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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRÔNICAS III de Luís Fernando Veríssimo
CRÔNICAS III de Luís Fernando Veríssimo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRÔNICAS III

Luís Fernando Veríssimo

 

                         Índice

 

               PÁSCOA

               PODEROSOS

               PORTA DE BANHEIRO

               PUDOR

               QUASE

               RECEBENDO ANJOS

               REVOLUÇÃO SEXUAL

               SALA DE ESPERA

               SEM TIRAR NEM PÔR

               SEXA

               SEXO E FUTEBOL

               TARZAN E JANE OU QUANDO O AMOR ACABA

               UM DIA DE MODESS NA VIDA DE UM HOMEM

               UMA MODESTA PROPOSTA

              VERSÕES DE MIM

               VIVA A CIRURGIA PLÁSTICA

 

 

                   PÁSCOA

 

- Papai, o que é Páscoa?

- Ora, Páscoa é... bem... é uma festa religiosa!

- Igual Natal?

- É parecido. Só que no Natal comemora-se o nascimento de Jesus, e na Páscoa, se não me engano, comemora-se a sua ressurreição.

- Ressurreição?

- É, ressurreição. Marta, vem cá!

- Sim?

- Explica pra esse garoto o que é ressurreição pra eu poder ler o meu jornal.

- Bom, meu filho, ressurreição é tornar a viver após ter morrido. Foi o que aconteceu com Jesus, três dias depois de ter sido crucificado. Ele ressuscitou e subiu aos céus. Entendeu?

- Mais ou menos... Mamãe, Jesus era um coelho?

- Que é isso menino? Não me fale uma bobagem dessas!

Coelho! Jesus Cristo é o Papai do Céu! Nem parece que esse menino foi batizado! Jorge, esse menino não pode crescer desse jeito, sem ir numa missa pelo menos aos domingos. Até parece que não lhe demos uma educação cristã! Já pensou se ele solta uma besteira dessas na escola? Ave Maria!

- Mamãe, mas o Papai do Céu não é Deus?

- É filho, Jesus e Deus são a mesma pessoa. Você vai estudar isso no catecismo. Chama-se a Trindade. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo.

- O Espírito Santo também é Deus?

- É sim.

- E Minas Gerais?

- Sacrilégio!!!

- É por isso que a Ilha da Trindade fica perto do Espírito Santo?

- Não é o Estado do Espírito Santo que compõe a Trindade, meu filho, é o Espírito Santo de Deus. É um negócio meio complicado, nem a mamãe entende direito. Mas quando você for no catecismo a professora explica tudinho!

- Bom, se Jesus não é um coelho, quem é o coelho da Páscoa?

- Eu sei lá! É uma tradição. É igual a Papai Noel, só que ao invés de presente ele traz ovinhos.

- Coelho bota ovo?

- Chega! Deixa eu ir fazer o almoço que eu ganho mais!

- Papai, não era melhor que fosse galinha da Páscoa?

- Era, era melhor, ou então urubu.

 

- Papai, Jesus nasceu no dia 25 de dezembro, né? Que dia que ele morreu?

- Isso eu sei: na sexta-feira santa.

- Que dia e que mês?

- Sabe que eu nunca pensei nisso? Eu só aprendi que ele morreu na sexta-feira santa e ressuscitou três dias depois, no sábado de aleluia.

- Um dia depois.

- Não, três dias.

- Então morreu na quarta-feira.

- Não, morreu na sexta-feira santa... ou terá sido na quarta-feira de cinzas? Ah, garoto, vê se não me confunde! Morreu na sexta mesmo e ressuscitou no sábado, três dias depois!

- Como?

- Pergunte à sua professora de catecismo!

Papai, por que amarraram um monte de bonecos de pano lá na rua?

- É que hoje é sábado de aleluia, e o pessoal vai fazer a malhação do Judas.

Judas foi o apóstolo que traiu Jesus.

- O Judas traiu Jesus no sábado?

- Claro que não! Se ele morreu na sexta!!!

- Então por que eles não malham o Judas no dia certo?

- É, boa pergunta. Filho, atende o telefone pro papai. Se for um tal de Rogério diz que eu saí.

- Alô, quem fala?

- Rogério Coelho Pascoal. Seu pai está?

- Não, foi comprar ovo de Páscoa. Ligue mais tarde, tchau.

- Papai, qual era o sobrenome de Jesus?

- Cristo. Jesus Cristo.

- Só?

- Que eu saiba sim, por quê?

- Não sei não, mas tenho um palpite de que o nome dele era Jesus Cristo Coelho. Só assim esse negócio de coelho da Páscoa faz sentido, não acha?

- Coitada!

- Coitada de quem?

- Da sua professora de catecismo!!!

 

 

                   PODEROSOS

 

- O meu celular também é uma câmera digital que transmite as fotografias para qualquer lugar do mundo. Tem calculadora e mini impressora, dá o horário das marés e o resumo das novelas e acho que faz cafezinho. Além de receber e transmitir chamadas telefônicas, claro.

- Tem High-Definition Jet Systematizer Interface Board?

- Tem. Não. Não sei. Será esta tecla?

- Não! Isso é o raio laser. Só use no caso de um ataque de extraterrestres.

- Você está brincando?

- Estou. Também inventei esse High-Systematization Interboard High Jet Face, que não existe. Pelo menos, até onde eu saiba. Na verdade não entendo nada de celular.

- Então entende mais do que eu.

- Só sei que eles estão ficando poderosos demais. Não há o que não façam. E quem sabe como?

- Eu não. Estava recém começando a entender o telefone comum...

- Teclado ou disco?

- Disco!

- Quer saber de uma coisa? Eu ainda não entendi rádio. Televisão eu nem tentei.

- Eu nunca entendi rádio. Esse negócio de ondas sonoras que se propagam pelo ar. Pode?

- Pois eu vou contar uma coisa.

- Conte.

- Eu nunca entendi fechadura.

- E torneira? O que você me diz de torneira?

- Impossível. Um mistério. Outra coisa: tesoura.

- Não. Espera aí. Tesoura eu sei como funciona.

- Sabe?

- Tesoura eu saquei. Pelo menos o princípio da coisa eu sei. Em termos leigos, claro.

- Que barulho é esse? Um "Psst" eletrônico.

- É o meu celular me chamando. Tem um recado na telinha.

- O que ele quer?

- Está me chamando de obsoleto. Não quer ficar comigo. Quer me trocar por outro dono, mais atualizado!

- Epa. Acho que o meu também está me chamando, para me xingar.

- Eu sabia que, cedo ou tarde, isso ia acontecer.

- O quê?

- Eles iam ficar arrogantes.

 

A Zenilca de Navarro trabalhava com o balé Corpo, de Belo Horizonte, largou tudo e, levada pela filha Ana, foi morar em Tiradentes, onde abriu um restaurante chamado Tragaluz e promove visitas de artistas e escritores à cidade. A seu convite fomos conhecer a bela Tiradentes, com a Lucia e o Roberto Riff, e nos hospedamos no magnífico Solar da Ponte.

Em troca de tanta simpatia, fiz uma palestra. No meio da qual, respondendo a uma pergunta da platéia, me declarei um agnóstico. Pra quê. Todos respeitaram minha posição, mas Deus não foi tão esportivo. Logo depois da palestra, perdi a voz! Esqueci que estava numa das suas terras preferidas.

 

 

                     PORTA DE BANHEIRO

 

Um dos abismos da criatividade humana é a porta de banheiro público. Como indicar que uma porta é do banheiro dos homens e outra do banheiro das mulheres sem cair no óbvio? Está claro que este é um daqueles casos em que deviam deixar o óbvio em paz. Mas não. As pessoas insistem em ser originais. Homem e Mulher, Damas e Cavalheiros, Senhoras e Senhores ou simplesmente "H" e "S" não servem. Banheiro é uma coisa que embaraça tanto a todos que a solução é procurada no outro extremo, na falsa descontração e no engraçadinho. Tenho me dedicado a colecionar exemplos, naquela volúpia pelo inútil que ou acaba em loucura ou em tese sociológica. Vamos lá.

Os camundongos Mickey e Minnie. Inescapáveis. Estes eu já encontrei nos piores antros, em tocante contraste com a sordidez do resto. Mickey e Minnie em alegres e coloridas poses, como se por aquelas portas se voltasse a infância em vez de entrar em asfixiantes câmaras de fedor adulto. Se o estabelecimento estiver caindo aos pedaços você pode ter certeza que na porta para homens haverá uma cartola e uma bengala e na das mulheres uma sombrinha cor-de-rosa. Fred Astaire e Ginger Rogers um dia ainda aparecerão.

Ferdinando e Daisy, claro. Eles e Elas, naturalmente. Machões e Fofinhas, ai de nós. Uma vez num restaurante do Leblon, deparei-me com duas indicações sobre o gênero dos banheiros: um limão e uma laranja. Fiquei uns bons 2 minutos ponderando o significado oculto daqueles símbolos cítricos até me dar conta que era apenas "o" limão e "a" laranja. Ou será que a mensagem era outra e eu continuo não entendendo? Outra vez, num restaurante de Greenwich Village, em Nova York, levei outros angustiantes minutos para descobrir que a cara de Karl Marx numa porta tinha a mesma função do camundongo Mickey, não era propaganda. Não cheguei a ver o que havia na porta do banheiro das mulheres. Rosa Luxemburgo, provavelmente.

Este tipo de sofisticação pode levar a confusões. O que fazer quando numa porta está um retrato do Oscar Wilde e na outra o da Gertrude Stein? Mas imagino que num lugar que chegasse a este tipo de sutileza não faria muita diferença. As duas portas dariam para o mesmo banheiro.

Quando a comunicação precisa ser rápida e internacional - em aeroportos, por exemplo - usam-se os símbolo consagrados do bonequinho de calça para homem e do bonequinho de saia para mulher, desprezando-se o fato de que poucas mulheres usam saias atualmente. Também não se cogita de que o eventual escocês de saiote imagine que exista um banheiro só para ele nos aeroportos.

Joãozinho e Mariazinha. Adão e Eva. Barbados e Belezas. Leões, meu Deus, e Domadoras. Laços de fita azul ou fita cor-de-rosa. Um buldogue e uma gata. Mônica e Horácio. Sandra Bréa e Ney Latorraca recortados de uma capa da Amiga...

Você deve conhecer vários outros exemplos. Por favor, não mande nenhum.

 

 

                     PUDOR

 

Certas palavras nos dão a impressão de que voam, ao saírem da boca. "Sílfide", por exemplo. É dizer "Sílfide" e ficar vendo suas evoluções no ar, como as de uma borboleta. Não tem nada a ver com o que a palavra significa. "Sílfide", eu sei, é o feminino de "silfo", o espírito do ar, e quer mesmo dizer uma coisa diáfana, leve, borboleteante. Mas experimente dizer "silfo". Não voou, certo? Ao contrário da sua mulher, "silfo" não voa. Tem o alcance máximo de uma cuspida. "Silfo", zupt, plof. A própria palavra "borboleta" não voa, ou voa mal. Bate as asas, tenta se manter aérea mas choca-se contra a parede. Sempre achei que a palavra mais bonita da língua portuguesa é "sobrancelha". Esta não voa mas paira no ar, como a neblina das manhãs até ser desmanchada pelo sol. Já a terrível palavra "seborréia" escorre pelos cantos da boca e pinga no tapete.

"Trilhão" era uma palavra pouco usada, antigamente. Uma pessoa podia nascer e morrer sem jamais ouvir a palavra "trilhão", ou só ouvi-la em vagas especulações sobre as estrelas do Universo. O "trilhão" ficava um pouco antes do infinito. Dizia-se "trilhão" em vez de se dizer "incalculável" ou "sei lá". Certa vez (autobiografia) tive de responder a uma questão de Geografia no colégio. Naquele tempo, a pior coisa do mundo era ser chamado a responder qualquer coisa no colégio. De pé, na frente dos outros e -- o pior de tudo -- em voz alta. Depois descobri que existem coisas piores, como a miséria, a morte e a comida inglesa. Mas naquela época o pior era aquilo. "Senhor Veríssimo!" Era eu. Era irremediavelmente eu. "Responda, qual é a população da China?" Eu não sabia. Estava de pé, na frente dos outros, e tinha que dizer em voz alta o que não sabia. Qual era a população da China? Com alguma presença de espírito eu poderia dizer: "A senhora quer dizer neste exato momento?", dando a entender que, como o que mais acontece na China é nascer gente, uma resposta exata seria impossível. Mas meu espírito não estava ali. Meu espírito ainda estava em casa, dormindo. "Então, senhor Veríssimo qual é a população da China?" E eu respondi:

- Numerosa.

Ganhei zero, claro. Mas "trilhão", entende, era sinônimo de "numeroso". Não era um número, era uma generalização. Você dizia "trilhão" e a palavra subia como um balão desamarrado, não dava tempo nem para ver a sua cor. E hoje não passa dia em que não se ouve falar em trilhões. O "trilhão" vai, aos poucos, se tornando nosso íntimo. É o mais novo personagem da nossa aflição. Quantos zeros tem um trilhão? Doze, acertei? Se os zeros fossem pneus, o trilhão seria uma jamanta daquelas de carregar gerador para usina atômica parada. Felizmente vem aí uma reforma e outra moeda, com menos zeros e mais respeito. Se não chegaríamos à desmoralização completa.

-- E o troco do meu tri?

-- Serve uma bala?

Desconfio que o que apressará a reforma é a iminência do quatrilhão. "Quatrilhão" é pior que "seborréia". Depois de dizer "quatrilhão" você tem que pular para trás, senão ele esmaga os seus pés. E "quatrilhão" não é como, por exemplo, "otorrino", que cai no chão e corre para um canto. "Quatrilhão" cai, pesadamente, no chão e fica. Você tenta juntar a palavra do chão e ela quebra. Tenta remontá-la fica "trãoliqua" e sobra o agá. A mente humana, ou pelo menos a mente brasileira, não está preparada para o "quatrillião". As futuras gerações precisam ser protegidas do "quatrilhão". As reformas monetárias, quando vêm, são sempre para acomodar as máquinas calculadoras e o nosso senso do ridículo, já que caem os zeros mas nada, realmente, muda. A próxima reforma seria a primeira motivada, também, por um pudor lingüístico. No momento em que o "quatrilhão" se instalasse no nosso vocabulário cotidiano, mesmo que fosse só para descrever a dívida interna, alguma coisa se romperia na alma brasileira. Seria o caos.

E "caos", você sabe. É uma palavra chiclé-balão. Pode explodir na nossa cara.

* Crónica, uma das 266 publicadas no livro "Comédias da Vida Pública", L&PM Editores, São Paulo. ** Escritor e humorista brasileiro nascido em Porto Alegre, em 1936. Autor entre outros livros, de "Analista de Bagé" (na centésima edição), "O analista de BAgé & Outras do Analista", "Amor Brasileiro", "O Jardim do Diabo", "Peçoas Íntimas", "O Santinho" e "Sexo na Cabeça".

 

 

                     QUASE

 

Ainda pior que a convicção do não e a incerteza do talvez é a desilusão de um quase.

É o quase que me incomoda, que me entristece, que me mata trazendo tudo que poderia ter sido e não foi.

Quem quase ganhou ainda joga, quem quase passou ainda estuda, quem quase morreu está vivo, quem quase amou não amou.

Basta pensar nas oportunidades que escaparam pelos dedos, nas chances que se perdem por medo, nas idéias que nunca sairão do papel por essa maldita mania de viver no outono.

Pergunto-me, às vezes, o que nos leva a escolher uma vida morna; ou melhor não me pergunto, contesto. A resposta eu sei de cór, está estampada na distância e frieza dos sorrisos, na frouxidão dos abraços, na indiferença dos "Bom dia", quase que sussurrados. Sobra covardia e falta coragem até pra ser feliz.

A paixão queima, o amor enlouquece, o desejo trai.

Talvez esses fossem bons motivos para decidir entre a alegria e a dor, sentir o nada, mas não são. Se a virtude estivesse mesmo no meio termo, o mar não teria ondas, os dias seriam nublados e o arco-íris em tons de cinza.

O nada não ilumina, não inspira, não aflige nem acalma, apenas amplia o vazio que cada um traz dentro de si.

Não é que fé mova montanhas, nem que todas as estrelas estejam ao alcance, para as coisas que não podem ser mudadas resta-nos somente paciência porém, preferir a derrota prévia à dúvida da vitória é desperdiçar a oportunidade de merecer.

Pros erros há perdão; pros fracassos, chance; pros amores impossíveis, tempo.

De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma. Um romance cujo fim é instantâneo ou indolor não é romance.

Não deixe que a saudade sufoque, que a rotina acomode, que o medo impeça de tentar.

Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu.

 

 

                     RECEBENDO ANJOS

 

"Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos".

                            (Epístola aos Hebreus, 13:2).

  

Bons tempos, bons tempos, os bíblicos. Imagine receber um anjo hoje.

 

Um deles já pode ter estado com você, e você não o reconheceu. A função dele era aparecer e lhe dar a mensagem. A sua única obrigação era recebê-lo, mas você não soube que era ele. Você se afastou, achou que era um chato, ou um louco, falhou, azar. Pode ter sido há anos.

Aquele que caminhou ao seu lado brevemente e disse uma coisa estranha e você apressou o passo, lembra? Aquele (ou aquela, eles vêm de varias formas) que sentou ao seu lado e falou no tempo, e era um preâmbulo para a revelação, mas você fechou a cara.

Ele pode ter batido na sua porta e você foi logo dando uma esmola, ou dizendo que hoje não tem nada, ou ameaçando chamar a polícia. Antes era mais fácil, agora é tarde. Hoje ele bate na porta e você espia e não abre a porta, tá doido? Se ele se aproximar de você na rua, você correrá apavorado ou anunciará que está armado e que é melhor ele se afastar. Se ele se sentar ao seu lado, você fugirá do contágio, se ele segurar o seu braço, você gritará. Se ele telefonar, sua secretaria eletrônica dirá para ele deixar a mensagem depois do bip e ele não dirá nada: a mensagem é para você e não para ela.

E se ele conseguir alcançar você sem que você lhe dê um pontapé, e cumprir sua função, e der a mensagem -- você não a compreenderá. Pedirá para ele falar mais alto, há muito barulho. O quê? Em que sentido? É uma metáfora? É um código? Interpreta, traduz, decifra, o quê?

Agora é tarde. Antes ele olharia você nos olhos e falaria claramente. E, dada a mensagem, ele desapareceria, e o mundo seria uma estrada para o seu coração.

 

Hoje você diria - olha, precisamos conversar com mais calma um dia, me liga!

Me liga!

 

 

                   REVOLUÇÃO SEXUAL

 

No meu tempo (ali pela Renascença) namorar era como uma lenta conquista de territórios hostis. Avançávamos no desconhecido como desbravadores do Novo Mundo. Centímetro a centímetro, mentira a mentira. Em nenhuma outra atividade humana, salvo, talvez, a diplomacia, se mentia tanto como num namoro. E o objetivo era o mesmo da diplomacia, conseguir com palavras o que não se conseguia com a força. Negociava-se cada palmo.

- Pode, mas só até aqui.

- Está bem.

- Jura?

- Juro.

- Você passou! Você mentiu!

- Me distraí.

Na verdade, não mentíamos para vocês, mentíamos por vocês. Dávamos a vocês todos os álibis. O que quer que acontecesse, era por nossa insistência, não porque vocês também queriam. Calhorda era quem dizia, abjetamente, a verdade, e não fazia o que jurava que não ia fazer, e vocês queriam que fizesse. Cavalheiros eram os que diziam que só queriam ver, não iam tocar, e tocavam.

Hoje, pelo que me contam, não há mais este cerimonial. Desgraçadamente, as coisas começaram a mudar justamente quando eu entrei para uma ordem religiosa, a dos monógamos. A revolução sexual, que um dia ainda vai ser comemorada como a Revolução Francesa, com a invenção da pílula correspondendo à queda da Bastilha e o fim do sutiã ao fim da monarquia absoluta - e o termo sans culote, claro, adquirindo novos significados - desobrigou o homem de mentir para proteger a reputação da mulher. Aliás, ouvi dizer que agora a mentira mais usada pelo homem durante um namoro é "Hoje não, querida, estou com dor de cabeça".

Mas só quem viveu antes da revolução conhece as delícias da repressão. Esta geração jamais conhecerá a doce aflição de tentar desengatar um sutiã com dedos trêmulos, e finalmente conseguir quando já se começava a pensar num maçarico, só para ter que engatá-lo de novo às pressas porque a mãe dela vinha vindo.

Acho que foi isso que nos tornou mais fortes.

 

 

                   SALA DE ESPERA

 

Sala de espera de dentista. Homem dos seus quarenta anos. Mulher jovem e bonita. Ela folheia uma Cruzeiro de 1950. Ele finge que lê uma Vida dentária.

Ele pensa: que mulherão. Que pernas. Coisa rara, ver pernas hoje em dia. Anda todo mundo de jeans. Voltamos à época em que o máximo era espiar um tornozelo. Sempre fui um homem de pernas. Pernas com meias. Meias de náilon. Como eu sou antigo. Bom era o barulhinho. Suish-suish. Elas cruzavam as pernas e fazia suish-suish. Eu era doido por um suish-suish.

Ela pensa: cara engraçado. Lendo a revista de cabeça para baixo.

Ele: te arranco a roupa e te beijo toda. Começando pelo pé. Que cena. A enfermeira abre a porta e nos encontra nus sobre o carpete, eu beijando o pé. O que é isso?! Não é o que a senhora está pensando. É que entrou um cisco no olho desta moça e eu estou tentando tirar. Mas o olho é na outra ponta! Eu ia chegar lá. Eu ia chegar lá.

Ela: ele está olhando as minhas pernas por baixo da revista. Vou descruzar as pernas e cruzar de novo. Só para ele aprender.

Ele: ela descruzou e cruzou de novo! Ai meu Deus. Foi pra me matar. Ela sabe que eu estou olhando. Também, a revista está de cabeça pra baixo. E agora? Vou ter que dizer alguma coisa.

Ela: ele até que é simpático, coitado. Grisalho. Distinto. Vai dizer alguma coisa...

Ele: o que é que eu digo? Tenho que fazer alguma referência à revista virada. Não posso deixar que ela me considere um bobo. Não sou um adolescente. Finjo que examino a revista mais de perto, depois digo "Sabe que só agora me dei conta de que estava lendo essa revista de cabeça para baixo? Pensei que fosse em russo." Aí ela ri e eu digo "E essa sua Cruzeiro? Tão antiga que deve estar impressa em pergaminho, é ou não é? Deve ter desenhos infantis do Millôr." Aí riremos os dois, civilizadamente. Falaremos nas eleições e na vida em geral. Afinal, somos duas pessoas normais, reunidas por circunstância numa sala de espera. Conversaremos cordialmente. Aí eu dou um pulo e arranco toda a roupa dela.

Ela: ele vai falar ou não? É do tipo tímido. Vai dizer que tempo, né? A senhora não acha? É do tipo que pergunta "Senhora ou senhorita?" Até que seria diferente. Hoje em dia a maioria já entra rachando... Vamos variar de posição, boneca? Mas espere, nós ainda nem nos conhecemos, não fizemos amor em posição nenhuma! É que eu odeio as preliminares. Esse é diferente. Distinto. Respeitador.

Ele: digo o quê? Tem um assunto óbvio. Estamos os dois esperando a vez num dentista. Já temos alguma coisa em comum. Primeira consulta? Não, não. Sou cliente antiga. Estou no meio do tratamento. Canal? É. E o senhor? Fazendo meu check-up anual. Acho que estou com uma cárie aqui atrás. Quer ver? Com esta luz não sei se... Vamos para o meu apartamento. Lá a luz é melhor. Ou então ela diz pobrezinho, como você deve estar sofrendo. Vem aqui e encosta a cabecinha no meu ombro, vem. Eu dou um beijinho e passa. Olhe, acho que um beijo por fora não adianta. Está doendo muito. Quem sabe com a sua língua...

Ela: ele desistiu de falar. Gosto de homens tímidos. Maduros e tímidos. Ele está se abanando com a revista. Vai falar do tempo. Calor, né? Aí eu digo "É verão". E ele: "É exatamente isso! Como você é perspicaz. Estou com vontade de sair daqui e tomar um chope". "Nem me fale em chope." "Você não gosta de chope?" "Não, é que qualquer coisa gelada me dói a obturação". "Ah, então você está aqui para consultar o dentista, como eu. Que coincidência espantosa! Os dois estamos com calor e concordamos que a causa é o verão. Os dois temos o mesmo dentista. É o destino. Você é a mulher que eu esperava todos estes anos. Posso pedir sua mão em noivado?"

Ele: ela está chegando ao fim da revista. Já passou o crime do Sacopã, as fotos de discos voadores... Acabou! Olhou para mim. Tem que ser agora. Digo: "Você está aqui para limpeza de pernas? Digo, de dentes? Ou para algo mais profundo como uma paixão arrebatadora por pobre de mim?"

Ela: e se eu disser alguma coisa? Estou precisando de alguém estável na minha vida. Alguém grisalho. Esta pode ser a minha grande oportunidade. Se ele disser qualquer coisa, eu dou o bote. "Calor, né?" "Eu também te amo!"

Ele: melhor não dizer nada. Um mulherão desses. Quem sou eu? É muita perna pra mim. Se fosse uma só, mas duas! Esquece, rapaz. Pensa na tua cárie que é melhor. Claro que não faz mal dizer qualquer coisinha. Você vem sempre aqui? Gosto do Roberto Carlos? O que serão os buracos negros? Meu Deus, ela vai falar!

- O senhor podia...

- Não! Quero dizer, sim?

- Me alcançar outra revista?

- Ahn... Cigarra ou Revista dda Semana?

- Cigarra.

Aqui está.

- Obrigada.

Aí a enfermeira abre a porta e diz:

- O próximo.

E eles nunca mais se vêem.

 

 

                     SEM TIRAR NEM PÔR

 

- Sou eu sem tirar nem pôr - disse a Juventina sobre uma personagem da novela.

As pessoas acharam graça. Juventina adorava novelas. Via todas. E estava sempre comentando a vida dos personagens como se fossem reais. Mas neste caso havia, mesmo, algumas coincidências curiosas. Fora o nome, a personagem se parecia muito com a Juventina. Se parecia demais. O mesmo jeito, a mesma origem nordestina, a mesma história familiar...

Um dia, depois que a personagem falou na mãe costureira e viúva que deixara na sua cidade natal e não via há cinco anos, Juventina atirou as mãos para o alto e exclamou:

- Meus santos, essa sou eu!

Juventina dizia muito "meus santos". Foi, aliás, depois do capítulo em que, no fim de uma briga com o irmão safado, a personagem da novela atirou as mãos para o alto e disse "Meus santos, me acudam!" que todos concordaram: a Juventina deveria fazer alguma coisa a respeito daquilo.

A personagem era ela sem tirar nem pôr!

 

Mas fazer o quê?

- Procure a televisão. Eles estão roubando a sua vida - disse alguém.

- Isso é plágio - disse outro.

Mas procurar a televisão, como? Escrevendo uma carta? Milhares de pessoas, provavelmente, escreviam para a televisão, dizendo que eram iguais a personagens de novelas. E ela não podia simplesmente bater na porta da televisão, pedir para falar com a direção e dizer "Parem de me copiar". Foi quando a lembraram que novelas tinham autores.

Eram os que inventavam as histórias e os personagens. Talvez o autor da novela fosse um conhecido seu, que soubesse da sua vida e a estivesse aproveitando no enredo. "Mas por quê?

Minha vida é tão sem graça" disse a Juventina. Não era tão sem graça assim. Ela podia não se dar conta, mas era uma pessoa interessante, com uma vida interessante. Uma vida que, obviamente, inspirara o autor. Mas ela não identificava o nome do autor. Jamais conhecera um autor do que quer que fosse. Viu sua fotografia numa revista, recebendo um prêmio, e também não o identificou. Não importava. Juventina precisava procurá-lo e tirar aquilo a limpo. Onde já se vira, usar a vida de uma pessoa assim, sem pedir licença?

 

Foi tão difícil a Juventina chegar ao autor como fora dificil para a personagem, que era do núcleo pobre da novela, chegar ao núcleo rico. Finalmente, através do cunhado de uma prima (sempre há o cunhado de uma prima) que conhecia alguém cujo irmão tinha algo a ver com um fornecedor da televisão, Juventina foi recebida pelo autor. Que foi muito simpático. Sacudiu a cabeça e disse

"Que coincidência!" quando a Juventina contou que a personagem era ela sem tirar nem pôr. E assegurou que era tudo isso mesmo. Coincidência.

- Mas de onde o senhor tirou a mãe viúva e costureira que eu deixei no Nordeste e não vejo há cinco anos?

- Da minha cabeça.

- E o meu arroz com carne de sol com a salsa em cruz pra dar certo?

- Da minha cabeça.

- E o irmão safado que me rouba dinheiro?

- Da minha cabeça.

- E a minha mania de dizer "Meus santos"?

- Taí. Pensei que eu é que tivesse inventado essa expressão.

Juventina não sabia mais o que dizer. O autor sorriu e observou que vidas parecidas com a dela existiam muitas, as coincidências não eram assim tão espantosas. E, mesmo, ela não precisava mais se preocupar.

A personagem morreria num capítulo próximo.

 

Juventina já estava no elevador quando resolveu voltar. Bateu na porta do autor e, quando ele abriu, perguntou:

- Como?

- Como o quê?

- Como ela vai morrer?

- Ainda não decidi.

- O senhor ainda não escreveu a cena?

- Não.

- Eu posso entrar de novo?

 

A única coisa que Juventina disse, àquela noite, quando a televisão deu a notícia da morte misteriosa do autor, golpeado na cabeça com um prêmio que recém recebera por um desconhecido, dentro do seu apartamento, foi:

- Meus santos, o que que é isso?

No dia seguinte, viajou para o Nordeste, dizendo que precisava rever a sua mãezinha e talvez não voltasse tão cedo.

 

 

                   SEXA

 

- Pai...

- Hmmm?

- Como é o feminino de sexo?

- O quê?

- O feminino de sexo.

- Não tem.

- Sexo não tem feminino?

- Não.

- Só tem sexo masculino?

- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.

- E como é o feminino de sexo?

- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.

- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.

- O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra "sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino.

- Não devia ser "a sexa"?

- Não.

- Por que não?

- Porque não! Desculpe. Porque não. "Sexo" é sempre masculino.

- O sexo da mulher é masculino?

- É. Não! O sexo da mulher é feminino.

- E como é o feminino?

- Sexo mesmo. Igual ao do homem.

- O sexo da mulher é igual ao do homem?

- É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o sexo masculino e o sexo feminino, certo?

- Certo.

- São duas coisas diferentes.

- Então como é o feminino de sexo?

- É igual ao masculino.

- Mas não são diferentes?

- Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, mas não muda a palavra.

- Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.

- A palavra é masculina.

- Não. "A palavra" é feminino. Se fosse masculina seria "o pal..."

- Chega! Vai brincar, vai.

O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:

- Temos que ficar de olho nesse guri...

- Por quê?

- Ele só pensa em gramática.

 

 

                  SEXO E FUTEBOL

 

No que se parecem: o sexo e o futebol?

No futebol, como no sexo, as pessoas suam ao mesmo tempo, avançam e recuam, quase sempre vão pelo meio, mas também caem para um lado ou para o outro, e às vezes há um deslocamento. Nos dois é importantíssimo ter jogo de cintura.

No sexo, como no futebol, muitas vezes acontece um cotovelaço no olho sem querer, ou um desentendimento que acaba em expulsão. Aí um vai para o chuveiro mais cedo.

Dizem que a única diferença entre uma festa de amasso e a cobrança de um escanteio é que na grande área não tem música, porque o agarramento é o mesmo, e no escanteio também tem gente que fica quase sem roupa.

Também dizem que uma das diferenças entre o futebol e o sexo é a diferença entre camiseta e camisinha. Mas a camisinha, como a camiseta, não distingue, ela tanto pode vestir um craque como um medíocre.

No sexo, como no futebol, você amacia no peito, bota no chão, cadencia, e tem que ter uma explicação pronta na saída para o caso de não dar certo.

No futebol, como no sexo, tem gente que se benze antes de entrar e sempre sai ofegante.

No sexo, como no futebol, tem o feijão com arroz, mas também tem o requintado, a firula e o lance de efeito. E, claro o lençol.

No sexo também tem gente que vai direto no calcanhar.

E tanto no sexo quanto no futebol o som que mais se ouve é aquele “uuu”.

No fim sexo e futebol só são diferentes, mesmo, em duas coisas. No futebol não pode usar as mãos. E o sexo, graças a Deus, não é organizado pela CBF.

 

 

                   TARZAN E JANE OU QUANDO O AMOR ACABA

 

Foi um dos grandes momentos do cinema. Não me lembro quem era Tarzan na época. Não importa. O que importa é a frase.

- Eu Tarzan, você Jane.

Certas frases famosas do cinema na verdade nunca foram ditas. A frase que todo mundo lembra de Casablanca, por exemplo, "Play it again, Sam". Não tem no filme. Os puristas dirão que Tarzan jamais disse "Me Tarzan, you Jane". Apenas apontou para o próprio peito e disse "Tarzan", depois apontou para Jane e disse "Jane". São os mesmos puristas insensíveis que insistem em destacar a importância de Chita, a macaca, nas aventuras de Tarzan, pois - dizem - se não fosse a Chita para desamarrar os pulsos de Tarzan sempre que ele se deixava capturar, não existiria o mito de sua invencibilidade. Alguns revisionistas chegam a dizer que Chita, e não Tarzan, é a figura principal do mito e que Tarzan entrava como alivio cômico. Só merecem o nosso desprezo.

Não foi fácil para Tarzan aprender a frase.

- Eu Jane, você Tarzan.

- Não, Tarzan. Eu Jane, você Tarzan.

- Foi o que Tarzan disse.

- Eu Jane, você não.

- Eu Jane, você não.

- Não. Diga "Eu Tarzan".

- Eu Tarzan, você não.

- Eu Tarzan, você Jane.

- Eu confuso.

- É fácil. Pare de comer piolho e escute. Diga "Eu Tarzan, você Jane".

- Eu Tarzan, você Jane.

- Isso!

De uma só vez, Tarzan descobria a linguagem humana, o uso do pronome e o amor. A cultura chegava à jângal. A civilização conquistava a barbárie. A mulher, simbolizando os valores comunitários, domava o primitivo.

- Eu Tarzan, você Jane.

- Perfeito. Agora diga, "Eu Tarzan, você boa".

- Eu Tarzan, você boa.

- Eu Tarzan, você ótima.

- Eu Tarzan, você ótima.

- Eu Tarzan, você formidável!

- Eu Tarzan, você formidável!

- Eu nada, você tudo.

- Eu nada, você tudo.

- Muito bem. Agora vai caçar um leão e não incomoda.

- Eu Tarzan, você…

- Chega!

O melhor Tarzan de todos os tempos foi Johnny Weismuller, talvez porque tenha sido o Tarzan da minha infância. Mas o fato de ser campeão de natação determinou algumas distorções na personagem. Em todos os filmes de Tarzan com Weismuller havia longas cenas de natação. Tarzan nadava com um crawl perfeito, o que era estranho. Certamente não aprendera aquilo com os macacos. E sempre que Tarzan entrava na água, um jacaré entrava também. Era Tarzan mergulhar e o cinema inteiro murmurava, apreensivo: "Lá vem o jacaré…". Mas Tarzan derrotava o jacaré. Sem a ajuda da Chita, diga-se de passagem.

- Eu Tarzan, você Jane…

A vida era boa para Tarzan e sua companheira. Não precisavam de muita conversa. Amavam-se. Mas o tempo passou e o tempo é o segundo maior inimigo do amor, depois da pele oleosa. Um dia, distraído, Tarzan disse:

- Eu Tarzan, você Araci.

- Araci?

- Epa.

- Você tem outra seu cretino!

Brigaram. Jane continuou morando na casa da árvore mas Tarzan foi dormir na forquilha. Depois de um mês longe dos braços de Jane, Tarzan sugeriu para Chita.

- Eu Tarzan, você Jane?

- Chita fugiu, prudentemente. Todos os animais da floresta fugiam de Tarzan enquanto Jane não o aceitasse de volta. Finalmente, veio a reconciliação. Tarzan se penitenciou.

- Eu monstro, você compreensiva?

- Diga "Eu verme, você maravilhosa".

- Eu verme, você maravilhosa.

- Eu ser desprezível, você superior.

- Eu ser desprezível, você superior.

- Entre.

Contam os nativos que a grande casa da árvore tremeu naquela noite.

Mas o tempo passa e tudo muda. Um dia, Tarzan disse:

- Eu velho, você velha…

- Você velho, eu inteira.

- Eu Tarzan, você Jane?

- Hoje não, bem. Estou com dor de cabeça.

Tarzan passou a beber. Os nativos contam histórias. Contam que Tarzan deu para freqüentar os bares da costa. Entra com a Tanga Caída, bate no balcão e pede bebida. Depois de três ou quatro copos, vira-se para os outros freqüentadores e grita:

- Eu Tarzan, vocês todos Janes!

É expulso do local. Só anda pela floresta amarrado a um cipó e com um negrão empurrando. Volta para a árvore tarde da noite e Jane tem que ajudá-lo a subir. Ele nem enxerga direito.

- Eu Tarzan, você quem é?

Triste, triste.

 

 

                    UM DIA DE MODESS NA VIDA DE UM HOMEM

 

Passei por duras provas para conseguir meu diploma na escola da vida. Mas para entender as mulheres é preciso um estágio. Nesse quesito, eu sou um entusiasta da filosofia gelol: "Não basta ter pau, tem que participar!!!" Por isso, aceitei o desafio de passar um dia com um modess na cueca. A primeira menção do assunto modess me causa uma vontade de gargalhar irracional. Pois eu resolvi que já era hora de encarar esse trauma de forma mais íntima. O primeiro passo foi comprar a pequena fralda na farmácia. Isso foi fácil. Na verdade, foi até divertido. Fiquei torcendo pra mulher do caixa perguntar, e eu responder de forma bem "casual": É pra sua namorada???" "Não. É pra mim!!!" Só que ninguém nem tchuns, o que prova que as meninas ficam constrangidas à toa. Na verdade, menstruar é uma parada normal. Acontece nas melhores famílias. Comprei um não-sei-o-que mini". Não ligo pra grifes, ainda mais de modess. Mas nesse caso, o que importava era o tamanho. E era mini. Porque, se é pra eu fazer esse papel de usuário de absorventes, pelo menos que eu não passe por arrombado. E a diferença de bitola entre o mini e o super é significativa, o que me fez pensar sobre como algumas mulheres são maiores que as outras...bom. Comprei também um tablete Valda pra dar uma dechavada básica e fui pra casa realizar o sacrifício que me tornaria um membro da classe masculina mais compreensiva com o sexo oposto. Chegando em casa, fui tentar abrir o pacote. Impulsivo por natureza, o homem não se dá ao trabalho de procurar linhas pontilhadas e, assim sendo, comecei abrindo errado.

A abertura na horizontal tem um porquê, se adapta melhor à bolsa e deixa o absorvente mais à mão no caso de uma enxurrada inesperada. Mas eu ignorei, pois não uso bolsa. Ao retirar a peça do invólucro, você tem que descolar uma abinha para grudar na roupa íntima. Se a menstruação em si não lhe deixar "incomodada", essa almofada intrusa no seu chakra genital com certeza vai. Calculei que o centro do modess ficasse na altura da "terra de ninguém", de forma que ele não invadisse o território peniano. O saco reclamou um pouco, já que não se tratava de uma cueca duplex com teto solar. Um pouco de paciência e um pequeno remanejamento espacial e tudo estava resolvido. A primeira coisa que se pensa ao compor o modelão usando absorventes externos é: "Será que está marcando?". Por isso é essencial que você faça tudo com a companhia de um aliado. Assim, você vai poder contar com um correspondente nos países baixos, que vai lhe avisar caso o modess cisme em querer se destacar na sua bunda. Ao sair de casa, fingi que não tinha um objeto parasitário ultrajando a minha intimidade.

Mas parece que está piscando um outdoor na sua testa avisando "estou de chico". E eu nem tava!!! Que absurdo... Até encontrar seu aliado (a), é sempre bom dar uma conferida nos reflexos que você encontrar pelo caminho,como espelhos e vitrines, pra ver se está marcando. Foda-se a queda na bolsa de Tóquio ou a reforma ministerial. O que importa é que ninguém perceba que você está naqueles dias. E a preocupação é uma constante. Não dá pra esquecer que seu fundilho está acolchoado. Ao final de minha jornada, foi um alívio tirar o cuecão e zunir o modess no lixo. Claro que eu tive o cuidado de dobrá-lo e escondê-lo no canto do lixo, antes, envolvendo com muito papel higiênico para que ninguém se deparasse com aquele objeto indesejável depois do almoço. Daí eu entendi por que às vezes tem um montinho de papel enrolado num canto da cestinha do banheiro. Iuch! Se eu tivesse que usar isso a cada ciclo, ia ter uma crise pré-menstrual que ia durar uns trinta dias por mês. E as mulheres nem ganham adicional por insalubridade.

VOCÊS SÃO HEROÍNAS...

AMO, ADORO VOCÊS MULHERES MARAVILHOSAS!

Agora dá para entender um "pouco" essa tal de TPM!!!

Aprendi a ser MAIS compreensivo... com vocês.

Sintam-se todas acariciadas por mim nestes períodos...

 

 

                     UMA MODESTA PROPOSTA

 

Brasil já fez reforma agrária — dos outros. Muitos dos imigrantes que vieram no século dezenove estavam, nos seus países, na mesma situação dos atuais sem-terra no Brasil. Eram os excedentes de uma estrutura fundiária perversa, sem uma estrutura industrial que os absorvesse. Itália, Alemanha, etc., fizeram a sua reforma com a nossa terra, mas não podemos esperar que nos devolvam o favor. Não existem outros brasis no mundo para receber os sem-terra, já que este está ocupado. Se houvesse, poderíamos incluí-los na nossa pauta de exportações. Depois dos ciclos do café etc., o ciclo dos desesperados. Só teríamos de cuidar para que este ciclo não repetisse os outros.

Fomos os maiores produtores de açúcar do mundo. Não somos mais. O que sobrou do ciclo do açúcar foram usineiros vivendo até hoje de subsídios mas não exportando açúcar. Já produzimos borracha como ninguém. Não produzimos mais. Depois veio o café. Abastecíamos o mundo inteiro de café, sem concorrência. Isso também acabou. Depois veio a bossa-nova. Dominamos o mercado mundial até os bateristas americanos aprenderem a batida. Hoje não precisam mais de nós. A lambada parecia que ia nos redimir. Os franceses a encamparam, depois a esqueceram. Hoje exportamos jogadores de futebol, modelos gaúchas e soja. Poderíamos exportar desesperados. A produção não pára de crescer.

 

Mas como não há mercado para eles, deveria-se pensar numa alternativa mais radical. Há uns trezentos anos o escritor Jonathan Swift sugeriu aos irlandeses que comessem seus bebês. Ajudaria a diminuir a fome e ao mesmo tempo resolveria o problema da superpopulação no país. No mesmo espírito, e já que a nossa estrutura fundiária não só não muda como partiu para o revide com cobertura da Justiça, no campo eles são supérfluos e na cidade eles não têm empregos e não há outra saída, os sem-terra deveriam ser convencidos a se suicidar. O suicídio coletivo seria um gesto patriótico que daria paz aos campos, sossego aos latifundiários e alívio ao governo. E, ainda por cima, um pedaço de terra para cada um.

 

 

                   VERSÕES DE MIM

 

Vivemos cercados pelas nossas alternativas, pelo que podíamos ter sido. Ah, se apenas tivéssemos acertado aquele número (unzinho e eu ganhava a sena acumulada), topado aquele emprego, completado aquele curso, chegado antes, chegado depois, dito sim, dito não, ido para Londrina, casado com a Doralice, feito aquele teste... Agora mesmo, neste bar imaginário em que estou bebendo para esquecer o que não fiz - aliás, o nome do bar é Imaginário -, sentou um cara do meu lado direito e se apresentou:

- Eu sou você, se tivesse feito aquele teste no Botafogo. E ele tem mesmo a minha idade e a minha cara. E o mesmo desconsolo.

- Por que? Sua vida não foi melhor do que a minha?

- Durante um certo tempo, foi. Cheguei a titular. Cheguei à seleção. Fiz um grande contrato. Levava uma grande vida. Até que um dia...

- Eu sei, eu sei... - disse alguém sentado ao lado dele. Olhamos para o intrometido... Tinha a nossa idade e a nossa cara e não parecia mais feliz do que nós. Ele continuou:

- Você hesitou entre sair e não sair do gol. Não saiu, levou o único gol do jogo, caiu em desgraça, largou o futebol e foi ser um medíocre propagandista.

- Como é que você sabe?

- Eu sou você, se tivesse saído do gol. Não só peguei a bola como me mandei para o ataque com tanta perfeição que fizemos o gol da vitória. Fui considerado o herói do jogo. No jogo seguinte, hesitei entre me atirar nos pés de um atacante e não me atirar. Como era um herói, me atirei... Levei um chute na cabeça. Não pude ser mais nada. Nem propagandista. Ganho uma miséria do INSS e só faço isto: bebo e me queixo da vida. Se não tivesse ido nos pés do atacante...

- Ele chutaria para fora.

Quem falou foi o outro sósia nosso, ao lado dele, que em seguida se apresentou:

- Eu sou você se não tivesse ido naquela bola. Não faria diferença. Não seria gol. Minha carreira continuou. Fiquei cada vez mais famoso, e com fama de sortudo também. Fui vendido para o futebol europeu, por uma fábula. O primeiro goleiro brasileiro a ir jogar na Europa. Embarquei com festa no Rio...

- E o que aconteceu? - perguntamos os três em uníssono. - Lembra aquele avião da Varig que caiu na chegada em Paris?

- Você...

- Morri com 28 anos.

- Bem que tínhamos notado sua palidez.

- Pensando bem, foi melhor não fazer aquele teste no Botafogo...

- E ter levado o chute na cabeça...

- Foi melhor - continuei - ter ido fazer o concurso para o serviço público naquele dia. Ah, se eu tivesse passado...

- Você deve estar brincando! - disse alguém sentado a minha esquerda.

Tinha a minha cara, mas parecia mais velho e desanimado.

- Quem é você?

- Eu sou você, se tivesse entrado para o serviço público. Vi que todas as banquetas do bar à esquerda dele estavam ocupadas por versões de mim no serviço público, uma mais desiludida do que a outra. As conseqüências de anos de decisões erradas, alianças fracassadas, pequenas traições, promoções negadas e frustração.

Olhei em volta. Eu lotava o bar. Todas as mesas estavam ocupadas por minhas alternativas e nenhuma parecia estar contente. Comentei com o barman que, no fim, quem estava com o melhor aspecto, ali, era eu mesmo. O barman fez que sim com a cabeça, tristemente. Só então notei que ele também tinha a minha cara, só com mais rugas.

- Quem é você? - perguntei.

- Eu sou você, se tivesse casado com a Doralice.

- E...?

Ele não respondeu. Só fez um sinal, com o dedão virado para baixo...

 

Creio que a vida não é feita das decisões que você não toma, ou das atitudes que você não teve, mas sim, daquilo que foi feito. Se bom ou não, penso, é melhor viver do futuro que do passado.

 

 

                   VIVA A CIRURGIA PLÁSTICA

 

Homem e mulher na cama do motel. Já haviam travado a esperada luta e tragavam os seus respectivos cigarros:

Ele - Esses seus peitos... Incrível como podem estar tão firmes, sendo que você já deve estar beirando os trinta. Ela - Quarenta! 200 ml de silicone de cada lado. Ele - Viva a medicina!

Ela - Gostei deste seu sorriso... É o seu charme. Ele - 32 dentes implantados. Mais de 16 horas na cadeira do dentista. Ela - Viva a odontologia!

Ele - Gostei dos seus cabelos. São naturais, não é mesmo? Ela - Aplique. Estavam curtinhos. Não quis esperar crescerem. Mas os seus são...

Ele - Interlace. Nem dá para perceber. Posso até nadar com eles. Ela - Há mais de duas horas nós estamos transando e você ainda não baixou o mastro. Como consegue? Viagra? Ele - Prótese. Depois que acaba é só dobrar.

Ela - (perturbada) Pensei que fosse pura excitação ... esse clima... o calor...

Ele - Mas fiquei excitado, juro... Também, com esse seu bumbum... Ela - Silicone... Nas batatas da perna também tem um pouco. Ele - Onde mais você já mexeu?

Ela - Pálpebras, maçãs do rosto, queixo, pescoço, lipo na barriga, culotes, cintura, botox, lifting... e também fiz a "preciosa"... Ele - Você quer dizer... o "vulcão"...

Ela - Exatamente!

Ele - O que você fez? Períneo?

Ela - Não, mudança de sexo. O meu nome é Valdemar.

 

                                                                                L. F. Veríssimo  

 

                      

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