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Marlow é um actor de prestígio e homem de múltiplas máscaras. Cyntia, amante de Marlow, torna-se vítima dos seus desejos e encantos, O cenário é a morte, mas não uma morte vulgar: a do próprio Marlow, brilhante actor que vai desempenhar o papel mais exigente e ambicioso da sua carreira: representar a própria morte num extraordinário drama de vingança e desejo.
Marlow um grande actor no palco, um homem de muitas máscaras na sua tumultuosa vida privada.
Cynthia a sua amante, vítima do seu encanto e escrava dos seus desejos.
David o seu filho ilegítimo, que cresceu para ser o seu rival e se esforça por não ser um fantoche nas suas mãos.
Barbara uma beldade libertina, faminta do amor de um homem a quem dera de mais e demasiado cedo.
Estes são os actores. O cenário é a Morte. E Toby Marlow começa a desempenhar o mais difícil e exigente papel de uma longa e brilhante carreira. Sempre viveu em grande estilo. Por que motivo o seu abandono haveria de ser menos retumbante?
Primeiro Acto
CENA UM
Sentou-se na beira da secretária da recepcionista, inclinou-se um pouco e espreitou para o decote dela.
- Conheci uma cordilheira montanhosa que se parecia consigo - disse ele. - Os Grandes Tetons.
- Oh, Mr. Marlow! - disse a mulher, rindo.
- É realmente viúva, Suzy? - perguntou ele.
- Duas vezes - respondeu-lhe ela. - Os meus dois maridos morreram.
- De quê? De exaustão?
Marlow saltou da secretária, tentou endireitar-se e levou a mão às costelas.
- Está bem? - perguntou ela ansiosamente. - Se calhar devia estar em casa, na cama.
- Que óptima ideia - exclamou ele. - Vamos.
Começou a andar em volta do gabinete, tentando respirar fundo. Doía-lhe fazê-lo.
- Lamento saber que esteve no hospital, Mr. Marlow - disse ela. - Espero que não fosse nada grave.
- Estive a ser observado para o Livro Guinness de Recordes Mundiais - retorquiu. - Eles nem queriam acreditar. Onde está aquele homem?
- Deve estar a chegar. Ele sabia que o senhor vinha hoje.
- Então sabe mais que a minha mulher. vou ao gabinete dele fazer uma chamada.
- O Dr. Ostretter não gosta que o telefone dele seja usado para fazer chamadas pessoais - avisou a secretária.
- Eu sei, Suzy - disse Toby Marlow. - É tão mesquinho que se peida nos elevadores. Eu deixo uma moeda quando sair.
Entrou no gabinete privado de Julius Ostretter, sentou-se na sua cadeira giratória e pousou os pés em cima da secretária polida. Ligou para Hollywood e depois apertou as costelas com a mão. O telefone foi atendido ao terceiro toque.
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- Olá, pá - disse Marlow. - Quem fala?... Quem? O corretor? O Leo tem um corrector que faz visitas domiciliárias? Agora é que eu percebo para onde vão os dez por cento dele. Podes chamá-lo, sim?... Leo? Viva, pá... Eu também te adoro... Leo, que é que se passa com a Universal?... Quem ficou com o papel?... Estás a gozar comigo! Esse não é o tipo que usa uma argola no nariz?... Eu sei, Leo, mas para fazer Martinho Lutero?... OK, esquece isso. Quem é que faz a rainha Isabel?... Escuta, Leo, Harry não tem opanache... Eu sei que ele faz isso, mas eu dissepanache. É a palavra francesa para chutzpah... Oh! Ele também faz isso?
Julius Ostretter entrou no gabinete em passadas largas, com uma mala diplomática preta na mão. Olhou, furioso, para o homem sentado à sua secretária.
- OK, Leo, tenho que me despachar; tenho o carro estacionado em segunda fila. Diz à malta daí que estou de perfeita saúde e pronto para voltar a trabalhar... Certo... Serve... Adeus, pá.
Desligou e olhou para Ostretter.
- Para onde estava a ligar? - perguntou o advogado.
- Hong Kong - disse Marlow. - Onde diabo esteve?
- Vim um pouco atrasado - disse Ostretter. - Estive a ver a parada húngara.
- Quanto é que se pagava? - perguntou Toby Marlow.
- Que é que há de tão importante que não pode esperar uns minutos? Saia da minha cadeira.
- Julius, pelo amor de Deus, estou praticamente inválido e obriga-me a mexer-me?
Resmungando, Ostretter sentou-se no sofá de cabedal ao lado da secretária.
- Muito bem - disse ele. - Então qual é a emergência?
- Recebi uma carta muito antipática do Governo.
- Onde está?
- Em Washington, D. C.
- Deixe-se disso, Toby, a carta... onde está a carta?
- Rasguei-a e deitei-a pela sanita abaixo. Era do IRS, daqueles bandalhos. Dizem que lhes devo mais impostos. Julius, que é que o Governo faz com todo o meu dinheiro?
- O FBI...
- Fui assaltado duas vezes este ano.
- As forças armadas...
- Na noite passada, um marinheiro fez-me uma proposta indecente.
- A ajuda aos países subdesenvolvidos...
- Ah! Na semana passada o embaixador da Nigéria ficou com a
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minha mesa no Chantilly. Estou a dizer-lhe, Julius, o Governo está a viver à grande, enquanto eu vivo na miséria.
- No ano passado tentou deduzir cinquenta por cento do seu rendimento como despesas de negócios.
- Cinquenta por cento! Isso nem dá para pagar a minha vodca.
- Eu disse-lhe que não ia resultar. Como se sente?
- Péssimo. O seu irmão vem esta tarde para...
- Alto! - gritou Ostretter, erguendo a mão. - Não mencione o nome dessa criatura! Não quero ouvir uma palavra acerca dele!
- Está bem, pronto. Calma. Juro que não menciono o nome de Jacob Ostretter.
Julius Ostretter gemeu.
- Então que devo fazer? Quanto à carta?
- Pague-lhes o que lhes deve, Toby. Para o Governo poder comprar mais um contratorpedeiro.
- Se fosse só um contratorpedeiro não me importava. Mas a Sexta Armada? Ah, que se lixe. Eu vou lutar. Eles que me levem a tribunal.
- Vai perder - disse Julius Ostretter.
- Então faço um apelo, e mais outro apelo, e mais outro. Levo a coisa ao tribunal máximo!
- Vai ser uma bela votação - disse o advogado. - Nove contra zero.
- Não vou ao Supremo Tribunal, idiota - disse Toby Marlow. - Eu disse ao tribunal máximo!
À saída, a recepcionista disse:
- O telefonema, Mr. Marlow.
Ele pescou uma moeda de um quarto de dólar do bolso do casaco e colocou-a na mão macia dela.
- Há muitas mais de onde essa veio - sussurrou.
Teve que esperar muito tempo por um táxi. Teve dificuldade em dobrar-se para se sentar. Na realidade, não estava a sentir-se muito bem.
- Para onde vamos, avozinho? - perguntou o motorista.
Isso também não ajudou muito.
CENA DOIS
O prédio de apartamentos na Central Park West chamava-se The Montana. Butte deveria tê-los processado. Mas as rendas eram baixas, os tectos muito altos e, de vez em quando, o elevador funcionava. O apartamento dos Marlow ficava no último andar. Tinha quatro
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quartos de dormir, três casas de banho e roupeiros suficientemente largos para encontros clandestinos. O apartamento não era pintado havia já seis anos; algumas das paredes já apresentavam bolor.
A imensa sala de estar lembrava o projecto de um projectista boliviano para uma cervejaria bávara. As paredes eram de estuque caiado, amarelecido pela idade, pelo fumo dos charutos e pelas piadas estúpidas. As vigas enegrecidas cruzavam-se nas paredes e reforçavam o tecto alto. Suspensa do tecto, via-se uma antiquada ventoinha eléctrica de pás de madeira que girava preguiçosamente, com um zumbido pensativo, mal agitando o ar pesado.
Ao fundo havia um fogão de sala, suficientemente grande para permitir assar um cocker spaniel. Tinha uma consola de mármore amarelada e, por cima, um cartaz teatral emoldurado que representava Toby Marlow com o trajo e a maquilhagem de Falstaff. Uma porta à esquerda abria para a sala de jantar, a copa e a cozinha. A porta da direita dava para o corredor e para os quartos.
Havia janelas altas de ambos os lados da lareira. A da direita era uma janela saliente, arredondada, com um assento almofadado. A janela arredondada tinha vidros coloridos como os vitrais. Alguns dos pequenos vidros estavam partidos; estavam cobertos, na sua maior parte, com quadrados de cartão presos com fita adesiva. De um deles saía um trapo.
A mobília, à escala daquela sala que mais parecia um celeiro, era grande, antiga, gasta. Havia um enorme sofá, que inicialmente tivera bom aspecto, mas agora estava cheio de altos e fatigadamente descaído. A cobertura de veludo estava lustrosa, manchada e marcada com queimaduras de cigarros. Havia maples por toda a parte. Todos diferentes; tinham o aspecto transitório de terem sido trazidos do armazém de um teatro. E era mesmo essa a sua origem. Um deles tinha perdido uma perna e encontrava-se apoiado sobre uma pilha de velhos manuscritos teatrais.
Havia algumas mesas periclitantes, um bar sobre rodas, uma longa mesa baixa em frente do sofá, um velho piano vertical cheio de cicatrizes, encostado a uma parede. A música no suporte era Uma Canção ao Crepúsculo.
A sala encontrava-se ainda atravancada com uma confusa profusão de adereços teatrais: uma alabarda manchada com a lâmina partida, uma caveira de plástico, uma máscara do diabo, uma grande travessa de latão com pedrarias de vidro, dois balões de teatro burlesco, um tambor com a pele rasgada, plumas fingidas e folhagem de borracha e muitas mais coisas do mesmo género. Por toda a parte havia fotografias autografadas, em molduras, de actores obscuros com quem Marlow tinha actuado - e de alguns famosos com quem não tinha.
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Toby Marlow, envergando um velho roupão de brocado, com chinelas esfiapadas nos pés e um lenço de seda com um desenho diabólico atado de lado em volta do pescoço, estava ajoelhado no banco da janela. Encontrava-se debruçado sobre uma parte aberta da janela, gritando imprecações e agitando os braços desvairadamente para correr com os pombos que sujavam o pequeno terraço. O Dr. Jacob Ostretter arrumava objectos dentro de uma maleta preta pousada em cima da mesinha baixa. Blanche, a criada, governanta, cozinheira e primeiro sargento em casa dos Marlow fingia limpar o pó e arrumar a confusão da sala de estar.
- Fora daqui, seus gandulos! - gritava Marlow. - Embora! Toca a voar! - Agitou os braços, a resmungar. Depois fechou a janela e voltou para dentro. - Malditos pássaros! Têm doenças e sei lá o que mais... não têm?
- Não sei - disse o Dr. Ostretter. - Nunca tratei nenhum pombo.
- Espertalhão - disse Marlow. - Quem diz as piadas nesta casa sou eu. Vi o seu irmão há algumas horas. Disse que...
Jacob Ostretter ergueu as mãos.
- Não me diga! - bradou. - Não diga o nome desse homem!
- De Julius Ostretter?-disse Marlow inocentemente.-Um belo nome. Sai-me mesmo sem querer.
- Um goniff (1) - gritou o Dr. Jacob. - Um demónio em figura de gente!
Marlow riu-se:
- Vocês os dois lembram-me aquele par da Bíblia, sabe quem são...
- Caim e Abel? - perguntou Ostretter.
- Não me dê deixas, meu rapaz - disse Marlow. - Estava a pensar em Sodoma e Gomorra. - Coçou as costelas e o ventre. - Meu Deus, Jake, que é que fez? Deitou pós de comichão por baixo da ligadura?
- É a incisão a sarar.
- A sarar? Isso é que era bom. Parece a boca de um palhaço.
O Dr. Jacob Ostretter fechou a sua maleta, colocou o chapéu de coco preto na cabeça em forma de pêra. Mas continuou a remexer-se no mesmo lugar, mostrando relutância em partir. Era um homenzinho roliço, com pouco mais de um metro e sessenta de altura e sapatos com saltos bastante altos. Erguia o queixo gordo e punha-se nas pontas dos pés ao falar. Imaginava que isso lhe dava um ar de severa autoridade. Mas a sua voz suave e cheia de simpatia traía-o geralmente. Quase tinha sido corrido da Faculdade de Medicina por chorar ao dissecar uma rã.
(1) Ladrão, em iddiche. (N. da T.)
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- Toby - disse ele gentilmente. - Preciso de falar consigo.
- Então fale.
O Dr. Ostretter olhou para Blanche, que limpava lentamente o pó a um mocho de papier-mâché.
- Em particular - disse.
Blanche começou a dirigir-se para a porta da cozinha.
- Cavalona - disse Marlow -, se dás mais um passo, faço-te uma raspagem com um pauzinho de chupa-chupa. Jake, seja o que for que tem para me dizer, diga-o diante de Blanche. Em trinta anos nunca tive segredos para com ela e não vou começar agora.
O Dr. Ostretter encolheu os ombros.
- Está bem. Toby, há quanto tempo tem andado a sangrar?
- Toda a minha vida - disse Marlow.
- Deixe-se dessa conversa fiada de actor. Sabe o que eu quero dizer. Há quanto tempo?
- Há alguns anos.
- Quantos anos?
- Quatro. Cinco. Qualquer coisa no género.
- Cinco anos a perder sangue e não foi procurar-me?
- Tinha coisas mais importantes a fazer - disse Marlow.
- Mais importantes? - O Dr. Jake estava indignado. - O quê? Pode dizer-me o quê?
- Bom, quando começou, pensei em ir consultá-lo, mas depois deram-me o primeiro papel em O Idiota.
- Um papel adequado - disse Blanche.
Marlow voltou-se bruscamente para ela.
- E fala! - exclamou. - Jake, ouviu aquilo? Até fala! Este mês vais levar uma estrela de prata na tua caderneta, minha filha.
- Então, só porque arranjou trabalho, não foi procurar-me?
Marlow começou a passear pela sala, pegando nos objectos, inspeccionando-os, voltando a pousá-los.
- O Idiota - disse pensativamente. - Eu fazia um grande papel, mas o teatro encerrou em Boston na primeira semana. Uns actores péssimos. A história da minha vida. Quando chegar a minha altura, quero que me levem para lá para que possam escrever no meu túmulo "Enterrado em Boston".
O Dr. Ostretter abanou a cabeça, irritado.
- Não pode falar a sério durante um minuto?
- Não - disse Toby Marlow.
- bom, isto é sério. Maligno, Toby. Começou no seu cólon. Agora estendeu-se ao pâncreas. Eles abriram e fecharam logo. Toby, eu estive lá. Não há nada que se possa fazer.
Fez-se silêncio então. Os três ficaram parados num quadro desajeitado. Jake e Blanche olhavam para Marlow. Ele fechou os olhos
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lentamente. Só se ouvia o zumbido inútil da ventoinha eléctrica. A tensão foi crescendo, crescendo... Depois Toby abriu os olhos, era demasiado bom actor para permitir que um longo silêncio se tornasse embaraçoso.
- Chega de pausas dramáticas - disse. - Não há nada a fazer, Jake? Isso é pungente.
-Pungente? - disse Blanche. - Há vinte anos que não ouvia essa palavra.
- É claro que não, porque nada foi pungente nos últimos vinte anos. Então estou prestes a separar-me deste invólucro mortal, certo, Jake?
Ostretter fez um gesto.
- Sim - disse, com a voz embargada. - Sinto muito, Toby.
- Vá para o diabo - disse Marlow. Recomeçou o seu passeio e Blanche retomou a sua limpeza pouco entusiástica. - Quanto tempo tenho, Jake?
O Dr. Ostretter encolheu os ombros.
- Talvez seis meses - disse. - No máximo.
- Muitas dores? - perguntou Marlow.
- Sim - disse Ostretter. - Muitas. Mas podemos ajudar a controlá-las. Quer voltar para o hospital?
- Céus, não! Todas aquelas enfermeiras tinham bigode. vou ficar aqui a chatear toda a gente. Talvez até dê cabo de mim antes de acabarem esses seis meses.
- Não me admirava nada - disse Ostretter. - Quer consultar outro médico?
- Para quê? Confio em si. Os vilões com os seus facalhões eram dos bons, não eram?
- Sim, eram bons. Não há saída, Toby.
- Nunca houve, pois não? OK, Jake; é melhor mandar-me a conta antes que acabem esses seis meses.
O Dr. Ostretter tirou os óculos de armações de osso e limpou-os cuidadosamente com o lenço. E, com a cabeça ainda baixa, levou o lenço rapidamente aos olhos.
- Eu passo por cá amanhã, Toby, para falar mais consigo... acerca do que pode esperar.
- Eu sei o que posso esperar.
O médico dirigiu-se para a porta, com os ombros curvados. Depois parou e voltou-se para trás.
- Toby, já falou com Miss Evings?
- Barbara? Claro, falei com ela na noite passada. Todas as noites. Ela quase vive aqui. Porquê?
- Ela disse-lhe?
- Disse-me o quê?
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- Preferia que fosse ela a dizer-lhe.
- Dizer-me o quê, que diabo? Que história é essa?
- vou deixar que seja ela a dizer-lhe.
- Ah, vá-se lixar. Jake... muitas dores?
- Sim. Muitas dores.
- Eu aguento tudo menos dores, fome e pobreza.
Blanche disse:
- É isso que o torna tão diferente das outras pessoas.
- Está a ver, Jake? - disse Toby. - Ela nunca diz uma coisa inteligente. Desempenhei uma série de comédias de alcova, e em todas elas a criada é divertida que se farta. Mas que é que eu arranjei? Uma criada que tem passado a vida a representar Lady Macbeth.
- Não sou sua criada - disse Blanche.
- Então o que és?
- Sou sua governanta.
- Essa foi boa - reconheceu Marlow. - Outra estrela de prata.
- Continue a tomar os comprimidos, Toby - disse o Dr. Ostretter. - De três em três horas. Nada de fumar nem de beber, e nada de sexo. Pode tomar banhos, mas só de esponja.
- Escuta, Blanche - disse Marlow -, se calhar, em vez da estrela de prata, permito-te que me dês um banho de esponja.
- Não, obrigada - disse ela. - Já o vi nu. Duas ameixas e uma massinha.
- Está a ver, Jake? - disse Marlow. - Mal se sabe que vamos morrer, os lobos apertam o cerco.
O médico abanou a cabeça tristemente e saiu pela porta que dava para o corredor. Mal ele saiu, Toby Marlow dirigiu-se ao carrinho das bebidas e serviu dois uísques. Entregou um a Blanche e pousou o seu sobre a mesinha.
Depois retirou um grosso charuto do bolso superior do roupão. Extraiu o invólucro de celofane e deitou-o para o chão. Tirou um fósforo de madeira de uma caixa sobre a mesa e ergueu-o bem alto - uma descontraída Estátua da Liberdade. Uma lâmina da ventoinha eléctrica do tecto aproximou-se, raspou pela cabeça do fósforo e acendeu-o. Toby acendeu o charuto, sacudiu o fósforo para o apagar e atirou-o para o chão.
Recostou-se cuidadosamente no sofá e pegou no uísque. Blanche veio colocar-se diante dele. Ergueram os copos num brinde silencioso e beberam avidamente. Depois de Marlow ter o seu charuto bem aceso, inalou profundamente e fez uma série de anéis perfeitos; em seguida, estendeu-o a Blanche. Ela inspirou profundamente, com prazer, e devolveu-lhe o charuto.
Provinha de uma família de agricultores do Nebraska e apresentava todo o aspecto correspondente. Era uma mulher grande, com a
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presença física e a postura agressiva de um vigilante de bordel. Tinha um metro e setenta e dois, pesava oitenta quilos, tinha ossos largos, ombros e ancas maciças e uns seios impressionantes. Os seus cabelos grisalhos e espetados estavam bem esticados para trás e atados com um feminino laço cor-de-rosa. Estava perto dos sessenta anos e as suas feições eram pesadas, masculinas, quase equinas. Mas tinha uma pele lisa, rosada como a pele de um pêssego, até mesmo com a sua penugem dourada. O simples gole de uísque tinha provocado um rubor não só no seu rosto, mas também nos braços nus. Provavelmente, em todo o seu corpo.
- Jake disse que não bebesse nem fumasse - recordou ela a Marlow.
- E nada de sexo. - Acenou afirmativamente com a cabeça. - Mas morrer pode-se.
Ela bebeu outro gole de uísque e olhou-o por cima do rebordo do copo. Os seus olhos encontraram-se; ficaram a olhar um para o outro durante um longo momento, em silêncio.
- Assustado? - perguntou ela com voz suave. Ele respirou fundo.
- "Cada um desempenha o seu papel e tem o seu dia. E então! O mundo não está mal, digo eu." Sabes quem escreveu isto?
- Shakespeare?
- Santo Deus, Blahche, ele não escreveu tudo! Não, não foi o Will. Esqueci-me de quem foi. A minha memória é um saco da roupa suja das palavras de outros homens. Que temos para o jantar?
- Ensopado de borrego - disse ela.
- Outra vez?
- Por que é que diz outra vez? - perguntou ela, furiosa. - Há um mês que não comemos ensopado de borrego.
- É isso mesmo que eu quero dizer... outra vez?
Ela resfolegou, acabou a sua bebida e serviu-se de um pouco mais. Ele estendeu-lhe o copo vazio com uma tal expressão de pedinte infeliz que Blanche riu e serviu-lhe também um pouco mais.
- Toby - disse -, quer que não diga a ninguém?
- Do ensopado de borrego? - disse ele. - Sim, não tenho mais orgulho nele do que tu. Mas suponho que...
- Sabe bem a que me refiro - disse ela. - Ao que Jake disse. Vai contar aos outros?
Ele fitou-a, estupefacto...
- Perdeste por completo o teu minúsculo bom senso? É claro que vou contar aos outros. Julgavas que eu ia sofrer nobremente e em silêncio, hein? Escuta, minha querida, este é o melhor papel que tenho nos últimos cinco anos. vou tirar o máximo partido dele. vou ser magnífico: cheio de coragem sorridente no exterior, todo despreocupação
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e alegria descuidada que destroçarão o coração de quem me vir. Porque todos sabem que, cá dentro, no fundo de mim, estou a sofrer. Fá-lo-ei principalmente através dos gestos: pequenos movimentos controlados à John Gielgud que transmitirão a minha insuportável angústia, Meu Deus, que papel vou fazer! Só gostava que os críticos pudessem apreciá-lo. Estou ansioso por começar a desempenhá-lo.
- Já começou - disse ela.
Ele entregou-lhe o charuto de novo, para ela poder puxar outra fumaça. Observou-a através do fumo, com a cabeça inclinada, os olhos semicerrados...
- Sabes, minha querida, tu pareces mesmo uma égua. Já te disse isto alguma vez? A garupa, o garrote, o lombo, o jarrete. Se um dia relinchasses ao responder-me, não ficaria minimamente surpreendido. E no entanto... E no entanto...
- No entanto o quê, Godzilla?
- Oh merda... Não sei. Às vezes penso que noutro mundo, noutra vida, noutro tempo, tu e eu poderíamos ter tido qualquer coisa. Qualquer coisa juntos. Qualquer coisa boa e bela? Nunca sonhaste com isso?
- Oh - suspirou ela -, você é um demónio, isso é que é. Um demónio!
Ele sorriu e começou a dizer:
- Acho que eu...
Subitamente, agarrou-se ao abdómen. A dor contorceu-lhe as feições. Revirou os olhos.
- Meu Deus - arquejou. - Oh, meu Deus... Oh Blanche...
Ela ficou aterrorizada.
- Que foi? Que foi, Toby? Quer os comprimidos? Quer que chame...
- Estou a ensaiar, pelo amor de Deus - disse ele alegremente, endireitando-se. - Mas convenci-te, não convenci? Vês como vou ser bom quando começar a desempenhar este papel? - Blanche olhou-o, furiosa. Bebeu o resto do uísque e recomeçou a sua limpeza pouco cuidadosa. Agitava o espanador, furiosa mas futilmente, não se esquecendo de espanar a cabeça calva de Toby Marlow por detrás, um ataque que ele aceitou com um sorriso benevolente.
Aquele sujeito pretensioso era totalmente calvo - nem sequer uma franja circundante. Mas a sua coroa brilhante tinha dimensões nobres, fazia lembrar uma testa ilimitadamente alta. Longe de se sentir complexado com a sua cabeça nua, ele vangloriava-se da sua nudez e, de vez em quando, gostava de a ungir com óleo de bebé, a fim de aumentar o seu brilho. "Este pristino globo", chamava-lhe ele orgulhosamente.
Tinha mentido tantas vezes acerca da sua idade que ninguém, incluindo a mulher e o filho, tinha a certeza absoluta. Um dizia 60, o
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outro 65. Ele dizia 53. Tinha uma pele avermelhada, com os capilares semelhantes a um mapa de estradas do bebedor inveterado e a textura dérmica grosseira de alguém que usava, desde há muitos anos, maquilhagem de palco. Tinha um nariz grosso, lábios cheios, olhos grandes e indecentemente inocentes.
A sua voz era magnífica: profunda, ressonante, com uma vibração aveludada - uma voz treinada para o teatro, de modo que até os seus sussurros chegavam à geral. Apesar da sua idade, movia-se com leveza, com uma graciosidade quase felina. Tinha uns pés e umas mãos inesperadamente delicados.
Como a maior parte dos actores fora do palco, tinha um aspecto decadente e desalinhado. Os seus fatos eram os trajos do guarda-roupa; os seus gestos tinham o exagero desproporcionado de quem sempre vivera numa arena. A sua obra de arte favorita era um espelho; se conseguisse alcançar uma androginia total, casar-se-ia consigo próprio. Naquele momento, estava sentado calmamente, condenado à morte, senhor de tudo aquilo que tinha obtido e, com uma auto-segurança monumental, beberricava o seu uísque e fumava o seu charuto. O seu sonho foi interrompido pela chegada de Barbara Evings. A jovem flutuou pela sala como uma aparição voluptuosa, trazendo consigo um ramalhete de violetas pendentes. Abraçou Blanche, beijando-a nas faces. Depois trotou até ao sofá com pequenos passos e inclinou-se para beijar a calva de Toby. Deixou-se cair fluidamente no chão aos pés dele, ergueu o olhar e ofereceu-lhe as flores.
Ele aceitou-as majestosamente, como se lhe fossem devidas, retirou uma do ramo e colocou-a atrás da orelha. Inclinou-se para abrir mais o decote de Barbara, olhou para o seu interior com uma lascívia burlesca e um grande estalo com os lábios. Depois introduziu o resto das violetas entre os seios de Barbara.
- "Não chores mais" - recitou ele, "Nem suspires, nem gemas"
"O desgosto não traz o tempo que passou;
"Às violetas colhidas, nem a mais doce chuva "As faz reviver ou voltar a florir.
- Como se sente hoje, Toby? - perguntou ela.
- Como se tivesse renascido.
- Que maravilha! - disse ela. - Encontrei o Dr. Ostretter na rua. Disse-me que tinha vindo vê-lo. Boas notícias?
Marlow voltou lentamente a cabeça para o lado, erguendo o queixo. Um sorriso triste encurvou-lhe os lábios. S. Sebastião à espera da próxima flecha.
- Oh, tudo bem, minha querida-disse tristemente.-Vamos antes falar de ti.
- Mas, Toby, que é que Jake lhe disse... acerca do seu estado? Vai ficar bom?
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Ele libertou as pernas. Pôs-se de pé com alguma dificuldade e cambaleou até à parede mais próxima. Olhou em frente e encostou a testa à parede. Depois de contar até dois, bateu suavemente com o punho fechado na parede.
- "A morte não existe" - disse num tom cavo. - "O que parece morte é simples transição."
- Valha-nos Deus! - exclamou Blanche enojada.
- Toby - disse Barbara, com a voz embargada -, que está a dizer?
Marlow voltou-se para ela, endireitando-se numa postura majestosa. Com gestos exagerados, começou a declamar:
- "Os cobardes morrem mil vezes antes de morrer; os valentes só sentem uma vez o sabor da morte. De todas as maravilhas de que ouvi falar, a mais estranha parece-me ser que os homens a receiem; sabendo que a morte, um final necessário, chega quando tem de chegar."
Barbara, surpreendida, pôs-se de pé. Olhou para Blanche, que fez um aceno afirmativo com a cabeça. Barbara soltou uma exclamação... um soluço, um gemido, um lamento. Correu para Toby e abraçou-o.
- Oh, Toby, Toby, não, não! Diga-me que está a brincar.
- Então, então, pequena - disse ele alegremente. - Eles abriram-me e encontraram cá dentro uma tal confusão, uma grande agitação de idas e vindas, e um número infindável de animaizinhos e tecidos gravemente devorados. Por isso acharam melhor coser-me outra vez e mandar-me para casa com a sua bênção. Vai, disseram eles, e não voltes a pecar. Estafermos!
- Oh, meu Deus... oh, Toby... oh, meu Deus...
A voz sonora dele ressoou, enchendo a sala como um sintetizador Moog:
- "Não há um Deus mais forte que a morte" - declamou - "e a morte é como um sono."
- Quando? - perguntou ela freneticamente. - Quanto tempo tem?
- O fim pode chegar a qualquer momento - disse ele, em tom sepulcral.
Blanche dirigiu-se para a porta da cozinha.
- Não aguento mais isto - disse. - Um autêntico canastrão.
- Vai vestir-te de Lady Windermere - gritou-lhe ele, furioso. - Vem ao meu quarto à meia-noite e castiga-me com o teu leque.
Ela levou o polegar ao nariz, com a mão estendida, e depois bateu com a porta. Toby dirigiu-se ao carrinho das bebidas, serviu-se de mais uísque e encheu um copo de vinho para Barbara.
- Chega de divertimento, minha filha - disse. - Enxuga as tuas lágrimas e bebe um copo de xerez. Voltarão as covinhas ao teu traseiro.
Entregou o vinho a Barbara e depois voltou para o sofá, onde se sentou a beber o seu uísque, olhando-a com um ar levemente divertido.
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Ela ficou encostada à consola da lareira, com a testa apoiada no braço erguido. com o seu vestido drapeado, as violetas no decote, os longos cabelos negros que lhe chegavam ao meio das costas, parecia um quadro de Burne-Jones. Mas ele nunca a teria pintado de sapatilhas.
Barbara Evings oscilava entre menina e mulher. Havia algo no seu aspecto físico que sugeria que continuaria a oscilar durante o resto da sua vida. Era alta, magra como um pau, com mãos e pés esguios. Dedos dos pés apostólicos. O seu corpo esguio, flexível como a haste de uma flor, estava geralmente envolvido em vestidos de chiffon que lhe chegavam aos tornozelos: tecidos finos, flutuantes com folhos, refegos, pregas - vestidos que poderiam ser exibidos num museu do trajo, envergados por um manequim da década de 1920, com cabelos cortados curtos e uma boca em forma de estrela.
O rosto de Barbara era liso, não estava afectado pela idade ou pelo sofrimento. Nos seus olhos azul-claros não havia malícia. Era um rosto doce, aberto, trémulo, a meio caminho entre a espiritualidade e a insipidez. Um poeta teria pensado que havia algo naqueles lábios sensuais e no queixo claramente definido que sugeria paixão e determinação. Algo que um dia poderia incendiar-se e consumi-la.
Havia uma certa irrealidade nos seus movimentos, um requinte nas suas maneiras. Naturalmente, adorava flores, aves, gatinhes, passear à chuva, a poesia dos místicos indianos, alimentos saudáveis, bandoletes de contas, jóias antigas e bebés rosados. Era difícil acreditar que tivesse alguma vez sofrido de obstipação.
- Barbara - disse Toby, - tens alguma coisa para me dizer?
- Não é importante.
- O Dr. Jake deu-me a ideia de que era. Por isso, fala. Eu alguma vez te escondi alguma coisa?
- Não - reconheceu ela - mas o Toby é diferente.
- Diferente? - bradou ele. - Eu sou único! Mas diz-me lá, querida, qual é o problema?
- Estou grávida - disse ela.
- Mazel tov (1) - disse ele. - Mas qual é o problema?
- Toby, estou grávida!
- Graças a Deus - disse ele fervorosamente. - Receei que pudesse ser uma unha encravada. Quem é o pai? David... certo? O meu filho actor. O actor que não consegue tirar um burrié do nariz sem perguntar "Qual é a minha motivação?" Foi David que te engravidou?
- Foi - disse ela debilmente.
- Era de esperar - disse Marlow. - Aquele bronco é mesmo desajeitado! Quando o fui ver representar Casamento Escandaloso, derrubou
(1) Parabéns, em iídiche. (N. da T.)
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uma mesinha. Pronto, querida, senta-te aqui e vamos lá falar do assunto. Não é o fim do mundo, sabias?
Ela voltou para o sofá e começou a sentar-se ao lado dele. Mas Marlow puxou-a e ela acabou por se sentar no colo dele, com o braço dele em volta do pescoço. Ele enfiou o seu grande nariz nas violetas do decote dela.
- Não estou a magoá-lo, Toby? - perguntou ela inocentemente, movendo-se no colo dele.
- Oh, sim! - arquejou ele. - Sabe tão bem.
- E um velho libidinoso.
- Não são os melhores? Então que é que tu queres de mim? Fazer um aborto grátis?
- Não são grátis, Toby. Agora são legais, mas não grátis.
- Ai não? Não me recordo de ter lido isso no Variety. Portanto, precisas de dinheiro, certo, miúda? Não podes pagar o que o Dr. Ostretter pede, certo? Não te preocupes. Eu dou-te o dinheiro. Não há problema. Quanto custa?
- Jake quer quinhentos.
- Quinhentos? - bradou ele. - Abortador nojento! Eu falo com ele, Barbara, e, pelos mesmos quinhentos, ele faz-me uma análise ao cólon e raspa-te os sovacos. É por isso que estás preocupada? Por causa do dinheiro? Considera o problema resolvido.
- Não, Toby - disse ela. - Não está resolvido. Eu não quero fazer um aborto.
- Então queres casar-te com David?
- Não, também não é isso que quero.
- Ai, ai! - gritou ele.
Fê-la deslizar do colo. Pôs-se de pé com dificuldade, apertou melhor o roupão, ajeitou o lenço do pescoço. Dirigiu-se à janela redonda, abriu uma parte e inclinou-se para fora, olhando para o céu. Depois voltou para dentro, deixando a janela aberta.
- Desculpa-me por uns dez minutos, querida - disse. - Acho que vou dar uma volta pelo parque com os outros pombos. - Deteve-se subitamente, pôs as mãos nas ancas. Olhou para ela, de testa franzida. - Como é que tu engravidaste, Barbara? Não tomas a pílula?
- Não.
- Porquê?
- Pareceu-me tão... tão mecânico.
- Eu sei. Como respirar. Ele não usou nada?
- Não. Pedi-lhe que não usasse. Pareceu-me tão... tão...
- Eu sei, mecânico. Tudo é mecânico, excepto ficar grávida.
- Bom, eu acreditava que se pensasse realmente nisso, se me concentrasse verdadeiramente, dizendo a mim mesma "Tu não vais
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engravidar, tu não vais engravidar", tudo correria bem. Pensei que fosse uma coisa da mente.
- Onde é que ele ta meteu... na orelha esquerda?
- Oh, Toby - disse ela -, não seja ordinário.
- É uma das poucas vantagens de se envelhecer, filha. Pode-se ser tão ordinário quanto se queira. Pode-se arrotar ou peidar sem ter que dizer "Perdão". É lindo. Os anos de ouro. Muito bem, tu não queres fazer um aborto e não queres casar-te com David. Que é que tu queres?
Ela pôs-se de pé e colocou-se diante de Marlow. Agarrou-o pelos ombros e aproximou o rosto do dele. Fitou-o directamente nos olhos.
- Quero ter o bebé, Toby. Nunca tive nada meu... nada que eu pudesse realmente amar e acarinhar. Eu vou ser uma boa mãe, a sério, Toby. vou amar o bebé, tomar conta dele, protegê-lo. vou ler livros e frequentar aulas. vou ser uma boa mãe, pode acreditar.
Ele tomou-a nos braços.
- Eu acredito, queridinha - disse ternamente. - Mas não sei se te deixarão ficar com ele. Pode haver complicações legais. Hei-de falar disso a Julius Ostretter. Mas repara, mãezinha, podias casar-te com David, só temporariamente, e ter o bebé. Depois divorciavas-te dele e ele teria de pagar o sustento. Que me dizes?
- Não, Toby. Não quero casar-me com David... nem sequer por um dia.
- Não te posso censurar por isso - disse ele. - Mas quais são os teus motivos?
Ela afastou-se dele, voltando-se de costas para que não lhe visse o rosto.
- Bom... David é muito simpático - disse em voz baixa. - Gosto de David. Amo David.
- Então...?
- Toby, é que eu não quero ser... ficar metida numa gaiola! Não quero ser a mulher de ninguém. Quero ser livre, ser eu própria, ser dona da minha própria vida.
Ele agarrou-a pelos ombros, voltando-a para si. Ergueu-lhe suavemente o queixo, para poder fitá-la nos olhos.
- Estás a enganar-me, garota - disse.
- Sim. - Ela acenou afirmativamente com a cabeça, com tristeza. - Estou.
- Pensei que tu e eu podíamos conversar abertamente, sem fingimentos.
- Podemos, Toby - suplicou ela -, podemos. Mas eu não consigo falar disto. Neste momento, não.
Ele ficou em silêncio por um momento.
- OK, miúda - disse finalmente. - Quando estiveres disposta, eu estou aqui à espera. Por algum tempo.
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- Promete-me que não conta a David que estou grávida?
- Prometo - disse ele. - Não lhe digo uma palavra.
Ouviram uma correria pelo corredor. A porta abriu-se bruscamente. Um David Marlow muito excitado entrou precipitadamente na sala.
- Consegui! - gritou. - Consegui! Consegui!
- Barbara está grávida - disse Toby Marlow.
- Oh, Toby - disse ela pesarosamente. - Tinha prometido.
- Menti - disse ele.
- Estão a olhar para o mais recente Hamlet do mundo! - disse David Marlow, rindo. - Consegui o papel! Que me dizem a isto?
- Barbara está grávida - disse Toby.
- O quê? O quê?
- A tua jovem Ofélia, Hamlet. Está grávida.
- Jesus Cristo! - exclamou David.
Não, é teu - disse-lhe o pai.
David sacudiu-se, como um cão molhado. Olhou em volta, desvairadamente. A janela aberta pareceu-lhe o único meio de fuga. Mas não se sentia muito entusiasmado com a ideia de uma queda de nove andares. A queda não o preocupava tanto como a aterragem. Por isso, no seu estilo viril, dirigiu-se à causa da sua infelicidade:
- Barbara - inquiriu severamente -, isto é verdade?
- Eu não queria que soubesses - disse ela, subitamente em lágrimas. - Toby prometeu-me que não te dizia.
A porta do corredor abriu-se novamente. Cynthia Marlow entrou majestosamente, com os braços carregados de embrulhos. Deixou-os cair em cima do sofá, tirou o chapéu e sacudiu os cabelos. Dirigiu-se logo a Toby e beijou-o na cabeça calva.
- Como te sentes, Toby?
- Estou a morrer - disse ele.
- Ainda bem. Gostei muito de saber. Barbara, tens umas sapatilhas novas. São lindas. E tão limpas. David, diz-me lá, como te saíste?
- Oh, saiu-se lindamente - disse Toby. - Engravidou a Rapariga dos Pássaros.
- Consegui - disse David. - Começamos a ensaiar na sexta-feira. A estreia é dentro de seis meses. E Barbara está grávida. De mim. Certo, Bobbie?
- Não. Do juiz Crater - disse Toby.
- Toby, que querias dizer com isso de estares a morrer? - disse Cynthia Marlow. - Quando entrei e te perguntei como estavas, disseste que estavas a morrer. Que é que queres dizer com isso?
Blanche entrou, vinda da cozinha. Ficou parada na porta, com os
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pés afastados, os punhos fechados encostados à cintura, num ar de desafio...
- Quantos jantam? - perguntou. - É ensopado de borrego e não quero ouvir nem mais uma palavra a esse respeito.
- O Dr. Ostretter deu-me seis meses - disse Toby.
- Vamos ter de nos casar - disse David a Barbara.
- E salada de espinafres - disse Blanche.
- Toby, estás a brincar comigo - disse Cynthia.
- Não quero casar-me contigo - soluçou Barbara.
- Não, não, não - disse Cynthia, abraçando-se a Toby. - Não acredito. Não acredito.
- Tens que ser razoável - disse David. - Ou te casas comigo, ou fazes um aborto. Das duas, uma.
- E um belo melão para a sobremesa - disse Blanche, acenando afirmativamente com a cabeça.
- Que é que tu lhes leste? - perguntou Toby a David, por cima do ombro de Cynthia.
- "Ai, pobre Yorick..." - disse David.
- Eu não quero casar-me contigo - disse Barbara - e não quero fazer um aborto. vou ter o bebé... o meu filho.
Cynthia arrancou-se de Toby, olhou para os outros, apelou para a virago junto da porta:
- Blanche, Toby está a dizer a verdade? Foi o que o Dr. Jake disse?
- Foi o que ele disse - respondeu Blanche, confirmando com um aceno de cabeça. - Seis meses.
- Oh, meu Deus - disse Cynthia.
- O quê? - perguntou David. - Toby morto? Seis meses?
Subitamente, ficaram todos em silêncio, olhando para Toby Marlow com horror, descrença, piedade. Finalmente, finalmente, ele era o "centro das atenções. Ergueu lentamente dois dedos: o papa a abençoar as multidões na Praça de S. Pedro. Dirigiu-lhes um sorriso odiosamente corajoso e murmurou a sua bênção:
- "Não choreis por mim; sede tão alegres quanto podeis, não mancheis o brilho da corrente de amor que circula pela casa, corações ao alto e leves! Alegrai-vos com as dádivas que a abundância celeste proporciona, não sintais a falta do meu rosto, queridos amigos! Ainda estou perto de vós."
- Não suporto mais isto! - gritou David Marlow. - Não suporto isto!
Correu para fora da sala, batendo com a porta.
- Vai atrás dele, Barbara - disse Cynthia. - Está transtornado por causa do pai.
-Uma gaita-disse Toby.-Está transtornado com a ideia de vir a ser pai.
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- Pai? - disse Cynthia. - O nosso David?
- Cyn, onde é que estiveste? - disse Toby. - Não ouviste a nossa conversa? Barbara tem um dentro da barriga e foi David que o meteu lá.
- Barbara grávida? - inquiriu Cynthia Marlow. Foi abraçar a rapariga. - Oh, que bom! Querida, estou tão feliz por ti. Vais tê-lo, evidentemente?
- Oh, ela vai tê-lo-disse Toby-, mas não quer casar com David.
- Mas por que não, querida?
- Tem medo de que ele a feche numa gaiola, ou coisa parecida.
- Que estranha ideia - disse Cynthia. - David nunca faria uma coisa dessas; é um rapaz amoroso e sensível. Quando nasce o bebé, Barbara?
- Dentro de seis meses - murmurou Barbara.
- Valha-nos Deus! - exclamou Toby Marlow. - Esta casa vai transformar-se num inferno daqui a seis meses.
- Já não está muito longe disso - disse Blanche. - Posso preparar o jantar?
- É melhor - disse Toby. - Não pode piorar as coisas. Barbara, vai ao quarto de David e vê se consegues convencê-lo a vir jantar. Podes garantir-lhe que o ensopado de borrego não é um castigo pelo que ele fez.
- Hah! - disse Blanche. - Já reparei que se serve sempre uma segunda vez.
- Eu sou o teu patrão - disse Toby Marlow tristemente. - Noblesse oblige. Só nunca reparou, Mrs. Frankenstein, que eu vomito imediatamente, logo que saio da casa de jantar.
- Vá para o inferno - disse ela calorosamente.
- Vai levar no olho - disse Marlow.
Blanche e Barbara saíram da sala. Toby, finalmente a sós com Cynthia, serviu duas pequenas bebidas.
- É a primeira de hoje - garantiu ele e ela sorriu debilmente. Depois Cynthia deixou-se cair a um canto do sofá e inclinou-se para a frente com os cotovelos sobre os joelhos. Escondeu o rosto entre as mãos. Toby Marlow sentou-se ao lado dela. Soltou-lhe suavemente uma das mãos e fechou-lhe os dedos em volta do copo.
- "Atravessando o rio e os bosques" - disse ele, erguendo o copo. Ela deixou cair a outra mão, fitando-o com os olhos brilhantes.
- "Vamos a caminho da casa do avô" - disse, com a voz embargada.
Despejaram simultaneamente as suas doses de uísque - uma cerimónia familiar - e pousaram os copos vazios sobre a mesinha. Levantaram-se e, com os braços em volta da cintura um do outro, dirigiram-se lentamente para a porta.
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- Acho que devíamos vestir-nos para o jantar - disse Cynthia.
- Para comer ensopado de borrego? - perguntou Toby. - Que é que sugeres, burel e cinzas?
Conseguiu ouvi-la rir enquanto saíam...
CENA TRÊS
O quarto de vestir do apartamento dos Marlow era, na realidade, um largo corredor entre o quarto de dormir e a casa de banho. Um lado dessa câmara rectangular estava totalmente ocupado com portas de dobrar que davam para altos roupeiros onde se podia entrar de pé e que continham as roupas de sair e os sapatos de Cynthia e Toby.
A parede oposta encontrava-se quase coberta pelo espelho de um enorme toucador, contendo uma grande quantidade de óleos, loções, escovas, perfumes, pós, unguentos, espelhos de mão, águas de colónia, pentes e acessórios de maquilhagem de todos os tipos. A mesa era suficientemente longa para acomodar dois bancos, lado a lado, de modo a poder ser usada simultaneamente por dois Marlows.
O espelho propriamente dito era uma bela peça de vidro biselado, que estava a precisar desesperadamente de ser espelhado de novo. Ao longo de ambos os extremos havia um canal de madeira no qual se inseriam lâmpadas eléctricas a intervalos de quinze centímetros. Era, na realidade, o tipo de espelho brilhantemente iluminado que se usa nos camarins dos teatros. Mesmo com diversas lâmpadas fundidas, como acontecia inevitavelmente, aquele rebordo brilhante fornecia uma tal iluminação que não era precisa qualquer outra no quarto de vestir. Ainda assim, havia outras lâmpadas em forma de projector Afixadas ao tecto em cada um dos quatro cantos. Os seus feixes brilhantes estavam apontados para os bancos das estrelas.
Sobre o espelho riscado viam-se, colados com fita adesiva, telegramas amachucados, cartas de admiradores, fotografias, números de telefone garatujados, uma centáurea seca, a capa de um programa, recortes amarelados de jornais, e recordações igualmente antigas da carreira teatral de Toby Marlow. Na realidade, o espelho estava tão cheio destas recordações que já só restavam dois espaços abertos, como portinholas, nos quais Cynthia e Toby podiam observar as suas imagens, uma actividade de que ambos gostavam e em que estavam ocupados naquele momento.
Toby encontrava-se despido até à cintura. O seu tronco estava envolvido em ligaduras, desde as axilas até ao cós das calças. Parecia um Buda ferido. Cynthia envergava apenas as cuecas e estava inclinada
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para a frente, a fim de observar atentamente o seu reflexo enquanto aplicava a maquilhagem. O estudo de Toby do seu aspecto físico não era menos interessado. Olhava-se e suspirava...
- "O seu aspecto era gentil, e os elementos distribuíam-se nele de tal forma que a Natureza podia afirmar ao mundo inteiro. Este era um homem!"
Cynthia pôs de lado o lápis das sobrancelhas e voltou-se para olhar para ele, pesarosa.
- Coitadinho do meu Toby - disse tristemente.
- Apenas um dia normal, minha velha. - Encolheu os ombros. E a Maldição dos Marlow.
- Toby, que é que nós vamos fazer? Parece estar tudo a desmoronar-se.
- Aguenta, pequena - disse ele. - Deixa tudo com o rei D. Toby Primeiro, Último e Eterno. Oh, a propósito, amo-te, Cyn.
Ela sorriu e estendeu a mão para acariciar o ombro nu dele.
- Eu sei, querido, à tua estranha maneira. Voltaste sempre para junto de mim.
- Não voltei? - disse ele orgulhosamente. - Sempre. Mas, afinal, não te deixei assim tantas vezes.
- As suficientes - disse ela -, as suficientes...
Ficaram ambos em silêncio, como tantas vezes sucede com duas pessoas cujas vidas estão de tal forma interligadas que têm as mesmas recordações. Olhando para as luzes brilhantes do toucador, recordaram-se do brilho total e cru do Sol mediterrânico...
Estavam na praia de St. Tropez. Corria o ano de 1938 e os fatos de banho eram ridículos. Cynthia, envolvida em qualquer coisa volumosa e transparente, estava sentada na areia, com os joelhos flectidos, agarrada aos pés nus. Olhava sonhadoramente para o mar por baixo da enorme aba do seu chapéu de palha com uma fita azul.
Vinda do fundo da praia aproximava-se a elegante figura de Toby Marlow. Estava totalmente vestido, com um fato de flanela branca, camisa branca, gravata branca, meias brancas, sapatos brancos, panamá branco. Todo ele brilhava! Agitava descuidadamente uma bengala de Malaca, espetando-a na areia, fazendo-a descrever círculos completos, chegando a atirá-la ao ar e a apanhá-la habilmente, para em seguida rodar entre os dedos.
Chegou junto de Cynthia, aproximou-se muito dela e inclinou-se, apoiado na bengala, com os tornozelos cruzados. Olhou para ela gravemente.
- Voltei - disse.
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- E quem é o senhor? - perguntou Cynthia friamente, sem olhar para ele.
- Apenas o homem para quem vives.
- Oh, não - disse ela. - Não, não, não. O homem para quem eu vivia, que me jurou um amor eterno.
- E falou a sério - disse Toby.
Eram ambos, em 1938, muito belos, com aquela assustadora auto-segurança que só o treino no palco consegue dar. Como actores bem ensaiados que eram, sabiam como aquela cena iria terminar. Mas tinham de a representar como se o seu desenlace constituísse uma surpresa tão grande para eles como para o público.
- Podias ter-me escrito a dizer que estavas vivo - disse Cynthia.
- Embora eu preferisse pensar que não estavas.
- Recebeste os cheques que te mandei? - perguntou ele.
- Cheques! - Cynthia riu-se com desprezo. - Pensaste que o dinheiro te absolvia dos agravos?
- Agravos? - disse ele. - Agravos? Agravos? Mas o que é isso? Aqueles grampozinhos de arame que servem para prender papéis?
- Espero que ela tenha corrido contigo - disse Cynthia raivosamente.
- Sabes bem que não. Vim-me embora a rir.
- Que idade tinha ela?
- Nove anos.
- Toby, que idade tinha ela?
- Tinha 18 anos, mas agia como se tivesse 9.
- Suponho que ela te adorava.
- Evidentemente.
Cynthia fez um trejeito enojado e moveu-se de forma a ficar de costas para ele. Mas ele deu a volta, de modo a poder ver a ponta do seu queixo por baixo da aba larga do chapéu.
- Dezoito anos - repetiu ela. - E a única coisa que pretendia da vida era ir para a cama com o famoso Toby Marlow. É só isso que elas querem. - Elas, na verdade, não querem ir para a cama comigo. Querem poder dizer que foram. É uma coisa que alimenta os seus egos.
- Mas tu vais, de qualquer forma.
- Por que havia de negar-lhes uma oportunidade de serem felizes? É um pequeno sacrifício que eu faço.
- Realmente pequeno! - exclamou ela. - Indubitavelmente pequeno!
- Não vale a pena ficares agastada - disse ele. - Eu voltei, bem vês. Volto sempre para ti.
- Porque eu te amo tanto. Porque te amo por aquilo que tu és, com todos os teus palavrões e maus humores e infidelidades indecentes.
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Por isso voltas para mim. Não porque me ames, mas porque não consegues resistir ao amor que eu sinto por ti. Sou o único ser humano neste mundo que te ama mais do que tu te amas a ti próprio.
A explicação dela chocou-o. Tinha sentido a verdade das suas palavras. Mas ouvir a sua própria fragilidade exposta de forma tão implacável perturbava-o. Afinal, havia certas coisas de que um cavalheiro nunca falava: as doenças venéreas, Deus, e as inclinações sexuais dos bailarinos de ballet, eram três dessas coisas. A sua dependência em relação a ela era outra.
- Não sabes de que falas - disse ele altivamente.
- Oh, sim - disse ela. Soltou uma risada trocista. - Não me amas a mim, mas ao amor que eu tenho por ti. Eu sempre o soube. Não sou tão atraente sexualmente, nem tão bonita nem tão jovem como as tuas rapariguinhas, mas amo-te de uma forma que elas não conseguem. É a minha única arma.
- bom, garota - disse ele, de forma um pouco desajeitada -, não é uma vida assim tão má, pois não? Umas boas gargalhadas para nos ajudarem nos momentos difíceis. Uns pedacinhos de felicidade... suficientes para nos manter vivos. Umas discussões maravilhosas. Lembras-te daquela vez em que me abriste a cabeça com um vaso de flores?
- Oh, sim - disse ela. - Depois de o fazer, arrependi-me logo. Era a minha melhor violeta africana.
Toby soltou uma gargalhada e Cynthia não conseguiu impedir-se de sorrir. Por fim, ergueu o olhar para ele. Interpretando isso como um descongelamento, ele sentou-se imediatamente na areia ao lado dela e tirou o panamá da cabeça. Usava uma peruca de luxuriante cabelo castanho, um pouco longa de mais para os cortes de cabelo da época.
Ela observou-o criticamente e estendeu a mão para lhe apalpar as costelas.
- Estás mais magro - disse ela.
- Não tenho dormido muito.
- Sim, calculo. Ela era bonita?
- De uma forma oca, sim. Quando bebia uma chávena de chá, espetava o dedo mínimo.
- Toby, não acredito!
- É verdade... até que um dia pendurei nele o chapéu. O chá derramou-se sobre o regaço dela.
- És um autêntico animal.
- Pois sou. E na cama queria falar como uma criancinha. Acabei logo com isso, posso garantir-te.
Chegou-se um pouco mais para ela, sobre a areia. Estendeu a mão e tirou-lhe cuidadosamente o chapéu. Já podia ver as suas feições clássicas de perfil, recortadas contra um céu de um azul incrível. Ela
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tomou consciência do seu olhar e posou para ele, erguendo o queixo e afastando o longo cabelo da orelha.
- Oh Toby - suspirou. - Por que fazes isto? Podes dizer-me porquê? É o teu ego que necessita de rapariguinhas jovens?
- O meu ego não precisa de ser alimentado; tu sabes disso. É que... bom, penso que é porque me proporciona uma audiência nova. Tu já conheces todas as minhas falas, todas as minhas disposições, os meus maus humores, paixões, fúrias, piadas, melancolias. Cyn, tu conheces-me. Já não podes reagir. Já viste a peça vezes de mais. Não estou a culpar-te por isso. Mas deves compreender que, de vez em quando, preciso de alguém que não me conheça, para quem eu seja inteiramente novo, alguém para quem eu possa representar e que reaja, que se ria, ou franza a testa ou chore. É como um novo papel para mim. Isto faz sentido?
- Não muito - disse ela. - Não precisas de estar sempre a representar, pois não?
- Sim - disse ele. - Preciso. Sempre. Depois, quando já conquistei esse novo público de uma só pessoa... não na cama; isso não é significativo... quando já a convenci com o meu desempenho, a fiz admirar-me e amar-me, nessa altura volto para ti.
- Para o público antigo e conhecido.
- Isso mesmo. Mas, santo Deus, Cyn, eu sou um comediante. Sabias isso desde o início. Em cima do palco ou fora dele, sou um comediante.
- Preferia que fosses dentista.
- Não preferias nada. Chateavas-te mortalmente.
- Acho que sim - disse ela, com um suspiro.
Ele aproximou-se um pouco mais. Experimentando o terreno, passou um braço levemente pela cintura dela. Como Cynthia não levantasse objecções, aproximou-se ainda mais. Encostou os lábios ao ouvido dela.
- Sentiste a minha falta? - sussurrou.
- Não.
- Mentirosa!
Endireitou-se e avançou sobre os joelhos até ficar mesmo por detrás dela. Depois, suavemente, começou a massajar o pescoço e os músculos dos ombros dela, descontraindo-os pouco a pouco. Gradualmente, a cabeça dela foi descaindo para a frente; Cynthia suspirou de prazer.
- Continuas na casa da praia? - perguntou.
- Mmm-hmmm.
- Renda paga por um mês?
- Mmm-hmmm.
- Encontrei Mike Spigelow por acaso em Nice. Está a fazer uma
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coisa nova para a época de Outono. Começam a ensaiar no mês que vem. Mike pensa que há um papel óptimo para mim. Segundo actor, um personagem muito forte. Montes de maquilhagem e uma cena de morte importante.
- Parece bom.
- Oh, sim - disse ele. - Acho melhor voltarmos para Londres.
- Está bem - disse ela serenamente. - Há algum papel para mim?
- Ahh, não - disse ele. - Infelizmente.
- A mulher de Mike vai entrar na peça? - perguntou ela com naturalidade.
- Penso que ele disse que sim. Poucas falas.
- Tiveste um caso com ela, não foi?
- Isso foi antes de te conhecer, querida.
- Valha-me Deus - disse Cynthia. - Não há dúvida de que eras um rapazinho muito activo antes de me conhecer. E não abrandaste o passo de forma que se note desde que me conheceste.
- Mas eu sempre... - principiou ele.
- Eu sei - disse ela. - Voltas sempre. Como a brotoeja no Verão...
E ali estavam ambos, a recordar, no quarto de vestir, mais velhos agora, e ambos a reflectir "mas não mais sensatos". Toby estava de pé por detrás de Cynthia, massajando-lhe suavemente os músculos do pescoço e dos ombros nus. Finalmente, afastou-se e foi à casa de banho. Voltou com um copo, erguendo-o contra a luz.
- Se não te importas de beber uísque com sabor a pasta de dentes - disse - podemos partilhar um pouco.
- O Dr. Jake disse que podias beber? - perguntou ela ansiosamente.
- Oh, claro - disse Toby. - E fumar. Já não faz diferença.
Tirou uma garrafa de uísque do armário do roupeiro e encheu o copo até meio. Estendeu-o a Cynthia, que bebeu um pequeno gole, em estilo de grande dama, e lho devolveu. Toby, que se tinha sentado pesadamente no seu banco, bebeu um longo trago e olhou para a sua imagem no espelho turvo.
- Espelho, espelho meu - disse -, há no mundo idiota maior que eu?
- Toby, achas que devias consultar outro médico?
- Não, não acho que deva consultar outro médico. Para quê? Se Jake estiver enganado, estarei vivo daqui a seis meses e posso mandá-lo à fava. Mas não me parece que ele esteja enganado. Eu vi os relatórios do cirurgião e...
- Toby, não me disseste isso.
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- Também não disse a Jake. Estavam ambos tão satisfeitos por eu me ter safado da operação. Não queria estragar as coisas. Mas subornei uma enfermeira com um beijo e fiquei a saber qual era a pontuação. Zero. O homem da faca disse que estava muito espalhado, que já ia muito longe...
Ela estendeu rapidamente a mão para o copo de uísque, bebeu um gole muito maior, estremeceu e devolveu-lhe o copo.
- Sabe horrivelmente - arquejou.
- Eu sei - disse ele. - Mas evita a cárie.
Ela voltou-se de lado para se encostar a ele, pondo a mão no seu ombro e apoiando-se no seu braço.
- Assustado, querido?
- É claro que não. É uma vantagem de se ser um velho actor. Quando se alcança a minha idade, já se desempenharam tantas cenas de morte que se sabe como se faz. Eu consigo enfrentar a situação.
- Nós conseguimos enfrentá-la, meu amor - disse ela.
À medida que os anos tinham passado, Cynthia Marlow transformara-se, de uma rapariga um pouco grande, roliça e obviamente atraente, numa mulher composta e tranquila, que falava com uma voz musical, um pouco aflautada, em que a ênfase parecia ser dada às sílabas mais através de uma mudança de tom do que pela força das cordas vocais.
Era inegavelmente elegante, com uma magnífica postura e o porte de uma duquesa da pequena nobreza. O seu belo cabelo louro estava mais prateado que branco. Penteado para trás, deixando ver uma testa alta e ampla, encontrava-se geralmente recolhido num rolo, ao cimo de um pescoço longo e macio. Gostava de vestidos, túnicas e casacos sem gola. Agradava-lhe acentuar o aspecto relaxado de Toby através de uma cuidadosa atenção para com a sua limpeza e arranjo pessoais. Havia nela um brilho quente, doce, feminino que atraía tanto os homens como as mulheres, mas especialmente jovens incestuosos em busca de uma mãe.
O seu sorriso era particularmente radioso e raramente se mostrava irritada. Através da sua longa relação com Toby Marlow, tinha adquirido as maneiras serenas de uma enfermeira experiente que lida com um maníaco não violento e frequentemente divertido. Os seus olhos tinham um tom castanho invulgarmente esverdeado, o seu nariz era patrício, a sua pele impecável, com excepção das finas rugas do sorriso aos cantos da boca. O seu corpo, desnecessariamente envolto numa cinta, ainda era flexível. O corpo roliço da juventude transformara-se num corpo maduro na meia-idade. Ela sentia-se satisfeita com a mudança e Toby também.
Este inclinou-se para beijar o braço nu da mulher...
- Nós conseguimos enfrentar a situação - concordou. - Minha
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doce Cyn, a mulher mais pura que existe sobre a Terra. bom, meu amor, temos muita coisa que fazer durante os próximos seis meses. Antes de mais, temos que encorajar David nos seus ensaios e assistir à estreia dele. É apenas um teatro universitário, mas é uma oportunidade maravilhosa. Quem sabe se um batedor de uma empresa de filmes pornográficos não vai procurá-lo.
- Oh, Toby - protestou ela -, tu sempre sentiste orgulho nele.
- Vai ser um desastre.
- Toby, isso não é justo! David é muito prometedor.
- Gostava mais que fosse talentoso.
- Podes ensiná-lo, querido.
- Se ele mo permitir - disse Toby. - "Fere mais que o dente da serpente ter um filho ingrato." E há a questão do filho da Barbara. Ela quer tê-lo e conservá-lo como seu próprio filho, como se fosse uma espécie de ursinho de peluche. Espera só até ela mudar a primeira fralda e sujar as unhas de cocó. Muda logo de ideia acerca das alegrias da maternidade.
- Toby, Barbara pode ficar com o bebé? Legalmente, quero eu dizer.
- Não sei. vou ter de falar com Julius a esse respeito. Mas, de qualquer forma, ela vai precisar de ajuda e de dinheiro. Penso que devia mudar-se para nossa casa até o bebé nascer, e podia ficar cá, se quisesse. Não me agrada a ideia de ela estar sozinha naquela mansarda parisiense em que vive.
- Oh, Toby - disse ela, cheia de amor -, tu és tão bondoso.
- Podes crer que não te enganas - disse ele.
- Ela tem de mudar-se para cá - disse Cynthia com firmeza. - Posso transformar o teu escritório num quarto infantil.
- Uma gaita! - gritou Toby. - Transforma o escritório do David. Ele é que meteu o pão no forno.
- bom, temos espaço que chegue - acalmou-o ela. - E Barbara terá calor e comerá refeições regulares.
- Ela é daquelas taradas com a mania das comidas saudáveis - avisou Toby. - Não come nada que não tenha sido criado com bosta de cavalo.
- Oh, Toby!
- É verdade. Além disso, os pratos de Blanche vão pôr em perigo o crescimento do bebé.
- Como podes dizer uma coisa dessas? - perguntou Cynthia. - Blanche é uma boa cozinheira. Pode não ser muito imaginativa, mas sabe fazer comidas simples e saudáveis como chispe com couve-flor. E ela...
Mas, durante estes encómios às habilidades culinárias de Blanche, Toby pôs-se de pé e foi ao quarto. Voltou um momento depois, vestindo
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lenta e dificilmente uma camisa branca limpa. Estendeu-lhe os punhos e Cynthia, obedientemente, introduziu os botões de punho.
- E agora quanto a nós - disse ele, interrompendo o monólogo dela.
- Quanto a nós, o quê?
- Cyn, acho que devíamos casar-nos.
- Toby! - exclamou ela, surpreendida e satisfeita. - Estás a pedir-me em casamento!
- Contra os meus princípios - disse ele. - Lembras-te de quando Kellerman me convenceu a assinar um contrato pela duração da peça? Julgava que aquela porcaria ia ser um fiasco, mas esteve em cena dois anos. Ao fim de algum tempo já podia fazer o papel com uma bebedeira de caixão à cova, e foi o que sucedeu muitas vezes. Nessa altura fiz uma jura, nunca mais fazia contratos a longo prazo. Mas agora estou disposto a arriscar-me por seis meses. Na posição em que as coisas estão, és a minha companheira legítima e não creio que tenhas problemas em herdar. Mas sentir-me-ia melhor se legalizássemos tudo como deve ser. Sei que Julius Ostretter também se sentiria melhor, abençoado seja o seu coraçãozinho sinuosamente legal. Cynthia, queres casar-te comigo?
- bom... - disse ela pensativamente - não era bem assim que eu sonhava que isso acontecesse, mas a resposta, querido, é sim, sim, sim!
- Receava que dissesses isso, raios te partam. Pronto, estamos conversados. Agora tenho que fazer um testamento.
- Quem vai dizer a David?
- Que é um filho ilegítimo? Acho que vou ter de ser eu. Não me agrada muito. "Filho, és um bastardo." Provavelmente, ele responde-me "Toby, tu também". Vai ser complicado explicar-lhe por que motivo nunca nos casámos.
- Pensámos fazê-lo algumas vezes - disse ela.
- Eu sei - mas surgiu sempre qualquer coisa. Uma vez, deram-me o papel principal em Muito Barulho Para Nada...
- Outra vez eu tive bexigas.
- Outra vez embebedei-me.
- E outra vez eu perdi a certidão.
- E outra vez rebentou a guerra.
- Sim - disse ela em tom de reprovação -, e outra vez fugiste com a dançarina do ventre na tua despedida de solteiro.
- O diamante do umbigo dela era falso - disse Toby Marlow.
- Como sabes?
- Tentei riscar um vidro de janela com ele. bom, de qualquer forma, nunca nos casámos. Mas mais vale tarde que nunca. Sabes quem disse isso?
- Acabaste tu de o dizer.
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- Se há coisa que eu não suporto é uma pessoa que se arma em esperta. Para tua informação, minha inculta concubina, foi John Heywood que escreveu Mais Vale Tarde que Nunca. E surripiou a frase a Lívio. Escuta, Cyn. Vamos fazer um belo casamento. Talvez David queira ser nosso padrinho.
- E Blanche pode ser a minha dama de honor - disse ela.
- E Barbara pode ser a rapariga das flores - disse ele -, e cobrir o nosso leito nupcial de pétalas de rosa.
- Oh, sim! - exclamou ela. - Sim! Sim!
Toby, entalando a camisa dentro das calças, voltou para o quarto. Cynthia ficou sentada por um momento, com o queixo apoiado numa mão, a sorrir, sem ver a sua imagem no velho espelho. Depois gritou para o quarto, erguendo a voz:
- Falaste em sexo ao Dr. Jake?
O grito de resposta veio imediatamente:
- Falei, mas ele não estava interessado.
CENA QUATRO
O passeio ao longo do lado ocidental do Central Park de Manhattan está pavimentado com lages hexagonais. Algumas das secções do passeio oscilam perigosamente; em algumas delas, as pedras estão soltas, rachadas ou ausentes. Depois há extensões normais, vulgares, com esperançosos musgos e ervas raquíticas a espreitar entre as pedras. É um passeio de cidade, que exige um olho prudente para os obstáculos e outro atento aos excrementos caninos.
Um parapeito de pedra impede os peões de cair para o parque propriamente dito, que, em alguns pontos, tem uma forte inclinação para o lado oriental. Mas as árvores do parque projectam os seus ramos por cima do passeio, tal como acontece também com a fileira de árvores plantadas entre o passeio e a rua. O resultado é levemente bucólico, lembrando, de certa forma, um cenário teatral já gasto e um pouco rasgado durante a produção original, e que foi levado para a rua a fim de terminar os seus dias em exposição.
Naquela noite, as pedras do passeio estavam gordurosas de nevoeiro. De vez em quando, se as nuvens se afastavam, reflectiam vagamente a casca de prata de um quarto crescente.
O ar estava húmido, cheirando agradavelmente aos odores da cidade. O vento era forte sem ser cortante. David Marlow usava um casaco de malha por baixo do casaco de tweed. Toby Marlow vestia uma gabardina suja e um velhopasse-montagne. Fumava um enorme charuto.
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Depois de inalar o fumo durante alguns passos, David mudou-se para o outro lado do vento durante o resto do passeio destinado a rebater o jantar.
Toby arrotou ruidosamente.
- Aquele borrego não foi transportado ao matadouro - disse. - Foi perseguido durante cinco quilómetros.
David disse:
- Não devia ter gritado daquela forma com Blanche.
- Ora essa, por que não? - perguntou Toby. - Adoro Blanche. Se não podemos gritar com as pessoas que adoramos, então com quem é que podemos gritar?
- Um dia destes ela farta-se das suas birras e deixa-nos.
- Blanche não era capaz disso - disse Toby. - Nem pensar. Ela adora-me. Conserva-se sempre à mão na esperança de que, um dia destes, eu decida mergulhar o meu Cecil na gordura quente.
- Toby, você é um autêntico bastardo! - disse David.
- Tiraste-me a palavra da boca.
- O quê? De que é que está a falar?
Toby voltou a cabeça e ergueu a mão, como se estivesse a sussurrar um aparte ao público.
- Ainda não - disse. - Ainda não. Ainda não é a altura própria.
Deteve-se por baixo de um candeeiro e David aguardou pacientemente. Toby meteu a mão por baixo da gabardina, extraiu um longo frasco de prata martelada (E. U. A., circa 1927). Desenroscou a tampa, bebeu um longo gole e depois estendeu o frasco a David.
- Queres um trago? - perguntou. - Oh, esqueço-me sempre da tua perversão: tu não tocas em álcool.
- Não, não toco - disse David.
- Não, não tocas - repetiu Toby. - Tens outros vícios menos naturais, como engravidar rapariguinhas, como um vilão magro e esfomeado.
- Eu ofereci-me para casar com ela, mas ela não quer.
- O que só prova a sua inteligência e o seu bom-senso.
- Pai - suspirou David -, temos que discutir a este respeito?
- Já te pedi... pedi? Não, exigi!... um milhão de vezes que não me chamasses "Pai" ou "Papá" ou "Velho", ou qualquer outra coisa que não fosse "Toby". O meu nome é Tobias, cujo diminutivo afectuoso é "Toby". E toda a gente... parentes, amigos e admiradores em número ilimitado... me trata afectuosamente por "Toby". Alargo esse mesmo direito ao meu estremoso filho, que tem mais cabelo que miolos, e que nasceu por baixo de uma couve quando a Lua estava escondida, havia um choro nos céus e a terra tremia.
- Que raio está para aí a divagar?
- Que mal há em discutir um assunto? - perguntou o pai. -
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Refresca o sangue, limpa o peito inchado daquela matéria perigosa que pesa sobre o coração, dissolve a bílis e desanuvia o ar. És uma amêijoa! És uma ostra! És tão fechado que, um dia destes, explodes e ficas espalhado pela paisagem.
David, convencido de que o seu velho pai tinha finalmente perdido o juízo, se tinha passado, estava gagá, disse:
- Talvez seja melhor eu tomar uma bebida. Só um gole.
Pararam novamente. Os transeuntes observaram Toby com curiosidade, ao vê-lo tirar o frasco da algibeira, desenroscar a tampa, limpar o bucal à manga e entregá-lo a David.
- "Maravilha das maravilhas, milagre, milagre" - disse ele. - Bebe lentamente e com respeito: o primeiro grande passo para a humanidade, o primeiro pequeno passo no caminho da perdição.
David molhou cuidadosamente a língua com o líquido do frasco.
- Meu Deus! - disse. - Isso é horrível!
- É claro que é horrível - disse Toby. - Julgas que eu tenho andado a divertir-me todos estes anos?
Recebeu o frasco e bebeu um longo gole. Recomeçaram a caminhar em silêncio. De vez em quando, passavam por outros transeuntes, pessoas que andavam a passear os cães, jovens casais abraçados.
David Marlow tinha um pouco mais de um metro e oitenta e pesava oitenta e cinco quilos. Era aprumado, esbelto, atlético, com uma leveza de movimentos que provinha, em parte, da graça natural do pai, em parte da sua própria musculatura, e em parte de um regime disciplinado de ioga e exercícios de dança. Possuía uma beleza superior à beleza rude do pai, mas era uma beleza elegante; o seu rosto, em repouso, era quase feminino.
Tinha cabelos castanho-escuros, sedosos, que usava compridos mas bem penteados e cuidadosamente aparados. As sobrancelhas eram grossas. Barbeava-se duas vezes por dia. O jovem ostentava um bigode ainda novo que lhe brotava do lábio superior como uma escova de dentes de criança. Possuía uns olhos de um extraordinário azul-claro, lábios cinzelados, orelhas pequenas e encostadas à cabeça, dentes brancos e afiados. Cinquenta anos antes teria sido classificado como um "galã". Mas levava a sua arte muito a sério para acreditar que a beleza física pudesse ser uma vantagem; estava convencido de que, mesmo que se parecesse com Quasímodo, continuaria destinado a ser o maior actor do mundo.
Esta solenidade - acerca de si próprio, da sua arte, do seu futuro - reflectia-se na forma como geralmente se vestia; fatos sóbrios usados com colete, camisas brancas, gravatas conservadoras, peúgas bem esticadas e sapatos engraxados. A sua verve desaparecia quando saía do palco. Só muito raramente uma gargalhada calorosa e desinibida poderia sugerir que houvesse nele algo mais que fria ambição.
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A sua voz treinada estava longe de ter o magnífico diapasão da do seu pai, mas possuía uma boa ressonância. Por vezes, sofria de uma espécie de sonoridade auto-satisfeita: um advogado de uma companhia a ler um resumo de impostos. Os seus gestos eram artificiais, envolvendo a maior parte deles os pesados óculos de aros pretos que usava fora do palco: arrancava-os (ira), empurrava-os para o cimo da cabeça (perplexidade), espreitava por cima deles (descrença), mordiscava as hastes (meditação). Sem aqueles óculos, parecia ingénuo, destituído de astúcia.
- Toby... - disse.
- Que é?
- Toby...
- Já ficaste bêbado? - perguntou o pai. -- Em vez de te soltar a língua, aquele mililitro de álcool paralisou-a? Se dizes "Toby" mais uma vez, mando-te para um hospital para fazeres uma desintoxicação.
- Só queria dizer-lhe que sinto muito.
- Sentes muito? - disse Toby. - A respeito de quê?
- A respeito de... a respeito do que o Dr. Jake lhe disse.
- Referes-te a marar? Não tenhas vergonha, meu idiota, meu rapazola sem juízo. Não me ofendes. Eu vou marar daqui a seis meses. vou morrer. Morte. Estás a ver? Eu consigo dizer a palavra. Não faz doer. Já a disse cem vezes em cem bons papéis, e não me incomoda nada. Eu vou morrer.
- bom... sinto muito.
- Sabes uma coisa? - disse Toby. - És um péssimo comediante. Já alguém te disse isso, para além de mim? És-um-péssimo-comediante. É assim que tu manifestas a tua simpatia? "Sinto muito"? vou dar-te uma pequena lição, meu rapaz. Agora tu és Toby. Eu sou David, teu filho. Acabei de saber que tu vais morrer daqui a seis meses. Vigora ouve isto, e escuta bem, pelo amor de Deus.
Os dois homens pararam por baixo de um candeeiro. Toby saiu do círculo de luz, ficando no escuro. Quando voltou a penetrar na área de um fraco cor de laranja, a transformação era surpreendente. Parecia ter envelhecido fisicamente. Tinha os ombros descaídos, os braços pendentes, os seus dedos tremiam, os joelhos encurvavam-se. Toda a sua postura revelava choque e desespero. Quando começou a falar com David, os seus gestos eram mais que teatrais; eram os movimentos exagerados, agitados, de um homem fulminado por um cataclismo emocional que não conseguia entender completamente. A sua voz, normalmente ostentatória, tornara-se hesitante, quando não histérica, arrastando-se para um murmúrio áspero no final de cada frase...
- Toby... Toby... Acabei de saber. Seis meses? Oh, meu Deus! Senti vontade de morrer quando soube. Gostaria que se abrisse uma fenda
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por baixo dos meus pés, que o mundo inteiro se abrisse. Como viver sem ti? Não será vida, Toby, mas uma espécie de morte em vida para todos nós. Não quero... não posso... por favor, meu Deus, diz que não é verdade! Toby, quando tu te fores, algo da minha vida irá contigo, algo das vidas de todos nós, a luz e o riso e o espanto e a alegria. Todos nós morreremos um pouco contigo. Não nos deixes, Toby. Por favor, não nos deixes!
Quase contra a sua vontade, David deixou-se conquistar pelo seu desempenho, fascinado pela habilidade técnica do pai, profundamente comovido pelo apelo emocional das palavras de Toby.
- Meu Deus - arquejou.
- Apanhei-te, não foi? - disse Toby com complacência. - Como disse Oscar, quando se trata de sinceridade, o estilo é tudo.
- bom, isso não é o meu estilo.
Furioso consigo próprio por se ter entusiasmado com a demonstração de Toby, David voltou-se e recomeçou a caminhar um pouco mais depressa. O pai estugou o passo para o apanhar.
- Não, não é o teu estilo. Eu conheço o teu estilo. O método, a motivação, a introspecção.
- Não é um método - disse David, irado. - Não consegue meter isso no seu cérebro encharcado em álcool?
- Talvez não, mas é uma abordagem, e a abordagem errada. Eu nunca frequentei a escola de teatro. Entrei em cena pela primeira vez aos 6 anos, em Sonho de Uma Noite de Verão. Aprendíamos uns com os outros. Vivíamos, comíamos, dormíamos teatro. Nós...
- Oh, meu Deus, Toby-suplicou David com voz lamentosa-, outra vez não!
- Sim, que diabo, outra vez! Figurante e porta-lanças. Preparador de adereços e contra-regra. A vender bilhetes e a distribuir programas. Teatro burlesco e hotéis de meia tigela. Ficar sem trabalho e ser intrujado nos contratos. Entrar nos hotéis pela porta de serviço. E que mulher decente queria ser vista com um actor? Éramos fora-da-lei e renegados, ladrões e sedutores, putas e chulos. Mas agora somos entrevistados pela televisão e feitos cavaleiros pela rainha. Mas, quando comecei, patinhava-se em merda até se aprender a nossa arte. Mas aprendia-se. Não numa escola cheia de conversa, mas a representar! Surripiavam-se truques a quem se podia. E observávamos as pessoas, estudávamo-las. Como um rapazinho ria. Como um velho se assoava. Como um homem anavalhado caía no chão. Como um político engolia as palavras. Aprendíamos com a vida. com a vida, meu rematado tratante. E aprendíamos que o teatro não é um espelho da vida. Reflecte-a, sim, mas é um espelho de aumentar, e tudo o que se passa no palco deverá ser duas ou três vezes maior que na vida. De que outra forma se pode mostrar a maravilha e a tristeza, o humor e a crueldade
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dela? Por isso, nós, os comediantes, devemos ter o dobro do tamanho, devemos ser sobre-humanos. com paixões, desejos e risos fora do comum. Não se pode sair do palco, limpar a cara com creme, enfiar os suspensórios e apanhar o comboio da meia-noite para New Rochelle. Impossível! Porque ó teatro está nas nossas entranhas. Se se tem algum talento, e eu tenho muito mais que tu, tens de confessar, nunca se sai de cena. Nunca! Representamos em cada minuto que passamos acordados. A nossa vida torna-se o melhor papel que já interpretámos.
- Meu Deus, mas que saco cheio de vento me saiu! - disse David. - Que diarreia de palavras! E que obstipação de ideias! "O melhor papel que já interpretámos." Para si, interpretar um papel é fingir, e os actores são fingidores. Representar. Faz com que isso pareça um desporto ou uma diversão, um recreio ou um jogo. Para si, o palco não passa de um divertimento. Entretenimento. Como o beisebol, o gamão e o jogo das escondidas. E por isso, como o labrego de maus instintos que é, reduz a um ofício o que deveria ser uma arte.
- "Modera um pouco a tua pressa" - disse Toby -, "para não deitares a perder a tua sorte."
- "As grandes inteligências estão perto da loucura" - retorquiu David -, "e entre as duas são finas as divisórias".
- Hum - fez Toby. - Nada mal, para um imbecil ranhoso.
- E, tendo reduzido o talento ao jeito, pensa que consegue dominá-lo com truques. As palavras foram suas: "Surripiávamos truques a quem podíamos." Como se interpretar um papel não fosse mais que isso; quem conhecesse mais truques era o melhor actor. com as suas piscadelas de olhos lacrimejantes e as suas fungadelas, o seu arrastar dos pés e erguer das sobrancelhas, e tiques e gestos e movimentos do corpo totalmente irrelevantes. Sim, eu sou um péssimo fingidor... graças a Deus! Não sei brincar a representar, como também não sei jogar críquete, nem jogar ao galo, nem jogar futebol profissional. Mas sou um actor que respeita a sua arte e pretende utilizá-la para revelar a verdade.
- A verdade? Que verdade?
- A verdade que há em mim. Mas isso não se consegue fazer com o seu saco de truques superficiais, a não ser para revelar a sua falta de profundidade e falsas pretensões. Toby não é um actor, é um pantomimeiro. A arte teatral passou-lhe ao lado. A maior parte dos actores que conheceu, e com quem contracenou, seriam hoje corridos às gargalhadas do palco se aparecessem a mostrar as suas paixões dilaceradas.
O teatro...
- As suas paixões dilacerantes.
- O teatro começou em grandes arenas ao ar livre e os actores tinham de usar máscaras grotescas e fazer grandes gestos para serem
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vistos e entendidos. Até mesmo as peças de Will foram representadas ao ar livre com os actores a competir com o ruído da rua. Mas, quando o teatro passou para o interior, o palco tornou-se mais pequeno. O cinema tornou-o ainda menor e o ecrã de televisão ainda mais reduzido. Hoje em dia, representar tem de ser mais perto, mais apertado, mais disciplinado e mais controlado. Não tão... tão grosseiro como era nos seus tempos.
- Nos meus tempos! - gritou Toby, furioso. - Nos meus tempos! Fedelho a cheirar a cueiros!
- Nos seus tempos - repetiu David inexoravelmente. - Agora procuramos a motivação de um personagem; a aparência não basta. Procuramos o significado dos discursos; as palavras não bastam. Estamos a cavar, a cavar cada vez mais fundo, procurando novas verdades através da arte de representar.
- "Os jovens pensam que os velhos são tolos; mas os velhos sabem que os jovens são tolos." com que então não finges, desprezível maricas? Hah! Finges, sim, e eu também, e a tua mãe, e Barbara, e Blanche. E todo o ser humano que fornica e se peida durante a sua hora no palco e depois deixa de ser ouvido. Tudo o que tu conheces de mim e que eu conheço de ti são essas "máscaras grotescas" que mostramos um ao outro, as maneiras, os gestos, e todos os pequenos truques da fala e do movimento que tu afirmas desprezar. E tu apresentas uma máscara diferente, uma atitude diferente, um personagem diferente a cada pessoa que conheces, e eu também, e todos nós.
David deteve-se, inspirou profundamente, arrancou os óculos de aros de osso.
- Acho que vou beber mais um trago - disse.
- Esse é um truque que tu me surripiaste - troçou Toby.
Passaram o frasco um ao outro. O gole de David desceu mais facilmente desta vez. Voltou a colocar os óculos e retomaram o seu passeio e a sua discussão.
- Escute, seu anacronismo senil - disse David -, está a querer dizer que nós estamos sempre a representar com os outros?
- É claro que sim, meu idiota. com toda a gente. E cada representação é diferente e única. Todos nós somos comediantes e ajustamo-nos aos outros comediantes, mesmo que seja uma peça só para dois.
- Isso é conversa fiada! Eu não represento quando falo consigo.
- Olha não! Tens estado a fazer de Spencer Tracy quando eu sei que és Ben Turpin. Não estou a acusar-te de fraude ou de insinceridade. É que, neste mundo horroroso, ser sincero seria insuportável, seria a desgraça máxima. Por isso, todos nós tentamos ser o personagem que achamos que os outros personagens apreciam.
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- Ah, fala o Herói da Geração Geritol! Não atribua a sua hipocrisia a toda a gente. Todos nós somos falsos, é isso que está a querer dizer?
- Não mais falsos que qualquer boa representação teatral. A ideia que estou a tentar meter à força nesse teu cérebro de Roquefort é esta: todos nós adaptamos os papéis que representamos na vida privada aos outros personagens, de modo a conseguir a reacção máxima. Fazemo-lo instintivamente, não com um malicioso planeamento prévio, sabendo que a vida, como o teatro, depende da comunicação. E é aí que todas as tuas teorias fantasiosas sobre o método de representar e a busca da verdade caem por terra. Estás-te nas tintas para os outros comediantes, para não falar do público, e fazes da tua representação um fútil exercício sobre o egoísmo. Fútil, porque a única coisa que estás a fazer é satisfazer o teu ego. Mas não estás a comunicar. A tua chamada "representação" compara-se com a verdadeira actuação como a masturbação com a fornicação. Se pretendes usar essa substituição durante o resto da tua vida, o problema é teu, mas não imagines que estás a dar verdadeiro prazer aos outros ou a abrir os seus olhos para a grande verdade. Pensa quantos papéis representas na tua vida privada... centenas! milhares!... e como cada papel é determinado pela pessoa com quem estás a contracenar, e verás como eu tenho razão.
- Will disse isso melhor - resmungou David.
- "Todo o mundo é um palco"? bom, Will disse tudo melhor, aquele filho da mãe! Meu Deus, adorava ter conhecido aquele homem. Só para beber umas canecas com ele. E quando ele estivesse com os copos, apenas alegre, sabes, não a cair de bêbado, deixava-o falar. Imagina, se ele conseguia escrever daquela maneira só para ganhar dinheiro, aquela escrita comercial com a disciplina que isso exige, o que ele diria quando tivesse bebido um pouco a mais, quando, sem necessidade de se disciplinar, se limitasse a dissertar, a tagarelar maravilhosamente, a dizer tudo o que lhe viesse à cabeça, àquela mente incrível e assustadora. Oh, como eu teria adorado partilhar uma caneca com William Shakespeare e escutá-lo a tagarelar, aquele homem fantástico.
- Acho que vou beber mais um trago - disse David.
- Ah-ha! Começas a gostar, hein?
Pararam de novo debaixo de um candeeiro. Toby bebeu um pouco e depois estendeu o frasco ao filho. David deteve-se, com o frasco na mão.
- Não, não estou a gostar, nem Toby. Está a viver no passado. É uma antiguidade.
- E tu és um bastardo - disse Toby.
- Um bastardo? Isso é um insulto pelo que eu disse? Foi assim tão assustador?
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- O que tu disseste? Oh, isso é conversa fiada. Não, falava mesmo a sério. Tu és um bastardo. Eu e a tua mãe nunca nos casámos.
Fez-se silêncio por um momento. Depois David bebeu um grande gole do frasco aberto. Arquejou, reteve a respiração, bebeu outro grande gole e começou a tossir sem parar. Toby deu-lhe entusiásticas palmadas nas costas, até que, finalmente, David se recuperou, abanando a cabeça, limpando a boca à manga.
- Porra! - exclamou ele.
- Porra? - perguntou Toby. - Importas-te de me explicar a motivação desse "Porra"? O seu significado oculto? A verdade real?
- Por que é que não se casaram? - perguntou David.
- Oh... - fez Toby com naturalidade -, nunca calhou.
- Por que é que está a dizer-me isso agora?
- Decidimos casar-nos antes de eu morrer. Gostava que fosses o meu padrinho.
David fitou-o, prestes a explodir e a espalhar-se em fragmentos pela paisagem. Mas, finalmente, voltou a tirar os óculos e desatou a rir sem conseguir evitá-lo, terminando com risadas que se pareciam de forma suspeita com um riso ébrio. Finalmente, quando conseguiu falar...
- Gosto de si. De verdade. É um ser original, o senhor. Um ser original.
- Que raio pretende ser isso? - perguntou Toby.
- Sydney Greenstreet em O Falcão de Malta.
- Mal dito. Aqui vai como deverias ter dito: "Gosto de si. Mmm, é um ser original. É mesmo um ser original, o senhor."
E, na verdade, a sua imitação foi muito melhor que a de David.
- com que então - disse David, inspirando profundamente. - Vai fazer de mim um filho legítimo, hein?
- Mais ou menos isso.
- Que é que se sente quando se é pai de um bastardo?
Toby fitou-o durante um longo momento.
- Devias saber. Que se sente, sendo pai de um bastardo?
O filho levou algum tempo a compreender. Depois...
- Oh, meu Deus! - disse David com uma voz chocada. - Esqueci-me de Barbara. Que é que nós vamos fazer?
- Oh-ho, agora é "nós", hein? "Que é que nós vamos fazer?" bom, produto dos meus órgãos genitais, vou fazer-te uma oferta muito generosa. Caso-me com a tua mãe ou com a mãe do teu filho. Não te parece uma oferta justa? Posso eu fazer mais que isso?
- Pode - disse David. - Vá-se lixar.
- Boa - disse Toby, acenando afirmativamente com a cabeça. - Excelente. Começo a pensar que talvez haja mais que Drano a passar por essas tuas artérias entupidas.
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David ainda tinha dificuldade em acreditar.
- Sou realmente ilegítimo?
- Há anos que ando a dizer-te isso.
- E vai realmente casar-se com a mãe antes de... antes de...
- Antes de marar?
- Sim. Antes de marar.
- vou mesmo - disse Toby. - Vai ser uma cerimónia maravilhosa. Em Technicolor, CinemaScope, com milhares de figurantes. Podes convidar quantos quiseres, especialmente das tuas aulas de teatro. Para eles terem uma visão final do que significa ser um comediante.
- Não recomece.
- Não só recomeço - disse Toby -, como vou continuar até conseguir meter um pouco de senso na massa de Play-Doh a que tu chamas cérebro. Quando começam os teus ensaios?
- Na sexta-feira.
- Já decoraste o texto? - perguntou Toby.
- Não muito bem.
- Decora os versos. Os versos! Depois começamos a trabalhar.
- Nunca fez Hamlet, pois não?
- Não, mas fiz Cláudio duas vezes e Polónio três vezes. Conheço aquela peça melhor do que tu chegarás algum dia a conhecê-la.
- Tenho umas ideias fantásticas para o papel - disse David.
- Esquece as tuas ideias - aconselhou Toby. - Will teve-as antes de ti e as dele são melhores.
- Por que é que nunca representou Hamlet?
Toby Marlow ficou em silêncio por um momento e depois disse:
- Está a fazer-se tarde. Vamos voltar.
David voltou o frasco e esvaziou-o. Depois, rindo-se, sacudiu-o ao contrário para mostrar que estava vazio, devolveu-o a Toby que também o sacudiu, olhando-o com um ar pesaroso.
- Oh, mas que idiota generoso tu me saíste! - exclamou. - "Uma mulher atravessaria o fogo e a água por um coração tão generoso."
Deram meia volta e começaram a caminhar no sentido inverso. ? Mas David cambaleava um pouco, tropeçava, avançava com dificuldade. Finalmente, Toby passou um braço em volta dos ombros do filho, amparando-o.
- Chcuta, Toby - disse David. - Chcuta... Um bom filho conhe...sse o seu pai.
- Obrigado, Henry Wadsworth Longfellow. Diz a Barbara que venha viver connosco. Que se mude para nossa casa. Não deve ficar sozinha e nós temos muito espaço. A tua mãe e eu queremos que ela fique. E Blanche adora-a.
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- Tá bem - David acenou vivamente com a cabeça. - Eu digo-lhisso.
- Não lhe digas, pede-lhe.
- Tá bem, tá bem. Eu peço-lhisso. Toby... Toby, eu casava-me com aquela mulher já amanhã, se ela dissesse que sim.
- Esquece isso. Ela não quer.
- Só um sim. Um sinzinho.
- Estás bêbado? - perguntou Toby com incredulidade. - com meia dúzia de goles de uísque?
- Não tou bêbado -protestou David veementemente. - Não tou nada bêbado. Sinto-me é tonto.
- E amanhã, depois de ficares sóbrio, continuas a ser tonto. Já estou a ver as críticas: "David Marlow contra Hamlet. Hamlet perde."
Os dois, pai e filho, unidos e cambaleantes, seguiram o seu caminho no meio da noite, aos tombos, trocando insultos, fazendo citações pouco relevantes e, de vez em quando, começando a cantar. As suas vozes eram surpreendentemente harmoniosas, mas os transeuntes que se cruzavam com eles tinham o cuidado de descrever uma grande curva em volta daqueles palhaços ruidosos. Acabaram por desaparecer no nevoeiro...
CENA CINCO
O quarto de dormir dos Marlow era um aposento mais ou menos quadrado, de tecto alto, dominado por uma enorme cama de quatro colunas, completa com uma canópia franjada. A entrada era pela esquerda. Um arco à direita dava para o quarto de vestir espelhado e para a casa de banho, decorada com cartazes de circo.
Este quarto era suficientemente grande para nele caberem quatro cómodas, colocadas entre cinco janelas que iam do chão até ao tecto, cobertas com cortinados.
Havia uma mesa oval de tampo de vidro com cadeiras à volta, usada para os pequenos-almoços e ceias tardias ocasionais. Perto das janelas encontrava-se uma chaise longue coberta de damasco. Havia um pesado sofá de cabedal com uma mesa de pé de galo ao lado. A mesa tinha um candeeiro com um quebra-luz verde sobre o seu tampo cheio de cicatrizes. Escondida no armário havia uma pequena garrafeira. Um lavatório de tampo de mármore e uma mesa-de-cabeceira com telefone completavam o mobiliário do quarto.
Mas, tal como a sala, aquele quarto de dormir era um aglomerado de adereços teatrais, recordações, fotografias emolduradas e, mais
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estranho que tudo o resto, um pequeno anúncio de uma só palavra em néon vermelho, colocado sobre um suporte especial. Naquele momento, o anúncio acendia-se e apagava-se, fazendo surgir "Marlow... Marlow... Marlow..." a intervalos regulares e hipnóticos.
Toby Marlow estava devidamente preparado para dormir, usando uma longa camisa de noite de linho e um barrete de dormir com um pompom que lhe caía atrevidamente sobre a orelha direita. Estava descalço. Encontrava-se de pé junto da mesa oval. Havia uma tigela com frutos frescos sobre a mesa, e Toby estava a fazer malabarismos com três laranjas e uma maçã. Olhava em volta com indiferença, mas na realidade estava à espera de escutar os aplausos.
Cynthia, envergando uma fluida camisa de dormir e négligée, estava deitada de lado sobre a chaise longue. Ocupava-se de uma série de complexos exercícios antes de dormir, que incluíam leves pancadas por baixo do queixo com as costas da mão, mover a cabeça lentamente em volta do pescoço, abrir muito a boca numa careta forçada e assustadora, etc.
Blanche, envergando um velho roupão de flanela por cima da camisa de dormir de flanela, com papelotes nos cabelos, estava ocupada com uma tarefa doméstica: mudar a roupa da cama dos Marlow. Nem ela nem Cynthia olhavam para os malabarismos de Toby; já os tinham visto muitas vezes antes. Finalmente, ao ver que ninguém o admirava, Toby voltou a colocar as laranjas na fruteira e começou a passear pelo quarto, a comer a maçã.
- Bom - disse ele -, já lhe disse.
- Ainda bem, querido - disse Cynthia.
- Como é que ele aceitou? - perguntou Blanche com curiosidade.
- Muito bem - disse Toby sucintamente. - O rniúdo é catita. Depois voltou-se, ameaçador: - Mas não lhe digas que eu disse isto.
Blanche riu-se.
- Deus não permita que alguém possa pensar que Toby é um ser humano.
Sempre a andar de um lado para o outro, a mordiscar a maçã, Toby parou junto do telefone da mesa-de-cabeceira e observou.
- Olhem para o raio deste telefone. Nunca toca. Nunca toca. Entrei em peças em que o telefone tocava de dez em dez minutos. Era assim que eu ficava a saber que me tinha morrido um tio rico que me tinha deixado um milhão de dólares, ou que a minha mulher tinha fugido com o mordomo ou com a minha amante. Mas o nosso telefone nunca toca. Que diabo, não há nada que funcione nesta casa?
- O Toby com certeza que não - disse Blanche.
- Estás a pedi-las, rapariga - disse Toby. - Continua assim que ainda apanhas um pontapé no rabo. Olha que sou maior que tu.
- Quanto mais altos são, maior o trambolhão - disse Blanche.
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- Não acredites nisso - disse Toby. - Quanto mais altos são, mais forte é o pontapé. Escuta, importas-te de parar de acariciar os meus lençóis e pôr-te a mexer daqui? Quero seduzir a minha esposa.
- Ela não é sua esposa - disse Blanche, voltando o edredão e ajeitando-o.
- Talvez não neste momento - disse Toby com altiva dignidade. - Mas é a mulher com quem partilho a felicidade conjugal.
Ambas as mulheres desataram a rir e Toby olhou-as, desconfiado.
- Não gosto nada da maneira como estas duas bruxas têm agido ultimamente - disse. - Anda qualquer coisa no ar. Uma conspiração. Contra mim.
- Oh Toby! - exclamou Cynthia.
- É verdade. Duas bruxas. Se houvesse mais uma, podiam fazer Macbeth.
- E se o Toby não fosse tão careca - disse Blanche -, podia fazer O Macaco Peludo.
- E tu, na figura em que estás, podias fazer um anúncio dos Edredões Epsom - retorquiu Toby. - Nunca tentes ser mais esperta que eu, cavalona. Não consegues.
Blanche fez-lhe um gesto obsceno, com o dedo médio estendido. Depois, rindo de forma inaudível, saiu, fechando a porta atrás de si. Toby acabou a sua maçã, atirou os restos para a tigela de frutas frescas. Em seguida dirigiu-se, arrastando os pés, para a cama acabada de fazer e sentou-se nela pesadamente. Cynthia fitou-o, ansiosamente.
- Como te sentes, Toby? De verdade.
- De verdade? Não muito bem. Um pouco cansado. Foi um dia muito cheio. Acho que vou deitar-me e passar pelas brasas até de manhã.
- Boa ideia - disse Cynthia, acenando afirmativamente com a cabeça. - Eu já vou para aí.
- Acho que esta noite não consigo pô-lo de pé.
- Dizes sempre isso, mas depois consegues sempre.
- com um pouco de ajuda dos amigos.
Toby estendeu-se lentamente do seu lado da cama, puxando o edredão para cima das pernas. Cynthia pôs-se de pé e começou a mover-se pelo quarto, tirando o resto da maçã da fruteira e atirando-o para o cesto dos papéis, abrindo janelas, endireitando cortinados, etc. Os olhos de Toby seguiam os seus movimentos.
- Cyn, já te disse que te amo?
- Disseste, sim. - A mulher sorriu. - Duas vezes no mesmo dia.
- Ainda sou capaz de dizer outra vez, já faz três, um novo recorde do mundo.
- Num só dia! - exclamou Cynthia.
Aproximou-se da cama e sentou-se ao lado dele. Ele chegou-se um
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pouco para o lado, para lhe dar espaço. Cynthia pegou-lhe na mão e beijou-lhe as pontas dos dedos.
- Sabes a maçã - disse. - Toby...
- Diz.
- Vai correr tudo bem? Diz-me que vai correr tudo bem.
- Não me largues, miúda, que ainda hás-de usar diamantes.
Sorriram ambos, olhando um para o outro, recordando a primeira vez em que ele lhe dissera aquilo. A primeira vez que se tinham visto...
Era um camarim apertado, um pouco reles. O tecto era baixo, a tinta das paredes leprosa, os móveis velhos e sem graça. A luz provinha de uma única lâmpada sem protecção, pendurada de um fio eléctrico e de um rebordo de lâmpadas de baixa voltagem em redor de uma mesa de maquilhagem muito mais pequena e infinitamente mais periclitante que a do grande espelho no actual quarto de vestir de Marlow.
Era o ano de 1932. Toby Marlow estava a obter um sucesso pessoal no papel de jovem galã de uma péssima comédia musical chamadaPor Favor Sophie, Não Faças Isso! A peça já tinha feito duas noites e faria mais duas antes de sofrer uma morte misericordiosa, apressada por um crítico respeitado que escrevera, entre outras coisas: "O sexo desta alegada comédia dá-me vontade de deitar fogo a todas as camas do mundo."
Mas as críticas ao desempenho de Toby tinham sido realmente muito boas e ele tinha todo o direito ao sorriso complacente que trocara com o seu reflexo no espelho do camarim, enquanto retirava a maquilhagem de palco. Estava despido até à cintura, com o tronco ainda suado por causa da cena final de dança, frenética e idiota. Até a sua calva brilhava. Toby enxugou-a com uma toalha desanimadoramente suja.
Subitamente, ouviu-se uma pancada forte e peremptória na porta do camarim...
Uma voz de homem gritou:
- Mr. Marlow! Uma pessoa para o ver. Está decente?
- Só um minuto - gritou Toby.
Apressou-se a colocar a peruca, ajeitou-a cuidadosamente, alisando-a com os dedos.
- Entrez-vous! - cantarolou. Como não houvesse resposta, nem reacção, gritou: - Entre, entre, que diabo!
Ao dizer a última palavra, Toby pôs-se de pé, deu dois passos para a porta e abriu-a iradamente. Acalmou imediatamente ao ver o que a fortuna lhe tinha trazido: uma jovem bonita, de aspecto suave, não espartilhada. Toda ela tremia, muito nervosa, segurando na mão, desajeitadamente, uma rosa vermelha.
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- Ora, ora, ora - disse Toby. - Que é que temos aqui?
com a voz embargada, a princípio, mas depois com pressa de debitar o discurso que tinha obviamente ensaiado, a jovem disse:
- Mr. Marlow, só queria dizer-lhe que acho que o senhor é o melhor actor de sempre, e vi a peça duas vezes, é uma peça horrível, e a única razão por que cá vim foi para o ver, e gostava de o conhecer e de lhe dar isto.
Estendeu-lhe a rosa. Ele aceitou-a graciosamente, com um sorriso terno.
- Deus te abençoe, minha filha... filha da puta!
Sacudiu a mão furiosamente e depois sugou o polegar.
- Oh, meu Deus! - disse ela. - Devia ter tirado os espinhos.
Toby sorriu corajosamente.
- "O coração que mais depressa desperta para as flores é sempre o primeiro a ser atacado pelos espinhos." Mas entra, minha filha. Foi muita bondade tua vires visitar-me.
Levou-a para a sala de vestir, fechou a porta e, enquanto ela olhava em volta, deu furtivamente a volta à chave.
- Não é muito elegante, pois não? - perguntou ele alegremente. - Senta-te nessa cadeira. Mas toma cuidado com a perna direita de trás; tem tendência para cair. Como é que conseguiste passar pela porta do palco? Suborno?
- Oh, não. Mac e eu somos velhos amigos. Já trabalhei neste teatro, uma vez.
- Ah sim? Em quê?
- bom... Era só uma pantomima de Natal. Eu fazia de melão.
- Melão? Um papel sumarento!
Riram-se ambos. Toby ficou excitado pela forma como ela se riu: a cabeça lançada para trás, a garganta forte e cheia. Puxou a sua cadeira, de forma a ficar diante dela. Sentou-se, ainda a segurar a rosa cuidadosamente. Puxou de novo a cadeira para a frente, de modo que os joelhos de ambos quase se tocassem.
- Como te chamas, filha?
- Cynthia Seidensticker. Mas uso o nome de Cynthia Blake.
- Acho muito bem! Cynthia é um bonito nome. Gosto do som da palavra. Podia fazer muita coisa com "Cynthia". Por exemplo, irado: "Cynthia!". Implorativo: "Cynthia?". Apaixonado: "SSS-Cyn- tii-aaa".
- Acho-o maravilhoso!
- Oh, sim - disse ele. - E que mais fizeste, no palco, claro?
- bom... an... fiz uma tournée de Verão nos Estados Unidos.
- Estás a mentir, claro.
- Claro.
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Riram-se novamente e Toby aproximou a sua cadeira ainda mais. Cynthia não parecia conseguir afastar os olhos do tronco dele.
- Está todo transpirado - disse com voz débil.
- Suado. Os senhores transpiram; os actores suam. Não queres ser um amor e enxugar-me?
Pôs-se de pé e pousou a rosa na mesa. Estendeu-lhe a toalha suja. Ela pôs-se de pé, hesitante, pegou na toalha e começou a enxugar suavemente as costas que ele voltara para ela.
- Na realidade, não sou grande actriz - confessou ela. - Gostava de ser, mas não sou.
- Então esquece o teatro - aconselhou Toby. - Não é local para dúvidas.
- Mas eu adoro-o - disse ela, ocupada em esfregá-lo.
- Óptimo. Compra bilhetes para o ver, então. Casada?
- Não.
- Amante?
- Não.
- Namorado, ou amigos?
- Alguns - disse ela, hesitante. - Nada sério. Mas não sei porque estou a dizer-lhe isto. É impossível que lhe interesse.
Toby voltou-se para ela. A rapariga continuava a esfregar-lhe o pescoço, os ombros, o peito e as costelas com a toalha encharcada, muito ocupada no seu trabalho. O jovem Toby tinha um tronco impressionante, firme e graciosamente musculado. Tirou-lhe a toalha dos dedos trémulos e deixou-a cair no chão. Agarrou-a suavemente pelos antebraços.
- É claro que me interessa - disse. - Tu és linda, Cynthia.
- Obrigada.
- Cynthia, bela regente da noite.
- Donde é isso? - perguntou ela.
- Não sei. Uma coisa que me ficou dentro da cabeça - gentilmente, sempre a agarrá-la pelos braços, puxou-a para si até ela ficar encostada a ele. A cabeça da jovem dobrou-se para trás, temerosamente.
- Cynthia - sussurrou ele. - Sabes o que quer dizer o nome "Cynthia"?
- O que é? - perguntou ela, agora arquejante.
- Aquela que procura o amor.
- Está... está a inventar isso, não está?
- Estou, mas isso não quer dizer que seja uma mentira... não é assim?
Ela ficou em silêncio.
- Não é uma mentira, pois não?
- Não - disse ela debilmente.
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Ele passou-lhe uma mão por detrás da cabeça e encostou o rosto dela ao seu.
- "Vem então beijar-me com teus doces vinte anos; "A juventude é um bem que não dura."
- Oh, eu não posso fazer isso, Mr. Marlow-disse ela. - Não posso mesmo!
- "Não amam aqueles que o amor não mostram."
Comprimiu a boca contra os lábios fechados dela. Ela fitava-o com os olhos muito abertos e chocados. Ele afastou a sua boca aberta.
- "O beijo que se recebe é melhor que o que se dá."
- Por favor, não, Mr. Marlow. Eu não... Eu só... Tudo isto é errado.
- "Para fazeres muita coisa certa", - citou ele, - "tens de fazer qualquer coisa errada."
Beijou-a novamente. Desta vez, ela derreteu-se encostada a ele, com a boca aberta. Mas compensou, fechando os olhos. Depois, respirando pesadamente, afastou-se dele. Um pouco.
- "O amor vai ao encontro do amor" - murmurou ele.
- Quero sair já daqui - disse ela em voz alta. - Quero...
- "Fala baixo" - insistiu ele -, "quando falares de amor."
- O que o faz pensar que quero que faça amor comigo? Como ousa...
- "Eu ouso fazer tudo o que compete a um homem; ninguém ousa fazer mais."
- É a pessoa mais presunçosa que eu já conheci. Só porque eu...
Marlow beijou-a de novo e ela voltou a derreter-se toda. As suas mãos moveram-se lentamente sobre os ombros dela, pelas suas costas, pelas suas nádegas. Depois, com dedos ternos, tocou-lhe no rosto.
- "Há uma linguagem nos seus olhos, nas suas faces, nos seus lábios."
- Por favor, não faça isso, Mr. Marlow, peço-lhe. Nunca fiz nada como isto. E não quero fazê-lo. vou gritar por socorro.
- "O cérebro pode criar leis para o sangue. Mas um temperamento ardente ultrapassa os frios decretos."
- Não tem vergonha? Não tem um mínimo de vergonha?
- "A dama protesta de mais, segundo me parece."
- Pois a mim parece-me que o senhor é um grosseirão e um, ahn..., canalha. Não há dúvida de que não é um cavalheiro. A minha virtude não significa nada para si?
- "Alguns elevam-se pelo pecado, outros caem pela virtude."
Voltaram a beijar-se, mais calorosamente, desta vez. Os braços de um envolviam o outro, puxavam-no mais para si.
- Vou gritar - disse ela.
- "O amor reconforta como o Sol depois da chuva."
- Não, não, não! Não compreende o que quer dizer "não"?
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- "Por certo já ouviste muitas vezes, Que o não de uma mulher nada quer dizer."
Pegou numa das mãos dela e comprimiu a palma aberta contra a sua boca.
- Que está a fazer? - exclamou ela.
- "A beijar a terna palma da vossa mão."
- Oh... - fez ela num tom sonhador. - Oh... A tua língua enlouquece-me.
- "A sua voz era suave, terna e baixa, coisa excelente numa mulher."
Ele tentou abrir o botão de cima da blusa dela, mas a sua excitação era tão intensa que não o conseguiu. Cynthia tentou ajudá-lo, mas os seus dedos emaranharam-se, enquanto os esforços de ambos se tornavam cada vez mais frenéticos.
Toby estava furioso.
- "É a tentativa, não o feito, que nos confunde!"
- Pronto - disse ela -, tira as mãos e deixa-me fazer eu isso. Há um botão e um colchete.
Obedientemente, ele colocou as mãos na cintura dela. Ao fim de um momento, ela conseguiu abrir a parte de cima da blusa.
- "Deixa-me levar-te uma casa mais abaixo" - disse ele avidamente.
Desabotoou-lhe a frente da blusa e abriu-a. Acariciou a parte superior dos seios que saía da combinação.
- Oh...Oh, Toby...
- "Um manjar para os deuses!"
- Onde é que nós podemos...? Há aqui um...?
Ele afastou uma cadeira com um pontapé e caiu de joelhos no chão poeirento, estendendo as mãos para ela.
- "Vem para estas areias amarelas e vamos dar as mãos." - Ela deixou-se cair ao lado dele. Beijaram-se de novo, tocando-se nos lábios enquanto os seus dedos enlouquecidos arrancavam botões, fivelas, cintos. Pararam por um momento, meio nus, para recuperar o fôlego.
- "Dá-me a tua mão" - disse ele - "e deixa-me sentir a tua pulsação."
- Oh, Toby, a tua pele é tão macia. És tão belo.
- "O amor não vê com os olhos mas com a mente, "Eis porque o alado Cupido é pintado cego."
Fez deslizar as alças da combinação sobre os ombros e baixou-a até à cintura com suavidade. Segundo a moda da época, ela usava uma faixa para achatar os seios e ele estendeu a mão para as costas dela, a fim de a desabotoar. Livres, os seios nus dela eram cheios, com os mamilos já inchados. Toby precipitou-se sobre eles...
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- "Onde a abelha suga, sugo eu também."
Ele passou os lábios e a língua pelos seios dela com finas veias azuladas e depois afastou a boca com um suave estalo de delícia. Tocou na carne entumescida.
- "Tão macios como o monumental alabastro."
- Temos que despir-nos - arquejou ela. - Temos que ficar completamente nus!
- "Nunca vi corpo tão jovem com cabeça tão sensata".
Despiram-se um ao outro, não numa pressa frenética, mas também sem perder tempo. Depois ficaram ambos nus, deitados de lado por cima das roupas amachucadas. Acariciaram-se, quase timidamente.
- "A verdade nua" - disse Toby.
- Que bonito! - arquejou ela. - Que bom! Por que estava eu a negar-me?
- "Senhora, sois das mulheres a mais cruel "Se levais tais graças para o túmulo sem deixar uma cópia neste mundo.
- Oh céus! Como é sedoso o traseiro dela"!
Há uma divindade que os extremos nos molda
E os desbasta para os pôr ao nosso gosto."
Exploraram os corpos um do outro com bocas famintas, mãos cobiçosas, dedos curiosos. Cynthia percorreu o tronco de Toby com os lábios.
Ele disse:
- "O melhor hábito do amor é uma língua suave."
Ela bafejou o ventre e as virilhas dele com o seu hálito quente e depois roçou-lhe levemente a pele com as pestanas.
- "Avança a franja da cortina do olhar!"
Ela agarrou-lhe no pénis com o punho quente.
- Que magnífico para acariciar! - exclamou.
- "Um animal muito gentil e de boa consciência."
Ela levou-o até à boca e sugou-o cuidadosamente.
- "Oh! Aí reside a loucura; deixai-me acabar com isso."
- Não queres que eu faça isto?
Toby acariciou-lhe ternamente os cabelos.
- "O que é meu é vosso, e o que é vosso é meu."
Moveu-se rapidamente, de modo a ficar com a cara voltada para os dedos dos pés dela. Observou-os atentamente.
- "Dedos não flagelados pelos calos."
Meteu os dedos dela na boca. Cynthia contorceu-se de prazer.
- Nós somos loucos! Toby, nós somos loucos!
- "Se isto fosse representado sobre um palco, poderia condená-lo como ficção improvável."
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Começou a mordiscá-la nas barrigas das pernas nuas, por detrás dos joelhos, ao longo das coxas macias.
- Oh... - gemia ela. - Oh...
- "Tão casta como a neve que o Sol não aquece."
- Oh, meu querido, acho que vou morrer. Ou pelo menos desmaiar. Que vais fazer a seguir?
- "vou titilar a tua catástrofe" - disse ele.
- Valha-me Deus, estou toda molhada.
Toby deitou-a de costas, Flectiu-lhe os joelhos e afastou-os. O rosto dele mergulhou entre as suas coxas e espreitou para a vulva dela envolta em pêlos macios.
- "Não é tão funda como um poço, nem tão larga como o portal de uma igreja; mas basta; serve."
Enterrou o rosto nela, deixando os lábios, a língua, até mesmo os dentes, servirem a sua paixão. Arquejou:
- "Um odor muito antigo semelhante ao do peixe."
- Ordinário! - disse ela. - Podemos fazê-lo agora? Por favor, Toby, agora. Como tu quiseres. Como vai ser?
- "Cometamos os mais velhos pecados das maneiras mais novas."
Toby pôs-se de joelhos e Cynthia também. Ambos ajoelhados, com as costas direitas, voltaram-se um para o outro e abraçaram-se. Beijaram-se, com as bocas abertas e móveis.
- Que divertido! - exclamou ela.
- "Conserva uma boa língua na tua cabeça."
Cynthia afastou-se, sentou-se sobre os calcanhares e olhou-o gravemente. Passou as palmas das mãos macias pelo tronco dele, envolveu a sua arma cada vez mais rija com dedos suaves.
- Há uma coisa que tenho que te dizer, querido Toby. Sou virgem. Nunca fiz isto antes. Isso estraga tudo?
- "Uma rapariga ignorante, inculta e sem experiência "Felizmente não tão velha que não possa aprender."
- Vai doer? - perguntou ela ansiosamente.
- "O agradável castigo que as mulheres suportam."
- Oh querido, querido...
- "Quando o amor fala, a voz dos deuses todos "Embriaga o céu com a sua harmonia."
- Amas-me, Toby?
- "Actos, não palavras."
- Não podes dizer que me amas, só uma vez?
- "Quem muito fala, pouco acerta."
- Está bem - disse ela. - vou arrancar-to.
Maltratou o punhal dele de uma forma terrível, sacudindo-o,
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dando-lhe piparotes, retorcendo-o entre os dedos. Depois inclinou-se para a frente para o morder vorazmente. Ele gemeu...
- "Pensas que sou mais fácil de tocar do que uma flauta?"
- Arranco-to à dentada! - prometeu ela.
Ele arquejou:
- "Não dês muita rédea à brincadeira!"
Cynthia deixou cair as mãos e observou, encantada, como o estilete dele se transformara numa cimitarra, inchada e palpitante, arroxeada e apontada para ela.
- Meu Deus - disse -, como ela mudou!
- "Tem o seu aspecto longo e o seu aspecto curto."
- Oh, Toby, agora. Agora, Toby!
Inclinou-se para a frente, novamente de joelhos e abraçou-se a ele com força.
- "Olhos, olhai pela última vez!" - gritou ele. - "Braços, dai o vosso último abraço!"
Ela estendeu a mão para acariciar o cabelo dele. Antes que lhe tocasse, ele gritou...
- "Se tendes lágrimas, preparai-vos para as derramar!"
... e arrancou a peruca. Atirou-a para cima do toucador, como uma pele morta. Cynthia riu-se.e acariciou a cabeça calva dele e depois baixou-a para a beijar. Toby colocou-a em posição e ela permitiu docilmente que ele a pusesse de joelhos, com as pernas afastadas, os braços pousados no chão, a cabeça entre as mãos, o traseiro elevado. Tinha o rosto encostado ao chão, os cabelos espalhados. Toby ajoelhou-se ao lado dela. As suas mãos acompanharam a sua cintura estreita, o brilho suave das ancas. Depois os seus dedos procuraram e encontraram a abertura da sua bolsa. Esfregou-a rapidamente.
- Não me excites mais - suplicou ela. - Por favor, não!
- "Devo ser cruel para poder ser bom."
- Eu quero-te dentro de mim!
Ele olhou para si próprio com assombro...
- "Será isto uma adaga que vejo diante de mim, com o cabo voltado para a minha mão?"
Agarrou no pénis rígido. Inclinou-se para a frente e penetrou-a.
- Ahhh! - gemeu ela. - Ahh! Ahh!
- "Em cheio!" - gritou ele. - "Foi um tiro certeiro!"
- Que maravilha! Que encanto! Que deslumbramento! Sublime! Que é que eu tenho que fazer, Toby? Diz-me o que devo fazer.
Toby disse:
- "Toca de ouvido!"
Apertou-a mais contra ele. Aprisionado, colocou as mãos nas ancas dela e começou a movê-las. Em círculos, quadrados, heptágonos, multipolígonos, e outras formas geométricas. Incluindo espirais.
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- Oh... - gemeu ela. - Oh... estou em brasa.
- "Panela pequena aquece depressa."
Os movimentos giratórios de Cynthia tornaram-se mais excitados. Todo o seu corpo tinha sido apanhado no ritmo do seu prazer. Já não necessitava das mãos dele a ensiná-la.
- "Embora pequena" - disse ele -, "é ardente."
- Precisas de dizer piadas a respeito disto? - perguntou ela.
- "Muitas vezes os homens, prestes a morrer, se mostram alegres." Cynthia, entusiasmada com o seu rápido domínio daquela nova arte, agitou-se de mais nos seus esforços e Toby acabou por ficar de fora.
- Desculpa, querido - disse ela.
- "O caminho do verdadeiro amor nunca foi fácil."
- Eu vou ser mais lenta.
- "Mais matéria e menos arte" - insistiu ele.
Os movimentos de Cynthia tornaram-se mais subtis e os dois começaram a mover-se em conjunto, dando prazer um ao outro e trocando manifestações agradáveis como gemidos, protestos, arquejos e suspiros.
- Não me largues agora! - pediu ela.
- "Não me movo um centímetro!"
- Mais depressa! Mais fundo!
Ele arquejou:
- "Pode-se afirmar que uma coisa boa é de mais?"
- Estou a sentir... Estou a sentir... Não pares! Toby, peço-te por tudo, não pares!
- "Só se morre uma vez."
O prazer de ambos tornou-se mais intenso até que, explodindo, uma convulsão final os sacudiu a ambos.
- Felicidade! - disse ela, expirando. - Felicidade!
- "Oh morte gentil e agradável!"
Ainda unidos, como um animal de duas cabeças, foram reduzindo o ritmo.
- Vim-me, vim-me - disse ela, com voz sonhadora. - Estou a afogar-me, a afogar-me.
- "Grandes inundações provieram de fontes sinples."
Os corpos de ambos estremeceram e detiveram-se. Sem forças, sem sentidos, deixaram-se cair e ficaram estendidos. Estavam ambos de rosto voltado para baixo, Toby deitado sobre as costas de Cynthia. Ele ainda estava dentro dela. Por pouco. A respiração de ambos foi abrandando, assim como os batimentos do coração.
- Eu não sabia - murmurou ela. - Eu não sabia. Foi perfeito.
Toby disse:
- "Hei-de contar ao mundo."
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Cynthia meteu a mão entre as pernas e olhou para os dedos...
- Nem sequer estou a sangrar!
- "Está bem tudo o que acaba bem" - disse ele.
- Vamos fazer isto outra vez!
- O quê? - Ele riu-se. - "Já vistes uma serpente picar-vos duas vezes?"
Suavemente, libertou-se dela, rolou para o lado e sentou-se no chão. Ela sentou-se também, junto dele. Ambos olharam tristemente para a lança embotada dele.
- Oh, querido... - lamentou-se ela. - Fui eu que fiz isso?
- "Oh, está murcha a grinalda da guerra! "Caiu a lança do soldado."
- Mas gostaste, não gostaste, Toby?
- "Devo dizer precisamente, como aquele tipo romano de nariz adunco:Vim, vi e vim-me."
Deitados no chão poeirento, abraçaram-se e passaram algum tempo a beijar-se suavemente e a sussurrar palavras ternas. Depois, ouviu-se uma forte pancada na porta do camarim.
- Mr. Marlow - disse uma voz -, está decente?
Toby olhou inquisitivamente para Cynthia. Ela acenou afirmativamente, com um ar satisfeito. Ele inclinou-se para depor um beijo de bênção no matagal dela.
- Vamos fechar o teatro, Mr. Marlow - prosseguiu a voz do exterior. - Tem de sair já.
Toby resmungou:
- "Maldito aquele que remexe nos meus ossos."
Cynthia e Toby Marlow, sorrindo e acenando afirmativamente com a cabeça, estavam de regresso ao seu quarto de dormir, no apartamento de Central Park West. Entrava uma vaga luz das cinco janelas altas. O lustre e o candeeiro tinham sido apagados, mas o anúncio de néon continuava a acender e a apagar sem cessar "Marlow... Marlow... Marlow..." As formas de Cynthia e Toby quase não se viam na sua cama de dossel.
- Eu recordo-me - disse Toby. - E depois levei-te ao Savoy para jantar.
- Onde paguei eu a conta - disse Cynthia.
- Pagaste? - disse Toby. - bom, foi o mínimo que podias fazer, depois do que eu tinha feito por ti.
- Eu concordei plenamente, na altura. E foi depois do jantar que tu disseste: "Não me largues, miúda, que ainda hás-de usar diamantes". Naquela altura não sabia que isso era uma piada, que estavas a fazer uma citação de um livro ou de um filme qualquer.
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- Bom, era uma piada e não era. Foi uma meia piada.
- E disseste-a meio-convencido - disse ela. - Depois fomos a pé até àquele hotel horrível onde eu estava.
- E não me deixaste subir - recordou-se ele.
- É verdade. Disse-te que já era muito tarde, e lembras-te do que tu disseste nessa altura?
- Que é que eu disse?
- Foi a tua última citação dessa noite. Disseste: "Nunca é noite quando vejo o teu rosto." Foi muito, muito amoroso.
- É verdade - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça.
- Isso foi a sério, não foi, Toby? Estás a adormecer, querido?
- Mmm... quase. Abraça-me.
- Assim?
- Sim. Boa noite, meu amor.
- Boa noite - disse ela ternamente. - Boa noite, boa noite...
Houve uns momentos de silêncio, um vago movimento na cama, e depois as molas gemeram...
- Cyn...
- Que foi, querido?
- Cyn, esqueci-me de rezar as minhas orações.
- Oh Toby, tu não rezas há quarenta anos.
- Bom, quero rezar agora.
- Então reza, querido.
Silêncio de novo. Após uma curta pausa.
- Cyn...
- Que foi agora?
- Importas-te de rezar por mim?
- Para quê?
- Bom... acho que as orações terão mais peso se vierem de ti.
- Está bem, Toby. Eu rezo as tuas orações por ti.
Ele ficou satisfeito e aninhou-se, abraçado a ela.
- Obrigado, Cyn. Vê se fazes um papel convincente, sim?
Finalmente adormeceram. Mas o anúncio de néon continuou a acender e a apagar: "Marlow... Marlow... Marlow..."
Segundo Acto
CENA UM
O escritório de Julius Ostretter ficava na Rua 58, em frente do Plaza. Julius era o advogado dos Marlow e irmão do médico da família, Jacob Ostretter. As suas instalações poderiam servir de cenário teatral para o escritório de qualquer advogado de sucesso: sofá e maples de mogno com cabedal verde-escuro e pregos de latão. Havia diplomas e certidões emoldurados nas paredes, uma carpete oriental gasta, mas boa, sobre o chão deparquet. Havia estantes com portas de vidro, cheias de livros de Direito, um globo enorme mas já desmaiado num suporte de nogueira, uma pequena mesa com um termo de água gelada e quatro copos (voltados para baixo) sobre uma bandeja de prata.
Na imponente secretária do Dr. Ostretter via-se uma fotografia a cores da sua mulher; o telefone e o intercomunicador; lápis afiados dispostos com precisão em volta do rebordo de um enorme mata-borrão com cantos de crocodilo preto, a mesma pele que adornava um mata-borrão tipo tanque, o cabo de uma faca para abrir cartas e um pesado suporte para canetas.
Naquele momento, a organizada e arrumada secretária encontrava-se coberta de pilhas de papéis com os cantos dobrados, alguns amarelecidos pelo tempo; um livro de razão antiquado, com a lombada rasgada e reparada com fita adesiva; alguns livros de notas mais pequenos; livros de cheques; acções e certificados de obrigações; e outras coisas no género...
Cynthia Marlow estava confortavelmente sentada num cadeirão diante da secretária. Tricotava placidamente algo que parecia ser uma écharpe de um metro e meio, de um vermelho de carro de bombeiros, e a lã saía de um saco de compras aos seus pés.
Toby Marlow, envergando calças de flanela cinzenta, uma camisa com a gravata colocada de forma descuidada, e um casaco de desporto de um xadrez berrante, estava, inexplicavelmente, a praticar passos de dança. Movia-se pela sala em lentas piruetas e reverências, como um bailarino já idoso, agitando os braços langorosamente, erguendo
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e baixando as pernas. Não produzia ruído algum, movendo-se ao som de uma música que só ele escutava. Mas tinha um sorriso satisfeito no rosto e, efectivamente, havia uma certa graça e alegria na sua dança a solo.
Os únicos sons, para além do estalido das agulhas de tricotar de Cynthia, provinham de Julius Ostretter, sentado na sua cadeira giratória atrás da secretária. Vestido de forma fúnebre, com os óculos de aros de aço firmemente fixados no lugar, estava a ler lentamente alguns dos papéis rasgados que tinha sobre o mata-borrão. Recusava-se a olhar para as ridículas cabriolas de Toby.
- Mm-hmmm - murmurava ele. - Mm-hmm. Mm-hmm.
- Cynthia, meu amor - disse Toby -, já ouviste um diálogo mais significativo na tua vida? "Mm-hmmm. Mm-hmmm. Mm-hmm." David podia fazer maravilhas com aquilo, se alguém lhe dissesse qual era a motivação.
Finalmente, Julius ergueu o olhar e bateu com a palma da mão sobre a lista de papéis.
- Mr. Marlow, tenho que...
- O seu irmão Jake chama-me Toby.
- Por favor, não mencione na minha presença o nome dessa criatura revoltante!
- Peço desculpa - disse humildemente Toby. - Um certo médico, cujo nome não vem para o caso, trata-me por Toby. Tem-se ocupado das necessidades físicas da minha família durante muitos anos. O senhor dedicou os seus consideráveis talentos legais à nossa família por um igual número de anos. Não poderia, na bondade do seu murcho coração legal, chamar-me também Toby? Eu, cheio de gratidão, compensá-lo-ia chamando-lhe Julie.
- Não é profissional - disse o advogado. - Prefiro Dr. Ostretter.
Toby suspirou profundamente.
- "A primeira coisa que vamos fazer" - disse a Cynthia - "é matar todos os advogados." Rei Henrique VI, 2.- Parte, IV Acto, Cena Um.
- Cena Dois, querido - disse ela placidamente.
- Diga-me, Mr. Marlow - disse Ostretter -, isto é uma declaração total de todos os seus bens?
- Excepto do meu génio - disse Toby. - Ontem Cynthia e eu fizemos a perigosa viagem até ao nosso cofre de depósito bancário num banco da baixa. Trouxemos de lá toda essa tralha que tem sobre a secretária.
- E eu dactilografei o inventário na máquina de escrever de David - disse Cynthia animadamente. - com dois químicos. Uma porcaria. Não consigo tirar o preto dos dedos.
- Diga-me uma coisa, Julie - disse Toby -, já esteve alguma vez na casa-forte de um banco?
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- Já. É evidente que já estive.
- Aquelas salinhas que eles nos dão, onde está o nosso cofre. E fecha-se a porta à chave por dentro. Cynthia e eu pensámos que se podia fazer amor ali dentro.
- Como diz? - perguntou o advogado.
- Naquela salinha aconchegada - disse Toby. - com uma pequena mesa de tampo de vidro, uma tesoura, elásticos, clips e um cesto para papéis. Podia-se perfeitamente fornicar ali dentro e ninguém daria por isso. Privacidade absoluta. Mais barato que um motel. Aposto que muitos executivos já fizeram isso durante a hora do almoço. E as secretárias deles ficaram com marcas da tesoura e dos clips nas costas.
- Não compreendo - disse Ostretter, desorientado.
- Em cima da mesa de tampo de vidro - explicou Toby pacientemente. - Nós não fizemos isso, evidentemente.
- Foi pena - disse Cynthia.
- Falámos de fazer isso a bordo de um avião - disse Toby, num tom sonhador. - A trinta e cinco mil pés. Oh, querida, houve tanta coisa que não chegámos a fazer. vou morrer cedo de mais.
- Pois vais, querido.
- An... ah... bem... - disse o advogado - Julie, eu não pretendo criticar, mas quem escreve os seus diálogos? "An... ah.. bem..." Acho que isso precisa de ser trabalhado.
Julius Ostretter era um advogado com aspecto de advogado: alto, deliberadamente solene, de maneiras frias. O seu discurso era pedante, embora não se pudesse negar a sua inteligência. Para além de ser um advogado com ar de advogado, também era um emproado com ar emproado, e as feições do seu rosto fúnebre apresentavam um esgar de auto-satisfação. Tinha uma postura própria, com os ombros arredondados, um sorriso pensativo e enigmático, um hábito irritante de "garrar as suas próprias lapelas. Toby Marlow observara certa vez: "Julie Ostretter diz Olá como Abe Lincoln a pronunciar o Segundo Discurso Inaugural."
Uniu as pontas dos dedos, fazendo-as bater umas nas outras com um ar importante...
- Mr. Marlow, se este inventário estiver exacto, e presumo que esteja, o senhor tem catorze contas a prazo em bancos por todo o país, com somas entre cinquenta e cinco mil dólares. Este pressuposto é correcto?
Toby uniu as pontas dos dedos, fazendo-as bater umas nas outras, com um ar importante...
- Posso atestar a veracidade da sua declaração, Sr. Doutor.
- Porquê? - perguntou Ostretter.
- Porquê o quê?
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- Por que é que tem contas em locais como Peoria, Ilinóis e Salt Lake City, Utah, e as £em mantido desde finais da década de 30 e princípio da de 40? Pode explicar-me isso?
- com prazer - disse Toby. Parou de imitar o advogado e recomeçou os seus passos de dança. - Dr. Ostretter, falou recentemente com Jake?
- Não mencione esse nome! - berrou Ostretter.
Toby riu-se baixo.
- Muito bem. Quanto às contas a prazo... Nos primeiros dias da minha carreira, quando fazia tournées pelos Estados Unidos com diversas companhias, fiquei rapidamente a saber que a maior parte dos promotores e produtores teatrais são descendentes em linha directa de Jack O Estripador. E, depois de ter ficado sem salário e sem esperanças de ser pago em diversas cidades, vilas e aldeias, meu Deus, querida, lembras-te daquela semana em Duluth?
- Se me lembro? - exclamou Cynthia. - Se não fizéssemos amor, morríamos gelados.
- bom, então, Dr. Ostretter que tem um irmão sem nome, tornou-se um hábito nosso, sempre que nos marcavam um trabalho numa determinada vila ou cidade pequena, pegarmos em todo o dinheiro que conseguíamos arranjar e abrir uma conta num banco local. Para, no caso de, se lá voltássemos e ficássemos temporariamente sem fundos... roubados de novo!... não termos necessidade de sobreviver à custa de sanduíches de manteiga de amendoim e batatas fritas, mas pudéssemos, pelo menos, comprar uma garrafa AePiper-Heidsieck e um bilhete de comboio para climas mais salubres.
- Mas algumas dessas contas já têm quase quarenta anos!
- E então? Depois de eu as abrir e aparecer trabalho no cinema e na TV, já não tínhamos necessidade do dinheiro. Mas os velhos hábitos custam a morrer e, quem sabe, talvez um dia eu me veja reduzido a representar O Ébrio em Oshkosh, Wisconsin. Nessa altura, se fosse vaiado e corrido do palco por aqueles bons oshkoshianos, ou oshkoshitas, ou como quer que eles se chamem, poderia recorrer imediatamente ao banco local, onde aferrolhei uma boa soma para o caso de tal emergência. Ainda tenho algum dinheiro em Oshkosh, não tenho?
- O quê? Hmmm... Oh sim... cá está: mais de duzentos dólares no First Farmers Bank de Oshkosh.
- Bom, aí tem! - disse Toby em tom triunfante. - Cynthia, querida, se alguma vez ficarmos sem trabalho em Oshkosh, poderemos comer uma refeição maravilhosa de carne de cão esquimó cozida, ou talvez um lobo estufado.
Julius Ostretter abanou a cabeça de espanto.
- Mas estas contas antigas aumentaram tremendamente de valor. Espero que tenha pago imposto de capital sobre os juros.
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- Bom... ah... o presidente dos Estados Unidos e eu fizemos um acordo. Eu prometi não pagar imposto de capital sobre essas contas e ele prometeu não representar o Rei Lear.
- Valha-me Deus. E também não vejo aqui qualquer referência a apólices de seguro, Mr. Marlow. Tem algum seguro?
- Não. Nenhum.
- Um homem das suas posses? Porquê, posso perguntar?
- Para que serve um seguro de vida? - perguntou Toby. - Cynthia e eu concordámos, no início do nosso relacionamento, que, se eu morresse antes dela, não havia razão para ela continuar a viver. Certo, Cyn?
- Absolutamente, querido.
- Valha-me Deus, valha-me Deus. Mas eu creio recordar-me de uma conversa que tivemos em tempos, em que me contou as suas aventuras a bordo de um submarino da Marinha dos Estados Unidos durante a segunda guerra mundial. Deve ter tido, com certeza, um seguro.
- Deixei-o caducar, infelizmente, depois de ter sido dispensado com honra por ferimentos sofridos em acção. Mas não foi na Marinha. Eu servi na Força Aérea dos Estados Unidos.
- Na Força Aérea?
- Oh, sim. Fui piloto de caças.
- Estranho... Recordo-me perfeitamente de me ter contado que foi oficial de submarinos e que ocupou o comando depois de o comandante ter ficado incapacitado por um caso grave de insolação. Disse-me que afundou um couraçado japonês.
- Oh, não, Doutor - disse Toby, rindo -, receio bem que tenha confundido a minha carreira militar com a de outra pessoa qualquer. Não, eu fui realmente piloto de caças. No teatro europeu. Um ás, na realidade. Vinte e quatro caças alemães, doze bombardeiros, nove balões de barragem e, evidentemente, locomotivas, comboios de tropas, depósitos de munições, coisas desse género. Mas não gosto de falar disso.
- Oh... evidentemente.
- Como recordo esses dias! Acordar ao amanhecer, perguntando a mim mesmo se o destino me permitiria ver outro Sol nascente. Um pequeno-almoço rápido, geralmente um copo de chablis gelado e um arenque fumado. Depois, toca a enfiar a roupa de voo, um lenço branco ao pescoço, e lá partíamos pelos vastos céus. Mas tudo isso me traz muitas recordações tristes, daqueles que não voltaram. Eram tão jovens, sorridentes e alegres. Não posso falar disso.
- Compreen...
- Recordo-me de certa vez em que pilotei um Spitfire, e nós...
- O Spitfire não era um avião inglês?
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- Evidentemente. Mas eu estava a testar um, sabe, porque eram muito superiores aos nossos aviões, e tinha recebido ordens para testar as suas capacidades de voo e apresentar um relatório. Um relatório por escrito, directamente à Casa Branca. bom, lá estava eu a dez mil pés, à procura de um alvo inimigo, quando, de repente, vejo três caças alemães por cima de mim. Percebi logo que era o Circo Voador do Barão von Richthofen. Percebi isso, compreende, porque tinham pintado nas asas aquele desenho de xadrez vermelho e...
- O Circo Voador do Barão Vermelho era da primeira guerra mundial.
- É claro que era! Mas sabe como os alemães veneram a tradição militar, de modo que tinham dado a uma das suas esquadrilhas o nome do Barão Vermelho, uma adoração total ao herói, até com os capacetes iguais e tudo, e lá vinham eles os seis, sedentos de sangue. E eu sozinho e, aparentemente, um alvo predestinado. bom, avaliei a situação num relance e mergulhei subitamente. Zuuummmm! E quando descia para...
- Querido - interrompeu Cynthia suavemente. - Tu não tens de ir encontrar-te com David no teatro universitário?
- O quê? O quê? Oh, sim. bom, receio que tenhamos de deixar aqueles Messerschmidts para outra altura, Julie. Mas lembre-me para lhe contar a batalha aérea; penso que estará interessado.
- Oh, eu lembro, eu lembro. Muito interessado. E agora, voltando aos seus bens. Aquelas cinquenta acções da Intel-Extra. Quando as comprou, Mr. Marlow?
- Comprei o quê?
- Intel-Extra, Incorporated. Cinquenta acções ordinárias. Recorda-se de quanto pagou por elas?
- Cynthia, de que é que ele está a falar?
- Tu lembras-te, querido. Aquele homenzinho engraçado, amigo do Sam Beaver, que estava a criar aquela companhia e te pediu que comprasses acções, e tu estavas bêbado e querias ajudá-lo por ele ser um homenzinho muito simpático. Estão sempre a mandar-nos aqueles cheques idiotas. Tu costumas descontá-los na loja de bebidas, querido.
- É verdade, é verdade. Deus olha pelos tolos, os bêbados e os actores. Acho que pagámos um dólar por acção, Dr. Ostretter. Foi um investimento sensato?
- Sensato? Valha-me Deus! Estou a ver que não lê notícias sobre as companhias.
- É claro que leio! - disse Toby, indignado. - Quem foi contratado, que companhias andam na estrada, que peças tencionam representar. Sigo muito atentamente as notícias sobre as companhias, pode crer.
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- Não, não. Eu queria dizer... bom, não interessa, Mr. Marlow. vou ter de estudar estes documentos e o inventário que me forneceu. Antes de mais, quer que eu redija um testamento. Certo?
- Certo.
- Deixe-me tomar umas notas... Quem vai ser o executor testamentário?
- Quem mais se não a bela Cynthia?
- Obrigada, querido.
- Vais ser um lindo executor - disse Toby ternamente.
- Executora - corrigiu o advogado.
- Melhor ainda - disse Toby. - Cyn é muito feminina.
- Eu também te adoro, querido.
- Há outros beneficiários, para além da sua executora?
- Oh, sim - disse Toby. - Uma certa quantia para o nosso filho, David, para a nossa fiel servidora, Blanche, a nossa adorável quase-filha, Barbara Evings. E alguns pequenos estipêndios para alguns idiotas do ex-teatro burlesco que actualmente vivem em abjecta pobreza, algumas instituições de beneficência para actores, algumas moedas para diversos amigos, e recordações: botões de punho de ouro, um lençol manchado de sémen de Lisboa, guiões anotados, um diário que fiz durante dois dias até as páginas começarem a arder, uma unha do pé que saltou depois de ter aplicado um pontapé a um idiota que distraiu os espectadores com comentários quando eu estava a representar A Culpa é do Papá, e diversos outros legados sentimentais de natureza semelhante.
Julius Ostretter suspirou e começou a empilhar os documentos e os registos...
- bom, primeiro vou pôr isto em ordem e tentar entender as coisas. Vou calcular aproximadamente o valor total dos seus bens e depois podemos reunir-nos e tratar de legados específicos. Uma renda anual para a sua mulher seria o melhor, por exemplo, mas...
- Oh, há outra coisa - disse Toby. - Ela não é minha mulher.
- Quem é que não é sua mulher? - disse Ostretter.
- A minha mulher.
- Como diz?
- Aqui a Cynthia - explicou Toby. - Não é minha mulher. Estamos a viver em pecado.
Cynthia estremecia, deliciada.
- "A viver em pecado" - repetiu. - Que expressão deliciosa!
O Dr. Ostretter soltou um profundo suspiro.
- Talvez eu não esteja a entender a situação e, se não estiver, peço-lhe humildemente que me desculpe, minha senhora. Mas devo depreender que não estão legalmente casados?
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- Boa! - exclamou Toby. - Percebeu. Mas vivemos juntos há quase quarenta anos. Isso dá-nos alguns pontos, não dá?
- Quarenta anos de uma vida maravilhosa! - acrescentou Cynthia.
Ostretter abanou a cabeça, estupefacto.
- Irregular - rosnou. - Altamente irregular.
- Por acaso foi - disse Toby animadamente. - Eu deixava-a durante meses seguidos. Mas voltava sempre, não é verdade, querida?
- Sempre - afirmou Cynthia. - Mulher alguma podia ter um marido mais fiel.
- Mas eu não era, compreende - disse Toby a Julius. - Não era verdadeiramente. Marido dela, quero eu dizer. De qualquer forma, agora que vou esticar o pernil, achámos melhor, Cynthia e eu, casarmo-nos para podermos gozar legalmente aquilo que, durante tantos anos, gozámos clandestinamente. Que tal achaste este discurso, amor?
- Muito bom - aprovou Cynthia. - Equilibrado, formal, mas cheio de sentimento, com um certo ritmo interior.
- Também gostei dele - disse Toby, orgulhoso. - Naturalmente, está convidado para o casamento, Dr. Ostretter, o senhor e a sua encantadora esposa. Receberá, oportunamente, um convite oficial, possivelmente gravado na cabeça de um alfinete.
- Livra! - exclamou o advogado, com descrença. - Livra!
- Por isso, agradeço que faça o pedido da respectiva licença e das certidões necessárias, etc., e que nos informe dos nossos deveres e obrigações, uma das quais, pelo que sei, inclui oferecer uma libação do nosso sangue real às autoridades cívicas. Não é assim?
- Hmmm? - fez Ostretter, completamente desorientado. - Sim! Mm-hmmm. O quê? Sim, oh, sim! Quarenta anos? Incrível! Tem que... Oh, sim, tem que! Evidentemente. Naturalmente. Sim, análises ao sangue. Oh, valha-me Deus, sim. E há coisas... coisas a fazer. SEUS... SEUS ANIMAIS!
Ao gritar esta última imprecação, pôs-se de pé e saiu do gabinete, agitando freneticamente os braços. Bateu violentamente com a porta. Cynthia e Toby viram-no sair com espanto.
- Coitado - disse Cynthia, abanando a cabeça com tristeza. - Parecia muito perturbado. Que será que está a afligi-lo assim?
Toby encolheu os ombros...
- Abuso de perdas e danos, sem dúvida.
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CENA DOIS
Era um daqueles dias prematuros no início da Primavera: rebentos verdes a nascer, o Sol a flectir os músculos, o Verão a espreitar por detrás dos arbustos com uma brisa quente que cheirava a Julho. A própria terra parecia descongelar, libertando-se do pesado odor do Inverno; a cidade espreguiçava-se e suspirava sob um céu azul com pequenas nuvens que tinham sido lavadas e postas a secar.
Toby Marlow insistira em alugar uma vitória no Plaza para dar uma longa volta através do Central Park até ao teatro universitário de David. Cynthia protestara contra essa extravagância, mas sem grande veemência; ela sabia que recordação inspirara aquela decisão: anos antes, Toby e ela tinham feito amor, incansavelmente, num ftacre de Londres. Desse êxito resultara aquilo a que Toby chamara A Primeira Lei de Marlow da Felicidade Sexual: "Copulação sem locomoção é tirania."
Naquele dia, o cocheiro da vitória estava moribundo, o cavalo era uma pileca, a viagem tornava-se necessariamente lenta e arquejante. Mas o dia estava cheio de juventude e de esperança, o Sol mostrava-se glorioso quando viraram para norte pelo caminho sinuoso, rodeado por árvores que despertavam. Deixaram-se transportar confortavelmente, de mãos dadas, observando com aprovação e alegria aquela corajosa extensão cor de esmeralda no meio da cidade de aço e de cimento.
- "... Tão deslumbrado pelo Sol que, para onde quer que olhasse, via tudo verde" - suspirou Toby. - E tudo parece progredir de forma excelente. Desposar-nos-emos ao som estridente de sinos triunfais, será elaborado um testamento perfeitamente legal, e agora tenho que voltar toda a minha atenção para transformar o nosso filho com miolos de pardal num actor aceitável.
- E há o problema de Barbara - recordou-lhe Cynthia. - Não te esqueças disso. Tens de prometer resolvê-lo também, Toby.
- Assim farei, amor, assim farei. O pequeno Felix Arranja-Tudo vai pôr um adesivo nos dói-dóis do mundo e cura tudo. Mas, antes de mais, um pequeno brinde à desorientação do Dr. Ostretter...
Tirou o frasco de prata martelada do bolso interior do casaco e estendeu-o a Cynthia. Ela abanou a cabeça, sorrindo. Por isso Toby serviu-se, fechando os olhos de êxtase ao beber.
- Ahhh! - suspirou. - "Não bebo mais que uma esponja." Nada como a genebra para limpar as fossas nasais do fedor dos advogados.
- Toby, por que é que Jacob e Julius se recusam a falar um com o outro?
- Foi uma discussão que tiveram, há muitos, muitos anos.
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- Uma discussão? Sobre quê?
- Nenhum deles se lembra, mas nenhum quer esquecer.
- E que é que te levou a contar a Julie aquela história ridícula?
- Divertiu-me. - Encolheu os ombros.
- Mas tu mentes tão mal, Toby.
- Estás enganada - disse ele. - Minto até muito bem.
- Mas era uma história tão parva - protestou ela -, e tu cometeste tantos erros.
- Erros deliberados, querida Cynthia-disse ele com complacência. - Todos deliberados. Qualquer idiota pode ser um mentiroso amador e inventar uma mentira credível e contá-la com um ar sério. Mas, para o profissional, a prevaricação é uma arte, e eu sou um mentiroso profissional, pelo menos. O que distingue o profissional do amador é que as falsidades que se relatam deverão ser intelectualmente inaceitáveis, tão permeadas por erros e exageros incríveis que o ouvinte não consiga acreditar nelas. A mentira deverá então passar graças ao seu conteúdo dramático e à sua atracção emocional. O ouvinte sabe, no seu íntimo, que é tudo uma aldrabice, mas fica tão interessado, tão comovido, tão envolvido, que está disposto a confiar, a seguir mais aquilo que sente do que aquilo que pensa.
O cavalo sonhador continuou a avançar a passo, enquanto a vitória gemia, e Cynthia pôs-se a pensar naquele paradoxo. Toby bebeu mais um gole do seu frasco e olhou em volta majestosamente, como se fosse dono do mundo.
- Mas, Toby - disse Cynthia finalmente -, tu estás a falar do teatro, não estás?
- Em nome de Deus, por que é que David não herdou a tua inteligência, além da tua beleza?
Ela deu-lhe uma palmadinha na face, amorosamente.
- Essa foi uma das coisas mais bonitas que me disseste.
- O gim torna-me sempre simpático. É evidente que é o teatro. A mentira profissional ao nível máximo. Quando o público assistir ao Hamlet de David, estará sentado em cadeiras duras num teatro sobreaquecido. Saberá que não se encontra realmente em Elsinore, que David não é realmente o príncipe da Dinamarca, que Ofélia não mergulha como um cisne num charco próximo. Saberá essas coisas na sua mente, mas estará disposto... Disposto? Não, ansioso!... a reprimir esse conhecimento e a engolir as mentiras se elas o interessarem, o comoverem, o envolverem. Representar é isso, mentira profissional. Se eu conseguisse fazer David compreender isto!
- Pensas que terias conseguido convencer Julie Ostretter com aquela história horrível?
- Podia - disse ele. ?- É claro que podia, se não me tivesses interrompido.
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Ela fitou-o friamente.
- Talvez eu te tenha interrompido por conhecer a verdadeira história da tua passagem pela guerra.
- Oh, valha-me Deus, Cyn - resmungou ele. - Nunca mais me perdoas e te esqueces?
- Já te perdoei há muito tempo - disse ela severamente. - Mas não, não consigo esquecer. Não devias esperar que o conseguisse.
- Por que não? - inquiriu ele. - Esqueceste-te de dizer ao chinês que pusesse goma nos meus colarinhos.
Ficaram ambos em silêncio, partilhando outra recordação. O parque cintilante desapareceu. Em seu lugar apareceu a cozinha estreita e pobre de um apartamento delapidado em Londres. Corria o ano de 1941, e a Inglaterra tinha estado sob bombardeamento durante várias semanas. Mas o que dera aquele aspecto triste e deprimente à cozinha era mais a idade que as bombas.
O contador de gás accionado por moedas era a peça mais nova. A mesa e as cadeiras velhas estavam lascadas, o lava-louças de zinco descolorido, as prateleiras da parede arqueadas e cheias com um desencorajador conjunto de pratos rachados, tachos ameigados, boiões de compota vazios. As cortinas do blackout cobriam as janelas estreitas.
Mas, apesar daquele aspecto lamentável, a cozinha adquirira um aspecto suportavelmente alegre graças aos preparativos para um pequeno festim. Sobre a mesa tinha sido colocado um lençol relativamente limpo; e tinham sido dispostos pratos e talheres desencontrados. Havia um pão acinzentado, uma lata aberta de almôndegas e outra de sardinhas, uma caixa de biscoitos, um boião de doce de laranja, uma garrafa de uísque escocês meio cheia.
Cynthia, envergando o uniforme de enfermeira auxiliar, movia-se em volta da mesa, inspeccionando o seu trabalho, fazendo modificações infinitesimais. Ouviu o som de passos de alguém que subia a correr a escada exterior. Correu para a porta da cozinha. Mas, antes que a alcançasse, ela abriu-se de par em par. Toby entrou a correr, atirou com a porta, fechando-a atrás de si, e precipitou-se para acolher Cynthia nos seus braços. Trocaram beijos apaixonados, abraços, carícias, mais beijos...
- Meu amor! - gritou ela. - Meu amante! Meu apaixonado!
- Doçura! - exclamou ele. - Preciosa! Divina!
Afastaram-se suficientemente um do outro para se poderem observar, sorridentes. Toby estava perfeitamente habituado a representar o soldado que voltava das guerras, apesar de o seu uniforme de caqui não ter insígnia e as suas botas estarem enlameadas de uma
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forma muito pouco militar. Trazia em volta dos ombros a máscara de gás e o bornal. E em volta da cabeça ostentava uma ligadura, um impressionante turbante devidamente manchado de sangue.
- Oh Toby, Toby, Toby - suspirou Cynthia. - É tão bom ter-te de volta são e salvo! Quanto tempo foi?
- Quase uma semana.
- Pareceram-me duas. Sentia-me tão solitária e...
Subitamente, reparou na ligadura em volta da cabeça dele. Abriu a boca e os olhos; estendeu cuidadosamente a mão para tocar na ligadura.
- Oh, pobrezinho do meu querido - gemeu ela. - Estás ferido! Dói muito?
- "Troça das cicatrizes quem nunca foi ferido."
- Foi o bombardeamento? Oh, Toby, por que é que não te abrigaste? Podias ter morrido!
- Ah... bem, não, não foi do bombardeamento. Eu depois conto-te, Cyn, é uma história muito, muito longa. Como vão as coisas no hospital?
- Horríveis - disse ela.
- Imagino - disse ele, simpaticamente.
- Temos estado a ir para lá a todas as horas. Nunca pára. Estou cansada até à medula dos ossos.
- Ah-ha! - exclamou ele. - Tenho uma coisa óptima para o cansaço da medula dos ossos. Olha só para isto!
Abriu o bornal e retirou cuidadosamente uma garrafa embrulhada em ceroulas azuis. Desembrulhou-a com cautela e exibiu-a orgulhosamente a Cynthia...
- Château Rotschild, 1932!
- Que bom! - disse ela. - Trinta e dois foi um bom ano?
- Para mim foi, o ano em que te conheci.
- Querido!
Ela abraçou-o de novo. Beijaram-se durante longo tempo e só pararam quando começaram a escutar o gemido das sirenes. Ficaram parados por um momento, escutando o agudo trinado.
- Gaita, gaita, gaita! - disse ele. - A merda do alerta.
- Oh, outra vez não! Acho que devíamos ir para o abrigo.
- O abrigo que se lixe! Só depois de termos bebido um copo de vinho para festejar o meu regresso dos horrores da guerra.
Despiu o dólman e começou a ocupar-se da garrafa de vinho e a extrair-lhe a rolha. Cynthia sentou-se à mesa da cozinha, pousou o queixo sobre a mão e observou-o amistosamente.
- Como foi o espectáculo, Toby?
- Absolutamente incrível. Eu e Max fizemos sucesso máximo. Foi num grande acampamento em Liverpool.
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- Não sabia que Liverpool tinha sido bombardeada.
- Não foi. Mas, evidentemente, nós não estávamos em Liverpool. Estivemos fora da cidade. Um grande público. Como eles se riam! Fizemos aquele número da Rua Flugle.
- Como é que foste ferido? - perguntou ela em voz baixa.
- Gaita... - disse ele - esta rolha está apertada. Se tivessem permitido que se bisasse, ainda lá estávamos. Nunca se ouviu um aplauso daqueles.
- Como é que foste ferido, Toby?
- Cá está ele! Deixa-me provar um pouco. Ooooh! Maravilhoso! Deixa-me encher a tua tigelinha, querida.
- O acampamento foi bombardeado?
- Já o provaste? Que sabor! Que bouquê!
- Toby, por favor conta-me.
- Mais tarde.
- Já.
- Foi uma espécie de acidente - disse ele.
- Uma espécie de acidente?
- bom, se queres saber, caí de um camião.
- Compreendo - disse ela lentamente. - Estavas bêbado?
- Antes de cair. Depois não.
- Foi uma pena não estares no Exército americano. Terias recebido um Coração Roxo.
- Já ouviste essa piada? - perguntou ele avidamente. - Uma rapariga de um bordel diz à Madame: "Está lá fora um soldado que tem um Coração Roxo." E diz a Madame: "As cores aqui não interessam..."
- Ouvi contar, Toby. Que é que estavas a fazer no camião? Vinhas bêbado no camião?
- Bom, tu compreendes, depois de o espectáculo ter tido tanto êxito, alguns de nós e uns jovens oficiais fomos a Liverpool festejar. Que diabo, Cyn, estamos em guerra! Um homem tem de aproveitar cada minuto e divertir-se o mais que puder.
- Oh, eu concordo, Toby. Estamos em guerra. E, quem sabe, o teu próximo espectáculo pode ser um fracasso. Mas isso é um perigo que tens de enfrentar durante a guerra.
- Não precisas de ser sarcástica - disse ele rigidamente. - A ideia era nós os dois fazermos uma festa. As coisas não saíram bem como eu esperava. Já me embebedei antes e hei-de voltar a embebedar-me.
- Eu sei, eu sei - disse ela. - Mas é que eu tenho andado a trabalhar como uma escrava naquele horrível hospital, só a ver coisas horrorosas, e preocupadíssima contigo. E agora descubro que tu andaste a embebedar-te e a cair de camiões. Oh, Toby, eu não te
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censuro por te divertires. Tive uma semana péssima, estou maldisposta. Tens de ser ultra meigo e ultra compreensivo para mim, esta noite.
- Oh, vou ser, minha querida - disse ele, bebendo um pouco de vinho. - vou ser mesmo.
- Vamos comer este cómico jantar e depois vamos para a cama e fazemos amor e eu fico bem outra vez.
- bom... an... - disse ele, bebendo mais vinho. -Acho melhor não fazermos isso, querida.
- Mas, Toby, temos toda esta comida. Foi muito difícil consegui-la. Tive que suplicar e que pedir emprestada a maior parte dela.
- Não, não é o jantar - disse ele, bebendo mais um pouco. -Jantar, jantamos, sem dúvida. Oh sim, sem dúvida. Era capaz de comer um boi. Uma vaca, evidentemente. Hah!
- Podemos jantar -- disse ela em voz baixa -, mas não podemos fazer amor. É isso que estás a tentar dizer-me?
- bom... an... acho que não seria prudente.
- Porquê? Magoaste mais alguma coisa além da cabeça, quando caíste do camião?
As sirenes do ataque aéreo recomeçaram a soar. E agora, ao longe, já se ouvia o som cavo das bombas a cair.
- Segundo alerta! - disse Toby vivamente. - Todos para o abrigo!
Sorriu Cynthia, tentando convencê-la, mas nada conseguiu.
- Por que é que não podemos fazer amor, Toby? - perguntou ela.
- Oh... que diabo! - disse ele, encolhendo os ombros. - É só uma precaução. Talvez não seja nada. Vamos ter de parar com isso por pouco tempo, só isso.
- Que é que tu fizeste, Toby?
- Vamos para o abrigo? - perguntou ele esperançadamente.
- Toby, que é que tu fizeste?
- bom, como sabes, fomos a Liverpool fazer aquela festa. Uma festa fantástica, por acaso. Para celebrar o êxito do espectáculo, compreendes. bom, depois, mais tarde, fomos a um sítio incrível ao pé das docas. Uma casa. Uma casa particular. E... e...
- E havia lá mulheres?
- bom... sim. E uísque também, claro.
- Prostitutas?
- Oh, não! Não. Não creio que fossem. bom... talvez. Mas muito inteligentes e alegres. Adoraram as minhas piadas. Mas nessa altura eu já não estava a funcionar muito bem. com toda aquela excitação e tudo o mais. Mas é possível que fossem damas de vida fácil. Sim, é inteiramente possível. E não tenho a certeza, não tenho a certeza absoluta, mas há uma possibilidade de eu ter apanhado qualquer coisa
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que não paguei. Um pequeno extra, poder-se-ia dizer. Nada de grave, nota bem. Decididamente, nada de grave. Mas o médico disse que...
- Estafermo! - gritou ela. - Sacana!
- Ora, Cyn...
- Como é que tu tens coragem? Como é que tu tens coragem?
As sirenes soavam agora com mais força, num crescendo que perfurava os tímpanos. E o som das bombas a explodir era mais forte. Os canhões antiaéreos também começavam a responder, perto dali, e Toby teve necessidade de gritar para se fazer ouvir. Cynthia teria gritado na mesma se a noite estivesse silenciosa.
- Bandalho nojento! - guinchou ela.
Pôs-se subitamente de pé, derrubando a cadeira. Agarrou na garrafa de vinho meio cheia que estava sobre a mesa.
- Cynthia! - gemeu ele, angustiado. - Era um bom ano!
Ela atirou-lhe a garrafa de vinho à cabeça ligada. Toby esquivou-se. A garrafa foi estilhaçar-se contra a parede. A mancha de vinho começou a escorrer.
- Então, Cyn...
- Víbora!
Atirou-lhe com o pão, as latas de almôndegas e de sardinhas, o boião de doce de laranja, a garrafa de uísque. Toby dançava freneticamente, tentando evitar os projécteis.
- Então, Cyn...
- Sapo! Animal rastejante!
Toby encolheu-se sob uma salva de pratos, tachos, panelas. Cynthia arrancou as prateleiras da parede para lhas atirar, seguidas pelo relógio, um ganso de porcelana em voo, a litografia emoldurada do Loch Lomond. Tudo o que havia na cozinha foi atirado a Toby, que se encolhia. A cozinha ficou em ruínas e Cynthia olhou em volta, desvairada, em busca de algo mais para lhe atirar. Agarrou-se ao contador do gás e esforçou-se desesperadamente por o arrancar da parede, mas o aparelho resistiu aos seus diligentes esforços. Finalmente, desistiu e ficou parada a fremir de raiva, demasiado furiosa para chorar, demasiado sem fôlego para conseguir gritar. Toby emergiu prudentemente de detrás do fogão.
- Estás aborrecida, não estás? - perguntou.
- Aborrecida!
- Odeias-me?
- Não. Não te odeio. Sinto-me decepcionada. Traída.
- Mas eu...
- Agora já sei o que tu pensas de mim. O que tu realmente pensas de mim. Sou mais uma mulher para olear o teu ego. Faço muito jeito para te coser os botões, assar os teus muffins, curar as tuas terríveis ressacas.
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- Há mais que isso...
- Não percebes que agora já compreendo o que sentes por mim? Que eu sou um trambolho, uma coisa, uma mulher idiota que só serve para dar, constantemente, sem nada receber em troca? É isso que tu pensas de mim. Confessa!
- Juro que...
- Toby, eu existo. Não consegues meter isso na cabeça? Eu existo! Sou uma pessoa, um ser humano, e respiro e penso e sinto. Penso coisas e sinto coisas que tu és incapaz de compreender, posso garantir-te.
- Quando é que eu...
- Pensas que eu não percebo que te serves de mim? Enfermeira, governanta e cozinheira. Público para as tuas piadas estúpidas e alvo das tuas partidas maldosas e infantis. Naquele número burlesco em que se atira uma tarte à cara do outro cómico, na nossa pequena paródia, eu sou o comparsa que leva sempre com a tarte.
- Eu nunca...
- Eu sou uma mulher, meu idiota sem miolos! Não sou uma coisa, uma coisa que está sempre à espera de ser enganada e aldrabada, e que se lixe. Dá-se-lhe um pontapé e ela sorri. Bate-se-lhe e ela estende ternamente os braços.
- Mas eu...
- E mais uma coisa... Se eu alguma vez...
- Raios te partam! - gritou ele. - Nunca mais me deixas acabar uma frase?
- Acabas de o fazer - disse ela friamente. - Se eu alguma vez...
Deteve-se de novo. Ambos olharam instintivamente para cima.
Ouvia-se o assobio das bombas a cair, as explosões abafadas, as sirenes dos carros de bombeiros. A casa deles foi sacudida; ouviram vidros a estilhaçar-se algures e a cair na rua.
- Se eu alguma vez te amei - prosseguiu Cynthia -, já nem sei por que motivo foi. Tu conseguiste matar esse amor. Era uma planta frágil e tenra. Podia ter ganho raízes e florescido, mas tu pisaste-a com o enorme e cruel salto da tua bota e enterraste-a, destruíste-a, até se transformar em nada, ser nada. Espero que te sintas orgulhoso do que fizeste.
Ficaram em silêncio de novo, fitando-se, sem prestar atenção ao pandemónio que era a cidade em volta deles. Finalmente...
- Acabaste? - perguntou Toby.
- Acabei.
- Completamente?
- Sim. Oh, não, só mais uma coisa. És um merdas. Agora acabei.
- Foste sempre uma péssima actriz - disse ele. - Podia ter sido uma grande cena e tu estragaste-a.
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- Eu não estava a representar - disse Cynthia com grande dignidade.
- Estavas a falar do fundo do coração?
- Estava - disse ela.
- É uma pena que te falte o treino e a experiência para seres sincera. Olha, Cynthia, eu admito que não é muito fácil viver comigo.
- Hah!
- Admito que minto, aldrabo e mesmo que, ocasionalmente, roubo. Admito que te engano e te traio.
- Hah!
- Admito que me aproveito da tua boa natureza e que, embora poucas vezes, não tenho tomado em consideração as tuas necessidades, desejos e esperanças.
- Hah!
- Mas eu sou capaz de perdoar a uma mulher que diz "Hah!" a tudo o que eu digo. Eu perdoo-te muitas coisas, Cynthia, e provavelmente tu nem dás pela maior parte delas. Mas não penso nisso como perdoar porque te amo, por quem tu és e por aquilo que és. Sei que não és um trambolho, uma coisa, uma mulher tola. E sei que sou egoísta, que me coloco no centro de tudo e raramente faço alguma coisa que não quero fazer. Mas alguma vez te neguei que era assim? Alguma vez tentei ocultar-te a minha verdadeira natureza? Tu sabes que não.
- Mas tu nunca...
- Não, agora paras. Já tiveste a tua deixa, agora é a minha. Sempre me mostrei com todas as minhas verrugas, borbulhas, cicatrizes e a minha calva. Sem maquilhagem. Nunca escondi nada de ti. E sempre parti do princípio de que, se tu não gostasses daquilo que vias, terias a inteligência e a coragem de te afastar de mim. Mas tu ficaste.
- Fiquei porque pensei que conseguia modificar-te.
- Eu nunca quis modificar-me.
Houve uma pausa.
- Obrigada - disse ela debilmente.
Ouviu-se uma pesada queda de bombas que explodiam perto dali. As luzes estremeceram. Soou o gemido das sirenes, ouviam-se gritos na rua, os ladridos contínuos dos canhões antiaéreos...
- Cynthia - disse Toby ternamente -, estás a enganar-te a ti própria, se pensas que me queres diferente daquilo que sou. No mais fundo do teu coração, estás satisfeita com aquilo que eu sou ou, pelo menos, com a imagem que fazes de mim. De vez em quando, mas apenas de vez em quando, ficas tão horrorizada com aquilo que eu faço que exclamas "Por que é que Toby não é como os outros homens?" Mas tu sabes, não sabes, Cyn, que se eu fosse como os outros homens teria sentimentos diferentes a teu respeito e tu a meu. Nós formamos um elenco maravilhoso, tu e eu, tal como somos. Vamos conservar os
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nossos papéis e não tentar reescrever as falas. A nossa vida em conjunto harmoniza-se, querida. Eu sinto-o e penso que tu também o sentes. Não é assim?
Não obteve resposta.
- Não sentes o mesmo, Cyn?
- Sim - suspirou ela. - É que...
- Eu sei, eu sei - disse ele. - Portei-me como um canalha. Outra vez. E tu ficaste desapontada comigo. Outra vez. Por isso disseste aquelas coisas idiotas e me atiraste coisas e estragaste a cozinha.
- Acho que sim.
- Oh querida, querida...
Acercou-se rapidamente dela e abraçou-a, apertando-a pela cintura, acariciando-lhe os cabelos. Finalmente, finalmente, ela descontraiu-se nos seus braços e abraçou-o com força.
- Cynthia, promete-me que nunca mais voltas a atacar-me daquela maneira vulgar e primitiva.
- Prometo, Toby.
- Promete-me que nunca mais, enquanto viveres, me atiras com outro prato, terrina ou saleiro.
- Prometo. Oh, prometo, querido!
Estavam de novo abraçados quando um grupo de bombas caiu no quarteirão onde se encontravam. Ouviu-se um estrondo tremendo. As luzes tremeram, apagaram-se e voltaram a acender-se, revelando que o tecto tinha caído e a parede exterior tinha desabado, mostrando Londres a arder. O ar ficou cheio de fumo e de poeira de estuque.
Cynthia e Toby tinham sido atirados para o chão. Saíram a rastejar, abalados, de debaixo dos escombros, e puseram-se de pé, cambaleantes. Sacudiram os pedaços de caliça e estuque das cabeças e das roupas.
- Que diabo, Cyn - disse Toby, a tossir. - Tu tinhas prometido!
Mas agora o Sol brilhava, o Central Park reverdescia. Era outro mundo, outra Primavera. Escutavam o batimento dos cascos do cavalo no chão, o gemido das rodas da vitória. Cynthia e Toby. estavam a ser transportados num novo sonho até ao teatro da universidade. Toby puxou novamente do seu frasco e ergueu-o de modo que rebrilhasse à luz do Sol.
- À felicidade matrimonial! - brindou.
- Tenho de beber a isso! - disse Cynthia.
Beberam cada um um gole do frasco. Depois Toby meteu-o de novo no bolso e retomou a sua posição anterior, com um braço em volta dos ombros de Cynthia.
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- Estás satisfeita por nos irmos casar, Cyn?
- Nós sempre fomos casados.
- Eu sei - disse ele. - Mas agora vais ter uma folha de papel assinada pelo comissário da Sanidade, ou por qualquer outra pessoa. Quanto a mim, estou todo nervoso e apetece-me soltar risadinhas histéricas. Vais ser boa para mim na noite do nosso casamento, não vais?
- vou ser muito gentil e compreensiva.
- Já estou a ver a cena - disse Toby em voz sonhadora. - Depois do sumptuoso festim nupcial, seremos abençoados pelos assistentes reunidos e, sob uma chuva de flores, retirar-nos-emos para a câmara nupcial. E depois tu escapas-te timidamente e vais ao quarto de vestir para envergar um négligée.
- E tu vais atrás de mim.
- Evidentemente - concordou ele. - Tenho de comprar-te um négligée especial para a noite do casamento. Uma coisa de rendas pretas com lacinhos cor-de-rosa e uma etiqueta que diga "Inspectora de Ligas". Quanto a mim, tenciono usar um pijama novo de tweed ainda com alfinetes, com os punhos por cima dos nós dos dedos e um atilho das calças que me dê três vezes a volta à cintura. Oh, Cyn, vamos ser tão felizes juntos!
Subitamente, ela não aguentou mais e começou a chorar. Voltou-se para enterrar o rosto no peito dele, abraçando-o violentamente.
- Mas que é isto, que é isto? - disse ele. - Pára com isso, querida. Que aconteceu às tuas corajosas promessas? Nem lágrimas nem desgostos. Lembras-te? Foi o que nós combinámos.
- Eu menti - disse ela, soluçando. - Eu menti!
- Isso não é justo. Essa tem patente.
- Não quero viver sem ti - disse ela surdamente.
- É perfeitamente compreensível, amor; eu também não quero viver sem mim. Mas eu estou a aguentar-me. Tu podes fazer o mesmo. Nunca me falhaste. Não comeces agora.
Ela endireitou-se, fungou, tirou um lenço de papel da mala e enxugou os olhos.
- Desculpa, Toby - disse, mordendo o lábio inferior.
- Tu, grande mulher - disse ele ternamente. - Tu cozinhar, dar filho homem para mim, tomar conta da casa, trabalhar bem, cheirar bem. Eu dizer chefe. Tu ser minha mulher número um.
- Nunca te fui infiel, Toby. Nunca! Em toda a minha vida.
- Eu sei que não, garota. E isso foi um truque indecente. Só para me fazer sentir ainda mais culpado.
- Não me importava. A sério. Desde que tu voltasses.
- Por que é que tu me aturas, Cyn?
- Porque tu és o único homem que me faz sentir viva. Sem ti, estou
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morta, Toby. Oh, posso respirar, e andar por aí, e sorrir. Mas, por dentro, estou morta e nada interessa. Sem ti...
Ele abraçou-a.
- Belas, belas palavras, minha querida. O nosso Will não teria dito isso tão bem. Cyn...
- Diz, Toby.
- A nossa noite de casamento. Na cama. Quero que seja qualquer coisa realmente especial.
- Eu também, querido.
- Achas que arranjas maneira de ter soluços?
CENA TRÊS
À primeira vista, o palco do teatro universitário parecia nu, vazio, sem cenário. Ao fundo, havia uma parede de tijolos. O espaço por cima do proscénio estava cheio de luzes apagadas, guindastes, roldanas, sacos de areia, um passadiço, etc. Os bastidores eram uma mistura de painéis de cenários: partes de uma vedação de pedra, o apainelado de uma biblioteca, uma porta falsa que nunca se abriria, uma lareira pintada, uma rede de folhagem, etc.
Mas, observando-o mais de perto, tornava-se evidente que aquele palco vazio tinha um cenário. O cenário era o de um palco vazio. Aquela parede de tijolos ao fundo era um suporte para cenários. As luzes superiores, o passadiço, os painéis dos bastidores eram todos falsos, artisticamente desenhados e dispostos de forma a dar a ilusão de um palco vazio.
Não havia muito espaço na boca de cena, mas alguns adereços aumentavam a sensação de um palco não decorado, que estava a ser usado para os primeiros ensaios. Havia uma mesa de cozinha periclítante, quatro cadeiras de madeira simples. Mais ao fundo, para lá do arco do proscénio, via-se uma caixa de madeira, na realidade um caixote grande. Sobre ele estava claramente pintado "Propriedade do Guarda-Roupa". Tinha dentro uma série de chapéus.
A única iluminação daquele lugar vazio e cheio de ecos provinha de uma lâmpada eléctrica fixada à altura dos olhos, no cimo de um cano que saía de uma base de metal.
David Marlow estava sentado à mesa da cozinha. Vestia um fato escuro, completo e com colete. com os pesados óculos postos, estava a estudar um manuscrito. O pai encontrava-se inclinado sobre o caixote dos chapéus, remexendo-os...
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- Onde está a mãe? - perguntou David, sem erguer o olhar das folhas. - Pensei que ela vinha consigo.
Toby Marlow endireitou-se, voltando-se para o público inexistente. Tinha colocado o chapéu de bicos de um almirante do século XVI. Começou a avançar majestosamente e, com o seu porte pomposo e andar bamboleante, era um almirante. Ergueu lentamente um telescópio invisível e encostou-o ao olho, observando lentamente um horizonte inexistente em busca de um inimigo inexistente.
- Seguiu na carruagem para Saks - disse ele. - Foi tratar de assuntos do casamento.
Sempre sem prestar atenção às fantasias do seu pai, David disse, em tom ausente.
- Suponho que ela está toda excitada e nervosa com o casamento.
- vou dizer-te uma coisa acerca da tua mãe, meu rapaz. Tem andado toda a vida a fazer de Spring Byington mas, lá no fundo, é Norma Shearer, nunca te esqueças disso. Onde está Barbara?
- Vem mais tarde - disse David. - Neste momento está no Centro de Belas Artes a fazer aqueles desenhos idiotas.
Toby tinha trocado o chapéu de almirante pelo chapéu de coco alto e duro de um detective vitoriano. Agora, o seu andar meio curvado era ameaçador, as suas maneiras brutais.
- bom, vamos a essa tua representaçãozinha idiota. Daqui a três semanas estarás a mostrar ao mundo a tua inépcia.
- Eu sei - disse David. - Eu sei. Não precisa de me recordar.
- Nervoso, miúdo? - troçou Toby. - O suor começa a escorrer pela espinha? Uma fraqueza nos joelhos e os intestinos soltos? As falas desaparecem da memória de um dia para o outro e sentes um desejo louco de apanhar um foguetão para a Lua?
David ergueu o olhar e fitou o pai, furioso.
- Cale-se, está bem? - disse ferozmente. - Vai correr tudo bem.
- Uma gaita é que vai, a menos que me mostres mais do que mostraste até aqui. Como correu o ensaio?
- Não muito bem. Tenho de voltar esta noite. Só o Watkins, é o director de cena, e eu. Acho que ele está preocupado.
- Preocupado? Se eu estivesse no lugar dele, estava histérico e dava-te um pontapé no cu. Muito bem, que é que tu queres fazer?
David pôs-se de pé e estendeu as folhas dactilografadas a Toby...
- "Oh se esta carne dmasiado dmasiado sólida..."
Toby afastou as folhas com um gesto.
- Não preciso. Já sabia essa fala antes de conhecer "Havia um jovem de Racine..." Muito bem, vamos lá ouvir isso. Começa do princípio.
- "Oh se..."
- Alto - disse Toby imediatamente. - Faz-me um favor, sim?
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Tira essa aldrabice. Representar Hamlet de óculos de aros de osso é como fazer amor com botas.
David tirou os óculos. Estava de pé diante da mesa, voltado para o fundo do palco. Toby andava atrás dele, remexendo de novo no caixote dos chapéus.
- "Oh se esta carne dmasiado dmasiado sólida..."
- Pára - disse Toby de novo. - Olha para as tuas folhas. Essa primeira palavra. Não é "Oh", é "Oh" seguido de um ponto de exclamação. Certo?
David folheou o manuscrito, procurando a fala.
- Bom... sim - disse, finalmente. - Mas que diferença faz?
Toby saiu de perto do caixote usando um barrete de cardeal. Dirigiu-se ao fundo do palco com grande e lenta dignidade, com um sorriso suave e indulgente no rosto. Afastou a túnica imaginária e fez o sinal da Cruz, numa bênção elegante para os lugares vazios do teatro às escuras.
- Não faz diferença nenhuma - disse a David. - Só faz com que a dama se venha ou não se venha. Importas-te de me ouvir, pelo amor de Deus? Hamlet está a soltar um grito de desespero. Por isso Will fê-lo gritar "Oh!". Precisamente "Oh" seguido de um ponto de exclamação. Will sabia o que estava a fazer, coisa que eu não posso dizer de ti, conde Drácula. Tu emites esse grito como "Oh"... O-h. Agora escuta a diferença. "Oh!" Consegues ouvir como é curta e cheia de dor esta simples letra? É o desespero de Hamlet que lhe sai directamente das gónadas. Agora ouve como tu fazes: "Oh." Estás a arrastá-lo e a torná-lo mole, como um gemido obstipado. Mas é um grito lancinante, um grito agudo de dor. "Oh!" Consegues ouvir? Uma letra, uma sílaba, uma emoção que despedaça o coração. Experimenta outra vez.
- "Oh!" - exclamou David.
- Bom... - Toby suspirou. - Enquanto há vida há esperança. Está melhor. Mau, mas melhor. Muito bem, começa outra vez.
- "Oh! se esta carne dmasiado dmasiado sólida...
- Pára outra vez. Dmasiado? Que raio é isso? Tens de abrir bem as sílabas. Demasiado. "Oh! Se esta carne demasiado demasiado sólida pudesse fundir-se..." Will não usou a palavra uma vez, usou-a duas vezes. Confia no instinto dele. E abre bem as sílabas, por amor de Deus. Os pacóvios do balcão não vão ouvir-te. Pagaram menos pelos bilhetes, mas significam mais para eles. Representa para a galeria, meu estafermo! Começa outra vez.
- "Oh! Se esta carne demasiado demasiado sólida pudesse fundir-se, liquefazer-se, transformar-se em orvalho; ou se o Eterno..."
- Alto - disse Toby. - Pára, por favor - suplicou. - Pára, pára, pára! Não suporto ouvir o poderoso Willy desprezado e espezinhado dessa forma.
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Agora Toby usava um sombrero de cowboy e caminhava com as pernas exageradamente arqueadas. As suas mãos pairavam acima das pistolas imaginárias. Afastou-se alguns passos de David, voltou-se subitamente, com o rosto contorcido e malévolo. com os polegares no ar, voltou os dedos indicadores para David.
- Pum! - gritou Toby. - Pum! Pum! Pum! Escuta, filho, é preciso fazer uma pausa depois da palavra "orvalho". Hamlet quer que o seu corpo se dissolva, não quer existir. Então tem outra ideia; poderia suicidar-se, se Deus não dissesse que o suicídio era uma maldade. Mas leva um momento a ter essa ideia. Ele está sernpre a pensar, compreendes? Mesmo enquanto fala. Por isso faz uma pausa. Conta até um ou dois, e depois falas da nova ideia. Experimenta outra vez.
- Oh! Se esta carne demasiado demasiado sólida pudesse fundir-se, liquefazer-se, transformar-se em orvalho... Ou se o Eterno não tivesse formulado decretos contra o suicídio. Oh meu Deus, meu Deus! como me parecem fastidiosas, cediças, vulgares, estéreis todas as coisas deste mundo."
Toby Marlow ficou silencioso por um momento, olhando para o filho. Depois emitiu um profundo suspiro.
- Já pensaste alguma vez em fazer-te chulo ou seguir a carreira de cesteiro? - perguntou. - Escuta, estás a subir aquele último verso em vez de descer. Não é um grito exultante, pelo amor de Deus! Hamlet já disse que queria que a sua carne se fundisse. Mas ele sabe que isso não é possível. E não pode cortar a garganta porque Deus diz que isso não se faz. Portanto, o verso final é uma conclusão: um vazio e triste entendimento de que não pode vencer. "Como me parecem fastidiosas, cediças, vulgares, estéreis todas as coisas deste mundo." Tu disseste isto como se fosse O Grito da Batalha da Liberdade! Não compreendes o que Hamlet está a dizer, meu poltrão? Subitamente, Hamlet sente-se velho. É um homem muito, muito velho, muito antes do seu tempo. Já viveu de mais. Já nada lhe sabe bem. Nada tem significado. Esse verso é um lamento, o lamento de um velho.
- O Toby tem a obrigação de saber isso - disse David, furioso. - Como envelhecer desgraciosamente. É um perito nisso!
- Velho? - bradou Toby. - Sim, que diabo, estou velho. E queres que te diga como é? A picha encolhe e o rabo descai. Acorda-se de manhã a arrotar e a peidar. O nosso hálito é horroroso e só nos lembramos da infância. Sonha-se mais do que se actua. E depois, um dia, há uns animaizinhos que penetram nas nossas entranhas e começam a roer-nos. Mas, evidentemente, tu nunca saberás disto. Tu vais ser jovem para sempre. Peter Pan! Olá, Peter Pan!
- Vá para o inferno! - exclamou David.
- Já fui - disse Toby. - Há anos. Parece-se com Yonkers.
Ficaram em silêncio, entreolhando-se furiosamente, tremendo de
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raiva. Toby desistiu primeiro. Foi até ao caixote do guarda-roupa e descobriu um chapéu alto de seda. Começou a caminhar pelo palco poeirento com o ventre proeminente, um capitalista inchado. Tirava o chapéu à direita e à esquerda, saudando as multidões que o admiravam.
- Muito bem - disse ele finalmente -, recomeça do princípio.
- Outra vez? - perguntou David com desespero.
- Sim, outra vez, mecânico! E tenta dar-lhe qualquer coisa, desta vez.
- "Oh! Se esta carne demasiado demasiado sólida pudesse fundir-se, liquefazer-se, transformar-se em orvalho. Ou se o Eterno não tivesse formulado decretos contra o suicídio. Oh meu Deus, meu Deus! Como me parecem fastidiosas, cediças, vulgares, estéreis, todas as coisas deste mundo."
David voltou-se para olhar para o pai, aguardando o seu veredicto. Toby passeava de um lado para o outro, com o chapéu alto empurrado para trás. Tirou o frasco do bolso, serviu-se de um grande gole, enquanto continuava a andar.
- Não foi mau - murmurou. - Não foi mau.
- Pensei que me achasse péssimo.
- Mudei de opinião.
- Já é um progresso!
- Eu não disse que tu eras bom - disse Toby. - Só que não estava mal. Não estavas muito mal. Há aí qualquer coisa. Qualquer coisa. Mas não está a passar. Um bloqueio. Há aí um bloqueio. Escuta, mágico Mandrake, em que pensas quando fazes esse discurso? Qual é a tua motivação? Anda, não tenhas vergonha. Podes dizer tudo ao teu velho pai.
- Bom - disse David, pondo os óculos -, como disse...
- Tira esses malditos óculos! - rugiu Toby. - Não te escondas de mim, velhaco poltrão!
David chegou a um meio-termo. Empurrou os óculos para cima da cabeça.
- Como disse, este discurso é um lamento. Penso como é difícil viver, viver simplesmente! Todas as coisas que correm mal... Já é bastante difícil existir e ganhar a vida, mas tudo me cai em cima. O Toby e a mãe não estão casados, portanto sou ilegítimo. Engravidei Barbara e ela não quer casar comigo. O Toby está a morrer e eu não posso fazer nada para o evitar. Tive esta grande oportunidade, mas sinto-me inseguro. Tudo isso é a minha motivação.
- Ah - disse Toby -, isso é fantástico.
Voltou para o caixote dos chapéus e escolheu um chapéu de guarda. Rigidamente erecto, agitando os braços à maneira inglesa,
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iniciou uma espécie de exercício militar. Começou a andar de um lado para o outro, batendo com os pés, deu uma súbita meia-volta, etc.
- Cortaste tudo à medida, não foi? - troçou. - À tua medida. Mas Hamlet é um príncipe da Dinamarca. Um príncipe! E o pai dele era rei. Um rei! E a mãe dele casou-se com o seu tio assassino de "uma maneira muito precipitada". E tudo isso... que tem a ver com pessoas de dignidade, importância e paixões desmedidas... tu reduzes à tua ilegitimidade e às tuas insignificantes ambições e ao facto de a mulher que fizeste inchar com o teu órgão irresponsável agora não...
- Oh, meu Deus, nunca conseguirá compreender? Não tenho nada a ver com príncipes e reis da Dinamarca que viveram há mil anos. Preciso de ter motivos que possa compreender e sentir. Eu não sou Hamlet; eu não sou o príncipe da Dinamarca. Eu sou eu. E eu só posso expressar aquilo que eu sou. Não espere de mim mais do que isso. Eu não finjo. Eu não assumo emoções que não sinto. Eu não quero ser Hamlet nem o capitão Brassbound nem a Grande Esperança Branca. Se tenho de ser alguma coisa, tenho de ser eu próprio, aquilo que sou e aquilo que sinto. Tudo o resto é fingimento.
- Tu achas que eu sou um fingidor? - perguntou Toby.
- Sim! - disse David, acenando vivamente com a cabeça. - Sim! É um fingidor. Um vigarista. Um fiteiro. Um simulador!
O pai fitou-o.
- Se tivesses miolos - disse - eras perigoso.
Barbara Evings entrou no palco, saindo a flutuar dos bastidores. Vestia algo cor de terra e fluido. Tinha ouvido a última troca de palavras, mas nenhum dos homens dera por ela. Flutuou pelo palco poeirento e sentou-se silenciosamente, observando atentamente o pai e o filho.
- Um fingidor, hein? - disse Toby. - bom, eu já te disse o que tu és, tão enamorado do teu próprio ego que não consegues comunicar, dentro ou fora do palco. Não consegues abrir-te. Não há paixão em ti.
- Está a referir-se àquela conversa que tivemos no parque, presumo.
- "Presumo, presumo"-imitou-o Toby. - Começas a falar como um guarda-livros falido. Sim, presumiste correctamente.
- bom, estive a pensar...
- Bem me pareceu que me cheirava a borracha queimada.
- Ho ho, pai, essa tem muita piada. Estive a pensar na sua ridícula afirmação de que todos estamos a representar papéis constantemente, não apenas no palco, mas no nosso relacionamento com outras pessoas. E que uma pessoa é apenas a soma dos papéis que desempenha.
- Bem... sim-disse Toby cautelosamente. - Isso foi mais ou menos o que eu disse.
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- Não se esquive, fuinha - disse David, com desprezo. - Foi exactamente isto que disse. E acredita nisso?
- Sim.
- Tem a certeza disso?
- Quem diabo estás a representar agora, Perry Mason? Eu não estou a ser julgado, pelo amor de Deus!
- Só quero ter a certeza de que o compreendi bem.
Toby pegou numa boina e pô-la de lado, descaída sobre um olho. Enfiou as mãos nos bolsos, arqueou os ombros, estendeu o lábio inferior. Começou a arrastar os pés pelo palco, criando um Apache parisiense.
- Merde! - disse com voz áspera. - Continua, espèce de dingue!
- Se acredita em tudo isso - disse David, triunfante -, como é que explica o facto de os bons actores, refiro-me aos grandes, às estrelas, como explica o facto de eles projectarem as suas personalidades, independentemente dos papéis que desempenham?
- O quê? - disse Toby, confuso. - O quê? Não estou a entender-te.
- Uma gaita é que não está - exclamou David, deliciado. - Está arrumado e a ver se ganha tempo para pensar numa resposta. Já me disse uma dúzia de vezes que Hampden era Hampden, fosse qual fosse o papel que desempenhava. E o mesmo se passava com Henry Irving. E também com Barrymore. E Olivier e Richardson e Gielgud. Fosse qual fosse o papel que eles desempenhavam... rei ou plebeu, amante ou palhaço... a personalidade essencial do homem vinha ao de cima. O seu desempenho de um papel é único, diferente do desempenho de qualquer outro actor no mesmo papel.
- E então? E então? - perguntou Toby, agitado. - Onde é que queres chegar? Que é que estás a dizer?
- Sabe perfeitamente o que estou a dizer. Que os actores, os grandes actores, não são meros finjidores. São artistas. Trazem qualquer coisa extra ao seu papel... o seu ego ou alma, ou seja o que quiser chamar-lhe. Mas o facto de essa qualidade muito pessoal que eles possuem vir ao de cima... independentemente da maquilhagem ou dos trajos ou das falas que lhes distribuem... isso prova que existe uma essência, uma essência única, que ultrapassa a simples "representação" e triunfa sobre ela. É por isso que o Toby não é um grande actor, nem nunca foi. Foi por isso que ninguém quis que fizesse Hamlet. Porque Toby é o que disse... simplesmente a soma dos papéis que desempenhou. Nunca deu aquele passo final para a grandeza porque não tem uma essência única. Não sabe o que é.
Toby estava nitidamente desconcertado. Atirou a boina para o caixote, procurou um novo chapéu, e depois desistiu. Desenroscou o
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frasco de novo e bebeu um longo gole, e depois deixou o frasco aberto em cima da mesa de cozinha.
David colocou desafiadoramente os óculos e fitou o pai, com olhos de mocho.
- Então? - perguntou. - Que tem a dizer a isto?
- Se eu tivesse cabeça para pensar, arrumava-te com iâmbicos e destruía-te com um troqueu.
- Se tivesse a sua habitual meia medida de inteligência, confessaria que é verdade o que eu disse, que...
- Não confesso coisa nenhuma! - trovejou Toby. - Não sou nem nunca foi um membro da encarquilhada escola de actores.
- Que existe uma essência única em cada um de nós - prosseguiu David inexoravelmente -, que os bons actores expressam criativamente no palco. E, com bastante talento e a técnica certa... sem truques!..., esse ego é revelado como algo esplêndido e comovedor. Um pedaço da verdade. Quando procuro a minha motivação, Toby, estou apenas a tentar descobrir quem eu sou, o que sou. Não é fácil. Por vezes é doloroso. Mas é o que eu quero fazer. Quero ser um grande actor. Quero criar no palco os mesmos momentos de verdade que se sentem quando se olha para um El Greco ou se lê Shelley ou se ouve Bach. Que tem isso de terrível?
Toby aproximou-se do filho e, inesperadamente, acariciou-lhe a cabeça. A sua mão permaneceu sobre a nuca de David.
- Meu querido, querido bastardo - disse Toby ternamente. - Gosto muito de ti. Sabes disso?
David não conseguia erguer o olhar, fitá-lo.
- Sim - disse em voz baixa. - Eu sei.
- Óptimo. E vou fazer de ti um grande comediante... pronto, pronto, um actor, antes de morrer.
- Tenho de o fazer à minha maneira.
- Não há nada de errado em ti que o tempo e um clister não consigam curar. Fala para a galeria e para além dela.
- Para além dela?
- Deus também tem direito a rir-se.
- Vá-se foder - disse David.
- Não penses que não tentei já - disse Toby. Voltou-se para partir. Viu Barbara Evings enroscada no chão do palco. Dirigiu-se a ela. - Ahhh, Rima, a Mulher Felina. Há quanto tempo estás aqui?
- Não há muito tempo - disse Barbara. - Estavam a discutir quando cheguei, mas acabaram em amor.
- Sim - disse Toby, tocando-lhe na face. - Acabámos em amor. É a melhor forma de acabar, miúda. Queres vir a minha casa e fazer-me cócegas com penas?
- Se quiser, Toby. Adoro penas.
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Ele riu-se e começou a inclinar-se para a beijar. Mas as suas feições contorceram-se de dor e levou a mão às costelas. Ficou curvado, por um momento, com os olhos fechados, à espera de que o espasmo passasse. Depois endireitou-se lentamente e sorriu debilmente para Barbara.
- Qualquer coisa que me comeu - disse. - Adeus, amor.
Acenou com a mão a David e saiu do palco com passo firme. David tinha estado silencioso, a meditar, durante esta conversa.
Depois de Toby partir, David viu o frasco sobre a mesa. Esboçou um movimento em direcção aos bastidores, para chamar Toby. Depois, deteve-se e pegou no frasco.
- Acho que vou beber um trago - disse em voz alta. - Estou a começar a gostar.
- Eu sei - disse Barbara.
- Queres provar?
- Não, obrigada.
- bom, levanta-te do chão e vem sentar-te aqui. Ainda apanhas uma constipação no rabo.
Barbara levantou-se desajeitadamente e dirigiu-se para a mesa. Deixou-se cair numa das cadeiras de madeira. David tirou os óculos e esfregou os olhos, fatigadamente. Ia começar a pôr os óculos, mas depois dobrou-os e meteu-os no bolso do casaco. Pôs-se de pé e começou a passear de um lado para o outro do palco, atrás de Barbara. Tinha a cabeça baixa. Olhava para as tábuas nuas.
- Uau - disse. - Que sessão! Nem imaginas o que gritámos.
- Mas acabaram amigos?
- Claro. Mas...
- Mas o quê?
- Bobbie, as ideias dele são tão antiquadas, tão fora de moda. Velho idiota!
- Mas tu adora-lo, David.
- Oh, claro. Aquele monstro! Ele sabe tanto.
- De quê?
- Do palco. Teatro. Truques. Iluminação. Maquilhagem. Público. Todas as técnicas. Fantasia. Está sempre em cena, sabes. O pano subiu quando ele nasceu e nunca mais baixou... Ainda.
- Está sempre a representar? É isso que queres dizer?
- Oh, sim. com as luzes no rosto, os braços abertos para o público, a berrar para a galeria. Mas não sei quem ele é. E ele também não sabe.
No seu passeio, David chegou junto do caixote de madeira. Inclinou-se e voltou alguns dos chapéus. Escolheu um capacete de aço da primeira guerra mundial, um capacete de soldado de infantaria.
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Afivelou-o. Acocorado, começou a procurar em volta, agarrando numa espingarda imaginária, um soldado em patrulha.
- David, ele é Toby.
- Quem é Toby Marlow? - perguntou David. - Ele já desempenhou um milhão de papéis. Conhece cinco línguas, dez sotaques, vinte dialectos. Melhor que qualquer actor que eu já tenha ouvido. A sua filosofia é uma caldeirada de ideias de dramaturgos e a sua conversa é feita de fragmentos de frases de outros homens. Mas quem diabo é ele?
David trocou o capacete por um fez e começou a imitar um criado untuoso ou um guia do Cairo, fazendo vénias e rapapés, com um sorriso horrivelmente untuoso no rosto.
- David, Toby é o teu pai.
- Oh, sim - disse David sombriamente. - O meu pai natural. E eu sou o seu "querido, querido bastardo". O que me dói é que ele consegue levar-me, ele leva-me! É um bom actor. Consegue fazer-me rir e consegue fazer-me chorar. Contra minha vontade, repara. Mas não sei onde acaba a pintura e ele começa. Não consegues compreender? Eu não sei quem ele é.
- Isso é importante?
- É claro que é importante. Não quero que o meu pai seja um palhaço com uma cabeleira horrível e uma máscara pintada.
- Não somos todos nós um pouco assim? - perguntou ela.
- Que diabo quer isso dizer?
- Não sei. - Encolheu os ombros. - A frase pareceu-me muito profunda, de modo que a disse.
- Bem, não é profunda.
- Sim, David.
Ele atirou o fez para o caixote e aproximou-se da mesa junto da qual Barbara estava sentada. Puxou uma cadeira e sentou-se em frente dela, inclinando-se sobre a mesa.
- Ele continua a ser um palhaço do teatro burlesco - resmungou. - com um nariz postiço. A atirar tartes às pessoas e a dizer piadas ordinárias. Ele está a representar a vida.
- Sim, David.
- Importas-te de parar de dizer "Sim, David"? Não gosto que me dêem palmadinhas na cabeça para me contentar.
- Sim, David.
- Pela última vez, casas-te comigo?
- Pela última vez, não.
Ele fitou-a, inspirando profundamente.
- Por que não? - perguntou.
- Tu não és Toby - disse ela.
Ele tentou rir-se.
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- Sinto muito. A minha mãe chegou primeiro. Ele vai casar-se com ela.
- Sabes que não é isso que eu quero dizer.
- Eu sei o que queres dizer, que eu não sou o homem que o meu pai é.
- Sim - disse ela decididamente. - Era isso que eu queria dizer. Tu não és o homem que o teu pai é.
- Muitíssimo obrigado.
Ele inclinou a cabeça para trás e bebeu um longo gole do frasco. Tossiu, cuspiu, passou as costas da mão pelos olhos. Depois inspirou profundamente. Sem olhar para ela.
- Agora ficaste zangado comigo, não foi? - perguntou ela.
- Contigo, com Toby, comigo - disse ele. - Não sei com quem. Ou com o quê. Oh, meu Deus, Barbara, que é que eu vou fazer?
- Estás assustado?
- Não. Sim. Não sei.
- Assustado por representar Hamlet?
- Ser Hamlet. Isso, e tu, e Toby a morrer. Subitamente, deixei de me sentir seguro. Subitamente, apercebi-me de que não consigo controlar as coisas. A minha confiança está a esvair-se. Que sensação! É como ver o meu sangue a correr e não conseguir fazê-lo parar.
- Pareceste-me bastante confiante na noite em que nos conhecemos. Estavas tão seguro de ti, tão seguro.
- Essa noite! - exclamou ele. - Se eu conseguisse sentir de novo o que senti nessa noite!
- Segundo me recordo - disse ela -, sentiste-me a mim.
Ele riu-se tristemente.
- A ti, entre outras coisas...
Ambos sorriram levemente, recordando... Olharam para a lâmpada eléctrica nua ao cimo do tubo de suporte. Ela começou a crescer em tamanho - uma toranja, um melão, uma abóbora. Tornou-se enorme, suavemente luminosa, e começou a flutuar mais alto, mais alto, no meio da escuridão. E transformou-se na Lua cheia, gorda e sumarenta, suspensa sobre o mar que lambia a terra. A praia de Cape Cod estava coberta de dunas brancas, sombras negras.
Estavam em 1973. Toby Marlow estava a fazer uma tournée de Verão em Provincetown, e David tinha vindo de Manhattan para ver o pai em O Homem que Veio para Jantar. Toby mostrara-se escandalosamente na sua melhor forma: rosnava, tossia, agitava os braços, arrotava, bocejava e interpolava apartes sussurrados que teriam enraivecido o autor mas que faziam a audiência explodir em gargalhadas.
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À meia-noite, deixando o pai entregue à enjoativa adulação da multidão que enchia o camarim, David Marlow tinha ido passear lentamente pela praia. Inspirava profundamente, rendendo-se àquela noite sedutora. Olhava para o céu, sonhadoramente, com os óculos a brilhar. Apertava as mãos atrás das costas, enquanto passeava, recitando:
- "Quão docemente o luar dorme sobre esta praia! Aqui nos sentaremos, deixando os sons da música penetrar nos nossos ouvidos: um silêncio suave e..."
Mas, subitamente, o seu recital foi interrompido por uma série de agudos gritos femininos que vinham do mar. David deteve-se, estremeceu, olhou temerosamente em volta.
- Meu Deus! - disse em voz alta.
Os gritos terminaram num trinado e depois transformaram-se em palavras:
- Au secours! Au secours! Aidez-moi! Aidez-moi!
David soltou uma risada nervosa.
- Ou é francesa ou é terrivelmente snobe.
Arrancou os óculos e pousou-os cuidadosamente sobre a areia. Recuou dois passos, preparou-se e, após um momento de hesitação (apenas um momento), atirou-se corajosamente para a rebentação suave. Parou quando o mar lhe chegava aos joelhos.
- Alo! - gritou. - Alo!
- Alo! - foi a resposta. - Alo!
David voltou-se na direcção da voz e avançou um pouco mais até a água lhe dar pelas coxas. Olhou em volta, freneticamente.
- Alo! Alo!
- Alo! Alo!
Virilmente, avançou um pouco mais. A água dava-lhe agora pela cintura. Notou que ela lhe enchera os bolsos: as calças começavam a descair.
- Alo! - gritou desesperadamente.
- Alo!
- Onde está? - gritou ele.
- Aqui! Estou aqui!
- Onde diabo é aqui?
Houve uma breve pausa. Depois, uma voz feminina disse com firmeza:
- Não é preciso praguejar.
Um esguio braço branco saiu do mar, a poucos metros de David. Ele avançou esforçadamente, com as ondas já a dar-lhe pelo peito. Inclinou-se para agarrar uma mão, um pulso, um braço.
- Muito bem - disse ele em voz alta. - Não lute. Está segura. Já a apanhei.
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- Não tenho roupas vestidas.
- Quer que me volte de costas? - perguntou ele, irritado.
Sem esperar por resposta, inclinou-se, ergueu a jovem nos braços e começou a avançar, cambaleante, para a praia. Ela inclinou a cabeça para trás, sobre o braço dele, e olhou para cima.
- Coragem - arquejou ele. - Já falta pouco.
- Que noite magnífica! - disse ela. - Já tinha visto tantas estrelas?
Ele alcançou a praia, respirando pesadamente. A água escorria-lhe das roupas encharcadas. Tropeçou na areia seca. Depois pôs-se de pé, com o peito a subir e a descer, subitamente consciente de que trazia nos braços algo que parecia uma serpente descascada.
- Pode pôr-me no chão agora, por favor - disse ela.
- Eu não devia fazer qualquer coisa? - perguntou ele.
- O quê, por exemplo?
- bom... fazê-la rolar por cima de um barril?
- Tem um barril?
- Infelizmente, não.
- Então?
- E ressuscitação boca-a-boca?
- Não, obrigada - disse ela rigidamente. - Não quero envolver-me com ninguém. Importa-se de me pôr no chão?
- Eu punha, mas deixei os óculos na areia, algures, e não quero que os pise.
- Bom, procure-os.
- Sim. Está bem.
Sempre com ela ao colo, avançou alguns passos, enquanto ambos olhavam para a areia.
- Não - disse ele. - Não reconheço este local. Deve ter sido do outro lado.
Deu meia volta, com o fardo a escorrer nos seus braços a tornar-se cada vez mais pesado. Avançou penosamente na direcção oposta, ouvindo-se a patinhar.
- Como são os seus óculos? - perguntou ela.
- bom, sabe como são, óculos. com aros de osso preto. Muito bonitos, por sinal. Deve ser fácil vê-los.
- Além! - disse ela. - Ali à frente. Junto da água.
- Não, é uma lata de cerveja. Oh... lá estão eles.
Transportou-a um pouco mais pela praia, afastando-se da água.
Estava quase dobrado pelo meio, arquejante e com a respiração silvante. A carne molhada dela começava a escorregar dos seus braços.
- vou pousá-la no chão - disse ele. - Por favor, não pise os óculos.
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- Não piso.
Cuidadosamente, com um esforço final, pô-la lentamente de pé. Depois, endireitou-se com um suspiro de alívio. Mas tinha-a largado cedo de mais; os joelhos dela dobraram-se e ela caiu subitamente, sentada na areia.
- Meu Deus! - gemeu David, angustiado. - Sentou-se em cima dos meus óculos!
- Não sentei.
- Sentou, sentou! Sentou-se mesmo em cima deles.
Ela rolou para o lado, sobre uma anca. Explorou a areia por baixo de si. Encontrou os óculos, observou-os, soprou a areia. Depois, estendeu-os a David.
- Aí os tem - disse ela. - Estão como novos.
David pô-los imediatamente e olhou para a Lua.
- Solta - disse, irritado. - A haste direita está totalmente solta.
- Peço desculpa - disse ela, numa voz minúscula.
Ele olhou-a e deu involuntariamente um passo atrás.
- Meu Deus - arquejou -, está nua!
- Eu disse-lhe que estava nua.
- Eu sei, mas não sabia que estava tão... tão nua. Essa cicatriz é de uma apendicite?
- É.
- É linda.
- Obrigada. Pode emprestar-me o seu casaco? O vento está gelado.
- Oh... claro. Eu devia ter pensado nisso. Infelizmente, está ensopado.
- Não faz mal. Eu também estou.
David extraiu o casaco molhado. Tentou escorrer o excesso de água e depois sacudiu-o algumas vezes contra a brisa. Colocou-o ternanente sobre os ombros dela, ajudando-a a voltar a gola para cima, e uniu as lapelas à frente. Depois sentou-se na areia ao lado da jovem, abraçando os joelhos flectidos.
- Onde está a sua roupa? - perguntou ele.
- Despi-a.
- Oh. Estava a arrastá-la para baixo?
- Não, não - disse ela. - Está algures na praia. Ia suicidar-me e queria estar nua. Tal como vim ao mundo.
Ele ficou tão horrorizado, tão magoado com o que ela dissera, que sentiu vontade de chorar.
- Suicídio? Meu Deus! Mas se... se...
- Se estava a suicidar-me, por que motivo gritei?
- Sim - disse ele, acenando afirmativamente com a cabeça. - Por que fez isso?
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- Mudei de ideias.
- Compreendo.
Ela voltou-se para olhar para ele.
- Compreende? Compreende realmente?
- Realmente, não - confessou ele. - Chamo-me David Marlow.
- Eu sou a Barbara Evings - disse ela. - Estou muito contente por o ter conhecido. Suponho que, se não tivesse aparecido, neste momento já estaria morta.
- Penso que sim - concordou ele. - Eu ia direito para casa, esta noite... tenho que fazer umas leituras muito importantes... mas depois decidi vir dar um passeio pela praia; a noite está tão bonita. Ia dar um pequeno passeio e voltar para casa. Mas ouvi os seus gritos. É tudo um acaso, não é?
- O quê?
- bom, refiro-me a eu ter decidido dar um passeio pela praia, e a Barbara decidir que não queria afogar-se. Tudo um acaso.
- bom... sim - disse ela, hesitante. - A menos que...
- A menos que o quê?
- Nada. Nada, realmente...
Ficaram ambos em silêncio, com os ombros encostados, sentados em posições idênticas: abraçando os joelhos flectidos. Agora evitavam cuidadosamente olhar-se. Observavam atentamente a Lua, as estrelas, as nuvens em corrida. Estava tudo ali, mas começava a oscilar.
- Por que gritou em francês? - inquiriu ele, por curiosidade.
- Ando a estudar francês - disse ela. - É uma língua encantadora, mas tenho problemas com os géneros.
- Toda a gente tem - assegurou ele. - Especialmente os franceses. Se não for muito penoso para si falar disso, poderia dizer-me por que quis matar-se?
- Porque concluí que a vida não tem valor.
- E então por que decidiu não se matar?
- Porque, quando fui ao fundo pela quarta vez, compreendi que, se a vida não tem valor, então o suicídio não tem significado.
Ele fitou-a, então. com admiração.
- Muito profundo... - disse ele.
- Quase estive... - disse ela.
- O quê? Ah, sim! Mas por que acha que a vida não tem valor?
Ela remexeu-se sobre a areia, voltando o rosto para ele. Espetou a cabeça para a frente até os narizes de ambos ficarem muito próximos. Fitou-o intensamente nos olhos.
- Sabe quantas pessoas neste mundo morrem de fome em cada dia? - perguntou.
Era quase uma acusação. Ele sentiu-se desconfortável.
- Não sei ao certo - disse. - Umas centenas, suponho.
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- Milhares! - garantiu ela. - E leu, com certeza, a notícia do terramoto no Tibete.
- Oh, sim. Li. Foi terrível.
- Horrível - disse ela, acenando afirmativamente com a cabeça. - E, ao largo da costa do Peru, todas as anchovas estão a morrer.
- Por isso sente que a vida não tem valor?
- Sim. Mas depois descobri que a morte também não tem. Não há realmente nada para nós, pois não?
- Não deve sentir-se assim - disse ele seriamente.-As pessoas têm coisas.
- Oh! - fez ela. - Que é que o David tem?
- Ambição. Sonhos.
- Acerca de quê?
- De ser um grande actor. Um dia...
Ela voltou a cabeça de lado, pousando a face sobre os joelhos unidos. Ele não conseguia ver-lhe os olhos, mas tinha a certeza de que estariam tristes e derrotados.
- Eu não tenho ambições - disse ela em voz baixa. - Nem sonho com coisa alguma. Estou vazia.
- Barbara, não diga isso!
- É verdade, David. Não tenho futuro absolutamente algum. Nenhum, mesmo. E o meu passado também é vazio de acontecimentos. Acredita que a coisa mais excitante que me aconteceu foi ganhar um concurso em que se tinha que adivinhar quantas aspirinas havia num grande boião na montra de uma farmácia?
- Que é que ganhou?
- As aspirinas - disse ela. - Não é muito excitante, pois não?
- Não - confessou ele -, não muito. Mas, meu Deus, tem tanta coisa diante de si! É uma mulher bonita.
- Não sou - disse ela, erguendo o queixo e humedecendo os lábios com a língua. - Não sou bonita.
- É, é realmente bonita. O seu cabelo é lindo.
- Esta, esta coisa velha - disse ela, tentando desemaranhá-lo com os dedos. - Está todo molhado e embaraçado e cheira a peixe.
Ele inclinou-se sobre ela, enterrando o nariz nos cabelos dela e inalando profundamente.
- A peixe não - disse. - Cheira a água salgada. Um cheiro selvagem. E tem uns belos olhos.
Ela ergueu-os para a Lua.
- São muito juntos - disse.
- Não, não! - protestou ele. - Têm a distância certa. Além disso, a sua boca é maravilhosa.
Ela estendeu levemente o lábio inferior e fez pequenos movimentos com a boca, como um peixe de aquário.
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- Não acha os meus lábios muito finos? - perguntou.
- Não, não acho! Os seus lábios são cheios e belamente modelados.
Barbara ergueu a cabeça, movendo-a lentamente para trás e para a frente.
- O meu pescoço não é longo de mais? - sugeriu.
- De maneira nenhuma!-disse ele com firmeza.-Esbelto como um pescoço de cisne. Decididamente, um pescoço de cisne.
A jovem olhou para si própria, com um ar triste.
- Não tenho seios - disse.
- Tem, pois! Elegantes e excitantes.
- Elegantes?
- A sério.
- Excitantes?
- Palavra de escuteiro.
Então ela abanou a cabeça pesarosamente.
- As minhas ancas são largas de mais - disse ela.
- Como pode dizer isso? - perguntou ele. - As suas ancas são muito sensuais e femininas.
- Sensuais e femininas?
- Sem dúvida alguma.
- E as coxas? - perguntou ela.
- Magníficas - garantiu ele.
Ela suspirou.
- Mas tenho um traseiro muito grande - disse. - Sentei-me em cima dos seus óculos.
- Sim - disse ele avidamente -, mas não os quebrou. E as barrigas das pernas e os tornozelos são fantásticos. Até gosto dos seus pés.
Ela mostrou-se mais animada.
- Admito que os meus pés são bonitos. Toda a gente gosta dos meus pés - mas depois ficou triste e pensativa de novo. - Mas é tudo o que eu tenho, pés. Tudo o mais é... bom, nada. O David só esteve a tentar fazer com que eu me sentisse melhor.
- Não - disse ele. - Juro-lhe que não.
Então, tendo-lhe o seu instinto de actor dito que era o momento devido, pôs-se de pé. Afastou-se um pouco dela, com as pernas solidamente plantadas na areia, as mãos enfiadas nos bolsos molhados. Ergueu o queixo e olhou firmemente para o mar.
- Não, isto não é verdade - disse. - Eu estava a tentar fazê-la sentir-se melhor. Dizendo-lhe a verdade. Dizendo-lhe aquilo de que não se apercebe. Que é uma bela mulher. Não houve já outros homens que lhe dissessem isso?
- Sim - disse ela, com voz fraca. - Mas só para poderem comer-me.
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? - Quer comer-me também?
- Preferia que não usasse essa palavra - disse ele.
- Por que não?
- A noite está bela de mais.
- Oh sim - disse ela. - Sim. Compreendo perfeitamente o que quer dizer. Desculpe.
- Não faz mal - disse ele jovialmente. Sentou-se de novo ao lado dela. - A noite está incrível, só isso.
- Compreendo. - Acenou afirmativamente com a cabeça.
- Tão incrível, que me apetece comê-la.
- Eu também quero. Pertenço-lhe. Salvou-me a vida.
- Oh não...
- Salvou, pois!
- Oh, só porque sei um pouco de francês... - Encolheu os ombros, com modéstia. - Não pense que me deve alguma coisa. Não deve.
- A minha vida pertence-lhe - disse ela solenemente.
- Disse-me que ela não tinha valor.
- Isso foi antes de me dizer que sou bonita. O meu nariz. Não falou do meu nariz.
- O seu nariz é divino - disse ele.
Ela fungou e limpou o nariz à manga do casaco dele.
- Neste momento está ranhoso - disse.
- Divinamente ranhoso - disse ele.
Passou um braço em volta dos ombros dela. Puxou-a para si, para ver o que sucedia. Ela não colocou objecções.
- Queres mesmo? - perguntou. - Fazer amor, quero eu dizer.
Ela hesitou por um momento, pensando.
- Sim, acho que quero - disse finalmente. - Não tenho a certeza, compreendes, mas penso que quero.
- Não precisas de o fazer, bem sabes. Não sou um tarado sexual.
- Eu sei disso, tolo. Podia fugir de novo para o mar.
- Oh, meu Deus, outra vez, não.. Masporquê? Por que queres fazer amor? Ou por que pensas que queres fazer amor, apesar de não estares absolutamente certa?
- Porque tu tens ambição - disse ela.
- Tenho.
- E sonhos.
- Muitos.
- Eu não tenho, bem vês - disse ela pesarosamente
Mas depois o seu rosto animou-se.
- Mas talvez, talvez, se fizermos amor, tu me contagies.
- Te contagie com quê?
- bom... tu sabes quem és, aquilo que queres. Talvez me pegues
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isso se fizermos amor. Por osmose, ou coisa parecida. E eu fico a saber quem sou e o que quero.
- Bom... - disse ele, hesitante. - Não há garantias, bem sabes.
- Estou disposta a correr o risco. Tenho que correr o risco. Por favor.
Ele ficou horrorizado e fitou-a severamente.
- Nunca peças "por favor" a mim ou a qualquer outro homem. És demasiado mulher para dizer "por favor".
- Está a resultar! - exclamou ela. - Está a resultar!
Despiu o casaco de David e atirou-o para o lado. Rolou sobre ele, fazendo-o cair sobre a areia. Louca de desejo, começou a lutar com as calças dele.
- Os meus óculos estão a ficar embaciados - disse-lhe ele.
- Raios, raios, raios! - disse ela, furiosamente.
- Que foi?
- O teu fecho de correr está emperrado. Acho que tem um bocado de alga no meio.
Ambos inclinaram as cabeças sobre o obstinado fecho, e acabaram por o abrir. Depois, com muita dificuldade e muitas sacudidelas, ele conseguiu livrar-se também das roupas molhadas. Sob o luar branco, na sombra negra, tornaram-se parte da praia. Abraçaram-se a tremer, e beijaram-se, beijaram-se, beijaram-se.
- A areia pode magoar-te - avisou ele. - Irrita, sabes.
- Não me importo.
- Deixa-me estender o meu casaco. Deitamo-nos em cima dele.
- Fica todo amachucado.
- Que importa? Amo-te.
- E de um belo tweed. Também te amo.
- Por acaso, as mangas têm um centímetro de comprimento a mais. És tão bela.
- Adoro tweed - disse ela. - É tão... tweed. Não é uma palavra engraçada, tweed? Diz três vezes.
- Tweed, tweed, tweed - disse ele. - Sim, tem um som estranho.
- Querido, tens frio?
- Frio? - disse ele. - Eu? Oh não. Não.
- Pareceu-me que tinhas estremecido.
- De prazer. Quando passas as unhas pelas minhas costas. Os livros dizem que um homem e uma mulher levam algum tempo a acostumar-se sexualmente um ao outro.
- Os livros! - troçou ela. - Que é que eles sabem? Quero dizer, se os escritores soubessem alguma coisa, estariam a fazer amor em vez de escrever a esse respeito, não te parece? Posso tocar-te?
- Se quiseres.
- É tão esquisito - disse ela com espanto.
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Ele apoiou-se nos cotovelos e ambos ficaram a olhar para ele A falar verdade, tinha um ar um pouco estranho, a latejar ao luar
- Como é que os homens conseguem viver com isso pendurado? - perguntou ela. - É realmente incrível.
- Não mais incrível que os seios de uma mulher. Também ficam pendurados. Às vezes.
- bom, não se mete no caminho? Não te incomoda?
- Nem por isso. Habituamo-nos.
- Penso que sim - disse ela, um pouco duvidosa. - Que fazes com ele quando dormes?
- Mando-o pelo correio para Boston.
- A sério - insistiu ela.
- A sério, não é um problema - garantiu ele. - Que é que as mulheres fazem com os seios quando dormem?
- No entanto... Olha para ele, David. É esquisito.
- Parece um pescoço de peru?
- Oh, não. Parece mais uma salsicha.
- Uma linguiça?
- Céus, não!
- Obrigado - disse ele. - Mas também não é um salame.
- Olha, David! - exclamou ela. - Está a crescer!
- Eu sei - disse ele, satisfeito. - Talvez se transforme num kielbasy.
- Que é isso?
- Um cachorro-quente polaco.
- Nhame, nhame! - fez ela. - No entanto, pensando bem, David, se fosses Deus e criasses o homem e a mulher, seria muito difícil pensar num sistema melhor.
- Não consigo imaginar outro - reconheceu ele.
- Está a ficar maior, David.
- Talvez pretenda ser um salsichão. Assusta-te?
- Não, não me assusta... mas impõe respeito. Estou muito impressionada.
- Obrigado.
- Consegues andar com ele assim? - perguntou ela.
- Preciso de o fazer?
- É claro que não. Estava só a fazer uma pergunta.
- Sim, posso andar. Mas preferia não o fazer. Fica com um ar idiota.
- Não fica nada. É amoroso. Além disso, é para mim não é?
- Oh sim - garantiu ele. - É teu. Espero que gostes.
-vou gostar de certeza - disse ela. - Sabes o que eu acho que devíamos fazer agora?
- Penso que sim - disse ele.
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- Acho que devia deitar-me de costas - disse ela, pensativamente. - com os joelhos afastados e levantados. E tu deves deitar-te por cima de mim, entre as minhas pernas.
- Acho isso uma esplêndida ideia - disse ele. - Logo que possível.
Não sem dificuldade, rolaram, ergueram-se e colocaram-se na posição que ela tinha prescrito. Ela olhou para a Lua por cima do ombro esquerdo dele e piscou um olho ao homem.
- Sim, David - murmurou ela. - É isso mesmo... exactamente isso...
- Sou pesado de mais para ti? - inquiriu ele solicitamente.
- Gloriosamente pesado.
- Nunca mais deves fazer isso - disse ele severamente.
- Julguei que gostasses.
- Refiro-me ao suicídio.
- Oh - disse ela. - bom... uniu-nos.
- Adorável suicídio! - disse ele.
- Maravilhoso suicídio! - disse ela. - David... as minhas orelhas. Não falaste das minhas orelhas.
- Adoro as tuas orelhas - arquejou ele. - Umas orelhas fabulosas, sensuais - grunhiu. - Acho que estou pronto - gemeu.
- Eu sei que estás pronto.
- Tu estás pronta?
- Oh, tão pronta - arquejou ela.
- bom, então... "um silêncio suave e a noite transformou-se em pinceladas de doce harmonia."
- Que é isso?
- O Mercador de Veneza. Estava a recitá-lo quando te ouvi gritar.
- David...
- Que é?
- Au secours! - exclamou ela. - Au secours! Aidez-moi! Aidez-moi!
- Eu salvo-te - disse ele, provando-o.
- Oh sim. - Ela estava a chorar de felicidade. - Oh sim! Salva-me, querido David, salva-me, salva-me...
A Lua reduziu-se, reduziu-se e baixou no céu. Ficou do tamanho da lâmpada eléctrica que iluminava o palco nu do teatro universitário. Barbara Evings e David Marlow estavam sentados à mesa, um em frente do outro. O braço dele estava estendido, a mão dele cobria uma das dela.
- Recordo-me, recordo-me - sorriu. - Foi uma noite maravilhosa, uma noite cheia de maravilhas.
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- Nunca mais voltámos a ter uma noite como aquela - disse ela tristemente.
- Tivemos outras igualmente boas.
- Igualmente boas. Mas... diferentes.
Ele fitou-a e o sorriso desapareceu dos seus olhos.
- Resultou, Barbara? Descobriste quem eras, nessa noite?
- Oh, sim - disse ela. - Descobri. Que te amava. Pensei que isso me bastaria.
Ele afastou as mãos. Recostou-se na cadeira. Começou a brincar com o frasco tapado, fazendo-o rolar sobre o tampo da mesa. Olhou para a prata brilhante.
- Mas não bastava? - inquiriu ele. - Não basta?
- Não bastava - disse ela gravemente. - Não basta. Amar-te não basta. Quero mais.
- Tens tudo quanto tenho para dar - disse ele.
- Não acredito.
- É a verdade.
- David, se eu acreditasse nisso, metia-me outra vez ao oceano, com o bebé e tudo.
- Não digas isso! - exclamou ele.
- É a verdade. Mas não te preocupes. Não o farei. Tenho fé em ti.
Ele ergueu rapidamente o olhar para ela e depois olhou de novo para baixo. Tentou soltar uma súbita gargalhada, mas ela soou mais como um riso amargo.
- Ainda bem que um de nós tem - disse ele.
- Eu tenho.
- Finges que tens - disse ele.
- E tu não podes fingir?
Agora as coisas tinham-se complicado e estavam ambos perdidos. Que é que ela queria que ele fingisse? Fé em si próprio? Ou...? Fez o pressuposto correcto.
- Representar o amor? - perguntou.
- Sim - disse ela imediatamente. - Muito bem. Faz-te apaixonado. Diz-me que represento mais para ti que tu próprio. Abre-te. Entrega-te. Não podes fazer isso?
- Jesus Cristo! - disse ele, irritado. - És pior que Toby.
- É assim tão terrível, David? Fingir, quero eu dizer. Fingir que me amas?
- Para que serviria isso, se ambos soubéssemos que eu estava a representar?
- Podia tornar-se uma segunda natureza em ti - disse ela. - E depois uma primeira natureza.
- Não acredito nisso - disse ele, e a sua voz ecoou pelo teatro vazio. - A essência cria-se do interior, não por influência exterior. Não
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posso representar o que não posso sentir. Seria fingimento. E se finjo contigo, por que não com toda a gente? Nesse caso, Toby teria razão e Toby não tem razão. Provei-lhe isso há uma hora. A essência de um homem existe para além dos papéis que representa. É o ego que faz um grande actor criativo.
- Toby diz... - principiou ela.
Mas parou quando David bateu com o punho sobre a mesa. Depois ele agarrou no frasco, abriu-o, inclinou a cabeça para trás. Esvaziou-o e em seguida atirou-o para cima da mesa, pela qual deslizou, indo cair no palco. Barbara inclinou-se lentamente para o apanhar.
- Toby, Toby, Toby! - gritou ele, furioso. - É só isso que eu oiço. O homem é todo histórias antigas, piadas ordinárias, versos mal citados, iras falsas, amores simulados, paixões fictícias e recordações imaginárias. Toda a gente escuta Toby Marlow. Toda a gente acredita em Toby Marlow. Mas ele não é nada. Ele não existe.
Barbara prosseguiu calmamente...
- Toby diz que os actores que sentem o mesmo que tu esquecem a comunicação, só pretendem acariciar os próprios egos. Que tu não dás prazer a ninguém excepto a ti próprio.
- Eu sei o que Toby pensa. Não quero ouvir falar mais disso. Sei qual é a verdade.
- Sabes? É por isso que estás tão assustado? David, agora já sei quem sou. E tu sabes quem és?
Ele cruzou os braços sobre a mesa, inclinou-se para a frente e ocultou o rosto. Ele e Barbara ficaram longos momentos em silêncio. Por fim...
- Que disseste? - perguntou ela.
- Nada - disse ele com voz abafada. - Não disse nada.
- Estranho - disse ela. - Podia jurar que ouvi alguém gritar debilmente "Au secours! Au secours!"
CENA QUATRO
A sala de estar dos Marlow, quase limpa, estava decorada para o casamento de Cynthia e Toby. Tinha sido montado um pequeno pavilhão quadrado diante da lareira. As paredes esvoaçantes eram cortinados de nylon branco; por cima estava suspenso um enorme sino de papel branco.
O resto da sala encontrava-se adornado com pombas de papel japonesas, peixes de papel, animais de papel e grinaldas penduradas das vigas, da ventoinha eléctrica do tecto e dos candeeiros. Atrás do
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sofá, tinha sido montada uma mesa com tábuas colocadas sobre cavaletes. A mesa encontrava-se coberta com lençóis, e sobre ela estavam expostos cervejas, vinhos e uísque, baldes de gelo, travessas com comida, cestos com fruta, um presunto inteiro cortado em fatias, peru, truta fumada, copos, taças, pratos, talheres, travessas com pão, pratos de acompanhamento, sobremesas, bolos, etc. Embora não estivessem propriamente a gemer, as tábuas deviam estar a chorar baixinho.
Também se faziam notar nesta sala festiva vinte figuras de cartão (20 figuras! 20!), com um metro e meio a um metro e oitenta, de pé sobre bases de madeira. Eram do tipo de recortes fotográficos (horrivelmente pintados) que se costuma exibir às portas dos teatros, clubes nocturnos e cafés-concerto. Estas estátuas bidimensionais representavam actores e bailarinos, palhaços e reis, prostitutas, vilões, santos e cómicos. Mostrando mais dentes do que parecia humanamente possível, imóveis em posturas exageradas - mas oscilando ligeiramente quando a passagem de um personagem vivo deslocava o ar as figuras transmitiam a impressão de uma sala cheia, um "elenco de milhares", o tumulto de um cenário apinhado e movimentado.
Na realidade, como um espectador atento notaria rapidamente, os convidados do casamento constituíam uma multidão muito pequena. Presentes em pessoa estavam os noivos, Cynthia e Toby, de pé, no pavilhão, de mãos dadas e voltados para o sacerdote, que era uma pessoa pouco convencional e incaracterística. Também estavam presentes Jacob e Julius Ostretter, que se conservavam o mais longe possível um do outro, com as suas esposas praticamente idênticas - mulheres gordas e joviais com espartilhos de ferro, penteados trabalhados e muitas lantejoulas. David Marlow e Barbara Evings estavam perto do pavilhão, impecavelmente vestidos e solenes. Ao fundo, uma Blanche radiante, ainda mais impecavelmente vestida, chorava animadamente de felicidade excessiva e um pouco de uísque.
Se a noite tivesse sido musicada, levaria a indicação con brio.
- E agora - cantarolou o pastor -, declaro-vos marido e mulher. Pode beijar a noiva.
- Diabos o levem! É para já! - gritou Toby Marlow. Abraçou imediatamente Cynthia apaixonadamente, inclinando-a para trás num abraço teatral, e comprimiu os lábios dela com os seus como Rudolfo Valentino a fazer o serviço a Nita Naldi.
Quando a soltou para poder respirar, o ansioso pastor precipitou-se para beijar na boca uma surpreendida Cynthia. Os outros reuniram-se em volta - David e Barbara, os Ostretter e Blanche - para saudar os noivos com apertos de mão, abraços, beijos. E gritos de alegria...
- Bravo!
- Parabéns!
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- Mazeltov!
- Que todos os vossos problemas sejam insignificantes!
- Felicidade para sempre!
- bom trabalho! bom trabalho!
No meio da confusão, o pastor esgueirou-se para o final da linha dos beijos e já ia repetir a dose. Toby afastou-o.
- Basta de sexo! - exclamou. - Agora só quero ouvir saltar rolhas de garrafas! David, meu filho legítimo, quereis fazer as honras?
David e Blanche dirigiram-se para a mesa por detrás do sofá. As garrafas de champanhe foram retiradas dos baldes de gelo, as rolhas foram extraídas, as taças enchidas e passadas em volta num tumulto de vozes excitadas.
- Silêncio! - gritou David. - Silêncio!
Depois de obter as atenções gerais, ergueu a sua taça bem alto.
- Um brinde! - exclamou Toby. - Um brinde real!
- Que bonito! - disse Cynthia.
- Minhas senhoras e meus senhores - disse David -, bebamos a Mr. e Mrs. Toby Marlow, cujo fruto eu tenho a honra de ser.
- Apoiado, apoiado! - gritou Toby.
- Aos meus pais - disse David. - Que vivam por muitos anos!
- Que vivam por muitos anos! - gritaram todos, e as taças esvaziaram-se, incluindo as de Cynthia e Toby. Este voltou-se imediatamente e atirou a sua taça contra a lareira.
- Oh, Toby! - exclamou Cynthia. - O nosso melhor cristal Waterford!
- Uma gaita! - disse ele. - Era só uma taça barata, das que eu guardo para gestos dramáticos.
David e Blanche voltaram a encher as suas taças vazias.
Subitamente, a mulher do Dr. Ostretter correu para o piano roufenho, sentou-se e começou a tocar a marcha nupcial, a parte da retirada do altar. Toby, com uma taça de champanhe na mão, deu o braço a Cynthia e ambos, erguendo as taças aos presentes, fizeram uma grandiosa parada em volta da sala.
- Queridos amigos, queridos amigos - cantarolou Toby -, bebei da taça nupcial e dai-nos a vossa bênção! Que a orgia prossiga e a alegria se torne indecorosa!
Cynthia e Toby prosseguiram a sua volta à sala, como a rainha e o rei, inclinando a cabeça às felicitações dos seus súbditos e parando para abraçar e beijar, uma vez mais, David, Barbara e Blanche.
- Peço-vos a todos - gritou Toby - que comais, bebais e vos alegreis. Porque um casamento como este foi feito no céu, e dentro em breve serão postos à venda bilhetes para assistir à rebaldaria no leito nupcial. Infelizmente, a venda é limitada.
A mulher do médico, ao piano, lançou-se numa interpretação
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entusiástica mas quase irreconhecível de Oh como nós dançámos na noite em que nos casámos... e Toby e Cynthia começaram a valsar pela sala, em breve se lhes juntando David e Barbara, Julius Ostretter e a mulher e o Dr. Jake e Blanche. O pastor, sorrindo e acenando aprovadoramente com a cabeça, fez uma sanduíche enorme e encheu um copo alto de champanhe. Depois dirigiu-se para junto do piano, onde as suas atenções para com Mrs. Jacob Ostretter se revelaram um pouco mais (ou menos) do que eclesiásticas.
Subitamente, Toby parou de dançar e afastou-se dos braços de Cynthia. Voltou-se para a animada companhia e ergueu uma mão, a pedir silêncio.
- Alto! - gritou ele. - Alto! Parem com o raio da música! Escutem-me! - E depois de todos se terem calado e o fitarem, na expectativa: - Minhas senhoras e meus senhores, malta em geral! Na excitação desta celebração, e na minha febril avidez pelo que está para vir, quase me esqueci de uma importante cerimónia. Como prevejo a entusiástica cooperação da minha mulher no nosso leito nupcial, posso, com segurança, designar o que vou mostrar-lhes agora como apièce de résistance desta noite. Minhas senhoras e meus senhores, o meu presente de casamento para a nossa querida Cynthia!
Houve risos, troca de palavras, alguns aplausos, quando Toby saiu velozmente da sala e se dirigiu ao hall de entrada. Durante os poucos momentos em que esteve ausente, fizeram-se excitadas conjecturas acerca do que poderia ser a prenda.
Cynthia:
- Um négligée de renda preta!
David:
- Uma fotografia autografada dele próprio!
Barbara:
- Uma colecção de versos libidinosos!
Jacob:
- Um pessário forrado de vison!
Julius:
- O calendário do ano passado!
Blanche:
- Um abastecimento de seis meses de rebuçados de marroio-branco!
Mas Toby acabou com as especulações, irrompendo de novo no cenário ruidoso. Trazia uma gaiola dourada. Dentro dela via-se um mainá um pouco magrizelas que guinchava, irritado com aquele tratamento. Toby estendeu a gaiola a Cynthia.
- Para ti, querida - disse ele. - com eterna dedicação.
- Oh - fez ela, um pouco sobressaltada -, oh Toby, que simpático. Ele, ela, o bicho é encantador. Muito obrigada, querido.
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- Agora fala - disse Toby.
- Que hei-de dizer? - perguntou Cynthia.
- Não, não, não és tu - disse Toby. - O bicho. Muito bem, toca a falar.
A ave guinchou, indignada.
- Diz lá o discurso, peço-te - insistiu Toby -, como eu to ensinei, e depressa.
- Cuóc!
- Raios te partam - disse Toby -, levámos horas a ensaiar! Fazes-me o favor de dizer qualquer coisa? Seja o que for!
- Cuóc!
- Ahh, vai-te lixar - disse Toby, desgostoso.
- Amo-te, Cyn - disse a ave nitidamente.
Toda a gente irrompeu em gritos e aplausos, apesar de se ter ouvido David Marlow declarar:
- Falta-lhe motivação.
- Oh Toby - disse Cynthia -, que ideia tão adorável!
- Amo-te, Cyn - disse a ave.
- Que força! - disse Toby orgulhosamente. - Que sentimento! Que presença! Que paixão profunda e sentida!
- Amo-te, Cyn - disse a ave. - Amo-te, Cyn. Amo-te, Cyn. Amo-te...
- Já chega! - berrou Toby. - Cala-te e come uma semente. É o meu presente de casamento para ti, querida. As aves do céu, e mesmo as das gaiolas, conhecem e respeitam e ecoam as minhas emoções. Amo-te, Cyn.
Houve mais risos, gritos e aplausos da pequena multidão. As figuras de cartão agitaram-se aprovadoramente.
- Eu também te amo, Toby - disse Cynthia. - E aqui está a minha prenda de casamento para ti.
Levantou a tampa do piano vertical e extraiu um pequeno embrulho de papel de seda branco, atado com um laço azul. Entregou-o a Toby e beijou-lhe a cabeça calva. Os convidados, na expectativa, observaram-no a rasgar freneticamente o papel.
- Que é, que é? - disse ele. - É pesado! Se calhar é um mealheiro de cinco libras!
Atirou os papéis para o chão. Nas suas mãos viu-se uma caixinha de madeira muito trabalhada, uma caixa de música. Toby olhou para Cyn por um momento, olhou de novo para baixo e ergueu lentamente a tampa. A assistência silenciosa, em transe, escutou um leve zumbido mecânico e depois a melodia metálica de algo que parecia uma musiquinha de vaudeville terrivelmente antiquada, sentimental, popular. Toby desatou a rir às gargalhadas, gritando: "Lembraste-te, lembraste-te!" e apertando Cynthia contra ele, beijando-a nos lábios,
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nas faces, nos olhos, nos cabelos, e noutros locais que ficavam ao seu alcance.
Finalmente, arquejando de esforço, afastou-a e fitou-a ternamente nos olhos.
- Que maravilha! Cyn, deve ter custado uma fortuna!
- Que é?
- Que é?
- Que é que está a tocar?
- Que diabo é isso?
- Não conheço.
- Qual é a letra?
Toby ergueu ambas as mãos e voltou as palmas para a assistência, fazendo-a calar.
- Damas e cavalheiros, estais a escutar uma encantadora obra de arte musical que eu tive a honra de cantar diante das cabeças coroadas da Europa e as cabeças descobertas da América, nos palcos de vaudeville, há mais anos do que me recordo. Chama-se Foge prá prisão, Nellie, Quaí ele não te apanha, e, quando a melodia recomeçar, terei muito gosto em oferecer-lhes uma quadra e um refrão.
Todos aguardaram alegremente; Toby colocou a caixa de música aberta sobre a mesa. Depois tomou uma postura exagerada de medo e desespero, com as costas de uma das mãos encostadas à testa e o outro braço estendido, erguendo a palma da mão, num jeito suplicante. Aguardou o momento de entrar; os outros estavam silenciosos e atentos. E principiou:
Finalmente a mãe viu a filha A fugir pela noite chuvosa; E atrás dela corria o canalha Que a pusera em polvorosa. A mãe gritou de aflição,
Bradando com feroz sanha: Nellie, foge prá prisão Que aí ele não te apanha. Nellie, foge prá prisão E lá reza uma oração. O mundo é mau e cruel Mas salva a tua virtude. Nellie, foge prá prisão; Que aiií ele nãoooo te apanha!
Toby fez uma profunda vénia após aquela tocante interpretação, que ele acompanhara com exageradas expressões e gestos elucidativos. A assistência irrompeu em aplausos entusiásticos.
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- Bravo!
- Bis!
- Mais! Mais!
- Maravilhoso!
- Grande desempenho!
- Bravíssimo!
Toby ergueu uma mão, modestamente.
- Basta, meus queridos amigos. Devemos sempre deixar as pessoas a rir, quando nos despedimos.
- Oh, eu quero casar-me mais vezes! - exclamou Cynthia. - É tão divertido!
- E havemos de o fazer, amor! - gritou Toby, de forma a ser ouvido acima do tumulto. - Um casamento judaico, um casamento católico, um casamento budista e um casamento cherokee. Enquanto houver casamentos e nós formos vivos. Todos os dias um novo casamento, uma nova cerimónia e uma nova orgia, até o vinho se acabar!
A festa recomeçou. As pessoas comiam e bebiam; faziam movimentos sem objectivo; formavam-se grupos que logo se desmanchavam, as conversas terminavam mal começavam; risos, gritos, beijos, bebidas entornadas e copos partidos.
O pastor aproximou-se da gaiola do mainá. Olhando em volta sorrateiramente, para se certificar de que não estava a ser observado, deitou uísque na tigela da água do pássaro. Depois ficou a vigiá-lo, acenando afirmativamente com a cabeça quando ele mergulhou experimentalmente o bico no líquido.
A dama coberta de pedrarias sentada ao piano atacou uma música de inspiração grega (Nunca ao Domingo...). Toby puxou imediatamente de um lenço, segurou numa ponta e estendeu a outra a David. Pai e filho executaram uma lenta e graciosa dança grega, saltitando e baixando-se. De vez em quando batiam nas coxas e gritavam "Yah!".
- Que prazer vê-los! - disse o Dr. Jacob Ostretter.
- Dois homens de barba na cara a dançar um com o outro? - inquiriu o Dr. Julius Ostretter. - Isso dá algum prazer?
- Quem te pediu opinião, atrasado mental? - disse Jacob.
- A quem estás a chamar atrasado mental? - disse Julius. - Idiota, que é pior que atrasado mental.
- Não gosto desse tom - disse Jacob.
- E eu não gosto das tuas maneiras - disse Julius.
- com o gosto que tu tens, isso é um cumprimento.
- Curandeiro! - disse Julius.
- Chicaneiro! - disse Jacob.
- Aviso-te - disse Julius - que estás a ir longe de mais!
- Tu nunca vais suficientemente longe! - disse Jacob.
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- Atreve-te a bater-me! - disse Julius.
- Atreve-te tu! - disse Jacob.
A dança grega de Toby e David tinha parado. A música tinha parado. Os convidados estavam silenciosos e observavam, fascinados, aquela confrontação. Enquanto Jacob e Julius se eriçavam, aproximando-se um do outro, espetando os ventres bojudos, os outros, incluindo as suas encantadas esposas, formavam um círculo em volta dos combatentes cada vez mais vermelhos.
- Eu dou-te uma bofetada! - gritou Julius.
E deu.
- Eu dou-te outra! - gritou Jacob.
E deu.
- Eu torço-te o nariz! - bradou Julius.
E torceu.
- Eu também! - bradou Jacob.
E torceu.
Resfolegando furiosamente, com os olhos cheios de lágrimas por causa dos apêndices torcidos, os dois irmãos aproximaram-se, com os braços flectidos, os punhos fechados em poses desajeitadas.
- Eu dou cabo de ti! - gritou Julius.
- Eu arraso-te! - berrou Jacob.
Atacaram-se simultaneamente, esmurrando-se ineficazmente nos braços. Depois, subitamente, atracaram-se, rugindo raivosamente, insultando-se, resmungando. Caíram no chão com um pesado baque, agarrados aos braços um do outro, tentando esmurrar-se. Rolaram pelo chão, erguendo poeira, e arrastando consigo uma cadeira, uma pequena mesa e diversas figuras de cartão.
Subitamente galvanizado, mas quase sem forças de tanto rir, o resto do grupo avançou para os arquejantes pugilistas e separou-os. Jacob e Julius foram arrastados, a protestar, postos de pé, acalmados, acarinhados, endireitaram-lhes os cabelos e os fatos. Depois foram levados para lados opostos da sala, ainda a olhar-se furiosamente, a agitar os punhos no ar, a gritar pragas em iídiche de fazer gelar o sangue.
- Maravilhoso! - exclamou Toby, enxugando os olhos. - Que maravilha! Querida, a farra do nosso casamento é um sucesso. Uma zaragata!
- Oh, Toby! - disse Cynthia. - Por favor, por favor, todos vós! Nada de lutas, nada de discussões nesta noite tão especial.
Toby abraçou-a.
- Tens razão, Cyn, como sempre. Nada de lutas, nada de discussões, nada de pensamentos profundos, nesta ocasião tão feliz, em que tu és a mais bela das belas!
A reunião recuperou o seu espírito festivo. O pastor parou de comer
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durante o tempo suficiente para voltar a encher de uísque a tigela já vazia do pássaro (contribuindo assim para a corrupção de um mainá). David e Barbara escolhiam um para o outro guloseimas do festim. Blanche e Mrs. Julius Ostretter fizeram um braço de ferro sobre a mesa dos cocktails. Os irmãos Ostretter, conservando-se cuidadosamente afastados, mastigavam sanduíches taciturnamente.
Mrs. Jacob Ostretter, regressando ao piano, começou a tocar uma alegre jiga irlandesa. Blanche parou de fazer braço de ferro, pôs-se de pé de um salto e, com uma taça de champanhe na mão, começou a dançar, saltitando, erguendo a saia com a mão. Os outros fizeram um círculo em volta dela, rindo, bebendo, comendo, alguns deles batendo palmas a acompanhar a música.
- Mais alto! - gritou Cynthia. - Mais alto!
- Tira! - gritou o pastor. - Tira!
- Veste! - berrou David. - Veste!
- Cuecas cor-de-rosa!-maravilhou-se Toby, vendo as cabriolas de Blanche. - Juro por Deus, cuecas cor-de-rosa! Oh, Cyn, querida Cyn, deixa-me casar-me também com aquela mulher maravilhosa. Não podeis vós partilhar-me?
- Evidentemente, doce Toby - disse ela. - Tudo aquilo que o vosso amoroso coração desejar.
- Barbara também - disse Toby. - E todas as mulheres e homens desta sala e do mundo inteiro. Gostava de casar com todos e levar todos para a cama, e penetrar todos e ser penetrado também!
- Amo-te, pecado! (1) - guinchou o mainá, obviamente embriagado. - Amo-te, pecado!
Silenciados por um momento por esta chocante afirmação, os convidados desataram a rir e a aplaudir. O pássaro recebeu migalhas da mesa, encheram-lhe a tigela de champanhe, decoraram-lhe a gaiola com grinaldas de papel.
A pianista começou a tocar algo lento e sentimental.
David passou os braços em volta da cintura alargada de Barbara, com os dedos a roçar o traseiro dela. Ela cruzou os dedos das mãos atrás do pescoço dele. Começaram a arrastar os pés ao som da música, movendo-se num pequeno círculo.
- Amas-me? - perguntou ele.
- Odeio-te - disse ela.
- Também te odeio. Pela última vez, casas-te comigo?
- Pela última vez, não.
- Por eu ser eu?
- Porque tu não és tu - disse ela.
- Eu sou o que há - disse ele. - Não há mais que isto.
- Há! - insistiu ela. - Há, pois!
- Sonhadora! - troçou ele.
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- Ensinaste-me a sê-lo - disse ela.
Pararam de dançar e afastaram-se um pouco, fitando-se corajosamente nos olhos. Lentamente, as suas mãos soltaram-se, caíram aos lados do corpo. Afastaram-se mais, ainda de olhos nos olhos. Toby, que avançava com uma fatia de presunto numa mão e uma garrafa aberta de cerveja na outra, viu o solene afastamento de ambos. Parou de repente e olhou um e outro.
- Mas que é isso, garotos? - perguntou. - Que é isso? Onde está a cor das rosas nessas faces felizes? Onde está o brilho dos brancos da Califórnia nesses sorrisos encantados? Que raio se está a passar?
David disse:
- A dama disse que não, outra vez.
- Eu bem te disse que tu és um péssimo actor - disse Toby. - Como é que lhe pediste?
- Eu disse "Barbara, queres casar-te comigo?"
- Barbara, foi assim que ele disse? - perguntou Toby, com descrença.
- Foi.
- Nada mais? - insistiu ele.
- Nada mais.
- Idiota! - disse Toby a David. - É preciso eu representar Cyrano ao teu Christian? Diz a Barbara que a amas. Vá lá, diz-lhe.
- Barbara, amo-te.
- "Barbara, amo-te"-imitou Toby. - Oh, deuses e peixinhos do mar! Não aprendeste nada comigo? Absolutamente nada? Escuta isto... Barbara, querida... Eu sei melhor que tu o que eu sou, e como estou longe do homem que tu sonhaste que havias de amar e desposar. Sei perfeitamente bem que sou chato e reservado e que me fecho dentro do meu ego. Sei que tenho pouca capacidade para a alegria. Não tenho jeito para conversar e tenho momentos sombrios em que não há vida dentro de mim. Sei que sou opinioso e muitas vezes pomposo. Mas eu...
- Ei, espere aí um pouco! - disse David. - Não pode...
- Mas, Barbara - prosseguiu Tobyxsem se deter -, há uma coisa que eu tenho, transbordante e infinita. É o meu amor por ti. Esse amor compensa todos os meus defeitos, aqueles que conheço e os que desconheço. É um amor tão imenso, tão esmagador, que tem o poder de emendar os meus defeitos, de me ensinar a paixão, de fazer de mim um homem novo e dar-te uma nova vida. Tal como o Sol brilhante, tudo envolve na sua radiação dourada, assim o meu amor por ti tornará a nossa vida em conjunto quente e brilhante. Barbara, quereis casar-vos comigo?
- Sim - disse ela imediatamente. - Quero.
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- Aí tens, meu filho imbecil - disse Toby a David -, como deve fazer-se. E agora vai dançar, cabeça de ameixa seca!
Toby afastou-se para se juntar aos outros. Barbara e David ficaram sós, olhando-se tristemente. Voltaram-se ambos para a mesa, começando a escolher comidas e a misturar bebidas.
- Não consegues dizer aquilo, pois não?-perguntou ela. - O que Toby disse?
- Não, não consigo - disse ele friamente. - Já te disse, eu não represento. Não quero fingir.
- Já experimentaste a truta fumada? - perguntou ela.
A música subiu de tom, de ritmo e de volume; o grupo dançava, soltando gargalhadas, cantando, dançando a solo, eram crescentes os abraços amorosos. Depois Toby subiu a uma cadeira e ergueu uma mão autoritária. Quando o piano e os convidados se calaram, declamou:
- "Se a música é o alimento do amor, continuai a tocar! Dai-ma em excesso, para que o apetite, sofrendo de uma indigestão, adoeça e morra. Esse trecho de novo! Terminava languidamente. Oh! Penetrou nos meus ouvidos como a doce aragem que sopra sobre um canteiro de violetas, roubando e desprendendo o seu aroma!"
Todos ficaram em transe e depois aplaudiram:
- Bravo! Bravo!
- Muito bem!
- Lindo, simplesmente lindo!
- Não há outro como Toby Marlow!
- Mais! Mais!
- Bis!
A música agitada, a dança, a comida, a bebida, tudo recomeçou. Era "A Festa do Casamento" de Breughel, sem bragas. Toby dançava sozinho agora, apanhado num sonho secreto que só ele sabia reconhecer. Cynthia e Blanche dançavam uma com a outra, num jeito formal, sorrindo vagamente, com uma alegria vagamente alcoólica. O pastor estava sentado ao lado de Mrs. Jacob Ostretter, no banco do piano, roçando os lábios manchados de vinho pelo seu ombro nu. Tinham-se entornado mais copos, derramado mais comida. Barbara e David andavam em círculos, sem objectivo, à espera... Jacob e Julius avançavam e recuavam, dois galos prudentes à espera de uma aberta para atacar.
- Uma roda! - gritou Toby subitamente. - Uma roda! Pianista, quero uma roda! O rei Toby manda que toque uma roda!
Obedientemente, a pianista lançou-se numa versão animada, ainda que desafinada, de O Peru na Palha. Toda a companhia, aos bordos, às guinadas, e aos saltos, deu as mãos e começou a fazer cabriolas, mais ou menos num círculo, em volta do sofá e da mesa.
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Todos gritavam "Lá-lá-laralalá-lá-lá", "lá-lá-laralalá-lá-lá" e outras coisas semelhantes, para manter o ritmo da música. Esta tornou-se mais rápida e mais alta, envolvendo todos numa alegria demasiado frenética para poder ser contida, até que...
...até que Toby Marlow parou de dançar, baixou as mãos, e soltou um tal grito de dor e angústia que todos estremeceram e pararam de dançar. A música deteve-se a meio de uma nota. Todos se voltaram para olhar para Toby, que, agarrado ao braço de uma cadeira, se deixou cair lenta e tragicamente no chão. Ficaram todos demasiado chocados, demasiado aturdidos para correrem em seu auxílio. Era óbvio que ele sentia dores que dificilmente conseguia suportar, mas não podia - não podia - deixar passar a oportunidade de fazer um gesto teatral. O seu braço ergueu-se lentamente. Um dedo trémulo apontou para um sobressaltado Dr. Jacob Ostretter.
- Maldito seja, Jake! - arquejou Toby. - Prometeu-me seis meses de viagem e agora está a correr comigo da estrada e eu não quero sair. Espere até a Ordem saber disto!
Terceiro Acto
CENA UM
O quarto de dormir dos Marlow tinha sofrido modificações e adquirido o aspecto de um quarto de doente. Tinham sido colocados mais almofadões sobre a cama por fazer, e os cobertores revolvidos e os lençóis amarrotados estavam cobertos de livros, revistas, uma caixa de rebuçados aberta, um saco de pipocas rasgado, etc. Ao lado da cama estava uma garrafa alta de oxigénio, com o tubo e a máscara. Ao lado da garrafa de oxigénio, no chão, via-se uma garrafa de uísque meio vazia.
Os estores tinham sido corridos; o lustre e o candeeiro estavam acesos. Havia diversos ramos de flores no quarto, em jarras, em várias fases de decadência. Sobre uma pequena mesa, via-se uma série de artigos médicos: frascos de comprimidos, toalhas, bacias, um recipiente plástico com gelo, um saco de água quente, etc. E também uma garrafa de cristal com uísque e uma caixa de charutos.
Toby Marlow estava sentado numa cadeira de rodas perto da mesa de pé de galo. Estava tapado até à cintura com uma manta escocesa. Encontrava-se mais pálido, chupado, e a sua fala tornara-se um pouco arrastada. Mas não perdera a sua rebeldia e falava tão alto cqmo sempre. Todavia, agora tinha tendência para lançar perdigotos ao falar e limpava frequentemente os lábios com lenços de papel arrancados de uma caixa que tinha no colo. Deixava cair os lenços usados no chão: estes rodeavam-no como um nevão. Havia uma bengala pesada pendurada no braço da cadeira de rodas.
David Marlow estava sentado no sofá de cabedal do outro lado da mesa. Usava o seu habitual fato completo, conservador, com colete, e os óculos de aros de osso. Estava a consultar o seu manuscrito, folheando-o, à procura da fala que pretendia. Também ele parecia mais magro, mais tenso, mais pálido.
- Toby, tem a certeza de que pode fazer isto? - perguntou.
- Sim, posso fazer isso, meu rapaz - ripostou Toby. - Não tenho nada que uma pequena morte não possa curar. Então qual é o problema do teu encenador?
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- Não sei - disse David. - Francamente, não sei. Está sempre a dizer "Tu vais bem, David; vais muito bem." Mas olho para ele e não me parece que ele ache que eu vou bem. Acho que ele pensa que eu sou uma catástrofe a solo. Mas não consegue dizê-lo. Não consegue dizer-me o que estou a fazer mal.
- Que diabo! - disse Toby, enfastiado. - Sei que sofro de diarreia verbal, mas pensas que as águas paradas são profundas? Uma treta! As águas paradas são estúpidas. O teu encenador não consegue dizer-te o que quer porque não sabe o que quer. Talvez o sinta, mas l não consegue pô-lo em palavras. Para que serve isso? As palavras são tudo. São belas. São sublimes. Onde raio estaríamos sem as belas palavras? As ideias e as emoções não expressas duram tanto como um peido num barril de pregos. Em que trecho estás a trabalhar?
- No grande monólogo - disse-lhe David. - "Ser ou não ser." Toby, aí é que está a questão.
- Eu sei, eu sei - disse o pai, acenando afirmativamente com a cabeça. - Num discurso desse comprimento, a primeira coisa a fazer é respirar devidamente. Se não tiveres regulado a respiração, e os tempos e as pausas, não tens nada. Quando aprenderes a dizê-lo sem arquejar como se tivesses corrido três quilómetros em quatro minutos, poderás pensar naquilo de que estás a falar. Já regulaste a respiração?
- Sim, já tenho a respiração e os tempos e as pausas. Mas não consigo apanhá-lo. Não sei o que se passa. Não há lógica naquele discurso.
- Não há lógica? - gritou Toby. - Semente do diabo! Escuta bem, Will já era poeta antes de ser dramaturgo. Quando é que se pode esperar lógica de um poeta? Já é uma sorte que ele saiba comer à mesa. Eu sei dessas coisas. Eu também sou um pouco poeta.
- Eu sei - disse David resignadamente. - Já ouvi os seus versos de pé quebrado.
- Chamava-te filho da puta se não respeitasse tanto a tua mãe. Arranja-me um grande uísque com gelo.
- Toby, está a beber de mais.
- Bolas.
- Quantos copos bebe por dia?
- Quem diabo os conta?
- Então, Toby... quantos?
- Dez. Doze. Uma coisa parecida.
- Não pode reduzi-los para metade? - perguntou David seriamente.
- Está bem - disse Toby. - Reduzo.
- Reduz? - exclamou David, surpreendido. - Cinco ou seis copos por dia?
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- Claro - cacarejou Toby. - Todos duplos.
- O Dr. Jake disse...
- O Dr. Jake que se lixe! - disse Toby furiosamente. - O raio do pâncreas é meu! Pâncreas. Jesus Cristo, que palavra para usar num rei. É tão humilhante como morrer com um palito entalado na garganta. Vai lá buscar a bebida, se não tenho que rastejar pelo chão e morrer aos teus pés como Leslie Howard na Floresta Petrificada.
Suspirando, David pôs o manuscrito de parte e foi buscar a garrafa de uísque que estava junto do oxigénio. Serviu um pouco num copo medicinal, juntou-lhe gelo e água. Mexeu a bebida com um termómetro, perguntando a si mesmo de que tipo seria, embora isso não o preocupasse. Levou o uísque a Toby.
- Vá, mate-se - disse. - Não me interessa que viva ou morra.
Toby bebeu um longo gole. Depois, a tremer, com as mãos enclavinhadas, começou a representar um velho tolo.
- Oh, Deus te abençoe, meu rapaz, Deus te abençoe! Aqueces as minhas entranhas. Oh, és tão bondoso para o teu fraco e velho pai.
- Não é o pai mais fácil do mundo para se aturar.
- E então? - disse Toby, endireitando-se. - Quem te deu garantias? A Declaração de Independência diz que podemos perseguir a felicidade; não diz que conseguimos apanhá-la.
- Acho que vou tomar uma bebida - disse David.
- É a coisa mais inteligente que já fizeste durante todo o dia.
David voltou à mesa dos remédios e começou a servir-se de uísque com água.
- Tenho de pedir-lhe desculpa - murmurou David.
- O quê? - disse Toby. - Fala alto, pelo amor de Deus.
- Tenho de pedir-lhe desculpa - berrou David.
- Deus também - disse Toby. - A tua por que é?
- Por ter dito que não me importava de que vivesse ou morresse. Importo-me.
Toby permaneceu em silêncio. Ficou a ver David atravessar de novo o quarto até ao sofá. David sentou-se na beira do assento e curvou-se para a frente, segurando o copo entre os joelhos. O manuscrito estava no chão. David tocou-lhe com a ponta do pé.
- Não consigo senti-lo - disse, pesaroso. - O monólogo.
- Eu sei. E o teu encenador também sabe.
- Bom... qual é a minha motivação?
Toby suspirou fatigadamente, meteu um gole de uísque na boca, inclinou a cabeça para trás, gargarejou e depois engoliu-o.
- Não sei qual é a tua motivação, cabeçudo. Nem para o monólogo nem para quereres representar.
- Ser actor - disse David mecanicamente. - Eu não represento.
- Disso não tenho dúvidas.
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Houve uns momentos de silêncio, enquanto ambos beberricavam os seus uísques. Não olharam um para o outro. De vez em quando, os olhos de Toby fechavam-se, mas apenas por um instante. Parecia obrigá-los a conservarem-se abertos, pela força da sua vontade.
- Escute, Toby - disse David, hesitante. - Tenho uma ideia maravilhosa para fazer o monólogo do "Ser ou não ser".
- Oh! Qual é?
- Quero fazer o meu discurso de costas para o público.
- De costas para o público?
- Sim. É obviamente um discurso muito intelectual, introspectivo e contemplativo, e o actor não deverá fazer coisa alguma, com expressões ou gestos, que distraia o público das palavras.
- An-an. - Toby assentiu com a cabeça. - E que pensa o teu encenador dessa ideia maravilhosa?
- bom, an, ainda não lhe falei disso.
- Antes de o fazeres, eu tenho uma ideia ainda melhor. Para que hás-de aparecer no palco? Por que não hás-de gravar o discurso, e o encenador só teria que carregar num botão? Tu podias estar a beber uma cerveja e a comer um hamburger gigante no McDonalds.
- Não precisa de gozar comigo.
- Já sabia que eras um imbecil, mas não pensava que fosses um cobarde. Voltar as costas ao público para dizer o monólogo? Valha-nos Deus, pirralho, isso é roubá-lo. Estás a borrar-te de medo, não estás?
- Não sei - murmurou David. - É esse o problema. Não sei o que hei-de fazer. O que hei-de sentir.
- O que tu tens que sentir? - guinchou Toby. - Triplamente egoísta!
- O Toby é o maior egoísta de todos! - gritou David.
- Uma gaita é que sou! Dou-me tanto quanto posso, e nunca paro de dar-me, e mando lixar a minha motivação e as carícias ao meu ego; isso não é nada para mim. - Parou subitamente, bebeu um longo gole e chupou alguns fragmentos de gelo. Depois respirou fundo. - Pronto. Vamos lá acalmar. Deixa-me tentar uma vez mais, só mais uma vez. David, tens que admitir que nós somos todos uns merdas. Noventa e nove por cento das pessoas deste mundo são uma desgraça. Somos todos falhados, de uma forma ou de outra. Mentimos e aldrabamos, roubamos e traímos, e fazemos um milhão de outras coisas horríveis. Meu Deus, não passamos de pequenas coisas rastejantes! Nem sequer somos animais! Os animais não fazem as coisas que nós fazemos. Que animais torturam e matam só para se divertir? Que coisa realmente horrível! Mas, de vez em quando, surge alguém como Willie Shakespeare e mostra-nos o que nós poderíamos ser. E não só poetas e dramaturgos, mas também escritores e artistas, e escultores
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e músicos e sábios e santos, e talvez alguns desgraçados comediantes, no meio disso tudo. Não nos mostram aquilo que somos, mas aquilo que poderíamos ser. Em nome de Deus, o que pensas tu que é a arte? Ela mostra-nos o que nós poderíamos ser: príncipes e reis, princesas e rainhas, nobres e cortesãos, gente bela cheia de dignidade e coragem. Heróis! Jesus Cristo, nós podemos ser heróis! Sabes o que isso significa? Compreendes a esperança que isso representa? Que todos nós podemos, cada um de nós, aspirar a algo que sabemos que não somos. Por isso Will escreveu aquele monólogo, por isso abriu a mente de Hamlet e nos mostrou os seus mais profundos pensamentos, para ligar Hamlet com a humanidade, fazer com que toda a gente que leia ou oiça essas palavras sinta uma afinidade com o príncipe da Dinamarca, sentindo-se, portanto, maior e melhor e mais importante, e esquecendo, por uns minutos, que não passa de uma triste merda que engana a mulher e trai o seu melhor amigo, ou vende os seus sonhos, e que vai morrer sem saber mais que quando nasceu, sem nunca saber o que é a vida. Por isso, quando disseres aquele monólogo, tens que te abrir. Tens que te rasgar, que abrir o peito ao meio. Não és apenas o príncipe da Dinamarca, és Toda a Gente. E tens que dar a todo o público a sensação da possibilidade de dignidade e significado da vida.
- Isso existe? - perguntou David, pensativamente.
- O quê?
- A vida tem dignidade e significado?
- Criança! - disse Toby com comiseração. - Já comeste a tua papinha hoje? É evidente que a vida não tem dignidade nem significado, meu espantoso idiota. Mas temos que fingir que tem. De que outra forma podemos aguentá-la?
- Eu quero ser actor. Mas não quero fingir.
- Eu passei toda a minha vida a fingir - disse Toby -, mas só agora dei por isso. Nada como uma sentença de morte para transformar um homem num filósofo. E, enquanto estou a dar ao teu pretenso cérebro a massagem de que necessita, há outra coisa que quero esclarecer-te. Mas primeiro prepara-me uma bebida. E não exageres no gelo: ainda não sou um cadáver, por enquanto.
Obedientemente, David levou o copo de Toby para a mesa dos remédios. Houve um momento de pânico quando ambos se aperceberam de que a garrafa de uísque estava vazia. Mas foi possível evitar o terror quando foi descoberta uma nova garrafa na gaveta da mesa. David serviu generosamente ambas as bebidas.
- Água? - perguntou.
- Não muita. Mijar não é um dos meus passatempos favoritos, hoje em dia.
Recostaram-se, descontraídos e sorridentes, erguendo os copos por um breve momento, antes de beberem o primeiro gole.
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- Já escolhi o epitáfio que quero na minha pedra tumular - anunciou Toby.
- O que é?
- "Aqui jaz Toby Marlow, finalmente parado."
- Não está mau - disse David, rindo. - Mas que tal esta: "Estou só a fingir?"
- Bravo! - disse Toby. - De vez em quando, tenho a impressão de que há esperança para ti.
- O que queria dizer-me? - disse David.
- Acerca de quê?
- Não sei. Disse que havia uma coisa que queria esclarecer.
- Eu disse isso? Que raio seria...?
- Acerca de Barbara?
- Não me ajudes, raios te partam - rosnou Toby. - Não, não se tratava de Barbara. Ora... já sei. Vês? A famosa memória do Marlow continua a funcionar; está um pouco mais lenta, só isso. É acerca daquilo de que falámos. Quando...
- Falámos de tanta coisa - disse David.
- Importas-te de parar de mexer essa boca flatulenta e de me deixar acabar? Eu disse, naquela noite em que fizemos um longo passeio pelo parque, disse que todos nós, não só os comediantes, mas toda a gente, desempenha muitos, muitos papéis na sua vida, adaptando o papel ao do outro comediante, quer seja no palco, quer não. E que representar bem era uma questão de estilo, que consiste, essencialmente, em ter um bom saco de truques. Depois, no teatro, quando estávamos a ensaiar o "Oh! Se esta carne demasiado demasiado sólida...", tu disseste que eu estava enganado, porque os bons comediantes são...
- Os grandes actores - interrompeu David.
- Está bem, os grandes actores. Tu disseste, efectivamente, que havia, que havia... Que diabo se passa comigo? Não me consigo lembrar do que queria dizer.
- Se calhar é do uísque - disse David com naturalidade.
- Nunca me afectou desta forma - disse Toby, perturbado. - Representei Chuva durante um ano, perdido de bêbado, e nunca falhei uma deixa. Onde ia eu?
David queria acabar com aquilo, vendo o cansaço do pai, mas não conseguia descobrir uma forma graciosa ou fácil de se retirar. Bebeu um pouco e prosseguiu...
- Eu disse, quando estávamos a ensaiar aquela fala, que o Toby estava enganado ao pensar que a vida é apenas fingimento e que os grandes desempenhos não passam de truques. Disse-lhe que estava enganado porque os grandes actores continuam a ser eles próprios, independentemente do papel que desempenham. com Olivier,
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Robards, Richardson, Scott, Gielgud, ou qualquer outra estrela, nunca nos esquecemos de quem eles são, seja qual for o papel que desempenham. Por outras palavras, o ego e a essência deles vêem-se à transparência das falas e da acção da peça. E a prova disso é que o Hamlet de Olivier seria diferente do de Richardson, assim como o Othello de Garrick seria diferente do de Irving. Por isso, existe algo mais que truques; é a verdade do homem que exige o nosso respeito. Ele sabe quem é, e projecta-o no palco e, ao fazê-lo, impressiona-nos e convence-nos da sua verdade. Foi isso que eu disse.
- Pois foi, pois foi - disse Toby, acenando com a cabeça, obviamente fatigado agora. - E eu estive a pensar no assunto, a sério. E...
- Toby, talvez seja melhor ficarmos por aqui. Eu tenho que ir para o teatro.
- Não, não vás já. Tenho que te dizer isto enquanto me lembro. Não serve de nada na minha mente. As palavras são tudo. As belas palavras, O som delas! O sabor delas! Porque tu estás enganado, sabes? Estive a pensar no assunto e já sei por que estás enganado. Porque esses grandes comediantes não estão a revelar-nos aquilo a que tu chamas o seu ego e a sua essência. Não. Cada um de nós tem uma imagem de si próprio, quem é e o que é. Eu, por exemplo, penso que sou o maior comediante que já existiu. Outro homem poderá imaginar-se um grande amante, ou um grande estadista, ou um grande general, e que apenas o azar, a má sorte, ou as circunstâncias o impedem de revelar o seu génio ao mundo. Todos nós temos essa auto-imagem, e tentamos desempenhar o papel o melhor que sabemos. Estás a perceber? Fingimos que somos a pessoa que gostaríamos de ser. Todos nós. Toda a gente. Temos uma ilusão de quem somos e desempenhamos esse papel. Por vezes até nos vestimos a condizer. Quanto mais a realidade se aproxima do nosso sonho, mais felizes somos. Mas ninguém o consegue completamente. Continua a ser fingimento. Continua a ser representação.
- Não percebo - disse David. - Que é que isso tem a ver com os grandes actores? com as estrelas?
- Tudo. Tem tudo a ver com eles. Porque aquilo a que tu chamas o ego e a essência deles, a verdade que revelam nos seus papéis, é o papel que eles estão a desempenhar para si próprios! Percebes agora? Aquilo que eles projectam no palco não é o ego e a essência deles; é a visão que têm de si próprios, um papel que têm estado a desempenhar durante toda a sua vida, tão bem que convencem toda a gente. Mas continua a ser uma ilusão. A ilusão deles.
- Espere um momento - disse David lentamente. - Eles estarão convencidos de que o papel que desempenham é realmente o que são?
- Não - disse Toby. - bom... talvez. Os estúpidos poderão
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convencer-se de que são genuínos, de que não estão a representar. Mas os inteligentes, como eu, acordam às três da madrugada e sabem quem são. Sabem então que não são os melhores comediantes do mundo, e que o rosto que apresentam ao público é tão falso como se estivessem a usar maquilhagem e uma barba postiça.
- Está a dizer-me que todos os grandes actores estão a representar um papel além do papel que desempenham no palco?
- Certo! - gritou Toby, acenando afirmativamente como um maníaco. - Agora percebeste! Eles são tão bons a fingir, a representar, que criaram um papel para si próprios, aquilo a que nós chamamos o seu ego e a sua essência. E não apenas os grandes comediantes. Toda a gente. Toda a gente faz isso. Mas é tudo ilusão, tudo sonho. E os que são inteligentes sabem-no.
- O Toby sabe? A seu respeito?
- Claro - disse Toby jovialmente. - Eu sou inteligente.
- Muito bem - disse David -, se não é o maior actor, ou comediante do mundo, quem é?
- Quem sou eu? Quem sou eu? Eu já te digo quem sou eu.
- É o que eu quero ouvir - disse David. - Diga-mo.
Toby principiou o seu discurso de forma hesitante, quase tímida. Mas a sua voz foi ganhando força e decisão à medida que ele prosseguia e os maravilhosos tons de órgão da sua voz ribombavam. Finalmente, começou a falar fervorosamente, como se sacudisse de cima de si um peso que transportara durante tempo de mais e de que se libertava com prazer, sabendo que ficaria livre. Os seus actos físicos reforçaram as suas palavras. Principiou o discurso sentado na cadeira de rodas. A certa altura pôs-se de pé, deixando cair a manta no chão. Apoiou-se na bengala para caminhar pelo quarto, sempre com o rosto voltado para David, nunca tirando os olhos dele. Quando chegou à peroração, atirou fora a bengala e terminou com os braços abertos, triunfalmente de pé, os pés bem plantados no chão, o peito projectado para fora, a cabeça erguida. Cheio de brilhantismo.
- Eu - principiou -, eu sou... um bufão encantador. Mas há em mim... uma autoconfiança que convence. Sim. As pessoas podem começar por rir-se de mim, mas acabam por ficar impressionadas. Eu convenço. Sim, eu sou um "personagem" e orgulho-me disso. E quem não gostar, que se lixe! Constantemente a fumar, constantemente a beber, constantemente a namoriscar, consigo imediatamente exemplificar e caricaturar o "velho libertino". Como se os houvesse doutro tipo!
"Todas as conversas, todos os gestos, todos os movimentos corporais, todas as expressões, todas as acções e reacções não só são calculados como ensaiados. Eu sou um comediante nato, os meus instintos foram aguçados por mais de quarenta anos de experiência de palco.
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Tudo, desde Shakespeare ao teatro burlesco e vice-versa. Tenho pouco conhecimento ou interesse em ideias abstractas, excepto na medida em que afectam o teatro. Mas possuo as aptidões viscerais e o entendimento das fraquezas humanas de um sobrevivente nato.
"Sou mais astuto que inteligente. Mas existe em mim uma corrente de mesquinhez. Aproximo-me perigosamente de me tornar grotesco. Sou dado a fúrias súbitas, que terminam tão depressa quanto principiam. Sou umposeur. Já desempenhei tantos papéis que nunca me decidi completamente se prefiro fazer de herói ou de vilão.
"Insulto jovialmente a família e os amigos. Luto contra conhecidos e estranhos, intimidando, gritando, berrando, abrindo caminho à força pela vida, atacando antes de ser atacado. Mas, se for atingido, pago os golpes em triplicado. Gosto de ser irreverente. Talvez ordinário. Por vezes obsceno.
"Sou maior que a vida, mas há dentro de mim a insolência de um rapazito. Talvez já tenhas detectado algo incerto e temeroso por baixo da minha bravata. Eu sei que tens dificuldades em gostar de mim... posso tornar-me cansativo, presumo eu... mas posso ser tão inimitável e encantador, quando quero sê-lo, que todos se tornam meus escravos. Será que reconhecem algo em mim, talvez uma qualidade heróica, que não conseguem encontrar neles?
"Finalmente, sou um cobarde físico, cheio de um pavor da morte que ninguém conhece excepto eu. E vou morrer nobremente sem o revelar, tal é o medo que tenho de ser desprezado, ou, pior ainda, ignorado. Sei que não sou um talento teatral gigantesco. Mas, por certo, depois da minha morte, haverá uma pessoa algures no mundo que dirá, um dia, Ele portou-se muito bem com aquilo que tinha.
À medida que este discurso progredia, David tinha ficado impressionado e depois chocado com a aparente honestidade de Toby. Para o fim, pôs-se de pé numa homenagem inconsciente, rendendo-se completamente à arte e à intensidade de Toby.
Toby concluiu com uma atitude um pouco exagerada, deixando cair os braços ao lado do corpo, inclinando a cabeça para a frente e deixando descair o corpo com resignação e derrota. Depois, no meio do silêncio insuportável, David deixou escapar um soluço sufocado no fundo da sua garganta. Toby permaneceu na sua atitude "derrotada" até a porta bater atrás do seu filho.
Depois ergueu lentamente a cabeça, olhando em volta cautelosamente. Espreguiçou-se, sorrindo misteriosamente. Dirigiu-se à mesa dos remédios, preparou uma bebida forte. Deitou dois comprimidos de um frasco sobre a palma da mão e engoliu-os com a ajuda do uísque. Em seguida, regressou à sua cadeira de rodas, puxou a manta e ajeitou-a. Estava serenamente sentado a beberricar quando Blanche entrou sem bater.
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- Ah, Ma Barker! - disse Toby. - Mesmo a tempo. Acende-me um charuto.
- Sabe o que é que o médico... - principiou ela.
- Eu sei o que o raio do médico disse, Madame LaFarge. Seria capaz de negar o último desejo a um moribundo?
- Está a parecer-me que tem desses "últimos pedidos" a todas as horas do dia.
- Pára com a conversa e toma uma bebida - disse ele. - E acende um charuto para nós.
Blanche preparou uma bebida com água para si própria. Depois acendeu o charuto, tirando-o da caixa sobre a mesa. Quando ficou, devidamente aceso, estendeu-o a Toby.
- E agora? - perguntou ela. - Não quer, com certeza, um petisco galês ou cebolas empickles, como último desejo, pois não? Se calhar, está tão grávido como Barbara.
- Vai para o inferno - disse ele afavelmente. - Minha filha, dizes-me uma coisa com toda a sinceridade?
- Alguma vez lhe menti? - perguntou ela.
- Não, Deus te abençoe, nunca mentiste. Diz-me uma coisa, quem sou eu?
Ela fitou-o, desorientada.
- É Toby Marlow - disse.
- Toby Marlow? - exclamou ele. - Por Deus, vou fingir que sou esse! É um magnífico papel!
Ela continuou a olhar para ele e depois encolheu os ombros, mas finalmente sorriu perante a sua óbvia boa disposição. Ergueram ambos os copos, num brinde sem palavras. Foram passando o charuto um ao outro.
CENA DOIS
A sala de estar dos Marlow também tomara a aparência de um quarto de doente. Havia remédios e frascos de comprimidos em cima da mesa de cocktails. Perto do sofá via-se uma pequena garrafa de oxigénio, com a respectiva máscara. A cadeira de rodas de Toby, com a bengala enganchada num dos braços, encontrava-se perto. Uma viola já velha, com uma corda partida e enrolada, estava encostada ao carrinho das bebidas.
Toby Marlow encontrava-se, aparentemente, adormecido no sofá. Pelo menos tinha-se estendido, coberto com uma colcha. No entanto, durante a conversa seguinte, os seus olhos abriram-se, de vez em
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quando estremeceu, fez esgares, executou pequenos gestos com as mãos por cima da colcha. Por outras palavras, o velho patife estava a fingir que dormia e a escutar a conversa das duas mulheres que se encontravam na sala.
Cynthia estava na sua cadeira de braços, fazendo pacientemente tricot à luz do candeeiro de haste móvel. Barbara Evings, quase toda na sombra, estava sentada no chão, com os joelhos flectidos e afastados para acomodar o seu ventre dilatado. De vez em quando, voltava a cabeça de lado para a pousar sobre um joelho, parecendo mais do que nunca um sonhador retrato de Burne-Jones.
Era o princípio da noite. A luz que provinha das janelas era suave, violeta, simultaneamente melancólica e repousante. Era a hora para conversas tranquilas e doces recordações. As vozes eram baixas; o ritmo da conversa tinha abrandado, era quase contemplativo...
- Oh... - fez Cynthia, desgostosa. - Acho que perdi uma laçada.
- É um caso grave? - perguntou Barbara Evings.
- Oh, não. É só uma carreira. Sou péssima a contar. Foste consultar o Dr. Jake hoje, querida?
- Sim, fui.
- Que é que ele disse?
- Que estou muito magra. Tenho que tomar vitaminas e beber gemadas e fazer refeições regulares.
- Muito bem - disse Cynthia, aprovando com um aceno de cabeça. - Toby tem uma excelente receita para fazer gemadas. Levam rum, brande e uísque. Ficam deliciosas.
- Não sei - disse Barbara, hesitante. - Penso que o Dr. Jake se estava a referir a gemadas simples, sem álcool.
- A sério, querida? Não sei se se podem fazer sem uísque. Hei-de perguntar a Blanche. Ela sabe. Que mais disse ele?
- Oh... pouco mais. Estou um pouco em baixo, mas de uma maneira geral estou em boa forma. E tenho uma bacia inesperadamente larga. Não sabia disso.
Cynthia ergueu o olhar, preocupada.
- Isso não te incomoda, pois não?
- É claro que não, Cynthia. Por que havia de incomodar-me?
- Bom, em tempos conheci uma mulher que tinha três rins, e aquilo incomodava-a; não sei porquê. Eu achava que era uma marca de distinção.
- Amanhã vou ao obstetra. Jake diz que ele é muito jovem e rico.
- Ainda bem, querida - disse Cynthia, reconfortada. - Não gostava que fosses a um pobre obstetra. Viste David hoje?
- Cynthia, Toby está realmente a dormir?
- É claro que está, querida; não vês? Tem bolhinhas nos lábios. Isso quer dizer que está a dormir.
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- Provavelmente está a fingir.
- Pode muito bem ser. Mas isso não importa, pois não? bom, Viste-o?
- O quê?
- Se viste David hoje.
- Oh, não. Tenho dormido muito ultimamente e ele tinha ido ensaiar quando me levantei. Quando chegou a casa para almoçar, estava eu no médico. E agora estou aqui e ele saiu outra vez. Mas deixou-me um bilhete.
Cynthia largou o seu trabalho e ergueu o olhar, interessada, olhando para Barbara por cima dos óculos.
- Um bilhete? Oh, fico tão feliz, minha querida. Que dizia?
Barbara tirou do decote um pedaço de papel dobrado, desdobrou-o e estendeu o pescoço para o ler à luz fraca do candeeiro de Cynthia.
- Diz: "Tenho que sair. Ensaio até tarde. Espera por mim se puderes. Casa comigo. David."
- Oh, que amoroso! Um bilhete tão querido! Vais fazê-lo?
- Esperar por ele? - disse Barbara. - Talvez.
- Não, querida. Casar com ele.
- Não - disse Barbara com determinação. - Já me decidi. Não vou.
- Mas tu ama-lo!
- Não, não amo!
O movimento contínuo das mãos de Cynthia parou. Soltou os dedos do trabalho. Inclinou-se para a frente, para acariciar os cabelos da jovem.
- Oh, minha querida, posso não ser uma mulher muito inteligente, mas sinto as coisas, compreendes? E sinto que tu amas David.
Subitamente, Barbara começou a chorar audivelmente. Inclinou-se para a frente, enterrou o rosto nas mãos, e soluçou, soluçou, soluçou. Cynthia fez um gesto súbito, impulsivo, de simpatia, na direcção dela, mas depois recuou e recomeçou a trabalhar. Ao fim de um momento, o choro de Barbara acalmou; ela ergueu o rosto e fungou algumas vezes. Cynthia estendeu-lhe um lenço de papel da caixa de Toby que estava em cima da mesa de cocktails.
- Assoa-te - disse Cynthia.
Obedientemente, Barbara assoou-se algumas vezes e depois limpou os olhos molhados com a parte de baixo da mão.
- Oh Cynthia, por que é que as coisas não podem ser... ser agradáveis?
- Eu sei perfeitamente o que queres dizer, querida. - Cynthia acenou afirmativamente com a cabeça, sempre a tricotar. - Por vezes é muito difícil compreender por que razão o mundo não se dedica
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a fazer-nos felizes. Mas não é assim que as coisas funcionam. E temos que o compreender e continuar a viver.
- bom, mesmo supondo que eu... amasse David... que diferença faria?
- Que diferença? - exclamou Cynthia, tão zangada quanto era capaz de ficar. - Santo Deus! Faria toda a diferença do mundo!
- Mas David não me ama - lamentou-se Barbara.
- Que diferença faz isso?
- Que diferença? - exclamou Barbara. - Toda a diferença do mundo! Por que havia de o amar e ele não me amar a mim? Poderia casar-me com ele se ele me amasse como Toby a ama.
- Oh, minha filha - disse Cynthia, com um doce sorriso. - Toby não me ama.
- O quê? - sussurrou Barbara, horrorizada. - Cynthia, que está a dizer? Toby não a ama? Que absurdo. Ele estaria perdido sem a Cynthia. Pode não a amar tanto como a Cynthia o ama, mas não deixa de a amar.
- Oh, não - disse Cynthia serenamente. - Toby sente um grande afecto por mim. Eu sei disso, mas não me ama. Ama simplesmente a ideia de eu o adorar.
- E contentou-se com isso?
(Era um bom dia para surpresas na mansão dos Marlow).
- Contentei-me com isso - concordou Cynthia.
- Toda a sua vida?
- Toda a minha vida. Tem sido a minha vida, o meu amor por Toby. Foi tudo o que eu sempre pedi, que ele me deixasse ama-lo.
- Bom, isso não me basta - disse Barbara decididamente.
- Mmm - fez Cynthia, observando o seu trabalho e contando as laçadas. - A decisão é tua, querida.
Fez-se silêncio por um momento, enquanto Barbara ponderava no que acabara de ouvir. Depois...
- Acho que vou beber um copo de vinho - disse. - Quer alguma coisa?
- Agradecia imenso. Um pequeno uísque para mim, querida.
Barbara levantou-se do chão com alguma dificuldade. Primeiro rolou sobre uma anca, depois flectiu as pernas, em seguida apoiou-se no sofá e foi endireitando as pernas lentamente, içando-se até ficar de pé. Cynthia observou atentamente aqueles arquejantes esforços mas nada fez para a ajudar. Barbara, finalmente de pé, inclinou-se ligeiramente para trás, avançou pesadamente para o carrinho e começou a servir as bebidas.
Nessa altura, um observador invisível teria ficado com a certeza absoluta de que Toby estava acordado e a escutar a conversa. Porque, quando Barbara estava a encher os copos, a sua mão ergueu-se da colcha
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e avançou implorativamente na sua direcção. Mas ela não deu por ele; levou o seu copo e o de Cynthia para junto do sofá. O braço e a mão de Toby caíram tristemente, desesperançadamente.
- Meu Deus - disse Cynthia, depois do primeiro gole. - Isto sabe bem. Tenho a certeza de que me vai ajudar a contar as laçadas. Toby ensinou-me a apreciar as boas bebidas. Ensinou-me tantas coisas.
- Que género de coisas? - perguntou Barbara, deixando-se descair de costas sobre o sofá.
- Oh... a jogar bilhar e a jogar ao chemin de fer e a desmaiar, a fingir desmaiar, e cair no chão sem me magoar, e a usar maquilhagem, e o que fazer quando alguém nos insulta.
- Que é que se faz quando alguém nos insulta? - perguntou Barbara, fascinada.
- Uma cuspidela num olho - disse Cynthia inocentemente.
- Oh, bom... - Barbara riu-se. - Isso é mesmo de Toby. Mas David não é um homem como Toby.
- Pode vir a ser, querida... um dia.
- Oh... talvez. Mas duvido. Toby é tão aberto, tão extrovertido. Diz exactamente o que pensa. Não tem medo de se expor.
Cynthia largou o trabalho..Inclinou a cabeça para trás, rindo às gargalhadas. Teve alguma dificuldade em parar. Até se via o peito de Toby a subir e a descer por baixo da colcha.
- Expor-se? - disse Cynthia, arquejante. - Expor-se? bom, ele chegou a fazê-lo em ocasiões muito raras. Mas, na realidade, penso que queres dizer que Toby gosta de revelar os seus sentimentos.
- Oh - fez Barbara. - Evidentemente. Toby não tem medo de se revelar.
- Ele gosta disso - disse Cynthia. - Aquele patife!
- Mas David não é assim. É tão reservado, tão introvertido. É tão egoísta.
- Pensas que Toby não o é?
- Mas de uma forma diferente - argumentou Barbara. - Toby representa o egoísmo. É um papel que ele está a desempenhar. Mas com David o egoísmo é real. "Qual é a minha motivação?" É a única coisa que lhe interessa. Está tão enrolado dentro de si mesmo, tão apertado. Mesmo na cama, ele é muito bom na cama, Cynthia, ele...
- Isso é óptimo, querida.
- Mas mesmo na cama nunca se esquece de si próprio, nunca se deixa ir. Está afastado de mim, longe de mim. Cynthia, é e não é apaixonado. Está sempre a dizer a si mesmo: "Agora devo ser apaixonado. Agora devo ser terno. Agora tenho que ser brutal." Está a representar um papel, mas não dá por isso. Toby não está a representar desta forma, pois não?
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- Se está - disse Cynthia, sorrindo -, faz o seu papel terrivelmente bem.
No sofá, por baixo da colcha, com os olhos fechados, Toby Marlow acenou com a cabeça, aprovadoramente.
- Cynthia, eu também quero qualquer coisa - disse Barbara seriamente. - Não me basta sentar-me entre o público e adorar David. Quero ser amada em troca. Estou pronta para isso. Sinceramente. Posso corresponder. A sério. Mas apenas amar sem ser amada em troca não me basta. Talvez a Cynthia possa fazer isso, mas eu não.
- É melhor que nada, querida - disse Cynthia placidamente.
- Meu Deus, é? Não me parece. Eu não aguentava isso durante uma vida inteira, como a Cynthia tem aguentado.
Cynthia suspirou profundamente e pôs de parte as agulhas. Tirou os óculos e olhou longa e pensativamente para Barbara Evings.
- Aguentar? - perguntou suavemente. - Pensas que foi um castigo, que sofri durante uma vida inteira? Não quero que penses como eu, minha jovenzinha tonta, mas garanto-te que não tenho qualquer sensação de sofrimento ou castigo. Estou grata a Toby por me ter dado tanta felicidade, e sei que ele sente o mesmo em relação a mim. Ele pode não me amar, pelo menos não da forma como eu o amo, mas sei, sei que gosta muito de mim. Sim. Há ternura. Lembro-me de que, certa vez, fui com ele numa tournée. E está vamos em... onde foi?... Chicago, penso eu. Ou talvez Santa Fé. Um sítio desses. Toby tinha o papel principal em Homem e Super-homem, e estava a ser um grande sucesso. Então eu adoeci. Em Chicago ou Santa Fé. Toby deixou a companhia partir sem ele. Mandaram vir um substituto de avião de Nova Iorque. Mas Toby ficou ao meu lado e tratou de mim. O substituto era bom, muito bom, e Toby não voltou a trabalhar com a companhia. Mas nunca ouvi uma palavra de queixa da parte dele. Nunca!
- Sei que lhe deve ter custado abandonar a tournée, mas sabia que tinha que o fazer. Por afecto por mim. Apenas afecto. Mas bastou. Tratou-me até eu ficar boa. Penso que foi hepatite, ou talvez fosse hemorróidas. Santo Deus, eu tive tantas coisas. E depois, quando já estava boa para viajar, voltámos para Nova Iorque e ele ficou sem trabalho durante mais de um ano. Mas nunca me censurou, nunca lamentou o que tinha feito, nunca falou do assunto. Por isso, bem vês, minha querida, amar sem esperança de ser amada pode ter as suas compensações, compensações inesperadas.
Barbara estava deprimida. Tinha os olhos baixos, a cabeça inclinada para a frente, os ombros curvados.
- Não me parece que David alguma vez tratasse de mim - disse sombriamente. - Ele partia com a tournée e deixava-me ficar.
- David é ainda muito novo, querida.
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- Não é isso que me aflige. O que me assusta, e é por isso que não quero casar com ele, é a ideia de que ele nunca crescerá.
Cynthia voltou a pôr os óculos e começou a reunir os seus objectos num saco de papel da Charcutaria Zabar.
- Bom, tens de te decidir, Barbara. Eu faço sempre por não aconselhar as pessoas. Quando o conselho é mau e as pessoas o seguem, nunca mais nos perdoam. E quando o conselho é bom, e o seguem, também nunca nos perdoam. Oh, meu Deus! Isto teve piada, não teve?
- Sim - disse Barbara, rindo. - Teve.
- Bom, querida - disse Cynthia, terminando a sua bebida - faz o que quiseres. Tu sabes que esta casa é tua enquanto quiseres. Lembra-te só de que Toby e David são comediantes, apesar do que David pensa. E os comediantes necessitam de uma compreensão especial.
- Especial?
- Oh, sim. - Cynthia acenou afirmativamente com a cabeça. - Por exemplo, Toby e eu nunca fazíamos amor quando ele andava a ensaiar. Mas, depois da estreia, voltava tudo ao normal. Melhor ainda, se o espectáculo tivesse êxito.
- Isso é estranho.
- Não é? Tu e David têm tido relações desde que ele anda a ensaiar?
- Não.
- Bom, aí tens! - disse Cynthia em tom triunfante. - E isso preocupou-te, não foi?
- Sim, preocupou.
- Eu sei. Julgaste que, porque estavas grávida, ele não queria nada contigo.
- Sim, foi isso que eu pensei.
Cynthia inclinou-se para a frente, com um sorriso suave a iluminar-lhe o rosto, recordando outro tempo, outro lugar...
- Lembro-me de que pensei a mesma coisa. Toby estava a fazer o papel de lago quando eu andava grávida de David, e pensei que já não gostasse de mim, porque não se aproximava de mim. Pensei que ele me odiava por ter engravidado e o ter prendido numa armadilha. Mas não era nada disso. Era porque ele andava a ensaiar.
- Não compreendo isso - disse Barbara, abanando a cabeça.
- Pois eu também não, minha querida. Limito-me a transmitir-te um facto muito estranho: quando se está casada com um actor ou se dorme com ele, temos de estar preparadas para um período emseco, enquanto ele ensaia.
- Oh, a Cynthia sabe tantas coisas.
- Sei muito pouco, minha querida. Mas todos os conceitos que tenho foram-me dados por Toby. Queres pensar um pouco nisso?
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- Oh, sim... sim...
- E agora vamos para a cozinha ajudar Blanche. Penso que ela está a fazer ensopado de borrego. É o prato favorito de Toby, sabes.
As duas mulheres deixaram a sala. Mal a porta se fechou atrás delas, Toby Marlow atirou a colcha para o lado, pôs-se de pé com dificuldade e cambaleou até ao carrinho das bebidas. com a mão trémula, serviu-se de uma boa dose de uísque e bebeu um longo gole, aliviado.
- JE-SUS C-RIS-TO!
Bebeu outro gole, mais pequeno, e, em seguida, esvaziou o copo.
- Mamã - disse em voz alta -, posso lamber a colher?
Depois serviu-se de nova bebida, juntou-lhe gelo e um pouco de água e, com a bebida na mão, caminhou pela sala, débil e instavelmente. Foi buscar a bengala pendurada na cadeira de rodas, deu alguns passos hesitantes com ela, apoiando-se. Depois atirou-a fora, iradamente, e começou a andar sem ajuda.
- "Ela está a fazer ensopado de borrego" - troçou. - "É o prato favorito de Toby, sabes." Oh Deus, oh Deus, por quanto tempo continuais a abandonar-me? Ensopado de borrego, pelo amor de Deus, e disse ela "Todos os conceitos que tenho, foi Toby que mos deu." bom, falhei miseravelmente quanto ao ensopado de borrego, minha querida!
Riu-se, deitou um pouco mais de uísque na sua bebida e sentou-se à beira do sofá. Foi bebendo com uma das mãos e acariciando a calva brilhante com a outra. A sala estava a ficar escura mas ele não fez esforço algum para acender as luzes. As sombras alongavam-se. De vez em quando, ouvia sons abafados na cozinha e um riso distante. Mas Toby estava sozinho e saboreava esse facto. Por fim, pousou o copo de uísque em cima da mesa baixa e estendeu a mão para a viola encostada ao carrinho das bebidas. Afastou os joelhos e colocou a viola deitada sobre eles. Experimentou alguns acordes e parou para esticar algumas cordas. Depois foi dedilhando a viola enquanto cantava com uma voz forte, ressonante e bem entoada:
- "Aquele que tem um pouco de miolos, "Quando chega, ai, a chuva e o vento, "Sabe contentar-se com o seu destino, "Mesmo que chova dias sem parar..."
Parou de cantar mas continuou a dedilhar a viola baixinho, marcando o ritmo com uma leve pancada na caixa, com o fundo da mão. Finalmente pôs a viola de parte, pôs-se de pé e começou de novo a passear. Moveu-se pela sala, pegando em fotografias e recordações teatrais, observando-as e pousando-as de novo cuidadosamente, recordando e sorrindo. Depois, com as mãos nos bolsos do roupão, a cabeça baixa, começou a caminhar pela sala com passo mais rápido.
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Parou para pegar no copo de uísque e beber um gole. A velocidade dos seus passos aumentou, os braços e as mãos agitavam-se em amplos gestos. Começou a murmurar, nada de inteligível. Mas, enquanto caminhava, parando frequentemente para beber do seu copo, e depois recomeçando a viagem e fazendo gestos, a sua voz foi-se tornando gradualmente mais alta, ouvindo-se palavras e frases desarticuladas. Finalmente, acenou afirmativamente com a cabeça...
- Consegui! - disse com satisfação.
Ajustou o candeeiro de braço móvel sob o qual Cynthia tinha estado a tricotar. O feixe de luz projectava-se agora para cima. Toby colocou-se em posição; o efeito era o de um projector. Começou a declamar o seu "grande monólogo", um discurso improvisado que tinha acabado de compor. Era suficientemente divertido para interessar e suficientemente sério para fazer qualquer ouvinte pensar que ele estava a falar verdade. Recitou aquele trecho do grande monólogo de Hamlet à sua maneira grandiosa. Era uma representação exagerada, com amplos gestos, expressões eloquentes, exaltados movimentos corporais, etc. - exactamente como ele queria que David dissesse o monólogo verdadeiro. As palavras não importavam, ele ultrapassava-as com a sua arte. Divertia-se com aquele improviso, sabendo que o discurso não valia o esforço, mas a sua experiência tornava-o convincente...
- Amar ou ser amado: eis a questão. "Será mais nobre o coração suportar As pedradas e as frechadas do desejo insatisfeito
"Ou aceitar, com graça e dignidade,
"A doce dedicação de outrem e, ao aceitá-la,
"Dar-lhe vida. Amar, esperar - sonhar. Eis o busílis!
"Porque, naquele sonho dos amantes, o que..."
A sua voz embargou-se, depois amorteceu e por fim deteve-se. Fez-se silêncio, então; até mesmo os sons que vinham da cozinha se tinham silenciado. Toby Marlow olhou para o candeeiro-projector, muito longe dali, a recordar...
A luz que subitamente iluminou a sala era a do dia, que penetrava através de três janelas altas, precariamente cobertas com cortinados de gaze rasgados. Era um quarto de hotel em "Chicago ou Santa Fé - um lugar desse género". Era um hotel na zona velha da baixa, perto dos teatros e, se alguma vez tinha conhecido momentos de glória, não se dava por isso. Tinha aquele aspecto usado, poeirento, gasto, cheio de mossas, envergonhado, dos quartos de hotel que oferecem colchões partilhados por dez mil estranhos.
O mobiliário tinha o folheado manchado, o papel de parede ostentava
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rosas manchadas e os pequenos tapetes não passavam de manchas franjadas. Havia uma entrada à direita que dava para o corredor do hotel. A porta da esquerda dava para a casa de banho. Havia duas camas, duas cómodas, duas cadeiras, duas mesas, dois suportes para bagagem, dois candeeiros, dois bengaleiros e um cheiro horrível.
As malas abertas encontravam-se sobre os suportes para bagagem. Viam-se casacos, coletes, calças, vestidos, roupa interior, sapatos, tudo espalhado por toda a parte. Havia a esperada garrafa de uísque sobre uma das mesas, com dois copos pegajosos. Restos de um pequeno-almoço sobre a outra mesa: chávenas de café com restos secos no fundo, um cinzeiro com uma ponta de charuto já fria, pratos com fragmentos de comida agarrados, pãezinhos meio comidos, uma maçã com uma dentada experimental.
Cynthia estava deitada numa das camas, com um lençol e um cobertor fino puxados até à cintura. Era mais nova, com trinta e alguns anos, mas naquele momento estava pálida, frágil e movia-se com a lentidão deliberada das pessoas doentes. Estava a ler um romance, parando de vez em quando para beber um gole de um líquido castanho-escuro de um pequeno frasco de remédio. No chão, ao lado da cama, havia mais frascos de remédios, lenços de papel, caixas de comprimidos, uma escova, um pente, um espelho, artigos de maquilhagem, etc.
Cynthia ouviu uma chave mover-se na fechadura e parou de ler, erguendo o olhar. Um Toby mais jovem entrou, fechando a porta atrás de si com estrondo. Dirigiu-se imediatamente à garrafa de uísque, encheu um copo alto e esvaziou-o. Depois arrancou o chapéu e atirou-o para um canto do quarto, tirou a peruca e atirou-a para o outro canto.
- Raios! Raios! Raios!
- Ele é assim tão bom, querido? - perguntou Cynthia num tom compreensivo.
- O filho da mãe foi óptimo.
- Mas ele é teu amigo, Toby.
- E então? Isso ainda piora as coisas. Quem diabo quer ver os amigos terem êxito? Está garantido para o resto da tournée. com mil diabos, Cyn, por que raios havias de apanhar bicho numa altura destas? As minhas críticas eram maravilhosas.
- Eu disse-te que fosses sem mim, Toby. Eu não me importava. Juro que não me importava.
- Ahh... que se lixe! - disse ele, irritado. - Eu saí e Jack entrou. Até os meus trajos lhe servem, estafermo!
- Disseste-lhe que ia bem?
- Oh, claro. - Toby suspirou. - Sorri-lhe sinceramente e
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apertei-lhe a mão. Depois tentei empurrá-lo disfarçadamente para o fosso da orquestra, mas ele não se deixou levar. Raios te partam, Cyn, desconfio que adoeceste de propósito.
- É claro que sim, querido. Adoro este quarto; é tão confortável. Quem me dera ficar aqui durante muitos anos.
Toby deixou-se cair desconsoladamente sobre uma das cadeiras periclitantes junto da mesa. Começou a examinar a etiqueta da garrafa de uísque como se nunca a tivesse visto antes. Não olhou para Cynthia, enquanto falava.
- Não. Eu sei o que foi. Pensaste que havia qualquer coisa entre mim e aquela miúda com mamas de balão, e quiseste acabar com tudo, de modo que te fingiste doente para eu deixar a companhia.
- Estás a ser ridículo - disse ela friamente. - Nem sequer pensei nisso. Toby, eu estou doente. Estou realmente doente.
- Oh, claro - troçou ele.
- Além disso, não há nada, pois não?
- Nada de quê?
- Nada entre ti e a tal rapariga?
- Aí está! - gritou ele. - Vês? Isso prova tudo. É o suficiente para fazer um homem começar a beber.
Para o provar, serviu-se de outra grande dose e bebeu-a tão depressa como a primeira. Depois respirou fundo.
- bom - disse tragicamente -, lá se vai a minha carreira.
- Oh Toby, não sejas tão... tão dramático.
- Tão dramático? Meu Deus, é isso mesmo que eu tenho que ser. E a minha profissão. Que disse o médico?
- Mais uma semana. Depois talvez esteja suficientemente bem para viajar.
- Outra semana? - disse ele sombriamente. - Até podia ser outro ano.
- Ele disse que o meu...
- Pára aí! - exclamou Toby, erguendo a mão. - A canalização das mulheres é um mistério para mim e quero que continue a ser um mistério.
- Toby, eu estou a sofrer!
- bom, que é que tu pensas que eu estou a fazer? A divertir-me? O primeiro trabalho bom que tenho em anos e tu estragas tudo.
- Sinto muito - disse ela debilmente.
- Sentes muito. Isso serve para alguma coisa?
- Não precisas de ser tão desagradável.
- Nem fazes ideia de como eu sei ser desagradável quando me dá na gana.
- Faço uma ideia, sim, querido - disse ela. - Faço uma ideia.
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Podes dar-me um pouco de uísque, por favor? O médico disse que me fazia bem.
De má vontade, Toby serviu-lhe um dedal de uísque, mal molhando o fundo do copo pegajoso. Foi levar-lho.
- Oh, muitíssimo obrigada - disse ela. - vou bebê-lo muito lentamente para não me engasgar.
- bom, temos que poupar esta coisa - disse Toby, voltando para a mesa e deixando-se cair de novo na cadeira. - Cortaram-me o salário, bem sabes. Se tivermos sorte, conseguimos ajusta voltar para Nova Iorque. Mas temos de cortar as despesas ao máximo.
Dito isto, bebeu um enorme gole directamente da garrafa.
- É isso que eu mais aprecio em ti, querido - disse ela docemente. - O teu espírito de auto-sacrifício.
- Cala-te e cura o teu rabo para podermos sair deste inferno.
Ficaram ambos em silêncio, chocados com o tom de voz dele. Toby, sentado a uma das pequenas mesas, tinha as costas meio voltadas para a cama de Cynthia. Ela sabia que não valia a pena esperar que ele fizesse a primeira tentativa de reconciliação.
- Tenho realmente imensa pena, Toby - disse ela suavemente. - Que tenhas perdido o teu emprego.
Ele grunhiu.
- Eu sei quanto ele representava para ti.
Ele grunhiu.
- Acho que foi uma coisa amorosa da tua parte ficares a tratar de mim.
Ele voltou-se então para ela, abanando a cabeça, com descrença.
- Devia estar com a cabeça fora do lugar. Podia ter contratado uma enfermeira para te tratar, ou pedir a um paquete que viesse ver-te de vez em quando, ou qualquer outra coisa.
- Mas não o fizeste. Porque me amas.
Ele grunhiu.
- Tu amas-me, não é verdade?
- Claro.
- Não sabes dizer isso como se o sentisses?
Ele fitou-a, com fria altivez, o Abominável Homem das Neves atacado por cisnes. Ao responder, a sua voz magnífica ganhou vida. Serviu-se de todos os tons, um diapasão completo. Declamou para uma audiência de duas mil pessoas. Foi um grito da alma que chegou às galerias e cada sílaba estava impregnada de profunda e sentida emoção.
- Cynthia, amo-te. Amo-te mais que a qualquer outra mulher que conheci.
- Muito melhor - disse ela, em tom de aprovação.
- Que queres comer? - disse ele.
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- Tu.
- Não sejas tola. Podia apanhar o que tu tens. Há um restaurante chinês à esquina. Apetece-te camarão de rabo em leque?
- Depois do que o médico me fez hoje - disse ela -, sinto-me exactamente como um camarão de rabo em leque.
- Nada mau - disse ele, sorrindo.
- Já não estás zangado comigo?
- Servia-me de alguma coisa?
- Mas nunca mais me vais deixar esquecer isto, pois não? - lamentou-se ela. - Refiro-me a ter adoecido e fazer-te deixar a companhia. Vais passar a vida a lembrar-me o sacrifício que fizeste por mim, não vais?
- Evidentemente.
- Durante anos e anos.
- Enquanto ambos formos vivos. -Acenou afirmativamente com a cabeça.
- E estás a falar a sério. Porque, a partir de agora, cada vez que eu te apanhar a fazer qualquer coisa horrível, darás a volta à conversa, recordando-me aquela vez em que te fiz perder o trabalho.
- E então? - disse ele. - É uma reacção humana, normal e adulta.
- Oh, meu Deus, por que hei-de amar-te tanto?
- Quem consegue resistir-me?
- Quem me dera conseguir. - Suspirou. - Mas não consigo. Toby, por favor, não faças com que eu deixe de te amar. Eu morria, morria, muito simplesmente.
- Ama-me, querida - disse ele jovialmente. - Continua a amar-me.
- E diz-me outra vez que não tiveste nada com aquela rapariga.
- Qual rapariga?
- A das abóboras.
- Juro que não tive nada com a rapariga das abóboras.
- Além disso - disse Cynthia -, o corpo dela não é grande coisa. Vi-a no camarim e ela tem aquela horrível cicatriz da apendicite que até parece que se podem meter cartas lá dentro.
- Qual cicatriz de apendicite? - disse ele. - Não vi...
A sua boca fechou-se. Tarde de mais. Tinha sido apanhado na armadilha.
- Canalha! - arquejou Cynthia.
Deixou-se cair sobre a cama, com o rosto entre as mãos, chorando amargamente. Toby correu imediatamente para ela, sentou-se na cama, tomou-a nos braços. Apertou-a contra ele, encostando-lhe o rosto ao seu peito. Acariciou-lhe demoradamente os cabelos...
- Ama-me, Cyn - murmurou. -Ama-me, ama-me, ama-me...
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Mas a luz do candeeiro de braço móvel da sala dos Marlow em Central Park West voltou. Brilhava, cintilava, produzindo um halo em volta do exultante Toby Marlow que concluía triunfantemente o seu grande monólogo, com os braços abertos...
- Amar ou ser amado: qual o melhor destino?
"Pois raramente ambos encontram uma união feliz,
"Mas cada um esbanja talentos e desejos
"Num parceiro que não lhe estava destinado.
"Mas para quê tanta filosofia?
"Eu amo-me a mim mesmo... e Cynthia ama-me a mim!
CENA TRÊS
Dez dias depois, novamente na sala dos Marlow, vagamente iluminada pelas chamas fulgurantes da lareira de tijolos... Era quase meia-noite. Barbara Evings estava só, movendo-se lentamente na sombra, quase flutuando. Cantarolava baixinho uma canção popular: Negra é a cor do cabelo do meu amor verdadeiro... ou Eu sei quem amo e sei pra onde vou... ou qualquer outra coisa no género. Sozinha, enormemente grávida, cantando para si mesma, parecia particularmente jovem e vulnerável.
Subitamente, a porta que dava para o corredor abriu-se; David Marlow entrou. Bateu com a porta atrás de si e dirigiu-se imediatamente ao carrinho das bebidas. Barbara deixou-se cair cuidadosamente no sofá e ficou a vê-lo encher um grande copo de uísque. Bebeu quase metade num gole gargantuano. Engasgou-se, arquejou, tossiu. Depois bebeu outro gole mais pequeno, acalmou, respirou fundo. Deixou-se cair pesadamente no sofá, afastado de Barbara. Deixou descair a cabeça para a frente, com as mãos e a bebida entre os joelhos afastados.
- Foi mau? - disse ela, compreensivamente.
- Um desastre - disse ele em tom sombrio. - Tudo o que podia correr mal, correu.
- Não é para isso que serve um ensaio geral... para se descobrir o que pode correr mal, o que está mal, e corrigi-lo?
- A ideia é essa. - Acenou afirmativamente com a cabeça. - Mas é tarde de mais para corrigir esta peça.
- David, que se passa?
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Ele suspirou, bebeu mais um gole. Endireitou-se, mas deslizou até encostar a cabeça às costas do sofá; olhou para o tecto.
- Fui eu. Estive péssimo. Eu sei disso. Sem fogo, sem paixão, sem coragem. As palavras saíam como grumos. Cinzas. Esqueci-me dos versos uma dúzia de vezes. Tropecei duas vezes. Derrubei um adereço. Deixei cair a espada durante a cena da luta. Oh, foi lindo.
- Só nervos - disse ela, procurando reconfortá-lo.
- Nervos? Por que havia de ter nervos num ensaio geral? Não, foi mais que isso. Ia a meio daquela fala "Que obra-prima é o homem!" quando subitamente me apercebi do que me faltava. Confiança. Nunca deveria ter aceitado o papel, nunca deveria ter tentado obtê-lo. Talvez seja demasiado jovem, demasiado inexperiente. Não estou preparado para ele. Talvez um dia venha a estar. Talvez. Um dia. Mas não agora, não amanhã à noite. E toda a gente percebeu. Vi-o nos rostos e olhares deles, naqueles malditos olhares, felizes, triunfantes. A peça vai cair, mas eles conseguirão extrair algum prazer do meu fracasso. As pessoas são assim mesmo.
- São?
- Claro - disse ele amargamente. - Se conseguissem descobrir uma forma de cancelar a estreia, faziam-no imediatamente. bom... talvez eu tenha sorte e fique afónico antes de amanhã à noite, ou seja atropelado, ou qualquer coisa no género.
Suspirou de novo e terminou a sua bebida. Pôs-se de pé e dirigiu-se ao carrinho das bebidas. Depois parou, olhou em volta e apercebeu-se pela primeira vez de que a sala estava silenciosa e vazia.
- Onde estão todos? - perguntou a Barbara.
- Foram para a cama. Toby está muito mal. Vomitou logo a seguir ao jantar.
- Ensopado de borrego?
- Não, só aquelas coisas macias que tem comido ultimamente, queijo e leite-creme. Mas não conseguiu conservá-las. Cynthia ficou assustada e chamou o Dr. Jake. Ele veio e finalmente conseguiram fazer Toby dormir. Estava cheio de dores.
- A gemer e a protestar, calculo eu.
- Oh, sim - disse Barbara. - Ele não ia deixar passar uma oportunidade destas. Insistiu em despedir-se de todas nós e deixou uma mensagem para ti.
- Oh meu Deus, deixou mesmo? Velho canastrão! Muito bem, qual foi a mensagem?
- Pediu-me que te dissesse que parasses de te masturbar.
- Que parasse de me masturbar? Que raio se passa com ele? Eu não me masturbo. Nunca mais me masturbei desde que saí da Guarda Costeira. Estaria a delirar?
- com o Toby é difícil saber.
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- Não tenhas dúvidas - concordou ele. - Queres uma bebida?
- Um cálice de Porto, por favor.
David voltou a encher o seu copo e serviu um cálice de vinho do Porto a Barbara. Levou-lho e, desta vez, sentou-se ao lado dela.
- A mãe está com ele? - perguntou.
- Está. Ela, a Blanche e eu vamos revezar-nos, para ficarmos toda a noite com ele. Eu vou dentro de uma hora, mas não conseguia dormir, de modo que decidi esperar por ti.
David estava chocado.
- Vão ficar a velá-lo durante toda a noite? As três? Jesus Cristo, isso não parece nada bom.
- Não, não é - disse ela tristemente. - Ele está a ir-se, David. O Dr. Jake disse a Cynthia que podia ser em qualquer altura, e que ele não durava mais que uma semana.
- Meu Deus - gemeu David. - Isso quer dizer que não vai poder ver-me amanhã à noite.
- Não.
- bom, talvez seja melhor assim. Era capaz de morrer, se fosse. Mas ele não devia estar num hospital?
- Não quer ir.
- Que se lixe o que ele quer! Obrigamo-lo a ir.
- Obrigar Toby a fazer qualquer coisa que ele não quer?
- Jake pode dar-lhe uma injecção, pô-lo a dormir e nós levamo-lo sem ele saber o que está a acontecer.
- David, farias isso a Toby?
- Se lhe salvasse a vida.
- Não salva. O Dr. Jake diz que não se pode fazer nada por ele. Diz que o melhor é deixar o homem morrer em paz na sua casa, se é isso que ele quer.
- Morrer em paz? - repetiu David com incredulidade. - Essa é boa. Toby nunca fez nada em paz durante toda a sua vida, e não é agora que vai começar. Vai-se embora a espernear e a gritar, na maior exibição histriónica que já se viu. Oh, meu Deus, como este mundo é feio, deprimente, lixado, absurdo.
- Will não disse isso melhor? - troçou ela.
- Queres dizer: "Oh meu Deus, meu Deus! Como me parecem fastidiosas, cediças, vulgares, estéreis as coisas deste mundo."? Primeiro Acto, Cena Dois. Vês, sei os versos de cor. Sim, Will disse tudo melhor. E merece um actor melhor que eu.
Ficaram em silêncio durante longo tempo. Depois, ela deslocou-se desajeitadamente ao longo do sofá, aproximando-se dele. Pousou a mão no seu braço.
- Tens fome, David? Posso fazer-te uma sanduíche. Há uns restos de carne assada.
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- Não, obrigado. Tenho um nó no estômago. Não conseguia engolir. Estou todo tenso.
- Queres que durma contigo esta noite? - perguntou ela suavemente. - Posso dormir contigo, se me quiseres.
Ele acariciou-lhe ternamente o rosto.
- Não, amor. Eu quero, mas não por piedade.
- Não podemos fazer nada - disse ela. - bom... talvez eu pudesse fazer alguma coisa. Ou podíamos dormir ao lado um do outro. Não acho que devas ficar sozinho esta noite.
- Agradeço muito - disse ele, um pouco formalmente -, mas não, obrigado. Eu aguento isto sozinho.
- Tu nem dás nem recebes - disse ela, furiosa.
Ele afastou-se um pouco dela e fitou-a...
- Que diabo quer isso dizer? Anda lá, explica-me isso. Nada poderá tornar esta noite pior do que é. Nada.
- Oh... não vale a pena, David - disse ela, fatigadamente. - Já passámos por tudo isto. Vamos tentar continuar amigos. Não podemos tentar?
- Jesus Cristo, tu és uma telenovela ambulante! "Não, David, não me caso contigo. Mas ainda podemos ser amigos! Guardarei a tua recordação para sempre." Merda!.
- Toby teria representado essas palavras melhor - disse ela.
Ele pôs-se de pé, furioso, e começou a andar de um lado para o outro pela sala, falando em voz cada vez mais alta...
- Toby, Toby, Toby! - exclamou. - É o que eu tenho ouvido durante toda a minha vida. "Toby faz tudo melhor. Nunca serás o actor que Toby é. Vai perguntar a Toby como se faz." Que diabo, já sou um homem e vivo a minha vida. Não me interessa como é que Toby diria aqueles versos ou como Toby representaria aquela cena. Eu sou eu, David Marlow! Nunca serei Toby e agradeço isso a Deus! Nenhuma de vocês compreende que ele é um palhaço ridículo? com as suas posturas e as suas maneiras majestosas e a sua representação e gestos exagerados, e um estilo que já era hilariante há trinta anos? O homem não passa de um tolo fóssil! Não vês isso? Está a viver no país encantado da Duse e dos Barrymore e de W. C. Fields. Todos eles são passado. Já não se pode representar dessa maneira. Seríamos ridicularizados. As pessoas querem pensar, saber... Temos de ir mais fundo, cada vez mais fundo, dentro de nós próprios, para revelar a verdade.
- Que verdade? - perguntou ela calmamente.
- O quê? - exclamou ele, ainda excitado. - O quê?
- Que verdade tens de revelar, David?
- Bem... a verdade, apenas a verdade. Há mais que uma verdade?
- Não há? Para Hamlet e para Othello? Para Duke Mantee e para
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Billy Budd? Para Stanley Kowalski e para o rei Artur? São todas verdades, não são? Diferentes, mas verdadeiras.
- Eu não os represento - gritou ele obstinadamente. - Eu não finjo.
- Tu podes fazê-lo - disse ela. - Eu sei que tu podes.
- Não posso.
- Lembras-te daquele domingo de manhã em que o bebé nasceu?
Ele fitou-a, desconcertado.
- Nasceu?
- Bem... foi concebido.
- Como podes saber? - troçou ele.
- Eu sei! Sei, de certeza. Nessa manhã tu fingiste. E foi lindo. Lindo...
Entreolharam-se, recordando, e, subitamente, a luz da sala dos Marlow foi varrida por uma súbita torrente de luz branca, como se o electricista-chefe tivesse baixado o comutador dos projectores, dos focos, da ribalta. Era um clarão leitoso que iluminava a mansarda onde Barbara Evings vivia anteriormente. O único quarto longo estava reduzido a uma mancha de luz. Os móveis eram muito poucos, todos pintados de branco. Até as poucas gravuras emolduradas nas paredes pareciam ocultas por detrás de uma gaze de seda branca, ou talvez os olhos de quem as via tivessem sido ligeiramente untados com vaselina.
Era uma preguiçosa manhã de domingo naquele cenário desfocado. Barbara e David estavam sentados a uma pequena mesa branca tipo bistrô em cadeiras brancas de balcão de gelados. Estavam ambos descalços e envergavam roupões de turco branco. Sobre a mesa havia um jarro branco de café e um prato de louça branco com croissants. Ao fundo do quarto envolto em névoa e encharcado em luz havia uma cama de dobrar, um divã com um colchão fino, o tipo de cama que pode ser dobrada e metida num armário.
Todo o quarto tinha uma agradável simplicidade, uma nudez tranquila, uma espécie de encanto vazio. E sobre toda a cena pairava a languidez de uma manhã de domingo.
David tirou um croissant do prato e encostou-o à boca e ao ouvido, como se fosse um telefone.
- Está? - disse. - Tom?
Barbara fitou-o por um momento, surpreendida. Depois, o seu rosto animou-se, segurou elegantemente numcroissant e encostou-o ao ouvido e à boca.
- Sinto muito - disse ela. - Acho que ligou para o número errado.
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- Não fala do 555-1212?
- Não, fala do 4X7-G1T3-19678326-K.
- Peço imensa desculpa. Devo ter-me enganado a marcar.
- Não faz mal - disse Barbara. - Acontece a qualquer um. É agradável ouvir um número errado a pedir desculpa.
- Sim. bom, então adeus.
- Adeus - disse ela.
Fizeram uma pausa, olhando especulativamente um para o outro. Ao fim de um momento, Barbara comeu um pedaço do seu croissant, arrancando-lhe a ponta. David fez o mesmo com o seu e depois voltou a encostá-lo ao ouvido e à boca para falar.
- Está? - disse Barbara ansiosamente.
- Escute - disse David. - Telefonei-lhe ontem à noite. A perguntar por um homem chamado Tom. Ou talvez fosse Bernie. A senhora respondeu. Eu tinha-me enganado no número e pedi desculpa.
- Eu lembro-me - disse Barbara. - E...?
- Bem... Não sou um daqueles homens que fazem telefonemas obscenos, nem coisa parecida. Só que...
- Só que...?
- Gosto da sua voz - disse ele, impetuosamente. - Escute, se eu estiver a aborrecê-la ou a ofendê-la, diga-me que eu desligo, e juro que não volto a ligar para si.
- Por que ligou agora?
- Bom... como lhe disse, gosto da sua voz. E...
- E?
- E apeteceu-me dizer-lhe olá.
- Oh - fez ela. - bom... Olá.
- Não fica aborrecida se eu ligar outra vez? - perguntou ele.
- Não. Não fico aborrecida.
Durante esta conversa, foram mordiscando os croissants, enquanto falavam. Tendo reduzido os pastéis a migalhas, cada um deles retirou um novo croissant do prato, bebeu uma chávena de café, e o diálogo prosseguiu como anteriormente. Ambos se mostravam deliberadamente solenes, inexpressivos, mas, à medida que a conversa prosseguia, começou a surgir uma certa tensão; a "representação" começou a tornar-se mais real, e o que principiara como uma fantasia e uma brincadeira de uma manhã de domingo sonolenta começou a adquirir um significado que nenhum deles previra. David ergueu o seu croissant...
- Boa noite! - disse jovialmente.
- Olá! - cantarolou ela para o seu croissant.
- Como está?
- Um pouco constipada. Não nota?
- Que é que toma?
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- Que é que me oferece?
- Ho ho. Escute, como eu disse na noite passada: se não quer que eu telefone, se eu estiver a aborrecê-la, pelo amor de Deus, diga-me. Não sou um tarado, acredite.
- Se for, é um tarado muito simpático.
- Então posso telefonar-lhe outra vez?
- Se quiser...
A fantasia tinha principiado preguiçosamente, arrastadamente. Mas agora o ritmo começara a aumentar; ambos falavam mais depressa e, curiosamente, já não olhavam um para o outro, fitando intensamente as chávenas de café e os croissants-telefones. Mordiscando-os, claro.
- Está? - disse Barbara.
- Olá - disse David. - Sou eu outra vez. Como vai a constipação?
- Melhor, obrigada. Estava com medo de que fosse gripe ou um vírus. Mas agora acho que é só uma constipação mesmo. Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Tenho que responder?
- Não. É claro que não.
- Claro, faça lá.
- Como se chama?
David deteve-se por um momento.
- Romeu - disse finalmente.
- Que bonito nome - disse ela. - Polaco?
- Por acaso é sueco. E o seu?
- Julieta.
- Oh. Francês?
- Por acaso é assírio. Do lado da minha mãe. Do esquerdo. O meu pai era um setter irlandês.
- O meu pai é paranóico - disse David.
- Belo país esse.
- Oh sim - concordou ele. - Especialmente na Primavera.
- Que idade tem, Romeu? - perguntou ela.
- Quinze anos.
- E que quer fazer quando crescer?
- Dezasseis anos. Que idade tem?
- Treze - disse ela. - Estou quase a fazer doze.
- É estranho - disse ele. - Tinha imaginado que fosse muito mais nova. Trabalha?
- Que remédio!
- Que é que faz?
- Sou cantora de ópera. Contralto. Mas nas horas livres trabalho como hospedeira de um ferry.
- Já há barcos desses?
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- Que é que faz?
- Faço operações ao cérebro - disse ele. - Mas nas horas vagas sou cozinheiro de refeições rápidas. O meu limite é dois ovos. Tem alguém? Um homem, quero eu dizer.
- Alguns - disse ela. - Nada de sério. Tem uma mulher?
- Sim. Há anos que a namoro. Desde os 6 anos.
- Vai casar-se com ela?
- Acho que sim - disse ele. - Um dia. A vida não é só pastilhas elásticas, não acha?
- Não - disse ela, captando a súbita seriedade dele. - Não é.
- Parece abatida, esta noite.
- Estou... abatida.
- Acho que não devia ter telefonado.
- Não. Não. Fez bem em telefonar. É bom ouvir uma voz humana. Sabe como é?
- Meu Deus, se sei! - disse ele. - Telefona-me... um dia?
- Talvez.
- Telefone. Gostava que o fizesse. Se eu não estiver, tente outra vez. Não tenho horas certas para trabalhar.
- Que altura tem?
- Tenho quase um metro e vinte.
- Meu Deus, vou ter de usar saltos altos. Boa noite, Romeu.
- Ficou satisfeita por eu ter telefonado?
- Sim, fiquei muito satisfeita.
- Ainda bem. Boa noite, Julieta.
Ambos estenderam a mão para novos croissants. Estavam a ficar perturbados. bom, talvez não perturbados, mas alvoroçados com o seu diálogo maníaco. Talvez sentissem que a sua representação tinha ganho vida própria; não podiam controlar a forma como ela iria desenvolver-se. O seu faz-de-conta tinha adquirido uma estatura e uma dignidade que eles não tinham previsto. Santo Deus, tinha significado! E quem podia dizer como iria acabar? Além disso, estavam demasiado envolvidos e demasiado curiosos para acabarem já com aquilo.
- Está? - disse Barbara.
- Oh! Telefonou-me?
- É claro que sim.
- Que maravilha! - exclamou ele. - Como vai a constipação?
- Muito melhor, obrigada. E hoje comprei um chapéu novo, o que ajudou muito.
- Como é ele?
- O chapéu? Como um chapéu de feltro de homem. com uma aba larga e descaída. Fico parecida com a Ava Gardner naquele filme africano com o Clark Gable.
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- Eu sou um pouco parecido com o Clark Gable - disse. - Nos joelhos. De que cor é o chapéu?
- Vermelho-escuro.
- Parece maravilhoso.
- Fica-me lindamente. Usei-o em casa e os guarda-livros assobiaram. Óptimo para o meu ego maltratado.
- Escute... - disse ele hesitante -, acha que podíamos conhecer-nos? Encontrar-nos, compreende?
- Não - disse ela com firmeza. - Não acho. E você?
- Acho que não. Vamos manter as coisas neste pé.
- Desta forma não haverá desapontamentos.
- Certo - disse ele rigidamente. - Não haverá desapontamentos. Como vai o trabalho?
- Uma chatice. E o seu?
- Uma chatice. Como vão as coisas no campo dos romances?
- Calmas. E as suas?
- O habitual - disse ele. - Mais ou menos na mesma. Sem problemas, mas chatas, chatas, chatas.
- Está zangado comigo? - perguntou ela.
- Zangado? É claro que não. Por que havia de estar zangado?
- Não sei. Mas há qualquer coisa na sua voz. Acha que devíamos encontrar-nos?
- Oh não. Não. Tem toda a razão. É preciso evitar os desapontamentos. Sim, é isso mesmo que há a fazer.
- Telefona-me amanhã à noite?
- Claro.
- Promete?
- Claro - disse ele um pouco friamente. - Prometo. Telefono-lhe amanhã à noite. vou tomar nota.
Estavam tensos agora, mastigando os seus croissants. A situação balançava e eles sentiam que podia cair para qualquer dos lados. Uma palavra errada, um tom de voz... Mas nenhum deles tinha coragem de acabar com aquilo. O risco era excitante. Levaram os croissants aos ouvidos.
- Viva, Julieta - cantarolou ele.
- Não me telefonou na noite passada - disse ela implacavelmente.
- Eu sei - disse ele com suavidade. - Não foi porque não quisesse. Mas vi-me envolvido numa espécie de festa.
- A sua mulher? - disse ela friamente.
- Sim.
- É bonita?
- É claro que é bonita. Pouco excitante, mas bonita.
- Divertiu-se?
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- Não muito. Que é que fez?
- Saí com um homem - disse ela firmemente.
- Divertiu-se?
- Oh... acho que sim. Jantámos num novo restaurante italiano. Foi assim-assim. Depois fomos a um daqueles sítios gregos onde as pessoas atiram pratos aos bailarinos. Ele acompanhou-me até à porta e foi tudo. Não lhe pedi que entrasse, caso esteja a pensar nisso.
- Sim, estava.
- Também eu - disse ela -, cerca de uma hora depois. Mas tomei um comprimido e fui dormir. Toma comprimidos para dormir?
- Não é o que faz toda a gente?
- Oh, meu Deus, Romeu - disse ela, descongelando -, tem que haver algo mais que isto. Escute...
- Que foi?
- Não deixes de me telefonar. Por favor.
- Tu! - exclamou ele, exultante. -Tu! Não deixes de me telefonar tu! Preciso de te ouvir.
- Eu sei, eu sei - disse ela. - É horrível!
- Não é.
- Romeu.
- Julieta.
Ambos sentiram que tinham conseguido rodear com êxito um abismo terrível, um destino fatal. Agora já podiam olhar um para o outro e sorrir, mastigando os croissants e esperando pelo final da peça. Inclinaram-se um para o outro por cima da mesa, excitados e antecipando o que estava para vir. As mãos que seguravam os croissants tremiam...
- Está? - disse Barbara nervosamente.
- Viva, Julieta.
- Romeu! Estou tão contente por teres telefonado.
- Que estavas a fazer?
- A contar as paredes. Um dia bestialmente fodido. - Deteve-se por um momento e disse: - Importas-te de que eu use palavras destas?
- Palavras como "bestialmente"?
- Espertalhão. Sabes o que eu quero dizer. Importas-te?
- Referes-te a palavrões? - perguntou ele.
- Isso mesmo - disse ela. - Como "amor". Importas-te?
- É claro que não me importo. Como estás?
- Estou muito bem, obrigada. E tu, como estás?
- Estou muito bem, obrigado - respondeu ele. - bom, agora que já dissemos todas estas merdas educadas, quero falar-te de um artigo que li. Tratava de um inquérito que fizeram acerca da forma como vivem os solteirões e as expectativas de vida que eles têm.
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- És um solteirão, Romeu?
- Não, sou casado e tenho dez filhos e estou a telefonar-te de casa.
- Não me admirava nada.
- Sim, minha tolinha. Sou um solteirão.
- Ainda bem.
- Tu és casada?
- Já fui. Agora já não sou.
- Que sucedeu? - perguntou ele.
- O problema foi esse - respondeu ela. - Não sucedeu nada. Que diz esse artigo sobre os solteirões?
- bom, dizia que os solteirões morrem mais cedo que os homens casados. Suicidam-se mais vezes, têm uma maior percentagem de doenças mentais e acabam a fazer coisas giras como levantar as saias das rapariguinhas e observar os apartamentos dos outros com telescópios.
- Isso assusta-te, levantar-me a saia?
- É estranho, mas não me assusta nada.
- Esse artigo falava de solteironas?
- Não.
- Pode duplicar os efeitos. Não é nada divertido.
- Eu sei. Costumas ver o teu ex-marido?
- De vez em quando. Continuamos amigos.
- Têm filhos?
- Não - disse ela.
- Que sorte.
- Sim. É sorte. Tens realmente um metro e vinte de altura?
- Quase.
- Cabelos de que cor? - perguntou ela.
- Verdes. E os teus?
- Azuis. E esforço-me bastante para os manter desta cor. Escuta, Romeu, tenho uma pergunta pessoal a fazer-te.
- Pergunta lá.
- Sabes jogar às damas?
- Não.
- bom... ninguém é perfeito.
- Tu és - disse David. - Amo-te, Julieta.
- A sério? - disse ela, com curiosidade.
- Começo a pensar que sim. Que fazes neste fim-de-semana?
- vou para fora. Para um lago. com um casal amigo.
- Eles levam um homem para ti?
- Evidentemente. Levam sempre. Um homem com narinas. Tens narinas?
- Naturalmente.
- Que fremem?
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- Não, as minhas narinas não fremem. Também vou para fora. Um rancho.
- com a tua mulher?
- Sim.
- Aquele artigo sobre os solteirões assustou-te mesmo, não foi?
- Sem dúvida.
- Vais pedi-la em casamento? - perguntou ela.
- Não me assustou assim tanto - respondeu ele.
- Só dói quando se ri - informou ela.
- Eu sei. Posso telefonar-te na segunda-feira?
- É preciso perguntar?
- Para te contar tudo o que se passou no rancho e tu falas-me do tipo com as narinas frementes.
- Podia falar-te já dele, mesmo sem o ter conhecido. Um fracasso.
- É isso que o rancho vai ser. Um fracasso. Detesto cavalos. São tão estupidamente superiores.
- Por que vais, então?
- Ela prometeu a uma égua.
- Qual é o sexo?
- bom... - disse ela. - Sabes como é. Comme ci, comme ca.
- A história da minha vida - disse ela. - Estás na cama, neste momento?
- Estou.
- Nu?
- Sim - disse ele em voz baixa. - E tu?
- Sim. Vamos respirar ao telefone durante um bocado.
- Não brinques com isso - disse ele, magoado.
- Desculpa - disse ela. - Não devia tê-lo feito. Por favor, desculpa-me.
- Claro.
- Eu brinco de mais com as coisas. Eu sei. Brinco porque... bom, tu sabes como é. Tenho que brincar.
- Eu sei, Julieta.
- Amas-me realmente?
- Amo-te realmente.
- Eu amo-te, Romeu. Aguentas-te com isso?
- Se aguento! Diz outra vez.
- Amo-te, Romeu.
Subitamente, inexplicavelmente excitados pelo seu suculento diálogo, Barbara e David puseram-se simultaneamente de pé e dirigiram-se para a cama, voltando as costas às migalhas de croissant. Não foram a correr, mas também não se arrastaram. Os roupões brancos caíram magicamente no chão; os seus movimentos pareciam tornar-se mais lentos, como se nadassem graciosamente nus num
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aquário de luz. A cama sobressaía vagamente do clarão nebuloso, como através de um tecido branco, e o quarto e o tempo tinham a qualidade indefinível de um sonho vagamente recordado.
David estava estendido na cama, com o seu cacete engorgitado apontado acusadoramente para Deus. Barbara, de pé junto da cama, inclinou-se para lhe tocar ligeiramente, ternamente...
- Romeu, Romeu - murmurou ela, -, como tu és um rapazinho crescido.
O clarão branco fazia brilhar a carne de ambos, provocava sombras lilazes nas concavidades dos seus corpos quando se moviam...
- Os cavalos são tão estupidamente superiores - repetiu ele num murmúrio.
Obedientemente, com mais ânsia que graça, ela passou uma perna por cima dele e, com um mínimo de dificuldade, empalou-se, sentando-se sobre ele, com os joelhos flectidos junto da cintura dele. com as mãos nos ombros de David, inclinou-se para a frente de modo que os seus longos cabelos envolvessem os rostos de ambos. Sem serem observados por solteirões armados de telescópios, beijaram-se incessantemente...
As mãos dele procuraram os músculos longos das costas rijas dela, a curva da cintura, o bojo do traseiro. Puxaram-na para ele com uma urgência que crescia lentamente. Ela endireitou-se, montada nele, e puxou os cabelos para trás com ambas as mãos, num movimento que sabia que lhe agradaria, que talvez o inflamasse...
E inflamou! Os olhos dele estavam semicerrados, a sua boca entreaberta, e ela começou a mover-se, adaptando o seu ritmo ao dele. Os gemidos de ambos eram suaves e dignos, quase se perdendo nos poucos guinchos musicais e arquejos metálicos do divã...
Aí o diálogo passou a ser improvisado, consistindo em medidas iguais de palavras apaixonadas e incoerentes. Ouviam-se frequentemente os nomes David, Barbara, Romeu e Julieta, em conjunto com reiterados protestos de amor e fidelidade eterna, entremeados com crescentes soluços de prazer, gemidos de satisfação e outras manifestações semelhantes. Os actores experientes sabem como representar bem este tipo de coisas.
A litania foi subitamente interrompida por um forte estalo metálico, claramente audível mas, compreensivelmente, ignorado pelos comediantes. Um observador a frio ter-se-ia rapidamente apercebido de que uma parte importante da cama, uma viga rígida que a conservava na posição aberta, se tinha quebrado sob os esforços invulgares que estavam a ser-lhe impostos. Diante do olhar horrorizado de tal observador, a cama, com a maior parte do peso e dos choques agora violentos concentrada no meio, começou a fechar-se como uma ostra gigantesca forrada de colchão e lençóis.
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Lentamente, a parte da cabeceira e a parte dos pés ergueram as suas pernas do chão. As duas metades oscilaram no ar e detiveram-se por um breve momento. Mas os actores, agora possuídos pela angústia final do seu desejo, não deram pelo perigo. Pelo contrário, os seus esforços redobraram de ritmo e fúria, e era tão intensa a sua concentração que os seus uivos de felicidade afogaram os estalos claramente audíveis por baixo de ambos.
A cabeça de David, os seus ombros e a parte superior do tronco começaram a subir lentamente, misteriosamente, a partir da cintura, assim com as pernas subiam a partir das ancas. À medida que a cama se dobrava inexoravelmente, o mesmo sucedia com ele, e Barbara viu-se forçada a manter-se direita, com o nariz elevado, para escapar à sufocação.
Mas eles estavam decididos a não se deixar deter antes de alcançar o seu objectivo, por acidentes, guerras ou Acto de Príncipes. O seu grito final de triunfo ergueu-se, um pouco abafado, na altura em que o pérfido leito acabava de se fechar com um tchung, apertando-os num abraço mais estreito do que quaisquer amantes haviam experimentado.
O quarto e as recordações escureceram e foram substituídos pela obscuridade e pelas chamas ondulantes da lareira da sala dos Marlow. David e Barbara regressaram às suas posições originais: ela sentada no sofá, ele em pé, perto dela.
- O bebé foi feito naquele domingo de manhã - disse ela sonhadoramente. - Eu sei.
- Como é que sabes? - perguntou ele.
- Sei.
- bom... talvez. - Encolheu os ombros. - Tivemos sorte em sair vivos daquela maldita coisa.
- Só queria lembrar-te que tusabes fingir. Fizeste-o naquela manhã. E podes fazê-lo novamente.
- Essa manhã foi... bom, foi só entre nós. Não tem nada a ver com o meu trabalho, com o teatro. Aí não posso fingir.
- Oh não - disse ela. - Tens que ser tu próprio, não é? O teu eu apenas. Tens que ir mais fundo, cada vez mais fundo, dentro de ti próprio, para revelar "a verdade". A tua verdade. E que é isso? Uma coisa com que eu nunca me casaria, nem num milhão de anos. Tão fechado dentro de ti próprio, tão fechado para mim, tão consciente dos teus pensamentos e motivações que perdes toda a noção daquilo que o dramaturgo pretende dizer. O autor, pobre diabo! Pelo menos ele está a tentar criar qualquer coisa, abrir uma janela, tornar o mundo um pouco mais amplo, um pouco maior (Apoiado, apoiado! - O
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Autor.) Mas tu pegas naquilo que ele fez e espreme-lo de tal forma que só te reflecte a ti e só tem o significado que tu lhe queres dar.
Içou-se com dificuldade, pondo-se de pé, afastando com irritação a mão que ele lhe estendia. Caminhou até à porta, abriu-a bruscamente. Depois voltou-se para o fitar, furiosa...
- Toby tinha razão - gritou. - Por que não paras de te masturbar, organista!
Ele olhou-a, estupefacto, abanando a cabeça.
- O quê? - disse. - Que é que estás a dizer? Por que é que eu sou organista?
- Um organista é um homem que derrama a sua semente no chão. Vem na Bíblia.
- Valha-te Deus - disse ele -, queres dizer onanista, não organista.
- Ora, que diferença faz? - gritou ela, batendo com a porta.
CENA QUATRO
Toby Marlow estava a morrer e não lhe interessava quem soubesse disso. Estava apoiado em almofadões, olhando indignadamente para o mundo, no seu próprio leito, no quarto de dormir dos Marlow. Cynthia, Blanche e Barbara andavam à sua volta. David estava de pé, desamparado, a um canto. O cenário encontrava-se artisticamente disposto como um presépio. O quarto estava brilhantemente iluminado pelo lustre, os candeeiros e o letreiro de néon vermelho a piscar "Marlow... Marlow..."
- Acendam o raio das luzes! - gritou Toby com petulância. - Por que diabo está aqui tão escuro?
- As luzes estão acesas, querido - disse Cynthia suavemente. - Todas as luzes.
- Então tragam velas - insistiu Toby. - Pelo amor de Deus, dêem-me luz.
Blanche dirigiu-se à cómoda e acendeu as velas dos dois candelabros. Colocou um na mesa-de-cabeceira de Toby. Aproximou o outro do rosto dele.
- Luz, Toby - disse ela.
- Quem é? Quem é?
- A Blanche, Toby.
- Blanche, a égua. Nunca fornicámos, pois não, querida?
- Não, Toby. Nunca.
- No outro mundo, prometo-te. Onde está David?
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- Estou aqui, pai - disse ele, avançando.
- Pai. É a primeira vez que me chamas assim.
- Sim. A primeira vez.
- A tempo. Veio a tempo. Por que não estás no teatro?
- Há tempo, Toby. Há tempo.
- Não, não. Não podes chegar atrasado. Não é profissional. Maquilhagem e guarda-roupa. Tens camareiro?
- Não, não há camareiros. Ajudamo-nos uns aos outros.
- Tive um camareiro - disse Toby. - Uma vez. Blanche era camareira, não eras Blanche?
- Sim, eu...
- Cyn! - gritou ele. - Cyn! Onde estás? Onde diabo está Cyn?
- Estou aqui, Toby.
- Segura na minha mão - disse ele, e ela agarrou-lhe na mão e não a largou até ao fim. - Cyn. Querida Cynthia. Cyn, Cyn, Cyn. Foi assim que tu me apanhaste. Que tu me prendeste. Pelo pecado! (1) Agarraste-me pelos tomates, penduraste-te neles e nunca mais os largaste.
- Pois foi, Toby. Foi assim que eu fiz.
- Barbara! - chamou ele. - Ela está aqui?
- Estou aqui, Toby.
- Conheci-te tarde de mais, querida. Tarde de mais. Que grande farra que nós teríamos feito. Que esfreganço... "Que desça o pano, a farsa terminou." Quem escreveu isto, idiota?
- Não sei, Toby - disse David.
- Alguém foi - murmurou Toby. - "Que desça o pano, a farsa terminou." Uma frase má. Mas não há papéis maus, apenas... Quantas páginas tens, David?
- O quê? Não compreendo.
- Nos velhos tempos... nos velhos tempos...
- Shh, querido - disse Cynthia, procurando acalmá-lo. - Fica calado. Tenta não falar.
- Não falar? Por que não me dizes que não respire? "Dai palavras à tristeza; o desgosto que não fala sussurra ao coração sobrecarregado e despedaça-o." David. O que é?
- Macbeth - disse David.
- Sim. Will de novo. Oh, que beleza! Adoro aquele homem. vou encontrar-me no inferno com Will. Nunca o deixariam entrar no céu, ele sabia de mais de vício e libertinagem. "Mal por mal, preferia estar em Filadélfia." Essa foi de W. C. Fields. Conheci-o, sabias? Era o epitáfio dele. Chamou a Chaplin um raio de um bailarino de bailei. Páginas. Quando não havia máquinas de copiar ou Xerox, David, era assim que
(1) Ver anotação anterior em relação ao trocadilho entre "Cyn" e "sin". (N. da T.)
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nos davam o nosso papel. Não o manuscrito inteiro, mas apenas as páginas com as nossas falas e deixas. Por isso, avaliava-se a instância do papel pelo número de páginas que tínhamos.
- Mas nem sempre - disse Blanche.
- Certo - disse Toby debilmente. - Nem sempre. Podia-se fazer de mordomo e ter quarenta e cinco folhas, mas em cada folha dactilografada via-se apenas "Sim, milord" ou "Não, milord" e as deixas. O truque consistia em ter uma série de páginas em sequência, uma cena inteira. Certo, Blanche?
- Certo.
- Certo, Cynthia?
- Certo, Toby. O maior número de páginas que consegui.
- Certa vez... - disse ele - certa vez tive três mil quatrocentas e oitenta e nove, numa peça.
- Oh, Toby - disse Cynthia.
- Tive! Tive! Quatro mil trezentas e noventa e oito Páginas. Quantas páginas tive na minha vida inteira... quantas páginas?
- Queres dormir agora, querido? - disse ela suavemente.
- Não, não quero. Oh, meu Deus!
Gemeu de agonia, contorcendo-se, agarrado à cintura.
- Aperta a minha mão - disse Cynthia. - Dói muito?
- A dor que se lixe - arquejou ele, deixando-se cair para trás - Fui assobiado no palco do Palladium. Há dor pior que essa? Cyntia!
- Estou aqui, Toby.
- Agora estamos casados, não estamos, Cyn?
- Sim, Toby, estamos casados.
- E o meu idiota bastardo é agora o meu querido, querido idiota. Ele está no teatro?
- Não, pai. Estou aqui. Há tempo, há tempo.
- Não. Não há tempo, não há tempo. Barbara. Estás aí? Não te vejo.
- Aqui, Toby.
- Beija-me, meu amor - murmurou ele. - Na boca. - Ela inclinou-se e beijou-o na boca.
- Oh - suspirou ele. - Oh, Cyn, talvez eu me vá embora por uns tempos. com Barbara.
- Mas voltas para mim - disse ela.
- Oh, sim. Oh, sim. Eu volto sempre... para ti.
Fez-se silêncio por algum tempo. A porta abriu-se lentamente e Jacob Ostretter e Julius Ostretter, ambos vestidos de negro, entraram silenciosamente com as suas esposas idênticas, com vestidos de lamé dourado e altos penteados armados. Os quatro tomaram posição aos pés da cama de Toby, permanecendo erectos, com as mãos cartizadas
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à frente, impressionantemente semelhantes a uma guarda de honra junto de um personagem importante.
- Quem está aí? - exclamou Toby. - Quem está aí?
- Amigos, Toby - disse Jacob Ostretter.
- Amigos - repetiu ele. - Amigos e amantes. Oh, que vida eu tive! "Pensem apenas isto quando eu tiver partido: que houve risos, amor e lágrimas tão doces como o vinho." Quem escreveu isto, David?
- Não sei, pai.
- Fui eu. Eu. Toby Marlow. Um comediante. Eu escrevi isto. Sim... escrevi... agora mesmo...
As luzes iam enfraquecendo gradualmente, a partir do fundo do quarto, tudo ia ficando mais escuro, cada vez mais escuro...
- Ide para o teatro, já! - gritou Toby.
- Há tempo - repetiu David.
- Não há tempo. Não há tempo. Sacode a casca, meu filho legítimo e desprovido de paixão. Sacode essa casca que... Cynthia, como se chama aquele peixe que tem casca?
- Camarão?
- Não. Blanche?
- Lagosta?
- Não. Barbara?
- Uma espécie de crustáceo?
- Crustáceo! Bela palavra. Por que hás-de ser um crustáceo, sangue do meu sangue e semente da minha semente? Abre-te e livra-te dessa crosta, meu querido, querido, idiota. Dá-te. Por favor, dá-te. Tu tens isso dentro de ti; eu sei que tens. Não és tu o meu herdeiro legítimo e dedicado? Eu estou dentro de ti, e tu só tens de aprender a dar-te e a esbanjar. Dá tudo e esbanja tudo, e nunca receies que o poço seque porque... porque... Cynthia, que é que eu quero dizer?
- Já disseste, Toby.
- Já? Já disse tudo? Graças a Deus. Foi uma boa tirada, uma boa tirada. E eles aplaudiram. Na maior parte das vezes. Eu não podia mudar... Recordo-me, em... num sítio qualquer... Ela veio ao meu camarim com uma rosa na mão. Foste tu, Cyn?
- Sim, Toby. Fui eu.
- Eras uma péssima comediante, Cyn.
- Eu sei, Toby.
- Mas maravilhosa na cama. Foste sempre maravilhosa na cama, Cynthia.
- Obrigada, Toby - disse ela com toda a sinceridade.
- É a tua mão? - perguntou ele.
- Sim, é a minha mão.
- Óptimo. Óptimo. Sabes, quando Barrymore foi o John. Sim, o John. Não o Lionel ou a Ethel. bom, alguém perguntou a John:
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"Hamlet chegou a seduzir Ofélia?" E John disse: "bom... talvez na companhia de Chicago." Não, não. Não é essa a história. Oh... Deixa ver... Quando John Barrymore estava no fim, derrotado pelo demónio do rum e pelos seus próprios terrores, viu uma rapariga muito novinha e muito bonita. Barbara, estás a ouvir?
- Estou a ouvir, Toby.
- Foi uma boa piada, uma boa piada. Disse... disse o John Barrymore: "Tanta coisa para fazer e tão pouco tempo." Sim, eu teria podido... eu talvez pudesse... Ahh, que se lixe. Está a fazer-se tarde.
- Aguenta-te, filho da mãe - disse Blanche, chorando.
- Oh! - disse ele - Não consigo! Já não consigo. Hoc in spiritum sed non in corpore. (1) E latim. Eu sei um pouco de latim. Eu sei um pouco de tudo. Cynthia.
- Estou aqui. Toby
- Eu amei-te sempre - disse ele. - Sempre.
- Eu sabia, Toby - disse ela, sem chorar. - Eu sabia.
- Óptimo. Óptimo. David, abre-te ao...
As luzes tinham enfraquecido gradualmente até haver apenas um círculo de suave brilho em volta da cama. Fez-se silêncio. Toby Marlow, comediante, tinha morrido. Barbara deixou-se cair pesadamente de joelhos e pegou na outra mão dele, beijando-a. Os Ostretter ficaram imóveis. Blanche chorava silenciosamente, sem fazer qualquer esforço para ocultar o rosto. Cynthia, ainda agarrada àmão de Toby, não se moveu.
- "Eis que se despedaça um nobre coração"-disse David. - "Boa noite..."
Mas não conseguiu terminar o discurso de Horácio. Começou a soluçar e caiu de joelhos junto à cama do pai, abraçando o cadáver. Enquanto ele chorava incontrolavelmente, as luzes da ribalta acenderam-se, um foco brilhou e, quando David ainda a chorar se levantou ,e se voltou para o público, era o único que podia ser visto claramente; os outros, em posturas abatidas, ficaram na semiobscuridade. David avançou até à ribalta, enfrentando o público. Abriu os braços e principiou o grande monólogo de Hamlet, com gestos grandiosos, de uma forma teatral, abrindo-se para o mundo...
- "Ser ou não ser: eis a questão.
"O que será mais nobre? Suportar as..."
Continuou a declamar, representando o papel, enquanto..... cai o pano.
(1) Estou aqui em espírito mas não em corpo. (N. da T.)
Lawrence Sanders
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