Biblio "SEBO"
O detective Richard Género não gostava de sair em serviço à noite. A verdade é que a cidade à noite o assustava. Naquela cidade, uma pessoa estava sujeita a que lhe acontecesse todo o tipo de coisas depois do pôr do Sol. Ainda que essa pessoa fosse um polícia, podia acontecer-lhe muita coisa. Conhecia muitos polícias a quem tinham acontecido coisas à noite. E, por qualquer razão, as coisas que aconteciam aos polícias aconteciam com mais frequência à noite que de dia. Esse fora um dos preceitos sagrados que aprendera sobre o trabalho na Polícia e sobre ele formulara uma norma. A norma era Nunca sair à noite, uma norma impraticável se não queria que os colegas o considerassem um cagarola.
Uma vez, quando Género ainda era polícia de giro e estava de serviço numa fria noite de Dezembro, viu uma luz acesa numa cave e, como bom polícia, foi investigar o que se passava. Encontrou um rapaz morto, com a cara roxa e uma corda à volta do pescoço. Essa fora uma das coisas que lhe tinham acontecido à noite. De uma outra vez - bem, essa nem sequer tinha sido à noite, mas sim de dia, e também podiam acontecer coisas aos polícias durante o dia - estava a-fazer a ronda, lembrava-se que estava a chover, viu alguém a fugir de uma paragem de autocarro, e quando apanhou o saco que a pessoa deixara ficar no passeio encontrou uma mão humana lá dentro! A mão de uma pessoa! Cortada pelo pulso e deixada no passeio, dentro de um saco de uma companhia de transportes aéreos! Caramba, as coisas que podiam acontecer a um polícia, de dia oh de noite. Na opinião de Género, naquela cidade ninguém estava em segurança, qualquer que fosse a hora a que saísse.
Só se sentia um pouco mais seguro com Carella a seu lado.
Os dois homens tinham saído à noite porque estavam a investigar um roubo de «berço» e a vítima era guarda-nocturno numa obra. Género demorara bastante tempo a perceber que um ladrão de «berços» não era alguém que andava a roubar camas onde dormiam bebés. Um «berço», na gíria dos ladrões, era um apartamento. Um ladrão de berços era alguém que assaltava apartamentos, e isso ocorria normalmente durante o dia, quando a maior parte dos apartamentos estavam vazios; a última coisa que um ladrão queria ou precisava era deparar com uma velhota que desatasse aos gritos. Era por isso que os ladrões que assaltavam escritórios actuavam à noite, quando toda a gente já regressara a casa depois do trabalho, e normalmente entravam depois de a mulher da limpeza ter saído. Era uma norma de segurança que os ladrões espertos cumpriam: Entrar sempre quando não está ninguém.
Naquele caso específico, o ladrão entrara no apartamento às duas da tarde e estava a desligar a televisão da tomada na sala de estar, com todo o à-vontade, quando subitamente um tipo de pijama saiu do quarto e lhe perguntou:
- Que raio é que está aqui a fazer?
O tipo era guarda-nocturno, trabalhava de noite e dormia de dia, e o ladrão fugiu a sete pés. Carella e Género tinham ido à obra naquela noite para mostrar ao guarda-nocturno algumas fotografias de assaltantes com cadastro, muito embora a norma de segurança para polícias espertos fosse Nunca sair a noite, mesmo acompanhado de Carella. Carella não era o Super-Homem. Nem sequer era o Batman.
Carella tinha cerca de um metro e oitenta. Género não era lá muito bom a calcular alturas. Achava que Carella pesava à volta de oitenta quilos, mas também não era lá muito bom a calcular pesos. Carella tinha olhos castanhos, amendoados como os dos chineses, e tinha o andar de um jogador de basebol. Tinha o cabelo apenas ligeiramente mais claro que os olhos e nunca usava chapéu. Género já saíra com ele quando chovia a cântaros, e lá ia Carella em cabelo, como se não soubesse que podia apanhar uma constipação à conta disso. Género gostava de ter Carella como seu companheiro, pois achava que Carella era um tipo com quem podia contar se alguma coisa estivesse para acontecer. Só a ideia de poder estar para acontecer qualquer coisa punha Género nervoso, mas duvidava que alguma coisa fosse acontecer naquela noite, pois já eram três da manhã quando acabaram de mostrar as fotografias à vítima do roubo. Pensava que voltariam para a esquadra para beber uma chávena de café e comer um bolo, despachariam alguns papéis e esperariam que o turno de dia entrasse, às oito da manhã.
A noite estava quase quente para Outubro.
Género saiu da obra à frente de Carella porque pensou ouvir ratazanas a correr ali perto ao passarem junto ao sítio das escavações, e se havia alguma coisa que ele odiava mais que aranhas eram ratazanas. Especialmente à noite. Mesmo numa noite agradável de Outubro como aquela. Respirou fundo, sentindo o ar de Outono, satisfeito por já estar fora da área cercada com os seus grandes montões de terra e grandes buracos abertos, com bocados de ferro das cofragens por todo o lado em que uma pessoa podia tropeçar e partir a cabeça e ser comido pelas ratazanas no escuro.
A obra ocupava um dos lados de toda uma rua e do outro lado só havia prédios abandonados. Naquela zona da cidade, quando um senhorio se fartava de pagar impostos, abandonava muito simplesmente o prédio. A fila abandonada de casas vazias dava para o local da obra, parecendo fantasmas sujos de fuligem ao luar. Género sentia arrepios só de olhar para lá. Estava pronto a apostar que havia milhares de ratazanas naqueles prédios abandonados que o fitavam das janelas tão negras como órbitas sem olhos. Tirou um maço de cigarros do bolso do casaco - a noite estava suficientemente amena para não ser preciso andar de sobretudo - e ia a acender um cigarro quando por acaso olhou para o cimo da rua.
Carella vinha a sair do portão na cerca por detrás dele.
Mas o que Género viu foi uma pessoa pendurada no poste de um candeeiro.
A pessoa estava presa à extremidade de uma longa e grossa corda.
A pessoa pendia no ar, movendo-se ligeiramente no ar ameno daquele Outubro.
O fósforo queimou os dedos de Género. Deixou-o cair no momento em que Carella viu o corpo na extremidade da corda. Género teve vontade de fugir. Não gostava de ser ele a descobrir cadáveres, nem mesmo partes de cadáveres; Género tinha uma profunda aversão a cadáveres. Piscou os olhos, pois nunca tinha visto um corpo pendurado daquela forma, excepto nos filmes de cowboys, e achou que se piscasse os olhos a imagem desapareceria. Nem sequer o rapaz na cave estava pendurado como aquele; pensando bem, não estava de todo pendurado e, sim, inclinado para a frente, na cama, com a corda à volta do pescoço e a extremidade desta amarrada às grades da janela da cave. Quando Género voltou a abrir os olhos, Carella já estava a correr em direcção ao candeeiro e o corpo continuava lá, pendurado no ar, a rodar ligeiramente, como se um bando armado tivesse apanhado um ladrão de gado e o tivesse enforcado no próprio local.
Só que não estavam em Utah.
Aquela era a grande cidade má.
- Que raio é isto? - disse Monroe. - O Faroeste?
Estava a olhar para o corpo pendurado. O seu companheiro também estava a olhar para cima, protegendo os olhos com a mão do clarão da lâmpada de sódio na extremidade do candeeiro. Tinham posto lâmpadas de sódio naquela parte da cidade no mês anterior, baseando-se na teoria de que luzes fortes impediam o crime. E ali estava um cadáver pendurado num candeeiro.
- É a Revolução Francesa, é o que é - disse Monoghan.
- Na Revolução Francesa decapitavam as pessoas - disse Monroe.
- Também as enforcavam - disse Monoghan.
Apesar do tempo invulgarmente ameno de Outono, os dois homens vestiam sobretudo. Os seus sobretudos eram pretos. Era de rigueur os polícias do Departamento de Homicídios daquela cidade vestirem de preto. Era hábito. Contudo, não era hábito os polícias do Departamento de Homicídios usarem chapéus cinzentos do tipo «diplomata», mas quer Monoghan, quer Monroe, usavam-nos com as curtas abas cuidadosamente viradas para baixo. Género ficou satisfeito por ver que usavam chapéu. A mãe dissera-lhe para usar sempre chapéu, mesmo nos dias mais quentes, especialmente nos dias mais quentes, porque assim não apanharia nenhuma insolação. Aquele dia não tinha sido muito quente, apenas invulgarmente ameno para Outubro, mas mesmo assim Género pusera chapéu. Mais valia prevenir que remediar.
- Com que então têm por cá linchamentos? - disse Monoghan a Carella.
- É, aqui temos todo o tipo de merda - respondeu Carella. Estava a olhar para o corpo que rodava lentamente na extremidade da corda. Como sempre, mas apenas durante uma brevíssima fracção de segundo, sentiu uma punhalada de dor atrás dos olhos. «Que desperdício», pensou.
- Têm por cá a Revolução Francesa - disse Monoghan.
- Têm cá o Faroeste - disse Monroe.
Estavam ambos no meio da rua, de mãos nas algibeiras, a olhar para o cadáver.
- Umas bonitas cuecas brancas - comentou Monoghan, olhando por debaixo da saia.
Um dos sapatos da rapariga morta tinha caído no pavimento. Um sapato roxo de salto alto, da cor da blusa. A saia era da cor do trigo, da cor do seu cabelo. As cuecas, como Monroe já comentara, eram brancas. A rapariga morta pendia por cima dos detectives, rodando lentamente na extremidade da corda, com um sapato roxo num dos pés.
- Que idade acha que terá? - perguntou Monoghan.
- É difícil de dizer daqui - disse Monroe. Vamos tirá-la dali - disse Monoghan.
- Não - disse Carella. - Só depois de o médico legista vir.
- É a U. F. - disse Género.
Referia-se à Unidade de Fotografia. Os homens ficaram debaixo do candeeiro a olhar para a rapariga morta. Formara-se um ajuntamento. Eram já 3:15 da manhã, mas saído sem se saber donde formara-se um ajuntamento de pessoas, vindas das ruas laterais para a rua deserta com os seus prédios abandonados e o terreno da obra. Naquela cidade havia gente acordada a qualquer hora do dia ou da noite. Género achava que era uma conspiração toda a gente estar acordada de dia ou de noite. Os quatro guardas que tinham acorrido em dois carros quando Carella pedira reforços pelo 10-29 estavam afanosamente a erguer barreiras e a tentar conter a multidão. Alguém no meio de toda aquela gente pensou que não era realmente uma rapariga que estava ali pendurada. Comentou que era um boneco ou qualquer coisa assim. Que provavelmente estavam a rodar um filme, ou um programa de televisão. Naquela cidade estavam sempre a rodar filmes ou programas de televisão. Era uma cidade muito fotogénica. A rapariga continuava a rodar lentamente na extremidade da corda.
- Como é que se enforca uma pessoa na rua de uma cidade sem nmguém ver? - disse Monroe.
Carella estava a pensar exactamente o mesmo.
- Talvez ela se tenha enforcado a si própria - disse Monoghan.
- Nesse caso onde é que está a escada ou o que quer que utilizou? perguntou Monroe.
- Aqui na Oito-Sete ela podia bem ter-se enforcado e alguém roubado a escada depois - disse Monoghan.
- De qualquer maneira, está pendurada - disse Monroe.
- Que é que quer dizer com isso de pendurada? - perguntou Monoghan.
- Uma pessoa enforca-se, diz-se que se enforcou. Não que está pendurada.
- Quem é que lhe disse isso?
- Cultura geral.
- Enforcada?
- Exacto.
- Não soa bem. Enforcada.
- Mas é o termo correcto.
- Quando se vê um tipo com uma grande carraspana em cima, não se diz que está bem enforcado, diz-se que está bem pendurado - contrapôs Monoghan.
- Isso é uma coisa completamente diferente - disse Monroe. - Estamos a falar de uma coisa completamente diferente.
- Quando se pendura o fato no cabide, não dizemos «eu enforquei o meu fato» - disse Monoghan. - Dizemos pendurei o meu fato.
- Isso também é diferente - disse Monroe.
- Porque é que é diferente?
- É diferente porque quando se enforca alguém, nesse caso a pessoa foi enforcada, não foi pendurada.
Género não sabia qual dos dois tinha razão, mas estava a gostar da conversa. Carella estava a andar à volta do candeeiro, a olhar para o passeio e para a rua. Género perguntou a si próprio o que é que Carella estaria à espera de encontrar. Só havia o lixo habitual na sargeta -beatas, invólucros de pastilhas elásticas, copos de papel amachucados e coisas assim. O lixo da cidade.
- Então o que é que ficamos aqui a fazer? - perguntou Monoghan. - Ficamos aqui toda a noite à espera que o médico legista chegue? Olhou para o relógio. - A que horas é que comunicou isto, Carella?
- Às três-zero-seis - disse Carella.
- E quantos segundos? - perguntou Monroe, e Monoghan desatou a rir.
Género olhou para o relógio.
- Há doze minutos - respondeu.
- Então onde é que está o médico legista? - disse Monoghan. Um homem que estava no meio da multidão passou a barreira quando um dos guardas virou as costas. Dirigiu-se para o sítio onde os detectives se tinham agrupado debaixo do candeeiro. Tinha sido obviamente nomeado porta-voz dos espectadores. Assumiu a atitude educada e de deferência que a maioria dos cidadãos daquela cidade assumiam quando pediam informações a um polícia.
- Desculpe - disse, dirigindo-se a Monoghan -, mas pode-me dizer o que é que se passou?
- Vá-se lixar - disse Monoghan educadamente.
- Vá para o lado de lá da barreira - disse Monroe.
- A rapariga está morta? - perguntou o homem.
- Não, está a aprender a voar - disse Monoghan.
- Está com uma corda de segurança e a aprender a voar - disse Monroe.
- Não tardará a abanar os braços - disse Monoghan.
- Vá para o lado de lá da barreira e poderá vê-la - disse Monroe.
O homem olhou para a rapariga morta a rodar lentamente na extremidade da corda. Não achava que a rapariga estivesse a aprender a voar. Mas mesmo assim foi para o outro lado da barreira e relatou aos outros o que lhe tinha sido dito.
- Já tiveram alguém pendurado? - perguntou Monoghan a Çarella.
- Enforcado - disse Monroe.
- Alguns suicídios por enforcamento - disse Carella. - Mas nada parecido com isto.
- Para um enforcamento a sério é preciso uma boa altura - disse Monroe. - A maior parte das pessoas que se suicidam por enforcamento sobem para uma cadeira, põem a corda à volta do pescoço e depois saltam. Dessa forma não se morre enforcado, morre-se sufocado. Para um enforcamento é preciso uma boa altura.
- Mas porquê? - perguntou Género. Estava interessado. A mãe aconselhara-o a escutar sempre com atenção porque assim aprendiam-se coisas.
- Por causa do que acontece num enforcamento verdadeiro, a corda... o nó lá em cima...
- Está ali um verdadeiro nó de forca - disse Monoghan, olhando para cima.
- A queda faz que o nó bata com violência na parte de trás do pescoço do tipo e parte, é o que é. Mas é preciso uma boa altura, um metro e oitenta ou mais, se não a corda apenas sufoca o tipo. Há muitos amadores que se tentam matar por enforcamento e acabam por morrer sufocados. Se um tipo se quer matar, deve aprender a fazê-lo como deve ser.
- Uma vez tive um suicida que se apunhalou no coração - disse Monoghan.
- E depois? - disse Monroe.
- Estava só a dar um exemplo.
- Ora, apanhamos de tudo - disse Género, tentando mostrar-se vivido e experiente.
- Claro, meu rapaz - disse Monoghan num tom solene, concordando com ele.
- Chegou o médico legista - disse Monoghan.
- Já não era sem tempo - disse Monoghan, voltando a olhar para o relógio.
O assistente do médico legista era um homem chamado Paul Blaney. Estava num jogo de póquer que duraria toda a noite quando fora chamado à cena do incidente. Estava aborrecido porque tinha uma óptima mão, reis por ternos, quando o telefone tocara. Tinha insistido em acabar a jogada antes de se ir embora e perdera para um póquer de valetes. Blaney era um homem baixo com um bigode preto hirsuto, olhos que pareciam cor de violeta a uma certa luz e uma cabeça calva que brilhava sob a luz da lâmpada de sódio. Cumprimentou rapidamente os outros e depois olhou para a rapariga enforcada.
- Que é que é suposto eu fazer? - disse. - Subir ao candeeiro?
- Eu disse-lhes que era melhor pô-la cá em baixo - disse Monoghan.
- É melhor esperarmos pelos tipos do laboratório - disse Carella.
- Para quê?
- Hão-de querer ver a corda.
- Teve alguma vez algum caso em que houvesse impressões digitais numa corda - perguntou Monoghan.
- Não, mas...
- Vamos tirá-la dali.
Blaney mostrou-se hesitante. Olhou de relance para a rapariga morta. Depois olhou para Carella.
- Eles talvez saibam que tipo de nó é - disse Carella.
- É um nó de forca - disse Monoghan. - Qualquer pessoa vê que é um nó de forca. Nunca vão ao cinema? Nunca vêem televisão?
- Estava a referir-me ao que está à volta do candeeiro. Ao que está atado ao poste. A outra extremidade da corda.
Blaney olhou para o relógio.
- Estava a jogar póquer - disse para ninguém em especial.
A Unidade Móvel de Crime chegou passados uns dez minutos. Nessa altura já lá estavam mais três carros-patrulha com rádio e também chegara a ambulância do Hospital Mercy General. A multidão engrossara atrás das barreiras. Toda a gente estava à espera que tirassem a rapariga morta. Queriam ver se estava mesmo morta ou se se tratava apenas de um filme que estivessem a rodar. Nenhuma das pessoas da multidão alguma vez vira uma pessoa pendurada num candeeiro. A maioria nem sequer alguma vez vira uma pessoa pendurada onde quer que fosse. A rapariga continuava ali pendurada, parecia mesmo verdadeira, mas também parecia estar morta. Os tipos da U. F. tiraram fotografias à rapariga, à área à volta do candeeiro e à corda atada com um nó ao poste. Os técnicos do laboratório conferenciaram com Carella durante alguns instantes e foi considerado aconselhável conservar o nó da forma como estava feito em vez de o desfazer para baixar a rapariga; queriam estudar o nó com mais atenção no laboratório. Foi decidido que afinal cortariam a corda para tirar dali a rapariga.
Monoghan passeou-se por entre os outros, de mãos nas algibeiras, assentindo com uma expressão de satisfação; fora exactamente aquilo que ele sugerira desde o início. Nessa altura já chegara a camioneta do Serviço de Emergência; um sargento desprendeu uma escada do lado da camioneta, perguntou a um dos técnicos do laboratório se queria a corda cortada, e o técnico indicou um ponto mais ou menos a meio do nó de forca por detrás do pescoço da rapariga e o nó com que a corda fora atada ao poste do candeeiro. Os polícias do Serviço de Emergência estenderam uma rede por baixo da rapariga enforcada e o sargento subiu a escada e cortou a corda com um alicate.
A rapariga caiu para cima da rede.
A multidão atrás das barreiras irrompeu em vivas.
Blaney examinou a rapariga, declarou-a morta e aventou a hipótese de que a causa da morte - a ser confirmada pela autópsia - fora fractura das vértebras cervicais.
Passava pouco das 4:00 da manhã quando a ambulância a levou para a morgue.
A primeira vez era sempre mais fácil.
Envolvia um elemento de total surpresa; nenhuma daquelas mulheres tinha alguma vez pensado que qualquer coisa de semelhante lhes aconteceria, mesmo naquela cidade onde certamente sabiam que se tratava de uma ocorrência comum. Apenas tinha de lhes preparar uma emboscada, mostrar-lhes a navalha, e elas ficavam à sua mercê.
As outras vezes eram difíceis, muito difíceis.
Era necessário ter muita paciência.
Algumas recusavam-se mesmo a sair dos seus apartamentos, tão aterrorizadas tinham ficado com o que lhes acontecera, tão receosas de lhes voltar a acontecer o mesmo. Passadas algumas semanas, embora às vezes só passado um mês, voltavam a sair, normalmente acompanhadas do marido ou de um namorado, e nunca à noite, pois continuavam a ter medo de sair à noite. Era preciso ter muita paciência.
E era preciso consultar o calendário.
Depois dessa primeira vez acabavam, com o tempo, por vencer o trauma e voltavam a aventurar-se sozinhas na cidade à noite, e é claro que ele estava à espera, à espera delas, e dessa vez a surpresa era ainda mais completa; um raio não podia fulminar duas vezes, pois não? Ah, mas podia. E fulminava. E da segunda vez, quando o reconheciam, e algumas reconheciam-no, normalmente imploravam-lhe para não lhes voltar a fazer o mesmo, elas, que se pudessem imporiam a sua vontade a toda a gente, imploravam-lhe a ele para não lhes impor a vontade dele, que ironia! Nenhuma sabia que ele tinha estudado o calendário, nem que os seus ataques eram programados com absoluta precisão.
Depois da segunda vez ficavam totalmente destroçadas. Algumas mudavam-se para outros bairros ou até deixavam a cidade. Outras iam de férias durante um longo período. Outras, ainda, davam um salto terrível ao ouvir a buzina de um carro a três quarteirões de distância. Começavam a sentir que eram vítimas indefesas de algo inexplicavelmente alévolo que as escolhera como alvo de entre todas as mulheres daquela cidade. Uma delas contratara um guarda-costas. Mas as outras - bem, uma pessoa acaba por ultrapassar as coisas e a vida continua. Passa-se algumas horas fora do apartamento durante o dia, nunca indo para muito longe de casa, e depois acaba por se aumentar o tempo que se passa na rua, por aumentar a distância dos passeios e não tardará muito que se volte a fazer o que se supunha ser normal, embora a noite ainda metesse medo e se saísse sempre acompanhada por amigos ou parentes depois de escurecer. Até que um dia se começa a pensar que já não existe perigo, que este passou, e depois das primeiras vezes que se sai sozinha à noite e nada acontece, pensa-se que tudo aquilo pertence ao passado, que acontecera duas vezes, sem dúvida, mas que nem num milhão de anos podia voltar a acontecer. Mas o que não sabiam é que ele estudava o calendário e que voltaria a acontecer porque ele era extremamente paciente e tinha todo o tempo no mundo.
Da terceira vez - uma delas lutara com ele como se a sua própria vida dependesse de não voltar a ser violada. Essa, tinha-a cortado. Tinha-lhe cortado a cara e os seus gritos tinham parado, e ela submetera-se a ele, a choramingar e a sangrar. Da terceira vez - uma delas prometera-lhe uma quantia enorme de dinheiro se ele a deixasse em paz. Tinha-lhe feito o que lhe apetecia fazer e voltara a ir ter com ela uma semana depois, dessa vez ao seu apartamento, pois sabia que vivia sozinha, e fizera-lhe o mesmo pela quarta vez; aquela tinha sido a que ele apanhara num total de quatro vezes. Tornava-se quase impossível levar a cabo o plano depois da terceira vez porque nessa altura já elas sabiam que não tinham sido escolhidas ao acaso como vítimas, sabiam que alguém as queria apanhar especificamente a elas, e que se isso já acontecera três vezes, podia acontecer quatro ou cinco ou uma dúzia de vezes, e que não havia forma de o impedir de fazer o que quer que ele quisesse, sempre que quisesse.
A única coisa que tinha de fazer era não perder a paciência.
E não deixar de estudar o calendário.
Não deixar de marcar os dias.
Só uma vez é que tinha sido completamente bem sucedido à primeira vez.
Depois seguira-a. Sabia para onde fora. E percebeu que tinha sido bem sucedido. Deixara-a em paz depois disso, limitando-se a vigiá-la, e mais tarde soube ao certo que ela fora forçada a fazer exactamente o que ele planeara que ela fizesse; sentiu um agradável frémito de triunfo quando voltou a vê-la passado um mês, observando-a à distância, e percebeu que o seu plano era viável e seguro e que podia voltar a ser bem sucedido muitas e muitas mais vezes.
A mulher daquela noite chamava-se Mary Hollings.
Já a violara duas vezes.
Tinha-a violado pela primeira vez em Junho. A 10 de Junho, para ser exacto, numa noite de sexta-feira; tinha assinalado a data no seu calendário. Ela tinha ido às compras já tarde e levava um saco do centro comercial cheio de caixas embrulhadas quando ele a puxara do passeio para um beco. Tinha-lhe mostrado a navalha, encostando-a à garganta dela, e ela cedera sem emitir qualquer som enquanto as caixas embrulhadas se espalharam pelo pavimento junto do saco rasgado. Ela fora uma das poucas que se recusara a acobardar-se pela primeira experiência. Voltou a sair à rua, sozinha, à noite, uma semana depois. Cautelosamente, claro, pois não era idiota. Mas combatendo o medo com uma atitude de bravata, enfrentando resolutamente o que acontecera, recusando-se a ser dominada por isso, decidida a viver a sua vida como sempre a vivera antes de ele entrar nela.
Voltou a violá-la a 16 de Setembro, numa sexta-feira, como da primeira vez. Também assinalara esse dia no calendário. Tinha-a violado a não mais de seis quarteirões do local onde a assaltara da primeira vez. Ela tinha ido ao cinema com uma amiga, à primeira sessão da noite. O filme tinha acabado às nove e meia, um quarto para as dez. Acompanhara a amiga a casa e ia em direcção às luzes brilhantes do Stem quando ele a agarrara. Dessa vez também não emitiu qualquer som. Mas dessa vez ficara aterrorizada. Dessa vez ficara a tremer quando ele lhe rasgara as cuecas com a navalha e a violara.
Dezasseis de Setembro fora há três semanas.
Tinha-a vigiado sempre que podia durante essas três semanas. Notara que ela nunca ia a lado nenhum sozinha durante o dia, excepto para sítios onde havia muita gente. E nunca saía à noite, excepto acompanhada por um homem, às vezes por dois homens. Bastava observá-la para perceber que continuava insegura, mesmo com acompanhantes para a proteger; olhava constantemente à sua volta, atravessava a rua se um homem se aproximava dela vindo de outra direcção e mostrava-se muito cautelosa, muito atenta, decidida a que aquilo não voltasse a acontecer-lhe.
No sábado anterior tinha-a seguido até ao centro da cidade, até ao Comando da Polícia. Suspeitava que ia lá dar mais pormenores sobre o que já lhe acontecera duas vezes. Seguiu-a quando ela saiu e ficou surpreendido ao vê-la entrar num armeiro, mostrar ao homem que a atendeu uma folha de papel e depois começar a examinar as pistolas que ele ia tirando de detrás do balcão. Fora ao Comando da Polícia obter licença de porte de arma! Ia comprar uma arma! Ele sorriu quando ela finalizou a compra. Sabia que não tardaria que ela voltasse a andar na rua, novamente à noite, novamente sozinha, desta vez com uma arma na carteira, pensando que estava protegida contra ele.
Mas enganou-se.
Não saíra do apartamento durante a última semana. A noite da cidade subjugara-a realmente e ela não se atrevia a aventurar-se nela sozinha, nem carteira. Não queria correr nenhum risco. Via o tempo a passar pelo calendário. A semana estava a decorrer num ápice, e o dia 7 de Outubro aproximava-se rapidamente. Ele sabia que tinha de ir ao seu apartamento como fizera com a outra que apanhara quatro vezes.
Hoje era 7 de Outubro; o dia 7 chegara finalmente; era boa altura, embora ainda mal fosse o dia 7 de Outubro, pois eram 4:45 da manhã. Hoje seria a sua terceira saída. Mais uma ou duas saídas e ele apanhá-la-ia, a menos que ela decidisse ir viver para a Mongólia.
Hoje tê-la-ia na sua própria cama.
Uma mulher polícia acompanhou Mary Hollings ao Hospital Mercy General onde três horas antes o corpo não identificado da vítima de enforcamento dera entrada na morgue para ser autopsiado. O nome da mulher polícia era Hester Fein. Era uma mulher entroncada, com a altura e a largura de um praticante de luta livre; tinha 28 anos e ainda sofria de acne, tinha feições vulgares, era sólida como uma boca de incêndio e - como muitos dos seus colegas homens -acreditava que nenhuma mulher era violada a menos que o quisesse ser, especialmente três vezes no espaço de cinco meses; soubera na esquadra que aquela era a terceira vez que Mary Hollings tinha sido violada, A grande ambição da vida de Hester Fein era usar uma Magnum 357, uma arma que o Comando da Polícia daquela cidade não autorizava. Por vezes pensava em pedir transferência para Houston, no Texas. Aí sabiam que tipo de arma um polícia precisava para se proteger.
A caixa de plástico tinha oito centímetros de largura, dezoito de comprimento, dois e meio de profundidade e uma tampa que se abria rodando dois pequenos botões de plástico em direcções opostas. Colada por cima da tampa, e de um dos lados da caixa, junto a um dos cantos, via-se uma fita estreita com as palavras «SELO INVIOLÁVEL. Cortar para abrir». Colada à tampa da caixa havia uma etiqueta que identificava a caixa e o seu conteúdo como sendo o ESTOJO JOHNSON DE PROVA DE VIOLAÇÃO. A enfermeira perguntou a Hester o número do processo. Hester disse qual era e esta preencheu o espaço respectivo na etiqueta. Perguntou a Mary Hollings como se chamava e escreveu o nome no espaço destinado ao «Nome do Sujeito». Perguntou a Hester qual era a ofensa.
- Violação - respondeu Hester num tom inexpressivo, embora não acreditasse de todo que tivesse sido. A enfermeira preencheu os espaços correspondentes à «Data do Incidente» e à «Hora» na etiqueta. Assinou o seu nome na qualidade de Oficial de Investigações e preencheu a localidade com o nome do Hospital Mercy General. Depois cortou a fita que selava o estojo com um bisturi.
O estojo continha um raspador de madeira para o colo do útero, um invólucro de lamelas com duas lamelas, um pente de plástico, um apetrecho para recolher pêlos do púbis, um sobrescrito branco com a indicação «A» Pêlos, um sobrescrito branco com a indicação «B» Standard, uma saqueta de Reagente Para Fluido Seminal que consistia num saco de plástico com uma compressa de algodão e uma fita azul de reagente, um folheto de instruções e duas etiquetas vermelhas com letras brancas com as palavras:
PROVA
AVISO 1:
SELO DA POLÍCIA
Não Retirar
A enfermeira que estava a fazer o teste conhecia o folheto de instruções. O mesmo acontecia com Mary Hollings.
Mary estava a tremer ao subir para a marquesa e ao tirar as cuecas rasgadas. A enfermeira tranquilizou-a, afirmando que o teste não lhe faria doer, e Mary disse qualquer coisa incoerente em resposta; depois colocou as pernas nas perneiras e suspirou profunda e tristemente. Com o raspador de madeira para o colo do útero, a enfermeira recolheu dois esfregaços vaginais e preparou as lamelas, deixando-as secar ao ar como estava indicado no estojo, metendo-as depois novamente na pequena protecção de plástico. Voltou a escrever o nome de Mary no espaço destinado ao «Sujeito» no invólucro das lamelas, preencheu a data e depois escreveu o seu próprio nome no espaço referente a «Feito Por» e colocou o invólucro no estojo aberto. Carregou no pedal de um caixote de lixo e deitou fora o raspador de madeira.
- Vamos querer essas cuecas - disse Hester.
- O quê? - exclamou a enfermeira.
- Como prova - disse Hester.
- Bem, isso é do seu sector - disse a enfermeira.
- Nem mais - disse Hester, pegando nas cuecas e metendo-as dentro de um sobrescrito destinado a provas. As cuecas eram pretas com renda, confirmando a convicção de Hester de que nenhuma mulher era violada a menos que quisesse.
As letras no sobrescrito com a indicação «Recolha de Pêlos do Púbis» eram roxas. Era necessário preencher as mesmas informações que constavam na etiqueta do próprio estojo. A enfermeira escreveu-as, copiando pela etiqueta do estojo, e depois abriu o sobrescrito e pô-lo por debaixo da vagina de Mary. Passou o pente de plástico pelos pêlos do púbis de Mary várias vezes, deixando cair para dentro do envelope os pêlos soltos. Meteu o pente no mesmo sobrescrito dos pêlos e fechou-o, colocando-o na caixa de plástico do estojo juntamente com o invólucro das lamelas.
Como ainda podiam ter ficado alguns pêlos soltos na zona do púbis de Mary, a enfermeira pegou no apetrecho para recolha de pêlos, tirou a protecção de plástico transparente do estreito pedaço de adesivo e passou a superfície adesiva por toda a zona do púbis, carregando ligeiramente.
Voltou a pôr a protecção de plástico transparente por cima da superfície adesiva, preencheu novamente todas as anteriores informações, meteu o apetrecho no estojo e deitou a fina capa de plástico em que este vinha empacotado no caixote do lixo para onde deitara o raspador de madeira. Mary continuava a tremer. Parecia não ser capaz de parar de tremer
- Precisamos de uma amostra dos seus pêlos do púbis - disse a enfermeira. - Quer ser você a tirá-la ou tiro-a eu?
Mary assentiu.
- Como é que quer? - perguntou a enfermeira. Mary abanou a cabeça.
- Quer que eu tire? Mary voltou a assentir.
O segundo sobrescrito com a indicação «Recolha de Pêlos do Púbis» tinha letras azuis. Diferia do primeiro na medida em que esse estava marcado «A» e «Pêlos» e o outro «B» e «Standard». Exigiam ambos que todas as informações sobre o caso fossem preenchidas e a enfermeira fê-lo antes de agarrar com firmeza num punhado de pêlos da zona púbica de Mary. Era importante que os pêlos não fossem cortados; deu um puxão rápido, arrancando uns dez ou vinte (Mary deu uma breve exclamação abafada) e meteu-os no sobrescrito, fechando-o.
- Está quase - disse. Mary assentiu. Hester Fein observava.
A enfermeira abriu a saqueta de plástico com a indicação «Reagente de Fluido Seminal». Tirou a pequena fita azul da saqueta. Encharcou a compressa de algodão com água destilada, passou o algodão molhado por cima e à volta da zona genital de Mary e disse:
- Querem que eu faça o teste ou tratam disso no laboratório?
- Ninguém me disse - respondeu Hester.
- Mais vale fazé-lo para ficarmos despachadas - disse a enfermeira.
- Mais vale - disse Hester.
A enfermeira rasgou a tira azul, abrindo-a ao meio e expondo o papel com ácido fosfatado activo. Aplicou o papel contra o algodão molhado durante vários segundos. Tirou o papel e olhou para ele.
- Que é que isso lhe indica? - perguntou Hester.
- Uma presumível presença de sémen causa uma alteração imediata na cor do papel.
- Que cor? - perguntou Hester.
- Aqui está - disse a enfermeira, enquanto o papel se tornava roxo-escuro, que era a cor exacta das letras na tira impregnada de ácido fosfatado.
- E que é que isso quer dizer? - perguntou Hester.
- É positivo quanto a sémen - disse a enfermeira, metendo de novo o algodão e a tira dentro da saqueta de plástico. - Hão-de querer fazer mais testes no laboratório, mas por agora é tudo. Obrigada, minha querida - disse a Mary -, portou-se muito bem. Já estava tudo de novo dentro do estojo. A enfermeira fechou a tampa, pegou nos dois selos vermelhos da Polícia, tirou a protecção da parte de trás e disse a Hester:
- Está a ver que estou a selar o estojo.
Depois entregou-lhe o estojo selado e atirou o folheto de instruções para o caixote do lixo. -Já pode ir - disse a Mary.
- Para onde? - disse Mary.
- Para a esquadra - respondeu Hester. - Vai lá um detective da Brigada de Violações.
Mary sentou-se na marquesa.
- Eu...
Olhou em volta, espantada.
- Sim, querida? - disse a enfermeira.
- As minhas cuecas - disse ela. - Onde estão as minhas cuecas?
- Tenho-as aqui para servirem de prova - disse Hester.
- Preciso das minhas cuecas - disse Mary.
Hester olhou para a enfermeira. Relutantemente, deu a Mary o sobrescrito pardo. Enquanto Mary vestia as cuecas rasgadas, Hester murmurou à enfermeira:
- E ainda se diz que casa roubada, trancas à porta. Mary pareceu não ouvir.
A 87.a Esquadra estava relativamente calma, mas também eram só oito da manhã quando o detective da Brigada de Violações lá chegou. O Turno do Cemitério já tinha sido rendido e Género correra para casa o mais rapidamente que pudera, deixando Carella a dactilografar os relatórios D. D. enquanto os detectives que os tinham ido render para fazer o turno de dia bebiam o seu habitual café antes de começar a trabalhar.
Os quatro detectives que tinham rendido o turno anterior eram Cotton Hawes, Bert Kling, Meyer Meyer e Arthur Brown, mas Brown e Meyer tinham-se apresentado e saído de imediato para interrogar a vítima de um assalto à mão armada. Hawes e Kling estavam à secretária de Kling. Kling sentado na cadeira, Hawes meio sentado, meio encostado a um dos cantos, ambos a beber café por copos de papel, quando o detective da Brigada de Violações chegou.
- Com quem é que devo falar sobre Mary Hollings? - perguntou. Hawes virou-se para a divisória de madeira da sala. A mulher que ali estava teria talvez uns 34 anos, era morena, de olhos escuros, tinha óculos, vestia uma gabardina que deixava ver um vestido azul e calçava sapatos azuis com saltos médios. Trazia uma carteira azul pendurada sobre o ombro, que lhe assentava na anca, e tinha a mão direita sobre ela.
- O caso da violação? - perguntou Hawes. A mulher assentiu e abriu a porta da divisória.
- Sou Annie Rawles - disse, dirigindo-se para a secretária onde os dois homens estavam sentados. Sentado à sua secretária, Carella olhou para ela durante breves instantes e continuou a dactilografar. - Há por aí mais café? - perguntou.
Sim - Cotton Hawes - disse Hawes, estendendo-lhe a mão.
Annie deu-lhe um aperto de mão firme e olhou-o nos olhos. Tinha um metro e oitenta e três ou oitenta e quatro, calculou, mais ou menos cem quilos, olhos azuis, cabelos ruivos, uma madeixa branca por cima da têmpora esquerda e parecia ter sido atingido por um raio ou por qualquer coisa assim. Hawes estava a pensar que não se importaria nada de levar Annie Rawles para a cama. Gostava de mulheres assim delgadas, com mamas pequenas e firmes e com pouca anca. Pensou vagamente se ela teria um posto superior ao seu.
- Bert Kling - disse Kling, cumprimentando-a com um aceno de cabeça.
«Têm por cá uns tipos bem parecidos», pensou Annie. Aquele que acabara de se apresentar como sendo Kling era quase tão alto e tinha uns ombros quase tão largos como Hawes; tinha cabelo louro e olhos verdes ou qualquer coisa assim e uma expressão franca como um rapaz do campo. Até o outro que estava debruçado sobre a máquina de escrever do outro lado da sala era bem parecido com o seu ar vagamente oriental, mas usava aliança na mão esquerda.
- Foram vocês que apanharam o denunciante? - perguntou Annie.
- Foi o Brien, mas já se foi embora - disse Hawes.
- Vou buscar-lhe café - ofereceu-se Kling. - Como é que gosta?
- Fraco, com um torrão de açúcar. Kling dirigiu-se para o Departamento Administrativo ao fundo do corredor. Carella continuava a dactilografar.
- Onde está a vítima? - perguntou Annie.
- Uma agente levou-a ao Hospital Mercy General - disse Hawes.
- Nós não nos encontrámos já antes? - perguntou Annie.
- Creio que não - respondeu Hawes, sorrindo. - Eu lembrar-me-ia de si.
- Pensei que já nos tínhamos visto aqui. Têm muitas violações por cá, não têm?
- Uma boa conta - disse Hawes.
- Quantas? - perguntou Annie.
- Por semana? Por mês?
- Por ano - disse Annie.
- Tenho de consultar os ficheiros.
- Em toda a cidade tivemos cerca de trinta e cinco mil o ano passado - disse Annie. - O número para o país inteiro atingiu perto de setenta e oito mil.
Kling regressou com o café para Annie.
- Tenho uma amiga colocada nas Forças Especiais - disse ele. -Faz muitas vezes de chamariz.
- Ah, sim? - disse Annie. - Como é que ela se chama?
- Eileen Burke.
- Sim, já a vi por lá - disse Annie. - É uma ruiva alta? De olhos verdes?
- É ela.
- É muito bonita - disse, e Kling sorriu. - E tenho ouvido dizer que é boa polícia.
Tinha chamado «amiga» a Eileen. Um eufemismo actual para «amante», mesmo quando era um polícia a utilizá-lo. «Aquele louro tem que se lhe diga», pensou Annie.
A porta da divisória de madeira abriu-se e Hester Fein conduziu Mary Hollings para dentro da sala. Hester olhou em volta, à procura de O'Brien, viu que já se tinha ido embora e por instantes pareceu confusa.
- Quem é que fica com isto? - perguntou, estendendo o estojo da prova de violação.
- Fico eu - disse Annie. Hester olhou para ela.
- Detective de primeira classe, Annie Rawles - disse Annie. - Brigada de Violações.
«Tem mesmo um posto superior ao meu», pensou Hawes.
- Preenchi o que era suposto eu preencher - disse Hester, indicando a etiqueta no estojo. Sob o título de SEQUÊNCIA DE RESPONSABILIDADE havia três breves indicações de informações a serem preenchidas. À frente de «Recebido de», Hester tinha escrito Hillary Baskin, E. D. Hospital Mercy General. A frente de «Por» escrevera Agente Hester Fein, seguido do seu número. A frente de «Data», escrevera 7 de Outubro, e à frente de «Hora», escrevera 7:31, tendo feito um círculo à volta da indicação A. M. Annie preencheu a parte seguinte, que era idêntica, assinalando a recepção do estojo.
- Há algum sítio onde eu possa falar com Miss HoHings em particular? - perguntou a Hawes.
- Há a Sala de Interrogatórios ao fundo do corredor - disse Hawes. - Eu indico-lhe onde é.
- Quer café, Miss Hollings? - perguntou Annie.
Mary abanou a cabeça. Foram ambas atrás de Hawes, passando pela divisória de madeira e seguindo pelo corredor. Hester deixou-se ficar ali na esperança de que Kling ou Carella também lhe oferecessem café a ela. Ao ver que nenhum deles o fazia, foi-se embora.
Já na Sala de Interrogatórios, Annie disse num tom brando:
- Se não se importa, primeiro preciso de algumas informações de rotina.
Mary Hollings não disse nada.
- Importa-se de me dizer o seu nome completo?
- Mary Hollings.
- Não tem nenhum outro nome? Mary abanou a cabeça.
- Morada, por favor.
- 1840 Laramie Crescem.
- Número do apartamento? - 12C,
- A sua idade?
- Trinta e sete.
- Solteira? Casada? Divorciada?
- Divorciada.
- Altura, por favor?
- Um metro e sessenta. -Peso?
- Sessenta e dois quilos. Annie olhou para ela.
- Cabelo ruivo - disse, escrevendo no impresso do relatório olhos azuis. - Fez um X no quadrado respeitante a Branca do formulário, examinou atentamente a folha e voltou a olhar para cima. - Pode dizer-me o que aconteceu, Miss Hollings?
- O mesmo homem - disse Mary.
- O quê? - disse Annie.
- O mesmo homem. O mesmo que das outras duas vezes. Annie olhou para ela.
- Esta é a terceira vez que foi violada? - perguntou, surpreendida. Mary assentiu.
- E foi o mesmo homem de todas as vezes? Mary voltou a assentir.
- Reconheceu-o como sendo o mesmo homem?
- Sim.
- Conhece esse homem?
- Não.
- Mas tem a certeza de que era o mesmo homem?
- Sim.
- Pode dar-me a sua descrição? - disse Annie, tirando um bloco de notas da algibeira.
- Já dei. Duas vezes - disse Mary.
Notou que ela começava a mostrar-se zangada. Annie reconheceu a ira; já a vira centenas de vezes. Primeiro era o choque matizado pelo medo que perdurava, depois a ira. Neste caso agravada, pois aquilo já acontecera duas vezes a Mary Hollings.
- Nesse caso, posso retirar a descrição do dossier disse Annie. -As duas outras ocorrências verificaram-se na zona desta esquadra?
- Sim, na zona desta esquadra.
- Então não a incomodarei mais quanto à descrição do homem; tenho a certeza de que o dossier...
- Sim - disse Mary.
- Quer dizer-me o que se passou? - perguntou. Mary não disse nada.
- Miss Hollings?
Ela continuou a não dizer nada.
- Gostaria de a ajudar - disse Annie num tom bondoso. Mary assentiu.
- Pode dizer-me onde e quando é que isto se passou?
- No meu apartamento.
- Ele entrou no seu apartamento?
- Sim.
- Sabe como é que ele entrou?
- Não.
- A porta estava fechada à chave?
- Sim.
- Há escada de salvação?
- Sim.
- Ele pode ter entrado pela janela que dá para a escada de salvação?
- Não sei como é que ele entrou. Estava a dormir.
- E isto passou-se no apartamento 12 C de Laramie Crescent, 1840?
- Sim.
- O prédio tem porteiro?
- Não.
- E qualquer outro tipo de segurança?
- Não.
- Ele tirou alguma coisa do apartamento?
- Não.
- Mary fez uma pausa.
- Ele queria-me a mim.
- Disse que estava a dormir...
- Sim.
- Pode-me dizer o que é que tinha vestido?
- Que diferença é que isso faz?
- Vamos precisar da roupa que tinha vestida quando ele...
- Tinha uma camisa de noite comprida e cuecas. - Fez uma pausa. - Desde a primeira vez, que... vou para a cama com cuecas.
- As duas primeiras ocorrências... deram-se também no seu apartamento?
- Não. Na rua.
- E esta foi a primeira vez que ele foi ao seu apartamento?
- Sim.
- E tem a certeza de que se trata do mesmo homem?
- Tenho.
- Pode-nos dar a camisa de noite e as cuecas que tinha vestidas? O laboratório vai querer...
- Tenho as cuecas vestidas.
- Quer dizer neste momento?
- Sim.
- As mesmas que tinha vestidas quando ele a atacou?
- Sim. Só... pus um vestido... calcei os sapatos...
- Quando é que isso se passou?
- Assim que ele se foi embora.
- Pode-me dizer que horas eram?
- Imediatamente antes de eu telefonar à Polícia.
- Sim, e a que horas foi isso, Miss Hollings?
- Pouco antes das sete.
- A que horas é que ele entrou no seu apartamento? Lembra-se?
- Deve ter sido pouco depois das cinco.
- Então ele esteve consigo durante quase duas horas.
- Sim - confirmou Mary. - Sim.
- Quando é que se apercebeu da presença dele, Miss Hollings?
- Ouvi um barulho, abri os olhos... e vi-o ali. Atirou-se para cima de mim antes de eu poder...
Fechou os olhos. Abanou a cabeça.
Annie sabia que as perguntas seguintes seriam perguntas difíceis, sabia que a maioria das vítimas reagia mal a essas perguntas. Mas o novo Código Penal daquele Estado definia violação de primeiro grau como «Um homem ter relações sexuais com uma mulher: 1. Sob coacção pela força, ou 2 Que esteja incapaz de consentir pelo motivo de estar fisicamente impossibilitada, ou 3. Que tenha menos de onze anos de idade» e as perguntas tinham de ser feitas.
A nova definição não era em nada melhor que a anterior, que definia violador como «Uma pessoa que realiza um acto sexual com uma mulher outra que o seu cônjuge, contra a sua vontade ou sem o seu consentimento.» Quer a lei antiga quer a nova consideravam perfeitamente admissível um homem violar a própria mulher, pois um outro artigo da lei para a qual esta remetia definia «mulher» como sendo «qualquer indivíduo do sexo feminino que não seja casada com o autor». A lei antiga especificava: «Quando a sua resistência é vencida pela força ou quando ela é impedida de resistir pelo medo de poder sofrer grandes danos físicos que tenha razão para crer que lhe serão infligidos.» A nova lei remetia para um outro artigo que definia «coacção pela força» como «força física que subjugue uma resistência activa; ou uma ameaça, explícita ou implícita, que provoque no indivíduo medo de morte ou graves ferimentos físicos imediatos». Em ambas as leis, a responsabilidade da prova recaía sobre a vítima. Entretanto, ti-nham-se registado no país, no ano anterior, perto de setenta e oito mil violações, e detectives que desempenhavam um duro trabalho, como Annie Rawles, tinham de fazer perguntas penosas a mulheres que tinham acabado de ser violadas.
- Respirou fundo.
- Quando disse que ele «se atirou para cima» de si...
- Estava em cima da cama, estava em cima de mim.
- Deitado em cima de si, é isso que quer dizer?
- Não. E-e-escarranchado em mim.
- Ouviu um barulho que a acordou...
- Sim.
- ... e deu por ele em cima de si, escarranchado em si.
- Sim.
- Que é que fez?
- Estendi a mão... tentei estender a mão... para a mesinha-de-c-c-cabeceira. Tenho uma arma na gaveta da minha mesinha-de-cabeceira e tentei t-t-tirá-la.
- Tem licença de porte de arma?
- Sim.
- Tentou tirar a arma...
- Sim. Mas ele agarrou-me o pulso.
- Qual pulso?
- O pulso direito.
- Tinha a mão esquerda livre?
- Sim.
- Tentou defender-se com a mão esquerda?...
- Não.
- Não lhe bateu nem?...
- Não. Ele tinha uma navalha!
«Certo», pensou Annie. «Uma navalha. Coacção pela força absolutamente inequívoca.»
- Que tipo de navalha? - perguntou acto contínuo.
- A mesma navalha que tinha das outras duas vezes.
- Sim, mas que tipo era?
- Uma navalha de ponta e mola.
- Pode dizer-me qual era o comprimento da lâmina?
- Não sei qual era o comprimento da maldita lâmina, só sei que era uma navalha! - exclamou Mary num assomo de ira.
- Ele ameaçou-a com a navalha?
- Disse que me cortava se eu fizesse barulho.
- Foram essas as suas palavras exactas?
- Se eu gritasse, se eu fizesse barulho, não sei exactamente o que ele disse.
«Ameaça, explícita ou implícita,» pensou Annie, «medo de morte ou graves ferimentos físicos.» - - Depois que é que aconteceu? - perguntou.
- Ele... puxou a camisa para cima. -Debateu-se?
- Ele tinha a ponta da navalha encostada à minha garganta.
- Manteve a navalha encostada à sua garganta?
- Sim. Até...
- Sim.
- Ele... quando a minha... a minha camisa estava... puxada para cima... ele... ele pôs-me a navalha entre as pernas. Disse que enfiaria a navalha na minha... minha... minha... em mim se eu... d-d-dissesse uma palavra que fosse. Ele... ele... rasgou-me as cuecas com a navalha... cor-tou-as com a navalha... e... e... depois... ele... ele... f-f-fez-me aquilo.
Annie voltou a respirar fundo.
- Disse que ele esteve lá duas horas.
- Esteve sempre a f-f-fazer aquilo, zfazer-me aquilo.
- Ele disse alguma coisa durante esse tempo? Alguma coisa que possa levar à sua identifi...
- Não.
- Não mencionou acidentalmente o seu nome...
- Não.
- Nem donde era, ou...
- Não.
- Absolutamente nada?
- Nada. Não en-en-enquanto estava... estava...
- Ele estava a violá-la, Miss Hollings - disse Annie. - Não faz mal dizer a palavra. Aquele filho da puta estava a violá-la.
- Sim - disse Mary.
- E não disse nada?
- Não enquanto me estava... a violar.
- Miss Hollings, sou forçada a fazer-lhe a próxima pergunta. Ele forçou-a a fazer qualquer acto sexual anormal?
Estava a citar o Código Penal, definindo Sodomia de Primeiro Grau, um outro crime da Classe B, punível por uma pena máxima de vinte cinco anos de prisão. Se o apanhassem e o pudessem fazer condenar por violação e sodomia, passaria o resto da vida atrás...
- Não - disse Mary.
Annie assentiu. Violação de Primeiro Grau simples. Vinte cinco anos se apanhasse a pena máxima. Três anos se o juiz fosse brando. Estaria de novo na rua dentro de um ano se tivesse bom comportamento na prisão.
- A-antes de se ir embora - disse Mary - ele... -Sim?
- Ele... ele disse...
- O que é que ele disse, Miss Hollings?
- Ele...
Mary escondeu a cara nas mãos.
- Por favor, o que é que ele disse?
- D-d-disse... Voltarei. Annie olhou para ela.
- Ele estava a sorrir - disse Mary.
o sobrescrito almofadado tinha chegado pelo correio na terça-feira de manhã, 11 de Outubro. Eçtava endereçado à 87.ª Esquadra e foi recebido ao balcão da recepção pelo sargento Dave Murchison juntamente com o resto do correio que chegara naquela manhã. Murchison olhou desconfiado para o volume e levou-o ao ouvido para verificar se fazia tiquetaque. No mundo actual, nunca se sabia se havia uma bomba dentro de uma encomenda sem indicação do remetente.
Não ouviu nenhum barulho, o que não significava absolutamente nada. Hoje em dia conseguia-se fabricar dispositivos explosivos em casa que não faziam qualquer ruído. Pensou se devia alertar a Brigada de Bombas; sentir-se-ia completamente idiota se eles viessem para tão longe e descobrissem que dentro do sobrescrito havia apenas uma caixa de chocolates ou qualquer coisa assim. Mas Murchison já era polícia há muito tempo e sabia que uma das regras de sobrevivência na Polícia era proteger os flancos. Pegou no telefone e ligou para o gabinete do capitão Frick.
Trabalhavam cento e oitenta e seis agentes fardados e dezasseis detectives à paisana na 87.ª Esquadra e o capitão Frick comandava-os a todos. A maioria achava que Frick já ultrapassara a idade da reforma, se não cronologicamente, pelo menos mentalmente. Alguns iam ao ponto de dizer que Frick não era compôs mentis e que não era capaz de apertar os atacadores de manhã, quanto mais tomar decisões que podiam afectar as situações de vida ou de morte bem reais que aqueles homens enfrentavam diariamente nas ruas da zona que eram da responsabilidade daquela esquadra. Frick tinha cabelos brancos. Sempre tivera o cabelo branco. Sentia que eram um complemento do azul da sua farda. Não se conseguia imaginar a trabalhar num sítio onde fosse forçado a usar outra coisa que não a farda azul que complementava tão magnificamente o seu distinto cabelo branco. E os galões dourados; gostava dos galões dourados da sua farda. Gostava de ser polícia. Não gostou que um sargento do balcão de recepção lhe dissesse que tinha acabado de chegar um sobrescrito de aspecto suspeito juntamente com o correio da manhã.
- Que é que quer dizer com suspeito? - perguntou a Murchison.
- Não tem indicação do remetente - respondeu Murchison.
- Donde é que é o carimbo dos correios? - perguntou Frick.
- Calm's Point.
- Não pertence à zona desta esquadra - disse Frick.
- Não, meu capitão, não pertence.
- Devolva-o - disse Frick. - Não quero problemas.
- Devolvo-o para onde? - perguntou Murchison.
- Para Calm's Point.
- Para onde em Calm's Point? Não tem remetente.
- Devolva-o para a estação dos Correios - disse Frick. Eles que resolvam o problema.
- E suponha que explode? - disse Murchison.
- Porque é que havia de explodir?
- Suponha que tem lá dentro uma bomba? Suponha que o devolvemos à estação, que explode e que mata uma centena de funcionários? Nesse caso qual seria a nossa posição? - perguntou Murchison.
- Então que é que quer fazer? - perguntou Frick. Estava a olhar para os sapatos e a pensar que precisavam de ser engraxados. Iria engraxá-los no barbeiro em Culver e Sixth à hora do almoço.
- É isso que eu lhe estou a perguntar a si - respondeu Murchison.
- Que é que devo fazer?
«Responsabilidades», pensou Frick, «sempre responsabilidades. Defende os flancos.» No caso de depois haver problemas vindos de cima. Nunca se sabia quando surgiam. Eram fulminantes como um raio.
- Que é que recomenda que se faça, sargento? - perguntou.
- Estou a pedir a sua recomendação, meu capitão - disse Murchison.
- Sugere que chamemos a Brigada de Bombas? - perguntou Frick.
- É isso o que o meu capitão sugere? - perguntou Murchison.
- Isto parece-me ser um caso de rotina - disse Frick. - Estou certo de que é capaz de o resolver.
- Sim, meu capitão, mas de que forma é que o devo resolver?
Eram ambos peritos a defender os seus flancos. Parecia terem chegado a um impasse. Frick estava a pensar como é que podia formular vagamente uma ordem que não soasse como uma ordem. Murchison estava ali sentado à espera que Frick não lhe dissesse para abrir o maldito sobrescrito. Mesmo que não estivesse nenhuma bomba lá dentro, quando se abria aqueles sobrescritos almofadados caía sempre um material que parecia aparas de madeira para cima da secretária e para cima das calças azuis limpas. Não queria abri-lo. E estava ali sentado a pensar como é que podia manobrar Frick para o levar a dar-lhe instruções definidas que fizessem desaparecer aquela maldita coisa de cima do balcão antes que lhe explodisse na cara.
- Faça como achar melhor - disse Frick.
- Sim, meu capitão, vou mandá-lo para o seu gabinete - disse Murchison.
- Não! - disse Frick de imediato. - Não mande nenhuma maldita bomba para o meu gabinete!
- Então para onde é que o mando? - perguntou Murchison.
- Já lhe disse. Devolva-o à estação dos Correios.
- Sim, meu capitão. São essas as suas ordens? E se depois explode na estação dos Correios?
- Não explodirá se a Brigada de Bombas o examinar primeiro -disse Frick, apercebendo-se instantes depois de que cedera o flanco.
- Obrigado, meu capitão - disse Murchison. - Vou chamar a Brigada de Bombas.
Frick desligou o telefone a pensar que se não houvesse nenhuma bomba no pacote os tipos da Brigada de Bombas passariam meses a dizer piadas - o maricas da 87.'' Esquadra chama a Brigada de Bombas quando recebem uma encomenda sem remetente. Quase desejava que houvesse uma bomba naquele malfadado sobrescrito. Quase desejava que explodisse antes de a Brigada lá chegar.
Não havia nenhuma bomba dentro do sobrescrito. Os tipos da Brigada de Bombas iam a rir quando saíram da esquadra. Frick observou-os da janela do seu gabinete no primeiro andar, abanando a cabeça, e esperou não vir ter a problemas de cima nas próximas semanas.
Havia uma pequena carteira de mulher dentro do invólucro.
A carteira tinha um pequeno pacote de lenços de papel, um pente com alguns dentes partidos, uma embalagem de pastilhas elásticas Wrigley's Spearmint, um livro de cheques, um pequeno bloco de notas com uma espiral a prender as folhas, uma esferográfica, um bâton, uns óculos escuros e uma carteira para dinheiro. Não tinha chaves. Os detectives acharam aquilo estranho. Nenhumas chaves. A carteira tinha quatro notas de dez dólares, uma nota de cinco dólares e duas notas de um dólar. Também lá estava um C. I. de estudante da Universidade Ramsey com a morada da rapariga naquela cidade. O nome dela, de acordo com o que estava dactilografado no cartão de identidade, era Mareia Schaffer. O cartão tinha uma fotografia protegida por plastificação.
A rapariga estava a sorrir na fotografia.
Mas não estava a sorrir nas fotografias que a U. F. tinha tirado no local do enforcamento na sexta-feira, dia 7 de Outubro.
Exceptuando isso, as fotografias eram virtualmente idênticas.
Kling e Carella estavam a examinar as fotografias quando Meyer Meyer entrou na sala. Fingiram que não o conheciam. Isto porque Meyer vinha de cabeleira postiça.
- Em que é que posso ser-lhe útil? - perguntou Carella, olhando para cima.
- Vá lá - disse Meyer, fazendo menção de abrir a porta da divisória de madeira.
Kling pôs-se de pé num salto e dirigiu-se para a divisória.
- Desculpe - disse -, mas é proibido entrar nesta zona.
- Importa-se de dizer o que pretende - disse Carella. Meyer continuou a avançar.
Kling tirou a arma do coldre colocado ao ombro.
- Deixe-se ficar onde está! - gritou. Carella também empunhara a arma.
- Diga o que pretende! - gritou, avançando.
- Sou eu - disse Meyer.
- Parem com isso, está bem?
- É quem? - perguntou Kling. - Diga que raio é que pretende!
- O que eu pretendo é dar um pontapé no cu a gajos que se fazem de idiotas - disse Meyer, dirigindo-se para a sua secretária.
- É Meyer! - exclamou Carella num tom de surpresa fingida.
- E é, raios me partam! - disse Kling.
- Tem cabelo! - disse Carella.
- E depois? - disse Meyer. - Que é que isso tem de especial? Um tipo compra uma peruca e torna-se imediatamente alvo de chacota.
- E nós estamo-nos a rir? - perguntou Kling.
- Vês-nos a rir? - perguntou Carella.
- Isso é cabelo verdadeiro? - perguntou Kling.
- É, é cabelo verdadeiro - disse Meyer irritado.
- Caramba, enganaste-nos bem enganados - disse Carella.
- Cabelo verdadeiro vindo donde? - perguntou Kling.
- Como é que eu sei donde é que vem? Com certeza de pessoas que vendem o cabelo que é usado para fazer perucas.
- É cabelo de virgem? - perguntou Kling.
- É cabelo ou são pêlos do púbis? - perguntou Carella.
- A merda que um tipo tem de aguentar aqui - disse Meyer, abanando a cabeça.
- Acho que ele fica lindo - disse Kling a Carella.
- Acho que fica um amor - disse Carella.
- Vão continuar com essa merda durante toda a manhã? - perguntou Meyer, suspirando. - Não têm mais nada que fazer? Pensei que tivessem apanhado um assassino a semana passada. Vão prender algumas mulheres que andam a roubar nas lojas, está bem?
- Fica encantador quando está zangado - disse Kling.
- E aqueles olhos azuis a faiscar - disse Carella.
- E os caracóis castanhos - disse Meyer.
- Quanto é que custou? - perguntou Kling.
- Não tens nada com isso - disse Meyer.
- Os pêlos do púbis de uma virgem devem custar uma fortuna -disse Carella.
- E difíceis de encontrar - disse Kling.
- Que é que a Sarah acha de andares com um chino na cabeça? -perguntou Carella, enquanto desatava a rir acompanhado de Kling.
- Muito engraçado - disse Meyer. - O humor grosseiro típico da esquadra. Um tipo compra uma peruca...
- Quem é esse que está sentado na minha cadeira? - gritou uma voz vinda do outro lado da divisória, e Arthur Brown entrou na sala. Brown' era da cor do seu apelido, um detective de um metro e noventa e cento e dez quilos que ficou a olhar para a cena com um ar de espanto estampado no rosto bem parecido.
- Ora esta, creio que é a Menina dos Caracóis Louros - disse, abrindo muito os olhos. - Vai buscar flocos de aveia - disse a Kling. -Que caracóis tão bonitos que tu tens, minha menina.
- Faltava cá este - disse Meyer.
Brown aproximou-se da secretária de Meyer. Contornou-a em bicos de pés a olhar para a peruca. Meyer nem sequer olhou para ele.
- Morde? - perguntou Brown.
- Alugou-o numa loja de animais de estimação - disse Kling.
- Ah, ah - disse Meyer.
- Parece que um pássaro largou uma prenda na tua cabeça - disse Brown.
- Ah, ah - disse Meyer.
- Penteias isso ou só limpas a cabeça? - perguntou Brown.
- Engraçadinhos - disse Meyer, abanando a cabeça.
Andara apreensivo durante toda a manhã por ter de ir para a esquadra. Já sabia o que o esperava quando o vissem de peruca. Preferia ter de enfrentar um assaltante de um banco empunhando uma espingarda de canos serrados do que aqueles idiotas da esquadra. Mostrou-se muito ocupado a examinar os Relatórios de Actividade. Sentia uma vontade desesperada de fumar um cigarro, mas prometera à filha que deixaria de fumar.
- Que história é essa de cá ter estado a Brigada de Bombas? - perguntou Brown.
«Óptimo», pensou Meyer. «Vão-me deixar em paz com a peruca.»
- Falso alarme - disse Carella. - Devias fazer tranças - disse a Meyer.
Meyer suspirou.
- Que é que se passou? - perguntou Brown.
- Podes varrê-la da cabeça quando fores ao baile do governador -disse Kling.
- Anti-semitas - disse Meyer, desatando a rir com os outros.
- O governador vai dar um dos seus bailes? - perguntou Brown, e voltaram todos a rir.
- Viste a fotografia? - perguntou Carella.
- Qual fotografia? - perguntou Brown.
- Era uma carteira, não uma bomba - disse Kling. - Alguém nos mandou a carteira da vítima do enforcamento.
- A sério? - disse Brown.
- O C. í. tinha uma fotografia dela - disse Carella. Os homens entreolharam-se.
Estavam todos a pensar exactamente o mesmo. Estavam a pensar que quem quer que tivesse enforcado a rapariga no candeeiro queria que eles a identificassem. Tinham corrido a cidade inteira nos últimos três dias a tentar obter uma pista concreta para terem alguma coisa por onde começar. Agora alguém lhes tinha facilitado a vida. Tinha-lhes mandado a carteira da rapariga morta com a sua identificação lá dentro. Só lhes ocorria uma pessoa no mundo que quisesse facilitar a vida aos polícias da cidade. Ou aparentemente facilitar. Nenhum deles queria mencionar o seu nome. Mas estavam todos a pensar que tinha sido ele.
- Talvez alguém tivesse encontrado a carteira - disse Brown.
- E lido nos jornais o que lhe acontecera e achasse que nos devia mandar a carteira.
- Sem se querer envolver.
- Nesta cidade ninguém se quer envolver.
- Talvez - disse Carella.
Mas continuavam convencidos de que tinha sido o Homem Surdo,
O médico que efectuou a autópsia para o Departamento Médico-Legal tinha concordado com o diagnóstico prehminar de Blaney, feito no local do crime, embora o tivesse pormenorizado: a morte fora causada não só pelo deslocamento e fractura das vértebras cervicais superiores, mas também pelo esmagamento da espinal-medula, como normalmente acontecia nas execuções legais por enforcamento. Mas o relatório fornecia ainda a hora provável da morte, que era oito horas antes da altura em que Carella e Género tinham saído do local da obra e encontrado a vítima pendurada no candeeiro.
Falando com Carella ao telefone, o médico do Departamento Médico-Legal exprimiu a opinião de que a vítima tinha sido morta noutro local - quer pelo referido enforcamento, ou por um acto de força física capaz de fracturar as vértebras e esmagar a espinal-medula - e depois transportada para o local onde fora descoberta. O médico do Departamento Médico-Legal teve todo o cuidado em não dizer «o local do crime». Em sua opinião, o verdadeiro local do crime não fora aquela rua deserta com os seus edifícios abandonados e as grandes crateras de construção. Isto ia ao encontro daquilo que Carella já estava a pensar. Nem ele nem Género tinham visto ninguém enforcado naquela rua quando tinham entrado no local da obra para falar com o guar-da-nocturno.
A morada no cartão de identificação da rapariga morta conferia ainda mais peso à suposição de que fora morta noutro local qualquer e só depois transportada para a malfadada rua da zona da 87. A rapariga vivia num prédio de apartamentos uns seis quilómetros a oeste da zona da esquadra, numa parte da cidade onde se concentrava o seu movimentado centro de fabrico de vestuário. Cloak City, como essa zona era familiar e historicamente conhecida, tinha como núcleo os ateliers e as salas de exposição que forneciam o pronto a vestir para o resto do país, bem como para muitos países do mundo não comunista. Mas nas avenidas a norte das fábricas, as velhas casas tinham sido demolidas, tendo dado lugar a altos edifícios de apartamentos de luxo e restaurantes caros, criando um ambiente de Costa de Ouro, atraindo uma clientela do mundo artístico que preferia morar perto da zona dos teatros e que chamavam alegremente à sua nova zona residencial não Cloak City, mas sim Coke City.
Nem Carella nem Hawes - companheiros naquela manhã de terça-feira, pois Género estava muito satisfeito no tribunal a testemunhar contra um vendedor de cachorros-quentes que apanhara a trabalhar sem licença - sabiam se as estimativas referentes ao florescente tráfego de cocaína naquela zona eram ou não válidas. No que lhes dizia respeito, já tinham dores de cabeça de sobra com os seus próprios ricaços, um dos quais os forçara a lá ir naquela manhã. Estava um daqueles dias limpos e cintiliantes com que Outubro frequentemente brindava os cidadãos daquela cidade. Os dois homens estavam satisfeitos por estarem fora da esquadra. Em dias como aquele, era impossível uma pessoa não se voltar a apaixonar pela cidade.
A rapariga morta - cujo C. I. indicava a sua idade como sendo quase 21 - vivera num dos edifícios que sobrevivera do velho bairro, um prédio de cinco andares, de tijolo vermelho coberto pela fuligem e sujidade de séculos. Sem casaco e sem chapéu, Carella e Hawes subiram a rampa junto à porta da frente e tocaram à campainha do porteiro.
- Que é que achas da peruca do Meyer? - perguntou Carella.
- Qual peruca? Estás a gozar comigo.
- Não a viste?
- Não. Ele arranjou uma peruca?
- Foi.
- Sabes porque é que o índio comprou um chapéu? - perguntou Hawes no momento em que a porta da frente se abriu.
A rapariga que lhe apareceu à frente tinha três metros de altura. Pelo menos parecia ter três metros de altura. Ambos os detectives tiveram de olhar para cima e nenhum deles era propriamente anão. Tinha 20 anos, calculou Carella, talvez 21, cabelo castanho, curto, olhos castanhos brilhantes e um rosto magro e oval. Vestia calças de ganga e uma sweatshirt da Universidade Ramsey e trazia na mão um saco de lona com as palavras SACO DE LIVROS:
- Agentes da Polícia - disse Carella, mostrando-lhe o crachat. -Queremos falar com o porteiro.
- Não temos porteiro - disse a rapariga.
- Acabámos de tocar à campainha do porteiro - disse Hawes.
- Lá por haver uma campainha de porteiro, isso não quer dizer que haja porteiro - disse a rapariga, dirigindo-se a Ilawes. Hawes ficou com a impressão de que ela estava a pensar que ele era demasiado baixo para ela. E demasiado velho. E provavelmente demasiado estúpido. Quase encolheu os ombros.
- Já não há porteiro neste prédio há quase um ano - disse a rapariga. E depois, porque naquela cidade não havia nada que as pessoas mais gostassem do que provocar os polícias sempre que podiam, acrescentou: - Talvez seja por causa disso que há cá tantos roubos.
- Esta zona não pertence à nossa esquadra - disse Hawes na defensiva.
- Então o que é que cá estão a fazer? - perguntou a rapariga.
- Vive aqui? - perguntou Carella.
- Claro que vivo aqui - respondeu ela. - Que é que acha que estou cá a fazer? A entregar as compras da mercearia?
- Conhece uma inquilina chamada Mareia Schaffer?
- Claro. Olhe, ela mora no 3A, e pode falar com ela pessoalmente. Eu ia a sair e ainda chego atrasada à aula.
- Quando é que a viu pela última vez? - perguntou Carella.
- Na escola, na quinta-feira.
- Na Universidade Ramsey? - perguntou Hawes, olhando para a camisola dela.
- Dedução brilhante - disse a rapariga. -Foram juntas?
- Que raio de conversa.
- Há quanto tempo é que a conhece? - perguntou Carella.
- Desde o primeiro ano. Já estou no segundo. Estamos ambas no segundo.
- Ela é mesmo de cá? Desta cidade?
- Não. É de uma cidadezeca qualquer no Kansas. Buffalo Dung, Kansas.
- E você? - perguntou Hawes.
- Nascida e criada aqui mesmo.
- Bem me pareceu.
- E orgulho-me disso - disse ela.
- Que é que ela tinha vestido na quinta-feira passada. Quando esteve com ela?
- Um fato de treino. Porquê? Pertencemos ambas à equipa de atletismo.
- A que horas foi isso?
- A hora do treino, por volta das quatro da tarde. Porquê?
- Voltou a vê-la depois disso?
- Viemos as duas para casa de metropolitano. Ouça, que é?...
- Voltou a vê-la em qualquer outra ocasião depois disso? A qualquer hora da noite de quinta-feira?
- Não.
- Viu-a sair do prédio durante a noite de quinta-feira? -Não.
- Em que apartamento é que você vive?
- No 3B, do lado oposto do corredor em relação ao dela.
- E diz que ela vivia no 3A?
Subitamente a rapariga apercebeu-se da utilização do passado.
- Ela ainda lá vive - disse.
- Viu ou ouviu alguém à porta do apartamento dela na quinta-feira à noite? Alguém a bater à porta? Alguém...
- Não. - A rapariga semicerrou os olhos. - Porque é que me estão a fazer todas estas perguntas?
Carella respirou fundo.
- Mareia Schaffer está morta - disse.
- Não seja idiota - disse a rapariga. Os dois detectives olharam para ela.
- A Mareia não está morta - disse ela. Eles continuaram a olhar para ela.
- Não sejam idiotas - disse ela de novo.
- Importa-se de nos dizer o seu nome? - perguntou Carella. -Jenny Compton - disse ela, e logo de imediato -, mas Mareia não está morta, estão enganados.
- Miss Compton, temos praticamente a certeza de que a vítima...
- Não - disse Jenny, abanando a cabeça.
- Miss Schaffer vivia aqui? - perguntou Havies.
- E ainda vive - disse Jenny. - No terceiro andar frente, apartamento 3A. Ela não está morta.
- Temos uma fotografia dela...
- Ela não está morta - insistiu Jenny.
- Esta é Mareia Schaffer? - perguntou Carella, mostrando-lhe uma fotografia ampliada em papel brilhante que a U. F. fizera com uma das fotografias tiradas no local. Não era uma fotografia agradável de se ver. Jenny desviou bruscamente a cara como se tivesse apanhado uma bofetada.
- Esta é Mareia Schaffer? - voltou a perguntar Carella.
- Parece ela, mas a Mareia não está morta - disse Jenny.
- Esta tambéyn é Mareia Schaffer? - perguntou Carella, mostrando-lhe o C. I.
- Sim, essa é a Mareia, mas...
- A morada neste cartão é...
- Sim, a Mareia vive aqui, mas eu sei que ela não está morta.
- Como é que sabe isso, Miss Compton? - perguntou Hawes.
- Ela não está morta - disse Jenny.
- Miss Compton...
- Vi-a na quinta-feira à tarde! Santo Deus, ela não pode...
- Foi morta durante a noite de quinta-fei...
- Não quero que ela esteja morta - disse Jenny, desatando subitamente a chorar. - Merda, porque é que tinham de vir cá?
Parecia ter três metros de altura, aquela rapariga, teria talvez 21 anos, aquela mulher, modos educados, citadinos, linguagem educada, citadina, mas podia bem estar a caminho do jardim de infância com o ar que agora tinha, com a mão direita a tapar a cara enquanto chorava, a mão esquerda a agarrar o saco dos livros, com os pés ligeiramente metidos para dentro, a soluçar incontrolavelmente enquanto os detectives a olhavam, sem dizer nada, sentindo-se pouco à vontade e desajeitados, demasiado avassaladoramente grandes para aquela rapariguinha a chorar sem vergonha à sua frente.
Esperaram.
Estava um dia tão lindo.
- Merda - disse Jenny. - Não é verdade, pois não?
- Lamento - disse Carella.
- Como... como?... - A rapariga fungou e ajoelhou-se para mexer no saco dos livros; tirou um pacote de lenços de papel, puxou um, assoou-se e depois limpou os olhos. - Que é que aconteceu? - perguntou.
As pessoas nunca pensavam em assassínio, a menos que acontecesse terem sido eles a cometê-lo. Pensavam sempre num acidente de viação, ou no metropolitano, pois havia sempre pessoas a cair para a linha, ou então num acidente num elevador, pois havia sempre acidentes em elevadores; era assim que a sua cabeça funcionava quando lhes iam dizer que alguém morrera; nunca pensavam em assassínio. E se lhes dissessem frontalmente que a pessoa tinha sido morta, se não lhes dissessem apenas que a pessoa estava morta, mas que fora especificamente morta, se soubessem logo à partida que tinha sido cometido um assassínio, pensavam sempre numa arma, ou numa navalha, ou em veneno, ou em estrangulamento com as mãos, em alguém espancado até à morte, alguém estrangulado até morrer. Como é que podiam explicar que aquela morte fora por enforcamento? Ou de alguma forma que levasse a parecer ter sido enforcamento? Como é que se explicava a uma rapariga de 21 anos que soluçava contra um lenço de papel amachucado que a sua amiga tinha sido encontrada pendurada num candeeiro?
- Fractura das vértebras cervicais superiores - disse Carella, optando pela explicação que o M. L. lhe dera ao princípio da manhã. -Esmagamento da espinal-medula.
- Jesus!
Ainda não dissera a Jenny que alguém fizera aquilo à sua amiga. Ela fitou-o então com uma expressão interrogadora, apercebendo-se de que não estariam dois detectives à sua porta a fazer perguntas se se tratasse de um simples acidente, reconhecendo finalmente que alguém causara a morte de Mareia Schaffer.
- Alguém a matou, não foi? - perguntou.
- Sim.
- Quando?
- Durante a noite de quinta-feira. O médico legista estabeleceu a hora provável da morte por volta das sete.
- Jesus - disse ela novamente.
- Não a viu de todo na quinta-feira à noite? - perguntou Hawes. -Não.
- Ela falou-lhe de quaisquer planos que tivesse para essa noite?
- Não. Onde... onde é que isso aconteceu?
- Não sabemos.
- Quero dizer... onde é que a encontraram}
- Na zona alta da cidade.
- Na rua? Alguém a atacou na rua? Carella suspirou.
- Estava pendurada num candeeiro - disse.
- Meu Deus! - exclamou Jenny, recomeçando a soluçar.
Daniel McLaughlin era um homem baixo e gordo de cinquenta e muitos anos, usava calças escuras e sapatos castanhos, um casaco de fazenda demasiado vistoso, camisa rosada, uma gravata que parecia ter sido desenhada por Jackson Poliock (o desenho tornado ainda mais abstracto por várias nódoas de comida) e um chapéu de palha castanho-escuro de Verão, com abas estreitas e uma pena que condizia com a camisa. Parecia estar sem fôlego, com a cara com manchas avermelhadas e a suar, quando chegou ao pé dos detectives que estavam à sua espera em frente à porta. Os seus pequenos olhos castanhos observaram-nos durante breves instantes, desviando-se depois para os caixotes de lixo a transbordar colocados perto do gradeamento de ferro que cercava uma área imediatamente abaixo do nível do passeio. Pareceu satisfeito por notar que dos caixotes de lixo tinha caído toda a espécie de detritos no passeio.
Jenny tinha-lhes dito que Mareia Schaffer se mudara para o apartamento de renda condicionada por volta da mesma altura que ela própria para lá fora, há mais de dois anos, quando as duas raparigas tinham entrado na Universidade de Ramsey com bolsas de estudo devi do a bons resultados na área do desporto. Antes disso, Mareia vivera de facto numa cidadezeca no Kansas, não em Buffalo Dung, como Jenny comentara quando o diálogo ainda era ligeiro e jovial e não fora ensombrado pela comunicação da morte violenta, mas sim num sítio chamado Manhattan, localmente conhecido como The Little Apple. Carella e Hawes acharam que havia mesmo um sítio chamado Manhattan, no Kansas.
Segundo Jenny, o dono do prédio, o mesmo Daniel McLaughlin que agora admirava o lixo que transbordava dos seus caixotes, andava há um ano ou mais a tentar fazer os inquilinos sair do prédio para poder dividir os grandes apartamentos antiquados em unidades mais pequenas e, assim, obter maiores receitas. Até ao momento, o seu êxito tinha sido praticamente nulo. A excepção de uma velhota que fora para uma casa de saúde, todos os outros inquilinos recusaram-se peremptoriamente a sair de um bairro que subitamente se tornara chique, usufruindo de rendas impossíveis de encontrar a não ser nas piores zonas da cidade, as quais eram numerosas. Numa tentativa de desalojar inquilinos que pareciam determinados a continuar alojados, McLaughlin tinha em primeiro lugar mandado embora o porteiro e depois iniciara uma gestão pessoal altamente criativa que no último ano resultara em cortes de água às horas mais estranhas, ao lixo deixar de ser recolhido e ao aquecimento central não ser ligado a partir de 15 de Outubro como especificava a lei naquela cidade. Estavam a 11 de Outubro; restava saber se este ano o aquecimento seria ligado conforme decretado, embora o tempo ameno tornasse a questão mais académica do que outra coisa. Entretanto, havia lixo espalhado por todo o passeio.
- São os detectives? - perguntou McLaughlin, subindo os degraus.
- Mr. McLaughlin? - disse Carella.
- Sou. - Não lhes estendeu a mão. - Devo dizer-lhes que não me agrada ter de vir cá só para lhes entregar uma porcaria de uma chave.
- Não há outra forma de entrar no apartamento - disse Hawes. Tinham-lhe telefonado antes de irem almoçar a um restaurante
manhoso na esquina, embora o bairro estivesse cheio de bons restaurantes franceses. Tinham ambos comido hamburgers com batatas fritas, acompanhados de Cola-Cola. Carella tencionava perguntar a Hawes durante o almoço por que é que o índio tinha comprado um chapéu, mas estava preocupado com a ideia de que a dieta de um dia normal de trabalho de um polícia não era nada que os grandes chefs da Europa tivessem qualquer interesse em referir. Era agora uma hora da tarde e Daniel McLaughlin queixava-se de «lá ter de ir» quando o seu escritório ficava apenas a seis quarteirões de distância.
- Para começar, não me agrada a ideia de ela estar morta - disse McLaughlin. - Não me importo de reaver o apartamento, mas suponha que ninguém o quer alugar quando souberem que uma rapariga morta lá vivia?
Parecia não lhe ocorrer que Mareia Schaffer estava bem viva enquanto vivera no seu precioso apartamento.
- Um homicídio pode ser uma questão delicada - disse Carella.
- Pois é - concordou McLaughlin, não se apercebendo do sarcasmo. - Bem, tenho a chave; vamos lá. Espero que isto não demore muito tempo.
- Umas duas horas, provavelmente - disse Hawes. - Não é preciso que fique connosco. Se deixar a chave, ela ser-lhe-á devolvida.
- Pois sim - disse McLaughlin, calando a suspeita de que todos os polícias daquela cidade eram ladrões. - Vou levá-los lá acima; venham - disse.
Entraram atrás dele.
A verdade do que Jenny Compton lhes dissera tornou-se imediatamente aparente no pequeno hall de entrada. O casquilho de uma lâmpada estava solto, pendendo do tecto, e não tinha lâmpada. As fechaduras das caixas do correio estavam arrombadas. O vidro da porta interior estava rachado e a maçaneta estava presa por um único parafuso. Outras provas que corroboravam as tentativas de cLaughlin em tornar a vida difícil aos seus inquilinos intransigentes eram consubstanciadas pelo recobrimento gasto e sujo do chão nas escadas interiores, pelas janelas por lavar em cada patamar, pelo corrimão instável e pelos fios eléctricos à mostra. Carella pensou por que razão ninguém do prédio muito simplesmente telefonava para a Provedoria. Trocou um olhar com Hawes que assentiu com uma expressão aborrecida.
McLaughlin parou à frente da porta do 3 A, procurou a chave na algibeira, abriu a porta e olhou alternadamente para os dois detectives como se estivesse a tentar avaliar o seu carácter através de breves olhares.
- Ouçam, tenho outras coisas a tratar - disse. - Se lhes deixar a chave garantem-me que ma devolvem?
- Palavra de escuteiro - disse Hawes com a expressão mais séria deste mundo.
- Estarei na McLaughlin Realty, na Bower Street - disse McMaughlin entregando-lhe achave. - Bom, acho que já sabem, pois foi para lá que me telefonaram. Quero tornar bem claro que não assumirei a responsabilidade de quaisquer estragos que cá façam, isto no caso de os parentes da rapariga mais tarde começarem com reclamações.
- Tentaremos ter cuidado - disse Carella.
- Quero que me devolvam a chave.
- Ser-lhe-á devolvida - disse Hawes.
- Pois, espero bem - disse McLaughlin, virando costas e indo corredor fora a abanar a cabeça.
- Um homem simpático - disse Carella.
- Maravilhoso - disse Hawes, e entraram ambos no apartamento. Como Jenny dissera, o apartamento era maior que muitos dos apartamentos dos edifícios mais novos da cidade; a porta da frente dava para um hall de entrada de tamanho razoável que por sua vez dava para uma sala de estar espaçosa. O apartamento ainda parecia maior do que na realidade era por ter tão pouca mobília, exactamente o que se esperaria no caso de uma estudante universitária a estudar com bolsa de estudo. Havia um sofá encostado a uma das paredes e duas cadeiras de lona baratas, uma de cada lado. Na parede adjacente havia um renque de enormes janelas por onde jorrava o sol de Outubro, inundando toda a sala. No chão, por debaixo das janelas, havia uma fila de vasos de plantas. Hawes dirigiu-se para os vasos e tocou na terra; parecia não ter sido regada recentemente.
- Não achas que o McLaughlin queria tanto vê-la fora do apartamento que fez aquilo, pois não? - perguntou.
- Quem quer que a pendurou pela extremidade daquela corda tinha de ser bastante forte - disse Carella, abanando a cabeça.
- Gordo não significa/ríco - disse Hawes.
- Pareceu-te um assassino?'
- Não.
- Cheira mal - disse Carella.
- Eu sei. Mas não se pode dizer que ele não está a fazer tudo para pôr esta gente fora daqui.
- Devíamos fazer alguns telefonemas, fazer com que alguém trate disto. Fico numa fúria por ver que sai impune deste tipo de merda.
- Conheces alguém no gabinete do presidente da Câmara?
- Talvez Rolhe Chabrier conheça.
- Sim, talvez.
Referiam-se ambos a um delegado do Ministério Público com quem já tinham tido casos no passado. Estavam a andar pela sala, sem procurar nada em particular, mais ou menos a cheirar o ar, como fazem os animais selvagens quando entram em território que lhes é desconhecido. Tecnicamente, aquele não era o local do crime; o local do crime ficava a uns sete quilómetros de distância, na parte alta da cidade, onde tinham descoberto o corpo pendurado num candeeiro. Mas o médico legista tinha apresentado a teoria de que Mareia Schaf-fer fora morta noutro sítio e só depois levada para onde a tinham descoberto. Estava dentro do leque de possibilidades ela ter sido morta ali, naquele apartamento, embora à primeira vista não parecesse haver sinais de luta violenta de qualquer tipo. Mesmo assim, a pergunta que ainda não fora feita pairava-lhes no pensamento. Ha-wes finalmente fê-la.
- Achas que devemos chamar cá os peritos? Antes de lixarmos qualquer coisa?
Carella ponderou a resposta.
- Ficava lixado como o diabo se tocasse em qualquer coisa que fosse uma prova - disse Hawes.
- É melhor chamá-los - concordou Carella, dirigindo-se para o telefone. Cobriu a mão com um lenço quando pegou no auscultador. Enfiou a extremidade de um lápis, com borracha incorporada, nos orifícios do marcador e ligou o número da Unidade Móvel de Crime.
Os peritos chegaram passados uns vinte minutos. Puseram-se no meio da sala de estar, a olhar em volta exactamente como Carella e Hawes tinham feito, cheirando o ar da mesma forma que eles tinham cheirado, ambientando-se ao meio. Carella e Hawes não tinham tocado em absolutamente nada. Nem sequer se tinham sentado nas cadeiras. Estavam de pé praticamente no mesmo sítio onde estavam quando Carella fez o telefonema.
- Somos os primeiros a cá vir? - perguntou um dos peritos. Carella lembrava-se que era um tipo chamado Joe. Joe qualquer coisa.
- Sim - respondeu Carella. - Bom, nós já cá estamos há mais ou menos meia hora.
- Queria dizer além de nós. De vocês e de nós.
- Exacto - disse Carella.
- Tocaram em alguma coisa? - perguntou o outro perito. Carella não o reconheceu.
- Só na maçaneta do lado de fora da porta.
- Querem um trabalho completo? - perguntou o primeiro perito.
- Pó? Aspiração? Todo o doze-noventa-e-cinco? - perguntou, sorrindo para o companheiro.
- Deduzido do treze-cinquenta - disse o companheiro, retribuin-do-lhe o sorriso.
- Não estamos certos de ser este o local do crime - disse Carella.
- Então que raio é que estamos nós aqui a fazer? - disse o primeiro perito.
- Talvez seja - disse Hawes.
- Então contentem-se com o trabalho de dois dólares - sugeriu o segundo perito.
- Um exame rápido - disse o primeiro perito. - Superficial mas completo. - E pôs um dedo paralelo ao nariz para frisar a afirmação.
- É melhor darmos-lhes luvas - disse o segundo perito.
O primeiro perito deu um par de luvas brancas de algodão a Carella.
- Para o caso de fazer algum trabalho de detective - disse, piscando o olho ao companheiro. Deu outro par de luvas a Hawes. Os dois detectives calçaram-nas enquanto os peritos os observavam.
- Dá-me a honra da primeira dança? - disse o segundo perito. Depois foram lá abaixo à carrinha buscar todas as armas e bagagens de que necessitavam para dar a volta ao apartamento.
Numa prateleira por cima da lareira na parede em frente ao sofá, Carella e Hawes examinaram os diversos trofétis que comprovavam as capacidades de Mareia Schaffer como corredora - uma taça de prata, uma salva de prata e várias medalhas, todas elas ganhas como membro da equipa de atletismo do liceu. A gravação na salva de prata testemunhava que ela batera o record de pista do Kansas há três anos. Havia uma fotografia emoldurada de um homem e de uma mulher, presumivelmente os pais, que recordou a Carella que não tinha ainda telefonado para Manhattan, Kansas. Teria de ficar para depois. E não lhe agradava nada ter de fazer essa chamada.
Os peritos regressaram. Aquele que Carella pensava ser Joe disse:
- Não estão a tramar nenhuma, pois não?
O segundo técnico pôs o equipamento no chão.
- Isto é um homicídio ou quê? - perguntou.
- É - disse Carella.
- O morto já foi investigado? Isto no caso de encontrarmos indícios de outra natureza.
- Já foi investigada - disse Carella.
- Há sinais de entrada forçada?
- Nenhuns que nós víssemos.
- Então podemos omitir os parapeitos das janelas? *
- Se acharem que sim - disse Carella.
- Bom, mas de que raio é que estamos a procura?
- De vestígios de qualquer outra pessoa que possa cá ter estado.
- Isso podia ter sido toda a maldita cidade - disse o primeiro técnico, abanando a cabeça. Mas mesmo assim deitaram mãos ao trabalho.
O segundo técnico até assobiava ao começar a espalhar pó na prateleira da lareira para detectar impressões digitais.
Uma armação de porta mas sem porta dava para o único quarto no apartamento, grande e arejado, com um tecto alto e o mesmo tipo de enormes janelas que davam para a rua. Havia uma cama encostada a uma das paredes, uma cómoda que não estava pintada na parede em frente e uma secretária também sem estar pintada colocada de esquina, a um dos cantos. Numa das paredes estavam pendurados galhardetes da Universidade Ramsey, juntamente com fotografias de Mareia Schaffer em fato de treino, com um ar saudável e radioso, cheia de vida. Uma das fotografias mostrava-a com o cabelo louro ao vento que lhe batia por detrás, pernas e braços em movimento, boca aberta a inspirar ar enquanto cortava a fita da meta. Uma camisola de fato de treino cinzenta da equipa - com o nome da universidade estampado nas costas a roxo e a palavra ATLETISMO por debaixo do emblema da universidade, à frente - estava pendurada numa cadeira junto à secretária. Havia livros abertos no tampo da secretária. Havia uma folha de papel na máquina de escrever. Carella olhou para ela. Mareia Shaffer tinha estado a fazer um trabalho para a cadeira de antropologia. «O homem está só», pensou, «porque só está o homem.» Mareia Schaffer nunca mais estaria, nunca mais correria. O corredor tinha sido derrotado no seu vigésimo primeiro ano de vida.
No armário do quarto encontraram uma pequena variedade de roupa - vários vestidos e saias, camisolas penduradas em cabides, um blusão de esqui, uma gabardina, calças de ganga, calças de fazenda, um fato de treino cinzento com o nome e o emblema da universidade. Revistaram ambos as algibeiras dos casacos, do blusão e da gabardina, as algibeiras de todas as calças de ganga e de fazenda. Nada. Tiraram ténis e sapatos de salto alto, sapatos de corda e sapatilhas. Nada. Abriram uma mala que estava na prateleira do armário. Estava vazia. Atravessaram o quarto em direcção à cómoda e revistaram metodicamente a roupa que estava nas gavetas. Soutiens e cuecas, saiotes e mais camisolas, blusas e collants, meias até ao joelho e peúgas. A um canto da gaveta de cima encontraram uma embalagem de pílulas anticoncepcionais.
Voltaram para a sala de estar onde os peritos estavam a trabalhar e revistaram todas as gavetas da secretária, procurando em vão uma agenda. Encontraram uma pequena agenda de capa de couro com nomes, moradas e números de telefone, presumivelmente de amigos e parentes. Mareia Schaffer parecia conhecer bastantes pessoas na cidade, mas a maioria eram mulheres, e nem Carella nem Hawes acreditavam que uma mulher tivesse força para içar o corpo de Mareia Shaffer, um peso morto, puxando-o de forma a ficar pendurado num candeeiro a mais de sete metros de altura do chão. Na parte correspondente ao S na agenda, Carella encontrou o nome Schaffer sem qualquer nome próprio, sem, morada, um simples número de telefone antecedido do número 913, indicativo da área. Apostava que era o indicativo de Manhattan, Kansas. Tinha de telefonar aos pais. Em breve. Tinha de lhes dizer que a sua menina loura estava morta. Deu um profundo suspiro.
- Alguma coisa? - perguntou Hawes. Estava a remexer no cesto dos papéis que estava ao lado da secretária, a examinar pedaços de papéis amachucados.
- Não, não - disse Carella.
A maior parte dos pedaços de papel que estavam no cesto de papéis eram notas escritas à mão que Mareia Schaffer fizera para o trabalho que estava a elaborar. Havia também um rol de compras de mercearia. Havia uma carta que começara e não acabara e que fora amachucada. Começava pelas palavras Querida Má e Pá, aborrece-me pedir-lhes mais dinheiro tão pouco tempo depois... Havia uma folha de papel com uma série de números aos quais ela acrescentara outros que depois riscara, acrescentando-os novamente, aparentemente numa tentativa de encontrar o saldo exacto de um livro de cheques. Havia um cartão de um sítio que fornecia pizzas. Mais nada.
Entraram na casa de banho. Vários pares de cuecas brancas de algodão estavam penduradas no varão da banheira. Uma caixa aberta de pensos higiénicos superabsorventes estava em cima do lavatório, por debaixo do espelho. Carella tentou lembrar-se se o médico legista tinha dito alguma coisa sobre menstruação. Subitamente, sentiu-se um intruso. Não queria saber nada de tão pessoal e íntimo como o período de Mareia Schaffer. Mas havia um penso higiénico sujo no cesto de papéis por debaixo do lavatório. Abriu o armário dos medicamentos. Hawes estava a revistar o cesto junto da balança, tirando peças de roupa suja e examinando cada artigo.
- Há aqui manchas de sangue - disse.
- Ela estava menstruada - disse Carella.
- De qualquer forma é melhor o laboratório confirmar.
- Sim - disse Carella.
Hawes começou a juntar a roupa suja num monte. Saiu da casa de banho para ir perguntar aos peritos o que havia de fazer com a roupa suja. Disseram-lhe para a meter dentro de uma fronha de almofada. Carella examinou o armário dos remédios. Não esperava encontrar substâncias proibidas, e de facto não encontrou. Havia a miscelânea habitual de remédios que não precisam de receita médica, pasta de dentes, shampoo, bálsamos para o cabelo, vernizes de unhas, pentes, escovas, pensos rápidos, ligaduras elásticas - presumivelmente porque ela tinha sido corredora e estava sujeita a luxações e entorses -, desinfectante para a boca, ganchos, travessões e outras coisas desse tipo. J. D. Salinger não teria ido muito longe com o armário dos remédios de Mareia Schaffer. Carella fechou a porta.
Havia um robe pendurado num cabide da parede.
Pegou nele. O robe era uma peça de vestuário pesada, própria para o Inverno, azul-escuro com um vivo branco nos punhos e à volta da gola larga. A etiqueta indicava que tinha sido comprado numa das maiores lojas da cidade. As palavras «100% Lã» eram acentuadas na etiqueta com o símbolo universal:
A etiqueta tinha ainda a letra «L», indicando que era do tamanho maior. Carella procurou nas algibeiras. Uma delas estava vazia. A outra tinha um maço de cigarros Marlboro quase cheio e um isqueiro de ouro. Carella meteu-os em sobrescritos para provas separados. Hawes ia a entrar na sala com uma fronha com florinhas azuis.
- Havia cigarros na carteira da rapariga? - perguntou Carella. -O quê?
- A carteira da rapariga. Lembras-te se tinha cigarros?
- Não. Por que é que havia de ter cigarros? Ela pertencia à equipa de atletismo.
- É exactamente a isso que me estou a referir.
- Porquê? Que é que encontraste? - perguntou Hawes, começando a meter a roupa suja na fronha.
- Um maço de Marlboro. E um isqueiro Dunhili.
- Isso é um robe de homem} - perguntou Hawes, olhando para Carella.
- É o que parece.
- Que altura é que ela tinha?
- Um metro e sessenta e três. Hawes voltou a olhar para o robe. - Achas que pode ser dela? - É do tamanho grande. Hawes assentiu. - Vão querê-lo pela certa lá no laboratório - disse. Os peritos ainda estavam a trabalhar na sala de estar quando Carela e Hawes lhes foram entregar as luvas de algodão. Por cima do balho do aspirador de filtragem, aquele que Carella pensava chamar-se Joe piscou o olho ao companheiro e disse:
- Hoje fazemos só meio dia!
- Quando é que vocês acham que acabarão? - perguntou Carella.
- O trabalho de uma mulher nunca está feito - disse o outro perito.
- Acham que depois podem fechar a porta à chave e mandar entregar-nos a chave?
- Entregar onde? - perguntou o primeiro perito.
- Na Oito-Sete. Na parte alta da cidade.
- Lá tão longe? - disse o segundo perito, revirando os olhos.
- Tenho um encontro esta noite. Queres tu ficar responsável pela chave, John?
«John, é isso», pensou Carella.-
- Não quero ficar responsável por nenhuma merda de chave - disse John.
- Bom, podem-nos telefonar quando estiverem quase a acabar? -perguntou Hawes. - Mandamos cá um agente buscá-la.
- Têm serviço de recolha e entrega lá na 87.ª - disse John, voltando a piscar o olho ao companheiro.
- Qual é o número de lá? - perguntou o outro perito.
- 377-8024 - disse Hawes. John desligou o aspirador.
- Vou escrevê-lo - disse, metendo a mão na algibeira da bata à procura de um lápis. Apalpou as outras algibeiras. - Quem é que tem um lápis? - perguntou.
Hawes já estava a escrever o seu apelido e o número de telefone da esquadra numa folha do seu bloco de notas. Rasgou a folha e deu-a a John.
- Pergunte por um de nós - disse. - Hawes ou Carella.
- Horse' ? - perguntou o segundo perito. - Temos aqui «Um Homem Chamado Cavalo» - disse a John.
- És meio índio? - perguntou John.
- Mohawk - mentiu Hawes. - Puro.
- Então porque é que não és operário da construção civil? - perguntou o outro perito, desatando a rir e fazendo coro com John. John olhou para a folha que Hawes rasgara do bloco de notas.
- É assim que se escreve em Mohawk? - perguntou a Hawes.
- É assim que o meu pai sempre o escreveu - respondeu Hawes. -O seu nome era Gamo Veloz Hawes.
- Qual é o teu primeiro nome? - perguntou o outro perito.
- Grande Touro que Peida - disse Hawes, saindo do apartamento logo atrás de Carella.
- Isso fez-me lembrar uma coisa - disse Carella quando já estavam no hall. - Porque é que o índio comprou um chapéu?
- Para conservar a peruca quente - disse Hawes.
- Apanhaste-me - disse Carella.
Corria sob o sol que começava a desaparecer.
Tinha saído do seu apartamento às cinco e quinze, demorara menos
de dez minutos a lá chegar de carro e estacionara-o na Grover Avenue, do lado de fora do parque. Àquela hora do dia o parque não tinha virtualmente nenhuma mãe com o seu carrinho de bebé, estando agora cheio de miúdos a jogar à bola, namorados a passear de mão dada, velhotes sentados nos bancos a tentar ler o jornal à luz já fraca. No dia anterior, àquela hora, havia mais pessoas no parque que habitualmente. Tinha sido o Dia de Colombo - ou pelo menos o dia escolhido para a comemoração oficial do Dia de Colombo - e muitas das lojas e escritórios tinham fechado.
Aborrecia-o o facto de já não comemorarem o feriado correspondente a um homem famoso quando era suposto. O Dia de Colombo era 12 de Outubro, portanto, porque é que o comemoravam dois dias antes? Para aproveitar um fim-de-semana prolongado, obviamente. Não que ele beneficiasse de alguma forma disso. Era patrão de si mesmo e era ele que organizava o seu plano de trabalho.
Santo Deus, que lindo dia que estava!
Ainda havia luz suficiente às seis menos um quarto para ver claramente todas as curvas do caminho sinuoso por onde corria, um caminho que em nada se assemelhava a uma pista de corrida, mas que era melhor que nada naquela cidade de betão e aço. A hora mudaria no último domingo de Outubro, atrasavam-se os relógios - a Primavera a chegar, o Outono a passar, pensou - e começaria a ficar escuro por volta das cinco, cinco e meia, mas até lá continuaria a haver aquela leve luz do sol a pôr-se e o céu azul sem nuvens lá em cima; gostava de Outubro, gostava daquela cidade em Outubro.
Corria com um passo certo, não havendo nada a ganhar ali, ninguém a derrotar, nem sequer um relógio a controlá-lo. «Apenas exercício», pensou, «apenas exercício.» Correr pelo parque para fazer exercício, correr anonimamente, um homem alto e magro de fato de treino cinzento sem quaisquer letras, a correr a um passo certo e sem esforço que o acalmava e reconfortava, da mesma forma que a consciência do que fizera e continuaria a fazer o acalmava e reconfortava.
Parou de correr quando chegou a um sítio que ficava em frente à esquadra da Polícia do outro lado da rua, visível para além do muro de pedra baixo que circundava o parque. Mesmo ao lusco-fusco, distinguia os números 87 pintados a branco nos globos verdes que ladeavam os degraus da entrada. Dois homens à paisana iam a entrar no edifício, ambos em cabelo, nenhum deles vestindo casaco - bom, num dia como aquele quem é que precisava de casaco? Mesmo assim, imaginava sempre os detectives como homens que usavam sobretudo. Isto se, de facto, fossem detectives. Talvez fossem apenas dois cidadãos que iam apresentar uma queixa. Havia muitos cidadãos naquela cidade, todos eles com queixas.
Pensou se a sua pequena encomenda já teria chegado.
Tinha-a posto no correio no sábado; apanhara o metro até Calm's Point para meter a encomenda num marco de correio dessa zona. Era suficientemente chata para caber na abertura do marco; tivera esse cuidado. Tinha-a pesado primeiro em casa, para se assegurar de que punha os selos necessários. Não queria que a encomenda deixasse de ser entregue devido a insuficiente franquia. Não havia forma de a encomenda lhe ser devolvida, pois não pusera remetente. Tinha sido por isso que não a tinha levado aos Correios. Não queria correr o risco de um idiota de um empregado qualquer lhe dizer que não podia aceitar a encomenda por não ter remetente. Não sabia exactamente quais eram as normas, mas não queria correr o risco de qualquer sarilho. Deitando-a num marco do correio o carteiro encolheria os ombros e pensaria que se tivesse franquia suficiente o colega da distribuição tentaria que fosse entregue. Os tipos que faziam a recolha naqueles enormes marcos do correio provavelmente nunca sequer olhavam para o que estavam a recolher. Numa estação de Correios já era diferente. O empregado podia reparar que não tinha remetente, e mesmo que isso não fosse contra as normas poderia referir o facto. Sabe que não tem remetente Teria de explicar que a encomenda era uma surpresa, qualquer coisa assim, e isso já eram explicações a mais. Mais tarde, o empregado poderia lembrar-se dele. Era mais simples metê-la num marco. Era suficientemente chata para caber na abertura do marco. Não era ainda altura de alguém vir a lembrar-se dele. Havia tempo mais que suficiente mais tarde para as pessoas se começarem a lembrar dele.
No dia anterior todas as estações dos Correios tinham estado fechadas, não tendo havido distribuição; tinha a certeza de que a encomenda não podia ter sido entregue na véspera. Mas hoje, a menos que houvesse uma grande acumulação de correio devido ao feriado, sim, devia ter sido entregue naquele mesmo dia.
Pensou no que teriam feito com ela.
Receberem a carteira dela pelo correio daquela maneira!
Sorriu, imaginando a expressão deles.
Talvez da próxima vez deixasse a identificação no próprio local. Facilitar-lhes-ia um pouco o trabalho. Deixaria que ficassem a saber logo quem era a vítima. Deixaria a identificação ali mesmo na rua, por debaixo do candeeiro. E claro que não queria facilitar-lhes demasiado o trabalho enquanto o caso não começasse a ganhar um impacte significativo. Os jornais de sexta-feira mal tinham referido a rapariga morta. Não tinha vindo notícia nenhuma nos jornais da manhã e nenhum título na primeira página do jornal sensacionalista da tarde. Tinham remetido o caso para a página oito, um caso como aquele, uma rapariga encontrada enforcada num candeeiro! Da próxima vez perceberiam que havia um padrão. A polícia também perceberia, a menos que fossem ainda mais estúpidos do que ele achava que eram. De certeza que da próxima vez a notícia viria em parangonas na primeira página.
Voltou a olhar para a esquadra do outro lado da rua e recomeçou a correr, sorrindo.
«Em breve», pensou.
Em breve saberiam quem ele era.
As duas mulheres estavam a avaliar-se uma à outra.
Tinham dito a Annie Rawles que Eileen Burke era o melhor chamariz das Forças Especiais. Tinham dito a Eileen Burke que Annie Raviles era uma agente experiente da Brigada de Violações, que já trabalhara nos Roubos e abatera a tiro dois tipos que estavam a tentar assaltar um banco da cidade. Annie estava a olhar para uma mulher com um metro e sessenta e muitos centímetros, com pernas altas, seios bonitos, ancas exuberantes, cabelo ruivo e olhos verdes. Eileen estava a olhar para uma mulher com olhos cor de greda por detrás de uns óculos que lhe davam um ar de professora, cabelo curto de um negro asa de corvo, seios firmes e arredondados e um corpo esbelto, quase de rapaz. Tinham ambas mais ou menos a mesma idade, calculou Eileen, mais ano, menos ano. Eileen não conseguia deixar de pensar como é que alguém com todo o ar de contabilista conseguira sacar do revólver e rebentar com dois punks desesperados que podiam contar com uma pena máxima de vinte anos.
- Que é que acha? - perguntou Annie.
- E diz que esta não foi a única repetição? - disse Eileen. Continuavam a avaliar-se uma à outra. Eileen achava que não era
uma questão de escolha. Se Annie Rawles a tinha pedido e o tenente seu superior tinha destacado Eileen para o caso, era assim que tinha de ser, pois eram ambos de um posto superior ao seu. Mesmo assim, queria saber com quem iria trabalhar. Annie estava a pensar se Eileen seria de facto tão eficiente no seu trabalho como diziam ser. Parecia um pouco vistosa de mais para servir de chamariz. Ao vê-la a saracotear-se em cima de uns saltos altos, com aquelas mamas a saltar, um violador despacharia rapidamente o seu serviço e pôr-se-ia a milhas. Estavam a lidar com um violador muito especial; Annie não queria que uma amadora lixasse tudo.
- Temos três mulheres que afirmam ter sido violadas mais de uma vez pelo mesmo tipo. E ele corresponde à descrição em cada um dos casos - disse Annie. - Pode ser que haja mais, mas ainda não efectuámos uma contraverificação...
- Quando é que a farão? - perguntou Eileen; gostava de saber com quem trabalhava, qual o seu grau de eficiência. Não seria a pele de Annie Rawles que estaria em perigo lá fora na rua, seria a dela.
- Estamos a tratar disso agora - disse Annie. Gostou da pergunta de Eileen. Sabia que estava a pedir a Eileen para se colocar numa posição extremamente perigosa. O homem já esfaqueara uma das vítimas, deixando-lhe a cara marcada. No entanto, era esse o trabalho dela. Se Eileen não gostava das Forças Especiais, devia pedir transferência para outro departamento. Annie não sabia que Eileen estava a pensar nessa possibilidade, mas não por qualquer razão que Annie pudesse compreender.
- Em toda a cidade ou numa área específica? - perguntou Eileen.
- Em qualquer sítio, a qualquer hora.
- Eu sou só uma - disse Eileen.
- Haverá outros chamarizes. Mas aquilo que tenho em mente para si...
- Quantos?
- Seis, se os conseguir arranjar.
- Contando comigo?
- Sim.
- Quem são as outras ?
- Tenho aqui os seus nomes, se quiser dar uma vista de olhos - disse Annie, dando-lhe uma folha dactilografada.
Eileen leu-a atentamente. Conhecia todas as mulheres que constavam da lista. A maioria trabalhava bem. Uma delas não. Refreou-se de expressar esta opinião; não costumava dizer mal de ninguém.
- Hum-hum - disse.
- Parece-lhe bem?
- Claro. - Hesitou. - A Connie precisa de um pouco mais de experiência - disse, com tacto. - Talvez a queira guardar para um caso menos complicado. É boa agente, mas este tipo anda de navalha, como disse...
- E usou-a - disse Annie.
- Pois, portanto guarde a Connie para um caso um pouco menos complicado. - As duas mulheres compreenderam o eufemismo. «Menos complicado» significava «menos perigoso». Ninguém queria que uma mulher polícia acabasse esfaqueada por ser incapaz de lidar com um caso como aquele.
- Quais são os grupos etários? - perguntou Eileen. - Das vítimas.
- As três em relação às quais temos certeza absoluta... deixe-me ver isto. - Annie pegou numa outra folha dactilografada. - Uma delas tem 46. Outra, 28. Esta última, Mary Hollings, a de sábado à noite, tem 37. Ele já a violou três vezes.
- O mesmo tipo de cada uma das vezes, hem? Tem a certeza?
- Sim, de acordo com as descrições.
- Como é que elas dizem que ele é?
- Trinta e poucos anos, cabelo preto e olhos azuis...
- Branco?
- Branco. Com cerca de um metro e oitenta... bem, nesse ponto as declarações variam entre um metro e setenta e cinco e um metro e oitenta e três. Com cerca de noventa quilos, muito musculado, muito forte.
- Algumas marcas que o identifiquem? Cicatrizes? Tatuagens?
- Nenhuma das vítimas mencionou qualquer coisa desse tipo.
- O mesmo tipo de cada uma das vezes disse Eileen, como se tentasse conferir credibilidade ao facto com a repetição. - Não é nada habitual, pois não? Um tipo voltar à mesma vítima?
- Nada - disse Annie. - Por isso é que pensei...
- Com os vossos violadores normalmente...
- Eu sei.
- Não se importam quem é que apanham; a questão prende-se com o gozo que têm.
- Eu sei.
- Portanto o M. O. pareceria indicar que ele tem preferidas ou qualquer coisa assim. Não contraria a psicologia da situação.
- Eu sei.
- Então qual é o plano? Vigiar as vítimas ou andar pela área onde vivem?
- Não cremos que sejam vítimas escolhidas ao acaso - disse Annie. - É por isso que eu gostava que...
- Então está posta de parte a solução de andar pela rua? Annie assentiu.
- Esta última... Mary Hollings, é ruiva.
- Ah - disse Eileen. - OK, já percebi.
- Tem mais ou menos a sua altura - disse Annie. - É um pouco mais baixa. Quanto é que mede, um metro e sessenta e oito, setenta?
- Bem gostava - disse Eileen, sorrindo. - Um metro e sessenta e cinco.
- Ela mede um metro e sessenta e dois.
- Tem a mesma constituição que eu?
- Eu diria rechonchuda.
- Eu diria bovina - disse Eileen, voltando a sorrir.
- Não diga isso - disse Annie, retribuindo o sorriso.
- Portanto quer que eu seja Mary Hollings, não é?
- Se achar que consegue passar por ela.
- Você é que conhece a senhora, eu não conheço - disse Eileen.
- Existem algumas parecenças - disse Annie. - De perto, ele perceberá imediatamente que não é ela. Mas nessa altura já deverá ser demasiado tarde.
- Onde é que ela mora? - perguntou Eileen.
- 1840, Laramie Crescem. - Na zona da 87.'?
- Sim.
- Tenho lá um amigo - disse Eileen.
«Outra vez o amigo», pensou Annie. «O seu amante. O polícia louro que estava na esquadra. King, seria? Herb King?»
- Essa mulher trabalha? - perguntou Eileen. - Porque se opera um terminal de computador ou qualquer coisa...
- É divorciada e vive da pensão de alimentos.
- Tem sorte - disse Eileen. - Vou precisar de saber qual é a sua rotina diária...
- Pode sabê-la directamente por ela - disse Annie. Entretanto onde é que a escondemos?
- Vai para a Califórnia depois de amanhã. Tem lá uma irmã.
- É melhor dar-lhe uma cabeleira postiça, não vá ele estar a vigiar o apartamento quando ela sair.
- Vamos dar.
- E os outros inquilinos do prédio? Não irão perceber que eu não sou?...
- Achámos que podia passar por irmã dela. Duvido que ele vá falar com algum dos inquilinos.
- O edifício tem segurança?
- Não.
- Operador de elevador?
- Não.
- Então é apenas entre mim e eles. Os inquilinos, isto é.
- É, É - disse Annie.
- E quanto a namorados e assim? Clubes ou outros sítios onde ela seja conhecida?
- Ela vai dizer a todos os amigos que vai estar fora da cidade. Se alguém telefonar quando estiver no apartamento, dirá que é irmã dela.
- Suponha que ele telefona?
- Ainda não telefonou e não cremos que o faça. Não é daqueles que se põem a respirar ofegantes ao telefone.
- Psicologia diferente - disse Eileen, assentindo.
- Achamos que você pode ir aos sítios onde ela ia habitualmente e não cremos que ele a siga para dentro do prédio. Entre no apartamento, fique por lá, arranje as unhas ou seja o que for e volte a sair. Se ele estiver a vigiá-la, continuará a segui-la quando sair. Deve resultar, espero.
- Nunca tive um caso destes.
- Nem eu.
- Vou precisar de uma contraverificação - disse Eileen. - Em relação a Mary Hollings e às duas outras vítimas.
- Estamos a tratar disso. Até agora não pensámos que havia um padrão. Quero dizer...
Eileen detectou que o verniz estalara ligeiramente.
- É só que...
Annie voltou a hesitar.
- Aquelas outras duas... uma em Riverhead, a outra em Calm's Point; a cidade é muito grande. Só no sábado é que me apercebi, depois de ter falado com Mary Hollings... isto é, antes disso esse aspecto não ficara registado no meu espírito. Que se tratava de violações em série. Que ele está a atacar a mesma mulher mais de uma vez. Foi como se um raio me tivesse atingido. Agora que sabemos que há um padrão, estão a efectuar contraverificações sobre as três vítimas que temos a certeza de terem sido atacadas pelo mesmo tipo para ver se conseguimos descobrir qualquer coisa na sua vida anterior que possa ter feito com que ele as tenha escolhido. Já é um ponto de partida.
- Estão a usar o computador?
- Não só para as três - disse Annie, assentindo. - Estamos a fazer contraverificações em relação a todas as violações comunicadas desde o início do ano. Se houver outras vítimas que tenham sido gravemente violadas...
- Quando é que me dá os resultados? - perguntou Eileen.
- Assim que os tiver.
- E isso será quando?
- Eu sei que é você que vai arriscar a pele - disse Annie num tom sério.
Eileen não disse nada.
- Eu sei que ele anda de navalha - disse Annie. Eileen continuou a não dizer nada.
- Para mim é tão preocupante pôr a sua vida em perigo como seria pôr a minha própria - disse Annie, e Eileen pensou na forma como ela enfrentara dois assaltantes armados na entrada de chão de mármore de um banco da cidade.
- Quando é que começo? - perguntou.
A segunda vítima de enforcamento foi encontrada em West Riverhead.
A 101ª Esquadra recebeu a denúncia no dia 14 de Outubro, logo de manhã cedo. Não era uma esquadra cujo dia-a-dia fosse um mar de rosas comparada com as outras, mas nenhum dos polícias de lá tinha alguma vez visto um corpo pendurado num candeeiro. Tinham tido de tudo lá na esquadra, mas nunca uma coisa assim. Ficaram espantados, atónitos. E era preciso muito para fazer com que os polícias da 101.ª Esquadra ficassem espantados ou atónitos.
West Riverhead ficava a pouca distância a pé da ponte da Thomas Avenue, que separava essa zona de Isola. Meio milhão de pessoas vivia do outro lado da ponte, cuja paisagem era tão agreste e estéril como a da Lua. Quarenta e dois por cento dessas pessoas viviam de subsídios da Segurança Social, e de entre aquelas que podiam estar empregadas, apenas vinte e oito por cento tinham efectivamente um emprego. Seis mil edifícios abandonados, sem aquecimento nem electricidade, ladeavam as ruas cheias de lixo. Aproximadamente 17 000 toxicómanos encontravam abrigo nesses edifícios quando não batiam as ruas fazendo concorrência a matilhas de cães. As estatísticas referentes a West Riverhead eram avassaladoras - 26 347 novos casos de tuberculose detectados no último ano; 3412 casos de subnutrição; 6502 casos de doenças venéreas. Três em cada cem bebés nascidos em West Riverhead morriam durante a primeira infância. Os que sobreviviam, teriam uma vida de desesperante miséria, de revolta impotente, de frustração sem esperança. Eram sítios como West Riverhead que faziam que os russos se gabassem da vantagem do sistema comunista para as massas. Comparada com West Riverhead, a zona da 87.ª Esquadra era uma quinta em Wisconsin.
Mas Carella e Hawes estavam lá naquele momento porque um detective esperto da 101.ª se lembrou de ter lido qualquer coisa sobre uma rapariga que fora encontrada enforcada num candeeiro na 87.ª e telefonara imediatamente para lá para informar os detectives de que se dera um caso idêntico naquela zona. Ninguém queria obstruir o trabalho daqueles que já estavam a investigar um caso e, de qualquer forma, quem diabo é que queria uma vítima de enforcamento em West Riverhead quando já lá havia crimes mais que suficientes para manter a Polícia ocupada vinte e oito horas por dia? Exótico? Esplêndido. Quem é que queria um caso exótico? Mais valia deixar que a 87.ª Esquadra tratasse do problema.
Carella e Hawes chegaram lá um pouco depois das sete da manhã.
A Brigada de Homicídios já lá estivera e já se fora embora. Naquela cidade, qualquer crime, pequeno ou grande, delito grave ou mera arruaça, era da responsabilidade da esquadra que inicialmente recebia a denúncia - a menos que uma outra esquadra já tivesse tido uma denúncia sobre um crime obviamente relacionado com esse. No caso de assassínio, a Divisão de Homicídios supervisionava atentamente a actuação dos detectives que conduziam as investigações, fornecendo peritos quando necessário, mas tecnicamente o caso pertencia aos detectives da esquadra, enquanto os Homicídios agiam como uma espécie de entidade que servia para dar luz verde ao andamento do caso. Carella e Hawes eram os privilegiados agentes responsáveis por aquele caso, num outro magnífico dia de Outubro que bem podia trazer desgostos.
Um detective chamado Charlie Broughan mantinha-se ainda no local; Carella já trabalhara com ele numa série de assassínios relacionados com um gang. A estimativa era que havia 9000 gangs de rua de adolescentes na zona sob a jurisdição da 101.ª Esquadra. Talvez fosse por isso que Charlie Broughan parecia sempre tão cansado. Ou talvez trabalhar no Turno da Morgue ali fosse pior que trabalharem qualquer outro da cidade. Broughan parecia ainda mais cansado que da última vez que Carella o vira; era um polícia forte e corado, com cabelo castanho, sempre despenteado, e estava com barba de dois dias. Vestia um anorak azul-claro, calças azuis-escuras e sapatos desportivos. Reconheceu Carella imediatamente, dirigiu-se a ele e apertou-lhe a mão, cumprimentando depois Hawes, também com um aperto de mão.
- Desculpem maçá-los com esta merda - disse -, mas creio que o caso é da vossa responsabihdade.
- Não há dúvida de que é nossa - disse Carella, olhando para cima, para o corpo.
- A última também foi uma rapariga, hem? - disse Broughan.
- Foi - disse Carella.
- Ainda não a tirámos dali; o M. L. e todos os outros estavam a vossa espera. Não sabíamos como é que vocês queriam tratar disto.
- A Unidade Móvel de Crime já cá está? - perguntou Hawes.
- Está - disse Broughan. - Bem, estava há instantes. Provavelmente foram tomar café.
- Queremos que o nó fique intacto - disse Carella. - Se cortarem a corda mais ou menos a meio está bem.
- Vou dizer aos tipos da Emergência - disse Broughan.
Carella ficou satisfeito por não estar ali ninguém que pudesse fazer Comentários sobre a cor das cuecas da rapariga, que por acaso eram azul eléctrico como o céu que clareava rapidamente por cima do candeeiro. Ficou a olhar para Broughan enquanto este se dirigia para a carrinha da Emergência. Os polícias da Emergência tiraram a escada, a rede e o alicate com todo o vagar. Era demasiado cedo para se porem a suar.
- Quem é que a encontrou? - perguntou Carella a Broughan.
- Recebemos um telefonema de um cidadão honesto - disse Broughan -, o que por cá é um milagre. Ia a caminho do emprego... vive a uns oito quarteirões de distância, numa zona que ainda não está destruída, passou por aqui de carro e viu-a ali pendurada. E foi-nos telefonar, acreditam?
- A que horas foi isso? - perguntou Hawes.
- A chamada foi registada às seis da manhã. Pensei que o turno já estivesse a terminar e já estava a dactilografar o meu relatório. E catra-puz, aparece-nos alguém pendurado num candeeiro. Meteu a mão na algibeira do anorak e tirou um sobrescrito próprio para guardar provas. - Hão-de querer isto - disse. - Foi encontrado por debaixo do candeeiro.
- O que é?
- Acho que é a carteira da rapariga. Não a abri, pois não queria estragar quaisquer impressões digitais. Mas não conheço nenhum homem que use carteira vermelha, e tu?
Os polícias da brigada de emergência estavam a cortar a corda. Subitamente, a rapariga caiu e a saia enfolou como um balão por cima das suas longas pernas ao cair. A rede cedeu ligeiramente sob o seu peso. Os polícias baixaram a rede, pousando-a no chão.
- Não quis arriscar a que alguém o visse a fazer o trabalhinho, hem? - disse Broughan. - Nestes prédios só há ratazanas, merda de cão e baratas.
O médico legista assistente dirigiu-se para lá com uma expressão maçada.
Cinco minutos depois, expressou a sua opinião de que a rapariga estava morta e que a causa provável da morte fora fractura das vértebras cervicais.
Chamava-se Nancy Annunziato.
Um cartão dentro da sua carteira identificava-a como aluna da Universidade de Calm's Point, uma das cinco universidades gratuitas da cidade. A U. C. P. ficava do outro lado da cidade, do lado oposto da ponte de Calm's Point e do rio Dix, a pelo menos uma hora de carro de Riverhead, a hora e meia se se fosse de metropolitano. Os detectives achavam que ninguém no seu juízo perfeito levaria para lá um cadáver no metropolitano, por mais bizarro que este meio de transporte se tivesse tornado nos últimos anos, por mais habituados que os passageiros já estivessem a estranhos acontecimentos. Mas partindo do princípio de que a rapariga fora morta noutro local (como supostamente acontecera no caso de Mareia Schaffer), e partindo ainda do princípio de que o corpo fora transportado para aquele belo recanto da cidade, o assassino tinha ido longe como o diabo com o objectivo de não deixar qualquer pista. Mas então porque é que deixara lá ficar a carteira com a identificação da rapariga?
O telefonema para Manhattan, Kansas, para informar o pai de Mareia Schaffer da sua morte tinha sido penoso, mas Carella não teve de o olhar nos olhos ao dar-lhe a notícia. Desta vez seria mais difícil. De acordo com o B. I. que estava na carteira, a rapariga morava em Calm's Point, não muito longe da universidade, presumivelmente em casa dos pais. Desta vez seria um face a face. Desta vez a dor seria de parte a parte. Estava satisfeito por ter Hawes consigo e não um idiota como Género. Uma vez Género perguntara à mulher de uma vítima de assassínio se já tinha tratado da campa.
- É sempre melhor pensar nestas coisas com antecedência - tinha-lhe dito Género. Mais tarde contara a Carella que a mãe já comprara campas para si e para o pai dele. - Incluindo conservação para toda a vida - acrescentara. Carella ficou a pensar à vida de quem é que isso se referiria.
Apanharam a hora de ponta a caminho de Calm's Point e demoraram uma hora e um quarto a fazer o percurso. Não fazia ideia até que ponto o confronto seria difícil, até chegarem lá e ficarem a saber que Mr. Annunziato tinha tido um ataque de coração na véspera e que estava naquele momento na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Saint Anthony, a uns seis quarteirões de distância. O bairro era predominantemente italiano, um guetto movimentado que recordou a Carella aquele onde nascera e crescera. O ruído nas ruas, os cumprimentos gritados, até as casas de dois pisos com ripas de madeira e as figueiras trouxeram-lhe subitamente recordações que foram de certa forma tão dolorosas como a tarefa que tinha à sua frente. Não se ouviam bebés a chorar naquela rua cheia de sombra das árvores; nunca se ouvia um bebé chorar num bairro italiano. Sempre que um bebé italiano dava qualquer sinal de se preparar para chorar, havia sempre uma mãe, uma tia, uma prima ou uma avó que pegava nele e o consolava. Mrs. Annunziato era parecida com a tia Amélia de Carella; essa semelhança tornou ainda mais difícil a sua tarefa.
Inicialmente ela pensou que eles estavam lá por causa do acidente de automóvel. O marido ia a guiar quando tivera o ataque de coração e batera num outro automóvel quando perdeu o controlo do seu. Foi no seguimento desta explicação que lhes deu assim que eles se identificaram, que souberam que o marido estava naquele momento nos cuidados intensivos, com um ligeiro traumatismo craniano, além do ataque de coração. E eles tinham de lhe dizer que a filha estava morta.
Hawes não ergueu os olhos do chão.
Carella deu a notícia a Mrs. Annunziato, meia em inglês, meia em Italiano. Ela ouviu atenta e incredulamente. Pediu pormenores; estava Certa de que eles se tinham enganado. Mostraram-lhe a carteira da rapariga morta. Ela identificou-a sem hesitação. Tinham relutância em mostrar-lhe as fotografias Polaroide tiradas no local; não queriam arriscar um outro ataque de coração. Por fim, ela desatou a chorar e Correu para dentro de casa para ir buscar a mãe, que surgiu passados instantes - uma mulher italiana baixa, de cabelos grisalhos, totalmente vestida de preto, ela própria lavada em lágrimas enquanto insistia com os detectives para lhes darem mais pormenores. As mulheres ficaram ali abraçadas e a chorar no passeio à frente da casa. Juntou-se uma multidão. A campainha de uma camioneta de venda de gelados tiniu na quietude luminosa da rua sombreada pelas árvores.
- Signore - disse Carella - scusami, ma d sono molti domande...
- Si, capisco - disse Mrs. Annunziata. - Parla Inglese, poerpiacere?
- Grazie - disse Carella -, il mio Italiano non è il migliore, - Tenho de lhes fazer estas perguntas para podermos apanhar a pessoa que fez isto à sua filha, lei capisce, signore?
A avó assentiu. Estava abraçada a Mrs. Annunziata, apertando-a contra si, fazendo-lhe festas, confortando-a.
- Quando é que a viram pela última vez? - perguntou Carella. L'ultima volta che..
- La notte scorsa - disse a avó.
- Ontem à noite - disse Mrs. Annunziato.
- A che ora - perguntou Carella. - A que horas?
- Alie sef - disse a avó.
- Seis horas - disse Mrs. Annunziato. - Tinha acabado de chegar a casa. Vinha de praticar.
- Sclisi? - disse Carella. - Praticar?
- Si, era una corridora - disse a avó.
- Corridora? - perguntou Carella, não compreendendo a palavra. - Uma corredora - disse Mrs. Annunziato. - Pertencia à equipa, cognesce? Como si chiama? La squadra di pista, capisce} La pista... como é que se diz? A pista. Pertencia à equipa de corredores.
Quando chegaram à esquadra tinham dois embrulhos provenientes do Laboratório da Polícia à sua espera. Ainda eram só onze horas. Os dois homens estavam no Turno da Morgue quando receberam o telefonema da 101. Era suposto serem rendidos às oito menos um quarto, mas já eram onze e o relatório do laboratório estava em cima
da secretária de Carella e uma outra rapariga morta estava na morgue do Hospital Mercy General para ser autopsiada. A luz luminosa da esquadra, do sol brilhante de Outubro que jorrava pelas janelas com grades abertas de par em par para a rua lá fora, partiram o lacre que selava o primeiro embrulho. Meyer estava sentado à sua secretária, a escrever à máquina, com a peruca já à banda em cima da cabeça. Hawes olhou várias vezes para o outro lado da sala para observar a peruca. Meyer tingiu não perceber que estava a ser observado.
O primeiro embrulho continha um relatório sobre o pedaço da corda e o nó de forca retirado do local, juntamente com um relatório sobre as fotografias do nó que prendia a outra extremidade da corda ao candeeiro. A corda era feita de uma fibra chamada sisal, um produto da piteira que era cultivada nas índias e em certas zonas de África. A corda de sisal não era tão resistente como a corda de Manila, que era feita com fibras da bananeira das Filipinas. Uma corda de Manila com um diâmetro de 3,81 cm suportava um peso de 1202 quilos. Mas o sisal era um substituto da corda mais forte, largamente utilizado, e Mareia Schaffer só pesava sessenta e dois quilos. A corda utilizada no enforcamento era do tipo vulgar: uma corda de três fios que não aguentava tanto peso como uma de quatro fios e nem de longe o peso que o chamado cabo aguentava. Mas Mareia Schaffer apenas pesava sessenta e dois quilos.
O perito que elaborou o relatório explicou pormenorizadamente que as fibras da corda indicavam claramente em que direcção esta fora puxada. Num enforcamento legal, ou num suicídio verdadeiro por enforcamento, uma pessoa caía para baixo quando o suporte era retirado ou deliberadamente afastado com um pontapé de debaixo dos seus pés. Este movimento descendente fazia que as fibras da corda subissem na direcção oposta à queda. Inversamente, se uma pessoa tivesse sido puxada para cima com uma corda sobre um apoio como o ramo de uma árvore ou, neste caso, o braço de um candeeiro, as fibras subiam na direcção oposta ao movimento de puxar ou de erguer. Em relação à direcção das fibras em geral, o perito citava uma regra que estabelecia que queda resultava no subir das fibras e que puxar para cima resultava no descer das fibras.
Carella e Flawes encolheram os ombros; nada daquilo era novidade para eles.
O perito continuava, exphcando que se a direcção das fibras numa dada corda parecesse à primeira vista fundamentar uma conclusão de «enforcamento verdadeiro», isto podia não ser necessariamente válido, pois o assassino podia ter primeiro erguido manualmente um corpo já morto e só depois passar o laço à volta do seu pescoço. Isto era Uma coisa extremamente difícil de fazer, dado que um cadáver é pesado e inerte e de difícil manejo. Além disso, neste caso, o braço do candeeiro estava a uns sete metros de altura. Dada a altura do braço do candeeiro e dada a direcção descendente das fibras, o perito apenas podia concluir que o assassino tinha colocado o laço à volta do pescoço do cadáver, lançado a corda por cima do braço do candeeiro e depois puxado o corpo para cima, amarrando a outra extremidade da corda à volta do poste a cerca de um metro e meio da base.
O perito continuava o seu relatório afirmando que o nó retirado da parte de trás do pescoço da rapariga morta era um verdadeiro nó de forca, do tipo utilizado em execuções legais por enforcamento. Na sua essência era uma variação de um nó corrediço, por vezes chamado nó corrido...
Os dois detectives olharam um para o outro ao chegarem à palavra «corrido»...
... trabalhado para o objectivo do carrasco, de forma a ficar com oito ou nove voltas de corda por cima do nó. Neste caso, tinha nove voltas.
O perito não esperava encontrar quaisquer impressões digitais na corda ou no nó, e não se enganou. No entanto, conseguira detectar fibras que ao serem examinadas ao microscópio se verificou não serem fibras de sisal e que ele identificara como sendo fibras compostas por cinquenta e cinco por cento de lã e quarenta e cinco por cento de poliéster. Além disso, encontrara partículas de epiderme humana agarradas à corda áspera do nó e identificara-as como sendo pele não pigmentada, ou seja, pele de um homem branco.
A fotografia do nó feito à volta do candeeiro - e o perito especificou (sem qualquer intenção de crítica) que na realidade não se tratava de um nó, mas sim de uma laçada, normalmente usada para amarrar uma corda a um aro, a um poste ou a uma barra. A tal laçada, que prendia a extremidade da corda ao candeeiro, tinha o nome de meia-laçada. Na opinião do perito, o assassino escolhera aquela laçada específica porque era fácil e rápida de fazer, mesmo - como neste caso - quando eram usadas duas meias-laçadas conjuntamente. Não era tão seguro ou forte como uma laçada de lenhador, por exemplo, mas levando em conta o facto de o assassino ter sessenta e dois quilos de peso morto pendurado na outra extremidade da corda, a rapidez e a facilidade deviam ter constituído factores decisivos. O perito terminava o relatório referindo que a meia-laçada era um nó que todos os marinheiros e pescadores ao cimo da terra sabiam fazer de olhos fechados.
O segundo embrulho selado continha um relatório sobre o robe (e o seu conteúdo) encontrado no apartamento da rapariga morta.
O exame de uma amostra das fibras revelara que o robe era cem por cento lã, conforme dizia na etiqueta. O tamanho, como também constava da etiqueta, era Large - medida que servia a um homem que vestisse o 42 americano. Carella vestia 42. Hawes vestia 44. Fora aspirado do robe uma considerável quantidade de cabelo, e este tinha sido
1 Grande. (N. da T.)
comparado com as amostras de cabelo retiradas da cabeça, sobrancelhas, pestanas e zona genital do cadáver de Mareia Schaffer. Alguns dos cabelos encontrados no robe eram idênticos aos cabelos ruivos de Mareia Schaffer. Alguns correspondiam à amostra dos pêlos do púbis. Um deles correspondia a uma pestana. Os outros cabelos encontrados no robe não eram dela - sendo designados no relatório feito pelo técnico do laboratório por cabelos estranhos.
Todos os cabelos estranhos tinham raízes secas, em oposição a raízes vivas, o que indicava que tinham caído, não tendo sido arrancados à força. Todos os cabelos tinham um valor medular - definido no relatório como sendo a relação entre o diâmetro medular e o diâmetro total do cabelo - de menos de 0.5, o que indicava que eram cabelos humanos ou de macaco. Mas a estrutura de ar da medula desses cabelos era de grão fino e as células eram invisíveis sem tratamento em água; o córtex assemelhava-se a um tufo espesso e o pigmento era de grão fino; havia escamas finas e mal definidas na cutícula, sobrepondo-se mais do que aconteceria em pêlos de animais. O técnico determinara que aqueles cabelos eram de facto humanos e, dado que tinham um diâmetro de 0.07 centímetros, que eram cabelos de um ser humano adulto.
Estes mesmos cabelos, medidos num micrómetro, tinham todos menos de oito centímetros de comprimento, o que indicava que a sua proveniência era a cabeça ou a barba. No entanto, o valor medular dos cabelos era 0.132, o que parecia indicar que se tratava de cabelos provenientes da cabeça de um homem e não de uma mulher, pois nesse caso o valor medular seria de 0.148. Mais ainda, as formas ovais e a concentração periférica do pigmento no córtex do cabelo indicavam que se tratava de um homem branco.
Alguns dos outros pêlos recolhidos eram encaracolados e grossos, com raízes nodosas que indicavam pertencerem à zona genital de um homem, hipótese esta reforçada pelo facto de o valor medular ter sido estabelecido como sendo 1.153. Os pêlos da zona do púbis de uma mulher, embora igualmente encaracolados e grossos, tinham normalmente uma raiz fina e um valor medular de 0.114. A cor vermelho-ala-ranjado do pigmento ao longo do comprimento de todos os cabelos -masculinos ou femininos, da cabeça, sobrancelhas, pestanas ou zona genital -, juntamente com a quantidade de grânulos presente, ia corroborar as provas visuais de que Mareia Schaffer e o homem cujo robe fora encontrado no seu apartamento eram ambos louros. Mais, eram louros naturais; não foi encontrado qualquer vestígio de tinta ou clareador químico em qualquer dos cabelos. Um exame ao microscópio dos tipos de cabelos da cabeça do homem adulto revelou superfícies Cortadas com precisão, o que indicava que o homem a quem pertencia o robe cortara o cabelo há não mais de quarenta e oito horas antes de os cabelos ficarem depositados no robe.
Ao ler tudo aquilo sobre cabelos, Hawes pareceu ainda mais fascinado pela peruca de Meyer. Interrompeu a leitura do relatório várias vezes para olhar para Meyer curvado sobre a máquina de escrever e interrogou-se sobre se um exame ao microscópio de todos os cabelos que se encontravam em cima da cabeça outrora calva de Meyer provaria que eram humanos ou de animal. Meyer continuou a ignorá-lo. Meyer estava a pensar que Hawes estava a tentar engendrar qualquer frase espirituosa para lhe lançar.
O relatório do laboratório continuava com a declaração de que o maço de cigarros Marlboro tinha dado um resultado negativo quanto a substâncias proibidas. Os cigarros eram exactamente aquilo que era suposto serem: tabaco comercializado pela Philip Morris Inc. O isqueiro era um Dunhill verdadeiro e não uma das muitas imitações que proliferavam no mercado.
Tinham sido encontradas boas impressões digitais quer no isqueiro quer no maço de cigarros.
Uma contraverificação efectuada junto da Secção de Identificação não dera origem à identificação de registo criminal respeitante ao homem que deixara as suas impressões digitais nos dois artigos. Mas tinham-lhe sido tiradas as impressões digitais quando se alistara na Marinha durante a guerra do Vietname. O seu nome era Martin J. Benson e a sua última morada conhecida era Pacific Coast Highway, 93204, muito próximo de Santa Mónica, Califórnia.
Carella e Hawes dividiram entre si as listas telefónicas do total das cinco secções da cidade. Hawes acertou no alvo ao consultar a lista telefónica de Isola. Um Martin J. Benson constava da lista como vivendo em South Boulder, 106. Iam já a sair da sala da esquadra quando Hawes se virou e perguntou a Meyer:
- Sabes que os pêlos dos cavalos têm um valor medular de sete ponto seis? - frase esta que inventou naquele instante e que Meyer não achou de todo cómica.
Boulder' Street tinha recebido o seu nome numa altura em que os holandeses ainda controlavam a cidade, muito antes de os empreendimentos de construção civil terem reduzido a cascalho os enormes afloramentos vulcânicos que tinham servido de inspiração para aquela designação desinspirada.
Arranjar um nome para aquela rua tinha constituído um problema para os práticos holandeses, na medida em que a sua terra natal não era particularmente reconhecida pelo seu terreno montanhoso. Rolsteen, em holandês, era traduzido como «uma rocha que rolara do cimo de uma montanha». No entanto, aquela determinada rocha, firmemente enraizada na terra, não parecia ter rolado de qualquer montanha, especialmente por não haver montanhas naquela parte da cidade - ou em qualquer outra parte da cidade, para ser mais preciso. Por outro lado.
a palavra kei em holandês significava «um pedaço de rocha ou pedra no chão», coisa que de facto aquele pedregulho era. Com efeito, aquele pedregulho parecia crescer ali, saído da terra. Kei também significava «pedra de pavimento» ou «paralelepípedo», que parecia uma palavra mais adequada que rolsteen, dado que os holandeses tencionavam empedrar a rua à volta do pedregulho com paralelepípedos. Portanto, tinham optado por Keistraat em vez de Rolsteenstraat, o que constituíra uma boa escolha na medida em que kei também significa nesse idioma «ser muito bom em qualquer coisa», e os holandeses tinham de facto sido muito bons a pavimentar aquela rua à volta de um pedregulho e a dar-lhe o nome de Keistraat. Os ingleses tinham muito simples e pouco imaginativamente traduzido o nome holandês e a rua tor-nara-se Boulder Street, e assim continuava a chamar-se, apesar de já não haver o menor indício sequer de uma pedrinha na rua.
A rua, provavelmente por os seus limites terem sido definidos há muito tempo, quando o enorme pedregulho ainda lá estava, prolongava-se por dois quarteirões consecutivos de este para oeste e depois terminava abruptamente. Ao longo destes dois quarteirões encontravam-se algumas das melhores casas da cidade, muitos dos edifícios datavam do tempo dos holandeses e todos eles tinham sido restaurados e estavam em excelentes condições. Nem Carella nem Hawes conheciam ninguém suficientemente abastado para poder morar em Boulder Street. Mas era ali que o antigo fuzileiro Martin J. Benson vivia, e o facto de a rua ficar apenas a dez quarteirões da Universidade Ramsey não lhe escapou.
Martin J. Benson não estava em casa quando lá chegaram, pouco depois do meio-dia. O guarda, que estava a regar uns crisântemos espectaculares plantados em enormes vasos de madeira junto ao passeio, disse-lhes que ele saía normalmente para o trabalho por volta das oito e meia. Informou-os ainda de que Mr. Benson trabalhava numa agência de publicidade na Jefferson Avenue, na parte alta da cidade. Esclareceu também que era o responsável pelo departamento criativo, tudo isto num tom que quase levava a crer que Mr. Benson era Deus. A agência de publicidade chamava-se Cole, Cooper, Loomis e Bache. O guarda disse-lhes ainda que a agência, sob a direcção do próprio Mr. Benson como director criativo, lançara a campanha publicitária para os «Daffy Dots», um chocolate que nenhum dos detectives alguma Vez comera ou do qual sequer ouvira falar. Agradeceram-lhe estas informações e dirigiram-se para a parte alta da cidade.
A recepcionista da Cole, Cooper, Loomis e Bache era uma loura meio tola cuja placa de plástico na secretária identificava como sendo Dorothy Hudd - teria sido ela a inspirar o nome do chocolate? Vestia Uma camisola cor-de-rosa, vários tamanhos abaixo do dela, e parecia
despropositadamente orgulhosa dos seus seios - se é que a atracção que a sua mão esquerda parecia ter em relação a estes era uma indicação de se orgulhar de os possuir. Sob o pretexto de brincar com um colar de pérolas pendurado entre os seios (Hawes estava também a começar a gostar deles), a sua mão esquerda tocava, explorava e acariciava abertamente as formas opulentas de ambos os lados do colar, fazendo que Hawes se interrogasse sobre a atenção que ela lhe daria por exemplo na praia, onde apenas usasse um biquini. Imaginou então como é que ela seria na cama, escarranchada sobre ele, agarrando aqueles magníficos globos nas mãos. Não lhe desagradavam louras meio tontas. Nem sequer lhe desagradavam morenas meio tontas.
Carella, que tinha um casamento feliz e presumivelmente imune a estas especulações, guardou o crachat que acabara de mostrar a Do-rothy e perguntou-lhe se Mr. Benson estaria disponível para os receber. Dorothy, continuando a brincar com as inúmeras pérolas, infor-mou-o de que Mr. Benson já saíra para almoçar e que só devia regressar às três. Carella perguntou-lhe educadamente onde é que Mr. Benson poderia estar a almoçar.
- Ai, isso não sei - disse Dorothy.
- E a secretária saberá?
- É capaz - disse Dorothy, revirando os olhos e continuando a mexer, a mexer, a mexer nas pérolas, num gesto aparentemente inconsciente que estava a começar a pôr Hawes fora de si. - Mas ela também saiu para almoçar.
- Tem forma de saber onde é que ele está? - perguntou Carella,
- Bem, olhe, posso ir lá'dentro perguntar - disse Dorothy, fazendo girar a cadeira e o corpo, afastando-se da secretária. Levantou-se e dirigiu-se para uma porta que dava para os gabinetes no interior. Vestia uma saia preta muito justa que assinalava o regresso aos Estados Unidos da mini-saia. Hawes mostrou-se profundamente agradado.
Assim que ela desapareceu da sua vista, suspirou e disse:
- A esta, comia-a à colher.
- Também eu - disse Carella, destruindo o mito de que os homens casados são cegos.
Dorothy regressou passados uns cinco minutos a sorrir e voltou a sentar-se na cadeira atrás da secretária. Levou imediatamente a mão esquerda às pérolas que tinha ao pescoço. Hawes observou-a, fascinado.
- Mr. Perisello disse-me que Mr. Benson almoça normalmente num sítio chamado Coach and Four - disse Dorothy -, mas só normalmente, e talvez não tenha lá ido hoje. Porque é que não voltam cá às três? - disse, sorrindo para Hawes. - Ou a qualquer outra hora -acrescentou.
Carella agradeceu-lhe e conduziu Hawes para fora do escritório.
- Estou apaixonado - disse Hawes.
O Coach and Four era o tipo de restaurante que nem Carella nem Hawes podiam frequentar com o seu vencimento de 33 070 dólares por ano de detective de segunda classe. Concebido e decorado por um arquitecto americano de ascendência arménia, assemelhava-se àquilo que ele pensava ter sido uma velha estalagem de estrada inglesa por volta de 1605, repleta de vigas e barrotes de madeira trabalhados à mão, janelas com juntas de chumbo com vidro fabricado manualmente, chão de pranchas corridas de madeira, com cavilhas também de madeira, (abaulado aqui e ali para dar um ar de maior autenticidade) e uma equipa de empregadas de mesa de seios opulentos, vestindo saias rodadas e blusas muito decotadas de camponesa que deixavam ver ainda mais os seios que a camisola de Dorothy Hudd. Hawes estava a começar a pensar que aquele era o seu dia de sorte.
Carella perguntou à responsável pelo restaurante - uma morena esguia de vestido preto e saltos altos e que tinha um ar completamente anacrónico naquele ambiente inglês do século XVII - onde é que Mr. Benson poderia estar sentado. Depois escreveu uma breve mensagem num cartão e pediu à morena o favor de lho ir entregar à mesa. Ficou a observá-la enquanto ela atravessava a sala, dirigindo-se para uma mesa a um canto onde dois homens - um deles louro e o outro calvo - travavam uma conversa animada, sem dúvida sobre a mais recente e brilhante campanha publicitária. Ela entregou o cartão ao homem louro. Ele olhou para a parte da frente com a insígnia do Departamento da Polícia e o nome, posto e número de telefone da 97.ª Esquadra de Carella, virou o cartão e leu a mensagem que Carella rabiscara nas costas. Perguntou qualquer coisa à morena, e ela apontou para o sítio onde Carella e Hawes estavam de pé junto à secretária da recepção, que se assemelhava àquilo que o arquitecto arménio imaginava ter sido a secretária de trabalho do doutor Johnson, com o respectivo tinteiro, da sua casa em Gough Square na Velha Grã-Bretanha. Benson levantou-se imediatamente, pedindo desculpa ao homem calvo sentado à sua mesa, e atravessou a sala com grandes passadas, dirigindo-se para onde os dois detectives o esperavam.
- Mr. Benson? - perguntou Carella.
- Que é que se passa? - disse Benson. - Estou a meio do meu almoço.
Carella calculou que ele teria cerca de um metro e oitenta e três, tão alto como o próprio Hawes, com os mesmos ombros largos e peito forte. Tinha olhos cor de chumbo e cabelo da cor do trigo. Vestia Um fato que Carella apostaria ter sido feito à medida, uma gravata Condessa Mara e uma camisa com um monograma do lado esquerdo, as iniciais MJB visíveis junto à lapela do casaco do fato. Os punhos da camisa apareciam ligeiramente sob as mangas, presos com pequenos botões de punho de ouro com diamantes encastrados. Num anel rosado na sua mão esquerda faiscava um diamante bastante maior que os dos botões de punho. Carella achou que os directores criativos estavam a ganhar bastante com a campanha dos Daffy Dots.
- Se quiser acabar de almoçar, nós esperamos - disse.
- Não, é melhor resolvermos já isto - disse Benson, olhando em volta à procura de um sítio onde pudessem falar em privado. Decidiu-se pelo bar, uma estrutura de madeira de carvalho com tampo de chumbo, em cuja trave superior estavam pendurados, em toda a extensão, copos de pé alto. Puxaram três bancos perto do fundo do bar onde havia uma velha caixa registadora de bronze em cima do tampo de chumbo. Hawes e Carella sentaram-se um de cada lado de Benson. Este pediu de imediato um martini Beefeater simples e gelado.
- Então? - disse.
- Conhece uma pessoa chamada Mareia Schaffer? - perguntou Carella, abordando directamente a questão.
- Então é isso - disse Benson, assentindo.
- É isso - disse Hawes.
- Que é que há com ela? - perguntou Benson.
- Conhece-a?
- Sim, conhecia-a.
- Conhecia-a?
Os detectives estavam a fazer as perguntas alternadamente, fazendo que Benson olhasse ora para um, ora para o outro.
- Ela morreu, não foi? - disse Benson. - É por isso que vieram cá, não é? Sim, conhecia-a. Passado.
- Há quanto tempo no passado? - perguntou Carella.
- Já não a via há mais de um mês.
- Importa-se de explicar isso melhor? - disse Hawes, num tom de autoridade.
Benson virou-se para ele.
- Talvez seja melhor eu telefonar ao meu advogado - disse.
- Não, talvez seja melhor deixar-se ficar exactamente onde está -disse Carella.
Benson afastou o banco para trás de forma a poder olhar para os dois detectives sem estar a virar-se constantemente.
- Explicar o quê? perguntou a Hawes.
- Mr. Benson - disse Hawes -, o senhor tem um robe azul, cem por cento de lã, com um vivo branco nos punhos e na gola?
- Sim. Quem é que pensa que está a enganar? Encontraram o meu robe no apartamento de Mareia e é por isso que cá estão, certo? Vamo-nos deixar de conversa fiada.
- O senhor tem um isqueiro Dunhill de ouro?
- Sim. Estava na algibeira do robe, certo? Isso não significa que a matei.
- Quem é que disse que o senhor a matou? - perguntou Hawes.
- Alguém disse que o senhor a matou? - perguntou Carella.
- Parto do princípio de que estão aqui porque...
- Mr. Benson, quando é que deixou o seu robe no apartamento de Miss Schaffer? - perguntou Hawes.
- Já lhe disse. Há mais de um mês.
- Quando, exactamente? - perguntou Carella.
- Deve ter sido no Dia do Trabalhador. Passámos o fim-de-semana juntos. Na cidade. A cidade é o sítio ideal para passar um feriado. Toda a gente vai para fora e fica-se à vontade...
- Passou o fim-de-semana do Dia do Trabalhador no apartamento dela?
- Sim.
- Levou roupa quando foi para lá?
- Sim. Bem, só a que precisava para...
- Incluindo o robe?
- Sim. Imagino que me tenha esquecido de o meter na mala quando me vim embora.
- Esqueceu-se do robe e do isqueiro?
- Sim.
- E não deu por falta do isqueiro desde o Dia do Trabalhador?
- Tenho outros isqueiros - disse Benson.
- Fuma Marlboro?
- Sim, fumo Marlboro.
Carella tirou um pequeno calendário de plástico da carteira, consultou-o e disse:
- O Dia do Trabalhador foi no dia 5 de Setembro.
- Se assim o afirma. É o senhor que tem o calendário.
- Afirmo. E não a voltou a ver depois disso, certo?
- Certo.
- Como é que a conheceu, Mr. Benson? - perguntou Hawes.
- Na Universidade Ramsey. Fui lá fazer uma conferência sobre publicidade criativa. Conheci-a numa recepção depois da conferência.
- E começou a sair com ela?
- Sim. Sou solteiro, e isso não tinha nada de mal.
- Que idade é que tem, Mr. Benson?
- Trinta e sete. Também não há nada de mal nisso. Mareia tinha quase 21 anos. Ia fazer 21" no mês seguinte. Não estava a desviar uma menor, se é isso que estão a pensar.
- Alguém disse que o senhor estava a desviar uma menor? - perguntou Hawes.
- Tenho a sensação de que reprovam a minha relação com Mareia. Francamente, estou-me nas tintas para aquilo que pensam. Passámos alguns bons bocados juntos.
- Então porque é que deixou de andar com ela?
- Quem é que disse que eu deixei de andar com ela?
- Acabou de nos dizer que a última vez que esteve com ela foi no Dia do Trabalhador, no dia 5 de Setembro.
- Exacto.
- Tentou contactá-la depois disso?
- Não, mas...
- Telefonou-lhe? Escreveu-lhe?
- Para que é que lhe havia de escrever? Vivemos ambos na mesma maldita cidade
- Mas não lhe telefonou.
- Posso ter telefonado. Não me lembro.
- Seja como for, a última vez que a viu foi no dia 5 de Setembro.
- Quantas vezes é que é preciso dizer a mesma coisa? Sim. No Dia do Trabalhador. No dia 5 de Setembro, se foi nesse dia que calhou.
- Foi.
- Então, pronto. Carella olhou para Hawes.
- Mr. Benson - disse - cortou o cabelo no sábado, dia 3 de Setembro?
- Não, nunca corto o cabelo ao sábado.
- Quando é que corta o cabelo?
- À terça-feira à tarde. Temos reunião de direcção todas as terças-feiras às duas da tarde e vou normalmente cortar o cabelo às quatro.
- Corta o cabelo todas as terças-feiras?
- Não, não. De três em três semanas.
- Então não foi cortar o cabelo no sábado, dia 3 de Setembro?
- Não fui.
- Quando é que cortou o cabelo pela última vez? - perguntou Hawes.
- Terça-feira passada.
- Então foi no dia 4 de Outubro - disse Carella, olhando para o calendário.
- Imagino que sim.
- E três semanas antes disso terá sido no dia 13 de Setembro.
- Se é isso que o calendário mostra.
- E três semanas antes disso terá sido a 23 de Agosto.
- Onde é que querem chegar com isto? Importam-se de me dizer? Acham que preciso de um corte de cabelo?
- Mr. Benson, disse-nos que deixou o seu robe no apartamento de Miss Schaffer no dia 5 de Setembro, da última vez que a viu.
- Exacto.
- E não voltou a vê-la depois disso.
- Não.
- Não esteve com ela no dia 15 de Setembro? Dois dias depois de ter ido cortar o cabelo?
- Não.
- E não esteve com ela no dia 6 de Outubro? Novamente dois dias depois de ter cortado o cabelo?
- Não estive com ela em nenhum desses dias. A última vez que a vi foi...
- Sim, já nos disse. No Dia do Trabalhador.
- Porque é que nos está a mentir? - perguntou Hawes num tom brando.
- Como?
- Mr. Benson - disse Carella -, o relatório do laboratório indica que o senhor cortou o cabelo quarenta e oito horas antes de alguns cabelos ficarem depositados no seu robe. Disse-nos que tinha deixado ficar o robe lá no Dia do Trabalhador, mas como não cortou o cabelo no dia 3 de Setembro, ou lá deixou ficar o robe depois de um corte de cabelo anterior, ou o deixou lá depois de um corte de cabelo posterior, mas não o podia lá ter deixado ficar no dia 5 de Setembro, dia em que afirma ter visto Mareia Schaffer pela última vez.
- Portanto, porque é que nos está a mentir? - perguntou Hawes. -Talvez a tenha visto depois do Dia do Trabalhador - disse Benson. -Qual foi a data que referiram? A do meu penúltimo corte de cabelo?
- Diga-nos o senhor - disse Carella.
- Foi quando foi. No dia 14, 15. Foi quando foi. - Pegou no copo de martini e deu um golo rápido.
- Mas não nesta última semana, hem? Não no dia 6 de Outubro?
- Não, disso estou certo.
- Não esteve com Mareia Schaffer no dia 6 de Outubro, dois dias depois de ter cortado o cabelo da última vez? Não se esqueceu do seu robe no apartamento dela no dia 6 de Outubro?
- Tenho a certeza absoluta de que não.
- Onde é que esteve no dia 6 de Outubro, Mr. Benson?
- Que dia foi?
- Uma quinta-feira. Quinta-feira da semana passada, Mr. Benson.
- Bom, tenho a certeza de que estive a trabalhar.
- Durante todo o dia de quinta-feira?
- Sim, todo o dia.
- Não esteve com Miss Schaffer na noite de quinta-feira?
- Não, tenho a certeza de que não estive. E na noite de quarta-feira}
Benson voltou a beber um golo do martini.
- Esteve com ela na noite de quarta-feira} - perguntou Hawes.
- No dia 5 de Outubro? - perguntou Carella.
- Mr. Benson? - disse Hawes.
- Esteve com ela nessa noite? - disse Carella.
- Pronto - disse Benson, pousando o copo. - Pronto, estive com ela na noite de quarta-feira passada, estive com ela na noite de quarta-feira passada. Fui lá assim que saí do escritório, jantámos juntos e passámos o... o resto da noite...
Os detectives não disseram nada. Esperaram.
- ... na cama, para ser franco - disse Benson, suspirando.
- Quando é que saiu do apartamento? - perguntou Carella.
- Na manhã seguinte fui directo para o escritório. Mareia ia para a universidade.
- Isto foi na quinta-feira de manhã, dia 6 de Outubro.
- Sim.
- Foi nessa altura que se esqueceu lá do robe?
- Sim.
- A que horas foi isso, Mr. Benson?
- Saí do apartamento por volta das oito e meia.
- E tinha ido cortar o cabelo às quatro da tarde de terça-feira.
- Sim.
- Representa um período de cerca de quarenta horas - disse Carel-la a Hawes.
- É uma margem aceitável - disse Hawes, assentindo.
- Onde é que estava na noite de quinta-feira por volta das sete? -perguntou Hawes.
- Pensei que ninguém tivesse dito que eu a matei - disse Benson.
- Ainda ninguém o disse.
- Então porque é que querem saber onde é que eu estive na noite de quinta-feira? Foi nessa altura que ela foi morta, não foi? Na quinta-feira à noite?
- Foi nessa altura que ela foi morta.
- Bom, onde é que esteve na quinta-feira à noite? - perguntou Carella.
- Por volta das sete, mais coisa, menos coisa - disse Hawes.
- Estava a jantar com uma amiga.
- Que amiga?
- Uma mulher que eu conheço.
- Como é que se chama?
- Porque é que têm de a envolver nisto?
- Qual é o nome dela, Mr. Benson?
- É apenas uma conhecida, uma pessoa que conheci na agência.
- Ela trabalha na agência?
- Sim.
- Como é que se chama? - perguntou Hawes.
- Prefiro não dizer.
Hawes e Carella olharam um para o outro.
- Que idade é que esta tem? - perguntou Hawes.
- Não se trata disso. Não é menor.
- Então o que é? Benson abanou a cabeça.
- Limitou-se a vc jantar com ela na quinta-feira passada? - perguntou Carella.
- Foi mais que um jantar - disse Benson baixinho.
- Foi para a cama com ela - disse Hawes.
- Fui para a cama com ela.
- Onde?
- No meu apartamento.
- Na Boudler Street.
- Sim, é aí que vivo.
- Jantou com ela às sete...
- Sim.
- E foi com ela para o apartamento a que horas?
- Por volta das nove.
- E foi para a cama com ela.
- Sim.
- A que horas é que ela saiu do apartamento?
- Por volta da uma; um pouco mais tarde.
- Como é que ela se chama, Mr. Benson? - perguntou Hawes.
- Olhe... - disse Benson, suspirando. Os detectives esperaram.
- Ela é casada, percebem? - disse Benson.
- OK. - disse Hawes -, é casada. Como é que se chama?
- É casada com um chui - disse Benson. - Olhem, não a quero meter em sarilhos. Trata-se de um assassínio.
- Está a dizer-nos isso a nós} - disse Carella.
- A questão... a questão... é que esta coisa está a atrair muitas atenções. O de ontem à noite...
- Ah, então tem conhecimento do de ontem à noite? - perguntou Hawes.
- Sim, foi noticiado na televisão esta manhã. Se der a ideia de que a mulher de um chui está envolvida...
- Envolvida como? - perguntou Carella. - Ela está envolvida?
- Estou a falar de envolver o nome dela nisto. Suponham que os jornais descobrem? A mulher de um chui} Passaria um mau bocado.
- Nós guardamos segredo - disse Carella. - Como é que ela se chama?
- Prefiro não dizer.
- Onde é que o marido trabalha? - perguntou Hawes. - O tal chui}
- Prefiro não dizer.
- Onde é que esteve a noite passada? - perguntou Hawes, inclinando-se subitamente na direcção de Benson.
- O quê? - disse Benson.
- A noite passada, a noite passada - disse Hawes. - Quando raio é que foi a noite passada, Steve? Tens aí o calendário.
- O quê? - disse Carella. Ouvira o que Hawes dissera e não lhe estava a perguntar o que fora. Estava simplesmente surpreendido pelo súbito tom de ira na voz de Hawes. Bom, Benson ia para a cama com a mulher de um chui, uma coisa que não era propriamente novidade nos anais do departamento, e o recente divórcio de Bert Kling fundamentara-se exactamente numa situação idêntica. Então porquê a súbita ira?
- O quê? - repetiu.
- A data de ontem à noite - disse Hawes impacientemente. -Diz-lha.
- 13 de Outubro - disse Carella.
- Onde é que esteve na noite passada, na noite de 13 de Outubro? - perguntou Hawes.
- Com... ela - disse Benson.
- A mulher do chui}
- Sim.
- Outra vez na cama com ela?
- Sim.
- Gosta de viver em perigo, não gosta? - disse Hawes, com o mesmo tom de ira na voz, com os olhos azuis a faiscar e o cabelo ruivo como se se tivesse subitamente incendiado. - Como é que ela se chama?
- Não lhe quero dizer.
- Como raio é que ela se chama? - continuou Hawes, agarrando o braço de Benson.
- Ei - disse Carella - calma.
- O nome dela - repetiu Hawes, apertando com mais força o braço de Benson.
- Não lhe posso dizer - disse Benson. Carella suspirou profundamente.
- Mr. Benson - disse -, apercebe-se certamente...
- Largue-me o braço - disse Benson a Hawes.
- Apercebe-se certamente de que Mareia Schaffer foi morta na noite de quinta-feira passada... - disse Carella.
- Sim, merda, eu sei isso! Largue-me o braço! - disse novamente a Hawes, tentando libertar-se. Os dedos de Hawes continuaram fincados com a mesma força.
- É de que o seu álibi para essa noite...
- Não é um álibi!
- ... e para a sexta passada, quando uma outra pessoa foi...
- Não matei nenhuma delas!
- A única pessoa que pode testemunhar...
- O nome dela é Robin Steele, raios o partam! - disse Benson, e Hawes largou-lhe o braço
Havia alturas em que Cotton Hawes desejava realmente ter o nome de Grande Boi que Peida Horse. Odiava o nome Hawes. Era difícil de pronunciar. Parecia o nome de uma doença qualquer e ele odiava o nome. Também odiava o nome Cotton. Ninguém no mundo se chamava Cotton, a não ser Cotton Mather, e ele morrera em 1728. Mas o pai de Hawes era um homem religioso e considerava Cotton Mather o melhor dos padres puritanos. Por isso dera o nome dele ao filho em honra do Discípulo de Deus colonial que dera caça a bruxas com os piores dos seus companheiros. O pai de Hawes apagara muito convenientemente os julgamentos de Salem - o pai dele era perito em apagar coisas - tal como as mesquinhas vinganças pessoais de uma cidade que se alimentava do medo que ela própria cultivava. Jeremiah Hawes (porque é que não se limitara a dar a Hawes o nome de «Jeremiah Jr.»?) ilibara Cotton Mather e o papel que o padre desempenhara em levar o fanatismo ao rubro, e dera o seu nome ao filho em sua honra. Porque é que não lhe dera o nome de «Lefty? Hawes não era canhoto, mas teria preferido «Lefty» a «Cotton». Lefty Hawes. Assustaria qualquer assaltante de segunda na rua.
Também havia alturas em que Hawes odiava todas as pessoas que não eram polícias. Isto também se aplicava às mulheres e às namoradas dos polícias. Como não pertenciam à Corporação, não faziam ideia do inferno que aquilo era. Quando se saía com um outro polícia e com as respectivas namoradas, tentava-se explicar às mulheres que nessa tarde quase tinham sido alvejados, e elas preferiam falar das unhas. De um verniz de unhas novo que fazia que as unhas crescessem. Umas horas antes, uns tipos com uma Magnum .357 tinham tentado estoirar com Um tipo e elas queriam falar de unhas. Como não pertenciam, não compreendiam. Hawes tinha uma vez dito a Meyer que a Guerra das Estrelas estava errada. Não devia ser «Que a Força esteja contigo». O que devia ser, era «Que tu estejas com a força».
Qualquer pessoa que não pertencesse à Corporação não queria realmente ouvir falar do que era ser polícia. Todos concordavam que aquela cidade era um sítio agradável de se visitar, mas quem é que lá quereria viver? Muito embora lá vivessem, queixavam-se de lá viver. Mas as coisas de que se queixavam não eram as coisas que tornavam
a vida ali realmente difícil - e impossível de ali trabalhar se se era polícia. Não conheciam o submundo. Não queriam ouvir falar do submundo daquela cidade ou de qualquer cidade. O submundo era sórdido, viscoso e estava cheio de vermes. A vida de trabalho de um polícia era no submundo, dia sim, dia sim.
As mulheres e as namoradas dos polícias compreendiam que os seus homens passavam vinte e quatro horas por dia no submundo, mas não queriam ouvir descrições dele. Diziam novenas nas igrejas, rezavam para que não acontecesse nada aos seus homens, mas não queriam saber nada acerca do submundo. Por vezes rezavam para que não tivessem de ouvir nada sobre ele, para que não tivessem de saber nada sobre aquele sórdido e viscoso submundo cheio de vermes. Por vezes tentavam esquecer indo para a cama com alguém que não era polícia. Depois, rezavam para que os seus pecados lhe fossem perdoados - mas pelo menos não tinham de tocar naquela coisa viscosa e ficar com os dedos peganhentos e sujos.
O marido de Robin Steele trabalhava na Dois-Seis, na parte baixa da cidade.
Era polícia de giro.
Estava na Polícia há três anos, ainda não há tempo suficiente para se queimar, especialmente numa esquadra como a Dois-Seis.
Mas Robin Steele já ia para a cama com Martin J. Benson há seis meses.
Ela confirmou que tinha estado com Benson na noite de 6 de Outubro, enquanto o marido andava num carro-patrulha sujeito a ser alvejado. Confirmou que tinha estado com ele na noite anterior, enquanto o marido andava mais uma vez a patrulhar as ruas da cidade. Pediu-lhes para por favor não dizerem nada ao marido sobre aquilo. Disse a Carella que amava muito o marido e que de forma alguma o queria magoar. Sabia que ele tinha uma profissão perigosa e não queria que ele tivesse preocupações quando andava a cumprir o seu dever. Quando Hawes lhe perguntou se ela sabia que não era a única mulher na vida de Benson, ela disse:
- Claro, mas isso não interessa.
«Nada interessava», pensou Hawes.
Excepto que alguém andava a pendurar raparigas em postes de candeeiros.
Achou que ia telefonar a Annie Rawles porque queria ter a companhia de uma mulher que fosse polícia. Queria poder descontrair-se com alguém sem ter de explicar o inferno que era uma lista de turnos. Queria estar com alguém que compreendesse automaticamente o submundo. Primeiro pensou que talvez experimentasse a sua sorte com a Dorothy Hudd do colar de pérolas e dedos inquietos. Chegou mesmo a procurar o nome dela na lista telefónica de Isola, tendo encontrado uma D. Hudd (porqvic é que as mulheres só utilizavam a inicial do primeiro nome na lista telefónica, que era um convite claro aos que faziam telefonemas obscenos?, marcou os dois primeiros números e desligou, apercebendo-se de que não queria estar com um ciume num dia em que um bom suspeito fornecera um excelente álibi.
Telefonou para a Central da Polícia, identificou-se como polícia em Serviço, disse à funcionária que tomou nota do seu número e posto que testava a trabalhar num caso com a detective Rawles da Brigada de Violações, e obteve o número do telefone de casa dela em poucos minutos. «Provavelmente é casada», pensou Hawes enquanto marcava o número. Mas não vira aliança na sua mão. Talvez os polícias da Brigada de violações não usassem aliança. Ouviu o telefone tocar do outro lado.
- Está? - disse uma voz de mulher.
- Miss Rawles? - disse ele.
- Sim?
- Cotton Hawes - disse.
- Quem? - disse ela.
- Hawes. Da Oito-Sete. Esteve lá a semana passada por causa de um caso de violação e falámos...
- Sim, já sei, olá - disse Annie. - Hawes. O ruivo.
- Sim - disse Hawes.
- Apanharam-no? - perguntou ela.
- O quê?
- O violador.
- Não, não - disse Hawes. - Eileen Burke foi lá hoje à tarde e eu rdeduzi que ela tenha sido destacada...
- Sim.
- Mas creio que só começará amanhã.
- Exacto. Pensei que tivesse caído um raio.
- Não tivemos essa sorte. Houve um longo silêncio na linha.
- Bom... hum... então? - perguntou Annie. Hawes hesitou.
- Está? - disse Annie.
- Estou, continuo em linha. - Hawes voltou a hesitar. - Você não é casada ou qualquer coisa assim, pois não?
- Não, não sou casada - disse Annie. Ele pensou detectar um sorriso na voz dela.
- Já jantou? Eu sei que são sete e meia, portanto talvez já tenha...
- Não, ainda não jantei - disse ela. Ele tinha a certeza de que ela estava a sorrir. - Só cheguei a casa há uns minutos.
- Quer... hum?...
- Claro - disse ela. - Passa por cá ou quer que nos encontremos em qualquer lado?
- Às oito está bem? - perguntou Hawes.
Jantaram num restaurante chinês, e depois foram para casa de Annie. Ela vivia num velho edifício de tijolo em Langley Place, perto da Três-Um, que era uma das esquadras mais antigas da cidade e que ainda tinha uma caldeira a carvão na cave. Ela disse-lhe que tinha a certeza de que a sua presença no edifício era responsável pelo facto de não ter havido lá nenhum roubo nos últimos três anos. Achava que correra palavra que uma mulher polícia vivia no edifício. Disse-lhe isto enquanto deitava conhaque em dois balões.
Vestia um vestido azul de corte simples e sapatos de verniz de saltos altos; ele duvidava que ela tivesse ido trabalhar assim vestida. Tinha o ar que qualquer civil bonita podia ter - cabelo preto cortado curto, olhos castanhos por detrás de óculos com aros pretos, o vestido azul de corte simples, um fio e uma corrente de ouro -, bem, não. Uma civil daquela cidade não se arriscaria a usar um fio de ouro. Uma mulher polícia com uma .38 na carteira podia atrever-se a usá-lo. Mas exceptuando isto, não parecia polícia; algumas das mulheres polícias da cidade pareciam estivadores, com grandes armas à anca, cintos com munições e enormes rabos. Annie Rawles parecia uma colegial. Dizia-se que tinha mandado desta para melhor dois marginais que estavam a tentar roubar um banco, mas Hawes não conseguia visualizar a cena. Não a conseguia imaginar agachada, a apontar a arma e a disparar os tiros que tinham sido necessários para arrumar os filhos da puta. Tentou imaginar a cena. Ao aceitar o balão de brande, apercebeu-se de que estava a olhar para ela fixamente.
- Passa-se alguma coisa? - disse ela, sorrindo.
- Não, não - assegurou-lhe Hawes. - Estava só a lembrar-me de que é polícia.
- Às vezes bem gostava de me esquecer disso - disse Annie. Sentou-se no sofá ao seu lado, dobrando as pernas sob o corpo.
A sala estava agradavelmente mobilada, com uma salamandra a carvão pronta a ser acesa na parede em frente ao sofá, quadros em todas as paredes, um balcão de copa que dava para uma cozinha muito arrumada com tachos e panelas com fundo de cobre pendurados. Os móveis pareciam ser de qualidade; lembrou-se de que ela ganhava 37 935 dólares por ano como detective de primeira classe. Deu um golo no conhaque.
- Óptimo - disse.
- O meu irmão trouxe-mo de França - disse ela.
- Que é que ele faz?
- Importa peixe - disse ela. - E não se ria.
- Que tipo de peixe? '
- Salmão. Principalmente salmão irlandês. Um produto muito caro. Custa qualquer coisa como setenta e seis dólares o quilo.
- Caramba - disse Hawes. - Então a que propósito França?
- O quê? Ah, fez um desvio. Juntou o prazer aos negócios.
- Nunca fui a França - disse Hawes com uma certa pena.
- Também eu não - disse Annie.
- No entanto, o Popeye foi a França.
- O Popeye?
- The French Connection. Não viu esse filme? Não aquele em que ele vai a França, esse era uma porcaria. O primeiro.
- Vi e achei-o bastante realista.
- Sim, com ele ali ao frio e tudo o mais. Aquilo aconteceu ao Carella, sabe?
- Quem é o Carella?
- O tipo com quem estou a trabalhar nestes homicídios, um bom polícia.
- Que é que lhe aconteceu?
- Fizeram que ele ficasse toxicodependente. Num caso em que estava a trabalhar. Fizeram que ficasse dependente de heroína. Como o Popeye no segundo filme French Connection. Só que isso aconteceu ao Carella antes de sequer haver o filme. Quero dizer, aconteceu-lhe mesmo na vida real.
- E agora está bem?
- Claro. Bem, ficou dependente, mas não durante muito tempo e, além disso, foi uma coisa que lhe fizeram, não foi ele que se ofereceu.
- Portanto, libertou-se da droga?
- Libertou.
- É divertido ser polícia, não é?
- Divertidíssimo - disse Hawes. - Como é que veio parar à polícia? - Achei que seria um trabalho entusiasmante - disse Annie. - E acho que é. Não acha?
- Diria que sim.
- Tinha acabado de sair da universidade...
- Continua a parecer uma universitária.
- Obrigada.
- Que idade é que tem} - perguntou ele.
- 34 - disse Annie de imediato. Gostava daquela característica das mulheres polícias. Não faziam conversa fiada. Fazia-se uma pergunta e obtinha-se uma resposta directa.
- Há muito tempo que faz este trabalho?
- Há oito anos.
- Antes disso esteve nos Roubos, certo? - disse Hawes.
- Sim. Bem, antes disso estive na Brigada Antiassalto. Fui para lá ssim que obtive a insígnia de ouro. Depois fui para os Roubos, e agora estou nas Violações. E você?
- Estou na Oito-Sete há tantos anos que já lhes perdi a conta - dis-se Hawes. Antes disso estive na Três-Zero, numa esquadra cheia de pergaminhos, conhece?
- Sim - disse Annie, assentindo e bebendo lentamente o conhaque.
- Aprendi muito lá na parte alta da cidade - disse ele.
- Acredito - disse Annie. Ficaram calados durante alguns instantes. Ele queria perguntar-lhe
em que universidade andara, em que é que se licenciara, se tivera receio de trabalhar na Brigada Antiassalto, cujo objectivo principal - antes de ser desmembrada - era vigiar dentro de lojas que já tinham sido assaltadas, à espera de emboscar qualquer assaltante que voltasse pela segunda vez. A Brigada Antiassalto já tinha dado cabo de quarenta e quatro assaltantes armados quando o comissário decidira que aquela operação não era uma coisa da qual o Departamento se devesse orgulhar. Hawes pensou se ela teria abatido alguém a tiro enquanto trabalhara na Brigada Antiassalto. Ainda havia uma série de perguntas que gostaria de lhe fazer. Sentiu que a começava a conhecer melhor, mas ainda havia muitas perguntas a fazer-lhe. No entanto, ao sentir-se totalmente descontraído e seguro, não lhe fez mais nenhuma pergunta. Como se a conhecesse desde sempre, disse apenas:
- Passado algum tempo, afecta-nos. O trabalho.
Ela olhou para ele durante aquilo que lhe pareceu uma infinidade de tempo antes de responder.
- Sim - disse com toda a simplicidade. - Afecta-nos. Continuaram a olhar um para o outro.
Hawes assentiu.
- Bom - disse, olhando para o relógio -, se o seu dia foi semelhante ao meu...
- Foi duro - disse ela, assentindo.
- Bom - disse ele, levantando-se, pouco à vontade. - Obrigado pelo conhaque. O seu irmão tem bom-gosto.
- Obrigada pelo jantar - disse ela.
Ela não se levantou. Ficou sentada, com as pernas dobradas sob o corpo, a olhar para ele.
- Temos de voltar a jantar juntos - disse ele.
- Gostaria muito.
- Na realidade... amanhã estou de folga - disse ele. - Talvez possamos...
- Só tenho de me apresentar às quatro - disse ela.
- Talvez... bem, não sei. Que é que você gostaria de fazer?
- Bom, não sei, Marty - disse ela a sorrir. - Que é que você gostaria de fazer?
- Adoro aquele filme - disse ele.
- Também eu.
- Voltei a vê-lo na televisão a semana passada.
- Também eu.
- Está a gozar.
- Não, vi-o a semana passada. -Já bem tarde, certo?
- Por volta das duas da manhã.
- E esta, hem? - disse ele. - Estivemos ambos a ver o mesmo filme em pontos opostos da cidade.
- Que pena - disse ela.
Os seus olhares cruzaram-se.
- Bom - disse ele - telefono-lhe de manhã, OK? Vou tentar pensar disse Annie.
numa coisa que possamos... - Vamos não ser idiotas
Eileen Burke estava na cama de Kling.
Já tinham relações íntimas há oito meses, mas o sexo naquela noite tinha sido tão ardente e improvisado como da primeira vez. Quando finalmente expiraram na respectiva pequena morte tão versada literariamente, e depois de se terem assegurado mutuamente, como era obrigatório, de que fora tão bom para ela como vice-versa, e depois de Eileen ter ido à casa de banho fazer chichi e depois de Kling ter atravessado nu o quarto para abrir a janela, deixando entrar os ruídos do trânsito nocturno lá em baixo, voltaram a deitar-se abraçados. A mão de Eileen estava pousada no peito de Kling e a mão deste aconchegava-lhe um seio.
Só passado algum tempo é que Eileen lhe disse o que a estava a preocupar.
- Tenho estado a pensar no trabalho - disse.
Kling também tinha estado a pensar no trabalho. Kling tinha estado a pensar que os enforcamentos ocorridos na zona da Oito-Sete eram obra do Homem Surdo.
- Não me estou a referir a este trabalho específico - disse Eileen. -Nesta história de me disfarçar de Mary Hollings.
- A vítima da violação, certo? - disse Kling.
- Estou a referir-me ao trabalho em si.
- Queres dizer ao seres polícia?
- Ser este tipo de polícia - disse Eileen.
«Tem de ser o Homem Surdo», pensava Kling. Os factos correspondiam ao perfil do Homem Surdo. Há muito tempo que não ouviam falar nele, mas tudo aquilo apontava para ele. Se não, porque é que alguém se teria dado ao trabalho de lhes facilitar a identificação das vitimas?
- Ser chamariz, isto é - disse Eileen.
Kling estava a recordar a primeira vez que o Homem Surdo dera sinal de vida. Tinha sido uma época extremamente difícil para a Oito-Sete, pois nessa altura não sabiam com o que estavam a lidar. A única coisa que sabiam era que alguém estava a forçar um homem - como diabo é que ele se chamara? Meyer tinha apanhado o primeiro denunciador, um tipo que fora criado pelo pai, que foi à esquadra dizer-lhe -como diabo é que se chamava? Haskins? Baskin?
- Estou a começar a pensar que é aviltante - disse Eileen.
- O quê? - perguntou Kling.
- Ser chamariz. Quero dizer, para além do facto de me parecer Uma armadilha...
- Bom, não é bem uma armadilha - disse Kling.
- Eu sei que não é, mas sinto como se fosse - disse Eileen. - Quero dizer, estou lá à espera que um tipo me vá violar... não é isso?
- Bom, não será realmente violar.
- Tentar violar-me, certo?
- Para poderes impedir que ele viole outra pessoa - disse Kling.
- Bom, pois, é isso - disse Eileen.
«Raskin», lembrou-se. O nome dele era David Raskin. E alguém estava a tentar que ele saísse de um sótão na Culver Avenue, um pequeno sótão sem condições que Raskin utilizava para armazenar vestidos, pois o tipo trabalhava nesse ramo. Sim, David Raskin. Primeiro começou a receber telefonemas ameaçando que seria morto se não saísse do sótão. Depois, o tipo que o ameaçara ao telefone - nessa altura não sabiam ainda que se tratava do Homem Surdo - começou a mandar-lhe papel de carta que ele não encomendara, e depois uma empresa que fornecia tudo para recepções e banquetes fez a entrega de uma enorme quantidade de cadeiras e comida que dava para alimentar o exército russo e depois apareceram em dois jornais da manhã anúncios pedindo ruivas para passar vestidos, e foi nessa altura que descobriram uma pista para o que estava a passar-se: alguém os estava a remeter para The Redheaded League, de Conan Doyle, e esse alguém assinava L. Sordo. que em espanhol significava Homem Surdo, e estava a tentar dar-lhes pistas prévias sobre o que tencionava fazer.
Só que não estava a tentar ajudá-los. Estava a usá-los da mesma forma que tinha usado Raskin, dando-lhes indicações falsas sobre a sua intenção de assaltar o banco por debaixo do sótão de Raskin, quando na realidade o seu plano era assaltar um outro banco. Tinha andado a brincar com eles. A fazer que se sentissem idiotas e incompetentes. A fazer que andassem numa caça aos gambuzinos enquanto ele organizava o assalto, provavelmente a rir-se como um perdido.
Carella apanhara um tiro da primeira vez que o Homem Surdo se dera a conhecer à 87.ª Esquadra.
Se o Homem Surdo fosse agora responsável pelos dois enforcamentos...
- Faz-me sentir assim como que um objecto sexual - disse Eileen.
- E és assim como que um objecto sexual - disse Kling, beliscan-do-lhe o mamilo na brincadeira.
- Estou a falar a sério - disse ela.
E explicou-lhe em seguida que não teria sido escolhida para aquele trabalho específico na Polícia se não fosse mulher, o que em si já era
aviltante porque ninguém na Corporação sonharia em destacar um
polícia homem para atrair um violador - isto se ele lhe estivesse a prestar atenção. Kling poderia ter protestado que polícias homens tinham sido usados em trabalhos semelhantes - o que de qualquer forma era completamente contrário à psicologia do violador. Um violador não estava interessado em mamas ou em rabos, não estava interessado em ver pernas ou coxas, estava interessado em satisfazer a sua raiva particular que nada tinha a ver com sexo ou desejo. Mas os chauvinistas cretinos do departamento mandavam-na para a rua para se exibir como uma pega na esperança de que ela obrigasse - sim, obrigasse -um louco qualquer a arrastá-la para o meio de uns arbustos onde ela enfiaria a arma na boca dele; tudo aquilo era degradante e fazia que ela se sentisse viscosa à noite quando se despia, fazia que ela sentisse vontade de se esfregar três vezes para fazer desaparecer a porcaria que o trabalho lhe punha no corpo. Que raio é que uma senhora como An-nie Rawles estava a fazer na Brigada de Violações quando já dera cabo de dois tipos quando estivera nos Roubos? Que significava isso senão a visão chauvinista de que uma mulher polícia só servia para um certo tipo de trabalho na Polícia, enquanto um polícia homem podia escolher qualquer trabalho que quisesse?
- Que trabalho é que tu queres' - perguntou Kling.
- Talvez peça transferência para os Narcóticos - disse ela.
- É a mesma coisa - disse ele. - Só que aí serás chamariz para traficantes.
- Não é a mesma coisa - disse Eileen.
Mas Kling ainda estava a pensar no Homem Surdo.
Tinha rebentado com metade da cidade.
Isso fora da primeira vez.
Tinha feito explodir bombas incendiárias e explosivas por toda a cidade para desviar a atenção da Polícia, para causar pânico e confusão enquanto tratava de roubar um banco. Não se preocupou minimamente com o caos que semeava ou com a perda de vidas provocada pela sua manobra.
Isso fora da primeira vez.
Carella normalmente bloqueava a recordação dessa primeira vez porque fora nessa altura que apanhara um tiro. Não gostava de pensar no tiro que apanhara. Já tinha sido alvejado antes, por um traficante de droga em Grover Park, e também não gostava de recordar essa cena de tiroteio. Portanto sempre que pensava no Homem Surdo, como acontecia naquela noite, tinha tendência para pensar apenas na segunda e terceira vez que o Homem Surdo os fora atormentar. Parecia-lhe inacreditável terem sido apenas três vezes. No seu espírito, e no da maioria dos detectives da brigada, o Homem Surdo era uma lenda, e as lendas não tinham origem, as lendas eram omnipresentes, as lendas eram eternas. Só a própria ideia do Homem Surdo poder aparecer outra vez provocava um arrepio de apreensão na espinha de Carella. Sempre que o Homem Surdo aparecia - e certamente que aqueles enforcamentos tinham a sua assinatura -, os homens da Oito-Sete começaram a ter o comportamento de Keystone Kops num filme mudo a preto e branco. Carella não gostava de se sentir idiota, mas o Homem Surdo fazia que todos se sentissem idiotas.
Achava que era o cúmulo da ironia da sua vida o homem que estava a ser o nemésis da 87.ª Esquadra se anunciar como sendo surdo - se, na realidade, o era - enquanto a única pessoa importante da sua vida.
A sua mulher Teddy, era de facto surda. E também não conseguia falar. Pelo menos com voz, embora falasse imenso de outras formas, com o seu rosto expressivo, com os seus olhos. E «ouvia» cada palavra que o marido proferia, com os olhos fitos nos seus lábios quando ele falava, ou nas suas mãos, quando utilizava a linguagem gestual que ela lhe ensinara quando se tinham casado.
Teddy estava a falar com ele naquele momento.
Tinham acabado de fazer amor.
As primeiras palavras que ela lhe dissera foram «Amo-te».
Utilizava o sinal informal, uma mistura das letras «a», «m» e «t», com a mão direita encostada ao peito, o dedo mindinho, o indicador e o polegar estendidos e os dois outros dedos dobrados contra a palma da mão. Ele respondeu com o sinal mais formal de «Amo-te», primeiro tocando no peito com a ponta do indicador, depois fechando as duas mãos para indicar o «a», cruzando os braços ao nível dos pulsos e colocando as mãos sobre o peito; finalmente, apontou para ela com o indicador - um «eu» simples, «amo-te».
Beijaram-se de novo.
Ela suspirou.
Depois ela começou a contar-lhe como tinha sido o seu dia.
Ele já sabia há algum tempo que ela estava interessada em arranjar um emprego. Fanny estava com eles desde que os gémeos tinham nascido e cuidava da casa eficientemente. Os gémeos - Mark e April - tinham agora 11 anos e passavam a maior parte do dia na escola. Teddy aborrecia-se de apenas jogar ténis ou de ir almoçar com as «raparigas». Fez o sinal significando «rapariga» com o punho direito, levando depois a ponta do polegar à face e passando-a ao longo da linha do maxilar; para indicar o plural, indicou rapidamente vários sítios com o indicador estendido. Mais de uma rapariga. Mas o seu olhar e a expressão no seu rosto indicavam claramente que estava a utilizar a palavra depreciativamente; não se considerava uma «rapariga», e muito menos uma das «raparigas».
Enquanto escutava aquilo - e estava de facto a escutar, muito embora estivesse a observar -, Carella pensou na segunda vez que o Homem Surdo entrara na vida movimentada da 87. Esquadra. Fora novamente Meyer que tinha sido contactado, por mero acaso, pois fora ele a atender o telefone. Do outro lado da linha estava o próprio Homem Surdo, que ameaçou matar o comissário dos parques se não recebesse cinco mil dólares até ao meio-dia. O comissário dos parques foi morto a tiro na noite seguinte.
«Bem, fui àquela agência imobiliária na Cumberland Avenue esta manhã», dizia Teddy com as mãos, com os olhos e com o rosto. «Tinha-lhes escrito uma carta em resposta-a um anúncio no jornal, dizen do qual tinha sido o meu trabalho antes de me casar e de ser mãe...»
(Carella recordou-se. Conhecera Theodora Franklin quando estava a investigar um roubo por assalto numa pequena empresa na zona limítrofe da esquadra. Ela trabalhava lá a endereçar sobrescritos. Bas-tou-lhe olhar para a linda rapariga de olhos castanhos e cabelo preto sentada à máquina de escrever para saber imediatamente que aquela era a mulher com quem queria compartilhar o resto da sua vida.)
«... e eles escreveram-me a marcar uma entrevista. Portanto, esta manhã embonequei-me toda e fui lá.»
Para exprimir a palavra em calão «embonequei-me», primeiro fez um«x» com o indicador curvado à frente do nariz duas vezes. Para indicar que «boneca» estava no passado fez imediatamente o sinal que significava «terminado». Para indicar «toda», fez o gesto circular que qualquer pessoa que não fosse surda-muda faria. Embonecada. Carel-la percebeu logo e imaginou-a com um fato elegante e de saltos altos a apanhar o autocarro para Cumberland Avenue, que ficava a uns três quilómetros e meio de casa.
De seguida, as suas mãos e olhos, bem como o seu rosto expressivo, irromperam numa torrente de informações. «E, admiração das admirações», disse-lhe ela, «a senhora é surda-muda. A senhora não consegue ouvir, a senhora não consegue ouvir, a senhora - por mais inteligente que a sua carta tenha parecido, por mais esperta e viva que pareça em pessoa - não fala nem ouve, a senhora não serve de todo. Isto apesar do facto de o anúncio apenas pedir alguém para escrever à máquina e arquivos. Isto apesar do facto de eu estar a ler os lábios daquele gordo filho da mãe que me entrevistou e a compreender cada uma das palavras que dizia - o que não foi fácil, pois estava a mascar um charuto -, isto apesar do facto de eu ainda conseguir dactilografar sessenta palavras por minuto depois destes anos todos; ora, para o raio que o parta. Se ele pensou que eu era estúpida (bateu com os nós dos dedos na testa para indicar a palavra «estúpida»), o que decorre naturalmente de se ser muda, certo? (tocou primeiro na boca, e depois na orelha com o dedo indicador). Surda e estúpida, certo? Merda», disse, fazendo os sinais alfabéticos para dar maior ênfase, «M-E-R-D-A!»
Ele abraçou-a.
Ia a confortá-la, dizer-lhe que havia pessoas ignorantes neste mundo que eram incapazes de julgar o valor de uma pessoa por qualquer outro meio que não fossem provas exteriores óbvias, quando ela voltou a fazer sinais. Ele leu as mãos dela e a ira no seu olhar.
«Não vou desistir», disse ela. «Vou arranjar um maldito emprego.»
Rolou na direcção dele e Carella sentiu o gesto determinado que ela fez com a cabeça contra o seu ombro. Levando a mão à mesinha-de-cabeceira, apagou a luz. Ouvia-a a respirar na escuridão ao seu lado. Sabia que ela ia ficar acordada durante muito tempo, planeando o que iria fazer. Subitamente, voltou a pensar no Homem Surdo. Estaria ele deitado, acordado, algures, a planear a sua acção seguinte? Uma outra rapariga pendurada num poste de candeeiro? Uma outra jovem corredora abatida na flor da idade? Mas porquê?
Da segunda vez, matara sem o menor sentido o comissário dos Parques, depois o vice-presidente da Câmara (e um punhado de alvos que por acaso estavam nas proximidades quando o carro do vice-presidente da Câmara explodira) e depois ameaçara matar o próprio presidente da Câmara, tudo aquilo fazendo parte do seu plano mais ambicioso. Que plano? O de extorquir cinco mil dólares a cada um de cem cidadãos ricos que seleccionara. Que raciocínio dúbio é que fizera para crer que eles pagariam? Bem, o Homem Surdo avisara previamente os seus alvos, não avisara? E depois cumprira as suas ameaças. E agora estava a ameaçar atacar sem aviso prévio, se os novos alvos não pagassem. Portanto, o que eram cinco mil dólares para homens que tinham milhões? Mesmo numa base de um por cento de lucro, as despesas do Homem Surdo ficariam mais que cobertas. Não interessava o facto de já ter morto duas vítimas que escolhera e meia dúzia de transeuntes inocentes. Não interessava o facto de estar a planear matar um terceiro, o próprio presidente da Câmara. Fazia parte do jogo. Do divertimento e do jogo. Sempre que o Homem Surdo dava sinal de vida, estava garantida a hilaridade geral. Para todos, à excepção dos polícias da 87.ª Esquadra.
Se aquelas raparigas penduradas nos postes dos candeeiros fossem prenúncio de uma acção mais vasta que o Homem Surdo estivesse a planear, a Oito-Sete estaria perante um sarilho bem maior do que já enfrentara antes e que seria a última coisa de que precisava. Carella estremeceu ao pensar nisto e, subitamente, abraçou a mulher com mais força.
Sarah Meyer estava a pensar como é que havia de dizer ao marido que achava que a filha devia começar a tomar a pílula. Meyer estava a pensar se ela gostava da peruca dele. Também estava a pensar se o Homem Surdo andaria de novo entre eles. Não ali, pois sabia que Sarah e ele estavam sozinhos na cama, mas no meio de raparigas penduradas em postes de candeeiros.
Meyer não gostava do Homem Surdo. Meyer tivera o azar, já em três ocasiões diferentes, de ter sido o primeiro detective a ser contactado pelo Homem Surdo. Bom, não fora bem assim. Da primeira vez fora David Raskin que o contactara por causa do Homem Surdo, que na altura nem sequer sabiam se era ou não surdo, se era realmente surdo, o que talvez não fosse. Havia muitas coisas que não sabiam acerca do Homem Surdo. Por exemplo, quem ele era. Ou onde é que estivera nos últimos anos. Ou por que é que regressara, se é que de facto tinha regressado, o que Meyer esperava não ter acontecido mas suspeitava que acontecera.
A única coisa que Meyer queria fazer era perguntar a Sarah se ela gostava mais dele com a peruca ou sem a peruca. Não tinha ido para a cama de peruca. Se ela lhe dissesse que gostava mais dele com ela, sairia da cama e iria pô-la, e depois faria amor ardentemente com ela. De uma forma ou de outra, com ou sem peruca, tencionava fazer amor ardentemente com ela. Não queria continuar a pensar no Homem Surdo. Queria pensar nas magníficas pernas de Sarah, nas suas coxas e nos seus seios.
Sarah estava preocupada com a sua única filha, Susan, que tinha 16 anos. Mais concretamente, Sarah estava preocupada com a questão genética. O marido já lhe dissera várias vezes que ela tinha sido dotada de pernas, coxas e seios magníficos. Agora Sarah não estava tão certa do que é que achava das suas pernas ou coxas, mas concordava que tinha seios muito bons e não havia nada de que ela mais gostasse (bom, quase nada) que sentir os seios a ser acariciados. Era aí que entrava a questão genética. Não tinha de se preocupar com o filho mais velho, Alan, quanto a problemas genéticos. Também não tinha de se preocupar com o filho mais novo, Jeff. Alan tinha 17 anos e Jeff 13, e a única coisa com que tinha de se preocupar em relação a eles era com a possibilidade de começarem a fumar erva ou qualquer coisa do género, situação essa em que Meyer lhes partiria as respectivas cabeças. Mas a questão genética, ai, a questão genética!
Era já evidente que Susan tinha herdado as magníficas pernas, coxas e seios que Meyer tantas vezes dissera a Sarah que ela tinha. Tinha também herdado os lábios doces de Sarah, os olhos azuis que quer ela quer Meyer tinham, além de um cabelo louro que sabia-se lá donde viera. Tudo isso junto, formava uma rapariga extremamente atraente que Sarah esperava que não gostasse tanto de ser acariciada como ela própria gostava.
Era por isso que Sarah queria sugerir a Meyer que ambos sugerissem a Susan e que Susan sugerisse ao médico de família que talvez fosse melhor receitar-lhe a pílula. Sarah não sabia se a filha ainda era ou não virgem. Susan tinha-se tornado extremamente reservada acerca de assuntos pessoais nos últimos meses, o que era um possível indício de já ter sido iniciada por qualquer rapaz de sangue quente do liceu («eu mato-o», pensou Sarah) ou, por outro lado, um possível indício de que estava a considerar seriamente a sua iniciação. Fosse como fosse, Sarah não queria que a filha ficasse grávida aos 16 anos.
No entanto, o problema era explicar tudo isto a Meyer.
Sarah estava absolutamente convencida de que Meyer pensava que a filha nunca fora beijada.
Começaram ambos a falar ao mesmo tempo.
- Tenho estado a pensar... -Sarah, achas?... Calaram-se ambos.
- Vá - disse Meyer -, diz tu primeiro.
- Não, diz tu. Meyer respirou fundo.
- Andam a gozar comigo por causa da peruca - disse.
- Quem?
- Os tipos.
- E depois?
- Todos os tipos - disse Meyer.
- E depois?
- E depois... Sarah... tu gostas da peruca?
- Não sou eu que tenho de gostar - disse Sarah. - És tu que a usas na cabeça.
- Bem... achas que fico melhor com ou sem ela?
Sarah pensou durante aquilo que pareceu ser muito tempo.
- Meyer - disse ela -, amo-te com ou sem cabelo. Para mim, tu és tu, com ou sem cabelo. Podes andar careca ou podes usar a peruca que já tens, ou podes comprar uma peruca loura ou ruiva, podes deixar crescer bigode ou barba ou podes pintar as unhas dos pés de roxo que faças o que fizeres eu amar-te-ei. Porque te amo - disse ela.
- Eu também te amo - disse ele, e hesitou. - Mas gostas da peruca?
- Queres uma resposta franca?
- Sim.
- Gosto de beijar a tua cabeça luzidia e careca - disse ela.
- Então vou queimar a peruca - disse ele.
- Queima-a.
- Amanhã - respondeu ele.
- Quando quiseres - disse ela.
- OK. - respondeu ele, embora não estivesse certo de que a queimaria. Gostava de certa forma do ar com que ficava quando a usava. A peruca dava-lhe um ar de detective. Gostava de ter ar de detective. Gostava de ser detective. Excepto quando o Homem Surdo dava sinal de vida. Porque é que o Homem Surdo tinha de voltar a aparecer? Se é que era o Homem Surdo. Mas quem mais é que andaria a pendurar raparigas em postes de candeeiros', deixando a sua identificação para facilitar o trabalho à Polícia? Tinha de ser o Homem Surdo. Pensou subitamente se o Homem Surdo usaria peruca. O Homem Surdo era louro, pois Carella tinha-o identificado daquela vez em que apanhara o tiro. Um homem alto, louro, com um aparelho auditivo no ouvido esquerdo. E se o cabelo louro fosse uma peruca? E se na realidade o Homem Surdo fosse calvo? Seria que passariam a chamar-lhe o Homem Calvo? Seria que as pessoas chamavam ao próprio Meyer o Homem Calvo nas suas costas? Seria conhecido na 87.ª Esquadra como o Detective Calvo! Talvez mesmo em toda a cidade} Em todo o mundo? Não queria ser conhecido como o que quer que fosse calvo. Queria ser conhecido como Meyer Meyer. Como ele próprio.
Não ouvira as primeiras frases que ela dissera, mas tinham a ver com pessoas que crescem e se tornam bonitas e naturalmente atraentes aos outros. Lembrou-se da última vez que o Homem Surdo os tinha ido atormentar. Porque é que ele não escolhia uma outra esquadra qualquer? Que raio é que se passava com ele? Porquê a Oito-Sete? Mandava-lhes fotografias. Mandava cada fotografia duas vezes. Facilitava-lhes o trabalho - bem, não o facilitava muito, pois filantropo é que ele não era. Mas lançava-lhes o desafio para os braços: descubram lá o que querem dizer estas fotografias e perceberão o que é que eu estou a tramar desta vez. As fotografias, uma vez decifradas, indicavam que ele ia roubar outro banco. E roubou mesmo outro banco. Duas vezes. Mandou um bando que sabia que seria apanhado se os detectives tivessem interpretado correctamente as fotografias que ele lhes mandara e depois mandou um segundo bando hora e meia depois. E quase tinha conseguido concretizar o golpe. Dessa vez chamou-se a si próprio «Taubman». «Taubman» é Homem Surdo em alemão. Der taune mann. Meyer pedia a Deus que ele não tivesse voltado.
- Então que é que achas? - disse Sarah.
- Espero que ele não tenha regressado - disse Meyer em voz alta.
- Quem?
- O Homem Surdo.
- Ouviste alguma coisa do que te disse?
- Bem... claro que...
- Ou também estás surdo? - perguntou Sarah.
- Que é? - disse Meyer.
- Perguntei-te o que achas em relação à Susan.
- Que é que tem a Susan?
- Tem 16 anos.
- Eu sei que ela tem 16 anos.
- É linda.
- Como a mãe.
- Obrigada. Está a começar a atrair os rapazes.
- Desde os 12 anos que atrai os rapazes - disse Meyer.
- Sabes disso?
- Claro que sei, não sou cego, pois não? Tencionava falar contigo acerca disso. Não achas que é altura de ela ir ao médico?
- Ao médico? - perguntou Sarah.
- Claro. Para lhe receitar a pílula.
- Ah - disse Sarah.
- Imagino que esta situação te perturbe...
- Não, não - disse Sarah.
- Mas acho que é melhor tomar as precauções necessárias. Para ser tranco, é o que acho. Não estamos na Idade Média.
- Eu sei - disse Sarah.
- Então falas com ela?
- Falo - disse Sarah. Ficou calada durante alguns instantes. Depois murmurou: - Amo-te, sabias? - e beijou-lhe a careca luzidia.
Hawes gostava muito de despir mulheres. Gostava especialmente de despir mulheres que usavam óculos. Tirar-lhes os óculos era mais importante que tirar-lhes a roupa até ficarem nuas. Uma mulher ficava particularmente meiga e desejável assim que tirava os óculos.
Gostava de beijar as pálpebras fechadas de uma mulher a quem acabara de tirar os óculos. Quando ia a tirar os óculos a Annie, ela disse:
- Não, não faças isso.
Estavam no quarto dela. Tinham levado os balões de brande para o quarto e estavam sentados na beira da enorme cama de Annie. Tinham-se beijado já uma vez, suave a exploratoriamente, e depois ele fez menção de lhe tirar os óculos, e agora achava que tinha começado mal. Se uma mulher se recusava a deixar que lhe tirassem os óculos, como é que reagiria quando se lhe pedisse para balouçar no lustre?
Quando Hawes tinha 17 anos, namorava uma rapariga que usava óculos, e fizera uma coisa que achara extremamente inteligente. Tinha-lhe tirado delicadamente os óculos do rosto e embaciara as lentes com o seu bafo. Quando ela lhe perguntou o que é que ele estava a fazer, Hawes respondeu:
- Assim não consegues ver o que as minhas mãos estão a fazer. - A rapariga tinha-lhe dito para a levar imediatamente para casa. Desde essa altura que aprendera a não embaciar os óculos das raparigas; era uma forma de embaciar uma potencial situação. A situação com Anni Rawles parecia-lhe carregada de potencial, mas ela acabara de lhe dizer para não lhe tirar os óculos e ele estava a pensar que tinha cometido uma gaffe semelhante à que cometera quando era ainda um rapazote inexperiente. Olhou para ela, intrigado.
- Quero ver-te - murmurou ela.
Ele voltou a beijá-la. Ela beijava de uma forma muito agradável, entreabrindo ligeiramente os lábios, macios e flexíveis, para receber os seus, enquanto uma ligeira inalação fazia que as suas bocas se selassem. Hawes pensou nessa altura como é que Sam Grossman do laboratório explicaria o fenómeno deste vácuo, lábios contra lábios, a inalação causando sucção subitamente alterada pela intrusão das línguas que se tocavam - e subitamente apercebeu-se de que tudo ia correr bem, com óculos ou sem óculos.
A primeira vez era sempre a mais importante; ouvia sempre com cepticismo quando os engatatões da esquadra afirmavam que o sexo melhorava com a continuação, que se aprendia com a prática. De acordo com a sua experiência, se a primeira vez não corria bem, a vez se guinte correria ainda pior, e depois disso impossível. Era um adágio da Polícia: Uma situação má só pode piorar. E aplicava-se também ao sexo. Sentiu-se ligeiramente estonteado a beijar Annie Rawles, indício certo de que ia correr tudo extremamente bem. Não se lembrava de se sentir estonteado só ao beijar uma mulher. «Há magia nos teus lábios, Kate», pensou, interrogando-se em que peça de Shakespeare isso era dito, ou se fora Spencer Tracy a dizê-lo a Katherine Hepburn, num filme qualquer? «Há magia nos teus lábios», pensou, e disse em voz alta;
- Há magia nos teus lábios.
- Kate - murmurou Annie. - Henrique V- e beijou-o novamente. Era engraçado como ele ficava estonteado ao beijá-la. Tinha mesmo a cabeça a zumbir. Hoje em dia não havia muitas pessoas que soubessem beijar. As pessoas beijavam a correr como se isso fosse o levantar do pano para a peça em si, uma introdução a despachar rapidamente antes de a acção se iniciar - Henrique VI" Seria daí a expressão? Tinha a certeza de que já soubera, mas tinha-se esquecido. Teria Annie uma licenciatura em Literatura Inglesa? Teria uma licenciatura em beijos! Santo Deus, gostava mesmo de a beijar. Estava relutante em parar de a beijar. Nunca na sua vida sentira que se contentaria em passar uma noite apenas a beijar uma mulher, mas estava quase a sentir isso. Lembrou-se de que havia outras coisas para além de beijar, mas sentindo o que estava a sentir - sentindo! Essa era uma das outras coisas para além de beijar.
Uma vez, quando tinha 19 anos, namorara uma rapariga que não usava óculos, e ele tinha feito uma outra coisa que também achara ser bastante inteligente, com praticamente o mesmo resultado. Tinha tocado na lapela do casaco que a rapariga tinha vestido e perguntara:
- Isto pode ser lã? - Depois tocara na gola da blusa que ela tinha vestida e perguntara: - Isto pode ser seda? - Depois pusera-lhe a mão no seio e perguntara: - Isto pode ser tocado? - A rapariga não lhe dissera para a levar para casa como a rapariga de óculos fizera. Simplesmente saíra do carro efora a pé para casa.
Hawes pensou se havia de tocar no seio de Annie. Estava a gostar de a beijar, mas estava também a começar a pensar que devia também tocar nalguma coisa, e o seio parecia-lhe um bom sítio por onde começar. Tinha a mão sob o queixo dela e bebia-lhe os beijos. Deixou a mão deslizar suavemente pela garganta até chegar ao tecido sedoso do vestido azul que ela tinha vestido, e depois até ao seio esquerdo...
- Não, não faças isso - disse Annie.
Ele pensou imediatamente que havia algumas coisas que nem sequer os homens adultos compreendiam, mesmo depois de se terem queimado quando adolescentes. Pensou também que se tinha enganado quanto às coisas correrem bem. Talvez Annie fosse uma daquelas mulheres que achava perfeitamente admissível beijar durante toda a noite, algo que ele próprio achara óptimo momentos antes, mas que não era realmente certo para adultos na privacidade da sua casa, embora a casa fosse dela e não dele. Ficou extremamente confuso, além de se sentir extremamente estonteado.
- Quero que me dispas primeiro - murmurou Annie. Subitamente ficou mais excitado que nunca. Mais excitado do que ficara da primeira vez quando fora para o telhado com Elizabeth Par-Ker (sempre que via Andy Parker na esquadra pensava em Elizabeth Parker, embora não tivessem qualquer parentesco). Tinha então 16 anos e ela teve de lhe ensinar onde havia de tocar. Ficou mais excitado Que daquela vez que estivera com uma pega negra no Panamá, quando tinha 20 anos e estava na Marinha dos EUA, uma mulher alegre e linda que lhe tinha ensinado mais sobre sexo em duas horas do que ele aprendera em toda a sua vida. (Nunca falou disto a Brown; um dia tal vez o fizesse.) Ficou mais excitado que daquela vez num jantar em que uma mulher casada que estava sentada ao seu lado, com um vestido verde colado ao corpo e com um decote quase até ao umbigo, metera a mão debaixo da mesa, lhe acariciara a coxa e depois entre as pernas enquanto ia metendo o cocktail de camarão na boca deliciosamente perversa e lhe disse:
- Vê-se obrigado a usar muitas vezes a sua arma, detective Hawes? Annie parecia uma professora primária com aquele vestido azul de corte simples. Com os óculos sobre o nariz, um leve sorriso nos lábios. Virou-lhe as costas como se fosse escrever qualquer coisa no quadro negro.
- O fecho - disse, baixando a cabeça, embora tivesse o cabelo cortado curto e a direito, deixando à mostra a parte de trás do pescoço delgado e o sítio em que estava a presilha do fecho de correr. Ele bei-jou-lhe a parte de trás do pescoço, sentindo-a estremecer. Agarrou a presilha do fecho e puxou-o para baixo, deixando à mostra a tira do soutien, de um azul mais claro que o vestido, que assentava sobre a sua pele clara. Ia a desapertar o soutien quando ela voltou a dizer: - Não, não - e se virou para ele, deslizou de forma a despir o vestido, fazendo-o cair pelas ancas até aos pés e se libertou dele.
Vestia roupa interior saída das páginas da Penthouse, fazendo desaparecer a imagem da professora primária com o vestido azul de corte simples caído sobre a alcatifa, a mulher polícia de ar severo subitamente transformada numa deusa de sexo pornográfico. Um soutien de renda azul-claro erguia-lhe os seios já de si firmes e altos, mostrando as curvas brancas de ambos e - no caso do seio esquerdo - descuidadamente mostrando o mamilo róseo, contraído e duro. O fio de ouro e o berloque pendiam entre os dois seios como se procurassem refúgio. Tinha um cinto de ligas por baixo de umas cuecas finas do mesmo azul pálido, o contorno do triângulo negro do seu púbis formando uma saliência arredondada entre as pernas, o cinto de ligas esticado sobre as coxas brancas e firmes. Subitamente, pareceu quase opulenta sem a protecção do vestido azul, já não tão magra como ele a imaginara, com ancas arredondadas de mulher, pernas bem torneadas e moldadas por meias azuladas que terminavam nos sapatos de verniz de salto alto sobre tornozelos finos.
Um caracol negro espreitava para fora das finas cuecas de renda
Subitamente, ele ficou com uma tremenda erecção. O olhar dela recaiu sobre o volume nas calças dele e o sorriso que lhe lançou foi tão significativamente conhecedor como o que a pega negra no Panam lhe lançara quando lhe abrira a porta na ruela onde ele batera um pouco a medo. O nome dela era Fiona. Fiona das duas curtas horas e das mil longas noites.
Hawes avançou para Annie, sentindo-se quase sufocar com um perfume de mmk que imaginou ou realmente sentiu.
- Não, não faças isso - disse ela. Ele parou.
Teve a terrível sensação de que ia acontecer como daquela vez em Los Angeles quando lá fora efectuar a extradição de um assaltante armado e uma starlet da televisão de 23 anos fizera um elaborado striptease para ele antes de o mandar à vida apenas com um beijo na face.
- Mas essa madeixa branca no teu cabelo é mesmo gira, querido -dissera-lhe ao fechar a porta, como despedida. Quando nessa noite regressara ao hotel manhoso na zona baixa de L. A., pensara mesmo em pintar a madeixa de ruivo, como o resto do cabelo. No entanto, tinha-se divertido bastante com o assaltante armado no avião; o tipo tinha um enorme sentido de humor, mesmo algemado.
- Agora tu - disse Annie.
Ajudou-o a despir o casaco. Desfez-lhe o nó da gravata e puxou-a do colarinho como se estivesse a fazer estalar um chicote. Desapertou o primeiro botão da camisa. Desapertou todos os botões da camisa. Beijou-lhe o peito e depois tirou-lhe a camisa de dentro das calças. Desabotoou os punhos. Ajudouo a despir a camisa, atirou-a para o outro lado do quarto e esta foi cair em cima do vestido azul. Tirou o cinto das calças. Desabotoou o botão das calças. Abriu o fecho. Meteu a mão dentro das calças e murmurou:
- Caramba.
Cinco minutos depois estavam os dois na cama.
Hawes estava nu. Annie não tinha nada a não ser o fio de ouro com o berloque. Teria de lhe perguntar numa outra altura porque é que ela não quisera tirar o fio. Mas por agora bastava-lhe saber que estava com um outro ser humano e que durante o resto da noite não teria de pensar em mais nada a não ser em amá-la. O facto de ela se manifestar com gritos perturbou-o ligeiramente. A última mulher com quem ele tinha estado que gritava tinha sido uma estenógrafa do tribunal que, por acaso, também usava óculos. Tinha ido para a cama com ele de óculos. Mas gritara tão alto que dava para acordar os mortos sempre que atingia o orgasmo. Annie gritava quase tão alto e com Igual frequência. Disse-lhe para ele não se preocupar; toda a gente no prédio sabia que ela era polícia. Ele tinha-se esquecido por completo de que ela era polícia.
E também se tinha esquecido por completo de que a pessoa que andava a pendurar raparigas em postes de candeeiros na zona da Oito-Sete podia bem ser o Homem Surdo.
Arthur Brown já quase se tinha esquecido da ideia que lhe ocorrera de que o assassino dos enforcamentos nos candeeiros bem podia ser obra do Homem Surdo. Brown tinha tanto respeito pelo Homem Surdo como todos os outros da esquadra mas, segundo Brown, um assassino é um assassino, e para ele eram todos iguais; eram todos tipos maus, e ele era o tipo bom, e além disso queria ir para a cama com a mulher.
A filha de Brown, Connie, já estava a dormir. A mulher, Caroline, estava na sala a ver televisão. Brown estava na casa de banho, a limpar-se com um toalhão depois de ter tomado um longo duche quente. Olhou-se ao espelho da casa de banho e viu o mesmo bem parecido Arthur Brown a olhar para ele. Sorriu para a imagem no espelho. Sentia-se bem naquela noite. Nessa noite levaria Caroline até às estrelas e até à Lua e novamente de volta. Ainda a sorrir, dirigiu-se nu para o quarto. Pendurou o toalhão molhado nas costas de uma cadeira, viu o jornal da manhã no chão onde Caroline o deixara e baixou-se imediatamente para o apanhar. Abriu duas páginas do jornal, rasgou um buraco no centro e sorriu de orelha a orelha.
Quando Brown entrou na sala tinha no corpo apenas o jornal da manhã. O pénis saía do buraco que rasgara no papel. Caroline olhou para ele.
- Ena - disse ela.
Falando num dialecto exagerado de negro, Brown disse:
- E tu acha q'é verdade o que os branco diz do tamanho do pau dos preto?
- Não pelo que estou a ver.
- E mesmo assim queres?
Caroline dirigiu-se para ele e rasgou o jornal em pedaços.
Do lugar onde estava nas bancadas a observar Darcy Welles, percebeu imediatamente que ela era dotada. Bastante mais que as outras duas. Percebia pela forma como ela estava a fazer o aquecimento.
Era um outro dia ameno de Outubro e o céu sobre a pista da universidade estava praticamente sem nuvens e tão azul como no Verão. Para lá da pista, via a enorme estrutura do estádio de futebol e, mais adiante ainda, a torre de pedra que dominava o pátio interior da escola. Não eram más instalações para uma cidade tão grande como aquela, onde não se podia esperar que houvesse grandes áreas de relvado ou pátios cercados de árvores. Tinha passado por lá no sábado, para se ir ambientando, querendo sentir-se totalmente à vontade quando mais tarde abordasse a rapariga. De qualquer forma, sentia-se sempre à vontade com mulheres. Ele agradava às mulheres. Elas achavam que ele era diferente, talvez um pouco excêntrico, mas gostavam dele. Os homens criavam-lhe problemas. Os homens não aceitavam as suas pequenas idiossincrasias. Como sair abruptamente de um restaurante depois de já ter comido o suficiente e se sentir cansado. Faltava com frequência a encontros. Recusava-se a compartilhar ridículos devaneios sobre êxitos sexuais. Os homens chateavam-no. Gostava de mulheres.
Observou a rapariga.
A época só começaria daí a alguns meses - em Janeiro, se ela entrasse em competições em pista coberta; em Março começariam as principais corridas ao ar livre , mas é claro que um corredor treinava durante todo o ano para se manter em forma. Isso era tão importante para uma mulher como para um homem, talvez mais para uma mulher. Já dera três voltas à pista - vestia o fato de treino da universidade, castanho com um «C» azul-escuro por cima do seio esquerdo e o nonie da universidade nas costas do blusão -, tendo corrido a primeira volta muito devagar (ele cronometrara o tempo em três minutos), aumentando gradualmente a velocidade até fazer a terceira volta em dois minutos. Estava agora a dar a quarta volta, em passo de jogging durante os primeiros cinquenta metros, em passo de corrida nos outros cinquenta, passando depois para a passada normal de corrida e fazendo os últimos cinquenta metros à sua velocidade máxima. Descansou durante alguns momentos, inspirando grandes golfadas de ar, e depois começou a fazer movimentos com os braços, trinta segundos para cada braço, rodando o braço a partir do ombro em círculos completos, com o punho cerrado. Agora estava a flectir o tronco – sabia bem a rotina do aquecimento, aquela rapariga -, passando, em seguida para flexões de braços e depois de pernas. Deitou-se na relva ao lado da pista, de costas, colocou as mãos nas ancas e fez cerca de trinta segundos de «bicicleta», depois outros exercícios de pernas e «tesoura», fazendo que os exercícios simples tivessem grande graciosidade. Ia ser uma sprinter dos diabos, aquela rapariga.
Uma outra rapariga estava agora a dirigir-se para ela. Possivelmente um membro da equipa, possivelmente apenas uma amiga que a fora ver treinar. A outra rapariga não estava de fato de treino. Vestia saia de pregas, meias até ao joelho e uma camisola de malha azul. Ele esperava que ela não estivesse por ali quando ele abordasse Darcy. Hoje era quarta-feira, o terceiro dia de uma semana normal de trabalho. Na segunda-feira ela tinha sem dúvida feito curtas corridas à volta do quarteirão, sessenta metros, cento e vinte metros, qualquer coisa assim, pois variava segundo os vários planos de treino. Ontem tinha provavelmente dado nove voltas à pista, metade a correr e metade a andar para recuperar depois de cada um dos dois sprints de 220 metros, percorrendo a pista a andar depois da terceira, sexta e nona corridas. Em quase todos os programas, o treino tornava-se mais puxado para o final da semana, atingindo o auge na sexta-feira, abrandando no sábado com levantamento de pesos e permitindo um dia de descanso ao domingo (até Deus descansava ao domingo), antes de o ciclo recomeçar na segunda-feira. O treino antes de a época começar não era tão rígido nem exigia tanta concentração como quando começavam as provas. Darcy Welles estava apenas a recuperar a forma depois de um Verão e início de Outono sem treino. Ele visualizou-a a correr por estradas de campo em Ohio, para onde tinha ido. As notícias nos jornais sobre as suas capacidades tinham sido extremamente encorajadoras. O seu melhor tempo de liceu para os cem metros fora de doze-três, o que não era nada mau considerando que o record mais recente de Evelyn Ashford era de dez setenta-nove.
- Não estava a pensar em nada, limitei-me a correr - dissera Ashford em Colorado Springs. - Pareceu-me só ter acordado nos últimos vinte metros. Quando cortei a meta, pensei «Não fiz nada de especial. Talvez onze-um.» Dez-setenta-e-nove!
Quando lhe disseram que tempo tinha feito, ela disse:
- Estou parva! Completamente parva. Parva. - Bem, as Evelyns Ashfords são poucas e só aparecem de vez em quando. Mesmo uma Jeanette Bolden, cujo melhor tempo no liceu fora de onze-sessenta e oito, baixou esse tempo para onze-dezoito quando correu com a Ashford e ficou em segundo no Torneio Pepsi. A questão era a barreira dos onze segundos. Podia-se agradecer a Wilma Rudolph por isso-Mas Darcy Welles ainda era nova, estava ali na Converse no primeiro ano e tinha a fibra necessária. Darcy Welles era de calibre olímpico, sem a menor dúvida. Era uma pena ele ter de a matar.
Ela estava impaciente enquanto falava com a outra rapariga, ansiosa por voltar ao treino. A outra rapariga parecia nunca mais se calar, mas depois sorriu, acenou em despedida e foi-se embora. Uma clara expressão de alívio surgiu no rosto de Darcy. Tirou o fato de treino e dobrou, pondo-o cuidadosamente no banco junto à pista. Ficou com calções e t-shirt sem número, os calções com uma pequena racha de cada um dos lados das pernas para facilitar os movimentos das coxas e das pernas musculadas. Ficou por instantes na linha de partida, a estudar a pista; colocou o pé esquerdo junto à hnha, dobrou-se sobre ela com o pé direito e o braço esquerdo puxados atrás, inspirou profundamente e fez a partida dessa posição.
Ele voltou a accionar o cronómetro, observando o tempo que ela ia fazendo nos sprints mais longos daquele terceiro dia, aumentando em metade a distância do dia anterior, correndo 330 metros em quarenta e cinco segundos, caminhando durante cinco minutos depois de cada três corridas. Estava a começar a suar, molhando a t-shirt e os calções. Ele observou-a atentamente enquanto ela abria o saco com fecho de correr e tirava os blocos de partida, colocando as peças de chumbo a cerca de quarenta centímetros da linha de partida. Mediu a distância para colocar o segundo bloco e ajustou ambos com todo o cuidado. Ergueu-se, respirou o ar fresco de Outono, pôs as mãos na cintura, hesitou durante um breve instante e depois ajoelhou-se em posição entre os blocos. Era uma rapariga tão bonita, com cabelo preto e olhos azuis, com 19 anos - que pena ter de morrer.
Estava em excelente forma.
Um treinador qualquer do Ohio tinha-a treinado bem.
Ele quase ouviu o comando silencioso na cabeça dela: Preparar!
A perna esquerda esticou-se em direcção ao bloco lateral. A perna direita deslocou-se para trás de forma aos dedos dos pés tocarem no bloco da frente. As mãos atrás da linha, sem chegar a tocar-lhe, com os polegares virados para dentro. O peso do corpo sobre o joelho esquerdo, sobre o pé direito, sobre ambas as mãos. Cabeça em frente. O olhar fito algures a cerca de um metro à frente da linha.
Estar pronto!
As ancas ergueram-se. O corpo moveu-se para a frente, deslocando os ombros para a frente da linha de partida. As solas de ambos os pés carregando com força contra os blocos. Olhos fixos no ponto imaginário um metro mais adiante. Uma mola tensa para súbita distensão.
Pum!
O som de uma pistola imaginária na cabeça dela e na cabeça dele e os braços dela irromperam subitamente em movimento, o braço direito lançando-se para a frente, o braço esquerdo para trás, as pernas dando simultaneamente um impulso contra cada bloco, a perna esquerda lançando-se para dar a primeira e tão importante passada, a perna direita carregando com todo o vigor contra o bloco e ela aí foi!
Santo Deus, que magnífica corredora!
Ele cronómetrou-a em nove segundos, mais coisa, menos coisa, em cada um dos seis sprints de 60 metros, observando-a enquanto ela caminhava de volta para recuperar depois de cada corrida. Estava encharcada em suor quando finalmente regressou ao banco para tirar uma toalha do saco para limpar a cara e os braços. Vestiu a camisola do fato de treino. O ar do fim da tarde estava fresco.
Ele sorriu e meteu o cronómetro na algibeira.
Ela ia a afastar-se da pista, de cabeça baixa, aparentemente a reflectir, com a camisola do fato de treino ensopada de suor e com as pernas a brilhar, também cobertas de suor, quando ele a abordou.
- Miss Welles? - perguntou.
Ela parou e olhou para ele com uma expressão de surpresa. Os seus olhos azuis estudaram o rosto dele.
- Corey Mclntyre - disse ele. - Sports USA. Ela continuou a estudá-lo.
- Está a gozar comigo - disse ela.
- Não, não estou - disse ele, e sorriu, metendo a mão na algibeira para tirar a carteira. Tirou da carteira um pequeno cartão plastificado que lhe deu. Ela olhou para o cartão.
SPORTS USA
IMPRENSA
Jornalista: Repórter Corey Mclntyre
- Caramba - disse ela, devolvendo-lhe o cartão.
- Você é mesmo Darcy Welles, não é? - perguntou ele.
- Hum-hum - disse ela, assentindo.
Devia ter um metro e sessenta e cinco ou sete. Os seus olhos estavam quase ao nível dos dele. Ela estava a estudá-lo, à espera.
- Estamos a preparar um artigo para o nosso número de Fevereiro -disse ele.
- Pois sim - disse ela. Continuava céptica. Ele continuava com o cartão na mão. Estava tentado a voltar a mostrar-lho. No entanto, me-teu-o de novo na carteira.
- Sobre jovens raparigas atletas - disse ele. - Não focaremos exclusivamente estrelas de pista, é claro...
- Claro, estrelas - disse ela, revirando os olhos.
- Bem, Miss Welles, as suas marcas têm atraído uma certa atenção.
- Isso para mim é novidade - disse ela.
- Tenho o seu dossier completo. O seu record em Ohio foi impressionante.
- Sim, creio que foi bom - disse Darcy.
Estava corada do esforço que fizera. Tinha a pele fresca, os olhos a brilhar. Os atletas eram assim. Todos eles, homens e mulheres, todos tinham aquele ar terrivelmente saudável. Invejava-lhe a juventude. Invejava-lhe o regime diário.
- Bastante mais que bom - disse ele.
- Neste momento, se conseguir baixar dos doze, ponho-me a dançar na rua.
- Pareceu-me muito bem hoje.
- Esteve a ver, hem?
- Cronometrei os últimos sprints em cerca de nove segundos cada.
- Sessenta metros em nove segundos não é grande coisa.
- Para treino não é mau.
- Para fazer cem em doze, tenho de baixar para sete.
- É esse o seu objectivo? Doze?
- Onze seria melhor, não? - disse ela com um grande sorriso. -Mas não estamos nas Olimpíadas.
- Ainda não - disse ele, retribuindo-lhe o sorriso.
- Claro. Talvez nunca lá vá - disse ela.
- O seu record pessoal no Ohio foi doze-três, certo?
- Sim - disse ela, fazendo uma careta. - Uma merda, não foi?
- Não, foi bastante bom. Devia ver alguns dos records de liceu. -Já os vi. No ano passado, uma rapariga da Califórnia fez onze-oito.
- Eloise Blair.
- Exacto.
- Também a vamos entrevistar. Está agora na U. C. L. A.
- Que é que quer dizer com isso de entrevistar? - disse Darcy.
- Pensei que já lhe tivesse dito...
- Sim, mas que é que quer dizer com isso?
- Bom, gostaríamos de lhe fazer uma entrevista.
- O quê? Para a Sports USA.
- Sim, para a Sports USA.
- Ora - disse ela, voltando a fazer uma careta que fez com que parecesse ter 12 anos. - Eu? Na Sports USA? Não me goze.
- Bom, não é só você. Mas o número será sobre atletas femininas...
- Atletas universitárias?
- Nem todas. E nem todas estrelas de pista.
- Cá temos outra vez as estrelas - disse ela, voltando a revirar os olhos.
-Vamos cobrir natação, basquetebol, ginástica... bem, vamos ttxí-tar abarcar o maior número de modalidades. E desculpe se volto a utilizar a mesma palavra, mas estamos a tentar fazer uma cobertura das raparigas americanas de hoje que podem muito bem vir a ser as estrelas de amanhã.
- Doze-três nos cem metros é uma estrela de amanhã, hem? - disse Darcy.
- Na Sports USA não somos totalmente ignorantes quanto ao que se está a passar no mundo do desporto.
Ela voltou a estudar o rosto dele, assentindo, digerindo tudo o que ele lhe dissera.
- Preferia que não me tivesse visto hoje - disse, finalmente. - Corri pessimamente.
- Achei que tem um estilo magnífico.
- Pois, um certo estilo. Sessenta metros em nove segundos, olhe que grande estilo!
- Correu muito este Verão?
- Todos os dias. Bom, aos domingos não.
- Que tipo de rotina é que seguiu?
- Está mesmo interessado nisto?
- Estou. Na realidade... se me puder dispensar algum tempo esta noite, talvez possamos entrar em mais pormenores. Estou principalmente interessado nos seus objectivos e aspirações, mas qualquer coisa que me diga acerca do interesse que inicialmente teve pelo atletismo, ou acerca dos seus hábitos de treino...
- Ouça lá, isto é mesmo a sério? - perguntou ela.
- Como?
- Quero dizer, isto não é para os «Apanhados» ou para qualquer coisa dessas?
Ela olhou subitamente em volta, como se estivesse à procura de uma câmara escondida. Estavam absolutamente sozinhos junto à pista. Ela estudou um carvalho que havia ali relativamente perto como possível esconderijo de Allen Funt. Depois encolheu os ombros, abanou a cabeça e virou-se de novo para ele.
- Não se trata dos «Apanhados» - disse ele, sorrindo. - Sou Corey Mclntyre da Sports USA e estou a entrevistar jovens atletas femininas para um artigo a sair no nosso número de Fevereiro. Centrar-nos-emos fortemente em atletismo para aproveitar o início da época, mas cobriremos também...
- Está bem, acredito em si - disse ela, abanando a cabeça de novo e dando-lhe um grande sorriso. - Caramba - disse. - Mal consigo acreditar.
- Acredite.
- Pronto - disse ela -, quer entrevistar-me; pronto, eu acredito.
- Acha que me pode dispensar algum tempo logo à noite?
- Tenho um teste de Psicologia bastante puxado amanhã.
- É pena - disse ele. - Que tal?...
- Mas acho que já sei a matéria - disse ela. - Esta noite está óptimo, desde que me deite cedo.
- Porque é que não jantamos juntos? - sugeriu ele. - Estou certo de que posso fazer a entrevista numa noite e depois, isto é, se não se importar, gostaria de marcar um dia que lhe convenha para um fotógrafo a...
- Um fotógrafo, caramba! - disse ela com um sorriso rasgado.
- Se não se importar.
- Claro que não me importo - respondeu ela. - Garanto-lhe que ainda me custa a acreditar em tudo isto.
- Às oito está bem? - perguntou ele.
- Sim, óptimo. Caramba.
- Se pudesse ir pensando em algumas das coisas de que lhe falei... -Sim, aspirações e objectivos, claro.
- O interesse que cedo teve...
- Certo.
- Hábitos de treino...
- Claro, isso é fácil.
- Quaisquer incidentes pitorescos sobre atletismo... bem, falaremos nisso esta noite. Onde é que quer que a vá buscar? Ou prefere encontrar-se comigo em qualquer lado?
- Bom, pode passar pelo dormitório?
- Estava a pensar irmos a um restaurante da baixa. Talvez seja mais fácil você apanhar um táxi.
- Claro, como quiser.
- Peça recibo. A Sports USA pagará a corrida.
- OK. Onde? - disse ela.
- No Marino, na Ulster e South Haley. Às oito em ponto.
- Corey Mclntyre - disse ela. - Sports USA. Caramba.
Na quietude do quarto de Nancy Annunziato, com a mãe e a avó a andar silenciosamente pela casa do outro lado da porta fechada, Carella e Hawes revistavam os objectos pessoais da rapariga morta. Não tinha sido necessário chamar os técnicos de laboratório; aquele quarto não podia ter sido de forma alguma o local do crime. No entanto, revistaram todos os seus objectos pessoais com delicadeza, como se estivessem a preservar provas para posterior apresentação em tribunal. Nenhum dos homens mencionou o Homem Surdo. Se o Homem Surdo tivesse sido responsável pela morte de Nancy Annunziato, se ele tivesse morto Nancy e Mareia Schaffer, então estariam a lidar com uma carta desconhecida no meio de um baralho inteiro. De momento, preferiam acreditar que havia um motivo razoavelmente humano para os assassínios, que os crimes não tinham sido engendrados pelo cérebro computadorizado do Homem Surdo.
Hawes estava a ler o diário de treino da rapariga.
Carella estava a estudar a sua agenda de compromissos.
Nancy tinha sido morta no dia 13 de Outubro. O relatório do médico legista, na parte correspondente ao intervalo postmortem - com base na temperatura do corpo, lividez, grau de decomposição e rigor Sortis -, estabelecera a altura da morte aproximadamente às onze da noite. O laboratório não encontrará quaisquer impressões digitais na carteira deixada no local; o assassino, embora tivesse fornecido a identificação da rapariga, limpara contudo a carteira antes de a deixar cair aos seus pés. Agora só tinham o registo pessoal de acontecimentos da rapariga para os ajudar a reconstituir onde estivera e o que fizera no dia do seu assassínio.
O seu diário de treino indicava que na quinta-feira, dia 13 de Outubro, Nancy Annunziato acordara às 7:30 da manhã. Registara as suas pulsações ao acordar como sendo 58. Tinha ido para a cama na noite anterior antes das onze. (Ao folhearem as páginas para trás, viram que essa era a hora normal de ela se deitar; no entanto, na noite do assassínio, estava algures na cidade a essa hora.) O seu peso do corpo ao acordar era de sessenta quilos. Registara o local do seu treino diário como «Pista ao Ar Livre, C. P. C.» e descrevera a superfície de pista como «Sintética». Registara a temperatura do dia (na altura no treino) como sendo de dezoito graus e descrevera o dia como ameno, com pouca humidade e sem vento. Começara o treino às 15:30.
Pormenorizara o treino daquele dia indicando «aquecimento habitual», seguido de quatro sprints de 80 metros com blocos, com regresso a andar para recuperar e uma volta completa à pista a andar depois do último sprint; quatro sprints de 150 metros a partir da linha de partida, regressando a andar para recuperar; e seis sprints de 60 metros com blocos, de novo com regresso a pé depois de cada sprint. Anotara a distância total de corrida como tendo sido de 1280 metros, com o peso de sessenta quilos e meio antes do início do treino e de cinquenta e nove e meio depois deste. Sob o título «índice de Cansaço» rabiscara o número «5» que Hawes calculou estar a meio de uma escala de 1 a 10. Terminara o treino às 16:15.
A mãe já lhes dissera que ela chegara a casa depois do treino nesse dia às 18:00. A universidade de Calm's Point ficava apenas a um quarto de hora da casa dos Annunziato indo de metropolitano. Isso dava uma hora e meia sem qualquer justificação da sua ocupação. Não havia nada na agenda da rapariga morta que desse qualquer indício de como é que passara essa hora e meia. Tinha presumivelmente tomado duche na escola e vestido roupa normal. Isso reduzia o intervalo de tempo a uma hora. Teria ido à biblioteca da universidade? Teria estado a conversar com amigas? Ou teria encontrado o homem que mais tarde a matara?
Na folha de quinta-feira, dia 13 de Outubro, da agenda, via-se:
BôCogicl Sporte IMK
- Que é isto? - perguntou Carella. - Uma revista? Hawes olhou para a página.
- É - disse. - Ela tem uma pilha delas aí na cómoda.
- Foi provavelmente à banca nesse dia - disse Carella.
- É capaz de ser uma indicação para se lembrar de lá ir, hem?
- Talvez. Vê lá se ela tem o número que saiu a semana passada. Hawes dirigiu-se à cómoda onde estavam espalhadas umas doze revistas.
- Sports Illustrated - disse. - Runners World. Sim, cá está. Sports USA. O número de 17 de Outubro. Será este?
- Creio que sim. Normalmente dão-lhe a data da semana seguinte, não é?
- Penso que sim.
- Tem alguma coisa de especial?
- Como o quê?
- Quem sabe? Indicações de como correr 1600 metros em trinta e oito segundos.
Hawes começou a folhear a revista.
- Treinam muito, não treinam - disse por dizer.
- Consegues imaginar-te a fazer esse tipo de exercício? - perguntou Carella, abanando a cabeça.
- Tinha um ataque de coração - disse Hawes.
- Vês alguma coisa? - perguntou Carella.
- É sobretudo sobre futebol. Continuou a folhear a revista.
- Está aqui uma rapariga com bom ar - disse, mostrando a Carella uma fotografia de uma jovem em fato de mergulho. - Um pouco larga de costas, mas gira.
Começou a folhear a revista de trás para a frente.
- Ei - disse. -Queé?
Mostrou a Carella a página que virara e indicou o cabeçalho.
SPORTS USA
Director: John Wilson Spiers
Presidente: L. Cárter Knowles
Presidente do Conselho de Administração: Andrew Nelson
Vice-Presidente Executivo: Lloyd Pierce
Director de Redacção: Martin Goldblum
Chefe de Redacção: Louis Caputo
Assistentes de redacção: Roger Paxton, James Harris, Richard Canaday
Director Gráfico: David Greenspan
Redactores Sénior: George Franklin, Joseph Haley, Rebecca Bonnie, EUiot Bradley, Harold Newton
Redactores Associados: Stephen Arnstead, Mary Jane AUister, Guy de Santis, David Husson
Colaboradores do Quadro: Peter Wittke, Andrew Wright, Gill Germain, Paul Mellon, Arthur Sachs, John Goche
Jornalistas-repórteres: Edward Pankewski, Daniel Bernard, Werner Schneider, Corey Mclntyre. Frank Brosset, John William Ashworth, L. J. Armstrong, Arnold, Bernal, Paul Booth, Emilio Cagliotti
Fotógrafos do Quadro: Jim Bye, Audrey Eshelby, C. F. Fleming, Joseph Raynor, Albert Ticknor, Jeremy Gaines, Peter Houston, Herbert Rollet.
Colaboradores: Derek Pike, Michael Quedstead, Thomas Addi-son, Lois Coles, Joseph Peskett.
- Porque é que ela terá assinalado aquele nome em'particular? -disse Carella.
- Talvez a mãe saiba - disse Hawes. Mrs. Annunziato não sabia.
- Corey Mclntyre? - perguntou. - Não, não conheço o nome.
- A sua filha nunca lhe falou nele?
- Mai. Nunca.
- Nem esta revista? A Sports USA.
- Ela comprava sempre esta revista. E também outras. Tudo o que fosse sobre desporto ou corredores, ela comprava.
- Mas nenhum dos outros números desta revista têm este nome assinalado - disse Carella. - Só neste número é que está. O número de 17 de Outubro.
- Não sei - disse Mrs. Annunziato.
Parecia pesarosa por não poder dar aos detectives as informações de que precisavam. Ainda não dissera ao marido que a filha morrera. O funeral tivera lugar há três dias, mas ele ainda não sabia que ela estava morta. E agora ela não podia ajudar os detectives naquilo que queriam saber sobre aquele nome que estava assinalado numa das revistas da filha.
- Este homem nunca veio cá a casa nem entrou em contacto com ela para cá? - perguntou Carella.
- Não, não me lembro. Não, com esse nome, não.
- Mrs. Annunziato, a senhora disse-nos que a sua filha chegou a casa às seis horas, no dia em que foi morta.
- Sim. Seis horas. - Não queria falar do dia em que a filha fora morta. Ainda não dissera ao marido que ela estava morta.
- Pode voltar a dizer-nos o que ela tinha vestido?
- A roupa da escola. Saia, blusa. Casaco, creio.
- Mas não era isso que ela tinha vestido quando foi encontrada.
- Não?
- Tinha um vestido verde e sapatos verdes.
- Sim.
- Porque mudou de roupa quando chegou a casa, não foi isso que nos disse?
- Sim.
- Vestiu roupa mais bonita.
- Sim.
- Porque ia sair, foi o que nos disse.
- Sim, ela disse-me que ia sair.
- Mas não disse onde é que ia.
- Ela nunca me dizia onde ia - disse Mrs. Annunziato. - Hoje em dia as raparigas novas... - E abanou a cabeça.
- Não referiu onde é que ia nem se ia encontrar-se com alguém.
- Não.
- A senhora disse-nos que ela saiu de casa por volta das sete. Um pouco depois das sete.
- Sim.
- Ela tinha carro?
- Não. Veio um táxi buscá-la.
- Ela chamou um táxi?
- Sim.
- Sabe para que empresa de táxis é que ela telefonou?
- Não. O táxi que veio era dos amarelos.
- Mas ela não lhe disse onde é que ia.
- Não.
- Mrs. Annunziato, a sua filha deitava-se normalmente às onze, não deitava?
- Sim, tinha de ir cedo para a escola.
- Estava em casa na noite em que ela foi morta?
- Não, estava no hospital. Foi nesse dia que o meu marido teve o ataque de coração. Estive no hospital com ele. Ele estava nos Cuidados Intensivos. Eram nove da noite quando teve o acidente. Quando Vinha para casa.
- Do trabalho?
- Não, não, do clube dele. Ele pertence a um clube. São todos velhos amigos dele, assentadores de tijolo como ele. Têm um clube juntam-se uma vez por mês.
- O seu marido é assentador de tijolos? - perguntou Hawes.
- Sim. Assentador de tijolos. Assentador de tijolos sindicalizado - disse, como se pretendesse dar maior importância ao trabalho dele.
- E teve um ataque de coração às nove horas dessa noite?
- Foi nessa altura que telefonaram do hospital. Fui logo para lá.
- Isso foi já depois de a sua filha ter saído de casa.
- Sim.
- Então ela não sabia que o seu marido estava no hospital.
- Não, como é que podia saber?
- Foi directamente para o hospital quando lhe telefonaram...
- Sim.
- A que horas é que voltou para casa? Do hospital?
- Estive lá toda a noite.
- Ficou lá toda a noite?
- Ele estava nos Cuidados Intensivos - disse ela novamente, justificando-se.
- A que horas é que chegou a casa na manhã seguinte?
- Pouco depois das nove.
- Então não sabia que a sua filha não tinha estado em casa durante toda a noite, pois não?
- Não sabia.
- A sua mãe esteve em casa na noite em que a sua filha foi morta?
- Sim.
- E ela disse-lhe alguma coisa, quando a senhora voltou para casa na manhã seguinte, sobre a sua filha ter passado toda a noite fora?
- Ela às vezes fazia isso.
- A sua filha? Passava toda a noite fora de casa?
- Hoje em dia as raparigas... - disse Mrs. Annunziato, abanando a cabeça. - Quando eu era rapariga... o meu pai ter-me-ia morto - disse. - Mas hoje em dia... - E voltou a abanar a cabeça.
- Portanto não era invulgar a sua filha passar toda a noite fora de casa?
- Isso não acontecia muitas vezes. Só às vezes. Ela diz... dizia-nos que ia ter com uma amiga, que ficava em casa de uma amiga. Quem é que pode saber, uma amiga, um namorado? É melhor não perguntar. Hoje em dia é melhor não perguntar, não saber. Ela era boa rapariga, é melhor não saber.
- E não sabe quem possa ser este homem, Corey Mclntyre? A sua filha nunca lhe falou nele.
- Nunca.
Um telefonema para a Sports USA, para os seus escritórios na Ave-nue of the Américas, na Cidade de Nova Iorque, deu a saber a Carella que de facto havia um homem chamado Corey Mclntyre que trabalhava para a revista como jornalista-repórter. Mas Mr. Mclntyre vivia em Los Angeles e era normalmente destacado para cobrir acontecimentos no Sul da Califórnia, trabalhando aí como correspondente especial da revista. Carella disse ao homem que o atendeu que estava a investigar um caso de assassínio e que gostaria de saber a morada e o número de telefone de Mr. Mclntyre. O homem disse-lhe para esperar. Passados alguns minutos voltou à linha e disse que achava que não havia problema, dando a Carella as informações que este pretendia. «Los Angeles», pensou Carella. «Óptimo. Que é que fazemos agora? Digamos que Mclntyre é o nosso homem. Digamos que esteve aqui na cidade no dia 6 de Outubro quando alguém matou Mareia Schaffer e de novo no dia 13 de Outubro quando alguém, presumivelmente a mesma pessoa, matou Nancy Annunziato. Digamos que lhe telefono e lhe pergunto onde é que esteve nessas noites e ele desliga e foge para o México ou para qualquer outro lado. Óptimo.» Carella folheou a sua agenda de números de telefone, encontrou o número do D. P. L. A. fez a ligação e pediu para falar com a Divisão de Detectives. Um homem atendeu.
- Branigan - disse ele.
- Detective Carella, de Isola - disse Carella. - Tenho um problema.
- Conte lá - disse Branigan.
Carella contou-lhe dos assassínios. Contou-lhe do nome assinalado no exemplar da Sports USA de Nancy Annunziato. Disse-lhe que o homem vivia em L. A. e disse-lhe que tinha medo que um telefonema fizesse que ele desse à sola, se fosse de facto o assassino. Branigan es-cutou-o.
- Então que é que quer? - perguntou finalmente. - Quer que alguém vá falar com ele?
- Estava a pensar...
- Em primeiro lugar - disse Branigan -, suponha que vamos lá, isto para começar. E suponha que o tipo nos diz que esteve a jogar bowling nessas noites e nós dizemos «Muito obrigado, mas pode-nos dizer com quem é que esteve a jogar bowling}» e ele nos dá os nomes de três outros tipos; bom, isto é só para começar. Depois suponha que saímos de casa dele e vamos investigar os tais três tipos que talvez nem sequer existam. Que é que o nosso homem faz entretanto? Se o nosso homem é o assassino, foge para a China. Faz exactamente aquilo que você tem medo que ele faça, portanto de que é que serve nós andarmos a perder o nosso tempo? Se ele é o assassino, não nos vai dizer que esteve aí no Leste a fazer o tal número com as raparigas, pois não? Especialmente quando provavelmente é suficientemente inteligente para saber que não temos poderes para o prendermos sem existir uma acusação formal aí do vosso lado.
- Pensei que se o interrogassem a sério...
- Vocês têm aí o Miranda-Escobedo ou estão a trabalhar na Rús-ãa? Está a dizer-me para irmos a casa dele. Certo, esse é o segundo passo. E suponhamos que ele não tem nenhuma justificação plausível para o que fez nessas noites, ou talvez mesmo nos diga que esteve aí
nessas datas, e não creio que seja tão estúpido que o faça se for o assassino, e ali estão dois chuis na soleira da sua porta. Mas digamos que ele não nos parece ser realmente o tipo, apenas suspeito possível e dizemos, «O senhor importa-se de nos acompanhar à esquadra, pois temos mais algumas perguntas que gostaríamos de lhe fazer.» Ele põe o chapéu e nós trazê-mo-lo para a esquadra e lemos-lhe o Miranda, porque o caso deixou de ser uma investigação de campo. Carella, temos então uma situação em que uma investigação se está a centrar num homem, e este homem está tecnicamente sob custódia da Polícia e não lhe podemos fazer quaisquer perguntas até ele ter conhecimento dos seus direitos. Suponha então que ele não quer responder a quaisquer perguntas, o que constitui um direito dele? Depois o que fazemos? Está à espera que o acusemos de dois homicídios de primeiro grau só com base em informações vindas daí do Leste?
- Não, de forma alguma...
- Claro que não, porque se fosse você que estivesse do nosso lado da linha e se nós lhe telefonássemos a si para ir falar com um tipo qualquer, você perceberia o sarilho em que se estaria a meter, não é? O Supremo Tribunal não gosta de interrogatórios morosos nem de detenções não fundamentadas, Carella. Se este tipo decidir não abrir a boca, que é que fazemos? Detemo-lo aqui até você se meter num avião para cá? O D. P. L. A. ficava com o rabo tão entalado que não conseguiria cagar durante um mês.
- Compreendo.
- Ouça, Carella, eu entendo o seu problema. Se telefonar a este tipo e lhe começar a fazer perguntas, ele pensa logo «Pronto», pega no chapéu e dá à sola. Mas parece-me que terá de correr esse risco. De qualquer forma, como é que sabe que não foi alguém daí que pescou o nome do tipo da revista e o utilizou? Este tipo pode estar inocente como um bebé.
- Tenho consciência disso.
- Carella - disse Branigan -, gostei de conversar consigo, mas eu também tenho os meus problemas.
Ouviu-se um clique na linha.
«Quem não arrisca, não petisca», pensou Carella, e olhou para o relógio da esquadra. Sete e trinta. Eram apenas quatro e meia na outra costa. O turno da noite tinha sido rendido às quatro. Hawes estava à secretária, ocupado a dactilografar o relatório sobre o que tinham conseguido saber na casa dos Annunziato. Os dois detectives tinham estado a trabalhar desde as oito menos um quarto da manhã. Carella estava cansado; aquilo que mais queria era tomar uma bebida e um duche quente. Voltou a olhar para o pedaço de papel onde apontara a morada e o número de telefone de Corey Mclntyre. «OK, aqui vai e pode não dar nada», pensou, marcando o indicativo 213 da área e depois o número. Ao quarto toque uma mulher atendeu.
- Está? - disse ela.
- Corey Mclntyre, por favor - disse Carella.
- Fala a mulher - disse ela. - Importa-se de me dizer quem fala?
- Detective Carella da Esquadra Oitenta e Sete - disse. - De Isola.
- Só um momento - disse a mulher.
Ouvia vozes a murmurar à distância. Ouviu um homem dizer claramente «Quem?». Carella esperou.
- Está? - disse a voz do outro lado da linha.
- Mr. Mclntyre?
- Sim? - Um tom admirado. Ou seria desconfiado?
- Corey Mclntyre? -Sim.
- O Corey Mclntyre que trabalha para a Sports USA?
- Sim?
- Mr. Mclntyre, desculpe estar a incomodá-lo, mas o nome Nancy nnunziato diz-lhe alguma coisa?
Silêncio do outro lado da linha. - Mr. Mclntyre?
- Estou a pensar - disse ele. - Annunziato?
- Sim. Nancy Annunziato.
- Não, não a conheço. Quem é ela?
- E Mareia Schaffer?
- Também não a conheço. Pode dizer-me o que?...
- Mr. Mclntyre, esteve na Costa Leste no dia 13 de Outubro? Foi numa quinta-feira, à noite. Quinta-feira passada.
- Não, na quinta-feira passada estive aqui em LA.
- Lembra-se do que fez?
- Que é que se passa? - perguntou Mclntyre. - Diane, que é que fizemos na quinta-feira passada, à noite?
Carella ouviu a mulher dizer «O quê?» à distância.
- Na noite de quinta-feira passada - gritou-lhe Mclntyre. - Este tipo quer saber o que é que fizemos... ouça - disse ao telefone de novo -, isto está relacionado com quê, pode-me dizer?
- Estamos a investigar uma série de assassínios...
- E que é que isso tem a ver comigo?
- Gostaria que...
- Ouça, vou desligar - disse Mclntyre.- Não, gostaria que não o fizesse - disse Carella.
- Dê-me uma razão válida para não o fazer. Carella respirou fundo.
- Porque a última vítima tinha em sua posse um número da Sports USA com o seu nome assinalado.
- O meu nome?
- Sim. Na página onde vem o corpo redactorial. Na página quatro. O seu nome, Corey Mclntyre. Sob o título de Jornalistas-Repórteres.
- Quem é que fala? És tu, Frank?
- É outra vez o Frank? - perguntou a mulher à distância. Fala o detective Stephen Louis Carella da Esquadra...
- Frank, se esta é uma das tuas partidas idiotas...
- Mr. Mclntyre, garanto-lhe...
- De que número está a falar? - disse Mclntyre.
- 377-8034 - disse Carella.
- Em Isola, foi o que disse? -Sim.
- Eu telefono-lhe para aí - disse Mclntyre. - Com a chamada paga no destino - acrescentou, desligando.
Telefonou daí a dez minutos. A chamada paga no destino passou pelo PBX no andar de baixo e foi transferida para a sala da esquadra onde Carella aceitou a responsabilidade do pagamento.
- OK, é polícia a sério - disse Mclntyre. - Agora explique-me isso de o meu nome estar assinalado na revista.
- No quarto da rapariga morta - disse Carella.
- E isso é suposto significar o quê?
- É isso que estou a tentar descobrir.
- Ela foi morta na quinta-feira passada, é isso?
- É.
- OK. E quer saber onde é que eu estive na quinta-feira passada? Vou-lhe dizer onde...
- Diz-lhe onde estivemos - disse a mulher atrás dele numa voz alta e zangada.
- A minha mulher e eu estivemos numa festa em Brentwood - disse Mclntyre. - A festa teve lugar em casa do doutor e de Mrs. Joseph Foderman. Chegamos lá um pouco depois das oito...
- Diz-lhe a morada - disse a mulher.
-... e viemo-nos embora um pouco depois da meia-noite. Estavam lá...
- E o número de telefone - disse ela.
- Estavam lá oito pessoas contando comigo e com a minha mulher, para além dos donos da casa - disse Mclntyre. - Posso-lhe dar os nomes dos outros convidados, se quiser.
- Não creio que isso seja necessário - disse Carella.
- Quer a morada dos Foderman?
- Só o número de telefone, por favor.
- Tenciona telefonar-lhes ?
- Sim.
- Para lhes dizer que sou suspeito de assassínio
- Não, só para confirmar que de facto esteve lá na quinta-feira à noite.
- Se não se importa, faça-me um favor. Diga-lhe que aí na Costa Leste há um tipo qualquer que anda a usar o meu nome, está bem?
- Está.
- E gostava muito de saber quem ele é - disse Mclntyre.
- Nós também - disse Carella. - Diz-me o número, por favor? Mclntyre deu-lhe o número e disse:
- Desculpe ter-lhe gritado.
- Não peças desculpa - disse-lhe a mulher. Ouviu-se um clique abrupto na linha.
Carella suspirou e marcou o número que Mclntyre acabara de lhe dar. Falou com uma mulher chamada Phyllis Foderman que lhe disse que o marido estava no hospital naquele momento, mas se ela o poderia ajudar. Carella identificou-se, dizendo de onde estava a telefonar, acrescentou que tinham razões para acreditar que alguém na cidade estava a utilizar o nome de Corey Mclntyre e que estavam a tentar confirmar onde é que o verdadeiro Mr. Mclntyre estivera na noite de quinta-feira passada, dia 13 de Outubro. Mrs. Foderman disse-lhe imediatamente que Corey Mclntyre e a mulher, Diane, tinham estado com eles em Brentwood, numa pequena festa, e que mais seis pessoas além de ela própria e do seu marido testemunhariam esse facto. Carella agradeceu-lhe e desligou.
Naquela cidade, todos os táxis com licença eram obrigados a entregar no Departamento de Táxis um registo de todas as corridas do dia, indicando local e hora onde tinham apanhado o passageiro, destino e hora de chegada ao destino. Isto devia-se ao facto de muito poucos passageiros de táxi anotarem o nome ou o número do motorista claramente indicados num cartão bem visível no pára-brisas e muitas vezes telefonavam para o Departamento por causa de um embrulho ou objectos pessoais descuidadamente deixados num táxi. Através de uma simples verificação, o Departamento identificava o nome e o número do motorista e localizava o objecto perdido. Isto era quase um exercício académico, pois praticamente todas as coisas que eram deixadas num táxi desapareciam no espaço de dez segundos. Mas um dos efeitos secundários destes registos computadorizados e escrupulosamente mantidos era o departamento da Polícia ter acesso a um registo minuto a minuto dos locais de origem e destino das corridas.
O telefonema que Carella fez para o Departamento de Táxis, através de uma linha especial que funcionava vinte e quatro horas por dia, foi uma chamada de rotina e obteve uma resposta de rotina. Identificou-se e disse à mulher que o atendeu que queria saber qual tinha sido o destino de uma corrida iniciada na Laurel Street, 204, em Calm's Point, por volta das sete horas da noite de 13 de Outubro.
- O computador não está a funcionar - disse-lhe a mulher.
- Quando é que estará então? - perguntou Carella.
- Com computadores quem é que sabe? - disse a mulher.
- Não pode verificar os registos manualmente?
- Vai tudo para o computador - disse ela.
- Estou a investigar um homicídio - disse Carella.
- E quem é que não está? - ripostou a mulher.
- Pode-me telefonar para casa esta noite? Quando o computador estiver de novo a funcionar?
- Terei todo o gosto - disse ela.
Darcy Welles apanhara um táxi para o restaurante Marino em Ulster e South Haley e pedira ao motorista que lhe passasse um recibo, que colocou em cima da mesa no momento em que se sentou em frente do homem que pensava ser Corey Mclntyre da Sports USA. Teria uns trinta e muitos anos, pensou ela, era relativamente atraente para uma pessoa dessa idade e estava em boas condições físicas para qualquer idade. O seu ar era-lhe de alguma forma familiar. Tinha pensado nisso desde que o conhecera nessa tarde, mas continuava a não conseguir lembrar-se onde é que já o tinha visto.
- Sabe que fui verificar na revista - disse ela enquanto ele fazia sinal ao empregado para ir à mesa onde estavam.
- Como? - perguntou ele, inclinando a cabeça como se não a tivesse ouvido bem.
- Para ver se o senhor era mesmo quem diz ser - disse Darcy, sorrindo. - Procurei o seu nome na página onde vem a lista dos redactores e do resto das pessoas da revista.
- Ah, estou a perceber - disse ele, retribuindo-lhe o sorriso. -E sou mesmo quem digo ser?
- É - disse ela, abanando a cabeça, um pouco embaraçada. - Desculpe, mas... bem... não é todos os dias que alguém da Sports USA me bate à porta.
- Em que é que vos posso ser útil? - perguntou o empregado. -Desejam uma bebida antes do jantar?
- Darcy?
- Estou a treinar - disse ela.
- Um copo de vinho?
- Bom... não devia.
- Vinho branco para a senhora - disse ele. - E eu quero um Dewar só com gelo.
- Sim, senhor, vinho branco e um Dewar com gelo. Querem ver a ementa já? Ou preferem esperar um pouco?
- Esperamos.
- Não há pressa - disse o empregado. - Obrigado.
- Este restaurante é muito agradável - disse Darcy, olhando em volta.
- Espero que goste de comida italiana - disse ele.
- Quem é que não gosta? - disse ela. - Só tenho de ter cuidado com as calorias.
- Publicámos uma vez um artigo que afirmava que um atleta precisa de qualquer coisa como o dobro das calorias que um não atleta.
- Bom, posso dizer-lhe que gosto muito de comer - disse Darcy.
- A ingestão diária de quatro mil calorias não é invulgar para um atleta - disse ele.
- Mas quem é que está a contar calorias? - perguntou ela, rindo-se-
- Bom, fale-me de si - disse ele.
- Sabe, é engraçado mas...'
- Importa-se que eu utilize o gravador?
- O quê? Caramba, não sei. Isto é, eu nunca...
Ele já colocara o gravador de bolso em cima da mesa, entre ambos.
- Se a incomoda, posso apenas tirar apontamentos - disse ele.
- Não, acho que não me importo - disse ela, olhando para o gravador, observando-o enquanto ele carregava em alguns botões.
- A luz vermelha indica que está ligado e a luz verde que está a gravar - disse ele. - Bom, ia a dizer...
- Que foi engraçado como as suas perguntas desta tarde me fizeram reflectir. Quero dizer, como é que me posso lembrar quando é que me comecei a interessar por atletismo? Sabe o que é que a minha mãe disse?
- A sua mãe?
- Sim, quando lhe telefonei. Disse que...
- Telefonou-lhe para o Ohio?
- Claro. Acha que é todos os dias que a Darcy Welles é entrevistada para a Sports USA ?
- Ela ficou satisfeita?
- Santo Deus, quase que fez chichi nas cuecas. Bolas, essa coisa está a gravar, não está? - perguntou, olhando para o gravador. - Seja como for, ela disse que eu provavelmente fui para o atletismo porque o meu irmão andava sempre a correr atrás de mim.
- É um aspecto engraçado.
- Mas creio... creio que comecei realmente a pensar em correr, sabe... e creio que a razão por que fui para o atletismo foi a de me sentir bem a correr, percebe?
- Sim - disse ele.
- Vinho branco para a senhora - disse o empregado, colocando um copo em cima da mesa. - E um Dewar com gelo para o senhor.
- Obrigado - disse ele.
- Quer que traga a ementa?
- Daqui a pouco - disse ele.
- Obrigado - respondeu o empregado, afastando-se com passos leves.
- Não me estou a referir apenas a sentir-me bem fisicamente... o que também acontece, sabe, pois sentimos o nosso corpo a corresponder...
- Sim.
- Mas também me faz sentir mentalmente bem. Quando estou a correr, a única coisa em que consigo pensar é em correr, percebe?
- Sim.
- Não tenho nada a encher-me a cabeça, sabe o que quero dizer?
- Sim.
- Sinto-me... sinto como se tudo estivesse limpo e branco dentro da minha cabeça. Consigo ouvir-me respirar, e esse é o único som no mundo...
- Sim.
- E todos os pequenos problemas, todas as chatices sem importância desaparecem, sabe? É como se... estivesse a nevar dentro da minha cabeça e a neve cobrisse todo o lixo e todas as coisas que não prestam, deixando tudo limpo e branco e puro. É isso que eu sinto quando corro. É como se fosse Natal todo o ano. Com tudo branco e macio e belo.
- Sim - disse ele -, eu sei.
Carella voltou a telefonar para o Departamento de Táxis à noite, de casa.
Eram nove e meia. Os gémeos estavam a dormir e Teddy estava sentada à sua frente na sala, a ler a secção «Precisa-se» dos jornais da manhã e da tarde, assinalando os anúncios que lhe pareciam ter interesse. Dessa vez foi um homem que atendeu o telefone. Carella pediu para falar com a mulher que o atendera antes.
- Foi-se embora - disse o homem. - Foi para casa às oito. Eu rendi-a às oito.
- Como é que está o computador?
- Que é que quer dizer com isso? Está óptimo. Como é que havia de estar?
- Estava avariado quando telefonei, às sete e meia.
- Bom, agora está a funcionar.
- Ela não deixou ficar nenhum recado para me telefonarem? - perguntou Carella. - Fala o detective Carella, e estou a investigar um homicídio.
- Não vejo nada no quadro - disse o homem.
- Pronto. Estou a tentar identificar uma corrida com origem na Laurel Street, 207, em Calm's Point...
- Quando? - perguntou o homem. Carella visualizou-o sentado ao teclado do computador, a introduzir dados.
- 13 de Outubro - disse. -Hora?
- Dezanove horas, mais ou menos.
- Laurel Street, 207 - repetiu o homem. - Calm's Point.
- Certo.
- Sim, está aqui.
- Para onde é que ele a levou? - perguntou Carella.
- South Haley, 1118.
- Em Isola?
- Isola.
- A que horas é que a deixou lá?
- Às oito menos um quarto.
- Tem qualquer indicação do que isso possa ser? Um edifício de apartamentos? Um edifício de escritórios?
- Só tenho a morada.
- Obrigado - disse Carella.
- Mande sempre - disse o homem, desligando.
Carella pensou durante alguns instantes e depois folheou o bloco de apontamentos para ver se tinha o número de telefone do Departamento de Detecção de Incêndios. Não constava na página onde anotava os números que utilizava com mais frequência. Telefonou para a 87.ª Esquadra. Dave Murchison era o sargento de serviço ao balcão de informações. Disse a Carella que a noite estava a ser relativamente calma e depois perguntou a que é que devia o prazer do telefonema. Carella disse-lhe que precisava do número de atendimento nocturno do Departamento de Detecção de Incêndios.
Eram vinte para as dez quando fez a ligação.
- F. B. I. - disse o homem que atendeu a chamada.
- Fala o detective Carella, da 87 Esquadra - disse. - Estou a investigar um homicídio.
- Diga - disse o homem.
- Tenho uma morada em South Haley e preciso de saber se é um escritório ou uma residência.
- South Haley - disse o homem. - Creio que é a zona do Quartel Quatro-Um. Vou-lhe dar o número e lá dizem-lhe. Só um segundo.
Carella esperou.
- O número é o 914-3700 - disse o homem. - Se estiver lá o capitão Healey, dê-lhe cumprimentos meus.
- Darei. Obrigado - disse Carella.
Eram dez menos um quarto quando ligou para o Quartel Quatro-Um. O bombeiro que atendeu o telefone disse:
- Quatro-Um, Lehman.
- Fala o detective Carella, da 87.ª Esquadra - disse Carella.
- Como está, Carella - disse Lehman.
- Estou a investigar um homicídio...
- Que chatice - disse Lehman.
- ... e estou a tentar averiguar o que é o 1118 da South Haley. Que informação é que vocês têm? É um prédio de apartamentos? Um edifício de escritórios?
- Mal o consigo ouvir - disse Lehman. - Vocês importam-se de fazer menos barulho? - gritou para o lado. - Falando de novo ao telefone, disse: - Estão a jogar póquer. Repita a morada, sim?
- 1118, South Haley
- Deixe-me ver no mapa. Não desligue, está bem? Carella esperou. No meio do ruído de fundo, ouviu alguém gritar:
- Grande merda! - e pensou quem é que teria mostrado uma mão I um royalflush.
- Ainda aí está? - perguntou Lehman.
- Ainda.
- OK. 1118 South Haley é um prédio de seis andares, com escritórios nos andares de cima e um restaurante no rés-do-chão.
- Como é que se chama o restaurante?
- Marino - disse Lehman. - Nunca lá comi, mas é suposto ser bastante bom.
- OK, muito obrigado.
- O tipo tinha quatro ases - disse Lehman, desligando.
Carella procurou na lista telefónica de Isola o número de telefone do Marino. Marcou o número, identificou-se ao homem que atendeu o telefone e disse:
- Queria que visse no vosso livro as reservas para a noite de 13 de Outubro, que foi quinta-feira passada.
- Claro, para que horas? - perguntou o homem.
- Por volta das oito.
- Em que nome?
- Mclntyre. Corey Mclntyre.
Ouvia o homem a folhear o livro do outro lado da linha.
- Sim, está aqui - disse o homem. - Mclntyre, para as oito.
- Para quantas pessoas? - perguntou Carella.
- Duas.
- Lembra-se com quem é que ele estava?
- Não, desculpe. Temos muitos clientes e não posso de forma alguma... espere aí, disse Mclntyre?
- Sim, Mclntyre.
- Espere um segundo.
Carella voltou a ouvir o homem a folhear as páginas.
- Pois, é o que eu pensava - disse o homem.
- O quê?
- Ele está cá esta noite.
- O quê?
- Sim, chegou às oito e tinha uma reserva para duas pessoas. Mesa quatro. Espere só um segundo, OK?
Carella esperou.
O homem voltou ao telefone.
- Lamento, mas saiu há cerca de cinco minutos - disse.
- Com quem é que estava?
- O empregado diz que estava com uma rapariga.
- Jesus! - exclamou Carella. - Até que horas é que estão abertos?
- Onze e meia, meia-noite, depende. Porquê?
- Não deixe o empregado ir-se embora - disse Carella, desligando.
A garagem para estacionamento ficava a dois quarteirões do restaurante. Na parede havia um letreiro que informava os condutores interessados dos preços exorbitantes cobrados pelo estacionamento de um carro ali no centro da cidade e indicava que se o carro não fosse entregue no prazo de cinco minutos após o empregado ter carimbado o talão, não haveria lugar a qualquer pagamento. O seu talão tinha sido carimbado há sete minutos. Ouviu o chiar de borracha enquanto um empregado mais vocacionado para correr no Grande Prémio manobrava um automóvel pelas curvas apertadas das rampas da garagem na esperança de cumprir o limite de tempo e possivelmente salvar o seu emprego. Pensou se o deixariam mesmo ir-se embora sem pagar. Mas não ia discutir por uma questão de dois ou três minutos. Não queria que nada o atrasasse naquela noite.
- Não precisa de me levar de carro ao dormitório - disse Darcy. -Posso muito bem apanhar um táxi.
- O prazer será todo meu - disse ele.
- Ou o metropolitano - disse ela.
- O metropolitano é perigoso - disse ele.
- Farto-me de andar de metropolitano.
- Não devia.
Avistou o seu carro na última curva da rampa. O empregado, um porto-riquenho de cinquenta e tal anos, saiu do carro e disse:
- Mesmo na hora. Cinco minutos. Ele não contradisse o empregado.
Deu-lhe cinquenta cêntimos de gorjeta, abriu a porta para Darcy entrar, fechou-a e deu a volta para o lado da porta do condutor. O carro era um Mercedes-Benz 280 SL com quinze anos. Tinha-o comprado quando ainda ganhava dinheiro a rodos. Anúncios nos órgãos de Comunicação Social, anúncios na televisão. Mas isso tinha sido dantes. Agora era agora.
- Ponha o cinto de segurança - disse a Darcy.
Hawes estava na cama com Annie Rawles quando o telefone tocou. Olhou para o relógio na mesinha-de-cabeceira. Eram dez menos um quarto.
- Deixa-o tocar - disse Annie.
Ele olhou-a nos olhos. O seu olhar dizia-lhe que tinha de atender; o olhar dela reconheceu aquele triste facto inerente ao trabalho de um polícia. Rolou de cima dela e levantou o auscultador.
- Hawes - disse.
- Cotton, é Steve.
- Sim, Steve.
- Espero não estar a interromper nada.
- Não, não - disse, revirando os olhos para Annie. Annie estava nua, à excepção do fio de ouro e do berloque. Estava a mexer no fio. Ele ainda não lhe perguntara por que é que ela nunca tirava o fio. Tencionara perguntar-lhe na primeira noite, na semana anterior, mas não o fizera. Tencionara perguntar-lhe naquela noite, quando ela continuara com o fio posto, mesmo no duche. Mas não perguntara. - Que Steve? - perguntou.
- O nosso homem acabou de sair do restaurante Marino, na South Waley, 1118. Podes ir lá falar com o empregado que o serviu?
- Qual é a pressa? - perguntou Hawes.
- Estava acompanhado de uma rapariga.
- Merda, vou já - disse Hawes.
- Encontro-me contigo lá - disse Carella -, assim que puder.
- Desligaram ambos.
- Tenho de ir - disse Hawes, levantando-se da cama.
- Queres que espere por ti aqui? - perguntou Annie.
- Não sei quanto tempo demorarei. Talvez tenhamos conseguido uma pista.
- Eu espero - disse Annie. Depois fez uma pausa. - Se estiver a dormir, acorda-me. - Voltou a fazer uma pausa. - Sabes como - acrescentou.
- É muito simpático da sua parte - disse Darcy - desviar-se tanto do seu caminho.
- É simplesmente uma forma de lhe agradecer a magnífica entrevista - disse ele.
Estavam na River Highway, dirigindo-se para este em direcção à universidade que ficava na parte alta da cidade. Tinham acabado de passar por debaixo da ponte Hamilton, cujas luzes nos cabos de suspensão e nos pilares iluminavam as águas escuras do rio Harb lá em baixo. Algures no rio, um rebocador fez soar o seu apito. Na margem oposta, os arranha-céus de uma urbanização procuravam audaz e inutilmente competir com o magnífico horizonte. O relógio no tablier do carro marcava 10:07. O trânsito era mais intenso do que ele pensava que seria; normalmente apanhava-se o movimento das pessoas que moravam fora da cidade e regressavam a casa do trabalho entre as cinco e as seis e as pessoas que tinham ido ao teatro e que regressavam a casa às onze, onze e meia. Manteve os olhos na estrada. Não queria correr O risco de um acidente. Não se queria ver envolvido em nada que pudesse fazer com que a perdesse. Não quando estava já tão perto.
- Acha que tem tudo o que precisa? - perguntou ela.
- Foi uma entrevista muito boa - disse ele. - Você exprime-se muito bem.
- Pois sim.
- Estou a ser absolutamente sincero. Tem uma habilidade especial para revelar os seus sentimentos mais profundos. Isso é muito importante.
- Acha?
- Se não achasse não o diria.
- Bem... é muito fácil falar consigo. Torna tudo... olhe, não sei. As palavras saem naturalmente quando falo consigo.
- Obrigado.
- Importa-se de me fazer um favor?
- Claro.
- Vai-lhe parecer estúpido.
- Bom, só saberemos isso depois de dizer o que é.
- Importa-se... acha que posso ouvir a minha voz?
- No gravador?
- Sim. É estúpido, não é?
- Não, é perfeitamente normal.
Meteu a mão na algibeira do casaco e deu-lhe o gravador.'
- Está a ver esse botão que diz Rebobinar? - disse. - Carregue nele.
- Neste?
Ele desviou o olhar da estrada por instantes.
- Esse mesmo. Bom, espere; primeiro carregue no botão para Ligar/Desligar...
- Já está.
- Agora rebobine. -OK.
- E agora carregue no botão «Play».
Ela carregou no botão. Ouviu-se a sua voz a meio de uma frase.
- ... estou apensar nas Olimpíadas neste momento, sabe o que quero dizer, não sabe? Parece-me um sonho, a ideia de ir às Olimpíadas...
- Santo Deus, que voz horrível! - disse ela.
- «... Nem sequer penso conscientemente nisso. Neste momento, a minha única preocupação é tornar-me a melhor corredora que puder. Se conseguir baixar os doze, bem, então, talvez possa começar a pensar em...»
- Parece que tenho 6 anos - disse ela carregando no botão de Stop. - Como é que aguentou ouvir todas essas idiotices?
- Achei que foi extremamente informativa - disse ele.
- Quer que lhe meta isto na algibeira ou posso deixá-lo aqui no banco ?
- Importa-se de me passar a fita para a frente, por favor?
- Onde é que carrego?
- No «Fast Forward». Até chegar à fita que ainda não está gravada. Ela fez a experiência enquanto ele conduzia, fazendo correr a fita
para a frente, parando, conseguindo por fim passar a conversa que fora gravada no restaurante.
- Deve estar bem - disse ele, desligando o gravador.
- Na sua algibeira? Sim? Não?
- Por favor - disse ele.
- Ei, vai deixar passar a saída da auto-estrada - disse ela.
- Há uma coisa que lhe quero mostrar - disse ele. - Tem alguns minutos?
O sinal azul indicando Hollis Avenue e Converse University surgiu e desapareceu por cima do carro.
- Bom... claro - disse ela. - Creio que sim. - Hesitou. - Que é que me quer mostrar?
- Uma estátua - disse ele.
- Uma estátua? - Darcy fez uma careta. - Que tipo de estátua?
- Não sabe que há uma estátua de um corredor nesta cidade?
- Não. Está a gozar comigo. Quem é que fazia uma estátua a um Corredor?
- Ah-ah - disse ele. - Achei que ia ficar admirada.
- Onde é que é? Um corredor?
- Não é longe daqui. Isto se tem alguns minutos.
- Não perco isto por nada deste mundo - disse ela. Voltou a hesitar e disse: - Sabe que o senhor é divertido? É um tipo divertido.
O carro particular de Carella não tinha sirene. Mesmo conduzindo o mais rapidamente possível, passando tantos sinais vermelhos quantos pôde sem atropelar nenhum peão nem bater em nenhum carro, levou meia hora a chegar ao restaurante. Quando lá chegou, Hawes já tinha falado com o empregado e estava a falar com o maitre que atendera Mclntyre ao telefone quando este fizera a reserva. Assim que Carella entrou, Hawes disse:
- Desculpe-me - e dirigiu-se a ele. Carella parecia sem fôlego, como se tivesse corrido desde Riverhead.
- O que é que temos? - perguntou.
- Pouco - disse Hawes. - Um tipo que fez a reserva pelo telefone disse que era Corey Mclntyre...
- Que está em Los Angeles - disse Carella.
- Certo, mas que também estava cá a semana passada, o tipo que diz ser Corey Mclntyre. O maitre confirmou-o, mas verificou no livro e não tem qualquer reserva para nenhum Mclntyre antes disso, para o tipo que diz ser Mclntyre.
- Qual é o aspecto dele?
- Não mais de 40 anos, disse o empregado. Um metro e setenta e seis ou oito e setenta e cinco quilos; tem cabelo castanho, olhos castanhos, bigode e não tem cicatrizes ou tatuagens visíveis. Vestia um fato castanho-escuro, gravata bege e sapatos castanhos. Não trazia sobretudo, segundo a senhora do bengaleiro.
- Como é que pagou o jantar?
- Aí não temos sorte nenhuma, Steve. Em dinheiro.
- E a rapariga?
- O empregado diz que parecia ter 18 ou 19 anos. Esguia... bem. enérgica foi a palavra que o empregado utilizou. Pensei que só os homens tinham um ar enérgico - disse Hawes, encolhendo os ombros. - Seja como for, enérgica. Com um metro e setenta e três ou quatro, uma rapariga alta, disse o empregado. Cabelo preto, olhos azuis.
- O empregado conseguiu ouvir o nome dela?
- Darcy. Quando lhes perguntou se queriam uma bebida antes de jantar, o tipo disse, «Darcy?». A rapariga disse que não devia beber. Disse-lhe que estava a treinar.
- Outra atleta? - disse Carella. -Jesus!
- Outra corredora, Steve. -Como é que sabes?
- O empregado ouviu-os a falar de corridas. Sobre como ela se sentia bem a correr. Isto foi quando levou as bebidas para a mesa. A rapariga bebeu vinho branco e o tipo um Dewar com gelo.
- É uma testemunha fidedigna? - perguntou Carella. - Vivo como um esquilo. Memória de elefante. - Que mais?
- O tipo estava a gravá-la - disse Hawes. - Pôs um gravador em cima da mesa e gravou tudo o que ela disse. Bom, desligou-o enquanto comiam, mas recomeçou a gravar quando tomaram o café. O empregado disse que ele lhe ia fazendo perguntas, como se fosse uma entrevista, ou qualquer coisa assim.
- Ele não ouviu por acaso o apelido dela, pois não?
- Estás à espera de milagres?
- Que é que ela tinha vestido?
- Um vestido vermelho e sapatos vermelhos de salto alto. Um travessão vermelho no cabelo. Tinha o cabelo puxado para trás, não em rabo de cavalo, mas puxado para trás e preso com o travessão.
- Devíamos contratar o empregado - disse Carella. - Foram-se embora como?
- O porteiro perguntou se precisavam de um táxi e o nosso tipo disse-lhe que não.
- Portanto foram a pé, ou quê? Ele viu-os entrar nalgum carro?
- Foram a pé. -Para que lado?
- Para norte. Na direcção de Jefferson.
- Podem ainda andar por aí? - disse Carella. - A que esquadra pertence esta zona? Aqui é Midtown South, não é?
- Pertence à Hall Avenue. Então é norte.
- Vamos contactar pela rádio as duas esquadras. Se estiverem a andar a pé pela rua pode ser que um dos carros os detecte.
- Sabes quantas garagens há nas ruas laterais aqui à volta? Supõe que o tipo tem carro?
Ele saíra da auto-estrada imediatamente antes da portagem que separava Isola de Riverhead e dirigia-se agora para sul, em direcção ao no Diamondback e ao parque na margem norte. A estátua, disse-lhe, estava no parque. Duvidava que mais alguém na cidade soubesse sequer que a estátua existia; fora isso que lhe dissera. Ela parecia muito interessada em ver a estátua, mas ele percebeu que as ruas por onde estavam agora a passar a estavam a enervar ligeiramente. O velho mercado de peixe da Maurice Avenue estava à sua direita, com os vidros das janelas partidos por vândalos, as paredes outrora brancas cobertas Com desenhos de graffiti. Um pouco mais adiante, estava o edifício com mais de um século onde estava instalada a 84.* Esquadra, com globos verdes iluminados a ladear os degraus da frente. Metera propositadamente por aquela rua, na esperança de que ao ver a esquadra da Polícia a rapariga se tranquilizasse. Passou por vários carros-patrulha estacionados em espinha junto ao passeio à frente da esquadra. Um polícia fardado vinha a descer os degraus.
- É bom saber que eles andam por aí, não é? - disse ele.
- Nem mais. Que raio de bairro.
Em tempos tinha sido um bairro decente, mas a Secção da Bridge Street, como se chamava, tinha-se deteriorado ao longo dos anos até se assemelhar a todas as outras zonas degradadas da cidade, com as ruas cheias de buracos, os prédios quase em ruínas, muitos deles até abandonados. Há alguns anos, quando o Departamento de Polícia escolheu Bridge Street para instalar uma esquadra, a rua era movimentada e cheia de lojas, com o seu núcleo no enorme mercado de peixe perto do rio Harb, quando - nessa altura - as suas águas límpidas permitiam pescar diariamente grandes quantidades de peixe fresco. Agora o rio estava poluído e o bairro praticamente inabitável. Não compreendia por que é que lhe chamavam Bridge Street'. As pontes mais próximas ficavam a este e a oeste - a Hamilton Bridge sobre o rio Harb que ligava os dois estados e uma ponte mais pequena sobre Devil's Bight que ligava Ri-verhead a Isola. Tão pouco havia uma ponte junto do parque na margem do rio Diamondback, local em que a Bridge Street terminava num entroncamento perpendicular com a Turret Road. Também não se viam quaisquer torreões, embora talvez existissem no tempo dos holandeses ou dos ingleses. Turret Road parecia um nome inglês. De qualquer forma, a Bridge Street entrava e terminava directamente aí e a Bridge Street Park começava do outro lado de Turret Road.
- Chegámos - disse ele.
O relógio no painel do carro indicava 10:37.
- É um sítio assustador - disse Darcy.
- É bem policiado - disse ele.
Estava a mentir. Tinha vigiado o parque durante três noites diferentes e não encontrara um único polícia, apesar de o parque ficar perto da esquadra. Mais, o parque era considerado um sítio perigoso à noite e era raro ver-se alguém lá a pé depois das nove da noite. Tinha visto apenas duas pessoas no parque durante as suas anteriores saídas nocturnas; um marinheiro e uma rapariga que parecia uma pega e que estava de joelhos à frente dele no meio de uns arbustos.
Parou o carro a certa distância do candeeiro mais próximo, saiu do carro, deu a volta até ao passeio e abriu a porta para ela sair. Enquanto ela saía do carro, meteu a mão na algibeira e ligou o gravador.
- Acha que conseguimos ver a tal estátua? - perguntou ela. - Parece estar muito escuro.
- Não, há candeeiros - disse ele.
De facto havia candeeiros dentro do parque, do tipo antigo, um poste vertical com uma lâmpada dentro de um globo em cima do poste. Não tinham um braço projectado sobre o caminho. Considerou isto um contratempo. Desta vez, teria preferido pendurá-la no sítio
onde a mataria, num parque deserto na zona de uma outra esquadra. O parque estava cercado por um muro de pedra baixo do lado da Tur-ret Road e por uma cerca na outra extremidade, junto ao rio Diamond-back. Não tencionava levá-la tão para dentro do parque. Tencionava agir de imediato assim que passassem a entrada. A entrada era uma abertura no muro, definida por dois pilares de pedra mais altos que este. Havia um globo com uma lâmpada no cimo de cada pilar, mas as lâmpadas estavam fundidas; tinha-as fundido há duas noites. O passeio e o caminho que atravessava o parque estavam quase completamente às escuras.
- Devíamos ter trazido uma lanterna - disse Darcy.
- Vândalos - disse ele -, mas há um candeeiro um pouco mais à frente. Entraram no parque.
- De quem é esta estátua, afinal de contas? - perguntou ela.
- De Jesse Owens - disse ele.
Estava novamente a mentir. A única estátua que havia no parque era uma estátua equestre de um coronel qualquer que, segundo a placa de bronze na sua base, combatera com bravura na Batalha de Gettysburg.
- A sério? Aqui? Pensei que ele fosse de Cleveland.
- Conhece o nome?
- Claro. Bateu tudo o que era gente no mundo... quando é que foi?
- 1936. Nos Jogos Olímpicos de Berlim.
- Ridicularizou Hitler e as suas teorias sobre a supremacia ariana.
- Fez dez-seis nos cem metros - disse ele, assentindo. - Bateu o record mundial com vinte vírgula sete nos duzentos metros e também ganhou a estafeta dos quatrocentos metros.
- Para não falar no salto em comprimento - disse Darcy.
- Então conhece-o mesmo - disse ele, sorrindo, satisfeito.
- Claro que o conheço, sou uma corredora - disse ela, e foi nessa altura que ele atacou.
Tencionava agir com a mesma rapidez e facilidade como com as outras duas. Uma chave de braço aligeirada, não se destinando nem,a derrubar nem a dobrar pela cintura, mas sim para a forçar a assentar o peso do corpo sobre o pé esquerdo, expondo-lhe assim a parte de lado do corpo. Com o braço esquerdo estendido, metia o corpo sob a axila, e antes de ela poder virar a cabeça, assentava-lhe a mão na parte de trás do pescoço num meio golpe «nelson». Depois, passando para a frente dela, levava a outra mão de forma a ficar sob a axila direita e agarrava a parte de trás do pescoço, completando assim um «nelson» por inteiro, depois, carregava-lhe a cabeça para baixo, forçando-lhe o queixo contra o peito e, exercendo pressão, partia-lhe a espinha.
O «nelson» completo, dado ser tão perigoso, só podia ser utilizado por praticantes de luta livre em competições internacionais e, mesmo assim, só aplicado a um ângulo de noventa graus em relação à coluna.
Uma vez unidas as mãos junto à parte de trás da cabeça do opositor, era obrigatório desviar o corpo para a direita ou para a esquerda de forma a criar o ângulo legal antes de exercer pressão. Mas ele não estava preocupado com o ângulo legal. Estava interessado tão-somente em despachá-la eficaz, silenciosa e o mais rapidamente possível. A sua experiência com as outras duas ensinara-lhe que podia colocar-se em posição e exercer a necessária pressão em vinte segundos. Mas, desta vez, a rapariga não estava pelos ajustes.
No instante em que ele lhe agarrou o pulso firmemente, ela gritou: - Ei! - e deu imediatamente um passo para trás, afastando-se dele, tentando libertar-se. Voltando a puxá-la para si, tentou manobrar-lhe o braço para cima para aplicar o meio <'nelson», mas ela enfiou-lhe o cotovelo nas costelas e, ainda parcialmente de costas para ele, pisou-lhe o peito do pé com o salto alto.
Sentiu uma terrível dor no pé, mas não lhe largou o pulso. Lutaram feroz e silenciosamente, com os pés a raspar contra a leve camada de folhas caídas no chão, com os seus corpos a interceptar a luz do candeeiro um pouco mais adiante, fazendo dançar sombras no meio do caminho. Ela não o deixava meter o braço debaixo da axila. Continuou a tentar libertar o pulso, puxando o braço, atacando-o sempre que ele tentava meter o braço por baixo do dela para aplicar o golpe. Quando ela avançou para ele, esgatanhando-lhe o rosto, ele deu-lhe um murro. O seu punho esquerdo assentou-lhe no meio do peito, entre os seios firmes de atleta, tirando-lhe o fôlego. Voltou a bater-lhe, desta vez no rosto, dando-lhe murros contínuos devido à ira que sentia pelas dificuldades que ela lhe estava a criar, pela sua recusa em colaborar na sua própria morte. Um murro violento partiu-lhe a cana do nariz, fazendo jorrar sangue que lhe molhou o punho e manchou de um vermelho ainda mais vivo o vestido vermelho da rapariga. Ela procurava respirar melhor, com os olhos azuis muito abertos de terror. Ele deu-lhe um murro na boca, partindo-lhe os dentes da frente, e quando ela ia a cair para a frente em direcção a ele, meteu rapidamente o braço por baixo do dela, aplicando o golpe na parte de trás da cabeça, e pôs-se completamente por detrás dela, com as pernas firmemente encostadas às suas nádegas. Aguentando-a de pé, meteu o braço livre por baixo da outra axila da rapariga e levou a mão até à parte de trás do pescoço, unindo os dedos de ambas as mãos, abrindo as pernas para distribuir o peso do corpo, exercendo então pressão num movimento rápido.
Ouviu o ruído da espinha a partir-se.
Este soou como um tiro de espingarda na quietude daquela noite de Outubro.
A rapariga caiu contra ele.
Ele olhou rapidamente para o caminho, pegou nela ao colo e virou-se na direcção da entrada do parque.
Um homem estava na abertura ladeada pelos globos de iluminação estilhaçados. A luz do candeeiro um pouco mais adiante na rua lançava a sua sombra por entre os dois pilares de pedra.
O homem viu-o e desatou a fugir.
O detective de primeira classe Oliver Weeks disse:
- Ora esta, ora esta.
Era muito raro ver-se ali um branco. Os brancos que havia em Diamondback ou eram polícias, ou carteiros, ou almeidas ou alguém que lá fora com uma pega. Também era raro ver ali uma pessoa branca que além disso fosse mulher. Naquele bairro havia muitas raparigas a quem Ollie chamava «raparigas de gritos», mas é claro que estas não eram brancas. Na opinião de Ollie Weeks, quem tivesse uma gota de sangue negro nas veias não era branco. Portanto, era raro ver-se ali uma rapariga branca às oito da manhã de uma quinta-feira e era mais raro ainda esta estar pendurada num candeeiro. Os detectives dos homicídios também acharam que era um caso raro. Estavam todos a comentar como era raro um caso assim quando chegou o tipo da Medicina Legal.
O médico legista disse-lhes que não era tão raro assim o caso da rapariga pendurada no candeeiro. Perguntou-lhes se não liam os jornais nem viam televisão. Não sabiam que já tinham sido encontradas mais duas raparigas em condições idênticas nos últimos quinze dias, penduradas em candeeiros de forma a toda a gente lhes poder ver as cuecas? O grupo de polícias que ali se juntara olhou para as cuecas da rapariga morta. Tinha cuecas vermelhas por debaixo do vestido vermelho.
- Mesmo assim - disse Ollie -, é raro aqui na Oito-Três encontrar-se alguém morto que não seja escarumba.
Um dos polícias que estava a erguer as barreiras e os avisos de Local de Crime era preto. Não fez qualquer comentário ao ouvir a afirmação pejorativa de Ollie, pois este tinha mais galões que ele (o polícia fez de facto este raciocínio sem se aperceber da associação freudiana implícita na forma em V invertido dos galões) e, além disso, Ollie Weeks, o Gordo, não sabia que a palavra «escarumba» era pejorativa. Se Ollie Weeks, o Gordo, fosse ministro do Interior, a expressão pela qual teria ficado famoso seria: «Tenho um escarumba. Uma puta, dois chulos e um pandeiro.» Era simplesmente a forma como Ollie Weeks, o Gordo, falava. Não era por mal. Estava sempre a dizer às pessoas que não era por mal, que era assim que ele falava.
- Alguns dos meus melhores amigos são escarumbas - gostava de proclamar Ollie Weeks, o Gordo. Na realidade, Ollie considerava que o melhor detective da Oito-Três - para além dele próprio, é claro - era um escarumba. Estava sempre a dizer a quem estivesse na disposição de o ouvir que Parsons era um dos melhores dos sacanas dos polícias escarumbas da cidade.
Quando daí a uns dez minutos cortaram a corda e puseram a rapariga no chão, os detectives e o médico legista juntaram-se à volta dela como se estivessem num jogo de póquer.
- Fez-lhe um bonito serviço antes, não fez? - disse um dos detectives dos homicídios. Chamava-se Matson.
- Partiu-lhe metade dos dentes - disse o outro. - Este chamava-se Manson. Era mau nome para polícia e estava sempre a ser chateado por causa disso.
- Parece que lhe partiu o nariz.
- Para não falar no pescoço - disse o médico legista. - Quem é que está encarregue do caso?
- Eu - disse Ollie. - Vejam lá a minha sorte.
- A causa da morte foi fractura das vértebras cervicais.
- Isso é sangue no vestido? - perguntou Matson.
- Não, é melhor - disse Ollie. - Que raio é que pensavas que era?
- Onde? - perguntou Manson.
- Por cima das mamas - disse Matson.
- Bonitas «Jennifers» - disse Manson.
- Nunca ouvi essa expressão - disse Matson.
- «Jennifers»? É uma expressão muito conhecida.
- Nunca a ouvi em toda a minha vida. «Jennifers»? «Jennifers" é suposto serem mamas?
- Lá na minha terra toda a gente lhes chamava «Jennifers» - disse Manson, ofendido.
- Onde raio é a tua terra? - disse Ollie.
- Calm's Point - disse Manson.
- Tretas - disse Matson, abanando a cabeça.
- Talvez queiram averiguar em relação às outras duas - sugeriu o médico legista...
- Ela tem mais duas? - disse Manson, procurando fazer humor depois do desaire que sofrera quanto à utilização da palavra «Jennifers», que era uma expressão comum quando ele era adolescente, para definir mamas, até mamas grandes... bem, não, essas eram «Jemimas».
- As duas outras vítimas - disse o médico legista.
- Vocês querem isto? - perguntou o polícia preto, dirigindo-se para eles.
Meyer estava sentado à secretária, de peruca, a escrever à máquina. A peruca escorregara ligeiramente para o lado, dando-lhe um ar de «não-te-rales». Viu uma enorme figura do outro lado da divisória de madeira que separava a sala da esquadra do corredor. Por instantes pensou que seria Ollie Weeks, o Gordo. Piscou os olhos. Era mesmo ele. Meyer sentiu imediatamente vontade de tomar um duche. Weeks cheirava normalmente como uma fossa, e uma pessoa que estivesse ao seu lado pensava logo como é que ele não atraía moscas. Week"s também era racista. Era só o que faltava a Meyer tê-lo ali na esquadra naquele dia. Não o queria ver nunca ali na esquadra. Mas ali estava ele, do tamanho de um buda, às dez da manhã.
- Está alguém em casa? - perguntou ele da divisória, abrindo de seguida a porta e entrando. Meyer estava sozinho na sala. Não disse nada. Ficou a olhar enquanto Ollie se aproximava da sua secretária. Olhinhos de porco numa cara redonda de porco. Barriga gorda a sair-lhe por cima do cinto das calças. Casaco de fazenda tão amarrotado que parecia ter sido usado para dormir durante uma semana. Ollie Weeks, o Gordo, avançou, bamboleando o seu enorme corpo, para a secretária de Meyer, parecendo um enorme balão de sinalização.
- Detective Weeks - disse, no seu vozeirão. - Da Oito-Três.
- A sério? - disse Meyer. Que raio era aquilo? Olhe conhecia-o, pois já tinham trabalhado juntos.
- Já cá vim antes - disse Ollie.
- Ah, sim? - disse Meyer.
- Sim, conheço todos os tipos daqui - disse Ollie. - Dantes havia cá um judeuzito careca.
Meyer não se importava que lhe chamassem «careca» (não muito), o que era de facto quando não usava a peruca, nem se importava que lhe chamassem judeu, o que também era, mas dado que tinha bastante mais de um metro e oitenta achava que não era «franganote» nenhum, e quando Ollie juntou as duas expressões «judeuzito careca» isso soou-lhe a insulto.
- Sou eu o tal judeuzito careca - disse -, e pára lá com essa merda, Ollie.
Os olhinhos de porco de Ollie abriram-se muito.
- Meyer? - disse. - És tu? E esta, hem? - Começou a dar a volta à secretária, a examinar atentamente a peruca de Meyer. - Fica-te muito bem - disse. - Até já nem pareces judeu.
Meyer não lhe respondeu. «Só me faltava este», pensou. «Era mesmo este que me estava a fazer falta.»
- Andava para te telefonar - disse Ollie. «Ainda bem que não telefonaste», pensou Meyer.
- Não houve um tipo que escreveu um livro e que utilizou o teu nome nele?
- Uma senhora - disse Meyer.
- Utilizou o nome Meyer Meyer para uma das pessoas do livro, não foi? - perguntou Ollie.
- Para uma personagem do livro - disse Meyer.
- Isso ainda é pior - disse Ollie. - A razão porque falo nisso... Conheces a Balada de Hill Street E uma série da televisão.
- Conheço - disse Meyer.
- Vi uma reposição na semana passada, creio. Havia lá um tipo que eu acho que copiaram de mim.
- Que é que queres dizer com isso de terem copiado de ti?
- Um polícia. Um polícia dos Narcóticos...
- Tu não estás nos Narcóticos, Ollie.
- Achas que eu não sei o que sou? Mas já tive casos de narcóticos, como tu também já tiveste. Da primeira vez que vos conheci até foi num caso de narcóticos. Uns tipos que faziam contrabando de merda dentro de uns animaizinhos de madeira, lembras-te? Foi essa a primeira vez que trabalhei com vocês.
- Lembro-me - disse Meyer.
- E isso foi antes de a Balada de HilbStreet ser sequer um sonho na cabeça fosse de quem fosse.
- Onde é que queres chegar, Ollie?
- Onde eu quero chegar é que o nome do tal tipo é Charlie Weeks. No filme. Charlie, não Quie. Mas é demasiado parecido, não achas? Charlie e Ollie. Com o mesmo apelido? Weeks? Creio que é demasiado parecido, Meyer.
- Continuo a não perceber..
- Esse tal outro tipo, também têm um judeu no filme, é um tal Gold-blume, um dos teus patrícios, não? Este tal Goldblume está a dizer ao chefe lá do sítio, um tal Furillo, que Weeks é demasiado rápido a disparar... especialmente quando o alvo é preto. A certa altura, Weeks diz: «Quietos, escarumbas, senão rebento-lhes com os miolos.» Além disso, espanca os suspeitos. Quero dizer, é um grande filho da puta esse tal Charlie Weeks.
-E depois?
- Então eu sou um filho da puta? - perguntou Ollie. - Ollie Weeks é um filho da puta? Ollie Weeks é o tipo de chui que anda por aí a espancar suspeitos?
Meyer não disse nada.
- Ollie Weeks é o tipo de chui que mostra tudo menos respeito pelos escarumbas?
Meyer continuou calado.
- O que eu estou a pensar fazer - disse Ollie -, é processar a empresa que produz a Balada de Hill Street. Por pôr na televisão um chui com um nome que parece o meu e que é uma pessoa cheia de preconceitos que anda por aí a disparar contra escarumbas e a espancar tipos que está a interrogar Esse tipo de merda pode dar má reputação a um chui, mesmo que na merda da televisão lhe chamem Charlie Weeks.
- Creio que tens matéria para uma acção - disse Meyer num tom inexpressivo.
- Da outra vez processaste-a}
- Rolhe aconselhou-me a não o fazer. Rollie Chabrier. Do gabinete do Procurador de Justiça.
- Sim, conheço-o - disse Ollie. - Ele disse-te para não a processares, hem?
- Disse-me que me devia sentir lisonjeado.
- Pois, mas eu é que não me sinto puto lisonjeado - disse Ollie. -Há uma coisa que se chama ir longe de mais, estou certo ou estou errado? Estava mesmo a pensar em falar ao Carella porque acho que ele também tem matéria para lhes pôr um processo.
- Que matéria?
- Bom, não achas que Furillo soa como Carella? Olha, quantos nomes de esparguetes é que há, que têm vogais e quatro consoantes e duas das consoantes até são iguais nos dois nomes. Dois «1» Meyer! Carella e Furillo. Esses nomes para mim são muito parecidos, como Charlie Weeks e Ollie Weeks também são. Carella usa sempre colete?
- Só quando prevê que haja tiroteio - disse Meyer.
- Não, estou a referir-me a um colete normal, a um colete de fato. Porque esse tal Carillo... Furillo, quero eu dizer... usa sempre colete. Acho que o Carella devia pensar bem nisso.
- Em usar colete?
- Não, na semelhança dos nomes. Achas que esses tipos já ouviram falar de nós?
- Quais tipos?
- Os da Califórnia, que fazem a série da televisão e que ganham os Emmys todos. Achas que já ouviram falar de Steve Carella e de Ollie Weeks?
- Provavelmente não - disse Meyer.
- Quero dizer, não somos propriamente famosos, nenhum de nós - disse Ollie -, mas já cá andamos há muito tempo. Há um tempo do caraças. Para mim, não é coincidência nenhuma.
- Então processa-os - disse Meyer.
- Se calhar custa-me uma fortuna - disse Ollie. - De qualquer maneira, Steve e eu ainda andaremos por cá depois de a merda da série de televisão se transformar em Cerelac.
- Cerelac?
- Sim, na lata. O celulóide, o filme. Ainda cá andaremos depois de o filme se desfazer na lata.
- Foi por isso que cá vieste? - perguntou Meyer. - Para me perguntares...
- Não, isso é só uma coisa que me anda a chatear há muito tempo. A forma como a Balada de Hill Street se parece connosco, Meyer. Até a sacana da cidade imaginária deles parece esta, não parece? Quero dizer, Meyer, merda, somos chuis a valer, não somos?
- Diria que somos polícias a sério, sim - disse Meyer.
- Portanto esses tipos são só chuis de faz de conta, estou certo ou estou errado? E utilizam nomes que se parecem com nomes de sacanas de chuis verdadeiros numa sacana de uma cidade verdadeira. Não «justo, Meyer.
- Onde é que está escrito que tem que ser justo? - disse Meyer.
- As vezes pareces um sacana de um rabi, sabias? - disse Ollie. Meyer deu um grande suspiro.
- Porque é que cá vieste? - perguntou. - Se não tencionas processar...
- Esta manhã apareceu um sacana de um corpo pendurado num candeeiro. Encontrei isto no local - disse Ollie, atirando com uma cassete de gravador para cima da secretária de Meyer.
Da secretária onde estava sentada, Annie Rawles via a maior parte inferior da ilha de Isola. O céu lá fora estava azul e límpido, fazendo com que os arranha-céus parecessem gumes de facas. Pensou quanto mais duraria o bom tempo, já estavam a vinte, altura em que normalmente a presença iminente de Novembro se fazia pelo menos sugerir.
Os escritórios da Brigada de Violações eram no sexto andar do novo edifício-sede na parte baixa da cidade, uma estrutura de vidro e aço que dominava o horizonte e fazia parecer ainda mais pequenos os prédios mais baixos onde funcionavam as instituições municipais, judiciais e financeiras da cidade. Antes da construção do novo edifício -Santo Deus, ela já nem se lembrava há quantos anos isso fora e pensou por que é que toda a gente ainda continuava a dizer «novo» edifício -, a Brigada de Violações funcionava numa das esquadras mais antigas da cidade, um prédio a cair de velho perto da passagem superior da River Highway. As vítimas de violação já tinham relutância em comunicar à Polícia o crime, pois suspeitavam, com razão em muitos casos, que a Polícia as faria passar por uma situação tão difícil como o violador fizera. Só o facto de olhar para o prédio decrépito na Decatur Street tinha dissuadido muitas vítimas de entrar para discutir o crime com peritos treinados para lidar com aquele tipo de situações. O novo edifício-sede contribuía em muito para atenuar este medo. Tinha o aspecto arrumado e estéril de um hospital e fazia com que as vítimas se sentissem que estavam a contar a sua história a pessoal médico e não a polícias, os quais sentiam - e mais uma vez com razão - que pertenciam a uma organização paramilitar. Annie sentia-se grata pelos novos escritórios no novo edifício; tornavam o seu trabalho mais fácil.
O computador também.
Dissera a Eileen Burke que estava a fazer uma contraverificação no computador, numa tentativa de descobrir se o mesmo homem tinha violado gravemente outras mulheres além das três vítimas sobre as quais tinham a certeza de ter sido ele. Dissera-lhe também que estavam a tentar fazer uma contraverificação em relação às próprias vítimas, tentando detectar quaisquer semelhanças que pudessem ter atraído o violador.
Em relação a primeira contraverificação, pedira ao operador de computador - um homem com o inacreditável nome de Binky Bowlcs - para começar pelo princípio do ano, muito embora a primeira das vítimas positivas tivesse apresentado a queixa do crime apenas em Abril, seis meses antes. Os dossiers sobre todas as violações denunciadas, em qualquer zona da cidade, já estavam no computador. Binky só tinha de carregar nas teclas correspondentes para obter o nome de qualquer mulher que tivesse comunicado uma segunda, terceira, quarta ou quinta ocorrência após a primeira. Para grande surpresa de Annie, naquele ano tinha havido treze violações graves em série.
A primeira dessas mulheres chamava-se Lois Carmody e comunicara a primeira violação à 112.' Esquadra, em Majesta, a 7 de Março. O seu nome surgiu mais três vezes, cada uma delas em relação à mesma esquadra em Majesta. A vítima mais recente de violação repetida - uma mulher chamada Janet Reilly - tinha sido violada pela segunda vez na semana anterior, quatro dias depois de Mary Hollings ter comunicado a sua violação na 87ª Esquadra. As duas violações de Reilly tinham sido cometidas em Riverhead. O tal homem - se de facto o mesmo homem fosse responsável pelas violações em série de treze mulheres - tinha andado muito ocupado. Também escolhera aparentemente as suas vítimas ao acaso em cada uma das cinco secções em que a cidade estava dividida. Annie eliminou a localização como um factor que relacionasse os casos.
O trabalho de Binky tornou-se mais complexo a partir daí.
Depois de reunir os dossiers sobre cada uma das treze mulheres, separou as descrições que tinham feito do homem que as atacara e depois decompôs essas descrições quanto a raça, idade, altura, peso, cor de cabelo, cor de olhos, cicatrizes ou tatuagens visíveis e arma utilizada (no caso de ter sido utilizada uma arma) durante a perpetração do crime. Annie hesitou quanto a pedir-lhe para listar a descrição da roupa que cada assaltante tinha vestida, mas decidiu que este pormenor seria irrelevante. O vestuário mudava facilmente com o tempo; a primeira das violações em série comunicadas datava de Março. Binky deu instruções ao computador para listar os nomes das vítimas pelas datas em que tinham comunicado a primeira violação. A listagem fornecida pelo computador e saída da impressora foi a seguinte:
Vítimas
Lois Carmody
Mary Jane Moffit
Blanca Diaz
Descrição dos Assaltantes por Ocorrência
1) Branco 30... 1,50 m... 60 kg... cab. cast. olh. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
4) Idêntica à ocorrência um.
Negro... 19... 1,80 m... 100 kg... cab. preto... olh. cast... cicatriz sobr olh. esq. ... sem tat... sem arma.
2) Branco... 27-30... 1,78 m... 70 kg... cab. lour... olh. cast.... sem c/t vis. ... revólv.
1) Branco... 25-30... 1,80 m... 100 kg... cab. cast... olh. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
132
Patrícia Ryan Vanessa Hughes
Vivienne Chabrun Elaine Reynolds
Angela Ferrari
Terry Cooper Cecily Bainbridge Clara Preston
Mary Hollings Janet Reilly
1) Branco... 30-35... 1,50 m... 60 kg... cab. cast. olh. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
1) Branco... 21... 1,80 m... 100 kg... cab. cast. ... olh. azuis... sem c.vis... tat. mão drt. palavra amor... pic-peq.
2) Negro... 25-30...1,90 m... 110 kg... cab. preto... olh. cast... sem c/t vis... revólv.
1) Branco... 30-35... 1,80 m... 90 kg... cab. cast... olh. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
1) Preto... 42... 1,75 m... 75 kg... cab. preto... olh. verdes... sem c/t vis... faca coz.
2) Latino... 17... 1,80 m... 85 kg... cab. preto... olh. cast... sem c.vis... tat. pénis desenho flor... revólv.
1) Branco... 32... 1,80 m... 80 kg... cab. cast... olh. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
4) Branco... 21... 1,75 m... 80 kg... cab. lour. olhs. verd... sem c/t vis... sem arma.
1) Branco... 32... 1,83 m... 90 kg... cab. cast... olhs. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
1) Branco... 30... 1,80 m... 80 kg... cab. cast... olhs. azuis... sem c/t vis... faca p. m. 2) Idêntica à ocorrência um.
1) Branco... 50-55... 1,73... 70 kg... cab. pret... olhs. cast. cie. plegar dir... sem mind. mão esq.... sem tat.... revólv.
2) Branco... 16... 1,75... 120 kg... cab. ca.st... olhos. cast. sem c/t vis... sem arma.
1) Branco... 30... 1,60 m... 90 kg... cab. cast... olhs. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
3) Idêntica à ocorrência um.
1) Branco... 28... 1,83 m... 100 kg... cab. cast... olhs. azuis... sem c/t vis... faca p. m.
2) Idêntica à ocorrência um.
Annie eliminou automaticamente todas as vítimas que tinham sido gravemente violadas por dois homens obviamente diferentes - um homem negro e um homem branco, por exemplo, ou por dois homens com descrições francamente divergentes - considerando estas como ocorrências coincidentes numa cidade povoada por cães raivosos. Desta forma eliminou quatro das possíveis treze vítimas e classificou como não provável o caso de Angela Ferrari que fora violada quatro vezes mas que descrevera o seu último assaltante como sendo um homem completamente diferente dos outros, cuja descrição era idêntica. Restavam-lhe oito candidatas fortes e uma nona relativamente forte.
Cada uma das nove mulheres tinha descrito o homem que as tinha violado como sendo branco. Cada uma delas afirmara que tinha cabelo castanho e olhos azuis, sem cicatrizes ou tatuagens visíveis e que utilizara uma navalha de ponta em mola como arma.
Três destas mulheres afirmaram que o violador tinha um metro e sessenta de altura.
Quatro tinham afirmado que teria aproximadamente um metro e oitenta.
Duas tinham dito que tinha um metro e oitenta e três.
As descrições das várias mulheres indicavam que o violador pesava entre noventa e cem quilos, a maioria afirmando - cinco mulheres -que pesava noventa quilos.
Quanto à idade, as indicações variavam entre os 28 anos, segundo uma das mulheres, de 25 a 30 segundo outra, 30 segundo três das mulheres, 32 segundo duas, e entre 30 e 35 segundo as outras duas.
Annie considerou relativamente seguro partir do princípio de que o seu homem era branco, tinha 30 anos, um metro e oitenta de altura e noventa quilos de peso. Parecia não haver dúvida de que tinha cabelo castanho, olhos azuis e que não tinha quaisquer cicatrizes ou tatuagens visíveis. Também não havia dúvida de que empunhara uma navalha de ponta em mola - ou que a utilizara pelo menos numa ocasião, da terceira vez que violara Blanca Diaz. Deixou Binky na difícil tarefa de analisar os dossiers computadorizados de Violadores Conhecidos, na esperança de que ele conseguisse detectar um ou mais homens que correspondessem à descrição e cujo comportamento incluía ameaças com uma navalha de ponta em mola.
De regresso à sua secretária, estudou os relatórios iniciais e os subsequentes perfis das próprias vítimas procurando qualquer semelhança ou semelhanças que as pudessem ter levado a ser escolhidas como vítimas. Organizou os apontamentos em rascunho e depois fez um quadro, listando novamente os nomes das mulheres por ordem da primeira violação.
Ao analisar o quadro, Annie tomou alguns apontamentos sobre pontos que tencionava pedir a Binky para trabalhar no computador. Segundo a sua análise, a maioria das vítimas era branca: seis, contra duas negras e uma latina. Todas elas eram católicas. Três eram casadas, quatro solteiras e duas divorciadas. Cinco das vítimas não tinham filhos. Uma delas tinha quatro filhos. Outra tinha três. As outras duas tinham dois.
NOME IDADE RAÇA ANT. ETN. RELIGIÃO ESTADO CIVIL FILHOS VIOLAÇÃO SODOMIA
Lois Carmody 32 Brc. Irlanda Católica Casada 2 Sim Não
Blanca Diaz 46 Lat. Porto Rico Católica Casada 4 Sim Não
Patrícia Ryan 22 Brc. Irlanda Católica Solteira Sim Não
Vivienne Chabrun 28 Brc. Francesa Católica Solteira Sim Não
Angela Ferrari 34 Brc. Italiana Católica Casada 2 Sim Não
Terry Cooper 26 Neg. Africana Católica Solteira Sim Não
Cecily Brainbridge 34 Neg. Jamaica Católica Divorc. 3 Sim Não
Mar}' Hollings 37 Brc. Inglesa Católica Divorc. Sim Não
Janet Reilly 19 Brc. Irlanda Católica Solteira . Sim Não
tinham dois filhos cada. Os antecedentes étnicos das mulheres variavam, sendo o maior número - três - irlandês. As suas idades iam de 19 anos, a mais nova, e que era o caso de Janet Reilly, a 46 anos, a mais velha, representada por Blanca Diaz, a única vítima latina. Não considerando os dois extremos, Annie obteve uma idade média de 30 anos - a mesma idade do violador.
Voltou a olhar para o quadro.
Parecia-lhe estranho todas as vítimas serem católicas. Parecia-lhe ainda mais estranho nenhuma delas ter sido sodomizada. Esse facto não se enquadrava no comportamento habitual da maioria dos violadores. Conseguiria Binky Bowles - sorria sempre que pensava no nome dele - descobrir um assaltante armado de navalha de ponta em mola que correspondesse à descrição que as mulheres tinham feito e que além disso se tivesse especializado em violação simples? Teria ele medo de que uma delas lhe cortasse a gaita com uma dentada? Isso faria que o filho da puta nunca mais pudesse exercer a sua actividade. E seria muito bem feito.
Annie não tinha dados suficientes.
Voltou a analisar os relatórios e os perfis tomando apontamentos, e preparou um outro quadro em rascunho que mais tarde pediria a Binky para introduzir no computador para obter uma análise mais sofisticada que aquela que ela já fizera.
NOME CIDADE PROFISSÃO GRAU CLUBES PASSATEMPOS
DE DE E E
ORIGEM INSTRUÇÃO ORGANIZ. DESPORTOS
Lois Washington Dona casa 2 anos Filhas Cat. Ponto Cruz
Carmody Univ. WCA Ténis
Blanca Mayaguez Dona casa 2 anos Lie. Nenhuns Bordados,
Diaz Dança, Guitarra
Patrícia Bach. 1 Han'ard
Ryan EUA Estudante ano. Lie. Club Violino,
Lit. Comp. Sinfónica Viagens,
de Calm's P Natação
Vivienne Reims Equivalente Alliance des
Chabrun França Tradutora Bach. Francês Femmes Franc. Esqui
YWCA, Aeróbica,
Angela Liga Patinagem
Ferrari EUA Dona casa Bach. Lie. Votantes Femininas guias, EF em gelo Fotografia Artesanato
Terry Colúmbia Empregada Curso Lie. Nenhuns Bowling
Cooper SC Correios
Cecily Kingston
Brainbridge Jamaica Doméstica Esc. Prim. Nenhuns Nenhuns
Mary Long Beach Desempregada
Hollings Califórnia (ex-agente Bach. Interpids Viagens
viagens) Club Fotografia
Janet EUA Estudante 1. ano Zeta Chi Jogos de
Relly Univ. Newman Club. Claque Dep. Clube História vídeo,/og-ging. Ténis
_ Coro
Uma boa salganhada. Donas de casa, estudantes, uma empregada de escritório, uma doméstica, uma tradutora e uma ex-agente de viagens que vivia actualmente da pensão de alimentos. Três naturais da Cidade e as outras de tudo o que era sítio. O seu grau de instrução variava da escola primária a uma licenciatura. Os clubes e organizações a que pertenciam, os desportos que praticavam e os passatempos que tinham iam de... Santo Deus, aquela Angela Ferrari era uma mulher de força! Tinha apenas 34 anos, era casada, tinha dois filhos e ainda tivera tempo para tirar o grau de bacharel e a licenciatura e estava envolvida em tantas actividades como uma colónia de formigas. E Janet Reill) ? 19 anos de idade, no seu primeiro ano da universidade e envolvida em tantas actividades extracurriculares que chegariam para ocupar todos os alunos do seu ano. E o filho da puta viola-as. Apanha Janet duas vezes e Angela quatro - não, espera aí. Angela fora aquela que descrevera o violador que a atacara da última vez como sendo diferente do anterior: 21 anos de idade, um metro e setenta e cinco, oitenta quilos, cabelo louro e olhos verdes, sem arma. Estaria histérica nessa ocasião? Ou teria um outro filho da puta decidido aproveitar-se de uma pessoa que sabia já ter sido violada repetidas vezes? Da forma como tantos oportunistas se metem numa coisa depois de esta já estar lançada para se aproveitarem da fama do seu promotor.
Voltou a olhar para as folhas de computador.
Lois Carmody, violada quatro vezes pelo mesmo homem. Blanca Djaz, uma dona de casa de 46 anos com quatro filhos: três vezes. Patrícia Ryan, três vezes. Vivienne Chabrun, três vezes. Angela Ferrari: três vezes pelo mesmo homem com certeza absoluta e, no entanto, violada uma outra vez por outro homem. Cecily Bainbridge, duas vezes. Mary Hollings, três vezes. Janet Reilly, duas vezes.
Porquê as mesmas mulheres repetidas vezes?
Porquê?
Voltou a examinar os relatórios iniciais, tentando descobrir um padrão, tentando detectar o elo de ligação. Cada uma das mulheres tinha sido violada à noite. Até no caso de Mary Hollings, da última vez que o violador a atacara - dessa vez entrando no apartamento dela -ainda estava escuro, embora tecnicamente já fosse a manhã de sexta-feira, 7 de Outubro. Voltou aos outros relatórios sobre Mary. A primeira violação tinha sido comunicada como tendo ocorrido a 10 de Junho, uma sexta-feira. A segunda, a 16 de Setembro, uma outra sexta-feira.
Bom, talvez fosse coincidência.
Analisou os relatórios sobre Janet Reilly.
Ela tinha sido violada pela primeira vez a 13 de Setembro, numa terça-feira à noite. Voltara a ser violada há pouco mais de uma semana, a H de Outubro - também numa noite de terça-feira.
«OK, OK», pensou Annie. «Vamos com calma. Ordena as ocorrências, verifica todas as datas nos relatórios, comparando-as com a relação dos nomes dada pelo computador. Preciso de um calendário, onde raio é que há um calendário?»
Abriu a primeira gaveta da secretária, procurou um calendário, encontrou uma agenda cheia de apontamentos de compromissos e dePois abriu a sua própria agenda nas primeiras páginas, onde havia calendários desse ano e do ano seguinte. Levou a agenda para a máquina de fotocópias a um canto do gabinete e tirou uma dúzia de cópias do calendário do ano em curso - uma para cada vítima, três a mais para o caso de se enganar. Voltou para a secretária e escreveu os nove nomes em cópias diferentes e depois - com base nos relatórios sobre cada uma das mulheres - começou a fazer círculos à volta das respectivas datas (os quadros seguem nas pp. 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147):
Hesitou. As três datas nas quais acabara de marcar um círculo eram as datas de identificações do mesmo homem. O homem que Angela descrevera de uma forma diferente - o jóquer do baralho de cartas, por assim dizer - tinha-a violado a 28 de Junho. Annie marcou essa data no calendário com um X.
Numa outra folha de papel, Annie voltou a fazer uma lista dos nove nomes e depois, com base nas datas indicadas no calendário relativas a cada nome, fez uma outra lista.
Lois Carmody: 7 Março, 4 Abril, 25 Abril, 9 Maio. Todas elas segundas-feiras à noite.
Blanca Diaz: 15 Março, 12 Abril, 3 Maio. Terças-feiras à noite.
Patrícia Ryan: 23 Março, 20 Abril, 25 Maio. Quartas-feiras à noite.
Vivienne Chabrun: 31 Março, 19 Maio, 2 Junho. Quintas-feiras.
Angela Ferrari: 11 Abril, 30 Maio e 13 Junho relativas à descrição do mesmo homem. Todas elas em segundas-feiras à noite. 28 Junho relativo ao homem diferente. Noite de terça-feira.
Terry Cooper: 1 Maio, 19 Junho. Ambas domingo à noite.
Cecily Bainbridge: 7 Maio, 4 Junho. Sábados à noite.
Mary Hollings: 10 Junho, 16 Setembro, 7 Outubro. Sextas-feiras.
Janet Reilly: 13 Setembro, 11 Outubro. Terças-feiras.
Annie estudou a lista.
Folheou os calendários.
Vivienne Chabrun tinha sido violada pela primeira vez no último dia de Março, a segunda vez sete semanas depois, a 19 de Maio, e outra em duas semanas depois, a 2 de Junho. Sempre numa quinta-feira à noite. Terry Cooper tinha sido violada a 1 de Maio, depois sete semanas mais tarde, a 19 de Junho, ambas as vezes num domingo à noite. Patricia Ryan tinha sido violada a 23 de Março, da segunda vez quatro semanas depois, a 20 de Abril, e depois só a 25 de Maio, cinco semanas depois da data em Abril. À quinta-feira à noite. Parecia não haver nenhum padrão aparente até Annie voltar a estudar os calendários, examinando atentamente o calendário referente a Lois Carmody, a primeira vítima das violações em série.
Primeira violação, 7 de Março.
Nota de digitalização: Quadros das páginas 138 à 147.
Segunda violação: quatro semanas depois, segunda-feira, 4 de Abril.
Terceira violação: três semanas depois. Segunda-feira, 25 de Abril.
Quarta violação: duas semanas depois. Segunda-feira, 9 de Maio.
Annie voltou a olhar para o calendário. Quatro semanas, três semanas, duas semanas. Se ele a tivesse violado novamente, teria sido com um intervalo de apenas uma semana?
Procurou o calendário referente a Angela Ferrari.
Atacada pela primeira vez a 11 de Abril. Quatro semanas depois teria sido a 9 de Maio. Nada nessa data. Três semanas depois de 9 de Maio seria 30 de Maio. Certo, ele tinha voltado a violá-la no dia 30. E duas semanas depois disso era - mesmo no alvo! Voltara a violá-la a 13 de Junho.
«OK, calma», pensou Annie, «vai com calma.»
Cecily Bainbridge: primeira violação no sábado, 7 de Maio. Segunda violação quatro semanas depois, no sábado, 4 de Junho. Blanca Diaz, nos dias previstos: primeira violação a 15 de Março, a segunda quatro semanas depois, a 12 de Abril, a seguinte - quando a esfaqueara - três semanas depois, a 3 de Maio. Mary Hollings... bem, aquela já era mais difícil.
Violada pela primeira vez na sexta-feira, 10 de Junho, e depois só na sexta-feira, 16 de Setembro. Annie começou a contar as semanas pelo calendário. Quatro semanas a seguir a 10 de Junho era 8 de Julho. Três semanas depois disso era 29 de Julho, Duas semanas depois, 12 de Agosto. Uma semana depois, 19 de Agosto. Recomeçando o ciclo, quatro semanas depois de 19 de Agosto era 16 de Setembro, a data exacta em que Mary Hollings fora violada pela segunda vez. E três semanas depois disso era 7 de Outubro, a data do último ataque que sofrera.
Janet Reilly: violada a 13 de Setembro e depois de novo exactamente quatro semanas mais tarde, a 11 de Outubro.
Mas se aquilo era de facto um padrão - quatro semanas, três semanas, duas semanas - como é que se conjugava com as datas aparentemente desgarradas referentes a Vivienne Chabrun, Terry Cooper e Patrícia Ryan?
Vivienne Chabrun: primeira violação, 31 de Março. Quatro semanas depois seria 28 de Abril. Não assinalara essa data com um círculo-Mas três semanas depois de 28 de Abril era 19 de Maio, e ele atacara-a nessa data e novamente duas semanas depois, a 2 de Junho!
OK, OK.
Terry Cooper: atacada pela primeira vez a 1 de Maio, nenhum registo de violação quatro semanas depois, a 29 de Maio, mas nova violação três semanas depois disso, a 19 de Junho!
«Vamos lá. Patrícia», pensou Annie, estudando o último calendário-
Patrícia Ryan: violada a 23 de Março. Quatro semanas depois era 20 de Abril, assinalado com um círculo no calendário. Três semanas mais tarde, 11 de Maio... nada. Espera. Voltara a ser violada a 25 de Maio, apenas duas semanas depois da data de 11 de Maio.
Talvez não interessasse o facto de os intervalos terem um espaçamento exacto, desde que...
Seria possível?
Estaria ele a tentar apanhá-las com intervalos de uma semana, independentemente da data dos intervalos, desde que não duplicasse nenhuma semana? Se não, porquê violar cada uma das mulheres em noites diferentes, na mesma noite em relação a cada mulher? Teria o filho da puta organizado um calendário para cada uma das suas vítimas? Atacá-las-ia a determinados intervalos desde que não duplicasse as semanas um, dois, três e quatro indicadas para uma dada mulher? Saltava uma semana, saltava duas semanas, seis semanas, não interessava. A única coisa que tinha a fazer era assegurar-se de que reiniciava o ciclo.
Mas porquê?
Com que raio de tarado é que tinham dado?
Annie organizou um último calendário, assinalando todas as datas das múltiplas violações, entitulando-o «Acumulado».
Os ataques tinham começado em Março, a 4 desse mês, com um intervalo de oito dias, em noites sucessivas da semana. Lois Carmody a 7 de Março. Blanca Diaz a 15 de Março. Patrícia Ryan a 23 de Março. Vivienne Chabrun a 31 de Março.
Em Abril, atacara Lois Carmody novamente a 4, acrescentou Angela Ferrari como nova vítima ali, atacou Blanca Diaz novamente a 12, Patrícia Ryan a 20 e Lois Carmody de novo a 25.
Duas novas vítimas em Maio, Terry Cooper e Cecily Bainbridge, perfazendo um total de sete ataques nesse mês.
Novo surto de actividades em Junho - cinco ataques nesse mês, com Mary Hollings como nova vítima e abatendo Lois Carmody do seu calendário após quatro ataques consecutivos com intervalos de quatro, três e duas semanas.
Nada em Julho ou Agosto.
Ou pelo menos nenhuma violação que tivesse sido comunicada.
Em Setembro atacara novamente Mary Hollings e acrescentara Ja-net Reilly à sua lista.
Em Outubro - até à data - apenas Mary e Janet.
Então porque é que não houvera nenhum ataque em Julho e Agosto?
E voltaria a atacar as vítimas que apenas violara duas ou três vezes ? Seria quatro vezes o seu objectivo? Porquê quatro? Ou ainda voltariam a ter notícias quanto a Lois Carmody?
«Demasiadas interrogações», pensou Annie.
Além da interrogação mais importante para a qual não tinham resposta.
Porquê aquelas mulheres?
Nota da digitalização: Seguem-se mais quadros.
Porquê?
Na quietude daquele dia de Outubro, a sala da esquadra tinha as janelas abertas, deixando entrar o sol dourado do fim da manhã que teria sido mais adequado a Agosto que ao Outono, enquanto os quatro detectives rodeavam a secretária de Meyer a ouvir a gravação na cassete. Ollie Weeks já a ouvira mas, mesmo assim, escutava atentamente, como se estivesse a tentar memorizar as palavras. Meyer, Carel-la e Hawes estavam a ouvi-la pela primeira vez, tentando recordar-se da voz do Homem Surdo.
A cassete gravara a voz de duas pessoas.
Darcy Welles e o homem que apenas conheciam sob o nome de Corey Mclntyre.
MCLNTYRE: A luz vermelha significa que está ligado e a luz verde que está a gravar. Bom, ia a dizer...
DARCY: Que foi engraçado como as perguntas que me fez esta tarde me fizeram reflectir. Quero dizer, como é que me lembro de quando é que pela primeira vez senti interesse em correr? Sabe o que é que a minha mãe disse?
MCINTYRE: A sua mãe?
DARCY: Sim, quando lhe telefonei. Ela disse que...
MCINTYRE: Telefonou-lhe para o Ohío?
- Parece que nessa altura ficou um pouco nervoso, não parece? -disse Ollie.
- Shhhh - disse Carella.
DARCY:... ser entrevistada pela Sports USA ? MCINTYRE: Ela ficou contente?
- Nervoso como o diabo, na minha opinião - disse Ollie. - A miúda telefonou à mãe a dizer com quem ia jantar...
- Queres que ouçamos isto ou queres conversar? - disse Hawes.
- Isto são tretas - disse Ollie. - Esta parte não passa de conversa fiada. Fala do irmão, fala de como se sente bem a correr... olhem, aqui mesmo.
DARCY: ... como me sinto bem a correr, sabe o que quero dizer? MCINTYRE: Sim.
- O tipo sabe que ela se sente bem a correr - disse Ollie. - Sabe tudo sobre corridas.
- Importas-te de meter a viola no saco? - disse Meyer.
- Isto é só conversa fiada. E quando o empregado lhes leva as bebidas e pergunta se querem ver a ementa... aqui está aquilo a que me estou a referir, ouçam. O tipo repete que é bom correr, ouçam. É sim, sim, sim, o tempo todo. •
DARCY: ... a neve cobre o lixo todo e todas as chatices sem importância e deixa tudo limpo e branco e puro. É isso que eu sinto quando estou a correr. Como se fosse Natal o ano todo. Com tudo branco e macio e lindo.
MCINTYRE: Sim, eu sei. Vamos agora ver a ementa? Eu desligo isto durante alguns instantes.
- Desliga o gravador - disse Ollie -, e só o volta a ligar mais tarde. A maior parte da conversa é sobre corrida, e há uma vez que ela lhe chama «Mr. Mclntyre» que vocês dizem que estava em L. A. nesta altura, não é?
- Sim - disse Carella.
- Assinalei uma parte que acho que devemos ouvir, a menos que queiram mesmo ouvir o tipo de treino que uma corredora faz, que para mim são tretas - disse Olhe. - Posso andar para a frente?
Sem esperar uma resposta, Ollie fez avançar a fita. Parou-a um pouco à frente da marca, mexeu nos botões do gravador, fazendo a gravação andar para trás e para a frente até encontrar o que queria.
- Cá está - disse. - Ouçam.
MCINTYRE: Bom, não tenho palavras para lhe agradecer, Darcy. Era exactamente este o material que eu queria. DARCY: Espero bem que sim. MCINTYRE: Acredite que era. Quer mais café? DARCY: Não, é melhor ir-me embora. Que horas é que já são? MCINTYRE: Dez menos um quarto.
- Deu-nos uma hora - disse Ollie. - Foi muito simpático da parte dele.
DARCY: ... pensei que fosse tão tarde. Tenho ainda que dar uma vista de olhos à matéria de Psicologia.
MCINTYRE: Posso dar-lhe boleia até à escola, se quiser.
- Aqui está - disse Ollie.
DARCY: Não, não é preciso...
MCINTYRE: O meu carro está estacionado aqui à esquina, perto de Jefferson. Podemos ir até à garagem, se quiser... DARCY: Está a ser muito simpático. * MCINTYRE: Vou pagar a conta.
- E aqui desliga o gravador - disse Ollie.
- É tudo?
- Há mais. Mas o tipo deu-nos a localização da garagem, portanto , deve ser fácil de encontrar, não acham? À esquina, perto de Jefferson.
Quantas garagens?...
- Já fomos a uma dúzia - disse Hawes.
- Bem, isto deve facilitar-nos a vida. Verificaram os Corey Mclntyre que vêm na lista telefónica?
- Não há nenhum na cidade - disse Carella.
- Então está mesmo a utilizar o nome do tal tipo da Costa Oeste, hem?
- É o que parece.
- Não voltará a usá-lo - disse Ollie.
- Que é que queres dizer com isso?
- Ouçam - disse ele, apontando para o gravador -, ele deve tê-lo ligado mesmo antes de a matar. Queria ficar com um registo da cena, hem? O tipo deve ser pírulas.
Os detectives escutaram a gravação.
- Lá está o clique - disse Ollie. - Aqui vem.
DARCY: Acha que conseguimos ver a tal estátua? Parece estar muito escuro lá dentro.
MCINTYRE: Não, há lá candeeiros.
DARCY: Devíamos ter trazido uma lanterna.
MCINTYRE: Vândalos. Mas há um candeeiro um pouco mais adiante.
- Onde é que achas que estavam? - perguntou Ollie.
- Shhhh - disse Meyer.
DARCY: Afinal de quem é essa estátua?
MCINTYRE: Jesse Owens.
DARCY: A sério? Aqui? Pensei que ele era de Cleveland.
MCINTYRE: Então conhece o nome?
DARCY: Claro. Bateu toda a gente do mundo... quando é que foi?
MCINTYRE: 1936. Nos Jogos Olímpicos de Berlim.
DARCY: Ridicularizou Hitler e todas as suas teorias sobre a supremacia ariana.
MCINTYRE: Dez-seis nos cem metros. Bateu o record do mundn com vinte vírgula sete nos duzentos e também ganhou a estafeta do quatrocentos metros.
DARCY: Para não falar no salto em comprimento.
MCINTYRE: Então conhece-o mesmo.
DARCY: Claro que o conheço. Sou uma corredora.
- Aqui vem - disse Ollie.
Ouviram-se ruídos de luta, respiração pesada, pés a raspar no chão, uma pancada, uma inspiração forçada para recuperar o fôlego, nova pancada, outra, respiração irregular, ofegante, nervosa.
- Está a dar-lhe uma tareia dos diabos - disse Olhe. - Deviam ver o aspecto dela quando a encontrámos...
Depois, subitamente, um clique agudo.
- Que é que foi isso? - perguntou Meyer. - Ele desligou o gravador? - Não, senhor - disse Ollie.
- Pensei ter ouvido...
- E ouviste. Isso é o pescoço da rapariga a partir.
Silêncio na gravação. Dez segundos, vinte segundos. Depois o ruído de passos rápidos. Mais passos, desaparecendo à distância. O bater da porta de um carro. Outra porta a bater. O ruído do motor de um carro a trabalhar. Depois, acima do som do motor do carro, a voz de Mclntyre:
MCINTYRE: Olá, rapazes, sou eu de novo. Esta não será a última. Mas será a última vez que ouvirão falar de Corey Mclntyre. Adeus.
Silêncio.
Os detectives olharam uns para os outros.
- É tudo? - perguntou Hawes.
- Tudo o que está gravado - disse Ollie.
- Parece que quer ser apanhado, não parece? - disse Meyer.
- É o que me parece a mim - disse Ollie. - Senão para que é que nos deixava uma gravação indicando a garagem e um registo de voz que mais tarde podemos comparar com a de um suspeito? A primeira coisa que temos a fazer...
- Temos? - disse Carella.
- Claro - respondeu Ollie. - Não gosto que nenhum maldito idiota ande a partir o pescoço a raparigas. Vou trabalhar nisto com vocês.
Os detectives olharam para ele.
- Vai ser porreiro - disse Ollie.
Esta afirmação fez tudo menos tranquilizá-los.
A primeira edição do jornal da tarde da cidade chegou às bancas às onze e meia dessa manhã. Grandes parangonas anunciavam:
TERCEIRA JOVEM UNIVERSITÁRIA ASSASSINADA
Por debaixo do cabeçalho vinha uma fotografia de Darcy Welles pendurada num candeeiro na zona da 83. Esquadra. O curto texto por debaixo da fotografia dizia:
Darcy Welles, de 19 anos, aluna do primeiro ano da Converse University e estrela de pista, foi a terceira vítima do Assassino Papa-'Léguas. Desenvolvimento na página 4.
Era hábito aquele determinado jornal atribuir nomes aos assassinos de forma a atrair a atenção do público; a empresa-mãe estava sediada em Londres, onde este tipo de sensacionalismo era vulgar. A Polícia teria preferido um outro tratamento da notícia. As alcunhas dadas aos assassinos nunca eram úteis para a sua captura; pelo contrário, tornavam o problema ainda mais difícil, porque encorajavam telefonemas ou cartas de tarados afirmando ser «o Assassino das Amas-Secas» ou «o Esfaqueador Louco» ou «o Assassino Calibre .32» ou fosse o que fosse que os jornais tivessem engendrado. O seu assassino tinha sido alcunhado de «Assassino Papa-Léguas». Magnífico. Excepto que tornava o seu trabalho bem mais difícil. O desenvolvimento na página 4 parecia um policial de terceira:
A luz fria da madrugada de hoje, detectives da 83. Esquadra da zona de Diamondback, em Isola, depararam com a terceira vítima de uma série de assassínios que se verificam estar inegavelmente relacionados. Em cada um dos casos, a vítima foi uma rapariga. Em cada um dos casos, a rapariga era uma estrela de corrida em pista, aluna de uma universidade. Em cada um dos casos, o pescoço da vítima foi partido e esta foi encontrada pendurada no poste de um candeeiro em diferentes áreas desertas da cidade. O Assassino Papa-Léguas anda a solta pela cidade e nem sequer a Polícia, pode adivinhar quando e onde voltará a atacar.
A história continuava, relatando em pormenor as circunstâncias das anteriores mortes de Mareia Schaffer e Nancy Annunziato, aconselhando depois o leitor a virar para a página 6 para ler o perfil de Darcy Welles e uma entrevista com os seus pais em Columbus, Ohio. O perfil de Darcy parecia ter sido roubado dos dossiers da Universidade Converse. Dele constava o seu percurso escolar, desde a primária, passando pelo ciclo preparatório e escola secundária, seguindo-se uma lista de todas as provas de pista em que participara, dando os resultados de cada uma. O perfil incluía uma fotografia de Darcy de capa e chapéu de fim de curso do liceu. A legenda por baixo da fotografia identificava Darcy simplesmente como Vítima Número Três: Darcy Welles.
A entrevista com os pais tinha sido feita telefonicamente às nove dessa manhã, presumivelmente imediatamente após o telefonema feito pela Polícia de Diamondback dando-lhes a notícia da morte da rapariga que fora pendurada no poste de um candeeiro. O jornalista que falara com Robert Welles e com a sua mulher, Jessica, escrevia na entrevista que tinha sido ele a dar-lhes a notícia do assassínio da filha e que, durante os primeiros cinco minutos da conversa com eles, tinham «soluçado incontrolavelmente» e sido «praticamente incoerentes» na forma como se tinham exprimido. Mesmo assim, avançara com a entrevista e conseguira deles uma descrição de Darcy que indicava que fora uma rapariga trabalhadora e ajuizada, dedicando-se afincadamente ao desporto mas mantendo boas notas no liceu e «agora na universidade». Quando se aperceberam daquilo que estava implícito nas suas palavras «agora na universidade», os pais tinham voltado a desfazer-se em lágrimas «ao tomarem consciência de que a sua filha já não era efectivamente aluna universitária, mas sim a terceira vítima do Assassino Papa-Léguas».
O irmão mais velho de Darcy era um homem chamado Bosley «Buzz»- Welles que trabalhava como programador de computadores na delegação da IBM em Columbus. Não tinha tido namorados fixos enquanto vivera em casa, mas era uma rapariga popular e atraente que tinha muitos amigos de ambos os sexos. Tanto quanto Mr. e Mrs. Welles sabiam, não andava com ninguém em especial desde que entrara para o primeiro ano da Converse, em Setembro. Os pais disseram ao jornalista que ela tinha sido recentemente contactada pela revista Sports USA relativamente a um artigo que estavam a preparar sobre jovens atletas femininas e que deveria ser entrevistada na noite em que fora assassinada. Mr. e Mrs. Welles não se lembravam do nome do homem que lhe ia fazer a entrevista. O jornalista tomara a iniciativa de telefonar para a redacção da Sports USA em Nova Iorque, tendo obtido a informação de que não estava prevista a preparação de qualquer artigo dessa natureza.
- Então será possível - elaborou o jornalista no estilo bem distinto do seu jornal - que o Assassino Papa-Léguas se apresente como trabalhando para a Sports USA, ganhando assim a confiança das suas jovens vitimas antes de as conduzir a uma morte certa?
«Nem mais, meu cretino», pensou Ollie ao ler o artigo.
Estava sentado ao lado de Carella, no carro em que tinham saído dez minutos antes, dirigindo-se para a zona baixa da cidade. Hawes estava sentado no banco de trás. Não gostava que o seu lugar habitual fosse usurpado por Ollie, mas simultaneamente não invejava Carella por ter de estar sentado a tão pouca distância dele. Reparou que Carella tinha aberto a janela do lado do condutor. Toda.
- Ouçam isto - disse Ollie, começando a ler em voz alta. - Se de facto isto for verdade...
- Se o quê for verdade? - perguntou Hawes.
- Alguém estar a fazer-se passar por jornalista da Sports USA -disse Ollie, recomeçando a ler em voz alta: - Se de facto isto for verdade, os perplexos polícias desta cidade devem tomar devida nota da situação. E bem podiam também avisar todas as jovens atletas das universidades e liceus que não devem acreditar à partida em qualquer pessoa que se lhes apresente como sendo repórter ou jornalista.
Alf Miscolo, da Secretaria da Oito-Sete, já tinha dactilografado e fotocopiado uma carta ditada pelo tenente Byrnes para ser entregue em mão em todos os liceus e universidades da cidade. Com efeito, os detectives tinham debatido a hipótese de a carta ser igualmente enviada às escolas preparatórias.
- E há mais - disse Ollie. - Este tipo lembra-se de repente de que isto é suposto ser uma entrevista a uma mãe e um pai e não uma história dando conselhos ao departamento de Polícia. Estão a ver? Mr. e Mrs. Welles a soluçar de novo e terminámos a nossa conversa telefónica. As linhas entre a cidade e Columbus zuniram com a dor deles, uma dor compartilhada por todos os pais e mães da cidade, uma dor que parecia ecoar com as palavras: «Descubram o Assassino Papa-Léguas».
- Lindo - disse Hawes.
- A página do lado tem fotografias das outras duas raparigas... penduradas nos candeeiros como enfeites de Natal. Todo o maldito jornal está cheio destes assassínios. Até publicam declarações dos chuis de Nova Iorque que trabalharam no caso dos assassinos «Filhos de Sam» e uma história pelo repórter que fez a cobertura desse caso, tentando estabelecer comparações relativas aos perfis. Tem o título «Semelhanças Psicológicas». Até admira não irem desenterrar o caso do Jack, o Estripador. Se isto não fizer que o nosso homem desapareça da circulação, nada fará. Ainda bem que os pais não se lembravam do nome dele, do nome que ele deu à rapariga. Senão o Corey Mclntyre lá de L. A. ainda apanhava com a merda toda em cima.
Olhe dobrou o jornal e atirou-o para o banco de trás. Bateu no joelho de Hawes e caiu para o chão.
- Dêem-lhes tempo - disse Hawes. - Hão-de lá chegar.
- Se querem ser chuis - disse Ollie - porque é que não entram para a corporação? Se querem ser repórteres, deviam meter a viola no saco e não andar a lixar o trabalho da Polícia. Estamos a chegar a Haley, sabes? - disse a Carella.
- Sei.
- A que garagens é que já foram?
- Tenho aqui a lista - disse Hawes.
- Porque esta é suposto ser na esquina junto do restaurante ao pé de Jefferson.
- Pensei que já tínhamos coberto todas as garagens num raio de cinco quarteirões - disse Hawes.
- Pois, mas se calhar escapou-lhes uma, hem. Ruivo? - disse Ollie. Hawes não gostava que ninguém lhe chamasse «Ruivo». Preferia Lefty a Ruivo. Preferia Grande Boi Que Peida a Ruivo.
- O meu nome é Cotton - disse num tom brando.
- Que nome mais estúpido - disse Ollie. Hawes concordou intimamente com ele.
- Acho que te vou passar a chamar «Ruivo» - disse Ollie.
- OK. - disse Hawes -, e eu passo a chamar-te «Phyllis».
- Phyllis? - disse Ollie. - Onde é que foste buscar essa do Phyllis? Phyllis? Há ali um lugar - disse a Carella.
- Já vi - disse Carella.
- Foi no caso de não teres visto - disse Ollie. - Da forma como vocês não deram com a garagem mesmo à esquina do restaurante, quem sabe se conseguem ver lugares para estacionar?
Carella estacionou o carro no espaço livre. Baixou a pala com a indicação de que o carro pertencia a um polícia em serviço, não fosse um guarda da Polícia de trânsito demasiado zeloso que ainda não tivesse atingido a sua quota de multas desse dia decidisse multá-lo. Os três detectives saíram do carro. Carella trancou todas as portas. Conhecia uns polícias da Seis-Um a quem fora roubado o carro enquanto estavam numa loja de bebidas a investigar um assalto e roubo.
- Bem, onde é que estamos? - perguntou Ollie. - O restaurante é na Ulster e South Haley, e aqui é o quê?
- Ulster e Boves.
- Então o que temos de fazer é regressar ao restaurante e tomá-lo como ponto de partida - disse Ollie. - Depois vamos até à esquina mais próxima de Jefferson e dividimo-nos para a esquerda e para a direita a partir daí. Ele disse mesmo à esquina, não disse? Perto de Jefferson?
- Foi isso o que ele disse - confirmou Carella -, mas à esquina pode querer dizer uma série de coisas.
- Que outra coisa diferente de à esquina é que à esquina pode querer dizer? - disse Ollie. - Certo, Ruivo? Não estou certo?
Hawes fez um trejeito.
- Ollie - disse -, não gosto nada que me chamem Ruivo.
- Então chamo-te Cotton. Gostas mais de Cotton?
- Gosto.
- OK, OK, mas se eu tivesse um nome tão estúpido como Cotton, preferia que me chamassem outra coisa, isso garanto-te eu. Estou certo, Steve-arino? Não estou certo?
Carella não respondeu.
Os detectives dirigiram-se para o restaurante.
- Sítio finaço - comentou Ollie. - O tipo deve ter bastante cacau para trazer aqui as vítimas antes de as despachar. OK, agora vamos para a tal esquina. Estão a prestar atenção? Quero mostrar-lhes como é que se encontra uma garagem.
A garagem não ficava à esquina.
Ficava a um quarteirão de distância da esquina e depois mais meio quarteirão para norte, na direcção de Jefferson Avenue. Era uma das garagens onde Carella e Hawes tinham ido na noite do assassínio da Welles. Tinham falado com o empregado porto-riquenho chamado Ricardo Albareda que não se lembrava de ter visto uma rapariga de vestido vermelho acompanhada de um homem de fato castanho, gravata bege e sapatos castanhos. Tinham dado a Albareda a mesma descrição que o empregado de mesa do Marino tinha dado a Hawes: um metro e sessenta e cinco ou sete, sessenta e cinco quilos, cabelo castanho, olhos castanhos e bigode. Albareda continuava a não se lembrar do casal.
Albareda estava de serviço naquela altura. Explicou que normalmente fazia o turno de dia, mas que na noite passada fizera o turno da noite em substituição do amigo que fora para casa doente. Disse aos detectives que só chegara a casa às duas da manhã e que tivera de voltar ao trabalho às oito. Disse aos detectives que estava muito cansado. Disse-lhes tudo isso com um sotaque vincadamente espanhol.
- Olha, meu cabeça de merda - disse Ollie -, esta é a merda da garagem, percebes inglês ou quê? Foi aqui que eles estiveram e quero que te comeces a lembrar já, senão faço-te dar uma volta ao quarteirão ao pontapé no teu rabo de imigra, tás a ver?
- Se não me lembra, não me lembra - disse Albareda, olhando para Carella.
- Interrogámo-lo demoradamente ontem à noite - disse Carella. -Se o tipo não se lembra, não se pode...
- Isso foi ontem à noite - disse Olhe - e hoje é hoje. E eu sou o detective Ollie Weeks - disse, virando-se para Albareda - que não aceita um não como resposta, a menos que essa pessoa se queira ver metida num sarilho como, por exemplo, por ter cuspido no passeio.
- Eu não cuspi em passeio - disse Albareda.
- Quando eu te der um murro na fuça, vais cuspir sangue e dentes no passeio, e isso é uma infracção.
- Olha, Olhe... - disse Hawes.
- Não te metas nesta. Ruivo - disse Olhe. - Estamos a falar de umas dez menos um quarto - disse a Albareda. - Uma rapariga de vestido vermelho... a fotografia dela vem hoje em todos os jornais e ela foi morta ontem à noite, tás a perceber, monte de merda? Vinha com um tipo com o dobro da idade dela, com um bigode como o teu, OK, Pancho? Começa a lembrar-te.
- Não lembra ninguém com bigode como o meu - disse Albareda.
- E lembras-te de uma rapariga de vestido vermelho?
- Não lembra dela.
- Quantas gajas de vestido vermelho é que cá vieram às dez menos um quarto? Que é que estavas a fazer, Albareda? A bater uma pífia na casa de banho com uma Playboy na mão e não reparaste numa rapariga de vestido vermelho?
- Vêm cá muita raparigas de encarnado - disse Albareda na defensiva.
- Às dez menos um quarto ontem à noite. Vieram cá muitas gajas com vestidos vermelhos?
- Não, ontem à noite não. Tava só a disser.
- Quem mais é que cá trabalhou ontem à noite? Estiveste cá sozinho, idiota de merda de imigra?
- Só cá távamos dois. Era pra ser três, mas...
- Pois, o teu amigo estava em casa na cama a chupar a própria gaita. Então quem mais é que cá estava?
- Não foi por isso que só cá távamos dois.
- Então porquê?
- Porque outro homem qu'era pra cá tar, ele também tava doente.
- Tiveram uma epidemia, hem? Estão todos a ficar com herpes ou quê? Então quem era o outro gajo que cá estava contigo?
- Aníbal.
- Annabelle?
- Aníbal. Aníbal Perez. Trabalha sempre nas noite.
- No turno da noite, hem Pancho? Tens o número dele?
- Si, tenho o númare.
- Telefona-lhe. Diz-lhe que tem dez minutos para mostrar cá a fuça, senão vou à procura dele e enforco-o num candeeiro.
- Vive longe, na Majesta.
- Diz-lhe para vir de táxi. Ou achas que prefere que um carro da Polícia pare à sua porta?
- Vou telefonar - disse Albareda.
Perez chegou passados uns quarenta minutos. Estava completamente confuso. Olhou de relance para Albareda para ver se este lhe dava alguma indicação sobre o que se estava a passar e depois olhou para o polícia que lhe pareceu ser o mais compreensivo dos três, um tipo gordo como ele próprio.
- Qu'é que se passa? - perguntou.
- Estavas cá ontem às dez menos um quarto da noite?
- Si.
- Fala inglês - disse Ollie. - Estamos na América. Viste cá os meus dois amigos a fazer perguntas?
- Não. . - Tava lá em cima quando vieram cá - disse Albareda.
- Desleixados - disse Ollie a Carella. - Não verificaram se havia cá mais alguém para além deste gajo. OK, Pancho - disse a Perez, esquecendo-se de que chamara Albareda pelo mesmo nome -, agora estás cá em baixo e agora queremos saber se viste uma rapariga nova com um vestido vermelho por volta das dez menos um quarto com um tipo com cerca de 40 anos, cabelo castanho, olhos castanhos e com um bigode como o do teu amigo aqui.
- Dez - disse Perez.
- Já te disse para falares inglês - disse Ollie. - Viste-os?
- Vi.
- Uma rapariga nova, com uns 19 anos? Vestido vermelho?
- Sim.
- Tipo com cerca de 40 anos, de fato castanho...
- Sim.
- OK, parece que estamos a chegar a qualquer coisa - disse Ollie. -Que carro é que ele tinha?
- Não m'lembra - disse Perez.
- Foste tu que foste buscar o carro dele?
- Fui eu que fui, sim.
- Então que carro é que era?
- Não m'lembra. Temos cá muito carros. Trago os carro para cima, levo para baixo, com'é que posso lembrar que carro é este e aquele?
- Quando falares comigo, não me fales nesse tom, ouviste bem, Pancho?
- Sim, senhor - disse Perez.
- Já estamos a melhorar - disse Ollie. - Então não te lembras do carro, hem?
- Não.
- Era um carro grande, um carro pequeno, que tipo de carro é que era?
- Não m'lembra.
- Fazem cá um par, vocês dois imigras de merda - disse Ollie. -Onde é que guardam os talões?
- Quê?
- Os talões, os talões, ou querem que eu fale espanhol ou será que isto aqui não é a América?
- Puerto Rico também é Estados Unidos - disse Perez com dignidade.
- Isso é o que tu pensas - disse Ollie. - Quando um tipo estaciona aqui o carro, leva um papel, certo? Tu preenches a matrícula nas duas metades do papel, certo? E rasgas a parte de baixo para dares ao cliente para ele poder vir buscar o carro, certo? Estás a perceber até aqui? Esse papel chama-se talão, o papel que dás ao tipo que vem cá estacionar o carro. OK, metes a parte de cima do talão numa caixa e quando o tipo volta com a metade dele, juntas as duas, e é assim que sabes em que piso é que o carro dele está. Então onde é que guardas os papéis, os talões?
- Ah - disse Perez.
- Aleluia! - disse Ollie. - Tens os talões guardados?
- E'tão no gabinete do tesoureiro. Quer dizer os papéis dontem à noite?
- É de ontem à noite que estamos a falar. Também carimbas esses talões, não é? Com a hora em que o tipo chega e com a hora a que o tipo vem levantar o carro. OK, quero ver todos os talões de toda a gente que chegou por volta das oito e se foi embora por volta das dez menos um quarto. Ora isso é fácil, não é? Acontece que é isso que os meus amigos aqui deviam ter feito ontem à noite, mas mais vale tarde que nunca, certo? Mostra-me os talões.
- O tesoureiro é que os tem - disse Perez. - No escritório.
A tesoureira era uma rapariga negra de vinte e muitos anos. Olhou para os detectives quando estes entraram no pequeno gabinete. Ollie piscou o olho a Carella e disse:
- Olá queridinha.
- Não sou nem sua queridinha nem queridinha de ninguém - disse a rapariga.
- Estás a dizer que não és o meu chocolatinho Tootsie Rowl?
- Isto é o quê? - disse ela.
- Somos agentes da Polícia, Miss - disse Hawes, mostrando-lhe o distintivo. - Temos razões para crer...
- Queremos ver os talões de ontem à noite - disse Ollie. - De toda a gente que chegou por volta das oito, ou pouco antes das oito, e veio buscar o carro mais ou menos às dez menos um quarto.
- Não os arquivamos dessa forma - disse a rapariga. - Por horas. - Então como é que os arquiva?
- Pelos números dos talões.
- OK. - disse Ollie -, saca lá todos os talões que nós procuramos o que queremos.
- Aqui? - disse a rapariga. - Tenho trabalho a fazer aqui.
- Nós também - disse Ollie. A tarefa demorou quase duas horas. Dividiram entre si os talões,
separaram todos os que tinham sido carimbados com uma hora de «entrada» por volta das sete e trinta ou posterior, e procuraram todos os que tinham uma hora de «saída» entre as nove e quarenta e cinco e as dez horas. Seleccionaram desta forma três talões, obtendo as respectivas matrículas dos carros.
Uma das matrículas era: Chev-38L4721. A segunda era: Benz-604]29. A terceira: CadSav-WU3200.
- O resto é canja - disse Ollie.
Eileen Burke não estava satisfeita com aquele trabalho. Em primeiro lugar, não gostava de fingir ser outra mulher que não ela própria. Depois, não gostava de viver no apartamento de outra mulher. E, finalmente, não gostava de estar envolvida numa mascarada que a impedia de ver Bert Kling. Annie tinha-lhe dito que não podia encontrar-se com Bert enquanto estivesse a fazer-se passar por Mary Hollings. Se o violador a visse acompanhada por um homem que nunca vira antes, poderia eventualmente desconfiar de uma armadilha. E isso não podia acontecer. Eileen era o isco. Se o rato sentisse o cheiro a ranço no pedaço de queijo que lhe era oferecido, poderia pôr-se a milhas.
A decoração do apartamento de Mary Hollings era do estilo a que Eileen chamaria uma mistura de Vitoriano e Peter Lorre. O mesmo seria dizer que parecia de certa forma o castelo do Conde Drácula sem o correspondente ambiente acolhedor. As paredes estavam todas pintadas de um verde exactamente do mesmo tom de verde de que todas as esquadras da cidade estavam pintadas. Os tapetes no chão da sala de estar e do quarto eram tapetes orientais velhos que num passado longínquo tinham certamente sido usados por melhores encantadores de serpentes a tocar flauta sobre eles. Os cortinados da sala de estar pareciam os cortinados que Miss Haversham se recusara a abrir nas Great Expectations, embora Eileen tivesse de reconhecer que tinham menos pó que aqueles. E a confusão era inimaginável - mesmo sendo da responsabilidade da própria Eileen.
A confusão era deliberada.
Durante os vários dias que Eileen passara com Mary para se familiarizar com os seus hábitos antes da partida desta para Long Beach, verificara que a mulher era uma desleixada. Talvez isso tivesse a ver com o facto de se ter divorciado. Ou talvez com o facto de ter sido violada. Fosse por que razão fosse, era inimaginável. Na sua primeira visita ao apartamento, Eileen viu cuecas, combinações, blusas, camisolas e calças deixadas ao monte pelo chão, em cima dos sofás, nas costas das cadeiras, penduradas no varão da casa de banho e em cima dos móveis. As meias e os collants por todo o lado pareciam uma horda de cobras mortas.
- Normalmente arrumo as coisas ao sábado ou ao domingo - explicou Mary. - Não faz sentido tentar ter tudo arrumado durante a semana. - Eileen limitara-se a assentir. Estava ali para aprender quais as características da mulher, não para a criticar. Esse primeiro encontro ocorrera numa quarta-feira de manhã, no dia 12 de Outubro. Voltaram a encontrar-se no dia seguinte para Eileen se familiarizar com o apartamento e com a rotina diária de Mary. No dia 14, Mary partiu para a Califórnia, deixando para trás aquilo que parecia ser os destroços de um enorme exército de mulheres extremamente desleixadas e porcas. No sábado, Eileen limpara toda aquela porcaria.
Isso passara-se há cinco dias.
A roupa que agora havia espalhada pelo apartamento era a sua; levara-a para lá ao longo de vários dias, normalmente em sacos de compras para o caso de alguém que a estivesse a vigiar viesse a desconfiar por a ver com malas. Os pratos sujos que havia no lava-louças eram os pratos que ela própria utilizara. Mas era apenas quinta-feira, e Mary só limpava o apartamento ao sábado ou ao domingo. No caso de alguém a estar a vigiar, Eileen queria que tudo tivesse exactamente o mesmo aspecto do costume. Se é que alguém a estava a vigiar. Não tinha forma de saber. Esperava que estivesse. Era por isso que ali estava.
Do lado da sala de estar - a que tinha os cortinados leves e poeirentos à semelhança dos de Miss Haversham - as janelas davam para a rua, que ficava doze andares abaixo. Eileen tinha aberto os cortinados assim que passara a ocupar o apartamento para ser mais fácil ser vista - se é que alguém a estava a vigiar. Era mais fácil ver para dentro do apartamento do lado do quarto. A janela, que tinha estores verticais que já não eram limpos há anos, não passava de uma fresta estreita que dava para uma zona ampla e para um prédio a uns seis metros de distância. Qualquer pessoa à janela, ou no telhado desse prédio, via claramente o que se passava no apartamento. Eileen tinha esperança de que ele tivesse binóculos. Eileen esperava que ele a conseguisse ver bem e esperava ainda que entrasse rapidamente em acção. No sábado, arrumaria a roupa que espalhara deliberadamente por todo o apartamento e levá-la-ia às máquinas de lavar na cave. No domingo, recomeçaria tudo, a partir do zero, por assim dizer. Mas não sabia durante quanto tempo é que conseguiria continuar a viver no meio daquela desordem. Comparativamente, o seu apartamento era tão espartano como a cela de um monge.
Queixara-se a Kling daquela desordem toda há menos de meia hora - pelo telefone, evidentemente. Ele tinha-a escutado pacientemente. Disse-lhe que esperava que aquele trabalho terminasse em breve. Disse-lhe que tinha saudades dela. Perguntou quanto tempo é que Annie pensava mantê-la naquele apartamento, a ter de ir para a cama com a camisa de noite de outra mulher...
- Visto a minha própria camisa de noite - dissera Eileen.
- E supõe que ele te está a observar? - disse Kling. - Vê uma camisa de noite diferente e pensa «Olá! Está ali uma impostora.»
- A Mary podia ter comprado camisas de noite novas - contrapôs Eileen. - Afinal de contas, a única coisa que ela faz todas as manhãs é andar às compras. Até ao meio-dia. Mary levanta-se às nove todas as manhãs e Mary leva duas horas a tomar duche e a vestir-se, é isso que Mary faz. Não me perguntes o que é que faz com que Mary leve duas horas a tomar duche e a vestir-se. O tenente já me telefonou para casa em casos de emergência e saí passados dez minutos, limpinha e arranjadinha como sempre.
- Isso és tu - disse Kling.
- Deixa-te de tretas - disse Eileen. - Seja como for, Mary sai do apartamento às onze horas todas as manhãs e vai fazer compras até à uma. Esta manhã estive em quatro centros comerciais, Bert. Quase te comprei uns slips extremamente sexy.
- Porquê quase? Uma quase prenda não é prenda.
- Pensei que se ele me estivesse a vigiar, pensaria por que diabo é que eu estaria a comprar uns slips de homem.
- Já o conseguiste detectar?
- Não, mas tenho a impressão de que anda por perto.
- Que tipo de impressão?
- Apenas uma impressão, não sabes como é? Quando estava a almoçar... a Mary almoça à uma em ponto todos os dias... todos os dias úteis, isto é. Ao sábado, não põe o despertador e dorme até tarde. Ao domingo também.
- Talvez aí vá no domingo de manhã fingindo ser um tipo qualquer que vai arranjar um cano ou qualquer coisa.
- Boa ideia - disse Eileen. - Os meus canos precisam de ser arranjados, disso podes estar certo. De qualquer forma, quando hoje estava a almoçar...
- Sim, que é que aconteceu?
- Tive a impressão de que ele estava lá.
- No restaurante?
- A Mary não almoça no restaurante. A Mary almoça naqueles sítios onde só há comida macrobiótica. Já comi mais rebentos de soja na última semana...
- Mas ele estava lá, é?
- Não sei. Disse-te que tive essa impressão. A maior parte das pessoas que lá estavam eram mulheres, mas talvez lá estivessem também uns seis tipos, e três podiam bem ser ele, isto é, de acordo com a descrição feita pelas vítimas. Branco, trinta e poucos anos, um metro e oitenta, noventa quilos, cabelo castanho, olhos azuis, sem cicatrizes ou tatuagens visíveis.
- Pode ser qualquer tipo da cidade.
- E eu não sei isso?
Houve um longo silêncio na linha.
- Tive uma óptima ideia - disse Kling.
- Sobre o violador?
- Não, sobre nós.
- OW. - disse ela.
- Queres ouvir?
- Claro.
- Por que é que não tomas um duche...
- Sim... -Depois...
- Depois vestes a camisa de noite...
- Sim...
- E depois te metes na tua cama...
- Na cama de Mary, queres tu dizer.
- Certo, na cama da Mary. Depois volto a telefonar-te. Que tal é que te parece a minha ideia?
- Não me apetece ir já para a cama - disse Eileen. - São só dez horas.
- E depois? A Mary levanta-se às nove da manhã todos os dias úteis, não é? Além disso não te disse para dormires. Só disse que devias ir para a cama.
- Ah, estou a perceber - disse Eileen. - Queres fazer-me um telefonema obsceno, certo?
- Bom, não lhe chamaria exactamente isso - disse Kling.
- Então o que é que lhe chamarias, meu velho porco?
- Porco, sim. Velho, não. Que é que dizes?
- Claro que sim. Dá-me uma meia hora.
- Meia hora} Não me disseste que quando o teu tenente te telefona por causa de uma emergência tu tomas duche e te arranjas em dez minutos? Porque diabo é que agora vais demorar meia hora?
- Se vou receber um telefonema obsceno, quero pôr perfume -disse Eileen, deshgando.
Eileen estava no duche quando o telefone voltou a tocar. Ficou admirada; Bert não lhe telefonaria passados cinco minutos depois de ela lhe ter pedido para lhe dar meia hora. Decidiu deixar que o telefone tocasse. Este continuou a tocar. A tocar. E a tocar. Eileen saiu do duche, embrulhou-se num toalhão e voltou para o quarto - passando pelo meio da tralha que espalhara pelo chão, numa tentativa de simular o estilo de vida de Mary - e depois foi à sala onde o telefone continuava a tocar. Pegou no auscultador.
- Está? - disse.
- Eileen?
A voz de uma mulher.
- Sim.
- Fala Mary Hollings.
- Ah, olá - disse ela. - Desculpe, mas não lhe reconheci a voz.
- Não estou a interromper nada, pois não?
- Estava só a tomar um duche - disse Eileen. - Foi por isso que demorei tanto a atender o telefone. Está a falar da Califórnia?
- Sim. Sei que estou a abusar, mas...
- De forma alguma - disse Eileen. - O que é?
- Bom... É suposto eu pagar a renda no dia 15 de cada mês. O que acontece é que... trouxe comigo o livro de cheques da minha conta de despesas correntes para pagar quaisquer contas que me fossem enviadas para cá...
- Pediu aos correios para lhe ser enviada a correspondência? - perguntou Eileen imediatamente.
- Bem... sim.
Houve um silêncio na linha.
- Fiz alguma coisa de errado? - perguntou Mary.
- Não, não, está tudo bem - respondeu Eileen.
Não achava que as coisas estivessem tão bem como isso. Todas as manhãs, seguindo a rotina que Mary lhe descrevera, dirigia-se à caixa do correio e ficava sempre surpreendida por encontrar correio de terceira classe - revistas, impressos e coisas assim. Nunca havia cartas. Este facto parecera-lhe estranho; mesmo que Mary não recebesse correspondência de parentes ou amigos, seria natural aparecerem contas. Agora sabia porquê. Mary pedira aos correios para remeter a correspondência que lhe fosse endereçada para Long Beach, sem dúvida especificando que esta medida apenas se aplicava a correio de primeira classe. Mas se o violador tivesse vigiado Mary antes de ela partir para a Califórnia, tê-la-ia visto a preencher o impresso de MUDANÇA DE MORADA? Se sim, saberia que a mulher que estava a viver no apartamento de Mary Hollings não era de facto Mary Hollings? Eileen não gostou mesmo nada daquela situação. O silêncio ao telefone prolongou-se.
Finalmente, Mary disse:
- Acho que paguei a renda antes de vir para cá. Normalmente tento pagá-la dois ou três dias antes do fim do prazo. Mando-a para a empresa que administra o edifício, chamada Reynolds Realty, Inc.
- Hum-hum - disse Eileen.
- Mas só trouxe para cá o meu livro de cheques da conta de despesas correntes, aquele que normalmente trago na carteira...
- Hum-hum.
- E o que normalmente faço é pagar a renda através da conta grande, a que tem um livro de cheques com três cheques em cada folha, sabe ao que me estou a referir?
- Hum-hum - disse Eileen.
- Portanto não tenho forma de verificar se paguei a renda ou não -disse Mary. - Não me agradaria nada voltar para casa e saber que me tinham posto uma acção de despejo ou qualquer coisa assim.
- Bom... hum... então o que é que pretende? - perguntou Eileen.
- Pensei que me pudesse fazer um favor.
- Claro.
- Está na sala de estar, não é? É aí que está o telefone, portanto é aí mesmo que está.
- É onde estou - disse Eileen.
«A pingar em cima do tapete oriental», pensou, embora não o dissesse.
- Bem; na secretária onde está o telefone...
- Hum-hum.
- Na última gaveta do lado direito...
- Hum-hum.
- É aí que está o meu livro de cheques grande. O que não trouxe para cá porque achei que podia pagar as contas que me fossem enviadas para cá com o livro de cheques pequeno.
- Sim - disse Eileen.
- Importa-se de verificar no livro de cheques, no grande, se paguei de facto a renda? Se a paguei, deve ter sido por volta do dia 12 ou 13 de Outubro. Importa-se de ver?
- Claro que não. Espere um segundo - disse Eileen.
Abriu a última gaveta do lado direito da secretária, remexeu alguns dossiers e folhas soltas e encontrou o livro de cheques.
- Já o encontrei - disse. - Deixe-me ver.
Puxou a cadeira que estava encostada à secretária, sentou-se, acendeu o candeeiro que estava em cima desta e abriu o livro de cheques.
- 12 ou 13 de Outubro - disse.
- Por volta dessa altura - disse Mary.
- 7 de Outubro - disse Eileen em voz alta enquanto virava os talões dos cheques. - 9 de Outubro... como é que se chama a tal empresa?
- Reynolds Realty, Inc.
- 11 de Outubro - disse Eileen. - Outubro... aqui está. 12 de Outubro, Reynolds Realty, Inc., mil seiscentos e catorze dólares. O talão tem a indicação «Renda a pagar 10/15». Acho que pagou a renda, Mary.
- Que alívio! - disse Mary. - Estava preocupada, não fossem eles mudar a fechadura do apartamento ou fazer qualquer coisa no género. Quando chegasse a casa... - Mary hesitou. - Quando é que acha que posso? - perguntou. - Voltar para casa, isto é. Já teve alguma sorte?
- Nem uma migalha - disse Eileen.
- Porque... a minha irmã é óptima pessoa e ficou muito contente por me ver e tudo isso... mas já cá estou há quase uma semana...
- Sim, eu sei.
- E tenho a sensação de estar já a prolongar demasiado a minha visita.
- Hum-hum.
- Não que ela me tenha dito nada...
- Compreendo.
- Mas uma pessoa começa a aperceber-se, sabe?
- Sim.
- Bom... quando é que acha que isso acabará? O que quero dizer é durante quanto tempo é que vai continuar a estar aí? No caso de ele entretanto não aparecer?
- Terei de combinar isso com a detective Rawles - disse Eileen. -Não sei quanto tempo é que ela tenciona manter-me aqui destacada. Posso telefonar-lhe amanhã?
- Claro. Não há pressa, a minha irmã não me está propriamente a pôr na rua. Só queria saber.
- Tentarei esclarecer a questão. E telefonar-lhe-ei.
- Tem o número de telefone aqui de Long Beach, não tem?
- Sim, deu-mo.
- Bom - disse Mary. - Boa sorte.
- Obrigada.
- Adeus.
- Adeus, Mary.
Ouviu-se um clique na linha. Eileen pousou o auscultador e olhou para o relógio. Se não se apressasse, perderia o primeiro telefonema obsceno da sua vida. Ia a dirigir-se para o quarto quando o telefone voltou a tocar. Eileen olhou novamente para o relógio. Bert? Cinco minutos antes da hora? Mary de novo, para lhe pedir que verificasse qualquer outra coisa no livro de cheques? Voltou para junto da secretária e levantou o auscultador.
- Está?
- Eileen?
Reconheceu imediatamente a voz.
- Olá, Annie - disse -, como está?
- O importante é como é que você está?
- Sobrevivo - respondeu Eileen. - Que é que se passa?
- Tem um minuto?
- Estou com um pouco de pressa - disse ela, olhando novamente para o relógio.
- Ah, sim? - disse Annie. - Tem planos para esta noite?
- Mais ou menos - disse Eileen.
Não achou próprio explicar à detective de primeira classe Anne Rawles quais eram exactamente esses planos. Na realidade, os tais planos eram para ela de certa forma vagos. Mas já lera livros, sim, já lera livros. Passava-lhe pela cabeça todo o tipo de fantasias.
- Vai sair, ou qualquer coisa assim? - perguntou Annie.
- Não, hoje não. Saí ontem à noite. Fui ao cinema.
- Ele deu algum sinal de vida?
- Não.
- Foi sozinha?
- O mais sozinha possível - disse Eileen.
- Lamento, mas...
- Claro, não se preocupe. Acabei de receber um telefonema de Mary Hollings. Ela...
- Da Califórnia?
- Sim. Quer saber quando é que me vou embora daqui.
- Talvez mais cedo do que pensa.
- Vai desistir disto?
- Não.
- Então?
- Tenho algumas informações que talvez lhe interessem - disse Annie, falando-lhe do padrão de comportamento que descobrira ao estudar os dados fornecidos pelo computador. Eileen olhou para o relógio. Automaticamente, pôs a jeito um bloco de apontamentos que estava em cima da secretária e começou a tomar notas enquanto Annie lhe explicava o ciclo de quatro semanas, de três semanas e de duas semanas. Continuou a escutá-la e foi apontando as datas em que Mary Hollings tinha sido violada: 10 Junho, 16 Setembro e 7 Outubro.
- Não joga certo - disse. - Há um grande intervalo entre Junho e Setembro.
- Sim, mas se assinalar as semanas... tem aí um calendário?
- Só um segundo - disse Eileen, abrindo o livro de cheques de Mary nas primeiras páginas. - Sim, continue.
- Conte as semanas comigo - disse Annie. - Primeira violação, 10 de Junho. Quatro semanas mais tarde, 8 de Julho. Três semanas depois, 29 de Julho... está a acompanhar-me?
- Sim? - disse Eileen, intrigada.
- OK. Duas semanas depois disso, 12 de Agosto. Uma semana mais tarde, 19 de Agosto. Está a começar a ver?
- Ainda não.
- Então ouça. Quatro semanas depois de 19 de Agosto foi 16 de Setembro... tem as datas que eu lhe disse relativas às violações de Mary Hollings?
- Sim, 16 de Setembro, certo, está aqui.
- Pronto. E quando é que foi a seguinte?
- 7 de Outubro.
- Exactamente três semanas mais tarde - disse Annie, - E a que data corresponde duas semanas depois disso?
- 21 de Outubro.
- Amanhã - disse Annie.
- Então acha...
- Acho... olhe, quem é que sabe como funciona a cabeça deste tarado? Talvez não exista qualquer padrão, talvez seja tudo coincidência. Mas se existe um padrão, então Mary Hollings é a única vítima que ele atacou à sexta-feira, e amanhã é sexta-feira, para além do facto de ser duas semanas depois de ele a ter violado da última vez.
- Sim - disse Eileen.
- O que quero dizer... -Já percebi.
- Estou a dizer-lhe para amanhã ter muito cuidado.
- Obrigada.
- Acha que precisa de reforços?
- Não, isso pode assustá-lo. Prefiro arriscar sozinha.
- Eileen... a sério. Tenha muito cuidado. -OK.
- Ele tem uma navalha.
- Eu sei.
- E já a usou...
- Eu sei.
- Portanto, tenha cautela. Se ele puxar da navalha, não faça perguntas, dispare.
- OK. - Eileen hesitou. - Quando é que acha que ele entrará em acção?
- Tem sido sempre à noite - respondeu Annie.
- Portanto, tenho todo o dia de amanhã para ir às compras, almoçar num restaurante de comida macrobiótica e ir a um museu ou qualquer coisa assim, certo?
Annie deu uma gargalhada, mas ficou séria logo a seguir.
- Enquanto estiver a fazer tudo isso, esteja atenta para ver se o descobre - disse. - Se ele tencionar atacá-la amanhã à noite, provavelmente segui-la-á durante o dia.
- OK.
- Tem a certeza de que não quer reforços? Eileen não tinha a certeza, mas disse:
- Não o quero perder.
- Não me estou a referir a homens. Podemos mandar avançar duas mulheres polícia.
- Ele pode farejá-las. Estamos demasiado perto, Annie.
- OK, mas lembre-se do que lhe disse. Se ele puxar da navalha...
- Fixei tudo. - Eileen voltou a olhar para o relógio. - É tudo?
- Boa sorte - disse Annie, desligando.
«Duas vezes "boa sorte" na mesma noite», pensou Eileen ao pousar o auscultador. «Bem preciso, lá isso é verdade.» Eram quase dez e trinta. Mais que não fosse, Bert era pontual. Voltou para o quarto e hesitou entre vestir ou não uma camisa de noite, decidindo vestir apenas umas cuecas. Preparava-se para fechar os cortinados quando o telefone tocou. Foi à sala de estar e pegou no auscultador.
- Está? - disse.
- Querida, sou eu - disse Kling.
- Sim, Bert. Preparava-me para...
- Ouve, desculpa, mas recebemos alguns nomes e moradas do Departamento Automóvel relacionados com os enforcamentos. O tenente acabou de me telefonar e quer que saiam três equipas.
- Ah - disse Eileen.
- Portanto... hum... acho que tem de ficar para outra ocasião.
- Sim, acho que sim - disse Eileen.
- Talvez.
- Tenho de ir. O Meyer vem-me buscar daqui a cinco minutos.
- OK, querido. Tem cuidado.
- Tu também.
Ouviu-se um clique na linha. Eileen desligou e voltou para o quarto. Ao levar a mão ao cordão dos cortinados, ocorreu-lhe subitamente que de qualquer maneira a ideia de Bert não teria resultado pois não havia telefone no quarto.
Suspirando, correu os cortinados.
Do sítio onde estava agachado atrás do parapeito do telhado do edifício em frente, de binóculos apontados, viu os cortinados fecharem-se e a visão que tinha do quarto foi substituída por um rectângulo de luz tão impenetrável como uma parede de tijolos.
Tinha-a estado a vigiar desde que anoitecera. Teria preferido segui-la durante todo o dia, mas isso era impossível. Só ficava livre às quatro, às vezes às cinco da tarde. Mesmo sair à noite era difícil, devido aos pretextos que tinha de inventar. Não queria sair demasiadas vezes à noite porque as noites ditadas pelo calendário tinham de ser cumpridas a todo o custo. Qualquer coisa que fosse marcada para essas noites, ele recusava, dizendo que lamentava, mas que tinha de ir a outro lado. Aqui, ali, algures. Os seus pretextos eram aceites. Nem sempre sem perguntas, mas acabavam por ser aceites. Era uma pessoa determinada. As pessoas já tinham aprendido há muito tempo que era inútil convencê-lo a voltar atrás em relação a qualquer posição que já tivesse assumido.
Mary Hollings tinha obrigação de já saber isso. Já tinham sido três vezes. Amanhã à noite seria a quarta. Quatro vezes deviam bastar, mas cinco era melhor. Quando era possível apanhá-las cinco vezes tinha-se a certeza absoluta de que ficavam exactamente como se pretendia. Interrogou-se sobre se deveria ou não tentar ir ao apartamento dela na noite seguinte. Provavelmente não. Demasiado arriscado. Da última vez quase caíra da maldita escada de salvação por ter posto mal o pé ao subir. Demasiado arriscado. Tinha saído pela porta da frente, o que era bem mais seguro, descera rapidamente as escadas e saíra para a rua, deixando-se ficar por ali até ver chegar um carro da Polícia, pois sabia que ela telefonaria à Polícia porque o fizera de cada uma das outras vezes.
Tentaria apanhá-la na rua amanhã à noite. A menos que ela não saísse. Tinha ido ao cinema na noite anterior e fora a pé para casa. Teria sido uma altura perfeita para a apanhar, mas ele preferia ir pelo calendário. De qualquer outra forma era demasiado desorganizado. Quando se tinha um plano, este devia ser cumprido. Fosse como fosse, já eram muitas. Se não seguisse o calendário, podia enganar-se em relação à que vinha a seguir, e todo o seu plano iria por água abaixo. Mesmo que a oportunidade surgisse, como acontecera na noite anterior, era melhor controlar-se e fazer o que o calendário ditava.
Está muito ocupada esta noite, Mrs. Mary Hollings.
A andar às voltas pelo apartamento como se estivesse à espera que aquilo acontecesse. Talvez estivesse. Hipócritas de merda, todas elas. Todas elas queriam a mesma coisa, mas fingiam que o faziam por outras razões. Tentavam justificar o acto com um significado mais elevado. Tentavam impor esse significado aos outros. Negavam que o acto sexual era em si um meio para um fim. Não interessava o que realmente sentiam em relação ao sexo, não interessava os pequenos actos que faziam em privado quando ele as vigiava, isso era tudo para esquecer. Eram puras de espírito, sim, mas de coração...
O coração era uma questão completamente diferente. O coração e a racha entre as pernas. Não interessava qual a causa que invocavam na sua cabeça. O coração e a racha era o que realmente comandava a sua vida. A Mary Hollings naquela noite. A despir-se com os cortinados abertos. Com um outro edifício a poucos metros em frente? Qualquer pessoa podia estar a observá-la. Nem sequer precisaria de binóculos para ver o que ela estava a publicitar, cabelos e pêlos ruivos, mamas como melões. Mrs. Mary Hollings que defendia uma política que negava a sexualidade a favor da feminilidade, a mesma feminilidade compartilhada por qualquer animal selvagem. Passara à frente dos cortinados abertos sem nada no corpo, a não ser uma toalha. Um pouco depois, voltara para o quarto e vestira umas cuecas. Ficou a admirar-se ao espelho, sempre com os cortinados abertos. Voltou a sair do quarto para ir à sala - conhecia a disposição do apartamento, pois já lá estivera.
Nela, também.
Três vezes.
Amanhã à noite seria a número quatro para Mrs. Mary Hollings.
Amanhã à noite.
Na noite do assassínio de Darcy Welles três homens tinham estacionado o carro entre as oito e as dez horas na garagem perto da esquina do restaurante Marino. O tenente Byrnes decidiu que era melhor avançar sobre os três nessa mesma noite. Se um deles era um assassino, o dia seguinte não podia vir depressa de mais. Mas mesmo que os três estivessem inocentes, as hipóteses de os apanhar em casa naquela noite pareciam-lhe maiores que se esperasse pela manhã. Amanhã era sexta-feira, dia de trabalho. Se aqueles homens tivessem emprego, uma visita à sua casa de manhã resultaria em três fracassos. Teriam de fazer perguntas a quem lhes abrisse a porta e seriam necessárias novas idas aos seus locais de trabalho. Era melhor despachar aquilo de imediato, naquela noite; o primeiro a chegar é quem ganha, e quem hesita, perde. Era este o raciocínio do tenente.
Cinco dos detectives que compunham as três equipas teriam preferido ficar em casa a andar a correr por toda a cidade atrás de um homem que, afinal de contas, talvez fosse o verdadeiro perpetrador. «Perpetrador» era a palavra que Ollie Weeks usava. Ele era o sexto detective que compunha as três equipas de dois homens cada e preferia de longe andar pela cidade numa caça ao homem a ficar em casa, num apartamento que até ele admitia ser uma espelunca. O tenente Byrnes não tinha a certeza de o protocolo permitir que Ollie participasse numa potencial prisão. Ollie argumentou que o terceiro cadáver tinha sido encontrado na zona da Oito-Três, portanto tinha todo o direito de ir com eles.
- Além disso - sublinhou com subtileza -, fui eu que consegui os malditos talões da garagem sem os quais ninguém do MVB teria conseguido descobrir estes nomes e moradas, portanto vamo-nos deixar de merdas, tenente.
Os homens partiram com destino a várias zonas da cidade aproximadamente às dez e trinta. Carella teve uma sorte dos diabos: calhou-lhe ficar com Ollie Weeks. Revirou os olhos para o céu ao descer as escadas para requisitar um carro sem distintivo da Polícia. Ollie estava demasiado bem vestido para o seu habitual. Tinha um casaco de fazenda liso e um chapéu de caçador; o tempo, até ali tão ameno, virara quando o Sol se pusera; a lua-de-mel de Outubro parecia ter terminado. Carella, que ainda tinha vestido o que pusera de manhã, sentia um certo frio e esperava que o carro fosse um dos que tinham o aquecimento a funcionar. Não era.
O dono do Mercedes-Benz com a matrícula 604J29 vivia a menos de dez minutos de distância da esquadra. Chamava-se Henry Lytell.
- Esse nome diz-me qualquer coisa - disse Ollie. Era ele que ia a guiar. Carella estava debruçado por cima dele a dar pancadas no aquecimento com a palma da mão, tentando pô-lo a funcionar. - Não te diz nada a ti? Henry Lytell?
- Não, não diz - disse Carella. - Pronto, desisto, merda para isto!
- Vocês deviam comprar carros novos - disse Ollie.
Carella deu um grunhido e puxou a gola do blazer fino para cima, tentando proteger-se do frio encolhendo-se dentro dele.
- Aquilo que eu faço é ter sempre roupa a mais no porta-bagagens do meu carro no caso de ficar frio ou de começar a chover ou qualquer coisa assim na cidade - disse Ollie.
- Hum - disse Carella.
- O que devíamos ter feito era termos trazido o meu carro em vez de este calhambeque a cair de podre. Lá ná Oito-Três temos carros novinhos em folha... Mercurys e Fords. O tenente vai sempre verificar o carro quando chegamos de qualquer lado para se assegurar de que não lhe fizemos uma arranhadela sequer. Nós lá na Oito-Três sabemos viver. Esse nome diz-me mesmo qualquer coisa. Henry Lytell. Não é um actor ou qualquer coisa dessas?
- Não me diz nada a mim - disse Carella.
- Lytell, Lytell, tenho a certeza de que é o nome de alguém - disse Ollie.
Carella não referiu que dado que Lytell era o nome de alguém, então tinha de ser o nome de alguém. Carella estava a pensar que devia ter vestido ceroulas de manhã.
- É o Henry que me está a fazer confusão - disse Ollie. - Diz-me lá outra vez a morada.
- 843 Holmes.
- Como Sherlock?
- Igual.
- Se tivermos sorte, é a meias, entendes? - disse Ollie. - O mérito é atribuído a ambas as esquadras.
- Estás a fazer-te ao cargo de comissário?
- Estou satisfeito com o que sou - disse Ollie. - Mas o que é justo, é justo.
- Não estás com frio? - perguntou Carella.
- Eu? Não. Tu tens?
- Tenho.
- É suposto chover - disse Ollie.
- E o frio diminui?
- Só estava a dizer.
Ficaram calados durante alguns momentos.
- O Meyer falou-te no que eu lhe contei sobre a Balada de Hill Street} - perguntou Ollie.
- Não - disse Carella.
- Sobre pôr uma acção contra a Balada de Hill Street}
- Não, não falou. Quem é que vai pôr uma acção contra a Balada de Hill Street}
- Acho que eu e tu os devíamos processar.
- Porquê?
- Não achas que Furillo soa a Carella?
- Não - disse Carella.
- Não achas que Charlie Weeks soa a Ollie Weeks?
- Não.
- Não achas?
- Não. Charlie Weeks soa a Charlie Weeks.
- A mim soam-me quase como o mesmo nome.
- Da forma como Howard Hunter te soa a Evan Hunter?
- Não é nada disso.
- Ou como Arthur Hitler te soa a Adolph Hitler?
- Estás a querer ser engraçado - disse Ollie. - Seja como for, aposto que não há ninguém no mundo chamado Hitler hoje em dia. Nem sequer na Alemanha há qualquer Hitler. Toda a gente chamada Hitler já mudou de nome.
- Então porque é que tu não mudas de nome? Se Charlie Weeks te incomoda, muda o teu nome para OWie Jones ou qualquer coisa assim.
- Porque é que o Charlie Weeks não muda o nome dele para outro qualquer? - disse Ollie. - Porque é que o Furillo não muda de nome?
- Não vejo qualquer relação entre Furillo e Carella - disse Carella.
- Porque é que estás tão irritado esta noite?
- Não estou irritado. Estou com frio.
- Estamos prestes a fazer uma prisão e o tipo está irritado.
- Não sabemos se vamos fazer uma prisão - disse Carella.
- Tenho um pressentimento de que vamos - disse Ollie. - Já chegámos.
Estacionou o carro em dupla fila ao lado de uma carrinha que estava junto ao passeio à frente do edifício onde Henry Lytell vivia. O edifício tinha seis andares, sem porteiro. Dirigiram-se para o pequeno hall de entrada e verificaram as caixas do correio.
- Lytell, H. - disse Olhe. - Apartamento 6B. Ultimo andar. Espero que haja elevador. Esse nome não te diz nada? Lytell?
- Não - disse Carella. Estava tanto frio no hall de entrada como no carro. Aquele tipo de frio húmido e penetrante que anunciava chuva.
Ollie carregou no botão da campainha no painel ao lado das caixas do correio. Pôs o dedo no botão e carregou sem parar. Não ouviram nenhum sinal de resposta junto à porta interior.
- Achas que esta espelunca tem porteiro? - perguntou, olhando para o painel dos botões das campainhas. - Não temos sorte nenhuma disse, carregando no botão ao lado do nome Nakura, do apartamento 5A. Ouviu-se um sinal de resposta na porta. Ollie agarrou a maçaneta e empurrou a porta.
- Temos de agradecer a Deus pelas pequenas bênçãos que recebemos - disse, dirigindo-se para o pequeno elevador ao fundo do hall de entrada. Carregou no botão para chamar o elevador. Os detectives esperaram. - Nestes prédios velhos os elevadores são tão lentos como os pretos em Agosto - disse Ollie.
- Quero dar-te um conselho - disse Carella.
- Diz lá.
- Nunca faças equipa com o Arthur Brown.
- Porquê? Ah, referes-te ao que eu disse? Foi apenas uma força de expressão.
- O Brown pode não achar o mesmo.
- Claro que acharia - disse Ollie. - Ele tem sentido de humor. E o que é que tem o que eu disse? É uma força de expressão.
- Não gosto das tuas figuras de retórica - disse Carella.
- Pronto - disse Ollie, dando-lhe uma palmada nas costas. - Não estejas tão irritado, Steve-a-rino. Estamos à beira de fazer uma prisão.
- E por favor não me chames Steve-a-rino.
- Que é que queres que te chame? Furillo? Queres que te chame Furillo ?
- O meu nome é Steve.
- O nome de Furillo é Frank. O sargento chama-lhe sempre «Francis». Talvez te deva chamar Stephen. Gostavas que eu te chamasse «Stephen», Stephen?
- Gostava que me chamasses Steve.
- OK, Steve. Gostas da Balada de HillStreet, Steve?
- Não gosto de filmes sobre polícias - disse Carella.
- Onde raio é que está o elevador? - disse Ollie.
- Queres ir a pé?
- Seis andares? Nem penses nisso.
O elevador chegou finalmente. Os homens entraram e Ollie carregou no botão para o sexto andar. As portas fecharam-se.
- Com esta rapidez, chegamos lá na próxima terça-feira - disse Ollie.
No sexto andar encontraram o apartamento 6B em frente ao elevador, duas portas para o lado.
- É melhor flanquearmos a porta - disse Ollie. - O Lytell pode ser o tal que gosta de partir o pescoço às pessoas.
Empunhava já a pistola com a mão direita.
Flanqueara a porta, Carella do plano esquerdo e Ollie do direito. Ollie carregou no botão da campainha. Ouviram o toque no interior Mais nada. Ollie voltou a tocar à campainha. Ouviram-na tocar novamente no interior. Ollie encostou o ouvido à madeira da porta e escutou. Nada.
- Silencioso como um cemitério - disse. - Afasta-te, Steve. -Para quê?
- Vou abri-la ao pontapé.
- Não podes fazer isso, Ollie.
- Quem é que diz que não posso? - disse Ollie, levantando o joelho direito.
- Ollie...
A perna de Ollie disparou num violento pontapé contra a fechadura. A fechadura cedeu e a porta ficou escancarada. O apartamento estava completamente às escuras.
- Está alguém em casa? - disse Ollie, avançando para o interior, semiagachado, varrendo o espaço à sua frente com a pistola. - Acende a luz - disse a Carella.
Carella procurou o interruptor na parede junto à porta. Encon-trou-o e acendeu a luz.
- Polícia! - gritou Ollie, aparentemente para ninguém. - Protege-me - disse a Carella, avançando. Carella apontou a pistola para o espaço à frente de Ollie. «Que raio é que estou afazer?», pensou. «Isto é ilegal.» Ollie acendeu a luz da sala de estar. A sala estava deserta.
Numa das paredes via-se um enorme quadro a óleo de um atleta de calções e camisola, com o número dez na camisola. O homem ia lançado em corrida, numa longa passada, com os braços a acompanhar o movimento das pernas. Parecia uma imitação dos quadros que um tipo qualquer fazia para a revista Playboy, cujo nome Carella não se lembrava. Havia duas portas na sala, uma de cada lado, ambas fechadas. Sem uma palavra, os detectives colocaram-se em lados opostos, Ollie junto à porta da direita, Carella junto à porta da esquerda. Tratava-se de dois quartos, ambos sem ninguém.
- Vamos revistar esta merda - disse Ollie.
- Não - opôs-se Carella.
- Porque não ?
- Nem sequer devíamos estar cá dentro - disse ele, pensando no doente que pedira ao psiquiatra para lhe dar um beijo de despedida na sua última consulta. O psiquiatra respondera, «Dar-lhe um beijo? Eu nem sequer devia estar aqui deitado no sofá consigo.»
- Mas nós estamos cá dentro - respondeu Ollie. - Não vês que estamos cá dentro?
- Ilegalmente - respondeu Carella.
- Steve, Steve - disse Ollie num tom paternalista, abanando a cabeça. - Deixa-me contar-te uma história de fadas, Steve. Gostas de histórias de fadas?
- Ollie, não vês que estás a brincar com o fo...
- Ouve a minha história de fadas, OK? - disse Ollie. - Dois polícias honestos e trabalhadores vão uma noite procurar um possível suspeito. Chegam ao apartamento do suspeito, que por acaso até é este mesmo apartamento onde estamos, e adivinha o que encontram? Um ladrão qualquer assaltou a casa e pôs tudo de pernas para o ar. Como polícias honestos e trabalhadores, comunicam o assalto à esquadra local, seja qual for a merda da esquadra, e depois vão à vida. Que tal te parece, Steve? Ou não gostas de histórias de fadas?
- Adoro histórias de fadas - disse Carella. - Agora conto-te eu uma, OK? Chama-se a Árvore do Veneno e...
- Ah, sim, meu rapaz, a Árvore do Veneno - disse Ollie, na sua famosa imitação de W. C. Fields. - A Árvore do Veneno, sim, sim, o nome é-me vagamente familiar.
- A Árvore do Veneno é sobre um polícia que não cumpriu as disposições legais antes de ir procurar um pica-gelo num esgoto. O polícia procurou na merda do esgoto, encontrou o pica-gelo que tinha as impressões digitais de um forte suspeito, mas a informação do polícia sobre o pica-gelo tinha sido obtida de forma ilegal, Ollie, e o M. P. dis-se-lhe que o pica-gelo era o fruto da Árvore do Veneno, a acção foi recusada pelo tribunal e o assassino está provavelmente neste momento a utilizar o pica-gelo em centenas de pessoas. E a Doutrina da Árvore do Veneno, Ollie. Há quanto tempo é que és polícia, Ollie?
- Ah, sim, a Doutrina da Árvore do Veneno - disse Ollie, continuando a imitar W. C. Fields.
- Estamos aqui sem mandato - disse Carella -, arrombamos a porta de um cidadão e estamos aqui ilegalmente. Isto significa que quaisquer provas que encontremos...
- Compreendo a tua posição, meu rapaz - disse Ollie. - No entanto incomodar-te-ia demasiado que eu dê uma vista de olhos? Sem tocar em nada?
- Ollie...
- Porque é exactamente isso que vou fazer - disse Ollie na sua voz normal -, mesmo que isso te incomode. Estamos aqui para ver se o tipo tem alguma coisa a ver com os assassínios. Se tiver...
- Estamos aqui para verificar se o tipo estacionou o carro...
- Isso já nós sabemos] Não é para isso que estamos aqui, Steve.
- Estamos aqui para falar com o tipo!
- Bom, mas o tipo não está cá, pois não? Vês cá o homem? Assim sendo, com quem é que falamos? Com as paredes?
- Falamos com um magistrado para arranjarmos um mandato de busca. Esse é que é o procedimento correcto...
- Não, falamos com a agenda do tipo para vermos onde foi esta noite, depois vamos ter com o homem e falamos com ele pessoalmente.
- E quando um juiz...
- Nenhum juiz vai saber que falámos com a agenda do tipo, pois não? Já te disse, Steve, quando cá chegámos encontrámos uma ocorrência 10-21 e é exactamente isso que vou comunicar quando nos formos embora. Entretanto, vou ver à secretária do tipo se ele tem uma agenda.
Carella ficou a observar Ollie enquanto este se dirigiu para a secretária do outro lado da sala e abriu a primeira gaveta.
- Vês? - disse Ollie. - Fácil. O tipo está a facilitar-nos a vida. Virou-se para Carella e mostrou-lhe uma agenda.
- Agora o que fazemos é abrir a agenda no mês de Outubro... assim - disse Ollie.
E abriu a agenda.
- Agora procuramos a data de hoje, 20 de Outubro... caramba, Steve, olha para isto. A agenda deste tipo é muito faladora.
Carella olhou.
Na folha correspondente a 6 de Outubro, a noite em que Mareia Schaffer fora morta, Lytell escrevera o seu nome na agenda e por baixo o nome da universidade em que ela andava, Universidade Ramsey. No dia 13 de Outubro, escrevera «Nancy Annunziato» e depois «Marino». Na folha correspondente à noite anterior escrevera o nome de Darcy Welles e novamente «Marino».
- Estás a ver isto tudo? - perguntou Ollie.
- Estou.
- Estás a ver o que é que eleescreveu na folha de hoje? Lytell escrevera o nome «Luella Scott» e - Seis para cinco que é preta - disse Ollie.
- E a palavra «Folger» que não podia significar outra coisa senão a universidade Folger em Riverhead.
Ollie fechou a agenda.
- Devemos demorar uma meia hora a chegar lá, vinte minutos se carregarmos no prego - disse. - Deixa-me comunicar o assalto que encontrámos e depois pomo-nos na alheta... antes que ele lhe parta o pescoço também a ela.
Arthur Brown tinha sempre o azar de lhe calhar Diamondback.
Sempre que tinha de ir para algum lado fora da zona da esquadra, calhava-lhe sempre Diamondback. Achava que era política do departamento mandar todos os polícias negros para a zona negra de Diamondback sempre que tinham de sair da zona da Oito-Sete.
Era difícil a um polícia negro actuar em Diamondback. Havia ali muita gente negra que não estava exactamente do lado da lei e da ordem e quando viam um polícia negro à frente achavam que ele era Um traidor à causa. Brown não sabia a que causa. Interrogava-se se todos os taxistas, padres, empregados de balcão, carteiros, estenógra-los, secretárias, e todas as outras pessoas honestas que lá havia também se interrogavam sobre por que é que os chulos, traficantes de droga, prostitutas, organizadores de lotaria ilegal, ladrões, assaltantes a mão armada achavam que um polícia como Arthur Brown estava a trair. A única causa que ele respeitava era aquela que lhe dizia para Ser a melhor pessoa possível num mundo que apodrecera. Diamondback era o mais podre que o mundo podia ser. Não viveria ali em Diamondback mesmo que fosse um tipo que limpasse retretes para ganhar a vida - que era aquilo que por vezes sentia que fazia para ganhar a vida.
Ao longo dos anos verificara que não havia muitos advogados, médicos, engenheiros ou arquitectos negros a viver ali em Diamond-back - pelo menos naquela parte de Diamondback. Se um negro que vencera na vida decidisse viver em Diamondback, era na zona limítrofe chamada Sweetloaf. Se Arthur Brown tivesse de viver em Diamondback, achava que quereria viver em Sweetloaf. O único problema em Sweetloaf era a população ser toda negra. Brown achava que era extremamente errado a população de qualquer sítio ser totalmente qualquer coisa. Excepto talvez a população da China. Mas até isso o preocupava ligeiramente. Como é que toda aquela gente lá na China conseguia passar todo o dia sem ver ninguém louro de olhos azuis? Não seria extremamente chato ver apenas pessoas de cabelo preto e olhos castanhos? Brown sentia-se satisfeito por não viver na China. Também se sentia satisfeito por não viver em Diamondback. Mas ali estava ele outra vez, às dez para as onze, mesmo no coração de Diamondback, a falar com um tipo que tinha um Cadillac Seville com a matrícula WU3200.
Quer ele quer Hawes se tinham apercebido assim que o MVB chegara com uma morada em Diamondback que provavelmente não se tratava do homem que procuravam. O empregado do Marino descrevera o tipo que estivera com Darcy Welles como sendo branco. Havia alguns brancos a viver ali, pensou Brown, mas eram muito poucos. Portanto, as probabilidades eram pelo menos de cem para um que o tipo que lhes abrisse a porta seria negro (que era) e as probabilidades de um negro daquela zona com um Cadillac Seville novinho em folha estar ligado à droga ou à prostituição eram pelo menos de mil para um.
Willy Bartlett estava ligado à prostituição.
Estiveram exactamente cinco minutos com ele enquanto ele lhes disse que tinha ido à zona baixa da cidade deixar uma «amiga» e ambos perceberam que estavam a perder tempo, porque à partida ele era da cor errada.
Mas talvez cada negro daquela cidade fosse à partida da cor errada, pensou Brown.
Eileen Burke não conseguia dormir.
Eram onze da noite e ela já pusera o despertador de Mary para as 9:00 da manhã, o que significava que se conseguisse adormecer sem pensar numa série de coisas teria dez horas de sono à sua frente antes de o despertador tocar. Dez horas de sono era muito. Quer estivesse na cama de Bert ou vice-versa, dormia em média seis horas por noite -com sorte. Naquela noite estava na cama de Mary e não conseguia adormecer e achava que isso era por ter tantas coisas em que pensar. Uma dessas coisas era Bert estar a tocar a uma porta atrás da qual provavelmente estava um assassino. Outra coisa era a possibilidade de o violador ir bater à porta dela - à porta de Mary - na noite seguinte. Nenhum destes pensamentos a ajudava a ter sono.
Tinha sido aborrecido Bert ter de sair naquela noite. Fosse o que fosse que ele tivesse planeado fazer-lhe ao telefone, Eileen estava segura de que lhe daria boa disposição para depois dormir. Se a noite seguinte se passasse realmente como Annie esperava, Eileen precisava de dormir bem esta noite. O problema era que o facto de pensar na noite seguinte fazia que fosse extremamente difícil adormecer esta noite. Eileen não deixava de pensar se Annie teria mesmo acertado nas datas. E se toda aquela conversa das quatro semanas, três semanas, • etc, fazia algum sentido. «O que devo fazer», pensou, «é levantar-me e voltar a ver o calendário. Em vez de estar aqui deitada a preocupar-me se amanhã à noite vai mesmo ser a tal noite.»
Acendeu o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, atirou a roupa da cama para trás e pôs os pés no chão. Estava muito frio no apartamento - era o que dava ser Outubro. Um dia ameno, no outro dia um frio de rachar. Vestiu o robe e, passando por entre as pilhas de roupa suja no chão («vou lavar tudo isto no sábado», pensou), dirigiu-se para a porta do quarto e procurou o interruptor da sala para acender a luz.
Foi até à secretária, acendeu o candeeiro pequeno e abriu a primeira gaveta na esperança de encontrar um calendário maior e mais fácil de consultar que o que havia na parte da frente do livro de cheques de Mary - o livro de cheques grande, como Mary lhe chamara. Só encontrou um pequeno calendário plastificado com o nome de uma casa de limpeza a seco e um número de telefone, do tipo que se mete na carteira. Além disso, era um calendário do ano anterior. Abriu a última gaveta do lado direito da secretária, voltou a tirar o livro de cheques e abriu-o na primeira página.
Os apontamentos que fizera enquanto falava ao telefone com Annie ainda estavam em cima da secretária. Eileen começou a marcar as datas no calendário, contando as semanas. Bom, Annie parecia ter razão. Mesmo dando margem para uma interrupção no Verão («porque é que não tinha havido violações em Julho e Agosto?», pensou), o padrão parecia estar claramente definido. Amanhã era sexta-feira, 21, e se o tal tipo agisse como elas pensavam, Mary Hollings receberia nova visita sua. Por curiosidade, Eileen começou a folhear o livro de cheques, localizando os talões referentes aos cheques que Mary passara nos dias em que fora violada.
Junho 10. Grande actividade, uma série de contas a pagar, referentes a todas as saídas diárias de Mary para ir fazer compras. Lojas em toda a cidade, companhia dos telefones, companhia de electricidade -Eileen contou dez cheques passados só nesse dia. Passou para o dia 16 de Setembro.
Novamente um grande movimento da conta. Não havia dúvida de que aquela senhora tinha contas que nunca mais acabavam e que a pensão de alimentos que recebia devia ser choruda. Um cheque passado à Reynolds Realty, Inc. (com atraso no mês passado, hem, Mary? A sua renda vence-se a 15), outro para pagar uma assinatura num teatro no Quarter, outro passado a uma organização chamada A I. M. (assinalado DONATIVO), o talão de um cheque passado a Albert Clea-ners (a empresa que lhe dera o calendário de bolso no ano passado), outro talão de um cheque passado ao Citizens Savings Bank (assinalado RENOVAÇÃO-COFRE DE VALORES), um cheque para o American Express, outro para o Visa, e era tudo.
Que raio seria a A. I. M.? pensou Eileen. Parecia ser uma organização para a defesa do direito dos cidadãos a andarem armados. Pronto, apontar, disparar. Seria Mary uma fanática de armas? Uma maravilha! Apoiem o vosso grupo local de armas e tornem a vida mais fácil a todos os ladrõezecos do mundo. A. I. M. Association of International Murderersf Allied Independent Maniacs? Am I Macho?
Eileen encolheu os ombros.
No dia 7 de Outubro, Mary só passara seis cheques, dois deles a lojas da cidade (naturalmente), um para o Bowler Art Museum (também assinado como sendo DONATIVO), outro para a Raucher TV-Radio Repair, um de $5.75 passado a Lombino's Best Pizza (teria encomendado uma pizza naquela noite? E pago ao rapaz que a fora entregar com um cheque?) e um último cheque no valor substancial de $1650 passado a alguém chamado Howard Moscowitz. O talão estava assinalado CUSTAS JUDICIAIS.
«Que diabo é a A. I. M.?», pensou Eileen.
Detestava mistérios.
Voltou as páginas do livro de cheques até chegar ao princípio. Talvez Mary já tivesse feito anteriormente outros donativos à A. I. M. E talvez tivesse escrito no talão o seu nome completo É indubitavelmente honroso. Amalgamated Indolent Masochists, talvez? Ou Aca-demy of Islamic Mosques Que tal Avoid Intolerant Malesf Ou Are Iguanas Mammals?
Mary fizera três donativos à A. I. M. nesse ano. Cem dólares em Janeiro. Cinquenta em Março. E por último cinquenta dólares no dia 16 de Setembro, no dia em que fora violada pela segunda vez. Sem dúvida em resposta a pedidos trimestrais.
Não havia qualquer indício no talão quanto ao significado da sigla (se de facto era uma sigla). Cada talão dizia simplesmente A. I. M. -DONATIVO.
Eileen bocejou.
Aquilo era melhor que contar carneiros.
A lista telefónica de Isola estava em cima da secretária, ao lado do telefone. Eileen pegou nela, abriu-a no A e começou a ler, passando o dedo pelos sucessivos nomes:
A-I Bookshops, Inc...
A-I Systems... K, AIC ínvestigations " AID Photo...
AIG, Ltd....
AIHL Dental Labs...
A.I.M....
«Cá está», pensou, copiando numa folha de papel a informação que vinha na lista:
A.I.M.
832 Hall Avenue
388-7400
«Mesmo cá na cidade», pensou. «Talvez deva dizer à Annie que averigue o que é. Três donativos para a mesma organização. Talvez seja importante.» Voltou a bocejar.
Apagou o candeeiro, apagou a luz da sala e voltou para o quarto. Pôs o robe aos pés da cama, meteu-se debaixo da roupa e ficou a pensar durante alguns momentos. A. I. M. «Dorme», pensou. «Dorme. Vá lá, Morfeu, onde é que estás? A, I. M. Anyone Inviting Mor-pheus! Vamos votar.» Estendeu o braço e apagou o candeeiro da mesinha-de-cabeceira.
O relógio indicava onze e dez.
O dono do Chevy Citation com a matrícula 38L4721 vivia em Majesta. Meyer e Kling demoraram quarenta minutos da esquadra lá. Kling olhou para o relógio enquanto estacionavam o carro junto do complexo habitacional onde Frederick Sagel vivia. Onze e doze minutos. Eram onze e dezassete quando tocaram à campainha do seu apartamento no terceiro andar. A voz de uma mulher gritou:
- Quem é? - Parecia alarmada. Naquela cidade, um toque de campainha depois das dez da noite, quando era suposto saber-se onde estão os filhos, podia ser considerado de mau augúrio.
- Polícia - disse Meyer. Estava cansado; o dia fora comprido. Não
lhe apetecia estar ali a tocar à porta fosse de quem fosse, sobretudo se do outro lado estivesse um assassino.
- Quem? - perguntou a mulher num tom de incredulidade.
- Polícia - repetiu Meyer.
- Bom... só um minuto, OK? - disse ela. Kling encostou o ouvido à porta. Ouviu a mulher dizer num murmúrio perfeitamente audível, «Freddie, é a Polícia» e depois um homem, presumivelmente Freddie, que também era presumivelmente Frederick Sagel, disse:
- O quê}
- A Polícia, a Polícia - disse a mulher num tom impaciente.
- Raios, Jesus Cristo, deixa-me vestir qualquer coisa - disse Sagel.
- Ele está a vestir-se - disse Kling a Meyer.
- Um - disse Meyer.
Sagel - se é que era Sagel - tinha um robe vestido por cima do pijama quando abriu a porta. Teria uns 25 anos, calculou Meyer, e era um homem baixo e para o gordo, não teria mais de um metro e sessenta, era careca e tinha olhos castanhos. Meyer teve pena dele por ser careca; ele próprio estava com peruca. Mas bastou olhar para ele
- fosse ele Sagel ou não - e os dois detectives perceberam que não se tratava do homem que o empregado do Marino descrevera. O homem que tinha estado com Darcy Welles na noite em que esta fora assassinada - de acordo com o empregado - tinha quarenta e picos, cerca de um metro e setenta e cinco, cabelo e olhos castanhos. Mesmo assim, para o caso de o empregado se ter enganado, seguiram a rotina.
- Frederick Sagel? - perguntou Meyer.
- Sim?
- Podemos entrar por alguns minutos? - disse Kling.
- Para quê? - perguntou Sagel.
Dentro do apartamento, atrás dele, viam uma mulher - presumivelmente a que atendera a porta e presumivelmente a mulher de Sagel
- de robe a baixar o som da televisão. Estava com rolos no cabelo. Foi por isso que Meyer achou que ela era a mulher de Sagel e não uma namorada.
- Gostávamos de lhe fazer algumas perguntas - disse Kling. - Isto se não se importar.
- Sobre quê? - disse Sagel. Continuava à entrada da porta, parecendo ou uma boca de incêndio ou um inglês indignado a defender a entrada do seu sacrossanto castelo.
- Sobre onde esteve ontem à noite - disse Meyer.
- O quê? - disse Sagel.
- Sentir-nos-íamos mais à vontade se entrássemos - disse Kling.
- Bom... acho que sim - disse Sagel, desviando-se para o lado.
Assim que os detectives entraram no apartamento, a mulher de Sagel deu meia volta e entrou para uma dependência que dava para a sala, fechando a porta atrás de si. «Pudor», pensou Meyer.
- Bom... hum... não se querem sentar? - disse Sagel.
Os detectives sentaram-se um ao lado do outro num sofá de frente para a televisão. No ecrã passava uma cena de duas pessoas a fechar um negócio de droga. Kling calculou que uma delas era um agente da brigada de narcóticos sob disfarce. Na televisão, quando se via duas pessoas a trocar dinheiro por cocaína, uma delas tinha de ser um agente da Polícia sob disfarce. Pensou subitamente se Eileen estaria a pensar seriamente em pedir transferência para a Brigada de Narcóticos. Pensou também o que é que estaria a fazer naquele momento. Aquilo que ele planeara para aquela noite, aquilo que planeara pedir-lhe para fazer quando lhe telefonara...
-... estacionou-o numa garagem na South Columbia? - dizia Meyer. - Entre Garden e Jefferson... na verdade mais perto de Jefferson?
- Sim, claro - disse Sagel, com uma expressão intrigada.
- Foi aí que estacionou o seu carro ontem à noite? - disse Meyer. Um Chevy Citation com a matrícula, qual é o número, Bert?
Kling olhou para o bloco de notas. -38L4721-disse.
- E esse o número... acho eu - disse Sagel. - Quero dizer, quem diabo é que sabe de cor o número da matrícula do seu carro? Mas parece que é esse.
- E estacionou o seu carro nessa garagem à noite, certo? - disse Meyer.
- Sim, por volta das oito.
- E onde é que foi depois de estacionar o carro, Mr. Sagel?
- Para o meu escritório.
- Foi para o seu escritório às oito da noite? - perguntou Kling.
- Fui.
- Porque é que foi? - perguntou Meyer.
- Porque me esqueci do meu trabalho.
- Do seu trabalho?
- Sou contabilista. Esqueci-me do meu trabalho do escritório por distracção. Aquilo que tinha de fazer ontem à noite. Trabalho muito em casa. Temos um computador no escritório, mas para lhe dizer a verdade, não confio lá muito nele. Portanto trago normalmente as folhas para casa e confiro-as, comparando-as com os meus cálculos, com os cálculos que faço à mão, está a perceber? Dessa forma não tenho dúvidas.
- Bom... se bem entendo - disse Meyer -, estacionou o seu carro às oito horas...
- Certo.
- E foi ao escritório buscar o trabalho de que se esquecera lá...
- Certo.
- Mr. Sagel, voltou à garagem às dez da noite? Para ir buscar o seu carro?
- Fui, sim senhor.
- Mr. Sagel, porque é que demorou duas horas a ir buscar o seu trabalho ?
- Não demorei. Fui tomar uma bebida. Há um restaurante perto do edifício onde é o meu escritório e tem um bar simpático. Portanto fui lá tomar uma bebida antes de ir buscar o carro.
- Qual é o restaurante? - perguntou Kling.
- Um chamado Marino - disse Sagel.
- Esteve no Marino ontem à noite? - perguntou Meyer.
- Estive.
- Quanto tempo é que lá esteve?
- Devo lá ter chegado por volta das oito e um quarto e acho que estive lá uma hora. Bebi uns copos, entende? Sentado no bar. Na conversa com o empregado. Sabe como é quando nos sentamos num bar.
- A que horas é que saiu do Marino, Mr. Sagel?
- Já lhe disse. Nove e um quarto, nove e meia.
- E chegou à garagem às dez.
- Sim, deve ter sido por volta das dez.
- Porque é que demorou tanto tempo a chegar à garagem?
- Não sei. Fui devagar, a olhar para as montras. Subi a Jefferson a ver as montras. Estava uma noite muito agradável.
- Enquanto estava na garagem à espera do seu carro...
- Sim?
- Por acaso reparou numa rapariga com um vestido vermelho?
- Não, não vi rapariga nenhuma de vestido vermelho.
- Uma rapariga alta, de vestido vermelho. Um metro e sessenta e cinco ou seis...
- Um metro e sessenta e cinco não é alta - disse Sagel. - Eu tenho essa altura e não sou alto.
- Olhos azuis e cabelo preto?
- Não, não vi ninguém assim na garagem.
- Nem no restaurante? Por acaso não a viu no restaurante?
- Não estive no restaurante. Já lhe disse, estive sentado no bar.
- Mr. Sagel - disse Meyer -, conhece alguém chamada Darcy Welles?
- Ah, já estou a perceber - disse Sagel.
- Que é que está a perceber, Mr. Sagel?
- A razão de tudo isto. OK, já entendo. A rapariga foi a tal que foi enforcada no poste de um candeeiro. OK, estou a perceber.
- Como é que sabe isso? - disse Meyer.
- Está a gozar comigo? Vem nos jornais. E também deu na televisão esta noite, olhe, mesmo há pouco, nas Notícias das Onze. Estava de pijama a ver as notícias quando vocês tocaram à campainha. Estava a dar a notícia da tal Darcy Welles que foi enforcada no poste de um candeeiro e das outras duas. É preciso ser-se cego, surdo e mudo para não saber das raparigas que foram enforcadas nos candeeiros. Helen! - gritou subitamente. - Vem cá, por favor. Isto é um gozo, vocês acharem que eu tive qualquer coisa a ver com isso.
Na realidade eles não achavam que ele tinha nada a ver com aquilo. A verdade tem um som bem distinto que explode na noite como um martelo a bater num gongo.
Mas escutaram enquanto Helen Sagel lhes contou como o marido saíra do apartamento por volta das sete e vinte na noite anterior, logo a seguir a terem jantado, porque se tinha esquecido do trabalho no escritório e queria verificar alguns números nas folhas de computador, e que regressara a casa por volta das dez e meia, onze menos um quarto, por volta disso, e que cheirava a álcool. Ficara a trabalhar até por volta da meia-noite, altura em que tinha ido para a cama onde ela já estava a dormir, mas acordara quando ele acendeu a luz.
- OK? - disse Helen. - É tudo? Posso voltar para a cama?
- Sim, minha senhora, obrigado - disse Meyer.
- A bater à porta de uma pessoa a meio da noite - resmungou Helen, e voltou a sair da sala.
- Desculpe tudo isto - disse Meyer -, mas temos de averiguar estas coisas.
- Sim, claro - disse Sagel. - Espero que o apanhem.
- Estamos a tentar, obrigado - disse Meyer.
- Posso fazer-lhe uma pergunta? - disse Sagel.
- Claro.
- Usa peruca?
- Bem... sim, uso - disse Meyer.
- Tenho andado a pensar em comprar uma - disse Sagel. - Não como essa, é claro, uma boa. Uma peruca que ninguém perceba que é peruca, entende?
- Hum... sim - disse Meyer.
- Bom, boa noite - disse Kling. - Obrigado pelo seu tempo, Mr. Sagel.
- Boa noite - disse Meyer entredentes.
Foi calado até à rua. Estava mais vento lá fora que quando tinham entrado no edifício. Parecia estar prestes a chover.
- Fico com mau ar com esta merda, não fico? - perguntou Meyer. Kling não respondeu durante alguns momentos.
- Bert? - disse Meyer.- Bom... sim, Meyer, acho que sim - disse Kling.
- Pois - disse Meyer.
Tirou a peruca da cabeça, dirigiu-se a uma fila de caixotes de lixo junto ao edifício, levantou a tampa de um deles e atirou a peruca lá para dentro.
- Assim como veio, assim como foi - disse com um suspiro. Mas sentia mais frio na cabeça sem aquele cabelo. Esperava ardentemente que não chovesse.
O nome de Folger Road tinha a sua origem da universidade Fol-ger, construída ao fundo da larga avenida que subia até uma das zonas comerciais mais movimentadas da cidade. Carella tentara uma vez explicar a um forasteiro que pensava que vivia numa verdadeira cidade que se podia pegar num sítio como a baixa de San Diego, por exemplo, e facilmente perdê-lo numa das áreas independentes que no seu conjunto formavam aquela cidade - que era, evidentemente, a única cidade do mundo. Bom, Carella tinha de eliminar essa última parte. Nunca estivera em Londres ou Paris, nem em Roma ou em Tóquio, nem em nenhum desses sítios movimentados que supunha serem também verdadeiras cidades. Mas tentar explicar aquele tipo de Cascos de Rolha, lowa, que a sua cidade inteira podia desaparecer de um dia para o outro numa zona como o Quarter, ou a Lower Platíonn, ou mesmo Ashiey Heights bem, isso fora impossível. Era preciso compreender as cidades. Tinha de se compreender que uma zona como Folger Road, com toda a sua iluminação e lojas e trânsito engarrafado, com o seu imenso caudal de gente, era o equivalente a dezoito cidades como Aíildew, Florida ou Broken Back, Arizona.
A própria universidade era provavelmente do tamanho de uma cidade como Lost Souls, Montana. Fundada pela Igreja Católica em 1892 um ano mau para Lizzie Borden -, era formada nessa altura por vários enormes edifícios de pedra numa área rodeada de campos agrícolas. O nome «Riverhead» era a derivação abastardada de «Ryer-hert», em si uma abreviatura de «Ryerhert's Farms». Em tempos, quando os holandeses estavam confortavelmente instalados na cidade, as terras junto a Isola eram propriedade de um agricultor chamado Pieter Ryerhert. Ryerhert era um agricultor que, com a idade de 68 anos, se cansara de se levantar com as galinhas e de se deitar com as vacas. A medida que a cidade crescia, a necessidade de um maior número de habitações para lá dos estreitos limites de Isola também cresceu e Ryerhert vendeu ou doou a maior parte das suas terras à cidade em expansão. Depois mudou-se para Isola, onde viveu a vida airada de um burguês rico e gordo. As Ryerhert's Farms tinham-se tornado simplesmente Ryerhert, mas este não era um nome particularmente fácil de pronunciar. Quando se deu a Primeira Guerra Mundial, e apesar do facto de Ryerhert ser holandês e não alemão, o nome começou a causar engulhos e foram feitos abaixo-assinados para que fosse alterado, pois soava demasiado teutónico e, portanto, muito provavelmente os hunos tinham por lá andado a cortar as mãos aos bebés belgas. Tornou-se Riverhead em 1919. Continuava a ser Riverhead, mas não a Riverhead que fora em 1892, quando a Igreja Católica decidira ser boa ideia começar a instruir as gentes do interior.
A universidade ocupava agora uma área com cerca de cinquenta mil metros quadrados 'de terreno valioso que, se fosse vendido aos preços correntes, teria feito com que o Papa celebrasse uma missa comemorativa e dançasse pelas ruas de Varsóvia. As instalações da universidade estavam cercadas por um muro alto de pedra que tinha certamente ocupado os pedreiros italo-americanos de iverhead durante quase um século. Há quinze anos, a universidade começara a admitir raparigas - coisa que o Papa ainda não considerara próprio em relação ao seu clero. Ao chegarem ao edifício da administração, Carella e Ollie falaram com um empregado com olhos de carneiro mal morto que, depois de consultar a Lista Telefónica de Alunos, lhes disse que Luella Scott era de facto aluna ali e que vivia nas instalações da universidade num dormitório para raparigas do primeiro ano chamado Hunnicut.
No carro, enquanto se dirigiam para o dormitório por uma das ruas largas e ladeadas de árvores, Ollie disse;
- É um nome que soa a porco, não achas. Para uma escola católica, quero dizer. Hunnicut. Soa-me a porco.
Os dormitórios na universidade Folger não eram mistos. Uma aluna do primeiro ano, enfronhada na leitura de um livro de estudo, levantou a cabeça da secretária na entrada quando os detectives bateram na porta envidraçada. Sobre a secretária via-se um letreiro com a palavra RECEPÇÃO. Ollie fez sinal para a rapariga abrir a porta. A rapariga abanou a cabeça. Ollie tirou a carteira e abriu-a, mostrando o seu distintivo azul e dourado de detective. Encostou o distintivo a um dos vidros da porta. A rapariga voltou a abanar a cabeça.
- Têm aqui uma segurança melhor do que nós temos no Departamento Central da Polícia - disse a Carella. Depois, a plenos pulmões, gritou: - Polícia! Abra a porta!
A rapariga levantou-se e dirigiu-se para a porta.
- O quê. - perguntou.
- Polícia, Polícia! - gritou Ollie. - Não vê o distintivo, Abra a merda da porta!
- Não estou autorizada a abrir a porta - disse a rapariga. - E não pragueje.
Mal a conseguiam ouvir através do vidro que os separava do interior.
- Está a ver isto. - gritou Ollie, batendo com o distintivo contra o vidro. - Somos polícias! Abra a porta! Polícia! - gritou. - Polícia!
A rapariga aproximou-se mais do vidro e estudou o distintivo.
- Vou dar cabo desta filha da mãe - disse Ollie a Carella. - Abra a porta! - gritou.
A rapariga abriu a porta que estava fechada à chave.
- Só estão autorizadas a entrar alunas - disse num tom severo. Fechamos a porta à chave às dez da noite e é preciso ter chave própria para entrar depois das dez.
- Então porque é que está sentada a uma secretária que está assinalada como sendo a recepção, se não deixa entrar ninguém. - perguntou Ollie.
- A recepção fecha às dez - disse a rapariga.
- Que raio é isto aqui. - disse Ollie. - O Programa Ao Vivo de Sábado.'
- Ao sábado à noite fechamos a porta à meia-noite - disse a rapariga-
- Então o que é que está a fazer aí sentada, se não tem de receber ninguém? - disse Ollie.
- Eu estava na recepção - disse a rapariga -, mas saí do serviço às dez. Estava a fazer os meus trabalhos de casa. A minha companheira de quarto tem sempre o rádio ligado.
- Faça de conta por alguns instantes de que ainda está de serviço na recepção - disse Ollie. - Conhece uma rapariga chamada Luella Scott?
- Sim - disse a rapariga.
- Onde é que ela está?
- No terceiro andar, quarto sessenta e dois - disse a rapariga. -Mas neste momento não está lá.
- Onde é que está? - perguntou Carella.
- Foi à biblioteca.
- Quando?
- Saiu por volta das nove.
- Onde é que é a biblioteca? Dentro da universidade?
- Sim, é claro que é dentro da universidade - disse a rapariga.
- Onde?
- Dois dormitórios mais abaixo, depois do Baxter, atravessando o pátio e passando outros dois dormitórios. Depois há uma espécie de claustro pequeno e a biblioteca é logo a seguir.
- Ela estava sozinha? - perguntou Ollie.
- O quê?
- Quando saiu daqui ia sozinha?
- Sim.
- Anda - disse Ollie.
- Eu? - disse a rapariga, mas os dois detectives já tinham saído e corriam pela rua.
Tinha sido fácil identificá-la. Uma das três raparigas negras da equipa. As outras duas eram seniores e ele conhecia-as dos artigos de jornais que consultara na biblioteca pública. Luella Scott era a rapariga nova na equipa. Uma miúda magricela que parecia que ficaria sem fôlego ao fim de algumas passadas, mas que era rápida como o vento, rápida como um raio. E esperta. Entrara para a universidade naquele Outono, apenas com 17 anos. Agradava-lhe esse pormenor, ela ter apenas 17 anos. Os jornais não se calariam sobre uma rapariga de 17 anos.
Cobertura total.
Chegara quase à meta.
Mais aquela e estaria onde queria.
Luella Scott dar-lhe-ia o que ele queria.
Do sítio onde se encontrava, por debaixo da velha faia, com as folhas amarelecidas a rustilhar ao vento, via as janelas iluminadas do edifício da biblioteca, mas não via Luella lá dentro. Só havia uma entrada para a biblioteca e ela entrara pouco depois das nove; ele seguira-a do dormitório até ali. Não havia grande segurança naquela universidade, a não ser o muro alto de pedra. Seria natural terem mais cuidado, com todas aquelas raparigas ali a viver e violadores à solta pela cidade. Entrara pouco depois das nove e não podia ter ido para outro sítio porque não havia nenhum sítio por onde pudesse ter saído. Tinha de sair por ali, e ele estava à sua espera.
Olhou para o relógio.
Quase onze e meia.
Porque é que estaria a demorar-se tanto?
Bom, provavelmente estudava muito. Não se entrava na universidade aos 17 anos, a menos que se trabalhasse muito. Podia-se ser esperto como um raio, mas se não se estudasse todos os livros necessários de nada servia. Rapariga inteligente, a Luella Scott, mas esperava que ela se despachasse. Também esperava que ela fosse a última. Esperava que desta vez resultasse. Não queria ir entregar-se, pois achariam que ele era maluco ou qualquer coisa assim. Claro, o senhor matou quatro raparigas. Espantoso, sim senhor, mas vá para casa ver televisão, OK!
Ainda partia aquela em duas se não tivesse cuidado, magricela como era.
Não devia ser difícil pendurá-la no poste do candeeiro. Aquela não devia pesar mais de cinquenta quilos. Onde é que ela ia arranjar genica para correr da forma como corria? Santo Deus, era mesmo rápida!
Olhou para o céu.
Esperava que não começasse a chover.
Mas a chuva também tinha as suas vantagens. Quando chovia não andava muita gente na rua e podia fazer o trabalho sem interferências. Aquele tipo da noite anterior, quando transportava Darcy para fora do parque. Pensara que o facto de o idiota o ter visto resolveria a questão. Esperava que ele fosse à Polícia quando lesse os jornais da manhã. - Ei, sabem, vi um tipo a levar uma rapariga morta do parque de Bridge Street ontem a noite. Aposto que era o tipo que pendurou a rapariga no poste do candeeiro! Os chuis provavelmente não acreditariam nele mesmo que fosse comunicar o que vira. Claro, volte para o parque e cure essa ressaca, OK? Ou talvez ele tivesse ido mesmo à Polícia, contado o que vira e os chuis estivessem a encobrir o caso, dizendo aos jornais que não tinham pistas enquanto estavam de facto a preparar-se para o apanhar. Esperava que sim. Esperava que finalmente levantassem o cu da cadeira e o apanhassem. Estava ansioso por ler os jornais quando finalmente o apanhassem. Caramba!
O Assassino Papa-Léguas.
Depressa alterariam esse nome; sim, sem a menor dúvida que alteravam.
Relâmpago.
Relâmpago novamente em todos os jornais.
Uma rajada forte de vento abanou os ramos por cima da sua cabeça e fez cair uma chuva dourada de folhas. As folhas, levadas pelo vento, varreram o caminho para lá das escadas da biblioteca. «Onde raio estásh>, pensou. Planeara segui-la pelo caminho por onde iria para o dormitório, apanhá-la naquela parte escura antes de este ir dar ao pátio. Era o sítio perfeito, escuro. Não podia voltar a arriscar apresentar-se como Corey Mclntyre, pois isso tornaria as coisas demasiado fáceis para eles, achariam que era doido. Não queria que os jornais o apresentassem como sendo doido. Essa era a única coisa...
Uma das portas da biblioteca estava a abrir-se.
Luella saiu para o patamar de pedra com os braços cheios de livros. Tinha um ar demasiado frágil para carregar com todos aqueles livros. Sentiu vontade de se dirigir a ela, de lhe perguntar se queria ajuda com os livros. Ela estava a ajeitar um cachecol de lã comprido à volta do pescoço, a puxar a gola do casaco verde-claro para cima, uma rapariga magricela de casaco verde-claro que era provavelmente do irmão ou de alguém, de alguém da família que fosse marinheiro, pois hoje em dia muitos miúdos negros alistavam-se nas forças armadas. Tentou lembrar-se se entre as informações que recolhera havia qualquer indicação de ela ter um irmão marinheiro. Nas reportagens que lera não, pelo menos que se lembrasse. No entanto era fácil esquecer coisas. Um exemplo era a facilidade com que o tinham esquecido.
Ela vinha a descer as escadas.
Tossiu. Provavelmente estava constipada. Isso era mau para uma corredora, e ela devia cuidar melhor de si, uma rapariga magricela como ela.
Passou pela árvore.
Levantou-se de novo vento.
Ela não o vira.
Esperou até ela estar uns bons trinta metros à frente dele e começou então a segui-la. Ficou satisfeito com o ruído que as folhas faziam ao serem arrastadas pelo vento ao longo do caminho; abafavam qualquer som que os seus ténis fizessem.
- Como é que ela disse que era o nome do dormitório? - perguntou Ollie.
- Baxter - disse Carella.
- E onde é que estão os nomes? Como é que é suposto uma pessoa distinguir uns dos outros?
- Ela disse que era o segundo dormitório do fundo.
- E como é que se distingue um dormitório dos outros edifícios?
- Creio que Baxter é este - disse Carella.
- E onde é que está o pátio? Aqui as coisas são todas iguais. A maldita universidade parece um mosteiro.
É ali - disse Carella. - Lá à frente.
Ela já estava a atravessar o claustro, sem se aperceber da sua presença atrás dela no caminho onde as folhas rodopiavam ao vento como farrapos matizados. A frente dela estendia-se uma parte do caminho que apenas estava iluminado na extremidade este por um único candeeiro, imerso na escuridão até dar para o pátio onde havia um outro candeeiro. Ele sabia que ela era extremamente rápida a correr e que teria de a apanhar antes de ela fugir. Não a queria deixar escapar. Ela era extremamente rápida a correr, era, mas ele era ainda mais rápido. Esperou até ela passar por debaixo do candeeiro e iniciou então a sua corrida, com os ténis a bater no chão, fazendo que as folhas caídas se espalhassem em todas as direcções como que num pânico súbito. Ela ouviu-o, mas já demasiado tarde. Quando ia a começar a correr, ele saltou-lhe em cima.
A surpresa foi total, os seus olhos dilataram-se com o choque, ficou boquiaberta e um grito começou a formar-se algures na sua garganta - a mão dele tapou-lhe de imediato a boca.
Ela mordeu-lhe.
Ele retirou a mão.
O grito irrompeu, estilhaçando a quietude da noite.
Tinham atravessado o pátio e estavam a entrar no caminho pela extremidade oeste, vendo a escuridão para além do candeeiro, quando ouviram o grito. Ollie empunhou a arma um instante antes de Carella levar a mão ao coldre. Os dois homens começaram a correr.
Ao fundo do caminho viram as duas figuras a lutar na escuridão, o homem muito mais alto que a rapariga, a rapariga a dar-lhe pontapés e socos enquanto tentava virar-lhe as costas. O vento soprava agora com mais força, fazendo oscilar os ramos das árvores que ladeavam o caminho, lançando as folhas pelo ar como labaredas demoníacas.
- Polícia! - gritou Ollie, disparando para o ar. O homem virou-se.
Não conseguiam ver a cara dele na escuridão, viram apenas o movimento. Carella pensou por instantes que ele utilizaria a rapariga como escudo, segurando-a pelas costas - tinha um dos braços metido por debaixo de um dos braços dela e a mão direita assente sobre a parte de trás do pescoço -, mas em vez disso largou-a subitamente e começou a correr.
- A rapariga! - disse Carella num tom de urgência, começando a correr atrás dele.
Tinha querido dizer «Vê se a rapariga está bem», ou «trata da rapariga», mas o homem arrancara em corrida como o vento que fustigava as folhas à sua volta e Carella passou a correr pela rapariga que estava caída no caminho e nem sequer se virou para ver se Ollie o entendera.
Já não corria tanto desde os seus tempos de aluno de liceu. A corrida não tinha sido a sua modalidade preferida; tinha sido defesa direito na equipa de basebol e só correra a sério quando procurava apanhar bolas altas ou quando fazia um sprint da terceira base até ao fim do circuito. Mas isso já fora há muito tempo; só na televisão e nos filmes é que os polícias andavam a correr por toda a cidade a tentar apanhar um suspeito em fuga.
O homem que tinha pela frente era rápido de mais.
Carella disparou no escuro e o clarão e a subsequente explosão -como um relâmpago e um trovão na noite - coincidiram com o início da chuvada, tão súbita como forte, quase como se ao puxar o gatilho tivesse accionado um mecanismo cuja alavanca tivesse aberto uma válvula algures lá em cima. A chuva era avassaladora. Abatia-se sobre o caminho e sobre as árvores que formavam um arco sobre este, conjugando-se com o vento para criar um lençol de água e de folhas amarelecidas. Continuou a correr através da chuva e das folhas a cair, com a respiração ofegante, o coração a bater-lhe violentamente no peito, certo de que não conseguiria apanhar Lytell - se é que era Lytell -, sabendo que o homem era simplesmente demasiado rápido para ele.
Depois, subitamente, lá à frente, viu Lytell perder o equilíbrio ao escorregar nas folhas molhadas no caminho, abrir os braços para tentar não cair, mas fugirem-lhe os pés. Caiu no caminho encharcado, de lado, batendo com o ombro esquerdo no asfalto, embora o impacte tivesse sido ligeiramente atenuado pela camada de folhas. Estava a pôr-se de pé quando Carella chegou junto dele.
- Polícia - disse Carella, sem fôlego. - Quieto. Lytell sorriu.
- Porque é que demoraram tanto tempo? - disse.
Continuava a chover quando o procurador do M. P. chegou à 87.ª Esquadra. Só lá chegou às seis da manhã seguinte, altura em que Ollie e Carella já tinham revistado - desta vez munidos de um mandato passado por um magistrado - o apartamento de Henry Lytell em 843 Hol-mes Street. Vários artigos que lá tinham encontrado estavam em cima da secretária no gabinete do tenente Byrnes para onde o Procurador do M. P. se dirigiu. Um estenógrafo registou a presença do tenente Byrnes, dos detectives Carella e Weeks, e do procurador do Ministério Público, doutor Ralph Jenkins. O estenógrafo registou também a data, sexta-feira, 21 de Outubro, e a hora do início do interrogatório, 6:05. Jenkins comunicou a Lytell os seus direitos. Lytell disse que compreendia e declarou ainda que não desejava que o seu advogado estivesse presente durante o interrogatório. Jenkins iniciou o interrogatório.
P: - Por favor diz-me o seu nome completo?
R: - Henry Lewis Lytell.
P: - E a sua morada, Mr. Ly...
R: - Provavelmente conhece-me como Lytell, o Relâmpago. Era assim que os jornalistas me chamavam. Em tempos.
P: - Sim. Mr. Lytell, pode dizer-me a sua morada?
R: - 843 Holmes Street.
P: -Aqui em Isola?
R: - Sim.
P: - Está empregado, Mr. Lytell?
R: - Estou, sim senhor.
P: - Qual é o seu ramo de actividade?
R: - Compreende certamente que eu sou corredor. Quero dizer, é o que eu sou. A forma como ganho a vida não tem nada a ver com aquilo que realmente sou.
P: - Como é que ganha a vida, Mr. Lytell?
R: - Sou investigador.
P: - Para quem? Que tipo de investigação?
R: - Sou investigador em regime liberal. Trabalho para agências de publicidade, escritores ou para quem quer que precise de informações relativas a um determinado assunto ou assuntos.
P: - E onde é o seu local de trabalho?
R: - Em casa. Trabalho no meu apartamento.
P: - Mr. Lytell, é o senhor que determina as suas horas de trabalho?
R: - Sim. Essa é a única coisa boa que este trabalho tem, a liberdade que me dá. Para fazer outras coisas. Tento correr todos os dias pelo menos...
P: - Mr. Lytell, pode dizer-me onde esteve e o que fez na noite de 6 de Outubro? Há duas semanas, numa terça-feira.
R: - Sim, senhor. Estive com uma corredora da universidade Ramsey. Uma rapariga que pertence à equipa de atletismo.
P: - Diga-me, por favor, como se chamava.
R: - Mareia Schaffer.
P: - Quando diz que esteve com ela...
R: - Estive primeiro no apartamento dela, onde me apresentei como sendo Corey Mclntyre, da revista Sports USA. Depois...
P: - Disse a Miss Schaffer que se chamava Corey Mclntyre.''
R: - Sim.
P: - Onde é que descobriu esse nome?
R: - Na lista de colaboradores da revista.
P: - E Miss Schaffer aceitou-o como sendo uma pessoa que trabalhava para a revista?
R: - Eu tinha um Cartão de Identificação.
P: - Onde é que arranjou um C. L.?
R: - Fi-lo. Trabalhei numa agência de publicidade. Isto foi há uns oito, nove anos, quando comecei a ser esquecido. Aprendi muito no departamento gráfico e sei como estas-coisas se fazem.
P: - Que coisas?
R: - Fazer que um cartão pareça autêntico. Plastificá-lo.
P: - Trabalhou no departamento gráfico de uma agência de publicidade?
R: - Não, não. Mas conhecia os directores do departamento e estava sempre por lá. Trabalhava directamente com um dos responsáveis criativos. A tentar inventar campanhas que envolvessem o desporto. Foi para isso que me contrataram. Por ser perito em desporto.
P: - Se bem entendo, há oito ou nove anos trabalhava numa agência de publicidade...
R: - Sim.
P: - Quando é que iniciou a sua actividade como investigador em regime liberal, Mr. Lytell?
R: - Há três anos.
P: - E desde essa altura que é esse o seu trabalho?
R: - Aquilo que eu realmente faço é correr.
P: - Sim, mas para ganhar a vida...
R: - Sim, faço trabalho de investigação.
P: - Voltemos à noite de 6 de Outubro. Foi ao apartamento de Miss Schaffer e apresentou-se como sendo jornalista da Sports USA-
R: - Jornalista-repórter da Sports USA.
P: - Sim, jornalista-repórter. E depois?
R: - Disse-lhe que estávamos a preparar um artigo sobre jovens corredoras com uma carreira prometedora.
P: - E ela aceitou a sua explicação.''
R: - Bom, eu sei tudo sobre atletismo, pois o que eu sou é corredor. Portanto, como é natural, sabia o que estava a dizer. Sim, ela acreditou.
P: - E depois?
R - Perguntei-lhe se ela queria ir jantar comigo. Para dar a entrevista.
P: - E foi de facto jantar com Miss Schaffer nessa noite?
R: - Sim, num restaurante especializado em mariscos perto do apartamento dela. Há muitos restaurantes bons nesse bairro e escolhemos um ao acaso.
P: - Que horas eram, Mr. Lytell?
R: - Cedo. Seis da tarde, creio. Cedo.
P: - Levou-a a jantar às seis da tarde?
R: - Sim. Para poder fazer a entrevista. Ela estava muito entusiasmada com a entrevista.
P: - Depois o que é que aconteceu?
R: - Que é que quer que eu diga?
P: - O que quiser. Diga-me o que é que aconteceu depois de jantar.
R: - Matei-a. Já disse isso aos detectives.
P: - Onde é que a matou?
R: - No meu apartamento. Disse-lhe que queria continuar a entrevista e sugeri que a acabássemos enquanto bebíamos um conhaque no meu apartamento. Ela disse que não queria conhaque... estava em treinos, sabe, os corredores têm uma dieta muito rigorosa durante os treinos, mas disse que se eu tivesse uma Coca-Cola ou qualquer coisa do género estaria bem.
P: - A que horas é que chegaram ao seu apartamento?
R: - Às sete e meia.
P: - E depois o que é que aconteceu?
R: - Ela estava... creio que estava a olhar para um quadro que eu tenho pendurado na sala, o quadro de um corredor. Aproximei-me por detrás dela e aplíquei-lhe um nelson completo. Fiz luta livre antes de me começar a interessar pelo atletismo. Não tem qualquer comparação, sabe. A luta livre é uma forma violenta de combate um a um, ao passo que o atletismo...
P: - Matou-a aplicando um nelson completo?
R: - Sim. Para lhe partir o pescoço.
P: - A que horas é que foi isto, Mr. Lytell?
R: - Um pouco antes das oito, creio.
P: - Tenente Byrnes, o médico legista estabeleceu o intervalo post mortem que indica que a hora aproximada da morte foi às 19:00, certo?
R: - (Byrnes) Sim, meu tenente.
P: - Mr. Lytell, depois o que é que fez?
R: - Fiquei a ver televisão.
P: - O senhor...
R: - Queria esperar até as ruas estarem desertas. Para a poder levar para o carro. Já tinha a corda no porta-bagagens. Tinha-a posto no porta-bagagens durante o dia.
P: - Durante quanto tempo é que ficou a ver televisão?
R: - Até cerca das duas da manhã.
P: - E depois?
R: - Levei-a para o carro. Primeiro verifiquei da janela se havia gente na rua; a janela da minha sala dá para a rua. Não vi ninguém, levei-a para o carro e pu-la no banco da frente. Ela parecia estar a dormir. Quero dizer, quando a sentei no carro.
P: - Depois o que é que fez?
R: - Fui de carro para lá.
P: - Quando diz «para lá» refere-se...
R: - Ao bairro aqui da zona.
P: - Porquê para esta zona?
R: - Não a escolhi deliberadamente. Estava à procura de um sítio deserto. Encontrei este sítio em obras com uma fila de edifícios abandonados do outro lado da rua e achei que era um bom sítio.
P: - Um bom sítio para quê?
R: - Para a pendurar.
P: - Porque é que a pendurou, Mr. Lytell?
R: - Pareceu-me uma boa maneira.
P: - Uma boa maneira?
R: - Sim.
P: - Para quê?
R: - Apenas uma boa maneira.
P: - Mr. Lytell... também matou uma rapariga chamada Nancy Annunziato?
R: - Sim, senhor.
P: - Pode-me dar mais pormenores sobre isso?
R: - Foi igual à primeira. Disse-lhe que trabalhava para a Sports USA, levei-a a jantar e...
P: - Quando foi isto, Mr. Lytell?
R: - Na noite de 13 de Outubro. Encontrei-me com ela para jantar no Marino, um restaurante na baixa, um sítio muito simpático. Está a ver, ela vivia muito longe, em Calm's Point, e concordou em ir ter comigo ao restaurante. Às oito da noite. Reservei uma mesa para as oito. Fizemos a maior parte da entrevista durante o jantar e depois fomos ao meu apartamento, como com a tal Schaffer. Conversámos mais um pouco... a Nancy falava muito... e depois... bem... isso já sabem.
P: - Matou-a.
R: - Sim. Voltei a aplicar um nelson completo.
P: - A que horas é que foi isto?
R: - Às dez e meia, onze.
P: - Tenente Byrnes, isso coincide com a hora provável da morte estabelecida pelo médico legista?
R: - (Byrnes) Sim, senhor.
P: - Depois o que é que fez, Mr. Lytell?
R: - O mesmo que fiz à outra. Levei-a para o carro, procurei um sítio deserto para a pendurar. Não queria voltar a fazê-lo nesta zona. Já tinha tentado ajudar os detectives daqui...
P: - Ajudá-los?
R: - Sim. Mandando-lhes a carteira de Mareia. Mas primeiro tirei as chaves. Deitei fora as chaves do apartamento dela.
P: - Porque é que fez isso?
R: - Para os ajudar.
P: - Ajudá-los a quê?
R: - Bem, apenas ajudá-los.
P: - Pensou que deitando fora as chaves dela isso os ajudaria...
R: - Não, não, fiz isso para não lhes facilitar demasiado a tarefa. O que queria dizer é que lhes mandei a carteira. Para a poderem identificar, entende?
P: - Porque é que os queria ajudar?
R: - Bom, queria. Mas eles pareciam estar a... desculpem-me, meus senhores... pareciam estar a fazer poucos progressos, sabe? Portanto não quis pendurar aqui o corpo de Nancy e achei que devia tentar a minha sorte na zona de outra esquadra.
P: - Tenente Byrnes, onde é que foi encontrada a segunda vítima?
R: - (Byrnes) Na parte oeste de Riverhead. Na zona da Centésima Primeira Esquadra.
P: - Foi para aí que levou Nancy Annunziato. Mr. Lytell?
R: - Acho que sim. Isto é, não sei o número da esquadra dessa zona nem nada disso. Mas foi em Riverhead, onde há todos aqueles prédios destruídos pelo fogo. Nessa parte de Riverhead.
P: - West Riverhead. ;'; R: - Acho que é assim que lhe chamam.
P: - Mr. Lytell, pendurou o corpo de Nancy Annunziato no poste de um candeeiro em West Riverhead?
R: - Sim.
P: - A que horas é que foi isso?
R: - Mais ou menos a meio da noite.
P: - Pode-me dizer a hora aproximada?
R: - Três da manhã? Acho que foi por volta dessa hora.
P: - Tenente Byrnes, sabe porventura a que horas é que a Centésima Primeira Esquadra recebeu a comunicação da descoberta?
P: - (Byrnes) Steve?
R: - (Carella) O detective Broughan recebeu a chamada às 6:04.
R: - (Lytell) Deixei a carteira de documentos dela por debaixo do candeeiro.
P: - Porque é que fez isso?
R: - Para os ajudar. Estava esperançado de que talvez os polícias daquela esquadra fossem mais espertos... desculpem.
P: - Porque é que queria que os polícias fossem mais espertos?
R: - Bom, o senhor sabe.
P: - Não, não sei. Importa-se de me explicar?
R: - Quis ajudá-los, percebe?
P: - Porque é que está a sorrir, Mr. Lytell?
R: - Não sei.
P: - Tem consciência de que está a sorrir?
R: - Acho que estou a sorrir.
P: - Conte-me o que se passou com Darcy Welles. Também a matou?
R: - Sim, matei.
P: - Quando?
R: - Na quarta-feira à noite.
P: - No dia 19 de Outubro?
R: - Acho que a data era essa.
P: - Bom, está aqui um calendário e está aqui quarta-feira. Foi no dia 19 de Outubro?
R: - Sim, foi no dia 19 de Outubro.
P: - Pode-me contar o que se passou?
R: - Olhe, posso estar aqui toda a noite, mas o que é importante...
P: - Sim, diga-me o que é importante, Mr. Lytell.
R: - Matei-a da mesma forma como matei as outras, OK? Exactamente da mesma forma. O restaurante, a entrevista... bem, não exactamente. Não levei a Darcy ao meu apartamento. Tive medo de a levar lá, medo de que alguém me visse e...
P: - Mas disse-nos há pouco que queria ajudar a Polícia, que queria que a Polícia...
R: - Bom, queria. Mas não queria que os meus vizinhos pensassem que estava a molestar raparigas ou qualquer coisa do género. Portanto levei-a àquele parque que há no extremo da cidade, ao parque Bridge Street.
P: - E matou-a lá?
R: - Sim.
P: - Novamente aplicando um nelson completo?
R: - Sim.
P: - E depois para onde é que a levou, Mr. Lytell?
R: - Para Diamondback. Devo dizer-lhe que fiquei mesmo assustado. Naquele sítio só há negros. Mas não houve problemas. Consegui pendurá-la no candeeiro.
P: - A que horas é que foi isto, Mr. Lytell?
R: - Oh, não sei. Por volta das onze menos vinte, onze menos um quarto.
P: - Mr. Lytell, o senhor tentou matar uma rapariga chamada Lucila Scott ontem à noite?
R: - Sim, senhor. Tentei matá-la.
P: - Se tivesse sido bem sucedido, teria depois pendurado também Miss Scott num candeeiro?
R: - Sim, senhor, era essa a minha intenção.
P: -Porquê?
R: - Não compreendo a sua pergunta.
P: - Porque é que pendurou as raparigas nos candeeiros Mr. Ly-tell? Qual era a finalidade disso? R: - Torná-las visíveis.
P: - Visíveis ?
R: - Atrair as atenções para elas.
P: - Porque é que queria as atenções para as raparigas ?
R: - Bom, o senhor sabe.
P: - Não sei.'
R: - Para que toda a gente percebesse.
P: - Percebesse o quê?
R: - O que se tinha passado com elas.
P: - Passado o quê}
R: - Que tinham sido mortas pela mesma pessoa.
P: - O senhor.
R: - Sim.
P: - Queria que toda a gente soubesse que o senhor as tinha assassinado?
R: - Não, não.
P: - Então o que é que o senhor queria que toda a gente soubesse?
R: - Não sei o que é que queria que soubessem, merda!
P: - Mr. Lytell, estou a tentar compreender...
R: - Que raio é que não compreende? Já lhe disse...
P: - Sim, mas o facto de pendurar as raparigas nos candeeiros...
R: - Essa era a ideia.
P: - Qual era a ideia?
R: - Jesus, não sei como é que posso ser mais claro.
P: - O senhor disse que as tinha pendurado nos candeeiros para atrair as atenções...
R: - Sim.
P: - ... para que toda a gente percebesse que tinham sido mortas pela mesma pessoa. "
R: - Sim.
P: - Porquê, Mr. Lytell?
R: - Ainda não acabámos? Porque se já acabámos...
P: - Dissemos-lhe no princípio que o senhor podia dar o interrogatório por terminado em qualquer altura se assim quisesse. Apenas tem de nos dizer que não quer responder a mais perguntas.
R: - Não me importo de responder às perguntas. Só que o senhor está a fazer as perguntas erradas.
P: - Que perguntas é que o senhor gostava que eu lhe fizesse, Mr. Lytell?
R: - Que tal sobre o ouro todo que lá está? Isso não lhe interessa minimamente?
P: - Quando fala em ouro refere-se às medalhas que os detectives Weeks e Carella encontraram no seu apartamento?
R: - Não sei quem é que as encontrou.
P: - Mas são suas, não são?
R: - Bom, acha que são de quem?
P: - São medalhas olímpicas, não são?
R: - Medalhas olímpicas de ouro. Não encontraram medalhas de bronze, cavalheiro.
P: - Foi o senhor que ganhou essas medalhas, Mr. Lytell?
R: - Ora essa, não seja ridículo. Vivia em Marte ou quê?
P: - Como?
R: - Que idade é que tem?
P: - Tenho 37 anos.
R: - Então onde é que estava há quinze anos? Tinha 22 anos, certo? Não via televisão? Não sabia que raio é que se estava a passar no mundo?
P: - O senhor está a dizer que ganhou essas medalhas há quinze anos?
R: - Ouçam-me só este tipo. Três medalhas de ouro e ele age como se nada se tivesse passado!
P: - Não sou um entusiasta pelo desporto, Mr. Lytell. Talvez não se importe de me falar sobre isso.
R: - Claro, o mal é exactamente esse. As pessoas esquecem-me, o mal é esse. Três medalhas de ouro. Fui ao programa do Johnny Car-son, por amor de Deus. Lytell, o Relâmpago, foi assim que me apresentou, Lytell, o Relâmpago. Era assim que toda agente me chamava. Foi isso que os repórteres que estavam a cobrir os Jogos me começaram a chamar. Vim na capa de todas as revistas de desporto importantes deste país. Não podia ir a lado nenhum que as pessoas não me interpelassem na rua, «Ei, Relâmpago!» «Como é que vais, Relâmpago?», Relâmpago? Famoso!
»Johnny e eu fizemos uma brincadeira; encenámos uma corrida no palco, apenas um sprint curto, e ele fez o seu famoso truque; conhece o truque do Johnny? Porque eu já ia a meio do palco quando ele ouviu o tiro da partida. O tempo de reacção é extremamente importante, sabe? O Jesse Owens costumava utilizar uma posição de partida com o corpo completamente dobrado sobre si; punha o bloco de partida da frente a dezoito centímetros da linha de partida e o bloco de trás a vinte e oito centímetros atrás deste. É preciso colocar os blocos de partida no sítio certo para a própria pessoa. É uma questão de gosto pessoal. O Bobby Morrow ganhou três medalhas de ouro nos Jogos de 1956, costumava pôr o bloco da frente a vinte e quatro centímetros da linha de partida e o bloco de trás a vinte centímetros deste. Varia. O primeiro tipo que correu o sprint de cem metros em dez segundos, o Armin Hary, costumava pôr os blocos à distância de vinte e três e trinta e três. É preciso explodir para fora dos blocos, essa é a expressão habitual que se passa a vida a ouvir no atletismo, o corredor explode para fora dos blocos. Não dá para ganhar uma corrida sair deles rapidamente. É preciso explodir para fora dos blocos como um foguetão na rampa de lançamento. Quando ganhei as três medalhas de ouro, há quinze anos, quando só tinha 24 anos, olhe, parti como um relâmpago... bem, foi daí que me veio a alcunha. Relâmpago. Aquilo é que era explodir! Era um relâmpago e um trovão, a sair daqueles blocos, e nada me conseguia fazer parar! Caramba, três medalhas de ouro! Nos cem metros, nos duzentos metros e nos quatrocentos metros estafetas! Na estafeta era o verdadeiro suporte da equipa. Quando me passaram o testemunho estávamos a cinco jardas atrás da Itália, em terceiro lugar na corrida! Jimmy vinha a chegar a uma velocidade do caraças, mas eu estava pronto a explodir no segundo em que agarrasse o testemunho! Bum! Corri os últimos cem metros em oito segundos e seis décimas! Incrível! Recuperei todo o tempo que tínhamos de atraso e ainda ganhei folgado! Caramba, ganhei-as todas no meu tempo. Enumere qualquer uma, que fui eu a ganhá-la. No liceu, na universidade, na AAU, na NCAA, nos torneios por convite, nas Preparatórias para as Olimpíadas... todas elas, basta enumerar.
»Sabe o que é que significa ser-se campeão? Sabe o que é ser o melhor naquilo que se faz? Tem alguma ideia do que isso significa? Tem uma vaga ideia do que é a pura exuberância de ganhar. Quando se está na pista não se quer apenas vencer o outro tipo, querse assassiná-lo, sabe o que quero dizer? Quer-se deixá-lo lá para trás, fazer que ele caia exausto para o chão e comece a vomitar as tripas, quer-se que ele saiba que defrontou o seu rival e que sucumbiu, qneperdeul Quando se está atrás da linha de partida, o mundo fica reduzido à pista que está à nossa frente, o mundo inteiro transforma-se na relva ou no tartan, uma pessoa sente no espírito que já lá está a correr como um relâmpago, que já está a cortar a meta, muito embora a corrida ainda não tenha começado. E quando mexemos os pés dentro dos ténis, os ténis tocam ao de leve na relva ou no tartan, tap-tap-tap, ouve-se o apito, continua-se a mexer os pés, respirando grandes golfadas de oxigénio e dentro do nosso corpo está tudo a ferver, pronto a saltar para fora, pronto a explodir quando se ouve a ordem de preparar; agachamo-nos nos blocos à espera do disparo... e depois, o ouro.
»Mas eles esquecem-se, não é? Esquecem o que uma pessoa fez, o que uma pessoa foi. Todos os anúncios que eu fiz, Santo Deus, o dinheiro que eu ganhei... toda a gente queria que Lytell, o Relâmpago anunciasse o seu produto. Merda, fui contratado pela William Morris. Já ouviu falar da William Morris? É uma agência de descoberta de novos talentos de Nova Iorque e L. A., com escritórios em todo o mundo e queriam-me tornar numa estrela de cinema. Não se estavam a sair nada mal, com todos aqueles anúncios. Não se podia abrir a televisão sem me ver no ecrã a fazer propaganda a um produto. Lytell, o Relâmpago 'Acham que eu sou rápido? Então vejam a rapidez com que esta lâmina lhes faz a barba', tudo o que havia no mercado, desde sumo de laranja a vitaminas, eu estava no ecrã a toda a hora, toda a gente me conhecia, Lytell, o Relâmpago. Mas depois... sabe como é... as coisas começam a desintegrar-se. Deixa de haver ofertas, disseram-me que tinha sido por desgaste de imagem, disseram-me que as pessoas se tinham habituado demasiado a ver a minha cara na televisão. E de repente uma pessoa deixa de ser estrela de cinema, deixa até de ter anúncios, volta a ser apenas Henry Lewis Lytell e ninguém sabe quem é que ele é.
»Esquecem-se.
»Uma pessoa... sente necessidade de lhes relembrar, está a entender? Quer fazer que se relembrem.»
P: - Foi por isso que cometeu estes assassínios, Mr. Lytell? Para que as pessoas se relembrassem?
R: - Não, não,
P: - Foi por isso que pendurou as raparigas nos candeeiros? Para criar um sensacionalismo que fizesse com que...
R: - Não, não. Olhe que não.
P: - ... as pessoas se relembrassem de que ainda existia?
R: - Sou o ser humano mais rápido do mundo!
P: - Foi essa a razão?
R: - O ser humano mais rápido.
Os detectives estavam a olhar fixamente para ele. Lytell estava a olhar para as três medalhas de ouro em cima da secretária do tenente Byrnes. O procurador do Ministério Público, o doutor Jenkins, pegou numa das medalhas, pô-la na palma da mão e fitou-a com uma expressão pensativa. Quando voltou a olhar para Lytell, Lytell parecia sonhar, talvez ouvindo o som distante do disparo da partida, o rugido de aclamação da multidão no estádio enquanto avançava para a meta.
- Quer acrescentar alguma coisa às suas declarações? - perguntou Jenkins.
Lytell abanou a cabeça.
- Há alguma coisa que queira alterar ou eliminar? Lytell voltou a abanar a cabeça.
Jenkins olhou para o estenógrafo.
- Então é tudo - disse.
Às onze da manhã, Eileen telefonou a Annie Rawles para lhe perguntar como é que achava que ela devia proceder nessa noite. Devia ficar em casa ou sair? Continuava a chover; a chuva poderia dissuadir o seu homem. Annie era de opinião de que ele não tentaria voltar a entrar no apartamento. Sabia sem dúvida que a última violação tinha sido comunicada à Polícia e não podia correr o risco da possibilidade de o apartamento estar a ser vigiado. Annie pensava que ele tentaria atacar Eileen na rua se pudesse e que só tentaria entrar no apartamento em último recurso.
- Então quer que eu saia, não é? - perguntou Eileen. - A chuva.
- É suposto piorar para a noite - disse Annie. - Neste momento não passa de uma boa morrinha constante.
- E que é que uma morrinha constante tem de bom? - perguntou Eileen.
- É melhor que relâmpagos e trovões, não é?
- É isso o que é suposto haver logo à noite?
- Segundo as previsões, é.
- Tenho medo de relâmpagos - disse Eileen.
- Leve sapatos com sola de borracha.
- Claro. Onde é que acha que devo ir? Outra vez ao cinema? Fui ao cinema na quarta-feira à noite.
- Que tal a uma discoteca?
- Não é o género da Mary.
- Ele poderá achar estranho duas idas ao cinema na mesma semana. Porque é que não sai cedo para jantar? Se ele está tão ansioso por a apanhar como nós pensamos que está, entrará em acção assim que esteja escuro.
- Já alguma vez tentou fazer que a violassem com o estômago cheio? - disse Eileen.
Annie riu.
- Telefone-me mais tarde, OK? - disse. - Para me dizer qual é o seu plano.
- Telefono - disse Eileen.
- É tudo?
- Há outra coisa. Que é a A. I. M.?
- Isso é uma charada?
- Não, é uma coisa para a qual a Mary fez três donativos este ano. Num total de duzentos dólares, todos eles assinalados como donativos no livro de cheques. Estive a pensar... e pode bem ser uma organização qualquer de tarados...
- Sim, estou a perceber. Vou verificar através do computador, OK?
- Têm um escritório cá na cidade - disse Eileen. - Depois diga-me o que descobriu, está bem? Estou com curiosidade em saber.
Annie voltou a telefonar-lhe um pouco depois da uma.
- Bom - disse - Força.
- É comprida.
- Não tenho para onde ir até às seis e meia.
- Ah, sim? Que é que decidiu?
- Vou jantar a um sítio chamado Ocho Rios, a três quarteirões daqui. É um restaurante mexicano.
- Gosta de comida mexicana?
- Agrada-me a ideia de ser apenas a três quarteirões daqui. Isso, quer ouvir a lista.
significa que posso ir a pé. Um táxi talvez o fizesse desistir. Digo-lhe, Annie, espero bem que me aborde na rua, pois não quero que venha aqui ao apartamento. Lá fora tenho mais espaço de manobra, entende?
- Você lá sabe.
- Vou fazer um reconhecimento do terreno esta tarde, para me familiarizar com a zona. Não quero que ele me salte ao caminho saído de um beco qualquer que nem sequer sei que existe.
- Muito bem - disse Annie. - Quanto à tal A. I. M., a lista é tão comprida como o meu braço, portanto não se dê ao trabalho de ir apontando. Temos aqui... está a ouvir? Temos uma organização chamada Accurary In Media' e uma outra chamada Advance In Medicine-. Temos o American Institute for Microminiaturization' e o Asian Institute of Management''. Temos o American Indian Movement, o American Institute of Musicology*, a Association for the Integration of Management'' o Australian Institute of Management...
- São todas verdadeiras.
- Palavra de honra. Mais o Australian Institute of Metals', o American Institute of Man' e uma organização chamada Adventure in Movement for the Handicapped".
- Qual delas é que é na Hall Avenue? - perguntou Eileen.
- Estava a guardar essa para último. 832 Hall, é essa a morada que tem? Sim.
- OK, é uma coisa chamada Against Infant Murder'.
- Against Infant Murder, hem?
- Sim. 832 Hall Avenue.
- Que é? Um grupo qualquer antiaborto?
- Não foi assim que se definiram quando lhes telefonei. Disseram simplesmente que eram pró-vida.
- Hum-hum. Têm alguma ligação ao Right to Life"?
- Que eu veja, não. É uma organização estritamente local. Houve um longo silêncio na linha.
- Acha que alguma das outras vítimas também fez um donativo a este grupo? - perguntou Eileen.
- Vou falar com eles esta tarde, ou pelo telefone ou pessoalmente. Se se verificar que sim...
- Sim, pode ser uma pista.
- Pode bem ser mais que isso. Sabe que todas as vítimas eram católicas?
- Não sabia.
- Pois eram. E não é suposto os católicos utilizarem métodos artificiais de contracepção.
- Sim, só o método da temperatura. Alguns católicos.
- A maioria, acho eu. É católica?
- É preciso perguntar? Com um nome como Burke.
- Que é que você usa?
- Tomo a pílula.
- Também eu.
- Qual é a sua ideia, Annie?
- Ainda não sei, quero verificar as informações sobre as vítimas. Mas se todas contribuíram mesmo para a A. I. M....
- Hum-hum - disse Eileen. Houve outro longo silêncio na linha.
- Quase espero...
- Sim?
- Espero que não tenham contribuído - disse Annie. - Espero que só Mary Hollings tenha sido a única, que não passe de um acaso.
- Porquê?
- Porque de outra forma tudo isto é demasiado sinistro - disse Annie. A entrevista de Teddy no escritório de advogados era às três horas dessa tarde. Chegou vinte minutos antes e esperou à porta até faltarem dois minutos para a hora, pois não queria parecer demasiado ansiosa chegando cedo de mais. Mas queria mesmo aquele emprego; o trabalho parecia talhado para ela. Estava vestida de uma forma que considerava discreta mas não apagada, com um fato saia e casaco elegante e uma blusa com um laço, collants do mesmo tom acastanhado do tecido do fato e sapatos castanhos de salto alto. Estava um calor sufocante na entrada do edifício comparado com o frio húmido da rua e Teddy tirou a gabardina antes de entrar no elevador. As 15:00 em ponto apresentou-se à recepcionista da firma Franklin, Logan, Gibson e Knowles e mostrou-lhe a carta que recebera, assinada por Phillip Logan. A recepcionista disse-lhe que Mr. Logan a receberia dentro de alguns minutos. As três e dez, a recepcionista atendeu o telefone - deve ter tocado, mas Teddy não ouvira - e disse-lhe que Mr. Logan a receberia de imediato. Teddy assentiu, entendendo o que a rapariga lhe dissera através da leitura labial.
- Primeira porta à direita no corredor - disse a rapariga. Teddy dirigiu-se para o corredor e bateu à porta.
Esperou alguns segundos, dando tempo a que Logan, no interior, dissesse «Entre», rodou a maçaneta e entrou no escritório. O escritório era espaçoso, mobilado com uma secretária, várias cadeiras, uma mesa de café e estantes com livros em três das quatro paredes. A quarta parede era praticamente toda ela de vidro, proporcionando uma belíssima vista dos arranha-céus da cidade. A chuva deslizava continuamente pelo vidro. Um candeeiro com quebra-luz lançava uma luz amarelada sobre o tampo da secretária.
Logan levantou-se assim que ela entrou na sala. Era um homem alto, de fato azul-escuro, camisa branca e gravata às riscas. Os seus olhos eram ligeiramente mais claros que o fato. Tinha os cabelos a ficar grisalhos. Teddy calculou que teria cinquenta e poucos anos.
- Ah, Miss Carella - disse ele -, fiquei muito satisfeito por ter vindo. Por favor, sente-se.
Ela sentou-se numa cadeira à frente da secretária. Ele voltou a sentar-se à secretária e sorriu-lhe. Tinha um olhar caloroso e amigável.
- Penso que... hum... leia os meus lábios - disse. - Na sua carta... Ela assentiu.
- Foi extremamente frontal a descrever a sua incapacidade à partida - disse. - Na sua carta, isto é. Extremamente franca e honesta.
Teddy voltou a assentir, embora a palavra incapacidade a tivesse aborrecido.
- A senhora... hum... isto é, compreende o que estou a dizer, não compreende?
Ela assentiu e indicou um bloco de notas e um lápis que estavam em cima da secretária.
- O quê? - disse ele. - É claro; mas que idiotice da minha parte. Passou-lhe o bloco e o lápis por cima da secretária.
Ela escreveu no bloco: Compreendo-o perfeitamente.
Ele voltou a pegar no bloco, leu o que ela escrevera e disse:
- Óptimo, muito bem. - Depois hesitou. - Hum... talvez devamos mudar a cadeira para este lado - disse -, não acha? Assim não temos de passar o bloco de um lado para o outro.
Levantou-se rapidamente e dirigiu-se para a cadeira onde ela estava sentada. Teddy levantou-se e ele colocou a cadeira mais perto da secretária, junto a um dos lados. Ela voltou a sentar-se, dobrando a gabardina sobre o colo.
- Pronto, já está melhor - disse ele. - Agora já podemos falar com mais facilidade. Oh, desculpe, estava de costas para si, não é? Percebeu tudo?
Teddy assentiu e sorriu.
- Isto é novo para mim - disse ele. - Bom, por onde é que podemos começar? Sabe que o lugar exige uma pessoa que saiba dactilografar muito bem... vejo pela sua carta que escreve sessenta palavras por minuto...
«Talvez esteja um pouco destreinada», escreveu Teddy no bloco.
- Bom, mas depressa fica em forma, não acha? É como andar de bicicleta, diria.
Teddy assentiu, embora não achasse que escrever à máquina fosse como andar de bicicleta.
- E também sabe estenografia... Ela voltou a assentir.
- E é claro que o arquivo é mera rotina, portanto estou certo de que não terá qualquer dificuldade.
Ela olhou para ele, na expectativa.
- Gostamos de ter pessoas atraentes no nosso escritório, Miss Carella - disse Logan, sorrindo. - A senhora é muito bela.
Ela sorriu, agradecendo o elogio - modestamente, esperava - e depois escreveu: «Sou Mrs. Carella.»
- Claro, desculpe - disse ele. - Theodora, não é?
Ela escreveu: «A maioria das pessoas chama-me Teddy.»
- Teddy? Teddy é um nome encantador. Vai bem consigo. Você é excepcionalmente bela, Teddy, mas imagino que já lhe disseram isso mil vezes...
Ela abanou a cabeça.
- ... mas acho que a maior parte dos elogios devem ser repetidos, não acha? Extraordinariamente bela - disse, olhando-a nos olhos. O olhar dele tinha uma expressão que deixara de ser agradável. Ela baixou os olhos e fitou o bloco. Quando voltou a olhar para cima, ele ainda estava a olhar fixamente para ela. Ela mudou de posição na cadeira. Ele continuou a olhá-la fixamente.
- Bom - disse ele -, o horário é das nove às cinco e o salário é duzentos e vinte cinco para começar. Pode começar na segunda-feira de manhã? Ou precisa de algum tempo para organizar a sua vida?
Ela abriu muito os olhos. Não imaginara por um instante sequer que seria assim tão simples. Estava incapaz de proferir qualquer palavra, literalmente é claro, mas também para além disso - como se o espírito tivesse ficado em branco e a sua capacidade de comunicar tivesse ficado congelada algures dentro da sua cabeça.
- Quer o emprego, não quer? - disse ele, voltando a sorrir.
«Oh, sim», pensou ela, «meu Deus, sim!» Assentiu com um olhar que faiscava de felicidade, enquanto as mãos começaram inconscientemente a fazer os gestos correspondentes à gratidão que sentia, caindo depois sobre o colo por falta de palavras quando se apercebeu de que ele não entendia a linguagem gestual.
- E segunda-feira de manhã está bem para si? - perguntou ele. Ela assentiu.
- Óptimo - disse ele. - Terei todo o gosto em voltar a vê-la nessa altura.
Ele inclinou-se para ela.
- Estou certo de que nos daremos optimamente - disse e, subitamente, sem que nada indicasse o que ia fazer, fez deslizar a mão por debaixo da saia dela. Ela endireitou-se de repente, com os olhos muito abertos, demasiado chocada para reagir de imediato. Os dedos dele fizeram maior pressão sobre a sua coxa.
- Não acha, Miss Car?...
Ela deu-lhe uma bofetada com toda a força que tinha e levantou-se imediatamente da cadeira, avançando para ele com uma expressão de fúria e com a mão erguida, pronta a dar-lhe nova bofetada. Ele estava a afagar o rosto dorido, com uma expressão ligeiramente espantada nos seus olhos azuis. Ela sentiu-se transbordar de palavras, palavras que não podia proferir. Ficou ali a tremer de fúria, com a mão em posição de bater.
- Acabou-se, entende - disse ele, sorrindo.
Ela ia a virar-lhe as costas, com os olhos marejados de lágrimas, quando viu que os lábios dele estavam a formar mais palavras.
- Deu cabo de tudo, mudinha.
A última palavra doeu-lhe mais do que ele alguma vez imaginaria. A última palavra dilacerou-a como uma lâmina.
Ainda ia a chorar quando saiu do edifício para o meio da chuva.
Annie não conseguiu contactar três das vítimas pelo telefone, mas as cinco com quem conseguiu falar disseram-lhe que tinham contribuído para a A. I. M. Passou o resto da tarde a ir pessoalmente às moradas que tinha das outras três vítimas. Duas ainda não estavam em casa quando lá chegou, mas Angela Ferrari disse-lhe que era apoiante do conceito pró-vida e que não só contribuíra para a A. I. M., como também para a Right to Life. Eram quase seis da tarde quando tocou à campainha de Janet Reiliy. Janet era a mais recente das vítimas de violações em série e - apenas com 19 anos - era a mais nova de todas. Estudante universitária, vivia em casa dos pais e acabara de chegar de uma reunião do Newman Clube quando Annie lá chegou.
Os seus pais não ficaram satisfeitos ao ver Annie. Trabalhavam ambos e tinham chegado a casa poucos minutos antes da filha para logo a seguir abrir a porta e dar de novo com uma agente da Brigada de Violações. A filha tinha sido violada pela primeira vez a 13 de Setembro. Acharam que ela tinha passado por um horror tal que daria para toda a vida, mas tinha-lhe voltado a acontecer o mesmo a 11 de Outubro, e o horror aumentou em flecha, o terror tornou-se uma constante. Não queriam que ela respondesse a mais perguntas feitas pela Polícia. A única coisa que queriam era que os deixassem em paz. Pouco faltou para fecharem a porta na cara de Annie, mas ela prometeu que seria a última pergunta.
Janet Reiliy respondeu afirmativamente.
Tinha de facto feito um pequeno donativo a uma organização pró-vida chamada A. I. M.
Annie saiu do apartamento às seis e dez. Tentou telefonar a Vivienne Chabrun de uma cabina à esquina da rua, a única vítima com quem ainda não falara. Uma vez mais não obteve resposta de casa dela. No entanto, sabia agora com total certeza que oito das nove vítimas tinham feito donativos, de quantias variáveis, à A. I. M. e pareceu-lhe que esta informação teria grande interesse para Eileen. Voltou a meter uma moeda e marcou o número do apartamento de Mary Hollings. Deixou o telefone tocar dez vezes. Não obteve resposta. Eileen já saíra para jantar.
Um músico andava de mesa em mesa a tocar guitarra e a cantar canções mexicanas. Quando chegou à mesa de Eileen tocou delito Lindo, e ela achou que ele era um optimista; lá fora o céu estava carregado de nuvens negras e ameaçadoras quando entrara no restaurante. A chuva tinha parado por completo por volta das quatro da tarde, mas as nuvens tinham voltado a aparecer ao lusco-fusco, concentrando-se de uma forma massiva e ameaçadora no céu da noite. Às seis e um quarto, quando saiu do apartamento para se dirigir a pé para o restaurante, já ouvia o som de trovões à distância no outro estado, do outro lado do rio.
Estava a tomar café - o relógio na parede indicava sete e vinte -quando se deu o primeiro relâmpago que iluminou a janela com cortinas que dava para a rua. O trovão que se seguiu foi ensurdecedor; encolhera os ombros antecipadamente, mas mesmo assim o seu volume abalou-a. Depois começou a chover violentamente, uma chuva furiosa, fustigada por um vento forte que batia contra os vidros e sobre o passeio lá fora. Eileen acendeu um cigarro e fumou-o enquanto acabava de beber o café. Eram quase sete e meia quando pagou a conta e foi ao bengaleiro buscar a gabardina e o chapéu de chuva que lá deixara.
A gabardina pertencia a Mary. Estava-lhe um pouco apertada, mas ela achava que talvez ele a reconhecesse, e se chovesse, como de facto acontecera, a visibihdade poderia ser má; não queria perdê-lo só por ele a não conseguir ver. O chapéu de chuva também era de Mary, uma sombrinha delicada, vermelha, às pregas, que era mais para vista que uma protecção, especialmente contra a violenta chuva que naquele momento caía. As botas de chuva também eram de Mary. Eram de borracha, com o cano largo. Tinha-as escolhido exactamente por os canos serem largos. Preso num pequeno coldre atado ao tornozelo direito, levava uma pequena Browning .380 automática, a sua arma de reserva. A sua pistola regulamentar era uma .38 Especial, para detectives, e ti-nha-a dentro da carteira que levava ao ombro esquerdo, o que lhe permitiria um saque rápido.
Deu um dólar de gorjeta à rapariga do bengaleiro (interrogando-se sobre se seria demasiado), vestiu a gabardina, voltou a pôr a carteira ao ombro e saiu para o pequeno hall de entrada. Umas portas duplas de vidro, um.a com a palavra Ocho gravada e outra com Rios, davam para a rua onde chovia a cântaros. Um relâmpago cortou o céu quando abriu uma das portas. Recuou para dentro do restaurante, esperou que o estrondo do trovão se atenuasse e saiu para a chuva, abrindo o chapéu de chuva.
Uma rajada de vento quase lhe arrancou o chapéu de chuva da mão. Virou-o contra o vento, combatendo-o, recusando-se a permitir que o vento o virasse. Inclinando-o à frente da cara e dos ombros, utilizando-o como escudo para abrir caminho através da chuva violenta, Eileen começou a andar em direcção à esquina. O caminho que estudara à tarde levava-a por um quarteirão na direcção oeste através de uma avenida profusamente iluminada - agora deserta devido à tempestade - e depois por dois quarteirões para norte através de ruas menos iluminadas até ao apartamento de Mary. Não esperava que ele agisse enquanto ia pela avenida. Mas durante os dois quarteirões até ao apartamento...
Subitamente arrependeu-se de não ter pedido reforços.
Era estúpido agir daquela maneira.
No entanto, se tivesse colocado os reforços, digamos, do outro lado da rua, um vinte metros à sua frente e o outro vinte metros atrás de si, ele não deixaria de os detectar, certo? Três mulheres a andar à chuva naquele padrão clássico triangular? Claro que as detectaria. Ou suponhamos que as colocava em qualquer das entradas escuras ou nos becos ao longo do caminho que fizera naquela tarde e suponhamos que ele estudava o mesmo caminho, via duas mulheres escondidas no escuro - ali não havia muitas pegas, e sem dúvida que não as havia em nenhuma das ruas secundárias onde não havia clientes - não, ele aperceber-se-ia de que estava a ser atraído para uma armadilha e perdê-lo-iam. Era melhor não ter reforços. E, contudo, gostaria de ter.
Respirou fundo ao virar a esquina da avenida.
Os quarteirões eram agora mais compridos.
As ruas secundárias eram sempre mais compridas que as ruas que davam para as avenidas. Talvez o dobro. Ele teria inúmeras oportunidades naquele sítio. Dois longos quarteirões.
A chuva entrava pelos canos largos das botas de chuva. Sentia a pistola de reserva dentro da bota direita, a coronha fria contra o nylon dos collants. Tinha cuecas por baixo dos collants, uma grande protecção contra uma navalha, sem dúvida, um resistente cinto de castidade que ele rasgaria em segundos! Segurava agora o chapéu de chuva com as duas mãos, tentando impedir que o vento lho arrancasse. Subitamente pensou se não devia deitar fora aquela maldita coisa e pôr a mão na coronha da 38 que tinha dentro da carteira. «Se ele puxar da navalha, não faça perguntas, rebente com ele.» Esse tinha sido o conselho de Annie. Não que ela precisasse dele.
Estava a aproximar-se de um beco à esquerda. Um estreito espaço entre dois edifícios, cheio de caixotes de lixo quando passara por lá à tarde. Demasiado estreito para lhe servir? O tipo não se preparava para dançar, preparava-se para violar, e a largura do beco parecia suficiente para isso. «Alguma vez foste violada em cima de um caixote de lixo?», perguntou a si própria. «Não faça perguntas, rebente com ele.» Uma entrada escura no edifício a seguir ao beco. Luzes no edifício a seguir. Um candeeiro à esquina. O céu foi rasgado por um relâmpago. Um trovão ecoou na noite. Uma rajada de vento virou o chapéu de chuva. Eileen atirou-o para dentro de um caixote de lixo à esquina e sentiu imediatamente a força da chuva sobre a cabeça. «Devia ter trazido chapéu», pensou. Ou uma daquelas coisas de plástico que se atam debaixo do queixo. A mão encontrou a coronha da 38 dentro da carteira.
Atravessou a rua.
Um outro candeeiro na esquina em frente.
Escuridão para além dele.
Sabia que se estava a aproximar de outro beco. Mais largo que o primeiro, pelo menos da largura de um carro. Um sítio agradável para dançar o tango. Espaço de sobra. A mão apertou com mais força a coronha da arma. Nada. Que visse, não havia ninguém no beco nem ouviu passos atrás de si depois de o passar. Mais adiante, via edifícios iluminados, com um ar confortável para quem está à chuva. Um outro beco mais à frente, a dois prédios do de Mary. E se ela se tivesse enganado? E se ele não tencionasse atacá-la naquela noite? Continuou a andar, com a mão sobre a coronha da arma. Desviou-se de uma poça no passeio. Outro relâmpago; Eileen estremeceu; outro trovão; voltou a estremecer. Estava a passar em frente do último beco, largo e escuro, mas não tão largo como o anterior. Caixotes de lixo. Um gato escanzelado e molhado sentado em cima de um dos caixotes, a olhar através da chuva. O gato teria fugido se lá estivesse alguém, não? Estava a passar pelo beco quando ele a agarrou.
Agarrou-a por detrás, passando o braço esquerdo pelo pescoço, levantando-lhe os pés do chão. Ela caiu para trás, para cima dele, enquanto puxava a pistola da carteira com a mão direita. O gato deu um miado estridente e saltou do caixote de lixo, escorregando no pavimento molhado.
- Olá, Mary - murmurou ele no momento em que ela tirava a arma da carteira.
- Isto é uma navalha, Mary - disse ele, fazendo um movimento súbito com a mão direita, e ela sentiu uma dor aguda quando a ponta da navalha lhe assentou contra as costelas imediatamente abaixo do coração.
- Largue a arma, Mary - disse. - Com que então ainda a tem, hem? Como da última vez. Bom, largue-a com jeitinho, deixe-a cair no chão, Mary.
Carregou com mais força na navalha. A ponta da lâmina furou o tecido da gabardina, furou o tecido fino da blusa que tinha por baixo e feriu-lhe a pele. Ele continuava com o braço esquerdo à volta do pescoço dela, agarrando-a firmemente com a curva do cotovelo. Ela continuava a empunhar a pistola, mas ele estava por detrás dela e ela estava indefesa nas mãos dele. A pressão da lâmina era agora mais insistente.
- Vá, largue-a! - disse ele num tom mais incisivo, e ela largou a pistola. A arma caiu ruidosamente no pavimento do beco. Um relâmpago
rasgou a escuridão. Um violento trovão estilhaçou o silêncio. Ele arrastou-a para o interior do beco, para o meio da escuridão, para lá dos caixotes de lixo, para uma plataforma de descarga montada junto a uma parede a cerca de um metro do chão. Por detrás da plataforma havia um par de portas de ferro enferrujadas. Ele atirou-a para cima da plataforma e ela meteu imediatamente a mão dentro do cano largo da bota de borracha, procurando agarrar a coronha da Browning.
- Não me obrigue a cortá-la - disse ele. Ela puxou a pistola para fora do coldre.
Ia levá-la à posição de disparar quando ele a cortou.
Ela deixou imediatamente cair a pistola, levando a mão à cara onde um traço de fogo lhe dilacerara a face. Sentiu a mão molhada, pensou primeiro que fosse da chuva, mas a mão molhada estava peganhenta, o líquido era espesso e ela percebeu que era sangue - ele tinha-lhe cortado a face, estava a sangrar da face! E subitamente sentiu-se avassalada por um medo como nunca sentira na vida.
- Linda menina - disse ele.
Novo relâmpago e novo trovão. A faca estava agora por debaixo do vestido dela, ela não ousava mexer-se, ele estava a rasgar o nylon dos collants com a ponta da lâmina, puxando-o, cortando-o; a vagina contraiu-se-lhe numa reacção de terror, horrorizada pela perspectiva de ele voltar a utilizar a navalha ali, onde era infinitamente mais vulnerável. A ponta da lâmina ficou presa ao nylon. Ouviu o som do nylon a rasgar-se, o murmúrio da lâmina enquanto ele lhe cortava os collants e as cuecas que tinha por baixo. Ele riu quando percebeu que ela também tinha cuecas vestidas.
- Esperavas ser violada? - perguntou, continuando a rir; depois cortou também as cuecas com a navalha e ela ficou aberta ao frio da noite, com as pernas abertas e a tremer, com a chuva a bater-lhe no rosto, misturando-se com o sangue, lavando o sangue da face queimada pela dor no sítio onde ele a atingira, abrindo os olhos aterrorizada quando ele assentou a lâmina fria sobre a vagina e disse:
- Queres que também te corte aqui, Mary? Ela abanou a cabeça.
- Não, por favor - murmurou atabalhoadamente as palavras, incoerentemente. Finalmente, disse-as em voz alta. - Não, por favor - a tremer debaixo dele, enquanto ele se punha entre as suas pernas e lhe levava a navalha novamente à garganta. - Por favor - disse ela. - Não... me corte outra vez. Por favor.
- Preferes que te foda? - perguntou ele.
Ela abanou a cabeça. «Não!», pensou. Mas apenas disse:
- Não me corte outra vez.
- Preferes ser fodida não é, Mary? «Não!», pensou ela.
- Sim - disse. «Não me corte», pensou. «Por favor.»
- Di-lo Mary.
- Não me corte - disse ela.
- Di-lo, Mary!
- Em vez disso... foda-me - disse ela.
- Queres o meu bebé, não queres, Mary?
«Oh, meu Deus, não», pensou ela, «oh meu Deus, é isso!»
- Sim - disse ela. - Quero o seu bebé.
- Uma ova que queres - disse ele, e riu-se. Um relâmpago rasgou a escuridão bem perto. Um trovão ecoou no beco, mesmo por cima deles. . Ela sabia tudo o que devia fazer, sabia que devia procurar atingi-lo nos olhos, esgatanhar-lhe os globos oculares, cegar o filho da mãe, sabia tudo isso. Sabia o que fazer se ele a forçasse ao sexo oral, sabia que devia acariciar-lhe os tomates, levando o sexo dele à boca e depois mor-der-lhe o caralho com toda a força ao mesmo tempo que lhe apertava os colhões, sabia tudo o que devia fazer para pôr um violador em fuga aos gritos de dor na noite. Mas estava com uma navalha contra a garganta. A ponta da lâmina estava encostada à pequena concavidade da garganta onde sentia o sangue a pulsar desordenadamente. Ele tinha-lhe cortado a cara, ela ainda sentia o sangue a escorrer-lhe do corte, um traço de fogo, de um lado ao outro. A chuva encharcava-lhe a cara e as pernas, tinha a saia levantada até às ancas, a plataforma de cimento fria e molhada por baixo dela, as portas de ferro enferrujado atrás dela. Depois - subitamente - sentiu a penetração rígida contra a sua vagina não receptível e pensou que ele a rasgaria com a força da sua penetração, rasgando-a como se fosse com a navalha que continuava junto à sua garganta, em posição para cortar.
Tremeu de medo e de vergonha e num desespero impotente, sofrendo o seu ataque, soluçando agora, pedindo-lhe sem cessar que parasse, com medo de gritar, não fosse a navalha rasgar-lhe a carne da garganta da mesma forma como ele lhe estava a rasgar a carne lá em baixo. E quando ele estremeceu convulsivamente - a ponta da navalha estremeceu junto à garganta dela - e depois ficou imóvel em cima dela durante alguns instantes, ela apenas pensou, «Acabou, ele já acabou», e a vergonha voltou a invadi-la, uma sensação de completa e total degradação causada pela invasão que sofrera e soluçou ainda mais angustiada. Nesse instante apercebeu-se de que não era uma agente da Polícia em serviço que estava ali no beco escuro, com a roupa interior rasgada, com as pernas abertas, com o esperma de um estranho dentro dela. Não. Era uma vítima assustada, uma mulher indefesa e violada. E fechou os olhos à chuva e às lágrimas e à dor.
- Agora vai abortar - disse ele. Rolou de cima dela.
Ela pensou onde é que estaria a sua arma. As suas armas. Ouviu correr para fora do beco através do ruído da chuva. Ficou ali deitada, cheia de dores, em cima e em baixo, com os
olhos fechados com toda a força.
Ficou ali durante muito tempo.
Depois saiu do beco aos tropeções, encontrou o telefone da Polícia mais próximo e comunicou o crime.
E ao desmaiar, quando outro relâmpago rasgou a noite, não ouviu o trovão que se seguiu.
Annie saiu disposta a vingar-se.
Ao saber o que acontecera a Eileen na noite anterior, visualizan-do-a dilacerada e a sangrar naquele beco batido pela chuva, a sua única certeza era de que o filho da puta tinha de ser apanhado e pedia a Deus que quando deparasse com ele não o matasse simplesmente, antes sequer de lhe perguntar o nome. Não sabia o que tinha acontecido a Teddy Carella na tarde anterior do escritório de Phillip Logan; na verdade, nem sequer conhecia Steve Carella, a não ser como o detective de aspecto chinês que estava sentado a uma das secretárias quando fora pela primeira vez à 87. Esquadra. Mas se conhecesse qualquer um deles, se tivesse conhecimento de que Teddy fora submetida ao seu próprio baptismo de fogo na véspera, tê-lo-ia considerado apenas como uma manifestação bem menos grave do que acontecera a Eileen.
A chamada do sargento Murchison tinha sido feita exactamente às dez para as oito, cinco minutos depois de um carro-patrulha da Oito-Sete ter respondido ao apelo e encontrado Eileen inconsciente no passeio, junto do aparelho telefónico. Annie escutou em silêncio enquanto Murchison lhe deu a notícia. Agradeceu-lhe, vestiu a gabardina e saiu para a rua de onde tinham desaparecido os relâmpagos e os trovões, embora a chuva persistisse. Quando chegou ao hospital, Eileen já tinha levado doze pontos na cara. O médico do banco comunicou-lhe que lhe tinha sido administrado um sedativo e que ela estava a dormir; tencionavam mantê-la sob observação, pois estava em estado de choque quando dera entrada. Não deixou que Annie a visse, nem quando ela puxou dos galões. Annie foi para casa, telefonou para a A. I. M. na hipótese remota de ainda lá estar alguém - nessa altura já eram quase dèz horas. Não obteve resposta e procurou então o número de telefone de casa de Polly Floyd, a responsável da A. I. M. com quem falara ao telefone na véspera. Não obteve resposta. Continuou a tentar até à meia-noite. Continuava a não estar ninguém em casa. Passou a noite às voltas, à espera de que a manhã chegasse.
Voltou a não obter resposta quando telefonou para os escritórios da A. I. M. às 9:00. Tentou novamente às nove e um quarto, e outra vez às nove e meia, ligando então para casa de Polly Floyd. O telefone tocou repetidas vezes. Annie contou doze e estava prestes a desligar quando finalmente Polly atendeu. Annie disse-lhe que queria ir aos escritórios da A. I. M. Polly respondeu que os escritórios estavam fechados ao sábado. Annie disse-lhe que os fosse abrir. Polly disse que isso era impossível. Annie disse-lhe que os abrisse e que mandasse lá estar todos os empregados às onze horas. Polly respondeu que não tencionava fazer tal coisa. Annie respirou fundo.
- Miss Floyd - disse -, tenho uma agente da Polícia no hospital, para onde foi levada ontem à noite com um ferimento causado por uma navalha. Ela teve de levar doze pontos. Posso muito bem tratar de obter um mandato de busca junto de um juiz, mas devo dizer-lhe, Miss Floyd, que ficaria furiosa se tiver de ter esse trabalho. O que eu sugiro...
- Isso é uma forma de coacção? - disse Polly.
- Sim - respondeu Annie.
- Vou ver se consigo reunir os empregados.
- Obrigada - disse Annie, desligando.
Os escritórios da A. I. M. eram no 832 Hall Avenue, por cima de uma livraria que estava em liquidação. O edifício tinha seis andares e os escritórios da A. I. M. eram no terceiro andar. Annie chegou lá um pouco antes das onze. A pequena zona de recepção no interior das portas de vidro martelado parecia um escritório manhoso de um detective privado na mó de baixo, se não fossem os cartazes nas quatro paredes. Os cartazes eram fotografias ampliadas mostrando fetos em vários estádios de desenvolvimento. Por cima de cada fotografia viam-se as palavras «Against Infant Murder», impressas a vermelho e dando a impressão de estarem a pingar sangue. A própria Polly Floyd parecia um feto num estádio avançado de desenvolvimento; era uma senhora muito baixa, com um rosto cor-de-rosa, mãos cor-de-rosa, cabelo louro curto e uma boca que parecia nunca ter sido beijada, que nunca ninguém quisera beijar. Bom, Annie podia estar enganada quanto a isso; a mulher não atendera o telefone à meia-noite da noite anterior e demorara um ror de tempo a atendê-lo naquela manhã às nove e meia.
Polly Floyd estava num frenesim quando Annie chegou. Começou imediatamente a queixar-se do estado policial, de cidadãos honestos serem sujeitos a...
- Lamento - disse Annie num tom que mostrava não lamentar coisa nenhuma. - Mas como lhe disse ao telefone, trata-se de uma questão urgente.
- Que é que o seu agente tem a ver connosco} - perguntou Polly. O facto de ele ter sido apunhalado por alguém...
- Ela - disse Annie.
- Mesmo assim, o que é que?...
- Onde é que estão os empregados? - perguntou Annie abruptamente. Estavam as duas sozinhas na pequena recepção com as fotografias dos fetos. Polly não tirara a gabardina. Certamente contava que a conversa fosse breve.
- Estão à espera no meu gabinete - disse ela.
- Quantos empregados são?
- Quatro.
- Incluindo a senhora?
- Além de mim.
- Há algum homem?
- Um.
- Quero vê-lo - disse Annie.
Vê-lo era a primeira coisa que queria.
Tinha voltado a telefonar para o hospital há meia hora, antes de sair do apartamento, para verificar qual o estado de Eileen e para falar com ela, se possível. Quando Eileen atendeu o telefone no quarto, parecia meia adormecida, mas disse a Annie que se sentia bem - dadas as circunstâncias. A sua descrição do homem que a tinha atacado correspondia exactamente à descrição das anteriores vítimas: branco, trinta e poucos anos, um metro e oitenta, noventa quilos. Cabelo castanho, olhos azuis e sem quaisquer cicatrizes ou tatuagens visíveis.
O homem que estava à espera no gabinete de Polly Floyd era um homem negro, magro, com sessenta e tal anos, um metro e setenta e dois, com olhos castanhos por detrás de uns óculos com armação de tartaruga e um círculo de cabelo branco na cabeça, que para além deste era calva.
Havia três outras pessoas à espera no gabinete, todas elas mulheres. Annie pediu-lhes que se sentassem.
Polly ficou junto à porta, aborrecida com aquela súbita invasão dos escritórios da A. I. M., e ainda mais aborrecida pela descarada ocupação do seu gabinete particular.
Annie perguntou aos empregados se algum deles conhecia os seguintes nomes, e leu a lista: Lois Carmody, Terry Cooper, Patrícia Ryan, Vivienne Chabrun, Angela Ferrari, Cecily Bainbridge, Blanca Diaz, Mary Hollings e Janet Reilly.
Todos os presentes concordaram que os nomes lhes eram familiares.
- Todos eles fizeram donativos à A. I. M. numa ou noutra ocasião - disse Annie. - Estou certa?
Nenhum dos empregados sabia por que é que os nomes lhes eram familiares.
- Quantos contribuintes é que têm} - perguntou Annie. Todos os empregados olharam para Polly Floyd.
- Desculpe, mas esse assunto só nos diz respeito a nós - disse Polly. Continuava junto à porta. Continuava com a gabardina vestida. Tinha os braços cruzados à frente do peito.
- Têm uma lista das pessoas que fazem donativos? - perguntou-lhe Annie.
- Sim, mas essa lista é confidencial.
- Quem é que tem acesso a essa lista?
- Todos nós. Todos os empregados.
- Mas afirmou que a lista é confidencial.
- Com excepção dos empregados, que têm acesso a ela - disse Polly
- Bom - disse o homem negro com o círculo de cabelo branco -, isso não é bem...
- De qualquer forma - interrompeu Polly -, a lista não está à disposição da Polícia.
Annie virou-se para o homem.
- Desculpe, mas não fixei o seu nome - disse ela.
- Eleazar Fitch - disse ele.
- Gosto de nomes bíblicos - disse Annie, sorrindo.
- O meu pai chamava-se Elijah - disse Fitch, retribuindo-lhe o sorriso.
- Mr. Fitch, quanto à lista, ia a dizer?...
- Seja o que for que esteja a investigar - interrompeu Polly -, não estamos interessados em vermo-nos envolvidos.
- Envolvidos? - disse Annie.
- Sim, envolvidos. Não queremos a A. I. M. envolvida de qualquer forma no apunhalamento de uma mulher-polícia.
- Que acontece ser um crime da Classe C - disse Annie -, punível com três a quinze anos de prisão. A violação, por outro lado...
- Violação? - disse Polly, e o seu rosto cor-de-rosa ficou branco como a cal.
- A violação, Miss Floyd, é um crime da Classe B, e pode-se apanhar vinte cinco anos de prisão. A agente foi violada ontem à noite. Anavalhada e violada, Miss Floyd. Temos razões para crer que o seu assaltante foi também responsável pela violação de nove outras mulheres, oito das quais fizeram donativos para a A. I. M. Aquilo que eu quero saber...
- Tenho a certeza de que os donativos que fizeram à A. I. M. não têm absolutamente nada a ver...
- Como é que pode estar tão certa disso, Polly ? - perguntou Fitch. Polly Floyd ficou novamente corada. Fitch fitou-a durante alguns
instantes e depois voltou a olhar para Annie.
- Vendemos a nossa lista de mailing - disse.
- A quem? - perguntou Annie de imediato.
- A qualquer organização responsável que...
- Polly, sabe que isso não é verdade - interrompeu Fitch, voltan-do-se novamente para Annie. - Damos a lista a quem quer que faça um donativo substancial.
- O que é que consideram substancial? - perguntou Annie.
- Qualquer quantia superior a cem dólares.
- Portanto se eu lhes mandasse cem dólares e pedisse a vossa lista de mailing...
- Recebê-la-ia imediatamente.
- Desde que também nos dissesse como é que tencionava utilizar a lista - disse Polly.
- Isso é verdade, Mr. Fitch?
- Mandamos a lista a quem quer que se mostre interessado no movimento pró-vida - disse Fitch. - Basta manifestar um interesse sincero pelo movimento, pedir a lista e mandar-nos um cheque de cem dólares. Só isso.
- Estou a perceber - disse Annie.
- Nós não somos a Right to Life, sabe - disse Polly num tom defensivo. - Não temos grandes empresas e sociedades financeiras a fazerem-nos donativos. Somos uma organização recente, só iniciámos a nossa actividade há dois anos e temos de obter apoio para o nosso trabalho por todos os meios possíveis e éticos. Não tem mal nenhum fornecer listas de mailing aos contribuintes que se mostrem interessados. Pode-se comprar ou alugar uma lista de mailing para qualquer coisa.
- Quantas listas é que distribuíram desde o princípio do ano? -perguntou Annie.
- Não faço ideia - respondeu Polly.
- Não mais de dez - disse Fitch.
- Todas elas aqui na cidade?
- A maioria. Algumas foram enviadas para fora da cidade.
- Quantas é que foram enviadas para a cidade?
- Não sei, para lhe dizer teria de consultar os ficheiros.
- Têm ficheiros com os nomes e moradas?
- Sim, temos.
- Gostava de os ver.
- Dar-lhes esses nomes equivaleria a uma intromissão na privacidade de pessoas que podem não querer que a sua privacidade sofra intromissões - disse Polly.
Annie olhou para ela. Não referiu que dizer a uma mulher aquilo que podia ou não podia fazer em relação à sua própria gravidez podia também ser uma intromissão na privacidade de alguém que talvez não quisesse que a sua privacidade sofresse intromissões.
Apenas disse:
- Bom, afinal acho que tenho de ir buscar o mandato de busca.
- Dê-lhe os nomes - disse Polly.
Eileen estava sentada na cama, com as mãos assentes sobre o lençol, quando Kling entrou no quarto. Estava com a cabeça virada para o lado oposto ao da porta. Pela janela escorriam gotas de chuva, emoldurando uma vista parda dos edifícios lá fora.
- Olá - disse ele.
Quando ela se virou para a porta, ele viu o penso na face esquerda. Uma grossa compressa presa com tiras de adesivo. Tinha estado a chorar; tinha a zona à volta dos olhos vermelha e inchada. Sorriu e ergueu uma das mãos do lençol numa saudação. Depois deixou cair a mão, num gesto lasso, uma mão branca contra o branco do lençol.
- Olá - disse ela.
Ele aproximou-se da cama. Beijou-a na face que não tinha o penso. - Estás bem? - perguntou.
- Estou, estou óptima - disse ela.
- Estive a falar com o médico e ele disse-me que te vão dar alta ainda hoje.
- Óptimo - disse ela.
Ele não sabia que mais lhe dizer. Sabia o que lhe tinha acontecido. Não sabia o que dizer.
- Grande polícia, hem? - disse ela. - Deixei que ele me assustasse ao ponto de largar as minhas duas armas, deixei que ele... - Virou de novo a cara. A chuva escorria pelo vidro da janela.
- Ele violou-me, Bert.
- Eu sei.
- Que?... - A voz embargou-se-lhe. - Que é que sentes acerca disso?
- Quero matá-lo - disse Kling.
- Claro, mas... que é... que é que sentes por eu ter sido violada? Ele olhou para ela com uma expressão intrigada. Ela continuava com
o rosto virado para o outro lado, como se tentasse esconder o penso na face e, por arrastamento, a ferida que testemunhava a sua rendição.
- Por eu ter deixado que ele me violasse? - disse ela.
- Tu não deixaste que ele te fizesse nada.
- Sou polícia - disse ela.
- Querida...
- Devia ter... - abanou a cabeça. - Estava demasiado assustada, Bert -, disse ela. A sua voz era quase um murmúrio.
- Eu também já senti medo - disse ele.
- Tive medo que ele me matasse. Virou-se para olhar para ele.
Os seus olhares encontraram-se. Os olhos dela estavam a ficar marejados de lágrimas. Ela tentou reprimi-las.
- Não é suposto um polícia assustar-se dessa forma, Bert. E suposto um polícia... eu deitei fora a minha arma! Assim que ele encostou a navalha às minhas costelas, entrei em pânico, Bert, deitei fora a minha arma! Tinha-a na mão mas deitei-a fora!
- Eu teria feito a mesma coisa...
- Tinha uma arma de reserva dentro da bota, uma Browning pequena. Meti a mão na bota, segurei na arma, estava pronta a disparar quando ele... ele me cortou.
Kling ficou calado.
- Não pensava que doesse tanto, Bert. Ser anavalhada. Uma pessoa corta-se quando rapa os pêlos das pernas ou das axilas e arde durante alguns instantes, mas isto foi na minha cara, Bert, ele cortou-me a cara, e meu Deus, como doeu! Não sou beldade nenhuma, sei bem, mas é a única cara que tenho, e quando ele...
- És linda - disse ele.
-Já não sou - disse ela, voltando-lhe a cara novamente. - Foi nessa altura quando... quando ele me cortou e eu perdi a segunda arma... foi nessa altura que percebi que... que faria... qualquer coisa que ele quisesse que eu fizesse. Deixei que ele me violasse, Bert. Deixei que ele o fizesse.
- Se não o tivesses feito, estarias morta - disse Kling.
- Totalmente indefesa - disse ela, abanando a cabeça novamente. Ele não disse nada.
- Portanto agora... - A voz voltou a embargar-se-jhe. - Acho que vais pensar se eu não estaria a pedir mesmo aquilo, hem?
- Pára com isso - disse ele.
- Não é isso que é suposto os homens pensarem quando as mulheres ou as namoradas são?...
- Tu não estavas a pedir isso mesmo - disse Kling. - Era por isso que ali estavas, estavas a cumprir a tua tarefa. Estavas a cumprir a tua tarefa, Eileen, e foste ferida. E isso...
- E também fui violada! - disse ela, olhando para ele com os olhos a faiscar.
- Isso fez parte de teres sido ferida - disse ele.
- Não! - disse ela. - Tu já foste ferido em serviço, mas nunca ninguém te violou depois! É diferente, Bert.
- Compreendo a diferença - disse ele.
- Não tenho a certeza de que compreendes - disse ela. - Porque se compreendesses não me estarias a fazer esta conversa fiada sobre «cumprir o meu dever»!
- Eileen...
- Ele não violou um polícia, violou uma mulherl Violou-me a mim, Bert! Porque sou mulher!
- Eu sei.
- Não, não sabes - disse ela. - Como é que podes saber? Tu és homem, e os homens não são violados.
- Há homens que são violados - disse ele baixinho.
- Onde? - perguntou ela. - Na prisão? Só porque não há mulheres à mão.
- Há homens que são violados - repetiu ele, mas não deu mais explicação nenhuma.
Ela olhou para ele. A dor no seu olhar era tão profunda como a dor que ela sentira na noite anterior quando a navalha lhe rasgara a face. Estudou os olhos dele, estudou o rosto dele. A ira que sentia dissipou-se. Era Bert que estava ali sentando com ela, não era um inimigo vago chamado Homem, aquele era Bert Kling - e ele não era, afinal de contas, o homem que a violara.
- Desculpa - disse ela.
- Não faz mal.
- Não devia estar a atirar tudo isto para cima de ti.
- Atiravas para cima de quem? - disse ele, sorrindo.
- Desculpa - disse ela. - A sério.
Ela procurou a mão dele. Ele segurou-lhe na mão com as suas duas mãos.
- Nunca pensei que isto me acontecesse a mim - disse ela, suspirando. - Nem num milhão de anos. Já senti medo lá fora, uma pessoa sente sempre um certo medo...
- Sim - disse ele.
- Mas nunca pensei que isto pudesse acontecer. Lembras-te de como eu costumava brincar com as minhas fantasias sobre violação?
- Sim.
- Só é fantasia quando não é real- disse ela. - Costumava pensar... creio que pensava... isto é, tinha medo, Bert, mesmo quando tinha reforços tinha medo. Mas não de ser violada. Ferida, talvez, mas não violada. Y.r-3 polícia, como é que uma polícia podia...
- Continuas a ser polícia - disse ele.
- Podes acreditar - disse ela. - Lembras-te do que eu te disse? Sobre sentir-me humilhada por fazer de chamariz? Sobre talvez pedir uma transferência?
- Lembro-me.
- Bom, agora terão de me fazer saltar deste trabalho à força de dinamite.
- Óptimo - disse ele, beijando-lhe a mão.
- Quero dizer... é preciso que esteja lá fora alguém, não é? Para garantir que isto não aconteça a outras mulheres? Quero dizer, é preciso que esteja lá fora alguem, não é?
- Claro - disse ele. - Tu.
- Sim, eu - disse ela, dando um suspiro profundo. Ele levou a mão à face dela.
Ficaram em silêncio durante alguns instantes.
Ela quase lhe virou a cara de novo.
Mas aguentou o olhar dele e disse:
- Tu?...
A voz embargou-se-lhe novamente.
- Tu amar-me-ás como dantes com a cicatriz?
Às vezes tinha-se sorte à primeira.
Não tinha havido dez pedidos de listas de mailing, como Eleazar referia, mas apenas oito. Três eram de pessoas de fora da cidade que pretendiam fundar os seus próprios grupos locais pró-vida e que procuravam apoio organizativo de pessoas que já tinham feito donativos. Cinco eram da cidade: um grupo de apoio à vigilância efectiva dos livros nas estantes das bibliotecas tinham solicitado envio da lista de mailing; um grupo que se opunha a que raparigas jovens obtivessem informações sobre contracepção sem o consentimento dos pais também pedira a lista de contribuintes da A. I. M.; um grupo que era contra a eutanásia contribuíra com cem dólares e pedira a lista; uma organização contra a aprovação da Lei sobre Igualdade de Direitos também solicitara a lista. Apenas um pedido fora feito em nome individual. Na sua carta dirigida à A. L M. afirmava que estava a preparar um artigo sobre Our Right para uma revista e que estava interessado em contactar apoiantes da A. I. M. com vista a solicitar-lhes a sua opinião sobre a defesa da vida.
O seu nome era Arthur Haines.
Era sábado. Annie estava com esperança de que Arthur Haines estivesse em casa quando lá chegasse. A morada para onde tinha sido enviada a lista de mailing situava-se num complexo de apartamentos com jardim privativo, numa zona residencial de Majesta. Ainda estava a chuviscar quando lá chegou. Os passeios estavam cobertos de folhas molhadas. Havia luzes acesas em muitos dos apartamentos, muito embora ainda não fosse uma da tarde. Encontrou a casa - um apartamento no primeiro andar num prédio de tijolo vermelho com três andares - e tocou à campainha. Os cortinados da sala de estar estavam abertos. Do lado de fora da porta via obliquamente para dentro da sala. Duas garotas - de 8 e 6 anos, respectivamente, calculou -estavam sentadas no chão a ver desenhos animados na televisão. A mais velha deu uma cotovelada à irmã mais nova quando ouviu a campainha, obviamente para que fosse ela a ir à porta. A garota mais nova fez uma careta, pôs-se de pé e dirigiu-se para a parte da frente do apartamento, saindo do ângulo de visão de Annie. Algures do interior, uma voz de mulher gritou:
- Uma de vocês atenda Aporta, sim?
- Já vou, mãe! - respondeu a garota mais nova, já perto da porta. -Quem é? - perguntou.
- Uma agente da Polícia - disse Annie.
- Só um momento - disse a garota.
Annie esperou. Ouvia vozes no interior, a garota a dizer à mãe que era a Polícia, a mãe a dizer à garota que voltasse para a sala e que continuasse a ver televisão.
Já junto da porta, a mulher perguntou:
- Sim, quem é, por favor?
- Polícia - disse Annie. - Importa-se de abrir a porta?
A mulher que abriu a porta estava obviamente grávida e possivelmente na iminência de dar à luz. Era quase uma da tarde, mas ela ainda estava de robe por cima da camisa de noite e estava bastante inchada. A barriga enorme começava algures por baixo dos seios e projectava-se para a frente, dando-lhe o ar de um dirigível com rosto de boneca e uma boca com os lábios em forma de coração, sem bâton, sem qualquer maquilhagem nos olhos ou nas faces.
- Sim - disse ela.
- Venho falar com Arthur Haines - disse Annie. - Ele está?
- Eu sou Lois Haines, a mulher dele. Que é que se passa?
- Gostaria de falar com ele - disse Annie.
- Acerca de quê? - perguntou Lois.
Estava à entrada da porta como um elefante zangado, a franzir as sobrancelhas, obviamente aborrecida com aquela intromissão num sábado chuvoso.
- Gostaria de lhe fazer algumas perguntas - disse Annie.
- Sobre quê? - insistiu Lois.
- Minha senhora, importa-se que eu entre?
- Mostre-me o seu distintivo.
Annie abriu a carteira e tirou a pequena protecção de couro à qual estava preso o distintivo. Lois estudou-o atentamente e depois disse:
- Bom, gostava que me dissesse o que é que...
- Quem é, querida? - gritou uma voz de homem.
Por detrás de Lois, que continuava à entrada da porta a impedi-la de entrar, agora numa atitude beligerante, com os ombros puxados para trás e a barriga agressivamente espetada, Annie viu um homem alto, de cabelos escuros, a aproximar-se, vindo da parte de trás do apartamento. Lois desviou-se ligeiramente, virando-se para ele, e Annie conseguiu então vê-lo bem enquanto se aproximava. Trinta e poucos anos, calculou. No mínimo um metro e oitenta. Pesaria muito perto dos noventa quilos. Cabelo castanho e olhos azuis.
- Esta mulher quer falar contigo - disse Lois. - Diz que é polícia. Annie achou graça à expressão utilizada, «polícia» em vez de «mulher-polícia», mas não sorriu. Estava a observar Haines atentamente que, entretanto, entrara no pequeno hall com um sorriso simpático no rosto.
- Então entre - disse ele. - Em que é que estás a pensar, Lois? Não vês que está a chover? Entre, entre - disse, estendendo a mão enquanto a mulher se desviava para o lado. - Que é que se passa? - disse, apertando a mão a Annie. - Estacionei num lugar proibido? Tinha ideia de que o lado oposto ao do regulamento oficial não se aplicava aos fins-de-semana.
- Não sei onde é que estacionou o seu carro - disse Annie. - Não estou aqui por causa do seu carro, Mr. Haines.
Os três formavam um grupo inquieto ali no pequeno hall de entrada, com a porta fechada para a chuva não entrar, as duas garotas desviando a atenção dos desenhos animados para a visita que dissera ser polícia. Nunca tinham visto uma mulher polícia a sério. Ela nem sequer parecia polícia. Estava de gabardina e tinha os óculos molhados da chuva. Trazia uma carteira ao ombro esquerdo. Calçava sapatos de salto baixo. As duas garotas acharam que era parecida com a tia Josie do Maine. A sua tia Josie era assistente social.
- Bom, então de que é que se trata? - perguntou Haines. - Em que é que lhe podemos ser úteis?
- Há algum sítio onde possamos falar em particular? - perguntou Annie, olhando de relance para as garotas.
- Claro, vamos para a cozinha - disse Haines. - Querida, ainda há algum café? Quer um café, Miss?... Desculpe, mas não sei o seu nome.
- Detective Anne Rawles - disse Annie.
- Bom, venha comigo - disse Haines.
Foram para a cozinha. Annie e Haines sentaram-se à mesa. Ao ver Lois dirigir-se para o fogão, Annie disse:
- Obrigada, Mrs. Haines, mas não quero café.
- Foi feito esta manhã - disse Lois.
- Obrigada, mas não, Mr. Haines - disse Annie. - Escreveu a uma organização chamada A. I. M. solicitando uma lista com os nomes das pessoas que lhe fizeram donativos?
- Sim, de facto escrevi - disse Haines com uma expressão admirada. A mulher estava junto ao fogão a observá-lo.
- Como é que tencionava utilizar essa lista? - perguntou Annie.
- Estava a preparar um artigo sobre as atitudes e opiniões de apoiantes da causa pró-vida.
- Para uma revista, certo?
- Sim.
- Mr. Haines, o senhor é escritor?
- Não, sou professor.
- Onde é que ensina, Mr. Haines?
- Na Oak Ridge Middle School.
- Aqui em Majesta?
- Sim, a pouco mais de um quilómetro daqui.
- Escreve artigos para revistas com frequência, Mr. Haines?
- Bom... - disse ele, olhando de relance para a mulher como se estivesse a pensar se havia ou não de mentir. Ela continuava a observá-lo atentamente. - Não - disse ele —, não o faço frequentemente.
- Mas achou que gostaria de escrever este determinado artigo...
- Sim, gosto da revista. Não sei se conhece, chama-se Our Right e é publicada por uma organização sem fins lucrativos em...
- Portanto fez um donativo de cem dólares à A. I. M. e pediu que lhe fosse enviada a sua lista de mailing, certo?
- Sim.
- Deste cem dólares a alguém? - disse Lois.
- Sim, querida, disse-te na altura.
- Não, não disseste - disse ela. - Cem dólares - repetiu, abanando a cabeça, espantada.
- Quanto é que esperava receber com o artigo que estava a escrever? - perguntou Annie.
- Não sei quanto é que pagam - respondeu Haines.
- A revista sabia que o senhor estava a escrever o artigo?
- Bem, não, não sabia. Tencionava escrevê-lo e apresentá-lo.
- Mandá-lo para a revista.
- Sim.
- Na esperança de que o aceitassem.
- Sim.
- Chegou de facto a escrever o artigo, Mr. Haines?
- Hum... não... acabei por não escrever. Estou envolvido em actividades extracurriculares na escola, sabe? Ensino Inglês e sou consultor do jornal da escola e também consultor do grupo de teatro e do grupo de debates, portanto tenho a minha vida muito ocupada. Mas hei-de escrevê-lo.
- Já contactou alguma das pessoas cujo nome conste da lista de mailing que a A. I. M. lhe mandou?
- Não, ainda não - disse Haines. - Mas fá-lo-ei. Como já disse, quando tiver tempo...
- Qual ia ser o tema desse artigo? - perguntou Lois.
- Hum... a defesa da vida - disse Haines. - O movimento pró-vida. Os objectivos e as atitudes de... hum... mulheres que... hum...
- Desde quando é que te tornaste defensor da vida? - perguntou Lois.
- Bem, é uma questão sobre a qual tenho um certo interesse - disse Haines.
A mulher olhou para ele.
- Há muito tempo que me interessa - disse ele, pigarreando para clarear a garganta.
- Isso para mim é novidade. Levantaste tantos problemas por causa deste - disse Lois, agarrando a barriga como se esta fosse uma melancia demasiado madura.
- Lois...
- Para mim é completa novidade - disse ela, revirando os olhos. -Devia tê-lo ouvido quando lhe disse que estava grávida de novo - disse a Annie.
Annie estava a observá-lo.
- Estou certo de que isso não tem o menor interesse para Miss Rawles - disse Haines. - Para ser franco, Miss Rawles, ou devo tratá-la por detective Rawles?
- Como quiser - disse Annie.
- Bom, Miss Rawles, importa-se de me dizer porque é que cá veio? A minha carta para a A. I. M. causou algum problema? Com certeza que um pedido inócuo de uma lista de mailing...
- Não consigo entender como é que pudeste pagar cem dólares por uma lista de mailing - disse Lois.
- Foi uma contribuição deductível nos impostos - disse Haines.
- A uma organização pro-vida? - disse Lois, abanando a cabeça. Não consigo acreditar. - Virou-se para Annie e disse: - Uma pessoa vive dez anos com um homem e continua a não o conhecer, não acha?
- Acho - disse Annie. - Mr. Haines, sabe se os nomes que vou dizer em seguida constam da lista de mailing que recebeu da A. I. M.? Abriu o bloco de notas e começou a ler: Lois Carmody, Blanca Diaz, Patrícia Ryan...
- Não, não conheço esses nomes.
- Não lhe perguntei se os conhecia, Mr. Haines. Perguntei-lhe se constam da tal lista que recebeu da A. I. M.
- Teria de consultar a lista - disse Haines. - Isto se a conseguir encontrar.
- Vivienne Chabrun? - perguntou Annie. - Angela Ferrari? Terry Cooper...
- Não, não conheço essas pessoas.
- Cecily Bainbridge, Mary Hollings, Janet Reilly?
- Não - disse Haines. -Eileen Burke?
Ele mostrou-se intrigado durante alguns instantes.
- Não - disse. - Nenhuma delas.
- Mr. Haines - disse Annie lenta e deliberadamente -, pode-me dizer onde esteve ontem à noite entre as sete e trinta e as oito horas?
- Na escola - disse Haines. - Os alunos imprimem o jornal à sexta-feira à noite. Foi lá que eu estive. Na sala do jornal na Oak Ridge Middle...
- A que horas é que saiu de casa ontem à noite, Mr. Haines?
- Bom, nem sequer vim a casa. Tinha uns pontos para corrigir e fui directamente da sala de professores para a sala do jornal. Para me reunir com os alunos.
- A que horas foi isso, Mr. Haines? A que horas é que se reuniu com os alunos?
- Oh, às quatro. Quatro e meia. São alunos muito empenhados e tenho um grande orgulho no jornal. Chama-se Oak Ridge...
- A que horas é que chegou a casa ontem à noite, Mr. Haines?
- Bem, só demoro dez minutos a cá chegar. Fica a pouco mais de um quilómetro de distância. A mil quatrocentos e cinquenta metros, para ser preciso.
- E então a que horas é que chegou a casa?
- Às oito? Não foi por volta das oito, Lo?
- Quase às dez - disse Lois. - Eu já estava deitada.
- Sim, por volta dessa hora - disse Haines. - Entre as oito e as dez.
- Eram exactamente dez para as dez - disse Lois. - Olhei para o relógio quando te ouvi entrar.
- Portanto esteve na sala do jornal da escola...
- Sim, estive.
- Desde as quatro horas de ontem à tarde...
- Bom, diria quatro e meia. Diria que eram quatro e meia.
- Das quatro e meia às nove e quarenta. Disse que levava dez minutos a chegar a casa e eram nove e cinquenta quando chegou...
- Bom, se a Lois tem a certeza de que foi a essa hora. Eu diria que tinha sido mais perto das oito. Quando cheguei a casa, quero dizer.
- Quase cinco horas - disse Annie. - Demora assim tanto tempo a montar um jornal?
- Bem, varia.
- E afirma que esteve a trabalhar com os alunos durante todo esse tempo ?
- Sim.
- Com os alunos que editam o jornal.
- Sim.
- Importa-se de me dar os nomes deles, Mr. Haines?
- Para quê?
- Gostaria de falar com eles.
- Porquê?
- Quero saber se o senhor esteve realmente onde afirma que esteve ontem à noite.
Haines olhou para a mulher. Depois olhou de novo para Annie.
- Eu... não vejo qualquer necessidade de averiguar onde estive -disse. - Continuo sem saber o que é que cá veio fazer. Para ser franco...
- Mr. Haines, esteve em Isola ontem à noite? Nas proximidades de 1840 Laramie Crescent, entre as sete e trinta e...
- Já lhe disse que estive...
- Mais concretamente, esteve num beco...
- Não seja absurda.
- ... a duas portas de 1840 Laramie Crescent...
- estive...
- ... a anavalhar e a violar uma mulher que pensava ser Mary Hol-lings?
- Não conheço ninguém chamado...
- A qual já anteriormente violara a 10 de Junho, a 16 de Setembro e a 7 de Outubro?
A cozinha ficou em silêncio. Haines olhou para a mulher,
- Estive na escola ontem à noite - disse-lhe.
- Então diga-me os nomes dos alunos com quem esteve a trabalhar - disse Annie.
- Estive na maldita escola'. - gritou Haines.
- Lavei a tua camisa esta manhã - disse Lois baixinho. Olhava-o fixamente. - Tinha sangue no punho. - Baixou o olhar. - Tive de a lavar com água fria para o sangue sair.
Uma das garotas apareceu à porta da cozinha.
- Que foi? - perguntou com um ar muito admirado.
- Mr. Haines - disse Annie -, tenho de lhe pedir que me acompanhe.
- Que é que foi? - voltou a perguntar a garota.
- Se quer saber porquê - disse ele para o gravador -, eu dir-lhe-ei porquê. Não tenho nada a esconder, nada de que me envergonhe. Se houvesse mais pessoas a agir como eu, não estaríamos cheios desses malditos grupos que tentam forçar os outros a aceitar as suas ideias idiotas. Comparativamente, não prejudiquei ninguém. Isto quando se pensa em todas as pessoas que eles estão a prejudicar. Sou praticamente um santo. Digam-me quem é que eu prejudiquei? Não estou a falar das duas que tive de anavalhar. Isso foi para me proteger, foi de certa forma em defesa própria. Mas não prejudiquei nenhuma das outras, a única coisa que fiz foi tentar mostrar-lhes como a sua posição estava irrada. Como por vezes é essencial fazer um aborto. Às vezes parece que não conseguem meter isso nas suas cabeças duras. Quis provar-lhes isto de uma forma inequívoca. Queria que ficassem grávidas de um violador. Queria que se vissem forçadas a fazer um aborto... você quereria o bebé de um homem que a violara? Você daria à luz o bebé a um violador? Tenho a certeza de que não. E tinha a certeza de que elas também não, e foi por isso que organizei tudo para que, mais cedo a mais tarde, acabassem por ficar grávidas. Se as violasse vezes suficientes, tinham de engravidar. As probabilidades eram de sessenta para quarenta para engravidarem. Era tão simples como isso.
Quer saber uma coisa? Nenhum dos meus filhos nasceu por ter sido planeado. As duas garotas que viu? Ambas devido a um acidente. O que a minha mulher tem na barriga? Um acidente. Ela é católica, e a única coisa que concorda em utilizar é o método do ritmo. Uma pessoa acharia que depois de tudo o que aconteceu ela já teria percebido que aquela maldita'coisa não resulta - um bebé 16 meses depois de cairmos, outro dois anos depois. É suposto uma pessoa aprender com experiência, não é? Tentei sempre fazê-la perceber. Toma a pílula, õe um diafragma, deixa-me eu usar preservativos. Não, não. É contra ; regras da igreja, sabe. Só o método do ritmo é que é aceite. Ou então a abstinência. Grandes alternativas, hem? Ritmo ou abstinência, tenho 31 anos e tenho filhos desde os 23; uma maravilha, não é? agora outro para nascer. Disse-me em Fevereiro. Vamos ter outro filho, querido. Maravilhoso. Realmente maravilhoso. Era mesmo o que ele precisava, outro filho. Pedi-lhe que abortasse. Até parecia que lhe stava a pedir para se ir afogar. Um aborto! És doido? Um aborto? ) aborto é legal, disse-lhe eu. Não estamos na Idade Média, disse-lhe. Não é preciso aceitar uma gravidez se a criança for uma sobrecarga. Não é de todo preciso. Ela disse-me que a igreja era contra o aborto. Disse que muitas pessoas que até não eram católicas eram contra o aborto e estavam a esforçar-se por alterar a lei. Ela disse que o maldito residente dos Estados Unidos não concordava com o aborto! Eu disse-lhe que o presidente ganhava vinte mil por ano, disse-lhe que o presidente não andava a trabalhar que nem um mouro para alimentar, vestir e criar uma família, disse-lhe que o presidente não era eu, Artur Haines, que não queria mais filhos! Tenho 31 anos e terei perto de 50 quando este entrar para a universidade. Ela disse-me que tivesse paciência, porque íamos ter outra criança, e era melhor que eu me fosse habituando à ideia.
»E habituei-me à ideia, lá isso habituei. Mas não à dela. A minha. uma ideia que já tinha há muito tempo. Pôr essas malditas mulheres que andam por aí aos gritos não ao aborto, não ao aborto, numa situação em que tivessem de abortar. Fazer que sentissem como era na própria pele. Escrevi ao Right to Life e tentei obter a lista de mailing deles, mas disseram-me que tinha de fazer o pedido em papel timbrado de uma organização e tinha de lhes dizer como é que tencionava utilizar a lista. Bom, não o podia fazer. Está a ver, como é que eu podia fazer isso? Portanto recorri a este grupo local, A. I. M.
- Against Infant Murder, que tal o nome, hem? - e disse-lhes que estava a escrever um artigo para uma revista defendendo o movimento pró-vida e que queria entrar em contacto com mulheres que apoiavam o movimento para compreender as suas profundas convicções, enfim, toda essa conversa fiada, e eles responderam-me dizendo que não podiam enviar a lista a ninguém que não tivesse previamente contribuído com pelo menos cem dólares como apoio à organização. Achei que cem dólares era um preço baixo para aquilo que tencionava fazer, para aquilo que sabia que tinha de fazer.
»A lista de mailing não continha qualquer indicação das suas crenças religiosas. Tinham que ser todas católicas, está a ver. Quero dizer, se uma das mulheres fosse protestante ou qualquer outra coisa, podia apoiar um grupo pró-vida e simultaneamente usar um diafragma, está a perceber o que quero dizer? A minha ideia era engravidâ-las. Se eu escolhesse uma baptista ou uma hindu estaria a desperdiçar tempo e energia para nada se ela tomasse a pílula ou tivesse um dispositivo intra-uterino. Seria uma perda de tempo. Portanto averiguei bem, nem me dei ao trabalho de considerar as que tinham um apelido como Kaplowitz ou Cohen, pois sabia à partida que eram judias, e não demorei muito tempo a descobrir quais as que iam à Igreja Católica ao domingo de manhã e as que não iam. Escolhi as católicas. Escolhi todas as católicas que tinham contribuído para a A. I. M. As católicas eram o meu alvo. Queria mostrar-lhes primeiro que podiam utilizar o método do ritmo e que não servia para nada e queria mostrar-lhes depois que estavam completamente enganadas em relação ao aborto, pois se tivessem de abortar, abortariam mesmo e rapidamente.
»Foi mera coincidência a primeira chamar-se Lois.
»Quero dizer, a minha mulher chama-se Lois, mas não foi por causa disso que escolhi a Lois Carmody. Quero dizer, foi mera coincidência. Lois Carmody. Bom, era esse o nome dela. Vivia aqui perto, e das primeiras vezes não queria estar muito tempo fora de casa. Não queria ter de dar milhentas explicações. Quero dizer, depois afinei melhor as coisas porque nem todas viviam a meia hora de distância de minha casa. Tinha de arranjar pretextos plausíveis para sair de casa, está a perceber? Portanto afinei as coisas de forma a não ter problemas em casa. Problemas tinha eu de sobra, acredite, mas ela nunca soube o que eu andava a fazer, a minha mulher, isto é, sabe que uma vez me acusou de ter uma amante? Engraçado, não é? Uma amante? Bom, se quisermos ser rigorosos, eu tinha uma série de amantes. Bom, mas quando me acusou disso não tinha assim tantas, pois foi antes das férias de Verão. Não trabalho em Julho e Agosto e normalmente vamos para o Maine passar as férias com os pais dela. Odeio ir para lá, mas que outras férias é que posso fazer com o que ganho? Seja como for, foi em Junho que ela me acusou de ter uma amante. Só voltei a fazer aquilo a Mary e depois a Janet, depois do início do ano lectivo.
«Consegui engravidar uma à primeira vez.
»Ela não consta da vossa lista de nomes. Acho que só procuraram as que foram violadas repetidas vezes, hem? É espantoso como é que me descobriram. Realmente espantoso! Vocês devem trabalhar muito. Bom, apanhei essa mulher, chamava-se Joanna Little, e está na lista de mailing, mas não na lista que me leu, e engravidei-a logo à primeira, na única vez em que a violei, em Março. Ela foi uma das primeiras. Tencionava apanhá-la segunda vez... não resulta a menos que se consulte o calendário e se faça a coisa sistematicamente, mas quando a voltei a seguir na rua dei com ela grande como uma casa! Tinha-a engravidado à primeira. Acontece, sabe! E depois soube que tinha feito um aborto porque a segui até uma clínica num sábado e, adeus barriga, desapareceu. Consegui o que queria, não vê. Resultou. Engravidei-a e forcei-a a fazer um aborto. Que grande católica! Que grande defensora da vida! Desenvencilhou-se do bebé da mesma forma como deitaria fora um par de meias velho. Nessa noite embebedei-me. Cheguei a casa bêbado como um cacho, bom, foi o diabo com a Lois, mas a Lois que se lixasse, a ter crianças umas atrás das outras como se fosse uma linha de montagem. Mas foi um golpe de sorte engravidar a Joanna à primeira vez. Eu sabia que tinha sido sorte.
»O que é preciso é estudar o calendário e assentar todas as vezes que as apanhamos. Quero dizer, planeia-se tudo com antecedência. E preciso apanhá-las na altura certa do ciclo, está a ver? Ouça, eu sei tudo acerca do método do ritmo, sou perito no método do ritmo. O ciclo menstrual de uma mulher, não interessa se é de vinte e oito dias ou de trinta dias, determina que uma mulher normalmente começa a ovulação no décimo segundo dia do ciclo. Esses são os dias cruciais, o décimo segundo, o décimo terceiro e o décimo quarto. Pode-se aumentar ligeiramente esse tempo, digamos do décimo primeiro ao décimo quinto, ou mesmo até ao décimo sexto dia, nalguns casos. Mas achei que o décimo primeiro e o décimo quinto eram os dias-limite. O óvulo tem uma duração de vida de cerca de doze horas e o esperma cerca de vinte e quatro, embora alguns médicos digam que o esperma pode durar com vida até setenta e duas horas. Bom, mas se não se quiser correr riscos desnecessários, a melhor altura é do décimo primeiro ao décimo quinto dia do ciclo menstrual. É nessa altura que têm mais probabilidades de engravidarem... quando estão no período de ovulação.
Bem, não podia chegar ao pé dessas mulheres e perguntar-lhes quando é que tinham tido o período, pois não? Quero dizer, isso estava fora de questão. Eram estranhas, não as conhecia. Não era o mesmo que perguntar à nossa mulher ou namorada, quando se vive e dorme com elas e se sabe quando estão para ter o período. Não era a mesma coisa. Essas mulheres eram totais estranhas, compreende? Portanto tive de fazer contas de forma a apanhá-las quando estavam maduras e o que fiz... bom, foi estudar o calendário.
»Vejamos... bom, consideremos o caso de Agosto, que é fácil porque o dia um calhou numa segunda-feira. Estive ausente em Agosto, estive no Maine. Estou apenas a dar um exemplo. Mas... bom, em Agosto o dia 1 calhou numa segunda-feira. Digamos também, para facilitar as coisas, que esse dia também é o primeiro dia do ciclo menstrual dessa determinada mulher. OK, violo-a nessa segunda-feira à noite. Na segunda-feira seguinte é dia oito, que é o oitavo dia do seu ciclo menstrual. Estou a tornar isto fácil para me poder acompanhar. Na segunda-feira a seguir a essa é dia 15. Está a ver? Apanhei-a no décimo quinto dia, que é um os dias do período de ovulação. Óptimo. Num caso desses, nem sequer teria que a tentar apanhar uma quarta ou quinta vez. Mas se se organizar tudo de acordo com o calendário, mais tarde ou mais cedo engravidamo-la.
Por exemplo, em Agosto, o dia 22 seria o vigésimo segundo dia do seu ciclo. Na segunda-feira seguinte é dia 29, o que para algumas mulheres seria o início de um novo ciclo, mas varia. Portanto, digamos que o ciclo recomeça na segunda-feira, dia 29 de Agosto. Se passarmos ao mês de Setembro... bom, a segunda-feira seguinte é dia 5, o que representa o oitavo dia do seu ciclo. A segunda-feira seguinte é dia 12, que é o décimo quinto dia do seu ciclo, portanto aqui temos... bingo! Os meus cálculos não falham. Quero dizer, se seguisse um calendário rigorosamente elaborado, elas tinham de engravidar mais cedo ou mais tarde. E, a menos que quisessem ter o bebé de um violador, também, tinham de abortar.
»Era tão simples como isso.
»Fi-lo para mostrar a essas pessoas como estão enganadas.
»Para lhes mostrar que não podem simplesmente impor a sua vontade aos outros.
»Para lhes meter na cabeça o facto de estarmos numa democracia e que numa democracia existe liberdade de escolha para cada um e para todos.»
Annie leu a transcrição dactilografada da confissão de Haines.
Leu-a uma segunda vez.
Haines achava que o certo estava errado.
O certo achava que estava certo.
Annie achava que estavam ambos errados.
Por vezes pensava o que é que aconteceria se as pessoas decidissem deixar as outras pessoas em paz.
O vento e a chuva tinham parado.
Em Grover Park, do outro lado da rua da 87.ª Esquadra, as árvores estavam nuas e o chão estava coberto de folhas mortas. - Bom - disse Meyer -, pelo menos a chuva parou. Estavam todos a pensar que o Inverno se aproximava.
Havia uma certa perturbação na esquadra nessa tarde de sábado. Todos sabiam o que acontecera a Eileen Burke. Sabiam também que Annie Rawles tinha apanhado o violador. Mas não sabiam o que é que Kling sentia ou o cuidado que teriam de ter quando a questão da violação de Eileen fosse finalmente discutida abertamente. Naquele momento ele estava no hospital. Tinha lá ido de manhã cedo e estava lá novamente, portanto ainda tinham tempo para reflectir e descobrir qual a melhor forma de abordarem a questão. Uma pessoa não se dirige simplesmente a alguém cuja namorada foi violada e diz:
- Olá, Bert, parece que a chuva parou. Ouvi dizer que a Eileen foi violada. - Havia formas de abordar este tipo de problemas, estavam seguros de que havia, mas ainda não tinham descoberto a forma de o abordar.
Isto até Ollie Weeks, o Gordo, telefonar.
- Olá, Steve-a-rino, como vais? - disse ao telefone.
- Vou andando - disse Carella. - E tu?
- Óptimo, óptimo, com a merda do costume por aqui - disse Ollie.
- Tenho de te dizer que estou seriamente a pensar em pedir transferência para a Oito-Sete. Gosto mesmo de trabalhar com vocês, meu rapaz.
Carella ficou calado.
- Viste os jornais de hoje? - perguntou Ollie.
- Não - disse Carella.
- Estão cheios do nosso tarado do Assassino Papa-Léguas - disse Ollie. - Todos os cabeçalhos dizem «Relâmpago Fulmina Segunda Vez.» Creio que conseguiu o que queria, hem? Voltou a ser famoso.
- Se isso é ser famoso - disse Carella.
- Pois, bom, mas quem sabe como é que estes tarados funcionam?
- disse Ollie, acrescentando depois num tom absolutamente casual: -Ouvi dizer que a miúda do Kling foi fodida ontem à noite.
Caiu sobre a linha um silêncio tão vasto como a Sibéria. Finalmente, Carella disse:
- Ollie, nunca mais voltes a dizer isso.
- O quê? - disse Ollie.
- O que acabaste de dizer. Nunca mais deixes que essas palavras te saiam da boca, Ollie, ouviste bem? Nunca mais as repitas a ninguém no mundo. Nem sequer à tua mãe. Fui claro?...
- A minha mãe já morreu - disse Ollie.
- Fui claro? - disse Carella.
- Qual é o problema? - disse Ollie.
- O problema é que ela é um dos nossos - disse Carella.
- Bom, ela é polícia, grande coisa. O que é que isso?...
- Não, Ollie - disse Carella. - Ela é um dos nossos. Percebeste bem isso, Ollie?
- Sim, sim, percebi. Descontrai-te, homem. Os meus lábios estão selados.
- Espero bem - disse Carella.
- Caramba, hoje estás cá com um mau feito - disse Olhe. - Telefona-me quando estiveres mais bem-disposto, OK?
- Sim - disse Carella.
- Ciao, paisan - disse Ollie, desligando. Carella pousou o auscultador com cuidado.
Estava a pensar se Kling estaria a sofrer, todos eles estavam a sofrer. Na realidade era tão simples como isso.
- A melhor coisa acerca do Relâmpago é que não era o Homem Surdo - disse Hawes.
- Também estava com medo de que fosse ele - disse Meyer.
- Eu também - disse Carella.
- Parecia o estilo do tipo - disse Brown.
- Alguém quer café? - perguntou Meyer.
- Mesmo assim foi mau - disse Hawes.
- Podia ter sido pior - disse Brown.
- Podia ter sido mesmo o Homem Surdo - disse Carella.
Miscolo saiu da secretaria e dirigiu-se para a sala dos agentes. Empurrou a porta da divisória de madeira e foi direito à secretária de Carella.
- És mesmo o homem que queríamos - disse Meyer. - Tens algum café a fazer na secretaria?
- Pensei que não gostasses do meu café - disse Miscolo.
- Adoramos o teu café - disse Brown.
- Se queres café, vai ao restaurante ao fim da rua - disse Miscolo.
- Está a ficar frio lá fora - disse Hawes.
- Não preciso de clientes sazonais - disse Miscolo. - Isto é para ti, Steve. O sargento mandou-o cá para cima há pouco. - Atirou um sobrescrito branco para cima da secretária. - Não tem remetente.
Carella olhou para a parte da frente do sobrescrito. Estava endereçado a si, com a morada da 87.ª Esquadra. Tinha o carimbo dos correios de Isola.
- Abre-o - disse Miscolo. - Estou a morrer de curiosidade.
- A Teddy sabe que tens uma namorada que te escreve para cá? perguntou Hawes, piscando o olho a Meyer.
Carella abriu-o.
- Que é que fizeste ao teu tapete? - perguntou Brown a Meyer. Com este tempo devias usá-lo.
Carella desdobrou a única folha de papel que estava dentro do sobrescrito. Ficou a olhar para ela. Meyer reparou que ele empalidecera subitamente.
- Que é? - perguntou.
Fez-se imediatamente silêncio na sala. Os homens rodearam a secretária onde Carella continuava a segurar a folha de papel. A Hawes pareceu-lhe que a mão lhe tremia. Olharam todos para a folha de papel:
- Oito cavalos pretos - disse Meyer. - O Homem Surdo - disse Brown. Voltara.
Ed McBain
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