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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CROW / A Zavarelli
CROW / A Zavarelli

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Havia uma expressão de profunda tristeza no rapaz que deixou a carruagem na frente da mansão Holmes. Não poderia ser diferente. Os feriados de meio-período eram sempre uma ocasião especial na Mansão Holmes, pois Sherlock passava boa parte do ano morando no internato da Escola Harrow. Ele costumava contar as semanas para retornar à casa, mas, naquela primavera, a passagem dos dias no calendário não lhe trouxe nenhuma alegria.

Após se despedirem do rapaz no Natal [1], Sherlock retornou à escola enquanto seus pais, William Scott e Violet Holmes, tomavam o vapor Vitória em direção à África do Sul. Rebeldes estavam provocando confusões nos arredores da Cidade do Cabo que, se não fossem contidas, poderiam desencadear uma guerra generalizada. O pai de Sherlock trabalhava para uma agência qualquer do Ministério do Comércio e fora enviado para avaliar a situação, deixando ele e seu irmão mais velho, Mycroft, para trás.

Mas Mycroft dificilmente estaria disponível. Desde que conseguira um posto em um dos principais bancos londrinos, seu irmão passava a maior parte do dia trabalhando. Era muito difícil encontrá-lo em casa e Sherlock temia passar boa parte da semana de feriados sozinho.

Então, a porta da mansão se abriu e ele subitamente se lembrou.

Não, pensou consigo mesmo. Não estaria sozinho.

— Boa tarde, menino Holmes — disse uma velhota de óculos grossos, olhar penetrante e modos um tanto liberais para alguém cuja responsabilidade era gerenciar toda uma mansão.

Sherlock abriu um sorriso amarelo. Havia se esquecido que seu pai substituíra a antiga cozinheira, a Srta. Hudson, por esta velha sapa. Durante o Natal, William Scott havia contratado ajudantes para auxiliar a Sra. Macklin, mas, agora, seriam apenas os dois, além dos poucos empregados temporários, que circulavam pela mansão somente pela parte da manhã.

— Vai ficar por aí mesmo ou deseja entrar? — perguntou ela, enquanto Sherlock permanecia na soleira, aparentemente indeciso.

O rapaz não respondeu e apenas seguiu em frente, com sua maleta nas mãos. Como seriam poucos dias, ele preferiu usar a mala ao invés do pesado baú de viagem. Sherlock consultou as horas no carrilhão que ficava junto ao hall. Apesar de ser sábado, sabia que o irmão deveria estar trabalhando.

— Meu irmão chega que horas?

A Sra. Macklin fechou a porta e foi até uma mesa de canto, onde era mantida toda a correspondência que chegava ou saia. Ela abriu a gaveta e buscou um envelope bege, sem marcas do correio, e o entregou para o rapaz.

Sherlock largou a maleta no chão, intrigado. Uma carta entregue em mãos era algo incomum. Não poderia ser dos seus pais, pois eles usariam o correio e, até onde sabia, o Vitória ainda estava distante algumas semanas da Cidade do Cabo.

Logo, isso só poderia significar uma coisa.

Mycroft.

Abriu o envelope e tirou uma única folha lá de dentro, preenchida pela elegante caligrafia do irmão.

 

Espero que esta carta lhe chegue bem, meu caro irmão.

A mansão Holmes ficou excessivamente vazia depois da partida de nossos pais, mesmo para alguém que passa boa parte do tempo envolvido em assuntos e negócios alheios. E acostumado a fazer negócios, aprendi que a melhor forma de dar notícias desagradáveis é ir direto ao ponto, por isso não vou me prolongar. Eu não estarei aqui durante os feriados de meio-período.

 

Sherlock sentiu uma mistura de emoções. Ao chegar neste ponto, imaginou que a notícia ruim tinha a ver com a viagem dos seus pais — os navios britânicos eram seguros, mas tempestades tropicais eram bastante comuns na rota do Vitória — e ficou aliviado ao saber que não se tratava disso. Logo depois, ficou aborrecido por ter sido abandonado durante os feriados. Eram sentimentos conflitantes e, na verdade, sentimentos demais para alguém que não sabia lidar muito bem com este tipo de sensação. Continuou a ler.

 

 


 

 


O banco onde trabalho está passando por uma situação difícil. Na verdade, um pequeno escândalo que esperamos que possa ser evitado. Um de nossos contadores em Liverpool aplicou um golpe em nossos correntistas e estamos fazendo de tudo para evitar que o caso ganhe os jornais. Bancos trabalham com algo mais valioso do que dinheiro, Sherlock. A confiança é o nosso bem maior. Recebi ordens de seguir para lá e fazer uma investigação completa sobre o caso, o que vai me tomar boa parte da semana. Espero que retorne antes do próximo domingo, mas não tenho muitas esperanças.

Mas não medi esforços para que seu tempo livre não se tornasse tão monótono. Assim que percebi que não poderia acolhê-lo de forma adequada, telegrafei para uma das mais íntimas amigas da nossa mãe, que se mostrou encantada com a possibilidade de recebê-lo durante esta semana. É apenas uma hora e meia de trem e você será muito bem recebido. A Sra. Griffiths está a par da situação da viagem dos nossos pais e ela sempre foi considerada por sua mãe uma companhia agradável.

 

Sherlock pensou naquilo por um momento. O que seria agradável para sua mãe poderia soar completamente diferente para ele. Uma semana na companhia de uma quase desconhecida? Lembrava pouca coisa dela. Viúva e rica, o marido, herói de guerra, morrera de tuberculose e a deixara com duas garotas muito pequenas. Elas deveriam ter 7 e 9 anos agora, ou coisa que o valha. Mas sempre fora uma mulher bastante íntegra e correta, pelo que lembrava.

Bem, pelo menos poderia se ocupar com a sua biblioteca. Muito maior e completa do que a do seu pai, Sherlock lembrava nitidamente de ter sido soterrado por uma cascata de livros durante o enterro do Major Griffiths, quando, ainda muito jovem e desajeitado, tentara puxar um exemplar de capa brilhante de Othelo. Ele fora salvo pelo próprio pai, que fora investigar o que fora toda a barulheira. No final, acabara com um belo galo na cabeça e duas semanas de castigo. Aquilo lhe lembrou que o pai estava fora e seu coração doeu de novo.

Voltou a leitura.

 

Também solicitei a presença da Sra. Macklin. Acredito que será bom ter alguma companhia conhecida por perto.

 

Sherlock precisou de boa parte da sua força de vontade para não encarar a cozinheira ao ler aquilo. Mycroft deveria estar trabalhando demais, ou acabara puxando algum livro de uma estante e recebera uma saraivada de volumes na cabeça também. Por que diabos ele iria querer a Sra. Macklin com ele?

Suspirou fundo e terminou de ler.

 

Espero que esteja tudo bem na escola e que aproveite este intervalo para descansar.

Sinceramente, Mycroft.

 

E havia um pós-escrito.

 

P.S. Tente se divertir, Sherlock. Se não puder, pelo menos poderá passar o tempo livre caçando fadas.

 

Sherlock abriu a boca, mas as palavras simplesmente se recusaram a sair da sua boca.

Caçando o quê?


Sherlock e a Sra. Macklin partiram no dia seguinte, após um jantar terrível e um café da manhã detestável. O rapaz não saberia dizer se a comida intragável fora fruto da preguiça da cozinheira em preparar refeições somente para ele ou se a Sra. Macklin, realmente, não sabia cozinhar. A segunda hipótese flutuou em sua mente por alguns momentos. Afinal, ele apenas provara dos talentos culinários da nova cozinheira durante o Natal, quando ela estava cercada de ajudantes e prestadores de serviço especializados dos mais diversos tipos. Mas acabou descartando a ideia um pouco depois. Seu pai nunca contrataria uma pessoa notadamente incompetente.

Então, só sobrava a primeira alternativa. E ele não gostava nem um pouco dela.

Mas, afora os problemas culinários, Sherlock gastou o pouco tempo na mansão Holmes para se atualizar sobre as estranhas últimas palavras do seu irmão. Seu pai, mesmo ausente, continuava recebendo vários jornais da capital e do mundo. A escola restringia o acesso aos jornais aos professores, pois acreditava que as notícias atuais poderiam acabar perturbando o delicado equilíbrio escolar, principalmente quando havia filhos de embaixadores, netos de sultões e enteados de vice-reis circulando no mesmo ambiente. Desta forma, Sherlock era um daqueles jovens que poderiam citar Shakespeare de cor e recitar Homero no original, mas tinha pouquíssima ciência do que estava acontecendo nas colônias. E, de alguma forma, o império esperava que estes mesmos jovens pudessem conduzir seus negócios em um futuro próximo.

O caso, então, relembrou ele, enquanto a locomotiva seguia pela linha de ferro, comendo carvão e cuspindo fumaça. Aparentemente, as filhas da Sra. Griffiths, que Sherlock acertadamente imaginou ter 7 e 9 anos, haviam pego escondido uma das câmaras da mãe para tirar fotos em um bosque perto da casa. A coisa toda não passaria de uma peraltice das duas meninas se a mãe, que sempre fora entusiasta da fotografia, não resolvesse revelar as três fotos. E, para a sua surpresa, as imagens mostravam as garotas no meio das árvores, cercadas por folhas, galhos, flores e... fadas. [2]

Sherlock analisou com muita atenção as fotografias reproduzidas nos jornais. Como as garotas não tinham muita experiência, as imagens estavam borradas, mas era suficientemente nítidas para perceber o rosto de cada uma das meninas (Frances, de 9 anos, tirara duas fotos de Elsie; a menor tirara uma foto da irmã mais velha), os galhos, uma leve bruma e as fadas. Elas pareciam translúcidas, mas era impossível não notar que eram perfeitas demais para serem apenas um efeito da luz ou uma mancha. E eram várias, espalhadas pelas três fotos.

Sherlock pensou naquilo por um bom tempo e só foi interrompido quando a Sra. Macklin chamou sua atenção para uma funcionária que oferecia bolos, acrescentando uma opinião não solicitada sobre o tema depois que o rapaz a dispensou.

— Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a tua filosofia. Até mesmo fadas — ela disse.

Sherlock deu um salto da poltrona dentro da cabine que Mycroft reservara para ele. Seu irmão tinha comprado também uma passagem para a Sra. Macklin, na segunda classe, é claro, mas Sherlock não via sentido em viajar sozinho enquanto ela andava em acomodações mais simples. Ele a convidou e a velha cozinheira não se fez de rogado. E, de algum modo, se intrometera em seus pensamentos.

— Como a senhora sabia que eu estava pensando nisso?

Ela o encarou por um momento e depois apontou para os recortes de jornais que Sherlock estivera lendo.

— Você leu e se virou para a janela, com ar pensativo. Havia alguma coisa que não se lembrava?

— Não — admitiu Sherlock. — Acho que já decorei os artigos.

— E sabe de alguma coisa a mais sobre o caso?

— Ainda não, Sra. Macklin.

— Então, está perdendo o seu tempo. Está tentando criar uma resposta sem ter as informações completas. Mesmo que chegasse lá, provavelmente o resultado estaria errado.

Sherlock piscou para ela, aturdido. A ideia era perfeitamente lógica, mas... Mas a Sra. Macklin era uma cozinheira!

— É assim que a gente aprende a fazer uma receita — ela disse, se virando para a janela. — Não adianta ler a receita doze vezes ou ver a ilustração do prato pronto. É preciso fazer a comida para ver se funciona. Aí, você decide se precisa de mais sal, mais tempo de fogo ou mais repolho.

— Repolho?

— Dá para fazer um monte de coisa com repolho.

Sherlock se lembrou da papa rançosa onde os legumes estavam imersos na noite anterior e sentiu ânsias. Prometeu a si mesmo não investir mais nos legumes cozidos da Sra. Macklin.

— E assim é a vida — ela concluiu. — Enquanto a gente não sabe tudo sobre alguma coisa, não dá para descobrir apenas pensando. Normalmente, isso não leva a nada.

Sherlock a observou com cuidado, mas ela não se virou. Sim, aquilo fazia todo o sentido. Mas era estranho estar recebendo uma espécie de lição de uma cozinheira.

— E a senhora acredita em fadas, Sra. Macklin? — perguntou.

— Nunca vi uma, menino Holmes.

Ele ergueu uma sobrancelha de forma astuta.

— Acho que isso não respondeu a minha pergunta.

— Eu acredito na Igreja, na Rainha e na Inglaterra. Estas coisas eu sei que estão lá. Fadas, eu nunca vi.

Sherlock queria responder que, teologicamente falando, a Igreja também exigia um grande salto de fé, mas achou que não valeria a pena discutir o assunto.

A questão toda, pensou, enquanto o trem se aproximava da estação onde desembarcariam, era saber como a fraude fora feita. Sherlock não perdeu um único momento debatendo consigo mesmo se fadas existiam ou não. Deixara de acreditar em fadas e gnomos ainda quando era uma criança de calças curtas e se recusava até mesmo a comentar o assunto. Mas as fotos eram muito boas. Como aquelas duas crianças conseguiriam realizar tal fraude? Ou a mãe das garotas estava por atrás de tudo aquilo?

Era uma ideia interessante. Não via a Sra. Griffiths há muito tempo. As pessoas mudavam. A pessoa íntegra que ele imaginava talvez não existisse mais. Talvez ela tenha criado toda a brincadeira. Não seria impossível.

Dispensou a questão para mais tarde, assim como as fadas. Pelo relógio de bolso, estariam chegando nos próximos minutos. Então, teria toda uma semana para explorar a casa, falar com as garotas e os empregados. Se Mycroft estava com a razão, e era difícil ele não estar, teria todo o tempo livre do mundo. Se o caso das fadas viesse à tona, poderia tirar algumas conclusões.

Mesmo que isso fosse apenas uma completa perda de tempo.

 

Sherlock tinha poucas lembranças da Cottingley, mas, de um modo um tanto britânico, aquelas antigas casas de campo eram muito semelhantes entre si, fortes e robustas como a aristocracia que era ligada intimamente à posse de terras. Mas havia mudanças na casa e elas não pareciam sutis.

Assim que chegaram, notou que todas as janelas estavam abertas, com as cortinas descerradas. Isso seria comum para uma limpeza geral, algo que acontecia somente no início do verão e com os patrões bem longe, provavelmente em Londres ou em alguma praia de pedregulhos e mar gelado. Teria Mycroft forçado a sua presença ali e a Sra. Griffiths retornara antes do desejado por algum senso de dever com a sua mãe? Não queria atrapalhar de forma alguma e, agora, sentia-se quase um intruso.

Sherlock adiantou-se para perto das duas colunas que sustentavam o umbral e bateu com força, temendo ser ignorado pelo exército de arrumadeiras, lavadeiras e servos que talvez estivessem ocupados demais para ouvi-lo. Mas ele estava enganado e, pouco tempo depois, a porta se abriu, revelando um mordomo com ar pomposo e um olhar escrutinador. Ele passou rapidamente os olhos pela Sra. Macklin antes de abrir a boca.

— Jovem Mestre Holmes, eu presumo. Entre, por favor, a Sra. Griffiths o aguarda.

Sherlock agradeceu e deu um passo à frente, mas o mordomo não se mexeu, torneando a cabeça para a Sra. Macklin.

— A entrada dos empregados fica do outro lado, após as vinheiras. A nossa própria governanta está a sua espera.

E, com isso, ele fechou a porta. Sherlock, mesmo não tendo um grande apreço pela velha cozinheira, achou os modos do mordomo bastante rudes, sem necessidade alguma. Mas ele não passava de um convidado naquela casa e achou melhor não criar problemas no primeiro dia.

Acompanhou o mordomo em seu passo pomposo por um comprido corredor, notando a corrente de ar quente e morna que varria entre as janelas abertas. Não havia um único servo à vista, nem móveis desarrumados ou tapetes enrolados junto às paredes. Seja o que estivesse motivando as janelas abertas, a limpeza decididamente parecia ser uma ideia descartada.

O mordomo deu uma pequena batida em uma porta e a abriu, anunciando a sua chegada.

Sherlock entrou em uma bela sala azul-turquesa, com sofás e poltronas douradas e estofamento com detalhes que lembravam uma noite estrelada. Seu olhar recaiu nas paredes e ele se lembrou de uma tarde particularmente monótona, quando o falecido Major Griffiths explicou detalhadamente a vida de cada um dos antepassados cujos retratos ocupavam os nichos entre as janelas e as cristaleiras. Aparentemente, a viúva não parecia tão interessada no passado glorioso da família e substituíra as pinturas de velhos em seus trajes militares por paisagens eclesiásticas, com anjos, querubins e demônios.

Não, corrigiu-se ao se aproximar. Estava enganado.

Mesmo com o canto dos olhos, percebeu que as pinturas não representavam passagens retiradas da Bíblia ou dos Salmos. Eram todas figuras de fadas, trolls e gnomos, cantando e dançando ao redor de fogueiras ou em bosques coloridos. Estavam todos alegres e usavam trajes diáfanos.

Assim como a Sra. Griffiths.

Sherlock nunca vira alguém usando aquele tipo de vestido, mesmo nas apresentações de teatro em que fora com os pais. Não saberia dizer se era o vestido de múltiplas sedas, a maquiagem excessivamente branca ou a tiara em forma de sinos, que cantavam enquanto ela andava; fosse o que fosse, o efeito era profundamente perturbador.

— Seja bem-vindo, meu caro Sherlock — ela cumprimentou e sua voz era leve e sussurrada, como se os dois estivessem no interior de um templo e não em uma sala cujas janelas escancaradas deixavam passar uma brisa morna. — Que a Deusa o abençoe nesta casa. É um rapaz de muita sorte, meu menino, por estar aqui e presenciar uma semana que promete ser profundamente maravilhosa.

Sherlock duvidava particularmente desta possibilidade, mas não poderia mencionar isso na sala de recepção da sua anfitriã.

Ele a cumprimentou e sentiu que a mão da Sra. Griffiths era estranhamente fria e úmida. Parecia ter tocado um peixe fresco. Ficou tentado a passar os dedos no casaco para se livrar da sensação, mas consegui se controlar.

— Eu não gostaria de atrapalhar... — começou, rapidamente interrompido.

— Você não atrapalha em nada, meu querido — disse ela, de forma enfática e gesticulando como um maestro. — É muito bom receber a visita do filho de uma velha amiga. E, na verdade, eu já havia sido avisada da sua chegada antes mesmo que Mycroft me mandasse a sua carta.

Sherlock piscou os olhos, confuso. Só conseguia imaginar a sua mãe se correspondendo com a Sra. Griffiths, mas a ideia era absurda.

— A minha mãe? Ela está em alto-mar.

A Sra. Griffiths abriu um sorriso mais largo.

— Oh, não. É claro que não. Há muito tempo não falo com a sua mãe, o que é uma lástima. Trata-se da minha avó Bernadete, é claro — disse ela, pegando uma pequena pintura de uma das mesas laterais e entregando a moldura dourada para Sherlock.

O rapaz viu ali uma senhora de aspecto venerável, pintada em um quadro pequeno. Suas vestes pareciam antigas e as cores, desbotadas.

— Desculpe-me — pediu Sherlock, encabulado. — Mas acho que não a conheço.

A Sra. Griffiths riu para dentro. Ela tinha um sorriso engolido e contido. Os sininhos na sua tiara tilintaram.

— Nunca houve esta possibilidade, tolinho — ela disse. — A minha avó faleceu décadas atrás.

Sherlock a fitou, atônito. Teria entendido errado?

— Seu espírito me visitou a algumas semanas, avisando da volta de um velho amigo — ela explicou. — E aí está você.

Havia poucas ocasiões em que Sherlock não sabia o que fazer, dizer ou como se comportar. Aquela foi uma delas. Sua única reação foi manter-se fitando a pintura para não deixar transparecer seus verdadeiros pensamentos para a Sra. Griffiths.

— Encantadora — disse afinal, depositando a pintura na mesa.

— Não é mesmo? — respondeu ela. — Estou muito animada para a minha próxima sessão.

— Sessão?

— Sessão espírita, é claro — disse ela, como se afirmasse uma obviedade. — É quando trazemos os que já se foram para perto de nós. Foi assim que recebi a mensagem da minha avó sobre a sua chegada.

O cérebro de Sherlock voltou lentamente a raciocinar. Já ouvira falar do espiritismo, era claro. A crença de que os mortos possam ser contatados através de pessoas que tinham, por falta de palavra melhor, poderes excepcionais. Nunca pensara naquilo, pois raramente perdia tempo discutindo filosofia enquanto havia tantos problemas no mundo real pra serem resolvidos.

— Então, a senhora quer falar com seus antepassados mortos?

A Sra. Griffiths balançou a cabeça, fazendo os sinos tilintarem novamente.

— Amanhã será diferente — ela disse. — Já contatamos os mortos há muito tempo, mas queremos ir além.

Sherlock ergueu as sobrancelhas e ela continuou.

— Estou falando do mundo do Outro Lado do Muro. O Reino Encantado. A Terra do Crepúsculo. A Colina do Verão Eterno. A Terra das...

— Fadas — completou Sherlock.

Ela ergueu uma sobrancelha com um jeito maroto para o rapaz.

— Exatamente. E você, agora a pouco, parecia não saber nada. Estava me fazendo de tola, não?

Sherlock tratou-se de se desculpar.

— Não, é claro que não, Sra. Griffiths. Eu apenas estava... me ajustando.

Ela sorriu.

— Que ótimo. Venha, sente-se e tome uma xícara de chá — ofereceu, apontando para a mesa ao lado, onde uma coberta dourada deixava escapar uma leve fumaça de um dos bules. — Temos hidromel e chá verde. O alimento dos deuses.

Sherlock agradeceu e se serviu de chá, que estava mais doce do que o suportável. Mas, fiel à educação que recebera dos pais, se obrigou a tomar a xícara inteira, salivando profundamente.

Ela se sentou e fez um gesto para o rapaz, que se acomodou em uma poltrona. Uma nuvem de poeira ergueu do assento, sufocando-o por um momento. Piscando e tossindo, percebeu que não era uma poeira normal. Quando passou a mão, a ponta dos dedos adquiriu um tom cinza metálico.

— É sal de prata — a Sra. Griffiths explicou. — As fadas adoram e nós temos esparramado em vários lugares para atraí-las. Por isso, mantenho as janelas abertas.

Sherlock assentiu levemente, enquanto ela pegava um bordado que estava em uma sacola ao lado e passava a trabalhar com a agulha, girando os dedos com rara habilidade.

— Mas temos tido pouca sorte. O sal continua desaparecendo, mas não vimos nenhuma.

Sherlock chegou a abrir a boca para falar que o sal prateado deveria estar desaparecendo por causa do vento encanado, mas se conteve. Não imaginava que fosse fazer qualquer diferença.

— Amanhã teremos uma sessão realmente especial — ela continuou, mirando o bordado e falando consigo mesma. — O Prof. Anderton. Madame Mesmer. A Sociedade Teosófica Espiritual. [3] Sim. Realmente, uma noite especial. Preciso providenciar mais chá.

E, com isso, ela se levantou. Sherlock saltou da poltrona, mas ela se comportou como se ele não estivesse na sala e saiu porta a fora, chamando pelo mordomo.

Constrangido e sem saber o que fazer, Sherlock arriscou voltar a se sentar, mas a Sra. Griffiths retornou minutos depois, o que o fez se levantar novamente.

— Sherlock! — ela exclamou, se aproximando com um sorriso largo e o encarando com genuíno espanto. — Você já chegou? Como estão seus pais?

O rapaz largou a xícara vazia na mesa e suspirou fundo. Fez uma anotação mental para esconder sapos em todos os sapatos de Mycroft quando retornasse, e se aproximou para cumprimentá-la mais uma vez.

— Boa tarde, Sra. Griffiths. Como vai? — disse, estendendo a mão com um sorriso amarelo.


O resto daquela tarde acabou em conversas tediosas, silêncios ensurdecedores e comentários sobre assuntos esotéricos que Sherlock pouco conhecia e tinha nenhum interesse. Felizmente, ela não voltara a se esquecer dele, o que já foi um alívio.

Mas a tarde finalmente findara e a Sra. Griffiths pediu licença para cuidar de alguns afazeres. Sherlock a cumprimentou e, aliviado, tratou de escapulir o mais rápido que pôde, temeroso que ela mudasse de ideia.

Foi assim que encontrou as duas garotas. Havia uma porta na sala de recepção que levava até um bonito terraço lá fora. Sherlock alcançou os jardins pomposos, repletos de gramados atapetados e canteiros de flores, e viu as garotas, que aproveitavam os últimos raios do sol para brincar. Elas vinham do bosque que se estendia até onde a vista alcançava, de mãos dadas, assobiando uma canção que Sherlock não reconheceu. Não as via desde que Elsie era apenas um bebê de colo e Frances mal caminhava. Duvidava que elas fossem reconhecê-lo, mas a sua mãe as tinha preparado.

— Você deve ser o menino Holmes, não é? — disse a mais velha, depois de observar o rapaz de alto a baixo.

Sherlock franziu o cenho, mas respondeu com uma voz amistosa.

— Sou Sherlock Holmes, pequena dama. E você deve ser Frances. E você, Elsie.

A menorzinha girou nos calcanhares de contentamento, esvoaçando o vestido amarelo e rosa que vestia. Ela fez uma mesura de brincadeira, ao que ele respondeu da mesma forma.

— Você veio ver as fadas também? — Frances perguntou.

— Elas estão aqui?

— Não. Elas ficam no bosque. E não vem todos os dias.

Sherlock assentiu.

— Entendo. E vocês já as viram muitas vezes?

— Oh, sim. Muitas e muitas vezes — respondeu Elsie, com gosto. — E elas têm uma linda voz.

Aquilo surpreendeu Sherlock. Não havia menção a isso nos recortes de jornal e mudava totalmente o que ele pensava sobre o caso.

Exatamente como a Sra. Macklin havia previsto.

Sherlock escondeu a própria surpresa e tentou manter a conversa de forma natural.

— Que interessante. E o que as fadas lhes disseram?

— Que nós somos especiais, não é, Elsie? – se intrometeu Frances, se virando para a irmã, que balançou a cabeça em um gesto rápido. — Por isso elas apareceram. Por que não somos garotas burrinhas como as outras. E somos bonitas. Bonitas como as fadas.

E, dito isso, as duas giraram ao redor dos calcanhares, como pequenas bailarinas, e se viraram para Sherlock um par de sorrisos idênticos.

Logo depois, uma voz surgiu lá de dentro, seguida por uma senhora trajando um vestido preto e um longo avental branco. A aia chamou novamente e as duas garotas se despediram com pequenos acenos e, entre gritinhos e risos, correram para a mansão, onde muito provavelmente uma banheira quente as aguardava.

Sherlock as observou por um momento e se voltou para o bosque. Estava intrigado com a história das fadas e de como elas apareciam para as garotas, mas o sol estava se pondo. Não veria nada no meio da escuridão e ainda poderia destruir qualquer tipo de pista que houvesse por lá. Se fosse apenas algum tipo de brincadeira das próprias crianças, não seria difícil encontrar pistas. A mãe parecia completamente submersa em suas próprias crendices e dificilmente teria investigado o caso. A Sra. Griffiths parecia estar pronta para aceitar a ideia de que fadas visitavam seu jardim.

Com os movimentos lentos, Sherlock fez o caminho oposto e voltou para a mansão. Ele mesmo precisava de um banho e trocar as roupas da viagem. Apesar de Cottingley estar parecendo mais uma casa esotérica do que uma mansão de campo, o jantar seria formal e a pontualidade britânica seria respeitada.

E foi durante a refeição que ele conheceu o guru da Sra. Griffiths, o sujeito que era conhecido como Professor Alexis Anderton, o Grande Médium do Norte. Era claro que ele não anunciara o próprio título, que soaria ridículo e pedante, mas a Sra. Griffiths fizera questão de fazer as apresentações com todos os pormenores, mesmo que a audiência fosse tão pequena. As duas jovens meninas jantavam em separado e os demais convidados só chegariam no outro dia. Só estavam reunidos na sala jantar, além da própria Sra. Griffiths e Anderton, Sherlock e a assistente do “professor”, uma garota completamente diferente de todas que já conhecera.

Na Harrow, a exclusiva escola que frequentava, fora apresentado a alunos que vinham de partes distantes do mundo. Com o império britânico em franca expansão, era natural que os eminentes governadores, reis, vice-reis e até mesmo imperadores enviassem seus filhos para estudar na capital do mundo. Sherlock conhecera alunos do Egito, Austrália, Índia, Sudão, das Colônias Americanas, Guiana, Nigéria e Somália Britânica. Estava acostumado a ouvir sotaques diversos, observar costumes estranhos e sentir cheiros não convencionais. Já vira rapazes com o tom de pele do mais escuro breu ao mais pálido albino, passando por diversos tons acobreados e amarelados. Já vira meninos de olhos negros e cintilantes a vermelho-roseados e muito pálidos.

Mas nunca conhecera uma garota como Cashmere Boswell.

Ela tinha longos cabelos de uma cor terrosa, indefinida, que parecia se alterar a cada movimento do seu pescoço. Os olhos eram longos e delineados por uma linha negra que os transformava em duas perfeitas amêndoas. Sua pele era ligeiramente mais clara que o tom dos cabelos. Ela poderia ter vindo do Egito, da Somália ou da Índia, mas não parecia pertencer a nenhum destes países. Ou a todos eles juntos.

— Eu sou cigana [4] — ela disse, depois de aparentemente se cansar de ser objeto de investigação do rapaz, que quase se afogou no copo de laranjada.

Por sorte, a Sra. Griffiths e o Professor Anderton pareciam estar entretidos numa conversa qualquer sobre a sessão do outro dia e não notaram o pequeno drama que se desenrolava ao lado.

— Perdão — pediu Sherlock, profundamente envergonhado. — Não era minha intenção constrangê-la.

— Não tem problema — respondeu ela, com um sorriso cansado. — Você não foi o primeiro e, provavelmente, não será o último. É Sherlock, não é?

— Sim, Sherlock Holmes — confirmou, com um aceno respeitoso.

— Um nome estranho — ela comentou, o olhando com curiosidade. — E isso que eu já vi muitos nomes estranhos por aí.

Sherlock lançou um olhar para o Prof. Anderton antes de balançar a cabeça em concordância. Como assistente do médium, ela já deveria ter visto e ouvido muita coisa estranha por aí.

— Parece que é uma tradição de família — ele continuou. — Sherlock, Sherrignford, Sherwood. Temos sempre alguns destes em cada geração.

— Vocês, ingleses, são repletos de tradições estranhas — ela comentou, entre uma colherada e outra da sopa.

— Provavelmente. Mas já notei que os costumes dos outros sempre nos parecem estranhos no primeiro momento. De onde você é? Você não me parece ser parente do professor.

Ela abriu um sorriso franco, repleto de dentes brancos.

— Não, mesmo. Eu o conheci no território búlgaro, no Império Otomano. Mas eu nasci em uma cidadezinha na Transilvânia.

— Então, você tem nacionalidade austríaca?

Cashmere riu de verdade, atraindo a atenção do Prof. Anderton, que lhe lançou um olhar de reprimenda. A garota se desculpou em silêncio, mas ainda havia um sentimento de incorrigível graça em seu olhar quando ela se voltou para Sherlock novamente.

— Nós éramos ciganos, Sherlock (Posso lhe chamar de Sherlock, não?). Não temos nacionalidade nenhuma. O imperador provavelmente preferiria cortar os pulsos a entregar a nacionalidade para um cigano.

A informação chocou Sherlock e ele a guardou para posterior análise. Nunca tinha pensado nos ciganos como um povo antes. O que conhecia deles era o que ouvia dos empregados ou de alguma notícia de jornal. Sabia que eram considerados um povo sem nação, mas nunca tinha pensado no que aquilo significava, de fato. Um povo que reunia e preservava costumes e línguas, mas não tinha uma terra para chamar de sua. Um contraste absurdo com o Império Britânico em expansão, onde terras eram anexadas diariamente ao já extenso território da rainha.

— E como você veio a trabalhar com o Prof. Anderton? — perguntou Sherlock, que estava curioso sobre aquele sujeito.

Uma sombra passou pelos olhos da garota.

— Nosso acampamento foi atacado em Bazardjik. Houve um assassinato na cidade e a polícia prendeu um dos nossos. Durante a noite, a população resolveu que era melhor liquidar a questão com as próprias mãos.

Sherlock não soube o que dizer e ela continuou.

— Eu sobrevivi porque consegui me esconder quando os tiros começaram. Mas fui a única. No outro dia, ajudei alguns fazendeiros locais a enterrar todos.

— Eu sinto muito — disse, gentilmente.

Ela largou a colher na mesa e recolheu a mão quando viu que Sherlock a observava. Ela foi rápida, mas não o suficiente para que ele deixasse de perceber seus dedos trêmulos.

— Obrigada — ela disse, continuando. — Consegui roupas novas e vaguei por um tempo depois disso, até que o Prof. Anderton me encontrou. Ele me ofereceu um emprego e eu aceitei. Primeiro, cuidava de suas roupas e cozinhava para ele. Depois, fui promovida à assistente e aqui estou.

— E o que ele fazia entre os Otomanos?

Ela ergueu as duas sobrancelhas negras.

— Pesquisas psíquicas, o que mais? Esta é a sua vida e seu trabalho.

Sherlock agradeceu mentalmente que ela tivesse mudado de assunto e, aproveitando que a sopa fora retirada e que os pratos principais estavam sendo servidos, perguntou da forma mais branda que pôde encontrar.

— E é tudo verdade?

Ela o encarou com um olhar astuto.

— Como assim?

— As sessões, digo. Elas são verdadeiras?

— É claro. O que acha que estamos fazendo aqui? — ela perguntou, com uma nota ácida na voz.

Sherlock fez um aceno, como que pedindo desculpas, mas o gesto não foi muito bem aceito pela garota. Pelo resto do jantar, ela se manteve distante e respondeu ao resto dos seus comentários com monossílabos.

Restou a Sherlock se contentar em comer e ouvir as palavras do Prof. Anderton que, sendo um professor de verdade ou não, de fato parecia estar ensinando. E a Sra. Griffiths era uma aluna muito aplicada.

— Nossos espíritos não estão presos neste mundo — ele dizia, fazendo uma pausa longa e pomposa, enquanto encarava a sua anfitriã. — Vagamos eternamente entre realidades diversas e só precisamos estar com a mente aberta para que possamos tocar os outros mundos. As suas filhas são um exemplo claro disso.

— O senhor está falando do caso das fadas? — perguntou Sherlock.

O Prof. Anderton se virou para ele. Ele era um homem de idade indefinida, com cabelos grisalhos dos dois lados das têmporas, um bigode fino, pontudo e muito negro e grandes olhos azuis. Ao julgar pelo comportamento da Sra. Griffiths, Sherlock chegou a achar que seria apresentado a um homem em longas vestes roxas, com um chapéu pontudo, anéis dourados nos dedos e incensos escapando dos bolsos. Mas não havia nada disso. Se não fosse pelo bigode pontudo, ele poderia passar por um banqueiro inglês em férias ou um diplomata qualquer curtindo um descanso merecido em uma casa de campo. Somente ao falar é que a sua verdadeira personalidade aflorava.

— Sim, jovem Holmes — ele concordou. — A questão das fadas é de suma importância.

— Por quê?

A pergunta soou um tanto impertinente assim que escapou da sua boca, mas a curiosidade de Sherlock parecia ser irrefreável quando provocada. Ele olhou para a Sra. Griffiths, como que pedindo desculpas, mas ela continuava a encarar seu convidado com os olhos lânguidos e parecia, como sempre, completamente avoada frente a tudo.

O Prof. Anderton, por sua vez, estava acostumado a ser questionado. Não poderia ser diferente, dado o tipo de trabalho que realizava. Ele não se sentiu insultado ao responder.

— As efêmeras fronteiras que separam nossos mundos podem estar se tornando mais brandas — ele respondeu, juntando a ponta dos dedos como se estivesse se concentrando. — Creio que o próximo ciclo da evolução dos sentidos humanos está em curso. Um mundo onde todos estarão conectados, os vivos, os mortos e os Outros.

Sherlock assentiu longamente, tentando juntar todas aquelas informações em algo produtivo, mas sua cabeça deu voltas e mais voltas e ele conseguiu traduzir aquilo em algo do tipo: podemos falar com os mortos e existem outros seres estranhos que também querem falar conosco.

Um tanto assustado, Sherlock percebeu que o Prof. Anderton, um sujeito que lembrava um banqueiro, perfeitamente lúcido e, até onde sabia, de pleno direito de suas faculdade mentais, acreditava naquilo de todo o seu coração.

— Extraordinário — ele comentou e o Prof. Anderton sorriu. Afinal, ele não tinha como saber o que o rapaz estava pensando.

Mas Sherlock se virou para Cashmere naquele momento e o olhar azedo que percebeu parecia indicar que ela não poderia ser enganada com tamanha facilidade.

— Você já teve a oportunidade de observar as fotos? – perguntou o Prof. Anderton à Sherlock.

— Somente reproduções dos jornais — admitiu. — Mas elas não eram muito boas.

— Mas isso pode ser remediado, não? — disse ele, virando-se para a Sra. Griffiths, que concordou com um aceno etéreo.

Sherlock desconfiava que ela concordaria com tudo que o Prof. Anderton pedisse, independente do que fosse. Ele poderia mandá-la se atirar no poço, se quisesse.

O pensamento mórbido o encheu de terror por um momento e ele sentiu um calafrio.

— Ah, veja! Você sentiu isso, meu rapaz?

— O que foi? — perguntou a Sra. Griffiths. — O que foi?

— Os espíritos estão entre nós. Eu posso sentir e acho que o nosso jovem amigo aqui também.

— É verdade, Sherlock? — perguntou a Sra. Griffiths.

— Foi só uma corrente de ar — respondeu, tímido.

— Ah, não reprima seus sentimentos e sensações — disse ela, lançando um dos seus olhares longos. — Esta é uma casa abençoada, Sherlock. A Deusa nos abençoou. Se for aqui onde seus poderes se manifestarão, que seja feita a vontade da Deusa.

— Que seja feita a vontade da Deusa — repetiram o Prof. Anderton e Cashmere, em coro.

Sherlock corou, assentiu devagar e resolveu ficar em silêncio pelo resto do jantar. Aquilo já estava ficando perigosamente esotérico para ele.

Depois da sobremesa, seguiram todos para a biblioteca. O local, assim como toda a casa, fora completamente reformado após a morte do Major Griffiths. Sherlock se lembrava da vasta coleção de livros que eram abrigados ali, passando dos clássicos a uma impressionante coleção de mapas e títulos sobre estratégias militares. O local continuava repleto, mas os livros antigos estavam empilhados pelos cantos, acumulando pó e poeira. As prateleiras foram preenchidas por volumes em tons terrosos, principalmente o carmim e o vermelho-sangue. Era como estar na antessala do inferno. E não foi preciso examinar os livros para perceber que o único assunto admitido ali eram títulos que versavam sobre o oculto e o sobrenatural.

— Aqui estão as fotos — disse a Sra. Griffiths, depois de pegar uma pasta cuidadosamente guardada a chaves na antiga escrivaninha do marido.

Sherlock a pegou com delicadeza, pois a sua anfitriã parecia segurá-la com a reverência de quem carregava o cálice com o sangue de Cristo. Ele agradeceu e a levou até perto de uma pequena mesa de apoio, onde havia um abajur. Depois de ligá-lo, retirou as fotos de dentro.

Conhecia pouco sobre o processo da fotografia em geral. Aquela era uma técnica em evolução, que envolvia uma série de produtos químicos diferentes, algo que não chamava particularmente a sua atenção. O seu mestre de química na Harrow, o Prof. Brett, era um sujeito particularmente incompetente e ele sentia perfeito horror a matéria.

Mas as fotografias pareciam muito boas. As duas garotas haviam crescido vendo os pais usarem vários tipos de câmeras. Não seria impossível que tivessem aprendido, de forma um tanto empírica, a como manejar o instrumento. Havia pouquíssimos borrões e manchas na imagem gravada no papel. E as fadas, tais como apareciam nos jornais, estavam bem nítidas, voando entre as brumas do fim de tarde.

Como aquilo era possível?

— Impressionante, não? — perguntou o Prof. Anderton para Sherlock.

O garoto foi obrigado a concordar.

— É muito bom ter alguém com a mente aberta com a sua idade, meu jovem. Foram poucas as pessoas que a Sra. Griffiths concordou em mostrar os originais e ela ficará aliviada em saber que você não as considerou uma fraude.

Sherlock pensou naquilo por um momento.

— Mas alguém as considerou uma fraude, então? Não são todos que consideram as fotografias autênticas?

O Prof. Anderton o encarou por um momento e fez um aceno para o garoto.

— Tem razão. Foi o seu advogado, um sujeito chamado Barrow. Ele deve estar aqui amanhã.

Ele apertou os bigodes, deixando-os ainda mais retos.

— Um sujeito particularmente terreno, por assim dizer — ele continuou, dando de ombros. — Completamente alheio aos meandros do mundo exterior e da mente. Acho que ele seria incapaz de compreender qualquer coisa que não estivesse escrita em papel timbrado e distribuído em três cópias.

Um homem prático e racional, pensou Sherlock, sem ousar verbalizar.

— Mas a Sra. Griffiths confia nele e parece que ele sempre fez a coisa certa para a família depois que o Major faleceu. E ele próprio reafirmou esta confiança inúmeras vezes.

— O Major Griffiths? — perguntou Sherlock, já imaginando para onde aquela conversa seguiria.

— Sim. Ele aparece com relativa frequência em nossas sessões. É um homem honesto em morte tanto quanto foi em vida.

— Compreendo — murmurou Sherlock.

Houve um momento de silêncio, quebrado apenas pelo bater do carrilhão alguns momentos depois. O relógio marcava dez horas da noite.

— Amanhã será um dia intenso — anunciou Anderton. — Precisamos estar descansados, minha cara — acrescentou, virando-se para a Sra. Griffiths, que concordou.

Sherlock entendeu o recado e se despediu rapidamente de todos, subindo as escadas logo depois, acompanhado de Cashmere, que também seguia para o seu quarto.

— Então, amanhã será o grande dia, não?

— Pode ser — ela disse. — Estas sessões podem durar dias.

— Tanto tempo assim? — espantou-se Sherlock. — Os mortos precisam andar? Achei que a ausência de um corpo tornaria as viagens mais fáceis — brincou.

Cashmere andava um passo a sua frente, mas, de súbito, ela estava com seu peito encostado nele, a sua face centímetros do rosto do rapaz.

Ele se assustou e chegou a pensar a dar um passo para trás, mas, então, sentiu uma ponta apertar suas costelas. Era uma faca, fina e pontiaguda como um abridor de cartas.

— Eu conheço tipos como você — Cashmere sussurrou, num tom de voz rouco. — Não se meta em nossos negócios.

Ele a encarou, mas os olhos da garota, brilhantes e escuros, pareciam completamente sem vida. Então, ela girou nos calcanhares e desapareceu, deixando o rapaz completamente aturdido e, pela segunda vez naquele dia, sem palavras.


Sherlock passou uma noite agitada. O sono não veio fácil e, quando chegou, veio acompanhado de pesadelos com seres disformes, diáfanos e deformados. Quando acordou, banhado em suor, precisou se lavar com muita água fria para se livrar da sensação de opressão que sentia. O que acontecera na última noite se confundira com seus pesadelos e ele parecia não ter muita certeza de coisa alguma.

Só foi se convencer de que a ameaça de Cashmere fora real depois que descobrira o furo que a lâmina fizera em seu colete.

O garoto desceu as escadas em silêncio. A manhã estava chegando e, com ela, os empregados da Cottingley, que abriam todas as janelas e portas da casa, como eram instruídos a fazer. Entre eles, Sherlock encontrou a Sra. Macklin, fazendo força para abrir um postigo emperrado.

— Deixe que eu lhe ajudo — disse, se aproximando, seu coração parecendo aliviado ao encontrá-la.

Foi só depois de pensar naquilo por um momento que percebeu que estava feliz em ver a cozinheira. Com todos aqueles personagens estranhos daquela casa, a Sra. Macklin era uma espécie de porto seguro.

— Obrigado, menino Holmes — ela agradeceu, enquanto ele puxava com força até soltar e levantar a pequena janela.

O dia que nascia lá fora estava quente e os passarinhos cantavam pelos jardins. Seria mais um dia agradável de primavera.

Sherlock ficou olhando lá para fora por um minuto. Então, se virou e viu que a cozinheira permanecera ali. Sem conseguir se conter, perguntou.

— A senhora acredita no espiritismo?

A velha o observou por alguns momentos.

— Eu sigo a velha igreja anglicana e estou muito bem assim. Deus sabe que estou velha demais para estas coisas.

Sherlock abriu um sorriso tímido. Ela era uma velha cozinheira, o que poderia saber sobre aquilo? Se sentiu um idiota em ter perguntado.

— Desculpe por isso, Sra. Macklin. É que todos aqui tão certos desta história toda. Falar com mortos, eu digo. E as fadas. Eles parecem muito convencidos disto tudo.

A Sra. Macklin o olhou com atenção. Então, disse em tom casual.

— Uma vez, eu conheci um jovem tolo.

Sherlock empertigou-se imediatamente. Estaria sendo chamado de tolo? Pela cozinheira?

— Ele trabalhava como copeiro e tinha um amigo — ela continuou, aparentemente sem perceber que o rapaz apertara os lábios em uma expressão nada amistosa. — Este amigo disse que conhecia uma forma fácil de enriquecer: vendendo curas.

Aquilo chamou a atenção de Sherlock, que se livrou da sensação de irritação em um segundo.

— Curas? — repetiu. — Como um médico?

— Como um charlatão — ela respondeu, erguendo uma sobrancelha para o rapaz e tirando os óculos grossos para limpar no avental. — Ele tinha um tônico que dizia servir para tudo. E o nosso copeiro resolveu vender o tônico com o amigo nas horas vagas.

— E o que aconteceu? — perguntou o garoto, interessado.

— Bem, eles vendiam o tônico e mandavam os doentes ficarem em casa por alguns dias, descansando. E algumas pessoas se curaram do que tinham, porque as pessoas sempre podem se curar de várias doenças só ficando em casa, descansando e tomando caldo de galinha. Mas algumas não se curaram. E ficaram pior. E algumas morreram.

Mesmo com o vento morno que começou serpentear pela sala, Sherlock sentiu um calafrio.

— E eles foram presos?

— Não — ela resmungou. — E sabe por quê? Por que as pessoas que foram curadas estavam convencidas de que o tônico funcionava. Elas acreditavam realmente nisso e confrontaram as outras que não acreditavam. Houve uma briga muito feia, mas ninguém foi preso.

Sherlock pensou naquilo por um momento.

— A senhora quer dizer que uma pessoa iludida é difícil de ser convencida do contrário?

Ela terminou de limpar os óculos antes de responder.

— O que eu quero dizer é que o nosso copeiro não tomou cuidado e terminou com uma pancada na cabeça, o que lhe custou uma semana de trabalho. E que eu tenho que voltar lá para baixo.

E, com isso, ela deixou Sherlock sozinho, perdido em seus pensamentos.

O café da manhã foi suntuoso, como eram os desjejuns nestas tradicionais e ricas casas de campo. A Sra. Griffiths parecia, se era possível, ainda mais etérea e desligada, cantarolando e soltando risadinhas sem sentido enquanto se servia de torradas e sucos (ela abolira o café preto, pois a bebida poderia atrapalhar a concentração necessária para a sessão da próxima noite). No entanto, Sherlock tinha mais com o que se preocupar do que a aparente falta de racionalidade da sua anfitriã.

Cashmere e o Prof. Anderton se juntaram a eles logo após Sherlock se sentar. A garota o cumprimentou com absoluta tranquilidade, como se a ameaça da noite anterior tivesse sido praticada por outra pessoa. Ele a encarou com ferocidade, tentando arrancar algum tipo de constrangimento da garota, mas foi absolutamente em vão. Sua conversa se manteve amena, como mandava a etiqueta para os cafés da manhã. Bolos foram saudados e elogiados, a manteiga batida na hora foi experimentada com satisfação e cumprimentos foram enviados às cozinheiras. Uma perfeita convidada, correta na etiqueta e cuidadosa na fala.

Só houve uma única perturbação. Quase ao final da refeição, o Prof. Anderton anunciou que estaria fechando a biblioteca para prepará-la para a sessão da noite. E que ele e Cashmere passariam boa parte do dia lá.

— Não gostaríamos de ser perturbados — ele comentou, se virando para a Sra. Griffiths, que acenou positivamente, garantindo que daria ordens restritas para que ninguém se aproximasse do local.

Sherlock olhou para Cashmere, que não desviou o olhar enquanto cravava a faca no bolo com uma força desproporcional, arrancando um naco do tamanho de uma tangerina e mordendo os bocados com os dentes brancos.

O rapaz entendera perfeitamente o recado.

Ele tinha algumas horas livres até o almoço, quando chegariam os demais membros da tal Sociedade Teosófica Espiritual. Elise e Frances foram confinadas às suas aulas de piano e a Sra. Griffiths anunciou que descansaria pela manhã, pois a sessão da noite costumava consumir todas as suas forças.

Sozinho e sem objetivo, Sherlock cogitou em bisbilhotar a biblioteca e ver o que Anderton e Cashmere estavam aprontando. Ele não esqueceria a afronta recebida tão cedo e parecia duplamente perplexo em saber que uma garota o havia o ameaçado. Mas a voz da razão se fez presente. Estava perigosamente sozinho ali. A Sra. Griffiths provavelmente arrancaria a própria mão antes de fazer algo contra o Prof. Anderton e sua protegida. Não havia outros adultos na casa, a não ser os empregados que, tradicionalmente, não se envolviam nos assuntos dos padrões. A quem ele poderia reclamar ou pedir socorro se algo desse errado?

Resolveu gastar o tempo no problema em que estivera pensando antes de conhecer Cashmere: as fadas.

Sherlock estava convencido de que aquilo tinha que ser algum tipo de truque ou, na melhor das hipóteses, um acaso. Uma composição estranha de luzes e cores que fora pego no ângulo certo, no dia certo. Ele saiu para os jardins com os recortes dos jornais em seus bolsos. O ideal, imaginava, seria ter as fotografias originais, mas desconfiava que seria mandado embora se ousasse roubar as fotos. Então, precisava se virar com o que tinha, mesmo que as fotos não fossem muito nítidas.

Ele deixou a sala por uma das portas laterais. Do lado de fora, um terraço ocupava todo o comprimento da casa, onde várias pias de pedra continham arranjos florais multicoloridos. Examinou por um momento o local, provavelmente um produto das mãos habilidosas da Sra. Griffiths. Notou que os vasos tinham sido decorados com tocas de flores entrelaçadas e, em vários lugares, laços de fio de bordado foram amarrados junto a torrões de açúcar. Aquilo parecia lhe lembrar as armadilhas para ratos que já vira um dos serviçais da sua casa espalharem pelo porão e pelas redondezas.

Mas o que a Sra. Griffiths estaria caçando entre flores e usando açúcar como isca?

Não poderia ser... fadas?

Aquele pensamento o perturbou por um momento. Não imaginava que a Sra. Griffiths estivesse tão obcecada assim.

Ainda olhando para o terraço, ele avançou pelo jardim e seguiu pela grama até ouvir uma respiração pesada atrás de si. Com muito cuidado, se virou. Havia um cão ali, um animal tão grande quanto um pequeno bezerro, de pelo amarelo-dourado, longas orelhas e focinho ereto. Ele rosnava baixinho, mostrando uma fileira de caninos muito grande e feia.

O rapaz engoliu em seco. Tinha pouquíssima experiência com cães de qualquer tipo — seu irmão, Mycroft, era alérgico a pelos e não suportava a presença de qualquer tipo de animal. Seria atacado se corresse? Já ouvira falar alguma coisa sobre isso. Mas, e se ficasse parado? Estaria completamente à mercê do animal. O que deveria fazer?

— Sultão, aqui! — chamou uma voz e, para alívio de Sherlock, o enorme cão deu um latido alto e saiu correndo até onde estava um homem de meia idade, que se aproximava com o passo lento.

O sujeito tinha dentes muito compridos, um nariz redondo e olhos pequenos. Pelas vestes, parecia algum tipo de caseiro. O cão lhe parecia absolutamente fiel, andando a seu lado, como que puxado por uma correia invisível.

— Desculpe por isso, garoto — disse o homem, com um sotaque carregado. — Não tinha recolhido o velho Sultão ainda. Ele vigia a propriedade durante a noite.

Sherlock assentiu, garantindo que não havia problemas.

— Não houve problemas porque eu estava aqui — o sujeito ponderou, erguendo uma sobrancelha. — Este mastim poderia estraçalhá-lo em questão de minutos.

O garoto engoliu em seco e o caseiro se despediu com um cumprimento do boné, se afastando com o enorme cão ao seu lado.

Sherlock limpou o suor que se acumulara na palma das suas mãos antes de seguir seu caminho.

A propriedade seguia por diversos campos, que eram arrendados para os fazendeiros locais. Ele tomou a direção do bosque, uma mata aprazível e que fora preservada da necessidade de cultivo pelo Major Griffiths e seus ancestrais.

A mata de árvores era tão antiga quanto à família e estendia-se até a vila local, mas Sherlock imaginou que não precisaria vasculhar toda a extensão da mata. Era improvável que as duas meninas se afastassem tanto da mansão sem supervisão. Elas tinham permissão — Sherlock se assegurara disso, fazendo perguntas inocentes para a Sra. Griffiths durante o outro dia — de perambular pelas bordas do bosque, mas sem entrar demasiado na mata. Era uma providência perfeitamente compreensível.

Não sabia o que estava procurando, por isso andou de um lado para o outro com muito cuidado. Fazia um bonito dia primaveril e a ausência de vento deixava a temperatura mais agradável e o cheiro da vegetação se espalhava como um perfume, mas o rapaz parecia imune aos aromas silvestres. Encontrou urzes, cogumelos e alguns galhos caídos. Uma vegetação gramínea se espalhava por todo o lugar, criando um tapete em tons de verde e marrom para as frondosas árvores que escondiam o horizonte.

Criado na cidade, Sherlock possuía um conhecimento apenas teórico sobre os troncos que se erguiam aos céus, escondendo o sol glorioso com suas folhas e galhos. Talvez pudesse reconhecer algumas faias e carvalhos, mas não tinha certeza. E, ademais, o que lhe interessava estava junto ao terreno, ao qual vasculhava sem cessar.

O calor fez surgir bolhas de suor em seu pescoço. Ele tirou o casaco — uma providência que poderia ter tomado antes de entrar no bosque, pensou, armazenando a informação para uma próxima vez — e desabotoou a camisa. Deveria ter trazido um pote ou jarro de água — outra providência simples, que não pensara —, pois sua garganta parecia cada vez mais seca. Mas não adiantava ficar reclamando agora. Prosseguiria até quando pudesse resistir e, depois, retornaria a mansão. Afinal, não era como se estivesse explorando os desertos australianos, como o seu tio Henry.

Depois de quase umas duas horas vasculhando aqui e acolá, algo chamou a sua atenção. Fora quando estivera se movimentando, por isso deu um passo para trás e parou. Girou o pescoço de um lado a outro, mas a sensação de que havia algo errado não retornou.

Franziu o cenho. Tinha certeza de que percebera algo que não deveria estar ali. Então, por que não poderia ver?

Resolveu fazer um experimento e fechou os olhos, mantendo-os assim por um tempo. Então, abriu novamente e se virou de um lado para o outro, finalmente percebendo aquilo que somente o seu subconsciente parecia ter notado.

Entre duas árvores frondosas, a vegetação rasteira parecia ter sido remexida. Mas não fora algo provocado por uma raposa ou outro animal silvestre, pois as plantas estavam amassadas ou removidas em uma perfeita linha reta.

Sherlock andou cuidadosamente até o local e ergueu os olhos. Não havia dúvidas. Alguém andara mexendo no terreno, deixando uma série de pequenos indícios em uma linha contínua.

Com muito cuidado, seguiu pelo caminho até uma pequena clareira. Restos de uma construção muito antiga jaziam abandonados ali. As pedras das antigas paredes não passavam de um montículo que mal ultrapassavam o peito do rapaz, recobertas de musgos, e a construção não era maior que o seu quarto. Provavelmente, não passava de um antigo depósito abandonado há muito tempo. Sherlock vasculhou cuidadosamente o local, mas não encontrou absolutamente nada nem, tampouco, o local onde as fadas foram avistadas.

Retornou a trilha e a examinou novamente. Um pensamento o ocorreu, mas ele não tinha nenhuma ferramenta. Vasculhou pelo mato até encontrar um galho caído. Bateu no pequeno muro de pedras, mas ele não se partiu. Parecia suficientemente forte para o que precisava.

Utilizando o galho como se fosse uma espécie de enxada, cavou a terra que seguia pela trilha, mas não foi preciso trabalhar muito. Poucos centímetros abaixo da terra, achou uma coisa. Era um cano de metal.

Continuou cavando até descobrir que o cano seguia até a casa, onde terminava abruptamente. Passou o dedo no bocal e o cheirou. Não sentiu odor nem percebeu nenhum tipo de ferrugem. O cano, obviamente, era novo.

Fez o caminho inverso e seguiu pela trilha, cavando de tempos em tempos para ter certeza de que estava no caminho certo. O cano se estendeu por quase duas dezenas de metros até que subitamente parou de novo, no meio da floresta. Bastou dar apenas uma olhada para descobrir que havia descoberto o lugar onde haviam sido tiradas as fotos.


Sherlock gastou quase uma hora examinando os dois locais onde estavam as extremidades do cano, sem chegar a conclusão alguma. Ele deveria ter sido instalado por algum motivo, mas este lhe escapava totalmente. Seria uma coincidência muito grande que um cano tivesse sido instalado exatamente no local onde as supostas fadas foram fotografadas sem que os dois fatos não estivessem conectados. Mas como? E por quê? Assentar algo deste tipo levaria uma boa noite de trabalho. Isso exigia planejamento e força de vontade. As garotas, obviamente, poderiam ser descartadas. Onde elas conseguiriam um cano daquele comprimento? E como cavariam o local para escondê-lo? E por qual motivo?


Não, pensou Sherlock, enquanto fazia o caminho de volta, exausto e sedento. Alguém muito inteligente e sórdido criara aquela artimanha, apesar de não ter a mínima ideia de como ela fora feita. Mas, depois da noite anterior, possuía algumas suspeitas de quem.

Ao se aproximar da mansão, notou que havia alguém junto ao terraço. Era um homem perto dos trinta e poucos anos, alto, usando um par de óculos finos e um traje marrom escuro. Ele observou Sherlock e o convidou a se aproximar com um aceno. Ao seu lado, havia uma jarra de refresco repleto de gelo.

— Imaginei que estaria com sede depois da sua pequena aventura — ele disse, apontando para a mesa.

Sherlock agradeceu com um sorriso sincero e tratou de matar a sede, tomando dois grandes copos, um atrás do outro. A um gesto do homem, o rapaz se sentou também, sentindo os músculos doerem.

— Meu nome é John Barrow e eu sou o advogado da família Griffiths — disse, estendendo a mão para o rapaz, que o cumprimentou. Era uma mão forte e calejada. — A Sra. Griffiths havia me avisado da sua chegada e resolvi vir aqui conhecê-lo. Quando cheguei, o mordomo me disse que você fora explorar o bosque.

Sherlock assentiu, mas antes que pudesse falar qualquer coisa, o advogado continuou.

— E então? Encontrou alguma fada?

Sherlock balançou a cabeça e Barrow se aproximou dele, virando-se para trás por um momento, como se quisesse ter certeza de que estavam a sós.

— Já ouvi falar do seu pai, Sherlock. E, se for metade do homem que sei que ele é, duvido que dará ouvidos a este tipo de baboseira.

Sherlock estufou o peito.

— Na verdade, estava interessado em descobrir como as meninas foram enganadas.

Barrow se recostou contra a cadeira, levando um dedo contra a boca.

— E descobriu alguma coisa?

O rapaz balançou a cabeça. Não adiantava falar sobre canos e ferrugem para o advogado. E, de qualquer maneira, já tinha uma ideia de quem estava enganando a Sra. Griffiths. Preferia descobrir o como antes de dizer qualquer coisa.

— Bem, de todo o modo, é sempre bom ter uma mente desperta no meio de toda esta insanidade — Barrow disse, balançando a cabeça em um gesto raivoso. — Confesso que preciso me controlar para não gritar contra este Prof. Anderton e todos estes outros loucos, mas, se agisse deste modo, colocaria tudo a perder.

— Não sei se entendi — confessou Sherlock.

Barrow voltou a se aproximar em um gesto conspiratório.

— Eu assumi como advogado da família um pouco depois do falecimento do Major Griffiths. A Sra. Griffiths começou a se interessar pelo espiritismo na época, o que acreditei ser uma reação natural à sua perda.

Sherlock assentiu e o advogado continuou.

— Mas ela se tornou realmente obcecada com isso. Nos últimos anos, a Sra. Griffiths gastou uma verdadeira fortuna com estes absurdos. Já fiz diversos pagamentos extraordinários para este Prof. Anderton e para a Sociedade Teosófica Espiritual e só não houve outros por que consegui colocar um pouco de juízo em sua cabeça. E posso afirmar, sem sombra de dúvidas, de que seria demitido caso resolvesse confrontar esta horda de ignorantes. Sem um aconselhamento adequado, a fortuna dos Griffiths será dilapidada em questão de meses por estes abutres. Ela e as garotas podem acabar na miséria.

Sherlock ponderou aquilo por um momento e chegou a conclusão de que concordava com ele. Não havia dúvidas de que a Sra. Griffiths não tinha condições de gerenciar o próprio dinheiro e que daria tudo para o Prof. Anderton, se ele assim o pedisse. Era uma situação bastante delicada.

— Elas têm sorte de ter um amigo como você — comentou Sherlock.

O advogado abriu um sorriso triste.

— Só espero ter forças para continuar lutando contra estes disparates. E é por isso que lhe peço a sua ajuda, rapaz.

— A minha ajuda? — Sherlock repetiu, surpreendido.

Ele se aproximou ainda mais.

— Sim. Esta semana, eu digo. É esta questão das fadas. Eles estarão todos aqui para estas sessões. Não sei o que vai acontecer, mas a Sra. Griffiths está completamente absorta por isso. Tenho medo do que vão pedir à ela e o que ela pode dar a eles. Preciso que me ajude a vigiá-los. E a Sra. Griffiths, principalmente. Fique aqui, na mansão. Somos a última linha de defesa da sanidade dentro desta casa.

Sherlock compreendeu o problema e prometeu ajudar. Não era isso que pretendia e, na verdade, gostaria de gastar seu tempo lá no bosque buscando mais evidências, mas Barrow tinha a razão. A fortuna da Sra. Griffiths poderia estar em perigo e ele, pelo amor que a sua mãe tinha por aquela família, precisava ajudar.


Um pouco depois, já restabelecido após uma troca de camisas, Sherlock seguiu o barulho de conversa da sala de estar. A Sociedade Teosófica Espiritual finalmente se fizera presente e estava na hora de conhecer os demais convidados.

A Sra. Griffiths fez questão de realizar as apresentações. Ali estavam a presidente da Sociedade, Madame Mesmer, uma senhora que usava um coque tão rígido quanto a Torre de Londres, e que tinha as faces que lembravam muito o mastim do caseiro; o primeiro secretário, o Sr. Vanderbilt, um homem esquálido, de modos afetados e o tom de pele de quem não via o sol por semanas a fio; e Jiro Nakahara, um sujeito com traços orientais tão característicos quanto suas largas roupas laranjas, algo que Sherlock ficou sabendo mais tarde que se chamava quimono.

Ele ergueu a mão para cumprimentá-lo, mas Nakahara apenas se curvou, com as duas mãos perto do peito. Sherlock piscou, mas se recuperou a tempo e repetiu o gesto. Não sabia o que isso queria dizer, mas se aprendera alguma coisa com os alunos estrangeiros da Harrow é que as pessoas se cumprimentavam de maneiras diferentes em outros países e era de bom tom repetir o cumprimento, por mais estranho que soasse.

Nakahara falou alguma coisa para seus companheiros, em uma língua que Sherlock nunca ouvira falar. A Sra. Griffiths o socorreu.

— É japonês, Sherlock — falou ela. — Nakahara não fala a nossa língua.

— Mas deve ser fluente na língua dos mortos, imagino? — comentou Barrow, sentado a um canto e com um copo de uísque nas mãos.

— A linguagem dos que já cruzaram a primeira das travessias é universal — comentou o Prof. Anderton.

— Muito conveniente — resmungou o advogado.

Sherlock observou Cashmere lançar um olhar azedo para Barrow, que a ignorou completamente. Entrementes, a conversava continuava entre os recém-chegados, interrompida às vezes para que Madame Mesmer ou o Sr. Vanderbilt fizesse as devidas traduções para o japonês. Mesmo em inglês havia muitas palavras difíceis e complicadas e, por muitas vezes, o rapaz tinha a impressão de que nem quem estava falando ou quem estava escutando tinha uma completa noção do que estava sendo dito.

O almoço acabou sendo mais animado do que Sherlock imaginava. Talvez fosse por causa da presença de Nakahara e seu quimono laranja. Ou talvez por que Madame Mesmer e o Sr. Vanderbilt se entregaram com verdadeiro deleite aos quitutes que eram oferecidos. Barrow, o advogado, pontuava a conversa com alguns comentários ácidos, tentando trazer alguma sanidade às revelações místicas pomposas, aos relatos das conversas de São Tomás de Aquino e algumas críticas as tais Irmãs Fox, sejam elas quem fossem, e ao último livro descoberto de um tal Franz. Tudo absolutamente em vão. Ninguém prestava atenção ao que ele dizia e, eventualmente, acabou se calando, com uma expressão irritada.

Cashmere parecia completamente diferente durante o almoço. Entre os seus, ela estava tranquila e confiante. Mesmo os comentários mordazes do advogado não pereciam perturbá-la. Sherlock, que resolvera adotar a tática do silêncio, observava como todos pareciam agir como velhos conhecidos e amigos. Se não fosse o teor da conversa, seria apenas mais um dos maçantes almoços que já frequentara na Mansão Holmes. E mesmo convicto de que aquilo tudo não passava de tolices, era inegável que os membros da sociedade Teosófica Espiritual e Anderton e sua assistente falavam com seriedade sobre o assunto e o tratavam com a mesma naturalidade de quem poderia estar falando sobre o tempo ou sobre as colheitas. Se todos não passavam de enganadores, eles eram muito bons em esconder suas reais intenções.

Durante a tarde, a maior parte dos convidados se reuniu para uma apresentação de piano e canto das duas irmãs Griffiths. Nakahara pedira licença e fora se deitar, pois se queixou de dor de cabeça. Mas ele não perdeu grande coisa, pois o pequeno espetáculo não foi tão bom quanto Sherlock imaginava. Mas, na verdade, ele e os outros não estavam prestando muita atenção. O ar de expectativa e excitação estava contaminando a todos e mesmo a Sra. Griffiths parecia prestar atenção mais às janelas do que as próprias filhas.

Depois da apresentação, as garotas tiveram que se contentar em brincar dentro de casa. O tempo mudara e uma chuva forte alcançou Cottingley. Os demais convidados se dividiam entre a sala de fumar e a sala de recepção, onde refrescos e pequenos sanduíches foram providenciados. Foi quando Sherlock reencontrou a Sra. Macklin, que ajudava a servir os convidados.

— Fui rebaixada a criada — disse ela para o rapaz, quando se aproximou. — Aparentemente, as minhas habilidades como cozinheira não foram apreciadas.

Como era seu dever, Sherlock se compadeceu dela, mas não poderia culpar a governanta da casa. A Sra. Macklin tinha uma mão horrível para a cozinha.

— Apreciando a estadia? — perguntou ela, enquanto arrumava a travessa de sanduíches.

— Sim. Está mais interessante do que imaginava.

— Imagino. Mas a criadagem está mais interessada no homem que se fingiu de morto.

Sherlock se virou para ela, com uma expressão curiosa.

— O caso aconteceu há algumas semanas, é sim. Parece que o sujeito foi atacado em casa por dois assaltantes e como já era velho, se fingiu de morto ao receber uma cacetada. Os ladrões reviraram a casa e discutiram sobre o que fariam com os bens e o dinheiro encontrado. Quando saíram, o pobre homem se levantou, correu para a polícia e contou tudo o que ouviu. Os dois foram presos.

— E foi bem feito — disse Sherlock, sorrindo da estratégia eficiente da vítima.

— Sim. Imagino que sim — ela repetiu, antes de sair com uma bandeja de sanduíches.

Sherlock a observou por uns momentos, tentando imaginar onde ela queria chegar com aquela história, mas deixou o assunto de lado assim que Cashmere se aproximou com dois copos.

— Olá — disse ela. — Refresco?

— O que é? — perguntou Sherlock, sem estender a mão. — Um brinde de cianureto?

A garota sorriu.

— Me desculpe por aquilo — ela disse, tomando rapidamente um bom gole dos dois copos e estendendo novamente o copo para Sherlock, que o aceitou. — Estamos sob enorme pressão aqui. O mundo dos espíritos é fácil de encontrar, mas não o Outro Lado.

— Ah, sim. O reino das fadas — resmungou, antes de se virar para a garota. — Você realmente acredita nisso?

— É o meu trabalho.

— É o que diria a assistente de um mágico.

— Acho que sim — admitiu ela.

Eles bebericaram em silêncio por alguns momentos, enquanto Sherlock observava Anderton conversando com os dois membros da Sociedade Teosófica Espiritual.

— Vocês pertencem à Sociedade?

— Não — disse Cashmere. — O Prof. Anderton prefere trabalhar sozinho. Quem convidou os outros foi a Sra. Griffiths.

— Ah, compreendo.

— Mesmo?

Sherlock a encarou de novo, mas não respondeu. Cashmere era uma garota difícil de entender, mas, também, não era para menos. Uma pessoa sem pátria e sem família, trabalhando com um sujeito que dizia falar com os mortos. Súbito, a lembrança o fez pensar em algo.

— Você já... O Prof. Anderton, alguma vez, conseguiu contatar seus pais?

Ela se virou. Por um momento, pareceu a Sherlock que ela encarava o seu mestre, mas, na verdade, ela parecia estar enxergando a chuva que lavava as janelas.

— Uma vez, apenas. Há muito tempo.

— E posso lhe perguntar o que lhe disseram?

Ela baixou os olhos antes de responder.

— Para seguir em frente. Que ainda não era a minha hora.

— Sua hora? Como assim?

Cashmere puxou levemente as mangas, revelando os pulsos das mãos. Uma cicatriz muito antiga e feia decorava a pela acobreada. A intenção fora óbvia e Sherlock não poderia repreendê-la, apesar do ato desesperado. Para alguém que perdera a tudo e a todos em uma noite só, a solução final poderia ser considerado um ato de misericórdia.

— O Prof. Anderton me acolheu depois disso — ela continuou, em um tom de voz sem emoção. — E tive... tenho uma boa vida — concluiu, corrigindo-se. — E vou fazer tudo para mantê-la assim.

Não saberia se aquilo havia sido uma ameaça ou não, mas Sherlock achou que compreendia um pouco mais a garota.

Vivera a vida inteira na Mansão Holmes e seus arredores. Sua família e a dos amigos dos seus pais também tinham problemas, como todas as famílias, mas nada tão ruim como aquilo. Se fosse levado às piores circunstâncias, se o destino destruísse seu futuro e só sobrasse o desespero e a dor, será que tomaria as mesmas decisões? Sobreviver, apesar de tudo?

Estes pensamentos perturbadores permaneceram em sua mente por boa parte da tarde e só foram deixados de lado quando intrometeu-se em uma conversa sem ser notado. Não fora absolutamente sua intenção bisbilhotar, mas acabou vítima das circunstâncias.

Depois de algumas horas de conversas banais na sala de recepções, todos foram chamados para tomar chá. A Sra. Griffiths os liderou pelos corredores, mas Sherlock ficou para trás para levar seu copo até a mesa onde estava a Sra. Macklin. Ele cumprimentou a velha cozinheira e seguiu os demais. O corredor estava vazio, mas sabia onde eles estavam. Ouvira alguém falar que a Sra. Griffiths transformara a antiga sala de mapas do marido em uma sala de chá. Se não estava enganado sobre a arquitetura da casa, o local em questão ficava na parte sul e havia uma porta nos fundos da biblioteca que o levaria imediatamente para lá.

Sherlock abriu a porta e entrou, reconhecendo rapidamente o seu erro. Estava no escritório do Major Griffiths, um lugar cheio de móveis ossudos, armários com armas antigas e uma enorme lareira, que fora limpa após o último inverno. E, em pé, muito ereto e observando as armas antigas, estava Nakahara.

Sherlock se assustou e soltou o que imaginou ser uma pequena exclamação. O japonês se virou muito devagar e abriu um dos seus vastos e enigmáticos sorrisos.

— Me desculpe. Não sabia que o senhor estava aqui — disse, e rapidamente se sentiu um idiota. Ele não falava inglês.

Nakahara apenas lhe respondeu com mais um sorriso.

— Estamos indo tomar chá — disse Sherlock, falando e fazendo um gesto com as mãos, para tentar se fazer compreender.

Nakahara apenas sorriu novamente e o chamou com um dedo, voltando a observar o armário de armas.

Sherlock se aproximou, mas, neste momento, ouviu a porta da sala ao lado se abrir e fechar. Duas pessoas entraram, falando em voz alta.

“Esta situação não pode continuar assim” — ele ouviu Barrow, o advogado, dizer.

“Não vejo o porquê isso ser do seu interesse” — respondeu a Sra. Griffiths.

“A senhora não percebe que estão lhe fazendo de idiota?” — insistiu Barrow.

Sherlock ergueu os olhos. Achava que aquela não era a melhor forma de abordar a questão e ficou envergonhado por estar ouvindo uma conversa particular. Ele tentou chamar a atenção de Nakahara para que saíssem dali pela outra porta do escritório, mas o japonês parecia estar muito interessado nas armas antigas. Havia uma espada ali, que ele encarava com grande respeito e que cutucava Sherlock para ver também.

— Sim, sim, muito bonita — murmurou, com medo de ser pego bisbilhotando, mesmo que sem querer.

“Quanto dinheiro a senhora ainda vai gastar com estes disparates?”

“Meu dinheiro, e não seu.”

“E das suas filhas.”

“Eu nunca faria nada que as prejudicasse.”

“Não é o que diz o seu histórico.”

Houve um pequeno silêncio.

“Você não ousaria!”

“Qualquer juiz do mundo me daria razão. Uma internação no hospício, não? Eu posso trazer os médicos para depor. Foram quase três meses, se não estou enganado.”

“Você não tem nada a ver com isso!”

“Não quero chegar a este ponto, Sra. Griffiths. Pense bem nisso.”

A porta se abriu novamente e voltou a se fechar.

Houve apenas um soluço contido depois disso e, então, o silêncio.

Sherlock respirava rapidamente e levou os dedos nas têmporas, tentando raciocinar. A Sra. Griffths fora internada em um hospício? Bem, não poderia dizer que estava surpreso. O comportamento dela era absolutamente errático. Não concordava com a ameaça do advogado, mas podia entender seus medos.

Nakahara o puxou novamente, apontando para a espada.

— Sim — resmungou. — É uma espada bonita. E eu estou indo tomar chá — falou, afastando-se, deixando o japonês ali, ainda admirando as armas.


O jantar foi rápido e silencioso. A expectativa crescia com o passar das horas e ninguém parecia animado para conversas. Depois da refeição, Sherlock subiu para trocar o leve paletó por um casaco mais pesado, pois a temperatura baixara rapidamente.

A tempestade seguia forte lá fora, açoitando janelas e fazendo balançar os vidros. As nuvens negras cobriam as estrelas e a lua, deixando a noite completamente escura.

— Uma noite perfeita para uma sessão, não?

Sherlock se virou nas escadas e encontrou Cashmere com seu sorriso de gato.

A contragosto, Sherlock admitiu que ela tinha razão. Se houvesse uma ocasião especialmente preparada para contatar os mortos, aquela era a noite. Eles foram até a sala de recepções e, dali, foram liderados pelo Prof. Anderton até a biblioteca. Barrow fez um aceno para Sherlock antes que ele saísse.

— Fique de olho em tudo — ele pediu, falando baixo.

— O senhor não vem? — perguntou Sherlock, admirado.

Barrow abriu um sorriso amarelo.

— Já participei de sessões antes. Como deve imaginar, não tenho muita paciência com estas bobagens. Digamos que fui expulso pelos espíritos, por assim dizer. Anderton não permite que permaneça na sala.

Sherlock assentiu.

— Ficarei de olha na Sra. Griffiths.

— Bom rapaz — o advogado comentou, antes de dispensá-lo.

A biblioteca estava na mais completa escuridão, com exceção da grande mesa, onde um pequeno lampião espalhava uma luz amarelada pelo tampo. Seis cadeiras estavam espalhadas ao seu redor.

Anderton esperava na frente da mesa e os outros estavam à sua frente, em fila. O médium apertava delicadamente as mãos de cada um e indicava uma posição específica para se sentar. Sherlock ficou entre Cashmere e Madame Mesmer.

— O que foi isso? — perguntou para a garota.

— As pessoas positivas e negativas devem ser colocadas alternadamente ao redor da mesa. Isso ajuda a energizar a sessão — ela explicou.

— E o professor pode reconhecer se uma pessoa é positiva ou negativa só de tocar nela? — perguntou Sherlock, erguendo uma sobrancelha.

— Ele é bastante experiente — Cashmere retrucou.

Sherlock observou ao seu redor. Anderton se sentara entre a Sra. Griffiths e Madame Mesmer. O Sr. Vanderbilt tomou o assento ao lado de Cashmere e Nakahara estava entre ele e a Sra. Griffiths. Em cima da mesa, além do lampião, havia uma coleção de cartas abertas, representando as letras do alfabeto, um pequeno lápis e nada a mais.

Aquilo surpreendeu o rapaz, que esperava algo mais esotérico.

— É só isso? — sussurrou para Cashmere.

Ela o encarou com um riso zombeteiro.

— Se quiser, posso arranjar uns pedaços de madeira para que crucifique alguém.

Sherlock se calou, amuado.

Anderton fez uma pequena prece em silêncio e pediu para que todos dessem as mãos, mantendo os punhos sobre a mesa.

— Mantenha o contato — ele instruiu, olhando para Sherlock, já que ele era o único que nunca participara de uma sessão antes. — É muito importante que todos mantenham as mãos unidas. Não quebrem a corrente.

O rapaz assentiu com um aceno e Anderton agradeceu. Ele olhou para todos e suspirou fundo antes de falar.

— Estamos aqui reunidos em paz, e é com este sentimento que sigo. Já nos reunimos outras vezes para alcançar os que já partiram, mas hoje queremos ir além.

Sherlock observou atentamente a todos. Estavam absolutamente concentrados no que Anderton dizia, respirando profundamente. A Sra. Griffiths, Madame Mesmer, Nakahara e...

Ele quase abriu os dedos ao perceber que Cashmere o encarava, mas a garota apertou sua mão. Sherlock segurou a respiração e virou o rosto para Anderton, que continuava.

— Esta casa foi abençoada pela presença dos Outros e é a estes que pedimos que venham até nós. Há alguém dos Outros Reinos que esteja aqui?

À pergunta se seguiu um profundo silêncio, que durou quase um minuto. Então, Anderton retomou.

— Repito, mais uma vez, há alguém dos Outros Reinos que deseje falar conosco?

Mais uma vez, somente o silêncio se seguiu à fala do professor, que esperou mais um pouco e continuou.

— Há alguém aí?

BAM!

Sherlock quase saltou da cadeira, mas conseguiu se controlar. A pancada seca surgiu aparentemente de lugar algum. Não esperava por isso.

— Quem fez este barulho? — perguntou Anderton.

Houve uma saraivada de batidas, ecoando pela biblioteca. Então, elas pararam.

A Sra. Griffiths respirava profundamente, assim como Madame Mesmer. Anderton fez um gesto apaziguador para todos e comandou.

— Viemos em paz, espírito. Por favor, responda com uma batida para Sim e duas para Não. Este barulho foi feito por alguma pessoa viva?

Houve um breve silêncio e então:

BAM!

O sinal do Sim foi seguido por várias reações espantadas e Sherlock precisou admitir que até mesmo ele engolira em seco. A sala na semiescuridão e as batidas que viam de lugar algum eram assustadoras. Esforçava-se para tentar compreender o que estava vendo ou sentindo, mas sua garganta estava seca e suas mãos, úmidas. Olhou de lado para Cashmere, mas ela parecia completamente absorta e encarava o Prof. Anderton.

Depois de um momento, ele recomeçou.

— Este barulho foi feito por um espírito que já veio a esta casa?

Duas batidas. Não.

— É um espírito em dor?

Uma nova sequência de batidas descontroladas se seguiu a isso. Então, algo extraordinário aconteceu. A mesa levitou.

O tampo inteiro levantou-se alguns centímetros e balançou, fazendo o lampião se mexer e quase cair. Alguém gritou. Madame Mesmer, ele acreditava. As batidas continuaram por mais alguns momentos e, então, a mesa voltou a cair e tudo voltou a ficar em silêncio, a não ser pela tempestade lá fora e a respiração pesada lá de dentro.

— Desculpe, espírito, mas preciso perguntar — disse o Prof. Anderton com sua voz retumbante. — É um espírito em dor?

Houve novas batidas, mas mais suaves desta vez. Então, o silêncio e a resposta.

Uma batida. Sim.

— Por que está em dor, Espírito?

Anderton olhou para a Sra. Griffiths, que largou as mãos dos seus vizinhos e colocou o lápis sobre a letra A. Nada aconteceu. Então ela passou para a letra B e continuou assim até a alcançar a letra T. Neste momento, houve uma batida forte na mesa.

Ela assentiu e recomeçou o processo. Novamente, o lápis passou da letra A para B, da B para C e assim por diante.

Era um método engenhoso, mas pouco prático, pensou Sherlock. Só serviria para mandar mensagens curtas ou eles ficariam o resto da noite ali. E todos observam com atenção a Sra. Griffiths passar o lápis de um lado para o outro e suspiravam de excitação quando a batida confirmava a letra certa. Sherlock formou a palavra em sua mente.

T—R—A—I—C—A—O

Traição? Quem a Sra. Griffiths estaria traindo?

— Estamos todos aqui, Espírito, em comunhão com as vozes do vasto vazio.

Uma nova saraiva de batidas, mais forte desta vez. Anderton esperou que elas parassem para perguntar.

— Por que está irritado, Espírito?

Mais batidas ressoaram em pandemônio e pararam. Então, a Sra. Griffiths recomeçou o processo com o lápis e as letras. A palavra era bem mais curta e significativa.

F—A—D—A

Ela engoliu um espanto. Sherlock tentou observá-la no meio da escuridão, mas era difícil ver sua reação somente pela luz do lampião. Mas ele notou que o lápis parecia tremer.

— Não somos irmãos da mesma criação?

Duas batidas. O sinal para Não.

— O que podemos fazer?

Um novo conjunto de batidas e silêncio. A Sra. Griffiths voltou a colocar o lápis na letra A e o processo reiniciou.

V—O—L—T—E—M—P—A—R—A—L—U—Z

— Mas eles não são seres de luz? — perguntou a Sra. Griffiths, em um fiapo de voz.

Duas batidas. Não.

Mesmo não estando do lado da Sra. Griffiths, Sherlock sentiu que ela estremeceu.

— E minhas filhas?

Novas batidas.

I—N—O—C—E—N—T—E—S

E começou um novo festival de batidas incoerentes, de um lado para o outro.

— Ali! — gritou Anderton, apontando para Vanderbilt, que se virou e soltou uma exclamação de espanto. Sherlock também se virou, mas não viu nada.

Mais batidas se seguiram até que parou.

— Ainda está entre nós, Espírito?

Uma batida. Sim.

— O que quer de nós?

Novas batidas.

O—R—E—M

O Prof. Anderton assentiu gravemente e, com um gesto, levou as mãos para o centro da mesa. Ele aumentou a luz do lampião e comandou uma breve oração.

A sessão estava terminada.

Sherlock saiu para a sala de recepção, sentindo-se estranhamente exausto. Não sabia como, mas seu corpo inteiro doía. Seria por causa da tensão? Ou por tudo que via e ouvira lá dentro? Sabia que poderia encontrar alguma explicação lógica se buscasse com afinco, mas, agora, tudo o que queria era descansar.

Ele tomou um gole d’água enquanto o mordomo servia xerez para os demais. Cashmere lhe cumprimentou com o olhar, mas Sherlock não respondeu. Sua mente estava muito confusa para que ele discutisse o que quer que fosse. Depois de alguns minutos, a Sra. Griffiths pediu licença e todos acabaram se retirando.

Exausto, Sherlock voltou para o quarto e adormeceu quase que imediatamente.


Sherlock acordou com o grito. E houve um novo grito logo após este, que pegou o garoto já em pé, correndo para a porta. Ele saiu para o corredor, seguido de perto por Cashmere e o Prof. Anderton, que abriam as respectivas portas. No final da galeria, havia uma porta aberta, de onde partia um uivo de dor.

O rapaz alcançou o lugar junto com Barrow, que se precipitara do próprio quarto, ainda de pijamas.

Pela porta, eles viram a Sra. Griffiths de joelhos no meio do quarto. Sherlock olhou ao redor. Pelas cores das estampas e pelo pontilhado de brinquedos e bonecas com olhos de vidro, era evidente que aquele eram os aposentos de Elsie e Frances. O quarto parecia intocado, mas a cama de dossel das garotas estava desarrumada.

E vazia.

A Sra. Griffiths gritou mais uma vez e um trovão respondeu do lado de fora.

— Foram elas — ela sussurrou, abaixando-se perto da janela. — Elas sequestraram as minhas filhas.

— Elas quem? — perguntou Barrow, ainda na porta.

— As fadas, é claro! Nós as desrespeitamos ontem à noite e elas resolveram se vingar!

Sherlock e Barrow trocaram um longo olhar, enquanto o Prof. Anderton se precipitava para dentro do quarto.

— Ah, minhas filhinhas, meus bebês... O que vai ser de vocês? Minhas lindinhas!

Sherlock estava chocado. Estava absolutamente perplexo pelo rapto, mas a reação da mãe das garotas tornava tudo ainda pior. Duas garotinhas foram raptadas. Arrancadas dos seus quartos.

Isso era errado.

— Eu vou chamar a polícia — anunciou Barrow, sensatamente, mas seu gesto foi interrompido por um novo grito.

— Não!

Era a Sra. Griffiths, que se aproximou estendendo uma folha de papel tão fino que parecia de seda.

— O que é isso? — perguntou Barrow.

— Eu encontrei em cima da cama — ela disse, se apoiando no médium enquanto ele lia o bilhete.

Anderton leu rapidamente, os olhos passando de uma linha a outra, o pescoço balançando como um pêndulo. Quando terminou, levantou os olhos para os demais, completamente perplexo.

— É um pedido de resgate — murmurou.

— A polícia, então — disse Barrow, triunfante, mas foi novamente interrompido por outro grito da Sra. Griffiths.

— Não! Ela não pode ser envolvida! Se chamarmos a polícia, elas não devolverão as minhas garotinhas.

— Elas?

— As fadas... — ele murmurou, entregando a nota para o advogado, que a agarrou.

Sherlock conseguiu dar um jeito de ficar atrás de Barrow e utilizou a sua estatura para enxergar sobre seu ombro. O papel era muito fino e a letra rebuscada fora escrita em uma tinta dourada e verde, repleta de filigranas. Mas o texto era claro e não poderia ser ignorado.

 

Nos densos cerrados, no bosque fagueiro, nas belas casas por tudo me esgueiro.

Em primaveras passadas, a rainha era amada, em seu dourado vestido de traçado aguerrido.

Uma última vez ela fora chamada, e novamente foi molestada.

As raparigas partiram para fazer a rainha sorrir, pois elas não sabem o que é mentir.

Mas por três luas elas vão esperar, três luas apenas e não convém se atrasar.

O peso dourado de cada mocinha, é tudo que pede a nossa rainha.

E se soldados forem avistados, o trato é desfeito no mesmo ato.

Adeus meninas, adeus a nossa rainha, será o fim de tudo, de toda a linha. [5]

 

— Isso é um absurdo! — rosnou Barrow, quando terminou de ler a carta para todos, muito sério. — Precisamos chamar a polícia.

— Não! — gritou a Sra. Griffiths e, pela primeira vez desde que Sherlock chegara à Cottingley, ela parecia completamente lúcida e senhora de si. — A carta é clara neste aspecto e eu não vou torcer a vontade da Rainha uma segunda vez. A polícia não será chamada sob nenhuma hipótese, Barrow. Me desobedeça e nunca mais porá os pés nesta casa!

Barrow a encarou por um longo e tenso momento. Então, ele se virou para Sherlock por apenas um segundo e fez um aceno de concordância, quase imperceptível.

O Prof. Anderton, que parecia anormalmente sério em seus pijamas riscados, se aproximou da Sra. Griffiths.

— O que a senhora vai fazer?

— Vou providenciar o resgate, é claro — ela disse, com a voz trêmula, mas controlada. — É possível transformar o que tenho em ouro, não é?

Barrow demorou um momento para perceber que a pergunta era dirigida para ele. O advogado balançou a cabeça, como se estivesse colocando os pensamentos em ordem antes de falar.

— Sim — disse, depois de pigarrear. — A senhora tem muitos títulos e uma boa quantidade de dinheiro no banco. Posso resgatá-lo e comprar ouro com ele. Mas, devo insistir, isso é uma...

— O tempo para os debates já se encerrou — ela disse, olhando duro. — Até ontem, queríamos contatar o Outro Lado. Hoje, já sabemos das suas intenções. As ordens são claras e vou obedecê-las a risca para que as minhas filhas retornem são a salvo. Elas pesam... aproximadamente 160 libras [6] as duas juntas. Providencie isso em ouro. Elas... Elas... Elas são as minhas filhas e devem retornar para mim.

Anderton a segurou por um momento, mas a Sra. Griffiths conseguiu se segurar. Havia uma firmeza em seu olhar, uma dureza em suas faces que lembrou vagamente o próprio Major. A mulher que acreditava em fadas e espíritos ainda estava lá, mas sobre esta camada surgia uma mãe que estava pronta para enfrentar qualquer coisa em defesa das filhas.

Barrow deixou o quarto e Sherlock foi logo atrás. O advogado fez um aceno para o rapaz e eles se encontraram na ponta do corredor.

— O que senhor vai fazer?

— Conseguir o ouro — disse Barrow, desanimado. — O que mais posso fazer? Se chamar a polícia, ela vai me demitir e o resto do dinheiro vai desaparecer em pouco tempo.

— Mas elas foram sequestradas! — Sherlock protestou.

— Não há dúvida disso. A questão é... Nestes casos, a polícia sempre recomenda obedecer os sequestradores, pelo bem das vítimas. A Sra. Griffiths pode acreditar no que quiser, mas é óbvio que os sequestradores são bem humanos. Depois que as garotas estiverem são e salvas em casa, podemos fazer uma denúncia anônima para a polícia ou algo que o valha. Mas, neste momento, talvez as autoridades só façam mais mal do que bem.

Havia uma certa lógica naquele linha de ação. Realmente, a segurança das garotas deveria estar em primeiro lugar. Uma ação ostensiva contra os sequestradores — e Sherlock concordava com o advogado neste ponto: eles eram bem humanos! — poderia assustá-los e eles poderiam fugir, deixando as pobrezinhas presas em algum lugar ou simplesmente eliminá-las por não ter tido suas exigências aceitas.

Não. Isso seria abominável e tudo deveria ser feito para evitar isso.

— Eu vou me trocar e partir — continuou Barrow. — Vou precisar de um tempo para conseguir transformar dinheiro vivo em ouro. E se entendi bem aquela papagaiada toda, temos apenas três dias.

Sherlock concordou e o advogado, que já se afastava, voltou por um momento e agarrou o ombro do garoto.

— Confio em você para manter as coisas em ordem por aqui. Vou falar com o mordomo também. Ele é completamente fiel à Sra. Griffiths, mas as coisas mudaram. Com o sequestro das garotas, talvez eu o faça ver a voz da razão.

O rapaz assentiu com firmeza e os dois trocaram um aperto de mãos forte. Agora, tudo dependia de apenas eles dois. Eles tinham três dias. Barrow conseguiria o ouro. E ele...

Bem, Sherlock não tencionava apenas esperar. Alguém sequestrara duas garotinhas indefesas por causa de dinheiro. Elas deveriam estar em algum lugar pequeno, fechado, sofrendo. Isso era desprezível.

E, se dependesse dele, alguém pagaria bem caro por isso.


O dia se arrastou lento e tenso. A chuva continuava lá fora, confinando todos ao interior da mansão, que estava repleto de pensamentos terríveis. A Sra. Griffiths passou boa parte do dia em seu quarto, sob os cuidados de Madame Mesmer e do fiel mordomo.

Já Sherlock gastou o dia investigando o quarto das garotas e a biblioteca, atrás de qualquer indício que trouxesse alguma luz à identidade dos sequestradores, mas foi tudo em vão. Não encontrou nada no quarto, nem nas janelas. O caseiro foi interrogado, mas ele não ouvira nada durante a noite. Sultão permanecera trancado por causa da chuva, o que teria facilitado o trabalho dos sequestradores. O problema é que todas as portas e janelas foram verificadas mais de uma vez e não havia sinal de arrombamento. Como as garotas haviam sido sequestradas?

Na biblioteca, o rapaz examinou a mesa atrás de indícios que explicassem os estranhos fenômenos da noite anterior, mas tudo o que encontrou foi alguns arranhões por debaixo da tampa e um pequeno e minúsculo furo em cima. Não havia como saber se aquilo poderia ter conexão com a sessão da noite anterior, pois a mesa era muito velha.

Irritado, Sherlock terminou o dia com muito mais perguntas do que respostas.

Mesmo assim, quando a noite chegou, ele tinha um plano de ação. Se ninguém entrara pelo lado de fora, raciocinara, então alguém abrira a porta pelo lado dentro. E este suposto comparsa poderia se reunir com os sequestradores. Era uma hipótese pouco provável, mas não tinha nada a perder. Depois que todos se recolheram, manteve a porta do quarto entreaberta, ouvindo o corredor lá fora. Cerca de uma hora depois, deixou o quarto, carregando os sapatos na mão. Pisando pé ante pé, desceu as escadas e foi até sala de recepção e, dali, abriu as trancas para alcançar o terraço. A chuva se tornara apenas uma garoa. Ele se encolheu a um canto, protegido pelo capote e esperou.

Quase uma hora e meia depois, quando o rapaz já estava imaginando que estava apenas perdendo o seu tempo ali e conseguindo um resfriado, ouviu o barulho da porta sendo aberta novamente. Alguém saia com uma maleta na mão. O vulto atravessou o terraço com o passo apressado.

— Onde você pensa que vai? — pediu, saindo do esconderijo e se aproximando.

O vulto se virou e Sherlock, como já esperava, reconheceu o rosto de Cashmere. Ela girou a maleta no ar e o rapaz teve que recuar dois passos para não ser atingido.

— Ei!

Mas a garota não deu bola para o protesto de Sherlock. Furiosa, ela investiu novamente.

Desta vez, ele estava preparado. Sherlock jogou o peito para trás e deixou a maleta passar perto do seu rosto e, então, avançou, usando sua maior estatura e força para tentar agarrar os braços de Cashmere. Ele apertou os pulsos da garota, que deixou cair a valise.

— Pare!

Ela lhe lançou um olhar furioso antes de lhe chutar, acertando um pontapé em sua canela. Sherlock se contorceu. A dor surgiu como uma pontada de injeção, só que mil vez pior, e foi subindo por sua perna que, subitamente, perdeu toda a força. Ele fraquejou e desequilibrou-se, o que foi o suficiente para que largasse os braços de Cashmere.

Liberta, ela pegou a valise e começou a se afastar.

Sherlock tentou se levantar, mas a perna estava doendo demais e ele caiu novamente. Foi quando ouviu o rosnado.

Virando-se bem devagar, ficou frente a frente com o mastim do caseiro. Como um autêntico animal de caça, Sultão havia se aproximado em silêncio, espreitando a sua presa.

— Ela está lá! — gritou Sherlock, apontando para o caminho onde Cashmere havia desaparecido. — Vá atrás dela.

Mas a besta de quatro patas não compreendia o que Sherlock estava falando. Tudo o que ela sabia é que havia duas presas andando pela propriedade aquela noite. A primeira estava longe e a segunda estava ali, à sua mercê, completamente desprotegida. E a besta faria o que fora criada para fazer.

Destruir seu inimigo.

Sherlock percebeu isso logo depois que se calou. Os olhos do animal estavam vidrados. Um longo fio de baba escorria de sua boca, que salivava, antegozando o momento em que os caninos perfurariam a carne branca e macia do rapaz. Ele seria estraçalhado. Mesmo que gritasse por socorro, estava longe demais para que alguém pudesse chegar a tempo de ajudá-lo. Seria morto por um cachorro que estava guardando a casa. Um triste epitáfio para um rapaz que se julgava tão inteligente.

Com os movimentos bem vagarosos, Sherlock tentou esquadrinhar o chão atrás de qualquer coisa que servisse como arma, mas tudo o que achou foi uma pedra. E nem era uma das grandes, mas, pelo menos, o pedregulho era melhor que seus dedos. Talvez pudesse enfiar a pedra na garganta do monstro quando ele tentasse lhe morder. Era uma chance em um milhão, mas isso era melhor do que chance alguma.

O mastim se aproximou, os pelos eriçados, os músculos contraídos, a besta pronta para capturar e estraçalhar. Sherlock se arrastou para trás e segurou a pedra com mais força. O momento da verdade se aproximava.

Então, o mastim saltou e Sherlock girou o braço, mas ele e seu pequeno pedregulho nunca atingiram o enorme canzarrão. Enquanto a besta voava no ar, uma perna surgiu entre os arbustos e a acertou no meio das costelas. E havia um salto pontiagudo na ponta da perna. E a outra ponta estava presa aos quadris de Cashmere.

O mastim ganiu e Sherlock engoliu em seco, sem acreditar no que acabara de acontecer. O cão se virou para a garota e latiu. A garota abriu os braços e berrou. Foi um urro ensurdecedor e ela levantara as abas do casaco, parecendo muito maior do que realmente era. Por um momento, Sherlock viu o que cão via: uma outra fera, invencível e irrefreável.

Ganindo, o cachorro saiu correndo, com o rabo entre as pernas.

— Isso foi... extraordinário! — disse Sherlock, quebrando o longo silêncio que se seguiu.

A garota, que respirava com dificuldades para retomar o fôlego, resmungou de volta.

— Cães, como qualquer outro animal, brigam para mostrar quem é mais bravo. E fogem quando acham que existe alguém pior do que eles.

Ela o ajudou a se levantar. O pé doeu quando ele apoiou no chão. O tornozelo estava sensível e inchado.

— Isso vai passar em alguns dias — ela disse.

— Por que você voltou?

— Ouvi o mastim. Achei que você precisaria de ajuda. Não queria ter a sua morte em minha consciência.

— E você tem uma consciência? — perguntou, provocativo.

— Estou aqui, não estou? — rosnou ela.

— E as garotas? Onde elas estão?

Cashmere o largou junto a um banco. Sherlock se sentou e ela se virou para o bosque, suspirou fundo e cruzou os braços.

— Não tenho nada a ver com isso.

— São noventa libras de ouro o que a Sra. Griffiths pretende pagar. Isso poderia arrumar a sua vida.

Cashmere gargalhou e se virou para o rapaz.

— E o que eu faria com ouro, Sherlock? Isso não é algo que se compra ou vende em qualquer lugar. É preciso ter conexões, conhecer pessoas. Se eu fosse enganar alguém por dinheiro, iria querer a minha parte em libras, como qualquer pessoa normal.

— Então, por que estava fugindo?

Ela voltou a gargalhar.

— Você não tem ideia, realmente? — ela perguntou, atônita. — Quanto tempo você acha que este absurdo vai durar? Em questão de horas ou dias a polícia vai ser chamada e quem vocês acham que vão culpar?

— Bem, eles precisam investigar e...

Ela o cortou.

— O Prof. Anderton é membro de várias sociedades em Londres — ela disse, abruptamente. — Assim como Madame Mesmer e até mesmo aquele paspalho do Vanderbilt. Eles atendem condes, viscondes e ladies da Inglaterra e do Continente. Não, Sherlock, eles não serão investigados. Não enquanto houver uma culpada tão óbvia.

Sherlock tentou protestar, mas, então, se lembrou que passara o dia inteiro pensando a mesma coisa. Ele não tinha prova alguma contra Cashmere, mas suspeitava dela. Agradeceu que estavam na escuridão e que a garota não poderia vê-lo corar.

— Você acha que seria presa? — perguntou, com a voz branda.

— Você sabe por que eu e minha família estávamos na Bulgária? — ela respondeu com uma interrogação, erguendo uma sobrancelha. — Por que sempre viajamos de um lado a outro? Porque nos expulsam sempre que podem, Sherlock. Sempre que há algo ruim, os ciganos são os culpados. Roubo. Extorsão. As vacas param de dar leite. As galinhas adoecem ou a mulher do senhor da casa perde o filho no parto. Os ciganos são os culpados fáceis. Os mais óbvios. Se eu ficasse aqui, não daria um par de dias para ser presa.

Seria verdade?, pensou Sherlock. Cashmere ou qualquer outra pessoa poderia ser presa apenas por ser de uma origem diferente ou de uma cor de pele diferente? Aquilo era absurdo. [7]

— Eu não deixaria.

Cashmere o observou com um misto de surpresa e ironia.

— Não sabia que tinha um cavaleiro de armadura prateada me protegendo. Agora, me sinto bem melhor.

— Não zombe de mim — reclamou, sentindo uma nova pontada de dor no tornozelo. — Eu só quis dizer que não aceitaria que você fosse presa somente por ser cigana. Isso é errado.

— Quem bom que haja pessoas que pensem assim, Sherlock, mas você não é a maioria. Na verdade, você é quase único se realmente pensar desta forma.

— Talvez eu seja — resmungou Sherlock, balançando a cabeça logo após. — Certo, você não tem nada a ver com isso. Mas alguém sequestrou as garotas. E eu vou descobrir quem é. Este crime não pode ficar impune.

Cashmere abriu um sorrisinho petulante.

— É? Como?

— Ainda não sei, mas vou precisar de ajuda — disse, a encarando.

Ela compreendeu a mensagem implícita e negou com a cabeça.

— Nada disso, garoto. Estou partindo, lembra?

— Se fizer isso, vai perder tudo o que construiu. Se o Prof. Anderton for inocente, você ainda terá um trabalho. Me ajude e nós podemos pôr um fim nisso.

Foi a vez dela o encarar e seus olhos negros permaneceram em cima dele por um longo momento.

— Você sabe o que está fazendo? — ela perguntou.

— Acho que sim.

— Você não parece um dos idiotas que eu costumo encontrar por aí.

Sherlock abriu um sorriso meio constrangido.

— Obrigado. Acho.

Ela largou a valise.

— Eu vou ficar, Sherlock. E por favor, não me faça arrepender disso.

Sherlock soltou a respiração, aliviado.

— Pode deixar.


Mas, apesar de ter conseguido uma aliada, a situação no outro dia só piorou para Sherlock. Seu tornozelo ainda estava inchado e ele caminhava com dificuldade, o que prejudicou seus planos. Ele queria mostrar o cano para Cashmere, assim como a velha construção abandonada, mas foi obrigado a apenas explicar o caminho. Mancando, levaria horas para liderar a garota até o bosque e voltar, e a sua perna explodiria de dor no caminho.

E ainda teve que inventar uma desculpa para estar andando daquele jeito.

— Escorreguei no banheiro — disse, ao que a Sra. Griffiths abriu um sorriso triste, sem tecer comentários. Os demais apenas fizeram comentários supérfluos sobre a questão e não poderia repreendê-los. Afinal, as duas garotinhas ainda permaneciam desaparecidas e uma aura de tensão penetrava em toda a casa.

Cashmere retornou do bosque cerca de uma hora e meia depois. Seus cabelos cheiravam a terra e estavam úmidos. Parara de chover, mas grossos pingos ainda pingavam das árvores.

Ela achara o cano e investigara por si só, mas não encontrara mais nada.

— Ele poderia ser usado para fazer o truque com as fadas? — perguntou Sherlock.

Eles estavam no jardim das rosas, afastado do terraço, onde os demais convidados estavam passando o dia. Precisavam conversar sem chamar a atenção.

Ela franziu o cenho, pensativa, antes de responder.

— Não vejo como.

Sherlock pensou por um momento e se lembrou do que vira no dia anterior, na biblioteca.

— Escuta — disse, passando os dedos sobre as têmporas e resolvendo arriscar. — Eu sei tudo sobre os truques.

— Não há truques — ela respondeu, com a voz irritada.

— Eu vi o furo no tampo da mesa. E os arranhões.

Não tinha a menor ideia do que aquilo representava, mas precisava obter mais informações. Talvez se fingisse saber de algo, Cashmere se abrisse com ele. E, na verdade, ela o encarou por um bom tempo antes de falar, como se meditasse consigo mesmo.

— Você tem bons olhos — ela disse. — É muito difícil alguém perceber qualquer um dos indícios e você descobriu todos. Parabéns — cumprimentou, em um tom sem emoção.

— Então, Anderton é uma fraude.

— Eu não disse isso — ela rosnou, voltando a ficar irritada.

— Explique-se.

Cashmere suspirou fundo e se virou para o bosque. Ela deixou a pausa se alongar antes de falar.

— Ele disse que os espíritos vem e vão, mas é difícil falar com eles. Às vezes, eles ficam meses sem manifestar. Não teríamos trabalho se as coisas fossem deste modo. Anderton usa os truques para manter tudo mais visível para quem vê. Na verdade, a maior parte das mensagens é dita diretamente em sua cabeça. Como alguém acreditaria nisso?

— É. Como...

Cashmere o encarou e percebeu o seu tom de descrença.

— Eu já vi coisas que não posso explicar. Coisas que nós não planejamos. Uma vez, uma garota foi levitada um metro acima da sua cadeira em nossa casa. Na nossa própria casa, entende? Não havia como alguém fazer este truque sem que soubéssemos. Nunca encontramos uma explicação.

Sherlock resolveu manter a mente aberta. De qualquer modo, não adiantaria nada brigar com a única aliada que possuía.

— Muito bem. Mas, de todo o modo, vocês fabricam alguns truques, certo?

— Sim.

— Você pode me explicar?

— Depende. Há várias formas para realizar várias coisas. A mesa levantada, por exemplo. Ontem, nós usamos o truque do anel.

— Um anel?

— Sim. Você usa um prego preso à mesa e um anel de ferro com uma pequena abertura. Então, o médium encaixa a ranhura na cabeça do prego e levanta a mesa. Com as duas mãos espalmadas em cima do tampo, a sensação é que a mesa está levitando.

— Engenhoso.

— Há outras formas, é claro. O Punho e o Gancho, por exemplo, uma espécie de luva para o punho, com um gancho comprido. Você desliza o gancho para fora quando se aproxima da mesa com a mão espalmada e o utiliza para levantar a mesa.

— E as batidas na mesa?

— Em nossa casa, nós temos uma mesa preparada com um pino que é preso junto ao sapato do Prof. Anderton. Dependendo da pressão que é aplicado no pino, temos vários pequenos martelos que foram montados no interior do tampo. É como se fosse um piano que o professor toca com rara habilidade.

— Mas não dá para sair por aí com uma mesa.

— Sim. Aqui, usamos um truque mais simples. Uma faca presa ao punho que é deslizada para baixo da mesa. Com um movimento simples, é possível fazê-la golpear o tampo por baixo, provocando a batida. [8]

— Mas nós ouvimos as batidas em vários lugares — Sherlock protestou.

— Isso foi apenas sugestão — ela disse, com um sorriso maroto. — O Prof. Anderton conduziu a sessão e ele é muito bom nisso. Sempre que ele mencionava alguém e fazia a batida, parecia que a batida estava vindo de lá, mas, na verdade, ela vinha sempre do mesmo lugar.

Sherlock a observou, pensativo. Não via motivos para que ela estivesse mentindo, mas, por um momento, recusou-se a acreditar nisso. Seria a sua mente tão fácil de manipular assim? Seriam as mentes de todos tão suscetíveis a este tipo de truque? Se fosse verdade, precisaria aprender a treinar a própria mente. Não gostaria de ser enganado novamente.

— E como estas fadas poderiam ser feitas?

— Estas malditas fadas!

— Achei que elas fizessem parte do espetáculo.

— É claro que não — ela protestou. — Somente a Sra. Griffiths é tonta o suficiente para acreditar neste absurdo. Nós trabalhamos com os espíritos, nada além disso.

— Mas Anderton parecia acreditar nisso.

Cashmere o olhou um tanto exasperada. Ela se levantou e suspirou fundo, olhando para o bosque com o cenho cerrado.

— O professor precisa dançar conforme a música. Se a Sra. Griffiths acredita em fadas, então as fadas existem. E ela queria tentar contatá-las. A sessão de ontem deveria terminar com todo este problema. As fadas seriam desacreditadas e as coisas voltariam a ser como eram.

Sherlock meditou por aquilo por alguns momentos e balançou a cabeça afirmativamente.

— Compreendo. Mas e as fotos?

Ela pareceu pensar naquilo por um momento e respondeu sem se virar.

— As fotos poderiam ser tiradas com filtros diversos ou até mesmo recortes de papel colados, com iluminação especial. Não seria difícil. Mas as garotas pareciam acreditar nelas. Elas disseram que elas se moviam. Isso é muito difícil de fazer.

— Mas há uma maneira, não?

— Sim. Truques com espelhos. Alguns tipos de projeção. Elas sempre viam as fadas perto da noite, não?

Sherlock pensou no que diziam os recortes de jornais que lera e confirmou com a cabeça.

— Projeções com lâmpadas e lentes são melhor realizadas perto do escuro — explicou Cashmere.

— E elas também falavam — comentou Sherlock.

Cashmere se virou e piscou para o garoto, em uma pose interrogativa.

— Eu conversei com as garotas antes do sequestro — o rapaz continuou. — Elas disseram que as fadas falavam com elas. Em uma voz espectral... distante... Como se tivesse...

Os dois gritaram ao mesmo tempo.

— O cano!

Sherlock saltou da cadeira e passou a andar de um lado para o outro, girando os dedos contra as têmporas, excitado, mesmo com o tornozelo reclamando.

— O cano não era para as fadas, afinal, mas para que as garotas ouvissem elas falando.

— Sim. A voz saindo de um cano, em uma tarde espectral, poderia fazer o efeito.

Então, Sherlock se virou para a casa e uma ideia passou por sua cabeça.

— A janela.

— O que tem ela?

— Eu... eu estou desconfiando de uma coisa.

— O quê?

— E se as garotas não foram sequestradas?

Cashmere o observou com um olhar estranho.

— Elas não estão na casa, Sherlock. Onde elas poderiam estar?

— Não, não digo isso. Elas foram sequestradas, mas, talvez, elas não foram levadas por alguém. Por isso não havia marcas de arrombamento.

— Você quer dizer que elas foram por contra própria? Por quê?

— Porque as fadas pediram. Venha comigo.

Mancando, Sherlock andou o mais depressa que pôde até se aproximar da parede logo abaixo da janela do quarto das duas garotas. Sem cerimônia alguma, ele invadiu o canteiro de begônias plantado ali embaixo e começou a vasculhar o local, mexendo nas folhagens e pedras.

— Achei — ele disse, depois de algum tempo.

Cashmere se aproximou enquanto o garoto se abaixava e cavava na terra fofa, arrancando do canteiro um pedaço de cano comprido.

— Me ajude.

A garota entendeu o que ele estava tentando fazer e ajudou a puxar o cano e levantá-lo em pé. Ele subia exatamente até o início da janela das duas garotas.

— Você acha que alguém usou isso para atrair as garotas aqui para fora?

— Sim — disse Sherlock, depois de recuperar o fôlego.

Eles voltaram a largar o cano no meio das begônias.

— Bem, isso prova o como as garotas desapareceram e já sabemos o porquê — resumiu o garoto. — A questão, agora, é quem?

Sherlock meditou sobre aquilo por alguns momentos e encarou Cashmere.

— O sequestrador... Ele quer o ouro, certo?

— Claro.

— E deve entregar as garotas depois que pegar o ouro.

— Espero que sim — disse ela, com uma expressão preocupada.

— Então, elas devem estar presas em algum lugar.

— Óbvio.

— E esta pessoa deve estar sobre uma grande tensão.

— Imagino que sim. Mas por quê?

Sherlock abriu um sorriso.

— Tive uma ideia de como fazer o sequestrador se revelar. Mas, para isso, vamos precisar da ajuda de Anderton. Ele está disposto a nos ajudar?

— Acho que posso convencê-lo.

— Ótimo. Venha, precisamos falar com uma pessoa antes. Vamos precisar de seu auxílio.

— Para o quê?

Mas Sherlock apenas sorriu e não respondeu. Eles entraram na mansão e seguiram até a sala de jantar, onde uma escada de madeira escura os levou até o subsolo, onde ficavam os empregados.

Mesmo nunca tendo estado naquele lugar, não foi difícil para Sherlock achar quem estava procurando. Eles se reuniram na sala de passar, que estava vazia. A Sra. Macklin ouviu atentamente a história de Sherlock e apertou os lábios antes de falar.

— Novamente, menino Holmes?

— Menino? — perguntou Cashmere, ao que Sherlock apenas respondeu com um grunhido.

— Sei que estou pedindo muito, Sra. Macklin, mas temos poucos aliados aqui dentro e muitos suspeitos. E as garotas podem estar correndo perigo.

— Está absolutamente certo sobre isso — resmungou a velha cozinheira, com uma expressão fechada. — Sequestro de crianças é um negócio abominável.

— Então, vai nos ajudar?

Ela deu de ombros.

— E eu tenho opção? Pelo menos, aqui, não posso ser despedida. Mas parece que os problemas lhe perseguem, não?

— Eu não vou atrás deles — respondeu Sherlock, na defensiva. — Na verdade, parece que eles vêm atrás de mim.

— Interessante — ela resmungou.

— Como?

— Nada, não, menino Holmes. Agora, sumam daqui, vocês dois. Tenho muito coisa para fazer antes de lhe ajudar nesta sua ideia maluca.

— Obrigado — ainda agradeceu Sherlock, antes de subir com Cashmere.

— E agora?

— Agora, tudo depende de você — disse o rapaz, olhando para a garota.

Ela assentiu, respirou fundo e seguiu para o quarto do Prof. Anderton. Sherlock foi até o próprio quarto para descansar. Aquela prometia ser uma longa noite.


Barrow chegou um pouco antes do jantar e se reuniu com a Sra. Griffiths a sós, em seu escritório. Sherlock notou a pesada pasta que ele carregava, que foi levada pela dona da casa até o seu quarto. O pedido de resgate chegara e seria entregue na próxima noite. Cento e sessenta libras de ouro, uma pequena fortuna para os sequestradores.

Que não ficariam no bolso dos meliantes, se dependesse dele.

O jantar foi recheado de grande expectativa. Primeiro, pela proximidade do pagamento do resgate, na próxima noite. E, depois, pelo anúncio do Prof. Anderton.

— Eu fui visitado em meus sonhos — ele anunciou, em tom sério, ao final da refeição.

A Sra. Griffiths segurou o seu braço, a respiração forte escapando pela boca.

— Foram... as garotas?

— Não. Mas o espírito que me visitou disse que havia algo a me dizer sobre elas. Algo muito importante. Creio, com a sua permissão, minha senhora, que devemos realizar uma sessão hoje.

— Outra sessão? — rosnou Barrow, atirando o lenço em cima da mesa. — Já não basta de sessões? Você não percebeu o resultado da última?

Houve um grande silêncio, em que o Prof. Anderton encarou o advogado. A Sra. Griffiths parecia furiosa e prestes a explodir, mas o médium segurou a sua mão por um momento e ela se acalmou.

— O senhor já deixou bem claro o que pensa sobre este assunto, Sr. Barrrow. Mas, frente aos últimos acontecimentos, será realmente a afronta a melhor forma de ação? O ouro, pelo que entendemos, foi obtido. A troca, se a Deusa quiser, será realizada amanhã e as garotinhas retornarão a este lar. Que mal fará em recebê-los esta noite?

— O mal? Eu lhe digo o mal! — o advogado exclamou, atirando o lenço contra a mesa. — Isso é um embuste. Tudo isso. E eu não vou tolerar ver a Sra. Griffiths ser enganada novamente.

— Sr. Barrow, eu...

— Por favor, minha senhora, me deixe cuidar disso — pediu Anderton, se virando para o advogado logo em seguida. — Você me considera um embuste, um trambiqueiro, é claro. Assim como meus colegas, imagino.

Barrow somente rosnou para os demais.

— Então, ajude a Sra. Griffiths.

— Como?

— Participe da sessão — sugeriu Anderton. — Veja tudo com os seus próprios olhos. Será mais fácil aconselhá-la se puder ver, em primeira mão, o que está acontecendo.

— Eu achei que você tivesse me banido — o advogado resmungou.

— Reconsidero a minha posição, se reconsiderar a sua.

— Me recuso a participar desta palhaçada.

— Então, não poderá contestar qualquer decisão minha — rosnou a Sra. Griffiths, olhando irritada para o advogado.

Ele a encarou por um momento, respirando profundamente. Com um suspiro, ele fez um aceno quase imperceptível. Anderton agradeceu com um gesto.

A sobremesa foi cancelada, para protesto da cozinheira, mas todos estavam excitados e preocupados demais para adoçar os lábios. Eles foram até a biblioteca e se acomodaram como na primeira noite, mas Barrow assumiu um lugar entre o Sr. Vanderbilt e Nakahara.

A sessão iniciou da mesma forma que duas noites atrás. Após apagar as luzes e acender o lampião em cima da mesa, Anderton entoou seu cântico e solicitou a presença dos espíritos, pedindo que todos dessem as mãos.

Houve uma longa pausa daquela vez, muito maior do que ocorrera na sessão anterior. E quando houve a resposta, ela surgiu de vários lugares da mesa. Batidas desconexas, ecoando de um lado a outro, desesperadas, frenéticas.

— Não soltem as mãos! Não soltem as mãos! — gritou Anderton, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Ahhhhh! A dor! A dor!

E as batidas continuavam. A mesa começou a balançar e o lampião rodopiou e quase caiu. Então, como tudo começou, as batidas cessaram e Anderton caiu para a frente, a cabeça batendo no tampo da mesa.

A Sra. Griffths gritou e tentou se levantar, mas Cashmere foi mais rápida.

— Não perca a conexão!

Ela voltou a se sentar, tremendo.

Houve um longo momento de espera e Anderton voltou a se levantar. Seus olhos pareciam translúcidos, iluminados parcamente pelo lampião.

— Uma casa... Não! Não, uma casa! Pedregulhos... Um lugar em ruínas.

— É onde estão as minhas queridas? Meus bebês? — perguntou a Sra. Griffths, com a voz chorosa.

— Não mais! Nunca ali, mas seus pensamentos estiveram conectados com este lugar. Não... Outro lugar. Outro tempo.

Ele balbuciou algo sem sentido antes de falar novamente, mirando o nada.

— A tempestade... A chuva inclemente... O espírito esteve lá. A cabana... Havia fogo. Camas. Uma cabana com cheiro de terra. Úmida. Fria.

— Meu Deus, minhas queridas! Minhas queridas! — a Sra. Griffths choramingava, cada vez mais assustada.

— O vento... Eu ouço o vento, eu sinto a sua força. Pregos, pedras... Nada segura o vento. Os gritos! O rugido da tempestade!

Sherlock segurou a mão de Cashmere com mais força, sentindo o impacto cada vez maior daquelas palavras.

Anderton começou a girar a cabeça enquanto gritava.

— Dor! Vento! Tempestade! Dor e mais dor! Tudo caiu! Tudo caiu! Não!!!! NNNÃÃÃOOO!

E o lampião se apagou. Todos gritaram ao mesmo tempo. Sherlock sentiu que alguém se precipitara até a parede. Logo, o gás foi restabelecido e a luz amarelada retornou lentamente.

Anderton jazia em sua cadeira, desmaiado. A Sra. Griffths debulhava-se em lágrimas, as mãos nas faces, enquanto Vanderbilt retornava até a mesa.

Sherlock respirava profundamente e foi somente depois que Cashmere o encarou foi que ele percebeu que continuava a segurar a mão da garota com firmeza.

Madame Mesmer e Vanderbilt foram acudir Anderton, levando-lhe um copo d’água. Ele suava muito e foi preciso um grande esforço para que voltasse a respirar normalmente. Depois de se certificar que sua respiração já voltara a bater de forma natural, ele se voltou para a Sra. Griffths.

— Minha senhora, minha senhora. O que ele lhe disse? O que houve?

— Você não se lembra? — perguntou o advogado.

Anderton apenas balançou a cabeça, parecendo preocupado.

— Às vezes... quando é algo forte demais... Eu não consigo me recordar. Apenas a escuridão domina a minha mente — ele disse, antes de se voltar para a Sra. Griffths novamente.

— O que houve, minha senhora?

Mas a Sra. Griffths não conseguia responder, chorando copiosamente. Madame Mesmer se aproximou de Anderton e sussurrou em seu ouvido algumas palavras. As faces do professor se transtornaram e lágrimas surgiram em seus olhos. Com muito cuidado, ele pegou a Sra. Griffths e a levou dali.

— Ela precisa descansar — disse ele, ao que ninguém contestou.

— E agora? — perguntou Madame Mesmer.

— Não há mais nada a fazer — ponderou Barrow. — Precisamos esperar até amanhã e proceder conforme fomos instruídos e rezar pelo melhor.

Todos concordaram com acenos rápidos e deixaram o local. Em uma lenta e melancólica procissão, subiram até o segundo andar e se recolheram aos próprios quartos.

Sherlock foi até a pequena penteadeira e tomou um grande gole d´água. Percebeu que seus dedos ainda tremiam. Ele largou o copo rapidamente quanto a porta se abriu, para deixar escapar Cashmere lá para dentro.

— E então?

— Ele é bom — admitiu Sherlock. — Anderton... Ele poderia fazer fortuna no teatro.

Cashmere abriu um sorriso maroto.

— Você também foi muito bem. Como se sentiu ao pregar uma peça pela primeira vez?

Sherlock retirou a longa faca que estava presa junto ao seu punho e a entregou para a garota.

— Confesso que senti medo em usá-la de forma desajeitada e pôr tudo a perder.

— Os membros da Sociedade Teosófica ficaram confusos — disse Cashmere. — Exatamente como imaginávamos. Eles não esperavam que houvessem tantas batidas. Bem, e agora?

— Vamos descer — falou Sherlock, pegando o seu grande capote de chuva. — E esperar.

Eles desceram com muito cuidado e deixaram a mansão momentos depois. A chuva continuava forte e, em pouco tempo, estavam completamente encharcados, mas não havia nada a ser feito em relação a isso. Sherlock conduziu Cashmere até a entrada do bosque. Não temiam o mastim, pois o caseiro havia sido instruído a deixá-lo preso. E da entrada do bosque, tinham uma visão geral de toda a construção. Se alguém saísse da mansão, eles o veriam.

A cobertura das árvores diminuía um pouco o impacto da chuva, mas o vento estava inclemente e, logo, os dois tremiam de frio. Da próxima vez, pensou Sherlock, traria um oleado. E um chapéu.

E foi preciso esperar muito tempo. Pouco a pouco, as últimas luzes da mansão foram apagadas. A última, como Sherlock imaginava, foi a da Sra. Griffths e, pouco depois, a do Prof. Anderton que deveria ter ficado com a pobre mulher até que ela adormecesse. Por um momento, sentiu remorso por tê-la enganado, mas era por uma boa causa. Afinal, não duvidava que ela faria qualquer coisa para recuperar as filhas.

Quase duas horas depois que as últimas luzes foram desligadas, Sherlock notou uma movimentação perto do terraço.

— Lá — ele sussurrou para Cashmere, que balançou a cabeça em concordância.

Uma figura com um grande casaco e capuz se afastava sorrateiramente da casa, após abrir e fechar a porta do terraço. Ela pareceu girar de um lado para o outro, como se estivesse procurando por alguma coisa.

— Está vendo se há alguém o observando — disse Cashmere em voz baixa. — Precisamos ter cuidado.

Sherlock concordou e eles esperaram. Um pouco depois, a figura se afastou da casa e tomou a direção do campo.

— Vamos lá — disse a garota e Sherlock a seguiu.

Não era fácil caminhar na grama molhada com o tornozelo machucado, mas o rapaz fez o melhor que pôde. Eles não poderiam perder a figura de negro de vista, mas também não podiam se aproximar demasiadamente. Era um jogo de gato e rato e, pela primeira vez desde que aquele caso iniciara, eles estavam na posição do caçador.

A pessoa, quem quer que seja, se afastou da mansão e desceu em direção a estrada que ligava a propriedade à pequena vila. Seguiu por este caminho até o muro e, depois, abandonou a estrada e manteve-se em uma trilha que seguia por um campo cultivado.

Sherlock só conseguia ver o vulto da pessoa a sua frente quando algum relâmpago cruzava os céus. Com a noite encoberta pelas nuvens carregadas, era muito difícil observar com cuidado qualquer coisa e, por mais de uma vez, acabou tropeçando em raízes enterradas ou buracos.

Eles seguiram por um bom tempo, se aproximando de uma mata fechada, que ficava perto de um vale. Cashmere apressou o passo para não perder o vulto de vistas e Sherlock precisou trincar os dentes para continuar. Seu tornozelo explodia em dor e cada passo era quase uma tortura. Mas ele precisava persistir. Era imperativo descobrir o que estava acontecendo.

A mata onde entravam era semelhante ao bosque de Cottingley, mas parecia estranhamente diferente, como se as árvores fossem mais retorcidas e próximas umas das outras. Ou talvez fosse apenas a sua imaginação, pensou Sherlock. Afinal, estivera no bosque em um belo dia de primavera e não perseguindo um criminoso potencialmente perigoso em uma noite tempestuosa. A percepção das pessoas sobre um lugar modificava-se de acordo com os seus objetivos? Esta era uma questão interessante para o debate e, talvez, explicava por que tantas pessoas acreditavam naqueles truques baratos das duas sessões espíritas em que participara.

Deixando aqueles pensamentos para outra hora, Sherlock seguiu Cashmere com cuidado. Mas, no meio da mata, era difícil não fazer barulho. Seus pés quebravam galhos e folhas e eles batiam toda a hora em pequenos ramos de folhagens que ele mal percebera. Felizmente, o barulho da chuva ocultava muita coisa, mas era preciso ter cuidado.

Cashmere o segurou pelo braço e Sherlock parou. Ele suspirou fundo para deixar a dor do tornozelo passar antes de olhar para onde a garota estava apontando. E como imaginavam, ali estava uma cabana, no meio da mata. Era um lugar miserável e que mal se sustentava em pé. Uma fumaça esbranquiçada partia de uma chaminé no alto e aberturas escurecidas estavam espalhadas por entre as paredes. E o vulto seguia diretamente em sua direção.

Eles se aproximaram ainda com mais cuidado depois que perceberam uma mão escapar do casaco e bater na porta. Houve um brilho espectral quando a porta foi aberta e o vulto desapareceu lá dentro, fechando a passagem atrás de si e mergulhando a mata na escuridão.

Sherlock e Cashmere se aproximaram com cuidado. Grossas cortinas cobriam as janelas e era impossível ver qualquer coisa lá dentro. No entanto, a velha cabana de caça fora construída de madeira e estava bastante apodrecida em muitos lugares. Os dois contornaram o local onde o vulto desaparecera dentro da construção e foram para a parede oposta. Tentaram ver alguma coisa pela única janela, mas ela parecia completamente fechada.

Cashmere puxou uma faca fina de dentro da bolsa, a mesma que usara para fazer os barulhos fantasmagóricos durante a última sessão. Com a ponta afiada, ela cutucou um nó que parecia particularmente desgastado. Não foi preciso muito para que um pequeno furo aparecesse.

— Elsie? Frances? — chamou ela, quase sussurrando.

Houve um pequeno barulho lá de dentro e então uma vozinha tímida apareceu.

— Quem é? São as fadas?

Cashmere olhou para Sherlock, que se permitiu respirar aliviado antes de sussurrar em seu ouvido.

— Elas ainda acreditam. Entre no jogo delas.

— Sim — disse Cashmere para dentro da parede. — A rainha quer saber como vocês estão.

— Estamos bem. Elsie está dormindo. Quando nós vamos embora? A guardiã diz que é amanhã à noite, mas estamos cansadas.

— Não se preocupe, querida. A rainha está rezando para vocês. Fiquem aí, bem quietinhas, que vai dar tudo certo.

— Quer que eu acorde a Frances?

Sherlock balançou a cabeça freneticamente e Cashmere fez um sinal

— Não, querida. Fiquem aí. A rainha vai vê-las mais tarde. Eu prometo.

— Que bom!

— Até mais, minha linda garotinha.

E os dois se afastaram.

— E agora?

— Você volta até a mansão — disse Sherlock. — Já sabe o que fazer. Eu fico aqui. Com este pé, só vou atrasá-la.

— Certo, só não faça nenhuma loucura.

Sherlock sorriu. Que poderia fazer, sem poder andar?

— Eu prometo.

A garota sorriu rapidamente e desapareceu mata a fora.

Sherlock se encostou perto de uma beirada da cabana e cruzou os braços para tentar espantar um pouco do frio. Agora, era só uma questão de esperar.

Mas, cerca de quinze minutos depois, a porta voltou a se abrir e Sherlock precisou quebrar a sua promessa.


Quando a porta se abriu, Sherlock levou um susto. Alguém estava saindo novamente. Ele se recostou contra a parede, tentando parecer invisível. Como estava na esquina entre a entrada e a parede lateral, era improvável que alguém o visse, mas, mesmo assim, o instinto o fez se recostar contra a parede.

— Não podemos nos arriscar — disse uma voz, que Sherlock reconheceu imediatamente e que confirmou suas suspeitas. — Se livrem das garotas. Amanhã, recolheremos nosso prêmio e partimos.

Houve apenas um grunhido de resposta e a porta se fechou.

O vulto começou se afastar enquanto Sherlock raciocinava de forma frenética. As garotas estavam em perigo. Mesmo sem querer, colocara as duas em perigo por causa de seu plano. Precisava salvá-las. Era imperativo que o fizesse. Nunca se perdoaria se algo acontecesse às duas irmãs.

Ele olhou para o vulto que se afastava e uma ideia lhe passou pela cabeça. Era algo insano e uma ideia particularmente ruim, mas não havia muito tempo para pensar num plano elaborado. Trincando os dentes para se livrar da dor, ele olhou para os lados até achar um velho cabo de uma enxada enferrujada que há muito havia desaparecido. Sentiu o peso do porrete improvisado nas mãos e voltou para o bosque.

Com cuidado, aproximou-se do vulto. Ele nunca tinha atacado alguém deliberadamente, muito menos pelas costas e a sensação que isso lhe causava não era boa. Mas, ao mesmo tempo, estava falando de alguém que planejara o sequestro de duas garotinhas usando um plano sórdido e, se não estivesse muito enganado, condenara a morte as duas meninas há poucos minutos. Não perderia muito tempo sentindo remorsos, pensou, antes de levantar o cabo e acertá-lo com toda a força na cabeça.

O vulto fez um Ugh! grave e o corpo caiu como um tronco que é ceifado por um lenhador. Não havia tempo a perder e, por isso, Sherlock se abaixou ao lado dele, aliviado por poder descansar rapidamente o tornozelo. Virou o vulto e não ficou feliz ao saber que estava certo.

Reconhecer a face do advogado Barrow não lhe trouxe nenhum sabor de vitória, como imaginara. Não agora, quando ele deixara suas ordens para os comparsas.

Com os modos bruscos e rápidos, arrancou o grande casaco do advogado e o deixou de lado. Então, retirou sua gravata e fez o melhor que pôde para amarrar os braços atrás do sujeito. Não tinha experiência para saber quanto tempo ele levaria para recuperar os sentidos, mas já tinha problemas o suficiente com o capanga ou capangas que precisaria lidar dentro da cabana. Sabia que um deles tinha que ser uma mulher — Elsie a chamara de Guardiã — e os resmungos que ouvira partiam, ele acreditava, de um homem. Um casal, talvez? Os donos da cabana de caça, provavelmente. Gente humilde e pobre, que caíra na conversa do advogado. A promessa de dinheiro e a chance de escapar de uma vida miserável.

Mas os dois aceitaram a ordem de maltratar as garotas. E eliminá-las.

Não, disse Sherlock para si mesmo, enquanto vestia o casaco e o capuz. Não teria pena de quem quer que seja. Não enquanto houvesse a vida de duas meninas inocentes em perigo.

Ele voltou até a cabana, imaginando o que faria em seguida. Seu plano imediato era bater na porta e fingir ser Barrow pelo tempo suficiente para atacar um dos meliantes de surpresa. O outro, ele precisaria enfrentar mano a mano. Se o bandido não estivesse armado, talvez tivesse uma chance. Se não tivesse se machucado, talvez tivesse uma chance maior. Mas não adiantava chorar pelo que não aconteceria. Precisava lidar com a realidade.

Ao se aproximar, notou novamente a chaminé onde escapava a fumaça da lareira. Aquilo lhe deu uma ideia. A cabana era pequena e estava completamente fechada por causa das garotas. Um pouco de caos não lhe soava uma má ideia.

Vasculhou o exterior da cabana até achar o que procurava. Eram estopas velhas e rotas, que deveriam ser utilizadas para carregar legumes, hortaliças ou cogumelos. Elas tinham cheiro de terra e estavam completamente úmidas pela chuva. Serviriam perfeitamente para o seu intento.

Havia uma pequena escada do lado de fora, o que era bastante comum nestas cabanas. Afinal, o telhado, uma estrutura de madeira e urzes, exigia constantes reparos. Sherlock colocou a escada delicadamente contra a parede e começou a subir. A madeira rangeu e o rapaz se movimentou ainda com mais cuidado. Não imaginava que ela fosse ceder ao seu peso, já que era magro o suficiente para não ter medo disso, mas temia que alguém ouvisse o barulho e fosse investigar. Com cuidado, ele subiu até o último degrau e arrastou-se pelo telhado por cerca de um metro, até alcançar a chaminé. Então, enfiou os pedaços de estopa nos buracos da estrutura de pedra, tapando-os imediatamente.

Voltou a descer e, segurando o antigo cabo de enxada atrás de si, esperou por alguns momentos.

Ele ouviu o som forte de uma tossida lá dentro, seguida de um xingamento que lhe deixou vermelho. E outra tossida e mais xingamentos. Sherlock chegou a imaginar que precisaria bater na porta quando ela se abriu num repelão.

Uma fumaça negra e densa escapou de dentro, com um cheiro horrível. Eles deveriam estar queimando urzes secas lá dentro, que produzem bastante calor, mas tem um odor nada agradável. Com a fumaça presa, o ar se tornou rapidamente irrespirável.

Um sujeito de mangas de camisa, suspensórios e pés descalços saiu porta a fora, esfregando os olhos vermelhos e tossindo um escarro amarelado e doentio. Um cheiro rançoso de cerveja escapulia de seu hálito e suas roupas.

— Barrow? — ele perguntou, piscando e tossindo.

Sherlock não poderia perder a oportunidade. Com um movimento rápido, ele girou o cabo e acertou a cabeça do homem, que se estatelou no chão. Então, passou por cima do corpo e avançou para dentro da cabana esfumaçada.

O calor ali dentro era opressivo, principalmente para quem ficara boa parte da madrugada no frio e na chuva. Sherlock tinha uma vaga ideia da arquitetura da casa pelo que vira de fora, mas era muito difícil ver qualquer coisa no meio daquela fumaça. Mas havia alguém lá dentro, tossindo muito e cuspindo.

Pela fraca luz de um lampião, Sherlock tentou se aproximar do vulto encoberto pela fumaça, mas a pessoa, fosse quem fosse, fora mais rápida. Irritada com a fumaça, ela puxou as cortinas e abriu a janela.

Uma lufada de vento fresco e revigorante entrou pela cabana, passando pela janela e escapulindo pela porta. A corrente de ar gelado espantou a fumaça e Sherlock viu nitidamente a sua oponente. Como esperado, era uma mulher. Como também esperava, ela vestia uma roupa desengonçada, branca e rosa, com brilhos e espelhos pendurados. A Guardiã.

O que não esperava era que ela percebesse imediatamente o seu engodo. Com um grito raivoso, ela atacou, as unhas procurando o rosto do rapaz.

Sherlock deu um passo para atrás, mas ela estava muito perto para poder usar o cabo com um porrete. Ele o levantou de forma instintiva, o que o salvou de ter os olhos perfurados pelas unhas da mulher, que arranharam seu rosto. Um filete de sangue escorreu embaixo do olho esquerdo do rapaz que ignorou a dor para tentar se proteger. Ele era mais alto que a mulher, mas ela parecia muito mais forte e o empurrou para trás. Sherlock tentou se livrar girando o cabo de um lado para o outro, mas o pouco espaço entre os dois impedia que os golpes fossem fortes o suficiente para causar algum dano.

Além disso, ela parecia entorpecida pelo álcool, assim como o homem que jazia lá fora. Sherlock já ouvira falar que pessoas que bebiam sentiam menos e que alguns usavam o uísque como uma forma de anestesia antes de operações. A ideia lhe pareceu repugnante na época, mas, agora, percebia que deveria ter algum sentido. Ou isso ou a mulher estava vestindo algum tipo de armadura embaixo das roupas, o que lhe parecia uma explicação extravagante demais.

Entre duas possibilidades, provavelmente a mais simples é a que faria mais sentido.

A mulher gritou novamente e o hálito agrediu os sentidos de Sherlock mais uma vez, que voltou a carga, tentando se livrar das unhadas dela. Então, ela fechou o punho, se afastou um passo e se preparou para golpeá-lo.

Ele conhecia aquilo. Fora o que tentara fazer com Cashmere na noite anterior. Então, fez exatamente o que a garota fizera com ele. Levantou o cabo acima do ombro e girou com toda a força até atingir o tornozelo da mulher. Um barulho seco e alto se seguiu e Sherlock levantou o cabo, mas não era o porrete que havia partido. A mulher soltou um urro de dor e caiu ao chão, segurando o pé quebrado.

Ele se afastou, deixando-a choramingando e foi até a única porta interna. A chave estava na fechadura e ele a abriu. Lá dentro, em um canto, chorando de medo e susto, estavam Elsie e Frances.

— Vamos, garotas. Acabou. Está tudo bem.

— Onde está a Guardiã?

Sherlock rosnou, mas achou que era melhor não tentar convencê-las do perigo que estavam correndo naquele momento.

— Ela precisou sair. A Rainha foi embora e pediu que eu viesse buscá-las. Vamos voltar para a casa.

Elsie gritou e Sherlock se assustou. Não imaginou que voltar para a mansão fosse algo tão horrível assim. Mas, então, notou que ela olhava por cima do seu ombro.

Ela não estava gritando com ele.


Sherlock agiu por puro instinto. Ele se abaixou e saltou para a frente, o que foi o suficiente para que o golpe apenas atingisse parte das suas costelas. Por um momento, perdeu a respiração enquanto caia ao chão, rolando até bater na parede oposta do quartinho. Mas não havia tempo a perder. Utilizando a cama como apoio, pôs-se em pé. A sua mão ainda estava no colchão, segurando o corpo, quando observou Barrow à sua frente. Um corte feio escorria sangue de sua cabeça, descendo por suas faces e manchando o terno caro. Ele trazia um pedaço de lenha nas mãos e tinha uma expressão assassina no rosto.

— Você! — grunhiu ele, com os olhos injetados de sangue e piscando sem parar. — Moleque desgraçado!

E ele atacou novamente e Sherlock fez a única coisa que lhe passou pela cabeça: puxou os lençóis da cama e atirou contra Barrow. O advogado tentou se desvencilhar do tecido comprido e acabou se enrolando. O golpe saiu fraco e sem direção e Sherlock conseguiu se desvencilhar dele, se atirando para o lado.

— Saiam daqui! Agora! — gritou para as meninas, que berraram e fugiram do quarto.

Aquilo trouxe um alívio temporário para o rapaz. Mesmo que não conseguisse se livrar da vingança de Barrow, pelo menos não levaria consigo as duas garotas para o túmulo.

Barrow arrancou o lençol para longe e olhou para a porta, onde as duas garotas corriam gritando para a liberdade.

— Acabou — disse Sherlock, tentando apelar para o lado racional do advogado.

Barrow apenas o encarou.

— Elas fugiram — ele continuou. — Cashmere deve estar chegando com reforços. Elas o viram. Sabem quem você é. Não vai conseguir escapar disso.

Barrow olhou longamente para a porta aberta, talvez pensando em sair correndo atrás das garotas, mas seria perda de tempo. Elas tinham uma boa vantagem e Sherlock provavelmente o deteria antes disso. Então, olhou para o pedaço de lenha em sua mão e voltou a encarar o garoto.

— Não vai adiantar nada me matar — disse, com o tom de voz mais calmo que pôde arranjar. — Você continuará a ser procurado.

— Sim. Mas já estou condenado. Fortes evidências de maldades contra crianças, é o que diz a lei. Uma condenação à forca para cada sequestro. Bem, acho que não podem me matar três vezes, não?

E ele atacou, forte e definitivamente, como um homem que não tinha nada a perder. Sherlock ergueu os braços e o longo casaco que roubara de Barrow o salvou. O tecido era duro e grosso e absorveu boa parte do impacto. Ele sentiu o antebraço arder, mas não poderia se dar o luxo de sofrer passivamente enquanto seu inimigo parecia querer destruí-lo.

Sherlock tentou acertar a barriga de Barrow com o joelho, mas o golpe saiu fraco e desajeitado. O advogado se livrou do pedaço de lenha e levou as mãos ao pescoço fino do rapaz.

— Eu vou morrer, moleque — ele sibilou, forçando o garoto para baixo. — Mas você vai primeiro.

Sherlock agarrou os dois braços de Barrow, tentando se livrar do aperto. Ele estava exausto pela longa noite, seu pé doía terrivelmente a os dedos em sua garganta pareciam dois torniquetes. Iria morrer ali, no meio de uma charneca, longe de casa e dos pais? Ondas de calor e dor subiam de seu peito até os seus olhos. Sentiu que a sua língua parecia escapar para a fora enquanto o pescoço era tracionado.

Então veio a escuridão. Sua mente a abraçou por um momento. Era como uma onda do mar, suave e cálida, que o livrava de toda a dor e desespero. Seus dedos fraquejaram. Seu pé parou de dor. Ele estava caindo... Caindo...

BAM!

Sua cabeça caiu no chão e ele sentiu a pancada. Subitamente, descobriu que não havia nada em seu pescoço e ele podia respirar. Inchou o peito, mas o ar entrou pela garganta machucada como se estivesse aspirando ácido. Quis gritar de dor, mas não tinha forças. Abriu os olhos.

Barrow estava ao seu lado, meio inconsciente, meio perplexo, fortemente seguro por dois homens. Uma era o caseiro e outro era o mordomo. Mesmo vestido para sair a noite, Sherlock notou que mantinha a elegância de um capote bem cortado e de um chapéu impecável. Mas havia uma máscara de raiva em seu rosto enquanto ele encarava o advogado.

Cashmere se ajoelhou ao seu lado.

— Respire devagar — ela disse. — Ou vai se afogar.

Ele aceitou o conselho, puxando o ar em pequenos golinhos, como se tivesse tomando uma sopa muito quente. Piscando para se livrar das lágrimas quentes, se virou de um lado para o outro. Havia muitos homens ali, e muitas mulheres também.

— Não foi difícil achar voluntários — resmungou a Sra. Macklin, se aproximando com sua roupa de viagem. — Quando disse que havia a chance de pegarmos os sequestradores das duas garotas, todos se ofereceram.

Sherlock se virou para trás e notou a cabana repleta de pessoas. Elas estavam ali, os olhos duros e as feições sérias. Alguns traziam ferramentas como armas. Ancinhos. Enxadas. Pás. Tinha reconhecido alguns. Motoristas. Valetes. Jardineiros. Cozinheiras. Copeiras. Estavam todos ali, sem exceção.

Uma nova lágrima escorreu dos olhos do garoto.


A segunda cacetada que Barrow levou no mesmo dia cobrou um preço alto do sequestrador. Ele perdeu os sentidos logo após a chegada do grupo de resgate e só foi acordar no outro dia. Sherlock agradeceu aquele tempo para se recuperar um pouco. A Sra. Macklin lhe arranjou uma sopa quente e o garoto tomou com cuidado, sentindo as forças retornarem pouco a pouco.

O que foi o suficiente para receber um abraço demorado da Sra. Griffths, que lhe encheu de agradecimentos. Constrangido, o garoto deixou ela com as filhas e foi para o quarto trocar de roupa antes de cair na cama. Dormiu até o amanhecer.

Barrow e seus dois comparsas foram mantidos em uma sala na ala dos empregados, incomunicáveis e vigiados constantemente por uma dezena de homens. Assim que amanheceu, o mordomo pegou a carruagem da família e foi até a polícia. Ele voltaria em poucas horas, mas, até lá, Sherlock queria tirar algumas dúvidas. Vestindo um velho roupão que a Sra. Griffths insistiu em lhe emprestar, o rapaz desceu até o porão, acompanhado de Cashmere.

Recebeu um cumprimento respeitoso de todos os homens. Percebeu que eles os viam com outros olhos. Na verdade, reconheceu a expressão reservada apenas para eles. Um adulto. Achou aquilo um tanto embaraçoso. Não fizera nada demais. Apenas agira como qualquer um deveria ter agido, não?

Barrow estava acordado. Ele levantou os olhos e voltou a abaixá-los assim que Sherlock se aproximou.

— Cashmere descobriu o seu saco de truques na cabana — disse Sherlock, tomando um gole da xícara de chá que a Sra. Macklin lhe trouxera agora a pouco. — Uma lanterna mágica, não é? Alimentada por uma pilha voltaica.

Barrow não disse nada, mas Sherlock percebeu que ele reconhecera os termos.

— Como realizou a projeção?

O advogado permaneceu em silêncio por um momento e Sherlock tencionou voltar a perguntar, mas um dos homens — o jardineiro, se não estava acostumado — se aproximou com uma foice nas mãos e rosnou.

— Responda a pergunta — ele disse.

Barrow piscou rapidamente para o homem e se virou para Sherlock. Ele limpou a garganta, antes de falar.

— Nas brumas.

— Estamos na primavera. Não há brumas — disse Sherlock. — Este foi um detalhe que me escapou ao ver as fotos

— Nós criávamos as brumas — disse Barrow, sorrindo para o rapaz, talvez feliz por que ele não tivesse descoberto tudo. — É uma coisa chamada nuvem de gelo. É um composto químico inventado por um francês. É usado no teatro.

Sherlock assentiu. Fazia sentido, já que o teatro era onde as lanternas mágicas eram mais usadas. Principalmente nas apresentações de Phantasmagoria. Barrow, obviamente, conhecia o termo. [9]

— Sim, vi um espetáculo em Londres há muitos meses. Foi de onde tirei a ideia.

— Por que as fadas?

— Por que não poderia me comunicar com os espíritos, não é? — respondeu Barrow, de forma desdenhosa. — Esta era a área daquele charlatão do Anderton e os outros imbecis que nem ele. Eu precisava de algo diferente. Quando vi o espetáculo, resolvi pesquisar a biblioteca da Sra. Griffths. Ela tinha uma sessão inteira sobre as fadas. Era óbvio que se interessaria pelo assunto.

— O que lhe deu a ideia — comentou Sherlock, mais para si do que para os demais. — E você escondeu o projetor no meio das folhagens e usou o cano para falar com as garotas.

— Precisava tirá-las da casa sem levantar suspeitas — ele continuou. — Para isso, o melhor é que elas viessem de forma voluntária. Precisava conseguir a confiança delas.

— E as fotos?

— As fadas convenceram as garotas a roubar a máquina de fotografia. Precisávamos convencer a mãe delas que as fadas existiam. Mas as duas estupidazinhas mostraram as fotos para todo mundo... AI!

O jardineiro acertara uma cacetada com a base da mão na cabeça de Barrow. E era uma mão bem grande. Sherlock não poderia dizer que concordava que pessoas amarradas fossem machucadas, mas não poderia dizer que ficara absolutamente perplexo com a atitude do homem.

— Eu queria convencer a Sra. Griffths da existência das fadas e não fazer disso um problema nacional — continuou ele. — Os artigos dos jornais tornaram tudo mais difícil e fabuloso. A Sra. Griffths resolveu chamar Anderton e os outros imbecis. Felizmente, eles inventaram toda aquela papagaiada para que a Sra. Griffths retomasse a atenção para os espíritos e esquecessem as fadas. Percebi que era chegada a hora.

— Sim. Mesmo com a casa cheia, era o momento ideal. Você usou outro cano para convencer as garotas a sair de casa. E aí?

— Nós a sedamos com clorofórmio assim que saíram e as levamos para a cabana — continuou ele. — Eu voltei e fechei a porta por dentro. A ideia era mantê-las lá até que o resgate fosse pago.

— Por que ouro?

Barrow balançou a cabeça.

— Fadas não usariam dinheiro. E a Sra. Griffths é uma tapada, mas não tão tapada assim. Ela poderia desconfiar.

— Mas por que tudo isso? Para que toda essa encenação? Por que não simplesmente sequestrá-las?

Barrow o encarou.

— Por que passaríamos o resto de nossas vidas nos escondendo — ele respondeu. — Sequestro é algo sério. Se convencêssemos que o sequestro fora obra das fadas, a Sra. Griffths nunca levaria o caso à polícia.

— Mas você protestou dessa decisão!

— Fiz bem o meu papel, não? — ele disse, sorrindo. — Se aceitasse tudo placidamente, alguém poderia desconfiar. E era óbvio que a Sra. Griffths iria me impedir. Depois disso, foi só uma questão de conseguir o ouro.

— Entendo.

— Mas agora é a minha vez — rosnou ele, mencionando se levantar. O jardineiro foi mais rápido e colocou a sua grande mão no ombro de Barrow, forçando-o para baixo novamente. — Como ele sabia?

Sherlock o encarou por um momento, então a compreensão o atingiu.

— Anderton?

— Sim. A casa não foi destruída pela tempestade, mas ficou bem abalada. Como o desgraçado sabia?

Sherlock sorriu.

— Ele não sabia. Eu o instruí.

Barrow engoliu o espanto.

— Como? Você já sabia de tudo?

— Não, mas era óbvio, não? O plano demorara bastante tempo. O cano. As aparições. Era necessário ter um lugar perto para servir como base de operações. Não poderia ser uma casa na vila, é claro. A movimentação levantaria suspeitas. Então, a escolha óbvia era uma casa no meio do mato. Um antigo barracão. Uma cabana de caça. Não havia como saber. Mas dei a ideia geral para Anderton e o resto ele fez sozinho.

— Mas ele deu detalhes da casa!

Sherlock olhou para Cashmere e sorriu.

— Você os criou na sua cabeça enquanto ele falava. Ele descreveu uma casa genérica e você colocou os detalhes em cada lugar. É isso que os médiuns fazem. E você caiu no truque deles, exatamente como a Sra. Griffths.

Barrow cuspiu para o lado.

— Desgraçados! Todos eles! Ela gastava uma verdadeira fortuna com este charlatões! Todos os meses, centenas de libras eram desperdiçadas com estes farsantes.

Sherlock não discordou. Anderton e a tal Sociedade Teosófica Espírita não eram inocentes naquele caso todo. Mas isso não permitia que Barrow roubasse impunemente a Sra. Griffths.

Barrow continuou sua série de imprecações, mas não havia mais nada para ele ali. Sherlock terminou sua xícara de chá e saiu, ele e Cashmere subindo até a sala de recepção. A chuva parara, os pássaros cantavam lá fora, mas ele estava destruído fisicamente. Seu pé ainda doía e sua garganta parecia que nunca voltaria a ser como antes. Então, a porta se abriu e as duas garotinhas passaram correndo como o vento, acompanhadas pela enfermeira e pela Sra. Griffths. Ela ainda usava os mesmo vestidos esvoaçantes, mas a coroa de fadas sumira.

Ela sorriu e Sherlock foi até o terraço pegar um pouco de sol.


Naquela tarde, Sherlock resolveu descansar o corpo e o espírito com um livro na biblioteca e acabou encontrando a Sra. Griffths, que remexia na mala que o advogado Barrow trouxera. E, surpreendentemente, ela parecia separar parte do ouro.

— Sra. Griffths?

Ela soltou um gritinho de susto e agarrou o próprio peito, acalmando a respiração antes de falar.

— Meu caro Sherlock. Me desculpe por um momento. Só preciso... preciso resolver uma coisa.

A quantidade que ela retirava da mala era substancial e Sherlock se aproximou ao notar que a Sra. Griffths parecia abatida e preocupada.

— Sra. Griffths? Está tudo bem? As suas filhas...

— Estão ótimas! — ela disse, com a voz esganiçada. — Elas mal sabem o que aconteceu e pretendo deixar tudo assim. A polícia vai cuidar de tudo, é claro. Barrow confessou e não vai ser preciso importunar as minhas garotinhas. Com o tempo, elas vão achar que tudo não passou de um sonho.

Um pesadelo seria um termo mais adequado, pensou o rapaz, sem verbalizar o que achava. De todo o modo, Sherlock já conhecia bem o estado avoado da Sra. Griffths e insistiu.

— Para quem é este ouro, Sra. Griffths?

— Apenas... para a minha paz de espírito — ela disse.

Sua voz parecia calma, mas ela tremia sem parar.

— Sra. Griffths. Alguém está chantageando a senhora?

Ela tremeu ainda mais e se sentou em uma cadeira com sofreguidão.

— Sim, meu rapaz, sim — admitiu. — Mas, desta vez, não há nada que você possa fazer. Veja, não é um crápula horrível como Barrow, que o diabo o leve. São os espíritos!

— Os espíritos? — repetiu Sherlock, espantado.

— Eles estão com raiva de mim porque eu dei ouvidos a estes absurdos das fadas. E estão ameaçando contar um... algo que eu não quero que as pessoas saibam. Algo perfeitamente natural, mas que é mal visto por pessoas mesquinhas.

Sherlock achou que tinha conquistado a confiança da Sra. Griffths para falar de forma clara.

— A sua internação em um hospício? [10]

As faces da Sra. Griffths adquiriram um perigoso tom esbranquiçado.

— Como... como você sabe?

— Eu ouvi, sem querer. Quando a senhora e Barrow conversavam outro dia.

— Alguém mais ouviu? — ela perguntou, alarmada.

— Não. Quero dizer, sim, mas não há nenhum perigo que a história se espalhe. Ele não sabe...

Uma ideia atingiu a mente de Sherlock.

— Quem está pedindo dinheiro para a senhora? — ele perguntou.

— Foi a Madame Mesmer que recebeu o recado do além. Ela diz que pode tentar expulsar o espírito para longe daqui, mas isso vai lhe custar muito tempo e recursos.

Sherlock a encarou por um tempo, as ideias se conectando rapidamente em sua cabeça. Então, se lembrou da história que a Sra. Macklin lhe contou e uma ideia luminosa surgiu em sua mente. Ele pegou a Sra. Griffths pela mão.

— Venha comigo, minha senhora. Eu tive uma ideia.

Os dois deixaram a biblioteca e foram até a sala de recepção, mas não havia ninguém lá. Pelas janelas, Sherlock viu uma movimentação no terraço e liderou a Sra. Griffths até lá fora.

Os três membros da Sociedade Teosófica Espiritual estavam sentados nas cadeiras, aproveitando o dia de sol entre refrescos e quitutes. Cashmere estava ali, os olhos atrás de um livro.

Sherlock se aproximou e os cumprimentou, pegou um sanduíche de forma casual e se virou. Então, falou, com a voz sem emoção.

— Sr. Nakahara, que bicho horrível é este em seu ombro?

O japonês deu um salto da cadeira, espanando seus ombros com as mãos, até perceber que não havia nada lá. Ele se virou para Sherlock, que sorriu.

— Então, aparentemente, o senhor fala inglês, não é?

Nakahara engoliu em seco e Madame Mesmer e o primeiro-secretário, Vanderbilt, também se levantaram, assustados.

— Foi ele que estava comigo no escritório do seu marido, Sra. Griffths — Sherlock continuou, se virando para ela, que observava os três com um olhar gelado. — E ele também foi testemunha da conversa.

Não houve escândalo e nem gritos. Eles estavam acabados e sabiam disso. Ajeitando o vestido, Madame Mesmer liderou os três até seus quartos e a Sra. Griffths agradeceu Sherlock e foi providenciar para que o mordomo arrumasse uma forma de levá-los embora. A menção a uma charrete de feno o fez sorrir.

— O que foi isso? — perguntou Cashmere.

— Acho que vocês se livraram de toda a concorrência — comentou Sherlock.

Ela deu de ombros.

— Não tenho muita certeza de que isso vá ajudar. A Sra. Griffths parece bem menos perceptível ao chamado dos espíritos.

— Pode culpá-la?

Cashmere soltou a respiração.

— Não. Acho que não.

Os dois ficaram em silêncio por um minuto.

— O que pretende fazer? — ela perguntou.

— Vou voltar para a escola — respondeu Sherlock. — Os feriados terminam depois de amanhã. E você?

— Ficarei com o professor. Ele me deu uma casa e um emprego quando ninguém mais olhava por mim. Tenho uma vida digna por causa dele.

Sherlock assentiu devagar. Abusar da fé alheia não era algo que considerava correto, mas, afinal, tudo o que as pessoas que procuravam médiuns buscavam era um pouco de conforto. Não era muito diferente de buscar a palavra de um padre e ambos pediam doações.

Cashmere se levantou.

— Você me fez ficar. Se tivesse partido, teria perdido tudo o que já conquistei até agora. Por isso, obrigado.

E ela deu-lhe um beijo em suas faces e seguiu para dentro da mansão.

Sherlock encarou o vestido esvoaçante desaparecer pela porta, o coração acelerado e a palma das mãos subitamente úmidas.

Ele permaneceu lá fora por um bom tempo ainda.

 

 

                                                   A Zavarelli         

 

 

 

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