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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CUBA LIBRE / Régine Deforges
CUBA LIBRE / Régine Deforges

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Este crime,por todos os lugares onde vou, eu o denuncío. Cuba é maior Cuba sópertence a Cuba. Cuba luta surpreendida, orgulhosa e sangrenta contra todas as ferocidades da opressão. Ela vencerá? SIM.
José Martí

Condenem-me, pouco me importa; a História me absolverá.
Fidel Castro

É preciso endurecer mas sem perder a ternura jamais.
Este tipo de luta nos dá a oportunidade de nos tornarmos revolucionários e de alcançar o grau mais alto da espécie humana, mas também nos permite nos tornarmos homens; que aqueles que não se sintam capazes de atingir estas duas etapas, que o digam agora e abandonem a guerrilha.
Ernesto Che Guevara.

Cuba precisa de uma grande lição e é preciso dá-la, logo correrá o sangue em todas as esferas, os velhos rangem, ajuventude se prepara para lutar os falsos líderes levantam suas próprias execuções; dia após dia, tombam nas ruas aqueles que preferem morrer na dignidade, que recusam oprotocolo, homens que se suicidam nos ataques revolucionários...
Camilo Cienfuegos

 

 

Capítulo Um

LÉA NÃO AGÜENTAVA MAIS AS CONVERSAS a respeito da guerra na Argélia, retomadas
em todas as refeições por seu marido e seu cunhado. Ela temia ver François engajar-se mais uma
vez em uma batalha que ela julgava perdida, como no conflito da Indochina, do qual eles retornaram
amargos e feridos.
- Você não irá à Argélia!... Jamais!
Léa levantou-se tão bruscamente que derrubou seu copo. O vinho
se espalhou sobre a toalha.
- Você é desastrada! - exclama sua irmã Françoise, limpando o líquido com um guardanapo.
François sorri diante da violência de sua mulher. A perda do controle a deixava mais atraente, e,
nesses momentos, ele reencontrava a adolescente selvagem pela qual havia se apaixonado à
primeira vista. O sofrimento não tinha conseguido abalar o seu fantástico prazer pela vida.
- Se você quer ver coisas exóticas vamos a qualquer lugar... A países onde as pessoas não se
massacrem, à África negra, às ilhas
do Caribe. Há muito tempo desejo ir à Martinica, onde mamãe
nasceu, ou a Cuba. Ela adorava Cuba... Ah, sim, vamos a Cuba! Você se lembra, François, de como
ela nos falou de sua viagem de núpcias em Havana, os bailes, as corridas em grandes carros
americanos no Malecón, dos músicos nas esquinas, gordas negras dançando a rumba...?
- Seja realista, minha querida irmã, tudo isso deve ter mudado. Em vez de pensar em viajar
atualmente, você poderia refletir na proposta que Alain e eu lhe fizemos.
O olhar doloroso de Léa deveria tê-la feito parar.
- Enquanto você passeava na Indochina, nós, sozinhos, fizemos frutificar Montillac...
- Não falemos disso diante das crianças! - interrompeu Alain.
- Ao contrário, vamos falar... Quem cuidou de seus filhos durante todos esses anos?
François se levantou e se aproximou de Léa, envolvendo-a em seus braços.
- Nunca conseguiremos agradecer o bastante a você e aAlain por terem tomado conta deles. No
entanto, você esquece, querida Françoise, que Léa contribuiu financeiramente em proporções não
negligenciáveis para a exploração da área. Mas isso não é importante...
- Não tem importância? - irritou-se Françoise. -Vê-se bem que vocês têm dinheiro fácil e que não é
trabalhando, como Alain, dez horas por dia, que o ganharam! Depois da guerra, nós não tínhamos
mais do que esta pobre terra, estávamos arruinados e sem o trabalho obstinado de meu marido...
- Eu te peço, minha querida, pense naqueles que apoiaram. Nós trabalhamos muito, é verdade, mas
graças a Léa e François pudemos trazer a Montillac seu esplendor de antes. Nós somos
inteiramente devedores deles e eu compreendo muito bem que Léa não pretenda vender o que
pertence a ela tanto quanto a você.
- A terra deveria pertencer a quem a cultiva...
- Minha querida cunhada, eu não sabia que você era revolucionária a este ponto - ironizou François.
- Deboche, isso é mais cômodo para você, vocês praticamente não vivem aqui
- E vocês nunca se perguntaram a razão? - questionou cautelosamente François.
Françoise ergueu os ombros.
- No nosso retorno da Indochina, vocês logo nos fizeram perceber o quanto não éramos bem-vindos.
Agüentei firme por algum tempo, por Léa. Imaginei que tudo se arranjaria. Os negócios
prosperavam, as crianças se entendiam bem, não havia problemas reais. O que aconteceu? Você
conhece o apego de sua irmã por Montillac, é seu lugar de ancoragem assim como o seu, onde ela
recupera suas forças...
- Deixe, François - interrompeu-o Léa.
Ela tomou a mão dele e o levou à sala de jantar.
- Por favor, Charles, cuide dos meninos... Nós vamos dar uma volta.
Estávamos no mês de abril de 1956. O inverno, muito rigoroso naquele ano, ainda não havia dado
lugar à primavera. Um sol tímido mal conseguia aquecer a natureza congelada. As jovens folhas das
árvores se dobravam friorentas sobrê elas mesmas. Instintivamente, envolvidos pelo quente
manteau, Léa e François caminhavam apassos largos em direção ao calvário de Verdelais. Desde
sua primeira infância era nesse local que a filha de Pierre Delmas se refugiava quando estava com
raiva ou transbordando de tristeza. Eles caminhavam em silêncio através dos vinhedos. Chegando
diante da pequena casa de Bellevue, Léa lançou um olhar desamparado à sua volta. As lembranças
dolorosas se encontraram, misturadas àquelas de sua infância selvagem; seu corpo teve um ímpeto
brutal como que para escapar de seu domínio. Fugir, ela queria fugir! Um soluço a sacode, seu
passo acelera-se; François tem dificuldade em acompanhá-la. Sem fôlego, ele pára para acender um
cigarro, observando a silhueta elegante afastar-se, furioso por não saber amenizar seu sofrimento.
Quando ele a reencontrou, ela estava sentada sobre os degraus
do calvário, as lágrimas correndo pelas faces. Emocionado, ele a tomou nos braços e a acalentou como a uma
criança. Pouco a pouco ela se acalmou.
- Você não vai para a Argélia? - perguntou ela com voz tímida.
- Não penso nisso, estou muito velho.
- Sim, você é muito velho! Muito velho! - gritou ela, explodindo em soluços.
Espantado com tanta tristeza, ele a apertou contra si. Quando enfim ela encontraria a paz?...
Ele a reviu na margem do rio Vermelho, tão franzina em seu vestido branco, segurando em seu peito uma
criança que não era sua, ao mesmo tempo tão frágil e tão forte, observando-o chegar perto dela com uma tal
admiração, uma tamanha felicidade, uma tal confiança no amor de ambos, apesar de todos os horrores vividos
e deste bebê com os olhos revirados. Eles se olharam longamente sem se tocarem, a criança entre eles. Rude,
Samuel Irving, o piloto louco de Dien Bien Phu, o havia tomado pela manga de sua camisa nova, presente dos
viets, e o guiado na direção do jipe, afastando sem respeito as meninas que lhes estendiam flores ou agitavam
pequenas bandeiras vietnamitas. Os bo dou, encarregados de escoltar os prisioneiros libertados, eram
solicitados pelo piloto para que fossem plantar batatas...
No dia 31 de agosto de 1954, Jean Sainteny voltara a Hanói a pedido do presidente do Conselho, Pierre
Mendès France. Ele usara toda a autoridade do novo delegado geral do governo da República francesa junto à
República democrática do Vietnã para que os médicos militares do hospital Lanessan permitissem que Léa
permanecesse junto ao marido. Sainteny não tinha conseguido esconder sua emoção ao rever Tavernier. Ele
sentia-se responsável por tê-lo enviado à atormentada Indochina.A presença de Castries, Langlais, Bigeard,
Lalande e de tantos outros em observação no hospital desde sua liberação, eles também sobreviventes da
depressão de Dien Bien Phu, não suscitava nele um mal-estar igual: aqueles eram profissionais da guerra.
Quando o delegado geral foi assegurado de que Tavernier e sua mulher estavam bem instalados, ele exigiu que
fosse adiado o interrogatório do sobrevivente. A pedido de François, ele deu ordens para que se procurasse o
tenente Thévenet e o suboficial que haviam sido tomados como prisioneiros na mesma época que ele.
Graças a Philippe Müller, Léa conseguiu uma jovem vietnamita para ficar com sua filha.Apobre mulher, amiga
da família do mestiço, havia perdido seu bebê, morto a tiros em seus braços, durante os últimos combates. Ela
parecia renascer com a criança no colo. A nova assam2 teve um gesto singular: escorregou o bico de seu
seio seco entre os pequenos lábios, que começaram a mamar gulosamente. E logo correu leite pelo queixo do
bebê, sob os olhares extasiados da babá; um pacto havia sido selado. Tranqüilizada, Léa pôde se dedicar a
François que, muito debilitado, fora acometido por febre alta. Em seu delírio, ele chamava por Léa, lutando para
protegê-la contra inimigos imaginários. Perturbada, ela lhe secava docemente o rosto e o peito magro molhados
de suor. Ao fim de uma semana, a febre cedeu, deixando-o sem forças. Quando ele abriu os olhos e a viu,
acreditando estar sendo vítima de uma miragem, logo os fechou novamente. Ele só voltou a abri-los quando
sentiu os lábios frescos percorrendo seu rosto barbado e atormentado. Quis levantar-se, mas a grande
fraqueza o impediu.
- Não se mexa, meu amor. Tudo ficará bem, estamos juntos novamente.
Léa sentia necessidade de uma conversa franca a respeito da criança. A cada manhã, quando acordava,
prometia a si mesma falar com François, e procurava o momento oportuno que lhe permitisse
contar o que havia se passado, o que ela enfrentara para reencontrálo. As condições instáveis da
saúde de François a deixavam insegura:
ora ele estava muito feliz em vê-la, ora, em seguida, pedia que o deixasse sozinho. Ela via a cólera
dele, adivinhava o seu sofrimento e se cobrava por não encontrar a coragem de simplesmente
contar- lhe a verdade.
Uma noite, estendidos lado a lado sobre a cama estreita, os nervos tensos, eles permaneceram com
os olhos abertos, acalentados pelas hélices do ventilador que movimentavam o ar sobre suas
cabeças.
- Eu lhe peço, fale comigo, diga qualquer coisa - murmurou Léa.
Nada indicava que ele a ouvira.
- Fale comigo - disse ela novamente, mais alto.
Nunca ela havia sentido tão vividamente quanto naquele momento a hostilidade de um corpo. Não
era o corpo de uma pessoa qualquer, mas sim do homem que ela amava. As lembranças de alguns
encontros, anos antes, sobre a ponte Paul-Doumer, acrescentavam- se à sua angústia. Onde estava
o homem que a havia amado com frenesi, recuperando dia e noite o tempo perdido? Eles eram
insaciáveis um para o outro. Hoje encontravam-se como se em barricadas dentro de si mesmos; dir-
se-ia que tinham medo. No entanto, nada neles prenunciava esse marasmo. Léa levantou-se e
contemplou a forma sombria que não se mexia. "Eu vou morrer se ele não me amar mais", pensou.
Docemente, deitou-se sobre ele. Ele ficou tenso, mas não a afastou. Pouco a pouco, sob seus beijos,
suas carícias, ele relaxou. Quando ela o sentiu excitado, as palavras vieram naturalmente para
exprimir-lhe sua felicidade por tê-lo reencontrado. Na escuridão, ela arrancou suas roupas e,
cavalgando-o, afundou- se nele. Juntos deram um só grito: seus corpos se reconheceram. Com a
boca colada à orelha dela, ele a insultou com palavras sujas que traíam seu desespero. Ela deixou
que ele as dissesse, reencontrando em suas injúrias um suplemento de prazer.
Nos dias que se seguiram eles redescobriram-se, conheceram- se de novo. François levava na carne
a marca dos sofrimentos
enfrentados. Os de Léa, gravados na mente, seriam mais difíceis de sarar.
Reinava a maior desordem na capital de Tonkin: populações católicas em fuga para o sul, saques em
uma cidade abandonada por seus comerciantes, vigilância constrangedora das lojas e dos
entrepostos, prisões de ladrões, grupos errantes de crianças mestiças abandonadas e que os
religiosos responsáveis pelos órfãos tentavam reunir, comércio até nas calçadas dos pobres
pertences daqueles que se aprontavam para fugir do Viêt-minh e que os carniceiros que rondam
todas as derrocadas compravam a preços humilhantes... Tudo aquilo se desenrolava diante dos
olhos e do conhecimento dos representantes estrangeiros - canadenses, indianos, poloneses - da
Comissão Internacional de Controle criada seguindo os acordos de Genebra, assinados em 21 de
julho de 1954.
Ao fim de três semanas, o estado de François lhes permitiu se transferirem para uma casa
confortável, cedida pela família de Philippe Müller, onde já se encontravam a pequena Claire e sua
babá. Foi nesta casa que o general Salan, adjunto do general Ely, comissário geral e comandante-
em-chefe, tinha ido receber notícias. Os dois homens não haviam mais se visto desde que o general
havia lhe dado a autorização de partir para a região de Chieng, à procura de Léa.
- Fiz bem em me preocupar com sua aventura - disse Salan, apertando-lhe a mão.
- Tenho uma dívida com o senhor, meu general, jamais a esquecerei.
- Deixemos isso de lado. Soube que você esteve bem no combate a Dien Bien Phu. Nada o obrigava
a isso.
François levantou os ombros com um olhar em direção a Léa.
- Você fez parte do comboio 42. Soube por seus companheiros sobreviventes o que você suportou...
Mas enfim, está vivo. Tive grande dificuldade para obter do general Tan Tien Dung, chefe da
delegação do exército popular, que todos os prisioneiros nos fossem devolvidos.
Tive de ameaçá-lo de
pedir a Mendès France que denunciasse os acordos de Genebra. Mas as perdas são grandes: dos
14.590 prisioneiros ou desaparecidos, encontramos apenas 8.516 homens. Mas foram os nossos
soldados vietnamitas que pagaram o tributo mais alto: menos de dez por cento nos foram
devolvidos... Devo deixar vocês, Tavernier. Antes de deixar para sempre esta terra que eu amo, e à
qual cheguei pela primeira vez em 1924, cabem- me tarefas bem penosas... Como fechar nossos
cemitérios, o de "la Conquête", por exemplo, e aquele onde repousam nossos soldados mortos.
Quero que o general Ely encontre tudo em ordem depois de minha partida. Adeus. Há poucas
chances para mim de que nossos caminhos voltem a se cruzar.
- Quem sabe, meu general? - disse François levantando-se.
- Minhas homenagens, madame.
- Até um dia, general.
Na manhã do dia 9 de outubro, Léa saiu de casa em direção à rua dos Pavilhões, no quarteirão
chinês, para tentar colocar um pouco de ordem em seus pensamentos. O tempo estava ligeiramente
encoberto, as ruas se achavam vazias de seus pequenos comerciantes habituais e de sua clientela.
Não havia velhas mulheres com dentes laqueados, agachadas diante de seus fogareiros portáteis, ou
fumantes sentados em seus calcanhares, mendigos arrastando-se pelas calçadas quebradas à espera
de um improvável gesto piedoso, ou bandos de crianças gritando, nem jovens arrumadas, nem
mesmo cachorros vira-latas fuçando as imundícies. Não havia nada, nenhum ruído, nenhum ser vivo.
Perdida em suas reflexões sombrias, Léa sequer notou este novo estado de coisas e dirigiu-se ao
quarteirão Clemenceau. Ao longo do rio Vermelho estavam estacionados caminhões militares dentro
dos quais estavam sentados, de cabeça
baixa, soldados. Logo, o barulho de uma coluna de tanques encheu o ar: a retirada das tropas
francesas havia começado. Imóvel, o coração apertado, Léa ficou olhando o comboio dirigir-se para
a ponte PaulDoumer. Avelha ponte de ferro tremia em toda a sua extensa carcaça enferrujada.
Vindo da Citadela, pela rua de Graines, uma interminável fileira de metralhadoras automáticas
esperava sua vez. Na entrada da ponte estavam os oficiais franceses e vietnamitas. Os rostos
estavam tensos, os gestos raros. Entre eles, alguns jornalistas e fotógrafos tentavam sem alegria
cumprir sua função. Tudo se desenrolava calmamente, com uma disciplina perfeita, sem qualquer
outro barulho que não o dos motores, em uma espécie de monotonia acinzentada, como se todas as
cores tivessem sido engomadas. Nenhuma bandeira agitava-se, nenhuma bandeirola. Léa sentou- se
sobre a pedra de entrada de uma casa em ruínas. Com os braços em torno das pernas dobradas, ela
esperou, balançando-se de vez em quando para frente e para trás, até a partida do capitão Salanié e
do coronel d'Argencé, que depois de uma última saudação ao oficial viêt-minh afastou-se a pé,
apoiado em sua bengala. O velho soldado, o rosto banhado em lágrimas, tentava retardar o momento
de sua ruptura com aquele país que ele havia aprendido a amar.
Ouviu-se, então, um rumor que se elevava pela cidade, logo surgiu de todas as partes uma multidão
brandindo flores, retratos de Ho Chi Minh, milhares de bandeiras escarlates marcadas com uma
estrela amarela.A maré vermelha submergiu acinzenta. O presidente da PDVN, Ho Chi Minh, podia
entrar em sua capital. O que ele fez no dia seguinte, precedido pela divisão 308 que havia cercado
Dien Bien Phu.
Pouco antes de partirem de Hanói, Léa e François foram convidados, em companhia de Jean
Sainteny, para uma recepção no Gougal, antigo palácio do governo geral, pelo novo chefe do estado
vietnamita. Foram recebidos calorosamente por Ho Chi Minh, que abraçou Léa, os olhos úmidos.
- Estou muito feliz que tenha encontrado seu marido, você teve mais sorte do que muitas mulheres
vietnamitas. Você continuou a praticar o viet vo dao ? Você era muito talentosa.
- Não tenho tido lazer, senhor presidente.
- Que pena- acrescentou ele, virando-se para saudar François.
- Você tem uma mulher excepcional, senhor Tavernier, eu o cumprimento. Quais são as intenções de
vocês? Vão permanecer noVietnã? Continuar os negócios? São bem-vindos. "Nós combatemos
lealmente durante oito anos, tudo isso está terminado agora. Podemos trabalhar juntos com a mesma
lealdade, mas, desta vez, pelo bem de nossos povos e para o benefício comum."*
- Não tinha pensado em permanecer, senhor presidente. Temos desejo de encontrar nossos filhos.
Ainda vamos ver.
- "Nós temos muito a fazer e não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. O que desejamos é que
vocês se encarreguem, vocês, os franceses, de manter a atividade econômica deste país. Para isso,
precisamos de suas empresas e desejamos que elas permaneçam."
- Ainda é preciso inspirar-lhes confiança- disse Jean Sainteny, que havia escutado a conversa.
- Nós nos esforçaremos para isto - respondeu Ho Chi Minh.
Ele afastou-se para receber o embaixador da União Soviética, M. Lavritchev.
O velho combatente havia mudado: "Seus ombros estavam arredondados, a barba e o cabelo haviam
ficado grisalhos e, por contraste, sua pele parecia mais amarela e mais polida, como um velho
mármore. Se o corpo havia guardado sua magreza juvenil, o rosto estava mais cheio. Ele havia até
mesmo ganho traços de boneco, adquirindo assim a benignidade que convinha ao personagem do 'tio
bonzinho' . O que não havia mudado era o fogo e a mobilidade de seu olhar e, no comportamento, a
inigualável mistura de reserva e vivacidade".
Pham Van Dong, agora vice-primeiro-ministro e ministro dos assuntos estrangeiros, veio por sua vez
saudá-los, vestido com um rígido uniforme cinza que sublinhava sua silhueta elegante. Em seu belo
rosto ascético brilhava o mesmo olhar ardoroso e profundo. De seus lábios grossos escapava ainda
aquele riso desconcertante, que surpreendia sempre.
Dois dias depois, Léa e François embarcaram para Haiphong a bordo do Pasteur. A travessia da
baía de Halong foi, para Léa, um suplício; em cada jangada ela acreditava ter visto Kien. O
fantasma da boa mestiça a perseguia até mesmo em sua cabina, todas as vezes em que tomava a
filha nos braços. Philomène - era o nome cristão da assam que não havia desejado apartar-se da
criança - espantava-se com as lágrimas de sua patroa quando a via apertar o bebê contra si.
Supersticiosa como muitos vietnamitas, ela murmurava preces encantatórias que nada tinham de
católicas.
A emoção de Léa ao reencontrar Charles e seus filhos, Adrien e Camilie, foi tão forte que a jovem
mulher desmaiou. Quando voltou a si, teve uma violenta crise de soluços e Camille, assustada, se
refugiou nas saias de Françoise, que dirigiu à irmã um olhar desprovido de ternura que não escapou
a François. Charles aproximou- se daquela que ele considerava sua mãe e, com palavras ternas,
conseguiu acalmar seu pranto. Quando, enfim, Léa sorriu através das lágrimas, ele experimentou
uma grande alegria.
- Meu rapaz - disse-lhe ela com a voz doce que ele tanto amava -, você agora é um homem!
Aos 14 anos, Charles era alto para a idade, esbelto, quase magro, esportivo. Percebia-se que, dentro
de pouco tempo, teria um corpo de atleta. Seu gosto pelo esporte não o impedia de ser um aluno
brilhante, apaixonado por história e literatura. Ele havia levado a sério seu papel de mais velho e
cuidara de Adrien como de um irmão; graças a ele o garoto de 6 anos sabia ler muito bem. Ele era
incontestavelmente o chefe do pequeno grupo de garotos de Montillac; assim como os outros filhos
de Léa, os de Françoise também o adoravam. Não havia ninguém como ele para inventar
brincadeiras, construir cabanas, montar um Meccano, subir nas árvores e mergulhar na Gironde.
Com ele os passeios de bicicleta, os piqueniques, os passeios de charrete, transformavam-se em
expedições de onde todos voltavam esgotados e radiantes. Era um garoto ao mesmo tempo feliz e
melancólico, que parecia-se com seu pai, mas tinha os olhos da mãe. Os dois compunham seu belo
rosto adolescente.
Pouco a pouco Léa e seus filhos reavivaram os laços familiares. E logo soavam na velha casa seus
gritos de alegria. Eles haviam aceitado com felicidade a pequena irmã, que Adrien achou uma
"coisinha curiosa". Philomène, no início, tinha tentado proteger o bebê dos carinhos mais acalorados,
mas logo capitulou diante dos sorrisos com os quais sua "filha de leite" os acolhia.
Depois do retorno de sua irmã, Françoise mal conseguia esconder sua exasperação. Tudo era
pretexto para reflexões cada vez mais acintosas sobre "aqueles que levavam uma vida de
facilidades", "que desfrutavam do trabalho dos outros" e sobre o que era mais freqüente: "a
ausência de sentimento maternal" de sua irmã. Um dia, chegou a dizer:
- Eu não compreendo como você ousou nos trazer essa bastarda...
A bofetada dada por Léa cortou-lhe a palavra.
- Nunca mais diga isso! Claire é nossa filha. Como pode pensar dessa forma? Você, que teve a
cabeça raspada, seu filho nos braços!...
A palidez que invadiu o rosto de Françoise fez ressaltar a marca dos dedos de Léa.
- Cale-se!... Como você, logo você, pode me fazer lembrar desses horrores?
- É bom, porque você parece ter se esquecido. Eu alguma vez já a insultei por ter dormido com um
alemão?
- Não, mas você pensa o tempo todo nisso, como os comerciantes de Langon e os burgueses de
Bordeaux...
- Você é completamente louca! Todo mundo já esqueceu essas velhas histórias.
- Isso é o que você pensa. Alain recebe cartas anônimas contando minhas noites de libertinagem
com os ocupantes. Ele não me fala mais, mas pelo jeito dele eu sei bem quando recebeu uma outra.
Léa teve um rasgo de piedade por sua irmã.
- Isso é imundo! Quem pode agir desta forma?
- Não importa quem. Lembre-se de todas as delações durante a guerra; os arquivos de Bordeaux
estão cheios delas. E nem todas eram anônimas.
- Faz muito tempo que ele recebe as cartas?
- Quase dois anos, depois que os negócios começaram a melhorar. Como se quisessem nos fazer
pagar pelo nosso sucesso.
- Você não agiu de forma muito diferente deles.
- Como? Eu não vi o relatório.
- O relatório?... Você me cobra por ter ajudado a reerguer Montillac...
- Esse ressurgimento é o resultado do trabalho de Alain.
- Eu não digo o contrário. Você fala nisso sem parar, como se duvidássemos disso. Eu sou muito
agradecida a vocês dois por terem levantado Montillac e terem cuidado de meus filhos. Disso, serei
sempre devedora. Venha, vamos nos abraçar... Papai e mamãe não iriam gostar de nos ver
brigando.
Elas abraçaram-se como antigamente e durante alguns dias a pequena casa esteve repleta de
felicidade. Mas os rancores e as angústias de Françoise eram muito fortes para que a harmonia
familiar permanecesse.
Três meses depois de sua volta, Léa e François instalaram-se em Paris com os filhos, no
apartamento da rua da Universidade. Ele havia decidido que Charles terminaria seu ano letivo em
Bordeaux,
e depois se reuniria a eles no ano seguinte. Sob as recomendações de Jean Sainteny, François havia
aguardado ser nomeado para um cargo no ministério dos assuntos estrangeiros por Pierre Mendès
France, o presidente do Conselho, que, depois de sua volta da Indochina, o recebeu para uma longa
conversa. Perguntou-lhe como ele via o futuro das relações franco-vietnamitas, e ouviu atentamente
suas respostas. Nada, no entanto, havia resultado desta entrevista. Decepcionado, François solicitou
uma audiência com o general De Gaulie, que finalmente concordou em recebê-lo, na rua do
Solferino. Saiu de lá com este conselho do general:
- Vá para o campo, ocupe-se de seus negócios e renuncie temporariamente aos assuntos do estado.
Então François seguiu, não sem tristezas, a sugestão do homem do 18 de junho.
O ano de 1955 havia passado muito rápido para Léa, ocupada em cuidar da casa, ajudada por
Philomène e por Mmc Germain, uma brava mulher, também viúva. Alugaram uma casa grande na
Arcachon para o verão e François havia feito numerosas viagens a Lyon a negócios. Charles iria
para o liceu Montaigne depois de, todas as manhãs, levar Adrien, que acabava de entrar para a
escola na rua Saint-André-des-Arts. Jacques Soustelie é nomeado governador geral da Algéria, uma
nova estação de rádio, Europe no 1, conquista a juventude, Edgar Faure sucede Pierre Mendès
France, Paul Claudel morre depois do triunfo, na Comédie-Française, de L'Annoncefaite à Marie,
o pintor Nicolas de Staël se suicida nas Antilhas, encontrando-se na eternidade com Albert Einstein
e Teilhard de Chardin, oitenta espectadores encontram a morte nas Vinte e Quatro Horas do Mans,
Louison Bobet ganha seu terceiro Tour de France, L'Humanité e France-Observateur são
censurados por seus artigos sobre a guerra da Argélia - a Argélia onde é decretado estado de
emergência-, Juan Perón é derrubado na Argentina, Mohamed V, sultão do Marrocos, reinstalado
em seu trono, é acolhido triunfalmente pelo seu povo em Rabat, Maurice
Utrillo parte para reencontrar sua mãe, Suzanne Valadon, James Dean, ídolo dos jovens, é morto no
volante de seu Porsche, Ngô Dinh Diêm é proclamado presidente do Vietnã do Sul depois da
destituição do imperador Bao Daí, os soldados do contingente embarcam para a Argélia cantando
ODesertor, canção de BorisVian, Roger Ikor ganha o prêmio Goncourt por seu romance Les Eaux
mêlées, enquanto André Dhôtel ganha o Fémina porPays oà l'on n'arrive jamais.
Eles voltaram a Montillac para o Natal e as férias de Páscoa.
No dia seguinte à dura cena entre as duas irmãs, François Tavemier desceu as escadas em grandes
passadas, cigarro nos lábios, na direção de Alsácia Lorena. Perdido em seus pensamentos, esbarrou
em um passante que também fumava um cigarro, o qual, no choque, escapou de seus lábios.
- Desculpe-me - disse François, enquanto o apanhava.
- Mire pordonde camina, coio!
- gritou o homem. Apanhando o cigarro, observou-o com desgosto
antes de jogá-lo na sarjeta.
- Le ofrezco otro?
- perguntou Tavernier, estendendo seu maço.
Resmungando, o homem tira um, e examinou-o com o olhar de um expert em cigarros.
- Gracias - soltou ele, levantando a cabeça. - Tavernier! Wsted no es François Tavernier?
Durante um rápido instante eles se observam.
- Ramón Valdés! - exclama François, abrindo os braços.
Sem procurar esconder a emoção, os dois homens se abraçam.
- Compaíero! i Qué gusto verte después de tantos anos!'
- Venha, vamos tomar alguma coisa - propôs François em
espanhol. - Quero que você me conte como tudo terminou para você, depois do adeus de Barcelona...
Em um café da place de la Comédie, eles passaram a tarde a evocar suas lembranças da guerra da Espanha.
Combatente republicano da primeira hora, o comunista Ramón Valdés havia sido um dos chefes de François
Tavernier na ocasião de seu engajamento nas Brigadas Internacionais, em outubro de 1936. Mais velho alguns
anos o operário espanhol foi tomado de simpatia por este "filho da burguesia" - assim o chamava
afetuosamente - que, ainda que não comunista, havia combatido ao lado dos republicanos. Valdés havia visto
sua mulher e suas duas filhas serem massacradas pelos franquistas. Consumido de ódio e de desespero, ele
havia sobrevivido apenas para se vingar, tentando eliminar o maior número possível de nacionalistas. François
foi incorporado na brigada X1V no batalhão "Comuna de Paris", composto em sua maioria por comunistas
belgas e franceses e posto sob as ordens do coronel Jules Dumont - que havia sido apelidado "o coronel
Kodak", de tanto que ele adorava fazer poses exageradas diante da objetiva. Depois de ter recebido um
treinamento sumário na base de Albacete, ele se reuniu aos brigadistas de Madri, de onde jovens de todas as
nacionalidades, franceses, húngaros, ingleses, poloneses, belgas, antifascistas italianos, russos brancos,
irlandeses, alemães antinazistas.... comandados por romancistas ou poetas como Ludwig Renn, Mata Zalda,
John Cornford, Ralph Fox, Gustav Regler.... partiram ao assalto de tropas nacionalistas, em meio a verdes
carvalhos, cantando a Internacional em todas as línguas.
"É aqui, em Madri, que se encontra a fronteira que separa a libertação da escravidão. É aqui em Madri que
duas civilizações incompatíveis se enfrentam em uma grande luta: o amor contra o ódio, a paz contra a guerra, a
fraternidade do Cristo contra a tirania da Igreja... É Madri. Madri luta pela Espanha, pela Humanidade, pela
Justiça e, do manto de seu sangue, ela abriga todos os seres
humanos! Madri! Madri!", exclamou na rádio, no dia 8 de novembro de 1936, o deputado republicano Fernando
Valera.
Em todas as partes, a carnificina havia sido arrasadora. Ferido, François havia sido salvo por Ramón, que ainda
que também atingido tinha conseguido arrastar o jovem francês ao abrigo das balas. Depois de terem sido
tratados no hotel Ritz, transformado em hospital, foram reenviados ao campo do Albacete, que Ramón logo
abandonou para reunir-se ao coronel Vilialba, comandante republicano da praça de Málaga. Foi lá que mais
uma vez ele foi ferido enquanto protegia o êxodo da população e que a Escuadrilia Espa fia de André
Malraux fazia seu último combate aéreo. Os dois homens se reencontraram em Teruel, na noite de Natal, nas
adegas do convento de Santa Clara, em companhia de um repórter fotográfico húngaro de uma agência
parisiense, Alpha Press. Seu nome era Blèmia Borowicz, mas todos o chamavam de Boro. Fazia tanto frio que
os motores congelavam e as armas emperravam. Bloqueados por uma tempestade de neve que havia durado
quatro dias, privados de água, víveres e de medicamentos, eles acabaram por atravessar as linhas nacionalistas
e reunir-se aos fragmentos de diferentes brigadas que se reagrupavam em Barcelona. Foi nesta cidade que eles
souberam da anexação da Áustria pela Alemanha nazista, em 11 de março de 1938.
François, por sua vez, havia salvo a vida de Ramón, durante a batalha de Èbre, arrancando-o das mãos dos
marroquinos. Eles seriam os únicos sobreviventes de seu batalhão. Passada a ofensiva de Èbre, os
republicanos acreditaram em uma possível vitória. Mas, na Assembléia das Nações Unidas, a retirada das
brigadas internacionais foi decidida com o acordo de Juan Negrín e de Stalin.
Em Barcelona, no dia 15 de novembro de 1938, os
sobreviventes das brigadas haviam desfilado em marcha sob as aclamações da multidão, que lançava-lhes
flores, e na presença de Negrín. Com o punho erguido, la Pasionaria os saudava. Imensos
retratos de Stalin, Negrín e Azafia dominavam as ruas. Nos anos seguintes, estes homens que
haviam feito o sacrifício de suas vidas se lembrariam do discurso vibrante de la Pasionaria:
Mães/Mulheres! Quando os anos tiverem passado e as feri das da guerra estiverem
cicatrizadas; quando a lembrança dos dias de tristeza e de sangue forem estancadas em um
presente de liberdade, de amore de bem-estar; quando os rancores estiverem mortos e todos
os espanhóis sem distinção conhecerem o orgulho de viver em um país livre - então contem a
seus filhos! Contem a eles sobre as brigadas internacionais! Digam-lhes como, atravessando
oceanos e montanhas, passando por fronteiras cobertas de baionetas, espreitados por cães
vorazmente ávidos de dilacerar sua carne, estes homens chegaram a nosso país como
cruzadas de liberdade. Eles abandonaram tudo, seus amigos, suas cidades, suas casas, seus
bens, pais, mães, esposas, irmãos, irmãs efilhos e vieram nos dizer: qui estamos. A causa de
vocês, a causa da Espanha, é a nossa causa. É a causa de toda a humanidade tomada pelo
progresso." Hoje eles se vão. Muitos dentre eles, milhares deles, vão permanecera qui, como
mortalha, e a terra espanhola e todos os espanhóis se lembrarão deles e lhes guardarão os
sentimentos mais profundos.
Companheiros das Brigadas Internacionais! As razões políticas, as razões do estado, a
própria salvação desta causa pela qual vocês ofereceram o seu sangue com uma
generosidade sem limites fazem com que vocês partam, alguns de vocês para seus
países, outros para um exílio forçado. Vocês podem partir com a cabeça erguida. Vocês
são a história solidária e universal Nós não mais os esqueceremos; quando a oliveira da
paz se cobrir novamente com folhas misturadas aos louros vitoriosos da República
espanhola, voltem! Voltem para as nossas costas! Aqui encontrarão uma pátria aqueles que
não a têm, amigos, os que são privados de amizade, e todos, a afeição e o reconhecimento
do povo espanhol...
No dia seguinte, François Tavernier deixou Barcelona em um barco fretado pelo governo francês
em direção a Marseille. Ramón Valdés reuniu-se a seus companheiros. Ele havia combatido até o
dia 27 de março de 1939, dia da rendição dos exércitos republicanos. Feito prisioneiro pelos
nacionalistas, tinha conseguido fugir e passar pela fronteira espanhola, ajudado pelos bascos.
Preso pela polícia francesa, foi interno no campo de Gurs. De lá escreveu a Tavernier, sem
receber resposta. Quando, por sua vez, a França entrou em guerra, ele pediu para lutar, o que lhe
foi negado com desdém. Magoado, fugiu novamente, e chegando a Bordeaux embarcou para o
México. Lá, os refugiados republicanos o acolheram. Dois anos mais tarde, ele instalou-se em
Cuba, onde fez fortuna com a cana-de-açúcar e com o tabaco. Ele pretendia no momento lançar-
se na importação de vinho e era por isso que se encontrava em Bordeaux.
Por sua vez, François resumiu sua vida desde sua partida de Barcelona, evocando a França
ocupada, a Resistência, a queda de Berlim, sua temporada na Argentina e na guerra da Indochina
de onde acabara de voltar tão ferido.
Os dois velhos companheiros simplesmente conversavam, sem enfeitar qualquer uma de suas
ações, reganhando espontaneamente a autoconfiança que haviam abandonado há tanto tempo.
Entre eles, nenhuma necessidade de competição: eles não tinham nada para provar um ao outro.
Sabiam quem era o outro sentado à frente sem que fosse preciso dizer, que o tempo havia apenas
confirmado o
seu valor. Quanto às respectivas falhas, as circunstâncias não haviam permitido que as
conhecessem; eles sabiam um do outro apenas a retidão, a coragem e a abnegação, além de certa
ironia e uma total ausência de ilusões sobre a natureza humana.
- Depois de sua volta da Indochina, o que está fazendo?
- Tenho colocado ordem em meus empreendimentos que sofreram com minha ausência. Mas estou
indeciso; a vida que levei nos últimos vinte anos não me predispõe a retomar meus negócios como se
nada tivesse acontecido. Por outro lado, tenho agora uma família e não posso continuar a viver de
renda. Pensei por algum tempo, e para agradar a Léa, em investir em Montillac comprando outros
vinhedos para aumentar a propriedade. Mas a irmã dela vê com maus olhos nossa eventual
instalação.
- Por que não comprar um outro terreno se você gosta da região e se interessa por cultivo de vinhas?
- Isso não teria sentido. Para Léa, é Montillac ou nada.
- Recompre-a.
- Minha cunhada não aceitaria; ela quer comprar as partes de Léa.
- Eu só vejo uma solução: venha instalar-se em Cuba!
- Eu bem que poderia levar você a sério - disse François rindo.
- Pois, justamente, minha mulher morre de vontade de conhecer a ilha.
- Então, está no papo! Afinal vocês não têm na França um ditado que diz "O que a mulher quer,
Deus quer"?
- Mas o que eu faria por lá?
- Não ria, eu falo sério. Tenho uma proposta a lhe fazer... Não, não diga nada... deixe-me falar!
Preciso de alguém, em Havana, em quem possa ter total confiança e que tenha a coragem de
manter a máfia a distância. Passo a maior parte do meu tempo nas plantações de tabaco e de cana.
Minha mulher, que está doente, prefere viver em Santiago, local de origem de toda a sua família, o
que me obriga a deslocamentos longos e cansativos. Mesmo que você fique apenas um ou dois anos,
isso seria de grande utilidade para mim. Além do
mais, não seria mal ganhar algum dinheiro... Pela nossa amizade, pense no assunto.
- Não conheço nada de cultura de cana nem de tabaco...
- Você aprenderá rápido. Não estou pedindo que me responda agora, mas para refletir na minha
proposta.
Durante um momento, os dois amigos fumaram em silêncio.
- Em que hotel você está?
- No Grand Hotel.
- Vamos passar para apanhar suas bagagens, e eu levo você a Montillac. Você conhecerá minha
mulher e meus filhos e poderá ver se acha o seu vinho, o da propriedade não é ruim.
- Não quero incomodar...
- Que é isso... Já falei a seu respeito com Léa, ela vai adorar conhecer você.
- Estou muito feliz por tê-lo reencontrado e sigo você para onde quiser!
Eles foram até o Grand Hotel, de onde François telefonou para Montillac para comunicar a chegada
de seu amigo.
Ramón foi acolhido de braços abertos por Léa; sem ele, ela não teria tido a felicidade de conhecer
François. A recepção de Françoise foi cortês. Alain Lebrun, depois de tê-lo feito visitar as adegas e
degustar os vinhos de diferentes anos, recebeu com entusiasmo a oferta de compra do cubano. Sua
preocupação era não possuir reservas suficientes para satisfazer de imediato o pedido de Valdés.
Tudo foi muito rápido. Ramón Valdés fretou um navio, oDésirade, da companhia geral
transatlântica, um cargueiro de quatro mil toneladas, garantindo o transporte do vinho, e que tinha
disponível algumas cabines para aluguel. O cubano as reservou, e tudo se ajeitou em pouco tempo: o
vinho de Montillac foi posto nos porões do navio, os trabalhos solicitados pela central em Havana
foram rapidamente resolvidos, os vestidos pedidos por Léa entregues nos prazos, os negócios de
François, em Lyon, organizados da melhor forma
As crianças estavam impacientes para partir e, apesar das tensas
relações entre as duas irmãs, seu adeus foi emocionante. Elas
deixaram-se com lágrimas nos olhos, prometendo manter correspondência
com freqüência.

Capítulo Dois

PARA CHARLES, A TRAVESSIA proporcionou a oportunidade de aproximação de François.
Ainda que habituado a ele desde a infância, inconscientemente ciumento do esposo de Léa, ele o
temia mais que o amava. As conversas dos dois amigos a respeito da guerra da Espanha, as
respostas que davam a suas perguntas, mostravam-lhe o que havia sido o engajamento de François
junto aos republicanos, esses "vermelhos, comedores de padres e estupradores de freiras", como
diziam seus colegas de escola em Bordeaux. Ele compreendeu melhor por que, na Indochina, as
simpatias de Tavernier eram para aqueles que combatiam pela independência de seus países.
- Você pensa o mesmo a respeito da Argélia? - perguntou ele um dia.
François refletiu um pouco antes de responder.
- No fundo, sim. Mas os dados não são totalmente idênticos. AArgélia é francesa há mais de cem
anos. Os descendentes de quinze mil colonos, enviados por Louis-Philippe para o povoamento e a
exploração dos novos territórios, sentem-se em casa por lá, da mesma forma que um nativo de
Auvergne ou um bordelês se sente em casa
na França. Para eles, a Argélia é a França, é a terra que eles cultivaram e onde repousam seus
ancestrais. Aos herdeiros dos primeiros colonos reuniram-se os alsacianos e os lorineses que
recusaram- se a ser prussianos, os deportados de 1848, da Comuna, os judeus, os espanhóis,
italianos, corsas fugindo da pobreza de sua ilha. Toda esta população heterogênea, vinda de
horizontes diferentes, mas quase sempre impulsionada pela necessidade ou pela miséria, com
opiniões políticas divergentes e fortunas desaparecidas, esquece seus desacordos e se encontra
unida para combater a independência reclamada por uma parte do povo muçulmano.
- É impossível imaginar que os não-muçulmanos pudessem continuar a viver com os muçulmanos
em uma Argélia independente?
- Podemos imaginar, mas isso parece utópico. Jamais os franceses de lá aceitarão serem governados
pelos árabes e, por sua vez, os argelinos não aceitam mais a presença dos antigos colonizadores.
Além do mais, o fanatismo religioso, estrangulado até então pela presença francesa, começa a se
estender. Nos Aurès, cortaram o nariz e as orelhas daqueles que foram surpreendidos bebendo
álcool ou fumando. Até hoje, os "poderes especiais" reclamados por Robert Lacoste, em março
último, e a lembrança de duzentos mil jovens sob as bandeiras não deram em grande coisa.
- Você será chamado?
- Acredito que não, estou muito velho.
- Você, você não será velho, jamais! - exclamou Charles.
François se repreendeu por ter sentido prazer na reflexão do menino. "Velho bobo", pensou ele,
estirando sua grande carcaça. Aos 43 anos, com seu rosto marcado, sua boca de lábios sensuais,
seus olhos debochados, o sorriso sedutor descobrindo um maxilar de carnívoro, sua cabeleira
espessa e uma forma dócil de mover seu corpo magro e musculoso, Tavernier era um homem
sedutor, agradável às mulheres sem desgostar os homens.
Estirado, o torso nu ao sol, ele fumava um charuto, os olhos abrigados por um chapéu de palha, e
deixava vagar seus pensamentos,
parando por algumas vezes nesta ou naquela lembrança, afastando as mais sofridas, sorrindo para as
outras: a felicidade de seus reencontros com seu companheiro de lutas e de tristezas, os jogos
barulhentos das crianças e Léa, tão bonita, tão diferente das outras mulheres, junto à qual, a cada
manhã, ele acordava com alegria. Ele lhe era fiel sem sacrifício, apesar de ser bastante assediado.
Por duas ou três vezes ele esteve a ponto de ceder, mas Léa, advertida por um sexto sentido, soube
atrair com audácias amorosas esses ardores para si.
A bola de Adrien bateu em seu peito e o tirou de seus sonhos.
- Desculpe-me, papai - disse o garoto que vinha correndo.
Seus pensamentos retomaram seu curso: teria sido mesmo a melhor decisão embarcar com toda a
família para Cuba, que sem dúvida não se revelará um lugar tão idílico quanto imaginava Léa? O
homem que havia tomado o poder por meio de um golpe de estado em março de 1952, Fulgencio
Batista, era apenas, segundo Ramón Valdés, um tirano sanguinário sob as ordens da máf ia de
Miami e da CIA. Odiado pelo povo cubano, principalmente depois das torturas e da execução de 68
prisioneiros, detidos por ocasião de um ataque conduzido por um certo Fidel Castro contra a caserna
de la Moncada, em Santiago, no dia 26 de julho de 1953, ele mantinha uma polícia que aterrorizava a
população.
Tavernier havia se separado sem sentimentos do negócio familiar, cujo preço de venda lhe permitiria
viver despreocupadamente durante alguns anos, ou investir em novos negócios. Mas, por hora, ele
iria iniciar-se no mercado da cana e do tabaco.
Ele levantou o chapéu e, com um gesto preciso, atirou a guimba do charuto ao mar. Depois, voltou a
se esticar ao sol.
Eles aportaram em Santiago de Cuba no final da manhã para uma escala de 48 horas. Aproveitaram
para visitar a cidade, enquanto RamónValdés dava uma olhada em sua correspondência depois de
ter ido dar um beijo em sua mulher. Este primeiro contato com Cuba encantou Léa. Instalada na
varanda do velho hotel Casa Grande,
de onde se via a velha praça de armas e local de encontro dos habitantes, ela observava um casal se
movimentar de forma sugestiva ao ritmo de uma orquestra de seis músicos, cujo mais novo
integrante deveria ter uns 75 anos... O lento e provocante andar das mulatas atraía os olhares como
um ímã. Matronas vestidas espalhafatosamente com cores berrantes brigavam com seus pimpolhos,
enquanto os velhos, eretos e secos, dançavam em suas imaculadas guayaveras, balançando a
cabeça ao ritmo do bolero.
Jantaram em um restaurante de segunda categoria da rua Heredia, mas os vários daiquiris fizeram
com que esquecessem a mediocridade da comida. Eles voltaram ao barco em caleche, já meio
embriagados e cantando a plenos pulmões Solamente una vez...
O navio entrou na baía de La Havana ao pôr-do-sol. A cabeça apoiada no ombro de François, Léa
observava a cidade que se oferecia no esplendor dos últimos raios de sol; uma brisa leve agitava
seus cabelos, o ar cheirava a maré, asfalto e temperos. Charles explicava aAdrien as manobras do
navio ao atracar. Camille, sentada sobre um rolo de cordas, continuava a brincar com sua boneca.
Quanto a Philomène, levando a pequena Claire, ela esperava poder abandonar o navio para ficar
sozinha cuidando de "sua" filha.
O capitão e sua tripulação vieram saudar os passageiros. Eles despediram-se com emoção, como
quando deixamos velhos amigos por um bom período. Esta longa temporada passada no mar havia
criado laços que se perderiam com o tempo, mas deixariam a lembrança de momentos de alegria e
paz.
Sobre a plataforma do cais, um homem vestido de terno branco, chapéu panamá nas mãos, adiantou-
se:
- Sr. e sra. Tavernier? Sou Jean-Claude Perrault, ligado à embaixada da França. Sua Excelência sr.
Grousset me encarregou de recebê-los e de desejar-lhe boas-vindas a Cuba. Espero que a
travessia tenha sido boa. Antes de vir, passei no Hotel Nacional para verificar se tudo estava em
ordem.
- Obrigada, sr. Perrault, nossa viagem foi excelente. O hotel é longe do porto?
- Não muito, sr. Tavemier. Aqui estamos na cidade velha, o hotel é no Vedado, no Malecón. No
apartamento, vocês encontrarão um guia e os mapas de Havana, assim como uma publicação feita
pela embaixada que indica tudo o que se deve saber e que não está necessariamente nos guias. Se
vocês quiserem, podemos ir. Tenho três carros à sua disposição. - Charlie, encárgate de las
maletas!
- Si seior
Léa, François e Ramón Valdés subiram no carro do adido, enquanto Philomène e as crianças
instalavam-se a bordo do segundo e Charlles colocava a bagagem no último.
A noite já havia caído.
Todos os faróis ligados, grandes carros americanos em cores vivas, conduites intérieures ou
charretes percorriam o Malecón, contra o qual as ondas vinham estourar. Belas jovens vestidas com
calças corsário, de tecido tão colante como uma segunda pele, ou com vestidos justos que
ressaltavam suas cinturas finas, encarapitadas sobre os saltos altos de seus sapatos, faziam poses
provocantes, acenando para os motoristas. Os veículos diminuíam a marcha e, às vezes, paravam.
Famílias inteiras, sentadas sobre a mureta do passeio público, observavam a sedução com
indiferença. Meninos se perseguiam enquanto outros propunham aos passantes copos de café bem
forte. Eles passaram por um vendedor de sorvetes que, com sua carrocinha pintada de rosa-choque,
agitava um sino.
- iLos mejores helados!/Fresa y chocolate//Os mejores de La Ha bana!
Em torno de uma caminhonete Ford parada, uma dezena de jovens dançava ao ritmo da música que vinha do
rádio do carro.
- Vejam o hotel de vocês - disse o adido da embaixada, apontando para uma enorme construção guardada por
duas torres quadradas.
A construção estava diante de um deque que se destacava por sobre o céu negro com sua brilhante
iluminação. Por uma rua inclinada, eles contornaram o edifício e penetraram no corredor da entrada. Os carros
pararam diante da entrada. Sem pressa, os carregadores e porteiros aproximaram-se. Do alto da escada, um
homem em túnica os aguardava. Ele inclinou-se beijando a mão de Léa. Com um francês cantado, ele lhe disse:
- Boa noite, sra. Tavernier, seja bem-vinda. Sou o diretor. Se vocês precisarem de alguma coisa esta noite, não
hesitem: estou à disposição.
Léa agradeceu-lhe com um sorriso.
- É uma honra para o meu estabelecimento recebê-los, sr. Tavernier. Sua excelência o embaixador me
recomendou pessoal- mente para facilitar em tudo a temporada de vocês em nosso país. Desejam jantar no
restaurante ou preferem ser servidos no apartamento?
- Nós ainda não sabemos, veremos mais tarde.
- É claro. O serviço de quarto funciona 24 horas por dia.
O diretor acompanhou-os, pessoalmente, até a porta. As crianças passavam de um quarto a outro e estavam
radiantes com as acomodações.
Depois da partida do adido e do diretor, eles decidiram em comum acordo pedir serviço de quarto.
No dia seguinte, um conversível Studbaker e um automóvel Pontiac foram entregues no hotel por uma
concessão das marcas americanas. Para seus primeiros passeios em Havana, Léa solicitou um guia, enquanto
Ramón e François partiam para a província de Pinar dei Río. O espanhol estava ansioso para mostrar-lhe suas
propriedades. Léa viu-se sozinha para instalar-se e inscrever as crianças na escola, e Charles na
universidade.
A espaçosa casa, cercada por um magnífico jardim, situava-se no quarteirão residencial do
Miramar. A casa, alugada com móveis e aparelhos domésticos, pertencia a uma família americana
rica que havia sido obrigada a voltar para os Estados Unidos. Graças ao serviço da embaixada, as
inscrições escolares foram tarefa simples. Tendo sido aceito na faculdade de direito da Universidade
de Havana, Charles preocupava-se, apesar de seu bom conhecimento de espanhol, se iria
compreender o que diziam os cubanos. Na mesma situação, Léa tentou tranqüilizá-lo afirmando que
até o início da universidade eles se familiarizariam com aquela pronúncia engolindo a metade das
palavras. Ela estava certa: ao final de um mês, eles compreendiam sem dificuldade seus
interlocutores. Muito rápido, Adrien e Camille passaram a se expressar facilmente em espanhol.
Quanto à pequena Claire, balbuciava indiferentemente em uma e outra língua, misturando tudo com
algumas palavras vietnamitas.
Quinze dias depois, François voltou de sua viagem pelas terras de Ramón Valdés, encantado com o
que havia visto e com trabalho garantido. Esta mudança de vida o agradava. Léa e as crianças
também estavam felizes. Os pequenos, esperando a escola, passavam seus dias na piscina do
Country Club ou na praia. Léa havia percorrido as lojas para melhorar a decoração da casa, visitado
os antiquários em companhia da mulher do embaixador, enquanto Charles passeava de bicicleta
pelas ruas de La Habana Vieja, do Vedado, do Cerro e de Miramar.
Durante as três semanas em que François passou em Havana, o casal Tavernier tornou-se uma
verdadeira coqueluche nos jantares da embaixada, no mundo dos negócios e no meio cultural. Suas
fotos foram publicadas nas revistas Bohemia e Carteles. Toda a Havana compareceu à recepção
que eles deram para festejar sua instalação em Cuba. O presidente Batista, acompanhado de sua
esposa, foi pessoalmente desejar-lhes as boas-vindas, para o grande desprazer
de Ramón, que naquela ocasião estava passando uma temporada na capital. Essa visita provocou
um grande mal-estar, dificilmente contornável, mas que, felizmente, com a ajuda da orquestra
cubana que tocava no jardim pouco a pouco desapareceu.
Mesmo sendo dois ou três anos mais novo que seus companheiros na faculdade de direito, Charles
conquistou rapidamente amigos entre os estudantes, curiosos a respeito de tudo o que vinha da
França; seus talentos para o basquete fizeram o resto. Foi por ocasião de uma partida no Stadium
dei Cerro que ele conheceu um outro jogador, estudante de arquitetura e presidente da FEU, José
Antonio Echeverría. Mais velho doze anos,José Antonio tomou-se de simpatia por este jovem
francês que não tinha condições de igualar-se a ele para jogar a bola à distância na tabela do campo
adversário. Depois da partida, eles foram tomar um café na varanda do hotel Colona, acompanhados
de Fructuoso Rodríguez e de José Machado. Os cubanos o bombardearam de perguntas sobre a
França, o general De Gaulie, a guerra, a Resistência... e a Revolução Francesa. Charles procurou
responder da melhor forma.
- Meu padrasto poderia responder melhor a essas perguntas
- disse ele, falando de François. - Ele conhece o general De Gaulie
e combateu contra os nazistas. Ele até mesmo participou da guerra
da Espanha.
- Contra Franco? - duvidou José Machado, com um tom hesitante.
- Evidentemente! - retrucou Charles, um pouco condescendente.
Seus novos amigos balançaram a cabeça em aprovação.
Este encontro permitiria a Charles começar sua educação política. Manzanita ou el Gordo, como
o apelidavam afetuosamente seus
companheiros, havia sido preso várias vezes pela polícia de Batista e vivia em uma
semiclandestinidade. Em dezembro de 1955, José Antonio Echeverría fundou um diretório
revolucionário com o objetivo de lutar contra o ditador, em companhia de Fructuoso Rodríguez, José
Machado, Juan Pedro Carbó, Faure Chomón, Joe Westbrook e alguns outros. Como presidente da
FEU, ele comparecia a numerosos congressos de estudantes por toda a América Latina,
aproveitando esses encontros para divulgar e pregar a luta dos cubanos contra Batista. No México,
ele acabara de assinar em nome do diretório um pacto com o chefe do movimento de 26 de julho,
Fidel Castro, selando a unidade da juventude cubana no objetivo de derrubar o governo de Havana.
Neste 27 de novembro, com outros estudantes, Charles desfilou contra o regime de Batista. A
manifestação foi brutalmente dispersada pelas forças de ordem e, atingido por golpes de cassetete e
pontapés, ele foi preso e levado ao posto policial.
- i Pero tú eres francés?! - exclamou o policial que examinou os documentos dele.
O homem os mostrou a seu superior que, perplexo, coçou a cabeça.
- ónde viven tus padres? - perguntou ele.
Uma hora mais tarde, Léa entrava no posto policial, furiosa.
- iDónde está?
- Estou aqui, está tudo bem.
- O que eles fizeram a você? - suspirou, aterrorizada.
Seus cabelos e sua camisa sujos de sangue ofereciam um quadro espetacular.
- Brutamontes! Eu vou registrar uma queixa...
- Eu te peço, Léa, não faça nada. Vamos embora, eu explico tudo.
Vermelha de ódio, ela assinou o registro que lhe estenderam.
- De ahora en adelante, póngale ei ojo a su hjo, seiora - recomendou-lhe o policial, restituindo-
lhe os documentos de Charles.
Léa enfiou as unhas nas palmas de suas mãos para impedir-se de explodir. Lá fora, uma tropa de
policiais cercava o carro. Eles se afastaram à chegada dos dois, destilando comentários irônicos. A
violência com a qual ela arrancou os fez balançar para trás.
Charles e Léa chegaram à cidade em tempo recorde. Sem descerrar os dentes, ela limpou a ferida
que ele tinha no rosto e lhe fez tomar um banho. Quando ele se enrolou em um roupão, ela serviu-
se de um copo de rum, acendeu um cigarro e disse:
- Conte-me.
O entusiasmo com o qual Charles falou da necessidade de se fazer a revolução, da opressão sofrida
pelo povo cubano, da ignorância na qual ele é mantido, da exploração das massas pelos proprietários
sem escrúpulos, da brutalidade dos policiais, da ditadura econômica dos Estados Unidos, dos políticos
suspeitos etc. teria lhe feito sorrir se não soubesse que os homens da polícia de Batista não
achariam graça quando ouvissem a palavra "revolução". Não fosse seu status de francês, Charles
teria passado alguns dias na prisão. Ela escutou-se objetar um pouco estupidamente:
- Mas este não é o seu país...
- Eu sou cidadão do mundo, a Revolução será mundial ou não será! - retorquiu o garoto com a maior
seriedade.
Os cabelos em desalinho, pés descalços, vestido em um robe azul-celeste, ele havia se pronunciado
tão solenemente que ela estourou na gargalhada. Furioso, ele se levantou, as faces vermelhas, tão
rapidamente que o robe caiu.
- Assim você me decepciona. Esperava que você, ao menos você, compreendesse!
Léa sente subir em si mesma uma cólera proporcional àquela que havia experimentado antes.
- Compreender o quê? Que você se arrisca a ser morto em um combate que não é o seu?
- Também não era o combate de François na Espanha. E ele, no entanto, combateu ao lado dos
republicanos!
- Não é a mesma coisa!
Exprimindo-se desta forma, ela sabia estar errada e que, por onde houvesse opressão, haveria
homens para levantarem-se e dizerem não! Não havia ela dito não à Alemanha nazista, em outro
tempo, e assumido o risco de perder a vida porque recusava-se a aceitar a ocupação de seu país?
No momento era Charles, seu pequeno Charles, que por sua vez dizia não. Uma profunda fadiga a
invade: ela, que havia esperado conhecer aqui a alegria de viver ao sol, longe da violência, do ódio,
da guerra, esquecer em um mundo fútil os sofrimentos enfrentados, gozar enfim de calma e paz,
acordava em uma ilha onde raptos, violações e torturas haviam se tornado tão freqüentes que a
imprensa só lhes consagrava algumas linhas.
Os atentados se multiplicavam: seus autores mostravam-se cada vez mais audaciosos. Comandados
por Reinol García, o ataque à caserna Giocuria, em Matanzas, no dia 29 de abril de 1956, e que
resultou em um banho de sangue, tinha dado o tom. No dia 27 de outubro um atentado no cabaré
Montmartre por dois jovens do diretório revolucionário custou avida do coronel Blanco Rico, chefe
do SIM, e do comandante-em-chefe das unidades blindadas, Marcelo Tabernilla. Ambos tinham
ido ouvir a célebre cantora Katina Rainieri, em companhia de suas esposas. O golpe mergulhou a
população no medo das represálias, e o governo em uma inquietude cheia de ódio que o incitou ao
assalto à embaixada do Haiti, onde sobreviventes do ataque à caserna Giocuria e estudantes
procurados haviam encontrado refúgio. Depois de ter forçado a entrada, tendo
à frente o chefe da polícia, o general Rafael Salas Canizares, e o chefe do escritório de pesquisas,
coronel Orlando Piedra, os policiais massacraram os dez rapazes. Apenas um deles, Israel Escalona,
tinha uma arma. Mas, antes de ser abatido, teve tempo de descarregá-la no detestado Salas
Canizares, ferindo-o mortalmente no ventre. Em seguida a estes acontecimentos, houve numerosas
prisões, enquanto Batista mobilizava possantes meios militares com o apoio dos Estados Unidos,
representados por seu embaixador em Havana. Uma esquadrilha de aviões lhe foi enviada ao
mesmo tempo que a artilharia de campo e grande quantidade de armas destinadas às tropas de
infantaria. Na maior parte das cidades da ilha, em Cienfuegos, Santa Clara, Matanzas ou Pinar del
Río, os jovens invadiam as ruas conclamando a população à revolta. Em Santiago, Frank País e
Pepito Tey lideraram 28 revolucionários armados de granadas e coquetéis Molotov e tentaram tomar
o posto policial, defendido por setenta policiais e quinze militares equipados com fuzis e
metralhadoras, aos gritos de "Viva a revolução!" e "Viva o movimento de 26 de julho!". Apesar dos
incêndios, dos fuzilamentos e das patrulhas dos soldados de Batista, a população cuidou de seus
feridos e escondeu os perseguidos, alimentando-os e arranjando-lhes armas.
O governo sofreu um novo golpe com o anúncio do desembarque de Fidel Castro e de seus
companheiros, no dia 2 de dezembro, a 81 quilômetros a oeste de Santiago, na Playa de las
Cobradas. A presença no local de importantes forças militares e policiais, de tanques, de navios de
guerra, guarda-costas, aviões de combate e de transporte não foi suficiente para opor-se ao
acontecimento. Em Alegra dei Pio, em 5 de dezembro, o exército atacou de surpresa Fidel e seus
companheiros, extenuados por uma travessia sobre o Granma, efetuada sob pesadas condições, e
por sua marcha fatigante através dos pântanos da região. Vários companheiros de Fidel Castro
morreram. Outros foram feridos. Os sobreviventes se esconderam entre os brejos e os canaviais.
Apenas doze atingiram o pico
ilirquino, que domina de seus 1.994 metros a região da Sierra Centra. A imprensa anunciou a morte
de Fidel.
Como objetivo de dispersar os estudantes, a universidade fechou suas portas sob ordens de Batista.
Desocupado, Charles caminhava por Alma Mater na esperança de reencontrar seus colegas. Mas a
presença de forças policiais deve tê-los desencorajado, pois Charles não encontrou nenhum deles.
Dias antes do Natal, ele conheceu, na cafeteria do Habana Hilton, três irmãs. A mais velha estava
no último ano da faculdade de direito, e participara do encontro do dia 27 de novembro.
- A polícia soltou você, que sorte! Meu irmão ainda está na prisão. Parece que o torturaram - confiou
ela em voz baixa.
Desde esse dia, os quatro tornaram-se inseparáveis. Virginia, Suzel e Carmen eram as filhas do
doutor Constantino Pineiro dei Villar, cardiobogista respeitado em Havana, e de Aurora
MarquezPineiro, que havia abandonado a carreira de bailarina para dedicar- se aos filhos. Eles
moravam em uma velha residência de estilo colonial no Vedado. 'ftanstornada pela prisão do filho, a
mãe não saía mais do quarto, enquanto o pai multiplicava esforços para conseguir libertá-lo.
Soltaram-no na véspera de Natal. Depois de ter descoberto marcas de queimadura de cigarros no
torso de Armando, o doutor Pineiro fez uma declaração à imprensa para denunciar os métodos
policiais. Durante várias semanas, Armando viveu fechado em si mesmo, recusando-se a pronunciar
qualquer palavra sobre sua prisão. Passava longas horas deitado em sua cama, o olhar vazio,
fumando um cigarro atrás do outro. A única pessoa capaz de tirálo de seu abatimento era Charles,
com quem ele ouvia discos de Elvis Presley e de Beny Moré.
Por ocasião do Ano-Novo, e como mandava a tradição, a colônia francesa foi convidada a uma
recepção oferecida pela embaixada da França. François e Léa compareceram e foram
apresentados àqueles que eram chamados de "Velhos Franceses", cujas famílias
estavam instaladas em Cuba desde o tempo da colônia espanhola ou depois da Primeira Guerra Mundial. Lá
estavam também alguns membros do governo cubano e da área empresarial. Depois das saudações de praxe,
todos brindaram ao ano novo. Os garçons da embaixada, oriundos da Martinica, usavam a roupa tradicional de
sua ilha, passando de um grupo a outro com suas bandejas. Mãos ávidas serviam-se de taças de champanhe.
Léa recusou-se a se aproximar do imenso bufê, tomado de assalto pelo que parecia ser um bando de famintos.
Canapés defoiegras, de presunto ou de caviar, charcuteries de diversas províncias da França, queijos e
doces importados por avião e a altos custos foram deglutidos em um piscar de olhos.
Damas da sociedade beneficente francesa cercaram François, mimando-o na esperança de interessá-lo pelo
destino de compatriotas que estavam em dificuldades. Elas o convidaram para tomar chá na Manzana de
Gomez, no Parque Central, sede da associação. Ele conseguiu desembaraçar-se assegurando-lhes que ficaria
feliz em atender ao convite. Desfrutava de um instante de relativa solidão para acender um charuto quando
uma jovem mulher com um decote vertiginoso o tomou pelo braço.
- Sr. Tavernier, conto com o senhor para a grande recepção da União Francesa. Haverá apenas gratinados:
nossos jantares são muito mais chiques do que os da embaixada.
- Será um prazer para mim - respondeu François, inclinando-se.
Sentada à parte, Léa observou divertida o balé destas mulheres em torno de seu marido. É verdade que ele era
sedutor! Muito elegante em seu terno de linho branco que acentuava seu bronzeado e ressaltava o brilho de
seus olhos, mais alto que elas, ele as dominava com uma desenvoltura que fascinava a todas.
- Vejo que está pensativa, bela senhora - disse o embaixador, com um guardanapo nas mãos. - Tome, consegui
salvar alguns petiscos daquela invasão de gafanhotos - acrescentou ele, estendendo-lhe o embrulho.
Léa agradeceu com um sorriso..
- El ministro de Salud desea despedirse, Su Excelencia - anuncia um empregado.
- Desculpe-me - disse o embaixador, afastando-se.
Charles tornou-se figura freqüente na casa do doutor Pineiro. Pouco a pouco, o riso e o entretenimento
voltaram à grande casa. As três jovens tinham verdadeira devoção ao novo amigo e Aurora Marquez lhe era
grata por distrair Armando de suas sofridas lembranças. Os dois rapazes trocavam discos e livros, e
comentavam suas leituras com ardor. Um dia, Charles entrou no quarto de Carmen, esquecendo-se de bater.
Virginia e uma de suas amigas também estavam lá. Percebendo-o, as jovens dissimuladamente jogaram
pedaços de pano vermelho e preto sob a cama.
- O que vocês estão jogando? - pergunta ele.
- Nada... - fez Carmen. - Quero apresentar a você Urselia Díaz Baez; nós nos conhecemos no curso de inglês.
Urselia, este é Charles d'Argilat, ele é francês e estudante de direito.
Os dois jovens apertaram-se as mãos. Urselia era uma bela morena com um aperto de mão franco e um olhar
direto.
- Então, você é o francês do qual Virginia e Carmen não param de me falar? Estou feliz em conhecê-lo. Disseram
que você estava na manifestação do 27 de novembro. Tudo bem, mas por quê? Não é a sua causa...
- A defesa da liberdade é a mesma em qualquer país.
As três jovens trocaram um olhar de conivência.
- Você acha que podemos confiar nele? - cochichou Urselia no ouvido de Carmen.
Ela balançou a cabeça afirmativamente.
- Até onde você iria para defender a liberdade? - perguntou Urselia.
Charles sempre refletia antes de falar. Ele olhou uma por uma longamente.
- Creio que se pode morrer para defender a liberdade - respondeu simplesmente, como se fosse algo
evidente.
"Viu?" dizia a expressão de Carmen para Urselia. A outra abaixou-se e tirou os pedaços de tecido
escondidos sob a cama.
- Estamos fazendo as bandeiras para as próximas manifestações. Você pode nos ajudar se quiser.
Mas jure pela Virgem que não vai dizer uma palavra a ninguém. Se você nos trair, será um homem
morto!
Charles jurou. Por alguns instantes eles trabalharam em silêncio, cortando, costurando, fixando as
bandeiras nas traves de madeira.
- Vamos ouvir música? - sugeriu Virginia.
- Ah, sim! Coloque o último disco de Beny Moré - propôs Carmen.
Charles o procurou entre as caixas multicoloridas espalhadas no tapete. A voz calorosa do ídolo da
juventude cubana encheu o ambiente. Logo eles abandonaram seu trabalho de costura e começaram
a dançar. As garotas riam, debochando da falta de jeito de Charles.
- Espere, eu vou mostrar - disse Carmen, pegando-o pela mão. - Assim... está bom! Continue... Daqui
a pouco tempo você dançará como um verdadeiro cubano.
A música e os risos atraíram Armando.
- Vocês estão fazendo muito barulho! Me acordaram...
- Dormir é perder tempo! - gritou Urselia. -Venha! Quem dança esquece os problemas!
E arrastou também o jovem que, tomado pelo ritmo, entrou na dança e aprendeu a letra da canção.
Quando o disco acabou eles se deixaram cair, esgotados, sobre a cama, amassando as bandeiras
com o peso.
- Se eu tivesse um disco de Beny Moré na prisão, teria sido menos difícil para mim - observou
Armando endireitando-se.
Seu comentário teve o efeito de uma ducha fria no pequeno grupo.
Todos se levantaram, vagamente constrangidos. Armando observou as peças de tecido e
empalideceu.
- Vocês ficaram loucos, fazer isso aqui! Vocês querem que todos nós sejamos presos?
Febrilmente ele recolheu as bandeiras, enrolou-as e declarou, com uma voz nervosa:
- Vamos queimar isso tudo.
Urselia e as irmãs Pineiro olharam-no com um ar consternado. Com doçura, Charles retirou os
estandartes das mãos dele.
- Não se preocupe, vou levá-las para a minha casa. A polícia não terá a idéia de procurá-las por lá.
Quando vocês precisarem, eu as trarei de volta.
- Você tem razão - aprovou Armando. - Vou procurar uma sacola para que possa levá-las.
Depois de sua partida, eles ficaram alguns instantes em silêncio.
- Como ele mudou! - espantou-se Urselia.
Charles defendeu o amigo.
- Não foi porque quis. Ele sofreu muito enquanto esteve preso.
- Eles o torturaram? - perguntou Urselia.
- Não sabemos de nada - responde Virginia. - Ele não quis dizer nada nem ao papai e à mamãe.
- O seu pai é médico, ele deve saber - retrucou Urselia.
- Talvez, mas ele não fala. O que você acha, Charles?
- Acho que devemos deixá-lo tranqüilo com isso. Se não tem vontade de falar, é direito dele.
Compreendo muito bem o que ele deve sentir vendo essas insígnias revolucionárias.
Armando retornou, munido de uma grande sacola de tecido azul na qual colocou as bandeiras. Como
os mastros ficavam de fora, ele os quebrou.
Urselia e Charles deixaram juntos a casa dos Pineiro.
- Onde você mora? Eu posso acompanhá-la, se quiser.
- Obrigada, mas moro em Guanabacoa. E a cinco ou seis quilômetros de Havana. Vou apanhar um
ônibus, é direto. E você, em que quarteirão está alojado?
- No Miramar.
- É um bairro chique! As bandeiras estarão em segurança. Mesmo assim preste atenção, pode ser perigoso.
Charles levantou os ombros olhando para a sacola no bagageiro de sua bicicleta.
- Daqui a alguns dias, se você ainda estiver com a mesma disposição, talvez lhe confie uma mensagem para ser
transmitida.
- Quando você quiser - disse ele calmamente.
Pensativa, ela observou-o afastar-se.
- Charles! Telefone para você - chamou Léa.
- Alô? Sim, sou eu... "Rido bem, nos encontramos em uma hora no Colona. Tchau.
- Quem era? - perguntou Léa.
- Uma amiga da faculdade. Os cursos talvez recomecem, ela quer falar comigo.
- Bem, meu querido. Não volte muito tarde.
- Estarei de volta para o jantar... A propósito, você pensou sobre a Vespa? - perguntou ele, com um tom doce.
- Já está pensado: não! O trânsito é muito perigoso aqui. Eles dirigem como loucos, ignoram totalmente o
código de trânsito... além do mais você é muito jovem!
- Mas tenho 17 anos!
- Foi o que eu disse.
Emburrado, Charles desceu os degraus da varanda e pegou sua bicicleta. Seu mau humor provocou um sorriso
em Léa. Ela estava certa de que seu presente de aniversário seria bem-vindo.
Urselia não estava no terraço do Colona quando Charles entrou no estabelecimento. Então ele a viu prestando
atenção na conversa de três jovens, que discutiam animadamente. Um deles era José Antonio Echeverría.
- Bom dia, francês - disse ele estendendo-lhe a mão.
- Vocês se conhecem? - perguntou Urselia, surpresa.
- O mundo é pequeno... É dele que você me falava?
- Sim.
José Antonio observa-o atentamente.
- Creio que podemos confiar nele.
De seu lado, Charles encarava, fascinado, o presidente da FEU, que ele sabia ser procurado pela polícia. El
Gordo havia se tornado uma lenda viva no meio universitário. Sua coragem diante dos homens de ferro de
Batista fazia a admiração de todos e seus artigos publicados na revista Bohemia eram lidos e comentados com
paixão. Ele fez sinal para que Charles se reunisse ao pequeno grupo e retomou sua exposição. Ele exprimia-se
com uma voz surda e no entanto vibrante:
- "A FEU sempre esteve ao lado do povo. Sua luta sempre situou-se no nível dos interesses superiores da
Nação. E isto porque ela defende os interesses esmagados pelos pés da ditadura, ela defende os direitos dos
operários, as aquisições sociais que o regime está a ponto de suprimir. Nós compreendemos as necessidades
das classes trabalhadoras ignoradas pela ditadura atual e traídas pelos líderes nacionais; nós preparamos
umavasta campanha de mobilização em favor dos direitos que a República havia legitimamente concedido aos
operários depois de longos anos de luta. A FEU só conhece um caminho em direção à paz em Cuba: a
Revolução. Não haverá outra solução para os cidadãos a não ser continuarem lutando pelas reivindicações
que constituem os objetivos fundamentais da Revolução cubana. Os estudantes e os grupos de jovens
encontram-se atualmente sós neste caminho. A impotência e a inércia dos que se dizem classes dirigentes do
país depositaram sobre os nossos ombros um peso que no momento não mais nos cabe. Acreditamos que os
estudantes e a juventude, unidos com a classe operária, os camponeses e os profissionais liberais, serão
capazes de realizar os ideais revolucionários que constituem a própria essência de nossa nação."
Todos aprovaram em silêncio. Echeverría, as faces vermelhas, o rosto brilhando de suor, secou-se com um
lenço, esvaziou seu copo de Coca-Cola já morna e voltou-se para Charles:
- Guarde bem isso, francês: a Revolução se ganha com a união de todos, intelectuais e operários,
camponeses e citadinos. E através da união que caçaremos aqueles que oprimem o povo. Sem esta
unidade, a Revolução só triunfará por um período e arrisca-se a transformar-se, por sua vez, em
uma ditadura tão repressora e sangrenta quanto a anterior. Se você quer ser um de nós, é bem-
vindo. Sente-se forte para combater ao nosso lado?
- Sim.
- Neste caso, volte para casa. Urselia vai transmitir a você nossas instruções em tempo hábil.
Dois dias mais tarde, Urselia encontrou-o na Las Delicias de Medina, na esquina das ruas 1 e 27.
Charles achou facilmente o local, um dos favoritos dos estudantes da universidade. Em
compensação, teve dificuldades para encontrar passagem entre a multidão jovem e barulhenta que
enchia a sala. Terminou por descobrir Urselia degustando um sorvete de morango em companhia de
uma jovem e de uma garotinha de três ou quatro anos. Ela também o viu e fez-lhe um sinal para
que se reunisse a elas.
- Este é o francês do qual te falei. Ele vai levar o pacote para a sua casa.
- Você confia nele? - interrogou a jovem.
Como resposta, Urselia levanta os ombros.
- Esta é minha amiga Aleida Fernández Chardiet e sua filhinha. E ela quem toma as rédeas. Vá onde
ela te disser. Você fará seu relatório amanhã, na casa de Carmen. Vou deixá-los agora; tenho que
ir.
Depois da partida de Urselia, eles se olharam, constrangidos, a menina divertindo-se alegremente
derrubando seu sorvete de chocolate em seu belo vestido branco. Tentando limpar a roupa, Aleida
dá a ele em voz baixa o local onde deveria depositar o pacote em questão.
- Diante da entrada do edifício que fica na esquina da rua Valle e da rua Hospital, um Pontiac azul
estará estacionado. No vidro de
trás há uma foto da equipe de beisebol da universidade; o rosto de um dos jogadores está
arranhado. Você abrirá a porta, do lado da calçada, e colocará este pacote sobre o assento. É isso.
- Só?
- Sim. Em seguida você vai partir sem pressa e sem olhar para trás... Ah, sim! Uma coisa: antes de
depositar o pacote, certifique- se de que não tenha uma perseguidora atrás de você.
- Mas o que é isso?
Aleida olha para ele com comiseração.
- Um carro da polícia.
- Como vou reconhecê-lo? Suponho que não esteja escrito "Polícia" em cima...
- As pessoas da SIM utilizam Oldsmobil e são quase sempre quatro em um carro. Agora vá. Não é
bom que nos vejam por muito tempo juntos. Se perguntarem a você a meu respeito, diga que estava
precisando do endereço do meu pai para seus irmãos e irmãs.
- Eu não compreendo...
- Meu pai é pediatra, é o doutor Miguel Fernández Tosco. Você não tem irmãos e irmãs pequenos? -
acrescentou ela, impaciente.
- Sim, mas... você pegou informações sobre a minha família?
- Claro! O que você acha?
Adotando um ar desenvolto, Charles deixou Las Delicias de Medina com o pacote embrulhado em
papel marrom sob o braço e caminhou sem pressa até o local onde havia deixado sua bicicleta. Ele
prendeu o pacote em seu bagageiro. "Pensarão que são livros", disse para si mesmo, dando a
partida.
Em menos de quinze minutos chegou à rua Valle. Um Pontiac azul estava bem estacionado no local
indicado. Ele parou e olhou em volta. Nada que se parecesse com uma perseguidora. Naquele
momento a esquina estava calma e alguns pedestres perambulavam sem pressa. Charles atravessou,
abriu a porta e escorregou o objeto de sua missão sobre o assento. Sem se virar, retomou a bicicleta
e se afastou, subindo novamente a rua Valie em direção à
universidade. Ao pé da grande escada da Alma Mater, fechada por uma cerca de arame farpado, soldados
armados montavam guarda. Ele desceu livremente pela rua San Lazaro e desembocou no Malecón.
O céu e o mar estavam magníficos e confundiam-se em tons que iam do dégradê de cinza do mais
claro ao mais escuro, cortados por raios dourados de um sol que brincava de esconde-esconde com
as nuvens. Uma onda mais alta que as outras arrebentou-se. Era uma das brincadeiras favoritas dos
meninos de Havana: atirarem-se no curso das ondas que arrebentavam no passeio público, sem se
preocupar com os carros que nem sempre se desviavam dos jovens imprudentes. Mas este risco
fazia parte do prazer e não havia um que não estivesse disposto a mostrar sua coragem para as
meninas, sob pena de passar por um maricón.
Pedalando, Charles olhou várias vezes para trás, mas não viu o menor sinal de uma perseguidora.
Em contrapartida, o exército havia montado uma barreira perto do hotel Nacional e revistava os
automóveis. Charles pára, mas um soldado com ar retardado faz-lhe sinal para passar. Com o
coração aos pulos, ele se afastou, surpreso de ter sentido um grande medo à visão dos uniformes.
"Eu preciso me acostumar com os perigos da guerra", disse a si mesmo. Isso lhe fez pensar em sua
mãe: ele não tinha lembranças de seu rosto, apenas de uma silhueta correndo em sua direção,
braços abertos, e de uma doce presença quando adormecia. Com freqüência, Léa falava-lhe de
Camille, ressaltando sua coragem e o quanto ela o amara. Quando ele ficou mais velho, quis
conhecer as circunstâncias exatas de sua morte. Léa havia lhe contado o ataque na fazenda de
Carnélos pelos alemães e os milicianos, em seguida como Camilie veio a confiar-lhe seu filho.
Quantas vezes havia chorado olhando para a foto de seus pais! Como eram jovens e bonitos!
Quando criança ele havia jurado a si mesmo mostrar-se digno deles e combater todas as formas de
opressão, todos os fascismos. Ele queria tornar-se advogado a fim de
defender os direitos dos oprimidos. Mas temia, acima de tudo, não possuir a bravura deles. Para
tentar alcançá-la, ele havia endurecido seu corpo, transformando o garoto magrela que era em um
atleta. O que ele também desejava, mas disso ele não estava nem mesmo consciente, era
impressionar Léa. Nada mais contava a seus olhos do que a opinião da jovem mulher pelo amor da
qual ele devia realizar grandes coisas. Não era suficiente tornar-se um brilhante estudante de direito
aguardando a reabertura da universidade, era preciso também agir. François havia evocado a
possibilidade, se os cursos não fossem retomados em Havana, de enviá-lo para continuar seus
estudos nos Estados Unidos. Era uma solução, mas, no fundo, Charles não desejava afastar-se de
Cuba. Tinha coisas a fazer aqui.
- Eu poderia trabalhar...
- Por que não? - havia retrucado François.
O sol já se punha quando Charles chegou, ileso, ao Miramar.
Na sala rosa, que dava para a varanda, Léa e François tomavam um drinque em companhia de
Ramón Valdés. Léa levantou-se e foi abraçá-lo.
- Você está todo salgado!
- São as ondas do Malecón.
- Vá se trocar, estamos indo para a mesa.

Capítulo Três

A PARTIR DESTE DIA, CHARLES passou a levar uma vida dupla. De manhã, estudava com um
professor de direito que estava desempregado desde o fechamento da universidade e, à tarde,
trabalhava no escritório do sr. Eduardo Gutiérrez, ex-colega de classe de Fidel Castro que atuava às
vezes como intermediário entre o movimento de 26 de Julho e o Diretório Revolucionário. A noite,
ele saía, com freqüência escondido de Léa, para encontrar-se com os membros do Diretório.
Surpreendido um dia por François, que voltava inesperadamente de Pinar dei Río, ele havia lhe dito
que iria ver uma garota.
- Vai, meu rapaz, é próprio para a sua idade.
- Por favor, não diga nada à Léa. Tenho medo de que ela me proíba de sair.
- Pode ficar tranqüilo, eu guardarei o seu segredo. Conte-me, ela é bonita?
- Mais do que isso! - respondeu ele, correndo com sua bicicleta pelo gramado.
O que não contou foi que estava tendo apenas duas manhãs
de curso por semana e ia trabalhar com o advogado em dias alternados. Ele empregava o resto de
seu tempo na distribuição de jornais clandestinos que apanhava sob os assentos das salas de cinema,
nos banheiros dos grandes hotéis ou atrás da estátua de um santo leproso da catedral de Havana.
Ele também levava mensagens para a Radio-Reloj, aos simpatizantes da universidade e da
imprensa. Quando participou de seu primeiro atentado, pareceu-lhe que ascendia. Com Carmen
Pineiro, ele pôs fogo, com a ajuda de um coquetel Molotov, nas perseguidoras em Ambar-Motors,
e em um posto policial no Vedado. Teve menos sucesso com as bombas depositadas nos cassinos
do Nacional e do Capri: elas não explodiram, mas semearam pânico entre a clientela, composta em
sua maioria de americanos. Sua calma e sua audácia impressionaram os dirigentes do Diretório que
haviam se mostrado reticentes diante daquele recruta estrangeiro imposto por José Antonio
Echeverría. Aliás, foi levando uma mensagem de Echeverría a Carlos Franqui, na revista Carteles ,
que ele conheceu este filho de cortador de cana-de-açúcar originário da província de Las Villas.
Charles havia lido o texto da entrevista que Fidel Castro lhe havia concedido, publicada na revista
em 1955. Ele bombardeou o velho comunista com perguntas às quais ele respondeu com
monossílabos. Com 35 anos, Carlos Franqui havia abandonado seus estudos a pedido do Partido
Comunista. "Um militante como você deve consagrar sua existência ao Partido e viver mais como
revolucionário do que ir ganhar títulos na universidade", haviam lhe declarado Blas Roca, Ordoqui e
Grovart, do comitê central da rua Carlos-Ili. A morte na alma, mas feliz por participar da
"transformação da humanidade", o jovem de 21 anos havia partido para a região de Fomento com
25 pesos no bolso e um terno novo nas costas. Durante um ano, ele se dedicou a criar sindicatos, a
velar pelas eleições operárias, a fomentar greves, a pronunciar discursos contra o fascismo e os
grandes proprietários. Ao retornar a Havana, já adquirira grande experiência nos meios operário e
camponês. Lá ele ficou lado a lado com os dirigentes e os quadros
burgueses do partido. Mas, quando o Partido Comunista foi legalizado e alguns de seus
membros entraram no governo de Batista, ele começou a se desencantar. Depois de ter ficado
algum tempo à frente das juventudes socialistas, fundou a revista Meila, depois trabalhou como
revisor no jornal Hoy onde descobriu um comunismo repressivo e burocrático: "O jornal era o
cemitério da Revolução e dos revolucionários." Em 1946, deixou a imprensa e o Partido sem uma
palavra. Rejeitado por todos, passou a levar uma vida de miséria, dormindo nos parques e em
abrigos de menores, vivendo como cortador de cana, vendedor de cartões- postais e também de
bicos. Por doze pesos por semana, os poetas Tallet e Nufíez Olano arranjaram-lhe uma vaga no
jornal Luz. Ele continuou a participar "das ações que lhe pareciam justas". Engajou-se em uma
expedição contra o ditador dominicano Trujillo, e terminou na prisão de Columbia, sendo liberado em
seguida a uma greve de fome. Durante esta operação encontrou Carlos Guttérrez Menoyo, Daniel
Martín, Pichirilo Mejías e Fidel Castro. De volta a Havana, ele sobreviveu graças à família Cabrera
Infante. A capital de Cuba era ainda vítima da mais total corrupção, os gângsteres políticos e os da
máfia travavam verdadeiras batalhas nas ruas sem que a polícia interviesse. Aproveitando-se desta
situação corrosiva, Batista tomou novamente o poder. Nem um tiro foi disparado. A resistência ao
novo regime logo se organiza. O Alma Mater, jornal clandestino da universidade, foi impresso nos
porões da faculdade de direito. Por ocasião da festa do Dia do Trabalho, em 1 de maio, houve no
cemitério de Colón uma cerimônia em homenagem a Carlos Rodríguez, assassinado pela polícia;
Carlos Franqui encontra ali Fidel Castro. No dia 28 de janeiro de 1953, uma enorme manifestação
foi organizada pelo centenário
de nascimento de José Martí, durante a qual milhares de pessoas desfilaram pelas ruas de
Havana, gritando slogans hostis a Batista. Atrás, um número impressionante de jovens, que tinham
à frente Fidel Castro, levavam tochas dentro das quais um prego havia sido colocado e que,
aquecido e no alvo, se transformaria em uma arma perigosa para o caso de enfrentamento com as
forças da ordem. No dia 26 de julho do mesmo ano, Fidel Castro, em pleno carnaval, ataca a
caserna de La Moncada, em Santiago, à frente de duzentos revolucionários. Entre eles, contavam-se
duas mulheres, Melba Hernández e Haydée Santamaría. O golpe acabou em fracasso. Metade dos
insurgidos morreram durante o assalto. Quanto aos outros, o exército os executou selvagemente. Os
poucos que conseguiram fugir, foram presos nos dias que se seguiram. Castro foi um deles. Retido
em Havana, Franqui não havia tomado parte neste ataque que, no entanto, alertou a opinião mundial
e deu início ao processo revolucionário. O processo dos sobreviventes abriu-se no dia 21 de
setembro em uma atmosfera tensa.
Em Santiago, no dia 19 de outubro, na presença de seis jornalistas, mas guardado por cem homens,
Fidel fez um pronunciamento de cinco horas durante um interrogatório denunciando a política de
Batista, a corrupção, as extorsões, a miséria do povo cubano... seguido da exposição de seu próprio
programa político, sustentado pelos acusados. Sem fôlego e vibrante, concluiu seu discurso com
estas palavras: "Eu termino minha defesa, mas não a farei, como os outros advogados, pedindo a
absolvição do acusado; não posso fazê-lo, já que meus companheiros suportam, na ilha dos Pins, um
infame cativeiro. Enviem-me para junto deles para partilhar o seu destino, porque é normal que
homens honrados sejam assassinados ou capturados em uma República onde o presidente é apoiado
por um criminoso e um ladrão... Condenem-me, isso não tem importância,
a história me absolverá." Fidel Castro foi condenado a dezenove anos de trabalhos forçados na
penitenciária da ilha dos Pins.
Carlos Franqui entrou em Havana e começou a divulgar clandestinamente o texto da apelação
que, passando de mão em mão, espalhou-se pela ilha inteira, para o mal de Batista. Apesar de
uma repressão brutal, uma agitação crescente tomou conta dos meios populares e universitários.
A fim de acalmar um pouco os espíritos e de tentar recuperar alguma popularidade, Batista
assinou, no dia 13 de maio de 1955, uma lei de anistia em favor dos prisioneiros da ilha dos Pins.
Isso não foi suficiente. Em abril de 1956, 56 jovens do Diretório Revolucionário se lançaram ao
assalto da caserna de Matanzas. Todos morreram. A repressão tornava-se cada vez mais
acirrada. Os cubanos exilados reuniram então fundos para a compra de armas e de munição. Em
dezembro de 1956, Castro e seus companheiros do M-26 deixaram o México, onde estavam
expatriados, a bordo de um iate, o Granma. Lá, um velho capitão da Legião Estrangeira
espanhola, o coronel Bayo, os havia levado à guerrilha. Eles desembarcaram no sul de Cuba e
refugiaram-se na Sierra Maestra, onde receberam a ajuda dos camponeses da região. Dois dias
antes do desembarque, Frank País havia atacado Santiago. Carlos Franqui, que trabalhava na
revista Carteles, serviu de ligação entre o Diretório e o M-26, em acordo com Pepe Suarez. Este
velho de La Moncada não mais acreditava na capacidade de ação do Diretório, em razão da
fraqueza de seu armamento. No entanto, não se contava um dia ou uma noite sem sabotagens
orquestradas por Aldo Vera e Faustino Pérez, o qual havia sido delegado por Fidel Castro com o
objetivo de reorganizar o movimento e reunir todas as armas disponíveis para a Sierra Maestra.
Revolução, o jornal clandestino dirigido por Franqui, com uma tiragem de vinte mil exemplares,
continuava a circular apesar das perseguições e apreensões. Em fevereiro de 1957, a publicação
noNew York Times de uma entrevista de Fidel Castro pôs fim aos rumores sobre a morte do
rebelde. Escrita por Herbert Matthews, um jornalista americano renomado, a matéria era ilustrada
por fotos dos guerrilheiros na Sierra Maestra.
Entusiasmado por seus artigos, Charles começou a divulgá-los. E, depois dos dirigentes do Diretório,
Carlos Franqui também foi seduzido por este jovem francês que executava as missões que lhe eram
confiadas com uma exatidão e precisão que nem sempre os cubanos conseguiam igualar.
Em fevereiro, Mario García, diretor do teatro Montmartre, havia convidado Edith Piaf para uma
série de recitais. Léa foi ouvi-la em companhia de Charles. Ela contemplou, emocionada, a magra
silhueta vestida de preto de onde escapavam duas mãos brancas, e a beleza que emanava daquele
rosto anguloso e pálido. Naquele corpo mignon, a potência da voz surpreendia. De pé, Léa aplaudiu
com todo o vigor. A acolhida dos havaneses foi mais reservada. Eles pareciam desconcertados pela
sobriedade da aparência da célebre cantora, tão habituados estavam aos strasses e às plumas dos
artistas do Tropicana e de outros cabarés. Por um pouco eles começariam a pensar que ela não
valia seu dinheiro! Como Léa, Charles encantou-se com seu charme e aceitou com alegria voltar ao
Montmartre. A seu pedido, Léa convidou Carmen Pineiro. Mas, quando Edith Piaf interpretava
Hino ao amor (".. Que m 'importei si tu m 'aimes/ Je mefous du monde entier.. Carmen
apertou vividamente a mão de seu companheiro. Charles, que até aquele dia só havia visto nela uma
companheira, ficou perturbado. Durante toda a canção, seus dedos não se abandonaram. O gesto e
a emoção que atingia aos dois não escaparam a Léa. Ela sorriu para o jovem casal. Como Charles
havia mudado, desde a chegada! Não apenas havia crescido alguns centímetros, mas seu
comportamento estava diferente: ele parecia perpetuamente em guarda e ela encontrava nele
gestos, atitudes, que haviam sido seus durante a Ocupação, quando ela levava mensagens para a
Resistência. Ela se revia pedalando de pé para chegar à costa de Langon. O que teria acontecido
com sua bicicleta azul?... Ela colocou mecanicamente a mão nos lábios como se para evitar um
grito.
- O que você tem? - perguntou Charles, inquieto.
Sem retirar a mão que segurava com força nos lábios, Léa o observava como se o estivesse vendo pela primeira
vez.
- Mas o que você tem, Léa? Está pálida...
- Nada, nada... É o calor, sem dúvida. Vamos voltar, se vocês quiserem.
Do lado de fora estava lotado. Uma enxurrada de motoristas abria o caminho com dificuldade em meio à
aglomeração. Para aliviar sua impaciência e sua angústia, Léa caminhava a passos largos diante do teatro,
indiferente aos olhares sedutores dos homens. Como se para protegê-la da cobiça dos machos cubanos,
Charles colocou um braço em torno dela, num gesto protetor.
- Como você está bonita! - murmurou ele apertando-a contra si.
Léa apoiou a cabeça contra seu ombro; ela estava louca ao colocar estas idéias na cabeça, ele não tinha nada
em comum com estes colocadores de bombas, estes revolucionários barbudos que mostrou o New York
Times! Curiosamente, um deles havia lhe feito lembrar-se de seu namorado argentino, o gentil Ernesto... Mas
era tão absurdo reconhecê-lo entre os guerrilheiros da Sierra quanto imaginar Charles em uma conspiração!
Ambos eram estranhos a Cuba e ao que se passava. O sedutor argentino deveria agora estar exercendo a
medicina nos belos quarteirões de Buenos Aires. Quanto a Charles, ele estudava seriamente, seu professor
estava orgulhoso dele, assim como o sr. Gutiérrez. E a charmosa jovem que o acompanhava esta noite nada
tinha de uma pasionaria. Tranqüilizada, ela deu uma gorda gorjeta ao manobrista e instalou-se no volante do
Studbaker. Os dois jovens subiram junto com ela.
- Eu não moro muito longe - disse Carmen. - Posso voltar apé.
- Nada disso - retorquiu Léa ligando o rádio.
Avoz de Célia Cruz elevou-se na noite.
Charles acompanhou Carmen até a porta e esperou que ela entrasse para reunir-se a Léa. A rua San Miguel
estava deserta, a noite estava maravilhosa, quase fresca. Eles dirigiram lentamente ao longo do Malecón. Por
um momento, um carro da polícia os
acompanhou, depois se afastou. Chegando ao destino, eles foram tomar um drinque no terraço da casa, antes
de se deitarem, conversando sobre a próxima viagem que Léa deveria fazer a Pinar del Río onde François
estava preso por uma greve que havia começado nos escritórios da fábrica de charutos. Charles, que havia
acreditado por um momento na perspicácia de Léa, se dedicou apenas a assuntos leves e suaves. Para
terminar, eles foram dormir sem um comentário sobre o clima tenso que reinava em Havana.
Três dias depois do recital de Édith Piaf, Léa partiu para Pinar dei Río no volante de seu automóvel, deixando
seus filhos aos cuidados de Philomène e dos empregados. Por um momento ela havia pensado em levar os dois
mais velhos para visitar o pai. Mas seu desejo de ficar a sós com François foi mais forte. Contra o aviso do
embaixador, que achava imprudente que ela viajasse sozinha, ela tomou a estrada costeira, em vez da Carretera
Central, que lhe haviam dito estar coberta de caminhões, automóveis e carros de bois. A Carretera Norte se
revelou também bastante perigosa. A direção a absorveu até Bahía Honda, onde fez uma parada para almoçar,
na praça da igreja, na Hosteria dos Amigos cuja entrada, sob a sombra de belas árvores, havia lhe parecido
acolhedora. Quando ela adentrou a penumbra fresca do albergue, os consumidores, todos homens, a
encararam, alguns com assobios aprovadores. Léa instalou-se em uma mesa e chamou a garçonete, uma jovem
mestiça que se aproximou arrastando os pés.
- Quisiera almozar i Sepuede?
- i Claro! Hay sofrito,
sopa de camarones y ajiaco, Seiora.
- Está bien... Tráigame sofrito y ajiaco, com una cerveza.
A cerveja estava gelada, a comida razoável e o café delicioso. Um
velho tocava violão sentado ao lado da porta, com um ar nostálgico e sensual, somando-se ao
encanto da parada. Ela se demora fumando um cigarro. Pouco a pouco os clientes se vão,
saudando-a de passagem dizendo:
- iHasta luego, Seora!
Restaram apenas o dono, largado atrás de seu balcão, e o velho músico que cochilava sem deixar
seu violão, com o toco de cigarro nos lábios. Tudo estava tão calmo que, de repente, uma suave
letargia invadiu Léa. Ela pensava em François e no amor que existia entre os dois, tão forte que
nada poderia derrubá-lo, apesar de todas as vicissitudes passadas. Até mesmo a pequena Claire
havia criado entre eles um laço suplementar: era uma criança bela e bem deles. Eles haviam
encontrado na ilha um bem-estar egoísta, recusando-se a enxergar o que se passava. Apenas um
assunto continuava espinhoso entre eles: a Argélia e a guerra que se desenrolava. Apesar das cartas
que lhes enviava Jean Lefèvre e dos inúmeros jornais franceses que recebiam, Léa recusava-se à
mínima discussão a respeito. Mesmo as perguntas que fazia Charles não eram suficientes para
abalar sua determinação. "Que lhes dêem a independência e que não falemos mais nisso!", dizia ela
para encerrar a conversa sempre que ele evocava o problema. Ela sabia que François mantinha
relações com os membros do governo francês e duvidava de que não fizessem novo apelo para ele,
por uma razão ou por outra.Avida que ela estava construindo aqui o agradava e ela estava decidida
a preservá-la a qualquer preço.
A propriedade de Ramón Valdés situava-se a oeste de Pinar dei Río, a alguns quilômetros de
Vinales, nesta região fértil onde podemos ver as rochas calcáreas em forma de cones, recobertas de
vegetação, os mogotes, que dão uma configuração estranha à paisagem.
Sentados na varanda que cercava a grande casa de estilo colonial, François e Ramón fumavam seus
charutos. Eles se levantaram juntos quando o carro parou junto à pequena escada. François atirou
longe
seu charuto e desceu as escadas de quatro em quatro degraus. "O que é a juventude!", pensou
Ramón com uma ponta de inveja. Léa deixou-se cair nos braços que a envolveram. Como era bom
reencontrá-lo! François lhe permitiu apenas que saudasse seu amigo e a levou para seu
apartamento, despindo-a em segundos. Ela se debateu um pouco, excitando seu desejo. Quando,
enfim, ele a penetrou, ela se entregou e cedeu ao prazer que a invadiu.
O sino anunciando o jantar os arrancou de uma gostosa sonolência. Empurrando-se como dois
menininhos, eles tomaram uma ducha rápida. Quando se arrumaram, a noite já havia caído.
- Dá prazer ver um casal casado há tanto tempo amar-se como jovens apaixonados - disse Ramón
com um grande sorriso. - Mas
- acrescentou ele-, com uma mulher assim tão bela, é compreensível...
"É verdade", pensou Léa, "meu desejo por ele nunca diminuiu, e a cada vez que ele me manifesta
o seu, sempre me dá um frio no estômago. Mas e quando eu não for mais jovem?"
- Por que este ar sombrio? - perguntou François.
- Você ainda irá me amar quando eu for velha?
Ele sorriu, tomou a mão dela e a beijou:
- Como se você não soubesse!... Você é, com as crianças, mesmo antes delas, o que eu mais amo
no mundo: você é a minha mulher. Jamais poderia viver com outra. Amo você por suas qualidades e
seus defeitos, porque tenho sempre medo de perder você, medo de que ame outra pessoa, porque
você é imprevisível, orgulhosa e corajosa, porque com você eu nunca me aborreço e que...
- Se estou atrapalhando o casal, me digam...
- Desculpe, Ramón. Mas esta mulher...
Ele não completou a frase, olhando-a com uma intensidade quase dolorosa.
- Cara senhora, eu sinto muito por tê-lo mantido longe por tanto tempo.
- Adoro esperá-lo. Quando ele não está lá, eu o imagino, mas
se fica ausente por muito tempo, começo a sentir medo de que não volte mais.
Durante os dias que se seguiram, Léa acompanhou François em suas jornadas pelas plantações de
tabaco, visitas às fábricas de charutos, escolas e hospitais criados por Valdés. Os operários e os
empregados do espanhol tinham um ar próspero que não partilhavam os outros habitantes da região.
No entanto, também lá as greves tinham lugar, por una cuestión de princzios, como havia dito um
dos contramestres.
Por sua vez, Adrien e Camilie reclamavam sua mãe. Com pena, Léa retomou a estrada. François
deveria encontrá-los uma semana mais tarde.
Depois de uma viagem tranqüila, Léa reencontrou seus filhos e a cidade de Havana. Feliz em rever
seus pequenos, ela apenas preocupou-se mais tarde com a ausência de Charles. Eram dez horas da
noite quando ela telefonou para a casa do doutor Pineiro e perguntou por ele.
- Meu marido não está - respondeu a esposa dele, Aurora Marquez. - Mas não vemos Charles desde
ontem.
- Sua filha Carmen está em casa?
A hesitação da sra. Pineiro foi perceptível.
- Não... Carmen está na casa de uma amiga.
Sentindo-se mal, Léa desligou. A campainha do jardim soou. Ricardo, o velho guardião-jardineiro,
chegou, seguido de Charles ladeado por dois policiais.
- Buenas noches, sefiora. Hemos preferido traernosotvs mismos a su huo de vuelta.
- eQuépasó?
- Esperemos que nada grave... Se hailaba en ei lugar dónde unos terroristosfueron
detenidos!
Boa noite, senhora. Preferimos trazer nós mesmos o seu filho de volta.
O que aconteceu?
- Esperamos que nada de grave. Ele estava no local onde alguns terroristas foram presos.
- iPero mi hjo no tiene nada que ver con eso!
- Ojalá, seiora. Luego recibirá una convacato ria porparte dei jefe de la policia. Buenas
noches, senora.
Quando partiram, Léa colocou um disco de Édith Piaf na vitrola.
- Dê-me algo para beber - disse ela, sentando-se.
Rapidamente, ela tomou o copo de rum que ele lhe havia servido, enquanto a voz sublime invadia a
sala:
- Sirva-se, me dê um outro e sente-se.
Charles obedeceu, os traços tensos, visivelmente muito cansados.
- Agora, explique-me.
Conhecendo Léa, ele sabia que ela não o deixaria até que recebesse uma resposta satisfatória.
Apesar de seu cansaço, ele resignou-se a contar:
- Eu estava bebendo com os colegas da universidade no café de Ernesto Vera, na esquina das ruas
Aguila e San Lazaro, quando a polícia fez uma batida. Eles prenderam todo mundo. Depois nos
conduziram aos locais da SIM e nos revistaram, e o coronel Faget nos interrogou separadamente.
Mais tarde, foi o coronel Piedra que me fez novas perguntas sobre os ateliês de gráficas
clandestinas, sob a responsabilidade de um grupo de propaganda antiBatista, sobre o esconderijo de
armas... Respondi que era um estudante estrangeiro e que não compreendia o que ele estava me
perguntando, que estava no café pela primeira vez e que não conhecia ninguém além de meus
amigos estudantes.
- Carmen Pineiro estava com você?
Ele ficou perturbado.
- Por que está me perguntando isso?
- Ela não estava em casa quando liguei, perguntando por você que não chegava.
Charles ficou muito pálido e levantou-se bruscamente.
- Eu tenho que sair.
- De jeito nenhum.
- Eu lhe peço, Léa, é muito sério... Ela... ela corre risco de vida!
Durante alguns instantes eles lutaram com o olhar.
- Eu acompanho você.
Depois de se certificarem de que nenhum carro da polícia estava estacionado por lá, seguiram em
direção ao centro, evitando a beira- mar onde os controles eram freqüentes. Charles pediu a ela que
seguisse para a universidade. Em silêncio foram até a rua Vaile. Lá, descendo sozinho do carro,
Charles entrou em um edifício e saiu alguns minutos depois.
- Eu preciso telefonar.
- Vamos ao hotel Inglaterra, o porteiro me conhece, é primo de Ricardo.
Chegando os dois ao hotel, Léa foi ao bar e pediu um daiquiri. Havia muita gente àquela hora, quase
exclusivamente homens e suas acompanhantes. No piano, uma loura de ar cansado, de vestido de
noite, cantava com ares xaroposos. Um americano desalinhado e embriagado, o copo na mão,
esforçava-se para entoar a canção. Charles retorna ao fim de meia hora, desamparado.
- Ela não está em lugar nenhum. Ninguém a viu.
- Você ligou para os pais dela?
Ele faz sinal que sim, as sobrancelhas franzidas por uma intensa reflexão.
- Só consigo pensar na estação... - murmurou ele.
- O quê?
- Temos de ir à estação - gritou, levantando-se.
Diante do hotel, ao longo do Parque Central, os motoristas de táxi os interpelaram. Sob os conselhos
de Charles, Léa seguiu pela rua Bernaza, depois a rua Egido, um quarteirão da Havana Velha pouco
conhecido por ela. Em frente às grades da estação havia uma
espécie de mercado noturno com seus restaurantes e bares freqüentados por uma população pobre
que encontrava lá comida a preço baixo e, em abundância, um rum de qualidade duvidosa. Como
sempre em Havana, os músicos tocavam e cantavam em quase todas as tavernas. Gordas negras,
com cigarro na boca, dançavam, balançando com ritmo seus enormes traseiros.
- Não pare aqui, eles todos virão. Entre à esquerda.
Léa obedeceu e entrou em uma rua estreita ladeada de casas baixas. Sobre uma delas, agitava-se
uma bandeira cubana.
- E a casa natal de José Martí - apontou Charles.
A seu pedido, Léa subiu a capota do carro e trancou as portas. Ele desceu. Sozinha na escuridão ela
acendeu um cigarro, escutando os passos dele cada vez mais distantes. De uma janela aberta, ouviu-
se a confusão repentina de uma briga. Gatos se embolavam na sarjeta soltando miados de raiva e
dor. Um casal fazia amor no canto da entrada de um edifício, iluminado intermitentemente pelo
anúncio de néon vermelho de um bar sórdido. Léa os invejou. Um barulho de passos pesados e
rápidos atraiu subitamente sua atenção. Ela olhou pelo retrovisor: Charles voltava correndo. Ela
abriu rapidamente a porta da direita.
- Rápido! - disse ele, atirando-se sobre o assento. - Eu a encontrei. Dê marcha a ré, vire tudo para a
direita em direção ao porto e siga pela avenida Desamparados, ela margeia a estação. Atenção!
Está completamente esburacado por lá... lá... a passagem da direita... Apague o farol, estamos no
terreno da estrada de ferro.
- Mas eu não estou vendo mais nada!
- Chegamos, pode parar.
Duas silhuetas saídas de parte alguma apareceram, segurando uma terceira. Charles correu para
ajudar a ferida, em seguida colocou- aperto de si, encaixando por precaução sua cabeça sobre os
joelhos.
- Vocês vêm conosco? - sussurrou ele.
- Não, a polícia está na nossa pista. Vamos nos virar. Estamos em segurança aqui... Venha nos dar
informações amanhã.
Eles saíram sem maiores incidentes do quarteirão da estação,
depois seguiram por alguns instantes no mais total silêncio. Léa dirigia reto, o coração batendo.
- Eu levo a menina para casa?
- Não, a casa sem dúvida está sendo vigiada. Temos que encontrar um médico.
- Mas... e o pai dela? -
- Não podemos avisá-lo agora, é muito arriscado. É preciso encontrar algum outro... Você deve
conhecer...
- Desculpe-me, não é culpa minha se estamos todos em boa saúde - disse ela, irritada.
E arrependeu-se de imediato.
- Desculpe-me - disse ela -, estou um pouco esgotada... O que aconteceu com ela?
- Eles a torturaram... e violentaram! - soltou ele, raivosamente.
O carro fez um desvio, quase atingiu um poste ao subir na calçada e imobilizou-se enfim
encontrando o meio-fio.
- O quê? - exclamou ela, voltando-se, incapaz de controlar sua reação.
- Não fique aqui parada, vão reparar em nós.
Um soluço a atirou contra o volante, subitamente assaltada pelas lembranças que imaginou ter
esquecido. Os horrores vividos na França, na Argentina ou na Indochina lhe sobrevieram,
submergindo, ali naquele momento, logo quando Charles e a garota precisavam tanto da sua ajuda.
O jovem colocou a mão no ombro dela.
- Passe para o lado, eu vou dirigir - disse ele gentilmente.
Sob um esforço que ele não poderia imaginar o quanto custava, ela se endireitou.
- Não, tudo bem, já passou. Eu levo vocês para casa.
Só dois dias depois o doutor Pineiro pôde ver sua filha. Quando saiu do quarto em que Léa havia
ficado com ela durante a noite, o homem parecia ter envelhecido dez anos. Deixando-se cair em
uma poltrona, com a cabeça entre as mãos, chorou. Quando acalmou- se um pouco, Léa deu-lhe um
copo d'água.
- Minha criança... minha criancinha... - murmurava ele, abatido, enquanto grossas lágrimas corriam
pelas suas faces, antes de se perderem em seus bigodes.
- Como ela está?
Ele respondeu com um gesto evasivo.
- Você vai dar queixa?
- Não - disse ele.
- Mas por quê? A polícia tortura os filhos de vocês... os violenta... os assassina e vocês não fazem
nada...? - irritou-se Léa.
Ele voltou bruscamente a cabeça para ela e lançou-lhe um olhar de ódio.
- Vocês não poderiam compreender, vocês são estrangeiros em Cuba! Minha mulher e eu, nós
lutamos há anos pela democratização deste país, mas a miséria e a corrupção são tamanhas que as
pessoas não têm mais forças para lutar. Sei o que vocês pensam das pessoas que tomaram a
organização de resistência armada na Sierra Maestra, daquelas que colocam bombas em Havana ou
em Santiago. Sim, é verdade, ainda subsiste um grande desejo de liberdade e de justiça entre o povo
cubano, mas a repressão se fez atroz desde que este governo funesto não hesita em profanar nossas
filhas, em manchar nossa honra...
- Mas... é preciso alertar a imprensa, a opinião pública deve ser informada!
- Os cubanos estão muito bem informados, esteja certa disso. Quanto à imprensa, ela está longe de
ser livre... Quando nosso filho foi preso, registramos queixa por agressão, mas a denúncia jamais foi
levada adiante, além de termos sido submetidos a mil aborrecimentos.
- Mas agora houve um estupro!
- Justamente, nós devemos preservar a honra de nossa filha. Todos os pais aqui fariam a mesma
coisa.
Léa o olhou aterrorizada.
- A senhora acredita que a polícia sabe da presença de Carmen em sua casa? - perguntou ele.
- Acho que não, mas como ter certeza?
- A senhora avisou ao seu marido?
- Não, não confio no telefone.
- Tem razão. Virei buscar Carmen amanhã, porvolta das quatro da manhã, com a caminhonete de
um verdureiro que é um amigo. É o único veículo que não parecerá insólito a uma hora destas.
Charles está aqui? Gostaria de falar com ele.
- Ele saiu bem cedo e não me disse aonde iria; apenas observei que ele estava com calças velhas,
uma camisa desbotada e tênis usados. Surpreendente para um rapaz normalmente mais arrumado...
- O que ele lhe disse a respeito de Carmen?
- Não muita coisa... Parece que foi presa na saída do cinema com exemplares de Revolución.
Alguns homens sem uniforme a empurraram para um carro e a levaram. Ao menos foi o que o
rapaz que a acompanhava contou a Charles. Ele conseguiu fugir a tempo e depois deu o alerta. Com
outros companheiros eles conseguiram rapidamente identificar o local para onde ela havia sido
levada: um porão que dava para uma ruela, atrás do convento de Santa Clara do qual a SIM serve-
se para alguns de seus interrogatórios. Depois de várias horas de vigilância, eles a recuperaram,
prostrada, abandonada atrás de velhos caixotes por seus carrascos, que haviam desaparecido, não
se sabe porquê. Mas, acreditando vê-los voltarem, os companheiros de Carmen transportaram-na
para o setor da estação onde dispõem de vários esconderijos.
- A senhora já ouviu falar do Diretório revolucionário? - perguntou ainda o doutor Pineiro.
- Não, do que se trata?
- É um dos movimentos revolucionários do país que reúne mais particularmente estudantes,
universitários e que está fortemente implantado em Havana, contrariamente ao M-26 de Fidel
Castro, que cobre especialmente a província do Oriente, ao sul da ilha.
- O senhor acha que Charles pode fazer parte deste Diretório?
- - Tudo leva a crer que sim... Que dia é hoje?
- Quarta-feira, eu acho... Sim, quarta-feira, 13 de março. Por quê?
Sem resposta, ele levantou-se e dirigiu-se para a porta.
- Obrigada por tudo o que a senhora fez por Carmen. Sua irmã, Suzel, pode vir visitá-la? Acho que
Carmen se sentirá melhor ao vê-la junto a si - acrescentou ele sem se virar.
- Naturalmente, ela pode até mesmo ficar aqui, se desejar.
- Eu lhe agradeço, mas isso não será necessário. Se tudo acontecer como eu espero, a partir de
amanhã levarei Carmen para um lugar seguro.
O médico partiu, Léa voltou ao quarto onde a jovem estava instalada. Ela havia terminado por
cochilar, mas dormia um sono agitado, com gemidos, debatendo-se por alguns instantes. As lágrimas
desciam do canto de seus olhos fechados. Aqui e lá, em seu belo rosto, os traços marcados pelos
golpes estavam ficando roxos.
Uma hora mais tarde, Suzel Pineiro apresentou-se na entrada da casa em companhia de dois jovens.
- Bom dia, sra. Tavemier. Papai julgou prudente nos cercarmos de algumas precauções... - disse ela
mostrando seus guarda-costas.
- Isso a incomoda?
- Não, ao contrário, precisarei ir à cidade.
Desde o início da manhã, Charles havia se reunido a um grupo emboscado em um subsolo da rua 19.
Echeverría terminava de escrever o discurso que ele pronunciaria mais tarde, depois da tomada de
Radio-Reloj. Seus companheiros verificavam o bom funcionamento das carabinas M-1 e dos dois
rifles Johnson. Todos estavam tensos e a maioria se recusou a experimentar a parca refeição
preparada por um deles. Charles estava com apetite. Por volta das três horas, Julio García
Oliveraveio encontrá-los. As três e dez, três carros deixaram a rua 19 com quinze homens armados.
Charles tomou lugar no segundo veículo, em companhia de José Antonio Echeverría, Fructuoso
Rodríguez e Joe Westbrook. O carro de Otto Hernández e de Carlos Figueredo deveria estacionar à
entrada da estação de
rádio, conduzido por Juan Nuyri, na esquina da rua M e da 21 para interditar o acesso. O
itinerário a seguir para chegar ao estúdio onde José Antonio deveria lançar seu apelo havia sido
reconhecido anteriormente por Julio García e José Azzeff, guiados pelo jornalista Floreal
Chomón, membro do Diretório. lhdo desenrolou-se como previsto: José Azzeff e Pedro Valdés
Brito partiram em reconhecimento e voltaram para avisar que a via estava livre; o soldado que
encontraram diante de um corredor não teve nenhuma resistência em entregar seu revólver a
Echeverría, que o colocou no bolso. Eles entraram no estúdio onde estavam os apresentadores
Hector de Soto e Floreal Chomón. Eram já três horas e vinte e um minutos. Sob a ameaça da
arma de José Antonio, Hector de Soto leu o seguinte comunicado:
"Radio-Reloj. Informamos que o palácio presidencial acaba de ser atacado. Um grupo
importante de civis não identificados, armados de fuzis e de armas automáticas, abriu fogo contra
o palácio presidencial, engaj ando-se em duro combate contra aguarda. Beneficiando- se do
efeito surpresa, os atacantes conseguiram penetrar no interior do palácio, onde o presidente da
República, Fulgencio Batista, encontrava-se trabalhando... Houve numerosas perdas civis e
militares. Novos contingentes de civis chegaram ao local e, colocados bem próximos, atiraram no
palácio. Radio-Reloj continuará a lhes informar."
Mensagens publicitárias foram difundidas em seguida, Floreal Chomón vendendo uma marca de
charutos, bacalhau da Noruega, um curso de inglês e um achocolatado que assegurava uma
"alimentação perfeitamente balanceada".
Joe Westbrook fez então sua entrada no estúdio. Depois de um novo minuto de mensagens
publicitárias, Hector de Soto fez a leitura de um certo "Relatório oficial do estado-maior do
exército", elaborado pelo Diretório:
"Nosso correspondente na cidade militar, Luis Felipe Bríon, nos informa que as tropas e oficiais
do exército, da marinha e da polícia, reunidos na caserna Cabo Parrado, no campo de Colombia,
acabam
de tomar comando das forças armadas e tornam público o comunicado seguinte: 'Face à grave crise
que atravessa a nação, os oficiais e suboficiais que compõem as escolas militares de nosso país,
desejando cumprir seu dever mais sagrado, qual seja, salvaguardar a paz pública, e respondendo ao
sentimento da maioria de seus membros, retiram de seus comandos o general Tabernilla e outros
oficiais de alta patente, partidários do ditador Batista."
O dito "relatório oficial" foi divulgado uma segunda vez, seguido da propaganda de uma loja de
peles. Enfim, o apresentador voltou às notícias do dia:
"Radio-Reloj informa: devido à gravidade dos atuais acontecimentos, o presidente da federação
estudantil universitária e líder do diretório estudantil, José Antonio Echeverría, vai proceder à leitura
de um discurso destinado ao povo cubano:
"Povo de Cuba! No momento em que vos falo, o ditador Fulgencio Batista acaba de ser executado.
Trata-se de um ato revolucionário. O povo de Cuba foi acertar suas contas com ele dentro do
próprio covil do palácio presidencial. E somos nós, o Diretório revolucionário, que, em nome da
Revolução cubana, demos o golpe de misericórdia nesse regime ignominioso. Cubanos que estão me
ouvindo: acabamos de eliminar..."
Um problema técnico impediu o fim da transmissão do discurso do presidente da FEU:
- Agora, todos à universidade! - gritou ele, precipitando-se pelo corredor.
Em grande número, os membros do pessoal daRadio-Reloj, que haviam escutado as mensagens e o
discurso, estavam de pé no corredor e nas escadas. Eles se afastaram para dar passagem a
Echeverría e a seus companheiros que empurravam diante deles Floreal Chomón e Hector de Soto.
Eles dirigiram-se para o elevador. Passando pela administração central, José Antonio gritou:
- Eu pedi que destruíssem esta porcaria!
Ele atirou várias rajadas nos aparelhos. Os vidros voaram em pedaços.
O elevador não chegou, eles tomaram as escadas. Na rua, a confusão atingia seu auge, pessoas
corriam para todos os lados, alguns atiravam-se no chão, ou mesmo nas calçadas ou entre os carros
que barravam a passagem, todas as portas abertas. José Antonio subiu no veículo no qual
encontrava-se Carlos Figueredo e dirigiu-se a seu amigo José Azzeff:
- Sabe o que mais, Moro?'4 Posso morrer tranqüilo agora!
Os dois outros carros partiram. O engarrafamento causado pelo canteiro de obras do hotel Hilton os
separou. Carlos Figueredo continuou na rua M até a rua Jovellar, atravessou a rua L e em seguida
seguiu para a universidade. De um só golpe, eles encontraram-se frente a frente com uma
perseguidora. Uma ordem havia sido dada para retardar por todos os meios os reforços que
convergiam para o palácio presidencial. O motorista parou o carro transversalmente à rua. Quando
o veículo da polícia veio abordá-los, Carlos abriu fogo. Logo os policiais replicaram com uma rajada
de metralhadora que atingiu o pára-brisas. Ninguém se feriu. Seguido por seus companheiros,
Echeverría saltou do carro atirando.
- Vamos para a Alma Mater! - teve tempo de gritar antes de ser atingido.
Charles precipitou-se na direção dele para levá-lo a um lugar seguro, mas alguém o derrubou ao
chão. José Antonio levantou-se e tirou de seu bolso o revólver tomado do soldado na Radio-Reloj.
Ele atirou mirando o interior do carro da polícia; um guarda sentado atrás foi abatido. O rosto pálido,
dentro de seu terno cinza, ele parecia estar cochilando.
Curvando-se, Carlos Figueredo, Fructuoso Rodríguez e Charles seguem para a universidade. Na
entrada da ruaJ, aqueles que haviam participado da ocupação da Radio-Reloj haviam colocado uma
metralhadora calibre 30 carregada. Uma outra encontrava-se apontada sobre o Castillo del Principe
do terraço da faculdade de arquitetura. O pequeno grupo estava sem notícias do ataque ao palácio
presidencial e escutava apenas algumas rajadas de balas.
Sob as belas árvores da universidade, reinava um ambiente lúgubre: o povo de Cuba não veio apoiá-
los e apenas um mecânico havia conseguido romper os cordões da polícia. Um dos chefes do
Diretório, Faure Chomón, irmão de Floreal Chomón, ainda que ferido, conseguiu reunir-se a eles nas
barbas da polícia. Aos seus camaradas, ele fez o relatório do assalto contra o palácio e de seu
fracasso, apesar da audácia e da valentia dos insurgidos. Entre eles, vários haviam encontrado a
morte. Por um breve instante, Chomón perdeu a consciência. Quando voltou a si, perguntou:
- Não estou vendo Echeverría...?
Todos abaixaram a cabeça. Fructuoso Rodríguez falou com uma voz surda olhando direto para ele:
- El Gordo caiu como um bravo. Desprezando sua vida, ele avançou na direção de um carro da
polícia e atirou nos guardas através do vidro. Ele caiu no chão, ajoelhou-se e tirou um revólver e
começou a atirar através do vidro. Foi neste momento que uma rajada de metralhadora o atingiu.
Ajudado por Juan Nyuri, Faure Chomón levantou-se com dificuldade e disse, com uma voz sombria:
- Estou mal.
- Vá até a casa de minha mãe, no número 9 da rua Ronda - recomendou-lhe Enrique Rodríguez
Loeches. - Olha o que está acontecendo daquele lado! - gritou ele apontando o dedo na direção da
rua 23.
Uma longa coluna de tanques e veículos blindados subia na direção deles.
Depois da partida de Faure Chomón, o pequeno grupo se reuniu no térreo da reitoria para traçar um
primeiro balanço.Alguns estavam prontos para lutar até a morte, outros para se esconder e aguardar
as condições mais favoráveis para a retomada da luta. Charles estava em silêncio. "O que podemos
fazer? - pensou ele. - Nós somos menos de quinze." Foi decidido que eles iriam embora levando as
armas e seguiriam para os pontos de encontro habituais. Com armas na mão, eles deixaram a colina
da universidade e tentaram
alcançar seus esconderijos. Charles partia com Fructuoso Rodríguez
quando sejuntaram a eles Armando Hemández ejulio García Olivera.
Na ruaJ, eles pararam uma caminhonete das Cafereras Nacional e
forçaram o motorista a descer. Naquele momento, um Studbaker
surgiu.
- Suba! - gritou Léa.
Aproveitando-se de sua hesitação, Armando fugiu enquanto
Charles subia no Studbaker. Léa fez uma meia-volta rápida. As
pessoas
corriam por entre os muros, ambulâncias passavam a toda
velocidade, sirenes ligadas, enquanto os policiais tomavam posições
em todas as esquinas. Com sangue-frio, Léa entrou em uma rua
ainda mais tumultuada que a anterior, evitando com perícia os
pedestres afobados e os motoristas desorientados. Enfim, eles
desembocaram no Malecón, deserto neste dia de seus visitantes
habituais.

Capítulo Quatro

O ATAQUE AO PALÁCIO PRESIDENCIAL e a ocupação do estúdio da Radio-Reloj tiveram
por conseqüência a colocação da polícia e do exército de Batista em estado de alerta permanente.
As prisões foram numerosas e os novos prisioneiros reuniram-se, no principe, aos que já haviam
sido presos nos dias anteriores a 13 de março. Entre eles, Carlos Franqui, preso no dia 7 de março,
mantido sem notícias de sua mulher e de sua mãe. Ele dissimulava sua angústia da morte,
confortando seus companheiros. Da prisão, ele pôde fazer chegar uma carta a Frank País, em
Santiago:
Frank,
Somos aproximadamente duzentos prisioneiros: mais de cem do M-26, uns quarenta do
Diretório revolucionário e uns vinte de grupos autênticos de Menelao, e cerca de dez
comunistas. Os comunistas não acreditam na insurreição. Eles criticam as sabotagens e a
guerrilha. Dizem que nós fazemos o jogo dos terroristas no poder Dizem que o movimento do
26 de Julho é golpista, aventureiro e pequeno-burguês. Eles obstinam-se a crer em sua
hipotética "mobilização
de massa" e ao clássico siogan "Unidade, Unidade" Os comunistas não
compreendem a natureza da tirania e não acreditam na possibilidade da Revolução, dos
quais se dizem, no entanto, os únicos representantes. É um partido burocrático, reformista
e politiqueiro, que jamais superará suas limitações. Há aqui um grupo importante de
pessoas do Diretório. Eles estão muito sentidos pelo fracasso do ataque ao palácio. Estão
próximos de nós, com algumas diferenças: por exemplo, sobre o papel de Havana,
superestimado por eles e subestimado por nós, sobre o interesse de combater até o fim,
sobre a luta na Sierra; eles estão preocupados com o caudilhismo de Fidel, pelas
críticas formuladas por ele diante do atentado contra Blanco Rico, críticas que, em efeito,
não eram justas...
Os acontecimentos do dia 13 de março impediram o doutor Pineiro de vir buscar sua filha. Carmen
permaneceu então na vila de Miramar, em companhia de sua irmã. Para não alarmar os
empregados, os dois guarda-costas se retiraram.
Carmen lembrava-se lentamente das sevícias às quais havia sido submetida. Ela tinha grande
admiração por Léa, recusando-se a apiedar-se de sua sorte.
No dia seguinte ao ataque do palácio, um policial apresentou- se na casa, levando uma convocação
em nome do sr. e sra. Tavernier. Estava estipulado que eles deveriam comparecerem companhia de
seu filho, Charles d'Argilat.
Na hora marcada, Léa apresentou-se com Charles, que já havia retomado seu papel de estudante
de boa família.
- O Sr. Tavernier não está com vocês? - interrogou o oficial de polícia, um homem elegante em um
terno bege-claro e cujos lábios finos estavam sublinhados por um fino bigode, tão escuro quanto os
seus cabelos.
- Ele está trabalhando na região de Pinar del Río. Não consegui encontrá-lo.
- Madame, este será apenas um interrogatório de rotina. Seu embaixador já nos deu garantias de sua
família. Ele está triste que
o fechamento da universidade impeça este jovem de continuar seus estudos. Esta ociosidade
forçada o leva a freqüentar pessoas pouco recomendáveis... Ele tem, eu imagino, aulas particulares
e trabalha com um advogado? Isso é muito bom. Vocês pretendem passar muito tempo em Havana?
- Isso depende de meu marido.
- Sim, é claro, eu compreendo - disse o oficial, levantando-se.
- Nós podemos partir? - perguntou Léa, também se levantando.
- Mas é claro, cara senhora. Fico muito feliz em conhecer uma mulher tão bonita quanto a senhora...
Mas, acredite-me, fique fora da agitação política. Faça compras, vá à praia ou ao clube, jogue
bridge... Divirta-se: Cuba é um paraíso!
- Não para todos, se julgarmos pelos acontecimentos dos últimos dias... - ela não pôde impedir-se de
responder.
Logo arrependeu-se.
- Madame, a senhora é uma estrangeira e o que se passa aqui não lhe diz respeito de forma alguma.
Nós não gostamos que venham meter o nariz nos nossos negócios nem de receber lições. Eu lhe
repito muito amigavelmente: não se meta com a política. Senão, se houver uma próxima vez,
posso me mostrar menos... compreensivo. Isso também vale para você, jovem. Daqui em diante,
meus oficiais ficarão de olho em vocês. Não se esqueçam.
Léa despede-se friamente. A entrevista, que a havia feito reviver a lembrança do interrogatório ao
qual havia sido submetida pelo impiedoso Massuy', na avenida Henri-Martin, em Paris, a fez sentir-
se mal. Ela havia experimentado o mesmo medo, o mesmo desgosto. Este Esteban Ventura parecia
com Massuy: um assassino sem o menor escrúpulo.
Nas ruas, o exército patrulhava agora e as forças policiais procediam no controle dos pedestres.
Caía sobre Havana uma atmosfera pesada e tensa. Cordões de arames farpados e montes
de sacos de areia cercavam a universidade. Grupos de mais de cinco pessoas eram firmemente
mandados dispersarem-se. Léa e Charles subiram pela rua San Lazaro.
- Não gosto desta rua - disse Léa - "é uma rua falsa. Quero dizer que à primeira vista, em seu início,
diríamos que é a rua de uma cidade como Paris, Madri ou Barcelona. Em seguida, ela revela- se
medíocre, profundamente provinciana. A seguir, chegando ao parque Maceo, ela alarga-se para
transformar-se em uma das avenidas mais desoladoras e mais feias de Havana. Implacável ao sol,
obscura e hostil à noite, seus únicos pontos de repouso são o Prado, a Beneficência e a escadaria da
universidade. Ah, há uma coisa, sim, que me agrada na San Lazaro: é, aos primeiros conjuntos de
casas, a surpresa do mar...".
- Você fala desta rua como Cabrera Infante.
- Quem é?
- Um jornalista, um escritor, não sei muito bem... Eu o conheci com Carlos Franqui na revista
Carteles. Ele é loucamente apaixonado por sua cidade, da qual conhece os mínimos detalhes;
sobretudo os bares suspeitos e as boates da noite!
Eles viraram na rua Espada e seguiram até a rua Principe, estacionando ali. Léa se ajeitou no banco,
distraída, mas permaneceu com as mãos no volante, o olhar vago.
- Houve alguma coisa? - perguntou Charles.
Ela virou a cabeça para ele e o observou como se o visse pela primeira vez.
- Tenho a impressão de nada saber a seu respeito, de estar na presença de uma pessoa estranha.
Tenho de me beliscar para ter bem certeza de que você é a criança que vi nascer. Não posso
impedir-me de pensar em sua mãe que confiou-o a mim. Ela terá direito de me criticar por não tê-lo
protegido o suficiente...
- Não diga isso - disse ele, apertando-a contra si. - Mamãe, se fosse realmente aquela que você me
descreveu, não faria a você
nenhuma crítica. Ela compreenderia que, encontrando-me aqui em circunstâncias semelhantes,
liguei-me àqueles que combatem a ditadura. Vocês não agiram de outra forma, você e ela, na
França...
- Sem dúvida, mas era o nosso país, além do mais estava sob ocupação...
- Mas quando você e François, estiveram na Argentina, não estavam no país de vocês, e no entanto
lutaram por uma causa que não era sua: foi pela justiça!
- Oh, a justiça...
Léa sentiu Charles se retesar e compreendeu que o tom descrente que ela havia empregado o tinha
chocado. Levantando os ombros ela ligou o carro. O jovem a fez parar.
- Oqueé?
- Espere por mim aqui. Não se mexa de forma alguma.
Ele empurrou a porta do carro com a perna e afastou-se em grandes passadas.
- Charles!... Volte!...
Três policiais que atravessavam a rua voltaram-se para olhá-la. Um deles hesitou em ir na direção
dela, mas um de seus colegas o impediu. Seu coração só voltou a bater quando ela os viu retomar
seu caminho. Nesse meio tempo, Charles havia desaparecido. Furiosa e inquieta, ela acendeu
nervosamente um cigarro.
Desde o ataque ao palácio presidencial, Charles estava sem notícias de seus companheiros. Um
instante mais cedo, ele havia reconhecido um deles, ou mais exatamente o jovem comunista amigo
de Joe Westbrook, Armando Marcos Rodríguez, que todo mundo apelidava de Marquitos em razão
de sua arrogância, suas pretensões intelectuais e de seus gestos efeminados. Eles só gostavam dele
ou o suportavam por causa de sua amizade com Joe. Charles não tinha nenhuma simpatia por ele.
Marquitos dizia-se oposto à insurreição como meio de derrubar Batista. Fructuoso Rodríguez e Juan
Pedro debochavam de sua falta de coragem. Eles evitavam falar diante dele das ações a serem
empreendidas, dos locais de encontro, dos locais
que serviam de refúgio ou de esconderijo. Ele não deveria saber onde viviam os responsáveis pelo
Diretório. No entanto, ele freqüentava o apartamento 201 do número 7 da rua Humboldt, alugado
por um amigo deJoe, Gustavo Pérez Cowley. O imóvel possuía a vantagem de ocupar uma situação
estratégica, ao mesmo tempo próximo da universidade, daRadio-Reloj, dos grandes hotéis e do
quarteirão dos negócios. Avista para o Malecón também não havia sido por acaso na escolha do
apartamento.
Charles puxou o braço de Armando, que teve um sobressalto, deixando escapar um grito. Quando
ele se virou, seu rosto estava molhado de suor.
- Bom dia, Marquitos! Desculpe-me por assustá-lo. Você por acaso não viu Joe e Fructuoso?
- Não gosto que me chamem assim. Especialmente um estrangeiro... Eu também procuro Joe. Se
você o vir antes de mim, diga que eu passarei esta noite na rua Humboldt.
- Isso não será necessário...
- Como vai você, velho? - perguntou um jovem, colocando a mão no ombro de Marquitos.
"Ele é louco de andar pelas ruas assim", pensou Charles.
Joe Westbrook, seus cabelos negros cuidadosamente penteados com gomalina, o rosto pálido e
imberbe, tinha o aspecto de um rapaz muito distinto - nada de um perigoso revolucionário comparável
àqueles da Sierra Maestra...
- Vamos andar - cochichou ele. - Se ficarmos parados aqui conversando, vamos chamar atenção...
Estou contente dever você novamente, francês. E você também, Marquitos.
Eles caminharam em algazarra como um grupo de jovens normais.
- O que você queria me dizer? - perguntou ele um pouco mais longe a Marquitos.
- Nada... Queria apenas saber se você estava precisando de alguma coisa.
- Eu agradeço. Voltei para casa: tudo está bem.
- Você sabe, se eu puder ajudar...
- Sim, eu sei.
Charles foi abatido pelo tom com o qual Joe lhe havia respondido. Percebia-se uma espécie de
cansaço em sua voz, como se ele não acreditasse nas palavras do outro.
- Você nos oferece um café? - propôs ele, com bastante desenvoltura.
- Com prazer - apressou-se Marquitos.
- Olhe, o vendedor de café da Infanta não está lá - observou Charles.
- É por causa dos agrupamentos, a polícia os proibiu. Vamos para a Rampa - sugeriu Marquitos.
- Isso vai nos tomar bastante tempo - objetou Charles. - Minha mãe está me esperando.
- Você tem razão, pode ir. Nossas mães já têm ocasiões suficientes para se preocuparem conosco -
concluiu Joe, apertando- o nos braços.
"Como ela é bonita", pensou Charles, abrindo a porta devagar. Léa estava refugiada no sono, o que
fazia com freqüência quando estava preocupada ou quando simplesmente tinha que fazer prova de
paciência. Esta faculdade de dormir em qualquer lugar divertia François. Ao menor barulho ela
acordou, levemente descabelada.
- Não gosto que você me deixe sozinha desta forma. Já se esqueceu das ameaças daquele policial?
Que ele disse que nos mandará seguir? Enquanto Carmen estiver em casa é bom evitarmos que nos
observem.
- Você tem razão, não pensei nisso.
- Então pense! Ou fique na sua, se não quer que todos nós sejamos presos!
Humilhado, Charles concordou; ele ainda tinha muito o que aprender. Eles dirigiram lentamente e em
silêncio até a casa.
Adrien e Camille correram na direção deles gritando:
- Mamãe, mamãe... Papai chegoul
François aproximou-se com Claire em seus braços.
- Enfim, aí está! - disse ela, abraçando-o.
Com sua mão livre, ele levantou o rosto dela e colocou os lábios nos seus. A pequena riu e gesticulou, dando
beijos em um e em outro.
- Você, deixe a senhora e o senhor - interveio Philomène levantando a criança dos braços do pai.
Parecia que os dois mais velhos só esperavam por isso. Precipitaram-se sobre François, apertando Léa.
- Papai, lembre-se de que você me prometeu levar-me para pescar...
- Papai, a senhorita Hadriana diz que eu sou a melhor aluna do curso de dança...
- Papai, ganhei de Julio no torneio de tênis da escola...
- Papai, você agoravai ficar conosco? Não quero mais que você vá embora!
- Vou ficar tempo suficiente para levá-lo para pescar, Adrien. E você, Camilie, para vê-la dançar.
- Hurra! Hip, hip, hip, hurra! - exclamou Adrien, executando em volta dos pais uma espécie de dança do
escalpo, logo imitado por sua irmã.
- Acalmem-se, crianças - disse Léa, rindo com a alegria deles. - Vejam, Philomène já vem buscá-los para
almoçar. Vamos, rápido!
Agarrados aos panos da túnica de Philomène, os pequenos não paravam de saltitar. A jovem vietnamita ria
com eles.
- Gosto muito de ouvi-los rir - disse Léa, seguindo-os com os olhos.
François a abraçou mais apertado; as lembranças da Indochina voltaram com força.
- Nós recebemos novidades de Lien - anunciou a jovem mulher. - Ela abriu um orfanato em Hanói para as
crianças feridas pela guerra.
- Isso é bem dela - murmurou François. - Querida Lien...
a vida não deve ter sido fácil para ela. Nós deveríamos ter insistido para que ela voltasse para a França.
- Não, François. O lugar dela é lá, ela sofreria muito se ficasse longe de seu país.
- Você tem razão, ela não seria feliz na França: os franceses não gostam muito de estrangeiros. Para muitos
deles, ela seria apenas uma nhàque... Recebi suas mensagens ontem apenas, mas não estavam claras.
Voltando de umaviagem a ilha des Pins com Ramón, nós soubemos do que se passou aqui e em Santiago.
Valentão, o golpe da Radio-Reloj! E completamente idiota... Batista deve ter ficado furioso durante o ataque
a seu palácio... Onde vocês estavam nesta hora? E Charles? Ei! Onde você vai? Pode ao menos vir me dizer
bom dia...
Charles aproximou-se como se obrigado.
- Não parece ter gostado de me rever?
- Não é isso - disse o rapaz, embaraçado, dando uma olhada para Léa.
Ela fingiu que não havia notado. Mas a troca de olhares não escapou a François. "O que estes dois estão me
escondendo?", perguntou-se ele.
- Vamos, conte! - ordenou ele pegando-o pelo braço. - Bom Deus, como você cresceu, vai ficar mais alto que eu,
logo, logo.
Eles entraram, seguidos por Léa. O telefone tocou naquele instante e François atendeu.
- Alô?... Sim, sou eu... Não compreendo... Quando?... Está certo, amanhã, às nove horas...
Ele recolocou o fone no gancho lentamente e virou-se na direção dos dois, o rosto preocupado.
- Quem era? - perguntou Léa.
- A polícia... Isso não parece espantar vocês... Vocês não dizem nada? Este sr. Esteban Ventura parecia
conhecê-los bem, no entanto. Não gosto disso: a polícia deste país é tão corrupta quanto o seu
mestre, Batista. E não me agrada que ela se interesse por minha família. Preciso saber por quê.
Sobretudo, digam a verdade que isso nos fará ganhar tempo.
- Você fala ou prefere que seja eu? - perguntou Léa a Charles, dirigindo-se a uma varanda florida
que se elevava a alguns passos da casa.
Charles refletiu rapidamente: o que ele tinha o direito de revelar? A polícia não parecia ter provas de
sua ligação com o Diretório, nem de sua participação na tomada da Radio-Reloj, nem da presença
de Carmen em Miramar. Léa compreendeu intuitivamente o seu dilema.
- Vou falar em seu lugar; como não sei grande coisa, não me arriscarei a embaraçar você... Na
véspera do 13 de março nós recolhemos uma colega de Charles, Carmen, depois das torturas e a
violação a que os policiais a submeteram. Até hoje, seu pai, que é médico, ainda não pôde resgatá-la
sem risco. Para todo mundo, inclusive a polícia, ela está desaparecida. Aliás, é espantoso que ainda
não tenha havido indiscrições nem da parte das crianças, nem dos empregados...
- As crianças estão a par?
- Não exatamente, mas fazem perguntas: por que o doutor veio? Por que a porta de um quarto está
sempre fechada? Etc.
- Esta jovem deve partir o mais rápido possível, ela não está certamente mais em segurança aqui e
sua presença nos coloca a todos em perigo. Vocês não têm outras novidades do mesmo gênero para
mim, têm?
Léa e Charles se entreolharam.
- Encontrei Charles com um revólver perto da universidade, no dia 13 de março...
François franziu as sobrancelhas.
- Você está querendo me dizer que este garoto participou do golpe do 13 de março?
Léa fez que sim com a cabeça. Contra todas as expectativas, ele estoura na gargalhada.
- Você que queria uma vida tranqüila ao sol, não mais se misturar com conflitos, guerras... Está em
plena revolução! O que
você quer, minha querida? Só posso dizer que a vida burguesa, uniforme, sem grandes
preocupações, não é para você.
- E isso faz você rir?
- E vou fazer o quê? - exclamou ele tomando-a em seus braços.
Por sua vez, Léa também irrompe em um riso louco, para o grande espanto de Charles.
Decididamente ele não compreendia nada a respeito deste homem e desta mulher.
- Madame! Telefonema para a senhora - gritou Philomène da varanda.
Quando ela entrou na casa, François voltou-se para Charles; não ria mais.
- Até que ponto você está engajado nesta aventura?... Não estou perguntando detalhes. É importante
que eu saiba para tomar as medidas que se impôem.
- Eu estava com Echeverría no momento de seu assassinato.
- Sei... Você está bem mais comprometido do que eu pensava. Léa está a par?
- Muito parcialmente.
- De qualquer forma, ela já sabe demais. Quanto a você, espere ser preso a qualquer momento.
- Mas Ventura...
- Você não imagina que ele não sabe o que pensar sobre você? O que pensam seus camaradas
revolucionários?
- Eu não disse nada a eles.
- Será preciso que você deixe Cuba... Não apenas você está em perigo, mas é perigoso para os
outros... Nós retomaremos esta conversa mais tarde. Olhe que Léa está voltando.
Ela sentou-se entre os dois, muito pálida. De um gole, esvaziou o copo que tinha na mão.
- Mais uma catástrofe? - Inquietou-se François.
- Prenderam o doutor Pineiro... o pai de Carmen.
- Então eles não vão tardar a passar por aqui... Charles, vá procurar sua amiga, vou levá-la.
- Para onde? - assustou-se Charles.
- Para a embaixada da França, é o único local em que posso pensar no momento... Espero que o
embaixador não lhe recuse o asilo político.
Charles precipitou-se na casa e um pouco depois voltou, segurando Carmen.
- Bom dia, senhorita. Sou o pai de Charles. Você já está a par do nosso plano?... Bem, não se mexa
daqui, vou buscar o meu carro.
Pouco depois, ele parou o carro próximo à entrada. Depois de ver Carmen deitar-se no banco
traseiro, ele a cobriu com uma manta de viagem.
- Venha - ordenou ele a Charles.
- Eu vou com vocês - disse Léa.
- Não - disse François. - Você fica aqui, apague todos os traços da passagem dela e espere pela
nossa volta.
O coração apertado, ela os observou afastarem-se.
No fim da tarde, quando Esteban Ventura e seus homens se apresentaram na casa da família
Tavernier, encontraram uma verdadeira festa. Léa veio recebê-lo, fresca e elegante em um vestido
de coquetel bem decotado.
- Boa noite, senhor comissário... ou comandante? Não me tome por mal, não conheço nada da
graduação dos oficiais cubanos - sorriu ela.
- Ah, é o senhor, Ventura? O que o traz na casa de minha encantadora amiga, a senhora Tavernier?
- perguntou o ministro do interior, Santiago Rey, tomando o braço de Léa.
- O sr. Ventura acredita que eu sou uma perigosa revolucionária - disse ela, apoiando a cabeça no
ombro do ministro.
- Uma revolucionária! Você está brincando, querida amiga?
- Gostaria de estar - suspirou Léa -, mas o sr. Esteban já nos convocou, a meu filho e a mim.
Apesar de sua corpulência, o ministro inclinou-se para o chefe de sua polícia e o agarrou pelo
uniforme.
- Triplo imbecil! - gritou-lhe ele no rosto -,você não é capaz de fazer a diferença entre uma dama e
uma revolucionária?!
- Mas senhor ministro...
- Cale-se, idiota! Você quer criar um incidente diplomático? O embaixador da França está aqui com
o embaixador do Brasil e o cônsul da Grã-Bretanha...
- Mas senhor ministro...
- É suficiente. Retirem-se, nós conversaremos mais tarde.
- O senhor não vai aceitar um drinque, sr. Ventura? - sussurrou graciosamente Léa.
Esteban Ventura não responde e parte. A um sinal dele, seus homens o acompanham.
- Ele não parecia contente - disse Léa, levantando os ombros.
- Em sua opinião, senhor ministro, o que ele veio fazer aqui? Santiago Rey lança-lhe um olhar duro.
"Ela ultrapassou os limites", pensou François, que havia escutado a pergunta de sua mulher. Não era
o momento certo de se confrontar o poderoso ministro do interior!
- Ah, senhor ministro, venha - interrompeu-os François. - Gostaria de oferecer-lhe alguns exemplares
destes charutos dos quais lhe falei, há algum tempo, na embaixada. O conselho de um conhecedor
como o senhor me será precioso.
Os dois homens dirigiram-se para a sala de fumantes, acompanhados do embaixador do Brasil e do
cônsul britânico.
Repentinamente a sós com Léa, o sr. Grousset, o embaixador da França, disse-lhe em voz baixa:
- Seu marido me colocou em uma situação complicada. Arrisco- me aos piores aborrecimentos por
ter acolhido uma terrorista.
- Sim, mas ela arrisca-se a morrer.
- Vocês não acham que exageraram um pouco?
- Infelizmente, o senhor sabe bem que não.
- E suponho que não tem idéia do tempo que será preciso mantê-la na embaixada?
- Não, seu pai foi preso, ele não pode cuidar dela.

- Nós vamos tentar fazê-la chegar a Miami. Mas isso não será fácil, ela corre o risco de ser presa
assim que atravessar a embaixada... Mas posso me permitir um conselho? Vocês também deveriam
partir para Miami para fazerem-se esquecer por algum tempo. O que acha?
- Preciso falar com meu marido...
A porta da sala dos fumantes foi reaberta e os quatro homens saíram detrás da fumaça azulada de
seus charutos.
- Notável! - extasiou-se o ministro.
Ele deu uma profunda baforada que aumentou ainda mais seu grande nariz e fez seu queixo duplo
tremer. Umidos, os lábios espessos que sugavam o puro eram obscenos. Léa virou a cabeça para
dissimular seu nojo.
- Conto com vocês esta noite, não é? Convidei alguns amigos para a première do novo espetáculo do
Tropicana. Vocês verão, é magnífico. Uma de minhas amigas, Miranda, é a estrela do espetáculo:
ela é divina... Uma cadência de rainha como só os cubanos possuem... Uma jóia! Coloque sua roupa
mais bonita, senhora...
Ensaiando um passo de rumba, Santiago Rey dirigiu-se para a saída, rapidamente seguido de um
jovem obsequioso, de tez morena com os cabelos reluzentes de brilhantina. François o acompanhou
até o seu carro onde dois gorilas abriram-lhe a porta.
- Eu ouvi mal - disse Léa ao retorno do marido - ou nós vamos ao Tropicana com ele?
- Não temos escolha. É preciso realmente que ele acredite que somos inofensivos e unicamente
preocupados com charutos, dólares e prazeres...
Eles subiram os degraus da varanda onde os três diplomatas os aguardavam.
- Obrigada, meus amigos, por se prestarem a este teatro.
- Meu caro Tavernier, não precisaremos repeti-lo com freqüência. O mais difícil, no momento, será
fazê-los sair do país...
- Além do mais, desde o caso da embaixada do Haiti, nós nos tornamos objeto de vigilância
redobrada - acrescentou o embaixador do Brasil.
- Um de nossos agentes me informou que um barco partirá para Miami daqui a quarenta e oito
horas. Já reservei quatro lugares a bordo - anunciou o cônsul britânico.
- Por que quatro? - perguntou Léa.
- E melhor sobrar do que faltar, nunca se sabe...
- Eu lhe agradeço.
Quando eles partiram, Léa deixou-se cair em uma poltrona. François foi sentar-se no encosto e
puxou-a para si.
- Você acha que tudo vai correr bem? - sussurrou ela.
Sem responder ele a abraçou mais forte. Eles ficaram em silêncio por um instante.
- Eu sou realmente obrigada a ir ao Tropicana com aquele tipo repugnante?
- Não é o momento de desagradá-lo... Você escutou o que ele disse? Vá se arrumar.
- Não é imprudente deixar as crianças sozinhas?
- Espero a qualquer momento amigos de Ramón. São homens dele; eles combateram juntos na
Espanha.
- Você pensa em tudo.
- Quando soube que você havia tentado me encontrar por várias vezes, disse a mim mesmo que
alguma coisa não ia bem. Ramón, que conhece bem este país, de imediato correu para me ajudar.
Foi ele que fez contato com os homens. Quem temos na casa além de Philomène e Miguel?
- Ninguém. Os outros não dormem aqui.
A noite havia caído, uma doce noite percorrida por uma brisa leve vinda do oceano. Em um canto do
jardim, o escorrer da água da irrigação sobre as folhas era apaziguador, o cheiro de terra quente e
molhada lhes vinha e, por um momento, distinguia-se o barulho das ondas. No ar, planava como um
torpor.
- Estamos bem aqui - murmurou Léa.
"Que mulherão!", pensou François observando-a esticar-se. "Esta é a mulher mais perturbadora que
eu conheço."
Ele a ergueu e tomou seus lábios em um beijo possessivo. Os braços de Léa o atraíram, fazendo-o
cair sobre ela.
- Atenção, sou muito pesado - disse ele tentando se soltar.
- Adoro sentir o seu peso sobre mim - confessou-lhe ela retomando seus lábios.
- Hum...
Léa entreabriu os olhos e afastou a mão que aprisionava seu seio. Perturbado, François virou a cabeça. Charles
os observava afetuosamente.
- Ei!... desculpem-me!
- Não se desculpe - respondeu François, endireitando-se.
- Nós temos que nos preparar para a nossa encenação no Tropicana.
- Vocêsvão sair?
- Você acha que isto me diverte? - exclamou Léa levantando- se. - Se você não tivesse resolvido fazer a
revolução, não seríamos obrigados a cortejar aquele porco gordo!
Charles enrubesceu e baixou a cabeça. Este grande rapaz atlético havia se transformado repentinamente no que
era de fato: apenas um adolescente que havia crescido demais. François o socorreu.
- A mim não desgosta o fato de ele ter se aliado aos companheiros estudantes. É na idade dele que nós damos
o corpo e a alma pela liberdade. Mais tarde, isso se torna muito mais difícil... Dois amigos de Ramón Valdés vão
se instalar aqui por algum tempo. Vão saber disso, e será muito bom: mostrará que também estamos sob
guarda...
- Mas então eles vão ter certeza de que Charles participou do caso daRadio-Reloj e que nós abrigamos
alguém procurado pela polícia... - interrompeu Léa.
- Não acredito nisso. É comum em Cuba como em toda a América Latina ter guarda-costas. Quanto mais os
tivermos, mais seremos considerados... Tocaram a campainha, devem ser eles. Vá se trocar, eu vou lá.
A multidão que se apressava para entrar no Tropicana, no quarteirão Marianao, era barulhenta e alegre. Era
fácil reconhecer as americanas pela abundância de suas bijuterias, pelas cores pastel
de suas roupas, por seus penteados caprichados e por seus acompanhantes descontraídos em seus
smokings brancos. Os cubanos, sempre bigodudos, tinham apertados em seus braços suas acompanhantes
com roupas brilhantes, todos vigiando o olhar dos outros machos. Vinha uma mulher bem grande com uma
longa cabeleira acaju, soberba, encarapitada em saltos altos, com uma roupa justa de cetim branco. A brancura
de sua roupa realçava a cor de tabaco de sua pele. Homens com aspecto efeminado em suas roupas
chamativas cercavam-na enquanto ela brincava com seu bois de plumas. O estranho espetáculo atraiu o olhar
de Léa, que observava a mulher. Esta se deu conta e sorriu, descobrindo seus dentes luminosos. Léa retornou
seu sorriso.
- Você faz charme agora para as belas amazonas? - brincou François.
- Ela é magnífica! Jamais vi uma mulher semelhante...
- Venha, sinto que ela também gostou de você.
Situado em um quarteirão excêntrico, o Tropicana era o cabaré que, em Havana, oferecia as melhores atrações e
apresentava as mais belas dançarinas do mundo. O local era também surpreendente e surgia, iluminado, ao fim
de uma rua cercada de árvores, entre uma vegetação tropical de onde esguichavam numerosas fontes. Mesas
foram colocadas em círculo ao longo do grande palco. Trepadeiras balançavam-se acima, tombando das
árvores que as cobriam, nas quais haviam sido colocadas plataformas. Jovens mulheres quase sem roupas
dançavam ali. Projetores multicoloridos passeavam pela decoração. Em um canto do cenário, uma orquestra
cubana tocava uma canção lasciva. Através da sala a céu aberto, os garçons iam de mesa em mesa, carregados
com pesadas bandejas. A orquestra mal conseguia cobrir o barulho das conversas. De vez em quando, o riso
escandaloso de uma mulher dominava o local. Um servente conduziu Léa e François até uma mesa perto do
palco. Vendo-os chegar, Santiago Rey, que encontrava-se na mesa em companhia de uma mulher
escandalosamente vestida e de dois indivíduos de ar sinistro, levantou-se.
- Cara senhora, obrigado por ter ficado tão bonita para mim, é uma honra - disse ele beijando a mão
de Léa. - Sente-se ao meu lado, gostaria? A senhora conhece minha amiga, Sra. Magali Figueredo?
E uma das pessoas mais influentes de Havana. Ela conhece todo mundo e é muito ouvida por nosso
presidente. Ela fala francês e conhece bem o seu país.
- É verdade, gosto muito da França. Quando meu pobre marido ainda vivia, nós íamos a Paris duas
vezes por ano para assistir aos desfiles de alta-costura. Ah, Paris! Eu adoro! Christian Dior, la rue
de la Paix, o Ritz, a Tour d'argent, os Champs-Elysées, o bois de Boulogne, Maxim's... Sinto-me
em casa. A senhora gosta de Paris?
- Não muito, prefiro o campo.
A boca da Sra. Figueredo formou um "oh" de espanto.
- Que horror, o campo! Eu não poderia viver fora das cidades. E de Havana, a senhora gosta?
- Muito.
Desta vez, os lábios fizeram um "ah" de alívio.
Neste instante o xale da mulher alta de branco esbarrou nos ombros nus de Léa, quando ela inclinou
seu alto corpo na direção de Rey.
- Então, meu pequeno ministro, não cumprimenta mais seus velhos amigos? - brincou ela, envolta em
um perfume pesado e capitoso.
- Alfredo! Velho canalha... Pensei que estivesse no Principe!
- Você sabe bem, meu amor, que não fico nunca por muito tempo naquele tipo de lugar. Nosso
querido governante preza muito pela virtude de seus prisioneiros e de seus carcereiros... Mas
apresente-me seus amigos, sobretudo esta linda dama que está a seu lado...
Léa ficou surpresa: nenhum dos homens na mesa levantou-se para saudar a desconhecida, o que
entre os cubanos não era habitual, pois as mulheres eram normalmente objeto de uma grande
delicadeza, ao menos formal. Então, Santiago Rey levantou-se e, muito cerimoniosamente, fez as
apresentações.
- Cara senhora Tavernier, permita-me apresentar-lhe Alfredo García Olivera, também conhecido
pelo nome de "a Bela Freddy"... ou ainda, para as damas, "Freddo". Meu caro - acrescentou ele,
virando-se para François -, não há ninguém como ele para seduzir as mulheres honestas. Já se
perdeu a conta daquelas que são desonradas por ele ou que se suicidaram por seu amor.
Estupefata, Léa os observou, hesitando a compreender. Alfredo inclinou-se sobre ela, esfregando
seus lábios em seu ombro.
- Para uma mulher assim tão bonita, você está em má companhia - soltou ele com uma voz rouca.
O ministro do interior começou a rir.
- Não o escute, cara senhora, ele adora brincar. Quanto a você, bujarrone, tem a sorte de eu
gostar de você... senão, mandaria você de volta para a prisão! Sente-se, o espetáculo vai começar.
- Obrigado, prefiro passear. Voltarei a qualquer momento. Divirta-se, madame.
Ainda aturdida, Léa observava, incrédula, afastar-se a voluptuosa silhueta.
- Vejo que isso a choca, cara senhora. Saiba que Havana é cheia de surpresas deste gênero. Mas
Alfredo é sem dúvida o maior sucesso de nossas criaturas andróginas.
- Ela... ele gosta de homens?
- De jeito nenhum! Ele é o maior provocador de rabos de saia da capital. Ao lado dele, don Juan era
um beneditino. Garçom!
Champanhe? Uísque?
- Não, obrigada. Eu prefiro um daiquiri.
Os trompetes anunciando o início do espetáculo cobriram o burburinho. O apresentador, com um
terno bordado de paetês, surgiu no palco.
- "Showtime! Senhoras e senhores, Ladies and Gentiemen. Eu desejo a todos, senhoras e
senhores, uma excelente noite. Good evening, Ladies and Gentiemen. O 'flopicana, o cabaré
MAIS
fabuloso do mundo... Tropicana, the mostfabulous night-club in the WORLD...
apresenta...presents... seu novo espetáculo... its new show... onde artistas de renome continental...
where peformers o! continentalfame... vão transportá-los para um mundo maravilhoso... they
will take you ali to the wondeifui worid... extraordinário... of supernatural beauty... e belo...
ofthe Tropics... Os belos Trópicos para vocês, caros compatriotas!... Os trópicos de Tropicana!"
Léa, tonta com esse falatório meio-inglês, meio-espanhol, deixou- se cair no encosto de sua cadeira.
Ao seu espírito paralisado chegavam apenas alguns trechos desta apresentação que não terminava.
- "... Amável público, público amável, povo de Cuba, a terra mais bela do mundo... Mas antes que esta
cortina de prata e lamé de ouro que é a glória deste palco prestigioso do Tropicana, o cabaré mais
luxuoso do mundo, abra-se para as mais belas mulheres do Caribe, gostaria de saudar alguns amigos
deste palácio da alegria:
a charmosaVivian Smith CoronaAlvarez del Real que faz esta noite 15 anos... Parabéns, Vivian...
Nós vamos cantar o Happy Birthday para Vivian. Vamos! Happy birthday to you! Happy
birthday to you! Happy birthday to Vivian, Happy birthday to you! Façam um pequeno
esforço, todos em coro, todos juntos.. •"6
Sob os comandos do homem em lilás o público não poupou esforços para cantar a plena voz.
Santiago Rey, Magali Figueredo e os dois gorilas entoaram o refrão.
- "...Nós temos também a honra de contar entre nossa seleta platéia com a presença do coronel
Cipriano Suarez Damera, honorável militar e homem distinto, acompanhado como sempre de sua
bela, amável e elegante esposa Arabella Longoria de Suarez Damera. Nós desejamos ao senhor
uma bela noite, meu coronel, assim como a sua esposa. Percebo ali, naquela mesa, sim ali, perto da
pista, o senador e escrivão político Viriato Solaun, freqüentador deste templo do prazer, o
Tropicana!" Perto da pista igualmente, senhoras e senhores,
Guiliermo Cabrero Infante, ifrês Tigres hstes.
nosso ministro do interior, Sr. Santiago Rey, um freqüentador assíduo também e, como sempre, em
charmosa companhia.... Bem-vindo, senhor ministro, eu lhe agradeço pelo notável uniforme de seus
policiais. Vamos aplaudir o ministro e desejar a ele uma agradável noite neste lugar de sonhos que é
o Tropicana...
Cada uma das pessoas citadas, subitamente iluminadas por um refletor, levantava-se, dirigia uma
saudação ao apresentador, e sob aplausos levantava seu copo para a platéia. O rosto vermelho e
lustrado de Santiago Rey brilhava de satisfação.
- "E agora.. and now... senhoras e senhores... Ladies and gentiemen... Público conhecedor...
Discriminatory pubiic... Sem tradução... Without transiation... Sem palavras, mas com a música
e um saudável e alegre divertimento... no Tropicana! Que venha a música! Que venha o teatro!...
Curtains up!"
"Ufa!", pensou Léa quando o apresentador parou. O palco foi logo invadido por uma esquadra de
belas mulheres de longas pernas cobertas de meias arrastão que confundiam-se com a cor de suas
peles, suas caudas emplumadas voavam no nariz da primeira fila de espectadores. Os homens as
observavam, um sorriso congelado em seus lábios.A maior parte das jovens movimentava-se de
forma mecânica, sem um prazer aparente. Apenas duas ou três mulatas balançavam-se com
felicidade. Uma delas lançou um olhar para o ministro, que ficou escarlate. Ele fez um pequeno
gesto com a mão, ridículo e digno de pena.
- É Miranda - sussurrou ele para Léa. - Ela é bonita, não é?
- Muito - aprovou sinceramente Léa.
Os números se sucederam: acrobatas, cantoras, dançarinas de tango, uma cantora brasileira...
entrecortados pelas giris que trocavam de roupa entre cada aparição.
- Com licença - disse Léa, levantando-se. - Por favor, continuem sentados.
Ela afastou-se entre as mesas, em busca de um pouco de ar. Era sufocante perto do palco. Apoiada
contra uma das colunas da entrada do cabaré, ela acendeu um cigarro, indiferente aos olhares que a
despiam. Em seu íntimo, Léa desejava apenas uma coisa, voltar para casa.
- Você abandonou a companhia daquele canalha do Rey?
Perto dela a pose preguiçosa e mais alta que ela uma cabeça, Alfredo fumava um grande charuto.
- Por que você diz que ele é um canalha?
- Isso é notoriamente público. Ele cobra porcentagem sobre a atribuição de licenças para cada novo
hotel-cassino, como por autorização de abertura de cada estabelecimento de jogo nos hotéis já
existentes, como o Nacional, o Capri, o Havana Hilton, o Plaza, o Saint John's... e os outros dos
quais esqueci. Quanto à sua alma condenada, Ventura, ele passa todas as noites nos cassinos para
recolher sua porcentagem sobre os lucros...
- Ventura? - murmurou Léa.
- Sim, Ventura. O capitão Esteban Ventura Novo e seus assassinos não têm iguais para conseguir
fundos e extorquir, sob ameaça e até tortura, o dinheiro dos rebeldes. São uns cachorros! E Rey, o
homem fiel de Batista, fecha os olhos para os crimes do capitão. O quevocê tem?... Sente-se mal?...
Garçom, um copo d'água!
Alfredo ajudou Léa a sentar-se.
- Você está pálida! Quer que eu vá buscar o seu marido?
- Não, obrigada, estou bem... Por que você me falou tudo isso, a respeito de...
- Fiz bobagem, perdoe-me. É talvez um de seus amigos?
- Ah, não!
Sua exclamação fez o travesti sorrir.
- Você me tranqüiliza. No entanto, para a sua segurança, não conte a ninguém o que eu disse. Mas
por que diabos tudo isso a preocupa tanto?
- Ventura esteve na minha casa esta noite.
Alfredo observa-a atentamente. Sob o efeito do calor, sua
maquiagem pouco a pouco estava derretendo-se; sob suas faces e seu queixo aparecia o reflexo
azul de uma barba crescente.
- Seja muito prudente, não saia sozinha e diga sempre onde irá. Em qualquer circunstância, preste
atenção a quem você fala. A polícia de Batista tem espiões por todo lado, particularmente entre os
residentes estrangeiros.
- Oh, meu Deus!
- Tome, beba... Desculpe-me, sou apenas um idiota, alarmei você sem dúvida por nada.
- Oh! - suspirou ela, torcendo as mãos.
- Acalme-se, seu marido está vindo na nossa direção. Se você precisar de alguma coisa, deixe-me
uma mensagem no bar do Capri. Você sabe onde é?... Em nome de Cubita Bella. Pergunte por
Domenico. Você se lembrará?... - Em seguida, dirigindo a François, que era da sua altura. - Caro
senhor, o senhor tem uma esposa de-li-ci-o-sa. Não precisaria me esforçar muito para que eu a
raptasse - lançou ele provocador.
- E eu seria então obrigado a quebrar-lhe o pescoço, por mais bela criatura que você seja...
- Ah, continue! Que homem! É assim que gosto deles...
- Vá se foder - rosnou François, empurrando-o.
- Ah, o malvado! Bater numa frágil mulher! Socorro! A mim!
- O que se passa? Ainda faz escândalo? Alfredo, eu já te preveni... - intervém Santiago Rey.
- Mas não, meu coração, eu estava brincando. Seu amigo imaginou que eu estivesse fazendo a corte
à mulher dele.
- Como se você não fosse capaz! - gritou o ministro. - E melhor ir se barbear, senão embaixo desta
peruca você vai assustar as damas... as verdadeiras!
Alfredo afastou-se com as maneiras de duquesa ofuscada.
- Desculpe-me, senhor ministro, minha mulher não se sente bem: o calor...
- Sim, eu compreendo. Estou desolado, minha senhorinha. Espero que o espetáculo tenha lhe
agradado?
- Foi magnífico, senhor ministro, e a jovem Miranda é maravilhosa;
é uma grande atriz! - disse Léa estendendo-lhe a mão.
- Ah, a senhora também acha? Sim, é uma verdadeira artista,
ela vai longe. Obrigado por terem vindo. Descansem, saberei notícias
suas.
Eles voltaram pelas ruas cobertas de árvores dos quarteirões
residenciais. Diante de algumas propriedades, homens armados
montavam guarda. As
ruas transversais estavam desertas. No
Miramar, tudo parecia calmo. Um dos amigos de Ramón estava sentado
na sombra da varanda, o outro efetuava sua ronda no jardim.
Eles não haviam notado nada de anormal na vizinhança.

Capítulo Cinco

CHARLLES PRENDEU SUA BICICLETA a um poste diante do subsolo da rua 19, no Vedado, de onde haviam
partido com Echeverría para a tomada da Radio-Reloj. Um policial estava sempre parado na esquina da rua
19 e da rua B, próximo ao anexo da Companhia telefônica. Como a maior parte de seus colegas, Charles não
gostava deste lugar porque não possuía saída pelos fundos. Ele viu entrar no edifício Fructuoso Rodríguez,
agora secretário geral do Diretório revolucionário e que acabara de ter um filho. O ambiente no subsolo estava
sinistro e tenso. Um odor de comida em decomposição, de tabaco frio e de transpiração empesteava o sombrio
local. Uma simples lâmpada que pendia do teto iluminava fracamente o lugar. Alguns membros do Diretório,
sobreviventes ao ataque do palácio presidencial, discutiam, sentados sobre colchões. Apesar de seu braço
ferido, Faure Chomón virava a manivela do estêncil, imprimindo a declaração que acabara de fazer, aprovada
pela maioria e assinada pelos membros do comitê executivo. Uma bela jovem, Natalia Bolívar, empilhava as
folhas. A penumbra e as armas que balançavam nas mãos deixavam a atmosfera ainda mais angustiante. Ferido
na coxa
durante os combates, esgotado, os olhos profundamente arroxeados, José Machado se deslocou
pesadamente para dar lugar a Charles. Machadito, como o apelidavam afetuosamente seus
companheiros, não dormia mais. Ele sentia-se mal e começava a considerar o exílio.
- Duas semanas para repousar e dormir bem - sonhava ele em voz alta. - Em seguida, eu volto e
retomo a luta.
Mary Pumpido trouxera alimentos, cigarros e jornais. Não, ela ainda não havia descoberto novos
esconderijos: as pessoas estavam se tornando desconfiadas. Assim que tivesse conseguido o lugar
ideal, ela os avisaria; o apartamento da rua General-Lee não lhe parecia mais muito seguro. Julio
García Olivera entrou por sua vez e foi bater no ombro de Machadito.
- A embaixada do Brasil aceita dar asilo a você na segunda- feira próxima, dia 22, em um
apartamento alugado por Gustavo Pérez, um amigo de Joe. Você poderá dizer obrigado aAquiles
Capablanca.
- O arquiteto?
- Sim. Amanhã, você se muda. Vamos para a rua Humboldt, no número 7, com Gilberto, Fructuoso
e Juan Pedro.
- Que bom, não agüento mais este buraco de ratos.
- Charles, você é o menos observado entre nós. Você vai vigiar as cercanias da rua Humboldt. Se
observar qualquer coisa estranha, dá o alerta. Se for preso, chore, chame a sua mãe, diga que é
francês... Eles pensarão duas vezes antes de surrar um estrangeiro.
O forte sol havia levado o policial a atravessar a rua 19 para refugiar-se na sombra. Ele não prestou
nenhuma atenção ao jovem que passou de bicicleta diante dele. Charles desceu a rua até diante do
mar. Lá, os bares estavam instalados no pé da rocha, que dominava o hotel Nacional; por causa da
sexta-feira santa eles estavam quase todos fechados. Na rua P em frente ao cabaré Montmartre,
ele entrou em um café freqüentado pelos operários da Santé Motors Company, também vazio, O
barman que cochilava, a cabeça apoiada no bar, levantou um olhar sonolento.
- Una Coca-Cola, porfavor.
A custa de um imenso esforço, o homem endireitou-se e abriu a porta do refrigerador atrás de si.
Tateando, ele apanhou uma garrafa e a abriu sobre o balcão. Com a mesma lentidão, apanhou um
copo e encheu de gelo. Enfim ele o colocou diante do cliente.
- Un dólar- murmurou ele.
Charles pagou e em seguida ficou perto da porta enquanto o bom homem retomava seu cochilo. Ao
fim de uma hora, ele foi embora sem ter observado nada de insólito. "Voltarei amanhã", pensou ele.
No Miramar, ele encontrou Léa contando uma fábula de La Fontaine a Adrien.
- Vou tomar um banho - disse ele.
Algum tempo mais tarde, Léa entrou em seu quarto.
- Um barco parte amanhã à tarde para Miami. Nós o tomaremos juntos, com Carmen e sua irmã. A
embaixada cuidou dos vistos.
- Impossível! Meus amigos precisam de mim.
- E eu preciso que você esteja vivo! Você ficará em Miami o tempo que for preciso para que
esqueçam de você. François se entendeu com um correspondente de Ramón Valdés que aceitou
alojar você. Você trabalhará com o sr. Duval, um advogado francês casado com uma américo-
cubana.
- Vejo que vocês organizaram tudo! Poderiam ao menos ter pedido minha opinião...
- Desculpe-nos, mas era urgente...
- E você, quanto tempo vai ficar em Miami? - retomou ele, depois de uma pausa.
- O menor tempo possível, as crianças precisam de mim.
- Eu também, eu preciso de você - murmura ele.
Léa atira-se em seus braços.
- Vou sentir sua falta, meu grandão, mas tenho muito medo de que aconteça alguma coisa.
- Tem notícias do pai de Carmen?
- Nenhuma. Sua mulher multiplica esforços, sem sucesso. Já a levaram para todos os lugares, muito
polidamente.
- E Armando?
- Não sei. Ele vai bem, eu acho... Prepare os livros que você deseja levar; eu vou arrumar suas
roupas.
- Como se chama o barco?
- Santa Carmen, eu acho. Ramón Valdés vem jantar. Ele nos acompanhará até o barco -
comunicou ela, deixando o quarto.
Um ambiente moroso planou sobre o jantar. Cada um permaneceu mergulhado em seus
pensamentos. Charles não via nenhuma forma de prevenir seus amigos do Diretório de sua partida
precipitada. Eles haviam lhe confiado a vigilância da rua Humboldt para o dia seguinte, ele deveria,
custe o que custar, terminar sua missão. Amanhã, bem cedo, ele os encontrará na rua 19 para avisá-
los. Em Miami, será que poderia ser-lhes útil?
Charles deixou a casa de Miramar antes do raiar do dia. Ele estava munido de seu passaporte e de
uma bolsa esportiva na qual havia jogado uma escova de dentes, uma camisa, uma cueca e meias.
No último momento, ele colocou na magra bagagemjadis etNaguère, de Paul Verlaine, que Léa
acabara de dar-lhe de presente. Antes de guardá-lo, ele o havia aberto ao acaso e caiu sobre este
verso sublinhado de lápis azul:
vida é triunfante e o ideal está morto..."
"O ideal está morto" havia sido sublinhado com raiva. Mas Léa enganara-se, o ideal não estava
morto, apenas a morte poderia matálo. Ele escreveu um bilhete comunicando que estaria na partida
do barco. Os amigos de RamónValdés, sempre de guarda na varanda, não se espantaram ao vê-lo
agarrar sua bicicleta e atravessar o gramado; nenhuma instrução lhes havia sido dada a respeito
dele.
Nesta véspera de Páscoa, a avenida Almendares estava deserta.
Operários e funcionários ainda dormiam, parecendo aguardar a hora de irem para a praia. Os
festeiros mais atrasados acabavam de ir dormir e apenas algumas mulheres já entediadas iam
fazer a faxina dos escritórios de grandes companhias americanas ou na casa dos patrões sempre
insatisfeitos. Na Avenida de La Paz, o sol levantava- se como se a contragosto. Sobre a ponte
cruzando o rio Almendares, três soldados desgrenhados engoliam um café que um ambulante lhes
havia servido. Perto do cemitério do Colón, os mercadores de flores começavam a instalar suas
barracas com gestos lentos; os gritos e as gesticulações seriam para mais tarde... Ele tomou a rua
Zapatta e desceu o Paseo; jardineiros arrumavam os ramos de flores de onde partia um odor de
poeira molhada. Exceto um policial, mais ninguém; melhor esperar que a rua se animasse um
pouco. Ele continuou seu caminho em direção ao mar, pedalou suavemente até a rua O. Na
Humboldt, tudo estava pacífico. O café onde ele havia estado na véspera ainda não estava
aberto. Ele teve desejo de um chocolate quente e lembrou-se de que no hotel Sevilla havia
tomado um bom, em companhia de Isabel e de Carmen. Os militares eram ainda numerosos nas
cercanias do Palácio presidencial. Diante do hotel, os motoristas de táxi esperavam seus
primeiros clientes. No pátio, uma só mesa estava ocupada. O chocolate ali estava tão saboroso
quanto em sua memória, e os pequenos brioches deliciosos. Ele reprovou-se pelo prazer que
estava sentindo ao pensar em seus camaradas trancados no infecto subsolo da rua 19. Ele pediu
um café, fumou um cigarro. Em volta dele, turistas americanos instalaram-se e começaram a
conversar barulhentos. Ele pagou e saiu; eram oito e meia da manhã.
Ele apanhou sua bicicleta para voltar à rua Humboldt. Nas janelas, as faxineiras se
cumprimentavam sacudindo seus lençóis. Embaixo, cachorros fuçavam na sarjeta. O café tinha
sido aberto e, quando chegou lá, Armando Marco Rodríguez, o Marquitos, entrava no número 7
da rua. Charles iria abordá-lo quando percebeu dois policiais que iam na direção dele. Não era o
momento de se fazer notar: em um vigoroso golpe de pedaladas ele afastou-se. Sobre a
Rampa, as garotas e rapazes que faziam charme ali mostravam-se ainda mais numerosos. Mais
longe, policiais montavam guarda diante da Radio-Reloj e nas cercanias dos jardins Coppelia,
vendedores de sorvetes e doces assumiam suas esquinas. Contavam-se agora dois agentes de
polícia estacionados diante do edifício da Companhia telefônica. Eles discutiam com veemência sem
prestar a menor atenção ao que se passava perto deles. Charles escorregou para a entrada do
imóvel e bateu, segundo o sinal combinado, na porta do subsolo.
- Não há ninguém... Eles partiram e não me disseram para onde... Talvez para a Escola de Farmácia
- disse o guardião atrás dele, sua voz arrastada.
A Escola de Farmácia era um dos acuartelamientos dos clandestinos do Diretório que, quase a
cada dia, deveria mudar de lugar. Ela estava situada entre a rua Galiano e a rua San Nicolás, a
pouca distância do hotel Sevilia. Ele parte novamente nesta direção mas faz um desvio a fim de
evitar suspeitas por percorrer tão freqüentemente o mesmo caminho. Em um corredor do grande
prédio, o diretor da escola o reconhece por alguma vez já tê-lo visto em companhia dos membros de
seu grupo. Ele lhe confia que, até onde sabia, seus amigos não haviam passado a noite no interior do
prédio. Onde, então? Ele ignorava.
O resto da manhã foi apenas de idas e vindas entre os diferentes esconderijos que ele conhecia.
Mas, apesar de todos os seus esforços, não pôde estabelecer o mínimo contato com aqueles que o
haviam encarregado de vigiar as cercanias da rua Humboldt. Sem mais diretrizes, ele decide
respeitar as instruções e, como na véspera, coloca-se no seu posto de observação no café da rua
PJá havia chegado a hora do almoço e algumas mesas estavam ocupadas. Duas grandes mulheres,
com traseiros arredondados e usando saias justas, apressavam-se no serviço. Charles pede uma
porção de tostones e uma
Coca-Cola. Com sua refeição terminada, nada a observar de suspeito, ele decide ir à livraria da
rua Carlos III que às vezes servia de caixa postal para as cartas do grupo. Quando sai para a rua,
o sol estava forte, eram quase três horas. Diante da loja, um jovem olhava avitrine. Charles
reconheceu Marquitos. O que ele poderia estar fazendo aqui? E como conhece este lugar?
Charles fica imóvel a alguns metros dele, escondendo-se atrás de uma árvore. Marquitos deu uma
olhada em volta, em seguida afastou-se com passos rápidos, atravessou a rua e entrou no 902.
Alguns minutos mais tarde, ele voltou ao lado do chefe de polícia, o temido Esteban Ventura. O
coração batendo acelerado, Charles atirou-se novamente para trás do tronco. Os dois homens
dirigiram-se para um Plymouth estacionado ao longo da calçada, e entraram no carro. A
perturbação tomou conta de Charles:
o que fazia o amigo de Joe Westbrook em companhia deste torturador? A desconfiança que
Fructuoso e Machadito testemunharam pelo jovem amigo de Joe voltou-lhe à memória. Ele
deveria preveni- los o mais rápido possível. Decidiu ir até o número 7 da Humboldt. Na esquina
das ruas San Francisco e San Martín, ele foi parado por uma barreira da polícia que só o tinha
observado tardiamente. As forças da ordem procediam ao controle de identidade de todos os
passantes, automobilistas, ciclistas ou pedestres. Um funcionário examinou atentamente seu
passaporte e o interrogou sobre as razões de sua presença naquele quarteirão. Em seguida, ele
chamou seu superior, que por sua vez interrogou o jovem. Mais de duas horas se passaram; eram
cerca de cinco e meia da tarde quando ficou novamente livre para seguir caminho.
Asperseguidoras o ultrapassavam, sempre com as sirenes ligadas.
Quando ele chegou perto da rua Humboldt, outros carros da polícia barravam o acesso. Eram
quase seis horas em seu relógio. Esteban Ventura desceu de um dos carros, pistola na mão,
fazendo sinal para que seus homens o seguissem. Eles subiram rapidamente até o apartamento
201, derrubando a porta a golpes de coronhadas. Quatro membros do diretório estavam ali,
semivestidos: Joe Westbrook, Fructuoso Rodríguez, Juan Pedro Carbó e José Machado
Rodríguez. No tumulto que se seguiu à chegada dos policiais, Joe conseguiu se eclipsar, em seguida
ganhando o exterior do apartamento do térreo onde morava apenas uma velha senhora. Assustada,
ela deu um grito ao vê-lo surgir no meio de sua sala. Joe a tranqüilizou como pôde e suplicou que ela
dissimulasse tudo. Tremendo, ela assentiu com a cabeça, incapaz de articular uma palavra.
Rapidamente, no entanto, golpes atingiram a porta do apartamento. "Polícia!", gritaram do outro
lado. Westbrook resolveu no instante não expor a velha mulher. Ele pulou do apartamento,
empurrando Ventura que o enfrentava no vão da porta, e percorreu alguns metros no corredor antes
de ser atingido por uma rajada de metralhadora que veio da escada. Por seu lado, Juan Pedro havia
tentado fugir na direção do elevador. Ele foi crivado de balas no instante em que o alcançava. De
um mesmo salto, Machadito e Fructuoso foram jogados através de umajanela. Eles caíram do outro
lado, no estreito corredor de uma agência de automóveis, Santé Motors Company, que uma grade de
barras de ferro fechava. Em seu pulo, Machadito fraturou os dois tornozelos. Apesar da dor, ele
arrastou-se até a entrada da passagem. Atraídos pela confusão, os empregados da empresa
correram e, descobrindo os dois homens feridos, pediram que esperassem enquanto iriam procurar a
chave. Fructuoso retomou a consciência, mas não se levantou. Do outro lado da grade, os
empregados tentavam abri-la quando foram violentamente afastados pelos policiais. Um deles
introduziu o cano de sua metralhadora entre duas barras da grade.
- Não nos mate! -gritou Machadito. - Estamos desarmados. Uma rajada atingiu-o no peito,
enquanto uma segunda abatia
Fructuoso. Este cai pesadamente enquanto aproximava-se de seu companheiro, arrastando-se.
Pendurados nas janelas, os habitantes da rua observavam aquele pouco habitual choque de forças.
Esteban Ventura entrava e saía do imóvel sorrindo, muito satisfeito. Petrificado, Charles viu os
corpos ensangüentados de seus amigos que eram arrastados até a calçada pelos cabelos. Das
janelas, os vizinhos gritavam sua revolta. indiferentes
aos gritos de protesto, os agentes arrastaram os cadáveres até a esquina da rua, a alguns
metros do lugar onde estava Charles. A passagem deles, as mulheres faziam o sinal-da-cruz. Uma
curta rajada de uma arma automática cortou a fachada dos imóveis, obrigando os espectadores a se
abrigarem. Uma ambulância atravessou as barreiras e veio parar perto do grupo de curiosos ao qual
Charles havia se misturado. Colocaram os corpos na traseira. Apenas o rosto deJoe permaneceu
intacto. "O francês", como Joe tinha o costume de chamá-lo gentilmente, contemplou longamente o
rosto que, no momento, parecia dormir. Nas lágrimas que ele tentava afastar, Charles jurou vingá-lo.
E enquanto prendiam também os operários que haviam tentado socorrer os jovens revolucionários,
Charles continuava chocado olhando os veículos das forças de ordem deixarem pouco a pouco o
local.
- iHombre, no te quedes ahí! - gritou-lhe um desconhecido de uma certa idade. - O quieres que a
ti también te ileven?
Ele afastou-se mecanicamente, empurrando sua bicicleta ao lado do corpo. Um momento mais
tarde, se encontra na rua Infanta, não longe dos locais do jornal Carteles. A publicação saía no
domingo e alguns jornalistas e secretários ainda trabalhavam. Todos já estavam a par da fuzilaria da
rua Humboldt. Alguns não mais escondiam sua cólera; foi ainda pior quando Charles os colocou a
par dos acontecimentos. As mulheres choravam e os homens viravam o rosto para esconderem a
emoção. Carlos Franqui ainda ignorava tudo: ele encontrava-se fora, em uma reportagem em
Santiago.
A noite já havia caído quando Charles colocou-se em marcha para o porto a fim de encontrar-se
com Léa, Suzel e Carmen.
Um carro levando a bandeira francesa acabara de parar na altura da passarela. desceram, observando imediatamente os jovens cubanos que subiram a bordo com olhares
angustiados para eles. Por sua vez, o Pontiac de François estacionou perto do
carro. Ao ver Charles, Léa ficou imóvel por um instante, depois correu em sua direção. Ela apertou-
se contra ele com furor.
- Eu tive tanto medo!
Como ele ia falar, ela colocou os dedos sobre seus lábios.
- Não diga nada, estou a par. O ministro do interior anunciou que perigosos criminosos acabam de
ser eliminados...
François aproximou-se dele e estendeu-lhe a mão.
- Vá, você retomará a luta mais tarde. A causa pela qual você escolheu lutar é justa. Mas, neste tipo
de combate, é preciso saber recuar a fim de se preparar melhor. Não veja neste exílio forçado uma
punição, mas um tempo para a reflexão. Coloquei em sua bagagem algumas obras que podem ajudar
você a compreender as diferentes correntes políticas e revolucionárias que agitam os países da
América Latina... Seja prudente nas conversas que poderá trocar com os exilados cubanos: alguns
estão à custa de Batista; mesma recomendação com relação a alguns americanos que podem
pertencer à CIA...
Ramón Valdés o abraçou. Charles atravessou a passarela enquanto Léa e François se abraçavam.
- Você tomará conta das crianças direitinho, não é?
François, o adido da embaixada e o espanhol observaram longamente o barco se afastar do porto.
Ele entrou no canal quando um carro da polícia chegou correndo ao cais, freando bruscamente na
proximidade para deixar uma nuvem de poeira. Esteban Ventura saiu do carro, os olhos injetados de
sangue, o hálito empestiado de rum.
- Onde estão sua mulher e seu filho? - gritou ele.
- E a mim que está fazendo esta pergunta? - inquiriu François com um tom altivo.
Ao mesmo tempo, ele acendia preguiçosamente um cigarro.
- A sra. Tavernier tem o prazer de acompanhar seu filho a Miami - explicou com um estilo muito
"velha França" o adido da embaixada.
- E vocês vieram acompanhá-los, não é? - espumava Esteban.
- Sua excelência, estando impedida, me pediu expressamente que viesse saudar a sra. Tavernier em
nome dele. É o mínimo, o senhor sabe...
A sirene do Santa Carmen anunciou que o barco acabara de deixar o canal e seguia agora para o
alto-mar.
Vermelho de uma raiva furiosa, Ventura voltou para seu carro.
- Temo pelos infelizes que terão de vê-lo esta noite - deixou escapar o adido, estendendo a mão a
Tavernier. - Coragem - acrescentou ele.
- Obrigado por tudo o que o senhor fez. Diga ao sr. Grousset que é com prazer que jantarei amanhã
na embaixada.
Os três homens separaram-se e retomaram seus carros. François deu a partida, dirigiu por um
tempo ao longo do canal, em seguida diminuiu a velocidade ao chegar ao Malecón. Por um
momento, ele observou as pequenas luzes do Santa Carmen, que sumia na obscuridade do mar.

Capítulo Seis

A ANGÚSTIA DE CHARLES, de Carmen e de Suzel era tal que os três jovens
descobriram-se de início em plena incapacidade de se organizarem. A cidade era freqüentada por
velhos riquíssimos em busca de carne fresca e por exilados cubanos que tentavam reconstituir o
modo de vida que haviam conhecido na ilha. Carmen e Suzel Pineiro haviam encontrado refúgio na
casa de um amigo de seu pai, o doutor Guiliermo Navarro Luna, um psicanalista que havia
enriquecido cuidando de prósperas viúvas americanas. Ele vivia em companhia da esposa em uma
magnífica propriedade no bairro residencial, longe das zonas suburbanas e superpopuladas onde vivia
a maior parte de seus compatriotas refugiados. Ele mantinha pouca relação com eles. Jovem
estudante sem dinheiro, ele só tinha conseguido continuar seus estudos graças à generosidade do pai
do doutor Pineiro, também médico. Agradecido à família Pineiro, foi impossível para ele recusar a
hospitalidade às duas filhas de seu amigo. Quanto a Charles, ele havia encontrado alojamento na
casa do correspondente de Ramón Valdés, também espanhol, Lazaro Cardenas. Cardenas era um
homem corajoso, dotado de um
caráter jovial, divertindo-se com tudo, tão feliz que era por ter escapado das prisões franquistas.
Passados apenas dois dias depois de sua chegada, Charles reencontrou Faure Chomón, que aprontava-se para
embarcar para Cuba. Chomón permanecia muito abatido pelo desaparecimento trágico de seus camaradas e
culpava-se por não estar junto deles no último momento. Com o dinheiro recolhido entre os exilados ele
dedicava-se no momento a procurar armas destinadas a caçar o ditador e a destruir o mundo burguês, alegre
com o fracasso do ataque ao Palácio presidencial e com a morte do líder da FEU.
- "A classe exploradora e dirigente desta sociedade pervertida" - declarava ele a quem quisesse ouvir - "pôs-se
totalmente nua em praça pública, em um ato de confissão onde parecia clamar em voz alta: Nós estamos em
grande número por sermos responsáveis! Sim, nós somos os tiranos, os exploradores, os ladrões, os
assassinos, os cocainômanos, os maconheiros! Sim, somos nós e nos vejam com todo o dinheiro, todos os
canhões escarrando o sangue dos mortos do povo! Que ninguém se mexa! Olhem como somos fortes! Batista
não está sozinho! Nunca a burguesia será capaz de abrir suas portas a seu inimigo mortal: a insurreição
armada. Nenhum combatente pode colocar-se ao abrigo em nenhuma de suas pequenas casas, a menos que
entre com a metralhadora em punho. Os homens de ação que vivem na clandestinidade encontram-se
abandonados nas ruelas, nas cabanas dos pobres, mesmo que o exército rebelde esconda-se nas montanhas e
entre os camponeses. Não, jamais encontrarão refúgio nos palácios da burguesia, jamais veremos um
combatente partilhar o pão de um burguês!"
Em Miami, Léa comprou a scooter com a qual Charles sonhava. Ele já não experimentou a alegria esperada;
alguma coisa dele havia ficado pelas calçadas de Havana. A bordo do Santa Carmen, foi soluçando que ele
havia contado o assassinato de seus companheiros. Nos dias que se seguiram ao desembarque na Flórida, ele
levantava-se a cada noite em meio a crises de choro e de angústia que apenas a presença de Léa
conseguia acalmar. Esta havia decidido telefonar para François e dizer-lhe que retornaria tão logo
julgasse que Charles teria condições de assumir sozinho sua nova vida. Por um instante ela havia
pensado em mandá-lo de volta para a França, mas ele opôs-se veementemente. Depois ele superou
seu sofrimento para ajudar Carmen, que revivia sem cessar aviolação da qual havia sido vítima.
"Como eles são jovens!", pensou Léa, comovida pela solicitude que demonstravam um em relação
ao outro.
O trabalho com o sr. Duval revelou-se mais interessante do que ele imaginara, até mesmo
compensador, e contribuiu para distraí- lo de seus pensamentos sombrios. Mais tranqüila, Léa deixou
enfim Miami, em meados de junho, prometendo visitá-lo com as crianças no Natal.
Quando ela voltou à casa de Miramar, Adrien e Camile manifestaram sua alegria com fortes gritos e
abraços. Mas com a pequena Claire foi diferente. Ela a empurrou, dizendo-lhe:
- Por que você partiu? Você, malvada!
Quando ela tentava apanhá-la, a menininha gritava e corria refugiando-se entre os braços do pai, ou
o mais freqüente, nos de Philomène, que a pegava no colo, acariciando-a e mal dissimulando sua
satisfação. François consolava Léa mostrando-se um amante exigente e um marido pronto a
satisfazer seus desejos mais extravagantes.
Havana banhava-se em uma atmosfera de banhos turcos. Nua em sua cama, Léa contemplava as
pás do ventilador que giravam, presas ao teto. A musselina do mosquiteiro tremia como uma cortina
em uma leve brisa, O suor surgia entre os seios da jovem mulher, que virava-se e revirava-se sobre
os lençóis amassados à procura de um pouco de bem-estar. Desde seu retomo, ela lutava contra
uma depressão profunda, incapaz de se interessar por muito
tempo por qualquer coisa. No entanto, os momentos com o homem que ela amava revelavam-se
deliciosos. Seus corpos se compreendiam sem a necessidade de palavras. Apesar de tantos anos
passados em se tomarem nos braços, se acariciarem, o desejo de ambos permanecia intacto e
continuava a maravilhá-los. Mas François havia sido obrigado a voltar a Pinar dei Río, deixando-a
sozinha em companhia de seus pensamentos taciturnos.
Para dispersar tais pensamentos, ela atirou-se a uma pilha de jornais. Santiago Rey ali recebia as
honras do Monde sob o título:
"Atentados, sabotagens e prisões entre as tropas regulares e os rebeldes de Fidel Castro." Mais
adiante no artigo, o ministro do interior anunciava a prisão de 35 terroristas acusados de complô. Um
outro número reportava que dezesseis insurgidos desembarcados do iate Cori nthia , na baía de
Cabonico, haviam sido mortos em companhia de seu chefe, Calixto Sánchez White. Desde o 31 de
maio, o presidente Batista havia assumido pessoalmente o comando das operações de luta contra os
rebeldes.
As notícias que recebiam da Argélia eram também ruins: atentados, massacres, torturas constituíam
o destino cotidiano dos muçulmanos assim como dos pés-negros, chamados osfellaghas. A famosa
batalha de Alger que François havia acompanhado com paixão havia sido encerrada com centenas
de mortos de ambos os lados. A censura impedia que as cartas de soldados franceses chegassem às
suas famílias, já que falavam de uniões com os rebeldes, da morte de um companheiro ou de um ato
de tortura. A partir da famosa carta na qual Jean Lefèvre havia denunciado as práticas de
paraquedistas do general Massu, chefe da 10 divisão pára-quedista, à qual Robert Lacoste - o
ministro residente - havia confiado a missão de manter a ordem, Léa não havia recebido mais
nenhum sinal de sua parte. De seu lado, a embaixada da França havia transmitido a François
Tavernier uma missiva do general Salan, marcada
com o selo de "Confidencial", que ele estava com dificuldades de interpretar:
Meu caro Tavernier
Mesmo em sua ilha longínqua, suponho que esteja a par dos acontecimentos na Argélia e
creio que sabe o suficiente para adivinharo que você perde em não tomarparte deles. Desde
minha nomeação para o comando das ForçasArmadas, em novembiv de 1956, não parei de
trabalhar apesar das emboscadas das quais meu caminho está coberto. No último 16 de
janeiro, como de hábito, trabalhava no escritório da praça de isiy. Deixei-o já à noite indo
encontrar- me com o si: Robert Lacoste no governo geral, quando um enorme barulho,
como nunca havíamos ouvido emAlger abalou todo o edificio. O ministro grita: comandante Rodier está ferido." Coloquei meu quepe, entrei em meu carro e segui
correndo para a região X Minha mulher esperava-me na porta e me disse: 'Rodier está
morto." Quando cheguei em meu escritório a eletricidade havia sido cortada e as lâmpadas
fluorescentes jogavam luz sobre um cômodo onde não havia vidro nas janelas. Diante de
minha mesa, sobre o tapete, uma ogiva de granada queimava. No exato lugar onde se
encontravam meus papéis secretos havia se afundado, destacado da parede, um bloco de
granito. Entrei no escritório do gabinete militar O espetáculo era atroz. Em um canto do
cômodo, atrás de sua escrivaninha, Rodier tinha uma enorme ferida no flanco esquerdo, o
peito aberto. O pobre coitado quase havia sido partido ao meio. Ainda que a guerra me
tenha com freqüência mostrado cadáveres terrivelmente mutilados, não pude esquecer este
espetáculo. É um milagre que não tenha havido outras vítimas. No entanto, não era o
comandante Rodier que era visado pelos atiradores emboscados no edifício em frente, mas
eu, general Salan. Foi o que confirmei através do encontro que tive alguns dias depois com
o comandante Henry, chefe da segurança militar e tenente-coronel de Schacken, chefe de
meu Segundo Bureau. "Meu general" me disse
um deles, depois do atentado com a bazooka, "torna-se indispensável que o senhor esteja ao
menos a par dos boatos que correm, por mais desagradáveis que o sejam. Desde o dia 15 de
dezembro último, o senhor torna-se aqui o objeto de uma campanha de dfamação cuja
origem situa-se em Paris: o senhor é tido, com Mendès France, como o homem que liquidou a
Indochina, e a sra. Salan é apresentada como a própria irmã do antigo presidente do
conselho. Comandante-em-chefe na Indochina, o senhor teria feito pára-quedistas saltarem
sobre posições solidamente manhidas pelos viets,para quefossem massacrados. O senhor foi
designado como o responsável pela perda de Dien Bien Pku e como aquele que entrega a
Indochina a Ho ChiMinh. O senhor então só poderia ter vindo a Argélia para
entregaropaísaoFLN... Esta odiosa campanha tocou pessoas que não o conhecem e que,
muito sensíveis aos atentados, são levadas a aceitar todos os falsos rumores. Nós estimamos
que nem o FLN nem o PCA sejam responsáveis pelo atentado, mas que se trate de argelinos
dirigidos de Paris, O que é certo é que estas calúnias só começaram a circular depois da
visita do general Cogny e dos civis que o acompanharam, no último 15 de dezembro. "Ao
escutar esta exposição,fiquei sem fala. Acusarem-me de ter liquidado a Indochina e de querer
"abandonar" a Argélia eram calúnias odiosas que ultrapassavam tudo o que eu poderia
imaginar Infâmia igual me atingia em minha reputação de chefe, eu que sempre protegi os
meus homens!
No dia seguinte, reuni meu estado-maior e coloquei os oficiais a par: Eles já estavam
informados e me garantiram sua confiança. Os comparsas mais o chefe, dos
quais não direi o nome, foram presos, e encontram-se em Paris. Algeré uma
verdadeira merda!A FLN usa três moças para colocar bombas nos cafés, nos
cinemas, nos estádios. As patrulhas da noite se intensifícam e trabalham
vinte e quatro horas, batendo nas casas e convidando os habitantes a não
caírem no jogo da FLN. Massu, Bigeard e seus "leopardos "fazem um bom
trabalho. Infelizmente, em Paris somos objetos de ataques pessoais
e jornalísticos respondendo aos apelos angustiados dos chefes rebeldes que sentem o perigo
que representa para eles a ação da DP e das unidades destacadas. A FLNficou
decepcionada pelo fato de que o voto final da ONU, ainda que prudente, não nos foi
desfavoráveL Isso provocou uma certa confusão entre nossos adversários. Até mesmo
emAlgei as divergências -oh, bem pequenas- também surgem. No exército, os casos de
renúncia àforma de luta que somos obrigados a levarpermanecem ínfimos. Um único, no
entanto, emana de um general: Bollardière, em completo desacordo com o general Massu,
seu chefe hierárquico. Eu lhe dei uma permissão de trinta dias. Ele traiu minha confiança,
escrevendo em um jornal, que vocês devem ter lido, as razões de sua oposição. Nós
conseguimos algumas vitórias sobre o terrorismo. Bzgeard prendeu LarbiBen M'Hidi, um dos
chefes do FLN. Na imprensa, o porta-voz Robert Lacoste anunciou que ele havia se
enforcado em sua cela com a ajuda de pedaços de sua camisa. Não foi nada disso: ele
foifuzilado. Bigeard, que tinha simpatia e até mesmo respeito por ele, deu-lhe honras
militares. Mas Ben M'Hidi, adversário honorável, foi sucedido por um proxeneta notório,
Yacef Saadi, tipo do verdadeiro malandro, sem grande coragem. Ele sabe utilizar as garotas,
que ele escolhe belas e provocantes. A prisão de Me Ali Boumendjel, em uma casa onde
numerosos documentos foram descobertos, permitiu ao coronel Fossey-François
remontarvários filamentos da rede de transmissões FLN. Infelizmente, com o objetivo evidente
de escapar à justiça, Boumendjel se matou, em 23 de março, depois de uma primeira tentativa
fracassada alguns dias antes. O fato é grave, porque o advogado era detentor de
informações preciosas. Além do mais, nos repreende por termos levado Boumendjelao
suicídio, o que é ainda maisfalso se pensarmos que nós ainda tínhamos necessidade de suas
revelações, pois as primeiras que conseguimos recolher prometiam muito. A esta acusação
sem fundamento contra nossa ação soma-se uma outra, aquela do reitor da faculdade de
direito de Alger si:
Peyrega. Em uma carta de 16 de março endereçada ao FranceObservateur que foi
reproduzida também no Humanité e no Monde,
ele acusa os pára-quedistas de execução sumária de dois muçulmanos, em 26 de janeiro de
1957, na rua Chevalier-de-Malte. O ministro da defesa nacional requisitou imediatamente
uma investigação confiada ao IGA ME deAlgere ao procurador da República. A investigação
terminou por provar que o relato, viesse do Peyrega ou do Humanité, era uma versão falsa e
difamatória. Uma crítica minuciosa dos documentos e das testemunhas reunidas rapidamente
permitiu separar o verdadeiro do falso. A investigação determinou que não foi um pára-
quedista quem atirou, mas um militar do 9° destacamento, que foi identflcado e deu conta por
escrito de seu comportamento, e que não se tratavam de dois muçulmanos, mas de apenas um,
enfim, que este acabara de cometer um atentado e que fugia sem responder sem dúvida, aos
interrogatórios de costume. Estes ataques abertos ou dissimulados produzem, sobre o moral
da tropa, uma péssima impressão. Eu também já enderecei, no dia 28 de março, uma
mensagem ao ministro da defesa. No dia 5 de abril, ao resultado do
conselho dos ministros que está sob a presidência do si: René Coty, o
ministro residente Robert Lacoste, presidente do conselho, me telefonou para
me dizer da satisfação do governo com os resultados obtidos: o progresso da
situação militar redução maciça, na Argélia em particular do número de
vítimas, que passou de 130 em janeiro para 32 em março, o retorno da
confiança da população muçulmana. O conselho foi obrigado a renovar ao
exército e à administração a segurança da gratidão da nação; ele pretende
protestar com indignação contra uma campanha organizada pelos inimigos
da França, que tende a mostrar nosso exército e nossa administração civil
empregando sistematicamente, na Argélia, métodos repressivos contrários ao
respeito pela pessoa humana e proclama, ao contrário, a admiração do país
com relação aos setecentos mil homens que, em um ano, sucederam-se na
Argélia para garantiralio retorno àpaz e a amizadefranco-muçulmana,
enquanto alguns os querem apresentar como torturadores.
Inspetor geral da administração em missão extraordinária, superprefeito assumindo então os poderes civis e
militares.
Nesse meio tempo, houve um acontecimento importante: a viagem do general De Gaulie ao
Saara, em 11 de março. Ele chegou precisamente às dezesseis horas em seu Skymaster
presente do general Eisenhower em companhia do coronel Bonneval e do srs. Guichard e
Foccart. Nós voltamos a Colomb-Béchar onde nos esperavaRobertLacoste. Depois de
depositarmos flores no monumento da Cruz de Lorraine, o generalfoi para diante da multidão
e apertou várias mãos. Seu encontro com Lacoste terminado, ele me recebeu. Eu nunca tinha
tido, até aquele momento, um encontro prolongado com ele. "é preciso derrubar a rebelião '
disse-me ele. "Não se deixe perturbar pelas críticas parisienses/Elas sempre foram meu
problema, antigamente, efui terrivelmente atacado pela imprensa da época. Não estou
preocupado. Faça o seu trabalho e cumpra sua missão semfraqueza/"Ele acrescentou à
queima-roupa: "Porque o senhor me desobedeceu com o generalLeclerc na Indochina?Por
que vocês atravessaram o 1 6° para lelo para desembarcarem em Hazhong?" Eu não
compreendi e lembrei-lhe que tinha sido ele mesmo quem havia prescrito ao generalLeclerc a
ida a Hanói, em agosto de 1946, quando ainda encontrava-se em Kandy. O general nada
respondeu, balançando a cabeça em sinalde negação. Ele retomou apalavra e me deu um
golpe: "Então, Salan, este caso da bazooka... Sem dúvida é preciso descobrir sua origem nas
sanções que você impôs aos soldados, na Indochina. Desde então, eles guardam
ressentimento disto." Eu me desconcertei, mas rapidamente me recuperei: "Não, meu general,
não se trata realmente de homens da Indochina, eles são bem apegados a mim, mas isso em
vista de um sórdido assunto político. Quando o processo começar acredite-me, o senhor
descobrirá porsi mesmo toda agravidade. " Ogeneralme atirou um olhar duro, em seguida,
como se nada tivesse acontecido, ele me disse: té mais tarde, no jantar."
A partir de então, não parei de repensar nesta conversa...
Você, sem dúvida, se pergunta, lendo esta longa carta, onde quero chegar. É simples: junte-se
a mim emAlger Você não pertence nem ao exército nem à política. Você é um homem livre,
espécie rara nos
nossos dias, é preciso de um civil do seu caráter Se me der sua palavra de aprovação,
encontrarei um meio de trazer você para a Argélia, como encontrei o meio que lhe permitiu partir à procura de sua mulher pelo Tonkin. Responda-me através de carta.
Meus respeitos à sua encantadora esposa,
Salan.
François Tavernier pousou, perplexo, as folhas sobre sua escrivaninha. Sua leitura lhe fez mal. Era
preciso que o general Salan estivesse muito perturbado para tê-las escrito e as enviado. Pela
imprensa, Tavernier havia acompanhado o desenvolvimento do que ela chamava de "o caso da
bazooka" , assim como a batalha de Alger. Mais recentemente ele havia lido no L'Express o artigo
"Tenente naArgélia" ,deJean-Jacques Servan-Schreiber, e acompanhado as polêmicas a respeito da
tortura praticada por alguns elementos do exército francês, tanto no Témoignage chrétien quanto
noHumanité. Como no caso da Indochina, ele acreditava que a França não tinha mais nada a fazer
na Argélia. É claro, permanecia o problema dos franceses instalados por lá há duas ou três
gerações e que consideravam esta terra como deles. O que pensava o general De Gaulle de tudo
isso? Não havia muitos pronunciamentos dele na época. Desde 1952, ele havia multiplicado suas
viagens a África, à Guiana, à Nova-Caledônia, a Madagascar, a Djibouti, experimentando a
necessidade do fervor das multidões em esquecer da "pátria ingrata". Teria ele definitivamente
renunciado ao poder, ou esperava pacientemente, como uma aranha, para que chegasse sua hora,
deixando a seus companheiros devotados o cuidado de montar a teia em seu lugar?
A carta de Salan despertou em François os amargores que acreditava estarem esquecidos. A
recusa do governador em vê-lo participar da colocação das novas ligações unindo a França a
Indochina, por causa de suas simpatias pró-viêt-minh, o havia ferido profundamente. Ele desejava
ter insistido junto a Mendès France, agora
presidente do Conselho e ministro dos assuntos estrangeiros. Era sem dúvida para acalmá-lo que
tinham lhe dado as insígnias de oficial da Legião de Honra. Pela primeira vez desde sua chegada a
Cuba, ele sentiu não estar na França. Mas o que lhe importava o caos argelino no qual o país se
enredava? Ele não tinha podido fazer nada na Indochina, embora conhecesse o lugar e os homens.
Qual poderia ser o seu papel em uma região do mundo que não conhecia?
Aqui, ninguém com quem falar a respeito; milhares de quilômetros separavam a metrópole dos
caraíbas. A embaixada da França em Havana tinha problemas suficientes a tratar no local para
poder interessar-se por aqueles que surgiam desta guerra na Argélia - a Argélia que, de qualquer
modo, era terra francesa e deveria permanecer assim. A maior parte das conversações com seus
compatriotas estabelecidos na ilha resumiam-se a isso.
Sim, o general Salan deveria sentir-se muito só para ter lhe pedido que fosse reunir-se a ele.

Capítulo Sete

Minha querida Léa,
Em Montillac, tudo vai bem. As crianças estão com boa saúde e os negócios florescem. Tudo
estaria perfeito sem o drama argelino. A cada dia nós sabemos de novos massacres, novos
assassinatos. As famílias da região estão duramente ressentidas pela partida de jovens. Na
estação de Bordeaux, houve manifestações pacifístas às quais reuniram-se os comunistas.
Fala-se muito em torturas sobre os argelinos. Nosso vizinho, François Mauriac, tomou
posição contra estas práticas que desonram, se forem verdadeiras, o exército francês. Nós
lemos no Le Monde que houve uma insurreição armada em Cuba, que os atentados e as
sabotagens eram freqüentes. Do que se trata, exatamente? Suas cartas não me dão nenhuma
idéia. Não é perigoso para as crianças? Se isso for se agravar volte, ou ao menos mande as
crianças. Alain e eu ficaremos felizes em acolhêlas. Você, que pensava que a vida em Cuba
seria uma festa, deve estar bem decepcionada. O que quer que seja, cuide-se, não se
exponha. Charles pôde retomar seus estudos? Você não nos disse nada a respeito dele...
Nós tivemos grandes tempestades que nos fizeram esperar o pior para os vinhedos. Mas o
Bordelais foi salvo, o que não foi o caso de Toulouse e de sua região.
Dê-nos notícias rápido. Todo mundo aqui está mandando nosso carinho.
Françoise.
A carta de Françoise havia levado dois meses para chegar a Havana. Visivelmente, ela havia sido
aberta. Com mau humor, Léa atira a carta na cama. Por que raios eles tinham de lhe lembrar a
estupidez de seu desejo de conhecer uma vida feliz em Cuba? François havia tentado traçar-lhe um
rápido resumo dos diferentes regimes políticos em vigor nas Caraíbas; ela havia fechado os lábios
dele com um beijo, acrescentando que preferia seus sonhos à realidade; ele havia rido e se
entregado ao beijo sem procurar mais informá-la.
Há algum tempo reinava na capital cubana um clima de tensão dificilmente suportável: controles
múltiplos, perseguições, atentados diários, manifestações brutalmente dispersadas pela polícia. Em
Miramar, bairro até então preservado, agora evitava-se sair depois do cair da noite. Algumas casas
ricas até mesmo haviam sido abandonadas por seus proprietários. No entanto, nunca as festas
haviam sido tão numerosas entre a sociedade abastada, as embaixadas e os grandes hotéis. Aviões
derramavam a cada dia seu lote de americanos que vinham de Miami para se precipitarem nos
cassinos ou nas boates. Sempre havia muito divertimento em Havana.
Léa começava a se sentir um pouco cansada desta existência fútil e mundana que levava. As
crianças tinham sua vida própria, seus colegas, seus jogos, e Philomène cuidava afetuosamente da
pequena Claire. François ausentava-se por longos períodos, deixando- a sozinha consigo mesma. Ela
havia esgotado as alegrias das
descobertas, aquelas davelha Havana, dos bares que freqüentava o velho Hemingway, as praias do Varadero, da
piscina do Country Club, das salas de jogos, dos passeios à beira-mar ou das sessões de cinema ao fim da
tarde...
Durante estes últimos dias do mês de agosto, um calor arrasador pesava sobre a cidade. Por ociosidade, Léa
havia aceito o convite de Alfredo García Olivera, o travesti que a encontrara no Tropicana. Na véspera, ela
havia cruzado com ele diante da catedral, trajado desta vez com uma calça corsário verde gritante, uma camisa
rosa amarrada no peito e uma peruca loura. Sua afetação e suas palavras a tinham feito rir. Na verdade, nem
precisava disso tudo para que ela aceitasse revê-lo.
O frescor generoso dispensado pelo climatizador do Floridita caía sobre seus ombros nus. Léa estremeceu
olhando em volta. A sala estava lotada e americanos de camisas floridas aglutinavam-se em volta do bar
chamando ruidosamente o barman. Ela passou entre as mesas sob os olhares interessados dos homens
ávidos por mulheres, mesmo a menos sofisticada, fosse loura ou morena. Ela apressava-se a se dirigir até o bar
quando uma mão pousou em seu braço. Um mestiço cujos olhos verdes brilhavam em um belo rosto imberbe,
alto, elegante em seu terno branco, sorria para ela.
- Pensei que você não viesse mais - disse ele sem largar-lhe o punho.
Surpresa, Léa tentou por um instante afastar-se, em seguida começou a rir.
- Évocê?
- Sim... Venha, estão olhando para nós.
Ele a guiou até uma mesa onde um charuto acabava de se consumir.
- O que quer beber?
- O mesmo que você.
- Antonio! - gritou ele, levantando-se na direção do barman.
- Dois daiquiris, por favor.
- Bem, sr. Alfredo.
- Eu bem que enganei você - disse ele, sentando-se.
- Claro que sim! - respondeu ela, observando-o.
- Minha mãe também fica louca comigo. Ela não se habitua. Nunca sabe ao se levantar se é um filho
ou uma filha que vai encontrar no banheiro!
- Você mora com sua mãe?
- Sim. Isso parece espantar você...? Sou um filho afetuoso e uma filha dedicada...
- Não tenho dúvidas.
- Como você me prefere, como mulher ou homem?
- Não conheço bem nem um nem outro. Acho a mulher muito bonita, perturbadora. O homem?...
Também acho-o bonito, mas... menos surpreendente. E você, qual dos dois prefere?
- Depende.
- Depende do quê?
- Do local onde me encontro, das pessoas que encontro... Quando sou uma mulher, sinto-me mais
forte, mais desejável. Homem, tenho que assumir uma virilidade toda cubana que às vezes me
cansa.
Um servente em roupa vermelha colocou os copos na mesa.
- Antonio preparou-os como o senhor gosta, senhor Alf redo.
- Obrigado, Luis... A sua saúde, sra. Tavernier!
Léa levantou seu copo.
- O que achou?
- Delicioso. Você vem aqui com freqüência?
- Quase todos os dias.
- Sempre como homem?
- Depende...
- Também!
- Sim, é uma questão de humor e de hora. A mulher em geral só aparece ao fim do dia... Sei o que
você pensa: ontem, diante da catedral, em pleno dia... Mas tinha minhas razões...
- ... das quais prefere não falar.
Alfredo não respondeu, o rosto repentinamente tenso, os olhos cravados na entrada.
- O que você tem...? Falei alguma coisa de que não gostou?
- Não... Você está vendo o homem, lá, segurando a mulher de amarelo pela cintura?
- Sim...
- Observe-o bem para não se esquecer de seus traços. E se um dia cruzar o caminho dele, corra
bastante ou faça uma prece.
- Mas... por quê?
- E um assassino, um dos homens de Ventura, o mais perigoso, talvez o mais cruel. Ele adora causar
sofrimento... e particularmente às jovens ou aos rapazes bem novos. Nenhum daqueles que passou
pelas mãos dele saiu ileso.
- Como ele se chama?
- Fernando Arguedas.
- É um policial?
- Não, ele faz parte da máfia. Para o grupo de Meyer Lansky, o antigo braço direito de Lucky
Luciano, que também foi conselheiro de Batista para a reforma dos jogos, ele controla os hotéis, os
cassinos que pertencem à Organização. No porto de Havana, ele supervisiona o trânsito da droga da
Ásia em direção à América.
- A reforma dos jogos...?
- Sim... Batista e o governo americano, cansados de serem acusados de trapaça pelos turistas que
perdiam fortunas na cubo la norazze-dazzle ou em outros, decidiram punir, ou seja, moralizar a
indústria dos jogos e expulsar os jogadores profissionais. Graças a uma polícia secreta composta de
homens de Batista e de alguns outros vindos da máfia, os cassinos de Cuba tornaram-se os mais
honestos do mundo! Vários vôos diários trazem regimentos de jogadores americanos, certos da
regularidade dos jogos. Nunca tanto dinheiro circulou em Havana e nunca nossa ilha mereceu tanto
o apelido de "bordel da América". O padrinho judeu e o ditador mestiço esfregam as mãos... Isso
faz você rir? É a marca de Cuba: aqui
devemos sempre dar às verdades mais amargas um pequeno gosto burlesco para que se possa
engolí-las...
- EArguedas, então?
- Arguedas, desde seu feudo do cabaré Sans-souci, tem a mão sobre a maior parte dos tráficos e das
redes de prostituição. Hoje ele também serve de dedo-duro a Ventura que, em troca, fecha os olhos
para alguns de seus excessos... sem esquecer de aceitar, de passagem, confortáveis gorjetas. Estes
dois bandidos entendem- se maravilhosamente e trocam serviços múltiplos: raptos, seqüestros,
ameaças, extorsões, violações, torturas ou mortes... A amiga de seu filho esteve nas mãos dele.
- Como você sabe disso?
- Nós, criaturas híbridas, circulamos em todos os meios e sabemos nos misturar, assim como os
camaleões. Participamos, de certa forma, do espetáculo da rua. Festeiros sonâmbulos, nós também
recebemos confidências, direi até que as atraímos. As noites de Havana não são livres de
prostituição e de crimes. A casa em que Carmen Pineiro foi violada pertence ao pai de um colega
que trabalha ocasionalmente para Arguedas. Naquela noite, este tipo, que ali guarda seus cigarros
americanos de contrabando, estava lá. Foi ele que alertou os outros estudantes.
- Você não julga estranho que um traficante de cigarros informe os estudantes revolucionários?
- Não é tão simples... Em Cuba é preciso saber se virar. As simpatias deste rapaz vão mais para o
Diretório. Mas ele precisa comer... desde que seu pai cortou-lhe os víveres porque ele se recusou a
colaborar com a polícia.
- Este Fernando Arguedas, você já esteve em contato com ele?
De um gole, Alfredo virou seu copo.
- Venha, vamos embora.
Ele desviou o rosto ao passar diante do homem de ferro de Ventura, que o acompanhou com o olhar
enquanto fumava seu charuto. Na rua, o calor úmido os envolveu. Eles permaneceram por um
instante imóveis na calçada.
- Estou com fome - disse Léa.
- Que coisa boa! Eu também. Vou levar você à minha cantina... é também a do papa Hemingway.
- A Bodeguita dei Medio? Já estive lá algumas vezes na vã esperança de encontrar o grande
homem, ou ainda Errol Flynn...
- Eu tive mais sorte do que você: já os encontrei e até mesmo matei a fome com eles. Muitos artistas
cubanos freqüentam a Bodeguita; não é cara, e a cozinha é honesta... Interessa?
A noite havia caído; a luz das lojas e dos refletores se acenderam antes dos fortes faróis de
brilhantes automóveis que avançavam, pára-choque contra pára-choque. A multidão apressava-se
pela rua Obispo, preguiçosa, atraída pelas vitrines iluminadas das butiques de luxo que ali se
enfileiravam: perfumarias, joalherias, livrarias, costureiros, chapelarias... O acaju do balcão da
farmácia Johnson, seus potes em cerâmica, brilhavam. Fora dos salões de chá emanava um bom
odor dos doces de chocolate. Diante do grande mercado de vinhos e licores homens fumavam seus
charutos, copos na mão. Um grupo de americanos barulhentos saía do hotel Ambos Mundos. Sobre
a mureta que envolvia o quadrado da praça das Armas, famílias inteiras observavam os pedestres
enquanto os garotos perseguiam-se pelas aléias entre as pernas dos transeuntes. Na praça da
catedral, velhas mulheres dirigiam- se devagar para o prédio religioso a fim de assistirem ao ofício
da noite. Na rua Empedrado, os clientes da Bodeguita dei Medio enchiam a calçada conversando e
bebendo. Alfredo abriu caminho, saudado na passagens pelos clientes habituais. Alguns
comentavam a presença de Léa a seu lado.
- Olhem só, que gata, rapaz!
- Uma mulher como esta não é só para você, meu irmão.
- Alfredo, me apresenta a moça. Tenho certeza de que sou o homem certo para ela.
Alfredo os afastava rindo, feliz com seu efeito.
- Apártense. Déjenlepaso a esta dama.
Todos tinham aspecto de bons meninos. No balcão, Angel e Ignacio celebravam.
- iAlfredo, mi socio! 7l andas bien acompaiado, eh, compay! Bueno, está corre por mi. Qué
tomar? e Mojitos?
Sem esperar resposta, Ignacio coloca dois copos gelados diante deles.
- Estamos parti'os, Ignacio. cQue tienes por ahí?
- Hay picadilio a la habanera o moros y cristianos.
- Você deveria experimentar os moros y cristianos, são os melhores de Havana... depois dos de
minha mãe, é claro!
- Então, vamos aos moros y cristianos.
Eles sentam-se diante de uma mesa redonda colocada contra a parede que tinha retratos com
dedicatórias de cantores e de artistas de cinema, escritores, jogadores de beisebol. Todos haviam
vindo em algum dia provar os célebres mojitos. 'frês músicos instalaram- sena calçada e atacaram
um chachachá. Imediatamente os cubanos começaram a balançar seus corpos e logo toda a rua
tremia ao som da Enganadora.
Léa não se cansava do espetáculo da alegria de viver dos havaneses.
- Na França, vocês também têm música nas ruas? -perguntou Alfredo levando à boca uma porção
de ensopado de carneiro.
A pergunta fez voltar à memória de Léa o quiosque no jardim de Luxemburgo, onde a guarda
republicana tocava aos domingos, o da fanfarra municipal de Saint-Macaire e o rosto do
acordeonista cego que acompanhava sua mulher, na esquina Buci, quando ela interpretava as
canções de Fréhel ou de Piaf; ela entregava as partituras
ao público reunido em torno dela, que entoava os refrões em coro. Pequena, em Bordeaux,
Léa obrigava com freqüência seu pai a ficar em uma calçada, escutando longamente os cantores da
rua ou os tocadores de realejo. Como ela teria amado então virar a manivela ou passar o chapéu
entre o público, com um macaquinho pendurado em seu ombro!
- É claro que nós temos música nas nossas ruas. Mas não é a mesma.
- Isso não tem importância. Um país sem cancioneiros é um país triste. A música permite suportar
melhor as coisas... Você gosta?
- acrescentou ele apontando para o prato.
- Muito... mas só de vez em quando: enche demais!
- É a alimentação de base dos cubanos, sabe? Você tem de experimentar o que minha mãe prepara.
Nada aver com este. Quer outra coisa?
- Sim, um sorvete e um café.
- Eu vou querer a mesma coisa... lAngel, dos helados y dos cafés!
Três belas jovens entraram e foram se instalar no bar da mercearia-cervejaria sob os assobios dos
homens. O aroma do perfume delas era forte e açucarado, e irritou as narinas de Léa, que começou
a coçar o nariz.
- Eu detesto perfumes muito fortes.
Alfredo levantou-se e dirigiu-se para as moças, que riram ao vê-lo.
- Wómo, Freddy, todavía no estás lista?
- Hóla, Olivia. Te has bafiado en agua de colonia o qué, mujer? Te echas demasiado. Ya te
he dicho que una dama decente seperfuma com delicadeza.
- iQué delicadeza ni que mierda! Oyes, Marzlyn?La monstrua deFreddy quiere damos
lecciones de como hay que vivir.. Loh!!Ahora
entiendo!La seiora... discúlpe, elseorestá en muy buena compaiía. Usted meperdona, mi
cielo... iSalud, seíorita! - disse a Léa, levantando seu copo.
- iVístete, mujer!... Que nos esperan a la once" - continuou aquela que se chamava Marilyn.
- Tienes razón. Váyanse, enseguida las alcanzo.
Léa havia acendido um cigarro e fumava, os olhos semicerrados, apoiando-se preguiçosamente no encosto de
sua cadeira.
- Você é realmente uma bela mulher - disse ele sentando-se.
- Obrigada... Suas amigas também. Elas também são...?
- Travestis?... Sim. Com mais sucesso, não é? Elas fazem muito sucesso, mais do que eu, para falar a verdade,
porque elas gostam de homens. Nós nos produzimos em noites especiais na casa de amantes ricos onde
cantamos, dançamos... Esta noite, faremos um espetáculo; soube apenas hoje de manhã e não pude avisá-la.
Agora, tenho de ir para casa me trocar... Você me acompanha? É a dois passos daqui... Não se preocupe, minha
mãe estará lá...
Alfredo morava em um belo edifício deteriorado do século XVIII, que dava para uma pequena rua, atrás da
praça das Armas. Uma grande escada com degraus de pedra lascada elevava-se de paredes cobertas de
grafites obscenos. As balaustradas desaparecidas estavam substituídas por piquetes de madeira mantidos
com a ajuda de fios de ferro. Um odor de sabão e de fritura enchia a casa. O apartamento era no primeiro andar.
Uma porta decrépita abriu-se e uma mulher negra, que deveria ter sido bonita, toda vestida de branco, apareceu
no vão da porta, um grande charuto preso entre seus lábios pintados. Depois de um breve olhar a seu filho,
ela inspeciona Léa da cabeça aos pés. Sem dúvida ela ficou satisfeita com o exame, pois abriu largamente a
porta e afastou-se para deixá-la entrar. A entrada estreita era coberta de plantas mais ou menos murchas,
gaiolas de pássaros vazias, estatuetas de formas grosseiras, mas também santos em gesso pintados com cores
berrantes: havia a Teresa do menino Jesus, Francisco de Assis, Bernadette Soubirous. O pequeno aposento
estava banhado por uma luz vermelha.
- Você é a francesa da qual meu filho falou? Você é muito bonita para uma branca.
- Mamãe, ofereça-lhe alguma coisa para beber, por favor. Tenho de me preparar.
- Sente-se nesta poltrona, você ficará bem... Acabei de fazer um café, você quer?
Sem esperar a resposta, ela estendeu a Léa uma delicada xícara de porcelana.
- Não preste atenção na desordem, houve uma cerimônia há pouco.
Ela afastou a cortina estampada que separava o cômodo, descobrindo uma espécie de capela com as paredes
ornadas de folhagens, guirlandas de papel em cores vivas, flores artificiais, lenços de seda e bordados em tons
pastéis. Sobre o chão recoberto de uma esteira estavam colocados pratos que continham comida, um enorme
bolo de creme do mais belo rosa, um prato repleto de moedas e de notas. Envolvendo uma espécie de estatueta
na cabeça, com uma pluma e um pedaço de metal enferrujado, uma concha marcando o lugar da boca e dos
olhos, grandes velas acabavam de consumir-se.
- É Eleggua, o que abre as portas da felicidade ou do mal, que mostra o caminho e tem as chaves do destino.
Ele ama as homenagens e as oferendas. Alfredo e eu nunca deixamos de festejá-lo todas as segundas-feiras e
de lhe queimar uma vela para que ele nos guie e nos proteja... É um deus muito poderoso - acrescentou a
mulher, baixando a voz.
Alfredo, que agora usava uma calcinha de seda branca cheia de rendas, entrou bruscamente, de
saltos altos.
- Mamãe, você mexeu na minha maquiagem, não encontro mais o meu batom! Já pedi mil vezes para
você não usar as minhas coisas!
- Você não vai fazer um drama por causa de um batom velho que, aliás, nem combina com você.
- Porque você acha que combina com você, né? Não se enxerga?
- Você vê como ele ousa falar com a mãe? Este canalha, este filho indigno para o qual sempre me
sacrifiquei... Tanta ingratidão me mata!
batom.
- Aqui está! - exclamou ela, procurando em suas saias brancas.
O tubo brilhante aterrissou entre as mãos de Alfredo.
- Mas... não sobrou mais nada! Você comeu o meu batom, por acaso?
A mãe se virou, altiva, ajeita os cabelos, arruma uma guirlanda. Teve um sobressalto com o barulho
da porta se fechando.
- Não repare, não é um mau menino mas, em alguns momentos, é como uma jovem quando está em
seu período... Você entende o que eu digo.
Léa se virou porque mal podia conter o riso. Balançando seus largos quadris, caminhando pelo
cômodo, Teresa continuava como se falando consigo mesma:
- Com certeza não fiz oferendas suficientes a Xangô e é por isso que a virilidade de meu filho é
vacilante. Ele ficou com inveja de minhas preces a sua amante, a deusa do amor, a esposa de Orula,
a bela Oxum...
A gorda mulher aproxima-se de Léa.
- Os deuses são ciumentos, nunca se deve privilegiar um com relação aos outros. Para me punir,
Olofi, o criador do universo, permitiu a seus orixás que fizessem de meu filho ao mesmo tempo
menina e menino. Tudo isso é culpa minha, não fiz preces suficientes a Orula...
- Orula é o são Francisco de Assis, não é?
Teresa lança-lhe um olhar inquisidor.
- Você se interessa pela santería?
- É muito difícil, quando vivemos em Cuba, escapar ao culto aos orixás. Cada família cubana, seja
ela cristã ou não , possui os seus, me disseram...
- Não apenas as famílias cubanas...
- Mamãe! Você a aborrece com suas histórias.
Desta vez a transformação de Alfredo se revela tão espetacular que sua mãe, embora habituada,
exclama:
- Como está bonita, minha filha!
Fascinada, Léa devorava-o com os olhos, sentindo uma estranha fraqueza nos joelhos. Como
imaginar que o sexo de um homem poderia se esconder nesta calça colante de cetim rosa, que esta
cintura elegante, estes ombros redondos, estes braços delicados, estas pernas longas, perfeitas e
lisas, este rosto imberbe, estes lábios pintados, estes cabelos cuidadosamente penteados não eram de
uma mulher? Encontrava-se ali, diante dela, algo de profundamente desordenado e perturbador. De
seu lado, Alfredo sentava-se lisonjeado, divertido, também, com o seu olhar de admiração. Ele
enviou-lhe um sorriso aberto, girando em torno de si mesmo.
- O que acha? Estou chique o suficiente para sair com você?
- Está magnífica! - disse ela, com um entusiasmo do qual logo se arrependeu.
Ele tomou-lhe o braço, puxou-a para si e sussurrou-lhe nos cabelos:
- Você é que é magnífica!
O calor, seu perfume inebriante, a respiração em seu pescoço, o punho firme a fizeram vacilar. Ele
percebeu e a apertou. As palavras de Santiago Reyvoltaram à memória de Léa: "Não há ninguém
como ele para seduzir as mulheres honestas..." Furiosa consigo mesma, ela afastou-se bruscamente.
- Desculpe-me, mas tenho que voltar para casa agora... Adeus, senhora, fiquei feliz em conhecê-la.
- Alfredo vai acompanhar você, as ruas de Havana não são seguras para uma bela mulher sozinha.
Deus o proteja, meu filho, seja prudente!
Eles se abraçam.
Freddy ajoelha-se rapidamente diante do altar, faz o sinal-da- cruz e toca o chão com as pontas dos
dedos. Sua mãe aprovou com um assentir de cabeça.
A umidade da noite os envolveu. Os homens os seguiam com os olhos, lançando-lhes convites muito
precisos aos quais Freddy respondia curvando os quadris de forma provocante ou por palavras
também baixas.
- Pare de provocá-los - gritou Léa -, eles vão nos saltar em cima!
- Não. Comigo você não corre riscos.
Eles chegaram à estação de táxis, escoltados por cinco ou seis jovens mais atrevidos que os outros.
Um dos motoristas avança na direção deles.
- Precisa de alguma coisa, Freddo?
- Olá, Pepe. Leve-nos para longe destes machos no cio!
Alfredo empurrou Léa para o carro e, voltando-se, levantou a saia e agitou seu sexo na direção dos
que os seguiam. Estúpidos, os garotos ficaram alguns segundos parados no lugar. Quando se
recuperaram, voaram na direção deles gritando, mas o veículo já havia ganhado velocidade.
- Você deveria parar de provocá-los... Um dia eles lhe quebrarão o pescoço - disse Pepe, enquanto
se desviava de um grande Chevrolet.
A manobra acabou por projetar seus dois clientes um contra o outro.
- Preste atenção, Pepe!...Vai quebrar nossos pescoços antes deles.
- Vamos, vamos, Freddo, você sabe bem que sou o Fangio dos motoristas de táxi...
- Fangio ou não, não meta o pé; não temos a polícia atrás de nós!
- Como quiser, filho. Para onde vamos, a propósito?
- Para a casa do doutor Hasselbacher. Você conhece, não é? E ponha um pouco de música, por
favor.
Eles seguiram por alguns instantes ao ritmo de um mambo.
- Mas... não é a direção de Miramar - espantou-se Léa.
- Não, vou levar você comigo. Acho que você nunca esteve em um lugar parecido com este para
onde vamos.
- Possivelmente, mas você poderia ter me perguntado se eu queria ir!
- Não faça cena. Você é como eu, adora os imprevistos, adora se divertir...
- É verdade, mas também gosto de escolher meus divertimentos.
- Seja gentil: será um grande prazer se você me acompanhar...
O tom meigo foi a razão do fim do mau humor de Léa. Ela decidiu rir.
Eles seguiram pela via Blanca na direção de Matanzas. Léa tinha os olhos fechados.
- Chegamos - anunciou Alfredo.
Entre as luzes dos faróis, surgiu um cartaz. Léa mal teve tempo de ler: Santa María del Mar. Um
vento marinho entrou no automóvel. Eles atravessaram o burgo. Na saída, o motorista diminuiu a
marcha, em seguida parou diante de um portal onde estavam dois homens, revólveres na cintura. Os
guardiões aproximaram-se, reconheceram Alfredo e abriram os batentes do portão. Adiante,
no fim da entrada de uma casa generosamente iluminada provinha uma música mexicana.
- Não nos esperaram para começar a festa - observou Alfredo abrindo a porta. -Você fica aqui
fora - acrescentou ele ao chofer.
Ele tomou o braço de Léa.
- Faça exatamente o que eu vou lhe dizer: em quinze minutos, peça para ir ao banheiro, e eu
encontrarei você lá. Até então, seja feliz e natural.
- Por que me diz isso?
Ele não teve tempo de responder, um homem dirigia-se para eles.
- Boa noite, Freddy. Você nos trouxe uma nova? Ela é perfeita, nós a julgaríamos uma verdadeira
mulher!
Alfredo estourou de rir.
- Doutor, isso vai surpreendê-lo, mas esta senhora é uma mulher... Ela é francesa e é uma amiga.
Estava sozinha esta noite; permiti-me convidá-la.
- Você fez bem... Não tem medo da concorrência?
- Doutor - arrulhou ele -, conheço muito bem para onde vão as suas preferências...
- Não se deve ter certeza de nada, meu caro. Eu poderia muito bem ser levado a fazer uma
exceção... A senhora é francesa... Senhora?
- Tavernier.
- Já vi este nome em algum lugar... No Carteles ou noBohemia, talvez.
- Nos dois, doutor. A sra. Tavernier é uma amiga do nosso presidente e do ministro do interior.
- Você conhece nosso caro Santiago Rey? Ele vai certamente passar por aqui esta noite... Seja bem-
vinda - concluiu ele, afastando-se do umbral.
Cerca de quinze pessoas, de pé diante de umvasto bufê, continuaram conversando. Os três travestis
que haviam estado no Bodeguita del Medio tagarelavam ali, um copo na mão. Avistando Alfredo,
eles avançaram balançando a cintura.
- Ele está em uma cabana atrás da estufa... há um guarda na entrada - sussurrou Olivia sem deixar
de sorrir.
- Ele está seriamente ferido - sussurrou Marilyn, em um grande sorriso.
Os olhos de Léa iam de uma para a outra, procurando decifrar a conversa enigmática.
O dono da casa voltou, em companhia de um homem que Léa logo reconheceu.
- Sr. Greene!... A última vez em que nos encontramos foi em Hanói, não foi? O senhor se lembra?
- Como poderia me esquecer de uma mulher tão bonita? - disse ele, beijando-lhe a mão. O que você
faz em Cuba?
- Ia fazer-lhe a mesma pergunta.
- O sr. Graham Greene está preparando um romance, ele precisa se introduzir em praticamente
todos os meios de nossa ilha, os mais oficiais e os mais ilegais... - completou seu anfitrião.
- O senhor não poderia ter escolhido lugar melhor do que a casa do doutor Hasselbacher - foi mais
longe Alfredo, solene.
- Meça suas palavras! - rosnou o dono da casa.
- Meu querido doutorzinho, eu estava brincando... Se não pudermos nos divertir em sua casa, não
virei mais aqui - declarou Alfredo, afastando-se com ar de ofendido.
Graham Greene tomou o braço de Léa e a levou para um sofá.
- Vamos nos sentar? É surpreendente reencontrá-la aqui... Me disseram que este é um dos lugares
mais malfalados de todos os subúrbios de Havana e que as noitadas que se fazem por aqui são
dignas do marquês de Sade.
- Exagera-se muito, sem dúvida... Como o senhor chegou? Pretende ficar por muito tempo?
- Não sei realmente... Aluguei um carro com motorista; ele me aguarda junto da estufa. É um
canalha supersticioso, mas conhece todos os locais obscuros de Havana. Foi ele quem me
apresentou ao doutor Hasselbacher e que me fez descobrir os espetáculos
pornográficos do Shangai, um teatro onde, por um dólar e 25 centavos, pode-se ver pessoas
fornicando no palco. "É tão excitante quanto ver um marido cumprir honestamente seus deveres."
Quanto a mim, prefiro os números das lésbicas do Blue Moon... Você conhece?
Léa fez "não" com a cabeça, olhando rapidamente para seu relógio.
- Vou levá-la até lá...
- Creio que meu marido estará de acordo! - gargalhou ela.
- ... Desculpe-me, já volto.
Léa levantou-se e dirigiu-se para uma das jovens que estavam de serviço em um avental que
revelava pernas e seios.
- Onde ficam os banheiros, por favor?
- Por aqui, vou lhe mostrar.
Ao fim de um longo corredor, ela indicou uma porta. Atrás, uma espécie de pequena sala de estar
forrada de tecido rosa se abriu. Duas grandes penteadeiras forradas estavam frente a frente,
enquadrando altos espelhos que escondiam as portas. O chão estava coberto de um tapete espesso,
a iluminação era suave, o ar perfumado. Léa sentou-se diante de uma das penteadeiras e apanhou
seu pó-de-arroz. Nenhum barulho chegava a ela; as paredes deviam ser estofadas. Alfredo surgiu.
- Nós não temos muito tempo... Trouxe você para divertir- se, mas sua presença revelou-se ainda
mais interessante do que o previsto, pelo fato de seu encontro com Greene.
- Não compreendo muito bem o que você quer me dizer...
- Jure-me que não vai se levantar.
- Mas...
- Jure!
- Deixe-me, não estou gostando disso...
- Jure!
- Eujuro...
- Olhe: um de nossos amigos está feito prisioneiro aqui, ele foi torturado e nós vamos libertá-lo. Já há
um carro estacionado perto da estufa, onde nosso amigo está preso...
- Mas... é o carro de Greene!
- Eu sei, eu sei... nós vamos esconder nele o doutor Pineiro...
- O doutor Pineiro?...
- Sim... Você vai simular um mal-estar, você sente-se mal. E pede ao escritor que a acompanhe.
- Mas enfim... você se dá conta da gravidade da situação na qual me meteu?
- É claro, mas não tenho escolha. Esta é a única oportunidade que surgiu em semanas. Há quinze
dias descobrimos o paradeiro do doutor Pineiro... Antes de ser trazido para cá, ele deve ter passado
por diferentes prisões que a polícia mantém secretas. Em todas elas ele foi torturado... Nós sabemos
agora que Ventura e seus policiais também fizeram-lhe perguntas sobre você e sua família. Ele não
disse nada... Vê, você também está envolvida com este incidente.
- E me trazendo aqui, sabia que me levava para a goela do lobo!
- Não ignorava isso. É um risco que calculamos... O tempo está passando: você aceita nos ajudar?
- Eu realmente tenho escolha?
Alfredo levantou os ombros, enquanto Léa amaldiçoava-se por ter aceitado segui-lo. Por sua
imprudência, ela estava metida mais uma vez em uma situação complicada. Se lhe acontecesse
alguma coisa, ninguém teria idéia de procurá-la neste local perdido. Um pensamento apertou-lhe o
coração: as crianças estavam sozinhas na casa de Miramar! Mecanicamente ela ajeitou seus
cabelos diante do espelho. Ele lhe enviou de volta a imagem de uma jovem e bela mulher bronzeada,
mas com o olhar perdido. Ela apertou os punhos e voltou-se para Freddy, que retocava a
maquiagem.
- O que eu devo fazer?
O sorriso satisfeito de seu companheiro pareceu-lhe insuportável.
- Você vai voltar ao salão, rir, dançar, fingir que está se divertindo... Mas não pare de vigiar o doutor
Hasselbacher. Daqui a uma hora, com os colegas, faremos nosso número de strztease. Neste
momento, apenas o centro do cômodo estará iluminado. Quando eu estiver nu, você se dirigirá a
Greene e pedirá que a acompanhe sob o pretexto de um mal-estar.
- E se ele insistir em ficar?
- Você fará pressão.
- E se o doutor Hasselbacher se propuser a me acompanhar?
- Ele não fará isso, eu o conheço: ele é louco por Marilyn, que é a única, diz ele, que sabe dar-lhe
seu... vigor.
Sem uma palavra, Léa voltou aos salões onde os casais estavam dançando uma rumba com
tamanha sensualidade que, por um instante, ela ficou emocionada. Um homem alto, razoavelmente
sedutor, a convidou e a tomou nos braços sem esperar resposta. Léa não resiste e logo seus dois
corpos balançavam- se sob o ritmo perturbador da dança. Foi rapidamente impossível ignorar o
estado no qual encontrava-se seu cavalheiro. Um sorriso irônico nos lábios, Léa acentuou o
movimento de suas ancas. Um longo tremor a advertiu do orgasmo de seu parceiro. Ela afastou-se
mas, com um gesto possessivo, ele a pôs entre suas pernas. A orquestra parou, livrando Léa no
mesmo instante. Ela escapou.
- Meus caros amigos - gritou o doutor Hasselbacher -, proponho fazermos um brinde em homenagem
ao célebre escritor britânico que nos dá a honra de estar entre nós esta noite, sr. Graham Greene, ao
qual associo uma charmosa francesa, a sra. Tavernier!
Todos levantam seus copos.
- E que a festa continue! - exclamou o médico, deixando-se cair em um sofá.
As luzes baixaram, a música recomeçou e os casais enlaçaram- se novamente. O dançarino de Léa
reaproximou-se e a tomou pela cintura.
- O senhor permite? - interpõs-se Graham Greene, puxando a jovem mulher.
O homem reprimiu um movimento descontente e em seguida, sob o olhar duro de Léa, inclinou-se.
- Eu a previno, danço muito mal - disse o homem das letras, tomando-a em seus braços.
Eles dançaram em silêncio durante alguns instantes.
- O que você está fazendo aqui? Não é lugar para uma mulher como você... Você não veio para se
distrair: sinto que está inquieta, tensa...
Léa não respondeu e aplicou-se a seguir os passos de seu parceiro. Ele se deu conta e começou a
rir.
- Sou um dançarino sofrível, não sou? Vamos parar?
- Não, continuemos, por favor.
Havia na voz dela algo de tão pressionador que ele retomou de imediato seus movimentos e dançou
até apróxima pausa da orquestra. Um dos músicos precipitou-se ao palco:
- Senhoras e senhores! Vocês agora vão poder admirar o número, famoso em toda Havana, que nos
vão oferecer algumas das mais belas mulheres de Cuba!
Sob os aplausos e os risos, ele retira-se enquanto apagavam- se as luzes uma a uma. Na
obscuridade, Léa procurou a mão de Graham Greene. Repentinamente, um faixo luminoso tornou
vermelho o centro da sala. No chão, ainda curvada sobre si mesma, uma mulher começou a mexer
lentamente os braços. De um saxofone crescia um longo gemido. Quando a mulher se levantou, Léa
teve um sobressalto: ela reconheceu Alfredo. O sax parecia ordenar cada um de seus movimentos,
cuja lentidão multiplicava os efeitos. Toda a platéia permanecia em suspense ao menor de seus
gestos; sua sugestividade a mergulhava em uma crescente perturbação erótica. Quando o vestido
caiu, houve umfrisson. A cinta apertada fazia surgir o arco, acentuando o arredondamento de suas
nádegas cor de tabaco. Inclinado, girando sobre si mesmo, ele as abria, as afastava, fazendo
aparecer a linha de seu tapa sexo. Ele introduziu um dedo, o saxofone gemeu e, na platéia, escutava-
se numerosos suspiros. Junto a Léa, um casal fazia gestos de amor sem deixar de observar a cena.
Inclinadas em altos saltos dourados, as pernas de Alfredo, em suas meias cor de arco-
íris, pareciam intermináveis. Por fim, a cinta cai. A renda das estreitas ligas contrastava sobre a pele escura. O
triângulo de cetim branco se distendeu. O sax ofegava quando o tecido cedeu à pressão de um sexo triunfante
que começou a se balançar sob exclamações de admiração, que redobraram quando, provocante, Alfredo o
sacudiu diante de seu público. Entre a platéia, começavam a imitá-lo. O sax ofegou pouco a pouco, de repente,
lançou três ou quatro gemidos, pontuando a ejaculação do artista e a alegria dos espectadores. O sax expirou
em um último lamento.
Os olhos arregalados, Léa não se deu conta de que amassava na sua a mão de Graham Greene.
- A senhora me quebra os ossos, cara madame!
Confusa, ela soltou os dedos. O britânico dobrou-os e estendeu-os.
- Que punho!... O show a agradou?
Alfredo, tão nu quanto umverme, passou diante dela. Acenderam- se algumas luzes.
- Senhor Greene, por favor, poderia me acompanhar? Não me sinto muito bem...
- Você não quer ver a próxima?
- Não... eu lhe peço!
Ela levantou-se e fingiu vacilar. Greene passou seu braço em torno da cintura dela. O doutor Hasselbacher veio
na direção dos dois, titubeando.
- A sra. Tavernier não está bem, anuncia Greene. Vou levá-la para casa.
O anfitrião teve um riso grosseiro.
- Você está bem pálida, na verdade. Foi nosso belo Alfredo quem a deixou neste estado? Vá então tomar um
pouco de ar, vai lhe fazer bem.
- Não, creio que não... Já algum tempo estou sujeita a terríveis dores de cabeça... Agradeço sua acolhida. Faça-
me a gentileza de dizer a Alfredo que já fui embora. Despeça-se dele por mim.
- Sim, bem então vá, já que não há meios de detê-la. Espero ter o prazer de revê-los. Sr. Greene, um de meus
motoristas pode levar a senhora Tavernier...
- É muito gentil, eu agradeço, mas prefiro acompanhá-la. Somos velhos conhecidos e sinto-me um pouco
responsável por ela.
- Como quiser... O céu está magnífico, tudo está tão pacífico!
No automóvel, o chofer cochilava, a cabeça apoiada no volante. Graham Greene o sacudiu. O homem
endireitou-se, os cabelos desalinhados.
- Oque é?...Oque houve?...
- Acalme-se, sou eu... Vamos embora.
- Sim, senhor; bem, senhor.
Ele saiu do veículo e abriu a porta, inclinando-se diante da dama que acompanhava seu cliente. Léa entrou,
esperando a todo instante ver surgir Ventura e seus policiais. Mas tudo estava tranqüilo, a noite doce e
estrelada. O doutor Pineiro estaria no porta-malas do carro?
O portão abriu-se à aproximação deles e os guardas armados fizeram-lhes um sinal com a mão. Diante deles, a
rua se destacou sob os faróis.
- Para onde vamos, senhor? Para o Vedado, onde acabam de abrir um local para se fumar ópio? Ele é mantido
por uma vietnamita que parece muito honesta...
- Não é ocaso do seu revendedor de cocaína: uma verdadeira merda!
- Talvez, mas não é cara...
- Muito caro pelo pó batizado.
- A mim também me enganaram. Maldito vendedor de jornais! Um escroque, seuior! Tinha confiança nele. Dei-
lhe cinco shillings do meu bolso, depois que reembolsei o senhor.
- É verdade, Pepe, você foi correto... Mas preste atenção ou vai nos atirar no fosso. Por que está indo tão
devagar?
- Lá... há uma barreira - disse ele, gaguejando.
- E então? Pare...
O táxi imobilizou-se na altura de um jovem policial que brandia uma lâmpada elétrica.
- Saiam! - ordenou ele.
Léa não mais conseguia controlar o tremor de suas pernas. Parou um carro vindo da direção de
Havana, com todos os faróis acesos. Cegos pela luz, o escritor e sua companheira levaram as mãos
aos olhos.
- O que está acontecendo? - gritou um homem corpulento, descendo do carro.
- Polícia! Seus documentos...
- Imbecil! Sou o ministro do interior, olhe para mim!
- Oh, desculpe-me, senhor ministro... Temos ordens para controlar todos os veículos...
- Mas afaste-se então, estúpido, não posso ver as pernas desta jovem mulher...
No halo que a despia, Léaviu Santiago Rey avançarem sua direção.
- Sra. Tavernier!... Isso é uma surpresa!... Mas o que faz aqui, nesta estrada, em plena noite?
- Estou saindo da casa do doutor Hasselbacher... Eu apresento- lhe o sr. Greene, o escritor britânico.
- Eu conheço o sr. Greene... Boa noite, senhor. Por que estão saindo tão cedo?
- Boa noite, senhor ministro. Eu tenho trabalho a terminar, e a sra. Tavernier não se sente muito
bem.
- Que pena! As noites do doutor Hasselbacher são realmente divertidas. Vocês têm certeza de que
não querem voltar?
- Não realmente. Uma outra vez, com prazer, senhor ministro.
- Espero de todo o coração... Adeus, cara senhora. Você tem belas pernas...! Déjenlos pasar!
Adeus, senhor Greene.
Eles seguiram em silêncio até a entrada de Havana. Durante todo o trajeto, Léa havia tentado ouvir
o menor ruído que pudesse
vir do porta-malas. Se o doutor Pineiro estivesse ali, o que ela deveria fazer? Alfredo não lhe
tinha dado nenhuma instrução suplementar.
- Onde devo deixá-la? - perguntou Greene.
- Em Miramar, se isso não lhe causar problema.
- Nem o menor do mundo... Você parece cansada. Conhece bem Santiago Rey? Você pareceu
aterrorizada...
- Fiquei com medo de que o capitão Ventura estivesse com
ele.
- Você tem razões para temê-lo?
- Todo mundo em Havana tem razões para ficar amedrontado com este tipo.
No Parque Martí, o chofer virou na avenida dos presidentes, seguindo pela rua 23.
- Por que está passando por aqui? - inquietou-se Léa.
- Creio que estamos sendo seguidos...
- Pegue a primeira à direita - ordenou Graham Greene.
O motorista obedeceu.
- Eles ainda estão atrás de nós - observou ele.
- Pegue a esquerda desta vez.
O carro subiu na calçada e seguiu seu caminho em ziguezague, sem conseguir despistar seus
perseguidores.
- Você acha que é a polícia?
- Não, senhor, os caras estão em um Chevrolet...
Eles acompanharam a toda velocidade o muro do cemitério Colón até a rua 29, na altura da qual o
Chevrolet os ultrapassou e colocou-se brutalmente diante da passagem. O chofer foi forçado a parar
seu táxi. Três homens com o rosto escondido por um capuz saíram do segundo carro. Um único
levava ostensivamente uma arma.
- Desçam - disse um deles.
Pepe, mãos para cima, saiu em primeiro lugar, com todo o corpo tremendo.
- Não me faça mal... Não tenho dinheiro!
- Quem está falando de dinheiro, estúpido? Vire-se para a parede e feche bem os olhos.
Apesar do capuz que o abafava, Léa conseguiu reconhecer avoz de Alfredo. Ela colocou-se sem
uma palavra ao lado do chofer, sem deixar de observar que um dos homens estava abrindo o porta-
malas. Por sua vez, Graham Greene, contrariado, recusava-se a deixar seu assento.
- Senhor Greene, não nos obrigue a usar a força; não terei nenhum prazer em surrar um escritor
famoso...
- O quê?... Você me conhece? - disse ele.
Greene ficou tão surpreso que desceu do carro.
- Virem-se para a parede, por favor. Nós vamos levar o carro. Daqui a alguns minutos, enviaremos
outro. Inútil pedir socorro, o local está deserto e, de qualquer forma, ninguém virá ajudá-los.
Os três homens entraram no táxi e deram a partida imediatamente. Pepe estava louco de raiva e de
desespero observando seu ganha-pão ser levado. Graham Greene acendeu um charuto e Léa
sentou-se em uma grande pedra que agora fechava um portão de madeira carcomido.
- Não vamos ficar aqui - aconselhou Pepe. - O local não é seguro, à noite.
- Não, vamos ficar - objetou Léa. - Eles disseram que enviariam outro carro para nos buscar.
- É curioso - observou Greene -, tenho a impressão de que... você sabe quem são nossos
agressores...
- Que... que idéia mais louca! - replicou ela com uma voz rouca.
- Bom, vamos esperar, já que você parece tão segura de si.
Um quarto de hora mais tarde, um Lincoin parou nas proximidades.
- Entrem - gritou o motorista.
Apesar de sua reticência, o chofer do carro roubado sentou-se ao lado dele.
- Não se preocupe, seu táxi está estacionado diante da estação... Eu deixo o senhor no Nacional,
senhor Greene?
- Vamos para o Nacional - disse o escritor, com um tom cansado.
Eles seguiram em silêncio até o hotel.
- Desça aqui você também-ordenou o condutor do Lincoin ao cubano. - Sr. Greene, desculpe-nos
pelo contratempo. Eu acompanho a senhora.
- Adeus, senhor Greene.
- Você tem certeza de que quer voltar para casa com este
homem?
- Sim, sim, não se preocupe.
- Tudo bem, boa noite, senhora.
O automóvel seguiu pelo Malecón. A noite estava muito escura, o céu confundia-se com o mar. Um
imenso cansaço tomou conta de Léa, que fechou os olhos e abandonou-se no banco traseiro do
veículo. Quando os reabriu, eles chegavam diante da grade da casa. Dois sinais de faróis cortaram a
penumbra. O motorista respondeu.
- Atéo momento, tudo está bem - murmurou ele cortando o contato.
Duas silhuetas escuras que sustentavam uma terceira aproximaram-se do carro.
- Não tenha medo - disse-lhe o homem - são nossos amigos.
- Oh, não! - balbuciou Léa.
- Não tivemos outra escolha - respondeu Alfredo através do vidro aberto. - O esconderijo para onde
pensávamos levar o doutor foi descoberto pela polícia esta tarde. É preciso que você o esconda por
algum tempo.
Sem responder, Léa tirou sua chave e abriu o portão. Sob seus
pés, o barulho do cascalho ressaltava-se no silêncio noturno. Mais alto, os apliques luminosos da
varanda que cercava a casa pareciam mandar luzes hostis.
"Estou com medo" pensou Léa. "Por que François nunca está aqui quando preciso dele?"
Apesar de sua angústia, sua má fé a fez sorrir.
- Enfim, aqui está, não muito cedo!
- François! - gritou ela, atirando-se a ele.
Seus braços fecharam-se em torno dela.
- Vamos, vamos, não trema, estou aqui... Quem são estes senhores? O que significa?... Por que
estas armas?
- Entrem, rápido.
Sem cerimônia, Alfredo os empurrou para dentro da casa. Seus companheiros levaram o doutor
Pineiro até um sofá. O velho homem deixou escapar um gemido.
- É preciso chamar um médico - disse um deles. - Ele parece muito mal.
- Vocês não vão me explicar de onde ele vem? - exigiu François Tavernier, sem abandonar sua
mulher. - E a propósito, a quem tenho a honra?
Alfredo, a maquiagem desfeita, retomou a palavra:
- Nossos nomes não têm importância, senhor. Nós usamos a sua mulher para fazer nosso amigo
escapar. Agora o senhor também deve nos ajudar; senão o doutor vai acabar morrendo.
- Tenho a impressão de já tê-lo visto... Eu estou enganado?
- Mamãe, mamãe, tive um pesadelo!
Imóvel em uma camisola amarrotada, a pequena Claire piscava os olhos diante da luz. Ela segurava
seu urso de pelúcia pela única pata que restava ao animal.
- Tive um pesadelo - disse ela atirando-se nos braços de sua mãe.
- Não é nada, querida, venha dormir, vou cantar uma canção para você.
Ela levantou a criança, que lhe sorriu e em seguida, mais segura, voltou a fechar os olhos. O urso
caiu; ela havia adormecido nos ombros da mãe. Léa saiu levando Claire. Alfredo não fez nada para
detê-la.
- Senhores, abaixem suas armas agora - cortou François. - Em duas palavras, do que se trata?
Diante da hesitação deles, ele retomou:
- Não tenho tempo a perder... e vocês também não!
Alfredo interveio:
- Vocês abrigaram Carmen Pineiro; aqui está o pai dela. O local para onde pensamos abrigá-lo,
antes de providenciarmos sua fuga para Miami, foi descoberto por Ventura e sua tropa. Nenhum de
nossos esconderijos é mais seguro e o estado do doutor não nos permite assumir o risco de levá-lo
de um esconderijo para outro. Em caso de assalto, ele será incapaz de fugir rapidamente.
- Vocês sem dúvida não ignoram que nós já tivemos encontros com o capitão Ventura e que todos
nossos gestos e ações são provavelmente vigiados.
- Nós pensamos em tudo; eles não pensarão que vocês ousariam esconder alguém em casa...
Apesar de tudo, enquanto estrangeiros, vocês não correm grande risco...
- Você chama de "não correr grande risco" rapto ou assassinato?
- Este risco existe, mas é mínimo.
- É um risco que eu posso aceitar correr por mim, mas que não tenho o direito de impor à minha
mulher nem aos meus filhos.
- Ele tem razão.
Todos voltaram-se, O doutor Pineiro estava consciente e tentava levantar-se. Suas forças o traíram
e ele caiu novamente, sem consciência. François apanhou o telefone.
- O que está fazendo? - perguntou Alfredo.
- Vou chamar um médico.
- Mas...
- Não se preocupe, é um francês, ele cuida de minha família... Alô, Antoine?... Sim, eu sei, é tarde...
É muito urgente, venha imediatamente... Seja discreto e passe pela pequena porta de trás... Sim,
obrigado, infinitamente.
Ele desligou.
- Ele estará aqui em dez minutos. Vocês querem beber alguma coisa?
Sem esperar a resposta dos três homens, ele apanhou uma garrafa que estava sobre uma bandeja e
encheu os copos.
- Rum está bom?
- Ele está seriamente ferido... é preciso levá-lo ao hospital - concluiu o doutor Antoine Guimard,
ajeitando seu estetoscópio.
- Impossível - murmurou o ferido. - Há delatores em todos os hospitais.
- O estado do senhor é sério, caro colega.
- Eu sei, mas ainda estou vivo... o que não durará se vocês me levarem ao hospital.
- O senhor pode cuidar dele aqui? - perguntou François.
- Sim, mas...
- Então o faça.
- Enfim, Tavernier, nós vamos nos arriscar!
- Aceita ou não cuidar dele?
- Eu tenho realmente escolha? Não quero ser acusado de não dar assistência a uma pessoa em
perigo...
- Obrigado, meu velho. Sabia que poderia contar com você.
- Não falemos mais... Faça-o ser levado a um quarto. Vou preparar-lhe uma injeção, limpar as
feridas e suturá-las. Se tudo correr bem, e com um pouco de sorte, ele poderá deixar esta casa em
três ou quatro dias. Daqui até lá, eu não respondo pela vida dele.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, o doutor Guimard desceu as escadas.
- Ele está dormindo. Voltarei à noite... Vocês têm alguém para ficar ao lado dele?
- Eu me encarregarei disso - afirmou Léa, que acabara de entrar.
Cinco dias depois, o doutor Pineiro pôde pensar em partir. Alfredo García Olivera havia se entendido
com o dono de um pequeno barco de pesca de San Francisco de Paula. O bom homem, que
acompanhava com freqüência Ernest Hemingway à pesca, saía facilmente ao mar sem que as
autoridades portuárias criassem problemas. O prêmio Nobel deveria receber em sua propriedade o
embaixador da França e amigos franceses que estavam de passagem. Foi muito naturalmente que
Grousset convidou os Tavernier a acompanhálo. Já escondido no porta-malas do carro de François,
o doutor Pineiro foi em seguida deixado sem incidentes em um café que dava para o porto. Alfredo
o esperava ali. François teve de encurtar as despedidas a fim de não se fazer notar chegando muito
tarde na casa do escritor.
Lá, uma pequena multidão amontoava-se no salão-biblioteca e em um escritório do autor de O velho
e o mar. Um copo na mão, ele veio receber os convidados:
- Seja bem-vinda, bela senhora- disse ele em francês. - O que deseja beber?
- Teria o senhor um daiquiri ou um mojito?
- É claro... Vejo que já está convertida às bebidas locais. Nós temos tudo isso, mas não prometo
que sejam tão boas quanto no Floridita ou na Bodeguita dei Medio.
- Garanto-lhe, cara senhora, que não se sente a diferença
- disse Graham Greene, avançando em direção a Léa, embaraçado. -A senhora chegou bem? -
acrescentou ele, sussurrando.
- Sim, obrigada... Senhor Greene, gostaria de apresentar-lhe meu marido, François Tavernier.
- Estou encantado, senhor. O senhor tem uma bela mulher mas, entre nós, não deveria deixá-la
sozinha em Havana...
Depois de terminar a frase, ele afastou-se titubeando levemente.
- O que ele quis dizer? - inquietou-se François, tomando o
braço de sua esposa.
- Eu vou explicar...
Quando deixaram San Francisco de Paula, eles não andavam mais
reto que Graham Greene.

Capítulo Oito

NA ANTEVÉSPERA DE NATAL, Léa e François partiram para Miami com as crianças, levando
Philomène. A alegria de revê-los foi tão forte para Charles que ele teve de sair rapidamente a fim
de esconder as lágrimas. Ele não agüentava mais Miami, aquela corrida perpétua ao dinheiro, as
mulheres cobertas de jóias e de peles apesar dos trinta graus à sombra, as confusões sangrentas
entre os cubanos, as reuniões de conspiradores que regozijavam-se pela enésima vez com o ataque
de la Moncada ou do palácio presidencial de Havana. Mas o que lhe era mais insuportável era a
total ausência de vida cultural. Em Miami, ler ou escutar música clássica parecia aos autóctones
atividades de uma outra era. Por duas vezes ele havia se encontrado com Carlos Franqui, delegado
do movimento do 26 de julho nos Estados Unidos, vindo a Miami para encontrarse com os membros
do Diretório e do M-26 em exílio. Sobretudo, Franqui desejava recolher os fundos necessários para a
compra de armas e de víveres para os combatentes da Sierra Maestra. Estes encontros haviam
dado ao jovem uma lufada de ar fresco. O velho comunista estava tomado de amizade por este
jovem francês
exaltado que sonhava com a revolução. Eles trocaram livros que prometeram comentar quando se reencontrassem.
O doutor Pineiro havia recuperado as forças e desejava agora instalar-se em Nova York com sua família.
Acolhido com alegria pelos exilados cubanos, ele havia no entanto se recusado a integrar-se ao grupo e a
participar das reuniões: a revolução triunfaria sem ele porque, como afirmava, as revoluções devoram as
crianças e os chefes que sobrevivem a elas tornam-se pouco a pouco ditadores; ele não se tornaria mais
cúmplice do que considerava como inevitável, O que o doutor Pineiro não confessava é que ele desejava
afastar seus próprios filhos dos lugares onde já haviam sofrido tanto. Carmen, emocionada pelas torturas
sofridas pelo seu pai e esquecendo-se das suas, fingia que concordava. Mas, no fundo, sua resolução estava
inabalada: na primeira oportunidade ela retornaria a Cuba e se reuniria a Fidel Castro. Com Charles, ela passava
noites a elaborar sua partida clandestina. Quando Léa e François deixaram Miami em direção a Havana, a
decisão dos dois estava tomada.
Desde sua chegada, François foi convocado pelo embaixador da França.
- Durante sua ausência, recebi várias mensagens para você dos srs. Sainteny e Foccart, mas também do general
De Gaulle.
- E o que eles querem? - perguntou distraído François.
- Não sei de nada.
- Você não quer me fazer acreditar que seus funcionários ignoram o conteúdo!...
A perturbação do embaixador respondeu por ele.
- Aqui estão. Se tiver resposta a dar, nós poderemos encaminhála rapidamente.
Quando ficou sozinho, François abriu a primeira missiva; era de Jean Sainteny, e das mais lacônicas:
Venha com toda a urgência, a França precisa de você. Seu amigo,
Sainteny.
- Diabos! - murmurou ele, abrindo a segunda. Jacques Foccart era o autor. Dele, Tavemier não sabia quase
nada,
a não ser que havia se tornado ilustre enquanto chefe da Resistência, em Mayenne, e que havia se tornado
conselheiro para a União francesa junto ao general De GaulIe, do qual diziam ser muito próximo.
O general De Gaulle me encarrega de fazê-lo saber que sua presença impõe-se junto a ele.
Espero-o o mais rapidamente a caminho de Soférino.
Foccart.
"É de três", pensou ele abrindo o terceiro envelope, com uma emoção que ele intimamente reprovou.
Meu caro Tavernier
Você já deve ter descansado o suficiente sob os coqueiros esperando o triunfo de Fidel
Castro. Tenho uma missão da mais alta importância a confiar-lhe, da qual nada posso dizer-
lhe aqui. Pegue o primeiro avião, eu o aguardo.
C. De Gaulle.
François colocou as cartas no bolso e saiu para o terraço da residência. Era noite, os jatos d'água estavam
ligados, e um agradável cheiro de terra molhada lhe acariciou as narinas. Um cachorrinho matreiro veio
esfregar-se em sua perna. Ele o afastou com o pé.
- Você não gosta de cachorros? - perguntou na sombra uma voz francesa e feminina com um sotaque cantado.
A chama de um isqueiro iluminou por um breve instante um
rosto pálido emoldurado por uma massa de cabelos ruivos. François aproximou-se.
- Venha para perto de mim, sr. Tavernier. Adoro a noite em Havana, é ao mesmo tempo doce e
violenta... O senhor gosta da noite, sr. Tavernier?
- Depende.
- Esta noite, por exemplo? Existe no ar alguma coisa de
profundamente sensual, o senhor não acha?
- Se está dizendo...
- O senhor não é nada loquaz, sr. Tavernier. Venha aqui sentar-se perto de mim... O senhor não
mudou.
François obedeceu.
- Nós nos conhecemos?
- Nós nos cruzamos na embaixada da França em Buenos Aires onde meu irmão era conselheiro.
- Tem certeza? Em geral não me esqueço das belas mulheres que encontro.
- Eu era uma menina, na época, e o senhor só tinha olhos para uma bela judia com olhar trágico que
o senhor parecia querer proteger de si mesma.
François levantou-se. A evocação de Sarah, tão inesperada, o perturbara. Pelo espaço de um
instante, ele a reviu dançando com Léa.
- Eu estava lá na noite de seu último tango com aquela com a qual você se casou em seguida. Elas
estavam magníficas, aterrorizantes e tão... perturbadoras! A audácia e a beleza de ambas deixaram
a platéia estupefata. Ninguém ficou surpreso pela tragédia que se seguiu a esta dança... O senhor se
lembra, sr. Tavernier?
- Cale-se!
Beber, ele precisava beber alguma coisa forte para afastar a imagem atroz de Sarah, morta, o rosto
marcado com a suástica que ela mesma havia desenhado com seu batom, sobre seu crânio raspado.
Ele entrou na residência.
- Eu estava procurando por você, Tavernier... Mas... o que você tem? Parece que viu um fantasma.
Com os dentes cerrados ele grunhiu:
- Mais ou menos... Tomaria alguma coisa, se for possível.
- Sirva-se - apressou-se o embaixador apontando para uma mesa baixa carregada de garrafas. -
Tome...
François apanhou a primeira garrafa e serviu a bebida até a borda. Um pouco de líquido correu
pelos seus dedos. Ele esvaziou o copo de uma vez e o encheu novamente.
- Foi o conteúdo das cartas que o afetou a este ponto? - perguntou o diplomata.
François olhou para ele com olhar de poucos amigos.
- Quem é a jovem que se encontra no jardim?
Grousset estourou de rir.
- FoiAngela que o deixou neste estado? Isso não me espanta, não há ninguém como ela para
exasperar o mundo. Angela Tabucci é uma prima de minha mulher. Seus pais são ricos proprietários
argentinos de origem italiana. A filha lhes dá muito trabalho: depois dos estudos movimentados e de
um casamento fracassado, ela faz uma turnê pelo mundo para se distrair. E como ouviu falar que
havia uma revolução em Cuba, achou divertido vir ver como isso acontece, uma revolução... Tentei
dissuadirAngela de vir, mas minha mulher insistiu sob o pretexto de que ela mesma aborrecia-se
aqui. Inútil precisar a você que eu tremo diante da idéia do que podem inventar duas mulheres
ociosas... Você sabe o que quero dizer...
François sabia muito bem, mas absteve-se de qualquer comentário.
- Vocês falavam de mim?
Angela estava de pé diante da entrada do grande salão, seu cachorrinho no colo.
- Não vou apresentá-los, vocês já se conhecem - retomou o sr. Grousset. - Quer beber alguma coisa?
- Champanhe. Detesto estas horríveis bebidas cubanas à base de rum. O senhor gosta delas, sr.
Tavernier?
- Muito, mas desculpe-me. Tenho de partir.
- Já? Nós nem tivemos tempo de conversar... Eu lhe peço, leve-
me para dar uma volta pelos bares de Havana, meu primo recusou- se a ir...
Seu tom emburrado de menininha caprichosa tirou um sorriso de François.
- O que faz você acreditar que eu seja um freqüentador assíduo de bar?
- Não disse isso, mas os cubanos são tão machos que, quando vêem uma mulher sozinha, querem
tomá-la sob proteção.
- Aceite, eles são muito melhores do que eu para levá-la a passear por Havana by night!
Furiosa, ela atira o cachorrinho em um sofá.
- Você é como todos os homens: quando se casam, tornam- se preguiçosos e criam barriga.
François estourou de rir.
- Aqui está um retrato pouco lisonjeiro, não acha, caro amigo?
O embaixador deu de ombros.
- Se estiver pronta, vamos. Não quero que tenha de mim a imagem de um marido de pantufas!
- Oh, obrigada! Sabia que você não tinha mudado... Vou apanhar minha bolsa, estarei de volta em
dois minutos.
Ela saiu correndo, seguida do cachorro que latia.
- Meu caro Tavernier, não precisa sentir-se obrigado...
- Isso vai me distrair... O que faria em meu lugar?
- Não compreendo...
- Pare de fingir, você conhece o conteúdo das cartas.
- Admitindo isso... Pelo que me concerne, se me dessem a oportunidade de deixar este maldito país,
eu a aceitaria. Mas daí a ir me enfiar no vespeiro argelino, minhas competências e meu bom senso
não me permitiriam... Você é muito diferente. Você conhece a maior parte dos protagonistas do
drama que choca a Argélia e, se acreditar em minhas informações, o general De Gaulie já lhe fez
um chamado. Para ser bem franco, sempre me pergunto o que você veio fazer aqui. Pensei por um
momento que estivesse implicado no processo de desestabilização de Batista, mas,
apesar da ajuda que deu aos militantes revolucionários, agora sei que não está.
- É tão simples que você não acreditaria... Se estivesse sozinho, voltaria imediatamente: a vida aqui é
muito monótona para mim.
- Então, o que te prende? Sua esposa?... Ela compreenderá... Permita-me um conselho: nós falamos
entre amigos, não é? Leve sua mulher, ela é imprudente e arrisca-se a ter, qualquer dia, que ajustar
as contas com a polícia. Não estou certo de sempre estar em condições de intervir. A fuga do
doutor Pineiro causou muito barulho entre as forças de ordem. Os travestis que foram vistos em
companhia da sra. Tavernier e do escritor Graham Greene foram presos e torturados. O corpo de
um deles foi encontrado, atrozmente mutilado...
- Alfredo?!
- Não, não creio que o conhecesse... Alfredo García Olivera foi solto sob comando do ministro do
interior, nosso amigo Santiago Rey...
- Você acha que ele colabora com a polícia?
- Não creio. Na minha opinião ele possui documentos suficientemente comprometedores para se
proteger; se lhe acontece um... acidente, tudo isso poderá ser divulgado...
- Estou pronta!
François dá um assobio de admiração. Angela havia trocado de roupa e colocado um vestido leve,
de um verde-escuro que valorizava a brancura de seus ombros e também não deixava ignorar seu
belo corpo.
- Gostou? - perguntou ela, girando-se sobre si mesma.
O movimento deixou à mostra suas longas coxas nuas. Ela estava sedutora e sabia disso.
"Você vai arranjar aborrecimentos", suspirou François, divertido, contemplando-a.
O ar entrava pelos vidros abertos do carro e fazia voar os cabelos da jovem. Ao longo do Malecón,
charmosas criaturas provocavam
os automobilistas. Vários diminuíam a marcha, alguns paravam e voltavam a partir depois de terem
embarcado uma ou duas garotas. Cuidadoso, François seguia lentamente. Eles cruzaram um
comboio militar, com todos os faróis acesos.
- Você acredita na revolução? - interrogou Angela.
Perdido em seus pensamentos, ele não entendeu de imediato.
- Você acredita? - repetiu ela.
- Revolução, não sei; golpe de estado, certamente.
- Não é a mesma coisa?
- Não, uma revolução implica uma mudança profunda de política, de sociedade...
- Então, viva a Grande Revolução mundial!
- Como diz isso? Você faz parte dos privilegiados; a revolução pela qual você clama a fará perder os
seus privilégios.
- Tudo depende daqueles que assumirem o poder...
- Com efeito, se forem pessoas da sua casta, elas reforçarão suas vantagens em detrimento dos
deserdados... Mas por que você quer que eles façam uma revolução?
- Para mudar, para mexer as coisas...
- Você diz bobagens...Valéry escreveu: "Uma revolução faz em dois dias o trabalho de cem anos e
perde em dois anos a obra de cinco séculos."
- É isso o que você pensa?
- Não - responde ele com um riso sem alegria. -Atrás deste dito há tanto esperanças quanto
mentiras.
- Não estou achando graça nenhuma nessa conversa...
- Tudo bem, mas é você que veio falar de revolução...
Aborrecida, ela se recolheu.
- Não faça esta cara, assim você fica feia. Diga-me para onde quer ir.
- Para os lugares malf alados - arremeteu ela com avidez. - Meu primo recusa-se a me levar.
- Não é realmente um lugar para o embaixador da França... Os lugares malfalados com os quais
você sonha estão realmente
em Havana. As mulheres que os freqüentam são em geral prostitutas ou velhas americanas em
busca de sensações fortes. Encontra-se de tudo ali: drogas, garotinhas ou garotinhos...
- É exatamente onde quero ir!
- Vamos então tomar alguma coisa primeiro.
Quando eles deixaram o Floridita, Angela estava ligeiramente embriagada. Ela pegou no braço de
seu companheiro e apertou-se contra ele.
- Estes são os melhores caranguejos morro que já comi em minha vida... Agora, vamos aos lugares
ruins!
- Vamos pegar a rua Lamparilla, você não terá dificuldades em escolher.
A multidão pressionava-se na ruela onde os bares e os bordéis se sucediam. Os porteiros que
atraíam o público vestidos com roupas de cores berrantes, ornadas de galões ou de ombreiras
douradas, interpelavam os passantes contando vantagens sobre as especialidades de seus
estabelecimentos, sacudindo-lhes fotos sugestivas.
- Vamos entrar naquele.
Depois da umidade da rua, o frescor do ar-condicionado os fez estremecer. Um homem gordo, o
rosto ornado com um pequeno bigode negro, apertado em um terno amassado de um branco
duvidoso, os recebeu. Sob sua maneira obsequiosa, ele os julgava com seus pequenos olhos claros.
- Os senhores gostariam sem dúvida de assistir a um espetáculo um pouco... especial?
- Muito especial? - maravilhou-se Angela.
- Muito, senhorita. Vocês não ficarão decepcionados. São cem dólares por pessoa... sem as bebidas.
- Por este preço, isso tem de ser mais do que... "especial"! - ironizou François estendendo as notas
verdes.
- Seu dinheiro terá valido a pena, fique certo - assegurou o bigodudo estalando os dedos.
Uma porta, dissimulada sob uma cortina, abriu-se e um jovem de torso nu, as nádegas modeladas
em uma calça corsário branca que fazia sua pele bronzeada ainda mais escura, os conduziu por
um estreito corredor até uma sala onde queimavam uma dezena de chamas oscilantes. Eles
sentaram-se em uma mesa baixa sobre a qual a luz de uma das velas desenhava um círculo
perfeito. O espaldar dos assentos, fortemente inclinados, permitia aos clientes estarem quase
deitados diante do palco. Acima tocava uma orquestra. Parecia de início que os cinco músicos,
que usavam a mesma roupa do garçom, haviam sido contratados por sua eloqüente musculatura
acobreada mais do que por seus talentos musicais. Impressão falsa: eles revelaram-se excelentes
e tocavam com um prazer manifesto, rindo e divertindo-se como crianças. Sobre o palco,
balançando-se no foco dos projetores, ao ritmo do samba, uma mulata era despida por um anão
negro usando uma peruca empoeirada amarrada abaixo da nuca e um fraque escarlate à francesa.
De sua calça de seda escapava um pênis de dimensões surpreendentes que fazia o efeito de uma
terceira perna. François pediu uma garrafa de champanhe e, para ele, um copo de rum,
acendendo um charuto e estendendo-se em seu assento. Ao seu lado, com a saia levantada bem
alto, Angela fumava nervosamente seu cigarro, os olhos cravados no palco. Quando a dançarina
ficou nua, ajoelhou-se, acariciando o órgão genital do pequeno homem que expandia-se
incrivelmente até tornar-se um monstruoso cassetete. "Que obscenidade esplêndida!", suspirou
François para si mesmo, sentindo inchar o seu próprio sexo. Muito perto dele, uma mão entre as
coxas, Angela gemia suavemente. Ela já tinha na expressão uma tensão perceptível. O que se
passava no palco não deixava ninguém indiferente e os próprios músicos haviam deixado seus
instrumentos para observar o casal fenomenal que fornicava, no momento, com fortes gritos e
injunções. Na sala, os espectadores não demoraram em se agitar e François não resistiu muito
tempo às mãos hábeis e à boca fresca que tomaram conta dele. Quando a jovem o cavalgou
gemendo, ele deixou-se ir enquanto o anão que tinha seu pênis entre
as duas mãos descarregava entre os seios de sua parceira. Esta levantou-se um pouco depois e se
afastou balançando as ancas.Ainda durante alguns instantes, ouviam-se apenas suspiros, guinchos,
risos estridentes e murmúrios obscenos. O pianista foi o primeiro a se recuperar; ele voltou a seu
lugar.
Com um desconcerto natural, Angela apanhou o guardanapo que lhe estendia um dos garçons e
enxugou o interior de suas coxas. François pediu um outro rum. Uma mulher de idade indefinida,
vestida com uma roupa da moda dos anos 20, tomou posse do palco e interpelou a entrada dos
espectadores com a cadência de uma metralhadora: ela queria saber se eles haviam se divertido e
se estavam prontos a recomeçar. "Sim!", responderam-lhe prontamente em um clamor.
- A fim de permitir à honorável sociedade recuperar as forças, vou interpretar algumas canções!
A voz se elevou, "doce, pastosa, líquida, o óleo agora, uma voz coloidal que escapava de seu corpo
como um plasma e fazia tremer. Ela possuía algo a mais do que um sentimento falso, artificial,
açucarado, sentimental em sua canção, sem nenhuma besteirada xaroposa, nenhum sentimento
comercialmente fabricado, mas um sentimento verdadeiro" . François aplaudiu. A artista o saudou
com um gesto e iniciou uma nova melodia. Alguém gritou: "La Pachanga"! Ela parou e respondeu:
- Eu só canto boleros!
Digna, deixou o palco sob assobios. François levantou-se.
- Venha, eu te acompanho.
- Já? Mas gostaria de ficar, eu...
- Eu não.
Angela percebeu que seria inútil insistir e o seguiu.
- Vocês já vão? - espantou-se o homem gordo que os havia recebido.
Depois do relativo frescor que reinava no interior, o calor colante
da rua pareceu-lhes mais intenso. François segurou o braço de sua companheira e caminhava em
grandes passadas.
- Não vá assim tão rápido, temos toda a noite pela frente.
- Não, tenho que voltar para casa.
- Mas você me prometeu levar-me para dançar...
- Não lhe prometi nada!
Ela ficou furiosa.
- Você é como todos os homens! Depois que conseguem o que querem, só pensam em fugir... Por
que está rindo, agora?
- De você!
- Porquê?
- Devo lembrar-lhe que praticamente me violou?
- Isso não pareceu desagradá-lo...
- Não disse isso; é apenas um esclarecimento.
O garoto que guardava o carro dá-lhes um largo sorriso, satisfeito com a gorjeta generosa.
O carro seguia à beira-mar.
- Você está decididamente com muita pressa em me deixar
- constatou a jovem com voz raivosa.
- Sim, tenho minha mala a fazer.
Ele não voltou atrás. Em que momento havia tomado sua decisão?... Que importa, ele deveria partir.
O mais duro seria comunicar a Léa. Como fazer-lhe compreender que seu lugar era agora lá,
naquela Argélia onde se lutava? Ele previa os gritos, as ameaças, os prantos. Ele sabia as críticas
que Léa não deixaria de dirigir a ele, não sem razões, e ele as compreenderia. Ele havia acreditado
poder levar uma vida feliz e fácil com a mulher que amava, os filhos que queria e um trabalho que
lhe agradava. Durante um longo tempo ele havia escondido o quanto o que acontecia no momento,
tanto na França como na Argélia, importava-lhe. O que acabara de acontecer entre ele e esta
mulher tão fácil apareceu-lhe como o sinal do tédio que a vida que levava aqui lhe entregava. Ele
tinha necessidade de ação, de perigo. A derrota indochinesa consumada, ele havia
acreditado estar definitivamente curado de seu gosto pela aventura. Os sofrimentos de Léa, assim
como os seus, pareciam então tão grandes, tão inúteis que ele havia sinceramente acreditado não
dever jamais participar de combates, quaisquer que fossem, por qualquer causa que fosse. A
situação em Cuba, a atmosfera tensa que reinava em Havana, as bombas, os raptos, a guerrilha na
Sierra Maestra, tudo isso teria contribuído para despertar nele o desejo de tomar sua parte nos
acontecimentos dos quais pressentia de uma importância extrema para seu país? Ele não queria
mais se contentar em acompanhá-los pela imprensa e pelo rádio; ele desejava agora levar até lá sua
contribuição. Enfim, ele devia se confessar, o chamado do general De Gaulle, vindo depois daquele
de Salan, não deixou de lisonjear sua vaidade...
O segurança abriu as grades da residência do embaixador. François parou o carro diante da entrada
e desceu para abrir a porta de sua passageira. Ela era charmosa e devia considerá-lo como um
grosseirão. Ele a tomou nos braços, e em seguida a beijou no rosto.
- Passei uma noite excelente, agradeço-lhe sinceramente.
- É verdade?! - exclamou ela. - Tinha medo de que você me menosprezasse... Mas, na verdade,
tanto faz... - disse ela logo em seguida.
Ele lhe dá um longo beijo sem desprazer.
- Você me agrada muito - murmurou ela afastando-se dele.
Ela ficou de pé sobre os degraus até que as luzes traseiras do automóvel desaparecessem.
Ele seguia agora em direção à casa, onde Léa deveria estar esperando.
Ela havia dormido, deixando o rádio ligado; a lâmpada de cabeceira clareava sua nudez. Uma gota
de suor escorregava pelos seios dela. Como a cada vez que ele a surpreendia em seu sono, sentia-se
emocionado por sua beleza e fragilidade. A maternidade não havia deformado seu corpo, que se
tornara mais pleno, mais voluptuoso.
Um espelho lhe proporcionou uma imagem de si mesmo que não o agradou: seus traços claros, sua
pele reluzente, suas roupas amassadas... "Tenho uma cabeça de libertino", pensou ele sem mesmo
se dar conta de que repetia o que seu pai dizia a respeito de homens de idade madura e
paqueradores que se relacionam com moças muito jovens e dilapidavam o patrimônio familiar. Ele se
despiu, jogou suas coisas em um canto e dirigiu-se para o banheiro com o cuidado de não fazer
barulho. A água da ducha deu-lhe um bem-estar que ele prolongou por um longo momento.
Léa havia se virado em seu sono e ocupava, de bruços, pernas e braços separados, toda a cama. O
estreito biquíni havia deixado em suas nádegas uma marca clara que sublinhava o arredondamento.
Ele se inclinou e deu um beijo na curvatura de suas ancas; adorava o gosto salgado-açucarado de
seu suor. Ele a lambeu devagar, ela gemeu, ele a virou com cuidado. O odor de seu sexo fez
enrijecer o dele. O rosto enfiado entre as coxas dela, ele começou a bebê-la. Desperta, Léa
apanhou a cabeça de seu marido, a segurou, em seguida, longamente, brincou recitando seu nome.
Ele foi procurar os lábios dela e, devagar, penetrou nela.
Golpes na porta os acordaram. O sol já estava alto. Léa levantou-se, vestiu um robe e gritou:
- Entre!
A porta abriu-se e duas pequenas cabeças surgiram no portal:
uma loura, outra morena, Camille e Claire.
- Somos nós - disse a caçula.
- Vocês não estão na escola? - preocupou-se Léa.
- Mas... hoje é quinta, mamãe! - disse Camille.
- é verdade, eu me esqueci. Venham me dar um beijo.
As meninas entraram se empurrando, vestidas em seus robes de um algodão leve, um amarelo e o
outro rosa; elas precipitaram- se para os braços de sua mãe. As três rolaram sobre a cama desfeita,
empurrando o pai. François endireitou-se, descabelado.
- Mas são as senhoritas minhas filhas! Bom dia, espertinhas.
- Bom dia, papai! - gritaram elas juntas.
- Não há escola hoje?
- Não - disse Camille em um tom irritado. - É quinta-feira.
- E é o aniversário de Adrien - acrescentou Claire.
- Meu Deus! Onde eu estava com a cabeça? - gritou Léa.
- Onde está ele? Vamos procurá-lo rápido.
- Estou aqui, mamãe.
- Feliz aniversário, meu querido! Feliz aniversário, meu crescido!
"Como ele é bonito", pensou Léa com orgulho. Com a autoridade de mais velho, ele se pôs entre seu
pai e sua mãe, e perguntou com uma voz dengosa:
- Onde estão os meus presentes?
- Você não perde o rumo, você ao menos! - constatou François.
- Vá ver na varanda.
Empurrando suas irmãs, ele desceu da cama, abriu a porta-janela que dava para ojardim e saiu.
Alguns instantes mais tarde ele voltou, empurrando uma bicicleta novinha.
- é magnífica! Era exatamente a que eu queria... Obrigado, papai, obrigado, mamãe!
Durante um momento, toda a família admirou o presente.
- Você me leva para dar uma volta? - perguntou Camilie.
- E eu também! - reclamou Claire.
As crianças saem, agarradas à bicicleta, seguidas pelos olhos de seus pais enternecidos.
- Dez anos já... - murmurou Léa.
- Eu te peço, não acrescente: "Como o tempo passa!" Já sei disso!
- Você tem medo de envelhecer?
- Você não?
Léa aconchegou-se contra ele.
- Um medo terrível. Diga para mim que nunca seremos velhos!
- Você, você nunca será velha.
Eles ficaram por um longo tempo sem falar, nos braços um do
outro. "Eu o amo", pensou Léa. "Oh, como eu o amo!" "Eu a amo
e vou deixá-la", pensou François. Ele a abraçou mais forte e declarou:
- Devo voltar à França.
Todo o corpo de Léa ficou tenso.
- É importante: o general De Gaulie me escreveu.
- Quando você parte?
- O mais rápido possível... Fique calma, não ficarei ausente
por muito tempo.
- Sei... Sinto que sua ausência será longa.
Ele não respondeu. Alguma coisa lhe dizia que Léa tinha razão.

Capítulo Nove

PASSADA SUA RAIVA, A PARTIDA de François deixou Léa desamparada. Ele havia insistido
para que ela fosse encontrá-lo na França o mais rápido.
- Veremos... - ela havia respondido.
Toda a magia de Havana havia se evaporado, seu charme possante não mais se agitava. Ela
subsistia apenas como uma cidade estrangeira onde os carros de polícia passavam com suas sirenes
noite e dia, sobressaltada ao barulho das explosões, de que seus ricos habitantes começavam a
desertar. As raras relações que Léa havia estabelecido não lhe eram de nenhum apoio, não mais do
que seus filhos. Charles lhe fazia falta; ele não lhe dava notícias há quinze dias.
Uma manhã de fevereiro, fria e chuvosa, Esteban Ventura apresentou-se na casa. Vagamente
inquieta, Léa o recebeu. Ele foi direto ao assunto:
- Você viu, nesses últimos tempos, seu filho adotivo, Charles d'Argilat?
Estupefata, Léa o observava sem compreender.
- Digamos que não está a par... Ele deixou Miami há cerca de uma semana.
- Mas... não é possível!
- Nossos indicadores são precisos. Ele não estava só, a propósito; uma das filhas daquele traidor do
Pineiro o acompanhava... Então, você não tem a menor idéia do local onde ele se encontra?
O coração batendo forte, Léa sentou-se.
- Como poderia saber? Sempre pensei que ele estivesse em Miami...
- Nada nas cartas dele indicava sua intenção de deixar os Estados Unidos?
"Não", fez ela com a cabeça.
- Que aborrecimento, sra. Tavernier... Nós temos todas as indicações para pensar que ele se reuniu
a grupos terroristas. No entanto, pode ser que ele esteja em Havana; em todo caso, se ele entrar em
contato com a senhora, aconselhe-o, para o bem dele e seu, a apresentar-se à polícia. Estou
cuidando pessoal- mente deste caso: é meu dever preservar este país das agitações dos amigos de
Fidel Castro.
- Mas Charles não tem nada a ver com eles!
- Sra. Tavernier, não me tome por um imbecil. Muitos dos que acreditaram nisso não estão mais aqui
atualmente. Eu renovo meu conselho: se a senhora o vir, faça com que venha me ver.
Compreendeu-me bem?
- Sim, está muito claro.
Ela o deixou partir sem ter forças para acompanhá-lo. Por um longo tempo ficou sentada, imóvel,
incapaz de um pensamento coerente. A campainha persistente do telefone arrancou-a de seu
estupor. Penosamente, ela dirigiu-se para o aparelho.
- Alô?
- Alô, Léa?... É Ramón Valdés... Eu gostaria de saber se você e as crianças estão bem... Alô, você
está me escutando?... Alô?
- Ramón...
- Ah, você está aí, pensei que nossa ligação tivesse sido cortada.
- Venha rápido!
- Como?... Mas o que houve?
- Não sei nada, mas eu lhe peço, venha!
Quando ela desliga, Léa sentiu-se um pouco melhor. Ramón era a única pessoa com a qual podia
falar livremente.
Já havia uma semana que Charles se aborrecia na casa de Silvina Moran, no Nuevo Vedado. Ele
havia deixado Miami em companhia de Carmen Pineiro, à bordo do Fidelidad, um iate que
pertencia a um rico industrial cubano, simpatizante do Movimento do 26 de Julho. Eles haviam sido
desembarcados, à noite, na praia de Santa Fé, levando como única bagagem uma sacola esportiva.
Cada um por si, eles haviam apanhado um ônibus depois de terem memorizado o endereço no qual
deveriam se encontrar. Para maior segurança, haviam lhes dado a ordem de não se comunicarem
mutuamente. Charles havia descido na esquina da rua 7 e da 20, e subiu em direção do cemitério
Colón. Naquele fim de manhã, tudo estava calmo e ele não havia resistido ao desejo de se oferecer
um café. Quando tirou das mãos do mercador ambulante o copo de papel, experimentou um instante
de felicidade tomando consciência de que finalmente estava de volta a Havana. Em volta dele,
mulheres de preto, munidas de buquês de flores, entravam no cemitério conversando com gestos
largos; um carro de polícia diminuiu a marcha. Mais adiante, um mendigo, levando suspensa em
volta do pescoço a imagem de San Lazaro, empurrava sua bengala sob o nariz dos passantes.
Estudantes em uniforme lançavam-lhe olhares. Um vendedor de sorvetes anunciava sua mercadoria
e as prostitutas à proximidade de um grupo de homens se expunham à passagem de um cortejo
fúnebre. Por todos os lados, os motoristas conduziam seus automóveis buzinando sem parar... Era a
vida, aquela de todos os dias. Charles sentia-se bem ali, feliz com esta vitalidade reencontrada. Toda
a inquietude o tinha abandonado e ele ia lutar por aquele povo, com este povo no meio do qual sabia-
se pronto para morrer.
Sua bebida terminada, ele havia contornado o cemitério, tomado a rua 28 até a 35 para a qual dava a
rua Norte. Sem dificuldade, ele havia encontrado o número 42. Naquele bairro pacífico e verdejante,
a construção de um andar ostentava um ar acolhedor. Um Buick cinza estava estacionado na
garagem sob a casa. Ele tocou a campainha e uma jovem morena de cabelos curtos veio abrir a
porta.
- Procuro a Casa de las Nortefías - disse ele.
- É aqui.
- Você tem notícias de Pepe?
Quando ela ouviu as palavras-chave, um sorriso iluminou seu rosto até então desconfiado.
- Entre, me chamo Agnès... Você é o francês? Seja bem-vindo.
- Nene, o que se passa? - ouviu-se uma voz do interior da casa.
- Nada, mamãe. é um amigo que veio nos ver.
Depois de ter inspecionado a rua deserta, Agnès o puxou para um grande cômodo onde estavam
três mulheres. A mais velha veio ao encontro dele.
- Bom dia. Pepe nos telefonou para anunciar a sua chegada... Sou Silvina Moran e você já
conheceu minha filha Agnès. Aqui está a irmã dela, Aymée, e uma de suas amigas, Emma. Sua
viagem foi boa?
- Sim, eu lhes agradeço... Tudo parece muito calmo aqui.
As quatro mulheres trocaram um breve olhar.
- Apenas em aparência. Houve numerosas prisões entre o Movimento; cerca de vinte jovens presos
e torturados pelo exército de Batista foram fuzilados em Holguín em represália depois da execução
do torturador da região, o coronel Cowley. Por todos os lugares incendeiam-se casas, pilham-se.
Aqui, em Havana, não se passa um dia sem que saibamos do rapto, da prisão, tortura ou morte de
um amigo... Nós vivemos no medo.
- É verdade, sra. Moran, é por isso que deveremos lutar para derrubar o tirano.
- Você tem razão, Emma, mas, para uma mãe, é muito duro... Cada dia, temo que venham me
comunicar que aconteceu alguma coisa com meus filhos.
Silvina Moran deixou-se cair em uma poltrona de balanço, a cabeça entre as mãos. Suas filhas a
envolveram nos braços.
Alguns dias depois, Charles reviu Faustino Pérez. O representante do M-26 em Havana prometeu
que logo partiria para a Sierra. Ele se conteve e não foi ver Léa, que deveria saber de sua partida de
Miami. O tempo parecia-lhe longo.
No dia 22 de fevereiro, Charles recebeu ordens de ir ao esconderijo da rua 22. Quando entrou no
cômodo onde já estavam cinco ou seis pessoas, escutou Faustino Pérez declarar a um homem de
boa aparência e de orelhas de abano:
- Bom, ou você faz ou sou eu quem vou me virar para fazer. Decida-se, Noel!
- Não estou certo de que seja um bom momento.
- A corrida acontece amanhã. Depois, será muito tarde. Apesar das informações dos camaradas do
Carteles , nós não pudemos fazer nada no Nacional, havia muita gente na recepção e os agentes do
SIM não o deixaram por um instante. Lisandro e Constantin nos indicaram que Fangio deveria jantar
no Hôtel d'Angleterre e que ele dormiria cedo a fim de estar em forma para o Grand Prix. E lá que
iremos apanhá-lo. Agora, escute bem minhas instruções: Noêl e Santa, vocês tomam li Monje
negro com o francês, estacionam na rua Virtudes, diante do hotel Lincoln, quase na esquina de
San Nicolás. Carapalida conduzirá o Buick; William, Lilo
e Manolo o acompanharão. No Plymouth estarão el Pibe, Uziel e Papito. Os dois carros ficarão na rua San
Nicolás, prontos para partir. Noël, Santa, o francês, Uziel e Papito, vocês entram no hall do hotel; Juan-
Manuel Fangio estará em companhia de pessoas de Maserati e de jornalistas. Haverá certamente policiais em
civil: cabe a vocês identificá-los. Quando ele se dirigir para a saída, Noel, Lilo e Manolo o seguirão. Os outros
farão a guarda. Todo mundo compreendeu?
- Para onde devemos levá-lo?
- A rua 22. Em seguida, nós entraremos em contato.
O hall do hotel Lincoin estava lotado. O corredor argentino, cercado de fãs, discutia com seu diretor de
corrida, sr. Ugolini, em companhia de Porfírio Rubirosa e de sua jovem mulher, a artista francesa Odile Rodin.
Diante da multidão, os fidelistas hesitaram. Com um passo tranqüilo, Manuel Uziel aproxima-se do corredor e,
calmamente, apontando seu revólver para ele, diz-lhe com uma voz calma:
- Você deve me seguir.
Com uma voz mais forte, ele acrescenta:
- Ninguém se mexa! Somos do 26.
Sem dúvida, Fangio leu nos olhos de Manuel sua fria determinação, porque lhe seguiu o passo sem uma
palavra. Diante deles, a multidão estupefata afastava-se. Empurrando seu refém como cano de sua arma, Uziel o
faz subir no Plymouth verde, que partiu veloz enquanto seus companheiros alcançavam correndo o seu
veículo. Nem um tiro havia sido disparado.
Noël colocou-se à frente do cortejo, seguido pelo Plymouth e o Buick. Nenhum carro de polícia os seguiu. Eles
haviam percorrido cerca de um quilômetro quando um táxi deixou seu estacionamento
e barrou o caminho do Buick, que não pôde evitá-lo. Neste instante passava uma perseguidora. Carapalida
desceu para tentar entender- se amigavelmente com o chofer de táxi.
- Partir! - ordenou Noël a seus camaradas.
O carro conduzido por Noël faz uma meia-volta enquanto que o Plymouth continuava seu caminho. Apertando
contra si suas metralhadoras, Angel, Lilo e Manolo enfiam-se no Monje Negro. No cruzamento, os policiais
que haviam descido de seus carros decidiram levar os dois motoristas ao posto policial.
Uziel parou perto dele e apresentou sua mulher e seu filho de alguns meses a Fangio.
- Vou mudar de carro. Vigie-o bem.
Em seguida, voltando para seus colegas, ele dirigiu-se ao campeão:
- É preciso que você compreenda que estamos a ponto de começar uma batalha por nossa dignidade de
homens livres.
Fangio, que não abandonava uma calma aborrecida, sorriu diante das palavras do garoto de 20 anos.
Uziel voltou ao volante de um Ford e conduziu o prisioneiro ao número 60 da rua 22. Neste esconderijo do
Movimento encontrava- se um homem cruelmente queimado. Pouco antes, o engenheiro Rmón García havia
sito preso e torturado por Ventura. Juan-Manuel Fangio teve um gesto de recuo ao vê-lo.
- Nosso companheiro foi ferido quando experimentava um lança-chamas fabricado por ele mesmo. O tubo de
alimentação se soltou e as chamas o envolveram. Ele só escapou por milagre... mas em que estado!
- Não fale mais disso. Tive sorte. Samitier não teve...
Encarregaram Charles de ir inspecionar as cercanias da rua Norte e de voltar para dizer-lhes se a via estava
livre. Era o caso.
Quando Fangio entra na sala de Silvina Moran, ela o esperava com as filhas ao pé da escada que conduzia ao
andar.
- Você deve estar com fome. Venha, preparei-lhe um jantar.
Ele agradeceu e a seguiu para a sala de jantar. Os raptores
tomaram lugar ao lado de seu hóspede forçado. Noël e William já estavam na mesa.
Todos comeram com grande apetite. Durante este tempo, Agnès e Aymée montavam guarda.
Como grande admirador do campeão do mundo, Charles, enrubescendo, pediu-lhe um autógrafo.
Fangio lhe dá, observando com ironia:
- Isso não é comprometedor?
O jovem sorriu levantando os ombros e guardou cuidadosamente em sua carteira a foto com
dedicatória. Era uma hora da manhã quando Fangio subiu para dormir no primeiro andar. Charles
instalou-se para passar a noite na porta de seu quarto; William vigiava o térreo e Uziel, sentado atrás
de uma poltrona de balanço e escondido pela cerca viva, ficou com os ouvidos em alerta.
De manhã, foi na cama que serviram ao corredor um generoso café da manhã.
Faustino Pérez e Fernando" chegaram para render os da noite.
- Vocês conseguiram a primeira página dos jornais do mundo inteiro: só se fala de nós e do seu
seqüestro! - anunciou Faustino.
- O que vocês querem? - retorquiu friamente o argentino.
- Na verdade, o nome de Fidel é agora tão famoso quanto o seu, e o 26, seu número fetiche, é
mundialmente conhecido como sendo o de nosso movimento. A polícia está em pé de guerra e
vasculhou casa por casa em todo o bairro que cerca o hotel. Há barreiras em todas as estradas; os
portos e os aeroportos estão sob o controle do exército. A rádio e a televisão lançam apelos às
testemunhas e dão informações de hora em hora. É um sucesso!
- Estou feliz por vocês.., O que pretendem fazer comigo?
- Nós estudaremos as condições de sua libertação, sem dúvida depois da corrida. Nós devemos agir
prudentemente: a polícia está por todo lado.
Eles passaram o resto da manhã a comentar os artigos que
"Arnold Rodríguez, chefe da propaganda clandestina em Havana.
surgiram na imprensa. Polido, Fangio escutava com seriedade, sem emitir o menor comentário.
Depois do almoço ele voltou para seu quarto. Marcelo Salado substituiu Faustino e Fernando. Para
distrair a atenção do campeão da corrida que iria começar no Malecón, organizado em circuito de
competição, ele começou a ler uma reportagem publicada noBohemia: "Em Cuba."
Por volta das quatro horas, Rafael Pinielia surgiu no cômodo. Marcelo Salado tirou sua pistola,
persuadido de que a polícia cercava a casa.
- Houve um acidente muito grave no percurso do grande prêmio!
- É horrível! - gritou Silvina Moran entrando no quarto. - No rádio eles anunciavam dezenas de
mortos e centenas de feridos...
Fangio levantou-se muito pálido.
- Isso não é possível... O que aconteceu? Meu seqüestro pode ter deixado os pilotos nervosos...
- Venha, vamos ver na televisão.
- Por que não me disseram que tinham uma? - lançou ele, em um tom reprovador.
- Eu tinha ordens... - balbuciou ela.
Charles cedeu seu lugar a Fangio, que sentou-se e crispou os dedos no acolchoado da poltrona. Na
tela viam-se agora ambulâncias, pessoas correndo em todos os sentidos, feridos tentando se
levantar, todos os tipos de fragmentos e, aqui e ali, os corpos imóveis junto dos quais ocupavam-se
os salva-vidas. Um repórter, microfone na mão, anunciou que, sob ordem do presidente Batista, a
corrida estava suspensa, e em seguida indica o balanço provisório da catástrofe:
quatro mortos e uma centena deferidos. Alguns instantes mais tarde, um dos responsáveis deste
segundo Grand Prix de Havana veio responder às perguntas do jornalista.
- Na quintavolta, o piloto cubano Armendo Cifuentes perdeu o controle de sua Ferrari depois de ter
derrapado em uma poça de óleo. O carro voou sobre a multidão. Mais de duzentas mil pessoas
assistiam à competição...
- Como o senhor explica a presença desta poça de óleo na pista?
- Não explico. Como para cada competição, nós examinamos previamente o percurso e ninguém notou nada de
anormal.
- Depois do seqüestro de juan-Manuel Fangio, o campeão do mundo, o senhor acredita que pode se tratar de
um novo atentado perpetrado pelos rebeldes?
- Não sei de nada, é possível...
Deixando os olhos da televisão, o corredor vira-se para seus raptores:
- Vocês não fariam coisa parecida?
- Evidentemente que não! Mas os policiais de Batista são capazes de tudo, com o único objetivo de nos
desacreditar - respondeu Rafael Piniella.
Fernando aprovou com a cabeça. A televisão continuava a divulgar as imagens sofridas. O telefone tocou.
Aymée atendeu.
- É para você - disse ela a Piniella.
A conversação foi breve.
- O movimento fez contato com a embaixada da Argentina. Nós vamos libertar você à noite. No momento,
aguardamos as instruções e devemos estudar como proceder. Você pode nos deixar?
Quando Fangio foi levado de volta ao seu quarto, todos começaram a falar ao mesmo tempo.
- Nós poderíamos deixá-lo em uma igreja e...
- As igrejas ficam fechadas à noite...
- Podemos encontrar um padre que...
- E se o abandonássemos em uma esquina...?
- Para que Ventura e seus homens o matem e nos atirem o crime nas costas?
Silvina, que havia acompanhado o prisioneiro, desceu.
- Ele está com fome - suspirou ela.
- E nós também! - exclamaram os seqüestradores.
Silvina Moran esforçou-se para improvisar uma refeição e descobriu até uma garrafa de velho rum. Todos
sentaram-se à mesa e comeram em silêncio. Eram onze horas da noite.
O jantar terminado, Uziel saiu para a rua. Tudo estava calmo, como se este bairro de Havana tivesse sido
esquecido pela polícia. De uma casa vizinha ouvia-se um chachachá. Um cachorro late.
- É a hora! - anunciou Pinielia.
Emma Montenegro havia recebido ordens de apanhar seu automóvel, um Rambles equipado com duas
persianas em sua luz traseira. Fernando recebeu a responsabilidade de entregar Fangio às autoridades
argentinas; isso o deixara nervoso, O corredor instalou-se entre Fernando e Flavia; Rafael Piniella coloca-se ao
volante. Perto dele sentou-se Emma, uma pistola sobre os joelhos. Imediatamente depois da partida deles, os
outros se dispersaram e Silvina Moran ficou sozinha na Casa de las Nortefias.
Uma grande confusão reinava a bordo do automóvel. Fernando importunava o motorista sobre o itinerário a
seguir.
- Tenha calma! - ironizou Piniella. Se uma perseguidora nos cair em cima, daremos o volante a Fangio e eles
vão ter que correr...
- Não será necessário - brincou o argentino. - Piniella já dirige como um campeão...
O exagero da afirmativa relaxou a atmosfera.
As ruas estavam desertas, exceto pelos carros de polícia e os veículos militares inscritos no Flórida. Eles
chegaram sem incidentes ao número 20 da rua 12, na esquina do Malecón. Não havia ninguém diante do
edifício de onze andares onde deveria acontecer o resgate. Tudo parecia pacífico. "Muito pacífico", pensaram
todos. Eles se dividiram em dois grupos, um seguindo pelo elevador com o refém, e o outro pelas escadas.
Sobre uma das portas estava preso com alfinete um cartão de visitas em nome de Mano Zabalia, "adido
militar".
- É ali - sussurrou Emma.
Fernando tocou a campainha. Cercando o corredor, a arma em punho, o pequeno grupo esperou, pronto a
atirar. Um homem pálido,
os traços tensos, abriu. Atrás dele estavam dois outros argentinos também pálidos. O primeiro
recuou diante das armas apontadas em sua direção. Fernando empurrou o campeão para o interior.
Fangio estendeu a mão a um dos diplomatas e em seguida, virando-se, fez as apresentações:
- Meus amáveis seqüestradores que, devo dizer-lhes, me trataram muito bem...
- É um verdadeiro alívio para nós... - balbuciou Julio López, o primeiro conselheiro da embaixada da
Argentina. - Eu vou avisar sua Excelência de sua libertação. Sr. Lynch queria vir por si próprio
dizer-lhe de sua alegria em sabê-lo em boa saúde.
Mais emocionado do que queria parecer, Juan-Manuel Fangio aperta a mão de seus raptores.
- Quando a ditadura cair - pronunciou Fernando -, você será o nosso convidado de honra!
Sempre aguardando sua partida para a Sierra, Charles havia tido que trocar de esconderijo. Ele
agora estava em Regla, em uma casa baixa, perto da catedral de Nuestra Sefiora de Regia, na casa
de um babalaô, sindicalista operário e simpatizante do Movimento do 26 de Julho. O velho homem,
um mulato de cabelos brancos, recebia todos os dias numerosos visitantes que vinham pedir-lhe
conselhos ou para que interviesse junto aos orixás, ou de dar-lhes proteção. Cada um depositava sua
oferenda, dinheiro ou alimento diante do altar onde estava uma réplica da Virgem negra, patrona de
Havana. Charles mal conseguia esconder sua irritação diante destas práticas e recusava-se a
conhecer seu orixá.
Léa andava para lá e para cá na sala, parava, tirava um objeto do lugar, endireitava uma flor e
recomeçava antes de acender um cigarro e de apagá-lo em seguida.
- Fique mais tranqüila, você me impede de refletir - advertiu Ramón Valdés.
Por um breve instante, ela sentou-se. Mas logo se reergueu.
- Enfim, para onde podem ter ido? Não se desaparece assim simplesmente, sobretudo quando não se
está só... O doutor Pineiro está certo de que eles se escondem em Havana e fala em voltar para
encontrar sua filha...
- Que ele não faça isso! Ventura poderá muito bem prender o pai para obrigar a filha a se entregar.
Dissuada-o de voltar. Tenho alguns contatos com os professores da universidade, próximos do
Diretório; já falei com eles e estão em busca. Assim que tiverem alguma informação, me farão
saber. Tenho também amigos jornalistas no Carteles e no Bohemia; alguns são simpatizantes do
Movimento do 26 de Julho e também estão colaborando. Você avisou François?
- Não, o que ele poderia fazer de Alger?
- Você deveria voltar para a França...
- E abandonar Charles?... Jamais! A mãe dele o confiou a mim ao morrer: você pode compreender
isso?
Ramón levantou-se, repentinamente envelhecido, e deu alguns passos.
- Estamos à beira de uma guerra civil e, por conhecê-la tão de perto, posso dizer-lhe que é a forma
mais abominável de guerra: o irmão mata o irmão, a mãe denuncia o filho, as filhas o pai, nenhum
campo é límpido, a morte está por todo lado e o sangue que corre age sobre o povo como um álcool;
mata-se por matar, sem necessidade, pelo prazer... A embriaguez é coletiva.
Ao mesmo tempo que falava, imagens assustadoras voltavam a assombrá-lo. Ele havia acreditado,
ao fugir da Espanha, fugir também das lembranças dos massacres com arma branca, dos
bombardeios que decepavam braços e pernas, corpos supliciados, rostos desfigurados, mulheres com
o ventre aberto, bebês cortados ao meio, meninas violentadas... Ele havia querido esquecer, nesta
ilha indolente, tantos crimes cometidos em nome da liberdade! Desde sua instalação em Cuba, ele
havia se recusado a tomar parte na vida política do país, contentando-se em pagar bem aos seus
operários e velar pelo bom funcionamento da escola e do dispensário
que havia feito construir em suas terras. Sem filhos, ele interessava-se pelo progresso dos alunos e
encorajava aqueles que desejavam ir para a universidade, dando-lhes bolsas de estudo. Ele havia
rompido todas as ligações com o partido comunista, não vendo mais do que dois ou três
companheiros sobreviventes, como ele, da guerra da Espanha. Sua ação em favor da República lhe
valia o respeito dos militantes. Em caso de necessidade, ele sabia que poderia apelar para eles.
Os pensamentos que assustavam Léa não eram os mais amáveis. Ela revia Camilie correndo diante
de seu filho sob as balas dos alemães e dos milicianos.., a flor vermelha que desabrochava em sua
camiseta branca... seus braços que atravessavam o ar... seu tombo... a sandália que caía de seu
pé... a mãe ferida no rosto, arrastando-se em direção ao pequeno... atingida nas costas, ela caiu
sobre a criança, chamando por Léa...
Ajovem mulher havia fechado os braços sobre o peito e ela sentia ainda contra si o corpo inanimado
de Charles, ela lembrava-se de sua corrida louca através do bosque. Ela não se deu conta de que as
lágrimas corriam em suas faces.
Ramón Valdés conhecia por François os sofrimentos enfrentados por Léa e a promessa que havia
feito a si mesmo de evitar outros. Em vez disso, ele a abandonara neste país prestes a explodir.
Mesmo que aprovasse a decisão de seu amigo, Ramón não conseguia compreender como ele pôde
deixá-la sozinha com seus filhos. É verdade, Tavernier lhe havia confiado sua família, mas ele não
era o senhor dos acontecimentos.
Ramón foi em direção a Léa e a segurou afetuosamente pelos ombros, forçando-a em seguida a
sentar-se perto dele.
- Não gosto de vê-la chorar. Vamos... assoe-se... Assim, está melhor. Agora, escute-me: É normal
que você queira encontrar Charles, ele é como se fosse seu filho e sente-se responsável por ele.
Mas você também é responsável por Camille, Claire e Adrien. Você pensou neles? Estão em perigo,
como Charles. Se não quer partir, mande-os para a França.
Léa dirigiu-lhe um olhar tão desamparado que ele virou a cabeça.
- O próximo avião para Paris sai dentro de dois dias - acrescentou ele com esforço. - Deixe-me
reservar os lugares... Você concorda?... Bom, avise sua irmã.
O avião da Air France estava lotado e Ramón Valdés teve de reservar lugares a bordo do vôo
previsto para l de março. Léa telefonou para Montillac. A recepção de Françoise, acordada em
plena madrugada, foi de início fria, depois irritada. Enfim ela se acalmou e declarou-se feliz em
receber seus sobrinhos, acompanhados de Philomène, e aconselhou a irmã a voltar o mais rápido
possível. Léa não lhe falou do desaparecimento de Charles.
Só foi tarde da noite que Léa soube do rapto seguido da libertação de Fangio, ao mesmo tempo que
do acidente no Malecón. Por um momento ela pensou que Charles poderia ter tomado parte nisso.
Mas afastou rapidamente o pensamento.
Antes da partida deles, Ramón levou as crianças para tirarem uma fotografia na cidade velha.
Alberto Díaz Gutiérrez tirou os retratos, julgando-os magníficos. Já o espanhol ficou um pouco
decepcionado.
- Eles não estão sorrindo - observou.
- Eles estão pensando - corrigiu sentenciosamente o homem da arte.
Na véspera da partida, Camilie e Adrien se meteram na cama da mãe e insistiram para dormirem
ali.
- Depois, não vamos mais ver você...
- Não quero deixar você.
- Por que você não vem conosco?
- E papai? Ele vai estar em Bordeaux?
- Vou sentir a sua falta.
- Vou sentir a falta de vocês também, meus queridos... Prometam-me que serão gentis e não
irritarão Philomène, obedecerão a sua tia Françoise e não brigarão com seus primos...
- Mamãe, isso já é pedir muito - reclamou Adrien.
Por um longo tempo, Léa os apertou contra si e, tarde da noite,
ela permaneceu acordada a escutá-los dormir.
Ela nunca imaginou sofrer tanto quanto quando os viu se afastarem
sobre a plataforma para o avião: era como se lhe arrancassem
o coração. Esta impressão era tão real que ela levantou maquinal-
mente as mãos ao peito e as manteve cerradas até o momento em
que o avião desapareceu nas nuvens. Ela então caiu em prantos.
Ramón não sabia o que fazer para minorar seu sofrimento.

Capítulo Dez

AS PERSEGUIÇÕES E PRISÕES FORAM numerosas depois dalibertação do campeão
automobilista. O capitão Esteban Ventura voltou rapidamente à casa de Miramar e mandou
vasculhá-la de ponta a ponta, suscitando protestos oficiais da parte da embaixada da França.
Censurado por seus superiores, ele havia voltado à carga abordando Léa no cassino do hotel
Nacional.
- Sei que seu filho participou do seqüestro de Fangio, ele foi visto fazendo guarda diante do hotel
Lincoin, e em seguida subindo em um dos carros dos seqüestradores. Se ele ainda não lhe telefonou,
o fará nos próximos dias e, neste momento, eu colocarei as mãos em cima dele, esteja certa.
- Como já lhe disse, senhor Ventura, não tenho nenhuma notícia de meu filho, mas tudo me leva a
crer que tenha sido uma escapada amorosa...
- O que lhe faz pensar em coisa do gênero?
- O senhor não me disse que ele deixou Miami em companhia de uma jovem?
- Exatamente: a filha do doutor Pineiro, que é outra perigosa revolucionária!
Léa estourou de rir.
- O senhor vê revolucionários em todos os lugares, meu Deus! Acredita que estaria aqui tranqüilamente
jogando roleta se pensasse que meu filho estaria se divertindo fazendo a revolução?...
Por um instante, Ventura pareceu abalado pelo argumento e considerou, em dúvida, a jovem mulher elegante
que, em seu vestido de noite, o encarava.
- Adeus, senhor Ventura.
Repentinamente pálido de raiva, ele a observou reunir-se ao grupo de amigos, todos a receberem os
embaixadores do México e do Brasil, levantando-se à aproximação dela. O ministro cubano dos assuntos
estrangeiros e Santiago Rey, o do interior, igualmente levantaram-se.
- Espero que Ventura não a tenha importunado mais uma vez com suas perguntas? Uma palavra sua e eu o
destituo... - disse este com uma voz alterada.
Léa estremeceu; o tom irônico de Rey parecia-lhe mais ameaçador do que o de seu subordinado. Desde a
partida das crianças, ela aplicava-se em fazer encenações, multiplicando as saídas, indo de coquetéis a noites
mundanas e de noites mundanas a bailes. Nunca se tinha rido tanto, dançado, bebido e flertado em Havana
como neste início do ano de 1958. Nas belas residências, nas embaixadas ou nas boates, as festas chegavam
ao seu ápice ao ritmo de orquestras de Beny Moré, dos irmãos Castro, do duo Celina e Mentilio, de
MiguelitaValdés, de Celia Cruz ou de Abelardo Barroso. A cidade estava tomada por um frenesi de prazeres.
Nunca os americanos haviam vindo em tão grande número perder somas absurdas sobre os tapetes verdes ou
nas máquinas de moedas, se embebedar tanto de rum e de belas garotas. Tudo era pretexto para loucas
noitadas que acabavam ao amanhecer nas praias ou na beira das piscinas, entre os risos, os vômitos ou os
choros.
Graças às suas saídas, Léa esperava recolher alguma informação a respeito de Charles e Carmen Pineiro. De
seu lado, Ramón Valdés havia pressionado seus amigos para pesquisarem no seio dos movimentos
revolucionários. Um jornalista do Carteles confirmou- lhe a participação do rapaz no seqüestro do corredor,
mas ignorava o que ele havia feito em seguida. Foi através de Alfredo García que eles descobriram que Charles
estava ainda em Havana, passando de esconderijo em esconderijo, nunca dormindo mais de duas noites no
mesmo local.
- Ele sabe que você o procura. E pediu-me que lhe dissesse para não fazer nada para encontrá-lo: você arriscará
a sua vida e a dele. Assim que for possível, ele entrará em contato com você.
- Ele precisa de dinheiro?
- Não sei nada a respeito... Sem dúvida, mas não é o mais importante. No momento, você não pode fazer nada,
está sendo estreitamente vigiada, e todos aqueles que se aproximam de você também. Quanto a mim, meus
anjos da guarda não me abandonam por um segundo...
- Nestas condições, como conseguiu obter informações a respeito de Charles?
- Nós, criaturas da noite, temos mais do que um artifício em nossa bolsa. Meus anjos da guarda não são
completamente insensíveis ao charme de minhas companheiras e a venalidade delas não é negligenciável...
- E isso é suficiente para que confie neles?
- Não seja tão ingênua: confiar nestes brutos!... Meu Deus, não. Prefiro fazê-los gritar...
- Mas você corre o risco de ser assassinado!
- Ao contrário, se eu estiver morto, a pele deles não valerá mais do que um prego, e eles sabem muito bem
disso...
Uma carta de Françoise veio dizer-lhe que as crianças haviam chegado bem:
Montillac, 10 de março de 1958.
Minha querida Léa,
Seusfilhos chegaram bem, mostram-se encantadores, bem-criados e a pequena Claire é
uma graça. Inútil dizer-lhe que os meus ficaram felizes em rever os primos; a casa está
cheia de risos e ressona ao barulho de suas cavalgadas. InscreviAdrien e Camille na escola
das irmãs de Verdelais. Sei que François e você teriam preferido a escola municipal, mas
asseguro-lhe que, por conta da nulidade dos educadores, o nível intelectual e social dos
outros alunos é muito baixo ali. Lembre-se, já era assim no nosso tempo.
Seu marido nos fez a surpresa de uma visita relâmpago. A alegria das crianças foi grande,
bem menor no entanto, do que o sofrimento na hora da partida dele... Não creio que seja
saudável para elas viver tais emoções. Seu marido insistiu para nos enviar uma grande
soma de dinheiro pelo cuidado dos pequenos e dePhilomène; tivemos que aceitar porque os
negócios estão muito difíceis neste momento.A propósito dePhilomène, éuma pérola, esta
mulher que nunca reclama do trabalho. E que amor por Claire! Para não falar em
veneração... É verdade que esta pequena parece mais com ela do que com François ou com
você. Com ela, você podeficartranqüila a respeito de sua filha.
Na sua carta, que Adrien me entregou, você não me fala a respeito de Charles. Ele ainda
está em Miami?Retomou seus estudos? Epor que não inscrevê-lo na faculdade de direito de
Bordeaux, já que éo direito que lhe interessa?Nós poderíamos encontrarum quarto para ele
na cidade e trazê-lo a Montillac todos os fins de semana. O que acha?
Em Montillac, todo mundo está bem, as crianças crescidas. Você se dá conta de que Pierre
logo terá catorze anos, Isabelle onze e eu... quarenta! Pierre só pensa em política e reclama
por não ter idade para ir lutar na Argélia. Você imagina o quanto eu me alegro! No
entanto, tenho dúvidas se essa guerra não vai se eternizar Já dura há quase quatro anos.
François não nos disse quando você pensa
em voltar Não tarde demais, não é bom para as crianças ficar separadas de seus pais por
tanto tempo.
Eu te deixo agora, porque prometi aos mais velhos levá-los ao cinema em Bordeaux.
Todos aqui mandam-lhe lembranças.
Sua irmã,
Françoise.
Pelo mesmo correio, Léa havia recebido uma carta de François:
Meu belo amor,
Há três semanas que já estou longe de você e das crianças! Você me faz falta.
Porque não vem se encontrar comigo?Aqui, em Paris, o clima está muito
tenso. Desde a explosão de uma bomba nopalácio Bourbon, os controles na
entrada da Câmara dos deputados, dos ministérios e de outros locais
políticosforam reforçados. ReviSainteny, que lhe envia lembranças, e Pierre
Mendès France. Eles me organizaram encontros com Georges Bidault (pelo
qual eu sinto sempre tanta antipatia e que, na verdade, é recíproca),
Jacques Foccart, François Mitterrand e René Pleven. Não saiu grande coisa
dos encontros. A personalidade de Foccart me intriga (dizem que é muito
próximo a De Gaulle). Ele não fez nenhuma alusão à carta que me enviou,
nem àquela do general Ainda não sei por que me fizeram voltar nem o que
esperam de mim...
Na Argélia, a situação degrada-se a cada dia. A "pacificação" custa
atualmente à França 330 milhões porano. ParaMendêsFrance, é dinheiro
jogado fora.
Eu tinha esquecido; deixei a rua da universidade - este apartamento, sem você, é
sinistro - e estou instalado no hotel Lutétia.
Neste momento em Paris um livro tem grande repercussão. O autor HenriAlleg, comunista,
antigo diretor do Alger Républicain, estigmatiza a tortura praticada pelo exército. François
Mauriac e Claude Bourdet, um no l'Express e o outro no France-Observateur,
também a denunciam. Eu li estes artigos, assim como o livro deAlleg:
ainda estou tremendo de raiva, enojado.Apesarde minha pouca estima pela espécie humana,
não sabendo do quanto ela é capaz, nem mesmo teria acreditado - oh ingenuidade! - que os
oficiais franceses pudessem chegara este ponto tão baixo. Você pode julgarporsi mesma:
vou fazê-los chegarem a você. A maior parte deles já fazem parte de meu desgosto e
de meu ódio depois da leitura do La Question - quero dizer do livro -, simplesmente me
respondendo que "é a guerra", que a FLNfaz muito pior que o exército precisa de
informações, que a tortura poupa vidas humanas de ambas as partes... Enfim, a mesma
covardia, a mesma indiferença que sob a Ocupação. Como, há pouco saídos de um conflito
mundial que fez dezenas de milhões de vítimas, depois da guerra da Indochina, onde
deixamos nossas últimas ilusões sobre o papel da França no mundo, como nossos dirigentes
ousam falar de reconquista, depacficação de três "departamentos franceses ' um país ao qual
colonizamos as populações para o serviço dos europeus que, com freqüência através de uma
pobre extra ção,foram se insta larali?
Acabaram de me trazer uma convocação do general De Gaulle para esta tarde, às quinze
horas, na rua de Soférino. Vou enfim saber o que ele espera de mim. Manterei você a par
Desde minha chegada a Paris, não recebi um sinal de você. Sei que traía promessa que te fiz
de jamais voltaraArgé lia. Mas o que se passa por lá é importante para a França e devo
participar Parece-me que depois de ter vivido o que vivi, meu lugar é lá. Sei que você pode
compreender melhor do que antes. Não seja teimosa, eu a amo e você sabe! Escreva-me,
telefone para mim. Vou correrpara postar esta carta.
Cubro seu belo corpo de beijos,
François.
Um grande cansaço tomou conta de Léa. Ela sentia que François afastava-se, tomado mais uma vez
pelo gosto da aventura e o
desejo de estar sempre no coração dos acontecimentos, de fazer a sua parte. Contra isto, o que poderia
fazer uma mulher apaixonada? Se ainda estivesse perto dele... Sem Charles, ela teria partido para o
campo. Mas poderia ela abandonar este garoto que havia criado e que, de agora em diante,
arriscava-se todos os dias à prisão e à tortura? Ela deveria encontrá-lo e usar de todos os
argumentos para levá-lo à França. Foi neste estado de espírito que ela respondeu a seu marido:
Havana, 10 de abril de 1958.
Estou certa de que você é sincero quando diz que me ama, mas menos, no entanto, do que
ama sua liberdade, a confusão e seu generalDe Gaulle. Você tem razão,posso compreendê-
lo. Não apenas o compreendo, mas o invejo. Colocada de lado nossa vinda a Cuba, você
sempre agiu, em todas as coisas, como melhor lhepareceu. Quanto a mim, tenho a impressão
de não ter conduzido minha vida, de serprisioneira de circunstâncias que - não vou chegar a
me explicar - me permanecem não apenas imprevisíveis, mas revelam-se mais freqüentemente
dramáticas; sou o joguete de um destino que me escapa. E ainda atualmente.
Como você sabe, Charles deixou Miami. O que você ignora é que ele se encontra
provavelmente em Havana e que a polícia o procura. Tudo leva a crer que ele tomou parte
no seqüestro de Fangio. Onde quer que esteja, não tenho nenhuma notícia dele. A embaixada
da França o está procurando e, por seu lado, Ramón lançou os republicanos espanhóis na
pista dele. Um de nossos amigos cubanos esforçou-se para conseguirinformações nos meios
ilegais havaneses. Nunca se sabe... Quando o encontrar verei junto à embaixada o meio mais
seguro e mais rápido de fazê-lo deixar o país. Você, em nome da França, eu pela vida de meu
filho, mais uma vez fomos pegos, nos encontramos envolvidos em acontecimentos que não nos
dizem respeito realmente. Foi apenas durante a guerra que estivemos no nosso lugar.. Enfim,
é o mínimo que posso dizer... Atualmente a diferença entre você e mim é que você tem
escolha. Eu, não.
A cada dia, os atentados se repetem em Havana e no resto da ilha. A noite das cem
bombas",foi como abriram os jornais depois do 15 e 16 de março quando elas explodiram
tanto na cidade velha quanto no Luyano, no Vedado e quase emMiramarA ordem de greve
geral lançada por Fidel Castro para o 9 de abril foi um fracasso. Ontem, nas ruas, as
pessoas olhavam-se com desconfiança, todas as lojas estavam com as portas abertas e os
ônibus circularam normalmente. O apelo ao protesto não foi ouvido e apenas a polícia
estava reunida...
Soube hoje mesmo, por Françoise, que você passou para ver as crianças; foi bom e, eu lhe
peço,faça-o sempre que puder Fale com elas a respeito da mãe delas. Você também me faz
muita falta. À noite, me acaricio pensando em você como me ensinou afazer Ainda que
experimente a cada vez um breve prazer está longe de me satisfazere me deixa, antes de
donnir com uma grande tristeza no coração.
Espero que as belas parisienses não ofaçam esquecer-se de sua exilada cubana...
Eu o amo,
Léa.
PS.: Vou fazer chegara você esta carta pelo malote diplomático para que não seja
interceptada. Obrigada pelo livro.
Léa acordou da sesta com o coração batendo. Desde a partida das crianças, ela deitava-se toda
a tarde e dormia por uma ou duas horas. Entregue ao silêncio, a grande casa havia ganho um ar
hostil. Sobo comando de Ramón Valdés, ela havia contratado um casal que permanecia na casa.
Ramón o havia escolhido sob a recomendação de um de seus velhos companheiros de armas.
Juan e Mariana Torres eram mulatos de 20 e poucos anos, originários do oriente. Analfabetos,
vindos de uma família camponesa muito pobre, eles tinham partido para a capital para tentar
escapar da fome. Um dia,
Léa surpreendeu a mulher no quarto de Claire, tentando com os dedos acompanhar um abecedário
ilustrado. À sua entrada, Mariana tenta esconder o livro, enrubescendo.
- Estava olhando as imagens...
Emocionada com sua mentira, Léa começou, nos dias seguintes, a ensiná-la a ler. Durante uma
semana, cada manhã, durante uma hora, ela mostrava-lhe as letras e as fazia escrevê-las. Mariana
progredia rapidamente. Uma manhã, como a lição terminara, Juan entrou, com o chapéu na mão, e
um ar embaraçado.
- Oquequer,Juan?
Ele se balançava sob o portal, o queixo quase tocando seu peito.
- Por que está aí sem dizer nada: aconteceu alguma coisa?
A inquietude de Léa alertou Mariana.
- Não, senhora, mas ele não ousa...
- Não ousao quê?
- Pedir-lhe que o ensine a ler, como a mim.
Tanta timidez e boa vontade os tornavam enternecedores.
- Mas, é claro... Quem diria que um dia me transformaria em professora!
A felicidade que clareou o rosto dos dois fez Léa compreender o quanto eles sofriam com a
ignorância.
Ao fim do mês de abril, voltando da praia, ela encontrou uma mensagem de Alfredo García Olivera,
que marcava um encontro na mesma noite, à meia-noite, no bar dos Dos Hermanos.
- Juan, quem deixou esta carta?
- Uma grande mulher loura que me disse que chamava-se Freddy. Ela era magnífica! Nunca tinha
visto uma mulher igual...
Léa sorriu ao entusiasmo de Juan, que não parecia ser partilhado por sua esposa.
- Você é apenas um camponês incapaz de distinguir uma mulher honesta de uma puta!
- Você é completamente louca: ela disse que era uma amiga da senhora...
- Ah, desculpe-me - disse Mariana enrubescendo.
- Não tem importância - tranqüilizou-a Léa.
Porvolta das dez da noite, ela foi encontrar-se com RamónValdés e lhe falou do encontro marcado
com Freddy.
- Muito bem, irei ao Dos Hermanos antes de vocês e os esperarei. Mas leve Juan com você.
- Mas posso ir sozinha...
- Faça o que lhe digo! - cortou ele secamente.
Preocupada, ela desligou; àquele tom não havia réplica possível.
O bar estava lotado e vários consumidores tinham de ficar de pé na calçada, a maior parte em busca
de uma aventura homossexual. As duas ou três mulheres que percebiam-se entre os clientes eram
velhas prostitutas do bairro, que tinhamvindo fazer uma pausa dajornada de trabalho. A chegada de
Léa, seguida por Juan, provocou uma leve baixa no nível sonoro das conversas. Um instante mais
tarde, elas recomeçaram como se nada tivesse acontecido. Juan, desorientado pelo piscar de olhos
de alguns homens ou de discretos esfregares, não havia largado Léa por um instante enquanto ela
seguia até o bar. Em uma mesa, ela acabara de notar Ramón, sentado em companhia de outros dois
homens de sua idade, e visivelmente espanhóis. Já havia passado da meia-noite, Alfredo ainda não
tinha aparecido. No bar, houve um certo empurra-empurra para dar lugar a Léa. Ela pediu um velho
rum.
- O que quer beber? - perguntou aJuan.
- O mesmo que a senhora.
Lá fora, na calçada, cinco músicos atacaram uma ária. Sob o olhar espantado de Juan, homens se
enlaçaram e começaram a dançar. Ele tinha um ar tão aturdido que Léa estourou de rir.
Um carro parou diante do estabelecimento, com um barulho de freios. Vestido em um inacreditável
vestido de cetim violeta, com longos cabelos louros presos à nuca por uma faixa de veludo preto e
calçada com escarpins de saltos altos, Alfredo desceu do carro. Com ele, uma jovem ruiva
charmosa em uma longa pele vermelha
e um homem vestido de terno de linho branco amarrotado. Mas, enquanto os três fizeram sua
entrada com um andar instável, Léa foi atraída pelos olhos brilhantes do travesti que viravam-se,
enlouquecidos, sob a franja dos cílios postiços. Quando chegou perto dela, Léa observou também
que ele não estava barbeado. Ele trouxe a ruiva para diante dele. As duas mulheres se olharam.
- Eu apresento-lhe Angela Tabucci - gritou ele para se fazer ouvir em meio ao burburinho. - É um
verdadeiro pote de cola
- acrescentou, sussurrando no ouvido de Léa. - Não consegui me livrar...
- Boa noite - disse Angela estendendo-lhe a mão. - Você é a sra. Tavernier, não é? Realmente não
mudou, está até mesmo mais bonita.
- Nós nos conhecemos?
Angela sorri.
- Seu marido me fez a mesma pergunta...
- Você conhece François?
- Nós nos encontramos aqui, alguns dias antes de sua partida, mas já os vi na Argentina, durante um
baile onde você usava um vestido azul...
Léa ficou completamente pálida e levou as mãos aos lábios como se para abafar um grito, os olhos
repentinamente enchendo-se de lágrimas. E esta música, o tango que voltava... Ela segurou-se na
borda do bar. Lá fora, os músicos tocavam: Adiós muchachos, compaieros de mi vida... As
conversas diminuíram, os rostos viraram-se, interrogadores, na direção dos músicos: não era
freqüente escutar-se esta música em Cuba... Ya me voy, y me resigno contra ei destino...
Ángela a enlaçou... elas giraram enquanto os homens se afastavam.., suas pernas são de chumbo,
seu corpo queima à lembrança daquele de Sarah, de seu vestido vermelho e, como em Buenos
Aires, a multidão formava um círculo em torno delas. Por um longo tempo, Léa fechou os olhos e o
tempo parou... ela dançou com Sarah... Sarah não está morta... Dos lágrimas sinceras derramo
en mi partida...
- Você se lembra?... Fui eu quem pediu esta canção - sussurrou uma voz desconhecida.
Em um grito de furor, Léa afastou-se do abraço sedutor, atirou sobre sua parceira um olhar de ódio,
depois de desgosto, e a esbofeteou três vezes. Seus dedos marcaram a pele branca.
- François não fez a mesma coisa, em Buenos Aires?... - observou Angela, repentinamente doce e
com ar vago.
Léa se conteve para não se permitir parti-la de golpes. Ela virou-se e dirigiu-se para o bar. O rumor,
por um instante suspenso, recomeçou. Sem que ela lhe pedisse, o barman serviu-lhe um novo copo
de rum. Ela o bebeu de um trago. Alfredo se acomodou perto dela, empurrando Juan que,
acreditando se tratar de uma mulher, afastou-se sem reclamar. Quando ele descobriu de mais perto
as bochechas escurecidas pela barba, seu rosto exprimiu um tal estupor que Alfredo e Léa não
conseguiram reprimir um riso louco, que pouco a pouco contagiou os freqüentadores e, logo, toda a
audiência dos Los Dos Hermanos uniu-se em um único e grande gargalhar. Todos os homens,
velhos ou jovens, negros ou brancos, as poucas mulheres também, Angela compreendeu, estavam
tomados por uma tamanha hilariedade que as lágrimas vinham-lhes aos olhos. Alguns, as mãos sobre
os flancos, tentavam estancar a dor ao lado do tórax. Na rua, uma perseguidora diminuiu a marcha,
parou e os policiais abriram a porta, com uma das mãos pousadas na arma. Para eles, os risos se
amplificaram, transformando-se em um delírio. Os policiais ficam aturdidos: em toda a carreira
deles, jamais tinham visto coisa parecida. Habitualmente, suas aparições interrompiam as conversas
e fechavam os rostos. Esta noite, uma onda crescia, quebrava e lançava-se bonita, era um carnaval,
uma dança de SaintGuy da qual estavam completamente excluídos. Bah! Com certeza não eram
revolucionários que riam desta forma! Um revolucionário é um supersério, mesmo em Cuba...
Refestelados em suas mesas, sentados no chão, alguns rolando no solo, os freqüentadores do bar
tentavam recuperar seus espíritos e seu fôlego.
- Fiz pipi nas calças! - gritou uma prostituta, sufocada num acesso de tosse.
- Eu também! - fez uma outra observando, estupefata, a pequena poça que aumentava.
Alfredo, o primeiro, estava recuperado.
- Venha - sussurrou ele a Léa.
Juan logo se interpôs.
- Não se preocupe, Juan. Siga-nos.
O trio passou diante da mesa de Ramón Valdés que, seguindo-os com os olhos, fez sinal a seus
companheiros para seguirem seus passos. Ninguém prestou atenção à porta que se abriu no fundo
do estabelecimento. Eles desembocaram em um corredor coberto de caixotes e de tonéis. Os gatos
que foram perturbados miavam raivosamente. Alfredo afastou uma pilha de gaiolas, descobrindo
uma segunda saída, muito estreita, que abriu-se sem dificuldade.
- Vamos, apressem-se.
- Vão perceber que passamos por lá - inquietou-se Ramón, atravessando a última passagem.
- Um colega da boate vai recolocar tudo no lugar atrás de nós. Uma caminhonete nos aguarda no
fim da rua.
- Alfredo, você pode nos dizer o que tudo isso significa? - perguntou Léa ansiosa.
- Vamos encontrar Charles.
- O quê?... Você o encontrou?
- Sim, mas creio que devemos ir rápido: o tipo que o abriga foi preso. Conheço os métodos deles, eles
conseguirão fazê-lo falar.
- É longe daqui?
- Não, a alguns quilômetros; em Regla.
- Tenho também alguns amigos por lá - disse Ramón. - Se nos sairmos mal, poderemos nos refugiar
na casa deles.
O motorista da caminhonete cochilava atrás de seu volante. Ele teve um sobressalto quando Alfredo
abriu a porta.
- Vá para casa, agora, vou dirigir. Não observou nada de especial?
- Não, tudo está calmo.
Léa e Ramón entraram na cabine enquanto os outros se aglomeravam na parte de trás.
A estrada que levava a Regia estava deserta e esburacada. Naquela hora, a cidade de Santerfa
parecia abandonada. Os raros refletores que não estavam fora de uso emitiam uma luz sepulcral. A
Sierra Chiquita - como se chamava em razão de seu passado revolucionário e anarquista - parecia
uma cidade morta. No interior do veículo, espanhóis e cubanos faziam o sinal-da-cruz. Ao fim da rua
Martí, em frente ao porto, levantava-se a massa sombria da igreja Nuestra Sefiora de Regia, a
virgem negra que é cultuada como lemanjá, a patrona dos marinheiros. Um cachorro latiu e um
outro lhe fez eco. Alfredo desligou o motor.
- Chegamos - sussurrou ele apontando um edifício.
Das docas próximas chegavam-lhes o barulho de correntes, do atracamento de navios, um bater de
água. O cheiro de ferrugem e de piche planava sobre estes únicos barulhos.
- Não gosto disso - disse um dos espanhóis entre dentes.
Unindo o gesto à palavra, ele tirou sua pistola.
Vacilando sobre o pavimento solto da praça da catedral, Alfredo retirou seus escarpins, atirando-os
no fundo da caminhonete.
- Você deveria retirar talvez também a peruca... - sugeriu Léa com voz baixa.
Mecanicamente, ele obedeceu e a cabeleira loura voou ao encontro dos sapatos de cetim.
- Fique ao meu lado - recomendou ele à jovem mulher. - Os outros, perto da caminhonete.
Eles deslizaram ao longo das fachadas sombrias. Quando chegaram ao outro lado da praça, Alfredo
empurrou uma porta, que cedeu com um gemido. Parecia a eles que toda a cidade havia sido
despertada. Com uma arma na mão, Alfredo avançou tateando.
- Você tem um isqueiro?... Passe-o para mim.
A chama revelou a grande desordem que reinava no cômodo onde haviam chegado: não apenas
móveis pobres haviam sido
revirados mas - oh sacrilégio! - o altar e seus santos haviam sido profanados.
- Senhor!... Jamais poderia ter acreditado que um cubano seria capaz de mexer nos orixás... -
balbuciou Alfredo, benzendo-se.
Recuperando-se, o cubano entrou em uma abertura feita entre as pranchas arrancadas de uma
divisória. Exceto uma miserável cama de ferro com os pés para cima, não havia nada no pequeno
reduto sem porta nem janela que eles acabavam de descobrir.
- Onde está Charles?! - quase gritou Léa sacudindo os braços de seu companheiro.
Uma espécie de pavor a tinha tomado.
- Cale-se! - intimou ele.
Ele inclinou-se sobre o solo coberto de uma velha pavimentação e bateu três vezes com sua
coronha, depois duas, e de novo três. Um dos quadrados do piso se mexeu.
- Ele está lá... Segure o isqueiro.
Com a ajuda de suas longas unhas, ele levanta a primeira laje; três outras em seguida. Duas mãos,
depois uma cabeleira empoeirada emergem do buraco. Léa reprimiu um grito. Alfredo esforçava-se
para içar uma jovem fora do fosso.
- Obrigada, obrigada... Pensei que tivessem me esquecido ali para sempre...
- Carmen!... Onde está Charles?
Há pouco tempo de pé, ajovem desmoronou. Alfredo a recolocou de pé brutalmente.
- Não é o momento de desmaiar! Léa, sustente-a... Eu vou na frente.
- Onde está Charles? - repetiu Léa quase gritando.
- Eu... eu não sei.
Quando eles saíram para a praça, a caminhonete veio ao seu encontro, faróis apagados.
- Suba atrás - disse Alfredo a Carmen. Vocês, dêem-lhe uma ajuda, cubram-na com a lona... Todos
se ajeitem como puderem, e um de vocês pegue a metralhadora.
Atravessando a cidade adormecida, o motor fazia um barulho infernal, O veículo havia lentamente
deixado a praça e no momento subia a rua Maceo. No cruzamento com a rua Céspedes, uma
perseguidora tentou de todas as formas barrar-lhes a passagem. O motorista virou o volante, a
caminhonete subiu na calçada e, em uma manobra, conseguiu ultrapassar a barragem improvisada
arrancando o pára-lamas atrás do automóvel.
- Ataque! Ataque! - gritou Alfredo.
Pelos vidros abertos do carro, os policiais haviam aberto fogo. Em um gemido, uma bala atravessou
a cabine e estraçalhou o pára- brisas. Atrás, Ramón estava com a metralhadora. Um pontapé na
porta traseira a escancarou. Ramón atirou no carro imobilizado através do cruzamento, enquanto um
espanhol o segurava pela cintura. Léa se virou. Ela só teve tempo de ver um policial atirar-se no
chão e que, um segundo depois, corria com a arma na mão. Uma rajada o atingira no peito. A
caminhonete chegava a toda velocidade à rua Guanabacoa quando duas
perseguidoras surgiram
de uma rua adjacente para caçá-la. Pendurado na porta, Alfredo esperou alguns instantes até que a
primeira se aproximasse. Ele atirou visando o motorista.
- Diminua! Deixem-os chegar mais perto - gritou ele fora da cabina.
O motorista obedeceu, aperseguidora ganhou terreno. A bala de Alfredo varou subitamente o
pára-brisa e atingiu o policial no meio da testa. O carro ziguezagueava perigosamente quando uma
bola de fogo o acertou.
- Eu tinha me esquecido dos coquetéis Molotov! - gritou, todo feliz Alfredo. - Obrigado, caras!
Como se para terminar sua frase, a perseguidora pegou fogo depois de atingir uma torre de
energia.
- É de uma vez! - concluiu o cubano.
Um pequeno furgão surgiu da cortina de fumaça e lançou-se por sua vez em perseguição a eles em
um ressoar de motor. Do teto, uma metralhadora soltava longas rajadas. Caído da plataforma, um
corpo rolou sobre a rua. O policial que conduzia o furgão nem procurou desviar.
- Não! - gritou Léa quando as rodas o esmagavam. - Pare! Pare! Pode ser Ramón!
- Muito tarde para ele, abaixe-se!
Duas garrafas incendiárias que haviam sido jogadas na direção dos perseguidores erraram seu alvo.
Enfim, os tiros saídos da metralhadora deixaram o cano da metralhadora e feriram o motorista. O
furgão fez um cavalo-de-pau, capotou duas vezes de forma impressionante e terminou brutalmente
sua corrida em uma árvore. Ela logo pegou fogo. Duas tochas vivas extirparam-se da carcaça,
correram alucinadas pela rua, caíram e, depois de alguns sobressaltos, quedaram-se imóveis. Léa
tinha a cabeça entre as mãos.
A caminhonete não tinha diminuído a marcha para seguir sua estrada até Catalina de Güines, onde
ela estreitou-se e tornou-se um caminho de terra. No fim, levantava-se um edifício. Léa saltou de
seu assento, empurrando Alfredo, e precipitou-se para a parte de trás. Pelos dois batentes abertos,
Ramón ajudava Carmen a descer. Léa suspirou profundamente enquanto a jovem deixava-se
escorregar do degrau. Ela permaneceu alguns instantes curvada sobre si mesma. Docemente, Léa
levantou sua cabeça.
- Meu Deus!
Um filete de sangue manchava seu rosto sujo.
- Ela está ferida!
- Não é nada - corrigiu Ramón. - Apenas um arranhão... Reginald Ortega protegeu-a com seu
corpo... Decididamente, está escrito que meus pobres amigos terminariam sob as balas da ditadura...
Léa aproximou-se e o abraçou.
- Ramón, o que dizer a você?... Você, seus amigos... eu... eu estou profundamente desolada por
seus dois companheiros...
- Não vamos falar agora - cortou ele. - Discutiremos mais tarde.
- Ramón tem razão - apoiou Alfredo. - Um outro carro está
escondido aqui, nós devemos trocar de veículo. Mas, antes, vamos queimar a caminhonete.
- Mas...
- Já sei o que vai dizer, mas não temos escolha. O camarada espanhol morreu em combate e os heróis não
precisam de sepultura. Há um reservatório de água atrás da casa. Léa, leve Carmen para se lavar um pouco.
Quando elas voltaram, o motor de um Cadillac já ronronava. Alfredo já havia trocado seu vestido em
frangalhos por uma malha e um macacão. Juan e Lazaro, o motorista, acabavam de jogar a gasolina da
caminhonete. Alfredo a abraçou assim que todos se instalaram no Cadillac. Um imenso clarão iluminou a cena.
"Como em Montillac", pensou Léa, gelada.
Eles seguiam no momento em silêncio. De longe ainda se via o incêndio; não tardaria a ser descoberto.
Atrás, sobre a confortável banqueta, Carmen, exausta, cochilava nos braços de Léa.
Quando saiu de seu torpor, começava a amanhecer.
- Para onde vamos? - inquietou-se Léa.
- Vamos tentar encontrar Fidel - respondeu Ramón.
- Fidel?... Mas devemos voltar a Havana...
- Agora é impossível - retorquiu ele. - A esta hora, os homens de Ventura estão em sua casa, e na minha
também, sem nenhuma dúvida. Não temos escolha. E ainda falta atravessarmos as barreiras policiais...
- O que vai acontecer com Mariana? - perguntou Juan.
Um silêncio respondeu sua pergunta.
Perto de Léa, os punhos cerrados, Juan olhava reto para a frente; uma lágrima percorreu sua face e perdeu-se
nos pêlos de seu bigode. Léa reprimiu um gesto de compaixão.
Aos poucos, Léa tentava obter com Carmen, suavemente, informações a respeito de Charles. Os dois
encontraram-se no refúgio de Regla mas, três dias antes, militantes do M-26 enviados por Faustino Pérez
haviam ido buscar Charles para conduzi-lo à Sierra.
Os homens de Faustino, encarregados de ultrapassar as fronteiras, deveriam voltar para levá-la.
Neste meio tempo, a casa havia sido investigada pela polícia e a jovem teve apenas tempo de
escorregar para o esconderijo arranjado sob o piso. Por muito tempo ela havia escutado os gritos do
velho homem que os albergava. Depois o silêncio caiu, um silêncio tão pesado que ela havia
acreditado ter ficado louca.
Quando Carmen terminou seu triste relato, Léa soube que ela partiria para a Sierra à procura de
Charles.

Capítulo Onze

LAZARO GIROU O VOLANTE tão brutalmente que quase bateu com o Cadillac, e em seguida,
depois de uma derrapagem, tomou um caminho bordeado de cana-de-açúcar que se abria à direita.
Ninguém havia pronunciado uma palavra, todos tinham visto a barreira que fazia, um pouco mais
longe, um destacamento militar. Ramón e Alfredo ganharam a calçada, debruçaram-se sobre os
cotovelos na praia atrás e aprontaram-se para disparar a metralhadora para abrir fogo sobre
eventuais perseguidores apesar da nuvem de poeira que levantava-se à passagem deles. A névoa
privava os atiradores de uma completa visibilidade, mas assinalava a sua fuga. Os passageiros,
sacolej ando, foram projetados uns contra os outros. A todo momento, eles aguardavam um ataque.
Nada disso aconteceu.
Ao fim de algum tempo, Ramón propôs fazer uma parada. O veículo imobilizou-se à beira do
caminho e Lazaro cortou o contato. Tudo ficou silencioso; nada se mexia nas cercanias e cada um
prendia a respiração. Lentamente a poeira caía; o sol já estava alto o suficiente. Alfredo foi o
primeiro a descer.
- Nós não devemos estar muito longe de Nueva Paz -
calculou Lazaro. - Estamos a cerca de cem quilômetros de Havana. Se conseguimos atravessar a
barreira, deveremos estar tranqüilos até Santa Clara.
- Você tem certeza de que não haverá outras adiante? - perguntou Alfredo.
- Haverá provavelmente uma na altura de Torriente, na auto- estrada, uma outra perto de Colón, na
estrada de Matanzas. Poderemos sem dúvida evitá-las passando por Torriente e Jagüey Grande, em
seguida voltando para Colón. Lá, creio que sei como contornar os controles e não deverá haver
outros até Santo Domingo. Em seguida, não sei bem o que há, mas não estaremos a mais de trinta
quilômetros de Santa Clara.
Em um mapa, Ramón havia seguido com o dedo o trajeto que indicava ao motorista.
- Isso parece ser a chance... - confirmou ele. - O que é preciso, agora, é sair de lá. Juan, vá ver o que
se passa ao lado dos soldados e volte para nos informar. Alfredo, tente encontrar um caminho
paralelo à estrada.
O velho da guerra da Espanha havia espontaneamente recuperado o tom do comando. Os dois
cubanos executaram as ordens sem um comentário.
Juan foi o primeiro a voltar.
- Nem se mexeram, estão tomando café.
A alusão ao café fez Léa salivar e, repentinamente, tomou consciência de que morria de fome e de
sede. Ela passou a língua sobre os lábios secos.
Alfredo voltou.
- A cem metros à esquerda, há uma pequena estrada.
- Sem dúvida a estrada que leva a Palos; é dela que precisamos. Mas não devemos demorar lá, o
exército ali acantona os homens das barreiras - acrescentou Lazaro.
Refestelados diante da entrada do único café de Palos, militares desalinhados observaram passar o
Cadillac com indiferença. No
interior do automóvel, cada um estava pronto para defender com afinco sua pele. Os passageiros só
desceram em Cabezas, onde compraram provisões. Diante do escritório dos correios, Juan deu uma
parada e suplicou a Léa com os olhos. A situação não escapou a Ramón.
- Se você telefonar, meu garoto, arrisca-se a nos fazer notar e eles acabarão nos colocando a mão
em cima...
- Venham, rápido - alertou Alfredo -, tenho a impressão de que um oficial está prestando atenção em
nós.
Eles voltaram para o carro. Lazaro dá a partida suavemente e o oficial que avançava na direção
deles mudou de idéia e voltou.
Bolos secos, cerveja morna e bananas apaziguaram um pouco a fome de todos. Sobre estradas
esburacadas, eles cruzaram carroças atreladas de mulas ou cavaleiros sobre sua montaria, cercados
às vezes por famílias inteiras. Crianças nuas brincavam por todo lado ao longo do asfalto, e mulheres
carregando pacotes ou maços de gravetos sobre suas cabeças viravam-se para vê-los passarem.
Graças às indicações de Lazaro, eles evitaram a barreira de Colón. No local onde se encontravam
no momento, a estrada beirava a via férrea; eles a deixaram em Santo Domingo, uma coluna de
blindados subia em direção a Havana. Por volta das duas horas da tarde, eles entraram em Santa
Clara. A aglomeração cochilava sob o sol.
- Para onde nós vamos agora? - perguntou Ramón.
- Para a casa do irmão de meu pai - respondeu-lhe Alfredo.
- É um comunista simpatizante do M-26. Ele mora perto da igreja de la Santissima Madre dei Buen
Pastor. E longe o suficiente do centro e ali estaremos em segurança. Meu tio, Alejandro García, já
foi preso várias vezes em diferentes governos. Ele era muito próximo de Jesús Menendez, um dos
dirigentes negros dos operários do açúcar; juntos, os dois lutavam contra os proprietários das
centrales. Ele conheceu bem Carlos Franqui quando estava nas Juventudes comunistas. Sei que
mantiveram contato. No início dos anos 40, Santa Clara era uma cidade onde o racismo era
dominante. Os brancos podiam passear no interior do parque Leóncio-Vidal,
enquanto os negros deveriam ficar do lado de fora. Nós víamos neste parque o famoso asno Perico,
mascote de toda a cidade, que sempre circulava pedindo pão e brincava com todo mundo, sem no
entanto deixar-se montar; havia também, na borda do parque, a ponte Candado, que chamávamos "a
ponte da boa gente": era ali que conduzíamos os cortejos fúnebres, porque a tradição dizia que
jamais deveria passar por esta ponte um morto que tivesse sido um canalha. Sob a ponte corre o
Manso Belico, com, nas cercanias, cabarés e casas de tolerância onde íamos dançar. Um famoso
flautista tocava em uma orquestra de Cienfuegos e ganhava um centavo por dança, mais um para a
bailarina e três para o proprietário e a polícia. Em uma esquina isolada estava o quiosque de
Daniel, veterano da guerra da Espanha; era local de reunião de todos os camaradas comunistas de
meu tio, que com freqüência me levava com ele. Nós parávamos na praça do mercado, no chinês,
onde comíamos uma completa de arroz, feijão e picadinho que custava cinco centavos. Por uma
moeda a mais, eu tinha direito a uma banana e meu tio a um copo de guarapo. Eu tinha cinco ou
seis anos, mas lembro-me como se fosse ontem... Vejam a igreja, vire à direita. Vê o grande portão
verde? É lá. Entre no pátio.
Uma porca escura, seguida de seus leitõezinhos, atravessava o pátio trotando. A entrada deles, as
galinhas afastaram-se cacarejando. Um homem negro, grande e magro, estava de pé, as duas mãos
apoiadas sobre o cabo de uma foice. O alto de seu rosto estava escondido pelas bordas desfiadas de
um chapéu de palha. Imóvel, ele observava os passageiros do Cadillac virem em sua direção. De
sua figura, desprendia-se uma impressão de força e de serenidade.
- Meu tio? Sou eu, Alfredo.
- Estou vendo... Mas o que faz aqui?
- A polícia nos procura. Estamos tentando chegar a Sierra.
Fazia sombra e frescor no vasto cômodo onde duas mulheres acabavam de desfazer a mesa. Uma
delas, vestida toda de branco, arrumava os guardanapos para lavar.
- Alfredito!
- Tia Dolores!
- Santa mãe de Deus! Que belo rapaz você se tornou... Sua pobre mãe deve estar orgulhosa! Como
vai ela? Há tanto tempo não a vejo... Quem são estas pessoas?... Que seus amigos sejam bem-
vindos, mas todos parecem muito cansados. Antonia, sirva- lhes café.
- Minha tia, minha amiga Léa adoraria jogar uma água no rosto... e trocar de roupa também. Você
poderia emprestar-lhe uma calça e uma camiseta?
- Hum... sandálias também, talvez... - disse Léa mostrando os sapatos de salto alto que ainda
calçava.
- Vamos cuidar de tudo isso - disse Alejandro García. - Mas primeiro vamos ao café.
Ao seu chamado, todos sentaram-se à mesa e Alfredo cuidou de fazer as apresentações. Ramón
Valdés e Alejandro García apertaram-se as mãos sem uma palavra, olhando-se direto nos olhos.
Enfim, quando Alfredo terminou de narrar sua aventura, seu tio permaneceu alguns instantes com os
olhos semicerrados.
- Vocês tiveram muita sorte até aqui... Não posso lhes assegurar o mesmo pelo resto do caminho. O
exército de Batista está patrulhando por todo lado e pára todas as pessoas estranhas à região. Além
do mais, as denúncias são numerosas... Vou ter de pensar na melhor maneira de fazer vocês
deixarem Santa Clara... Vou conversar com os companheiros; estarei de volta à noite. Até lá, não
saiam da casa. Você, você vem comigo - acrescentou ele, dirigindo- se ao sobrinho.
Eles só voltaram no dia seguinte, à tarde.
- Nós partiremos quando a noite cair - declarou Alejandro García -, e iremos até Trinidad. Lá um
avião levará vocês ao coração da Sierra. O piloto conhece bem a área, ele já entregou várias vezes
armas aos combatentes. Mas houve um problema de motor sobre Sancti Spíritus: ele teve de fazer
um pouso de emergência perto do monte Lomas de Banao e voltar para Trinidad a pé pela
floresta. Lá ele encontrou um mecânico que fez os consertos. Um camarada vai tentar levar o
Cadillac até a saída de Santa Clara e atravessar a barreira. Se tudo correr bem, um outro tratará
disso até a chegada de vocês, O primeiro voltará aqui para nos dizer se o caminho está livre.
- Como nós deixaremos Santa Clara? - perguntou Ramón.
- Separadamente. Você parte comigo e a mulher...
- Eu não deixarei Carmen! - gritou Léa.
- Eu as confio a você - diz Ramón Valdés para Alejandro García.
- Como quiser - consentiu o velho comunista.
Agora, usando uma camisa e um par de calças brancas, os cabelos escondidos sob um chapéu
de guajiro, Léa parecia um rapaz.
Depois de ter engolido uma farta refeição, levando uma bagagem leve feita de alguma roupa de
baixo e alguns víveres, os fugitivos colocaram-se a caminho em pequenos grupos. Alejandro,
Carmen e Léa subiram em um ônibus superlotado que os deixou, na saída da aglomeração, diante de
uma placa que indicava: "Trinidad, 130km." Durante dois ou três quilômetros, seguindo uma estrada
de terra, eles caminharam em silêncio. Na noite profunda, humildes casebres com paredes oblíquas
agora substituíam as casas de pedra. Palhoças em lona vieram em seguida, algumas desmoronando
sob a vegetação. Depois, pouco a pouco, as habitações deram lugar à floresta tropical. Na borda do
bosque, Alejandro seguiu por um pequeno caminho pelo qual eles continuaram por uns dez minutos.
As corujas lançavam-lhes pios engraçados.
- Vamos esperar aqui - disse enfim o guia dos franceses.
Uma meia hora depois, foram encontrados por Alfredo e Ramón, em seguida por Juan e Lazaro.
- O carro nos espera no quilômetro seis - anunciou Alfredo. Não vamos perder tempo.
No automóvel que haviam recuperado, Léa e Carmen tremiam, apesar da coberta com a qual
Ramón as tinha envolvido. E apesar do mau estado da estrada, eles chegaram a Condado pouco
antes da meia-noite.
Na casa de um camponês simpatizante do M-26, eles entraram em contato com o piloto do qual
Alejandro havia falado. Pedro Luis Díaz Lang foi ao encontro deles. Ele hesitou.
- Mas... eu conheço você, não é? - disse ele, olhando para Alfredo.
- Sim, nos vimos com Carlos Franqui e você planejava encaminhar armas até a Sierra.
- E foi o que fiz. Também deixei Franqui lá.
- Ele ainda está lá?
- Sim, cuidando daRadio-Rebelde.
- Seu avião já está em condições? - interrompeu Alejandro García.
- Estará amanhã e, se o tempo permitir, nós poderemos decolar logo que... Quantos vocês são?
Cinco?
- Não, seremos apenas quatro, nosso companheiro Lazaro volta para Havana.
- Melhor, porque, mesmo em quatro, ficaremos apertados! Felizmente não tenho frete.
No dia seguinte o avião decolou ao entardecer; o céu estava encoberto, mas o vento havia parado.
Eles sobrevoaram o arquipélago de Los Jardines de la Reina, em seguida o golfo de Guacanabayo e,
enfim, o extremo ponto da Sierra Maestra. Eles aterrissaram em um pequeno terreno perto de La
Plata. Léa foi a primeira a descer do Cessna. Homens barbudos, armados, pareciam montar guarda
em volta. Um deles aproximou-se do aparelho.
- Não nos falaram que você iria voltar - lançou ele a Díaz.
- São pessoas procuradas pelos policiais de Batista.
- E as mulheres?
- Elas também... É uma francesa, seu filho está aqui, e a outra é a filha do doutor Pineiro.
- Abriguem-se debaixo das árvores, vou avisar o chefe.
A espera durou duas horas; em seguida o homem, uma tocha na mão, voltou em companhia de dois
outros rebeldes que levavam um fuzil preso ao corpo com uma tira de couro e fumavam espessos
charutos. Sempre caminhando, eles gargalhavam e se batiam como crianças. Um dos novos estava
com uma boina e o outro com uma espécie de chapéu todo deformado. Em seus largos cintos de
couro, munidos de múltiplos pequenos bolsos, balançavam-se tranqüila- mente granadas e punhais.
Seus uniformes verde-oliva estavam amassados, cobertos de manchas; a transpiração havia
desenhado neles grandes auréolas escuras sob as axilas e no meio das costas. O rapaz de chapéu
amassado tinha uma barba longa que lhe conferia um aspecto de Cristo brincalhão. Todos os dois
eram bonitos.
- Che, Camilo, parem com as brincadeiras!
Quando eles estavam a apenas alguns metros, Léa franziu as sobrancelhas: onde ela tinha visto este
rosto coberto com uma boina?... Não era o homem cuja fotografia havia aparecido no ParisMatch
e que ela havia acreditado reconhecer... E esta voz?... O homem de boina acabava de se imobilizar
a dez passos do pequeno grupo e por sua vez a observava, perplexo. Ele tomou a tocha das mãos do
guerrilheiro. Sem deixarem de se olhar, eles avançaram um para o outro. Seus dois gritos uniram-se:
- Léa!
- Ernesto!
De uma só vez, Léa atirou-se em seus braços. Um instante depois, ela se afastou ligeiramente dele
para melhor observá-lo. Emocionados, ainda incrédulos, eles contemplaram-se sem dizer palavra.
- Che, você não havia me confessado que conhecia mulheres tão bonitas... Senhorita, me pergunto o
que pode ver neste argentino imundo... - ironizou seu companheiro.
Realmente, é verdade que ele estava sujo de assustar, o seu namorado de Buenos Aires, e que não
cheirava muito bem... A observação a retirou da surpresa.
- Che, deixe, Camilo... Mas o que está fazendo aqui?
- Eu explicarei a você, Ernesto, mas é uma história um pouco longa... Tive que fugir de Havana
porque meu filho estava sendo procurado por um certo capitão Ventura...
- O que ele fez?
- Ele... ele participou do seqüestro de Juan Manuel Fangio.
- E os outros ali?
- Ramón Valdés é um amigo de meu marido, eles fizeram a guerra da Espanha juntos...
Ernesto estendeu-lhe a mão:
- Seja bem-vindo.
- ...e aqui está Alfredo García Olivera; foi graças a ele que pudemos fugir. Quanto a Juan, ele
trabalhava em minha casa com sua mulher; aceitou me acompanhar para salvar Charles, mas sua
mulher teve de ficar sozinha em nossa casa...
Ela interrompeu-se e baixou a cabeça.
- Sei... - murmurou Ernesto.
Um pesado silêncio abateu-se sobre a pequena equipe. O companheiro de Guevara foi o primeiro a
reagir.
- Vamos subir para o campo agora. Temos duas horas de caminhada... Vocês não têm bagagens? -
perguntou ele a Léa.
- Partimos um pouco precipitadamente... Charles está com vocês? - perguntou ela a Ernesto.
- Um jovem francês se reuniu a nós há dois dias... Talvez seja
ele.
- Obrigada, meu Deus! - murmurou ela como se para si
mesma.
Por uma estreita trilha eles subiram a montanha. A medida que subiam, o ar tornava-se mais vivo.
Eles pararam por alguns instantes. Léa virou-se. Repentinamente ela vislumbrou a magnífica
paisagem. O mar brilhava sob a luz do luar; a relva que a caminhada
havia amassado exalava um odor acre. A imagem de Montillac se interpôs a esta. Ela se reviu
apoiada contra sua árvore do calvário de Verdelais, olhando para fora dos Landes, em direção ao
mar... Como tudo isso estava longe! Ela pensou em seus filhos correndo no prado, perseguindo-se
através dos vinhedos, como ela e suas irmãs haviam feito antigamente. Ela sentou-se no solo
pedregoso, envolveu os joelhos com os braços e não conseguiu reprimir um soluço. Camilo veio
ajoelhar-se junto a ela, acariciou-lhe os cabelos falando- lhe como se a uma criança. Ao som
daquela voz quente e terna ela acalmou-se pouco a pouco. Atrás de suas lágrimas ela o observou.
Com um grande sorriso ele a ajudou a levantar-se e os dois caminharam por algum tempo
abraçando-se pela cintura. Carmen lhes enviou um olhar curioso enquanto Ernesto parecia
divertido...
Nas cercanias do campo de La Plata, jovens empregavam-se a confeccionar coquetéis Molotov,
outros poliam seus fuzis à luz de tochas ou de lâmpadas de querosene. À aproximação do grupo os
insurgidos fizeram grandes exclamações e começaram a aplaudir.
- 1 Viva Camilo!
- 1 Viva ei seor de la vanguardia!
- 1 Viva ei Che!
- 1 Viva la revolución! - respondeu por sua vez Ernesto.
A dois passos, um barbudo cortava cuidadosamente os cabelos de um de seus companheiros
enquanto um grupo de jovens mulheres, vestidas com os uniformes rebeldes, disputavam revistas,
números de Paris-Match datados do mês de abril. Na capa de um deles, Fidel Castro apontava um
revólver para a objetiva, seus óculos de intelectual sobre o nariz.
- Vocês recebem jornais? - espantou-se Léa.
- Franqui os enviou para nós de Miami - explicou Ernesto.
Léa observava tudo à sua volta, procurando Charles nos menores recantos do acampamento. Enfim
ele estava trabalhando no coração da Sierra e iria poder combater a tirania sob a direção do homem
que admirava...
Aqui ou lá, diante das palhoças cobertas de galhos, os guerrilheiros repousavam no solo. Sobre uma
espécie de esplanada, alguns jogavam bolas de gude.
- Ganhei! - alegrou-se um rapagão, levantando-se de uma
vez.
Surpresa, o coração pulando no peito, Léa reconheceu Fidel
Castro.
- Nós temos visitas - declarou Ernesto cedendo passagem a Léa. - Conheci-a em Buenos Aires
quando perseguia criminosos nazistas... Ela é francesa... O jovem francês trazido por Faustino é
filho dela e ambos estão sendo perseguidos pela polícia de Batista. Fidel, apresento a você Léa
Delmas.
Homem galante, Fidel retirou seu capacete e inclinou-se. Ele a tomou familiarmente pelo braço e a
conduziu para sentar-se em um pequeno banco. Ele se agachou diante dela.
- O que fazia então uma francesa na Argentina?
- Ernesto acaba de lhe dizer.
- Por que você fazia isso?
- Porque tinha uma amiga judia que... que foi deportada... Ela conheceu por lá coisas horríveis..,
tinha que se vingar...Você... você entende?
- Creio que entendo... E na França, você esteve na Resistência?
"Sim", fez ela com a cabeça.
- Foi difícil?
- Muito... Mas não tenho vontade de falar no assunto agora. Onde está meu filho?
Fidel fez um sinal. Um barbudo aproximou-se.
- Vá procurar o francês.
- Mas ele só voltará do exercício amanhã...
- Bem... Quais são as novidades da Argélia? - recomeçou ele virando-se para Léa. -Você tem
alguma? Acha que o general De Gaulle vai voltar ao poder?
- Pessoalmente não sei nada, mas meu marido o acompanha.
- Onde ele está agora?
- O general De Gaulle o convocou a Paris, e ele foi.
- Diremos que isso não lhe agrada muito...
- Não mesmo - replicou ela em um tom azedo. - Desde que nos encontramos não paramos de nos
meter em todas as espécies de conflitos. Estou de saco cheio! Quis vir para Cuba para escapar
desse esquema e estou aqui, longe de minha casa, separada de meus filhos, perseguida pela Gestapo
local, cercada de combatentes sujos e desgrenhados... Estou cheia! Cheia! Cheia!...
Léa havia se levantado, gritando suas últimas palavras. Em volta deles, todos estavam calados e a
observavam. Fidel a considerava com benevolência. Ramón Valdés aproximou-se e a segurou pelos
ombros.
- Comandante, ela está esgotada. Onde pode repousar?
- Celia, encontre-lhe um lugar apropriado, e calmo.
Uma jovem morena destacou-se de um pequeno grupo e veio tomar Léa pela mão.
Léa dormiu quase quinze horas seguidas no saco de dormir que Celia Sánchez lhe havia emprestado.
Ao seu lado, a jovem havia passado a noite com a cabeça apoiada sobre um saco de juta e tinha
acordado cedo.
- Vou trazer café... do verdadeiro! - disse Celia com um ar de triunfo.
- Obrigada - respondeu-lhe Léa, ainda sonolenta. - Nunca teria acreditado que se dormia tão bem lá
dentro.
- Não posso dizer o mesmo... - suspirou Celia esfregando as costas.
- E o seu? Oh, sinto muito...
- Tudo bem, não tem problema, eu dormirei melhor esta noite.
As salvas fizeram Léa sobressaltar-se.
- O que... o que é? Um ataque?
- Não, fique calma, são os novos recrutas que estão em exercício. Seu filho está entre eles e parece
que é um grande atirador.
- Charles?... Mas está fora de questão!
- É um homem, como você pode impedi-lo de lutar? - observou Celia com um tom de desprezo. -
Bom, siga-me, se quiser lavar o rosto.
Onde o caminho se perdia entre altas ervas, duchas haviam sido improvisadas em pleno ar com a
ajuda de outras em lonas penduradas. As folhas eram arranjadas algumas dezenas de metros mais
longe. Léa olhou em volta de si, procurando um lugar ao abrigo dos olhares.
- Se está procurando uma cabine, não há. Faça como eu...
Léa obedeceu, despiu-se ao mesmo tempo que Celia e passou sob um dos chuveiros suspensos. A
água estava fria.
- E... tem sabonete?
- Tome, pegue o meu... Ainda tenho um pouco de xampu, você quer?
Quando elas voltaram ao acampamento, os tiros haviam parado; tudo estava calmo. Lá haviam
chegado algumas mulheres de vilarejos vizinhos, para levar provisões; elas conversavam com
pessoas muito jovens.
- A população nos ajuda. Muitas mulheres tiveram seus maridos e filhos reunidos a nós. Alguns nos
servem até de agentes de ligação; os soldados não desconfiam deles...
- Era assim na França, no início... - murmurou Léa. - Celia, você sabe onde estão meus amigos?
- O espanhol partiu com Fidel e Camilo.
- Quem é este Camilo?
- Camilo Cienfuegos? É um dos nossos melhores combatentes.
Ele ignora o perigo a tal ponto que Fidel com freqüência o repreende.
E mais, não pára de fazer brincadeiras, nem sempre de bom gosto,
é verdade, mas seus homens o adoram. Ele brinca sempre, mesmo
nos piores momentos. É um tipo muito corajoso, o Che o admira
muito.
- É por causa do seu jeito de falar que vocês o chamam de el Che?
- Sem dúvida, porque ele sempre diz che no início ou no fim de suas frases...
- É verdade. Já havia reparado, em Buenos Aires.
- Ah é? E como ele era quando o conheceu?
- Muito jovem e... muito bonito.
- Sei... - disse Celia, repentinamente séria.
- Há muito tempo que você está... que você está na guerrilha?
- Desde o desembarque. Meu pai é médico em Manzanilla e eu trabalhei com o doutor René Vailejos
e Crescencio Pérez na organização do M-26, nas cidades e nos vilarejos da Sierra. Estava
encarregada do aprovisionamento e das ligações. Fidel tem confiança em mim, sou ao mesmo tempo
sua confidente, sua secretária, sua intendente e sua enfermeira... Há semanas ele tem dores de
dentes que o impedem de dormir e até mesmo de pensar, como ele diz. Nós não temos nada com o
que nos tratarmos, você sabe, nos falta até mesmo papel e caneta para escrever. Fidel não pára de
reclamar, mas onde ele quer que eu encontre? Depois de algum tempo ele está de muito mau humor
e afirma que não escuta "as pessoas desmioladas que só fazem merda". Ele tem razão, a maior
parte de seus companheiros são camponeses, corajosos, mas sem bom senso. Ele sofre com a falta
de comida, de tabaco e de vinho...
- Eles se entendem bem, Ernesto e ele?
- Sim. Respeitam-se, amam-se, podem passar noites inteiras conversando sobre literatura e
comentando os escritos de Robespierre, Marx ou Lenin. O Che lê para ele poemas franceses,
bebendo mate. E de manhã eles estão tão alertas como depois de uma boa noite de repouso!
- Você acredita que eu possa fazer chegar uma carta ao meu marido para dizer a ele onde me
encontro?
- É sem dúvida possível, mas é preciso esperar que um portador vá para Havana.
- Isso vai demorar?
- Não tenho idéia.
- E meu filho, quando o verei?
- Logo, logo... Vamos, venha comigo, isso vai ocuparvocê...Vou ver as crianças cujo pai foi morto em combate.
A mãe ficou louca de dor e não cuida mais delas.
Elas passaram o dia a alimentar e cuidar dos pequenos e tentar confortar ajovem mãe. Quando voltaram ao
acampamento, os guerrilheiros também voltavam, vitoriosos. Eles tinham ido bem em sua operação do dia e
traziam o armamento tomado do inimigo.
Um deles, um rapaz de 18 anos, brandia orgulhosamente uma metralhadora. Um de seus companheiros mais
velho a arrancou de sua mão: o rapaz se irritou.
- Ela é minha!
- Guajiro, você é muito novo para possuir uma arma destas, não saberá nem mesmo usá-la!
Camilo Cienfuegos havia assistido à cena.
- Devolva a ele - ordenou. - Foi ele e não você quem a tirou dos militares. Ele arriscou sua vida, éjusto que fique
com ela. Guajiro, pode guardar sua arma.
- Obrigado, Camilo.
- Se todos nossos rapazes fossem tão hábeis quanto este para recuperar o armamento, nós não mais
precisaríamos das armas de Huber Matos - considerou Fidel. - Na última operação foi ele, não foi, quem
arrastou seu colega morto até as cercanias do campo sem abandonar a metralhadora que ficou para ele?
- Sim, foi ele.
- Você já aprendeu a usá-la?
- Já se tornou um de nossos melhores atiradores. É inteligente; Che decidiu ensiná-lo a ler.
- Como ele se chama?
- Dariel Alarcón Ramírez, mas aqui todos o chamam de Benigno.
- Léa!
Todos se viraram. Um garoto usando uniforme correu na direção dela levando uma metralhadora.
- Charles!
Eles caíram nos braços um do outro. Uma barba nascente o tornava parecido com seus companheiros e seus
olhos tinham um brilho que ela não conhecia.
- Que bom ver você aqui... Encontrei Carmen, você sabe. Obrigado, obrigado mil vezes: sem você talvez eu
nunca mais a visse novamente.
Eles instalaram-se em uma rocha um pouco afastada, a fim de poderem se aproximar de novo.
O jantar, naquela noite, foi servido com um pouco menos de frugalidade do que o normal; compunha-se de
uma carne de cavalo cozida e arroz regado a rum. Depois da refeição, acenderam-se charutos de fabricação
local. Iluminados por um lampião, Fidel e Ernesto começaram uma partida de xadrez, enquanto Alfredo, que
havia conseguido um violão, começou a cantar. Abrindo as garrafas, esfregando as mãos, os guerrilheiros o
acompanhavam. Em seguida, Ramón entoou um canto da revolução espanhola, no que foi acompanhado por
Camilo. Na claridade daquela noite fria onde o fogo fazia dançar sombras misteriosas, estes homens e estas
mulheres que haviam escolhido lutar pela liberdade esqueceram, no espaço de um canto, de uma baforada ou
de um copo, os sofrimentos enfrentados, assim como a ausência de seus companheiros desaparecidos.
Ernesto e Fidel haviam suspendido sua partida e contemplavam, com um vago sorriso nos lábios, sua pequena
comunidade. Os olhos de Ernesto cruzaram-se com os de Léa. O olhar do Che, pensativo, revia o jovem corpo
que, naquela época, estava tão totalmente entregue, e pelo qual, ele se dava conta, ele estava então
apaixonado. O tempo não havia passado para ela, estava ainda mais bonita atualmente, ainda mais desejável.
Seu marido deveria ser muito louco para abandonar uma mulher como ela... Com freqüência ele voltava a
pensar nela durante o curso de seus périplos através do continente sul-americano em companhia de Alberto
Granado. Ela
surgia durante uma leitura, no encontro com uma jovem, no esboço de um sorriso, no pranto de uma
criança ou até mesmo na incursão da morte. Considerando-a ali, tão natural entre estes insurgidos,
próxima e distante ao mesmo tempo, o rosto iluminado pela intermitência das chamas, fumando
calmamente um charuto e tragando tão bem quanto ele a fumaça, soube que havia se unido a uma
parte de si mesmo ao encontrar-se com esta alma irmã.
- Fale-me dela - pediu Fidel interrompendo seu sonho.
Então Guevara contou a ele o que sabia de Léa, de seus combates, o que havia pressentido de seus
sofrimentos, de sua coragem e de sua fragilidade, da perseguição de criminosos nazistas que ela
havia conduzido até a América do Sul e de seu sofrimento com a morte de sua amiga Sarah. Mas
ele também falou do amor dela pela felicidade e de seus acessos de alegria depois do desespero.
- Você fala como um apaixonado...
O argentino não negou.
Charles adaptou-se rapidamente à dura vida da Sierra. Ele participava com bom humor dos
treinamentos, confirmava-se um excelente atirador, revelando-se forte, bom companheiro e alegre
camarada. Desde que foi integrado à tropa comandada por Camilo Cienfuegos, Charles passou a ter
por seu chefe uma devoção quase semelhante à que nutria por Fidel Castro. Mas tal afeição e tal
familiaridade, que seriam fora de propósito com Fidel, aproximavam-no de seu novo ídolo. De seu
lado, Benigno havia se tomado de amizade por este jovem francês que, na ausência de Che, o tinha
substituído dando-lhe aulas de leitura e escrita iniciadas pelo argentino. Charles havia deixado
crescer barba e cabelos.
- Veja só, você está mais cubano do que um cubano! - brincava gentilmente Camilo.
Foi uma satisfação para ele ter encontrado Carlos Franqui e Faustino Pérez. Ele ajudava Franqui a
preparar as emissões que difundia naRadio-Reloj. Quanto a Léa, ela passava do abatimento
profundo às excessivas exaltações. As poucas notícias que
chegavam da França e da Argélia até o seio da Sierra eram alarmantes. Ela tinha escrito para François,
poucos dias depois de sua chegada, uma carta que um membro do 26 de Julho tinha podido
enviar à embaixada da França. O embaixador acusou a recepção, e em seguida a enviou para a
Europa.
Meu amor
Se um dia receber esta carta, saberá que estou como há quinze anos. Encontro-me não nas
organizações de resistência armada de Gironde, mas naquelas que abriga a Sierra cubana.
Charles, Carmen eRamón me acompanham e se sentem aqui como peixes na água
- embora não seja aforma ideal de falar de água entre estas montanhas: é rara e nos obriga
a usá-la com parcimônia. A sujeira tornou-se nossa melhorproteção contra a agressão dos
mosquitos. Isso não parece perturbar nem um pouco os guerrilheiros. E nem mesmo
Charles! Como você imagina, não éo meu caso.
Encontrei o jovem estudante de medicina deBuenosAires, Ernesto Guevara, que todos aqui
chamam de el Che. Ele formou-se em medicina mas todos aquitêm medo de serem tratados
porele... Ele casou- se com uma peruana com a qual tem uma filha pequena, o que não o
impede de viver uma aventura com uma bela mulata filha de um ferreiro. É muito ligado a
Fidel Castro, que lhe pede opiniões com freqüência e com o qualjoga partidas de xadrez ou
fala de literatura. Isso me faz lembrar de outros centros de resistência armada, como os
Vietminh, onde honoráveis professores discorriam sobre Victor Hugo, Racine ou La
Fontaine entre dois assaltos. O Che tem aqui um outro amigo com o qual adora rir e
brincar É um havanês de 25, 26 anos, que seus homens adoram e cuja coragem beira a
inconsciência. É ofilho de um anarquista espanhol e, aparentemente, leva tudo na
brincadeira. Charles está sob suas ordens, porque nosso filho tornou-se um guerrilheiro
dedicado. Quanto a mim, o tempo parece-me longo, sinto falta de você e das crianças.
Ajudo Celia Sánchez, uma amiga de Fidel Castro, e as outras mulheres, mas estas tarefas
subalternas me são dolorosas. O Che me emprestou os poemas
de José Martí que é ídolo de todos; já decorei os verws para passar o tempo:
Las campanas, ei Sol, ei cicio claro
Me lienan de tristeza, y en los ojos
Lievo un dolor que todo ei mundo mira
Un rebelde doior que ei verso rompe
Y es, oh mar! La gaviota pasaj era
Que rumbo a Cuba va sobre tus das!
Também aprendi poemas de Nico lás Guillén: gosto muito deste, Canción de cuna para despertar
a un negrito:
Una paloma
Cantando pasa:
- Upa, mi negro,
que ei sol abrasa!
Ya nadie duerme,
Ni está en su casa:
Ni ei cocodrilo,
Ni la yaguaza,
Ni ia culebra,
Ni la torcaza...
Coco, cacao,
Cacho, cachaza,
Upa, mi negro,
Que ei sol abrasa!
Quando voltar, creio que tentarei traduzira poesia cubana.
François, você não acha absurda a vida que levamos?Aqui estou eu, perdida no fundo
desta ilha que eu acreditava paradisíaca! Se tivesse forças para n,; debocharia de mim
mesma, de meu desejo de exotismo, longe de qualquer fuzil e de qualquer ideologia. Vim
então aos antípodes para reencontrar os combates que não são os meus em companhia de
um garoto e de um velho revolucionário que escapou miraculosamente da Espanha e que
aprende o oficio com dedicação, voltando às ilusões de sua juventude! Quanto a mim,
minhas ilusões se foram há muito tempo... Quando os escuto conversar; Ramón, Fidel, Che
ou Camilo, tenho vontade de gritar para eles que não passam de imbecis, que sua Revolução
fracassará como as outras, que eles ali deixaram seus sonhos, talvez suas vidas, que se
sobreviverem vão se tornar velhos barrigudos sedentos de poder; de bens ou de dinheiro,
que eles perderão esta liberdade pela qual eles tanto lutam! Se algum dia você tiver estas
páginas nas mãos, deve sorrir ainda mais se você também se encontrarem algum centro de
resistência armada perguntando-se o que pode fazer ali. Eu o conheço, é a ação que faz
você avançar mas, nos momentos de repouso, você duvida, diz a si mesmo: "O que raios
vim fazer aqui?"
É quase noite e não vejo mais nada. Responda-me se puder passando pela embaixada da
França; mesmo se levar tempo, eles encontrarão uma forma de me fazer chegara carta.
Estou com saudades, Amo você,
Léa.
Até este dia, nenhuma resposta havia chegado a ela.
Naquela noite, Léa, que não conseguia dormir, afastou-se um pouco do campo e sentou-se ao pé
de uma grande árvore. Ficou enrolada em uma coberta e contemplava o mar brilhando sob a lua.
Já estava cochilando quando o aroma muito açucarado do tabaco americano a desperta. Perto
dela, o fumante a observava.
- Você tem um cigarro? - pergunta ela.
Ele estendeu-lhe um maço amassado. A luz dos fósforos ela reconheceu Camilo. Eles fumaram em
silêncio. Ele apagou enfim sua guimba e aproximou-se de Léa.
- Você não está com frio?
- Sim, um pouco.
Ele a tomou em seus braços e a abraçou docemente. Ele cheirava bem, apesar do perfume com o
qual havia se aspergido. Ela pôs o rosto no pescoço dele, ele a enlaçou. Ela se deixou levar quando
ele levantou a saia sob a qual estava nua. Ela gemeu um pouco quando a mão dele encontrou sua
nudez; ele a acariciou sem pressa e sem que ela se opusesse, abandonada, flexível. Ela não o ajudou
a abrir suas calças, porque adorava aquele tipo de espera. Quando ele a penetrou, ela sentiu-se
reconciliada, em harmonia com esta terra sobre a qual ele a segurava, e o céu, acima deles, estendia
sem fim seu véu estrelado. Aquele primeiro abraço foi longo; eles gozavam um com o outro sem se
desprender, reconhecidos pelo prazer oferecido, pelo prazer recebido. Dormiram assim enlaçados.
O frio da manhã os despertou; eles se olharam felizes, maravilhados por experimentarem tanta
alegria um como outro. Ele fez- lhe amor mais uma vez, lentamente, atento ao seu prazer. De mãos
dadas eles voltaram ao campo que despertava. Léa encontrou seu saco de dormir na choupana que
dividia com Celia Sánchez e caiu imediatamente em um sono profundo.
- A vida não lhe parece muito dura entre nós? - inquietou- se uma noite Fidel Castro.
O dia havia sido difícil para os rebeldes. Eles haviam escapado de um ataque dos soldados de
Batista, mas três deles tinham sido mortos. Os homens estavam de volta, tristes, arrasados. O rosto
preocupado de Fidel logo afastou-se. Léa o tinha acompanhado, inquieta por não ver Ramón entre
os insurgidos de volta. Fidel a tranqüilizou: o espanhol havia ficado para trás a fim de enterrar os
companheiros mortos.
- Dura? Não sei - questionava-se Léa como resposta. - É claro, sofro um pouco com a falta de
conforto mas, sobretudo, a ausência dos meus me pesa e eu me preocupo por estar sem notícias
deles.
- Você as terá logo, eu acredito; a embaixada da França nos disse que há mensagens para você.
- Quando as receberei?
- Um dos nossos está a caminho...
- Observei que você lê muito - disse Léa, um pouco mais serena.
- Sim, é verdade... Na prisão, os livros me ajudaram a viver. Gosto muito da literatura francesa; ela é
incomparável em todas as áreas, incluindo evidentemente a literatura social e política. Com Jean-
Christophe, de Romain Rolland, senti a mesma coisa do que quando li Os miseráveis, de Victor
Hugo; gostaria que o livro jamais terminasse. Eles pertencem a épocas diferentes e é muito normal
que Rolland nos entusiasme mais, porque é um homem dos nossos tempos e sua pluma defendeu as
maiores causas do século. Rolland pertence ao mesmo grupo ideológico que José Ingenieros, H.C.
Wells, Maxime Gorki e outros prosadores sedentos de justiça. Tenho uma certa preferência pelos
romances do russo DostoYevski, sem contestar o mais extraordinário de todos os escritores russos.
Li com alegria Os irmãos Karamazov,Humilhados e ofendidos, Crime e Castigo, O idiota.
Leva-me a pensar nos limites estreitos do nosso saber, à imensidão do caminho percorrido pela
inteligência do homem graças a esforços seculares. A própria relatividade de todas as convicções é
suficiente para me afligir. Quanta energia foi necessária para o progresso da humanidade! E, nisso
tudo, não paro de me perguntar se vale a pena consagrar meu tempo a tais estudos, se me é útil para
combater as calamidades presentes. Mas, de qualquer forma, podemos apenas sentir uma profunda
veneração com relação a estes homens que dedicaram sua vida inteira a pensar, a procurar, que
deixaram ao gênero humano a fabulosa herança de suas idéias. O que acha de Robespierre?
Robespierre foi idealista
e honesto até a sua morte. São os Robespierre que são necessários a Cuba, muitos Robespierre...
- EoTerror?
- O Terror? Eram necessários, estes poucos meses de Terror para chegar ao fim de um terror
secular! Mira disse: "Passado o momento em que os mais radicais balançam suas bandeiras e levam
a revolução ao seu ponto culminante, a maré começa a descer." Na França, esta etapa começa
precisamente com a ruína de Robespierre. "A Revolução, como Saturno, devora seus próprios
filhos", diz um deles. Talvez eu possa, mais tarde, explicar melhor tudo isso. Já reli ultimamente
passagens do livro de Lenin, O Estado e a Revolução, e os de Marx, O Brumário de Louis
Bonaparte eAguerra civil na França. Estes três escritos têm entre eles relações muito estreitas e
seu valor é incalculável. Sou daqueles que pensam que, em uma revolução, os princípios valem mais
do que os canhões.
Este monólogo lembrava a Léa os propósitos que havia lhe feito lo Chi Minh em sua cabeceira
quando, no centro de resistência do Tonkin, ela permaneceu por muito tempo doente. A esta
francesa à qual ele testemunhava estima, Ho falava como se a si mesmo, como hoje Fidel, de suas
leituras, de sua fé na Revolução. Dois homens pertencentes a duas culturas ligadas pela cultura
francesa, pelo amor à literatura do país dos Direitos do Homem, e que sua certeza de um combate
necessário para a liberação de seus povos fazia reunir-se.
Em seus momentos de descanso, Guevara também lia em sua tenda, à luz de um lampião, esticado
em seu saco de dormir. Com freqüência, Léa ia reunir-se a ele. Juntos eles evocavam Paris, os
escritores que amavam. Ele aplicava-se em falar-lhe em francês com um sotaque que a fazia rir.
Uma noite, ela surpreendeu-o com as sobrancelhas franzidas, inclinado sobre um romance francês
que, visivelmente, ele tinha dificuldade em compreender.
- O que você está lendo? - perguntou ela.
- Livretos que Franqui encontrou em um banco do aeroporto de Miami: San Antonio. Você conhece?
- De nome... François o adora e diverte-se com freqüência lendo.
- Não é o meu caso, não compreendo nem a metade do que ele escreve. Diria que ele inventa as
palavras. E o tempo todo faz alusões a escritos e lugares dos quais jamais ouvi falar.
Desta vez, Léa caiu na gargalhada.
- É gíria, ou, ao menos se compreendi bem, uma espécie de gíria bem característica dele.
- Como Cabrera Infante, aqui? Se você não é cubano, perde, me parece, a metade do prazer ao lê-
lo... Como por exemplo, anotei: "munhecar"... "emperrador"... "perturbante"... "paixonite"...
"reninhar" ... "guardaf olha"... aqui, espere, imagino que seja uma carteira, porque ele coloca dinheiro
dentro... Aqui também, acho que compreendo: "Eu enfio-raivosamente-meu-chapéu-em-voltade-
meu-cfrculo-polar-e-eu-o-coloco..." Bem, por que você está rindo como uma louca?
A hilaridade de Léa era tão forte que ela não era capaz de articular uma única palavra. A cada vez
que levantava os olhos para Ernesto, seu riso louco retornava mais belo, enquanto ele estava com
um ar envergonhado. Atraídos por esta barulhenta alegria, Charles, Ramón e Camilo penetraram sob
a tenda e gargalharam ao espetáculo de divertimento tão comunicativo da jovem mulher. Violeta,
Alfredo, Fidel e Franqui também se aproximaram intrigados. Logo todo o acampamento foi tomado
pelo riso. Ao observar seus amigos sacudirem as costas e alguns rostos tomados de lágrimas, o Che,
até então sério, foi levado pela alegria geral.
Fidel, que havia se deixado cair perto de Léa, perguntou entre duas risadas:
- Mas o que pode divertir vocês desta maneira?
Foi necessário um momento para que Léa recuperasse o fôlego e começasse a falar sem deixar de
rir.
- É Ernesto... é Ernesto com San Antonio...
- Quem é este? - perguntou Fidel.
-É...é...
Ela não pôde continuar, retomada pela jubilação coletiva.
- Acalmem-se! - ordenou Ramón. - O Che está passando mal...
Na verdade, o riso incontido que sacudia Ernesto havia se transformado em uma violenta crise de
asma. Bruscamente séria, Léa ajuda Ramón e Camilo a acomodar seu camarada. Celia Sánchez
encontrou seu pó de Dyspné-Inhal e ajudou-o a usá-lo. Pouco a pouco a sufocação se atenuou e o
assobio que acompanhava sua respiração diminuiu. Guevara permaneceu por um longo momento
imóvel, uma das mãos pousadas sobre o peito molhado de suor, tentando recuperar o fôlego, o rosto
vermelho, os traços brutalmente tensos. Léa, desamparada, o observava, dolorosamente
impressionada. A felicidade trazida por aquele riso homérico que havia sacudido dezenas de peitos
de rebeldes e ressoado em toda a Sierra havia se apagado. No entanto, durante longo tempo, ele
permaneceria nas memórias.
Percebendo a inquietude que marcava o semblante de Léa, Che fez-lhe sinal para que se
aproximasse.
- Não é nada... Isso me acontece com freqüência, você sabe... Não é culpa sua... Tome, leve este
livro, você me fará a tradução... Vou descansar, agora.
Ela apanha o livro: "Das clientes ao necrotério, isso certamente vai me distrair", pensou ela
afastando-se.

Capítulo Doze

DESDE SUA CHEGADA A PARIS, François Tavernier havia se encontrado com Jean Sainteny e
Pierre Mendès France por duas vezes. A cada vez, os encontros haviam se prolongado até tarde da
noite. Mendès France dizia-se inquieto com as manobras subterrâneas do general De Gaulle.
- Ele vai nos trazer os militares - grunhiu ele.
Sainteny não partilhava sua opinião. Para ele apenas o general se encontrava capaz de conter o
exército e de garantir as liberdades democráticas. Estas conversações pareciam fora de propósito a
Tavernier, que se abria sem meandros a Mendès France.
- Pode ser que você tenha razão - havia retorquido este. - Mas convém ser vigilante e assegurar-se
das posições daqueles que podem ser conduzidos ao poder nos próximos meses ou semanas.
Foi neste clima de suspeita que ele recebeu a ordem do general De Gaulie para apresentar-se na rua
de Solférino.
As quinze horas precisamente, François entrou no bureau de ajuda de campo do general, para falar
com o coronel Bonneval, que lhe pareceu preocupado. O coronel o levou até seu chefe. A peça
estava banhada em uma semi-obscuridade; vestido com um terno cinza, De Gaulle, que acabara de
operar catarata, estava na sombra, ainda não podendo suportar a luz crua do dia. As persianas
estavam puxadas e uma única e fraca lâmpada iluminava um canto do escritório.
- Bom dia, Tavernier - acolheu-o o general, estendendo-lhe a mão.
Com um gesto, ele o convidou a sentar-se. Em seguida ele sentou- se novamente atrás de sua mesa
de trabalho e acendeu um cigarro.
- Enfim, aí está você! Você levou algum tempo...! Os acontecimentos dos próximos dias serão
capitais para a França. Preciso de homens como você, corajosos e determinados, que não
pertençam a nenhum partido político, sem ambições políticas... Não estou enganado, estou?...
Guardo na memória o sucesso da missão que lhe confiei, no fim da guerra, na União Soviética.
Aceitei que Jacques Chaban-Delmas constituísse em Alger um posto de observação, composto por
Léon Delbecque, o secretário da federação do norte dos republicanos sociais, pelo comandante Jean
Pouget - que você conhece, creio eu - e por Guy Ribeaud, o líder das juventudes republicanas sociais.
Você vai reunir-se a eles, mas não dê conta de sua missão a ninguém a não ser Jacques Foccart e
apenas a ele. Compreendeu-me bem?
- Sim, meu general.
- Vá... Como está a charmosa sra. Tavernier?... Apresente-lhe minhas homenagens... Você em
breve receberá instruções quanto à data e às condições de sua partida... Até logo, Tavernier.
François se encontrou diante do número 5 da rua de Solférino, sem saber exatamente o que o
grande homem queria dele.
Dois dias depois, ele foi levado a um almoço no Boisserie, em companhia de Jacques Foccart. Eles
levaram três horas para chegar a Colombey, um vilarejo sem graça de quinhentos a seiscentos
habitantes. Eles entraram no Boisserie por um portal ornado com duas cabeças de cavalo em
bronze verde. "Uma aléia sinuante através
de um grande jardim os conduziu a uma casa cinza que deveria ter sido bem elegante antes que o
general lhe acrescentasse uma torre angulosa que destoava e a fazia parecer nouveau riche. Um
empregado os levou em seguida a um salão forrado de tecido verde com móveis pesados de madeira
de estilo meio rústico, meio antigo. Ali respiravam-se as virtudes das famílias burguesas da
província. Os móveis iam do Luís XV ao Napoleão III precoce e ao Regency, uma reunião ao acaso
das heranças, dos presentes de casamento, das necessidades davida de guarnição. A sala de jantar
e o pequeno salão constituíam a 'sala de estar' onde se desenrolava a vida comum." Durante a
refeição, a sra. De Gaulle mal pronunciou uma palavra, exceto para reclamar com Louise, a
cozinheira, sob o pretexto de que o boeufbourguignon estava muito salgado...
- Mas tudo bem, Yvonne, está muito bom assim, nós beberemos um copo a mais e pronto.
Depois do café que eles tomaram entre os homens, na sala pequena, fumando bons charutos, eles
seguiram para a torre onde o general havia instalado seu gabinete de trabalho. Não fazia muito calor
no cômodo, organizado em volta de um grande móvel Empire de madeira escura, acoplado de uma
escrivaninha na qual, assegurava o general, Luís XVI fazia anteriormente os despachos de seus
embaixadores. As paredes eram cobertas de livros de Michelet, Thiers, Voltaire ou Bergson, e
ornadas de algumas fotografias dedicadas por Roosevelt, Tchang Kai-chek, Thierry d'Argenlieu...
- Aqui estão os lugares onde eu redijo minhas memórias e para onde me retiro, longe dos furores do
mundo... Estas memórias me dão um trabalho enorme para escrevê-las e verificar todos os
elementos históricos, ao menor detalhe. Não é o que faz Churchill, que se contenta em juntar pouco a
pouco um monte de coisas... Vamos, isso não lhes diz respeito... Tavernier, você parte amanhã para
Alger: devo saber precisamente qual é o estado de espírito dos franceses daArgélia, o dos
muçulmanos e o do exército. Você compreende, o poder não pode ser tomado, ele deve ser
conquistado...
Tenho toda a confiança na equipe de Chaban, mas ele é muito gaulista para ser perfeitamente
objetivo. Você terá um olhar novo sobre os homens e os acontecimentos. Além do mais, você
conhece o general Salan e nós sabemos que ele o estima. Aproxime-se dele, sonde-o, ele pode ser
útil em um próximo momento.
- O senhor está me propondo fazer um jogo duplo, meu general?
- Chame-o como quiser... Posso contar com você?
- O senhor pode, meu general.
François não pôde evitar uma certa ironia ao formular sua resposta. Ele deu-se conta, pelo olhar do
general, que isso o havia azedado, embora nada fizesse para demonstrá-lo. Rapidamente, ele deu fim
ao encontro.
No caminho de volta, Foccart e ele não chegaram a trocar nem dez palavras.
No dia seguinte, François Tavernier pegou o avião no aeroporto de Bourget em companhia de Léon
Delbecque, conselheiro técnico no governo de Chaban-Delmas. Delbecque, filho de um operário do
norte e antigo resistente, tinha 38 anos. Era um homem aberto, de ombros largos, de conversa fácil,
e que às vezes dava a impressão de uma violência contida. Seus olhos com olheiras, profundamente
acinzentados, atenuavam esta presunção. Imediatamente os dois homens experimentaram uma
vívida simpatia um pelo outro. Delbecque, para responder ao chamado de Chaban-Delmas, havia
abandonado seu cargo de diretor comercial junto a um industrial de Lyon, Eugêne Motte, gaulista de
primeira. ATavernier ele fez um "resumo" breve e preciso sobre a situação na Argélia onde havia
servido sob as ordens do general de La Bollardière, no comando dos "boinas negras".
- Estou oficialmente encarregado por Chaban de criar em Alger um posto da defesa nacional com o
objetivo de facilitar as relações entre Paris e Alger. "Eu implanto, na rua d'Isly, uma pequena célula
de republicanos sociais. Não apenas para fazer progredir este movimento gaulista na Argélia. Antes
de tudo para
estimular os outros partidos e agrupamentos, fazê-los sair de sua letargia.
Porque, para mim, a
guerra psicológica se ganha sobretudo por trás, com os civis. Na Argélia, a situação militar é
favorável; é a situação política que se degrada... Razão suficiente para criar um movimento
disciplinado e unânime, cuja vontade de vencer causará impressão na metrópole. Abalar o regime é
uma coisa, encontrar um homem de substituição é outra. Não se monta um negócio como este sobre
um simples projeto de Constituição. É preciso um homem que faça a unanimidade, mostre-o a mim;
eu me reunirei! Quero reunir todo mundo, assim como os partidos tradicionais da IV República, e os
ativistas que vendem os partidos. Pela primeira vez, todas as organizações patrióticas, políticas
sindicais, incluindo a CGT, poujadistas, estudantes, se reagrupam e aceitam seguir diretrizes comuns.
É o embrião do futuro Comitê de saúde pública." Acabei de encontrar um oficial que conhece bem
o exército e que aceita instruir o Comitê. Este oficial é o comandante Jean Pouget... Na verdade,
você esteve na Indochina e em Dien Bien Phu, você talvez o conheça?
- Muito bem. É um homem excepcional, corajoso e inteligente. Na época, ele tinha alguns problemas
com os oficiais do estado-maior, que ele tratava de "emboscados". Ele surpreendeu todo mundo
atirando-se de pára-quedas sobre Dien Bien Phu. Ele pagou caro por este ato de heroísmo ou de
loucura, como quisermos: passou momentos difíceis no famoso Campo número um... Quando saiu de
lá, magro como um lobo, doente, Pouget estava muito decidido ajamais se deixar prender e a refletir
a respeito da guerra revolucionária... Fico feliz em poder trabalhar com ele.
Desde a chegada deles, Delbecque e Tavernier foram conduzidos ao bairro residencial de Alger, ao
El-Biar, onde o posto havia alugado uma casa discreta. Pouget os esperava ali em companhia do
comandante Khelifa, que se encontrava em liberdade condicional, sob a responsabilidade de Pouget.
Khelifa havia sido preso por ter enviado uma carta ao presidente da República na qual, com outros
oficiais argelinos, ele abria sua crise de consciência. Os dois homens
estavam convencidos de que apenas uma igualdade total entre europeus e muçulmanos poderia
salvar a Argélia francesa. Jean Pouget lhes colocou a par dos contatos estabelecidos com jovens
oficiais, especialistas da guerra psicológica, e das relações que havia
estabelecido com Michel
Goussault, chefe do Quinto Bureau, que possuía "um irmão deputado e um irmão jesuíta, e que era
uma magnífica síntese dos dois".
- De seu lado - continuou Pouget -, Guy Ribeaud formou dois grupos de notáveis, advogados, médicos,
prefeitos de argelinos, que ele reúne para jantares de reflexão aos quais os muçulmanos não estão
ausentes. O coronel Thomazo nos foi de grande utilidade:
ele conhece todo mundo. Alguns destes encontros de Ribeaud acontecem na casa de Nouvion.
"trata-se de uma grande e bela residência, na extremidade da sacada Saint-Raphaël, que domina a
baía de Alger e de onde se tem uma vista magnífica. Lá reúne-se o círculo supermundano da
cidade. Simone Nouvion realiza ali seu sonho:
animar um salão político. Encontram-se ali Alain de Sérigny, o generalJouhaud, Cuttoli, Delaye,
diretor-adjunto do Banco daArgélia, os Quin, uma grande família argelina, e ainda outros. Neste
salão, de propriedade de Ben-Koucha, em meio às ruínas romanas, os homens do posto
desenvolvem tesouros de imaginação para levar a alta sociedade argelina e aqueles que têm nas
mãos o comando do país ao gaulismo ativo. E não é um trabalho fácil, porque a Argélia aristocrática
se tornou petainista e, para muitos, De Gaulle é sua ovelha negra. Mas o número está
excelentemente no ponto e nós nos completamos perfeitamente. Se Delbecque e Ribaud são os
gaulistas de hoje, eu o sou apenas por força dos acontecimentos. E para lhes dar uma idéia do
ambiente, Chaban veio em pessoa aAlger para nos apresentar ao ministro residente, Robert Lacaste,
que nos recebeu com estas palavras: "Vocês e seus pequenos companheiros me causam sérios
problemas!" "Não compreendo, caro amigo", respondeu-lhe Chaban, "vocês estão intoxicados por
suas informações gerais!" "Mas sim, é isso... Vocês estão tirando sarro com a minha cara, mas eu
seio que estão preparando!", retorquiu Lacaste...
Depois, a queda do governo Gaillard acelerou as coisas - continuou Pouget. - Foi-nos dada ordem, de
Paris, de preparar uma manifestação com o objetivo de levar De Gaulie ao poder. Veja o trato que
nós preparamos para chamar a população de Alger a se manifestar. Leia!
Tavernier apanhou o pedaço de papel:
Para manter a Argélia francesa, para impedir qualquer ingerência estrangeira, para
restaurar a grandeza da França, nós exigimos um governo de saúde pública, apenas capaz
de fazer respeitar seus objetivos e reformar o sistema! Todos às 16 horas e 30 minutos no
Monumento aos Mortos onde um buquê será depositado. Às 16 horas e 30, a manifestação
será dispersada dentro da ordem e do silêncio.
- Thomazo - continuou Pouget - conseguiu de seu chefe direto, o general Allard, que o estado não se
oponha à manifestação. De seu lado, Salan, para contrariar esta demonstração de força, fez vir da
França os antigos de Rhin-et-Danube e, sobretudo, os antigos da Indochina. Lacoste tentou obter de
Chaban nossa expulsão de Alger, em vão. Ele se prepara para proibir o desfile. Soube por um de
meus amigos que alguns grupos extremistas europeus vão aproveitar a reunião para arrebentar em
alguns bairros muçulmanos, em particular no Clos-Salembier. Já consegui os nomes de seis
principais organizadores e mandei procurá-los um por um por dois pára-quedistas em um jipe.
Desconfio também da polícia de Lacaste e pedi a um colega de Prosper Mayer, que é o comandante
do l RCP, que me empreste uma seção de páraquedistas de seu regimento; é contra todas as regras,
mas Mayer aceitou.
- Bravo, Pouget! - gritou Delbecque. - Mas eu preciso deixálos; tenho um encontro na casa dos
Nouvion.
- Amoroso, eu espero! - brincou Pouget.
- Nunca se sabe... - soltou Delbecque com um meio sorriso.
A sós, Tavernier e Pouget olharam-se com cumplicidade.
- Não acreditava que veria você novamente com tanto prazer
- começou Pouget, com uma voz forte na qual persistia o sotaque de sua Correze.
François sorriu para aquele homem de cabelos grisalhos e ombros largos, uma bela figura, que
possuía um senso agudo de honra e não fazia nada que não viesse de sua cabeça. "Um cabeça-
dura", dizia-se dele no estado-maior.
- Eu também me sinto feliz - respondeu François, estendendo-lhe a mão.
Eles permaneceram por um momento imóveis, as mãos apertadas, olhos nos olhos. Pouget, primeiro,
soltou os dedos.
- Não é momento para nos emocionarmos... Você estará logo bem inteirado do assunto: tenho, no
aposento ao lado, seis caras que estão esperando em pé há mais de uma hora. Com Khelifa, vamos
fazê-los falar... Você não estará sobrando.
três pára-quedistas empurraram os homens para o escritório. Pouget atacou:
- "Sei que vocês vão sábado ao Clos-Salembier, todos excitados, para arre bentar..."
- Oh! Meu comandante, não é poss...
- Cale-se! Tenho minhas fontes. E você sabe bem, entre nós, o quanto valem as informações...
Desde a batalha de Alger, as roupas de leopardo dos páraquedistas impressionaram todo o mundo.
Quanto a aqueles, seria melhor tê-los como amigos que como inimigos... Pouget continuou:
- Vou dizer-lhes de imediato: se vocês forem atirar óleo ao fogo no Clos-Salembier ou nas cercanias,
não é a polícia de vocês que irá enfrentá-los, mas estes pára-quedistas que vocês tanto aclamaram
quando eles caçaram o árabe sujo. Desta vez, são vocês que vão apanhar a golpes de cassetete. E
se isso não for suficiente, vamos metralhá-los!
- Mas eu juro ao senhor, meu comandante, que tudo isso é
- Não interessa, vocês estão avisados. Saiam!
Alguns dias mais tarde, chegou uma notícia à casa de El-Biar:
Robert Lacoste, louco de raiva, apressava-se a enviar a polícia para prender Delbecque e Tavernier.
Três capitães dos pára-quedistas e Jean Pouget levaram-nos imediatamente até o aeroporto e os
observaram entrar no avião rumo a Paris. Quando os policiais se apresentaram na casa, foram
recebidos pelos pára-quedistas, com metralhadoras nas mãos.
- Estão procurando alguém? - perguntaram eles.
Jacques Foccart em pessoa esperava os dois homens na parte de baixo da passarela. Durante o
trajeto em direção a Paris, ele ouviu o resumo que lhe fez Léon Delbecque, balançando a cabeça em
sinal de aprovação. Ele o levou até seu edifício.
- Até amanhã, quinze horas, rua de Solférino - despediu-se
ele.
O automóvel partiu, e logo corria pelos quarteirões a toda velocidade.
- Agora, você e eu - retomou Foccart.
Tavernier traçou-lhe um retrato tão exato quanto possível da situação em Alger. Ele insistiu sobre o
perigo que representava o grupo fascista dos "Sete", cujos membros lhe pareciam prontos para tudo,
esperando a hora certa, e sobre a indisposição que reinava no exército assim como sobre as dúvidas
que nutriam os generais.
- Você viu o general Salan? O que achou?
- Encontrei-me com Salan, ele recebeu-me longamente e me pôs a par de suas preocupações.
- Ele lhe pareceu em forma, em posse de todos os seus meios?
- Muito em forma e bastante determinado a assumir suas responsabilidades de chefe dos exércitos.
- E sua equipe?
- Pessoas corajosas... talvez um pouco deprimidas pelos acontecimentos.
- Você acha que, chegado o momento, ele se unirá a nós?
- é provável, mas não tenho certeza. Ele está muito chocado pelas manobras às quais entregam-se
alguns gaulistas. Estas são suas próprias palavras. É um republicano convicto e fará o que seu
governo lhe ordenar.
- E Lacoste?
- Ele não se acalma.
- Bem... vou pôr o general De Gaulle a par de nossa conversa. é possível que peça para vê-lo, esteja
pronto... Onde você está hospedado?
- No hotel Lutétia.
De volta a seu quarto, François preparou um banho e pediu à telefonista que ligasse para a
embaixada da França em Havana. Era Léon Delbecque que estava do outro lado da linha:
- Você está livre para o jantar?... Bom, então vá ao Lipp em uma hora; quero apresentar-lhe um
novo companheiro.
Uma chuva fina caía sobre Paris e os pedestres se apressavam. A rua de Rennes estava com
veículos militares estacionados. Um clima de suspeita reinava na capital, os olhares fugiam, os
jornais eram arrancados das bancas desde sua chegada e abertos rapidamente ao abrigo da primeira
porta de garagem que surgia. François estava de mau humor; ele não havia conseguido ligação para
Havana... Onde Léa estava? Esta noite, sua ausência lhe doía mais do que nunca.
No Lipp, numerosas personalidades estavam de pé esperando uma mesa; a sala estava lotada. A
direita, François Mitterrand estava instalado em companhia de uma jovem e de um advogado com o
qual Tavernier se lembrava ter tido negócios: Roland Dumas. Não longe deles, a romancista
Françoise Sagan ria às gargalhadas das brincadeiras de Jacques Chazot...
Léon Delbecque veio ao seu encontro:
- Venha, tenho uma mesa no fundo, onde ficaremos mais tranqüilos... Aqui está a multidão das
grandes noites!
Roger Cazes, o dono do célebre restaurante, afastou ele mesmo a mesa para permitir que Tavernier
se sentasse.
- Já faz um bom tempo que o senhor não aparece, sr. Tavernier. Como está sua esposa?
- Bem, obrigado...
- Tavernier, eu lhe apresento Lucien Neuwirth, herói da resistência...
- Por favor, não precisa...
- Você é, e isso não é vergonha... Lucien Neuwirth reúne-se à célula. Vocês voltarão juntos para a
Argélia onde vão se reassegurar de uma questão essencial: o acordo dos generais de Alger em
nome de De Gaulie. Fiquem prontos para partir amanhã à noite. Eu me encontrarei com vocês
assim que possível.
O jantar desenrolou-se em uma atmosfera muito agradável. Os três homens falaram livremente de
seu passado e do general De Gaulle, que viam como a única muralha contra a anarquia e o
fascismo.
- Você está tão certo do acordo do general? - perguntou Tavernier.
- Tive um longo encontro com ele, na rua de Solférino, no último 8 de março, e coloquei-o a par de
nossos preparativos, dizendo- lhe: "Meu general... e se, por um acaso das circunstâncias,
terminarmos por fazer um apelo a De Gaulie...?" Ele então me deu esta resposta que não
esquecerei jamais: "Delbecque! Você já viu o general De Gaulle abandonar o que quer que seja,
sobretudo uma parcela do território? Tudo depende de quando, como e em que momento. Se eu
devo voltar aos negócios, como reencontrarei este país? Estes departamentos? Mas não é questão
para De Gaulle abandonar o que quer que seja..." Eu continuei: "Meu general, se acontecer alguma
coisa? Se nós criarmos um acontecimento? Se fizermos um apelo ao senhor? Que sejam as
populações da Argélia, incluindo os muçulmanos, ou que seja o exército, o senhor se recusaria avir
como mediador?" Durante todo este tempo ele não parou de balançar a cabeça. "Tudo depende da
forma com a qual as coisas se
apresentam, continua ele. "Em uma situação difícil, você pode estar certo de que responderei. Mas,
Delbecque, você disse 'como mediador'. Não sou um mediador! Você não vê De Gaulie como
'mediador' entre uma constituição que você conhece, uma guerra que o sistema não sabe
terminar e deputados que são apanhados pelo pescoço. Se devo voltar, se me fizerem um apelo,
bom, eu ficarei à frente dos negócios do país..." Era claro e preciso. Então eu lhe falei dos
"engajamentos" que nós estamos fazendo em relação às populações, em nossos ateliês e de
nossos encontros, com o programa de reforma das instituições, do apelo a De Gaulle e de
salvaguarda da Argélia... Ele estava inteiramente de acordo sobre a forma como nós
procedemos. Até mesmo lhe revelei que tinha um encontro com Michel Debré que havia falado
de um governo de "salvaguarda nacional", e ele me confiou: "Sim, é uma boa expressão." Mas
quando quis entrar em detalhes e expor a ele que, para preparar o comitê de saúde pública que
lhe pediria ajuda, eu iria criar um "comitê de vigilância", senti que ele ainda não estava pronto. Ele
concluiu: "Faça o melhor" e levantou-se. A conversa tinha durado menos de uma hora. Então ele
me tomou pelos ombros: "Eu te desejo coragem. Cuidado, porque, se for muito longe, pode
encontrar um touro (é uma palavra dele) pela frente! Mantenha-me informado. E mantenha
contato com Foccart. Se tudo começar a acontecer, é preciso que o contato seja muito preciso,
muito justo, porque tenho de estar a par do que se passa."
No dia seguinte, à noite, Neuwirth e Tavernier voaram para Alger.
No dia 26 de abril, chovia. Pouget, em veste camuflada, estava pronto. Seu colega Prosper
Mayer havia efetivamente colocado à sua disposição várias seções do l RCP. As catorze horas,
jovens europeus começaram ajogar pedras contra as casas muçulmanas do ClosSalembier.
Imediatamente, Pouget deu ordem aos pára-quedistas de "lançar-se contra o meio da pilha". Sob
o olhar estupefato de muçulmanos, os militares "acompanharam" a pontapés nas nádegas
os jovens fascistas que não compreendiam mais nada. Em todos os bairros de Alger, muçulmanos dirigiam-se
com as famílias para o Monumento aos Mortos. Grupos de antigos combatentes, levando suas condecorações,
portavam suas bandeiras e bandeirolas sobre as quais podia-se ler: "Na falta de governo, o Exército no poder!"
Um terceiro cortejo reuniu-se a eles, o dos estudantes e universitários, conduzido por Pierre Lagailiarde.'
Diante da Universidade, ele assumiu a frente de três cortejos que desfilavam aos gritos de 'Argélia francesa!",
rapidamente cobertos pelos de "Abaixo o sistema!", "Contra o sistema!". Chegando ao monumento dos
mortos e depois de terem depositado buquês, Auguste Arnould, piloto da Air Argélia, chefe do comitê de
entendimento dos antigos combatentes e grande habitué das manifestações, apanhou um megafone e dirigiu-
se à multidão:
- "Meus amigos, levantemos a mão direita e prestemos juramento de permanecermos franceses para sempre e
de responder a cada vez que, em circunstâncias análogas, um apelo semelhante nos for lançado."
Todas as mãos se levantaram: "Nós juramos!", gritaram milhares de vozes.
Pouco a pouco os manifestantes afastaram-se, europeus e muçulmanos misturados, alguns até mesmo
trocando algumas palavras...
Pouget e seus companheiros felicitaram-se pelo sucesso da confraternização de mais de trinta mil pessoas.
'Pierre Lagailiarde: advogado, dirigente da associação dos estudantes, subtenente páraquedista que participou da
expedição de Suez e da batalha da Argélia, número um do "Grupo dos Sete" que milita em favor da Argélia
francesa. Robert Marte!: vinicultor, chefe da UFNA, defensor do Ocidente cristão, preso depois da descoberta,
em sua casa, de membros de seu grupo torturando muçulmanos que eles suspeitavam pertencerem a FLN.
Maurice Crespin: seu braço direito, O doutorBernardLefèvre: discípulo, como Joseph Ortiz, de Charles Maurras,
petainista que conserva pela pessoa do marechal uma profunda veneração. RogerGoutailier: dono de um
célebre restaurante, leRelais. Joseph Ottiz:
poujadista, dono de um restaurante perto do fórum. M°. Bailie: advogado em Alger, falastrão... que nutre uma
certa predileção pelas canções do corpo de guarda. Todos os sete querem derrubar a república e estabelecer
em seu lugar um regime autoritário e corporatista. "Estes homens têm o gosto do complô, da ação e da teoria
revolucionária da extrema direita."
Robert Lacoste havia partido de Alger louco de raiva. No entanto, antes de partir, o ministro
residente havia "esvaziado a sacola" e todos os generais o haviam repreendido veementemente. O
velho militante da SF10 não tinha partido de mãos vazias. Ele não se esqueceria rapidamente das
caras de Salan, AlIard, Jouhaud e Auboyneau quando havia protestado:
- Então, justo agora que vocês podem fazer qualquer coisa, vão aceitar o Dien Bien Phu diplomático
que se prepara?! O que estão esperando para dizer ao Estado que não agüentam mais a situação?
Pouco antes, Alain de Sérigny, dono do Echo d'Alger havia tentado lhe arrancar um papel pelo qual
ele "chamava De GaulIe ao socorro". Lacoste havia prometido, depois recusou; ele só tinha uma
pressa: afastar-se dovespeiro argelino; seu fracasso era total.A alguns instantes de seu embarque,
ele soube que três soldados franceses, prisioneiros da FLN, haviam sido fuzilados na Tunísia. Todos
os movimentos patrióticos, todas as associações de ex-combatentes haviam imediatamente apelado
para uma outra manifestação diante do Monumento aos Mortos, no dia 13 de maio de 1958 às
dezesseis horas. O general Massu, que havia acompanhado Lacoste ao aeroporto, ainda tentou detê-
lo:
- Fique conosco. Se o senhor partir, não haverá mais poder político, mais nada além do exército!
No último momento, o ministro residente havia proibido a manifestação prevista para o 13 de maio.
Há alguns dias, um vento pesado vindo do deserto colocava os nervos à flor da pele. Todo mundo
estava tenso à espera do agrupamento proibido por Lacoste, mas autorizado por Salan. "A rua tinha
a expressão dos dias ruins." A maioria das lojas só havia aberto suas grades até a metade. Nos
escritórios, predominavam os questionamentos quanto à situação do que se falava de trabalho. O
início da greve geral havia sido fixado para as treze horas. Na rua de Isly, Léon Delbecque, vindo de
Paris sem Jacques Sousteile, fazia o ponto com suas tropas.
- O objetivo desta reunião é, vocês todos sabem, reclamar um governo de salvaguarda nacional
presidido pelo general De Gaulie...
o encontro foi marcado para o início da tarde diante dos locais do jornal militarLeBled, no boulevard
Laferrière, a dois passos do Monumento aos Mortos.
Eles chegavam de todos os lados: de Belcourt pela rua de Lyon e pelo bulevar Baudin, de Bab-el-
Oued pela rua d'Isly e pela frente do mar, de El-Biar pelo GG2... Terminado o almoço, o povo de
Alger seguia para a manifestação com mulheres e crianças, com suas bandeiras, seu entusiasmo,
sua raiva e sua fé. Os grupos transformaram-se em cortejos e os cortejos, à aproximação da
plataforma de Glières, sobre a grande avenida Laferrière, vinham se misturar à multidão barulhenta
e colorida, salpicada de manchas vivas, camisas claras ou vestidos berrantes, e por todo lado, no fim
das rampas, esta bandeira de três cores pela qual acreditava-se ter vindo lutar. Todos os elementos
da decoração haviam desaparecido, submersos:
gramados, jardins, traçados de ruas... A cidade inteira estava em marcha. Jovens percorriam em
motocicleta as vias arteriais onde ainda se conseguia dirigir, brandindo as bandeiras e gritando:
"Argélia francesa!" O céu era de um azul brilhante e uma pequena brisa que subia do mar havia
substituído o khamsin soprando do deserto.
Alto-falantes chamavam para o ajuntamento: "A Argélia pode ser liquidada de um momento para o
outro. Lá, nesta Paris de um outro mundo, o parlamento apronta-se para se reunir e investir em um
governo de abandono." Lagailiarde, com o uniforme de leopardo, estava pendurado sobre o
Monumento aos Mortos e, agarrado aos poilus3 esculpidos na pedra, agitava a multidão:
- Vocês estão prontos para lutar pela Argélia francesa?
Um clamor gigantesco respondeu-lhe.
- Vocês estão prontos para deixar sacrificar nossa Argélia?
- Uuu! Uuu! Uuu! - gritava a multidão.
- O povo exige um governo de salvaguarda da nação... Vocês estão prontos a abandonar a Argélia?
- Não! - clamava a população branca de Alger.
AMarseiliaise explodiu.
Nos alto-falantes, perceberam-se os tiros, escutaram-se as explosões; os pára-quedistas afastavam
os estudantes.
Delbecque havia sido apanhado pela manobra de Lagailiarde. Ele convocou o estado-maior da célula
à casa de El-Biar.
Na avenida Pasteur, os carros conduzindo os generais ao Monumento aos Mortos tentavam forçar
passagem entre a multidão:
impossível. Os oficiais desceram. À frente, o general Salan, impecável em seu uniforme deverão, o
peito coberto de condecorações, avançava lentamente, seguido do general Jouhaud e do almirante
Auboyneau em um grande uniforme branco. Atrás, o general Massu em uniforme camuflado, a
boina vermelha abaixada sobre a orelha esquerda. Salan, habitualmente pálido, estava escarlate,
eJouhaud, de ordinário corado, havia empalidecido. Massu, como de hábito, mantinha uma expressão
descontente. Uma imensa ovação os saudou:
- Viva o exército!... O exército no poder!... Viva Massu!
Salan depositou um buquê de rosas, reanimou a chama, fez acenos durante um minuto de silêncio.
Com dificuldade, os oficiais generais conseguiram voltar para seus veículos, enquanto Lagaillarde
gritava:
- Em frente! Todos ao governo geral! Contra este sistema podre, sigam-me!
A multidão obedeceu e seguiu, como uma irrepreensível maré, ao assalto do GG. As granadas de
gás lacrimogênio não tiveram efeito sobre ela, que seguiu sobre as grades, e um caminhão militar
que conduzia um manifestante foi jogado contra o portão principal; a multidão entrou gritando.
Pedras voaram, fazendo estourar as janelas de vidro. E, quando os oficiais se recusaram a obedecer
às ordens do coronel Trinquier, os pára-quedistas desapareceram, como se absorvidos pela massa
de manifestantes. Em centenas, eles
invadiram o governo geral, precipitando-se de encontro a janelas, escrivaninhas e móveis, e puseram
fogo na biblioteca aos gritos de 'Argélia francesa!", "o exército no poder!".
No grande escritório do primeiro andar, Maisonneuve, o diretor de gabinete de Lacoste, que assumia
suas funções em caso de ausência, tentava encontrá-lo em Paris:
- É... é um levante, senhor ministro. Os pára-quedistas e a multidão estão por todo lado... Devemos
atirar neles, senhor ministro?
- Não, não! - gritou Lacoste, que se encontrava no escritório de Félix Gaillard. - Onde está Salan?
- Estamos procurando por ele, senhor ministro...
Lagaillarde, que acabava de entrar no escritório de Maisonneuve cercado de seus tenentes, também
procurava o general para dar- lhe o poder. Massu aparece por sua vez, maxilares apertados, o
pescoço ainda mais torto do que o normal. Lá fora, a multidão gritava:
- Viva Massu!... Massu no poder!...
Ele se dirigiu para as roupas camufladas.
- Virem-se para mim, todos estes agitadores!
Em direção a Lagailiarde que aproximava-se saudando-o, ele gritou:
- O que você está fazendo neste uniforme?
Enfim, Salan entrou. Foi empurrado imediatamente para a varanda: ele deveria anunciar alguma
coisa à multidão. O general avançou na direção das grades de proteção. Os argelinos o
reconheceram e começaram:
"- Uuu! Uuu!... Salan, traidor!... Salan, franco-maçom!... Salan, indochinês!... Vá embora, podre!...
Viva Massu!... O exército no poder!... Abaixo Salan!...
O comandante-em-chefe recuou e, lívido, observou um Massu estupefato que, perturbado, virou-se.
Os capitães Marion e Angels esforçaram-se para persuadi-lo a aparecer novamente. No escritório
vizinho, para onde Salan havia se retirado, Maisonneuve tentava explicar a Félix Gaillard e a Lacoste
a situação na qual se
encontrava: Massu era o único capaz de fazer a multidão voltar à razão. "Então que o faça!" Naquele
instante apenas, Salan percebeu a presença de Tavernier.
- Você chegou bem tarde - lançou-lhe o velho "indochinês", convidando-o a entrar em seu escritório.
- É preciso que me informe do que se passa aqui, meu general. Posso dizer que tudo isso é ao
menos.. confuso!
- A que acha que isso pode levar?
François Tavernier refletiu por alguns instantes.
- Difícil de dizer... Muitas tendências e partidos em formação... Estamos à beira de uma explosão.
Parece que apenas o general De Gaulie pode nos ajudar a ver as coisas mais claras...
- De Gaulie! Sempre De Gaulle!... Tenho a impressão de que é ele quem puxa os cordões de tudo
isso... Mas não sem riscos. Há perigo de manipulação pelos grupos extremistas. Aqui é um
verdadeiro cesto de caranguejos, e em Paris não vai muito melhor. Você acha realmente que De
Gaulle seja o homem da situação?
- Parece-me que sim.
- O que então ele está esperando para se manifestar?
- Ele quer sem dúvida certificar-se do apoio do exército, mas não quer ser levado ao poder por um
golpe armado. Se voltar aos negócios, será dentro da legalidade.
- Está certo disso?
- Ao menos foi o que ele me disse...
O general Salan dirigiu-lhe um olhar de suspeita.
- Você se encontrou com o general?
- Sim, na rua Solférino e em Colombey... Ele estava muito preocupado com o seu acordo.
- Ah, bom! - disse Salan com ar satisfeito.
- Sim, ele não fará nada sem sua aprovação nem a dos generais.
- Eu respondo pelo exército e por meus oficiais, mas.., como estar certo de que o general De Gaulie
se engajará em favor da Argélia francesa?
- A Argélia não é parte integrante da França?
- Certo, mas alguns suspeitam que eu a queira liquidar.., como a Indochina, dizem eles!
- Os dados não são os mesmos. Sobre o plano militar, você tem a situação bem nas mãos e a
população de origem européia é mais numerosa aqui. No entanto...
- No entanto?
- Como estar seguro da integração das populações muçulmanas na Argélia francesa? A FLN é
poderosa, é apoiada pela maior parte dos países árabes e pela opinião mundial. Estes movimentos de
liberação, este desejo de independência, nós já vimos onde tudo isso nos levou na Indochina...
- Sim, mas, como vocês mesmos observaram, a situação é bem diferente.
- Será realmente? A juventude muçulmana da Argélia sonha com a igualdade, o reconhecimento, ela
desconfia da integração. Para ela, é apenas uma palavra que os europeus são os únicos a
empregar...
- O que eu devo fazer, segundo você?
- Desconfiar, de início, das tendências fascistas que aparecem aqui e ali. Lembre-se em seguida de
que é unicamente na legalidade que deve-se chamar o general De Gaulle.
- A legalidade... Sim, é claro!
A noite caiu sobre o Fórum enquanto a multidão, espalhada pela esplanada coberta de fragmentos,
ainda gritava seus slogans, iluminada apenas pela luz do luar; os lampiões haviam sido quebrados a
pedradas desde o início da manifestação. Só se distinguia a brancura quase fosforescente das
camisas na bruma do mar.
François Tavernier e Léon Delbecque, o "enviado de Jacques Soustelie", foram levados ao
escritório de Maisonneuve. As discussões recomeçaram. Enfim chegou-se a um acordo a respeito
do texto a ser enviado ao general De Gaulle. Massu o assinou e foi à sacada anunciar aos trinta mil
manifestantes:
"Nós fazemos um apelo aogeneralDe Gaulle, o único capaz de assumira frente de um
governo de salvaguarda nacional, acima de todos os partidos, para assegurara perenidade
daArgélia francesa, parte integrante da França."
Eram 23 horas e 45 minutos.
Em Matignon, Félix Gaillard havia reunido um conselho inter- ministerial, em ligação com Pierre
Pflimlin, que acabara de ser levado à presidência do Conselho. A fim de impedir que não se
generalizasse e não se reforçasse o movimento de Alger, havia sido dada uma ordem de cortar as
comunicações telefônicas e telegráficas entre a Argélia e a metrópole. Todos os vôos com destino a
Alger haviam sido suspensos.
Na cidade branca, havia uma agitação em torno do general Salan. O general Petit, do estado-maior
do general Ely, chefe das forças armadas, reputado por sua integridade, conversava com ele.
- Meu general - disse Léon Delbecque, dirigindo-se a Massu
-, enquanto esperamos a chegada de Soustelle, é preciso constituir um comitê de salvaguarda
nacional e exigir de Paris um governo de salvaguarda nacional.
Massu consultou Salan com os olhos.
- Continuemos - disse Massu. - Quem colocaremos em seu comitê?
- Aqueles que estão aqui - respondeu Lagaillarde. - E, é claro, meu general, o senhor será o
presidente.
Massu começa a estabelecer a lista:
O Comitê de Salvaguarda Nacional do dia 13 de maio de 1958 emAlger si: generalMassu;
si: tenente-coronel 7Jinquier si: tenente- coronel Ducasse; si: coronel Thomazo; si: Auguste
Arnould, piloto; si: André Baudier comerciante ao HLM; si: Mohamed Berkani, contador;
si: Tazeb Chikh, agricultor; si: Maurice Coulondre; si: Léon Delbec que, conselheiro
técnico da Defesa nacional; si: René Denis;
si: ClaudeDumont; si:ArmandFroment; si: Josephjolivet; si: Pierre Lagailiarde; si: Jean
Lalane; si: Jacques Lasuière; si: Bernard Lefevre; si: JeanLhostis; si: MohandSaïdiMadani;
si: Saci Madhi; si: RobertMartel; si: Claude Martin; si: Jacques Merlot; si: Gabriel
Montigny; si: PaulMoreau; si: MauriceMouchant; si: RogerMuiler; si: EdgarNazare; si:
Lucien Neuwirth; si: Rodolphe Parachini; si:
Armand Ferrou; si: André Prost; si: André Regard; si: Marcel Schambill; si: Alain de
Sérigny; si: François Tavernier; si: Armand Vacher; si: René Vinciguerra.
Quando terminaram de copiar a lista, o general Salan a assinou. A noite havia caído. Era preciso
então redigir um primeiro comunicado que seria lido em seguida para a multidão por Massu. As três
horas da manhã, ele voltou à sacada, onde foi freneticamente aclamado.
- "Nós comunicamos à população de Alger que o governo de renúncia de Pflimlin acaba de ser eleito
por 273 votos contra 124 pela cumplicidade dos votos comunistas. Nós exprimimos nosso
reconhecimento à população que permaneceu aqui para receber Jacques Soustelle. Jacques
Soustelle, por duas vezes, foi impedido de vir se reunir a nós. Uma terceira vez, ele conseguiu ficar
em segurança e nós esperamos que esteja conosco durante o dia. O comitê pede ao general De
Gaulle que rompa o silêncio dirigindo- se ao país em vista da formação de um governo de
salvaguarda nacional que, sozinho, pode salvar a Argélia do abandono e, assim, de um Dien Bien
Phu diplomático evocado por diversas vezes por Robert Lacoste. Em qualquer estado de causa, o
comitê de salvaguarda nacional, que representa a população, continua a assegurar a união entre o
povo e o exército, que assume o poder até a vitória final. Esperando Jacques Soustelie, o bureau do
Comitê é constituído pelo general Massu, o sr. Delbecque, delegado por sr. Soustelie, sr. Madani e
sr. Lagaillarde. Nós decretamos a partir de agora a mobilização de todas as energias francesas ao
serviço da pátria e pedimos que estejam prontos a responder ao primeiro apelo lançado pelo Comitê
de Salvaguarda Nacional. Estamos orgulhosos de poder provar ao mundo que o povo de Alger soube
fazer a perfeita demonstração da fraternidade total entre as populações francesas européia e
muçulmana, unidas sob a bandeira francesa."
O fim da noite foi calmo. Lentamente, a multidão deixou o Fórum.
O dia que se levantava sobre Alger tingia a cidade branca de nuances delicadas, do rosa ao azul
nacarado. Uma leve bruma subia do mar, anunciando um dia tórrido. Garrafas de cerveja, papéis
velhos e pedras cobriam a esplanada. Desde as nove horas, palavras de ordem corriam pela cidade:
"Todos ao Fórum! A greve geral começa!" As dez horas, os blindados surgiram, com o coronel
Thomazo à frente das manobras, e fez colocar as máquinas nos cruzamentos estratégicos. A
multidão dirigia-se, numerosa, para o Fórum sob um sol escaldante.
Ajornada, no entanto, desenrolou-se sem desordens. Coronéis entravam e saíam do Governo Geral,
levando instruções contraditórias. Léon Delbecque passava comunicação sobre comunicação a
Paris para tentar convencer Sousteile a vir. Em seu escritório, o general Salan aguardava a
continuação dos acontecimentos, pedindo a Tavernier conselhos que este tinha dificuldades de dar,
tal era a confusão que reinava por todo lado. Enquanto o general Massu respondia às perguntas dos
jornalistas, Paul Teitgen, secretário geral da chefatura de polícia, que acabara de chegar de Paris, foi
levado a Salan por quatro pára-quedistas. Quando ele entrou na sala do general, Alain de Sérigny,
delegado do Comitê de Salvaguarda Nacional, encontrava-se ao seu lado.
- Se tocarem em um de seus fios de cabelo, será assunto meu
- declarou-lhe o proprietário do Écho d'Alger.
- Dane-se - retorquiu Teitgen, louco de ódio. - Já fui praticamente preso pelos elementos que você é
incapaz de controlar!
- É inadmissível! - gritou o "Chinês". - Volte para casa!
Salan lhe deu as costas e voltou a mergulhar em seus papéis.
Deixando o local, Teitgen cruzou com Massu, que apenas fez-
lhe um breve sinal com a cabeça. Quando o general chegou, ele recebeu uma comunicação de
Paris.
- "O que é esta história, Massu? Um golpe de estado?" - vociferava no telefone Robert Lacoste.
- "Não, senhor ministro, não é um golpe de estado. Constituiu-se um comitê para provar à
Assembléia que a Argélia quer permanecer francesa. É preciso controlar a multidão."
- "Eu compreendo que você tente seduzir a manifestação para controlá-la, mas é inconcebível,
Massu, ouviu bem, inconcebível que você participe de uma organização revolucionária!"
- "Mas trata-se de controlar e parar a agitação: até porque eu não posso atirar na multidão..."
Tarde da noite, as mensagens deste gênero continuaram sendo trocadas entre Paris e Alger. A
multidão havia se retirado e a cidade dormia.
Neste 13 de maio, dia da Ascensão, uma grande multidão, desertando as praias e os piqueniques à
sombra dos guarda-sóis, havia voltado a reunir-se. Os cabelos brancos cuidadosamente penteados, o
uniforme impecável, o general Salan veio felicitar o Comitê de Salvaguarda Nacional.
- É preciso que você se dirija à multidão - disse-lhe Léon Delbecque.
- Certo, já vou.
Delbecque o precedeu na sacada e anunciou aos milhares de manifestantes que o general Salan iria
falar-lhes.
- Viva Salan!... Viva a Argélia francesa!...
- 'Argelinos e argelinas, meus amigos. Logo de início, saibam que sou um de vocês, já que meu filho
está enterrado no cemitério do Clos-Salembier. Eu não poderia jamais esquecê-lo, já que ele é esta
guerra que é a de vocês. Há dezoito meses, eu faço a guerra com osfellaghas; eu a continuarei e
nós a ganharemos. O que vocês acabam de fazer, mostrando à França sua determinação de
permanecerem franceses por qualquer custo, provará ao mundo inteiro
que, sempre e por todos os lados, a Argélia salvará a França. Todos os muçulmanos nos
acompanham. Antes de ontem, em Biskra, sete mil muçulmanos foram levar buquês ao Monumento
aos Mortos para honrar a memória de nossos três soldados fuzilados em território tunisiano. Meus
amigos, a ação que foi levada aqui trouxe para perto de vocês todos os muçulmanos deste país.
Agora, para todos nós aqui, o único termo é a vitória com este exército que vocês nunca deixaram
de apoiar e que ama vocês. Com os generais que me cercam, o general Jouhaud, o general Allard, o
general Massu que, aqui, livrou vocês dos fellaghas, nós ganharemos porque merecemos e porque
este éo caminho sagrado para a grandeza da França... Viva a França!... Viva a Argélia francesa!"
A multidão, conquistada, repetiu: "Viva a França!... Viva a Argélia francesa!" Salan fez uma
saudação com a mão e saiu. Seus olhos cruzaram-se com os de Tavernier, que o fitava com
insistência. O general então retomou o microfone.
- E viva De Gaulle!
- Viva De Gaulle!... Viva De Gaulle!... - gritou a multidão.
Em uma só voz foi entoada a Marseiliaise.
O grupo havia vencido. O responsável pelo poder civil e militar, o representante oficial da Argélia,
acabara de fazer um apelo, na presença de milhares de testemunhas, ao general.
- Bravo! - disse Delbecque, aproximando-se de Tavernier.
- Nós vencemos.
Na mesma noite, Charles de Gaulie enviou, de Colombey, o seguinte comunicado:
A desintegração do Estado leva infalivelmente ao afastamento dos povos associados, a
perturbação do exército ao combate, a
desarticulação nacional, aperda da independência. Há doze anos,
a França, no combate com problemas muito rudes para o regime
dos partidos, está engajada em um processo desastroso. Outrora
o país, em suas profundezas, confiou-me para conduzi-lo até a
salvação. Atualmente, diante das provas que surgem novamente diante dele, que ele saiba
que estou pronto a assumir os poderes da República.
Notícias contraditórias circulavam em todos os sentidos. Entre outras, a de que Lagailiarde havia
tomado a Rádio-Alger. O coronel Godard pediu imediatamente confirmação, e em seguida
destacou dois esquadrões de policiais motorizados a fim de assegurar a proteção da estação.
Lucien Neuwirth, um grande revólver na cintura, obteve do general Massu que lhe confiasse a
direção da rádio. Enquanto isso, Godiveau, proprietário da Radio-Alger, não parava de pedir
socorro: "Eles vão entrar e tomar o microfone!" Massu então designou Trinquier para enviar uma
companhia para liberar o imóvel. Lagailiarde, que havia interceptado a ordem, ordenou a dois
homenzarrões do Comitê de salvaguarda nacional que o acompanhem até a companhia e
assumam o controle da estação apesar da proteção oferecida pelos pára-quedistas. Mas
Neuwirth havia assistido a toda a manobra. Ele foi rapidamente prevenir Pouget que, por sua vez,
alertou o capitão Grazziani. No local, Grazziani se acertou com o capitão encarregado de
expulsar os agitadores e apenas os pára-quedistas teriam o direito de penetrar nos locais.
Neuwirth acabara de marcar um ponto sobre Lagaillarde. Ele havia colaborado na rádio de
Londres e recordava-se das notas da melodia que anunciava o início das transmissões na direção
da França ocupada. Ele procedeu da mesma forma e, por intermédio da rádio, lançou este apelo:
"Que todos os motoristas toquem a buzinadas as notas seguintes: 'tatata tata, tatata tata!" Logo
toda a cidade de Alger ressoava ao som do famoso "tatata tata!" que significava 'Argélia
francesa". Em seguida, Neuwirth orientou os emissores em direção da metrópole. Rapidamente,
em Paris, podia-se ouvir as ovações reservadas pela multidão ao discurso retransmitido do
general Massu e do general Salan, em seguida o nome de Sousteile aclamado logo depois do
general De Gaulle, o
pontuado de "tatata tata", destinado a tornar-se o sinal das reuniões dos extremistas.
No dia seguinte, ainda restava uma medida a ser tomada: era preciso mostrar a Paris que era toda a
Argélia, europeus e muçulmanos juntos, que reclamava a volta do general De Gaulle. A noite, o
coronel Trinquier, o coronel Godard, o capitão Léger e Sirvin - este capitão que falava
indiferentemente o francês e o árabe - atravessavam o Casbah e todos os outros bairros
muçulmanos, discutindo com os chefes dos pequenos vilarejos que ainda relutavam. Muitos tinham
medo dos franceses, mas foram tranqüilizados:
- "Não recuem, haverá os azuis e os militares, vocês devem tomar parte desta revolução, vocês
devem exigir seu lugar nesta Argélia que está começando a ser criada diante de vocês e pela qual
De Gaulle será o responsável!"
O nome de De Gauile fazia milagres, os muçulmanos tinham confiança nele. Eles desceram em
milhares, com mulheres e crianças, levando cartazes que diziam: "Comitê de Salvaguarda Nacional
de Casbah", "Nós somos franceses!", "Nós queremos permanecer franceses!", "Integração" etc. O
cortejo seguiu pela rua de Isly em direção ao Fórum. Fazia muito calor. A multidão muçulmana
reuniu-se à européia e misturou-se a ela. Em determinado momento, sentiu-se uma viva tensão.
Depois o milagre se produziu: mãos se estenderam, braços enlaçaram-se, chorava-se, ria-se...
Terminadas as batidas, as bombas nos cafés ou nos cinemas.., éramos todos irmãos! Entre os
quarenta mil europeus e os trinta mil muçulmanos havia a efusão, a reconciliação. Com uma só voz
eles cantaram a Marcillieise.
Enfim, Sousteile chegou. Entre Salan e ele as coisas no entanto não se apresentavam sob os
melhores auspícios. De imediato irritado pelos "Viva Soustelle!", "Sousteile conosco!", que ouvia-se
em toda parte, o "Mandarim" recusou-se a passar-lhe os assuntos civis.
- Eu assumo aqui todos os poderes e está fora de questão que eu possa delegar a mínima parte!
Os policiais motorizados.
De comum acordo com Salan, Sousteile propôs então um plano que obteve a aprovação do
representante da República. Tratava- se, para o antigo governo, de "estruturar a revolução do 13 de
maio de forma que o sistema se convença de que ele não tinha nenhuma chance de retomar o
comando; criar comitês de salvaguarda nacional em toda a Argélia; exaltar a fraternização; informar
à metrópole e ao estrangeiro que em nenhum momento a revolução havia sido um golpe armado
fascista..."
Alguns ainda sonhavam em tomar o poder através das armas. Um plano batizado "Ressurreição"
havia sido concebido tanto em Paris quanto em Alger. Os pára-quedistas foram colocados em
estado de alerta. Estava previsto que os dois regimentos pára-quedistas vindos de Alger, o 1° e o 30
RCP reforçados por dois outros, habitualmente baseados em Toulouse e em Bayonne, seriam
lançados sobre Paris e seus subúrbios na noite do dia 27 para 28 de maio. O regimento de blindados
estacionado em Saint-Germain-en-Laye viria a seu encontro para reforço. Os guardas motorizados,
os CRS e a polícia deveriam em seguida enfileirar-se ao lado deles. Na capital, já se viam os
tanques e os carros blindados tomando posição perto do palácio do Elysée, da Câmara dos
Deputados e do palácio do Luxembourg. Tanto as pontes assim como as entradas da cidade também
estavam guardadas. Reinava na cidade uma atmosfera de estado de sítio. O café, o óleo e o açúcar
começaram a faltar; os parisienses guardavam provisões. Nas ruas trocavam-se olhares taciturnos,
carregados de suspeitas. Nunca o velho slogan "As paredes têm ouvidos" estivera tão presente no
espírito de cada um. Esperava-se o pior, mas o pior não aconteceu, graças a um comunicado
difundido pelo general De Gaulle: "Eu espero das forças terrestres, navais e aéreas presentes na
Argélia que permaneçam exemplares sob as ordens de seus chefes." A operação "Ressurreição"
havia errado o alvo.
A posição do capitão Pouget era cada vez mais claramente afastada. Por aspirar a nada menos que
uma verdadeira revolução, em que muçulmanos e europeus realmente tomassem seus destinos
em suas mãos, ele começava a incomodar. No entanto não se ousava atirá-lo na prisão. Ele foi
apenas designado para a residência na vila de El-Biar. Mais ninguém o ouvia; era tomado por um
louco perigoso, já que conservava amigos entre os jovens pára-quedistas e talvez assim entre os três
co-presidentes do Comitê de Salvaguarda Nacional: Jacques Chevaflier, o prefeito deAlger,Jacques
Sousteile, que tinha a confiança dos extremistas, e Yacef Saadi, que gozava da confiança do FLN.
O coronel Godard, chefe da Segurança, ao qual Pouget havia reclamado a liberação de Saadi, lhe
havia replicado:
- Você nos enoja com seu Yacef! Salan não quer mais.
Ele, que havia enfrentado a prisão do campo vietminh número um, que havia voltado doente, os
cabelos prematuramente grisalhos, sentia-se no momento encurralado pelo tanto de "intrigas"
políticas. Ele pensava em sua vida perdida, em seus filhos que tinham crescido longe dele, e se via
forçado a renunciar a seu sonho de criar um exército popular capaz de defender uma Argélia
autenticamente liberal. Pouget voltou às fileiras, ao grande alívio dos sobreviventes da célula.
Tavernier foi o único a vê-lo afastar-se com pesar, porque ele era provavelmente o único integrante
de todo este caso a mostrar-se totalmente desinteressado.
Nos dias que se seguiram, assistiu-se a um número inacreditável de idas e voltas: emissários
políticos, ministros, generais se apressavam dentro do escritório do general Salan. Jacques Foccart,
que fez a viagem em companhia de Roger Frey, cobriu Salan de elogios e lhe garantiu que iria
reportar a De Gaulie a maneira magistral com que ele havia assumido suas responsabilidades, e
quanto o que ele fazia neste momento constituía uma ajuda preciosa ao general De Gaulie pelos dias
a seguir.
No 19 de maio, o general De Gaulle fez no hotel do Palácio de Orsay uma conferência de imprensa
que teve na Argélia um grande impacto; o Echo d'Alger a reproduziu em grandes trechos:
"O que se passa neste momento na Argélia com relação à metrópole, e na metrópole com
relação àArgélia,pode levara uma crise
nacional grave. Mas também pode ser o início de uma espécie de ressurreição. Vejam por
que o momento me pareceu tersurgido onde pode serpossível que eu seja útilainda uma vez
diretamente à França, porque sou um homem só, não me confundo com nenhum partido,
com nenhuma organização, há cinco anos não exerço nenhuma ação política, há três anos
não faço nenhuma declaração; sou um homem que não pertence a ninguém e que pertence
a todo mundo."
A pergunta: "Como o senhorjulga os acontecimentos atuais na Argélia, o levante da
população, a atitude do exército?", ele respondeu:
"Na Argélia, há uma população, tanto francesa de origem como muçulmana, que, há anos,
está envolvida na guerra, com os mortos, os atentados. E esta população constata, desde
que tal situação iniciou, que o sistema estabelecido em Paris não pode resolver seus
problemas. Ainda melhor ela viu este sistema se orientar recentemente na direção dos
'escritórios do estrangeiro Ela ouviu o homem que é meu amigo e que se encontra neste
momento como ministro daArgélia declararpublicamente: 'Nós vamos a um Dien Bien Phu
diplomático.' Como querem que, com o tempo, esta população, no estado em que se
encontra, não se revolte? E mais, ela dá neste momento um espetáculo magnifico de uma
imensa fraternidade... O exército constatou esta grande emoção popular e julgou que era
seu dever impedir que se transformasse em desordem. Ele o fez e fez bem-feito... E então,
enfim, por conseqüência, o exército não pôde se afastar e impedir-se de experimentar os
mesmos sentimentos que esta população... Eu compreendo perfeitamente bem a atitude e a
ação do comando militar na Argélia... Os generais da Argélia não são rebeldes."
À pergunta: "Que função o senhor deseja ocupar?", De Gaulle respondeu:
"Ficar à frente do governo da República."
"Mas quais procedimentos o senhor pretende adotar para seu retorno aos governo?"
"Se De Gaulle fosse levado a ser
delegado de poderes excepcionais, por uma duração excepcional, em um momento excepcional, isso não poderia
evidentemente serfeito pelos procedimentos e ritos habituais, tão habituais que todo o
mundo está esgotado."
Para Maurice Duvergei do Monde, que lhe perguntou se opoder que ele reivindicava não
arriscava pôrem risco as liberdades públicas, ele respondeu:
"Eu fiz isso? As liberdades públicas, eu as restabeleci quando elas haviam
desaparecido.Acreditam que aos 67anos eu vau começar uma carreira de ditador?"
Um outro perguntou-lhe por que ele não condenou porindisciplina os militares argelinos;
ele retorquiu com ironia:
"O governo não os denunciou. Eu, que não sou o governo, por que afaria?"
Ele terminou dizendo: "Agora, vou voltar para a minha cidade e estarei à disposição do
país."
No dia seguinte, Salan apresentou-se no balcão do governo geral e dirigiu-se nestes termos a uma
multidão já avisada do pronunciamento pelos alto-falantes em cima de caminhões:
- "Argelinas, argelinos! Durante estes dias, deste Fórum que tornou-se o ponto alto da resistência ao
abandono surgiu um intenso clamor em direção a Paris. Em um movimento unânime de fervor
patriótico, vocês criaram sua vontade violenta de construir uma Argélia francesa nova e fraternal,
marcada pela vida comum das diversas comunidades. Ontem à noite, de Paris, do próprio coração
da ilha da França, uma voz serena fez-se ouvir. O general De Gaulie disse: 'É talvez o começo de
uma espécie de ressurreição." É preciso tomar posição. Mexam-se, as coisas e os espíritos vão
rápido. Assim, aquele que, em outras horas cruciais para a pátria, soube mostrar o caminho da
salvação, afirmou publicamente, com força e sem ambigüidade, que compreendia suas angústias e
seus desejos. Alger, Oran, Constantine, os habitantes das cidades e dos douas,
aqueles das planícies e dos planaltos, os montanhistas dos djebels mais afastados, os nômades do
Saara, todos se reúnem para afirmar seu orgulho e sua vontade de serem franceses e para dizer sua
certeza de nossa vitória. De toda aArgélia francesa eleva-se um imenso grito de patriotismo e de fé.
Dez milhões de franceses decididos a permanecerem franceses dizem a ti, meu general, que tuas
palavras fizeram nascer no coração uma esperança de grandeza e de unidade nacional!"
Depois de um pesado silêncio, a multidão entoou em uma só voz o canto dos soldados da Argélia por
ocasião do desembarque em 1944 na costa do Mediterrâneo:
Somos nós os africanos que viemos de longe.
Nós viemos das colônias para defender o país;
Nós deixamos por lá nossos pais, nossos amigos
E temos no coração um indescritível ardor
Porque queremos portar orgulhosos e altaneiros
A bela bandeira de nossa França inteira...
Lágrimas corriam nos rostos entalhados de velhos soldados franceses e muçulmanos com o peito
constelado de condecorações.
François Tavernier e Léon Delbecque discordaram a respeito da Córsega. Para fazer pressão sobre
o governo, Delbecque preconizava a criação, na ilha, de comitês de salvaguarda nacional. Tavernier
não via na operação nada além de uma manobra de golpe armado.
- E então? - gritou Delbecque. - E preciso saber o que se quer! O governo tarda a fazer um apelo ao
general De Gaulle; é preciso que ele acredite que a Córsega está reunida a Alger e que a qualquer
momento a insurreição pode chegar à metrópole!
Apesar da simpatia que ele experimentava com relação a Delbecque e Neuwirth, François
Tavernier achava contestáveis seus métodos, que a seus olhos pareciam pertencer à mais pura
tradição dos movimentos fascistas. Ele sentia-se cada vez mais
desconfiado com relação aos auxiliares do general De Gaulie. "Tenho confiança
nele, mas não mais a tenho nos que o cercam. Eles estão
prontos para tudo para levá-lo ao poder, mas ele, até que ponto está
de acordo?", perguntava-se. Ele deixou então os da célula "desembarcarem"
na Córsega em companhia do coronel Thomazo, de Alain
de Sérigny e de Roger Frey, e aproveitou sua ausência para infiltrar-
se entre os clãs de extrema direita favoráveis ao retorno do general,
em seguida entre os meios da extrema esquerda.
Pascal Arrighi, deputado na Córsega, munido de uma ordem
de missão assinada pelo general Salan, havia precedido os "expedicionários"
Ele estava acompanhado do comissário de polícia
Renucci, de um funcionário argelino, Hubert Paldacci, do representant
Antoine Belgodère e do comandante Freddy Bauer, anti g
chefe dos pára-quedistas de Corte e de Calvi. A sua chegada na
ilha de Beauté, 250 pára-quedistas comandados pelo capitão Manteï
colocaram-se sob suas ordens.

Capítulo Treze

GRITOS ELEVAVAM-SE NA ENTRADA. Um grande tumulto
seguiu-se.
Ao mesmo tempo que Celia Sánchez, Léa levantou-se, intrigada, para informar-se do que se
passava. Homens em farrapos, esgotados, acabavam de chegar ao acampamento. Alguns
carregavam seus companheiros feridos, outros levavam nas costas os mais machucados. Entre eles,
Léa reconheceu imediatamente em Camilo, depois, trazido em uma maca, Charles. Sob sua barba e
a sujeira que o cobria, o rosto do jovem estava lívido.
- Ele foi ferido no ombro... perdeu muito sangue - comentou em movimento Benigno enquanto
depositava a maca com cuidado.
- Rápido! Água! - suplicou Léa, inclinando-se sobre a ferida.
- Deixe-me fazer- intimou Ernesto, afastando-a suavemente.
O gesto preciso, ele descobriu a ferida arrancando os últimos farrapos da vestimenta, limpando em
seguida a carne exposta.
- Não é nada - concluiu ele de seu exame. - A bala saiu do outro lado... Ah, ele está voltando a si.
Tudo bem, meu rapaz?
Charles ensaiou um sorriso que, quando ele tentou levantar- se, logo se transformou em uma careta.
- Não se mexa, você precisa de repouso.
Charles estava há pouco instalado em um abrigo de uma enfermaria de campo quando viu deitarem
Camilo a seu lado; o cubano havia sido atingido na coxa.
- Ele foi atingido pela bala que me era destinada - explicou o guerrilheiro apontando para Charles. -
Não pude fazer nada, ele atirou-se diante de mim... Obrigado, meu camarada!
Fidel Castro, que acabara de ser informado da chegada das tropas derrotadas, veio para saber
notícias.
- Não se preocupe - tranqüilizou-o Camilo. - Nós temos apenas feridos. Eles, de seu lado, tiveram
numerosas mortes. E além disso, nós lhes tiramos três metralhadoras e uma dezena de fuzis... O
francês lutou bem, eu até lhe devo a vida.
Camilo se restabeleceu rapidamente, porém Charles foi tomado por uma febre alta.
- Ele precisa de antibióticos - constatou Che.
- Mas onde encontrá-los? - preocupou-se Léa.
- Em la Moncada, em Santiago.
- Vou até lá - declarou Alfredo.
- Eu acompanho você - acrescentou de imediato Benigno.
- Conheço bem a cidade - disse Juan Torres. - Também vou.
Com a permissão de Camilo, eles partiram para o campo.
Dois dias depois, estavam de volta, carregados de preciosas caixas de medicamentos, mas também
de alguns charutos. Em La Plata, os três homens foram acolhidos com aclamações.
- Não foi muito difícil? - pergunta Camilo.
- Como tirar doce de criança - lançou-lhe Alfredo, gracejando.
- Está brincando! - disse Benigno. - Este cara é um verdadeiro leão. Ele sozinho forçou a porta da
caserna de Moncada e
adivinha como? Disfarçado de mulher! Se vocês tivessem visto a cara dos soldados de Batista, eles
não acreditavam em seus olhos... Na verdade, nem eu! Os militares o olhavam como se jamais
tivesse visto uma mulher. Não fizeram um gesto quando Alfredo empurrou a porta. E quando lhes
fez sinal para segui-lo, eles obedeceram como cachorrinhos. "Estou me sentindo mal, estou me
sentindo mal", repetia ele. "Preciso de um enfermeiro." Quando foi conduzido à enfermaria, tirou
sua metralhadora debaixo de suas saias e conseguiu os medicamentos necessários, e em seguida,
com uma só rajada, matou todos os presentes. Uma verdadeira carnificina! Sangue por todo lado!
Nós saímos correndo enquanto Juan, que nos esperava do lado de fora, nos dava cobertura abrindo
fogo sobre nossos perseguidores. Ele também fez um estrago!
Graças à ação dos antibióticos, a febre diminuiu. Mas Charles, enfraquecido, não conseguia ficar de
pé. Todo o tempo em que esteve acamado, Léa não abandonou sua cabeceira. Aos primeiros sinais
de melhora, ela decidiu enfim descansar um pouco, mas, no instante em que ia voltar a sua cabana,
Charles a deteve:
- Fale-me de minha mãe...
Emocionada, Léa fitou com ternura o rosto emaciado do rapaz.
- Sua mãe... - murmurou ela. - Sua mãe era a mulher mais extraordinária, a mais corajosa que já
conheci. Antes de mim, Camille engajou-se na Resistência com uma lucidez que eu jamais tive. Ela
partilhava com seu pai o sentimento de que cada um entre nós deveria combater o ocupante. Para
isso, ela estava pronta a sacrificar sua vida. Apesar de sua fragilidade, e também de seu medo, ela
cumpria as missões ao curso das quais ela provou uma grande determinação, uma abnegação sem
falhas. Numerosas vezes ela me apoiou quando eu estava a ponto de abandonar tudo... Camilie
nunca duvidou da vitória. Ela aspirava viver em um mundo em paz, mais justo, mais humano. Jamais
ela duvidou do bom fundamento de nosso combate. Quando sua mãe morreu e eu levei você, ferido,
acreditei que nunca teria forças para substituí-la junto a você. Mas sem dúvida ela deve velar por
nós, porque foi ela que me deu a energia que
me foi preciso para continuar, apesar de tudo. E creio que sofri mais com o desaparecimento dela do
que com o de meus pais. Ainda que muito diferentes, Camilie e eu, nós éramos muito próximas uma
da outra. Ela me conhecia melhor do que eu mesma e tinha por mim uma indulgência, uma amizade
que nunca foram abaladas. Hoje ela se sentiria orgulhosa de você. Você se parece muito com ela:
você vai até o fim no que acredita ser justo. Você é o digno filho de sua mãe!
- E é a você que devo isso, Léa.
- Obrigada por me dizer isso, mas não posso acreditar. Eu criei você com todo o amor do qual fui
capaz, tentei substituí-la junto a você mas, se consegui isso, foi graças à lembrança dela... Ela
continua a me fazer tanta falta!
Eles permaneceram por um longo tempo imóveis, silenciosos, de mãos dadas. A fadiga enfim tomou
conta de Charles e ele dormiu com um sorriso.
Esgotada, Léa voltou ao abrigo e estendeu-se em seu saco de dormir. Os olhos fechados, ela reviu o
doce rosto de Camille, escutou sua voz... Ela se mexeu dentro do saco de dormir, tentando encontrar
a impressão dos lábios de seu marido correndo sobre seu corpo. Suspirou... Decididamente, ele
estava tão longe! Os lábios, no entanto, pousavam em seu pescoço. Ela entreabriu os olhos:
Camilo sorria junto dela. Ela estremeceu. Levantou-se e ofereceu- lhe a boca. Eles trocaram um
beijo brutal que lhes recordou a violência do desejo de ambos. Camilo a ergueu e a levou para a
gruta onde eles haviam feito seu refúgio amoroso. Lá eles se despiram com gestos impacientes,
depois atiraram-se um contra o outro. Seus corpos nadando escorregavam, tomavam-se, afastavam-
se com ruídos de sucção. Seus sexos doloridos procurando- se, eles se cavalgaram furiosamente
com gritos de sofrimento e de prazer. Com alegria e volúpia, eles rolaram fora de sua rude cama até
a entrada da gruta. As pontas dos gravetos os arranhavam, redobrando seu prazer. Quando
tombaram, esgotados,
corria sangue aqui e ali sobre a pele de ambos. Apaziguados, eles adormeceram sem se afastarem.
Quando voltaram, havia uma grande efervescência no campo de La Plata.
- Fidel pede a todos os comandantes para reunirem-se a ele
- disse Benigno, dirigindo-se a Camilo. - Ele já chamou você três vezes!
Camilo soltou a mão de Léa e correu atrás do outro guerrilheiro. Uma dezena de homens sujos e
desgrenhados cercavam Castro. Um mapa da ilha estava estendido diante dele.
- Ah, enfim, aí está você! - ele repreendeu Camilo. - "Você tem a mania irritante de ir foder um
bordel inteiro e depois deixar a gente se virar. Você nem mesmo se preocupou em me enviar a lista
dos homens, das armas e das balas que tem com você. Também não sei se você tem uma única
mina." Espero que esteja à altura da missão da qual vou encarregá-lo, mas "não se esqueça de que
vão tentar papar você ao longo do caminho! Missão é então dada ao comandante Camilo
Cienfuegos de conduzir uma coluna rebelde da Sierra Maestra à província de Pinar dei Rio, para a
execução do plano estratégico da armada rebelde. A coluna número 2, AntonioMaceo', força de
invasão assim nomeada em homenagem ao glorioso combatente da Independência, partirá de El
Salto quarta-feira próxima, 20 de agosto de 1958. Ao comandante da coluna de invasão está
acordada a faculdade de organizar as unidades de comando rebeldes sobre toda a extensão do
território nacional, até os locais dos quais os comandantes de cada província vierem, com suas
fileiras, nas regiões colocadas respectivamente sob a autoridade deles; ele aplicará o código penal e
as leis agrárias da armada rebelde no território invadido; ele compreende as imposições
estabelecidas pelos regulamentos militares; ele combinará suas operações com aquelas de toda a
outra força revolucionária que já estará começando a operar em um setor determinado; ele criará
umfront permanente na província de Pinar dei Río, que constituirá a base operacional
definitiva da colônia da invasão e designará para isso oficiais da armada rebelde até o grau de
comandante da colônia. Sempre tendo como objetivo primordial levar a guerra da libertação até o
oeste da ilha e qualquer outra questão tática estando subordinada a este fim, a coluna da invasão
combaterá o inimigo em todas as ocasiões que possam se apresentar ao curso do trajeto. As armas
confiscadas do inimigo serão destinadas por prioridade à disposição das unidades locais".
Camilo não sorria mais, ele mal conseguia esconder sua emoção, O quê? Ele, o chicharón, que não
podia ver um rabo de saia, o "fodedor de bordel", como dizia Fidel, era nomeado comandante da
coluna 'ntonio-Maceo"?
- Eu conto com você - acrescentou Castro estendendo-lhe a mão.
- Você pode contar, comandante.
- Bravo, camarada - cumprimentou-o Che, abraçando-o.
Os comandantes Juan Almeida, Ramiro Valdés, Crescensio Pérez e Huber Matos o felicitaram
calorosamente.
Eles deixaram Fidel à chegada de jornalistas estrangeiros, que eram numerosos e vinham a Sierra
Maestra como em uma continuação dajá célebre entrevista de Castro com Herbert L. Matthews.
Hoje era a vez de um editorialista do Washington Post, Karl E. Meyer, que sucedia os
correspondentes doParis-Match, Enrique Meneses, Michel Duplaix e Paul Slade. Com
brilhantismo, o chefe da rebelião falou de literatura ao jornalista espantado.
- Você leu oKaputt de Malaparte?... E asMemórias de guerra do general De Gaulle?
Camilo Cienfuegos ironizava o gosto de Fidel pelas entrevistas e as fotografias de imprensa: "Ele
acha que é Marilyn Monroe... sem os seios! Logo passará mais tempo com eles do que conosco..."
Uma outra visita havia dividido os guerrilheiros: a de Carlos Rafael Rodríguez, um dos dirigentes do
partido comunista cubano. Alguns duvidavam da dominação do partido sobre o movimento do 26 de
Julho. Ninguém ignorava as simpatias de Raúl Castro com relação a ele, diferente de Fidel, que se
furtava a isto. Estas divergências
haviam até mesmo suscitado esta observação de Rodríguez: "Na Sierra de Cristal da qual Raúl tem
o comando, a harmonia reina com os comunistas; em compensação, na Sierra Maestra de Fidel, a
harmonia transforma-se em suspeita."
- Você não pode vir comigo, vai ser muito difícil!
- Por que, Camilo? As outras mulheres vão partir com você, por que não eu?
- Você não tem nada a fazer aqui, este país não é o seu, e a guerrilha não é um negócio para
mulheres.
- Eu lhe peço, deixe-me acompanhá-lo. Você está levando Charles e não quero deixá-lo sozinho.
- Charles é um homem.
- Ele é ainda um menino, e precisa de mim. Não posso...
Esta discussão, Léa e Camilo estavam tendo pela enésima vez. A jovem mulher obstinava-se em
seu desejo de permanecer junto ao seu amante. De seu lado, Ernesto também opunha-se à presença
dela no seio da 2a coluna, tão grande era seu medo de que alguma coisa de mau lhe acontecesse.
- Eujá fui à guerra antes de conhecer você, e os nazistas eram bem mais terríveis do que os policiais
de Batista!
- Talvez - replicou Che -, mas você sabia por que combatia. Será que ela alguma vez realmente
soube? Parecia-lhe, ao contrário, que sempre havia sido o joguete do acaso. As circunstâncias,
apenas, tinham-na levado a aderir aos engajamentos pelos quais havia arriscado sua vida. Na
França, tudo aquilo havia lhe parecido lógico. Aqui, em Cuba, nada de semelhante: esta revolução
não era sua, mesmo que a compreendesse. Da mesma forma, ela não havia compreendido o
engajamento de Sarah junto aos vingadores judeus? Ali também, ela havia se reunido a eles por
acaso, por amizade, certamente não por uma reflexão política ou ideológica. Deveria ela sempre
estar misturada aos acontecimentos que não lhe diziam respeito? Longe de seu país, de seus filhos,
do homem que amava... Por que obstinava-se a querer participar desta luta onde tinha tudo a perder,
a
começar pela vida? O Che também não era cubano, mas aspirava estender a revolução por todos os
continentes, ele se via como um cidadão do mundo que ele desejava transformar radicalmente. O
argentino sonhava com igualdade e liberdade para todos e, para isso, estava pronto a sacrificar sua
vida. E Camilo? Esta revolução havia lhe dado um sentido à sua existência. Sem a revolução, ele
seria apenas o filho de um exilado espanhol, condenado a exercer pequenos trabalhos e a vegetar
em uma mediocridade quotidiana. O resumo que havia feito a Léa de sua infância, seguida de sua
temporada nos Estados Unidos, a tinha feito compreender. A guerrilha permitia-lhe fazer sobressair
o melhor de si mesmo, escapar à pobreza, demonstrar sua força de alma e sua coragem. Com
fervor e generosidade, ele havia abraçado a causa cubana, convencido por instinto de que ela era
justa e boa. Suas conversas regulares com Che o confortavam neste idealismo. Ele devorava os
livros que o argentino lhe emprestava, em seguida reclamava as observações, as explicações, um
aprofundamento que Ernesto sentia-se na obrigação de fornecê-lo. Quanto a Ramón, ele havia
renovado, neste novo combate, suas ilusões de seus 20 anos. O que havia fracassado na Espanha
poderia ter sucesso em Cuba. Ele estava convencido disto. Seu passado de republicano espanhol
conferia-lhe uma autoridade que ele apreciava e sentia-se com Fidel em uma comunhão de
pensamentos que o levava a dedicar ao jovem chefe uma admiração e uma devoção sem limites. Ele
estava persuadido do triunfo da revolução, mas estava preparado há muito tempo para morrer pelo
que ele pregava: Libertad o muerte, "A liberdade ou a morte!", ele adorava repetir.
Pouco antes da partida da 2a coluna, Léa foi testemunha da execução de um jovem de 17 anos.
Acusado de ter roubado uma caixa de leite em pó e três charutos, havia sido condenado à morte
pelo tribunal da armada rebelde. Informado da sentença, Fidel confirmou:
- É preciso de fato fuzilá-lo. Para torná-lo um exemplo.
Por sua vez, Camilo tinha pedido apenas que se retirasse do culpado o privilégio de participar da
invasão, estimando que ele seria suficientemente punido com esta exclusão. Seus companheiros se
apegaram todos a esta opinião. Eles jogavam cartas com o jovem ladrão quando chegou a
mensagem de Castro. Camilo ficou lívido mas, tentando esconder sua emoção, olhou para o garoto
diretamente nos olhos e disse friamente:
- Você passará pelas armas às quatro horas. Fidel acatou a decisão do tribunal.
Todos trocaram olhares estupefatos, acreditando ser uma das brincadeiras de mau gosto das quais o
chefe era costumeiro. A pele pálida, as lágrimas que encheram seus olhos não deixaram dúvidas.
Com sangue-frio, sem parar de jogar, o rapaz disse:
- Está bem...
Camilo levantou-se atirando secamente suas cartas no chão e partiu. O garoto estendeu seu boné a
Benigno que havia perdido o seu nos combates de Jobal:
- Tome, Lali...
- Mas... por que me dá seu boné de presente?
- Eu serei fuzilado. Não temerei mais o sol...
Léa correu atrás de Camilo.
- Isto não é verdade? Não vão fuzilá-lo... Ele é só um menino!
- Ele foi julgado; a sentença será executada.
- Não é possível! Você não pode deixar que façam uma coisa destas...
- Sou responsável pela disciplina de meus homens e todo roubo é passível da pena de morte. Agora,
deixe-me.
Camilo afastou-se, os ombros arqueados. Ele não assistiria à execução.
Precisamente às quatro horas, o rapaz foi fuzilado. Charles não pôde conter as lágrimas e muitos
entre os guerrilheiros viraram- se para esconder as suas. Mais tarde, quando Camilo reuniu-se a
eles, todos repararam que ele tinha os olhos vermelhos.
À noite, apertado contra Léa, ele chorou como uma criança.
Foi com tristeza no coração que eles se puseram em marcha para a província de Pinar del Río.
Antes da partida, Camilo havia reunido suas tropas:
- "Camaradas, nos confiaram a difícil mas gloriosa tarefa de conduzir a guerra ao oeste. Vamos
lembrar que esta coluna tem o nome de Antonio Maceo, e que esta missão já foi cumprida
anteriormente pelo 'Titã de bronze'. Nós temos a obrigação de cumprirmos nosso dever. É preciso
que permaneçamos numerosos pelo caminho, mas não podemos abandonar esta tarefa. Se restar
apenas um de nós com vida, ele irá até o fim, em nome de todos. Quero ainda dizer-lhes que aqueles
que não quiserem ir, podem se retirar, certos de que não serão tidos como desertores. Nós todos
sabemos que nos aventuramos em terreno desconhecido, que ignoramos os obstáculos que
arriscamos encontrar no caminho. Sofreremos a fome e uma diversidade de privações. Nosso
esforço será titanesco! Na verdade, será uma tarefa muito dura, mas necessária..."
Nenhum dos combatentes deixou as fileiras. Todos ovacionaram o chefe:
- Viva Camilo!... Viva Cuba!
Desamparada, Léa viu partir esta tropa de homens barbudos e mal vestidos, muitos descalços, entre
os quais encontravam-se Charles e Ramón.
A noite, Ernesto leu para ela os poemas de Neruda, sempre bebericando seu mate. Mas uma
violenta crise de asma o obrigou a interromper sua leitura. Seu rosto congestionado, ele tentava
recuperar o fôlego. Suas mãos estavam crispadas sobre seu peito. De vez em quando ele conseguia
sorrir para Léa, acreditando assim poder fazê-la compreender que a crise logo iria passar. Ele
estava alagado de suor, emanava um cheiro de gordura e de transpiração rançosos. Ela arrancou
sua camisa rasgada e secou-lhe o rosto e o peito.
- Obrigado - murmurou ele sem reabrir os olhos.
Pouco a pouco o sono o venceu.
No dia seguinte à partida de Camilo e de sua coluna, o Che recebeu de Fidel Castro esta ordem
militar:
Está designada ao comandante Ernesto Guevara a missão de conduzir desde a Sierra
Maestra até a província de Las Vilias, uma coluna rebelde, e de operar no dito território
conforme o plano estratégico da armada rebelde. A coluna número 8 que se destina a este
objetivo levará o nome de "Ciro-Redondo", em homenagem ao heróico capitão rebelde morto
em combate e elevado a título póstumo ao grau de comandante. A coluna 8 "Ciro-Redondo"
partirá de Las Mercedes entre os dias 24 e 30 de agosto. O comandante Ernesto Guevara é
nomeado chefe de todas as unidades rebeldes do Movimento de 26 de Julho que operam na
província de Las Villas, nas zonas tanto rurais quanto urbanas, e lhe é dada carta branca
para recolhere dispor dosfundos necessários para conduzirà guerra e à sobrevivência de
nossa própria armada;para aplicar o Códigopenal e as leis agrárias da armada rebelde no
território onde operarão suasforças; para coordenaras operações, os planos, as disposições
administrativas e de organização militar com as outras forças revolucionárias operando
nesta província que deverão ser convidadas a se fundir em um só corpo de armada a fim de
"vertebrar" e unficar o esforço militar da revolução; para colocar de pé as unidades locais
de combate e nomearos oficiais da armada rebelde até o grau de comandante de coluna. A
coluna número 8 terá por objetivo estratégico conquistar vantagem sobre o inimigo sem
esmorecer na região central de Cuba e interceptar até a total paralisa ção os movimentos
terrestres de suas tropas de oeste a leste, aguardando outras ordens que chegarão no
momento oportuno.
Fidel Castro Ruz,
Comandante-em-chefe.
Alguns dias depois, foi a vez do comandante Che Guevara deixar La Plata à frente de trezentos
combatentes. Léa estava entre eles; Castro havia acabado por ceder ao pedido dela, apesar da
oposição de Che. Ela havia sido encarregada de conduzir o furgão que servia de ambulância. Ela
seguiria a tropa, atrás, dirigindo.
A coluna colocou-se em marcha por volta das sete horas da noite do dia 30 de agosto, sob
violenta tempestade que se seguira ao ciclone "Daisy". Ordem havia sido transmitida a todos de
marcharem em silêncio, de apagar qualquer traço de sua passagem, manter uma disciplina rígida e
abster-se de fumar. Durante a caminhada, eles fizeram uma pausa curta, em seguida retomaram a
marcha e, por volta das cinco horas da manhã, chegaram a uma fazenda abandonada, esgotados
pelos 28 quilômetros que acabavam de percorrer, carregados com suas sacolas, sob chuva forte.
De manhã, tomaram três caminhões inimigos, que no entanto recusavam-se a funcionar. Com
aviões sobre suas cabeças, eles só tornaram a partir à noite, na lama e no vento, rasgando ainda
um pouco mais suas roupas nos espinhos e nos rochedos. Uma tranqüilidade de algumas horas
devolveu a esperança à pequena tropa congelada, mas esta esperança foi logo estremecida por
um novo ciclone que respondia pelo doce nome de "Elia" e revelava-se ainda mais assustador do
que o anterior. Caminhando pela lama, eles enfim alcançaram as bordas do rio Cauto. A
correnteza carregava árvores inteiras e cadáveres de animais. O próximo passo era atravessar
este rio com homens que, na maioria, nem mesmo sabiam nadar. Foi lá que, repentinamente, o
furgão quebrou, e então dividiu-se. Repartiu-se rapidamente o material sanitário entre uma dezena
de homens, que o carregaram nas costas; Léa ficou com as reservas de morfina e os preciosos
antibióticos.
No dia seguinte, eles requisitaram 89 mulas, asnos e cavalos na Finca El Jardin. Os camponeses
os acolheram bem e deram- lhes provisões. Depois que atravessaram sobre suas montarias o rio
Salado, um simpatizante do 26 de Julho doou-lhes 48 pares de botas. No mesmo dia, Che
formou um destacamento reagrupando os combatentes punidos por atos de indisciplina e o
batizou escuadra de los descamisados; ele confiou o comando a Armando Acosta, com ordem
de observar o maior rigor. Confiscaram-se as armas dos descamisados; eles só poderiam
retomálas no combate.
Eles se uniram à coluna de Camilo Cienfuegos no dia 6 de setembro, na área de uma usina de
açúcar, la Concepción. Descalços, Camilo e Ernesto lavaram suas roupas e tiraram fotos um do
outro. A noite, foi uma festa: eles comeram carne de boi, beberam rum, fumaram charutos
razoáveis. Depois de um rápido acesso de raiva ao descobrir a presença de Léa, Camilo ficou feliz e
emocionado ao revê-la.
- Eu lhe peço, cuide bem dela, faça com que nada lhe aconteça! - suplicou ele, apertando fortemente
o braço de Che.
- Não preciso de suas recomendações - respondeu este, afastando-se devagar.
No dia seguinte as duas colunas se separaram e partiram cada uma para um lado. "Sobrevieram
dias difíceis sobre o território antes amigável do Oriente. Foi preciso atravessar rios em cheia, canais
e riachos transformados em rios, lutar incansavelmente para impedir que as munições, as armas, os
explosivos fossem encharcados, procurar montarias frescas e deixar no local os cavalos fatigados,
fugir das zonas habitadas ao mesmo tempo que nos afastávamos da província do Oriente.
Caminhamos penosamente através de terrenos inundados, atacados por nuvens de mosquitos que
tornavam as horas de repouso ainda mais insuportáveis. Comíamos mal e pouco, bebíamos a água
dos riachos serpenteando através dos pântanos. Arrastávamos lamentavelmente estes dias
esgotantes. Ainda por cima, a tropa sofria com a falta de sapatos, e numerosos companheiros iam
descalços nos lamaçais do sul de Camagüey. A lama e a chuva marulhavam alegremente, e contra
isso tudo só tínhamos a força de vontade!"
Uma noite, eles atravessaram uma laguna semeada de plantas cortantes que retalhavam os pés
entumecidos e já insensíveis daqueles que caminhavam sem sapatos. O próprio Che havia perdido
um pé de suas botas nos pântanos e calçou o pé de outro sapato, o que servia apenas para acentuar
sua figura de mendigo. Léa seguia a tropa, exausta de cansaço, coberta de lama. Quando acontecia cruzar o olhar de Che, eles
trocavam um sorriso infeliz.
Os soldados de Batista afastavam-se diante do avanço desta armada de esfarrapados e famintos,
com os olhos brilhantes de febre. Porém, houve inúmeros confrontos. Nove foram mortos.
Na maior parte do tempo, as duas colunas caminhavam juntas, mais freqüentemente à noite, e se
apoiavam na hora dos combates. No entanto, o moral dos insurgidos baixava um pouco mais a cada
dia. Uma tarde, graças ao pequeno rádio de campo que possuíam, eles ouviram a notícia de suas
mortes. Isso os alegrou, mas apenas por pouco tempo. "O pessimismo os vencia pouco a pouco; a
fome, a sede, o cansaço, o sentimento de impotência diante das forças inimigas que os cercavam
cada vez mais, sobretudo da terrível doença dos pés conhecida entre os camponeses sob o nome de
mazamora - "Bolha de trigo" - e que fazia de cada passo um suplício, havia transformado a coluna
em tropa de sombras. As condições físicas do grupo piorava a cada dia e quanto às refeições
- um dia sim, um dia não, o outro dia talvez - de nada valiam no sentido de melhorar suas condições.
Os dias mais difíceis, eles passaram cercados nas cercanias da central açucareira Baraguá, nos
pântanos pestilentos, sem uma gota de água potável, perseguidos pela aviação, sem um cavalo que
pudesse ter ajudado os mais fracos a atravessarem estes lamaçais hostis, os sapatos completamente
encharcados por esta água salgada, com plantas que feriam seus pés nus. Quando eles romperam o
cerco de Baraguá para alcançar o famoso caminho de Jucáro à Morón, sítio histórico que foi o
teatro de lutas sangrentas com os espanhóis durante a guerra da independência, eles estavam
realmente em uma situação desastrosa. Não tinham tempo de se recuperar, porque as trombas
d'água, a inclemência do clima acrescendo-se aos ataques do inimigo os obrigavam a retomar sua
marcha, cada vez mais arrasados, cada vez mais desencorajados. A tensão estava no auge; apenas
os insultos e as ameaças de todo gênero conseguiam fazer esta massa esgotada avançar. Uma visão
no horizonte reanimou seus rostos e devolveu
a coragem à guerrilha: a de uma mancha azul, na direção do oeste, a massa azulada do maciço
montanhoso de Las Vilias, vista pela primeira vez pelos homens; a contar deste instante, as mesmas
privações pareciam muito mais suportáveis, tudo parecia fácil. Eles escaparam ao último cerco,
atravessando a nado o Jucáro que separa as províncias de Camagüey e de Las Vilias, e tiveram a
impressão de terem acabado com as trevas."
Quarenta e oito horas depois, eles estavam abrigados no coração da cordilheira Trinidad-Sancti
Spíritus, prontos a enfrentar a nova fase da guerra. Descansaram por um ou dois dias, em seguida
continuaram o caminho com o objetivo de impedir as eleições que deveriam acontecer no dia 3 de
novembro. Tarefa difícil, em razão do pouco tempo de que dispunham, assim como devido às
divergências que existiam no próprio seio do movimento revolucionário - as lutas internas que
acabaram por custar caro. Eles atacaram os vilarejos rurais para criar obstáculo às reuniões que
aconteciam ali. Por suavez, ao norte da província, as tropas de Camilo Cienfuegos já haviam
terminado com esta farsa eleitoral. Tudo, desde o transporte das tropas de Batista até o tráfico
comercial, estava paralisado.
No Escambray, Ernesto Guevara fez contato com os dirigentes de diferentes grupos revolucionários
operando na região. O encontro com o comandante Víctor Bordón, responsável pelo movimento do
26 de Julho na região, reunindo sob suas ordens 220 simpatizantes de Fidel refugiados depois do
fracasso da greve de abril, não foi caloroso.
- Quantos guerrilheiros do nosso lado com você? - perguntou Che, visivelmente irritado com o chapéu
de caubói de Bordón.
- Eles pertencem ao 26 de Julho, não a mim - retorquiu o outro, também irritado.
- O comandante está à frente da reunião de forças. Na guerrilha só pode haver um comandante; eu
sou este comandante, você será um dos capitães...
Víctor Bordón empalideceu, apertou os punhos, percebeu-se que ele teria desejado matar o
argentino. Fingindo nada ter notado, Ernesto Guevara continuou no mesmo tom:
- Disciplina de ferro, nível moral elevado, compreensão perfeita da tarefa a ser realizada, sem
fanfarronadas, nem ilusões enganadoras, nem falsa esperança de um triunfo fácil, luta ao exagero.
Aqueles que não estiverem de acordo podem partir imediatamente abandonando suas armas!
Uma crise de tosse o interrompeu, a crise de asma ameaçava começar. Com um gesto da mão, fez
sinal de que havia terminado e, curvado, entrou na tenda.
Os homens de Bordón olharam-se com estupor. Uma centena deles deixou o acampamento. Os
outros permaneceram, com Bordón. Outros membros da organização de resistência armada de
Escambray, Rolando Cubela, Tony Santiago, Mongo González e Faure Chomón, do Diretório
revolucionário, o acolheram com certa condescendência. Uma cisão no seio do Diretório havia
gerado um "Segundo Front de Escambray", dirigido por Eloy Gutiérrez Menoyo, hostil a Castro;
Che foi vê-lo também. Enfim, ele não negligenciou Felix Torres, que controlava um pequeno grupo
de resistência comunista. Não sem dificuldade, Che reuniu-os a todos e expôs-lhes a situação
presente, em seguida o plano de ações que estava por vir. Por uma noite fria, à luz das chamas de
um braseiro, estes homens que tantas coisas separavam e aos quais havia se reunido Enrique
Oltuski, responsável provincial do M-26 para Las Vilias, reencontraram- se e descobriram um
Guevara com a camisa largamente aberta, os cabelos desgrenhados; o pequeno cachorro de orelhas
grandes que estava estendido a seus pés respondia pelo nome de Miguelito. Fumando um enorme
charuto, o comandante da coluna 8 surpreendeu desagradavelmente, com sua figura, os chefes
revolucionários de Escambray. Custavam a acreditar que essa figura era o famoso médico
argentino, o primeiro a ser promovido comandante na Sierra e ao qual Fidel Castro havia delegado
todos os poderes na região que eles controlavam. Uma discussão
tensa iniciou-se entre estes homens corajosos. Como sempre, Che mostrou-se duro e inflexível:
- "Tudo isso é besteira! Vocês acreditam que podemos fazer uma revolução nas costas dos
americanos? As verdadeiras revoluções, é preciso fazê-las desde o início para que todo mundo saiba
no que se agarrar. Trata-se de se ganhar o povo. Uma verdadeira revolução não avança
mascarada."
O debate seguiu pela noite a dentro. Ao amanhecer, esgotados, eles se separaram: permaneceriam
juntos na luta.
Che instalou seu acampamento em um lugar conhecido como Cabailete de Casa, sobre uma colina
de oitocentos metros de altitude, cercada de florestas impenetráveis, de onde podia se ver as cidades
de Sancti Spíritus e Placetas. Logo de início, ele estabeleceu uma escola de treinamento para os
novos recrutas que surgiam, numerosos, dos vilarejos vizinhos, mas também demais longe, de
Cienfuegos e de Havana. Em poucos dias, barracas foram construídas sob o abrigo das árvores. O
emissor de rádio funcionava, os víveres eram regularmente encaminhados, apesar da dificuldade de
acesso, os ateliês de couro, de ferramentas e até mesmo de fabricação de charutos estavam a todo
vapor. Léa e a equipe médica, encarregadas de cuidar dos cortes causados pelas plantas aquáticas e
de apaziguar o sofrimento das vítimas da mazamora ou da disenteria, apossaram-se de uma
barraca sobre a qual colocaram uma imensa cruz vermelha. Quando tudo estava quase pronto, Léa
se permitiu um banho, que lhe pareceu o mais agradável de toda a sua vida.
Por sua vez, satisfeito com o arranjo do campo, Che permitiu- se um pouco de repouso, lavar-se e
trocar suas roupas repletas de sujeira. Foi durante este período de descanso que ele recebeu uma
missiva de Fidel Castro:
Se desejamos a unidade das forças operando nesta província, é lógico que o comando fique
com o comandante mais antigo, aquele que mostrou as maiores capacidades militares e de
organização,
aquele que suscita o maior entusiasmo, a maior confiança no povo; e estas qualidades, você
as reúne. Não aceito nenhum outro chefe que não você se as forças não chegarem a um
acordo. Caso contrário, você deve tomar o comando de todas as forças do Movimento do 26
de Julho e daquelas que se reunirem espontaneamente eperseguira realização de nossos
planos estratégicos. É um crime contra aRevoluçãofomentaras brigas e divisões que não
haviam surgido até o momento em nossos campos de batalha, mas que causaram tantos
estragos nas guerras de libertação do passado. Aqueles que têm o mérito, as capacidades e o
patriotismo encontrarão na Revolução mais ocasiões do que poderão imaginar de elevarem-se
a maior glória e de obterem as mais altas honras. O inimigo está à frente: somente disto todas
as suas ambições, aspirações e sonhos de grandeza tiram sua legitimidade. Os postos, as
honras obtidas por nossos comandantes não são o produto do favoritismo ou de privilégios,
mas do mérito, do valor e do sacrifício. É diante do inimigo que nossos homens continuarão a
procurar as graus, a grandeza, o prestígio moral, sem pretendê-los nem ambicioná-los,
porque os homens modestos que são atualmente os arautos e os chefes da revolução não
pensam nisso quando estão recrutados em nossas tropas perseguidas, famintas, fracas e
acuadas; também não pensavam nisso aqueles que morreram ao longo desta longa marcha,
consolidando com seu sangue e sua vida cada vitória de nossa armada que se constituiu e
organizou na base do mérito, do sacrifício e do desinteresse mais puros. Quando começamos
esta guerra, ninguém acreditava que poderíamos combater um exército tão moderno
epoderoso. Nós a continuamos quando não éramos mais do que doze e que ninguém nos
prestava o menor apoio.
Antes de continuara avançar é preciso:
1. Que seus homens se recuperem fisicamente;
2. Que a luta se intensifique nas províncias do Oriente, de Camagüey, de Las Villas e de
PinardelRío, para obrigaro inimigo a utilizar ao máximo suas forças em todos osfronts e
impedi-lo de concentrar sobre você o grosso das forças;
3. Criar centros rebeldes ao longo de seu percurso;
4. Estudar e preparar minuciosamente seus planos de avanço, reunir guias, fazer contatos e
prever cuidadosamente todas as dficuldades que poderá encontrar;
5. Sobretudo, desta vez, pelo que resta a percorrer, é preciso manter segredo
rigorosamente. É preciso induzir o inimigo ao erro, fazendo-o acreditar que você renunciou
ao seu projeto e surpreendêlo completamente.
Se você tem objeções ou sugestões afazera respeito das instruções, estou pronto a
reconsiderá-las, mas espero que esteja de acordo comigo.
Abraço-o com toda a minha admiração e afeição aos heróicos soldados de sua coluna.
Che reuniu-se a Camilo, que cercava uma caserna perto da pequena cidade deYaguajay. Léa o
acompanhou. "Havia entre Che e Camilo uma grande cumplicidade feita de estima mútua e
fraternidade profunda, sempre mascarada pelas brincadeiras de Camilo. Seu imutável chapéu de
caubói enterrado na cabeça, a barba longa e negra alongando ainda mais seu rosto, Camilo era
um operário de Havana com a língua bem afiada que fingia debochar de tudo e de todos, mas que
havia sobretudo seduzido Che por seu gênio da guerrilha. Nos momentos cruciais, sua coragem
era extraordinária. Quando ele fazia parte da coluna de Che na Sierra Maestra, seus amigos
ficavam estupefatos com seu sangue-frio por ocasião das emboscadas."
Léa reencontrou Charles mais magro, mas cheio de entusiasmo.
Os soldados da caserna cercada, comandados pelo capitão González, resistiam da melhor forma,
mas os rebeldes que investiam nas casas em volta, passando de teto em teto, atravessando os
pátios, quebrando os vidros, davam-lhes muito trabalho. Saltando de uma cornija, Che caiu em
um pátio interno e feriu-se no olho direito e no braço. Transportado para uma clínica, foi
constatada uma fratura do cotovelo, mas ele recusou-se a tomar a vacina
antitetânica por causa de sua asma. Para combater a dor, tomou enormes quantidades de
comprimidos de aspirina.
As duas horas da manhã, Guevara entrou sem armas na caserna, acompanhado do pároco de
Cabaiguán.
- Eu sou o Che e sou eu quem determina as condições, porque sou o vencedor - replicou ele ao oficial
que o recebia com superioridade.
Noventa soldados se renderam. Sete metralhadoras de calibre 30, 85 fuzis e metralhadoras leves,
assim como munição, foram tomados. O sucesso foi completo.
Duas horas depois desta rendição, Che e seus insurgidos marcharam sobre Placetas, uma cidade de
trinta mil habitantes, distante 35 quilômetros, e a tomaram sem desferir um tiro. Eles encontraram
uma guarnição totalmente desmoralizada. De um entreposto vizinho, Che contactou por telefone
Faure Chomón, que estava colocado em emboscada em Báez, ao sudoeste da cidade, para barrar
também a passagem do exército nesta estrada secundária.
- Qual é a situação de vocês? - perguntou Che.
- Coloquei trinta homens preparados para uma emboscada na montanha de Falcón, caso venham
reforços.
- Nenhum sinal de reforços do lado de Santa Clara?
- Não, nenhum.
Che começou a rir.
- Eles não sabem mais onde estão!
Enquanto uma multidão em euforia precipitava-se para as ruas de Placetas, os sinos das igrejas
repicavam. Os prisioneiros foram levados para a Cruz Vermelha. Os rebeldes acabavam de
conquistar mais de oito mil quilômetros quadrados, e a estrada de Santa Clara estava livre.
No dia 27 de dezembro, os pelotões da 8a coluna se reuniram por volta da meia-noite na principal
artéria de Placetas, enquanto as forças do Diretório massificavam-se em Manicaragua, a trinta
quilômetros de Santa Clara.
Ernesto Guevara assumiu lugar em uma caminhonete Toyota vermelha. A seu lado, Aleida March,
uma jovem mulher loura, militante originária de Santa Clara, servia-lhe de guia. A cidade estava
calma, silenciosa. Fechados em suas casernas, os soldados mantinham-se na defensiva. De manhã,
a aviação inimiga bombardeou a aglomeração. Uma bomba caiu diante da maternidade do hospital,
destruindo oito casas. A oeste de Santa Clara, as tropas de Bordón atacaram um comboio do
exército que transportava reforços. Pela estrada de Manicaragua, os homens do Diretório, sob as
ordens de Rolando Cubela, entraram na cidade e logo cercaram a caserna do 31° esquadrão da
guarda rural. O pelotão de Pacho Fernández penetrou por sua vez nos subúrbios e colocou-se em
emboscada, enquanto o grosso da 8a coluna progredia a partir da universidade, sob o bombardeio da
aviação. Porém, em uma curva da via férrea, surgiram dezenove vagões blindados do trem enviado
como reforço por Batista. Um fogo cerrado partia de suas fendas. A população, que havia ficado
por um longo tempo aterrorizada, agora fazia barricadas para atrasar o progresso dos tanques. Os
combates duraram o dia inteiro e fizeram numerosas vítimas de ambos os lados.
Com a ajuda de granadas e de coquetéis Molotov, os rebeldes lançaram-se ao assalto do trem
blindado. Os soldados os acolheram a tiros de canhões. As duas locomotivas deram marcha a ré,
empurrando os dezenove vagões. O trem afastou-se a grande velocidade. Mas, a quatro
quilômetros, o caminho havia sido interrompido, e ouviu-se um terrível estrondo. As chamas logo
percorreram as locomotivas, ganhando os vagões de onde os militares saltavam para escapar ao
incêndio. Muitos tombavam aqui e ali sob as balas dos insurgidos. Dos vagões tombados, retirou-se
um inacreditável arsenal: seis bazucas, cinco canhões de sessenta milímetros, quatro metralhadoras
leves, granadas, seiscentos fuzis automáticos, baterias antiaéreas e quase um milhão de balas... Era
um verdadeiro tesouro sobre o qual haviam colocado as mãos, e foi imediatamente repartido entre os
diferentes setores da cidade onde aconteciam os combates. A aviação, que havia um pouco antes
cessado os
bombardeios, logo retomou-os com mais força. De seu lado, aRadioRebelde transmitia sem parar
informações e mensagens, incitando-os a reunirem-se aos "combatentes da liberdade".
Os policiais do coronel Rojas se renderam: eram 396, os rebeldes, 130. O pelotão do capitão
Pachungo tomou o tribunal, apesar da presença dos tanques que estavam encarregados de protegê-
los, enquanto o governo provincial, defendido por uma centena de soldados, era atacado pela frente
pelas forças de Alfonso Zayas e por trás pelo pelotão de Alberto Fernández. Armado de uma
granada, o capitão Pachungo obrigou os soldados a se renderem. Cinco aviões bombardearam então
a região do tribunal, mas foram colocados em fuga pelos tiros das baterias antiaéreas conseguidas
no trem blindado. A prisão tombou por sua vez, os detentos políticos foram libertados, enquanto os
de "direito comum" aproveitaram a confusão para sumir no meio do mato. Um depois do outro, os
centros de resistência leais ao governo eram dizimados. Lutava-se agora ainda diante do Gran Hotel
onde estavam refugiados os membros do SIM. Os policiais mantinham ali os clientes dos quais
serviam-se como escudos humanos. Eles haviam procedido da mesma forma na caserna Leoncio-
Vidal e na caserna do 31° esquadrão.
Depois de ter alcançado definitivamente o objetivo da tomada deYaguajay, Camilo Cienfuegos
reuniu-se com o grosso de sua tropa aos insurgidos de Santa Clara. Che o avistou com alívio. Os
dois amigos caíram nos braços um do outro.
- Você chegou depois da batalha! - brincou Guevara, abraçando-o apertado.
- Eu queria deixar toda a glória para você! - retorquiu Cienfuegos.
Léa havia provado grande coragem. Em companhia do Che ela participara do ataque ao trem
blindado. Enquanto Guevara, apesar
de seu braço ferido, lançava seus homens ao assalto, ela abateu um soldado que acabava de colocar
o comandante na mira.
- Eu lhe devo a vida - sussurrou-lhe ele.
- Viu como você fez bem em me trazer?...
Com Amado Morales, membro do comando suicida, ela escorregou pelos tetos de uma caserna. El
Vaquerito queria incendiar a construção mas, tratando-se de alvenaria, cercada de um muro alto,
seria difícil penetrar nela e atear fogo. El Vaquerito teve então uma idéia magnífica: encontrar os
reservatórios de combustível e de condutos, reuni-los, ligá-los a uma bomba, em seguida irrigar as
casernas, enfim desligar a bomba e pôr fogo no conduto. Infelizmente ele não pôde reunir todo o
equipamento necessário e decidiu-se pelo assalto. Ao curso do ataque, Mariano Pérez foi ferido.
Che comandou então as emboscadas e concentrou todas as forças em volta da caserna, enquanto os
bombardeios continuavam a todo vapor. Ao fim dos combates, o oficial que comandava o
destacamento da base, informado do estado de suas tropas e do número de feridos, ordenou que se
levantasse a bandeira branca. Che entrou na fortaleza, deu ordens de levar assistência aos soldados
feridos e, pouco depois, ele fez erguer a bandeira do 26 de Julho e recuperou as armas abandonadas
pelos defensores do local. Nesta ocasião, Roberto Rodríguez foi promovido capitão. Esgotado,
curvando-se sobre o peso dos cartuchos, das granadas e de um fuzil que parecia maior do que ele, el
Vaquerito, por trás de seus longos cabelos, sua barba e seu boné, tinha o aspecto de um moleque
malcriado. Zaila Rodríguez, uma jovem mestiça, que também havia combatido corajosamente, em
recompensa por sua bravura, ganhou um Garand de Guevara, que declarou:
- As armas são ganhas em combate!
Naquele dia, ei Vaquerito também teve sua vida salva graças ao sangue-frio de Léa, que havia se
atirado sobre ele no instante preciso em que um soldado abria fogo. Ela foi ferida no ombro.
- Não foi nada - disse eia tentando sorrir. - Já fui ferida neste local.
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Já socorrida, ela se encontrou com o rapaz que, com lágrimas nos olhos, não sabia como lhe
agradecer. Ela o acompanhou até os subúrbios de Cabaiguán, uma cidadezinha de dezesseis mil
habitantes que eles invadiram em companhia das forças do Diretório. Os membros do pelotão
suicida ali fizeram um bom trabalho, tomando um cinema e um comissariado.
Em Caibarién, eles atacaram a caserna. El Vaquerito tomou um caminhão de bombeiros, encheu-o
de combustível e dirigiu até a proximidade do edifício, que foi aspergido de gasolina, com risco de
fazer tudo voar pelos ares, incluindo os reféns! Com a ajuda de um porta-voz, ele dirigiu-se então
aos soldados. Uma bandeira branca surgiu em uma janela. O jovem homem avançou, mas o tenente
de guarda recusou-se a se render, acreditando em represálias. Indignado, El Vaquerito propôs-lhe
então um duelo de pistola, fora da caserna, e intimou-o a parar de expor a vida de seus soldados, que
não queriam mais lutar. O oficial insultou El Vaquerito, que respondeu estar muito cansado para
replicar e que, enquanto os militares refletiam, ele iria fazer uma pequena sesta... Deitou-se então
em um acolchoado e dormiu profundamente. Para o moral dos sitiados, foi o golpe de misericórdia:
eles não tardaram a se render.
No dia seguinte, o pelotão de El Vaquerito ocupou a estação e conquistou Santa Clara, rua por rua,
casa após casa, assumindo riscos insensatos.
- Nunca se escuta a bala que vai nos matar - garantia ele, afastando-se.
A cinqüenta metros do posto de polícia, sobre um terraço acima da rua Garof aio, ele assumiu
posição em companhia de Orlando Beltran e de Leonardo Tamayo. Mais tarde, este iria contar:
"Nós mal tivemos tempo de nos abrigar quando percebemos um grupo de seis guardas começando a
correr no meio do parque. Abrimos fogo, mas dois tanques que se encontravam perto na rua
nos atiraram em cima um canhão de trinta. Eu gritei: "Vaquerito, esconda-se,você vai ser atingido!'
Ele não se mexeu. Um pouquinho depois, eu repeti: "Por que você não sai daí?' Ele não respondeu.
Eu olhei e vi que estava coberto de sangue. Nós o levamos rapidamente para o posto médico. Um
tiro mortal: um tiro de M-1 bem na cabeça."
Por um túnel cavado na parede, Che foi se reunir aos atacantes e deu com os dois homens que
transportavam o cadáver de Roberto Rodríguez. Ele fez um gesto aflito ao descobri-lo e murmurou,
contemplando seu rosto ensangüentado:
- Eles me mataram cem...
Logo que foi avisada, Léa, com a ajuda de uma velha mulher de Santa Clara, iniciou os preparativos
do corpo do jovem capitão, em seguida o velou por toda a noite.
Exausto, pálido, os cabelos desgrenhados e o braço na tipóia, Che parecia, em seu uniforme
esfarrapado, um simples e miserável soldado da tropa. Apenas seu olhar perspicaz o designava
como um chefe. Ele percorreu a cidade, informou-se do número de feridos, do avanço das tropas
rebeldes. Em alguns bairros, lutava-se corpo a corpo à luz das explosões dos coquetéis Molotov e
das chamas dos incêndios.
No dia seguinte, quando Léa repousava no parque próximo à enfermaria de campo instalada em
uma cabana de jardineiros, ela viu chegar um grupo de Barbudos; Charles estava entre eles. Ela
levantou-se com dificuldade e foi cuidar do ferido que eles traziam.
- Coloquem-no ali - disse, apontando para uma maca no chão.
- Vão procurar água... e encontrem-me um médico!
Ela sorriu para Charles: ele estava vivo! Mas por que chorava? O cansaço? Seu companheiro
ferido? Léa inclinou-se sobre a maca.
- Carmen!
Apesar da sujeira e do sangue que cobriam seu rosto, Léa
reconheceu a filha do doutor Pineiro, o primeiro amor de Charles. Com gestos doces, ela limpou seu rosto; uma
parte do couro cabe- ludo havia sido arrancada. A ferida era impressionante, mas não lhe parecia de extrema
gravidade. Ela afastou a blusa embebida de sangue; Carmen havia sido atingida em vários lugares.
- Foi uma rajada de metralhadora - deixou escapar Charles entre dois soluços.
Léa aplicou compressas sobre as feridas, que logo se encheram de sangue. A jovem acordou e olhou em torno
de si, assustada.
- Estou aqui - balbuciou Charles, tomando-lhe a mão.
Ela deu um sorriso feliz.
- Ajude-me a levantar.
Todos se entreolharam com lágrimas nos olhos. Léa, o coração apertado, acariciou-lhe o rosto:
- Não se mexa. Você foi levemente ferida... Já vamos cuidar de você.
- É por isso que me sinto tão cansada?... Estou com frio... Faz frio, não faz?... Quem está chorando?... É você,
Charles?... Por que está chorando?... Não é grave, não estou mal... Mas... estou realmente com frio.
Alguém veio lhe trazer uma coberta.
- Obrigada... Logo vai anoitecer... Tenho frio... Charles!...
- Carmen!
Como em um sonho, o rapaz atirou-se sobre o corpo dela, gritando. Seus camaradas tentaram levantá-lo.
- Deixem-no - disse Léa -, eu cuido deles. Voltem para o seu grupo.
Eles obedeceram a contragosto. Depois de sua partida, Léa fechou as pálpebras de Carmen. Ela permaneceu
longo tempo agachada ao pé de uma árvore, os olhos secos, o olhar fixo, indiferente ao barulho da
metralhadora e dos combates, ouvindo apenas os soluços daquele homem que ela havia visto crescer e para o
qual ela havia tanto sonhado com uma vida feliz. Ela sentia-se responsável por seu sofrimento. Sem ela, ele
poderia ter continuado
tranqüilamente seus estudos em Bordeaux ou em Paris. Em Cuba, ele havia encontrado a aventura, um objetivo em
sua vida, mas também o sofrimento e a morte.
Repentinamente, Che estava perto deles.
- Acabo de saber de Carmen...
Ele colocou a mão no ombro de Charles:
- Você deve retornar ao combate, precisamos de você.
Charles levantou a cabeça, o rosto lavado de lágrimas. Ele pôs seus lábios sobre os de sua amada e, sem uma
palavra, levantou-se, empunhou o fuzil que lhe estendeu Che e afastou-se. Léa inclinou-se para detê-lo, mas
Ernesto a impediu, agarrando-a brutalmente pelo braço.
- Deixe-o partir.
- Você está louco! Ele vai se deixar matar!
- Talvez.., mas, durante os combates, ele não pensará mais em seu sofrimento.
Léa parou de se debater e olhou-o com estupor:
- Você é um monstro!
Ele deu um sorriso sem alegria.
- A Revolução pede muitos sacrifícios...
- Mas, é só uma criança!
- Não, agora é um homem.
No dia seguinte, na presença de duas dezenas de guerrilheiros e de Charles, Carmen foi enterrada no cemitério
de Santa Clara. Durante a curta cerimônia, Léa não tirou os olhos de seu filho adotivo. Os traços tensos, lívido,
o rapaz mantinha-se ereto. O ar ausente. Depois da última bênção do padre, ele partiu sem dar um único olhar
para Léa.
No dia 1° de janeiro de 1959, os insurgidos, assim como os militares e o resto da população, souberam pelo
rádio da fuga de Batista. Às doze horas e trinta, a batalha de Santa Clara estava terminada.
Fidel Castro organizou a ofensiva final obrigando a guarnição
de Santiago a depor as armas, e em seguida ordenando a Che e a
Camilo Cienfuegos que marchassem sobre Havana. Designação foi
dada a Che de tomar a fortaleza de La Cabafia e a Camilo de garantir
o controle da caserna de Colombia. A greve geral foi decretada
por quinze horas em Santiago.
Ao amanhecer do dia 2 de janeiro, Camilo e Che partiram em
direção a Havana.

Capítulo Quatorze

LÉA SUBIU NO CHEVROLET VERDE-OLIVA que havia sido requisitado, onde
encontravam-se Ernesto, Camilo e ajovem professora Aleida March, que havia servido de guia
ao Che durante a batalha de Santa Clara. Pelos olhares dos dois, Léa percebeu que haviam se
tornado amantes e alegrou-se em silêncio.
No caminho, a população fazia-lhes um cordão de honra, brandindo bandeiras cubanas e as do
26 de Julho. Atrás, em um outro veículo, seguiam Charles, Juan Albarón e Ramón Valdés que
havia sido ferido na perna mas, felizmente, sem gravidade. O filho adotivo de Léa tinha na
verdade o aspecto de um verdadeiro Barbudo, com seus longos cabelos sujos e uma barba que o
envelhecia. O sofrimento que a jovem mulher tinha experimentado com as mortes de El Vaquerito
e de Carmen havia sido atenuado com estes reencontros. Agora, ela impacientava-se por
encontrar-se novamente em Havana, ir até a embaixada da França e ter notícias de François e de
seus filhos. Além disso, sonhava em tomar um bom banho...
Durante a volta triunfal, os combatentes enfim puderam se alimentar bem e dormir em camas
verdadeiras. Léa não se cansava de deixar a água das duchas cair sobre seu corpo, que Camilo
segurava, todo molhado, para estirar-se sem pressa sobre uma cama hospitaleira. Quando ele
contemplou a pele de seu ventre e de seus seios que o bronzeado do rosto e dos braços deixava
mais pálida e a ferida há pouco cicatrizada, sentiu-se submergir por uma emoção até então
desconhecida para ele.
- Eu amo você - murmurou ele, os lábios em seus cabelos úmidos.
Ela não respondeu, mas apertou-se ternamente contra ele.
Camilo os deixou para reunir-se à sua coluna à frente da qual chegou a Havana. De imediato,
dirigiu-se para a caserna de Colombia, da qual tomou posse. O coronel Ramón Barquin, recém-
libertado da ilha des Pins, estendeu-lhe as chaves.
- Pensei em enviá-las para o vencedor de Santa Clara - disse o coronel. -Você é apenas o segundo,
como me disseram. Ou é a ele que volta Colombia, e não a Cabafia que é apenas uma posição de
segunda ordem...
- Estou ciente de sua opinião, coronel, mas Fidel Castro decidiu desta forma anteriormente.
Por sua vez, Ernesto Guevara, depois de ter tomado a bastilha havanesa, teve de resolver um
problema imediato: Faure Chomón e Rolando Cubela, dois dirigentes do Diretório que haviam lutado
sob suas ordens em Santa Clara e aos quais Castro havia recusado a honra de se reunirem às
colunas do 26 de Julho que fundava na capital, ocupavam no momento a universidade e o Palácio
presidencial, e recusavam-se a abandoná-lo. Camilo teve a idéia de atacálo, mas Ernesto preferiu ir
até o Palácio e, pelo diálogo, convenceu Chomón a abandonar os dois locais. "O homem que não ri
jamais" deixou-se persuadir e se retirou, acompanhado de Cubela e de seus partidários.
Fidel pôde então entrar em triunfo em Havana. Ele levou oito dias para chegar à capital.
Os veículos da armada rebelde tinham dificuldade para abrir passagem entre a multidão em delírio.
As pessoas brandiam bandeiras cubanas, sacudiam bandeirolas sobre as quais podia-se ler:
"Viva Fidel!", "Viva a Revolução!", slogans retomados e repetidos sem trégua. Homens e
mulheres se precipitavam sobre os Barbudos, os abraçavam, ofereciam-lhes flores, charutos,
frutas... Os guerrilheiros, na maioria jovens camponeses analfabetos do Oriente, respondiam com
largos sorrisos. De pé em um carro de comando, Fidel Castro saudava a multidão, os olhos
brilhantes, o rosto radioso. Vindo diante dele, desde a capital, Camilo Cienfuegos, que seus
admiradores aclamavam tanto quanto a Fidel, mandava beijos para as mulheres, sem abandonar seu
charuto. Seu chapéu de caubói jogado para trás descobria seu rosto largo.
- Parecem atores de cinema - murmuravam as mulheres.
Sentada entre Vilma Espín e Celia Sánchez, Léa divertia-se com esta apoteose, comparando a
atitude de Fidel à de Camilo. O primeiro recebia a homenagem do povo cubano com emoção e uma
certa comoção que a fazia sorrir; sentia-se que ele estava investido do poder de dirigir este povo e
que não entregaria isso a ninguém, talvez apenas uma parcela desta autoridade. O segundo aceitava
o fervor popular com um ar divertido, sem acreditar muito nele, mas no entanto achando bom
recebê-lo. Os jovens cubanos se identificavam muito com este tipo debochado que parecia divertir-
se como um garoto que acabara de fazer uma boa farra. De imediato, sentiram-se próximos dele,
amando a vida, a diversão, as mulheres, mais próximos do que lhes parecia este outro, com o olhar
de fogo, de palavras envolventes, capaz de lhes levar até a morte sem que verdadeiramente
compreendessem a razão. Alguns o tocavam como se fosse um ídolo, as mães estendiam-lhe os
filhos e ele, paternal, dava ao acaso um beijo em uma face ou uma testa. Outros ainda atiravam-se
no chão gritando por justiça pela morte de um marido ou de um filho... Fidel
consolava-os, reconfortava-os. Pressionados pela euforia popular, os enviados especiais da imprensa
internacional faziam seu trabalho com grande dificuldade, anotando clichê sobre clichê. Atirando-se
nos braços dos Barbudos, um lenço vermelho ou um cravo atrás da orelha, todas as jovens mulheres
queriam ser fotografadas ao lado dos heróis da Revolução. Os antigos insurgidos deixavam-se
fotografar, maravilhados como garotos diante de uma montanha de presentes.
A caravana, que havia sido imobilizada uma enésima vez, voltou a partir parando apenas para
reabastecer, sem pagar: era uma ordem proveniente de Castro em pessoa, em represália contra a
companhia petrolifera britânica depois que Londres aceitou enviar aviões a Batista, os mesmos que
haviam bombardeado os rebeldes em Santa Clara. Lentamente, em meio a uma multidão febril, o
cortejo aproximava-se de Havana. Em Matanzas, a 150 quilômetros da capital, Léa e seus
companheiros permitiram-se algumas horas de descanso, apesar da confusão ambiente que
prolongou-se por toda a noite.
Fazia um tempo fresco e luminoso, naquela manhã de 8 de janeiro. Léa havia tomado lugar em um
jipe em companhia de outras mulheres da Sierra. Todas usavam uniformes limpos, ornados com a
braçadeira do 26 de Julho. Ao longo do caminho, vendedores de souvenirs ofereciam suas
mercadorias: fotos de Fidel tiradas sob todos os ângulos, em pé, só o busto, no meio de seus
Barbudos ou nos rochedos da Sierra, sem contar uma série infinita de artigos inspirados nos heróis
do dia. Entre mil outras bobagens, encontram- se canecas pintadas com a efígie das quatro grandes
figuras da Revolução: Fidel Castro, Che Guevara, Manuel Urrutia e Camilo Cienfuegos, ou bonecos
barbudos em uniforme cáqui levando a famosa braçadeira do "26". Léa comprou dois para suas
filhas, mas recusa-se a adquirir um guardanapo decorado no meio por um retrato de Fidel... "Tinta
garantida, não descora!", gritavam os vendedores. Das centenas de alto-falantes vinham as novas
canções compostas para a glória da revolução: Sierra Maestra, Que viva Fidell, La Revolución
de !ajuventud, Fidelte liego etc., que saturavam as ondas.
Entrou-se enfim nos subúrbios de Havana ao som de sinos que repicavam a toda velocidade do alto
das igrejas. A perder de vista, um oceano de braços agitavam incontáveis flâmulas. Repentinamente,
o coração de Léa começou a disparar; pareceu escutar... não, não é possível! E no entanto... À
medida de seu irresistível avanço, o rumor se precisava. Ela virou-se para suas companheiras:
- Vocês... vocês estão ouvindo?
- Sim, eles estão cantando La Marseiliaise.
- Mas por quê?
A mais velha a olhou com um ar reprovador:
- É você, uma francesa, quem faz a pergunta? La Marseiliaise é o primeiro canto da liberdade que
nós aprendemos, é o hino internacional dos revolucionários... É normal que todos nós a cantemos
hoje: não estamos livres? Observe o povo em volta de nós, ele aclama a revolução: então,
naturalmente, ele entoaLaMarseillaise, o canto de todas as revoluções do mundo... "As armas,
cidadãos, formem seus batalhões! Marchemos, marchemos, que um sangue impuro inunde nossas
fileiras...", declamou ela a plenos pulmões.
O rosto banhado de lágrimas, apertando alternadamente as mãos de Violeta e de Celia, longe de seu
país, que voltava-lhe repentinamente tão forte, dilatando seu peito, Léa cantou com todo o coração:
"Vamos, filhos da pátria, o dia de glória chegou..."
De pé em um jipe que seguia lentamente, o fuzil preso ao corpo por uma tira de couro em diagonal,
tendo pela mão o pequeno Fidelito, seu filho de 10 anos, Castro sorria para a multidão. O cansaço
assim como as lágrimas deixavam seus olhos vermelhos. Ele parou para saudar por prioridade os
marines, que foram os primeiros a se reunir à sua causa. Diante do forte de la Cabafia, sobre o
porto, todos vestidos de branco, os marines apresentaram as armas ao novo chefe. Descendo do
carro, emocionado, Fidel apertou as mãos que se estendiam. "Seria uma brincadeira de criança
descê-lo", comentou um correspondente de imprensa. Os Barbudos que garantiam o serviço de
ordem tiveram de protegê-lo a coronhadas. A pé, ele teve
dificuldade em percorrer os trezentos metros que o separavam do Palácio do governo onde o
esperava o presidente Urrutia. Quando os dois homens apareceram na sacada, as aclamações
redobraram e Fidel estendeu as mãos sobre a maré humana que, pouco a pouco, fez silêncio,
suspensa aos lábios de seu libertador:
- "Eu os libertei de um tirano que oprimia o povo e martirizava aqueles que ousavam elevar a voz
contra os abusos do regime! Uma grande potência próxima de nós, vocês sabem o que eu quero
dizer (a multidão explodiu em risos), me acusa atualmente de ser um agente comunista e, ainda mais,
um assassino, por ter executado na província homens perigosos que eram verdadeiros matadores da
gangue de Batista. Vocês sabem que nossas prisões estão cheias destes policiais que torturaram e
mataram seus irmãos sob o antigo regime. Eles mesmos foram se refugiar em nossas prisões,
temendo a reação do povo. Os tribunais militares examinam os dossiês destes criminosos, cujos
processos serão abertos em alguns dias. Mas quero que o mundo inteiro saiba que são vocês, o povo
de Cuba, que vão decidir o destino deles. Se vocês pedirem a graça, eles serão agraciados, porque
não sou um assassino. Quarta- feira próxima, neste mesmo lugar, aguardarei o veredicto de vocês
durante um grande encontro popular."
- Morte aos assassinos! - logo gritou a multidão.
A noite havia caído. Castro deveria ir para o quartel-general da armada, comandado por Camilo
Cienfuegos na fortaleza de Colombia, e pronunciar um discurso diante dos soldados das forças
rebeldes, aqueles das antigas tropas de Batista que se renderam, assim como da população civil que
havia sido incitada a reunir-se em massa.
- Toda Havana veio ouvi-lo! - gritou Camilo diante da enorme assistência.
Sob os projetores, a multidão que se movia era como um mar com suas ondas, suas precipitações,
seu fôlego, e parecia a todo instante a ponto de tomar a alta e estreita plataforma sobre a qual Fidel
Castro ia assumir a palavra.
- Viva Fidel!... Viva Camilo!... - gritavam dezenas de milhares de
vozes.
Castro enfim respondeu:
- "Creio que chegamos a um momento decisivo de nossa história: a tirania foi derrubada, a alegria
por todos os lugares é imensa. E no entanto, ainda há muito a fazer. Não nos enganemos, não
acreditemos que tudo será fácil, porque é bem possível que tudo, no entanto, torne-se mais difícil. O
primeiro dever de todo revolucionário é dizer a verdade: enganar o povo, envolvê-lo em ilusões
falaciosas levará às piores conseqüências; é porque eu estimo que seja preciso preveni-los contra
um otimismo exagerado. Tenho razão, Camilo?"
- iTienes razón, Fi de 1!
- "Como a armada rebelde ganhou a guerra? Dizendo a verdade. Como a tirania perdeu a guerra?
Enganando seus soldados. Quando nós experimentamos um revés, nós anunciamos
naRadioRebelde, não hesitamos em criticar os erros não importa de qual oficial nosso, nós
advertimos todos os nossos companheiros para que não lhes aconteça a mesma coisa. E não foi
assim no exército de Batista: unidades distintas caíram nos mesmos erros porque não se dizia
averdade aos soldados. E porque eu quero começar, ou mais exatamente, continuar a usar os
mesmos princípios com o povo:
dizer-lhe a verdade. No tengo razón, Camilo?"
- iTienes razón, Fidel!
- iSi, si! iTienes razón, Fidel! - repetiu a multidão, aos gritos.
Aproximando-se ainda mais do microfone, segurando-o com um gesto suave, Castro continuou como
se em confidência, com uma voz mais baixa que voou através da noite, fazendo dezenas de milhares
de ouvintes como cúmplices atentos:
- "Tenho uma pergunta para fazer ao povo: Por que esconder as armas em diferentes locais da
capital? Por que dissimular armas neste momento? Por que fazê-lo? Armas para que uso? Para
lutar contra quem? Contra o governo revolucionário que apoiou o povo inteiro?"
- Não, não!... - respondeu a audiência.
- "Será que a situação é a mesma com o juiz Urrutia à frente da República do que com Batista?"
- Não! Não!
- "Armas por quê? Será que há uma ditadura aqui?"
- Não!
- "Será que queremos lutar contra um governo de liberdade que respeita os direitos do povo?"
- Não! Não!
- "Armas, para quê? Agora que as eleições vão acontecer logo que possível? Esconder as armas
com que objetivo? Para fazer cantar o presidente da República? Armas, para quê? Bem, é preciso
que eu termine dizendo a vocês: há dois dias, membros de uma certa organização encontraram-se
em uma base militar e colocaram as mãos sobre cinqüenta armas leves, seis metralhadoras e oitenta
mil projéteis."
- Vamos procurá-los! - vociferou o público.
Com uma voz mais forte, Castro continuou:
- "Um grande passo foi dado, um passo em um avanço definitivo, parece-me; aqui estamos na
capital, estamos no campo de Colombia e as forças revolucionárias parecem vitoriosas. O governo
está constituído, reconhecido por numerosos países do mundo inteiro. Segundo toda probabilidade, a
batalha da paz está ganha e, no entanto, não devemos ceder ao otimismo. No tengo razón,
Camilo?"
- iTienes razón, FidelU!
Depois de alguns instantes, um casal de pombos, talvez assustados com os projetores, voava em
torno do orador. Um deles finalmente pousou em seu ombro. A outra hesitou, em seguida pousa
junto a seu companheiro sob o olhar debochado de Camilo. Ao espetáculo de tamanho prodígio,
milhares de cubanos fizeram o sinal-da-cruz. Por este sinal, o próprio Deus mostrava que ele tomava
Fidel sob Sua proteção e, com ele, o povo cubano. Na tradição afro-cubana, o pombo representa
aVida e Fidel, colocado sob a proteção do belo pássaro branco, deveria ter aberto diante de si um
destino de felicidade e de glória.
O dia se levantava, Fidel Castro voltou ao último andar do hotel Hilton e Camilo Cienfuegos à casa
que ocupava no interior do campo,
onde Léa o esperava. A jovem mulher havia acompanhado o discurso, transmitido pela televisão.
- Formidável a cena das pombas! - entusiasmou-se ela.
- Não foi?... - respondeu ele, lacônico, antes de acrescentar: -Venha, estou com vontade de passear
à beira-mar; estou muito ansioso para dormir.
Vários veículos estavam estacionados diante do prédio.
- Me dê as chaves do Cadillac - pediu ele ao jovem soldado de guarda.
- Sim, comandante.
O carro desceu a colina e alcançou o Malecón, no momento em que o sol levantando-se iluminava a
baía. Camilo seguiu a toda velocidade até o porto, fez uma meia-volta cantando os pneus, em
seguida partiu como capô aberto na direção de Miramar. Ele repetiu esta manobra várias vezes.
- E se nós parássemos para beber alguma coisa? - sugeriu Léa com uma voz doce, colocando sua
mão sobre o ombro dele.
Camilo virou a cabeça na direção dela como se tivesse saído de um sonho. Ele sorriu e,
progressivamente, diminuiu a marcha. Parou enfim diante de la Cabafla e da gigantesca estátua
representando o Cristo. Ele ajudou elegantemente Léa a descer. Uma leve brisa fazia seus cabelos
voarem. Eles caminharam na beira d'água, abraçando-se pela cintura; pareciam um casal de
apaixonados como tantos haviam em Havana...
Eles foram a pé até o bar Los Dos Hermanos, onde o cartaz brilhava na madrugada; o
estabelecimento ficava aberto dia e noite. Léa não tinha voltado ali desde sua fuga de Havana.
Naquela hora, o café estava deserto. Eles instalaram-se no balcão e pediram dois cafés.
- Estou com fome - disse Léa, a cabeça apoiada no ombro de seu companheiro.
- Tenho pãezinhos com chocolate bem quentinhos - propôs o garçom.
Os pãezinhos estavam deliciosos, eles devoraram vários, acompanhados de café forte.
No dia seguinte, Camilo partiu para Pinar dei Rio e Léa voltou à casa de Miramar. Um espetáculo desolador a
aguardava: a casa havia sido saqueada; a louça em pedaços, os revestimentos arrancados, as poltronas
rasgadas, os móveis atirados atestavam o furor dos policiais, que haviam vindo investigar em vão. Juan
Albarón acompanhava Léa de aposento em aposento como uma sombra. Em um dos banheiros, traços de
sangue seco sobre os azulejos os fizeram tremer. Ainda não tinham notícias de Mariana: Juan, que havia
voltado a Havana algumas horas antes, já havia percorrido os comissariados de polícia. Mas os policiais
derrotados, que preocupavam-se apenas com sua salvação, tinham outros lugares a vasculhar... Camilo havia
prometido organizar buscas e, pouco antes de sua partida, não havia se esquecido de dar as instruções
necessárias.
Jovens voluntários vieram ajudar Léa a recolocar a casa em ordem e o telefone foi rapidamente restabelecido.
Dois dias depois de ter retomado a posse da casa, Léa fez uma visita ao embaixador da França; o diplomata a
recebeu com emoção. Como havia mudado! Ajovem e elegante européia havia se transformado em uma
guerrilheira magra e bronzeada.
- Como estou feliz por vê-la em boa saúde! Seu marido não pára de escrever e, deAlger, nos bombardeia de
perguntas. Eu vou enfim poder telegrafar para ele avisando-o que você está sã e salva.
- Como vai ele?
- Bem, eu creio... Você está a par dos acontecimentos que se desenrolaram tanto na França quanto naArgélia?...
O que é certo é que ele participou de maneira ativa. Mas não sei muito mais...
- Mas ele escreveu?
- Sim, e estou comvárias cartas dele; minha secretáriavaienviálas a você.
Quando tomou posse da preciosa correspondência, Léa deixou
precipitadamente a embaixada, esquecendo-se até de agradecer ao embaixador, sr. Grousset...
Chegando em casa, rasgou o primeiro envelope:
Meu amor
Estou cheio de angústia! Nenhuma notícia de você, e Grousset não me escondeu sua
inquietude. Luta-se, ao que se parece, em todo o Oriente e até em Santa Clara. Você tomou
parte dos combates? Se puder me dê um sinal de vida.
Envio a você algumas linhas deAlger que está em uma confusão totaL De Gaulie teve sucesso
em seu golpe; e nada de menos democrático do que este golpe. Entre seus assistentes mais
próximos há pessoas duvidosas, vindas da extrema direita; podemos apenas nos
inquietar pelo futuro.
Jamais senti tanto a sua falta. Quando receber esta carta, responda-me!
Amo você.
A carta seguinte era de sua irmã:
François.
Querida Léa,
Onde você está? O que houve? Seusfilhos e eu estamos na maior ansiedade. Camilie agora
acorda todas as noites chamando porvocê. Quanto a Adrien, seus pesadelos o impedem de
dormir tranqüilo. Apenas a pequena Claire não dá nenhum sinal de melancolia.
Os acontecimentos na França e naArgélia criaram aqui um clima de desconfiança e de
angústia. O retorno dogeneralDe Gaulle atenuou um pouco o impacto, mas a guerra
continua do outro lado do Mediterrâneo e o moral do exército, ao que parece, está muito
baixo. Pela imprensa, nós acompanhamos também a evolução da situação em Cuba.
Quando penso que você está envolvida em tudo isso! E talvez até mesmo em perigo...
François nos escreveu que Charles encontrava-se com você, assim como seu amigo Ramón
Valdés; isso nos tranqüilizou um pouco. Eu lhe suplico, assim que puder volte! Montillac
sem você não é mais Montillac...
Um beijo de todos nós.
Sua irmã,
Na terceira carta, ela reconheceu a letra de Adrien:
Françoise.
Mamãe querida,
Escrevo em nome de nós três. Você nos faz tanta falta! Se ficar muito tempo ausente,
Camilie vaificardoente. Tio Michel e tia Françoise são muito gentis conosco, eles tentam
nos distrair mas isso está cada vez mais difícil. Felizmente temos tido notícias de papai.
Estou orgulhoso de que ele esteja com o general De Gaulle. Meu primo Pierre e eu, se
fôssemos grandes, iríamos encontrá-los para fazer a guerra e para que aArgélia
permaneça francesa. Papai e tio Michel têm grandes discussões a respeito; eles não estão
de acordo. Creio que meu tio é pela Argélia francesa e que papai é contra. E você, o que
acha?
Charles teve a oportunidade de lutar ao lado de Fidel Castro. Ele também deixou crescer a
barba? Escutamos no rádio que os Barbudos entraram em Havana. Você estava com eles?
Isso deve ter sido formidável! Tomara que eu cresça para também poder irà guerra!
Camilie diz que ludo isso são bobagens e que os homensfariam melhor caso se se
ocupassem de seus filhos em vez de se matarem. São as garotas que falam assim, porque
elas não sabem nada dos assuntos dos homens. Quando você estiver aqui, tenho certeza de
que afará mudar de opinião.
Nós três a abraçamos bem forte. Você nos faz muita falta. Volte logo!
Seu filho que ama você,
A última carta havia sido postada em Alger:
Minha mulher adorada,
De Gaulie acaba de sereleito presidente da República com 68% dos votos e Chaban-
Delmas encontra-se na presidência daAssembléia Nacional Os comitês de salvaguarda
nacional, nascidos do 13 de maio, desapareceram e o general De Gaulie lançou um apelo
aos combatentes argelinos propondo-lhes apaz dos bravos; Ferhat Abbas respondeu que o
cessar-fogo só poderia acontecer depois de um acordo político. Já fiz várias viagens para a
Argélia com o general Michel Debré quem está encarregado deformaro primeiro governo
da V República.
Então, Castro finalmente triunfou e, com ele, a Revolução. A imprensa francesa fez longas
reportagens, às vezes contraditórias, da fuga de Batista, da perda da batalha de Santa
Clara pelos rebeldes, em seguida de sua vitória, da noite de São Silvestre, enfim da entrada
em Havana do seu namorado argentino. Em compensação, soube com desprazerda fuga de
nosso "amigo" Ventura! Quem é este da junta militar do general Eulogio Cantillo e do
doutor Carlos Pietra, este membro da corte suprema de Cuba que foi provisoriamente
nomeado presidente da República em sua qualidade de superior dos magistrados? Mas, as
últimas notícias nos dizem que Fidel Castro recusou este presidente e que deseja introduzir
um outro magistrado, Manuel Urrutia, um ancião de Santiago que foi exilado em Miami.
Quem é ele? Imagino a desordem, por aí...
Na França, apesar da volta de De Gaulie, tudo está bem moroso. O tempo está
esgotador:frio, neve e inundações atingem um pouco todas as regiões. Os preços
aumentam, é o que todos me contam; esperam-se greves. Passei o Natal com as crianças,
um Natal que foi muito triste por causa de sua ausência, apesar da bela árvore e da ceia
que fizemos, os presentes e o delicioso réverion preparado por sua irmã. No dia seguinte,
com um tempo bem frio, nós quatro passeamos pelos vinhedos. Contei a eles a respeito da
pequena Léa correndo através do campo... Camilie apertou minha mão com força. "Conte
mais sobre mamãe pequena", disse-me ela. Tive que
inventar um pouco, já que não conheço tudo a respeito de sua infância. Então tracei-lhes um
retrato de Léa da forma como eles o desejavam,falei-lhes de sua coragem, de seu riso, de sua
alegria de vivei de seu lado ruim também - no qual Camille não quis acreditar...
- e de suas bobagens, enfim, que fizeram a alegria deAdrien, que decidiu escrever As
aventuras de Léa sob a forma de uma história em quadrinhos. Já observei a qualidade dos
desenhos, mas desta vez ele alcançou progressos extraordinários. "Talvez se torne um artista
", disse sua irmã, com um tom de reprovação na voz...
A frase fez Léa sorrir, imaginando o muxoxo de sua irmã diante da idéia: "Um artista na família!
Um pintor! E por que não um ator?! Ainda se fosse Picasso..." No entanto parecia que Adrien
havia nascido com um lápis entre os dedos. Bem pequeno ele desenhava cavalos, aviões, caubóis
com um traquejo surpreendente. Ele havia feito retratos de suas irmãs e de seus pais que Léa
guardava com carinho. Sonhadora, ela retomou sua leitura:
...Quanto a mim, é dificilcontaro que tem sido minha vida desde minha partida de Havana,
tantas coisas ainda permanecem secretas. Apesar de tudo, não penso serdotado para
apolítica;falta-me hipocrisia e ambição pessoal Além do mais, não sou um assassino, a
exemplo de meus companheiros da célula-com exceção dePouget, que é um puro ejá foi
afastado.
Soube pelo embaixador da França em Havana que Ramón e Charles encontravam-se com
você, o que me tranqüilizou um pouco. Espero sempre pornotícias suas com uma impaciência
que você pode imaginar Longe de você, consigo avaliar melhora importância que você tem
em minha vida. Tenho urgência de apertá-la novamente em meus braços e de lhe dizer meu
amor Escreva-me para dizer- me que me ama, você também, e que está em boa saúde.
Seu velho esposo solitário,
François.
Léa instalou-se em sua mesa para responder-lhe imediatamente:
Meu querido velho marido,
Para mim também, a vida sem você não tem sentido. É como se tivesse sido amputada de uma
parte essencial de mim mesma.
Voltei a Havana no cortejo de Fidel e de seus "Barbudos" em companhia de Charles e
deRamón, e todos os dois portam-se muito bem. Minha vida, nestes últimos meses, foi a de
uma guerrilheira, com seus medos, suas alegrias, suas feridas, sua exaltação e seu
aborrecimento. Participei da batalha de Santa Clara ao lado do Che e de um jovem rapaz
corajoso que morreu diante dos meus olhos. Ele chamava-se El Vaquerito e jamais poderei
esquecê-lo. A amiga de Charles, Carmen Pineiro, também foi morta; não preciso lhe dizer
mais a respeito.
Assim que for possível, irei encontrá-lo com Charles.
Mas, antes da partida, tenho coisas para acertara qui. No meu retorno, encontrei a casa
saqueada e com indícios que me fazem pensar que Mariana - a jovem que eu havia
contratado para cuidar da casa e da qual não obtive a menornotícia - teve um destino
funesto. Um dos chefes da Revolução empreendeu, no entanto, todos os esforços para
encontrar a pista dela, mas acredito que será em vão. Juan, seu marido que me acompanhou
até a Sierra, erra como uma alma penada pela casa.
Charles tornou-se um perfeito guerrilheiro que Fidel em pessoa felicitou por sua bravura em
combate. Os dias que passei com estas pessoas as tornaram queridas para mim para sempre.
O ideal revolucionário é uma causa bem nobre, e espero que Cuba obtenha sucesso onde
tantas outras nações fracassaram.
Durante as longas caminhadas, as noites sem dormir e as horas de ociosidade forçada, tive
tempo de refletirsobre o que me é essencial, a saber você e as crianças - Charles incluído, é
claro. Atualmente cheguei a uma idade em que devo tomar consciência do que é importante e
do que não o é. Tive a sorte, ou a má sorte, de viver minha
adolescência em uma época conturbada, que impunha se fazer escolhas. Creio que as que fiz
não foram ruins; em todo caso, não me arrependo delas. Mesmo este triste acontecimento da
Argentina, com Sarah, me permitiu compreender melhor algumas das terríveis realidades desta
vida. Quanto à epopéia da Indochina, ela me abriu os olhos para as injustiças cometi das
pornossos compatriotas nestes países que eles apenas querem explorar sem compreendê-los.
Aqui, agora, vejo todo um povo levantar-se para recuperar sua liberdade e sua honra.
Suponho que, se me encontrasse na Argélia, descobriria ainda coisas novas e me sentiria
mais próxima dos argelinos do que dos europeus...
Li o livro que você me mandou, A questão, e emprestei-o a Fidel e depois ao Che. Todos os
dois saíram perturbados desta leitura, manifestando a maior dificuldade em acreditar que os
franceses tenham podido se sentir tão culpados de uma barbárie semelhante. Charles também
o leu e a única frase que me disse depois de me devolver o livro de Allegíoi: "Se estivesse na
França, me reuniria à FLN." São numerosos os jovens franceses que pensam como ele?
Você não me parece feliz com a chegada de De Gaulle ao poder No entanto, você contribuiu
para isso e às vezes no limite da legalidade, se compreendi bem...
Estou feliz que tenha passado as festas do Natal com as crianças. Aqui, nós esquecemos de
celebrá-las e passei a noite de 24 para 25 de dezembro em um caminhão! Espero
ardentemente que, no próximo ano, estejamos todos reunidos para a ocasião.
Você me faz falta... você me faz falta! Tenho grande pressa de
revê-lo.
Amo você,
Léa.
Com o ar distante, ela deixou seu olhar errar para fora do jardim, mas sem ver o mar... Seu
coração ficou apertado quando pensou que deveria deixar este país pelo qual ela agora
experimentava uma ternura tão grande. A campainha do telefone a arrancou de seus
pensamentos.
- Alô? Sou eu, Camilo. Estou aborrecido sem você... Venha me encontrar!
Ele a telefonava no instante preciso em que ela acabara de sentir o desejo de ouvi-lo... Camilo
representava para ela o que Cuba havia produzido de mais bonito, de mais próximo de um ideal
humano. Ele mostrava-se ao mesmo tempo engraçado e terno, corajoso e indolente, amante da
música e das mulheres... que o cortejavam bem! Com ele, Léa sentia-se de imediato segura,
descobrindo-se confortável em sua feminilidade. Se ela não tivesse amado tão totalmente François,
ela teria amado louca- mente Camilo.
- Alô, Léa? Está me ouvindo?... Venha, estou lhe dizendo...
- Mas onde está você?
- Estou partindo para a ilha des Pins... Sei que um barco vai largar as amarras esta tarde: tome-o.
Realmente desejo você...
- Eu também - disse Léa. - Estou indo!
- Obrigado, minha mulher adorada!
"Minha mulher adorada..." Como ele havia dito isso! Ela percebeu de um golpe que deveria agora
ser firme e não se deixar embarcar para um futuro impossível.
Ela retomou a caneta para responder sucessivamente a Adrien e a sua irmã:
Meu rapaz,
Sua carta me deu um imenso prazer Estou orgulhosa em saber que você tem cuidado bem
de Camilie. Faz muito bem, mas saibam os dois que logo estarei perto de vocês.
Charles mudou muito e não sóporcausa da barba grossa - você malpoderia reconhecê-lo.
Nós estávamos juntos perto de Fidel Castro e do amigo de seu pai, Ramón Valdés. Diga a
Camille que muitas mulheres lutaram com tanta coragem quanto os homens.
Você não me falou da escola: espero que não aproveite nossa ausência para deixar de
estudar.. Papai me escreveu que você queria fazer uma história em quadrinhos, que boa
idéia/Eu também
adoro histórias em quadrinhos; vou levar-lhe uma que conta a história de Fidel Castro e de seus
Barbudos.
Você deve ter crescido bastante e também vou ter dificuldades em reconhecê-lo. Mas, de
qualquer forma, você sempre será o meu menino.A pequena Claire também deve termudado
muito; você não me falou nada a respeito dela. Fale sempre com ela a meu respeito e sobre
papai para que ela não nos esqueça.
Seu pai me disse que vocês passaram o Nataljuntos e que vocês foram muito mimados. Como
eu invejo vocês quatro! Mas prometo que este foi o último Natal em que passamos separados
uns dos outros.
Abrace forte suas irmãs por mim, seu tio e sua tia, e guarde para você os melhores beijos.
Sua mãe que ama você.
Minha querida irmã,
Foi um grande reconforto para mim receber esta sua carta que me dá tantas boas notícias
das crianças e de vocês dois. Felizmente você se tornou para elas uma segunda mãe que,
tenho certeza, sabe apaziguar suas angústias. Nunca conseguirei lhe agradecer o suficiente
por tudo o que faz por elas.
Retratar para você o que tem sido minha vida nestes últimos meses seria equivalente a
escrever um romance de aventuras que lhepareceriam inverossímeis. Mas lhe contarei a
maiorparte de viva voz, o que sei que não vai tardara acontecer: embarcarei para a França
assim que terminar de organizar nossos negócios poraqui e restituira casa em bom estado.
Em sua carta, você não me falou de Montillac: as vendas foram boas? Como lhe parece o
ano de 59? François me disse que houve inundações em toda a França. Felizmente Montillac
encontra-se ao abrigo deste desastre. Você também não me disse como estão seu marido e
seus filhos. E você, minha irmãzinha, como vai? Todas estas cargas que pesam sobre você
não são muito pesadas? Você tem tido tempo
de pensar em si um pouco, de percorrer às vezes as lojas de Bordeaux, ou até de Paris?
Assim que soubera data de meu retorno, os avisarei. Aguardando este precioso momento,
cuide-se bem, e de todos os nossos pequenos.
Abraços para todos.
Sua irmã que ama você,
Léa.
Léa subscreveu os diferentes endereços sobre os envelopes, os fechou e procurou os selos em sua
escrivaninha.

Capítulo Quinze

O BARCO QUE A CONDUZIU à ilha des Pins estava lotado de jovens barbudos de uniforme
verde-oliva. Os risos e as brincadeiras eram muitos. Vários lançavam para Léa olhares
enamorados, sem no entanto ousarem dirigir-lhe a palavra. No porto, Camilo, cercado de sua
guarda, seu eterno chapéu jogado para trás, a esperava. Mal a passarela havia sido colocada, ele
subiu a bordo e a tomou nos braços sob os vivas dos jovens soldados. Ele os saudou com a mão,
mantendo Léa contra si.
O porto de Nueva Gerona estava lotado. Vendedores de souvenirs da Revolução, vendedores
de café, garotos esfarrapados, belas moças, militares e curiosos amontoavam-se. Os dois
entraram em um jipe conduzido por Camilo. Eles seguiram pela Playa Bibijagua, uma longa faixa
de areia vulcânica negra em torno da qual emergiam os cinco edifícios circulares do Presídio
Modelo onde Fidel Castro havia sido encarcerado por vários meses depois do ataque à caserna
de Moncada. Eles ainda seguiam até a segunda cidade da ilha, La Fe, com ruas cercadas de
árvores. Por um grande portão, penetraram no jardim de uma bela casa de estilo colonial. Sob a
varanda que a
cercava, soldados se refestelavam em cadeiras de balanço. Eles se levantaram à chegada do jipe.
Camilo saltou do veículo e o contornou para ajudar Léa a descer. Uma jovem negra aproximou-se,
trazendo em uma bandeja copos cheios de uma bebida cor de âmbar. Camilo apanhou um e
estendeu à sua companheira.
- Bem-vinda, meu amor, e à sua saúde!
Léa ergueu seu copo e experimentou a deliciosa mistura.
- Hum... é muito forte! O que é isso?
- É um coquetel preparado por mim... Atéo Papa Hemingway pediria uma nova rodada, não é?...
Venha, agora vou mostrar-lhe a casa.
Ele pegou dois outros copos e subiu a escada da entrada, seguido de Léa. A residência era espaçosa
e fresca, repleta de um mobiliário escuro, antigo. Ele empurrou a porta de um grande quarto bem no
meio do qual encontrava-se uma monumental cama com dossel.
- Você ficará como uma rainha - declarou ele, colocando os copos em uma mesinha de mármore. -
Requisitei esta casa para você... Ela lhe agrada? - acrescentou ele, atirando o chapéu sobre a cama.
- Muito... Ah, não!
- O que houve?
- Não se atira um chapéu sobre uma cama, isso traz coisas ruins! - disse ela, retirando o chapéu.
Ela o colocou sobre uma cadeira. Ele caiu na gargalhada, depois tentou beijá-la sobre a colcha
imaculada.
- Não sabia que você era supersticiosa...
- Depende! - disse ela, misteriosa, escapando dele.
Lá fora, músicos tocavam em surdina um bolero melancólico e lancinante. Camilo a abraçou. Eles
dançaram por alguns instantes, estreitamente apertados um contra o outro. Docemente, ele a pôs na
cama, em seguida, também lentamente, a despiu. Ficou por um longo tempo a contemplar o corpo
nu, ao mesmo tempo
acariciando-o com uma mão atenta. Jamais tinha imaginado conhecer uma mulher como esta, sobretudo
desejá-la tanto junto a si. O prazer que ela lhe oferecia não era nada diante da felicidade que ele
experimentava ao espetáculo do seu. Seus gritos, seus suspiros de prazer deixavam-no louco de
alegria e de reconhecimento. Ela abandonava- se em seus braços como nenhuma outra mulher,
antes dela, o havia feito, com uma naturalidade, um impudor do qual nem mesmo os cubanos
testemunhavam. Ele rapidamente havia confessado seu amor por ela a Che, seu rude companheiro
de combate, mas também seu melhor amigo. Logo de início ele havia lhe lembrado que Léa era uma
mulher casada, mãe de vários filhos, e que voltaria, cedo ou tarde, para seu país.
- Ela pode se divorciar... Você divorciou-se de sua peruana para casar-se com Aleida March!
- Não é a mesma coisa: Aleida é cubana.
- Léa, casando-se comigo, também se tornará.
- Camilo, eu conheço esta mulher, sei que ela é maravilhosa... mas você cometerá o maior erro de
sua vida casando-se com ela. É uma francesa orgulhosa e mimada... Ela também já sofreu muito...
- Justamente!
- Justamente o quê? Não seja idiota, ela jamais abandonará seus filhos... Você a viu bem, com seu
filho adotivo: ela veio até a Sierra para velar por ele. Enfim, ela é muito ligada ao seu marido.
- Não tenho esta impressão quando ela está em meus braços...
- Léa é uma mulher sensual, que ama o amor e não sabe ficar casta por muito tempo...
- Tenho certeza de que ela me ama!
- Da maneira dela...
- Você diz isso porque está com ciúmes.
Ernesto Guevara havia observado seu amigo com um ar espantado, antes de explodir de rir:
- Acredite-me, Camilo, esta não é uma mulher para mim, nem para você.
- No entanto você foi amante dela...
- É verdade, e esta é uma das melhores lembranças de minha vida... No entanto, desde aquela
época, sempre soube que a perderia...
- Confesse que você ficou perturbado quando aviu novamente na montanha, com sua trouxinha.
- Sim, e tive um desejo louco de tomá-la em meus braços... As lembranças dos momentos passados
com ela voltaram-me bruscamente. Durante um breve instante, a tentação de largar tudo lá e de
partir com ela atravessou-me o espírito.., mas não seria nem razoável, nem realista.
- Porque você pensa que o que fizemos durante tantos longos meses foi razoável e realista?
Che não respondeu. Acendeu seu charuto. Os dois homens permaneceram afastados em
pensamentos divergentes mas habitados por uma mesma mulher chamada Léa...
A noite havia caído quando ela afastou-se dos braços de seu amante adormecido. Diante do espelho
do banheiro ela contemplou seu rosto de lábios inchados que ainda tinham as marcas do prazer. Ela
levantou seus seios aos pontos machucados pelas mordidas e sorriu ao seu reflexo. Quantas vezes
ela havia se contemplado em um espelho depois do amor? Ela amava estas marcas sobre seu corpo,
estes odores que escapavam de seu ventre, este licor que corria docemente ao longo de suas coxas.
- François... - murmurou ela.
Ela estremeceu ao ouvir o som de sua própria voz. Por que, cada vez que ela estava fogosamente
abandonada nos braços de um outro homem, sempre pensava nele, em François? Ausente, ele se
fazia ainda mais presente e os sexos que a haviam sempre penetrado a haviam levado, apesar do
espaço que os separava, a reunir-se a ele. Apenas François contava; os outros haviam estado lá
apenas para ajudar a tornar as ausências dele menos penosas. Através deles, era com ele que ela
fazia amor, e seus amantes haviam sido apenas
instrumentos de prazer necessários à sua sobrevivência. Ou quase isso... Ela não experimentava por
Camilo um sentimento vizinho do amor? Não sabia que o deixaria com tristeza, um pesado
sofrimento no coração? Aceitando reunir-se a Camilo na ilha des Pins, ela havia prometido a si
mesma comunicar-lhe sua partida próxima para a França. Mas, por hora, ela ainda não tinha ousado
estragar a felicidade de seu amante.
Repentinamente o rosto do cubano enquadrou-se no espelho ao lado do seu. Eles contemplaram-se
calmamente; o olhar de Camilo falava de todo o seu envolvimento; o de Léa, de sua terna
cumplicidade.
- Quero que você seja minha mulher - murmurou ele no pescoço.
Léa fechou os olhos e abandonou-se contra seu torso nu.
- Diga sim - acrescentou ele, sussurrando.
O tumulto de seu coração parecia encher o aposento. Ela recuou diante da dor que iria lhe causar.
Ele então a levantou e levou-a até a cama. Ela se debateu, não era mais o momento, tinha de falar
com ele, mas os lábios de Camilo fecharam os dela. As mãos do homem apalpavam seus seios e seu
sexo penetrou-a com força. Então, mais uma vez, ela se entregou.
Por um longo tempo, eles permaneceram imóveis, cobertos de suor, recolhidos nos braços um do
outro.
- Minha mulher... - sussurrou ele.
- Não! - gritou Léa, afastando-se quase brutalmente.
Surpreso, ele também sentou-se na cama.
- Não - repetiu ela, mais brandamente -, não sou sua mulher. As circunstâncias me separaram do
homem que eu amo, mas vim para dizer-lhe que vou partir para encontrá-lo.
- Você... você não pode fazer isso!... Você é minha mulher...
- balbuciou ele.
- Não, Camilo, sou a mulher de outro, e você sabe disso, você sempre soube. Sou apenas sua
amante.
- Eu não deixarei você partir!
- No entanto, é preciso. Aqui, serei apenas um obstáculo para você. Você deve entregar-se à
Revolução, seu país precisa de você, Fidel e o Che também. Você ainda tem grandes coisas a fazer
pelo povo cubano.
- Por que me fez acreditar que me amava? - descontrolou-se ele, segurando-a brutalmente pela
cintura.
- Você me compreendeu mal! Nunca quis fazer você acreditar em nada. Adoro estar em seus
braços e junto de você não tenho mais medo, esqueço um pouco que estou longe, tão longe de meus
filhos...
Ele apertou sua cintura.
- Eu lhe peço - continuou Léa -, não se perturbe pelos últimos instantes que passamos juntos. Quero
levar a lembrança de seu riso, de sua alegria, de seus carinhos, de sua coragem. Quero poder ver
você nas ruas de Havana, triunfante, feliz como um garoto. Quero que você permaneça livre para a
enorme tarefa que o espera. Uma vida magnífica abre-se hoje diante de você...
- Não semvocê!
- É preciso, Camilo, você sabe. Pergunte a Ernesto o que ele pensa...
- O Che só pensa no sucesso da Revolução e sempre deixa suas preocupações sentimentais em
segundo plano. Se julgasse necessário, ele abandonaria no campo mulher e filhos para ir combater
os inimigos da Revolução, não importa em que lugar do mundo... Eu, eu luto pelo povo cubano, para
que não tenha mais fome, que não seja mais explorado por políticos ávidos para o soldo dos Estados
Unidos, luto para que, qualquer que seja a cor da pele delas, as crianças deste país possam ir à
escola, para que as mulheres encontrem seu lugar na sociedade e que não sejam mais reservadas a
trabalhos subalternos em alojamentos miseráveis... Vi com tanta freqüência minha mãe costurando
nossas pobres roupas à luz de uma vela, dormi por tanto tempo com meus irmãos em um canto
sombrio de uma única peça que nós morávamos... Eu a observava, pálida e cansada, soltando em
alguns momentos um suspiro
desesperado quando seus olhos viravam-se para nós. Naqueles momentos, eu jurava que um dia ela
viveria em uma grande casa cheia de luz onde cada um de nós teria o seu quarto... Isso faz você
sorrir?... O que estou contando deve parecer muito exótico! O que você sabe dos pobres imigrantes
espanhóis que, um dia, deixaram seu país, tomados por uma miséria tão grande que os irmãos de
uma mesma família tinham um único par de sapatos para todo mundo, que as mulheres pariam nas
soleiras das portas, que abandonavam seus filhos pequenos diante de qualquer residência rica na
esperança de que fossem recolhidos pelos proprietários, que as moças se prostituíam escondido a
fim de alimentar seus irmãos pequenos?... Meus pais, antes de desembarcarem em Cuba,
conheceram tudo isso, e esta ilha constituía a única esperança deles, seu único refúgio. Então eles
passaram a amá-la e, quando nós nascemos, Osmany, Humberto e eu, tínhamos uma pátria em
nome da qual estávamos prontos a morrer... Meu pai era um anarquista mas ele amava a ordem, ele
participava de numerosas reuniões políticas, que lhe custavam às vezes aborrecimentos com a
polícia. Mas era um homem honesto, sincero, que ia até o fim em suas convicções...
Camilo dava livre curso às suas lembranças e Léa, emocionada, admirava seu rosto que traía tão
explicitamente a emoção que ele experimentava à evocação de seus pais. Ela lembrou-se da visita
que eles haviam feito ao filho depois da queda de Santa Clara. Eles haviam posado para uma
fotografia, com o ar embaraçado, o fuzil na mão, junto a Camilo ao volante de umjipe. Mais tarde,
sempre atrapalhados com estes fuzis com os quais não sabiam o que fazer, haviam tirado um retrato
entre todo um grupo de Barbudos. Quando partiram de volta a Havana, os olhos de Camilo
encheram-se de lágrimas...
- Eu suplico, fique!
- Não - repetiu ela com uma voz que era ao mesmo tempo doce e firme.
Ela se liberou delicadamente de seu abraço. Nunca tinha feito uma coisa assim tão difícil: romper
com um homem que amava
ternamente. Parecia que um grande frio abatia-se sobre eles. Devagar, ela fechou a porta do
banheiro.
Durante um longo tempo ela deixou correr a água sobre seu corpo que ainda, nas menores parcelas,
lembrava-se das carícias de seu amante. Quando enfim ela voltou ao quarto, ele estava vazio:
Camilo havia partido. Uma profunda fadiga abateu-se sobre ela, logo seguida por uma destas
tristezas que nos apertam tão cruel- mente o coração.
- Camilo... - murmurou ela.
Alguém bateu na porta.
- Sim! - quase gritou ela.
Uma jovem empurrou a porta e Léa, inconscientemente decepcionada, fechou o robe atoalhado
sobre seu peito.
- O comandante Camilo nos comunicou que você deseja apanhar o próximo barco que segue para
Batabano; ele partirá em três horas. Você tem apenas tempo de se preparar. Precisa de ajuda?
- Não, obrigada... Onde está o comandante?
- Ele acaba de partir para Havana a bordo de seu Cessnas.
No porto, um carro com a flâmula do 26 de Julho a esperava. Apesar do tempo ruim, eles chegaram
a Havana rapidamente. Diante da casa de Miramar, o motorista estendeu-lhe sua mala, inclinou- se
e partiu novamente sem uma palavra.
Das janelas abertas vinham-lhe os ruídos de uma conversação animada. No grande salão
ostensivamente iluminado, três Barbudos caminhavam para lá e para cá.
- Charles!... Ramón!... Alfredo!...
Ela correu para eles e Charles, o primeiro, a tomou nos braços.
- Que prazer em encontrá-los, todos os três!... Como souberam de meu retorno?
- Alguém nos avisou... - disse misteriosamente Alfredo.
O elegante travesti tinha agora dado lugar a um verdadeiro Barbudo e sua barba estava quase tão
cerrada quanto a de Camilo. As de Charles e Ramón não estavam menos florescentes...
Depois de tê-los abraçado quase furiosamente, Léa aceitou o copo que lhe oferecia Alfredo.
- Sempre o seu famoso coquetel?
- Sempre... mas um pouco melhor. A nossa saúde e à do Che, que acaba de receber a nacionalidade
cubana!
- A saúde de Ernesto e à nossa!...Uau!... Naverdade você diabolicamente o incrementou. Com
noventa por cento de álcool, eu suponho?... Hum, está forte, mas é bom... Do que conversavam
quando cheguei?
- Do retorno de vocês à França, de Charles e de você - respondeu Ramón.
- Isso é o que fazia vocês gritarem?
- Charles diz que o lugar dele é aqui e que não embarcará - completou Alfredo.
Léa observou seu filho adotivo com ternura. Seu engajamento na guerrilha, os combates e a morte
de Carmen o tinham amadurecido. O jovem crescera tão rápido e estava muito longe do estudante
francês que chegara da Europa. Hoje era um homem que já havia sofrido. Ela aproximou-se dele.
- Sei que você se ressente e eu compreendo. Não o obrigarei a voltar comigo. Se você acredita
sinceramente que sua vida é aqui, fique. Mas peço que ainda reflita um pouco. O que você
conheceu está terminado. No momento vai se criar uma administração, uma polícia e uma sociedade
da qual você não fará parte. Os cubanos, muito justamente, querem construir sozinhos sua nova
existência e seu futuro. Embora a guerrilha tenha lhe aberto suas fileiras, o novo governo não
reserva espaço para você. Saiba disso.
Um copo suspenso a meio caminho de seus lábios, Charles fixava o solo, o ar subitamente
desgostoso.
- Sua mãe tem razão, Charles. E você sabe bem disso - apoiou Ramón.
- Você... você lhe dá razão? Mas você também, Ramón, é estrangeiro neste país...
- Não exatamente, Charles. A cultura cubana é muito
impregnada da cultura hispânica e na maior parte dos cubanos cintila uma pequena chama castelhana.
Quanto a mim, você sabe, não tenho escolha: é o exílio em Cuba ou as prisões de Franco... Volte à
França, meu garoto, termine os seus estudos e volte se ainda acreditar que pode ser útil a este país.
Fazendo esta escolha, você dará prova não só de inteligência, mas de um verdadeiro senso das
realidades deste mundo.
- Você também, Alfredo, concorda com eles? - perguntou o rapaz.
- Você vai me fazer falta, garoto, mas na verdade acho que é melhor partir. Guarde a lembrança das
horas intensas que viveu aqui, serão sem dúvida as mais puras de sua vida. Você conheceu os
combates, a fome, os sofrimentos e a morte, mas também a solidariedade, a amizade e a fidelidade a
um ideal. Os homens e mulheres que foram seus companheiros souberam dar o melhor deles
mesmos, com sua juventude e sua sinceridade por uma causa nobre. Eles conseguiram uma grande
vitória sobre aqueles que os oprimiam e agora serão confrontados com as realidades do poder.
Alguns estão preparados, outros não. O futuro da Revolução vai ser jogado nos meses, talvez nas
semanas que estão por vir. Fidel tem plena consciência mas, em volta dele, terão todos
compreendido? Temo que as ambições e os ciúmes comecem a aparecer, as aspirações às
prebendas e às vinganças. A unidade revolucionária resistirá às pressões dos partidos? O partido
comunista tem uma importância crescente; Raúl e Che farão tudo para levar Fidel a dividir suas
visões. Pessoas como eu têm tudo para ter medo do puritanismo dos comunistas; eles não gostam
dos pederastas, em Moscou...
- Mas Cuba não é a União Soviética! - exclamou Charles.
- Não, mas pode se tornar...
- Acho difícil que os cubanos se convertam ao que você chama de "puritanismo soviético"! -
protestou por sua vez Léa.
- Oh! Haverá as organizações, é claro, ao menos no início; será um comunismo com molho
caribenho... Mas, acredite-me, Charles, antes de ficar decepcionado. Conserve a lembrança da
felicidade
de um povo que acaba de romper com sua escravidão, aquele das lágrimas de alegria que corriam sobre as
faces de velhos negros de mãos e corpos deformados pelo trabalho nas plantações de cana- de-açúcar, aquele
dos beijos das moças escapando à prostituição, aqueles do reconhecimento das mães, da felicidade que tomou
conta das crianças aos primeiros risos de seus pais...
- Eu acho você muito pessimista, meu filho - interrompeu Ramón. - Ao contrário de você, estou convencido de
que Fidel, Raúl, Che e Camilo tomarão as garantias das conquistas da Revolução. Com eles, ela continuará
exemplar e fará a volta ao mundo. Tenho confiança. Apesar de tudo, e como já disse, persisto em pensar que o
lugar de Charles não é aqui. Se ele deseja realmente combater em nome do ideal revolucionário, ele deve
instruir- se e em seguida partir para reunir-se à luta pela liberdade onde quer que ela esteja.
- Amigo, seu otimismo e sua confiança no homem são bem reconfortantes. Apesar de sua idade e experiência,
você guarda uma visão juvenil do mundo...
- Deboche de mim o quanto quiser, mas eu não poderia viver se não acreditasse em um mundo melhor... Antes
de conhecer Fidel e seus companheiros, eu tinha apenas uma leve estima pelo gênero humano, sempre tive
presente em meu espírito os horrores cometidos durante a guerra da Espanha, depois daqueles, ainda mais
atrozes, perpetrados pela Alemanha nazista. Mas lá, na Sierra, eu vi a coragem, a solidariedade, a abnegação; vi
jovens, homens maduros, camponeses analfabetos, estudantes, pobre gente de combate, com a fome no
ventre, arriscando a vida para arrancar o direito de viver dignamente, o direito de serem homens e não
escravos... Léa, diga-me que tenho razão!
Léa havia escutado com surpresa, perguntando-se o que teria pensado François. Tanto candor a desarmara.
- Eu também tenho confiança no homem; ele é capaz do pior, mas também do melhor. Em cada um de nós há o
bom e o ruim, eu prefiro acreditar que o bom pode vencer... - aprovou Charles.
- Bravo! - gritou Alfredo. - Viva a utopia! Bebamos todos ao "amanhã que canta"!
A luz apagou-se bruscamente.
- Felizmente pensei em trazer velas - observou Alfredo.
- Estou com fome... Há alguma coisa para se comer? - perguntou Léa.
Charles levantou-se e dirigiu-se para a cozinha. Voltou alguns instantes mais tarde.
- O refrigerador está cheio: há ovos, presunto, frutas...
- Eu trouxe massas. Vou cozinhar um pouco para vocês!
Todos se viraram. Fidel Castro estava na soleira da porta, os braços carregados de pacotes. Estava
acompanhado de Camilo, que também carregava algumas coisas, e do Che, pálido e mais magro. Léa precipitou-
se na direção dele.
- O doutor Fernández Meil não ordenou a você repouso total?
- Ele não quer saber de nada - interpôs Fidel. - O exame do doutor Conradino Polanco diagnosticou um duplo
enfisema no pulmão direito e proibiu-o de fumar. Mas nossos heróis fazem o que lhes dá na cabeça e ele
prometeu descansar sob a condição de poder fumar um puro por dia...
- Bom, é razoável - aprovou Léa.
- Seria, se este senhor não fizesse para si espécimes de cinqüenta centímetros de comprimento!
- Fidel, esqueça-me, certo? Não foi para ouvir falar de minha saúde que vim aqui esta noite. Eu tomei uma
injeção de adrenalina antes de sair e, em caso de crise, sei o que é preciso fazer por mim.
- Bem, faça como quiser... mas não conte comigo para ir ao seu enterro! - lançou-lhe Fidel. -A propósito, onde
é a cozinha?
- Vou lhe mostrar - disse Charles.
Ramón e Alfredo os seguiram depois de desembaraçarem Camilo de seus víveres.
Durante um momento, os três amigos permaneceram em silêncio, pouco à vontade. De repente, Léa lembrou-se
de que era a dona da casa.
- Vocês querem experimentar o preparado de Alfredo? É muito forte, mas dá para beber...
Eles aceitaram, ainda sem palavras, os copos que ela lhes ofereceu, em seguida levantaram-nos sem
brindar.
- Isso levantaria um morto! - engasgou o Che.
- É exatamente do que eu preciso - felicitou-se Camilo depois de ter esvaziado seu copo em um gole.
- Sente-se - ordenou Ernesto a Léa -, tenho que falar com você. Camilo me falou de sua intenção de
voltar para casa e eu concordo. Seria um erro permanecer aqui, quaisquer que sejam os sentimentos
de vocês dois. Creio que consegui fazê-lo compreender. Um avião parte amanhã para a Jamaica...
- Jamaica?
- Sim, um barco francês vindo de Caracas, oFlandres, eu acho, faz normalmente escala ali antes de
voltar para o seu país; já reservei dois lugares, um para você e outro para Charles. Em quinze dias,
vocês estarão no Hawe.
- Será uma longa travessia...
- Ela lhe permitirá colocar a cabeça em ordem e descansar. Fiquei muito feliz em revê-la... Talvez
nos reencontremos um dia em Paris... Queria dizer-lhe que você foi uma companheira maravilhosa e
muito corajosa durante sua temporada entre nós. Não a esqueceremos. Você vai voltar para o seu
país, seu marido e seus filhos... Está certo: seu lugar é junto deles...
- Oh, Ernesto, você vai me fazer tanta falta!
- Você também, minha querida, vai nos fazer falta... - murmurou o Che puxando-a para si.
Camilo observava-os com um ar terno: a mulher que ele amava e o homem que mais estimava, seu
melhor amigo, nos braços um do outro! Naquele instante, ele soube, com uma certeza que lhe
congelava o sangue, que jamais veria Léa novamente, que ela havia partido de sua vida para
sempre. Ele teve um breve arrepio.
- Tome - disse ele, estendendo-lhe uma caixinha do tamanho de uma caixa de charutos. - Fiz para
você, lá no alto, na Sierra.
Sem uma palavra, Léa apanhou a caixinha e a abriu.
- Oh!... Obrigada.
Em um pedaço de madeira, Camilo havia esculpido um pequeno busto da jovem mulher.
- Você... você gosta? - interrogou timidamente Camilo. - Acho bem parecido, não é?
- É magnífico! - reconheceu ela, com lágrimas nos olhos.
- Obrigada, obrigada-, repetiu Léa atirando os braços em torno do pescoço dele.
Na cozinha, Fidel, enrolado em um avental branco, jogava os espaguetes na água fervendo.
O dia mal havia amanhecido quando Léa saiu para o jardim. O tempo estava encoberto, o mar cinza,
agitado, um vento fresco soprava em rajadas, levantando os cabelos da jovem mulher que estava de
pé na varanda, uma xícara de café na mão.
A noite havia terminado tarde; tinham bebido muito, rido e cantado. Por fim, Fidel a tinha
longamente apertado contra si. Por sua vez, Camilo, seu chapéu na mão, a observara febrilmente,
como se para gravar para sempre seus traços na memória. Em seguida, ele havia ensaiado um
passo de rumba, o mesmo com o qual tinha recebido, debochado e sujo, os oficiais, em seus
uniformes impecáveis, que haviam vindo entregar as chaves da caserna de Colombia
- uma brincadeira que não deixou de lhe valer o ódio de alguns, e causar a partida de alguns outros
para Miami... Depois seu coração ficou apertado quando ele atravessou o portão do jardim. Antes
de abraçá-la, Ernesto a tinha contemplado com um olhar sonhador, seus olhos brilhando de febre
pareciam querer dizer-lhe ainda alguma coisa. Mas, com um movimento imperceptível de ombros,
que poderia significar "Para quê, afinal?", ele havia se afastado, com seu andar tão particular, a
coluna curvada. Alguma coisa dela havia partido com eles, uma parte de sua juventude que a
abandonava; ela teve um breve soluço. Quando virou-se, os olhos de Charles e de Ramón estavam
pousados nela com, no primeiro, uma
ternura inquieta e, no segundo, uma profunda compaixão. Ela então havia levantado as mãos como
se para dizer: "É melhor assim, não?"
Toda vestida, ela havia se atirado na cama e dormido por algumas horas um sono profundo. Ao
despertar, uma dor de cabeça a fez lembrar das bebedeiras da véspera. O vento e o café
trouxeram- lhe alívio.
Repentinamente Charles estava perto dela; ele estava mais alto uma cabeça. E deu um beijo em
seus cabelos.
- Você também acordou bem cedo.
- Eu... eu estava dando adeus a tudo isto... Quer café?
- Obrigado, já tomei na cozinha... Antes de partir quero passar em Regia.
- Como você vai?
- Camilo deixou uma moto lá fora.
- Pode colocar uma vela à Virgem por mim?... E não se esqueça de que vêm nos buscar às três
horas.
- Estarei aqui. Minha mala está pronta.
- A minha também... Você se lembra de todas as malas que tínhamos quando chegamos? Hoje uma
sacola é suficiente para guardarmos tudo...
- Não se lamente por suas roupas elegantes, você está muito mais bonita assim!
Léa deu um riso sem alegria.
- Você acha?... No entanto eu preferiria um vestido bonito a esta roupa de guerrilheira. Mas os
saqueadores não me deixaram nem uma única saia...
- Se isso lhe faz tanta falta, por que não vai até as lojas?
- Não sei... Falta de vontade... cansaço.
- Sei... Até mais!
Ele afastou-se com passo ágil. Repentinamente uma angústia brutal sacudiu Léa; ela precipitou-se
na direção dele e o parou.
- Como você está pálida - observou ele sorrindo.
- Você vai voltar, não vai?
"Sim", fez ele com a cabeça.
Esticada em uma espreguiçadeira, Léa observava duas belas crianças que brincavam de amarelinha.
- Você trapaceou! - protestou o garoto, que deveria ter nove ou dez anos.
- Eu não trapaceio nunca - retorquiu, orgulhosa, a garota, apenas um pouco mais velha, empurrando-
o.
- Pare de me empurrar!
- Você é apenas uma pirralha suja! Não brinco mais com você.
Léa sorriu; pareciam Adrien e Camille.
- Anne! Pierre! Parem de brigar - ordenou uma mulher bonita, magra e jovem que estava estendida
não longe de Léa.
- Mas mamãe, não estamos brigando...
- Então parem de fazer tanto barulho, vocês me impedem de ler.
- Ela logo vai dizer que nós causamos a enxaqueca - sussurrou o garoto para a irmã, com um ar
debochado.
- Não deboche de mamãe!
- Não terminaram? Vocês me dão dor de cabeça! - gritou a mãe, levantando-se.
- Viu? Eu falei - observou o garoto afastando-se vivamente para escapar da mão que se levantava
sobre ele.
Anne lançou-se à sua perseguição, passando bem perto da espreguiçadeira onde estava Léa. A
jovem mãe pôs uma mão longa e fina em sua testa, o olhar subitamente desamparado.
- Sinto muito, senhora, meus filhos são tão barulhentos... - desculpou-se ela com um tom cansado.
- Mas, não, eles são encantadores.
- Você acha? Mas por que é preciso que façam tanto barulho?
"Tenho a impressão dejá ter ouvido esta voz", pensou Léa observando sua vizinha. Seus olhares
cruzaram-se e fizeram-se interrogadores. Elas se reconheceram simultaneamente.
- Léa!
- Claire!
Elas ensaiaram um gesto e, no mesmo movimento, caíram nos braços uma da outra. Quando
afastaram-se, uma grande emoção havia invadido o rosto de ambas.
- O que você fez durante todo este tempo?
- Está casada? Tem filhos?
- Que alegria em rever você!
- Eu vivo em Caracas, meu marido é diplomata.
- Eu venho de Havana, estou voltando para casa.
- Lembra-se de Berlim?
- O que aconteceu com Jeanine e Mistou?
- Você se lembra do Kurfürstendam?
- A piscina do Blue and White?
- E do quarto das garotas?
- Você se casou com seu belo capitão?
- E você, seu belo Tavernier? A cara do coronel McClintock quando viu você nos braços dele!'
Elas riam como duas colegiais que, de volta das férias, têm mil coisas a contar. Anne e Pierre
observaram-nas intrigados: nunca tinham visto sua mãe rir com menos tensão, falar tão
familiarmente com uma desconhecida.
- Meus filhos, quero apresentar-lhes uma velha amiga, Léa Delmas. Nós estivemos juntas na Cruz
Vermelha em Berlim.
- Você.então conhece o papai? -perguntou o pequeno Pierre.
- Sim, é claro, era um tipo surpreendente, o seu papai.
- Sim, eu sei - retorquiu o garoto com seriedade.
- Meus queridos, logo será hora de jantar, vão tomar o seu banho e trocar de roupa... Já encontro
vocês. Léa, você janta conosco, é claro?
- Não estou só a bordo; Charles, meu filho adotivo, me acompanha.
- Ele é, evidentemente, bem-vindo!
- Mas... não tenho nada para vestir, me roubaram tudo em Cuba!
- Então, venha até a minha cabina, vou lhe emprestar um vestido.
Várias cabeças levantaram-se quando Léa entrou no bar do Flandres. O vestido branco longo
emprestado por Claire Mauriac coube-lhe como uma luva e ressaltava sua pele bronzeada. Uma
echarpe de musselina vermelha escondia a ferida em seu ombro. Ela sentou-se em uma banqueta. O
barman se apressou:
- O que deseja, madame? Um alexander, um porto, um mojito?
- Não, me dê um cuba libre!

 

 

                                                   Régine Deforges         

 

 

 

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