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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CROMOSSOMO 6 - P.2 / Robin Kook
CROMOSSOMO 6 - P.2 / Robin Kook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

6 DE MARÇO, 1997 - 19:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

— A que horas espera os seus convidados? — perguntou Esmeralda a Kevin. A cabeça dela e o seu corpo estavam envolvidos num bonito tecido cor de laranja.

— Às sete horas — respondeu Kevin, feliz pela interrupção. Tinha estado sentado à secretária, tentando enganar-se a si próprio com a leitura de um jornal de biologia molecular. Na verdade, estava torturado por repetidamente tentar rever as atormentadoras cenas daquela tarde.

Ainda via os soldados com as boinas vermelhas e fardas camufladas, que pareciam surgir não se sabia de onde. Ainda ouvia o bater das botas na terra lamacenta e o tilintar do equipamento quando eles corriam. Pior ainda, ele sentia o mesmo terror nauseabundo que sentira quando deu meia volta tentando escapar, enquanto esperava, a qualquer momento, ouvir o ribombar das metralhadoras.

 

 

 

 

A correria através da clareira para chegar até à viatura e a selvática corrida de carro foram um anticlimax em relação ao susto inicial. As janelas a serem atingidas pelos tiros tiveram uma qualidade quase surrealista, que não se podia comparar com o que ele sentira quando entreviu aqueles soldados.

Mais uma vez, Melanie reagira ao acontecimento de um modo completamente diferente de Kevin. Kevin perguntava-se se o facto de ela ter crescido em Manhattan a teria, de certo modo, insensibilizado para tais circunstâncias. Em vez de expressar medo, Melanie estava mais furiosa do que receosa. Estava furiosa pela deliberada destruição feita pelos soldados daquilo que ela considerava propriedade sua, embora o carro tecnicamente pertencesse à Gensys.

— O jantar está preparado — disse Esmeralda. — Vou mantê-lo aquecido.

Kevin agradeceu à sua atenciosa governanta, e ela desapareceu para a cozinha. Pondo o jornal de lado, Kevin levantou-se da secretária e foi até à varanda. A noite tinha caído e ele começava a ficar preocupado com a demora de Melanie e Candace.

A casa de Kevin ficava em frente de um parque relvado iluminado por quatro lampiões antigos. Logo do outro lado do parque ficava a casa de Siegfried Spallek. Era semelhante à de Kevin, com uma arcada no primeiro piso, uma varanda em volta do segundo, e janelas de sótão no inclinado telhado. De momento, havia luzes apenas no lado da cozinha. Aparentemente, o gerente ainda não tinha chegado a casa.

Ouvindo gargalhadas vindas do lado esquerdo, Kevin voltou-se em direcção à marginal. Tinha caído uma chuvada tropical durante cerca de uma hora que parara havia apenas quinze minutos. O empedrado da rua fumegava, visto que estavam ainda muito quentes do sol. Nessa neblina luminosa caminhavam as duas amigas, de braço dado, rindo alegremente.

—Ei, Kevin!—gritou Melanie, avistando Kevin na varanda. — Como é que se explica que não tenhas enviado a carruagem?

Estavam agora justamente por debaixo do local onde se encontrava Kevin, que se sentia embaraçado pela folia delas.

— Que estás para aí a dizer? — perguntou Kevin.

— Bem, não esperavas que ficássemos encharcadas, pois não? — gracejou Melanie. Candace ria-se com um riso abafado.

— Subam — encorajou Kevin. Os seus olhos vaguearam pelo parque na esperança de que os vizinhos não tivessem sido perturbados.

As duas subiram as escadas com grande animação. Kevin recebeu-as no vestíbulo. Melanie insistiu em dar um beijo em ambas as faces de Kevin. Candace fez o mesmo.

— Desculpa o atraso — disse Melanie. — Mas a chuva obrigou-nos a procurar protecção no Huty Chickee.

— E um simpático grupo de homens da frota dos camiões insistiu em oferecer-nos coladas—disse Candace, alegremente.

— Não tem importância — disse Kevin. — Mas o jantar está pronto.

— Fantástico! — disse Candace. — Estou esfomeada.

— Eu também — disse Melanie. Ela curvou-se para a frente e tirou os sapatos. — Espero que não te importes que eu fique descalça. Os meus sapatos ficaram um pouco molhados no trajecto para aqui.

— Os meus também—disse Candace, enquanto fazia o mesmo. Kevin indicou a sala de jantar e seguiu-as. Esmeralda tinha

posto a mesa numa das extremidades, visto que era uma mesa para doze. Uma pequena toalha cobria a área onde estavam os pratos. Havia também velas acesas em candelabros de vidro.

— Que romântico! — comentou Candace.

— Espero que não te tenhas esquecido do vinho!? — disse Melanie, enquanto se sentava na cadeira mais próxima.

Candace deu a volta e sentou-se do lado oposto a Melanie, deixando a cabeceira da mesa para Kevin.

— Branco ou tinto? — perguntou Kevin.

— Qualquer cor — disse Melanie. Depois riu-se.

— Que vamos comer? — perguntou Candace.

— É um peixe local — respondeu Kevin.

— Peixe! Mesmo apropriado — disse Melanie, o que fez ambas rirem-se ao ponto de chorarem.

— Não entendo — disse Kevin. Ele tinha a sensação de que quando estava com elas não conseguia controlar a situação e não acompanhava metade da conversa.

— Explicamos mais tarde — conseguiu dizer Melanie. — Vai buscar o vinho. É mais importante.

— Bebamos vinho branco — disse Candace.

Kevin foi à cozinha buscar o vinho que tinha previamente posto no frigorífico. Tentou não olhar para Esmeralda, preocupado com o que ela estaria a pensar destas duas convidadas um tanto ou quanto ébrias. Ele próprio não sabia o que pensar.

Enquanto abria o vinho, notou que elas continuavam na sua conversa animada e às gargalhadas. O lado positivo, era que com Melanie e com Candace nunca havia desconfortáveis silêncios.

— Que tipo de vinho vamos beber? — perguntou Melanie quando Kevin reapareceu. Kevin mostrou a garrafa. — Ena! — disse ela com fingida condescendência. — Montrachet! Mas que felizardas somos hoje.

Kevin não fazia ideia o que tinha escolhido da sua colecção de garrafas de vinho, mas estava contente por ter impressionado Melanie. Deitava o vinho nos copos quando Esmeralda apareceu com o primeiro prato.

O jantar foi um sucesso inqualificável. Até Kevin começou a relaxar depois de tentar acompanhar as duas senhoras no que dizia respeito ao vinho. A meio da refeição, foi obrigado a ir à cozinha buscar outra garrafa.

—Não advinhas quem estava no Huty?—disse Melanie, enquanto os pratos da entrada estavam a ser retirados.—O nosso destemido líder Siegfried.

Kevin sufocou com o vinho. Limpou a cara com o guardanapo.

— Não falaram com ele, pois não?

— Teria sido difícil não fazê-lo — disse Melanie. — Ele, graciosamente, perguntou se poderia juntar-se a nós e até pagou uma rodada, não só a nós duas mas também aos tipos da frota dos camiões.

— Aliás, foi muito simpático — disse Candace.

Kevin sentiu um calafrio na coluna. O segundo episódio do dia que o assustara tanto como o primeiro fora a visita ao gabinete de Siegfried. Mal tinha escapado dos soldados equatoguineenses, Melanie insistiu em ir lá. Por muito que Kevin tentasse, não conseguiu dissuadi-la.

“Eu não vou deixar que me tratem desta maneira”, dissera Melanie, enquanto subiam as escadas. Ela nem se preocupou em falar a Aurielo. Entrou de rompante no gabinete de Siegfried e exigiu que ele pessoalmente mandasse reparar o carro.

Candace tinha entrado com Melanie, mas Kevin deixou-se ficar para trás, observando por detrás da secretária de Aurielo.

—Ontem à noite perdi os meus óculos-de-sol—dissera Melanie. — Por isso, fomos lá para ver se os encontrávamos... e dispararam contra nós novamente!

Kevin esperava que Siegfried explodisse. Mas ele não o fez. Em vez disso, imediatamente pediu desculpa, e disse que os soldados estavam lá para evitar que alguém fosse à ilha, e que não deviam ter disparado. Concordou não só em mandar reparar o carro de Melanie como também em emprestar-lhe um. Também se ofereceu para mandar os soldados vasculharem a área à procura dos óculos dela.

Esmeralda apareceu com a sobremesa. As duas ficaram contentes. Era feita com cacau local.

— Ele mencionou alguma coisa sobre o que se passou hoje? — perguntou Kevin.

— Pediu desculpa novamente — disse Candace. — Disse que falou com os guardas marroquinos e assegurou-nos de que não haveria mais tiros. Disse que se alguém for encontrado a vaguear por lá, será apenas admoestado e avisado que a área é zona proibida.

—Isso é história—disse Kevin.—Desejosos de puxar o gatilho como estão aquelas crianças a quem eles chamam de soldados, isso não vai acontecer.

Melanie riu-se.

—Falando de soldados, Siegfried disse que eles passaram horas à procura dos supostos óculos-de-sol. É bem feito para eles!

— Perguntou se nós queríamos falar com alguns dos trabalhadores que tinham estado na ilha e que tinham andado a queimar mato rasteiro — disse Candace. — Acreditas?

— E que foi que vocês responderam? — interrogou Kevin.

— Dissemos-lhe que não era necessário — disse Candace. — Quero dizer, não queremos que ele se aperceba de que ainda continuamos preocupados com o fumo, e sobretudo não queremos que ele pense que estamos a planear visitar a ilha.

— Mas nós não estamos — disse Kevin. Ele olhou para as duas enquanto elas trocavam o olhar em conspiração.—Estamos?—No que lhe dizia respeito, ser alvejado duas vezes era mais do que suficiente para convencê-lo que visitar a ilha estava fora de questão.

— Picaste surpreendido por nós rirmos quando tu disseste que íamos comer peixe para o jantar — disse Melanie. — Lembras-te?

— Sim — disse Kevin com uma certa preocupação. Tinha a sensação nítida de que não ia gostar daquilo que Melanie tinha para lhe dizer.

— Nós rimos porque passámos a tarde a falar com pescadores que vêm ao Cogo duas vezes por semana — disse Melanie. — Provavelmente, os mesmos que apanharam o peixe que acabámos de comer. Vêm de uma cidade chamada Acalayong, a cerca de dez a doze milhas a leste daqui.

— Eu conheço a cidade — disse Kevin. — Era o lugar de transbordo das pessoas que iam da Guiné Equatorial a Cocobeach, no Gabão. O trajecto era feito em canoas chamadas pirogas.

— Alugámos um dos barcos deles por dois ou três dias — disse Melanie com orgulho.—Por isso, nem é necessário aproximarmos-nos da ponte. Podemos visitar a ilha Francesca por água.

— Eu não—disse Kevin, enfaticamente. — Para mim já chega! Francamente, penso que temos sorte em estarmos vivos. Se quiserem ir, vão... vão! Sei que nada do que eu possa dizer poderá ter qualquer influência sobre vocês.

— Oh, isso é fantástico! — disse Melanie, com ironia. — Estás a dar o fora! Se esse é o caso, como é que tencionas descobrir se tu e eu criámos uma raça de proto-humanos? Quero dizer, foste tu que levantaste a questão e que fizeste que ficássemos preocupadas.

Melanie e Candace encararam Kevin. Durante uns minutos, ninguém proferiu uma palavra. Os sons nocturnos da selva infiltravam-se, o que até então não tinha sido notado.

Sentindo-se cada vez mais constrangido, Kevin finalmente quebrou o silêncio.

— Ainda não sei o que vou fazer — disse ele. — Há-de ocorrer-me qualquer coisa.

— Pois claro que sim! — disse Melanie. — Tu próprio disseste que a única maneira de ficarmos a saber o que aqueles animais estão a fazer era visitando ilha. Essas foram palavras tuas. Já te esqueceste?

— Não, não esqueci — disse Kevin. — É só que... bem...

— Não faz mal — disse Melanie, de um modo condescendente. —Se és demasiado medricas para ir descobrir o que podes ter criado com os teus arranjos genéticos, tudo bem. Estávamos a contar contigo para manobrares o motor da piroga, mas está tudo bem. Candace e eu desembaraçamo-nos. Não é, Candace?

— Certo — disse Candace.

— Sabes, planeámos tudo muito cuidadosamente — disse Melanie. —Não só alugámos uma canoa grande, motorizada, mas até pedimos para eles trazerem uma versão mais pequena da piroga a remos. Planeámos rebocar o barco a remos. Uma vez chegados à ilha, subimos o rio Diviso no barco a remos. Talvez nem precisemos de ir a terra. Tudo o que queremos é observar os animais durante algum tempo.

Kevin anuiu com a cabeça. Olhava ora para uma ora para outra das suas convidadas, que o fixavam implacavelmente. Sentindo-se seriamente constrangido, arrastou a cadeira para trás e ia sair da sala.

— Onde vais? — perguntou Melanie.

— Buscar mais vinho — respondeu Kevin.

Com uma sensação estranha muito semelhante a ira, Kevin pegou numa terceira garrafa de vinho, abriu-a e trouxe-a para a sala de jantar. Fez um gesto com a garrafa em direcção a Melanie e ela acenou com a cabeça. Kevin encheu-lhe o copo. Fez o mesmo a Candace. Depois, encheu o seu.

Voltando para o seu lugar, Kevin sorveu um bom trago de vinho.

Tossiu um pouco depois de engolir e, em seguida, perguntou-lhes quando tencionavam ir na grande expedição.

— Amanhã, bem cedo — disse Melanie. — Calculamos que levaria um pouco mais de uma hora para chegarmos à ilha, e gostaríamos de estar de volta antes de o sol aquecer.

—Já trouxemos a comida e bebidas da cantina—disse Candace. — E eu trouxe uma caixa térmica do hospital para pôr tudo dentro.

— Ficamos muito longe da ponte e da área de acesso — disse Melanie. — Por isso, não haverá problemas.

—Penso que será uma paródia—disse Candace. —Adorava ver um hipopótamo.

Kevin bebeu mais um trago.

— Suponho que não te importas se levarmos aqueles aparelhinhos para localizar os animais—disse Melanie.—O mapa de perfil também nos fazia jeito. É claro, que teremos cuidado com tudo.

Kevin suspirou e enterrou-se na cadeira.

— Está bem, desisto. Para que horas está marcada a missão?

— Oh, que bom — disse Candace, batendo as palmas. — Eu sabia que virias.

—O Sol levanta-se depois das seis—disse Melanie.—Gostaria de estar no barco e pronta para partir por essa altura. O meu plano é ir para oeste, depois rodar bem em direcção ao estuário antes de irmos para leste. Assim, não levantamos quaisquer suspeitas aqui na cidade se alguém nos vir no barco. Quero que fiquem a pensar que vamos para Acalayong.

— E o trabalho?—perguntou Kevin. — Não vão dar pela nossa falta?

— Não — disse Melanie. — Eu disse no laboratório que estaria retida no centro dos animais. Enquanto às pessoas do centro disse...

— Já estou a ver — interpolou Kevin. — E tu, Candace?

— Não há problema — disse Candace. — Enquanto o Sr. Winchester se mantiver bem como até agora, estou praticamente desempregada. Os cirurgiões estão a jogar golfe e ténis todo o dia. Posso fazer o que quiser.

— Vou telefonar ao meu técnico-chefe — disse Kevin. — Vou dizer-lhe que estou a passar um mau bocado... com um ataque de loucura.

— Espera um segundo — disse Candace, repentinamente. — Acabo de pensar num problema.

Kevin sentou-se muito erecto.

— O quê? — perguntou ele.

— Não tenho protector solar — disse Candace. — Eu não trouxe nada, porque nas visitas anteriores nem vi o Sol.

 

6 DE MARÇO, 1997 - 14:30 CIDADE DE NOVA IORQUE

Com todos os testes de Franconi pendentes, Jack teve de ir para o seu gabinete e tentar concentrar-se noutros casos inacabados. Para surpresa sua, tinha feito um progresso razoável quando o telefone tocou às catorze e trinta.

— É o Dr. Stapleton? — perguntou uma voz feminina com sotaque italiano.

— É o próprio — disse Jack. — É a Sr.a Franconi?

—Imogene Franconi. Recebi uma mensagem para lhe telefonar. —Agradeço a atenção, Sr.a Franconi—disse Jack.—Primeiramente, deixe-me dar-lhe os meus pêsames pelo seu filho.

— Obrigada — disse Imogene. — Cario era um bom rapaz. Ele não fez nada daquelas coisas que os jornais dizem. Ele trabalhava para a Companhia American Fresh Fruit, aqui, em Queens. Não sei de onde veio todo esse boato de crime organizado. Os jornais só inventam histórias.

— É terrível aquilo que eles fazem para venderem jornais — disse Jack.

— O homem que esteve aqui esta manhã diz que recuperaram o corpo — disse Imogene.

—Pensamos que sim—disse Jack. — É por isso que precisamos de sangue seu para poder confirmar. Obrigado pela sua cooperação.

— Perguntei ao outro senhor por que não queriam que fosse novamente aí para poder identificar o corpo como da última vez!? — disse Imogene. — Mas ele disse-me que não sabia.

Jack pensou numa forma graciosa de explicar o problema da identificação, mas nada lhe ocorria.

—Ainda faltam algumas partes do corpo—disse ele vagamente, esperando que a Sr.a Franconi ficasse satisfeita.

— Oh! — comentou Imogene.

— Deixe-me explicar por que pedi que me telefonasse — disse Jack, rapidamente. Pensou que se a Sr.a Imogene ficasse ofendida, poderia não ser receptiva às suas questões.—Disse ao investigador que a saúde do seu filho tinha melhorado depois de uma viagem. Lembra-se de ter dito isso?

— Claro que me lembro — disse Imogene.

— Disseram-me que não sabe onde ele foi — disse Jack. — Haverá alguma maneira de poder descobrir?

— Penso que não — respondeu Imogene. — Ele disse-me que não tinha nada a ver com o trabalho, e que era muito pessoal.

— Lembra-se quando foi? — perguntou Jack.

— Não me lembro exactamente — respondeu Imogene. — Talvez há cinco ou seis semanas.

— Foi neste país? — perguntou Jack.

— Não sei — respondeu Imogene. — Tudo o que ele me disse é que era muito pessoal.

— Se descobrir onde foi, poderia telefonar-me? — pediu-lhe Jack.

— Suponho que sim — respondeu Imogene.

— Muito obrigado — disse Jack.

— Espere — disse Imogene. — Lembrei-me de repente que ele disse qualquer coisa estranha justamente antes de partir. Disse-me que se não voltasse que gostava muito de mini.

— Isso surpreendeu-a? — perguntou Jack.

— Bem, surpreendeu — disse Imogene. — Achei que foi formidável dizer uma coisa dessas à mãe.

Jack agradeceu à Sr.a Franconi mais uma vez e desligou o telefone. Mal tinha tirado a mão do auscultador, o telefone tocou novamente. Era Ted Lynch.

— Penso que era melhor vires até cá — disse Ted.

— Vou já — disse Jack.

Jack encontrou Ted sentado à secretária, a coçar a cabeça.

— Se não soubesse, diria que me estavas a pregar uma partida — disse Ted com fúria. — Senta-te! — disse Ted, colericamente.

Jack sentou-se. Ted tinha na mão uma resma de papel de computador, mais umas folhas de filme revelado com centenas de pequenas bandas escuras. Ted estendeu o braço e deitou tudo no colo de Jack.

— Que diabo vem a ser isto? — interrogou Jack. Pegou em algumas das folhas de celulóide e pô-las em frente da luz.

Ted debruçou-se para a frente e com a parte de borracha daqueles lápis antigos apontou para os negativos. — Estes são os resultados do teste polimarcador do ADN. — Apontou com o dedo a folha do computador. — E esta massa de informação compara as sequências dos nucleólitos das regiões DQ alpha do MHC.

— Por favor, Ted! — apressou-se Jack. — Fala inglês comigo, está bem? Sabes que sou um nabo quando se trata desta matéria.

— Bom! — exclamou Ted como se tivesse sido vexado. O teste polimarcador mostra que o ADN de Franconi e o ADN do tecido do fígado que encontraste não podiam ser mais diferentes.

— Ei, isso é uma boa notícia!—disse Jack. — Então, houve um transplante.

— Suponho que sim — disse Ted, sem convicção. — Mas a sequência com o DQ alpha é idêntica, sempre até ao último nucleólito.

— Que é que isso quer dizer? — perguntou Jack.

Ted abriu as mãos como se suplicasse e franziu a testa.

— Não sei. Não consigo explicar. Matematicamente, não podia acontecer. Quero dizer, as hipóteses são infinitesimalmente pequenas, é inacreditável. Estamos a falar de uma identidade perfeita de milhares e milhares de pares de base, até mesmo em áreas de longas repetições. Absolutamente idênticas. Foi por isso que obtivemos os resultados que obtivemos com o ecrã DQ alpha.

— Conclusão, houve um transplante! — disse Jack. — Esse é o cerne da questão.

—Se pressionado, teria de concordar que houve um transplante — disse Ted. — Mas como é que encontraram um doador com oDQ alpha idêntico, ultrapassa-me. É o género de coincidência que cheira a sobrenatural.

— E o teste com o mitocondrial do ADN para confirmar que o flutuador é Franconi? — perguntou Jack.

— Ena, dá-se a mão a uma pessoa e ela quer logo o braço — reclamou Ted. — Acabámos de receber o sangue, pelo amor de Deus. Terás de esperar pelos resultados. Ao fim e ao cabo, virámos o laboratório do avesso para conseguir o que já tens com tanta rapidez. Além disso, estou mais interessado neste problema do DQ alpha comparado com os resultados do polimarcador. Há qualquer coisa que não bate certo.

— Bem, não deixes que isso te tire o sono — disse Jack.

Levantou-se e devolveu a Ted todo o material que ele lhe colocara no colo. — Agradeço imenso o que fizeste. Muitíssimo obrigado. É a informação que eu precisava. E quando tiveres os resultados do mitocondrial, dá-me um toque.

Jack estava extasiado com os resultados de Ted, e não estava preocupado com o estudo do mitocondrial. Com a correlação da radiografia, estava confiante que o flutuador e Franconi eram a mesma e única pessoa.

Jack entrou no elevador. Agora que tinha provas documentais de que fora um transplante, ele contava com Bart Armold para encontrar as respostas que ajudassem a resolver o resto do mistério. Enquanto descia, Jack perguntava-se qual a razão da reacção emocional de Ted em relação aos resultados DQ alpha. Jack sabia que Ted não era fácil de se impressionar. Consequentemente, tinha de ser algo significativo. Infelizmente, Jack não sabia o suficiente sobre o teste para poder formar uma opinião. Prometeu a si próprio que quando tivesse tempo leria sobre o assunto.

A exaltação de Jack foi de curta duração; desvaneceu-se logo que entrou no gabinete de Bart. O investigador forense estava ao telefone, mas abanou a cabeça logo que avistou Jack. Jack interpretou o gesto como más notícias. Sentou-se e esperou.

— Pouca sorte? — perguntou Jack, logo que Bart desligou.

— Receio que sim — disse Bart. — Na verdade, esperava que a UNOS pudesse confirmar. E quando eles disseram que não tinham fornecido um fígado a Cario Franconi e que ele nem mesmo tinha estado na lista de espera, eu sabia que as hipóteses de descobrir onde ele conseguira o fígado diminuíam drasticamente. Acabo de falar ao telefone com a Columbia-Presbiteriana, e não foi feito lá. Portanto, já contactei praticamente todos os centros que trabalham com transplantes, e nenhum deles admite ter tratado de Cario Franconi.

— Isto é de enlouquecer—disse Jack. Ele relatou a Bart que as descobertas de Ted confirmavam que Franconi fizera um transplante.

— Não sei o que dizer — comentou Bart.

— Se uma pessoa não faz um transplante na América do Norte ou na Europa, onde poderá fazê-lo? — perguntou Jack.

Bart encolheu os ombros.

— Há algumas outras possibilidades. Austrália, África do Sul, até mesmo um ou dois lugares da América do Sul, mas depois dos meus contactos com a UNOS, creio que é pouco provável.

— Estás a brincar — disse Jack. Não era isto que gostaria de ouvir.

— É um mistério — comentou Bart.

—Nada do que diz respeito a este caso é fácil—queixou-se Jack, enquanto se levantava.

— Vou continuar a investigar — dispôs-se Bart.

— Fico-te grato — disse Jack.

Jack saiu da área de investigação, sentindo-se ligeiramente deprimido. Tinha a sensação de que estava a deixar escapar algum factor importante, mas não fazia a menor ideia do que poderia ser ou como proceder para o poder descobrir.

Na sala ID serviu-se de mais uma chávena de café, que a esta hora do dia mais parecia água da lavagem da loiça do que uma bebida. Com a chávena na mão, subiu as escadas para o laboratório.

— Já examinei as tuas amostras — disse John De Vries. — Foram negativas, tanto na ciclosporina A como na FK506.

Jack estava atónito. Limitou-se a olhar fixamente o pálido rosto magro do director do laboratório. Jack não sabia o que era mais surpreendente: se o facto de John já ter feito as análises ou o dos resultados serem negativos.

— Deves está a gozar! — conseguiu Jack dizer.

— Não estou — disse John. — Não é o meu estilo.

— Mas o paciente tinha de estar a tomar drogas para deprimir o sistema imunitário—disse Jack.—Ele tinha feito um transplante de fígado recentemente. Será possível que tenhas obtido um negativo falso?

— Nós fazemos controlos regularmente — disse John.

—Esperava que houvesse sinais de uma ou outra droga—disse Jack.

— Lamento, mas não conduzimos os nossos resultados para irem de encontro às tuas expectativas—disse John, com azedume. — Se me dás licença, tenho trabalho a fazer.

Jack ficou a observar o director do laboratório enquanto ele se dirigia até um aparelho e fazia alguns ajustamentos. Depois, deu meia volta e saiu do laboratório.

Agora estava deprimido. Os resultados do ADN de Ted Lynch e as análises das drogas de John De Vries eram contraditórios. Se houvera transplante, Franconi tinha de estar com ciclosporina A ou FK506. Era a prática médica normal.

Saindo do elevador no quinto piso, dirigiu-se ao departamento de Histologia enquanto tentava uma explicação racional para os factos que lhe tinham sido dados. Não lhe ocorria absolutamente nada.

— Bem, olha quem vem aí novamente, o nosso bom doutor — disse Maureen O’Conner no seu sotaque irlandês. — Que se passa? Só tem um caso entre mãos? É por isso que anda atrás de nós como um cãozinho?

— Só tenho um caso que está a dar comigo em louco! — respondeu Jack. — Como é que estão os slides?

— Alguns já estão prontos — disse Maureen. — Quer levá-los ou espera que estejam todos prontos?

— Levo o que puder — disse Jack.

Os dedos ágeis de Maureen agarraram as secções que estavam secas pelas extremidades e colocaram-nas em porta-slides microscópicos. Entregou a bandeja a Jack.

— Há secções do fígado entre estes? — perguntou Jack, esperançado.

— Creio que sim — disse Maureen. — Um ou dois. O resto vai mais tarde.

Jack abanou a cabeça e saiu. Umas portas mais adiante entrou no seu gabinete. Chet levantou a cabeça do trabalho e sorriu.

— Ei, camarada, como é que vai isso? — disse Chet.

— Não vai lá muito bem — disse Jack. Sentou-se e ligou a luz do microscópio.

— Problemas com o caso Franconi? — perguntou Chet. Jack assentiu com a cabeça. Começou a procurar secções do

fígado entre os slides. Só encontrou um.

— Tudo o que diz respeito a este caso é como procurar uma agulha num palheiro.

— Ouve, ainda bem que vieste — disse Chet. — Estou à espera de uma chamada de um médico da Carolina do Norte. Só quero saber se um doente teve problemas de coração. Tenho de dar uma fugida lá fora para tirar fotografias de passaporte para a minha viagem à índia. Será que podias receber a chamada por mim?

— Claro — disse Jack. — Qual é o nome do paciente.

— Clarence Potemkin—disse Chet. — O relatório está aqui na minha secretária.

— Está bem — disse Jack, enquanto punha o único slide com parte do fígado no microscópio. Não prestou atenção a Chet enquanto ele tirava o casaco por detrás da porta e saía. Jack focou a objectiva para o slide e estava prestes a examinar através da lente, quando de súbito parou. A saída de Chet fê-lo pensar em viagens internacionais. Se Franconi tinha feito o transplante fora do país, o que parecia cada vez mais provável, devia haver uma maneira de descobrir onde ele fora.

Jack levantou o auscultador e ligou para o Comando-Geral da Polícia. Pediu para falar com o tenente-detective Lou Soldano. Esperava ter de deixar a mensagem e ficou agradavelmente surpreendido por falar com ele pessoalmente.

— Ei, ainda bem que telefonaste—disse Lou.—Lembras-te do que te disse esta manhã acerca da informação anónima de que tinha sido o pessoal da Lúcia quem tinha roubado os restos mortais de Franconi da morgue? Acabámos de ter a confirmação de uma outra fonte. Pensei que gostasses de saber.

— É interessante — disse Jack. — Agora, tenho uma pergunta parati

— Venha ela — disse Lou.

Jack, resumidamente, expôs as razões que o levavam a crer que Cario Franconi poderia ter ido ao estrangeiro fazer o transplante. Acrescentou que, de acordo com a versão da mãe, ele tinha feito uma viagem a umas supostas termas quatro ou seis semanas antes.

— O que eu quero saber é, haverá maneira de descobrir através da Polícia alfandegária se Franconi saiu do país recentemente, e se saiu, onde é que ele foi?

— Ou a Polícia alfandegária ou a Imigração e Naturalização — disse Lou. — Aposto que será melhor a Imigração, a não ser que, é claro, ele tenha trazido tanta coisa que tivesse de pagar direitos. Além disso, tenho um amigo na Imigração. Assim, posso conseguir a informação muito mais rapidamente do que indo através dos canais burocráticos normais. Queres que verifique?

— Adoraria! — disse Jack. — Este caso está a tirar-me o juízo. —Com muito prazer—disse Lou.—Como te disse esta manhã,

estou em dívida para contigo.

Jack desligou o telefone com uma ligeira esperança de que estivesse agora a abordar o assunto por um ângulo diferente. Sentindo-se um pouco mais optimista, debruçou-se para a frente, olhou através do microscópio e começou a focar.

O dia de Laurie não tinha corrido nada como ela previra. Planeara fazer uma autópsia e tinha acabado por fazer duas. E depois, George Fontworth tinha tido problemas com o caso dos tiros, e Laurie ofereceu-se para ajudá-lo. Mesmo sem almoço, Laurie não saiu da sala antes das três.

Depois de mudar para o seu fato normal, Laurie ia a subir para o seu gabinete quando avistou Marvin no necrotério. Ele acabara de entrar de serviço e estava ocupado a arrumar o gabinete depois do tumulto de um dia normal. Laurie fez um desvio e meteu a cabeça na porta.

— Encontrámos a radiografia de Franconi — disse ela. — E acontece que o flutuador que entrou na outra noite era o nosso homem desaparecido.

— Eu li no jornal — disse Marvin. — Foi longe.

— As radiografias é que o identificaram — disse Laurie. — Por isso, estou super-satisfeita que as tivesses tirado.

— É o meu trabalho — disse Marvin.

— Queria pedir-te desculpa novamente por ter duvidado — disse Laurie.

— Não há problema — disse Marvin.

Laurie deu quatro passos, subitamente deu uma volta e foi de novo ao necrotério. Desta vez, entrou e fechou a porta atrás de si. Marvin olhou para ela com um ar interrogativo.

— Importas-te que te faça uma pergunta, só entre nós dois? — disse Laurie.

— Suponho que não — disse Marvin, cautelosamente.

—Obviamente, tenho estado interessada em saber como o corpo de Franconi desapareceu daqui — disse Laurie. — Foi por isso que falei contigo anteontem à tarde. Lembras-te?

— Claro — disse Marvin.

— Também estive cá nessa noite e falei com Mike Passano — disse Laurie.

— Já ouvi dizer — disse Marvin.

— Já era de esperar — disse Laurie. — Mas acredita que não estava a acusar Mike de nada.

— Compreendo — disse Marvin. — Ele, por vezes, é sensível.

— Não consigo perceber como é que o corpo foi roubado — disse Laurie. — Entre Mike e o segurança... esteve sempre lá alguém.

Marvin encolheu os ombros.

— Eu também não sei — disse ele. — Acredite-me.

—Compreendo—disse Laurie.—Tenho a certeza de que terias dito qualquer coisa se tivesses alguma suspeita. Mas não era isso que queria perguntar. Sinto que teria de ter havido ajuda de cá de dentro. Há algum funcionário aqui da morgue que, a teu ver, possa estar envolvido de uma maneira ou de outra? Esta é a minha pergunta.

Marvin pensou durante um minuto, depois abanou a cabeça.

— Não me parece.

— Só pode ter acontecido durante o turno do Mike — disse Laurie — Os dois condutores, Pete e Jeff, conhece-los bem?

— Não — disse Marvin. — Quero dizer, já os tenho visto por aí e até já falei com eles algumas vezes.

— Mas não tens qualquer motivo para suspeitar deles?

— Não, senhora, nada mais do que de qualquer outra pessoa — disse Marvin.

— Obrigada — disse Laurie. — Espero que a minha pergunta não te tenha indisposto.

— Não há problema — disse Marvin.

Laurie pensou durante um minuto, enquanto distraidamente mordia o lábio inferior. Sabia que alguma coisa estava a escapar-lhe.

— Tenho uma ideia — disse ela, subitamente. — Talvez me possas descrever em pormenor o procedimento normal quando um corpo sai daqui.

— Quer dizer tudo o que acontece? — perguntou Marvin.

— Por favor — disse Laurie. — Isto é, tenho uma ideia geral, mas não sei os pormenores.

— Por onde quer que comece? — perguntou Marvin.

— Desde o primeiro passo—disse Laurie. — Desde o momento em que recebes a chamada da Agência Funerária.

— Okay — disse Marvin. — Vem a chamada, e eles dizem que são da agência funerária tal e tal e que querem vir levantar um corpo. Então, dão-me o nome e o número de acesso.

— É só isso? — perguntou Laurie. — Depois desligas.

—Não—disse Marvin.—Peço para aguardarem enquanto dou entrada do número de acesso no computador. Tenho de verificar se vocês, doutores, deram alta ao corpo e também descobrir onde está.

— Nessa altura, voltas ao telefone e que dizes?

— Digo que está bem — disse Marvin. — Digo-lhes que o corpo estará pronto. Geralmente, pergunto quando é que pensam vir buscá-lo. Quero dizer, não há necessidade de andar a correr, se eles não vierem antes de duas horas ou qualquer coisa assim.

— Depois, que se passa? — perguntou Laurie.

— Vou buscar o corpo e verifico o número de acesso — disse Marvin.—Ponho-o à frente na câmara frigorífica. Vai sempre para o mesmo lugar. Aliás, pomos pela ordem em que esperamos que saiam. Torna-se mais fácil para os condutores.

— E que acontece depois? — perguntou Laurie.

— Eles chegam—disse Marvin, com outro encolher de ombros.

— E que acontece quando eles chegam? — perguntou Laurie.

—Eles vêm até aqui, assinam o recibo—disse Marvin.—Tudo tem de estar documentado. Eles têm de assinar para provar que tomaram a responsabilidade.

— Okay — disse Laurie. — E tu vais buscar o corpo?

— Sim, ou um deles vai lá buscá-lo — disse Marvin. — Todos eles já entraram e saíram daqui milhões de vezes.

— Há alguma verificação final? — perguntou Laurie.

—Claro—disse Marvin.—Nós verificamos o número de acesso mais uma vez antes de levarem o corpo no carro. Tem de ficar tudo documentado. Seria embaraçoso para os condutores chegarem à agência funerária e verificarem que tinham o corpo errado.

— Parece ser um bom sistema — disse Laurie, e ela sentia-o. Com tantas verificações seria difícil subverter tal procedimento.

— Tem funcionado há anos sem qualquer problema — disse Marvin. — É claro, o computador ajuda. Antigamente só havia o livro de registos.

— Obrigadinha, Marvin — disse Laurie.

— De nada, doutora — disse Marvin.

Laurie saiu do necrotério. Antes de subir para o seu gabinete, parou no segundo andar para tirar uma refeição ligeira da máquina, na sala de almoços. Razoavelmente fortalecida, subiu ao quinto andar. Ao ver a porta do gabinete de Jack entreaberta, foi até lá e espreitou. Jack estava sentado ao microscópio.

— Alguma coisa interessante? — perguntou ela. Jack olhou para ela e sorriu.

— Muito — disse ele. — Queres espreitar?

Laurie olhou através do microscópio enquanto Jack se desviava para o lado. — Parece um minúsculo granuloma no fígado — disse ela.

—Exacto—disse Jack.—É de um daqueles pedacinhos que eu consegui encontrar do fígado de Franconi.

— Hum — comentou Laurie, continuando a olhar através do microscópio. — É estranho que tenham usado um fígado infectado para um transplante. Era de esperar que examinassem melhor o doador. Há muitos desses granulomas?

—Maureen só me deu um slide do fígado até agora—disse Jack —E esse é o único granuloma que eu encontrei, por isso, calculo que não haverá muitos. Mas vi uma das secções congeladas. Também numa secção congelada havia minúsculos quistos rebentados que seriam visíveis a olho nu. A equipa que fez o transplante talvez estivesse consciente disso, mas não se preocupou.

— Pelo menos, não há uma inflamação geral—disse Laurie. — Por isso, o transplante estava a ser bem tolerado.

— Extremamente bem — disse Jack. — Demasiado bem, mas isso é um outro assunto. Que achas que está debaixo do indicador?

Laurie acertou o foco de modo a poder fazer aproximar e distanciar visualmente a secção. Havia umas manchas estranhas de material basofílico.

— Não sei. Não tenho a certeza se não será um artefacto.

— Também não sei — disse Jack. — A não ser que seja o que activou o granuloma.

— É uma ideia — disse Laurie. Ela endireitou-se. — Que quiseste dizer com o fígado ser bem tolerado?

— O laboratório informou que Franconi não tinha estado a tomar drogas imunossupressivas — disse Jack. — Isso parece-me altamente improvável, visto que não há nenhuma inflamação geral.

— Tens a certeza de que foi um transplante? — perguntou Laurie.

— Absolutamente — disse Jack. Resumidamente, pô-la ao corrente das informações que recebera de Ted.

Laurie estava tão perplexa quanto Jack.

— Excepto no caso de gémeos idênticos não posso conceber as sequênciasDQ alpha de duas pessoas serem exactamente iguais— disse ela.

— Parece que sabes mais sobre isso do que eu — disse Jack. — Até há dois dias, eu nunca tinha ouvido falar do DQ alpha.

— Fizeste alguns progressos no que diz respeito ao local onde Franconi possa ter feito o transplante? — perguntou Laurie.

— Quem me dera—disse Jack. Em seguida, falou a Laurie dos esforços vãos de Bart. Jack explicou que ele próprio passara grande parte da noite anterior a telefonar para vários centros em toda a Europa.

— Meu Deus! — observou Laurie.

—Até já recorri à ajuda de Lou. Eu soube pela mãe de Fanconi que ele saíra para ir ao que ela supunha ser umas termas e veio de lá um homem novo. Penso que talvez tivesse sido lá que ele tivesse feito o transplante. Infelizmente, ela não faz ideia onde ele possa ter ido. Lou está a verificar na Imigração, para ver se ele saiu do país.

—Se há alguém que possa descobrir, esse alguém é Lou—disse Laurie

— A propósito — disse Jack, fingindo um ar de superioridade.

— Lou confessou que foi ele que deixou sair a informação sobre Franconi para os jornais.

— Não posso acreditar nisso — disse Laurie.

— Foi ele próprio que mo disse—disse Jack.—Por isso, espero ao menos uma desculpa.

— Já a tens — disse Laurie. — Estou surpreendida. Ele deu alguma explicação?

— Disse que queria deixar sair a informação imediatamente para ver se fumegavam mais algumas informações secretas dos informadores. Diz que até certo ponto resultou. Receberam uma informação, que mais tarde foi confirmada, de que o corpo de Franconi tinha sido tirado segundo ordens da família do crime... Lúcia.

— Que horror! — disse Laurie e estremeceu. — Este caso está a começar a fazer-me lembrar demasiado o caso de Cerino.

— Sei o que queres dizer — disse Jack. — Em vez de olhos são fígados.

— Supões que há algum hospital particular aqui nos Estados Unidos que esteja a fazer transplantes ilegalmente? — perguntou Laurie.

— Não faço ideia — disse Jack. — Não haja dúvida de que poderia envolver muita massa, mas há o problema do fornecimento. Quero dizer, já como é, há para cima de sete mil pessoas à espera de fígados. Poucas dessas pessoas têm o dinheiro suficiente para o conseguirem.

— Quem me dera estar tão confiante como tu — disse Laurie.

— A motivação dos lucros tem alastrado na América como uma tempestade.

— Mas o grande negócio em medicina está no volume — disse Jack. — Há muito poucas pessoas abastadas que necessitem de fígados. O investimento nas estruturas físicas e o requisito de confidencialidade não compensariam, especialmente sem um fornecimento de órgãos. Exigiria uma versão moderna do Burk e Hare, e, embora tal cenário possa funcionar num filme policial, na realidade, seria demasiado arriscado e pouco seguro. Nenhum homem de negócios nas suas faculdades mentais se meteria nisso por muito venal que ele fosse.

— Talvez tenhas razão — disse Laurie.

— Estou convicto de que há qualquer coisa mais por detrás de tudo isto—disse Jack.—Há demasiados factos inexplicáveis aqui, desde o absurdo do DQ alpha ao facto de Franconi não estar a tomar qualquer droga para o sistema imunitário. Há qualquer coisa que nos está a escapar; qualquer ponto-chave, alguma coisa inesperada.

— Que esforço! — exclamou Laurie. — Uma coisa é certa, estou contente por te ter impingido este caso.

—Obrigado por nada—gracejou Jack.—É sem dúvida um caso frustrante. Mudando de assunto, ontem à noite no jogo de basquetebol, Warren disse-me que a Natalie tem perguntado por ti. Que achas se nos encontrássemos para jantar este fim-de-semana e depois talvez ir ao cinema, desde que eles não tenham nada combinado?

—Teria muito prazer—disse Laurie.—Espero que tenhas dito ao Warren que eu também tenho perguntado por eles.

— Disse — admitiu Jack. — Sem querer mudar o assunto, que tal foi o teu dia? Fizeste algum avanço nas tuas pesquisas de como Franconi foi passar a noite fora? Quero dizer, o facto de Lou nos dizer que a família criminosa era responsável, não nos diz grande coisa. Precisamos de pormenores.

—Infelizmente, não — admitiu Laurie.—Eu fiquei presa lá no fundo até há pouco. Não fiz nada do que tinha planeado.

— Pena — disse Jack com um sorriso. — Com a minha falta de progresso, poderei ter de confiar em ti para fazer a descoberta.

Depois de trocarem promessas de se contactarem pelo telefone nessa noite, especificamente sobre os planos para o fim-de-semana, Laurie dirigiu-se para o seu gabinete. Cheia de boas intenções, sentou-se à secretária para começar a verificar os relatórios do laboratório e outra correspondência que tinha chegado nesse dia referente a alguns casos incompletos. Mas teve dificuldade em concentrar-se.

A generosidade de Jack em confiar nela para chegar a alguma conclusão sobre o caso Franconi fê-la sentir-se culpada por não ter descoberto uma hipótese de como o corpo de Franconi fora levado. Consciente do esforço dispendido por Jack no caso, ela fazia questão de redobrar o seus esforços.

Munindo-se de uma folha de papel em branco, Laurie começou a anotar tudo quanto Marvin lhe relatara. A sua intuição dizia-lhe que o misterioso rapto de Franconi tinha de envolver dois corpos saídos na mesma noite. E agora, que Lou a informara de que a criminosa família Lúcia estava implicada, ela estava mais do que convicta de que a Agência Funerária Spolletto Funeral Home estava de algum modo envolvida.

Raymond pousou o auscultador e ergueu os olhos para Darlene, que tinha entrado no seu estúdio.

— Então? — perguntou Darlene. Ela tinha o cabelo louro puxado para trás em rabo-de-cavalo. Estivera a fazer exercícios na bicicleta no quarto ao lado e estava vestida com um fato de ginástica sexy.

Raymond recostou-se na cadeira e suspirou. Até sorriu.

— Parece que as coisas estão a funcionar — disse ele. — Era o funcionário das operações da Gensys, em Cambridge, Mass. O avião estará disponível amanhã à tardinha. Por isso, estarei a caminho de África. É claro que faremos uma paragem para reabastecimento, mas ainda não sei onde.

— Posso ir? — perguntou Darlene, cheia de esperança.

— Lamento dizer que não, querida — disse Raymond. Ele estendeu o braço e agarrou na mão dela. Sabia que tinha sido difícil nos últimos dois dias e sentia-se mal. Puxou por ela, fazendo-a dar a volta à secretária, e sentou-a no colo. Mal ela acabara de se sentar, ele arrependera-se. Ela era, ao fim e ao cabo, uma grande mulher.

— Com o paciente e a equipa cirúrgica, haverá muita gente no avião no regresso — conseguiu ele dizer, embora o seu rosto estivesse a ficar corado.

Darlene suspirou e fez um trejeito com os lábios.

— Nunca vou a parte alguma.

— Na próxima vez — prometeu Raymond. Deu-lhe umas pancadinhas nas costas e ajudou-a a levantar-se. — Será uma viagem muito curta. Ida e volta. Não terá interesse algum.

Darlene desatou a chorar e fugiu do escritório. Raymond pensou em segui-la para consolá-la, mas, ao olhar para o relógio da secretária, mudou de ideias. Já passavam das três e, portanto, depois das nove no Cogo. Se queria falar com Siegfried, seria melhor tentar agora.

Raymond ligou para casa do gerente. A governanta pô-lo em contacto com Siegfried.

— As coisas continuam a ir bem? — perguntou Raymond, com expectativa.

— Perfeitamente — disse Siegfried. — As últimas informações que recebi sobre as condições do paciente foram boas. Ele não poderia estar a recuperar melhor.

— Isso é gratificante — disse Raymond.

— Suponho que isso significa que os nossos bónus da colheita deverão chegar muito em breve — disse Siegfried.

— Claro — disse Raymond, embora soubesse que haveria uma demora. Com a necessidade de arranjar vinte mil em dinheiro para Vinnie Dominick, os bónus teriam de esperar até que entrasse nova remessa de propinas.

— E a situação com Kevin Marshall? — perguntou Raymond.

— Voltou tudo à normalidade — disse Siegfríed. — Com excepção de um incidente quando eles voltaram à área por volta da hora do almoço.

— Isso não me parece normal — queixou-se Raymond.

—Acalme-se—disse Siegfried.—Eles só lá foram à procura dos óculos escuros de Melanie. De qualquer modo, mais uma vez, acabaram por levar uns tiros dos soldados que estavam lá de serviço. — Siegfried riu-se com vontade.

Raymond esperou até que Siegfried se acalmasse.

— Onde é que está a piada? — perguntou Raymond.

—Aqueles soldados de cabeça oca dispararam contra o vidro de trás do carro de Melanie—disse Siegfried.—Ela ficou furiosa, mas teve o efeito desejado. Agora, tenho a certeza de que eles jamais voltarão lá.

— Espero bem que não — disse Raymond.

—Além disso, tive a oportunidade de tomar uma bebida com as duas senhoras esta tarde — disse Siegfried—Tenho a sensação de que o anormalzinho do nosso pesquisador tem qualquer coisa arriscada em mente.

— De que é que está a falar? — perguntou Raymond.

— Não creio que ele vá ter tempo ou energia para se preocupar com o fumo da ilha Francesca — disse Siegfried. — Acho que está envolvido num ménage a três.

—A sério? — perguntou Raymond. Tal ideia parecia invertida para o Kevin Marshall que Raymond conhecia. Em todos os contactos que tivera com Kevin Marshall, este nunca havia manifestado o menor interesse pelo sexo oposto. A ideia de que ele pudesse ter inclinação e energia para uma mulher parecia caricata, muito mais para duas.

—Pelo menos, foi o que me apercebi—disse Siegfried.—Devia ter ouvido as duas a falarem do perspicaz pesquisador. Foi o que elas lhe chamaram. E elas iam a caminho da casa de Kevin para um jantar. Ele jamais havia organizado um jantar, que eu saiba, e eu vivo mesmo do lado oposto.

— Suponho que devemos ficar agradecidos — disse Raymond.

— Invejosos é uma palavra mais adequada — disse Siegfried, com uma outra gargalhada, que caiu mal nos nervos de Raymond.

— Telefonei para dizer que saio daqui amanhã à noite — disse Raymond. — Não posso dizer quando chegarei a Bata, porque não sei onde iremos reabastecer. Terei de telefonar do local onde fizermos o reabastecimento ou, então, pedirei ao piloto para comunicar via rádio.

— Vem mais alguém consigo — perguntou Siegfried.

— Não, que tenha conhecimento — respondeu Siegfried. — E estaremos quase completos no regresso.

— Estaremos à sua espera — disse Siegfried.

— Até breve — disse Raymond.

— Talvez pudesse trazer o bónus consigo — sugeriu Siegfried.

— Vou ver o que posso fazer — disse Raymond.

Desligou o telefone e sorriu. Abanou a cabeça ao pensar no comportamento de Kevin Marshall.

— Nunca se sabe!—comentou Raymond em voz alta enquanto se levantava e saía da sala. Queria ver onde estava Darlene para procurar animá-la. Pensou que talvez, como consolação, pudesse levá-la a jantar ao seu restaurante favorito.

Jack tinha explorado a única secção do fígado que Maureen lhe dera de uma ponta à outra. Até tinha usado as suas lentes imersas em óleo para observar as partículas de basofílico no interior dos minúsculos granulomas. Ainda não sabia se eram achados verdadeiros, e se eram, o que seriam na realidade.

Tendo esgotado todo o seu conhecimento histológico e patológico no que dizia respeito ao slide, ia justamente levá-lo ao departamento de Patologia do Hospital da Universidade de Nova Iorque quando o telefone tocou. Era a chamada de Chet, da Carolina do Norte, por isso, Jack pôs a respectiva questão e anotou a resposta. Ao desligar o telefone, Jack tirou o casaco do armário. Com o casaco vestido, pegou no slide do microscópio quando o telefone tocou novamente. Desta vez, era Lou Soldano.

— Bingo! — disse Lou, alegremente. — Tenho boas notícias para ti.

— Sou todo ouvidos — disse Jack. Despiu o seu casaco de bombardeiro e sentou-se.

— Fiz um telefonema ao meu amigo da Imigração, e ele acaba de me ligar — disse Lou. — Quando pus a questão que me tinhas colocado, ele disse-me para aguardar em linha. Eu até o ouvia introduzir o nome no computador. Dois segundos mais tarde, tinha a informação. Cario Franconi entrou no país exactamente há trinta e sete dias, a vinte e nove de Janeiro, em Teterboro, Nova Jérsia.

— Nunca ouvi falar de Teterboro — disse Jack.

— É um aeroporto privado — disse Lou. — É para a aviação geral, mas há muitos jactos sofisticados de corporações, devido à proximidade da base aérea da cidade.

— Cario Franconi foi nalgum jacto particular? — perguntou Jack.

— Não sei — disse Lou. — Tudo quanto sei é as letras ou os números ou lá que é que chamam... sabes?, o número e as letras na cauda do avião. Deixa-me ver, tenho-as aqui. Era um N69SU.

— Havia alguma indicação da proveniência do avião? — perguntou Jack, enquanto escrevia os caracteres alfanuméricos e a data.

—Ah, claro—disse Lou —, tem de ficar registado. O avião veio de Lyon, França.

— Não, não pode ter vindo — disse Jack.

—É o que diz o computador—disse Lou.—Por que é que pensas que não está correcto?

— Porque eu falei com a organização que distribui os órgãos franceses, esta manhã — disse Jack. — Não tinham nenhum americano com o nome de Franconi, e, categoricamente, afirmaram que não fariam nenhum transplante a nenhum americano visto que têm muitos cidadãos franceses à espera.

A informação obtida pela Imigração tem de corresponder com os planos do voo arquivados tanto na FAA como na equivalente Europeia — disse Lou. — Pelo menos, é isso que entendo.

— Achas que o teu amigo tem algum contacto em França? — perguntou Jack.

—Não me admira nada — disse Lou. — Aqueles tipos dos altos escalões têm de colaborar uns com os outros. Posso perguntar-lhe. Por que é que queres saber?

— Se Franconi esteve em França, eu gostaria de saber o dia da sua chegada — disse Jack. — E gostaria de qualquer outra informação que a Polícia francesa possa ter quanto ao local exacto do país em que ele esteve. Eles mantêm a maioria dos estrangeiros sob vigilância lá nos hotéis.

—Está bem, vou ver o que posso fazer—disse Lou.—Vou ligar-lhe novamente e depois contacto contigo.

—Mais uma outra coisa—disse Jack. — Como se poderá saber a quem pertence o M69SU?

—Isso é fácil—disse Lou.—Basta telefonar para um centro de controlo da FAA, na cidade de Oklahoma. Qualquer pessoa pode fazer isso, mas também tenho um amigo lá.

— Ena, tens amigos em todos os lugares certos — observou Jack.

— Faz parte da profissão — disse Lou. — Fazemos favores uns aos outros a todo o momento. Se tivéssemos de esperar para fazer tudo através dos canais próprios, não íamos chegar a parte alguma.

—Para mim, é sem dúvida conveniente tirar partido da tua rede de contactos — disse Jack.

— Então, queres que telefone aos meus amigos da FAA? — perguntou Lou.

— Ficar-te-ia muito grato — disse Jack.

— Ei, o prazer é todo meu — disse Lou. — Tenho a sensação de que quanto mais te ajudar mais estarei a ajudar-me a mim próprio. Nada mais queria do que ver este caso resolvido. Poderá salvar a minha pele.

— Vou sair do meu gabinete para dar um salto ao Hospital da Universidade — disse Jack. — E se te telefonasse dentro de meia hora, mais ou menos?

— Perfeito — disse Lou, antes de desligar.

Jack abanou a cabeça. Como tudo o mais neste caso, a informação dada por Lou era tão surpreendente como confusa. A França era talvez o último país que Jack suspeitaria que Franconi tivesse visitado.

Após ter vestido o casaco pela segunda vez, Jack saiu do gabinete. Visto que a Universidade do Hospital era relativamente próxima, ele nem se preocupou com a bicicleta. Foram apenas dez minutos a pé.

Uma vez no interior do movimentado centro médico, Jack tomou o elevador para o departamento de Patologia. Estava esperançado que o Dr. Malovar estivesse disponível. Peter Malovar era uma sumidade no seu campo, e embora com a idade de 82 anos, era um dos patologistas mais perspicazes que Jackjamais conhecera. Jack fazia questão de ir aos seminários que o Dr. Malovar oferecia uma vez por mês. Por isso, quando Jack tinha uma questão, não se dirigia a Bingham, porque o ponto forte de Bingham era a parte forense, não a patologia geral. Jack ia antes ao Dr. Malovar.

— O professor está no seu laboratório como costume — disse a atormentada secretária do departamento de Patologia. — Sabe onde é, não sabe?

Jack acenou a cabeça e caminhou até à velha porta de vidro fosco que dava para o que era conhecido como a toca de Malovar. Jack bateu à porta. Não obtendo qualquer resposta, deitou a mão à maçaneta. Estava destrancada. Lá dentro, encontrou o Dr. Malovar debruçado sobre o seu adorado microscópio. O idoso homem parecia-se com Einstein, com um cabelo grisalho, desalinhado e um farto bigode. Tinha também um postura cifótica, como se o seu corpo tivesse sido especificamente desenhado para estar curvado a espreitar o microscópio. Dos seus cinco sentidos, apenas a audição se deteriorara ao longo dos anos.

O professor cumprimentou Jack rapidamente enquanto iradamente olhava para o slide na sua mão. Adorava que as pessoas lhe trouxessem casos problemáticos, um facto de que Jack havia tirado partido em várias ocasiões.

Jack tentou fazer um breve historial do caso enquanto passava o slide ao professor, mas o Dr. Malovar levantou a mão para o silenciar. O Dr. Malovar era um verdadeiro detective que não permitia que as impressões dos outros influenciassem as suas próprias. O idoso médico substituiu o slide que tinha estado a estudar pelo de Jack. Sem pronunciar uma palavra, observou-o durante exactamente um minuto.

Erguendo a cabeça, o Dr. Malovar pôs uma gota de óleo no slide e mudou-a para a lente de imersão de óleo, a fim de obter uma maior magnitude. Mais uma vez, examinou o slide durante alguns segundos apenas.

O Dr. Malovar olhou para Jack.

— Interessante! — disse. O que, vindo dele, era um grande elogio. Devido ao seu problema auditivo, ele falava muito alto. — Há um pequeno granuloma no fígado assim como a cicatriz de um outro. Ao olhar para o granuloma, penso que podia estar a ver alguns merozoítos, mas não tenho a certeza.

Jack assentiu com a cabeça. Supôs que o Dr. Malovar se referia às pequenas manchas basofílicas que Jack observara no centro do granuloma.

O Dr. Malovar agarrou no telefone. Ligou a um colega e pediu-lhe que fosse até lá. Dentro de minutos, apareceu um alto e magro homem afro-americano, excessivamente sério, vestido com um longo casaco branco. O Dr. Malovar apresentou-o como sendo o Dr. Colin Osgood, chefe do departamento de Parasitologia.

— Qual é a tua opinião, Colin? — perguntou o Dr. Malovar, fazendo um gesto para o seu microscópio.

O Dr. Osgood olhou para o microscópio um pouco mais demoradamente do que o Dr. Malovar antes de responder.

— Definitivamente, um parasita. — Ele falou sempre com os olhos fixos no visor do telescópio. — São merozoítos, mas não os reconheço. Ou é uma nova espécie ou um parasita que não se encontra em seres humanos. Recomendo que seja visto pelo Dr. Lander Hammersmith e que ele dê a sua opinião.

— Boa ideia — disse o Dr. Malovar. Ele olhou para Jack. — Importa-se de deixá-lo até amanhã? Pedirei ao Dr. Hammersmith para vê-lo amanhã de manhã.

— Quem é o Dr. Hammersmith? — quis saber Jack.

— É o veterinário patologista — disse o Dr. Osgood.

— Por mim, está bem — disse Jack, agradavelmente. Nunca pensara que o slide viesse a ser visto por um veterinário.

Tendo agradecido aos dois médicos, Jack dirigiu-se à secretária e pediu para usar o telefone. A secretária indicou-lhe uma secretária vaga, e disse-lhe que marcasse o nove para conseguir a linha para o exterior. Jack ligou para Lou na sede da Polícia.

— Ei, ainda bem que telefonaste — disse Lou. — Penso que estou a conseguir material muito interessante. Primeiramente, o avião é cá um avião! É um G4. Isto diz-te alguma coisa?

— Penso que não — disse Jack. Pelo tom de voz de Lou parecia que Jack deveria saber alguma coisa.

— Quer dizer Corrente do Golfo 4 — explicou Lou. — É o que se chamaria o Rolls-Royce dos jactos corporativos. É uma coisa para vinte milhões de dólares.

— Estou impressionado — disse Jack.

— Devias estar — disse Lou. — Okay, vejamos o que consegui mais. Ah, está aqui: o avião é propriedade da Aviação Alpha, no Reno, Nevada. Já ouviste falar deles?

— Não — respondeu Jack. — Já ouviste?

—Nunca—disse Lou.—Deve ser uma organização de leasing. Vejamos que mais. Ah, sim! Isto poderá ser mais interessante. O meu amigo da Imigração telefonou para o seu parceiro em França, para casa, acreditas? E tentou informar-se sobre as recentes férias de Cario Franconi em França. Aparentemente, este burocrata francês tem acesso à rede da Imigração a partir do seu computador particular. Porquê... advinha lá?

— Estou em brasas — disse Jack.

—Franconi nunca visitou França!—disse Lou.—A não ser que tivesse um nome falso e um passaporte falso. Não há registo da sua entrada ou saída.

— E, então, essa história de o avião ter incontestavelmente vindo de Lyon, França? — perguntou Jack.

— Ei, não fiques mal humorado — disse Lou.

— Não, não estou — disse Jack. — Estava apenas a reagir ao argumento de que os planos do voo e a informação da Polícia tinham de estar coordenados.

— E estão! — disse Lou. — Dizer que o avião veio de Lyon, França, não significa que alguma pessoa ou toda a gente saiu do avião. Tanto quanto sei, podia ter ido reabastecer-se.

— Bom argumento — disse Jack. — Não tinha pensado nisso. Com é que podemos descobrir?

— Suponho que posso contactar de novo o meu amigo da FAA — disse Lou.

—Formidável!—disse Jack.—Vou a caminho do meu gabinete na morgue. Queres que ligue ou ligas-me tu?

— Eu ligo-te — respondeu Lou.

Após ter escrito tudo quanto se lembrava da sua conversa com Marvin sobre a forma como os corpos eram levantados pelas agências funerárias, Laurie pôs o papel de lado e ignorou o assunto enquanto se debruçou sobre outros casos. Meia hora mais tarde, retomou o papel.

Com a mente fresca, tentou lê-lo com novos olhos. Na segunda leitura, houve uma coisa que saltou à vista: nomeadamente, quantas vezes surgia o termo — número de acesso. É claro que não estava surpreendida. Ao fim e ao cabo, o número de acesso era para um corpo o mesmo que o número da Segurança Social era para uma pessoa viva. Era uma forma de identificação que permitia à morgue manter sob controlo os milhares de corpos e o subsequente trabalho de registos que passavam pelos seus portais. Sempre que entrava um corpo na morgue, a primeira coisa que acontecia era atribuir-lhe um número de acesso. O segundo passo era atar uma tarjeta com o número no dedo grande do pé do morto.

Olhando para a palavra acesso, Laurie apercebeu-se, para surpresa sua, de que se lhe tivessem perguntado, ela não a saberia definir. Era uma palavra que simplesmente aceitara e usava no dia a dia. Todos os talões e relatórios do laboratório, todas as radiografias, todos os relatórios dos investigadores, todos os documentos internos tinham o número de acesso. Até certo ponto, era mais importante do que o nome da vítima.

Tirando o dicionário American Heritage da prateleira, Laurie procurou a palavra acesso. Ao ler as definições, notou que nenhuma delas fazia sentido no contexto que era usado na morgue, excepto a última. Era definida como — admissão. Por outras palavras, o número de acesso era o mesmo que dizer número de admissão.

Laurie procurou os números de acesso e nomes dos corpos que tinham entrado e saído no turno da noite de quatro de Março, quando o corpo de Franconi desaparecera. Ela encontrou o pedaço de papel por debaixo de um tabuleiro. Nele estava escrito: Dorothy Mine — 101455 e Frank Gleason — 100385.

Graças ao facto de se ter debruçado sobre os números de acesso, Laurie notou qualquer coisa a que não tinha prestado atenção antes. O facto dos números de acesso terem uma diferença de mais de mil! Era estranho, pois os números eram dados em sequência. Sabendo o volume aproximado de corpos que eram processados na morgue, Laurie calculou que havia várias semanas de diferença entre a entrada destes dois indivíduos.

O espaço de tempo era estranho, visto que os corpos raramente ficavam na morgue mais do que dois dias, por isso, Laurie introduziu o número de acesso de Frank Gleason noseuterminalde computador. Era o corpo que fora levantado pela Agência Spoletto Funeral Home.

Aquilo que surgiu no ecrã deixou-a perplexa.

— Meu Deus! — exclamou Laurie.

Lou estava a divertir-se. Ao contrário da romântica imagem do público em geral, a tarefa de seguir pegadas era uma tarefa exaustiva e nada gratificante. Mas o que Lou estava agora a fazer, mais precisamente sentado no conforto do seu gabinete, eram produtivos contactos telefónicos, era não só divertido como gratificante. Era também simpático poder dizer oláavelhos conhecidos.

— Que é isto, Soldano! — comentou Mark Servert. Mark era o contacto de Lou na FAA, na cidade de Oklahoma. — Não tenho notícias tuas durante um ano e logo duas num só dia. Isto deve ser um caso a sério.

— É um destes casos invulgares — disse Lou. — E tenho mais uma questão. Descobrimos que o avião G4, de que te falei antes, tinha voado de Lyon, França, para Teterboro, Nova Jérsia, a vinte e nove de Janeiro. Contudo, o tipo em quem estamos interessados não passou pela Imigração francesa. Por isso, a pergunta é se será possível saber de onde vinha o N69SU antes de aterrar em Lion.

— Isso agora é uma pergunta perigosa — disse Mark — Eu sei que o ICAO...

—Ora, um segundo—interrompeu Lou.—Não me venhas com siglas. Que é a ICAO?

— Organização Internacional da Aviação Civil — disse Mark. — Eu sei que eles registam todos os voos que entram e saem da Europa.

— Perfeito — disse Lou. — Há lá alguém a quem possas ligar?

— Há alguém a quem posso ligar — disse Mark. — Mas não te adiantaria muito. A OIAC destrói todos os registos depois de quinze dias. Não fica arquivado.

— Maravilhoso! — comentou Lou, sarcasticamente.

— E o mesmo acontece no Centro Europeu de Controlo do Tráfego Aéreo em Bruxelas—disse Mark.—Tendo em conta todos os voos comerciais, estamos a falar de demasiado material.

— Queres dizer que, então, não é viável? — perguntou Lou.

— Estou a pensar — disse Mark.

— Queres telefonar-me mais tarde? — disse Lou. — Ainda estarei por aqui mais ou menos uma hora.

— Tá, fica assim — disse Mark.

Lou ia a desligar quando ouviu Mark gritar o seu nome.

—Lembrei-me de uma coisa neste instante—disse Mark.—Há uma organização chamada Gestão do Movimento Central, com escritórios em Paris e Bruxelas. São eles que dão os tempos para as aterragens e descolagens. Trabalham com toda a Europa excepto a Áustria e Eslovénia. Por que é que esses países não estão envolvidos, Deus sabe? Se o N69SU veio de qualquer sítio que não esses dois países, eles terão de ter as informações nos seus registos.

— Conheces alguém na organização? — perguntou Lou.

—Não, mas conheço alguém que conhece—disse Mark.—Vou ver se descubro.

— Ei, ficar-te-ia muito grato — disse Lou.

— Não há problema — disse Mark.

Lou desligou o telefone e tamborilou com o lápis na superfície da sua velha, amolgada secretária de metal cinzenta. Havia inúmeras marcas de queimaduras onde ele havia deixado beatas de cigarro a arder. Reflectia sobre a companhia Alpha Aviation e perguntava-se a si próprio como contactar a companhia.

Primeiramente, tentou através das informações telefónicas em Reno. A companhia Alpha Aviation não vinha na lista. Lou não ficou surpreendido. Em seguida, ligou ao departamento da Polícia de Reno. Apresentou-se e pediu para falar ao seu equivalente, chefe do departamento de Homicídios. O nome era Paul Hersey.

Depois de alguns minutos de gracejos amigáveis, Lou fez uma breve descrição do caso Franconi. Depois, perguntou sobre a Alpha Aviation.

— Nunca ouvi falar — respondeu Paul.

— Da FAA disseram-me que era no Reno, Nevada—disse Lou. —Isso é porque Nevada é um Estado fácil para se constituir em

pessoa jurídica — explicou Paul. — E aqui no Reno nós temos um batelada de empresas jurídicas de alto calibre que não fazem outra coisa.

— Que sugere para conseguirmos alguma informação sobre a organização? — perguntou Lou.

—Ligue para o Gabinete do Secretário de Estado de Nevada, na cidade de Carson — disse Paul. — Se a companhia Alpha Aviation está registada oficialmente emNevada,estará nos registos públicos. Quer que sejamos nós a fazer o contacto?

—Eumesmoligo—disse Lou.—Naverdade,nem sei bem o que é que quero saber.

— Mas, pelo menos, posso dar-lhe o número — disse Paul. Ele saiu da linha por uns instantes e Lou ouviu-o dar uma ordem em tom de comando a um subalterno. Um minuto mais tarde, voltou e deu o número de telefone a Lou. Depois acrescentou: — Eles costumam ser simpáticos, mas se tiver problemas, telefone-me de novo. E se necessitar de assistência na cidade de Carson por qualquer razão, peça para falar a Todd Arronson. Ele é o chefe do departamento de Homicídios de lá, e é um bom tipo.

Alguns minutos mais tarde, Lou estava em linha com o Gabinete da Secretaria de Estado de Nevada. Uma telefonista pô-lo em contacto com uma funcionária, que não poderia ter sido mais simpática ou cooperativa. O seu nome era Brenda WhiteHall.

Lou explicou que queria todas as informações possíveis sobre a companhia Alpha Aviation, em Reno, Nevada.

— Um momento, por favor — disse Brenda. Lou ouvia-a dactilografar o nome no teclado. — Sim, aqui está — acrescentou ela. — Um momento, enquanto vou buscar o dossier.

Lou descansou os pés sobre a secretária e recostou-se na cadeira. Sentiu um ímpeto de acender um cigarro, mas resistiu.

— Estou de volta — disse Brenda. Lou ouvia o roçar de papéis.

— Bem, que pretende saber, exactamente?

— Que tem aí? — perguntou Lou.

—Tenho os estatutos da companhia—disse Brenda. Houve um breve silêncio enquanto os lia, depois acrescentou: — É uma sociedade limitada e o parceiro geral é Alpha Management.

—Que é que isso significa em inglês simples?—perguntou Lou.

— Eu não sou advogado nem homem de negócios.

— Significa simplesmente que a Alpha Management é a sociedade que dirige a companhia—disse Brenda, pacientemente.

— Não tem nomes de pessoas? — interrogou Lou.

— É claro—disse Brenda.—Os Estatutos da Sociedade têm de ter os nomes e endereços dos directores, a entidade jurídica para efeitos de processamentos e os gerentes da empresa.

— Isso parece prometer — disse Lou. — Poderia dar-me esses nomes?

Lou ouvia o folhear de papéis.

— Hum — comentou Brenda.—Aliás, neste caso, há um nome e um endereço apenas.

— Uma pessoa usa todos esses chapéus?

— Segundo este documento — disse Brenda.

— Qual é o nome e endereço? — perguntou Lou. Muniu-se de uma folha de papel.

— É Samuel Hartman, da firma Wheeler, Hartman, Gottlich e Sawyer. O endereço é Rodeo Drive, 8, Reno.

— Parece uma firma de advogados — disse Lou.

— É — disse Brenda. — Reconheço o nome.

— Isso não serve! — disse Lou. Sabia que as hipóteses de obter qualquer informação de uma empresa de advogados eram nulas.

— Muitas das empresas de Nevada são constituídas assim — explicou Brenda. — Mas posso ver se há alterações.

Lou pensava já em telefonar novamente a Paul para obter informações sobre Samuel Hartman, quando Brenda fez um som de descoberta.

— Há alterações — disse ela. — Na primeira reunião da direcção da Alpha Management, o Sr. Hartman demitiu-se de presidente e secretário. Frederick Rouse foi nomeado em seu lugar.

— Tem o endereço do Sr Rouse? — perguntou Lou.

— Tenho — disse Brenda. — O título dele é director financeiro da Gensys Corporation. O endereço é 150 Kendall Square, Cambridge, Massachusetts.

Lou anotou toda a informação e agradeceu a Brenda. Estava particularmente impressionado porque não imaginava obter um serviço semelhante do Gabinete do Secretário de Estado em Albany.

Lou ia justamente telefonar a Jack para dar a informação sobre os proprietários do avião, quando o telefone de novo tocou sob a sua mão. Era Mark Servert a ligar de novo.

— Estás com sorte — disse Mark. — O tipo que eu conheço que conhece algumas pessoas na organização da Gestão do Movimento Central na Europa por acaso estava de serviço quando telefonei.

Aliás, ele está num sector lá dos teus lados. Está no Aeroporto Kennedy, e ajuda a dirigir o tráfego para norte do Atlântico. Fala para a Gestão do Movimento Central a todo o momento. Então, fez a pergunta sobre o N69 SU, de vinte e nove de Janeiro. Aparentemente, apareceu logo no ecrã. O N69SU voou para Lyon vindo de Bata, Guiné Equatorial.

— Uau! — disse Lou. — Onde é que fica isso?

— Não faço ideia — disse Mark. — Sem ver o mapa, eu diria África Ocidental.

— Curioso — disse Lou.

— É curioso também que assim que o avião aterrou em Lyon, França, pediram de imediato pela rádio saída para Teterboro, Nova Jérsia — disse Mark. — Por aquilo que vejo, só esteve na pista o tempo suficiente para obter autorização para sair.

— Talvez tenha ido reabastecer-se — adiantou Lou.

— Pode ser — disse Mark. — Mesmo assim, era de esperar que eles tivessem registado o voo com paragem em Lyon, em vez de dois voos separados. Quero dizer, eles podiam ter de ficar em Lyon durante horas, arriscaram-se.

— Talvez tenham mudado de ideias — disse Lou.

— É possível — concordou Mark.

— Ou talvez não quisessem que ninguém soubesse que vinham da Guiné Equatorial — sugeriu Lou.

— Bem, essa é uma ideia que não me passaria pela cabeça — admitiu Mark. — Suponho que é por isso que tu és um detective dedicado, e eu sou um burocrata da FAA, cheio de tédio.

Lou riu-se.

—Dedicado não sou. Pelo contrário, receio que este trabalho me tenha tornado cínico e desconfiado.

— É melhor do que estar cheio de tédio — disse Mark.

Lou agradeceu ao seu amigo pela ajuda e, depois de trocarem as bem intencionadas promessas de se encontrarem, desligaram.

Durante alguns minutos, Lou sentou-se e interrogou-se por que é que um avião de vinte milhões de dólares estaria a transportar um dos donos do crime de segunda categoria, de Queens, Nova Iorque, de um país africano, do qual Lou nunca ouvira falar. Um país atrasado daqueles, de terceiro mundo, não seria certamente uma Meca da medicina, onde uma pessoa fosse fazer uma cirurgia sofisticada como um transplante de fígado.

Depois de introduzir o número de acesso de Frank Gleason no computador, Laurie sentou-se a reflectir sobre a aparente discrepância durante algum tempo. Ela indagava o que essa informação poderia significar em termos do desaparecimento do corpo de Franconi. Lentamente, uma ideia começou a esboçar-se.

Puxando a cadeira para trás de rompante, Laurie dirigiu-se ao andar da morgue à procura de Marvin. Ele não estava no seu escritório. Encontrou-o a entrar numa das câmaras frigoríficas. Estava ocupado a preparar corpos para serem levantados.

Logo que Laurie entrou na câmara frigorífica, teve a percepção da experiência horrorosa por que tinha passado no caso Cerino, dentro daquela unidade. A memória fê-la sentir-se constrangida, e decidiu não falar com Marvin enquanto ele estivesse lá dentro. Optou por lhe pedir que fosse ter com ela ao gabinete do necrotério quando tivesse terminado.

Cinco minutos mais tarde, Marvin apareceu. Atirou um monte de papéis para a secretária e foi à pia, na esquina, para lavar as mãos.

— Está tudo em ordem? — perguntou Laurie, para entabular conversa.

— Penso que sim — disse Marvin. Ele dirigiu-se para a secretária e sentou-se. Começou a colocar os papéis pela ordem em que os corpos seriam levantados.

— Depois de ter falado contigo esta manhã, descobri uma coisa bastante surpreendente — disse Laurie, indo directa ao motivo da sua visita.

— Como o quê? — perguntou Marvin. Acabou de ordenar os papéis e recostou-se na cadeira.

—Introduzi o número de acesso de Frank Gleason no computador — disse Laurie. — E descobri que o corpo dele tinha entrado na morgue há mais de duas semanas. Não havia nome associado ao número. Era um cadáver não identificado!

—Não, merda!—exclamou Marvin. Depois, tomando consciência do que havia dito, acrescentou. — Quero dizer, estou surpreendido.

—Eu também—disse Laurie.—Tentei falar ao Dr. Besserman, que tinha feito a autópsia originalmente, queria perguntar-lhe se o corpo tinha sido identificado recentemente como Frank Gleason, mas ele não está no gabinete. Não achas que é surpreendente que Mike Passano não soubesse que o corpo aparecia ainda no computador como um cadáver não identificado?

— Penso que não — disse Marvin. — Eu não sei se teria notado também. Quero dizer, introduz-se o número de acesso só para saber se o corpo já saiu. Na realidade, ninguém se preocupa em olhar para o nome.

— Essa foi a impressão que eu tive anteriormente — disse Laurie.—Houve uma outra coisa que me disseste que me tem feito pensar. Disseste-me que por vezes não és tu quem tira o corpo mas sim as próprias pessoas da agência funerária.

— Algumas vezes — disse Marvin. — Mas isso só acontece se vêm duas pessoas e se essas pessoas já estiveram aqui várias vezes e por isso conhecem os trâmites normais. Um deles vai buscar o corpo à câmara frigorífica enquanto eu e o outro tipo acabamos a papelada.

— Conheces bem Mike Passano? — perguntou Laurie.

— Tão bem como conheço todos os outros técnicos — disse Marvin.

— Nós dois conhecemo-nos há seis anos — disse Laurie. — Considero que somos amigos.

— Sim, suponho que sim — disse Marvin, cautelosamente.

— Como amiga gostaria de te pedir uma coisa — disse Laurie. — Mas só se isso não te incomodar.

— Como o quê? — perguntou Marvin.

—Gostaria que telefonasses a Mike Passano e lhe dissesses que eu descobri que um dos corpos que saiu na noite em que o corpo de Franconi desapareceu era um cadáver não identificado.

—Ena, isso é estranho!—disse Marvin.—Por que é que lhe hei-de telefonar em vez de esperar que entre de serviço?

— Podes agir como se tivesses acabado de tomar conhecimento, o que é o caso — disse Laurie. — Podes dizer que achaste que ele devia saber, visto que era ele que estava de serviço naquela noite.

— Não sei, pá — disse Marvin, pouco convencido.

— A questão é que vindo de ti não será uma confrontação — disse Laurie. — Se eu telefonar, ele vai pensar que estou a acusá-lo, e estou interessada em ouvir a sua reacção sem que ele tome uma atitude defensiva. Mas, mais importante, gostaria que lhe perguntasses se houve dois corpos da agência Spoletto Funeral Home naquela noite, e se houve dois, se ele se lembra quem é que foi buscar o corpo.

— Isso é armar-lhe uma cilada, pá! — queixou-se Marvin.

— Eu não vejo isso assim — disse Laurie. — Antes pelo contrário, dá-lhe oportunidade de se defender. Sabes, penso que a Spoletto levou Franconi.

—Não, isso não encaixa bem—disse Marvin.—Ele vai perceber que há qualquer coisa na forja. Por que não lhe telefona pessoalmente, compreende o que eu quero dizer?

— Eu já te disse, que penso que ele vai estar demasiado à defensa — disse Laurie. — Da última vez, estava à defensa quando eu lhe fiz umas simples perguntas. Mas está bem, se não te sentes bem, não quero que o faças. Então, em vez disso, gostaria que fosses fazer umas pequenas pesquisas por mim.

— Que há agora? — perguntou Marvin. Começava a perder a paciência.

— Poderias fazer uma lista de todos os compartimentos frigoríficos que estão ocupados neste momento? — perguntou Laurie.

— Claro, isso é fácil — disse Marvin.

— Por favor — disse Laurie, enquanto gesticulava em direcção ao terminal de computador de Marvin. — Já agora, que estás com a mão na massa, faz duas cópias.

Marvin encolheu os ombros e sentou-se. Usando um estilo de pesquisa rápido, ele dirigiu o computador para produzir a lista solicitada por Laurie. Logo que as cópias saíram da impressora entregou-as a Laurie.

— Excelente — disse Laurie, olhando para as folhas. — Vamos?! — Enquanto saía do necrotério, ela fez-lhe sinal com a mão. Marvin seguiu-a.

Caminharam ao longo do corredor de cimento manchado até à placa gigantesca que dominava a morgue. De cada lado estavam os bancos de compartimentos frigoríficos que eram usados para armazenar os corpos antes da autópsia.

Laurie passou uma das listas a Marvin.

— Quero verificar todos os compartimentos que não estejam ocupados — disse Laurie. — Tu verificas este lado, eu verifico aquele.

Marvin revirou os olhos mas recebeu a lista. Começou a abrir os compartimentos, espreitando para dentro, e depois batia com as portas. Laurie foi para o outro lado e fez a mesma coisa.

— Ai, ai! — Marvin entoou cinco minutos mais tarde. Laurie fez uma pausa.

— que é?

— É melhor vir até aqui — disse Marvin.

Laurie deu a volta à placa. Marvin estava no outro extremo, coçando a cabeça enquanto olhava fixamente para a lista. À sua frente estava um compartimento frigorífico aberto.

— Este devia estar vazio — disse Marvin.

Laurie olhou para dentro e sentiu a pulsação acelerar. Lá dentro, havia um cadáver nu, sem a tarjeta no dedo grande do pé. O número do compartimento era o noventa e quatro. Não ficava muito longe do um onze, onde Franconi deveria ter estado.

Marvin puxou o tabuleiro para fora. Na quietude da morgue deserta, os carris do tabuleiro faziam uma enorme chocalhada. Era o corpo de um homem de meia-idade, com sinais de um extenso trauma nas pernas e no torso.

—Bem, agora está explicado—disse Laurie. A sua voz reflectia um invulgar misto de triunfo, fúria e medo. — É o cadáver não identificado. Foi um caso de atropelamento em que o condutor fugiu na auto-estrada FDR.

Ao sair do elevador, Jack ouviu um telefone tocar insistentemente. Enquanto caminhava pelo corredor, cada vez mais teve a certeza de que era o seu telefone, sobretudo porque o seu gabinete era o único com a porta aberta.

Jack acelerou o passo e, quando ia a passar a porta, escorregou na passadeira de vinil. Conseguiu levantar o auscultador na altura precisa. Era Lou.

— Por onde tens andado? — reclamou Lou.

— Fiquei encalhado na universidade do hospital — disse Jack. Depois de Jack ter falado a Lou, o Dr. Malovar tinha aparecido e pedido para ele dar uma olhadela a uns slides forenses. Tendo acabado de consultar o Dr. Malovar, Jack não teve coragem de recusar.

— Já estou a ligar há quinze minutos — observou Lou.

— Desculpa — disse Jack.

— Tenho aqui uma informação que estou louco para te dar — disse Lou. — Este caso é muito estranho

— Não me estás a dizer nada que eu já não soubesse — disse Jack. — Que soubeste de novo?

Um movimento no canto atraiu a atenção de Jack. Voltando a cabeça viu Laurie na entrada. Ela não tinha um ar normal. Os seus olhos estavam como se fossem chamas, a boca tinha um trejeito irado e a pele estava cor do marfim.

— Espera um segundo! — disse Jack, interrompendo Lou. — Laurie, que diabo se passa?

—Eu tenho de falar contigo—disse Laurie, atabalhoadamente.

—Certamente—disse Jack.—Mas será que podes esperar dois minutos? — Ele apontou para o telefone para indicar que estava a falar a alguém.

— Agora! — vociferou Laurie.

— ’Tá bem, ’tá bem — repetiu Jack. Era óbvio que ela estava tão tensa como uma corda de viola prestes a rebentar.

— Ouve, Lou — disse Jack para o telefone. — Laurie acaba de entrar, e está muito transtornada. Eu já te ligo.

— Pára! — interrompeu Laurie com brusquidão. — Estás a falar com Lou Soldano?

— Estou — disse Jack, com hesitação. Por um instante de irracionalidade, ele supôs que Laurie estivesse tão perturbada por ele estar a falar com Lou.

— Onde é que ele está? — interrogou Laurie. Jack encolheu os ombros.

— No escritório dele, suponho.

— Pergunta-lhe — disse Laurie bruscamente.

Jack colocou a pergunta e Lou respondeu afirmativamente. Jack olhou para Laurie e assentiu com a cabeça.

— Ele está lá — disse ele.

— Diz-lhe que vamos lá falar com ele — disse Laurie. Jack hesitou. Estava confuso.

— Diz-lhe! — repetiu Laurie. — Diz-lhe que vamos imediatamente.

— Ouviste aquilo? — perguntou Jack a Lou. Logo em seguida, Laurie desapareceu pelo corredor em direcção ao seu gabinete.

— Ouvi — disse Lou. — Que se passa?

— Isso gostaria eu de saber — disse Jack. — Ela entrou de rompante. Se eu não te ligar de novo, é sinal de que vamos a caminho.

— Está bem — disse Lou. — Ficarei à espera.

Jack desligou o telefone e apressou-se a ir para o vestíbulo. Laurie já estava de volta e tentava vestir o casaco. Ela olhou-o de soslaio ao passar por ele a caminho do elevador. Jack tentou alcançá-la.

— Que aconteceu? — perguntou Jack, com hesitação. Receava irritá-la ainda mais.

— Tenho quase noventa e nove por cento de certeza de como o corpo de Franconi foi levado daqui—disse Laurie, irada.—E duas coisas estão a tornar-se claras. Primeiramente, a Agência Spoletto Funeral Home esteve envolvida, e segundo, o rapto teve a cobertura de alguém que trabalha cá dentro. E, para te dizer a verdade, não sei qual das duas coisas me aborrece mais.

— Chi!, olha para o trânsito — disse Franco Ponti a Angelo Facciolo. — Podes ter a certeza de que estou contente que nem um raio por irmos para Manhattan em vez de virmos de lá.

Franco e Angelo estavam no cadilaque preto de Franco, na direcção oeste da Ponte Queensborough. Eram cinco e trinta, o clímax da hora de ponta. Ambos trajavam como se fossem para um jantar de gala.

— Qual a ordem que queres seguir? — perguntou Franco. Angelo encolheu os ombros.

—Talvez a rapariga primeiro—disse ele. O seu rosto retorceuse num ligeiro sorriso.

— Estás ansioso por isto, não estás? — comentou Franco Angelo ergueu as sobrancelhas, tanto quanto lho permitia a

cicatriz facial.

— Há cinco anos que ansiava por atingir este nível profissional — disse ele. — Suponho que nunca pensei vir a ter a minha oportunidade.

— Sei que não é preciso lembrar-te de que estamos a cumprir ordens — disse Franco. — À letra.

—Cerino nunca foi tão minucioso—disse Angelo.—Ele só dizia para fazermos o trabalho. Não dizia como havíamos de o fazer.

— É por isso que Cerino está por detrás das grades e Vinnie é que está a dirigir o espectáculo — disse Franco.

— Sabes que mais — disse Angelo. — Por que não damos um passeio pela casa de Jack Stapleton. Já estive no apartamento de Laurie Montgomery, por isso sei no que nos vamos meter. Mas estou um pouco apreensivo por este outro endereço: One Hundredsixth Street, Oeste, não é um lugar onde eu esperaria que vivesse um médico.

— Penso que uma passagem por lá me parece uma ideia inteligente — disse Franco.

Quando chegaram a Manhattan, Franco continuou para oeste, para a Fifty-ninth Street. Deu a volta pela parte sul do Central Park e dirigiu-se para norte, para a Central Park Oeste.

A memória de Angelo recuou ao dia fatídico, no cais da Companhia American Fresh Fruit, quando Laurie causou a explosão. Ele sempre tivera problemas de pele devido ao sarampo e ao acne, mas foram as queimaduras sofridas por causa de Laurie Montgomery que o tornaram naquilo que ele próprio chamava um aborto da natureza.

Franco fizera uma pergunta, mas Angelo não o tinha ouvido devido ao seu colérico devaneio. Ele teve de repetir a questão.

— Aposto como gostarias de ter enfiado um balázio na Laurie Montgomery — disse Franco. — Se tivesse sido comigo, de certeza que era isso que tinha feito.

Angelo deixou escapar uma gargalhada sarcástica. Inconscientemente, moveu o braço esquerdo para poder sentir o volume da sua pistola automática Walther TPH, aconchegada no seu coldre de ombro.

Franco voltou à esquerda para a One Hundred-sixth Street. Passaram por um campo de jogos, à direita, que estava bastante movimentado, particularmente o campo de basquetebol. Havia muita gente a observar.

— Deve ser à esquerda — disse Franco.

Angelo consultou o pedaço de papel com o endereço de Jack.

— Estamos a aproximarmo-nos — disse ele. — É o prédio com aquele topo extravagante.

Franco abrandou a marcha e depois parou um pouco mais adiante, do lado oposto da casa de Jack. Um carro atrás apitou. Franco abriu o vidro e fez sinal para o carro avançar. Enquanto o ultrapassava, o motorista praguejou. Franco abanou a cabeça.

— Ouviste aquele tipo? Ninguém tem boas maneiras nesta cidade.

— Por que é que um médico há-de viver aqui? — disse Angelo. Através do vidro da frente, ele observava o prédio onde Jack vivia.

Franco abanou a cabeça.

— Não faz sentido. O edifício parece uma espelunca.

— Amendola disse que ele era um pouco estranho — disse Angelo.—Dizem que se desloca de bicicleta, todos os dias, daqui até à morgue, na First Avenue e Thirtieth Street.

— Não posso crer! — comentou Franco.

— Foi o que disse Amendola — disse Angelo.

Os olhos de Franco fizeram uma sondagem pela zona.

— Toda a área é uma lixeira. Talvez ele esteja metido na droga. Angelo abriu a porta do carro e saiu.

— Onde vais? — perguntou Franco.

— Quero verificar se ele de facto vive aqui — disse Angelo. — Amendola disse que o apartamento dele é no quarto andar, na parte de trás do prédio. Volto já.

Angelo deu a volta ao carro e esperou uma abertura no trânsito. Atravessou a rua e subiu até à entrada do prédio de Jack. Calmamente, empurrou a porta da frente e verificou as caixas do correio. Muitas estavam estragadas. Nenhuma tinha a fechadura a funcionar.

Rapidamente, Angelo deu uma vista de olhos pela correspondência. Logo que encontrou um catálogo endereçado ao Dr. Jack Stapleton, voltou a pô-lo na caixa do correio. Em seguida, tentou a porta interior. Abriu-a facilmente.

Dentro do vestíbulo, Angelo respirou fundo. Havia um desagradável odor a humidade. Olhou para o lixo nas escadas, a tinta a escamar e as lâmpadas quebradas no candeeiro, que já fora elegante. Lá do segundo andar, chegavam-lhe os ecos de uma desavença doméstica com gritos abafados. Angelo sorriu. Tratar de Jack Stapleton seria tarefa fácil. O edifício parecia uma casa em ruínas.

Ao voltar para a frente do prédio, Angelo procurou determinar qual das passagens pertencia ao prédio de Jack. Cada casa tinha uma meia dúzia de degraus que davam para um corredor coberto. Estes corredores davam para as traseiras.

Depois de decidir qual era a respectiva entrada, Angelo percorreu-a cautelosamente. Havia água estagnada e lixeira que ameaçavam os seus sapatos Bruno Magli.

As traseiras do prédio eram um tumulto de sebes desmanteladas, colchões apodrecidos, pneus abandonados e outro lixo. Afastandose cuidadosamente do prédio, Angelo procurou localizar as escadas de emergência. Duas das janelas do quarto andar tinham acesso às escadas. Não havia luz nas janelas. O doutor não estava em casa.

Angelo regressou ao carro e sentou-se.

— Então? — perguntou Franco.

— Ele vive lá — disse Angelo. — O edifício é pior no interior, como se isso fosse possível. Não está trancado. Ouvi um casal a discutir no segundo andar e uma TV no máximo do volume. O prédio não é bonito, mas para os nossos fins é perfeito. Será facílimo.

— Isso é que gosto de ouvir — disse Franco. — Sempre vamos começar pela mulher?

Angelo sorriu o melhor que pode.

— Porquê negar-me esse prazer?

Franco pôs o carro em marcha. Dirigiram-se para sul, ao longo da Columbus Avenue para a Broadway, depois atravessaram a cidade para a Second Avenue. Dentro de pouco tempo estavam na Nineteenth Street. Angelo não necessitava do endereço. Indicou a casa de Laurie sem qualquer dificuldade. Franco, convenientemente, encontrou uma zona onde era proibido estacionar e encostou.

— Então, achas que devemos entrar pelas traseiras? — disse Franco, enquanto olhava para o edifício.

— Por várias razões — disse Angelo. — Ela está no quinto andar, mas as janelas dão para a parte de trás. Para saber se ela está, temos de ir até lá de qualquer modo. Por outra, ela tem uma vizinha bisbilhoteira que vive em frente, e vê-se que ela tem as luzes acesas. Essa mulher abriu a porta e olhou para mini apalermada das duas vezes que estive na porta da frente da Montgomery. Além disso, o apartamento da Montgomery tem acesso pelas escadas de emergência, e as escadas dão directamente para o quintal de trás. Eu sei, porque foi por aí que nós a perseguimos.

— Conseguiste convencer-me—disse Franco. — Vamos a isso. Franco e Angelo saíram do carro. Angelo levantou o banco de

trás e tirou de lá uma mala de ferramentas e uma barra de ferro Halligan—um instrumento que os bombeiros usam para forçarem as portas em caso de emergência.

Os dois homens dirigiram-se para a passagem que dava acesso à parte traseira do prédio.

— Ouvi dizer que ela conseguiu escapar, a ti e a Tony Ruggerio — disse Franco. — Pelo menos, por algum tempo. Ela deve ser cá um número.

—Nem me fales nisso—disse Angelo.—É claro, trabalhar com Tony é como arrastar um saco de batatas.

Ao sair na parte de trás do prédio, que era um escuro pasto de jardins negligenciados, Franco e Angelo procuraram verificar se havia luz no quinto andar. As janelas estavam às escuras.

— Parece que teremos tempo de preparar umas boas-vindas — disse Franco.

Angelo não respondeu. Limitou-se a levar as ferramentas para a porta de ferro que dava acesso às escadas de emergência. Calçou umas luvas de cabedal fino, enquanto Franco segurava a lanterna eléctrica.

Inicialmente, as mãos de Angelo tremiam de mera excitação pela expectativa de se encontrar frente a frente com Laurie Montgomery, depois de cinco anos de um ressentimento abrasador. Como a fechadura não cedia aos esforços de Angelo, ele procurou controlar-se, de modo a conseguir concentração. A fechadura cedeu e a porta abriu-se.

Cinco andares acima, Angelo não se preocupou com a ferramenta. Sabia que Laurie tinha vários fechos de segurança que estavam trancados. Usou a barra de ferro Halligan. Com um ruído abafado de estilhaços, ele abriu a porta com rapidez. Dentro de vinte segundos, estavam no interior.

Durante alguns segundos, os dois homens mantiveram-se estáticos na escuridão da copa de Laurie escutando atentamente.

Queriam certificar-se de que os ruídos do arrombamento não haviam despertado a atenção dos outros inquilinos.

— Ai, Cristo! — Franco sussurrou assustadamente. — Houve qualquer coisa que me roçou a perna!

— Que é? — perguntou Angelo. Ele não esperava tal acesso, e o coração começou a palpitar.

— Oh, não é mais do que um maldito gato! — disse Franco, com alívio. Logo em seguida, os dois homens ouviram o animal a ronronar na escuridão.

—Olha que sorte—disse Angelo.—Será um belo complemento. Trá-lo.

Vagarosamente, os dois homens atravessaram a copa até à cozinha e à sala de estar. Lá, com as luzes da cidade a penetrar através das vidraças, conseguiam ver relativamente melhor.

— Até agora tudo bem — disse Angelo.

— Agora, só nos resta esperar—disse Franco.—Acho que vou ver se há alguma cervej a ou vinho no frigorífico. Estás interessado?

— Uma cerveja não seria mau — disse Angelo.

No Comando-Geral da Polícia, Laurie e Jack tiveram de obter tarjetas de identificação e passar por um detector metálico antes que lhes fosse autorizada a entrada para o andar onde estava Lou. Lou aguardava-os à saída do elevador.

A primeira coisa que ele fez foi agarrar Laurie pelos ombros, olhá-la nos olhos e perguntar-lhe o que tinha acontecido.

— Ela está bem — disse Jack, afagando Lou nas costas. — Ela voltou à sua velha calma e racionalidade.

— É verdade? — questionou Lou, continuando a examinar Laurie com o olhar.

Laurie não pode deixar de sorrir sob o intenso escrutínio de Lou. —Jack tem razão—disse ela. — Estou óptima. Na verdade, até estou embaraçada por ter vindo para aqui a correr. Lou suspirou de alívio.

— Bem, estou feliz por ver vocês dois. Venham ao meu palácio. Conduziu-os ao seu gabinete.

—Posso oferecer-lhes café, mas não recomendo—disse Lou. — A esta hora do dia o pessoal de limpeza acha-o suficientemente forte para limpar os canos das pias.

— Estamos bem — disse Laurie. Ela sentou-se numa cadeira. Jack fez o mesmo. Olhou à sua volta para a simplicidade

espartana com um calafrio desagradável. A última vez que lá estivera havia um ano, tinha sido depois do atentado ao qual escapara por pouco.

— Penso que consegui descobrir como é que o corpo de Franconi foi tirado da morgue—começou Laurie.—Troçaste de mim por ter suspeitado da Agência Spoletto Funeral Home, mas agora penso que vais ter de retirar aquilo que disseste. Aliás, penso que agora é altura de eu te passar a pasta.

Laurie, resumidamente, transmitiu a Lou o que ela supunha ter acontecido. Disse-lhe que suspeitava que alguém do gabinete médico de investigadores dera à Spoletto o número de acesso de um corpo não identificado, relativamente recente, assim como a localização dos restos mortais de Franconi.

— Muitas vezes, quando vêm dois condutores levantar um corpo para uma agência, um deles vai à câmara frigorífica, enquanto o outro trata da papelada com o técnico do necrotério — explicou Laurie. — Nestes casos, o técnico prepara o corpo, cobrindo-o com um lençol e pondo a maca num local de fácil acesso, logo à entrada da câmara. No caso de Franconi, creio que o condutor levou o corpo, cujo número de acesso lhe fora dado, tirou a tarjeta, enfiou o corpo num dos muitos compartimentos vagos, substituiu a etiqueta de Franconi por aquela e, calmamente, apareceu na entrada do necrotério com o corpo de Franconi. A única coisa que o técnico fez nessa altura foi verificar o número de acesso.

— Isso é um cenário e tanto — disse Lou. — Posso perguntar se tens qualquer prova de tudo isso ou são tudo conjecturas?

— Encontrei o corpo cujo número de acesso foi dado pela Spoletto — disse Laurie. — Estava num compartimento que era suposto estar vago. O nome Frank Gleason era fictício.

— Ahhhhh! — disse Lou, tornando-se muito mais interessado. Debruçou-se sobre a secretária. — Estou a começar a gostar muito disto, especialmente considerando a associação matrimonial entre a Spoletto e os Lúcia. Isto pode ser qualquer coisa importante. Até parece que é como apanhar o Al Capone por fuga de impostos. Quero dizer, seria fantástico se conseguíssemos apanhar algumas pessoas da família Lúcia por roubo de um corpo!

— É óbvio, que também levanta o espectro da ligação do crime organizado com os transplantes de fígado — disse Jack. — Isso poderia ser uma associação terrível.

— Assim como perigosa — disse Lou. — Por isso, tenho de insistir que não há mais trabalho de detective-amador. A partir de agora tratamos nós do assunto. Dás-me a tua palavra?

— Fico encantada por vocês tomarem conta—disse Laurie. — Mas há ainda o problema de uma fuga no gabinete médico de investigação.

— Penso que será melhor que eu trate disso, também — disse Lou. — Na medida em que envolve crime organizado, é de esperar qualquer elemento de extorsão ou coerção criminal. Mas eu trato do assunto directamente com Bingham. Penso que não é necessário avisar-te de que esta gente é perigosa.

— Aprendi essa lição bastante bem — disse Laurie.

— Por mim, estou demasiado preocupado com a minha parte para me imiscuir—disse Jack. — Que informações é que tens para mim.

— Muitas — disse Lou. Estendeu o braço e levantou, da extremidade da secretária, um grande livro do tamanho de um livro de arte. Com um gemido, passou-o a Jack.

Com um olhar perplexo, Jack bateu no livro.

— Que diabo vem a ser isto? — comentou ele. — Para que quero eu um atlas?

— Porque vais precisar dele — disse Lou. — Nem te conto quanto me custou surripiar um aqui no departamento policial.

— Não estou a entender! — disse Jack.

— O meu contacto na FAA conseguiu contactar alguém que trabalha na organização europeia que controla as horas de aterragem e descolagem em toda a Europa — explicou Lou. — Eles também registam os planos do voo e mantêm esses registos para além de sessenta dias. O G4 de Franconi chegou a França vindo da Guiné Equatorial.

— De onde? — interrogou Jack com as sobrancelhas unidas numa expressão de confusão total. — Nunca ouvi falar da Guiné Equatorial. É um país?

—Verifica na página cento e cinquenta e dois! — observou Lou.

— Que é isso de Franconi e um G4? — perguntou Laurie .

— Um G4 é um jacto particular — explicou Lou. — Consegui descobrir que Franconi tinha estado fora do país. Pensámos que ele tinha estado em França até eu obter esta nova informação.

Jack abriu o atlas na página cento e cinquenta e dois. Era um mapa cuja legenda dizia: “A bacia do Congo Ocidental” e cobria uma vasta área da África Ocidental.

— Está bem, agora dá-me uma pista — disse Jack. Lou apontou sobre o ombro de Jack.

— É este pequeníssimo país entre o Camarão e o Gabão. A cidade de onde o avião descolou é Bata, na costa. Apontou para o respectivo ponto. O atlas apresentava o país como sendo maioritariamente uma mancha verde ininterrupta.

Laurie levantou-se da sua cadeira e olhou por cima do ombro de Jack.

— Acho que me lembro de ter ouvido falar desse país uma vez. Penso que foi onde o Frederick Forsyth foi escrever o livro Dogs of War1.

Lou bateu no alto da cabeça absolutamente assombrado.

— Como é que tu te lembras de coisas dessas? Não me consigo lembrar onde almocei na terça-feira passada.

Laurie encolheu os ombros.

— Leio muitos livros — disse ela. — Os escritores interessam-me.

—Isto não faz qualquer sentido—reclamou Jack.—Isto é uma parte subdesenvolvida de África. Este caís não deve ter nada para além de mata. Aliás, esta parte de África não é se não selva. Franconi não poderia ter lá ido fazer o transplante.

— Essa foi também a minha reacção — disse Lou. — Mas há outra informação que faz mais sentido. Investiguei a Alpha Aviation desde a sua sede em Nevada até ao seu verdadeiro proprietário. É a Corporação Gensys, em Cambridge, Massachusetts.

— Já ouvi falar da Gensys — disse Laurie. — É uma firma de biotécnica que é importante em vacinas e linfoquinas. Eu sei, porque uma amiga minha, que é corretora em Chicago, recomendou-me acções dessa companhia. Ela passa a vida a dar-me sugestões, pensando que eu tenho montes de dinheiro para investir.

— Uma companhia biotécnica! — reflectiu Jack. — Hum. Isso dá uma reviravolta. Deve ser bastante significativo, embora não saiba bem como. Nem faço ideia o que uma firma de biotécnica possa estar a fazer na Guiné Equatorial.

— Que é que significa esta ligação indirecta em Nevada? — perguntou Laurie. — Será que a Gensys está a tentar esconder o facto de possuírem um avião?

— Duvido — disse Lou. — Consegui obter informações sobre a ligação com a maior facilidade. Se a Gensys estivesse a tentar esconder a propriedade, os advogados em Nevada teriam continuado a ser os directores e a entidade jurídica da Alpha Aviation. Pelo contrário, logo na primeira reunião de direcção, o director financeiro da Gensys assumiu os lugares de presidente e secretário.

 

1 Coes de Guerra. (N. da T.)

 

— Então, porquê Nevada, para um avião que é propriedade de uma companhia sediada em Massachusetts?—perguntou Laurie.

—Não sou advogado—admitiu Lou.—Estou certo de que deve ter a ver com impostos e responsabilidade limitada. Massachusetts é um estado terrível nesse sentido. Imagino que a Gensys alugue o avião em sistema de leasing durante o tempo em que não o utiliza, e o seguro para uma companhia sediada em Nevada deve ser muito inferior.

— Tens confiança com esta tua amiga corretora? — perguntou Jack a Laurie.

—Bastante—disse Laurie.—Foi minha colega na Universidade de Wesleyan.

— E se lhe telefonasses e perguntasses se ela sabe se haverá alguma ligação entre a Gensys e a Guiné Equatorial—disse Jack.

— Se ela recomendou as acções, deve ter investigado a companhia integralmente.

— Sem dúvida — disse Laurie. — Jean Corwin era uma das estudantes mais compulsivas que já alguma vez conheci. Em comparação, fazia que parecêssemos, a nós, estudantes de Medicina, demasiado descontraídos.

— Será que Laurie pode usar o teu telefone?—perguntou Jack a Lou.

— Sem dúvida — disse Lou.

— Queres que ligue já? — perguntou Laurie, surpreendida.

— Vê se a apanhas ainda no trabalho — disse Jack. — Se há hipóteses de ela ter um ficheiro, será lá.

— Provavelmente, tens razão — admitiu Laurie. Sentou-se na secretária de Lou e ligou para as informações de Chicago.

Enquanto Laurie estava ao telefone, Jack quis saber como Lou obtivera informações tão pormenorizadas. Estava particularmente interessado e impressionado com o pormenor da Guiné Equatorial. Juntos, verificaram mais de perto o mapa, tendo notado, em especial, a sua proximidade do equador. Até notaram que a cidade principal, presumivelmente a capital, não era no continente mas sim numa ilha chamada Bioko.

— Não faço a mínima ideia de como será um lugar daqueles — disse Lou.

— Eu faço — disse Jack. — É quente, cheio de percevejos, chuvoso e húmido.

— Deve ser encantador — zombou Lou.

—Não é um lugar que alguém escolha para férias—disse Jack.

— Por outro lado, fica fora da rota dos turistas.

Laurie desligou o telefone e rodou a cadeira para olhar os outros de frente.

—Jean é tão organizada como eu imaginava—disse ela.—Ela conseguiu pôr o dedo no material da Gensys num fósforo. Evidentemente, teve de me perguntar quantas acções eu tinha comprado e ficou desapontadíssima quando eu admiti que não tinha comprado coisa alguma. Aparentemente, as acções triplicaram e depois dividiram-se

— Isso é bom? — perguntou Lou, chistosamente.

— Tão bom que posso ter perdido a oportunidade de me reformar—disse Laurie.—Diz ela que esta é a segunda companhia biotécnica estabelecida pelo seu director executivo Taylor Calbot.

—Ela sabia alguma coisa sobre a Guiné Equatorial?—perguntou Jack.

— Certamente — disse Laurie. — Diz ela que uma das razões de a companhia estar a ter tanto sucesso é o facto de terem estabelecido uma enorme colónia de primatas. Inicialmente, aideia era fazer trabalho de pesquisa para a Gensys. Depois, alguém teve a ideia de criar a oportunidade de outras companhias biotécnicas e laboratórios farmacêuticos encomendarem esses serviços à Gensys. Aparentemente, a procura para esses serviços ultrapassou de longe até mesmo as previsões mais optimistas.

— E essa colónia de primatas é na Guiné Equatorial? — perguntou Jack.

— Exactamente — disse Laurie.

— Ela explicou a razão? — perguntou Jack.

— Um memorando que ela tinha de um analista dizia que a Gensys escolheu a Guiné Equatorial devido às condições favoráveis dadas pelo governo, que até emitia leis para fomentar as operações deles. Aparentemente, a Gensys passou a ser a maior fonte de receita de moeda estrangeira, que eles tanto necessitam.

— Imaginas quanta corrupção todo este cenário deve e ivolver? — perguntou Jack. Lou limitou-se a dar um assobio.

—O memorando também salientava que a maioria dos primatas que eles usam eram indígenas da Guiné Equatorial—acrescentou Laurie. — Isso permite-lhes contornarem todas as restrições internacionais de exportação e importação de espécies protegidas, tais como os chimpanzés,

—Uma colónia de primatas—repetiu Jack, enquanto abanava a cabeça.—Isto está a levantar ainda mais hipóteses bizarras. Será que estamos perante um caso de xenoenxertia?

— Não comeces a usar linguagem médica comigo — reclamou Lou. — Que vem a ser isso de xenoenxertia?

—Impossível!—disse Laurie.—Axenoenxertia causa rejeições superagudas. Não havia nenhum vestígio de inflamação na secção de fígado que me mostraste, nem humoral nem em células entrepostas.

— É verdade — disse Jack. — E ele não estava a tomar quaisquer drogas imunossupressivas.

— Vamos lá, vocês dois... — suplicou Lou. — Não me façam rogar. Que diabo é xenoenxertia?

— É quando o órgão para transplante é tirado de um animal de uma espécie diferente — disse Laurie.

— Quer dizer como aquele fiasco do coração do babuíno Baby Fae, há dez ou doze anos? — perguntou Lou.

— Exactamente — disse Laurie

As novas drogas que deprimem o sistema imunitário trouxeram os xenoenxertos de novo à cena — explicou Jack. — E com um sucesso muito mais considerável do que o do Baby Fae.

— Em especial, com as válvulas do coração dos porcos — disse Laurie.

—Evidentemente que levanta muitas questões de ética—disse Jack. — E põe malucas as pessoas que lutam pelos direitos dos animais.

— Especialmente agora que estão a experimentar introduzir genes humanos nos porcos para diminuir algumas das reacções de rejeição — acrescentou Laurie.

—Será que Franconi obteve um fígado de um primata enquanto esteve em África? — perguntou Lou.

— Penso que não — disse Jack. — Laurie levantou uma boa questão. Não havia evidência de qualquer rejeição. Isso é uma coisa inédita até mesmo com seres humanos muito semelhantes, excepto gémeos idênticos.

— Mas parece que Franconi esteve em África — disse Lou. —Verdade, e a mãe disse que ele veio um homem novo — disse

Jack. Levantou as mãos ao ar e pôs-se de pé. — Eu não sei o que pensar. É um mistério maldito. Especialmente com este aspecto do crime organizado à mistura. Laurie ergueu-se também.

— Vocês vão embora? — perguntou Lou. Jack acenou com a cabeça.

— Estou confuso e exausto — disse ele. — Não dormi muito a noite passada. Depois de termos identificado os restos de Franconi, estive ao telefone durante horas. Telefonei para todas a organizações europeias que se ocupam de órgãos, a cujos números deitei mão.

— E se fôssemos todos à Little Italy, para um jantar muito rápido? — sugeriu Lou. — É mesmo aqui ao lado.

—Eu não—disse Jack. — Ainda tenho uma corrida de bicicleta pela frente. Nesta altura, uma refeição arrumava comigo.

— Nem eu — disse Laurie. — Estou desejosa de chegar a casa e tomar um duche. Para mim, foram duas noites seguidas, estou estoirada.

Lou admitiu que o trabalho que tinha ainda levaria uma meia hora, por isso, Laurie e Jack despediram-se e desceram ao primeiro andar. Devolveram as suas tarjetas de visitantes e saíram da esquadra. Junto à City Hall, apanharam um táxi.

— Sentes-te melhor? — perguntou Jack a Laurie, quando iam a subir a Bowery, na direcção norte. Um caleidoscópio de luzes afagou-lhes o rosto.

— Muito — admitiu Laurie. — Nem imaginas como me sinto aliviada ao depositar tudo nas competentes mãos de Lou. Peço desculpa por ter ficado tão agitada.

— Não há necessidade de pedir desculpa — disse Jack. — É inquietante, para não dizer o pior, saber que há um potencial espião entre nós e que o crime organizado esteja interessado em transplantes de fígados.

— E tu, que tal te estás a aguentar? — perguntou Laurie. — Estás a receber uma série pistas bizarras no caso Franconi.

— É bizarro, mas é também intrigante — disse Jack. — Especialmente esta associação com a companhia biotécnica Gensys. A parte assustadora destas empresas é que todas as suas pesquisas sãos feitas à porta fechada. Segredo, estilo guerra fria, é o modus operandi deles. Ninguém faz ideia do que estão a fazer na ânsia de obter lucros sobre os seus investimentos. É muito diferente de há dez ou vinte anos atrás quando a NIH1 subsidiava a maior parte da investigação biomédica numa espécie de fórum aberto. Naqueles dias, havia fiscalização sob a forma de recensão crítica de colegas, mas hoje não.

— E pena que não haja alguém como Lou a quem tu possas passar o caso — disse Laurie com um riso abafado.

— Não seria fantástico! — disse Jack.

— Qual é o passo seguinte? — perguntou Laurie. Jack suspirou.

 

’National Institute of Health (Instituto Nacional de Saúde). (N. da T.)

 

— Estou a esgotar as opções. A única coisa que está prevista é ura veterinário patologista rever a secção do fígado.

— Então, já pensaste num xenoenxerto? — perguntou Laurie com surpresa.

— Não, não pensei — admitiu Jack. — A sugestão de um veterinário patologista examinar o slide não foi minha. A ideia veio do parasitologista lá do hospital, que pensa que o granoloma era devido a um parasita, mas um que ele não reconheceu.

— Talvez devesses mencionar a possibilidade de uma xenoenxertia a Ted Lynch — sugeriu Laurie. — Como especialista em ADN, poderá ter alguma coisa na manga que possa confirmar ou não, de uma vez por todas.

—Excelente ideia! — disse Jack com admiração. — Como é que ainda te lembras de uma sugestão dessas quando já estás tão combalida? Tu surpreendes-me! A minha mente já encerrou por esta noite.

— Elogios são sempre bem-vindos — gracejou Laurie. — Especialmente às escuras, para que não me vejas corar.

— Estou a começar a pensar que a única solução para mim, se eu quiser resolver este caso rapidamente, é fazer uma viagem à Guiné Equatorial.

Laurie rodou no assento para poder olhar de frente para o largo rosto de Jack. Na penumbra, não era fácil ver-lhe os olhos.

— Não estás a falar a sério! Quero dizer... estás a gozar, não é?

— Bem, não posso telefonar à Gensys ou até mesmo ir a Cambridge e entrar pelo escritório central e dizer-lhes: “Ei, gente, que se passa na Guiné Equatorial?

— Mas estamos a falar de África — disse Laurie. — Isso é uma loucura. Fica do outro lado do mundo. Além disso, se achas que não vais ficar a saber coisa alguma indo a Cambridge, que te faz pensar que vais aprender indo a África?

— Talvez porque seja uma coisa que eles não esperam — disse Jack. — Suponho que eles não recebem muitas visitas.

— Oh, isso é uma loucura! — disse Laurie, agitando as mãos no ar e revirando os olhos.

— Ei, acalma-te — disse Jack. — Eu não disse que ia. Disse apenas que era uma coisa em que estava a pensar.

—Bem, então, pára de pensar nisso—disse Laurie. —Já tenho com que me preocupar. Jack sorriu para ela.

— Estás verdadeiramente preocupada. Estou sensibilizado.

— Claro! — observou Laurie, cinicamente. — Tu nunca ficas sensibilizado com os meus pedidos para não conduzires a tua bicicleta de montanha pela cidade.

O táxi parou em frente do bloco de apartamentos onde Laurie vivia. Laurie começou a preparar o dinheiro. Jack pôs-lhe a mão no braço.

— Esta é por minha conta.

— Está bem, a próxima vez será minha — disse Laurie. Preparava-se para sair do táxi mas depois parou. — Se me prometesses que ias de táxi para casa, penso que conseguiria arranjar qualquer coisa para comer no meu apartamento.

— Obrigadinha, mas esta noite não — disse Jack. — Tenho de levar a bicicleta para casa. Era capaz de adormecer com o estômago cheio.

— Podem acontecer coisas piores! — disse Laurie.

— Permite-me que recuse agora, mas fico a contar para outra vez

Laurie saiu do táxi e debruçou-se para dentro de novo.

— Promete-me apenas uma coisa: não partas para África esta noite.

Jack tentou fazer-lhe uma graça com a mão, mas ela fugiu com destreza.

— Boa noite, Jack — disse Laurie com um caloroso sorriso.

— Boa noite, Laurie — disse Jack. — Telefono-te depois de ter falado com Warren.

— Ah, está bem — disse Laurie. — Com tudo o que aconteceu, já me tinha esquecido. Fico à espera da tua chamada.

Laurie fechou a porta do táxi e ficou a vê-lo afastar-se até que virou na esquina da First Avenue e desapareceu. Dirigiu-se para a porta de sua casa a pensar, entretanto, que Jack era uma pessoa encantadora mas um tanto ou quanto complicada.

Enquanto subia no elevador, Laurie começou antecipar o seu duche e o calor do seu robe de veludo felpudo. Jurara a si própria que viria para casa cedo.

Laurie deu um sorriso ácido a Debra Engler antes de abrir as múltiplas fechaduras. Bateu com a porta para dar à Sr.a Engler uma mensagem extra. Mudando a correspondência de uma mão para outra, ela tirou o casaco. Na escuridão do vestiário, procurou um cabide.

Só ao entrar na sala de estar é que ela ligou o interruptor de parede que acendia um candeeiro de pé. Deu dois passos para a cozinha quando largou um grito abafado e a correspondência caiu ao chão. Havia dois homens na sala de estar. Um deles estava na sua cadeira, o outro sentava-se no sofá. O que se sentava no sofá amaciava o pêlo de Tom, que dormia ao seu colo.

A outra coisa que Laurie notou foi uma pistola com um silenciador que descansava no braço da cadeira.

— Bem-vinda a casa, Dr.a Montgomery — disse Franco. — Muito obrigado pelo vinho e pela cerveja.

Os olhos de Laurie voltaram-se para a mesa do café. Havia uma garrafa de cerveja vazia e um copo de vinho.

— Por favor, venha e sente-se — disse Franco. Apontou para uma cadeira que eles tinham colocado no meio da sala.

Laurie não se moveu. Sentia-se incapaz. Passou-lhe pela cabeça correr para a cozinha e tentar o telefone, mas imediatamente considerou que era uma ideia ridícula. Até pensou em fugir para a porta da frente, mas com todas aqueles trincos, sabia que seria um gesto fútil.

—Por favor!—repetiu Franco com uma falsa delicadeza que só aumentou o terror de Laurie.

Angelo afastou o gato para o lado e levantou-se. Deu um passo em direcção a Laurie e, sem avisar, deu-lhe com as costas da mão, traiçoeiramente, no rosto. Com o embate da bofetada, Laurie tombou para trás contra a parede e as pernas cederam. Ela caiu sobre as mãos e os joelhos. Sangue vermelho-vivo gotejava de um golpe no lábio superior, salpicando o chão de madeira.

Angelo agarrou-a bruscamente pelo antebraço e içou-a até que ela permanecesse de pé. Depois, empurrou-a para a cadeira e com um gesto violento obrigou-a a sentar-se. Era tal o seu terror que ela não conseguiu oferecer resistência.

— Assim é melhor — disse Franco.

Angelo debruçou-se sobre ela e com o rosto bem perto do de Laurie perguntou:

— Reconhece-me?

Laurie esforçou-se para olhar para a horrorosa cara do homem cheia de cicatrizes. Parecia uma personagem de um filme de terror. Ela engoliu; a garganta estava seca. Incapaz de proferir palavra, ela apenas abanava a cabeça.

— Não? — interrogou Franco. — Doutora, receio que vai magoar os sentimentos do Angelo e, nestas circunstâncias, é uma coisa muito perigosa.

—Lamento—lamuriou Laurie.Maltinhabalbuciadoapalavra, Laurie associou o nome com o facto do homem que permanecia de pé na sua frente ter cicatrizes de queimaduras na cara. Era Angelo Facciolo, o homem principal de Cerino, agora, obviamente, já fora da prisão.

— Há cinco anos que espero por isto! — disse Angelo, com rispidez. Logo de seguida, esbofeteou Laurie novamente, e com a pancada quase a deitou ao chão. Ela acabou por ficar com a cabeça pendurada. Mais sangue jorrava, desta vez saía do nariz e caía na carpete.

— Okay, Angelo! — disse Franco. — Lembra-te! Temos de falar com ela.

Durante um momento, Angelo estava trémulo, debruçado sobre Laurie, como se fizesse um esforço por se refrear. De súbito, ele regressou ao sofá e sentou-se. Pegou novamente no gato e começou a acariciá-lo de um modo grosseiro. Tom não se importou e começou a ronronar.

Laurie conseguiu endireitar-se. Passou a mão pelo lábio e pelo nariz. O lábio começava a inchar. Ela apertou o nariz para tentar fazer parar o sangue.

— Escute, Dr.a Montgomery — disse Franco. — Como deve imaginar, foi fácil para nós chegar até aqui. Eu digo isto para que compreenda a sua vulnerabilidade. Sabe, nós temos um problema em que você nos pode ajudar. Estamos aqui para lhe pedir com delicadeza para abandonar o caso Franconi. Será que estou a ser bem claro?

Laurie fez um sinal de assentimento com a cabeça. Estava apavorada.

— Ainda bem — disse Franco. — Agora, estamos a entender-nos. Tomaremos isto como sendo um favor da sua parte, e estamos dispostos a fazer um favor em troca. Nós, por acaso, sabemos quem matou o Sr. Franconi, e estamos dispostos a dar-lhe essa informação. Sabe, o Sr. Franconi não era uma boa pessoa, por isso foi morto. Ponto final. Está a compreender?

Laurie acenou de novo com a cabeça. Olhou de relance para Angelo, mas logo desviou os olhos.

—O nome do assassino é Vido Delbario—continuou Franco. — Ele também não é boa pessoa, embora tenha feito um favor ao mundo ao matar Franconi. Até me dei ao trabalho de escrever o nome num papel. Franco inclinou-se para a frente e colocou um pedaço de papel sobre a mesa do café. — Por isso, um favor por um favor.

Franco parou e olhou para Laurie em expectativa.

— Compreende bem o que lhe estou a dizer, não compreende? — perguntou Franco, depois de um momento de silêncio.

Laurie assentiu com a cabeça pela terceira vez.

— Quero dizer, acho que não estamos a pedir muito — disse Franco. — Para ser sincero, Franconi era um mau carácter. Ele matou um punhado de pessoas, e merecia morrer. Agora, no que lhe diz respeito, espero que seja sensata, porque numa cidade deste tamanho não há maneira de se proteger, e aqui o Angelo, o que mais desejava era satisfazer a sua vontade. Para sorte sua, o nosso patrão não tem a mão pesada. Ele é um homem de negócios. Entende?

Franco fez de novo uma pausa. Laurie sentiu-se forçada a responder. Com dificuldade, conseguiu dizer que compreendia.

— Fantástico! — disse Franco. Bateu com as mãos nos joelhos e levantou-se. — Quando tive conhecimento de que você era muito inteligente e desembaraçada, doutora, tive a certeza de que nos entenderíamos.

Franco enfiou a pistola no coldre que tinha ao ombro e vestiu o seu sobretudo Ferragamo.

— Vamos, Angelo — disse ele. — Tenho a certeza de que a doutora quer tomar um duche e jantar. Tenho a impressão de que está cansada.

Angelo levantou-se, deu um passo em direcção a Laurie e, maldosamente, distendeu com força o pescoço do gato. Ouviu-se um estalido doentio e Tom ficou flácido, sem emitir um gemido. Angelo atirou o gato morto para o colo de Laurie e seguiu Franco através da porta da frente.

— Oh, não! — lamuriou Laurie, enquanto embalava o seu gato de estimação, seu companheiro durante seis anos. Ela sabia que o pescoço fora cruelmente partido. Tentou pôr-se de pé com as pernas trémulas. Lá fora, no vestíbulo, ouviu o elevador chegar e depois descer.

Com um pânico súbito, correu para a porta da frente e voltou a trancar todos os trincos enquanto continuava agarrada ao corpo de Tom. Depois, tomando consciência de que os intrusos teriam entrado pela porta de trás, correu para as traseiras do apartamento e deparou-se com a porta aberta e estilhaçada. Esforçou-se por fechá-la o melhor que pôde.

De volta à cozinha, pegou no telefone com as mãos trémulas. A sua primeira reacção foi telefonar à Polícia, mas depois hesitou, ao ouvir a voz de Franco ecoar no seu cérebro, avisando-a da sua vulnerabilidade. Também conseguia visualizar o rosto de Angelo e a intensidade dos seus olhos.

Reconhecendo que estava em estado de choque e a reprimir as lágrimas, Laurie voltou a colocar o auscultador no lugar. Pensou em telefonar a Jack, mas sabia que ele ainda não teria chegado a casa. Por isso, em vez de telefonar a quem quer que fosse de momento, carinhosamente, colocou o corpo do seu gatinho numa caixa de fibra de vidro com várias bandejas de gelo. Depois, foi à casa de banho verificar as suas próprias feridas.

A corrida de bicicleta da morgue a casa não foi tão difícil quanto ele esperava. Na realidade, logo que arrancou, sentiu-se muito melhor do que se sentira durante todo o dia. Até se atreveu a atravessar o Central Park. Foi a primeira vez que atravessava o parque, ao anoitecer, depois de um ano. Embora se sentisse ligeiramente constrangido, era também hilariante ir a toda a velocidade ao longo dos escuros passeios sinuosos.

Durante quase todo o trajecto, meditou sobre a Gensys e a Guiné Equatorial. Perguntava-se como seria de facto aquela parte de África. Momentos antes, gracejara com Lou que era cheio de percevejos, quente e húmido, mas não tinha a certeza.

Também pensava em Ted Lynch e perguntava-se o que é que Ted conseguiria fazer no dia seguinte. Antes de Jack ter saído da morgue, telefonara-lhe para casa para lhe falar da improbabilidade de ter sido uma xenografia. Ted disse que supunha ser capaz de confirmar depois de examinar uma área do ADN que especificava as proteínas wsómicas. Ele explicara que a área diferia de espécie para espécie, e que a informação para fazer a identificação da espécie se fazia através de um CD ROM.

Jack curvou para a sua rua com a ideia de ir à livraria ver se havia alguma informação sobre a Guiné Equatorial. Mas ao aproximar-se do campo de basquetebol onde decorriam os jogos habituais, teve outra ideia. Ocorreu-lhe que poderia haver algum expatriado da Guiné Equatorial em Nova Iorque. Ao fim e ao cabo, a cidade alojava gente de todos os cantos do mundo.

Encaminhando a bicicleta para o campo de jogos, Jack desmontou da bicicleta e encostou-a contra a rede da vedação. Nem se preocupou em trancá-la, embora toda a gente fosse de opinião que era um lugar arriscado para deixar uma bicicleta de mil dólares. Na verdade, o campo de jogos era o único lugar em Nova Iorque onde Jack sentia que não havia necessidade de trancá-la.

Jack foi até as linhas laterais e fez sinal com a cabeça a Spit e a Flash, que faziam parte dos que aguardavam a sua vez para jogar. O jogo que decorria deslocava-se de um lado para outro com rapidez à medida que a bola mudava de mãos ou que era encestada. Com sempre, Warren dominava o jogo. Antes de cada jogada, ele dizia dinheiro, o que irritava os seus opositores, porque noventa por cento das vezes as bolas passava mesmo através do cesto.

Um quarto de hora mais tarde, o jogo foi decidido por um dos gritos dinheiro de Warren e os derrotados abandonaram o campo furtivamente. Warren avistou Jack e caminhou até ele com um ar pomposo.

— Ena, pá, vais correr ou quê? — perguntou Warren.

— Estou a pensar nisso — disse Jack. — Mas tenho umas perguntas que gostaria de te fazer. Em primeiro lugar, que dizes a juntarmo-nos neste fim-de-semana: tu e Natalie, Laurie e eu?

— Pois claro — disse Warren. — Qualquer coisa para calar o meu borrachinho. Ela não me larga por tua causa e de Laurie.

— Em segundo lugar, conheces alguns irmãos de um pequeno país africano chamado Guiné Equatorial?

— Ena, pá, nunca sei o que vai sair da tua boca — queixou-se Warren. — Deixa-me pensar.

— Fica na costa ocidental de África — disse Jack. — Entre Camarões e Gabão.

— Eu sei onde é — disse Warren, indignado. — Parece que foi descoberto pelos portugueses e colonizado pelos espanhóis. Aliás, tinha sido descoberto muito tempo antes pelos pretos.

— Fico impressionado por saberes — disse Jack. — Eu nunca tinha ouvido falar desse país.

— Não me admira — disse Warren. — Tenho a certeza de que nunca fizeste nenhum curso sobre a história da gente negra. Mas, para responder à tua questão, sim, conheço algumas pessoas de lá, e uma família em particular. O nome deles é Ndeme. Vivem a duas portas da tua, para o lado do parque.

Jack olhou para o prédio, depois novamente para Warren.

— Conhece-los o suficientemente para me apresentares? — perguntou Jack.—De repente, comecei a interessar-me pela Guiné Equatorial.

— Ah, de certeza — disse Warren. — O nome do pai é Esteban. Ele é dono do Mercado lá no Columbus. Aquele acolá, com os sapatos de borracha cor de laranja, é o filho dele.

Jack acompanhou com os olhos o dedo indicador de Warren até que viu umas alparcatas cor de laranja. Reconheceu o rapaz como sendo um dos jogadores regulares do basquetebol.

— Por que não vens fazer uns jogos? — sugeriu Warren. — Depois, vamos até lá e apresento-te Esteban. Ele é um peralvilho simpático.

— De acordo — disse Jack. Depois de ter sido reanimado pela corrida de bicicleta, estava à procura de uma desculpa para jogar basquetebol. Os acontecimentos do dia puseram-no constrangido.

Jack voltou atrás e foi buscar a bicicleta. Apressou-se a entrar para o edifício e carregou a bicicleta escada acima. Abriu a porta do apartamento sem tirá-la do ombro. Uma vez lá dentro, foi directamente ao seu quarto buscar o equipamento de basquetebol.

Em cinco minutos estava pronto a sair quando o telefone tocou. Durante uns instantes, hesitou se devia atender, mas, pensando que poderia ser Ted com um pouco de arcano ADN trivia, Jack levantou o auscultador. Era Laurie e estava fora de si.

Jack enfiou notas suficientes na divisória do táxi para ter a certeza de que dava e sobrava para pagar a corrida e saltou do táxi. Estava em frente do apartamento de Laurie, onde tinha estado uma hora antes. Com o seu equipamento de basquetebol, correu para a porta que logo se abriu. Laurie veio esperá-lo à saída do elevador do seu andar.

— Meu Deus! — exclamou Jack. — Olha para o teu lábio.

— Isso vai cicatrizar—disse Laurie, corajosamente. Depois, ela deu com os olhos em Debra Engler, que espreitava pela fresta da porta. Laurie precipitou-se para ela e deu-lhe um grito para não se meter onde não era chamada. A porta bateu.

Jack pôs o braço em volta de Laurie para acalmá-la e levou-a até ao apartamento.

— Estás bem? — perguntou Jack, depois de sentá-la no sofá. — Diz-me o que aconteceu?

—Eles mataram Tom!—choramingou Laurie. Depois do choque inicial, Laurie chorara pelo gato, mas a lágrimas secaram até Jack a interromper.

— Quem? — perguntou Jack.

Laurie aguardou até conseguir controlar as suas emoções.

— Eram dois, mas eu só conhecia um deles—disse ela. — E foi ele quem me bateu e matou Tom. O nome dele é Angelo. É por causa dele que tenho tido pesadelos. Eu tive um terrível choque com ele durante o caso Cerino. Pensei que ainda estivesse na prisão. Não posso imaginar porquê e como é que ele está cá fora. Não se pode olhar para ele, é horrível. A cara está cheia de cicatrizes de queimaduras, e tenho a certeza de que ele me culpa por isso.

— Então, a visita foi uma vingança? — indagou Jack.

—Não—disse Laurie.—Foi um aviso para mim. Nas palavras deles eu tenho de “deixar o assunto de Franconi em paz”.

— Não posso crer — disse Jack. — Eu é que estou a investigar o caso, não tu.

— Avisaste-me. É óbvio que eu irritei as pessoas erradas ao tentar descobrir como é que o corpo de Franconi foi levantado da morgue — disse Laurie. — Tanto quanto sei, foi a minha visita à Agência Funerária Spoletto Funeral Home que foi o catalisador da ira deles.

— Não estou orgulhoso por ter previsto isto — disse Jack. — Pensei que te meterias em sarilhos com Bingham, não com meliantes.

— O aviso de Angelo foi apresentado como sendo um favor por outro favor—disse Laurie.—O favor dele foi dizer-me quem matou Franconi. Até escreveu o nome num pedaço de papel. — Laurie levantou o pedaço de papel da mesa do café e entregou-o a Jack.

— Vido Delbario — leu Jack. Olhou de novo para a cara de Laurie, que tinha sido tratada com dureza. Tanto o nariz como o lábio estavam inchados e o olho começava a ficar inchado. — Este caso tem sido bizarro desde o começo, agora está a ficar fora de controlo. Seria melhor que me contasses tudo o que aconteceu.

Laurie relatou com todos os pormenores tudo quanto aconteceu desde o momento em que ela entrara em casa e até ter telefonado a Jack. Até lhe disse o porquê de ter hesitado em telefonar para o

Jack acenou com a cabeça.

— Compreendo — disse ele. — A Polícia local não poderá fazer grande coisa nesta altura.

— Que é que faço? — perguntou Laurie, redundantemente. Na verdade, não esperava uma resposta.

— Deixa-me ver a porta de trás — disse Jack. Laurie levou-o através da cozinha até à dispensa.

—Uau!—disse Jack. Devido aos múltiplos fechos de segurança, a orla da porta foi quase destruída quando eles a arrombaram. — Para já, não ficas cá esta noite.

—Suponho que podia ir para casa dos meus pais—disse Laurie.

—Vens comigo, para minha casa—disse Jack.—Eu durmo no sofá.

Laurie olhou para o fundo dos olhos de Jack. Não podia deixar de se perguntar se haveria mais alguma coisa por detrás daquele repentino convite do que a questão de segurança.

—Vai buscar as tuas coisas — disse Jack. — E leva o suficiente para alguns dias. Vai levar algum tempo para reparar aquela porta.

— Detesto ter de falar no assunto—disse Laurie. — Mas tenho que fazer qualquer coisa com o pobre do Tom.

Jack coçou a cabeça.

— Por acaso tens uma pá?

—Tenho uma pequena pá de jardinagem—disse Laurie.—Em que estás a pensar?

— Podíamos enterrá-lo lá atrás, no quintal. Laurie sorriu.

— Tu és um piegas, não és?

—Apenas sei o que é perder as coisas que amamos—disse Jack. A sua voz tremeu de emoção. Durante breves instantes, veio-lhe à memória a voz que o avisou da morte da mulher e da filha num acidente de avião.

Enquanto Laurie arrumava as suas coisas, Jack andou para trás e para diante no quarto dela. Estava a forçar a mente a concentrar-se em assuntos presentes.—Temos de falar a Lou sobre isto — disse Jack — e dar-lhe o nome de Vido Delbario.

— Estava a pensar a mesma coisa — disse Laurie, lá do fundo do guarda-fatos. —Achas que devemos dizer-lhe ainda esta noite?

— Penso que sim — disse Jack. — Depois, ele poderá decidir quando deverá agir. Telefonamos-lhe da minha casa. Tens o número de telefone da casa dele?

— Tenho — disse Laurie.

—Sabes, este episódio é perturbante por várias razões, além da tua segurança—disse Jack.—Vem agravar a minha preocupação de que o crime organizado está envolvido neste assunto do transplante de fígados. Talvez haja alguma espécie de mercado negro à mistura.

Laurie saiu do seu guarda-roupa com uma mala de pôr ao ombro.

— Mas como é que pode ser um transplante quando Franconi não estava a tomar imunossupressores? E não te esqueças dos resultados obtidos pelo Ted, do teste do ADN.

Jack suspirou.

— Tens razão — admitiu ele. — De facto, não encaixa.

— Talvez Lou possa decifrar tudo isso — disse Laurie.

—Não seria uma maravilha?—disse Jack. — Entretanto, tudo isto torna a ideia de uma viagem a África ainda mais atractiva. Laurie parou a caminho da casa de banho.

— De que diabo estás a falar? — interrogou ela.

—Eu não tenho experiência nenhuma com crime organizado— disse Jack.—Mas tenho experiência com grupos de ruas, e acredito que há semelhanças que eu aprendi por mim próprio. Se qualquer destes grupos lhe meter na cabeça livrar-se de uma pessoa, a Polícia não poderá dar protecção, a não ser que as tenha sob vigilância vinte e quatro horas por dia. O problema é, eles não têm recursos humanos. Talvez seja bom para nós dois sairmos da cidade durante algum tempo. Isso daria oportunidade a Lou de tentar descobrir alguma coisa.

—Eu também iria?—perguntou Laurie. De repente, a ideia de ir a África tinha uma conotação diferente. Nunca tinha ido a África, podia até ser interessante. Na realidade, poderia ser divertido.

— Digamos que seriam uma férias forçadas — disse Jack. — É óbvio, a Guiné Equatorial poderá não ser um destino de primeira qualidade, mas seria diferente. E talvez, no processo, pudéssemos descobrir exactamente o que a Gensys está a fazer lá e o porquê da visita de Franconi.

— Hum — disse Laurie. — Estou a começar a gostar da ideia. Logo que Laurie acabou de preparar as suas coisas, ela e Jack

levaram a caixa que continha o corpo de Tom para o quintal de trás. Lá, num canto onde havia terra argilosa solta, fizeram uma cova. A descoberta casual de uma pá enferrujada tornou o trabalho mais fácil e Tom foi posto em descanso.

— Caramba! — reclamou Jack, quando levantou a mala de Laurie para sair. — Que puseste aqui dentro?

— Disseste-me para levar coisas para vários dias — disse Laurie, na defensa.

—Mas não precisavas de trazer a tua bola de bowling—zombou Jack.

—São os cosméticos—disse Laurie.—Não os apropriados para viagem.

Apanharam um táxi na First Avenue. A caminho de casa de Jack pararam junto a uma livraria na Fifth Avenue. Enquanto Jack esperava no táxi, Laurie foi rapidamente à livraria para comprar um livro sobre a Guiné Equatorial. Infelizmente, não havia nenhum, e ela acabou por comprar um sobre toda a África Central.

— O funcionário riu-se quando eu lhe pedi um livro sobre a Guiné Equatorial — disse Laurie, quando regressou ao táxi.

—Mais uma prova de que não é um destino privilegiado—disse Jack.

Laurie riu-se. Ela estendeu a mão e apertou o braço de Jack.

— Ainda não te agradeci por teres vindo até cá — disse ela. — Fiquei muito sensibilizada, e agora estou a sentir-me muito melhor.

— Estou contente — disse Jack.

Chegados a casa de Jack, ele teve dificuldade em subir aquela escada tumultuosa com a mala de Laurie. Depois de uma série de lamentos e gemidos exagerados, Laurie perguntou-lhe se ele queria que ela a carregasse. Jack disse-lhe que o castigo dela por ter feito uma mala tão pesada era ouvir os queixumes dele.

Finalmente, conseguiu chegar com a mala ao seu piso. Ele procurou as chaves, meteu-as na fechadura e rodou. Sentiu que o trinco continuava fechado.

— Hum — comentou ele. — Não me lembro de ter dado duas voltas à chave. — Ele rodou a chave de novo para soltar a lingueta e abriu a porta com um empurrão. Devido à escuridão, entrou no apartamento à frente de Laurie para acender a luz. Laurie seguiu-o e colidiu com ele, porque ele fez uma paragem repentina.

— Vá lá, acenda a luz — disse uma voz.

Jack obedeceu. As silhuetas que ele vislumbrara momentos antes eram dois homens vestidos com um longos sobretudos escuros. Estavam sentados no sofá de Jack, virados para o interior da sala.

— Oh! Meu Deus! — disse Laurie — São eles.

Franco e Angelo gozaram-se da casa, tal como haviam feito na casa de Laurie. Tinham-se servido de cervejas. As garrafas meio vazias estavam na mesa do café, junto a uma pistola com o respectivo silenciador. Uma cadeira de costas altas tinha sido posta no centro da sala, em frente do sofá.

— Suponho que é o Dr. Jack Stapleton — disse Franco. Jack assentiu com a cabeça, enquanto pensava em várias

maneiras de lidar com a situação. Ele sabia que a porta da frente ainda estava entreaberta. Culpava-se por não ter sido mais astuto ao ter encontrado a porta com o fecho de segurança. O problema era que ele saíra tão apressadamente que não se lembrava quais o trincos que tinha fechado.

— Não faça nenhum disparate! — admoestou Franco, como se lesse os pensamentos de Jack.—Não demoramos. E se soubéssemos que a Dr.a Montgomery estaria aqui, teríamos poupado uma viagem até lá, isto para não mencionar o esforço de passar a mensagem duas vezes.

— O que é que vocês têm tanto medo que nós venhamos a descobrir, que faz que nos venham ameaçar? — perguntou Jack.

Franco sorriu e olhou para Angelo.

— Acreditas neste tipo? Ele pensa que tivemos todo este trabalho de vir até aqui para responder às perguntas dele.

— Não há respeito — disse Angelo.

— Doutor, e se fosse buscar outra cadeira para a senhora — disse Franco a Jack. — Depois, podemos ter a nossa conversinha e ir embora.

Jack não se mexeu. Ele estava a pensar na pistola em cima da mesa e perguntava-se qual dos dois homens estaria ainda armado. Entretanto, tentava avaliar as forças deles e notou que eles eram ambos magros. Calculou que deviam estar em baixa forma.

— Peço desculpa, doutor — disse Franco. — Está connosco ou quê?

Antes que Jack pudesse responder, houve movimento nas suas costas e alguém quase foi de encontro a ele. Uma outra pessoa gritou:

— Ninguém se mexa!

Jack recuperou da confusão momentânea e compreendeu que três afro-americanos tinham entrado de surpresa no apartamento, cada um deles munido de uma pistola. As pistolas estavam apontadas para Franco e Angelo. Os recém-chegados estavam todos equipados com fatos de basquetebol, e Jack reconheceu-os logo. Era o Flash, o David e o Split, que ainda transpiravam da sua actividade no campo.

Franco e Angelo foram apanhados absolutamente de surpresa. Ficaram sentados com os olhos arregalados. Uma vez que estavam habituados a terem armas nas mãos, sabiam bem que não se deviam mexer.

Durante um momento, houve um silêncio de gelo. Então, Warren entrou pomposamente.

— Ena, pá! Doutor, salvar-lhe a vida parece que passou a ser um passatempo a tempo inteiro, percebe o que estou a dizer? E vou dizer-lhe uma coisa, está a degradar o bairro ao trazer para cá esta espécie de gentalha branca.

Warren tirou a pistola das mãos de Spit e disse-lhe para ele brincar com os visitantes. Sem proferir palavra, Spit tirou uma pistola automática Walther a Angelo. Depois, dirigindo-se a Franco, tirou-lhe a pistola de cima da mesa.

Ruidosamente, Jack deixou sair uma baforada de ar.

— Warren, velho amigo, não sei como conseguiste entrar num momento tão crucial da minha vida, mas fico-te muito grato.

— Estes escumalhas foram vistos a rondar por aí esta tardinha — explicou Warren. — Parece que pensam que são invisíveis, apesar das suas carantonhas e do grande Cadillac, preto, brilhante. Até parece anedota.

Jack esfregou as mãos de contente pela mudança brusca da situação. Perguntou a Angelo e a Franco os seus nomes, mas a única resposta foi uns olhares frios e coléricos.

—Aquele é Angelo Facciolo—disse Laurie, enquanto apontava contra o seu vingador.

— Spit, tira-lhes as carteiras — ordenou Warren. Spit obedeceu e leu os nomes e endereços em voz alta.

— Ah!, que é isto? — interrogou ele, quando abriu a carteira contendo um dístico da Polícia de Ozone Park. Ele levantou-o para que Warren pudesse vê-lo.

— Não são agentes da Polícia — disse Warren com um tom de certeza. — Não te preocupes.

— Laurie — disse Jack. — Penso que é altura de dar um telefonema a Lou. Penso que o que ele mais gostaria era falar com estes cavalheiros. E diz que traga a carrinha, caso ele queira convidá-los a passar a noite por conta da cidade.

Laurie desapareceu para a cozinha.

Jack caminhou até junto de Angelo e olhou-o de cima para baixo.

— Põe-te de pé! — disse Jack.

Angelo levantou-se e olhou para Jack com um ar ameaçador e insolente. Surpreendendo todos, incluindo o próprio Angelo, Jack desfechou um grande murro na cara de Angelo. Houve um ruído quando Angelo caiu para trás no sofá, indo depois parar ao chão, todo encolhido.

Jack crispou-se nervosamente, praguejou e agarrou a mão. Depois abanou-a para baixo e para cima.

— Ai, Jesus! — queixou-se ele. — Nunca tinha batido em ninguém desta maneira. Magoa!

— Pára, Jack — avisou Warren. — Não gosto de bater em montes de excrementos. Não é o meu estilo.

— Eu já acabei — disse Jack, ainda abanando a mão magoada. — Sabes, é que aquele cão raivoso, do outro lado do sofá, bateu na Laurie esta tarde, depois de ter arrombado o apartamento dela. Com certeza que reparaste na cara dela.

Angelo conseguiu sentar-se no chão. O nariz dele fazia um ângulo para a direita. Jack convidou-o a voltar para o sofá. Angelo movimentava-se lentamente, enquanto aparava o sangue com a mão por debaixo do nariz.

—Agora, antes que a Polícia chegue aqui—disse Jack aos dois homens —, eu gostaria de perguntar mais uma vez o que é que vocês temem que eu e Laurie venhamos a descobrir? Que se passa com este negócio sujo do Franconi?

Angelo e Franco olhavam fixamente para Jack como se ele não estivesse lá. Jack insistiu e perguntou-lhes o que era que eles sabiam sobre o fígado de Franconi, mas eles continuaram silenciosos .

Laurie voltou da cozinha.

— Já contactei Lou — relatou ela. — Ele vem a caminho, e devo dizer que está entusiasmado, especialmente quanto à pista sobre Vido Delbario.

Uma hora mais tarde, Jack encontrava-se confortavelmente instalado no apartamento de Esteban, junto a Laurie e a Warren.

— Claro, bebo outra cerveja — disse Jack em resposta à oferta de Esteban. Jack sentia um agradável atordoamento da primeira cerveja e estava progressivamente eufórico, visto a noite ter acabado tão auspiciosamente depois do mau começo.

Lou chegara a casa de Jack com uma patrulha de homens, aproximadamente vinte minutos depois do telefonema de Laurie. Ele estava extasiado por poder prendê-los por arrombamento, posse ilegal de armas de fogo, assalto e espancamento, extorsão e por falsa identificação de um agente da Polícia. A sua esperança era conseguir mantê-los presos o tempo suficiente para conseguir extorquir deles informações verdadeiras sobre o crime organizado em Nova Iorque, particularmente a organização Lúcia.

Lou ficara perturbado pelas ameaças feitas a Laurie e Jack, por isso, quando Jack lhe informou que iriam sair da cidade durante uma ou duas semanas, Lou foi absolutamente a favor. Ele estava tão preocupado, que entretanto já tinha indigitado dois guardas para protegerem Laurie e Jack. Para facilitar o trabalho, Jack e Laurie concordaram em se manterem juntos.

Por insistência de Jack, Warren tinha-o levado e à Laurie até ao Mercado, para serem apresentados a Esteban Ndeme. Conforme Warren já dera a entender, Esteban era um homem simpático e gracioso. Ele teria aproximadamente a mesma idade que Jack,

42 anos, mas o seu corpo era o oposto do de Jack. Enquanto Jack era robusto, Esteban era delgado. Até mesmo o seu rosto tinha uns traços delicados. A pele era de um castanho-rico e escura, muito mais escura do que a de Warren. Mas a sua característica facial mais proeminente era a alta testa abobadada. Ele perdera muito cabelo à frente, pelo que a linha do cabelo estava no alto da cabeça indo de orelha a orelha.

Logo que foi informado de que Jack e Laurie tencionavam fazer uma viagem à Guiné Equatorial, tinha-os convidado e a Warren a irem ao seu apartamento.

Teodora Ndeme demonstrou ser tão agradável como o marido. Apenas alguns momentos após a chegada do grupo ao apartamento, ela insistiu em que ficassem para jantar.

Com uns aromas a especiarias vindos da cozinha, Jack recostou-se alegremente com a sua segunda cerveja.

—Que o trouxe e à Teodora à cidade Nova Iorque?—perguntou ele a Esteban.

—Tivemos de fugir do país—disse Esteban. Ele pôs-se a contar o reinado de terror do implacável ditador Nguema, que obrigou um terço da população, incluindo os de descendência espanhola, a fugir. — Cinquenta mil pessoas foram mortas — disse Esteban. — Foi horrível. Nós tivemos sorte em conseguir fugir. Eu era professor formado em Espanha e, portanto, suspeito.

— As coisas mudaram, espero — disse Jack.

— Oh, sim — disse Esteban. — Um golpe em 1979 fez mudar muita coisa. Mas é um país pobre, embora haja rumores de óleo fora da costa, visto que foi descoberto fora de Gabão. O Gabão é agora o país mais rico da região.

— Já alguma vez voltou lá? — perguntou Jack.

— Várias vezes — disse Esteban. — A última vez foi há alguns anos — disse Esteban. — Teodora e eu ainda temos família lá. O > irmão da Teodora até tem um pequeno hotel, na metrópole, numa cidade chamada Bata.

—Já ouvi falar em Bata—disse Jack.—Ouvi dizer que tem um aeroporto.

—O único no continente—disse Esteban.—Foi construído nos anos 80, por altura do Congresso da África Central. É evidente, o país não tinha dinheiro, mas isso é uma outra história.

— Já ouviu falar de uma companhia chamada Gensys? — perguntou Jack.

— Certamente — disse Esteban. É a maior fonte de receita de moeda estrangeira para o governo, especialmente depois de os preços do cacau e do café terem decaído.

— Sim, já ouvi dizer isso — disse Jack. — Também ouvi dizer que a Gensys tem uma herdade de primatas. Sabe se é em Bata?

— Não, é no sul — disse Esteban. — Construíram-na na selva, perto de uma velha cidade espanhola chamada Cogo. Reconstruíram muito da velha cidade para a gente deles da América e da Europa, e construíram uma nova cidade para os locais que trabalham lá. Eles empregam muita gente equatoguineense.

— Sabe se a Gensys construiu um hospital?—perguntou Jack. —Construíram, sim—disse Esteban. Construíram um hospital

e um laboratório na velha praça, em frente à Câmara.

— Como é que sabe tudo isso? — perguntou Jack.

— Porque um primo meu trabalhou lá — respondeu Esteban. Mas ele abandonou o posto quando os soldados executaram um amigo dele por andar a caçar. Muita gente gosta da Gensys porque pagam bem, mas outros não gostam da Gensys porque têm muita força junto do governo.

— Por causa do dinheiro — disse Jack.

— Pois, claro — disse Esteban. — Eles pagam muito dinheiro aos ministros. Até pagam parte das Forças Armadas.

— Isso é um arranjo conveniente — comentou Laurie.

— Se fôssemos a Bata, haveria possibilidade de visitarmos o Cogo? — interrogou Jack.

— Suponho que sim — disse Esteban. Depois dos espanhóis saírem de lá, há vinte e cinco anos, a rua para o Cogo foi abandonada e tornou-se inacessível, mas a Gensys reconstruiu-a para que os camiões possam andar para trás e para a frente. Mas teriam de alugar um carro.

— Pode-se fazer isso? — indagou Jack.

— Se tiver dinheiro, tudo é possível na Guiné Equatorial — disse Esteban. — Quando é que está a pensar ir? Porque é melhor ir na estação seca.

— Quando é isso? — perguntou Jack.

— Fevereiro e Março — disse Esteban.

— Isso vem mesmo a calhar—disse Jack. Porque a Laurie e eu estamos a pensar em ir amanhã à noite.

— O quê? — disse Warren, falando pela primeira vez desde que chegaram ao apartamento de Esteban. Ele não ouvira a conversa entre Jack e Lou. — Pensei que eu e Natalie íamos sair com vocês este fim-de-semana. Eu já disse a Natalie.

— Ohhhh! — comentou Jack. — Já me tinha esquecido.

— Ena, pá, tens de esperar até depois de sábado à noite, se não fico metido numa grande encrenca, sabes o que quero dizer. Eu já te disse o que ela me tem chateado por causa de estar com vocês dois.

Na sua euforia actual, Jack teve uma outra sugestão.

— Tenho um ideia melhor. Por que é que tu e Natalie não vêm comigo e com Laurie até à Guiné Equatorial? A expensas minhas.

Laurie pestanejou. Não tinha a certeza se ouvira bem.

— Ena, pá, que estás para aí a dizer? — disse Warren. — Estás mas é maluco! Estás a falar de África.

— Sim, África — disse Jack, — Se Laurie e eu tivermos de ir, já agora, vamo-nos divertir o máximo possível. Aliás, Esteban, por que não vem você e a sua esposa também? Podemos fazer um grupo.

— Está a falar a sério? — perguntou Esteban.

A expressão de Laurie era igualmente de incredulidade.

— Claro que estou a falar a sério — disse Jack. — A melhor maneira de visitar um país é ir com alguém que já viveu lá. Não é nenhum segredo. Mas diga-me, precisamos de vistos?

— Precisamos, sim, mas a Embaixada da Guiné Equatorial é aqui em Nova Iorque — disse Esteban. — Duas fotografias, vinte e cinco dólares e uma carta do banco a dizer que você não é pobre e aparece logo o visto.

— Como é que se vai lá ter? — perguntou Jack.

— Para Bata, o mais fácil é através de Paris — disse Esteban. —De Paris utilizamos um serviço diário para Douala, em Camarões. De Douala há serviço diário para Bata. Podem ir através de Madrid, também, mas há só dois voos por semana para Malabo, em Bioko.

— Parece que Paris vence — disse Jack, alegremente.

— Teodora! — chamou Esteban para a cozinha. — É melhor chegares aqui.

— Estás mas é maluco! — disse Warren a Jack. — Eu sabia, desde a primeira vez que te vi no campo de basquetebol. Mas sabes uma coisa?! Estou a começar a gostar.

 

7 DE MARÇO, 1997 - 6:15 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

O despertador de Kevin tocou às seis e quinze. Ainda estava absolutamente escuro lá fora. Saindo debaixo do mosquiteiro, acendeu a luz para procurar o robe e os chinelos. Tinha a sensação de qualquer coisa macia na boca e uma ligeira dor de cabeça a evocar o vinho que tomara na véspera. Com a mão trémula, pegou no copo que estava em cima da mesa-de-cabeceira e saciou a sede. Agora, fortificado, saiu do quarto com a pernas trémulas e foi bater à porta das suas hóspedes.

Na noite anterior, ele e as suas companheiras tinham chegado à conclusão de que fazia sentido que elas passassem a noite lá. Kevin tinha quartos suficientes e todos concordaram que estarem juntos tornaria a partida de manhã muito mais fácil e despertaria menos a atenção. Consequentemente, cerca das onze horas da noite, e por entre gargalhadas e muita jovialidade, Kevin tinha conduzido as suas companheiras aos respectivos alojamentos para recolherem as coisas de que necessitariam para a noite, mudança de roupa e a comida que tinham adquirido na cantina.

Enquanto as duas companheiras faziam a mala, Kevin deslocara-se ao laboratório para ir buscar o localizador, o aparelho direccional, a lanterna e o mapa.

Em ambos os quartos, Kevin teve de bater duas vezes. Uma vez suavemente, não havendo qualquer reacção, e outra com mais vigor, até ouvir resposta. Presumiu que estivessem indispostas, visto que levaram mais tempo a chegar à cozinha do que era de esperar. Ambas se serviram de uma caneca de café e beberam-no de um só trago, sem proferirem palavra.

Depois do pequeno-almoço todos estavam nitidamente reanimados. Aliás, quando saíram de casa de Kevin sentiam-se hilariantes, como se fossem de férias. O tempo estava tão bom quanto era possível naquela parte do mundo. A aurora despertava e o céu, de um tom rosa-prateado, estava, em geral, claro. Para o sul, havia uma linha de pequenas nuvens entumecidas. No horizonte, lá para oeste, umas nuvens arroxeadas pressagiavam tempestade sobre o oceano, mas estavam muito distantes, e, provavelmente, ficariam lá durante todo o dia. Enquanto caminhavam em direcção à marginal, estavam encantados com a profusão da avifauna. Havia turacos azuis, papagaios, tecelões, águias pesqueiras africanas, e uma espécie de melro preto africano. O ar estava pleno das suas cores e chilreies penetrantes.

A cidade parecia deserta. Não havia nem peões nem veículos e as casas estavam ainda com as persianas fechadas contra a noite. A única pessoa que viram foi um indígena que limpava o chão no Huty Chickee Hut.

Caminharam ao longo do cais construído pela Gensys. Tinha seis metros de largo e um metro e oitenta de altura. As grossas tábuas toscas estavam molhadas devido ao ar húmido da noite. Na extremidade do cais, havia uma rampa de madeira que dava acesso a uma doca flutuante. A doca parecia estar misteriosamente suspensa; pois a superfície da água, perfeitamente calma, estava escondida por uma camada de neblina que se estendia até onde a vista alcançava.

Conforme elas tinham prometido, lá estava uma piroga motorizada com nove metros de comprido, languidamente ancorada no extremo da doca. Em tempos, tinha sido pintada de vermelho com o interior branco, mas a tinta tinha-se desvanecido ou tinha sido raspada em grandes áreas. Um toldo de palha apoiado em postes de madeira cobria cerca de três quartos do barco. Protegidos pelo toldo havia alguns bancos. O motor de fora de bordo era um Euinrude antigo. Atrelada à popa estava uma pequena canoa com quatro bancos estreitos que se estendiam de borda a borda.

— Nada mau, hem? — disse Melanie, enquanto puxava o cabo de amarração e puxava o barco para a doca.

— É maior do que eu esperava — disse Kevin. — Desde que o motor não falhe, estaremos bem. Não quero ter de remar para muito longe.

—O pior cenário, seria regressarmos a flutuar—disse Melanie, destemidamente. — A fim e ao cabo, vamos subir o rio.

Puseram a aparelhagem e a comida a bordo. Enquanto Melanie permanecia no cais, Kevin foi até à popa para examinar o motor. Era fácil de manejar e as instruções eram em inglês. Ele ligou o acelerador e puxou a ignição. Para sua grande surpresa, o motor pegou logo. Fez sinal a Melanie para saltar para dentro, engrenou o motor avante e arrancou.

Ao afastarem-se do cais, todos olharam para trás, para o Cogo, para verificar se alguém teria dado pela partida. Aúnica pessoa que viram foi o homem solitário que limpava o Chickee Hut, e ele nem se preocupou em olhar naquela direcção.

Conforme tinham planeado, navegaram para oeste como se fossem para Acalayong. Kevin pôs o acelerador a meia altura e ficou satisfeito com a velocidade. A piroga era grande e pesada mas tinha muito pouco atrito. Verificou a canoa que traziam a reboque; deslizava bem na água.

O barulho do motor tornava a conversação difícil, por isso estavam satisfeitos por desfrutarem do cenário. O Sol não nascera ainda, mas o céu estava mais claro e as extremidades orientais das nuvens cúmulos sobre o Gabão estavam debruadas a doirado. À direita, a orla marítima da Guiné Equatorial aparecia como uma sólida massa de vegetação que abruptamente vertia na água. O largo estuário estava salpicado de outras pirogas que se moviam como fantasmas através da neblina, que ainda atapetava a superfície da água.

Quando o Cogo tinha ficado substancialmente para trás, Melanie bateu ao de leve no ombro de Kevin. Assim que ele lhe prestou atenção, ela fez um largo movimento circular com a mão. Kevin acenou com a cabeça e começou a dirigir o barco para sul.

Dez minutos após estarem a viajar para sul, Kevin começou a desviar ligeiramente para oeste. Estavam agora, pelo menos, a uma milha da praia, e, ao passarem em frente ao Cogo, verificaram que era muito difícil distinguir os edifícios.

Quando o Sol finalmente fez a sua aparição, era uma enorme bola de um dourado-avermelhado. Em princípio, as neblinas equatoriais eram tão densas que permitiam olhar o sol sem necessidade de proteger os olhos. Mas o calor do Sol começou a dissipar a neblina, o que, por sua vez, em breve tornou os raios solares mais fortes. Melanie foi a primeira a pôr os óculos de sol, mas Candace e Kevin logo seguiram o seu exemplo. Alguns minutos mais tarde, todos começaram a despir camadas de roupa que tinham vestido para se resguardarem do ar fresco da manhã.

À esquerda, estava o cordão de ilhas que abraçava a costa equatoguineense. Kevin tinha estado a navegar para norte, a fim de completar o círculo em volta do Cogo. Então, guinou o leme, dirigindo a proa directamente para a ilha Francesca, que surgia à distância com pouca nitidez.

Uma vez dissipada a neblina devido ao brilho intenso do sol, uma bem-vinda brisa agitava a água e a ondas começaram a dilapidar o que até agora era um superfície espelhada. Avançando contra o vento, a piroga batia contra as cristas, borrifando ocasionalmente os passageiros como um chuveiro.

A ilha Francesca parecia diferente das ilhas irmãs, e quanto mais se aproximavam, mais aparente se tornava a diferença. Além de ser consideravelmente maior, a escarpa de pedra calcária da ilha Francesca dava-lhe uma aparência mais robusta e volumosa. Até havia rastos de neblina semelhantes a nuvens que se agarravam aos cumes.

Uma hora e quinze minutos depois de terem saído do cais do Cogo, Kevin reduziu a válvula de pressão e a piroga abrandou. A cerca de três metros à frente havia a densa orla litoral da costa sudoeste da ilha Francesca.

— Deste ângulo, parece quase proibitiva — disse Melanie, tentando falar acima do ruído do motor.

Kevin acenou com a cabeça em sinal de acordo. Nada na ilha era convidativo. Não havia praia. Toda a linha litoral parecia coberta de mangues densos.

—Temos de encontrar a saída do rio Diviso—gritou Kevin, em resposta. Depois de se aproximardes mangues tanto quanto julgou ser prudente, guinou o leme para estibordo e dirigiu-se ao longo da costa ocidental. A sotavento da ilha, as ondas desapareceram. Kevin ergueu-se na esperança de conseguir ver possíveis obstruções sob a superfície da água. Mas não via nada. A água era de uma cor barrenta, impenetrável.

—E lá onde estão todos os juncos?—disse Candace, da proa, em voz alta. Ela apontava para um vasto pântano que entretanto surgira.

Kevin fez um sinal de assentimento com a cabeça e reduziu ainda mais o motor. Enfiou o barco em direcção aos juncos de um metro e oitenta.

— Consegues ver quaisquer baixios debaixo de água? — perguntou ele a Candace.

Candace abanou a cabeça.

— Está demasiado lamacenta — disse ela.

Kevin voltou o barco novamente, de modo a ficarem em paralelo ao litoral da ilha. Os juncos eram densos e o pântano estendia-se por cerca de noventa metros para o interior da ilha.

— Isto deve ser a saída do rio—disse Kevin.—Espero que haja um canal ou, então, estamos com pouca sorte. Nunca mais conseguiremos meter a canoa através daqueles juncos.

Após dez minutos, sem terem encontrado qualquer abertura nos juncos, Kevin voltou o barco em sentido inverso. Fê-lo cuidadosamente para não danificar o cabo que rebocava a canoa pequena.

— Não quero avançar nesta direcção — disse Kevin. — A largura do pântano está a diminuir. Penso que não vamos encontrar um canal. Além disso, tenho receio que nos aproximemos muito da área de acesso onde está a ponte.

— Concordo — disse Melanie. — E se fôssemos para a outra extremidade da ilha, onde o rio Diviso tem a sua passagem?

— Estava justamente a pensar nisso — disse Kevin. Melanie levantou a mão.

— Que estás a fazer? — perguntou Kevin.

— Chama-se um High Five, seu parvalhão! — troçou Melanie. Kevin bateu-lhe na mão com a dele e riu-se.

Navegaram para trás e deram a volta à ilha para ir em direcção a leste, ao longo do comprimento. Kevin passou o regulador de pressão para meia velocidade. A rota que tomaram deu-lhes uma boa perspectiva do lado sul da montanha da ilha. Daquele ângulo, não se via pedra calcária. A ilha parecia ser uma ininterrupta selva virgem.

— Só vejo aves — disse Melanie em alta voz, acima do ruído do motor.

Kevin anuiu com a cabeça. Ele tinha visto muitos ibises e picanços

O Sol agora mais estava alto, de modo que o toldo de palha tornou-se muito útil. Reuniram-se todos na popa para beneficiarem da sombra. Candace pôs protector solar, que Kevin encontrara entre os seus medicamentos.

—Achas que os bonobos na ilha vão ser tão irrequietos como os bonobos em geral são? — perguntou Melanie em alta voz.

Kevin encolheu os ombros.

— Quem me dera saber! — retorquiu ele, também em alto tom. —Se forem, poderá ser difícil nós os vermos, e todo este esforço terá sido em vão.

— Eles tiveram um contacto mínimo com seres humanos até estarem na cerca dos animais no centro—gritou Melanie.—Penso que temos boas chances, desde que não nos aproximemos muito.

— Os bonobos são tímidos quando estão na selva? — perguntou Candace a Melanie.

— Mesmo muito — disse Melanie. — Tanto ou mais do que os chimpanzés. Os chimpanzés que não têm qualquer contacto com seres humanos são quase impossíveis de se encontrar na selva. São excessivamente tímidos, e a audição e olfacto deles são muito mais aguçados do que os nossos, por isso, as pessoas não se podem chegar junto deles.

—Ainda restam algumas áreas verdadeiramente selvagens em África? — perguntou Candace.

— Oh, Deus, claro que sim! — disse Melanie. — Em especial, desde esta parte costeira da Guiné Equatorial e estendendo-se a oeste-noroeste há vastas extensões que são florestas tropicais virgens, essencialmente inexploradas. Estamos a falar de, pelo menos, um milhão de milhas quadradas.

— Quanto tempo vai isso durar? — questionou Candace.

— Isso é outra conversa — disse Melanie.

— E se me passassem um refresco — gritou Kevin.

—Vai já sair—disse Candace. Ela foi até à caixa de Styrofoam e levantou a tampa.

Vinte minutos mais tarde, Kevin diminuiu a potência do motor novamente e virou para norte, em volta da ponta oriental da ilha Francesca. O Sol estava agora mais alto no céu e significativamente mais quente. Candace puxou a caixa de Styrofoam para bombordo, de modo a protegê-la do sol.

— Há um outro pântano à vista — disse Candace.

— Já vi — disse Kevin.

De novo, Kevin conduziu o barco mais junto à costa. Em termos de tamanho, o pântano parecia ser de tamanho semelhante ao do lado ocidental da ilha. Mais uma vez, a mata declinava até aproximadamente noventa metros da borda de água.

Justamente quando Kevin ia a dizer que mais uma vez tinham sido iludidos, surgiu uma clareira por entre a ininterrupta parede de juncos.

Kevin orientou a canoa em direcção à abertura e reduziu a potência do motor ainda mais. O barco afrouxou. A cerca de nove metros de distância, Kevin pôs o motor em ponto neutro e desligou-o.

Assim que o ruído do motor esmoreceu, eles viram-se mergulhados numa quietude austera.

— Meu Deus, os meus ouvidos estão a retinir! — queixou-se Melanie.

— Achas que é um canal? — perguntou Kevin a Candace, que se deslocara até à proa.

— É difícil dizer — disse Candace.

Kevin agarrou na parte de trás do motor e inclinou-o para fora

de água. Não queria estragar a hélice com a vegetação subaquática.

A piroga penetrou nos juncos. Roçou nos caules e depois parou.

Kevin deitou a mão à canoa pequena para evitar que ela batesse de encontro à popa da piroga.

— Parece que continua de uma maneira sinuosa — disse Candace. Ela estava de pé, na borda, e segurava-se ao toldo de protecção para conseguir ver por cima do topo dos juncos.

Kevin arrancou um junco com um puxão e partiu-o em pedaços. Atirou-os à água junto ao barco e ficou a observar. Deslizavam vagarosamente mas inexoravelmente na direcção em que eles se deslocavam.

— Parece que há uma certa corrente — disse Kevin. — Penso que é um bom sinal. Vamos fazer uma tentativa com a canoa. — Kevin deslocou o barco mais pequeno para junto do maior.

Com dificuldade, devido à instabilidade da canoa, eles conseguiram mudar-se para o barco mais pequeno, assim como todo o equipamento e a comida. Kevin sentou-se na popa enquanto Candace ficou na proa. Melanie sentou-se no meio, mas não nos bancos. Canoas faziam-na ficar nervosa, por isso, preferiu sentar-se no fundo.

Remando, puxando juncos e empurrando a piroga, conseguiram desviar-se do barco maior. Uma vez chegados ao que eles supunham ser um canal, deslizaram com mais facilidade.

Com Kevin a remar suavemente na parte de trás e Candace à frente, conseguiam mover-se ao ritmo deumpasseioapé.A estreita passagem de um metro e oitenta de largura ziguezagueava à medida que eles se deslocavam no pantanal. O Sol mostrava agora o seu poder equatorial, embora fossem ainda oito horas da manhã. Os juncos bloqueavam a brisa, o que tornava a temperatura ainda mais alta.

— Não há muitos atalhos nesta ilha — comentou Melanie. Desdobrara o mapa e estava a estudá-lo.

— O principal era o da área de acesso até ao lago Hippo—disse Kevin.

—Há mais alguns—disse Melanie.—Todos eles saindo do lago Hippo. Suponho que foram feitos para facilitar as recolhas.

— Imagino que sim — disse Kevin.

Kevin olhava para a água escura. Via cordões de vida animal que se estendiam na direcção em que eles remavam, sugerindo que havia corrente. Isto encorajou-o.

— Por que não tentas o localizador? — sugeriu Kevin. — Vê se o bonobo número sessenta se deslocou desde a última vez que verificámos.

Melanie introduziu a informação e deu um clique.

— Parece que não se moveu — disse ela. Reduziu a escala até que ficou com a mesma escala do mapa, depois localizou o ponto vermelho. — Está ainda no mesmo ponto, na clareira pantanosa.

— Pelo menos, podemos resolver esse mistério, mesmo que não vejamos nenhum dos outros — disse Kevin.

Em frente, aproximavam-se de um muro de matagal com trinta metros de altura. Quando contornaram a última curva no pântano, viram o canal desaparecer por entre o emaranhado da vegetação.

— Teremos sombra dentro de momentos — disse Candace. — Penso que vai ficar mais fresco.

— Não contes muito com isso — disse Kevin.

Puxando ramos para o lado, silenciosamente, penetraram com suavidade na perpétua escuridão da floresta. Ao contrário do que Candace esperava, era uma estufa sufocante e claustrofóbica. Não havia uma aragem e tudo gotejava de humidade. Embora o grosso pálio, formado pelos ramos das árvores, trepadeiras retorcidas e musgo pendente bloqueasse completamente a luz solar, também mantinha o calor como um pesado cobertor de lã. Algumas das folhas atingiam trinta centímetros de diâmetro. Estavam confusos com a escuridão dentro do túnel de vegetação, mas gradualmente os seus olhos adaptaram-se. Lentamente, os pormenores despontavam nas húmidas trevas e em breve o cenário assemelhava-se ao pôr do Sol, logo antes de o cair da noite.

Assim que os ramos, com um bofetão, retomaram o seu lugar após a passagem deles foram assaltados por enxames de insectos: mosquitos, moscas-veado e abelhas trigonas. Melanie, freneticamente, conseguiu localizar o pulverizador com o produto contra os insectos, e, depois de se banhar, passou-o aos outros.

— Cheira como um maldito charco — queixou-se Melanie.

— Isto é aterrorizador! — comentou Candace, do seu lugar à proa. — Acabo de ver uma cobra e eu odeio cobras.

— Desde que permaneçamos no barco, estamos safos — disse Kevin.

— Então, será bom não virarmos o barco — disse Melanie

— Não fales nisso! — reclamou Candace. — Vocês têm de se lembrar que eu sou novata nisto. Vocês estão nesta parte do mundo há anos.

— Basta nos preocuparmos com os crocodilos e com os hipopótamos — disse Kevin — Se vires algum, avisa-me.

—Oh, fantástico! — queixou-se Candace, com nervosismo. — E que fazemos se virmos um?

— Não era para te assustar — disse Kevin. — Penso que não vamos ver nenhum até chegarmos ao lago.

— E depois o quê? — questionou Candace. — Talvez eu devesse ter-me informado dos perigos desta viagem antes de me ter inscrito.

— Não nos fazem mal — disse Kevin. — Pelo menos, foi o que me disseram. Desde que eles estejam na água basta que nos mantenhamos a uma distância razoável deles. É quando são apanhados em terra que podem ser imprevisivelmente agressivos, e tanto os crocodilos como os hipopótamos correm mais depressa do que se pensa.

— De repente, não estou a gostar nada disto — admitiu Candace. — Pensei que me ia divertir.

— Não era suposto ser um piquenique — disse Melanie. — Não viemos em viagem de turismo. Estamos aqui por um motivo.

— Esperemos que sejamos bem sucedidos — disse Kevin. Ele compreendia bem o estado de espírito de Candace. Estava atónito por ter sido convencido a meter-se nisto.

Para além dos insectos, a vida animal que predominava eram as aves. Voavam de ramo para ramo sem cessar, enchendo o ar de melodias.

Em ambos os lados do canal, a floresta era impenetravelmente densa. Só ocasionalmente Kevin ou as suas companheiras conseguiam ver para além de seis metros em qualquer direcção. Até mesmo a orla marítima era invisível, escondida por detrás de um emaranhado de raízes e plantas aquáticas.

Enquanto remava, Kevin olhava para a água que era de um negro-carregado e estava coberta com a pletora de aranhas-deferrão aquáticas. O distúrbio que ele causava com cada remada fazia surgir umas bolhas fétidas à superfície da água.

O canal em breve se tornou mais estreito do que tinha sido no pântano, tornando a remada consideravelmente mais fácil. Observando os troncos que passavam flutuando junto ao barco, Kevin diria que iam a uma velocidade semelhante ao de um caminhar relativamente rápido. A este ritmo, calculava ele, estariam no lago Hippo dentro de dez a quinze minutos.

— E se pusesses o localizador em pesquisa? — sugeriu Kevin a Melanie. — Se reduzires o gráfico para esta área, saberemos se há alguns bonobos na vizinhança.

Melanie estava embevecida com o computador compacto, quando ouviram um movimento súbito nos ramos à esquerda. Instantes depois, mais no interior da floresta, ouviram o estalar de galhos e rebentos secos.

Candace levou a mão ao peito.

— Oh, credo! — disse ela. — Que diabo foi aquilo?

— Suponho que é mais um daqueles duikers — disse Kevin. — Aqueles pequenos antílopes são comuns até mesmo nestas ilhas.

Melanie voltou a sua atenção de novo para o localizador. Logo participou que não havia bonobos na área.

— Claro que não — disse Kevin. — Isso era bom de mais. Vinte minutos mais tarde, Candace informou que conseguia ver

luz solar penetrando através de um entrançado de ramos, logo à frente.

— Deve ser o lago — disse Kevin.

Mais umas remadas e a canoa deslizava nas águas do lago Hippo. O trio piscava os olhos devido ao clarão da luz solar, e todos foram em busca dos óculos escuros.

O lago não era grande. Na realidade, era mais como uma lagoa alongada, salpicada de ilhas de frondosos matagais, apinhadas de ibises brancos. A orla estava debruada com densos juncos. Aqui e ali, na superfície do lago, havia nenúfares de um branco-neve. Fragmentos de vegetação solta, suficientemente grossa para permitir que pequenos pássaros lá passeassem, flutuavam indolentemente em pequenos círculos, impulsionados pela suave brisa.

A parede de vegetação em redor descaía em ambos os lados, dando lugar a campos verdejantes, alguns com um hectare. Alguns destes campos estavam salpicados com cavidades de palmeiras. À esquerda, acima da linha da orla da floresta, o topo da escarpa de pedra calcária era agora nitidamente visível contra o nublado céu da manhã.

— É, na verdade, muito bonito — disse Melanie.

— Faz-me lembrar pinturas dos tempos pré-históricos — disse Kevin. — Até consigo visualizar um par de brontossauros lá no fundo.

— Oh, meu Deus, há hipopótamos ali à esquerda! — disse Candace, alarmada. Ela apontou com o remo.

Kevin olhou na direcção que ela indicava. Na verdade, as cabeças e pequenas orelhas de uma dúzia destes enormes mamíferos emergiam à superfície da água. De pé, no alto das suas cabeças, alguns pássaros brancos afagavam e arranjavam as penas com o bico.

— Não fazem mal — assegurou Kevin. — Vês como eles se afastam vagarosamente de nós. Não nos vão incomodar.

— Nunca fui muito amante da natureza — admitiu Candace.

— Não tens de dar explicações — disse Kevin. Ele recordava-se bem do seu constrangimento perante a vida selvagem no seu primeiro ano no Cogo.

— De acordo com o mapa, deverá haver um atalho, não muito longe, na margem esquerda — disse Melanie, enquanto estudava o mapa.

— Se bem me lembro, há um atalho que dá a volta a toda a extremidade oriental do lago — disse Kevin. — Começa na ponte.

— É verdade, mas aparece mais próximo da nossa esquerda — disse Melanie.

Kevin guinou a canoa em direcção à margem esquerda e começou à procura de uma abertura nos juncos. Infelizmente, não havia nenhuma.

— Penso que vamos ter de tentar remar directamente através da vegetação — disse Kevin.

—Eu sei que não saio deste barco se não quando encontrar terra seca — anunciou Melanie.

Kevin disse a Candace para não remar enquanto ele colocava a canoa em direcção à parede de juncos, de um metro e oitenta de alto, e dava umas remadas mais vigorosas. Para surpresa de todos, o barco deslizou por entre a vegetação sem qualquer problema, apesar do estardalhaço do roçar dos juncos no casco. Mais depressa do que esperavam embateram em terra seca.

—Foi fácil—disse Kevin. Olhou para trás para a passagem que tinha aberto no lago, mas os juncos voltavam à sua posição original como molas.

—Quer dizer que eu tenho de sair—disse Candace.—Nem vejo o chão. E se há percevejos ou cobras?

— Vai abrindo caminho com o teu remo — sugeriu Kevin. Logo que Candace saltou da proa, Kevin remou contra a

vegetação e conseguiu empurrar a canoa mais para a frente. Melanie saltou com facilidade.

—E a comida?—perguntou Kevin, enquanto se deslocava para a frente.

— É melhor deixá-la aí — disse Melanie. — Traz só o saco com os instrumentos. Eu tenho o localizador e o mapa.

As suas companheiras aguardaram até que Kevin saísse do barco, depois fizeram-lhe sinal para ele ir à frente. Com o saco da aparelhagem ao ombro, ele afastou os juncos e começou a deslocar-se para o interior. O chão era pantanoso e o esterco sugava os seus sapatos. Mas a uma distância de três metros entrou em terreno verdejante.

— Isto parece um campo, mas na realidade é um pântano — queixou-se Melanie, enquanto olhava para os seu ténis. Estavam pretos de lama e completamente encharcados.

Kevin debatia-se com o mapa para tentar situar-se, depois apontou para a direita.

—O chip transmissor do bonobo número sessenta deveria estar aproximadamente a trinta metros daqui, na direcção de um atalho sem saída, bloqueado por árvores — disse ele.

— Vamos para a frente com isto — disse Melanie. Com os ténis novos arruinados, até ela própria se perguntava se deveriam ter vindo. Em África nada era fácil.

Kevin meteu-se a caminho com as duas companheiras a segui-lo. Inicialmente, era difícil caminhar devido ao chão instável. Embora a erva desse a impressão de ser em geral uniforme, crescia em pequenas lombas falsas rodeadas de água lamacenta. Mas tornou-se mais fácil a cerca de quinze metros do lago, onde o chão se erguia e se tornara comparativamente mais seco. Logo a seguir, encontraram um atalho.

Ficaram surpreendidos ao notar que o atalho parecia ter muito uso. Era paralelo à orla do lago.

—Siegfried, provavelmente, manda pessoal aqui mais vezes do que nós pensávamos — disse Melanie. — Este atalho tem sido conservado.

—Tenho de concordar — disse Kevin. — Suponho que eles têm necessidade de conservá-lo por causa das recolhas. A mata é tão grossa e cresce tão rapidamente aqui. Felizmente para nós, porque assim ajuda-nos a caminhar com mais facilidade. Se bem me lembro, este vai dar à encosta de calcário.

— Se eles vêm cá fazer a manutenção, talvez haja algum fundamento na história do Siegfried quanto aos homens fazerem fogueiras — disse Melanie.

— Isso é que era bom — disse Kevin.

— Chega-me um cheiro horrível! — disse Candace, enquanto aspirava o ar. — É, na verdade, um cheiro pútrido.

Com uma certa hesitação, os outros aspiraram e concordaram.

— Não é um bom sinal — disse Melanie.

Kevin assentiu com a cabeça e caminhou em direcção ao lado que não tinha saída. Uns minutos mais tarde, com os dedos a apertar as narinas, os três depararam-se com um espectáculo degradante: eram os restos do bonobo número sessenta. A carcaça estava no processo de ser devorada pelos insectos. Necróforos maiores também tiravam a sua maquia.

Muito mais arrepiante do que o estado do cadáver era a prova de como o animal morrera. Um pedaço de pedra calcária em forma de cunha tinha atingido o pobre do animal entre os dois olhos, cortando a cabeça literalmente em duas partes. A pedra ainda lá estava. As bolas dos olhos expostas olhavam fixamente em direcções opostas.

—Uh!—disse Melanie.—Isto era o que não queríamos ver. Isto sugere que não só os bonobos se dividiram em dois grupos como se estão a matar uns aos outros. Será que o número sessenta e sete também está morto?

Kevin deu um pontapé na pedra que estava ao pé do corpo em decomposição. Os três olharam para ela, boquiabertos.

— Isto também era o que não queríamos ver — disse Kevin.

— De que é que estás a falar? — perguntou Candace.

— Aquela rocha foi afiada artificialmente — disse Kevin. Com a ponta do sapato, ele apontou para um área ao longo do lado da pedra onde se viam estrias feitas recentemente. — Isto sugere que foi feito com ferramenta.

— Receio que sejam mais provas circunstanciais — disse Melanie.

— Vamos andando — conseguiu Kevin balbuciar — antes que eu vomite. Não suporto este cheiro.

Kevin deu três passos em direcção a leste quando alguém o agarrou por um braço e lhe deu um puxão para que ele parasse. Voltou-se e viu Melanie com o dedo indicador contra os lábios. Depois, ela apontou para sul.

Kevin olhou nessa direcção e suspendeu a respiração. A cerca de quarenta e cinco metros, na penumbra do fundo do atalho sem saída, estava um dos bonobos! O animal estava de pé, erecto como uma espingarda e absolutamente estático, como se fosse um soldado em guarda de honra. Parecia que olhava para Kevin e para as suas companheiras tal como eles olhavam para ele.

Kevin estava surpreso com o tamanho da criatura. O animal tinha bem acima de um metro e meio. Também parecia ter peso a mais. Dado o seu enorme torso musculoso, Kevin supunha que o bonobo pesava entre os cinquenta e cinco a setenta quilos.

— Ele é mais alto dos que os bonobos que têm vindo para os transplantes—disse Candace.—Pelo menos, penso que é. E óbvio, que os bonobos que foram para os transplantes já iam drogados com sedativos e amarrados a uma maca quando chegaram junto de mim.

— Chiu — admoestou Melanie. — Vamos tentar não assustá-lo. Isto poderá ser a nossa única oportunidade de vermos um.

Com extremo cuidado para não se mover bruscamente, Kevin tirou o saco dos instrumentos do ombro e tirou o aparelho direccional. Colocou no pesquisar. Começou a ouvir um bip suave até que apontou na direcção do bonobo; nessa altura, o aparelho emitiu um som contínuo. Kevin olhou para o ecrã e conteve a respiração.

— Que se passa? — sussurrou Melanie. Ela notou que a expressão de Kevin mudara.

— É o número um — sussurrou Kevin, por sua vez. — É o meu duplo.

— Oh, meu Deus! — murmurou Melanie. — Estou ciumenta. Gostaria também de ver o meu.

— Quem me dera poder ver melhor — disse Candace. — Será que nos podemos aproximar?

Kevin estava emocionado por duas razões. Primeiro, pelo facto do primeiro bonobo com que se depararam ter sido o seu duplo. Segundo, se ele inadvertidamente criara uma raça de protohumanos, então estava, de um modo metamórfico, a ver-se a si próprio seis milhões de anos antes.

— Isto é de mais. — Kevin não pôde deixar de murmurar um pouco mais alto.

— De que é que estás a falar? — perguntou Melanie.

— De certo modo, aquilo sou eu que estou acolá de pé — respondeu Kevin.

— Não vamos ser precipitados — disse Melanie.

— É um facto que ele está de pé como um ser humano — observou Candace. — Mas ele é muito mais cabeludo do que qualquer ser humano que conheço.

— Muito engraçado! — disse Melanie, sem se rir.

— Melanie, usa o localizador para pesquisar a área — disse Kevin. — Os bonobos geralmente deslocam-se juntos. Talvez haja mais alguns por aqui que nós não vemos. Podem estar escondidos por detrás dos arbustos.

Melanie mexeu nas teclas do aparelho.

— Não posso acreditar como ele está tão estático — disse Candace.

—Está, provavelmente, tenso de medo—disse Kevin.—Tenho a certeza de que ele não consegue decifrar o que nós somos. Ou se Melanie tem razão, quanto a haver poucas fêmeas por aqui, talvez ele esteja caído por vocês duas.

—Isso não tem piada absolutamente nenhuma—disse Melanie, sem desviar os olhos do teclado do localizador.

— Peço desculpa — disse Kevin.

— Que é que ele tem à volta da cintura? — perguntou Candace. —Estava justamente a fazer a mesma pergunta—disse Kevin.

— Não consigo perceber, a não ser que seja uma videira que se prendeu nele quando passou pelos arbustos.

—Olhem para isto—disse Melanie, com excitação. Ela levantou o instrumento para que os outros pudessem observar. — Kevin, tinhas razão. Há um bando deles nas árvores, por detrás do teu duplo.

— Por que é que ele se afoitou sozinho? — perguntou Candace.

— Talvez seja um macho alfa na sociedade dos chimpanzés — disse Melanie. — Uma vez que há tão poucas fêmeas, é lógico que estes bonobos se comportem mais como chimpanzés. Se assim for, ele pode estar a querer provar que é corajoso.

Passaram alguns minutos. O bonobo não se moveu.

— Isto parece o jogo mexicano — reclamou Candace.—Vamos! Vamos ver até onde podemos ir. Que temos a perder? Se ele fugir, eu diria que é uma possibilidade de vermos mais.

— Está bem — disse Kevin. — Mas nada de movimentos bruscos. Não o quero assustar. Isso só destruiria a nossa oportunidade de ver outros.

— Vão vocês à frente — disse Candace.

Os três avançaram cuidadosamente, movendo-se passo a passo. Kevin ia à frente logo seguido de Melanie. Candace vinha na retaguarda. Quando chegaram a meio caminho, entre eles e o bonobo, pararam. Agora conseguiam ver muito melhor o bonobo. Tinha umas proeminentes sobrancelhas e uma testa inclinada como o chimpanzé, mas a parte inferior da face era muito menos prognata do que até mesmo os bonobos normais. O focinho era chato e as narinas eram dilatadas. As orelhas eram mais pequenas do que as dos chimpanzés ou dos bonobos e eram embutidas nos lados da cabeça.

—Vocês estão a pensar o mesmo que eu?—cochichou Melanie.

Candace acenou com a cabeça.

— Faz-me lembrar as gravuras que vi na instrução primária, dos primitivos homens das cavernas.

—Oh, estão a ver as patas dianteiras dele?—murmurou Kevin.

— Penso que sim — disse Candace, suavemente. — Que têm?

— É o polegar — murmurou Kevin. — Não é como o dos chimpanzés. O polegar dele sai da palma da mão.

— Tens razão — murmurou Melanie. — Isso significa que ele consegue opor o polegar aos outros dedos.

— Meu Deus! As evidências circunstanciais aumentam — sussurrou Kevin. — Eu suponho que se os genes relacionados com o desenvolvimento, responsáveis pelas mudanças anatómicas necessárias ao bipedismo, estão no segmento curto do cromossoma seis, então, é absolutamente possível que os que são responsáveis pela oposição do dedo polegar também o estejam.

— É uma trepadeira em volta da cintura—comentou Candace.

— Agora consigo ver nitidamente.

— Vamos tentar chegar mais perto — sugeriu Melanie.

— Não sei — disse Kevin. — Penso que estamos a abusar da nossa sorte. Francamente, estou pasmado que ele ainda não tenha fugido em flecha. Talvez seja melhor sentarmo-nos aqui mesmo.

— Está mais quente aqui do que uma fornalha ao sol — disse Melanie. — E ainda não são nove horas, por isso, ainda vai ficar pior. Quando nos decidirmos sentarmo-nos e observar, voto por um lugar à sombra. E também gostaria de ter a arca da comida.

— Concordo — disse Candace.

— É claro que concordas — disse Kevin, irónico. — Ficava surpreendido se não concordasses. — Kevin estava a ficar cansado de ouvir Candace apoiar entusiasticamente todas as sugestões de Melanie. Já lhe tinha acarretado sarilhos.

— Isso não é muito simpático da tua parte — disse Candace, indignadamente.

— Peço desculpa — disse Kevin. Não queria magoá-la.

— Bem, vou aproximar-me — anunciou Melanie. — Jane Goodall conseguia chegar mesmo junto dos seus chimpanzés.

— É verdade — disse Kevin. — Mas isso foi depois de meses de adaptação.

— Mesmo assim, vou tentar — disse Melanie.

Kevin e Candace deixaram Melanie avançar cerca de três metros, então, olharam um para o outro, encolheram os ombros e seguiram-na.

— Não têm de vir por minha causa — murmurou Melanie. —Na realidade, quero chegar suficientemente perto para ver se

o meu duplo tem algumas expressões faciais — murmurou Kevin.

— E quero olhar bem nos olhos dele.

Sem proferir mais palavra e deslocando-se vagarosamente e deliberadamente, os três conseguiram chegar até seis metros do bonobo. Aí, pararam de novo.

— Isto é incrível! — murmurou Melanie, sem tirar os olhos do rosto do animal. A única coisa que mostrava que o animal estava vivo era o ocasional pestanejar, o movimento dos olhos e o dilatar das narinas cada vez que respirava.

— Olha para aqueles peitorais — disse Candace. — Parece que tem passado a maior parte da sua vida no ginásio.

— Como é que achas que ele arranjou aquela cicatriz? — perguntou Melanie.

O bonobo tinha uma grossa cicatriz no lado esquerdo do focinho quase até à boca.

Kevin inclinou-se para a frente para fixar o animal nos olhos. Tinha olhos castanho-escuros como os seus. Visto que o sol estava a incidir no seu focinho, as pupilas pareciam apenas um ponto negro. Kevin esforçava-se para detectar laivos de inteligência, mas era difícil dizer.

Sem o mínimo sinal de aviso, o bonobo repentinamente bateu as palmas com tal força que um eco reverberou por entre as paredes de plantas em seu redor. Ao mesmo tempo gritava: “Atah!”

Kevin, Melanie e Candace pularam de susto. Porque se tinham preocupado desde o início com o facto de que o bonobo poderia fugir a qualquer momento, não tinham considerado a possibilidade de ele agir agressivamente. O violento bater de palmas e o grito aterrorizou-os, e recearam que o animal estivesse pronto a atacar. Mas não atacou. Ele regressou à sua posição estática.

Depois de um momento de atordoamento, os três amigos recuperaram um pouco as suas posições anteriores. Olhavam para o bonobo com nervosismo.

— Que seria aquilo? — perguntou Melanie.

—Suponho que ele não está tão receoso de nós como pensávamos — disse Candace. — Talvez devêssemos ir embora.

— Concordo — disse Kevin, sentindo-se constrangido. — Mas vamos devagar. Não entrem pânico. — Seguindo o seu próprio conselho, deu uns passos para trás e fez sinal às suas companheiras para fazerem o mesmo.

O bonobo reagiu, levando a pata dianteira atrás das costas e agarrando numa ferramenta que ele tinha dependurada por uma trepadeira em volta da cintura. Levantou a ferramenta no ar por cima da sua cabeça e gritou “Atah” de novo.

Os três gelaram e arregalaram os olhos de terror.

— Que será que “Atah” significa? — lamuriou Melanie, depois de alguns momentos sem que nada acontecesse. — Será uma palavra? Será que ele está a falar?

— Não faço a mínima ideia — disse Kevin, falando atabalhoadamente. — Mas, pelo menos, não veio em direcção a nós.

— Que é que ele está a segurar? — perguntou Candace, apreensivamente. — Parece um martelo.

—E é—conseguiu balbuciar Kevin.—É um martelo com unha de carpinteiro. Deve ser uma das ferramentas que os bonobos roubaram quando a ponte estava a ser construída.

— Vê a maneira como ele o segura. Justamente como tu e eu — disse Melanie. — Não há dúvida de que ele tem o polegar oponível.

— Temos mas é que sair daqui! — disse Candace, quase a chorar.—Vocês prometeram-me que estas criaturas eram tímidas. Este é tudo menos isso.

— Não corras! — disse Kevin, mantendo os seus olhos fixos nos do bonobo.

— Podem ficar, se quiserem, mas eu vou regressar ao barco — disse Candace, desesperadamente.

— Vamos todos, mas devagar — disse Kevin.

Apesar dos avisos, Candace deu meia volta e começou a correr. Mas ela tinha dado apenas alguns passos quando parou e soltou um grito.

Kevin e Melanie voltaram-senadirecçãodela. Ambos contiveram a respiração quando viram o que a tinha assustado; mais vinte bonobos tinham surgido silenciosamente das redondezas e tinham-se disposto em arco, bloqueando a saída.

Candace recuou vagarosamente até ir de encontro a Melanie.

Durante um minuto ninguém falou ou se moveu, nem mesmo os bonobos. Depois, o bonobo número um repetiu o seu grito:

—Ata h!

Instantaneamente, os animais começaram a formar um círculo em volta dos seres humanos.

Candace gemia enquanto eles três se chegavam uns para os outros, formando um triângulo. O círculo que os animais formaram em volta deles começava a fechar-se como um nó. O odor deles era forte e selvagem. As faces eram inexpressivas mas decididas. Os olhos cintilavam.

Os animais deixaram de avançar quando estavam a dois passos dos três amigos. Os olhos deles percorriam os corpos humanos de alto a baixo. Alguns deles usavam pedras cunhadas como a que tinha morto o bonobo número sessenta.

Kevin, Melanie e Candace não se moveram. Estavam paralisados de pavor. Todos os bonobos pareciam tão possantes como o bonobo número um.

O bonobo número um mantinha-se fora da roda formada pelos bonobos. Ele ainda agarrava o martelo de cunha mas já não o tinha erguido acima da cabeça. Ele avançou e deu a volta completa ao círculo, fixando os olhos nos seres humanos por entre as cabeças dos seus compatriotas. Depois, deixou sair uma torrente de sons acompanhados por gestos com a mão.

Vários de entre os animais responderam-lhe. Depois, um deles estendeu a mão em direcção a Candace. Candace gemeu.

— Não te movas — conseguiu dizer Kevin. — Penso que o facto de não nos terem magoado é bom sinal.

Candace engolia com dificuldade enquanto a mão do bonobo acariciava o seu cabelo. Parecia enfeitiçado pelo sua cor loira. Ela teve de reunir toda a sua força e determinação para não gritar ou fugir.

Outro animal começou a falar e gesticular. Depois, apontou para o seu lado. Kevin notou uma longa cicatriz cirúrgica.

— É o animal cujo rim foi para o negociante de Dálias — disse Kevin, receosamente. — Vê como ele aponta para nós. Penso que está a fazer a associação com o processo da recolha.

— Isso não pode ser muito bom sinal — segredou Melanie. Um outro animal estendeu o braço hesitantemente e tocou no

antebraço sem pêlos de Kevin. Depois, tocou no aparelho que Kevin segurava na mão. Kevin estava surpreendido que ele não o tivesse tirado.

O bonobo que estava mesmo em frente a Melanie apertou o tecido da blusa dela com o polegar e o indicador como se para sentir a sua textura. Depois, com gentileza, tocou no localizador que ela segurava com a extremidade do dedo indicador.

— Eles parecem estar atónitos connosco — disse Kevin, com hesitação.—E estranhamente com respeito. Penso que não nos vão magoar. Talvez pensem que somos deuses.

—Como é que lhes podemos inculcar essa crença?—perguntou Melanie.

— Vou tentar dar-lhes qualquer coisa — disse Kevin. Kevin pensou nos objectos que tinha consigo e logo se decidiu pelo relógio de pulso. Movendo-se vagarosamente, pôs o instrumento direccional debaixo do braço e tirou o relógio de pulso. Segurando-o pela correia, estendeu-o ao animal na sua frente.

O animal inclinou a cabeça, depois estendeu a mão para apanhá-lo. Quando o apanhou, o bonobo número um vocalizou o som:

— Ot. — O animal que recebera o relógio reagiu rapidamente, entregando-o a este. O bonobo número um examinou o relógio e depois colocou-o no antebraço.

—Meu Deus! — articulou Kevin. — O meu duplo usando o meu relógio. Isto é um pesadelo.

Por um momento, o bonobo número um parecia admirar o relógio. Depois, colocou os polegares e o indicador juntos, formando um círculo, enquanto dizia:

— Randa.

Um dos bonobos correu imediatamente e desapareceu por uns instantes na floresta. Quando reapareceu, trazia um pedaço de corda.

— Corda? — disse Kevin, com um tremor. — E agora?

—Onde é que eles foram buscar a corda?—perguntou Melanie. —Talvez roubassem quando roubaram as ferramentas—disse Kevin.

— Que é que eles vão fazer? — perguntou Candace, com nervosismo.

O bonobo foi na direcção de Kevin, deu uma laçada em volta da sua cintura. Kevin observava com um misto de medo e admiração enquanto o animal fazia um nó e o apertava no abdómen de Kevin.

Kevin olhou para as suas companheiras.

—Não ofereçam resistência—disse ele.—Penso que vai correr tudo bem, desde que não lhes provoquemos ira ou susto.

— Mas eu não quero ser amarrada — chorou Candace.

— Desde que não nos magoem, estamos bem — disse Melanie, na esperança de acalmar Candace.

O bonobo amarrou Melanie e depois Candace de modo semelhante. Quando acabou, recuou, segurando ainda a extremidade da corda.

— Obviamente, eles querem que fiquemos algum tempo — disse Kevin, tentando animar o ambiente.

— Não te ofendas se eu não me rir — disse-lhe Melanie.

— Pelo menos, não se importam com a nossa conversa—disse Kevin.

— Por estranho que pareça, dá a impressão que eles a acham interessante — disse Melanie. Cada vez que um deles falava, o bonobo que estava mais próximo empertigava-se como se quisesse escutar.

O bonobo número um, subitamente, abriu e fechou os dedos enquanto passava as mãos pelo peito. Ao mesmo tempo, dizia:

—Arak.

Imediatamente, o grupo começou a mover-se, incluindo o animal que segurava a corda. Kevin, Melanie e Candace foram puxados para a frente.

— Aquele gesto foi o mesmo que o bonobo fez na sala de operações — disse Candace.

—Então, deve querer dizer “ir” ou “mover” ou “afastar”—disse Kevin. — É inacreditável. Eles falam!

Deixaram o atalho sem saída e deslocaram-se através do campo até chegarem a uma vereda. Nessa altura, foram conduzidos para à direita. Enquanto caminhavam, os bonobos permaneciam silenciosos mas atentos.

— Tenho cá a impressão de que não é Siegfried quem conserva estes caminhos — disse Melanie. — Penso que são os bonobos.

A vereda curvava para o sul e logo entrava na mata. Até mesmo a floresta estava bem limpa e o chão estava como que atapetado.

— Para onde é que nos levam? — perguntou Candace, com nervosismo.

— Suponho que para as cavernas — disse Kevin.

— Isto é ridículo! — disse Melanie. — Levam-nos a passear como cães com uma trela. Se eles estão assim tão impressionados connosco, então, devíamos oferecer resistência.

— Penso que não — disse Kevin. — Penso que devemos fazer todos os esforços para não os irritarmos.

— Candace — perguntou Melanie. — Que estás a pensar?

— Estou demasiado apavorada para conseguir pensar — respondeu Candace. — Eu só quero regressar à canoa.

O bonobo que segurava a corda voltou-se e deu uma sacudidela. O puxão quase derrubou as três pessoas. O bonobo repetidamente abanava a palma da mão enquanto segredava:

— Hana.

— Meu Deus, ele é forte ou quê? — comentou Melanie, quando recuperou o balanço.

— Que achas que ele quer dizer? — perguntou Candace.

— Se fosse para eu advinhar, diria que está a dizer para estarmos calados — disse Kevin.

Subitamente, todo o grupo parou. Havia linguagem gestual entre os bonobos. Vários apontavam para cima, para as árvores à direita. Um pequeno grupo deslizou silenciosamente entre a vegetação. Os que restaram formaram um largo círculo, excepto três deles, que subiram directamente para o pálio da floresta com uma facilidade que desafiava a gravidade.

— Que está a acontecer? — sussurrou Candace.

— Alguma coisa importante — disse Kevin. — Todos eles parecem tensos.

Passaram-se alguns minutos. Nenhum dos bonobos que estavam no chão se moveu ou fez o mínimo ruído. Então, repentinamente, houve um movimento tremendo à direita, acompanhado por uns guinchos agudos. De súbito, as árvores estavam vivas com macacos colobus que fugiam desesperadamente num trajecto que os levava directamente aos bonobos que tinham subido às árvores.

Os macacos aterrorizados tentavam mudar de direcção, mas, na sua pressa, vários deles perdiam o equilíbrio e caíam ao chão. Antes de conseguirem recuperar, eram atacados por bonobos que esperavam por eles no chão e que os matavam instantaneamente com pedras em cunha.

Candace estremeceu de horror e depois voltou-se.

— Eu diria que isto foi um bom exemplo de caça coordenada — segredou Melanie. — Requer um bom nível de cooperação. — Apesar das circunstâncias, ela não podia deixar de estar impressionada.

—Não há necessidade de me lembrares—murmurou Kevin. — Receio que o júri já entrou e o veredicto é mau. Estamos na ilha há apenas uma hora, mas a questão que nos trouxe aqui já foi respondida. Além de caça colectiva, vimos postura erecta, polegares opostos, fabrico de ferramentas e até linguagem rudimentar. Tenho a impressão de que eles vocalizam tal como tu e eu.

— É extraordinário! — murmurou Melanie. — Estes animais passaram por quatro ou cinco milhões de anos de evolução humana nos poucos anos que estão aqui.

—Oh, cala-te!—choramingou Candace.—Estamos prisioneiros destas bestas e vocês dois estão a ter uma discussão científica.

— É mais do que uma discussão científica — disse Kevin. — Estamos a reconhecer um terrível erro, e eu sou o responsável. A realidade é bem pior do que eu temia quando vi o fumo a sair da ilha. Estes animais são proto-humanos.

— Eu tenho de partilhar parte da culpa — disse Melanie.

— Discordo — disse Kevin. — Fui eu que criei as quimeras, os segmentos de cromossomas humanos. Não foi obra tua.

— Que é que eles estão agora a fazer? — perguntou Candace. Kevin e Melanie voltaram-se e viram o bonobo número um

dirigir-se a eles, trazendo um cadáver ensanguentado de um dos macacos colobus. Ainda trazia o relógio no braço, o que apenas realçava a posição esquisita da besta entre o homem e o macaco. O bonobo número um trouxe o macaco morto directamente a Candace e, segurando-o com ambas as mãos em direcção a ela, disse-lhe:

— Sta. Candace gemeu e voltou a cabeça. Parecia que ia vomitar.

— Ele está a oferecer-to — disse Melanie a Candace. — Tenta responder.

— Não consigo olhar — disse Candace.

— Tenta! — implorou Melanie.

Candace olhou lentamente. O seu rosto reflectia a sua repulsa. A cabeça do macaco tinha sido esmagada.

— Baixa a cabeça ou faz qualquer coisa — encorajou Melanie. Candace esboçou um fraco sorriso e fez uma vénia.

O bonobo número um fez uma vénia e depois retirou-se.

— Incrível! — disse Melanie, enquanto olhava para o animal que se afastava. — Embora ele seja obviamente o macho alfa, deve haver ainda restos da típica sociedade matriarcal dos bonobos.

— Candace, foste fantástica! — disse Kevin.

— Estou destroçada — disse Candace.

— Eu sabia que devia ter sido loura — disse Melanie, tentando introduzir um pouco de humor.

O bonobo que segurava a corda deu um puxão bastante menos vigoroso do que o anterior. O grupo começou a caminhar novamente e Kevin, Melanie e Candace foram obrigados a segui-los.

— Não quero ir mais para a frente — disse Candace, chorando. —Recompõe-te—disse Melanie.—Vai acabar tudo bem. Estou

a começar a pensar que a sugestão de Kevin foi apropriada. Eles pensam em nós como deuses, especialmente em ti, com o teu cabelo louro. Podiam ter-nos morto instantaneamente, se fosse essa a intenção, como o fizeram com os macacos.

— Por que é que mataram os macacos? — perguntou Candace.

— Presumo que para alimentação — disse Melanie. — É um pouco surpreendente, uma vez que os bonobos não são carnívoros, mas os chimpanzés podem ser.

— Eu receava que eles fossem suficientemente humanos para matarem por desporto — disse Candace.

O grupo passou por uma área pantanosa, depois começou a subir. Quinze minutos mais tarde, emergiram da penumbra da floresta para uma área rochosa mas com erva, no sopé da escarpa de pedra calcária.

A meio da face da rocha havia a abertura de uma caverna que parecia acessível apenas através de uma série de fieiras às camadas. Na entrada da caverna havia mais uma dúzia de bonobos. A maioria eram fêmeas. Elas batiam no peito com a palma das mãos e gritavam repetidamente:

— Boda... boda.

Os bonobos que acompanhavam Kevin, Melanie e Candace fizeram o mesmo e depois ergueram os corpos dos macacos mortos. Isso resultou num vaiar das fêmeas, que Melanie disse lembrar-lhe os seus chimpanzés.

Depois, o grupo de bonobos na base da encosta separou-se. Kevin, Melanie e Candace foram puxados para a frente. Ao vê-los, as fêmeas ficaram silenciosas.

— Por que é que eu tenho a impressão de que as fêmeas não ficaram lá muito impressionadas por nos verem? — segredou Melanie.

— Prefiro pensar que ficaram apenas confusas — segredou Kevin por sua vez. — Não esperavam companhia.

Finalmente o bonobo número um disse:

— Zit. — E apontou para cima com o seu polegar. O grupo moveu-se para a frente com agitação, puxando Kevin, Melanie e Candace.

 

7 DE MARÇO, 1997 - 6:15 CIDADE DE NOVA IORQUE

Jack pestanejou, abriu os olhos e imediatamente despertou. Sentou-se e esfregou os olhos ramelentos. Estava ainda cansado por ter dormido mal no dia anterior e por, na véspera, ter ficado a pé até mais tarde do que planeara, mas estava demasiado excitado para voltar a dormir.

Levantando-se do sofá, Jack envolveu-se num cobertor para se proteger do frio da manhã e foi até à porta do quarto de dormir. Escutou por uns instantes. Convencido de que Laurie estava a dormir profundamente, bateu na porta. Conforme previra, Laurie estava deitada de lado, sob um monte de cobertores, respirando profundamente.

Jack atravessou o quarto nas ponta dos pés, o mais silenciosamente possível, e entrou na casa de banho. Uma vez a porta fechada, barbeou-se e tomou um duche rápido. Quando reapareceu, ficou contente por ver que Laurie não se tinha movido.

Tirando roupa limpa do seu guarda-fatos e cómoda, Jack saiu do quarto e foi para a sala vestir-se. Uns minutos mais tarde, estava na rua, na escuridão da noite. Estava um frio penetrante e uns flocos de neve dançavam nas lufadas de vento.

Do outro lado da rua, havia um carro-patrulha com dois polícias à paisana que bebiam café e tentavam ler o jornal com a ajuda da luz do interior do carro. Reconheceram Jack e acenaram. Jack retribuiu o aceno. Lou mantivera a sua promessa.

Jack fezjogging rua abaixo até uma loja de doces na Columbus Avenue. Um dos polícias seguiu-o. Jack pensou em comprar-lhe um bolo de chocolate e amêndoa, mas decidiu não o fazer; não queria que o polícia o interpretasse mal.

Com o braço carregado de refresco, café, fruta e pão fresco, regressou ao apartamento. Laurie estava já levantada e tomava duche. Jack bateu na porta para anunciar que o pequeno-almoço seria servido quando ela estivesse pronta.

Laurie apareceu uns minutos mais tarde, vestida com o robe de Jack. O seu cabelo estava ainda molhado. As sequelas da véspera do encontro com Angelo não estavam com mau aspecto. O que se notava mais era o olho negro.

— Agora que tiveste tempo de dormir e pensar sobre esta viagem, ainda continuas decidido? — perguntou Laurie.

— Absolutamente — disse Jack. — Estou fisgado.

—Vais realmente pagar a viagem a toda a gente?—perguntou ela. — Vai ser muito caro.

— Em que é que hei-de gastar o meu dinheiro? — disse Jack. Olhou em volta do seu apartamento. — De certeza que não será no meu estilo de vida, e a bicicleta já está paga.

—A sério—disse Laurie. — Eu compreendo Esteban até certo ponto, mas Warren e Natalie?

Na noite anterior, quando a proposta fora feita a Teodora, ela lembrou ao marido que um deles teria de ficar na cidade tomando conta do mercado e do filho de 10 anos. A decisão de ir Esteban em vez de Teodora fora feita com uma moeda ao ar.

— Estava a falar a sério quando falei em divertimento — disse Jack. — Mesmo que não se descubra nada, o que é muito provável, pelo menos, será uma grande viagem. Eu vi nos olhos de Warren o interesse em visitar uma parte de África. E, no regresso, podemos passar uma noite ou duas em Paris.

—Não tens necessidade de me convencer—disse Laurie.—Eu era contra esta ida inicialmente, mas, agora, eu própria estou entusiasmada.

— Agora, só precisamos convencer Bingham — disse Jack.

— Penso que isso não será grande problema — disse Laurie. — Nenhum de nós tirou o tempo de férias que eles queriam. E Lou disse que meteria a sua cunha por causa das ameaças. Ele queria que saíssemos da cidade.

—Não confio na burocracia—disse Jack.—Mas serei optimista. Partindo do princípio que vamos, vamos dividir as tarefas. Eu vou arranjar os bilhetes, enquanto tu, Warren e Natalie vão tratar dos vistos. Também temos de tratar das vacinas e começar a profilaxia da malária. Na verdade, devíamos ter mais tempo para imunização, mas vamos fazer o melhor que pudermos. Temos de levar bastante produto contra os insectos.

— Parece boa ideia — disse Laurie.

Em atenção a Laurie, Jack deixou a sua amada bicicleta de montanha no apartamento. Foram de táxi, juntos, até ao Instituto de Medicina Legal. Quando eles entraram na sala ID, Vinnie baixou o jornal e olhou para eles como se eles fossem fantasmas.

— Que é que vocês fazem aqui? — perguntou ele com uma voz entrecortada. Ele tossiu para clarear a garganta.

— Que pergunta vem a ser essa? — perguntou Jack. — Nós trabalhamos aqui, Vinnie. Já te esqueceste?

— Só não pensei que estivessem de serviço — disse Vinnie. Rapidamente, sorveu um golo do seu café antes de tossir de novo.

Laurie e Jack foram até à máquina do café.

—Ele anda com um humor esquisito nestes últimos dois dias— murmurou Jack.

Laurie olhou para Vinnie por sobre o ombro. Vinnie refugiarase de novo por detrás do jornal.

— Foi uma reacção muito estranha — concordou ela. — Notei que ontem ele andava muito nervoso à minha volta.

Os olhos de Laurie e Jack encontraram-se. Olharam-se por uns instantes.

— Estás a pensar o mesmo que eu? — perguntou Laurie.

—Talvez—disse Jack.—Parece que encaixa. Ele, de facto, tem acesso.

— Penso que devíamos dizer qualquer coisa a Lou — disse Laurie. — Detestaria que fosse Vinnie, mas temos de descobrir quem é que andou a divulgar informações confidenciais.

Felizmente para Laurie, o seu turno de chefe de dia já terminara, e o de Paul Plodgett estava a começar. Paul já estava sentado à secretária, a verificar os casos que tinham entrado na noite anterior. Laurie e Jack disseram-lhe que estavam a planear tirar umas férias e que gostariam de ser dispensados de fazer autópsias nesse dia, a não ser que houvesse alguma aglomeração. Paul asseguroulhes de que não havia muito trabalho.

Laurie era muito mais burocrática do que Jack e, por isso, insistiu em comunicar a Calvin a decisão de saírem de férias, antes de falarem a Bingham. Jack vergou-se à sua opinião. Calvin limitou-se a resmungar que eles poderiam ter avisado com mais antecedência.

Logo que Bingham chegou, Laurie e Jackforam ao seu gabinete. Ele olhou-os com um ar surpreso por cima dos óculos. Agarrava o correio da manhã e preparava-se para abri-lo.

— Querem duas semanas a partir de hoje? interrogou ele, com ar de descrença. — Qual é a pressa? Será alguma espécie de emergência?

— Estamos a planear fazer uma viagem, uma espécie de aventura — disse Jack. — Gostaríamos de sair esta noite.

Os olhos de Bingham deslocavam-se entre Laurie e Jack.

— Não estão a pensar em casar-se, ou estão?

— Não somos aventureiros a esse ponto — disse Jack. Laurie explodiu a rir.

—Lamentamos não ter pedido com maior antecedência—disse ela. — A razão da nossa urgência é porque ontem à noite fomos ameaçados por causa do caso Franconi.

—Ameaçados?—questionou Bingham. — Tem alguma coisa a ver com esse olho negro?

— Receio bem que sim — disse Laurie. Ela tentara disfarçar com maquilhagem, mas não o tinha conseguido totalmente.

—Quem está por detrás dessas ameaças?—perguntouBingham.

— Uma das famílias do crime de Nova Iorque — disse Laurie. — O tenente Louis Soldano ofereceu-se para pô-lo ao corrente de tudo, assim como falar-lhe da possibilidade de uma fuga de informação daqui dos serviços para a dita família. Nós pensamos que conseguimos descobrir como é que o corpo de Franconi foi levado daqui.

— Estou a ouvir — disse Bingham. Pousou a correspondência e recostou-se na cadeira.

Laurie explicou a história, fazendo questão de sublinhar que alguém dera o número de acesso do corpo não identificado à Agência Funerária Spoletto Funeral Home

— O detective Soldano achou prudente vocês saírem da cidade?

— perguntou Bingham.

— Sim, senhor — disse Laurie.

—Bom—disse Bingham.—Então, ponham-se daqui para fora. Devo telefonar a Soldano ou ele vai entrar em contacto comigo?

— Tanto quanto sabemos, vai contactá-lo — disse Laurie.

— Bom — disse Bingham. Depois, olhou directamente para Jack. — E quanto ao problema do fígado?

— Isso ainda está no ar — disse Jack. — Ainda estou à espera de mais alguns testes.

Bingham acenou com a cabeça e comentou:

— Este caso é um maldito osso de roer. Mas procurem manter-me informado de quaisquer notícias que tenham enquanto estiverem fora. Não quero surpresas. — Olhou para a secretária e pegou na correspondência. — Tenham uma boa viagem e enviem um postal.

Laurie e Jack saíram para o vestíbulo e sorriram um para o outro.

— Bem, por enquanto tudo bem — disse Jack. — Bingham era o maior possível obstáculo.

— Será que fizemos mal em não o informar que vamos a África devido ao assunto do fígado? — perguntou Laurie.

—Penso que não—disse Jack.—Podia mudar de ideias quanto a deixar-nos ir. No que lhe diz respeito, prefere que este caso seja enterrado.

Indo cada um para o seu gabinete, Laurie telefonou à Embaixada Equatoguineense por causa dos vistos, enquanto Jack tratava das linhas aéreas. Ela depressa descobriu que Esteban tinha razão quanto à facilidade de obter vistos e que isso poderia ser feito de manhã. Jack, por seu lado, descobriu que a Air France organizava toda a viagem, e ele acordou passar por lá na parte da tarde para receber os bilhetes.

Laurie apareceu no gabinete de Jack. Ela estava radiante.

— Estou a começar a pensar que será de facto uma realidade!

— disse ela com excitação. — E tu, que tal te saíste?

—Bem—disse Jack.—Saímos esta noite, às dezanove e trinta.

— Não posso crer — disse Laurie. — Sinto-me como uma adolescente que vai fazer a sua primeira viagem.

Depois de tratarem das viagens e das vacinas com o Hospital Distrital de Manhattan, telefonaram a Warren. Ele concordou em contactar Natalie e em encontrar-se com eles no hospital.

A enfermeira de serviço deu a cada um deles um série de vacinas, assim como umas receitas para medicamentos contra a malária. Também os advertiu para aguardarem uma semana antes de se exporem. Jack explicou que era impossível. Aenfermeira respondeu-lhes que se sentia feliz por serem eles a irem e não ela. Já no vestíbulo da secção de viagens, Warren perguntou a Jack o que era que a enfermeira tinha insinuado.

— Leva cerca de uma semana para que as vacinas façam efeito — explicou Jack. — Isto é, com excepção da gamaglobulina.

— Quer dizer que estamos a correr um risco? — perguntou Warren.

— A vida é um risco! — zombou Jack. — A sério, há um certo risco, mas dia para dia o nosso sistema imunonológico estará mais bem preparado. O problema pior é a malária, mas eu tenciono levar uma batelada de insecticida.

— Então, não estás preocupado? — perguntou Warren.

— Não o suficiente para me impedir de ir — disse Jack. Depois de deixarem o hospital, foram tirar fotografias para o

passaporte. Uma vez em posse destas, Laurie, Warren e Natalie foram à Embaixada Equatoguineense.

Jack apanhou um táxi e dirigiu-se ao Hospital da Universidade. Uma vez lá, foi directamente ao laboratório do Dr. Peter Malovar. Como sempre, encontrou o velho patologista debruçado sobre o seu microscópio. Jack aguardou em posição de respeito enquanto o professor acabava de examinar o último slide.

— Ahhh, Dr. Stapleton — disse o Dr. Malovar ao ver Jack. — Ainda bem que veio agora, onde está aquele seu slide?

O laboratório do Dr. Malovar era uma amontoado de livros, jornais e centenas de bandejas deslides. Os cestos dos papéis estavam perpetuamente a abarrotar. O professor simplesmente recusava-se a permitir que qualquer pessoa entrasse no seu gabinete para limpar, não fossem eles perturbar a sua desordem estruturada.

Com uma rapidez surpreendente, o professor localizou o slide sobre o livro de patologia. Os seus dedos ágeis pegaram nele e introduziram-no sob a objectiva do microscópio.

—A sugestão do Dr. Osgood de pedir ao Dr. Hammersmith para observar este slide foi uma bomba—disse o Dr. Malovar. Satisfeito com a focagem, ele recostou-se, levantou o livro e abriu numa página que estava marcada com um slide. Passou o livro a Jack.

Jack olhou para a página indicada pelo Dr. Malovar. Era uma fotomicográííca da secção do fígado. Havia um granuloma semelhante ao que aparecia no slide de Jack.

— É o mesmo — disse o Dr. Malovar. Fez sinal a Jack para o comparar, olhando para o microscópio.

Jack inclinou-se para a frente e estudou o slide. A. imagem parecia idêntica.

— Este é certamente o slide mais interessante que você jamais me trouxe até aqui — disse o Dr. Malovar. Afastou dos olhos uma madeixa do seu grisalho cabelo rebelde.—Como vê aí no livro, este organismo injurioso chama-se hepatoquisto.

Jack endireitou-se para olhar de novo para o livro. Ele nunca ouvira falar de hepatoquistos.

— São raros? — perguntou Jack.

— Na morgue da cidade de Nova Iorque, eu diria que sim — disse o Dr. Malovar. — Extremamente raro! Só se encontram em primatas, quero dizer, primatas que se encontram em África e no Sudoeste da Ásia. Nunca foi visto no Novo Mundo e nunca em seres humanos.

— Nunca? — interrogou Jack.

— Vamos colocar o caso desta maneira — disse o Dr. Malovar. — Eu nunca vi nenhum e tenho visto inúmeros parasitas. Mais importante do que isso, o Dr. Osgood nunca tinha visto e eleja viu mais parasitas de fígado do que eu. Com esta combinação de experiências, diria que não existe em seres humanos. É óbvio, nas áreas endémicas, poderá ser outra história, mas, mesmo lá, teria de ser raro. Se não, nós já teríamos visto um ou outro caso.

—Agradeço imenso a sua ajuda — disse Jack, distraidamente. Ele já estava concentrado nesta informação. Isto era muito mais sugestivo de que Franconi fizera um xenotransplante, do que o simples facto de ele ter estado em África.

— Este seria um caso muito interessante para apresentar nos nossos grandes círculos — disse o Dr. Malovar. — Caso esteja interessado, diga-me.

— Claro — disse Jack, sem grande convicção. A sua mente estava num redemoinho.

Jack deixou o professor, desceu o elevador do hospital até ao rés-do-chão e dirigiu-se ao Instituto de Medicina Legal. Encontrar um parasita de primatas do Velho Mundo, numa amostra de um fígado, era uma grande evidência. Mas, por outro lado, havia os resultados desconcertantes que Ted Lynch tinha obtido ao analisar o ADN, para contestar essa evidência. E, para além disso, havia o facto de não haver qualquer inflamação no fígado apesar da ausência de drogas imunossupressoras. Aúnica coisa que era segura é que nada fazia sentido.

De novo na morgue, Jack foi directamente ao Laboratório do ADN, com a ideia de atormentar Ted na esperança de que ele pudesse lançar alguma hipótese que pudesse servir de explicação para aquilo que se estava a passar. O problema, do ponto de vista de Jack, era que Jack não sabia o suficiente sobre a actual ciência do ADN para poder, pessoalmente, fazer qualquer conjectura. Era uma área que estava a mudar com demasiada rapidez.

—Jesus, Stapleton, onde diabo tens andado metido?!—irrompeu Ted, bruscamente, logo que viu Jack. — Tenho andado à tua procura por toda a parte e ninguém sabia de ti.

—Tenho estado fora—disse Jack, na defensiva. Por momentos pensou em dizer aquilo que lhe ia na mente mas, depois, decidiu não o fazer. Tinham acontecido demasiadas coisas nas últimas doze horas.

— Senta-te! — comandou Ted. Jack sentou-se.

Ted procurou algo sobre a secretária, até que localizou uma determinada folha de um filme revelado, coberta com centenas de bandas escuras. Entregou-a a Jack.

— Ted, por que me fazes isto? — queixou-se Jack. — Sabes perfeitamente que não faço ideia do que é que estou a ver quando olho para estas coisas.

Ted ignorou Jack, enquanto procurava um outro pedaço de celulóide. Encontrou-o debaixo de um orçamento do laboratório em que estava a trabalhar. Passou-o a Jack.

— Segura-o contra a luz — disse Ted.

Jack fez conforme lhe foi dito. Olhou para as duas folhas. Até mesmo ele conseguia ver que eram diferentes. Ted apontou para a primeira folha de celulóide.

— Isto é um estudo da região do ADN que codifica a proteína ribossomal do ser humano. Eu peguei num caso qualquer para te mostrar este aspecto.

— É lindo! — disse Jack.

— Deixa-te de brincadeiras — disse Ted.

— Vou tentar — disse Jack.

— Agora, este outro, é um estudo da amostra do fígado de Franconi — disse Ted. — É a mesma região, usando os mesmo enzimas que no primeiro estudo. Consegues ver a diferença?

— É a única coisa que consigo ver — disse Jack.

Ted tirou-lhe da mão o estudo e pô-lo de lado. Depois, apontou para a película que Jack segurava.

— Conforme te disse ontem, esta informação está no CD-ROM, por isso consegui que o computador fizesse uma comparação do padrão. O resultado que deu é que é muito semelhante ao do chimpanzé.

—Não é exactamente um chimpanzé?—perguntou Jack. Neste caso, nada era definitivo.

— Não, mas muito semelhante — disse Ted. — Uma espécie de primo do chimpanzé. Qualquer coisa semelhante.

— Os chimpanzés têm primos? — perguntou Jack.

— Sei lá—disse Ted com um encolher de ombros.—Mas tenho estado ansioso por te dar esta informação. Tens de admitir que é bastante impressionante.

— Então, do teu ponto de vista, foi uma xenografia? — disse Jack.

Ted encolheu os ombros.

— Se me pusesse a adivinhar, diria que sim. Mas se tomar em consideração os resultados do DQ Alpha, não sei o que te dizer. Também fiz questão de fazer o teste do ADN para verificar os grupos de sangue ABO. Até agora, os resultados são iguais ao do DQ Alpha. Penso que será exactamente igual ao de Franconi, o que ainda confunde mais as coisas. É um caso muito estranho.

— Eu que o diga! — disse Jack. Ele, então, relatou a Ted a descoberta de um parasita de um primata do Velho Mundo.

Ted fez uma expressão de perplexidade.

— Fico feliz por saber que este caso é teu e não meu. Jack colocou a folha de celulóide na secretária de Ted.

— Se tiver sorte, terei algumas respostas dentro dos próximos dias — disse ele. — Hoje à noite parto para África para visitar o mesmo país que Franconi.

— Vais em serviço? — perguntou Ted, surpreso.

—Não, senhor—disse Jack.—Vou por conta própria. Bem, não é bem assim. Eu pago, mas Laurie também vai.

— Meu Deus, tu és minucioso! — disse Ted.

— Obsessivo, é provavelmente uma palavra mais adequada — disse Jack.

Jack levantou-se para sair. Quando chegou à porta, Ted chamou por ele:

— Olha, recebi os testes do mitocondrial do ADN. É idêntico ao da Sr.a Franconi, portanto, a identificação, pelo menos, está certa.

— Finalmente, alguma coisa bate certo — disse Jack. Jack ia de novo a sair quando Ted o chamou outra vez.

— Acabo de ter uma ideia maluca — disse Ted. — A única explicação que encontro para os resultados que tenho obtido é que o fígado seja transgénico.

— Que diabo quer isso dizer? — questionou Jack.

— Quer dizer que o fígado contém ADN de dois organismos separados — disse Ted.

— Hum — disse Jack. — Tenho de pensar nisso.

COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Bertram olhou para o relógio. Eram quatro horas da tarde. Levantando os olhos para olhar para o exterior, notou que a violenta tempestade de chuva tropical que tinha feito escurecer o céu completamente havia apenas quinze minutos já tinha desaparecido por completo. No seu lugar estava agora uma tarde de sol quente africana.

Com um movimento repentino, Bertram pegou no telefone e ligou para o departamento de fertilidade. Atendeu a técnica da tarde, cujo nome era Shirley Cartwright.

— Os dois novos bonobos fêmeas que estão prenhas já levaram as injecções de hormonas hoje? — perguntou Bertram.

— Ainda não — disse Shirley.

—Pensei que, segundo o protocolo, elas deviam levar a injecção às duas da tarde — disse Bertram

— É o horário normal — disse Shirley, hesitante.

— Porquê a demora? — perguntou Bertram.

— A Dr.a Melanie Beckett ainda não chegou — disse Shirley, timidamente. A última coisa que ela queria era meter a sua chefe em sarilhos, mas sabia que não podia mentir.

— A que horas é que ela devia chegar? — perguntou Bertram.

— Não tem hora certa — disse Shirley. — Ela disse ao pessoal do turno da manhã que estaria ocupada toda a manhã no laboratório no hospital. Imagino que tenha ficado retida.

— Não deu instruções para que as injecções fossem dadas por outra pessoa no caso de ela não chegar pelas duas horas? — perguntou Bertram.

— Parece que não — disse Shirley. — Por isso, espero que ela chegue a qualquer momento.

— Se ela não chegar dentro de meia hora, dê as doses previstas — disse Bertram. — Há algum problema com isso?

— Absolutamente nenhum, doutor — disse Shirley. Bertram desligou e depois ligou para o laboratório de Melanie,

no complexo hospitalar. Ele tinha menos familiaridade com o pessoal de lá e não conhecia a pessoa que atendeu. Mas a pessoa conhecia Bertram e contou uma história perturbadora. Melanie não aparecera lá durante todo o dia por ter ficado retida no centro dos animais.

Bertram desligou e, nervosamente, tamborilou no auscultador com a unha do dedo indicador. Apesar das afirmações de Siegfried, de que ele tomara conta dos potenciais problemas com Kevin e com as suas ditas amigas, Bertram estava apreensivo. Melanie era uma funcionária conscienciosa. De certeza que não era próprio dela faltar a uma injecção marcada.

Pegando de novo no telefone com arrebatamento, Bertram tentou ligar para Kevin, mas não obteve resposta.

Com as suspeitas a aumentar, Bertram levantou-se da secretária e informou Martha, a sua secretária, que voltaria dentro de uma hora. Lá fora, meteu-se no Cherokee e dirigiu-se para a cidade.

Enquanto conduzia, Bertram, cada vez mais, estava convicto de que Kevin e a duas companheiras tinham conseguido ir à ilha, e isso exasperava-o. Censurava-se por permitir que Siegfried lhe tivesse instigado uma falsa segurança. Bertram tinha uma premonição crescente que a curiosidade de Kevin causaria graves problemas.

No local de transição do asfalto para a pedra na periferia da cidade, Bertram teve de travar abruptamente. Com o vexame que aumentava cada vez mais, ele não se tinha apercebido da velocidade a que conduzia. As pedras molhadas da recente chuvada estavam escorregadias como gelo, por isso, o carro de Bertram resvalou durante vários metros antes de parar completamente.

Bertram estacionou no parque de estacionamento do hospital. Subiu até ao terceiro andar e bateu na porta de Kevin. Não obteve resposta. Bertram tentou abrir a porta. Estava trancada.

Voltando ao carro, Bertram conduziu em volta da praça e estacionou por detrás da Câmara. Cumprimentou de cabeça os soldados que se espreguiçavam nas cadeiras de palhinha estragada, na sombra da arcada.

Subindo os degraus a dois e dois, Bertram apresentou-se a Aurielo e disse que tinha de falar a Siegfried.

— Ele está com o chefe da segurança neste momento — disse Aurielo.

— Diz-lhe que estou aqui—disse Bertram, enquanto passeava para trás e para a frente no escritório exterior. A sua irritação aumentava.

Cinco minutos mais tarde, Cameron Mclvers saiu do gabinete. Disse olá a Bertram, mas Bertram ignorou-o com a pressa de falar com Siegfried.

— Temos um problema — disse Bertram. — Melanie Beckett não apareceu para dar a injecção que estava prevista para esta tarde, e Kevin Marshall não está no laboratório.

—Estou surpreendido—disse Siegfried, calmamente. Recostou-se na cadeira e esticou o braço bom. — Eles foram vistos esta manhã com a enfermeira. O ménage à trois parece estar a desabrochar. Até fizeram uma jantarada até tarde na casa de Kevin, e as mulheres dormiram lá,

— Verdade? — interrogou Bertram. Que o peralvilho do investigador pudesse estar envolvido em tal liaison parecia-lhe impossível.

— Tenho obrigação de saber—disse Siegfried. — Vivo do outro lado do relvado. Além disso, encontrei as duas cedo no Huty Chickee. Estavam já atordoadas e disseram-me que iam a caminho da casa de Kevin.

— Para onde foram eles esta manhã? — perguntou Bertram.

— Suponho que para Acalayong — disse Siegfried. — Foram vistos, por um membro do pessoal de limpeza, a sair numa piroga antes do amanhecer.

—Então, foram à ilha pelo canal—disse Bertram, bruscamente.

— Eles foram vistos a ir para oeste, não para leste — disse Siegfried.

— Podia ter sido um estratagema — disse Bertram.

— Pois podia — concordou Siegfried. — E eu pensei nessa possibilidade. Até discuti isso com Cameron. Mas ambos chegámos à conclusão de que para chegar à ilha de barco terá de ser pela clareira onde temos a área de acesso. O resto da ilha está rodeada de uma virtual parede de mangues e pantanais.

Os olhos de Bertram ergueram-se para se fixarem nas enormes cabeças de rinocerontes por cima da cabeça de Siegfried. As cabeças sem cérebro lembravam-lhe a do gerente do local, contudo, Bertram tinha de admitir que nesse preciso momento ele tinha razão. Aliás, quando a ilha foi inicialmente prevista para o projecto dos bonobos, o facto de ser inacessível por água foi uma das suas atracções.

— E não poderiam ter desembarcado na clareira — continuou Siegfried — porque os soldados ainda lá estão, ansiosos por uma oportunidade para usar as suas AK-47—disse Siegfried, com uma risada. — Dá-me cócegas cada vez que me lembro das rajadas nos vidros do carro de Melanie.

— Talvez tenha razão — disse Bertram de mau-grado.

— É claro que tenho razão — disse Siegfried.

— Mesmo assim, ainda estou preocupado — disse Bertram. — E desconfiado. Eu quero ir ao gabinete de Kevin.

— Por que razão? — perguntou Siegfried.

— Fui suficientemente estúpido para lhe mostrar como usar o software que nós desenvolvemos para localizar os bonobos — disse Bertram. — Infelizmente, ele tem estado a tirar partido disso. Sei que ele tem estado a observá-los em várias ocasiões e durante longos períodos. Gostaria de descobrir o que é que ele andou a tramar.

— Eu diria que me parece bastante razoável — disse Siegfried. Chamou Aurielo para que desse a Bertram um cartão de acesso ao laboratório. Depois, virou-se de novo para Bertram: — Diga-me se descobrir qualquer coisa de interessante.

— Não se preocupe — disse Bertram.

Munido com o cartão magnético, Bertram voltou ao laboratório e entrou no espaço reservado a Kevin. Trancando a porta atrás de si, primeiramente revistou a secretária de Kevin. Não tendo encontrado nada, deu uma volta rápida pelo gabinete. O primeiro sinal de problemas foi o monte de papel junto à impressora, que Bertram reconheceu como sendo gráficos da ilha.

Bertram examinou cada página. Verificou que representavam várias escalas. O que ele não conseguia decifrar era o significado de todas aquelas formas geométricas.

Pondo algumas páginas de lado, Bertram foi ao computador de Kevin e começou a procurar nos directórios. Não demorou muito a encontrar aquilo que procurava: a fonte de informação daquelas páginas.

Durante meia hora, Bertram ficou petrificado com aquilo que descobriu: Kevin tinha inventado uma maneira de seguir cada animal em determinado momento. Depois de Bertram ter explorado essa capacidade durante algum tempo, deparou-se com a informação que documentava o movimento dos animais durante um período de várias horas. A partir desta informação, Bertram conseguiu reproduzir figuras geométricas.

— Tu és demasiado inteligente, infelizmente para ti — disse Bertram em voz alta, enquanto permitia que o computador lhe mostrasseuma sequência dos movimentos de cada animal. Quando o programa chegou ao fim, Bertram tinha chegado à conclusão do problema com os bonobos números sessenta e sessenta e sete.

Com uma crescente ansiedade, tentou com o cursor fazer que os animais se mexessem. Quando verificou que não conseguia, voltou para a hora real e dispôs os dois animais na posição actual. Não se tinham mexido um milímetro.

— Meu Deus! — resmungou Bertram. Imediatamente, a preocupação com Kevin foi substituída por um problema mais premente. Desligando o computador, Bertram arrebatou as folhas do computador e saiu do laboratório a correr. No exterior, passou pelo seu carro e correu directamente através da praça para a Câmara. Sabia que seria mais rápido a pé.

Correu pelas escadas acima. Ao entrar no escritório exterior, Aurielo olhou para ele. Bertram ignorou-o. Irrompeu pelo gabinete de Siegfried sem ser anunciado.

— Tenho de falar consigo imediatamente — disse Bertram, atabalhoadamente. Estava ofegante.

Siegfried estava em reunião com o supervisor de comidas. Ambos pareciam atónitos com a chegada de Bertram.

— É uma emergência — acrescentou Bertram. O supervisor de comidas levantou-se.

— Posso voltar mais tarde — disse ele, e saiu.

— É bom que seja mesmo importante — avisou Siegfried. Bertram acenou com as folhas do computador.

— São muito más notícias — disse ele. Ocupou a cadeira que fora deixada vaga pelo supervisor. — Kevin Marshall descobriu uma maneira de acompanhar o movimento dos bonobos.

— E daí? — disse Siegfried.

—Pelo menos dois dos bonobos não se movem—disse Bertram. — O número sessenta e o sessenta e sete. E não se mexem há mais de vinte e quatro horas. Só pode haver uma explicação. Estão mortos.

Siegfried levantou as sobrancelhas.

—Bom, são animais—disse ele.—Animais morrem. Temos de estar preparados para imprevistos.

— Você não compreende — disse Bertram, com um laivo de desdém. — Você não fez caso da minha preocupação de que os animais se tinham dividido em dois grupos. Eu disse-lhe que era significativo. Isto, infelizmente, é a prova. Tão certo como eu estar aqui de pé, aqueles animais estão a matar-se uns aos outros!

— Pensa que sim? — perguntou Siegfried, alarmado.

— Não tenho qualquer dúvida — disse Bertram. — Tenho estado a agonizar sobre a razão que os levou a dividirem-se em dois grupos. Cheguei à conclusão que foi por nós nos termos esquecido de manter o balanço entre machos e fêmeas. Não há outra explicação, e quer dizer que os machos estão a lutar por causa das fêmeas. Tenho a certeza.

—Oh, meu Deus!—exclamou Siegfried, abanando a cabeça. — Isso são notícias terríveis!

—São mais do que terríveis—disse Bertram.—São intoleráveis, será a ruína de todo o projecto, a menos que façamos qualquer coisa.

— Que podemos fazer? — perguntou Siegfried.

—Primeiro, não dizemos nada a ninguém! — disse Bertram. — Se alguma vez houver a ordem para recolhermos os números sessenta ou sessenta e sete, resolveremos esse problema na altura devida. Segundo, e mais importante, temos de trazer os animais como eu tenho estado a advogar. Os bonobos não se matarão uns aos outros se estiverem em jaulas separadas.

Siegfried teve de aceitar o conselho do veterinário de cabelo grisalho. Embora ele sempre tivesse sido de opinião de que os animais deviam estar sós por razões logísticas e de segurança, agora, era diferente. Não se podia permitir que os animais se matassem uns aos outros. De um modo muito realista, não havia alternativa.

— Quando é que devemos retirá-los? — perguntou Siegfried.

— Logo que seja possível — disse Bertram. — Posso mandar uma equipa de segurança pôr os animais prontos até amanhã ao amanhecer. Começamos por lançar a seta ao grupo minoritário. Logo que todos os animais estejam enjaulados, o que não levará mais do que dois ou três dias, mudamo-los para uma secção do centro dos animais que vou preparar.

—Suponho que seria melhor prevenir o contingente de soldados que está junto à ponte — disse Siegfried. — A última coisa que queremos é que eles atirem contra o pessoal que vai tratar dos animais.

— Para já, não gostei que eles fossem para lá — disse Bertram. — Eu tinha receio de que eles matassem um dos animais por desporto ou para sopa.

— Quando é que avisamos os respectivos chefes da Gensys? — perguntou Siegfried.

— Só quando tudo estiver concluído — disse Bertram. — Só nessa altura saberemos quantos animais foram mortos. Talvez tenhamos também uma melhor ideia de como agir. A meu ver, teremos de construir uma nova unidade separada.

— Para isso, precisamos de autorização — disss Siegfried.

— Obviamente—disse Betram. Ele levantou-se.—Tudo o que tenho a dizer é que tive uma belíssima ideia em pôr as jaulas lá.

 

CIDADE DE NOVA IORQUE

Raymond sentia-se melhor do que se sentira nos últimos dias. As coisas pareciam ter corrido melhor desde o momento em que se levantara. Justamente depois das nove, chamara o Dr. Waller Anderson, e não só ele ia aderir como já tinha dois clientes que estavam dispostos a dar o depósito e ir às Baamas para a aspiração da medula.

Depois,porvoltadomeio-dia, Raymond receberaum telefonema da Dr.a Alice Norwood, cujo consultório era no Rodeo Drive, em Beverly Hills. Ela tinha telefonado para dizer que recrutara três médicos com uma vasta clientela privada, que gostariam de aderir ao programa. Um era na cidade Century, um outro em Brentwood e o último em Bel-Air. Estava convencida de que estes médicos em breve trariam uma grande afluência de clientes, porque o mercado da Costa Ocidental para o serviço que Raymond oferecia era nada menos do que fenomenal.

Mas o que mais agradava a Raymond era de quem não tinha tido notícias. Não tinha havido chamadas nem de Vinnie Dominick, nem do Dr. Daniel Levitz. Raymond interpretou o silêncio como significando que o caso de Franconi estava agora em descanso.

Às três e trinta, a campainha da porta tocou. Darlene atendeu e com a voz lacrimosa disse a Raymond que o carro já o aguardava.

Raymond tomou a amante nos braços e acariciou-a nas costas.

— Da próxima vez, poderás ir — disse Raymond, para consolá-la.

— Verdade? — perguntou ela.

— Não posso garantir — disse Raymond —, mas vou fazer o possível. — Raymond não tinha qualquer poder sobre os voos da Gensys. Darlene só conseguira ir numa das viagens ao Cogo. Em todas as outras ocasiões, o avião estava sempre cheio. Como norma, o avião voava dos Estados Unidos para a Europa e depois para Bata. No regresso era geralmente o mesmo percurso, embora fosse sempre uma cidade diferente na Europa.

Depois de prometer que telefonaria logo que chegasse ao Cogo, Raymond levou a mala para baixo. Entrou para o luxuoso carro que o esperava e recostou-se confortavelmente.

— Quer que ligue o rádio, doutor? — perguntou o condutor.

— Claro, por que não? — disse Raymond. Já começava a desfrutar.

A viagem através da cidade foi a parte mais difícil. Uma vez estando na West Side Highway, conseguiram ir a uma boa velocidade. Havia muito trânsito, mas visto que a hora de ponta ainda não começara, o tráfego fluía. A situação foi idêntica na Ponte George Washington. Em menos de uma hora, Raymond estava no Aeroporto de Teterboro.

O avião da Gensys ainda não tinha chegado, mas Raymond não estava preocupado. Foi para a sala de espera, de onde desfrutava de uma boa vista sobre a pista, e pediu um uísque. Justamente quando estava aser servido, o esguio jacto da Gensys saía velozmente através das nuvens e fazia-se à pista. Estacionou numa posição mesmo em frente a Raymond.

Era um belíssimo aparelho, pintado de branco com uma risca vermelha no comprimento, num dos lados. A única marca era o registo, N69SU, e uma pequena bandeira americana. Tanto a bandeira como o registo encontravam-se na cauda, no estabilizador vertical.

Com se em câmara lenta, um porta da frente abriu-se e uma escada estendeu-se até ao alcatroado da pista. Um comissário de bordo, impecavelmente vestido de uniforme azul-escuro, apareceu no portal, desceu as escadas e entrou no edifício do aeroporto. O seu nome era Roger Perry. Raymond lembrava-se bem dele. Juntamente com um outro comissário, cujo nome era Jasper Devereau, ele estivera em todos os voos que Raymond fizera.

Chegado à gare do aeroporto, Roger procurou na sala de espera. Logo que avistou Raymond, dirigiu-se a ele e cumprimentou-o com uma saudação.

— É só esta a sua bagagem, doutor? — perguntou Roger, levantando a mala de Raymond.

— É tudo — disse Raymond. — Já vamos? O avião não vai reabastecer? — Era o que tinha acontecido nos voos anteriores.

— Estamos prontos — disse Roger.

Raymond ergueu-se e acompanhou o comissário para o exterior, para a tarde cinzenta e agreste de Março. Quando se aproximava do luxuoso jacto privado, Raymond ansiava para que houvesse pessoas a observá-lo. Em ocasiões destas, ele sentia-se como se estivesse a viver a vida que lhe estava destinada. Até dizia a si próprio que tinha tido sorte em ter perdido a carteira profissional.

— Diga-me, Roger — disse Raymond, justamente quando estavam prestes a subir a escada. — Estamos cheios no voo para a Europa? — Em todos os voos em que Raymond tinha estado, havia outros executivos da Gensys.

—Apenas um passageiro—disse Roger. Ele colocou-se na base das escadas e fez um gesto para que Raymond passasse à frente.

Raymond sorria enquanto subia as escadas. Com apenas um outro passageiro e dois comissários, o voo seria ainda melhor do que ele tinha antecipado. Os problemas que ele tivera nos últimos pareciam um baixo preço para pagar por tal luxo.

Logo à entrada do avião, foi cumprimentado por Jasper. Jasper recebeu o sobretudo e o casaco e perguntou se Raymond gostaria de uma bebida antes de descolar.

— Eu aguardo — disse Raymond, galantemente.

Jasper desviou para o lado a cortina que separava a galé da cabina. Inchado de orgulho, Raymond passou para a parte principal do avião. Ele hesitava quanto à cadeira de cabedal acolchoada que devia ocupar quando os seus olhos deram com o outro passageiro. Raymond gelou. Ao mesmo tempo, sentiu uma náusea no estômago.

— Olá, Dr Lyons. Bem-vindo a bordo.

— Taylor Cabot! — disse Raymond com um tom de mau presságio. — Não esperava vê-lo.

— Suponho que não — disse Taylor. — Eu próprio estou surpreendido por estar aqui. — Sorriu e indicou o assento ao lado do seu.

Raymond sentou-se de imediato. Ele censurou-se por não ter aceite a bebida que lhe fora proposta. A garganta tinha ficado seca que nem palha.

— Eu tinha sido informado do plano do voo — explicou Taylor. — E visto que havia um espaço na minha agenda, pensei que seria sensato ir ver pessoalmente a nossa operação no Cogo. Foi uma decisão de última hora. É claro, faremos uma paragem em Zurique para eu ter uma curta reunião com uns banqueiros. Espero que não veja inconveniência nisso.

Raymond abanou a cabeça.

— Não, de modo algum — gaguejou ele.

— E como vão as coisas como o projecto dos bonobos? — perguntou Taylor.

— Muito bem — conseguiu Raymond proferir. — Esperamos um número de novos clientes. Aliás, estamos com problemas em satisfazer a procura.

— E quanto ao lamentável incidente de Cario Franconi? — inquiriu Taylor. — Espero que tenha sido tratado com sucesso.

— Foi, evidentemente — disse Raymond, atabalhoadamente. Tentou esboçar um sorriso.

— Uma das razões desta minha viagem é para me certificar de que justifica manter esse projecto—disse Taylor.—O meu director financeiro diz-me que está a começar agora a dar algum lucro. Mas o director executivo tem muitas reservas quanto ao facto de poder pôr em perigo todo o projecto de pesquisa dos primatas. Por isso, tenho de tomar uma decisão. Espero que esteja disposto a ajudar-me.

— Com certeza — disse Raymond, timidamente, enquanto ouvia o gemido característico do motor a jacto a trabalhar.

Parecia haver uma festa no Huty da sala de espera das partidas internacionais no Aeroporto JFK. Até Lou estava lá a beber uma cerveja e a meter amendoins na boca. Estava com muito boa disposição e agia como se também fosse na viagem.

Jack, Laurie, Warren e Natalie sentavam-se com Lou numa mesa redonda, num canto do Huty. Sobre as suas cabeças havia uma TV a transmitir um jogo de hóquei. A voz frenética do locutor e o ruído dos adeptos aumentavam o estridor.

— Foi um dia maravilhoso! — disse Lou a Jack e a Laurie. — Engaiolámos Vido Delbario, e ele está a cantar para salvar a pele. Penso que vamos fazer uma amolgadela muito mais grave na organização Vaccaro.

— E quanto a Angelo Facciolo e a Franco Ponti? — perguntou Laurie.

— Isso é uma outra história — disse Lou com uma gargalhada. — Pela primeira vez, o juiz colocou-se do nosso lado e colocou a fiança em dois milhões cada um. O truque foi ter sido a própria Polícia a acusá-los.

— E a Spoletto Funeral Home? — perguntou Laurie.

—Isso vai ser uma mina de ouro—disse Lou.—O dono é irmão da mulher de Vinnie Dominick. Lembras-te dele, não te lembras, Laurie?

Laurie fez um sinal de assentimento com a cabeça.

— Como é que me podia esquecer?

— Quem é esse Vinnie Dominick? — perguntou Jack.

— Ele teve um papel muito surpreendente no caso Cerino — explicou Laurie.

— Ele está do lado da organização rival Lúcia — disse Lou. — Eles têm andado em grandes manobras desde o caso Cerino, mas tenho cá um pressentimento de que vamos apanhá-los com a mão na botija.

—E o caso da fuga no Instituto de Medicina Legal?—perguntou Laurie

— Ei, cada coisa a seu tempo — disse Lou. — Já vamos chegar lá. Não te preocupes.

— Quando lá chegarem, verifica um funcionário cujo nome é Vinnie Amendola — disse Laurie.

—Alguma razão especial?—perguntou Lou, enquanto escrevia o nome num pequeno livro de apontamentos que trazia no bolso.

— É só uma suspeita — disse Laurie.

— Podes contar com isso — disse Lou. — Sabes, este episódio mostra como as coisas podem mudar de um momento para o outro. Ontem, estava na lista negra, enquanto hoje sou o menino dos olhos azuis. Até recebi um telefonema do comandante a falar de uma possível promoção. Acreditam?

— Bem o mereces — disse Laurie.

— Ei, se eu tiver uma promoção, vocês dois também merecem uma — disse Lou.

Jack sentiu alguém tocar-lhe no braço. Era a empregada de mesa. Perguntava se gostariam de mais uma rodada.

— Ei, pessoal? — chamou Jack em voz alta, para se fazer ouvir naquele alarido. — Mais cerveja?

Jack olhou em primeiro lugar para Natalie, que pôs a mão sobre o copo para indicar que estava bem assim. Ela parecia radiante, num fato desportivo em lilás-escuro. Era professora de instrução primária numa escola pública em Harlem, mas não se parecia com nenhuma das professoras de que Jack tinha memória. Na opinião de Jack, os seus traços faziam lembrar as esculturas egípcias do Museu Metropolitan, que Laurie o tinha arrastado para ir ver. Os olhos eram em forma de amêndoa e os lábios eram carnudos e generosos. O cabelo estava preso, penteado com uma elaborada trança. Natalie dissera que era uma especialidade da irmã dela.

Quando Jack olhou para Warren, para saber se ele gostaria de mais uma cerveja, ele abanou a cabeça. Warren sentava-se junto a Natalie. Vestia um casaso desportivo sobre uma T-shirt preta, que até certo ponto escondia o seu físico atlético. Jack jamais o havia visto tão feliz.

A sua boca esboçava um leve sorriso em vez da sua expressão normal, de lábios apertados de determinação.

—Eu estou bem—disse Esteban. Ele também tinha um sorriso mais aberto que o de Warren.

Jack olhou para Laurie.

— Mais nada para mim. Quero deixar espaço para o vinho com ojantar no avião.—Laurie tinha o seu cabelo castanho-avermelhado entrançado e usava um top, tipo túnica, sobre as calças justas. Com o seu porte esfuziante e relaxado e fato casual, Jack pensou que ela parecia uma colegial.

— Ah, sim, eu bebo outra cerveja — disse Lou.

— Uma cerveja — disse Jack à empregada. — Depois a conta.

— Como é que vocês conseguiram arranjar voo para hoje? — perguntou Lou a Laurie e a Jack.

— Estamos aqui — disse Jack. — Essa era a meta. Laurie e os outros foram tratar dos vistos e eu tratei dos bilhetes.—Bateu com a mão no estômago. — Também arranjei um punhado de francos franceses e um cinto para o dinheiro. Disseram que o franco francês era a moeda preferida naquela parte de África.

— E quando vocês lá chegarem? — perguntou Lou. Jack apontou para Esteban.

— O nosso companheiro de viagem expatriado arranjou tudo. O primo dele vai-nos buscar ao aeroporto e o irmão da mulher tem lá um hotel.

— Vai tudo correr bem — disse Lou. — Qual é o teu plano?

— Um primo de Esteban vai tentar arranjar uma carrinha — disse Jack. — Iremos de carro até ao Cogo.

— E vão aparecer lá, sem mais nem menos? perguntou Lou.

— Essa é a ideia — disse Jack.

— Boa sorte! — disse Lou.

— Obrigado — disse Jack. — Provavelmente, vamos precisar. Meia hora mais tarde, o grupo—excepto Lou —jubilosamente,

embarcaram num 747. Procuraram os seus lugares e colocaram a bagagem de mão nas bagageiras. Mal se tinham instalado, o enorme avião balançou e saiu para a pista.

Pouco depois, quando os motores começaram a clamar e o avião começou a sua vertiginosa corrida na pista para descolar, Laurie sentiu Jack agarrar-lhe na mão. Apertava com violência.

— Sentes-te bem? — perguntou ela. Ele acenou com a cabeça.

— Só que aprendi a não gostar de viajar de avião — disse ele. Laurie compreendia.

— Lá vamos a caminho — exclamou Warren, com um ar radiante. — África, já aí vamos!

 

8 DE MARÇO, 1997 - 2:00 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

— Estás a dormir? — sussurrou Candace.

— Estás a brincar! — retorquiu Melanie, igualmente num sussurro. — Como é que queres que durma em cima de rocha, só com galhos espalhados por debaixo de mim?

— Também não consigo dormir — admitiu Candace. — Especialmente, com todo este ressonar à volta. E Kevin?

— Estou acordado — disse ele.

Encontravam-se numa pequena cave lateral que saía da grande câmara, justamente por detrás da entrada principal.

Kevin, Melanie e Candace tinham sido arremessados para a pequena cave logo após a sua chegada. Media três metros de largura, com um tecto inclinado que começava com uma altura equivalente à de Kevin, um metro e setenta e cinco. Não havia parede ao fundo, e a cave estreitava-se formando um túnel. No fim da tarde, Kevin tinha explorado o túnel com a ajuda da lanterna eléctrica na esperança de encontrar uma outra saída, mas o túnel terminava de uma maneira repentina depois de cerca de nove metros.

Os bonobos tinham-nos tratado bem, mesmo durante a inicial recepção gélida das fêmeas. Aparentemente, os animais estavam mistificados com os humanos e tencionavam mantê-los vivos. Tinham-lhes fornecido água barrenta em cabaças e uma variedade de comida. Infelizmente, a comida era em forma de vermes, larvas e outros insectos, assim como uma espécie de planta ciperácea do lago Hippo.

À tardinha, os animais fizeram uma fogueira na entrada da cave. Kevin estava particularmente interessado em observar como é que eles iniciavam o fogo, mas estava muito distante para conseguir ver qual o método usado. Um grupo de bonobos formava um círculo apertado, e meia hora mais tarde a fogueira estava acesa.

— Bem, já temos a resposta do fumo — disse Kevin.

Os animais tinham metido os macacos em espetos e assaram-nos na fogueira. Os macacos foram depois feitos em pedaços e distribuídos com grande animação. Dado a guincharia e algazarra, os humanos concluíram que esta carne de macaco era um manjar especial.

O bonobo número um tinha colocado alguns pedaços em grandes folhas e trouxera-os para os humanos. Só Kevin fora capaz de provar. Ele tinha dito que era a coisa mais rija que jamais havia mastigado. No que dizia respeito ao gosto, dissera ele, era muito semelhante à do elefante que ele tinha provado uma vez. No ano anterior, Siegfried tinha abatido um elefante selvagem numa das suas caçadas e depois de tirar os dentes, mandou cozinhar a carne lá na cozinha central.

Os bonobos não tentaram manietar os humanos e não impediram que Kevin e as suas companheiras tirassem a corda que os mantinha juntos. Por outro lado, os bonobos tinham tornado bem claro que se deviam manter na cave. A todo o momento havia por perto, pelo menos, dois dos bonobos machos mais fortes. Cada vez que Kevin ou uma delas tentava mover-se para a frente, estes guardas guinchavam e uivavam tão alto quanto os pulmões lhes permitiam.

Ainda mais ameaçador, era o facto de eles atacarem ferozmente com os dentes arreganhados e só recuavam mesmo no último minuto. Assim, efectivamente, mantinham os humanos nos seus lugares.

— Vamos ter de fazer qualquer coisa — disse Melanie. — Não podemos ficar aqui para sempre. E é óbvio que vamos ter de fazer qualquer coisa enquanto estiverem todos a dormir, como agora.

Todos os bonobos na cave, incluindo os supostos guardas, dormiam profundamente em enxergas primitivas feitas de ramos de árvores. A maioria deles ressonava.

— Penso que não devemos correr o risco de os acirrar — disse Kevin. — Temos sorte em nos terem tratado tão bem.

—Oferecerem larvas para comer não é o que eu chamaria tratar bem — disse Melanie. — A sério, temos de fazer qualquer coisa.

Além disso, podem voltar-se contra nós. Não há maneira de antevermos o que nos poderão fazer.

— Prefiro esperar — disse Kevin. — Por ora, somos novidade, mas vão perder o interesse. Além disso, sem dúvida que vão dar pela nossa falta lá na cidade. Não vai levar muito tempo até que Siegfried e Bertram imaginem o que fizemos. Depois, hão-de vir até cá.

— Não estou tão convicta — disse Melanie. — Siegfried pode achar que o nosso desaparecimento é como uma bênção.

— Siegfried talvez, mas Bertram não — disse Kevin. — No fundo, ele é uma boa pessoa.

— Que achas, Candace? — perguntou Melanie.

— Eu nem sei o que pensar — disse Candace. — Esta situação ultrapassa tudo aquilo em que eu jamais me imaginei ver envolvida, nem sei como reagir. Estou entorpecida.

—Que vamos fazer quando voltarmos?—disse Kevin.—Ainda não falámos sobre isso.

— Se voltarmos... — disse Melanie.

— Não fales assim — disse Candace.

— Temos de enfrentar os factos — disse Melanie. — É por isso que sou de opinião que se faça qualquer coisa agora, enquanto eles dormem.

— Não fazemos ideia se têm o sono pesado — disse Kevin. — Tentar sair daqui será como atravessar um campo de minas.

— De uma coisa estou certa — disse Candace —, nunca mais me meto em colheitas. Já me sentia constrangida quando pensei que eram macacos. Agora, que sabemos que são proto-humanos, não consigo colaborar mais. Disso sei eu.

— Isso é uma conclusão óbvia — disse Kevin. — Suponho que qualquer ser humano com sensibilidade pensaria da mesma maneira. Mas essa não é a questão. A questão é que agora existe esta nova raça e, se não forem usados para transplantes, que é que vai ser feito com eles?

— Poderão reproduzir-se? — perguntou Candace.

— De certeza — disse Melanie. — Nada foi feito que afectasse a fertilidade.

— Oh, credo! — disse Candace. — É um horror!

— Talvez devêssemos torná-los estéreis — disse Melanie. — Nessa altura, só haveria uma geração a considerar.

— Quem me dera ter pensado em tudo isso antes de começar este projecto — disse Kevin. — O problema foi que, quando me deparei com a possibilidade de fazer o intercâmbio de partes dos cromossomas, o estímulo intelectual foi tão forte que nunca considerei as consequências.

Houve um súbito clarão de um relâmpago que iluminou o interior da cave, seguido de um alto ribombar de trovão. O abalo parecia ter feito estremecer toda a montanha. O violento aparato era uma forma de a natureza anunciar que uma das quase diárias trovoadas estava prestes a inundar a ilha.

— Isto é um argumento a favor da minha posição — disse Melanie, quando o ruído do trovão já se tinha extinguido.

— De que é que estás a falar? — perguntou Kevin.

— Aquele trovão foi tão forte que poderia acordar os mortos — explicou Melanie. — E nem um dos bonobos buliu.

— É verdade — disse Candace.

— Penso que pelo menos um de nós devia tentar sair daqui — disse Melanie. — Seria uma forma de alertar Bertram para o que se está a passar aqui. Bertram também poderia providenciar para salvar os outros.

— Creio que estou de acordo — disse Candace.

— Claro que estás — disse Melanie.

Houve uns momentos de silêncio. Finalmente, Kevin quebrou-o:

— Esperem um segundo. Vocês duas não estão a sugerir que eu vá...?

— Eu não consigo meter-me na canoa e muito menos remá-la— disse Melanie.

— Eu consigo meter-me lá dentro, mas duvido que consiga remar às escuras — disse Candace.

— E vocês duas pensam que eu consigo? — perguntou Kevin.

— De certeza, bem melhor do que nós — disse Melanie. Kevin estremeceu de medo. A ideia de tentar chegar à canoa,

agora às escuras, sabendo que os hipopótamos andavam a pastar era um pensamento assustador. Ainda mais assustador era tentar remar através do lago às escuras, sabendo que estava cheio de crocodilos.

— Talvez pudesses esconder-te na canoa até clarear—sugeriu Melanie.—O mais importante é sair desta cave e ficar longe destas criaturas enquanto elas dormem.

A ideia de aguardar na canoa em vez de atravessar o lago às escuras era bastante melhor, mas não resolvia o problema de poder tropeçar num hipopótamo no pantanal.

— Lembra-te de que a sugestão de cá vir foi tua — lembrou Melanie.

Kevin começou a protestar com veemência mas depois parou. Até certo ponto, era verdade. Ele dissera que a única maneira de verificar se os bonobos eram proto-humanos era ir à ilha. Mas daí para a frente, Melanie tomara todas as iniciativas.

—Foi sugestão tua—disse Candace.—Lembro-me muito bem. Estávamos no teu gabinete. Foi quando inicialmente levantaste a questão do fumo.

— Mas eu apenas disse... — começou Kevin, mas parou. A experiência dizia-lhe que não estava suficientemente equipado para argumentar com Melanie, e, em especial, quando Candace a apoiava, como era o caso. Além disso, do lugar onde ele estava sentado, conseguia ver um nítido trilho desenhado pela luz da Lua, ao longo da cave até à entrada. Para além de alguns ramos e rochas não havia obstruções.

Kevin começou a pensar que talvez fosse capaz. Talvez fosse melhor não pensar nos hipopótamos. Talvez fosse verdade que não se podia confiar na hospitalidade das criaturas, não devido à parte hereditária de bonobo mas à parte humana.

— Está bem — disse Kevin, com uma determinação súbita. — Vou tentar.

Kevin colocou-se com as mãos e os joelhos no chão. Já tremia só de pensar que havia cinquenta poderosos animais selvagens nas imediações que queriam que ele permanecesse no seu lugar.

— Se alguma coisa correr mal — disse Melanie —, volta para trás... depressa.

— Na tua boca parece fácil — disse Kevin.

— Vai ser — disse Melanie. — Os bonobos e os chimpanzés adormecem logo que escurece e dormem até ao amanhecer. Não vais ter problemas.

— E os hipopótamos? — perguntou Kevin.

— Que é que eles têm? — perguntou Melanie.

— Deixa ficar — disse Kevin. — Já tenho preocupações suficientes.

— Está bem, boa sorte — cochichou Melanie.

— Sim, boa sorte — ecoou Candace.

Kevin tentou levantar-se para começar a caminhar, mas não conseguia. Dizia para si mesmo que nunca fora um herói, e que agora não era altura de começar.

— Que se passa? — perguntou Melanie.

—Nada—disse Kevin. Em seguida, lá do seu interior recôndito, Kevin encontrou coragem. Levantou-se até ficar como se fosse corcunda e começou a caminhar ao longo do trilho desenhado pelo luar em direcção à boca da caverna.

Ao mover-se, debatia-se se deveria ir a passo de caracol ou se, pelo contrário, deveria ir numa corrida desabrida até à canoa. Era um conflito entre ser cauteloso e desenvencilhar-se da tarefa o mais rapidamente possível. A precaução venceu. Movia-se com passos meticulosos de um bebé. De cada vez que o pé fazia o mínimo ruído, ele pestanejava e ficava hirto na escuridão. À sua volta, ouvia a respiração estertorante das criaturas adormecidas.

A seis metros da entrada da cave um dos bonobos moveu-se tão repentinamente, que os ramos da sua enxerga estalaram. Mais uma vez, Kevin parou a meio do passo, com o coração a pulsar. Mas o bonobo tinha apenas se revirado e continuava a respirar profundamente, um sinal que estava a dormir. Com um pouco mais de luz vinda da entrada da caverna, Kevin via nitidamente os bonobos espalmados à sua volta. Ver tantas bestas a dormir era suficiente para fazê-lo parar, hirto de medo. Após um bom minuto de paralisação, Kevin recomeçou o seu progresso em direcção à liberdade. Até começou a sentir a primeira onda de alívio à medida que o cheiro húmido da selva substituía o cheiro selvagem dos bonobos. Mas esse alívio não durou muito.

Mais um estrondo de um trovão seguido de uma súbita chuvada tropical amedrontou Kevin ao ponto de ele quase perder o balanço. Só depois de um frenético baloiçar de braços é que ele conseguiu equilibrar-se no seu projectado trilho. Arrepiou-se só de pensar quão perto estivera de cair sobre um dos bonobos adormecidos.

Com mais uns três metros pela frente, Kevin, agora, entrevia a escura silhueta da mata lá em baixo. Os sons noctívagos da selva sobrepunham-se ao ressonar dos bonobos.

Kevin estava suficientemente perto para começar a preocupar-se como iria ultrapassar a íngreme descida até ao chão quando surgiu a calamidade. O coração subiu-lhe à garganta quando sentiu uma mão na sua perna! Qualquer coisa o agarrara pelo tornozelo com tal força que as lágrimas vieram-lhe aos olhos instantaneamente. Olhando para baixo, na penumbra, a primeira coisa que viu foi o seu relógio. Estava no cabeludo pulso do bonobo número um.

—Tada—gritou o bonobo enquanto se punha de pé de um salto, levantando Kevin no processo. Felizmente, o chão daquela parte da cave estava cheio de lixo que amorteceu a queda de Kevin. Contudo, aterrou sobre o lado esquerdo com um choque desagradável.

O grito do bonobo número um fez levantar todos os outros.

Durante um momento, houve um caos até que todos compreenderam que não havia qualquer perigo.

O bonobo número um largou o tornozelo de Kevin, mas, para logo em seguida, agarrá-lo pelo antebraço. Numa demonstração de força, ele levantou Kevin e segurou-o no ar de braços erguidos.

O bonobo vociferou alto e iradamente. Kevin nada podia fazer se não crispar-se de dor devido à força com que o bonobo o apertava.

No final da sua longa diatribe, o bonobo número um marchou até ao fundo da caverna e literalmente lançou Kevin para a caverna mais pequena. Após uma última palavra de fúria, voltou para a sua enxerga.

Kevin conseguiu sentar-se. Ele caíra de novo sobre a anca e sentia-se dormente. Também tinha torcido um pulso e arranhado um cotovelo. Mas tendo em consideração o facto de que fora literalmente atirado pelo ar, estava melhor do que esperava.

Mais gritos ecoaram na cave, presumivelmente do bonobo número um, mas, na escuridão, Kevin não podia assegurar. Tocou no cotovelo direito. Sabia que o calor pegajoso só poderia ser sangue.

— Kevin? — murmurou Melanie. — Estás bem?

— Tão bem quanto se pode esperar — disse Kevin.

— Graças a Deus! — disse Melanie. — Que foi que aconteceu?

— Não sei — disse Kevin. — Pensei que tinha conseguido. Estava mesmo na entrada da caverna.

— Estás magoado? — perguntou Candace.

—Um pouco—admitiu Kevin. Mas não há ossos partidos. Pelo menos, penso que não.

— Não conseguimos ver o que aconteceu — disse Melanie.

— O meu duplo repreendeu-me — disse Kevin. — Pelo menos, penso que era o que ele estava a fazer. Depois, atirou-me cá para dentro. Ainda bem, que não aterrei em cima de vocês.

—Lamento ter-te encorajado a ir—disse Melanie.—Penso que tinhas razão.

— É simpático da tua parte admitires — disse Kevin. — Bem, quase que resultava. Estive muito perto.

Candace ligou a lanterna, pondo a mão à frente para proteger a lente. Colocou-a junto ao braço de Kevin para poder observá-lo.

— Suponho que vamos ter de contar com Bertram Edwards — disse Melanie. Ela estremeceu e depois suspirou. — E difícil acreditar: estamos prisioneiros das nossas próprias criações.

 

8 DE MARÇO, 1997 - 16:40 BATA, GUINÉ EQUATORIAL

Jack apercebeu-se de que estava a cerrar os dentes. Também segurava a mão de Laurie mais apertada do que seria normal. Conscientemente, tentava relaxar-se. O problema fora o voo de Douala, dos Camarões para Bata. A companhia aérea era uma que fazia viagens nocturnas para passageiros frequentes, utilizando aviões pequenos e velhos, justamente o tipo de avião que fazia pesadelos a Jack devido à sua falecida família.

O voo não fora fácil. O avião frequentemente lutava contra as trovoadas, cujas altas nuvens variavam de cor, desde a cor creme-batido ao arroxeado-escuro. Os raios faiscavam constantemente e a turbulência era violenta.

Aparte anterior da viagem fora um sonho. O voo de Nova Iorque para Paris fora suave e sem qualquer incidente. Todos tinham dormido pelo menos algumas horas.

O avião chegara a Paris com dez minutos de avanço, por conseguinte, tinham tido muito tempo para fazerem a ligação para as linhas camaroneanas. Todos dormiram novamente no voo para Douala. Mas aquela última parte para Bata era de arrepiar os cabelos.

— Estamos a aterrar — disse Laurie a Jack.

— Espero que aterragem seja controlada — gracejou Jack. Olhou através dajanela suja. Conforme já esperava, a paisagem

era uma carpete de um ininterrupto verde. À medida que os topos das árvores se aproximavam, cada vez mais ele ansiava por ver a pista.

Finalmente, tocaram em asfalto e Jack e Warren, simulta-/ neamente, respiraram de alívio.

Enquanto os fatigados viajantes desciam do pequeno e velho avião, Jack olhou para a pista mal conservada e teve uma visão estranha. Era um resplandecente jacto branco que estava estacionado, isolado, contra o verde-escuro da mata. Em quatro pontos, em redor do avião, havia soldados nos seus camuflados e boinas vermelhas. Embora permanecessem em posição ostensivamente erecta, todos eles assumiam diferentes posições de descontracção. Armas automáticas pendiam dos seus ombros.

— De quem é aquele avião? — perguntou Jack a Esteban. Sem marca, era óbvio que era particular.

— Não faço ideia — disse Esteban.

Com excepção de Esteban, ninguém esperava o caos que os aguardava na área de chegadas do aeroporto. O grupo foi levado com bagagem para um compartimento ao lado. Foram conduzidos para esse incrível lugar por dois homens com uniformes sujos e pistolas automáticas dependuradas aos ombros.

Inicialmente, Esteban fora excluído do compartimento, mas depois de uma grande discussão por parte dele, no dialecto local, foi-lhe permitida a entrada. Os homens abriram todas as malas e espalharam o seu conteúdo sobre uma mesa de piquenique.

Esteban disse a Jack que os homens esperavam uma gratificação. Inicialmente, Jack recusou por questões de princípio. Quando se tornou óbvio que a espera duraria horas, Jack cedeu. Dez francos resolveram o problema.

Ao saírem para a parte principal do edifício, Esteban pediu desculpa.

— E um problema aqui—disse ele. — Todos os funcionários do governo aceitam gorjetas.

O primo de Esteban aguardava-os à salda, o seu nome era Arturo. Era um indivíduo de constituição forte, extremamente simpático, com olhos vivos e dentes brilhantes, que apertou a mão a toda a gente. Vestia um fato típico africano. Uma túnica de tecido, com um estampado colorido e um pequeno chapéu redondo.

Saíram do aeroporto para o ar húmido e quente da África Equatorial. A vista, para onde quer que olhassem, parecia uma vastidão, dado que o terreno era relativamente plano. O céu do fim da tarde era de um azul-distante, mas umas nuvens de trovoada instalavam-se ao longo do horizonte.

— Ena, pá, não posso crer nisto — disse Warren. Ele olhava em volta como uma criança numa loja de brinquedos. — Há anos que pensava em cá vir, mas nunca imaginei que um dia ia ser realidade. — Olhou para Jack. — Obrigado, pá. Dá cá mais cinco! — Warren estendeu a mão. Ele e Jack trocaram umas palmadas com a palma da mão, como se estivessem no campo de basquetebol, lá na vizinhança.

Arturo tinha a carrinha estacionada na borda do passeio. Pôs umas notas na mão de um polícia e fez um gesto para entrarem. Esteban insistiu para que Jack fosse no assento da frente ao lado de Arturo. O veículo era um velho Toyota com duas filas de bancos corridos na parte de trás. Laurie e Natalie sentaram-se, comprimidas, no último banco, enquanto Esteban e Warren se sentaram no banco do meio.

Ao deixarem o aeroporto para trás, avistaram o oceano. A praia de areia era vasta. Ondas suaves enrolavam-se na costa.

Após uma curta distância, passaram por uma grande estrutura de cimento armado inacabada, que estava batida pelo tempo e a desmoronar-se. Vigas de ferro ferrugento saíam do topo como os ossos dos ouriços do mar. Jack perguntou o que era.

— Era para ser um hotel—disse Arturo. — Mas não havia nem dinheiro nem turistas.

— Isso é uma péssima combinação para um negócio — disse Jack.

Enquanto Esteban fazia o papel de guia, mostrando avista aqui e ali, Jack perguntou a Arturo se ainda faltava muito.

— Não, dez minutos.— disse Arturo.

— Ouvi dizer que já trabalhou na Gensys — disse Jack.

— Durante três anos — disse Arturo. — Mas nunca mais. O gerente é um tipo mau. Prefiro ficar em Bata. Tenho sorte em ter trabalho.

— Gostaríamos de visitar as instalações da Gensys — disse Jack. — Acha que haverá problema?

— Não estão à sua espera? — perguntou Arturo, perplexo.

— Não — disse Jack. — É uma visita surpresa.

—Então, podem ter problemas—disse Arturo.—Acho que eles não gostam de visitantes. Quando repararam a única estrada para o Cogo construíram um portão. Está guardado por soldados vinte e quatro horas por dia.

— Oh!— disse Jack. — Isso são más notícias. Não contava com restrições de acesso à cidade e contava poder lá ir directamente de carro. Onde esperava ter problemas era no acesso aos hospitais e laboratórios.

— Quando Esteban telefonou a dizer que vinham, pensei que tivessem sido convidados — disse Arturo. — Nem pensei em mencionar o portão.

—Compreendo—disse Jack.—Não é culpa sua. Diga-me, acha que os soldados receberiam dinheiro para nos deixarem entrar? Arturo olhou na direcção de Jack. Encolheu os ombros.

— Não sei. Eles são mais bem pagos do que os soldados regulares.

— A que distância fica o portão da cidade? — perguntou Jack. — Será possível ir através da floresta e ultrapassar o portão?

Arturo olhou de novo para Jack. A conversa estava a tomar um rumo que ele não esperava.

— É bastante longe — disse Arturo, deixando transparecer um certo constrangimento. — Talvez cinco quilómetros. E não é fácil andar na mata. Pode ser perigoso.

— E há apenas uma estrada? — perguntou Jack.

— Apenas uma estrada — concordou Arturo.

— Pelo mapa, vi que o Cogo tem costa — disse Jack. — E se fôssemos de barco?

— Talvez — disse Arturo.

— Onde é que se pode arranjar um barco? — perguntou Jack. —Em Calayong—disse Arturo.—Lá há muitos barcos. É como

se vai ao Gabão.

— E haverá barcos para alugar? — perguntou Jack.

— Havendo dinheiro suficiente... — disse Arturo. Passavam agora pelo centro de Bata. Era um amontoado de

ruas surpreendentemente largas, com árvores em ambos os lados e lixo espalhado por todo o lado. Havia inúmeras pessoas nas ruas, mas muito poucos veículos. Os edifícios eram todos estruturas baixas de cimento.

No lado sul da cidade, saíram da rua principal e viraram para uma estrada não pavimentada e cheia de socalcos. Havia grandes poças das recentes chuvas.

O hotel era um simples edifício de cimento de dois andares com vigas de ferro ferrugentas saindo do topo para uma futura extensão em altura. A fachada fora pintada de azul, mas a cor era agora de um indistinto tom pastel.

Quando pararam, um exército de crianças da mesma índole surgiram na porta da frente. Todos foram apresentados, incluindo a tímida criança mais nova. O segundo andar era o hotel.

Os quartos eram de dimensões reduzidas, mas limpos. Estavam todos localizados no lado exterior do edifício em forma de U. O acesso era feito através de uma varanda que dava para um pátio interior. Os chuveiros e as sanitas ficavam nas extremidades do U.

Após ter pousado a mala no quarto e ter apreciado a cortina contra os mosquitos em volta da cama, excessivamente estreita, Jack saiu para a varanda. Laurie emergiu do seu quarto. Juntos se debruçaram na balaustrada e espreitaram para o pátio. Era uma estranha combinação de bananeiras, pneus velhos, crianças nuas e galinhas.

— Não é propriamente o Four Seasons — disse Jack. Laurie sorriu.

— É encantador. Sinto-me feliz. Não há um único percevejo no meu quarto. Essa era a minha maior preocupação.

Os proprietários, o cunhado de Esteban, Florenico, e a mulher, Celestina, tinham preparado uma grande festa. O prato principal era um peixe local, servido com uma planta do tipo do nabo, chamada malanga. Para sobremesa, havia uma espécie de pudim com frutos exóticos. Um considerável fornecimento de cerveja camaroneana gelada contribuiu para que comessem tudo.

A combinação da abundância de comida e cerveja fez os viaj antes caírem de exaustão. Pouco tempo depois, todos faziam o possível por manterem as pálpebras abertas. Com algum esforço, arrastaramse escada acima para os seus quartos individuais, cheios de planos para se levantarem cedo e irem em direcção ao sul, de manhã.

Bertram subiu as escadas do gabinete de Siegfried. Estava exausto. Eram quase oito e meia da noite, e ele estava acordado desde as cinco e trinta da manhã para acompanhar os encarregados dos animais à ilha Francesca, a fim de ajudá-los a fazer a recolha em massa. Tinham trabalhado todo o dia e tinham regressado havia apenas uma hora.

Aurielo já tinha ido para casa, por isso, Bertram entrou directamente no gabinete do gerente. Siegfried estava à janela, virado para a praça, com um copo na mão. Tinha os olhos fixos no hospital. A única luz no quarto vinha de uma vela na caveira, justamente como havia três noites antes. A chama tremeluzia devido à acção da ventoinha no tecto, projectando sombras ondulantes nos animais embalsamados, ostentados como troféus.

— Sirva-se de uma bebida — disse Siegfried, sem voltar a cabeça. Sabia que era Bertram, visto que tinham falado ao telefone havia meia hora e tinham feito planos para se encontrarem.

Bertram preferia beber vinho a se impregnar de álcool, mas, devido às circunstâncias, serviu-se de um uísque duplo. Sorveu um/ trago do escaldante fluido enquanto se juntava a Siegfried à janela. As luzes do complexo do laboratório do hospital resplandeciam calorosamente no orvalho da noite tropical.

— Sabiam que Taylor Cabot vinha? — perguntou Bertram.

— Não fazia a mínima ideia — disse Siegfried.

— Que fez com ele? — perguntou Bertram. Siegfried fez um gesto em direcção ao hospital.

— Está na Estalagem. Tive de mandar o cirurgião-chefe sair do que nós chamamos a suite presidencial. É claro que ele não ficou nada contente. Sabe como são estes médicos egotistas. Mas que é que podia fazer? Não estou a dirigir nenhum hotel aqui.

— Sabe porque é que Cabot veio? — perguntou Bertram.

— Raymond disse que ele veio expressamente para fazer a avaliação do programa dos bonobos — disse Siegfried.

— E onde está Raymond? — perguntou Bertram.

— Está lá, também.— disse Siegfried. — É um grande chato. Queria ficar afastado de Cabot, mas onde é que eu ia pô-lo, na minha casa? Não, obrigado!

— Ele perguntou por Kevin Marshall? — perguntou Bertram.

— Evidentemente — disse Siegfried. — Logo que me apanhou sozinho, foi a primeira pergunta.

— Que é que você lhe disse?

—Disse-lhe a verdade—disse Siegfried.—Disse-lhe que Kevin tinha saído com a técnica da reprodução e a enfermeira dos cuidados intensivos e que não fazia ideia onde ele se encontrava.

— Qual foi a reacção dele?

— Ficou rubro — disse Siegfried. — Ele queria saber se Kevin teria ido para a ilha. Eu disse-lhe que pensávamos que não. Depois, deu-me instruções para encontrá-lo. Já imaginou? Não recebo ordens de Raymond Lyons.

— Então, Kevin e as companheiras não reapareceram? — perguntou Bertram

— Não, nem uma palavra — disse Siegfried.

— Fez alguma tentativa para encontrá-los? — perguntou Bertram.

— Enviei Cameron a Acalayong, para verificar aqueles hotéis baratos na marginal, mas ele não teve sorte. Estou a pensar que são capazes de terem ido a Cocobeach, no Gabão. É o que me faz mais sentido, Mas por que não disseram a ninguém, não consigo entender.

— Mas que grande sarilho! — comentou Bertram.

—Que tal correram as operações na ilha?—perguntou Siegfried.

—Correu tudo bem, considerando a rapidez com que tivemos de planear toda a operação — disse Bertram. — Temos um veículo todo-o-terreno lá, com um rebocador grande. Foi a única coisa que conseguimos fazer para trazer todos os animais de regresso para a área de acesso.

— Quantos animais conseguiram?

— Vinte e um — disse Bertram. — O que é um tributo ao meu pessoal. Significa que lá para amanhã teremos tudo pronto.

— Tão breve — comentou Siegfried. — Essa é a primeira boa notícia do dia.

—É mais fácil do que tínhamos previsto—disse Bertram.—Os animais parecem enfeitiçados por nós. Eles confiam em nós o suficiente para nos deixarem aproximar com a pistola de setas. É como um tiro ao peru.

— Agrada-me saber que alguma coisa corre bem — disse Siegfried.

— Os vinte e um animais que apanhámos hoje são todos parte do grupo que se separou e que estavam a viver a norte do rio Diviso. Era interessante ver como eles viviam. Fizeram uma tendas toscas sobre estacas com o telhado de folhas de lobélia.

— Quero lá saber como é que esses animais viviam! — disse Siegfried, com aspereza. — Não me diga que também está a amolecer.

— Não, eu não estou a amolecer — disse Bertram. — Mas continuo a achar interessante. Também havia restos de fogueiras.

— Por isso, é bom que eles fiquem em jaulas — disse Siegfried.

— Assim, não se matarão uns aos outros e não vão brincar com o fogo.

— É uma maneira de ver as coisas — concordou Bertram.

— Algum sinal de Kevin e das companheiras na ilha? — perguntou Siegfried.

— Absolutamente nada — disse Bertram. — E fiz questão de procurá-los. Mas, mesmo em áreas onde teriam deixado pegadas, não havia nada. Passámos parte do dia a construir uma ponte de troncos de madeira sobre o rio Diviso, portanto, amanhã, vamos começar as recolhas perto da encosta de pedra calcária. Vou manter os olhos bem abertos para ver se eles lá estiveram.

— Duvido que encontre alguma coisa, mas até que eles sejam encontrados não podemos pôr de lado a hipótese de terem ido à ilha. Mas vou dizer-lhe uma coisa, se eles, de facto, foram e voltarem aqui, eu entrego-os ao Ministério da Justiça Equatoguioneense com a acusação de que comprometeram seriamente as operações da Gensys. Claro que isso significa que serão levados para o campo de futebol, alinhados em frente de um esquadrão de morte antes de saberem de que terra são.

— Nada disso pode acontecer até que Cabot e os outros saiam

— disse Bertram, alarmado.

— Obviamente — disse Siegfried. — Além disso, eu mencionei o campo de futebol em sentido figurado. Eu diria ao ministro da Justiça que eles teriam de ser levados para fora da Zona para serem mortos.

—Alguma ideia de quando Cabot e os outros vão regressar com o paciente aos EUA?

— Ninguém falou em nada — disse Siegfried. — Penso que depende de Cabot. Espero que seja amanhã, ou, o mais tardar, depois de amanhã.

 

9 DE MARÇO, 1997 - 4:30 BATA, GUINÉ EQUATORIAL

Jack acordou às quatro e trinta e não conseguiu voltar a adormecer. Ironicamente, o regabofe de três rãs e grilos no pátio das bananeiras era demasiado até para uma pessoa que estava habituada às barulhentas sirenes e estridor geral da cidade de Nova Iorque.

Pegando na sua toalha e sabonete, Jack saiu para a varanda e dirigiu-se para o chuveiro. A meio caminho, deparou-se com Laurie que já vinha de regresso.

— Que fazes já a pé? — perguntou Jack. Estava ainda escuro como breu lá fora.

— Nós fomos para a cama por volta das oito — disse Laurie. — Oito horas, para mim, é uma noite razoável de sono.

— Tens razão — disse Jack. Ele esquecera-se de quão cedo era quando todos esmoreceram.

— Vou descer à zona da cozinha e ver se encontro café — disse Laurie.

— Eu desço já — disse Jack.

Quando Jack desceu à casa de jantar ficou surpreendido por ver todo o seu grupo a tomar o pequeno-almoço. Jack pegou numa chávena de café e pão e sentou-se entre Warren e Esteban.

—Arturo disse-me que pensa que vocês são malucos em irem ao Cogo sem um convite — disse Esteban.

Com a boca cheia, Jack limitou-se a acenar com a cabeça.

— Ele disse-me que vocês não vão conseguir entrar — disse Esteban.

— Vamos ver — disse Jack, após ter engolido. — Eu vim de muito longe, portanto, não vou voltar para trás sem ao menos tentar.

— Pelo menos, a rua é boa, graças à Gensys — disse Esteban.

— Na pior das hipóteses, daremos um passeio interessante — disse Jack.

Uma hora mais tarde, encontraram-se todos de novo na sala de jantar. Jack lembrou aos outros que ir ao Cogo não era obrigação, quem preferisse ficar em Bata era livre de o fazer. Disse que demorariam à volta de quatro horas em cada sentido.

— Acha que pode ir sozinho? — perguntou Esteban.

— Absolutamente — disse Jack. — Penso que não me vou perder. O mapa indica apenas uma estrada em direcção ao sul. Até eu consigo chegar lá.

— Então, penso que vou ficar — disse Esteban. — Tenho mais família que gostaria de visitar.

Quando já estavam na estrada, com Warren sentado à frente e as duas mulheres sentadas do banco do meio, o céu, no oriente, começava a esboçar um ténue brilho da aurora. Ao conduzirem para sul, ficaram chocados com o número de pessoas que se dirigiam para a cidade a pé. Eram, sobretudo, mulheres e crianças e a maioria das mulheres carregavam grandes fardos à cabeça.

— Parece que não têm muito, mas têm um ar de felicidade — comentou Warren. Muitas das crianças pararam para acenar para a carrinha. Warren correspondeu aos acenos.

Os arredores de Bata passavam com monotonia e sem interesse. As construções de cimento, ocasionalmente, davam lugar a umas estruturas de tijolos de barro pintado de branco com telhados de palha. Tapetes de junco formavam currais para cabras.

Uma vez fora de Bata, começaram a ver longas extensões de incrivelmente luxuriante floresta virgem.

O trânsito era quase inexistente, excepto alguns camiões que, ocasionalmente, passavam na direcção oposta. Conforme os camiões passavam, o vento sacudia a carrinha.

— Ena, pá! Aqueles camionistas vão numa brisa! — comentou Warren.

Quinze milhas a sul de Bata, Warren pegou no mapa. Havia uma bifurcação e uma volta na estrada que tinha de ser feita com cuidado ou perderiam um tempo considerável. Sinais eram praticamente inexistentes.

Quando o Sol se ergueu, todos eles procuraram os óculos de sol. O cenário tornou-se monótono, ininterrupta floresta virgem, excepto de quando em quando um grupo de cabanas de colmo. Quase duas horas depois de terem saído de Bata, voltaram para a estrada que dava acesso ao Cogo.

— Esta estrada é muito melhor—comentou Warren, enquanto Jack acelerava o carro para velocidade de cruzeiro.

— Parece nova—disse Jack. A rua anterior era razoavelmente suave, embora o pavimento parecesse um trabalho de remendos devido às inúmeras reparações.

Iam agora em direcção a sudeste, desviando-se da costa em direcção a uma floresta consideravelmente mais densa. Também começaram a subir. À distância, conseguiam ver baixas montanhas cobertas de vegetação tropical.

Repentinamente, veio uma violenta trovoada não se sabia de onde. O céu tornou-se numa massa turbulenta de nuvens negras. O dia tornou-se noite no espaço de apenas alguns minutos. Uma vez tendo começado, a chuva caía em lençóis e os velhos, esfarrapados limpa-pára-brisas da carrinha não davam vazão à carga de água. Jack teve de abrandar a marcha para menos de vinte milhas à hora.

Quinze minutos mais tarde, o sol espreitava por entre as maciças nuvens, tornando a rua numa tira de vapor flutuante. Numa recta, um grupo de babuínos que atravessava a estrada, parecia caminhar sobre uma nuvem.

Após passarem através das montanhas, a estrada dava a volta para sudeste. Warren consultou o mapa e comunicou que estavam a vinte milhas do seu destino.

Dando mais uma volta, viram o que parecia um edifício branco no meio da estrada.

— Que diabo é aquilo?—disse Warren. — Ainda não chegámos lá de maneira nenhuma.

— Penso que é o portão — disse Jack. — Só ontem à noite é que me falaram disto. Façam figas. Poderemos ter de mudar para o plano B.

À medida que se aproximavam, viam, de cada lado da estrutura central, que havia altas vedações gradeadas, pintadas de branco. Assentavam sobre um mecanismo rolante, o que permitia serem afastadas para deixar passar os veículos.

Jack travou e parou a carrinha a seis metros da vedação. Da casa do portão de dois pisos saíram três soldados, vestidos de um modo semelhante aos que estavam na pista do aeroporto a guardar o jacto privado. Tal como os soldados no aeroporto, estes homens traziam consigo metralhadoras, só que estes empunhavam as armas à altura da cintura, dirigidas à carrinha.

— Não gosto disto — disse Warren. — Estes tipos parecem crianças.

— Calma — disse Jack. Ele abriu o vidro da sua janela. — Olá, está um lindo dia, hem?

Os soldados não se moveram. Os seus rostos inexpressivos não mudaram.

Jack estava prestes a pedir-lhes delicadamente para abrirem o portão, quando um quarto homem surgiu à claridade.

Para surpresa de Jack, este homem vestia um casaco preto sobre uma camisa branca com gravata. No meio da selva escaldante era absurdo. A outra coisa surpreendente era o que o homem não era preto. Ele era árabe.

—Em que posso servi-los? — perguntou o árabe. O seu tom não era nada simpático.

— Nós estamos aqui para visitar o Cogo — disse Jack.

O árabe olhou para o pára-brisas do carro, possivelmente procurando algumaidentificação. Não tendo encontrado, perguntou a Jack se tinha um passe.

— Não tenho passe — admitiu Jack. — Somos médicos e estamos interessados no trabalho que se faz aqui.

— Qual o seu nome? — perguntou o árabe.

— Dr. Jack Stapleton. Vim de Nova Iorque, de propósito.

— Um momento — disse o árabe antes de desaparecer para dentro do edifício do portão.

— Não me parece nada bom — disse Jack a Warren entre dentes. Ele sorriu aos soldados. — Quanto é que devo oferecer? Eu não sou muito bom nesta coisa de subornar.

— O dinheiro deve significar muito mais aqui do que em Nova Iorque — disse Warren. — Por que não o surpreendes com cem dólares. Quero dizer, se é coisa que para ti valha a pena.

Jack, mentalmente, converteu cem dólares em francos franceses, depois tirou as notas do cinto. Uns minutos mais tarde, o árabe regressou.

— O gerente diz que não o conhece e que não é bem-vindo — disse o árabe.

— Ora bolas! — disse Jack. Depois, estendeu a mão esquerda com os francos franceses casualmente metidos entre o indicador e anelar. — Nós agradecemos a sua ajuda.

O árabe olhou para o dinheiro por um momento antes de estender a mão e agarrá-lo. Desapareceu no bolso dele sem um pestanejar de olhos.

Jack olhou para ele durante um instante, mas o homem não se moveu. Jack tinha dificuldade em ler na expressão dele, pois o bigode cobria a boca.

Jack olhou para Warren.

— Será que não lhe dei suficiente? Warren abanou a cabeça.

— Penso que não vamos conseguir.

— Queres dizer que ele tirou o meu dinheiro e mais nada? — perguntou Jack.

— Imagino que sim — disse Warren.

Jack voltou a sua atenção de novo para o homem de preto. Jack calculou que ele aparentava ter cerca de setenta e cinco quilos, certamente, era mais para o delgado. Durante alguns momentos, Jack pensou em sair do carro e exigir que ele devolvesse o seu dinheiro, mas uma olhadela aos soldados fê-lo mudar de ideias.

Com um suspiro de resignação, Jack deu meia volta e dirigiuse para o local de onde tinham partido.

— Chi!— disse Laurie do banco de trás. — Não gostei nada daquilo.

— Não gostaste? — interrogou Jack. — Eu estou lixado!

— Qual é o plano? — perguntou Warren.

Jack explicou a sua ideia de ir até ao Cogo, de barco, a partir de Acalayong. Mandou Warren ver o mapa. Dado o tempo que lhes levou a chegarem onde estavam, pediu a Warren para calcular o tempo que levariam a chegar a Acayalong.

— Eu diria três horas — disse Warren. — Desde que a estrada seja boa. O problema é que temos andar para trás um bom pedaço antes de virarmos para sul.

Jack olhou para o relógio. Eram quase nove horas da manhã.

—Isso significa que chegaríamos por volta do meio-dia. Calculo que poderíamos chegar de Acalayong lá numa hora, mesmo com o barco mais vagaroso do mundo. Digamos que ficaríamos no Cogo durante duas horas. Penso que estaríamos de regresso ainda a horas decentes. Que dizem?

— Por mim, porreiro — disse Warren. Jack olhou através do retrovisor.

— Posso levá-las, às senhoras, para Bata e voltar amanhã.

— A minha única reserva quanto a qualquer de nós ir são aqueles soldados com aquelas metralhadoras — disse Laurie.

— Não acho que isso seja problema — disse Jack. — Se têm soldados no portão, então, não precisam deles na cidade. É claro que há sempre a hipótese de eles patrulharem a marginal, o que significaria que eu teria de recorrer ao plano C.

— Qual é o plano C? — perguntou Warren.

— Não sei — disse Jack. — Ainda não pensei. E tu, Natalie? — perguntou Jack.

—Estou a achar tudo muito interessante—disse Natalie.—Eu alinho com vocês.

Levaram quase uma hora até chegarem ao ponto onde tinha de ser tomada uma decisão. Jack parou no lado da estrada.

— Então, que vamos fazer, malta? — perguntou ele. Ele queria ter a certeza absoluta. — Voltamos para Bata ou seguimos para Acalayong?

— Penso que ficarei mais preocupada se fores sozinho — disse Laurie. — Conta comigo.

— Natalie? — disse Jack. — Não te deixes influenciar pelos outros loucos. Que queres fazer?

— Eu vou — disse Natalie.

— Okay — disse Jack. Pôs o carro em posição de arranque e dirigiu-se para Acalayong.

Siegfried levantou-se da secretária com uma caneca de café na mão e caminhou para a janela que dava para a praça. Ele estava mistificado. A operação no Cogo já decorria havia cerca de seis anos e nunca ninguém tinha vindo até ao portão solicitando permissão para uma visita. A Guiné Equatorial não era um local que as pessoas visitassem casualmente.

Siegfried sorveu um golo de café e perguntava-se se haveria alguma ligação entre este acontecimento fora do normal e a vinda de Taylor Cabot, o director-geral da Gensys. Eram dois eventos inesperados e nada bem-vindos, pois ocorriam justamente quando havia um grave problema no projecto bonobo. Até que aquela infeliz situação estivesse controlada, Siegfried não queria ninguém extraviado nas redondezas, e incluía o D.-G. nessa categoria.

Aurielo espreitou pela porta e disse que o Dr. Raymond Lyons estava lá e desejava falar-lhe.

Siegfried revirou os olhos. Também, não queria Raymond por ali.

— Diz-lhe para entrar — disse Siegfried, com relutância. Raymond entrou no gabinete, parecendo mais bronzeado e mais

saudável do que nunca. Siegfried invejava a aparência aristocrática do homem, e o facto de ele ter dois braços.

— Já localizaram Kevin Marshall? — perguntou Raymond.

— Não, ainda não — disse Siegfried. Ficou logo ofendido com o tom de Raymond.

—Tanto quando sei, já se passaram quarenta e oito horas desde a última vez em que ele foi visto — disse Raymond. — Quero que o encontrem!

—Sente-se, doutor!—disse Siegfried de uma maneira cortante.

Raymond hesitou. Ele não sabia se se devia irritar ou se intimidar com a súbita agressividade do gerente.

— Eu disse para se sentar! — disse Siegfried.

Raymond sentou-se. O caçador branco, com a sua horrenda cicatriz e braço mutilado, era, por vez, imponente, sobretudo quando estava rodeado pelo testemunho das suas matanças.

— Vamos esclarecer um ponto que diz respeito à corrente de hierarquias — disse Siegfried. — Não recebo ordens suas. Aliás, enquanto estiver aqui como convidado, você é que recebe ordens minhas. Está entendido?

Raymond abriu a boca para protestar, mas pensou que era melhor não o fazer. Sabia que, tecnicamente, Siegfried tinha razão.

—E, enquanto falamos tão directamente—acrescentou Siegfried —, onde é que está o meu prémio? No passado, sempre o recebi quando o paciente deixava a Zona de regresso aos EUA.

— É verdade — disse Raymond, sob tensão. — Mas têm havido grandes despesas. O dinheiro de novos clientes tem escasseado. Será pago logo que entre dinheiro.

— Não quero que fique a pensar que me pode pôr num rodopio — avisou Siegfried.

— Claro que não — disse Raymond, abruptamente.

— E mais uma coisa — disse Siegfried. — Não haverá uma forma de Você tentar apressar a saída do director-geral? A presença dele-aqui no Cogo é perturbadora. Não poderá argumentar com as necessidades especiais do paciente?

— Não sei bem como — disse Raymond. — Eleja foi informado de que o paciente já está pronto a viajar. Que mais posso dizer-lhe?

— Pense em alguma coisa — disse Siegfried.

— Vou tentar — disse Raymond. — Entretanto, por favor, localize Kevin Marshall. O desaparecimento dele preocupa-me. Receio que ele possa fazer alguma coisa precipitada.

— Cremos que ele tenha ido a Cocobeach, no Gabão — disse Siegíried. Ele sentia-se gratificado com a subserviência na voz de Raymond.

— Tem a certeza de que ele não foi à ilha? — perguntou Raymond.

—Não podemos estar totalmente seguros — admitiu Siegíried. — Mas pensamos que não. Mesmo que tivesse ido, não estaria preparado para ficar lá. Já teria voltado. Já passaram quarenta e oito horas.

Raymond ergueu-se e suspirou.

— Quem me dera que ele aparecesse. Esta preocupação com ele está a pôr-me doido, em especial com Taylor Cabot aqui. É mais um problema a juntar aos de Nova Iorque e que ameaçam o projecto. Tornaram a minha vida num inferno!

— Vamos continuar a procurar — assegurou-lhe Siegíried. Tentou dar um tom compreensivo, mas, na realidade, ele perguntava-se como reagiria Raymond quando soubesse que os bonobos estavam a ser enjaulados para serem trazidos para o centro dos animais. Todos os outros problemas se desvaneciam perante o facto de que os animais estavam a matar-se uns aos outros.

— Vou pensar em qualquer coisa para dizer a Taylor Cabot — disse Raymond, enquanto se dirigia para a porta. — Se puder, gostaria que me informasse logo que tivesse notícias de Kevin Marshall.

— Com certeza — disse Siegíried, amavelmente. Siegíried correu para a porta, tendo apanhado Raymond a descer as escadas.

— Doutor — chamou Siegfried, com uma falsa deferência. Raymond parou e voltou-se para trás.

— Por acaso conhece um médico de nome Jack Stapleton? O rosto de Raymond ficou sem pinga de sangue.

Esta reacção não passou despercebida a Siegfried.

— Penso que será melhor voltar ao meu gabinete — disse o gerente.

Siegfried fechou a porta e Raymond quis saber imediatamente como é que surgira o nome de Jack Stapleton.

Siegfried deu a volta à sua secretária e sentou-se. Fez um gesto, mostrando a cadeira para Raymond se sentar. Siegfried não estava contente. Ele pensara em falar a Taylor Cabot sobre o inesperado pedido de estranhos médicos para visitar o local. Não lhe ocorrera mencionar o assunto a Raymond.

— Logo antes de chegar, recebi um telefonema do portão — disse Siegfried.—Os guardas marroquinos informaram-me de que havia uma carrinha cheia de gente que gostariam de visitar a nossa área. Nunca, até à data, tivemos visitas que não fossem convidadas. A carrinha era conduzida pelo Dr. Jack Stapleton, da cidade de Nova Iorque.

Raymond limpou a transpiração que afluíra à sua testa. Depois, passou as duas mãos simultaneamente pelo cabelo. Dizia para si próprio que isto não poderia estar a acontecer, uma vez que Vinnie Dominick era suposto ter tomado conta de Jack Stapleton e Laurie Montgomery. Raymond não se tinha informado do que acontecera aos dois; não queria, na verdade, saber pormenores. Por vinte mil dólares, pormenores eram uma coisa com que ele não se devia preocupar, pelo menos assim pensava. Se lhe tivessem perguntado, ele diria que Stapleton e Montgomery estariam a flutuar algures no oceano Atlântico.

— A sua reacção a este assunto está a pôr-me preocupado — disse Siegfried.

— Não deixou Stapleton e os seus amigos entrarem, pois não? — perguntou Raymond.

— Não, claro que não — disse Siegfried.

— Talvez devesse ter deixado — disse Raymond. — Podíamos tratar-lhes da saúde. Jack Stapleton é uma grande ameaça para o programa. Quero dizer, há alguma maneira aqui na Zona de tratar de pessoas como ele?

— Há — disse Siegfried. — Nós entregamos essa gente ao ministro da Justiça equatoguineense ou ao ministro da Defesa, com um bónus significativo. O castigo é não só discreto como rápido. O governo está bastante interessado em assegurar de que ninguém ameaça a galinha que põe os ovos de ouro. A única coisa que precisamos dizer é que tais pessoas estão a interferir com as operações da Gensys.

— Então, se eles voltarem, penso que devia deixá-los entrar— disse Raymond.

— Talvez queira dizer-me porquê — disse Siegfried. Lembra-se de Cario Franconi? — perguntou Raymond.

— O paciente Cario Franconi? — perguntou Siegfried. Raymond acenou com a cabeça.

— Claro — disse Siegfried.

—Bem...—disse ele, começando a contar a complicada história.

— Pensas que é seguro? — perguntou Laurie. Ela olhava para uma enorme canoa funda com troncos cortados, com um pálio de colmo, que estava ancorada na praia. Na parte de trás havia um enorme motor de fora de borda batido pelo tempo. Estava a derramar combustível como podia ser verificado por uma opalescente espuma que rodeava a popa.

— Dizem que vai ao Gabão duas vezes por dia — disse Jack. — É muito mais longe do que o Cogo.

— Quanto é que tiveram de pagar de aluguer? — perguntou Natalie. Jack levara meia hora para concluir as negociações.

— Um pouco mais do que eu esperava — disse Jack. Aparentemente, umas pessoas alugaram uma há dois dias, e nunca mais foi vista. Parece-me que esse episódio subiu o preço do aluguer.

— Mais de cem dólares ou menos? — perguntou Warren. Ele também não estava muito impressionado com o aspecto da embarcação e não confiava na sua capacidade de aguentar o mar. — Porque se foi mais do que uma nota foi comido.

— Bem, não vamos discutir agora — disse Jack. — Vamos mas é pôr o espectáculo na estrada a não ser que vocês queiram desistir!

Houve um momento de silêncio enquanto olhavam uns para os outros

— Não sou grande nadador — admitiu Warren.

— Assegurou-te de que não estamos a planear cair à água — disse Jack.

— Está bem — disse Warren. — Vamos.

— E as senhoras, concordam? — perguntou Jack.

Tanto Laurie como Natalie anuíram com a cabeça sem grande entusiasmo. De momento, o sol do meio-dia era enervante. Apesar de estarem na margem do estuário, não havia brisa alguma.

Com as duas na popa para ajudar a levantar a proa, Jack e Warren empurraram a pesada piroga para a água e saltaram lá para dentro. Todos ajudaram a remar durante cerca de quinze metros. Jack ocupava-se do motor, comprimindo a pequena bomba manual no cimo do depósito de combustível vermelho. Em criança, tinha tido um barco no lago em Midwest e tinha experiência com motores de fora de popa.

— Esta canoa é muito mais estável do que parece — disse Laurie. Mesmo com Jack a mover-se na popa, a canoa pouco baloiçava.

— E não há infiltrações — disse Natalie. — Essa era a minha preocupação.

Warren ficou silencioso. Ele agarrava-se à borda do barco com quanta força tinha.

Para surpresa de Jack, o motor pegou logo à segunda tentativa. Um momento mais tarde, eles arrancaram, indo quase em direcção a leste. Depois do calor opressivo, a brisa sabia bem.

A ida de carro até Acalayong tinha sido mais rápida do que tinham previsto, embora a estrada fosse pior do que a do norte, que ia para o Cogo. Não havia trânsito, com excepção de uma ocasional carrinha que ia em direcção ao norte, inacreditavelmente a transbordar de passageiros. Até na bagageira, no topo, havia duas ou três pessoas dependuradas, como que a agarrarem-se à vida.

Acalayongtrouxera sorrisos aos rostos de todos. Estava indicada no mapa como sendo uma cidade mas, afinal, consistia apenas num punhado de supostas lojas, bares e hotéis, de cimento armado, sem qualquer valor. Havia um posto da Polícia em blocos de cimento, onde vários homens de uniformes sujos se espreguiçavam em cadeiras de palhinha na sombra do alpendre. Quando a carrinha passou por lá, olharam para Jack e para os outros com um desdém de enfado. Embora tivessem achado a cidade ridícula e cheia de lixo por toda a parte, tinham conseguido comer e beber qualquer coisa e tinha procurado o barco. Com um certo constrangimento, tinham parado a carrinha em frente ao posto da Polícia, na esperança que ficasse melhor guardada para o regresso.

— Quanto tempo calculaste que nos levaria? — gritou Laurie por cima do ruído do motor. Era particularmente barulhento, porque parte da cobertura tinha desaparecido.

—Uma hora—gritou Jack.—Mas o dono do barco disse-me que seriam cerca de vinte minutos. Aparentemente, é mesmo por detrás do cabo directamente em frente.

Nessa altura, atravessavam a foz do rio Congue, com duas milhas de largo. As margens cobertas de mata estavam indistintas devido ao nevoeiro. Nuvens de trovoada avultavam-se ameaçadoramente lá por cima; já tinha havido duas tempestades de trovoadas enquanto eles estiveram na carrinha.

- i- Espero não sermos apanhados aqui pela chuva — disse Natálie. Mas a mãe Natureza ignorou o seu desejo. Menos de cinco minutos mais tarde, caía uma chuva tão pesada que os pingos da chuva ao caírem no rio salpicavam a água para dentro do barco. Jack reduziu a velocidade e deixou que o barco deslizasse por si só, enquanto se recolhia debaixo do pálio com os outros. Para agradável surpresa de todos, estavam completamente secos.

Logo que deram a volta ao cabo, avistaram o cais do Cogo.

Construído em madeira pesada, tratada sob pressão, era completamente diferente das raquíticas docas de Acalayong. À medida que se aproximavam, podiam ver que havia uma parte flutuante na extremidade.

À primeira vista, o Cogo impressionou-os. Em contraste com Bata, onde as delapidadas construções rasteiras cobertas com telhados de zinco tinham sido construídas sem qualquer planeamento, e com toda a cidade de Acalayong, o Cogo tinha estruturas com telha, pintadas de branco, reflectindo a riqueza colonial do ambiente. A esquerda e quase escondida pela floresta havia uma moderna central eléctrica. A sua presença tornava-se óbvia apenas devido à alta coluna de fumo.

Jack desligou o motor enquanto a cidade se aproximava, para poderem ouvir-se uns aos outros. Amarradas à doca havia várias pirogas semelhantes àquela em que se encontravam, embora estas estivessem amontoadas de redes de pesca.

— Estou contente por ver outros barcos — disse Jack. — Eu receava que a nossa embarcação fosse dar muito nas vistas.

— Achas que aquele edifício grande, moderno, é o hospital? — perguntou Laurie, apontando.

Jack seguiu a pista que ela dava.

— É, pelo menos de acordo com Arturo, e ele deve saber. Ele fazia parte do pessoal que inicialmente esteve aqui na construção.

— Suponho que esse é o nosso destino — disse Laurie.

—Suponho que sim—disse Jack.—Pelo menos, para começar. Arturo disse que o complexo dos animais fica algumas milhas afastado, na floresta. Podemos tentar uma forma de lá chegar.

— A cidade é maior do que eu esperava — disse Warren.

— Disseram-me que é era uma cidade colonial espanhola, que fora abandonada — disse Jack. — Nem tudo foi renovado, mas daqui parece que foi.

— Que é que os espanhóis faziam aqui? — perguntou Natalie. — Isto é só selva.

— Cultivavam café e cacau—disse Jack.—Pelo menos, é o que consta. — Claro que não faço ideia onde é que eles os cultivavam

— Ei, olha um soldado! — disse Laurie.

—Também já o vi—disse Jack. Os seus olhos tinham pesquisado enquanto se aproximavam.

O soldado estava vestido com o mesmo camuflado e boina vermelha que os guardas do portão. Ele andava para trás e para a frente sem objectivo, num quadrado de chão empedrado, logo junto à base do cais, com uma metralhadora dependurada no ombro.

—Quer isto dizer quevamosmudarparaoplanoC?—interrogou Warren, em ar de gracejo.

—Ainda não—disse Jack.—É óbvio que ele está onde está para evitar que as pessoas desembarquem no cais. Mas olha para aquele Chickee Huty construído na praia. Se conseguíssemos lá chegar, estaríamos livres como em casa.

— Não podemos levar a canoa assim para a praia — disse Laurie. — Ele vai ver-nos na mesma.

— Olha para a altura daquele cais — disse Jack. — E se passássemos por baixo, deixássemos a canoa na praia e fôssemos ao Chickee Huty? Que acham?

— Parece porreiro — disse Warren. — Mas este barco não vai caber por debaixo daquele cais, de modo nenhum.

Jack levantou-se e foi até um dos postes que apoiavam a cobertura de palha. Desapareceu num buraco na borda da piroga. Agarrando com as duas mãos, ele puxou para cima.

— Mas como isto vem mesmo a calhar! — disse ele. — Esta canoa é descapotável.

Uns minutos mais tarde, tinham tirado todos os postes e a cobertura estava convertida numa pilha de paus e folhas secas. Distribuíram-nos por ambos os lados e por debaixo dos bancos.

— O dono não vai gostar nada disto — comentou Natalie. Jack pôs o barco num ângulo, de modo a que ficassem protegidos

pelo cais, tanto quanto possível, e fora da vista da pequena plataforma. Jack desligou completamente o motor quando deslizavam para a sombra, por debaixo do cais, tendo o cuidado de se agachar por debaixo do travejamento.

O barco passou pelo pedaço sombreado da costa e depois parou.

—Até aqui tudo bem — disse Jack. Encorajou as duas a saírem com Warren. Depois, com Warrem a puxar e Jack a remar, levaram o barco bem para cima, para a areia da praia.

Jack saltou e apontou para uma parede de pedra que corria perpendicular à base do cais antes de desaparecer na areia da praia.

— Vamos dar a volta à parede. Quando tivermos passado por ela,dirigimo-nos ao Chickee Huty.

/Uns minutos mais tarde, estavam no Huty. O soldado não lhes tinha prestado atenção nenhuma. Ou não os viu, ou não se preocupou.

O Huty estava vazio com excepção de um homem preto que cortava limões e limas. Jack fez sinal em direcção aos bancos e sugeriu uma bebida para festejar. Todos estiveram de acordo.

Estivera quentíssimo na canoa quanto o Sol se descobriu, e, em especial, quando a cobertura desapareceu.

O homem do Huty veio imediatamente. A tarjeta identificava-o como Saturnino. Em contradição com o seu nome, ele era um homem jovial. Usava uma camisa com um estampado espampanante e um pequeno chapéu redondo semelhante ao que Arturo tinha quando foi buscá-los ao aeroporto na tarde anterior.

— Não há muito movimento hoje, Saturnino — comentou Jack.

— Não até depois das cinco — disse o homem do Huty. — Depois temos muito movimento.

— Nós somos novos cá — disse Jack. — Que dinheiro usamos?

— Podem assinar — disse Saturnino.

Jack olhou para Laurie a pedir autorização. Laurie abanou a cabeça.

— Preferimos pagar — disse ele. — Pode ser dólares?

— O que quiser—disse Saturnino.—Dólares ou CFA1. Não faz diferença.

— Onde fica o hospital? — perguntou Jack. Saturnino apontou por cima do ombro.

— Sobem a rua até chegar à praça principal. É o edifício grande, à esquerda.

— Que é que eles fazem lá? — perguntou Jack. Saturnino olhou para Jack como se ele fosse maluco.

— Tratam de pessoas.

—Vêm pessoas da América só para vir ao hospital?—perguntou Jack.

Saturnino encolheu os ombros.

— Isso não sei — disse ele. Pegou nas notas que Jack colocara no Huty e foi para a caixa registadora.

— Boa tentativa — murmurou Laurie.

— Teria sido demasiado fácil — concordou Jack. Refrescados pelos refrescos, o grupo saiu para a luz do Sol.

Passaram a quinze metros do soldado, que continuou a ignorá-los. Depois de uma curta caminhada por uma rua empedrada, foram ter a um pátio relvado, rodeado por casas de estilo colonial.

— Faz-me lembrar algumas das ilhas nas Caraíbas — disse Laurie.

Cinco minutos mais tarde, chegaram à praça principal debruada de árvores. O grupos de soldados que se refastelava em frente à

 

1 Francos camaroneanos, (N. da T)

 

Câmara na diagonal, onde eles se encontravam, estragava o que seria um quadro idílico.

— Uau — disse Jack. — Há ali um batalhão inteiro.

— Pensei que tinhas dito que, visto que havia soldados no portão, não devia haver nenhuns na cidade — disse Laurie.

— Pelos vistos, errei — reconheceu Jack. — Mas não há necessidade de irmos até lá e anunciarmos a nossa chegada. Isto é o laboratório do hospital, aqui à nossa frente.

Visto da esquina da praça, o edifício parecia ocupar a maior parte da cidade do Cogo. Havia uma entrada que dava para a praça, mas havia uma outra para uma rua à esquerda. Para evitar dar nas vistas dos soldados que se espreguiçavam, foram em direcção à entrada lateral.

— Que vais dizer, se formos interrogados?—perguntou Laurie, um tanto ou quanto preocupada. — E é provável que isso aconteça, se vamos andar pelo hospital.

—Vou improvisar — disse Jack. Ele puxou a porta e, com uma vénia exagerada, convidou os seus amigos a entrarem.

Laurie olhou de relance para Natalie e Warren e revirou os olhos. Pelo menos, Jack continuava a ser encantador, mesmo que exasperante.

Tendo entrado no edifício, todos tremiam de contentamento. Nunca o ar condicionado tinha sido tão apreciado. A sala em que se encontraram parecia ser uma sala de estar completa, com alcatifa, cadeiras de descanso e sofás. Havia uma grande estante de livros numa das paredes. Algumas das prateleiras eram em ângulo para dispor uma impressionante colecção de revistas periódicas desde o Time ao National Geographic Magazine. Havia uma meia dúzia de pessoas sentadas a ler.

Na parede posterior à altura de uma secretária havia uma abertura com painéis de vidro de correr. Por detrás do vidro, estava uma rapariga preta, de uniforme azul, sentada a uma secretária. À direita da abertura havia um vestíbulo com vários elevadores.

— Será que todas estas pessoas são pacientes? — perguntou Laurie.

— Uma boa pergunta — disse Jack. — Não sei porquê, mas parece-me que não. Todos eles parecem demasiado saudáveis e demasiado confortáveis. Vamos falar com a secretária, quem quer que ela seja.

Warren e Natalie estavam intimidados pelo ambiente do hospital. Silenciosamente, seguiram Laurie e Jack.

Jack bateu ao de leve no vidro. A rapariga levantou os olhos do seu trabalho e abriu um dos vidros.

— Desculpe — disse ela. — Não vi os senhores entrarem. Vão fazer ocheck-in?

— Não — disse Jack. — Todos os meus órgãos estão em muito bom estado de momento.

— Desculpe? — interrogou ela.

— Nós estamos aqui para visitar o hospital, não para usar os seus serviços — disse Jack. — Nós somos médicos.

— Isto não é um hospital — disse ela. — Isto é uma estalagem. Podem sair e ir pela frente do edifício ou podem seguir o átrio à vossa direita. O hospital fica para além das portas duplas.

— Obrigado — disse Jack.

— Foi um prazer — disse ela. Inclinou-se para a frente e ficou a ver Jack e os outros desaparecerem. Perplexa, sentou-se para trás e pegou no telefone,.

Jack conduziu os outros através das portas duplas. Imediatamente, o ambiente parecia-lhe mais familiar. O chão era de vinil e as paredes eram pintadas de verde-suave, o tom dos hospitais. Havia um ligeiro cheiro a anti-sépticos.

— Parece que estamos certos — disse Jack.

Entraram numa sala cujos vidros davam para a praça. Entre as janelas havia um par de portas que davam para o exterior. Havia alguns sofás e cadeiras sobre tapetes, formando áreas distintas para pequenos grupos, mas não era nada como a sala onde entraram inicialmente. Mas tal como a outra sala também havia um cubículo com vidros de correr.

Jack bateu no vidro novamente. Uma outra rapariga abriu o vidro. Ela foi igualmente cordial.

— Queríamos fazer uma pergunta — disse Jack. — Nós somos médicos, e gostaríamos de saber se há alguns doentes que tenham feito algum transplante no hospital?

—Claro, há um—disse ela, revelando um ar confuso.—Horace Winchester. Ele está no 302 e está pronto para receber alta.

— Mesmo a propósito — disse Jack. — Que órgão foi transplantado?

— O fígado — disse ela. — São todos do grupo de Pittsburgh?

— Não, nós somos parte do grupo de Nova Iorque — disse Jack.

— Compreendo — disse ela, embora pela sua expressão fosse óbvio que não compreendia nada.

— Obrigado—disse Jack, enquanto levava o grupo em direcção aos elevadores que estavam à direita.

— Finalmente, a sorte está do nosso lado — disse Jack, com excitação. — Isto vai tornar as coisas mais fáceis. Talvez seja melhor dar uma olhadela ao relatório.

— Como se isso fosse fácil — comentou Laurie.

— Verdade — disse Jack, após ter reflectido uns segundos. — Então, talvez devêssemos apenas ir fazer uma visita ao Horace e receber a informação da boca dele.

— Ena, pá — disse Warren, obrigando, com um puxão, Jack a parar. — Talvez Natalie e eu devêssemos esperar aqui. Não estamos habituados a hospitais, compreendes o que quero dizer?

— Suponho que sim — disse Jack com relutância.—Mas penso que é melhor ficarmos todos juntos, só para o caso de termos de ir para a canoa mais depressa do que gostaríamos. Percebes o que estou a dizer?

Warren anuiu com a cabeça e Jack carregou no botão do elevador.

Cameron Mclvers estava habituado a falsos alarmes. Aliás, a maior parte das vezes que ele e seu pessoal da segurança eram chamados, era um falso alarme. Por conseguinte, quando entrou na porta da sala de estar da Estalagem, ele não estava preocupado. Mas era seu dever ou de um dos seus delegados verificar sempre que houvesse a possibilidade de um problema.

Quando se dirigiu ao balcão de informações, Cameron notou que a sala de estar estava amortecida como costume. A calma que encontrou levantou mais as suas suspeitas de que esta seria mais uma chamada como as outras.

Cameron bateu no vidro, e o vidro foi aberto.

— Miss Williams — disse Cameron, enquanto tocava na beira do chapéu em forma de cumprimento. Cameron e o restante pessoal da segurança usavam uniformes de caqui com chapéu quando estavam de serviço. Cameron trazia também um cinto de cabedal com uma tira passada no ombro. No lado direito do cinto tinha uma Beretta metida no coldre e no lado esquerdo um intercomunicador portátil.

— Foram para aquele lado — disse Corrina Williams, com agitação. Levantou-se da sua cadeira para apontar na direcção em que eles tinha ido.

— Acalme-se! — disse Cameron, com delicadeza. — De quem é que está a falar?

— Não deram nomes — disse Corrina. — Eram quatro. Só um deles falou. Ele disse que era médico.

— Hum — vocalizou Cameron. — E nunca os tinha visto?

— Nunca! — disse Corrina, ansiosamente. — Apanharam-me de surpresa. Pensei que eles vinham para ficar na Estalagem, visto que houve entradas ontem. Mas eles disseram que tinham vindo para visitar o hospital. Quando eu disse como se ia lá ter, foram imediatamente.

— Eram pretos ou brancos? — perguntou Cameron. Talvez, afinal, não fosse o usual falso alarme.

— Metade, metade — disse Corrina. — Eram dois pretos e dois brancos. Mas pela maneira como estavam vestidos, são americanos.

— Compreendo — disse Cameron, enquanto amaciava a barba e ponderava na improvável possibilidade de alguns trabalhadores americanos da Zona virem à estalagem dizendo que queriam visitar o hospital.

— O que falou também disse qualquer coisa estranha... que os seus órgãos estavam a funcionar bem — disse Corrina. — Eu não sabia o que responder.

— Hum — repetiu Cameron. — Posso usar o telefone?

— Claro — disse Corrina. Ela tirou o telefone de cima da secretária e passou-o a Cameron.

Cameron bateu com o punho na linha directa do gerente. Siegfried respondeu de imediato.

—Estou aqui na Estalagem—explicou Cameron.—Pensei que devia ser informado de uma história curiosa. Quatro estranhos médicos apresentaram-se aqui a Miss Williams dizendo que desejavam visitar o hospital.

A reacção de Siegfried foi tão violenta que Cameron teve de tirar o auscultador do ouvido. Até Corrina se encolheu.

Cameron passou o telefone à recepcionista. Ele não tinha conseguido ouvir todas as palavras proferidas por Siegfried, mas o sentido era bem claro. Cameron tinha de arranjar reforços imediatamente e tinha de deter os estranhos médicos.

Cameron empunhou a sua Beretta e o rádio do cinto de cabedal simultaneamente. Fez uma chamada de emergência para a base enquanto se dirigia para o hospital.

O quarto 302 era na frente do edifício, com umalinda vista sobre o parque, virado para leste. Jack e os outros tinham encontrado o quarto sem dificuldade. Ninguém tinha tentado impedi-los. Aliás, não tinham encontrado uma única pessoa enquanto se dirigiram do elevador até à porta do quarto, que se encontrava aberta.

Jack tinha batido mas era óbvio que o quarto estava temporariamente vazio, embora houvesse bastante evidência de que o quarto estava ocupado. Uma TV com um vídeo incorporado estava ligada, e passava um velho filme de Paul Newman. A cama de hospital estava ligeiramente desalinhada. Uma mala de viagem, meio empacotada, estava aberta no suporte de bagagens.

O mistério ficou resolvido quando Laurie ouviu o ruído do chuveiro por detrás da porta da casa de banho, que se encontrava fechada.

Quando a água parou de correr, Jack batera, mas só dez minutos mais tarde apareceu Horace Winchester.

O paciente estava no seus 55 anos e era corpulento. Mas ele parecia feliz e saudável. Ele apertou o cinto do robe de banho e foi para a cadeira de descanso junto à cama. Sentou-se e deu um suspiro de satisfação.

— Que é que se celebra?—perguntou ele, sorrindo para os seus convidados. — Isto é mais companhia do que eu tive em todo o tempo que cá estive.

— Como se sente? — perguntou Jack. Pegou numa cadeira de costas altas, sentou-se em frente de Horace. Warren e Natalie espreitavam do lado de fora da porta. Estavam relutantes em entrarem no quarto. Laurie foi até à janela. Depois de ver o grupo de soldados, ficara progressivamente ansiosa. Estava desejosa de encurtar a visita e regressar ao barco.

— Sinto-me lindamente!—disse Horace.—É um milagre. Vim para cá às portas da morte e amarelo como um canário. Olhem para mim agora... estou pronto para fazer trinta e seis buracos no golfe numa das minhas estâncias de veraneio. Ei, vocês todos estão convidados para qualquer um dos meus hotéis, pelo tempo que quiserem, e será por conta da casa. Gostam de fazer esqui?

— Eu gosto—disse Jack. — Mas preferia falar sobre o seu caso. Sei que fez um transplante de fígado aqui. Gostaria de perguntar de onde veio o fígado?

Um meio sorriso enrugou o rosto de Horace enquanto ele olhava para Jack pelo canto do olho.

— Isto é uma espécie de teste?—perguntou ele. — Porque se é, não é necessário. Eu não vou dizer a ninguém. Não poderia estar mais grato. Aliás, logo que possa, vou mandar fazer um outro duplo.

— Exactamente... que é que entende por “duplo”?—perguntou Jack.

— Vocês fazem parte da equipa de Pittsburgh? — perguntou Horace. Ele olhou para Laurie.

—Não, nós somos parte da equipa de Nova Iorque—disse Jack. — E estamos fascinados pelo seu caso. Estamos satisfeitos que esteja a passar tão bem, e estamos aqui para aprender—disse Jack a sorrir e virando as palmas das mãos para cima. — Somos todos ouvidos. Por que não começa pelo princípio.

— Quer dizer... como é que fiquei doente?—perguntou Horace. Ele estava absolutamente confuso.

— Não, como é que arranjou para fazer o transplante aqui em África — disse Jack. — E gostaria de saber o que quer dizer por “duplo”? O fígado por acaso foi tirado de alguma espécie de macaco?

Horace deu um pequena gargalhada nervosa e abanou a cabeça.

— Que se passa aqui?—interrogou ele. Olhou novamente para Laurie, depois para Natalie e Warren, que continuavam na porta.

— Oh!— disse Laurie, subitamente. Ela olhava através da janela.—Há um bando de soldados a correr nesta direcção, através da praça.

Warren atravessou o quarto a correr e olhou para fora da janela.

— Trampa, pá. Eles estão a sério!

Jack levantou-se, esticou os braços e sacudiu Horace pelos ombros. Colocou o rosto junto ao do paciente.

—Você vai realmente desapontar-me se não responder à minha pergunta, e eu faço coisas muito esquisitas quando estou desapontado. Que animal foi... chimpanzé?

— Eles vêm para o hospital — gritou Warren. — E todos eles têm uma AK47.

— Vamos — exigiu Jack a Horace enquanto lhe dava uma sacudidela. — Fale! Foi um chimpanzé? — Jack apertava mais o ombro do homem.

— Foi um bonobo? — guinchou Horace. Estava aterrorizado.

— É uma espécie de macaco? — perguntou Jack.

— É — conseguiu dizer Horace.

— Vamos embora, pá!— encorajou Warren. Ele estava de novo na entrada da porta. — Temos de livrar a nossa pele daqui.

— Que é que você quis dizer quando falou em “duplo”? — perguntou Jack.

Laurie agarrou no braço do Jack.

— Não temos tempo. Os soldados vão chegar aqui dentro de minutos.

Relutantemente, Jack largou Horace e deixou-se arrastar até à porta.

— Maldição, estive quase! — queixou-se ele.

Warren acenava-lhes freneticamente para que eles o seguissem e a Natalie pelo corredor central, em direcção às traseiras do edifício, quando a porta do elevador se abriu. Cameron saiu, empunhando a sua Beretta.

— Parem todos! — gritou Cameron, logo que viu os estranhos. Agarrou a pistola com ambas as mãos e apontou para Natalie e Warren. Depois, deu meia volta para apontar para Jack e Laurie. Para Cameron, o problema é que os seus adversários estavam dos dois lados. Quando olhava para uns, não podia ver os outros.

— Mãos sobre a cabeça! — ordenou Cameron. Fez-lhes sinal com o cano da pistola.

Todos obedeceram, embora de cada vez que Cameron virava a arma para Laurie e Jack Warren desse um passo em direcção a Cameron.

— Ninguém vai ser magoado — disse Cameron, enquanto apontava de novo a arma para Warren.

Warren estava agora à distância de um pontapé e, com uma velocidade de um raio, o pé levantou-se e acertou na mão de Cameron. A pistola foi bater no tecto.

Antes que Cameron conseguisse reagir ao desaparecimento súbito da sua pistola, Warren aproximou-se dele e bateu-lhe duas vezes, uma vez na parte de baixo do abdómen e depois na ponta do nariz. Cameron caiu para trás, ficando no chão como um monte.

— Estou contente de que estejas do meu lado para esta corrida — disse Jack.

— Temos de chegar ao barco! — proferiu Warren, sem humor.

— Estou aberto a sugestões — disse Jack. Cameron gemeu e voltou-se sobre o estômago.

Warren olhou para ambos os lados do corredor. Uns minutos antes, tinha pensado em correr para as traseiras do edifício, mas agora já não lhe parecia uma boa alternativa. A meio do corredor, via algumas enfermeiras apontando para o lado deles.

Do lado oposto aos elevadores havia um sinal em forma de seta que apontava para o corredor por detrás do quarto de Horace. Dizia: SÓ.

Sabendo que havia pouco tempo para discussões, Warren fez sinal na direcção da seta.

— Por ali — gritou ele.

— A sala de operações? — interrogou Jack. — Porquê?

— Porque eles não contam com isso — disse Warren. Ele agarrou na perplexa Natalie pela mão e forçou-a a correr.

Laurie e Jack seguiram-nos. Passaram pela porta do quarto de Horace, mas o rechonchudo homem tinha-se trancado dentro da casa de banho.

O bloco operatório estava separado do resto do hospital pelas habituais portas giratórias. Warren bateu nas portas e atravessou com um braço estendido como um recuo no futebol. Jack e Laurie estavam atrás deles.

Não havia nenhuma operação a decorrer, nem doentes nos Cuidados Intensivos. Nem mesmo havia luzes, excepto num quarto de abastecimento a meio do corredor. A porta do quarto de abastecimentos estava entreaberta, deixando sair alguma luminosidade.

Ouvindo as pancadas repetitivas nas portas do Bloco Operatório, uma mulher surgiu na porta do quarto de abastecimentos. Ela vestia uma bata de limpeza e um gorro. Ela susteve a respiração quando viu quatro pessoas a precipitarem-se em direcção a ela.

— Ei, não podem entrar aqui com esse fatos — gritou ela, logo que recuperou do choque inicial. Mas Warren e os outros já tinham passado. Perplexa, ela ficou a observar os intrusos a correrem pelo corredor abaixo e a desaparecerem através das portas que davam para o laboratório.

Voltando para o quarto de abastecimento, ele pegou no telefone de parede.

Warren fez uma paragem onde o corredor formava um T. Olhou nas duas direcções. À esquerda, lá no fim, havia uma luz vermelha na parede indicando a boca de incêndios. Por cima, havia um sinal de saída.

— Espera! — disse Jack, quando Warren se preparava para correr, para aquilo que ele imaginava ser uma escadaria.

— Que se passa, pá? — interrogou Warren com ansiedade.

— Isto parece um laboratório — disse Jack. Avançou até uma porta de vidro e espreitou para dentro. Ficou logo impressionado. Embora estivessem no meio de África, era o laboratório mais moderno que ele jamais tinha visto. Todo o equipamento parecia absolutamente novo.

— Vamos — disse Laurie com aspereza. — Não há tempo para curiosidades. Temos mas é que sair daqui!

— É verdade, pá — disse Warren. — Especialmente depois de termos batido naquele tipo da segurança, lá adiante. Temos mas é que nos pôr a caminho.

— Vão vocês — disse Jack, furiosamente. — Encontro-me com vocês no barco.

Warren, Laurie e Natalie trocaram olhares ansiosos. Jack tentou a porta. Estava destrancada. Abriu-a e entrou.

— Oh, pelo amor de Deus! — reclamou Laurie. Jack por vezes era tão frustrante. Uma coisa era preocupar-se pouco consigo próprio e outra coisa era ele comprometer as outras pessoas.

— Este lugar dentro de pouco tempo vai estar a abarrotar com seguranças e soldados — disse Warren.

— Eu sei — disse Laurie. — Vão vocês dois. Vou ver se o levo o mais depressa possível.

— Não te vamos abandonar — disse Warren.

— Pensa na Natalie — disse Laurie.

— Disparate! — disse Natalie. — Não sou nenhuma mulher frágil. Estamos nisto juntos.

— Vocês, senhoras, vão até lá e vejam se conseguem convencêlo a ter bom senso — disse Warren. — Eu vou dar uma corrida até lá ao fundo e tocar o sinal de incêndio.

— Para quê? — perguntou Laurie.

— É um velho truque que aprendi quando era adolescente — disse Warren. — Sempre que há problemas, provoca o maior caos possível. Dá-nos a oportunidade de escapar.

— Tenho de acreditar em ti — disse Laurie. Fez sinal a Natalie para segui-la e entrou no laboratório.

Encontraram Jack numa conversa muito animada com uma das técnicas do laboratório, que vestia um longo casaco branco. Era uma ruiva de rosto sardento com um sorriso simpático. Jack já a tinha feito rir.

— Com licença—disse Laurie, tentando manter a voz baixa. — Jack, temos de ir embora.

— Laurie, esta é Holanda Phieffer — disse Jack. — Ela é originária de Heidelberg, Alemanha.

— Jack! — entoou Laurie por entre os dentes cerrados.

— Holanda estava a dizer-me uma coisa interessante — disse Jack. — Ela e os colegas estão a trabalhar em genes para antigenes menos de histocompatibilidade. Tiram-nos de um cromossoma específico numa das células e introduzem-nos no mesmo local no mesmo cromossoma de uma outra célula.

Natalie, que tinha ido até uma grande janela que dava para a praça, voltou-se rapidamente.

— Está a piorar. Acaba de chegar um carregamento daqueles soldados árabes, vestidos de fato preto.

Nesse mesmo momento, a sirene de incêndio começou a tocar. Eram sequências alternadas de sirene e uma voz que dizia:

—Fogo no laboratório! Queiram retirar-se imediatamente para as escadas, para evacuação! Não usem os elevadores!

— Oh!, meu Deus! — disse Holanda. Ela olhou à sua volta para ver o que devia levar consigo.

Laurie agarrou em ambos os braços de Jack e abanou-o.

— Jack, sê razoável! Temos de sair daqui.

—Já consegui descobrir—disse Jack, com um sorriso sarcástico.

— Quero lá saber! — disse Laurie com raiva. — Vamos! Correram para o corredor. Outras pessoas corriam também.

Toda a gente se mostrava confusa, olhando para um e outro lado do corredor. Algumas farejavam. Havia conversas animadas. Muitas pessoas transportavam os seus computadores pessoais.

Sem se apressarem, seguiram em massa para a escadaria. Jack, Laurie e Natalie encontraram-se com Warren, que segurava na porta. Também tinha conseguido encontrar casacos brancos que distribuiu pelos outros. Vestiram-nos por cima das roupas. Infelizmente, eram os únicos que usavam calções.

— Ele criaram uma espécie de quimera com este macacos chamados bonobos—disse Jack, excitado.—Aí está explicação. — Não admira que os resultados do ADN fossem tão díspares.

—De que é que ele está a falar agora?—perguntou Warren com irritação.

— Não perguntes — disse Laurie. — Só lhe darás mais força.

— De quem foi a ideia de puxar o alarme de incêndio? — perguntou Jack. — Foi brilhante!

— Foi do Warren — disse Laurie.—Pelo menos um de nós está a pensar.

A escadaria acabava num parque de estacionamento no lado norte. As pessoas amontoavam-se por ali, olhando para o edifício, e falando em pequenos grupos. Estava mortalmente quente, uma vez que o sol estava descoberto e o estacionamento era descoberto. Uma sirene de incêndio vinha de nordeste.

— Que fazemos? — perguntou Laurie. — Estou contente por termos chegado até aqui. Nunca pensei que ia ser fácil sair do edifício.

— Vamos até àquela rua e voltamos à esquerda — disse Jack, enquanto indicava com o dedo. — Podemos dar a volta à área para oeste e depois voltar à marginal.

— Onde é que estão os soldados todos? — perguntou Laurie.

— E os árabes? — perguntou Natalie.

—Suponho que estão à nossa procura no hospital—disse Jack.

— Vamos, antes que todas aquelas pessoas do laboratório comecem a regressar ao edifício.

Tentaram não andar depressa, para não atraírem a atenção. Quando se aproximaram da rua olharam para trás, com medo de estarem a ser vigiados, mas ninguém olhava na direcção deles. Todos estavam entretidos com os bombeiros, que acabavam de chegar.

— Até agora tudo bem — disse Jack.

Warren foi o primeiro a chegar à rua. Logo que olhou à esquina, para oeste, parou abruptamente e estendeu o braço para fazer parar os outros. Recuou um passo.

— Nós não vamos para este lado — disse ele. — A rua está bloqueada.

— Oh! — disse Laurie. — Talvez tenham selado toda a área.

— Lembras-te daquela central eléctrica que vimos — disse Jack.

Toda a gente concordou com a cabeça.

— Aquela energia tem de vir ter aqui ao hospital — disse Jack.

— Aposto como há um túnel.

— Talvez — disse Warren. — Mas o problema é que não sabemos como encontrá-lo. Além disso, não me agrada nada ideia de voltar lá para dentro. Com todas aquelas crianças com as AK-47.

— Então, tentemos atravessar a praça — disse Laurie.

—Para o local onde vimos os soldados?—exclamou Natalie com desânimo.

— Ei, se eles estão aqui no hospital, não deve haver problema

— disse Jack.

— Talvez tenhas razão — concordou Natalie.

— É claro que podemo-nos entregar e pedir desculpa — disse Jack. — Quero dizer, que é que nos podem fazer, além de nos fazerem passar um mau bocado! Penso que já tenho o que me fez vir aqui, por isso, não me preocupo minimamente.

—Estás a brincar!—disse Laurie.—Eles não vão aceitar umas simples desculpas. Warren bateu naquele homem; fizemos mais do que trespassar.

— Só estou a brincar até certo ponto — concordou Jack. — Mas o homem enfiou-nos uma pistola na cara. Isso é, pelo menos, uma explicação. Além disso, podemos deixar um punhado dos nossos francos para trás. Pelos vistos, isso resolve tudo neste país.

—Não chegouparapassarmos o portão!—lembrou-lhe Laurie.

— Está bem, tudo menos trazer-nos até aqui — disse Jack. — Mas eu ficaria muito surpreendido se não nos livrasse disto.

— Temos de fazer qualquer coisa—disse Warren. — O pessoal de incêndios já está a chamar as pessoas para regressarem. Vamos dar na vistas se ficarmos aqui a grelhar neste calor... sozinhos.

—É verdade—disse Jack, com os olhos semicerrados por causa da luz do Sol. Encontrou os óculos de sol e colocou-os. — Vamos tentar atravessar a praça antes que os soldados voltem.

Mais uma vez, tentaram andar calmamente como se andassem a passear. Chegaram quase até ao relvado, quando se aperceberam de um movimento junto à porta dentro do edifício. Voltaram-se todos e viram um número de soldados árabes de fato preto a tentarem passar por entre os técnicos do laboratório.

Os árabes correram para o parque de estacionamento banhado pelo sol ardente com as gravatas desapertadas e os olhos semicerrados. Cada um deles empunhava uma pistola automática. Atrás dos árabes, vinham outros soldados. Ofegantes, pararam ao sol, respirando com dificuldade e examinando os arredores.

Warren fico hirto, e o mesmo aconteceu ao resto do grupo.

— Não gosto disto! — disse Warren. — Os seis juntos têm pólvora suficiente para roubar o Chase Manhattan Bank.

— Quase me fazem lembrar os polícias Keystone Cops — disse Jack.

— Não acho piada nenhuma a nada disto! — disse Laurie.

— Por estranho que pareça, parece que vamos ter de entrar de novo no edifício—disse Warren.—Com estes casacos de laboratório vestidos, não vão estranhar o que é que estamos a fazer aqui.

Antes que algum deles tivesse tempo de responder à sugestão de Warren, Cameron saiu da porta, acompanhado por dois homens. Um estava vestido como Cameron, nitidamente um membro da segurança. O outro era mais baixo e tinha o braço direito mutilado. Estava também vestido de caqui, mas sem os embelezamentos marciais que os outros ostentavam.

— Oh!—disse Jack. — Parece-me que afinal vamos ter de usar a táctica das desculpas.

Cameron segurava um lenço com sangue no nariz, mas isso não obstruía a sua visão. Ele de imediato avistou o grupo e, apontando, gritou:

— São eles.

Os marroquinos e os soldados reagiram imediatamente, rodeando os quatro. Todas as armas estavam apontadas para o grupo, que levantou as mãos no ar sem que lhes fosse ordenado.

— Será que vão ficar impressionados com o meu dístico de médico-legista? — zombou Jack.

— Não faças nenhuma loucura! — avisou Laurie. Cameron e os seus companheiros foram até eles. Silenciosamente, o círculo em volta dos americanos abriu-se para os deixar passar. Siegfried passou à frente.

— Queremos pedir desculpa por qualquer inconveniente — começou Jack.

— Cale-se! — disse Siegfried com rispidez. Ele andou em volta do grupo para observá-los de todos os ângulos. Quando voltou ao ponto inicial, perguntou a Cameron se estas eram as pessoas que ele encontrara no hospital.

—Não tenho a menor dúvida—disse Cameron, fixando Warren nos olhos. — Espero que me conceda o prazer, senhor.

— Claro — disse Siegfried com um ligeiro ar de desprezo. Sem avisar, Cameron deu um murro numa das faces de Warren.

O ruído parecia uma lista telefónica a cair ao chão. Um gemido de dor escapou dos lábios de Cameron enquanto ele agarrava na mão e cerrava os dentes. Warren não mexeu um músculo. Ele, talvez, nem pestanejou.

Cameron praguejou por entre inalações e afastou-se.

— Procura-os! — ordenou Siegfried.

— Lamentamos, se... — começou Jack, mas Siegfried não o deixou acabar. Deu-lhe uma bofetada com a mão aberta, tão forte que fez que a cabeça de Jack se voltasse para o lado e uma onda de rubor surgisse nas suas faces.

O delegado de Cameron retirou-lhes os passaportes, porta-moedas, dinheiro e chaves do carro. Entregou-os a Siegfried, que os verificou calmamente. Depois, olhou para o passaporte de Jack, ergueu os olhos e olhou-o mal humorado.

—Consta-me que você é um perturbador—disse Siegfried, com desdém.

— Eu preferia pensar que sou um competidor determinado — disse Jack.

— Ah, ainda por cima é arrogante — disse Siegfried com cinismo. — Espero que a sua tenacidade o ajude, quando for entregue às Forças equatoguineenses.

— Talvez possamos falar à Embaixada Americana para tratar deste assunto — disse Jack. — Ao fim e ao cabo, somos todos funcionários do governo.

Siegfried sorriu, o que na verdade só aumentava o seu ar de escárnio provocado pela cicatriz.

— Embaixada Americana? — questionou ele com um escárnio aberto. — Na Guiné Equatorial! Que anedota! Infelizmente para vocês, fica na ilha de Bioko. — Ele voltou-se para Cameron. — Meta-os na cadeia, mas os homens separados das mulheres!

Cameron chamou o seu delegado com um estalar de dedos. Queria os quatro algemados em primeiro lugar. Enquanto isso, ele e Siegfried afastaram-se para o lado.

— Vai na realidade entregá-los aos equatoguineenses? — perguntou Cameron.

— Absolutamente — disse Siegfried. — Raymond contou-me tudo acerca de Stapleton. Eles têm de desaparecer.

— Quando? — perguntou Cameron.

—Logo que Taylor Cabot parta—disse Siegfried. — Quero que este episódio se mantenha secreto.

—Compreendo—disse Cameron. Tocou na beira do seu chapéu e depois voltou para supervisionar a transferência dos prisioneiros para a cadeia, na cave da Câmara.

 

9 DE MARÇO, 1997 - 16:15 ELHAFRANCESCA

— Passa-se qualquer coisa muito estranha — disse Kevin.

— Mas o quê?—disse Melanie. — Será que devemos alimentar esperanças?

—Onde estarão todos os outros animais?—perguntou Candace.

—Não sei se é caso para estarmos esperançados ou preocupados! — disse Kevin. — E se eles estão a fazer o Armagedão com o outro grupo, e a luta se estende até aqui?

— Deus todo-poderoso! — comentou Melanie. — Nunca tinha pensado nisso.

Kevin e as companheiras estavam prisioneiras havia virtualmente dois dias. Durante todo o tempo do seu cativeiro não tinham sido autorizados a sair da pequena caverna, que agora cheirava tão mal ou pior do que a caverna exterior. Para se aliviarem, viram-se obrigados a irem ao fundo do túnel, que exalava um cheiro desagradável como uma fossa.

Eles próprios não cheiravam muito melhor. Estavam sujos por estarem com a mesma roupa e por dormirem nas rochas e no chão sujo. Os cabelos eram um emaranhado terrível. O rosto de Kevin estava coberto de uma barba hirsuta de dois dias. Estavam todos fracos por falta de exercício e alimento, embora tivessem comido algumas das coisas que lhes eram fornecidas.

Por volta das dez da manhã, houve uma sensação de que qualquer coisa de anormal se estava a passar. Os animais tornaram-se agitados. Alguns tinham ido lá fora, mas voltavam logo de seguida, em altos brados. Algum tempo antes, o bonobo número um tinha saído mas ainda não tinha voltado. Isso já de si era anormal.

—Espera um segundo—disse Kevin, repentinamente. Levantou a mão para evitar que as duas companheiras fizessem barulho. Esforçava-se por escutar, voltando a cabeça ora para um lado ora para outro.

— Que é? — perguntou Melanie, insistentemente.

— Penso que ouvi uma voz humana — disse Kevin.

— Uma voz humana? — questionou Candace. Kevin anuiu com a cabeça.

— Espera, acabei de ouvir! — disse Melanie com excitação. —Eu também ouvi—disse Candace.—Tenho a certeza de que

era uma voz humana. Parecia alguém a gritar okay.

—Arthur também ouviu — disse Kevin. Tinham dado o nome de Arthur ao bonobo que, em geral, fazia a guarda à entrada da pequena caverna, sem qualquer outra razão especial para além de poderem referir-se a ele. Durante longas horas, tinham tido o que se poderia chamar um diálogo. Até tinham conseguido advinhar o significado de alguns gestos e palavras dos bonobos.

Aã palavras de que estavam mais seguros era arak, que significava embora, especialmente quando era acompanhada dos /aedos abertos e um estender do braço, o mesmo gesto que Candace vira na sala de operações. Havia também hana para silêncio e zit para andarem. Tinham a certeza absoluta das palavras comida e água, que eram bumi e carak, respectivamente. Uma palavra que não tinham a certeza era sta, acompanhada das mãos no ar com as palmas para fora. Pensavam que poderia ser o pronome tu.

Arthur ergueu-se e em alto tom vocalizou algumas palavras aos poucos bonobos que ainda permaneciam na cave. Todos escutaram e rapidamente desapareceram pela frente.

Logo em seguida, Kevin e os outros ouviram o som de uma espingarda: não uma arma normal, mas uma arma de ar comprimido. Alguns minutos mais tarde, viram esboçar-se na entrada da caverna, contra o nublado céu do entardecer, a silhueta de duas pessoas com o uniforme do centro dos animais. Um deles trazia uma arma, o outro uma lanterna eléctrica de grande potência.

— Socorro! — gritou Melanie. Ela desviou os olhos do intenso feixe de luz, mas acenou com a mão freneticamente com receio que os homens não a vissem.

Houve uma pancada surda que ecoou no interior da caverna. Simultaneamente, Arthur emitiu uma lamúria. Com uma expressão confusa no seu focinho chato, ele olhou para uma seta de cabo vermelho que lhe saía do peito. Ergueu a mão para apanhá-la, mas antes que conseguisse, começou a cambalear. E, como se em câmara lenta, ele pendeu para o chão e rolou para o lado.

Kevin, Melanie e Candace emergiram da sua cela sem porta e tentaram manter-se em forma. Levou-lhes alguns momentos até que conseguissem distender-se. Quando finalmente o conseguiram, os homens ajoelhavam-se junto do bonobo para dar ao animal uma dose adicional de tranquilizante.

— Meu Deus, como estamos contentes de vos ver — disse Melanie. Ela teve de se apoiar com a mão na rocha para manter o equilíbrio. Por um momento, a cave começou a rodopiar.

Os homens levantaram-se e dirigiram a luz em direcção às mulheres e depois a Kevin. Os ex-prisioneiros tiveram que proteger os olhos.

— Vocês estão num desastre — disse o homem que segurava a lanterna.

— Eu sou Kevin Marshall e esta é Melanie Becket e Candace Brickmann.

— Sabemos quem são — disse o homem num tom cortante. — Vamos para fora deste chiqueiro.

Kevin e as companheiros cumpriram com prazer, embora as suas pernas parecessem de borracha. Os dois homens seguiram-nos. No exterior da caverna, os três tiveram de semicerrar os olhos para se protegerem da intensidade da luz solar. Logo abaixo, na base da escarpa, havia mais meia dúzia de trabalhadores do centro dos animais. Estavam ocupados, enrolando bonobos drogados com tranquilizantes em tapetes de junco e colocando-os num reboque, onde eram pousados cuidadosamente.

—Há mais um aqui dentro na cave.—O homem com a lanterna gritou para baixo, para os outros.

— Eu conheço-vos — disse Melanie, quando conseguiu ver bem o rosto dos homens que tinham entrado na cave. —Vocês são Dave Turner e Daryl Christian.

Os homens ignoraram Melanie. Dave, o mais alto dos dois, tirou um rádio intercomunicador que trazia dependurado à cintura. Daryl começou a descer os gigantescos degraus.

— Turner para a base — disse Dave para o instrumento.

— Estou a ouvir-te bem — disse Bertram do outro lado.

— Já temos o último dos bonobos e estamos a carregar — disse Dave.

— Excelente trabalho — disse Bertram.

—Encontrámos Kevin Marshall e as duas companheiras numa caverna — disse Dave.

— Em que estado? — perguntou Bertram.

— Imundos, mas aparentemente saudáveis — disse Dave.

— Passa-me essa coisa! — disse Melanie, agarrando o rádio de Dave. Subitamente, ela não gostou que um subalterno falasse dela depreciativamente.

Dave defendeu-se dela.

— Que quer que faça com eles?

Melanie pões as mãos nas ancas. Estava encolerizada.

— Que quer dizer com isso de que quer que faça com eles?

— Traga-os para o centro — disse Bertram. — Vou informar Siegfried Spallek. Tenho a certeza de que ele vai querer conversar com eles.

— Dez-quatro — disse Dave. Ele desligou o rádio.

— O que significa este género de tratamento? — intimidou Melanie. — Estamos aqui prisioneiros há mais de dois dias.

Dave encolheu os ombros.

— Nós apenas cumprimos ordens, minha senhora. Parece que vocês dois exasperaram o grande chefe.

— Que está a acontecer aos bonobos? — perguntou Kevin. Quando, inicialmente, vira o que os homens estavam a fazer, pensou que seria para salvá-los, a ele e às suas companheiras. Mas quanto mais pensava nisso menos conseguia perceber a razão por que os animais estavam a ser levados em veículos de reboque.

—A boa vida dos bonobos na ilha é uma coisa do passado—disse Dave. — Têm andado aqui em guerra e a matarem-se uns aos outros. Encontrámos quatro cadáveres para comprovar, todos eles mortos com uma pedra afiada. Por isso, estamos a pô-los em jaulas na área de acesso, para serem depois levados para o centro dos animais. A partir de agora, a sua nova casa vão ser celas de betão armado de um metro e oitenta, tanto quanto sei.

Kevin ficou literalmente boquiaberto. Apesar da fome, exaustão e dores, ele sentia uma profunda tristeza por estas infelizes criaturas que não pediram para nascer. As suas vidas tinha sido subitamente e arbitrariamente destinadas ao encarceramento fastidioso. O seu potencial humano passaria despercebido, e os seus surpreendentes dotes perder-se-iam.

Daryl e três outros homens caminhavam agora com uma padiola.

Kevin voltou-se para olhar para dentro da caverna. Lá na sombra do fundo, via a silhueta de Arthur perto da entrada da cave, onde Kevin e as duas companheiras tinham estado retidos. Uma lágrima aflorou no canto do olho de Kevin ao imaginar como se sentiria Arthur ao acordar, encontrando-se enjaulado em aço.

— Bem, vocês três — disse Dave. — Vamos regressar. Têm forças para andar ou querem ir nos reboques?

— Como é que transportam os reboques — perguntou Kevin.

— Temos um veículo todo-o-terreno na ilha — disse Dave.

— Prefiro andar, obrigado — disse Melanie com frieza. Kevin e Candace acenaram a cabeça em sinal de acordo.

— No entanto, estamos esfomeados — disse Kevin. — Os animais só nos têm oferecido minhocas, insectos e plantas do pantanal.

— Temos algumas tabletes e refrescos numa arca, no carro de reboque — disse Dave.

— Isso já seria bom — disse Kevin.

A descida na face da rocha foi a parte mais dura de toda a viagem. Uma vez chegados à parte plana, a deslocação foi fácil, sobretudo porque os homens tinham limpo o atalho para o veículo todo-o-terreno.

Kevin estava surpreendido com o que homens tinham conseguido fazer em tão curto espaço de tempo. Quando chegaram ao terreno pantanoso, a sul do lago Hippo, perguntava-se se o barco ainda estaria escondido entre os juncos. Imaginava que devia estar. Não havia razão para ter sido encontrado.

Candace ficou extasiada quando viu a ponte de troncos coberta de terra, e revelou o seu contentamento. Estava preocupada em como iriam fazer a travessia do rio Diviso.

— Vocês estiveram muito ocupados — comentou Kevin.

— Não tínhamos alternativa — disse Dave. — Tínhamos de prender estes animais no mais curto espaço de tempo possível.

Kevin, Melanie e Candace começaram a sentir-se seriamente fatigados na última milha entre a ponte do rio Diviso e a área de acesso. Tornou-se evidente quando tiveram de sair do atalho para deixar passar o veículo todo-o-terreno, que ia de regresso buscar o último carregamento de bonobos. Parar e suster-se de pé, mesmo por momentos, fazia que as pernas lhes parecessem chumbo.

Toda a gente deu um suspiro de alívio quando saiu da penumbra da selva para a clareira, onde havia grande azáfama. Uma outra meia dúzia de trabalhadores de macacões azuis estavam na sua labuta sob o sol escaldante. Tiravam os bonobos do segundo reboque e metiam-nos em jaulas antes dos animais se reanimarem.

As jaulas eram caixas de aço de um metro e vinte, o que não permitia que os animais se levantassem, com excepção dos mais jovens. A única ventilação era feita através das grades das portas. As portas estavam seguras com um ferrolho em ângulo que fechava com uma lingueta no lado, fora do alcance dos animais. Kevin conseguiu entrever o ar aterrorizado dos bonobos agachados na sombra das jaulas.

Aquelas jaulas tão pequenas eram usadas apenas para transporte, mas ao serem transferidas para a sombra da parede, formada pela floresta no lado norte, sugeria que iam permanecer na ilha. Um dos trabalhadores estava equipado com uma mangueira de uma bomba de gasolina e deitava um chuveiro de água dovrio sobre os animais.

— Pensei que tinha dito que os animais iam para o centro — disse Kevin.

— Não hoje — disse Dave. — De momento, não há lugar para alojá-los. Será amanhã ou depois de amanhã o mais tardar.

Não houve problema em irem para o continente, porque a ponte telescópica tinha sido desdobrada. Era construída em aço e ressoava um som surdo, semelhante ao som de um tambor, à medida que eles caminhavam. Estacionado junto ao mecanismo da ponte, estava o camião-reboque de Dave.

— Saltem! — disse Dave, enquanto apontava para a carroçaria do camião.

— Só um minuto! — disse Melanie com rispidez. Tinham sido as suas primeiras palavras depois de terem saído da caverna.—Eu não vou na carroçaria de um camião.

— Então, vá a pé — disse Dave. — Na minha cabina é que não vai.

—Vamos lá, Melanie—insistiu Kevin. — Será mais agradável aqui atrás, ao ar livre. — Kevin ajudou Candace.

Dave deu a volta e sentou-se ao volante.

Melanie resistiu durante mais um minuto. Com as mãos nas ancas e as pernas afastadas, os lábios apertados, parecia uma rapariguinha à beira de ter um ataque de soberbia.

— Melanie, não é muito longe — disse Candace. Estendeu a mão. Com relutância, Melanie aceitou.

— Não esperava umas boas-vindas de heróis — queixou-se Melanie. — Mas não esperava esta espécie de tratamento.

Depois da humidade opressiva da caverna e o ar de estufa da floresta, a brisa na carroçaria do camião era inesperadamente agradável. A superfície estava cheia de tapetes de junco que tinham sido usados para transportar os animais, e serviam muito bem de almofadas. Os tapetes tinham um cheiro um tanto ou quanto fétido, mas o grupo imaginava que eles também o tinham.

Estavam deitados de costas e observavam as manchas do céu do entardecer, que apareciam por entre os ramos das árvores em pálio.

— Que achas que nos vão fazer? — perguntou Candace. — Eu não quero voltar para a prisão.

— Espero que nos despeçam imediatamente — disse Melanie. — Estou pronta para fazer a mala e dizer adeus à Zona, ao projecto e à Guiné Equatorial. Já estou farta.

— Só espero que seja assim tão fácil — disse Kevin.—Também estou preocupado com os animais. Deram-lhes uma pena de morte.

— Não podemos fazer nada — disse Candace.

— Quem sabe? — disse Kevin. — Que será que os grupos dos defensores dos direitos dos animais diriam sobre a situação?

—Agora não falemos nisso, sem primeiro termos saído daqui— disse Melanie. — Isso ia enlouquecer toda a gente.

Entraram na parte oriental da cidade, passando o campo de futebol e o campo de ténis à direita. Ambos estavam a ser usados, em especial os campos de ténis. Estavam todos ocupados.

— Uma experiência destas faz uma pessoa sentir-se menos importante do que pensava que era—comentou Melanie, enquanto olhava de relance para os jogadores.—Uma pessoa está escondida durante dois dias e tudo continua justamente na mesma.

Todos reflectiram sobre o comentário de Melanie enquanto, inconscientemente, se preparavam para a curva apertada que, eles sabiam, se aproximava e que os levaria para o centro. Mas o camião abrandou e parou. Kevin sentou-se e olhou para a frente. Viu o jipe Cherokee de Bertram.

— Siegfried quer que vás directamente para casa de Kevin — disse Bertram a Dave.

— Okay! — respondeu Dave.

O camião deu um solavanco para a frente quando Dave arrancou atrás de Bertram

Kevin deitou-se para trás.

— Bem, é uma surpresa. Talvez não sejamos assim tal mal tratados, no fim de contas.

— Talvez ele nos possa deixar nos nossos alojamentos — disse Melanie. — Fica mais ou menos a caminho. — Ela olhou para si própria. — A primeira coisa que vou fazer é tomar um bom duche e mudar de roupa. Só depois é que vou comer.

Kevin pôs as pernas por debaixo de si e ajoelhou-se junto à cabina do camião. Bateu ao de leve na janela para chamar a atenção de Dave. Ele transmitiu o pedido de Melanie. A resposta de Dave foi abanar a cabeça, em sinal de desacordo.

Kevin voltou para o seu lugar.

— Penso que vocês têm que ir a minha casa primeiro.

Logo que chegaram ao empedrado, a viagem era tão desconfortável que todos se sentaram. Ao passarem a última curva, Kevin olhou para a frente, em expectativa. Estava tão ansioso por tomar um banho como Melanie. Infelizmente, o que ele viu não era encorajante. Siegfried e Cameron estavam de pé, em frente da casa de Kevin, com quatro soldados equatoguineenses armados até aos dentes. Um deles era um oficial.

— Oh! — disse Kevin.—Ao fim e ao cabo, não me parece muito prometedor.

O camião parou. Dave saltou e deu a volta para baixar a comporta de descarga. Kevin foi o primeiro a saltar, tinha as pernas tensas. Melanie e Candace seguiram-no.

Preparando-se para o inevitável, Kevin avançou para onde Siegfried e Cameron estavam. Ele sabia que Melanie e Candace estavam logo atrás. Bertram, que estacionara em frente do camião, juntou-se a eles. Ninguém parecia ter um ar muito feliz.

— Tínhamos esperanças de que vocês tivessem tirado umas férias antecipadas, sem aviso — disse Siegfried com escárnio. — Em vez disso, descobrimos que, propositadamente, desobedeceram às ordens eforam para a ilha Francesca. Ficam todos enclausurados aqui nesta casa.—Apontou por sobre o ombro para a casa de Kevin.

Kevin ia explicar por que tinham feito o que fizeram quando Melanie o empurrou para o lado. Estava exausta e irada.

— Eu não fico aqui e ponto final! — disse ela, encolerizada. — Aliás, demito-me. Vou sair da Zona logo que consiga ter tudo pronto.

O lábio superior de Siegfried ergueu-se, exagerando o seu ar de escárnio. Depois de um rápido passo em frente, ele, traiçoeiramente, deu uma bofetada em Melanie com as costas da mão, deitando-a ao chão. Candace ajoelhou-se para ajudar a sua amiga.

— Não lhe toque! — berrou Siegfried, enquanto estendia de novo a mão como se fosse bater em Candace.

Candace ignorou-o e ajudou Melanie a sentar-se. O olho esquerdo de Melanie começava a inchar e um fio de sangue corria lentamente pelo seu rosto.

Kevin pestanejou e voltou a cara, à espera de ouvir uma outra pancada. Admirou a coragem de Candace e desejava partilhar dela. Mas ele tinha um pavor de Siegfried e receava mover-se.

Quando a outra pancada não se materializou, ele voltou a olhar. Candace segurava Melanie, que, trémula, tentava manter-se de pé.

—Vão sair da Zona muito em breve—disse Siegfried a Melanie, cinicamente, entre dentes. — Mas será na companhia das autoridades equatoguineenses. Experimente usar a sua insolência com eles.

Kevin engoliu com dificuldade. Ser entregue às autoridades equatoguineenses era o que mais temia.

— Eu sou americana — soluçou Melanie.

— Mas está na Guiné Equatorial — retorquiu Siegfried, com aspereza. — E violaram a lei equatoguineense.

Siegfried recuou um passo.

— Confisquei os vossos passaportes. Para vossa informação, eles serão entregues às autoridades locais ao mesmo tempo que as vossas pessoas. Entretanto, vão ficar aqui nesta casa. E aviso-os de que estes soldados e este oficial têm instruções para disparar, se tentarem pôr um pé fora. Fui claro?

— Preciso de roupa — disse Melanie, choramingando.

— Mandei vir roupa para vocês duas dos vossos alojamentos e mandei atirar tudo para o quarto de hóspedes—disse Siegfried. — Acreditem que pensámos em tudo.

Siegfried voltou-se para Cameron.

— Mande tomar conta desta gente.

— Pois claro, Sr. Siegfried — disse Cameron. Tocou na beira do chapéu em ar de saudação antes de se voltar para Kevin e as suas companheiras.

— Bem, ouviram o gerente — berrou ele. — Subam, e nada de sarilhos, por favor.

Kevin começou a andar mas desviou-se o suficiente para passar junto a Bertram.

— Eles estavam a usar mais do que lume. Faziam ferramentas e até falavam uns com os outros.

Kevin continuou a andar. Não notou qualquer reacção na cara de Bertram além do seu perpétuo sobrolho erguido. Mas Kevin tinha a certeza de que Bertram o ouvira.

Enquanto Kevin subiu para o segundo piso com cansaço, ouvia Cameron a organizar uma área para ser ocupada pelos soldados e o oficial na base da escadaria.

Lá em cima, no vestíbulo da frente, Kevin, Melanie e Candace olharam uns para os outros. Melanie ainda soluçava intermitentemente.

Kevin respirou fundo.

— Isto não são boas notícias — disse ele.

— Não nos podem fazer isto — lamuriou Melanie.

— A questão é que eles vão tentar — disse Kevin. — E sem os nossos passaportes, teremos problemas em sair do país até mesmo que conseguíssemos fugir daqui.

Melanie pôs as mãos no rosto e espremeu-as. ,—- Tenho de me controlar — disse ela.

— Sinto-me novamente dormente — admitiu Candace. — Saímos de uma fornia de cativeiro para outra. Kevin suspirou.

— Pelo menos, não nos puseram na prisão.

Lá fora ouviram vários motores começarem a trabalhar e carros a saírem. Kevin foi até à varanda e viu todos os carros partirem com excepção do de Cameron. Olhando para o céu, notou que o crepúsculo se transformava em noite. Algumas estrelas estavam já visíveis.

Voltando para dentro de casa, Kevin foi directamente ao telefone. Levantando o auscultador ouviu aquilo que esperava: nada.

— Está a dar sinal de chamada? — perguntou Melanie por detrás dele.

Kevin voltou a colocar o auscultador no seu lugar. Abanou a cabeça.

— Receio bem que não.

— Já esperava isso — disse Melanie.

— Vamos tomar um duche — sugeriu Candace.

Depois de acordarem em se encontrar meia hora mais tarde, Kevin atravessou a casa de jantar e abriu a porta da cozinha. Sujo como estava, ele não queria entrar. O cheiro a galinha assada acossou o seu nariz.

Esmeralda pôs-se de pé no momento em que a porta se abriu.

— Olá, Esmeralda — disse Kevin.

— Bem-vindo, Sr. Marshall — disse Esmeralda.

— Não foi lá fora cumprimentar-nos, como é costume — disse Kevin.

— Tive medo de que o gerente ainda estivesse lá — disse Esmeralda.—Ele e os homens da segurança vieram mais cedo para dizer que o senhor já vinha para casa e que não podia sair.

— Foi o que eles me disseram também — disse Kevin.

— Eu fiz comida para si — disse Esmeralda. — Tem fome?

— Muita — disse Kevin. — Mas tenho duas convidadas.

— Eu sei — disse Esmeralda. — O gerente também me disse isso.

— Podemos comer dentro de meia hora? — perguntou! Kevin.

— Certamente. Kevin acenou com a cabeça. Ele tinha sorte em ter a Esmeralda.

Voltou-se para sair, mas Esmeralda chamou-o. Ele hesitou, mantendo a porta entreaberta.

— Há muitas coisas más a acontecer na cidade — disse ela. — Não só a si e às suas amigas mas também a uns estranhos. Tenho uma prima que trabalha no hospital. Ela disse-me que quatro americanos vieram de Nova Iorque e entraram no hospital. Falaram com o paciente que recebeu o fígado do bonobo.

— Oh? — retorquiu Kevin. Estranhos vindos de Nova Iorque para falar com um dos doentes dos transplantes, era um acontecimento absolutamente inesperado.

— Entraram por lá dentro—continuou Esmeralda.—Eles não podiam entrar. Disseram que eram médicos. Chamaram a segurança e as forças armadas e os guardas vieram e levaram-nos. Estão presos.

— Meu Deus! — comentou Kevin. Entretanto, a sua mente tomava outro rumo. Nova Iorque lembrava-lhe a inesperada chamada que ele tinha recebido havia uma semana do grande chefe da Gensys, Taylor Cabot. Fora acerca do paciente Cario Franconi, que fora morto na cidade de Nova Iorque. Taylor Cabot tinha perguntado se alguém poderia tirar conclusões a partir de uma autópsia a Cario.

— A minha prima conhece alguns dos soldados que estiveram lá—continuou Esmeralda.—Eles disseram que os americanos vão ser entregues aos ministros. Se forem, vão ser mortos. Pensei que devia saber.

Kevin sentiu um calafrio a percorrer-lhe a coluna. Ele sabe que tal destino era o que Siegfried tinha reservado para ele, Melanie e Candace. Mas quem eram estes americanos? Teriam estado envolvidos na autópsia de Cario Franconi?

— É tudo muito sério — disse Esmeralda. — Eu tenho tanto medo por si. Sei que os senhores foram à ilha proibida.

— Como é que sabe isso? — perguntou Kevin com surpresa.

— Na nossa cidade, as pessoas falam — disse Esmeralda. — Quando eu disse que o senhor tinha ido inesperadamente e que o gerente andava à sua procura, Alphonse Kimba disse ao meu marido que o senhor tinha ido à ilha. Ele tinha a certeza.

— Agradeço a sua preocupação — disse Kevin, evasivamente, e preocupado com os seus pensamentos. — Obrigado por tudo aquilo que me disse.

Kevin foi para o seu quarto. Quando se olhou ao espelho, ficou chocado por ver como estava tão sujo e aparentava um ar tão exausto. Passando a mão pela barba hirta, notou qualquer coisa mais perturbadora. Estava a começar a parecer-se mais com o seu duplo!

Após ter feito a barba, tomado um duche e vestido roupa limpa, Kevin sentiu-se reanimado. Durante esse tempo, não deixou de meditar sobre os americanos na prisão da cidade. Estava curioso e nada lhe agradaria mais do que ir falar com eles.

Kevin encontrou as duas companheiras igualmente refrescadas. Após o duche, Melanie voltara a ser ela própria e queixava-se amargamente das peças de vestuário que tinham seleccionado.

— Nada a condizer — queixou-se ela.

Foram para a casa de jantar e Esmeralda começou a servir a refeição. Melanie riu-se, depois de olhar em seu redor.

— Sabem, eu acho muito cómico que há apenas algumas horas estivéssemos a viver como neandertalóides. Depois, pronto, estamos no seio da luxúria. É como a máquina do tempo.

— Se ao menos não houvesse a preocupação do que poderá acontecer amanhã — disse Candace.

—Vamos pelo menos gozar a nossa última ceia—disse Melanie com o seu típico humor retorcido.—Além disso, quanto mais penso nisso, menos provável me parece que eles nos possam impingir fraudulentamente às autoridades equatoguineenses. Quero dizer, de certeza que não iam ficar impunes. Estamos quase no princípio do terceiro milénio. O mundo é demasiado pequeno.

— Mas eu estou preocupada... — começou Candace.

—Dêem-me licença—interrompeu Kevin.—Esmeralda disse-me uma coisa curiosa que eu gostaria de partilhar com vocês. — Kevin começou por mencionar a chamada telefónica de Taylor Cabot no meio da noite. Depois, contou-lhes a história da chegada e do encarceramento dos nova-iorquinos na prisão da cidade.

— Bem, isso era justamente o que euqueria dizer — disse Melanie. — Umas pessoas inteligentes fizeram uma autópsia em Nova Iorque e acabam no Cogo. E pensávamos nós que estávamos isolados. O mundo está cada vez mais pequeno de dia para dia.

— Então, pensas que estes americanos chegaram até aqui seguindo um rasto que começou com Franconi? — perguntou Kevin. A intuição dele também lhe dizia a mesma coisa, mas ele queria a confirmação.

— Que mais poderia ter sido? — interrogou Melanie. — Eu não tenho dúvidas.

— Candace, que pensas? — perguntou Kevin.

— Concordo com Melanie — disse Candace. — Se não, seria demasiada coincidência.

— Obrigada, Candace! — disse Melanie. Enquanto rodopiava o seu copo de vinho vazio, ela olhava ameaçadoramente para Kevin. — Odeio interromper esta fascinante conversa, mas onde é que anda aquele teu vinho soberbo, querido?

— Õh, esqueci-me completamente — disse Kevin. — Peço desculpa! — Afastou a cadeira da mesa e foi à despensa, que ele tinha enchido com a maioria da sua intacta quota de vinho. Enquanto olhava para os rótulos, que tinham pouco significado para ele, de repente, apercebeu-se de quanto vinho tinha. Contando as garrafas de uma determinada área e calculando a proporção do resto do quarto, ele imaginou que tinha para cima de trezentas.

— Caramba! — disse Kevin, enquanto um plano começava a formar-se na sua mente. Pegou num braçado de garrafas e empurrou a porta para a cozinha.

Esmeralda levantou-se da mesa, onde jantava.

— Queria pedir-lhe um favor — disse Kevin. — Podia levar estas garrafas e um saca-rolhas aos soldados que estão lá em baixo, no funda da escadaria?

— Tantas? — observou ela.

— Sim, e gostaria que levasse algumas aos soldados que estão na praça, junto à Câmara. Se eles perguntarem o que é que estamos a celebrar, diga-lhes que me vou embora e que prefiro que sejam eles a gozar o vinho em vez do gerente.

Um sorriso esboçou-se no rosto de Esmeralda. Ela olhou para Kevin.

— Penso que compreendo. — Tirou do armário um saco de lona que usava para ir às compras e carregou-o com as garrafas. Um momento mais tarde, desapareceu pela despensa, em direcção ao átrio da frente.

Kevin fez várias viagens para dentro e para fora da sua colecção de vinhos até à mesa da cozinha. Em breve, tinha várias dúzias de garrafas alinhadas, incluindo algumas garrafas de Porto.

— Que se passa? — indagou Melanie, espreitando para dentro da cozinha. — Estamos à espera... onde está o vinho?

Kevin deu-lhe uma das garrafas. Disse que ainda se demorava um pouco mais e que elas deviam começar sem ele. Melanie rodou a garrafa para ver o rótulo.

— Meu Deus, Chateou Latour! — disse ela. Deu uma grande sorriso de apreço a Kevin, antes de se retirar para a casa de jantar.

Esmeralda voltou, dizendo que os soldados estavam muito contentes.

— Mas pensei em levar-lhes algum pão — acrescentou ela. — Estimula a sede.

— Uma ideia maravilhosa! — disse Kevin. Ele encheu o saco de lona com algumas garrafas de vinho e testou o peso. Era pesado, mas pensou que Esmeralda conseguia levá-lo.—Diga-me quantos soldados estão na Câmara? — disse Kevin, enquanto lhe passava o saco. — Queremos ter a certeza de que há vinho suficiente para todos.

— Geralmente, à noite, há quatro — disse Esmeralda.

— Então, dez garrafas devem chegar — disse Kevin. — Pelo menos, para entrada. — Ele sorriu e Esmeralda sorriu também.

Respirando fundo, Kevin empurrou a porta para a casa de jantar. Queria saber o que elas pensavam da sua ideia.

Kevin voltou-se e olhou para o relógio. Faltavam poucos minutos para a meia-noite, por isso, sentou-se na beira da cama. Desligou o despertador, que tinha sido programado para tocar à meia-noite em ponto. Depois, espreguiçou-se.

Durante o jantar, o plano proposto por Kevin gerou uma viva discussão. Em conjunto, esforçaram-se por refinar e expandir a ideia. Por fim, os três estavam convictos de que valia a pena tentar.

Após fazerem os preparativos que lhes foi possível, decidiram ir descansar um pouco. Mas Kevin não tinha conseguido adormecer apesar de estar exausto. Estava demasiado excitado. Também havia o barulho cada vez maior dos soldados. Inicialmente, fora apenas uma animada algaraviada, mas, durante a última meia hora, altos cânticos de bebedeira reverberavam do andar de baixo.

Esmeralda fizera duas visitas aos dois grupos no início da noite. Quando voltou, relatou que o caro vinho francês estava a alcançar um grande sucesso. Após a segunda visita, ela informara Kevin de que a primeira entrega tinha sido praticamente escoada.

Kevin vestiu-se rapidamente, às escuras, depois aventurou-se a ir ao átrio. Ele não queria acender as luzes. Felizmente, a luz do luar era intensa e permitia-lhe ver o caminho até aos quartos das hóspedes. Primeiro, bateu na porta de Melanie. Ficou surpreso quando a porta se abriu instantaneamente.

—Tenho estado à espera—sussurrou Melanie.—Não conseguia dormir.

Juntos foram até ao quarto de Candace. Ela também estava pronta.

Na sala de estar, pegaram cada um num pequeno saco de lona que tinham preparado e saíram para a varanda. A vista era absolutamente exótica. Tinha chovido umas horas antes, mas agora o céu estava cheio de nuvens de um azul-prateado. Uma lua convexa estava no alto céu, e a sua luz dava à cidade, cheia de neblina, um resplendor misterioso. Os sons da selva repercutiam de um modo chocante no ar quente e húmido da noite.

Tinham discutido com pormenor esta primeira fase, portanto, não havia necessidade de falar. Ao fundo da varanda, na parte posterior, eles prenderam uma das extremidades dos três lençóis que tinham sido amarrados uns aos outros e a outra extremidade deixaram tombar para o chão.

Melanie insistiu em ir em primeiro lugar. Ela subiu agilmente para a balaustrada e deixou-se deslizar com uma facilidade inspiradora. Candace foi a seguir, e a sua espontânea jovialidade punha-a numa posição de vantagem. Não teve problemas em descer.

Kevin foi o único que teve dificuldade. Tentando imitar Melanie, fez pressão com os pés. Mas ao baloiçar no sentido do edifício, ficou enrolado nos lençóis, de modo que batia nas paredes, esfolando os nós dos dedos.

— Maldição!—disse ele, quando já estava de pé no empedrado. Sacudiu a mão e apertou os dedos.

— Estás bem? — cochichou Melanie.

— Penso que sim — disse Kevin.

A fase seguinte era mais preocupante. Em fila, caminharam vagarosamente junto ao edifício, na sombra das arcadas. Cada passo os aproximava mais da escadaria, onde se ouvia a vozearia dos soldados. Um leitor de cassetes com música africana, embora não muito alta, dava mais ânimo à festa.

Chegaram à tenda onde Kevin guardava o Toyota Land-Cruiser e deslizaram ao longo do lado do carro até chegarem à frente. De acordo com os planos feitos previamente, Kevin foi agilmente até ao lado do condutor e abriu a porta. Nesta altura, ele estava a cerca de quatro metros e meio a seis metros dos inebriados soldados, que estavam do outro lado de um rede de junco suspensa do tecto.

Kevin destravou o travão de mão e pôs o carro em ponto-morto. Regressando para junto das duas companheiras, ele fez sinal para começarem a empurrar.

Inicialmente, o pesado veículo resistiu aos esforços deles. Kevin apoiou o pé na parede da casa. Esse aumento de potência foi o suficiente para o carro deslizar.

Na beira da arcada, as pedras da rua inclinavam-se em ligeiro declive para permitir o escoamento de águas. Logo que os pneus passaram este ponto, o carro ganhou energia. Kevin logo se apercebeu de que já não era necessário aplicar mais força.

— Òh! — gritou ele, quando verificou que o carro deslizava velozmente.

Kevin correu para o lado do carro tentando abrir a porta do condutor. Dado que o carro tinha ganho velocidade, não foi fácil. O carro estava agora a meio da rua estreita e começava a guinar para a direita, descendo o morro em direcção à marginal.

Finalmente, Kevin conseguiu abrir a porta. Com destreza, mergulhou por detrás do volante. Esticou-se o máximo que pôde e carregou no travão. Ao mesmo tempo, endireitou o volante para a esquerda, para que o carro ficasse dentro da rua.

Receosos de que as suas diligências pudessem ter atraído a atenção dos soldados, Kevin olhou para verificar. Os homens encontravam-se reunidos em volta de uma mesa, agarrando o leitor de cassetes e meia dúzia de garrafas de vinho vazias. Os soldados batiam palmas alegremente e batiam com os pés, absortos das manobras de Kevin.

Kevin suspirou de alívio. A porta do outro lado abriu-se e Melanie entrou. Candace sentou-se atrás.

— Não fechem a porta—sussurrou Kevin. Ele ainda mantinha a sua entreaberta.

Kevin levantou o pé do travão. Ao princípio, o carro não se moveu, mas Kevin baloiçou-se para trás e para a frente até o carro deslizar na calçada em direcção à marginal. Kevin olhou através do retrovisor, rodando o volante à medida que o carro ganhava velocidade.

Deslizaram ao longo de dois quarteirões. Nessa altura, a rua perdia a inclinação e o carro acabou por parar. Só então, Kevin introduziu a chave na ignição e ligou o motor. Todos fecharam as portas.

Olharam uns para os outros na média luz do carro. Estavam agitados e o pulso deles estava acelerado. Todos eles sorriam.

— Conseguimos! — afirmou Melanie.

— Até agora tudo bem — concordou Kevin.

Kevin engatou o carro. Deu uma volta por vários quarteirões para se desviar da sua casa e foi em direcção à estação da frota dos camiões.

— Tens a certeza de que ninguém nos vai incomodar na garagem? — disse Melanie.

— Bem, não posso garantir — disse Kevin. — Mas penso que não. As pessoas da estação da frota dos camiões têm uma vida muito própria. Além disso, Siegfried, provavelmente, manteve a história do nosso desaparecimento e reaparecimento em segredo. Ele teve de o fazer, se de facto tencionava entregar-nos às autoridades equatoguineenses.

— Espero que tenhas razão — disse Melanie. Ela suspirou. — Eu quase me pergunto se não nos devíamos aventurar a sair da Zona atrás de um camião em vez de nos preocuparmos com quatro americanos que nem conhecemos.

— Esta gente chegou até aqui de um modo ou outro — disse Kevin.—Estou a contar que eles tenham um plano para escaparem. Escapar através do portão principal, será a nossa última opção.

Entraram na movimentada estação da frota de camiões. Tiveram de semicerrar os olhos devido às luzes de vapor de mercúrio. Continuaram até chegarem à área de reparações. Kevin estacionou por detrás de uma plataforma com a cabina de um elevador hidráulico meio levantado. Vários mecânicos sujos estavam por debaixo dele, coçando as cabeças.

— Esperem aqui — disse Kevin, enquanto saía do Toyota. Ele entrou e cumprimentou os homens.

Melanie e Candace observavam. Candace, literalmente, fazia figas.

— Bem, pelo menos, não correram para o telefone logo que o viram — disse Melanie.

Elas observavam enquanto um dos mecânicos caminhava vagarosamente e depois desapareceu através de uma porta nas traseiras da estação. Ele reapareceu um momento mais tarde, trazendo consigo um pedaço de corrente pesada. Deu-o a Kevin, que cambaleou com o peso.

Enquanto o seu rosto se tornava cada vez mais vermelho, Kevin caminhava com dificuldade em direcção aoLand-cruiser. Intuindo que ele estava quase a deixar cair a corrente, Melanie deu um salto do carro e abriu a bagageira. O veículo baloiçou quando Kevin largou a corrente.

— Eu disse-lhe que queria corrente pesada—conseguiu Kevin dizer. — Mas não precisava de ser tão pesada.

— Que disseste aos homens? — perguntou Melanie.

— Eu disse que o teu carro ficou preso na lama — disse Kevin. —Eles nem pestanejaram. É claro, também não se ofereceram para ajudar, tão pouco.

Kevin e Melanie voltarama entrar para o Toyota, e iniciaram o caminho de regresso à cidade.

—Tens a certeza de que isto vai resultar?—perguntou Candace do banco de trás.

— Não, mas não me ocorre outra coisa — disse Kevin. Durante o resto da viagem, ninguém falou. Atensão aumentava

à medida que viravam para o parque de estacionamento, junto à Câmara, e apagaram os faróis do jipe.

O quarto ocupado pelos soldados de serviço estava incandescente de luz. Ao aproximarem-se, Kevin, Melanie e Candace ouviram a música. Este grupo de soldados também tinha um leitor de cassetes, só que o deles chiava música africana em alto volume.

— Era este tipo de festa que nós esperávamos — disse Kevin. Ele fez uma larga curva e foi de marcha-atrás em direcção ao edifício. Mal conseguia ver o vão das janelas da cadeia subterrânea na sombra da arcada do rés-do-chão.

Estacionou o carro a cerca de um metro e meio do edifício e agarrou no travão de mão. Olhavam todos para o quarto ocupado pelos soldados. Não conseguiam ver muito do interior nem dos soldados, porque a linha de visão estava num ângulo de uma janela que não era envidraçada. Os estores das janelas tinham sido corridos e presos ao tecto da arcada. Havia um grande número de garrafas vazias no parapeito.

— Bem, é agora ou nunca! — disse Kevin.

— Queres ajuda? — perguntou Melanie.

— Não, fiquem quietas — disse Kevin.

Kevin saltou do carro e caminhou sob o arco mais próximo, de modo a ficar protegido pela arcada. O ruído da música era ensurdecedor. A preocupação de Kevin era se alguém assomasse janela ele seria logo visto. Não havia nada a protegê-lo na retaguarda.

Olhando pelo vão da janela, Kevin conseguiu ver a abertura com grades. Para além das grades, era uma escuridão absoluta. Não havia a mínima luz dentro da cela.

Pondo-se primeiro com as mãos e os joelhos no chão, Kevin deitou-se no empedrado com as mãos na beira do vão da janela. Com o rosto quase junto às grades, ele chamou em voz alta por cima do barulho da música:

— Olá! Está aí alguém?

— Apenas nós... turistas — disse Jack. — Estamos convidados para a festa?

— Ouvi dizer que são americanos? — disse Kevin.

— Como a estátua da Liberdade e o basebol — disse Jack. De repente, Kevin ouvia outras vozes na escuridão, mas eram

ininteligíveis.

— Vocês têm de se mentalizar que se meteram numa situação muito perigosa — disse Kevin.

— Realmente? — disse Jack. — Pensei que era assim que todos os visitantes do Cogo eram tratados.

Kevin pensou que com quem quer que fosse que estava a falar, dar-se-ia bem com Melanie.

— Vou tentar arrancar essas grades — disse Kevin. — Estão todos na mesma cela?

— Não, temos duas lindas damas na cela à nossa esquerda.

— Está bem — disse Kevin. — Primeiro, vamos ver o que consigo fazer com estas grades.

Kevin levantou-se e foi buscar a corrente. Voltando ao vão da janela, enfiou uma ponta através das grades para o vácuo.

— Prendam isto em volta de uma das grades várias vezes — disse Kevin.

— Eu gosto disto — disse Jack. — Faz-me lembrar os velhos filmes de cowboys.

De regresso ao Toyota, Kevin prendeu a corrente à barra de trás do carro. Quando regressou ao vão da janela puxou a corrente suavemente. Verificou que estava segura na grade do meio.

— Parece que está bem — disse Kevin. — Vamos ver o que acontece.

Voltou de novo para o veículo e verificou se tinha o carro em primeira. Olhando através do vidro de trás, Kevin, cuidadosamente, deslocou o carro para a frente, de modo a que a corrente ficasse esticada.

— Bem, aqui vamos — disse Kevin a Melanie e a Candace. Começou a acelerar o carro. O pesado motor do Toyota estava esforçado ao máximo, mas Kevin não conseguia ouvir. O barulho do motor do carro era abafado pelo frenético ritmo de um popular grupo de rock zairense.

De súbito, o veículo deu um solavanco para a frente. Kevin travou de imediato. Atrás deles, ouviram um ruído metálico estridente que sobressaía acima do barulho da música, como se alguém estivesse a bater numa boca de incêndio com uma chave-de fendas.

Kevin e as suas companheiras estremeceram. Olharam para trás, para a abertura no posto da guarda. Para alívio deles, ninguém saiu para verificar o estrondo.

Kevin saltou do Toyota com a intenção de ir verificar o que tinha acontecido e quase embateu num indivíduo preto, impressionantemente musculoso, que vinha em direcção a ele.

— Bom trabalho, pá! O meu nome é Warren e este é Jack. — Jack, entretanto, pusera-se ao lado de Warren.

— Eu sou Kevin.

— Porreiro — disse Warren. — Agora, recue um pouco e vamos ver o que se pode fazer com a outra abertura.

— Como é que saíram com tanta rapidez? — perguntou Kevin.

— Ena, pá, você arrancou o gradeamento todo—disse Warren. Kevin subiu para o carro e recuou vagarosamente. Notou que os

dois homens já tinha tirado a corrente.

— Resultou! — disse Melanie. — Parabéns!

— Devo admitir que correu melhor do que eu pensava — disse Kevin.

Um momento depois, houve uma pancada surda na parte traseira do carro. Quando Kevin olhou, viu um dos homens a fazer-lhe sinal para avançar.

Kevin seguiu a mesma técnica que usara anteriormente. Com, aproximadamente, a mesma força, o gradeamento cedeu de igual modo e, infelizmente, o mesmo estrondo foi ouvido. Desta vez, um soldado apareceu à janela.

Kevin não se moveu e rezava para que os dois homens que acabara de conhecer fizessem o mesmo. O soldado limitou-se a levar uma garrafa de vinho à boca e, ao fazê-lo, deitou ao chão uma série de garrafas vazias que estavam no parapeito da janela. Estilhaçaram-se na calçada da rua. Em seguida, voltou-se e regressou ao quarto.

Kevin saltou do carro a tempo de ver duas mulheres a serem içadas do segundo vão de janela. Logo que se libertaram, os quatro correram para o carro. Kevin dirigiu-se à parte de trás do carro para desprender a corrente, mas verificou que Warren já estava a fazê-lo.

Subiram todos para o Toyota sem falarem. Jack e Warren acomodaram-se no assento da parte traseira, enquanto Laurie e Natalie se sentaram ao lado de Candace, no banco do meio.

Kevin preparou o carro para arrancar. Depois de espreitar pela última vez para o posto da guarda, saiu do parque de estacionamento. Não ligou as luzes até terem passado a Câmara.

A fuga fora uma experiência arrojada para todos eles: triunfo para Kevin, Melanie e Candace; surpresa e absoluto alívio para o pessoal de Nova Iorque. Os sete trocaram breves apresentações; depois, começaram as perguntas. Inicialmente, toda a gente falava ao mesmo tempo.

— Um momento, gente! — gritou Jack no meio do alarido. — Precisamos de ordem neste caos. Fala uma pessoa de cada vez.

— Diabos, me levem! — disse Warren. — Estou em primeiro lugar! Só vos quero agradecer por terem vindo na altura em que vieram.

— Eu apoio — disse Laurie.

Tendo passado pela parte central da cidade, Kevin dirigiu-se ao parque de estacionamento do supermercado principal. Havia vários outros carros. Estacionou e desligou as luzes do carro.

—Não temos muito tempo. Como é que vocês estavam a planear sair?

— No mesmo barco em que viemos — disse Jack.

— Onde está o barco? — perguntou Kevin.

— Presumimos que estará onde nós o deixámos — disse Jack. — Está na praia, debaixo do cais.

— Dá para todos nós? — perguntou Kevin.

— Ainda sobra espaço — disse Jack.

—Perfeito—disse Kevin com satisfação.—Estava esperançado de que tivessem vindo de barco. Assim, poderemos ir directos ao Gabão. — Voltou-se rapidamente e pôs o motor a trabalhar. — Rezemos para que não o tenham encontrado.

Saiu do parque de estacionamento e fez um desvio para chegar à marginal. Procurou manter-se afastado da Câmara e da sua própria casa, tanto quanto possível.

— Temos um problema — disse Jack. — Não temos qualquer identificação, nem dinheiro. Tiraram-nos tudo.

—Não estamos em muito melhores condições—disse Kevin. —

Mas temos algum dinheiro, tanto em moeda como em traveler’s checks. Confiscaram os nossos passaportes quando fomos postos sob prisão na minha casa, esta tarde. O destino que nos estava reservado era o mesmo que o vosso: entregues às autoridades equatoguineenses.

— Isso teria sido um problema? — perguntou Jack.

Kevin deixou sair um riso sarcástico. Na sua mente, conseguia visualizar as caveiras na secretária de Siegfried.

— Teria sido mais do que um problema. Teria significado um julgamento fingido que teria acabado num plutão de fuzilamento.

— Não, diabo! — disse Warren.

— Neste país é considerado um crime interferir nas operações da Gensys — disse Kevin. — E o gerente é quem decide quando é que uma pessoa está a interferir ou não.

—Um esquadrão de fuzilamento?—repetiu Jack, horrorizado.

— Receio bem que sim — disse Kevin. As Forças Armadas aqui são especialistas nisso. Têm tido muita prática ao longo destes anos.

— Então, devemos muito mais a vocês do que imaginávamos — disse Jack. — Não fazia ideia.

Laurie olhou para a janela e teve um arrepio. Ela começava a aperceber-se de que a sua vida tinha corrido um sério risco e ainda não tinha terminado.

— Como é que vocês se meteram nisto? — perguntou Warren.

— É uma história comprida — disse Melanie.

— Também a nossa é — disse Laurie.

— Tenho uma pergunta — disse Kevin.—Vocês vieram cá por causa de Cario Franconi.

— Uau!— disse Jack. — Mas que clarividência! Estou impressionado e intrigado. Como é que você adivinhou? Qual é precisamente o seu papel aqui no Cogo?

— O meu... em particular? — indagou Kevin.

— Bem, de vocês todos — disse Jack.

Kevin, Melanie e Candace olharam uns para os outros para ver qual deles iria começar.

— Éramos todos parte do mesmo programa — disse Candace. —Mas eu era um jogador de segunda categoria. Sou uma enfermeira de cuidados intensivos de uma equipa cirúrgica de transplantes.

— Eu sou uma técnica de reprodução — disse Melanie. — Preparo o material para Kevin fazer a sua magia. Uma vez feita, procuro que a sua criação seja frutífera.

— Eu sou biólogo molecular — explicou Kevin com um suspiro de arrependimento. — Alguém que ultrapassou os seus limites e cometeu um estúpido erro prometeano.

— Pare aí—disse Jack. — Não seja demasiado literário. Eu sei que já ouvi falar de Prometeu, mas não me lembro de quem ele era.

— Prometeu era um Titã da mitologia grega — disse Laurie. — Ele roubou fogo do Olimpo e deu-o ao Homem.

— Inadvertidamente, eu dei fogo a alguns animais — disse Kevin. — Descobri, por acaso, a forma de comutar partes do cromossoma, em particular o segmento curto do cromossoma seis de uma célula para outra, de uma espécie para uma outra.

— Então, você tirou partes do cromossoma de pessoas e introduziu-os num macaco — disse Jack.

— Num óvulo fertilizado de um macaco — disse Kevin. — Mais precisamente, um bonobo.

— E que é que na realidade você estava a fazer? — continuou Jack.—A criar um órgão perfeito por encomenda para o transplante de um indivíduo específico?

— Exactamente — disse Kevin. — Não era o que eu tinha em mente, inicialmente. Eu era um simples investigador. O que acabei por fazer foi qualquer coisa que atraiu o potencial financeiro.

—Uau!— comentou Jack.—Engenhoso e impressionante, mas também um pouco assustador.

— É mais do que assustador — disse Kevin. — É uma espécie de tragédia. O problema foi que transferi demasiados genes humanos. Acidentalmente, criei uma raça de proto-humanos.

— Quer dizer como os neandertalóides? — perguntou Laurie.

— Alguns milhões de anos mais primitivos — disse Kevin. — Mais como Lucy. Mas são suficientemente inteligentes para usarem fogo, fazerem ferramentas e até conversarem. Suponho que eles são o que nós éramos há cerca de quatro ou cinco milhões de anos.

— Onde é que estão essas criaturas? — perguntou Laurie, alarmada.

— Estão numa ilha aqui perto — disse Kevin —, onde têm estado a viver em relativa liberdade. Infelizmente, tudo isso está prestes a mudar.

— E porquê? — perguntou Laurie. Ela conseguia visualizar estes proto-humanos. Em criança, tinha um fascínio pelos homens das cavernas.

Kevin, resumidamente, contou-lhes a história do fumo, que os tinha levado, a ele, a Melanie e a Candace, até à ilha. Relatou-lhes como tinham sido capturados e depois salvos. Também lhes falou do destino das criaturas, que iriam ser encarceradas em pequenos cubículos de cimento armado, simplesmente porque eram demasiado humanas.

— Mas isso é horrível! — comentou Laurie.

—É um desastre!—disse Jack, abanando a cabeça.—Mas que história.

— Este mundo não está pronto para uma nova raça — disse Warren. — Temos problemas de sobra com as que já temos.

— Estamos a chegar à marginal — anunciou Kevin. — A praça na base do cais é já a seguir à próxima curva.

— Então, pare aqui — disse Jack. — Havia lá um soldado quando chegámos.

Kevin parou do outro lado da rua e apagou os faróis. Deixou o motor ligado por causa do ar condicionado. Jack e Warren saíram pela parte de trás e correram até à curva. Cautelosamente, espreitaram.

— Se o nosso barco não estiver lá, haverá outros barcos por perto? — perguntou Laurie.

— Receio bem que não — disse Kevin.

— Há outra saída da cidade para além do portão principal? — perguntou Laurie.

— Também não — disse Kevin.

— Deus nos ajude! — comentou Laurie.

Jack e Warren regressaram rápido. Kevin baixou o vidro do seu lado.

— Há um soldado — disse Jack. Não me parece estar muito atento. Aliás, pode muito bem estar a dormir. Mas, para todos os efeitos, temos de contar com ele. Penso que será melhor que fiquem todos aqui.

— Por mim, tudo bem — disse Kevin. Ele estava mais do que satisfeito por deixar tais assuntos nas mãos de outros. Se tivesse de decidir, não saberia o que fazer.

Jack e Warren caminharam até à curva e depois desapareceram.

Kevin subiu o vidro da janela.

Laurie olhou para Natalie e abanou a cabeça.

— Lamento tudo isto. Suponho que devia ter adivinhado. Jack parece ter uma inclinação para se meter em sarilhos.

— Não é preciso pedir desculpa — disse Natalie. — Não tens culpa. Além disso, as perspectivas agora são bem melhores do que há quinze ou vinte minutos atrás.

Jack e Warren reapareceram num tempo surpreendentemente curto. Jack trazia uma pistola e Warren uma metralhadora. Saltaram para a parte detrás do Toyota.

— Algum problema? — perguntou Kevín.

—Nadinha—disse Jack.—Ele foi muito compreensivo. É claro que Warren sabe ser persuasivo quando quer.

— Há um parque de estacionamento no bar Chickee Huty? — perguntou Warren.

— Há — disse Kevin.

— Vá até lá!— disse Warren.

Kevin fez marcha atrás, virou à direita e depois na primeira à esquerda. No fim do quarteirão, virou para um extenso parque de estacionamento asfaltado. Ao fundo, via-se a silhueta do bar Chickee Huty, que agora estava às escuras. Para além do Huty, vislumbrava-se a cintilante vastidão do largo estuário. Na sua superfície, reflectia-se a luz prateada do luar.

Kevin foi directo ao Huty e parou.

— Vocês esperam aqui — disse Warren. — Vou verificar se o barco está lá. — Saltou com a metralhadora na mão, para logo desaparecer por detrás do Huty.

— Ele é muito veloz — comentou Melanie.

— Nem faz ideia — disse Jack.

— Aquilo é o Gabão, do outro lado? — perguntou Laurie.

— É — disse Melanie.

— A que distância fica? — perguntou Jack.

— A cerca de quatro milhas, em linha recta — disse Kevin. — Mas devíamos tentar ir para Cocobeach. Fica a dez milhas. De lá, podemos contactar a Embaixada Americana, em Libreville. De certeza que eles nos poderão ajudar.

— Quanto tempo leva a chegar a Cocobeach? — perguntou Laurie.

— Calculo que pouco mais de uma hora — disse Kevin. — E claro, depende da velocidade do barco.

Warren reapareceu e dirigiu-se ao carro. Kevin desceu o vidro da janela.

— Temos sorte — disse Warren. — O barco está lá. Não há problema.

— Viva! — exclamaram todos em uníssono. Saíram todos do carro. Kevin, Melanie e Candace trouxeram os seus sacos de lona.

— Isso é a vossa bagagem? — perguntou Laurie, em tom de gracejo.

— É tudo — disse Candace.

Warren conduziu o grupo através do Huty escuro até aos degraus para a praia.

— Vamos andar depressa até chegarmos à muralha — disse Warren. Fez sinal para os outros o seguirem.

Estava escuro por debaixo do cais, e todos tiveram de caminhar vagarosamente. Misturado com o som das pequenas ondas que chapinhavam na praia, havia o ruído dos caranguejos que se precipitavam para os seus buracos na areia.

—Temos duas lanternas eléctricas—disse Kevin.—Poderemos usá-las?

— É melhor não arriscarmos — disse Jack, enquanto ia de encontro ao barco. Ele certificou-se de que o barco estava estável antes de dizer para entrarem. Entretanto, pôs-se à popa. À medida que os outros entravam no barco, Jack sentia a proa tornar-se mais leve. Encostado ao barco, começou a empurrá-lo para a água.

— Cuidado com o travejamento—disse Jack, enquanto saltava para o barco.

Apoiados aos pilares de madeira do cais, todos ajudaram o barco a deslizar silenciosamente. Levou-lhes apenas alguns minutos até à ponta do cais, que estava bloqueado com uma doca flutuante. Nessa altura, puseram o barco em diagonal, em direcção à vastidão de água banhada pela luz do luar.

Havia apenas quatro remos. Melanie insistiu em remar com os homens.

— Quero afastar-me cerca de noventa metros da costa antes de pôr o motor a trabalhar — explicou Jack. — Não faz sentido arriscar.

Todos olhavam para o aparentemente calmo Cogo, cujos edifícios pintados de branco estavam envoltos numa neblina tingida pela luz prateada do luar. A mata circundante ornamentava a cidade com o azul da meia-noite. As muralhas de vegetação pareciam grandes vagas prestes a quebrarem-se.

Os ruídos nocturnos da selva ficavam para à ré. O único ruído era agora o gorgolejo dos remos a romperem a água ou a rasparem nas bordas do barco. Durante algum tempo, ninguém proferiu palavra. Os corações acelerados afrouxavam e as respirações tendiam a normalizar-se. Não havia tempo para reflectir ou mesmo olhar em redor. Os recém-chegados, em particular, estavam fascinados pela beleza cativante da paisagem africana nocturna. A dimensão era em si esmagadora e irresistível. Tudo em África parecia muito maior, até o céu nocturno.

Para Kevin era diferente. O seu alívio de ter escapado do Cogo e de ter ajudado os outros também a escaparem, tornava a sua angústia sobre o destino dos quiméricos bonobos ainda mais dilacerante. Fora um erro tê-los criado, mas abandoná-los a uma vida de cativeiro numa pequena jaula aumentava a sua culpabilidade.

Após algum tempo, Jack levantou o remo e deixou-o cair no fundo do barco.

— Está na altura de ligar o motor — anunciou ele. Pegou no motor de borda de água e inclinou-o para dentro da água.

— Espere um segundo — disse Kevin. repentinamente. — Tenho um pedido. Uma coisa que eu não tenho o direito de vos pedir, mas é importante.

Jack, que estava debruçado sobre o motor, ergueu-se e perguntou:

— Que é que lhe está a passar pela cabeça, companheiro?

—Vê aquela ilha, a últimana cadeia?—disse Kevin, apontando em direcção à ilha Francesca.—É onde estão todos os bonobos. Eles estão em jaulas na base da ponte que liga ao continente. Nada mais queria do que ir lá e libertá-los.

— Que é que isso resolvia? — perguntou Laurie.

— Muito, se eu conseguisse pô-los a atravessar a ponte — disse Kevin.

— E os seus amigos no Cogo, não iriam prendê-los de novo? — perguntou Jack.

— Eles nunca os encontrariam! — disse Kevin, alimentando a ideia. — Eles simplesmente desapareceriam. Desde esta parte da Guiné Equatorial e estendendo-se para o interior, durante milhares de milhas, é floresta tropical virgem. Engloba não só este país mas também vastas áreas do Gabão, dos Camarões, Congo e República Central Africana. Devem ser cerca de um milhão de milhas quadradas, parte das quais estão ainda literalmente inexploradas.

— Deixá-los ir sozinhos? — perguntou Candace.

— Essa é a ideia—disse Kevin. — Dar-lhes uma oportunidade, e penso que eles conseguiriam! São engenhosos. Olhem os nossos antepassados. Tiveram de passar pela era glaciar pleistocena. Era um desafio maior do que viver na floresta tropical.

Laurie olhou para Jack.

— A ideia agrada-me.

Jack olhou para a ilha, e depois perguntou em que direcção ficava Cocobeach.

— Significaria fazer um desvio — admitiu Kevin —, mas não é longe. O máximo, vinte minutos.

—E se os libertarmos e eles continuarem na ilha?—perguntou Warren.

— Pelo menos, poderia dizer a mim próprio que tinha tentado — disse Kevin. — Sinto que tenho a obrigação de fazer qualquer coisa.

— Hem, e por que não? — disse Jack. — Penso que a ideia também me agrada. E vocês, que dizem?

— Para dizer a verdade, gostava de ver um desses animais — disse Warren.

— Vamos — disse Candace, com entusiasmo.

— Por mim, tudo bem — disse Natalie.

— Acho uma ideia maravilhosa! — disse Melanie. — Vamos a isso!

Jack deu vários puxões para ligar o motor. Ele vibrou. Puxando o leme, Jack foi rumo à ilha Francesca.

 

10 DE MARÇO, 1997 - 1:45 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Siegfried tivera o mesmo sonho centenas de vezes, e de cada vez se tornava pior. No sonho, ele aproximava-se de um elefante fêmea com uma cria. Não lhe agradava nada fazer aquilo, mas um casal tinha-lho exigido. Era a esposa que queria ver o bebé de perto.

Siegfried tinha enviado batedores para protegerem o flanco lateral, enquanto ele e o casal se aproximavam da mãe. Mas os batedores do lado norte tinham ficado aterrorizados quando um enorme elefante macho apareceu. Eles fugiram, e, para culminar a covardia deles, não tinham avisado Siegfried do perigo que corria.

O ruído do enorme elefante irrompeu através da mata como o ruído de um comboio que se aproximava. O chiar aumentava cada vez mais, e, justamente antes do impacte, Siegfried acordou, alagado em suor.

Com a respiração ofegante, Siegfried virou-se para o outro lado e depois sentou-se. Afastando o mosquiteiro, agarrou no copo de água e sorveu um gole. O problema com este sonho era que se tornara demasiado verdadeiro. Fora através deste incidente que ele perdera a actividade do braço direito e que a pele do rosto tinha ficado esfacelada.

Siegfried sentara-se na beira da cama por alguns momentos até se aperceber que o chiar que pensava ser do seu sonho vinha do lado de fora da janela. Mais tarde, apercebeu-se da sua origem: música rock da África Ocidental que emanava, em alto som, de um leitor de cassetes barato.

Siegfried olhou para o relógio. Vendo que eram quase duas horas da manhã, ficou exaltado. Quem seria tão insolente ao ponto de fazer tal barulho a essa hora da manhã?

Tendo notado que o barulho vinha do outro lado do relvado, em frente à sua casa, levantou-se e foi até à varanda. Para surpresa sua, verificou que a música vinha da casa de Kevin Marshall. Aliás, Siegfried conseguia ver quem eram os responsáveis. Eram os soldados que estavam de guarda à casa.

Afúria irradiou pelo corpo de Siegfried como se tivesse apanhado um choque eléctrico. Voltando para o quarto, telefonou a Cameron e ordenou ao director de segurança que se encontrasse com ele junto à casa de Kevin.

Siegfried desligou o telefone com um estrondo. Vestiu-se e, ao sair de casa, agarrou numa das suas velhas carabinas.

Siegfried atravessou o relvado. Quanto mais se aproximava da casa de Kevin mais alto a música se tornava. Os soldados encontravam-se num charco de luz que emanava de uma simples lâmpada. Espalhadas aos seus pés havia inúmeras garrafas de vinho vazias. Dois dos soldados cantavam, acompanhando a música, enquanto tocavam instrumentos imaginários. Os outros dois tinham perdido os sentidos.

Quando Siegfried chegou ao lugar da cena, Cameron já tinha descido a rua calcetada a pedra de calhau a toda a velocidade e parara com um grande chiar de travões. Cameron saltou do carro. Ainda abotoava a camisa quando se aproximou de Siegfried. Ele olhou para os soldados embriagados e ficou chocado.

Cameron tentava desculpar-se quando Siegfried o interrompeu.

— Esqueça as desculpas e explicações — disse ele. — Suba e certifique-se de que o Sr. Marshall e as suas duas amigas estão aconchegados para dormir.

Cameron tocou na aba do chapéu em sinal de saudação.

Desapareceu escada acima. Siegfried ouvia-o bater à porta. Momentos depois, várias luzes acenderam-se na área de residência.

Siegfried fumegava de ira ao olhar para os soldados. Nem tinham dado pela sua presença ou a de Cameron.

Cameron regressou pálido e a abanar a cabeça.

— Não estão lá.

Siegfried tentou controlar a ira para conseguir pensar. O nível de incompetência com que tinha de trabalhar era de assombrar.

— E o jipe dele? — perguntou Siegfried, com rapidez.

—Vou verificar — disse Cameron. Ele correu de novo, furando caminho por entre os soldados que cantavam. Regressou quase instantaneamente.

— Não está.

— Que grande surpresa! — disse Siegfried, sarcasticamente. Depois, estalando os dedos, fez sinal em direcção ao carro de Cameron.

Siegfried sentou-se à frente, enquanto Cameron se sentava ao volante.

— Chame a sua força de segurança e ponha-os em alerta — ordenou Siegfried. — Quero que encontrem o carro de Kevin imediatamente. E contactem com o portão. Certifique-se de que não saíram da Zona. Entretanto, leve-me para a Câmara.

Cameron usou o telefone enquanto manobrava o seu veículo em volta do quarteirão. Ambos os números estavam em memória no seu telefone automático, por isso, era uma operação que não necessitava das mãos. Carregando no acelerador, dirigiu-se para norte.

Quando se aproximaram da Câmara, a busca oficial do carro de Kevin já tinha sido iniciada. Foi determinado de imediato que o carro não tentara passar através do portão. Ao voltarem para a área de estacionamento, ambos ouviram a música.

— Oh! — exclamou Cameron.

Siegfried ficou silencioso. Tentava preparar-se para aquilo que já suspeitava.

Cameron parou junto ao edifício. As luzes máximas denunciaram os detritos resultantes do arrancamento das grades da parede. A corrente estava também à vista.

—Isto é um desastre!—disse Siegfried, com a voz trémula. Saiu do carro com a carabina. Embora tivesse de segurar a arma com uma mão, ele era um bom atirador. Numa sucessão rápida, puxou o gatilho três vezes e três das garrafas de vinho vazias que estavam perto da janela foram pelo ar em estilhaços. Mas a música não parou.

Segurando a carabina com firmeza com a sua mão boa, Siegfried foi até à janela do posto do exército e olhou para dentro. O leitor de cassetes estava na secretária com o volume no máximo. Os quatros soldados estavam desacordados no chão ou esparralhados sobre a frágil mobília.

Siegíried levantou a arma. Puxou o gatilho e o leitor de cassetes voou da secretária. Num instante, a cena ficou transformada num doloroso silêncio.

Siegíried olhou para Cameron.

— Chame o coronel da guarnição. Diga-lhe o que aconteceu. Diga-lhe para enviar um contingente de soldados aqui, imediatamente.

— Sim, senhor! — entoou Cameron.

Siegíried foi até à arcada e olhou para as grades de ferro que tinham sido arrancadas das janelas das celas. Eram soldadas à mão. Ao olhar para as aberturas, compreendeu por que tinham saído tão facilmente. A massa entre os tijolos debaixo do estuque estava transformada em areia.

Para se controlar, Siegfried deu a volta à Câmara. Quando chegou à última esquina, viu um carro que se aproximava com os faróis no máximo. O carro-patrulha parou junto ao carro de Cameron, e o oficial de serviço saltou.

Siegfried praguejou enquanto se aproximava. Com Kevin e as amigas mais os americanos desaparecidos, o projecto corria sério risco. Tinham de ser encontrados.

— Sr. Spallek—disse Cameron —, tenho informações. O oficial O’Leary pensa que viu o carro de Kevin Marshall há cerca de dez minutos. É claro, podemos rapidamente verificar se ainda lá está.

— Onde? — perguntou Siegfried.

— No parque, junto ao bar Chickee Huty — disse O’Leary. — Vi-o na minha última ronda.

— Viu alguém?

— Não, senhor! Ninguém.

— É suposto haver um guarda lá — disse Siegfried. — Encontrou-o?

— Na realidade, não, senhor — disse O’Leary.

— Que significa “na realidade, não”? — resmungou Siegfried. Estava farto de incompetência.

—Em geral, não prestamos muita atenção aos soldados—disse O’Leary.

Siegfried olhou à distância. Numa outra tentativa de reprimir a ira, esforçou-se por apreciar o reflexo do luar na vegetação. A beleza acalmou-o até certo ponto e, relutantemente, admitiu que não prestava também muita atenção aos soldados. Não tinham qualquer verdadeira finalidade utilitária, estavam lá, apenas; era um dos custos que tinham de negociar com o governo equatoguineense. Mas por que estaria o carro de Kevin no bar Chickee Huty? Depois caiu em si.

— Cameron, conseguiram descobrir como é que os americanos chegaram até à cidade? — perguntou Siegfried.

— Receio bem que não — disse Cameron.

— Procuraram um barco? — perguntou Siegfried. Cameron olhou para O’Leary, que respondeu com uma certa relutância.

— Eu não sabia nada quanto a procurar um barco.

— E quando você rendeu Hansen... às onze? — perguntou Cameron. — Quando ele lhe passou a informação, mencionou que tinha andado à procura de um barco?

— Nem uma palavra, meu chefe — disse CTLeary. Cameron engoliu. Voltou-se para Siegfried.

— Vou tentar informar-me e depois volto a entrar em contacto consigo.

— Por outras palavras, ninguém tentou localizar o maldito de um barco!—disse Siegfried, com rispidez.—Isto é uma paródia por aqui, mas não acho graça nenhuma.

— Dei ordens expressas para que fosse procurado um barco — disse Cameron.

— Obviamente, ordens não bastam, sua cabeça de melão! — disse Siegfried, indignadamente. — Você é que está encarregado das operações. Você é o responsável.

Siegfried fechou os olhos e rangeu os dentes. Ele tinha perdido os dois grupos. Tudo o que havia a fazer nesta altura era mandar o coronel chamar as forças armadas em Acalayong, na eventualidade, improvável, dos fugitivos desembarcarem lá. Mas Siegfried não estava nada optimista. Ele sabia que se fosse ele a escapar, iria para o Gabão.

Subitamente, os olhos de Siegfried esbugalharam-se. Um outro pensamento ocorreu-lhe, ainda mais perturbante.

— Há guardas na ilha Francesca? — perguntou ele.

— Não, senhor. Não foi requisitada.

— E a ponte no continente? — insistiu Siegfried.

— Houve, até que foram dadas instruções para retirar — disse Cameron.

— Então, vamos para lá agora—disse Siegfried. Avançou para o carro de Cameron. Nesse momento, três carros desciam a rua a toda a velocidade, viraram para o parque de estacionamento e pararam. Eram jipes do Exército. Todos eles estavam cheios de soldados com metralhadoras.

O coronel Mongomo saltou da frente do jipe. Em contraste com os desmazelados soldados, estava impecavelmente fardado, com toda a gala, incluindo as medalhas. Apesar de ser de noite, usava óculos de sol de aviador. Saudou Siegfried em posição de sentido e disse que estava ao seu serviço.

— Eu apreciaria que tomasse conta daqueles soldados bêbados — disse Siegfried de um modo controlado, enquanto apontava em direcção ao posto.

Kevin fez sinal a Jack para abrandar. Jack reduziu acelerador e a pesada piroga logo perdeu velocidade. Tinham entrado no estreito canal, entre a ilha Francesca e o continente. Estava bastante mais escuro do que em águas abertas, porque as árvores em ambos os lados formavam um pálio.

Kevin estava preocupado com o cabo do flutuador da alimentação e, por isso, colocara-se na popa. Ele explicara a Jack, para que este estivesse preparado.

— Este lugar é medonho! — disse Laurie.

— Ouve como os animais estão barulhentos — disse Natalie. —O que estão a ouvir são sobretudo rãs—disse Melanie.—Rãs com uma tendência romântica.

— Já está ali à frente — disse Kevin.

Jack desligou o motor e colocou-se de pé para dar inclinação ao motor para fora de água.

Houve um ligeiro solavanco e um ruído quando o barco roçou sobre a corda.

— Vamos agora — disse Kevin. — É um pouco mais à frente, e eu não quero embater em nenhum tronco na escuridão.

A densa mata à direita desapareceu quando chegaram à clareira de acesso. Mais uma vez, estavam à luz do luar.

—Oh, não!—gritou Kevin da proa do barco.—A ponte não está desdobrada. Que inferno!

— Mas não vai haver problema — disse Melanie. — Eu ainda tenho a chave. — Ela ergueu-a, e a chave cintilou na fraca luz. — Eu tinha a impressão de que ainda seria necessária um dia.

— Uma ponte desdobrável que precisa de uma chave? — interrogou Jack.—Isso é altamente sofisticado para um lugar na selva.

—Vem aparecer uma doca, à nossa direita — disse Kevin. — É aí que vamos amarrar o barco.

Jack estava na popa. Ele remou de modo a que a proa ficasse virada para a ilha. Uns minutos mais tarde, bateram suavemente contra uma prancha de madeira.

—Okay, malta—disse Kevin. Respirou fundo. Bestava nervoso. Sentia-se deslocado uma vez que estava prestes a fazer uma coisa que nunca fizera antes: ia fazer de herói. — O que eu sugiro é que fiquem todos no barco. Pelo menos, por agora. Não sei como é que os animais vão reagir quando me virem. Eles são incrivelmente fortes, por isso, há um risco. Estou pronto a arriscar pelas razões que já apontei, mas não quero pôr nenhum de vocês em perigo. Parece-vos razoável?

—Razoável é, mas eu discordo—disse Jack. — Penso que você vai precisar de ajuda.

— Além disso, com esta metralhadora AK-47 não estamos completamente desprotegidos — disse Warren.

— Nada de tiros! — disse Kevin. — Por favor, em especial por minha causa. É por isso que quero que vocês fiquem aqui. Se alguma coisa correr mal, fujam.

Melanie ergueu-se.

— Sou quase tão responsável como tu pela existência destas criaturas. Eu vou ajudar, quer queiras quer não.

Kevin fez um gesto de exaspero.

—Nada de trombas! — disse Melanie. Ela saltou do barco para a doca.

— Parece uma festa — disse Jack. Ele levantou-se para seguir Melanie.

— Você, sente-se — disse Melanie, severamente. — Por agora, é uma festa particular.

Jack sentou-se.

Kevin tirou a sua lanterna e juntou-se a Melanie na doca.

— Vamos trabalhar muito silenciosamente — prometeu ele. A primeira coisa a fazer era a ponte. Sem ela, o plano não

resultaria qualquer que fosse a resposta dos animais. Kevin introduziu a chave e, enquanto carregava no botão verde, sustinha a respiração. Quase imediatamente, ouviu do lado da metrópole o gemido de um motor eléctrico movido a baterias. Depois, em movimento lento, a lente telescópica estendeu-se sobre o pilar de cimento na ilha.

Kevin subiu para se certificar de que estava bem assente. Tentou baloiçá-la mas estava bem firme. Satisfeito, desceu, e ele e Melanie deslocaram-se em direcção à floresta. Não conseguiram ver asjaulas devido à escuridão das sombras, mas sabiam onde eles estavam.

— Tens algum plano ou vamos deixá-los sair em massa? — perguntou Melanie, quando atravessavam o campo. Kevin tinha a lanterna acesa para que pudesse ver onde caminhavam.

— A única ideia que me veio à mente foi encontrar o meu duplo, o bonobo número um — disse Kevin. — Ao contrário de mim, ele é um líder. Se conseguir fazê-lo compreender, talvez ele leve os outros. — Kevin encolheu os ombros. — Tens outra ideia melhor?

— De momento, não — disse Melanie.

As jaulas estavam todas alinhadas numa longa fila. O cheiro era extremamente forte uma vez que os animais estavam nas suas minúsculas prisões há mais de vinte horas. Conforme Kevin e Melanie caminhavam, Kevin apontava a luz para as jaulas. Os animais acordavam imediatamente. Alguns recuaram, tentando proteger-se do clarão. Outros, obstinadamente, mantinham-se na sua posição, com os olhos vermelhos a faiscar.

— Como vais reconhecê-los? — perguntou Melanie.

—Quem me dera poder ver o meu relógio—disse Kevin.—Mas as hipóteses são escassas. Suponho que talvez possa reconhecê-lo através daquela horrorosa cicatriz que ele tem.

— É irónico que ele e Siegfried tenham praticamente a mesma cicatriz — disse Melanie.

— Nem menciones o nome dele — disse Kevin. — Credo, olha! — A luz incidiu na face horrendamente cicatrizada do bonobo número um. Ele fixou-os com ar de desafio.

— É ele! — gritou Melanie.

—Boda—disse Kevin. Ele acariciou-o no peito como os bonobos fêmeas haviam feito quando ele, Melanie e Candace tinham sido levados para a cave.

O bonobo número um mexeu a cabeça para um lado e para outro e a pele entre os olhos formou um sulco.

— Boda — repetiu Kevin.

Lentamente, o bonobo levantou a pata dianteira e acariciou o peito dele. Depois, repetiu Bada tão nitidamente como Kevin.

Kevin olhou para Melanie. Estavam ambos chocados. Embora ele tivesse tido uma tentativa com Arthur, tinha sido num contexto diferente, nunca tinham tido a certeza se teria havido uma verdadeira comunicação. Isto era diferente.

—Atah—disse Kevin. Era uma palavra que eles tinham ouvido frequentemente desde o momento em que o bonobo número um gritava, aquando do seu primeiro encontro. Pensavam que significava “vem”.

O bonobo número um não respondeu.

Kevin repetiu a palavra, depois olhou para Melanie.

— Não sei o que dizer mais.

— Nem eu — disse Melanie. — Arriscamos e abrimos a porta. Talvez ele responda. Quero dizer, é difícil para ele sair enquanto estiver trancado.

—Tens razão—disse Jack. Ele passou por Melanie para chegar ao lado direito da jaula. Com trepidação, Kevin soltou o trinco e a porta abriu-se.

Kevin e Melanie recuaram. Kevin dirigiu a lanterna em direcção ao chão em vez de fazè-la incidir no focinho do animal. O bonobo número um saiu vagarosamente e ergueu-se em posição erecta. Olhou para a direita, depois para a esquerda antes de concentrar a sua atenção nos dois humanos.

— Atah — disse Kevin de novo, enquanto recuava. Melanie manteve-se estática.

O bonobo número um começou a mover-se para a frente, esticando-se, enquanto caminhava como um atleta em fase de aquecimento.

Kevin voltou-se para poder deslocar-se com mais facilidade. Repetiu Atah várias vezes. A expressão do animal não mudou enquanto o seguia.

Kevin conduziu-o à ponte e subiu. Novamente, repetiu Atah.

O bonobo número um, hesitantemente, subiu para o pilar de cimento armado. Kevin recuou até estar de pé, no centro da ponte. O bonobo dirigiu-se para a ponte cautelosamente. Olhava com frequência para um lado e outro.

Kevin, então, tentou qualquer coisa que não tinham experimentado com Arthur. Kevin juntou todas as palavras do bonobo. Usou Sta, que o bonobo número um tinha utilizado quando tentou oferecer o macaco morto a Candace. Usou Zit, que tinha servido para levá-los para a cave. E, finalmente, usou Arak, que eles tinham quase a certeza de que significava embora.

— Sta Zit Arak — disse Kevin. Abriu os dedos e passou a mão pelo peito, o gesto que Candace havia visto da sala de operações. Kevin tinha esperanças de que a sua frase significasse “Tu ires embora”.

Depois de repetir a frase uma vez mais, Kevin apontou para nordeste, na direcção da ilimitada floresta tropical.

O bonobo número um ergueu-se nas pontas dos pés e olhou sobre o ombro de Kevin para a negra parede formada pela mata do continente. Depois, olhou para trás, para as jaulas. Abrindo as mãos, produziu uma série de sons que Kevin e Melanie nunca tinham ouvido ou não tinham associado com qualquer actividade. —Que é que ele está a fazer?—perguntou Kevin. Nessa altura, o animal não olhava na direcção de Kevin.

— Posso estar enganada — disse Melanie. — Mas penso que está a fazer referência ao seu povo.

— Meu Deus! — disse Kevin. — Penso que talvez tenha compreendido. Vamos deixar sair mais animais.

Kevin andou para a frente. O bonobo pressentiu o seu movimento e voltou-se para enfrentá-lo. Kevin hesitou. A ponte tinha cerca de três metros de largo, e Kevin estava preocupado em ter de se aproximar demasiado. Lembrava-se muito bem quão fácil fora para o bonobo iça-lo e atirá-lo como se fosse uma boneca de trapos.

Kevin fixou os olhos no focinho do animal, tentando captar qualquer emoção, não conseguiu. Tudo o que conseguiu foi aquela repetida sensação horripilante de que estava a olhar para um espelho evolucionário.

— Que se passa? — questionou Melanie.

—Ele mete medo! — admitiu Kevin.—Não sei se passe por ele ou não.

— Por favor, não vamos ter mais uma jogada mexicana—disse Melanie. — Não temos muito tempo.

— Okay — disse Kevin. Respirou fundo e passou em volta do animal, enquanto baloiçava na beira da ponte. O bonobo observava-o mas não se mexeu.

—Isto é tão desgastante—queixou-se, quando desceu da ponte.

— Queremos que ele fique aqui? — perguntou Melanie. Kevin coçou a cabeça.

— Não sei. Ele poderá ser a isca para trazer os outros para cá, mas, por outro lado, talvez deva vir connosco.

— Por que não começamos a andar? — disse Melanie. — Deixaremos que ele decida.

Melanie e Kevin dirigiram-se para as jaulas. Ficaram satisfeitos quando o bonobo número um saiu da ponte e os seguiu.

Andaram depressa, conscientes de que Candace e os outros os aguardavam. Quando chegaram às jaulas não vacilaram. Kevin abriu a porta da primeira jaula enquanto Melanie abriu a segunda.

Os animais saíram rapidamente e logo trocaram palavras como o bonobo número um. Kevin e Melanie foram às jaulas seguintes.

Em apenas alguns minutos, havia uma dúzia de animais triturando, emitindo sons e esticando-se.

— Está a resultar — disse Kevin. — Tenho a certeza de que se fugissem para a floresta aqui mesmo, já o teriam feito. Penso que todos eles sabem que têm de se ir embora.

— Talvez seja melhor ir buscar Candace e os novos amigos — disse Melanie.—Eles têm de testemunhar isto e podem ajudar-nos a acelerar as coisas.

— Boa ideia — disse Kevin. Olhou para a longa fila de jaulas. Sabia que ultrapassavam as setenta.

Melanie correu para a mata enquanto Kevin se dirigiu para a jaula seguinte. Ele notou que o bonobo número um ficara perto para cumprimentar os animais que iam sendo libertados.

Quando Kevin já tinha libertado mais de meia dúzia de animais, os humanos chegaram. Inicialmente, estavam intimidados pelas criaturas e não sabiam como agir. Os animais ignoraram-nos com excepção de Warren de quem eles se mantiveram afastados. Warren trouxera a metralhadora, que Kevin imaginou ter lembrado aos animais as espingardas de dardos.

— Estão tão sossegados — disse Laurie. — É fantasmagórico.

— Estão deprimidos — disse Kevin. — Poderá ser do tranquilizante ou por terem estado prisioneiros. Mas não se cheguem demasiado perto. Podem estar sossegados, mas são fortes.

— Que podemos fazer para ajudar? — perguntou Candace.

— Basta que abram as portas das jaulas — disse Kevin. Com sete pessoas a trabalharem, levou apenas alguns minutos

para que as jaulas fossem todas abertas. Logo que o último animal emergiu na noite, Kevin fez sinal a todos para se dirigirem em direcção à ponte.

O bonobo número um, que estivera a acompanhar Kevin de perto, bateu as palmas em alto som, tal como fizera quando Kevin e as companheiras tinham deparado com ele no atalho sem saída, na área pantanosa. Depois, articulou uns sons roucos antes de começar a caminhar atrás dos seres humanos. Logo de imediato, o resto dos bonobos avançaram silenciosamente.

Os sete seres humanos dirigiram setenta e um bonobos numa procissão através da clareira até à ponte da liberdade. Ao chegarem ao vão da ponte, os seres humanos desviaram-se para o lado. O bonobo número um parou junto ao pilar de cimento.

— Sta Zit Arak —- repetiu Kevin, enquanto abria os dedos e passava a mão pelo peito uma última vez. Depois, apontou em direcção ao interior africano inexplorado.

O bonobo número um fez uma vénia com a cabeça antes de saltar para o pilar de cimento armado. Olhando para o seu povo, articulou uns sons pela última vez antes de voltar as costas à ilha Francesca e atravessar a ponte para o continente. A massa de bonobos seguiuo silenciosamente.

— É como assistir ao êxodo — gracejou Jack. •— Nada de blasfémias — gracejou Laurie.

Mas, como em toda a zombaria, havia um elemento de verdade. Ela estava verdadeiramente assombrada com o espectáculo.

Como que por magia, os animais fundiram-se na escuridão da selva sem qualquer ruído.

Num momento, eles eram uma multidão rebelde aglomerada na base da ponte, no momento seguinte, eles desapareceram como água a infiltrar-se numa esponja.

Os humanos não se moveram ou tão pouco falaram durante um momento. Finalmente, Kevin quebrou o silêncio.

— Conseguiram, e eu estou satisfeito — disse ele. — Muito obrigado a todos por terem colaborado. Talvez agora possa ficar em paz perante aquilo que lhes fiz. — Aproximou-se da ponte e carregou no botão vermelho. Com um gemido, a ponte recolheu.

O grupo afastou-se do pilar e começou a penosa caminhada de regresso à piroga.

— Foi um dos mais estranhos cortejos a que jamais assisti — disse Jack.

A meio caminho, entre a porta e a piroga, Melanie parou repentinamente e gritou.

— Oh, não! Vejam!

Todos os olhos se voltaram em flecha para o outro lado do rio, para o local indicado. Feixes de luzes de vários veículos tremeluziam através da folhagem. Os veículos desciam o trajecto de acesso ao mecanismo da ponte.

— Não podemos ir para o barco — disse Warren, precipitadamente. — Eles vão detectar-nos.

— Não podemos ficar aqui, tão pouco — disse Jack.

— Voltemos às jaulas — gritou Kevin.

Todos eles se voltaram e correram para amurada da selva. No momento em que se agacharam por detrás das jaulas, feixes de luzes dos vários carros varreram a clareira, quando os veículos se voltaram para oeste. Os veículos pararam, mas os faróis no máximo e os motores continuaram ligados.

— É um grupo de soldados equatoguineenses — disse Kevin.

— É Siegfried — disse Melanie. — Reconheço-o, onde quer que seja. E é o carro-patrulha de Cameron Mclvers.

Um holofote bateu-lhes em cheio. A sua luz intensa brincou com .a fila de jaulas e depois varreu a margem do rio. O barco foi descoberto rapidamente.

Até à distância de quarenta e cinco metros, eles conseguiram ouvir as vozes em reacção à descoberta do barco.

—Isto não é nada bom—disse Jack.—Eles sabem que estamos aqui.

Um repentino e contínuo rebentar de fogo de metralhadora ecoou na tranquilidade da noite.

— Para onde é que eles estão a disparar? — perguntou Laurie.

— Bem, parece-me que estão a destruir o nosso barco — disse Jack. — Penso que é uma péssima notícia para o meu arcaboiço.

— Isto não é altura para brincadeiras — queixou-se Laurie. Uma explosão precipitou-se como um foguete no ar da noite e

logo uma bola de fogo iluminou os soldados.

— Deve ter sido o depósito do combustível — disse Kevin. — Lá se foi o nosso transporte.

Uns minutos mais tarde, o holofote apagou-se. Em seguida, o primeiro veículo deu meia volta e desapareceu no atalho que dava acesso ao Cogo.

—Alguém faz ideia do que está a acontecer?—perguntou Jack.

— Eu diria que Siegfried e Cameron estão de regresso à cidade — disse Melanie. — Sabendo que estamos na ilha, sentem-se seguros.

As luzes do segundo carro apagaram-se, deixando toda a área em completa escuridão. Até mesmo a luz do luar era agora muito escassa, visto que a lua tinha penetrado no baixo céu, lá para ocidente.

—Eu preferia quando tínhamos uma ideia de onde eles estavam e o que estavam a fazer — disse Warren.

— Qual o tamanho da ilha? — perguntou Jack.

— Cerca de seis milhas de comprimento e duas de largura — disse Kevin. — Mas...

— Estão a fazer uma fogueira — disse Warren, interrompendo Kevin.

Uma pequena mancha de luz dourada iluminava parte do mecanismo da ponte, depois de irromper em chamas. Viam-se as figuras fantasmagóricas dos soldados movendo-se em volta da luz.

—Não é engraçado—disse Jack.—Parece que estão a assentar arraiais acolá.

— Que fazemos? — indagou Laurie com desespero.

— Não temos muito por onde escolher enquanto eles estiverem sentados junto à base da ponte — disse Warren. — Nas minhas contas, são seis.

— Esperemos que eles não estejam a pensar em vir até aqui — disse Jack.

—Não virão até ao amanhecer—disse Kevin.—Não viriam até aqui na escuridão, de modo algum. Além disso, não têm necessidade. Estão certos de que vamos ficar aqui.

— E se nadássemos através do canal? — disse Jack. — São apenas nove a doze metros de largo e não há corrente.

— Não sou um bom nadador — disse Warren com nervosismo. — Já tinha avisado.

— Toda esta área está infestada de crocodilos — disse Kevin.

— Oh, Céus! — disse Laurie. — Agora é que ele nos diz.

— Mas oiçam! Não é necessário nadarmos — disse Kevin. — Pelo menos, penso que não. O barco que eu, Melanie e Candace usámos para chegar até cá, deve estar onde o deixámos, e é suficientemente grande para todos nós.

— Fantástico! — disse Jack. — Onde está?

— Lamento informar que vamos ter de caminhar um pouco — disse Kevin. — É um pouco mais de uma milha, mas, pelo menos, há um atalho que foi aberto recentemente.

— Parece um passeio no parque — disse Jack.

— Que horas são? — perguntou Kevin.

— Três e vinte — disse Warren.

— Então, temos apenas, aproximadamente, uma hora antes do amanhecer — disse Kevin. — É melhor irmos já.

O que Jack jocosamente denominou de passeio no parque foi a experiência mais pungente por que qualquer um deles jamais passou. Porque não quiseram usar as lanternas durante os primeiros duzentos ou trezentos metros, seguiram um processo que se poderia chamar o cego a conduzir o cego. Estava tão escuro que era até difícil dizerem se iam de olhos abertos ou fechados.

Kevin liderava para tactear o chão, fazendo frequentemente a escolha errada, o que depois requeria um retrocesso até encontrar de novo o atalho. Sabendo a espécie de criaturas que habitavam a floresta, Kevin sustinha a respiração de cada vez que estendia a mão ou o pé no negrume da noite.

Atrás de Kevin, os outros alinhavam-se numa linha simples, tipo cobra, cada um segurando-se à figura invisível à sua frente. Jack tentava tornar a situação mais leve, mas depois de algum tempo até o seu usual sentido de humor falhou. Daí para a frente, eram todos vítimas dos seus próprios medos quando as criaturas noctívagas chilreavam, gorjeavam, pipilavam, e, ocasionalmente, gritavam à volta deles.

Quando finalmente decidiram quejá poderiam usar as lanternas, fizeram mais progressos. Por outro lado, tremeram, quando viram o número de cobras e insectos que se lhes deparava pela frente, sabendo que antes do uso das lanternas tinham passado pelas mesmas criaturas inconscientemente.

Quando chegaram ao campo pantanoso em volta do lago Hippo, no horizonte, lá para leste, começava a esboçar-se uma luz muito ténue. Saindo da escuridão da floresta, pensaram eles, o pior ficara para trás. Mas isso não aconteceu. Os hipopótamos pastavam fora de água. Os animais pareciam enormes no crepúsculo que antecede a aurora.

— Podem não parecer, mas são extremamente perigosos — avisou Kevin. — Há mais seres humanos mortos por eles do que possam pensar.

O grupo fez um circuito, de modo a passar bem afastado do ancoradouro dos hipopótamos. Mas ao aproximarem-se dos juncos onde esperavam encontrar a pequena canoa escondida, tiveram de passar muito próximo de dois hipopótamos, particularmente grandes. Os animais pareciam olhá-los sonolentos, de repente, sem qualquer aviso, atacaram.

Felizmente, eles atacaram em direcção ao rio, com grande agitação e um barulho estrondoso. Cada um dos animais, de multitoneladas, deixara o seu largo rasto através dos juncos até à água. Por alguns instantes, o coração de cada um dos seres humanos bateu violentamente no peito.

Levaram alguns minutos a recuperar, até que se sentissem aptos a continuar. O céu começava agora a ficar progressivamente mais claro, e eles sabiam que não tinham tempo a perder. O curto passeio levara mais tempo do que esperavam.

— Graças a Deus, ainda cá está! — disse Kevin, quando afastou os juncos e encontrou a pequena canoa. Até a caixa de Styrofoam com comida estava no lugar.

Mas chegados à canoa pôs-se novo problema. Logo decidiram que a canoa era demasiado pequena para sete pessoas. Após uma difícil discussão, foi decidido que Jack e Warren ficariam nos canaviais, aguardando que Kevin regressasse com a canoa.

A espera foi assustadora. Não só o céu se tornava cada vez mais claro, pressagiando a chegada da canoa e a possível chegada de soldados, mas havia também a preocupação de que a canoa motorizada tivesse desaparecido. Jack e Warren, com grande nervosismo, ora olhavam um para o outro, ora para os seus relógios, enquanto lutavam com nuvens de insaciáveis insectos. E para culminar, sentiam-se exaustos.

Justamente quando supunham que alguma coisa terrível acontecera aos outros, Kevin apareceu entre os juncos como uma miragem, e silenciosamente veio a remar até eles.

Warren meteu-se na canoa seguido de Jack.

—O barco a motor está bom?—perguntou Jack com ansiedade.

—Pelo menos,estava lá—disse Kevin.—Não experimentei pôr o motor a funcionar.

Saíram dos juncos e dirigiram-se ao rio Diviso. Infelizmente, havia inúmeros hipopótamos e até mesmo alguns crocodilos, pelo que foram forçados a remar mais longe para se distanciarem deles o máximo possível.

Antes de deslizarem para a ramagem que escondia a foz do rio bordejado de mata, avistaram alguns soldados à distância, entrando na clareira.

—Acha que nos viram?—perguntou Jack da sua posição à proa.

— Como é que se vai saber? — disse Kevin.

— Vamos escapar daqui por um fio — disse Jack.

A espera fora igualmente difícil para as mulheres. Quando a pequena canoa acostou, havia lágrimas de alívio nos olhos delas.

A preocupação final era o motor de borda de água. Jack concordou em ocupar-se dele, devido à experiência que tivera em adolescente. Enquanto verificava o motor, os outros recuavam a pesada canoa para fora dos canaviais e para a zona aberta.

Jack abriu o combustível e depois, com uma breve oração, puxou o gatilho.

O motor cuspiu e pegou. Era barulhento na quietude da manhã. Jack olhou para Laurie. Ela sorriu e colocou o polegar para cima.

Jack pôs o motor em posição, abriu a válvula de pressão e dirigiu-se directamente para sul, onde conseguiram ver o Gabão, como uma linha verde ao longo do horizonte.

 

3 DE MARÇO, 1997 - 15:30 COGO, GUINÉ EQUATORIAL

Lou Soldano olhou para o relógio enquanto mostrava o seu dístico da Polícia para passar para a zona alfandegária das chegadas, no Aeroporto Internacional Kennedy. Tinha encontrado mais trânsito no meio do túnel do que pensava, e esperava não ter chegado demasiado tarde para receber e cumprimentar os viaj antes, que regressavam da viagem pelo mundo. Dirigindo-se a um dos funcionários, procurou informar-se por onde saía a bagagem da Air France.

—Lá bem para o fundo, irmão—disse o funcionário, apontando com o braço.

“Tenho mesmo sorte”, pensou Lou, enquanto começava a fazer jogging. Depois de uma curta distância afrouxou, e, pela milionésima vez, desejou parar de fumar.

À medida que se aproximava, foi fácil ver qual o tapete rolante que procurava. No monitor aparecia em letras maiúsculas o nome AIR FRANCE. À volta, havia quatro carreiros de pessoas.

Após ter feito meio circuito, Lou viu o grupo. Embora olhassem noutra direcção, ele reconheceu o cabelo de Laurie.

Introduziu-se entre os outros passageiros e apertou o braço de Laurie. Ela voltou-se indignada mas logo o reconheceu. Depois, deu-lhe um abraço tão apertado que o rosto dele enrubesceu.

— Okay, okay, desisto — conseguiu Lou dizer. Deu uma gargalhada.

Laurie largou-o para ele dar um aperto de mão a Jack e a Warren. Lou deu um beijo no rosto de Natalie.

—Então, fizeram boa viagem?—questionou Lou. Era aparente que estava todo chateado.

— Sim, foi okay — concordou Laurie. — O problema é que não aconteceu nada.

— Realmente? — disse Lou. — Estou surpreendido. Sabes, sendo África e tudo o resto... Nunca estive lá, mas tenho ouvido falar.

— Tens ouvido falar de quê, pá? — perguntou Warren.

— Bem, há muitos animais... — disse Lou.

— Só isso? — perguntou Natalie.

Lou encolheu os ombros com um certo embaraço.

— Suponho. Animais e o vírus Ébola. Mas como já disse, nunca estive lá.

Jack deu uma gargalhada e, ao ouvi-lo, os outros fizeram o mesmo.

— Que se passa aqui? — disse Lou. — Estão a gozar comigo?

— Receio bem que sim—disse Laurie.—Tivemos uma viagem fabulosa! A primeira parte foi um pouco atormentada, mas conseguimos sobreviver, e quando chegámos ao Gabão, então, tudo mudou.

— Viram animais? — perguntou Lou.

— Mais do que podes imaginar — respondeu Laurie.

— Vês, é o que toda a gente diz — observou Lou. — Talvez um dia eu próprio vá até lá.

A bagagem veio, e eles puseram-na ao ombro. Passaram facilmente pela alfândega e atravessaram o terminal. O carro de Lou estava numa curva, não identificado.

— É uma das poucas facilidades — explicou ele.

Puseram a bagagem no porta-bagagens e entraram. Laurie sentou-se ao lado de Lou. Lou saiu do aeroporto e logo ficaram metidos no sarilho do trânsito.

— E tu?—perguntou Laurie.—Avançaram alguma coisa aqui por estes lados?

— Estava a ver que não iam perguntar! — disse Lou. — Vocês não acreditam como as coisas estão a correr. Foi aquela Agência Spoletto Funeral Home que era a mina de ouro. Neste momento, toda a gente está a pedir clemência. Até consegui uma acção criminal contra Vinnie Dominick.

—Isso é fantástico!—disse Laurie.—E aquele porco horrível... Angelo Facciolo?

— Ele ainda está por detrás das grades — disse Lou. — Nós prendemo-lo por roubar o corpo de Franconi. Sei que não é grande coisa, mas lembra-te que Al Capone foi preso por fuga ao fisco.

— E o buraco no Instituto de Medicina Legal? — perguntou Laurie.

— Resolvido — disse Lou. — Aliás, foi por aí que conseguimos prender o Angelo. Vinnie Amendola está disposto a testemunhar.

— Então, foi Vinnie! — disse Laurie com um misto de vingança e lamento.

— Não admira que ele tenha agido de uma maneira tão esquisita — disse Jack do banco de trás.

— Houve uma viragem brusca — disse Lou. — Houve mais alguém misturado nisto tudo que nos apanhou de surpresa. Ele está fora do país de momento. Quando regressar, vai ser preso por assassínio de uma jovem de nome Cindy Carlson, na Jérsia. Cremos que foram Franco Ponti e Angelo Facciolo que cometeram o acto, mas por instruções desse tipo. O nome dele é Raymond Lyons. Algum de vocês o conhece ?

— Nunca ouvi falar dele — disse Jack.

— Nem eu — disse Laurie.

—Bem, ele está envolvido no negócio dos transplantes de órgãos em que vocês estavam tão interessados — disse Lou. — Mas isso virá mais tarde. Agora, quero ouvir as peripécias da primeira parte da viagem.

— Para isso, vais ter de pagar o jantar—disse Laurie.—É uma história um tanto ou quanto longa.

 

 

 

GLOSSÁRIO

ADN: Iniciais de ácido desoxirribonucleico, que contém informação

genética.

BONOBO: Um macaco antropóide, classificado como espécie em 1.933. Da família do macaco, ocasionalmente caminham sobre as patas traseiras e encontram-se numa área localizada do Zaire.

CENTRÓMERO: Uma porção especializada do cromossoma, que desempenha um papel importante na reduplicação do cromossoma durante a divisão celular.

CROMOSSOMA HOMÓLOGO: Cromossomas que são semelhantes no que se refere aos seus genes e estrutura visível: ex. cada cromossoma num par de cromossomas.

CROMOSSOMA: Uma estrutura alongada no núcleo de uma célula que contém o ADN. Nos seres humanos e nos macacos, existem vinte e três pares de cromossomas para um total de quarenta e seis.

CRUZAMENTO: O intercâmbio de partes do cromossoma entre pares de cromossomas durante a meiose.

ENDOTILIALIZAÇÃO: A cicatrização das paredes interiores dos vasos sanguíneos através das células que cobrem essas mesmas paredes.

GENE: Uma unidade funcional da hereditariedade, que provém de uma sequência do ADN, localizado num local específico no cromossoma.

GENOMA: O complemento completo de genes num organismo. Nos seres humanos, o genoma contém aproximadamente cem mil genes.

GRANULOMA: O crescimento de uma mistura de células especializadas como resultado de uma inflamação crónica.

HISTOCOMPATIBILIDADE: Um estado em que dois ou mais organismos podem partilhar órgãos ou tecidos (ex. gémeos idênticos).

LINFOQUINA: Uma hormona imunologicamente activa produzida por certas células imunes chamadas linfócitos.

MEIOSE: Um tipo especial de divisão celular que ocorre durante a criação das células do sexo (óvulos e espermas), o que faz que cada célula tenha metade do número usual de cromossomas. Nos seres humanos, cada célula tem vinte e três cromossomas.

MEROZOITO: Um estado no ciclo de vida de alguns parasitas que permite que o organismo se disperse e infecte células adicionais dentro da nova área (zona anfitriã).

MITOCONDRIA ADN: O ADN necessário para uma duplicação exacta do mitocondrial. É hereditário apenas pelo lado materno.

MITOCONDRIA: Entidades que se duplicam exactamente por si próprias em células que produzem energia.

PARASITA: Um organismo que vive de um outro organismo (ou anfitrião). O parasita não ajuda o organismo anfitrião; aliás, ele tipicamente lesa o anfitrião.

PARASITOLOGIA: Um ramo da biologia que trata dos parasitas.

PATOLOGIA FORENSE: Um ramo da patologia que relaciona a ciência patológica com a lei civil e criminal.

PATOLOGIA: Um ramo da ciência médica que envolve a causa, o processo, os efeitos anatómicos e a consequência da doença.

PROTEÍNAS RIBOSSOMAIS: As proteínas que formam um ribossoma. O ADN que codifica estas proteínas é uma espécie específica e é usada para identificar a espécie dos tecidos (ex. para determinar se o sangue é sangue de um ser humano ou de uma espécie de animal em particular).

QUIMERA: A combinação de um leão, uma cabra e uma serpente na mitologia grega. Em literatura, a quimera é uma criação da imaginação: uma mistura impossível. Em biologia, uma quimera é um organismo que contém tipos de células geneticamente distintas. Em genética, uma quimera é uma entidade que contém uma mistura de ADN proveniente de diferentes origens.

RECOMBINANTE ADN: Um composto molecular do ADN que é feito em laboratórios com ADN proveniente de várias origens.

RIBOSSOMA: Uma entidade celular responsável por produzir toda a proteína celular.

TECNOLOGIA DE RECOMBINAÇÃO DO ADN: A ciência aplicada através da qual segmentos do ADN ou genes são separados, produzidos e recombinados.

TRANSGENICO: Um organismo cujo genoma contém um ou mais genes de uma outra espécie (ex: porcos que têm genes humanos para que as válvulas do coração de porcos sejam mais bem toleradas em seres humanos).

TRANSPOSIÇÃO HOMÓLOGA: A permuta de porções correspondentes do ADN entre cromossomas homólogos.

VACINA: Uma substância dada a um indivíduo para que esse indivíduo possa produzir resistências a uma doença ou infecção.

XENÓGRAFO: Um órgão ou tecido que é tirado de uma espécie e transplantado numa outra espécie. Geralmente, um xenógrafo refere-se a um órgão ou tecido de um animal que é transplantado num ser humano (ex: uma válvula do coração de um porco).

 

 

                                                                  Robin Cook

 

 

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