesim, vão juntos para o chuveiro, rindo ao compararem o comprimento e grossura das respectivas pernas, as dela delgadas e macias e as dele maciças e cobertas de pêlos encaracolados. Em seguida, ela veste-se e o Irmão Kris-
1 A tradução literal seria "Montanha da Espinha Dorsal." (N. da T.)
252
tos enfia uma túnica de caxemira branca, presente de Jennifer Raye.
- Ouça, padre - diz Lu-Anne Schlossel -, esta é a última vez que visito este ninho de amores. Mrs. Mattingly viu-me entrar e é linguareira. A minha confirmação está para ser votada, pelo que tenho que me portar bem.
Kristos acena com a cabeça.
- É isso mesmo que deve fazer. Podemos falar ao telefone e depois de você ter sido confirmada podemos combinar encontrarmo-nos noutro sítio.
- Está a falar como se a minha confirmação fosse certa.
- E é.
- Isso é mais um dos seus vaticínios de feiticeiro? Kristos não responde e leva-a para a sala. Lu-Anne instala-
-se na grande cadeira de braços de Kristos, ao topo da mesa, mas ele não protesta.
- Nunca lhe cheguei a agradecer como devia ser - afirma ela.
- Agradecer o quê?
- Ter convencido Hawkins a nomear-me para vice-presidente.
- Não fui eu. Foi Mrs. Hawkins.
- E quem é que lho sugeriu a ela? Quando é que vai aconselhar ao Presidente a apresentação de uma nova proposta de lei sobre partilha de comida com maiores subsídios para os agricultores?
- Eu não vou aconselhá-lo. Quem o vai fazer é você. Sugira isso depois de ter sido confirmada no cargo. Fica com a fama de ter tido a ideia, e assim não haverá tanto falatório sobre a minha influência na Casa Branca.
- Você pensa em tudo - continua Lu-Anne, abanando a cabeça. - E, depois de ajudarmos os que têm fome, que tal ajudarmos os desalojados? A falta de habitação social neste país é uma vergonha.
- Já falei nisso ao Presidente. Fiz o resumo de um programa para mudar a política social, incluindo habitação social, e de um plano para melhoramento das pontes, túneis e auto-estradas do país. Isso iria criar muitos postos de trabalho.
- Meu Deus! - exclama ela, com admiração. - Você pensa em grande. E de onde é que vem o dinheiro para tudo isso?
Kristos encolhe os ombros.
253
- Aumentos de impostos, emissões de títulos. Se se tiver vontade,xconsegue-se. Mas reconheço que estas coisas levam tempo. É por isso que estou a tentar minimizar a minha influência sobre o presidente Hawkins. Não quero pôr em perigo a sua hipótese de reeleição.
- Não me parece que Sam Trent vá permitir que o país se esqueça que você dorme no Quarto de Lincoln.
- Só lá dormi uma vez - objecta Kristos, com o seu sorriso feroz. - E já tomei medidas para deitar por terra a carreira política de Trent. O homem é meu inimigo e eu sou inimigo dele. A nova proposta de lei sobre partilha de comida vai enfraquecê-lo, e há mais coisas que vão contribuir em breve para a sua morte política.
Lu-Anne simula um estremecimento.
- Ainda bem que você não é meu inimigo. Que tal uma bebida antes de me ir embora? - Kristos vai ao quarto buscar a garrafa e dois copos. Ela bebe um pequeno gole, olhando em seguida para ele, por cima da borda do copo. - Ouvi dizer que anda a visitar todas as igrejas da área de Washington. Está a tentar fazer amizades?
- É qualquer coisa assim - confessa ele. - Quero convencer a comunidade religiosa a apoiar o programa social do Presidente. Gostaria eventualmente de ver lançada pelos crentes uma campanha nacional para dar de comer a quem tem fome, arranjar casa para quem a não tem e emprego para todos os que podem trabalhar.
Lu-Anne endireita-se na cadeira.
- Eh, lá, padre! Você está a envolver demasiado as igrejas nos assuntos do Estado. Não gosto lá muito disso.
- Não há nada a recear. Só quero falar às pessoas em valores morais e necessidades espirituais.
- Não está a tentar enganar-me, pois não? Se a sua clientela religiosa quer dar de comer a quem tem fome, arranjar casa para os desalojados, está bem. Mas se quer orações nas escolas e legislação contra o aborto, então cada um de nós vai para seu lado.
- Não, não, irmã, eu só quero uma mudança social que torne a nossa sociedade mais justa.
- Uhm, uhm, quem me dera poder acreditar, mas não consigo. Às vezes, você mete-me medo. Há dias em que penso que é um messias que veio para reconfortar os pobres e outros em que penso que tem a mania das grandezas e uma ambição desmedida.
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- Eu sou aquilo que você vê: um homem simples que faz o que Deus lhe ordena.
- Talvez, e talvez seja o rei dos hipócritas. vou ficar de olho em si, feiticeiro. Quando você está no púlpito, é incrivelmente bom. Fez muito por mim, e estou-lhe grata por isso. Mas se eu chegar à conclusão de que está a passar das marcas com a sua cruzada religiosa, caio-lhe em cima. Limite-se a ajudar os pobres e os necessitados e deixe que os políticos eleitos tomem conta do governo. Está bem?
- Tenho que prestar contas a um poder mais alto - replica ele, de olhos faiscantes.
- É isso que me preocupa. Esse poder mais alto é Deus ou é a sua ganância por dinheiro e poder? Não se meta comigo, padre; não teria nenhum prazer em dar-lhe para
baixo. Mas há uma coisa que a Bíblia não diz: "Não federás, porque podes ser fodido."
4
John Tollinger começa a ver a conspiração como um edifício, uma coisa construída com pedras bem ajustadas. Tem forma piramidal. No vértice vê-se o assassínio do Irmão Kristos. Por baixo, estão os motivos dos conspiradores e o planeamento e intriga que devem ser um apoio suficiente em caso de acidente.
Fazendo da conspiração uma coisa coerente, transforma-a de uma intriga louca num exercício de lógica, exigindo um raciocínio rigoroso. Para além disso, retira ao crime o seu conteúdo emocional, que apenas serviria para confundir e enfraquecer a resolução dos assassinos.
É irónico, reconhece Tollinger, que o papel principal na morte do Irmão Kristos deva ser desempenhado por um indivíduo que, tanto quanto John sabe, não tem qualquer razão ou desejo de ver o pregador morto.
Assim, passa muito tempo a planear a maneira de convencer Michael Oberfest, homem que Tollinger considera um fraco sem miolos, a colaborar no homicídio. Por fim,
imagina um estratagema que, embora vergonhoso, deve dar resultado. Expõe-no a Marvin Lindberg, que o aprova e promete a sua colaboração.
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Começa por convidar Oberfest para jantar em Spring Valley. Como já esperava, Michael aceita de bom grado.
- Tem alguma coisa para me dizer sobre o meu problema? - pergunta ele.
- Falamos disso ao jantar - responde John.
Mas, quando Oberfest chega, Tollinger diz-lhe repetidas vezes: "Mais tarde, mais tarde", e, durante a refeição, composta por frango assado, queijo Tortellini e salada, fala apenas dos discursos de Trent e do êxito que este tem vindo a conseguir na sua campanha para arruinar a popularidade do Presidente.
Só quando já estão no escritório, bebendo café e brande, é que John observa de forma casual:
- Acho que descobri uma maneira de o safar em relação ao KGB.
As feições gorduchas de Michael enrugam-se, num sorriso de felicidade.
- Graças a Deus! E obrigado. Fartei-me de rezar para que você arranjasse uma solução. Marchuk está a ficar chateado. Está convencido de que eu ando a empatar. Qual é a sua ideia?
- Talvez você a ache demasiado dramática - responde Tollinger, calmo - e até estranha. Mas deve compreender que um agente na situação do major está habituado a conspirações complicadas e a esquemas retorcidos. Penso que ele vai aceitar.
- Mas o quê?
- Acho que devia ir ter com o russo, dizer-lhe que contactou pessoalmente o Irmão Kristos e que ele recusou o suborno.
- Por amor de Deus, John, Marchuk vai ficar furioso. Não sei o que é que ele vai fazer, talvez entregar de imediato as cassettes ao FBI.
- Ouça - diz-lhe Tollinger, com paciência. - Há mais. Depois de lhe dizer que o Irmão Kristos não se deixa subornar, sugere-lhe outra opção. Se os Soviéticos querem mesmo ver-se livres de Kristos, para protegerem o futuro político de Abner Hawkins, então a melhor maneira é livrarem-se mesmo dele. Porque é que não o matam?
- O quê? O que é que está para aí a dizer?
- Já disse. Você sugere ao major Marchuk que tratem os Russos de matar o Irmão Kristos.
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- Não posso fazer isso!
- Não se importa de me deixar acabar? Beba o seu brande e ouça. - Tollinger faz uma longa pausa, sabendo que tem muita coisa a dar a Oberfest para ele digerir de uma só vez e decidido a andar devagar, para aquele palerma conseguir perceber tudo. - Ouça-me com atenção, Mike, e tente não ficar nervoso até saber como é que toda
esta história acaba. bom, você declara ao major que o Irmão Kristos deve ser abatido. Qual acha que vai ser a reacção dele?
- Não sei - volve Michael, roendo nervoso a unha do polegar.- Suponho que não vai logo dizer que sim nem que não. E provável que me diga que tem de transmitir a proposta a Moscovo, para eles decidirem.
- É isso mesmo que ele vai dizer e fazer. Todos temos um patrão, inclusive os majores do KGB. Depois de ele lhe dizer que vai consultar os superiores, você acrescenta
algo para adoçar a coisa. Diz-lhe que se eles quiserem eliminar Kristos você está disposto a fazer o trabalhinho.
- Está doido, John!
- Não se importa de ouvir? Diz a Marchuk que está disposto a fazer o trabalho, desde que ele lhe entregue as cassettes.
Oberfest endireita-se no maple e olha para Tollinger com ar sério.
- Estou a começar a perceber. Digo ao russo que trato da saúde a Kristos, mas não o faço na realidade, é isso?
- É. Mas há mais ainda. Você afirma a Marchuk que vai assassinar Kristos, mas só se os Russos fornecerem a arma. Percebe alguma coisa de armas?
- É claro que não. Como é que havia de perceber?
- É pena - comenta Tollinger, em tom calmo -, mas isso não é essencial. O veneno também serve. Esclareça o major de que mata o homem se o KGB fornecer o veneno.
Isso não deve causar problema, aqueles sujeitinhos de capa e espada têm acesso a todos os tipos de drogas exóticas. Por isso, vá propor a Marchuk que, se ele fornecer o veneno, você faz uma visita ao Irmão Kristos ou convida-o para uma bebida e deita-lhe a coisa na vodca.
- Que raio de solução para o meu problema é essa, John? Se os superiores de Marchuk estiverem de acordo, e ele me der o veneno, e depois eu não concretizar o acto, é a mim que ele vai dar veneno.
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Tollinger inclina-se para a frente e fita o outro homem com atenção.
- Não, não vai, porque você tê-lo-á na mão. Quando for buscar o veneno, leva um microfone. Está a perceber? Um microfone e um emissor em miniatura preso à perna. E eu estarei por perto, com um receptor e um gravador. Você faz com que o russo fale do veneno que lhe está a entregar e de como o Irmão Kristos nem vai saber o
que lhe aconteceu. E eu faço uma gravação de toda a conversa. Está a começar a perceber agora?
- Meu Deus! Estou a perceber, estou a perceber! Ele tem cassettes comprometedoras para mim e eu terei uma que pode dar cabo dele!
- É isso mesmo. E ele fará tudo o que você quiser para ter a cassette de volta Imagina a bronca monumental que seria se você fosse à CL ou ao FBI? Todos os seus pecados anteriores seriam perdoados se lhes entregasse provas de que os Soviéticos estão a planear assassinar um amigo íntimo do presidente dos Estados Unidos. Está a ver o que os meios de comunicação social fariam com uma história dessas? E pode ter a certeza de que Marchuk também vai pensar nisso. Não tenha medo, que ele dá-lhe as cassettes só para recuperar a que você tem.
Oberfest recomeça a roer a unha do polegar.
- Mas se fazemos a troca e depois ele me manda eliminar, por o ter enganado?
- Não se preocupe - sossega-o Tollinger, em tom ligeiro -, porque você vai fazer uma cópia da tal cassette antes de a entregar. E faz com que ele saiba que a tem em lugar seguro, para ser entregue às autoridades se alguma coisa lhe acontecer. Esse é o seu seguro de vida. Acredite no que lhe digo, não tem motivo para se preocupar.
- Não sei - replica Oberfest, nervoso. - Há tantas coisas que podem correr mal. E se o equipamento electrónico não funcionar?
- Vai ver que funciona. Conheço um técnico óptimo que pode fornecer o equipamento.
- E se Marchuk o vê andar por ali e fica a pensar no que é que você lá está a fazer?
- Se você me avisar, com bastante antecedência, onde se vão encontrar, ele não me vê.
- Mas pode revistar-me e descobrir o microfone.
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- Nunca o revistou até agora, pois não?
- E se ele tem cópias das gravações?
- E depois? Você também vai ter uma cópia da gravação que fizermos, não vai? Estão quites.
- E se...
- Esqueça! - explode Tollinger. - Esqueça toda esta história! Eu tentei ajudá-lo e tudo o que você consegue fazer é levantar objecções estúpidas. Vamos esquecer
tudo isto. De qualquer maneira, não sei se você tinha coragem para o fazer.
- Tenho! - grita Michael, com desespero. - Pode acreditar que tenho! É um plano muito engenhoso, John, a sério. E vou pô-lo em prática.
- Não - rejeita Tollinger, com frieza. - Acho que é melhor esquecê-lo. Lavo daí as minhas mãos. O problema é seu: descubra maneira de o resolver.
- Por favor, John, deixe-me pôr em prática o seu plano. Tenho a certeza de que vai resultar. Agradeço a maçada que teve e o ter-se oferecido, e tudo o mais. Quero, na realidade, pôr o plano em prática.
- Tem a certeza?
- Absoluta.
- Está bem. Não digo que não tenha os seus riscos, mas acho que é viável. Vamos rever todo o cenário mais uma vez, para fixar a sequência. Depois, ensaiamos o seu diálogo com o major Marchuk, a fim de que você esteja preparado para qualquer pergunta que ele lhe faça.
- Tudo o que quiser, John - prontifica-se Michael Oberfest, com humildade.
5
Na noite de 14 de Janeiro tem lugar um espectáculo musical no Salão Este da Casa Branca. Estão presentes mais de cem convidados, incluindo importantes homens de igreja de todas as religiões do distrito de Colúmbia e eclesiásticos de todo o país.
O programa, planeado pelo Irmão Kristos, inclui cantores, instrumentistas e coros, que fizeram uma audição para o seu programa de rádio de uma hora e para a televisão. Há cantores
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de folk, jazz, country e rode, baladeiros com as suas violas e coros de espirituais, hinos, música religiosa.
E um serão alegre, com bater de pés e palmas por parte dos eclesiásticos reunidos, com frequentes gritos de "ámen" e "aleluia". O programa termina com todo o público de pé, de mãos dadas, cantando Amazing Grace. Trata-se, como proclama o Irmão Kristos, de um "glorioso jubileu!".
Os noventa minutos do programa (sem anúncios) são integralmente transmitidos em directo por quatro cadeias de televisão e consegue os mais altos índices de audiência da história da televisão. A reacção do público é entusiástica, com imensos telefonemas e cartas aprovadores a chegarem à Casa Branca.
Nos dias que se seguem aparecem comentários mais sóbrios e analíticos. A questão levantada com maior frequência é a de se a Casa Branca é o local indicado para aquilo a que se chamou um "encontro revivalista". A todas estas críticas o presidente Abner Hawkins responde que "a festa foi uma celebração da fé e do espírito humano".
Algumas horas após o fim do espectáculo, o Irmão Kristos está com o Presidente, a primeira dama e o filho a descansar no Salão Familiar.
- Vai ser difícil conseguir fazer melhor - comenta Hawkins. - Talvez pudéssemos pensar em organizar uma coisa destas todos os anos.
- Acho que o povo ia adorar - concorda a mulher. Foi, na realidade, muito comovedor.
- E impressionante - acrescenta o Presidente. - Conseguir reunir representantes de todos os credos para partilharem a sua música.
É a isto que eu chamo "espírito ecuménico".
- Há pessoas de boa vontade em todas as religiões - observa o Irmão Kristos, com suavidade. - Porque há apenas uma religião verdadeira, que é a fé. Uma vez que se
compreenda isso, os ritos, os rituais e as cerimónias das várias crenças perdem a sua importância. O que resta e permanece é o amor universal ao Todo-Poderoso.
- Ámen - responde George, e o Presidente, rindo, abraça-o.
Pouco depois, Mrs. Hawkins e o rapazinho despedem-se e ela leva-o para a cama.
- Pode ficar mais um pouco? - solicita Hawkins. - Há muito tempo que não conversamos em sossego.
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- Claro, pai. Todo o tempo que quiser.
O Presidente vai à frente e os dois homens, seguidos de agentes dos serviços secretos e de um homem com uma pasta de segredo, dirigem-se a um pequeno gabinete ao lado do Gabinete Oval. É um sítio discreto, com quatro cadeiras de braços e um único telefone.
- Há algumas coisas que gostava de saber - diz Hawkins, depois de fechar a porta. - Primeiro que tudo, contámos as cabeças e parece que vamos ter votos suficientes para confirmar Lu-Anne Schlossel como vice-presidente.
- Fico muito satisfeito por saber disso. Ela é uma óptima senhora e uma aquisição valiosa para o seu governo.
- Quero que trate, sobretudo, das nossas relações com o Congresso. Ela conhece a máquina legislativa e é exactamente disso que precisamos. Em segundo lugar, queria falar consigo dos programas de que me falou na noite das eleições. Lembra-se?
- Sim, pai. Sugeri um programa de mudança social: dar de comer aos que têm fome, casa aos que a não têm, programas de trabalho para criar empregos.
- Tenho estado a pensar em tudo isso - prossegue o Presidente, sombrio. - Como político pragmático, bem vejo como esse projecto é idealista. Os obstáculos são enormes. Mas, como o senhor já o disse, por muito idealista que seja uma coisa, deve ser tentada. Deus assim o quer. Por isso, organizei uma espécie de comissão ad hoc para elaborar um plano global que cure os nossos males sociais. As pessoas que contactei na comunidade empresarial, nas universidades, nos sindicatos, nas organizações de direitos humanos, etc., estão todas ansiosas por ajudar e dispostas a trabalhar de graça. Prometeram entregar-me um relatório completo no prazo de três meses. Não apenas sobre o que deve ser feito mas também saber como pode ser feito.
- As minhas preces foram ouvidas. Só mais uma sugestão, se me permite, pai.
- Diga.
- Ambos sabemos que um programa tão vasto e radical como este deve primeiro ganhar o coração e o espírito do povo americano. Para isso precisa de um nome sonante, qualquer coisa parecida com a Nova Fronteira ou a Grande Sociedade, e de uma campanha estudada com inteligência para vender os seus benefícios a todo o povo. Parece-me que não é
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demasiado cedo para recrutar a ajuda dos melhores peritos em comunicação social e publicidade que estejam dispostos a oferecer-se.
- Excelente ideia! - assente o Presidente, com sinceridade. - vou começar a preparar tudo, o mais depressa possível. - Ficam então sentados em silêncio, Kristos passando com lentidão os dedos pela barba e o Presidente, de olhos baixos, rodando a aliança de casamento à volta do dedo. Gostava de dedicar mais tempo às questões internas - observa Hawkins, quase como se falasse consigo próprio -, mas nestes últimos tempos tenho sido obrigado a ocupar a maior parte do meu horário com questões internacionais. Se acha que há muitos problemas nacionais que requerem solução urgente, há muitos mais ainda nas nossas relações com os outros países.
- Acredito, pai.
- É tão difícil chegar a consenso - suspira Hawkins -, mesmo entre os nossos amigos. Cada país age por interesse próprio, claro, o que é compreensível, mas por vezes são necessários sacrifícios em prol do bem comum. Nessas circunstâncias, a diplomacia tem tanta dignidade como o comércio de cavalos.
- Há muito que penso - argumenta o Irmão Kristos, com olhar vago - que os governos se interpõem entre as pessoas de um país e as de outro. No entanto, os seres humanos são basicamente iguais em todo o mundo. Todos queremos paz, comida, lar, emprego, família. E, mais importante ainda, todos somos inspirados por uma fé comum num ente divino, seja qual for o nome que se lhe dê.
- Mas os povos do mundo não podem tratar directamente uns com os outros. Precisam de governos que os representem.
Kristos baixa os olhos, para os fixar no Presidente.
- Precisam apenas do Governo de Deus e dos Seus representantes.
- O que é que está a dizer? - inquire Hawkins, intrigado. - Que devíamos concentrar os nossos esforços diplomáticos nos líderes religiosos dos países estrangeiros em vez de nos seus representantes eleitos?
- Estou a dizer que, se se descurar a religião universal da fé, nunca se conseguirá obter o apoio duradouro do povo desses países. E sem o apoio do povo conseguir a cooperação dos seus líderes será uma vitória sem sentido.
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- Está disposto a fazer um resumo das suas ideias perante um público constituído por diplomatas de alto nível, no Departamento de Estado? - sugere o Presidente, inclinando-se para a frente.
- Estou. vou insistir para que trabalhem em íntimo contacto com os líderes religiosos dos países onde foram colocados. Se se quer influenciar o futuro do mundo, deve-se fazê-lo a partir do púlpito.
- Mas, aviso-o, são tipos duros de roer. Em qualquer negociação, a primeira regra é exigir mais do que o que se pode razoavelmente esperar receber. Então, depois de termos acabado de regatear, devemos contentar-nos com o máximo que conseguirmos obter.
- Deus fez o mesmo - afirma o Irmão Kristos, sorrindo com tristeza.
6
Michael Oberfest sempre considerou Tollinger um homem frio, rígido, recto e reservado, com uma mania demasiado grande da superioridade. Mas aqui está esse mesmo pretensioso, esse intelectual insensível, mostrando ter uma natureza calorosa e compreensiva.
Passam três serões juntos em casa de Tollinger, em Spring Valley, revendo e tornando a rever a cena que montaram para enganar o major Leonid Y. Marchuk, do KGB. A paciência de John nunca esmorece, à medida que vai dirigindo com lentidão Michael no papel que este deve desempenhar, no diálogo e na maneira de reagir a qualquer possível acidente.
Tollinger desempenha o papel de Marchuk, colocando perguntas difíceis a Oberfest e corrigindo-o em seguida, com paciência, quando este comete asneira. Ao fim de três ensaios, o cérebro de Michael está confuso com todas aquelas deixas e respostas que se fartou de repetir. Mas Tollinger parece satisfeito com o último ensaio e dá uma palmadinha no ombro de Michael, antes de o mandar embora para fazer a sua estreia.
Finalmente, Oberfest telefona para o número do contacto e combina-se um encontro num centro comercial próximo de Bowie, no Maryland, local que já não era utilizado há várias
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semanas. Marchuk aparece vestido de sobretudo de astracã e com um barrete de peles.
- Então? - pergunta o russo, logo que se sentam ambos no banco da frente do seu Lincoln. - O que é que tem para me dizer? Boas notícias, espero.
- Nyet - responde Michael, em voz aguda. - O Irmão Kristos recusa-se a ser subornado. Estive com ele quatro vezes. Uma vez no apartamento dele, duas na igreja da Virgínia e uma em minha casa. Tornámo-nos companheiros de copos e eu fui muito directo: ofereci-lhe cem mil dólares para ele desaparecer da circulação.
- E ele?
- Ele riu-se. Depois disse-me que nem por um milhão. E é compreensível, não é? Arranjou um óptimo negócio: tu cá, tu lá, com o Presidente, um programa na rádio, e está agora a planear um programa religioso na televisão. Cem mil dólares é uma ninharia em comparação com o que ele vai ganhar. Ouça, eu tentei, tentei mesmo, mas nada feito.
- Não estou a gostar nada disto. E os meus superiores também não vão gostar. São capazes de me transferir para Moçambique e adeus mulheres da Califórnia!
Esta é a deixa em relação à qual Tollinger recomendou a Michael para estar atento.
- Mas pode haver uma solução muito fácil. Grosseira, mas fácil.
- Ah, sim? E qual é?
- Se vocês querem mesmo fazer com que o tipo desapareça da cena política, então porque é que não o eliminam?
O homem do KGB vira a cabeça e fita Michael.
- Olhe, é uma opção, não é? - comenta este. - E não me diga que a sua organização nunca a utilizou. Quando não conseguem persuadir, nem fazer chantagem, nem subornar, eliminam, não é?
- E quem é que sugere para eliminar o Irmão Kristos?
- Vocês, se calhar, têm um exército de profissionais treinados que o podem fazer - sugere Michael, encolhendo os ombros.
- Demasiado arriscado - replica Marchuk, abanando a cabeça. - Se alguma coisa correr mal e a vossa CIA fizer a ligação entre o assassino e nós, o nosso problema torna-se ainda maior.
Michael volta a encolher os ombros e replica:
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- Então esqueça. Era só uma sugestão.
- E não é má sugestão, Arnold. Nem impossível. Mas, se se levar por diante, deve ser planeada de modo a não haver qualquer rasto que conduza até nós.
- E assim onde é que vão arranjar um assassino? Contratam um drogado qualquer que encontrem por aí?
Este, segundo Tollinger, é o momento da verdade. Ou o russo morde o isco ou todo o plano vai por água abaixo.
- Não - esclarece Marchuk, com ar sério -, nós nunca contratamos ninguém que não possamos controlar. Mas há um homem que poderia fazer isso por nós - declara ele, colocando uma mão pesada no joelho de Michael.
- Sim? E quem é que poderá ser?
- Você, meu rapaz - responde o major, com voz suave. "Aí está!", pensa Oberfest, surpreendido com a alegria que
isso lhe provoca.
- Eu? Está louco? Eu não sou assassino. Nunca disparei uma arma na minha vida (nem sei disparar) e quanto a facas... esqueça! Não tenho feitio para assassino.
O homem do KGB fica calado durante um momento, e Michael receia tê-lo perdido. Mas, por fim, o major diz:
- Há muitos métodos, Arnold, sem ser a pistola ou a faca. Há maneiras modernas e sofisticadas. Fáceis e eficazes. Maneiras simples mas que, como vocês costumam dizer, dão inteira satisfação. Ainda continua a ser amigo do curandeiro?
- Continuo, claro.
- E diz que costumam beber uns copos juntos?
- É verdade.
- O que é que ele gosta de beber?
- Tem preferência pela vodca apimentada.
- Óptimo! - alegra-se Marchuk, que dá uma estrondosa gargalhada. - Pelo menos, há uma coisa que ensinámos aos capitalistas. É vodca russa?
- É.
- Cada vez melhor! Vai ter imensa piada. E o padre costuma embebedar-se com vodca russa?
- Bem, não fica a cair de bêbedo, mas fica meio anestesiado. Porque é que pergunta?
- Porque estou a pensar num método de eliminar o Irmão Kristos que até você era capaz de utilizar.
- Eh, lá - contesta Michael, indignado. - Já lhe disse que não me metesse nisso. Não sou assassino.
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("Proteste", recomendou Tollinger, "mas não demasiado.")
- Arnold, todos somos assassinos, se as circunstâncias o exigirem. Deixe-me contar-lhe o que estou a pensar. Há venenos por aí: incolores, inodoros e insípidos. São necessárias apenas algumas gotas. A fórmula pode ser ajustada para paralisar o sistema nervoso num período que pode ir de alguns segundos até várias horas. Depois, faz o efeito de um ataque de coração e é quase impossível detectá-lo numa autópsia. Acha assim tão difícil deitar umas gotas na vodca do Irmão Kristos, quando ele estiver, como você diz, meio anestesiado?
- Mas porque é que havia de ser eu a fazê-lo? O que é que tenho a ganhar com isso?
- Ah! O que é que eu tenho a ganhar com isso? É este o lema da América. Eu digo-lhe o que tem a ganhar: aquelas gravações comprometedoras das nossas conversas anteriores.
- Oberfest fica calado. "Mantenha a calma", recomendou Tollinger. "Deixe-o acreditar que ainda não tinha pensado nisso e que agora, que ele o sugeriu, você encara o assassínio do Irmão Kristos com novos olhos." - As gravações originais
- prossegue Marchuk, em voz sedutora - e todas as cópias. É o fim do seu pesadelo. Não acha tentador?
- Deixe-me pensar - hesita Michael. - Não sei. Não tenho a certeza.
- Mas é claro! Pense nisso, e não demore muito tempo. Entretanto, vou contactar com os meus superiores, a fim de obter o seu acordo. Se eles disserem que não, então limitámo-nos a passar um serão agradável. Mas não me parece que digam que não; acho que vão aprovar esta iniciativa. Mas só se você concordar, Arnold.
- Eu dou-lhe uma resposta em breve.
No caminho de volta a Washington, Michael pára numa estação de serviço aberta vinte e quatro horas por dia, para meter gasolina, ir à casa de banho e fazer um telefonema.
- Você é um génio - diz ele a John Tollinger.
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O princípio do Inverno tem sido frio, e já se verificaram duas tempestades de neve, que enterraram o Distrito de Colúmbia,
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fazendo parar o trânsito na capital e concedendo umas férias inesperadas aos funcionários públicos.
Há neve nos terrenos à volta do armazém de tabaco da Virgínia, mas o Irmão Kristos contratou máquinas para manterem o parque de estacionamento livre dela; não há diminuição na assistência aos seus serviços religiosos de sábado à noite. As pessoas chegam embrulhadas em casacos de peles e anoraques forrados de pêlo, mas o Irmão Kristos, vestido com o seu hábito de burel, parece imune ao frio. No quarto das traseiras, o fogão está aceso.
O pregador entra e, como é habitual, fica em silêncio durante alguns instantes. Observa o público, passando lentamente os olhos por cada pessoa, com aquele olhar ardente que já é esperado. Então, sem qualquer preâmbulo, começa:
- Todos nós nascemos à segunda-feira e morremos à sexta. A vida não dura mais que a cintilação de uma estrela. E é assim que deve ser, pois quem desejaria viver eternamente, suportando todas as promessas não cumpridas de uma existência sem fim?
"Meus irmãos e minhas irmãs, meditai na transitoriedade das vossas vidas. Recebeste a dádiva da vida e em breve ela vos será retirada. Peço-vos que utilizeis as vossas breves horas de existência com sabedoria. Desperdiçá-las é uma ofensa a Deus."
O Irmão Kristos expõe então este tema, e, embora nunca deixe de lembrar aos seus ouvintes a sua contingente decomposição, a mensagem que transmite acentua a necessidade da alegria e da paixão empenhada.
- Criai! Fazei dos vossos últimos dias (pois todos os dias são os últimos) uma glória que vos traga felicidade e seja agradável a Deus. Expandi a vossa vida com amor, riso e prazer. Dai amor à vossa família, riso aos vossos filhos, prazer aos vossos amigos. Todos nós somos borboletas e vivemos tanto tempo como elas. Suplico-vos que voeis, que vos eleveis, que façais da vossa curta passagem por este mundo um tempo de felicidade e alegria.
O seu sermão é bem acolhido, pois diz-lhes que não há prazer que possam procurar que ofenda o Todo-Poderoso, desde que não se seja ofendido por ele, no corpo ou no espírito. Manda-os embora para o frio confortados com o calor das suas palavras.
Quando todos se foram embora, o Irmão Kristos senta-se
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com Pearl e Agnes no quarto das traseiras, comendo pimentos, cebola crua, filetes de arenque conservados em vinho e passando uma garrafa de vodca de mão em mão.
- Como é que te lembraste de toda aquela conversa desta noite? - pergunta Pearl. - Nunca a tinha ouvido.
Kristos não responde e permanece inclinado sobre a mesa, pegando nos arenques com a mão e comendo-os. O bigode e a barba escorrem molho e o chão manchado fica cheio de cascas de cebola e pés de pimento.
- Achei tudo aquilo muito deprimente - comenta Agnes. - Toda aquela conversa sobre a morte, quem é que gosta de a ouvir?
- Pensas que não vais morrer? - replica Kristos, sem levantar os olhos da comida. - Tu e eu e toda a gente morre. Todos nós somos mortos-vivos.
- Mas eu não quero pensar nisso.
Kristos olha então para ela, mordendo uma cebola com os seus dentes fortes.
- Tu não queres pensar em nada, a não ser em encher a boca e a cona. Vocês, suas vacas, não conseguem, entre as duas, ter um cérebro. Já alguma vez qualquer de vós teve a curiosidade de perguntar porque é que existe alguma coisa? Porque é que não havia de existir o nada? Há a Terra, o Sol, a Lua, os planetas, as estrelas, os confins do universo. Porque é que estas coisas existem? Não quero dizer porque é que não havia de existir um vazio frio e sem vida, mas porque é que até o vazio havia de existir. Porque não o nada, sem forma, sem medida? Alguma de vós, cabeças ocas, já pensou nisto?
- Não sei de que diabo estás a falar - afirma Pearl. Hoje estás cá de um mau humor! Bebe um pouco mais de vodca.
Kristos bebe pela garrafa, cabeça para trás e mexendo-se a garganta para baixo e para cima.
- Eh, lá, Jake, tem calma! - repreende-o Agnes. - Não caias já.
Kristos atira a garrafa vazia para um canto. O cão levanta a cabeça, assustado, e volta a acalmar-se, adormecendo em seguida.
- Vai-me buscar outra garrafa - ordena o Irmão Kristos. - Os arenques fizeram-me sede. - Pearl tira uma garrafa cheia do armário. Abre-a e inclina-se sobre a mesa para a colocar diante de Kristos. Este mete-lhe com rudeza a mão
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no decote do hábito a acaricia-lhe o pequeno seio. - Linda maminha! - exclama ele.
- Assim é melhor - observa Agnes, em tom aprovador. Deixa-te dessa merda sobre a morte e sobre a razão por que não existe só o nada. - Agnes levanta-se, puxa o hábito para cima e o biquini de algodão para baixo. - Estás a ver? Não achas que isto é qualquer coisa?
Bebem mais vodca. Acrescentam carvão ao lume. O ar torna-se abafado. Despem-se todos. Tiram da mesa os restos de comida e os pratos de alumínio. O cão encolhe-se no seu canto.
O Irmão Kristos empurra Pearl, de modo a ela ficar de barriga para baixo sobre a mesa da cozinha. Agarra num exemplar das Orações do Irmão Kristos para Todas as Ocasiões. Abre o livro sobre as nádegas nuas da mulher. Agnes, rindo, põe-se de cócoras entre as pernas dele.
- Está escrito! - grita Kristos, molhando os dedos na vulva de Pearl para virar as páginas do seu breviário. - Se souberdes a verdade, a verdade libertar-vos-á. Quem acredita em mim não morrerá nunca: eu trago a vida eterna. Abençoados os que ouvem a palavra do Irmão Kristos e a guardam. Acreditai em mim e tudo é possível. Vinde a mim, todos vós que trabalhais e carregais um fardo, e eu vos darei descanso. Morrerei pelos vossos pecados. Tende confiança em mim, para salvação das vossas
almas. A fé é a resposta, irmãos e irmãs. A fé expulsa o pecado e ninguém precisa de ser redimido num mundo sem pecado. O Irmão Kristos abraça-vos a todos e tornará
os pecados escarlates tão brancos como a neve. Pois a paz do Irmão Kristos ultrapassa a compreensão.
Continua a desfiar a sua litania, gritando, dando pancadas no seu púlpito de carne com o livro de orações, rindo ambas as mulheres às gargalhadas. Até que os três
se deixam cair no chão sujo, excitados pela luxúria. O cão pálido levanta de novo a cabeça e observa a cena, com os olhos semicerrados.
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As sondagens encomendadas, em particular pelo ex-vice-presidente, Samuel Trent, mostram que as suas actividades ini-
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ciais de campanha estão a progredir de modo encorajador. Cada vez mais americanos estão conscientes do casamento da política com a religião na Casa Branca. E, ao que parece, há outros tantos que estão preocupados com o que Trent designa por "perniciosa influência" do Irmão Kristos na política do governo. O homem a quem um comentador político chamou um dia "o rajá do palavreado" está agora a começar a ter a reputação de "falar com sensatez".
A 14 de Janeiro, Samuel Trent e a sua equipa encontram-se em Manhattan, onde ele deve pronunciar um discurso num congresso de executivos ligados a cadeias de televisão, no New York Hilton. Trent e a sua comitiva chegam à entrada do hotel, na Sexta Avenida, pouco antes do meio-dia.
Ao sair do seu automóvel, um jovem barbudo destaca-se de entre um pequeno grupo de espectadores, aponta uma pistola ao ex-vice-presidente e puxa várias vezes o gatilho. O primeiro tiro estilhaça o pára-brisas do Cadillac, o segundo rasga o lobo da orelha esquerda do motorista, e depois disso ouve-se apenas uma série de estalidos, pois a pistola, comprada na candonga, encrava.
O candidato a assassino é mais tarde identificado como sendo Simon Czeck, membro de uma religião obscura que acredita na total abstinência sexual e na segunda vinda de Cristo.
- Foi Deus que me disse para o fazer! - grita Czeck, ao ser dominado pelos adjuntos de Trent.
Felizmente para Trent, estavam lá dois jornalistas e um fotógrafo, que registaram a tentativa de assassínio. A fotografia publicada depois em jornais e revistas mostra Trent de pé, direito e aparentando não ter medo durante o ataque. Como mais tarde escreveu um dos jornalistas: "Se a coragem é elegância sob tensão, então Samuel Trent é o homem mais corajoso que já vi em toda a minha vida."
Quando sobe ao estrado, para discursar, já a notícia do ataque se espalhou por todos os participantes no congresso. As primeiras palavras de Trent, facultadas pelo homem que contratou para lhe escrever os discursos ("Como ia a dizer, antes de ser interrompido de forma tão rude..."), deitam a casa abaixo, e o público levanta-se, para lhe conceder uma ovação prolongada.
- Ninguém tem mais respeito pela religião estabelecida do que eu - declara Trent, acentuando a palavra estabelecida.
- Sou membro da igreja anglicana desde que nasci, tenho vivido
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sempre como membro da igreja anglicana e tenciono morrer membro da igreja anglicana... mas não hoje! Gargalhadas e aplausos.
- Os líderes religiosos de todos os tipos têm contribuído enormemente para o crescimento e bem-estar do nosso país. Mas deve dizer-se que, por vezes, em raras ocasiões, os nossos líderes espirituais têm procurado desempenhar um papel nas questões temporais do nosso Governo. É um papel para o qual não são qualificados, nem pela educação, nem pelo treino, nem pela experiência.
"Somos, na actualidade, defrontados, ao mais alto nível do Governo, com uma situação que penso poder, sem exagero, classificar de crise. O poder executivo tornou-se refém da ambição insaciável de um estranho homem do clero que, ao que parece, não é membro de qualquer religião estabelecida e que afirma ter poderes de curandeiro e vidente.
Trent afirma então de forma clara que os líderes políticos são, e devem ser, livres de procurar conselhos espirituais junto de quem entenderem. Mas, acrescenta com firmeza, não se pode permitir que se intrometam nos assuntos do governo ou que tenham demasiada influência na política interna.
- A César o que é de César, e a Deus o que é de Deus! Pinta em seguida um quadro escuro do futuro do país, se a
política se ligar a qualquer religião, seita ou culto em particular. Prevê o desenvolvimento de uma luta trágica entre credos para conseguir o domínio.
- Todas as guerras são más - afirma ele, com tristeza -, mas as guerras religiosas são as piores.
Os seus comentários finais, pronunciados com todos os sinais da mais completa sinceridade, descrevem os terríveis efeitos que terá sobre a sociedade americana o facto de as rédeas do poder local, estadual e nacional serem entregues nas mãos de políticos eclesiásticos que tenham menos consideração pela Constituição do que pelo seu próprio dogma.
- Será que queremos ver Chicago tornar-se um novo Belfast? ou Los Angeles um novo Beirute? A única forma de assegurarmos a continuidade da nossa existência como República pacífica é banirmos, sem hesitação, da Casa Branca, do Capitólio e dos nossos tribunais o sectarismo injustificado, que se limita a virar irmão contra irmão e a tornar as nossas tradições democráticas motivo de troça.
"Todos os que aqui estão hoje têm o poder de influenciar a
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opinião pública. Peço-vos de forma encarecida que façais ver aos vossos telespectadores o perigo que existe, e que continuará a crescer como um tumor maligno, enquanto se permitir que um fanático religioso não eleito dite as leis do nosso querido país.
"Obrigado.
O público volta a aplaudir Trent de pé. Mais tarde, em conversa particulares, os executivos da televisão discutem a importância do que ouviram. A maioria concorda que Trent, homem a quem em tempos chamaram "o príncipe dos palhaços da política americana", deve ser agora considerado um sério candidato às próximas eleições presidenciais.
No voo de regresso a Washington, a bordo de um avião fretado, Trent e a sua equipa estão deveras animados pelos acontecimentos do dia. A tentativa de assassínio fracassada e a óptima recepção por parte dos executivos da televisão fazem com que todos estejam eufóricos.
Nessa noite, em casa com a mulher, Samuel faz-lhe um relato pormenorizado daquela tarde empolgante e significativa. Andando para trás e para diante em frente da cadeira de Matilda, regozija-se com a publicidade laudatória que daí resultará, decerto.
- Digo-te que vou a caminho: aqueles ricalhaços do partido não podem deixar de estar impressionados. Estou admirado por ainda não ter tido notícias deles. Nada me pode impedir agora de continuar. Estou sentado no topo do mundo. Abner Hawkins está acabado, e o Irmão Kristos vai passar à história e por fim será como se nunca tivesse existido. vou ser o próximo presidente, e tu serás a primeira dama. O que é que te parece, Matilda?
- Samuel, senta-te um bocadinho. Tenho uma coisa importante para te dizer.
- Tenho boas e más notícias - informa Marvin Lindberg, abrindo uma garrafa de água com gás. - vou começar pelas boas. Passei os últimos dois dias no Maryland Ocidental e encontrei finalmente o local ideal para um enterro. Fica perto
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de uma estrada coberta de vegetação, ao pé de Backbone Mountain.
- Muito trânsito? - pergunta John Tollinger.
- Nenhum nesta altura do ano. É uma zona de terreno agreste. Esta estrada deve ter sido no início um caminho de lenhadores. Está em muito mau estado, mas pode-se
lá passar. Não há casas em quilómetros e quilómetros ali à volta. É impossível arranjar local mais isolado.
- Acha que consegue chegar lá de noite?
- Consigo. Fica bastante desviado da Auto-Estrada Cinquenta, mas fiz o caminho três vezes, e consigo encontrá-lo de olhos fechados. Não imagina como é cheio de árvores e mato. Vamos ter que limpar um bocado de terreno, mas quanto é que é preciso para uma cova? Dois metros por sessenta centímetros, no máximo, não acha? Menos do que isso se conseguirmos dobrar o corpo.
- E você diz que não há trânsito, nem casas, nem ninguém por ali?
- Se cavarmos uma boa cova, John, e a cobrirmos depois com mato e ramos, ninguém vai encontrar os ossos, nem daqui a mil anos.
Tollinger põe uma marca à frente de uma das rubricas no bloco que tem ao colo.
- Parece óptimo - diz ele, bebendo um gole de uísque de malte. - E agora, quais são as más notícias?
- No caminho de regresso, o meu velho Buick começou com problemas. Parece-me ser da transmissão. Parei numa garagem, e o tipo meteu lá um líquido qualquer. Disse-me que dava para eu chegar a casa, mas que uma nova transmissão seria a cura permanente. Eu não gasto nem mais um tostão naquela lata, pelo que é melhor não contar com ele para o transporte. E no seu Jaguar não cabemos todos.
- Não há problemas. Usamos o carro de Oberfest. Ele tem um grande Cadillac.
- Olhe, John, pela descrição que me fez do tipo, parece-me ser um mariquinhas. Acha que pode contar com ele?
- Não se preocupe, eu trato dele. Saiu-se bem com o russo, não saiu? Aqui está o que vamos fazer: assim que ele tiver notícias do major Marchuk, contacta-me e eu entro em contacto consigo. Encontramo-nos todos aqui, para colocarmos o microfone em Oberfest. Depois, vamos até ao local do encontro com a antecedência suficiente para arranjarmos tudo antes
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de o russo chegar. Ensaei com Michael uma dúzia de vezes e, se tudo correr bem, devemos conseguir uma boa gravação da conversa deles, para além do veneno, se o major cumprir a promessa.
- Esse é um grande se. Também pensávamos apanhar o Irmão Kristos da mesma maneira, mas ele escapou-se. Espero que o comunista não seja tão esperto.
- Não está a ficar com medo, pois não, Marvin? - indaga Tollinger, olhando-o.
- Quem, eu? De maneira nenhuma. Só não quero tramar-me, por nos metermos numa coisa estúpida.
- O plano não tem nada de estúpido - replica John, paciente. - É verdade que depende muito da sorte, mas tudo neste mundo depende da sorte.
- Bem pode dizê-lo. E o sacana bem precisa de ser morto, não há dúvida. Viu o encontro revivalista que ele organizou na Casa Branca? O tipo é um canhão à solta. Se se lhe der corda, ainda acaba por meter os ateus em campos de concentração.
- Concordo inteiramente. Vi o espectáculo na televisão e fiquei chocado com o que estavam a transmitir do Salão Este. Sabe como antipatizo com Trent, mas devo confessar que nestes últimos tempos ele fala com muita sensatez. Essa é outra razão pela qual quero eliminar o Irmão Kristos, para pôr termo às ambições eleitoralistas de Trent. Ai está uma coisa irónica: é exactamente se o motivo do major Marchuk, do KGB.
- Como é que vai explicar a minha presença a Oberfest, John?
- Já lhe disse que você é técnico de electrónica e que é preciso que esteja presente no encontro com Marchuk para termos a certeza de que o equipamento funciona,
- Você pensa em tudo.
A 19 de Janeiro, pouco antes do meio-dia, Oberfest telefona para o gabinete de John Tollinger na Casa Branca. A voz de Michael parece esganiçada.
- Está combinado, é hoje à meia-noite.
- Óptimo - responde Tollinger, em tom calmo. - Ele disse-lhe onde?
- Disse, vai ser...
- Pelo telefone, não - apressa-se a interromper Tollinger. - Esteja em minha casa hoje, às oito da noite.
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- Está bem, lá estarei. Tem a certeza de que isto vai resultar, John?
- Em minha casa. Hoje. Oito da noite. Tollinger desliga e telefona a Lindberg.
Oberfest é o primeiro a chegar. O homem vem num estado de meter dó, pálido e com mãos trémulas. Tollinger instala-o no maple grande do escritório e prepara-lhe um Martini duplo com gim.
- Vai correr tudo bem, Mike - diz ele, tentando acalmá-lo.
- Vai tudo correr sobre rodas, vai ver. O russo disse-lhe se tinha ou não o veneno?
- Não, só me disse quando e onde ir ter com ele.
- Está bem. Agora acalme-se e beba o seu Martini. Guarde a sua história até o técnico chegar e então combinamos a táctica.
- Tenho fome - declara Oberfest, nervoso. - Tem alguma coisa que se coma? Não, esqueça o que eu disse, estou demasiado nervoso para comer. Se calhar, vomitava.
- Vai correr tudo bem. Tenho carnes frias no frigorífico e podemos comer uma sanduíche antes de sairmos.
Lindberg chega, trazendo o emissor e o receptor. John faz as apresentações e os três conspiradores puxam cadeiras e sentam-se, inclinados para a frente, de cabeças juntas.
- Já nos encontrámos lá - informa Michael. - É um desvio na estrada para Annapolis. Tem só uma faixa de rodagem e é um caminho muito escuro e deserto.
- Quanto tempo é que se demora a chegar lá? - pretende saber Tollinger. - Uma hora?
- Uma hora chega bem, mesmo com trânsito.
- Vamos contar com duas horas - decide John, resoluto -, pelo sim, pelo não. Saímos daqui às dez. Você vai à frente, Michael, e nós seguimo-lo no meu Jaguar. Marvin, mostre a Mike o equipamento.
Lindberg mostra os pequenos instrumentos electrónicos.
- Este é o que você vai levar consigo - explica ele a Oberfest. - É um microfone-emissor. A única coisa que tem de fazer é ligá-lo aqui. Está a ver? Trabalha a pilhas, pelo que deixe-o estar desligado até o tipo chegar. Depois, não se esqueça de o ligar; se não, nada feito.
- Não me esqueço - responde Michael, estremecendo.
- Este é o receptor e gravador de cassertes. John e eu tratamos dele. Não se preocupe, deixe-o connosco. Você só tem
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de se lembrar de ligar o seu emissor. Quando se encontrou ali com o russo, estiveram sentados no carro dele ou no seu?
- Em nenhum deles. Saímos e andámos para trás e para a frente,na estrada.
- Óptimo. Tente fazer o mesmo hoje. Isso melhora a cem por cento a qualidade da recepção. Acho que o melhor é prender o emissor na parte de baixo da canela. Se ele o apalpar, é provável que não o faça próximo do tornozelo. Trouxe adesivo largo para o prender à sua perna. Tem alguma pergunta a fazer?
- Tenho fome - repete Oberfest, com um riso nervoso. Vão todos para a cozinha, e Tollinger tira para fora pão de
centeio, fiambre, queijo suíço, mostarda e um boião de pepinos de conserva. Michael come duas sanduíches, que acompanha com outro Martini. Lindberg prepara uma grossa sanduíche, bebendo água com gás. E Tollinger toma mais um uísque, mas não come nada.
Passam uma vez mais o plano em revista. Depois Oberfest puxa a perna direita das calças para cima e Marvin cola o emissor à sua pele branca e sem pêlos. Vão para
o pátio e experimentam o equipamento. Tudo funciona na perfeição.
Alguns minutos depois das dez, Michael mete-se no seu Eldorado verde e afasta-se. Lindberg e Tollinger seguem-no no Jaguar XJ-S covpé preto.
- Acho que ele se vai sair bem - observa John.
- Esperemos que sim. É mesmo dele ter um carro daquela cor, é a cor do dinheiro.
Chegam ao desvio na estrada para Annapolis em menos de uma hora. Vêem o Cadillac abrandar e virar e seguem-no pela estrada estreita.
- Merda! - exclama Lindberg -, é gravilha. Se andarem para trás e para diante em cima dela, vamos apanhar imensos ruídos.
- Não vale a pena dizer-lhe para andar com cuidado. Ele já está cheio de medo assim.
Oberfest pára na berma, desliga o motor e apaga os faróis. Eles param ao lado dele.
- Nós vamos seguir um pouco mais para diante - grita Lindberg. - Para não sermos vistos. Você fica aqui. Nós já voltamos, para fazermos um último teste.
Tollinger segue até uns oitocentos metros mais adiante, descreve uma curva e pára o carro fora da estrada. Trancam as portas e voltam para trás.
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Está uma noite sem nuvens e uma Lua redonda causa um reflexo prateado na gravilha. O degelo de Janeiro chegou e o ar está quase morno. Ambos os homens têm os sobretudos desabotoados.
Chegam ao pé do Cadillac e Marvin afasta-se pelo campo, para leste, enquanto John toma conta de Oberfest.
- Quando acabar o encontro - recomenda ele a Michael -, não espere por nós. Dirija-se a minha casa, em Spring Valley. Encontramo-nos lá.
- Meu Deus, estou com tanto medo! E se ele descobre o microfone? Mata-me.
Lindberg volta, queixando-se:
- Deste lado, nada. É tudo plano e a filha da mãe da Lua parece um holofote. O russo dava logo connosco. vou tentar o outro lado.
Dirige-se para oeste.
- Sente-se bem com o microfone? Não vai fazê-lo coxear, pois não?
- Não, está óptimo. Meu Deus, como é que eu me fui meter nesta trapalhada!
- Daqui a pouco já está tudo acabado e você vai ter uma óptima gravação tendo como protagonista o major Marchuk, da União Soviética.
- Assim o espero. Há semanas que não consigo levantá-lo. O filho da mãe do comunista está a dar cabo da minha vida sexual.
Lindberg está de volta.
- Encontrei um sítio. Não é o ideal, mas acho que serve: é uma pequena vala, razoavelmente seca e com uns salgueiros a taparem-na da vista. Ligue o microfone, Oberfest, e vocês dois comecem a andar na gravilha e a falar. Quero verificar a qualidade da recepção.
Volta a desaparecer. Michael dobra-se, para ligar o emissor, e os dois homens começam a andar.
- Ainda continua a trabalhar para Trent? - pergunta Tollinger.
- Claro. No seu quartel-general, em Washington. Sabe, John, começo a pensar que o homem vai conseguir chegar ao Gabinete Oval.
- Não me parece. As eleições são só daqui a quase dois anos. Ainda pode acontecer muita coisa.
Lindberg atravessa a estrada.
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- Desligue o emissor. Não convém ficarmos sem pilhas. A recepção é boa, John. Menos ruído de gravilha do que eu esperava. Como é que estamos de tempo?
- Faltam cerca de vinte minutos para a meia-noite - responde Tollinger, olhando para o relógio.
- Então, é melhor irmos para o nosso posto. O microfone está desligado, Oberfest?
- Está.
- Óptimo. Mas lembre-se de voltar a ligá-lo quando o tipo aparecer.
- Não me esqueço.
- Então vamos ao espectáculo.
Minutos depois da meia-noite, Tollinger e Lindberg vêem uns faróis saírem da Estrada 301 e dirigirem-se devagar ao longo do caminho de gravilha. Metem-se na vala, encostam-se ao declive e espreitam por cima da borda. Vêem o carro parar e as luzes desligarem-se.
- Trouxe a sua arma? - pergunta Tollinger.
- Trouxe.
- Talvez precisemos dela - observa Tollinger, surpreendido com a rapidez com que se adaptou a um mundo de armas, perigo e eventual violência.
Os dois esperam, ansiosos.
- Liga-o, querido - murmura Lindberg. - Vá lá, liga-o. Silêncio.
- Meu Deus! - exclama ele, desesperado. - Aquele miúdo idiota entrou em pânico.
Mas nesse momento ouvem o clique do altifalante do receptor, um pouco de ruído, o barulho de uma porta de carro a fechar-se.
- Graças a Deus! - suspira Tollinger, em voz baixa. Na estrada, Marchuk sai com dificuldade do seu Lincoln,
fecha a porta e dirige-se para junto de Oberfest, que está encostado ao guarda-lama da frente do Cadillac.
- Então - comenta o major, jovial. - Cá estamos nós outra vez.
- Sim. Está um lindo dia, não está?
- Todos os dias são lindos, quando se pode acordar. Vamos conversar?
- Não fala com muito sotaque - segreda John a Lindberg. - Onde terá ele estudado? Pode aumentar um pouco o volume do som?
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Marvin mexe no receptor. As vozes e os passos na estrada tornam-se mais distintos. A fita da cassette vai-se enrolando devagar e continuamente.
- Diga-me uma coisa, tem pensado na minha proposta? pergunta o major.
- A sua proposta - observa Tollinger, em voz baixa. Conseguimos mesmo aldrabá-lo.
- Tenho, mas há uma coisa que quero esclarecer primeiro.
- De que se trata, Arnold?
- Se eu fizer o que sugere que faça, promete dar-me as cassettes, major Marchuk?
- Major Marchuk? Que formalidade! Se quiser, pode tratar-me por Leon. Uma das minhas miúdas da Califórnia disse-me que significa "corajoso como um leão". Não é bonito? Mas, respondendo à sua pergunta, dou-lhe a minha palavra de honra, como oficial soviético, que lhe entrego as cassettes logo que o Irmão Kristos seja eliminado.
- Apanhámo-lo - comenta Tollinger, calmo e satisfeito.
- Acaba de se tramar - concorda Lindberg. - E retiro o termo "miúdo". Até agora, Oberfest está a sair-se bem.
Os dois homens aproximam-se mais do altifalante. Ouvem o ruído dos passos no caminho de gravilha, mas as vozes continuam a chegar com clareza.
Marchuk: - É evidente que você terá de confiar em mim, Arnold, mas eu também tenho de confiar em que você vai realizar este trabalho com perfeição e eficiência.
Oberfest: - Então, já obteve a autorização de Moscovo?
- Bem, a minha sede não é mesmo em Moscovo, mas fica perto. Sim, os meus superiores acharam óptima esta iniciativa, e tenho ordens para a levar por diante, logo que possível.
- E o veneno?
- Trago-o comigo.
- Estava muito certo do meu acordo.
- Sei que é um homem inteligente. Tinha a certeza de que iria pensar com cuidado na proposta e chegar então a uma decisão sensata e prática.
- O que é que contém.
- O veneno? Um pouco de várias coisas. Talvez um pouco de cianeto de potássio. Talvez um pouco de hidrocloreto de pilocarpina. E mais algumas coisas. É uma mistura ultra-secreta. com certeza que não está interessado em saber a fórmula exacta.
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- É incolor?
- E inodoro e insípido. Menos de vinte e cinco gramas é suficiente.
- E quanto tempo demora a funcionar?
- Esta receita, em particular, deve causar efeito em cinco minutos. Dez, no máximo.
Os dois homens, que caminham pela estrada, ficam em silêncio.
- Michael está a lembrar-se de tudo - observa Tollinger. - E a voz é forte, o que é positivo.
- O que me chateia é que o sacana do comunista ainda vai ser promovido por causa disto.
- Tem a certeza que dá resultado? - pergunta Oberfest ao russo.
- Arnold, Arnold, duvida do triunfo da ciência soviética? Aqui está. Tome. O frasquinho é de plástico, mas, mesmo assim, tenha cuidado com ele.
- Cinco minutos?
- Talvez dez. Isso dá-lhe a hipótese de se despedir.
- Sim.
- E quando é que posso esperar ler a notícia da morte inesperada do Irmão Kristos?
- Não sei. Daqui a umas semanas. Não quero parecer muito ansioso por voltar a encontrar-me com ele. Quero levar as coisas com calma.
- Claro, claro, tenha calma... dentro de duas semanas.
- Então dá-me as minhas cassettes?
- Claro, meu rapaz - confirma Marchuk, prazenteiro. Eu dei-lhe a minha palavra de honra, não dei? E agora tenho de me ir embora. Desejo-lhe muito boa sorte na sua missão.
- Obrigado.
A conversa termina. Os homens escondidos na vala ouvem passos, o som de portas de automóvel abrirem-se e de motores a trabalhar. Vêm acender-se faróis. O Lincoln faz marcha atrás, dá a volta e afasta-se. Depois, o Cadillac faz idêntica manobra e começa a andar devagar.
- Aí está - observa Lindberg, desligando o receptor -, assinado, selado e enviado.
- Não podia ser melhor - exulta Tollinger, levantando-se e sacudindo o pó do fato.
- Agora, falta o mais difícil. Tratar de Oberfest. Ele pode ser um problema.
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- Nada que eu não consiga controlar. Por acaso, não tem um canivete?
- Tenho um pequeno. Porquê?
- Gostava de cortar alguns destes ramos de salgueiro. Estão lindos. Olhe para o tamanho dos rebentos! Acho que vou levar um molho.
Quando voltam a Spring Valley, o Eldorado verde está parado em frente da casa de Tollinger. Oberfest está de pé cá fora, quase a dançar de excitação.
- Apanharam, apanharam? - indaga ele. - Não é verdade que me saí bem? Ele identificou-se e tudo, não foi? Tal-qual como você queria. Apanharam, não apanharam?
- Entre. É melhor não falarmos aqui.
Tollinger leva-os para o escritório, mas recusa-se a responder às perguntas de Michael antes de ter colocado os rebentos de salgueiro numa jarra e de ter servido umas bebidas.
- Primeiro que tudo, Mike, quero dizer-lhe que fez um excelente trabalho. Foi perfeito.
- Como um profissional - acrescentou Lindberg.
- Tem o veneno? - continua Tollinger.
- Está aqui.
Michael tira-o do bolso do casaco. É um líquido incolor num frasco de plástico transparente, tapado com rolha de borracha. Entrega-o.
- Despache isto - pede ele. - Deite-o no lava-loiças ou na sanita. Eu não quero isto comigo. Mete-me medo.
- Eu trato dele - sossega-o Tollinger, metendo o frasco no bolso.
- E a gravação? Têm-na, não têm?
- Marvin?
- Bem, ainda não a ouvimos, mas deve estar bem. Havia boas condições de recepção e a fita estava a rodar. Acho que temos aqui uma obra-prima.
- Ainda bem - acrescenta Oberfest, sorrindo de contentamento. - Agora, se me derem a cassette, vou-me embora. Quero ouvi-la em casa. Esperem só até o sacana do russo saber o que eu tenho, vai-se borrar todo. Você salvou-me a vida, é o que é. Se houver alguma coisa que eu possa fazer por si, é só pedir.
- De facto - replica John Tollinger, com um sorriso frio -, há uma coisa que pode fazer.
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10
O degelo de Janeiro bate em retirada perante o avanço de um centro de baixas pressões que cobre toda a costa oriental. E atrás dessa cortina, avisa o boletim meteorológico, vem um sopro de ar do Árctico, movendo-se lentamente, a partir do Canadá. Designada por "Veleiro de Calgary" ou por "Expresso Siberiano", pensa-se que esta onda que se aproxima traz temperaturas abaixo de zero e ventos superiores a cem quilómetros por hora.
A capital do país está já coberta por um denso manto de nuvens cinzentas. O cimo do monumento a Washington fica escondido por detrás da neblina matinal e as rajadas de vento fazem esvoaçar a bandeira por cima da Casa Branca.
A 23 de Janeiro, John Tollinger telefona para o gabinete de Jennifer Raye, mas a secretária diz-lhe que Jennifer está em Filadélfia com a primeira dama e não deve voltar antes do fim da tarde.
- Quer deixar algum recado?
- Diga-lhe só, por favor, que telefonou John Tollinger. vou tentar ligar mais tarde.
O novo Congresso só agora começa a organizar-se e a equipa do chefe de gabinete tem muito trabalho, tentando pôr em dia as listas de membros das várias comissões. Ninguém sai para almoçar, e Tollinger anda, de reunião em reunião, atrás de Henry Folsom, a tirar apontamentos na sua estenografia pessoal, à medida que se vão tomando ou, com mais frequência, adiando decisões.
Tentou mais duas vezes telefonar a Jennifer, ao fim da tarde e princípio da noite, mas ela ainda não voltara. Desiste e concentra-se no trabalho, tentando pôr em ordem os confusos acontecimentos e não acontecimentos do dia.
Por fim, às dez da noite, decide que já ganhou o seu ordenado daquele dia, arruma o gabinete, colocando as notas, as cartas e os memorandos mais confidenciais no cofre. Mesmo antes de apagar a lâmpada da secretária, telefona uma última vez para o apartamento de Jennifer em Georgetown. Inesperadamente, ela atende.
- Ellie disse-me que tinhas telefonado, mas eu estava tão cansada quando voltei que só me apetecia tirar os sapatos e beber um Martini.
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- Tiveste um dia mau?
- Horrível. Estava frio, havia humidade e fazia vento em Filadélfia, e o nosso voo atrasou-se uma hora. E a senhora esteve todo o dia de mau humor, porque o George está com gripe e ela teve de o deixar para ir inaugurar mais uma sopa dos pobres na Cidade do Amor Fraterno. E o teu dia, como foi?
- A loucura habitual. Ainda estou no escritório; vou sair agora. Posso passar por aí um bocadinho? Tenho uma coisa para ti.
- Ah? Uma coisa boa?
- Acho que sim.
- bom, não quero que cá venhas. A casa está um caos. Que tal parares o carro aqui em frente? Apita três vezes e eu desço.
- Se é assim que queres... Devo chegar aí dentro de meia hora, mais ou menos.
Mas o trânsito está horrível e ele demora um pouco mais do que isso. Quando pára o carro em frente da casa dela, Jennifer está à espera na entrada, vestindo o seu casaco comprido de pele de raccoon. Sai a correr, mete-se no lugar ao lado de John e, com alguma surpresa, dá-lhe um beijo na face.
- Deixa o aquecimento ligado - ordena ela. - Está frio.
- E olha-o com ar crítico. - Meu Deus, estás tão magro! Só pele e osso. Devem andar a dar cabo de ti.
- Quase.
- Tens dormido bem?
- Como uma criança.
- Já conheço essa piada: acordas a chorar de duas em duas horas. O que é que me trouxeste?
John volta-se para trás e tira do banco do carro um grosso ramo de rebentos de salgueiro, embrulhado em papel de seda e preso por uma fita azul. Coloca-o no colo de Jennifer.
- Rebentos de salgueiro! - exclama ela, rindo com prazer. - Há anos que não os via. Onde é que os compraste?
- Não comprei. Dei um passeio pelo campo há dias, vi-os e cortei alguns para ti. Pensei que talvez gostasses.
- Adoro-os! Foi muito simpático teres pensado em mim. Sabes... quando queres, és um amor.
- Parece que não quis o suficiente, nem com bastante frequência.
Jennifer não responde e John vira-se para olhar bem para ela. Está tal-qual como ele se lembrava: talvez não uma
mulher
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bonita, mas de feições atraentes. Continua a ser a única pessoa no mundo com quem não se importaria de viver.
- Estamos em tempo de mea culpa - diz John. - Mas vou tentar ser breve e não te aborrecer. Só queria que soubesses que cheguei à conclusão de que a culpa da nossa separação foi minha. Tinhas razão, sou frio. Demasiado metido nos meus hábitos, demasiado viciado na ordem, na rotina ou coisa assim. Mas quero que saibas que, à minha maneira, gostei, e ainda gosto, de ti.
Os olhos de Jennifer enchem-se de lágrimas.
- Obrigado, John - responde ela, em voz rouca. - Sei como te é difícil dizer isso. Mas a culpa não foi toda tua. Nunca fomos feitos um para o outro.
- Parece-me que só agora é que reconheço que a emoção e o instinto são muito mais fortes do que a lógica e a razão. Sempre pensei que o cérebro devia guiar o coração, mas isso só me trouxe uma felicidade cruel.
- Mas podes mudar, se na realidade o desejares.
- Posso? Talvez. Mas tenho a horrível sensação de que o meu pobre e ressequido coração vai ficar como sempre foi, sem paixão.
- Não deves dizer isso de ti próprio. Não é verdade!
- Eu conheço-me melhor do que tu me conheces - contraria John, sorrindo com tristeza. - Seja como for, aconteça o que acontecer, queria que soubesses que gosto de ti.
Jennifer olha para ele, preocupada.
- Aconteça o que acontecer? Não estás a pensar cometer nenhum disparate, pois não?
- Alguma vez me viste cometer algum?
- Não. Nunca.
- Excepto deixar-te fugir. Se eu tivesse conseguido descontrair-me um pouco e tentado alargar a minha percepção do que é a vida, talvez tu tivesses podido ser a minha salvação. Mas agora já é tarde de mais. bom, já chega de confissão. Obrigado por me ouvires.
- Gostava de voltar a ver-te - afirma ela, de repente. Pode ser?
- Claro que pode.
- Quando?
- Em breve. Eu telefono-te.
- É melhor; se não, telefono-te eu. - Jennifer chega-se a ele e beija-o nos lábios. Um beijo prolongado. Depois,
afasta-se.
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- Sempre foste muito bom a beijar - pronuncia ela, sem fôlego. - Agora tenho de me ir embora. Prometes que me telefonas?
- Prometo.
Jennifer abre a porta do carro, depois pára. Arranca um rebento de salgueiro e coloca-o na palma da mão de John.
- Para ti.
John fica sozinho, olhando para o rebento na sua mão. Toca-lhe com a ponta de um dedo. É macio e quente. Roda-o durante um momento, fixando-o. Em seguida, abre a
janela e deita-o fora.
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As mulheres que estão a chegar a casa de Mrs. Mattingly saem a correr de táxis e automóveis espampanantes de cabeça baixa, para se protegerem da chuva gelada. Só o Irmão Kristos as faria sair de casa num dia como este.
Reunidas na sala de Kristos, as senhoras, vestidas de preto, por respeito por um homem do clero, parecem acompanhantes de um funeral oficial. Como de costume, a sala está demasiado quente, mas ouve-se ainda o vento a uivar e o granizo a bater contra os vidros.
O Irmão Kristos entra rapidamente, vindo do quarto. Veste uma túnica de seda branca como uma mortalha, apertada por um cinto. Não traz qualquer jóia, nem sequer a cruz de ouro, mas tem na mão um crucifixo de ébano. Senta-se na grande cadeira de braços ao topo da mesa.
As senhoras vieram ouvi-lo falar de vida sem pecado e de prazer sem culpa. Ele não as desilude.
- A felicidade é contagiosa - começa Kristos -, mas a infelicidade é uma coisa solitária. - Desenvolve este tema dizendo-lhes que está nas mãos de cada uma não só refazer a sua própria vida mas também transformar as dos que as rodeiam. - Pensai em vós próprias como evangelizadoras e sabei que o amor de Deus pode transformar o mundo.
Começa a falar do poder do amor divino. De repente pára a meio de uma frase. As suas feições tornam-se rígidas e parece estar a fixar um ponto no espaço. O fogo começa a arder-lhe no olhar, assustando a assembleia.
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Kristos levanta-se devagar, continuando a olhar para o alto. Fica de pé, direito, ombros para trás. Agarra com tanta força na cruz de ébano que as mãos lhe tremem. Quando recomeça a falar, as palavras saem-lhe em voz tão baixa que as mulheres têm de se inclinar para a frente, para o ouvirem.
- Quem pode compreender inteiramente a sua própria morte? Quem se atreve a imaginar o já não ser nada? A mente afasta-se de tais pensamentos, como autoprotecção. Já não ser nada? Como podemos ter a coragem de enfrentar tal horror? O gosto da vida, as alegrias, as maravilhas, tudo desaparecido. O que é que devemos fazer? Como podemos suportar o conhecimento do nada? - As senhoras entreolham-se, surpreendidas e inquietas pelo tom interrogativo do seu discurso. Ele, que sempre foi tão seguro, parece agora confuso e perdido. - No dia mais soalheiro - prossegue Kristos, como se falasse consigo próprio - há sempre a sombra. Paira por sobre o berço, o leito nupcial, a mesa de jantar ou o banco de trabalho. Todos nascemos derrotados e inalamos o fracasso com a nossa primeira respiração. A mortalidade é o veneno que...
Termina a sua elegia de forma tão abrupta como começou. Baixa devagar os olhos, de onde a incandescência vai desaparecendo. Parece lembrar-se do local onde se encontra e das pessoas para quem está a falar. Senta-se com lentidão, põe o crucifixo de lado e, passando os dedos pelo cabelo, retoma o sermão inicial sobre o poder de conversão do amor divino.
Depois de concluir, retira-se logo para o quarto e fecha a porta. As mulheres vão-se embora, ainda perturbadas pelo seu estranho comportamento.
Emily Mattingly bate com timidez à porta do quarto. Não recebendo resposta, chama:
- Irmão Kristos, sente-se bem?
- Sinto. Entre.
Kristos está de pé ao lado da cama, com um copo de vodca na mão.
- Sente-se bem? - pergunta de novo Emily. - Ele faz um sinal afirmativo. - Estava preocupada consigo. Parecia tão... tão perturbado.
- Sim? Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não conseguem matar a alma. Quer beber alguma coisa?
- Talvez um pouquinho.
- Sirva-se, por favor - continua ele, sentando-se na
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cama. Kristos fica à espera até ela ter deitado um pouco de vodca num copo e lhe ter acrescentado água da torneira da casa de banho. Emily senta-se também na cama junto dele.
- Irmã, vou fazer uma marcação no meu advogado, para fazer o testamento. Já o devia ter feito, mas parece-me que ainda não é tarde de mais. Não tenho muita coisa para deixar, mas quero fazer umas disposições específicas. Para além disso, quero ter a certeza de ser cremado. E, se possível, gostaria que as minhas cinzas fossem espalhadas por sobre os campos do Nebrasca. Compreende? - Emily faz um sinal afirmativo. - bom. Queria ter uma testemunha da minha última vontade, para o caso de o testamento não estar terminado a tempo.
- Cale-se! Está a meter-me medo falando assim. Você não vai morrer.
Kristos sorri e coloca uma mão suave sobre o seio de Emily.
- com fé, a morte pode ser uma felicidade. A data é 25 de Janeiro.
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Tollinger verifica que convencer Oberfest a participar no plano do assassínio é mais difícil do que esperava. Leva vários dias e torna-se ainda mais difícil quando Michael começa a chorar.
- Eu não sou assassino. Não sou assim.
- Mike - diz-lhe John, em tom paciente -, já lhe expliquei que não lhe estamos a pedir para matar o Irmão Kristos. Essa é a minha tarefa.
- Então, o que é que precisa que eu faça?
- Primeiro que tudo, precisávamos que você obtivesse um veneno eficaz.
- Mas isso já têm! Fiquem com a porcaria do veneno, dêem-me a cassette e deixem-me ir embora.
- Não é assim tão simples. Se lhe dermos a cassette sem o implicarmos no crime, então você fica com poder de vida ou de morte sobre nós. Tem de participar. Percebe, não percebe?
Oberfest bebe um gole de Martini.
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- Eu não digo nada - promete ele. - Nem uma palavra. No que me diz respeito, eu não sei nada de nenhum veneno nem de nenhum assassínio.
- Isso não chega - replica Marvin Lindberg, abanando a cabeça. - Se for preciso, você conta tudo para se safar. Não estou a criticá-lo, é natural e humano. Precisamos de uma certeza. Se você nos ajudar, então protege-se a si próprio, protegendo-nos. Além disso, precisamos do seu carro.
- Do meu carro? Para quê?
- Para transportar o pregador até à sua última morada. O carro de John é pequeno de mais, o meu está com problemas e com certeza que não podemos utilizar o de Kristos. Quantos Scorpios prateados é que há em Washington? Todos os polícias na estrada se iam lembrar dele.
Oberfest fica calado, mexendo no copo de Martini.
- Olhe - afirma Tollinger -, temos estado a falar sobre o que nós ganhamos com isso. Vamos agora falar nos benefícios que o plano lhe vai trazer a si. Em primeiro lugar, fá-lo ver-se livre do major Marchuk. O Irmão Kristos será eliminado, tal como o russo deseja. Quando isso acontecer, ele com certeza que lhe devolve as cassettes. E, se não cumprir a promessa, você ainda tem uma que o implica de forma directa no assassínio de um cidadão americano. Ele vai fazer tudo o que você quiser para reaver essa prova.
- Suponho que me dão a cassette depois de o irmão Kristos ser eliminado?
- com certeza. Oberfest respira fundo.
- E, durante todo este tempo - diz ele, com tristeza -, pensava eu que vocês só queriam ajudar-me.
- Queríamos ajudá-lo - replica Tollinger - e estamos a ajudá-lo. E, ao mesmo tempo, ajudamo-nos a nós próprios. Quiproquó. Não é assim tão horrível, pois não?
- Então a única coisa que tenho a fazer é emprestar o meu carro, mais nada?
- Já lá vamos. Mas não vai ter de envenenar Kristos, dou-lhe a minha palavra de honra.
São, nessa altura, quase duas horas da manhã. Tollinger planeou as coisas assim, contando com o cansaço físico para acabar com a resistência de Oberfest. E está a dar resultado; quase conseguem ver Michael hesitar, à medida que vai pesando as suas opções e apercebendo-se de que está entre a espada e a parede.
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- Só por curiosidade, porque é que está a fazer isto? - investiga ele junto de Tollinger. - Qual é o seu motivo para matar o Irmão Kristos?
- Não vamos agora ter aqui uma grande discussão sobre motivos. Muito simplesmente, faço-o porque considero o tipo um perigo para o governo constitucional.
- Ah, ah! - exclama Oberfest. - E o facto de ele ir para a cama com a sua ex-mulher não tem nada a ver com isso, não é?
- Não seja idiota. Kristos é uma ameaça para o país. E está a arruinar a carreira política de Abner Hawkins, homem bom e honesto, que eu admiro.
- Obrigado, senhor professor. Foi uma explicação muito eloquente. E, a si, o que é que o irrita? - questiona ele, dirigindo-se a Marvin Lindberg.
- É mais do que irritação - explica este, aborrecido. Acho que o tipo é nojento quando utiliza a palavra de Deus para defraudar muitas pessoas inocentes e devotas, ficando-lhes com o dinheiro, que tanto lhes custou a ganhar. Se a lei não consegue evitar que ele continue, eu consigo com certeza.
- bom... Suponho que vós tendes ambos as vossas razões, mas, para falar verdade, a mim tanto me faz que o homem viva como morra. A única coisa que me preocupa é fazer sair a União Soviética da minha vida.
- E então concorda em ajudar-nos? - insiste Tollinger.
- Não tenho muita hipótese de escolha, pois não?
- Não muita - concorda Lindberg.
Durante os quatro dias seguintes, os conspiradores encontram-se todas as noites em casa de Tollinger para afinarem o plano. À medida que cada passo do assassínio previsto vai sendo discutido, apurado e aprovado, Tollinger apõe uma marca à frente de cada rubrica no seu bloco de notas.
A resolução do problema dos carros requer um debate prolongado. O plano prevê que Lindberg e Oberfest cheguem a Spring Valley antes do Irmão Kristos. Mas, se cada um deles vier no seu próprio carro, a entrada da moradia de Tollinger vai parecer um parque de estacionamento.
- Isso não pode ser. Este bairro é um bairro residencial tranquilo, e as pessoas reparam em qualquer coisa. Se virem quatro carros parados à porta de minha casa, vão ficar a pensar se eu estarei a dar uma festa. Não quero chamar a atenção. O que sugiro é que eu arrume o meu Jaguar na garagem,
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assim como o Cadillac de Michael. Mas o que não sei é o que hei-de fazer com o Buick de Marvin. Acho que era melhor o Irmão Kristos não ver mais nenhum carro arrumado aqui fora quando chegar. Não queremos assustar o homem.
- Eu podia deixar a minha lata velha em casa - sugere Lindberg - e apanhar um táxi até aqui. Só que não quero que o taxista fique com um registo da corrida.
- Eu podia ir buscá-lo - oferece-se Oberfest - e dar-lhe boleia até cá e outra vez até sua casa, depois de tudo acabado.
- Não me parece boa ideia - sustenta o ex-agente do FBI. - Ia sentir-me desamparado sem um volante. E há mais uma pergunta que precisa de resposta: depois de enterrarmos o homem em Backbone Mountain e voltarmos, o que é que vamos fazer ao Scorpio? Temos de o deixar em qualquer lado.
Após uma hora de discussão, o que decidem é o seguinte:
Lindberg irá de Alexandria até Washington no seu Buick,
deixando-o num parque de estacionamento público. Oberfest
irá lá buscá-lo, seguindo ambos até Spring Valley no Cadillac.
Quando voltarem de enterrar o Irmão Kristos, Lindberg
levará o Scorpio e deixá-lo-á no parque de estacionamento de
um dos aeroportos. Oberfest levá-lo-á de volta, para ir buscar
o Buick.
- É possível que o desaparecimento de Kristos só seja anunciado um ou dois dias depois - observa Lindberg. Talvez mais. Se o seu carro for encontrado num aeroporto, vão pensar que se meteu num avião para qualquer lado. E precisa uma semana para verificar as listas de passageiros e interrogar o pessoal do aeroporto. Cada dia que passa, o rasto fica mais frio.
- Parece-me que está tudo bem - concorda Tollinger -, mas está disposto a correr o risco de ser visto a conduzir o carro de Kristos?
- O perigo não é grande. Se seguirmos o nosso horário, devemos estar de volta de manhã cedo. Não há muita gente a essa hora. E vou pôr luvas, para não deixar impressões digitais. Acho que vai correr tudo bem. É claro que há riscos, mas não há hipótese de tornar a coisa perfeitamente segura.
- Está bem - repete Tollinger, verificando a sua lista. A rubrica que se segue na agenda é o envenenamento em si.
Explica que Kristos gosta de beber pela garrafa. Seria fácil deitar o veneno numa garrafa aberta, a que faltasse apenas
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um pouco de líquido, mas Tollinger receia que aquela quantidade de vodca dilua a potência do veneno, de modo a não chegar a fazer efeito.
- Não sei - observa Oberfest, em tom de dúvida. - Segundo Marchuk, é muito potente.
- Não pode servir-lhe a bebida num copo? - interroga Lindberg.
Tollinger fica um momento a pensar.
- Acho que o que vou fazer é o seguinte: trago-lhe as primeiras duas ou três bebidas em copos cheios, para ele amaciar. Depois, quando a vodca já estiver meia gasta, junto o veneno à garrafa e trago-lha. Posso rir-me e dizer que estou cansado de ir constantemente à cozinha. Ele não vai suspeitar de nada.
Lindberg faz um sinal de assentimento.
- Acho que passa. Qual é a próxima rubrica na lista?
- Discutem o equipamento especial de que vão precisar, incluindo duas pás, uma enxada, lanternas, um saco-cama com fecho de correr de lado, para meter o corpo, e talvez quinze metros de fio de nylon forte. - É melhor termos cuidado
- avisa Lindberg. - Tudo isto não deve, repito, não deve ser comprado na mesma loja. Cada um de nós deve comprar uma ou duas coisas em lojas diferentes.
- Boa ideia - aceita Tollinger. - vou fazer uma lista de compras para cada um. Agora vamos falar do que devemos vestir. Segundo Marvin, vamos para um sítio de acesso difícil.
No quarto dia, os conspiradores chegaram a acordo quanto a um horário para o assassínio do Irmão Kristos. O plano final é o seguinte:
1. Tollinger telefona ao Irmão Kristos e convida-o a vir a Spring Valley beber uns copos e conversar. Hora preferida: oito da noite. Tollinger informa então Lindberg e Oberfest do dia em que Kristos virá.
2. Lindberg vai de Alexandria a Washington no seu Buick e estaciona-o, às seis horas da tarde, num parque de estacionamento previamente combinado.
3. Oberfest vai buscar Lindberg ao parque de estacionamento e leva-o até Spring Valley. Chegam uma hora antes da vítima, às sete.
4. O Cadillac é arrumado ao lado do Jaguar de Tollinger e a porta da garagem fechada.
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5. Lindberg e Oberfest vão para cima, para o quarto.
6. O Irmão Kristos chega às oito horas. Tollinger leva-o para o escritório e serve-lhe o primeiro copo de vodca não adulterada.
7. Às nove, Tollinger traz ao convidado a garrafa de vodca envenenada.
8. Kristos morre pelas nove e quinze.
9. Tollinger chama Lindberg e Oberfest. Tiram as chaves do Scorpio do bolso de Kristos, metem o corpo no saco-cama, juntamente com o chapéu e o sobretudo, e levam-no na parte de trás do Eldorado de Oberfest. Colocam o equipamento no porta-bagagens.
10. Tollinger, Lindberg e Oberfest partem de Spring Valley, o mais tardar às dez, com o cadáver escondido. Seguem em direcção a noroeste pela Auto-Estrada 270, passando por Frederick, Hagerstown e Cumberland.
11. Chegam ao sítio do enterro, perto de Backbone Mountain, cerca das duas da manhã.
12. Cavam a sepultura. Enterram o Irmão Kristos. Enchem a cova de terra e escondem-na com mato.
13. Voltam para Washington, chegando, no máximo, às sete da manhã.
14. Descarregam o equipamento do Cadillac e deixam-no na garagem de Tollinger. Lindberg vai-se embora no Scorpio de Kristos e Oberfest segue-o.
15. Tollinger parte o copo e a garrafa em que ele e o Irmão Kristos tocaram e deita os cacos no caixote do lixo.
16. Lindberg deixa o Scorpio no parque de estacionamento de um aeroporto e mete-se no Cadillac de Oberfest. Vai então buscar o seu Buick. Ele e Oberfest regressam às respectivas casas.
Todo este plano fica pronto na noite de 25 de Janeiro, domingo.
- bom, parece que está tudo - declara Tollinger. - Não podemos prever todas as contingências, mas penso que este plano é seguro e que nos podemos safar. Se mantivermos o sangue-frio, devemos poder desenvencilhar-nos, mesmo perante o inesperado.
- Está bem, está bem - corresponde Marvin, impaciente. - Já chega de conversa, vamos a isso. Quando é que vai telefonar a Kristos?
- Agora mesmo.
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Procura o número de telefone e faz a ligação. Só após cinco toques é que Kristos atende.
- Está?
- Irmão Kristos?
- O próprio.
- Daqui fala John Tollinger.
- Sim - diz o Irmão Kristos -, tenho estado à espera do seu telefonema.
Na segunda-feira à noite, conforme previsto, a massa de ar frígido começa a mover-se, vinda de noroeste, cobrindo a maior parte da costa atlântica, desde a Nova Inglaterra até ao Norte da Florida. É acompanhada de ventos fortes de quarenta ou cinquenta quilómetros por hora, com rajadas chegando por vezes aos oitenta.
Felizmente há pouca neve, apenas alguns aguaceiros: flocos duros que mal caem são de novo levantados pelo vento que sopra. O mercúrio desce. Em Washington, durante o dia, a temperatura não chega a atingir os dez graus. À noite, desce até dez graus negativos.
O frio continua durante a semana, sem que se preveja qualquer melhoria antes de sexta-feita, na melhor das hipóteses. Entretanto, a maior parte das pessoas fica em casa. O número de mortes aumenta, à medida que se encontram pessoas sem casa nas ruas da cidade. Foi encontrado um cadáver rígido, embrulhado em jornais, próximo do monumento em memória de Jefferson.
Na capital, muitas repartições do Estado estão fechadas ou abrem apenas durante algumas horas. Ambas as câmaras do Congresso adiaram as suas sessões.
John Tollinger sai da ala oeste da Casa Branca às três e meia da tarde de 2 de Fevereiro. Tenciona chegar a casa cedo, pois esta quinta-feira é o dia a que os três conspiradores chamam "dia D".
Uma vez em casa, aquece uma lata de sopa e come-a, com uma sanduíche de pão de centeio. Sabe que devia comer mais, pois esta vai ser a sua última refeição do dia, mas não consegue.
Sobe ao andar de cima, descalça os sapatos e deita-se por cima da cama. Não espera conseguir dormir, apenas descansar, mas acaba por dormitar durante quase uma hora. Quando acorda, às cinco e vinte, despe-se e toma um duche, embora já tenha tomado um de manhã.
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Veste roupa interior térmica, calças grossas, peúgas de lã, botas forradas de pêlo e uma camisola de pescador. Não lhe parece que o Irmão Kristos vá ficar surpreendido com o modo como está vestido; é muito provável que também o pregador venha bem agasalhado.
Desce a escada, vai à cozinha e coloca duas garrafas de litro de vodca apimentada, uma garrafa de conhaque e uma de Glenfiddich em cima do balcão. E quatro copos vulgares, que não são os seus melhores.
Gostaria imenso de beber já qualquer coisa. Talvez um Martini com gim extremamente seco. Quase consegue sentir-lhe o travo amargo e o cheiro activo. Mas não prepara nenhum Martini. Seria dar demasiado parte de fraco. Seria errado pelo lado ético.
As seis e trinta, liga o rádio, para ouvir a previsão meteorológica. Fica satisfeito ao saber que os aguaceiros se estão a dissipar, sem grande acumulação de neve. Todas as estradas e auto-estradas estão abertas. Mas as temperaturas negativas mantêm-se em toda a costa oriental.
com tudo preparado, não tem mais nada a fazer senão esperar. E, tendo resolvido prescindir do álcool, para acalmar os nervos, pensa agora decididamente no acto que está prestes a cometer: tirar uma vida humana. Homicídio.
Tira o frasco de veneno de uma das gavetas da cozinha e observa-o à luz, não resistindo a citar: "Será um punhal que vejo na minha frente, com o cabo virado para a minha mão?" Erudito até ao fim, admite, com tristeza, e pensa em quais serão as últimas palavras que pronunciará no seu leito de morte. Não as consegue determinar.
Quando pensa na enormidade do que está prestes a fazer, amaldiçoa a sua falta de fervor, pois se alguma vez houve momento na sua vida que requeresse paixão, este é um deles. No entanto, apenas consegue rever os seus motivos e concluir que o assassínio do Irmão Kristos é justificado. É, de facto, uma solução elegante. Mas não consegue sentir mais entusiasmo do que um matemático depois da resolução de um problema complicado. Satisfação, talvez, mas não êxtase.
Fica surpreendido ao verificar que já passaram vários minutos das sete. Quando estabeleceram o horário para o dia D contaram com o que pensavam ser mais do que o tempo suficiente para deslocações. Oberfest e Lindberg deviam chegar uma hora antes do Irmão Kristos, mas os minutos vão passando
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e nem sinal deles. Perturbado, Tollinger vai à janela da frente e espreita através da cortina de tecido fino.
Às sete e trinta, a sua preocupação e confusão atingiram um ponto tal que começa a pensar se o plano não terá de ser inteiramente posto de parte. São sete e trinta e oito quando, olhando ainda ansioso pela janela, vê os faróis do Eldorado verde de Oberfest virar para a entrada de sua casa. Tollinger apressa-se a abrir a porta de comunicação com a garagem.
Michael entra rápido.
- Ele está bêbado! - lamenta-se. - Completamente grosso!
- O quê? - mostra-se surpreendido Tollinger, que disparata a seguir: - Quem?
- O seu amigo Lindberg, quem havia de ser? Acabei por o encontrar a vaguear perto do parque de estacionamento. O tipo está arrumado por completo.
Marvin Lindberg entra, cambaleante.
- Não estou arrumado - afirma ele, com um sorriso idiota. - Estou só um pouco tocado!
John deita-lhe um olhar frio.
- Escolheu uma óptima altura para descarrilar.
- Não me chateie. Consigo mexer-me, não consigo? De uma maneira ou de outra, aquele sacana vai desta para melhor hoje.
E tira um revólver do bolso do seu anoraque sujo, brandindo-o no ar.
- Guarde isso - ordena Tollinger, com rispidez. - Vamos seguir o plano que combinámos. Agora, vocês vão lá para cima e, por amor de Deus, não façam barulho.
- Sim, patrão - obedece Lindberg, pegando na garrafa de brande que está em cima do balcão da cozinha. - Acho que vou levar esta beleza, para me fazer companhia.
O desespero é aparente no seu olhar e pode ler-se a fúria no modo como está sempre a pestanejar e a mostrar os dentes. "Ele está no limite", pensa John. "Prestes a cair."
- Não beba mais - determina.
- Porque não? Quer que eu não faça barulho, não quer? Isto vai manter-me calado. Talvez, se você tiver sorte, eu caia para o lado.
Sobem a escada, Lindberg levando a garrafa de conhaque nos braços. Tollinger apressa-se a ir à garagem, baixar a porta e ligar o aquecimento. Volta para dentro de casa e fica um
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momento à escuta. Não se ouve qualquer som vindo do quarto. Estica as mãos. Não tremem.
O Irmão Kristos chega uns minutos depois das oito. Tollinger, à janela, vê-o sair do Scorpio. O homem vem enfiado num grosso sobretudo preto, com gola de astracã. Não traz nada na cabeça.
John abre a porta para receber o convidado. Ajuda Kristos a despir o sobretudo. É muito leve.
- Bem bonito. Foi um presente?
- Foi.
Kristos veste camisa de cossaco de seda preta e calças metidas por dentro de polainas de cabedal. Tem o cordão e a cruz de ouro ao pescoço.
- Obrigado por ter vindo. Está tanto frio que pensei que talvez me telefonasse a adiar para outro dia. - O Irmão Kristos não responde. John vai à frente até ao escritório
e indica-lhe o grande maple ao lado da mesinha. - Esteja à vontade. Lembrei-me que gosta de vodca apimentada.
É isso que quer? - Kristos faz um sinal afirmativo.
- Sem gelo e sem água, se bem me lembro. - Tollinger vai à cozinha, enche um copo alto de vodca e um pequeno balão de uísque de malte para si. Não lhe treme a mão e leva as bebidas para o escritório. - Vamos beber a uma onda de calor - propõe Tollinger. - Quando lhe telefonei a convidá-lo para um copo, disse-lhe que estava à espera do meu telefonema. Isso é mais um exemplo do seu poder de prever o futuro?
Kristos passa devagar os dedos pela barba, olhando Tollinger nos olhos.
- Não, não sou omnisciente. O que aconteceu foi simplesmente que já há
algum tempo que não tinha notícias suas, mas pensava que talvez quisesse encontrar-se comigo outra vez.
- Explicação muito racional. Sabe, Irmão Kristos, o senhor tem reputação de vidente, para além de curandeiro. Todos esses poderes têm alguma explicação racional?
- Penso que se exagerou muito a extensão dos meus poderes. A maior parte das pessoas acredita porque tem de acreditar. Não conseguem suportar o vazio de não acreditar.
- Mas tenho vários amigos, pessoas em cujo bom senso tenho confiança, que me disseram que você consegue, na realidade, fazer essas coisas. Há uma explicação racional para isso?
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- Você é um homem persistente, Mr. Tollinger. Sim, há uma explicação racional. Racional para mim. Duvido que você a considere lógica. O meu copo está vazio.
- É verdade! - exclama Tollinger, levantando-se de um salto. Vai à cozinha e traz mais vodca. - Há outra pergunta que gostava de lhe fazer. É pessoal, e, se achar que estou a ser indiscreto, não responda. Eu não fico ofendido.
- Qual é a sua pergunta?
- Já ouvi alguns dos seu sermões e presumo que é sincero. Ao mesmo tempo, é do conhecimento geral que a sua vida privada não pode ser considerada muito moral. Como é que concilia a sua prédica com a sua prática de vida?
Kristos olha a direito para Tollinger. Não há qualquer hostilidade no seu olhar, mas é constante e pensativo.
- Está a referir-se ao facto de eu beber e de gostar de dinheiro e de coisas boas?
- E também às suas relações com as mulheres. E, por favor, não me venha com aquela conversa tola de que não podemos pecar porque fomos criados à imagem de Deus. Só quero saber como é que pode afirmar ser irmão de Jesus e viver como vive.
Kristos deita a cabeça para trás e a sua boca abre-se, no que Tollinger pensa ser uma gargalhada silenciosa. Mas não há qualquer nota de bom humor na sua voz.
- Mr. Tollinger, é possível negociar com Deus. Tenho feito isso toda a minha vida.
- E não receia o ajuste de contas final?
- Não, não receio.
- O seu copo está outra vez vazio - comenta Tollinger, fingindo surpresa. - Penso que é melhor trazer-lhe a garrafa. Evita-me andar sempre a caminho da cozinha.
Kristos aceita esta proposta. Mas Tollinger vai primeiro à pequena casa de banho do rés-do-chão, que ele sempre desdenhou, porque Jennifer insistia em chamar-lhe a toilette.
Naquele pequeno cubículo, equipado apenas com lavatório e sanita, John lava com cuidado as mãos e limpa-as a uma toalha que já há semanas devia ter ido para a lavandaria. Em seguida observa a sua imagem ao espelho, mas não consegue descobrir qualquer alteração no rosto.
Vai à cozinha, destapa o frasco de veneno, deita-o de forma cuidadosa na garrafa meia vazia. Volta a tapar o frasco e a colocá-lo na gaveta. Veda o gargalo da garrafa de vodca com o
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polegar e vira-a com rapidez ao contrário, para misturar os dois líquidos.
- Aqui está! - diz ele, em tom jovial, levando a garrafa para o escritório.
O Irmão Kristos está de pé em frente da estante, a inspeccionar os títulos dos livros. Pega distraído na vodca que Tollinger lhe passa para a mão, mas não a bebe.
- Tem muitos livros bons - comenta ele.
- É verdade - responde John, com uma gargalhada breve. - Acho que sou um viciado incurável. - Nesse momento, Kristos leva a garrafa à boca e bebe um grande gole. Voltam ambos a sentar-se. - Quando era novo, lia muito. Mas nenhum dos livros tinha as respostas que eu procurava.
- Nem mesmo a Bíblia?
- A Bíblia não dá respostas. Mas faz as perguntas certas. Devo confessar-lhe que hoje, quando a leio, não é pelo sentido, é só para sentir a poesia.
Kristos bebe mais um gole de vodca e levanta a garrafa, observando-a à luz do candeeiro.
- Poesia divina - explica ele, em voz arrastada.
- Sei que publicou livros de orações. Tenciona continuar a escrever?
Não recebe resposta. O Irmão Kristos eleva o olhar com lentidão, fixando John cada vez com maior intensidade.
- O mensageiro - pronuncia o pregador com dificuldade e a língua a sair-lhe por entre os lábios.
- O quê? O que é que está a dizer?
com um braço trémulo, o Irmão Kristos leva a garrafa à boca e bebe com sofreguidão. Escorre-lhe vodca pela barba, molhando a camisa. Tenta deitar fora a garrafa vazia, mas esta foge-lhe da mão.
Levanta-se com muito esforço, cambaleando, e fica de pé, balançando-se, de pernas abertas. Engasga-se, o peito arfa. A respiração é ofegante e ele arranca do pescoço o cordão com a cruz de ouro e deita-o ao chão.
Tollinger levanta-se devagar.
- Quem quer que acredite em mim... - grita Kristos, de súbito, com o rosto contorcido. - Meu Deus, meu Deus, porque me...
Esbraceja. O candeeiro cai com estrondo. O Irmão Kristos começa a berrar. Não são palavras que pronuncia, mas gritos e uivos animalescos. Balança-se para a frente e para trás. Os
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seus olhos ardentes começam a sangrar. O fluxo escorre-lhe pelas faces, bigode e barba.
Tollinger, que pensara que a morte seria silenciosa e limpa, dá um passo atrás, atónito.
Kristos anda pela sala, agarrando-se às coisas para se manter de pé. Uma cadeira tomba, os livros de uma prateleira espalham-se pelo chão, a mesa vira-se de pernas para o ar, o escritório fica num caos.
- Lindberg! - grita Tollinger. - Michael!
Tenta manter-se fora do alcance de Kristos na sua louca excitação. Lindberg entra de rompante, empurrando-o, revólver em punho.
- Morre, sacana! - grita ele, dirigindo-se ao Irmão Kristos, e dispara dois tiros.
Mas o homem não quer morrer. Tropeçando, cambaleando, vai até à sala de estar, dirigindo-se à porta de saída.
- Mate-o! - soluça Oberfest. - Por amor de Deus, mate-o!
Lindberg volta a disparar, mas nessa altura o Irmão Kristos já está fora de casa, deixando atrás de si um rasto de sangue. Os três perseguem-no, atropelando-se à porta. Por fim, conseguem passar, com Lindberg à frente. Este dispara à queima-roupa, continuando a premir o gatilho mesmo depois de já não haver balas no revólver. Até que o Irmão Kristos cai estirado no solo gelado.
Não agem com pânico, mas com a autoria do desespero. Agarram na vítima e levam-na de volta para dentro de casa, com os calcanhares a arrastarem-se pelo chão. Deixam-na cair e observam-lhe os olhos cheios de sangue, a camisa manchada e o peito a mover-se ligeiramente.
- Será que ele não morre? - lamenta-se Oberfest. - Será que vai viver para sempre?
- Vamos seguir o plano - afirma Tollinger, inexpressivo. - O plano que está escrito.
Lindberg volta-se para ele, com violência.
- Que se lixe o plano! - grita. - Não há plano. O plano não existe.
- O quê? Não estou a perceber.
- Estúpido! - ruge Lindberg. - Como é que vamos enterrá-lo? Como? A terra está gelada. Eram precisas dez cargas de dinamite para fazer uma cova. Quer que vamos até centenas de quilómetros daqui para andarmos a raspar a terra com
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a porcaria das pás? - Tollinger vacila. Não se trata de acaso nem de acidente. Isto representa um fracasso do pensamento lógico. - Porque é que julga que voltei a beber? - descobre Marvin. - Depois de todo aquele trabalho, somos vencidos por uma vaga de frio. Não dá vontade de rir?
- Ainda nos podemos safar - continua John. - Talvez ninguém tenha ouvido os tiros. Talvez possamos deixá-lo naquela vala no desvio da estrada para Annapolis.
- Talvez, talvez - escarnece Lindberg. - Porque é que não o metemos naquele saco-cama cor de laranja e o deixamos no relvado da Casa Branca? Só há uma solução, o rio.
Enfiam casacos, chapéus, luvas. Levam o Irmão Kristos pela porta de comunicação para a garagem. Metam-no na parte de trás do Cadillac. Abrem a porta da garagem. Saem devagar, com a noite gelada, céu limpo, milhões de estrelas a brilhar.
John senta-se ao volante, dirigindo-se para sul, em direcção a Georgetown. Lindberg segue a seu lado, trauteando e bebendo pela garrafa de conhaque. Atrás, Oberfest vai encolhido num canto, a chorar.
"Somos todos uns amadores ridículos", pensa Tollinger, desesperado. "O único que tem alguma dignidade é aquele homem que escorre sangue."
Atravessam Georgetown até chegarem ao Potomac. Em tempos, havia ali um restaurante elegante sobre o rio. O edifício, agora escuro e deserto, tem uma plataforma de madeira junto à água. Havia mesas e casais jovens sentados ao sol, bebendo e vendo os barcos a andar com lentidão.
Arrumam o carro, tiram o Irmão Kristos para fora e levam-no até junto do rio. Balançam-no duas vezes antes de o atirarem. O corpo parte o gelo. A água escura jorra do buraco. Vêem um braço levantado. Quase um aceno, quase uma despedida. Depois, a água volta a baixar e o corpo desaparece por debaixo do gelo.
Regressam a Spring Valley.
Entram na rua de Tollinger. Este inclina-se para a frente, a espreitar.
- Há luzes em minha casa - informa ele, em voz baixa.- Nós apagámo-las.
- Oh, oh, - comenta Lindberg. - Continue devagar. Passe à frente. - Mas vêem, à luz dos faróis, um carro da polícia a bloquear a rua. - Pare e faça marcha atrás
- ordena Lindberg. - Devagar.
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John pára o carro, olha pelo retrovisor e nota outro carro da polícia, que vem de uma rua transversal para lhes obstruir a retirada.
- Alguém ouviu os tiros - observa Tollinger. - Os chuis devem estar lá em casa.
Oberfest começa de novo a chorar. Lindberg acaba de beber o brande e deixa cair a garrafa.
- Estou satisfeito por termos feito isto. Eu voltava a fazê-lo, e você? John Tollinger não responde. Lembra-se de que se tinha perguntado à tarde quais, e de que
autor, seriam as palavras que pronunciaria no seu leito de morte. Agora já sabe.
O autor: François Rabelais.
As palavras: "Fechem o pano, a farsa terminou."
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EPÍLOGO
Nos meses que se seguiram aos acontecimentos aqui relatados, passou-se o seguinte:
Tendo o tempo melhorado, o rio Potomac ficou livre de gelo e o corpo de Jacob Everard Christiansen, conhecido por Irmão Kristos, apareceu na margem, próximo de Fort
McNair. A autópsia revelou feridas de bala e substâncias tóxicas no sangue. Mas o que se considerou ter sido a causa próxima da morte foi hipotermia e afogamento.
Levado a julgamento sob acusação de homicídio premeditado, John Tollinger recusou ser defendido por advogado, confessou-se culpado e presentemente aguarda a sentença.
Marvin Lindberg, igualmente acusado, foi transferido para um hospital prisional, por algum tempo, para um tratamento antialcoolismo.
Michael Oberfest foi preso na noite do crime e, não lhe tendo sido confiscado o cinto de cabedal, foi encontrado enforcado na sua cela na manhã seguinte.
Dois dias após o assassínio do Irmão Kristos, o major Leonid Y. Marchuk regressou à União Soviética. Desconhece-se o seu actual paradeiro.
O Presidente Abner Hawkins, dissuadido pelos seus conselheiros de mandar colocar a bandeira da Casa Branca a meia haste, pronunciou um elogio fúnebre num simples
serviço religioso que teve lugar na Sala Roosevelt. Está agora a tentar desafiar a liderança do seu partido, estabelecendo uma coligação com grupos minoritários,
com os pobres e desalojados e com organizações religiosas fundamentalistas. Conta, neste empreendimento, com a ajuda de Lu-Anne Schlossel, que foi confirmada no
cargo de vice-presidente.
A morte do Irmão Kristos constituiu um golpe para as ambições
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presidenciais de Samuel Trent. Além disso o facto de se ter divorciado de Matilda Trent também não ajudou a sua carreira. No entanto, o ex-vice-presidente
anunciou a sua intenção de competir com Hawkins nas próximas eleições. A ex-Mrs. Trent vive agora no Sul de França.
Pear Gibbs e Agnes Brittlewaite desapareceram pouco depois da morte do Irmão Kristos. Diz-se que as duas mulheres estão agora a trabalhar num bordel em Tijuana,
no México, mas tal notícia não foi confirmada.
Jennifer Raye, nomeada executora do testamento do Irmão Kristos, vendeu o armazém de tabaco e o terreno circundante na Virgínia, para pagar os impostos estaduais.
O local encontra-se hoje a ser transformado em centro comercial. Mrs. Raye está a escrever um livro: A Verdadeira História do Irmão Kristos.
Henry Folsom demitiu-se do lugar de chefe de gabinete no seguimento da acusação do seu assessor. Folsom passou a dar aulas de Ciência Política na Universidade de
Georgetown.
Emily Mattingly publicou, a expensas suas, uma nova edição das Orações do Irmão Kristos para Todas as Ocasiões. O livro inclui fotografias seleccionadas do pregador.
Diz-se que está a vender-se bem.
De acordo com o testamento do Irmão Kristos, o seu corpo foi cremado, após ter sido libertado pelas autoridades. As cinzas foram colocadas numa simples urna de bronze.
Na noite seguinte à da cremação, a casa funerária foi assaltada e a urna roubada. Até à data, as cinzas não foram recuperadas.
Quando o testamento do Irmão Kristos foi junto do inventário, revelou-se que ele deixara o seu cordão de ouro e a cruz a John Tollinger.
Lawrence Sanders
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