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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRÔNICAS II de Luís Fernando Veríssimo
CRÔNICAS II de Luís Fernando Veríssimo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRÔNICAS II

Luís Fernando Veríssimo

 

                           Índice

 

               DA TIMIDEZ

               DAR NÃO É FAZER AMOR

               DE VOLTA AO GRUNIDO

               DECLARAÇÃO DE AMOR

               DEFINIÇÕES

               DESABAFO DE UM MARIDO

               DESCARTÁVEIS

               ESTILOS MUITO DIFERENTES

               EXPERIÊNCIA

               FILHOS

               HISTÒRIAS DE VERÃO II

               INTERPRETANDO A BARBA

               LIXO

               LÍNGUA

               MÃE

              MÃES JUDIAS

               MELHOR DO QUE A ENCOMENDA

               MEU ADORÁVEL VAGABUNDO

               NOSSO PÂNICO

               NOVOS LOUCOS

               O APITO

               O CORAÇÃO ASSASSINADO

               O DIA DA AMANTE

              O ESPÍRITO DA NOSSA COISA

               O FIM DA QUARTA FEIRA

               O FIM DE UM CERTO SORRISO

               O HOMEM TROCADO

               O NOME DA SERPENTE

               O PREGO

               O PRESO

               O QUE FAZEM OS VAGALUMES DE DIA

               O QUE SE COMENTA NO INFERNO

               OS CONSTRANGIDOS

               OS VENENOSOS

               OUTRAS HISTÓRIAS

 

                        

                     DA TIMIDEZ

 

Ser um tímido notório é uma contradição. O tímido tem horror a ser notado, quanto mais a ser notório. Se ficou notório por ser tímido, então tem que se explicar. Afinal, que retumbante timidez é essa, que atrai tanta atenção? Se ficou notório apesar de ser tímido, talvez estivesse se enganando junto com os outros e sua timidez seja apenas um estratagema para ser notado. Tão secreto que nem ele sabe. É como no paradoxo psicanalítico, só alguém que se acha muito superior procura o analista para tratar um complexo de inferioridade, porque só ele acha que se sentir inferior é doença.

Todo mundo é tímido, os que parecem mais tímidos são apenas os mais salientes. Defendo a tese de que ninguém é mais tímido do que o extrovertido. O extrovertido faz questão de chamar atenção para sua extroversão, assim ninguém descobre sua timidez. Já no notoriamente tímido a timidez que usa para disfarçar sua extroversão tem o tamanho de um carro alegórico. Daqueles que sempre que-bram na concentração. Segundo minha tese, dentro de cada Elke Maravilha existe um tímido tentando se esconder e dentro de cada tímido existe um exibido gritando "Não me olhem! Não me olhem!" só para chamar a atenção.

O tímido nunca tem a menor dúvida de que, quando entra numa sala, todas as atenções se voltam para ele e para sua timidez espetacular. Se cochicham, é sobre ele. Se riem, é dele. Mentalmente, o tímido nunca entra num lugar. Explode no lugar, mesmo que chegue com a maciez estudada de uma noviça. Para o tímido, não apenas todo mundo mas o próprio destino não pensa em outra coisa a não ser nele e no que pode fazer para embaraçá-lo.

 

O tímido vive acossado pela catástrofe possível. Vai tropeçar e cair e levar junto a anfitriã. Vai ser acusado do que não fez, vai descobrir que estava com a braguilha aberta o tempo todo. E tem certeza de que cedo ou tarde vai acontecer o que o tímido mais teme, o que tira o seu sono e apavora os seus dias: alguém vai lhe passar a palavra.

 

 

                   DAR NÃO É FAZER AMOR

 

Dar não é fazer amor. Dar é dar. Fazer amor é lindo, é sublime, é encantador, é esplêndido. Mas dar é bom pra cacete. Dar é aquela coisa que alguém te puxa os cabelos da nuca... Te chama de nomes que eu não escreveria... Não te vira com delicadeza...

Não sente vergonha de ritmos animais.

Dar é bom.

Melhor do que dar, só dar por dar.

Dar sem querer casar....

Sem querer apresentar pra mãe...

Sem querer dar o primeiro abraço no Ano Novo.

Dar porque o cara te esquenta a coluna vertebral...

Te amolece o gingado...

Te molha o instinto.

Dar porque a vida é estressante e dar relaxa.

Dar porque se você não der para ele hoje, vai dar amanhã, ou depois de amanhã.

Tem pessoas que você vai acabar dando, não tem jeito.

Dar sem esperar ouvir promessas, sem esperar ouvir carinhos, sem esperar ouvir futuro.

Dar é bom, na hora.

Durante um mês.

Par a os mais desavisados, talvez anos.

Mas dar é dar demais e ficar vazio.

Dar é não ganhar.

É não ganhar um eu te amo baixinho perdido no meio do escuro. É não ganhar uma mão no ombro quando o caos da cidade parece querer te abduzir.

É não ter alguém pra querer casar, para apresentar pra mãe, pra dar o primeiro abraço de Ano Novo e pra falar: "Que que cê acha amor?".

É não ter companhia garantida para viajar.

É não ter para quem ligar quando recebe uma boa notícia.

Dar é não querer dormir encaixadinho...

É não ter alguém para ouvir seus dengos...

Mas dar é inevitável, dê mesmo, dê sempre, dê muito.

Mas dê mais ainda, muito mais do que qualquer coisa, uma chance ao amor.

Esse sim é o maior tesão.

Esse sim relaxa, cura o mau humor, ameniza todas as crises e faz você flutuar EXPERIMENTE SER AMADO...

 

 

                   DE VOLTA AO GRUNIDO

 

Ouvi dizer que é cada vez maior o número de pessoas que se conhecem pela internet e acabam casando ou vivendo juntas uma semana depois. As conversas por computador são, necessariamente, sucintas e práticas, e não permitem namoros longos, ou qualquer tipo de aproximação por etapas. Estamos longe, por exemplo, do tempo em que as pessoas se viam numa quermesse de igreja e se mandavam recados pelo alto-falante. Como as quermesses eram anuais, elas só se falavam uma vez por ano, e sempre pelo alto-falante. Quando finalmente se aproximavam, eram mais dois anos de namoro e um de noivado, e só na noite de núpcias, imagino, ficavam íntimos, e mesmo assim acho que o vovô dizia: "Com licença." Na geração seguinte, o homem pedia a mulher em namoro, depois pedia em noivado, depois pedia em casamento, e, quando finalmente podia dormir com ela, era como chegar no guichê certo depois de preencher todas as formalidades, reconhecer todas as firmas e esperar que chamassem a sua senha. Durante o namoro, ele mandava poemas, o que sempre funcionava, e muitas mulheres de uma certa época, para serem justas, deveriam ter casado com Vinícius de Morais.

As pessoas dizem que houve uma revolução sexual. O que houve foi o fechamento de um ciclo, uma involução. No tempo das cavernas, o macho abordava a fêmea, grunhia alguma coisa e a levava para a cama, ou para o mato. Com o tempo desenvolveram-se a corte, a etiqueta da conquista, todo o ritual de aproximação que chegou a exageros de regras e restrições, e depois foi se abreviando aos poucos até voltarmos, hoje, ao grunhido básico, só que eletrônico. Fechou-se o ciclo.

A corte, claro, tinha sua justificativa. Dava à mulher a oportunidade de cumprir seu papel na evolução, selecionando para procriação aqueles machos que, durante a aproximação, mostravam ter aptidões que favoreceriam a espécie, como potência física ou econômica, ou até um gosto por Vinícius de Morais. Isso quando podiam selecionar e a escolha não era feita por elas. No futuro, quando todo namoro for pela Internet, todo sexo for virtual e as mulheres ou os homens, nunca se sabe, só derem à luz a bytes, o único critério para seleção será ter um computador com modem e um bom provedor de linha.

Talvez toda a comunicação futura seja por computador. Até dentro de casa. Será como se os nossos namorados da quermesse levassem os alto-falantes para dentro de casa. Na mesa do café, marido e mulher, em vez de falar, digitarão seus diálogos, cada um no seu terminal. E, quando sentirem falta de palavra falada e do calor da voz, quando decidirem que só frases soltas numa tela não bastam e quiserem se comunicar mesmo, como no passado, cada um pegará seu celular.

Não sei o que será da espécie. Tenho uma visão do futuro em que viveremos todos no ciberespaço, volatizados. Só nossos corpos ficarão na Terra porque alguém tem que manejar o teclado e o mouse e pagar a conta da luz.

 

 

                   DECLARAÇÃO DE AMOR

 

Tentei dizer quanto te amava, aquela vez, baixinho mas havia um grande berreiro, um enorme burburinho e, pensando bem, o berçário não era o melhor lugar. Você de fraldas, uma graça, e eu pelado lado a lado, cada um recém-chegado você sem saber ouvir, eu sem saber falar.

Tentei de novo, lembro bem, na escola.

Um PS no bilhete pedindo cola interceptado pela professora como um gavião.

Fui parar na sala da diretora e depois na rua enquanto você, compreensivelmente, ficou na sua.

A vida é curta, longa é a paixão.

Numa festinha, ah, nossas festinhas, disse tudo:

"Eu te adoro, te venero, na tua frente fico mudo"

E você não disse nada. E você não disse nada.

Só mais tarde, de ressaca, atinei.

Cheio de amor e cuba, me enganei e disse tudo para uma almofada.

Gravei, em vinte árvores, quarenta corações.

O teu nome, o meu, flechas e palpitações:

No mal-me-quer, bem-me-quer, dizimei jardins.

Resultado: sou persona pouco grata corrido a gritos de "Mata! Mata!" por conservacionistas, ecólogos e afins. Recorri, em desespero, ao gesto obsoleto:

"Se não me segurarem faço um soneto"

E não é que fiz, e até com boas rimas?

Você não leu, e nem sequer ficou sabendo.

Continuo inédito e por teu amor sofrendo

Mas fui premiado num concurso em Minas.

Comecei a escrever com pincel e pichei num muro branco, o asseio que se lixe, todo o meu amor para a tua ciência.

Fui preso, aos socos, e fichado.

Dias e mais dias interrogado: era PC, PC do B ou alguma dissidência?

Te escrevi com lágrimas , sangue, suor e mel (você devia ver o estado do papel) uma carta longa, linda e passional.

De resposta nem uma carinha nem um cartão, nem uma linha!

Vá se confiar no Correio Nacional.

Com uma serenata, sim, uma serenata como nos tempos da Cabocla Ingrata me declararia, respeitando a métrica.

Ardor, tenor, a calçada enluarada... havia tudo sob a tua sacada menos tomada pra guitarra elétrica.

Decidi, então, botar a maior banca no céu escrever com fumaça branca: "Te amo, assinado.." e meu nome bem legível. Já tinha avião, coragem, brevê tudo para impressionar você mas veio a crise, faltou o combustível.

Ontem você me emprestou seu ouvido e na discoteca, em meio do alarido, despejei meu coração.

Falei da devoção há anos entalada e você disse "Não escuto banda". Disse "eu não escuto nada".

Curta é a vida, longa é a paixão.

Na velhice, num asilo, lado a lado em meio a um silêncio abençoado direi o que sinto, meu bem.

O meu único medo é que então empinando a orelha com a mão você me responda só: "Hein?"

Tu e Eu

Somos diferentes, tu e eu.

Tens forma e graça

e a sabedoria de só saber crescer

até dar pé.

Eu não sei onde quero chegar

e só sirvo para uma coisa

- que não sei qual é!

És de outra pipa

e eu de um cripto.

Tu, lipa

Eu, calipto.

Gostas de um som tempestade

roque lenha

muito heavy

Prefiro o barroco italiano

e dos alemães

o mais leve.

És vidrada no Lobo

eu sou mais albônico.

Tu, fão.

Eu, fônico.

És suculenta

e selvagem

como uma fruta do trópico

Eu já sequei

e me resignei

como um socialista utópico.

Tu não tens nada de mim

eu não tenho nada teu.

Tu, piniquim.

Eu, ropeu.

Gostas daquelas festas

que começam mal e terminam pior.

Gosto de graves rituais

em que sou pertinente

e, ao mesmo tempo, o prior.

Tu és um corpo e eu um vulto,

és uma miss, eu um místico.

Tu, multo.

Eu, carístico.

És colorida,

um pouco aérea,

e só pensas em ti.

Sou meio cinzento,

algo rasteiro,

e só penso em Pi.

Somos cada um de um pano

uma sã e o outro insano.

Tu, cano.

Eu, clidiano.

Dizes na cara

o que te vem a cabeça

com coragem e ânimo.

Hesito entre duas palavras,

escolho uma terceira

e no fim digo o sinônimo.

Tu não temes o engano

enquanto eu cismo.

Tu, tano.

Eu, femismo.

 

 

                     DEFINIÇÕES

 

O teste é o chopinho. O chopinho é definitivo... Quem sentaria aqui com a gente pra tomar um chopinho, quem não sentaria.

Vale para todas as épocas, todos os povos, todas as categorias. _ Por exemplo?

_ Revolução Francesa. Danton sentaria para tomar um chopinho.

_ Robespierre, nem pensar.

_ Exato.

_ Lennin sentaria?

_ Nunca. Já o Trotski, sim.

_ E o Stalin?

_ Sentaria, mas ficaria um clima ruim.

_ De Gaulle, não.

_ Churchill, sim.

_ Hitler?

_ Hmmm, os alemães são um problema. Em tese, nenhum alemão recusa um chope, e todos tomam com o mesmo gosto. Seja Bismark, Goeth, Nietzsche, Marx ou Marlene Dietrich.

_ Com alemão então o chopinho não prova nada.

_ O chopinho sozinho, não. É preciso acrescentar outro elemento definidor. Outro teste de tolerância, bom humor e simpatia.

_ Qual?

_ O bolinho de bacalhau.

_ No carnaval, sou Salgueiro.

_ Certo.

_ No futebol, Botafogo.

_ Sim, continue?

_ Como, continue?

_ Água mineral. Com ou sem gás?

_ Com.

_ No cafezinho: açúcar ou adoçante?

_ Adoçante.

_ Prossiga.

_ Bom. Deixa ver. Heterossexual.Destro. Não fumante.

Prefiro o inverno ao verão... Que mais?

_ Ascende o fósforo pra lá ou pra cá?

_ Nunca notei. Acho que pra lá.

_ Abotoa a camisa de cima para baixo ou de baixo para cima?

_ De cima para... Não. De baixo para cima. Não! Não sei.

_ Como não sabe? É a hora das definições.Melhor Papa.

_ Melhor Papa?! Sei lá! João Vinte e Três.

_ Melhor Hobin Hood.

_ Errol Flynn, disparado.

_ Gil ou Caetano?

_ Os dois.

_ Não pode. Tem que ser um ou outro.

_ Por quê? Eu não estou preparado. Preciso pensar!

_ Foi você que começou. Freud ou Jung? Bach ou Mozart?

Sautées, cozidas ou fritas?

_ Espere, eu...

_ Com fivela ou sem fivela? Rápido!

 

 

                   DESABAFO DE UM MARIDO

 

Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar:

Duas vezes por semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida, e um bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas. A dela é em Fortaleza e a minha em São Paulo.

Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então eu sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas.

Se eu soltar, ela vai às compras.

Ela tem um liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica. Então ela disse: "Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar".

Daí, comprei pra ela uma cadeira elétrica.

 

 

                   DESCARTÁVEIS

 

Excrescência. No dicionário está “demasia, excesso, superfluidade”. Coisa descartável. Que não faz falta. Que deve ser eliminada. Massacres como o de Carandiru, da Candelária e de Vigário Geral não são aberrações. Mesmo descontadas a estupidez humana, a insensibilização pela miséria, a certeza da impunidade ou da deficiência do disfarce ou da desculpa, um bando de extermínio não age com este descaso pela vida e pelas conseqüências dos seus atos se não sabe que o descaso é compartilhado, se não se sente implicitamente autorizado. A autorização explícita é óbvia: a do comerciante que encomenda a morte do pivete incômodo, a do comandante que acha que a repressão clandestina é necessária porque a legal é insuficiente, a do cidadão que acha que a polícia tem que matar mesmo para ele poder andar na rua e dispor da sua propriedade sossegado, a do espírito da corporação que exige vingança, etc. A autorização implícita é outra questão, e não tem a ver só com a tragédia social brasileira e a brutalização e a hipocrisia que ela gera. É o sentimento generalizado, mesmo que não seja dito, que a maior parte da população do mundo é lixo. Excrescência, irrecuperável, condenada a jamais ser outra coisa. Esta não é certamente uma constatação nova, e nem qualquer utopista social chegou a imaginar que o contrário era completamente viável. A novidade é que hoje se admite pensar o mundo a partir dela. Já se pode dormir com ela. Os países desenvolvidos já podem erguer barreiras mais rigorosas contra imigrantes pobres sem ferir suas convicções liberais, embora, claro, não aprove quando os neonazistas alemães queimam turcos e produzem seus próprios carandirus. A ordem econômica mundial está baseada na inevitabilidade de a maior parte do planeta ser habitada por lixo irreciclável. Ser “politicamente correto” hoje é dizer o que ninguém mais pensa - sobre raças, sobre os pobres, sobre compaixão e consciência - para não parecer insensível, mas com o acordo tácito de que só se está preservando a convenção, que o vocabulário dos bons sentimentos finalmente substituiu os bons sentimentos por completo. É a intuição destes novos tempos sem remorso que move os exterminadores tanto quanto a aprovação dos imbecis nacionais. Não faz sentido dizer que a maioria das pessoas chacinadas em Vigário Geral não tinha ficha na polícia. Não existe lixo inocente ou culpado. O que está no lixo é lixo. Demasia. Excesso. Superfluidade. Excrescência.

 

 

                   ESTILOS MUITO DIFERENTES

 

Na verdade, o "Quase" tem qualidades, sim. O problema (e que muitos de nós têm constrangimento em admitir) é que não gostamos do estilo dele (e dos demais textos atribuídos ao LFV). Os admiradores do Verissimo gostam do humor sutil, irônico, mordaz e inesperado dele. Esses textos românticos, de auto-ajuda, pseudofilosóficos, não fecham bem com nossas expectativas. Não dá pra dizer que ou você gosta do Verissimo ou gosta do "Quase". Mas dá pra dizer que quanto mais você ler Verissimo, menos qualidades vai enxergar em textos como aquele. Sorry, mas é a verdade...

 

 

                  EXPERIÊNCIA

 

Uma vez fizeram uma experiência. Criaram um macaco dentro de uma jaula com dois bonecos que substituíam a mãe dele. Um era um boneco duro e frio, mas que lhe dava leite. O outro não dava leite, mas era quente e acolchoado como costumam ser as mães. Então assustavam o macaquinho para ver se ele corria para a mãe que o alimentava ou para a mãe que lhe dava colo.

E ele invariavelmente corria para a mãe aconchegante. Acho que uma experiência parecida poderia ser feita não com macacos, mas com crianças, e não com mães mecânicas mas com um livro e uma televisão. Uma experiência hipotética, claro; longe de mim sugerir que se coloquem crianças em jaulas para assusta-las e testar suas reações. O que equivaleria à mãe que alimentava mas não dá calor, o livro ou a televisão?

Como ainda sou parcial a Gutenberg(1), gosto de pensar que uma criança pode receber tudo o que precisa da televisão, mas que nada substitui o prazer tátil, o calor de um livro, e que sua relação com a informação impressa sempre será mais humana e atraente. Mas tenho a impressão de que a experiência me decepcionaria. Provocada a procurar a informação pelo meio que lhe dá mais prazer ou segurança, uma criança moderna a princípio me encheria de esperança dirigindo-se para um livro. Mas em seguida me desiludiria. Carregaria o livro até a frente da televisão e o usaria como um degrau para alcançar o botão da TV.

 

(1) Johannes Gensfleish Gutenberg (1937-1468), inventor alemão, criador de um sistema de imprensa que possibilitou a reprodução dos livros em maior quantidade.

 

 

                   FILHOS

 

Quando o Eduardo e a Carminha resolveram se divorciar, surgiu o problema de quem ficava com os filhos.

- O Betinho fica comigo porque é pequeno e precisa dos cuidados da mãe - disse Carminha.

- Mas quem cuida dele é a babá e a babá vai comigo - disse Eduardo.

- Como, vai com você?

- Eu preciso da babá para cuidar do Oswaldo.

- Mas o Oswaldo está com 17 anos!

- Ele e a babá são muito apegados. Seria uma maldade separar os dois.

- Então o Oswaldo fica comigo. O Oswaldo, o Betinho, a Carmem Maria, a Denise e a babá.

- Você está esquecendo de uma coisa.

- O quê?

- A Denise não é sua filha. Quando eu me separei da Jô e casei com você, trouxe a Denise e o Daniel comigo.

- Se é por isso, o Oswaldo também não é meu.

- O quê?

- Era do meu segundo marido, que não quis ficar com ele.

- O Oswaldo não era seu filho?

- Não, era do Miro. Pensando bem, nem era do Miro, era da Teresa.

Quando os dois se separaram, o Miro ficou com o Oswaldo. Acho que por distração.

- Mas eu casei com você convencido de que o Oswaldo era seu filho.

- Que diferença faz?

- Que diferença faz? Você esquece que eu estive casado com a Teresa durante três anos.

- E daí?

- Daí que o Oswaldo pode ser meu filho. É engraçado, quando me separei da Teresa, tenho certeza que fiquei com todos os filhos. Deixei um ótimo cachimbo, mas trouxe os filhos.

- Você teve o Rui e o Raul com a Teresa. O Oswaldo é filho da Teresa com o Potiguar.

- Raul? Que Raul?

- Como, que Raul? Seu filho, Raul.

- O Raul é seu filho.

- Meu?!

- Quando nós nos casamos, você tinha o Raul, o Oswaldo e a Carmem Maria. Eu tinha a Denise e o Daniel. Nós tivemos o Betinho.

- De maneira nenhuma. Você tinha o Raul, a Denise e o Daniel, eu tinha o Oswaldo, que na verdade era do Miro, ou da Teresa mas ficou com o Miro, e a Carmem Maria.

- Mas então de onde saiu o Raul?

- Eu pensei que ele estivesse com você.

- Criamos um clandestino todos estes anos!

- Bem que eu desconfiava. Ele é o que mais gasta. E que fim levou o Rui?

- Que Rui?

- O seu filho com a Teresa. Você disse que ficou com todos os filhos do casamento.

- É. A Teresa não quis ficar porque ia se casar com o Potiguar e o Potiguar já tinha sete.

- Então o Rui ficou com você.

- Pois é...

- E que fim levou?

- Deixa eu pensar. Depois da Teresa eu me casei com a Jô...

- Então o Rui ficou com a Jô.

- Não. Espera aí...

- O quê?

- Lembra aquela nossa ida à Disney?

- Lembro. Levamos todas as crianças.

- Inclusive o Rui...

- E esquecemos ele lá!

- Tudo bem. Deve estar feliz.

- E o Raul?

- Fica com você.

- Não sei por quê?! Eu fico com o Raul, o Oswaldo, a Carmem Maria e o Betinho e você fica só com a Denise e o Daniel, que são os que gastam menos? Muito bonito.

- Mas você fica com a babá.

- Fica pelo menos com o Raul.

- O Raul não fica com ninguém. Já está com 21 anos e pode trabalhar.

E, mesmo, não posso ficar com mais dois.

- Por quê?

- Porque pretendo me casar com a Marilu, que já tem cinco.

- E eu e o meu novo marido?

- O Potiguar já tem sete. Mais quatro não vai fazer diferença.

 

 

                     HISTÒRIAS DE VERÃO II

 

É importante as pessoas combinarem como se comportarão em determinadas situações sociais, para evitar surpresas. Aconteceu de um casal ser convidado a passar um fim de semana numa casa de campo e chegar ao local sem a menor idéia do que o esperava. A casa era grande e bonita, o lugar era aprazível, mas o homem - digamos que se chamava João - teve um pressentimento e deteve a mão da mulher, Maria, antes que ela tocasse a campainha.

- Espere. Você sabe que nós podemos estar entrando numa história...

- Como história?

- Não sabemos nada desta casa e de quem vai estar aí. E se entramos numa história infantil?

- Que história infantil?

- Sei lá. Não tem uma da donzela que chega numa casa de ursos e acaba dormindo na cama de um deles?

- Eu conheço a dos anõezinhos. Branca de Neve. A casa é de sete anões e Branca de Neve fica morando com eles, até que a bruxa bate na porta com uma maçã envenenada.

- Vamos combinar o seguinte. Você só dorme na cama comigo e, se aparecer um anão propondo qualquer tipo de arranjo doméstico mais prolongado, você dá uma desculpa qualquer. Diz que tem dentista na Segunda. E em hipótese alguma chegue perto da porta, se baterem.

- Mas, se for a história da Branca de Neve, tem um final feliz. Ela fica com um príncipe.

- Não chegue perto de nenhum príncipe também.

- Está bem... Vamos entrar?

- Espere. Nós podemos estar entrando numa história do Chekhov.

- Chekhov?

- Russo. Século 19. Grupo de pessoas reunidas numa mesa de campo durante um fim de semana de verão era com ele.

- Como vamos fazer para saber se é uma história do Chekhov ou não?

- Se todos tiverem nomes russos, falarem muito, parecerem não dizer nada, mas irem se revelando aos poucos, é do Chekhov.

- Há algum perigo?

- De maçãs envenenadas, não. Pelo contrário, comeremos muito bem. E, se surgir algum nobre, será certamente decadente e provavelmente impotente. O único risco é sairmos daqui conhecendo mais sobre a condição humana do que precisamos.

- Então, se estiver muito chato, eu faço um sinal, você diz que se lembrou que deixamos o gás ligado e damos o fora.

- Combinado.

- Vamos?

- Espere. E se estivermos entrando numa história da Agatha Christie? Ela também gostava de grupos heterogêneos em casas de campo, onde havia um crime e todos eram suspeitos.

- Pode ser um fim de semana excitante.

- Não se um de nós for a vítima.

- O que fazemos?

- Vamos entrar. Se todos tiverem nomes como Nigel ou Milicent, o mordomo parecer culpado demais e estiver faltando um dos ferros da lareira - não damos desculpa nenhuma e saímos correndo.

- Certo. Vamos?

- Espere. Também pode ser uma história do marquês de Sade.

- Marquês de Sade?!

- Um grupo de devassos reunidos numa mansão com virgens adolescentes e prostitutas, para rituais de deboche e tortura.

- Como devemos nos comportar?

- Valem as mesmas instruções da história infantil. Nada de dormir na cama de outro e não aceite a proposta de nenhum anão.

- E você fique longe das virgens adolescentes.

- Já começou a me controlar?

 

 

                   INTERPRETANDO A BARBA

 

O Lula de barba preta faria o mesmo governo que faz o Lula de barba branca? Não é conjetura vazia, a resposta tem a ver com várias perplexidades do momento. Se o Lula da barba ameaçadora também se abrandasse no poder e fizesse mais ou menos o que o Lula da barba patriarcal está fazendo, isso significa que a reação radical que recorreu a tudo para que ele não se elegesse antes deve desculpas à Nação. São eles os responsáveis pelos 13 anos em que, em vez do Lula no Planalto com dólar e risco Brasil baixos, bênção do FMI e a esquerda no poder onde pode ser melhor vigiada e controlada, tivemos anti-Lulas, alguns até bastante estranhos, atrasando a nossa vida. Os próprios banqueiros que tentaram aquela desesperada manobra terrorista com o dólar antes das últimas eleições deveriam hoje estar atirando cinzas de contrição na cabeça. Eles não sabiam o que estavam fazendo e quase puseram tudo a perder!

O branqueamento da barba tornou o radical elegível porque representa a sabedoria ou apenas a resignação que vem com o tempo? Lula é o mesmo, só com uma barba mais confiável, ou mudou junto com a barba, cansou de esperar e concordou em ser ele mesmo o anti-Lula definitivo, o seu próprio antídoto? Não tinha ocorrido à direita brasileira esse modo revolucionário, inédito no mundo, de livrar-se da esquerda: dar-lhe o poder. A direita passou 13 anos tentando evitar o impensável justamente porque não tinha pensado adequadamente a respeito. Ou talvez a protelação da eleição do Lula até que a sua barba ficasse branca é que foi sábia. Um patriciado não mantém suas abotoaduras por tanto tempo na sociedade mais desigual do planeta sendo burro o tempo todo. Só deixaram o Lula entrar no Planalto quando a armadilha não podia mais ser desarmada, ainda mais por um cordato senhor de barbas brancas.

Não existe melhor lugar para a esquerda mostrar suas contradições do que no poder, onde nenhuma coerência dogmática sobrevive por muito tempo, e se junto com a esquerda se entredevorando em público os banqueiros continuam felizes, felizes como nunca, o que mais pode pedir a direita?

Lula, pinte a barba. Só para a gente se lembrar como era.

 

 

                   LIXO

 

Encontram-se na área de serviço. Cada um com o seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam. - Bom dia.

- Bom dia.

- A senhora é do 610.

- E o senhor do 612.

- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente... - Pois é ... - Desculpe a minha indiscrição, mastenho visto o seu lixo ...

- O meu quê?

- O seu lixo.

- Ah...

- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena.

- Na verdade sou só eu.

- Humm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata. - É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar .

- Entendo.

- A senhora também .

- Me chama de você.

- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim. - É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas como moro sozinha, às vezes sobra.

- A senhora... Você não tem família?

- Tenho, mas não aqui.

- No Espírito Santo.

- Como é que você sabe?

- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.

- É. Mamãe escreve todas as semanas.

- Ela é professora?

- Isso é incrível! Como você adivinhou?

- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.

- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.

- Pois é ...

- No outro dia, tinha um envelope de telegrama amassado.

- É.

- Más notícias?

- Meu pai. Morreu.

- Sinto muito.

- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos. - Foi por isso que você recomeçou a fumar?

- Como é que você sabe?

- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.

- É verdade. Mas consegui parar outra vez.

- Eu, graças a Deus, nunca fumei.

- Eu sei, mas tenho visto uns vidrinhos de comprimidos no seu lixo...

- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.

- Você brigou com o namorado, certo?

- Isso você também descobriu no lixo?

- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.

- É, chorei bastante, mas já passou.

- Mas hoje ainda tem uns lencinhos.

- É que estou com um pouco de coriza.

- Ah.

- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo. - É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.

- Namorada?

- Não.

- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.

- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.

- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.

- Você está analisando o meu lixo!

- Não posso negar que o seu lixo me interessou.

- Engraçado. Quando examinei o seu lixo,decidi que gostaria de conhecê-la . Acho que foi a poesia.

- Não! Você viu meus poemas?

- Vi e gostei muito.

- Mas são muito ruins!

- Se você achasse eles ruins mesmos, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.

- Se eu soubesse que você ia ler ...

- Só não fiquei com ele porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela? - Acho que não. Lixo é domínio público.

- Você tem razão. Através dos lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?

- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que... - Ontem, no seu lixo.

- O quê?

- Me enganei, ou eram cascas de camarão?

- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.

- Eu adoro camarão.

- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode... Jantar juntos?

- É. Não quero dar trabalho.

- Trabalho nenhum.

- Vai sujar a sua cozinha.

- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu...

 

 

                   LÍNGUA

 

O americano queria comprar um imóvel no Rio.

- HOW MUCH?

- Como disse?

- HOW MUCH?

- Quanto? Temos vários planos de...

- I DON'T UNDERSTAND PORTUGUESE.

- Iiiih...

- DON'T YOU SPEAK ENGLISH?

- INGLISH, eu? Só de ginásio e assim mesmo já esqueci. Só ficou o AILOVIÚ. Ma o cavalheiro também vai me desculpar. Vir pro Brasil sem falar uma palavra de português, é dose.

- THIS BUILDING. THE LONG BEACH EXECUTIVE SUITE SERVICE...

- Isso. LONG BEACH EXECUTIVE SUITE SERVICE. Coisa finíssima. O preço total é este aqui. ANDERSTÃ? PRICE total.

- WHAT IS THE DOWN-PAYMENT?

- A entrada, é isso? THE ENTRANCE?

- WHAT?

- Assim não vai dar... Vocês americanos nem se dão ao trabalho de aprender nossa língua. No Brasil se fala português, meu chapa. Isto aqui não é colônia de vocês não.

- I DON'T UNDERSTAND.

- Vamos tentar de novo. LONG BEACH EXECUTIVE SUITE SERVICE. Vou falar bem compassado que é pra você entender. O PRICE total é este aqui. A entrada - ENTRANCE- é esta aqui.

- SWIMMING POOL?

- Ahn?

- CAR PARK?

- Ahn?

- PLAYGROUND?

- Playground! Agora está falando a minha língua!

 

 

                   MÃE

 

Mãe: Alô?

Filha: Mãe? Posso deixar os meninos contigo hoje à noite?

Mãe: Vai sair?

Filha: Vou.

Mãe: Com quem?

Filha: Com um amigo.

Mãe: Não entendo porque você se separou do teu marido, um homem tão bom...

Filha: Mãe! Eu não me separei dele! ELE que se separou de mim! Mãe: É... você me perde o marido e agora fica saindo por aí com qualquer um...

Filha: Eu não saio por aí com qualquer um. Posso deixar os meninos? Mãe: Eu nunca deixei vocês com a minha mãe, para sair com um homem que não fosse teu pai!

Filha: Eu sei, mãe. Tem muita coisa que você fez que eu não faço! Mãe: O que você tá querendo dizer?

Filha: Nada! Só quero saber se posso deixar os meninos. Mãe: Vai passar a noite com o outro? E se teu marido ficar sabendo? Filha: Meu ex-marido!! Não acho que vai ligar muito, não deve ter dormido uma noite sozinho desde a separação! Mãe: Então você VAI dormir com o vagabundo! Filha: Não é um vagabundo!!!

Mãe: Um homem que fica saindo com uma divorciada com filhos só pode ser um vagabundo, um aproveitador! Filha: Não vou discutir, mãe. Deixo os meninos ou não? Mãe: Coitados... com uma mãe assim...

Filha: Assim como?

Mãe: Irresponsável! Inconseqüente! Por isso teu marido te deixou! Filha: CHEGA!!!

Mãe: Ainda por cima grita comigo! Aposto que com o vagabundo que tá saindo contigo você não grita. Filha: Agora tá preocupada com o vagabundo?

Mãe: Eu não disse que era vagabundo!? Percebi de cara! Filha: Tchau!!!

Mãe: Espera, não desliga! A que horas vai trazer os meninos? Filha: Não vou. Não vou levar os meninos, também agora não vou mais sair!

Mãe: Não vai sair? Vai ficar em casa? E você acha o que, que o príncipe encantado vai bater na tua porta? Uma mulher na tua idade, com dois filhos, pensa que é fácil encontrar marido?

Se deixar passar mais dois anos, aí sim que vai ficar sozinha a vida toda!

Depois não vai dizer que não avisei! Eu acho um absurdo, na tua idade você ainda precisar que EU te empurre para sair!

 

 

                   MÃES JUDIAS

 

Diz que quatro mães judias se encontraram no céu. Como não podia deixar de ser, a conversa toda é sobre os filhos.

- Não posso me queixar - diz a primeira - Meu filho, até hoje, só me deu felicidade. Um santo. E na Terra, por causa dele, todo mundo só fala em caridade, em virtude, em bons sentimentos.

- Seu filho é…? - pergunta a segunda.

- Jesus Cristo! - diz a primeira. E, inclinando-se para frente, em tom confidencial e com um gesto que indica tudo em volta: - O dono disto aqui.

- Não é do pai dele?

- Bem… É da família.

- Agora, alegria, alegria, quem me dá é o meu filho - diz a Segunda mãe - Ach, como eu me orgulho dele. Na Terra, por casa dele, todo mundo só fala em justiça, em mudanças sociais, em solidariedade humana.

- Como é o nome dele?

- Karl. Karl Marx.

- Mmmm - fazem as outras, apertando a boca.

- O Shnuga… - suspira a mãe de Marx, lembrando o seu apelido de bebê.

- E o meu filho? - diz a terceira - Um professor. Este sim é para uma mãe se orgulhar. Inteligeeeeeente! Um crânio. Na Terra, por causa dele, todo mundo só fala no Universo, na relatividade, nos buracos negros.

- Quem é ele?

- O Beto;

- Beto?

- Einstein.

- Ah.

Falta falar a quarta mãe e as outras três se viram para ela.

- Eu nem quero falar porque vocês vão ficar com inveja de mim - diz ela.

- Fala.

- Que filho!

- Quem é?

- Um doutor.

- O que foi que ele fez?

- Por causa dele, na Terra, todo mundo só fala na mãe.

E a mãe de Freud fica sorrindo, deixando-se admirar pelas outras três.

Filho era aquele!

 

 

                   MELHOR DO QUE A ENCOMENDA

 

Esperava-se que, tendo perdido na votação popular por mais de 500 mil votos e recebido a presidência dos Estados Unidos de presente da Suprema Corte americana, numa decisão que ainda não passou pela traquéia de boa parte da população do país, George W. Bush se comportasse no poder com algum comedimento, pelo menos por um trimestre. Não foi o que aconteceu. Bush está se saindo melhor do que encomendaram os interesses que o elegeram. A indústria do petróleo, a indústria química, a indústria bélica e a direita religiosa não podem se queixar do serviço rápido e atencioso que recebem da Casa Branca desde o primeiro dia.

A indústria química, principalmente, mesmo acostumada com a alta rentabilidade dos seus negócios, não esperava um retorno tão imediato do capital investido na eleição de Bush. O relaxamento de medidas de proteção ambiental e a revisão de leis que favoreciam a responsabilização de empresas do setor em casos envolvendo a saúde pública, já enfraquecidas na administração do pseudodemocrata Clinton, estão sendo forçadas com entusiasmo por Bush, de quem nunca se dirá que é um mal-agradecido. A indústria do petróleo, da qual vieram o vice-presidente Cheney e o próprio Bush, também está sendo ajudada com o sacrifício da ecologia e da saúde, sem qualquer pudor. A franca declaração de Bush que não assinaria o tratado de Kyoto para diminuição da poluição que ameaça a vida no planeta porque salvar a vida no planeta não interessa, economicamente, aos Estados Unidos deve ser aplaudida onde quer que as pessoas acreditem que o lucro deve se sobrepor a tudo, inclusive ao bom senso.

Bush promete construir o escudo nuclear sonhado por Reagan para proteger o complexo industrial-militar americano do ataque de potências-bandidas como a Coréia do Norte. Diziam que o tal projeto "Star Wars" era uma idéia que Reagan teve jogando um videogame contra si mesmo, e perdendo, que os militares levaram a sério. Na verdade é uma idéia que nada tem de infantil para manter o Pentágono contente e a indústria de armas próspera e saudável por muitos anos, no maior exemplo de intervenção estatal na economia que os arautos da livre empresa dão ao mundo.

Reunido com Bush, Éfe Agá deve ter meditado sobre as injustiças do mundo. Ele, um presidente de Primeiro Mundo, consciente e preparado, sem qualquer poder para intervir inteligentemente nos destinos da Terra, diante daquele caipira primário comandado pela pior inconsciência do mundo – e com o poder de mandar nele.


                   MEU ADORÁVEL VAGABUNDO

 

A gente ri da menina que, às vésperas do vestibular, não sabe se tenta letras, educação física ou oceanografia, sem descartar nutricionismo e um bom casamento, mas o fato é que todos nós passamos pelo mesmo tipo de indefinição, Eu, por exemplo, já quis ser aviador, tocador de pistom, arquiteto e, durante um bom período de pós-adolescência, vagabundo profissional, e só não consegui esta última vocação porque a família, por alguma razão, se opôs. Uma das coisas que eu nunca pensei ser foi jornalista.

Não posso imaginar qual seria o resultado se algum dia eu tivesse feito um teste vocacional.

– Temos aqui os resultados de seu teste e eles são interessantíssimos, sr. Veríssimo.

– Ah, é?

Finalmente a revelação. Eu mesmo ia descobrir para que servia.

– É a primeira vez que chegamos a um resultado assim desde que começamos a fazer testes. Deve ser a primeira vez em toda a história da psicologia, em todo o mundo.

– Não diga!

– O senhor é o primeiro caso conhecido de alguém que tem vocação para aposentado!

Aposentado é o vagabundo sem culpa e com renda. Embora, no Brasil, renda insuficiente.

O problema seria que eu precisaria ser aposentado de alguma profissão. Não há curso de aposentado. Como entrar em fila, como sentar em banco de praça, como não fazer nada e incomodar em casa. Pós-graduação em azucrinar empregada. Começando a vida como aposentado, eu, nem que fosse só pela juventude, seria um aposentado ativista. Seria imbatível em todos os jogos de aposentados que requeressem esforço físico.

Se bem que, com a minha vocação de aposentado realista, para que entrar em qualquer coisa que requeresse esforço físico? Não. Jogos de damas, longas sestas, muita leitura. Eu subiria lentamente na carreira de aposentado, ficando cada vez mais indolente, até chegar a hora de parar e pedir a aposentadoria, claro.

Não podendo seguir meu pendor natural para não fazer nada, acabei fazendo tudo. O sonho de ser aviador não sobreviveu à infância, mas cheguei a providenciar o começo de uma possível carreira como pistonista. Nos Estados Unidos, onde moramos uma certa época, procurei um curso de música que emprestava instrumentos. Não tinham pistom no momento. Peguei saxofone mesmo. Ainda toco, eventualmente, se bem que haja discussões sobre se “tocar” é o verbo exato – e ainda imagino que um dia possa me dedicar ao show bizz em tempo integral, se 72 anos não for muito tarde para começar. Geriatric rock, por que não?

Arquitetura, tradicionalmente, é a primeira escolha de quem sabe ter uma profissão séria, mas não tão séria assim. É a engenharia de quem não quer fazer engenharia, e o refúgio dos indecisos. Há provavelmente mais ex-estudantes de arquitetura fazendo outra coisa – normalmente nas artes – do que ex-estudantes de qualquer outro curso. Querer arquitetura, portanto, era querer fazer alguma coisa criativa, que até podia ser a arquitetura.

No meu caso não foi. Nem comecei nada. Parei de estudar e só quando entrei, quase por acaso, no jornalismo, muitos anos depois, numa época em que o diploma ainda não era obrigatório, descobri uma vocação ou pelo menos uma maneira de passar o tempo até a aposentadoria, quando finalmente poderei exercer minha aptidão natural. Não sou um exemplo muito edificante, eu sei. Só queria mostrar que a indecisão não é incomum, e não é tão grave. A vocação da pessoa pode, inclusive, ser a indecisão.

 

 

MULHER SUA ORIGEM E SEU FIM

 

Existem várias lendas sobre a origem da Mulher. Uma diz que Deus pôs o primeiro homem a dormir, inaugurando assim a anestesia geral, tirou uma de suas costelas e com ela fez a primeira mulher. E que a primeira provação de Eva foi cuidar de Adão e agüentar o seu mau humor enquanto ele convalescia da operação.

Uma variante desta lenda diz que Deus, com seu prazo para a Criação estourado, fez o homem às pressas, pensando "Depois eu melhoro", e mais tarde, com o tempo, fez um homem mais bem-acabado, que chamou Mulher, que é "melhor" em aramaico.

Outra lenda diz que Deus fez a mulher primeiro, e caprichou nas suas formas, e aparou aqui e tirou dali, e com o que sobrou fez o homem só para não jogar barro fora. Zeus teria arrancado a mulher de sua própria cabeça. Alguns povos nórdicos cultivam o mito da Grande Ursa Olga, origem de todas as mulheres do mundo, o que explica o fato das mulheres se enrolarem periodicamente em pêlos de animais, cedendo a um incontrolável impulso atávico, nem que seja só para experimentar, na loja, e depois quase desmaiar com o preço. Em certas tribos nômades do Meio Oriente ainda se acredita que a mulher foi, originariamente, um camelo, que na ânsia de servir seu mestre de todas as maneiras foi se transformando até adquirir sua forma atual. No Extremo Oriente existe a lenda de que as mulheres caem do céu, já de kimono.

E em certas partes do Ocidente persiste a crença de que mulher se compra através dos classificados, podendo-se escolher idade, cor da pele e tipo de massagem.

Todas estas lendas, claro, têm pouco a ver com a verdade científica.

Hoje se sabe que o Homem é o produto de um processo evolutivo que começou com a primeira ameba a sair do mar primevo, e é o descendente direto de uma linha específica de primatas, tendo passado por várias fases até atingir o seu estágio atual - e aí encontrar a Mulher, que ninguém ainda sabe de onde veio. É certamente ridículo pensar que as mulheres também descendem de macacos. A minha mãe, não! Uma das teses mais aceitáveis sobre o papel da mulher na evolução do homem é a de que oprimeiro encontro entre os dois se deu no período paleolítico, quando um homo-sapiens mas não muito, chamado, possivelmente, Ugh, saiu para caçar e avistou, sentado numa pedra penteando os cabelos, um ser que lhe provocou o seguinte pensamento, em linguagem de hoje: "Isso é que é mulher e não aquilo que tenho na caverna". Ugh aproximou-se da mulher e, naquele seu jeitão, deu a entender que queria procriar com ela. "Agh maakgrom grom", ou coisa parecida.

 

A mulher olhou-o de cima a baixo e desatou a rir. É preciso lembrar que Ugh, embora fosse até bem apessoado pelos padrões da época, era pouco mais do que um animal aos olhos da mulher. Tinha a testa estreita e as mandíbulas pronunciadas e usava gordura de mamute nos cabelos. A mulher disse alguma coisa como "Você não se enxerga, não?" e afastou-se, enojada, deixando Ugh desolado. Antes dela desaparecer por completo, Ugh ainda gritou "Espera uns 10 mil anos pra você ver!", e de volta à caverna exortou seus companheiros a aprimorarem o processo evolutivo. Desde então, o objetivo da evolução do homem foi o de proporcionar um par à altura para a mulher, para que, vendo o casal, ninguém dissesse que ela só saía com ele pelo dinheiro, ou para espantar assaltantes. Se não fosse por aquele encontro fortuito em alguma planície do mundo primitivo, o homem ainda seria o mesmo troglodita desleixado e sem ambição, interessado apenas em caçar e catar seus piolhos, e um fracasso social. Mas de onde veio à primeira mulher, já que podemos descartar tanto a evolução quanto as fantasias religiosas e mitológicas sobre a criação? Inclino-me para a tese da origem extraterrena.

A mulher viria (isto é pura especulação, claro) de outro planeta. Venho observando-as durante anos - inclusive casei com uma, para poder estudá-las mais de perto - e julgo ter colecionado provas irrefutáveis de que elas não são deste mundo. Observei que elas não têm os mesmos instintos que nós, e volta e meia são surpreendidas em devaneio, como que captando ordens de outra galáxia, embora disfarcem e digam que só estavam pensando no jantar.

Têm uma lógica completamente diferente da nossa. Ultimamente têm tentado dissimular sua peculiaridade, assumindo atitudes masculinas e fazendo coisas - como dirigir grandes empresas e xingar a mãe do motorista ao lado - impensáveis há alguns anos, o que só aumenta a suspeita de que se trata de uma estratégia para camuflar nossas diferenças, que estavam começando a dar na vista.

 

Quando comentamos o fato, nos acusam de ser machistas, presos a preconceitos e incapazes de reconhecer seus direitos, ou então roçam a nossa nuca com o nariz, dizendo coisas como "ioink, ioink" que nos deixam arrepiados e sem argumentos. Claramente combinaram isto. Estão sempre combinando maneiras novas de impedir que se descubra que são alienígenas e têm desígnios próprios para a nossa terra. É o que fazem quando vão, todas juntas, ao banheiro, sabendo que não podemos ir atrás para ouvir. Muitas vezes, mesmo na nossa presença, falam uma linguagem incompreensível que só elas entendem, obviamente um código para transmitir instruções do Planeta Mãe. E têm seus golpes baixos. Seus truques covardes. Seus olhos laser, claros ou profundamente escuros, suas bocas. Meu Deus, algumas até sardas no nariz.

Seus seios, aqueles mísseis inteligentes.

Aquela curva suave da coxa quando está chegando no quadril, e a Convenção de Genebra não vê isso! E as armas químicas - perfumes, loções, cremes. São de uma civilização superior, o que podem nossos tacapes contra os seus exércitos de encantos? Breve dominarão o mundo. Breve saberemos o que elas querem. Se depois de sair este artigo eu for encontrado morto com sinais de ter sido carinhosamente asfixiado, como um sorriso, minha tese está certa.

Se nada me acontecer, é sinal de que a tese está certa, mas elas não temem mais o desmascaramento. O que elas querem, afinal? Se a mulher realmente veio ao mundo para inspirar o homem a melhorar e ser digno dela, pode ter chegado à conclusão de que falhou, que este velho guerreiro nunca tomará jeito. Continuaremos a ser mulheres com defeito, uma experiência menor num planeta inferior.

 

O que sugere a possibilidade de que, assim como veio, a mulher está pronta a partir, desiludida conosco. E se for isso que elas conspiram nos banheiros?

A retirada? Seríamos abandonados à nossa própria estupidez. Elas levariam as suas filhas e nos deixariam com caras de Ugh. Posso ver o fim da nossa espécie.

Nossos melhores cientistas abandonando tudo e se dedicando a intermináveis testes com a costela, depois de desistir da mulher sintética. Tentando recriar a mágica da criação. Uma mulher, qualquer mulher, de qualquer jeito.

Prometemos que desta vez não as decepcionaremos. Uma mulher! Como é que se faz uma mulher?

 

 

                   NOSSO PÂNICO

 

"Será que entre os presos deste país existe um que tenha cometido um crime mais hediondo do que matar uma nação de fome e na miséria?” — escreveu o filósofo mais influente do momento, o anônimo autor da carta distribuída a comerciantes antes do ataque orquestrado do tráfico ao Rio, na segunda-feira.

Difícil dizer o que assusta mais: o poder de mobilização e de fogo do crime, o que não é novidade, ou o tom político da sua última ameaça, que é inédito. Pois é aterrador pensar que só o que distingue vandalismo organizado de insurreição é o arranjo das palavras que acompanham os atos. Que só o que falta para banditismo virar revolução é um rótulo que grude, é a frase apropriada.

Mais de um criminoso já explicou sua vida e seus crimes como um revide à sociedade desigual em que nasceu, já tivemos muitos aspirantes a Robin Hoods e a bandidos justiceiros entre nós, e hoje nem o mais reacionário defensor da tese de que vagabundo nasce feito discute as causas sociais da delinqüência, mas o vocabulário da retribuição ainda não se articulou, ainda não achou a sua seqüência certa.

Você e eu, que somos pessoas conscientes mas sensatas (no Brasil não é fácil ser as duas coisas ao mesmo tempo) e já concluímos há muito que vivemos no meio de uma guerra civil crônica, ou já nos perguntamos muito “como é que essa gente não se revolta?”, temos medo de dizer isto com clareza, para não contribuir para o clima de guerra, ou passar por defensor de assassinos, ou, num descuido, dar aos bandidos slogans prontos para transformar terror cotidiano em terror político, e aí como é que a gente fica? Nosso pânico é que, junto com as armas de uso exclusivo das Forças Armadas, o tráfico passe a usar a retórica de uso exclusivo da esquerda, ou a nossa retórica da indignação sem a sensatez.

Não podemos nos arriscar nem a concordar que as cadeias estão conspicuamente vazias de culpados pelo que foi feito à nação em anos de insensibilidade e descuido, para não alertá-los de que estão chegando perto de um discurso aproveitável de retribuição. Portanto: ssshhhh.

 

 

                   NOVOS LOUCOS

 

Novos tempos, novas loucuras. As pessoas tinham pesadelos com automóveis, quando aqueles primeiros monstros barulhentos começaram a aparecer nas ruas.

Outras foram tomadas pelo delírio de voar, depois das primeiras experiências com aviões, e atiravam-se de penhascos com asas mecânicas às costas, abanando-as furiosamente até se esborracharem lá embaixo. A eletricidade despertou a imaginação criativa de muita gente. Minha mãe conta que o pai dela fazia todos em casa se darem as mãos e depois enfiava um metal na tomada de luz: o choque que percorria a família inteira só podia fazer bem.

Isto talvez explique o subseqüente comportamento estranho de alguns descendentes. De acordo com a lógica que diz que com a invenção do fogo, inventaram o piromaníaco, cada nova técnica inaugura uma nova forma de loucura.

Como a da Jussara, por exemplo. Jovem executiva, dinâmica, sem tempo a perder, foi a primeira do seu grupo a usar o celular de ouvido, aquele que permite a pessoa ficar em permanente contato com o mundo, com as mãos livres. No outro dia, conta a Jussara, ela teve o seguinte diálogo pelo seu fone atachado.

 

- Alô.

 

- Alô?

 

- Quem é?

 

- Eu.

 

- "Eu" quem?

 

- Pra quem você ligou?

 

- Quem fala?

 

- Hein?

 

- Eu quero falar com a Jussara.

 

- É a Jussara que está falando!

 

Juro, conta a Jussara. Eu estava falando comigo mesmo. Não me lembro se fui eu que liguei ou eu que atendi. Encerrei a conversa imediatamente, claro.

Mas fiquei em pânico. Como aquilo podia ter acontecido? Procurei ajuda médica. O médico não ajudou. Disse que era uma alucinação, que eu precisava de descanso, e principalmente de tirar aquele fone do ouvido. Como eu posso fazer isso? E as chamadas que preciso receber o dia inteiro? E se eu mesmo estiver tentando me dar uma informação importante? E acho que não posso mais tirar o fone do ouvido. Não tiro nem para tomar banho. Ele e o ouvido já se integraram, já nasceu uma pelezinha, só tirando com o ouvido junto. Com licença... Alô. Jussara. Quem fala? Alô?

A palavra "atachado", aí em cima, não existe, claro. É um aportuguesamento de "attached", computês que quer dizer, ahm, assim, hmm, bem... "atachado".

O computador também está criando muitos malucos novos. Como o Marco Tulio, que recebe e-mails do além, e responde. Marco Tulio garante que já se correspondeu com o papa Inocêncio III, Vitor Hugo, os marechais Deodoro, Rondon e Tito, Mata Hari, Roy Rogers, Carlos Gardel, Cristóvão Colombo, Frank Sinatra, Lucrecia Borgia ("Uma simpatia!"), Moisés, Ankito, etc.

Descobriu o "chat room" em que todos se reúnem por acaso e não há dia em que não se comunique com um deles. Segundo Marco Tulio, como é difícil encontrar um assunto comum a todos, eles acabam trocando idéias sobre o equipamento de cada um.

- Vocês sabiam que o Voltaire tem um Pentium 4 com 256 megabytes de memória e processador de 2.4 hz?

Velhas superstições ganham novos adeptos com as novas técnicas. Tem gente que acredita que as câmeras fotográficas digitais não apenas capturam a alma do fotografado como a transformam em microimpulsos que sobem para formar um cinturão eletrônico em volta da terra, onde a mistura com o ozônio impedirá sua redenção final. Velhas crenças em misturas mortais, como a do leite com melancia, crescem para incluir, por exemplo, misturar "Subcomandante Marcos", tequila com pimenta e Prozac, e "magret de canard" antes de pular numa piscina, se você usa botox. Quem tem silicone deve passar pelos detetores de metais dos aeroportos de costas, senão os seios podem explodir. Guardar o viagra numa cesta com ovos frescos por uma noite e fazer o sinal da cruz antes de ingeri-lo aumentam sua eficácia.

 

 

                   O APITO

 

Tudo o que o Mafra dizia, o Dubin duvidava. Eram inseparáveis, mas viviam brigando. Porque o Mafra contava histórias fantásticas e o Dubin sempre fazia aquela cara de conta outra.

— Uma vez...

— Lá vem história.

— Eu nem comecei e você já está duvidando?

— Duvidando, não. Não acredito mesmo.

— Mas eu nem contei ainda!

— Então conta.

— Uma vez eu fui a um baile só de pernetas e...

— Eu não disse? Eu não disse?

O Mafra às vezes fazia questão de provar as suas histórias para o Dubin.

— Dubin, eu sou ou não sou pai-de-santo honorário? O Dubin relutava, mas confirmava.

— É.

Mas em seguida arrematava:

— Também, aquele terreiro está aceitando até turista argentino...

Então veio o caso do apito. Um dia, numa roda, assim no mais , o Mafra revelou:

— Tenho um apito de chamar mulher.

— O quê?

— Um apito de chamar mulher.

Ninguém acreditou. O Dubin chegou a bater com a cabeça na mesa, gemendo:

— Ai meu Deus! Ai meu Deus!

— Não quer acreditar, não acredita. Mas tenho.

— Então mostra.

— Não está aqui. E aqui não precisa apito. É só dizer "vem cá".

O Dubin gesticulava para o céu, apelando por justiça.

— Um apito de chamar mulher! Só faltava essa!

Mas aconteceu o seguinte: Mafra e Dubin foram juntos numa viagem (Mafra queria provar ao Dubin que tinha mesmo terras na Amazônia, uma ilha que mudava de lugar conforme as cheias) e o avião caiu em plena selva. Ninguém se pisou, todos sobreviveram e depois de uma semana a frutas e água foram salvos pela FAB. Na volta, cercados pelos amigos, Mafra e Dubin contaram sua aventura. E Mafra, triunfante, pediu para Dubin:

— Agora conta do meu apito.

— Conta você — disse Dubin, contrafeito.

— O apito existia ou não existia?

— Existia.

— Conta, conta — pediram os outros.

— Foi no quarto ou quinto dia. Já sabíamos que ninguém morreria. A FAB já tinha nos localizado. O salvamento era só uma questão de tempo. Então, naquela descontração geral, tirei o meu apito do bolso.

— O tal de chamar mulher?

— Exato. Estou mentindo, Dubinzinho?

— Não — murmurou Dubinzinho.

— Soprei o apito e pimba.

 

— Apareceram mulheres?

— Coisa de dez minutos. Três mulheres.

Todos se viraram para o Dubin incrédulos.

— É verdade?

— É — concedeu Dubin.

Fez-se um silêncio de puro espanto. No fim do qual Dubin falou outra vez:

— Mas também, era cada bucho!

 

 

                   O CORAÇÃO ASSASSINADO

 

Das duas possíveis conclusões a que pode chegar o IPM das bombas do Riocentro, uma é improvável e a outra é impensável. É improvável que o I Exército conclua pela culpa do I Exército e proclame publicamente que seu DOI-CODI era uma central terrorista ou acobertava terroristas por conta própria. Quando reagiram ao “revanchismo” dos que cobravam os excessos da repressão no passado os militares estabeleceram que a anistia valia para os dois lados. Não ficou claro que a impunidade militar valia para excessos no futuro mas ficou claro que era o limite, e a condição, para a cobertura. O capitão ferido na explosão já se declarou vítima de um atentado. Notas oficiais atribuindo a esquerdistas infiltrados na imprensa qualquer dúvida a este respeito tornaram o IPM, praticamente, supérfluo. O presidente Figueiredo, entre cumprir a sua promessa de pegar e arrebentar quem se opusesse à abertura e preservar a unidade militar, optou pela cautela. Está sendo estratégico, para não pôr em risco seu projeto político, ou está perplexo e impotente como todos nós. O comandante do I Exército passa para a reserva em junho ou julho, assim como outros generais dos duros hoje com comandos. Figueiredo poderá substituí-los com quem quiser. Neste delicado xadrez com peças explosivas, o importante é evitar choques, como o que fatalmente haveria se o aparelho repressor sediado no Rio fosse afrontado publicamente. O provável é que uma acomodação já tenha sido negociada. Haverá uma conclusão dos inquéritos para consumo externo e outra para efeitos internos, do Exército e do sistema. Um lado salvará a cara e o outro ganhará tempo. Houve um crime e existe a exigência apaixonada de que haja justiça, ou pelo menos culpados. Mas o realismo vencerá. Toda a questão do poder no Brasil continua sendo uma questão entre os militares. A bomba é uma questão militar. Temos tanto a ver com ela quanto, nestes últimos dezessete anos, tivemos a ver com a gerência do país. Nos dois casos só podemos esperar, aflitos, para ver no que vai dar tudo isso.

 

É impensável, no entanto, que a cautela e o realismo político levem o governo a aceitar uma conclusão francamente fantasiosa do inquérito. A nação pode conviver com a carcaça daquele Puma como o monumento a um erro e até como marco de uma era, mas não como símbolo de uma mentira arrogantemente assumida e que a transformaria numa nação de bobos. Nem as Forças Armadas, que têm na doutrina da segurança nacional a sua justificativa histórica, poderiam conviver historicamente com a responsabilidade - encampada pela omissão - de um acidente que ameaçou a vida de centenas de pessoas. Como o coração do homem assassinado que lateja para sempre dentro da casa do assassino do conto de Poe, a imagem do Puma destroçado envenenaria por muitos anos a consciência brasileira. E comprometeria a imagem dos militares mais do que mil esquerdistas na imprensa.

 

Entre o final impossível e o final impensável, onde chegará o IPM? Nunca o talento nacional para ajeitar as coisas teve um desafio tão grande.

 

 

                   O DIA DA AMANTE

 

Já existe dia de quase tudo. Ou quase todos. Começou com o Dia das Mães. Um americano, cujo nome até hoje é reverenciado onde quer que diretores lojistas se reúnam, mas que no momento me escapa, foi o inventor do Dia das Mães. Fez isso pensando na própria mãe. Naquela mulher extraordinária que o carregara no ventre durante nove meses sem cobrar um tostão, que o amamentara, que o embalara em seu berço, costurara a sua roupa, forçara óleo de rícino pela sua goela abaixo e uma vez, quando o descobrira dando banho no cachorro no panelão de sopa, quebrara uma colher de pau na sua cabeça. Sim, aquela mulher que se sacrificara por ele sem pedir nada de volta, mas que agora exigia uma mesada maior porque estava perdendo demais nos cavalos. De nada adiantara o seu protesto. - Não posso, mamãe. Os negócios não vão bem.

- Não interessa.

- Nós só ganhamos dinheiro mesmo no Natal. No resto do ano... E então o rosto dele se iluminara. Tivera uma idéia. A mãe não entendeu e espalhou para os seus amigos no hipódromo que o filho finalmente perdera o juízo que tinha. Mas a idéia era brilhante. Ele a apresentou numa reunião de varejistas naquele mesmo dia.

- Precisamos criar dois, três, muitos Natais!

- Espera aí - disse alguém. - Mas só houve um Jesus Cristo. - E os apóstolos? São doze apóstolos. Cada um também não tinha o seu aniversário?

- Mas ninguém sabe o dia.

- Melhor ainda. Inventaremos, todo mês, o aniversário de um apóstolo. Teremos natais o ano inteiro!

Mas a idéia não agradou. Apóstolo não tinha o apelo de vendas de um Jesus Cristo. Mesmo assim, a idéia de criar outras datas para os fregueses se darem presentes era boa. Era preciso motivar as pessoas. Era preciso forçar as vendas. Era preciso ganhar mais dinheiro. Nem que fosse para a mãe perder nos cavalos.

- Aquela bruxa velha - murmurou ele.

- O que foi?

- Estava pensando na mãe.

- A mãe! É isso!

- O quê?

- A mãe! O Dia das Mães. Você é um gênio!

Foi um sucesso. Ninguém podia chamar aquilo de oportunismo comercial, pois ser contra o Dia das Mães equivaleria a ser contra a Mãe como instituição. Isto chocaria a todos, principalmente às mães. Que, como se sabe, formam uma irmandade fechada com ramificações internacionais. Como a Máfia. As mães também oferecem proteção e ameaçam os que se rebelam contra elas com punições terríveis que vão da castração simbólica à chantagem sentimental. Pior que a Máfia, que só joga as pessoas no rio com um pouco de cimento em volta. O Dia dos Pais também nasceu nos Estados Unidos, mas custou a aparecer devido ao puritanismo que, sabidamente, influenciou a história americana durante anos. Foi só na década de 20 deste século que os americanos estabeleceram uma relação entre o ato sexual e a procriação de filhos. Até então julgava-se que as mães geravam os filhos sozinhas e que o sexo, como a bebida e um joguinho de cartas, era apenas uma coisa que os homens gostavam de fazer aos sábados. Instituída a proibição do sexo em todo território nacional - a chamada Lei Neca, uma corolária da Lei Seca - notou-se uma acentuada queda no número de nascimentos. Concluíu-se então que o homem era importante. A nova importância atribuída ao homem foi veementemente combatida pelas mulheres da época e até hoje existem bolsões de resistência. Muitas mulheres consideram os homens perfeitamente dispensáveis no mundo, a não ser naquelas profissões reconhecidamente masculinas, como as de costureiro, cabeleireiro, decorador de interiores e estivador. Estabelecido o papel essencial do homem na constituição da família, no entanto, não tardou para que o varejistas lançassem o Dia dos Pais - também chamado, por alguns homens, de Dia do Papai Aqui e por algumas mulheres, com um sorriso secreto, de Dia do Pai Presumível. Outro sucesso de vendas.

Dia da Secretária. Este também teve uma origem curiosa. Segundo algumas versões, ele começou no Brasil, quando uma mulher descobriu na agenda do marido a seguinte inscrição: "Flores e bombons para a Bete. Mandar entregar no motel".

- Quem é essa Bete? - perguntou a mulher com fingido desinteresse, sacudindo o marido pelo pescoço.

- Ora, quem é a Bete. É a Dona Elizabete, minha secretária. Você conhece ela!

- Conheço e sei que o aniversário dela já passou. Por que as flores e os bombons?

- Onde é que você viu isso?

- Na sua agenda.

- E você viu a data na agenda?

- O que é que tem a data?

- É o Dia da Secretária.

- Nunca ouvi falar.

- Foi recém-inventado - disse o marido, que tinha inventado naquele minuto.

- E o motel? Por que entregar no motel?

- A dona Elizabete está morando no motel, provisoriamente, até que terminem os reparos na sua casa.

- O que houve com a casa dela?

- Você não soube? Foi arrasada por uma manada de elefantes. - Você espera que eu acredite nisso?!

- Meu bem, eu inventaria uma história destas?

- É, acho que não. Desculpe, querido.

- Está desculpada. Agora largue o meu pescoço.

Por que não um Dia dos Amantes? Já existe o Dia dos Namorados e hoje em dia a diferença entre namorado e amante tornou-se um pouco vaga. Quando é que namorados se transformam em amantes? Segundo uma moça, experimentada na questão, que consultamos, se a mulher der para o mesmo homem mais de dezessete vezes seguidas ele deixa de ser seu namorado e, tecnicamente, passa a ser seu amante. Os critérios variam, no entanto. Em certas regiões, só depois de dormirem juntos dois anos é que namorados se tornam legalmente amantes. Alguns estabelecem um meio-termo razoável: dezessete vezes ou dois anos, o que vier primeiro. Outros afirmam que a diferença está no grau de intimidade dos dois tipos de relacionamento. Num caso, as pessoas vão para qualquer lugar onde haja camas - apartamento, hotel, ou motel, sendo desaconselháveis hospitais, quartéis e lojas de móveis - tiram a roupa um do outro, às vezes usando só os dentes, atiram-se na cama, rolam de um lado para o outro, enfiam-se os dedos no orifício que estiver por perto, lambem-se, chupam-se, com ou sem canudinho, massageiam-se mutuamente com Chantibon, depois o homem penetra o corpo da mulher com seu órgão intumescido e os dois corpos movem-se em sincronia até o orgasmo simultâneo entre gritos e arranhões. Então se separam, suados, e vão tomar um banho juntos antes de saírem para a rua. Quer dizer, uma coisa superficial e corriqueira. Já o namoro, não. No namoro, não apenas o órgão intumescido mas todo o corpo do namorado penetra na própria casa da namorada todas as quartas-feiras. Eles se sentam lado a lado no sofá quente, coxa a coxa, e chegam a entrelaçar os dedos das mãos. Muitas vezes comem a ambrósia preparada pela mãe da moça com a mesma colher, gemendo baixinho. Existe ainda o prazer indiscritível de roçar com o braço o lado do seio da namorada, enquanto se conversa sobre futebol com o pai dela, um prazer que aumenta se, por sorte, estiver com um daqueles sutiãs pontudos usados pela última vez no Ocidente por Terry Moore, em 1953. A namorada, não o pai dela. Isto é que é intimidade.

Existem outros critérios para diferenciar namorado de amante. Amante é o namorado que leva pijama, por exemplo. Uma maneira certa de saber que o namorado já é amante é quando, pela primeira vez, em vez de dar uma para de meias para ele no Dia dos Namorados, ela dá um par de cuecas. E você terá certeza de que ele é amante quando alguém sugerir que ela lhe dê um certo tipo de cuecas e ela responder, distraidamente: "Esse tipo ele já tem..." Mas estamos falando de namorados, ou amantes, solteiros. No caso de homem casado e com uma amante a coisa se torna mais complicada ainda e mais invejável. Antes de lançar o Dia dos Amantes os lojistas teriam que fazer uma pesquisa de mercado. O que despertaria a desconfiança dos entrevistados. - O senhor tem amante?

- Foi a minha mulher que o mandou?

- Estamos fazendo uma pesquisa de mercado e...

- Onde é que está o microfone? É chantagem, é?

- Não, cavalheiro. Nós...

- Está bem, está bem. Tem uma moça que eu vejo. Mas nem se pode chamar de amante. Pelo amor de Deus! É só meia hora de três dias. E ela é bem baixinha. "Amante" seria um exagero. Mas eu prometo parar!

Uma vez decidido o lançamento do Dia dos Amantes, as agências de propaganda teriam que escolher a estratégia de marketing, ou, como se diz em português, o approach. O tom das peças publicitárias variariam, é claro, de acordo com o tipo de comércio. As lojas de eletrodomésticos poderiam anunciar: "Tudo para o seu segundo lar". Ou então: "Faça-a sentir-se como a legítima. Dê a ela uma máquina de lavar roupa". As joalheria enfatizariam sutilmente o espírito de revanchismo do seu público alvo, sugerindo: "Aquele diamante que sua mulher vive pedindo... dê para a sua amante". Ou, pateticamente: "Já que ela não pode ter uma aliança, dê um anel...". Perfume: "Para que você nunca confunda as duas, dê Furor só para a outra..." Utilidades: "No dia dos amantes, dê a ela um despertador. Assim você nunca se arriscará a chegar tarde em casa". Os comerciais para a televisão poderiam explorar alguns lugares-comuns. Por exemplo: homem entra no quarto e encontra amante na cama. Atira um presente no seu colo. Isso a faz lembrar de uma coisa. Ela abre a gaveta da mesa de cabeceira e tira um presente também. Ele vai pegar, mas o presente não é pra ele. Ela levanta da cama, abre o armário e dá o presente para o seu amante escondido lá dentro. Congela a imagem. Sobrepõe logotipo do anunciante e a frase: "Neste Dia dos Amantes, dê uma surpresa". Hein? Hein? Está bem, era só um exemplo. As confusões seriam inevitáveis. Marido e mulher se encontram numa loja de lingerie. Espanto da mulher: - Você aqui?

Marido: - Ahm, hum, hmmm, sim, ohm, ahm, ram.

- E escolhendo uma camisola!

- É que, ram, rom, ham, ahm, grum. Certo. Quer dizer...

- Você pode me explicar o que está havendo?

- Grem, grum rahm, rhom, ahn...

- Não vai me dizer que estava comprando pra mim. Há anos que não uso camisola. Ainda mais desse tipo, preta, transparente e com decote até o umbigo.

- Eu posso explicar.

- Então explique.

- Ahm, rom, rum, rahm, grums.

- Explique melhor.

- Está bem! É para mim, está entendendo agora? Para mim! - Você? Mas...

- Há anos que eu tento esconder isso de você. Agora você me pegou e eu vou revelar tudo. Adoro dormir de renda preta! Só me controlei até hoje por causa das crianças!

- Ela compreende. Tenta acalmá-lo. Mas ele agora está agitado. Bate no balcão e grita:

- Também quero ligas vermelhas, um chapelão e chinelos de pompom grená!

Ela o leva para casa, cheia de resignada compreensão. A amante ficará sem o seu presente de Dia das Amantes, mas pelo menos o marido terá evitado qualquer suspeita. O único inconveniente é que terá de dormir de camisola preta pelo resto da sua vida conjugal.

Por que não um Dia dos Amantes? Você teria que tomar certas precauções, além de jamais entrar numa loja de lingerie. Como uma ausência sua em casa no Dia dos Amantes despertaria desconfiança, telefone para casa antes de ir festejar com a amante.

- Alô, a patroa está?

- Não, senhor.

- Estranho. Ela costuma estar em casa a esta hora. Mas é melhor assim. Diga para ela que eu vou me atrasar um pouco. Estou no hospital para curativos. Nada grave. Fui atropelado por uma manada de elefantes.

- Sim, senhor.

Você se dirige para a casa da amante, com o embrulho do presente embaixo do braço. Começa a pensar na ausência da sua mulher em casa. Onde ela teria ido? Lembra-se então de que a viu mais de uma vez olhando com interesse uma vitrine cheia de cachimbos. Na certa pensando num presente para lhe dar. E súbito você pára na calçada como se tivesse batido num elefante. Você não fuma cachimbo!

 

 

                   O ESPÍRITO DA NOSSA COISA

 

Quem acha que o correspondente do New York Times no Brasil simplesmente não nos compreende talvez não saiba que ele tem um notório precedente histórico. Em 1919, quando o mundo recém começava a tomar conhecimento das teorias que um tal de Albert Einstein descrevera em obscuras publicações científicas, o Times escalou para entrevistá-lo o seu especialista em golfe! O jornalista Henry Crouch entendeu tudo errado e muitos dos mitos que perduram na imaginação popular sobre a Teoria da Relatividade se devem ao seu trabalho. Entre outras coisas, Crouch anunciou que Einstein estava prestes a publicar um livro sobre suas especulações que só três pessoas em todo o mundo compreenderiam.

O Larry Rohter pode argumentar que nos entende um pouco mais do que o Henry Crouch entendia de física e também que Henry Crouch, no seu lugar, não estaria muito errado se anunciasse que só três pessoas em todo o mundo, fora os brasileiros, tinham condições de entender o Brasil. Os números do Einstein não eram para qualquer cabeça, mas eram compreendidos (e disputados ou não) por uma grande comunidade científica internacional. Mas quem entende, por exemplo, a matemática da eleição do Severino? Talvez o Times tenha decidido que, assim como a física de Einstein era tão revolucionária que só um total inocente no assunto captaria sua originalidade, quem viesse capacitado para entender o Brasil não pegaria o espírito da nossa coisa. Entender o Brasil seria falsificá-lo.

 

Não foi o Henry Crouch, mas o poeta Paul Valéry (estou tirando tudo isto do livro de Bill Bryson A Short History of nearly Everything) que um dia perguntou ao Einstein se ele carregava um caderninho para anotar suas idéias. Einstein se surpreendeu com a pergunta e respondeu que não era preciso: "Eu quase não tenho idéias". Na verdade, Einstein teve poucas idéias na sua vida. Pelo menos duas delas mudaram a história do pensamento humano e nossa percepção do mundo.

Dois outros representantes da capacidade mental da nossa raça nunca pararam de ter idéias, e os dois estão sendo homenageados aqui em Paris no momento, cada um à sua maneira: Jean-Paul Sartre, que nasceu há cem anos, e Charlie Parker, que morreu há 50. Sartre é o assunto de várias primeiras páginas em publicações locais, enquanto o povo do jazz lembra o gênio de Char-li Par-kér, acento nas últimas sílabas. Nas comemorações do centenário de Sartre, nota-se uma certa nostalgia do que ele era e na França não existe mais: um maitre penseur, que não é um chefe de garçons distraído mas um intelectual que domina sua era.

 

 

                   O FIM DA QUARTA FEIRA

 

Um dos efeitos da revolução nos costumes dos últimos anos é que não existem mais boas histórias de Quarta-feira de cinzas. A industrialização do carnaval e a profissionalização das grandes escolas acabou com cenas tradicionais que davam boas crônicas, como as de carnavalescos voltando para sua dura vida real largando pedaços de fantasia no caminho, contínuos se apresentando no batente com o adereço de Rei Sol ainda na cabeça, e exigindo reverência, para estender só mais um pouquinho a sua glória, fadas de acrílico, legionários de papelão e santos barrocos de mentira estendidos num gramado, dormindo com o impiedoso sol de fim de festa na cara... E dê-lhe literatura. As velhas cenas foram substituídas pela de turistas no aeroporto tentando embarcar com suas fantasias sem pagar excesso. O que, pensando bem, também não deixa de ter sua poesia triste.

A mudança de costumes acabou também com as histórias de maridos que sumiam durante o carnaval e só reapareciam na Quarta-feira. Voltavam, vestindo ou não a camisa amarela do samba do Ary Barroso, com desculpas fantásticas que podiam incluir até o seqüestro por alienígenas, e elaboradas explicações para o confete no bolso e o batom na nuca. Mesmo quando aparecia numa fotografia da “Cruzeiro”, edição especial de carnaval, lambendo cerveja de uma coxa, o marido sumido tinha a explicação. “Me doparam dentro do disco voador, não me lembro de nada.”

— Argeu, você quer que eu acredite que...

— Acredite se quiser.

E a mulher aceitava as explicações, porque, como no samba do Ary Barroso, gostava dele assim, ou porque não tinha alternativa. Hoje o marido some para um lado e a mulher some para o outro e quando se encontram na Quarta-feira é para comparar o que fizeram, e com quem. Ou o marido nem começa a explicar o que houve antes de ser atirado por uma janela pela mulher, que faz musculação. E não há mais a “Cruzeiro” e ninguém mais se chama Argeu.

 

 

                   O FIM DE UM CERTO SORRISO

 

Não faz muito, dizer que você simpatizava com o PT provocava um certo sorriso. Dependendo de quem, ou do quê, você era, o sorriso poderia significar surpresa (“E o PT existe?!”), irritação polida (“Ih, outro burguês com culpa...”), condescendência (“Eu também me preocupo com os humildes”) ou pena (“Quanta ingenuidade”). “Ser PT” sem ter qualquer razão lógica, de classe, para isso era visto como um capricho intelectual, um jeito de ser corretamente “de esquerda” sem o risco de ter que provar isso, já que o PT era uma miragem política. Algumas eleições depois muitas coisas mudaram no Brasil, mas a maior mudança de todas foi o fim daquele certo sorriso. A miragem não era miragem, o PT cresceu, chegou ao poder federal, teve mais votos do que qualquer outro partido nas últimas eleições municipais, e aos poucos o sorriso de incredulidade e tolerância foi desaparecendo. Em muitos casos, substituído por um esgar de raiva.

Mas há quem diga que o sorriso só ficou mais irônico. Perdendo em São Paulo e em Porto Alegre, mesmo com todas as outras prefeituras conquistadas, o PT teria encontrado o seu limite, ou o tamanho máximo que a reação lhe concedeu sorrindo. No Rio Grande do Sul a derrota do PT deve ser vista, em parte, como seqüência da sacudida que a eleição surpreendente de Olívio Dutra para o governo do estado e o crescimento do partido no interior deram no conservadorismo gaúcho, que se uniu num antipetismo ecumênico que agora cassou até a licença tácita dada a Porto Alegre para ser um mostruário fixo da esquerda aplicada, um pouco como era a Bologna administrada pelos comunistas durante sucessivos governos democrata-cristãos, na Itália. Como aconteceu na Itália, esta Bologna também foi reconquistada pela direita. O prefeito eleito José Fogaça, a julgar pelas suas declarações e pelo que se sabe dele, pretenderia fazer em Porto Alegre uma espécie de governo petista sem o PT, mas teria que fazê-lo com uma coligação cujo principal traço-de-união é o horror a tudo o que o PT representa.

Análises apressadas são sempre imprecisas e a sociologia de boca-de-urna não costuma resistir ao tempo, este carrasco de teorias, mas as recentes eleições municipais também sugerem outro caminho para o PT, ou outro meio para enfrentar a reação. O PT era um fenômeno paulista, passou a ser um fenômeno diferente no Rio Grande do Sul urbano e agora estaria se transformando num fenômeno nordestino, que seria a sua vocação natural. E quanto mais cresce e muda o PT mais amplo e variado fica — sem falar no PT transvestido de PSDB que mora em Brasília. Hoje, quando você diz que simpatiza com o PT, ouve a pergunta: “Qual deles?” Mas pelo menos ninguém mais está sorrindo.

 

 

                     O HOMEM TROCADO

 

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.

- Eu estava com medo desta operação...

- Por quê? Não havia risco nenhum.

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...

E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

- E o meu nome? Outro engano.

- Seu nome não é Lírio?

- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês passado tive que pagar mais de R$ 3 mil.

- O senhor não faz chamadas interurbanas?

- Eu não tenho telefone!

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro. Não foram felizes.

- Por quê?

- Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria, quando ouvira o médico dizer:

- O senhor está desenganado.

Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. Uma simples apendicite.

- Se você diz que a operação foi bem...

A enfermeira parou de sorrir.

- Apendicite? - perguntou, hesitante.

- É. A operação era para tirar o apêndice.

- Não era para trocar de sexo?

 

 

                     O NOME DA SERPENTE

 

Na sua peça em três partes The Coast of Utopia (A Costa da Utopia), Tom Stoppard põe na boca de Michael Bakunin um pensamento sobre a queda que condenou o Homem à infelicidade. "Uma vez", diz Bakunin, "há muito tempo, no começo da História, éramos todos livres. O Homem integrava-se com sua natureza, e portanto era bom. Vivia em harmonia com o mundo. Não existia conflito. E então uma serpente entrou no jardim, e o nome da serpente era..."

Para o anarquista Bakunin, o nome da serpente que nos roubou do paraíso era "Ordem".

("Organização social! O mundo já não estava integrado. A matéria e o espírito se separavam. O Homem não era mais inteiro. Era impelido por ambição, cobiça, ciúmes, medo... O conflito tornou-se a condição da sua vida, o indivíduo contra seu vizinho, contra a sociedade, contra ele mesmo. A Idade de Ouro acabou. Como podemos criar uma nova Idade de Ouro e tornar o Homem livre outra vez? Destruindo tudo que destruiu a sua liberdade.") Mas para um socialista, organização social é o que salva o Homem da sua pior natureza e do conflito e traz a harmonia, portanto "Ordem" não é o nome que ele escolheria para a serpente. Para um fascista, só a submissão a uma idéia e uma autoridade integradoras resgata a felicidade, portanto Ordem também seria elogio, não é nome de serpente. Para um liberal, se foi a serpente que inaugurou o homem competitivo, então viva a serpente.

Que nome se deve dar à serpente? Você eu não sei, mas eu acho que um bom nome é "Precisão".

Foi quando desenvolveu o dedão opositor e se tornou capaz de, primeiro, catar pulgas com mais eficiência e eventualmente esgoelar o próximo e fabricar e empunhar implementos sem deixar cair - enfim, quando se tornou preciso -, que o Homem começou a sair do paraíso. Acabou a Idade de Ouro da inabilidade digital, que nos igualava aos outros animais e nos impedia gestos especulativos, como o de segurar um cristal contra o Sol e ficar filosofando sobre a luz decomposta em vez de se integrar com a Natureza como um bom bicho. O dedão opositor está nas origens do arco e flecha, daí para o zíper e as centrais nucleares foi um pulo que era melhor não ter dado. A nossa queda começou pelo polegar.

 

Na mesma peça, o Bakunin de Stoppard consola um amigo, desesperado com as seguidas derrotas do seu ideal socialista pelo reacionarismo. "A reação é apenas a ilusão ótica do rio que parece correr para trás, quando o rio corre sempre para o mar, que é a liberdade ilimitada e indivisível!"

Um consolo para frustrados de todas as épocas.

 

 

                     O PREGO

 

Contam que um império ruiu e, vendo-se subitamente sem nada para fazer - sem potentados para receber, sem decretos para assinar, sem cabeças para mandar cortar, sem concubinas para coçar seu pé - o ex-imperador deciciu investigar a causa da sua ruína. Foi visitar o ex-secretário real na cadeia, já que de toda a corte só o próprio imperador, por uma deferência à sua antiga eminência, ficara solto. O ex-imperador queria fazer uma genealogia da sua derrocada.Para encher o tempo, para compreender seu destino.

- Foi a corrupção? - perguntou o ex-imperador ao seu ex-secretário.

- Não, não - disse o ex-secretário. - O império sempre foi corrupto. O pai do pai do seu pai já era corrupto. E no entanto todos reinaram até morrer, e morreram no poder.

- Foi alguma bobagem que eu fiz ou que eu disse?

- Não, não. Todos os seus antecessores fizeram e disseram bobagens. Quase tantas quanto você. Bobagem nunca derrubou ninguém neste império.

- O que foi então?

- Foi a batalha de Alvedrio - disse o ex-secretário. - Decididamente, a batalha de Alvedrio. Se não tivéssemos perdido aquela batalha, o império não teria se desmoralizado, você ainda estaria no poder e eu estaria em casa contando as minhas moedas, em vez de estar aqui catando palha. - E por que nós perdemos a batalha de Alvedrio?

- Porque a coluna do meio não resistiu.

E por que a coluna do meio não resistiu?

- Porque o comandante não deu a ordem.

- E por que o comandante não deu a ordem?

- Porque o cavalo dele claudicou na hora.

- E por que o cavalo dele claudicou na hora?

- Porque perdeu a ferradura.

- E por que perdeu a ferradura?

- Porque caiu um prego.

- E por que não recolocaram o prego?

- Porque não conseguiram encontrar.

- Quer dizer que meu império ruiu, eu perdi o poder, nós perdemos nossos milhões, vocês estão condenados à prisão e eu ao tédio - tudo por causa de um prego extraviado?

- É.

- Um mísero prego?

- Pois é.

Mas isso é uma injustiça! Que mundo é este, em que um prego derruba um imperador? E, tomado de ira, o ex-imperador rumou para os campos de Alvedriu, onde passou um dia inteiro, e de onde saiu diretamente para a presença dos juízes da república que substituira seu império. E pediu a reabertura do processo que o derrubara.

- Impossível - disseram os juízes. - O senhor deve dar graças a Deus por não estar preso. Foi derrubado por corrupção, omissão, e cantar música sertaneja sem habilitação. - Eu sei. Mas surgiu um fato novo que reverte tudo, me redime e me dá o direito de reinvindicar a volta da minha credibilidade, da minha honra, da minha fortuna e do meu império. - Como?

- Meu julgamento, e as revelações sobre minhas falcatruas, não teria acontecido, se não fosse à derrota de Alvedrio. E nós perdemos em Alvedrio porque a coluna do meio não resistiu, porque o comandante não deu a ordem, porque seu cavalo claudicou, porque sua ferradura caiu, porque um prego se perdeu.

- E qual o fato novo? - perguntaram os juízes.

Eu encontrei o prego! - gritou o imperador, mostrando-o em triunfo. (Como é que termina a história? Não se sabe. Parece que os juízes, caridosamente, mandam o imperador ir para casa e esquecer aquilo. Mas tomam uma providência. Em hipótese alguma se deve deixá-lo aparecer na televisão com sua história e o prego. Senão ele convence todo mundo.)

 

 

                   O PRESO

 

O novo preso soube que ficaria na mesma cela com o Tango. A caminho da cela, comenta o guarda:

- Tango? Nome simpático. Deve ser um bom papo. Divertido.

- O Tango não fala com ninguém. E nunca ri.

Chegaram na cela. Através das grades, o preso novo avista o Tango. É um gigante. Testa de um centímetro. Os olhos muito juntos. Cada um dos seus braços é uma perna de vedete. O preso puxa o braço do guarda e pergunta:

- Esse nome, Tango...

- Vem de Orangotango.

O preso novo tenta correr mas o guarda o segura.

- Não fique assim. O Tango não faz mal a ninguém. É uma boa alma. Vocês vão se dar muito bem.

- Será?

- Claro. Ele não fala. Só ficará olhando para a sua cara, dia e noite, bem de perto. No começo é chato, mas depois acostuma.

O preso novo entra na cela. O guarda fecha a porta a chave e depois continua.

- Só tem uma coisa.

O preso novo se aproxima das grades para saber o que é.

- Não feche os olhos - diz o guarda.

- Como, não feche os olhos?

- O Tango ficará sempre olhando para os seus olhos. Se você fechar os olhos ele pensa que é desconsideração e arranca a sua cabeça.

- Quer dizer que eu não posso dormir?

- Dormir! Você não pode nem piscar.

- Mas...

- Faça o que fizer, nunca pisque!

 

 

                   O QUE FAZEM OS VAGALUMES DE DIA

 

- Pa-ô-la (desde o começo ele a chamara assim, como se o nome dela fosse espanhol), este nosso caso...

- Que caso?

- Nós não estamos tendo um caso?

- Que idéia, Dan!

Ele se chamava Daniel.

- Se nós não estamos tendo um caso, estamos tendo exatamente o quê?

- Sei lá, mas caso não é.

- Pa-ô-la...

- Caso é assim uma coisa clandestina. Adultério. Precisa ser casado.

- Acho que quando tem sexo no meio, é caso. Independente do estado civil.

- Que idéia! Nada disso. O que nós estamos tendo é um namoro.

- Não. Namoro eu conheço. Não é namoro. - Então é amizade. Só porque a gente dorme junto não pode ser amizade?

- Pa-ô-la. Há sete meses nós só dormimos um com o outro. Nos vemos todos os dias. Andamos abraçados na rua.

- Então. Uma boa amizade.

- Comemos sorvete de casquinha com a mesma colher, Pa-ô-la.

- E daí?

- Em certas sociedades primitivas, comer sorvete de casquinha com a mesma colher vale mais do que pacto de sangue.

- Não vem.

- E o que você diz quando você está tendo um...

- Eu sei o que eu digo!

- “Dan, Danzinho, amor, vida, paixão.”

- É a emoção, ora. Nessas horas a gente diz qualquer coisa.

Uma amiga minha grita o nome de todos os apóstolos. E você, que quando me vê só falta chorar? Mesmo que a gente tenha dormido junto na noite anterior. Oito horas sem me ver e faz um escândalo.

- Mas eu estou tendo um caso com você. Um caso muito bonito. Pena que você não esteja participando dele.

- Não vem, Dan.

- Não. Tudo bem. Somos apenas bons amigos. Onde está escrito “Dan, Danzinho, amor, vida, paixão”, leia-se “Ai que bom”.

- Está certo. Não é amizade. Mas não é caso.

- Romance.

- Também não.

- Um espasmo. Um descontrole hormonal.

- Pára.

- Uma história.

- Isso. Uma história. Está rolando uma história entre nós.

- Que tipo de história?

- Como, que tipo?

- Cômica, séria, trágica... Acaba como?

- E eu sei?

- Só pra minha orientação.

- Por que isto, de repente? Por que esta preocupação?

Estamos tendo um ca... uma história legal, sem grilo...

- Mas nós não sabemos o que é. Você não tem necessidade de saber o que está acontecendo com você?

- Pra quê? Deixa acontecer.

- Imagina se esta história acaba num crime. Tudo que está acontecendo agora ganha outro significado. Nós podemos estar vivendo o prólogo de uma tragédia sem saber. Se a gente soubesse o que é, e como acaba...

- Ah, é? Se eu soubesse que você ia me matar no fim, sabe o que eu fazia? Matava você agora. Rá, rá. Mudava o fim.

- Exatamente! Nós precisamos saber o que está nos acontecendo para agir conscientemente, para aproveitar melhor a história e até mudá-la.

- E, mesmo, você é incapaz de matar uma mosca.

- Mas você não me viu com mosquitos.

- Quer saber de uma coisa?

- Uma vez, quando eu era guri, desmembrei uma formiga. Você não me conhece.

- Me ouve.

- E se esta história acaba em casamento? Filhos, essas coisas. Hein? E se acaba em almoços de Domingo e planos de saúde? Nós precisamos saber no que estamos nos metendo! - Sabe que eu acho que vou mesmo matar você? Assim você fica sabendo o fim e pára de chatear.

- Pa-ô-la...

- Taí. É um conto.

- Um conto?!

- Daqueles que começa no meio de um diálogo, não acontece nada e termina no ar. Ninguém fica sabendo o que vai acontecer depois.

- Não faz isso comigo, Pa-ô-la.

- Com um título que não tem nada a ver com nada. - Um conto, Pa-ô-la? Isto é só um conto? Um naco de história? Um diálogo perdido? Um...

 

 

                   O QUE SE COMENTA NO INFERNO

 

O Diabo odeia comer sozinho. Todas as noites recebe pequenos grupos para jantar no que chama de sua anticobertura, um duplex no último subsolo do Inferno, escolhendo entre as almas condenadas as mais interessantes e de melhor papo. Os pratos são sempre grelhados e o vinho é de produção local, mas o principal é que todos se divertem, falando mal de Deus e todo mundo, apesar de algumas desavenças. A Lucrécia Borgia, por exemplo, já tinha pedido para não ser colocada perto da Eva Braun, pois não agüentava mais as queixas da namorada do Hitler de que não merece estar no Inferno pois seu único pecado foi amar o homem errado.

Mas, ultimamente, a questão de quem merece e quem não merece estar no Inferno vem sendo muito discutida. É, aliás, o assunto dominante nos jantares do Diabo, que confessa estar às voltas com uma verdadeira rebelião de almas que pedem revisão de sentença e perdão retroativo. É o caso dos que foram mandados para o Inferno por usura, no tempo em que era pecado.

E - como gosta de lembrar o Diabo, com um sorriso malicioso -, a Igreja ainda não inventara o Purgatório justamente para acomodar os usurários, pois sem eles não haveria empréstimo a juros, bancos e sistemas financeiros. Hoje, a usura não só é o que faz o capitalismo rodar como é o que manda no mundo. E, principalmente, não é mais pecado, pois os juros não são mais uma abominação aos olhos do Senhor. Até a Igreja tem bancos. E os condenados por usura no Inferno perguntam se não têm direito à mesma respeitabilidade conquistada pelos banqueiros, que hoje enriquecem em vida sem o risco das suas almas penarem na morte, e à absolvição. Ou pelo menos a um upgrade para o Purgatório.

O Diabo não costuma convidar usurários queixosos para a sua mesa, mas não pode prescindir da presença de Oscar Wilde, um dos seus comensais favoritos, apesar das suas constantes críticas à comida, à companhia e à ausência de ar condicionado. E Wilde, que foi preso, execrado e excomungado por homossexualismo, ao ficar sabendo da ordenação de um bispo gay pela igreja anglicana esta semana, também passou a reivindicar uma imediata revisão do seu caso e transferência para o céu. "Nada contra você, D", diz Wilde, "mas aposto que o vinho lá é melhor".

Não adianta o Diabo argumentar que nem ele nem Deus são senhores dos tempos, que mudam, ou da justiça divina, que não tem corregedoria. Wilde só promete epigramas cada vez mais pesados, mas a gritaria dos indignados do Inferno aumenta.

 

 

                   OS CONSTRANGIDOS

 

Uma vez, aG (antes do Gaspari), quando ainda sabíamos pouco da intimidade do regime de 64, escrevi que no dia em que se pudesse falar com mais filosofia do que ressentimento sobre os anos dos generais, e sobre como a personalidade de cada um influenciou a História ou foi influenciada por ela, trataríamos de sutis e não tão sutis constrangimentos. O último livro do Gaspari é sobre o mais constrangido dos cinco generais-presidentes. Mas todos foram constrangidos de uma maneira ou de outra.

Castelo Branco era supostamente o líder intelectual da facção "americana", mais liberal, do Exército, em contraste com a facção "prussiana". Dizia-se que queria uma intervenção militar transitória e curta, com o mínimo de danos à ordem constitucional. Foi docemente constrangido a editar o Ato Institucional nº 1, o pai de todos.

O constrangimento de Costa e Silva não teve nenhuma sutileza: deram-lhe um golpe. Não se sabe bem o que ele pretendia ser se não fosse tão radicalmente constrangido. Certamente mais do que o bufão trágico que ficou na História.

Médici seria uma exceção, e um paradoxo. No período mais constrangedor do regime, não parece ter sofrido qualquer constrangimento. Especula-se que não soubesse dos horrores que aconteciam sob o seu comando. Nunca um culpado foi tão inocente, ou um inocente foi tão culpado.

Figueiredo, o último constrangido, tinha a personalidade mais complexa de todas. Nenhum dos outros quis, como ele, personalizar o poder. Até o encargo da abertura gradual que o Geisel lhe passou foi personalizado, representando, para Figueiredo, um compromisso com a memória do pai liberal. Biografia e história nacional se misturaram no caminho do João, que queria ser amado pela sua simplicidade e queria um julgamento à parte, pessoal, da História, intocado pelas culpas do sistema. Depois de muitos constrangimentos, como o de ter que endossar a farsa em torno das bombas do Riocentro, acabou trocando o desejo de uma posteridade de estadista pelo de ser, misericordiosamente, esquecido.

No texto sobre os constrangidos que escrevi há exatos 20 anos, citei a emoção do Geisel, velho defensor do monopólio estatal do petróleo, ao fazer o discurso que concedia a empresas estrangeiras o direito de prospecção no país como exemplo do seu constrangimento. Gaspari revela que ele foi constrangido a uma concessão muito mais grave dos seus princípios, admitindo o assassinato oficial. Talvez o melhor que se possa fazer em defesa do Geisel é imaginar quantos, entre os outros quatro, teriam dito que era uma barbaridade matar contestadores do regime, antes de aceitar a prática. O preâmbulo não o salva. Mas mostra que, de todos os que na época mandaram os escrúpulos às favas, alguns pelo menos tinham uma noção da dimensão moral do seu gesto.

 

 

                   OS VENENOSOS

 

O veneno é um furo na teoria da evolução. De acordo com o darwinismo clássico os bichos desenvolvem, por seleção natural, as características que garantem a sua sobrevivência. Adquirem seus mecanismos de defesa e ataque num longo processo em que o acaso tem papel importante: a arma ou o disfarce que o salva dos seus predadores ou facilita o assédio a suas presas é reproduzido na sua descendência, ou na descendência dos que sobrevivem, e lentamente incorporado à espécie. Mas a teoria darwiniana de progressivo aparelhamento das espécies para a sobrevivência não explica o veneno. O veneno não evoluiu. O veneno esteve sempre lá.

Nenhum bicho venenoso pode alegar que a luta pela vida o fez assim. Que ele foi ficando venenoso com o tempo, que só descobriu que sua picada era tóxica por acidente, que nunca pensou etc. O veneno sugere que existe, sim, o mal-intencionado nato. O ruim desde o princípio. E o que vale para serpentes vale para o ser humano. Sem querer entrar na velha discussão sobre o valor relativo da genética e da cultura na formação da personalidade, o fato é que não dá para evitar a constatação de que há pessoas venenosas, naturalmente venenosas, assim como há pessoas desafinadas.

A comparação não é descabida. Acredito que a mente é um produto cultural, e que descontadas coisas inexplicáveis como um gosto congênito por couve-flor ou pelo “Bolero” de Ravel, somos todos dotados de basicamente o mesmo material cefálico, pronto para ser moldado pelas nossas circunstâncias. Mas então como é que ninguém aprende a ser afinado? Quem é desafinado não tem remédio. Nasce e está condenado a morrer desafinado. No peito de um desafinado também bate um coração, certo, e o desafinado não tem culpa de ser um desafio às teses psicológicas mais simpáticas. Mas é. Matemática se aprende, até alemão se aprende, mas desafinado nunca fica afinado. Como venenoso é de nascença.

O que explica não apenas o crime patológico como as pequenas vilanias que nos cercam. A pura maldade inerente a tanto que se vê, ouve ou lê por aí. O insulto gratuito, a mentira infamante, a busca da notoriedade pela ofensa aos outros. Ressentimento ou amargura são características humanas adquiridas, compreensíveis, que explicam muito disto. Pura maldade, só o veneno explica.

E aí pessoal, vamos parar de discutir os textos q não são do LFV e começar a comentar os que verdadeiramente o são? Concordo com a Anna a respeito de grosserias - afinal, todos devemos NO MÍNIMO nos esforçar para ser educados com as outras pessoas. Entendo que seja difícil agüentar tantos textos falsos, mesmo com avisos garrafais, mas não se pode fugir do espírito da comunidade...

 

 

                   OUTRAS HISTÓRIAS

 

Há dias, escrevi sobre a briga pela memória nacional na questão do acesso aos registros da repressão, no que é no fundo uma briga protelada pelo poder. Se a História é sempre a versão do vencedores, quando se discute que História teremos se está, na verdade, tentando estabelecer quem foram os vencedores. A dúvida sobre quem realmente “ganhou” e tem o direito de ditar a História não se resume à notória indefinição política brasileira, onde estar no governo e estar no poder são duas coisas diferentes, mas existe hoje em todo o mundo. Brigas que já se julgavam resolvidas, algumas há séculos, continuam acirradas, e em muitos casos vencidos presumíveis é que estão por cima, dizendo como os outros devem pensar e lembrar.

Não são só os índices de leitura de horóscopos que atestam o fracasso do Copérnico em convencer a Humanidade que a Terra não é o centro do Universo. A ciência em geral tem tido um péssimo desempenho na tarefa de vencer a crendice e o obscurantismo, embora a versão “oficial” da História humana desde, pelo menos, o século XVIII tenha sido a de conquistas irreversíveis da razão secularista, com alguns soluços de irracionalidade.

A teoria da evolução de Darwin é outra que não convenceu muita gente. Numa enquete recente, mais de setenta por cento dos americanos pesquisados responderam que preferem a explicação bíblica da origem da sua espécie à de Darwin. Em vários estados americanos há leis que obrigam o ensino da versão bíblica junto com a da evolução, que deve ser identificada como apenas uma especulação teórica em contraste com a palavra de Deus. A influência do fundamentalismo religioso cresce na política e nos costumes dos Estados Unidos, reforçada com a reeleição do Bush, que diz aconselhar-se sempre com o Todo-Poderoso, e não está se referindo a Cheney. E cresce a radicalização do fundamentalismo islâmico, com influência direta da palavra do deus deles no estado de nervos de todo o mundo. Alguém já descreveu o que está acontecendo na Terra como a crise terminal dos monoteísmos ou do combustível fóssil, a escolher. Seja como for, não tem nada a ver com a História sensata que imaginaram para nós no século XVIII. Estávamos vivendo, sem saber, a História dos perdedores.

E não temos, mesmo, jeito. Queremos crer, o que não é o mesmo que acreditar. Sempre conto que quando eu fazia o Horóscopo do jornal, nunca deixava de ler no dia seguinte o que tinha previsto para o meu signo, Libra.

 

                                                                                L. F. Veríssimo  

 

                      

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