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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CRÔNICAS MARCIANAS / Ray Bradbury
CRÔNICAS MARCIANAS / Ray Bradbury

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

CRÔNICAS MARCIANAS

 

Janeiro de 1999

O Verão do   Foguete

Um minuto antes, era inverno em Ohio, as portas fecha­das, as janelas aferrolhadas, as vidraças cobertas de geada, os telhados orlados de gelo, as crianças esquiando nas ladeiras, as mulheres locomovendo-se com dificuldade como grandes ursos escuros, envoltas em seus casacos de pele nas ruas geladas.

E logo depois, uma grande onda de calor atravessou a povoação. Uma inundação de ar quente. Era como se alguém tivesse aberto a porta do forno de uma padaria. O calor pul­sava entre as casas, os arbustos e as crianças. O gelo dos telha­dos caiu, estilhaçando-se e fundindo-se. Ás portas se escanca­raram. As janelas se abriram. As crianças retiraram suas roupas de lã. As mulheres se despojaram dos seus disfarces de urso. A neve derreteu-se, descobrindo os velhos e verdes gramados do último verão. O verão do joguete. Essas palavras passaram de boca em boca nas casas abertas e ventiladas. O verão do jo­guete. O ar quente do deserto modificou os arabescos da geada nas janelas, apagando o trabalho artístico. Os esquis e trenós tornaram-se subitamente inúteis. A neve que caía do céu ge­lado sobre a cidade transformou-se em chuva quente antes de tocar o solo.

O verão do joguete. As pessoas debruçavam-se para fora das varandas e olhavam o céu que se avermelhava.

O foguete estava em sua plataforma, lançando nuvens ro­sadas de fumaça e calor. O foguete, ereto na fria manhã de inverno, produzia o verão a cada sopro dos seus poderosos exaustores. O foguete criava bom tempo e o verão pairou por um breve momento sobre a terra...

 

Fevereiro de   1999

Ylla

Havia, no planeta Marte, à margem de um mar morto, uma casa de colunas de cristal, e todas as manhãs podia-se ver a Senhora K comendo os frutos' dourados que nasciam nas paredes de cristal, ou limpando a casa com punhados de poeira magnética que retirava toda a sujeira e depois se dispersava no vento quente. De tarde, quando o mar fóssil estava quente e imóvel, as árvores de vinho mantinham-se eretas no quintal e a pequena e distante cidade marciana de marfim não tinha ninguém nas ruas. Podia-se ver o Senhor K, no seu quarto, lendo um livro de metal com hieróglifos em relevo sobre os quais passava os dedos, como alguém tocando uma harpa. E do livro, ao contato dos seus dedos, uma voz cantava, uma voz antiga e suave, que contava estórias do tempo em que o mar banhava a costa com vapores vermelhos e os homens lança­vam em combate nuvens de insetos de metal e aranhas elé­tricas.

O Senhor e a Senhora K moravam havia vinte anos à margem do mar morto, e seus antepassados tinham vivido na mesma casa que girava e seguia o curso do sol, como um gi­rassol, havia dez séculos.

O Senhor e a Senhora K não eram velhos. Tinham a bela pele castanha do autêntico marciano, os olhos amarelos amendoados, a suave voz musical. Antigamente, talvez tivessem pin­tado quadros com fogo químico, nadado nos canais na época em que as árvores de vinho os enchiam com seus licores verdes e conversado até o amanhecer sob os retratos azuis fosforescentes, na sala de estar.

Agora não eram felizes.

Nesta manhã, a Senhora K ficou parada entre as colunas, ouvindo as areias quentes do deserto fundirem como cera ama­rela, parecendo correr para o horizonte.

Algo estava para acontecer.

Ela esperava.

Olhava o céu azul de Marte como se ele pudesse, de um momento para outro, encolher-se, contrair-se e expelir alguma coisa brilhante e milagrosa.

Nada aconteceu.

Cansada de esperar, caminhou entre as úmidas colunas. Uma chuva suave brotava dos capitéis acanalados, caía sua­vemente sobre ela e refrescava o ar abrasador. Naqueles dias calorentos, passear entre as colunas era como andar por um regato. O chão brilhava com os filetes de água fresca. Ouvia ao longe o marido tocando o livro, incessantemente, sem os dedos jamais sentirem-se cansados das antigas canções. E de­sejou em silêncio que ele tornasse a abraçá-la e tocá-la como a uma pequena harpa, passando tanto tempo ao lado dela como o que dedicava aos seus incríveis livros.

Mas não. Sacudiu a cabeça e encolheu imperceptivelmente os ombros. As pálpebras desceram suavemente sobre os olhos dourados. O casamento nos envelhece e torna rotineiros, pensou.

Atirou-se numa poltrona que se curvou para recebê-la, cerrando os olhos com força e nervosamente.

E teve o sonho.

Os dedos castanhos tremeram e ergueram-se, crispando-se no ar.

Um momento depois, endireitou o corpo, sobressaltada. Olhou rapidamente em volta, como se esperasse ver alguém, e pareceu decepcionada. Não havia ninguém entre as colunas.

O Senhor K apareceu numa porta triangular.

— Você me chamou? — perguntou, irritado.

— Não — respondeu a Senhora K.

— Pensei ter ouvido você gritar.

— Eu? Estava cochilando e tive um sonho.

— A esta hora? Não é seu costume.

A Senhora K continuava sentada, imóvel, como se tivesse sido esmurrada pelo sonho.

— Um sonho estranho, muito estranho — murmurou.

— Ah.

O Senhor K queria, evidentemente, voltar para o seu livro. — Sonhei com um homem — disse a mulher — Com um homem?

— Um homem alto, de um metro e oitenta.

— Que bobagem. Um gigante, um gigante disforme.

— No entanto... — respondeu a Senhora K, procurando as palavras. — Ele parecia bem. Apesar de sua altura. E... acho que você vai pensar que sou louca, mas... tinha os olhos azuis!

— Olhos azuis? Deuses! — exclamou o Senhor K. — Qual será seu próximo sonho? Suponho que os cabelos dele eram negros.

— Como você adivinhou? — perguntou a Senhora K, ex­citada.

O Senhor K respondeu, friamente:

— Escolhi a cor mais improvável.

— Pois eram negros! — exclamou ela. — E a pele branquíssima! Era muito estranho. Usava uniforme desconhecido. Veio do céu e falou comigo amavelmente.

— Veio do céu? Que bobagem!

— Veio numa coisa de metal, que reluzia à luz do sol — lembrou a Senhora K, e fechou os olhos evocando a cena. — Eu olhava para o céu e alguma coisa brilhou como uma moe­da que se atira ao ar, imediatamente cresceu e desceu lenta­mente.   Era um aparelho prateado, longo e estranho. Num lado desse objeto de prata, abriu-se uma porta e apareceu o homem alto.

— Se você   trabalhasse um   pouco mais, não   teria esses sonhos malucos.

— Pois gostei dele — disse a Senhora K, recostando-se na poltrona. — Nunca pensei ter tanta imaginação. Cabelos ne­gros, olhos azuis e pele branca! Um homem estranho, mas muito bonito.

— Seu homem ideal, naturalmente.

— Não seja antipático. Não o imaginei deliberadamente, apareceu-me enquanto cochilava. Mas não foi um sonho. Foi uma coisa tão inesperada, tão diferente... O homem olhou-me e   disse:   “Venho do   terceiro   planeta.   Me chamo Nathaniel York...”

— Um nome idiota. Não é um nome.

— Naturalmente, é idiota porque é um sonho — explicou a mulher, com suavidade. — Ele acrescentou: “Esta é a minha primeira viagem pelo espaço. Somos dois na nave: eu e meu amigo Bert”.

— Outro nome idiota.

— E disse em seguida: “Viemos de uma cidade da Terra. Esse é o nome do nosso planeta”. Foi isso o que ele falou, a Terra. E usava outra língua. Apesar disso, eu o compreendia com a mente. Telepatia, suponho.

O Senhor K voltou-se para sair, mas sua mulher o deteve, chamando-o com voz muito suave.

— Yll? Você alguma vez se perguntou... bom, se alguém vive no terceiro planeta?

— No terceiro planeta não pode haver vida — o Senhor K explicou pacientemente. — Nossos cientistas descobriram que há excesso de oxigênio na atmosfera dele.

— Mas não seria fascinante se fosse habitado? E que seus habitantes viajassem pelo espaço em alguma coisa semelhante a uma nave?

— Ora, Ylla, você sabe que detesto os desvarios sentimen­tais. Vamos trabalhar.

 

Caía a tarde, e enquanto passeava entre as sussurrantes colunas de chuva, a Senhora K começou a cantar. Repetiu a canção mais de uma vez.

— Que canção é essa? — perguntou o marido, interrompendo-a, enquanto se aproximava para sentar-se à mesa de fogo.

A mulher ergueu os olhos e, surpresa, colocou a mão na boca.

— Não sei.

O sol estava no ocaso. A casa começava a se fechar como uma flor gigantesca. O vento soprou entre as colunas de cris­tal. Na mesa de fogo, o fulgurante poço de lavas prateadas cobriu-se de bolhas. O vento moveu o cabelo avermelhado da Senhora K e murmurou suavemente em seus ouvidos. A Se­nhora K ficou olhando em silêncio, com seus olhos dourados, úmidos e doces, o longínquo e pálido fundo do mar, como se estivesse lembrando de alguma coisa.

— Brinda só a mim com teus olhos e eu brindarei com os meus — cantou lenta e suavemente em voz baixa. — Ou deixa um beijo na taça e eu não pedirei vinho.

Fechou os olhos e murmurou, movendo as mãos bem len­tamente. Era uma canção muito bonita.

— Nunca ouvi essa canção. É sua? — perguntou o Senhor K, olhando-a com firmeza.

— Não. Sim... não sei — vacilou a mulher. — Nem mes­mo compreendo as palavras. São de outra língua.

— Qual?

A Senhora K deixou cair, distraidamente, uns pedaços de carne no poço de lava.

— Não sei.

Um momento depois tirou a carne, já pronta, e serviu-a ao marido.

— Acho que é uma bobagem que eu inventei. Não sei por quê.

O Senhor K não respondeu. Olhou a mulher atirar uns pedaços de carne no poço de fogo sibilante. O sol já se fora. Lenta, muito lentamente, a noite chegou e encheu o local, inundando o casal e as colunas, como um vinho escuro que subisse até o teto. Só a lava de prata, acesa, iluminava os rostos.

A Senhora K cantarolou novamente aquela canção es­tranha.

O Senhor K levantou-se bruscamente e saiu irritado.

Mais tarde, sozinho, o Senhor K acabou de jantar. Levantou-se da mesa, espreguiçou-se, olhou a mulher e disse, bocejando:

— Vamos pegar os pássaros de fogo e nos divertir na cidade.

— Sério? — perguntou a mulher. — Você está se sentindo bem?

— Por que a surpresa?

— Há seis meses que não vamos a lugar algum.

— Creio que é uma boa idéia.

— Você ficou de repente muito atencioso.

— Não diga isso — replicou o Senhor K, aborrecido. — Quer ir ou não?

A Senhora K olhou o pálido deserto. As luas brancas gê­meas subiam na noite. A água fresca e silenciosa corria em torno dos seus pés. Estremeceu levemente. Queria ficar senta­da em silêncio, sem mexer-se, até que acontecesse o que havia estado esperando todo o dia, o que não podia acontecer, mas talvez acontecesse. A canção roçou sua mente como uma rajada.

— Eu...

— Vai-lhe fazer bem — insistiu o marido. — Vamos.

— Estou cansada. Numa outra noite.

— Tome seu cachecol — insistiu o Senhor K, dando-lhe um frasco. — Há meses que não saímos.

A mulher não o olhava.

— Você tem ido duas vezes por semana à cidade de Xi — afirmou.

— Negócios.

— Ah — murmurou a Senhora K para si mesma.

Do frasco brotou um líquido que se converteu numa ne­blina azul e envolveu o pescoço da Senhora K em suas ondas.

Os pássaros de fogo esperavam, como brilhantes brasas de carvão, sobre a areia fresca e lisa. A barquinha branca flutuan­te, unida aos pássaros por mil fitas verdes, movia-se suave­mente no vento noturno.

Ylla recostou-se na barquinha e, a uma palavra do seu marido, os pássaros de fogo lançaram-se, ardentes, para o céu escuro. As fitas esticaram-se e a barquinha elevou-se, desli­zando sobre a areia, que rangeu suavemente. As colinas azuis desfilaram, desfilaram, e a casa, as colunas úmidas, as flores aprisionadas, os livros sonoros e os regatos sussurrantes do chão ficaram para trás. Ylla não olhava para o marido. Ouvia suas ordens, enquanto os pássaros em chamas subiam, ardendo, no vento, como dez mil faíscas quentes, como fogos de arti­fício no céu, amarelos e vermelhos, que arrastavam a pétala de flor que era a barquinha.

Ylla não olhava as antigas e axadrezadas cidades mortas, nem os velhos canais de sonho e solidão. Como uma sombra de lua, como uma tocha acesa, voavam sobre rios e lagos secos.

Ylla só olhava para o céu.

O marido falou.

Ylla olhava para o céu.

— Você não me ouviu?

— O quê?

O Senhor K suspirou.

— Podia, pelo menos, prestar atenção.

— Estava pensando.

— Eu não sabia que você era amante da natureza, mas sem dúvida o céu está lhe interessando muito esta noite.

— É belíssimo.

— Que tal falar com Hulle esta noite? — perguntou o marido, lentamente. — Saber se poderemos passar uns dias, no máximo uma semana, nas Montanhas Azuis. É só uma idéia...

— Nas Montanhas Azuis! — gritou Ylla, agarrando-se na borda da barquinha e virando-se rapidamente para ele.

— Ora, é só uma idéia... Ylla estremeceu.

— Quando você quer ir?

— Pensei que poderíamos partir amanhã de manhã — respondeu o Senhor K, despreocupadamente. — Sairmos cedo e todas essas coisas.

— Mas nunca fomos tão cedo assim!

— É só esta vez... — Ele sorriu. — Vai-nos fazer bem. Paz e silêncio. Você sabe. Você não tinha planejado outra coisa, tinha? Iremos, não é?

Ela respirou fundo, fez uma pausa e depois respondeu:

— Não.

— O quê?

Seu grito assustou os pássaros. A barquinha sacolejou.

— Não — repetiu com firmeza. —   Está resolvido. Não quero ir.

Ele a olhou. Nada mais disseram depois disto. Ylla virou-lhe as costas.

Os pássaros voavam como dez mil tições ao vento.

Ao amanhecer, o sol, atravessando as colunas de cristal, dissolveu a névoa que sustentava o sono de Ylla. Ficara a noite inteira flutuando sobre o chão, apoiada no suave colchão de névoa que brotou das paredes quando ela se deitou para descansar. Dormiu a noite toda sobre aquele rio quieto, como um barco sobre uma corrente silenciosa. Agora que o calor dissipava a névoa, o colchão de bruma foi baixando até depo­sitá-la na praia do despertar.

Ylla abriu os olhos.

Seu marido a olhava de cima. Dava a impressão de que estava ali havia horas, observando-a. Ylla não sabia por quê, mas não pôde encará-lo.

— Você esteve sonhando outra vez! — disse ele. — Você falou alto e não me deixou dormir. Na verdade, acho que você deve procurar um médico.

— Não é nada.

— Você falou muito, sonhando.

— Falei?

Ficou de pé. O frio do amanhecer entrava no quarto. Uma luz cinzenta envolvia seu corpo.

— Você sonhou com o quê?

Ylla fez um esforço para se lembrar.

— Com a nave. Tornou a vir do céu, pousou, o homem alto saiu, falou comigo, dizendo coisas engraçadas e rindo. — Foi agradável.

O Senhor K tocou numa coluna. Fontes de água quente e vaporosa esguicharam, expulsando a friagem do quarto. O rosto do Senhor K estava impassível.

— E então — continuou ela — o homem, que disse ter o estranho nome de Nathaniel York, disse-me que eu era bela e... e me beijou.

— Ah! — gritou o marido, virando-se e afastando-se vio­lentamente, contraindo os maxilares.

— Não passou de um sonho — disse ela, divertida.

— Pois fique com seus bobos sonhos femininos!

— Você está parecendo criança.   — Reclinou-se sobre os restos da bruma química. Logo depois, riu suavemente. — Estou lembrando mais alguma coisa do sonho — confessou.

— Vamos, o que foi, o que foi? — gritou ele.

— Yll, você está muito mal-humorado.

— Diga! — exigiu ele. — Você não pode esconder coisas de mim!

Seu rosto estava sóbrio e duro, enquanto a olhava de cima.

— Nunca vi você assim — respondeu ela, meio chocada, meio divertida. — O que aconteceu   foi que esse Nathaniel York me disse... ora, me disse que ia me levar com ele na sua nave,   pelo céu   afora,   de volta para   o planeta   dele. Chega a ser ridículo.

— Sim, ridículo! — disse ele, alteando a voz. — Você devia ter-se ouvido lisonjeando-o, falando com ele, cantando com ele, ó deuses, a noite toda. Você devia ter-se ouvido!

— Yll!

— Quando ele vai pousar? Onde vai descer com sua mal­dita nave?

— Yll, baixe a voz.

— Que se dane a voz! — inclinou-se rigidamente sobre ela. — E nesse sonho — agarrou-lhe o pulso — a nave não ia pousai no Vale Verde, hem? Responda!

— Ora, ia...

— E nesta tarde, não é? — continuou segurando-a.

— Ia, ia, acho que sim, ia, mas só no sonho!

— Bem — largou-lhe a mão rudemente — foi bom ter falado a verdade! Ouvi cada palavra que você disse no sonho. Citou o vale e o momento.

Ofegante, caminhou entre as colunas como um homem cego por um raio. Pouco a pouco foi acalmando a respiração. Ela o olhava como se ele estivesse louco. Finalmente, levan­tou-se e andou na direção dele.

— Yll — sussurrou.

— Estou bem.

— Você está doente.

— Não — forçou um sorriso cansado. — Criancice. Des­culpe-me,   querida. —   Pegou-a   desajeitadamente. — Tenho trabalhado demais ultimamente. Desculpe-me. Acho que vou me deitar um pouco...

— Você está muito nervoso.

— Agora estou bem. Ótimo. — Suspirou. — Vamos esque­cer tudo isto. Olhe, ouvi ontem uma piada sobre Uel. Vou contar. E se você preparasse o café enquanto eu conto a piada, e não falamos mais em nada disso?

— Foi só um sonho.

— Claro. — Beijou-lhe o rosto maquinalmente — Só um sonho.

Ao meio-dia, o sol estava alto e abrasador, e as colinas resplandeciam na luz.

— Você vai à cidade? — perguntou Ylla.

— À cidade? — ergueu levemente as sobrancelhas.

— Este é o dia em que você sempre vai.

Ajeitou a gaiola de flores no seu pedestal. As flores agi­taram-se, abrindo as bocas amarelas esfomeadas. Ele fechou o livro.

— Não. Está muito quente e já é tarde.

— Ah. — Terminou o que estava fazendo e caminhou para a porta. — Bem, volto logo.

— Espere aí. Aonde você vai?

Ela chegara rapidamente na porta.

— À casa de Pao. Ela me convidou.

— Hoje?

— Fazia tempo que eu não a via. É pertinho.

— No Vale Verde, não é?

— Isso mesmo, um passeio não muito longo. Pensei que... Apressou-se.

— Lamento, lamento   muito — disse ele, correndo atrás dela e parecendo muito aborrecido por ter esquecido. — Es­queci completamente. Convidei o Dr. Nlle para vir aqui esta tarde

— Dr. Nlle!

Ela chegou à soleira da porta. Yll pegou-a pelo cotovelo e trouxe-a firmemente de volta.

— Ele mesmo.

— Mas Pao...

— Pao pode esperar, Ylla.   Precisamos receber   Nlle.

— Só um pouquinho. ..

— Não, Ylla.

— Não?

Ele balançou a cabeça.

— Não. Além disso, até a casa de Pao é uma longa cami­nhada. Atravessar o Vale Verde todo, passar o grande canal e descer, não é? — Está quentíssimo e o Dr. Nlle gostará muito de vê-la. Está bem?

Ela não respondeu. Queria libertar-se e correr. Queria gritar. Mas apenas sentou-se na cadeira, virou os dedos para cima olhando-os inexpressivamente, vencida.

— Ylla? — murmurou ele. — Você vai estar aqui, não é?

— Sim — respondeu ela, depois de um longo silêncio. — Estarei aqui.

— A tarde inteira?

— A tarde inteira.

Sua voz estava embotada.

No fim do dia, o Dr. Nlle ainda não havia aparecido. O marido de Ylla não parecia nem um pouco surpreso, Quando ficou muito tarde, ele murmurou qualquer coisa, foi até o armário e tirou uma arma de aspecto sinistro, um tubo ama­relado comprido, que terminava num fole e num gatilho. Vol­tou-se e exibiu no rosto uma máscara forjada em metal pra­teado, inexpressiva, a máscara que sempre usava quando queria esconder seus sentimentos, a máscara que se adaptava tão perfeitamente à sua face, queixo e testa magros. A máscara cintilou e ele segurou a arma sinistra, olhando-a. Ela produ­zia incessantemente um zumbido de inseto. Hordas de abelhas douradas poderiam surgir dela, com um alarido estrídulo. Horrendas abelhas douradas que picavam, envenenavam e caíam mortas como sementes na areia.

— Onde você vai? — perguntou Ylla.

— O quê? — Prestava atenção nos foles, no sinistro zum­bido. — Se o Dr. Nlle está atrasado, não vou ficar esperando. Vou sair e caçar um pouquinho. Volto logo. Você tem certeza de que vai ficar aqui, não é?

A máscara prateada cintilou.

— Tenho.

— E diga ao Dr. Nlle que voltarei. Fui apenas caçar.

A porta triangular fechou-se. Seus passos morreram na colina.

Ela o observou caminhar na luz do sol até desaparecer. Depois continuou a trabalhar, retirando o pó magnético e os novos frutos, nascidos nas paredes de cristal. Trabalhava com energia e rapidez, mas em certo momento um torpor apode­rou-se dela e então viu-se cantando a estranha e memorável canção, olhando para o céu além das colunas de cristal.

Conteve a respiração e ficou imóvel, esperando.

Estava se aproximando.

Podia acontecer a qualquer momento.

Era como nos dias em que se ouve uma tempestade che­gando e há aquele silêncio de espera e uma imperceptível mu­dança de atmosfera enquanto o clima explode sobre o solo em rajadas, sombras e brumas. E a mudança nos pressiona os ouvidos e ficamos suspensos no tempo de espera da tempesta­de que se aproxima. Começamos a tremer. O céu fica mancha­do e colorido. As nuvens engrossam. As montanhas adquirem um tom ferroso. As flores engaioladas emitem leves murmú­rios de advertência. Sentimos o cabelo agitar-se suavemente. Em algum lugar da casa o relógio-falante canta. “Hora, hora, hora, hora...” sempre com a mesma suavidade, como água pingando em veludo.

E depois, a tempestade. As descargas elétricas, as casca­tas de águas escuras e os trovões negros caindo, presos para sempre.

Era o que estava acontecendo. Preparava-se uma tempes­tade, embora o céu estivesse claro. Aguardavam-se os relâmpa­gos, porém não havia uma nuvem.

Ylla caminhou pela irrespirável casa de verão. Os relâmpagos iriam cair do céu a qualquer momento. Haveria um trovão, um rolo de fumaça, um silêncio, passos na trilha, uma batida na porta cristalina, e ela correria para atender...

Pobre Ylla!, escarneceu. Por que pensar essas coisas bobas com sua mente preguiçosa?

E então aconteceu.

Sentiu calor como se um grande fogaréu atravessasse o espaço. Um som. Um som turbilhonante e impetuoso. Um resplendor metálico no céu.

Ylla gritou.

Correndo entre as colunas, escancarou a porta. Olhou para as colinas. Mas agora não havia nada.

Estava a ponto de correr para a colina, quando obrigou-se a parar. O trato era ficar ali, não ir a parte alguma. O médi­co vinha fazer uma visita e o marido ficaria zangado se ela saísse.

Esperou na porta, arfando e com a mão estendida.

Fez um esforço para ver na direção do Vale Verde, mas nada conseguiu.

Boba. Entrou. Você e sua imaginação, pensou. Foi apenas um pássaro, uma folha, o vento ou um peixe no canal. Sen­te-se. Descanse.

Sentou-se.

Soou um tiro.

Muito claramente, repentinamente, o som da horrível arma de insetos.

Seu corpo estremeceu.

Vinha de longe. Um tiro. O zumbido veloz de abelhas distantes. Um tiro. E depois um segundo tiro, preciso, frio e longínquo.

Seu corpo tornou a tremer e, sem saber por quê, come­çou a gritar, a gritar, sem querer parar. Correu impetuosa­mente pela casa e tornou a escancarar a porta.

Os ecos morriam ao longe.

Desapareceram.

Ela esperou no jardim, com o rosto pálido, durante cinco minutos.

Finalmente, com passos lentos, cabisbaixa, vagueou pelos aposentos de colunas, deixando a mão roçar nas coisas, com os lábios trêmulos, até finalmente sentar-se sozinha, esperando na escura sala do vinho. Começou a esfregar um copo de âmbar com a ponta do chalé.

E então, ao longe, ouviu o ruído de passos no cascalho.

Levantou-se e ficou de pé no centro da sala silenciosa. O copo caiu de suas mãos, partindo-se em mil pedaços.

Os passos hesitaram fora da porta.

Deveria falar? Deveria gritar: “Entre, ah, entre”?

Deu alguns passos para a frente.

Os passos subiram a rampa. Uma mão girou a maçaneta.

Ela sorriu para a porta.

A porta abriu-se. Ela parou de sorrir.

Era seu marido. A máscara prateada tinha um brilho opaco.

O Senhor K entrou na sala e mal a olhou. Abriu os foles da arma, sacudiu fora duas abelhas mortas, ouviu-as bater no chão quando caíram, pisou-as e colocou a arma-fole descarre­gada no canto da sala, enquanto Ylla se abaixava, tentando sem sucesso apanhar os pedaços do copo quebrado.

— O que você esteve fazendo? — perguntou ela.

— Nada — respondeu Yll, de costas. Tirou a máscara.

— Mas, e a arma... Ouvi você atirar. Duas vezes.

— Estava caçando. De   vez em quando dá vontade de caçar. O Dr. Nlle veio?

— Não.

— Espere um instante. — Estalou os dedos, aborrecido. — Ora, agora estou me lembrando. Deverá vir amanhã à tarde. Que confusão a minha.

Sentaram-se para comer. Ela ficou olhando para a comi­da sem mover as mãos.

— O que é que há? — perguntou o marido, sem levantar os olhos da carne que estava mergulhando na lava borbulhante.

— Não sei. Não tenho fome — respondeu Ylla.

— Por quê?

— Não sei. Apenas não tenho fome.

O vento percorria o céu. O sol estava se pondo. A sala tornou-se subitamente pequena e fria.

— Estava procurando me lembrar — disse ela, na sala si­lenciosa, sentada diante da figura do frio e empertigado marido de olhos dourados.

— Lembrar de quê?

Yll bebericou seu vinho.

— Daquela canção. Daquela delicada e linda canção. — Fechou os olhos e solfejou, mas não era a canção. — Esqueci. E, sabe, não quero esquecê-la. É algo que quero sempre lem­brar. — Balançou as mãos como se o ritmo pudesse ajudá-la a lembrar tudo. Depois recostou-se na cadeira. — Não consigo lembrar.

Começou a chorar.

— Por que está chorando?

— Não sei, não sei, mas não posso evitar. Estou triste e não sei por quê, choro e não sei por quê, mas estou chorando.

Colocou o rosto entre as mãos. Seus ombros eram sacudi­dos pelos soluços.

— Amanhã você estará bem — disse ele.

Ylla não o olhou. Apenas ergueu os olhos para o deserto vazio, e as estrelas muito brilhantes começaram a aparecer no céu escuro, enquanto ao longe ouvia-se o som do vento nas­cente e o barulho das águas correndo, frias, nos longos canais. Ela fechou os olhos, trêmula.

— Sim — falou. — Amanhã estarei bem.

Agosto de 1999

A Noite de Verão

Nas galerias de pedra, o povo se aglomerava em bandos, e grupos penetravam nas sombras das colinas azuis. As estrelas e as duas luas de Marte derramavam sobre eles a luz suave do entardecer. Além do anfiteatro de mármore, na distância e em meio a sombras, havia aldeotas e vilas. A água prateada dos reservatórios estava imóvel e os canais tremeluziam de um horizonte ao outro. Era uma noite de verão no plácido e temperado planeta Marte. Barcos delicados como flores de bronze vagavam para lá e para cá nos canais de vinho verde. Nas longas e infindáveis habitações que serpeavam como co­bras tranqüilas entre as colinas, os amantes jaziam em seus frescos leitos noturnos, falando em surdina. Algumas crianças ainda brincavam nas alamedas iluminadas por tochas, levando nas mãos aranhas douradas que soltavam filamentos trança­dos. Aqui e ali, uma ceia tardia era preparada em mesas onde a lava prateada borbulhava e chiava. Nos anfiteatros de cen­tenas de cidades do lado oculto de Marte, o escuro povo marciano, de olhos redondos como moedas de ouro, calma­mente se reunia e fixava a atenção nos palcos onde músicos faziam uma música serena fluir, como perfume de lírios no ar parado.

Num dos palcos uma mulher cantou.

O público estremeceu.

Ela parou de cantar. Colocou a mão na garganta. Fez um sinal aos músicos e recomeçaram.

Os músicos tocaram e ela cantou e, desta vez, a platéia suspirou e inclinou-se para a frente, alguns homens ficaram surpresos e um vento frio de inverno percorreu o anfiteatro. Pois era uma estranha, apavorante e singular canção que a mulher cantava. Tentou parar aquelas palavras que brotavam de sua boca, mas as palavras eram estas:

 

Ela caminha em sua beleza como a noite

De regiões sem nuvens e céus estrelados

E tudo o que há de melhor na escuridão e na claridade

Reúne-se em seu rosto e seus olhos...

 

A cantora comprimiu a boca com as mãos. Ficou parada, perplexa.

— Que versos são esses? — perguntaram os músicos.

— Que canção é essa?

— Que língua é essa?

E quando eles tocaram novamente suas trompas douradas, a música estranha reapareceu e deslizou lentamente sobre a platéia que começou a falar alto e a ficar de pé.

— O que está, acontecendo? — perguntavam os músicos uns aos outros.

— Que canção é essa que você está tocando?

— E qual é a que você está tocando?

A mulher começou a chorar e correu para fora do palco. A platéia retirou-se do anfiteatro. E em todas as transtornadas cidades marcianas aconteceu a mesma coisa. Surgiu uma friagem como se houvesse uma neve branca caindo do ar.

Nas alamedas escuras, sob as tochas, as crianças cantavam:

... Mas quando ela chegou lá, o aparador estava vazio, E por isso seu pobre cão não ganhou nada!

Meninos! — gritaram. — Que versos são esses? Onde aprenderam isso?

— Apenas pensamos neles, assim,   de repente. São pala­vras que não compreendemos.

Portas fecharam-se com estrépito. As ruas ficaram desertas. Uma estrela verde surgiu sobre as colinas azuis.

E em todo o lado escuro de Marte, os amantes acordaram para ouvir suas amadas que murmuravam na escuridão.

— Que canção é essa?

E em milhares de vilas, em plena noite, mulheres acor­daram gritando. As lágrimas corriam por seus rostos, e tive­ram que ser acalmadas.

— Vamos, vamos. Durma. Que foi? Um sonho?

— Alguma coisa terrível vai acontecer de manhã.

— Não vai acontecer nada. Está tudo bem. Um soluço histérico.

— Está ficando mais perto, mais perto, mais perto!

— Nada pode nos acontecer. Por que haveria? Agora dur­ma, durma.

O alvorecer de Marte foi silencioso, tão silencioso quan­to um poço escuro e frio, com as estrelas brilhando nas águas dos canais. E, vivas, nos respectivos quartos, as crianças esta­vam encolhidas, com suas aranhas presas nas mãos em concha, os amantes abraçados. As luas haviam desaparecido, as tochas haviam-se apagado, o anfiteatro de pedra estava vazio.

O único” som, exatamente pouco antes do alvorecer, foi o de um vigia noturno, longe, numa rua deserta, caminhando na escuridão e solfejando uma canção muito estranha...

 

Agosto de   1999

Os  Homens   da Terra

Quem quer que estivesse batendo na porta, não pretendia parar.

A Senhora Ttt escancarou a porta.

— E então?

— A senhora fala inglês!

O homem de pé na porta estava espantado.

— Eu falo o que falo — respondeu ela.

— É um inglês formidável!

O homem usava farda. Havia mais três com ele, muito ex­citados, todos sorrindo, todos sujos.

— Que deseja? — perguntou a Senhora Ttt.

— A senhora é marciana! — O homem sorriu. — Natural­mente, a palavra não lhe é familiar. É uma expressão da Terra. — Indicou seus homens com a cabeça. — Viemos da Terra. Sou o Capitão Williams. Pousamos em Marte faz menos de uma hora. E aqui estamos, a Segunda Expedição! Houve uma Pri­meira Expedição, mas não sabemos o que aconteceu a ela. Ape­sar disso, cá estamos. E a senhora é o primeiro marciano que conhecemos!

— Marciano?

Suas sobrancelhas ergueram-se.

— O que eu quero dizer é que a senhora vive no quarto planeta a contar do Sol. Correto?

— Elementar — retrucou, seca, encarando-o.

— E nós — apertou a mão gorducha contra o peito — nós somos da Terra. Não é, rapazes?

— É, senhor! — responderam, em coro.

— Este é o planeta Tyrr — disse ela — para usar seu nome correto.

— Tyrr, Tyrr. — O capitão ria às gargalhadas. — Que nome maravilhoso! Mas, minha cara   senhora,   como   pode falar um inglês tão perfeito?

— Não estou falando, estou pensando — informou ela. — Telepatia! Bom-dia!

E bateu com a porta.

Um momento depois, aquele homem desagradável estava batendo outra vez.

Ela escancarou a porta. “Que vai querer agora?”, pergun­tou-se.

O homem continuava parado, procurando sorrir, pare­cendo zonzo. Estendeu as mãos.

— Acho que a senhora não entendeu...

— O quê? — perguntou secamente. O homem olhou-a surpreso.

— Viemos da Terra!

Estou ocupada — retrucou a mulher. — Hoje tenho muito trabalho na cozinha, além da limpeza,   da costura e tudo o mais. O senhor naturalmente quer falar com o Senhor Ttt. Está no escritório, lá em cima.

— Sim — disse o Homem da Terra, piscando, confuso. — Por favor, chame o Senhor Ttt.

— Está ocupado.

Bateu com a porta novamente.

Desta vez, a batida na porta foi impertinentemente alta.

— Olhe aqui! — gritou o homem quando a porta foi aber­ta novamente. Pulou para dentro, como se quisesse surpreen­dê-la. — Isso não é maneira de tratar visitas!

— Meu chão limpo! — gritou ela. — Lama! Saia! Para entrar na minha casa tem que limpar os pés antes.

O homem olhou desalentado para as botas enlameadas.

— Pare com essas bobagens — respondeu ele. — Precisa­mos comemorar.

Olhou fixamente para ela, durante um bom espaço de tempo, como se olhando-a pudesse fazê-la compreender.

— Se o senhor fez meus bolos de cristal caírem no forno — ela exclamou— vou bater-lhe com um cacete! — Espiou para dentro de um pequeno forno aceso. Retornou, vermelha, com o rosto suado. Seus olhos eram penetrantes, dourados, sua pele, de um castanho suave. Era magra e rápida como um inseto. Tinha a voz metálica e incisiva.   — Espere aqui. Vou ver se consigo que   fale um instante com o Senhor Ttt.   Qual o assunto?

O homem praguejou rudemente como se ela lhe tivesse dado uma martelada na mão.

— Diga-lhe que viemos da Terra, coisa que nunca aconte­ceu antes.

— O que não aconteceu? — Ergueu a mão escura. — Está bem. Deixe para lá. Já volto.

O som dos seus passos adejou pela casa de pedra.

Fora, o imenso céu azul de Marte estava quente e imóvel como as profundas águas marinhas. O deserto marciano torra­va como um pote de barro pré-histórico, com ondas de calor e cintilando. Havia um pequeno foguete reclinado sobre o cimo de uma colina próxima. Marcas de pés grandes iam do foguete à porta da casa de pedra.

Ouvia-se agora o barulho de vozes discutindo no andar de cima. Os homens na porta olharam uns para os outros. Apoia­ram-se ora num pé, ora noutro, giraram os polegares e depois os meteram no cinturão. Uma voz de homem gritava no andar de cima. A voz de mulher respondia. Passados quinze minu­tos, os Homens da Terra começaram a andar de um lado para outro diante da porta da cozinha, sem ter o que fazer.

— Cigarro? — perguntou um dos homens.

Alguém puxou um maço e eles acenderam os cigarros. Expeliram fracas baforadas de tênue fumaça branca. Alisaram as fardas, abotoaram as golas. As vozes no andar de cima con­tinuavam a murmurar monotonamente. O cabeça do grupo consultou o relógio.

— Vinte e cinco minutos — disse. — Fico pensando no que estão tramando lá em cima.

Chegou até a janela e olhou.

— Dia quente — falou um dos homens.

— É — confirmou um dos outros, no calor brando do co­meço da tarde.

As vozes tinham caído para um cochicho e agora estavam silenciosas. Não havia um barulho na casa. Tudo o que os homens podiam ouvir era sua própria respiração.

Passou-se uma hora de silêncio.

— Espero que não tenhamos causado nenhum problema — disse o capitão.

Caminhou e deu uma olhada na sala. A Senhora Ttt estava lá regando as flores que cresciam no centro do aposento.

— Eu sabia que tinha esquecido alguma coisa — disse ela quando viu o capitão. Caminhou para a cozinha. — Desculpe.

— entregou-lhe um pedaço de papel. — O Senhor Ttt está mui­to ocupado. — Virou-se para as panelas. — De qualquer modo, não é o Senhor Ttt que os senhores precisam ver. É o Senhor Aaa. Leve este papel até à próxima quinta, seguindo o canal azul, e o Senhor Aaa lhes dirá o que querem saber.

— Nós não queremos saber nada — alegou o capitão, esti­cando os lábios, amuado. — Nós já sabemos.

— Já têm o papel. Que mais querem? — perguntou a mu­lher, com rispidez.

E não quis dizer mais nada.

— Bem — falou o capitão, relutando em ir embora. Ficou parado como se esperasse alguma coisa. Parecia uma criança olhando uma árvore de Natal vazia. — Bem — tornou a dizer. — Vamos, rapazes.

Os quatro saíram para o dia quente e silencioso.

Meia hora depois, o Senhor Aaa, sentado em sua biblio­teca, saboreando um pouco de fogo elétrico de uma taça de metal, ouviu vozes na rua, na calçada de pedra. Debruçou-se na janela e olhou os quatro homens uniformizados, que o observavam disfarçadamente.

— O senhor é o Senhor Aaa? —   perguntaram.

— Sou.

— O Senhor Ttt nos mandou vê-lo — gritou o capitão.

— Por que ele fez isso? — perguntou o Senhor Aaa.

— Porque estava ocupado!

— Que pena — disse o Senhor Aaa, com ar sarcástico. — Será que ele pensa que eu não tenho mais nada a fazer do que receber gente com a qual não quer se incomodar?

— O importante não é isso, senhor — gritou o capitão.

— Ora, para mim é. Tenho muita coisa para ler. O Se­nhor Ttt não tem consideração. Não é a primeira vez que é desatencioso comigo. Pare de abanar as mãos, senhor, até que eu termine. E preste atenção. As pessoas em geral prestam atenção quando falo. E ouça educadamente ou não direi mais uma palavra.

Constrangidos, os quatro se mexiam na calçada, abriam a boca e, em certo momento, o capitão, com as veias inchando no rosto, viu algumas lágrimas brotarem em seus olhos.

— Então — sermoneou o Senhor Aaa, — acha direito o Senhor Ttt ser tão grosseiro?

Os quatro olhavam para cima, no meio do calor. O capitão falou:

— Viemos da Terra!

— Acho que é muito pouco cavalheiresco da parte dele — disse o Senhor Aaa, meditativo.

— Um foguete. Nós viemos nele. Naquele lado!

— Sabem, não é a primeira vez que Ttt exorbita.

— Diretamente da Terra.

— Ora, estou quase decidido, vou procurá-lo e dizer-lhe o que penso.

— Só nós quatro. Eu e estes três homens, minha tripulação.

— Vou procurá-lo. É isso o que vou fazer!

— Terra. Foguete. Homens. Viagem. Espaço.

— Vou chamá-lo e o desancarei! — gritou o Senhor Aaa. Sumiu como uma marionete num   cenário. Durante um minuto ouviram vozes iradas indo e vindo através de algum mecanismo estranho ou qualquer outro meio. Embaixo, o capitão e sua tripulação olhavam tristemente para trás, para o seu lindo foguete, que jazia no cimo da colina, tão tran­qüilo, agradável e belo.

O Senhor Aaa reapareceu na janela, brutalmente vito­rioso.

— Pelos deuses, desafiei-o para um duelo! Um duelo!

— Senhor Aaa... — recomeçou o capitão, suavemente.

— Vou atirar nele e matá-lo, verá!

— Senhor Aaa, quero dizer-lhe uma coisa. Viajamos no­venta e seis milhões de quilômetros.

O Senhor Aaa olhou o capitão pela primeira vez.

— De onde o senhor disse que veio?

O capitão esboçou um pálido sorriso. Sussurrou para seus homens:

— Agora estamos chegando a alguma parte! — Virando-se para o Senhor Aaa, gritou: — Viajamos noventa e seis milhões de quilômetros. Da Terra!

O Senhor Aaa bocejou.

— São apenas oitenta milhões nesta época do   ano. — Pegou numa arma de aspecto temível. — Bem, agora preciso ir. Pegue esse bilhete bobo, embora eu não saiba em que lhe poderá ser útil, e vá, atravessando   aquela colina, à cidadezinha de Iopr e conte tudo ao Senhor Iii. Ele é o homem que querem ver. E não o Senhor Ttt, que é um idiota. Vou ma­tá-lo. E não a mim, pois não são a minha especialidade.

— Especialidade, especialidade! — Lamentou-se o capitão. — É preciso ter uma certa especialidade para receber Homens da Terra?

— Não seja bobo, todos sabem disso! — O Senhor Aaa desceu correndo as escadas. — Adeus!

E correu pela calçada como um desenfreado par de com­passos.

Os quatro viajantes ficaram surpresos. Finalmente, o ca­pitão falou:

— Acabaremos por encontrar alguém que nos ouça.

— Talvez fosse melhor irmos embora e depois voltar — disse um dos homens, em tom sombrio. .— Talvez devêssemos levantar vôo, pousar novamente e dar-lhes tempo para orga­nizar a recepção.

— Até que a idéia   não é má — murmurou o exausto capitão.

A cidadezinha estava cheia de gente andando para lá e para cá, entrando e saindo de portas, cumprimentando-se, usando máscaras douradas, azuis e rubras, numa agradável va­riedade, máscaras com lábios prateados e sobrancelhas de bron­ze, máscaras que sorriam ou eram carrancudas, de acordo com o humor dos donos.

Os quatro homens, suados por causa da longa caminhada, pararam e perguntaram a uma garotinha onde era a casa do Senhor Iii.

— Lá — disse a criança com um gesto de cabeça.

O capitão, ansiosamente, pôs um joelho em terra c olhou o rosto jovem e suave da menina.

— Menininha, quero falar com você.

Sentou-a em seus joelhos e tomou-lhe as mãozinhas casta­nhas nas suas mãos enormes, como se estivesse pronto a contar uma estória de ninar que começava a esboçar lentamente em seu cérebro, com grande riqueza de detalhes.

— Bem, vou lhe dizer o que acontece, menininha. Há seis meses outro foguete chegou a Marte. Viajava nele um ho­mem chamado York, acompanhado de um assistente. O que aconteceu a eles   não   sabemos.   Talvez   tenha-se espatifado. Vieram num foguete. Nós também. Você deveria vê-lo! Um enorme foguete! Por isso, somos a Segunda Expedição, seguin­do a primeira. E viemos diretamente da Terra...

A garotinha livrou distraidamente uma das mãos e colocou no rosto uma inexpressiva máscara dourada. Então tirou uma aranha também dourada de brinquedo e colocou-a no chão en­quanto o capitão falava. A aranha de brinquedo tornou a su­bir obedientemente para os joelhos da menina, enquanto esta observava friamente o espetáculo através das fendas de sua máscara inexpressiva, e o capitão a sacudia gentilmente, chamando-lhe a atenção para o que estava dizendo.

— Somos terrestres — disse ele. — Acredita?

— Acredito.

A garotinha olhava para os traços que fazia no chão com os dedos dos pés.

— Ótimo.

O capitão beliscou-lhe o braço, em parte por estar ale­gre e em parte por maldade, pois queria que ela o olhasse.

— Construímos nosso próprio foguete. Acredita? A garotinha meteu um dedo no nariz.

— Acredito.

— E tire o dedo do nariz, menininha, eu sou o capitão e. . .

— Ninguém até hoje, segundo a História, atravessou o es­paço num   grande foguete — recitou a garotinha, de olhos fechados.

— Maravilhoso! Como sabe disso?

— Ah, por telepatia — disse ela, limpando distraidamente o dedo no próprio joelho.

— E então, isso não deixa você muito excitada? — gritou o capitão. — Não está contente?

— É melhor o senhor ir logo ver o Senhor Iii. — Colocou o brinquedo no chão. — O Senhor Iii vai querer falar com o senhor.

Saiu correndo, com a aranha de brinquedo indo obedien­temente atrás dela.

O capitão, agachado, ficou olhando, com a mão estendida. Havia lágrimas em seus olhos. Olhou para as mãos vazias. Sua boca estava aberta. Os outros três ficaram de pé sobre suas sombras. Cuspiram na rua de pedras...

O Senhor Iii abriu a porta. Estava a caminho de uma conferência, mas dispunha de um minuto, se quisessem entrar e dizer o que desejavam...

— Um pouco de atenção — disse o capitão, cansado e de olhos injetados. — Viemos da Terra, temos um foguete, somos quatro,   entre   tripulação e capitão, estamos exaustos,   com muita fome e queremos um lugar para dormir. Gostaríamos que alguém nos desse a chave da cidade ou coisa que o va­lha, que alguém nos apertasse as mãos e dissesse “hurra” e “parabéns, velhinho”. Coisas assim.

O Senhor Iii era um homem alto, magro, etéreo, com espessos cristais azuis-escuros nos olhos dourados. Inclinou-se sobre a mesa e examinou alguns papéis, olhando vez por outra com grande atenção para os visitantes.

— Bem, acho que não tenho os formulários aqui comigo.

— Remexeu nas gavetas da mesa. — Ora, onde os terei posto? — murmurou. — Por aí, por aí. Ah, aqui estão eles! Agora!

— Estendeu os papéis, incisivo. — Os senhores têm de assinar estes papéis, é claro.

— Temos que passar por toda essa confusão? O Senhor Iii lançou-lhe um olhar pesado.

— O senhor disse que veio da Terra, não disse? Pois bem, sendo assim tem de assinar.

O capitão assinou.

— Quer que a minha tripulação também assine?

O Senhor Iii olhou para o capitão, para os outros três e explodiu num grito de escárnio.

— Eles assinarem! Oh! Que maravilha! Eles, ah, eles assi­narem. — As lágrimas saltaram de seus olhos. Bateu no joelho e curvou-se para deixar a gargalhada sair da boca contraída. Ergueu-se, apoiando-se na mesa. — Eles assinarem!

Os quatro olharam, zangados.

— Qual é a graça?

— Eles assinarem! — suspirou o Senhor Iii, esgotado pela hilaridade. — É   tão engraçado. Tenho que contar isso ao Senhor Xxx! — Examinou o formulário   preenchido,   ainda rindo. Parece estar tudo em ordem. — Balançou a cabeça. — Mesmo a concordância para a eutanásia, se a   decisão final torná-la necessária — concluiu, emitindo um risinho.

— Concordância para o quê?

Não fale. Tenho uma coisa para o senhor. Olhe, pegue esta chave.

O capitão ficou ruborizado.

— É uma grande honra.

— Não é a chave da cidade, idiota! — latiu o Senhor Iii.

— É a chave da Casa. Vá por este corredor, destranque a porta grande, entre e a feche bem. Podem passar a noite lá. Amanhã de manhã mandarei o Senhor Xxx vê-los.

Hesitando, o capitão pegou a chave. Ficou olhando para o chão. Seus homens não se mexeram. Pareciam ter sido esva­ziados de toda a febre e entusiasmo da viagem espacial. Esta­vam secos.

— O que foi? Algo errado? — perguntou o Senhor Iii. — Que estão esperando? Que querem? — Adiantou-se e exami­nou o rosto do capitão, com ar condescendente. — Vá!

— Quem sabe se o senhor poderia... — sugeriu o capitão.

— Quero dizer, enfim, tentar ou pensar nas...   — Hesitou.

— Trabalhamos muito, percorremos um longo caminho e tal­vez o senhor pudesse ao menos apertar nossas mãos e dizer “Bom trabalho!”, não acha?

Sua voz sumiu.

O Senhor Iii estendeu a mão rigidamente.

— Parabéns! — exibiu um sorriso gelado. — Parabéns. — Deu-lhes as costas. — Agora preciso ir. Usem essa chave.

Sem reparar mais neles, como se tivessem se derretido e desaparecido pelo chão, o Senhor Iii andava pelo escritório, enchendo uma pasta de documentos com papéis que apanhava aqui e ali. Ficou no escritório durante uns cinco minutos, sem se dirigir mais ao solene quarteto que estava imóvel, cabisbaixo, com as pernas moles e a luz fugindo dos seus olhos. Quando o Senhor Iii saiu, estava muito ocupado examinando as unhas...

Caminharam pelo corredor, afastados uns dos outros, sob a luz cinzenta do cair da tarde. Chegaram a uma polida porta prateada, e a chave de prata abriu-a. Entraram, tornaram a fechar e passaram a chave.

Estavam num enorme salão iluminado pela luz diurna. Homens e mulheres sentavam-se em torno de mesas ou con­versavam em grupos, de pé. Ao ouvirem o barulho da porta, olharam os quatro homens uniformizados.

Um marciano adiantou-se, inclinando-se:

— Sou o Senhor Uuu — disse ele.

— E eu sou o Capitão Jonathan Williams, da Cidade de Nova York, na Terra — respondeu o capitão, sem grande en­tusiasmo.

Imediatamente a sala explodiu!

As vigas estremeceram com os gritos e exclamações. Todos correram para eles, gritando e abanando alegremente as mãos, derrubando mesas, atropelando-se, galhofando. Pegaram os quatro Homens da Terra, erguendo-os nos ombros. Deram seis voltas completas na sala, saltando, gesticulando, cantando.

Os Homens da Terra ficaram tão espantados que, durante um minuto, se deixaram carregar antes de começar a rir e a gritar uns para os outros:

— Oba! Assim, sim!

— Eta, vida! Cara! É isso aí!

Piscavam tremendamente uns para os outros. Erguiam os braços para bater palmas.

— Ei!

— Hurra! — responderam todos.

Puseram os Homens da Terra sobre uma mesa. Os gritos cessaram.

O capitão estava a ponto de chorar.

— Obrigado. Isso conforta.

— Conte-nos sobre vocês — sugeriu o Senhor Uuu. O capitão pigarreou.

Os presentes emitiam ohs e ahs, enquanto o capitão falava. Apresentou sua tripulação. Cada um fez um pequeno discurso e ficou sem jeito por causa dos aplausos exagerados.

O Senhor Uuu bateu no ombro do capitão.

— É bom ver outro homem da Terra. Eu também vim da Terra.

— Repita, por favor?

— Aqui há muitos terrestres.

— O senhor? Da Terra? — O capitão olhou-o fixamente. — É possível isso? Veio de foguete? A viagem espacial terá começado há séculos? — Sua voz revelava desapontamento. — De que... de que país veio?

— Tuiereol. Vim há anos pelo espírito do meu corpo.

— Tuiereol. — O capitão repetiu lentamente. — Não co­nheço esse país. Que é espírito do corpo?

— E a Senhorita Rrr, ali, também é da Terra, não é, Senhorita Rrr?

A Senhorita Rrr confirmou com a cabeça e deu uma risada esquisita.

— E também o Senhor Www, e o Senhor Qqq e o Se­nhor Vvv!

— Eu sou de Júpiter — declarou outro, orgulhosamente.

— E eu de Saturno — afirmou outro, com os olhos bri­lhando maliciosamente.

— Júpiter, Saturno — murmurou o capitão, pestanejando.

Agora o silêncio era completo. Os presentes aproxima­ram-se e sentaram nas mesas, estranhamente vazias para mesas de banquete. Seus olhos ardiam e as faces eram cavadas. O capitão reparou pela primeira vez que não havia janelas. A luz parecia filtrar-se pelas paredes. Havia apenas uma porta.

O capitão estremeceu.

— Tudo isto é muito confuso. Onde, na Terra, fica Tuiereol? Perto da América?

— O que é América?

— O senhor nunca ouviu falar na América! Disse que é da Terra e no entanto não sabe!

O Senhor Uuu levantou-se, zangado.

— A Terra é um lugar onde só há mares, nada mais que mares. Não há solo. Sou da Terra e sei disso.

— Um momento. — O capitão recostou-se na cadeira. — O senhor parece um marciano comum. Olhos dourados. Pele castanha.

— A Terra é um lugar só de selvas — disse a Senhorita Rrr orgulhosamente. — Sou de Orri, na Terra, uma civilização forjada em prata!

Nesse ponto, o capitão olhou sucessivamente para o Senhor Uuu e depois para o Senhor Www, para o Senhor Zzz, para o Senhor Nnn, para o Senhor Hhh e para o Senhor Bbb. Viu seus olhos amarelos aumentarem e diminuírem na luz, entran­do e saindo de foco. Começou a tiritar. Finalmente, virou-se para sua tripulação e olhou-os sombriamente.

— Sabem onde estamos?

— Onde, senhor?

— Isto não é uma comemoração — respondeu o capitão, com voz fatigada. — Isto não é um banquete. Não há represen­tantes do governo. Não é uma festa improvisada. Vejam os olhos deles. Ouçam-nos!

Prenderam a respiração. Havia na sala fechada apenas um suave movimento de olhos transparentes.

— Agora compreendo — começou o capitão, com voz mor­ta — porque cada um nos dava bilhetes e passava adiante, de um para outro, até chegarmos ao Senhor Iii, que nos mandou pelo corredor com uma chave para abrir e fechar a porta. E cá estamos...

— Estamos onde, senhor? O capitão desabafou:

— Num asilo de alienados.

Noite. O grande salão estava silencioso e fracamente ilu­minado por focos ocultos nas paredes transparentes. Os quatro terrestres estavam sentados em torno de uma mesa de madeira, com as cabeças inclinadas para a frente, suspirando triste­mente. Deitados no chão, em desordem, homens e mulheres. Havia pequenos movimentos nos cantos escuros: homens ou mulheres solitárias mexendo as mãos. A cada meia hora, um dos membros da tripulação ia experimentar a porta prateada e voltava para a mesa.

— Nada a fazer, senhor. Estamos bem trancados.

— Senhor, será que eles nos acham mesmo malucos?

— Sem dúvida. Por isso não houve entusiasmo na nossa recepção. Toleraram, apenas, o que, para eles, deve ser uma condição psicótica freqüente. — Apontou para os vultos ador­mecidos em torno. — Paranóicos, todos eles! Que recepção nos deram! Por um momento — um brilho surgiu e morreu em seus   olhos — pensei que estávamos tendo uma verdadeira recepção. — Toda aquela gritaria, cantoria e discursos. Foi lindo enquanto durou, não foi?

— Quanto tempo vão nos reter aqui?

— Até provarmos que não somos loucos.

— Isso será fácil.

— Espero que sim.

— O senhor não fala com muita convicção.

— Não falo mesmo. Olhe para aquele canto.

Um homem estava acocorado, sozinho, na escuridão. De sua boca saía uma chama azul, que se transformou na forma curvilínea de uma mulherzinha nua e depois numa flor, sua­vemente no ar em vapores de luz azul clara, sussurrando e sus­pirando.

O capitão mostrou outro canto. Havia uma mulher se modificando. Primeiro embutiu-se numa coluna de cristal, depois fundiu-se numa estátua dourada e finalmente trans­formou-se numa vara de cedro polido, para retornar à sua condição de mulher.

Em toda a sala escurecida havia gente exalando esguias chamas violetas, móveis e mutantes, pois a noite era a hora da modificação e da aflição.

— Mágicos, feiticeiros — murmurou um dos terrestres.

— Não, alucinação. Transmitem-nos sua demência e assim passamos também a ver a alucinação deles. Telepatia. Auto-sugestão e telepatia.

— E isso o preocupa, senhor?

— Sim. Se as alucinações podem parecer tão “reais” para nós e para qualquer outro, se as alucinações são palpáveis e quase acreditáveis, não é de espantar que nos tomem por doidos. Se aquele homem pode fazer mulherzinhas azuis de fogo e ela se transforma numa coluna, é natural que marcia­nos normais pensem que produzimos nossa nave espacial usan­do nossas mentes.

— Ah — disseram seus homens na escuridão. Em volta deles, no enorme salão, surgiram chamas azuis, que brilharam e sumiram. Diabinhos de areia vermelha cor­riam entre os dentes dos homens, adormecidos. Mulheres trans­formavam-se em serpentes escorregadias. Sentia-se o cheiro de répteis e de feras.

Ao amanhecer, todos estavam de pé, descansados, alegres e normais. Não havia chamas ou demônios na sala. O ca­pitão e a tripulação estavam ao lado da porta prateada, na esperança que ela abrisse.

O Senhor Xxx chegou umas quatro horas mais tarde. Eles suspeitaram que o homem tivesse esperado do outro lado da porta, espiando-os durante pelo menos três horas antes de entrar, e feito um sinal para levá-los para o seu pequeno escri­tório.

Era um homem jovial e sorridente, a se acreditar pela máscara que usava, pois nela não estava pintado um sorriso, mas três. Por trás dela, sua voz era a de um psicólogo não tão sorridente.

— Bem, qual é o problema?

— O senhor pensa que somos loucos, mas não somos — disse o capitão.

— Ao contrário, eu não penso que todos são loucos. — O psicólogo apontou uma varinha para o capitão. — Não. Só o senhor. Os outros são alucinações secundárias.

O capitão deu um tapa na perna.

— Então é isso! Por isso o Senhor Iii riu quando eu suge­ri que meus homens também assinassem os formulários!

— Sim, o Senhor Iii me contou. — O psicólogo riu por trás da boca sorridente cavada na máscara. — Uma boa piada. Onde é que eu estava? Ah, sim alucinações secundárias. Há mulheres que me procuram com cobras formigando em suas orelhas. Quando eu as curo, as cobras desaparecem.

— Nós teremos prazer em ser curados. Prossiga. O Senhor Xxx mostrou-se surpreso.

— É fora do comum. Não são muitos os que querem ser curados. Como o senhor sabe, a cura é drástica.

— Vamos com a cura! Tenho confiança em que o senhor descobrirá que estamos sãos.

— Deixe-me ver seus documentos, para ter certeza de que estão em ordem para a “cura”. — Examinou um arquivo. — Sim. Sabe, casos como o seu necessitam uma “cura” especial. As pessoas naquele salão são casos simples. Mas quando se chega a este ponto, devo frisar, com fantasias primárias, se­cundárias, auditivas, olfativas e gustativas, bem como fanta­sias táteis e óticas, é um negócio muito grave. Temos de re­correr à eutanásia.

O capitão saltou, berrando:

— Olhe aqui, já agüentamos demais! Teste-nos, bata em nossos joelhos, examine nossos corações, submeta-nos a exer­cícios físicos, faça perguntas!

— Fale à vontade.

O capitão falou durante uma hora. O psicólogo ouvia.

— Incrível — murmurou ele. — Esta é a fantasia onírica mais detalhada que já ouvi.

— Vá para o diabo, nós lhe mostraremos o foguete! — berrou o capitão.

— Gostaria de vê-lo. Pode materializá-lo nesta sala?

— Mas claro que sim. Está naquele arquivo, na letra R. O Senhor Xxx examinou cuidadosamente o arquivo. Fez

com a boca um ruído desaprovador e fechou solenemente a gaveta.

— Por que me mandou olhar? O foguete não está lá.

— Claro que não, idiota! Eu estava brincando. Um louco faz piadas?

— O senhor tem um estranho senso de humor. Agora me leve ao seu foguete. Desejo vê-lo.

Era meio-dia.   Fazia   muito calor   quando   atingiram   o foguete.

— Bem. — O psicólogo foi até a nave e bateu nela, que emitiu um som surdo. — Posso entrar? — perguntou malicio­samente.

— À vontade.

O Senhor Xxx entrou e demorou bastante tempo.

— Não há nada mais exasperante. — O capitão mastigava a ponta de um charuto enquanto esperava. — Iria embora por qualquer dinheiro e diria na Terra para deixarem de se im­portar com Marte. Que bando de gente grosseira!

— Acho que uma boa parte do povo daqui é doida, se­nhor. Talvez seja esse o motivo principal da   desconfiança deles.

— Apesar disso, é muito irritante.

O psicólogo surgiu da nave depois de espreitar, bater, ouvir, cheirar, provar durante meia hora.

— Agora o senhor acredita! — gritou o capitão como se ele fosse surdo.

O psicólogo fechou os olhos e coçou o nariz.

— Este é o mais incrível exemplo de alucinação sensorial e sugestão hipnótica que já vi. Penetrei no seu “foguete”, como o senhor o chama. — Bateu no casco. — Ouvi-o. Fantasia audi­tiva. — Inspirou. — Sinto o cheiro. Alucinação olfativa, indu­zida por telepatia sensorial. — Beijou a nave. — Provei-a. Fan­tasia labial!

Apertou a mão do capitão.

— Posso dar-lhe os parabéns? O senhor é um psicótico ge­nial! Fez um trabalho perfeito! A tarefa de projetar sua psi­cótica vida imaginária na mente de outra pessoa por inter­médio da telepatia e conservar as alucinações sem se enfra­quecerem sensorialmente é quase impossível. Os da Casa nor­malmente se concentram em fantasias visuais ou, no máximo, em visuais e auditivas combinadas. O senhor conseguiu equi­librar todas elas! Sua loucura é lindamente completa!

— Minha loucura.

O capitão empalideceu.

— Sim, que linda loucura. Metal, borracha, gravitadores, alimentos, roupas, combustíveis, armas, escadas, porcas, para­fusos, colheres. Examinei na sua nave dez mil objetos diferen­tes. Nunca vi tamanha complexidade. Havia sombras sob os beliches e debaixo de tudo Que concentração de vontade! E tudo, não importa quando e como foi examinado, tinha cheiro, solidez, gosto e som! Permita-me que o abrace!

Finalmente afastou-se.

— Vou revelar isto na minha maior monografia! Falarei a respeito na Academia Marciana, no próximo mês! Olhe só! Ora, o senhor chegou mesmo a mudar a cor dourada dos seus olhos para azul, sua pele de castanha para rosada. E essas roupas e suas mãos, com cinco dedos em vez de seis! Meta­morfose biológica através de desequilíbrio psicológico! E seus três amigos...

Apontou uma pequena arma.

— Incurável, é claro. Pobre e maravilhosa pessoa. Será mais feliz morto. Quer dizer sua última vontade?

— Pare, pelo amor de Deus! Não atire!

— Pobre criatura. Eu o tirarei desse sofrimento que o levou a imaginar este foguete e esses três homens. Vai ser muito interessante ver seus amigos e seu foguete desaparece­rem quando eu o tiver matado. Escreverei um esmerado ensaio sobre a dissolução de imagens neuróticas, baseado no que ve­rifiquei aqui hoje.

— Sou da Terra! Meu nome é Jonathan Williams e estes...

— Sim, eu sei — falou suavemente o Senhor Xxx e puxou o gatilho.

O capitão caiu com uma bala no coração. Os outros três começaram a gritar.

O Senhor Xxx olhou-os, espantado.

— Continuam a existir? Isto é formidável! Alucinação com persistência temporal e espacial! — Apontou a arma para eles.

— Bem, eu os afugentarei, dissolvendo-os.

— Não! — gritaram os três.

— Um apelo auditivo, mesmo com o paciente morto — observou o Senhor Xxx, ao mesmo tempo em que atirava nos três.

Caíram na areia, intactos, imóveis. Deu-lhes pontapés. Depois bateu na nave.

— Persiste! Eles persistem!

Disparou repetidamente a arma nos corpos. Depois re­cuou. A máscara sorridente caiu do seu rosto.

Lentamente, o rosto do pequeno psicólogo transformou-se. Seu queixo caiu. A arma desprendeu-se dos seus dedos. Seus olhos tornaram-se baços e vagos. Ergueu os braços e começou a rodar em círculos como se não enxergasse. Apalpou os cor­pos, com a boca cheia de saliva.

— Alucinações — murmurou, desvairado. — Gosto. Visão. Cheiro. Som. Sensação.

Balançou os braços. Seus olhos saltaram. Sua boca come­çou a expelir espuma levemente.

— Vão embora! — gritou para os corpos. — Vá embora!

— gritou para a nave. — Examinou as mãos trêmulas. — Con­taminadas — sussurrou, desesperado. — Transferência.   Tele­patia. Hipnose. Agora estou louco. Agora estou contaminado.

Alucinações em todas as suas formas sensoriais! — Parou e tateou em volta, procurando a arma com as mãos desajeitadas. — Só há uma cura. Uma única forma de mandá-los embora, de fazê-los desaparecer.

Ouviu-se um tiro. O Senhor Xxx caiu.

Os quatro corpos jaziam ao sol. O Senhor Xxx, no lugar onde caíra.

O foguete, deitado na pequena colina ensolarada não desaparecera.

Quando os habitantes da cidade acharam o foguete ao pôr do sol, ficaram imaginando o que seria. Ninguém sabia e por isso foi vendido a um negociante de ferro velho, que o arrastou e destruiu para vender como sucata.

Naquela noite choveu sem parar. O dia seguinte foi bem quente.

 

Março de 2000

O Contribuinte

Ele queria ir a Marte no foguete. Foi até o campo de fo­guetes de manhã cedo e gritou, através da cerca de arame para os homens fardados, que queria ir a Marte. Disse-lhes que era um contribuinte, chamava-se Pritchard e tinha todo o direito de ir a Marte. Não havia nascido ali em Ohio? Não era um cidadão cumpridor dos seus deveres? Então por que não podia ir a Marte? Sacudiu o punho cerrado na direção deles e disse-lhes que queria ir embora da Terra, que qualquer pessoa com a cabeça no lugar queria ir embora da Terra. Dentro de dois anos iria ser desencadeada uma enorme guerra atômica na Terra e ele não queria estar ali quando isso acontecesse. Ele e milhares de outros como ele, se tivessem bom senso, quereriam ir para Marte. Pergunte-lhes se   não quereriam! Ficar longe de guerras, censuras, estatizações, conscrição, con­trole governamental disto e daquilo, da arte e da ciência! Vo­cês podem ficar com a Terra! Estava lhes oferecendo sua mão direita, seu coração, sua cabeça, pela oportunidade de ir para Marte! Que devia fazer, que se devia assinar, que se devia saber para embarcar no foguete?

Através da tela de arame, eles riram para o homem. Disse­ram-lhe que não queria ir para Marte. Não sabia ele que a Primeira e Segunda Expedição haviam fracassado, desapare­cido, e os homens provavelmente estavam mortos?

Mas eles não podiam provar, não tinham certeza, re­plicou, pendurando-se na cerca de arame. Talvez lá em cima houvesse uma terra de leite e mel, e o Capitão York e o Capi­tão Williams jamais tivessem a preocupação de voltar. Assim, iriam eles abrir o portão e deixá-lo subir a bordo do Terceiro Foguete Expedicionário, ou teria de arrebentar o portão a pontapés?

Mandaram que calasse a boca.

Viu os homens encaminhando-se para o foguete.

— Esperem por mim! — gritou. — Não me abandonem aqui neste mundo terrível. Tenho de ir embora. Vai haver uma guerra atômica! Não me abandonem na Terra!

Foi arrastado para longe, debatendo-se. Bateram a porta do camburão, que o levou dali naquela manhã, com o rosto colado na janela traseira e, pouco antes da sirene começar a tocar, no cimo da colina, ele viu a labareda rubra e ouviu o estrondo. Sentiu também um enorme tremor quando o fogue­te prateado ergueu-se, deixando-o para trás, numa vulgar manhã de segunda-feira, num vulgar planeta Terra.

 

Abril de 2000

A Terceira Expedição

A Nave desceu do espaço. Vinha das estrelas, de veloci­dades absurdas, de movimentos reluzentes e dos silenciosos golfos do espaço. Era uma nave nova. Tinha fogo nas entra­nhas e homens em seus casulos de metal, movendo-se com um silêncio limpo, ígneo e quente. Era tripulada por dezessete homens, inclusive o capitão. A multidão no campo de Ohio havia-se despedido com braços agitados e gritos de alegria à luz do sol, e o foguete desabrochara grandes flores de cor de fogo, partindo para o espaço na terceira viagem a Marte!

Agora estava desacelerando com eficiência metálica na atmosfera superior marciana. Era ainda algo belo e forte. Moveu-se nas águas noturnas do espaço como um pálido leviatã dos mares. Deixara para trás a antiga lua e se atirara em nadas sucessivos. Os homens dentro dele haviam sido ba­tidos, retorcidos, tinham ficado doentes e depois curados, uma coisa de cada vez. Um dos homens morrera, mas agora os res­tantes dezesseis, com os olhos limpos e os rostos colados no espesso vidro das vigias, observavam Marte se aproximar deles.

— Marte — gritou o navegador Lustig.

— Velho Marte de guerra! — disse Samuel Hinkston, ar­queólogo.

— Muito bem — disse o Capitão John Black.

O foguete pousou num gramado verde. Num lado, sobre esse gramado, havia um gamo de ferro. Mais além, via-se uma casa vitoriana, alta e parda, silenciosa ao sol, com uma fa­chada rococó coberta de arabescos, mostrando janelas com vidros rosados, amarelos e verdes. Sobre a entrada, cresciam gerânios. Via-se também um velho balanço preso ao teto da entrada, balançando para a frente e para trás, na brisa suave. Coroando a casa, havia uma cúpula, com vidraças em for­ma de losango, com caixilhos de chumbo e um telhado em forma de orelhas de burro! Pela janela da frente podia-se ver uma partitura de piano intitulada “Beautiful Ohio” apoiada no descanso do instrumento.

A cidadezinha espalhava-se em quatro direções, em torno do foguete, verde e tranqüila na primavera marciana. Havia casas brancas e outras de tijolo aparente e enormes olmos, bordos e castanheiros, balançando-se ao vento. E campanários com sinos dourados silenciosos.

A tripulação do foguete olhou e viu. Depois olharam uns para os outros e novamente para fora. Agarraram-se pe­los cotovelos, subitamente incapazes de respirar. Seus rostos empalideceram.

— Raios — sussurrou Lustig, esfregando o rosto com os dedos dormentes.   — Raios.

— Não pode ser — disse Samuel Hinkston.

— Meu Deus — falou o Capitão John Black.

Ouviu-se a voz do químico.

— Senhor, a atmosfera   é um   tanto   rarefeita.   Mas há bastante oxigênio. Não há perigo.

— Então vamos sair — disse Lustig.

— Esperem — retrucou o Capitão John Black.   — Nós não sabemos o que é isso aí.

— É uma cidadezinha com ar rarefeito, mas respirável, senhor.

— E é uma cidadezinha igual às da Terra — disse Hinks­ton, o arqueólogo. — Incrível. Não pode ser, mas é.

O Capitão Black olhou-o inexpressivamente.

— Você acha que as civilizações de dois planetas podem progredir na mesma proporção e evoluir na mesma direção, Hinkston?

— Não tinha   pensado nisso, senhor. O Capitão Black olhou pela vigia.

— Vejam aquilo.   Os gerânios.   Uma planta de cultivo. Aquela variedade ali só começou a ser conhecida na Terra há cerca de cinqüenta anos. Pense nos milhares de anos de evolução que as plantas, necessitam.   Depois, me diga se é lógico que os marcianos tenham: um, janelas de vidro com caixilhos de chumbo; dois, cúpulas; três, balanços nas entra­das; quatro, um instrumento que parece um piano e prova­velmente é um piano; e cinco, se olharem por este telescópio é possível e lógico que um compositor marciano tenha com­posto uma música intitulada, muito estranhamente,   “Beautiful Ohio”? O que, afinal de contas, significa que há um Rio Ohio em Marte!

— O Capitão Williams, é claro! — gritou Hinkston.

— Como?

— O Capitão Williams e seus três tripulantes! Ou Nathaniel York e seu companheiro. Isso explica tudo!

— Isso não explica absolutamente nada! Até onde pode­mos supor, a expedição York explodiu no dia em que pousou cm Marte, liquidando York e seu companheiro. Quanto a Williams e seus três tripulantes, sua nave explodiu dois dias depois da sua chegada. Pelo menos os sinais dos seus trans­missores pararam naquele dia e imaginamos que se os homens estivessem vivos,   teriam entrado em contato conosco. Além do mais, a expedição York foi há apenas um ano, enquanto que o Capitão Williams e seus homens pousaram aqui num dia de agosto passado. Supondo que ainda estejam vivos, poderiam, mesmo com a brilhante ajuda dos marcianos, cons­truir uma cidade como essa e envelhecê-la em tão pouco tem­po? Olhem para ela. Está ali há, pelo menos, setenta anos. Vejam à madeira do corrimão do pórtico. Olhem para as árvores, todas centenárias! Não, não foi obra de York ou Wil­liams. É alguma coisa mais. Não gosto disso. E não vou sair da nave até saber do que se trata.

— Além disso — completou Lustig,   sacudindo a cabeça — Williams,   seus homens e York pousaram no lado oposto de Marte. Tivemos o cuidado de pousar deste lado.

— Excelente observação.   Na hipótese   de   que   alguma tribo hostil marciana tenha liquidado York e Williams, fomos instruídos no sentido de   pousarmos numa região bem afas­tada, para evitar a repetição desse desastre. Por isso estamos aqui, o mais longe possível, num local jamais visto por Wil­liams e York.

— Malditos sejam — disse Hinkston. — Quero ir até essa cidadezinha, senhor, com sua permissão.   É possível que em cada planeta do nosso sistema solar haja semelhantes pautas de idéias e diagramas de   civilização.   Talvez   estejamos   no limiar da maior descoberta psicológica e metafísica do nosso tempo!

— Estou inclinado a esperar um pouco — disse o Capitão John Black.

— Senhor, talvez estejamos em face de um fenômeno que, pela primeira vez, prove sem dúvidas a existência de Deus.

— Há muitas pessoas, Senhor Hinkston, que acreditam sem   precisar dessa   prova.

— Eu sou uma delas, senhor. Mas, com certeza, uma ci­dade como essa não pode existir sem a intervenção divina. Os detalhes.   Enchem-me de tais sentimentos que não sei se devo rir ou chorar.

— Não faça nem uma coisa nem outra antes de saber o que vamos enfrentar.

— Enfrentar?   —   interrompeu   Lustig.   —   Nada teremos a enfrentar, senhor.   É uma bela cidadezinha, calma e arbo­rizada, muito parecida com a antiquada cidade onde nasci. Gosto do aspecto dela.

— Quando você nasceu, Lustig?

— Em 1950.

— E você, Hinkston?

— 1955, senhor. Em Grinnell, Iowa. E esta cidade se pa­rece com a minha.

— Hinkston, Lustig, eu poderia ser pai de vocês. Tenho oitenta anos. Nasci em 1920, em Illinois, e com a graça de Deus e   de uma ciência que, nos   últimos   cinqüenta   anos, soube rejuvenescer alguns velhos, aqui estou em Marte, não mais fatigado que o resto de vocês, mas infinitamente mais desconfiado.   Aquela cidade parece muito pacífica e calma, e é muito semelhante a Green Bluff, Illinois, o que me as­susta. É parecida demais com Green Bluff. — Virou-se para o encarregado das transmissões.   — Chame a Terra.   Comu­nique que pousamos. Só isso. Diga que amanhã enviaremos um relatório completo.

— Sim, senhor.

O Capitão Black olhou para fora pela vigia do foguete, como rosto de um homem que devia demonstrar oitenta anos, mas que aparentava apenas quarenta.

— Vou dizer-lhe o que faremos, Lustig. Você, eu e Hinks­ton vamos dar uma olhada na cidade.   Os outros ficarão a bordo. Se acontecer alguma coisa, poderão cair fora.   É me­lhor perder três homens do que a nave toda.   Se acontecer alguma coisa ruim, nossa tripulação poderá avisar o próximo foguete. Acho que é o foguete do Capitão Wilder que deverá estar pronto para decolar no próximo Natal. Se existir al­guma coisa hostil em Marte, certamente iremos querer que o próximo foguete esteja bem armado.

— Nós   também   estamos.   Trouxemos um arsenal com­pleto.

— Diga aos homens que fiquem   junto   às   armas.   Ve­nham, Lustig e Hinkston.

Os homens saíram juntos da nave.

 

Era um belo dia de primavera. Um tordo, pousado numa macieira em flor, cantava sem parar. Pétalas brancas como neve caíam dos ramos verdes quando o vento passava e o perfume das flores pairava no ar. Em alguma parte da cida­de, alguém tocava piano e a música ia e vinha, ia e vinha, suave e entorpecedora. A música era “Beautiful Dreamer”. Em outro ponto, uma vitrola chiadeira tocava o disco “Roamin through the Gloamin”, cantado por Harry Lauder.

Os três homens ficaram parados ao lado da nave. Res­piravam com esforço o ar rarefeito e caminhavam devagar para não se cansarem.

Agora, o que a vitrola estava tocando era:

“Ah, dê-me uma noite de junho, o luar e você. . .”

Lustig começou a tremer. Samuel Hinkston também.

O céu estava calmo e silencioso, e em algum lugar um regato corria por cavernas e sombras de árvores de uma ravina. Em outra parte, um cavalo trotava, puxando uma car­roça.

— Senhor   — disse Samuel Hinkston —   essa viagem es­pacial para Marte deve ter acontecido nos anos que antece­deram a Primeira Guerra Mundial.   Só pode ser isso.

— Não.

— De que outra forma podemos explicar essas casas, o gamo de ferro, o piano, a música? — Hinkston pegou o capi­tão pelo   braço,   persuasivamente,   encarando-o. —   Digamos que houvesse, em 1905, gente que odiasse a guerra, tivesse se juntado secretamente a cientistas e construído um foguete com a finalidade de atingir Marte...

— Não, não, Hinkston.

— Por quê? O mundo era diferente em 1905.   Poderiam ter conservado tudo em segredo muito mais facilmente.

— Menos uma coisa tão complexa quanto um foguete. Não, isso não pode ser mantido em segredo.

— E vieram viver aqui onde, naturalmente, as casas que construíram eram semelhantes às da Terra porque trouxeram a cultura terrestre com eles.

— E viveram aqui todos esses anos? — perguntou o ca­pitão.

— Sim, em paz e tranqüilidade. Talvez tenham feito al­gumas viagens, o suficiente para trazer gente para cá e edificar uma pequena cidade, parando a seguir, com medo de serem descobertos.   Por isso essa cidade   parece   antiquada. Não vejo aqui nada posterior a 1927. O senhor vê? Ou quem sabe, senhor, a viagem em foguete é mais velha do que su­pomos? Talvez tenha começado em alguma parte do mundo há séculos e foi mantida em segredo pelo pequeno número de homens que se mudou para Marte, com visitas ocasionais a Terra no decorrer de séculos.

— Dito assim, parece quase viável.

— Tem de ser. Temos a   prova   diante   dos   olhos. A única coisa a fazer é encontrar alguém e verificar.

Suas botas não faziam ruído algum na grama espessa. Sentia-se o cheiro de segadura recente. Não obstante sua des­confiança, o Capitão John Black sentiu uma grande paz des­cer sobre ele. Fazia trinta anos que estivera pela última vez numa pequena cidade, e o zumbido das abelhas da prima­vera no ar o embalava e apaziguava. O aspecto viçoso das coisas era um bálsamo para sua alma.

Entraram no alpendre. Ecos surdos subiram das tábuas enquanto caminhavam para a porta protegida por uma tela. Dentro, puderam ver uma cortina de contas separando a sala, um candelabro de cristal e um quadro de Maxfield Parrish numa parede, por cima de uma confortável poltrona Morris. A casa cheirava a velho, a desvão e a infinitamente confor­tável. Podia-se ouvir o tilintar do gelo numa jarra de refres­co. Numa cozinha distante, alguém estava preparando um almoço frio por causa do calor do dia. E alguém cantarola­va, com voz fina e suave.

O Capitão Black tocou a campainha.

Passos leves e delicados aproximaram-se, e uma senho­ra de uns quarenta anos, de ar bondoso, vestida com o tipo de roupa usado em   1909, examinou-os.

— Que desejam? — perguntou.

— Desculpe — disse o Capitão Black, vacilando.   — Mas estávamos procurando por...   isto é, pode ajudar-nos...

Parou. Ela o examinou com seus olhos negros perscrutadores.

— Se está querendo vender alguma coisa... — começou ela.

— Não, espere! — gritou o capitão. — Que cidade é esta? Ela o olhou de alto a baixo.

— Que quer dizer com que cidade é esta? Como pode estar numa   cidade e não saber seu nome?

O capitão tinha vontade de se refugiar sob a frondosa macieira.

— Somos de fora. Queremos saber como surgiu esta ci­dade e como a senhora veio para cá.

— São recenseadores?

— Não.

— Todos sabem — disse ela — que esta cidade foi edificada em   1868. Trata-se de uma brincadeira?

— Longe disso! — respondeu o capitão. —   Viemos   da Terra.

— Quer dizer que   surgiram   do   chão?   —   admirou-se a mulher.

— Não, viemos do terceiro planeta, a Terra, numa nave. E pousamos aqui no quarto planeta, Marte...

— Isto aqui — explicou a mulher, como se estivesse fa­lando com uma criança — é Green Bluff, Illinois, no conti­nente americano, cercado pelos oceanos Pacífico e Atlântico, num lugar chamado mundo ou, às vezes, Terra.   Agora vá embora.   Adeus.

Voltou apressada para dentro, passando os dedos na cor­tina de contas.

Os três homens se entreolharam.

— Vamos arrebentar a tela — disse Lustig.

— Não podemos fazer isso.   É uma propriedade parti­cular. Meu Deus!

Sentaram-se no degrau da varanda.

— Não lhe ocorreu, Hinkston, que talvez tenhamos, não sei como, feito   uma reviravolta e acidentalmente pousado na Terra?

— Como poderia isso acontecer?

— Não sei, não sei. Ah, meu Deus, preciso pensar! Hinkston disse:

— Mas examinamos continuamente a trajetória. Nossos cronômetros marcaram os quilômetros. Ultrapassamos a Lua e partimos para o espaço, chegando até aqui. Tenho certeza de que estamos em Marte.

Lustig disse:

— Mas suponha que, por acidente espacial ou temporal, perdemo-nos em outra dimensão e pousamos na Terra, isto é, há trinta ou quarenta anos.

— Ora, não amole, Lustig!

Lustig foi até à porta, tocou a campainha e gritou para a sala fresca e escura:

— Em que ano estamos?

— Mil novecentos e vinte seis, é claro — respondeu a se­nhora, sentada numa cadeira de balanço, tomando um gole do seu refresco.

— Ouviram isso? — Lustig virou-se, agitado, para os com­panheiros. — Mil novecentos e vinte seis! Retrocedemos no tempo!  Estamos na Terra!

Lustig sentou-se, e os três deixaram que o espanto e o pavor tomassem conta deles. Suas mãos mexiam-se espasmodicamente sobre os joelhos.

— Nunca   imaginei   uma   coisa destas.   Fico   apavorado. Como isso pode acontecer? Gostaria de ter trazido Einstein conosco — disse o capitão.

— Alguém nesta cidade acreditará em nós? — comentou Hinkston.   —   Estamos lidando com alguma coisa   perigosa? Com o tempo, quero dizer. Devemos decolar e voltar para a Terra?

— Não. Não antes de tentarmos outra casa. Passaram por três outras casas e pararam num chalezinho branco, à sombra de um carvalho.

— Quero ser o mais lógico possível — disse o capitão. — E acho que ainda não descobrimos a verdade. Suponha, Hinkston, como sugeriu inicialmente, que a viagem espacial aconteceu há muitos anos? E quando os terrestres já estavam aqui há um bom número de anos, começaram a   ter sauda­des da Terra.   Primeiro, uma leve neurose, depois uma psi­cose desenvolvida.   A seguir, uma loucura   perigosa.   Como psiquiatra, o que faria diante de um caso desses?

Hinkston ficou pensativo.

— Ora, acho que daria um jeito para que a civilização em Marte se parecesse com a da Terra cada vez mais. Se houvesse uma possibilidade, mínima que fosse, de reproduzir cada planta, cada estrada, cada lago é mesmo um oceano, eu o faria. Depois, por uma enorme hipnose coletiva, eu con­venceria a todos numa cidade deste tamanho que   aqui   era realmente a Terra e não Marte.

— É isso, Hinkston. Acho que agora estamos na pista. A mulher naquela casa pensa mesmo que está morando na Terra. Isso protege sua sanidade mental. Ela e todos os ou­tros nesta cidade são os pacientes da maior experiência mi­gratória e de hipnose que você jamais viu.

— Exatamente, senhor! — exclamou Lustig.

— Tem razão! — falou Hinkston.

— Muito bem — o capitão suspirou.   — Isso nos faz sen­tir melhores. É um pouco mais lógico. Esse negócio de tempo que vai e vem e viajar no tempo embrulha meu estômago. Mas esta hipótese... — o capitão sorriu. — Ora, ora, parece que vamos ser muito populares aqui.

— Seremos? — duvidou Lustig. — Afinal de contas, como os Pilgrims (Pilgrims foi o nome dado aos primeiros colonos puritanos que fun­daram, em 1620, a colônia Plymouth, nos Estados Unidos, fugindo da Inglaterra. Também conhecidos como Pilgrim Fathers. (N.doT.)), essa gente veio para cá a fim de fugir da Terra. Talvez não se sintam muito felizes em nos ver. Talvez ten­tem nos mandar de volta ou matar.

— Temos armas superiores. Agora, esta casa. Vamos lá! Mal haviam cruzado o gramado quando Lustig parou e ficou olhando para o outro lado da cidade, para a rua tran­qüila na tarde sonhadora.

— Senhor — disse ele.

— O que é, Lustig?

— Ah, senhor, senhor, o que estou vendo... — disse Lus­tig, e começou a chorar. Seus dedos enclavinharam-se, come­çaram a tremer, e seu rosto revelava espanto, alegria e incre­dulidade. Dava a impressão de que iria a qualquer momento ficar louco de alegria. Olhou a rua e começou a correr, tro­peçando desajeitadamente, caindo, levantando e continuando a correr. — Olhem, olhem!

— Não o deixem sumir!

O capitão partiu numa carreira desabalada.

Lustig afastava-se rapidamente, gritando. Penetrou num jardim visível na rua sombreada e pulou no alpendre de uma enorme casa verde, com um galo de ferro no cimo.

Estava batendo na porta, berrando e chorando, quando Hinkston e o capitão o alcançaram. Estavam todos ofegantes, exaustos pela corrida no ar rarefeito.

— Vovó! Vovô! — gritou Lustig.

Dois velhinhos apareceram na soleira da porta.

— David!— Suas vozes eram aflautadas e correram para abraçá-lo, bater-lhe nas costas e girar em torno dele. — David, ah, David, há quanto tempo! Como você cresceu, rapaz. Você está enorme, rapaz. Ah, Davizinho, você vai bem?

— Vovó, vovô! — soluçava David Lustig. — Vocês estão ótimos!

Agarrou-os, rodopiou-os, beijou-os, apertou-os, chorou no ombro deles, tornou a agarrá-los, piscando para eles. O sol estava alto no céu, a brisa soprava, a grama era verde e a porta de tela continuava escancarada.

— Entre, rapaz, entre. Acabamos de preparar chá gelado para você. Uma grande quantidade!

— Estou com uns amigos — Lustig virou-se e acenou freneticamente, rindo, para o capitão e Hinkston.   — Capitão, venha.

— Como vão? — falaram os velhos. — Entrem. Os ami­gos de David são nossos amigos também. Não   fiquem   pa­rados!

A sala de visitas da velha casa era fresca, e um relógio de pé tiquetaqueava, sonoro, num canto da sala. Havia enor­mes sofás com almofadas fofas, paredes cheias de estantes de livros e um tapete espesso, de arabescos rosados. Nas mãos, copos de chá gelado, para combater o suor e aplacar as lín­guas sedentas.

— À sua saúde — disse a avó, tocando no copo com os dentes de porcelana.

— Há quanto tempo está morando aqui, vovó? — per­guntou Lustig.

— Desde que morremos — respondeu asperamente.

— Desde o quê?

O Capitão Black pousou seu copo.

— Ah, é claro — Lustig balançou a cabeça. — Eles mor­reram há trinta anos.

— E você fica aí sentado com essa   calma? —   gritou o capitão.

— Ora — a velha piscou com os olhos brilhantes. — Quem é o senhor para discutir o que acontece? Estamos aqui. Afinal de contas, o que é a vida? Quem decide o quê, por quê e onde? O que interessa é que estamos vivos outra vez e não fazemos perguntas. Uma segunda oportunidade   —   deu   um passo vacilante e estendeu o pulso para o capitão. — Experi­mente. — O capitão experimentou.   — Sólido, hem? — per­guntou ela, e o capitão confirmou com a cabeça. — Pois é — disse ela, com ar vitorioso —, para que fazer perguntas?

— Está bem — respondeu o capitão. — O   caso é que nunca pensamos encontrar uma coisa assim em Marte.

— E agora encontrou. E me atrevo a dizer que há muita coisa nos outros planetas que lhe mostrarão os infinitos de­sígnios de Deus.

— Isto aqui é o Céu? — perguntou Hinkston.

— Que bobagem! Claro que não. Isto é um mundo e nos deram uma segunda oportunidade.   Ninguém nos disse por quê. Mas também nunca ninguém nos disse por que estáva­mos na Terra. Aquela outra Terra, quero dizer. De onde o senhor veio.   Quem nos diz que não houve outro antes da­quele?

— Boa pergunta — disse o capitão. Lustig continuava sorrindo para os avós.

— Puxa, como é bom tornar a vê-los. Como é bom.

O capitão levantou-se e   bateu na perna, com   ar   des­cuidado .

— Temos que ir.   Obrigado pelos refrescos.

— Os senhores voltarão, é claro — disseram os velhos. — Esta noite, para jantar?

— Vamos tentar, obrigado. Temos muito trabalho. Meus homens estão à minha espera no foguete e... Calou-se.   Olhou para a porta, espantado.

Lá fora, em pleno dia, ouviam-se vozes, um grito e uma grande saudação.

— O que é isso? — perguntou Hinkston.

— Já vamos saber.

O Capitão John Black saiu bruscamente pela porta de entrada, atravessou correndo o gramado e foi dar na rua da cidadezinha marciana.

Parou, olhando para o foguete. As portinholas estavam abertas e sua tripulação começava a descer, acenando. Jun­tara-se uma multidão e, no meio dela, os tripulantes davam vivas, conversavam, riam, apertavam mãos. Começaram todos a dançar e a fazer evoluções. O foguete ficou vazio e aban­donado.

Em pleno dia, uma banda de música explodiu, tocando uma toada alegre, com tubas e trompetes erguidos para. o ar. Ouviu-se um estrondar de bumbos e os agudos dos pífanos. Menininhas louras pulavam para cima e para baixo. Garotos gritavam “Hurra!”. Homens gordos distribuíam charutos. O prefeito fez um discurso. Então, cada membro da tripulação, com a mãe de um lado, o pai ou a irmã do outro, desceu a rua, entrando nos pequenos chalés ou nas grandes mansões.

— Parem! — gritou o Capitão Black.

As portas fecharam-se com estrépito.

O calor aumentou no transparente céu da primavera e tudo ficou silencioso. A banda dobrou uma esquina, tocan­do, deixando o foguete brilhar, ofuscante, à luz do sol.

— Abandonado! — disse o capitão. — Eles abandonaram a nave, abandonaram! Juro que vou arrancar-lhes a pele! Não cumpriram as ordens!

— Senhor, não seja muito severo com eles — disse Lustig. — Eram velhos parentes e amigos.

— Isso não é desculpa!

— Pense no que sentiram, capitão, vendo aqueles rostos familiares fora da nave!

— Tinham recebido ordens, que diabo!

— Como o senhor teria se sentido, capitão?

— Eu teria cumprido as ordens... O capitão ficou boquiaberto.

Caminhando pela calçada, em plena luz do sol marcia­no, alto, sorridente, de olhos fantasticamente claros e azuis, vinha um rapaz de seus vinte e seis anos.

— John! — gritou o homem e começou a correr.

— Hem?

O Capitão John Black vacilou.

— John, seu velho safado!

O rapaz correu, apertou-lhe a mão e bateu em suas costas.

— É você — disse O Capitão Black.

— Claro.   Você pensou que   fosse quem?

— Edward! — o capitão chamou Lustig e Hinkston, se­gurando a mão do estranho. — Este é meu irmão Edward. Ed, apresento-lhe meus homens,   Lustig e   Hinkston!   Meu irmão!

Continuaram apertando-se as mãos e finalmente abra­çaram-se .

— Ed!

— John, seu vagabundo!

— Você parece em forma, Ed. Mas, Ed, que é isso? Você não mudou com os anos. Você morreu, estou lembrado, com vinte e seis anos, e eu tinha dezenove.   Meu Deus! Depois de tantos anos você aparece. Senhor, que aconteceu?

— Mamãe está esperando — disse Edward Black, sorrindo.

— Mamãe?

— E papai também.

— Papai? — o capitão cambaleou como se   tivesse   sido atingido violentamente. Começou a caminhar com passos rí­gidos, mas sem controle. — Mamãe e papai estão vivos? Onde?

— Na velha casa de Oak Knoll Avenue.

— A velha casa — o capitão arregalou os olhos, extasia­do.   — Ouviram, Lustig, Hinkston?

Hinkston havia desaparecido. Vira sua antiga casa no fim da rua e correu na direção dela. Lustig estava rindo.

— Viu, capitão, o que aconteceu com   o pessoal no fo­guete? Não puderam evitar.

— Vi, vi — o capitão fechou os olhos. — Quando abrir meus olhos, você terá desaparecido — piscou. — Você ainda está aí.   Meu Deus, Ed, você está ótimo!

— Vamos, o almoço está na mesa.   Eu avisei mamãe. Lustig falou:

— Senhor, se precisar de mim, estarei com os meus avós.

— Hem? Ah, sim, está bem, Lustig. Até logo. Edward puxou-o pelo braço.

— A casa é aquela, lembra?

— Se lembro! Aposto que corro mais até a varanda! Correram. As árvores zuniam sobre a cabeça do Capitão Black. O solo rugia sob seus pés. Viu a figura loura de Ed­ward Black correr à sua frente naquele incrível sonho real. Viu a casa vir ao seu encontro, com a porta escancarada.

— Ganhei! — gritou Edward.

— Eu sou velho — disse o capitão, ofegante   —   e você continua moço. Mas naquele tempo você sempre me ganha­va, eu lembro!

Na soleira da porta, mamãe, rosada, gorducha e sorriden­te. Por trás dela, grisalho, papai com o cachimbo na mão.

— Mamãe, papai!

Correu escada acima como uma criança.

Foi uma tarde ótima e prolongada. O almoço arrastou-se e depois sentaram-se na sala de visitas, onde ele falou-lhes a respeito do foguete, sob os acenos de cabeça aprovadores e os sorrisos. A mãe continuava a mesma. O pai cortou com os dentes a ponta de um charuto, como antigamente, acendendo-o pensativamente. Para o jantar, houve um grande peru, e a noite passou rapidamente. Quando os ossos esta­vam limpos nos pratos, o capitão encostou-se no espaldar da cadeira e suspirou satisfeito. A noite cobria as árvores e coloria o céu. As lâmpadas tinham halos rosados na casa aco­lhedora. Em todas as outras casas, na rua inteira, ouvia-se música, pianos tocando, portas batendo.

Mamãe pôs um disco na vitrola, e ela e o Capitão Black dançaram. Estava usando o mesmo perfume, lembrava ele, daquele verão em que ela e o marido haviam morrido no acidente de trem. Ela estava muito real, dançando agilmente aquela música.

— Não é todo dia — falou ela — que temos uma segunda oportunidade de viver.

— Acordarei de manhã — disse o capitão —, estarei no meu foguete no espaço e tudo isto terá desaparecido.

— Não, não pense assim — disse-lhe ela, com suavidade. — Não faça perguntas. Deus é bom para nós. Sejamos felizes.

— Desculpe, mamãe.

O disco terminou com um silvo circular.

— Você está cansado, filho — o pai fez um gesto com o cachimbo. — Seu velho quarto o espera, com a cama de cobre e tudo o mais.

— Mas eu teria que pegar meus homens.

— Por quê?

— Por quê? Ora, sei lá. Acho que não há motivo. Não, nenhum. Estão todos jantando ou dormindo. Uma boa noite de sono não vai lhes fazer mal.

— Boa-noite, meu filho — a mãe beijou-o no   rosto. — Que bom você estar aqui.

— É bom estar em casa.

Deixou o país da fumaça de charuto, de perfume, de li­vros e luzes suaves, e subiu as escadas conversando com Ed­ward. Este abriu uma porta e lá estava a cama de metal ama­relo, as semáforas do tempo de colégio, e um velho casaco de pele de castor, que ele acariciou com mudo afeto.

— Foi um dia cheio — disse o capitão. — Estou zonzo e cansado. Aconteceram coisas demais hoje. Sinto-me como se estivesse sob uma chuva torrencial durante quarenta e oito horas, sem guarda-chuva ou capa. Estou em papado de emo­ção até os ossos.

Edward esticou os lençóis alvos e afofou os travesseiros. Abriu um pouco a janela e o perfume da flor dama-da-noite en­trou. Havia luar e ouvia dança e murmúrios ao longe.

— Então isto é Marte — disse o capitão, despindo-se.

— Sim, é.

Edward começou a tirar a roupa, com movimentos len­tos e preguiçosos, puxando a camisa pela cabeça, revelando ombros dourados e pescoço musculoso.

Apagaram as luzes. Deitaram-se, um ao lado do outro, como antigamente, passadas já quantas décadas? O capitão espreguiçou-se e recebeu o perfume da dama-da-noite, que penetrava pelas rendas da cortina e dominava o ar do quarto. Numa clareira entre as árvores, alguém colocara uma vitrola portátil e ouvia-se agora suavemente a música “Always”.

Lembrou-se de Marilyn.

— Marilyn está aqui?

O irmão, esticado na cama, banhado pelo luar que entrava pela janela, demorou a responder.

— Sim.   Mas está fora da cidade. Voltará   amanhã   de manhã.

O capitão fechou os olhos.

— Queria muito ver Marilyn.

No quarto quadrado, o único ruído era a respiração deles.

— Boa noite, Ed. Uma pausa.

— Boa noite, John.

O capitão estirou-se preguiçosamente, deixando os pen­samentos adejarem. Pela primeira vez, as tensões do dia ha­viam desaparecido. Agora podia pensar logicamente. Tudo havia sido emocionante. A banda tocando, os rostos fami­liares .   Mas agora...

Como? pensou. Como tudo aquilo foi criado? E por que? Com que fim? Pela graça de uma intervenção divina? Então Deus preocupava-se realmente tanto assim com seus filhos? Como, por quê e para quê?

Examinou as várias teorias emitidas por Hinkston e Lustig no calor da tarde. Deixou que uma variedade de novas teorias perpassassem por sua mente como seixos pre­guiçosos, girando e expelindo pálidos raios de luz. Mamãe. Papai. Edward. Marte. Terra.   Marte. Marcianos.

Quem viveu mil anos atrás em Marte? Marcianos? Ou havia sido sempre como hoje?

Marcianos.   Repetiu a palavra devagar, intimamente.

Quase riu alto. Concebera subitamente uma teoria bas­tante ridícula, que lhe deu um calafrio. Claro que não tinha nenhuma importância. Altamente improvável. Boba. Esque­ça-a.   Ridícula.

Mas, pensou, suponhamos... Suponhamos, portanto, que haja marcianos vivendo em Marte, e eles viram nossa nave chegar, nos viram dentro e nos odiaram. Suponhamos agora, só para argumentar, que eles queiram destruir-nos, como in­vasores, indesejáveis, e o queiram fazer da maneira mais in­teligente, a fim de nos apanharem de surpresa. Ora, que arma melhor pode um marciano usar contra terrestres com armas atômicas? A resposta era interessante. Telepatia, hipnotismo, recordações e imaginação.

Suponhamos que estas casas não sejam reais, nem esta cama, mas apenas invenções de minha própria imaginação, consubstanciadas pela telepatia e o hipnotismo dos marcia­nos, pensou o Capitão Black. Suponhamos que essas casas tenham, na realidade, outro formato, um formato marciano, mas, brincando com meus desejos e anseios, esses marcianos fizeram com que elas se assemelhassem à minha velha casa, minha velha cidade, para desfazer minhas suspeitas. Que me­lhor maneira de enganar alguém, que usando seu próprio pai e mãe como isca?

E esta casa tão antiga, datando de 1926, muito anterior ao nascimento de toda a minha tripulação. De uma época em que eu tinha seis anos, na qual havia discos de Harry Lauder, quadros de Maxfield Parrish ainda pendurados nas paredes, cortinas de contas, “Beautiful Ohio” e arquitetura “belle époque”. E se os marcianos tivessem tirado a lembran­ça desta cidade unicamente da minha cabeça? Dizem que as memórias da infância são as mais nítidas. E depois de terem construído a cidade a partir da minha mente, povoaram-na com os seres mais queridos das mentes da tripulação!

E suponhamos que aqueles dois no quarto ao lado, ador­mecidos, não sejam minha mãe nem meu pai. Apenas dois marcianos incrivelmente sagazes, com a capacidade de me manter o tempo todo sob um sonho hipnótico.

E a banda hoje? Que plano mais surpreendente e admi­rável! Primeiro, engana Lustig, depois Hinkston e então reú­ne uma multidão. E todos os tripulantes do foguete vendo mães, tias, tios, namoradas, mortos há dez, vinte anos, natu­ralmente desrespeitando ordens, correndo e abandonando o foguete. Que coisa mais natural? Mais insuspeita, mais sim­ples? Um homem não faz muitas perguntas quando sua mãe é subitamente ressuscitada. Fica feliz demais. E aqui esta­mos, esta noite, em várias casas, em várias camas, sem armas para nos proteger e o foguete abandonado ao luar, vazio. Não seria horrível e monstruoso descobrir que tudo isso faz parte de um plano grande e inteligente dos marcianos para nos dividir, conquistar e, finalmente, matar? A qualquer hora desta noite, talvez meu irmão aqui a meu lado mude de forma, derreta, tome outro aspecto e se transforme numa coisa terrível, num marciano. Seria muito mais simples para ele virar-se na cama e meter uma faca no meu coração. E em todas as outras casas desta rua, uma dúzia de outros irmãos ou pais subitamente se transformarão e, empunhando facas, atacarão os confiantes e adormecidos terrestres...

Suas mãos tremiam sob as cobertas. Seu corpo estava frio. De repente, deixou de ser uma teoria. Subitamente ficou apa­vorado.

Sentou-se na cama e ficou à espreita. A noite estava to­talmente silenciosa. A música parara. O vento sumira. Seu irmão continuava dormindo ao seu lado.

Afastou as cobertas cuidadosamente. Saiu da cama e co­meçou a andar silenciosamente através do quarto, quando ouviu a voz do  irmão:

— Onde você vai?

— O quê?

A voz do irmão soou friamente:

— Eu disse, onde você pretende ir?

— Vou beber água.

— Mas você não está com sede.

— Estou, sim.

— Não, não está.

O Capitão John Black   disparou pelo   quarto.   Gritou Tornou a gritar.

Jamais atingiu a porta.

De manhã, a banda tocou uma marcha fúnebre. De cada casa da rua saíam pequenas procissões solenes, carregando caixões oblongos, e pela rua ensolarada, chorando, avós, mães, irmãs, irmãos, tios, pais caminhavam para o cemitério por trás da igreja, onde havia túmulos recentemente abertos, com novas lápides.   Dezesseis buracos e dezesseis lápides.

O prefeito fez um rápido discurso, com o rosto parecen­do às vezes de um prefeito e às vezes outra coisa.

O casal Black estava lá, com o irmão Edward. Chora­ram, com os rostos se transformando em outra coisa.

Vovô e vovó Lustig estavam lá, soluçando, com os rostos derretendo como cera, tremeluzindo como acontece com as coisas num dia quente.

Os caixões baixaram. Alguém murmurou alguma coisa sobre “as inesperadas e súbitas mortes de dezesseis excelentes pessoas durante a noite...”

A areia bateu sobre os caixões.

A banda, tocando “Columbia, the Gem of the Ocean”, marchou de volta para a cidade e todos fizeram feriado.

 

Junho de 2001

... E a Lua Continua tão Brilhante

Estava tão frio quando eles saíram pela primeira vez do foguete naquela noite, que Spender começou a juntar pedaços de madeira marciana seca para acender uma fogueira. Não falou de comemoração. Apenas reuniu os gravetos, ateou-lhes fogo e olhou-os arder.

No clarão que iluminava o ar rarefeito daquele mar morto de Marte, olhou para trás e viu o foguete que os trouxera, a ele, ao Capitão Wilder, a Cheroke, Hathaway e Sam Parkhill, através do espaço silencioso e negro coalhado de estre­las, para pousar num mundo morto, de sonho.

Jeff Spender esperava pelo barulho. Olhava os outros homens e esperava por eles para pular e gritar. Isso iria acon­tecer assim que o torpor de serem os “primeiros” homens em Marte passasse. Ninguém disse nada, mas muitos deles esta­vam esperando, talvez, que apesar das outras expedições terem fracassado, esta, a Quarta, fosse a bem-sucedida. Não havia nenhuma maldade nisso. Todavia, continuavam pensando naquilo, pensando nas honrarias e na fama, enquanto seus pulmões adaptavam-se à atmosfera rarefeita, que chegava a embriagar, a um movimento mais rápido.

Gibson caminhou para a fogueira recém-acesa e disse:

— Por que não usamos o fogo químico do foguete, em vez dessa madeira?

— Nada disso — respondeu Spender, sem erguer os olhos. Não seria direito, na primeira noite em Marte, utilizar uma coisa estranha, deslocada, brilhante e ainda por cima barulhenta como um aquecedor. Seria uma espécie de blas­fêmia importada. Haveria tempo para isso, mais tarde. Tem­po para atirar latas de leite condensado nos soberbos canais marcianos. Tempo para exemplares do New York Times voarem e fazer cabriolas, roçando o fundo cinzento e solitá­rio dos mares marcianos. Tempo para cascas de bananas e restos de piquenique poluírem as delicadas ruínas das cida­des existentes no velho vale marciano. Havia tempo de sobra para isso. E ele teve um pequeno estremecimento interno ao pensar a respeito.

Abanou a fogueira com a mão e foi como uma oferenda a um gigante morto. Haviam pousado num túmulo imenso. Ali havia perecido uma civilização. O mais singelo respeito exigia que a primeira noite fosse passada em silêncio.

— Isto para mim não é comemoração — Gibbs virou-se para o Capitão Wilder.   — Senhor, acho que podíamos dis­tribuir algumas rações de gim e carne, e nos animarmos um pouco.

O Capitão Wilder olhou para uma cidade morta situada a mais de um quilômetro de distância.

— Estamos todos cansados — disse, com ar ausente, como se a única coisa que prendia sua atenção fosse a cidade e não seus homens. — Amanhã de noite, talvez. Esta noite, devere­mos felicitar-nos por termos atravessado todo esse espaço sem que um   meteoro atingisse nossa couraça e por não termos perdido nenhum homem.

Os homens moviam-se ao redor. Eram vinte, apoiando-se uns nos outros ou ajustando seus cintos. Spender olhou-os. Eles não estavam contentes. Tinham arriscado suas vidas para fazer alguma coisa impressionante. Agora queriam gri­tar e embriagar-se, dar tiros, para mostrar como eram admi­ráveis por terem aberto um buraco no espaço e cavalgado um foguete direto a Marte.

Mas ninguém estava gritando.

O capitão deu uma ordem silenciosa. Um dos homens dirigiu-se à nave e voltou com latas de alimentos, que foram abertas e devoradas sem muito barulho. Depois os homens começaram a conversar. O capitão sentou-se e lembrou-lhes a viagem. Eles já conheciam tudo aquilo, mas era bom ouvir novamente sobre alguma coisa realizada a contento e levada a termo, sem perdas. Não queriam falar sobre a viagem de volta. Alguém tocou no assunto, mas disseram-lhe que se ca­lasse. As colheres brilhavam no duplo luar. A comida estava gostosa e o vinho ainda melhor.

Houve um relâmpago no céu e, um minuto depois, o fo­guete auxiliar pousou pouco além. Spender viu quando a vigia se abriu e Hathaway, o médico-geólogo — todos os ho­mens desempenhavam duas funções, para ganhar espaço na nave — desceu. Caminhou lentamente na direção do capitão.

— E então? — perguntou o Capitão Wilder. Hathaway estendeu o olhar até as cidades distantes, reverberando à luz das estrelas. Engoliu em seco, olhou para o capitão.

— Aquela cidade ali, capitão, está morta e isso há alguns milhares de anos.   Pode-se dizer o mesmo, também, das três cidades nas colinas. Mas aquela quinta, a trezentos quilôme­tros daqui, senhor...

— Que é que tem?

— Havia gente lá na semana passada. Spender ficou em pé.

— Marcianos — disse Hathaway.

— E agora   onde estão?

— Mortos — respondeu Hathaway. — Entrei numa das casas. Pensei que, como nas outras cidades e casas, estivessem mortos há séculos. Meu Deus, havia cadáveres nela. Foi como se pisássemos em montes de folhas secas. Como palitos e fo­lhas de jornal queimados. E recentes.   Aqueles cadáveres es­tavam ali há não mais de dez dias.

— Examinou outras cidades? Viu alguma coisa viva?

— Absolutamente nada.   Por isso fui examinar as outras cidades. Quatro em cinco estavam vazias havia séculos. Não tenho a menor idéia do que aconteceu com os habitantes. Mas a quinta continha a mesma coisa.   Cadáveres. Milhares deles.

— Morreram de quê? Spender deu um passo.

— O senhor não acreditaria.

— Como morreram?

Hathaway respondeu concisamente:

— Catapora.

— Meu Deus, não!

— Sim. Fiz exames. Catapora. Atacou os marcianos de maneira muito diversa da   dos   terrestres. Seu metabolismo reagiu de maneira diferente, acho eu. Queimou-os até fica­rem negros e secou-os, reduzindo-os a lâminas quebradiças. Mas não há dúvida de que se trata de catapora. Assim, tanto a expedição de York, como as dos capitães Williams e Black devem ter chegado a Marte. Só Deus sabe o que aconteceu a eles. Mas nós, pelo menos, sabemos o que eles fizeram, in­voluntariamente, aos marcianos.

— Não detectou nenhuma outra vida?

— Se os marcianos foram espertos, uns poucos podem ter fugido para as montanhas.   Mas não são suficientes, aposto a cabeça, para constituírem um problema nativo.   Este pla­neta está acabado.

Spender voltou-se e foi sentar junto à fogueira, olhando-a, absorto. Catapora, meu Deus, catapora, que coisa! Uma raça constitui-se durante um milhão de anos, apura-se, cons­trói cidades como essas aí, faz tudo o que é possível para se oferecer respeito e beleza, e então morre. Parte dela morre lentamente, no momento devido, antes da nossa época, com dignidade. Mas o resto! O resto dos marcianos morreu de uma doença com nome complicado, majestoso ou terrível? Não, em nome de tudo o que é sagrado, tinha que ser cata­pora, uma doença de crianças, uma doença que não mata nem as crianças da Terra! Não, não está direito, não é justo. É como se os gregos tivessem morrido de caxumba ou os orgu­lhosos romanos de pé de atleta em suas belas colinas! Se pelo menos lhes tivéssemos dado tempo para fazer suas morta­lhas, deitar-se, arranjar-se e pensar em algum outro pretexto para morrer! Não uma coisa estúpida e suja como a cata­pora. Não combina com esta arquitetura, com todo este mundo!

— Está bem, Hathaway, coma alguma coisa

— Obrigado, capitão.

E imediatamente deixaram aquilo de lado. Os homens começaram a falar de si mesmos.

Spender não tirava os olhos deles. A comida continuava no prato que segurava com ambas as mãos. Sentiu o solo es­friar.   As estrelas se   tornaram mais próximas, mais claras.

Quando alguém falava mais alto, o capitão respondia em voz baixa, o que os fazia baixar o tom, imitando-o.

O ar tinha um cheiro bom de limpo e de novo. Spender ficou durante muito tempo gozando esse aroma. Havia nele uma porção de coisas que não podia identificar: flores, ele­mentos químicos, pós, ventos.

— E aquela vez em Nova York, quando eu peguei aquela loura. Como era o nome dela?...   Ginnie!   — gritou Biggs. — Isso mesmo!

Spender retesou-se. Sua mão começou a tremer. Seus olhos mexeram-se sob as pálpebras.

— E Ginnie me disse...   — berrou Biggs. Os homens rugiram.

— Então taquei-lhe um beijo!   — exclamou   Bigs,s,   com uma garrafa na mão.

Spender depositou o prato. Escutou o vento passando em seus ouvidos, fresco e sussurrante. Olhou as casas marcia­nas cor de gelo, além dos mares vazios.

— Que mulher, que mulher! — Biggs esvaziou a garrafa na boca escancarada.   — Melhor que todas as que conheci!

Sentia-se no ar o cheiro do corpo suado de Biggs. Spen­der deixou a fogueira apagar.

— Ei, aviva o fogo, Spender! — disse Biggs olhando-o de soslaio e voltando para a garrafa. — Então uma noite, Ginnie e eu...

Um homem chamado Schoenke apanhou um acordeão e começou a sapatear ao compasso da música, levantando poei­ra em torno dele.

— Uau, estou vivo! — gritou.

— Uau — rugiram os outros

Jogaram fora os pratos vazios. Três dos homens ficaram em linha e sapatearam como coristas, rindo alto. Os outros, batendo palmas, pediram bis. Cheroke tirou a camisa e mostrou o peito nu, rodopiando e suando. O luar refletia-se no seu cabelo curto e no rosto bem barbeado.

No fundo do mar, o vento movimentou tênues vapores e, das montanhas, grandes cabeças de pedra olhavam o fogue­te   prateado e a pequena   fogueira.

O barulho aumentou, mais homens puseram-se a pular, alguém começou a tocar uma gaita e ouviu-se também o som produzido por um pente coberto de papel de seda.   Foram abertas e bebidas mais vinte garrafas. Biggs cambaleava, sacudindo os braços e dirigindo a dança.

— Venha, senhor! — gritou Cheroke para o capitão, exe­cutando uma música chorosa.

O capitão juntou-se aos dançarinos. Ele não queria. Seu rosto estava grave. Spender olhava, pensando: Pobre homem, que noite está passando! Eles não sabem o que estão fazen­do. Deveriam ter sido orientados, antes de virem para Marte, para saberem se comportar, andar e ficar quietos durante uns dias.

— Chega.

O capitão implorou e sentou-se, dizendo estar exausto. Spender olhou para o peito do capitão. Não estava ofegante. E seu rosto também não estava suado.

Acordeão, gaita, vinho, gritos, danças, canções, rodopios, barulho de caçarolas, risos.

Biggs cambaleou até à beira do canal marciano. Levava seis garrafas vazias e deixou-as cair, uma a uma, nas águas azul-escuras do canal. As garrafas afundaram com um ruído oco e abafado.

— Eu te batizo, eu te batizo, eu   te  batizo...   —   disse Biggs, com voz pastosa. — Eu te batizo Canal Biggs, Biggs, Biggs...

Spender pulou por cima da fogueira e se aproximou de Biggs antes que alguém se mexesse. Atingiu Biggs uma vez na boca e outra no ouvido. Biggs tropeçou e esparramou-se nas águas do canal. Depois da queda, Spender ficou esperan­do silencioso que Biggs subisse pela margem de pedra. Nesse instante, os homens seguraram Spender.

— Ei, Spender, que bicho lhe mordeu? Hem? — pergun­taram .

Biggs subiu e ficou parado, pingando. Viu os outros agarrando Spender.

— Muito bem — disse ele e avançou.

— Chega — berrou o Capitão Wilder.

Os homens se afastaram de Spender. Biggs parou e olhou para o capitão.

— Está bem, Biggs, vá mudar de roupa.   Os outros con­tinuem com a festa! Spender, acompanhe-me!

Os homens recomeçaram. Wilder afastou-se um pouco e encarou Spender.

— Que tal explicar o que houve? — disse ele.

Spender olhou para o canal.

— Não sei.   Estava envergonhado.   Por causa de Biggs, de nós e do barulho. Jesus, que espetáculo!

— Foi uma longa jornada. Necessitavam um   pouco de pândega.

— E o respeito, senhor? E o senso de dignidade deles?

— Você está cansado e tem uma maneira diferente de ver as coisas, Spender.   Vai pagar uma multa de cinqüenta dólares.

— Está bem, senhor.   Tive a impressão de que Eles es­tavam nos vendo fazer papel de palhaços.

— Eles?

— Os marcianos, estejam eles mortos ou não.

— Mais provavelmente mortos — respondeu o capitão. — Você acha que Eles sabem que estamos aqui?

— Uma coisa antiga não sabe sempre quando chega uma nova?

— Acho que sim.   Você fala como se acreditasse em es­píritos .

— Creio nas coisas que foram feitas e há provas de terem sido feitas muitas coisas em Marte. Há ruas, casas e imagino que   há   livros,   grandes   canais,   relógios,   cocheiras,   se   não para cavalos, talvez para algum animal doméstico de doze patas, quem sabe? Para onde quer que eu olhe, vejo coisas que foram usadas.   Tocadas e manuseadas durante séculos.

— Se me perguntar se acredito no espírito das coisas usa­das, responderei que sim.   Estão todas aí.   Todas as coisas que tiveram uso.   Todas as montanhas que tiveram nomes. E nunca teremos condições de usá-las sem nos sentirmos des­confortáveis. Seja como for, as montanhas nunca soarão bem para nós.   Poderemos dar-lhes nomes novos, mas   os   velhos nomes estão aí, em algum lugar no tempo, e as montanhas foram moldadas e vistas sob esses nomes. Os nomes que da­remos aos canais, montanhas e cidades escorregarão e cairão como água no dorso de patos. Por mais que nos aproxime­mos de Marte, nunca   chegaremos   a   penetrá-lo. Ficaremos furiosos por causa disso, e sabe o que faremos? Nós o arre­bentaremos, arrancaremos sua pele e o modelaremos à nossa imagem e semelhança.

— Não queremos arruinar Marte — disse o capitão. — É muito grande e bom.

— Acha que não? Nós, terrestres, temos um enorme talento para arruinar coisas grandes   e   belas.   A   única razão pela qual não instalamos barracas de cachorro-quente no templo egípcio de Karnak foi porque estava fora da estrada ou não oferecia grande oportunidade comercial. E o Egito é uma pequena parte da Terra. Mas aqui, tudo isto é antigo e diferente. Vamos nos instalar e começar a emporcalhar tudo. Chamaremos o canal de Rockefeller, a montanha de Rei George e o mar de Dupont. Haverá cidades denomina­das Lincoln, Roosevelt e Coolidge, e esses nomes não terão sentido porque já há nomes adequados para esses locais.

— É sua tarefa, como arqueólogo, descobrir os nomes an­tigos e então os usaremos.

— Uns poucos como nós, contra todos os.   interesses   co­merciais — Spender olhou para as montanhas cor de ferro. — Eles sabem que estamos aqui agora,   para cuspir no seu vinho e imagino como nos odeiam.

O capitão balançou a cabeça.

— Não há ódio aqui — escutou o vento passando.   — A julgar pelo aspecto dessas cidades, eles foram um povo gra­cioso, belo e filosófico. Aceitaram o que lhes aconteceu. Até onde podemos saber, concordaram com um extermínio racial, sem se lançarem no último instante a uma guerra desespera­da que destruísse suas cidades.   Todas as cidades que vimos até   agora   estão   impecavelmente   intactas.   Provavelmente, eles não se importam com nossa presença aqui, como não se importariam com crianças brincando num gramado, sabendo como as crianças são. E, seja como for, talvez tudo isto nos torne melhores.

— Reparou, Spender, na tranqüilidade   habitual dos ho­mens, até que Biggs os forçou a brincar? Pareciam tímidos e assustados.   Olhando para tudo isto,   compreendemos que não é muito animador.   Somos como crianças de calças cur­tas, alegres com nossos foguetes e átomos de brinquedo, ba­rulhentos e vivos. Mas um dia a Terra   se   tornará   o   que Marte é hoje. Isso nos dará juízo.   É uma lição objetiva de civilizações. Aprenderemos com Marte. Fique calmo. Vamos voltar e nos divertir. A multa de cinqüenta dólares continua de pé.

A festa não ia muito bem. O vento continuava a soprar do mar morto. Envolvia os homens e também envolveu o ca­pitão e Spender, quando estes se juntaram ao grupo. O vento atacou a poeira, o foguete reluzente, o acordeão, e penetrou na gaita improvisada. O vento entrou nos olhos dos homens e o vento silvou no ar. Tão subitamente como chegou, morreu.

Mas a festa também morreu.

Os homens ficaram de pé, recortados no céu escuro e ge­lado

— Vamos, pessoal, vamos! — gritou Biggs,   pulando   da nave com uma farda seca, sem olhar uma vez sequer para Spender. Sua voz soava como se estivesse num auditório va­zio. Estava só. — Vamos!

Ninguém se mexeu.

— Vamos, Whitie, toque sua gaita!

Whitie tocou um acorde. Era estranho e desafinado. Whitie sacudiu a umidade da gaita e guardou-a.

— Que diabo de festa é esta? — quis saber Biggs. Alguém tocou o acordeão. Saiu um som de animal mo­ribundo.   Nada mais.

— Está bem.   Eu e minha garrafa Vamos fazer nossa pró­pria festa.

Biggs agachou-se e encostou-se no foguete, bebendo da própria garrafa.

Spender ficou olhando para ele, durante muito tempo, sem se mexer. Depois, seus dedos escorregaram ao longo de sua perna trêmula até à pistola no coldre, bem devagar, alisou e bateu de leve na cobertura de couro.

— Os que quiserem, podem vir comigo até a cidade — disse o capitão. — Deixaremos uma guarda aqui no foguete e iremos armados, por precaução.

Os homens escolheram. Quatorze quiseram ir, inclusive Biggs, risonho, sacudindo a garrafa. Seis ficaram.

— Vamos embora! — gritou Biggs.

O grupo caminhou sob o luar silencioso. Andaram até o limite oposto da fantástica cidade morta, sob a luz das luas gêmeas. Suas sombras, sob elas, eram duplas. Ficaram sem respirar, ou pensaram ter ficado, talvez durante vários minu­tos. Estavam esperando que alguma coisa se movesse na ci­dade morta, uma forma parda que se erguesse, uma forma antiga, ancestral, que surgisse galopando através do fundo vazio do mar, montando um corcel encouraçado, de linhagem impossível, de inacreditável ascendência.

Spender ocupou-se das ruas, com os olhos e a mente. Havia gente se mexendo como vaporosas luzes azuis nas ave­nidas pavimentadas. Ouviam-se leves murmúrios e estranhos animais pisavam apressadamente as areias vermelho-acinzentadas. Em cada janela havia uma pessoa debruçada, acenan­do lentamente, como que submersa em águas intemporais, para alguma forma nas profundidades do espaço, sob torres prateadas pelo luar. Havia música tocada para um ouvido interno, e Spender imaginou a forma de tais instrumentos, para evocar aquela música.   O local estava assombrado.

— Ei! — gritou   Biggs,  em   todo   o   seu   tamanho,   com as mãos em torno da boca aberta.   — Ei,   gente   da   cidade, vocês aí!

— Biggs! — disse o capitão. Biggs calou-se.

Avançaram por uma avenida ladrilhada. Agora todos sussurravam, pois era como entrar numa vasta biblioteca ao ar livre, ou num mausoléu onde o vento morasse e as estre­las brilhassem. O capitão falou em voz baixa. Fez suposi­ções sobre o desaparecimento dos habitantes, como teriam sido, quem foram seus reis e como tinham morrido. E sem­pre sem levantar a voz, especulou sobre como haviam cons­truído aquela cidade para resistir ao tempo e se alguma vez teriam ido à Terra. Seriam eles os ancestrais dos terrestres, aparecidos havia dez mil anos?. Teriam amado e odiado de maneira semelhante e cometido as mesmas bobagens que os terrestres?

Ninguém se moveu. As luas continuavam no céu e os gelavam.   O vento soprou levemente sobre eles.

— Lord Byron — disse Jeff Spender.

— Lord quem?

O capitão virou-se e olhou para ele.

— Lord Byron, poeta do século dezenove.   Escreveu um poema faz muito tempo, que poderia se aplicar a esta cidade e a como os marcianos devem se sentir, se ainda sobrou algum para sentir. Poderia ter sido escrito pelo último poeta mar­ciano .

Os homens continuavam imóveis sobre as próprias som­bras.   O capitão perguntou:

— Como é o poema, Spender?

Spender mudou de posição, estendeu a mão num esforço de lembrança, franziu o cenho silenciosamente durante um momento. Então, ao lembrar-se, sua voz lenta e grave pro­nunciou as palavras, e os homens ouviram atentamente tudo o que ele disse:

 

Assim, nunca mais vaguearemos

Tão tarde na noite,

Embora o coração continue tão apaixonado

E a Lua continue tão brilhante.

 

A cidade continuava cinzenta, ereta e imóvel. Os rostos dos homens unham-se virado para a” luz.

 

Pois a espada gasta a   bainha

E a alma gasta o peito

E o coração tem de parar para respirar

E o próprio amor precisa descansar.

 

Embora a noite seja feita para o amor

E o dia renasça muito rápido,

Nunca mais iremos vaguear

À luz da lua.

 

Sem uma palavra, os terrestres ficaram parados no cen­tro da cidade. A noite estava muito clara. Nenhum som se fazia ouvir a não ser o vento. Pisavam num pátio de ladrilhos que reproduziam formas de antigos animais e gente. Fi­caram   olhando aquelas formas.

Biggs arrotou. Estava com os olhos embaciados. Levou as mãos à boca, tossiu, fechou os olhos, curvou-se e um fluxo espesso correu de sua boca, esguichando sobre os ladrilhos, cobrindo os desenhos. Vomitou novamente. Um penetrante cheiro de vinho invadiu o ar fresco.

Ninguém se mexeu para ajudar Biggs, que continuou vo­mitando .

Spender olhou um instante, depois virou-se e caminhou pelas avenidas da cidade, sozinho ao luar. Não parou ne­nhuma vez para olhar os homens amontoados lá atrás.

Os viajantes voltaram às quatro da madrugada. Deita­ram-se sobre mantas, fecharam os olhos e ficaram respiran­do o ar calmo. O Capitão Wilder sentou-se, alimentando a fogueira com gravetos.

McClure acordou duas horas depois.

— Não dormiu, senhor?

— Estou esperando por Spender.

O capitão esboçou um sorriso.   McClure refletiu

— Sabe, senhor, acho que ele não vai voltar. Não sei por­quê, mas tenho essa impressão. Ele nunca mais voltará.

McClure voltou a adormecer. A fogueira crepitou e apagou.

Passou-se uma semana e Spender continuava ausente. O capitão enviou grupos à sua procura, que voltaram dizendo não saber para onde Spender poderia ter ido. Voltaria quan­do lhe desse na veneta. Era muito cabeçudo. Que fosse para o inferno!

O capitão ficou calado, porém anotou o fato no seu diá­rio de bordo. . .

Naquela manhã, que poderia ser segunda ou terça-feira, ou qualquer dia marciano, Biggs estava sentado na beira do canal, com os pés mergulhados na água fresca e o sol banhando-lhe o rosto.

Um homem apareceu caminhando na beira do canal, pro­jetando sua sombra sobre Biggs, que ergueu os olhos.

— Puxa, um raio me parta! — disse Biggs.

— Sou o último marciano — disse o homem, sacando uma arma.

— Como é que é? — perguntou Biggs.

— Vou matá-lo.

— Corta essa. Que tipo de piada é essa, Spender?

— Levante, vou lhe meter uma bala na barriga.

— Pelo amor de Deus, vira isso para lá.

Spender disparou só uma vez. Biggs ficou sentado na margem do canal apenas um momento mais, antes de curvar-se e cair na água. A arma emitira apenas um ligeiro zumbi­do. O corpo derivou lentamente entre as pequenas ondas do canal. Ouviu-se um som surdo e borbulhante, que desapa­receu   num instante.

Spender meteu a arma no coldre e prosseguiu caminho, sem ruído. O sol inundava Marte. Sentiu-o queimar suas mãos e escorregar pelo rosto rígido. Não se apressou. Cami­nhou como se nada tivesse mudado, exceto a luz do dia. Di­rigiu-se ao foguete, onde os homens estavam tomando a pri­meira refeição, recém preparada sob um abrigo construído por Cookie.

— Aí vem o Solitário — disse alguém.

— Olá, Spender! Há quanto tempo!

Os homens ao redor da mesa olhavam o homem silencio­so, que os encarou sem dizer palavra.

— Você e as infernais ruínas deles — zombou Cookie, me­xendo uma substância escura num pote. — Parecia um ca­chorro num campo de ossos.

— Talvez   — respondeu   Spender.   —   Estive descobrindo coisas.   Que achariam vocês se eu dissesse que encontrei um marciano rondando por aí?

Os quatro homens pousaram os talheres.

— Achou? Onde?

— Não importa. Quero fazer uma pergunta. Como vo­cês se sentiriam, se fossem marcianos, chegasse gente em sua terra e começasse a   devastá-la?

— Sei perfeitamente como me sentiria — disse Cheroke. — Tenho sangue Cherokee. Meu avô me contou muitas coisas sobre o Território de Oklahoma. Se há marcianos por aqui, estou do lado deles.

— E vocês? — perguntou Spender, cautelosamente. Ninguém respondeu.   O silêncio falava por eles. Pegue

o que puder, quem achou é dono, se apresentarem a outra face, bata mais forte, etc. ...

— Pois eu encontrei um marciano — disse Spender. Os homens o olharam de soslaio.

— Lá adiante, numa cidade morta. Não esperava encon­trá-lo. Não estava à procura dele. Não sei o que ele estava fazendo ali. Tinha-me instalado numa cidadezinha do vale havia uma semana, aprendendo a ler os velhos livros e exa­minando suas antigas formas de arte. E um dia vi o tal mar­ciano.   Ficou parado um momento e sumiu. Voltou no dia seguinte.   Fiquei por ali, aprendendo a ler a velha escritura e o marciano voltou, aproximando-se pouco a pouco, até o dia em que aprendi a decifrar a língua marciana: é incrivel­mente simples e há ilustrações para ajudar. O marciano apa­receu na minha frente e disse: “Me dê suas botas”. Dei-lhe e ele continuou: “Dê-me sua farda e o resto do equipamen­to”. Entreguei-lhe tudo e ele acrescentou: “Quero sua arma” e eu a entreguei. Então ele disse: “Agora venha comigo e veja o que vai acontecer”.   O marciano caminhou para o acampa­mento e agora está aqui.

— Não estou vendo nenhum marciano — disse Cheroke.

— Lamento.

Spender sacou a arma, que zumbiu suavemente. A pri­meira bala atingiu o homem que estava do lado esquerdo. A segunda e a terceira atingiram os homens à direita e centro da mesa. Cookie, de frente para a fogueira, virou-se horro­rizado, para receber a quarta bala. Caiu de costas na foguei­ra e ali ficou, com as roupas pegando fogo.

O foguete jazia ao sol. Três homens estavam sentados, para o café da manhã, com as mãos sobre a mesa, imóveis, a comida esfriando à frente deles. Cheroke, ileso, sozinho, olha­va Spender, aturdido e incrédulo.

— Você pode vir comigo — disse Spender. Cheroke não respondeu.

— Você pode ficar do meu lado nisto — insistiu Spen­der, esperando.

Finalmente, Cheroke recuperou a fala.

— Você os matou — disse, forçando-se a olhar os homens em volta.

— Eles mereciam.

— Você está maluco!

— Talvez esteja, mas você pode vir comigo.

— Ir com você para quê? — gritou Cheroke, empalidecendo e com os olhos cheios de lágrimas. — Vá embora, suma!

O rosto de Spender endureceu.

— Entre todos, pensei que você fosse o único a entender.

— Suma!   — gritou Cheroke, procurando sua arma. Spender deu o último tiro.   Cheroke ficou imóvel. Spender cambaleou. Passou a mão no rosto suado. Olhou o foguete e, de repente, começou a tremer. Quase caiu, com a violência da reação física. Seu rosto tinha a expressão de alguém acordando de uma hipnose, de um sonho. Sentou-se um momento e mandou que o tremor fosse embora.

— Pare! Pare! — ordenou ao corpo, trêmulo e agitado em todas as suas fibras. — Pare!

Submeteu o corpo à sua vontade até que o tremor desa­parecesse. Agora, suas mãos repousavam, calmas, sobre os joelhos tranqüilos.

Levantou-se e amarrou às costas, com grande destreza, uma mochila de mantimentos. Sua mão recomeçou a tremer, mas durou pouquíssimo porque ele disse “Não!” com firme­za e o tremor sumiu. Depois, caminhando com passos rígi­dos, foi embora, sozinho, na direção das tórridas colinas ver­melhas .

O sol ardia a pino no céu. Uma hora mais tarde, o ca­pitão desceu do foguete para preparar ovos com presunto. Estava dizendo olá aos quatro homens sentados ali, quando parou e sentiu o leve cheiro de fumaça no ar. Viu o cozi­nheiro caído no chão, sobre a fogueira. Os quatro homens estavam sentados diante da comida, agora fria.

Um momento depois, Parkhill e mais dois desceram. O capitão parou-os, fascinado pelos homens silenciosos e a for­ma pela qual estavam diante da refeição.

— Chamem todos os homens — disse o capitão. Parkhill correu para a beira do canal.

O capitão encostou a mão em Cheroke. Este girou len­tamente e caiu da cadeira. O sol brilhou sobre seus cabelos curtos e eriçados, e seus pomos salientes.

Os homens chegaram.

— Quem está faltando?

— Só Spender,   senhor.   Encontramos   Biggs boiando no canal.

— Spender!

O capitão olhou para as colinas ardendo ao sol. Fez uma careta, mostrando os dentes.

— Maldito seja —   disse, fatigado.   — Por que ele não volta e fala comigo?

— Ele devia falar era comigo — gritou Parkhill, com os olhos luzindo. — Metia-lhe uma bala na cabeça, era o que eu faria, juro por Deus!

O Capitão Wilder apontou para dois tripulantes.

— Tragam pás — disse.

Cavaram os túmulos em meio ao calor. Um vento quente soprou do mar vazio e atirou a poeira no rosto deles, enquan­to o capitão virava as páginas da Bíblia. Quando o capitão fechou o livro, alguém começou a derramar pás de terra sobre os corpos amortalhados.

Voltaram para o foguete, examinaram o bom funciona­mento dos rifles, colocaram pesados pacotes de granadas nas costas e observaram se as armas saíam com facilidade dos res­pectivos coldres. Cada um fora designado para determinado trecho das colinas. O capitão os orientava sem erguer a voz ou mexer com as mãos, que pendiam inertes ao longo do corpo.

— Vamos — disse ele.

Spender viu uma leve nuvem de poeira erguer-se em vá­rios lugares do vale e compreendeu que a perseguição fora organizada e estava em marcha Largou o fino livro prateado que estivera lendo, sentado comodamente numa pedra plana. As páginas do livro, delgadas como gaze, de prata pura, eram pintadas à mão em preto e ouro. Era um livro de filosofia, com pelo menos dez anos, que achara numa das mansões da cidade marciana do vale.   Largou-o de má vontade.

Por um momento pensou: Para quê? Vou ficar aqui len­do, até que cheguem e me matem.

A primeira reação depois de matar os seis homens na­quela manhã fora confusa estupefação, depois náusea e final­mente estranha paz. Mas vendo a poeira elevar-se, causada pelo andar dos caçadores, também a paz começou a se dissi­par e sentiu o ressentimento voltar.

Bebeu um gole de água fresca do cantil. Depois levan­tou-se, espreguiçou-se, bocejou e escutou a maravilhosa tran­qüilidade do vale em torno. Como seria formidável que ele e outros que conhecera na Terra pudessem estar ali, morar ali, sem barulhos nem preocupações.

Pegou o livro com uma das mãos e manteve a arma des­travada na outra. Havia, perto, um regato de águas rápidas, com um leito de seixos brancos e pequenas rochas, onde se despiu e entrou para se banhar. Sem se apressar, vestiu-se e tornou a apanhar a arma.

O tiroteio começou pelas três da tarde, hora em que Spender já estava no cimo das colinas. Eles o seguiram atra­vés de três cidadezinhas marcianas das colinas. Acima das cidadezinhas, havia casas de campo, espalhadas como seixos, onde antigas famílias haviam encontrado um córrego, um trecho verde, e construído uma piscina de ladrilhos, uma bi­blioteca e um pátio com um repuxo. Spender levou meia hora nadando numa das piscinas, que estava cheia de água da chuva, esperando que seus perseguidores o pegassem. Quando estava saindo de dentro da casa, soaram os primeiros tiros. A sete metros atrás dele, alguns azulejos foram atingidos, esfacelando-se. Começou a correr, passando através de diversas encostas, virou-se e com seu primeiro tiro derrubou um dos homens no seu encalço.

Spender sabia que eles queriam formar uma rede, um círculo. Seria cercado, esse cerco apertado e finalmente o pe­gariam.   Era muito estranho que ainda não tivessem lançado as granadas. O Capitão Wilder poderia dar essa ordem sem nenhuma dificuldade.

Mas sou bom demais para ser reduzido a migalhas, pen­sou Spender. É o que o capitão pensa. Ele me quer com um só buraco. Não é estranho? Quer que minha morte seja limpa. Nada sujo. Por quê? Porque ele me compreende. E porque me compreende, está querendo arriscar a vida de ho­mens bons para me dar um tiro limpo na cabeça. Não é isso?

Ouviu-se uma rajada de nove, dez disparos. Pedaços de rocha saltaram à sua volta. Spender atirou calmamente, às vezes ao mesmo tempo em que dava uma lida no livro que carregava.

Com uma arma nas mãos, o capitão correu pelo sol ar­dente. Spender o acompanhou pela mira de sua arma, porém não atirou. Em vez disso, girou o corpo e arrebentou o topo de uma rocha acima da cabeça de Whitie, ouvindo um grito furioso.

Subitamente, o capitão parou. Levava um lenço branco na mão. Disse alguma coisa aos seus homens e começou a subir a elevação, depois de ter largado a arma. Spender es­tava deitado no chão e então se levantou, com a arma pre­parada .

O capitão chegou e sentou-se num pedregulho morno, sem olhar para Spender.

O capitão meteu a mão no bolso da blusa. O dedo de Spender contraiu-se no gatilho da arma.

— Cigarro? — perguntou o capitão.

— Obrigado — respondeu Spender, pegando um.

— Fogo?

— Tenho.

Deram uma ou duas tragadas em silêncio.

— Faz calor — disse o capitão.

— É mesmo.

— Você está bem instalado aqui   em cima?

— Bastante bem.

— Quanto tempo acha que pode agüentar?

— Uns doze homens.

— Por que não nos matou a todos esta manhã, quando teve a oportunidade? Poderia ter conseguido, não sabe?

— Sei.   Senti   náuseas.   Quando alguém quer fazer uma coisa terrível, mente a si mesmo. A gente se diz que todos os outros estão errados.   Ora, assim que comecei a matar, per­cebi que não passavam de tolos e que não devia tê-los morto.

Mas era tarde. Não pude continuar e por isso vim para cá, onde posso mentir a mim mesmo um pouco mais e ficar fu­rioso, começando   tudo outra vez.

— Conseguiu?

— Não totalmente. O bastante.

O capitão ficou olhando o cigarro, meditativo.

— Por que fez isso?

Spender, calmamente, colocou a arma a seus pés.

— Porque vi que o que esses marcianos tinham era algo que nunca tivemos a esperança de ter. Eles pararam onde nós devíamos ter parado há um século. Andei por suas cida­des, conheço essa gente e gostaria de poder chamá-los meus antepassados.

— Aquela é uma linda cidade — disse o capitão, indican­do com a cabeça uma das cidades.

— Não é só isso. Claro, suas cidades são boas. Eles sabiam como mesclar arte e vida. Para os americanos, sempre foram coisas divorciadas. A arte era alguma coisa que se punha no quarto do filho adoidado. A arte era tomada em doses do­minicais, talvez misturada com a religião. Ora, esses marcia­nos têm arte, religião e tudo o mais.

— Você acha que eles conheciam tudo, não é?

— Aposto minha cabeça.

— E por causa disso, começou a matar gente.

— Quando eu era criança, meus pais me levaram para conhecer a Cidade do México. Nunca esquecerei a maneira do meu pai se comportar: aos berros e exagerado. E minha mãe não gostava dos habitantes porque eram morenos e não tomavam muito banho.   E minha irmã se recusava a falar com a maioria deles. Eu era o único que gostava de tudo. E fico imaginando meus pais chegando a Marte e agindo da mesma maneira.

— Tudo o que é diferente, não é bom para o americano comum. Se os encanamentos não forem como os de Chicago, são uma porcaria. Cada vez que penso nisso! Ah, meu Deus, só de pensar nisso!   E depois...   a guerra.   Ouviu os depu­tados falando antes da nossa partida. Se a expedição tivesse êxito, esperavam instalar três laboratórios de pesquisas atô­micas e depósitos de bombas atômicas em Marte.   O que sig­nificaria o fim de Marte, de todas estas coisas magníficas. Como o senhor se sentiria se um marciano vomitasse bebida azeda no chão da Casa Branca?

O capitão ouvia sem interromper. Spender continuou:

— E logo depois surgiriam outros interesses.   Os extratores de minérios e os promotores de turismo. Lembra-se do que aconteceu com o México quando Cortez e seus maravi­lhosos amigos chegaram da Espanha? Uma civilização intei­ra destruída por beatos ávidos e virtuosos. A História jamais esquecerá Cortez.

— Seu   comportamento,   hoje,   também   não   foi   muito ético — observou o capitão.

— Que podia eu fazer? Discutir com os senhores? Sou apenas eu contra todo aquele bando de gananciosos existen­tes na Terra. Virão   atirar suas imundas bombas, atômicas aqui, à procura de bases para novas guerras. Não é bastante que já tenham arruinado um planeta? Querem fazer o mesmo com outro? Sujar a casa alheia? Fanfarrões estúpidos. Quando cheguei aqui, senti não só estar livre da sua   falsa   cultura, como também da sua ética e dos seus costumes. Estou fora dos seus padrões de referência, pensei. Só me resta matá-los e viver minha própria vida.

— Mas não deu certo — falou o capitão.

— Não. Depois do quinto assassinato, na mesa do café, descobri que eu não era um homem totalmente novo, com­pletamente marciano. Não podia me descartar tão facilmen­te de tudo o que aprendi na Terra. Mas agora estou me sen­tindo firme outra vez. Vou matar vocês todos. Isso atrasará a próxima viagem de foguete em, pelo menos, cinco anos. Não há outro foguete em condições, atualmente, a não ser este. Na Terra, ficarão esperando um   ano,   dois,   e então, quando não tiverem notícias nossas, terão muito medo   de construir outro foguete. Demorarão o dobro do tempo, farão centenas de experiências com modelos,   para se garantirem contra outro fracasso.

— Tem razão.

— Por outro lado, se o senhor voltar com um bom rela­tório, acelerarão a invasão de Marte. Com sorte, viverei uns sessenta anos.   Serei encontrado pelas   expedições   que aqui chegarem. Virá uma nave de cada vez, uma por ano, e nunca mais de vinte homens na tripulação. Depois de estabelecer contato com eles e explicar-lhes que nosso foguete explodiu — tenho a intenção de fazer isso ainda esta semana, quando terminar meu trabalho — eu os matarei a todos. Marte con­tinuará intocado durante outro meio século. Talvez os terrestres, enfim, abandonem seu projeto. Lembra como acaba­ram abandonando a idéia de construir zepelins que sempre se incendiavam?

— Você planejou tudo — admitiu o capitão.

— Isso mesmo.

— Todavia somos mais numerosos.   Você estará cercado dentro de uma hora. Você estará morto dentro de uma hora.

— Descobri algumas passagens subterrâneas e um lugar para morar, que vocês nunca descobrirão. Esconder-me-ei nele durante algumas semanas. Até   vocês   se   distraírem. Então sairei e pegarei vocês, um por um.

— Fale-me desta sua civilização aqui — disse o capitão, com um gesto de cabeça e um movimento de mão para as cidades na montanha.

— Eles aprenderam a conviver com a natureza e a com­preendiam. Não se esforçaram para ser só homens e não ani­mais. Foi o erro que cometemos quando Darwin apareceu. Nós o recebemos com os braços abertos, bem como a Huxley e Freud.   Então descobrimos que Darwin e nossas religiões não se misturavam.   Ou, pelo menos, pensávamos que não. Éramos   uns  tolos.   Queríamos   sacudir   Darwin,   Huxley e Freud. Eram inamovíveis.   Por isso, como idiotas, tentamos derrubar a religião.

— “Conseguimos lindamente. Perdemos nossa fé e o sen­tido da vida. Se a arte não é mais que sublimação do desejo frustrado, se a religião não passa de auto-ilusão, para que a vida? A fé sempre nos deu respostas para   todas   as coisas. Mas tudo se perdeu com Freud e Darwin.   Fomos e   ainda somos um povo extraviado”.

— E os marcianos são um povo que se encontrou? — per­guntou o capitão.

— Sim.   Aprenderam a combinar ciência   e religião, fa­zendo-as agir lado a lado, sem se contradizerem, uma enri­quecendo a outra.

— Uma solução ideal.

— Foi.   Gostaria de mostrar-lhe como os   marcianos   fi­zeram .

— Meus homens estão esperando.

— Bastará meia hora. Avise-os, capitão.

O capitão hesitou, depois levantou-se e gritou uma ordem aos homens na falda da colina.

Spender levou-o até uma pequena aldeia marciana, cons­truída inteiramente de mármore frio e perfeito. Havia gran­des frisos com belos animais, feras de patas brancas, símbo­los solares de pernas amarelas, estátuas de criaturas semelhan­tes a touros, de homens, de mulheres e cães enormes bela­mente cinzelados.

— Eis aqui sua resposta, capitão.

— Não estou entendendo.

— Os marcianos descobriram o segredo da vida entre os animais. O animal não discute a vida. Vive. Sua verdadeira razão de viver è a vida. Goza e desfruta a vida. Veja... a repetição da estatuária, dos símbolos animais.

— Têm um ar pagão.

— Pelo contrário, são símbolos divinos, símbolos de vida. Também em Marte o homem tornou-se homem demais e não suficientemente animal.   E   os   marcianos   perceberam   que, para sobreviver, tinham que desistir   para sempre de fazer aquela pergunta: para que viver? A vida é a própria respos­ta. A vida é a propagação de mais vida e de viver o melhor possível.   Os marcianos   compreenderam   que   perguntavam “Para que viver?” no momento culminante de um período de guerra e desespero, quando não havia resposta.   Porém, uma vez acalmada, tranqüilizada a civilização, as guerras ter­minadas, a pergunta tornava-se sem sentido. A vida tornava-se boa e as discussões eram inúteis.

— Isso dá a impressão de que os marcianos eram muito ingênuos.

— Só quando lhes convinha. Desistiram de destruir tudo, de humilhar tudo. Fundiram religião, arte e ciência porque, ao fundo, a ciência não passa da investigação de um milagre que nunca podemos explicar, e a arte é a interpretação desse milagre. Nunca permitiram que a ciência esmagasse a esté­tica e a beleza.   Trata-se simplesmente de uma questão de grau. Um terrestre pensa: “Nesse quadro   não   existe   real­mente cor. Um cientista pode provar que a cor não passa da maneira como as células são dispostas   num   certo   material, para refletir a luz. Portanto, a cor não é, na verdade, uma parte real de coisas que pareço ver”. Um marciano, mais in­teligente, diria: “Este quadro é lindo.   Saiu da   mão e   da mente de um homem inspirado. O tema e a cor expressam a vida. É um bom trabalho”.

Houve uma pausa. Sentado ao sol da tarde, o capitão olhava com curiosidade as coisas em volta, naquela silenciosa e fresca cidadezinha.

— Eu gostaria de morar aqui — disse ele.

— Poderá, se quiser.

— Está me convidando?

— Por acaso algum dos membros da tripulação entende­ria realmente tudo isto? São cínicos profissionais e para eles é tarde demais. Por que deseja voltar com eles? Para viver com os Jones? Para comprar um giroscópio, como Smith fez? Para ouvir música lendo um livro, em vez de empregar suas glândulas? Num pequeno pátio, logo ali, há um rolo de mú­sica marciana, com pelo menos cinqüenta mil anos de idade. Ainda toca. Música jamais ouvida pelo senhor em sua vida. Pode ouvi-la.   Há livros. Já os li. O senhor pode sentar e fazer o mesmo.

— Spender, tudo isso parece maravilhoso.

— E o senhor não vai ficar?

— Não. Apesar disso, obrigado.

— E certamente o senhor não vai me   deixar   em   paz. Terei que matar todos.

— Não seja otimista.

— Encontrei um motivo para lutar e viver, o   que   me torna um assassino mais hábil.   Encontrei agora a substân­cia de uma religião. É como aprender a respirar novamente. É como ficar ao sol, bronzeando-se, deixando que ele traba­lhe seu corpo. É como ouvir música e ler um livro. O que oferece a sua civilização?

O capitão mudou de posição.   Sacudiu a cabeça.

— Lamento o que está acontecendo.   Lamento, mesmo.

— Eu também. Acho melhor levá-lo de volta agora, para que o senhor possa iniciar o ataque.

— Acho que sim.

— Capitão, não quero matá-lo.   Quando tudo acabar» o senhor continuará vivo.

— Como?

— Quando comecei tudo, decidi que o senhor permane­ceria ileso.

— Mas...

— Vou livrá-lo dos outros.   Quando eles estiverem mor­tos, talvez o senhor mude de opinião.

— Não — respondeu o capitão. — Há muito sangue ter­restre em mim.   Continuarei a persegui-lo.

— Mesmo tendo a oportunidade de ficar aqui?

— É curioso, mas mesmo assim. Não sei por quê. Nunca procurei saber. Pronto, estamos de volta — tinham retorna­do ao lugar de encontro. — Quer vir espontaneamente, Spen­der? É minha última proposta.

— Não, obrigado — Spender estendeu a mão. — Um úl­timo pedido. Se o senhor ganhar, faça-me um último favor. Veja o que pode fazer para evitar, pelo menos durante cin­qüenta anos, que este planeta   seja   destruído,   dando   uma oportunidade aos arqueólogos de fazerem alguma coisa, sim?

— Prometo.

— E por fim... se servir para alguma coisa, pense em mim como um cara muito louco, que se tornou furioso num dia de verão e nunca mais tomou jeito. Ficará um pouco mais fácil para o senhor.

— Vou pensar nisso. Adeus, Spender.   Felicidades.

— O senhor é uma pessoa estranha — comentou Spen­der, enquanto o capitão descia a trilha de volta, com o vento quente soprando ao redor dele.

O capitão juntou-se aos seus homens empoeirados, sen­tindo-se meio perdido. Mantinha os olhos semi-cerrados e res­pirava com dificuldade.

— Há algo para beber? — perguntou. Alguém entregou-lhe   uma   garrafa fresca.   —   Obrigado.   Bebeu.   Enxugou a boca. — Muito bem — continuou. — Tomem cuidado. Não temos pressa e não quero perder mais ninguém.   Precisamos matá-lo, pois ele não quer descer. Um só tiro, se for possí­vel. Não errem. Acabem com isso.

— Vou arrebentar a cabeça dele — disse Sam Parkhill.

— Não, acerte no peito — determinou o capitão. Recordou o rosto claro, forte e determinado de Spender.

— Naquele cérebro nojento — insistiu Parkhill.

O capitão estendeu-lhe a garrafa, com mão trêmula

— Ouviu minha ordem. No peito. Parkhill resmungou.

— Vamos — disse o capitão.

Tornaram a se espalhar, andando, correndo e tornando a andar, pelos lugares das colinas, onde haveria possíveis grutas frescas, cheirando a musgo e lugares abertos cheirando a sol e pedra. Odeio a astúcia, pensou o capitão, sobretudo quando não me sinto realmente astuto e nem quero sê-lo. Ficar espionando, fazendo planos e sentindo orgulho disso. Detesto essa sensação de estar cumprindo um dever, quando não tenho a certeza disso. Quem somos, afinal de contas? A maioria? É essa a resposta? A maioria tem sempre razão, não é verdade? Sempre, sempre. Nunca errou nem na mínima coisa, não é? Jamais esteve errada em dez milhões de anos? Ficou pensando: o que é essa maioria e quem a compõe? O que pensa, como tomou esse caminho? Mudará algum dia? E como, diabo, me integrei nessa maioria podre? Não me sinto à vontade. É claustrofobia, medo das multidões ou bom senso? Um homem está certo só porque todo o mundo diz que ele está? Vamos deixar isso para lá. Vamos nos arrastar por aí, ficar excitados e puxar o gatilho. Ali e lá!

Os homens corriam e mergulhavam, corriam e se agachavam nas sombras, com os dentes à mostra, ofegantes, porque o ar era rarefeito e não por estarem correndo. O ar era tênue e tinham que descansar durante cinco minutos, de tempos em tempos, arfando e vendo pontos negros nos olhos, devorando o ar escasso e querendo mais, apertando os olhos e, por fim, erguendo-se, levantando as armas para abrir buracos de som e calor no ralo ar de verão.

Spender, continuando no mesmo lugar, atirava só de vez em quando.

— Vou arrebentar aquele cérebro infernal! — gritou Parkhill, subindo a colina, correndo.

O capitão apontou a arma para Sam Parkhill. Baixou-a e olhou-a horrorizado.

— O que é que eu ia fazer? — perguntou-se, olhando a mão, inerte, da qual pendia a arma.

Quase dera um tiro nas costas de Parkhill.

— Meu Deus.

Viu Parkhill continuar a correr e depois atirar-se ao chão, salvo.

Spender estava cercado por uma rede móvel e forte de homens. Spender estava deitado no cimo da colina, por trás de duas rochas, com os dentes à mostra, exausto pela atmosfera rarefeita e com enormes manchas de suor nas axilas. O capi­tão viu os dois rochedos. Havia entre eles um intervalo de alguns centímetros, possibilitando atingir o peito de Spender.

— Você, aí! — gritou Parkhill. — Tenho uma bala para a sua cabeça!

O Capitão Wilder esperava. Vamos, Spender, pensou. Fuja, como disse que faria. Só lhe restam alguns minutos. Fuja e volte depois. Vamos. Você disse que faria. Vá para os túneis que disse ter descoberto, fique morando lá durante meses e anos, lendo seus ótimos livros e banhando-se nos seus poços sagrados. Depressa, rapaz, antes que seja tarde demais.

Spender não saiu de sua posição.

— Que é que há com ele? — perguntou-se o capitão.

O capitão pegou sua arma. Observou os homens que cor­riam, escondendo-se. Olhou para as torres da imaculada aldeia marciana, semelhantes a peças de xadrez nitidamente recor­tadas no céu da tarde. Viu as rochas e o intervalo entre elas, por onde aparecia o peito de Spender.

Parkhill havia-se lançado ao ataque, gritando furiosa­mente .

— Não, Parkhill — disse o capitão. — Não posso deixá-lo fazer isso. Nem os outros. Não, nenhum de vocês. Só eu.

Ergueu a arma e apontou-a.

Ficarei limpo depois disto?, pensou. Está certo que seja eu a fazer tal coisa? Sim, está. Sei o que estou fazendo, por­que estou, e está certo porque acho que sou uma pessoa justa. Espero e rezo para continuar vivendo, depois disto.

Balançou a cabeça para Spender.

— Fuja — implorou, num enorme suspiro que ninguém ouviu. — Dou-lhe trinta segundos mais para que fuja. Trinta segundos!

Os ponteiros do seu relógio de pulso moviam-se, sob o olhar do capitão. Os homens continuavam avançando. Spender não se mexeu. O relógio tiquetaqueou durante muito tempo, muito alto para os ouvidos do capitão.

— Vamos, Spender, vamos. Fuja! Os trinta segundos passaram.

A arma foi apontada. O capitão respirou fundo.

— Spender — disse, expelindo o ar. Puxou o gatilho.

Uma leve nuvem de poeira ergueu-se à luz do sol. O eco do estampido morreu.

O capitão ergueu-se e gritou para a tripulação:

— Ele está morto.

Os outros homens não podiam acreditar. Seus ângulos de visão impediam que vissem aquela fissura nos rochedos. Vi­ram o capitão correr colina acima, sozinho, e pensaram que ele era muito corajoso ou maluco.

A tripulação seguiu-lhe as pegadas alguns minutos mais tarde.

Rodearam o cadáver e alguém disse:

— No peito?

— No peito — repetiu o capitão, olhando para baixo. Viu como as rochas mudaram de cor, sob o corpo de Spender. — Não entendo por que ele esperou, por que não fugiu, como havia planejado. Não compreendo por que ficou e se deixou matar.

— Quem sabe? — comentou alguém.

Spender estava imóvel, no chão, com uma das mãos aper­tando a arma e a outra o livro prateado, que brilhava ao sol.

Teria sido por mim?, pensou o capitão. Teria sido porque recusei ceder? Spender odiaria a idéia de me matar? Serei diferente dos demais membros da tripulação? Será essa a razão? Ele pensou que podia confiar em mim? Há alguma outra resposta?

Nenhuma. Agachou-se junto ao corpo.

Tenho que ir até o fim, pensou. Não posso abandoná-lo agora. Se ele imaginou que havia alguma coisa em mim que se parecia com ele e não pôde me matar por causa disso, vai ser duro para mim daqui por diante! Claro, foi isso. Agora sou completamente Spender, mas penso antes de atirar. Não atiro, não mato, absolutamente. Colaboro com as pessoas. E ele não pôde me matar porque eu sou ele, sob forma ligeira­mente diferente.

O capitão sentiu o sol batendo em sua nuca. Ouviu-se dizendo:

— Se pelo menos tivesse vindo a mim e conversado, antes de matar alguém, podíamos ter encontrado uma solução.

— Solução? — perguntou Parkhill. — Que solução podía­mos ter encontrado com gente como ele?

Havia como que uma sinfonia de calor no solo, que surgia das rochas e caía do céu azul.

— Acho que você tem razão — respondeu o capitão. — Nunca poderíamos nos entender. Spender e eu, talvez. Mas Spender, você e os outros, não, nunca. Ele está melhor agora. Passe-me o cantil.

Foi o capitão quem sugeriu o sarcófago vazio para Spender. Tinham descoberto um velho cemitério marciano. Colocaram Spender num caixão de prata, com velas e vinhos que tinham dez mil anos de idade, com as mãos cruzadas no peito. A última visão que tiveram dele foi seu rosto tranqüilo.

Demoraram ainda um pouco na velha cripta.

— Acho que faria bem a vocês pensar em Spender de vez em quando — disse o capitão.

Saíram da cripta e fecharam a porta de mármore.

Na tarde seguinte, Parkhill praticou um pouco de tiro ao alvo numa das cidades mortas, destruindo as janelas de cristal e arrebentando o cimo das frágeis torres. O capitão pegou Parkhill e arrebentou-lhe os dentes.

 

Agosto de 2001

Os Colonizadores

Os homens da Terra foram para Marte.

Foram porque tinham medo ou não, eram felizes ou infe­lizes, porque se sentiam como os Peregrinos ou não se sentiam como os Peregrinos. Cada homem tinha seu motivo. Estavam abandonando más esposas, trabalhos ruins ou cidades odiosas. Chegaram para procurar algo, abandonar algo, obter algo, cavar algo, enterrar algo ou livrar-se de algo. Vinham alimen­tando sonhos modestos, grandes sonhos ou sonho nenhum. Mas o dedo governamental apontava de cartazes em quatro cores, em várias cidades: HÁ TRABALHO PARA VOCÊ NO CÉU: VISITE MARTE! e os homens precipitaram-se. A prin­cípio uns poucos, umas dezenas, pois a maioria sentia-se muito enferma, mesmo antes do foguete partir. E essa doença era denominada Solidão, porque quando eles viam sua cidade natal reduzida ao tamanho de um punho, depois de um limão, finalmente da cabeça de um alfinete, acabando por desapa­recer na esteira de fogo, sentiam-se como se nunca tivessem nascido, nunca tivesse existido a cidade, como se estivessem em lugar algum, rodeados de espaço, sem nada familiar, apenas outros homens desconhecidos. E quando os estados de Illinois, Iowa, Missouri ou Montana desapareciam num oceano de nuvens e, mais ainda, quando os Estados Unidos encolhiam até o tamanho de uma ilha em meio à bruma, e o próprio planeta Terra tornava-se uma bola de baseball suja, atirada longe, então todos sentiam-se solitários, vagando nos prados do espaço, numa viagem para um lugar inimaginável.

Por isso, não era de estranhar que os primeiros homens fossem poucos. O número cresceu constantemente em propor­ção aos terrestres já em Marte. Os números eram alentadores. Mas os primeiros SOLITÁRIOS só podiam contar com eles mesmos...

 

Dezembro   de   2001

A Manhã Verde

Quando o sol se pôs, o homem sentou-se à beira da trilha e preparou um jantar frugal. Ficou ouvindo o crepitar da fogueira enquanto levava o alimento à boca e mastigava pensativamente. Não havia sido um dia diferente dos outros trinta, com muitos buracos cavados cuidadosamente ao alvorecer, se­meados e regados com a água dos canais reluzentes. Agora, sentindo um enorme cansaço no corpo delgado, estirou-se e ficou olhando o céu colorido escurecer.

Chamava-se Benjamin Driscoll, e tinha trinta e um anos. A coisa que ele mais queria era que Marte ficasse verde, com árvores altas e folhagens diversas, produzindo ar, mais ar, que aumentaria a cada estação. Árvores para refrescar as ci­dades no verão escaldante, árvores para constituírem uma barreira para os ventos do inverno. Havia tantas coisas que uma árvore podia fazer: dar cor, fornecer sombra, frutos, ou tornar-se um lugar de recreio para as crianças, um universo aéreo para ser escalado e nele se pendurar. Uma arquitetura de alimentação e de prazer, isso é que uma árvore é. Mas, acima de tudo, todas as árvores deveriam fornecer ar fresco para os pulmões, um suave murmúrio para os ouvidos quando se está deitado num leito alvo durante a noite e se é embalado pelo sono até dormir.

Ficou sentindo a terra se recolher, esperando pelo alvore­cer, pelas chuvas que ainda não haviam chegado. Com o ouvido colado no solo, pôde ouvir os passos longínquos dos anos, imaginando como as sementes que ele havia plantado naquele dia brotariam, verdes, em direção ao céu, desdobrando-se em ramos até Marte ser um bosque vespertino, Marte ser um pomar refulgente.

De manhã cedo, quando o sol nascente aparecesse lenta­mente sobre as colinas ondulantes, ele se levantaria e prepa­raria uma refeição rápida. Depois dispersaria as cinzas da fo­gueira, e se poria a caminho, com as bolsas a tiracolo, exami­nando, cavando, semeando ou plantando mudas, socando levemente o solo, regando, caminhando, assoviando e olhando o céu claro tornar-se mais brilhante à medida em que a tarde quente avançava.

— Você precisa de ar. — disse para sua fogueira noturna. A fogueira era uma rubra e vivida companheira, que crepitou em resposta, que dormia ao lado dele, com olhos verme­lhos sonolentos, aquecendo-o na noite fria.

— Todos precisamos de ar. A atmosfera em Marte é muito tênue. A gente se cansa depressa. Ê como morar no alto dos Andes, na América do Sul. A gente inala e não acha nada. Não satisfaz.

Apalpou a caixa torácica. Aumentara muito naqueles trin­ta dias. Para obter mais ar, teria que ampliar seus pulmões. Ou plantar mais árvores.

— É para isso que estou aqui — continuou. O fogo crepitou. — Ouvi na escola a estória de Johnny Appleseed (Semente da maçã. (N. do T.)), que atravessou a América plantando macieiras. Ora, estou fazen­do mais; Estou plantando carvalhos, olmos, bordos, tudo quan­to é espécie de árvores, faias, cedros e castanheiros. Em vez de produzir apenas frutos para o estômago, estou fabricando ar para os pulmões. Quando essas árvores estiverem grandes um dia, vão produzir oxigênio à beça!

Recordou o dia de sua chegada a Marte. Como milhares de outros, olhou para fora, para uma calma manhã e pensou: Como me darei aqui? Que serei? Haverá trabalho para mim?

E desmaiou.

Alguém colocou um frasco de amônia sob seu nariz e, tossindo, ele voltou a si.

— Já vai ficar bom — disse o médico.

— O que é que houve?

— O ar é muito rarefeito. Alguns se sentem mal. Acho que você terá que voltar para a Terra.

— Não!   — Sentou-se e quase imediatamente seus   olhos turvaram-se e Marte começou a girar sob seus pés. Suas nari­nas dilataram-se e ele forçou os pulmões a beber fundo no vazio. — Ficarei bom. Tenho que ficar aqui!

Deixaram-no deitado, ofegante, sacudindo-se desordena­damente como um peixe fora da água. E ele pensava: ar, ar, ar. Vão me mandar embora por causa do ar. Virou a cabeça para olhar os campos e as colinas marcianas. Quando seus olhos entraram em foco, a primeira coisa que viu foi que não havia árvores, nenhuma árvore, qualquer que fosse o lado para onde olhasse. O solo estava nu, um solo de greda negra, mas sem nada nele, nem mesmo capim. Ar, pensou, aquele troço rarefeito sibilando em suas narinas. Ar, ar. E no topo das colinas ou em suas faldas, ou mesmo nos regatos, nem uma árvore, nem uma solitária folha de grama. Claro! Sentiu a resposta vir, não da sua mente, mas dos seus pulmões e da sua garganta. E esse pensamento foi como um súbito sabor de oxigênio puro inundando-o. Árvores e capim. Olhou para as mãos e virou-as para cima. Plantaria árvores e capim. Seria esse o seu trabalho, lutar contra tudo e qualquer coisa que pudesse se opor à sua permanência ali. Travaria uma guerra horticultural particular com Marte. Ali estava o velho solo, e as plantas que pele existiram morreram de velhice. Mas, e se fossem introduzidas novas formas? Árvores terrestres, gran­des mimosas, salgueiros-chorões, magnólias e eucaliptos formi­dáveis. Que aconteceria? Não tinha idéia da riqueza mineral que se ocultava no solo, invisível porque os velhos fetos, flores, arbustos e árvores haviam morrido de exaustão.

— Quero levantar! — gritou. — Preciso ver o Coordenador! Ele e o coordenador conversaram a manhã inteira sobre coisas que cresciam e ficavam verdes. Passariam meses, talvez anos, antes do plantio ser organizado. Até agora, os alimen­tos congelados eram enviados da Terra em câmaras frigorífi­cas volantes. Alguns escassos jardins comunitários verdejavam em instalações hidropônicas.

— Entretanto, o trabalho será seu — disse o coordenador. — Lhe daremos todas as sementes que pudermos e um pequeno equipamento agrícola. O espaço nos foguetes está, agora, pre­cioso demais. Temo que, uma vez que as primeiras cidades são comunidades mineiras, não haverá muita simpatia por sua plantação de árvores...

— Mas o senhor me permite fazer?

Permitiram-lhe. Com uma simples motocicleta, cujo de­pósito estava repleto de sementes e mudas, instalou-se num vale deserto.

Já haviam passado trinta dias e não olhou para trás uma só vez, pois isso significaria desanimar. O tempo estava exces­sivamente seco. Era pouco provável que alguma semente ti­vesse germinado. Talvez todo o seu esforço, essas quatro sema­nas cavando, curvado, estivesse perdido. Olhava firme para a frente, continuando a percorrer aquele extenso vale plano sob o sol, longe da Primeira Cidade, esperando as chuvas chegarem.

Colocou a manta sobre os ombros e reparou que as nuvens se acumulavam sobre as montanhas áridas. O tempo em Marte era imprevisível. Sentiu as escaldantes colinas mergulharem tremendo na noite gelada, e pensou no solo rico e escuro, um solo tão escuro e lustroso que quase fervilhava e se movia no oco da mão, um solo fértil onde poderiam crescer gigan­tescos pés de feijão, de onde cairiam gigantes que arrebenta­riam os ossos na queda.

A fogueira tremulou sob as cinzas sonolentas. O distante rodar de uma carroça fez o ar estremecer. Trovão. Um súbito cheiro de água. Esta noite, pensou e estendeu a mão para sentir a chuva. Esta noite.

Foi acordado por uma leve batida na testa.

A água escorria-lhe pelo nariz, indo até a boca. Outra gota caiu-lhe nos olhos, turvando-os. Outra espirrou no seu queixo.

A chuva.

Pura, suave e leve, tombava do céu como um elixir espe­cial, sabendo a estrelas, ar e coisas fascinantes, trazendo com ela uma poeira acre, deslizando em sua língua como um xerez de alta qualidade.

Chuva.

 

Sentou-se. Deixou a manta escorregar dos ombros, e sua camisa azul, de algodão, ficou molhada pela chuva que agora caía mais forte. A fogueira começou a expelir uma fumaça furiosa, como se um animal invisível dançasse sobre ela, esmagando-a. A chuva caía. A grande abóbada escura do céu rachou em seis relâmpagos azuis, como um maravilhoso domo esti­lhaçado de cristal, e desabou. Ele viu dez bilhões de cristais de chuva pairarem o suficiente para serem fotografados pela des­carga elétrica. Depois, escuridão e água.

Estava molhado até os ossos, mas continuou com o rosto erguido, permitindo que a água batesse em suas pálpebras. E ria. Bateu palmas, levantou-se, deu uma volta em torno do seu pequeno acampamento. Era uma hora da manhã.

Choveu duas horas sem parar e depois cessou. As estrelas reapareceram, recém lavadas e mais brilhantes do que nunca.

Vestindo roupas secas, que retirou do seu saco de celofane, o Senhor Benjamin Driscoll deitou e adormeceu contente.

O sol apareceu lentamente entre as colinas. Estendeu-se pacificamente sobre o solo e acordou com o Senhor Driscoll.

Ficou um instante imóvel, antes de levantar. Trabalhara e esperara durante um longo mês calorento e agora, de pé, fi­nalmente virou-se e olhou na direção de onde viera.

Era uma manhã verde.

Até onde alcançava com o olhar, as árvores erguiam firmes para o céu. Não uma, duas ou uma dezena, mas as milhares que plantara, tanto em sementes como em mudas. E não eram arvorezinhas, não, não eram rebentos nem brotos, mas árvores grandes, árvores enormes, árvores tão grandes quanto dez ho­mens, verdes, verdes, gigantescas, roliças e cheias, árvores tre­mulando suas folhas metálicas, árvores sussurrando, árvores formando uma aléa, contra as colinas, limoeiros, limeiras, sequóias, carvalhos, olmos, faias, cerejeiras, bordos, freixos, la­ranjeiras, eucaliptos, macieiras, estimuladas pela chuva torrencial, alimentadas por um solo alienígena e mágico que, ante seus olhos, deitavam novos ramos, explodiam em novos botões.

— Impossível! — gritou o Senhor Benjamin Driscoll.

Mas o vale e a manhã eram verdes.

E o ar!

De todos os lados, como uma corrente de água, como um rio de montanha, chegava o novo ar, o oxigênio borbulhando das árvores verdes. Podia-se vê-lo mover-se no espaço como ondas de cristal. Oxigênio fresco, puro, verde, oxigênio frio, transformando o vale num delta de rio. Um momento depois, as portas das casas da cidade foram escancaradas, as pessoas podiam correr dentro do novo milagre de oxigênio, cheirando-o, respirando-o a plenos pulmões, com os rostos rosados por ele, os narizes com as pontas frias, os pulmões revigorados, os corações saltando e corpos fatigados dançando animados. O Senhor Benjamin Driscoll aspirou profundamente o ar verde e úmido, e desmaiou.

Antes que voltasse a si, cinco mil novas árvores ergueram-se, eretas, ao sol dourado.

 

Fevereiro de 2002

Os Gafanhotos

Os foguetes incendiaram os prados desnudos, transfor­mando as rochas em lava, a madeira em carvão, a água em vapor, transmutando areia e sílica em vidro verde, que refle­tia a invasão como um espelho estilhaçado. Os foguetes che­garam como tambores estrondando na noite. Os foguetes desce­ram como gafanhotos, um enxame envolto em florações de fumaça rósea. E dos foguetes saíram homens com martelos nas mãos para moldar aquele mundo estranho numa forma que fosse familiar ao olho humano, eliminando tudo o que fosse estranho, com as bocas cheias de pregos, parecidos a carnívo­ros de dentes de aço, passando-os rapidamente para suas mãos à medida em que erguiam casas de madeira a marteladas, pre­gavam coberturas com telhas finas de madeira, para eliminar o mistério das estrelas, e colocavam cortinas para conter a noite. E quando os carpinteiros terminaram, chegaram as mulheres com vasos de flores, chitas e frigideiras para insta­lar uma cozinha barulhenta que superasse o silêncio de Marte, existente do lado de fora da porta e da janela coberta de cortinas.

 

Seis meses depois, mais uma dúzia de aldeias haviam sido instaladas no planeta deserto, iluminadas com sussurrantes lâmpadas de néon e com lâmpadas convencionais. Ao todo, já se achavam em Marte cerca de noventa mil pessoas e, na Terra, mais do que isso estava empacotando seus pertences...

 

Agosto de 2002

Encontro Noturno

Antes de subir as colinas azuis, Tomás Gomez parou no solitário posto de gasolina, para se abastecer.

— O senhor fica muito só aqui, hem? — disse Tomás. O velho limpou o vidro do pára-brisa da camioneta.

— Não me queixo.

— Gosta de Marte?

— Muito. Há sempre uma coisa nova. Quando cheguei aqui, no ano passado, decidi que não esperaria nada, não per­guntaria nada nem me surpreenderia com coisa alguma. Tí­nhamos que esquecer a Terra e seu passado. Precisávamos en­frentar os problemas daqui, que são muito diferentes. O tem­po, por exemplo, é divertidíssimo aqui. Este tempo marciano. Dias infernalmente quentes e noites infernalmente geladas. Sofri um impacto violento das flores e da chuva, tão diferen­tes. Vim para   Marte aposentar-me e queria um lugar onde tudo fosse diferente. Um velho precisa de coisas diferentes. Os jovens não querem conversar com ele e os outros velhos o aborrecem demais. Então,   pensei   que o   melhor para mim seria um lugar tão diferente   que bastasse abrir os olhos e tudo seria motivo de distração. Assim, montei este posto de gasolina. Se o   trabalho crescer muito, me instalarei numa outra estrada velha, não tão movimentada, onde possa ganhar apenas o necessário para viver e ainda ter tempo de gozar as coisas diferentes daqui.

— Tem toda razão — replicou Tomás, com a mão more­na pousada descuidadamente no volante.

Estava se sentindo bem; Trabalhara numa das novas co­lônias durante dez dias seguidos e agora tinha dois dias de folga. Estava a caminho de uma festa.

— Nada mais me surpreende — disse o velho. — Olho e observo. Se não se aceitar Marte como ele é, o melhor é voltar para a Terra. Tudo é estranho aqui: o solo, o ar, os canais, os nativos (ainda não os vi, mas ouço-os por aí), os relógios. Até o meu relógio se comporta de maneira engraçada. Mesmo o tempo é maluco aqui. Às vezes sinto como se estivesse sozi­nho neste maldito planeta, sem mais ninguém. Posso apostar. Outras vezes, sinto como se tivesse oito anos, como se o meu corpo houvesse encolhido e tudo o mais crescido. Puxa, é o lugar ideal para um velho. Estou sempre animado e alegre. Sabe o que Marte é para mim? É como uma coisa que eu ganhei no Natal, há setenta anos — não sei se o senhor tam­bém ganhou — chamada caleidoscópio: pedacinhos de cristal, dê tecido, contas e coisas assim. Coloque contra o sol e olhe através dele. É de perder a respiração. Cada desenho! Pois Marte é isso. Desfrute-o. Nunca lhe peça mais do que ele é. Meu Deus, sabe que essa estrada aí, construída pelos marcia­nos, tem mais de dezesseis séculos e continua em boas condi­ções? É um dólar e cinqüenta. Boa noite.

Tomás pegou a velha estrada, rindo silenciosamente.

Era uma longa estrada, que atravessava as colinas e a es­curidão. Tomás segurava o volante com uma só mão e, de vez em quando, metia a outra mão na sacola e tirava uma bala. Já estava dirigindo calmamente havia uma hora, sem apare­cer nenhum outro carro na estrada, nenhuma luz, apenas a esteira pavimentada sob ele, o zumbido, o ruído e Marte tão silencioso. Marte sempre fora silencioso, porém naquela noite estava mais que nunca. Os desertos e mares mortos passavam por ele, e as montanhas recortavam-se contra as estrelas.

Naquela noite havia um cheiro de Tempo no ar. Tomás sorriu e saboreou mentalmente a imagem. Era uma idéia. Qual era o cheiro do Tempo? O cheiro de pó, relógios e gente. E se imaginasse qual o som do Tempo, ele soava como água cor­rente numa caverna escura, vozes chorando, sujeira pingando sobre tampas de caixa vazias e chuva. E, indo mais longe, como era o Tempo? O tempo se parecia com neve caindo silen­ciosamente num quarto escuro ou assemelhava-se a um filme mudo num cinema velho, com cem bilhões de rostos caindo no nada como balões de Ano Novo. Assim era o Tempo, seu des­lizar, sua aparência, seu som. E naquela noite — Tomás colo­cou a mão para fora da janela da camioneta — naquela noite quase se podia tocar o Tempo.

Dirigiu a camioneta através das colinas do Tempo. Sen­tiu um arrepio na nuca e empertigou-se, prestando atenção na frente.

Entrou numa pequena cidade morta marciana, parou o motor e deixou o silêncio envolvê-lo. Ficou sentado, contendo a respiração, olhando para as casas brancas ao luar. Desabi­tadas havia séculos. Perfeitas, impecáveis, em ruínas, claro, mas perfeitas apesar disso.

Ligou o motor e dirigiu durante cerca de dois quilômetros antes de parar novamente, saltar do carro, levando a lancheira e caminhando para um pequeno promontório de onde podia ver, olhando para trás, aquela cidade empoeirada. Abriu a garrafa térmica e serviu-se de uma xícara de café. Um pássa­ro noturno passou voando. Sentia-se muito bem, em paz con­sigo mesmo.

Haviam decorrido talvez uns cinco minutos quando ouviu o som. Nas colinas, onde a velha estrada fazia uma curva, havia algum movimento, uma luz fraca e depois um murmúrio.

Tomás virou-se, com a xícara de café na mão.

E do lado das colinas surgiu uma coisa estranha.

Era uma máquina parecida com um inseto verde-jade, um louva-a-deus, andando delicadamente no ar fresco, com incontáveis diamantes verdes brilhando indistintamente no seu cor­po e jóias vermelhas que refulgiam como olhos multifacetados. Suas seis pernas caíram sobre a velha estrada com o som es­parso de chuva já no fim e, em cima da máquina, tendo ouro fundido como olhos, um marciano olhava para Tomás como se olhasse o fundo de um poço.

Tomás ergueu a mão e pensou. Olá! mecanicamente, mas não mexeu os lábios porque era um marciano. Mas Tomás, na Terra, havia nadado em rios azuis, com estranhos passando na estrada, e havia comido em casas estranhas, com pessoas desconhecidas, e sua arma sempre fora o sorriso. Não andava armado. E não sentia necessidade de uma arma agora, mesmo com o medo que no momento se apossava do seu coração.

As mãos do marciano também estavam vazias. Durante um instante encararam-se no ar frio.

Tomás tomou a iniciativa.

— Alô! — gritou.

— Olá! — gritou o marciano em sua própria língua. Não se entenderam.

— Você disse alô? — perguntaram ambos, em línguas di­ferentes.

Franziram a testa.

— Quem é você? — perguntou Tomás; em inglês.

— Que está fazendo aqui?

Os lábios do marciano moveram-se.

— Está indo para onde? — disseram ambos, confusos.

— Sou Tomás Gomez.

— Me chamo Muhe Ca.

Não entenderam as palavras, mas bateram nos peitos e então tudo ficou claro.

Depois o marciano riu.

— Espere!

Tomás sentiu sua cabeça roçada, mas não havia sido to­cada por mão alguma.

— Pronto! — disse o marciano em inglês. — Assim é melhor!

— Como aprendeu minha língua tão depressa?

— Não é nada!

Perturbados pelo novo silêncio, ficaram olhando para o café que Tomás segurava.

— Alguma coisa diferente? — perguntou o marciano, olhando para ele e para o café, talvez se referindo aos dois.

— Posso lhe oferecer uma xícara? — perguntou Tomás.

— Por favor.

O marciano desceu da sua máquina.

Tomás apanhou uma outra xícara, encheu-a e deu-a ao marciano.

Suas mãos se encontraram e — como neblina — mistura­ram-se.

— Meu Deus! — gritou Tomás e deixou cair a xícara.

— Pelos Deuses! — disse o marciano em sua própria língua.

— Viu o que aconteceu? — sussurraram ambos. Estavam gelados e apavorados.

O marciano abaixou-se para pegar a xícara mas não teve sucesso.

— Meu Deus! — disse Tomás.

— Não é possível.

O marciano tentou repetidamente agarrar a xícara, mas não pôde. Ergueu-se, pensou um instante e depois pegou a faca no cinto.

— Ei! — gritou Tomás.

— Você está enganado, pegue! — disse o marciano e atirou a faca.

Tomás juntou as mãos. A faca atravessou sua carne e caiu no chão. Tomás inclinou-se para apanhá-la, mas não con­seguiu, retrocedendo, trêmulo.

Então olhou para o marciano contra o céu.

— As estrelas! — disse.

— As estrelas! — repetiu o marciano, olhando por sua vez para Tomás. As estrelas eram brancas e nítidas através da carne do marciano, e estavam incrustadas em seu corpo como centelhas na tênue membrana fosforescente de algum gelati­noso peixe do mar. Podia-se ver as estrelas piscando como olhos violetas no peito e no estômago do marciano, e também nos seus pulsos, como jóias.

— Posso ver através de você! — disse Tomás.

— E eu através de você! — retrucou o marciano, recuando. Tomás apalpou o próprio corpo e, sentindo o calor, ficou tranqüilizado. Sou real, pensou.

O marciano pegou no próprio nariz e lábios.

—   Tenho carne — disse, a meia-voz. — Estou vivo. Tomás olhou para o estranho.

— E se eu sou real, você deve estar morto.

— Não, você é quem está!

— Um fantasma!

— Um espectro!

Ficaram apontando um para o outro, com a luz das estre­las brilhando em suas pernas como punhais, pingentes de gelo e vaga-lumes. Depois voltaram a examinar as próprias pernas, cada um achando-se intacto, quente, excitado, assombrado, apavorado e o outro, sim, aquele outro ali, irreal, um prisma fantasmagórico, refletindo a luz acumulada de mundos dis­tantes.

Estou bêbado, pensou Tomás. Amanhã não vou contar nada disto para ninguém, não vou mesmo.

Ambos permaneceram imóveis na velha estrada.

— De onde você veio? — perguntou o marciano final­mente.

— Terra.

— O que é isso?

— Lá — respondeu Tomás, com um gesto de cabeça para o céu.

— Quando?

— Pousamos há cerca de um ano, lembra-se?

— Não.

— Vocês estavam   quase todos mortos. Você é um   dos poucos, não sabe disso?

— Não é verdade.

— Sim, mortos. Vi os corpos. Pretos, nos quartos, nas ca­sas» mortos. Milhares deles.

— Isso é um absurdo. Estamos vivos!

— Meu caro, Marte foi invadido e só você não sabe. Você deve ter escapado.

— Escapar de quê? O que quer dizer? Estou agora a ca­minho de um festival no canal perto das Montanhas Eniall. Estive lá ontem à noite. Não está vendo a cidade? — pergun­tou o marciano, apontando.

Tomás olhou e viu as ruínas.

— Ora, aquela cidade está morta há milhares de anos. O marciano riu.

— Morta. Dormi lá ontem!

— E eu estive lá na semana passada e na atrasada, acabo de passar por lá e é um monte de escombros. Está vendo as colunas quebradas?

— Quebradas? Vejo-as perfeitamente. O luar ajuda. E as colunas estão inteiras.

— As ruas estão cheias de poeira — disse Tomás.

— As ruas estão limpas!

— Aqueles canais estão vazios.

— Os canais estão cheios de vinho de lavanda!

— Está morta.

— Está viva!   — protestou o marciano, agora dando gar­galhadas. — Ah, você está muito errado. Está vendo todas as luzes do parque de diversões? Há nele barcos lindos, esbeltos como mulheres, lindas mulheres, esbeltas como barcos, mulhe­res alvas como a areia, mulheres com flores de fogo nas mãos. Posso vê-las, pequenas,   correndo pelas ruas. É para lá que eu vou agora, para a festa. Vamos flutuar nas águas a noite inteira. Cantaremos, beberemos, amaremos. Não consegue ver?

— Amigo,   aquela cidade está   morta   como   um lagarto dessecado. Como todos os da festa. Eu estou indo esta noite para a Cidade Verde. É a nova colônia que acabamos de erguer perto da Auto-estrada Illinois. Você está enganado. Trouxe­mos do Oregon para cá trezentos mil metros quadrados de madeira e duas dúzias de toneladas de ótimos pregos de aço. Com eles construímos duas das mais lindas aldeias que você já viu. Hoje vamos preparar uma delas. Dois foguetes estão chegando da Terra, trazendo nossas mulheres e namoradas. Vai haver dança no celeiro e uísque... O marciano ficou inquieto.

— Você disse nesta direção?

— Os foguetes estão ali — Tomás o levou até a beira da colina e apontou para baixo. — Está vendo?

— Não.

— Bolas, eles estão ali! Aquelas coisas longas e prateadas.

— Não.

— Você está cego! — disse Tomás, agora rindo.

— Eu enxergo muito bem. Você é que não enxerga.

— Mas você está vendo a nova cidade, não está?

— Só vejo um oceano e a maré baixa.

— Amigo, aquela água evaporou-se há quarenta séculos.

— Ora, ora, agora chega.

— É verdade, garanto.

O marciano ficou muito sério.

— Diga outra vez. Não está vendo a cidade que eu des­crevi? As colunas muito brancas, os barcos esguios, as luzes da festa... ah, vejo-as claramente! e ouça! Posso ouvi-los can­tando. Não estão muito longe, afinal.

Tomás prestou atenção e sacudiu a cabeça.

— Não.

— E eu, por minha vez, não consigo ver o que você des­creve — disse o marciano. — Muito bem.

Esfriaram novamente. Um arrepio gelado percorreu seus corpos.

— Poderia ser?...

— O quê?

— Você disse “vindo do céu”?

— Da Terra.

— Terra é um nome apenas — disse o marciano. — Mas... quando subi a trilha, faz uma hora... — Passou a mão na nuca — Senti...

— Frio?

— Isso.

— E agora?

— Voltei a sentir. Estranho. Havia alguma coisa na luz, nas colinas, na estrada — disse o marciano. — Senti a singula­ridade, a estrada, a luz e, por um momento, senti como se fosse a último homem vivo neste mundo...

— Eu também! — disse Tomás, e foi como se estivesse conversando com um velho e querido amigo, fazendo confi­dencias, tornando-se mais íntimo.

O marciano fechou e abriu os olhos.

— Isso só pode significar uma coisa. E tem que ver com o Tempo. Sim. Você é uma sombra do Passado!

— Não, você é que é do Passado — disse o terrestre, de­pois de um momento de reflexão.

— Você tem muita certeza. Como pode provar o que é do Passado e o que é do Futuro? Em que ano estamos?

— Dois mil e dois!

— Que significa isso para mim? Tomás pensou e encolheu os ombros.

— Nada.

— É como se eu lhe dissesse que estamos no ano 4462853 S.E.C. Não significa absolutamente nada! Onde está o reló­gio para nos mostrar a posição das estrelas?

— Mas a prova são as ruínas! Elas provam que eu sou o Futuro, que estou vivo, que você está morto!

— Tudo em mim nega isso. Meu coração pulsa, meu estô­mago tem fome, minha boca tem sede. Não, não, nenhum de nós está morto ou vivo. Mais vivos que qualquer outra coisa. Presos entre a vida e a morte define melhor. Dois estra­nhos cruzando-se na noite, é isso. Dois estranhos cruzando-se. Você disse ruínas!

— Disse. Você está com medo!

— Quem deseja ver o Futuro? Quem alguma vez desejou? Um homem pode enfrentar o Passado, mas pensar... você disse as colunas arruinadas? E o mar vazio, os capais secos, as moças mortas e as flores murchas? — O marciano calou-se e depois olhou para a frente. — Porém eles estão lá. Eu os vejo. Não é o bastante para mim? Estão à minha espera, não importa o que você diga.

E para Tomás os foguetes, ao longe, esperavam por ele, bem como a cidade e as mulheres da Terra.

— Nunca estaremos de acordo — disse.

— Admitamos nosso desacordo — replicou o marciano. — Que importa o que é o Passado ou o Futuro, se ambos estamos vivos e o que for será, amanhã ou daqui a dez mil anos. Como sabe que nossos templos não são os templos da sua própria civilização daqui   a cem   séculos, desmoronados,   arruinados? Você não sabe. Portanto, não pergunte. Mas a noite é muito curta. Lá vão os fogos de artifício e os pássaros da festa pelo espaço.

Tomás estendeu a mão. O marciano fez o mesmo. Suas mãos não se tocaram. Penetraram uma na outra.

— Ainda nos encontraremos?

— Quem sabe? Talvez numa outra noite.

— Gostaria de ir com você a essa festa.

— E eu gostaria de poder ir à sua nova cidade, ver a nave sobre a qual falou, encontrar aqueles homens, ouvir tudo o que aconteceu.

— Adeus — disse Tomás.

— Boa noite.

O marciano guiou seu veículo de metal verde devagar para as colinas. O terrestre deu volta na camioneta e afastou-se si­lenciosamente na direção oposta.

— Meu Deus! Que sonho — suspirou Tomás, segurando o volante e pensando nos foguetes, nas mulheres, no uísque puro, nas notícias de Virginia, na festa.

Que visão estranha aquela, pensou o marciano, afastando-se velozmente pensando na festa, nos canais, nos barcos, nas mulheres de olhos dourados, nas canções.

A noite estava escura. As luas haviam desaparecido. As estrelas piscavam sobre a estrada vazia, onde agora nenhum som se ouvia, nenhum carro era visto, nenhuma pessoa, nada. E assim continuou durante toda a noite fria e escura.

 

Outubro de 2002

A Praia

Marte era uma praia distante e os homens a ela chegavam em ondas. Cada onda era diferente e mais forte.

A primeira onda aportou homens acostumados aos espa­ços, ao frio, à solidão, os coiotes e os vaqueiros, sem um pingo de gordura, de rostos descarnados pelos anos, de olhos penetrantes e mãos ásperas como luvas velhas, prontas a se apo­derar de tudo. Marte nada pôde contra eles, pois haviam sido criados em planícies e pradarias tão amplas como os campos marcianos. Chegaram e ocuparam os espaços, dando aos outros coragem para imitá-los. Colocaram vidraças nas janelas vazias e luzes dentro delas.

Eram os primeiros homens.

Ninguém ignorava quem seriam as primeiras mulheres.

A segunda leva deveria ter vindo de outros países, com outros sotaques e outras idéias. Mas os foguetes eram ameri­canos, assim como os homens, e continuavam sendo, enquanto a Europa, a Ásia, a América do Sul e a Austrália viam os fogos de artifício deixá-los para trás. O resto do mundo estava mergulhado na guerra ou no temor da guerra.

Assim, a segunda leva foi também de americanos. Eram originários das cabeças-de-porco e subterrâneos de Nova York, onde viveram durante longos anos apertados em canos, latas e caixas. Ali iriam encontrar muito lazer e paz na companhia dos silenciosos homens originários dos estados frios, que sa­biam como usar o silêncio.

E entre os homens da segunda leva havia alguns que pa­reciam, pelo olhar, estar a caminho de Deus...

 

Novembro de 2002

Os   Balões de Fogo

Fogos explodiram sobre os gramados de uma noite de ve­rão. Podia-se ver os rostos cintilantes de tios e tias. Os foguetes do espaço caíram nos olhos brilhantes de primos nos alpendres, e pedaços de madeira, carbonizados, tombavam com um som cavo nas longínquas pradarias ressequidas.

O reverendíssimo Padre Joseph Daniel Peregrine abriu os olhos. Que sonho: ele e seus primos e suas brincadeiras com fogo na velha casa de Ohio do seu avô, havia tantos anos!

Ficou ouvindo o grande vazio da igreja, as outras celas onde dormiam outros padres. Estariam eles, também, na noite do vôo do foguete Crucifix, sonhando com o Dia da Indepen­dência? Sim, aquilo era como a excitante véspera da Indepen­dência, quando se esperava pelo primeiro choque e saía-se para a calçada orvalhada, com as mãos cheias de maravilhas rui­dosas.

Pois ali estavam eles, os padres anglicanos, na excitante madrugada, momentos antes de serem catapultados para Mar­te, levando seu incenso através da veludosa catedral do espaço.

— Afinal, devemos ir?   — sussurrou Padre Peregrine. — Não deveríamos pagar nossos pecados na Terra? Não estare­mos fugindo das nossas vidas aqui?

Levantou, movendo lentamente o corpo carnudo, com sua bela aparência de morangos, leite e bife.

— Ou é preguiça? — conjeturou. — Temerei a viagem? Entrou no chuveiro.

— Mas devo levar você para Marte, meu corpo — falou para si mesmo. — Deixar os velhos pecados aqui. E encontrar novos pecados em Marte?

Um pensamento quase delicioso. Pecados nunca antes imaginados. Ah, ele mesmo havia escrito um opúsculo: O Problema do Pecado nos Outros Mundos, trabalho ignorado como coisa não bastante séria pela irmandade anglicana.

Na noite anterior, ao fumarem o último cigarro, ele e o Padre Stone haviam discutido a respeito.

— Em Marte, o pecado pode parecer virtude. Devemos nos precaver contra atos virtuosos que lá, mais tarde, podem ser considerados pecados! — havia dito Padre Peregrine, sor­ridente. — Isso é muito excitante! Passaram séculos desde que tanta aventura tenha acompanhado a decisão de ser missio­nário!

— Eu saberei reconhecer o pecado — retrucou Padre Stone, asperamente, mesmo em Marte.

— Ah, nós, padres, nos orgulhamos de fazer papel de tornassol, mudando de cor na presença do pecado — replicou o

Padre Peregrine — mas, e se a química marciana for de tal ordem que não tenhamos nenhuma cor? Se houver em Marte novos significados, deve admitir a possibilidade do pecado ser irreconhecível.

— Se não houver malícia premeditada, não haverá pecado e, por conseqüência, castigo... garante-nos o Senhor — res­pondeu Padre Stone.

— Isso na Terra. Mas talvez um pecado marciano possa informar o subconsciente do seu pecado, telepaticamente, dei­xando a mente consciente do homem livre para agir, aparen­temente sem malícia! E então?

— Que pode acontecer em face de novos pecados? Padre Peregrine inclinou-se pesadamente para a frente.

— Adão, sozinho, não pecou. Acrescente Eva e terá adicio­nado a tentação. Inclua um segundo homem e tornará o adul­tério possível. Com a adição de sexo ou de gente, terá acres­centado o pecado. Se os homens não tivessem braços, não po­deriam estrangular com as mãos. Não haveria esse pecado par­ticular denominado assassinato. Acrescente braços e estará adicionando a possibilidade de uma nova violência. As ame­bas não podem pecar porque se reproduzem por fissão. Não cobiçam esposas nem matam umas às outras. Dê às amebas braços e pernas, e terá assassinato e adultério. Junte um braço, uma perna ou uma pessoa, ou tire-os e terá acrescentado ou eliminado um possível mal. E se em Marte houver cinco novos sentidos, órgãos,   membros invisíveis que não podemos con­ceber. .. não poderá haver cinco novos pecados?

Padre Stone suspirou.

— Acho que você gosta dessa espécie de coisas!

— Mantenho minha mente em forma, padre. Apenas isso.

— Sua mente está sempre criando ilusões, hem?... Espe­lhos, tochas, bandejas.

— Está. Isso porque às vezes a Igreja parece com aquelas cenas de circo onde a cortina se ergue e homens caiados, co­bertos de óxido de zinco, de talco, parecendo estátuas, imobi­lizam-se para representar a Beleza abstrata. Maravilhoso. Mas espero que haja sempre espaço para mim entre as estátuas, não acha, Padre Stone?

Padre Stone estava se retirando.

— Acho melhor irmos dormir. Dentro de algumas horas estaremos dando o salto para ver os seus novos pecados, Padre Peregrine.

O foguete estava pronto para a decolagem.

Os padres largaram suas devoções na manhã fria, muitos deles excelentes clérigos de Nova York, Chicago ou Los An­geles — a Igreja estava enviando o que possuía de melhor — e cruzaram a cidade, na direção do campo gelado. Enquanto andava, Padre Peregrine lembrou das palavras do bispo:

— Padre Peregrine,   o   senhor   chefiará os missionários, com o Padre Stone ao seu lado. Tendo-o escolhido para esta séria tarefa, descobri que meus motivos eram deploravelmente obscuros, padre, mas seu opúsculo sobre o pecado plane­tário não continuará ignorado. O senhor é um homem maleável. E Marte é como aquele armário sujo que negligencia­mos durante milênios. O pecado usou-o como um brique-a-braque. Marte tem o dobro da idade da Terra e teve duas vezes mais noites de sábado, pileques e olhos arregalados para mu­lheres tão nuas como focas brancas. Quando abrimos a porta daquele armário, caem coisas sobre nós. Precisamos de um homem ágil, flexível... cuja mente saiba esquivar-se. Alguém ligeiramente dogmático pode ser quebrado em dois. Sinto que o senhor resistirá. Padre, a tarefa é sua.

O bispo e o padre ajoelharam-se.

Foi dada a bênção e o foguete aspergido de água benta. Levantando-se, o bispo dirigiu-se a eles:

— Sei que vão com Deus, para preparar os marcianos para a recepção da Sua Verdade. Desejo a todos uma viagem medi­tativa.

Desfilaram diante do bispo vinte homens com os hábitos sussurrando, para depor suas mãos nas bondosas mãos dele antes de entrarem no projétil purificado.

— Será — disse o Padre Peregrine no último momento — que Marte é o inferno? Esperando apenas pela nossa chegada para explodir em enxofre e chamas?

— Senhor, esteja conosco — rezou o Padre Stone. A nave movimentou-se.

Chegando do espaço era como estar chegando da mais bela catedral jamais vista. Atingir Marte era como atingir o calçamento ordinário do lado de fora da igreja, cinco minu­tos depois de ter realmente conhecido seu amor por Deus.

Os padres desceram cautelosamente do foguete fumegante e ajoelharam-se na areia marciana, enquanto o Padre Pere­grine rendia graças.

— Senhor, agradecemos-Te pela viagem através dos Teus espaços. E, Senhor, chegamos a um novo solo. Por isso deve­mos ter novos olhos. Ouviremos novos sons e temos necessida­de de novos ouvidos. Haverá novos pecados.   Por isso pedimos a dádiva de corações melhores, mais firmes e mais puros. Amém.

Ergueram-se.

E ali estava Marte, como um oceano sob o qual arrasta­vam-se como biólogos submarinos, procurando a vida. Ali esta­va o território do pecado oculto. Ah, com que cuidado preci­savam se equilibrar, como penas cinzentas, neste novo ele­mento, temerosos de que o próprio andar pudesse ser pecado. Ou mesmo respirar. Ou simplesmente jejuar!

E ali estava o prefeito da Primeira Cidade, recebendo-os com apertos de mão.

— Em que lhe posso ser útil, Padre Peregrine?

— Gostaríamos de conhecer tudo sobre os marcianos, pois só depois de sabermos tudo é que poderemos planejar inteli­gentemente a ação de nossa igreja. Têm três metros de altura? Construiremos portas altas. Sua tez é azul, vermelha ou verde? Precisamos saber, para quando desenharmos as aparências hu­manas nos vitrais, usando a cor certa. São pesados? Construi­remos bancos resistentes para eles.

— Padre — respondeu o prefeito — acho que o senhor não deve se preocupar com os marcianos. Há duas raças. Uma está quase extinta. Restam uns poucos, escondidos. E a segunda... bem, não são exatamente humanos.

— Ah?

O coração do Padre Peregrine bateu desordenadamente.

— São globos luminosos, padre, vivendo naquelas colinas. Homem ou animal, quem pode dizer? Ouvi falar que agem inteligentemente. — O prefeito encolheu os ombros. — Claro, não são homens, portanto acho que não devem se preocupar...

— Pelo contrário — atalhou o Padre Peregrine rapida­mente. — O senhor disse inteligente?

— Contam estórias. Um explorador quebrou uma perna naquelas colinas e devia morrer lá. As esferas azuis luminosas aproximaram-se dele. Quando recuperou os sentidos, estava numa auto-estrada e não sabia como tinha chegado lá.

— Bêbado — disse o Padre Stone.

— É essa a estória — disse o prefeito. — Padre Peregrine, com a maioria dos marcianos mortos e havendo apenas essas esferas azuis, acho francamente que o senhor estará melhor na Primeira Cidade. Marte está-se abrindo. Atualmente é uma fronteira, como nos velhos dias da Terra o eram o Oeste e o Alasca Os homens estão começando a chegar. Há cerca de dois mil irlandeses rebeldes, mecânicos, mineiros e operários na Primeira Cidade que precisam ser salvos porque há muitas mulheres más chegadas com eles e vinho marciano milenário demais...

O Padre Peregrine olhava absorto as suaves colinas azuis.

— E então, Padre? — disse o Padre Stone, depois de pigarrear.

Padre Peregrine não ouviu.

— Esferas de fogo azuis?

— Sim, padre.

— Ah — disse o Padre Peregrine, suspirando.

— Balões azuis — o Padre Stone balançou a cabeça. — Um circo!

Padre Peregrine sentiu seus pulsos latejarem. Viu a pe­quena cidade de fronteira como um pecado recém construído e viu as montanhas, como um velho entre os mais velhos, e todavia talvez ainda mais novo (para ele) pecado.

— Prefeito, seus irlandeses rebeldes podem ficar um dia mais nas chamas do inferno?

— Vou virá-los e regá-los para o senhor, padre.

O Padre Peregrine indicou as colinas com a cabeça.

— Então é para lá que nós vamos. Houve um murmúrio generalizado.

— Teria sido mais simples ir para a   cidade — disse o Padre Peregrine. — Prefiro pensar que se o Senhor estivesse aqui e alguém dissesse “Esta é a estrada pavimentada”, Ele responderia “Mostrem-me o carrascal. Abrirei uma   trilha.”

— Mas...

— Padre Stone, pense no peso que seria para nós se passás­semos por pecadores sem estender-lhes a mão.

— Mas globos de fogo!

— Fico imaginando como os homens pareceram engraça­dos aos outros animais, quando aparecemos pela primeira vez. E em toda a sua simplicidade, eles têm uma alma. Até prova em contrário, vamos admitir que essas esferas de fogo têm alma.

— Muito bem — concordou o prefeito — mas voltarão para a cidade.

— Veremos. Primeiro, vamos comer. Depois, o senhor e eu, Padre Stone, caminharemos sozinhos até as colinas. Não quero assustar esses marcianos de fogo com máquinas ou mul­tidões. Podemos fazer uma refeição?

Os padres comeram em silêncio.

 

Ao entardecer, os padres Peregrine e Stone estavam bem no interior das colinas. Pararam e sentaram-se numa pedra, para gozar um momento de descanso e de espera. Os marcia­nos ainda não haviam aparecido e ambos estavam ligeiramen­te desapontados.

— Quem sabe... — O Padre Peregrine fez uma careta. — O senhor pensa que se eu gritar “Ola!” eles responderão?

— Padre Peregrine, o senhor nunca leva as coisas a sério?

— Nunca, até o Senhor o ser. Ah, por favor, não fique tão chocado. O Senhor não é sério. Na verdade, é um tanto difícil saber o que Ele é mais, além de amável. E o amor tem muito a ver com o humor, não? Pois ninguém pode amar al­guém sem estar de acordo com ele, não é? E ninguém pode estar, de acordo com alguém constantemente, a menos que possa rir para ele. Não é verdade? E certamente somos animaizinhos   ridículos, lambuzando-se   na compoteira,   e Deus deve-nos amar ainda mais porque despertamos seu humor.

— Eu   nunca   pensei em   Deus como cômico — disse o Padre Stone.

— O Criador do ornitorrinco, do camelo, da avestruz e do homem? Ora, deixe disso — falou o Padre Peregrine, rindo.

Nesse instante, dentre as colinas crepusculares, como uma série de lâmpadas azuis acesas para iluminar seu caminho, chegaram os marcianos.

O primeiro a vê-los foi o Padre Stone.

— Olhe!

Padre Peregrine virou-se e o riso desapareceu de seus lábios.

Os redondos globos azuis de fogo pairaram entre as es­trelas que piscavam ao longe.

— Monstros! — disse o Padre Stone, erguendo-se de um pulo.

Mas o Padre Peregrine o segurou.

— Espere!

— Deveríamos ter ido para a cidade!

— Não, ouça, olhe! — implorou o Padre Peregrine.

— Estou com medo.

— Não fique com medo. É obra de Deus!

— Do demônio!

— Não, agora fique calado!

Padre Peregrine acalmou-o e eles se agacharam, receben­do no rosto erguido a suave luz azul das esferas de fogo que se aproximavam.

Outra vez a Noite da Independência, pensou o Padre Pe­regrine, estremecendo. Sentiu-se como um garoto, de volta àquelas noites de 4 de julho, com o céu explodindo, dividin­do-se em estrelas de pólvora e sóis de fogo, com os choques sacudindo as janelas como gelo em milhares de frágeis aquá­rios. As tias, tios e primos gritando “Ah!”, como para algum físico celestial. As cores do céu de verão. E os Balões de Fogo, acesos por um indulgente avô, sustentados em suas mãos solidamente macias. Ah, a recordação daqueles lindos Balões de Fogo, suavemente iluminados, com pedaços de tecido adejando como asas de insetos, guardados em caixas como vespas do­bradas e, finalmente, depois do dia de agitação, retirados de suas caixas, delicadamente desdobrados, azul, vermelho e branco, patrióticos, os Balões de Fogo! Tinha na memória o rosto esmaecido dos queridos pais, mortos havia muito e co­bertos de musgo, enquanto o avô acendia a esguia vela é dei­xava o ar quente elevar-se para formar o balão perpendicular­mente luminoso em suas mãos, uma visão resplandecente, que ele relutava em deixar partir, pois, uma vez acontecido, era outro ano que se ia, outro Quatro, outro pedaço de Beleza desvanecida. E cada vez mais altos, através das constelações das quentes noites de verão, os Balões de Fogo vagavam, se­guidos por olhos patrióticos, mudos, das famílias nas varan­das. Longe, no coração do Illinois, passando sobre rios no­turnos e mansões adormecidas, os Balões de Fogo diminuíam e sumiam para sempre...

Padre Peregrine sentiu os olhos inundados de lágrimas. Acima dele pairavam os marcianos, não um mas milhares de sussurrantes Balões de Fogo. Por um momento pôde sentir ao seu lado o seu amado e já falecido avô, olhando para a Beleza.

Mas era o Padre Stone.

— Por favor, vamos embora, padre!

— Preciso falar com eles.

Padre Peregrine adiantou-se, sem saber o que dizer, pois o que sempre dissera no passado aos Balões de Fogo fora: você é lindo, você é lindo, e isso agora não era suficiente. Pôde ape­nas erguer os braços pesados e gritar, como freqüentemente quis fazê-lo com os Balões de Fogo, “Alô!”.

Mas as esferas de fogo apenas queimavam como imagens num espelho negro. Eram fixas, gasosas, milagrosas, eternas.

— Viemos com Deus — disse o Padre Peregrine para o céu.

— Bobagem, bobagem, bobagem. — O Padre Stone mor­dia as costas da mão. — Padre Peregrine, pare com isso, em nome de Deus!

Naquele instante, as esferas fosforescentes dirigiram-se para as colinas. Num momento tinham desaparecido.

O Padre Peregrine tornou a gritar e o eco do seu último grito sacudiu as colinas. Virando-se, viu uma avalanche le­vantar poeira, fazer uma pausa e, depois, com um trovão de pedras rolando, desabar em cima deles.

— Veja o que fez! — gritou o Padre Stone.

Padre Peregrine ficou, a princípio, quase fascinado e, depois, horrorizado. Virou-se, sabendo que só poderia correr alguns metros antes que as rochas o esmagassem. Só teve tempo de murmurar Ah, Senhor! e as rochas caíram!

— Padre!

Foram separados como a palha do trigo. Tiveram um vis­lumbre azul de globos, um deslocamento de frias estrelas, um estampido e estavam de pé na beira de um rochedo, a sessenta metros de distância, olhando o ponto onde seus corpos de­veriam estar enterrados sob toneladas de pedras.

A luz azul havia-se evaporado.

Os dois padres estavam abraçados.

— Que aconteceu?

— Os fogos azuis nos transportaram!

— Não, o que aconteceu   foi que nós corremos!

— Não, os globos nos salvaram.

— Eles não podiam!

— Eles o fizeram.

O céu estava vazio. Havia uma sensação como se um gran­de sino tivesse acabado de tocar e suas reverberações ainda vi­brassem nos dentes e na medula deles.

— Vamos embora daqui. O senhor quase nos matou.

— Nunca temi a morte, Padre Stone.

— Não conseguimos provar nada. Aquelas luzes azuis de­sapareceram ao primeiro grito. É inútil.

— Não. — Padre Peregrine estava inundado por uma tei­mosia maravilhosa. — Seja como for, nos salvaram. Isso prova que têm almas.

— Isso prova que eles podem ter-nos salvos. É tudo muito confuso. Nós mesmos podíamos haver escapado.

— Eles não são animais, Padre Stone. Animais não salvam vida, principalmente de estranhos. Aqui há piedade e compai­xão. Talvez amanhã tenhamos mais provas.

— Provar o quê? Como? — Padre Stone sentia-se, agora, muito cansado. A afronta à sua mente e ao seu corpo reve­lava-se em seu rosto tenso. — Seguindo-os em helicópteros, lendo capítulo e versículo? Eles não são humanos. Não têm olhos e ouvidos, ou corpos como nós.

— Mas sinto alguma coisa com relação a eles — replicou Padre Peregrine. — Sei que está para acontecer uma grande revelação. Eles nos salvaram. Eles pensam. Podiam escolher: deixar-nos viver ou morrer. Isso prova seu livre arbítrio!

Padre Stone começou a acender uma fogueira, olhando fixamente os gravetos que tinha nas mãos, e tossindo por causa da fumaça cinzenta.

— Irei pessoalmente fundar um convento para filhotes de ganso, um monastério para porcos consagrados e um altar-mor em miniatura num microscópio, para que os protozoários possam ouvir missa e rezar com seus flagelos.

— Ora, Padre Stone.

— Desculpe. — O Padre Stone, com os olhos vermelhos, pestanejou por cima da fogueira. — Mas é como abençoar um crocodilo antes dele nos comer. O senhor está pondo em risco a missão toda. Nossa obrigação é com a Primeira Cidade, ti­rando a bebida da garganta dos homens e o perfume de suas mãos!

— O senhor não é capaz   de   reconhecer o humano no inumano?

— Prefiro mais reconhecer o inumano no humano.

— Mas, e se eu provar que aquelas coisas pecam, conhe­cem o pecado, conhecem uma vida moral, têm livre arbítrio e inteligência, Padre Stone?

— Vai precisar muita coisa para me convencer.

A noite esfriou rapidamente e eles ficaram olhando a fogueira, à procura dos seus mais recônditos pensamentos, en­quanto comiam biscoitos e frutinhas. Logo estavam prontos para dormir sob as estrelas harmoniosas. E exatamente antes de se virar pela última vez, o Padre Stone, que ficara pensando uns minutos à procura de alguma coisa para aborrecer o Padre Peregrine, olhou para o suave tom rosado da fogueira e disse:

— Nem Adão nem Eva em Marte. Nem pecado original. Talvez os marcianos vivam em estado de graça divina. Por­tanto, podemos voltar para a cidade e começar a doutrinar os terrestres.

Padre Peregrine disse a si mesmo para rezar uma pequena prece pela alma do Padre Stone, que estava tão zangado e que estava-se tornando vingativo, que Deus o ajudasse.

— Sim, Padre Stone, mas os marcianos mataram alguns dos nossos colonizadores. Isso é pecado. Deve ter havido um Pecado Original e um Adão e Eva marcianos. Vamos descobrir. Homens são homens, infelizmente, qualquer que seja a apa­rência, e inclinados ao pecado.

Mas Padre Stone fingia dormir.

 

Padre Peregrine não pregou olho.

Claro que não podiam deixar esses marcianos irem para o inferno, não é? Como uma concessão às suas consciências, poderiam voltar para as novas cidades coloniais, aqueles luga­res tão cheios de gargantas pecadoras, mulheres com centelhas nos olhos e corpos brancos como ostras, brincando nas camas com trabalhadores solitários? Não era lá o lugar para os padres? Aquela ida às colinas não passaria de um capricho pessoal? Estava ele realmente pensando na Igreja de Deus ou na satisfação de sua sede de curiosidade? Aquela erisipela de redondos globos azuis... como queimava em sua mente! Que desafio, encontrar o homem por trás da máscara; o humano por trás do inumano. Não ficaria orgulhoso se pudesse dizer, nem que fosse apenas para o mais profundo do seu ser, que havia convertido uma enorme mesa de sinuca de esferas de fogo? Que pecado de orgulho! A penitência valia a pena! Mas então, muitas coisas orgulhosas seriam feitas sem Amor. E ele amava muito a Deus e era tão feliz com isso, que desejava o mesmo para todo mundo.

A última coisa que viu antes de adormecer foi a volta das bolas de fogo azul, como uma revoada de anjos ardentes, cantando   silenciosamente, embalando seu sono  preocupado.

Os sonhos redondos ainda continuavam no espaço quando o Padre Peregrine acordou de manhã cedo.

Padre Stone dormia silenciosamente, como um fardo. Pa­dre Peregrine olhou primeiro para os marcianos flutuando e depois para ele. Eram humanos, tinha a certeza. Todavia, pre­cisava prová-lo ou enfrentar um bispo seco e severo, pedindo-lhe que não se intrometesse.

Mas como provar a humanidade deles, se se escondiam nas abóbadas celestes? Como fazer com que se aproximassem e respondessem às inúmeras perguntas?

— Eles nos salvaram da avalanche.

Padre Peregrine ergueu-se, caminhou entre as rochas e começou a subir a colina mais próxima, até chegar a um lugar escarpado, caindo a pique sobre um local plano, sessenta me­tros abaixo. Estava tossindo por causa do esforço, ao subir no ar gelado. Parou, recuperando o fôlego.

— Se eu caísse daqui, certamente morreria.

Atirou uma pedra. Momentos depois, ela bateu nas rochas embaixo.

— Deus nunca me perdoará. Atirou outra pedra.

— Não será suicídio, se eu fizer isso sem Amor?. . . Ergueu os olhos para as esferas azuis.

— Mas primeiro uma nova tentativa. — Gritou para elas: — Olá, olá!

Os ecos rolaram um sobre o outro, mas os fogos azuis não piscaram nem se moveram.

Falou-lhes durante cinco minutos. Quando terminou, olhou para baixo e viu o Padre Stone ainda absurdamente adorme­cido no acampamento.

— Tenho que provar tudo. — Caminhou para a beira do penhasco. — Sou um velho. Não tenho medo. Certamente o Senhor entenderá que estou fazendo isto por Ele!

Respirou fundo. Toda sua vida deslizou pelos seus olhos e ele pensou: Dentro em pouco estarei morto? Temo amar demais a vida. Porém amo mais as coisas.

E pensando assim, deu um passo para fora do penhasco.

Caiu.

— Louco! — gritou. Deu uma cambalhota. — Você estava errado! — As rochas vieram ao seu encontro, viu-se colidindo com elas e mandado à glória. — Por que fiz isto?

Mas ele sabia a resposta e, um instante depois, estava calmo enquanto caía. O vento rugia ao seu redor e as rochas arremedam ao seu encontro.

E então houve uma modificação estelar, um vislumbre de luz violeta e sentiu-se suspenso no ar, rodeado de uma tona­lidade azulada. A seguir, foi depositado, com um baque suave, sobre as rochas, onde ficou sentado algum tempo, vivo, apalpando-se e olhando para cima, para aquelas luzes azuis que haviam recuado instantaneamente.

— Vocês me salvaram! — sussurrou. — Não me deixaram morrer. Sabiam que era errado.

Correu para o Padre Stone, que continuava dormindo tranqüilamente.

— Padre, padre, acorde! — Sacudiu-o, obrigando-o a acor­dar. — Padre, eles me salvaram!

— Quem o salvou?

Padre Stone piscou e sentou-se. Padre Peregrine contou-lhe sua experiência.

— Foi um sonho, um pesadelo. Vá dormir outra vez — disse Padre Stone, com irritação. — O senhor e esses seus ba­lões circenses.

— Mas eu estava acordado!

— Ora, ora, padre, acalme-se, vamos.

— Não acredita em mim? Tem uma arma? Tem, sim, dê-ma.

— Que vai fazer?

Padre Stone estendeu-lhe a pequena arma que levara com o fim de proteger-se de cobras e outros animais semelhantes e inesperados. Padre Peregrine pegou a arma.

— Vou provar!

Apontou a pistola para sua própria mão e atirou.

— Pare!

Houve um tremeluzir e diante dos seus olhos a bala parou no ar, suspensa a poucos centímetros da palma de sua mão aberta. Pairou durante um instante, rodeada de uma fosforescência azulada. Depois caiu, sibilando, no chão.

O Padre Peregrine atirou mais três vezes: na mão, na per­na, no corpo. As três balas pairaram, reluziram e, como insetos mortos, tombaram a seus pés.

— Está vendo? — perguntou Padre Peregrine, abaixando o braço e deixando a arma cair junto das balas. — Eles sabem. Eles compreendem. Não são animais. Pensam, julgam e vivem num clima moral. Que animal me salvaria de mim mesmo assim? Nenhum animal o faria, padre, só um outro homem. E agora, acredita?

Padre Stone ficou olhando para o céu, para as luzes azuis. Depois, silenciosamente, caiu sobre um joelho e apanhou as balas ainda mornas, colocando-as na palma da mão, que fe­chou com força.

O sol estava surgindo às costas deles.

— Acho melhor descermos e contar aos outros o que aconteceu, trazendo-os para cá — disse Padre Peregrine!.

Quando o sol chegou ao alto, já estavam a caminho do foguete.

Padre Peregrine desenhou um círculo no centro do quadro-negro.

— Este é Cristo, o filho do Pai.

Fingiu não ouvir a respiração agitada dos outros padres.

— Este é Cristo em toda a sua Glória — continuou.

— Parece um problema de geometria — observou Padre Stone.

— Uma comparação feliz, pois estamos lidando com sím­bolos aqui. Cristo não é menos Cristo, têm de admitir, pelo fato de ser representado por um círculo ou um quadrado. Durante séculos, a cruz representou seu amor e sofrimento. Portanto, este círculo será o Cristo marciano. É dessa forma que vamos dá-Lo a Marte.

Os padres mexeram-se, inquietos, olhando uns para os outros.

— O senhor, Irmão Mathias, criará em vidro uma réplica deste círculo, um globo, cheio de fogo brilhante. Ficará sobre o altar.

— Um vulgar truque de   mágica   —   murmurou   Padre Stone.

Padre Peregrine continuou, paciente:

— Pelo contrário. Estamos dando Deus a eles numa ima­gem compreensível. Se Cristo tivesse chegado a nós, na Terra, como um polvo, teria sido aceito prontamente? — abriu os braços. — Foi então um vulgar truque de mágica de Deus dar-nos Cristo através de Jesus, em forma humana? Depois de consagrarmos a igreja que construiremos aqui, santificar seu altar e este símbolo, pensam que Cristo se recusará a habitar a forma que está diante dos nossos olhos? No fundo do seu ser, vocês sabem que ele não recusará.

— Mas o corpo de um animal sem alma! — protestou o Irmão Mathias.

— Já cansamos de falar   nisso desde que voltamos esta manhã,   Irmão Matias.   Aquelas criaturas nos   salvaram   da avalanche. Perceberam que a autodestruição era pecado e a evitaram mais de uma vez. Portanto, precisamos construir uma igreja nas colinas, conviver com eles, descobrir sua forma par­ticular de pecar, os caminhos alienígenas, e ajudá-los a des­cobrir Deus.

Os padres não pareciam satisfeitos com a perspectiva.

— Será porque o aspecto deles é tão estranho? — pensou o Padre Peregrine. — Mas o que é um aspecto? Apenas uma taça para a alma ardente dada por Deus a todos nós. Se amanhã eu descobrir de repente que os leões marinhos possuem livre ar­bítrio, inteligência, sabem evitar o pecado, conhecem a vida, temperam a justiça com a piedade e a vida com o amor, en­tão construirei uma catedral submarina. E se os pardais con­seguirem, miraculosamente, com a ajuda de Deus, almas per­manentes, carregarei uma igreja com hélio e sairei atrás deles, pois todas as almas, qualquer que seja sua forma, se tiverem livre arbítrio e consciência dos seus pecados, queimarão no inferno, a menos que lhes seja dado o conforto espiritual a que têm direito. Também não deixarei que uma esfera mar­ciana queime nas chamas do inferno por ser apenas uma es­fera aos meus olhos. Quando fecho os olhos, ficam à minha frente uma inteligência, um amor, uma alma... e não posso negar isso.

— Mas esse globo de vidro que o senhor quer colocar no altar — protestou Padre Stone.

— Veja os chineses — respondeu Padre Peregrine, imper­turbável. — Que espécie de Cristo os cristãos chineses adoram? Um Cristo oriental, naturalmente. Todos já viram as cenas orientais da Natividade. Cristo está vestido como? Com roupas orientais. Por onde anda? Em ambientes chineses, montanhas nevoentas e árvores retorcidas. Seus olhos são amendoados, as maçãs salientes. Cada país, cada raça, acrescenta alguma coisa ao nosso Senhor. Estou me lembrando da Virgem de Gua­dalupe, amada por todo o México. Como é sua pele? Já viram suas imagens? Tem a pele escura como a dos seus adoradores. Isso é blasfêmia? De maneira alguma. Não é lógico que as pessoas aceitem um Deus, por mais real que seja, de outra cor. Freqüentemente fico imaginando por que nossos missio­nários têm sucesso na África, com um Cristo branco como a neve. Talvez porque o branco seja a cor sagrada dos africanos, sejam eles albinos ou de outras formas. Com o tempo. Cristo não poderá também ser preto lá? A forma não importa. O conteúdo é tudo. Não podemos esperar que os marcianos aceitem uma forma alienígena. Temos de dar-lhes Cristo em sua própria imagem.

— Há uma falha em seu raciocínio, padre — disse Padre Stone. — Os marcianos não vão achar que somos hipócritas? Vão perceber que não adoramos um Cristo redondo, globular, mas um homem com cabeça e membros. Como o senhor ex­plicará a diferença?

— Mostrando que não é nada. Cristo encherá qualquer vaso que for oferecido. Corpos ou globos, Ele estará neles e cada um adorará a mesma coisa em invólucros diferentes. Mais ainda, precisamos acreditar neste globo que damos aos mar­cianos. Precisamos acreditar numa forma que é sem sentido para nós como forma. Este esferóide será Cristo. E devemos lembrar que nós mesmos e a forma do nosso Cristo terrestre, somos sem sentido, ridículos, um desperdício de material para esses marcianos.

Padre Peregrine largou o giz.

— Agora vamos para as colinas, construir nossa igreja. Os padres começaram a empacotar seu equipamento,

A igreja não era uma igreja, mas uma área limpa de pe­dras, um platô numa das montanhas mais baixas, cujo solo foi varrido e alisado e um altar instalado, onde o Irmão Mathias colocou o globo de fogo que havia construído.

Ao fim de seis dias de trabalho, a “igreja” estava pronta.

— Que faremos com isto? — Padre Stone bateu num sino de ferro que trouxera. — O que significará um sino para eles?

Suponho que eu tenha trazido o sino para o nosso pró­prio conforto — confessou o Padre Peregrine. — Precisamos de algumas coisas familiares. Esta igreja se parece muito pouco com uma igreja. E sentimo-nos um tanto absurdos aqui... até eu. Pois esse. negócio de   converter criaturas de um outro mundo é coisa nova. Às vezes sinto-me como um ridículo far­sante. E então peço a Deus que me dê forças.

— Muitos dos padres sentem-se infelizes. Alguns zombam de tudo isto, Padre Peregrine.

— Eu sei. Seja como for, colocaremos este sino no alto de uma pequena torre, para conforto deles.

— E o órgão?

— Será tocado no primeiro serviço, amanhã.

— Mas, os marcianos...

— Já sei. Mais uma vez, acho que é para o nosso próprio conforto, nossa própria música. Mais tarde descobriremos a deles.

Domingo de manhã, acordaram muito cedo e moveram-se na friagem como pálidos fantasmas, com a geada fazendo um leve ruído ao cair sobre seus hábitos. Estavam cobertos de flocos, sacudindo nuvens de água prateada.

— Será domingo aqui em Marte? — murmurou   Padre Peregrine, mas vendo Padre Stone estremecer, continuou, apres­sado: — Pode ser terça-feira ou quinta-feira... quem sabe? Mas não importa. Divagação minha. Para   nós é domingo. Venham.

O padres encaminharam-se para a área ampla e plana da “igreja”, ajoelharam-se, tremendo, com os lábios azulados pelo frio.

Padre Peregrine fez uma pequena prece e colocou os dedos gelados nas teclas do órgão. A música subiu como o vôo de lin­dos pássaros. Bateu nas teclas como um homem movendo as mãos entre a folhagem de um jardim silvestre, enviando às colinas grandes ondas de beleza.

A música acalmou o ar, que tinha o agradável perfume do amanhecer. A música deslocou-se para as montanhas e mo­veu minerais triturados, numa chuva de poeira.

Os padres esperavam.

— Bem, Padre Peregrine. — Padre Stone olhou o céu vazio, onde o sol aparecia, vermelho como uma fornalha. — Não estou vendo seus amigos.

— Vou tentar novamente — disse Padre Peregrine, suando.

Compôs uma estrutura bachiana, cada nota mais primo­rosa que a outra, erguendo uma catedral musical tão vasta que sua mais longínqua capela situava-se em Nínive, seu domo mais afastado à mão esquerda de São Pedro. A música permaneceu e não se esfacelou quando terminou, mas dividiu-se numa série de nuvens brancas e foi levada na direção de outras regiões.

O céu continuava vazio.

— Eles virão! — Mas Padre Peregrine sentia o pânico, a princípio imperceptível, crescer no seu peito. — Rezemos. Pe­çamos que venham. Eles lêem pensamentos. Eles sabem.

Os padres prosternaram-se novamente, sussurrando e mur­murando. Rezaram.

E do Leste, além das montanhas nevadas, às sete horas de uma manhã de domingo, quinta-feira ou talvez segunda-feira de Marte, começaram a chegar os suaves globos incandes­centes.

Pairaram, mergulharam e ocuparam a área em torno dos trêmulos padres.

— Obrigado, ah, obrigado, Senhor.

Padre Peregrine fechou os olhos com firmeza e tocou a música. Quando terminou, voltou-se e olhou para sua mara­vilhosa congregação.

E uma voz tocou sua mente, dizendo:

— Viemos só por instantes.

— Podem ficar — disse Padre Peregrine.

— Só por pouco tempo — disse a voz, com suavidade. — Viemos dizer-lhe certas coisas. Deveríamos ter falado antes. Mas esperávamos que o senhor fosse embora se o deixásse­mos só.

Padre Peregrine ia falar quando a voz mandou-o calar-se.

— Nós somos os Antigos — disse a voz, penetrando-o como uma gasosa chama azul, queimando nas câmaras da sua cabeça. — Somos os antigos marcianos, que abandonaram suas cidades de mármore para se refugiarem nas colinas, abandonando a vi­da material vivida até então. Portanto, foi há muito tempo que nos tornamos nessas coisas que somos hoje. Antigamente, fo­mos homens, com corpos, pernas, braços, como vocês. A lenda conta que um de nós, um homem bom, descobriu o meio de libertar a alma e a inteligência do homem, livrá-lo de triste­zas e doenças do corpo, de mortes e transfigurações, de maus humores e senilidade, e por isso tomamos o aspecto de relâm­pago e fogo azul, passando a viver nos ventos, nos céus e nas colinas para sempre,depois daquilo, nem orgulhosos nem arro­gantes, nem ricos nem pobres, nem apaixonados nem indife­rentes. Passamos a viver separados dos que abandonamos, os outros homens deste mundo e como esquecemos a maneira, o processo perdeu-se. Porém jamais morreremos nem causa­remos mal. Abandonamos os pecados do corpo e vivemos na graça divina. Não cobiçamos os bens alheios. Não temos bens. Não roubamos, não matamos, nem desejamos ou odiamos. Vivemos felizes. Não podemos nos reproduzir. Não comemos, não bebemos, não guerreamos. Todas as sensualidades, infantilidades e pecados do corpo foram extirpados quando nossos corpos foram abandonados.   Deixamos o pecado para trás, Padre Peregrine, e ele queimou como as folhas no outono, desaparecendo como a neve suja de um inverno ruim, como as flores sexuais de uma primavera vermelha e amarela, como as noites ofegantes de um verão quentíssimo. Nossas estações são temperadas e nosso clima é rico em pensamento.

Padre Peregrine ficara em pé, pois a voz o tocava com tal impacto que quase o deixou louco. Estava em êxtase, per­corrido em seu íntimo por labaredas.

— Desejamos dizer-lhe que   agradecemos   ter   construído este lugar para nós, mas não   o   necessitamos, pois cada um de nós é um templo dentro de si mesmo e não precisamos de lugares para nos purificar. Desculpe-nos por não termos vindo antes, mas estávamos em pontos diferentes e não falamos com ninguém há mais de dez mil anos, nem interferimos de ma­neira nenhuma na   vida deste planeta.   O senhor acaba de imaginar que somos os lírios do campo. Não caçamos nem fiamos. O senhor tem razão.   E por isso lhe sugerimos que leve este templo para suas novas cidades e as purifique. Pois, podemos lhe garantir, somos felizes e vivemos em paz.

Os padres estavam de joelhos em meio à vasta luz azul, juntamente com Padre Peregrine, e choravam. Não impor­tava que seu tempo tivesse sido perdido. Não tinha nenhuma importância.

As esferas azuis murmuraram e começaram a subir nova­mente numa corrente de ar frio.

— Poderei — gritou Padre Peregrine,   sem   coragem   de perguntar, com os olhos fechados —, poderei vir aqui outra vez, para aprender com o senhor?

As luzes azuis fulguraram. O ar tremulou.

Sim.   Poderia vir um dia.   Um dia.

E então os Balões de Fogo subiram e desapareceram. Padre Peregrine sentiu-se como uma criança, de joelhos, as lágrimas escorrendo dos olhos, gritando em pensamento “Vol­te, voltei”. E em nenhum instante vovô poderia erguê-lo e levá-lo para cima, para seu quarto, na cidade havia muito desaparecida de Ohio...

Desceram das colinas ao por do sol. Olhando para trás, Padre Peregrine viu os fogos azuis queimando. Não, pensou, não podemos erguer uma igreja para seres como vocês. Vocês são a própria Beleza. Que igreja pode competir com os fogos de artifício da alma pura?

Padre Stone caminhava em silêncio ao lado dele. Final­mente falou:

— Até onde posso ver, há uma Verdade em cada plane­ta. Todas partes da Grande Verdade. Num certo dia, todas se reunirão, como peças de um quebra-cabeças. Foi uma ex­periência emocionante.   Nunca mais duvidarei, Padre Pere­grine. Pois esta Verdade daqui é tão verdadeira como a Ver­dade da Terra e marcham lado a lado.   E iremos a outros mundos, juntando as partes da Verdade, até que um dia o Total aparecerá à nossa frente como a luz de um novo dia.

— É o suficiente, vindo do senhor, Padre Stone.

— De certa forma, lamento que tenhamos de ir à cidade para ajudar os da nossa espécie. Aquelas luzes azuis. Quando fixaram-se em nós, e aquela voz...

Padre Stone   estremeceu.   Padre   Peregrine   pegou-lhe o braço. Caminharam juntos.

— E sabe — disse Padre Stone finalmente, fixando os olhos no Irmão Mathias, que ia na frente, carregando cuidadosa­mente a esfera de vidro nos braços, aquela esfera de vidro com a   fosforescente luz azul   brilhando eternamente dentro — sabe, Padre Peregrine, aquele globo ali...

— Sim?

— É Ele. Apesar de tudo, è Ele.

Padre Peregrine sorriu e desceram das colinas em direção à nova cidade.

 

Fevereiro de   2003

Intermédio

Trouxeram cinco mil metros de pinho do Oregon e vinte cinco mil de sequóia da Califórnia, para construir a Décima Cidade, um pequeno, limpo e claro povoado à beira do canal de pedra. Nas noites de domingo, podia-se ver os vitrais ver­melhos, azuis e verdes das igrejas iluminados, e ouvir vozes cantando hinos numerados.

— Agora cantaremos o 79. E agora o 94.

E em certas casas podia-se ouvir o matraquear de uma máquina de escrever: era um romancista trabalhando. Ou o arranhar de uma pena: era o poeta criando. Ou então o si­lêncio total: era o ex-vagabundo trabalhando. Parecia como se, de muitos modos, um grande terremoto houvesse libertado as fundações e celeiros de uma cidade de Iowa e depois, ins­tantaneamente, um venda vai de proporções fabulosas tivesse levado a cidade inteira para Marte, pousando-a sem uma sacudidela...

 

Abril de 2003

Os Músicos

Os garotos haviam penetrado profundamente no campo marciano. Carregavam cheirosas bolsas de papel nas quais, de vez em quando, durante a extensa caminhada, metiam seus narizes para receber o rico perfume do presunto e dos picles com maionese, e ouvir o líquido borbulhar da soda-laranjada nas garrafas mornas. Balançando as bolsas de alimentos cheias de cebolas recém colhidas, de patê de fígado, de catchup ver­melho e pão branco, desafiavam uns aos outros a ultrapassar os limites determinados pelas mães severas. Corriam, gritando:

— O primeiro leva tudo!

Saíam no verão, no outono ou no inverno. O outono era mais divertido porque imaginavam estar correndo sobre as folhas caídas das árvores, como na Terra.

Chegavam como um punhado de bolas de gude, espalhan­do-se pela calçada de mármore que circundava o canal. Ti­nham o rosto rosado, olhos azuis e gritavam uns para os ou­tros, ofegantes, com a respiração cheirando a cebola. Agora, quando aproximavam-se das cidades mortas e proibidas, não mais gritavam “O último é mulher!” ou “O primeiro fingirá de músico!” Agora, as portas da cidade morta estavam abertas de par em par e eles julgavam poder ouvir, vindo de dentro, um som leve, como folhas de outono esmagadas. Avançavam em silêncio, lado a lado, carregando bastões, lembrando que seus pais haviam dito: “Lá, não! Em nenhuma das velhas ci­dades! Veja por onde anda. Você levará a maior surra da sua vida.   Examinarei seus sapatos!”

E lá estavam eles, na cidade morta, um bando de garo­tos, com os lanches meio devorados, desafiando uns aos outros em sussurros agudos.

— Vamos!

Subitamente, um deles entrou correndo na casa de pedra mais próxima, atravessou a sala e penetrou no quarto, onde, sem olhar em volta, deu pontapés, arrastou os sapatos, fa­zendo com que as folhas escuras voassem pelo ar, quebradiças, frágeis como um pedaço de tecido cortado do céu da meia-noite. Atrás dele, chegaram correndo outros seis, e o pri­meiro se fingiu de músico, tocando xilofone nos ossos bran­cos que jaziam sob as cobertas escuras. Apareceu um crânio grande, parecido com uma bola de neve. Eles gritaram! Cos­telas, como pernas de aranha, soaram como harpas embota­das, e então os negros flocos da mortalidade sopraram sobre todos eles, na sua dança arrastada. Os garotos se empurra­ram, suspiraram e caíram sobre as folhas, nessa morte que transformava os mortos em flocos secos, num brinquedo disputado por garotos cujos estômagos borbulhavam com soda-laranjada.

E saíram de uma casa para outra, percorrendo dezessete, cientes de que cada cidade, por sua. vez, seria purificada dos seus horrores pelos Bombeiros, guerreiros anti-sépticos, com suas caixas e pás, retirando os farrapos de ébano e os ossos de hortelã-pimenta, lenta, mas efetivamente, separando o ter­rível do normal. Portanto, tinham que brincar depressa, pois os Bombeiros chegariam logo!

Então, reluzentes de suor, atiraram-se aos seus últimos sanduíches. Com um pontapé final, um derradeiro concerto de marimba, um último ataque outonal às folhas secas, vol­taram para casa.

As mães examinaram seus sapatos, procurando floquinhos pretos que, se descobertos, resultariam em banhos escaldan­tes e surras paternais.

No fim daquele ano, os Bombeiros haviam varrido os xilofones brancos e as folhas de outono, acabando o diverti­mento .

 

Junho de 2003

Um Caminho no Meio do Ar

— Você ouviu falar?

— Falar de quê?

— Dos negros, dos negros!

— Que há com eles?

— Estão caindo fora, se mandando, indo embora.   Não sabia?

— Que negócio é esse de cair fora? Como podem fazer isso?

— Podem, querem e vão.

— Um par deles?

— Todos aqui no Sul!

— Não.

— Sim!

— Tenho que ver isso. Não acredito. Vão para onde... África?

Uma pausa.

— Marte.

— Você está dizendo o planeta Marte?

— Isso mesmo.

Os homens estavam em pé na sombra calorenta do al­pendre da loja de ferragens. Um deles havia deixado de acender o cachimbo. Outro deu uma cusparada na poeira escaldante do meio-dia.

— Não podem ir, não podem fazer isso.

— Apesar disso, estão fazendo.

— Onde ouviu a notícia?

— Por aí.   O rádio acabou de dar.

Como uma fila de estátuas empoeiradas, os homens co­meçaram a mexer-se.

Samuel Teece, o dono da loja, riu preocupado.

— Que terá acontecido a Silly? Mandei-o, na minha bicicleta, faz uma hora, à casa da Senhora Boardman e ainda não voltou. Acham que aquele negro idiota foi embora para Marte pedalando?

Os homens resmungaram.

— É melhor que ele traga minha bicicleta de volta. Não admito ser roubado por ninguém, juro por Deus.

— Ouçam!

Os homens viraram-se e ficaram irritados ao colidirem uns com os outros.

No começo da rua, parecia que um dique arrebentara. As águas mornas e negras desciam e inundavam a cidade. Uma onda negra flutuava entre as reluzentes margens bran­cas das lojas da cidade, cercada de árvores silenciosas. Avan­çava espessamente pela estrada cor de canela, como uma es­pécie de melado de verão. Apareceu lentamente. Eram ho­mens, mulheres, cavalos, cachorros latindo e havia também meninos e meninas. E da boca   dos   participantes   daquela onda, surgiu o som de um rio. Um rio de dia de verão, indo para algum lugar, murmurante e irrevogável. E naquele lento e firme canal de escuridão que atravessava o clarão branco do dia, havia pinceladas de um branco mais vivo: os olhos, os olhos brancos como marfim fixados na frente, nos lados, enquanto o rio, o longo e interminável rio, saía de um velho, canal para um novo. Formando-se de vários e incontáveis tributários, de córregos e regatos de cor e movimento, as partes daquele rio haviam se juntado, se transformado numa cor-rente central e   prosseguido. E enchendo a corrente, havia coisas carregadas pelo rio: velhos relógios de parede dando as horas, relógios de   cozinha   tiquetaqueando,   galinhas en­gaioladas cacarejando, crianças chorando. E nadando nos remoinhos turvos, havia   mulas, gatos e súbitas aparições de colchões com as molas à mostra e o estofo desgrenhado apa­recendo. Caixas, engradados, fotografias envelhecidas de avôs, em suas molduras de carvalho... O rio transportava aquilo tudo, enquanto os homens ficavam   sentados   como   mastins nervosos no alpendre da loja, tarde demais para reparar a represa, com as mãos vazias.

Samuel Teece não queria acreditar.

— Mas, que diabo, onde acharão transporte? Como vão chegar a Marte?

— Foguetes — disse vovô Quartermain.

— Troços diabólicos.   Mas onde arranjaram foguetes?

— Economizaram e os construíram.

— Nunca ouvi falar nisso.

— Parece que aqueles negros fizeram segredo, trabalha­ram sozinhos nos foguetes, ninguém sabe onde... na África, talvez.

— E eles podem fazer isso? — perguntou Samuel Teece, andando no alpendre de um lado para outro. — Não há leis?

— Não é como se eles tivessem declarado guerra — disse vovô, suave.

— De onde vão partir esses malditos conspiradores? — gritou Teece.

— Ficou decidido que todos os negros desta cidade devem se reunir em Loon Lake. Os foguetes estarão lá a uma hora, embarca-os e leva-os para Marte.

— Telefonem para o governador, chamem a   polícia — gritou Teece. — Deveriam ter avisado.

— Sua mulher vem aí, Teece. Os homens tornaram a se virar.

Na estrada luminosa, quente e sem vento, apareceu pri­meiro uma mulher branca e logo depois outras, todas com o espanto estampado no rosto, rumorejantes como papéis ve­lhos. Algumas estavam chorando, outras zangadas. Todas vinham procurar os maridos. Entraram, pela porta de vaivém do bar, desaparecendo. Entraram nos armazéns silenciosos e frescos, nas drogarias e garages. E uma delas, a Senhora Clara Teece, veio postar-se diante do alpendre empoeirado da ferraria, encarando seu tenso e furioso marido enquanto o rio negro passava às suas costas.

— É Lucinda, Sam.   Você tem que vir em casa!

— Não vou para casa por causa de nenhuma crioula dos diabos!

— Ela está indo embora. Que vou fazer sem ela?

— Você se arrumará. Não vou pedir-lhe de joelhos que fique.

— Ela é como um membro da família — lamentou-se a Senhora Teece.

— Não grite! Não quero ver você chorando em público por causa de uma desgraçada...

Um fraco soluço da mulher fê-lo calar-se. Ela enxugou os olhos:

— Me cansei de dizer-lhe: “Lucinda, fique e aumenta­rei seu salário. Lhe darei duas noites de folga por semana, se quiser”. Porém ela estava decidida! Nunca a vi tão deci­dida e lhe disse: “Você não gosta de mim, Lucinda?” Ela res­pondeu que   sim, mas tinha que ir porque as coisas eram assim. Limpou e arrumou a casa, pôs o almoço na mesa, foi até a sala de visitas, com dois pacotes que colocou aos pés, apertou minha mão e disse: “Adeus, Senhora Teece”. E saiu pela porta.   O almoço ficou na mesa, pois estávamos muito preocupados para comer. Ainda está lá. Na última vez que olhei para ele, estava esfriando. Teece quase a espancou.

— Que diabo, Senhora Teece, volte para aquele raio de casa. Parada aí, dando um espetáculo!

— Mas, Sam...

Sam entrou precipitadamente na quente escuridão da loja. Voltou logo â seguir com uma pistola niquelada na mão.

A mulher havia ido embora.

O rio continuava a correr, negro, entre os edifícios, ro­çando, estalando, num constante arrastar sussurrante. Era um fluxo muito silencioso, com uma grande certeza interior. Não havia risos nem violência. Apenas um firme, decidido e in­cessante fluxo.

Teece sentou na beira da sua cadeira de faia,

— Se alguém se atrever a rir, juro por Deus que o mato. Os homens esperavam.

O rio passava silenciosamente naquele fantástico meio-dia.

— Sam, parece que você vai ter que colher seus próprios nabos — riu o velho.

— Também não atiro mal em gente branca.

Teece não olhou para o velho, e este virou a cabeça, calando-se.

— Espere aí! — Samuel Teece pulou do alpendre, agar­rando as rédeas de um cavalo montado por um negro alto. — Belter, trate de desmontar!

— Sim,   senhor — disse   Belter,   desmontando. Teece olhou-o de alto a baixo.

— Que é que você está fazendo?

— Bem, Senhor Teece...

— Suponho que está pensando em ir embora, exatamen­te como naquela canção, como é mesmo? “Um caminho no meio do ar”.   Não é isso?

É, sim, senhor.

O negro ficou esperando.

— Reconhece que me deve cinqüenta dólares,   Belter?

— Reconheço, sim, senhor.

— E ia embora sem pagar? Juro que vou lhe dar umas chicotadas!

— Com   toda   essa agitação, acabei esquecendo, senhor.

— Esqueceu — Teece piscou maldosamente para os ho­mens que estavam no alpendre da loja. — Que diabo, sabe o que vai ter que fazer?

— Não, senhor.

— Vai ficar aqui e pagar os cinqüenta mangos com tra­balho ou não me chamo Samuel W. Teece.

Virou e deu uma risadinha para os homens sentados à sombra.

Belter olhou para o rio correndo pela rua, aquele rio escuro fluindo entre os prédios, o rio negro sobre rodas, ca­valos e sapatos empoeirados, o rio escuro do qual havia sido arrebatado. Começou a tremer.

— Deixe-me ir, Senhor Teece. Prometo-lhe que mando o dinheiro assim que chegar lá em cima!

— Ouça, Belter — Teece agarrou os suspensórios do negro como se fossem cordas de uma harpa, brincando com   eles desdenhosamente, rosnando para o céu, apontando um dedo ossudo diretamente para Deus.

— Belter, sabe o que há lá em cima?

— Só o que me disseram.

— Só o que disseram a ele! Cristo! Ouviram? Só o que disseram a ele! — ergueu todo o peso do homem pelos sus­pensórios,   negligentemente, como que sem querer, apontan­do um dedo para o rosto negro.   — Belter, você sobe, sobe, como um foguete do Dia da Independência e bang! Pronto, você vira cinza, espalhada por todo o espaço     Esses cientis­tas malucos não sabem de nada e vão matar todos vocês!

— Não me importo.

— Gosto de ouvir isso. Porque sabe o que há nesse pla­neta Marte? Monstros de grandes olhos frios como cogume­los! Já viu retratos deles nas revistas de ficção científica ba­ratas que compra no jornaleiro da esquina, não viu? Bem! Aqueles monstros atacarão vocês e extrairão todo o tutano dos seus ossos!

— Não me importo, não me importo, não me importo. Belter olhou para o desfile se afastando, deixando-o para trás. O suor começou a aparecer em sua testa escura. Estava a ponto de desmaiar.

— E faz frio lá em cima. Sem ar, você cai, arrasta-se como um peixe, sufocado, morrendo, engasgando-se, engasgando-se e morrendo.   Gosta disso?

Não gosto de uma porção de coisas, senhor. Por favor, deixe-me ir. Estou atrasado.

— Você irá quando eu quiser. Vamos ficar aqui conver­sando, como pessoas educadas, até eu dizer que você pode ir, coisa que você sabe muito bem. Quer viajar, não quer? Pois bem, Senhor Um Caminho No Meio Do Ar, volte para casa e trabalhe os cinqüenta dólares que me devei Vai levar dois meses para isso!

— Mas se eu trabalhar, perderei o foguete, senhor!

— Não é uma pena?

Teece fingiu ter ficado triste.

— Lhe darei meu cavalo, senhor.

— O cavalo não é um pagamento legal.   Você não via­jará até eu receber meu dinheiro.

Teece riu para si mesmo, entusiasmado e contente.

 

Uma pequena multidão de negros havia-se juntado em torno, ouvindo tudo. Como Belter ficasse cabisbaixo e trê­mulo, um velho adiantou-se.

— Senhor?

Teece lançou-lhe um olhar de soslaio.

— Que é?

— Quanto esse homem lhe deve, senhor?

— Não é da sua conta!

O velho olhou para Belter.

— Quanto, filho?

— Cinqüenta dólares.

O velho estendeu as mãos negras para os que estavam em volta.

— Somos vinte cinco. Cada um entra com dois dólares. Depressa, não há tempo para discussões.

— Olhe aqui! — gritou Teece, retesando o corpo.

O dinheiro apareceu. O homem colocou-o no chapéu, entregando-o a Belter.

— Filho — disse o negro velho —, você não vai perder o foguete.

Belter olhou,   sorrindo, o conteúdo do chapéu.

— Não, senhor, acho que não! Teece berrou:

— Devolva esse dinheiro a eles!

Belter inclinou-se respeitosamente, estendendo-lhe o di­nheiro, e quando Teece o recusou, colocou-o no chão, aos pés do credor.

— Aqui está o seu dinheiro, senhor — disse Belter. — Muitíssimo obrigado.

Sorrindo, montou no cavalo, chicoteou-o, agradeceu ao velho, que seguiu ao seu lado até ficarem fora de alcance.

— Filho da puta — murmurou Teece, olhando cegamen­te para o sol. — Filho da puta.

— Pegue seu dinheiro,   Samuel — disse   alguém   no   al­pendre.

Cenas semelhantes iam acontecendo pelo caminho afora. Garotos brancos, descalços, corriam com as novidades.

— Os que têm, ajudam os que não têm! E dessa maneira todos ficam livres! Vi um homem rico dar a um pobre du­zentos mangos para saldar uma dívida! Vi outro dar a outro dez, cinco,   dezesseis mangos, montes   de   vezes,   por   toda a parte!

Os brancos ficaram sentados, com um gosto amargo na boca. Seus olhos estavam semi-cerrados como se tivessem sido atingidos no rosto por areia, vento e calor.

Samuel Teece estava furioso. Subiu para o alpendre e olhou o enxame em marcha. Agitou o revólver. Pouco de­pois, não podendo mais se conter, começou a gritar para todos, para cada negro que olhava.

— Bang!   Há outro foguete   no espaço   que explode!   — gritava de maneira a que todos ouvissem. — Bang! Por Deus! — As cabeças escuras não tremiam e fingiam não ouvir, mas seus olhos brancos viravam-se para cima e para trás. — Crac! Caem todos os foguetes! Gritos,   mortes!   Bang!   Deus Todo Poderoso, estou contente porque estou aqui, na velha terra firma (Como no original. (N.doT.)). Como diz a velha piada, quanto mais firma, menos terra!   Ha, ha!

Os cavalos trotavam, levantando poeira. Os carroções bamboleavam sobre molas quebradas.

— Bang! — a voz de Teece clamava solitária em meio ao calor, como se quisesse atemorizar a poeira e o céu deslum­brante.   — Pum! Crioulos espalhados   pelo espaço!   Atirados dos foguetes como peixinhos atingidos por um meteoro, por Deus! O espaço cheio de meteoros. Estão vendo? Claro! Como uma nuvem de chumbo grosso, pumba! Penetram nos fogue­tes de lata e os atingem como patos, como cachimbos de barro! Velhas latas de sardinha cheias de bacalhau preto! Atingidos como pastéis folhados compridos, bang, bang, bang! Dez mil mortos aqui, dez mil mortos ali. Flutuando no espaço, per­manentemente em volta da Terra, gelados, Senhor. Vocês ai, estão ouvindo? Silêncio. O rio era amplo e contínuo. Tendo entrado em todas as cabanas das plantações de algodão, ha­viam retirado todas as coisas valiosas, estavam agora carre­gando os relógios, as tábuas de lavar, os cintos de seda e os suportes das cortinas, para algum mar negro distante.

A maré alta havia passado. Eram duas horas. Começava a maré baixa. Breve o rio estaria seco, a cidade silenciosa, a poeira instalando-se como uma película nas lojas, nos ho­mens sentados, nas árvores altas e quentes.

Silêncio.

Os homens no alpendre escutavam.

Não ouviram nada e estenderam seus pensamentos e ima­ginação até os prados em volta. De manhã cedo, a terra es­tava sempre cheia da usual mistura de sons. Aqui e ali, com a teimosa persistência do hábito, tinha havido vozes cantan­do, doces sorrisos sob os ramos das mimosas, os negrinhos correndo e brincando na água do riacho, movimentos e flexões nos campos, brincadeiras e gritos de alegria nas barra­cas de madeira cobertas de parreiras verdes.

Era como se um venda vai tivesse eliminado todos os sons do solo. Não havia nada. Os painéis das portas abertas pen­diam das dobradiças de couro. Balanços de pneumáticos ja­ziam, solitários, no ar silencioso. As rochas polidas pelas águas na beira do rio estavam vazias, e as moitas de melan­cias, se ainda tivesse sobrado alguma, foram abandonadas para cozinhar seus sumos ocultos ao sol. As aranhas princi­piaram a construir novas teias nas cabanas desertas. O pó começava a se introduzir pelos tetos destruídos, em espigas douradas. Aqui e ali, um fogo, esquecido na pressa da par­tida, crescia subitamente e incendiava o esqueleto seco de uma cabana de palha. O ligeiro crepitar das chamas eleva­va-se no ar silencioso.

Os homens continuavam sentados no alpendre da loja, sem piscar, retendo a respiração.

— Não posso imaginar por que se vão agora. Com as coisas melhorando. Quero dizer, a cada dia aumentam os direitos deles.   Que é que eles querem, mais? Ganham quase tanto quanto um branco e mesmo assim vão embora. Ao longe, na rua vazia, surgiu uma bicicleta.

— Raios me partam, Teece, lá vem seu Silly.

A bicicleta parou diante do alpendre, montada por um rapaz negro de dezessete anos, braços, pernas e pés enormes, com uma cabeça de melancia. Ergueu os olhos para Samuel Teece e sorriu.

— Você então sentiu um peso na consciência e voltou — disse Teece.

— Não, senhor, apenas vim trazer a bicicleta.

— Por quê? Ela não pode ir no foguete?

— Não foi isso, senhor.

— Não me diga o que foi. Desça, você não vai roubar o que é meu! — deu um empurrão no rapaz. A bicicleta caiu. — Vá para dentro e limpe os metais.

— Como? — perguntou o rapaz, de olhos esbugalhados.

— Não se faça de bobo. Há umas caixas de armas para abrir e outra de pregos, recém chegadas de Natchez. ..

— Senhor Teece.

— E arrumar uma caixa de martelos. . .

— Senhor Teece?

— Você ainda está aí? — gritou Teece, furioso.

— Senhor Teece, hoje não vou poder trabalhar — disse, como que se   desculpando.

— E amanhã e depois de amanhã e depois de depois de amanhã e no dia seguinte e no outro também — disse Teece.

— Temo que sim, senhor.

— Deve temer mesmo, rapaz. Venha comigo — o rapaz o acompanhou pelo alpendre e ele tirou uma folha de papel da escrivaninha.   — Lembra-se disto?

— Senhor?

— É o seu contrato de trabalho.   Você o assinou, aqui está o seu X, não é? Responda.

— Eu não assinei isso, Senhor Teece — o rapaz estreme­ceu. — Qualquer um pode fazer um X.

— Ouça   isto,   Silly.   Contrato:   Trabalharei   para o   Se­nhor Samuel Teece durante dois anos, a partir do dia 15 de julho de 2001, e se resolver me despedir, lhe darei um aviso prévio de quatro semanas, continuando a trabalhar até com­pletar esse prazo.   Está aí — Teece bateu no papel, com os olhos fuzilando. — Você está querendo encrenca e eu vou levar o caso à Justiça.

— Não posso fazer isso — gemeu o rapaz, com as lágri­mas escorrendo pelo rosto. — Se eu não for hoje, não irei mais.

— Sei como se sente, Silly.   Sim, senhor, simpatizo com você, rapaz.   Mas tratamos você bem, demos-lhe alimentação sadia, rapaz. Agora você entra, começa a trabalhar e esquece toda essa bobagem, hem, Silly? Claro.

Teece riu e bateu nas costas do rapaz. O rapaz virou-se e olhou para os velhos sentados no al­pendre. Mal podia enxergar, por causa das lágrimas.

— Talvez...   talvez um destes senhores...

Os homens ergueram os olhos dentro da sombra calorenta, primeiro para o rapaz e depois para Teece.

— Você está querendo dizer que pensa que um branco seria capaz de ficar no seu lugar, rapaz? — perguntou Teece, friamente.

Vovô Quartermain retirou as mãos vermelhas dos joe lhos. Olhou pensativamente para o horizonte e perguntou:

— Teece, que tal eu?

— Como?

— Fico no lugar do Silly.

O alpendre estava silencioso. Teece balançou o corpo.

— Vovô — disse, ameaçador.

— Deixe o rapaz ir.   Eu limparei os metais.

— De verdade, de verdade? Quer mesmo?

Silly correu para o velho, rindo, chorando, sem acreditar.

— Claro.

— Vovô — disse Teece — não se meta nisso.

— Dê uma oportunidade ao rapaz, Teece. Teece adiantou-se e pegou o rapaz pelo braço.

— É meu.   Vou prendê-lo no quarto dos fundos até de noite.

— Não faça isso, Senhor Teece!

O rapaz começou a soluçar. Seus gritos encheram o al­pendre. Seus olhos estavam fechados. No fim da rua apare­ceu um Ford velho e sacolejante, que se aproximou com uma última leva de negros dentro.

— Minha família está chegando, Senhor Teece. Ah, por favor, por favor, meu Deus, por favor!

— Teece — disse um dos outros homens no alpendre, levantando-se. — Deixe o rapaz ir embora.

Mais um homem levantou.

— Sou da mesma opinião.

— E eu — acrescentou outro.

— Que adianta? — todos falavam ao mesmo tempo.   — Deixe disso, Teece.

— Deixe-o ir.

Teece meteu a mão no bolso procurando a arma. Viu os rostos em volta. Retirou a mão, deixando a arma onde estava e disse:

— Então é assim?

— É assim — confirmou alguém. Teece largou o rapaz.

— Está bem. Fora — apontou para a loja. — Mas espero que você não vá deixar todo aquele lixo lá atrás, atravancan­do minha loja.

— Não, senhor!

— Limpe todo o depósito lá atrás e queime. Silly sacudiu a cabeça.

— Vou levar comigo.

— Não vão deixá-lo botar aquilo naquele maldito foguete.

— Vou levar comigo — insistiu o rapaz, em voz suave. Correu para os fundos da loja de ferragens.   Ouviu-se o barulho de varredura e um momento depois Silly reapare­ceu, com as mãos cheias de dados, bolas de gude, velhas pipas empoeiradas, todos os bagulhos reunidos através dos anos. Nesse instante chegou o velho Ford e Silly pulou para dentro dele, batendo a porta.

Teece ficou parado no alpendre, com um sorriso amargo.

— Que é que você vai fazer lá em cima?

Começar de novo — respondeu Silly.   — Vou ter mi­nha própria loja de ferragens.

— Desgraçado, ficou aqui aprendendo para depois ir em­bora e usar!

— Não, senhor, nunca pensei que um dia isto fosse acon­tecer, senhor, mas aconteceu.   Não tenho culpa se   aprendi, Senhor Teece.

— Imagino que tenham batizado os foguetes? Olharam para o relógio no painel do carro.

— Isso mesmo, senhor.

— Como Elias e o Carro, a Roda Maior e a Roda Menor, Fé, Esperança e Caridade, hem?

— Batizamos as naves, Senhor Teece.

— Assim como Deus, Filho e Espírito Santo? Algum cha­mado Primeira Igreja Batista?

— Precisamos partir, Senhor Teece. Teece riu.

— Há uma chamada Swing Low e outra Swing Chariot? O carro partiu.

— Adeus, Senhor Teece.

— E outra Roll Dem Bones?

Adeus, senhor!

— E outra Over Jordan? Ha! Muito bem, carrega o fo­guete, rapaz, levanta vôo, rapaz, parte, explode, pois pouco me importa!

O carro sacolejou na poeira. O rapaz levantou-se, colo­cou as mãos em volta da boca e gritou pela última vez:

— Senhor Teece, Senhor Teece, que é que o senhor vai fazer de suas noites, de agora em diante? Que é que vai jazer de suas noites, Senhor Teece?

Silêncio. O carro desapareceu na estrada. Fora embora.

— Que diabo quis ele dizer? — resmungou Teece. — Que vou fazer de minhas noites?

Ficou olhando a poeira assentar e subitamente lem­brou-se .

Lembrou-se de noites em que homens de olhos maus che­gavam em seus carros, com os joelhos salientes servindo de apoio a armas ainda mais salientes, como automóveis cheios de vigas sob as árvores noturnas de verão. Tocavam a buzi­na e ele saía, batendo a porta, com uma arma na mão, rindo de alegria, com o coração pulando como o de um menino de dez anos, dirigindo-se todos para a estrada noturna de verão, com um rolo de corda de cânhamo no fundo do carro e cai­xas de balas estufando os casacos dos homens. Quantas noites, ano após ano, quantas noites de vento açoitando o carro, ati­rando o cabelo sobre seus olhos maus, rugindo quando atin­giam uma árvore, uma árvore forte e boa, e batiam na porta de uma cabana!

— Então era isso o que o filho da puta queria dizer? — Teece pulou para a rua, para a luz do sol. — Volte, seu ca­lhorda! Que farei das minhas noites? Ora, esse nojento e insolente filho da...

Havia sido uma pergunta infernal. Ela o deixara enjoa­do e vazio. Sim. Que iria fazer das noites?, pensou. Agora, que eles tinham partido, que fazer? Estava absolutamente oco e estarrecido.

Tirou a arma do bolso e examinou a carga.

— Que   vai fazer, Sam? — alguém perguntou.

— Matar aquele filho da puta. Vovô falou:

— Não esquente a cabeça.

Mas Samuel Teece havia desaparecido por trás da loja. Logo depois surgiu na camioneta.

— Quem vem comigo?

— Gostaria de dar um passeio — disse  o   velho, levantando-se.

— Mais alguém? Ninguém respondeu.

O velho entrou no carro e bateu a porta Samuel Teece tomou a estrada em meio a uma grande nuvem de poeira. Ficaram calados enquanto corriam pela estrada sob o sol quente. O calor, vindo dos campos secos, fazia o ar tremer.

Pararam num cruzamento.

— Que caminho tomaram, vovô? O velho deu uma olhada.

— Acho que em frente.

Prosseguiram. Sob as árvores de verão só se ouvia o ba­rulho do carro deles. A estrada estava deserta e, enquanto continuavam, começaram a notar alguma coisa. Teece dimi­nuiu a marcha, pôs o corpo para fora e olhou curioso.

— Malditos! Você viu, vovô, o que os calhordas fizeram?

— O quê? — perguntou o velho, olhando.

Espalhados cuidadosamente, arrumados ao longo da es­trada vazia, viam-se velhos patins de rodas, um grande lenço cheio de quinquilharias, sapatos fora de uso, uma roda de car­ro, pilhas de casacos, calças e chapéus velhos, pedaços de cristal oriental que já havia tilintado ao vento, latas de gerânios vermelhos, centros de mesa de frutas de cera, caixas de dinheiro confederado, banheiras, esfregões, cordas de secar roupa, sabão, um triciclo, tesouras de jardinagem, um vagão de brinquedo, uma caixa de surpresas, um vitral da Igreja Batista Negra, aros de rodas, câmaras de ar, colchões, sofás, cadeiras de balanço, potes de cremes para a pele, espelhos de mão. Não estavam atirados, não, mas deportados carinhosa­mente, com sentimento e decoro, na beira empoeirada da estrada, como se uma cidade inteira tivesse ido até ali, com as mãos cheias, no momento em que foi tocada uma grande trombeta de bronze, e depositado na poeira deserta o que trouxeram. Depois, todos os habitantes da região voaram di­retos para o céu azul.

— Não vamos queimá-los, disse ele — fritou Teece, fu­rioso. — Não, não os queimaram, como disseram, mas os trou­xeram e deixaram onde pudessem vê-los pela última vez, na estrada. Esses crioulos pensam que são espertos.

Dirigiu o carro brutalmente, quilômetro após quilôme­tro, pela estrada a fora, atropelando, esmagando, quebrando, estourando caixas de papelão, cofres de jóias, espelhos, ca­deiras .

— Tomem, desgraçados, tomem!

Um pneu dianteiro sibilou. O carro pulou desordenada­mente e saiu da estrada, caindo numa vala e atirando Teece contra o pára-brisa.

— Filhos da puta!

Teece sacudiu a poeira e ficou ao lado do carro, quase chorando de raiva. Olhou para a estrada vazia e silenciosa.

— Nunca mais os pegaremos, nunca, nunca.

Até onde seus olhos alcançavam, só havia, pacotes e pi­lhas, mais pacotes e mais pilhas, cuidadosamente arrumados como relíquias abandonadas na véspera ao cálido vento.

Teece e o velho voltaram a pé, chegando à loja de fer­ragens uma hora mais tarde, mortos de cansaço. Os homens continuavam sentados lá, ouvindo, examinando o céu. No exato momento em que Teece sentou-se e tirou os sapatos, aliviando os pés cansados, alguém gritou:

— Olhem!

— Prefiro ir para o inferno! — disse Teece.

Mas os outros olharam. E viram as lançadeiras douradas subirem no céu distante. Desapareceram, deixando uma estei­ra de chamas.

Nos algodoais, o vento balançou preguiçosamente os flo­cos. Em prados mais distantes, as melancias jaziam intoca­das, como tartarugas rajadas ao sol.

Os homens no alpendre voltaram a sentar-se, olharam uns para os outros, olharam para os rolos de corda nas prateleiras da loja, observaram as balas reluzindo em suas cai­xas, viram as pistolas e as espingardas de cano longo e preto, penduradas, silenciosas, nas sombras. Alguém pôs uma palha na boca. Um outro desenhou um rosto no chão.

Finalmente, Samuel Teece ergueu o sapato triunfalmente, virou-o, olhou-o e disse:

— Repararam? Até o último instante ele me chamou de “senhor”!

 

2004 - 2005

A Escolha dos Nomes

Chegaram às estranhas terras azuis e as batizaram com seus nomes: Riacho Hinkston, Ponto Lustig, Rio Negro, Flo­resta Driscoll, Montanha Peregrine, Cidade Wilder, todos nomes de pessoas e de coisas feitas por elas. No local em que os marcianos mataram o primeiro terrestre, nasceu a Cidade Vermelha, que se relacionava com sangue. E ao lugar onde a segunda expedição foi destruída, deram o nome de Segun­da Tentativa. Em todos os lugares onde os tripulantes dos foguetes haviam marcado o chão com seus caldeirões arden­tes, os nomes foram deixados como cinzas e, é claro, havia uma Colina Spender e uma Cidade Nathaniel York...

Os velhos nomes marcianos eram nomes de água, ar e colinas. Eram nomes de neves que abandonavam o sul pelos canais de pedra para encher os mares. E nomes de feiticei­ros sepultados em catacumbas herméticas, de torres e de obeliscos. E os foguetes atingiram esses nomes como marre­tas, arrebentaram os mármores, destruíram os marcos de ar­gila que designavam as cidades antigas, sobre cujos escom­bros foram plantadas grandes torres com os novos nomes: Cidade do Ferro, Cidade do Aço, Cidade do Alumínio, Al­deia Elétrica, Cidade do Milho, Vila Cereal, Detroit II, tudo repetindo mecanicamente nomes de metais e outros da Terra.

E depois de construir e batizar cidades, foram construí­dos e batizados os cemitérios: Colina Verde, Cidade do Musgo, Colina da Bota, Morada Pequenina. E os primeiros mortos baixaram aos túmulos...

 

Agosto de 2005

Os Velhos

Nada mais natural que, finalmente, os velhos chegassem a Marte, na esteira dos barulhentos exploradores, dos perfu­mados grã-finos, dos viajantes profissionais e dos conferencistas românticos, à procura de coisas novas.

E as pessoas secas e quebradiças, as pessoas que passavam a vida a ouvir o pulsar dos seus corações e a sentir o bater dos seus pulsos, derramando colheradas de xarope em suas bocas retorcidas, essa gente que costumava tomar ônibus de luxo para a Califórnia em novembro e navios de terceira classe para a Itália em abril, aquelas passas de uva, aquelas múmias, finalmente chegaram a Marte...

 

Setembro de 2005

O Marciano

As montanhas azuis erguiam-se na chuva que caía nos longos canais. O velho LaFarge e a esposa saíram de casa para olhar.

— Primeira chuva da estação — disse LaFarge apontando.

— Que bom — comentou sua mulher.

— Muito bem-vinda.

Fecharam a porta. Dentro, aqueceram as mãos na larei­ra. Estavam tiritando. Pela vidraça, viram ao longe a chuva reluzindo nos flancos do foguete que os trouxera da Terra.

— Só falta uma coisa — disse LaFarge, olhando para as mãos.

— O que é? — perguntou a esposa.

— Gostaria de ter podido trazer Tom conosco.

— Ah, pare com isso, Lafe!

— Desculpe, não começarei outra vez.

— Viemos para cá a fim de gozar nossa velhice em paz e não para pensar em Tom. Ele está morto há muito tempo. Vamos tratar de esquecê-lo e a tudo o mais na Terra.

— Tem razão — concordou ele, e tornou a estender as mãos para o fogo, vendo-o crepitar. — Não falarei mais nisso. Mas sinto falta da ida aos domingos ao Green Lawn Park colocar flores em seu túmulo. Era a nossa única   saída   de casa.

A chuva azul caiu sobre a casa.

Às nove da noite foram para a cama, onde se deitaram silenciosamente, de mãos dadas, ele com cinqüenta e cinco anos, ela com sessenta, na escura noite chuvosa.

— Anna? — chamou o homem, com suavidade.

— Sim? — respondeu ela.

— Ouviu alguma coisa?

Ambos prestaram atenção à chuva e ao vento.

— Nada — comentou ela.

— Alguém assoviando.

— Não, não ouvi.

— Seja como for, vou dar uma olhada.

Vestiu o roupão e atravessou a casa até à porta da rua. Hesitante, escancarou-a e a chuva caiu, gelada, em seu rosto. O vento.   O vento assoviou.

No portão via-se um vulto pequeno.

Um relâmpago cortou o céu e um banho de luz branca iluminou o rosto que olhava para o velho LaFarge na soleira.

— Quem está aí? — perguntou LaFarge, trêmulo. Não houve resposta.

— Quem é?   Que quer? Continuou o silêncio.

O velho sentiu-se muito fraco, cansado e tonto.

— Quem é você? — gritou.

A mulher apareceu por trás dele e pegou-lhe no braço.

— Por que está gritando?

— Há um garoto parado no jardim e não quer me res­ponder — disse o velho, tremendo. — Parece com o Tom!

— Venha para a cama, você está sonhando.

— Mas está ali. Veja você mesma.

Escancarou totalmente a porta para que ela pudesse ver. O vento frio assoviava e a chuva fina caía sobre o solo. O vulto continuou olhando-os com olhos vagos. A velha agar­rou-se ao batente.

— Vá embora! — disse ela, fazendo um gesto com a mão. — Vá embora!

— Não parece com Tom? — perguntou o velho. O vulto não se moveu.

— Estou com medo — falou a velha. — Feche a porta e venha deitar.   Não quero saber disso.

Ela desapareceu no quarto, lamentando-se. O velho ficou ali, com as mãos molhadas pela chuva to­cada pelo vento frio.

— Tom   — chamou baixinho. — Tom, se for você, se houver uma possibilidade de ser você, Tom, deixarei a porta destrancada. E se você tiver frio e quiser entrar para se aque­cer, entre mais tarde e deite-se junto à lareira. Lá, encontra­rá umas cobertas de pele.

Fechou, más não trancou a porta.

A mulher sentiu-o voltar para a cama e estremeceu.

— Que noite horrível. Me sinto tão velha — disse, soluçando.

— Vamos, vamos — acariciou-a e tomou-a nos braços. — Agora, durma.

Ela custou a adormecer.

E então, em silêncio, ficou escutando até que ouviu a porta da frente abrir, fazendo entrar a chuva e o vento, e depois fechar. Ouviu passos abafados junto à lareira e uma respiração suave.

— Tom — disse para si mesmo.

Um raio explodiu no espaço, rasgando a escuridão.

Pela manhã, o sol estava muito quente. O Senhor La­Farge abriu a porta que dava para a sala de visitas e lançou uma olhada rápida.

A coberta de peles da lareira estava vazia.

LaFarge suspirou.

— Estou ficando velho — refletiu.

Encaminhou-se para a porta, com a intenção de ir até o canal apanhar um balde de água cristalina. Ao abri-la, quase colidiu com o jovem Tom, que trazia um balde cheio até a borda.

— Bom dia, papai!

— Bom dia, Tom.

O velho pôs-se de lado. O rapaz, descalço, atravessou a sala correndo, largou o balde e virou-se, sorrindo.

— Está um dia maravilhoso!

— Está mesmo — disse o velho, incrédulo.

O rapaz se comportava como se não houvesse nada fora do normal. Usou a água para lavar o rosto. O velho caminhou para ele.

— Tom,   como chegou aqui? Você está vivo?

— Não deveria estar? — disse o rapaz, erguendo os olhos.

— Mas, Tom, Green Lawn Park, todos os domingos, as flores e... — LaFarge viu-se obrigado a sentar. O rapaz se aproximou, ficou ao lado dele e pegou em sua mão. O velho sentiu os dedos, quentes e firmes. — Você está mesmo aqui, não é um sonho?

— O senhor quer mesmo que eu esteja aqui, não é? Parecia preocupado.

— Sim, Tom, sim!

— Então, para que fazer perguntas? Receba-me!

— Mas sua mãe, o choque...

— Não se preocupe com ela. Durante a noite eu cantei para ambos e me aceitaram por causa disso, principalmente ela. Sei o que é um choque. Espere ela chegar e veja.

Riu, sacudindo a cabeça coberta de cabelos encaracolados, cor de cobre. Seus olhos eram de um azul muito claro.

— Bom dia, Lafe e Tom — a velha saiu do quarto, fa­zendo um coque no alto da cabeça. — Não está um dia lindo?

Tom virou e riu para o pai.

— Está vendo?

Os três fizeram uma ótima refeição, na sombra por trás da casa. A Senhora LaFarge havia descoberto uma velha garrafa de vinho de girassol e todos beberam. O Senhor LaFarge há muito não via o rosto de sua mulher tão alegre. Se ela desconfiava alguma coisa com relação a Tom, não o demonstrou. Era completamente natural para ela. E também começou a se tornar natural para o próprio LaFarge.

Enquanto a mulher lavava a louça, LaFarge inclinou-se para o filho e perguntou, baixinho:

— Quantos anos você tem agora?

— Não sabe, papai? Quatorze, claro.

— Quem é você, realmente? Não pode ser Tom, mas é alguém.   Quem?

— Não me pergunte — respondeu o rapaz, amedrontado, cobrindo o rosto com as mãos.

— Você tem de me dizer — insistiu o velho. — Estou en­tendendo. Você é marciano, hem? Ouvi contarem coisas sobre os marcianos. Tudo meio vago. Coisas como serem muito escassos e quando aparecem entre nós o fazem como terres­tres. Há alguma coisa em você... você é Tom e ao mesmo tempo não é.

— Não pode me aceitar e parar de falar? — gritou o ra­paz. Seu rosto estava completamente coberto pelas mãos. — Não duvide, por favor, não duvide de mim!

Levantou-se da mesa e saiu correndo.

— Tom, venha cá!

Mas o rapaz continuou correndo pela margem do canal em direção à cidade distante.

— Onde foi Tom? — perguntou   Anna,   voltando   para apanhar mais louça. Examinou o rosto do marido. — Você disse alguma coisa que o aborreceu?

— Anna — disse o velho, pegando-lhe a mão.   — Anna, lembra-se de alguma coisa sobre Green Lawn Park, um mer­cado e Tom com pneumonia?

— Do que é que você está falando? — perguntou Anna, rindo.

— De nada — falou o velho em voz baixa.

A nuvem de poeira levantada por Tom começou a assen­tar na beira do canal.

Às cinco da tarde, com o crepúsculo, Tom voltou. Olhou sem jeito para o pai.

— Vai me perguntar alguma coisa? — quis saber.

— Não farei perguntas — disse LaFarge. O rapaz abriu-se num sorriso muito alvo.

— Ótimo.

— Onde você foi?

— Nos arredores da cidade.   Quase   não voltei. Quase me... — o rapaz procurou uma palavra — prenderam.

— “Prenderam” como?

— Quando   passei   por uma casinha de zinco   perto do canal senti que talvez nunca voltasse a vê-lo.   Não sei explicar, não tenho como, não   posso dizer, pois eu mesmo não sei. É estranho e prefiro não falar nisso.

— Então não falaremos.   Meu filho, é   melhor   você se aprontar.   Está na hora do jantar.

O rapaz saiu correndo.

Talvez uns dez minutos mais tarde, um barco aproximou-se pela serena superfície do canal. Um homem magro e alto, de cabelos pretos, fazia-o mover-se com uma vara, sem esforço aparente.

— Boa tarde, Irmão LaFarge — disse, detendo-se.

— Boa tarde, Saul. Quais são as novidades?

— Hoje há muitas.   Conhece aquele camarada chamado Nomland, que mora perto do canal, na cabana de zinco?

LaFarge ficou tenso.

— Sim?

— Sabe a espécie de patife que ele é?

— Há boatos de que fugiu da Terra por ter morto um homem.

Saul apoiou-se na vara molhada, encarando LaFarge.

— Lembra o nome do homem que ele matou?

— Não foi Gillings?

— Isso. Gillings. Bem, há cerca de duas horas, o Senhor Nomland chegou esbaforido   na cidade, gritando que tinha visto Gillings, vivo, aqui em Marte, hoje, esta tardei Implo­rou para ser fechado na cadeia. O carcereiro não permitiu. Dessa forma, Nomland voltou para casa e,   vinte   minutos depois, segundo me contaram, estourou os miolos com um tiro. Estou chegando de lá.

— Ora, ora — disse LaFarge.

— As coisas mais terríveis podem acontecer — comentou Saul.   — Bem, boa noite, LaFarge.

— Boa noite.

O barco deslizou pelas serenas águas do canal abaixo.

— O jantar está na mesa — chamou a velha.

O Senhor LaFarge sentou-se e, de faca na mão, olhou para Tom.

— Tom — perguntou — você fez o que esta tarde?

— Nada — respondeu Tom, com a boca cheia.   — Por quê?

— Só queria saber.

O velho prendeu   o guardanapo no pescoço

Às sete daquela mesma noite, a velha quis ir à cidade.

— Há meses que não vamos lá — disse ela. Tom recusou-se a ir.

— Tenho medo da cidade — disse ele. — Da gente.   Não quero ir lá.

— Um homenzinho falando assim — comentou Anna. — Nem quero ouvir.   Você irá, está decidido.

— Anna, se o rapaz não quer ir... — começou o velho. Mas foi   inútil discutir.   Ela os   empurrou para dentro do barco e subiram o canal, sob as estrelas noturnas. Tom estava deitado de costas, com os olhos fechados. Dormindo ou não, era impossível saber. O velho o olhava com atenção, pensativo. Quem é ele, raciocinou, tão carente de afeto quan­to nós? Quem é e o que é este ser que, saindo de sua solidão, aproxima-se de acampamentos estranhos e assume a voz e a fisionomia de recordações, instalando-se entre nós, finalmen­te, aceito e feliz? De que montanhas, de que caverna, de que minúscula raça sobrevivente deste mundo, à chegada dos fo­guetes da Terra? O velho sacudiu a cabeça. Não havia meios de saber. Aquele, para todos os efeitos, era Tom.

O velho olhou para a cidade pouco adiante e não gostou, mas depois voltou aos seus pensamentos a respeito de Tom e Anna, e comentou para si mesmo: Talvez seja errado con­servarmos Tom conosco um pouco, pois nada advirá de bom, a não ser complicações e tristezas, mas como renunciar à coisa que mais desejávamos, não importa que ele fique apenas um dia e desapareça, tornando a solidão mais vazia, as noites es­curas mais sombrias, as noites chuvosas mais úmidas? Tirar-nos isto é como tirar-nos a comida da boca.

E olhou para o rapaz, cochilando tranqüilamente no fundo do barco. O rapaz choramingou, sonhando.

— A gente — murmurou no sonho. — Mudando e mu­dando. A armadilha.

— Calma, calma, rapaz.

LaFarge afagou seus cabelos encaracolados e Tom ca­lou-se.

 

LaFarge ajudou a esposa e o filho a saírem do barco.

— Cá estamos!

Anna sorriu para as luzes, prestou atenção à música vinda dos bares, dos pianos, das vitrolas, olhando as pessoas, de braços dados, passeando nas ruas apinhadas.

— Gostaria de estar em casa — disse Tom.

— Você não era assim antes — comentou a mãe. — Sem­pre gostou das noites de sábado na cidade.

— Não se afaste de mim — murmurou Tom. — Não quero ser apanhado.

Anna ouviu por acaso.

— Pare de falar assim, venha!

LaFarge notou que o rapaz pegou-lhe a mão. LaFarge apertou-a.

— Eu estou aqui. Tomzinho — olhou para a multidão indo e vindo. Também ficou preocupado. — Não vamos de­morar muito.

— Bobagem, vamos ficar a noite inteira — disse Anna. Atravessaram uma rua e três bêbados caíram sobre eles.

Houve muita confusão, foram   separados, um redemoinho e LaFarge ficou espantado.

Tom havia desaparecido.

— Onde está ele? —   perguntou   Anna,   irritada.   — Ele sempre foge na primeira oportunidade. Tom! — gritou.

O Senhor LaFarge procurou na multidão, mas Tom havia desaparecido.

— Ele voltará.   Vai nos encontrar no barco, quando for­mos embora — disse Anna, afirmativa, caminhando com o marido na direção do cinema.

Houve uma agitação na multidão e um casal passou cor­rendo por LaFarge. Ele os reconheceu. Joe Spaulding e a esposa. Sumiram antes que pudesse falar com eles.

Olhando para trás ansiosamente, comprou os ingressos para o cinema e deixou que a esposa o arrastasse para a inós­pita escuridão.

Tom não estava no embarcadouro às onze. A Senhora LaFarge ficou lívida.

— Ora, querida — disse LaFarge — não se preocupe. Eu vou achá-lo. Espere aqui.

— Volte depressa — falou com voz cansada, que morreu na água do canal.

LaFarge perambulou pelas ruas noturnas, com as mãos nos bolsos. As luzes estavam começando a se apagar, uma a uma, pela cidade toda. Umas poucas pessoas ainda continua­vam debruçadas nas janelas, pois a noite estava quente, muito embora o céu continuasse com nuvens de tempestade disper­sas entre as estrelas. Enquanto caminhava, ia lembrando as constantes referências do rapaz a ser agarrado, seu medo das multidões e das cidades. Aquilo não tinha sentido, pensou o velho, fatigado. Talvez o rapaz tivesse ido embora para sempre, talvez nunca houvesse existido. LaFarge dobrou numa determinada ruela, olhando os números.

— Alô, LaFarge.

Havia um homem sentado na soleira da porta, fumando cachimbo.

— Alô, Mike.

— Você e a patroa andaram brigando? Está passeando para acalmar?

— Não, apenas dando uma volta.

— Você parece que perdeu alguma coisa. Por falar nisso — disse Mike — esta noite alguém foi encontrado. Conhece Joe Spaulding? Lembra de Lavínia, a filha dele?

— Lembro.

LaFarge ficou gelado. Parecia um sonho repetitivo. Sa­bia o que viria a seguir.

— Lavínia voltou esta noite para casa — disse Mike, ti­rando uma baforada. — Você lembra, ela foi perdida, há cerca de um mês, no fundo do mar morto. Acharam o que julga­ram ser seu corpo, muito decomposto e desde então os Spaul­ding nunca mais tiveram paz. Joe vivia 'dizendo que ela não estava morta, que aquele não era seu corpo. Acho que ele tinha razão. Lavínia apareceu hoje.

— Onde?

LaFarge sentiu a respiração ofegante e o coração dispa­rando.

— Na Rua Central. Os Spaulding estavam comprando ingressos para um espetáculo. E de repente, ali, na multidão, surgiu Lavínia. Deve ter sido uma cena e tanto.   Ela não os viu logo. Eles a seguiram rua abaixo e falaram com ela. Então ela se lembrou.

— Você a viu?

— Não, mas a ouvi cantando. Lembra como Lavínia cos­tumava cantar “The Bonnie Banks of Loch Lomond”? Ouvi-a agorinha mesmo cantando para o pai, ali na casa deles. Foi bom, é uma garota tão bonita.   Era uma pena que tivesse morrido. Agora, com sua volta, tudo entra nos eixos. Puxa você está parecendo doente... É melhor entrar e tomar uma dose de uísque...

— Não, obrigado, Mike.

O velho continuou a caminhada. Ouviu Mike dar boa noite e não respondeu, mas fixou os olhos no prédio de dois andares, onde trepadeiras de flores marcianas vermelhas su­biam para o telhado de vidro. Na parte de trás, um balcão de grades de ferro forjado debruçava-se sobre o jardim. Suas janelas estavam iluminadas. Era muito tarde, mas apesar disso pensou: O que vai acontecer a Anna se eu não levar Tom de volta comigo? Este segundo choque, esta segunda morte, o que farão a ela? Ela lembrará também da primeira morte e deste sonho, tão subitamente desfeito? Meu Deus, tenho de encontrar Tom. Senão, o que acontecerá a Anna? Pobre Anna, esperando no embarcadouro. Fez uma pausa e levantou a cabeça. Ouviu vozes desejarem boa noite a outras vozes suaves, portas abrirem e fecharem, luzes apagarem e uma linda canção que continuava. Um momento depois, uma moça de não mais de dezoito anos, encantadora, apareceu no balcão.

LaFarge chamou-a através do vento que começava a soprar.

A moça virou-se e olhou para baixo.

— Quem está aí? — perguntou.

— Sou eu — respondeu o velho, sabendo que essa res­posta era boba e estapafúrdia.

Calou-se, com os lábios mexendo-se em silêncio. Deveria gritar: “Tom, meu filho, é seu pai!” Como falar com ela? A moça iria pensar que estava maluco e chamaria os pais.

A jovem debruçou-se, sob   a   lâmpada   balançada   pelo vento.

— Sei quem é o senhor — disse ela, suavemente. — Por favor, vá embora. Não há nada que o senhor possa fazer.

— Você tem que voltar comigo!

As palavras escaparam ao seu controle. O vulto iluminado pelo luar voltou para a sombra, onde não tinha identidade, onde não passava de uma voz.

— Não sou mais seu filho — disse. — Nunca deveríamos ter vindo à cidade.

— Anna está esperando no embarcadouro!

— Lamento — disse a voz suave. — Mas, que posso fazer? Estou feliz aqui, sou amada aqui da mesma forma como vocês me amaram.   Sou o que sou e pego o que posso.   Agora é muito tarde, eles me apanharam.

— Mas, e o choque para Anna? Pense nisso.

— Os pensamentos são muito fortes nesta casa. É como estar preso. Não posso me transformar no que era.

— Você é Tom, você era Tom, não era?   Não   brinque com os sentimentos de um velho. Você não é realmente Lavínia Spaulding?

— Não sou ninguém, sou apenas eu. Onde quer que eu esteja, sou alguma coisa e agora sou uma coisa que o senhor não pode impedir.

— Você não está a salvo nesta cidade. É muito melhor no canal, onde ninguém o magoará — suplicou o velho.

— É verdade — a voz hesitou. — Mas tenho que levar em consideração, agora, esta gente. Como se sentirão se, de manhã, eu tiver novamente sumido, desta vez para sempre? Aliás, a mãe sabe quem sou eu. Ela percebeu, como o senhor. Acho que ambos perceberam, mas   não   discutiram. Não se discute a Providência Divina.   Se não pode ter a realidade, um sonho também é bom. Talvez eu não seja sua filha re­diviva, mas sou alguma coisa quase tão boa. O ideal imagi­nado por eles. Terei que escolher entre magoá-los ou à sua esposa.

— Eles são uma família de cinco pessoas. Podem supor­tar melhor a sua perda!

— Por favor — disse a voz.   — Estou cansada. O velho falou, incisivo:

— Tem que vir comigo. Não posso   deixar   que   Anna sofra outra vez. Você é o nosso filho. Você é o meu filho e nos pertence.

— Não, por favor! — pediu a sombra, trêmula.

— Você não pertence a esta casa ou a esta gente!

— Não, não faça isso comigo!

— Tom, Tom, meu filho, escute. Volte, desça pela par­reira, rapaz. Venha, Anna está   esperando. Terá   uma   boa casa e tudo o que desejar.

Ficou olhando para cima, desejando que   acontecesse o milagre.

As sombras movimentaram-se, a parreira farfalhou.

Finalmente, uma voz suave disse:

— Está bem, papai.

— Tom!

O vulto ágil de um rapaz deslizou pela parreira, ao luar. LaFarge ergueu os braços para recebê-lo.

A luz do quarto acendeu-se. Uma voz saiu de uma das janelas gradeadas:

— Quem está aí?

— Depressa, rapaz! Novas luzes e mais vozes.

— Pare! Estou armado! Vinny, você está bem?

Pés correndo. Juntos, o velho e o rapaz atravessaram o jardim em disparada.

Ouviu-se um tiro. A bala atingiu o muro no momento em que atravessavam o portão.

— Tom, vá por aqui. Eu vou por ali, para despistá-los. Gorra para o canal. Nos encontramos lá em   dez   minutos, rapaz!

Separaram-se.

A lua foi encoberta por uma nuvem. O velho correu no escuro.

— Anna, estou aqui!

A velha, trêmula, ajudou-o a subir para o barco.

— Onde está Tom?

— Já vai chegar — disse LaFarge, ofegante. Voltaram-se para olhar as vielas e a cidade adormecida.

Havia, ainda, alguns retardatários: um policial, um vigia no­turno, um piloto de foguete, homens solitários voltando para casa após um encontro noturno, dois casais saindo de um bar, rindo.   Ouvia-se música ao longe.

— Por que ele não chega? — perguntou a velha.

— Vai chegar, vai chegar.

Mas LaFarge não tinha certeza. Talvez o rapaz tivesse sido apanhado novamente durante seu trajeto para o embarcadouro, correndo pelas ruas entre casas escuras, na noite alta. Era uma estirada, mesmo para um jovem. Mas deveria ter chegado ali antes.

E agora, longe, um vulto corria pela avenida iluminada.

LaFarge gritou e logo se calou, pois, distantes, também outras vozes se ouviam, acompanhando batidas de pés corren­do. Luzes foram se acendendo, de janela em janela. Corren­do pelo meio da praça, em direção ao embarcadouro, via-se um vulto. Não era Tom. Não passava de uma forma que corria, de um rosto prateado, brilhando à luz dos lampiões da praça. E à medida em que ficava mais próximo, mais pró­ximo, tornava-se mais familiar, até que, ao atingir o embarcadouro, era Tom! Anna estendeu os braços. LaFarge correu a soltar o barco. Mas era muito tarde.

Surgindo da avenida e atravessando a praça silenciosa, viu-se um homem, depois outro, uma mulher, dois outros homens e o Senhor Spaulding, todos correndo. Pararam, des­concertados. Olharam como se quisessem voltar atrás, pois poderia ser apenas um pesadelo, uma loucura. Mas avança­ram, vacilantes, parando, andando.

Era muito tarde. A noite, o incidente, tudo terminado. LaFarge torceu a amarra. Sentia-se gelado e só. Aquela gente erguia e baixava os pés ao luar, aproximando-se em grande velocidade, de olhos escancarados, até que o grupo, dez ao todo, fizesse alto no embarcadouro. Olharam ferozmente para dentro do barco. Gritaram.

— Não se mova, LaFarge — disse Spaulding, apontando uma arma.

Agora estava claro o que tinha acontecido. Tom atraves­sou velozmente as ruas enluaradas, sozinho, passando por pes­soas. Um policial viu o vulto veloz. Virou-se, olhou o rosto, disse um nome e saiu atrás.

— Pare aí!

Reconhecera um criminoso. E em todo o trajeto, a mesma cena: um homem aqui, uma mulher ali, vigia noturno, pilo­tos de foguete. O vulto veloz era tudo para eles, todas as identidades, todas as pessoas, todos os nomes. Quantos nomes diferentes haviam sido pronunciados naqueles últimos cinco minutos? Quantos rostos diferentes haviam sido modelados em Tom, todos falsos?

E em todo o trajeto, o perseguido e os perseguidores, o sonho e os sonhadores, a presa e os cães de fila. Em todo o trajeto, a revelação repentina, a chispa de olhos familiares. o som de um nome velhíssimo, as recordações de outros tem­pos, a multidão se multiplicando. Todos lançando-se para a frente, como uma imagem repetida por dez mil espelhos, dez mil olhos, o sonho fugitivo indo e vindo, com um rosto dife­rente para cada um, para os que estão na frente, para os que estão atrás, para os que ainda não se encontraram, para os invisíveis.

E agora estavam todos ali, no barco, reivindicando a posse do sonho, exatamente como nós queremos que ele seja, Tom e não Lavínia, William, Roger ou outro qualquer, pen­sou LaFarge. Mas agora estava tudo acabado. A coisa tinha ido longe demais.

— Saiam   todos daí! — ordenou-lhes Spaulding. Tom saiu do barco. Spaulding agarrou-lhe o pulso.

— Você vai para casa comigo. Eu sei.

— Espere — disse o policial.   — Ele é meu prisioneiro. Chama-se Dexter e é procurado por assassinato.

— Não! — soluçou uma mulher. — É   o   meu   marido! Acho que conheço meu marido!

Outras vozes se opuseram. A multidão aproximou-se. A Senhora LaFarge protegeu Tom.

— Ele é meu filho. Não têm o direito de   acusá-lo   de nada. Vamos para casa agora mesmo!

Quanto a Tom, estava tremendo e se sacudindo violenta­mente. Parecia bastante doente. A multidão cercou-o mais de perto, estendendo mãos ávidas, agarrando e exigindo.

Tom gritou.

Começou a transformar-se diante de todos. Era Tom, James, um homem chamado Switchman e outro chamado Butterfield. Era o prefeito da cidade, a mocinha, o marido William e a esposa Clarisse. Como cera fundida, tomava a forma dos pensamentos deles. O grupo gritava, se compri­mia e implorava. Ele gritou, estendeu os braços, com o rosto mudando a cada pedido.

— Tom! — gritou LaFarge.

— Alice! — gritou um outro.

— William!

Agarraram seus pulsos, fizeram-no rodopiar, até que, com um último guincho de pavor, desmaiou.

Ficou caído nas pedras, como cera derretida esfriando, com um rosto que era todos os rostos, um olho azul, o outro dourado, cabelos castanhos, vermelhos, amarelos, pretos, uma sobrancelha grossa a outra fina, uma mão grande a outra pequena.

Ficaram parados olhando-o, com as mãos nas bocas. Inclinaram-se.

— Está morto — disse alguém, finalmente. Começou a chover.

A água desabou sobre eles, que olharam para o céu.

A princípio devagar e depois mais depressa, viraram-se e foram embora, primeiro andando, depois correndo, dispersando-se. Num minuto a praça ficou deserta. Só o casal LaFarge ficou ali parado, olhando para baixo, de mãos dadas, horrorizado.

A chuva caía sobre o rosto virado para cima, irreconhe­cível .

Anna não falou, mas começou a chorar.

— Vamos embora, Anna, não podemos fazer nada — disse o velho.

Pularam para o barco e partiram pelo canal, na escuri­dão. Chegaram em casa, acenderam urn pequeno fogo na la­reira e aqueceram as mãos. Foram deitar juntos, gelados e frágeis, ouvindo a chuva que recomeçava a cair no telhado.

— Ouça — disse LaFarge, à meia-noite. — Está ouvindo alguma coisa?

— Nada, nada.

— Seja como for, vou ver.

Atravessou, tateando, o quarto escuro e ficou ao lado da porta da rua durante muito tempo, antes de abri-la.

Escancarou a porta e olhou para fora.

A chuva desabava do céu escuro sobre o jardim vazio, sobre o canal e sobre as montanhas azuis.

Esperou cinco minutos e depois, cuidadosamente, com as mãos molhadas, fechou e passou a chave na porta.

 

Novembro   de 2005

A Loja de Malas

Parecia uma coisa muito remota aquilo que o dono da loja de malas ouviu na transmissão noturna de rádio, recebi­da diretamente da Terra num raio de luz sonora. O dono sentiu como aquilo estava longe.

Estava para estourar uma guerra na Terra.

Foi para a rua, dar uma olhada no céu.

Sim, lá estava ela. A Terra, no céu vespertino, acompa­nhando o sol que se punha por trás das colinas. As palavras ditas no rádio e aquela estrela verde eram a mesma coisa.

— Não posso   acreditar   —   disse   o   proprietário.

— É porque o senhor não está lá — disse Padre Pere­grine, que havia parado para uma conversa.

— Como, padre?

— É como quando eu era pequeno — disse Padre Pere­grine. — Ouvimos falar de guerra na China. Mas nunca acre­ditamos.. Era muito longe. E, no entanto, havia muita gente morrendo.   Era impossível.   Mesmo quando vimos os filmes, hão acreditamos. Bem, hoje é a mesma coisa. A Terra é a China. Está tão longe que é inacreditável. Não é aqui. Não está ao seu alcance. Não pode nem mesmo vê-la. Não se vê mais que uma luz verde.   Dois bilhões de pessoas   vivendo naquela luz verde? Inacreditável!   Guerra? Não   ouvimos   as explosões.

— Ouviremos — disse o dono.   —   Estou   pensando   em toda aquela gente que devia chegar a Marte esta semana. Quantos eram? Mais ou menos uns cem mil no próximo mês. Que farão se a guerra começar?

— Suponho que retornarão.   Serão necessários na Terra.

— Bom — disse o dono. — Mantenho minhas malas pron­tas.   Tenho a desconfiança de que vai   haver   uma   corrida muito em breve para comprá-las.

— O senhor acha que todos os habitantes atuais de Marte voltarão para a Terra, se esta for a Grande Guerra que todos esperam há anos?

— É gozado, padre, mas sim, acho que todos nós volta­remos. Eu sei que viemos para cá a fim de fugirmos de coisas como essas: política, bomba atômica, guerra, grupos de pres­são, preconceitos e leis. Eu sei. Mas lá ainda é a pátria. Não demorará a ver. Quando a primeira bomba cair na América, o pessoal aqui vai começar a refletir. Ainda não estão aqui há bastante tempo. Só um   par   de   anos. Se   estivessem   aqui há quarenta anos, seria diferente, mas têm parentes lá em­baixo e também suas cidades natais. Não acredito mais na Terra. Mal posso imaginá-la.   Mas sou velho.   Não conto. Poderia ficar aqui.

— Duvido.

— É, acho que tem razão.

Ficaram no alpendre olhando as estrelas. Finalmente, Padre Peregrine tirou dinheiro do bolso e entregou-o ao pro­prietário da loja.

— Pensando bem, é melhor me dar uma nova mala. A outra está muito estragada...

 

Novembro de 2005

Fora de Temporada

Sam Parkhill varria a areia azul marciana.

— Muito bem — disse ele. — Sim, senhor, olhe para isso! — apontou. — Olhe para essa placa. Sam's Hot Dogs! Não é uma beleza, Elma?

— Ora se é, Sam — respondeu a esposa.

— Puxa, que mudança para mim! Se os companheiros da Quarta Expedição pudessem me ver agora! Estou contente por ter um negócio meu, enquanto os outros andam por aí ainda de farda. Vamos ganhar milhões, Elma, milhões.

A mulher ficou olhando para ele um tempo enorme, sem falar.

— Que aconteceu ao Capitão Wilder? — perguntou fi­nalmente. — O capitão que matou aquele cara que queria matar todos os terrestres, como é mesmo o nome dele?

— Spender, aquele doido.   Lelé demais.   Ah, o Capitão Wilder? Ouvi   dizer que está indo para Júpiter.   Deram-lhe um chute para cima. Acho que Marte também o perturbou um pouco. Ficou meio tocado, sabe? Deve voltar de Júpiter e de Plutão daqui a uns vinte   anos,   se   tiver   sorte. Falar demais dá nisso. E enquanto ele morre de   frio,   olhe   para mim, olhe para este lugar!

Era uma encruzilhada, onde duas estradas mortas passa­vam e se perdiam na escuridão. Naquele local, Sam Parkhill havia instalado sua construção de alumínio, de brilho ofuscante à luz do dia, sacudida pela música da vitrola automática.

Parou para firmar um pedaço de vidro que colocara como cercadura da passagem. Conseguira o vidro de velhas casas marcianas das colinas.

— Os melhores cachorros quentes de dois mundos! O pri­meiro homem em Marte a possuir uma barraca de cachorros quentes! As melhores cebolas, pimentas malaguetas e mostardas! Você não pode dizer que eu não sou vivo. Estas são as duas estradas principais e lá estão a cidade morta e os depó­sitos de minerais.   Os caminhões da Colônia Terrestre 101 terão de passar forçosamente por aqui vinte e quatro horas por dia! Sei como me instalar ou não sei?

Elma ficou examinando as unhas.

— Você acha que esses dez mil novos tipos de foguetes em serviço passarão todos por Marte? — perguntou a mulher, ao fim de certo tempo.

— Dentro de um mês — gritou ele, em resposta. — Por que essa cara tão esquisita?

Não confio nesses terrestres — respondeu a mulher.

— Acreditarei quando vir os dez mil foguetes chegarem com cem mil mexicanos e chineses como passageiros.

— Clientes — saboreou a palavra.   — Cem mil famintos.

— Se... — retorquiu a mulher, pensativa, olhando o céu — não houver uma guerra atômica.   Desconfio das bombas atômicas. A Terra agora está tão cheia delas que nunca se sabe.

— Ora — disse Sam, continuando a varrer.

Percebeu com o canto do olho uma centelha azul. Algu­ma coisa flutuava no ar suavemente, por trás dele. Ouviu sua mulher dizer:

— Sam. Uma visita para você.

Sam virou-se e viu a máscara que parecia pairar no ar.

— Outra vez!

Parkhill segurou a vassoura como uma arma.

A máscara balançou afirmativamente. Era de cristal azul celeste e estava colocada sobre um pescoço esguio, abaixo do qual ondulava um manto de seda amarela muito fina. Saindo da seda, havia duas mãos prateadas, trançadas. A boca da máscara era uma fenda de onde saíam sons musicais, enquan­to o manto, a máscara e as mãos aumentavam e diminuíam.

— Senhor Parkhill, voltei para falar novamente com o senhor — disse a voz por trás da máscara.

— Acho que já lhe disse que não o quero ver por perto!

— gritou Sam. — Vá embora ou lhe darei a Doença!

— Já estou com ela — respondeu a voz. — Sou um dos poucos sobreviventes. Estou doente há muito tempo.

— Vá se refugiar nas colinas, que é o seu lugar e onde sempre viveu. Por que vem me aborrecer? E assim, de repen­te, duas vezes num dia.

— Não temos más intenções.

— Mas eu tenho! — disse Sam, dando um passo atrás.

— Não gosto de estranhos. Não gosto de marcianos. Nunca vi um antes. Não é normal. Todos estes anos vocês ficaram escondidos e, de repente, caem em cima de mim. Me deixe em paz.

— Viemos por um motivo importante — disse a máscara azul.

— Se é a respeito desta terra, ela é minha. Construí esta barraca de cachorros quentes com as minhas mãos.

— De certa maneira é sobre isso.

— Olhe aqui — disse Sam. — Sou da   cidade de Nova York. De onde vim, há mais dez milhões iguais a mim. Vo­cês, marcianos, não vão além de duas dúzias, não têm cidades, vagueiam pelas colinas, não têm chefes, nem leis, e agora você me vem com essa conversa de terra. Ora, o velho tem de dar lugar ao novo. É a lei da troca. Estou armado. Depois que você foi embora hoje de manhã, apanhei-a e carreguei-a.

— Nós, marcianos, somos telepatas — disse a fria másca­ra azul. — Estamos em contato com uma de suas cidades do outro lado do mar morto.   Ouviu o rádio?

— Meu rádio pifou.

— Então o senhor não sabe. Há grandes novidades, con­cernentes à Terra...

A mão prateada agitou-se, aparecendo nela um tubo de bronze.

— Quero mostrar-lhe isto.

— Uma arma — berrou Sam Parkhill.

Num instante, arrancou sua arma do coldre e atirou na bruma, no manto, na máscara azul.

A máscara ainda se manteve ereta um momento. Depois, como a tenda de um pequeno circo livre de suas estacas, caiu suavemente em dobras, com a seda farfalhando, a máscara tombando e as unhas prateadas soando contra o piso de pedra da estrada. A máscara pousou sobre um montículo de tecidos e ossos brancos silenciosos.

Sam estava ofegante.

Sua mulher curvou-se sobre a pequena pilha.

— Não é uma arma   —   informou. Inclinando-se mais, pegou o pequeno tubo de bronze. — Ia mostrar uma mensa­gem a você. Está toda escrita com letras serpentiformes, toda com cobras azuis. Não consigo lê-la. E você?

— Não, essa escritura marciana com imagens não quer dizer nada.   Largue isso! — Sam deu uma olhada rápida ao redor.   — Pode haver outros! Temos que escondê-lo. Traga uma pá!

— Que é que você vai fazer?

— Enterrá-lo, é claro!

— Você não devia tê-lo morto.

— Foi um engano. Depressa!

Ela entregou-lhe a pá, em silêncio.

Às oito, Sam estava de volta, recomeçando a varrer, meio sem jeito, a frente da barraca de cachorros quentes. A mu­lher ficou em pé, de braços cruzados, no umbral da porta ilu­minada .

— Lamento o que aconteceu — disse o marido. Olhou-a e depois desviou os olhos. — Você sabe, foi pura fatalidade.

— Sim — disse ela.

— Fiquei transtornado quando o vi puxar aquela arma.

— Que arma?

— Bem, pensei   que   fosse! Desculpe, desculpe! Quantas vezes tenho que repetir isso?

— Psiu — disse Elma, colocando um dedo nos lábios. — Psiu.

— Pouco me importa — retrucou ele. — Tenho todo o apoio da Colônias Terrestres S.A.!   —   resmungou.   — Esses marcianos não ousarão...

— Olhe — disse Elma.

O homem olhou para o extremo do mar morto. Deixou cair a vassoura. Tornou a apanhá-la e uma gota de saliva caiu de sua boca aberta. Subitamente, começou a tremer.

— Elma, Elma, Elma! — gritou Sam.

— Lá vêm eles! — disse Elma.

Uma dúzia de naves de areia marcianas, de velas azuis, flutuava como fantasmas azuis, como fumaça azul, sobre o velho leito marítimo.

— Navios de areia! Mas eles não existem mais, Elma, os navios de areia não existem mais.

— Esses parecem ser navios de areia — comentou ela.

— As autoridades confiscaram todos! Desmontaram e ven­deram alguns em leilão! Eu sou o único em todo este maldito território que possui um e sabe pilotá-lo.

— Só você, não — retrucou a mulher apontando para o mar.

— Venha, vamos cair fora daqui!

— Por quê? — perguntou a mulher, calmamente, fascina­da pelos navios marcianos.

— Vão me matar! Entre no caminhão, depressa!

Elma não se mexeu.

Sam teve que arrastá-la para a barraca, onde estavam as duas máquinas: seu caminhão, que havia usado regularmente até um mês antes, e o velho navio de areia marciano, que ele havia comprado, sorrindo, no leilão, e que, nas últimas três semanas, usara para transportar suprimentos para lá e para cá, no fundo vitrificado do mar. Olhou para o caminhão e lembrou-se. O motor estava no chão, onde o esteve conser­tando nos dois últimos dias.

— O caminhão não está em condições de andar — disse Elma.

— O navio de areia. Entre!

— E deixar que você me leve num navio de areia? Isso não.

— Entre! Eu sei pilotar!

Empurrou-a para dentro, subiu depois dela e, pegando na cana do leme, soltou a vela azul, para receber o vento do anoitecer.

As estrelas brilhavam e as naves marcianas azuis plana­vam sobre as areias sussurrantes. A princípio, seu navio não se moveu. Então lembrou-se da âncora de areia e içou-a.

— Pronto!

O vento lançou rapidamente o navio no fundo do mar morto, sobre cristais havia muito enterrados, passando sobre o topo das colunas, sobre docas de mármore e sobre desertos, sobre cidades mortas, regulares como um tabuleiro de xadrez, sobre encostas purpurinas, deixando tudo para trás. Os vul­tos dos navios marcianos deram meia volta e começaram a seguir o navio de Sam.

— Juro por Deus que vou mostrar-lhes! — gritou Sam. Vou informar à Companhia do Foguete. Eles me protegerão! Sou muito vivo.

— Eles poderiam ter detido você, se quisessem — falou

Elma, fatigada. — Nem se deram ao trabalho.

O homem riu.

— Pare com isso. Por que me deixariam ir? Não, a ver­dade é que não são tão rápidos.

— Não?

Elma apontou por trás dele. Sam não se virou. Sentiu soprar um vento frio. Tinha medo de olhar. Sentiu alguma coisa no assento por trás dele, uma coisa tênue como a respi­ração numa manhã fria, azul como a fumaça da nogueira no crepúsculo, como uma velha renda branca, como um floco de neve, como a geada num arbusto quebradiço.

Ouviu-se um barulho como o de um prato de vidro que­brando ... risos. Depois, o silêncio. Ele virou-se.

A jovem estava sentada, em silêncio, no banco do leme. Seus pulsos eram finos como cristais de gelo, seus olhos claros como luas, grandes, tranqüilos e brancos. O vento bateu nela e a jovem tremeu como uma imagem projetada em água fria. A seda tremeu em torno do seu corpo frágil, como farrapos de chuva azul.

— Volte — disse a moça.

— Não. — Sam estava tremendo, com o leve e delicado tre­mer de medo de uma vespa suspensa no ar, indecisa entre o medo e o ódio.

— Saia do meu navio!

— O navio não é seu — disse a visão. — É tão velho quanto noso mundo. Navegou as areias do   mar há dez mil anos, quando os mares desapareceram sussurrando e as docas ficaram vazias.   Então vocês chegaram e roubaram. Agora dê meia-volta e vá   para a encruzilhada.   Precisamos conversar com você. Aconteceu uma coisa importante.

— Saia do meu navio! — insistiu Sam. Sacou a arma do coldre, com um ranger de couro. Fez pontaria. — Saia antes de eu contar três ou...

— Não faça isso! — gritou a moça. — Não quero machu­cá-lo e os outros também não querem. Viemos em paz!

— Um — disse Sam.

— Sam! — implorou Elma.

— Ouça — falou a moça.

— Dois — contou Sam, com firmeza, armando o cão do revólver.

— Sam! — gritou Elma.

— Três — completou Sam.

— Nós apenas... — começou a moça. Sam atirou.

Ao calor do sol, a neve derrete, cristais se evaporam, trans­formando-se em bruma, em nada. A fumaça dança na luz do fogo e desaparece. Coisas frágeis explodem no âmago de um vulcão e somem. A moça, ao disparo da arma, no calor, no impacto, dobrou-se como uma estola macia, derreteu como uma figurinha de cristal. O que sobrou dela — gelo, floco de neve, fumaça — o vento levou. O banco do timoneiro estava vazio.

Sam meteu a arma no coldre e não olhou para a mulher.

— Sam — disse ela, após um minuto de continuação da viagem, sussurrando em meio ao mar de areia colorido pelo luar — pare o navio.

Sam olhou-a e seu rosto estava pálido.

— Não vai fazer isso. Não, depois de todos estes anos. Não vai me abandonar.

Ela olhou a mão de Sam, apoiada no cabo da arma.

— Acho que vou — falou a mulher. — Realmente vou. Segurando o timão com firmeza, Sam sacudiu a cabeça.

— Elma, é uma loucura. Chegaremos   à cidade em um minuto, a salvo!

— Está bem — disse a mulher, estendendo-se no fundo do navio.

— Elma, ouça.

— Não tenho nada para ouvir, Sam.

— Elma!

Estavam passando por uma branca cidadezinha axadrezada e, na sua frustração, na sua fúria, disparou seis balas, que explodiram entre as torres de cristal. A cidade dissolveu-se numa chuva de vidros antigos e estilhaços de quartzo. Caiu como flocos de sabão. Desapareceu. Sam riu e tornou a atirar. Uma última torre, uma última peça de xadrez incendiou-se, ardeu e, em fragmentos azuis, subiu para as estrelas.

— Vou mostrar a eles! Vou mostrar a todos!

— Vamos, mostre-nos, Sam — disse ela, na sombra.

— Aí vem outra cidade! — Sam recarregou o tambor do revólver. — Veja como dou um jeito!

Os barcos azuis fantasmagóricos apareceram gradualmente por trás deles, aproximando-se velozmente. A princípio, Sam não os viu. Tinha notado apenas um assovio e o estridente zunir do vento, como aço esfregado na areia. Era o som das proas afiadas como navalhas dos navios de areia passando pelo fundo dos mares, seus galhardetes vermelhos e azuis, des­fraldados. Nos navios azul-claros, havia vultos azul-escuros, homens mascarados, homens com rostos prateados, homens tendo estrelas no lugar dos olhos, homens com orelhas escul­pidas em ouro, homens com faces estanhadas, e lábios cravejados de rubis, homens de braços cruzados, homens que o seguiam, homens marcianos.

Um, dois, três, contou Sam. Os navios marcianos se apro­ximavam.

— Elma, Elma, não posso com todos!

Elma não falou nem se levantou de onde estava.

Sam atirou oito vezes. Um dos navios de areia foi feito em pedaços, a vela, o casco de esmeralda, as partes de bronze, a cana do leme, de um branco leitoso como a lua, e todos os vultos dispersos nele. Os homens mascarados, todos eles, mer­gulharam na areia e dividiram-se, primeiro em chamas alaranjadas e depois em fumaça.

Mas as outras naves se aproximaram.

— São numerosos demais, Elma!   — gritou o homem. — Vão-me matar!

Atirou a âncora, era inútil prosseguir. A vela adejou, caiu, dobrou-se em si mesma com um silvo. O navio parou. O vento parou. A viagem parou. Marte não se moveu enquanto os ma­jestosos barcos marcianos giravam titubeantes sobre ele.

— Terrestre — chamou uma voz de algum lugar alto. Uma máscara prateada moveu-se. Lábios de rubis brilha­ram com as palavras.

— Não fiz nada!

Sam olhou para todos aqueles rostos, cem ao todo, que o cercavam. Não restavam muitos marcianos em Marte. Cem, cento e cinqüenta, e estavam ali quase todos, agora, nos ma­res mortos, nos seus navios ressuscitados, não muito longe de suas cidades mortas axadrezadas, um dos quais acabava de cair, como um vaso frágil atingido por uma pedra. As más­caras prateadas brilhavam.

— Foi um engano — implorou Sam, erguendo-se no navio, com a mulher estendida por trás dele, como morta, no fundo do porão. — Vim para Marte como qualquer negociante ho­nesto. Apanhei os restos do material de um foguete que explo­diu e construí a melhor barraca já vista ali naquele cruzamento. Vocês sabem onde fica. Têm de admitir que é uma excelente construção. — Sam riu, olhando ao redor. — E aque­le marciano — sei que era amigo de vocês — chegou... Sua mor­te foi um acidente, juro. Tudo o que eu queria era ter uma barraca de cachorro quente, a única de Marte, a primeira e a mais importante. Compreendem? Eu ia servir nela os mais fabulosos cachorros quentes, com pimenta malagueta, cebolas e suco de laranja.

As máscaras prateadas continuaram imóveis. Reluziam ao luar. Olhos dourados fixaram-se em Sam. Este sentiu o estômago contrair-se, diminuir, virar pedra. Atirou a arma na areia.

— Entrego-me.

— Pegue sua arma — disseram os marcianos, em coro.

— Como?

— A arma. — Da proa de um navio azul, uma mão coberta de jóias faz um gesto. — Apanhe-a. Guarde-a.

Sem acreditar, o homem apanhou a arma.

— Agora — disse a voz — vire seu navio e volte para a barraca.

— Agora?

— Agora — disse a voz. — Não queremos lhe fazer mal. O senhor fugiu antes que pudéssemos explicar-lhe. Venha.

Então os grandes navios fizeram a volta tão facilmente quanto cardos lunares. Suas velas estenderam-se com um som de suave aplauso. As máscaras coruscaram, rodopiaram, ilu­minaram as sombras.

— Elma! — Sam   deixou-se   cair no fundo do navio.   — Levante, Elma. Estamos voltando. — Estava excitado. Quase gaguejou de alívio. — Não vão me fazer mal nem me matar, Elma. Levante, querida, levante.

— Como... o quê?

Elma piscou, olhando lentamente em volta, enquanto o navio era novamente carregado pelo vento. Fez um esforço, como num sonho, procurou um assento e caiu nele como um saco de pedras, sem dizer mais nada.

A areia deslizava sob o navio. Meia hora depois, estavam novamente no cruzamento, os navios ancorados e todos em terra.

O Chefe parou diante de Sam e Elma, com uma máscara construída de bronze polido, tendo como olhos simples ranhuras de infinito azul escuro, e   como boca uma fenda de onde saíram palavras que flutuaram no vento.

— Prepare sua barraca — disse a voz. Uma mão coberta de diamantes adejou. — Prepare as comidas, as vitualhas, os vi­nhos estranhos, pois esta noite será, na verdade, uma grande noite!

— Isso quer dizer — perguntou Sam — que vão-me deixar ficar aqui?

— Sim.

— Não estão zangados comigo?

A máscara estava rígida, talhada, fria e cega.

— Prepare sua casa de comida — disse a voz, com suavi­dade. — E tome isto.

— O que é isto?

Sam contemplou, piscando, o documento prateado que o marciano lhe estendeu, no qual, em hieróglifos, dançavam figuras em forma de cobras.

— É a concessão de todo o território que vai das monta­nhas prateadas às colinas azuis, do mar morto salgado, aqui, aos distantes vales de opala e esmeralda — disse o chefe.

— Me... meus? — perguntou Sam, incrédulo.

— Seu.

— Cem mil quilômetros de território?

— Seus.

— Está ouvindo, Elma?

Elma estava sentada no chão, recostada na barraca de alu­mínio, com os olhos fechados.

— Mas por que, por que... por que estão me dando tudo isso? — perguntou Sam, tentando olhar para dentro das ranhuras dos olhos metálicos.

— E não é tudo. Tome.

Apareceram seis outros documentos. Os nomes estavam escritos, os territórios determinados.

— Puxa! É a metade de Marte! Possuo a metade de Marte! — Sam sacudiu os documentos que segurava. Rindo como um louco, mostrou-os a Elma. — Elma, você ouviu?

— Ouvi — respondeu Elma, olhando o céu.

Parecia estar esperando alguma coisa. Um pouco mais vigilante.

— Obrigado, ah, obrigado — disse Sam para a máscara de bronze.

— Esta noite é a noite — falou a máscara. — O senhor pre­cisa estar preparado.

— Estarei.   O que é isso...   uma surpresa? Os foguetes estão chegando da Terra mais cedo, um mês antes do que pensamos? Todos os dez mil foguetes, trazendo os colonos, os mineiros, os operários e suas mulheres, as cem mil pessoas? Elma, não vai ser ótimo? Sabe, eu lhe disse. Eu lhe disse que esta cidade não iria ter apenas mil habitantes. Estão che­gando mais cinqüenta mil e, no mês que vem, outros cem mil. No fim do ano haverá cinco milhões de terrestres. E eu com a única barraca de cachorro quente instalada na estrada mais procurada para as minas!

A máscara flutuou ao vento.

— Vamos deixá-lo. Prepare-se. A terra é sua.

Ao luar, os velhos navios viraram e partiram sobre as areias móveis, como pétalas de metal de uma antiga flor, como plumas azuis, como imensas e silenciosas borboletas azuis ce­lestes, com as máscaras brilhando e reluzindo até a última centelha, o último azul, desaparecendo por, trás das colinas.

— Elma, por que eles fizeram isso? Por que não me ma­taram? Não sabem nada? Que há com eles? Elma, você con­segue entender? — Sacudiu os ombros — Sou dono de metade de Marte!

Ela continuava olhando para o céu noturno, esperando.

— Vamos — disse ele. — Precisamos arrumar a barraca. Cozinhar as   salsichas, aquecer os pãezinhos,   preparar a pi­menta, descascar as cebolas e picá-las, aprontar os molhos, colocar os guardanapos nos prendedores, retirar o menor res­quício de poeira! Oba! — Deu uns passos de dança, batendo os saltos dos sapatos. — Puxa! Estou contente. Sim, senhor, estou contente — cantou, desafinado. — Hoje é meu dia de sorte!

Cozinhou as salsichas, cortou os pãezinhos e preparou as cebolas freneticamente.

— Estou lembrando que o marciano falou numa surpre­sa. Só pode   significar uma   coisa,   Elma.   Aquelas cem mil pessoas chegam hoje, adiantadas! Vamos ser afogados!   Não vamos ter um minuto de descanso durante muitos dias, com esses turistas circulando por aqui, Elma. Pensa na grana!

Saiu e foi olhar o céu. Nada viu.

— Talvez dentro de um minuto — disse, aspirando agra­decido o ar frio, erguendo os braços, batendo no peito. — Ah!

Elma   ficou calada.   Estava descascando as batatas para fritá-las, calmamente, sem tirar os olhos do céu.

— Sam — falou a mulher, meia hora mais tarde. — Olhe. Ali.

Sam olhou e viu. A Terra.

Apareceu, cheia e verde, como uma pedra lavrada, por cima das colinas.

— A velha Terra! — suspirou o homem, carinhosamente. — A   velha   e maravilhosa Terra. Mande-me   seus famintos. Algo, algo... como é mesmo o poema? Mande-me seus famin­tos, velha Terra. Aqui   está Sam Parkhill, com as salsichas fervidas, a pimenta cozinhando, tudo preparado. Vamos, Terra, envie-me seus foguetes!

Saiu para olhar a barraca. Ali estava, perfeita como um ovo recém posto no fundo do mar morto, o único ponto de luz e calor em centenas de quilômetros de solo nu e vazio. Era como um coração batendo solitário num grande corpo escuro. Sentiu-se quase triste de orgulho, olhando para a barraca com olhos lacrimejantes.

— Isso faz a gente se sentir humilde — comentou, entre o cheiro das salsichas vienenses cozinhando, dos pãezinhos es­quentando e da manteiga gorda. — Venham — convidou as estrelas espalhadas no céu — quem será o primeiro cliente?

— Sam — disse Elma.

A Terra havia mudado no céu escuro.

Tinha pegado fogo.

Parte dela parecia ter-se estilhaçado em milhões de pe­daços, como se um gigantesco quebra-cabeças tivesse explo­dido. Ardeu durante um minuto com um resplendor sinistro, três vezes maior que seu tamanho natural e depois diminuiu.

— Que foi aquilo?

Sam ficou olhando para o fogo verde no espaço.

— A Terra — disse Elma, apertando as mãos.

— Não pode ser a Terra, não é a Terra! Não, não é a Terra! Não pode ser.

— Você quer dizer que não   podia ser a Terra — falou Elma, encarando-o. — E exatamente não é   a   Terra.   Não, não é a Terra. Não foi o que disse?

— A Terra, não.. . ah, não, não podia ser — gemeu. Ficou parado, com as mãos nas cadeiras, de boca aberta, com os olhos arregalados e cegos, sem fazer um gesto.

— Sam. — Ela o chamou. Pela primeira vez, depois de muitos dias, seus olhos brilhavam. — Sam?

Ele continuou olhando para o céu.

— Muito bem — disse a mulher. Em silêncio, olhou em volta durante um minuto ou dois. Depois, com gestos bruscos, colocou uma toalha no braço. — Acenda mais luzes, ligue a vitrola, abra as portas. Dentro de outro milhão de anos, ha­verá uma nova fornada de clientes. Precisamos estar prepa­rados. Sim, senhor, precisamos.

Sam não se mexeu.

— Que magnífico lugar para uma barraca de cachorros quentes — continuou ela. Estendeu a mão e pegou um palito, colocando-o entre os dois dentes da frente. — Vou-lhe contar um segredo, Sam — sussurrou ela, inclinando-se para o marido. — Isto está parecendo um fim de temporada.

 

Novembro de 2005

Os Observadores

Naquela noite, todos saíram e foram olhar o céu. Inter­romperam a ceia, deixaram de se lavar ou de se vestir para o espetáculo e saíram para seus alpendres agora não tão novos, olhando para a grande estrela verde que era a Terra. Foi um movimento involuntário, feito para melhor compreender as notícias que ouviram no rádio, momentos antes. Tratava-se da Terra e da próxima guerra, e nela havia centenas de milhares de mães, avós, pais. irmãos, tias, tios ou primos. Em pé nos alpendres, esforçavam-se por acreditar na existência da Terra como, antigamente, tentavam acreditar na de Marte. O pro­blema fora invertido. Para todos os efeitos, a Terra agora estava morta. Eles a tinham abandonado havia três ou quatro anos. O abismo espacial fora um anestésico. Cento e dez mi­lhões de quilômetros de espaço insensibilizam, fazem a memó­ria adormecer, despovoam a Terra, apagam o passado e permitem às pessoas continuarem a trabalhar. Mas agora, nesta noite, os mortos ressuscitaram, a Terra tornou a ser habitada, a memória acordou e milhões de nomes foram citados: o que fulano estaria fazendo na Terra, naquela noite? E sicrano? As pessoas nos alpendres se olhavam de soslaio.

Às nove da noite, a Terra pareceu explodir, pegou fogo e começou a queimar.

As pessoas nos alpendres ergueram os braços para o céu como se quisessem apagar o fogo. Esperaram.

Pela meia-noite, o fogo extinguiu-se. A Terra continuava no mesmo lugar. Um suspiro, como o vento de outono, per­correu os alpendres.

— Há muito tempo não temos notícias de Harry.

— Ele está passando bem.

— Temos que escrever à mamãe.

— Ela está bem.

— Está?

— Ora, não se preocupe.

— Você acha que ela está bem?

— Claro, claro, venha dormir.

Mas ninguém se mexia. Jantares atrasados foram levados para os gramados noturnos e colocados em mesas de pernas bambas. Comeram devagar até às duas da manhã, quando a mensagem luminosa do rádio flamejou da Terra. Puderam ler os grandes clarões do código Morse, que piscava como um longínquo vaga-lume:

 

CONTINENTE AUSTRALIANO PULVERIZADO POR EXPLOSÃO PREMATURA DE DEPÓSITO DE ARMAS ATÔMICAS. LOS ANGELES, LONDRES, BOMBARDEA­DAS. VOLTEM. VOLTEM. VOLTEM.

 

Levantaram-se das mesas. VOLTEM. VOLTEM. VOLTEM.

Teve notícias do seu irmão Ted, este ano?

— Sabe como é. Com a tarifa de cinco dólares por carta para a Terra, não escrevo muito.

VOLTEM.

— Tenho pensado em Jane.   Lembra-se de Jane,   minha irmã caçula?

VOLTEM.

Às três da madrugada gelada, o dono da loja de malas ergueu os olhos. Um grupo de pessoas descia a rua, aproximando-se.

— Fiquei aberto até tarde, de propósito. O que deseja, senhor?

Ao raiar do sol, as malas haviam desaparecido das estantes.

 

Dezembro de 2005

As Cidades   Silenciosas

Na beira do mar morto marciano havia uma cidadezinha branca e silenciosa. Estava vazia. Ninguém andava nela. Luzes solitárias brilhavam todos os dias nos edifícios. As portas das lojas estavam completamente abertas, como se as pessoas ti­vessem ido embora sem se preocupar em trancá-las. Revistas trazidas da Terra pelo foguete prateado no mês anterior ti­nham as folhas agitadas pelo vento, intocadas, escurecendo, em cestas de metal nas portas de silenciosas drogarias.

A cidade estava morta. Seus leitos, vazios e frios. Ouvia-se apenas o zumbido dos fios elétricos e dos geradores, ainda funcionando. A água corria em banheiras esquecidas, esparra­mava-se por salas de visitas, por alpendres, indo desaguar nos canteiros de pequenos jardins, molhando flores abandonadas. Nas salas de espetáculos, escuras, os chicletes começavam a en­durecer sob inúmeras cadeiras, contendo ainda as marcas dos dentes que os morderam.

Do outro lado da cidade, havia um pouso de foguetes. Ainda se podia sentir nele o forte e penetrante cheiro do solo calcinado pela partida do foguete de volta para a Terra. Se alguém introduzisse uma moeda na ranhura do telescópio e o apontasse para a Terra, talvez pudesse ver a tremenda guerra que estava se desenrolando lá. Talvez pudesse ver Nova York explodir. E Londres, coberta com uma nova espécie de cerração. Talvez isso, então, fizesse compreender por que aquela pequena cidade marciana fora abandonada. Quão rápida teria sido a evacuação? Bastava entrar em qualquer loja e apertar a tecla de TROCO das caixas registradoras. As gavetas pula­riam, cheias de moedas reluzentes. A guerra na Terra deveria ser terrível...

Andando pelas avenidas vazias daquela cidade, apareceu então, assoviando suavemente, chutando aplicadamente uma lata, um homem alto e magro. Brilhava em seus olhos escuros a chispa tranqüila da solidão. Movia as mãos ossudas nos bolsos, fazendo tilintar moedas novas. De vez em quando, jo­gava uma no chão. Ria moderadamente ao fazer aquilo e continuava a andar, espalhando moedas para todos os lados.

Chamava-se Walter Gripp. Tinha um depósito de miné­rios e uma cabana afastados, no alto das colinas marcianas azuis, e vinha à cidade de duas em duas semanas, para ver se podia casar com uma mulher calada e inteligente. Ano após ano, voltava sempre sozinho para a cabana, desapontado. Na semana anterior, ao chegar à cidade, encontrou-a naquele estado!

Ficou tão surpreendido, naquele dia, que entrou num ar­mazém e pediu um sanduíche triplo de carne.

— Já vou! — gritou para si mesmo, com um guardanapo no braço.

Preparou a carne e o pão cozido na véspera, limpou uma mesa, convidou-se a sentar e comeu até ter necessidade de pro­curar um bar, onde pediu uma gasosa. O empregado, o pró­prio Walter Gripp, foi maravilhosamente bem educado e ser­viu-lhe uma imediatamente!

Estufou os bolsos da calça com todo o dinheiro que pôde apanhar. Encheu um carrinho de criança com notas de dez dólares, arrastando-o pela cidade. Ao chegar aos subúrbios, per­cebeu, envergonhado, como fora bobo. Não precisava daquele dinheiro. Levou de volta as notas de dez dólares e tirou um dólar da carteira para pagar o sanduíche. Colocou-o na gaveta da registradora e deixou mais vinte e cinco centavos de gorjeta.

Naquela noite, tomou um excelente banho turco, comeu um suculento filé com molho de cogumelos, bebeu xerez seco, importado, e como sobremesa saboreou morangos em vinho. Ofereceu-se um novo terno de flanela azul e um belo chapéu cinzento, que se equilibrou bizarramente em sua cabeça afila­da. Colocou uma moeda numa vitrola automática que tocou “That Old Gang of Mine”. Colocou moedas em vinte vitrolas por toda a cidade. As ruas e a noite vazias ficaram cheias da triste música de “That Old Gang of Mine”, enquanto ele caminhava, alto e magro, solitário, com os sapatos novos ran­gendo levemente e as mãos frias metidas nos bolsos.

Mas tudo aquilo fora na semana anterior. Dormia agora numa boa casa da Avenida Marte, acordava às nove da manhã, tomava banho e andava à toa pela cidade, à procura de ovos com presunto. Não passava uma manhã sem que congelasse uma tonelada de carne, vegetais, tortas de creme de limão, o suficiente para dez anos, até que os foguetes voltassem da Terra, se voltassem algum dia.

Agora, naquela noite, andava de um lado para outro, olhando os manequins de cera, rosados e belos, nas coloridas vitrinas das lojas. Pela primeira vez notou o quanto a cidade estava morta. Virou um copo de cerveja e arrotou delicada­mente.

— Ora — disse — estou completamente só.

Entrou no Cinema Elite para se mostrar um filme, para afastar sua mente da solidão. O cinema estava oco, vazio como um túmulo, com fantasmas arrastando-se, cinzentos e pretos, na tela enorme. Trêmulo, saiu correndo da casa assombrada.

Resolvido a voltar para casa, estava no meio de uma rua transversal quase correndo, quando ouviu o telefone.

Escutou.

— Um telefone tocando na casa de alguém. Apressou o passo.

— Alguém tem de atender àquele telefonema — res­mungou.

Sentou no meio-fio para tirar, sem pressa, uma pedra do sapato.

— Alguém! — gritou, dando um pulo. — Eu! Meu Deus, que está havendo comigo?! — berrou.

Olhou em volta. Que casa? Aquela!

Correu pelo gramado, subiu os degraus, entrou na casa, parando numa sala escura. Levantou o fone.

— Alô! — gritou.

Buzzzzzzzzzzzzz.

Alô, alô! Haviam desligado.

— Alô — gritou e bateu com o fone. — Burro, estúpido! — gritou para si mesmo. — Sentado como um bobo naquele meio-fio! Ah, seu bobo desgraçado! — Agarrou o fone com firmeza. — Vamos, toca outra vez. Vamos!

Nunca havia imaginado que podiam ter ficado outras pessoas em Marte. Não vira nenhuma durante a semana toda. Estava convencido de que todas as outras cidades estavam tão vazias quanto aquela.

Agora, olhando para aquele sinistro aparelhinho preto, ficou tremendo. Um sistema de ligação automática unia todas as cidades de Marte. De qual das trinta viera aquele chamado?

Não sabia.

Esperou. Foi até a cozinha desconhecida, descongelou al­gumas framboesas e comeu-as desconsoladamente.

— Não havia ninguém do outro lado da linha — mur­murou. — Um poste deve ter caído, provocando a ligação.

Mas não ouvira um clique, o que significava que alguém havia desligado em qualquer lugar?

Passou a noite inteira naquele vestíbulo.

— Não por causa do telefone — disse a si mesmo. — Acontece que eu não tenho nada para fazer.

Ouviu o tique-taque do seu relógio.

— Ela não telefonará outra vez — falou. — Ela jamais tornará a ligar para um número que não responde. Está, pro­vavelmente, ligando para outras casas da cidade agora mesmo! E eu aqui sentado... — Espera aí! — Riu. — Por que fico dizendo “ela”?

Piscou.

— Podia, da mesma forma, ser “ele”, não?

As batidas do seu coração diminuíram. Sentiu um vazio interno e um frio enorme.

Gostaria muito que fosse “ela”.

Saiu da casa e ficou parado no meio da rua iluminada pela luz fraca do amanhecer.

Escutou. Nenhum som. Não havia pássaros. Nem carros. Só o seu coração batendo. Batendo, parando e batendo nova­mente. Seu rosto doía pelo esforço. O vento soprava suave­mente, ah, tão suavemente sacudindo as abas do seu paletó.

— Psiu — sussurrou. — Ouça.

Girou lentamente, virando a cabeça de uma casa silen­ciosa para a outra.

Ela estava ligando para vários outros números, pensou. Deve ser uma mulher. Por quê? Só uma mulher insistiria tanto.

Um homem nunca. Um homem é independente. Alguma vez telefonei para alguém? Não! Nunca me passou pela cabeça. Deve ser uma mulher. Meu Deus! Tem que ser!

Ouça.

Longe, sob as estrelas, um telefone tocou. Correu. Parou para escutar. A campainha, soando baixo. Correu um pouco mais. A campainha, mais alta. Penetrou numa ruela. Ainda mais alta! Passou por seis casas e mais seis. Altíssima! Escolheu uma casa e a porta estava trancada. O telefone tocou dentro dela. — Raios! — gritou, sacudindo a maçaneta. O telefone berrava. Atirou uma cadeira do alpendre contra a janela da sala de visitas e entrou.

Antes mesmo de poder segurar o telefone, este silenciou.

Então andou pela casa, quebrando espelhos, rasgando cor­tinas e arrebentou o fogão a pontapés.

Finalmente, exausto, pegou o magro catálogo que conti­nha todos os telefones marcianos. Cinqüenta mil nomes.

Começou pelo primeiro.

Amélia Ames.   Ligou   para ela,   em Nova Chicago, do outro lado do mar morto, a cento e cinqüenta quilômetros.

Ninguém atendeu.

O número dois morava em Nova New York, a oito mil quilômetros do outro lado das montanhas azuis.

Nada.

ligou para os números três, quatro, cinco, seis, sete e oito, com os dedos contraídos, incapazes de segurar o fone. Uma voz de mulher respondeu:

— Alô?

Walter respondeu, gritando:

— Alô, meu Deus, alô!

— Isto é uma gravação — recitou a voz de mulher. — A Senhorita Helen Arasumian não está. Quer deixar um recado com o gravador, para que ela possa telefonar-lhe quando chegar? Alô? Isto é uma gravação. A Senhorita Arasumian não está. Quer deixar um recado...

Walter desligou.

Sentou-se, com a boca contraída. Veio-lhe uma idéia e tornou a ligar.

Quando a Senhorita Arasumian chegar — falou — diga-lhe que vá para o inferno.

Ligou para Entroncamento Marciano, Nova Boston, Arcádia e a bolsa da cidade Roosevelt, imaginando que seriam lugares lógicos para as pessoas telefonarem. Depois disso, ligou para prefeituras e outras repartições públicas de cada cidade. Discou para os melhores hotéis. As mulheres gostavam de luxo.

Subitamente, parou. Bateu palmas com força e riu. Claro! Consultou o catálogo e fez um interurbano para o maior salão de beleza, situado na cidade de Novo Texas. Se havia um lugar, onde uma mulher poderia estar, com máscara de lama no rosto e secador na cabeça, seria num salão de beleza todo enfeitado de veludo e pedrarias!

O telefone soou. Alguém no outro lado tirou o fone do gancho.

Uma voz de mulher disse:

— Alô?

— Se é uma gravação — ameaçou Walter Gripp — vou ai e arrebento tudo.

— Não é gravação — respondeu uma voz de mulher. — Alô! Ah, alô — há alguém vivo! Onde está você? — terminou a mulher, com um grito de prazer.

Walter quase desmaiou.

— Você! — Levantou-se, cambaleando, com os olhos revirados. — Meu Deus, que sorte, como se chama?

— Genevieve Selsor! — A mulher soluçou no receptor. — Ah, tenho um enorme prazer em ouvi-lo, seja quem for!

— Walter Gripp!

— Walter, alô, Walter!

— Alô, Genevieve!

— Walter é um nome muito bonito. Walter, Walter!

— Obrigado.

— Walter, onde está você?

A voz dela era simpática, suave e educada. Ele manteve o fone apertado contra o ouvido, de maneira que ela pudesse sussurrar docemente. Walter sentiu o chão fugir sob seus pés. Seu rosto queimava.

— Estou na Aldeia Marlin — disse ele. — Eu...

Buzz.

— Alô? — gritou Walter.

Buzz.

Bateu no gancho. Nada.

Em alguma parte, o vento havia derrubado um poste Tão rápido quanto chegara, Genevieve Selsor se fora.

Discou, mas a linha estava muda.

— Afinal de contas, sei onde ela está.

Saiu correndo para a rua.. O sol estava surgindo quando ele tirou uma baratinha da garage do desconhecido. Encheu-o banco traseiro com mantimentos apanhados na casa e partiu a cento e vinte por hora pela auto-estrada na direção da cidade de Novo Texas.

Mil e seiscentos quilômetros, pensou. Genevieve Selsor, agüente firme, que já estou indo!

Tocava a buzina em todas as curvas.

Ao crepúsculo, depois de um incrível dia dirigindo, parou no acostamento, tirou os sapatos apertados, estirou-se no assen­to e puxou o chapéu cinzento sobre os olhos cansados. Sua respiração diminuiu e acalmou-se. O vento soprou e as estre­las brilharam suavemente acima dele, na noite que começava cair. Estava rodeado pelas milenares montanhas marcianas. A luz das estrelas brilhou nos campanários de uma pequena cidade marciana, não maior que um tabuleiro de xadrez, per­dida nas colinas azuis.

Walter estava naquele estado de semi-consciência, entre o sono e a vigília. Suspirava. Genevieve. Ah, Genevieve, doce Ge­nevieve, cantou suavemente, os anos virão, os anos irão. Mas, Genevieve, doce Genevieve... Sentiu um enorme bem-estar. Ouviu a voz dela, calma, doce, fresca, suspirando. Alô, ah, alô, Walter! Não é uma gravação. Onde está você, Walter, onde está você?

O homem suspirou, estendeu a mão, tentando tocá-la, sob o luar. Longos cabelos esvoaçando ao vento. Eram lindos. E seus lábios, como balas de hortelã vermelhas. E suas faces, como rosas orvalhadas, recém colhidas. E seu corpo, como uma neblina leve e clara, enquanto a voz suave e fresca re­petia para ele os versos da velha e triste canção: Ah, Gene­vieve, doce Genevieve, os anos virão, os anos irão...

Adormeceu.

Chegou à cidade de Novo Texas à meia noite.

Parou, gritando, na porta do Salão de Beleza Deluxe.

Esperava que ela corresse para fora, perfumada, risonha.

Nada aconteceu.

— Deve estar dormindo. — Caminhou até a porta. — Cheguei — gritou. — Alô, Genevieve!

A cidade continuou silenciosa sob a luz das duas luas Em alguma parte, uma rajada de vento sacudiu a armação de um toldo.

Escancarou a porta de vidro e entrou.

— Olá! — Riu sem jeito. — Não se esconda! Sei que está aqui!

Examinou cada compartimento.

Encontrou um lenço fino no chão. Seu perfume era tão bom que quase perdeu o equilíbrio.

— Genevieve — falou.

Dirigiu o carro   pelas ruas vazias, sem nada   encontrar.

— Se isto é uma piada... Diminuiu a marcha.

— Espere aí. Nossa ligação foi cortada. Talvez ela tenha ido para a Aldeia   Marlin, à minha procura,   enquanto eu estava vindo para cá! Deve ter pegado a velha Estrada do Mar. Nos desencontramos durante o dia. Como iria ela saber que eu viria à sua procura? Não lhe disse. E ela ficou tão apavorada quando a ligação caiu que correu para a Aldeia Marlin à minha procura! E eu aqui, meu Deus! Como sou louco!

Dando uma buzinada, saiu da cidade.

Dirigiu a noite inteira. Pensou: E se ela não estiver na Aldeia Marlin à minha espera?

Não queria pensar nisso. Tinha que estar lá. E ele corre­ria para ela, a abraçaria e talvez mesmo a beijasse nos lábios.

Genevieve, doce Genevieve, assoviou, aumentando a velo­cidade para cento e sessenta quilômetros por hora.

A Aldeia Marlin estava silenciosa ao amanhecer. Luzes amarelas continuavam acesas em inúmeros edifícios, e uma vitrola automática, que havia estado tocando durante cem horas seguidas, parou com um estalo elétrico, tornando o si­lêncio completo. O sol começava a aquecer as ruas e o frio céu vazio.

Walter dobrou na Rua Central, com os faróis do carro ainda ligados, buzinando seis vezes numa esquina, seis vezes na outra. Olhou os nomes dos prédios. Estava pálido e cansado. As mãos escorregavam no volante coberto de suor.

— Genevieve! — gritou na rua vazia.

A porta de um salão de beleza abriu-se.

— Genevieve! — gritou, parando o carro.

Genevieve Selsor ficou parada na porta do salão, enquanto ele atravessava a rua, correndo. Ela segurava uma caixa aberta de bombons de chocolate. Seus dedos, que acariciavam a caixa, eram gorduchos e pálidos. Seu rosto, quando saiu para a cla­ridade, era redondo e grosseiro, e seus olhos pareciam dois ovos imensos, metidos numa massa branca de farinha de trigo. Suas pernas eram grossas e redondas como troncos de árvores, e se arrastavam desajeitadamente. Seus cabelos, de um castanho indefinido, haviam   sido   tão   remexidos   que   pareciam   um ninho de passarinho. Não possuía lábios, o que era compen­sado por um grande arremedo vermelho gorduroso que ora se abria num riso de prazer, ora se fechava num súbito terror. As sobrancelhas depiladas   pareciam antenas finas.

Walter   parou.   Seu   sorriso desapareceu. Ficou olhando para ela.

Genevieve deixou a caixa de bombons cair na calçada.

— Você é... Genevieve Selsor? Seus ouvidos zumbiam.

— Você é Walter Griff? — perguntou ela.

— Gripp.

— Gripp — corrigiu-se a mulher.

— Como vai? — falou Walter, com a voz sufocada.

— Como vai? — Ela apertou-lhe a mão. Seus dedos estavam pegajosos por causa do chocolate.

— Muito bem — falou Walter Gripp.

— Como? — perguntou Genevieve Selsor.

— Eu só disse “muito bem” — disse Walter.

— Ah.

Eram oito da noite. Passaram o dia fazendo piquenique, e para jantar ele preparou filé mignon que ela não gostou por­que estava muito cru. Então ele o cozinhou um pouco mais e ficou cozido ou frito demais, ou coisa que o valha. Ele riu e disse:

— Vamos ver um filmei

Ela concordou e apoiou os dedos sujos de chocolate no braço dele. Porém ela só queria ver um velho filme de Clark Gable, feito havia mais de cinqüenta anos.

— Não é estupendo? — Deu uma risadinha. — Não conti­nua sendo estupendo? — O filme terminou. — Passe outra vez — pediu ela.

— Outra vez? — perguntou Walter.

— Outra vez — confirmou Genevieve.

Quando Walter voltou para a poltrona, a mulher aconche­gou-se a ele botando-lhe as manoplas em cima.

— Você não é exatamente o que eu esperava, mas é agra­dável — confessou ela.

— Obrigado — falou o rapaz, engolindo em seco.

— Ah, esse Gable — disse Genevieve, e deu um beliscão na perna dele.

— Ai! — gemeu Walter.

Depois do filme, percorreram as ruas silenciosas, visitando as lojas. Ela quebrou uma vitrina e vestiu o que encontrou de mais espalhafatoso. Derramou um vidro de perfume nos cabe­los e ficou parecendo um ovelheiro molhado.

— Que idade você tem? — perguntou Walter.

— Adivinhe.

Pingando, a mulher arrastou-o rua abaixo.

— Ora, uns trinta — calculou ele.

— Pois saiba que tenho vinte e sete — informou secamente. — Apenas vinte e sete! Olhe outra bombonnière! Palavra, estou levando uma boa vida desde que tudo foi à breca. Eu não gostava da minha família, eram uns chatos. Partiram para a Terra não faz ainda dois meses. Era para eu ir no último foguete, mas fiquei. Sabe por quê?

— Por quê?

— Porque todos se metiam comigo. Por isso fiquei onde podia derramar perfume em cima de mim o dia inteiro, tomar dez mil leites maltados e comer bombons, sem alguém me di­zendo: “Ah, isso está cheio de calorias!”. Por isso estou aqui!

— Você está aqui — disse Walter, fechando os olhos.

— Está ficando tarde — disse Genevieve, olhando-o.

— É verdade.

— Estou cansada — disse ela.

— Engraçado. Estou em plena forma.

— Ah — comentou ela.

— Poderia ficar acordado a noite toda — disse ele. — Olhe, no Mike há um bom disco. Vamos até lá. Eu o tocarei para você.

— Estou cansada.

Lançou-lhe um olhar malicioso e vivo.

— E eu estou acordadíssimo — continuou ele. — É es­tranho.

— Vamos até o salão de beleza. Quero lhe mostrar uma coisa.

Atravessaram a porta de vidro e foram até uma enorme caixa branca.

— Quando vim da Cidade do Texas — disse ela — trouxe isto comigo. — Desfez a fita cor-de-rosa. — Pensei: Bem, lá vou eu, a única mulher em Marte e lá está ele, o único homem. Assim... — Levantou a tampa e, com uma batida nela, afas­tou as folhas amassadas de um papel de seda cor-de-rosa. — Olhe.

Walter Gripp obedeceu.

— Que é isso? — perguntou, começando a tremer.

— Não sabe, bobo?

Havia uma porção de coisas de seda, de rendas, tudo branco.

— Não, não sei o que é isso.

— É um vestido de noiva, bobo!

— É mesmo?

Sua voz ficou embargada. Fechou os olhos. A voz dela continuava suave, doce e fresca, como no telefone. Mas quan­do abriu os olhos e a viu...

Recuou.

— Muito bonito — disse.

— Não é mesmo?

— Genevieve — falou Walter, olhando a porta.

— Que é?

— Genevieve, preciso lhe dizer uma coisa.

— Então?

Aproximou-se dele, com uma nuvem de perfume envolvendo-lhe o rosto branco.

— O que tenho a lhe dizer é... — falou Walter.

— Vamos?

— Adeus!

Saiu correndo porta afora e entrou no carro antes que ela pudesse gritar.

Genevieve correu e parou na beira da calçada, enquanto ele manobrava o carro.

— Volte, Walter Griff! — soluçou,   erguendo os braços.

— Gripp — corrigiu ele.

— Gripp! — gritou a mulher.

O carro afastou-se pela rua silenciosa, indiferente ao sa­pa tear e aos guinchos   dela. A fumaça que saiu do escapamento do carro agitou o vestido branco nas suas mãos rechonchudas. As estrelas brilharam mais intensamente e o carro desapareceu no deserto, perdendo-se na escuridão.

Dirigiu sem parar durante três dias e três noites. Uma vez, pensou ter visto um carro seguindo-o. Tremendo, suando, pegou outra auto-estrada, atravessando o deserto mundo mar­ciano, passando por cidadezinhas mortas. Dirigiu durante oito dias, até que pôs quinze mil quilômetros entre ele e a Aldeia Marlin. Então se deteve numa cidadezinha chamada Holtville Springs, onde havia lojas pequenas que ele podia iluminar de noite, e restaurantes onde se sentar e pedir comida. E desde então passou a morar ali, com dois enormes congeladores cheios de comida que dava para cem anos, charutos suficientes para dez mil dias e uma boa cama com um colchão macio.

E quando, uma vez, no decorrer de muitos anos, o tele­fone toca... ele não atende.

 

Abril de 2026

Os Longos Anos

Quando o vento chegava, varrendo o céu, ele e sua peque­na família sentavam-se na cabana de pedra e aqueciam as mãos num fogo de lenha. O vento encrespava as águas do canal e quase arrancava as estrelas do céu, mas o Senhor Hathaway ficava sentado, satisfeito, conversando com a espo­sa, que lhe retribuía, e com suas duas filhas e o filho, sobre os tempos antigos na Terra, e eles lhe respondiam com clareza.

Era o vigésimo ano depois da Grande Guerra. Marte não passava, agora, de um planeta tumular. Hathaway e sua fa­mília se perguntavam silenciosamente, nas longas noites mar­cianas, se a Terra ainda era a mesma.

Naquela noite, havia desabado sobre os baixos cemité­rios de Marte uma tempestade de pó, soprando nas antigas cidades e estraçalhado as paredes de plástico da mais nova cidade americana que estava se desfazendo na areia, aban­donada.

A tempestade amainou. Hathaway saiu assim que o tem­po melhorou para ver a Terra, brilhando, verde, no céu ventoso. Ergueu o braço, com o gesto de apertar uma lâmpada frouxa no teto de um quarto escuro. Percorreu com o olhar as bacias dos mares mortos havia muito. Mais nenhuma coisa viva em todo este planeta, pensou. Só eu. E eles. Virou-se para a cabana de pedra.

Que estava acontecendo na Terra agora? Não detectara nenhum sinal visível de mudança no aspecto da Terra, no seu telescópio de setenta e cinco centímetros. Bem, pensou, se eu tiver cuidado, ainda viverei outros vinte anos. Alguém pode chegar. Tanto através dos mares mortos, como do espaço ex­terior, num foguete com uma pequena esteira de chamas vermelhas.

Gritou para dentro:

— Vou dar uma volta.

Dirigiu-se silenciosamente para uma série de ruínas.

— Fabricado em Nova York — leu, ao passar, num peda­ço de metal. — E todas estas coisas terrestres vão durar menos que as velhas cidades marcianas.

Olhou para as aldeias cinqüenta vezes centenárias que existiam nas montanhas azuis.

Foi até um isolado cemitério marciano, uma fileira de pedras hexagonais numa colina varrida pelo vento solitário.

Ficou olhando para quatro túmulos, com toscas cruzes de madeira, com nomes gravados nelas. Não derramou uma lá­grima. Seus olhos tinham Secado havia muito.

— Perdoam-me pelo que fiz? — perguntou às cruzes. — Eu estava muito só. Compreendem, não?

Voltou para a cabana de pedra e, mais uma vez, prote­gendo os olhos com a mão, examinou o céu escuro.

— Fica-se esperando, esperando, olhando — murmurou — e uma noite, quem sabe...

Surgiu uma tênue flama vermelha no céu.

Afastou-se da luz que saía da cabana.

— ... olha-se novamente — sussurrou.

A tênue chama vermelha continuava no mesmo lugar.

— Não estava lá na noite passada — murmurou. Tropeçou e caiu, ergueu-se, correu para trás da cabana, girou o telescópio e apontou-o para o céu.

Um minuto depois, após um longo e persistente exame, apareceu na porta baixa da cabana. A mulher, as duas filhas e o filho viraram a cabeça para ele. Finalmente, conseguiu falar.

— Tenho boas novas — disse. — Examinei o céu. Está che­gando um foguete para nos levar de volta. Deve pousar ama­nhã de manhã.

Enfiou o rosto nas mãos e começou a chorar suavemente.

Às três da manhã, queimou o que havia sobrado de Nova New York.

Pegou uma tocha e dirigiu-se para a cidade de plástico, encostando a chama nas paredes, aqui e ali. A cidade desabrochou em grandes flores de luzes ardentes. Foi uma fo­gueira de um quilômetro e meio quadrados, suficiente para ser vista do espaço. Levaria o foguete até o Senhor Hathaway e sua família.

Com o coração batendo dolorosamente, retornou à cabana.

— Estão vendo? — Exibiu uma garrafa empoeirada. — Vi­nho que eu guardei, exatamente para esta noite. Eu sabia que um dia alguém nos acharia! Temos que celebrar!

Encheu cinco taças.

— Passou-se muito tempo — disse, olhando gravemente para dentro do copo. — Lembram do dia em que a guerra estourou? Foi há vinte anos e sete meses. E a Terra mandou que todos os foguetes em Marte voltassem. Nós estávamos com as   crianças nas montanhas, fazendo pesquisas   arqueológicas sobre os antigos métodos cirúrgicos dos marcianos. Quase arre­bentamos os cavalos, lembram? Mas chegamos aqui na cidade com uma semana de atraso. Todos tinham ido embora. A Amé­rica havia sido destruída. Todos os foguetes haviam partido sem esperar pelos retardatários, lembram? E fomos os únicos a ficar aqui. Meu Deus, meu Deus, como passam os anos! Eu não poderia ter agüentado sem todos vocês. Eu teria me ma­tado sem vocês. Mas com vocês, valeu a pena esperar. Portanto, à nossa! — Ergueu a taça. — E à nossa longa espera, juntos.

Bebeu. A mulher, as filhas e o filho ergueram as taças e beberam.

O vinho escorreu pelo queixo de todos.

De. manhã, os restos da cidade estavam flutuando como grandes flocos negros por cima   do leito do mar. O fogo se extinguira, mas tinha atingido sua finalidade. O ponto ver­melho no céu aumentava.

Da cabana de pedra saía o gostoso cheiro de pão de gengibre tostado. Quando Hathaway entrou, a mulher estava arrumando sobre a mesa a fornada de pão fresco. As duas fi­lhas estavam varrendo cuidadosamente o chão de pedra, com vassouras ásperas, e o filho polia a baixela.

— Vamos oferecer-lhes um formidável café da manhã — riu Hathaway. — Vistam o melhor que tiverem!

Atravessou correndo a área até o enorme depósito de me­tal. Dentro, havia a câmara de congelamento e o gerador que recuperara e consertara com seus dedos pequenos e nervosos no decorrer dos anos, da mesma forma como havia consertado relógios, telefones e gravadores de fio, nas horas vagas. O de­pósito estava cheio de coisas que havia construído, inclusive alguns mecanismos sem sentido, cuja função era um mistério, mesmo para ele.

Tirou do congelador caixas de feijão e morangos, com vinte anos de idade, cobertas de geada. Lázaro levanta-te, pen­sou, e tirou uma galinha congelada.

Quando o foguete pousou, o ar estava tomado pelo per­fume dos alimentos cozinhando.

Como uma criança, Hathaway desceu a colina correndo. Parou uma vez por causa de uma súbita pontada no peito. Sentou-se numa pedra para recuperar o fôlego e depois correu o resto do caminho sem parar.

Parou em meio ao ar quente produzido pelo foguete in­candescente. Abriu-te uma escotilha. Um homem olhou para baixo.

Hathaway pôs a mão em pala sobre os olhos e finalmente disse:

— Capitão Wilder!

— Quem é? — perguntou o Capitão Wilder, pulando para o chão, onde ficou olhando o velho. Estendeu a mão.

— Meu Deus, é Hathaway!

— Isso mesmo.

Ficaram olhando fixamente um para o outro.

— Hathaway,   da minha   antiga   tripulação, da Quarta Expedição.

— Passou-se muito tempo, Capitão.

— Tempo demais. Que alegria tornar a vê-lo!

— Estou velho — disse Hathaway, com simplicidade.

— Também   já não   sou   nenhuma criança.   Passei vinte anos viajando por Júpiter, Saturno e Netuno.

— Ouvi dizer que eles o mandaram para longe, a fim de não interferir na política colonial aqui em Marte. — O velho olhou em volta. — O senhor esteve tanto tempo fora que não sabe o que aconteceu. . .

Wilder disse:

— Posso imaginar. Orbitamos Marte duas vezes. Encon­tramos apenas um   outro homem, chamado Walter Gripp, a uns quinze mil quilômetros daqui. Oferecemos-lhe levá-lo co­nosco, mas recusou. A última vez em que o vimos, estava sen­tado numa cadeira de balanço, no meio da auto-estrada, fu­mando cachimbo e dando adeus para nós. Marte está comple­tamente morto, sem mesmo um marciano vivo. E a Terra?

— O senhor   sabe tanto quanto eu. De vez em quando consigo pegar o rádio da Terra, muito fraco. Mas é sempre em uma outra língua. Sinto muito, mas só sei latim. Chegam-nos apenas umas poucas palavras. Acho que a Terra virou um campo de batalha, mas a guerra continua. O senhor está indo para lá?

— Estou. Claro que temos muita curiosidade. Não existe contato pelo rádio no espaço profundo. Todos queremos ver a Terra, seja como for.

— Vai levar-nos com o senhor? O capitão encarou-o.

— Claro, sua mulher, lembro dela. Fazem vinte e cinco anos, não? Quando eles inauguraram a Primeira Cidade e o senhor deixou o serviço ativo, trazendo-a para cá. E tinham filhos...

— Um rapaz e duas moças.

— Sim, lembro-me. Eles estão aqui?

— Lá na cabana. Há uma excelente refeição à espera do senhor, lá na colina. Vamos?

— É uma honra para nós, Senhor Hathaway. — Capitão — Wilder gritou para o foguete. — Abandonar a nave!

Começaram a subir a colina, Hathaway e o Capitão Wilder na frente, seguidos pelos vinte membros da tripulação, inspi­rando a plenos pulmões o ar frio e rarefeito da manhã. O sol apareceu e o dia ia ser lindo.

— Lembra-se de Spender, capitão?

— Nunca o esqueci.

— Uma vez por ano visito sua sepultura. Parece que fi­nalmente conseguiu o que desejava. Não queria   que viésse­mos para cá e suponho que ficará contente, agora que vamos todos embora.

— E... como é mesmo o nome dele?...   Parkhill, Sam Parkhill?

— Abriu uma barraca de cachorro quente.

— É bem o gênero dele.

— E voltou para á Terra na semana seguinte, por causa da guerra. — Hathaway pôs a mão no   peito e sentou-se de repente numa pedra. — Desculpe. A excitação. Vê-los nova­mente, depois de tantos anos. Preciso descansar.

Procurou   sentir as   batidas   cardíacas. Contou-as. Estava muito mal.

— Temos um médico — disse Wilder. — Desculpe, Hatha­way, sei que é médico, mas é melhor que o nosso o examine...

Chamaram o médico.

— Não é nada — insistiu Hathaway. — A espera, a exci­tação. — Mal podia respirar. Seus lábios estavam cianosados. — Sabe — disse, quando o médico colocou o estetoscópio — é como se eu tivesse ficado vivo todos estes anos esperando por este dia. Agora vocês chegaram para nos levar de volta para a Terra, estou contente e posso me deitar e morrer.

— Tome. — O médico deu-lhe uma pílula amarela. — É melhor deixá-lo repousar.

— Bobagem. Basta que eu me sente um instante. É con­fortador vê-los, é bom ouvir outra vez novas vozes.

— A pílula está fazendo efeito?

— Muito. Vamos! Continuaram a subir a colina.

 

— Alice, venha ver quem é!

Hathaway franziu a testa e meteu a cabeça para dentro da cabana.

— Alice, está ouvindo?

A mulher apareceu. Logo depois, suas duas filhas, altas e graciosas, também saíram, acompanhadas pelo filho, ainda mais alto.

— Alice, lembra-se do Capitão Wilder?

Ela hesitou e olhou para Hathaway como se aguardasse instruções e depois sorriu.

— Claro. Capitão Wilder!

— Lembro que jantamos juntos, Senhora Hathaway, na véspera de minha partida para Júpiter.

Ela apertou-lhe a mão, calorosamente.

— Minhas filhas, Marguerite e Susan. Meu filho, John. Lembram-se do capitão, não é?

Trocaram apertos de mão, rindo e falando animadamente. Capitão Wilder farejou o ar.

— Não é pão de gengibre?

Quer um pouco?

Todos se mexeram. Prepararam mesas de armar, trouxe­ram comidas quentes, pratos e finos guardanapos de damasco, e uma bela baixela. Capitão Wilder ficou olhando para a Senhora Hathaway durante algum tempo e depois para o filho e as filhas que se moviam silenciosamente. Examinou seus rostos, quando passavam por ele, seguiu os movimentos de suas mãos jovens e cada expressão de seus rostos lisos. Sentou-se numa cadeira trazida pelo filho.

— Quantos anos você tem, John? O rapaz respondeu:

— Vinte e três.

Wilder mexia, sem jeito, nos talheres. Seu rosto empalideceu de súbito. O homem ao seu lado murmurou:

— Capitão, alguma coisa está errada. John foi buscar mais cadeiras.

— Que disse, Williamson?

— Eu tenho quarenta e três anos, Capitão. Fui contem­porâneo de John Hathaway na escola, há vinte anos. Ele disse que está com vinte e três. É parece ter só isso. Mas está errado. John deve ter,   no mínimo, quarenta e dois.   Que significa isso, senhor?

— Não sei.

— O senhor parece estar adoentado.

— Não me sinto bem. As filhas também. Vi-as há mais ou menos vinte anos. Não mudaram, não têm uma ruga. Quer me fazer um favor? Quero que se encarregue de um serviço, Williamson. Vou-lhe dizer onde ir e o que deve verificar. Daqui a pouco você sai. Não levará mais de dez minutos. Não fica longe daqui. Vi o local do alto, quando pousamos.

— Bem! De que estão falando, com esse ar sério? — A Se­nhora Hathaway servia destramente a sopa. — Sorriam, esta­mos todos juntos, a viagem acabou e é como se estivessem em casa!

— Sim — disse o Capitão Wilder, rindo. — A senhora está realmente muito bem e muito jovem!

— Esses homens!

Wilder viu-a afastar-se rapidamente, com seu amistoso rosto corado, suave como uma maçã, sem rugas e colorido. Ela dava risadas cristalinas a cada piada, misturava as saladas com habilidades, nunca parando para respirar. O filho magro e as filhas curvilíneas falavam brilhante e espirituosamente, como o pai, dos longos anos e de sua vida reclusa sob o balançar de cabeça aprovador de Hathaway.

Williamson encaminhou-se para o sopé da colina.

— Onde vai ele? — perguntou Hathaway.

— Examinar o foguete — disse Wilder. — Mas como eu ia dizendo, Hathaway, não há nada em Júpiter, nada que sir­va para os homens. O mesmo se pode dizer de Saturno e Plutão.

Wilder falava maquinalmente, não ouvindo as próprias palavras, pensando apenas em “Williamson correndo colina abaixo e escalando-a de volta para contar o que achara.

— Obrigado.

Marguerite Hathaway acabara de encher seu copo de água. Impulsivamente, tocou no seu braço. Ela nem percebeu. Sua carne estava quente e macia. Hathaway, do outro lado da mesma, interrompeu-se várias vezes, apalpou o peito sentindo dor, tornou a ouvir as conversas cujo tom havia diminuído para ele, olhando reiteradamente para Wilder, preocupado, que parecia não estar gostando do pão de gengibre.

Williamson voltou. Sentou-se e começou a comer, até que o capitão murmurou para ele:

— Então?

— Achei, senhor.

— E?

O rosto de Williamson estava lívido. Fixou o olhar nos risonhos circunstantes. As moças riam comedidamente e o ra­paz contava uma piada. Williamson disse:

— Fui ao cemitério.

— As quatro cruzes estavam lá?

— Estavam, senhor. Os nomes ainda são visíveis.   Escrevi-os para não esquecer. — Tirou um papel e leu: — Alice, Marguerite, Susan e John Hathaway. Mortos por um vírus desconhecido. Julho de 2007.

— Obrigado, Williamson.

Wilder fechou os olhos.

— Há dezenove anos, senhor. A mão de Williamson tremeu.

— Eu sei.

— Então, quem são esses aí?

— Não sei.

— Que pretende fazer?

— Também ainda não sei.

— Vamos contar para os outros homens?

— Mais tarde. Continue a comer como se nada tivesse acontecido.

— Não estou com muita fome, senhor.

A refeição terminou com vinho trazido do foguete. Hatha­way levantou-se.

— Um brinde a todos vocês. É bom estar novamente entre amigos. E à minha mulher e filhos,   sem os quais eu não poderia ter sobrevivido só. Foi unicamente pela sua ternura e cuidados que vivi, esperando a chegada de vocês.

Ergueu a taça na direção da sua família, que o olhou meio sem jeito, baixando os olhos quando todos começaram a beber.

Hathaway bebeu. Não deu um grito quando caiu para a frente, sobre a mesa, e escorregou para o chão. Alguns dos homens o ajudaram a se deitar. O médico inclinou-se sobre ele e o auscultou. Wilder pôs a mão no ombro do médico. Este ergueu os olhos e balançou a cabeça. Wilder ajoelhou-se e pegou na mão do velho.

— Wilder? — Mal se ouvia a voz de Hathaway. — Estra­guei a festa.

— Que bobagem!

— Diga adeus a Alice e às crianças por mim.

— Espere, vou chamá-los.

— Não, por favor, não! — Hathaway ofegou. — Eles não compreenderiam. Não quero que compreendam. Não!

Wilder conservou-se imóvel.

Hathaway estava morto.

Wilder ficou ali parado durante algum tempo. Depois levantou-se e afastou-se do atônito grupo em torno de Hatha­way. Aproximou-se de Alice Hathaway, encarou-a e disse:

— Sabe o que aconteceu?

— Alguma coisa com meu marido?

— Acaba de falecer. Coração — disse Wilder, observando-a.

— Lamento — falou Alice.

— Como se sente? — perguntou o capitão.

— Ele não queria que nos sentíssemos tristes. Disse-nos que isso iria acontecer um dia e não queria que chorássemos. Sabe, não nos ensinou a chorar. Não queria que aprendêsse­mos. Dizia que a pior coisa que podia acontecer a alguém era ter a consciência da solidão, saber o que é ficar triste e depois chorar. Por isso não sabemos o que é chorar ou ficar triste.

Wilder olhou para as mãos dela, lépidas, macias, de unhas finamente manicuradas, e para os pulsos delicados. Olhou o pescoço esguio, liso e os olhos inteligentes. Finalmente, falou:

— O Senhor Hathaway fez um magnífico trabalho na se­nhora e nas crianças.

— Ele teria gostado de ouvir o   senhor dizer isso.   Se orgulhava muito de nós. Depois de certo tempo, chegou a esquecer que nos fabricara. Por fim, amou-nos e nos conside­rou mulher e filhos. E, de certa forma, nós éramos.

— Foram um grande conforto para ele.

— Sim, conversamos durante anos a fio. Ele gostava muito de conversar. Amava muito a cabana de pedra e a fogueira ao ar livre. Poderíamos ter morado na cidade, numa casa con­vencional, mas Hathaway gostava daqui, onde poderia ser, sempre que quisesse, primitivo ou moderno. Contou-me tudo sobre seu laboratório e o que fez nele. Cercou toda a cidade americana   lá embaixo com   alto-falantes.   Quando   apertava um botão, a cidade acordava e fazia ruídos como se dez mil pessoas vivessem nela. Havia barulhos de avião, de automó­veis e de gente falando. Ele sentava-se, acendia um charuto e nos falava. Os ruídos da cidade chegavam até aqui. De vez em quando, o telefone tocava e uma voz gravada fazia per­guntas sobre ciência e cirurgia, que o Senhor Hathaway res­pondia. Com o telefone tocando, nós aqui, os ruídos da cidade e seu charuto, o Senhor Hathaway era muito feliz. Só uma coisa ele não conseguiu que nós fizéssemos — continuou. — Envelhecer. Ele ficava mais velho a cada dia, mas nós conti­nuávamos os mesmos. Acho que ele não se importava. Queria que fôssemos assim.

— Vamos enterrá-lo no cemitério, ao lado das outras qua­tro cruzes. Acho que ele gostaria disso.

Ela segurou-lhe o pulso, levemente.

— Estou certa que sim.

Ordens foram dadas. A família acompanhou o pequeno cortejo até o sopé da colina. Dois homens carregavam Hatha­way numa maca coberta. Passaram a cabana de pedra e o armazém onde Hathaway, havia muitos anos, começara seu trabalho. Wilder parou junto da porta da oficina.

Como seria, pensou ele, viver num planeta com a mulher e três filhos, e eles morrerem deixando-nos só com o vento e o silêncio? Que fazer? Enterrá-los no cemitério e depois voltar para a oficina onde, com todo o poder da mente, usando a memória, a habilidade manual e a genialidade, juntar, peda­ço a pedaço todas as coisas que eram a esposa, o filho, as fi­lhas. Dispondo de uma cidade americana inteira, lá embaixo, de onde tirar os mantimentos que necessitava, um homem bri­lhante poderia fazer qualquer coisa.

O som dos seus passos foi abafado pela areia. Quando chegaram ao cemitério, dois homens já haviam aberto as sepulturas.

Retornaram ao foguete no fim da tarde.

Williamson mostrou a cabana de pedra com um gesto de cabeça.

— Que vamos fazer com eles?

— Não sei — respondeu o capitão.

— Vai desligá-los?

— Desligá-los? — O capitão ficou meio surpreso. — Nunca havia pensado nisso.

— Vai levá-los conosco?

— Não, seria inútil.

— Quer dizer que vai deixá-los aqui, assim, como são? O capitão estendeu uma arma a Williamson.

— Se o senhor for capaz... eu não sou.

Cinco minutos depois, Williamson voltou da cabana, suando.

— Olha o seu revólver. Agora entendo o que o senhor queria dizer. Entrei na cabana com o revólver. Um das filhas sorriu para mim. Os outros também. A mulher me ofereceu uma xícara de chá. Meu Deus, seria assassinato!

Wilder balançou a cabeça.

— Jamais haverá coisa tão maravilhosa quanto eles. Fo­ram construídos para ficar. Dez, cinqüenta, duzentos anos. Sim, eles têm tanto direito à... vida quanto qualquer um de nós. — Esvaziou o cachimbo. — Bem, para bordo. Vamos deco­lar. Esta cidade está morta, não tem nenhuma utilidade.

Escurecia. Começou a soprar um vento frio. Os homens estavam a bordo. O capitão hesitou. Williamson disse:

— Não me diga que vai voltar para... despedir-se deles? O capitão olhou friamente para Williamson.

— Não é da sua conta.

Wilder foi até à cabana tendo por companhia o vento no­turno. Os homens no foguete viram sua sombra detendo-se no umbral da cabana de pedra. Viram também a sombra de uma mulher. Viram o capitão apertar-lhe a mão.

Momentos depois, chegou no foguete, correndo.

Nas noites em que o vento varre o fundo do mar morto e atravessa o cemitério hexagonal, soprando sobre quatro cruzes antigas e uma nova, há uma luz brilhando na cabana de pedra baixa. Enquanto o vento ruge e faz a areia turbilhonar, e as estrelas geladas reluzem, quatro vultos, uma mulher, duas filhas e um filho mantêm o fogo baixo, sem motivo, conversando e rindo.

Noite após noite, ano após ano, sem qualquer motivo, a mulher sai da cabana e olha para o céu, de braços erguidos, durante bastante tempo, em direção à luz verde da Terra, não sabendo por que está olhando. Depois torna a entrar, coloca uma acha no fogo e o vento continua soprando e o mar morto continua morto.

 

Agosto de 2026

Chegarão Chuvas Suaves

Na sala de visitas, o relógio-falante cantou: Tique-taque, sete horas, hora de levantar, hora de levantar, sete horas!, como se tivesse medo que ninguém quisesse. A casa matinal estava deserta. O relógio tiquetaqueou, repetindo seu som no vazio. Sete e nove, hora do café, sete e nove!

Na cozinha, o fogão exalou um suspiro sibilante e lan­çou do seu aquecido interior oito fatias de pão, perfeitamente torradas, oito ovos fritos ao ponto, dezesseis tiras de toucinho, duas xícaras de café e dois copos de leite gelado.

— Hoje são 4 de agosto de 2026 — disse uma segunda voz, do teto da cozinha — na cidade de Allendale, Califórnia. — Repetiu a data três vezes para fixá-la na memória. — Hoje é o aniversário do Senhor Featherstone. Hoje é o aniversário de casamento de Tilita. É o dia de pagar as contas de segu­ro, água, gás e luz.

Em algum lugar das paredes, relés estalaram e fitas de memória deslizaram sob olhos elétricos.

Oito e um, tique-taque, oito e um, hora do colégio, hora de trabalhar, depressa, depressa, oito e um!, mas as portas não bateram, os tapetes não receberam as leves marcas de saltos de borracha. Chovia lá fora. A caixa do tempo, pregada na porta da rua, cantava tranqüilamente: “Chuva, chuva, vá em­bora. Hoje é dia de capas e de galochas... “ E a chuva caía sobre a casa vazia, ecoando.

Fora, a garagem soou ergueu sua porta para mostrar o carro à espera. Depois de passado um tempo, a porta abaixou.

Às oito e meia, os ovos estavam murchos e as torradas feito pedra. Um utensílio de alumínio jogou-os na pia, onde um jato de água quente turbilhonante lançou-os numa gar­ganta de metal, que os digeriu e atirou num mar distante. A louça suja foi colocada numa lavadora quente e emergiu seca c reluzente.

Nove e quinze — cantou o relógio — hora da limpeza.

Pequenos camundongos-robôs saíram de orifícios nas pa­redes. As habitações formigaram com os pequenos animais de limpeza, todos de borracha e metal. Esbarraram em Cadei­ras, fazendo girar seus detectores, alisando os tapetes, sugando suavemente o pó escondido. Depois, como invasores misterio­sos, pularam para suas tocas. Seus rosados olhos elétricos apa­garam-se. A casa estava limpa.

Dez horas. O sol apareceu por trás da cortina de chuva. A casa erguia-se, solitária, numa cidade de ruínas e cinzas. Fora o único imóvel a resistir. De noite, a cidade arruinada emitia um clarão radioativo que podia ser visto a quilômetros de distância.

Dez e quinze. Os irrigadores do jardim giravam em chuviscos dourados, enchendo o suave ar da manhã com respingos de luminosidade. A água fustigou os vidros das janelas, escorrendo pelas paredes carbonizadas do oeste, onde a casa havia perdido sua pintura branca. Toda a fachada oeste da casa estava preta, com exceção de cinco lugares. Ali, a si­lhueta em branco de um homem cortando a grama. Aqui, como numa fotografia, uma mulher, curvada, apanhando flores. Um pouco mais longe, com os vultos gravados a fogo em ma­deira, num titânico instantâneo, um garotinho com os braços levantados. Mais em cima, a forma de uma bola atirada, e de­fronte dele uma garota, com as mãos erguidas para apanhar um bola que nunca iria cair.

As cinco manchas de tinta — o homem, a mulher, as crian­ças e a bola — permaneceram. O resto era uma fina camada de carvão.

A suave chuva que os irrigadores produziam caia em fios luminosos.

Até aquele dia, como a casa tinha sabido conservar sua paz! Com que cuidado perguntava: “Quem está aí? Qual é a senha?” e, não obtendo resposta das raposas solitárias e dos gatos chorões, fechava suas janelas e corria as cortinas, numa preocupação de solteirona com a própria proteção, que atingia às raias da paranóia mecânica.

A casa estremecia com qualquer som. Se um pardal roça­va numa vidraça, a cortina fechava-se ruidosamente. O pássa­ro, assustado, saía voando! Não, nem mesmo um pássaro podia tocar na casa!

A casa era um altar com dez mil acólitos, grandes, peque­nos, servindo, atendendo em grupos. Mas os deuses haviam partido e o ritual da religião continuou absurdamente inútil.

Meio-dia.

Um cão ganiu, trêmulo, na varanda da frente.

A porta da rua reconheceu o latido do cão e abriu-se. O cão, antigamente grande e forte, era agora só ossos cobertos de feridas. Entrou na casa, deixando um rastro de lama. Atrás dele, chiavam os camundongos furiosamente, zangados por te­rem de limpar a lama e por causa da falta de compostura.

Pois assim que um pedaço de folha penetrava por baixo da porta, logo os painéis da parede se abriam e os camun­dongos de cobre surgiam como relâmpagos. O pó, o cabelo ou o papel inconveniente eram apanhados por minúsculas mandíbulas de aço e carregados para os orifícios. Nestes, havia canos descendentes que os depositavam no porão, onde eram atirados na boca de um ciciante incinerador, instalado como um sinistro Baal num canto escuro.

O cachorro subiu as escadas, latindo histericamente em cada porta, acabando por compreender, como já acontecera com a casa, que só o silêncio permanecia ali.

O cão farejou o ar e arranhou a porta da cozinha. Por trás da porta, o fogão estava fazendo panquecas, que enchiam a casa de um fabuloso cheiro de tostado e de maple.

Deitado na porta, com o focinho espumando, farejando, o cão tinha os olhos virados para o fogo. Começou a girar em círculos, mordendo a própria cauda, rodopiando freneticamente, e morreu. Ficou estendido na sala durante uma hora.

Duas horas, cantou uma voz.

Percebendo, finalmente, o cheiro quase imperceptível de decomposição, regimentos de ratos saíram sussurrando suave­mente como folhas amarelecidas arrastadas por um vento de tempestade.

Duas e quinze.

O cão desaparecera.

No porão, o incinerador brilhou subitamente e expeliu pela chaminé redemoinhos de fagulhas.

Duas e trinta e cinco.

Das paredes do pátio, surgiram mesas de bridge. Baralhos esvoaçaram e formaram montes, numa chuva de figuras. Martinis se manifestaram num balcão de carvalho, acompanha­dos de sanduíches de salada de ovos. Ouviu-se música.

Mas as mesas ficaram silenciosas e as cartas intocadas.

Às quatro, as mesas dobraram-se, como enormes borbo­letas, e voltaram para seus nichos nas paredes de lambris.

Quatro e meia.

As paredes do quarto das crianças brilharam. Animais adquiriram forma: girafas amarelas, leões azuis, antílopes rosados, panteras lilases, cabriolando numa subs­tância cristalina. As paredes eram de vidro colorido e cheio de fantasias. Filmes ocultos deslizaram sobre carretéis bem azeitados, e as paredes adquiriram vida. O chão do quarto foi preparado para assemelhar-se a um campo ondulante de ce­reais, por onde corriam baratas de alumínio e grilos de ferro. No ar morno e parado, adejavam borboletas de delicadas asas vermelhas transparentes, entre o penetrante perfume de pega­das de animais! Ouvia-se o barulho semelhante a um grande enxame de abelhas amarelas dentro de colméias e o pregui­çoso ronronar de um leão. E também o galope dos okapis, o murmurar da chuva suave sobre a mata, bem como o de outros animais, caindo sobre o capim seco do verão. Agora as paredes se transformaram em planícies intermináveis de pastagens ressequidas e num céu infinito e quente. Os animais se afas­taram pelas passagens espinhosas à procura de mananciais. Era a hora das crianças.

Cinco horas. A banheira encheu-se de água cristalina e quente.

Seis, sete, oito horas. A louça do jantar apareceu como um passe de mágica e no estúdio, um clique. Na estante, de­fronte da lareira, onde brilhava um fogo acolhedor, apareceu um charuto, fumegante, com quase um centímetro de cinza, esperando.

Nove horas. As camas aqueceram seus circuitos ocultos, pois as noites estavam frias.

Nove e cinco. Uma voz falou do teto do estúdio:

— Senhora McClellan, que poema quer ouvir esta noite? A casa continuou silenciosa.

A voz finalmente disse:

— Já que não tem preferência, escolherei um poema ao acaso. — Ouviu-se uma música suave, como fundo para a voz. — Sara Teasdale (Poetisa americana (1884-1933). (N.doT.)). Se não me engano, sua preferida..

 

“Chegarão chuvas suaves e o perfume do solo,

As andorinhas adejando, com seu canto estridente.

 

E sapos nos charcos cantando de noite,

E ameixeiras silvestres, trêmulas e. pálidas.

 

Tordos vestirão sua plumagem de fogo,

Assoviando suas fantasias numa cerca baixa.

 

E ninguém saberá que há guerra, ninguém

Se preocupará quando ela tiver fim.

 

Ninguém se importará, seja pássaro ou árvore,

Se a humanidade perecer totalmente.

 

E a própria Primavera, quando despertar ao amanhecer,

Nem suspeitará do nosso desaparecimento.

 

O fogo queimava na lareira de pedra e o charuto consu­miu-se em cinzas no cinzeiro. As poltronas vazias continuavam umas defronte das outras, entre as paredes silenciosas, e a mú­sica prosseguia.

Às dez horas, a casa começou a morrer.

O vento soprou. O galho de uma árvore despencou e arre­bentou a janela, indo cair na cozinha. O vidro de detergente estilhaçou-se sobre o fogão. O local ficou instantaneamente em chamas!

— Fogo! — gritou uma voz.

As luzes da casa acenderam-se e as bombas de água co­meçaram a jorrar do teto. Mas o detergente espalhou-se pelo linóleo, lambendo, devorando, passando sob a porta da cozi­nha, enquanto as vozes gritavam em coro:

— Fogo, fogo, fogo!

A casa tentou salvar-se. Portas foram fechadas, mas as janelas estalavam por causa do fogo que era espalhado pelo vento.

A casa cedeu terreno ao fogo que, em dez bilhões de faíscas, avançou facilmente de compartimento para compartimento e depois pelas escadas.

Apressados ratos d'água pulavam das paredes esguichan­do e corriam para buscar mais água. E os extintores murais espargiam sua chuva automática.

Porém era tarde. Em algum lugar, com um suspiro, uma bomba sacolejou e parou. A chuva diminuiu e parou. A caixa d'água, que havia enchido as banheiras e lavado a louça du­rante tantos dias tranqüilos, ficou vazia.

O fogo crepitou escada acima. Nutriu-se de Picassos e de Matisses nas salas superiores, como delicadas iguarias, cozi­nhando a carne oleosa, fritando maciamente as telas, em pe­daços escuros.

Depois o fogo ocupou as camas, atingiu as janelas e mu­dou a cor das cortinas!

De repente, chegaram reforços.

De alçapões, no sótão, robôs de rostos cegos viraram as cabeças para baixo e soltaram um produto químico verde.

O fogo retrocedeu como um elefante diante de uma cobra morta. E foram vinte serpentes que deslizaram para o chão, matando o fogo com o veneno claro e frio da espuma verde.

Mas o fogo era esperto. Enviou chamas para fora da casa e pelo sótão, para atingir as bombas localizadas lá. Uma explosão! O cérebro que, do sótão, comandava as bombas, transformou-se em estilhaços de bronze sobre as vigas.

O fogo penetrou em todos os armários e passou a lamber as roupas neles penduradas.

A casa estremeceu, viga por viga de carvalho, com a estru­tura à mostra rangendo com o fogo, sua fiação, seus nervos, revelados como se um cirurgião tivesse retirado a pele para que veias vermelhas e os vasos capilares palpitassem no ar escaldante. Socorro, socorro! Fogo! Fujam, fujam! O fogo estalava os espelhos como os primeiros gelos do inverno. E as vozes gritavam fogo, fogo, fujam, fujam, como uma trágica cantiga de ninar, uma dúzia de vozes, altas, baixas, como crian­ças morrendo numa floresta, sós, terrivelmente sós. E as vozes emudeciam à medida em que os fios ficavam desencapados e explodiam como castanhas quentes. Uma, duas, três, quatro, cinco vozes calaram.

No quarto das crianças, a mata queimava. Os leões azuis rugiram, as girafas amarelas escaparam aos pulos. As panteras corriam em círculos, mudando de cor, e dez milhões de ani­mais, fugindo do fogo, desapareceram na direção de um dis­tante rio fumegante...

Mais dez vozes calaram-se. No último instante, sob a avalanche do incêndio, outros coros, esquecidos, puderam ser ouvidos, anunciando o tempo, tocando música, cortando a grama com segadoras de controle remoto ou abrindo e fechando freneticamente um guarda-chuva na porta da rua, que batia descontrolada, mil coisas acontecendo ao mesmo tempo, como numa relojoaria, quando cada relógio bate a hora incessante­mente, antes e depois do outro, uma cena de louca confusão, apesar de ter unidade. Cantando, gritando, os últimos camundongos limpadores atiraram-se corajosamente para levar dali as cinzas horríveis! E uma voz, com sublime desprezo pela situação, lia poesia alto no estúdio incendiado, até que os rolos de filme queimaram, até que os fios encolheram e os circuitos arrebentaram.

O fogo fez a casa estalar e cair, expelindo lençóis de fagulhas e fumaça.

Na cozinha, um momento antes da chuva de fogo e de ma­deira, podia-se ver o fogão fazendo refeições numa proporção psicopática: dez dúzias de ovos, seis pacotes de torradas, vinte dúzias de tiras de toucinho que, absorvidos pelo fogo, faziam o fogão recomeçar, chiando histericamente!

Um estrondo. O sótão arrebentou-se sobre a cozinha e a sala de visitas. A sala de visitas sobre o porão e este sobre as fundações. Congelador, poltrona, fitas, circuitos, camas e tudo o mais amontoaram-se no fundo como um desordenado tu­multo de ossos.

Fumaça e silêncio. Grande quantidade de fumaça.

O dia começou lentamente a raiar. Entre as ruínas, ape­nas uma parede mantinha-se ereta. Dentro dela, uma derra­deira voz dizia incessantemente, enquanto os primeiros raios do sol começaram a brilhar sobre os escombros fumegantes:

— Hoje são 5 de agosto de 2026, hoje são 5 de agosto de 2026, hoje são...

 

Outubro de 2026

O Piquenique de Um   Milhão de Anos

A mãe sugeriu que a família inteira saísse para uma pes­caria. Mas Timothy sabia que a idéia não era da mãe. Era do pai, e ela era apenas sua porta-voz.

Papai espalhou um montinho de pedras marcianas com os pés e concordou. Imediatamente houve agitação e gritos. Sem demora, o acampamento foi acondicionado em sacos e caixas. A mãe meteu-se num macacão e apanhou um casaco. O pai encheu o cachimbo com mão trêmula, os olhos fixos no céu marciano. Os três garotos amontoaram-se gritando no bar­co a motor, nenhum deles, salvo Timothy, prestando atenção na mãe e no pai.

O pai apertou um botão. Um zumbido elevou-se no espa­ço. A água ferveu na popa e o barco partiu, com a família gritando “Hurra!”

Timothy, sentado na popa, junto do pai, colocara os dedinhos sobre a mão cabeluda do velho, olhando o canal fazer uma curva, afastando-se do local em ruínas atrás do qual ha­via pousado o seu pequeno foguete particular, vindo direta­mente da Terra. Lembrava-se, ainda, daquela noite na véspera da partida, da agitação, da pressa, do foguete que o pai havia encontrado em algum lugar, não sabia onde, e da conversa sobre umas férias em Marte. Era uma cansativa viagem para férias, mas Timothy não fez qualquer comentário por causa dos irmãos menores. Chegaram a Marte e agora, para começar, pelo menos era o que diziam, iriam pescar.

O pai tinha o olhar divertido enquanto o barco subia o canal. Um olhar que Timothy não conseguia compreender. Nele se misturavam um brilho forte e uma espécie de alívio, fazendo com que suas rugas profundas rissem em vez de se preocupar ou chorar.

O foguete, já quase frio, desapareceu numa curva.

— Vamos muito longe?

Robert espalmou a mão no canal. Ela parecia um filhote de caranguejo pulando na água azulada. O pai suspirou:

— Um milhão de anos.

— Puxa — disse Robert.

— Olhem, crianças — A mãe estendeu o braço comprido e macio. — Uma cidade morta.

Seus olhos brilhavam de prazer antecipado, vendo aquela cidade morta jazendo ali apenas para eles, cochilando num quente silêncio de verão feito em Marte por algum me­teorologista marciano.

O pai olhou como se estivesse contente pelo fato dela estar morta.

Era uma quantidade de pedras rosadas sem importância, espalhadas, adormecidas numa elevação arenosa, algumas co­lunas destruídas, uma capela abandonada e novamente o lençol de areia. Nada mais, a perder de vista. Um deserto branco em torno do canal e outro azul mais acima.

Nesse instante um pássaro voou pelo céu. Como uma pe­dra atirada num lago azul, saltitando, mergulhando e desa­parecendo.

O pai ficou assustado ao ver o pássaro.

— Pensei que fosse um foguete.

Timothy olhou para o profundo oceano celeste, procuran­do ver a Terra, a guerra, as cidades destruídas, os homens se matando desde o dia em que ele nasceu. Nada viu. A guerra estava tão distante, tão afastada, quanto duas moscas num duelo de morte na alta abóbada de uma catedral silenciosa. E também tão absurda.

William Thomas enxugou o suor da testa e sentiu a mão do filho no seu braço, como uma pequena tarântula, trêmula. Olhou o garoto, sorrindo.

— Que tal, Timmy?

— Ótimo, papai.

Timothy ainda não compreendia direito o que acontecia dentro daquele mecanismo adulto ao seu lado. O homem com o imenso nariz aquilino, queimado de sol, descascando... e com os amigáveis olhos azuis como bolas de gude de ágata, como as que costumava jogar ao sair do colégio, no verão terrestre, e as pernas longas e fortes dentro de culotes folgados.

— O que está procurando tanto, papai?

— Estou procurando a lógica terrestre, o bom senso, um bom governo, paz e responsabilidade.

— Tudo isso lá em cima?

— Não, não as   encontrarei. Não   existem   mais.   Talvez nunca tenham existido. Talvez tenhamos nos enganado, pen­sando que ainda pudessem existir.

— Hem?

— Olhe o peixe — disse o pai, apontando.

Um concerto de vozes agudas surgiu das três crianças, quando adernaram o barco, estendendo os pescoços frágeis pira olhar. Eram ahs e ohs. Um peixe prateado em forma de anel nadou perto deles, ondulando e se fechando como um diafragma, instantaneamente, em torno de partículas de co­mida, para assimilá-las.

O pai ficou olhando para aquilo. Sua voz era profunda e tranqüila.

— Exatamente como na guerra. A guerra vai nadando, vê o alimento, contrai-se. Um momento depois... a Terra sumiu.

— William — disse a mãe.

— Desculpe — respondeu papai.

Imóveis, calados, viram passar as águas do canal, frescas, rápidas e cristalinas. O único som era o zumbido do motor, a água roçando no barco e o sol dilatando o ar.

— Quando veremos os marcianos? — perguntou Michael.

— Muito breve, talvez — disse o pai. — Amanhã de noite, possivelmente.

— Ora, os marcianos são uma raça extinta — disse a mãe.

— Não, não são. Vou mostrar-lhes uns marcianos — disse o pai, após uns instantes.

Timothy franziu a testa, mas nada disse. Agora tudo era estranho. As férias, a pescaria e os olhares trocados pelas pessoas.

Os outros garotos estavam brincando, fazendo binóculos com as mãos e olhando para a rampa de pedra de dois metros de altura do canal, procurando marcianos.

— Como são eles? — perguntou Michael.

— Vai reconhecê-los quando os vir.

O pai deu uma risadinha e Timothy viu uma veia saltar no seu rosto.

A mãe era esbelta e suave, com uma trança de cabelos dou­rados presa no alto da cabeça como uma coroa. Tinha os olhos da cor profunda das águas frias do canal correndo pelos luga­res sombreados, quase púrpura, com reflexos ambarinos. Pode­ria ver seus pensamentos nadando neles como peixes, brilhan­tes, escuros, rápidos, lentos e calmos, e outras vezes, quando ela olhava para onde a Terra ficavam apenas coloridos. Estava sentada na proa do barco, com uma das mãos apoiada na bor­da e a outra sobre o regaço do macacão azul escuro. O pescoço, delicado e queimado de sol, aparecia pela blusa, aberta como uma flor branca.

Continuava olhando para a frente, tentando ver o que havia, e, como não o conseguisse claramente, virou a cabeça para o marido. Refletido nos olhos dele, viu o que havia adiante. E como ele acrescentava alguma coisa de si mesmo naquele reflexo, uma firmeza determinada, seu rosto distendeu-se. Então tornou a virar-se para a frente, sabendo subita­mente o que devia esperar.

Timothy também olhou. Mas o que viu foi um canal reto como uma linha traçada a tinta, cor violeta, que cruzava um vale amplo e pouco profundo, rodeado de colinas baixas e desgastadas, chegando até à beira do céu. E o canal estendia-se sempre, atravessando cidades que, se sacudidas, chocalhariam como besouros dentro de um crânio descarnado. Umas cem ou duzentas cidades imersas em sonhos diurnos e noturnos de dias e noites de verão, calorentos ou frios...

Haviam viajado milhões de quilômetros para aquilo: uma pescaria. Mas havia uma arma no foguete. Eram férias. Para que toda aquela comida, mais que o suficiente para sustentá-los durante anos e anos, deixada oculta perto do foguete? Férias. Atrás do véu das férias não havia um rosto suave e risonho, mas algo duro e ossudo, talvez apavorante. Timothy não con­seguiu erguer o véu, e os outros dois garotos estavam muito ocupados, nos seus dez e oito anos, respectivamente.

— Até agora nenhum marciano. Bolas.

Robert apoiou o queixo pontudo nas costas das mãos e olhou para o canal. O pai havia trazido um rádio atômico de pulso. Funcionava segundo um princípio antiquado: apoiava-se o aparelho no osso junto ao ouvido e ele vibrava, cantando ou falando. O pai estava escutando-o agora. Seu rosto tomou o aspecto de uma dessas cidades marcianas destruídas: cavado, chupado, quase morto.

Passou-o à mulher, para que ouvisse. Ela ficou de boca aberta.

— O que... — começou Timothy a perguntar, mas não conseguiu terminar.

Pois naquele instante foram ouvidas duas explosões titânicas, de sacudir os ossos, envolvendo-os, seguidas por meia dúzia de sacudidelas menores.

Erguendo a cabeça, o pai imediatamente acelerou a velo­cidade do barco, que pulou, sacolejou e chispou. Robert es­queceu o medo. Michael dava gritos de pavor e de alegria nervosa, agarrado às pernas da mãe, olhando a água que batia em seu nariz em grande quantidade.

O pai desviou o barco, desligou o motor e aproou para um pequeno canal secundário, indo atracar num velho cais de pedra meio desmoronado, que cheirava a crustáceos. O barco bateu no cais com força suficiente para fazê-los cair, mas ninguém se machucou. O pai virou-se imediatamente para ver se a ondulação do canal era suficiente para encobrir seu caminho para o esconderijo. As ondas do canal se entrecruzaram, bateram nas pedras e retrocederam, entrechocando-se, recebendo os raios do sol. Depois desapareceram.

O pai e todos eles ficaram escutando.

A respiração do pai ressoava com punhos esmurrando as pedras frias e molhadas do cais. Os olhos felinos da mãe estavam fixos ansiosamente no marido.

O pai tranqüilizou-se e respirou fundo, sorrindo interior­mente .

— Foi o foguete, é claro. Estou ficando uma pilha. O fo­guete.

Michael falou:

— O que foi, papai, o que foi?

— Ora, foi apenas o nosso foguete que explodiu. Só isso

— disse Timothy, com ar indiferente. — Já ouvi outros fo­guetes explodirem. O nosso explodiu.

— Por que explodimos nosso foguete? — perguntou Mi­chael. — Hem, papai?

— Faz parte de uma brincadeira, bobo! — falou Timothy.

— Uma brincadeira!

Michael e Robert ficaram encantados com a palavra.

— Papai fez ele explodir, de maneira a que ninguém fi­casse sabendo onde pousamos ou para onde fomos. No caso de virem ver, tá?

— Oba, um segredo!

— Assustado   por   meu   próprio   foguete —   confessou   o pai à mulher. — Estou nervoso. É uma bobagem pensar que há outros foguetes. Menos um, talvez, se Edwards e a mu­lher conseguiram atravessar com a nave deles.

Tornou a colar o rádiozinho no ouvido. Dois minutos depois, baixou o braço, como quem deixa cair um pedaço de pano.

— Finalmente, está tudo acabado — disse para a mulher.

— O rádio acaba de esgotar o raio atômico. Todas as estações do mundo emudeceram. Ficaram reduzidas a duas nos últimos anos. Agora o espaço está completamente silencioso. E prova­velmente permanecerá assim.

— Por quanto tempo? — perguntou Robert.

— Talvez seus bisnetos tornem a ouvir essas ondas — disse o pai.

Sentou-se, e as crianças foram envolvidas pelo seu senti­mento de derrota, resignação e conformismo.

Finalmente, conduziu o barco novamente para o canal e prosseguiram na mesma direção em que haviam ido.

Estava ficando tarde. Já começava a escurecer. Havia uma quantidade de cidades mortas à frente deles.

O pai começou a conversar com os filhos em voz muito baixa e suave. Antigamente, fora muitas vezes áspero, distante e severo. Mas agora falava com eles, acariciando suas cabeças, e os garotos perceberam.

— Mike, escolhe uma cidade.

— O que, papai?

— Escolhe uma cidade, meu filho. Qualquer das que ire­mos passar.

— Está bem — disse Michael. — Qual delas?

— A que você mais   gostar.   E vocês também, Robert e Tim. Escolham a que mais gostarem.

— Quero uma cidade com marcianos dentro — disse Michael.

— Você a terá — falou o pai. — Prometo.

Falava para os filhos, mas tinha os olhos fixos na mulher.

Passaram por seis cidades nos vinte minutos seguintes. O pai não tornou a falar nas explosões. Parecia muito mais in­teressado em se divertir com os filhos, fazê-los felizes acima de tudo.

Michael escolheu a primeira cidade por onde passaram, mas foi vetado porque todos desconfiavam de juízos apressa­dos; Da segunda ninguém gostou. Era uma colônia terrestre, construída de madeira, já se transformando e serragem. Ti­mothy gostou da terceira porque era grande. A quarta e a quinta eram muito pequenas e a sexta provocou a admiração de todos, inclusive da mãe, que se juntou aos Puxa, Oba e Olhe só!

Eram cinqüenta ou sessenta edifícios enormes, ainda fir­mes, com ruas cheias de poeira, mas pavimentadas, e podia-se ver um ou dois chafarizes rotativos, emitindo jatos nas praças. Era o único sinal de vida: a água jorrando à luz do sol poente.

— É esta a cidade — disseram todos. Atracando o barco num molhe, o homem saltou.

— Cá estamos. Isto nos pertence. Aqui passaremos a mo­rar para sempre.

— Para sempre? — perguntou Michael, incrédulo. Levan­tou-se, deu uma olhada e depois virou-se para olhar na dire­ção em que o foguete deveria estar. — E o foguete? E Minne­sota?

— Aqui — disse o pai. Encostou o radiozinho na cabeça loura de Michael. — Escute.

Michael escutou.

— Nada.

— Isso mesmo. Nada. Nunca mais ouvirá nada. Minneapolis não existe mais, nem foguetes, nem a Terra.

Michael examinou a revelação fatal e rompeu em soluços entrecortados.

— Espere aí — atalhou o pai. — Estou-lhe dando muito mais em troca, Mike!

— Hem?

Michael conteve as lágrimas, curioso, mas pronto para continuar, se a nova revelação do pai fosse tão desconcertante quanto a primeira.

— Estou-lhe dando esta cidade, Mike. É sua.

— Minha?

— Sua, de Robert e de Timothy, de todos três, só de vocês. Timothy pulou do barco.

— Olhem, caras, tudo nosso! Tudo isto!

Estava fazendo o jogo do pai, plenamente, até o fim. Mais tarde, quando tudo estivesse acomodado, poderia se es­conder e chorar durante dez minutos. Mas agora era um jogo, um passeio da família e os garotos precisavam ser distraídos.

Mike e Robert também pularam do barco e ajudaram a mãe a saltar.

— Cuidado com sua irmã — disse o pai, e só mais tarde compreenderiam o que ele queria dizer.

Correram para a cidade de pedra rosada, falando baixo uns com os outros, porque as cidades mortas obrigam sempre as pessoas a sussurrar, para ver o sol se pôr.

— Daqui a cinco dias — falou o pai, em voz baixa — irei até onde o nosso foguete estava, apanharei os mantimentos escondidos nas ruínas lá perto e os trarei para cá. Depois, pro­curarei Bert Edwards, a mulher e as filhas, para que fiquem conosco.

— Filhas? — perguntou Timothy. — Quantas?

— Quatro.

— Já posso imaginar as complicações, mais tarde — falou a mãe, balançando lentamente a cabeça.

— Garotas — o rosto de Michael imitou o de uma velha estátua marciana. — Garotas.

— Eles também vêm num foguete?

— Sim. Se conseguirem. Os foguetes familiares são feitos para ir até a Lua e não até Marte. Tivemos sorte em chegar aqui.

— Onde você obteve o foguete? — sussurrou Timothy, enquanto os outros garotos corriam na frente.

— Guardei-o. Guardei-o durante vinte anos, Tim. Escon­di-o, esperando nunca precisar usá-lo. Acho que deveria tê-lo entregue ao governo para ser usado na guerra, mas continuei pensando em Marte...

— E num piquenique!

— Exatamente. Isto fica entre nós. Quando vi que tudo estava terminado na Terra, depois de ter esperado até o último instante, tratei de embarcar todos nós.   Bert Edwards tinha uma nave escondida também, mas achamos que seria melhor decolarmos separadamente, para o caso de alguém querer nos derrubar.

— Por que explodiu o foguete, papai?

— Para que nunca possamos voltar. E se alguns daqueles homens maus vierem até Marte, não saberão que estamos aqui.

— É por isso que fica olhando o tempo todo para o céu?

— É. Sei que é uma bobagem. Jamais nos seguirão. Não têm com quê. Estou sendo apenas cauteloso demais.

Michael voltou correndo.

— Esta cidade é mesmo nossa, papai?

— Todo este   planeta nos pertence, garotos. Todo este danado planeta.

Ficaram parados ali, Rei da Colina, o Senhor do Monte, o Governante de Tudo à Vista, Monarcas e Presidentes Per­pétuos, procurando compreender o que significava possuir um mundo e como um mundo é realmente grande.

A noite caiu velozmente na atmosfera rarefeita. O pai deixou-os na praça ao lado da fonte, foi até o barco e voltou trazendo um monte de papéis nas mãos possantes.

Fez um monte com eles num velho pátio e incendiou-os. Para se aquecerem, agacharam-se em volta do fogo, rindo. Ti­mothy viu as letrinhas pularem como animais assustados quan­do as chamas as tocaram e destruíram. Os papéis crepitaram como a pele de um velho, e a cremação atingiu uma enorme quantidade de palavras:

TÍTULOS DO GOVERNO. Gráfico Comercial, 1999. Pre­conceitos Religiosos: Ensaio. A Ciência da Logística. Proble­mas da Unidade Pan-americana. Relatório da Bolsa, do dia 3 de julho de 1998. Resenha da Guerra...

O pai insistira em trazer àqueles papéis com essa finali­dade. Sentou-se e colocou-os na fogueira, um a um, com satisfação, ao mesmo tempo em que dizia aos filhos o que aquilo significava.

— Chegou a hora de lhes revelar umas coisas. Não seria justo escondê-las mais tempo de vocês. Não sei se compreende­rão, mas tenho que lhes contar, mesmo que certas coisas não fiquem ao alcance de vocês.

Atirou uma folha de papel no fogo.

— Estou queimando um modo de vida, da mesma forma que esse modo de vida está a ponto de ser queimado na Terra neste instante. Desculpem se falo como político mas, afinal de contas, sou um ex-governador honesto e por isso odiado por eles. A vida na Terra nunca foi organizada para dar um bom resultado. A ciência progrediu rapidamente demais e o povo ficou perdido numa selva mecânica, como 'crianças que fabricam coisas bonitas, dispositivos mecânicos, helicópteros, foguetes. Dando preferência a coisas erradas, insistindo em má­quinas em vez de como dominá-las. A guerra se tornou cada vez maior e acabou destruindo a Terra. O silêncio do rádio é o resultado. Foi disso que fugimos.

— Tivemos sorte.   Não existem mais   foguetes.   Está na hora de vocês saberem que esta não é uma excursão de pesca. Fui adiando o momento de lhes dizer. A Terra desapareceu. As viagens interplanetárias não recomeçarão antes de se pas­sarem séculos ou talvez nunca mais se realizem. Mas aquele modo de vida provou ser um fracasso e estrangulou-se com as próprias mãos. Vocês são jovens. Repetirei isso diariamente, até que tenham consciência.

Fez uma pausa para atirar mais papéis no fogo.

— Agora estamos sós. Nós e mais uns poucos que pousa­rão breve. O suficiente para recomeçarmos. O bastante para dar as costas à Terra e começar uma nova vida...

As chamas se avivaram, como que para dar força às suas palavras. E então todos os papéis haviam sido queimados, me­nos um. Todas as leis e crenças da Terra estavam transfor­madas em cinzas quentes, que seriam logo carregadas pelo vento.

Timothy olhou para a última coisa que o pai atirou ao fogo. Era um mapa mundi, que enrugou e distorceu-se ao con­tato das chamas, com um chiado, esvoaçando como uma bor­boleta negra, ardente. Timothy afastou-se.

— Agora vou mostrar-lhes os marcianos — disse o pai. — Venham todos. Venha, Alice.

Pegou a mão da mulher. Michael chorava ruidosamente. O pai tomou-o nos braços e todos caminharam para o canal, atravessando as ruínas.

O canal. Onde amanhã ou depois, suas futuras mulheres chegariam num barco, meninas pequenas e sorridentes ainda, com o pai e a mãe.

A noite os envolveu e as estrelas apareceram. Mas Timothy não conseguiu encontrar a Terra. Já se havia posto. Era um motivo de reflexão.

Enquanto andavam, ouviram o pio de um pássaro notur­no. O pai disse:

— Sua mãe e eu vamos procurar instruí-los. Talvez fra­cassemos. Espero que não. Vimos muitas coisas e aprendemos muito   com elas.   Planejamos   esta viagem há muitos   anos, antes de vocês nascerem. Mesmo que não arrebentasse a guerra, teríamos vindo para Marte, acho eu, para viver e criar o nosso próprio padrão de vida. Teria sido preciso mais um século para que a civilização terrestre envenenasse Marte. Agora, é claro...

Chegaram ao canal, longo, fresco, retilíneo e refletindo a noite.

— Eu sempre quis ver um marciano — disse Michael. — Onde estão eles, papai? Você prometeu.

— Estão aí — disse o pai

Colocou Michael nos ombros e apontou para baixo.

Os marcianos estavam ali. Timothy começou a tremer.

Os marcianos estavam ali — no canal — refletidos na água. Timothy, Michael, Robert, mamãe e papai.

Da água ondulante, os marcianos ficaram olhando um tempo enorme para eles...

 

                                                                                            Ray Bradbury  

 

                      

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