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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CUIDADO COM O QUE DESEJAS / Jeffrey Archer
CUIDADO COM O QUE DESEJAS / Jeffrey Archer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Harry Clifton e a sua mulher, Emma, correm para o hospital para saber o destino do filho Sebastian, envolvido num acidente fatal. Mas quem morreu, Sebastian ou o seu melhor amigo Bruno?
Quando Ross Buchanan é obrigado a deixar a presidência da Barrington Shipping Company, Emma Clifton quer tomar o seu lugar. Mas Don Pedro Martinez tem a intenção de lá colocar o Major Alex Fisher, um homem que ele manipula e controla, para destruir a empresa da família justamente quando se planeava construir um novo navio de luxo.
Em Londres, a filha adotiva de Harry e Emma ganha uma bolsa de estudo para a conceituada Slade Academy of Art, onde se irá apaixonar por um colega, Clive Bingham, que a pede em casamento. As duas famílias estão encantadas, até ao momento em que a futura sogra de Jessica recebe a visita de uma velha amiga, Lady Virgínia Fenwick, ansiosa por libertar o seu veneno.
E depois, inesperadamente, Cedric Hardcastle, de quem nunca se ouviu falar, passa a ocupar um lugar na direção da Barrington. A situação gera um tumulto que ninguém tinha previsto e mudará para sempre a vida de todos os membros das famílias Clifton e Barrington.
A primeira decisão de Hardcastle será apoiar Emma Clifton ou o Major Alex Fisher para a presidência. E com essa decisão, tudo mudará.

 


 


Sebastian agarrou o volante do pequeno MG com mais força. O camião atrás dele tocou no para-choques traseiro e projetou o carro para a frente, fazendo voar a placa de matrícula.
Sebastian tentou avançar mais uns quantos centímetros, mas não podia ir mais depressa sem bater no camião da frente e ficar esmagado entre os dois como uma concertina.
Passados alguns segundos, foram impelidos para a frente uma segunda vez quando o camião atrás deles bateu na traseira do MG com mais força, fazendo-o ficar a trinta centímetros
do camião da frente. Só quando o camião de trás lhes bateu uma terceira vez é que as palavras de Bruno, Tens a certeza de que estás a tomar a decisão certa? vieram à cabeça
de Sebastian. Olhou de relance para o seu amigo Bruno, que estava lívido de medo, agarrado ao painel de instrumentos com ambas as mãos.
- Estão a tentar matar-nos - gritou ele. - Por amor de Deus, Seb, faz alguma coisa!
Sebastian olhou impotente para as faixas de rodagem no sentido sul e viu uma correnteza de veículos que rolava na direção oposta.
Quando o camião da frente começou a abrandar, soube que se queriam ter alguma hipótese de sobreviver, tinha de tomar uma decisão, e de tomá-la rapidamente. Olhou para o outro
lado da estrada, desesperadamente à procura de um intervalo no trânsito. Quando o camião de trás lhe bateu uma quarta vez, soube que não tinha outra opção.
Guinou o volante com firmeza para a direita e atravessou a alta velocidade o separador relvado em direção aos veículos que vinham
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em sentido contrário. Sebastian pisou o acelerador a fundo e rezou para conseguirem chegar à segurança dos vastos campos que se estendiam à sua frente antes de serem atingidos
por um carro.
Uma carrinha e um carro travaram e guinaram para evitar o pequeno MG enquanto este atravessava a estrada disparado à frente deles. Por um momento, Sebastian pensou que era
capaz de conseguir, até ver a árvore surgir ameaçadoramente à sua frente. Levantou o pé do acelerador e virou o volante para a esquerda, mas era demasiado tarde. A última
coisa que Sebastian ouviu foi Bruno a gritar.
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HARRY E EMMA
1957-1958

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Harry Clifton foi despertado pelo som do telefone a tocar.
Estava a meio de um sonho, mas não conseguia lembrar-se sobre o quê. Talvez o insistente som metálico fizesse parte do sonho. Virou-se com relutância e pestanejou diante dos
ponteiros verdes fosforescentes do relógio de cabeceira: 6h43. Sorriu. Só havia uma pessoa capaz de lhe telefonar àquela hora da manhã Agarrou no telefone e murmurou em voz
exageradamente sonolenta:
- Bom dia, minha querida. - Não houve resposta imediata e Harry ainda pensou, por um momento, se a telefonista teria passado a chamada para o quarto errado. Preparava-se para
pousar o auscultador quando ouviu soluçar. - És tu, Emma?
- Sim - foi a resposta.
- O que é que se passa? - perguntou ele suavemente.
- O Sebastian morreu.
Harry não respondeu de imediato, pois agora queria acreditar que ainda estava a sonhar.
- Como é isso possível? - acabou por dizer. - Ainda ontem falei com ele.
- Morreu esta manhã - disse Emma, manifestamente incapaz de pronunciar mais do que algumas palavras de cada vez.
Harry sentou-se muito direito, subitamente desperto.
- Num acidente de carro - continuou Emma entre soluços. Harry tentou permanecer calmo enquanto esperava que ela lhe
contasse exatamente o que tinha acontecido.
- Eles iam juntos para Cambridge.
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- Eles? - repetiu Harry.
- Sebastian e Bruno.
- O Bruno está vivo?
- Sim, mas está num hospital em Harlow e não têm a certeza se conseguirá sobreviver a esta noite.
Harry atirou o cobertor para trás e pôs os pés na alcatifa. Estava a tiritar e sentia-se maldisposto.
- Vou apanhar imediatamente um táxi para o aeroporto e embarcar no primeiro voo para Londres.
- Eu vou diretamente para o hospital - disse Emma. Não acrescentou mais nada e Harry ainda pensou por um momento que a chamada tinha caído. Depois, ouviu-a sussurrar: - Precisam
de alguém para identificar o corpo.
Emma pousou o auscultador, mas levou algum tempo até reunir energia suficiente para se levantar. Lá acabou por atravessar a sala em passo incerto, agarrando-se a várias peças
de mobília, como um marinheiro durante uma tempestade. Abriu a porta da sala e deu com Marsden especado no átrio, de cabeça baixa. Ela nunca tinha visto o velho criado demonstrar
a mais pequena emoção em frente de um membro da família e mal reconheceu a figura encolhida que se agarrava agora à armação da lareira para se amparar; a habitual máscara
de serenidade tinha sido substituída pela cruel realidade da morte.
- A Mabel fez-lhe a mala para uma noite, minha senhora - balbuciou ele -, e, se me permitir, eu levo-a de carro ao hospital.
- Obrigada, Marsden, é muito amável da sua parte - disse Emma enquanto ele lhe abria a porta da rua.
Marsden deu-lhe o braço enquanto desciam os degraus em direção ao carro; era a primeira vez que ele tocava na patroa. Abriu a porta, e ela entrou e deixou-se cair na poltrona
de pele, como se fosse uma mulher idosa. Marsden ligou a ignição, meteu a primeira e iniciou a longa viagem de Manor House até ao Princess Alexandra Hospital, em Harlow.
Emma apercebeu-se de repente de que não tinha telefonado aos irmãos para lhes dizer o que tinha acontecido. Ia telefonar a Grace e

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Giles nessa noite, quando era mais provável encontrá-los sozinhos. Aquilo não era coisa que quisesse partilhar na presença de estranhos. E depois sentiu uma dor lancinante
no abdómen, como se tivesse sido apunhalada. Quem ia dizer a Jessica que nunca mais ia ver o irmão? Alguma vez voltaria a ser a mesma rapariguinha alegre que andava sempre
atrás de Seb como um cachorro obediente, a abanar a cauda com adoração incontida? Jessica não devia saber a notícia pelos lábios de outra pessoa, o que significava que Emma
teria de regressar o mais depressa possível a Manor House.
Marsden parou junto à garagem local, onde abastecia normalmente o carro à sexta-feira à tarde. Quando o empregado da bomba viu a senhora Clifton sentada no banco de trás do
Austin A30 verde, levou a mão ao boné. Ela pareceu não o ver, e o jovem ficou a pensar se teria feito alguma coisa de mal. Encheu o depósito e depois levantou o capo para
verificar o óleo. Depois de fechá-lo, voltou a levar a mão ao boné, mas Marsden arrancou sem uma palavra e sem lhe deixar a habitual moeda de seis dinheiros.
- O que lhes deu? - murmurou o jovem enquanto o carro desaparecia de vista.
De volta à estrada, Emma tentou recordar as palavras exatas que o tutor de admissões da Faculdade de Peterhouse tinha usado quando lhe dera a notícia de forma titubeante.
Lamento ter de a informar, senhora Clifton, que o seu filho morreu num acidente de carro. Para além daquele simples enunciado, o senhor Padgett parecia saber muito pouco -
mas a verdade, como ele próprio explicara, é que não passava do mensageiro.
A cabeça de Emma estava cheia de perguntas. Porque é que o filho tinha ido de carro para Cambridge, quando ela lhe tinha comprado um bilhete de comboio dois dias antes? Quem
é que ia a conduzir, Sebastian ou Bruno? Iriam demasiado depressa? Teria rebentado algum pneu? Havia mais algum carro envolvido? As perguntas eram tantas, mas duvidava que
alguém soubesse todas as respostas.
Alguns minutos depois de o tutor ter telefonado, a polícia também ligara a perguntar se o senhor Clifton podia ir ao hospital para identificar o corpo. Emma explicou que o
marido estava em Nova
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Iorque numa digressão literária. Era capaz de não ter concordado em tomar o seu lugar se tivesse percebido que ele estaria de volta a Inglaterra no dia seguinte. Graças a
Deus que vinha de avião e não teria de passar cinco dias a fazer a travessia do Atlântico e a chorar sozinho.
Enquanto Marsden passava por cidades desconhecidas - Chippenham, Newbury, Slough - Don Pedro Martinez interrompeu os pensamentos de Emma por mais de uma vez. Seria possível
que ele estivesse a procurar vingar-se do que tinha acontecido em Southampton algumas semanas antes? Mas se a outra pessoa que estava no carro era o seu filho Bruno, isso
não fazia sentido. Os pensamentos de Emma voltaram a Sebastian, ao mesmo tempo que Marsden saía de Great West Road e virava para norte, em direção à A1; a estrada por onde
Sebastian viajara apenas algumas horas antes. Emma tinha lido uma vez que, em alturas de tragédia pessoal, a única coisa que as pessoas queriam era fazer recuar o tempo. Ela
não era diferente.
A viagem fez-se rapidamente, já que Sebastian raramente lhe saía da cabeça. Recordou o seu nascimento, quando Harry estava na prisão do outro lado do mundo; os seus primeiros
passos aos oito meses e quatro dias; a sua primeira palavra, "Mais", e o seu primeiro dia de escola, quando saltou do carro ainda antes de Harry ter tido tempo de travar;
e depois, mais tarde, na Beechcroft Abbey, quando o diretor tinha querido expulsá-lo, mas cancelara a punição depois de ele ganhar uma bolsa para Cambridge. Tanta expectativa
para o futuro, tanta coisa para concretizar, e tudo terminara num momento. E, finalmente, o terrível erro que cometera ao permitir que o secretário do Gabinete a convencesse
a deixar Seb envolver-se nos planos do executivo para levar Don Pedro Martinez à justiça. Se tivesse recusado o pedido de Sir Alan Redmayne, o seu único filho ainda estaria
vivo. Se, se...
Quando chegaram aos arredores de Harlow, Emma olhou de relance pela janela lateral e viu uma placa que indicava a direção do Princess Alexandra Hospital. Tentou concentrar-se
naquilo que esperavam dela. Passados alguns minutos, Marsden transpôs uns portões em ferro forjado que nunca se fechavam, antes de parar junto à entrada principal

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do hospital. Emma saiu do carro e começou a andar em direção à porta, enquanto Marsden ia à procura de um lugar para estacionar.
Ela deu o nome à jovem rececionista e o sorriso alegre no rosto da rapariga deu lugar a uma expressão condoída.
- Se fizer a gentileza de aguardar um momento, senhora Clifton... - disse ela ao mesmo tempo que pegava no telefone. - Vou avisar o senhor Owen de que está aqui.
- Senhor Owen?
- Era o médico de serviço quando o seu filho deu entrada, esta manhã.
Emma acenou com a cabeça e começou a andar impacientemente de um lado para o outro no corredor, as memórias confusas substituídas por pensamentos igualmente confusos. Quem,
porquê, quando... Só parou de andar de um lado para o outro quando uma enfermeira de gola engomada e elegantemente vestida perguntou:
- É a senhora Clifton? Emma acenou afirmativamente.
- Faça o favor de me acompanhar.
A enfermeira levou Emma ao longo de um corredor de paredes verdes. Não trocaram uma palavra. Mas também o que é que qualquer das duas poderia dizer? Pararam junto de uma porta
que exibia o nome "William Owen, cirurgião" A enfermeira bateu, abriu a porta e afastou-se para o lado para deixar Emma entrar.
Um homem alto, magro e calvo, com o ar lúgubre de um cangalheiro, levantou-se da secretária. Emma perguntou a si mesma se aquele rosto alguma vez sorriria.
- Boa tarde, senhora Clifton - disse ele, antes de a encaminhar para a única cadeira confortável que havia no gabinete. - Lamento imenso o facto de nos conhecermos em circunstâncias
tão tristes - acrescentou.
Emma sentiu pena do pobre homem. Quantas vezes por dia teria ele de dizer aquelas mesmas palavras? Pela sua expressão, as coisas não se iam tornando mais fáceis.
- Receio que haja uma série de papelada para preencher, mas temo que o médico-legista exija uma identificação formal antes de podermos pensar nisso.
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Emma inclinou a cabeça e desatou a chorar, desejando ter acatado a sugestão de Harry e tê-lo deixado realizar aquela insuportável tarefa. O senhor Owen saltou de trás da secretária,
agachou-se ao lado dela e disse:
- Sinto muito, senhora Clifton.
Harold Guinzburg não podia ter sido mais atencioso e solícito.
O editor de Harry tinha-lhe marcado passagem no primeiro voo disponível para Londres, em primeira classe. Pelo menos, estaria confortável, pensou Harold, embora achasse que
o pobre homem não ia conseguir dormir. Decidiu que aquela não era a altura certa para lhe dar as boas notícias, limitando-se a pedir a Harry que transmitisse a Emma as suas
sentidas condolências.
Quando Harry saiu do Pierre Hotel quarenta minutos depois, encontrou o motorista de Harold à sua espera no passeio para o levar ao Aeroporto de Idlewild. Harry subiu para
o banco de trás da limusina, pois não lhe apetecia falar com ninguém. Instintivamente, os seus pensamentos viraram-se para Emma e para aquilo que ela devia estar a passar.
Não gostava da ideia de ela ter de identificar o corpo do filho. Talvez o pessoal do hospital sugerisse que ela esperasse até ele voltar.
Harry nem pensou no facto de estar entre os primeiros passageiros a atravessar o Atlântico num voo direto, pois só conseguia pensar no filho e no quanto ele ansiava por ir
para Cambridge para iniciar o seu primeiro ano na universidade. E depois disso... presumira que com o dom natural de Seb para as línguas, ia querer ingressar no Ministério
dos Negócios Estrangeiros ou ser tradutor, ou até professor, ou...
Depois de o Comet ter descolado, Harry rejeitou a taça de champanhe oferecida pela hospedeira sorridente, mas como é que ela havia de saber que ele não tinha razões para sorrir?
Não explicou porque é que não queria comer nem dormir. Durante a guerra, quando estava atrás das linhas inimigas, Harry tinha-se treinado para estar acordado durante trinta
e seis horas, resistindo apenas à custa da adrenalina do medo. Sabia que não seria capaz de dormir até ter visto o filho pela

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última vez, e suspeitava que não o faria durante bastante tempo depois disso: a adrenalina do desespero.
O médico levou Emma em silêncio ao longo de um corredor sombrio até pararem junto a uma porta hermeticamente fechada, exibindo a simples palavra Morgue apropriadamente inscrita
a preto no painel de vidro martelado. O senhor Owen abriu a porta e afastou-se para o lado para deixar Emma entrar. A porta fechou-se atrás dela com um som abafado. A brusca
mudança de temperatura fê-la tremer de frio, e depois os seus olhos fixaram-se numa maca com rodas que estava no meio da sala. A ténue silhueta do corpo do filho era visível
debaixo do lençol.
Junto à cabeceira da maca, estava um auxiliar de bata branca, mas não falou.
- Está pronta, senhora Clifton? - perguntou docemente o senhor Owen.
- Sim - disse Emma com firmeza, com as unhas cravadas nas palmas das mãos.
Owen fez um aceno de cabeça e o agente funerário puxou o lençol para trás, revelando um rosto dilacerado e cheio de hematomas que Emma reconheceu de imediato. Ela gritou,
caiu de joelhos e começou a soluçar de forma descontrolada.
O senhor Owen e o agente funerário não ficaram surpreendidos com a reação previsível de uma mãe ao ver o filho morto, mas ficaram chocados quando ela disse baixinho:
- Não é o Sebastian.
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Quando o táxi parou à porta do hospital, Harry ficou surpreendido ao ver Emma junto à entrada, claramente à espera dele. Ainda mais surpreendido ficou quando ela correu em
direção a ele com o alívio estampado no rosto.
- O Seb está vivo - gritou ela muito antes de ter chegado ao pé dele.
- Mas tu disseste-me... - tentou dizer enquanto ela se abraçava a ele.
- A polícia cometeu um erro. Presumiu que era o dono do carro que estava ao volante e que, por isso, Seb devia estar no lugar do passageiro.
- Então o passageiro era Bruno? - disse Harry baixinho.
- Sim - disse Emma, sentindo-se um bocadinho culpada.
- Percebes o que isso significa? - perguntou Harry, soltando-a.
- Não. Onde é que queres chegar?
- A polícia deve ter dito a Martinez que o filho tinha sobrevivido, vindo ele a descobrir mais tarde que foi Bruno quem morreu, e não Sebastian.
Emma baixou a cabeça.
- Pobre homem - disse ela, enquanto entravam no hospital.
- A menos que... - disse Harry, sem terminar a frase. - Então, como está Seb? - perguntou ele calmamente. - Em que estado se encontra?
- Receio que esteja bastante mal. O senhor Owen disse-me que ficaram poucos ossos por partir. Parece que vai ficar no hospital

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durante vários meses, e pode acabar numa cadeira de rodas para o resto da vida.
- Agradece simplesmente o facto de estar vivo - disse Harry, pondo um braço à volta dos ombros da mulher. - Eles deixam-me vê-lo?
- Sim, mas só por alguns minutos. E aviso-te já, meu querido, ele está coberto de gesso e ligaduras, por isso é possível que nem o reconheças. - Emma deu-lhe a mão e fê-lo
subir até ao primeiro andar, onde se depararam com uma mulher de uniforme azul-escuro que andava de um lado para o outro, vigiando os doentes e dando de vez em quando uma
ordem ao seu pessoal.
- Miss Puddicombe - anunciou ela, estendendo a mão.
- Enfermeira-chefe para ti - sussurrou Emma. Harry apertou-lhe a mão e disse:
- Bom dia, enfermeira-chefe.
Sem mais uma palavra, a figura diminuta conduziu-os à Enfermaria Bevan, onde se encontravam duas filas de camas, todas elas ocupadas. Miss Puddicombe continuou a andar até
chegar a um doente que se encontrava na outra ponta da sala. Correu uma cortina à volta de Sebastian Arthur Clifton e depois retirou-se. Harry olhou para o filho. A perna
esquerda estava suspensa por uma roldana, enquanto a outra, igualmente engessada, estava assente na cama. A cabeça estava enfaixada em ligaduras, deixando-lhe um olho para
ver os pais, mas os seus lábios não se mexeram.
Quando Harry se inclinou para lhe beijar a testa, as primeiras palavras que Sebastian pronunciou foram:
- Como é que está o Bruno?
- Lamento ter de os interrogar a ambos depois de tudo aquilo por que passaram - disse o inspetor-chefe Miles. - Não o faria, se não fosse absolutamente necessário.
- E porquê essa necessidade? - perguntou Harry, que estava habituado a inspetores e aos seus métodos de obter informação.
- Ainda não estou convencido de que o que aconteceu na A1 tenha sido um acidente.
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- O que está a insinuar? - perguntou Harry, olhando diretamente para o inspetor.
- Não estou a insinuar nada, mas os nossos peritos efetuaram uma inspeção minuciosa ao veículo e pensam que há uma ou duas coisas que não batem certo.
- Por exemplo? - perguntou Emma.
- Para começar, senhora Clifton - disse Miles -, não conseguimos perceber porque é que o seu filho atravessou o separador central quando era mais do que óbvio que se arriscava
a ser atingido por um veículo que viesse em sentido contrário.
- Talvez o carro tenha sofrido alguma falha mecânica, não? - sugeriu Harry.
- Isso foi a primeira coisa que nos ocorreu - redarguiu Miles.
- Mas embora o carro tenha ficado muito danificado, nenhum dos pneus tinha rebentado e o eixo do volante estava intacto, o que é praticamente inédito num acidente deste género.
- Isso dificilmente constitui prova de que tenha sido cometido um crime - disse Harry.
- É verdade - disse Miles -, e só isso não teria sido suficiente para eu pedir ao médico-legista que comunicasse o caso ao Ministério Público. Mas apareceu uma testemunha
que prestou informações bastante inquietantes.
- O que é que ele disse?
- Ela - disse Miles, consultando o caderno de apontamentos.
- Uma tal senhora Challis disse-nos que foi ultrapassada por um MG descapotável que se preparava para passar três camiões que seguiam em comboio na faixa da esquerda, quando
o camião da frente mudou para a faixa da direita, embora não tivesse nenhum veículo à sua frente. Isto fez com que o condutor do MG tivesse de travar subitamente. A seguir,
o terceiro camião também passou para a faixa da direita, mais uma vez sem razão aparente, enquanto o do meio mantinha a velocidade, deixando o MG sem forma de ultrapassar
ou de voltar à segurança da faixa da esquerda. A senhora Challis disse ainda que os três camiões mantiveram o MG bloqueado nessa posição durante um tempo considerável - prosseguiu
o inspetor - até que o seu condutor atravessou inexplicavelmente o separador central em direção ao trânsito que rolava em sentido contrário.

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- Conseguiram interrogar algum dos motoristas dos três camiões? - perguntou Emma.
- Não. Não conseguimos localizar nenhum deles, senhora Clifton. E não pense que não tentámos!
- Mas isso é inconcebível - disse Harry. - Quem podia querer matar dois rapazes inocentes?
- Concordaria consigo, senhor Clifton, se não tivéssemos descoberto que Bruno Martinez não pretendia inicialmente acompanhar o seu filho na viagem para Cambridge.
- Como é que pode saber isso?
- Porque a namorada dele, uma tal Miss Thornton, nos informou que tencionava ir ao cinema com Bruno nesse dia, mas teve de cancelar à última hora porque apanhou uma constipação.
- O inspetor-chefe tirou uma caneta do bolso, virou uma página do caderno de apontamentos e olhou diretamente para os pais de Sebastian, antes de perguntar:
- Algum dos dois tem razões para acreditar que alguém possa ter querido fazer mal ao vosso filho?
- Não - disse Harry.
- Sim - disse Emma.
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- Certifica-te apenas de que desta vez acabas o trabalho - quase gritou Don Pedro Martinez. - Não deve ser muito difícil - acrescentou, enquanto se chegava para a frente na
cadeira. - Ontem de manhã, consegui andar pelo hospital sem qualquer espécie de oposição, e à noite deve ser muito mais fácil.
- Como quer que o liquide? - perguntou Karl, com espírito prático.
- Corta-lhe o pescoço - disse Martinez. - Só precisas de uma bata branca, um estetoscópio e um bisturi. Certifica-te apenas de que é afiado.
- É capaz de não ser boa ideia cortar o pescoço ao rapaz - sugeriu Karl. - É melhor sufocá-lo com uma almofada e deixá-los presumir que morreu em resultado das lesões.
- Não. Quero que esse Clifton tenha uma morte lenta e dolorosa. Na verdade, quanto mais lenta melhor.
- Compreendo o que sente, chefe, mas não queremos dar mais razões àquele inspetor para reabrir as investigações.
Martinez pareceu desapontado.
- Então está bem, sufoca-o - disse ele com relutância. - Garante apenas que levas o máximo de tempo possível.
- Quer que envolva o Diego e o Luis?
- Não. Mas quero que eles vão ao funeral, na qualidade de amigos de Sebastian, para poderem contar o que se passou. Quero ouvir que sofreram o mesmo que eu no momento em que
percebi que não tinha sido Bruno a sobreviver.

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- Mas e em relação...
O telefone em cima da secretária de Don Pedro começou a tocar. Ele atendeu.
- Sim?
- Tem o coronel Scott-Hopkins em linha - dis se-lhe a secretária. - Quer falar consigo sobre um assunto particular. Diz que é urgente.
Os quatro tinham reorganizado as suas agendas para poderem estar na sede do governo em Downing Street, às nove da manhã seguinte.
Sir Alan Redmayne, o secretário do Gabinete, tinha cancelado a reunião com M. Chauvel, o embaixador francês, com quem planeara discutir as implicações do possível regresso
de Charles de Gaulle ao Palácio do Eliseu.
O deputado Sir Giles Barrington não estaria presente na reunião semanal do governo-sombra, pois, como explicara ao senhor Gaitskell, líder da oposição, tinha surgido um problema
familiar urgente.
Harry Clifton não iria autografar exemplares do seu último livro, Os Laços de Família São Mais Fortes, na Hatchards, em Piccadilly. Tinha autografado antecipadamente uma centena
para tentar apaziguar o gerente, que não conseguiu esconder a sua deceção, sobretudo depois de ter sabido que Harry encabeçaria a lista dos mais vendidos no domingo.
Emma Clifton tinha adiado uma reunião com Ross Buchanan para discutir as ideias do presidente para a construção de um novo paquete de luxo que, caso o conselho de administração
o apoiasse, iria fazer parte da companhia de navegação Barrington.
Os quatro tomaram os seus lugares em torno da mesa oval no gabinete do secretário do Gabinete.
- Foi muito amável em receber-nos tão rapidamente - disse Giles da outra ponta da mesa. Sir Alan acenou com a cabeça. - Mas tenho a certeza de que compreende que o senhor
e a senhora Clifton receiem que a vida do filho ainda possa estar em perigo.
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- Eu partilho a mesma preocupação - disse Redmayne - e permita-me que lhe diga o quanto lamento o acidente que o seu rilho sofreu, senhora Clifton. Sobretudo, porque me sinto
parcialmente culpado pelo sucedido. No entanto, deixe-me assegurar-lhe que não tenho estado parado. Durante o fim de semana, falei com o senhor Owen, o inspetor-chefe Miles
e com o médico-legista local. Não podiam ter sido mais cooperantes. E tenho de concordar com Miles: não há provas suficientes de que Don Pedro Martinez tenha estado de alguma
forma envolvido no acidente. - O ar exasperado de Emma fez com que Sir Alan se apressasse a acrescentar: - De qualquer forma, prova e certeza são frequentemente coisas muito
distintas, e depois de saber que Martinez desconhecia que o filho se encontrava no carro na altura, concluí que ele é capaz de voltar a atacar, por mais irracional que isso
possa parecer.
- Olho por olho - disse Harry.
- É capaz de ter razão - disse o secretário do Gabinete. - É óbvio que ele não nos perdoou aquilo que considera ser um roubo de oito milhões de libras que lhe pertenciam,
mesmo tratando-se de dinheiro falso, e embora possa ainda não ter percebido que o governo esteve por trás dessa operação, não há dúvida de que acredita que o vosso filho foi
pessoalmente responsável por aquilo que aconteceu em Southampton e só tenho pena de, na altura, não ter levado suficientemente a sério o vosso compreensível receio.
- Ao menos, fico-lhe grata por isso - disse Emma. - Mas não é o senhor que está constantemente a pensar quando e onde é que Martinez irá atacar a seguir. E qualquer pessoa
pode entrar e sair daquele hospital tão facilmente como se fosse um terminal de autocarros.
- Tenho de concordar - disse Redmayne. - Eu próprio o fiz ontem à tarde. - Esta revelação provocou um silêncio momentâneo, que lhe permitiu continuar: - Contudo, posso assegurar-lhe,
senhora Clifton, que desta vez tomei as precauções necessárias para garantir que o seu filho já não corre perigo.
- Pode partilhar com o senhor e a senhora Clifton a razão para estar tão confiante? - perguntou Giles.
- Não, Sir Giles, não posso.

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- Porquê? - perguntou Emma.
- Porque, desta vez, tive de envolver o ministro do Interior, assim como o da Defesa, portanto estou obrigado à confidencialidade do Conselho Privado.
- Mas que disparate é esse? - exigiu saber Emma. - Tente não se esquecer de que estamos a falar da vida do meu filho!
- Se isto alguma vez vier a público - disse Giles, virando-se para a irmã -, nem que seja daqui a cinquenta anos, será importante mostrar que nem tu nem Harry tinham conhecimento
de que havia ministros da Coroa envolvidos.
- Fico-lhe muito grato, Sir Giles - disse o secretário do Gabinete.
- Só consigo suportar essas mensagens codificadas e pomposas, que vocês os dois estão constantemente a trocar - disse Harry -, se me garantirem que a vida do meu filho já
não está em perigo, pois, se acontecer mais alguma coisa a Sebastian, Sir Alan, só haverá um culpado.
- Aceito a sua admoestação, senhor Clifton. No entanto, posso confirmar que Martinez já não constitui uma ameaça para Sebastian ou para qualquer outro membro da sua família.
Sinceramente, contornei as regras até mais não poder para garantir que é literalmente mais do que a vida de Martinez merece.
Harry continuava com ar cético, e embora Giles parecesse aceitar a palavra de Sir Alan, percebia que teria de chegar a primeiro-ministro antes que o secretário do Gabinete
revelasse a razão da sua confiança, e talvez nem mesmo assim.
- Contudo - prosseguiu Sir Alan -, não nos devemos esquecer de que Martinez é um homem traiçoeiro e sem escrúpulos, e não tenho dúvidas de que há de querer encontrar alguma
forma de vingança. E desde que se cinja à letra da lei, não há grande coisa que se possa fazer em relação a isso.
- Pelo menos, desta vez vamos estar preparados - disse Emma, consciente daquilo a que o secretário do Gabinete aludia.
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O coronel Scott-Hopkins bateu à porta do número 44 de Eaton Square quando faltava um minuto para as dez. Passados alguns momentos, a porta foi aberta por um homem gigantesco
que fez o comandante do SAS sentir-se um anão.
- O meu nome é Scott-Hopkins. Tenho hora marcada com o senhor Martinez.
Karl fez uma ligeira vénia e abriu a porta o suficiente para permitir que a visita do senhor Martinez entrasse. Acompanhou o coronel ao longo do vestíbulo e bateu à porta
do escritório.
- Entre!
Quando o coronel entrou na sala, Don Pedro levantou-se da secretária e olhou para a visita com ar desconfiado. Não fazia ideia porque é que o homem do SAS precisava de vê-lo
com tanta urgência.
- Quer um café, coronel? - perguntou Don Pedro, depois de terem trocado um aperto de mão. - Ou talvez alguma coisa um pouco mais forte?
- Não, obrigado. É um bocadinho cedo para isso.
- Então sente-se e diga-me porque é que precisava de falar comigo com tanta urgência. - Fez uma pausa. - Tenho a certeza de que sabe que sou um homem muito ocupado.
- Sei muito bem quão ocupado tem andado ultimamente, senhor Martinez, por isso vou direto ao assunto.
Don Pedro tentou não mostrar qualquer reação enquanto se recostava na cadeira e continuava a olhar para o coronel.
- O meu único propósito é garantir que Sebastian Clifton terá uma vida longa e tranquila.
A máscara de confiança arrogante escorregou do rosto de Martinez.
- O que está a insinuar? - gritou ele, enquanto se agarrava com força ao braço da cadeira.
- Creio que sabe demasiado bem, senhor Martinez. No entanto, permita-me que esclareça. Estou aqui para assegurar que não voltará a acontecer nada de mal a nenhum membro da
família Clifton.
Don Pedro pôs-se em pé de um salto e apontou o dedo ao coronel.
- Sebastian Clifton era o melhor amigo do meu filho!

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- Não tenho dúvidas disso, senhor Martinez. Mas as minhas instruções não podiam ser mais claras e consistem simplesmente em avisá-lo de que, caso Sebastian ou qualquer outro
membro da sua família venha a estar envolvido noutro acidente, então os seus filhos Diego e Luis embarcarão no próximo avião para a Argentina e não irão viajar em primeira
classe, mas sim no porão, em duas caixas de madeira.
- Quem é que o senhor pensa que está a ameaçar? - berrou Martinez, com os punhos cerrados.
- Um bandido sul-americano de quinta categoria que, como ganhou algum dinheiro e vive em Eaton Square, pensa que se pode fazer passar por cavalheiro.
Don Pedro premiu um botão por baixo da secretária. Passado um momento, a porta abriu-se e Karl entrou de rompante.
- Põe este homem na rua - disse ele, apontando para o coronel
- enquanto eu ligo para o meu advogado.
- Bom dia, tenente Lunsdorf- disse o coronel quando Karl começou a avançar na sua direção. - Enquanto antigo membro das SS, saberá avaliar a situação precária em que o seu
patrão se encontra.
- Karl estacou. - Portanto, permita-me que lhe dê um conselho. Se o senhor Martinez não acatar as minhas condições, os nossos planos para si não incluem uma ordem de deportação
para Buenos Aires, onde tantos dos seus antigos colegas estão presentemente a definhar; não, temos outro destino em mente, onde irá encontrar vários cidadãos que ficarão mais
do que satisfeitos por poderem prestar depoimento sobre o papel que desempenhou como um dos homens de confiança de Himmler e dos extremos a que chegou para lhes arrancar informações.
- Está a fazer bluff- disse Martinez. - Nunca se safaria com uma coisa dessas.
- Conhece tão mal os britânicos, senhor Martinez - disse o coronel ao mesmo tempo que se levantava da cadeira e ia até à janela.
- Permitam-me que lhes apresente alguns espécimes típicos da raça da nossa ilha.
Martinez e Karl juntaram-se a ele e espreitaram pela janela. Do outro lado da rua, estavam três homens que ninguém queria ter como inimigos.
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- Três dos meus colegas de confiança - explicou o coronel.
- Um deles irá vigiá-los noite e dia, na esperança de que dêem um passo em falso. A esquerda está o capitão Hartley, que foi lamentavelmente expulso dos Dragoon Guards por
ter regado com gasolina a esposa e o amante, que estavam a dormir serenamente na altura, até ele acender um fósforo. Como é compreensível, depois de sair da prisão, teve dificuldade
em arranjar emprego. Foi nessa altura que o tirei da rua e voltei a dar algum propósito à sua vida.
Hartley brindou-os com um sorriso caloroso, como se soubesse que estavam a falar sobre ele.
- No meio, está o cabo Crann, carpinteiro de ofício. Ele gosta tanto de serrar que tanto lhe faz se é madeira ou osso... - Crann fitou-os de forma inexpressiva. - Mas confesso
- continuou o coronel - que o meu favorito é o sargento Roberts, um sociopata confesso. Inofensivo a maior parte do tempo, mas receio que nunca mais se tenha conseguido adaptar
à vida civil depois da guerra. - O coronel virou-se para Martinez. - Talvez não lhe devesse ter contado que fez fortuna a colaborar com os nazis, mas é claro que foi assim
que conheceu o tenente Lunsdorf. Um pormenor que é melhor não partilhar com Roberts, a não ser que você me aborreça a sério. É que não sei se sabe, mas a mãe do sargento Roberts
era judia.
Don Pedro afastou-se da janela e viu Karl a olhar para o coronel como se gostasse de estrangulá-lo, mas aceitasse que não era a altura nem o lugar para o fazer.
- Ainda bem que consegui a vossa atenção - disse Scott-Hopkins
- porque agora sinto-me ainda mais confiante de que saberão o que é melhor para vocês. Bom dia, meus senhores. Não é preciso acompanharem-me à porta.
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- Temos muita coisa para tratar na ordem de trabalhos de hoje - disse o presidente. - Por isso, ficaria muito grato se os outros administradores cingissem as suas intervenções
ao essencial.
Emma acabara por admirar a abordagem prática de Ross Buchanan quando presidia às reuniões do conselho de administração da Barrington Shipping Company. Nunca demonstrava preferência
por nenhum administrador em particular e ouvia sempre atentamente quem emitia uma opinião contrária à sua. De vez em quando, muito de vez em quando, até o conseguiam convencer
a mudar de ideias. Também possuía a capacidade de resumir uma discussão complexa, certificando-se de que a opinião pessoal de toda a gente se encontrava devidamente contemplada.
Emma sabia que alguns membros do conselho achavam as suas maneiras escocesas um tanto bruscas, mas ela considerava que eram apenas práticas e perguntava-se, por vezes, em
que é que a sua abordagem podia diferir da dele, caso alguma vez viesse a ser presidente. Afastou rapidamente a ideia e começou a concentrar-se no ponto mais importante da
ordem de trabalhos. Emma tinha ensaiado o que ia dizer na noite anterior, com Harry a fazer o papel de presidente.
Depois de Philip Webster, o secretário da companhia, ter acabado de ler a ata da última reunião e respondido às perguntas que surgiram, o presidente passou ao primeiro ponto
da ordem de trabalhos: a proposta de que o conselho de administração devia abrir concurso para a construção do MV Buckingbam, um paquete de luxo que iria juntar-se à frota
Barrington.
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Buchanan fez saber ao conselho que sentia que essa era a única via possível, se a Barrington's quisesse continuar a ser uma das companhias de navegação mais importantes do
país. Vários membros do conselho acenaram com a cabeça em sinal de concordância.
Depois de o presidente ter exposto os seus argumentos, pediu a Emma que apresentasse a opinião contrária. Ela começou por sugerir que, enquanto a taxa de juro se mantivesse
naquele máximo histórico, a companhia devia consolidar a sua posição e não arriscar uma soma tão grande em algo que, na sua opinião, tinha no máximo cinquenta por cento de
hipóteses de êxito.
O senhor Anscott, administrador não executivo, que tinha sido nomeado para o conselho de administração por Sir Hugo Barrington, o seu falecido pai, sugeriu que estava na altura
de fazer uma extravagância. Ninguém se riu. O contra-almirante Summers sentia que não deviam avançar com uma decisão tão radical sem a aprovação dos acionistas.
- Somos nós que estamos na ponte de comando - recordou Buchanan ao almirante - por conseguinte somos nós que devemos tomar as decisões. - O almirante franziu o sobrolho, mas
não fez qualquer comentário. No fim de contas, o seu voto falaria por si.
Emma escutou atentamente à medida que cada membro do conselho dava a sua opinião e depressa percebeu que os administradores estavam divididos de forma equitativa. Havia um
ou dois que ainda não se tinham decidido, mas desconfiava que se o assunto fosse a votação, o presidente sairia vencedor.
Passada uma hora, o conselho de administração continuava no mesmo impasse em relação à decisão, com alguns dos administradores a limitarem-se a repetir os seus argumentos
anteriores, o que deixava Buchanan visivelmente irritado. Mas Emma sabia que ele ia ter de acabar por avançar, uma vez que havia outro assunto importante que precisava de
ser debatido.
- Sou obrigado a dizer - disse o presidente na sua síntese - que não podemos adiar a decisão por muito mais tempo, portanto sugiro que, quando sairmos daqui, pensemos cuidadosamente
em qual é a nossa posição relativamente a este assunto. Sinceramente, o que está

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em causa é o futuro da companhia. Proponho que quando nos voltarmos a reunir no mês que vem, votemos no sentido de abrir o concurso ou de desistir da ideia.
- Ou, pelo menos, esperar até que as águas estejam mais calmas - sugeriu Emma.
O presidente avançou com relutância, e como os restantes pontos da ordem de trabalhos eram muito menos controversos, na altura em que Buchanan perguntou se havia mais algum
assunto a tratar, o debate aceso inicial tinha dado lugar a um ambiente mais descontraído.
- Tenho uma informação que é meu dever transmitir ao conselho - disse o secretário da companhia. - Devem ter reparado que a cotação das nossas ações tem subido de forma consistente
nas últimas semanas, e são capazes de se ter interrogado porquê, já que não fizemos nenhum anúncio importante nem emitimos qualquer projeção de lucros recentemente. Bem, ontem
esse mistério ficou resolvido quando recebi uma carta do gerente do Midland Bank em St. James's, Mayfair, a informar-me de que um dos seus clientes detinha sete e meio por
cento das ações da companhia e, consequentemente, iria nomear um administrador para o representar no conselho.
- Deixe-me adivinhar - disse Emma. - Não pode ser outro senão o major Alex Fisher.
- Temo que sim - disse o presidente, baixando a guarda de uma forma que lhe era pouco peculiar.
- E há algum prémio para adivinhar quem é que o bom major irá representar? - perguntou o almirante.
- Nenhum - respondeu Buchanan - porque estariam enganados. Embora deva confessar que quando soube da notícia, presumi, tal como vocês, que seria a nossa velha amiga, Lady
Virgínia Fenwick. No entanto, o gerente do Midland assegurou-me de que sua senhoria não é cliente do banco. Quando o pressionei para saber quem era o proprietário das ações,
ele disse delicadamente que não podia revelar essa informação, o que é gíria bancária para: não tem nada que ver com isso.
- Mal posso esperar para descobrir como é que o major vai votar a proposta para a construção do Buckingham - disse Emma com
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um sorriso forçado - porque de uma coisa podemos ter a certeza: quem quer que ele represente, certamente não estará a zelar pelos interesses da Barrington's.
- Garanto-lhe, Emma, que não quero que esse monte de esterco seja a pessoa que vai fazer pender a balança num sentido ou noutro.
Emma ficou sem palavras.
Outra das admiráveis qualidades do presidente era a sua capacidade para pôr de lado qualquer desacordo, por mais extremado que fosse, assim que as reuniões do conselho terminavam.
- Então, quais são as últimas notícias em relação a Sebastian? - perguntou ele, enquanto se juntava a Emma para uma bebida antes do almoço.
- A enfermeira-chefe diz-se muito satisfeita com os seus progressos. Apraz-me dizer que vejo uma melhoria visível cada vez que vou ao hospital. Já lhe tiraram o gesso da perna
esquerda e agora tem dois olhos e opinião sobre tudo, desde o seu tio Giles ser o homem certo para substituir Gaitskell como líder do Partido Trabalhista até os parquímetros
não passarem de outro estratagema do governo para nos sacar mais dinheiro ganho com tanto esforço.
- Concordo com ele em ambos os casos - disse Ross. - Esperemos que a sua exuberância seja o prelúdio de uma recuperação total.
- O cirurgião parece pensar que sim. O senhor Owen disse-me que a cirurgia moderna fez progressos rápidos durante a guerra pelo facto de haver tantos soldados a precisar de
ser operados e sem tempo para procurar uma segunda e terceira opiniões. Há trinta anos, Seb teria acabado numa cadeira de rodas para o resto da vida, mas hoje não.
- Ele ainda tem esperança de ir para Cambridge no próximo período?
- Creio que sim. Recebeu recentemente a visita do orientador, que lhe disse que podia ocupar o seu lugar na Peterhouse em setembro. Até lhe deu alguns livros para ler.
- Bem, não pode fingir que tem muita coisa que o distraia.

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- É curioso que fale nisso - disse Emma -, pois ele começou recentemente a mostrar um interesse enorme no futuro da companhia, o que constitui uma verdadeira surpresa. Na
verdade, lê as atas de todas as reuniões do conselho de uma ponta à outra. Até comprou dez ações, o que lhe dá o direito legal de seguir todos os nossos passos, e posso dizer-lhe,
Ross, que não é nada tímido a expressar as suas opiniões, sobretudo em relação à proposta para a construção do Buckingham.
- Sem dúvida influenciado pela opinião sobejamente conhecida da mãe em relação ao assunto - disse Buchanan a sorrir.
- Não, isso é que é curioso - disse Emma. - Parece haver outra pessoa que anda a aconselhá-lo sobre esse assunto em particular.
Emma desatou a rir.
Harry levantou os olhos desde a outra ponta da mesa de pequeno-almoço e pousou o jornal.
- Como não consigo encontrar nada minimamente divertido no Times esta manhã, podes partilhar a piada comigo.
Emma bebeu um gole de café antes de voltar ao Daily Express.
- Parece que Lady Virgínia Fenwick, única filha do nono conde de Fenwick, intentou uma ação de divórcio contra o conde de Milão. William Hickey dá a entender que Virgínia
irá receber cerca de duzentas e cinquenta mil libras, mais o apartamento em Lowndes Square, assim como a quinta no Berkshire.
- Nada mau para dois anos de trabalho.
- E é claro que o nome de Giles é mencionado.
- E vai continuar a ser sempre que Virgínia fizer as manchetes.
- Sim, mas o que dizem é bastante lisonjeiro, para variar - disse ela, voltando a olhar para o jornal. - "O primeiro marido de Lady Virgínia, Sir Giles Barrington, deputado
por Bristol Docklands, é apontado como futuro ministro do governo, caso o Partido Trabalhista ganhe as próximas eleições."
- Acho improvável.
- Que Giles seja ministro do governo?
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- Não, que o Partido Trabalhista ganhe as próximas eleições.
- "Ele revelou-se um formidável porta-voz da oposição" - prosseguiu Emma - "e ficou recentemente noivo da doutora Gwyneth Hughes, leitora no King's College, Londres." Bela
fotografia de Gwyneth, fotografia execrável de Virgínia.
- Virgínia não vai gostar disso - disse Harry, voltando ao Times. - Mas não há muito que ela possa fazer agora.
- Não estejas tão certo disso - retorquiu Emma. - Tenho a sensação de que o ferrão ainda não foi totalmente extraído desse escorpião.
Harry e Emma iam de Gloucestershire até Harlow de carro todos os domingos, para visitar Sebastian, com Jessica sempre a reboque, pois ela nunca perdia a oportunidade de ir
ver o irmão mais velho. Sempre que Emma virava à esquerda depois de passar os portões de Manor House para iniciar a longa viagem até ao Princess Alexandra Hospital, não conseguia
tirar da memória a primeira vez que tinha feito aquele percurso, quando pensava que o filho tinha morrido num acidente de carro. Emma agradecia apenas o facto de não ter telefonado
a Grace ou Giles para lhes dar a notícia e de Jessica estar a acampar nas Quantocks com o grupo de escuteiras quando o tutor ligou. Assim, só o pobre Harry tinha passado vinte
e quatro horas a pensar que não voltaria a ver o filho.
Jessica considerava as visitas a Sebastian o ponto alto da sua semana. Ao chegar ao hospital, mostrava-lhe a sua última obra de arte e depois de ter coberto cada centímetro
do seu gesso com imagens de Manor House, da família e dos amigos, passou para as paredes do hospital. A enfermeira-chefe pendurava os novos quadros no corredor do lado de
fora da enfermaria, mas admitia que não faltava muito tempo para que tivessem de migrar escada abaixo até ao piso inferior. Emma só esperava que Sebastian tivesse alta antes
que os presentes de Jessica chegassem à receção. Ficava um bocadinho embaraçada sempre que a filha presenteava a enfermeira-chefe com a sua última criação.
- Não precisa de ficar embaraçada, senhora Clifton - dizia Miss Puddicombe. - Devia ver os borrões que pais babados me dão,

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esperando que eu os pendure no meu gabinete. De qualquer forma, quando Jessica for membro da Real Academia, vou vender isto tudo e construir uma nova enfermaria com a receita.
Emma não precisava que lhe lembrassem o quão talentosa era a sua filha, pois sabia que Miss Fielding, a sua professora de Artes na Red Maids', contava candidatá-la a uma bolsa
para a Slade School of Fine Art e parecia confiante em relação ao resultado.
- É um grande desafio, senhora Clifton, ter de ensinar alguém que sabemos ser muito mais talentoso do que nós - dissera-lhe uma vez Miss Fielding.
- Nunca a deixe saber disso - replicou Emma.
- Toda a gente sabe - retorquiu Miss Fielding - e todos contamos com grandes coisas para o futuro. Ninguém ficará surpreendido quando lhe oferecerem um lugar nas escolas da
Real Academia, um feito inédito na Red Maids'.
Felizmente, Jessica parecia não ter consciência do seu talento raro, tal como não tinha de muitas outras coisas, pensou Emma. Ela tinha avisado Harry repetidamente de que
era apenas uma questão de tempo até a filha adotiva descobrir a verdade acerca do seu verdadeiro pai e sugerira que seria melhor ela saber a verdade pela boca de um membro
da família do que pela de um desconhecido. Harry parecia estranhamente relutante em sobrecarregá-la com a verdadeira razão para a terem ido buscar ao centro de acolhimento
do doutor Barnardo tantos anos antes, ignorando várias candidatas mais óbvias. Giles e Grace tinham-se oferecido ambos para explicar a Jessica como é que tinham acabado por
partilhar o mesmo pai, Sir Hugo Barrington, e porque é que a mãe tinha sido responsável pela sua morte prematura.
Assim que Emma estacionava o Austin A30 no parque do hospital, Jessica saltava lá para fora com a sua última pintura debaixo do braço e um chocolate de leite da Cadbury's
na outra mão, e ia a correr até chegar à cabeceira de Sebastian. Emma não acreditava que houvesse alguém capaz de amar mais o filho do que ela, mas se houvesse era Jessica.
Quando Emma entrou na enfermaria passados alguns minutos, ficou surpreendida e encantada ao encontrar Sebastian fora da cama pela primeira vez, sentado numa poltrona. Assim
que viu a mãe, levantou-se com esforço, firmou-se e beijou-a em ambas as faces; outro
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feito inédito. Quando é que chega o momento, pensou Emma, em que as mães deixam de beijar os filhos e os jovens começam a beijar as mães?
Jessica estava a contar pormenorizadamente ao irmão o que tinha feito durante a semana, por isso Emma empoleirou-se aos pés da cama e escutou alegremente as suas façanhas
uma segunda vez. Quando ela parou de falar o tempo suficiente para Sebastian intervir, este virou-se para a mãe e disse:
- Reli a ata da última reunião do conselho esta manhã. A mãe dá-se conta de que o presidente vai pedir uma votação na próxima reunião e que, desta vez, não se poderá furtar
a tomar uma decisão relativamente a avançar, ou não, com a construção do Buckingham, não dá?
Emma não fez qualquer comentário, enquanto Jessica se virava e começava a desenhar o velhote que estava a dormir na cama ao lado.
- Eu faria o mesmo, se estivesse na situação dele - continuou Sebastian. - Então, quem é que acha que vai ganhar?
- Ninguém vai ganhar - disse Emma - porque, independentemente do resultado, o conselho de administração vai continuar dividido até se poder demonstrar quem tinha razão.
- Esperemos que não, porque acho que tem um problema muito maior pela frente, que vai exigir que a mãe e o presidente trabalhem em sintonia.
- Fisher?
Sebastian acenou afirmativamente.
- E só Deus sabe como é que ele irá votar em relação à construção, ou não, do Buckingham.
- Fisher vai votar como Don Pedro Martinez o instruir para fazer.
- Como é que pode ter a certeza de que foi Martinez, e não Lady Virgínia, que comprou essas ações? - perguntou Sebastian.
- Segundo William Hickey, no Daily Express, Virgínia está a passar presentemente por outro divórcio complicado, por isso podes ter a certeza de que estará concentrada em quanto
conseguirá sacar ao conde de Milão antes de decidir como gastá-lo. De qualquer forma, tenho as minhas próprias razões para acreditar que Martinez está por trás desta última
compra de ações.

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- Eu próprio já tinha chegado a essa conclusão - disse Sebastian - porque uma das últimas coisas que Bruno me disse, quando íamos no carro a caminho de Cambridge, foi que
o pai tinha tido um encontro com um major e que tinha ouvido o nome "Barrington" durante a conversa.
- Se isso for verdade - disse Emma -, Fisher irá apoiar o presidente, quanto mais não seja para se vingar de Giles o ter impedido de se tornar deputado.
- Mesmo que o faça, não parta do princípio de que ele vai querer que a construção do Buckingham avance sem problemas. Longe disso. Ele vai mudar de lado sempre que achar que
tem oportunidade de prejudicar as finanças da companhia a curto prazo ou a sua reputação a longo prazo. Perdoe-me o cliché, mas pau que nasce torto nunca se endireita. Lembre-se
apenas de que o objetivo dele é exatamente o oposto do seu. A mãe quer que a companhia tenha sucesso, ele quer que ela fracasse.
- Porque é que ele havia de querer uma coisa dessas?
- Desconfio que sabe a resposta a essa pergunta, mamã. - Sebastian esperou para ver como é que ela reagia, mas Emma limitou-se a mudar de assunto.
- Como é que ficaste de repente tão cheio de sabedoria?
- Tenho aulas diárias com um perito. Além disso, sou o seu único aluno - acrescentou Sebastian sem mais explicações.
- E o que é que o teu perito me aconselha a fazer, se eu quiser que o conselho de administração me apoie e vote contra a construção do Buckingam?
- Ele congeminou um plano capaz de garantir que ganha a votação na próxima reunião do conselho.
- Isso não é possível enquanto o conselho estiver dividido de forma tão equilibrada.
- Oh, sim, é possível! - disse Sebastian. - Mas só se estiver disposta a usar os mesmos métodos que Martinez.
- O que é que tens em mente?
- Enquanto a família estiver na posse de vinte e dois por cento do capital da companhia - prosseguiu Sebastian -, tem o direito de nomear mais dois administradores para o
conselho. Portanto, a única
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coisa que precisa de fazer é cooptar o tio Giles e a tia Grace, e eles podem apoiá-la quando for a votação decisiva. Dessa forma, é impossível perder.
- Eu nunca poderia fazer uma coisa dessas - disse Emma.
- Porque não, quando está tanta coisa em jogo?
- Porque isso iria minar a posição de Ross Buchanan enquanto presidente. Se ele perdesse uma votação tão importante por a família se ter unido contra ele, não teria outra
opção a não ser demitir-se. E desconfio que haveria outros administradores a seguir-lhe o exemplo.
- Mas esse podia ser o melhor desfecho para a companhia a longo prazo.
- É possível, mas preciso que me vejam ganhar a discussão nesse dia, sem ter de recorrer à manipulação da votação. Esse seria o tipo de golpe baixo a que Fisher desceria.
- Minha querida mamã, ninguém a admira mais do que eu por optar sempre pela via mais nobre, mas quando lida com os Martinez deste mundo, tem de compreender que eles não têm
princípios morais e nunca hesitarão em fazer jogo sujo. Na verdade, ele rastejaria para dentro da sarjeta mais próxima se pensasse que isso o faria ganhar a votação.
Seguiu-se um longo silêncio até que Sebastian disse, muito baixinho:
- Mamã, quando acordei pela primeira vez depois do acidente, deparei-me com Don Pedro aos pés da cama. - Emma estremeceu. - Ele estava a sorrir e disse: "Como é que estás,
meu rapaz?" Abanei a cabeça e só nessa altura é que ele percebeu que eu não era o Bruno. O olhar que me lançou antes de se ir embora foi algo que nunca esquecerei para o resto
da vida. - Emma continuou sem dizer nada. - Mamã, não acha que está na altura de me contar porque é que Martinez está tão determinado em destruir a nossa família? É que não
foi muito difícil perceber que era a mim que ele queria matar na A1, e não o próprio filho.
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É sempre tão impaciente, subchefe Warwick, disse o patologista enquanto examinava o corpo mais atentamente.
Mas é ao menos capaz de me dizer há quanto tempo é que o corpo está na água?, perguntou o inspetor.
Harry estava a riscar a palavra há e a alterar está para esteve, quando o telefone tocou. Pousou a caneta e pegou no auscultador.
- Sim? - disse ele de forma um tanto abrupta.
- Harry, daqui fala Harold Guinzburg. Parabéns, está no oitavo lugar esta semana! - Harold telefonava todas as quintas-feiras à tarde para dizer a Harry em que posição estaria
na lista dos mais vendidos no domingo seguinte. - Há nove semanas seguidas que está nos primeiros quinze!
Harry tinha estado no quarto lugar um mês antes, a posição mais alta que tinha conseguido, e, embora não admitisse nem mesmo a Emma, ainda tinha esperança de se juntar ao
seleto grupo de escritores britânicos que conseguiam chegar ao topo dos dois lados do Atlântico. Os dois últimos policiais de William Warwick tinham ficado no primeiro lugar
na Grã-Bretanha, mas nos Estados Unidos esse lugar ainda continuava a escapar-lhe.
- As vendas são a única coisa que realmente importa - disse Guinzburg, quase como se estivesse a ler os pensamentos de Harry. - E de qualquer forma estou confiante de que
irá subir ainda mais na tabela quando sair a edição de bolso, em março. - A Harry, não passaram despercebidas as palavras irá subir ainda mais, em vez de irá chegar ao primeiro
lugar. - Como é que está Emma?
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- A preparar um discurso sobre porque é que a companhia não deve construir um novo paquete de luxo nesta altura.
- Não me soa a best-seller - disse Harold. - Então, diga-me, como é que vai Sebastian?
- Está numa cadeira de rodas. Mas o cirurgião assegurou-me de que não será por muito mais tempo e vão deixá-lo sair pela primeira vez na semana que vem.
- Bravo! Isso significa que ele vai para casa?
- Não, a enfermeira-chefe ainda não o deixa fazer uma viagem tão grande; talvez um passeio até Cambridge para visitar o tutor e tomar chá com a tia.
- Parece-me pior do que a escola. Seja como for, não deve faltar muito para ele se escapar.
- Ou ser posto na rua. Não sei bem o que acontecerá primeiro.
- Porque é que haviam de pô-lo na rua?
- Há uma ou duas enfermeiras que começaram a interessar-se mais por Sebastian à medida que lhe vão tirando as ligaduras e receio que ele não as desencoraje.
- A dança dos sete véus - disse Harold. Harry riu-se. - Ele ainda tem esperança de ir para Cambridge em setembro?
- Tanto quanto sei, sim. Mas mudou tanto desde o acidente que já nada me surpreenderia.
- Como é que ele mudou?
- Não é algo que eu consiga explicar. Acontece apenas que ele amadureceu de uma forma que eu não julgaria possível há um ano. E creio que descobri porquê.
- Parece intrigante.
- E é. Da próxima vez que for a Nova Iorque, conto-lhe os pormenores.
- Vou ter de esperar esse tempo todo?
- Sim, porque é como a minha escrita, não faço ideia do que irá acontecer quando viro a página.
- Então fale-me da nossa rapariga num milhão.
- Também o senhor? - disse Harry.
- Por favor, diga a Jessica que pendurei o desenho que ela fez de Manor House no outono no meu escritório, junto a um Rov Lichtenstein.

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- Quem é Roy Lichtenstein?
- É a última moda em Nova Iorque, mas não me parece que dure muito. Em minha opinião, Jessica desenha muito melhor. Por favor, diga-lhe que se ela me pintar um quadro de Nova
Iorque no outono, lhe dou um Lichtenstein pelo Natal.
- Não sei se ela já terá ouvido falar dele.
- Antes de desligar, será que posso perguntar como é que está a avançar o último livro de William Warwick?
- Avançaria muito mais depressa se não me estivessem constantemente a interromper.
- Desculpe - disse Harold. - Não me disseram que estava a escrever.
- A verdade é que Warwick tem pela frente um problema incontornável. Ou, para ser mais exato, eu é que tenho.
- É alguma coisa em que o possa ajudar?
- Não. É por isso que é o editor e eu o autor.
- Que tipo de problema? - insistiu Harold.
- Warwick encontrou o corpo da ex-mulher no fundo de um lago, mas tem praticamente a certeza de que ela foi morta antes de ser lançada à água.
- Então qual é o problema?
- O meu ou o de William Warwick?
- Primeiro o de Warwick.
- Ele vai ter de esperar pelo menos vinte e quatro horas até poder pôr as mãos no relatório do patologista.
- E o seu?
- Tenho vinte e quatro horas para decidir o que precisa de estar nesse relatório.
- O Warwick sabe quem matou a ex-mulher?
- Não tem a certeza. De momento, há cinco suspeitos, e cada um deles tem um móbil... e um álibi.
- Mas presumo que saiba quem o fez, não é verdade?
- Não, não sei - admitiu Harry. - Porque se eu não sei, o leitor também não sabe.
- Isso não será um bocadinho arriscado?
- Claro que sim. Mas também torna as coisas muito mais desafiantes, tanto para mim como para o leitor.
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- Mal posso esperar para ler a versão preliminar...
- Eu também.
- Desculpe. Vou deixá-lo voltar para o corpo da sua ex-mulher, no lago. Volto a telefonar daqui a uma semana para ver se já sabe quem a largou ali.
Quando Guinzburg desligou, Harry pôs o auscultador no lugar e olhou para a folha de papel em branco à sua frente. Tentou concentrar-se.
Então, qual é a sua opinião, Percy?
É demasiado cedo para fazer uma avaliação correta. Preciso de levá-la para o laboratório e fazer mais alguns testes antes de dar uma opinião fundamentada.
Quando é que me poderá entregar o relatório preliminar?, perguntou Warwick.
É sempre tão impaciente, William...
Harry levantou os olhos. De repente, percebeu quem é que tinha cometido o crime.
Embora Emma não estivesse disposta a aceitar a sugestão de Sebastian para cooptar Giles e Grace para o conselho de administração e assim assegurar que não ia perder a votação
crucial, continuava a considerar seu dever manter os irmãos informados daquilo que se estava a passar. Emma sentia orgulho em representar a família no conselho de administração,
embora soubesse bem que nenhum dos irmãos estava particularmente interessado naquilo que se passava na Barrington's à porta fechada, desde que recebessem os seus dividendos
trimestrais.
Giles estava preocupado com as suas responsabilidades na Câmara dos Comuns, que se tinham tornado ainda mais exigentes depois de Hugh Gaitskell o ter convidado a juntar-se
ao governo-sombra, para a pasta dos assuntos europeus. Isto significava que raramente o viam no seu círculo eleitoral, apesar de esperarem que continuasse a assegurar as funções
de deputado eleito por escassa maioria ao mesmo tempo que visitava regularmente os países cujo voto decidiria a adesão, ou não, da Grã-Bretanha à CEE. No entanto, o Partido
Trabalhista liderava as sondagens há vários meses e parecia

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cada vez mais provável que Giles viesse a ser ministro do governo depois das próximas eleições. Por isso, a última coisa de que ele precisava era que o distraíssem com os
problemas da companhia.
Harry e Emma ficaram encantados quando Giles anunciou finalmente o seu noivado com Gwyneth Hughes, não na coluna social do Times, mas na Ostrich Public House, bem no centro
do seu distrito eleitoral.
- Quero vê-los casados antes das próximas eleições - declarou Griff Haskins, o seu mandatário. - E se Gwyneth conseguir ficar grávida na primeira semana da campanha, ainda
melhor!
- Que romântico - suspirou Giles.
- Não estou interessado em romance - disse Griff. - Estou aqui para garantir que continuas com assento na Câmara dos Comuns depois das próximas eleições, porque se isso não
acontecer podes ter a certeza de que não farás parte do governo.
Giles queria rir-se, mas sabia que Griff tinha razão.
- Já marcaram uma data? - perguntou Emma, que tinha ido ter com eles.
- Para o casamento ou para as eleições gerais?
- Para o casamento, meu idiota!
- Dezassete de maio, no registo civil de Chelsea - disse Giles.
- É um grande contraste com St. Margarets, em Westminster, mas pelo menos desta vez eu e Harry estamos esperançados em receber um convite.
- Pedi a Harry para ser o meu padrinho - disse Giles. - Mas em relação a ti não tenho tanta certeza - acrescentou ele com um sorriso trocista.
A altura podia ter sido melhor, mas a única oportunidade que Emma teve para estar com a irmã foi na noite anterior à reunião decisiva do conselho de administração. Ela já
tinha entrado em contacto com os administradores que confiava que estavam dispostos a apoiar a sua posição, assim como com um ou dois que pareciam indecisos. Mas queria que
Grace soubesse que não conseguia prever para que lado tenderia a votação.
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Grace estava ainda menos interessada do que Giles no futuro da companhia e, numa ou duas ocasiões, até se esquecera de levantar o cheque dos dividendos trimestrais. Tinha
sido recentemente nomeada tutora sénior na Newnham, por isso raramente se aventurava para lá dos arredores de Cambridge. Emma lá conseguia tentá-la de vez em quando a ir a
Londres para uma visita à Royal Opera House, mas só para uma matinée, apenas com tempo suficiente para jantar antes de apanhar o comboio de regresso a Cambridge. Tal como
Grace explicava, não gostava de dormir numa cama estranha. Tão sofisticada a um nível e tão provinciana noutro, observara em tempos a sua querida mãe.
A produção de Luchino Visconti da obra Don Carlo de Verdi tinha-se revelado irresistível e Grace ainda jantara sem pressas, escutando atentamente enquanto Emma enunciava as
consequências de investir uma parte tão grande da reserva de capital da companhia num único projeto. Grace debicou a sua salada de verduras em silêncio, fazendo apenas um
ou outro comentário esporádico, mas sem dar opinião até o nome do major Fisher ter entrado na conversa.
- Soube de fonte fidedigna que ele também se vai casar daqui a algumas semanas - disse Grace, apanhando a irmã de surpresa.
- Mas quem é que se quer casar com essa vil criatura?
- Susie Lampton, ao que parece.
- Porque é que o nome não me é estranho?
- Ela andava na Red Maids' quando tu eras a representante da escola, mas como tinha menos dois anos do que tu, é pouco provável que te lembres dela.
- Só do nome - disse Emma. - Portanto, é a tua vez de me pôr ao corrente.
- Susie já era uma beldade aos dezasseis anos e sabia disso. Os rapazes paravam a olhá-la boquiabertos quando ela passava. Depois de sair da Red Maids', apanhou o primeiro
comboio para Londres e inscreveu-se numa importante agência de modelos. Quando começou a desfilar, Susie não fazia segredo do facto de andar à caça de um marido rico.
- Se for verdade, Fisher não é um grande partido.

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- Talvez não fosse na altura, mas agora que ela tem trinta e tal anos e os seus dias como modelo chegaram ao fim, um administrador da Barrington Shipping Company, com um milionário
argentino a apoiá-lo, pode muito bem ser a sua última hipótese.
- Estará assim tão desesperada?
- Oh, sim! - disse Grace. -Já foi abandonada duas vezes, uma delas no altar, e disseram-me que já gastou o dinheiro que o tribunal lhe atribuiu na sequência de uma ação bem-sucedida
por quebra de compromisso. Até empenhou o anel de noivado. Micawber não é um nome com que esteja familiarizada.
- Pobre mulher - disse Emma baixinho.
- Não precisas de perder o sono por causa de Susie - assegurou-lhe Grace. - Essa rapariga possui um curso de astúcia inata que não encontras no currículo de nenhuma universidade
- acrescentou, antes de terminar o café. - Olha, não sei de qual dos dois tenho mais pena, pois não creio que dure muito tempo. - Grace olhou para o relógio. - Tenho de me
apressar. Não posso dar-me ao luxo de perder o último comboio. - E sem mais uma palavra, beijou rapidamente a irmã em ambas as faces, saiu do restaurante e fez sinal a um
táxi.
Emma sorriu ao ver a irmã desaparecer na parte de trás de um táxi preto. A etiqueta podia não estar entre os seus pontos fortes, mas não havia mulher que Emma admirasse mais.
Várias gerações passadas e presentes de alunos em Cambridge só podiam ter beneficiado com o facto de serem ensinadas por ela na Newnham.
Quando Emma pediu a conta, viu que a irmã tinha deixado uma nota de libra no pratinho; não era mulher que gostasse de ficar em dívida com ninguém.
O padrinho entregou ao noivo uma simples aliança. Por sua vez, Giles colocou-a no terceiro dedo da mão esquerda de Miss Hughes.
- Eu vos declaro marido e mulher - disse o conservador do registo. - Pode beijar a noiva.
Sir Giles e Lady Barrington foram saudados por uma onda de aplausos. A receção que se seguiu teve lugar no Cadogan Arms, em
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King's Road. Giles parecia determinado em mostrar a toda a gente o contraste perfeito com o seu primeiro casamento.
Quando Emma entrou no pub, viu Harry a conversar com o mandatário de Giles, que tinha um grande sorriso no rosto.
- Um candidato casado obtém muito mais votos do que um divorciado - estava Griff a explicar a Harry antes de engolir a terceira taça de champanhe.
Grace estava a conversar com a noiva, que tinha sido não há muito tempo uma das suas doutorandas. Gwyneth recordou-lhe que tinha conhecido Giles numa festa que Grace dera
para comemorar o aniversário.
- O meu aniversário foi apenas uma desculpa para aquela festa - disse Grace sem mais explicações.
Emma centrou novamente a sua atenção em Harry, a quem Deakins acabara de se juntar, sem dúvida para trocar histórias sobre as suas diferentes experiências de serem o padrinho
de casamento de Giles. Emma não conseguia lembrar-se se Algernon era agora professor em Oxford. Tinha ar disso, mas a verdade é que já o tinha desde os dezasseis anos e, mesmo
que não usasse na altura aquela barba desleixada, o fato era o mesmo.
Emma sorriu quando viu Jessica sentada no chão de pernas cruzadas, a usar a parte de trás da folha de serviço para fazer um desenho de Sebastian - que tinha tido autorização
para sair do hospital para assistir à cerimónia, desde que estivesse de volta antes das seis da tarde - a conversar com o tio. Giles estava inclinado e escutava atentamente
aquilo que o sobrinho tinha para lhe dizer. Ela não precisava que lhe dissessem qual devia ser o assunto.
- Mas se Emma perder a votação... - disse Giles.
- É pouco provável que a Barrington's apresente lucro nos próximos tempos, portanto vai deixar de partir do princípio de que vai continuar a receber o seu dividendo trimestral.
- Há alguma boa notícia?
- Sim, se Ross Buchanan tiver razão quanto ao paquete de luxo, e ele é um gestor arguto, então a Barrington's terá pela frente um futuro risonho. E o tio pode ocupar o seu
lugar à mesa do governo sem ter de se preocupar em como sobreviver com o salário de ministro.

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- Devo dizer que estou encantado com o interesse que demonstras pelo negócio da família e só espero que continues a fazê-lo depois de teres ido para Cambridge.
- Pode ter a certeza que sim - disse Sebastian -, porque aquilo que mais me preocupa é o futuro da companhia. Espero que o negócio da família ainda exista quando eu estiver
pronto para assumir o lugar de seu presidente.
- Achas mesmo que é possível a Barrington's ir à falência? - perguntou Giles, parecendo nervoso pela primeira vez.
- Parece pouco provável, mas não ajuda o facto de o major Fisher ter sido novamente nomeado para o conselho de administração, pois estou convencido de que o seu interesse
na companhia é diametralmente oposto ao nosso. Na verdade, se Don Pedro Martinez for mesmo o homem que está por trás dele, não creio que a sobrevivência da Barrington's faça
parte do seu plano de longo prazo.
- Estou confiante de que Ross Buchanan e Emma se mostrarão à altura de Fisher, e mesmo de Martinez.
- Possivelmente. Mas lembre-se de que eles nem sempre estão em sintonia e que Fisher vai saber tirar partido disso. E mesmo que consigam levar a melhor sobre Fisher no curto
prazo, a única coisa que ele tem de fazer é esperar dois anos para que tudo lhe caia no colo.
- Onde é que tu queres chegar? - perguntou Giles.
- Não é segredo que Ross Buchanan tenciona reformar-se num futuro não muito distante, e disseram-me que ele comprou recentemente uma propriedade em Perthshire, convenientemente
situada perto de três campos de golfe e dois rios, o que lhe permitirá dedicar-se aos seus passatempos favoritos. Portanto, não faltará muito tempo para que a companhia tenha
de procurar um novo presidente.
- Mas se Buchanan se reformar, com certeza que a tua mãe seria a escolha óbvia para o lugar, não achas? No fim de contas, é membro da família e nós ainda controlamos vinte
e dois por cento do capital.
- Mas por essa altura Martinez também já pode ter adquirido vinte e dois por cento, ou até mais, pois sabemos de fonte segura que ele continua a comprar as ações da Barrington's
sempre que elas aparecem no mercado. E creio que podemos presumir que, no que toca ao presidente, deve ter em mente outro candidato.
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Quando Emma entrou na sala do conselho naquela sexta-feira de manhã, não ficou surpreendida por encontrar a maioria dos outros administradores já presentes. Só a morte seria
uma desculpa aceitável para não comparecer àquela reunião; aquilo a que Giles teria chamado uma ordem taxativa para votar.
O presidente estava a conversar com o contra-almirante Summers. Sem surpresas, Clive Anscott estava embrenhado na conversa com o seu parceiro de golfe, Jim Knowles, que já
informara Emma de que iam ambos apoiar o presidente na altura da votação. Emma juntou-se a Andy Dobbs e a David Dixon, que tinham deixado claro que a iriam apoiar a ela.
Philip Webster, o secretário-geral da companhia, e Michael Carrick, o diretor financeiro, estavam a analisar o projeto do arquiteto naval para o paquete de luxo proposto,
que tinha sido exposto na mesa da sala do conselho juntamente com algo que Emma nunca vira: um modelo à escala do MV Buckingham. Tinha de admitir que parecia muito sedutor,
e os rapazes gostam muito de brinquedos...
- Vai ser renhido - estava Andy Dobbs a dizer a Emma quando a porta da sala se abriu e o décimo administrador entrou.
Alex Fisher deixou-se ficar junto à porta. Parecia um bocadinho nervoso, como um caloiro no primeiro dia de aulas, que não sabe se os outros rapazes irão meter conversa com
ele. O presidente afastou-se imediatamente do seu grupo e atravessou a sala para o cumprimentar. Emma viu como Ross apertava a mão ao major com formalidade, e não como se
estivesse a cumprimentar um colega respeitado. No que tocava a Fisher, eram ambos da mesma opinião.

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Quando o relógio de parede ao canto da sala começou a bater as dez horas, as conversas pararam de imediato e os administradores tomaram os seus lugares à volta da mesa. Fisher,
como uma rapariga sem par no baile da igreja, continuou em pé até só haver um lugar vazio, como se estivessem a jogar ao jogo das cadeiras. Ocupou a cadeira vazia em frente
de Emma, mas não olhou na sua direção.
- Bom dia - disse o presidente quando todos se aquietaram. -- Permitam-me que abra a reunião saudando o regresso do major Fisher como administrador.
Só houve uma pessoa que articulou entredentes "Apoiado!", mas a verdade é que não fazia parte do conselho de administração quando Fisher o integrara pela primeira vez.
- É claro que esta é a segunda passagem do major pelo conselho, por isso já está acostumado aos nossos métodos e à lealdade que todos esperamos de qualquer membro do conselho
quando representa esta grande companhia.
- Obrigado, senhor presidente - respondeu Fisher. - E gostaria de dizer que estou encantado por voltar ao conselho. Permita-me que lhe assegure que farei sempre aquilo que
considerar ser o melhor para a Barrington's.
- Congratulo-me com isso - replicou o presidente. - No entanto, é meu dever recordar-lhe, como faço a todos os novos membros do conselho, que é contra a lei um administrador
comprar ou vender ações da companhia sem primeiro informar a Bolsa de Valores, assim como o secretário da companhia.
Se Fisher sentiu que esta farpa lhe era dirigida, não o demonstrou, pois limitou-se a acenar afirmativamente e a sorrir, embora o senhor Webster registasse diligentemente
as palavras do presidente em ata. Emma estava satisfeita, pois pelo menos desta vez tinha ficado registado.
Uma vez lida e aprovada a ata da última reunião, o presidente disse:
- Os membros do conselho devem ter reparado que há apenas um ponto na ordem de trabalhos da reunião de hoje. Como todos sabem, sinto que chegou a altura de tomar uma resolução
que vai decidir, e creio que não estou a exagerar, o futuro da Barrington's e
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talvez o futuro de um ou dois de nós, que servimos presentemente a companhia.
Foi óbvio que vários administradores foram apanhados de surpresa pelas observações iniciais de Buchanan e começaram a sussurrar entre si. Ross tinha atirado uma granada de
mão para o meio da mesa de reuniões, com a ameaça implícita de que se demitiria de presidente caso não ganhasse a votação.
O problema de Emma é que não tinha uma granada de mão para ripostar. Não podia ameaçar demitir-se, por várias razões, quanto mais não fosse porque não havia mais nenhum membro
da família disposto a tomar o seu lugar no conselho de administração. Sebastian já a aconselhara que, caso não ganhasse a votação, podia sempre sair do conselho de administração
e ela e Giles podiam vender as ações, o que teria a dupla vantagem de proporcionar um bom lucro à família e, ao mesmo tempo, de vencer Martinez de forma estratégica.
Emma olhou para o retrato de Sir Walter Barrington. Conseguia ouvir o avô a dizer: "Não faças nada de que te venhas a arrepender, minha menina!"
- Passemos então a uma discussão enérgica e sem restrições - prosseguiu Ross Buchanan. - Uma discussão em que espero que todos os administradores exprimam a sua opinião sem
medo ou parcialidade. - A seguir, lançou a sua segunda granada. - Com isso em mente, sugiro que a senhora Clifton abra o debate, não só porque se opõe ao meu plano de construir
um novo paquete nesta altura, mas também porque não devemos esquecer que representa vinte e dois por cento do capital da companhia e que foi o seu ilustre antepassado, Sir
Joshua Barrington, que fundou esta companhia há mais de cem anos.
Emma estava esperançada em ser uma das últimas pessoas a contribuir para a discussão, pois sabia bem que o presidente faria a síntese do debate e que o que ela dissesse podia
ter perdido algum impacto quando chegasse a altura de ele falar. Mesmo assim, estava decidida a apresentar os seus argumentos da forma mais convincente possível.
- Obrigada, senhor presidente - disse ela, olhando para as suas notas. - Começo por dizer que, seja qual for o resultado da discussão

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de hoje, sei que todos esperamos que continue à frente desta companhia durante muitos anos.
Esta declaração foi seguida de um coro de "Apoiado!" e Emma sentiu que, pelo menos, tinha reposto a cavilha de segurança numa das granadas.
- Como o presidente nos recordou, o meu bisavô fundou esta companhia há mais de cem anos. Ele era um homem que tinha a estranha capacidade de saber identificar uma oportunidade
e, ao mesmo tempo, de conseguir evitar perigos imprevistos, fazendo ambas as coisas com igual perícia. Gostava de ter a visão de Sir Joshua porque, nesse caso, saberia dizer-lhes
- disse ela, apontando para o projeto do arquiteto - se isto é uma oportunidade ou um perigo imprevisto. A minha maior reserva em relação a este projeto é o facto de estarmos
a pôr os ovos todos no mesmo cesto. Arriscar uma percentagem tão grande das reservas da companhia num único empreendimento pode muito bem vir a ser uma decisão de que nos
possamos vir todos a arrepender. No fim de contas, o futuro do negócio dos paquetes de luxo parece estar a mudar. Já houve duas grandes companhias de navegação a declararem
perdas este ano, citando o boom da indústria da aviação comercial como a razão para as suas dificuldades. E não é coincidência que a diminuição do número dos nossos próprios
passageiros transatlânticos mostre uma correlação quase perfeita com o aumento do número de passageiros aéreos durante o mesmo período. Os factos são simples. Os empresários
querem chegar às suas reuniões o mais rapidamente possível, e depois voltar para casa com a mesma rapidez. Isso é perfeitamente compreensível. Podemos não gostar da mudança
de fidelidade de que o público dá prova, mas seríamos tolos se ignorássemos as suas consequências a longo prazo. Creio que nos devíamos cingir à atividade que deu à Barrington's
a sua reputação mundial: o transporte de carvão, carros, maquinaria pesada, aço, géneros alimentícios e outros bens, e deixar a dependência dos passageiros para os outros.
Estou confiante em que, se continuarmos com a nossa atividade principal de navios de carga com cabinas para apenas uma dúzia de passageiros, a companhia irá sobreviver a estes
tempos conturbados e continuará a declarar um lucro consistente ano após ano, dando aos nossos acionistas um excelente retorno do seu
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investimento. Não quero apostar todo o dinheiro que esta companhia economizou tão cuidadosamente ao longo dos anos nos caprichos de um público volúvel.
Está na altura de lançar a minha granada de mão, pensou Emma enquanto virava a página.
- O meu pai, Sir Hugo Barrington, e não encontram nenhum quadro a óleo na parede desta sala para lembrar a sua administração, conseguiu dar cabo desta companhia no espaço
de dois anos, e Ross Buchanan precisou de toda a sua considerável perícia e engenho para a recuperar, razão pela qual lhe devemos ficar eternamente gratos. No entanto, para
mim, esta última proposta é um passo maior do que a perna e espero que o conselho a rejeite, em prol de continuarmos com a nossa atividade principal, que tão bem nos serviu
no passado. Portanto, convido o conselho a votar contra esta resolução.
Emma ficou encantada ao ver um ou dois membros do conselho de mais idade e que antes estavam indecisos a dizer agora que sim com a cabeça. Buchanan convidou os outros administradores
a fazerem as suas intervenções e, uma hora mais tarde, todos tinham dado a sua opinião, exceto Alex Fisher, que tinha ficado em silêncio.
- Major, agora que ouviu os pontos de vista dos seus colegas, talvez queira partilhar com o conselho aquilo que pensa.
- Senhor presidente - disse Fisher -, durante o último mês estudei detalhadamente as atas das reuniões do conselho anteriores sobre este assunto em particular e só tenho a
certeza de uma coisa: não nos podemos dar ao luxo de adiar por mais tempo e temos de tomar uma decisão num sentido ou noutro.
Fisher esperou que as exclamações de "Apoiado!" esmorecessem antes de continuar:
- Escutei com interesse os outros administradores, em particular a senhora Clifton, que me pareceu apresentar uma argumentação bem pensada com paixão considerável, recordando
a longa ligação da sua família à companhia. Mas antes de decidir como irei votar, gostaria de ouvir porque é que o presidente tem tanta certeza de que devemos avançar com
a construção do Buckingham nesta altura, já que ainda preciso que me convençam de que é um risco que vale a pena correr, e não um passo maior do que a perna, como a senhora
Clifton sugeriu.

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- Um homem sensato - disse o almirante. Emma ficou a pensar se teria julgado mal Fisher e se ele estaria
mesmo interessado naquilo que era melhor para a companhia. Depois, lembrou-se das palavras de Sebastian: pau que nasce torto nunca se endireita.
- Obrigado, major - disse Buchanan.
Emma não tinha dúvidas de que, apesar das suas palavras bem preparadas e pronunciadas, Fisher já tinha a decisão tomada e seguiria à letra as instruções de Martinez.
- Os membros do conselho estão bem cientes da minha opinião sobre o assunto - começou o presidente enquanto olhava para sete títulos numa única folha de papel. - Creio que
a decisão que vamos tomar hoje é óbvia. Será que esta companhia está disposta a dar um passo em frente ou deverá contentar-se em marcar passo? Não preciso de lhes lembrar
que a Cunard lançou recentemente dois novos navios de passageiros, a P&O tem o Canberra em construção em Belfast e a Union-Castle está a tratar de juntar o Windsor Castle
e o Transvaal Castle à sua frota sul-Áfricana, ao mesmo tempo que nós ficamos a assistir enquanto os nossos rivais, como piratas, tomam o controlo do alto-mar. Nunca haverá
melhor altura para a Barrington's entrar no negócio de passageiros, com transatlânticos no verão e cruzeiros no inverno. A senhora Clifton chama a atenção para o nosso
número de passageiros estar a diminuir, e tem razão. Mas isso é apenas porque a nossa frota está desatualizada e já não oferecemos um serviço que os nossos clientes não consigam
encontrar noutro lado a preço mais competitivo. E se decidirmos hoje não fazer nada, a não ser esperar pelo momento certo, como a senhora Clifton sugere, haverá outros certamente
que tirarão partido da nossa ausência e nos deixarão apeados no cais, como simples espectadores. Sim, é claro que, como o major Fisher observou, iremos correr um risco, mas
isso é precisamente o que grandes empresários como Sir Joshua Barrington
sempre estiveram dispostos a fazer. E deixem-me lembrar-lhes que este projeto não constitui o risco financeiro que a senhora Clifton sugeriu - acrescentou, apontando para
o modelo do paquete no centro da mesa -, porque podemos cobrir grande parte da despesa com a construção desta magnífica embarcação com as reservas que temos
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presentemente, e não iremos precisar de contrair grandes empréstimos bancários para financiá-lo. Tenho a sensação de que Joshua Barrington também aprovaria isto. - Buchanan
fez uma pausa e olhou à volta da mesa para os outros administradores. - Creio que nos confrontamos hoje com uma escolha simples: não fazer nada e contentar-nos em ficar na
mesma, na melhor das hipóteses, ou votar no futuro e dar a esta companhia a hipótese de continuar a ser líder no mundo da navegação, como tem feito desde há um século. Por
conseguinte, peço ao conselho que apoie a minha proposta e faça um investimento nesse futuro.
Apesar das palavras vibrantes do presidente, Emma ainda não tinha a certeza quanto ao resultado da votação. Depois, chegou o momento que Buchanan escolheu para tirar a cavilha
de segurança da sua terceira granada.
- Vou agora pedir ao secretário-geral da companhia que convide cada administrador a dizer se é a favor ou contra a proposta.
Emma presumira que, de acordo com o procedimento habitual da companhia, a votação seria secreta, o que lhe daria mais hipóteses de garantir uma maioria. No entanto, percebeu
que se levantasse uma objeção nesta fase final, isso seria visto como um sinal de fraqueza e reverteria a favor de Buchanan.
O senhor Webster tirou uma folha de papel de um dossiê à sua frente e leu a resolução em voz alta.
- Os membros do conselho são convidados a votar uma resolução proposta pelo presidente e secundada pelo administrador-executivo, nomeadamente que a companhia devia avançar
com a construção de um novo paquete de luxo, o MV Buckingham, no momento presente.
Emma tinha requerido a junção das últimas três palavras à resolução. Pois esperava persuadir alguns dos membros mais conservadores do conselho a esperar pela altura certa.
O secretário-geral da companhia abriu o livro de atas e leu o nome dos administradores, um por um.
- Senhor Buchanan.
- A favor da proposta - replicou o presidente, sem hesitar.
- Senhor Knowles.

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- A favor.
- Senhor Dixon.
- Contra.
- Senhor Anscott.
- A favor.
Emma foi pondo um visto ou uma cruz junto a cada nome da sua lista. Até agora, não havia surpresas.
- Almirante Summers.
- Contra - declarou ele, com igual firmeza.
Emma nem queria acreditar. O almirante tinha mudado de ideias, o que significava que, se todos os outros mantivessem as suas posições, ela não ia perder.
- Senhora Clifton.
- Contra.
- Senhor Dobbs.
- Contra.
- Senhor Carrick.
O diretor financeiro hesitou. Tinha dito a Emma que se opunha à ideia, pois tinha a certeza de que os custos iam disparar e, apesar das garantias de Buchanan, a companhia
acabaria por ter de contrair grandes empréstimos bancários.
- A favor - sussurrou Carrick.
Emma praguejou baixinho. Pôs uma cruz junto ao nome de Carrick e voltou a verificar a lista. Cinco votos de cada. Todas as cabeças se viraram para enfrentar o mais recente
membro do conselho, que tinha agora o voto do desempate.
Emma e Ross Buchanan estavam prestes a descobrir como é que Don Pedro Martinez teria votado, mas não porquê.

Páginas em branco
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DON PEDRO MARTINEZ
1958-1959

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- Por um voto?
- Sim - disse o major.
- Então, comprar aquelas ações já foi um investimento que valeu a pena.
- O que quer que eu faça a seguir?
- Continue a apoiar o presidente, para já, porque não deve faltar muito tempo para ele voltar a precisar do seu apoio.
- Não sei se estou a perceber.
- Não precisa de perceber, major.
Don Pedro levantou-se da secretária e foi até à porta. A reunião tinha acabado. Fisher seguiu-o rapidamente até ao átrio.
- Como vai a vida de casado, major?
- Não podia ir melhor - mentiu Fisher, que depressa se apercebera de que duas pessoas não podem viver com o mesmo que uma.
- Folgo muito em saber disso - disse Martinez, ao mesmo tempo que entregava ao major um envelope volumoso.
- O que é isto? - perguntou Fisher.
- Um pequeno bónus por ter concretizado o golpe - redarguiu Martinez enquanto Karl abria a porta da rua.
- Mas eu já estou em dívida para consigo - disse Fisher, fazendo desaparecer o envelope num bolso interior.
- E eu estou confiante de que me pagará em espécie - disse Martinez, reparando num homem sentado num banco do outro lado da rua, a fingir ler o Daily Mail.
- Ainda quer que eu vá a Londres antes da próxima reunião do conselho de administração?
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- Não, mas assim que souber quem é que ganhou o contrato para construir o Buckingbam, ligue-me.
- Será o primeiro a saber - disse Fisher. Simulou uma continência ao seu novo patrão antes de partir em direção a Sloane Square. O homem do outro lado da rua não o seguiu,
mas a verdade é que o capitão Hartley sabia exatamente onde é que o major ia. Don Pedro sorriu ao mesmo tempo que voltava para dentro de casa.
- Karl, diz a Diego e a Luis que preciso de falar imediatamente com eles, e também preciso de ti.
O mordomo fez uma vénia enquanto fechava a porta, certificando-se de que encarnava a personagem sempre que havia alguém a observar. Don Pedro voltou para o escritório, sentou-se
à secretária, sorriu e pensou na reunião que acabara de decorrer. Desta vez, não iam levar-lhe a melhor. Estava tudo preparado para acabar, não com um elemento, mas com a
família inteira. Ele não pretendia contar ao major qual seria o seu próximo passo. Tinha a sensação de que, apesar dos bónus regulares, o homem era capaz de se mostrar suscetível
debaixo de fogo e podia haver um limite para até onde estava disposto a ir. Don Pedro não teve de esperar muito tempo para ouvir bater à porta e para que se lhe juntassem
os únicos três homens em quem confiava. Os seus dois filhos ocuparam os seus lugares do outro lado da secretária, o que só serviu para lhe lembrar a ausência do filho mais
novo. Isso tornou-o ainda mais decidido. Karl ficou em pé.
- A reunião do conselho de administração não podia ter corrido melhor. Aprovaram por um voto a proposta de avançar com a encomenda do Buckingham, e foi o voto do major que
fez a diferença. A próxima coisa que precisamos de descobrir é qual o estaleiro que vai ganhar o contrato para o construir. Até sabermos isso, não podemos avançar com a segunda
parte do meu plano.
- E como ela é capaz de nos sair bastante cara - interveio Diego - tem alguma ideia de como vamos financiar toda a operação?
- Sim - disse Don Pedro. - Tenciono assaltar um banco.
O coronel Scott-Hopkins esgueirou-se para o interior do Clarence pouco antes do meio-dia. O pub ficava apenas a cerca de duzentos

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metros de Downing Street e era bem conhecido por ser frequentado por turistas. Foi até ao bar e pediu uma cerveja amarga e um gim tónico duplo.
- São três xelins e seis dinheiros, senhor - disse o barman.
O coronel pôs dois florins em cima do balcão, pegou nas bebidas e foi até um recanto que ficava na outra ponta, onde ficariam bem escondidos de olhares indiscretos. Pousou
as bebidas numa mesinha de madeira coberta de marcas circulares deixadas pelos copos de cerveja e pelas beatas dos cigarros. Olhou para o relógio. O chefe raramente se atrasava,
embora no seu trabalho os problemas tivessem o hábito de surgir à última hora. Mas não hoje, pois o secretário do Gabinete entrou no pub passados alguns momentos e foi direitinho
ao recanto.
O coronel levantou-se do lugar.
- Bom dia, senhor. - Nunca teria considerado a hipótese de tratá-lo por Sir Alan; era demasiado familiar.
- Bom dia, Brian. Como só tenho uns minutos, talvez me pudesse pôr ao corrente dos desenvolvimentos mais recentes.
- Martinez, os seus filhos Diego e Luis, assim como Karl Lunsdorf, estão claramente a trabalhar em equipa. No entanto, desde o meu encontro com Martinez, nenhum deles esteve
nas proximidades do Princess Alexandra Hospital, em Harlow, nem visitou Bristol.
- É bom saber disso - replicou Sir Alan enquanto pegava no copo. - Mas isso não significa que Martinez não esteja a trabalhar noutra coisa. Ele não é homem para recuar com
essa facilidade.
- Tenho a certeza de que tem razão. Embora ele não tenha ido a Bristol, isso não significa que Bristol não vá até ele.
O secretário do Gabinete ergueu o sobrolho.
- Alex Fisher trabalha agora para Martinez a tempo inteiro. Está de volta ao conselho de administração da Barrington's e vem informar pessoalmente o seu novo patrão em Londres
uma vez por semana, às vezes duas.
O secretário do Gabinete bebericou o seu gim duplo enquanto pensava nas implicações das palavras do coronel. A primeira coisa que teria de fazer era comprar algumas ações
da Barrington Shipping, para poder receber uma cópia das atas a seguir a cada reunião do conselho.
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- Mais alguma coisa?
- Sim. Martinez marcou uma reunião com o governador do Banco de Inglaterra na próxima quinta-feira de manhã, às onze horas.
- Então estamos prestes a descobrir quantas mais notas falsas de cinco libras esse maldito homem ainda tem na sua posse...
- Mas eu pensava que as tínhamos destruído todas em Southampton, em junho passado!
- Só as que ele tinha escondido na base da estátua de Rodin. Mas ele tem feito sair clandestinamente de Buenos Aires montantes mais pequenos ao longo dos últimos dez anos,
muito antes de qualquer de nós ter percebido o que andava a tramar.
- Porque é que o governador não se recusa simplesmente a negociar com ele, sabendo que são notas falsas?
- Porque o governador é um convencido e recusa-se a acreditar que alguém seja capaz de reproduzir uma cópia perfeita das suas preciosas notas de cinco libras. Por isso, Martinez
prepara-se para trocar todas as suas lâmpadas velhas por novas, e não há nada que eu possa fazer em relação a isso.
- Posso sempre matá-lo.
- Quem? O governador ou Martinez? - disse Sir Alan, sem saber muito bem se Scott-Hopkins estava a brincar.
O coronel sorriu. Não lhe faria diferença ser um ou outro.
- Não, Brian, não posso sancionar a morte de Martinez até ter um pretexto legal e, da última vez que vi, a contrafação não era crime punido com enforcamento.
Don Pedro sentou-se à secretária, a tamborilar impacientemente num mata-borrão enquanto esperava que o telefone tocasse.
A reunião do conselho estava marcada para as dez e, normalmente, terminava por volta do meio-dia. Já passavam vinte minutos do meio-dia, e ainda não tinha tido notícias de
Fisher, embora lhe tivesse dado instruções claras para telefonar assim que a reunião acabasse. No entanto, lembrou-se de que Karl tinha recomendado que Fisher não devia tentar
contactar o patrão até estar suficientemente longe de Barrington House, para ter a certeza de que nenhum outro membro do conselho presenciava o telefonema.

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Karl também aconselhara o major a escolher um local que nenhum dos outros administradores pensasse em frequentar. Fisher tinha optado pelo Lord Nelson, não só porque ficava
a menos de quilómetro e meio do estaleiro da Barrington's, mas porque estava situado na parte inferior do cais: um pub especializado em canecas de cerveja amarga, a ocasional
cidra, e que não precisava de ter em stock o xerez Harvey's Bristol Cream. Mais importante ainda, havia uma cabina telefónica do lado de fora da porta da frente.
O telefone tocou na secretária de Don Pedro. Ele agarrou o auscultador antes do segundo toque. Karl também aconselhara Fisher a não se identificar quando telefonasse de uma
cabina nem a perder tempo com conversa fiada, e a certificar-se de que transmitia a sua mensagem em menos de um minuto.
- Harland & Wolff, Belfast.
- Deus existe - disse Don Pedro.
A linha ficou muda. Era óbvio que não tinha sido discutido mais nada na reunião do conselho que Fisher sentisse que não podia esperar até ele viajar para Londres no dia seguinte.
Don Pedro pôs o auscultador no lugar e olhou para os três homens que estavam do outro lado da secretária. Cada um deles já sabia qual ia ser o seu próximo trabalho.
- Entre!
O chefe de caixa abriu a porta e afastou-se para o lado para deixar o banqueiro argentino entrar no gabinete do governador. Martinez entrou, vestindo um fato assertoado às
risquinhas, camisa branca e gravata de seda, tudo comprado a um alfaiate em Savile Row. Era seguido por dois guardas fardados que carregavam uma arca grande e velha que exibia
as iniciais BM. A fechar o cortejo, vinha um cavalheiro alto e magro que vestia um elegante casaco preto, colete cinzento, calças às risquinhas e gravata escura com riscas
azul-claras, para lembrar aos simples mortais que ele e o governador tinham frequentado a mesma escola.
Os guardas colocaram a arca no meio do gabinete, enquanto o governador saía da secretária e apertava a mão a Don Pedro. Olhou
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fixamente para a arca enquanto a sua visita abria os fechos e levantava a tampa. Os cinco homens olharam para filas e filas de notas de cinco libras muito bem empilhadas.
Não era um panorama invulgar para nenhum deles.
O governador virou-se para o chefe de caixa e disse:
- Somerville, estas notas têm de ser contadas e voltadas a contar e, se o senhor Martinez concordar com o número a que chegarem, serão depois cortadas às tiras.
O chefe de caixa acenou afirmativamente e um dos guardas baixou a tampa da arca e voltou a apertar os fechos. A seguir, os guardas levantaram lentamente a pesada arca e seguiram
o chefe de caixa para fora do gabinete. O governador não voltou a falar até ouvir a porta fechar-se.
- Talvez me queira fazer companhia, meu velho, e tomar um copo de Bristol Cream, enquanto esperamos para confirmar que os nossos números batem certo, o que acha?
Don Pedro tinha levado algum tempo a aceitar que "meu velho" era um termo afetuoso, até mesmo o reconhecimento de que era membro do clube, apesar de ser estrangeiro.
O governador encheu dois copos e estendeu um à sua visita.
- A sua saúde, velho companheiro.
- À sua saúde, velho companheiro - imitou Don Pedro.
- Surpreende-me - disse o governador depois de beber um gole - que tenha guardado uma quantia tão grande em dinheiro.
- O dinheiro tem estado guardado numa caixa-forte em Genebra nos últimos cinco anos, e lá teria continuado se o vosso governo não tivesse decidido imprimir notas novas.
- A decisão não foi minha, meu velho. Na verdade, até aconselhei a que não o fizessem, mas aquele palerma do secretário do Gabinete... escola errada, universidade errada -
murmurou entre goles -, insistiu que os alemães tinham falsificado as nossas notas de cinco libras durante a guerra. Eu disse-lhe que isso não era possível, mas ele não me
deu ouvidos. Parecia pensar que sabia mais do que o Banco de Inglaterra. Também lhe disse que enquanto a minha assinatura estivesse numa nota inglesa, o montante seria honrado
na totalidade.
- Não esperava outra coisa - disse Don Pedro, arriscando um sorriso.

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Depois disso, os dois homens tiveram dificuldade em arranjar um assunto em que se sentissem ambos à vontade. Só o polo (sem ser aquático), Wimbledon e a expectativa da abertura
da época de caça os entreteve tempo suficiente para o governador encher um segundo copo de xerez, mas ele não conseguiu esconder o seu alívio quando o telefone que tinha na
secretária finalmente tocou. Pousou o copo, agarrou no auscultador e escutou atentamente. O governador tirou uma caneta Parker de um bolso interior e escreveu um número. Depois,
pediu ao chefe de caixa para o repetir.
- Obrigado, Somerville - disse, antes de desligar. - Tenho o prazer de dizer que os números coincidem, meu velho. Não que eu alguma vez tenha duvidado disso - acrescentou
rapidamente.
Abriu a gaveta de cima da secretária, tirou para fora um livro de cheques e escreveu Dois milhões, cento e quarenta e três mil, cento e trinta e cinco libras, em caligrafia
bonita e vigorosa. Não conseguiu resistir a acrescentar a palavra apenas depois de juntar a sua assinatura. Sorriu ao entregar o cheque a Don Pedro, que verificou o número
antes de retribuir o sorriso.
Don Pedro teria preferido uma ordem de pagamento, mas um cheque assinado pelo governador do Banco de Inglaterra vinha logo a seguir na ordem de preferências. No fim de contas,
tal como a nota de cinco libras, tinha a assinatura dele.
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Saíram os três do número 44 de Eaton Square a horas diferentes durante a manhã, mas acabaram todos no mesmo destino.
Luis foi o primeiro a aparecer. Foi a pé até à estação de metro em Sloane Square e embarcou numa composição da Circle Line para Hammersmith, onde mudou de plataforma para
a Piccadily Line. O cabo Crann seguia-o de perto.
Diego apanhou um táxi até à estação de autocarros de Victoria e entrou num autocarro com destino ao aeroporto; a sua sombra juntou-se-lhe passado um instante.
Luis tornou fácil a Crann seguir-lhe todos os movimentos, mas estava a fazer apenas o que o pai lhe ordenara. Em Hounslow West, saiu do metro e apanhou um táxi para o Aeroporto
de Londres, onde consultou o quadro das partidas para confirmar que o seu voo partia daí a pouco mais de uma hora. Comprou o último número da Playboy na W. H. Smith e, como
não tinha bagagem para despachar, caminhou lentamente até à porta 5.
O autocarro de Diego deixou-o à porta do terminal poucos minutos antes das dez. Também consultou o quadro das partidas e descobriu que o seu voo para Madrid estava com um
atraso de quarenta minutos. Não tinha importância. Foi até ao Forte's Grill, comprou um café e uma sanduíche de presunto e sentou-se perto da entrada, para que o vissem bem.
Karl abriu a porta do número 44 alguns minutos depois de o avião de Luis ter levantado rumo a Nice. Seguiu em direção a Sloane Street, carregando um saco do Harrods que já
estava cheio. Pelo

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caminho, parou para ver as montras, não para admirar aquilo que exibiam, mas para olhar para os reflexos no vidro; um velho estratagema para ver se estava a ser seguido. E
estava, pelo mesmo homenzinho mal vestido que o seguia como uma sombra desde há um mês. Quando chegou ao Harrods, sabia que o seu perseguidor estava apenas a uns passos dele.
Um porteiro com um sobretudo verde comprido e um chapéu alto abriu a porta a Karl e cumprimentou-o. Orgulhava-se de reconhecer os clientes habituais.
Assim que Karl entrou no armazém, começou a andar rapidamente através da loja de miudezas, acelerando ao passar pelos artigos em pele e quase correndo ao chegar junto de seis
elevadores. Só um deles tinha a porta aberta. Já estava cheio, mas conseguiu arranjar um lugar. A sua sombra quase o alcançou, mas o ascensorista fechou a grade antes de ele
conseguir entrar. O perseguido não resistiu a sorrir ao perseguidor enquanto o elevador desaparecia de vista.
Karl só saiu quando o elevador chegou ao último andar. Depois, caminhou rapidamente através dos eletrodomésticos, mobília, livraria e galeria de arte, antes de chegar à escada
em pedra raramente usada no extremo norte da loja. Desceu os degraus a dois e dois e só parou de correr quando chegou ao rés do chão. Depois, atravessou as secções de roupa
para homem, perfumes, canetas e artigos de papelaria, até chegar a uma porta lateral que dava para Hans Road. Já no passeio, fez sinal ao primeiro táxi desocupado, entrou
e agachou-se para não ser visto.
- Aeroporto de Londres - disse.
Esperou até o táxi ter passado por dois conjuntos de semáforos, antes de arriscar espreitar pelo vidro de trás. Nem sinal do perseguidor, a menos que o sargento Roberts viesse
de bicicleta ou estivesse a conduzir um autocarro londrino.
Karl tinha visitado o Harrods todas as manhãs durante os últimos quinze dias, dirigindo-se à secção alimentar no rés do chão e comprando alguns artigos antes de regressar
a Eaton Square. Mas não hoje. Embora desta vez tivesse despistado o homem do SAS, sabia que não conseguiria repetir a gracinha do Harrods. E como era capaz de ter de viajar
para o mesmo destino com alguma frequência, eles
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não iam ter dificuldade em perceber para onde ia, por isso futuramente estariam à sua espera quando saísse do avião.
Quando o táxi o deixou à porta do terminal da Europa, Karl não comprou um exemplar da Playboy nem comprou um café, limitou-se a ir para a porta número 18.
O avião de Luis aterrou em Nice alguns minutos depois de o de Karl descolar. Luis tinha um maço de notas de cinco libras escondido no seu estojo de toilette e instruções que
não podiam ser mais claras: diverte-te, e não voltes antes de uma semana, pelo menos. Não era uma missão muito espinhosa, mas fazia parte do plano geral de Don Pedro.
O avião de Diego entrou no espaço aéreo espanhol com uma hora de atraso, mas como o seu encontro com um dos principais importadores de carne de vaca do país só estava marcado
para as quatro da tarde, ainda tinha muito tempo. Quando viajava para Madrid, ficava sempre no mesmo hotel, jantava no mesmo restaurante e visitava o mesmo bordel. A sua sombra
também se hospedava no mesmo hotel, comia no mesmo restaurante, mas ficava sentado sozinho num café do outro lado da rua sempre que Diego passava umas horas em La Buena Noche.
Sentia que não era despesa a que o coronel Scott-Hopkins fosse achar muita graça.
Karl Lunsdorf nunca tinha visitado Belfast, mas após várias noites a dizer "as bebidas são por minha conta", na Ward's Irish House, em Piccadilly, saiu àopub pela última vez
com resposta para quase todas as suas perguntas. Também jurou não voltar a beber uma caneca de Guinness na sua vida.
Ao sair do aeroporto, apanhou um táxi para o Royal Windsor Hotel, no centro da cidade, onde reservou três noites. Disse ao rececionista que podia ter de ficar mais tempo,
dependendo de como corresse o negócio. Já no quarto, trancou a porta, tirou as coisas do saco do Harrods e tomou um banho. A seguir, deitou-se em cima da cama, a pensar no
que planeava fazer naquela noite. Não se mexeu até as luzes da rua estarem acesas. Depois, consultou uma vez mais o mapa

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das ruas da cidade, para não precisar de voltar a vê-lo quando saísse do hotel.
Saiu do quarto pouco passava das seis e foi pela escada até ao rés do chão. Nunca usava o elevador do hotel - um espaço minúsculo, exposto e demasiado iluminado que faria
com que os outros hóspedes o recordassem com demasiada facilidade. Atravessou rapidamente o foyer, mas não de forma excessivamente rápida, e saiu para Donegall Road. Depois
de cem metros a ver montras, estava confiante de que ninguém o seguia. Estava uma vez mais por sua conta, atrás das linhas inimigas.
Não tomou o caminho mais direto para o seu destino, subindo e descendo ruas secundárias, de tal forma que um trajeto que levaria normalmente vinte minutos acabou por levar
pouco menos de uma hora. Mas ele não tinha pressa. Quando chegou finalmente a Falis Road, conseguia sentir as gotas de suor a perlar-lhe a testa. Sabia que o medo seria um
companheiro constante enquanto estivesse nos catorze quarteirões ocupados exclusivamente por católicos romanos. Não era a primeira vez na sua vida que se encontrava num sítio
de onde não tinha a certeza de sair vivo.
Com um metro e noventa, uma juba de cabelo farto e louro e pesando noventa e quatro quilos, sobretudo de músculo, não ia ser fácil a Karl passar despercebido. Aquilo que tinha
sido uma vantagem quando era jovem oficial das SS ia ser exatamente o oposto nas próximas horas. Só tinha uma coisa a seu favor: o sotaque alemão. Muitos dos católicos que
viviam em Falis Road odiavam ainda mais os ingleses do que os alemães, embora às vezes fosse uma competição bastante renhida. No fim de contas, Hitler tinha prometido reunificar
o norte e o sul quando ganhasse a guerra. Karl pensava muitas vezes qual o cargo que Himmler lhe teria dado se a Alemanha tivesse invadido a Grã-Bretanha, tal como ele recomendara,
em vez de cometer o erro desastroso de se virar para leste, em direção à Rússia. Era uma pena que o Fúhrer não tivesse lido mais livros de História. No entanto, Karl não duvidava
de que muitos daqueles que abraçavam a causa da unidade irlandesa não passavam de bandidos e criminosos que viam o patriotismo como uma oportunidade mal disfarçada de fazer
dinheiro. Algo que o IRA tinha em comum com as SS.
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Viu a tabuleta a oscilar com a brisa noturna. Se quisesse dar meia-volta, tinha de ser agora. Mas nem hesitou. Nunca esqueceria que tinha sido Martinez quem lhe possibilitara
fugir do país quando o Reichstag ficara ao alcance do fogo dos tanques russos.
Empurrou a porta verde com a tinta a descascar que dava para o bar, sentindo que passava tão despercebido quanto uma freira numa loja de apostas. Mas já tinha admitido que
não havia uma forma subtil de dar a saber ao IRA que estava na cidade. Não era questão de quem se conhecia... ele não conhecia ninguém.
Quando pediu um uísque Jameson 's, Karl exagerou o seu sotaque alemão. Depois, pegou na carteira, tirou uma nota de cinco libras e pô-la em cima do balcão. O barman olhou
para o dinheiro com ar desconfiado, sem ter sequer a certeza se teria troco suficiente na caixa.
Karl emborcou o uísque e pediu outro de imediato. Pelo menos, tinha de tentar mostrar que tinha alguma coisa em comum com eles. Sempre o divertira a quantidade de pessoas
que imaginava que homens grandes tinham de ser grandes bebedores. Depois do seu segundo uísque, olhou à volta da sala, mas não havia ninguém disposto a estabelecer contacto
visual. Devia haver umas vinte pessoas no bar, a conversar, a jogar dominó e a bebericar cerveja, todas elas a fingir que não tinham reparado no elefante que estava na sala.
Às 21h30, o barman tocou uma sineta e berrou que o bar ia fechar as portas, o que fez com que vários clientes acorressem ao balcão e pedissem outra bebida. Mesmo assim, ninguém
olhou segunda vez para Karl, quanto mais falar com ele. Deixou-se ficar por ali mais alguns minutos, mas nada mudou, por isso decidiu regressar ao hotel e voltar a tentar
no dia seguinte. Sabia que levariam anos até o tratarem como um local, se é que alguma vez o fariam, e ele só tinha uns dias para conhecer alguém que nunca teria considerado
a possibilidade de entrar naquele bar, mas que à meia-noite já saberia que Karl tinha lá estado.
Ao sair novamente para Falis Road, teve consciência de vários pares de olhos que observavam todos os seus passos. Passado um momento, dois homens, mais embriagados do que
sóbrios, começaram a atravessar a rua a cambalear sempre que ele o fazia. Abrandou para ter a certeza de que os seus perseguidores conseguiam ver onde é

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que ele ia passar a noite, para que pudessem transmitir essa informação a uma autoridade superior. Entrou no hotel, virou-se e viu-os escondidos nas sombras do outro lado
da rua. Subiu a escada para o terceiro piso e entrou no quarto, sentindo que provavelmente não poderia ter feito muito mais no seu primeiro dia na cidade do que deixá-los
cientes da sua presença.
Karl devorou todos os biscoitos de boas-vindas que tinham sido deixados no aparador, assim como uma laranja, uma maçã e uma banana que tirou da fruteira; era mais do que suficiente.
Quando tinha fugido de Berlim em abril de 1945, sobrevivera à custa da água dos rios lamacentos recentemente agitados por tanques e veículos pesados, e do luxo de um coelho
cru; até já lhe tinha comido a pele na altura em que atravessou a fronteira para a Suíça. Nunca dormiu debaixo de um teto, nunca andou pela estrada e nunca entrou numa vila
ou aldeia durante o trajeto longo e sinuoso até à costa mediterrânica, onde o puseram clandestinamente a bordo de um navio de carga como se fosse um saco de carvão. Decorreriam
mais cinco meses até sair do barco e pôr os pés em Buenos Aires. Foi imediatamente à procura de Don Pedro Martinez, cumprindo a última ordem que Himmler lhe dera antes de
se suicidar. Martinez era agora o seu comandante.
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Karl levantou-se tarde na manhã seguinte. Sabia que não se podia dar ao luxo de ser visto na sala de pequeno-almoço de um hotel cheio de protestantes, por isso comprou uma
sanduíche de bacon num café à esquina de Leeson Street, antes de regressar lentamente a Falis Road, que estava agora cheia de pessoas às compras, mães com carrinhos de bebé,
crianças de chucha na boca e padres vestidos de preto.
Já estava junto do Volunteer momentos antes de o proprietário ter aberto a porta. Reconheceu Karl de imediato - o homem das cinco libras -, mas não o demonstrou. Karl pediu
uma caneca de cerveja loura e pagou com o troco da sanduíche. Continuou encostado ao bar até à hora do fecho, apenas com duas pequenas pausas para ir à casa de banho. O seu
almoço foi um pacote de batatas fritas Smith's com sal numa saqueta azul. Ao fim da tarde, já tinha comido três pacotes, o que só lhe dava vontade de beber mais. Os habitantes
locais entravam e saíam e Karl reparou que um ou dois não pararam para beber nada, o que o fez sentir-se um pouco mais esperançado. Olharam sem olhar. Mas mesmo com o passar
das horas ninguém falava com ele ou olhava sequer na sua direção.
Quinze minutos depois de dizer que o bar ia encerrar, o barman gritou:
- Está na hora, senhores, por favor - e Karl sentiu que tinha desperdiçado outro dia. Enquanto se dirigia para a porta, até pensou no plano B, que envolvia trocar de lado
e estabelecer contacto com os protestantes.

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Assim que pôs os pés no passeio, um Hillman preto parou ao seu lado. A porta de trás abriu-se e, antes que ele pudesse reagir, dois homens agarraram nele, atiraram-no para
o banco de trás e fecharam a porta com força. O carro arrancou a toda a velocidade.
Karl levantou os olhos e viu um jovem que certamente ainda não tinha idade para votar a encostar-lhe uma arma à têmpora. A única coisa que o preocupava era que o jovem estava
claramente mais assustado do que ele, e tremia tanto que a arma tinha mais probabilidades de disparar de forma acidental do que intencional. Podia ter desarmado o rapaz num
ápice, mas como isso não serviria o seu propósito, não resistiu quando o homem mais velho sentado do outro lado lhe amarrou as mãos atrás das costas e depois lhe pôs um lenço
sobre os olhos. O mesmo homem revistou-o para ver se estava armado e tirou-lhe destramente a carteira. Karl ouviu-o assobiar enquanto contava as notas de cinco libras.
- Há muitas mais no sítio de onde essas vieram - disse Karl.
Seguiu-se uma discussão acesa, numa língua que Karl presumiu ser a sua língua nativa. Teve a sensação de que um deles queria matá-lo, mas tinha esperança de que o mais velho
se sentisse tentado pela possibilidade de obter mais dinheiro. O dinheiro devia ter levado a melhor, pois ele já não sentia a arma a tocar-lhe na testa.
O carro guinou para a direita e, passados momentos, para a esquerda. Quem é que eles estavam a tentar enganar? Karl sabia que eles estavam simplesmente a percorrer o mesmo
trajeto, pois não se arriscariam a sair do seu reduto católico.
De repente, o carro parou, uma porta abriu-se e Karl foi atirado para a rua. Se ainda estivesse vivo daí a cinco minutos, pensou, era capaz de viver o suficiente para receber
a pensão de velhice. Alguém o agarrou pelos cabelos e o obrigou a pôr-se em pé. Um empurrão no meio das costas impeliu-o através de uma porta aberta. Vinha um cheiro a carne
queimada de uma divisão ao fundo, mas ele desconfiava que alimentá-lo não fosse uma das suas prioridades.
Foi arrastado por um lanço de escadas acima até uma divisão que cheirava a quarto, e obrigado a sentar-se numa cadeira desconfortável em madeira. A porta bateu com estrondo
e deixaram-no sozinho. Presumiu que devia estar num esconderijo qualquer e que alguém
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mais velho, possivelmente um comandante da área, estaria agora a decidir o que deviam fazer com ele.
Não sabia dizer ao certo quanto tempo o deixaram à espera. Pareceram-lhe horas, cada minuto mais longo do que o anterior. Depois, de repente, a porta abriu-se e ouviu pelo
menos três homens a entrar no quarto. Um deles começou a andar à volta da cadeira.
- O que queres, inglês? - disse a voz áspera que andava à sua volta.
- Eu não sou inglês - disse Karl. - Sou alemão. Seguiu-se um longo silêncio.
- Então, o que queres, Kraut?
- Tenho uma proposta para vos fazer.
- Apoias o IRA? - outra voz, mais jovem e impulsiva, mas sem autoridade.
- Estou-me nas tintas para o IRA.
- Então porque é que arriscas a vida a tentar encontrar-nos?
- Porque, como disse, tenho uma proposta que são capazes de achar compensadora. Portanto, porque é que não desandam daqui para fora e vão buscar alguém que possa tomar decisões?
É que desconfio, meu jovem, que a tua mãe ainda te anda a ensinar a ir ao bacio.
Sentiu um soco na boca, seguido de uma troca de opiniões ruidosa e exaltada, com várias vozes a falar ao mesmo tempo. Karl sentiu o sangue a escorrer-lhe pelo queixo e preparou-se
para o segundo golpe, mas não chegou a acontecer. O homem mais velho devia ter levado a melhor. Passado um momento, três deles saíram do quarto e a porta bateu com estrondo.
Mas desta vez Karl sabia que não estava sozinho. Ter os olhos tapados há tanto tempo tornara-o mais sensível ao som e ao cheiro. Passou-se pelo menos uma hora até a porta
se voltar a abrir e um homem que usava sapatos, e não botas, entrar no quarto. Karl conseguia sentir que ele estava a poucos centímetros.
- Como se chama? - perguntou um homem com voz educada e quase sem sotaque.
Karl presumiu que a voz pertencia a alguém que tinha entre trinta e cinco e quarenta anos. Sorriu. Embora não o pudesse ver, aquele era o homem com quem tinha vindo negociar.
- Karl Lunsdorf.
- E o que o traz a Belfast, senhor Lunsdorf?

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- Preciso da vossa ajuda.
- O que é que tem em mente?
- Preciso de alguém que acredite na vossa causa e trabalhe na Harland & Wolff.
- Tenho a certeza de que já sabe que são muito poucos os católicos que arranjam trabalho na Harland &Wolff. É um sistema fechado. Receio que tenha sido uma viagem perdida.
- Há um punhado de católicos, cuidadosamente escrutinados, admito, que lá trabalham em áreas especializadas, instalações elétricas, canalização e soldadura, mas só quando
a gerência não consegue encontrar um protestante com as aptidões necessárias.
- Está bem informado, senhor Lunsdorf. Mas mesmo que conseguíssemos encontrar um homem desses, apoiante da nossa causa, o que é que ia querer que ele fizesse?
- A Harland & Wolff acabou de ganhar um contrato com a Barrington Shipping...
- Para construir um paquete de luxo chamado Buckingham.
- Agora é a sua vez de estar bem informado - disse Karl.
- Nem por isso - disse a voz educada. - A primeira página dos dois jornais locais trouxe o desenho do paquete proposto pelo arquiteto no dia a seguir à assinatura do contrato.
Portanto, senhor Lunsdorf, diga-me algo que eu não saiba.
- Os trabalhos para o paquete começam algures no próximo mês, com data de entrega à Barrington's a quinze de março de 1962.
- E o que é que espera que possamos fazer? Acelerar o processo ou retardá-lo?
- Fazê-lo parar.
- Não é tarefa fácil, com tantos olhos desconfiados sempre de atalaia.
- Seriam bem recompensados.
- Porquê? - disse a voz áspera.
- Digamos apenas que represento uma companhia rival que gostaria de ver a Barrington Shipping em dificuldades financeiras.
- E como é que ganhamos o nosso dinheiro? - perguntou a voz educada.
- Em função dos resultados. O contrato estipula que a construção do navio deve ser efetuada em oito fases, com datas específicas
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para cada uma delas. Por exemplo, a primeira fase tem de estar concluída por ambas as partes a um de dezembro deste ano o mais tardar. Proponho que vos paguemos mil libras
por cada dia de atraso para qualquer uma das fases. Assim, se o atraso fosse de um ano, teríamos de vos pagar trezentas e sessenta e cinco mil libras.
- Eu sei quantos dias tem um ano, senhor Lunsdorf. Se concordássemos com a vossa proposta, esperaríamos um pagamento adiantado como prova de "boa vontade".
- De quanto? - exigiu saber Karl, sentindo-se pela primeira vez em pé de igualdade.
Os homens sussurraram entre si.
- Creio que um pagamento inicial de vinte mil libras ajudaria a convencer-nos da vossa seriedade - disse a voz educada.
- Dê-me as referências da vossa conta bancária e eu transfiro a totalidade amanhã de manhã.
- Nós entramos em contacto - disse a voz educada. - Mas não antes de pensarmos melhor na sua proposta.
- Mas não sabem onde eu moro.
- No número quarenta e quatro de Eaton Square, Chelsea, senhor Lunsdorf. - Foi a vez de Karl ficar sem palavras. - E se concordarmos em ajudá-lo, senhor Lunsdorf, esperemos
que não cometa o erro de subestimar os irlandeses, como os ingleses têm feito desde há quase mil anos.
- Então, como é que perderam Lunsdorf de vista?
- Ele escapou-se do sargento Roberts, no Harrods.
- Quem me dera conseguir fazer isso, às vezes, quando ando às compras com a minha mulher - disse o secretário do Gabinete. - E Luis e Diego Martinez? Também se escaparam?
- Não, mas eles serviram apenas de cortinas de fumo para nos manterem ocupados enquanto Lunsdorf fugia.
- Quanto tempo é que Lunsdorf esteve fora?
- Três dias. Voltou a Eaton Square na sexta-feira à tarde.
- Não pode ter ido muito longe durante esse tempo. Se fosse homem de apostas, creio que o mais provável seria Belfast, tendo em

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conta que passou várias noites durante o último mês a beber Guinness no Wards Irish House em Piccadilly.
- E Belfast é onde estão a construir o Buckingham. Mas ainda não percebi exatamente o que é que Martinez anda a tramar - disse Scott-Hopkins.
- Nem eu, mas posso dizer-lhe que ele depositou recentemente mais de dois milhões de libras na filial do Midland Bank em St. James e que começou imediatamente a comprar mais
ações. Não deve faltar muito para conseguir colocar um segundo administrador no conselho.
- Talvez esteja a planear adquirir a companhia.
- E para a senhora Clifton a ideia de Martinez gerir o negócio da família seria suficientemente humilhante. Roubar o meu bom nome...
- Mas Martinez podia perder uma fortuna, se tentasse fazer isso.
- Duvido. Esse homem já deve ter um plano de contingência, mas diabos me levem se sei qual é.
- Há alguma coisa que possamos fazer?
- Não muito, a não ser aguardar na esperança de que um deles cometa um erro. - O secretário do Gabinete terminou a sua bebida antes de acrescentar: - É em alturas como esta
que gostava de ter nascido na Rússia. Por esta altura, seria chefe do KGB e não teria de perder tempo a cumprir regras.
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- Ninguém tem culpa - disse o presidente.
- Talvez, mas parece que são problemas inexplicáveis, uns atrás dos outros - disse Emma. Começou a ler em voz alta a longa lista que tinha à sua frente. - Um incêndio numa
plataforma de carga que impede a construção durante vários dias; uma caldeira parte as suas correias ao ser descarregada e acaba no fundo da baía; uma intoxicação alimentar
que resulta em setenta e três eletricistas, canalizadores e soldadores serem mandados para casa; uma greve selvagem...
- Qual é o ponto da situação? - perguntou o major Fisher.
- Estamos a ficar muito atrasados - redarguiu Buchanan. - Não há hipótese da primeira fase ficar concluída no final do ano. Se as coisas continuarem assim, há pouca esperança
de respeitar o calendário original.
- E quais são as consequências financeiras de não conseguir cumprir as datas? - indagou o almirante.
Michael Carrick, o diretor financeiro da companhia, consultou os seus números.
- Até agora, os custos a mais são de cerca de trezentas e doze mil libras.
- Podemos cobrir a despesa extra com as nossas reservas ou vamos ter de recorrer a algum empréstimo de curto prazo? - perguntou Dobbs.
- Temos mais do que o suficiente para cobrir o défice inicial na conta de capital - disse Carrick. - Mas teremos de fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para compensar
o tempo perdido ao longo dos próximos meses.

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Ao nosso alcance, escreveu Emma no bloco que tinha à sua frente.
- Nestas circunstâncias - disse o presidente - talvez fosse mais sensato adiar qualquer anúncio em relação à data do lançamento à água, já que começa a parecer que teremos
de rever as previsões ori
ginais, tanto em termos de prazos como em termos financeiros.
- Quando foi vice-presidente da P&O - disse Knowles - alguma vez se deparou com um problema deste género? Ou estamos a
viver uma situação fora do comum?
- É uma situação muito invulgar. De facto, nunca me deparei antes com nada assim - admitiu Buchanan. - Qualquer construção tem os seus reveses e surpresas, mas as coisas normalmente
acabam
por se equilibrar no longo prazo.
- A nossa apólice de seguro cobre algum desses problemas?
- Conseguimos acionar algumas coberturas - disse Dixon -, mas as companhias de seguros impõem sempre limites, e num ou dois
casos já os ultrapassámos.
- Mas com certeza que a Harland & Wolff é diretamente responsável por alguns destes atrasos - disse Emma -, por isso, podemos invocar as cláusulas de penalização constantes
do contrato.
- Quem me dera que fosse assim tão fácil, senhora Clifton - disse o presidente -, mas a Harland & Wolff está a contestar praticamente todos os nossos pedidos, argumentando
que não foram diretamente responsáveis por nenhum dos atrasos. Tornou-se um campo de batalha para os advogados, o que nos está a custar ainda mais dinheiro.
- Consegue ver um padrão nisto tudo, senhor presidente?
- Não sei se estou a perceber o que está a insinuar, almirante.
- Equipamento elétrico defeituoso vindo de uma companhia normalmente fiável em Liverpool, uma caldeira que estava a ser descarregada de um barco de Glasgow e que foi parar
ao fundo da baía, a nossa equipa apanha uma intoxicação alimentar que não se estende a mais nenhum setor do estaleiro, embora a comida fosse servida pelo mesmo fornecedor
de Belfast...
- O que está a insinuar, almirante?
- Há demasiadas coincidências para o meu gosto, que acontecem precisamente ao mesmo tempo que o IRA começa a mostrar a sua força.
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- Está a fazer uma extrapolação dos diabos - sugeriu Knowles.
- Pode ser que esteja a exagerar - admitiu o almirante -, mas a verdade é que nasci no condado de Mayo, de pai protestante e mãe católica romana, por isso talvez seja uma
característica do território.
Emma olhou de relance para o outro lado da mesa e viu Fisher a escrevinhar furiosamente, mas pousou a caneta assim que deu pelo seu interesse. Ela sabia que Fisher não era
católico, e o mesmo sucedia com Don Pedro Martinez, cujo único credo era o interesse pessoal. No fim de contas, ele tinha-se disposto a vender armas aos alemães durante a
guerra, portanto porque é que não havia de negociar com o IRA, se isso servisse o seu objetivo?
- Esperemos que consiga apresentar um relatório mais positivo quando nos voltarmos a reunir, no mês que vem - disse o presidente, sem parecer muito convencido.
Depois de terminada a reunião, Emma ficou surpreendida por ver Fisher sair rapidamente da sala sem falar com ninguém; outra das coincidências do almirante?
- Posso dar-lhe uma palavrinha, Emma? - perguntou Buchanan.
- Volto já, senhor presidente - disse Emma, antes de seguir Fisher pelo corredor e de vê-lo desaparecer escada abaixo. Porque é que não se limitara a apanhar o elevador que
ali estava? Ela entrou nele e premiu o botão que dizia R/C. Quando as portas se abriram no piso térreo, não saiu de imediato, vendo Fisher passar pela porta giratória e sair
do edifício. Quando chegou à porta, Fisher já estava a entrar no carro. Ela deixou-se ficar no interior do edifício e viu-o arrancar em direção ao portão. Para sua surpresa,
ele virou à esquerda, rumo à parte inferior das docas, e não à direita, em direção a Bristol.
Emma abriu a porta e correu para o seu carro. Quando chegou ao portão, olhou para a esquerda e viu o carro do major ao longe. Preparava-se para o seguir quando um camião passou
à frente dela. Praguejou, virou à esquerda e escondeu-se atrás dele. Os veículos que vinham em sentido oposto impediam-na de ultrapassar. Tinha percorrido apenas cerca de
oitocentos metros quando viu o carro de Fisher estacionado em frente do Lord Nelson. Ao aproximar-se, viu o major

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dentro da cabina telefónica que havia em frente do pub a marcar um número.
Manteve-se atrás do camião e continuou a conduzir até já não conseguir ver a cabina telefónica pelo retrovisor. Nessa altura, deu meia-volta e fez lentamente o percurso contrário
até voltar a ver a cabina. Parou na berma, mas deixou o motor a trabalhar. Pouco depois, o major saiu da cabina, voltou para o carro e arrancou. Ela não o seguiu até ele ter
desaparecido de vista. No fim de contas, sabia exatamente para onde é que ele se dirigia.
Quando Emma voltou a transpor o portão do estaleiro alguns minutos depois, não ficou surpreendida por ver o carro do major estacionado no lugar habitual. Apanhou o elevador
para o quarto piso e foi diretamente à sala de jantar. Vários administradores, incluindo Fisher, estavam em pé junto a uma longa mesa de apoio, a servir-se do buffet. Emma
pegou num prato e juntou-se-lhes, antes de se sentar ao lado do presidente.
- Queria falar comigo, Ross?
- Sim. Há algo que precisamos de discutir com muita urgência.
- Agora não - disse Emma, quando Fisher tomou o seu lugar, em frente dela.
- Espero que seja importante, coronel, porque acabei de sair de uma reunião com o chefe da maioria parlamentar.
- Martinez tem um novo motorista.
- E? - disse o secretário do Gabinete.
- Costumava ser o homem de mão de Liam Doherty.
- O comandante do IRA em Belfast?
- Esse mesmo.
- Como é que ele se chama? - disse Sir Alan, pegando num lápis.
- Kevin Rafferty, conhecido como "Quatro Dedos".
- Porquê?
- Um soldado britânico foi um bocadinho longe demais durante o interrogatório, segundo me disseram.
- Então, vai precisar de mais um homem para a sua equipa.
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- Nunca tinha tomado chá na sala Palm Court - disse Buchanan.
- A minha sogra, Maisie Holcombe, trabalhou no Royal Hotel
- explicou Emma. - Mas nesse tempo, não deixava que Harry ou eu lá entrássemos. "Muito pouco profissional", costumava dizer.
- Outra mulher que estava claramente à frente do seu tempo
- disse Ross.
- E só sabe da missa metade - disse Emma -, mas deixemos Maisie para outra ocasião. Primeiro, quero pedir desculpa por não me ter mostrado disposta a falar consigo durante
o almoço ou, pelo menos, enquanto Fisher pudesse ouvir o que dizíamos.
- Mas com certeza que não desconfia que ele tenha alguma coisa que ver com os nossos problemas atuais, não é verdade?
- Não diretamente. Na verdade, até esta manhã, começava a pensar que ele podia ter encetado nova vida.
- Mas ele não podia ser mais solidário durante as reuniões do conselho.
- Concordo. Só esta manhã é que descobri com quem está realmente a sua lealdade.
- Não estou a perceber - disse Ross.
- Lembra-se de ter pedido para falar comigo no final da reunião e de eu ter de me ir embora?
- Sim, mas o que é que isso tem que ver com Fisher?
- Segui-o e descobri que ele tinha saído para fazer um telefonema.
- Tal como mais um ou dois administradores, sem dúvida.
- Sem dúvida, mas eles terão feito os seus telefonemas nas instalações da companhia. Fisher saiu do edifício, foi de carro em direção às docas e fez o telefonema a partir
de uma cabina em frente de um pub chamado Lord Nelson.
- Não posso dizer que conheça.
- Provavelmente, foi por isso que o escolheu. O telefonema levou menos de dois minutos e ele voltou à Barrington's a tempo do almoço, antes que alguém desse pela sua ausência.

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- Pergunto-me por que razão sentiu necessidade de fazer um segredo tão grande em relação à pessoa a quem estava a ligar...
- Por causa de uma coisa que o almirante disse, e que significava que Fisher tinha de informar imediatamente o homem que está por trás dele e não podia correr o risco de ser
ouvido.
- Não me diga que pensa que Fisher está envolvido de alguma forma com o IRA?
- Fisher não, mas Don Pedro Martinez sim!
- Don Pedro quê?
- Creio que chegou a altura de lhe falar sobre o homem que o major Fisher representa, de como é que o meu filho Sebastian o conheceu e da importância de uma estátua de Rodin
chamada O Pensador. Depois, vai começar a perceber aquilo que temos de enfrentar.
Nessa noite, três homens embarcaram em Heysham no ferry com destino a Belfast. Um levava uma maleta de ferramenta, outro levava uma pasta e o terceiro nada. Não eram amigos,
nem sequer conhecidos. Na verdade, tinham sido apenas as suas aptidões e convicções que os haviam reunido.
A viagem para Belfast levava normalmente cerca de oito horas e, durante esse tempo, a maior parte dos passageiros tentava dormir um pouco; mas não aqueles três homens. Foram
até ao bar, compraram três canecas de Guinness, uma das poucas coisas que tinham em comum, e encontraram lugares na coberta superior.
Concordaram que a melhor altura para executarem o trabalho seria por volta das três da manhã, quando a maior parte dos outros passageiros teriam adormecido ou estariam embriagados
ou demasiado exaustos para se ralarem com o assunto. A hora marcada, um deles deixou o grupo, passou por cima de uma corrente com um aviso que dizia reservado À tripulação
e desceu silenciosamente a escada do convés até ao porão de carga. Encontrou-se rodeado por grandes caixas de madeira, mas não lhe foi difícil localizar as quatro que procurava.
No fim de contas, estavam claramente marcadas com o nome Harland & Wolff. Com a ajuda de um martelo de unha, aliviou os pregos das quatro caixas, num total de 116. Quarenta
minutos depois,
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juntou-se aos seus companheiros e disse-lhes que estava tudo pronto. Sem mais uma palavra, os seus dois colegas desceram até ao porão.
O maior dos dois homens, que com orelhas de couve-flor e nariz partido parecia um pugilista peso-pesado reformado, possivelmente porque o era, tirou os pregos da primeira
caixa e depois arrancou as ripas de madeira, deixando à mostra um painel elétrico com centenas de fios vermelhos, verdes e azuis. Destinava-se à ponte de comando do MV Buckingham
e permitiria que o capitão mantivesse contacto com todas as secções do navio, desde a sala das máquinas até à cozinha. Um grupo de engenheiros eletrotécnicos tinha levado
cinco meses a construir aquele equipamento notável. Um jovem pós-graduado da Queen's University, em Belfast, com uma licenciatura em Física e um alicate, levou vinte e sete
minutos a desmantelá-lo. Recuou para admirar o seu trabalho, mas apenas por um momento, antes de o pugilista pôr as ripas laterais da caixa novamente no lugar. Depois de verificar
que continuavam sozinhos, começou a trabalhar na segunda caixa.
Esta continha duas hélices em bronze que tinham sido ternamente forjadas por uma equipa de artesãos em Durham. O trabalho tinha-lhes levado seis semanas, e sentiam-se justamente
orgulhosos da sua obra. O pós-graduado abriu a pasta, tirou uma garrafa de ácido nítrico, desenroscou a tampa e despejou lentamente o conteúdo nas ranhuras das hélices. Quando
a caixa fosse aberta mais tarde, nessa manhã, as hélices pareceriam prontas para a sucata, e não para serem instaladas.
O conteúdo da terceira caixa era aquilo que o jovem licenciado mais desejoso estava de ver e, quando o seu musculoso colega abriu um dos painéis laterais e revelou o prémio,
não ficou desapontado. O computador de navegação Rolex era o primeiro do género e iria aparecer em todo o material promocional da Barrington's, explicando aos potenciais passageiros
por que razão deviam, no que tocava à segurança, preterir todos os outros a favor do Buckingham. Só precisou de doze minutos para transformar a obra-prima única em material
obsoleto.
A última caixa continha uma magnífica roda do leme em madeira de carvalho e latão construída em Dorset, que qualquer capitão teria orgulho em manobrar na sua ponte de comando.
O jovem sorriu.

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Como o tempo se estava a esgotar e a roda do leme já não servia para nada, deixou-a em toda a sua glória.
Depois de o colega ter voltado a colocar a última ripa, voltaram os dois para o convés superior. Se alguém tivesse tido a infelicidade de os interromper durante a última hora,
teria descoberto porque é que o ex-pugilista ganhara a alcunha de "Destruidor".
Mal voltaram a aparecer, o seu colega voltou a descer a escada de caracol. O tempo já não estava do lado dele. Com a ajuda de um lenço e de um martelo, voltou a pregar cuidadosamente
cada um dos 116 pregos no seu sítio. Estava de roda da última caixa quando ouviu a sirene do navio tocar duas vezes.
Quando oferry aportou no cais Donegall, em Belfast, os três homens desembarcaram com um intervalo de quinze minutos entre si, ainda sem saberem o nome uns dos outros e destinados
a nunca mais se encontrarem.
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- Deixe-me assegurar-lhe, major, que não consideraria a hipótese de fazer negócio com o IRA em circunstância alguma - disse Don Pedro. - Não passam de um bando de rufiões
assassinos, e quanto mais depressa estiverem todos trancafiados na prisão de Crumlin Road, melhor para todos nós.
- Fico satisfeito por saber disso - disse Fisher - porque, se eu pensasse que estava a fazer acordos com esses criminosos nas minhas costas, teria de apresentar imediatamente
a minha demissão.
- E isso é a última coisa que quero que faça - protestou Martinez. - Não se esqueça que o vejo como o próximo presidente da Barrington's, e talvez num futuro não muito distante.
- Mas ainda falta algum tempo para Buchanan se reformar.
- Isso pode acontecer mais cedo, se ele sentir que deve apresentar a demissão.
- Porque é que havia de fazê-lo, se acabou de aprovar o maior programa de investimento na história da companhia?
- Ou o maior fiasco, porque se esse investimento vier a revelar-se imprudente depois de ele ter arriscado a sua reputação para garantir que o conselho o apoiava, o único culpado
será o homem que o propôs, tendo em conta que a família Barrington foi sempre contra a ideia.
- Possivelmente. Mas a situação teria de piorar muito para ele considerar a hipótese de demissão.
- Não sei se poderá piorar muito mais - disse Martinez, empurrando um exemplar do Daily Telegraph sobre a secretária. Fisher olhou fixamente para o cabeçalho: A polícia acredita
que o IRA está por

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trás da sabotagem no ferry de Heysham. - Isso vai atrasar a construção do Buckingham mais seis meses, e não se esqueça que isto está tudo a acontecer durante o mandato de
Buchanan. O que mais terá de correr mal para ele começar a equacionar a sua posição? Digo-lhe já que se a cotação das ações cair ainda mais, vai ser despedido antes de ter
hipótese de se demitir. Portanto, tem de começar a pensar seriamente em ocupar o lugar dele. Pode não voltar a ter uma oportunidade como esta.
- Mesmo que Buchanan saia, a escolha óbvia para o substituir seria a senhora Clifton. Foi a família dela que fundou a firma, ainda detém vinte e dois por cento do capital
e é estimada pelos outros administradores.
- Não tenho dúvidas de que é a favorita, mas há muitos favoritos que caem à primeira barreira. Por isso, sugiro que continue a apoiar lealmente o atual presidente, porque
ele é capaz de ter o voto do desempate. - Martinez levantou-se do lugar. - Lamento ter de deixá-lo, mas tenho uma reunião com o meu banco para discutir este assunto. Telefone-me
esta noite. Por essa altura, sou capaz de ter uma notícia interessante para lhe dar.
Depois de Martinez ter subido para o banco de trás do seu Rolls-Royce e de o motorista se ter juntado ao trânsito matinal, disse:
- Bom dia, Kevin. Os teus rapazes fizeram um belo trabalho no ferry de Heysham. Quem me dera ter visto a cara das pessoas quando abriram as caixas na Harland & Wolff. Então,
e o que planeiam fazer a seguir?
- Nada até nos pagar as cem mil libras que ainda nos deve.
- Vou tratar disso esta manhã. Na verdade, é uma das razões para ir ao banco.
- Fico satisfeito por saber disso - replicou Rafferty. - Seria uma pena se perdesse outro dos seus filhos tão pouco tempo depois da lamentável morte de Bruno.
- Não me ameaces! - gritou Martinez.
- Não era uma ameaça - disse Rafferty, parando no semáforo seguinte. - É só por gostar de si é que o deixava escolher qual dos seus filhos queria que sobrevivesse.
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Martinez recostou-se no banco e não voltou a abrir a boca enquanto o carro continuava o seu percurso, até parar finalmente à porta do Midland Bank, em St. James's.
Sempre que Martinez subia os degraus do banco, tinha a sensação de estar a entrar noutro mundo, onde o faziam sentir que não pertencia. Preparava-se para agarrar no puxador
da porta quando esta se abriu e apareceu um jovem.
- Bom dia, senhor Martinez. O senhor Ledbury está ansioso por vê-lo. - Sem mais uma palavra, levou um dos clientes mais importantes do banco diretamente ao gabinete do gerente.
- Bom dia, Martinez - disse o gerente quando Don Pedro entrou na sala. - Estamos com um tempo bem ameno para esta época do ano.
Martinez tinha levado algum tempo a aceitar que, quando um inglês deixa de tratar alguém por senhor e passa a tratá-lo simplesmente pelo apelido, isso constitui um elogio
porque está a tratá-lo como seu igual. Mas só quando começa a tratá-lo pelo primeiro nome é que passa a ser considerado um amigo.
- Bom dia, Ledbury - disse Martinez, mas ainda não sabia bem como responder à obsessão inglesa com o tempo.
- Quer um café?
- Não, obrigado. Tenho outra reunião ao meio-dia.
- Claro. Em conformidade com as instruções que nos deu, continuámos a comprar ações da Barrington's sempre que aparecem no mercado. Como sabe, agora que está na posse de vinte
e dois e meio por cento do capital da companhia, tem direito a nomear mais dois administradores para se juntarem ao major Fisher no conselho. No entanto, devo sublinhar que
se a sua comparticipação aumentar para vinte e cinco por cento, o banco tem o requisito legal de informar a Bolsa de Valores de que pretende fazer uma oferta pública de aquisição
da totalidade da companhia.
- Isso é a última coisa que quero fazer - disse Martinez. - Vinte e dois e meio por cento é o suficiente para o meu objetivo.
- Excelente, então a única coisa de que preciso é dos nomes dos dois novos administradores que escolheu para o representar no conselho de administração da Barrington's.

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Martinez tirou um envelope de um bolso interior e entregou-o ao gerente bancário. Ledbury abriu-o, tirou para fora o formulário de nomeação e analisou os nomes. Embora ficasse
surpreendido, não fez comentários. A única coisa que disse foi:
- Como seu banqueiro, devo acrescentar que espero que os lamentáveis reveses que a Barrington's sofreu recentemente não constituam um problema para si a longo prazo.
- Nunca estive tão confiante em relação ao futuro da companhia.
- Fico encantado por ouvir isso, pois a compra de um tão grande número de ações fez estragos consideráveis no seu capital. Esperemos que a cotação não caia ainda mais.
- Verá que a companhia vai fazer em breve um anúncio que deverá agradar simultaneamente a acionistas e à City.
- Isso são boas notícias. Há mais alguma coisa que possa fazer por si, neste momento?
- Sim - disse Martinez. - Queria que transferisse cem mil libras para uma conta em Zurique.
- Lamento ter de informar o conselho que decidi demitir-me do cargo de presidente.
A reação imediata dos colegas de Ross Buchanan foi de choque e incredulidade, rapidamente seguidos de um protesto quase universal. Houve um administrador que manteve o silêncio:
o único que não tinha ficado surpreendido com o anúncio. Depressa ficou claro que quase todos os administradores não queriam que Buchanan se demitisse. O presidente esperou
que toda a gente se aquietasse, antes de continuar.
- Fico sensibilizado com a vossa lealdade, mas é meu dever informá-los de que um grande acionista deixou bem claro que já não gozo da confiança dele - disse, sublinhando a
palavra dele. - Recordou-me, e com razão, que dei toda a minha força à construção do Buckingham, o que na sua opinião se revelou insensato, na melhor das hipóteses, e irresponsável,
na pior. Já falhámos as primeiras duas datas de conclusão e os gastos, neste momento, já estão dezoito por cento acima do orçamentado.
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- Mais uma razão para continuar ao comando - disse o almirante. - O comandante deve ser a última pessoa a abandonar o navio quando há uma tempestade iminente.
- Neste caso, creio que a nossa única esperança é eu abandonar o barco, almirante - disse Buchanan. Houve um ou dois administradores que baixaram a cabeça e Emma receou que
não houvesse nada que pudesse dizer para fazer Buchanan mudar de ideias. - Diz-me a experiência - continuou ele - que sempre que surgem circunstâncias como as que agora enfrentamos,
a City procura uma nova liderança para resolver o problema, e depressa. - Ross olhou para os seus colegas e acrescentou: - Devo dizer que não creio que tenham de procurar
fora dos atuais administradores para encontrar a pessoa certa para ocupar o meu lugar.
- Talvez se nomeasse a senhora Clifton e o major Fisher como vice-presidentes conjuntos - sugeriu Anscott -, isso pudesse acalmar os nervos dos mandachuvas que ocupam a Square
Mile.
- Receio que veriam isso pelo que é, Anscott: um compromisso de curto prazo. Se em algum momento no futuro a Barrington's precisar de contrair ainda mais empréstimos, o vosso
novo presidente não pode ir aos bancos de chapéu na mão, mas com confiança, a palavra mais importante no dicionário da City.
- Iria ajudar, Ross - era a primeira vez que Emma tratava o presidente pelo nome próprio durante uma reunião do conselho -, se eu deixasse claro que a minha família tem total
confiança na sua administração e deseja a sua continuidade como presidente?
- Eu ficaria sensibilizado, é claro, mas a City ficaria indiferente e veria isso como um simples gesto. Embora, pessoalmente, Emma, fique muito grato pelo seu apoio.
- E também pode contar sempre com o meu - interveio Fisher. - Vou apoiá-lo até ao fim.
- O problema é esse, major. Se eu não me for embora, poderá muito bem ser o fim, o fim desta grande companhia tal como a conhecemos, e eu não poderia viver com isso. - O presidente
olhou à volta da mesa, para o caso de alguém querer manifestar a sua opinião, mas agora pareciam todos aceitar que a sorte estava lançada.
- Às cinco da tarde, depois de a Bolsa de Valores ter encerrado, vou anunciar que, por razões pessoais, apresentei a minha demissão

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como presidente do conselho de administração da Barrington Shipping. No entanto, se concordarem, continuarei encarregado do expediente diário da companhia até ser nomeado
um novo presidente.
Ninguém levantou qualquer objeção. A reunião terminou passados alguns minutos e Emma não ficou surpreendida ao ver Fisher sair rapidamente da sala. Regressou vinte minutos
mais tarde, para almoçar juntamente com os seus colegas.
- Vai precisar de jogar o seu único trunfo - disse Martinez depois de Fisher lhe ter contado em pormenor o que acontecera na reunião do conselho de administração.
- E qual é ele?
- Você é homem, e não existe uma companhia listada publicamente no país que tenha como presidente uma mulher. Na verdade, há poucas que tenham uma mulher no conselho.
- Emma Clifton tem o hábito de romper com a tradição - recordou-lhe Fisher.
- Talvez, mas consegue lembrar-se de algum outro administrador que não consiga suportar a ideia de ter uma mulher como presidente?
- Não, mas...
- Mas?
- Sei que Knowles e Anscott votaram contra a entrada de mulheres no Royal Wyvern Golf Club em dias de jogo.
- Então, faça-os saber o quanto admira a sua posição baseada em princípios e que teria feito o mesmo se fosse membro do clube.
- Fiz, e sou - disse o major.
- Nesse caso, são dois votos que estão no papo. E o almirante? No fim de contas, é solteiro.
- É uma possibilidade. Lembro-me de que se absteve quando o nome dela foi proposto pela primeira vez para membro do conselho.
- Um eventual terceiro voto.
- Mas mesmo que eles me apoiassem, são só três votos e tenho a certeza de que os outros administradores iam apoiar a senhora Clifton.
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- Não se esqueça de que vou nomear mais dois administradores no dia antes da reunião. Isso dar-lhe-á seis votos, o que é mais do que suficiente para desequilibrar a balança
a seu favor.
- Não se os Barrington ocuparem todos os outros lugares do conselho. Nesse caso, ainda precisaria de outro voto para ter a garantia da vitória, pois se o resultado for um
empate, tenho quase a certeza de que Buchanan daria o voto do desempate à senhora Clifton.
- Então, vamos precisar de ter outro administrador empossado na próxima quinta-feira.
Ambos os homens se calaram até que Martinez disse:
- Sabe de alguém que tenha um dinheirinho de lado, tendo em conta que as ações estão muito baratas neste momento, e que não queira que a senhora Clifton seja a próxima presidente
da Barrington's?
- Sim - disse Fisher sem hesitar. - Conheço alguém que detesta Emma Clifton ainda mais do que o senhor, e ela conseguiu recentemente um acordo de divórcio generoso.
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- Bom dia - disse Ross Buchanan- e sejam bem-vindos a esta assembleia-geral extraordinária. Só há um ponto na ordem de trabalhos de hoje: nomear um novo presidente para a
Barrington Shipping Company. Gostaria de começar por dizer que tem sido um privilégio ser o vosso presidente durante os últimos cinco anos e que sinto uma enorme tristeza
por ter de renunciar a esse cargo. No entanto, por razões que não preciso de voltar a referir, sinto que é a altura certa para abandonar a função e deixar outra pessoa ocupar
o meu lugar.
A minha primeira responsabilidade - prosseguiu ele - é apresentar os acionistas que estão hoje aqui connosco e que têm direito a votar numa AGE, tal como estabelecido nos
estatutos da companhia. Há uma ou duas pessoas sentadas a esta mesa que não são estranhas ao conselho de administração, enquanto outras podem não ser tão conhecidas. A minha
direita está o senhor David Dixon, o diretor executivo da companhia, e à minha esquerda o senhor Philip Webster, secretário da companhia. A sua esquerda, o nosso diretor financeiro,
o senhor Michael Carrick. Ao seu lado, está o contra-almirante Summers, e a seguir a senhora Clifton, o senhor Anscott, o senhor Knowles, o major Fisher e o senhor Dobbs,
todos eles administradores não executivos. A eles, juntam-se hoje indivíduos ou representantes de companhias que têm uma grande participação acionista na Barrington's, incluindo
o senhor Peter Maynard e a senhora Alex Fisher, ambos nomeados pelo major Fisher, uma vez que ele representa agora vinte e dois e meio por cento da companhia. - Maynard sorriu
abertamente,
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ao passo que Susan Fisher baixou a cabeça e corou quando toda a gente se virou para olhar para ela.
- Em representação da família Barrington e dos seus vinte e dois por cento estão Sir Giles Barrington e a sua irmã, a doutora Grace Barrington. Os outros dois indivíduos aqui
presentes que também cumprem o requisito legal de votar nesta ocasião são Lady Virgínia Fenwick - Virgínia deu umas palmadinhas nas costas de Fisher, deixando toda a gente
ciente de quem apoiava - e - o presidente consultou as suas notas - o senhor Cedric Hardcastle, que representa o Farthings Bank, que detém presentemente sete e meio por cento
do capital da companhia.
Toda a gente à volta da mesa se virou para olhar para a única pessoa com quem nenhum deles se cruzara anteriormente. Vestia um fato cinzento de três peças, camisa branca e
uma gravata de seda azul que já tinha visto melhores dias. Não devia ter mais de um metro e cinquenta e sete e era completamente calvo, à exceção de um semicírculo de cabelo
ralo e grisalho que mal lhe chegava às orelhas. Como usava óculos de lentes grossas e aros de tartaruga, era quase impossível adivinhar-lhe a idade. Cinquenta? Sessenta? Talvez
até setenta? O senhor Hardcastle tirou os óculos, revelando olhos de um cinzento metálico e Emma teve a certeza de já o ter visto antes, mas não conseguia lembrar-se onde.
- Bom dia, senhor presidente - foi a única coisa que ele disse, embora aquelas quatro palavras revelassem o condado de que era oriundo.
- Passemos então ao assunto que aqui nos traz - disse Buchanan. - Na data-limite, às dezoito horas de ontem, havia dois candidatos que tinham permitido que os seus nomes fossem
apresentados como potenciais presidentes: a senhora Emma Clifton, proposta por Sir Giles Barrington e secundada pela doutora Grace Barrington, e o major Alex Fisher, proposto
pelo senhor Anscott e secundado pelo senhor Knowles. Ambos os candidatos vão agora falar ao conselho sobre a forma como vêem o futuro da companhia. Peço ao major Fisher que
dê início ao debate.
Fisher não saiu do seu lugar.
- Sinto que seria cortês da minha parte deixar a senhora falar primeiro - disse ele, brindando Emma com um sorriso caloroso.

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- Que amabilidade a sua, major - replicou Emma -, mas eu fico satisfeita por acatar a decisão do presidente e deixá-lo ser o primeiro.
Fisher pareceu um bocadinho enervado, mas recompôs-se rapidamente. Folheou as notas e olhou demoradamente à volta da mesa, antes de começar a falar.
- Senhor presidente, membros do conselho de administração. Considero um grande privilégio o simples facto de ser considerado como candidato para a presidência da Barrington
Shipping Company. Enquanto homem nascido e criado em Bristol, sempre estive ciente desta grande companhia, da sua história, da sua tradição, assim como da sua reputação, que
se tornou parte do grande património marítimo de Bristol. Sir Joshua Barrington era uma figura lendária, e Sir Walter, que tive o privilégio de conhecer - Emma pareceu surpreendida,
a menos que "conhecer" o avô significasse cruzar-se com ele em dia de distribuição de prémios na escola, há cerca de trinta anos -, foi responsável por pôr esta empresa cotada
em bolsa e por construir a sua reputação como uma das principais companhias de navegação, não só deste país, como do mundo inteiro. Mas, infelizmente, já não é assim, em parte
porque o filho de Sir Walter, Sir Hugo, não esteve à altura do desafio e, embora o nosso atual presidente tenha feito muito para recuperar a reputação da firma, uma série
de acontecimentos recentes a que é alheio conduziu à falta de confiança entre alguns dos nossos acionistas. Aquilo que os outros administradores têm de decidir hoje - disse
Fisher, olhando uma vez mais à volta da mesa - é quem está mais bem apetrechado para lidar com a crise de confiança. Dadas as circunstâncias, sinto que devo mencionar as minhas
credenciais no que toca a travar batalhas. Servi o meu país como jovem tenente em Tobruk, descrita por Montgomery como uma das batalhas mais sangrentas da história. Tive a
sorte de sobreviver àquela chacina e fui condecorado no campo de batalha.
Giles pôs a cabeça entre as mãos. Gostaria de contar ao conselho de administração o que realmente acontecera quando o inimigo surgira no horizonte do Norte de África, mas
sabia que isso não ia ajudar a causa da irmã.
- A minha batalha seguinte deu-se quando enfrentei Sir Giles Barrington na qualidade de candidato do Partido Conservador nas
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últimas eleições gerais - disse Fisher, sublinhando a palavra Conservador, já que sentia que era pouco provável que, tirando Giles, alguma das pessoas à volta daquela mesa
tivesse votado alguma vez no Partido Trabalhista - pelo círculo de Bristol Docklands para um lugar que estava nas mãos dos trabalhistas, perdendo por um mero punhado de votos,
e só depois de três recontagens. - Desta vez, agraciou Giles com um sorriso.
Giles teve vontade de se pôr em pé de um salto e tirar o sorriso do rosto de Fisher, mas lá conseguiu conter-se.
- Por isso, creio que posso dizer com alguma convicção que conheci o triunfo e o fracasso e, para citar Kipling, tratei esses dois impostores da mesma forma.
E agora - prosseguiu - permitam-me que fale em alguns dos problemas com que a nossa distinta companhia se confronta no presente. E sublinho no presente. Há pouco mais de um
ano, tomámos uma decisão importante, e deixem-me recordar ao conselho que nessa altura apoiei totalmente a proposta do presidente para construir o MV Buckingham. No entanto,
desde então, houve uma sucessão de calamidades, algumas inesperadas, outras que devíamos ter previsto, que fizeram com que nos atrasássemos em relação ao calendário estabelecido.
Em resultado disso, pela primeira vez na história da companhia, tivemos de considerar a hipótese de ir aos bancos pedir um empréstimo para nos ajudar durante estes tempos
conturbados.
Se eu fosse eleito presidente, permitam-me que lhes diga quais as três mudanças que faria de imediato. Em primeiro lugar, ia convidar a senhora Clifton para vice-presidente,
para a City não ter dúvidas de que a família Barrington continua totalmente empenhada no futuro da companhia, tal como sucede há mais de um século.
Ouviram-se vários "Apoiado!" à volta da mesa, e Fisher sorriu para Emma pela segunda vez desde que se juntara ao conselho de administração. Giles tinha de admirar o descaramento
do tipo, pois ele devia saber que Emma não consideraria a hipótese de retribuir o gesto, já que acreditava que Fisher era o responsável pelos atuais problemas da companhia,
e de certeza que nunca concordaria em ser sua vice.

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- Em segundo lugar - continuou Fisher - ia de avião para Belfast amanhã de manhã, sentava-me com Sir Frederick Rebbeck, presidente da Harland & Wolff e renegociava o nosso
contrato, chamando a atenção para o facto de a sua companhia ter recusado sistematicamente assumir a responsabilidade por qualquer dos lamentáveis reveses que ocorreram durante
a construção do Buckingham. E em terceiro lugar, contrataria uma empresa de segurança de topo para guardar qualquer equipamento que seja enviado para Belfast em nome da Barrington's,
para que não pudesse voltar a acontecer um ato de sabotagem como o que teve lugar no ferry de Heysham. Ao mesmo tempo, subscreveria novas apólices de seguro que não tivessem
páginas de cláusulas de penalização em letra pequenina. Finalmente, devo acrescentar que se tiver a felicidade de me tornar vosso presidente, começarei a trabalhar esta tarde
e não descansarei até que o MV Buckingham seja lançado ao mar e dê à companhia um bom lucro sobre o seu investimento.
Fisher sentou-se no meio de aplausos entusiásticos, sorrisos e acenos de aprovação. Ainda antes de as palmas se extinguirem, Emma percebeu que tinha cometido um erro tático
ao permitir que o seu adversário fosse o primeiro. Ele tinha contemplado a maioria dos pontos que ela pretendia referir e agora, na melhor das hipóteses, ia parecer que estava
de acordo com ele e, na pior, que não tinha ideias próprias. Que bem que ela se lembrava de Giles ter humilhado aquele mesmo homem em Colston Hall durante a recente campanha
eleitoral. Mas o homem que aparecera naquela manhã em Barrington House era uma pessoa diferente e bastou olhar para o irmão para confirmar que também ele tinha sido apanhado
de surpresa.
- Senhora Clifton - disse o presidente. - Talvez queira partilhar as suas ideias com o conselho de administração...
Emma levantou-se de forma vacilante enquanto Grace levantava o polegar para lhe mostrar que estava tudo bem, fazendo-a sentir-se como uma escrava cristã prestes a ser lançada
aos leões.
- Senhor Presidente, deixe-me começar por dizer que tem diante de si uma candidata relutante, porque se tivesse escolha o senhor continuaria a ser o presidente desta companhia.
Só quando decidiu que não tinha outra alternativa a não ser demitir-se é que eu considerei a possibilidade de ocupar o seu lugar e de continuar a tradição
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da longa ligação da minha família a esta companhia. Permita-me que comece por confrontar aquilo que alguns membros do conselho podem considerar a minha maior desvantagem:
o meu sexo.
Esta observação provocou um ataque de riso, algum motivado pelo nervosismo, embora Susan Fisher parecesse solidária.
- Padeço - continuou Emma - pelo facto de ser uma mulher num mundo de homens e, sinceramente, não há nada que possa fazer em relação a isso. Sei que será preciso um conselho
de administração com muita coragem para nomear uma mulher como presidente da Barrington's, sobretudo nas circunstâncias difíceis que enfrentamos presentemente. Mas aquilo
de que esta companhia agora precisa é de coragem e inovação. A Barrington's está numa encruzilhada e a pessoa que hoje selecionarem terá de escolher qual o caminho a seguir.
Como sabem, quando o conselho decidiu, no ano passado, que devíamos avançar com a construção do Buckingham, opus-me à ideia e votei em conformidade. Portanto, é mais do que
justo deixar o conselho saber qual a minha posição atual relativamente a essa questão. Em minha opinião, não podemos considerar a possibilidade de voltar atrás, pois isso
significaria humilhação e até esquecimento para a companhia. O conselho tomou a sua decisão de boa-fé e temos a obrigação perante os nossos acionistas de não nos afastarmos
e culpar terceiros, mas sim de fazer tudo o que está ao nosso alcance para compensar o tempo perdido e para assegurar que somos bem-sucedidos a longo prazo.
Emma olhou para uma página de notas que repetia praticamente tudo o que o rival já tinha dito. Ela avançou, esperando que o seu entusiasmo e energia natural superassem o facto
de os colegas estarem a ouvir as mesmas ideias e opiniões enunciadas uma segunda vez.
Mas quando chegou à última linha do discurso, conseguia sentir o interesse do conselho a desaparecer. Giles tinha-a avisado de que iria acontecer algo de inesperado na altura,
e acontecera. Fisher tinha elevado a parada.
- Permita-me que conclua as minhas observações, senhor presidente, dizendo que seria um grande privilégio para esta Barrington poder juntar-se aos seus ilustres antepassados
e presidir ao conselho, sobretudo numa altura em que a companhia enfrenta dificuldades tão

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reais. Sei que com a vossa ajuda conseguirei ultrapassar essas dificuldades e recuperar o bom nome da Barrington's, bem como a sua reputação de excelência e probidade financeira.
Emma sentou-se com a sensação de que o seu boletim de avaliação devia dizer Podia ter feito melhor. Só esperava que Giles tivesse razão acerca de outra das suas afirmações.
Quase todas as pessoas à volta da mesa já tinham decidido como é que iam votar muito antes de a reunião ter sido formalmente iniciada.
Depois de os dois candidatos terem apresentado os seus argumentos, foi a vez de os membros do conselho darem a sua opinião. A maioria queria dizer o que pensava, mas não houve
grandes manifestações de inteligência ou originalidade durante a hora seguinte, e apesar de se recusar a responder à pergunta "Nomearia o major Fisher como seu vice?", Emma
continuava a sentir que o resultado estava equilibrado. Mas isso foi até Lady Virgínia falar.
- Só quero fazer uma observação, senhor presidente - arrulhou ela, acompanhada por um intenso pestanejar. - Não creio que as mulheres tenham sido postas no mundo para presidir
a conselhos de administração, enfrentar líderes sindicais, construir paquetes de luxo ou ter de angariar avultadas somas em dinheiro junto dos banqueiros da City londrina.
Por mais que admire a senhora Clifton e tudo o que ela conseguiu, vou apoiar o major Fisher e só espero que ela aceite a generosa oferta do major para ser vice-presidente.
Cheguei aqui de mente aberta, disposta a dar-lhe o benefício da dúvida, mas infelizmente ela não esteve à altura das minhas expectativas.
Emma tinha de admirar a presença de espírito de Virgínia. Era óbvio que tinha memorizado cada palavra do seu guião muito antes de ter entrado naquela sala, ensaiando até as
pausas dramáticas, embora conseguisse de alguma forma dar a ideia de que nunca tivera intenção de intervir até ao último momento, quando não lhe restara outra opção a não
ser fazer uns quantos reparos improvisados. Emma só gostava de saber quantas das pessoas sentadas à volta da mesa se teriam deixado enganar. Giles não, seguramente, pois estava
com ar de ser capaz de estrangular a ex-mulher.
Quando Lady Virgínia se voltou a sentar, só havia duas pessoas que não tinham dado a sua opinião. O presidente, cortês como sempre, disse:
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- Antes de passarmos à votação, queria saber se a senhora Fisher ou o senhor Hardcastle gostariam de dar o seu contributo.
- Não, obrigada, senhor presidente - deixou escapar Susan Fisher, antes de voltar a baixar a cabeça. O presidente olhou para o senhor Hardcastle.
- É muito amável em perguntar, senhor presidente - redarguiu Hardcastle - mas só quero dizer que escutei todos os contributos com grande interesse, em particular os dos dois
candidatos, e que, tal como Lady Virgínia, já decidi quem vou apoiar.
Fisher sorriu para o homem do Yorkshire.
- Obrigado, senhor Hardcastle - disse o presidente. - A menos que alguém pretenda dizer mais alguma coisa, chegou a altura de os membros do conselho votarem. - Fez uma pausa
momentânea, mas ninguém falou. - O secretário da companhia vai agora chamar sucessivamente pelos vossos nomes. Por favor, digam-lhe qual o candidato que apoiam.
- Vou começar pelos administradores executivos - disse Webster - antes de convidar o resto do conselho a votar. Senhor Buchanan?
- Não vou apoiar nenhum dos candidatos - disse Buchanan.
- No entanto, se o resultado da votação for um empate, votarei, como é prerrogativa do presidente, na pessoa que acho que devia ser o próximo presidente.
Ross tinha passado várias noites em branco a debater-se com a pergunta de quem lhe devia suceder e tinha acabado por se decidir a favor de Emma. Mas o discurso retumbante
de Fisher e a fraca resposta de Emma tinham-no feito reconsiderar. Ainda não conseguia votar em Fisher, por isso decidira abster-se e deixar que os seus colegas tomassem a
decisão. Mesmo assim, se a votação resultasse num empate, teria de apoiar Fisher com alguma relutância.
Emma não conseguiu esconder a sua surpresa e desapontamento perante a decisão de Ross de não votar. Fisher sorriu e riscou o nome do presidente, que tinha estado até então
na coluna Clifton.
- Senhor Dixon?
- Senhora Clifton - disse o diretor executivo sem hesitar.
- Senhor Carrick?

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- Major Fisher - disse o diretor financeiro.
- Senhor Anscott?
- Major Fisher. - Emma ficou desapontada, mas não surpreendida, porque sabia que isso significava que Knowles também ia votar contra ela.
- Sir Giles Barrington?
- Senhora Clifton.
- Doutora Grace Barrington?
- Senhora Clifton.
- Senhora Emma Clifton?
- Não vou votar, senhor presidente - disse Emma. - Vou abster-me. - Fisher acenou com a cabeça em sinal de aprovação.
- Senhor Dobbs?
- Senhora Clifton.
- Lady Virgínia Fenwick?
- Major Fisher.
- Major Fisher?
- Vou votar na minha pessoa, como é meu direito - disse Fisher, sorrindo do outro lado da mesa para Emma.
Quantas vezes é que Sebastian implorara à mãe para não se abster, pois tinha a certeza de que não havia qualquer possibilidade de Fisher se comportar como um cavalheiro?
- Senhora Fisher?
Susan olhou para o presidente, hesitou por um momento e depois murmurou nervosamente:
- Senhora Clifton.
Alex virou-se e fitou a esposa com ar incrédulo. Mas, desta vez, Susan não baixou a cabeça. Em vez disso, olhou para Emma e sorriu. Emma, parecendo igualmente surpreendida,
pôs um visto junto ao nome de Susan.
- Senhor Knowles?
- Major Fisher - disse ele, sem hesitar.
- Senhor Maynard?
- Major Fisher.
Emma verificou os vistos e as cruzes no seu bloco. Fisher ia à frente por seis contra cinco.
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- Almirante Summers? - disse o secretário da companhia. Houve um silêncio que pareceu interminável a Emma, mas que na realidade durou apenas alguns segundos.
- Senhora Clifton - acabou ele por dizer. Emma arfou. O velhote inclinou-se e sussurrou: - Sempre tive dúvidas em relação a Fisher e, quando ele votou em si mesmo, percebi
que estava certo o tempo todo.
Emma não sabia se havia de rir ou dar-lhe um beijo, mas o secretário da companhia interrompeu os seus pensamentos.
- Senhor Hardcastle? - Mais uma vez, toda a gente que estava na sala centrou a sua atenção no único homem de quem ninguém sabia nada. - Quer fazer a gentileza de nos comunicar
a sua decisão? - Fisher franziu o sobrolho. Seis para ambos. Se Susan tivesse votado nele, o voto de Hardcastle seria irrelevante, mas ainda estava confiante de que o homem
do Yorkshire o ia apoiar.
Cedric Hardcastle tirou um lenço do bolso de cima, tirou os óculos e limpou-os antes de falar.
- Vou abster-me e permitir que o presidente, que conhece ambos os candidatos muito melhor do que eu, decida quem é a pessoa certa para lhe suceder.
Susan Fisher puxou a cadeira para trás e esgueirou-se silenciosamente da sala do conselho enquanto o presidente recém-eleito tomava o seu lugar à cabeceira da mesa.
Tinha corrido tudo bem, até agora. No entanto, Susan sabia que a próxima hora seria vital, se quisesse levar a cabo o resto do seu plano. Alex nem sequer comentara quando
ela se oferecera nessa manhã para o levar de carro para a reunião do conselho, para ele se poder concentrar no seu discurso. O que ela não lhe dissera era que não o levaria
de volta.
Durante algum tempo, Susan aceitara que o seu casamento era uma farsa e nem conseguia lembrar-se da última vez que tinham feito amor. Perguntava-se muitas vezes por que razão
concordara em casar com ele. O aviso constante da mãe: "Se não te acautelas, minha menina, ainda acabas por ficar na prateleira", também não tinha ajudado. Fosse como fosse,
pretendia agora limpar as prateleiras todas.

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Alex Fisher não conseguiu concentrar-se no discurso de aceitação de Emma, pois ainda estava a tentar arranjar uma forma de explicar a Don Pedro que a mulher tinha votado contra
ele.
Originalmente, Martinez tinha proposto que Diego e Luis o representassem no conselho de administração, mas Alex persuadira-o de que se havia coisa que assustasse mais os administradores
do que o pensamento de ter uma mulher como presidente seria o facto de a companhia poder ficar nas mãos de um estrangeiro.
Decidiu que diria simplesmente a Don Pedro que Emma tinha ganho a votação, sem mencionar o facto de a mulher não o ter apoiado. Nem queria pensar no que aconteceria se Don
Pedro viesse alguma vez a ler a ata.
Susan Fisher estacionou o carro à entrada de Arcádia Mansions, abriu a porta com a sua chave, apanhou o elevador para o terceiro piso e entrou no apartamento. Foi rapidamente
até ao quarto, ajoelhou-se e tirou duas malas que estavam debaixo da cama. Depois, começou a esvaziar um dos guarda-fatos, tirando seis vestidos, dois fatos, várias saias
e um vestido de baile, que não sabia se alguma vez voltaria a usar. A seguir, passou à cómoda, abrindo uma gaveta de cada vez, e tirou para fora as suas meias, roupa interior,
blusas e camisolas de lã, que quase acabaram de encher a primeira mala.
Quando se levantou, os seus olhos pousaram numa aguarela do Lake District pela qual Alex pagara bom dinheiro quando estavam em lua de mel. Ficou encantada ao descobrir que
era mesmo à medida do fundo da segunda mala. Depois, foi até à casa de banho e juntou todos os seus artigos de toilette, um roupão e várias toalhas, enfiando-os em todo o
espaço que restava na segunda mala.
Na cozinha, não havia muita coisa que ela quisesse, a não ser o serviço de jantar Wedgwood, um presente de casamento da mãe de Alex. Embrulhou cuidadosamente cada peça nas
páginas do Daily Telegraph e pô-las em dois sacos de compras que encontrou por baixo do lava-louça.
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Deixou o serviço verde de chá de que nunca gostara muito, quanto mais não fosse por estar todo lascado e já não ter espaço na segunda mala. "Socorro", disse ela em voz alta,
quando percebeu que ainda havia muita coisa que queria levar, mas que tinha as duas malas cheias.
Susan voltou ao quarto, pôs-se em cima de uma cadeira e tirou de cima do guarda-fato o velho malão de Alex, dos tempos de escola. Arrastou-o até ao corredor, desapertou as
correias e continuou com a sua missão. A prateleira do fogão de sala rendeu um relógio de mesa que Alex dizia ser um bem de família e três fotografias com molduras de prata.
Tirou as fotografias e rasgou-as, guardando apenas as molduras. Gostava de levar a televisão, mas era demasiado grande e, de qualquer forma, a mãe não teria aprovado.
Depois de o secretário da companhia ter encerrado a reunião, Alex não se juntou aos outros administradores para almoçar. Saiu rapidamente da sala sem falar com ninguém, com
Peter Maynard atrás dele. Don Pedro tinha dado dois envelopes a Alex, cada um deles contendo mil libras. A mulher de certeza que não ia receber as quinhentas que ele lhe prometera.
Já no elevador, Alex tirou um dos envelopes do bolso.
- Pelo menos, cumpriu a sua parte - disse ele, passando-o a Peter.
- Obrigado - disse Maynard com gratidão, embolsando o dinheiro. - Mas o que é que deu a Susan? - acrescentou, enquanto a porta do elevador abria no rés do chão. Alex não respondeu.
- Quando os dois homens saíram de Barrington House, Alex não ficou surpreendido por ver que o seu carro já não estava no lugar habitual, mas ficou perplexo ao encontrar outro
carro que não reconheceu a ocupar o seu lugar de estacionamento.
Um jovem que segurava uma maleta Gladstone estava em pé, junto à porta da frente do carro. Assim que viu Alex, começou a andar em direção a ele.

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Finalmente, exausta de tanto esforço, Susan entrou no escritório de Alex sem bater, sem esperar encontrar alguma coisa que valesse a pena juntar aos seus despojos: mais duas
molduras, uma de prata e uma de couro, e um abre-cartas de prata que ela lhe oferecera pelo Natal. Mas como só era banhado a prata, decidiu que podia ficar para ele.
O tempo estava a esgotar-se e não lhe parecia que faltasse muito para Alex estar de volta, mas precisamente quando se preparava para vir embora, viu um envelope volumoso com
o seu nome escrito. Abriu-o e nem queria acreditar no que os seus olhos viam. Continha as quinhentas libras que Alex lhe prometera se ela fosse à reunião do conselho e votasse
nele. Ela tinha cumprido a sua parte, quer dizer, pelo menos metade, por isso enfiou o dinheiro na mala e sorriu pela primeira vez nesse dia.
Susan fechou a porta do escritório e deu rapidamente a volta ao apartamento, uma vez mais. Tinha-se esquecido de alguma coisa, mas de quê? Oh, sim, é claro! Voltou apressadamente
ao quarto, abriu o armário mais pequeno e sorriu pela segunda vez quando viu as filas e filas de sapatos do tempo em que trabalhava como modelo. Demorou a pôr todos no malão.
Quando se preparava para fechar a porta do armário, os seus olhos pousaram numa fila muito bem feita de sapatos de couro preto e castanho, todos engraxados como se estivessem
prontos para entrar num desfile. Sabia que eles eram o orgulho e a alegria de Alex. Todos feitos à mão pela Lobb de St. James's e, como ele tantas vezes fazia questão de lhe
recordar, iam durar uma vida.
Susan pegou no sapato esquerdo de cada par e largou-os dentro do velho malão de Alex. Também levou um chinelo, uma galocha e uma sapatilha do pé direito, antes de se sentar
em cima da tampa do malão e de apertar as correias.
Por fim, arrastou o malão, as duas malas e os dois sacos até ao patamar e fechou a porta de uma casa a que não mais voltaria.
- Major Alex Fisher?
- Sim.
O jovem entregou-lhe um envelope comprido e amarelado e disse:
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- Recebi instruções para lhe dar isto, senhor. - Sem mais uma palavra, virou-se, voltou para o seu carro e arrancou. O encontro tinha terminado em menos de um minuto.
Um Alex confuso abriu nervosamente o envelope e tirou para fora um documento com várias páginas. Quando viu as palavras na folha de rosto, Pedido de divórcio: senhora Susan
Fisher c. major Alex Fisher, sentiu as pernas fraquejar e agarrou-se ao braço de Maynard, para se apoiar.
- Qual é o problema, companheiro?

Páginas em branco
113-114

115

CEDRIC HARDCASTLE
1959

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Na viagem de comboio de regresso a Londres, Cedric Hardcastle pensou uma vez mais em como acabara a participar na reunião do conselho de administração de uma companhia de
navegação em Bristol. Tudo começara quando tinha partido a perna.
Durante praticamente quarenta e cinco anos, Cedric tinha levado aquilo que até o seu vigário local teria descrito como uma vida sem mácula. Durante esse tempo, tinha construído
uma reputação de probidade, integridade e grande discernimento.
Depois de sair da escola de Huddersfield, aos quinze anos, Cedric tinha-se juntado ao pai no Farthings Bank, na esquina da rua principal, onde não era possível abrir conta,
a menos que se fosse um homem nascido e criado no Yorkshire. Todos os empregados tinham interiorizado desde o seu primeiro dia como estagiários a filosofia preponderante do
banco: Tomem conta das moedas de dinheiro que as libras tomarão conta de si próprias.
Aos trinta e dois anos, Cedric foi nomeado o mais jovem gerente de uma filial na história do banco, e o pai, que continuava como empregado de caixa, reformou-se mesmo a tempo
de não ter de tratar o filho por "senhor".
Cedric foi convidado a juntar-se ao conselho de administração do Farthings algumas semanas antes de fazer quarenta anos e toda a gente presumiu que não faltaria muito para
ele deixar o banco do pequeno condado e, tal como Dick Whittington, rumar para a City londrina; mas não Cedric. No fim de contas, ele era acima de tudo um homem do Yorkshire.
Tinha casado com Beryl, uma rapariga de Batiey, e o filho de ambos, Arnold, fora concebido durante umas férias
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em Scarborough e nascera em Keighley. Nascer no condado era uma necessidade se quisesse que o filho entrasse para o banco.
Quando Bert Entwistle, presidente do Farthings, morreu de ataque cardíaco aos sessenta e três anos, nem foi preciso votar para decidir quem o iria substituir.
Depois da guerra, o Farthings tornou-se um daqueles bancos que eram frequentemente referidos nas secções financeiras dos jornais nacionais como estando "prontos para serem
adquiridos". No entanto, Cedric tinha outros planos, e apesar de várias propostas de instituições de maior dimensão, todas elas rejeitadas sem discussão, o novo presidente
tratou de fortalecer o banco e de abrir novas filiais, de forma que passados alguns anos era o Farthings que estava a proceder às aquisições. Durante três décadas, Cedric
tinha gasto todo o dinheiro que punha de lado, bónus ou dividendos, a comprar ações do banco, de modo que quando fez sessenta anos não era apenas presidente, mas também o
acionista maioritário, com cinquenta e um por cento do Farthings.
Aos sessenta anos, quando a maior parte dos homens começam a pensar em reformar-se, Cedric era responsável por onze filiais no Yorkshire e uma presença na City londrina, e
não andava seguramente à procura de alguém que o substituísse como presidente.
Se teve algum desapontamento na vida, foi o seu filho Arnold. O rapaz tinha-se saído bem na escola de Leeds, mas depois rebelara-se, aceitando um lugar em Oxford em vez da
bolsa que lhe tinham oferecido na Universidade de Leeds. Pior ainda, o rapaz não quis juntar-se ao seu pai no Farthings, preferindo ser advogado estagiário em Londres. Isto
significava que Cedric não tinha ninguém a quem entregar o banco.
Pela primeira vez na sua vida, considerou uma oferta pública de aquisição por parte do Midland. Ofereceram-lhe uma soma que lhe teria permitido passar o resto da vida a jogar
golfe na Costa del Sol, de chinelos, a beber Hortícks e a aconchegar-se na cama por volta das dez. Mas o que ninguém, a não ser Beryl, parecia perceber em relação a Cedric
Hardcastle era que a atividade bancária não era apenas o seu trabalho... Era o seu passatempo e, enquanto ele fosse o acionista

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maioritário do Farthings, o golfe, os chinelos e a Horlicks teriam de esperar mais alguns anos. Disse à mulher que preferia esticar o pernil sentado à secretária do que ao
décimo oitavo buraco.
Por acaso, quase esticou o pernil uma noite, ao regressar ao Yorkshire. Mas nem mesmo Cedric podia ter previsto o quanto a sua vida ia mudar quando se viu envolvido num acidente
de carro na A1, numa sexta-feira a altas horas da noite. Estava exausto, na sequência de uma série de reuniões prolongadas na sede do banco na City e devia ter ficado em Londres
e passado a noite no seu apartamento. Mas ele preferia sempre ir logo para Huddersfield e passar o fim de semana com Beryl. Adormeceu ao volante e, depois disso, só se lembrava
de ter acordado no hospital com ambas as pernas engessadas; a única coisa que ele tinha em comum com o jovem que ocupava a cama ao lado.
Sebastian Clifton era tudo aquilo que Cedric reprovava. Era um homem do sul emproado, irreverente, com falta de disciplina, tinha opinião sobre tudo e, pior do que isso, parecia
partir do princípio de que tudo lhe era devido. Cedric perguntou imediatamente à enfermeira-chefe se podia mudar para outra enfermaria. Miss Puddicombe recusou o seu pedido,
mas referiu que havia dois quartos particulares disponíveis. Cedric ficou no mesmo sítio; ele não desbaratava o dinheiro.
Durante as semanas que se seguiram ao seu aprisionamento, Cedric não sabia dizer qual dos dois ganhara mais influência sobre o outro. De início, as perguntas infindáveis do
rapaz sobre a atividade bancária deixavam-no irritado, até que acabou por ceder e tornar-se relutantemente no substituto do seu tutor. Quando a enfermeira-chefe perguntou,
foi obrigado a admitir que o rapaz não só era extremamente inteligente, como também nunca era preciso dizer-lhe a mesma coisa duas vezes.
- Então está satisfeito por não o ter mudado, não é verdade? - brincou ela.
- Bem, não iria tão longe - disse Cedric.
Havia mais dois bónus por ser tutor de Sebastian. Cedric gostava muito das visitas semanais da sua mãe e irmã; duas senhoras formidáveis, ambas com os seus problemas. Não
levou muito tempo a perceber que Jessica não podia ser filha da senhora Clifton, e quando Sebastian lhe contou finalmente toda a história, a única coisa que disse foi:
- Está na altura de alguém lhe dizer.
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Também se tornou claro para Cedric que a senhora Clifton estava a enfrentar algum tipo de crise no negócio da família. Sempre que visitava o filho no hospital, Cedric virava-se
e fingia dormir, enquanto, com o beneplácito de Sebastian, escutava cada palavra que eles trocavam.
Jessica vinha muitas vezes até ao seu lado da cama, para poder esboçar o seu novo modelo, o que significava que Cedric tinha de manter os olhos fechados.
As visitas ocasionais do pai de Sebastian, Harry Clifton, do seu tio Giles e da sua tia Grace ajudaram Cedric a pôr mais peças num puzgle colorido que ia sendo feito lentamente.
Não foi difícil perceber aquilo que Martinez e Fisher estavam a tramar, embora não soubesse o que os motivava, em parte porque nem mesmo Sebastian parecia saber a resposta
a essa pergunta. No entanto, quando foi da votação sobre se haviam ou não de avançar com a construção do Buckingham, Cedric sentiu que o instinto da senhora Clifton, ou aquilo
a que as mulheres chamam intuição, era capaz de estar certo. Por isso, depois de consultar os estatutos da companhia, disse a Sebastian que como a mãe controlava vinte e dois
por cento do capital da companhia, tinha direito a ter três representantes no conselho, o que devia ser mais do que suficiente para impedir a aprovação da proposta. A senhora
Clifton não acatou o seu conselho e perdeu a moção por um voto.
No dia seguinte, Cedric comprou dez ações da Barrington Shipping, para poder acompanhar as deliberações regulares do conselho de administração. Cedric só precisou de algumas
semanas para perceber que Fisher estava a preparar-se para ser o próximo presidente. Se Ross Buchanan e a senhora Clifton tinham uma fraqueza em comum, era a sua ingénua convicção
de que toda a gente se regia pelos mesmos princípios morais que eles. Era uma pena que o major Fisher não tivesse princípios e que Don Pedro Martinez não tivesse moral.
Cedric esquadrinhava regularmente o Financial Times e o Economist à procura de qualquer informação sobre a razão para as ações da Barrington's estarem em queda livre. Se o
IRA estava envolvido, como um artigo no Daily Express sugeria, então Martinez tinha de ser o elo de ligação. O que Cedric não compreendia era o porquê de Fisher

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estar disposto a alinhar nisso. Precisaria assim tanto do dinheiro? Preparou uma lista de perguntas para Sebastian fazer à mãe nas suas visitas semanais, e não precisou de
muito tempo para estar tão bem informado sobre o funcionamento da Barrington Shipping Company como qualquer membro do conselho de administração.
Quando Cedric estava totalmente recuperado e em condições de receber alta do hospital e regressar ao trabalho, tinha tomado duas decisões. O banco ia comprar sete e meio por
cento da Barrington Shipping, a participação mínima para lhe permitir ter um lugar no conselho de administração e votar para decidir quem devia ser o próximo presidente da
companhia. Quando telefonou ao seu corretor no dia seguinte, ficou surpreendido ao descobrir que havia muito mais pessoas a comprar as ações da Barrington's, claramente com
o mesmo objetivo em mente. Isto significou que Cedric acabou por ter de pagar um pouco mais do que esperava e, embora isto fosse contrário à sua prática habitual, tinha de
concordar com Beryl, estava a divertir-se imenso.
Após vários meses como espectador, mal podia esperar para ser apresentado a Ross Buchanan, à senhora Clifton, ao major Fisher, ao almirante Summers, etc. Contudo, a segunda
decisão que ele tomou teve um alcance muito maior.
Mesmo antes de Cedric ter alta do hospital, Sebastian recebeu uma visita do seu orientador em Cambridge. O senhor Padgett deixou claro que, se ele quisesse, podia ocupar o
seu lugar na Peterhouse em setembro próximo.
Uma das primeiras cartas que Cedric escreveu quando voltou à sua secretária na City foi para oferecer a Sebastian um trabalho de férias no Farthings Bank, antes de ele ir
para Cambridge.
Ross Buchanan saiu do táxi alguns minutos antes da hora marcada com o presidente do Farthings. A sua espera no átrio do número 127 de Threadneedle Street estava o assistente
pessoal do senhor Hardcastle, que o acompanhou ao gabinete do presidente, no quinto andar.
Cedric levantou-se da secretária quando Buchanan entrou. Apertou calorosamente a mão à sua visita e encaminhou-o para uma das
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duas confortáveis cadeiras junto à lareira. O homem do Yorkshire e o -escocês depressa descobriram que tinham muitos interesses em comum, quanto mais não fosse a preocupação
mútua com o futuro da Barrington Shipping.
- Vejo que a cotação das ações subiu um bocadinho, ultimamente - disse Cedric. - Por isso, talvez as coisas estejam a começar a acalmar.
- É verdade que o IRA parece ter perdido o interesse em perseguir a companhia a cada passo, o que deve ser um grande alívio para Emma.
- Poderá ser simplesmente porque os seus pagamentos secaram? No fim de contas, Martinez deve ter investido uma soma considerável a comprar vinte e dois e meio por cento do
capital da companhia, para depois fracassar na sua tentativa para eleger o próximo presidente.
- Se é assim, porque é que não acaba com isto e pronto?
- Porque Martinez é claramente um homem obstinado que se recusa a admitir quando é derrotado, e não creio que seja o tipo de pessoa para se enroscar a um canto a lamber as
feridas. Temos de aceitar que deve estar simplesmente à espera do momento certo. Mas do momento certo para quê?
- Não sei - disse Ross. - Aquele homem é um enigma, praticamente indecifrável. A única coisa que eu sei é que, no que toca aos Barrington e aos Clifton, é uma questão pessoal.
- Isso não é surpresa, mas pode muito bem acabar por ser a sua ruína. Ele devia lembrar-se do lema da máfia: quando se trata de matar um rival, deve ser por uma questão de
negócio e nunca por uma questão pessoal.
- Não o via como mafioso.
- Não se deixe enganar, Ross. O Yorkshire já tinha máfia muito antes de os italianos terem rumado a Nova Iorque. Nós não matamos os nossos rivais, só não os deixamos passar
a fronteira do nosso condado. - Ross sorriu. - Quando me deparo com alguém tão traiçoeiro quanto Martinez - continuou Cedric, parecendo outra vez sério - tento pôr-me no seu
lugar e perceber exatamente o que é que pretende. Mas no caso de Martinez, ainda há qualquer coisa que me escapa. Tinha esperança que pudesse preencher essas lacunas.

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- Eu também não sei a história toda - admitiu Ross -, mas aquilo que Emma Clifton me contou é digno de um policial de Harry Clifton.
- Tem assim tantas reviravoltas? - disse Cedric, que se recostou na cadeira e não voltou a interromper até Ross lhe ter contado tudo o que sabia sobre um leilão na Sotheby's,
uma estátua de Rodin que continha oito milhões de libras de dinheiro contrafeito e um acidente de carro na A1 que nunca tinha sido explicado de forma satisfatória.
- Martinez pode ter feito uma retirada tática - concluiu Ross -, mas não estou convencido de que tenha abandonado o campo de batalha.
- Se nós os dois trabalhássemos em conjunto - sugeriu Cedric
- talvez conseguíssemos proteger a senhora Clifton e permitir-lhe continuar a recuperar a prosperidade da companhia, assim como a sua reputação.
- O que é que tem em mente? - perguntou Buchanan.
- Bem, para começar, esperava que concordasse em juntar-se ao conselho de administração do Farthings como administrador não executivo.
- Sinto-me lisonjeado.
- Não devia. Traria ao banco uma dose considerável de experiência e conhecimentos em muitos domínios, nomeadamente no da navegação, e de certeza que não há ninguém mais bem
qualificado para acompanhar o nosso investimento na Barrington's. Porque é que não pensa no assunto e depois me diz, quando tomar uma decisão?
- Não preciso de pensar - disse Buchanan. - Seria uma honra fazer parte do vosso conselho de administração. Sempre tive muito respeito pelo Farthings. "Tomem conta das moedas
de dinheiro que as libras tomarão conta de si próprias" é uma filosofia com que vários outros estabelecimentos cujo nome não direi poderiam beneficiar.
- Cedric sorriu. - E de qualquer forma - acrescentou Buchanan
- considero a Barrington's um assunto pendente.
- Também eu - disse Cedric levantando-se, atravessando a sala e premindo um botão debaixo da secretária. - Quer ir almoçar comigo ao Rules? Assim, pode explicar porque é que
mudou de ideias
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no último minuto e deu o voto de desempate à senhora Clifton, quando era óbvio que inicialmente tencionava apoiar Fisher.
Buchanan ficou mudo de espanto, mas o silêncio foi interrompido por uma pancada na porta. Levantou os olhos e viu o jovem que o tinha recebido no átrio.
- Ross, creio que ainda não conhece o meu assistente pessoal.
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Toda a gente se pôs em pé quando o senhor Hardcastle entrou na sala. Sebastian levara algum tempo a habituar-se à estima que os trabalhadores do Farthings nutriam claramente
pelo seu presidente. Mas quando se dormiu na cama ao lado da de um homem durante meses a fio e se teve oportunidade de vê-lo com a barba por fazer, de pijama, a urinar para
dentro de uma garrafa e a ressonar, é muito difícil sentir essa reverência por ele, embora poucos dias depois do seu primeiro encontro, Sebastian tivesse passado a respeitar
o banqueiro de Huddersfield.
O senhor Hardcastle fez sinal para que se sentassem e ocupou o seu lugar à cabeceira da mesa.
- Bom dia, meus senhores - começou, olhando para os colegas à sua volta. - Convoquei esta reunião porque o banco está perante uma oportunidade extraordinária que, se for gerida
corretamente, pode abrir uma nova fonte de rendimento que poderá beneficiar o Farthings durante muitos anos.
Tinha captado a atenção da equipa.
- O banco foi recentemente abordado pelo fundador e presidente da companhia japonesa Sony International, que espera obter um empréstimo de curto prazo a juro fixo predeterminado
no valor de dez milhões de libras.
Cedric fez uma pausa para poder estudar as expressões nos rostos dos catorze executivos de topo sentados à volta da mesa. Iam da manifesta indignação ao que oportunidade mais
emocionante, passando por quase todos os estados intermédios No entanto, Cedric tinha preparado a próxima secção da sua apresentação com todo o cuidado.
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- A guerra acabou há catorze anos. Mesmo assim, alguns de vocês podem sentir, tal como expresso de forma tão nítida pelo editorial do Daily Mirror esta manhã, que nunca deveremos
considerar a hipótese de negociar com esse "bando belicista de filhos da mãe japonas". No entanto, um ou dois de vocês também são capazes de ter reparado no sucesso que o
Westminster teve quando assinou um acordo de parceria com o Deutsche Bank para construir uma nova fábrica da Mercedes em Dortmund. Estão a oferecer-nos uma oportunidade semelhante.
Quero fazer uma pequena pausa e pedir a cada um de vós que pense como será o negócio daqui a quinze anos. Não hoje, e certamente não há quinze anos. Continuaremos a exibir
os mesmos velhos preconceitos ou teremos seguido em frente e abraçado uma nova ordem que aceita que há uma nova geração de japoneses que não deve ser condenada pelo passado?
Se alguém nesta sala se sente incapaz de lidar sequer com a ideia de fazer negócio com os japoneses porque isso iria reabrir feridas dolorosas, está na altura de deixar clara
a sua posição, pois, sem o vosso apoio incondicional, esta aventura não terá hipóteses de sucesso. A última vez que pronunciei estas palavras entredentes foi em 1947, quando
permiti finalmente que um natural do Lancashire abrisse conta no Farthings.
A onda de riso que se seguiu ajudou a quebrar a tensão, embora Cedric não duvidasse que ainda iria enfrentar a oposição de algum do pessoal mais antigo, e que alguns dos seus
clientes mais conservadores eram até capazes de considerar a hipótese de mudar as suas contas para outro banco.
- Agora, a única coisa que lhes posso dizer - continuou ele - é que o presidente da Sony International e dois dos diretores da sua companhia planeiam visitar Londres dentro
de cerca de seis semanas. Deixaram claro que não somos o único banco que estão a contactar, mas ao mesmo tempo deram-me a saber que somos, presentemente, a opção favorita.
- Porque é que a Sony havia sequer de pensar em nós, senhor presidente, quando há vários bancos de maior dimensão especializados nessa área? - perguntou Adrian Sloane, chefe
do balcão de câmbio.

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- Pode não acreditar, Adrian, mas no ano passado fui entrevistado pelo Economist, e na fotografia tirada em minha casa, em Huddersfield, é visível em segundo plano um rádio
transístor da Sony. O destino é feito de caprichos como esse.
- John Kenneth Galbraith - disse Sebastian.
Seguiu-se uma série de aplausos de um ou dois funcionários que não teriam normalmente considerado a hipótese de interromper o presidente, o que fez com que Sebastian fizesse
algo que raramente fazia: corar.
- É bom saber que temos pelo menos uma pessoa culta na sala .- disse o presidente. - Dito isto, voltemos ao trabalho. Se alguém quiser discutir este assunto em privado, não
têm de marcar hora, basta virem ter comigo.
Quando Cedric voltou para o gabinete, Sebastian seguiu-o rapidamente e desculpou-se de imediato pela observação intempestiva.
- Não é preciso, Seb. Na verdade, até ajudaste a desanuviar o ambiente, ao mesmo tempo que aumentaste o teu estatuto entre os funcionários mais antigos. Esperemos que isso
encoraje um ou dois a fazer-me frente no futuro. Mas passemos a assuntos mais importantes. Tenho um trabalho que preciso que faças.
- Finalmente - disse Sebastian, que estava farto de acompanhar clientes importantes para cima e para baixo no elevador, apenas para levar com a porta na cara assim que eles
entravam no gabinete do presidente.
- Quantas línguas falas?
- Cinco, se contar com o inglês. Mas o meu hebraico está um bocadinho enferrujado.
- Então tens seis semanas para obter conhecimentos razoáveis de japonês.
- Quem é que decide se são razoáveis?
- O presidente da Sony International.
- Ah, então não há motivo para me sentir pressionado.
- A Jessica disse-me que, quando estiveram de férias na villa da família na Toscana, aprendeste italiano em três semanas.
- Aprender não é dominar - disse Sebastian. - De qualquer forma, a minha irmã tem tendência para exagerar - acrescentou,
126

olhando para um desenho de Cedric na cama do Princess Alexandra Hospital, intitulado Retrato de Um Moribundo.
- Não tenho outro candidato em mente - disse Cedric, entregando-lhe um prospeto. - A Universidade de Londres oferece presentemente três cursos de japonês, iniciado, intermédio
e avançado. Assim, poderás passar duas semanas em cada um deles. - Pelo menos, Cedric teve a bondade de se rir.
O telefone que estava em cima da secretária do presidente começou a tocar. Ele atendeu, ficou a ouvir durante alguns instantes e depois disse:
- Jacob, obrigado por me devolveres a chamada. Precisava de falar contigo sobre o projeto da mina boliviana, porque sei que és o principal financiador...
Sebastian saiu da sala, fechando a porta silenciosamente atrás dele.
- O protocolo é a chave para compreender o espírito japonês - disse o professor Marsh enquanto olhava para as fiadas sucessivas de rostos expectantes. - É tão importante como
dominar a língua.
Sebastian depressa descobrira que as aulas dos cursos de nível iniciado, intermédio e avançado tinham lugar a horas diferentes do dia, o que lhe possibilitava assistir a quinze
aulas por semana. Isto, combinado com as horas que tinha de dedicar a inúmeros livros, um gravador e uma dúzia de cassetes, significava que mal tinha tempo para comer ou dormir.
O professor Marsh tinha-se habituado a ver o mesmo jovem sentado na primeira fila das suas aulas, tirando notas a toda a velocidade.
- Vamos começar pela vénia - disse o professor. - É importante compreender que a vénia nos círculos japoneses revela muito mais do que o aperto de mão para os britânicos.
Não há diferentes graus de aperto de mão, a não ser firme ou frouxo, e em resultado disso o aperto de mão não revela a posição social dos intervenientes. No entanto, para
os japoneses, há todo um código no que toca a vénias. Começando pelo topo, só o imperador não faz vénia a ninguém. Quando se conhece alguém de posição idêntica, ambos fazem
um

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aceno de cabeça... - O professor fez um movimento de cabeça comedido. - Mas se, por exemplo, o presidente de uma companhia tivesse uma reunião com o seu diretor-geral, o presidente
faria um mero aceno de cabeça, ao passo que o diretor-geral faria uma vénia, dobrando-se a partir da cintura. Se um operário se cruzasse com o presidente, faria uma vénia
pronunciada, para que os seus olhos não se encontrassem, e o presidente até poderia ignorar a sua presença e limitar-se a passar por ele.
- Portanto - disse Sebastian mais tarde, depois de ter regressado ao banco -, se eu fosse japonês e o senhor presidente, eu faria uma vénia pronunciada para mostrar que sabia
o meu lugar.
- No dia de São Nunca - disse Cedric.
- E o senhor - disse Sebastian, ignorando o comentário - faria um aceno de cabeça ou passaria simplesmente por mim. Por isso, quando vir o senhor Morita pela primeira vez,
e já que a reunião tem lugar no nosso país, deve deixá-lo ser o primeiro a fazer um aceno de cabeça, depois retribuir o cumprimento e a seguir trocar os cartões de visita.
Se quer mesmo impressioná-lo, o seu cartão deve estar em inglês de um dos lados e em japonês do outro. Quando o senhor Morita apresentar o seu diretor-geral, este fará uma
vénia pronunciada, mas o senhor limitar-se-á a fazer outro aceno de cabeça. E quando ele apresentar a terceira pessoa do grupo, esta vai fazer uma vénia ainda mais pronunciada,
ao passo que, mais uma vez, o senhor se limitará a fazer um aceno de cabeça.
- Então, só tenho de ir fazendo acenos de cabeça. Há alguém a quem deva fazer uma vénia?
- Só ao imperador, e não me parece que ele ande agora à procura de um empréstimo de curto prazo. O senhor Morita verá que o está a pôr acima dos colegas e, igualmente importante,
os colegas dele apreciarão o respeito que demonstrou pelo seu presidente.
- Parece-me que esta filosofia devia ser posta imediatamente em prática no Farthings - disse Cedric.
- E depois temos a etiqueta mais complicada, quando jantarem juntos - continuou Sebastian. - Num restaurante, o senhor Morita deve pedir primeiro e ser servido primeiro, mas
não pode iniciar a sua
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refeição antes do senhor. Os colegas não podem começar antes dele, mas devem acabar pouco antes dele.
- Imagina se estivesses num jantar de festa com dezasseis pessoas e fosses a pessoa mais nova presente...
- Apanhava uma indigestão - disse Sebastian. - Contudo, no final da refeição, o senhor Morita não sai da mesa até o senhor se levantar e lhe pedir para o acompanhar.
- E quanto a mulheres?
- Uma questão delicada - disse Sebastian. - Os japoneses não entendem porque é que um inglês se levanta quando uma mulher entra na sala, permite que a sirvam primeiro e não
levanta a faca e o garfo até a sua esposa o fazer.
- Estás a sugerir que seria melhor deixar Beryl em Huddersfield?
- Era capaz de ser mais sensato, dadas as circunstâncias.
- Então e se tu viesses jantar connosco, Seb?
- Teria de ser o último a pedir, o último a ser servido, o último a iniciar a refeição e o último a sair da mesa.
- Outra estreia - disse Cedric. - A propósito, quando é que aprendeste tudo isso?
- Esta manhã - disse Sebastian.
Sebastian teria desistido das aulas de nível iniciado no final da primeira semana se não se tivesse distraído. Tentava concentrar-se naquilo que o professor Marsh estava a
dizer, mas era frequente dar consigo a olhar para trás, na direção onde ela estava. Embora fosse muito mais velha do que Sebastian, talvez tivesse trinta ou mesmo trinta e
cinco anos, era muito atraente e os rapazes no banco tinham-lhe assegurado que as mulheres que trabalhavam na City preferiam muitas vezes homens mais novos.
Sebastian virou-se e voltou a olhar na mesma direção, mas ela estava concentrada naquilo que o professor estava a dizer. Ou estaria apenas a fazer-se difícil? Só havia uma
maneira de descobrir.
Quando a aula finalmente terminou, seguiu-a à saída da sala e decidiu que ela era igualmente atraente vista por trás. Uma saia travada revelava um par de pernas esguias que
ele teve prazer em seguir até

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ao bar dos alunos. Ele sentiu-se mais confiante quando ela foi direitinha ao balcão e o barman pegou imediatamente numa garrafa de vinho branco. Sebastian sentou-se no banco
ao lado dela.
- Deixe-me adivinhar, um copo de Chardonnay para a senhora e eu bebo uma cerveja.
Ela sorriu.
- É para já - disse o barman.
- Chamo-me Seb.
- E eu Amy - replicou ela. O sotaque americano apanhou-o de surpresa. Estaria prestes a descobrir se as raparigas americanas eram tão fáceis como os tipos lá do banco diziam?
- Então o que é que faz quando não está a aprender japonês?
- perguntou Sebastian enquanto o barman punha as duas bebidas no balcão.
- São quatro xelins.
Sebastian entregou-lhe duas meias coroas e disse:
- Fique com o troco.
- Deixei há pouco tempo a vida de hospedeira de bordo - dissse ela.
Isto está cada vez melhor, pensou Sebastian.
- O que é que a fez desistir?
- Andam sempre à procura de gente mais nova.
- Mas não pode ter mais de vinte e cinco anos!
- Quem me dera - disse ela antes de beber um gole de vinho.
- E qual é o seu trabalho?
- Sou banqueiro de investimento.
- Parece emocionante.
- Pode crer que é - disse Sebastian. - Ainda hoje fechei um negócio com Jacob Rothschild para comprar uma mina de estanho na Bolívia.
- Ena! Isso faz com que o meu mundo pareça muito banal. Então porque é que anda a aprender japonês?
- O chefe do balcão do Extremo Oriente acabou de ser promovido e eu faço parte da lista de candidatos selecionados para ocupar o seu lugar.
- Não será um bocadinho novo para um cargo de tanta responsabilidade?
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- A banca é coisa para gente nova - disse Sebastian, enquanto ela terminava o vinho. - Posso oferecer-lhe outro?
- Não, mas obrigada. Tenho muitas revisões para fazer, por isso é melhor ir para casa para o professor não me apanhar em falta amanhã.
- Posso ir consigo e fazemos as revisões juntos.
- Parece tentador - disse ela -, mas está a chover, por isso precisamos de um táxi.
- Deixe isso comigo - disse ele, brindando-a com um caloroso sorriso. Sebastian saiu do bar quase a correr, em direção à chuva torrencial. Levou algum tempo a encontrar um
táxi e quando finalmente fez sinal a um para parar, só esperava que ela não morasse muito longe, pois estava reduzido a uns trocos. Viu-a por trás da porta de vidro e acenou-lhe.
- Para onde é, chefe?
- Não tenho a certeza, não sei onde é que a senhora mora - disse Sebastian, piscando o olho ao taxista. Virou-se e viu Amy a correr para o táxi, e tratou de abrir rapidamente
a porta de trás para ela não ficar encharcada. Ela deslizou para o seu lugar e ele preparava-se para lhe fazer companhia quando uma voz por trás dele disse:
- Obrigado, Clifton. Foi muito amável em arranjar um táxi para a minha mulher com este tempo horrível. Até amanhã - acrescentou o professor, enquanto fechava a porta.
131
15
- Bom dia, senhor Morita. Prazer em conhecê-lo - disse Cedric, acenando elegantemente com a cabeça.
- O prazer é todo meu, senhor Hardcastle - arriscou ele, retribuindo o cumprimento. - Permita-me que lhe apresente o meu diretor-geral, o senhor Ueyama. - Deu um passo em
frente e fez uma vénia respeitosa. Cedric voltou a fazer um aceno de cabeça. - E o meu secretário particular, o senhor Ono - que fez uma vénia ainda mais pronunciada, mas
Cedric limitou-se uma vez mais a fazer um breve aceno.
- Faça o favor de se sentar, senhor Morita - disse Cedric, e depois ficou à espera de que o seu convidado se sentasse antes de ocupar o seu lugar à secretária. - Espero que
tenha tido um voo agradável.
- Sim, obrigado. Consegui dormir umas horas entre Hong Kong e Londres, e foi muito atencioso da sua parte ter mandado um carro e o seu assistente pessoal para nos ir buscar
ao aeroporto.
- Foi um prazer. E o vosso hotel é confortável?
- Muito satisfatório, obrigado, e muito perto da City.
- Fico encantado por saber disso. Bem, vamos tratar de negócios?
- Não, não, não! - disse Sebastian, pondo-se em pé de um salto. - Nenhum cavalheiro japonês consideraria a possibilidade de discutir negócios até lhe terem oferecido chá.
Em Tóquio, a cerimónia do chá seria executada por uma gueixa e poderia durar trinta minutos ou mais, consoante a importância do seu cargo. É claro que ele pode declinar a
oferta, mas está na mesma à espera de que lha faça.
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- Esqueci-me - disse Cedric. - Um erro tolo, que não irei cometer nesse dia. Graças a Deus que vais lá estar para me salvar caso isso aconteça.
- Mas não poderei fazê-lo - disse Sebastian. - Estarei sentado ao fundo da sala, com o senhor Ono. Estaremos a tirar notas da vossa conversa, e nenhum de nós consideraria
a hipótese de interromper o nosso chefe.
- Então, quando é que me é permitido falar de negócios com ele?
- Só depois de o senhor Morita ter bebido o primeiro gole da sua segunda chávena de chá.
- Mas, durante a conversa prévia, devo falar da minha mulher e família?
- Só se ele tocar no assunto primeiro. É casado com Yoshiko há onze anos e ela acompanha-o de vez em quando nas viagens que faz ao estrangeiro.
- Têm filhos?
- Ele tem três filhos pequenos: dois rapazes, Hideo, de seis anos, e Masao, de quatro, e uma rapariga, Naoko, que tem apenas dois.
- Posso dizer-lhe que o meu filho é advogado e que foi recentemente nomeado conselheiro da Coroa?
- Só se ele falar primeiro nos seus próprios filhos, o que é muito pouco provável.
- Compreendo - disse Cedric. - Ou, pelo menos, penso que sim. Achas que os presidentes dos outros bancos se vão dar a este trabalho todo?
- É bom que dêem, se quiserem tanto o contrato como o senhor.
- Fico-te muito grato, Seb. Então, como é que vai o teu japonês?
- Estava a ir bem até eu ter feito figura de parvo e tentado seduzir a mulher do professor.
Cedric não conseguia parar de rir enquanto Sebastian lhe fazia o relato completo do que tinha acontecido na noite anterior.
- Encharcado, dizes tu?

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- Até aos ossos. Não sei o que se passa comigo e com as mulheres, porque parece que não tenho o mesmo poder de atração que os outros rapazes lá do banco.
- Eu digo-te o que acontece com os outros rapazes - disse Cedric. - Depois de beberem umas quantas cervejas, querem fazer-te crer que dão lições a James Bond. Mas deixa-me
que te diga que a maior parte deles é só conversa!
- Teve o mesmo problema quando tinha a minha idade?
- Claro que não - disse Cedric. - Mas a verdade é que conheci Beryl quando tinha seis anos e não voltei a olhar para outra mulher desde então.
- Seis anos? - disse Sebastian. - Ainda é pior do que a minha mãe. Ela apaixonou-se pelo meu pai quando tinha dez anos, e depois disso o pobre homem nunca mais teve hipótese.
- Nem eu - admitiu Cedric. - Sabes, Beryl era a aluna que distribuía o leite na escola primária de Huddersfield, e se eu queria receber dois decilitros extra... miúda mais
mandona. E continua a ser, agora que penso nisso. Mas eu nunca quis outra pessoa.
- E nunca olhou sequer para outra mulher?
- Olhar, sim, mas não mais do que isso. Quando se encontra ouro, porquê ir à procura de latão?
Sebastian sorriu.
- Então, como é que eu vou saber que encontrei ouro?
- Vais saber, meu rapaz. Acredita que vais saber.
Sebastian passou as últimas duas semanas antes da data prevista para a aterragem do avião do senhor Morita no Aeroporto de Londres a assistir a todas as aulas que o professor
Marsh tinha para dar, sem voltar a olhar para trás, uma vez que fosse, para a sua mulher. A noite, voltava para casa do seu tio Giles em Smith Square e, depois de um jantar
leve, em que abandonava a faca e o garfo a favor dos pauzinhos, voltava para o seu quarto, lia, ouvia gravações e fazia vénias em frente de um espelho de corpo inteiro.
Na noite antes de o pano subir, sentia que estava pronto. Bem, meio pronto.
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Giles já começara a habituar-se a ver Sebastian fazer uma vénia todas as manhãs, quando entrava na sala do pequeno-almoço.
- E o tio tem de reconhecer a minha presença com um aceno de cabeça, caso contrário não me posso sentar - dizia Sebastian.
- Estou a começar a gostar disto - disse Giles, enquanto Gwyneth entrava para se lhes juntar. - Bom dia, minha querida - disse ele, ao mesmo tempo que ambos os homens se levantavam
dos seus lugares.
- Temos um belo Daimler estacionado à porta de casa - disse Gwyneth, sentando-se em frente de Giles.
- Sim, vai levar-me ao Aeroporto de Londres para ir buscar o senhor Morita.
- Ah, é claro, hoje é o grande dia.
- Sem dúvida - disse Sebastian. Bebeu o sumo de laranja até à última gota, pôs-se em pé de um salto, saiu a correr para o corredor e mirou-se uma vez mais ao espelho.
- Gosto da camisa - disse Gwyneth, pondo manteiga numa torrada -, mas a gravata é um bocadinho... antiquada. Acho que a de seda azul que usaste no nosso casamento seria mais
apropriada.
- Tem razão - disse Sebastian, e desatou imediatamente a correr escada acima, desaparecendo no seu quarto.
- Boa sorte - disse Giles, quando ele já vinha a descer novamente a escada.
- Obrigado - gritou Sebastian por cima do ombro ao sair de casa.
O motorista do senhor Hardcastle estava junto à porta de trás do Daimler.
- Acho que vou consigo à frente, Tom, já que é esse o meu lugar quando regressarmos.
- Como queira - disse Tom, sentando-se ao volante.
- Diga-me - disse Sebastian quando o carro virou à direita, deixando Smith Square rumo ao Embankment - quando era jovem...
- Calma aí, meu rapaz! Só tenho trinta e quatro anos.

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- Desculpe, eu reformulo. Quando era solteiro, quantas mulheres é que... bem, percebe o que quero dizer, antes de se casar?
- Quantas mulheres papei? - disse Tom.
Sebastian ficou corado como um tomate, mas lá conseguiu dizer:
- Sim.
- Anda a ter problemas com as miúdas, não é verdade?
- Numa palavra, sim.
- Bem, não tenciono responder a essa pergunta, meritíssimo, tendo em conta o facto de que isso iria sem dúvida incriminar-me. - Sebastian riu-se. - Mas não tantas como gostaria,
e não tantas como disse aos meus amigos.
Sebastian voltou a rir-se.
- E como é a vida de casado?
- Ora sobe, ora desce, como a Tower Bridge. O que é que motivou isto tudo, Seb? - perguntou Tom enquanto passavam por Earl's Court. - Encontrou alguém de quem gosta, foi isso?
- Quem me dera! Não, é só porque sou uma desgraça no que toca às mulheres. Parece que estrago tudo sempre que conheço uma rapariga de quem gosto. Arranjo sempre maneira de
transmitir os sinais errados.
- O que não é muito inteligente, tendo em conta que tem tudo a seu favor, não é verdade?
- O que quer dizer com isso?
- É um rapaz bem-parecido dentro do estilo snobe, bem-educado, fala como deve ser, vem de uma boa família... Portanto, o que mais quer?
- Mas não tenho um chavo.
- Possivelmente. Mas tem potencial, e as raparigas gostam de potencial. Acham sempre que podem explorá-lo em seu benefício. Por isso, acredite em mim, não vai ter nenhum problema
nesse departamento. Quando começar, nunca mais vai olhar para trás.
- Que desperdício, Tom, devia ter sido filósofo!
- Grande lata, meu rapaz! Não fui eu que consegui um lugar em Cambridge. Porque digo-lhe uma coisa, se tivesse oportunidade, trocava de lugar consigo.
Um pensamento que nunca tinha passado pela cabeça de Sebastian.
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- Note-se que não estou a queixar-me! Tenho um bom emprego, o senhor Hardcastle é uma jóia, e Linda é uma mulher às direitas. Mas se tivesse o seu início de vida, com certeza
que não seria motorista!
- E o que é que seria?
- Por esta altura, já tinha uma frota de carros e havia de me tratar por senhor.
De repente, Sebastian sentiu-se culpado. Tomava tanta coisa como certa, sem nunca pensar no que estava a acontecer na vida das outras pessoas, ou no quão privilegiado elas
o podiam considerar. Ficou calado durante o resto da viagem, dolorosamente ciente de que o nascimento era o primeiro bilhete de lotaria da vida.
Tom quebrou o silêncio quando saiu de Great West Road.
- É verdade que vamos buscar três japonas?
- Comporte-se, Tom. Vamos buscar três cavalheiros japoneses.
- Não me interprete mal, não tenho nada contra esses filhos da mãe amarelos. É evidente que só foram para a guerra porque foi o que os mandaram fazer.
- Ah, também é historiador - disse Sebastian enquanto o carro parava junto ao terminal do aeroporto. - Tenha a porta de trás aberta e o motor a trabalhar quando eu voltar,
Tom, pois estes três cavalheiros são muito importantes para o senhor Hardcastle.
- Estarei aqui, em sentido - disse Tom. - Até pratiquei a minha vénia, não é verdade?
- Muito pronunciada, no seu caso - disse Sebastian, a sorrir.
Embora o painel das chegadas mostrasse que o avião estava dentro do horário, Sebastian tinha chegado com uma hora de antecedência. Comprou um café morno num café pequeno e
cheio de gente, pegou num exemplar do Daily Mail e leu sobre dois macacos que os americanos tinham mandado para o espaço e que tinham acabado de regressar à Terra em segurança.
Foi duas vezes à casa de banho, verificou três vezes a gravata - Gwyneth tinha razão - e subiu e desceu inúmeras vezes o espaço por onde saíam os passageiros, ensaiando "Bom
dia, senhor Morita, bem-vindo a Inglaterra", em japonês, seguido de uma vénia pronunciada.

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- O voo número mil e vinte e sete da Japan Airlines proveniente de Tóquio acabou de aterrar - anunciou uma voz afetada pelo altifalante.
Sebastian escolheu imediatamente um lugar junto à porta das chegadas, de onde teria uma boa vista dos passageiros quando saíssem da alfândega. O que ele não tinha previsto
era que houvesse um número tão grande de empresários japoneses a desembarcar do voo 1027, e não fazia ideia de como era o senhor Morita ou os seus colegas.
Sempre que três passageiros saíam juntos pela porta, ele dava imediatamente um passo em frente, fazia uma vénia pronunciada e apresentava-se. Conseguiu acertar da quarta vez,
mas já estava tão enervado que fez o seu pequeno discurso em inglês.
- Bom dia, senhor Morita, bem-vindo a Inglaterra - disse ele, antes de fazer uma pronunciada vénia. - Eu sou o assistente pessoal do senhor Hardcastle e tenho um carro à espera
para vos levar ao Savoy.
- Obrigado - disse o senhor Morita, revelando de imediato que o seu inglês era muito superior ao japonês de Sebastian. - Foi muito amável da parte do senhor Hardcastle dar-se
a este trabalho todo.
Como Morita não fez qualquer tentativa para apresentar os seus dois colegas, Sebastian levou-os imediatamente para fora do terminal. Ficou aliviado por encontrar Tom em sentido
junto à porta aberta do carro.
- Bom dia, senhor - disse Tom, fazendo uma vénia pronunciada, mas o senhor Morita e os seus colegas entraram para o carro sem registar a sua presença.
Sebastian saltou para o lugar da frente e o carro juntou-se ao trânsito lento para entrar em Londres. Manteve-se calado durante a viagem até ao Savoy, enquanto o senhor Morita
conversava em voz baixa com os colegas na sua língua materna. Quarenta minutos depois, o Daimler parou à porta do hotel. Três porteiros apressaram-se a vir até à traseira
do carro e começaram a descarregar a bagagem.
Quando o senhor Morita saiu para o passeio, Sebastian fez uma vénia pronunciada.
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- Volto às onze e meia, senhor - disse ele em inglês -, para poderem chegar a horas à reunião com o senhor Hardcastle, ao meio-dia.
O senhor Morita lá se dignou fazer um aceno de cabeça ao mesmo tempo que o gerente do hotel dava um passo em frente e dizia:
- Bem-vindo ao Savoy, Morita San. - Fez uma vénia pronunciada.
Sebastian só voltou para o carro depois de o senhor Morita ter desaparecido através das portas giratórias do hotel. - Temos de voltar ao escritório, e o mais rápido possível.
- Mas as minhas instruções são para ficar aqui - disse Tom, sem se mexer - para o caso de o senhor Morita precisar de usar o carro.
- Estou-me nas tintas para quais foram as instruções - disse Sebastian. - Vamos voltar ao escritório, e é já, portanto toca a acelerar.
- A responsabilidade é sua - disse Tom, antes de descer a toda a velocidade pelo lado errado da rua e desembocar na Strand.
Vinte e dois minutos depois, pararam à porta do Farthings.
- Faça inversão de marcha e mantenha o motor a trabalhar - disse Sebastian. - Volto o mais depressa possível. - Saltou do carro, correu para dentro do edifício, foi até ao
elevador mais próximo e, ao chegar ao quinto andar, percorreu o corredor e entrou no gabinete do presidente sem bater. Adrian Sloane virou-se e não fez qualquer tentativa
para esconder a sua reprovação por ver a sua reunião com o presidente interrompida de forma tão abrupta.
- Pensei que te tinha dado instruções para ficares no Savoy - disse Cedric.
- Aconteceu uma coisa, senhor presidente, e só tenho uns minutos para o informar.
Sloane pareceu ainda mais desagradado quando Hardcastle lhe pediu para os deixar sozinhos e voltar daí a alguns minutos.
- Então, qual é o problema? - perguntou ele a Sebastian assim que a porta se fechou.
- O senhor Morita tem uma reunião com o Westminster Bank às três da tarde e outra com o Barclays amanhã de manhã, às dez. Ele

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e os seus assessores estão preocupados com o facto de o Farthings ainda não ter feito muitos empréstimos a empresas e o senhor vai ter de convencê-los de que é capaz de gerir
um negócio dessa envergadura. A propósito, eles sabem tudo sobre si, incluindo que deixou de estudar aos quinze anos.
- Então, ele sabe ler inglês - disse Cedric. - Mas como é que conseguiste o resto da informação? Sim, porque não acredito que eles a tenham dado voluntariamente.
- E não deram. Mas eles não fazem ideia de que eu falo japonês.
- Vamos manter as coisas assim - disse Cedric. - Pode vir a ser útil mais tarde. Mas, por agora, é melhor voltares para o Savoy e depressa.
- Mais uma coisa - disse Sebastian enquanto se dirigia para a porta. - Não é a primeira vez que o senhor Morita fica no Savoy. Na verdade, o gerente do hotel cumprimentou-o
como se ele fosse um hóspede habitual. E acabei de me lembrar de que eles esperam conseguir três bilhetes para o My Fair Lady, mas que lhes disseram que está esgotado.
O presidente pegou no telefone e disse:
- Descubra qual é o teatro onde está a peça My Fair Lady e ponha a bilheteira em linha.
Sebastian saiu a correr da sala e percorreu o corredor, desejando que o elevador estivesse no último andar. Não estava, e pareceu levar uma eternidade a voltar. Quando finalmente
apareceu, parou em todos os pisos durante a descida. Saiu do edifício a correr, saltou para dentro do carro, olhou para o relógio e disse:
- Temos vinte e seis minutos para estar de volta ao Savoy. Sebastian não se conseguia lembrar de outra altura em que o
trânsito estivesse tão lento. Todos os semáforos pareciam ficar vermelhos precisamente quando eles se aproximavam. E porque é que as passadeiras estavam tão cheias de peões
àquela hora da manhã?
Tom virou para Savoy Place às 11h27 e deparou-se com uma frota de limusinas estacionadas a deixar sair os seus passageiros à porta do hotel. Sebastian não se podia dar ao
luxo de esperar, por isso, com as palavras do professor Marsh na cabeça, Os japoneses nunca se atrasam para uma reunião e consideram um insulto não chegarmos a horas, saltou
do carro e começou a correr pela rua abaixo em direção ao hotel.
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Mas porque é que não usei o telefone do hotel?, estava ele a perguntar-se muito antes de ter chegado à entrada principal. Mas era tarde demais para se preocupar com isso.
Passou a correr pelo porteiro e empurrou as portas giratórias, impelindo uma senhora para a rua bastante mais depressa do que ela pretendia.
Olhou para o relógio no foyer .11h29. Caminhou rapidamente até aos elevadores, verificou a gravata ao espelho e respirou fundo. O relógio bateu duas vezes, as portas do elevador
abriram-se e saiu o senhor Morita mais os seus dois colegas. Obsequiou Sebastian com um sorriso, mas a verdade é que pensava que o jovem estava ali há uma hora.
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Sebastian abriu a porta, para deixar que o senhor Morita e os seus dois colegas entrassem no gabinete do presidente.
Quando foi ao seu encontro para os cumprimentar, Cedric sentiu-se alto pela primeira vez na vida. Preparava-se para fazer uma vénia quando o senhor Morita lhe estendeu a mão.
- Encantado por conhecê-lo - disse Cedric, apertando-lhe a mão enquanto se preparava novamente para fazer uma vénia, mas Morita virou-se e disse:
- Permita-me que lhe apresente o meu diretor-geral, o senhor Ueyama. - Este deu um passo em frente e também apertou a mão a Cedric. O presidente também teria apertado a mão
ao senhor Ono, se este não estivesse a segurar uma grande caixa com ambas as mãos.
- Façam o favor de se sentar - disse Cedric, tentando regressar ao guião.
- Obrigado - disse Morita. - Mas, primeiro, é uma ilustre tradição japonesa trocar presentes com um novo amigo. - O secretário particular avançou e entregou a caixa ao senhor
Morita, que a entregou a Cedric.
- Mas que amabilidade a sua - disse Cedric, parecendo ligeiramente embaraçado enquanto as suas três visitas continuavam em pé, claramente à espera de que ele abrisse o presente.
Não teve pressa, tirando primeiro a fita azul, cuidadosamente atada num laço, e depois o papel dourado, enquanto pensava no que poderia dar a Morita, para retribuir o gesto.
Teria de sacrificar o seu Henry Moore? Olhou de relance para Sebastian, mais esperançado do
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que expectante, mas ele parecia igualmente embaraçado. A tradicional troca de presentes devia ter sido falada numa das poucas aulas a que faltara.
Cedric tirou a tampa da caixa e até arfou enquanto levantava com todo o cuidado uma linda e delicada jarra turquesa e preta. Sebastian, que estava ao fundo da sala, deu um
passo em frente, mas não disse nada.
- Magnífica - disse Cedric. Tirou um arranjo de flores de cima da secretária e pôs a requintada jarra oval no seu lugar. - Quando voltar futuramente ao meu escritório, senhor
Morita, irá sempre encontrar a sua jarra na minha secretária.
- Fico muito honrado - disse Morita, fazendo uma vénia pela primeira vez.
Sebastian deu outro passo em frente até ficar a cerca de trinta centímetros do senhor Morita. Virou-se para o presidente:
- Tenho a sua permissão para fazer uma pergunta ao nosso ilustre convidado, senhor?
- Claro - disse Cedric, na esperança de estar prestes a ser salvo.
- Posso saber o nome do ceramista, Morita San? O senhor Morita sorriu.
- Shoji Hamada - replicou.
- É uma grande honra receber um presente feito por um dos tesouros vivos da vossa nação. Se o presidente soubesse, ter-lhe-ia oferecido um presente similar da autoria de um
dos melhores ceramistas ingleses, que escreveu um livro sobre a obra do senhor Hamada. - Todas as horas infindáveis de conversa com Jessica estavam finalmente a revelar a
sua utilidade.
- O senhor Bernard Leach - disse Morita. - Tenho a felicidade de ter três das suas peças na minha coleção.
- No entanto, o nosso presente, escolhido pelo meu presidente, embora não seja tão valioso, é contudo oferecido com o mesmo espírito de amizade.
Cedric sorriu. Mal podia esperar para descobrir qual era o seu presente.
- O senhor presidente obteve três bilhetes para o espetáculo My Fair lady desta noite, no Theatre Royal, Drury Lane. Com a vossa

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permissão, irei buscá-los às sete horas ao vosso hotel e acompanhá-los-ei ao teatro, onde a cortina se levanta às sete e meia.
- Não consigo pensar num presente mais agradável - disse o senhor Morita. Virando-se para Cedric, acrescentou: - Fico sensibilizado com a sua amável generosidade.
Cedric fez uma vénia, mas percebeu que não era altura para dizer a Sebastian que já telefonara para o teatro e que lhe tinham dito que estava tudo esgotado durante os próximos
quinze dias. Uma voz lânguida informara-o: "Pode sempre juntar-se à fila para os bilhetes devolvidos", e era exatamente isso que Sebastian iria fazer durante o resto do dia.
- Faça o favor de se sentar, senhor Morita - disse Cedric, tentando recompor-se. - Talvez queira tomar um chá?
- Não, obrigado, mas tomo um café, se for possível.
Cedric pensou pesarosamente nas seis diferentes misturas de chá da índia, Ceilão e Malásia que tinha escolhido na Carwardine's no início da semana, e que tinham sido todas
rejeitadas numa frase. Premiu uma tecla no seu telefone e rezou para que a sua secretária bebesse café.
- Café, por favor, Miss Clough. Espero que tenham tido um voo agradável - disse, depois de ter pousado o telefone.
- Demasiadas escalas, receio. Espero ansiosamente pelo dia em que pudermos viajar diretamente de Tóquio para Londres.
- Boa ideia! - disse Cedric. - E espero que o vosso hotel seja confortável.
- Eu fico sempre no Savoy. Está tão bem localizado em relação à City.
- Sim, claro - disse Cedric. Tinha metido outra vez o pé na argola.
O senhor Morita inclinou-se para a frente, olhou para a fotografia em cima da secretária do senhor Cedric e disse:
- Esposa e filho?
- Sim - disse Cedric, sem saber se devia entrar em mais detalhes.
- A esposa era a colega que distribuía o leite e o filho é conselheiro da Coroa.
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- Sim - disse Cedric, completamente desorientado.
- Os meus filhos - disse Morita, que tirou a carteira de um bolso interior e retirou duas fotografias que pôs na secretária, à frente de Cedric. - Hideo e Masao estão a estudar
em Tóquio.
Cedric estudou as fotografias e percebeu que tinha chegado a altura de rasgar o guião.
- E a sua esposa?
- A senhora Morita não pôde vir a Inglaterra desta vez, porque a nossa filha mais nova, Naoko, está com varicela.
- Lamento - disse Cedric, ao mesmo tempo que batiam suavemente à porta e Miss Clough entrava com uma bandeja de café e biscoitos de manteiga. Cedric preparava-se para beber
o seu primeiro gole quando Morita sugeriu:
- Talvez esteja na altura de falarmos de negócios, não?
- Sim, é claro - disse Cedric, pousando a chávena. Abriu um dossiê que tinha em cima da secretária e recordou os pontos importantes que sublinhara na noite anterior. - Gostava
de dizer desde já, senhor Morita, que este tipo de empréstimo não é a área onde o Farthings granjeou a sua reputação. No entanto, como desejamos construir uma relação de longo
prazo com a sua distinta empresa, espero que nos dê a oportunidade de mostrar a nossa capacidade. - Morita acenou afirmativamente. - Tendo em conta que o montante que pretendem
é de dez milhões de libras, com um cupão de reembolso de curto prazo de cinco anos, e tendo estudado os vossos números de cashflow mais recentes, e tendo simultaneamente em
conta a taxa de câmbio atual do iene, consideramos uma percentagem realista...
Agora que estava de volta a terreno familiar, Cedric descontraiu pela primeira vez. Quarenta minutos depois, tinha apresentado as suas ideias e respondido a todas as perguntas
do senhor Morita. Sebastian sentia que o seu chefe não se podia ter saído melhor.
- Posso sugerir que redija um contrato, senhor Hardcastle? Eu não tinha dúvidas de que era o homem certo para fazer isto, muito antes de ter saído de Tóquio. Depois da sua
apresentação, ainda estou mais convencido. Tenho hora marcada com outros dois bancos, mas isso é simplesmente para assegurar aos meus acionistas que estou a

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considerar alternativas. Tomem conta dos rin que os ienes tomarão conta de si próprios.
Ambos os homens se riram.
- Se estiver livre - disse Cedric - talvez me queira fazer companhia ao almoço. Abriu recentemente um restaurante japonês na City, e tem recebido excelentes críticas, por
isso pensei...
- É melhor pensar duas vezes, senhor Hardcastle, porque eu não viajei seis mil milhas para ir a um restaurante japonês. Não, vou levá-lo ao Rules, e vamos comer rosbife e
pudim Yorkshire, o que é apropriado para um homem de Huddersfield, creio eu. - Ambos os homens desataram a rir outra vez.
Quando saíram do escritório alguns minutos depois, Cedric ficou para trás e sussurrou ao ouvido de Sebastian:
- Bem pensado, mas como não há bilhetes disponíveis para o espetáculo My Fair Ladydesta noite, vais ter de passar o resto do dia na fila para os bilhetes devolvidos. Esperemos
que não chova, senão vais ficar outra vez encharcado - acrescentou, antes de se juntar ao senhor Morita no corredor.
Sebastian fez uma profunda vénia enquanto Cedric e as suas visitas entravam no elevador e desapareciam em direção ao rés do chão. Deixou-se ficar pelo quinto andar mais uns
minutos e só chamou o elevador quando teve a certeza que eles já deviam ir a caminho do restaurante.
Depois de Sebastian sair do banco, fez sinal a um táxi.
- Theatre Royal, Drury Lane - disse, e quando pararam à porta do teatro passados vinte minutos, a primeira coisa que viu foi que a fila para os bilhetes devolvidos nunca mais
acabava. Pagou ao taxista, entrou no teatro e foi direitinho à bilheteira.
- Suponho que não tenha três bilhetes para esta noite, não é verdade? - implorou.
- E supõe muito bem, meu querido - disse a mulher sentada no interior do cubículo. - É claro que pode juntar-se à fila para os bilhetes devolvidos, mas sinceramente não deve
haver muitos antes do Natal. Tem de morrer alguém para este espetáculo ter bilhetes devolvidos.
- O preço não me importa.
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- Isso é o que dizem todos, meu querido. Temos pessoas na fila que dizem que fazem vinte e um anos, outras que celebram as bodas de ouro... um homem estava tão desesperado
que até me propôs casamento.
Sebastian saiu do teatro e ficou especado no passeio. Olhou uma vez mais para a fila, que parecia ter aumentado ainda mais nos últimos minutos, e tentou pensar no que havia
de fazer a seguir. Depois, lembrou-se de algo que uma vez tinha lido nos policiais do pai. Decidiu que ia tentar descobrir se resultaria tão bem para ele como resultara para
William Warwick.
Desceu a encosta em direção à Strand, esquivando-se ao trânsito da tarde, chegando ao Savoy Place alguns minutos depois. Foi à receção e perguntou à funcionária qual era o
nome do porteiro-chefe.
- Albert Southgate - respondeu ela.
Sebastian agradeceu-lhe e foi até à secretária do porteiro, como se fosse um hóspede.
- O Albert está por aí? - perguntou ele ao porteiro.
- Creio que foi almoçar, senhor, mas vou ver. - O homem desapareceu numa salinha ao fundo.
- Bert, está aqui um senhor a perguntar por ti.
Sebastian não teve de esperar muito até aparecer um homem mais velho, com um casaco azul comprido adornado com galões dourados nos punhos, botões dourados reluzentes e duas
filas de medalhas de campanha, uma das quais reconheceu. Olhou Sebastian com ar cansado e perguntou:
- Em que posso ajudá-lo?
- Tenho um problema - disse Sebastian, ainda a pensar se poderia arriscar. - O meu tio, Sir Giles Barrington, uma vez disse-me para falar com o Albert se ficasse no Savoy
e precisasse de alguma coisa.
- O cavalheiro que ganhou a Cruz Militar em Tobruk?
- Sim - disse Sebastian, apanhado de surpresa.
- Não houve muitos que sobrevivessem a esse episódio. A coisa foi feia. Em que posso ajudar?
- Sir Giles precisa de três bilhetes para My Fair Lady.
- Quando?

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- Esta noite.
- Deve estar a brincar.
- O preço não lhe importa.
- Espere um bocadinho. Vou ver o que posso fazer. Sebastian viu Albert sair do hotel, atravessar a rua e desaparecer
em direção ao Theatre Royal. Pôs-se a andar de um lado para o outro no foyer, olhando de vez em quando ansiosamente lá para fora, para a Strand, mas passou-se mais meia hora
até o porteiro-chefe voltar a aparecer segurando um envelope. Entrou no hotel e entregou o envelope a Sebastian.
- Três lugares reservados, fila F, bancadas centrais.
- Fantástico. Quanto lhe devo?
- Nada.
- Não compreendo - disse Sebastian.
- O chefe da bilheteira pediu para dar lembranças a Sir Giles. O irmão dele, o sargento Harris, foi morto em Tobruk.
Sebastian sentiu-se envergonhado.
- Bom trabalho, Seb, salvaste o dia. Agora, a única coisa que ainda tens de fazer hoje é certificar-te de que o Daimler fica à porta do Savoy até sabermos que o senhor Morita
e os seus colegas já estão enfiados em segurança na cama.
- Mas do hotel ao teatro são só uns duzentos metros.
- Isso pode ser muito se estiver a chover, como o teu breve encontro com a mulher do professor Marsh te devia ter ensinado. Além disso, se não fizermos esse esforço, podes
ter a certeza de que alguém o fará.
Sebastian saiu do carro e entrou no Savoy às seis e meia da tarde. Dirigiu-se ao elevador e esperou pacientemente. O senhor Morita e os seus dois colegas apareceram logo a
seguir às sete horas. Sebastian fez uma vénia pronunciada e entregou-lhes um envelope que continha três bilhetes.
- Obrigado, meu jovem - disse o senhor Morita. Atravessaram o foyer, passaram pelas portas giratórias e saíram do hotel.
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- O carro do presidente vai levá-los ao Theatre Royal - disse Sebastian, enquanto Tom abria a porta traseira do Daimler.
- Não, obrigado - disse Morita. - Caminhar vai fazer-nos bem. - Sem mais uma palavra, os três homens partiram em direção ao teatro. Sebastian voltou a fazer uma vénia pronunciada,
antes de se juntar a Tom no banco da frente do carro.
- Porque é que não vai para casa? - disse Tom. - Não precisa de ficar aqui e, se começar a chover, levo o carro até ao teatro e trago-os.
- Mas eles podem querer ir jantar a seguir ao espetáculo, ou ir a uma discoteca. Conhece alguma discoteca?
- Depende daquilo que procuram.
- Desconfio que isso, não. Mas seja como for, vou ficar aqui até eles estarem enfiados em segurança na cama, para citar o senhor Hardcastle.
Não choveu uma única gota e às dez da noite já Sebastian sabia tudo o que havia para saber acerca da vida de Tom, incluindo em que escola andara, onde estivera aboletado durante
a guerra e onde trabalhara antes de se tornar motorista do senhor Hardcastle. Tom estava a falar sobre a mulher querer ir a Marbella nas próximas férias, quando Sebastian
disse "Oh, meu Deus!" e deslizou no banco para não ser visto enquanto dois homens elegantemente vestidos passavam em frente do carro e entravam no hotel.
- O que está a fazer?
- A evitar alguém que esperava não voltar a ver.
- Parece que o espetáculo já acabou - disse Tom, quando hordas de espectadores tagarelas começaram a chegar à Strand. Passados alguns minutos, Sebastian avistou os três homens
que lhe estavam confiados a regressar ao hotel. Precisamente antes de o senhor Morita chegar à entrada, Sebastian saiu do carro e fez uma vénia pronunciada.
- Espero que tenha gostado do espetáculo, Morita San.
- Não podia ter sido melhor - respondeu Morita. - Há muitos anos que não me ria assim, e a música era maravilhosa. Hei de agradecer pessoalmente ao senhor Hardcastle quando
estiver com ele, amanhã de manhã. Por favor, vá para casa, senhor Clifton, pois não voltarei a precisar do carro esta noite. Desculpe tê-lo mantido acordado.

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- Foi um prazer, Morita San - disse Sebastian. Ficou no passeio e viu os três entrar no hotel, atravessar o foyer e. dirigir-se para os elevadores. O seu coração começou a
bater mais depressa quando viu dois homens avançar, fazer uma vénia e apertar a mão ao senhor Morita. Sebastian ficou pregado ao chão. Os dois homens falaram com Morita durante
alguns momentos. A seguir, este dispensou os colegas e acompanhou os dois homens ao American Bar. Sebastian queria desesperadamente entrar no hotel e observar mais de perto,
mas sabia que não podia correr esse risco. Em vez disso, voltou a entrar relutantemente no carro.
- Sente-se bem? - perguntou Tom. - Está branco como a cal.
- A que horas é que o senhor Hardcastle se deita?
- Às onze, onze e meia, depende. Mas sabemos sempre se ele ainda está levantado porque tem a luz do escritório acesa.
Sebastian olhou para o relógio: 22h43.
- Então, vamos descobrir se ainda está acordado.
Tom entrou na Strand, atravessou Trafalgar Square, continuou pelo Mali abaixo até Hyde Park Corner e chegou à porta do número 37 de Cadogan Place pouco passava das onze da
noite. A luz do escritório ainda estava acesa. Sem dúvida, o presidente devia estar a conferir pela terceira vez o contrato que contava que os japoneses assinassem na manhã
seguinte.
Sebastian saiu lentamente do carro, subiu os degraus e tocou à campainha. Passados alguns momentos, a luz do vestíbulo acendeu-se e Cedric abriu a porta.
- Lamento incomodá-lo a esta hora da noite, senhor presidente, mas temos um problema.
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- A primeira coisa que tens de fazer é contar a verdade ao teu tio - disse Cedric. - E com isso quero dizer toda a verdade.
- Eu conto-lhe tudo assim que voltar, esta noite.
- É importante que Sir Giles saiba o que fizeste em nome dele, pois ele vai querer escrever e agradecer ao senhor Harris, do Theatre Royal, assim como ao porteiro-chefe do
Savoy.
- Albert Southgate.
- E tu também tens de escrever e agradecer a ambos.
- Sim, é claro. E volto a pedir desculpa, senhor. Sinto que o desiludi, pois tudo isto acabou por ser uma perda de tempo.
- Estas experiências raramente são uma completa perda de tempo. Sempre que fazes uma proposta para um novo contrato, mesmo que não sejas bem-sucedido, aprendes sempre qualquer
coisa que te vai ser útil para o próximo.
- O que é que eu aprendi?
- Para começar, japonês, já para não falar de uma ou duas coisas sobre ti próprio de que tenho a certeza que virás a tirar partido um dia mais tarde.
- Mas a quantidade de tempo que o senhor e o seu pessoal perderam com este projeto... juntamente com muito dinheiro do banco.
- Terá acontecido a mesma coisa com o Barclays ou o Westminster. Se conseguires uma taxa de sucesso de um em cinco com projetos deste género, isso é considerado típico - acrescentou,
ao mesmo tempo que o telefone na sua secretária começava a tocar. Ele atendeu e, passado um momento, disse: - Sim, mande-o entrar.

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- Vou-me embora, senhor?
- Não, fica aí. Gostava que conhecesses o meu filho. - A porta abriu-se e entrou um homem que só podia ser descendente de Cedric Hardcastle: talvez tivesse mais dois ou três
centímetros, mas tinha o mesmo sorriso caloroso, ombros largos e a cabeça quase calva, embora com um semicírculo de cabelo ligeiramente mais farto que ia de orelha a orelha,
fazendo-o parecer um frade do século XVII. E, tal como Sebastian estava prestes a descobrir, o mesmo espírito incisivo.
- Bom dia, pai, bons olhos o vejam. - E o mesmo sotaque do Yorkshire.
- Arnold, este é Sebastian Clifton, que me tem ajudado nas negociações com a Sony.
- Prazer em conhecê-lo, senhor - disse Sebastian, enquanto trocavam um aperto de mão.
- Sou um grande admirador...
-... dos livros do meu pai?
- Não, acho que nunca li nenhum. Já me chega de inspetores durante o dia, sem ter de ler sobre eles à noite.
- Então, queria dizer da minha mãe, a primeira mulher presidente de uma companhia cotada em bolsa?
- Não, quem muito admiro é a sua irmã Jessica. Que talento!
- acrescentou, acenando em direção ao desenho do pai na parede.
- E o que é que ela anda a fazer agora?
- Acabou de se inscrever na Slade, em Bloomsbury, e está prestes a começar o primeiro ano.
- Então tenho pena das pobres almas que estiverem no mesmo ano.
- Porquê?
- Ou vão adorá-la ou detestá-la, pois estão prestes a descobrir que não estão ao nível dela. Mas voltemos a assuntos mais práticos - disse Arnold, virando-se para o pai. -
Preparei três cópias do contrato, tal como acordado por ambas as partes, e depois de assinadas tem noventa dias para conseguir o empréstimo de dez milhões por um período de
cinco anos a uma taxa de dois vírgula vinte e cinco por cento. Os zero vírgula vinte e cinco são a sua percentagem sobre a transação. Também devo mencionar...
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- Não vale a pena - disse Cedric -, pois tenho a sensação de que já não estamos na corrida para este.
- Mas quando falei com o pai ontem à noite, parecia muito convencido.
- Digamos apenas que as circunstâncias se alteraram desde então, e pronto - disse Cedric.
- Lamento saber disso - disse Arnold. Reuniu os contratos e preparava-se para os voltar a pôr dentro da pasta quando a viu pela primeira vez.
- Nunca o considerei um esteta, pai, mas isto é soberbo - disse ele, pegando cuidadosamente na jarra japonesa que estava na secretária do pai. Estudou a peça mais atentamente
antes de verificar a base. - E logo de um dos tesouros nacionais do Japão!
- Nem eu a ti - disse Cedric.
- Shoji Hamada - disse Sebastian.
- Onde é que a descobriu?
- Não fui eu - disse Cedric. - Foi um presente do senhor Morita.
- Bem, não acabou de mãos completamente vazias com este negócio - disse Arnold, ao mesmo tempo que ouviam bater à porta.
- Entre - disse Cedric, perguntando-se se poderia ser... a porta abriu-se e Tom entrou. - Pensava que te tinha dito para ficares no Savoy - disse o presidente.
- Não valia a pena, senhor. Eu estava à espera à porta do hotel às nove e trinta, de acordo com as suas instruções, mas o senhor Morita não apareceu. E sendo ele um cavalheiro
que nunca se atrasa, decidi falar com o porteiro, que me disse que os três hóspedes japoneses tinham deixado o hotel num táxi logo depois das nove.
- Nunca pensei que isso fosse possível - disse Cedric. - Devo estar a perder o jeito.
- Não se pode ganhar sempre, pai, como tantas vezes me recorda - disse Arnold.
- Os advogados parecem ganhar mesmo quando perdem - replicou o pai.
- Deixe-me dizer-lhe o que vou fazer - disse Arnold. - Abdico dos meus honorários chorudos e imerecidos em troca desta bugigangazinha insignificante.

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- Põe-te a andar.
- Bem, então vou andando, já que não há muito mais que possa fazer aqui.
Arnold estava a pôr os contratos na sua maleta Gladstone quando a porta se abriu e o senhor Morita e os seus dois colegas entraram, ao mesmo tempo que vários sinos de igreja
na Square Mile começavam a bater as onze badaladas.
- Espero não estar atrasado - foram as primeiras palavras do senhor Morita enquanto apertava a mão a Cedric.
- Mesmo em cima da hora - disse Cedric.
- E você - disse Morita olhando para Arnold - só pode ser o filho indigno de um grande pai.
- Sou, sim senhor - disse Arnold enquanto trocavam um aperto de mão.
- Preparou os contratos?
- Sim, preparei.
- Então a única coisa de que precisam é da minha assinatura e depois o seu pai pode continuar a trabalhar. - Arnold tirou os contratos novamente da sua Gladstone e pô-los
em cima da secretária. - Mas antes de assinar, tenho um presente para o meu novo amigo, Sebastian Clifton, e foi por isso que esta manhã tive de sair do hotel tão cedo.
O senhor Ono deu um passo em frente e entregou uma caixinha ao senhor Morita, que por sua vez a deu a Sebastian.
- Nem sempre bom rapaz, mas, como dizem os britânicos, tem o coração no sítio certo.
Sebastian não disse nada enquanto desatava a fita vermelha e tirava o papel prateado, antes de levantar a tampa da caixa. Tirou para fora uma jarra minúscula vidrada a carmesim
e amarelo. Não conseguia tirar os olhos dela.
- Por acaso, não anda à procura de um advogado? - perguntou Arnold.
- Só se souber dizer o nome do ceramista, sem olhar para a base.
Sebastian entregou a jarra a Arnold, que admirou demoradamente a forma como o vermelho escorria sobre o amarelo, criando fios cor de laranja, antes de arriscar uma opinião:
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- Bernard Leach?
- Afinal, este filho sempre serve para alguma coisa!
Ambos os homens se riram, enquanto Arnold devolvia a peça requintada a Sebastian, que disse:
- Não sei como lhe agradecer, senhor.
- Mas quando o fizeres, certifica-te de que o fazes na minha língua materna.
Sebastian ficou tão surpreendido que quase deixou cair a jarra.
- Não sei se estou a perceber, senhor.
- Claro que sim, e se não me responderes em japonês, não me restará outra opção senão dar esta jarra de presente ao filho de Cedric.
Toda a gente ficou à espera de que Sebastian falasse.
- Arigatou gozaimasu. Taihenni kouei desu. Isshou taisetsuni itashimasu.
- Francamente impressionante. A sintaxe requer um pouco mais de atenção, mas impressionante, de qualquer forma.
- Mas, Morita San, como é que percebeu que eu falava a sua língua se eu nunca pronunciei uma palavra em japonês na sua presença?
- Aposto que foram os três bilhetes para My Fair Lady - disse Cedric.
- O senhor Hardcastle é um homem perspicaz e foi por isso que o escolhi para me representar.
- Mas como? - repetiu Sebastian.
- Os bilhetes foram uma coincidência demasiado grande - disse Morita. - Pensa nisso, Sebastian, enquanto eu assino o contrato. - Tirou uma caneta de tinta permanente do bolso
de cima e entregou-a a Cedric. - Tem de assinar primeiro, caso contrário os deuses não irão abençoar a nossa união.
Morita viu Cedric assinar os três contratos, antes de juntar a sua própria assinatura. Ambos os homens fizeram uma vénia e depois apertaram a mão.
- Tenho de ir a correr para o aeroporto e apanhar um avião para Paris. Os franceses andam a causar-me muitos problemas.
- Que tipo de problemas? - perguntou Arnold.

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- Infelizmente, não é nada em que me possa ajudar. Tenho quarenta mil rádios transístores parados num armazém. A alfândega francesa recusa deixar-me distribuí-los aos meus
fornecedores até cada uma das caixas ter sido aberta e inspecionada. Presentemente, estão a despachar duas por dia. A ideia é atrasar-me o mais possível, para os fabricantes
franceses poderem vender o seu produto de qualidade inferior a clientes mais impacientes. Mas eu tenho um plano para os derrotar.
- Mal posso esperar para ouvir qual é - disse Arnold.
- Na realidade, é simples. Vou construir uma fábrica em França, empregar habitantes locais e depois distribuir o meu produto de qualidade superior sem ter de me ralar com
os funcionários da alfândega.
- Os franceses vão perceber o que está a tramar.
- Tenho a certeza que sim, mas nessa altura já toda gente vai ser como Cedric e querer um rádio Sony na sala de estar. Não me posso dar ao luxo de perder o avião, mas primeiro
gostava de dar uma palavrinha em particular ao meu novo sócio. - Arnold apertou a mão a Morita, antes de sair da sala com Sebastian. - Cedric - disse Morita, sentando-se em
frente da secretária do presidente. - Alguma vez se deparou com um homem chamado Don Pedro Martinez? Ele veio falar comigo ontem à noite, a seguir ao espetáculo, juntamente
com um tal major Fisher.
- Só conheço Martinez de nome. No entanto, conheci o major Fisher, que o representa no conselho de administração da Barrington Shipping Company, onde também me encontro como
administrador.
- Em minha opinião, esse Martinez é a maldade em pessoa, ao passo que Fisher é fraco e desconfio que dependa do dinheiro de Martinez para se manter à tona.
- Percebeu isso depois de um único encontro?
- Não, depois de vinte anos a lidar com homens daqueles. Mas este é inteligente e desonesto, e não deve subestimá-lo. Desconfio que, para Martinez, até mesmo a vida é uma
simples mercadoria.
- Fico grato pelo seu discernimento, Akio, mas ainda mais pela sua preocupação.
- Posso pedir-lhe um pequeno favor em troca, antes de partir para Paris?
156

- O que quiser.
- Gostaria que Sebastian continuasse a ser o elo de ligação entre as nossas duas companhias. Poupar-nos-ia a ambos muito tempo e problemas.
- Quem me dera poder conceder-lhe esse favor - disse Cedric -, mas o rapaz vai para Cambridge em setembro.
- O Cedric foi para a universidade?
- Não, deixei de estudar aos quinze anos e, depois de umas semanas de férias, juntei-me ao meu pai, no banco.
Morita acenou com a cabeça.
- Nem toda a gente é talhada para a universidade, e até há quem seja limitado pela experiência. Creio que Sebastian encontrou a sua vocação natural e, consigo como mentor,
até é possível que o Cedric tenha encontrado a pessoa certa para vir a ocupar o seu lugar.
- Ele é muito novo - disse Cedric.
- Também a vossa rainha, e ela subiu ao trono aos vinte e cinco anos. Cedric, estamos a viver num admirável mundo novo!

Páginas em branco
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GILES BARRINGTON
1963

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- Tens a certeza de que queres ser o líder da oposição? - perguntou Harry.
- Não, não tenho - disse Giles. - Quero ser primeiro-ministro, mas tenho de passar um tempo na oposição antes de poder esperar pôr as mãos nas chaves do número dez de Downing
Street.
- Podes ter conservado o teu lugar nas últimas eleições - disse Emma -, mas o teu partido perdeu as eleições gerais de forma esmagadora. Começo a perguntar-me se o Partido
Trabalhista alguma vez conseguirá ganhar outras eleições. Parece destinado a ser o partido da oposição.
- Sei que é isso que parece agora - disse Giles -, mas estou convencido de que, quando chegarem as próximas eleições, as pessoas já vão estar fartas dos Conservadores e achar
que está na altura de mudar.
- E é claro que o caso Profumo não ajudou - disse Grace.
- Quem é que decide quem vai ser o próximo líder do partido?
- Boa pergunta, Sebastian - disse Giles. - Apenas os meus colegas eleitos na Câmara dos Comuns, duzentos e cinquenta e oito no total.
- Isso é um eleitorado minúsculo - disse Harry.
- É verdade, mas a maior parte fará sondagens nos seus círculos eleitorais para descobrir quem é que as hostes prefeririam ver na liderança do partido, e no que toca aos deputados
filiados em sindicatos, irão votar no homem que o seu sindicato apoiar. Portanto, quaisquer deputados do sindicato da marinha mercante de círculos eleitorais
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como Tyneside, Belfast, Glasgow, Clydesdale e Liverpool devem
apoiar-me.
- Um homem - repetiu Emma. - Quer isso dizer que dos duzentos e cinquenta e oito deputados do Partido Trabalhista, não há uma única mulher que possa esperar liderar o partido?
- Barbara Casde é capaz de decidir entrar nas listas, mas sinceramente não tem a mínima hipótese. Mas sejamos realistas, Emma, há mais mulheres sentadas nas bancadas trabalhistas
do que do lado conservador do Parlamento, por isso se alguma vez uma mulher conseguir chegar a Downing Street, aposto que será socialista.
- Mas porque é que alguém há de querer ser líder do Partido Trabalhista? Deve ser um dos trabalhos mais ingratos do país.
- E ao mesmo tempo, um dos mais excitantes - disse Giles. - Quantas pessoas têm hipótese de fazer a diferença, de melhorar a vida das pessoas, e de deixar um legado meritório
à próxima geração? Não se esqueçam que eu nasci no proverbial berço de ouro, por isso talvez esteja na altura de retribuir.
- Ena! - disse Emma. - Eu votava em ti.
- É claro que todos te iremos apoiar - disse Harry. - Mas não creio que haja muito que possamos fazer para influenciar duzentos e cinquenta e sete deputados com quem nunca
nos cruzámos e dificilmente nos viremos a cruzar.
- Não é esse o tipo de apoio que procuro. É mais de ordem pessoal, porque devo avisar todos quantos estão sentados a esta mesa que podem contar uma vez mais com a imprensa
a vasculhar as vossas vidas privadas. Podem sentir que já chega disso, e eu não posso censurarvos.
- Desde que falemos todos a uma só voz - disse Grace - e nos limitemos a dizer que estamos encantados com o facto de Giles se candidatar a líder do seu partido porque sabemos
que é o homem certo para o lugar e estamos confiantes na sua vitória, depressa se hão de aborrecer e passar a outro assunto.
- É precisamente nessa altura que começam à procura de algo de novo - disse Giles. - Por isso, se alguém quiser admitir alguma coisa mais grave do que uma multa de estacionamento,
agora é a vossa oportunidade.

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- Espero que o meu próximo livro chegue ao primeiro lugar na lista de best-sellers do New York Times - disse Harry - por isso talvez seja melhor avisarte que William Warwick
vai ter um caso com a mulher do chefe da polícia. Se achas que isso pode prejudicar as tuas hipóteses, Giles, posso sempre adiar a publicação para depois das eleições. - Toda
a gente se riu.
- Francamente, querido - disse Emma -, William Warwick devia ter um caso com a mulher do presidente da câmara de Nova Iorque, pois isso darte-ia mais probabilidades de chegar
a número um nos Estados Unidos.
- Não é má ideia - disse Harry.
- Agora num tom mais sério - disse Emma -, talvez seja a altura certa para dizer a todos que a Barrington's está a esforçar-se por se manter à tona e que as coisas não vão
ser mais fáceis durante os próximos doze meses.
- Até que ponto é grave? - perguntou Giles.
- A construção do Buckingham está com um atraso superior a um ano e embora não tenhamos tido grandes reveses ultimamente, a companhia teve de pedir muito dinheiro aos bancos.
Se pudesse ser demonstrado que os nossos créditos são superiores ao nosso valor patrimonial, os bancos podiam exigir o pagamento desses empréstimos e até podíamos ir ao fundo.
Esse é o pior cenário possível, embora não seja uma impossibilidade.
- E quando é que isso pode acontecer?
- Não num futuro previsível - disse Emma -, a menos, é claro, que Fisher considere que lavar a nossa roupa suja em público pode jogar a seu favor.
- Martinez não o deixa fazer isso enquanto tiver uma participação tão grande na companhia - disse Sebastian. - Mas isso não significa que ele vá ficar sentado a ver, se o
tio decidir candidatar-se.
- Concordo - disse Grace. - E ele não é a única pessoa que ia ficar feliz em minar essa candidatura.
- Em quem estás a pensar? - perguntou Giles.
- Para começar, em Lady Virgínia Fenwick. Essa mulher adoraria lembrar a qualquer deputado com quem se cruzasse que és divorciado e que a deixaste por outra mulher.
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- Virgínia só conhece conservadores, e eles já tiveram um primeiro-ministro que era divorciado. E não te esqueças - acrescentou Giles, pegando na mão de Gwyneth - que agora
tenho um casamento feliz com essa outra mulher.
- Sinceramente - disse Harry - acho que devias estar mais preocupado com Martinez do que com Virgínia, pois é óbvio que ele continua à procura de qualquer desculpa para prejudicar
a tua família, como Sebastian descobriu quando foi trabalhar para o Farthings. E, Giles, és um prémio muito maior do que Seb, por isso aposto que Martinez fará tudo o que
estiver ao seu alcance para garantir que nunca virás a ser primeiro-ministro.
- Se eu decidir candidatar-me - disse Giles -, não posso passar a vida a espreitar por cima do ombro, a pensar o que é que Martinez andará a tramar. Para já, tenho de me concentrar
em alguns rivais que estão mais próximos.
- Quem é o teu maior rival? - perguntou Harry.
- Harold Wilson é o favorito entre os corretores de apostas.
- O senhor Hardcastle quer que ele ganhe - disse Sebastian.
- Porquê, meu Deus do céu? - perguntou Giles.
- Não tem nada que ver com Deus - disse Sebastian. - É também uma questão de proximidade. Ambos nasceram em Huddersfield.
- Muitas vezes, é algo tão aparentemente insignificante quanto isso que pode fazer com que alguém te apoie ou não - suspirou Giles.
- Talvez Harold Wilson tenha alguns esqueletos no armário suscetíveis de despertar o interesse da imprensa - disse Emma.
- Que eu saiba, não - disse Giles -, a menos que isso inclua ter-se formado com distinção em Oxford e, depois, ter sido o primeiro classificado no concurso para a função pública.
- Mas não combateu na guerra - disse Harry. - Por isso, a tua Cruz Militar pode ser uma vantagem.
- Denis Healey também ganhou uma Cruz Militar e é bem capaz de se candidatar.
- Esse é demasiado espertalhão para vir a liderar o Partido Trabalhista - disse Harry.

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- Bem, tu não terás seguramente esse problema, Giles - disse Grace. Giles brindou a irmã com um sorriso forçado, ao mesmo tempo que a família desatava a rir.
- Ocorre-me um problema que Giles pode ter de enfrentar...
Olharam todos para Gwyneth, que não tinha falado até então. -
Sou a única intrusa nesta sala - disse ela -, alguém que entrou para a família pelo casamento, por isso talvez veja as coisas de uma perspetiva diferente.
- O que torna as tuas opiniões ainda mais relevantes - disse Emma -, por isso não hesites em dizer-nos o que te preocupa.
- Se o fizer, receio que isso signifique abrir uma ferida purulenta - disse Gwyneth de forma hesitante.
- Não deixes que isso te impeça de nos dizer o que estás a pensar - disse Giles, dando-lhe a mão.
- Há outro membro da vossa família, que não está nesta sala, e que em minha opinião é uma bomba-relógio ambulante.
Seguiu-se um longo silêncio, antes de Grace dizer:
- Tens toda a razão, Gwyneth, porque se algum jornalista tropeçar no facto de que a menina que Harry e Emma adotaram é na verdade meia-irmã de Giles e tia de Sebastian, e
que o seu pai foi morto pela mãe depois de lhe ter roubado as jóias e de a ter abandonado em seguida, a imprensa teria um dia em cheio!
- E de a mãe se ter depois suicidado, não te esqueças! - disse Emma baixinho.
- O mínimo que podem fazer é contar a verdade à pobre criatura - disse Grace. - No fim de contas, ela agora está na Slade e tem uma vida própria, por isso a imprensa não teria
dificuldade em encontrá-la, e se isso acontecesse antes de lhe terem contado...
- Não é assim tão fácil - disse Harry. - Como todos sabemos demasiado bem, Jessica sofre de surtos de depressão e, apesar do seu indubitável talento, perde muitas vezes a
confiança em si própria. E como só faltam algumas semanas para os exames do meio do período, agora não é propriamente a altura ideal.
Giles decidiu não lembrar ao cunhado que o avisara pela primeira vez há mais de uma década de que nunca haveria uma altura ideal.
- Eu podia falar com ela - ofereceu-se Sebastian.
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- Não - disse Harry com firmeza. - Se alguém o vai fazer, tenho de ser eu.
- E o mais depressa possível - disse Grace.
- Por favor, avisa-me depois de teres falado com ela - disse Giles, antes de acrescentar: - Há mais alguma bomba para a qual considerem que devo estar preparado? - Seguiu-se
um longo silêncio antes que Giles prosseguisse. - Então, obrigado a todos por me terem dispensado o vosso tempo. Eu comunico-lhes a minha decisão final ainda esta semana.
Agora, tenho de deixá-los, pois preciso de voltar para o Parlamento. É lá que estão os eleitores. Se eu decidir candidatar-me, dificilmente me porão a vista em cima durante
as próximas semanas, já que andarei a fazer cumprimentos efusivos, discursos intermináveis, a visitar círculos eleitorais longínquos e a passar as noites livres que tenho
a pagar bebidas aos deputados trabalhistas no Annie's Bar.
- Annie's Bar? - disse Harry.
- O bar mais popular na Câmara dos Comuns, frequentado sobretudo por deputados trabalhistas, por isso é para aí que vou agora.
- Boa sorte - disse Harry.
A família levantou-se em uníssono e aplaudiu-o enquanto ele saía da sala.
- Ele tem alguma hipótese de ganhar?
- Oh, sim! - disse Fisher. - É muito popular entre a arraia-miúda nos círculos eleitorais, embora Harold Wilson seja o favorito entre os deputados, e são eles os únicos que
vão votar.
- Então vamos fazer um grande donativo para o fundo de campanha de Wilson, em dinheiro vivo, se necessário.
- Isso é a última coisa que precisamos de fazer - disse Fisher.
- Porquê? - exigiu saber Diego.
- Porque ele o devolveria.
- Porque é que havia de fazer isso? - perguntou Don Pedro.
- Porque não estamos na Argentina, e se a imprensa descobrisse que a campanha de Wilson contava com o apoio de um estrangeiro, ele não só perderia, como seria obrigado a retirar-se
da disputa.

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Na verdade, não só devolveria o dinheiro, como tornaria público que o fizera.
- Como é que se pode ganhar umas eleições sem dinheiro?
- Não é preciso muito dinheiro se o eleitorado for composto apenas por duzentos e cinquenta e oito deputados, a maior parte dos quais passa o tempo todo no mesmo edifício.
Pode ter de se comprar uns selos, fazer uns telefonemas, pagar ocasionalmente uma rodada no Annie's Bar, e depois disso já se esteve em contacto com quase todo o eleitorado.
- Então, se não podemos ajudar Wilson a ganhar, o que é que podemos fazer para assegurar que Barrington perde? - perguntou Luis.
- Se há duzentos e cinquenta e oito eleitores, com certeza que conseguimos subornar alguns deles - disse Diego.
- Não com dinheiro - disse Fisher. - A única coisa que interessa a essa gente é o favorecimento.
- Favorecimento? - repetiu Don Pedro. - O que raio é isso?
- Para os deputados mais jovens, um candidato pode dar a entender que estão a ser considerados para um trabalho nas primeiras bancadas e, para os mais velhos, que se vão reformar
nas próximas eleições gerais, que a sua experiência e sabedoria seria muito apreciada nos Lordes. E para aqueles que não têm esperança de alguma vez vir a ocupar um cargo,
mas que ainda lá estarão depois das próximas eleições, o líder do partido tem sempre vagas que precisam de ser preenchidas. Conheci um deputado que a única coisa que queria
era ser presidente do Comité de Catering da Câmara dos Comuns, porque são eles que escolhem os vinhos que constam na carta.
- Okay, então, se não podemos dar dinheiro a Wilson nem subornar os eleitores, o mínimo que podemos fazer é reciclar toda a porcaria que temos em relação à família Barrington
- sugeriu Diego.
- Não vale muito a pena, quando a imprensa ficará muito feliz em fazê-lo sem a nossa ajuda - disse Fisher. - E vão fartar-se passados uns dias, a menos que arranjemos algo
de novo para lhes dar. Não, temos de pensar numa coisa que vá garantidamente para as manchetes dos jornais e, ao mesmo tempo, o deixe arrumado com um só golpe.
- É óbvio que tem pensado bastante nisso, major - disse Don Pedro.
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- Tenho de admitir que sim - disse Fisher, parecendo bastante satisfeito consigo mesmo. - E creio que sou capaz de ter arranjado algo que vai finalmente acabar com Barrington.
- Então, desembuche!
- Há uma coisa de que um político nunca recupera. Mas para tramar Barrington, vou precisar de criar uma pequena equipa e o sentido de oportunidade terá de ser perfeito.
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Griff Haskins, o mandatário do Partido Trabalhista para Bristol Docklands, decidiu que teria de deixar de beber se queria que Giles tivesse alguma hipótese de se tornar líder
do partido. Griff deixava sempre de beber durante um mês antes de quaisquer eleições e, depois delas, metia-se nos copos durante pelo menos um mês, dependendo de terem ganhado
ou perdido. E como o deputado pelo círculo de Bristol Docklands tinha regressado sem problemas às bancadas verdes com uma maioria reforçada, sentira que tinha direito a folgar
uma noite, uma vez por outra.
Não era boa altura quando Giles telefonou ao seu mandatário na manhã a seguir a este ter feito uma farra para lhe dizer que se ia candidatar a líder do partido. Como Griff
estava a curar a ressaca na altura, voltou a ligar uma hora depois para se certificar de que tinha ouvido bem o que o deputado dissera. E tinha.
Griff telefonou imediatamente à sua secretária, Penny, que estava de férias na Cornualha, e a Miss Parish, a funcionária mais experiente do partido, que admitiu que estava
a morrer de tédio e que só ganhava vida durante as campanhas eleitorais. Disse a ambas para estarem na plataforma sete da estação de Temple Meads às quatro e meia dessa tarde,
se queriam trabalhar para o próximo primeiro-ministro.
Às cinco horas, estavam os três sentados numa carruagem de terceira classe de um comboio com destino a Paddington. No dia seguinte, ao meio-dia, Griff já tinha montado um
escritório na Câmara dos Comuns e outro em casa de Giles, em Smith Square. Ainda precisava de recrutar mais um voluntário para a sua equipa.
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Sebastian disse a Griff que ficaria encantado em cancelar os seus quinze dias de férias para ajudar o tio Giles a ganhar as eleições, e Cedric concordou em dilatar o período
para um mês, já que o rapaz só tinha a beneficiar com a experiência, embora Sir Giles fosse a sua segunda escolha.
O primeiro trabalho de Sebastian foi fazer uma tabela de parede que listasse os 258 deputados trabalhistas que tinham direito a votar e, depois, pôr um visto ao lado de cada
nome, para mostrar a categoria em que recaíam: voto certo em Giles, visto vermelho; voto certo noutro candidato, azul; e indecisos - a categoria mais importante de todas -
verde. Embora a tabela fosse ideia de Sebastian, foi Jessica quem fez o produto final.
Na primeira contagem, Harold Wilson tinha 86 votos certos, George Brown 57, Giles 54 e James Callaghan 19, com os indecisos a atingir o número crucial de 42. Giles percebeu
que a sua tarefa imediata era livrar-se de Callaghan e depois ultrapassar Brown, porque se o deputado por Belper desistisse, Griff calculava que a maior parte dos votos viria
para Giles.
Após uma semana de campanha, era óbvio que Giles e Brown não estavam separados por mais de um ponto percentual na corrida para o segundo lugar e, embora Wilson estivesse claramente
à frente, os analistas políticos estavam todos de acordo em que se Brown ou Barrington desistissem, seria uma disputa muito renhida.
Griff nunca parava de andar pelos corredores do poder, feliz por poder combinar encontros privados com o candidato para qualquer deputado que se declarasse indeciso. Havia
vários que se iam manter indecisos até ao último momento, pois nunca tinham gozado de tanta atenção na sua vida, além de estarem desejosos de acabar a apoiar o vencedor. Miss
Parish não largava o telefone, e Sebastian tornou-se os olhos e ouvidos de Giles, constantemente a correr entre a Câmara dos Comuns e Smith Square, mantendo toda a gente atualizada.
Giles fez vinte e três discursos durante a primeira semana da campanha, embora raramente merecessem mais de um parágrafo nos jornais do dia seguinte, e nunca na primeira página.
Quando faltavam apenas duas semanas e Wilson começava a parecer uma certeza, Giles

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decidiu que estava na altura de se afastar da linha do partido e de correr um risco. Até mesmo Griff ficou surpreendido com a reação da imprensa na manhã seguinte, quando
Giles apareceu em todas as primeiras páginas, incluindo na do Daily Telegraph.
- Há demasiada gente neste país que não está disposta a trabalhar um dia que seja - dissera Giles a uma assistência composta por dirigentes sindicais. - Se alguém estiver
bem e de boa saúde e tiver recusado três empregos num período de seis meses, deve perder automaticamente o direito ao subsídio de desemprego.
Estas palavras não foram recebidas com aplausos arrebatados e a reação inicial dos seus colegas no Parlamento foi desfavorável; deu um tiro no pé, era a expressão que os seus
rivais não paravam de repetir. Mas à medida que os dias iam passando, cada vez mais jornalistas começaram a sugerir que o Partido Trabalhista tinha finalmente encontrado um
potencial líder que vivia no mundo real, e que queria claramente que o seu partido governasse, em vez de estar eternamente destinado a ser oposição.
Os 258 deputados regressaram aos seus círculos eleitorais no fim de semana e depressa descobriram uma onda de apoio a favor do deputado eleito por Bristol Docklands. Uma sondagem
de opinião na segunda-feira seguinte confirmou isso mesmo e pôs Barrington a dois pontos de Wilson, com Brown em terceiro lugar a grande distância e James Callaghan em quarto.
Na terça-feira, Callaghan desistiu da corrida e disse aos seus apoiantes que ia votar em Barrington.
Quando Sebastian atualizou a tabela de parede nessa noite, Wilson tinha 122 e Giles 107, com 29 ainda indecisos. Griff e Miss Parish só precisaram de mais vinte e quatro horas
para identificar os 29 deputados que, por uma ou por outra razão, ainda estavam sem saber o que fazer. Entre eles, estavam deputados do influente grupo fabiano, que totalizavam
11 votos cruciais. Tony Crosland, o presidente do grupo, solicitou um encontro privado com os dois candidatos mais bem posicionados, deixando saber que estava desejoso de
ouvir os seus pontos de vista sobre a Europa.
Giles sentiu que o seu encontro com Crosland tinha corrido bem, mas sempre que consultava a tabela, Wilson continuava à frente. No entanto, a imprensa começava a escrever
as palavras "a par" nas
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suas manchetes quando a disputa entrava na última semana. Giles sabia que ia precisar de um golpe de sorte providencial, se quisesse ultrapassar Wilson nos últimos dias. Este
surgiu na forma de um telegrama entregue no seu gabinete na segunda-feira da última semana da campanha.
A Comunidade Económica Europeia convidou Giles para fazer o discurso principal na sua conferência anual em Bruxelas, apenas três dias antes da eleição para a liderança. O
convite não mencionava que Charles de Gaulle tinha desistido à última hora.
- Esta é a tua oportunidade - disse Griff - não só para brilhares no palco internacional, como de captar aqueles onze votos da Sociedade Fabiana. Isso podia fazer toda a diferença.
O tema escolhido para o discurso era Será que a Grã-Bretanha está pronta para aderir ao Mercado Comum? E Giles sabia exatamente o que pensava sobre o assunto.
- Mas quando é que eu vou ter tempo para escrever um discurso tão importante?
- Depois do último deputado trabalhista se ter ido deitar, e antes do primeiro se levantar na manhã seguinte.
Giles teria rido, mas sabia que Griff estava a falar a sério.
- E quando é que eu durmo?
- No avião, na viagem de regresso de Bruxelas.
Griff sugeriu que Sebastian acompanhasse Giles a Bruxelas, enquanto ele e Miss Parish ficavam em Westminster a vigiar os indecisos.
- O teu voo parte do Aeroporto de Londres às duas e vinte - disse Griff -, mas não te esqueças de que em Bruxelas é mais uma hora, portanto só aterras por volta das quatro
e dez, o que te dá tempo mais do que suficiente para chegar à conferência.
- Não será um bocadinho em cima da hora? - perguntou Giles. - Eu vou discursar às seis.
- Eu sei, mas não me posso dar ao luxo de te deixar perder tempo num aeroporto, a menos que esteja cheio de deputados que ainda não se decidiram. Agora, a sessão em que vais
usar da palavra

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deve durar cerca de uma hora, por isso deve acabar por volta das sete, bem a tempo de apanhares o voo das oito e quarenta de regresso a Londres, onde a diferença horária trabalhará
a teu favor. Apanha um táxi assim que chegares, porque quero que estejas de volta ao Parlamento a tempo para a votação da Lei das Pensões, às dez.
- Então, o que esperas que faça agora?
- Vai começar a tratar do teu discurso. Tudo depende disso.
Giles passou todos os momentos que teve livres a aprimorar o seu discurso, a mostrar as primeiras versões à sua equipa e principais apoiantes e, quando o pronunciou pela primeira
vez em sua casa, em Smith Square, pouco depois da meia-noite, para uma assistência composta por um só homem, Griff declarou-se muito satisfeito. Chegou mesmo a elogiá-lo.
- Amanhã de manhã, vou distribuir cópias confidenciais aos principais órgãos de imprensa, com a indicação de que só faz fé o texto proferido. Isso dar-lhes-á tempo mais do
que suficiente para preparar editoriais e artigos de fundo para os jornais do dia seguinte. E penso que talvez seja melhor deixar Tony Crosland ver o texto preliminar, para
ele se sentir incluído no processo de decisão. E para os jornalistas preguiçosos que apenas leiam o discurso por alto, tratei de sublinhar a passagem com mais probabilidades
de chegar às manchetes.
Giles virou algumas páginas do discurso até se deparar com o marcador de Griff. Não desejo ver a Grã-Bretanha envolvida noutra guerra europeia. A melhor juventude de muitas
nações derramou o seu sangue em solo europeu, e não apenas nos últimos cinquenta anos, mas ao longo do passado milénio. Juntos, temos de tornar possível que as guerras europeias
só possam ser encontradas nas páginas dos livros de História, onde os nossos filhos e netos podem ler sobre os nossos erros e não os repetir.
- Porquê esse parágrafo em particular?
- Porque alguns jornais não só irão reproduzi-lo palavra por palavra, como não conseguirão resistir a chamar a atenção para o facto de o teu rival nunca ter visto um tiro
disparado em combate.
Giles ficou encantado por receber uma nota manuscrita da parte de Tony Crosland na manhã seguinte, a dizer o quanto tinha gostado
172

do discurso e que estava ansioso por ver a reação da imprensa no dia seguinte.
Quando Giles subiu a bordo do voo da BEA para Bruxelas nessa tarde, acreditava pela primeira vez que podia ser o próximo líder do Partido Trabalhista.
173
20
Quando o avião aterrou no Aeroporto de Bruxelas, Giles ficou surpreendido por encontrar Sir John Nicholls, o embaixador britânico, ao fundo da escada, ao lado de um Rolls-Royce.
- Li o seu discurso, Sir Giles - disse o embaixador enquanto eram levados para fora do aeroporto antes de qualquer outro passageiro ter chegado sequer ao controlo dos passaportes
-, e, embora os diplomatas não devam ter opinião, devo dizer que achei que era uma lufada de ar fresco. Contudo, não sei muito bem qual será a reação do seu partido.
- Estou na expectativa de que onze deputados sintam o mesmo que o senhor.
- Ah, é dirigido a eles - disse Sir John. - Sou de raciocínio lento!
A segunda surpresa de Giles surgiu quando pararam à porta do Parlamento Europeu e foi recebido por uma grande multidão de funcionários, jornalistas e fotógrafos, todos à espera
para cumprimentar o orador principal. Sebastian saltou do banco da frente e abriu a porta de trás a Giles, algo que nunca tinha feito antes.
O presidente do Parlamento Europeu, Gaetano Martino, avançou e apertou a mão a Giles, antes de o apresentar à sua equipa. A caminho da sala de conferências, Giles encontrou
várias outras eminentes figuras políticas da Europa, e todas lhe desejaram boa sorte - e não estavam a referir-se ao discurso.
- Se fizer a gentileza de esperar aqui - disse o presidente depois de terem subido ao palco -, vou fazer algumas considerações iniciais e depois passo-lhe a palavra.
174

Giles revira o seu discurso uma última vez no avião, fazendo apenas uma ou duas pequenas emendas, e quando finalmente o devolveu a Sebastian, já o sabia praticamente de cor.
Giles espreitou através de uma abertura nas compridas cortinas pretas e viu mil europeus notáveis à espera para ouvir os seus pontos de vista. O seu último discurso em Bristol
durante a campanha para as eleições gerais tinha contado com uma assistência de trinta e sete pessoas, incluindo Griff, Gwyneth, Penny, Miss Parish e o cocker spaniel de Miss
Parish.
Giles ficou nervosamente nos bastidores enquanto ouvia o senhor Martino descrevê-lo como um desses raros políticos que não só dizem o que pensam, como não permitem que a última
sondagem de opinião seja a sua bússola moral. Quase conseguia ouvir Griff a dizer "Apoiado!", em tom de reprovação.
-... e estamos prestes a dar a palavra ao próximo primeiro-ministro da Grã-Bretanha. Minhas senhoras e meus senhores, Sir Giles Barrington.
Sebastian apareceu ao lado de Giles, entregou-lhe o discurso e sussurrou:
- Boa sorte!
Giles foi até ao centro do palco por entre aplausos prolongados. Ao longo dos anos, tinha-se habituado aos flashes de fotógrafos excessivamente entusiasmados e até ao zumbido
das câmaras de televisão, mas nunca tinha vivido algo parecido com aquilo. Pôs o discurso no atril, recuou um passo e esperou até a assistência se aquietar.
- Há uns quantos momentos na História - começou Giles - que determinam o destino de uma nação, e a decisão da Grã-Bretanha de se candidatar à adesão ao Mercado Comum é certamente
um deles. É claro que o Reino Unido continuará a desempenhar um papel no palco mundial, mas tem de ser um papel realista, um que se conforme com o facto de que já não governamos
um Império sobre o qual o sol nunca se põe. Sugiro que chegou a altura de a Grã-Bretanha aceitar o desafio desse novo papel ao lado de novos parceiros, trabalhando em conjunto
como amigos, esquecendo animosidades antigas. Nunca mais quero ver a Grã-Bretanha envolvida noutra guerra europeia. A melhor juventude de muitas nações derramou o seu sangue
em solo europeu, e não apenas nos últimos cinquenta anos, mas ao longo do

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passado milénio. Juntos, temos de tornar possível que as guerras europeias só possam ser encontradas nas páginas dos livros de História, onde os nossos filhos e netos possam
ler sobre os nossos erros e não os repetir.
Giles ia descontraindo um pouco mais a cada nova vaga de aplausos, de forma que, quando chegou à última parte, sentia que dominava toda a sala.
- Quando eu era miúdo, Winston Churchill, um verdadeiro europeu, visitou a minha escola em Bristol para entregar os prémios. Eu não ganhei nenhum, e é praticamente a única
coisa que tenho em comum com esse grande homem - isto foi recebido com gargalhadas ruidosas -, mas foi por causa do seu discurso nesse dia que fui para a política, e foi por
causa da minha experiência na guerra que me juntei ao Partido Trabalhista. Sir Winston disse estas palavras: "A nossa nação enfrenta hoje outro desses grandes momentos na
História em que o povo britânico pode ser uma vez mais chamado a decidir o destino do mundo livre." Eu e Sir Winston podemos ser de partidos diferentes, mas nesse ponto estamos
indubitavelmente de acordo.
Giles olhou para a audiência compacta, com a voz a subir de tom a cada frase.
- Nós, que estamos hoje nesta sala, podemos ser de nações diferentes, mas chegou a altura de trabalharmos em uníssono, não em prol dos nossos interesses egoístas, mas no interesse
das gerações vindouras. Deixem-me terminar dizendo que, independentemente daquilo que o futuro me reservar, podem ter a certeza de que me dedicarei a essa causa.
Giles recuou um passo enquanto toda a gente na sala se levantava. Só conseguiu deixar o palco passados vários minutos, e mesmo assim rodeado de parlamentares, funcionários
e simpatizantes, enquanto saía da câmara.
- Temos cerca de uma hora até termos de voltar para o aeroporto - disse Sebastian, tentando parecer calmo. - Precisa que eu faça alguma coisa?
- Encontra um telefone para podermos ligar a Griff, a saber se houve por lá alguma primeira reação ao discurso. Quero ter a certeza
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de que isto não é apenas uma miragem - disse Giles enquanto trocava apertos de mão e agradecia às pessoas as suas felicitações. Até deu um ou outro autógrafo; mais uma estreia.
- O Palace Hotel fica do outro lado da rua - disse Sebastian. - Podíamos telefonar de lá.
Giles acenou afirmativamente, enquanto continuava a avançar lentamente. Passaram-se mais vinte minutos até estar de volta aos degraus do parlamento, a despedir-se do presidente.
Ele e Sebastian atravessaram rapidamente a larga avenida e foram até ao ambiente relativamente tranquilo do Palace Hotel. Sebastian deu o número a uma rececionista que ligou
para Londres e quando ouviu uma voz do outro lado da linha disse:
- Vou passar a chamada.
Giles pegou no telefone e foi saudado pela voz de Griff.
- Acabei de ver o telejornal das seis na BBC - disse ele. - És a notícia de abertura. O telefone não para de tocar com pessoas que querem uma entrevista tua. Quando regressares
a Londres, haverá um carro à espera no aeroporto para te levar diretamente à ITV, onde Sandy Gall te vai entrevistar nas últimas notícias da noite, mas não te demores, porque
a BBC quer que fales com Richard Dimbleby no Panorama, às dez e meia. Não há nada de que a imprensa mais goste do que de um candidato com poucas probabilidades que consegue
recuperar à última hora. Onde estás agora?
- Estou prestes a partir para o aeroporto.
- Ótimo. Telefona-me assim que aterrares. Giles pousou o telefone e sorriu para Sebastian.
- Vamos precisar de um táxi.
- Não me parece - disse Sebastian. - O carro do embaixador acabou de chegar e está estacionado lá fora, à espera para nos levar de volta ao aeroporto.
Enquanto atravessavam o foyer do hotel, um homem estendeu a mão e disse:
- Parabéns, Sir Giles! Uma grande exibição. Esperemos que faça desequilibrar a balança.
- Obrigado - disse Giles, que conseguia ver o embaixador junto ao carro.

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- Chamo-me Pierre Bouchard. Sou o vice-presidente da Comunidade Económica Europeia.
- Claro - disse Giles, parando para lhe apertar a mão. - Estou ciente, senhor Bouchard, de todo o trabalho incansável que desenvolveu para ajudar a Grã-Bretanha com a sua
candidatura para se tornar membro de pleno direito da CEE.
- Fico sensibilizado - disse Bouchard. - Pode dispensar-me um momento para discutir um assunto particular?
Giles olhou de relance para Sebastian, que olhou para o relógio.
- Dez minutos, não mais. Eu vou informar o embaixador.
- Creio que conhece o meu bom amigo, Tony Crosland - disse Bouchard, enquanto levava Giles em direção ao bar.
- É verdade. Dei-lhe ontem uma cópia confidencial do meu discurso.
- Tenho a certeza de que o teria aprovado. É tudo aquilo em que a Sociedade Fabiana acredita. O que é que quer beber? - perguntou Bouchard quando chegaram ao bar.
- Um malte puro, com muita água. Bouchard fez sinal ao barman e disse:
- Eu bebo o mesmo.
Giles subiu para um banco, olhou à volta da sala e viu um grupo
de jornalistazecos políticos sentados ao canto, a reler os seus artigos.
Um deles levou a mão à testa numa continência fingida. Giles sorriu.
- O que é importante perceber - disse Bouchard - é que De Gaulle fará qualquer coisa para impedir a Grã-Bretanha de ser membro do Mercado Comum.
- "Só por cima do meu cadáver", se bem recordo as suas palavras exatas - disse Giles enquanto pegava na sua bebida.
- Esperemos não ter de esperar tanto tempo.
- É quase como se o general não tivesse perdoado aos britânicos por terem ganho a guerra.
- A sua saúde! - disse Bouchard antes de emborcar a sua bebida.
- Saúde! - disse Giles.
- Não se pode esquecer de que De Gaulle tem os seus próprios problemas, quanto mais não seja...
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De repente, Giles sentiu-se prestes a desmaiar. Agarrou-se ao bar, tentando equilibrar-se, mas a sala parecia girar à sua volta. Deixou cair o copo, deslizou do banco e caiu
no chão.
- Meu caro amigo - disse Bouchard, ajoelhando-se ao lado dele -, sente-se bem? - Levantou os olhos ao mesmo tempo que um homem que estava sentado a um canto da sala se apressou
a ir ter com eles.
- Sou médico - disse o homem, inclinando-se, afrouxando a gravata de Giles e desabotoando-lhe o colarinho. Pôs dois dedos no pescoço de Giles e depois disse com urgência para
o barman: - Chame uma ambulância, ele teve um ataque cardíaco.
Dois ou três jornalistas apressaram-se a vir até ao bar. Um deles começou a tirar notas enquanto o barman pegava no telefone e marcava apressadamente três números.
- Sim? - disse uma voz.
- Precisamos de uma ambulância. Depressa, um dos nossos clientes teve um ataque cardíaco.
Bouchard pôs-se em pé.
- Doutor - disse ele, dirigindo-se ao homem ajoelhado ao lado de Giles -, vou lá para fora esperar pela ambulância, para lhes dizer onde se devem dirigir.
- Sabe o nome daquele homem? - perguntou um dos jornalistas quando Bouchard saía dali.
- Não faço ideia - disse o barman.
O primeiro fotógrafo acorreu ao bar vários minutos antes da chegada da ambulância e Giles teve de enfrentar mais flashes, embora não tivesse total consciência do que se estava
a passar. A medida que a notícia se espalhava, vários outros jornalistas que tinham estado no centro de conferências a transmitir os seus artigos sobre o bem recebido discurso
de Sir Giles Barrington tinham largado os seus telefones e atravessado a rua a correr até ao Palace Hotel.
Sebastian estava a conversar com o embaixador quando ouviu a sirene, mas não ligou até a ambulância parar à porta do hotel e dela saírem dois técnicos de emergência médica
devidamente equipados que correram para o interior empurrando uma maca.

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- Não acha que... - começou Sir John, mas Sebastian já estava a subir os degraus para entrar no hotel. Parou quando viu os dois técnicos a vir com a maca na sua direção. Só
precisou de olhar uma vez para o paciente para confirmar os seus piores receios. Quando eles colocaram a maca na parte de trás da ambulância, Sebastian saltou lá para dentro,
a gritar:
- É o meu chefe! - Um dos técnicos acenou afirmativamente, enquanto o outro fechava as portas.
Sir John seguiu a ambulância no seu Rolls-Royce. Quando chegou ao hospital, apresentou-se e perguntou à rececionista se Sir Giles Barrington estava a ser visto por um médico.
- Sim, senhor, está a ser examinado no Serviço de Urgências pelo doutor Clairbert. Se Sua Excelência tiver a bondade de se sentar, tenho a certeza de que ele há de vir informá-lo
assim que completar o exame.
Griff voltou a ligar a televisão para ver o serviço noticioso das sete na BBC, esperando que o discurso de Giles ainda fosse a notícia de abertura.
Giles continuava a ser a notícia de abertura, mas Griff levou algum tempo a aceitar quem era o homem que estava deitado na maca. Já estava na política há demasiado tempo para
não saber que Sir Giles Barrington já não era candidato à liderança do Partido Trabalhista.
Um homem que tinha passado a noite no quarto 437 do Palace Hotel entregou a sua chave na receção, registou a saída e pagou a conta em dinheiro. Apanhou um táxi para o aeroporto
e, uma hora mais tarde, embarcou no avião de regresso a Londres para o qual Sir Giles tinha lugar reservado. Ao chegar ao Aeroporto de Londres, pôs-se na fila à espera de
um táxi e, quando chegou a sua vez, subiu para o banco de trás e disse:
- Eaton Square, número quarenta e quatro.
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- Estou perplexo, embaixador - disse o doutor Clairbert depois de ter examinado o seu paciente uma segunda vez. - Não consigo encontrar nenhuma anomalia no coração de Sir
Giles. Na verdade, até está em excelente forma para a idade. No entanto, só terei a certeza quando o laboratório me enviar os resultados de todas as análises, o que significa
que terá de passar cá a noite, só para ter a certeza absoluta.
Na manhã seguinte, Giles dominava as primeiras páginas da imprensa nacional, tal como Griff esperara que acontecesse.
Porém, as manchetes das primeiras edições, A Par (Express), Tudo em Aberto (Mirror), Nasceu um Estadista? (The Times), tinham sido rapidamente substituídas. A nova primeira
página do Daily Mail resumia tudo muito bem: Ataque cardíaco acaba com as hipóteses de Barrington vir a liderar o Partido Trabalhista.
Os jornais de domingo traziam todos perfis detalhados do novo líder da oposição.
A maior parte das primeiras páginas mostrava uma fotografia de Harold Wilson, aos oito anos, à porta do número 10 de Downing Street, vestindo a sua melhor roupa de domingo
e usando um boné com pala.
Giles apanhou o avião de regresso a Londres na segunda-feira de manhã, acompanhado por Gwyneth e Sebastian.
Quando o avião aterrou no Aeroporto de Londres, não havia um único jornalista, fotógrafo ou operador de câmara para o felicitar; tinha passado à história. Gwyneth conduziu-os
de volta a Smifh Square.
- O que é que o médico recomendou que fizesses depois de voltares para casa? - perguntou Griff.
- Não fez nenhuma recomendação - disse Giles. - Ele ainda está a tentar perceber porque é que fui parar ao hospital.

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Foi Sebastian quem chamou a atenção do tio para um artigo que vinha na página 11 do The Times, que tinha sido escrito por um dos jornalistas que estava no bar do Palace Hotel
quando Giles sofrera o colapso.
Matthew Castle tinha decidido ficar em Bruxelas durante alguns dias e investigar um pouco mais, pois não estava totalmente convencido de que Sir Giles tivesse sofrido um ataque
cardíaco, embora ele próprio tivesse visto o incidente desenrolar-se diante dos seus olhos.
Ele relatava que, em primeiro lugar, Pierre Bouchard, o vice-presidente da CEE, não tinha estado em Bruxelas para ouvir o discurso de Sir Giles nesse dia, já que tinha ido
ao funeral de um velho amigo em Marselha; em segundo lugar, o barman que tinha telefonado a pedir uma ambulância só tinha marcado três números e não dera nenhuma morada a
quem quer que estivesse do outro lado da linha; em terceiro lugar, o St. Jean Hospital não tinha registo de alguém ter telefonado do Palace Hotel a pedir uma ambulância e
não tinha sido capaz de identificar os dois técnicos de emergência médica que tinham levado Sir Giles numa maca; em quarto lugar, o homem que saíra do bar para esperar pela
ambulância nunca chegara a regressar, e ninguém tinha pago as duas bebidas; em quinto lugar, o homem que estava no bar, que disse ser médico e afirmou que Sir Giles tinha
sofrido um ataque cardíaco não tinha sido visto desde então; e em sexto lugar, o barman não se apresentou para trabalhar no dia seguinte.
Talvez aquilo não passasse de uma série de coincidências, sugeria o jornalista, mas se não fosse, será que o Partido Trabalhista podia ter hoje um líder diferente?
Griff regressou a Bristol na manhã seguinte e, como não era provável haver eleições durante pelo menos um ano, passou o mês seguinte a meter-se nos copos.

Páginas em branco
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JESSICA CLIFTON
1964

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- Esperam que eu perceba o que isto representa? - disse Emma, olhando mais atentamente para a pintura.
- Não há nada para perceber, mamã - disse Seb. - Escapou-lhe o principal.
- Então, diz-me o que é, pois eu ainda me lembro quando Jessica costumava desenhar pessoas. Pessoas que eu reconhecia.
- Ela já passou essa fase, mamã. Está a entrar agora no seu período abstrato.
- Receio que me pareçam apenas borrões de tinta.
- Isso é porque não está a olhar para isso com o espírito aberto. Ela já não quer ser Constable ou Turner.
- Então, quem é que ela quer ser?
- Jessica Clifton.
- Mesmo que tenhas razão, Seb - disse Harry, olhando mais atentamente para Borrão Número Um -, todos os artistas, até mesmo Picasso, reconheciam influências externas. Portanto,
por quem é que Jessica se sente influenciada?
- Peter Blake, Francis Bacon, e admira um americano chamado Rothko.
- Nunca ouvi falar de nenhum deles - admitiu Emma.
- E provavelmente eles nunca ouviram falar de Edith Evans, Joan Sutherland ou de Evelyn Waugh, que vocês os dois tanto admiram.
- Harold Guinzburg tem um Rothko no escritório - disse Harry. - Disse-me que lhe custou dez mil dólares, e eu recordei-lhe que isso era mais do que o adiantamento que recebi
da última vez.
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- Não deve pensar dessa maneira - disse Sebastian. - Uma obra de arte vale aquilo que alguém pagar por ela. Se é verdade para o seu livro, porque é que não há de ser igualmente
verdade para uma pintura?
- Atitude de banqueiro - disse Emma. - Não vou lembrarte do que Oscar Wilde disse sobre preço e valor, pois receio que me acuses de ser antiquada.
- Não é antiquada, mamã - disse Sebastian, pondo um braço à volta dela. Emma sorriu. - É positivamente pré-histórica!
- Admito ter quarenta anos - protestou Emma, olhando para o filho, que não conseguia parar de rir. - Mas isto é mesmo o melhor que Jessica é capaz de fazer? - perguntou, virando
novamente a sua atenção para a pintura.
- É o trabalho de licenciatura, que irá determinar se lhe oferecem uma pós-graduação nas escolas da Real Academia em setembro. E ainda é capaz de lhe render um ou dois xelins.
- Estes quadros estão à venda? - perguntou Harry.
- Oh, sim! A exposição de licenciatura é a primeira oportunidade para uma série de jovens artistas mostrarem o seu trabalho ao público.
- Pergunto-me quem comprará este tipo de coisas - disse Harry, olhando à volta da sala cujas paredes estavam cobertas de pinturas a óleo, aguarelas e desenhos.
- Pais babados, espero - disse Emma. - Então vamos todos ter de comprar um da Jessica, incluindo tu, Seb.
- Não precisa de me convencer, mamã. Volto às sete, quando a exposição abrir, com o livro de cheques em riste. Já escolhi o que quero: Borrão Número Um.
- É muito generoso da tua parte.
- A mamã não percebe mesmo!
- Então, onde está o próximo Picasso? - perguntou Emma, ignorando o filho enquanto olhava à volta da sala.
- Provavelmente, com o namorado.
- Não sabia que Jessica tinha um namorado - disse Harry.
- Creio que ela está a pensar apresentar-vo-lo esta noite.
- E o que faz o namorado?

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- Também é artista.
- É mais novo ou mais velho do que Jessica? - perguntou Emma.
- Da mesma idade. Está na mesma classe, mas sinceramente não tem a classe dela.
- Muito engraçadinho - disse Harry. - E ele tem nome?
- Clive Bingham.
- E já o conheceste?
- Sim, eles raramente se separam, e sei que ele a pede em casamento uma vez por semana, pelo menos.
- Mas ela é demasiado nova para pensar em casar - disse Emma.
- Não é preciso ser matemático, mamã, para perceber que se a mãe tem quarenta e três anos e eu vinte e quatro, devia ter dezanove quando eu nasci.
- Mas era diferente, nesse tempo.
- Pergunto-me se o avô Walter concordou consigo, na altura.
- Concordou, sim! - disse Emma, dando o braço a Harry. - O avô adorava o teu pai.
- E vocês vão adorar o Clive. Ele é mesmo boa pessoa e não tem culpa de não ser um grande artista, como poderão ver por vós mesmos - disse Sebastian, guiando os pais através
da sala para eles poderem ver o trabalho de Clive.
Harry olhou para o Autorretrato durante algum tempo antes de dar uma opinião.
- Já percebo porque é que achas a Jessica tão boa, pois não acredito que alguém compre isto.
- Felizmente, tem pais ricos, portanto isso não deve ser problema.
- Mas como a Jessica nunca se interessou por dinheiro e ele não parece ter qualquer talento, o que é que a atrai?
- Como quase todas as raparigas que estão no curso pintaram Clive em alguma altura ao longo dos últimos três anos, é óbvio que Jessica não é a única pessoa que o acha bem-parecido.
- Não se ele tiver este aspeto - disse Emma, olhando mais atentamente para o Autorretrato.
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Sebastian riu-se.
- Esperem e vejam antes de darem a vossa opinião. Embora deva avisá-la, mamã, que para os seus padrões é capaz de achá-lo um bocadinho desorganizado, até mesmo perdido. Mas
como todos sabemos, Jess quer sempre tomar conta de todos os animais vadios que encontra, possivelmente por ela própria ser órfã.
- Clive sabe que ela foi adotada?
- É claro - disse Sebastian. - Jessica nunca esconde esse facto. Diz a toda a gente que lhe pergunta. Na escola de artes, é um bónus, quase uma distinção.
- E vivem juntos? - sussurrou Emma.
- São ambos estudantes de artes, mamã, por isso acho que é muito possível.
Harry riu-se, mas Emma ainda parecia chocada.
- Pode ser uma surpresa para si, mamã, mas Jess tem vinte e um anos, é bonita e talentosa, e posso dizer-lhe que Clive não é o único rapaz que a acha especial.
- Bem, estou desejosa de conhecê-lo - disse Emma. - E se não quisermos chegar atrasados à cerimónia de entrega dos prémios, é melhor irmos mudar de roupa.
- Já que estamos a falar nesse assunto, mamã, por favor não apareça esta noite com ar de quem é presidente da Barrington Shipping Company, e como se estivesse a preparar-se
para presidir a uma reunião do conselho de administração, pois isso iria deixar Jessica embaraçada.
- Mas eu sou a presidente da Barrington's.
- Esta noite, não, mamã. Esta noite, é a mãe de Jessica. Por isso, se tiver umas calças de ganga de preferência velhas e desbotadas, irá muito bem.
- Mas eu não tenho calças de ganga, nem velhas nem desbotadas.
- Então, vista qualquer coisa que estivesse a pensar dar para o bazar de caridade do vigário.
- E que tal as minhas calças de jardinagem? - disse Emma, sem tentar esconder o seu sarcasmo.
- Perfeito. E a camisola mais velha que encontrar, de preferência com buracos nos cotovelos.

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- E como é que achas que o teu pai se deva vestir para a ocasião?
- O pai não é problema - disse Sebastian. - Ele parece sempre um escritor desempregado e mal arranjado, por isso vai integrar-se perfeitamente.
- Devo lembrarte, Sebastian, que o teu pai é um dos autores mais respeitados...
- Mamã, adoro-os a ambos. Admiro-os a ambos. Mas esta noite pertence a Jessica, por isso por favor não a estrague.
- Ele tem razão - disse Harry. - Eu costumava ficar mais enervado com o que a minha mãe ia vestir no dia da distribuição dos prémios do que com o facto de ganhar ou não o
prémio de Latim.
- Mas o papá disse-me que o senhor Deakins ganhava sempre o prémio de Latim.
- Tens razão - disse Harry. - Deakins, o teu tio Giles e eu podíamos estar todos na mesma classe, mas tal como Jessica, Deakins pertencia a uma classe diferente.
- Tio Giles, queria que conhecesse o meu namorado, Clive Bingham.
- Olá, Clive - disse Giles, que tinha tirado a gravata e desabotoado a camisa momentos antes de entrar na sala.
- É aquele deputado que está na moda, não é? - disse Clive, enquanto trocavam um aperto de mão.
Giles ficou sem saber o que dizer enquanto olhava para o jovem que usava uma camisa amarela às bolinhas de colarinho aberto e gola grande e mole, e umas calças de ganga justas.
Mas o cabelo louro revolto, os olhos de um azul-nórdico e o sorriso cativante fizeram-no perceber porque é que Jessica não era a única mulher naquela sala que estava sempre
a olhar para Clive.
- Ele é o maior - disse Jessica, dando um abraço caloroso ao tio - e devia ser o líder do Partido Trabalhista.
- Bem, Jessica - disse Giles -, antes de decidir qual dos teus quadros...
- Demasiado tarde - disse Clive -, mas ainda pode comprar um dos meus.
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- Mas eu quero um Jessica Clifton original para juntar à minha coleção.
- Então, vai ficar desapontado. A exposição abriu às sete, e todos os quadros de Jessica foram comprados em poucos minutos.
- Não sei se hei de ficar encantado com o teu triunfo, Jessica, ou zangado comigo mesmo por não ter vindo mais cedo - disse Giles, dando um segundo abraço à sobrinha. - Parabéns!
- Obrigada, mas tem de ir ver os trabalhos de Clive, são muito bons.
- Por isso é que ainda não vendi nenhum. A verdade é que já nem mesmo a minha família os compra - acrescentou ele, ao mesmo tempo que Emma, Harry e Sebastian entravam na sala
e iam imediatamente ao seu encontro.
Giles nunca tinha visto a irmã vestir alguma coisa que não fosse a última moda, mas esta noite parecia que tinha acabado de sair do barracão de jardinagem. Em comparação,
Harry estava uma elegância. E seria possível que tivesse um buraco na camisola? As roupas são uma das poucas armas das mulheres, tinha-lhe dito Emma uma vez. Mas não esta
noite... e, depois, percebeu tudo.
- Linda menina - sussurrou.
Sebastian apresentou os pais a Clive e Emma teve de admitir que ele não era nada parecido com o autorretrato. A palavra que lhe veio à cabeça foi atraente, embora o aperto
de mão fosse um bocadinho frouxo. Centrou a sua atenção nos quadros de Jessica.
- Será que estes pontos vermelhos significam...?
- Vendidos - disse Clive. - Mas como já expliquei a Sir Giles, vão ver que não enfermo do mesmo problema.
- Então já não há nenhuma obra de Jessica para venda?
- Nenhuma - disse Sebastian. - Eu avisei-a, mamã!
Estava alguém a bater num copo na outra ponta da sala. Todos se viraram e viram um homem de barba numa cadeira de rodas a tentar chamar a atenção de toda a gente. Estava mal
vestido, com um casaco de bombazina castanha e calças verdes. Sorriu para as pessoas ali reunidas.
- Senhoras e senhores - começou ele - peço a vossa atenção por alguns momentos. - Toda a gente parou de falar, virando-se para o orador. - Boa noite e bem-vindos à Exposição
de Licenciatura

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em Belas-Artes da Slade School. O meu nome é Ruskin Spear e, na qualidade de presidente do painel de jurados, a minha primeira tarefa
é anunciar os vencedores em cada categoria: desenho, aguarela e pintura a óleo. Pela primeira vez na história da Slade, uma mesma aluna venceu as três categorias.
Emma estava desejosa de descobrir quem seria essa notável jovem artista, para poder comparar o seu trabalho com o de Jessica.
- Sinceramente, ninguém ficará surpreendido, a não ser possivelmente a própria vencedora, ao saber que a estrela da escola este ano é Jessica Clifton.
Emma sorriu de orgulho enquanto toda a gente que estava na sala aplaudia, ao passo que Jessica se limitava simplesmente a baixar a cabeça e a agarrar-se a Clive. Só Sebastian
sabia realmente o que lhe ia na alma. Os seus demónios, como ela lhes chamava. Jessica nunca parava de falar sempre que estavam sozinhos, mas assim que se tornava o centro
das atenções, metia-se dentro da sua concha como uma tartaruga, esperando que ninguém desse por ela.
- Se Jessica quiser vir até aqui, vou presenteá-la com um cheque de trinta libras e com a Taça Munnings.
Clive deu-lhe um ligeiro empurrão e toda a gente aplaudiu enquanto ela ia ter relutantemente com o presidente dos jurados, com as faces a tornarem-se mais coradas a cada passo
que dava. Quando o senhor Spear lhe entregou o cheque e a taça, houve uma coisa que se tornou perfeitamente clara: não ia haver discurso de agradecimento. Jessica apressou-se
a voltar para junto de Clive, que parecia tão encantado como se ele próprio tivesse ganho o prémio.
- Também posso anunciar que ofereceram um lugar a Jessica nas escolas da Real Academia, para iniciar em setembro a sua pós-graduação, e eu sei que os meus colegas da Real
Academia estão todos desejosos que ela se junte a nós.
- Espero que toda esta adulação não lhe suba à cabeça - sussurrou Emma a Sebastian, enquanto se virava e via a filha a agarrar a mão de Clive.
- Não há perigo, mamã. Ela é praticamente a única pessoa na sala que não se dá conta de como é talentosa. - Nesse momento,
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apareceu ao lado de Emma um homem elegante que ostentava um laço de seda vermelho e um fato assertoado.
- Permita-me que me apresente, senhora Clifton. - Emma sorriu para o desconhecido, perguntando-se se seria o pai de Clive. - O meu nome é Julian Agnew. Sou negociante de arte
e só queria dizer o quanto admiro o trabalho da sua filha.
- É muito gentil em dizer isso, senhor Agnew. Conseguiu comprar algum quadro de Jessica?
- Comprei-os todos, senhora Clifton. A última vez que fiz isso foi com um jovem artista chamado David Hockney.
Emma não queria admitir que nunca tinha ouvido falar em David Hockney, e Sebastian só o conhecia porque Cedric tinha meia dúzia de quadros dele na parede do seu escritório,
mas não era de estranhar, pois Hockney era do Yorkshire. Não que Sebastian estivesse a prestar muita atenção ao senhor Agnew, já que tinha a cabeça noutro lugar.
- Então, isso significa que vamos ter outra oportunidade de comprar um dos quadros da minha filha? - perguntou Harry.
- Com certeza que sim - disse Agnew -, porque estou a planear fazer uma exposição individual das obras de Jessica na próxima primavera, altura em que espero que ela já tenha
pintado mais algumas telas. E claro que vos enviarei um convite, a si e à senhora Clifton, para a noite de abertura.
- Obrigado - disse Harry - e prometo que não iremos chegar atrasados.
O senhor Agnew fez uma ligeira vénia, depois virou-se e dirigiu-se para a porta sem mais uma palavra, sendo óbvio que não estava interessado em nenhum dos outros artistas
cujo trabalho estava exposto nas paredes. Emma olhou de relance para Sebastian e viu que ele estava a olhar fixamente para o senhor Agnew a atravessar a sala. Depois, avistou
a jovem mulher ao lado do negociante de arte e compreendeu porque é que o filho tinha ficado aparvalhado.
- Fecha a boca, Seb.
Sebastian pareceu embaraçado, uma experiência rara que muito agradou a Emma.

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- Bem, suponho que é melhor irmos dar uma olhadela às pinturas de Clive - sugeriu Harry -, o que também nos pode dar oportunidade de conhecer os pais dele.
- Eles não se deram ao trabalho de aparecer - disse Sebastian. - Jess disse-me que nunca vêm ver as coisas que ele faz.
- Que estranho - disse Harry.
- Que tristeza - disse Emma.
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- Gosto muito dos teus pais - disse Clive - e o teu tio Giles é espetacular! Até eu votava nele, embora os meus pais não fossem gostar.
- Porquê?
- São ambos conservadores assumidos. A minha mãe não ia permitir a presença de um socialista lá em casa.
- Tenho tanta pena que eles não tenham vindo à exposição. Iam sentir tanto orgulho em ti.
- Não me parece. A mãe nunca gostou que eu tivesse ido para Artes. Queria que eu fosse para Oxford ou Cambridge, e não admitia que eu não era suficientemente bom.
- Então, provavelmente também não vão gostar de mim.
- Como é que não haviam de gostar de ti? - disse Clive, virando-se para a encarar. - És a aluna da Slade mais premiada de sempre e, ao contrário de mim, ofereceram-te um lugar
na Real Academia. O teu pai é autor de best-sellers, a tua mãe presidente de uma companhia cotada em bolsa e o teu tio faz parte do governo-sombra. Ao passo que o meu pai
é presidente de uma companhia de pasta de peixe, e espera ser nomeado como próximo Alto Xerife do Lincolnshire, e isso só é possível porque o meu avô fez fortuna a vender
pasta de peixe.
- Mas ao menos tu sabes quem é o teu avô - disse Jessica, descansando a cabeça no ombro dele. - Harry e Emma não são os meus verdadeiros pais, embora sempre me tenham tratado
como sua filha, e talvez porque eu e Emma até somos parecidas, as pessoas presumem que ela é a minha mãe. E Seb é o melhor irmão que uma rapariga

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podia ter. Mas a verdade é que sou órfã e não faço ideia de quem são os meus verdadeiros pais.
- Alguma vez tentaste descobrir?
- Sim, e disseram-me que é política rigorosa dos centros do doutor Barnardo não revelar qualquer informação acerca dos pais
biológicos sem a sua autorização.
- Porque é que não perguntas ao teu tio Giles? Se alguém souber, é ele.
- Porque mesmo que saiba, não será possível que a minha família tenha as suas razões para não me contar?
- Talvez o teu pai tenha sido morto na guerra e condecorado no campo de batalha depois de um ato de heroísmo, e a tua mãe tenha morrido de desgosto.
- E tu, Clive Bingham, és um romântico incorrigível, que devia parar de ler Biggles e experimentar A Oeste Nada de Novo.
- Quando fores uma artista famosa, vais usar o nome Jessica Clifton ou Jessica Bingham?
- Estarás por acaso a pedir-me outra vez em casamento, Clive? É que já é a terceira vez esta semana.
- Reparaste. Sim, estou, e tinha esperança de que viesses comigo ao Lincolnshire este fim de semana, para conheceres os meus pais e podermos oficializar as coisas.
- Adorava - disse Jessica, abraçando-o.
- Note-se que ainda preciso de visitar uma pessoa antes de poderes ir ao Lincolnshire - disse Clive. - Portanto, não faças ainda a mala.
- Foi muito gentil em receber-me tão rapidamente, senhor.
Harry ficou impressionado. Podia ver que o jovem se dera a muito trabalho. Tinha aparecido à hora marcada, vestia casaco e gravata, e os sapatos brilhavam como se estivesse
em parada. Estava claramente muito nervoso, por isso Harry tentou pô-lo à vontade.
- A tua carta dizia que querias falar comigo acerca de um assunto importante, por isso só pode ser uma de duas coisas.
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- Na verdade, é muito simples, senhor - disse Clive. - Gostava que me desse autorização para pedir a mão da sua filha em casamento.
- Mas que coisa mais formidavelmente antiquada.
- Não é mais do que Jessica esperaria de mim.
- Não achas que são ambos demasiado jovens para pensar em casar? Talvez devessem esperar, pelo menos até Jessica terminar a pós-graduação na Real Academia.
- Com todo o respeito, Sebastian disse-me que sou mais velho do que o senhor era quando pediu a senhora Clifton em casamento.
- É verdade, mas isso foi em tempo de guerra.
- Espero não ter de ir para a guerra, senhor, só para provar o quanto amo a sua filha.
Harry riu-se.
- Bem, suponho que enquanto futuro sogro tenho de perguntar quais são as tuas perspetivas. Jessica disse-me que não te ofereceram um lugar nas escolas da Real Academia.
- Tenho a certeza de que isso, para si, não foi propriamente uma surpresa.
Harry sorriu.
- Então, o que tens feito desde que saíste da Slade?
- Tenho estado a trabalhar numa agência de publicidade, na Curtis Bell & Getty, no departamento de design.
- E isso é bem pago?
- Não, senhor. O meu salário é de quatrocentas libras por ano, mas o meu pai complementa-o com uma pensão de mais mil libras, e os meus pais ofereceram-me o aluguer de um
apartamento em Chelsea como presente do meu vigésimo primeiro aniversário. Portanto, temos mais do que o suficiente.
- Tu tens noção de que a pintura é, e sempre será, o primeiro amor de Jessica, e que ela nunca irá deixar que nada interfira com a sua carreira, como esta família tomou consciência
no dia em que ela entrou na nossa vida?
- Eu também estou ciente disso, senhor, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para garantir que ela realiza a sua ambição. Seria uma loucura não o fazer, com o talento
que ela tem.

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- Ainda bem que pensas assim - disse Harry. - Mas apesar do seu grande talento, há nela uma insegurança que terás, por vezes, de gerir com compaixão e compreensão.
- Também estou ciente disso, senhor, e é algo que eu gosto de fazer por ela. Faz-me sentir muito especial.
- Posso perguntar-te o que é que os teus pais pensam de quereres casar com a minha filha?
- A minha mãe é uma grande admiradora sua, assim como da sua esposa.
- Mas eles sabem que não somos os pais de Jessica?
- Oh, sim, mas, como diz o meu pai, isso não é culpa dela.
- E disseste-lhes que queres casar com Jessica?
- Não, senhor, mas nós vamos a Louth este fim de semana, e tenciono dizer-lhes, embora imagine que não seja propriamente uma surpresa.
- Então, a única coisa que me resta é desejar que sejam felizes juntos. Ainda estou para conhecer rapariga mais generosa e mais terna neste mundo. Mas talvez todos os pais
sintam a mesma coisa.
- Eu sei muito bem que nunca serei suficientemente bom para ela, mas juro que não a irei desiludir.
- Tenho a certeza de que não - disse Harry -, mas tenho de te avisar que também há o reverso da medalha. Ela é uma jovem sensível, e se alguma vez traíres a sua confiança,
irás perdê-la.
- Nunca faria nada para que isso acontecesse, acredite!
- Tenho a certeza da tua sinceridade. Bem, então telefona-me, se ela disser que sim.
- Pode ter a certeza de que telefono, senhor - disse Clive ao mesmo tempo que Harry se levantava da cadeira. - Se não tiver notícias minhas no domingo à noite, significa que
ela recusou o meu pedido. Outra vez.
- Outra vez? - disse Harry.
- Sim. Já pedi a Jess em casamento por várias vezes - admitiu Clive - e ela recusou sempre. Tenho a sensação de que alguma coisa a preocupa e que não quer falar sobre isso.
Partindo do princípio de que não sou eu, esperava que pudesse lançar alguma luz sobre isso.
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Harry hesitou durante algum tempo, antes de dizer:
- Vou almoçar amanhã com Jessica, por isso sugiro que fales com ela antes de viajarem para o Lincolnshire, e seguramente antes de darem a notícia aos teus pais.
- Se acha que é necessário, claro que sim.
- Acho que é capaz de ser aconselhável, dadas as circunstâncias - disse Harry enquanto a sua mulher entrava na sala.
- Devo depreender que há motivo para felicitações? - perguntou Emma, o que deixou Harry a pensar se a mulher tinha estado a ouvir a conversa. - Se assim é, não podia estar
mais satisfeita.
- Ainda não, senhora Clifton. Mas esperemos que já seja oficial no fim de semana. Se assim for, vou tentar mostrar-me digno da sua confiança e da do senhor Clifton. - Virando-se
para Harry, acrescentou: - Foi muito gentil em receber-me, senhor.
Os dois homens trocaram um aperto de mão.
- Conduz com cuidado - disse Harry, como se estivesse a falar com o seu próprio filho.
Ele e Emma foram à janela e viram Clive entrar no carro.
- Então decidiste contar finalmente a Jessica quem é o pai dela?
- Clive não me deixou outra opção - disse Harry, enquanto o carro fazia o caminho de acesso e passava os portões de Manor House. - E só Deus sabe como é que o rapaz vai reagir
quando descobrir a verdade.
- Estou muito mais preocupada com a reação de Jessica - disse Emma.
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- Detesto a A1 - disse Jessica. - Traz-me sempre tantas memórias tristes.
- Alguma vez chegaram a alguma conclusão sobre o que realmente aconteceu nesse dia? - perguntou Clive, enquanto ultrapassava um camião. Jessica olhou para a esquerda e depois
olhou para trás. - O que estás a fazer?
- Estou só a certificar-me - disse ela. - O veredito do médico-legista foi morte acidental. Mas eu sei que Seb continua a culpar-se pela morte de Bruno.
- Mas isso não é justo, como ambos sabemos.
- Diz isso a Seb - disse Jessica.
- Onde é que o teu pai te levou a almoçar ontem? - perguntou Clive, querendo mudar de assunto.
- Tive de cancelar no último minuto. O meu orientador queria discutir qual o quadro que eu devia apresentar para a exposição de verão da Real Academia. Por isso, o meu pai
vai levar-me a almoçar na segunda-feira, embora tenha de admitir que pareceu ficar desapontado.
- Talvez houvesse alguma coisa em particular que ele quisesse falar contigo.
- Nada que não possa esperar até segunda-feira.
- Então e qual foi o quadro que tu e o teu orientador escolheram?
- Borrão Número Dois.
- Boa escolha!
- O senhor Dunstan parece estar confiante de que a Real Academia o vai considerar.
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- Era o quadro que eu vi encostado à parede lá no apartamento, antes de nos virmos embora?
- Sim. Eu tencionava dá-lo de presente à tua mãe este fim de semana, mas infelizmente todas as obras propostas para a exposição têm de dar entrada até à próxima quinta-feira.
- Ela vai ficar orgulhosa por ver o quadro da sua futura nora exposto lado a lado com os da Real Academia.
- Todos os anos são apresentados à Real Academia mais de dez mil quadros, e só são escolhidas algumas centenas, portanto não comeces já a mandar os convites. - Jessica voltou
a olhar para a esquerda e para trás, enquanto Clive ultrapassava outro camião. - Os teus pais fazem alguma ideia do motivo por que lá vamos este fim de semana?
- Eu não podia ter dado uma pista mais clara, do estilo quero que conheçam a rapariga com quem vou passar o resto da vida.
- E se eles não gostarem de mim?
- Eles vão adorarte, e que importa se não gostarem? Eu não podia amarte mais do que já amo.
- És tão querido - disse Jessica, inclinando-se e beijando-o na face. - Mas eu ia importar-me se os teus pais ficassem com dúvidas. No fim de contas, és o seu único filho,
por isso é natural que estejam um bocadinho de pé atrás, até nervosos.
- Não há nada que deixe a minha mãe nervosa e o meu pai não vai precisar que ninguém o convença assim que te conhecer.
- Quem me dera ter a autoconfiança da tua mãe.
- É mais forte do que ela, minha querida. Ela foi para a Roedean, onde a única coisa que ensinam é a ficar noiva de um membro da aristocracia e, como acabou por casar com
o rei da pasta de peixe, vai ficar toda entusiasmada com a ideia de a tua família se juntar à nossa.
- O teu pai importa-se com esse género de coisas?
- Mesmo nada. Os operários da fábrica tratam-no por Bob, coisa que a minha mãe reprova. E elegeram-no presidente de tudo o que havia num raio de trinta quilómetros da nossa
casa, desde o Clube de Snooker de Louth à Sociedade Coral de Cleethorpes, e o pobre homem é daltónico e não tem ouvido.
- Estou desejosa de o conhecer - disse Jessica, enquanto Clive saía da A1 e começava a seguir as placas para Mablethorpe.

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Embora Clive continuasse a conversar, sentia que Jessica estava a ficar cada vez mais nervosa a cada quilómetro que passava e, quando passaram o portão de Mablethorpe Hall,
deixou de falar por completo.
- Oh, meu Deus! - lá acabou Jessica por dizer, enquanto entravam no largo caminho de acesso que exibia ulmeiros altos e elegantes de ambos os lados, até onde a vista alcançava.
- Não me disseste que vivias num castelo!
- O meu pai só comprou a propriedade porque pertencia ao conde de Mablethorpe, que tentou levar o meu avô à falência no início do século, embora desconfie que também queria
impressionar a minha mãe.
- Bem, estou impressionada - disse Jessica quando uma mansão de três pisos de estilo palladiano apareceu à frente deles.
- Sim, tenho de admitir que é preciso vender uns quantos frascos de pasta de peixe para comprar um edifício destes.
Jessica riu-se, mas parou de rir quando a porta se abriu e apareceu um mordomo, seguido de dois criados que desceram os degraus a correr para abrir a mala do carro e descarregar
a bagagem.
- Eu não tenho bagagem suficiente para meio criado - sussurrou Jessica.
Clive abriu-lhe a porta do carro, mas ela não se mexeu. Ele deu-lhe a mão e obrigou-a a subir os degraus e a passar a porta de entrada, e deram com o senhor e a senhora Bingham
no átrio, à espera deles.
Jessica pensou que as suas pernas iam ceder quando viu a mãe de Clive pela primeira vez; tão elegante, tão sofisticada, tão segura de si. A senhora Bingham deu um passo em
frente para a cumprimentar com um sorriso amigável.
- É tão bom conhecê-la finalmente - disse ela de forma efusiva. - Clive falou-nos tanto de si.
O pai de Clive apertou-lhe calorosamente a mão e disse:
- Devo dizer, minha jovem, que Clive não exagerou, é tão bonita quanto um quadro.
Clive desatou a rir.
- Espero bem que não, pai. O último quadro de Jessica chama-se Borrão Número Dois.
202

Jessica agarrou-se à mão de Clive enquanto os anfitriões os levavam até à sala de estar, e ela só começou a descontrair quando viu um retrato de Clive que tinha pintado pelo
seu aniversário pouco depois de se conhecerem pendurado por cima da lareira.
- Espero que venha um dia a pintar o meu retrato.
- Jessica já não faz esse tipo de pintura, pai.
- Adorava, senhor Bingham.
Quando Jessica se sentou ao lado de Clive no sofá, a porta da sala abriu-se e o mordomo voltou a aparecer, seguido de uma criada que trazia uma grande bandeja de prata, com
um bule em prata e dois grandes pratos de sanduíches.
- Pepino, tomate e queijo, minha senhora - disse o mordomo.
- Mas, como vês, não há pasta de peixe - sussurrou Clive.
Jessica aceitou nervosamente tudo o que lhe ofereciam, enquanto a senhora Bingham falava sobre a sua vida tão ocupada e como parecia nunca ter um momento livre. Não pareceu
reparar quando Jessica começou a desenhar um esboço do pai de Clive na parte de trás de um guardanapo, que pretendia acabar quando estivesse sozinha no quarto.
- Esta noite, vamos ter um jantar tranquilo, só com a família - disse ela, antes de oferecer outra sanduíche a Jessica. - Mas, amanhã, planeei um jantar de comemoração. Só
alguns amigos que estão desejosos de conhecê-la.
Clive apertou a mão de Jessica, ciente de que ela detestava ser o centro das atenções.
- É muita amabilidade sua ter-se dado a esse trabalho, senhora Bingham.
- Por favor, trate-me por Priscilla. Não fazemos cerimónia nesta casa.
- E os meus amigos tratam-me por Bob - disse o senhor Bingham, ao mesmo tempo que lhe passava uma fatia de pão de ló.
Quando Jessica foi acompanhada ao seu quarto, uma hora mais tarde, pensou que afinal não tinha razões para estar preocupada. Foi só quando viu as suas roupas, que tinham sido
tiradas da mala e penduradas no guarda-vestidos, que começou a entrar em pânico.

203
- Qual é o problema, Jess?
- Consigo sobreviver a ter de mudar de roupa para jantar esta noite, mas não tenho nada para vestir num jantar formal como o de amanhã à noite.
- Se fosse a ti, não me preocupava com isso, pois tenho a sensação de que a minha mãe planeia levarte às compras durante a manhã.
- Mas eu não posso deixá-la comprar-me nada quando nem sequer lhe dei um presente.
- Acredita em mim, ela só quer exibir-te, e terá muito mais prazer com isso do que tu. Pensa nisso como um cesto cheio de frascos de pasta de peixe.
Jessica riu-se, e depois de se terem ido deitar, a seguir ao jantar, já estava tão descontraída que continuava a falar alegremente.
- Não foi assim tão mau, pois não? - disse Clive, enquanto a seguia até ao interior do quarto.
- Não podia ter sido melhor - disse ela. - Adoro simplesmente o teu pai, e a tua mãe esforçou-se tanto por me fazer sentir à vontade.
- Alguma vez dormiste numa cama com dossel? - perguntou ele enquanto a tomava nos braços.
- Não, nunca - retorquiu Jessica, empurrando-o. - E onde é que tu vais dormir?
- No quarto ao lado. Mas como podes ver, há uma porta de comunicação, porque aqui é o sítio onde a amante do conde costumava dormir; por isso, venho ter contigo mais tarde.
- Não, não vens - disse Jessica com ar zombeteiro -, embora goste bastante da ideia de ser amante de um conde.
- Não tens hipótese - disse Clive, pondo um joelho no chão. - Vais ter de te contentar em ser a senhora Bingham, a princesa da pasta de peixe.
- Não estás a pedir-me em casamento outra vez, pois não, Clive?
- Jessica Clifton, adoro-te e quero passar o resto da minha vida contigo, e espero que me dês a honra de ser minha mulher.
- Claro que sim - disse Jessica, ajoelhando-se e abraçando-o.
- É suposto hesitares e ficares a pensar no assunto por um momento.
204

- Não tenho pensado noutra coisa durante os últimos seis meses.
- Mas eu pensava...
- O problema nunca foste tu, seu tonto! Não podia amarte mais, mesmo que quisesse. É só porque...
- Só porque?
- Quando somos órfãos, somos obrigados a pensar...
- Às vezes, és tão pateta, Jess. Eu apaixonei-me por ti, e estou-me nas tintas para quem os teus pais são ou foram. Agora, larga-me, pois tenho uma pequena surpresa para ti.
Jessica soltou o noivo, que tirou uma caixa vermelha de pele de um bolso interior. Ela abriu-a e desatou a rir quando viu o frasco de Pasta de Peixe Bingham. A pasta que até
os pescadores comem.
- Talvez devesses procurar lá dentro - sugeriu ele. Ela desenroscou a tampa e enfiou um dedo na pasta.
- Que nojo! - disse ela, e depois tirou para fora um requintado anel de noivado vitoriano com safiras e diamantes. - Oh, aposto que não se encontra um anel destes em todos
os frascos! É tão lindo - disse ela, depois de o ter lambido.
- Era da minha avó. Betsy era uma rapariga de Grimsby, com quem o meu avô se casou quando trabalhava numa traineira, muito antes de ter feito fortuna.
Jessica continuava a olhar para o anel.
- É demasiado bom para mim.
- Betsy não teria pensado isso.
- Mas e a tua mãe? O que é que ela sentirá quando o vir?
- A ideia foi dela - disse Clive. - Portanto, vamos descer e dar-lhes a novidade.
- Ainda não - disse Jessica, tomando-o nos braços.
205
24
Na manhã seguinte, depois do pequeno-almoço, Clive levou a noiva a dar um passeio pela propriedade de Mablethorpe Hall, mas só conseguiram ver o jardim e o lago até a mãe
de Clive a levar para irem às compras a Louth.
- Não te esqueças, cada vez que ouvires o tinido da caixa registadora a abrir, pensa nisso como sendo apenas mais um cesto com frascos de pasta de peixe - disse Clive, enquanto
ela subia para o banco de trás do carro, para o lado de Priscilla.
Quando regressaram a Mablethorpe Hall para um almoço tardio, Jessica estava carregada de sacos e caixas contendo dois vestidos, um xaile de caxemira, um par de sapatos e uma
minúscula carteira de toilette preta.
- Para o jantar, esta noite - explicou Priscilla.
Jessica só pensava quantos cestos de pasta de peixe teriam de ser vendidos para cobrir as contas. Na verdade, estava muito grata pela generosidade de Priscilla, mas quando
ficaram sozinhos no quarto, disse com firmeza a Clive:
- Este não é um estilo de vida a que me queira entregar por mais de dois dias.
Depois do almoço, Clive levou-a a ver o resto da propriedade, trazendo-a apenas a tempo do lanche.
- A tua família alguma vez para de comer? - perguntou Jessica. - Não sei como é que a tua mãe consegue continuar tão elegante.
- Ela não come, apenas debica as coisas. Ainda não tinhas reparado?
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- Vamos examinar a lista de convidados para o jantar? - disse Priscilla depois de terem tomado chá. - O bispo de Grimsby e a esposa, Maureen. - Levantou os olhos. - É claro
que todos esperamos que seja o bispo a realizar a cerimónia.
- E de que cerimónia estás a falar, minha querida? - perguntou Bob, piscando o olho a Jessica.
- Vê se deixas de me tratar por "minha querida" - disse Priscilla. - É tão vulgar - acrescentou, antes de continuar com a lista de convidados. - O presidente da câmara de
Louth, Pat Smith. Não gosto nada que abreviem os nomes próprios. Quando o meu marido for Alto Xerife do condado, no ano que vem, vou insistir para que toda a gente o trate
por Robert. E finalmente, a minha velha amiga dos tempos de escola, Lady Virgínia Fenwick, filha do conde de Fenwick. Fomos debutantes no mesmo ano...
Jessica agarrou na mão de Clive para não começar a tremer. Não voltou a dizer palavra até estarem novamente de volta à segurança do quarto.
- O que é que se passa, Jess? - perguntou Clive.
- A tua mãe não sabe que Lady Virgínia foi a primeira mulher do tio Giles?
- Claro que sim. Mas isso já foi há tanto tempo. Quem é que quer saber disso? Na verdade, até me surpreende que te lembres dela.
- Só estive com ela uma vez, no dia do funeral da avó Elizabeth, e a única coisa de que me lembro é que ela insistiu para que a tratasse por Lady Virgínia.
- Ela ainda faz isso - disse Clive, tentando desvalorizar. - Mas creio que vais descobrir que ela amoleceu um bocadinho com o passar dos anos, embora deva confessar que ela
traz ao de cima aquilo que a minha mãe tem de pior. Sei que o meu pai não a suporta, portanto não fiques surpreendida se ele arranjar uma desculpa para se escapar sempre que
estiverem as duas juntas.
- Eu gosto mesmo do teu pai - disse Jessica.
- E ele adora-te.
- O que te faz dizer isso?
- Para de tirar nabos da púcara. Mas tenho de admitir que ele já usou a tirada habitual: "Se eu tivesse menos vinte anos, meu rapaz, não tinhas hipótese."

207
- É tão amável.
- Não é amabilidade, ele estava a falar a sério.
- É melhor ir mudar de roupa, senão atrasamo-nos para o jantar - disse Jessica. - Ainda não sei qual dos dois vestidos hei de usar - acrescentou, enquanto Clive ia para o
seu quarto. Experimentou os dois, olhando-se ao espelho durante um tempo considerável, mas ainda não se tinha decidido quando Clive voltou e lhe pediu para o ajudar a pôr
o laço.
- Que vestido hei de usar? - perguntou ela, incapaz de tomar uma decisão.
- O azul - disse Clive antes de voltar para o seu quarto.
Ela olhou-se ao espelho mais uma vez e pensou se viria a ter outra ocasião para vestir qualquer um deles. Seguramente, não no baile de finalistas de Artes.
- Estás fantástica - disse Clive quando ela saiu finalmente da casa de banho. - Que vestido!
- Foi a tua mãe que escolheu - disse Jessica, dando uma voltinha.
- É melhor irmos andando. Acho que ouvi um carro no caminho de acesso.
Jessica pegou no xaile de caxemira, pô-lo à volta dos ombros e olhou-se uma vez mais ao espelho antes de descerem a escada de mão dada. Entraram na sala de estar precisamente
quando alguém bateu à porta.
- Oh, ficas maravilhosa com esse vestido - disse Priscilla - e o xaile é simplesmente perfeito. Não concordas, Robert?
- Sim, simplesmente perfeito, minha querida - disse Bob. Priscilla franziu o sobrolho enquanto o mordomo abria a porta e
anunciava:
- O bispo de Grimsby e a senhora Hadley.
- Sua Excelência - disse Priscilla -, ainda bem que pôde vir. Deixe-me apresentar-lhe Miss Jessica Clifton, que acabou de ficar noiva do meu filho.
- Que felizardo, Clive - disse o bispo, mas Jessica só conseguia pensar em como gostaria de desenhá-lo com a sua esplêndida sobrecasaca preta, camisa eclesiástica roxa e colarinho
de um branco imaculado.
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Passados alguns minutos, apareceu o presidente da câmara de Louth. Priscilla insistiu em apresentá-lo como Patrick Smith. Quando Priscilla saiu da sala para cumprimentar a
sua última convidada, o presidente da câmara segredou a Jessica:
- Só a minha mãe e Priscilla é que me chamam Patrick. Espero que me trate por Pat.
E depois Jessica ouviu uma voz que nunca poderia esquecer.
- Querida Priscilla, há quanto tempo!
- Demasiado, querida - concordou Priscilla.
- Uma pessoa não vem ao Norte tantas vezes quanto deveria e temos tanta conversa para pôr em dia - disse Virgínia enquanto acompanhava a anfitriã até à sala de estar.
Depois de ter apresentado Virgínia ao bispo e ao presidente da câmara, Priscilla fê-la atravessar a sala para ir ao encontro de Jessica.
- E permite-me que te apresente Miss Jessica Clifton, que acabou de ficar noiva de Clive.
- Boa noite, Lady Virgínia. Com certeza que já não se lembra de mim.
- Como poderia esquecer, mesmo que não tivesses mais de sete ou oito anos na altura? Vejam só - disse ela, recuando um passo. - Transformaste-te numa linda jovem. Sabes? Fazes-me
lembrar tanto a tua querida mãe. - Jessica ficou sem saber o que dizer, mas não pareceu ter importância. - E tenho ouvido coisas maravilhosas sobre o teu trabalho na Slade.
Os teus pais devem estar muito orgulhosos!
Só mais tarde, muito mais tarde, é que Jessica começou a pensar como é que Lady Virgínia podia estar ao corrente do seu trabalho. Mas tinha-se deixado seduzir pelas exclamações
Que belo vestido, e Que requinte de anel e Clive é mesmo um rapaz cheio de sorte.
- Mais um mito destruído - disse Clive, enquanto entravam na sala de jantar de braço dado.
Jessica não estava totalmente convencida e ficou aliviada quando se viu sentada entre o presidente da câmara e o bispo, ao passo que Lady Virgínia estava à direita do senhor
Bingham, na outra ponta da mesa, suficientemente longe para garantir que Jessica não teria de travar conversa com ela. Depois de levantarem o prato principal - havia

209
mais criados do que convidados - o senhor Bingham bateu no copo com uma colher e levantou-se do lugar, à cabeceira da mesa.
- Hoje - começou ele - a nossa família dá as boas-vindas a um novo membro, uma jovem muito especial que deu ao meu filho a honra de aceitar ser sua esposa. Caros amigos -
disse ele, erguendo o copo -, a Jessica e Clive.
Todos se levantaram do lugar e repetiram as palavras "Jessica e Clive", e até Virgínia levantou o seu copo. Jessica não sabia se seria possível sentir-se mais feliz.
Depois de terem bebido mais champanhe na sala de estar, a seguir ao jantar, o bispo apresentou as suas desculpas, explicando que tinha de celebrar uma missa de manhã e precisava
de rever uma última vez o seu sermão. Priscilla acompanhou-o a ele e à mulher à porta e, depois, passados alguns minutos, o presidente da câmara agradeceu aos seus anfitriões
e voltou a dar os parabéns ao feliz casal.
- Boa noite, Pat - disse Jessica. O presidente da câmara recompensou-a com um sorriso antes de partir.
Depois de o presidente da câmara se ter ido embora, o senhor Bingham voltou à sala de estar e disse para a mulher:
- Vou levar os cães ao seu passeiozinho noturno, portanto deixo as duas sozinhas. Desconfio que têm muita conversa para pôr em dia, uma vez que não se vêem há tanto tempo.
- Creio que isto é uma indireta para dizer que também devíamos ir andando - disse Clive, que deu as boas-noites à mãe e a Lady Virgínia, antes de acompanhar Jessica ao seu
quarto, no piso de cima.
- Que triunfo - disse Clive, depois de ter fechado a porta do quarto. - Até Lady Virgínia pareceu ficar conquistada. Também não é de estranhar, pois ficas maravilhosa com
esse vestido.
- Graças à generosidade da tua mãe - disse Jessica, mirando-se uma vez mais no espelho de corpo inteiro.
- E não te esqueças da pasta de peixe do meu avô.
- Mas onde é que está o meu lindo xaile, aquele que a tua mãe me deu? - Jessica olhou à sua volta. - Devo tê-lo deixado na sala de estar. Vou lá buscá-lo.
- Isso não pode esperar até amanhã de manhã?
- Claro que não - disse Jessica. - Nunca o devia ter perdido de vista.
210

- Mas vê se não ficas na conversa com essas duas, pois provavelmente estão a combinar os pormenores do nosso casamento.
- Não me demoro nada - disse Jessica, ao mesmo tempo que saía do quarto a cantarolar intimamente. Desceu a escada e estava a poucos passos da porta da sala de estar que estava
ligeiramente aberta, quando ouviu a palavra assassina e estacou.
- O veredito do médico-legista foi morte acidental, apesar de o corpo de Sir Hugo ter sido encontrado numa poça de sangue com o abre-cartas espetado no pescoço.
- E dizes que há razões para crer que Sir Hugo Barrington era pai dela?
- Não há dúvida nenhuma acerca disso. E, sinceramente, a sua morte até foi um alívio para a família, porque ele estava prestes a ser julgado por fraude. Se isso tivesse acontecido,
a companhia teria sem dúvida ido à falência.
- Não fazia a mínima ideia.
- E nem sabes da missa metade, minha querida, porque a mãe de Jessica suicidou-se para evitar ser acusada do homicídio de Sir Hugo.
- Não posso crer. Ela parecia uma rapariga tão respeitável!
- Receio que as perspetivas não sejam melhores, se olhares para o lado Clifton da família. A mãe de Harry Clifton era uma conhecida prostituta, por isso ele nunca teve a certeza
de quem era o seu pai. Em circunstâncias normais, não teria mencionado nada disto - continuou Virgínia -, mas não precisas de um escândalo numa altura como esta.
- Numa altura como esta? - inquiriu Priscilla.
- Sim. Sei de fonte segura que o primeiro-ministro está a pensar distinguir Robert com o grau de cavaleiro, o que quereria dizer que serias Lady Bingham.
Priscilla pensou no assunto durante uns momentos antes de dizer:
- Achas que Jessica sabe a verdade acerca dos pais? Clive nunca fez a mínima alusão a um eventual escândalo.
- Claro que sabe, mas nunca fez tenção de te contar a ti ou a Clive. A rapariguinha esperava ter a aliança no dedo antes disto se

211
tornar público. Não reparaste como ela tem estado a manipular o Robert? A promessa de lhe pintar o retrato foi um golpe de génio.
Jessica reprimiu um soluço, deu meia-volta e fugiu rapidamente escada acima.
- Mas o que se passa, Jess? - perguntou Clive quando ela entrou a correr no quarto.
- Lady Virgínia estava a contar à tua mãe que eu sou filha de uma assassina... que matou o meu pai - disse ela entre soluços. -
Que... que a minha avó era prostituta e que eu só estou interessada em pôr as mãos no teu dinheiro.
Clive tomou-a nos braços e tentou acalmá-la, mas ela estava inconsolável.
- Deixa isso comigo - disse ele, soltando-a e vestindo o roupão. - Vou dizer à minha mãe que me estou nas tintas para o que Lady Virgínia pensa, porque nada me vai impedir
de casar contigo. - Abraçou-a uma vez mais, antes de sair do quarto e descer a escada direito à sala de estar.
- O que é que esse monte de mentiras tem estado a espalhar acerca da minha noiva? - exigiu ele saber, olhando diretamente para Lady Virgínia.
- É a mais pura verdade - replicou Virgínia calmamente. - Achei que era melhor a tua mãe saber antes de se casarem do que depois, quando já fosse demasiado tarde.
- Mas insinuar que a mãe de Jessica era uma assassina...
- Não é assim tão difícil de confirmar.
- E a avó uma prostituta?
- Receio que toda a gente saiba disso em Bristol.
- Bem, estou-me nas tintas - disse Clive. - Eu adoro a Jess, e as consequências que vão para o diabo, pois devo dizer-lhe, Lady Virgínia, que não me irá impedir de casar com
ela.
- Clive, querido - disse a mãe calmamente. - Eu pensaria sobre isso por um momento, antes de tomar uma decisão tão precipitada.
- Não preciso de pensar sobre o facto de me ir casar com a criatura mais perfeita que existe à face da terra!
- Mas, se casares com essa mulher, esperas viver de quê?
212

- Mil e quatrocentas libras por ano são mais do que suficientes.
- Mas mil libras são uma pensão que o teu pai te dá, e quando ele souber...
- Então, teremos de nos arranjar com o meu salário. Há pessoas que conseguem fazê-lo.
- Nunca te passou pela cabeça, Clive, de onde é que vêm essas quatrocentas libras?
- Sim, da Curtis Bell & Getty, e eu mereço cada cêntimo!
- Acreditas mesmo que essa agência te daria emprego se não tivesse a conta da Pasta de Peixe Bingham?
Clive ficou calado por um momento.
- Então, terei de arranjar outro emprego - lá acabou por dizer.
- E onde é que iam morar?
- No meu apartamento, é claro.
- Mas durante quanto tempo? Deves saber que o aluguer de Glebe Place expira em setembro. Sei que era intenção do teu pai renová-lo, mas dadas as circunstâncias...
- Pode ficar com o maldito apartamento, mãe! Não vai conseguir arranjar problemas entre mim e Jess. - Virou as costas a ambas, saiu da sala e fechou a porta calmamente atrás
dele. Depois subiu a escada a correr, na esperança de conseguir convencer Jess de que nada mudara e sugerir que voltassem imediatamente para Londres. Procurou em ambos os
quartos, mas ela não estava em lado nenhum. Em cima da cama dela, estavam dois vestidos, uma pequena carteira de toilette, um par de sapatos, um anel de noivado e um desenho
do pai dele. Desceu novamente a escada e encontrou o pai especado à entrada, incapaz de ocultar a sua fúria.
- Viu a Jess?
- Sim, mas receio que nada do que eu pudesse dizer a fosse impedir de se ir embora. Ela contou-me o que essa horrível mulher disse, por isso ninguém pode censurar a pobre
rapariga por não querer passar mais uma noite debaixo deste teto. Pedi a Burrows que a levasse à estação. Veste-te e vai atrás dela, Clive. Não a percas, porque nunca vais
encontrar ninguém como ela.
Clive subiu a escada a correr enquanto o pai se dirigia à sala de estar.

213
- Já soubeste das novidades da Virgínia? - perguntou Priscilla quando ele entrou na sala.
- Com certeza que sim - disse ele, virando-se para enfrentar Virgínia. - Agora, escute-me com atenção, Virgínia. Vai deixar imediatamente esta casa.
- Mas, Robert, eu só estava a tentar ajudar o meu querido amigo.
- Não estava nada, e sabe disso. Veio aqui com o único propósito de estragar a vida àquela rapariga.
- Mas Robert, querido, Virgínia é a minha amiga mais antiga...
- Só quando lhe convém. Nem penses em defender essa mulher, caso contrário podes ir com ela, e assim não tardarás a descobrir que espécie de amiga é ela.
Virgínia levantou-se do lugar e caminhou lentamente em direcção à porta.
- Lamento ter de dizer que não voltarei a visitar-te, Priscilla.
- Então, pelo menos, ainda saiu alguma coisa de bom de tudo isto - disse Robert.
- Nunca ninguém falou assim comigo - disse Virgínia, virando-se para enfrentar o seu adversário.
- Então, sugiro que releia o testamento de Elizabeth Barrington, porque não há dúvida de que ela soube avaliá-la. Agora saia, antes que eu a ponha na rua!
Por pouco, o mordomo não conseguia abrir a porta a tempo de deixar Lady Virgínia continuar o seu caminho.
Clive abandonou o carro à porta da estação e correu até à plataforma número 3. Ouviu o apito do revisor e, quando chegou ao último degrau o comboio já estava a sair da gare.
Correu atrás dele como se estivesse numa final dos cem metros, e estava a começar a ganhar terreno, mas o comboio ganhou velocidade precisamente quando Clive estava a chegar
ao final da plataforma. Dobrou-se, pôs as mãos nos joelhos e tentou recuperar o fôlego. Quando a última carruagem desapareceu, deu meia-volta e começou a voltar para trás
ao longo da plataforma. Quando chegou ao carro, tinha tomado uma decisão.
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Entrou, ligou a ignição e guiou até ao fim da estrada. Se virasse à direita, iria ter novamente a Mablethorpe Hall. Virou à esquerda, acelerou e seguiu os sinais para a A1.
Ele sabia que, àquela hora, o comboio parava em quase todas as estações entre Louth e Londres, por isso, com um bocadinho de sorte, estaria de volta ao apartamento antes de
ela chegar.
Abrir a porta da rua não foi problema para o intruso, e embora fosse um elegante bloco de apartamentos, não era suficientemente importante para ter porteiro noturno. Subiu
a escada com cuidado, fazendo um ou outro rangido, mas nada que acordasse alguém às duas e meia da manhã.
Quando chegou ao patamar do segundo piso, localizou rapidamente o apartamento número 4. Olhou cuidadosamente para os dois lados do corredor: nada. Desta vez, levou um bocadinho
mais de tempo para abrir as duas fechaduras. Depois de lá estar dentro, fechou a porta devagarinho atrás de si e acendeu a luz, pois não receava ser interrompido. No fim de
contas, sabia onde é que ela ia passar o fim de semana.
Deu a volta ao pequeno apartamento, identificando demoradamente todos os quadros que procurava: sete na sala, três no quarto, um na cozinha, e um bónus, um grande quadro a
óleo encostado à parede, junto à porta, com um autocolante que dizia Borrão Número Dois, Para ser entregue na RA quinta-feira. Depois de tê-los levado a todos para a sala,
dispô-los em fila. Não eram maus. Hesitou por um momento antes de tirar do bolso uma navalha de mola e executar as instruções do pai.
O comboio chegou a St. Pancras pouco passava das 2h40 da manhã, altura em que Jessica já decidira exatamente o que ia fazer. Ia apanhar um táxi para o apartamento de Clive,
arrumar os seus pertences e telefonar a Seb para perguntar se podia ficar com ele durante uns dias enquanto procurava outro lugar para morar.
- Sente-se bem, minha querida? - perguntou o motorista quando ela se deixou cair no banco de trás do táxi.

215
- Estou ótima. Número doze, Glebe Place, Chelsea - foi a única coisa que conseguiu dizer. Já não tinha lágrimas para chorar.
Quando o táxi parou à porta do bloco de apartamentos, Jessica entregou ao taxista uma nota de dez xelins, que era todo o dinheiro que tinha, e disse:
- Importa-se de esperar? Vou ser o mais rápida que puder.
- Claro, minha querida.
Ele já tinha praticamente terminado o trabalho, de que estava a gostar, quando pensou ouvir um carro a parar na rua, lá fora.
Pousou a navalha numa mesa de apoio, foi até à janela e afastou a cortina uns centímetros. Viu-a sair da parte de trás do táxi e trocar umas palavras com o motorista. Movimentou-se
rapidamente pela sala, apagou a luz e abriu a porta; voltou a olhar para os dois lados do corredor: nada, mais uma vez.
Desceu a escada a toda a velocidade e, ao abrir a porta da rua, viu Jessica a vir em direção a ele. Estava a tirar uma chave da mala quando ele passou por ela. Ela olhou para
trás, mas não o reconheceu, o que a surpreendeu porque pensava que conhecia toda a gente que morava no edifício.
Entrou e começou a subir a escada. Sentia-se exausta quando chegou ao segundo andar e abriu a porta do apartamento número 4. A primeira coisa que tinha de fazer era telefonar
a Seb e contar-lhe o que tinha acontecido. Acendeu a luz e foi direita ao telefone, que estava na outra ponta da sala. Foi nessa altura que viu os quadros.
Clive virou para Glebe Place vinte minutos depois, ainda esperançado em chegar primeiro do que ela. Olhou para cima e viu que a luz do quarto estava acesa. Deve estar em casa,
pensou ele extremamente aliviado.
Estacionou o carro atrás de um táxi que ainda tinha o motor a trabalhar. Estaria à espera dela? Esperava que não. Abriu a porta da entrada e subiu a escada a correr, dando
com a porta do apartamento
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escancarada e todas as luzes acesas. Entrou e mal os viu, caiu de joelhos e sentiu-se violentamente indisposto. Fitou os destroços espalhados à sua volta. Todos os desenhos,
aguarelas e óleos de Jessica pareciam ter sido esfaqueados vezes sem conta, à exceção de Borrão Número Dois, no qual tinha sido cortado toscamente um grande buraco a partir
do centro da tela. O que é que a teria levado a fazer algo tão irracional?
- Jess! - gritou ele, mas não obteve resposta. Levantou-se com esforço e foi lentamente até ao quarto, mas não havia sinal dela. Foi nessa altura que ouviu o som de uma torneira
a correr. Virou-se e viu um fiozinho de água a sair por baixo da porta da casa de banho. Precipitou-se para lá, abriu a porta e olhou incrédulo para a sua adorada Jess. A
sua cabeça estava a flutuar sobre a água, mas o pulso, com duas incisões profundas que já não deitavam sangue, pendia molemente sobre a borda da banheira. E depois viu a navalha
de mola no chão, ao lado dela.
Ele levantou gentilmente o seu corpo inerte da água e deixou-se cair no chão, segurando-a nos braços. Chorou descontroladamente. Estava sempre a vir-lhe à cabeça o mesmo pensamento:
se ele não tivesse voltado lá acima para se vestir e tivesse ido diretamente para a estação, Jessica ainda estaria viva.
A última coisa que se lembrava de ter feito foi tirar o anel de noivado do bolso e colocá-lo novamente no seu dedo.
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25
O bispo de Bristol olhou do púlpito para a congregação de St. Mary Redcliffe ali reunida e isso recordou-lhe o impacto que Jessica Clifton tinha tido em tantas pessoas diferentes
durante a sua curta vida. No fim de contas, havia um desenho dele como deão de Truro orgulhosamente pendurado no corredor do Palácio do Bispo. Olhou para as suas notas.
- Quando um ente querido morre aos setenta ou oitenta e tal anos - começou ele -, reunimo-nos para o chorar. Recordamos a sua longa vida com afeto, respeito e gratidão, trocando
histórias e memórias felizes. Vertemos uma ou outra lágrima, é claro, mas ao mesmo tempo aceitamos que é a ordem natural das coisas. Quando morre uma mulher jovem e bela,
que deu mostras de um talento tão raro que os mais velhos aceitam sem questionar que não são melhores do que ela, derramamos muito mais lágrimas, porque só podemos imaginar
como poderia ter sido.
Emma tinha derramado tantas lágrimas desde que soubera da notícia que estava física e mentalmente exausta. Só pensava se poderia ter feito alguma coisa para impedir a sua
adorada filha de sofrer uma morte tão cruel e desnecessária. É claro que podia. Devia ter-lhe contado a verdade. Emma sentia que era tão culpada como qualquer outra pessoa.
Harry, que estava sentado ao lado dela no banco da frente, tinha envelhecido uma década numa semana, e não tinha dúvidas acerca de quem era a culpa. A morte de Jessica lembrar-lhe-ia
constantemente que lhe devia ter contado há anos porque é que a tinham adotado. Se o tivesse feito, com certeza que ela estaria hoje viva.
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Giles estava sentado entre as irmãs, segurando-lhes a mão pela primeira vez em anos. Ou seriam elas que estavam a segurar as dele? Grace, que não gostava de manifestações
públicas de emoção, chorou durante toda a cerimónia religiosa.
Sebastian, que estava sentado do outro lado do pai, não estava a ouvir a oração do bispo. Já não acreditava num Deus cheio de bondade, compreensão e compaixão, que podia dar
com uma mão e depois tirar com a outra. Tinha perdido a sua melhor amiga, que adorava, e nunca ninguém poderia ocupar o seu lugar.
Harold Guinzburg estava sentado em silêncio ao fundo da igreja. Quando telefonara a Harry, não sabia que a sua vida tinha sido destruída num único momento. Só tinha querido
partilhar com ele a notícia triunfante de que o seu último romance policial tinha chegado a número um da lista dos mais vendidos do New York Times.
Harold devia ter ficado surpreendido com a ausência de resposta do seu autor, mas como é que poderia imaginar que Harry já não queria saber dessas ninharias e teria ficado
contente em não ter vendido um único exemplar em troca de ter Jessica ali ao seu lado, em vez de jazer precocemente numa sepultura?
Depois de terminado o serviço fúnebre e de toda a gente se ter ido embora para seguir a sua vida, Harry caiu de joelhos e ficou junto à campa. O seu pecado não iria ser expiado
com essa facilidade toda. Ele já tinha aceitado que não passaria um dia, possivelmente nem uma hora, sem Jessica se intrometer nos seus pensamentos, a rir, a conversar, a
fazer pouco. Tal como o bispo, também ele só podia imaginar como poderia ter sido. Teria casado com Clive? Como teriam sido os seus netos? Teria vivido o suficiente para a
ver tornar-se membro da Real Academia? Quem lhe dera que fosse ela a estar ali ajoelhada junto à campa dele a chorar a sua perda.
- Perdoa-me - disse ele em voz alta.
E o pior é que ele sabia que ela teria perdoado.

Páginas em branco
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221

CEDRIC HARDCASTLE
1964

26
- Toda a vida tenho sido considerado pelos meus semelhantes um homem cauteloso, enfadonho e apagado. Ouvi descreverem-me muitas vezes como alguém em cujo trabalho se pode
confiar. "Com Hardcastle, estás sempre garantido." Foi sempre assim. Na escola, nos jogos de críquete, eu ficava sempre ao fundo do campo e nunca me pediam para ser o primeiro
batedor. Nas peças da escola, eu era sempre figurante e nunca o rei, e no que tocava aos exames, passava a tudo, mas nunca ficava nos três primeiros. Enquanto outros podiam
sentir-se magoados, e até insultados, com tais epítetos, eu sentia-me lisonjeado. Se nos quisermos afirmar como alguém idóneo e competente para tomar conta do dinheiro de
outras pessoas, então, em minha opinião, essas são precisamente as qualidades que esperam de nós.
Ao aproximar-me da velhice, quando muito tornei-me ainda mais cauteloso e enfadonho e, na verdade, esta é a reputação que gostaria de levar comigo para a cova quando finalmente
enfrentar o meu Criador. Por isso, é capaz de ser um choque para quem está sentado à volta desta mesa o facto de eu agora estar decidido a ignorar todos os princípios em que
baseei toda a minha vida, e pode ser ainda mais surpreendente estar a convidá-los a fazer o mesmo.
As outras seis pessoas sentadas à volta da mesa podiam não ter interrompido, mas escutavam atentamente cada palavra que Cedric Hardcastle tinha a dizer.
- Com isso em mente, vou pedir a todos vós que me ajudem a destruir um homem pérfido, corrupto e sem escrúpulos, para que
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quando chegarmos ao fim, ele esteja tão arruinado que nunca mais possa fazer mal a ninguém.
À distância, tenho tido oportunidade de observar Don Pedro Martinez, à medida que ele trata de destruir sistematicamente duas famílias decentes com que me associei. E devo
dizer-lhes que já não estou disposto a ficar parado e lavar as mãos como Pôncio Pilatos, deixando que outros façam o trabalho sujo.
No reverso da medalha cautelosa, enfadonha e apagada, está gravada uma figura com uma reputação granjeada na City londrina ao longo de uma vida. Pretendo agora tirar partido
dessa reputação pedindo a retribuição de favores e dívidas que acumulei, como um esquilo, durante décadas. Com isso em mente, passei recentemente um tempo considerável a traçar
um plano para destruir Martinez e a sua família, mas não poderei ser bem-sucedido se trabalhar sozinho.
Ainda assim, nenhuma das pessoas sentadas à volta da mesa pensou em interromper o presidente do Farthings.
- Durante os últimos anos, observei até onde é que este homem está disposto a ir para destruir as famílias Clifton e Barrington, que estão hoje aqui representadas. Testemunhei
em primeira mão a sua tentativa para influenciar um potencial cliente deste banco, o senhor Morita da Sony International, a afastar o Farthings da lista de candidatos a um
contrato importante, sem outra razão que não fosse o facto de Sebastian Clifton ser meu assistente pessoal. Ganhámos esse contrato, mas só porque o senhor Morita teve a coragem
de enfrentar Martinez, ao passo que eu nada fiz. Há uns meses, li um artigo no Times relativo ao misterioso Pierre Bouchard e ao ataque cardíaco que nunca aconteceu, mas que
não deixou de fazer com que Sir Giles Barrington tivesse de retirar a sua candidatura à liderança do Partido Trabalhista, e voltei a não fazer nada. Mais recentemente, fui
ao funeral de uma jovem inocente e extremamente talentosa que desenhou o meu retrato, que todos podem ver na parede ao lado da minha secretária. Durante as cerimónias fúnebres,
decidi que não podia continuar a ser um homem apagado e enfadonho e que se isso significasse acabar com os hábitos de uma vida, paciência.
Nas últimas semanas, sem que Don Pedro Martinez soubesse o que eu andava a tramar, falei confidencialmente com os seus banqueiros, corretores e consultores financeiros. Todos
eles presumiram que

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estavam a conversar com aquele tipo apagado do Farthings, que nunca pensaria em exceder a sua autoridade, muito menos em ultrapassar os limites. Descobri que Martinez, que
é um oportunista, tem corrido vários riscos ao longo dos anos, mostrando ao mesmo tempo pouca consideração pela lei. Para o meu plano ser bem-sucedido, o truque será identificar
o momento em que ele irá correr o próximo risco. Mesmo assim, se quisermos batê-lo no seu próprio jogo, também é provável que nós próprios tenhamos de correr algum risco.
Devem ter reparado que convidei outra pessoa para estar hoje aqui connosco, alguém cuja vida não foi contaminada por este homem. O meu filho Arnold é advogado - disse Cedric,
acenando em direção à versão mais jovem de si mesmo, sentada à sua direita - e, tal como eu, é considerado alguém em cujo trabalho se pode confiar, e foi por isso que lhe
pedi para servir de minha consciência e guia. Isto porque se vou contornar a lei pela primeira vez na vida, preciso de alguém que me represente e que seja capaz de manter
o distanciamento e a imparcialidade. Trocando isto por palavras mais simples, o meu filho atuará como a nossa bússola moral.
Vou agora pedir-lhe que revele aquilo que tenho em mente, para que todos fiquem cientes do risco que correrão se decidirem juntar-se a mim nesta aventura. Arnold.
- Minhas senhoras e meus senhores, o meu nome é Arnold Hardcastle e, para grande desgosto do meu pai, escolhi ser advogado em vez de banqueiro. Quando diz que, tal como ele,
sou alguém em cujo trabalho se pode confiar, considero isso um elogio, pois para esta operação ser bem-sucedida, um de nós terá de sê-lo. Depois de estudar o último orçamento
de Estado, creio que encontrei uma maneira de fazer com que o plano do meu pai funcione, o que não violando a letra da lei, não deixaria seguramente de ignorar o seu espírito.
Mesmo com essa ressalva, deparei-me com um problema que pode revelar-se intransponível. A saber, precisamos de identificar um indivíduo que ninguém à volta desta mesa conheça,
mas que sinta o mesmo ímpeto de levar Don Pedro Martinez à justiça, tal como todos vocês.
Embora ainda ninguém falasse, o advogado foi saudado com olhares de incredulidade.
- Se não se conseguir identificar um homem ou mulher nessas condições - continuou Arnold Hardcastle -, aconselhei o meu pai
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a desistir da ideia e a seguirem caminhos separados, cientes de que poderão ter de passar o resto dos vossos dias a espreitar por cima do ombro, sem nunca saber quando ou
onde Martinez voltará a atacar. - O advogado fechou o seu dossiê. - Se tiverem alguma pergunta tentarei responder-lhes.
- Eu não tenho perguntas - disse Harry -, mas não vejo como é que será possível encontrar um indivíduo nessas condições, dadas as circunstâncias. Toda a gente que eu conheço
que alguma vez se cruzou com Martinez detesta-o tanto como eu, e desconfio que isso é válido para toda a gente à volta desta mesa.
- Concordo - disse Grace. - Na verdade, ficava muito feliz se tirássemos palhinhas para decidir qual de nós o deve matar. Não me importava de passar uns anos na prisão se
isso significasse que nos podíamos livrar finalmente dessa horrível criatura.
- Nesse caso, não poderia ajudá-los - disse Arnold. - Sou especializado em direito das sociedades, e não penal, por isso teriam de encontrar outro advogado. No entanto, se
decidirem ir por essa via, há um ou dois nomes que vos posso recomendar.
Emma riu-se pela primeira vez desde a morte de Jessica, mas Arnold Hardcastle não.
- Aposto que há pelo menos uma dúzia de homens na Argentina que cumprem esses requisitos - disse Sebastian. - Mas como é que os encontramos quando nem sequer sabemos quem
são?
- E quando os encontrassem - disse Arnold - teriam gorado o objetivo do plano do meu pai, porque, se a ação acabasse em tribunal, não poderiam afirmar que não sabiam da sua
existência.
Seguiu-se outro longo silêncio, que foi finalmente quebrado por Giles, que não tinha falado até então.
- Creio que já me deparei com um homem assim. - Com uma única frase, tinha conseguido captar a atenção de toda a gente à volta da mesa.
- Nesse caso, Sir Giles, preciso de lhe fazer uma série de perguntas sobre esse cavalheiro em particular - disse Arnold - e a única resposta que será legalmente aceitável
é não. Se a sua resposta a uma das minhas perguntas for sim, então o cavalheiro que tem em mente não será elegível para levar a cabo o plano do meu pai. Estamos entendidos?

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Giles acenou afirmativamente enquanto o advogado reabria o dossiê e Emma fazia figas.
- Alguma vez foi apresentado a esse homem?
- Não.
- Alguma vez efetuou alguma transação comercial com ele, fosse em seu nome ou por intermédio de terceiros?
- Não.
- Alguma vez falou com ele ao telefone?
- Não.
- Alguma vez lhe escreveu?
- Não.
- Seria capaz de reconhecê-lo, se ele passasse por si na rua? Não.
- E, finalmente, Sir Giles, ele alguma vez o contactou na sua qualidade de deputado?
- Não.
- Obrigado, Sir Giles, passou a primeira parte do teste com distinção, mas tenho agora de avançar para outra série de perguntas tão importantes como as primeiras, mas desta
vez a única resposta aceitável é sim.
- Compreendo - disse Giles.
- Esse homem tem motivos para detestar tanto Don Pedro Martinez como o senhor?
- Sim, creio que sim.
- Ele é tão rico quanto Martinez?
- Com toda a certeza.
- Tem fama de ser uma pessoa honesta e honrada?
- Tanto quanto sei, sim.
- Por último, e talvez mais importante, acha que ele estaria disposto a correr um risco sério?
- Sem dúvida.
- Uma vez que respondeu satisfatoriamente a todas as minhas perguntas, Sir Giles, talvez queira fazer a gentileza de escrever o nome desse cavalheiro no bloco que tem à sua
frente, sem deixar que nenhum dos presentes veja quem é.
Giles rabiscou um nome, rasgou a folha do bloco, dobrou-a e entregou-a ao advogado, que por sua vez a passou ao pai.
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Cedric Hardcastle desdobrou o papel, rezando para nunca se ter cruzado antes com aquele homem.
- Conhece esse homem, pai?
- Só de nome - disse Cedric.
- Ótimo. Então, se ele concordar em levar avante o seu plano ninguém à volta desta mesa estará a violar a lei. Mas, Sir Giles - disse ele, voltando a virar-se para o ilustre
deputado eleito por Bristol Docklands -, não poderá estabelecer contacto com este homem em momento algum e não poderá revelar o seu nome a nenhum membro das famílias Barrington
ou Clifton, sobretudo se forem acionistas na Barrington Shipping. Se o fizer, o tribunal poderá considerar que estava a agir em conivência com terceiros e, por conseguinte,
a violar a lei. Entendido?
- Sim - disse Giles.
- Obrigado, senhor - disse o advogado enquanto juntava os seus papéis. - Boa sorte, pai - sussurrou ele, antes de fechar a pasta e sair da sala sem mais uma palavra.
- Como é que podes estar tão confiante, Giles - disse Emma depois de a porta se ter fechado atrás dele -, que um homem que nem sequer conheces irá concordar com os planos
do senhor Hardcastle?
- A seguir ao enterro de Jessica, perguntei a um dos fulanos que pegaram às borlas do caixão quem era o homem que tinha chorado durante toda a cerimónia como se tivesse perdido
uma filha e que depois se apressara a desaparecer. Aquele foi o nome que ele me deu.
- Não há provas de que Luis Martinez tenha morto a rapariga - disse Sir Alan -, apenas de que profanou os seus quadros.
- Mas as suas impressões digitais estavam no cabo da navalha de mola - disse o coronel. - E isso, para mim, é prova suficiente.
- Tal como as de Jessica, por isso qualquer advogado decente conseguiria safá-lo.
- Mas ambos sabemos que Martinez foi responsável pela sua morte.
- Talvez. Mas isso não funciona assim em tribunal.

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- Então, está a dizer-me que não posso dar ordem para o matar?
- Ainda não - disse o secretário do Gabinete. O coronel bebeu um gole da sua cerveja e mudou de assunto.
- Vejo que Martinez despediu o motorista.
- Ninguém despede Kevin Rafferty. Ele vai-se embora quando termina o trabalho ou caso não lhe tenham pago.
- Então e qual das duas foi, desta vez?
- Deve ter terminado o trabalho. Caso contrário, não precisaria de se dar ao trabalho de matar Martinez, pois Rafferty já o teria feito por si.
- Será possível que Martinez tenha perdido o interesse em destruir os Barrington?
- Não. Enquanto Fisher continuar no conselho de administração, pode ter a certeza de que Martinez vai continuar a querer vingar-se de todos os membros dessa família, acredite
no que lhe digo!
- E onde é que Lady Virgínia entra nisto tudo?
- Ela ainda não perdoou Sir Giles por apoiar o amigo Harry Clifton na altura da disputa relativa ao testamento da mãe, quando Lady Barrington comparou a nora à sua gata siamesa,
Cleópatra, descrevendo-a como uma "predadora linda, bem apresentada, vaidosa,
atreira e manipuladora". Memorável.
- Quer que também fique de olho nela?
- Não. Lady Virgínia não irá infringir a lei. Vai arranjar alguém que o faça por ela.
- Então, o que está a dizer é que não posso fazer nada, para já, a não ser manter Martinez sob observação atenta e informá-lo do
que vir.
- Paciência, coronel. Pode ter a certeza de que ele vai cometer outro erro e, quando o fizer, terei todo o gosto em tirar partido das especiais aptidões dos seus colegas.
- Sir Alan engoliu o seu gim tónico, levantou-se do lugar e esgueirou-se do pub sem dar um aperto de mão ou dizer adeus. Atravessou rapidamente Whitehall até Downing Street
e, passados cinco minutos, estava novamente à secretária a fazer o seu trabalho.
228

Cedric Hardcastle verificou o número antes de marcar. Não queria que a secretária soubesse a quem estava a telefonar. Ouviu o sinal de chamar e esperou.
- Pasta de Peixe Bingham. Em que posso ajudá-lo?
- Posso falar com o senhor Bingham?
- Quem devo anunciar?
- Cedric Hardcastle, do Banco Farthings.
- Só um momento, por favor.
Ouviu um estalido e, passado um momento, uma voz com um sotaque quase tão cerrado como o seu disse:
- Tomem conta das moedas de dinheiro que as libras tomarão conta de si próprias.
- Sinto-me lisonjeado, senhor Bingham - disse Cedric.
- Não devia. Administra um banco excelente. Só é pena que estejam do outro lado do Humber.
- Senhor Bingham, preciso...
- Bob. Ninguém me trata por senhor Bingham, a não ser o cobrador de impostos e os chefes de mesa, à espera de uma gorjeta mais choruda.
- Bob, preciso de falar consigo sobre um assunto particular e teria muito prazer em viajar até Grimsby.
- O assunto deve ser sério, porque não há muita gente que tenha prazer em viajar até Grimsby - disse Bob. - Como presumo que não queira abrir uma conta de pasta de peixe,
posso perguntar-lhe do que se trata?
O Cedric apagado e enfadonho teria dito ao senhor Bingham que preferia discutir o assunto pessoalmente, em vez de fazê-lo ao telefone. O novo Cedric, disposto a correr riscos,
disse:
- Bob, o que é que daria para humilhar Lady Virgínia Fenwick e escapar sem castigo?
- Metade da minha fortuna.

Páginas em branco
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231

MAJOR ALEX FISHER
1964

27

Barclays Bank
Halton Road
Bristol
16 de junho de 1964

Caro major Fisher,
Esta manhã, honrámos o pagamento de dois cheques e de uma ordem permanente apresentados na sua conta pessoal. O primeiro foi à West Country Building Society, no valor de £12
11x 6d; o segundo aos comerciantes de vinho Harvey's, no valor de £3 4x 4d, e o terceiro foi por ordem permanente, no valor de £1, à Associação de Antigos Alunos de St. Bede's.
Estes pagamentos fazem-no exceder o seu limite de descoberto de £500, por isso temos de aconselhá-lo a não emitir mais cheques até ter fundos suficientes disponíveis.

Fisher olhou para o correio matinal em cima da sua secretária e suspirou profundamente. Havia mais envelopes de papel pardo do que branco, vários de comerciantes a lembrá-lo
A pagar no prazo de 30 dias, e um a lamentar que o assunto tivesse sido entregue nas mãos de advogados. E não ajudava o facto de Susan se recusar a devolver o seu precioso
jaguar até ele ter a sua pensão de alimentos em dia, quanto mais não fosse porque não conseguia sobreviver sem carro e tinha acabado por comprar um Hillman Minx em segunda
mão, o que era mais uma despesa.
Separou os envelopes de papel pardo para um lado e começou a abrir os brancos: um convite para um jantar de cerimónia com os outros oficiais do Royal Essex na messe do regimento,
que teria como
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orador convidado o marechal de campo Sir Claude Auchinleck - ia aceitar na volta do correio; uma carta de Peter Maynard, presidente da Associação Conservadora local, a perguntar
se ele consideraria a hipótese de se candidatar nas eleições para o conselho do condado. Inúmeras horas a fazer campanha e a ouvir colegas a fazer discursos interesseiros,
despesas que eram sempre questionadas, e a única honra era ser tratado por "conselheiro". Não, obrigado. Ia enviar uma resposta cortês, a explicar que tinha demasiados compromissos
presentemente. Estava a abrir o último envelope quando o telefone tocou.
- Major Fisher.
- Alex - ronronou uma voz que ele nunca conseguiria esquecer.
- Lady Virgínia, mas que agradável surpresa!
- Virgínia - insistiu ela, o que ele sabia significar que pretendia alguma coisa. - Queria apenas saber se estaria a pensar vir a Londres em qualquer altura durante as próximas
duas semanas...
- Eu vou a Londres na quinta-feira para ver... tenho um encontro marcado para as dez horas, em Eaton Square.
- Bem, como sabe, eu moro logo ao virar da esquina, em Cadogan Gardens, portanto porque é que não aparece para tomar qualquer coisa? Talvez por volta do meio-dia. Tenho um
assunto de interesse mútuo que creio que é capaz de lhe agradar.
- Quinta-feira, ao meio-dia. Fico ansioso por a ver... Virgínia.
- Consegue explicar porque é que as ações da companhia têm estado sempre a subir durante o último mês? - perguntou Martinez.
- O primeiro período de reservas para o Buckingham está a correr muito melhor do que o esperado - disse Fisher - e disseram-me que a viagem inaugural está praticamente esgotada.
- Isso são boas notícias, major, pois não quero que haja uma cabina vaga nesse navio na altura em que ele zarpar para Nova Iorque. - Fisher ia perguntar porquê quando Martinez
acrescentou: - E está tudo preparado para a cerimónia do batismo?
- Sim, assim que a Harland & Wolff concluir os testes no mar e o navio for oficialmente entregue, será anunciada uma data para

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a cerimónia de batismo. Na verdade, as coisas não podiam estar a correr melhor para a companhia neste momento.
- Não durante muito tempo - assegurou-lhe Martinez. - Seja como for, major, deve continuar a apoiar lealmente a presidente, para que quando as coisas ficarem feias, ninguém
olhe na sua direção. - Fisher riu-se nervosamente. - E certifique-se de que me telefona assim que a próxima reunião do conselho terminar, pois não posso dar o próximo passo
sem saber a data da cerimónia de batismo.
- Porque é que a data é tão importante? - perguntou Fisher.
- Tudo a seu tempo, major. Quando eu tiver tudo preparado, será o primeiro a ser informado. - Ouviu-se bater à porta e Diego entrou.
- Será melhor voltar mais tarde? - perguntou.
- Não, o major já está de saída. Mais alguma coisa, Alex?
- Nada - disse Fisher, perguntando-se se deveria contar a Don Pedro sobre o seu encontro com Lady Virgínia. Decidiu não o fazer. No fim de contas, era capaz de não ter nada
que ver com os Barrington ou os Clifton. - Telefono-lhe assim que souber a data.
- Faça isso, major.
- Ele faz alguma ideia do que está a tramar? - perguntou Diego depois de Fisher ter fechado a porta atrás de si.
- Não faz a mínima ideia, e é assim que pretendo manter as coisas. No fim de contas, é pouco provável que se mostre muito cooperante quando descobrir que está prestes a perder
o emprego. Mas, mais importante, arranjaste o dinheiro extra de que preciso?
- Sim, mas com um preço. O banco concordou em aumentar o limite do seu descoberto autorizado em mais cem mil, mas insiste em ter mais garantias adicionais enquanto as taxas
de juro estiverem tão altas.
- A minha carteira de ações não é suficiente? Afinal, já voltaram praticamente ao valor que paguei por elas.
- Não se esqueça de que teve de pagar ao motorista, que acabou por sair muito mais caro do que esperávamos.
- Filhos da mãe! - disse Martinez, que nunca contara a nenhum dos filhos a ameaça que Kevin Rafferty fizera se ele não pagasse a tempo. - Mas ainda tenho meio milhão no cofre,
caso surja alguma emergência.
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- Da última vez que vi, tinha lá pouco mais de trezentos mil. Começo até a perguntar-me se vale a pena prosseguir esta vendeta com os Barrington e os Clifton, quando há a
possibilidade de isso acabar por nos levar à falência.
- Não há que recear tal coisa - disse Don Pedro. - Esse bando não vai ter coragem para me enfrentar quando chegar o momento da verdade, e não te esqueças de que já os atingimos
duas vezes. - Sorriu. -Jessica Clifton acabou por ser um bónus, e depois de vender todas as minhas ações, vou conseguir afundar a senhora Clifton juntamente com o resto da
sua preciosa família. É apenas uma questão de escolher o momento certo, e eu - disse Don Pedro - estarei a segurar o cronómetro.
- Alex, foi muito gentil em aparecer. Há quanto tempo... Deixe-me preparar-lhe uma bebida - disse Virgínia, dirigindo-se ao armário. - Se bem me lembro, a sua bebida preferida
é gim tónico, certo?
Alex ficou impressionado com o facto de ela se lembrar, já que não se viam desde que Lady Virgínia fizera com que ele perdesse o lugar no conselho de administração, há cerca
de nove anos. Do que ele se lembrava bem era da última coisa que ela lhe dissera antes de se separarem: E quando digo adeus, é mesmo adeus.
- E como é que a família Barrington se está a sair, agora que está de volta ao conselho de administração?
- A companhia está quase a deixar para trás o pior dos seus problemas e o primeiro período de reservas do Buckingham está a correr extremamente bem.
- Estava a pensar em reservar uma suite para a viagem inaugural para Nova Iorque. Isso ia deixá-los a pensar.
- Se o fizer, não creio que eles a convidem para se juntar a eles à mesa do capitão - disse Fisher, entusiasmado com a ideia.
- Quando aportarmos em Nova Iorque, meu querido, a minha será a única mesa onde todos se vão querer sentar.
Fisher riu-se.

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- Era por isso que queria falar comigo?
- Não, é sobre uma coisa muito mais importante - disse Virgínia, dando umas palmadinhas no sofá. - Venha sentar-se ao meu lado. Preciso da sua ajuda para um pequeno plano
em que tenho estado a trabalhar, e o major, com a sua formação militar e experiência empresarial, é a pessoa ideal para o levar a cabo.
Alex bebericou a sua bebida e escutou incrédulo aquilo que Virgínia lhe estava a propor. Preparava-se para rejeitar a ideia quando ela abriu a mala, tirou de lá um cheque
de £250 e lho entregou. A única coisa que ele conseguia ver à sua frente era um monte de envelopes de papel pardo.
- Não me parece...
- E haverá mais duzentas e cinquenta quando o trabalho tiver sido feito.
Alex viu uma saída.
- Não, obrigado, Virgínia - disse ele com firmeza. - Eu ia querer que me pagasse logo tudo. Talvez se tenha esquecido do que aconteceu da última vez que fizemos um acordo
semelhante.
Virgínia rasgou o cheque e, embora Alex precisasse desesperadamente de dinheiro, experimentou uma sensação de alívio. Mas, para sua surpresa, ela voltou a abrir a mala, tirou
o livro de cheques e escreveu as palavras A ordem do major A.. Fisher, quinhentas libras. Assinou o cheque e entregou-o a Alex.
Na viagem de regresso a Bristol, Alex pensou em rasgar o cheque, mas estava sempre a lembrar-se das contas por pagar, uma delas a ameaçá-lo com procedimento judicial, da pensão
de alimentos em dívida e dos envelopes de papel pardo por abrir à espera na sua secretária.
Depois de ter depositado o cheque e pago as contas, Alex aceitou que não podia voltar atrás. Passou os dois dias seguintes a planear toda a operação, como se fosse uma campanha
militar.
Primeiro dia, fazer o reconhecimento de Bath.
Segundo dia, preparação em Bristol.
Terceiro dia, execução em Bath.
236

No domingo, já estava arrependido de ter concordado em participar naquilo, mas nem queria pensar na vingança que Virgínia lhe infligiria, caso ele a defraudasse à última hora
e depois não lhe devolvesse o dinheiro.
Na segunda-feira de manhã, guiou vinte quilómetros até Bath. Estacionou no parque municipal, atravessou a ponte, passou pelo parque e chegou ao centro da cidade. Não precisava
de mapa, pois tinha passado a maior parte do fim de semana a memorizar todas as estradas até estar em condições de fazer o trajeto de olhos vendados. O tempo gasto a fazer
o reconhecimento nunca era um desperdício, como o seu antigo comandante costumava dizer.
Começou a sua expedição na rua principal, parando apenas quando encontrava uma mercearia ou um dos novos supermercados. Uma vez lá dentro, verificava cuidadosamente as prateleiras
e, se o produto que queria estivesse à venda, comprava meia dúzia. Depois de ter concluído a primeira parte da operação, Alex só precisava de visitar outro estabelecimento,
o Angel Hotel, onde verificou a localização das cabinas telefónicas. Satisfeito, voltou a atravessar a ponte até ao parque de estacionamento, pôs os dois sacos de compras
na mala do carro e fez o caminho de volta a Bristol.
Quando chegou a casa, pôs o carro na garagem e tirou os dois sacos da mala. Enquanto jantava uma tigela de sopa de tomate e um folhado de salsicha, reviu mentalmente vezes
sem conta o que precisava de fazer no dia seguinte. Acordou várias vezes durante a noite.
Depois do pequeno-almoço, Alex sentou-se à secretária e leu a ata da última reunião do conselho de administração, dizendo constantemente a si mesmo que não era capaz de levar
aquilo por diante.
Às 10h30, foi até à cozinha, tirou uma garrafa de leite vazia do peitoril da janela e lavou-a. Embrulhou a garrafa num pano da louça e pô-la dentro do lava-louça antes de
tirar um pequeno martelo da gaveta de cima. Começou a desfazer a garrafa em bocados, que depois partiu em fragmentos cada vez mais pequenos, até ficar com um pires cheio de
pó de vidro.
Depois de ter completado a operação, sentia-se exausto e, tal como qualquer operário que se preze, fez uma pausa. Encheu um copo

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de cerveja, fez uma sanduíche de queijo e tomate e sentou-se para ler o jornal da manhã. O Vaticano exigia que a pílula contracetiva fosse proibida.
Passados quarenta minutos, voltou à sua tarefa. Pôs os dois sacos de compras na bancada, tirou os trinta e seis frasquinhos e dispô-los em três filas, como soldados em parada.
Desenroscou a tampa do primeiro frasco e polvilhou uma pequena quantidade de pó de vidro por cima, como se estivesse a juntar um tempero. Voltou a enroscar bem a tampa e repetiu
o exercício trinta e cinco vezes, antes de voltar a pôr os frascos nos sacos e de guardar ambos no armário debaixo do lava-louça.
Alex passou algum tempo a despejar o pó de vidro que sobrara pelo cano abaixo, até ter a certeza de que não restava nada. Saiu de casa, foi a pé até ao fim da rua, entrou
na filial local do Barclays e trocou uma nota de libra por vinte moedas de xelim. De regresso ao apartamento, comprou um exemplar do Bristol Evening News. Já em casa, fez
uma chávena de chá. Levou-a para o seu escritório, sentou-se à secretária e marcou o número do serviço de informações. Pediu cinco números de Londres e um de Bath.
No dia seguinte, Alex pôs os dois sacos de compras novamente na mala do carro e partiu uma vez mais para Bath. Depois de ter estacionado na parte mais remota do parque municipal,
tirou para fora os sacos de compras e regressou ao centro da cidade, entrando em cada um dos estabelecimentos onde tinha comprado os frascos e, ao contrário do que faria um
ladrãozeco, voltou a colocá-los nas prateleiras. Depois de ter devolvido o trigésimo quinto frasco à última loja, levou o único que restava ao balcão e pediu para falar com
o gerente.
- Qual é o problema, senhor?
- Eu não quero causar alvoroço, amigo - disse Alex -, mas comprei este frasco de pasta de peixe Bingham no outro dia... aliás, a minha favorita, e quando cheguei a casa descobri
bocadinhos de vidro lá dentro.
O gerente pareceu chocado quando Alex desenroscou a tampa e o convidou a examinar o conteúdo. Ainda ficou mais horrorizado quando enfiou o dedo na pasta e fez sangue.
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- Não sou pessoa de me queixar - disse Alex -, mas talvez fosse melhor verificarem o resto do vosso stock e informarem o fornecedor.
- Vou fazer isso imediatamente, senhor. - Hesitou. - Deseja apresentar uma reclamação oficial? - perguntou ele com nervosismo.
- Não, não - disse Alex. - Tenho a certeza de que isto deve ser caso único e não quero metê-lo em problemas.
Apertou a mão ao gerente grato e preparava-se para se ir embora quando o homem disse:
- O mínimo que podemos fazer é reembolsá-lo.
Alex não queria demorar-se, receando que alguém se pudesse lembrar dele, mas percebeu que caso se fosse embora sem o reembolso, o gerente era capaz de ficar desconfiado. Voltou
para trás enquanto o gerente abria a caixa registadora, tirava um xelim e o entregava ao seu cliente.
- Obrigado - disse Alex, embolsando o dinheiro e dirigindo-se para a porta.
- Lamento incomodá-lo novamente, senhor, mas quer fazer a gentileza de assinar um recibo?
Alex voltou relutantemente para trás uma segunda vez, escrevinhou "Samuel Oakshott" na linha tracejada, o primeiro nome que lhe veio à cabeça, e depois foi-se rapidamente
embora. Depois de ter escapado, escolheu um trajeto mais sinuoso do que originalmente planeara até ao Angel Hotel. Quando chegou, olhou para trás para se certificar de que
ninguém o seguia. Satisfeito, entrou no hotel, foi direito a uma das cabinas telefónicas públicas e pôs vinte moedas de um xelim na prateleira. Tirou uma folha de papel do
bolso de trás e marcou o primeiro número da lista.
- Daily Mail- disse uma voz. - Notícias ou publicidade?
- Notícias - disse Alex, a quem pediram que esperasse enquanto passavam a sua chamada a uma repórter da secção noticiosa.
Falou com a senhora durante vários minutos sobre o infeliz incidente que tinha sofrido com a pasta de peixe Bingham, a sua marca favorita.
- Vai processá-los? - perguntou ela.

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- Ainda não decidi - disse Alex -, mas vou seguramente consultar o meu advogado.
- E como é que disse que se chamava?
- Samuel Oakshott - repetiu ele, sorrindo ao pensar como o falecido diretor da sua escola teria reprovado aquilo que ele estava a fazer.
A seguir, Alex telefonou para o Daily Express, News Chronicle, Daily Telegraph, Times e, para jogar pelo seguro, para o Bath Echo. A sua última chamada antes de regressar
a Bristol foi para Lady Virgínia, que disse:
- Eu sabia que podia confiar em si, major. Temos de nos encontrar um dia destes. Falar consigo é sempre tão divertido!
Ele pôs os dois xelins que lhe restavam no bolso, saiu do hotel e regressou ao parque de estacionamento. Na viagem de regresso a Bristol, decidiu que talvez fosse melhor não
voltar a visitar Bath nos tempos mais próximos.
Virgínia mandou comprar todos os jornais na manhã seguinte, à exceção do Daily Worker.
Ficou encantada com a cobertura dada ao Escândalo com a pasta de Peixe Bingham (Daily Mail). O senhor Robert Bingham, presidente da companhia, emitiu uma declaração a confirmar
que todos os stocks de Pasta de Peixe Bingham foram retirados das prateleiras e só serão substituídos depois de efetuada uma investigação exaustiva (The Times).
Um ministro-adjunto do Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação assegurou ao público que será realizada em breve uma inspeção à fábrica Bingham em Grimsby por especialistas
em higiene e segurança (Daily Express). As ações da Bingham caem cinco xelins nas primeiras transações da manhã (Financial Times).
Quando Virgínia acabou de ler os jornais todos, só esperava que Robert Bingham conseguisse adivinhar quem é que tinha sido o cérebro de toda a operação. Como gostaria de ter
tomado o pequeno-almoço em Mablethorpe Hall nessa manhã e de ter ouvido as opiniões de Priscilla sobre o infeliz incidente. Olhou para o relógio e, confiante de que Robert
já teria saído para a fábrica, pegou no telefone e marcou um número do Lincolnshire.
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- Minha querida Priscilla - disse ela efusivamente -, estava só a telefonar para dizer que fiquei extremamente triste ao ler as notícias sobre aquela situação desagradável
em Bath. Mas que pouca sorte!
- Que gentileza a tua, querida - disse Priscilla. - É em alturas como esta que vemos quem são os amigos.
- Bem, podes ter a certeza de que estarei sempre à distância de um telefonema, se alguma vez precisares de mim. E, por favor, transmite a Robert a minha solidariedade e votos
para que tudo corra bem. Espero que ele não fique muito desapontado por já não estar na calha para ser agraciado com o grau de cavaleiro.
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Toda a gente se pôs em pé quando Emma tomou o seu lugar à cabeceira da mesa da sala do conselho. Há algum tempo que ela ansiava por este momento.
- Meus senhores, permitam-me que abra a reunião informando o conselho que a cotação das ações da companhia voltou ontem ao seu valor mais alto, e os nossos acionistas irão
receber um dividendo pela primeira vez em três anos.
Murmúrios de "Muito bem!", acompanhados de sorrisos nos rostos de todos os administradores, exceto um.
- Agora, que deixámos o passado para trás, passemos ao futuro. Ontem, recebi o relatório preliminar do Departamento de Transporte sobre o estado de navegabilidade do Buckingham.
Sujeito a algumas pequenas modificações, e na sequência da conclusão dos testes de navegação, o departamento deve estar em condições de nos conceder um certificado de trabalho
marítimo no final do mês. Assim que estivermos na posse desse certificado, o navio sairá de Belfast com destino a Avonmouth. Meus senhores, é minha intenção realizar a próxima
reunião do conselho de administração na ponte do Buckingham, de modo que todos possamos visitar o navio e ver em primeira mão em que é que gastámos o dinheiro dos nossos acionistas.
Eu sei que o conselho de administração ficará igualmente encantado por saber que o secretário da companhia recebeu um telefonema de Clarence House no início da semana, a dizer
que Sua Majestade a rainha Isabel, a rainha-mãe, concordou em realizar a cerimónia de batismo a vinte e um de setembro. Não será exagero sugerir, meus
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senhores, que os próximos três meses estarão entre os mais exigentes da história da companhia, pois, embora o primeiro período de reservas tenha sido um sucesso retumbante,
restando apenas algumas cabinas disponíveis para a viagem inaugural, é o longo prazo que irá decidir o futuro da companhia. E tenho todo o prazer em responder a quaisquer
perguntas sobre esse assunto. Almirante?
- Senhora presidente, quero ser o primeiro a felicitá-la e a dizer que, embora ainda tenhamos algum caminho pela frente até chegarmos a águas calmas, o dia de hoje é seguramente
o mais gratificante de que me lembro nos vinte e dois anos em que faço parte deste conselho. Mas permitam-me que passe rapidamente para aquilo a que costumávamos chamar na
Marinha os pontos de navegação. Já escolheram um capitão da lista de três candidatos aprovada pelo conselho?
- Sim, almirante. A nossa escolha final recaiu no capitão Nicholas Turnbull da Royal Navy, que até há muito pouco tempo era o primeiro-oficial a bordo do Queen Mary. Temos
muita sorte em ter conseguido os serviços de um oficial experiente, e é capaz de ter ajudado o facto de ele ser nascido e criado em Bristol. Também temos uma equipa de oficiais,
muitos dos quais serviram sob as ordens do capitão Turnbull, quer na Royal Navy ou, mais recentemente, na Cunard.
- E o resto da tripulação? - perguntou Anscott. - No fim de contas, é um navio de cruzeiro, e não um cruzador de batalha!
- Bem visto, senhor Anscott. Penso que irá descobrir que estamos bem representados, desde a sala das máquinas ao restaurante. Ainda há alguns postos por preencher, mas como
estamos a receber pelo menos dez candidaturas para cada um deles, podemos ser extremamente seletivos.
- Qual é a proporção de passageiros em relação à tripulação? - perguntou Dobbs.
Pela primeira vez, Emma teve de consultar as notas que tinha à sua frente.
- A tripulação é composta por vinte e cinco oficiais, duzentos e cinquenta marinheiros, trezentos criados de bordo e pessoal de restauração, mais o médico de bordo e a sua
enfermeira. O navio está dividido em três classes: primeira, segunda e turística. Há acomodação

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para cento e dois passageiros em primeira classe, com os preços dos camarotes a ir das quarenta e cinco libras às sessenta para a mais luxuosa na travessia inaugural para
Nova Iorque; duzentos e quarenta e dois em segunda classe, que irão custar cerca de trinta libras cada; e trezentos e sessenta em turística, a dez libras cada um, com três
pessoas por cabina. Se precisar de mais pormenores, senhor Dobbs, encontrará tudo na segunda parte do seu dossiê azul.
- Como haverá seguramente um grande interesse da imprensa à volta da cerimónia de batismo a vinte e um de setembro - disse Fisher - e da viagem inaugural para Nova Iorque
no mês seguinte, quem é que ficará encarregado dos contactos com a imprensa e das relações públicas?
- Nomeámos J. Walter Thompson, que foi quem nos apresentou, de longe, a melhor proposta - disse Emma. - Já trataram das coisas para ter uma equipa de filmagem da BBC a bordo
do navio durante um dos testes no mar e para publicar o perfil do capitão Turnbull no Sunday Times.
- Nunca fiz esse tipo de coisa no meu tempo - resmungou o almirante.
- E tinha razões para isso. Não queríamos que o inimigo soubesse onde estava, mas agora queremos que os nossos passageiros não só saibam onde estamos, mas também sintam que
não podiam estar em melhores mãos.
- Qual é a percentagem de ocupação que precisamos para cobrir os custos? - perguntou Cedric Hardcastle, obviamente pouco interessado nas questões de relações públicas, mas
antes na linha do lucro ou prejuízo, como sempre.
- Sessenta por cento, tendo apenas em conta os custos de funcionamento. Mas se quisermos recuperar o nosso investimento no prazo de dez anos, como planeado por Ross Buchanan
quando era presidente, vamos precisar de uma taxa de ocupação de oitenta e seis por cento durante esse período. Portanto, não há lugar para a complacência, senhor Hardcastle.
Alex tomou nota das datas ou números que sentia poderem ter interesse para Don Pedro, embora continuasse sem saber porque é que eram tão importantes ou o que é que Don Pedro
tinha querido dizer com "quando as coisas ficarem feias".
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Emma continuou a responder às perguntas durante mais uma hora, e custava a Alex ter de admitir, embora nunca o fizesse em frente de Don Pedro, que ela dominava indiscutivelmente
o seu ofício.
Depois de ela ter encerrado a reunião com as palavras "Voltamos a ver-nos a 24 de agosto, na assembleia-geral anual", Alex abandonou rapidamente a sala e saiu do edifício.
Pela janela do último andar, Emma viu-o sair de carro do recinto, o que só serviu para lhe recordar que nunca se podia dar ao luxo de baixar a guarda.
Alex estacionou à porta do Lord Nelson e atravessou para ir à cabina telefónica, com quatro moedas na mão.
- O navio vai ser batizado pela rainha-mãe a vinte e um de setembro, e a viagem inaugural para Nova Iorque continua planeada para vinte e nove de outubro.
- Espero-o no meu escritório amanhã de manhã, às dez - foi a única coisa que Don Pedro disse antes de desligar.
Alex gostaria de lhe ter dito, só por uma vez, "Lamento, meu velho, mas não posso. Tenho um encontro muito mais importante a essa hora", mas sabia que estaria à porta do número
44 de Eaton Square quando faltasse um minuto para as dez da manhã seguinte.
24 Anadia Mansions
Bridge Street
Bristol
Cara senhora Clifton,
É com grande tristeza que tenho de apresentar a minha demissão como administrador não executivo do conselho de administração da Barrington Shipping. Na altura em que os outros
administradores votaram para avançar com a construção do Buckingham, a senhora opunha-se firmemente à ideia e, na verdade, até votou contra. Vejo agora, com a perspetiva que
o tempo nos dá, que a sua opinião era acertada. Como salientou na altura, arriscar uma percentagem tão grande das reservas da companhia num único empreendimento podia muito
bem vir a revelar-se uma decisão de que acabaríamos por nos vir a arrepender.
Desde que, após vários reveses, Ross Buchanan sentiu que se devia demitir - e bem, na minha opinião - e a senhora tomou o seu lugar, tenho de admitir que se tem batido corajosamente
para assegurar que a companhia continua solvente. No entanto, quando informou o conselho na semana passada de que, a menos que a taxa de ocupação das cabinas fosse de oitenta
e seis por cento durante os próximos dez

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anos, não haveria hipótese de recuperarmos o nosso investimento original, percebi que o projeto estava condenado e, receio bem, a companhia juntamente com ele.
Naturalmente, espero que se venha aprovar que estou enganado, pois entristecer-me-ia ver uma companhia tão antiga e prestigiada quanto a Barrington's soçobrar e até, que Deus
não o permita, enfrentar a hipótese de falência. Mas como creio que essa é uma forte possibilidade, a minha primeira responsabilidade deve ser para com os acionistas e, por
conseguinte, não me resta outra opção que não seja demitir-me.
Atenciosamente,
Alex Fisher (major reformado)
- E espera que eu envie esta carta à senhora Clifton no dia vinte e um de agosto, apenas três dias antes da assembleia-geral anual da companhia?
- Sim, é exatamente isso que espero que faça - disse Martinez.
- Mas se eu fizer isso, a cotação das ações vai afundar. Até é capaz de deitar a companhia abaixo.
- Está a perceber depressa, major.
- Mas o senhor tem mais de dois milhões de libras investidos na Barrington's. Pode arriscar-se a perder uma fortuna!
- Não se vender todas as minhas ações uns dias antes de o major divulgar essa carta à imprensa. - Alex ficou sem fala. - Ah - continuou Martinez - fez-se luz! Bem, percebo
que a nível pessoal, major, não sejam boas notícias, pois não só irá perder a sua única fonte de rendimento, como, com a idade que tem, é capaz de não ter muita facilidade
em arranjar outro emprego.
- Isso é um eufemismo - disse Alex. - Depois de enviar isto - acrescentou, brandindo a carta em frente de Don Pedro - nunca mais nenhuma companhia considerará a possibilidade
de me convidar para o seu conselho de administração, e não posso censurá-las.
- Por isso, achei que era justo - continuou Don Pedro, ignorando o seu acesso - que fosse convenientemente compensado pela sua lealdade, sobretudo depois de ter passado por
um divórcio tão dispendioso. Tendo isso em mente, major, pretendo pagar-lhe cinco mil libras em dinheiro de que nem a sua mulher nem o fisco precisam de saber.
- Isso é muito generoso - disse Alex.
246

- Concordo. No entanto, isso está dependente de entregar essa carta à presidente na sexta-feira anterior à assembleia-geral, uma vez que me informaram que os jornais de sábado
e domingo estarão desejosos de acompanhar a história. Também tem de estar disponível para ser entrevistado na sexta-feira, de modo a poder expressar a sua ansiedade em relação
ao futuro da Barrington's, de tal forma que, quando a senhora Clifton der início à assembleia-geral na segunda-feira de manhã, haja apenas uma pergunta nos lábios dos jornalistas.
- Quanto tempo é que a companhia espera sobreviver? - disse Alex. - Mas dadas as circunstâncias, Don Pedro, será que podia avançar-me duas mil libras e pagar o resto depois
de eu ter enviado a carta e despachado as entrevistas para a imprensa?
- Nem pensar, major. Ainda me deve mil pelo voto da sua mulher.
- Tem noção, senhor Martinez, do prejuízo que isto irá causar à Barrington Shipping?
- Não lhe pago para me dar conselhos, senhor Ledbury, apenas para executar as minhas instruções. Se não consegue fazer isso, tenho de encontrar alguém que consiga..
- Mas se eu executar essas instruções, há uma forte possibilidade de o senhor vir a perder muito dinheiro.
- O dinheiro é meu e, de qualquer forma, as ações da Barrington estão a ser transacionadas acima do preço que paguei originalmente por elas, por isso estou convencido de que
irei recuperar a maior parte do dinheiro. Na pior das hipóteses, sou capaz de perder algumas libras.
- Mas se me permitisse vender as ações durante um período mais longo, digamos seis semanas ou mesmo dois meses, estaria mais confiante de conseguir recuperar o seu investimento
original, até possivelmente de lhe conseguir um pequeno lucro.
- Eu gasto o dinheiro como quero.
- Mas é meu dever fiduciário proteger a posição do banco, sobretudo lembrando que tem presentemente um saque a descoberto de 735 000 libras.

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- Isso está coberto pelo valor das ações, que à sua cotação atual me renderiam mais de dois milhões.
- Então, pelo menos, deixe-me abordar a família Barrington e perguntar se eles...
- Em nenhuma circunstância deverá contactar qualquer membro das famílias Barrington ou Clifton! - gritou Don Pedro. - Vai colocar todas as minhas ações no mercado aberto assim
que a bolsa abrir na segunda-feira, dezassete de agosto, e aceitar o preço que estiverem a oferecer na altura. As minhas instruções não podiam ser mais claras.
- Onde estará nesse dia, senhor Martinez, caso eu precise de entrar em contacto consigo?
- Exatamente onde seria de esperar encontrar qualquer cavalheiro: a caçar galos silvestres, na Escócia. Não haverá forma de me contactar, e foi por isso que escolhi esse lugar.
É tão isolado que nem entregam os jornais matutinos.
- Se são essas as suas instruções, senhor Martinez, vou redigir uma carta para esse efeito, para que não possa haver mal-entendidos em data posterior. Vou enviá-la por estafeta
a Eaton Square, esta tarde, para que o senhor a assine.
- Terei todo o gosto em assiná-la.
- E assim que esta transação estiver concluída, senhor Martinez, talvez possa considerar a hipótese de mudar a sua conta para outro banco.
- Se ainda conservar o seu emprego, senhor Ledbury, assim farei.
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29
Susan estacionou o carro numa rua lateral e esperou. Sabia que o convite para o jantar do regimento dizia 7h30-8h00 e, como o convidado de honra era um marechal de campo,
tinha a certeza de que Alex não se atrasaria.
Às 7h10, um táxi parou à porta da sua antiga morada de casada. Alex apareceu passados alguns momentos. Trajava um smoking que exibia três medalhas de campanha. Susan notou
que ele tinha o laço torto e que lhe faltava um botão de peito da camisa, e não pôde deixar de rir quando viu o par de sapatos que não iam seguramente durar uma vida. Alex
subiu para a parte de trás do táxi, que partiu em direção a Wellington Road.
Susan esperou alguns minutos até levar o carro até lá, sair e abrir a porta da garagem. Depois, estacionou o jaguar Mark II lá dentro. Parte do acordo de divórcio determinava
que ela tinha de lhe devolver o seu orgulho e alegria, mas ela recusara-se até ele ter o pagamento da pensão de alimentos em dia. Susan tinha depositado o seu último cheque
nessa manhã, perguntando-se de onde é que teria vindo o dinheiro. O advogado de Alex sugerira que ela devolvesse o carro enquanto ele estava no jantar do regimento. Uma das
poucas coisas em que ambas as partes conseguiram estar de acordo.
Ela saiu do carro, abriu o porta-bagagens e tirou para fora uma faca Stanley e uma lata de tinta. Depois de ter posto a lata de tinta no chão, Susan foi até à parte da frente
do carro e espetou a faca num dos pneus. Recuou um passo e esperou que o silvo parasse, antes de passar ao próximo. Depois de furar todos os pneus, centrou a sua atenção na
lata de tinta.

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Abriu a tampa, pôs-se em bicos dos pés e despejou lentamente o líquido espesso sobre o tejadilho do carro. Quando se convenceu de que não sobrara uma única gota, recuou e
gozou a sensação de ver a tinta escorrer lentamente pelos lados, assim como por cima dos vidros da frente e de trás. Devia secar muito antes de Alex voltar do jantar. Susan
tinha passado bastante tempo a escolher a cor que melhor ficaria com verde-escuro e decidira-se finalmente pelo lilás. O resultado ainda era melhor do que ela julgara possível.
Tinha sido a mãe dela que passara horas a ler as letras miudinhas do acordo de divórcio e chamara a atenção de Susan para o facto de ela ter concordado em devolver o carro,
mas sem especificar em que estado.
Susan ainda levou algum tempo até se afastar da garagem para subir ao terceiro andar, com a intenção de deixar as chaves do carro no escritório, em cima da secretária. Só
tinha pena de não poder ver a cara de Alex quando abrisse a porta da garagem, na manhã seguinte.
Susan entrou no apartamento com a sua antiga chave, satisfeita por Alex não ter mudado a fechadura. Foi até ao escritório e largou as chaves em cima da secretária. Preparava-se
para ir embora quando reparou numa carta escrita na caligrafia inconfundível de Alex, em cima do mata-borrão. A curiosidade levou a melhor. Debruçou-se e leu rapidamente a
carta particular e confidencial, depois sentou-se na cadeira dele e leu-a mais lentamente uma segunda vez. Tinha dificuldade em acreditar que Alex fosse sacrificar o seu lugar
no conselho de administração da Barrington's por uma questão de princípio. No fim de contas, Alex não tinha princípios, e como era a sua única fonte de rendimento para além
de uma miserável pensão do exército, de que é que ia viver? Mais importante ainda, como é que lhe ia pagar a pensão de alimentos sem os seus honorários de administrador?
Susan leu a carta uma terceira vez, perguntando-se se lhe estaria a escapar alguma coisa. Não percebia porque é que estava datada de 21 de agosto. Se uma pessoa se vai demitir
por uma questão de princípio, porquê esperar quinze dias para clarificar a sua posição?
Na altura em que Susan já estava de volta a Burnham-on-Sea, Alex estava a ouvir o marechal de campo, mas ela continuava sem perceber.
250

Sebastian desceu lentamente a Bond Street, admirando os diversos artigos expostos nas montras e pensando se alguma vez teria dinheiro para comprar um deles.
O senhor Hardcastle tinha-lhe dado recentemente um aumento. Ganhava agora vinte libras por semana, o que fazia dele um "homem de mil libras anuais" segundo a gíria da City,
e também tinha uma nova categoria profissional, diretor associado - muito embora as categorias profissionais não significassem grande coisa no mundo bancário, a menos que
se fosse presidente do conselho de administração.
Viu ao longe uma tabuleta a bater com o vento, Agnew's Fine Art Dealers, fundado em 1817. Sebastian nunca tinha entrado numa galeria de arte privada, e nem sequer tinha a
certeza se estaria aberta ao público. Tinha estado com Jessica na Real Academia, na Tate e na National Gallery, e ela nunca parara de falar enquanto o arrastava de sala em
sala. Isso costumava deixá-lo de cabeça perdida, às vezes. Quem lhe dera que ela estivesse ali ao seu lado, a fazê-lo perder a cabeça. Não passava um dia, uma hora, em que
não sentisse a falta dela.
Abriu a porta da galeria e entrou. Ficou especado por um momento, a olhar à volta da sala espaçosa com as paredes cobertas de óleos magníficos, alguns dos quais reconheceu
- Constable, Munnings e um Stubbs. De repente, ela surgiu do nada, parecendo ainda mais bonita do que quando ele a vira pela primeira vez naquela noite na Slade, quando Jessica
tinha arrecadado todos os prémios na cerimónia de licenciatura.
Ao vê-la vir ao seu encontro, ficou com a garganta seca. Como é que se fala com uma deusa? Ela usava um vestido amarelo, simples mas elegante, e o seu cabelo tinha um tom
de louro natural que qualquer mulher que não fosse sueca pagaria uma fortuna para reproduzir, e havia muitas que tentavam. Hoje, estava preso com ganchos, num estilo formal
e profissional, e não solto sobre os ombros nus como da última vez que a vira. Queria dizer-lhe que não tinha ido ali para ver os quadros, mas só para estar com ela. Que deixa
mais sem graça! E nem sequer era verdade.
- Posso ajudá-lo?

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A primeira surpresa foi perceber que ela era americana, portanto não era obviamente filha do senhor Agnew, como ele presumira inicialmente.
- Sim - disse ele. - Queria saber se terão algum quadro de uma artista chamada Jessica Clifton.
Ela pareceu surpreendida, mas sorriu e disse:
- Sim, temos. Quer fazer o favor de me seguir?
Até ao fim do mundo. Uma deixa ainda mais patética, que ficou satisfeito por não ter usado. Alguns homens pensam que uma mulher pode ser igualmente bonita quando vista por
trás. Para ele tanto fazia, enquanto a seguia escada abaixo até outra grande sala que exibia quadros igualmente impressionantes. Graças a Jessica, reconheceu um Manet, um
Tissot e a sua artista preferida, Berthe Morisot. Ela não teria sido capaz de parar de falar.
A deusa abriu uma porta que ele não tinha visto e que levava a uma sala contígua de menores dimensões. Juntou-se-lhe e descobriu que a sala estava repleta de filas e filas
de calhas deslizantes. Ela escolheu uma e puxou-a para fora, revelando um lado dedicado aos óleos de Jessica. Ele fitou as nove obras premiadas da exposição de licenciatura,
assim como uma dúzia de desenhos e aguarelas que nunca tinha visto, mas que eram igualmente sedutores. Por um momento, sentiu exaltação e, depois, as suas pernas fraquejaram.
Agarrou-se à calha para se amparar.
- Sente-se bem? - perguntou ela, com o tom profissional a dar lugar a inflexões mais gentis e suaves.
- Peço imensa desculpa.
- Porque é que não se senta? - sugeriu ela, pegando numa cadeira e colocando-a ao lado dele. Ao sentar-se, ela pegou-lhe no braço como se fosse um velhote, e tudo o que ele
queria era agarrar-se a ela. Porque será que os homens se apaixonam tão rápida e irremediavelmente, ao passo que as mulheres são muito mais cautelosas e sensatas?, pensou.
- Vou buscar-lhe um pouco de água - disse ela, e foi-se embora antes que ele pudesse responder.
Olhou uma vez mais para os quadros de Jessica, tentando decidir se tinha um preferido e, se assim fosse, se teria dinheiro para o
252

comprar. Depois, ela voltou a aparecer com um copo de água, acompanhada de um homem mais velho, de quem ele se lembrava da noite na Slade.
- Bom dia, senhor Agnew - disse Sebastian, enquanto se levantava da cadeira. O proprietário da galeria pareceu surpreendido, claramente incapaz de identificar o jovem. - Conhecemo-nos
na Slade, senhor, quando foi à cerimónia de licenciatura.
Agnew continuou com ar perplexo até que acabou por dizer:
- Ah, sim, agora já me lembro! É irmão de Jessica.
Sebastian sentiu-se um perfeito idiota enquanto se voltava a sentar e a enterrar a cabeça entre as mãos. Ela foi ter com ele e pôs-lhe uma mão no ombro.
- Jessica era uma das pessoas mais encantadoras que já conheci - disse ela. - Sinto muito.
- E eu lamento estar a fazer esta figura de parvo. Eu só queria saber se tinha algum dos quadros dela para venda.
- Tudo o que se encontra nesta galeria está para venda - disse Agnew, tentando desanuviar o ambiente.
- Quanto custam?
- Todos?
- Todos.
- Ainda não marquei o preço, pois esperávamos que Jessica viesse a ser uma das artistas regulares da galeria, mas infelizmente... Sei o que me custaram: cinquenta e oito libras.
- E quanto valem?
- Aquilo que alguém pagar por eles - respondeu Agnew.
- Daria todo o dinheiro que tenho para ficar com eles. O senhor Agnew pareceu esperançado.
- E quanto é isso, senhor Clifton?
- Consultei o meu saldo bancário esta manhã porque sabia que vinha cá. - Ambos olharam para ele. - Tenho quarenta e seis libras, doze xelins e seis dinheiros na conta corrente,
mas, como trabalho no banco, não tenho a facilidade de saque a descoberto.
- Então são quarenta e seis libras, doze xelins e seis dinheiros, senhor Clifton.

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Se houve pessoa que pareceu ficar ainda mais surpreendida do que Sebastian, essa pessoa foi a assistente da galeria, que nunca tinha visto o senhor Agnew vender um quadro
por menos dinheiro do que pagara por ele.
- Mas com uma condição.
Sebastian ficou a pensar se ele teria mudado de ideias.
- E qual é, senhor?
- Se alguma vez decidir vender algum dos quadros da sua irmã, primeiro tem de oferecer-mo pelo mesmo preço que pagou por ele.
- Negócio fechado - disse Sebastian, ao mesmo tempo que trocavam um aperto de mão. - Mas nunca os venderei - acrescentou. - Nunca!
- Nesse caso, vou pedir a Miss Sullivan para passar uma fatura no valor de quarenta e seis libras, doze xelins e seis dinheiros. - Ela fez um ligeiro aceno de cabeça e saiu
da sala. - Não quero de forma alguma fazê-lo chorar outra vez, meu jovem, mas na minha profissão é preciso muita sorte para encontrar um talento como o de Jessica duas ou
três vezes na vida.
- É muito amável em dizer isso, senhor - disse Sebastian quando Miss Sullivan voltava a entrar, trazendo um livro de faturas.
- Queira fazer o favor de me desculpar - disse o senhor Agnew. - Tenho a inauguração de uma grande exposição na semana que vem, e ainda não acabei de fixar os preços.
Sebastian sentou-se e passou um cheque no valor de £46 12x 6d, rasgou-o do livro e entregou-o à assistente.
- Se eu tivesse quarenta e seis libras, doze xelins e seis dinheiros - disse ela - também os teria comprado. Oh, lamento imenso - apressou-se a acrescentar quando Sebastian
inclinou a cabeça. - Vai levá-los consigo ou volta cá depois?
- Volto amanhã, isto é, se estiverem abertos ao sábado.
- Sim, estamos - disse ela -, mas vou ter uns dias de folga, por isso vou pedir à senhora Clark que trate do assunto.
- Quando é que volta ao trabalho?
- Quinta-feira.
- Então, venho na quinta-feira de manhã.
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Ela sorriu com um tipo de sorriso diferente, antes de o guiar novamente escada acima. Foi nessa altura que ele viu a escultura pela primeira vez, na outra ponta da galeria.
- O Pensador - disse ele. Ela acenou afirmativamente. - Há quem diga que é a melhor obra de Rodin. Sabia que foi originalmente chamada O Poeta? - Ela pareceu surpreendida.
- E se bem me lembro, caso seja uma das réplicas contemporâneas de Rodin, deve ter sido feita por Alexis Rudier.
- Agora está a exibir-se!
- Culpado - admitiu Sebastian -, mas tenho boas razões para me lembrar desta peça em particular.
- Jessica?
- Não, desta vez não. Posso perguntar qual é o número da escultura?
- Cinco, de nove.
Sebastian tentou manter-se calmo, pois precisava de respostas para mais algumas perguntas, mas não queria que ela ficasse desconfiada.
- Quem era o anterior proprietário? - perguntou.
- Não faço ideia. A peça está listada no catálogo como propriedade de um cavalheiro.
- O que é que isso significa?
- Que o cavalheiro em questão não quer que se saiba que se está a desfazer da sua coleção. Temos muitos clientes assim, motivados por três circunstâncias: morte, divórcio
ou dívidas. Mas devo avisá-lo de que não vai conseguir que o senhor Agnew lhe venda O Pensador por quarenta e seis libras, doze xelins e seis dinheiros.
Sebastian riu-se.
- Quanto custa? - perguntou, tocando no braço direito dobrado da estátua.
- O senhor Agnew ainda não acabou de fixar os preços da coleção, mas posso dar-lhe um catálogo, se quiser, e um convite para a pré-inauguração a dezassete de agosto.
- Obrigado - disse Sebastian enquanto ela lhe entregava um catálogo. - Fico ansioso por voltar a vê-la na quinta-feira. - Ela

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sorriu. - A menos que... - Ele hesitou, mas ela não o ajudou. - A menos que esteja livre para jantar comigo amanhã à noite.
- Irresistível - disse ela -, mas é melhor ser eu a escolher o restaurante.
- Porquê?
- Porque sei com quanto dinheiro ficou no banco.
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- Mas porque é que ele havia de querer vender a coleção de arte? - perguntou Cedric.
- Deve precisar de dinheiro.
- Isso é óbvio, Seb, mas o que não percebo é por que razão precisa do dinheiro. - Cedric continuou a folhear as páginas do catálogo, mas sabia tanto como antes quando chegou
a Uma feira em Hermitage, perto de Pontoise, de Camille Pissarro, ilustrado na contracapa. - Talvez tenha chegado a altura de cobrar um favor.
- O que tem em mente?
- Quem, e não o que - disse Cedric. - Um tal senhor Stephen Ledbury, o gerente do Midland Bank, St. James's.
- O que é que ele tem de tão especial? - perguntou Sebastian.
- É o gerente bancário de Martinez.
- Como é que sabe?
- Quando nos sentamos ao lado do major Fisher nas reuniões do conselho de administração durante mais de cinco anos, é espantoso o que ficamos a saber se formos pacientes e
estivermos dispostos a ouvir uma alma solitária. - Cedric ligou à secretária. - É capaz de me ligar a Stephen Ledbury, no Midland? - Virou-se para Sebastian. - Desde que descobri
que ele é o gerente bancário de Martinez, tenho-lhe feito um ou outro favor. Talvez esteja na altura de ele retribuir.
O telefone na secretária de Cedric tocou.
- O senhor Ledbury na linha um.
- Obrigado - disse Cedric, depois esperou pelo clique, antes de premir o botão de alta voz. - Boa tarde, Stephen.

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- Boa tarde, Cedric. O que posso fazer por si?
- Creio que é mais o que é que eu posso fazer por si, meu amigo.
- Outra boa dica? - disse Ledbury em tom esperançoso.
- Isto está mais na categoria ajudara-cobrir-a-retaguarda. Soube que um dos seus clientes menos respeitáveis está a pôr à venda toda a sua coleção de arte na Agnew's, em Bond
Street. Como o catálogo descreve a coleção como "a propriedade de um cavalheiro", o que é uma designação imprópria a todos os títulos, presumo que por alguma razão não quer
que Stephen descubra.
- O que é que o leva a pensar que esse cavalheiro tem conta na filial de West End?
- O facto de me sentar ao lado do seu representante no conselho de administração da Barrington Shipping.
Houve uma longa pausa antes de Ledbury dizer:
- Ah, e diz que ele pôs toda a sua coleção à venda na Agnew's?
- De Manet a Rodin. Estou a olhar agora para o catálogo, e tenho dificuldade em acreditar que reste alguma coisa nas paredes da casa em Eaton Square. Quer que lhe envie o
catálogo?
- Não, não se mace, Cedric. A Agnew's fica a escassas centenas de metros mais acima, por isso vou passar por lá e trazer um. Fez muito bem em dizer-me e fico novamente em
dívida para consigo. Se alguma vez houver alguma coisa que eu possa fazer para retribuir...
- Bem, já que fala nisso, Stephen, sou capaz de aproveitar para lhe pedir um pequeno favor.
- É só dizer.
- Se o "cavalheiro" alguma vez decidir desfazer-se das suas ações na Barrington Shipping, tenho um cliente que é capaz de estar interessado.
Seguiu-se um longo silêncio antes de Ledbury perguntar:
- Haverá alguma possibilidade de esse cliente ser membro das famílias Barrington ou Clifton?
- Não, eu não represento nenhuma delas. Creio que vai descobrir que têm conta no Barclays, em Bristol, ao passo que o meu cliente é do norte de Inglaterra.
Outro longo silêncio.
258

- Onde vai estar às nove horas de segunda-feira, dezassete de agosto?
- A secretária - disse Cedric.
- Ótimo. Nessa manhã, sou capaz de lhe telefonar às nove horas e um minuto e pode ser que consiga retribuir vários dos seus favores.
- É muito amável, Stephen, mas falemos de assuntos mais importantes. Como é que vai a sua desvantagem no golfe?
- Continua nos onze, mas tenho a sensação de que passará para doze no início da próxima época. Não vou para novo!
- Nenhum de nós vai - disse Cedric. - Desejo-lhe um bom jogo no fim de semana e fico ansioso por ter notícias suas - consultou o calendário - daqui a dez dias. - Premiu o
botão na parte lateral do telefone e olhou para o seu diretor associado mais jovem. - Diz-me o que ficaste a saber com isto, Seb.
- Que Martinez é muito bem capaz de pôr todas as suas ações da Barrington's no mercado às nove horas do dia 17 de agosto.
- Exatamente uma semana antes de a tua mãe presidir à assembleia-geral anual da companhia.
- Oh, não! - disse Sebastian.
- Ainda bem que percebeste o que Martinez está a tramar. Mas nunca te esqueças, Seb, que em qualquer conversa, é muitas vezes aquilo que parece insignificante na altura que
te dá a informação que procuras. O senhor Ledbury teve a bondade de me presentear com duas preciosidades dessas.
- Qual foi a primeira?
Cedric olhou para o bloco de notas e leu em voz alta:
- Não se mace, Cedric. A Agnew's fica a escassas centenas de metros mais acima, por isso eu próprio vou passar por lá e trazer um. O que é que isso nos diz?
- Que ele não sabia que a coleção de Martinez estava à venda.
- Sim, isso é garantido, mas, mais importante ainda, diz-nos que, por alguma razão, o facto de estar à venda o preocupa, caso contrário teria mandado um funcionário buscar
o catálogo, mas não, eu próprio vou passar por lá e trazer um.
- E a segunda coisa?

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- Ele perguntou se o banco representava as famílias Clifton ou Barrington.
- Porque é que isso é importante?
- Porque se eu tivesse dito que sim, a conversa teria ficado por ali. Tenho a certeza de que Ledbury recebeu instruções para pôr as ações à venda no dia dezassete, mas para
não as vender a um membro da família.
- E porque é isso assim tão importante?
- É óbvio que Martinez não quer que a família saiba o que ele está a tramar. Ele tem esperança de recuperar a maior parte do seu investimento na Barrington's durante o período
anterior à assembleia-geral anual, altura em que parece estar confiante de que a cotação das ações terá caído sem que ele tenha perdido muito dinheiro. Se ele fizer as coisas
na altura certa, todos os corretores vão tentar livrar-se das ações da Barrington's, e isso irá assegurar que a assembleia-geral é assaltada por jornalistas a quererem saber
se a companhia está em vias de falência. E, nesse caso, não será a notícia do batismo do Buckingham ter sido feito pela rainha-mãe que fará as primeiras páginas no dia seguinte.
- Podemos fazer alguma coisa para impedir isso? - perguntou Sebastian.
- Sim, mas temos de nos certificar de que o nosso sentido de oportunidade é ainda melhor do que o de Martinez.
- Mas há qualquer coisa que não está bem. Se Martinez tem probabilidade de recuperar a maior parte do dinheiro na venda das ações, porque é que também precisa de vender a
coleção de arte?
- Concordo que isso é um mistério. E tenho a sensação de que, quando o resolvermos, tudo o resto encaixará na perfeição. Se souberes fazer a pergunta certa à jovem que te
vai levar a jantar amanhã à noite, também é possível que consigamos encaixar mais uma ou duas peças do puzzle. Mas lembra-te do que te acabei de dizer: um comentário franco
revela-se muitas vezes tão valioso como uma resposta a uma pergunta direta. A propósito, como é que se chama a jovem?
- Não sei - disse Sebastian.
Susan Fisher sentou-se na quinta fila de uma assistência compacta e escutou atentamente aquilo que Emma Clifton tinha a dizer sobre
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a sua vida como presidente de uma importante companhia de navegação, no seu discurso durante a reunião anual da Associação de Antigas Alunas da Red Maids'. Embora Emma ainda
fosse uma mulher muito bem-parecida, Susan viu que lhe tinham começado a aparecer pequenas rugas à volta dos olhos e que a cabeleira negra e farta que as suas colegas tanto
invejavam precisava agora de alguma ajuda para conservar o seu tom escuro e não revelar os estragos que a dor e o stresse lhe teriam seguramente infligido.
Susan sempre assistira às reuniões da escola e estava particularmente ansiosa por esta, pois era uma grande admiradora de Emma Barrington, como ela se lembrava dela. Tinha
sido aluna exemplar, tinha ganho um lugar em Oxford e tornara-se a primeira mulher presidente de uma companhia cotada em bolsa.
No entanto, houve uma coisa que a intrigou no discurso de Emma. A carta de demissão de Alex sugeria que a companhia tinha tomado uma série de más decisões e podia estar a
braços com a falência, ao passo que Emma deu a ideia de que a Barrington's podia contar com um futuro risonho, uma vez que o primeiro período de reservas para o Buckingham
tinha sido um autêntico sucesso. Não podiam ter ambos razão, e ela não tinha dúvidas quanto a saber em qual dos dois queria acreditar.
Durante a receção que se seguiu ao discurso, foi impossível chegar perto da oradora, que estava rodeada de velhas amigas e novas admiradoras. Susan não se deu ao trabalho
de esperar na fila, mas decidiu pôr a conversa em dia com algumas colegas do seu tempo. Sempre que o assunto vinha à baila, tentava evitar responder a quaisquer perguntas
sobre Alex. Passada uma hora, Susan decidiu ir-se embora, uma vez que tinha prometido estar de volta a Burnham-on-Sea a tempo de cozinhar o jantar para a mãe. Preparava-se
para sair do salão da escola quando alguém atrás dela disse:
- Olá, Susan. - Olhou para trás, surpreendida por ver Emma Clifton a caminhar em direção a ela.
- Não teria podido fazer aquele discurso, sem a sua ajuda. Foi muito corajosa, pois nem imagino o que é que Alex lhe disse quando chegou a casa, nessa tarde.

261
- Eu não esperei para saber - disse Susan -, pois já tinha decidido que ia deixá-lo. E agora que sei que a companhia se está a sair bem, ainda fico mais contente por lhe ter
dado o meu apoio.
- Ainda temos seis meses muito exigentes à nossa frente - admitiu Emma -, mas se conseguirmos ultrapassar isso, sentir-me-ei muito mais confiante.
- Tenho a certeza que sim - disse Susan. - Só tenho pena que Alex esteja a pensar demitir-se num momento tão importante da história da companhia.
Emma parou quando se preparava para entrar no carro e virou-se para ela.
- Alex está a pensar demitir-se?
- Pensava que sabia.
- Não fazia ideia - disse Emma. - Quando é que ele lhe disse isso?
- Não disse. Vi por acaso uma carta que ele tinha na secretária, a apresentar a demissão, o que me surpreendeu porque sei o quanto ele gosta de estar no conselho de administração.
Mas como a carta estava datada de vinte e um de agosto, talvez ele ainda não se tenha decidido.
- É melhor falar com ele.
- Não, por favor, não faça isso - implorou Susan. - Eu não devia ter visto a carta.
- Então, não direi nada. Mas consegue lembrar-se das razões que ele dava?
- Não consigo recordar as suas palavras exatas, mas havia qualquer coisa acerca da sua primeira responsabilidade ser para com os acionistas e que, por uma questão de princípio,
alguém lhes tinha de dizer que a companhia podia estar prestes a enfrentar a hipótese de falência. Mas agora, que ouvi o seu discurso, isso não faz sentido.
- Quando é que vai voltar a ver o Alex?
- Nunca, espero eu - disse Susan.
- Então, podemos manter isto entre nós?
- Sim, por favor. Não quero que ele descubra que falei consigo sobre a carta.
- Nem eu - disse Emma.
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- Onde é que vai estar às nove horas de segunda-feira, dia dezassete?
- No mesmo sítio onde me encontra todas as manhãs, às nove horas, a vigiar com cuidado os dois mil frascos de pasta de peixe que saem da linha de produção a cada hora. Mas
onde é que queria que eu estivesse?
- Perto de um telefone, porque eu vou telefonar a aconselhá-lo a fazer um investimento substancial numa companhia de navegação.
- Então, o seu pequeno plano está a concretizar-se.
- Ainda não - replicou Cedric. - Ainda há algumas coisas por afinar e, mesmo depois disso, vou precisar de ter um ótimo sentido de oportunidade.
- Se for bem-sucedido, será que Lady Virgínia vai ficar furiosa?
- Vai ficar absolutamente furibunda, meu querido. Bingham riu-se.
- Então, estarei junto ao telefone quando faltar um minuto para as nove, na próxima segunda-feira - consultou a agenda -, dezassete de agosto.
- Escolheu a coisa mais barata que havia na ementa por ser eu
a pagar?
- Não, claro que não - disse Sebastian. - Sopa de tomate e uma folha de alface sempre foram a minha comida favorita.
- Então, deixe-me tentar adivinhar as suas segundas escolhas - disse Samantha, olhando para o empregado de mesa. - Queremos ambos o melão com presunto San Daniele, seguido
de dois bifes.
- Como quer o seu bife, minha senhora?
- Médio, por favor.
- E o senhor?
- Como é que eu quero o bife, minha senhora? - imitou Sebastian, sorrindo-lhe.
- Ele também quer médio.
- Então...
263
- Como...
- Não, primeiro o Sebastian - disse ela.
- Então, o que é que traz uma americana a Londres?
- O meu pai é diplomata e foi colocado aqui recentemente, por isso achei que seria divertido passar um ano em Londres.
- E o que faz a sua mãe, Samantha?
- Sam, tirando a minha mãe, toda a gente me trata por Sam. O meu pai esperava que eu fosse um rapaz.
- Bem, falhou de forma espetacular.
- É cá um engatatão!
- E a sua mãe? - repetiu Sebastian.
- É à moda antiga, limita-se a tomar conta do meu pai.
- Ando à procura de alguém assim.
- Desejo-lhe sorte.
- Porquê uma galeria de arte?
- Estudei história de arte em Georgetown, e depois decidi parar durante um ano.
- Então, o que pensa fazer a seguir?
- Começo a trabalhar no meu doutoramento em setembro.
- Qual vai ser o tema?
- Rubens: Artista ou Diplomata?
- Não era ambas as coisas?
- Vai ter de esperar dois anos para saber.
- Em que universidade? - disse Sebastian, esperando que ela não regressasse à América daí a poucas semanas.
- Londres ou Princeton. Ofereceram-me lugar em ambas, mas ainda não me decidi. E o Sebastian?
- Não me ofereceram lugar em nenhuma delas.
- Não, pateta, o que é que faz?
- Entrei para o banco depois de ter parado durante um ano - disse ele, enquanto o empregado de mesa regressava e punha dois pratos de melão com presunto à frente deles.
- Então, não foi para a universidade?
- É uma longa história - disse Sebastian. - Talvez lha conte noutra altura - acrescentou, enquanto esperava que ela pegasse na faca e no garfo.
264

- Ah, então está confiante de que haverá outra altura.
- Absolutamente. Tenho de ir à galeria na quinta-feira para ir buscar os quadros de Jess, e na segunda-feira seguinte convidou-me para a inauguração da coleção de arte do
cavalheiro desconhecido. Ou já sabe quem ele é?
- Não, só o senhor Agnew é que sabe. A única coisa que lhe posso dizer é que ele não vai à inauguração.
- É óbvio que não quer que descubram quem ele é.
- Ou onde está - disse Sam. - Nem sequer o podemos contactar para lhe dizer como é que correu a inauguração, porque ele vai estar ausente durante uns dias, a caçar na Escócia.
- Cada vez mais curioso - disse Sebastian, enquanto levavam os seus pratos vazios.
- Então, o que faz o seu pai?
- É especialista em contar histórias.
- Não o é a maioria dos homens?
- Sim, mas ele é pago para isso.
- Então, deve ter muito sucesso.
- Número um na lista dos mais vendidos do New York Times - disse Sebastian com orgulho.
- Harry Clifton, é claro!
- Já leu os livros do meu pai?
- Não, devo confessar que não, mas a minha mãe devora-os. Na verdade, ofereci-lhe o William Warwick e a Espada de Dois Gumes pelo Natal - disse ela, ao mesmo tempo que lhes
punham dois bifes à frente. - Bolas! Esqueci-me de pedir o vinho.
- Água serve perfeitamente - disse Sebastian. Sam ignorou-o.
- Meia garrafa de Fleurie - disse ela ao empregado de mesa.
- É tão mandona.
- Porque é que uma mulher é sempre descrita como mandona, ao passo que se fosse um homem a fazer a mesma coisa seria considerado uma pessoa decidida, assertiva e revelando
qualidades de liderança?
- É feminista!
- E como é que não havia de ser - disse Samantha - depois do que vocês, homens, têm feito durante os últimos mil anos?

265
- Alguma vez leu A Fera Amansada? - perguntou Seb com um sorriso.
- Escrito por um homem há quatrocentos anos, quando nem sequer era permitido a uma mulher desempenhar o papel principal. E se Kate fosse hoje viva, provavelmente seria primeiro-ministro.
Sebastian desatou a rir.
- Tem de conhecer a minha mãe. Ela é tão mandona, desculpe, decidida, como a Samantha.
- Já lhe disse que só a minha mãe é que me trata por Samantha. E o meu pai, quando está zangado comigo.
- Já gosto da sua mãe.
- E a sua?
- Eu adoro a minha mãe.
- Não, pateta, o que é que ela faz?
- Trabalha para uma companhia de navegação.
- Parece interessante. Que tipo de trabalho?
- Trabalha no gabinete do presidente - disse ele, enquanto Samantha provava o vinho.
- É mesmo isto que ele queria - disse ela ao empregado de mesa, que encheu dois copos. Ela ergueu o dela. - Como é que dizem os ingleses?
- Saúde! - disse Sebastian. - E os americanos?
- Estou de olho em ti, miúda.
- Se isso pretendia ser uma imitação de Humphrey Bogart, foi horrível.
- Bem, fale-me sobre Jessica. Sempre foi óbvio o quão talentosa era?
- Não, nem por isso, porque para começar não havia ninguém com quem a comparar. Bem, pelo menos até ter entrado para a Slade.
- Creio que nem nessa altura isso mudou - disse Sam.
- Sempre se interessou por arte?
- Comecei por querer ser artista, mas os deuses decidiram de outra forma. Sempre quis ser banqueiro?
- Não. Tinha planeado ir para o corpo diplomático, como o seu pai, mas não resultou.
O empregado regressou à mesa deles.
266

- Quer sobremesa, minha senhora? - perguntou ele, enquanto recolhia os pratos vazios.
- Não, obrigado - disse Sebastian. - Ela não tem dinheiro para isso.
- Mas eu era capaz de querer...
- Ela é capaz de querer a conta - disse Sebastian.
- Sim, senhor.
- E agora, quem é mandão? - disse Samantha.
- Não acha que as conversas nos primeiros encontros são sempre muito estranhas?
- Isto é um primeiro encontro?
- Espero que sim - disse Sebastian, perguntando-se se se atreveria a tocar-lhe na mão.
Samantha brindou-o com um sorriso tão caloroso que ele se sentiu suficientemente confiante para dizer:
- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Sim, claro, Seb.
- Tem namorado?
- Sim, tenho - respondeu ela com uma voz bastante séria. Sebastian não conseguiu esconder o seu desapontamento.
- Fale-me sobre ele - lá conseguiu dizer, ao mesmo tempo que o empregado de mesa regressava com a conta.
- Vai à galeria na quinta-feira para ir buscar uns quadros e eu convidei-o para ir à inauguração da exposição do Homem Mistério na segunda-feira seguinte. Por essa altura,
espero bem - disse ela enquanto conferia a conta - que ele tenha dinheiro suficiente no banco para me levar a jantar fora.
Sebastian corou e ela entregou duas libras ao empregado, dizendo:
- Pode ficar com o troco.
- Isto para mim é novidade - admitiu Sebastian. Samantha sorriu, debruçou-se sobre a mesa e pegou-lhe na mão.
- Para mim também.

Páginas em branco
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SEBASTIAN CLIFTON
1964

31
Domingo à noite
Cedric olhou à volta da mesa, mas não falou até toda a gente se ter instalado.
- Peço desculpa por vos ter feito vir aqui tão de repente, mas Martinez não me deixou outra opção. - De repente, toda a gente ficou em estado de alerta total. - Tenho boas
razões para acreditar - continuou - que Martinez está a planear alienar toda a sua participação acionista na Barrington's assim que a bolsa abrir, de amanhã a uma semana.
Ele espera recuperar o máximo possível do seu investimento original enquanto as ações estão em alta e, ao mesmo tempo, aplicar um golpe decisivo à companhia. Ele vai fazer
isto exatamente uma semana antes da assembleia-geral anual, precisamente na altura em que mais precisamos que o público tenha confiança em nós. Se ele conseguir fazer o que
pretende, a Barrington's pode entrar em insolvência numa questão de dias.
- E isso é legal? - perguntou Harry.
Cedric virou-se para o filho, que estava sentado à sua direita.
- Ele só estaria a violar a lei - disse Arnold - se pretendesse recomprar as ações a um preço mais baixo, e é óbvio que isso não faz parte dos seus planos.
- Mas a cotação das ações pode sair assim tão afetada? No fim de contas, é só uma pessoa que está a pôr a sua participação no mercado.
- Se qualquer acionista com um representante no conselho de administração de uma companhia pusesse mais de um milhão de
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ações no mercado sem aviso ou explicação, a City presumiria o pior e haveria uma verdadeira corrida para se livrarem das ações. A cotação podia cair para metade numa questão
de horas ou até minutos. - Cedric esperou que eles interiorizassem as implicações das suas palavras, antes de acrescentar: - No entanto, ainda não nos devemos dar por vencidos,
pois temos uma coisa a nosso favor.
- E qual é ela? - perguntou Emma, tentando manter a calma.
- Sabemos exatamente o que ele está a tramar, por isso podemos derrotá-lo com as suas próprias armas. Mas se quisermos fazer isso, temos de ser rápidos, e só seremos bem-sucedidos
se toda a gente à volta desta mesa estiver disposta a aceitar as minhas recomendações e os riscos que elas comportam.
- Antes de nos dizer o que tem em mente - disse Emma - devo avisá-lo de que isso não é a única coisa que Martinez planeou para essa semana. - Cedric recostou-se. - Alex Fisher
vai demitir-se do cargo de administrador não executivo na sexta-feira, três dias apenas antes da assembleia-geral anual.
- E isso é assim tão mau? - perguntou Giles. - No fim de contas, Fisher nunca apoiou verdadeiramente a tua pessoa nem a companhia.
- Em circunstâncias normais, concordaria contigo, Giles, mas na sua carta de demissão, que eu ainda não recebi, embora saiba que tem data da sexta-feira anterior à assembleia-geral,
Fisher afirma que não tem outra opção a não ser demitir-se, pois acredita que a companhia enfrenta uma situação de falência e a sua única responsabilidade é proteger os interesses
dos acionistas.
- Seria a primeira vez - disse Giles. - Seja como for, não corresponde à verdade e deve ser fácil de refutar.
- Seria de esperar que sim, Giles - disse Emma. - Mas quantos dos teus colegas na Câmara dos Comuns continuam a acreditar que sofreste um ataque cardíaco em Bruxelas, apesar
de já o teres negado umas mil vezes? - Giles não respondeu.
- Como é que sabe que Fisher vai apresentar a demissão se ainda não recebeu a carta? - perguntou Cedric.
- Não posso responder a essa pergunta, mas posso assegurar-lhe que a minha fonte é fidedigna.

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- Então, Martinez planeia atacar-nos na segunda-feira, quando vender as ações - disse Cedric -, e dar seguimento a esse ataque na sexta-feira seguinte, com a demissão de Fisher.
- O que não me deixaria outra opção - disse Emma - a não ser adiar a cerimónia de batismo com a rainha-mãe, já para não falar da data da viagem inaugural.
- Martinez a vencer em toda a linha - disse Sebastian.
- O que nos aconselha a fazer, Cedric? - perguntou Emma, ignorando o filho.
- Dar-lhe um pontapé nos ditos - disse Giles - e, de preferência, quando ele não estiver a olhar.
- Eu não teria dito melhor - disse Cedric - e, para ser sincero, é precisamente isso que tenho em mente. Vamos partir do princípio de que Martinez está a planear pôr todas
as suas ações no mercado daqui a oito dias e, depois, dar seguimento ao seu plano quatro dias mais tarde com a demissão de Fisher. Ele espera que isso constitua um duplo revés
que vai simultaneamente afundar a companhia e fazer com que Emma se demita. Para contrariar isso, temos de ser nós a desferir o primeiro golpe, e tem de ser aplicado quando
ele menos o esperar. Com isso em mente, planeio vender todas as minhas trezentas e oitenta mil ações esta sexta-feira, pelo preço que conseguir.
- Mas em que é que isso ajuda? - perguntou Giles.
- Espero fazer com que a cotação afunde na segunda-feira seguinte, de maneira que quando as ações de Martinez forem para o mercado às nove horas dessa manhã, ele se arrisque
a perder uma fortuna. É nessa altura que pretendo dar o tal pontapé, pois já tenho um comprador à espera do seu milhão de ações ao novo preço mais baixo, por isso não devem
ficar no mercado mais do que alguns minutos.
- Está a falar do homem que nenhum de nós conhece, mas que nutre o mesmo ódio por Martinez? - perguntou Harry.
Arnold Hardcastle pôs a mão no braço do pai e sussurrou:
- Não responda a essa pergunta, pai.
- Mesmo que seja bem-sucedido - disse Emma -, eu continuarei a ter de explicar à imprensa e aos acionistas na assembleia-geral, uma semana depois, porque é que a cotação das
ações caiu.
272

- Não se eu voltar ao mercado assim que as ações de Martinez tiverem sido adquiridas e começar a comprar de forma agressiva, parando apenas quando a cotação tiver voltado
aos níveis atuais.
- Mas disse-nos que isso era contra a lei.
- Quando disse "eu", o que queria dizer era...
- Não diga mais nada, pai - disse Arnold com firmeza.
- Mas se Martinez descobrir o que anda a preparar... - começou Emma.
- Não vamos deixar que isso aconteça - disse Cedric -, porque vamos todos agir de acordo com o seu próprio horário, como Seb irá agora explicar.
Sebastian levantou-se do lugar e enfrentou o público mais exigente de sempre em noite de estreia no West End.
- Martinez planeia viajar para a Escócia no fim de semana para caçar galos silvestres, e só regressa a Londres na terça-feira de manhã.
- Como podes ter tanta certeza, Seb? - perguntou o pai.
- Porque ele vai pôr toda a sua coleção de arte à venda na Agnew's, na segunda-feira à noite, e disse ao proprietário da galeria que não pode estar presente, pois só regressará
a Londres nessa altura.
- Acho estranho - disse Emma - que ele não queira estar por perto no dia em que se vai desfazer de todas as suas ações na companhia e em que vai vender a sua coleção de arte.
- Isso é fácil de explicar - disse Cedric. - Se a Barrington's estiver em apuros, ele vai querer estar o mais longe possível, de preferência algures onde ninguém o possa contactar,
deixando que seja a Emma a lidar com o assédio da imprensa e com a ira dos acionistas.
- Sabemos onde é que ele vai ficar, na Escócia? - perguntou Giles.
- De momento, não - disse Cedric -, mas telefonei a Ross Buchanan ontem à noite. Ele é um caçador de primeira e disse-me que só há cerca de seis hotéis e pavilhões de caça
a norte da fronteira que Martinez consideraria suficientemente bons para comemorar o dia da abertura da época. Ross vai passar os próximos dois dias a visitar todos eles até
descobrir em qual é que Martinez fez reserva.
- Há alguma coisa que nós possamos fazer para ajudar? - perguntou Harry.

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- Limitem-se a agir normalmente. Sobretudo a Emma. Deve dar ideia de estar a preparar-se para a assembleia-geral anual e para o lançamento à água do Buckingham. Eu e Seb vamos
tratar de afinar o resto da operação.
- Mas mesmo que consiga ser bem-sucedido com o golpe das ações - disse Giles - isso não vai resolver o problema da demissão de Fisher.
- Já pus um plano em andamento para lidar com Fisher. Toda a gente ficou na expectativa.
- Não nos vai contar qual é, pois não? - acabou Emma por dizer.
- Não - retorquiu Cedric. - O meu advogado - acrescentou, tocando no braço do filho - aconselhou-me a não o fazer.
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32
Terça-feira à tarde
Cedric pegou no telefone que tinha em cima da secretária e reconheceu imediatamente o sotaque escocês ligeiramente gutural.
- Martinez fez reserva no Glenleven Lodge, de sexta-feira, catorze de agosto, a segunda-feira, dezassete.
- Isso parece ser muito longe.
- É no meio do nada.
- E o que mais descobriu?
- Ele e os dois filhos vêm para o Glenleven duas vezes por ano, em março e agosto. Reservam sempre os mesmos três quartos no segundo piso, e comem todas as refeições na suite
de Don Pedro, nunca na sala de jantar.
- Conseguiu descobrir a que horas chegam?
- Sim. Vão apanhar o comboio para Edimburgo esta quinta-feira à noite e o motorista do hotel vai buscá-los por volta das cinco e meia da manhã seguinte, levando-os diretamente
para o Glenleven, onde chegam a tempo de tomar o pequeno-almoço. Martinez gosta de arenque fumado, torrada de pão integral e doce de laranja inglês.
- Estou impressionado. Quanto tempo é que tudo isso lhe levou?
- Mais de quinhentos quilómetros de carro pelas Terras Altas e verificar vários hotéis e pavilhões. Depois de beber uns copos no bar, no Glenleven, até fiquei a saber qual
era o seu cocktail preferido.

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- Então, com um bocadinho de sorte, tenho o campo livre desde o momento em que o motorista os for buscar, na sexta-feira de manhã, até regressarem a Londres, na noite da terça-feira
seguinte.
- A menos que aconteça algo inesperado.
- Acontece sempre, e não há motivo para acreditar que desta vez seja diferente.
- Tenho a certeza de que tem razão - disse Ross. - E é por isso que irei estar na estação de Waverley na sexta-feira de manhã, e assim que os três partirem para o Glenleven,
telefono-lhe. Nessa altura, a única coisa que terá de fazer é esperar que a bolsa abra às nove horas, altura em que pode começar a vender.
- Vai voltar para o Glenleven?
- Sim, reservei um quarto no pavilhão, mas eu e a Jean só nos registamos na sexta-feira à tarde, para aquilo que espero que seja um
fim de semana tranquilo nas Terras Altas. Só lhe telefono se surgir alguma emergência. Caso contrário, não terá notícias minhas até terça-feira de manhã, e mesmo assim só
depois de ter visto os três a embarcarem no comboio de regresso a Londres.
- Altura em que já será demasiado tarde para Martinez fazer seja o que for.
- Bem, esse é o plano A.
Quarta-feira de manhã
- Vamos apenas por um momento pensar no que é que pode correr mal - disse Diego, olhando para o pai.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou Don Pedro.
- Na possibilidade de a outra parte ter percebido o que estamos a tramar e estar à espera de que nós nos encafuemos na Escócia para poder tirar partido da sua ausência.
- Mas nós sempre mantivemos tudo em família - disse Luis.
- Ledbury não é da família, e ele sabe que vamos vender as nossas ações na segunda-feira de manhã. Fisher não é da família, e não sentirá qualquer obrigação para connosco
depois de ter entregado a carta de demissão.
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- Tens a certeza de que não estás a exagerar? - disse Don Pedro.
- Possivelmente. Mas, mesmo assim, preferia ir ter convosco ao Glenleven um dia depois. Dessa forma, saberei a cotação das ações da Barrington's quando o mercado fechar, na
sexta à noite. Se continuarem acima do preço que pagámos inicialmente por elas, vou sentir-me mais tranquilo quando pusermos mais de um milhão das nossas ações no mercado,
na segunda de manhã.
- Vais perder um dia de caça.
- É preferível a ficar com menos dois milhões de libras.
- Tens razão. Eu digo ao motorista para te ir buscar à estação de Waverley no sábado, logo de manhãzinha.
- Porque é que não cobrimos todas as opções - disse Diego - para ter a certeza de que ninguém nos está a enganar?
- Então o que é que sugeres?
- Telefone para o banco e diga a Ledbury que mudou de ideias, e que afinal não vai vender as ações na segunda-feira.
- Mas não tenho escolha, se quiser que o meu plano tenha alguma hipótese de ser bem-sucedido!
- Nós vamos vender na mesma as ações. Eu dou a ordem a outro corretor antes de partir para a Escócia, na sexta à noite, e só se as ações tiverem mantido o seu valor. Dessa
forma, é impossível sairmos a perder.
Quinta-feira de manhã
Tom estacionou o Daimler à porta da Agnew's, em Bond Street.
Cedric tinha dado uma hora de folga a Sebastian para ir buscar os quadros de Jessica, e até o deixara usar o carro, para poder voltar rapidamente ao escritório. Entrou quase
a correr na galeria.
- Bom dia, senhor.
- "Bom dia, senhor?" Não é a senhora com quem jantei no sábado à noite?
- Sim, mas são regras da galeria - sussurrou Sam. - O senhor Agnew não gosta que o pessoal tome liberdades com os clientes.
- Bom dia, Miss Sullivan. Vim buscar os meus quadros - disse Sebastian, tentando parecer um cliente normal.

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- Sim, com certeza, senhor. Quer fazer o favor de me acompanhar?
Ele seguiu-a escada abaixo e não voltou a falar até ela ter aberto a porta que dava para o armazém, onde se encontravam vários embrulhos muito bem feitos encostados à parede.
Sam agarrou em dois, ao passo que Sebastian conseguiu pegar em três. Levaram-nos primeiro escada acima, e depois saíram da galeria com eles e colocaram-nos na mala do carro.
Quando estavam a voltar para dentro, o senhor Agnew saiu do seu gabinete.
- Bom dia, senhor Clifton.
- Bom dia, senhor. Vim buscar os meus quadros.
Agnew acenou com a cabeça enquanto Sebastian seguia Samantha novamente escada abaixo. Quando a alcançou, ela já trazia mais dois embrulhos. Faltavam outros dois, mas Sebastian
só pegou num deles, pois queria uma desculpa para voltar lá abaixo com ela. Quando chegou ao rés do chão, não havia sinal do senhor Agnew.
- Não conseguiu trazer os últimos dois? - disse Sam. - É muito fraquinho.
- Não, deixei lá um - disse Sebastian com um sorriso.
- Então é melhor eu ir buscá-lo.
- E é melhor eu ir ajudá-la.
- O senhor é muito gentil.
- É um prazer, Miss Sullivan.
Quando voltaram ao armazém, Sebastian fechou a porta.
- Está livre para jantar hoje à noite?
- Sim, mas terá de me vir buscar aqui. Ainda não acabámos de pendurar os quadros para a exposição da próxima segunda-feira, por isso não vou conseguir safar-me muito antes
das oito.
- Estarei à porta, às oito - disse ele, ao mesmo tempo que lhe punha o braço à volta da cintura e se inclinava para a frente...
- Miss Sullivan?
- Sim, senhor - disse Sam. Abriu rapidamente a porta e correu escada acima.
Sebastian seguiu-a, tentando parecer indiferente, mas depois lembrou-se de que nem um nem outro tinha levado o último quadro.
278

Desceu apressadamente a escada, pegou no quadro e voltou rapidamente, encontrando o senhor Agnew a falar com Sam. Ela nem sequer olhou para ele quando passou por ela.
- Talvez pudéssemos conferir a lista depois de ter despachado o seu cliente.
- Sim, senhor.
Tom estava a pôr o último quadro na mala do carro quando Samantha veio ter com Sebastian ao passeio.
- Gosto do carro - disse ela. - E tem um motorista a condizer. Nada mau para um tipo que não tem dinheiro para levar uma vendedora a jantar fora.
Tom sorriu e simulou uma continência, antes de voltar a entrar no carro.
- Nenhum dos dois é meu, infelizmente - disse Sebastian. - O carro é do meu chefe, e ele só disse que o podia trazer quando lhe contei que tinha um encontro amoroso com uma
rapariga linda.
- De amoroso não teve muito - disse ela.
- Vou esforçar-me um pouco mais hoje à noite.
- Fico ansiosamente à espera, senhor.
- Quem me dera que pudesse ter sido antes, mas esta semana... - disse ele sem mais explicações, ao mesmo tempo que fechava a mala do carro. - Obrigado pela sua ajuda, Miss
Sullivan.
- Foi um prazer. Espero que voltemos a vê-lo.
Quinta-feira à tarde
- Cedric, fala Stephen Ledbury, do Midland.
- Bom dia, Stephen.
- Acabei de receber um telefonema do cavalheiro em questão, a dizer que mudou de ideias. Afinal, não vai vender as ações da Barrington's.
- Ele deu alguma razão? - perguntou Cedric.
- Disse-me que passou a acreditar no futuro da companhia a longo prazo e que prefere ficar com as ações.
- Obrigado, Stephen. Por favor, avise-me se houver alguma alteração.

279
- Pode ter a certeza que sim, pois ainda não liquidei a dívida que tenho para consigo.
- Oh, já está liquidada - disse Cedric sem mais explicações. Pousou o telefone e anotou as quatro palavras que lhe diziam tudo o que precisava de saber.
Quinta-feira à noite
Sebastian chegou à estação de King's Cross pouco passava das sete. Subiu os degraus até ao primeiro andar e ficou na sombra do grande relógio de quatro faces, que lhe permitia
a vista completa do The Night Scotsman que estava na plataforma número 5, à espera para transportar durante a noite 130 passageiros até Edimburgo.
Cedric tinha-lhe dito que precisava de ter a certeza de que tinham embarcado os três no comboio, antes de se arriscar a pôr as suas próprias ações à venda. Sebastian viu quando
Don Pedro Martinez, com a confiança presunçosa de um potentado do Médio Oriente, e o seu filho Luis se dirigiram à plataforma poucos minutos antes da hora da partida. Foram
até à outra ponta do comboio e entraram numa carruagem de primeira classe. Porque é que Diego não estava com eles?
Passados alguns minutos, o guarda soprou o apito duas vezes e brandiu a bandeirola verde com um floreado, e The Night Scotsman iniciou a sua viagem para norte com apenas dois
Martinez a bordo. Quando Sebastian já não conseguia ver a nuvem de fumo branco a sair pela chaminé do comboio, correu até ao telefone mais próximo e ligou para o senhor Hardcastle
pela sua linha privada.
- Diego não embarcou no comboio.
- Foi o seu segundo erro - disse Cedric. - Preciso que venhas imediatamente ao escritório. Surgiu outro problema.
Sebastian teria gostado de dizer a Cedric que tinha um encontro com uma jovem linda, mas não era altura para lembrar que também tinha vida pessoal. Marcou o número da galeria,
introduziu quatro moedas, premiu o botão A e esperou até ouvir a voz inconfundível do senhor Agnew do outro lado da linha.
280

- Posso falar com Miss Sullivan?
- Miss Sullivan já não trabalha aqui.
Quinta-feira à noite
Sebastian só tinha um pensamento na cabeça enquanto Tom o levava de volta ao banco. O que é que o senhor Agnew tinha querido dizer com "Miss Sullivan já não trabalha aqui"?
Porque é que Sam havia de ter deixado um trabalho de que gostava tanto? Com certeza que não a tinham despedido. Talvez estivesse doente, mas ela tinha lá estado de manhã.
Ainda não tinha resolvido o mistério quando Tom estacionou junto à entrada principal do Farthings. E pior ainda, não tinha forma de contactá-la.
Sebastian apanhou o elevador para o último andar e foi direito ao gabinete do presidente. Bateu à porta e entrou, e deparou-se com uma reunião em curso.
- Peço desculpa, eu volto...
- Não, entra, Seb - disse Cedric. - Lembras-te do meu filho - acrescentou, ao mesmo tempo que Arnold Hardcastle vinha ter com ele de forma premeditada.
Enquanto trocavam um aperto de mão, Arnold sussurrou:
- Responda apenas às perguntas que lhe fizerem, não diga nada de moto próprio. - Sebastian olhou para os outros dois homens que estavam na sala. Nunca tinha visto nenhum deles.
Eles não lhe estenderam a mão.
- Arnold está aqui para te representar - disse Cedric. -Já disse ao senhor inspetor que tenho a certeza de que isto deve ter uma explicação muito simples.
Sebastian não fazia ideia do que Cedric estava a falar.
O mais velho dos dois desconhecidos deu um passo em frente.
- Eu sou o inspetor Rossindale. Presto serviço na esquadra de Savile Row e tenho algumas perguntas para lhe fazer, senhor Clifton.
Sebastian sabia através dos romances policiais do pai que os inspetores da polícia não se envolviam em crimes menores. Assentiu com a cabeça, mas seguiu as instruções de Arnold
e não disse nada.
- Visitou hoje a Galeria Agnew's em Bond Street?

281
- Sim.
- E qual foi o objetivo dessa visita?
- Ir buscar uns quadros que comprei na semana passada.
- E foi ajudado por uma tal Miss Sullivan?
- Sim.
- E onde é que esses quadros estão agora?
- Na mala do carro do senhor Hardcastle. Tencionava levá-los para o meu apartamento logo à noite.
- Ah, sim? E onde é que está agora esse carro?
- Estacionado à porta do banco.
O inspetor virou a sua atenção para Cedric Hardcastle.
- Posso pedir-lhe que me empreste as chaves do carro, senhor? Cedric olhou de relance para Arnold, que acenou afirmativamente com a cabeça. Cedric disse:
- É o meu motorista que as tem. Ele está lá em baixo à espera para me levar a casa.
- Com a sua permissão, senhor, vou verificar se os quadros se encontram onde o senhor Clifton afirma que estão.
- Não temos qualquer objeção - disse Arnold.
- Sargento Webber, fique aqui - disse Rossindale - e certifique-se de que o senhor Clifton não sai desta sala. - O jovem polícia acenou afirmativamente.
- Mas o que se passa aqui? - perguntou Sebastian depois de o inspetor ter saído da sala.
- Está a sair-se bem - disse Arnold. - Mas creio que talvez seja melhor, dadas as circunstâncias, não dizer mais nada - acrescentou, olhando diretamente para o jovem agente.
- No entanto - disse Cedric, pondo-se de permeio entre o polícia e Sebastian -, gostava de pedir ao mestre do crime para confirmar que só duas pessoas subiram para o comboio.
- Sim, Don Pedro e Luis. Nem sinal de Diego.
- Eles estão precisamente a fazer o nosso jogo - disse Cedric ao mesmo tempo que o inspetor Rossindale voltava a aparecer segurando três embrulhos. Foi seguido passado um
instante por um sargento e um agente que traziam os outros seis entre os dois. Encostaram-nos à parede.
282

- São estes os nove embrulhos que trouxe da galeria com a ajuda de Miss Sullivan? - perguntou o inspetor.
- Sim - disse Sebastian sem hesitações.
- Dá-me autorização para os desembrulhar?
- Sim, é claro.
Os três polícias começaram a tirar o papel pardo que cobria os quadros. De repente, Sebastian sobressaltou-se e, apontando para um dos quadros, disse:
- A minha irmã não pintou aquilo.
- É magnífico - disse Arnold.
- Isso não sei - disse Rossindale -, mas posso confirmar - acrescentou, olhando para a etiqueta na parte de trás - que não foi pintado por Jessica Clifton, mas por alguém
chamado Rafael e, segundo o senhor Agnew, vale pelo menos cem mil libras. - Sebastian pareceu confuso, mas não disse nada. - E temos razões para acreditar - continuou Rossindale,
olhando diretamente para Sebastian - que o senhor, em colaboração com Miss Sullivan, usou o pretexto de ir buscar os quadros da sua irmã para roubar esta valiosa obra de arte.
- Mas isso não faz qualquer sentido - disse Arnold antes que Sebastian tivesse oportunidade de responder.
- Desculpe?
- Pense bem, inspetor. Se, como sugere, o meu cliente tivesse roubado o Rafael da galeria Agnew's com a ajuda de Miss Sullivan, acha que o iria encontrar na mala do carro
do patrão várias horas depois? Ou estará a sugerir que o motorista do presidente também estava metido nisso, ou talvez até o próprio presidente?
- O senhor Clifton - disse Rossindale, consultando o seu bloco de notas - admitiu que pretendia levar os quadros para o seu apartamento logo à noite.
- Não acha que um Rafael é capaz de parecer um bocadinho deslocado num apartamento de solteiro em Fulham?
- Isto não é para rir. O senhor Agnew, que comunicou o roubo, é um negociante de arte muito respeitado do West End e...
- Não é um roubo, senhor inspetor, a menos que possa provar que foi trazido com intenção dolosa. E como ainda nem sequer pediu ao meu cliente para dar a sua versão do que
aconteceu, não vejo como pode ter chegado a essa conclusão.

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O inspetor virou-se para Sebastian, que estava a contar os quadros.
- Sou culpado - disse Sebastian. O inspetor sorriu. - Não de roubo, mas de paixão.
- Talvez queira fazer o favor de se explicar.
- Havia nove quadros da autoria da minha irmã, Jessica Clifton, na exposição de licenciatura na Slade, e só estão aqui oito. Por isso, se o outro ainda está na galeria, então
a culpa é minha, pois trouxe o quadro errado e peço desculpa por aquilo que não passa de um simples erro.
- Um erro de cem mil libras - disse Rossindale.
- Permita-me que lhe lembre, inspetor - disse Arnold -, sem querer ser acusado de leviandade, que não é habitual um mestre do crime deixar provas no local do crime que apontem
diretamente para ele.
- Não sabemos se é esse o caso, senhor Hardcastle.
- Então, recomendo que vamos todos à galeria para ver se o Jessica Clifton em falta, propriedade do meu cliente, ainda lá se encontra.
- Vai ser preciso mais do que isso para me convencer da sua inocência - disse Rossindale. Agarrou Sebastian com firmeza pelo braço, levou-o para fora da sala e não o largou
até ele se encontrar na parte de trás do carro da polícia com um agente corpulento sentado de cada lado.
O único pensamento de Sebastian era aquilo por que Samantha devia estar a passar. A caminho da galeria, perguntou ao inspetor se ela estaria lá.
- Miss Sullivan encontra-se presentemente na esquadra de Savile Row a ser interrogada por um dos meus agentes.
- Mas ela está inocente - disse Sebastian. - Se há aqui alguém que seja culpado, esse alguém sou eu.
- Devo recordar-lhe que um quadro de cem mil libras desapareceu da galeria onde ela era assistente e foi agora recuperado da mala do carro em que o senhor o colocou.
Sebastian lembrou-se do conselho de Arnold e não disse mais nada. Passados vinte minutos, o carro parou à porta da Agnew's.
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O carro do presidente não estava muito longe, com Cedric e Arnold sentados no banco de trás.
O inspetor saiu do carro segurando o Rafael, enquanto outro agente tocava à campainha. O senhor Agnew apareceu rapidamente, abriu a porta e olhou ternamente para a obra-prima,
como se tivesse reencontrado um filho perdido.
Quando Sebastian explicou o que devia ter acontecido, Agnew disse:
- Isso não deve ser muito difícil de provar, de uma maneira ou de outra. - Sem mais uma palavra, levou-os a todos pela escada até à cave e destrancou a porta para o armazém,
onde estavam vários quadros embrulhados, à espera de ser entregues.
Sebastian susteve a respiração enquanto o senhor Agnew estudava cuidadosamente cada etiqueta, até dar com uma que dizia Jessica Clifton.
- Quer fazer a gentileza de o desembrulhar? - disse Rossindale.
- Com certeza - disse o senhor Agnew. Removeu meticulosamente o papel de embrulho, revelando um desenho de Sebastian.
Arnold não conseguia parar de rir.
- Mas é claro que tinha de se chamar Retrato de um Mestre do Crime. Até o inspetor se permitiu um sorriso forçado, mas lembrou a
Arnold:
- Não devemos esquecer que o senhor Agnew apresentou queixa.
- E é claro que a irei retirar, uma vez que vejo que não houve intenção de roubar. - Na verdade - disse ele, virando-se para Sebastian - até devo um pedido de desculpa a si
e a Sam.
- Quer isso dizer que ela vai ter o emprego de volta?
- Claro que não - disse Agnew com firmeza. - Aceito que não esteve envolvida num ato criminoso, mas não deixa de ser culpada de negligência grave ou de estupidez, e ambos
sabemos, senhor Clifton, que ela não é estúpida.
- Mas fui eu que agarrei no quadro errado.
- E foi ela quem permitiu que o levasse para fora da galeria. Sebastian franziu o sobrolho.

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- Senhor Rossindale, posso ir consigo para a esquadra? Eu tinha intenção de levar Samantha a jantar fora, esta noite!
- Não vejo nenhum motivo para não o fazer.
- Obrigado pela sua ajuda, Arnold - disse Sebastian, apertando a mão ao advogado. Virando-se para Cedric, acrescentou: - Lamento ter-lhe causado tantos problemas, senhor.
- Certifica-te apenas de que estás de volta ao escritório amanhã de manhã, às sete! Com certeza que te lembras de que é um dia muito importante para todos nós. E devo dizer,
Seb, que podias ter escolhido uma semana melhor para roubar um Rafael!
Toda a gente se riu, à exceção do senhor Agnew, que continuava agarrado à obra-prima. Pô-la novamente no armazém, deu duas voltas à chave e levou-os escada acima.
- Muito obrigado, senhor inspetor - disse ele, quando Rossindale estava a sair da galeria.
- Foi um prazer, senhor. Ainda bem que tudo se resolveu pelo melhor.
Quando Sebastian entrou para o banco de trás do carro da polícia, o inspetor Rossindale disse:
- Vou dizer-lhe porque é que estava tão convicto de que tinha roubado o quadro, meu jovem. A sua namorada assumiu a culpa, o que normalmente significa que estão a proteger
alguém.
- Não tenho a certeza se ela ainda será minha namorada depois de a ter feito passar por isto tudo.
- Vou libertá-la o mais rapidamente possível - disse Rossindale. - É só tratar da papelada habitual - acrescentou com um suspiro, ao mesmo tempo que o carro parava à porta
da esquadra de Savile Row. Sebastian seguiu os polícias até ao interior do edifício.
- Leve o senhor Clifton lá abaixo, às celas, enquanto trato da papelada.
O jovem sargento desceu um lanço de escadas com Sebastian no seu encalço, destrancou a porta de uma cela e afastou-se para o lado, para o deixar entrar. Samantha estava toda
curvada na ponta de uma fina enxerga, com o queixo apoiado nos joelhos.
- Seb! Eles também te prenderam?
286

- Não - disse ele, tomando-a nos braços pela primeira vez. - Não creio que eles nos deixassem ficar na mesma cela, se pensassem que éramos a versão londrina de Bonnie e Clyde.
Assim que o senhor Agnew encontrou o quadro de Jessica no armazém, admitiu que eu apenas pegara no embrulho errado e retirou todas as acusações. Mas receio que tenhas perdido
o emprego, e a culpa foi minha.
- Não posso censurá-lo - disse Samantha. - Devia estar concentrada e não a namoriscar. Mas começo a perguntar-me até onde estás disposto a ir para não me levares a jantar.
- Sebastian largou-a, olhou-a nos olhos e depois beijou-a com suavidade.
- Dizem que uma rapariga se lembra sempre do primeiro beijo do homem por quem se apaixonou, e tenho de admitir que este vai ser muito difícil de esquecer - disse ela, ao mesmo
tempo que a porta da cela se abria.
- Já se pode ir embora, menina - disse o jovem sargento. - Desculpe o mal-entendido.
- A culpa não é sua - disse Samantha. O sargento levou-os pela escada acima e abriu-lhes a porta da esquadra.
Sebastian saiu para a rua e pegou na mão de Samantha, precisamente quando um Cadillac azul-escuro parou em frente do edifício.
- Ora bolas! - disse Samantha. - Esqueci-me. A polícia Deixou-me fazer um telefonema e eu liguei para a embaixada. Disseram-me que os meus pais estavam na ópera, mas que os
tirariam de lá no intervalo. Ora bolas! - repetiu, ao mesmo tempo que o senhor e a senhora Sullivan saíam do carro.
- Então, o que se passa, Samantha? - disse o senhor Sullivan depois de a ter beijado na face. - Eu e a tua mãe estávamos preocupadíssimos.
- Desculpem - disse Sam. - Foi tudo um horrível mal-entendido.
- Que alívio - disse a mãe e, olhando para o homem que segurava a mão da filha, perguntou - E quem é este?
- Oh, é Sebastian Clifton. É o homem com quem vou casar.
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Sexta-feira de manhã
- Tinha razão. Diego vai apanhar o comboio que parte esta noite de King's Cross e vem juntar-se ao pai e a Luis no Glenleven Lodge, amanhã de manhã.
- Como é que pode ter tanta certeza?
- O rececionista disse à minha mulher que um carro o ia buscar de manhãzinha e trazer diretamente para o pavilhão de caça, a tempo de tomar o pequeno-almoço. Eu posso ir de
carro amanhã de manhã até Edimburgo e verificar se assim é.
- Não é necessário. Seb vai novamente a King's Cross esta noite, para se certificar de que ele sobe para o comboio. Isto presumindo que não é preso por ter roubado um Rafael.
- Terei ouvido bem? - perguntou Ross.
- Fica para outra altura, porque ainda estou a tentar arranjar um plano B.
- Bem, não pode arriscar-se a vender as suas ações enquanto Diego estiver em Londres, porque, se a cotação cair de repente, Don Pedro vai perceber imediatamente o que está
a tramar e não vai pôr as ações no mercado.
- Nesse caso, dou-me por vencido, pois não vale de nada comprar as ações de Martinez ao preço máximo. Isso queria ele!
- Ainda não está na altura de nos darmos por vencidos. Tive duas ideias que vou pôr à sua consideração. Isto se continua disposto a correr um risco dos diabos...
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- Sou todo ouvidos - disse Cedric, pegando numa caneta e abrindo o bloco de notas.
- Às oito da manhã de segunda-feira, uma hora antes do mercado abrir, pode contactar todos os principais corretores da City e dizer-lhes que é comprador das ações da Barrington's.
Quando o milhão e qualquer coisa de ações de Martinez vier para o mercado às nove, o Cedric é a primeira pessoa a quem eles vão telefonar, pois a comissão numa venda dessa
dimensão será enorme.
- Mas se as ações continuarem ao seu preço máximo, a única pessoa que irá ganhar com isso será Martinez.
- Eu disse que tinha duas ideias - disse Ross.
- Desculpe - disse Cedric.
- Lá porque a Bolsa de Valores encerra às quatro da tarde de sexta-feira, isso não quer dizer que não possa continuar a vender ações. A de Nova Iorque continuará aberta durante
mais cinco horas e a de LA durante mais oito. E se nessa altura ainda não tiver conseguido alienar todas as suas ações, a de Sydney abre à meia-noite de domingo. E se depois
disso ainda lhe restarem algumas ações, a de Hong Kong irá ajudá-lo alegremente a livrar-se delas. Assim, na altura em que a Bolsa de Londres abrir, às nove horas de segunda-feira,
aposto que as ações da Barrington's estarão a ser negociadas a cerca de metade do preço que tinham hoje à hora do fecho.
- Brilhante - disse Cedric. - O problema é que eu não conheço corretores em Nova Iorque, Los Angeles, Sydney ou Hong Kong.
- Só precisa de um - disse Ross. - Abe Cohen, da Cohen, Cohen & Yablon. Tal como Sinatra, ele só trabalha de noite. Diga-lhe apenas que tem trezentas e oitenta mil ações da
Barrington's que já não quer ter nas suas mãos na segunda-feira de manhã, hora de Londres, e acredite que ele não se vai deitar durante o fim de semana para ganhar a sua comissão.
Mas atenção, se Martinez descobrir o que está a tramar e não puser o seu milhão e tal de ações no mercado na segunda-feira de manhã, arrisca-se a perder uma pequena fortuna,
e ele vai somar mais uma vitória.
- Eu sei que ele vai lançá-las no mercado na segunda-feira - disse Cedric -, porque ele disse a Stephen Ledbury que a razão para

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já não as querer vender era porque passara a acreditar no "futuro a longo prazo" da companhia, e eu tenho a certeza de que essa é a única coisa em que ele não acredita.
- Não é um risco que um escocês digno desse nome gostasse de correr.
- Mas é um risco que um homem cauteloso, apagado e enfadonho do Yorkshire decidiu correr.
Sexta-feira à noite
Sebastian nem sequer tinha a certeza de o reconhecer. No fim de contas, já se tinham passado mais de sete anos desde que ele se cruzara pela última vez com Diego em Buenos
Aires. Lembrava-se de que ele era pelo menos uns cinco centímetros mais alto do que Bruno e seguramente mais magro do que Luis, a quem vira recentemente. Diego era elegante
no vestir: fatos assertoados de Savile Row, gravatas de seda largas e coloridas e cabelo preto cheio de brilhantina.
Seb chegou a King's Cross uma hora antes do comboio partir e voltou a ocupar a sua posição na sombra do grande relógio de quatro faces.
The Night Scotsman estava na plataforma à espera de que os passageiros noturnos subissem a bordo. Alguns já tinham chegado, poucos, o tipo de viajante que prefere esperar
do que correr o risco de se atrasar. Sebastian desconfiava que Diego era do tipo que deixava as coisas para o último momento, não querendo desperdiçar o seu tempo por ali.
Enquanto esperava, voltou a pensar em Sam e naquela que tinha sido a semana mais feliz da sua vida. Como é que tivera tanta sorte? Dava consigo a sorrir sempre que pensava
nela. Tinham ido jantar naquela noite, e mais uma vez não tinha sido ele a pagar; um restaurante chique em Mayfair chamado Scott's, onde as ementas não mostravam os preços.
Mas o senhor e a senhora Sullivan queriam muito conhecer o homem com quem a filha lhes dissera que se ia casar, mesmo que só estivesse a brincar.
De início, Sebastian tinha ficado nervoso. Afinal, em menos de uma semana tinha feito com que Samantha fosse presa e despedida.
290

No entanto, na altura em que serviram o pudim, todo o "mal-entendido", como agora lhe chamavam, tinha passado de grande melodrama a pequena farsa.
Sebastian tinha começado a descontrair quando a senhora Sullivan lhe disse que adoraria visitar Bristol, para poder conhecer a cidade onde trabalhava o inspetor Warwick. Ele
prometeu levá-la a fazer a "Rota Warwick" e, quando a noite chegou ao fim, não tinha dúvidas de que a senhora Sullivan estava mais familiarizada com a obra do pai do que ele.
Depois de se despedirem dos pais de Sam, tinham regressado a pé ao apartamento dela, em Pimlico, como dois amantes quando não querem que uma noite chegue ao fim.
Sebastian manteve-se na sombra do relógio, que começou a dar as horas.
- O comboio estacionado na plataforma número três é o serviço direto das vinte e duas horas e trinta e cinco minutos para Edimburgo - anunciou uma voz estrangulada que parecia
estar a prestar provas para ler as notícias na BBC. - A primeira classe é na parte da frente do comboio, a terceira na parte de trás, com a carruagem-restaurante a meio. -
Sebastian não tinha dúvidas quanto à classe que Diego ia utilizar.
Tentou afastar Sam do pensamento e concentrar-se; não era assim tão fácil. Passaram-se cinco, dez, quinze minutos e, embora agora os passageiros chegassem de forma contínua
à plataforma número 3, ainda não havia sinal de Diego. Sebastian sabia que Cedric estava à secretária, impacientemente à espera de que o telefone tocasse com a confirmação
de que Diego tinha entrado no comboio noturno. Só nessa altura é que ele poderia dar luz verde a Abe Cohen.
Se Diego não aparecesse, Cedric já tinha decidido que não dava a mecha para o sebo, para citar o senhor Sherlock Holmes. Ele não se podia arriscar a lançar todas as suas ações
no mercado enquanto Diego estivesse em Londres, porque se o fizesse, seria Martinez quem acabaria por apagar a vela.
Vinte minutos, e apesar de a plataforma estar agora cheia de retardatários, com carregadores ao seu lado a transportar as malas pesadas em carrinhos, continuava a não haver
sinal do Senor Diego Martinez. Sebastian começou a entrar em desespero quando viu o guarda sair da última carruagem, de bandeirola verde numa mão e apito na

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outra. Seb olhou para cima, para o enorme ponteiro preto dos minutos que dava um saltinho em frente a cada sessenta segundos. 10h22. Iria todo o trabalho de Cedric por água
abaixo? Uma vez, ele tinha dito a Sebastian que, quando se inicia um projeto, é preciso estar sempre disposto a aceitar que a taxa de sucesso habitual é de um para cinco.
Iria este recair na categoria dos "quatro para cinco"? Os seus pensamentos viraram-se para Ross Buchanan; estaria ele no Glenleven Lodge à espera de alguém que não ia aparecer?
Depois, pensou na sua mãe, que tinha mais a perder do que qualquer deles.
E nessa altura apareceu um homem na plataforma que lhe chamou a atenção. Levava uma mala, mas Sebastian não tinha a certeza se era Diego, pois o elegante chapéu castanho e
a gola de veludo levantada para cima escondiam-lhe o rosto. O homem passou pela terceira classe e dirigiu-se à parte da frente do comboio, o que deu a Sebastian um pouco mais
de esperança.
Um carregador descia a plataforma em direção a ele, fechando com estrondo as portas da carruagem de primeira classe uma por uma: bang, bang, bang. Quando viu o homem a aproximar-se,
parou e manteve uma porta aberta para ele. Sebastian saiu da sombra do relógio e tentou ver melhor a sua presa. O homem com a mala preparava-se para entrar no comboio quando
se virou e olhou para o relógio. Hesitou. Sebastian ficou paralisado e depois o homem subiu a bordo. O carregador fechou a porta com estrondo.
Diego tinha sido dos últimos passageiros a embarcar, e Sebastian não se mexeu enquanto via The Night Scotsman a sair da estação, a ganhar lentamente velocidade no início da
longa viagem até Edimburgo.
Estremeceu ao sentir um momento de apreensão. Claro que Diego não o conseguira ver àquela distância e, de qualquer forma, era Sebastian quem estava à procura dele, e não o
contrário. Foi andando devagarinho até às cabinas telefónicas do outro lado da gare, já com as moedas prontas. Marcou o número direto para a secretária do presidente. Passado
apenas um toque, surgiu em linha a voz impaciente que lhe era familiar.
- Por pouco não perdia o comboio, apareceu no último momento. Mas vai agora a caminho de Edimburgo. - Sebastian ouviu um suspiro de alívio.
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- Bom fim de semana, meu rapaz - disse Cedric. - Bem o mereces. Mas certifica-te de que estás no escritório às oito da manhã de segunda-feira, pois tenho uma tarefa especial
para ti. E tenta manter-te longe de galerias de arte durante o fim de semana.
Sebastian riu-se, desligou o telefone e deixou que os seus pensamentos voltassem a Sam.
Mal desligou a chamada de Sebastian, Cedric marcou o número que Ross Buchanan lhe tinha dado. Uma voz do outro lado da linha disse:
- Cohen.
- Pode avançar com a venda. Qual era o preço de fecho em Londres?
- Duas libras e oito xelins - disse Cohen. - Subiu um xelim durante o dia.
- Ótimo, então vou lançar as trezentas e oitenta mil ações no mercado e quero que as venda ao melhor preço possível, tendo em conta que preciso de me ter desfeito delas à
hora de abertura da Bolsa de Londres, na segunda de manhã.
- Entendido, senhor Hardcastle. Com que frequência quer que lhe faça o ponto da situação durante o fim de semana?
- Às oito da manhã de sábado e à mesma hora na segunda de manhã.
- É uma sorte eu não ser judeu ortodoxo - disse Cohen.
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34
Sábado
Estava escrito que ia ser uma noite de estreias.
Sebastian levou Sam a um restaurante chinês no Soho e pagou a conta. Depois de jantar, desceram até Leicester Square e juntaram-se à fila para o cinema. Samantha adorou o
filme que Sebastian tinha escolhido e, ao saírem do Odeon, confessou-lhe que até vir para Inglaterra nunca tinha ouvido falar de Ian Fleming, Sean Connery ou mesmo de James
Bond.
- Onde é que tens passado a tua vida? - brincou Sebastian.
- Na América, com Katharine Hepburn, Jimmy Stewart e um jovem ator que está a tomar Hollywood de assalto, chamado Steve McQueen.
- Nunca ouvi falar dele - disse Sebastian enquanto lhe dava a mão. - Será que temos alguma coisa em comum?
- Jessica - disse ela brandamente.
Sebastian sorriu enquanto regressavam ao apartamento em Pimlico de mão dada e a conversar.
- Já ouviste falar nos Beatles?
- Sim, claro. John, Paul, George e Ringo.
- Nos Goons?
- Não.
- Então, nunca ouviste Bluebottle ou Moriarty?
- Pensava que Moriarty era o adversário de Sherlock Holmes.
- Não, é o oposto de Bluebottle.
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- Mas já ouviste falar de Little Richard? - perguntou ela.
- Não, mas já ouvi falar de Cliff Richard.
De vez em quando, paravam para trocar um beijo, e quando chegaram finalmente à porta do bloco de apartamentos de Sam, ela tirou a chave para fora e voltou a beijá-lo docemente;
um beijo de boas noites.
Sebastian teria gostado que ela o convidasse para um café, mas a única coisa que ela disse foi:
- Até amanhã.
Pela primeira vez na vida, Sebastian não tinha pressa.
Don Pedro e Luis estavam a caçar no pântano quando Diego chegou ao Glenleven Lodge. Ele não reparou num cavalheiro idoso de kilt sentado numa cadeira de couro de espaldar
alto a ler The Scotsman e com ar de quem fazia parte da mobília.
Passada uma hora, depois de ter desfeito a mala, tomado banho e mudado de roupa, Diego desceu a escada vestindo calças de golfe, botas de cabedal castanho e um chapéu à Sherlock
Holmes, tentando claramente parecer mais inglês do que os ingleses. Tinha um Tand Rover à espera para o levar às colinas, para se poder juntar ao pai e ao irmão para o dia
de caça. Quando ele deixou o pavilhão, Ross ainda estava sentado na cadeira de espaldar alto. Se Diego fosse um bocadinho mais observador, teria notado que ele continuava
a ler a mesma página do mesmo jornal.
- Qual era a cotação das ações da Barrington's quando a bolsa fechou? - foi a primeira coisa que Don Pedro perguntou quando o filho saiu do carro para se lhes juntar.
- Duas libras e oito xelins.
- Subiu um xelim. Então, afinal podias ter vindo ontem!
- As ações, normalmente, não sobem a uma sexta-feira - foi a única coisa que Diego disse antes de o seu carregador lhe passar uma arma.

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Emma passou a maior parte da manhã de sábado a escrever o primeiro rascunho de um discurso que continuava a esperar pronunciar na assembleia-geral anual, daí a nove dias.
Teve de deixar vários espaços em branco que só podiam ser preenchidos ao longo da semana e, num ou dois casos, apenas horas antes de a reunião ser formalmente aberta.
Ela estava grata por tudo o que Cedric estava a fazer, mas não gostava de não poder desempenhar um papel mais ativo no drama que se estava a desenrolar em Londres e na Escócia.
Harry andava lá fora a arquitetar enredos naquela manhã. Enquanto havia homens que passavam o sábado a ver futebol no inverno e críquete no verão, ele ia dar longos passeios
pela propriedade e trabalhava na intriga, para que na segunda-feira de manhã, quando voltasse a pegar na caneta, já tivesse descoberto como é que William Warwick podia resolver
o crime. Harry e Emma jantaram em Manor House nessa noite e foram para a cama pouco depois de verem o Dr. ¥inlay's Casebook. Emma ainda estava a ensaiar o seu discurso quando
finalmente adormeceu.
Giles cumpriu o seu horário de atendimento semanal no sábado de manhã e escutou as queixas de dezoito dos seus eleitores, que incluíam assuntos que iam do facto de os serviços
camarários não terem despejado um contentor de lixo à questão de como é que um antigo aluno de Eton todo janota como Sir Alec Douglas-Home podia fazer alguma ideia dos problemas
dos trabalhadores.
Depois de o último eleitor se ter ido embora, o mandatário de Giles levou-o ao Nova Scotia, o pub da semana, para beberem uma caneca de cerveja e comerem um pastel da Cornualha,
e para serem vistos pelos eleitores. Houve pelo menos mais vinte que sentiram que era seu dever transmitir ao deputado local os seus pontos de vista acerca de uma miríade
de assuntos diferentes, antes de ele e Griff poderem partir para Ashton Gate, para assistir a um jogo amigável da pré-temporada entre o Bristol City e os Bristol Rovers, que
acabou empatado zero a zero e não foi assim tão amigável.
Havia mais de seis mil adeptos a assistir ao jogo e quando o árbitro deu o apito final, aqueles que iam abandonando o recinto não tinham dúvidas sobre a equipa que Sir Giles
apoiava, uma vez que ele estava a usar o seu cachecol às riscas vermelhas e brancas para toda a
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gente ver. Mas também a verdade é que Griff estava sempre a lembrar-lhe que noventa por cento dos seus eleitores eram adeptos do Bristol City.
Enquanto se encaminhavam para a saída, houve quem aproveitasse para gritar mais opiniões, nem sempre elogiosas, antes de Griff dizer:
- Até logo.
Giles fez a viagem de regresso a Barrington Hall e foi jantar com Gwyneth, que já estava numa fase adiantada da gravidez. Nenhum dos dois falou de política. Giles não queria
deixá-la, mas pouco depois das nove ouviu um carro no caminho de acesso. Beijou-a e foi até à porta, onde deu com o seu mandatário no degrau da entrada.
Griff levou-o para o clube dos estivadores, onde disputou umas quantas partidas de snooker e um jogo de dardos, que perdeu. Pagou aos rapazes várias rodadas, mas como a data
das próximas eleições gerais ainda não tinha sido anunciada, não podia ser acusado de suborno.
Quando Griff levou finalmente o deputado de volta a Barrington House nessa noite, lembrou-lhe que tinha de ir a três serviços religiosos na manhã seguinte, onde se sentaria
entre eleitores que não tinham ido ter com ele durante o horário de atendimento semanal, não tinham assistido ao dérbi local nem tinham estado no clube dos estivadores. Deitou-se
pouco antes da meia-noite e encontrou Gwyneth a dormir profundamente.
Grace passou o sábado a ler ensaios escritos por estudantes universitários, alguns dos quais tinham finalmente acordado para o facto de irem enfrentar o júri de exame daí
a menos de um ano. Uma das suas alunas mais brilhantes, Emily Gallier, que apenas tinha feito o suficiente para passar, estava agora a entrar em pânico. Tinha esperança de
fazer o programa de estudos de três anos em três períodos. Grace não simpatizava com ela. Passou para um ensaio de Elizabeth Rutledge, outra rapariga esperta, que não tinha
parado de trabalhar desde que chegara a Cambridge. Elizabeth também estava em pânico, pois tinha medo de não conseguir a licenciatura com distinção que todos esperavam. Grace
simpatizava muito com ela. No fim de contas, tivera os mesmos receios durante o seu último ano.

297
Grace foi para a cama pouco depois da uma, tendo classificado o último ensaio. Dormiu profundamente.
Cedric estava à secretária há mais de uma hora quando o telefone tocou. Atendeu, não ficando surpreendido por encontrar Abe Cohen do outro lado da linha na altura em que os
relógios por toda a City começavam a dar as oito badaladas.
- Consegui descartar cento e oitenta e seis mil ações em Nova Iorque e Los Angeles, e o preço desceu de duas libras e oito xelins para uma libra e dezoito xelins.
- Não começou nada mal senhor Cohen.
- Duas já estão, faltam outras duas, senhor Hardcastle. Eu telefono-lhe na segunda-feira de manhã, por volta das oito, para lhe dizer quantas é que os australianos compraram.
Cedric saiu do escritório pouco passava da meia-noite e, quando chegou a casa, nem sequer fez o habitual telefonema para Beryl, pois ela já devia estar a dormir. Há muito
que tinha aceitado que a única amante do marido era a Miss Farthings Bank. Ele ficou acordado, às voltas na cama, enquanto pensava nas próximas trinta e seis horas e percebia
porque é que durante os últimos quarenta anos nunca tinha corrido riscos.
Ross e Jean Buchanan deram um longo passeio nas Terras Altas, depois de almoço.
Regressaram por volta das cinco horas, altura em que Ross retomou o "serviço de vigilância". A única diferença é que desta vez estava a ler um exemplar antigo da Country Life.
Não saiu de onde estava até ver regressar Don Pedro e os seus dois filhos. Dois deles pareciam muito satisfeitos consigo mesmos, mas Diego estava com ar pensativo. Subiram
todos para a suite do pai e ninguém os voltou a ver nessa noite.
Ross e Jean comeram na sala de jantar, antes de subirem o lanço de escadas até ao seu quarto por volta das 21h40, altura em que ambos leram durante meia hora, como sempre
faziam: ela, Georgette
298

Heyer; ele, Alistair MacLean. Quando Ross apagou finalmente a luz com o habitual "Boa noite, minha querida", mergulhou num sono profundo. No fim de contas, ele não tinha de
fazer mais nada a não ser certificar-se de que a família Martinez não partia para Londres antes de segunda-feira de manhã.
Nessa noite, quando Don Pedro e os filhos se sentaram para jantar na sua suite, Diego estava particularmente taciturno.
- Estás amuado porque mataste menos aves do que eu? - picou-o o pai.
- Há qualquer coisa de errado - disse ele -, mas não consigo descobrir o que é.
- Bem, esperemos que já tenhas descoberto de manhã, para podermos ter todos um belo dia de caça.
Depois de terem levantado a mesa do jantar, pouco passava das nove e meia, Diego deixou-os e retirou-se para o seu quarto. Deitou-se em cima da cama e tentou reproduzir a
sua chegada a King's Cross, fotograma a fotograma, como se fosse um filme a preto-e-branco. Mas estava tão exausto que não tardou a adormecer.
Acordou em sobressalto às 6h25, com uma única imagem na cabeça.
299
35
Domingo à noite
Quando Ross voltou do seu passeio com Jean no domingo à tarde, estava ansioso por tomar um banho quente, uma chávena de chá e um biscoito amanteigado, antes de regressar ao
serviço de vigilância.
Enquanto percorriam o caminho de acesso ao Glenleven, não ficou surpreendido por ver o motorista a pôr uma mala no porta-bagagens. No fim de contas, devia haver vários hóspedes
a sair depois de um fim de semana a caçar. Ross só estava interessado num determinado hóspede e, como esse não iria embora antes de terça-feira, não deu importância ao assunto.
Estavam a subir a escada para o quarto, no primeiro andar, quando Diego Martinez passou por eles a descer os degraus dois a dois, como se estivesse atrasado para uma reunião.
- Oh, deixei o meu jornal na mesa da entrada - disse Ross. - Sobe, Jean, que eu já vou ter contigo.
Ross deu meia volta e desceu a escada, tentando não olhar enquanto Diego falava com a rececionista. Estava a dirigir-se lentamente para a sala de chá quando Diego saiu do
pavilhão de caça e subiu para o banco de trás do carro que o esperava. Ross mudou de direção e velocidade e foi direito à porta principal precisamente a tempo de vê-los desaparecer
no caminho de acesso. Voltou a correr para dentro e foi à receção. A jovem esboçou um sorriso cordial.
- Boa tarde, senhor Buchanan, posso ajudá-lo? Não era altura para conversa fiada.
300

- Acabei de ver o senhor Diego Martinez a ir-se embora. Estava a pensar convidá-lo para jantar esta noite comigo e com a minha mulher. Será que ele volta mais tarde?
- Não, senhor. Bruce vai levá-lo a Edimburgo, para apanhar o comboio noturno para Londres. Mas Don Pedro e o senhor Luis Martinez vão ficar connosco até terça-feira, por isso
se quiser jantar com eles...
- Preciso de fazer um telefonema urgente.
- Receio que a linha esteja em baixo, senhor Buchanan, e tal como expliquei ao senhor Martinez, provavelmente não voltará a estar operacional antes de amanhã...
Ross, normalmente um homem cortês, virou-se e correu para a porta principal sem mais uma palavra. Saiu do pavilhão de caça, enfiou-se no carro e partiu numa viagem não programada.
Não fez qualquer tentativa para alcançar Diego, pois não queria que ele percebesse que estava a ser seguido.
A sua cabeça trabalhava a toda a velocidade. Primeiro, pensou nos problemas práticos. Deveria parar e telefonar a Cedric para lhe contar o que acontecera? Decidiu não o fazer;
no fim de contas, a sua principal prioridade era garantir que não perdia o comboio para Londres. Se tivesse tempo quando chegasse a Waverley, nessa altura ligava a Cedric
para o avisar de que Diego ia regressar a Londres um dia mais cedo.
O seu pensamento seguinte foi tirar partido de fazer parte do conselho de administração da British Railways e fazer com que o funcionário da bilheteira se recusasse a entregar
um bilhete a Diego. Mas isso não serviria de nada, pois ele iria para um hotel em Edimburgo e daí telefonaria ao seu corretor antes da abertura do mercado, altura em que descobriria
que a cotação das ações da Barrington's tinha caído a pique durante o fim de semana, dando-lhe mais do que tempo para cancelar os planos para lançar as ações do pai no mercado.
Não, o melhor era deixá-lo entrar no comboio e depois pensar no que havia de fazer a seguir, embora não tivesse a mais pequena ideia do que fosse.
Quando entrou na estrada principal para Edimburgo, Ross manteve uma velocidade constante de noventa quilómetros. Não devia ter dificuldade em arranjar um compartimento com
cama no comboio,

301
pois havia sempre um reservado para os administradores da British Railways. Só esperava que nenhum dos outros administradores viajasse para Londres nessa noite.
Praguejou enquanto fazia o longo caminho que contornava a Firth of Forth Road Bridge, que estaria fechada durante mais uma semana. Quando chegou aos arredores da cidade, não
estava mais perto de resolver o problema de como lidar com Diego quando ambos estivessem no comboio. Quem lhe dera que Harry Clifton estivesse sentado ao lado dele! Por esta
altura, já devia ter imaginado uma dúzia de possibilidades. Mas se aquilo fosse um policial, ele liquidaria simplesmente Diego.
Os seus devaneios foram bruscamente interrompidos quando sentiu o motor a trepidar. Olhou para o indicador do combustível e viu uma luz vermelha a piscar. Praguejou, bateu
no volante e começou à procura de uma bomba de gasolina. Cerca de quilómetro e meio depois, a trepidação transformou-se em soluços e o carro começou a abrandar, acabando por
seguir em ponto morto e imobilizar-se na berma da estrada. Ross olhou para o relógio. Ainda tinha quarenta minutos até o comboio partir para Londres. Saiu do carro e começou
a correr até parar esbaforido ao lado de uma placa de sinalização que dizia Centro da Cidade, 5 km. Os seus dias de correr cinco quilómetros em menos de quarenta minutos já
tinham passado há muito.
Pôs-se na berma e tentou pedir boleia. Devia ter um ar um tanto ou quanto estranho, com o seu casaco de tweed verde-acinzentado, um kilt do clã Buchanan e as meias verdes
até ao joelho, a fazer algo que não fazia desde que andara na Universidade de St. Andrews, e nessa altura também não era lá muito bom nisso.
Mudou de tática e foi à procura de um táxi. Isto revelou-se outra missão ingrata num domingo à noite naquela parte da cidade. Foi nessa altura que viu o seu salvador, um autocarro
vermelho que vinha em direção a ele, anunciando centro da cidade na parte da frente. Quando este passou por ele, Ross deu meia volta e correu em direção à paragem como nunca
antes correra, esperando e rezando para que o motorista tivesse pena dele e esperasse. As suas preces foram atendidas e ele subiu a bordo e deixou-se cair no banco da frente.
- Vai para onde? - perguntou o cobrador.
- Estação de Waverley - bufou Ross.
302

- São seis dinheiros.
Ross tirou a carteira para fora e entregou-lhe uma nota de dez xelins.
- Não tenho troco para isso.
Ross revirou os bolsos à procura de moedas soltas, mas tinha-as deixado no quarto, no Glenleven Lodge. E não tinha sido a única coisa que lá deixara.
- Fique com o troco - disse.
O cobrador espantado embolsou a nota de dez xelins e não esperou que o passageiro mudasse de ideias. No fim de contas, o Natal normalmente não é em agosto.
O autocarro só tinha percorrido algumas centenas de metros quando Ross avistou um posto de abastecimento de combustível, Macphersons, aberto vinte e quatro horas. Voltou a
praguejar. E praguejou uma terceira vez porque se tinha esquecido de que os autocarros estão constantemente a parar e não se limitam a levar-nos onde queremos ir. Olhava para
o relógio sempre que chegava a uma paragem de autocarro e sempre que encontravam um sinal vermelho, mas o relógio não andava mais devagar nem o autocarro mais depressa. Quando
a estação ficou finalmente à vista, já só tinha oito minutos. Não tinha tempo suficiente para telefonar a Cedric. Ao sair do autocarro, o cobrador pôs-se em sentido e fez-lhe
continência como se ele fosse um general.
Ross entrou rapidamente na estação e dirigiu-se a um comboio onde já tinha viajado muitas vezes. Na verdade, ele tinha feito a viagem com tanta frequência que já conseguia
jantar, tomar calmamente uma bebida e depois dormir durante os 530 quilómetros de viagem com constantes mudanças de agulha. Mas tinha a sensação de que naquela noite não ia
dormir.
Recebeu outra continência ainda mais viva quando chegou à barreira. Os revisores de Waverley orgulhavam-se de reconhecer todos os administradores da companhia a trinta passos.
- Boa noite, senhor Buchanan - disse o revisor. - Não sabia que ia viajar connosco esta noite. - Não estava a contar fazê-lo, queria ele dizer, mas em vez disso retribuiu
simplesmente o cumprimento, foi até à outra ponta da plataforma e subiu a bordo do comboio, a poucos minutos da partida.

303
Ao percorrer o corredor em direção ao compartimento reservado aos administradores, viu o chefe dos assistentes de bordo ir ao seu encontro.
- Boa noite, Angus.
- Boa noite, senhor Buchanan. Não vi o seu nome na lista dos passageiros da primeira classe.
- Não - disse Ross. - Foi uma decisão de última hora.
- Receio que o compartimento dos administradores - Ross sentiu o coração cair-lhe aos pés - não esteja arranjado, mas, se quiser tomar uma bebida no vagão-restaurante, mando-o
preparar de imediato.
- Obrigado, Angus, vou fazer isso.
A primeira pessoa que Ross viu ao entrar no vagão-restaurante foi uma atraente jovem que estava sentada no bar. Pareceu-lhe vagamente familiar. Pediu um uísque com soda e
subiu para o banco ao lado dela. Pensou em Jean e sentiu-se culpado por tê-la abandonado. Agora, não tinha forma de lhe dizer onde estava até amanhã de manhã. Depois, lembrou-se
de outra coisa que tinha abandonado. Pior, nem tinha tomado nota da rua onde deixara o carro.
- Boa noite, senhor Buchanan - disse a mulher, para surpresa de Ross. Olhou-a melhor, mas continuou sem reconhecê-la. - O meu nome é Kitty - disse ela, estendendo-lhe a mão
enluvada. - Vejo-o regularmente neste comboio, mas não é de estranhar, sendo administrador da British Railways.
Ross sorriu e bebeu um gole.
- O que é que faz que a obriga a ir a Londres e voltar com tanta regularidade?
- Trabalho por conta própria - disse Kitty.
- E em que ramo? - perguntou Ross ao mesmo tempo que o assistente de bordo aparecia ao seu lado.
- O seu compartimento está pronto, senhor, se quiser fazer o favor de me seguir.
Ross bebeu o resto da bebida de um trago.
- Prazer em conhecê-la, Kitty.
- Igualmente, senhor Buchanan.
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- Que jovem encantadora, Angus - disse Ross enquanto seguia o assistente até ao seu compartimento. - Preparava-se para me dizer porque é que viaja neste comboio com tanta
frequência.
- Eu não sei, senhor.
- Tenho a certeza de que sabe, Angus, pois não há nada que não saiba acerca do The Night Scotsman.
- Bem, digamos apenas que é muito popular junto de alguns dos nossos clientes habituais.
- Está a insinuar que...?
- Sim, senhor. Ela faz a viagem de ida e volta duas ou três vezes por semana. É muito discreta e...
- Angus! Nós estamos a gerir The Night Scotsman e não uma discoteca.
- Todos precisamos de ganhar a vida, senhor, e, se as coisas correrem bem para a Kitty, toda a gente beneficia.
Ross desatou a rir.
- Algum dos outros administradores sabe disto?
- Um ou dois. Ela faz-lhes um preço especial.
- Comporte-se, Angus.
- Desculpe, senhor.
- Agora, voltemos ao seu trabalho. Quero ver as reservas de todos os passageiros da primeira classe. É capaz de haver alguém no comboio com quem eu queira jantar.
- Claro, senhor. - Angus tirou uma folha do seu bloco com mola e entregou-a a Buchanan. - Mantive a sua mesa habitual livre para o jantar.
Ross correu o dedo pela lista e descobriu que o senhor D. Martinez estava na carruagem número 4.
- Gostava de falar com Kitty - disse ele, ao mesmo tempo que devolvia a lista a Angus. - E sem que mais ninguém descubra.
- A discrição é o meu forte - disse Angus, reprimindo um sorriso.
- Não é o que está a pensar.
- Nunca é, senhor.
- E quero que atribua a minha mesa no vagão-restaurante ao senhor Martinez, que tem um compartimento na carruagem número quatro.

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- Sim, senhor - disse Angus, agora completamente desconcertado.
- Eu guardo o seu segredinho, se o Angus guardar o meu.
- Eu guardava, senhor, se fizesse alguma ideia de qual é o seu.
- Quando chegarmos a Londres, já saberá.
- Vou buscar a Kitty, senhor.
Ross tentou organizar os seus pensamentos enquanto esperava que Kitty viesse ter com ele. Aquilo que ele tinha em mente não passava de uma manobra dilatória, mas era capaz
de lhe dar tempo suficiente para pensar em algo mais eficaz. A porta do compartimento abriu-se e Kitty entrou.
- Prazer em revê-lo, senhor Buchanan - disse ela, enquanto se sentava à frente dele e cruzava as pernas, revelando a parte de cima das meias. - Posso ser-lhe útil em alguma
coisa?
- Espero que sim - disse Ross. - Quanto é que cobra?
- Isso depende daquilo que pretende. - Ross disse-lhe exatamente o que pretendia.
- São cinco libras, senhor, tudo incluído.
Ross pegou na carteira, tirou uma nota de cinco libras e entregou-lha.
- Vou dar o meu melhor - prometeu Kitty enquanto levantava a saia e fazia desaparecer a nota na parte de cima da meia, antes de sair tão discretamente como chegara.
Ross premiu o botão vermelho junto à porta e o assistente de bordo voltou a aparecer momentos depois.
- Já reservou a minha mesa para o senhor Martinez?
- Sim, e arranjei-lhe um lugar na outra ponta do vagão-restaurante.
- Obrigado, Angus. Agora, a Kitty deve ficar sentada em frente do senhor Martinez, e tudo o que ela comer ou beber deverá ser cobrado a mim.
- Muito bem, senhor. E em relação ao senhor Martinez?
- É ele que paga a refeição, mas deverão servir-lhe os melhores vinhos e licores, deixando claro que são por conta da casa.
- Também é para serem cobrados a si, senhor?
- Sim. Mas ele não deverá saber disso, pois espero que o senhor Martinez durma profundamente esta noite.
306

- Creio que começo a perceber, senhor.
Depois de o assistente se ter ido embora, Ross ficou a pensar se Kitty conseguiria ser bem-sucedida. Se ela conseguisse embriagar Martinez a ponto de ele ficar no seu compartimento
até às nove horas da manhã seguinte, teria feito o seu trabalho e Ross diria alegremente adeus a outra nota de cinco libras. Gostara particularmente da ideia que ela tivera
de o algemar aos quatro cantos da cama e depois pendurar na porta o sinal Não Incomodar. Ninguém iria desconfiar, pois era possível ficar no comboio até às 9h30 e muitos passageiros
gostavam de dormir até tarde antes de desfrutarem de um pequeno-almoço tardio composto por eglefim fumado.
Ross saiu do seu compartimento logo depois das oito horas, dirigiu-se ao vagão-restaurante e passou por Kitty, que estava sentada em frente de Diego Martinez. Ao passar, ouviu
o escanção a falar-lhes da carta de vinhos.
Angus tinha colocado Ross na outra ponta da carruagem, de costas para Martinez, e embora se sentisse tentado por mais de uma vez a virar-se, ao contrário da mulher de Lot,
conseguiu resistir. Depois de terminar o café, e tendo rejeitado o habitual balão de brandy, assinou a conta e tratou de voltar para o seu compartimento. Ao passar pela sua
mesa habitual, ficou encantado por ver que já não estava ocupada. Sentindo-se bastante satisfeito consigo mesmo, quase se pavoneou durante o caminho de volta à sua carruagem.
A sensação de triunfo evaporou-se assim que abriu a porta do seu compartimento e viu Kitty lá sentada.
- O que está a fazer aqui? Pensei...
- Não consegui despertar-lhe o interesse, senhor Buchanan - disse ela. - E não pense que não tentei de tudo, desde bondage a uniformes escolares. Para começar, ele não bebe.
Tem qualquer coisa que ver com a religião. E muito antes do prato principal, tornou-se óbvio que não são as mulheres que o excitam. Lamento, senhor, mas obrigada pelo jantar.
- Obrigado, Kitty. Fico muito grato - disse ele, enquanto se deixava cair no lugar à frente dela.
Kitty levantou a saia, tirou a nota de cinco libras da parte de cima da meia e restituiu-lha.

307
- Nem pensar - disse ele com firmeza. - Mereceu-a.
- Posso sempre... - disse ela, pondo-lhe uma mão debaixo do kilt e fazendo deslizar lentamente os dedos pela coxa acima.
- Não, obrigado, Kitty - disse ele, levantando os olhos aos céus com horror fingido. Foi nessa altura que teve uma segunda ideia. Devolveu a nota a Kitty.
- Não é um daqueles homens esquisitos, pois não, senhor Buchanan?
- Devo admitir, Kitty, que aquilo que lhe vou propor é muito esquisito.
Ela ouviu atentamente aquilo que ele esperava dela.
- A que horas quer que eu faça isso?
- Por volta das três, três e meia.
- Onde?
- Sugiro que seja nos lavabos.
- E quantas vezes?
- Creio que uma deve ser suficiente.
- E não me vou meter em problemas, pois não, senhor Buchanan? É que esta é uma fonte de rendimento segura e a maior parte dos cavalheiros que viajam em primeira classe não
são muito exigentes.
- Tem a minha palavra, Kitty. Isto é uma vez sem exemplo, e ninguém precisa de vir a saber que esteve envolvida.
- É um cavalheiro, senhor Buchanan - disse ela, e deu-lhe um beijo na face antes de se esgueirar do compartimento.
Ross não tinha a certeza do que poderia ter acontecido se ela tivesse ficado mais um ou dois minutos. Premiu a campainha para chamar o assistente de bordo e esperou que Angus
aparecesse.
- Espero que tenha corrido satisfatoriamente, senhor.
- Ainda não tenho a certeza.
- Há mais alguma coisa que possa fazer por si, senhor?
- Sim, Angus. Preciso de uma cópia dos regulamentos e estatutos dos caminhos de ferro.
- Vou ver se encontro uma, senhor - disse Angus, parecendo perplexo.
308

Quando voltou, vinte minutos depois, trazia um grande tomo vermelho cujas páginas não tinham ar de ser folheadas com muita frequência. Ross instalou-se para ler antes de ir
para a cama. Primeiro, passou o índice em revista, identificando as três secções que precisava de estudar com mais cuidado, como se tivesse voltado a St. Andrews e estivesse
a preparar-se para um exame. Por volta das três da manhã, tinha lido e assinalado todas as passagens relevantes. Passou os trinta minutos seguintes a tentar memorizá-las.
Às 3h30, fechou o volumoso livro, recostou-se e esperou. Nunca lhe passou pela cabeça a hipótese de Kitty o deixar ficar mal. 3h30, 3h35, 3h40. De repente, houve um enorme
solavanco que quase o projetou para fora do banco. Foi seguido de um ruidoso chiar de rodas ao mesmo tempo que o comboio abrandava rapidamente até acabar por se imobilizar.
Ross saiu para o corredor e viu o chefe dos assistentes de bordo vir a correr ter com ele.
- Algum problema, Angus?
- Foi um filho da mãe qualquer, peço desculpa pela linguagem, senhor, que puxou a alavanca de alarme.
- Mantenha-me informado.
- Sim, senhor.
Ross olhava para o relógio de poucos em poucos minutos, desejando que o tempo passasse. Havia agora uma série de passageiros a deambular pelo corredor, tentando descobrir
o que se passava, mas passaram-se mais catorze minutos até o chefe dos assistentes voltar.
- Alguém puxou o alarme nos lavabos, senhor Buchanan. Com certeza, confundiu-o com a corrente do autoclismo. Mas não há problema, desde que estejamos novamente em andamento
dentro de vinte minutos.
- Porquê vinte minutos? - perguntou Ross inocentemente.
- Se ficarmos parados mais tempo do que isso, o Newcastk Fljer ultrapassa-nos e, nesse caso, ficamos bloqueados.
- E porquê?
- Tínhamos de ir atrás dele e, nesse caso, íamos chegar atrasados, pois para em oito estações daqui até Londres. Aconteceu há dois anos, quando uma criança puxou o alarme,
e acabámos por chegar a King's Cross com mais de uma hora de atraso.

309
- Apenas uma hora?
- Sim, quando entrámos em Londres já passava das oito e quarenta. Ora, nós não queremos que isso aconteça, pois não, senhor? Por isso, com a sua permissão, vou tratar de pôr
o comboio novamente em andamento.
- Um momento, Angus. Identificou a pessoa que puxou o alarme?
- Não, senhor. Deve ter fugido assim que deu pelo engano.
- Bem, lamento ter de lhe chamar a atenção, Angus, para o regulamento 43b dos estatutos dos caminhos de ferro que requer que descubra quem foi o responsável por acionar o
alarme e por que razão o fez, antes de o comboio poder seguir viagem.
- Mas isso pode levar uma eternidade, senhor, e no final, somos capazes de ficar a saber tanto como agora.
- Se não houve uma boa razão para o alarme ter sido acionado, o culpado será multado em cinco libras e a ocorrência será comunicada às autoridades - disse Ross, continuando
a recitar os estatutos dos caminhos de ferro.
- Deixe-me adivinhar, senhor.
- Regulamento 47c.
- Permita-me que lhe diga o quanto admiro a sua intuição, senhor, tendo pedido os regulamentos e estatutos dos caminhos de ferro apenas algumas horas antes de a alavanca de
alarme ter sido acionada.
- Sim, foi uma sorte! Seja como for, tenho a certeza de que o conselho de administração espera que cumpramos os regulamentos, por mais inconveniente que isso possa ser.
- Se o senhor o diz...
- Digo, pois.
Ross continuou a olhar ansiosamente pela janela e só voltou a sorrir quando o Newcastle Flyer passou por eles a toda a velocidade, vinte minutos mais tarde, saudando-os com
dois apitos prolongados. Mesmo assim, ele percebeu que se chegassem a King's Cross por volta das 8h40, como Angus previra, Diego ainda teria mais do que tempo para ir a uma
cabina na estação, telefonar ao seu corretor e retirar a proposta de venda das ações do pai antes de o mercado abrir, às nove.
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- Está feito, senhor - disse Angus. - Posso dizer ao maquinista para seguir viagem? É que um dos nossos passageiros está a ameaçar processar a British Railways se o comboio
não chegar a Londres antes das nove!
Ross não precisou de perguntar qual era o passageiro que estava a fazer aquela ameaça.
- Vá lá, Angus - disse ele com relutância, antes de fechar a porta do compartimento, sem saber o que mais poderia fazer para reter o comboio durante pelo menos mais vinte
minutos.
The Night Scotsman fez mais umas quantas paragens não programadas quando o Newcastle Flyer parou para deixar sair e recolher passageiros em Durham, Darlington, York e Doncaster.
Bateram à porta e o assistente de bordo entrou.
- Quais são as últimas, Angus?
- O homem que tem estado a fazer aquele espalhafato por causa de chegar a horas a Londres está a perguntar se pode sair do comboio quando o Flyer parar em Peterborough.
- Não, não pode - disse Ross - porque este comboio não tem paragem programada em Peterborough e, de qualquer forma, ainda ficamos bastante longe da estação, pelo que isso
iria pôr a sua vida em risco.
- Regulamento 49c?
- Portanto, se ele tentar sair do comboio, é seu dever impedi-lo pela força. Regulamento 49f. No fim de contas - acrescentou Ross - não queremos que o pobre homem morra.
- Será que não, senhor?
- E quantas paragens há mais depois de Peterborough?
- Nenhuma, senhor.
- A que horas estima que cheguemos a King's Cross?
- Por volta das oito e quarenta. Oito e quarenta e cinco, o mais tardar.
Ross suspirou profundamente.
- Tão perto e ainda assim tão longe - murmurou ele para consigo.
- Perdoe-me a pergunta, senhor - disse Angus -, mas a que horas gostaria que este comboio chegasse a Londres?

311
Ross reprimiu um sorriso.
- Alguns minutos depois das nove seria perfeito.
- Vou ver o que se pode fazer, senhor - disse o chefe dos assistentes antes de sair da carruagem.
O comboio manteve uma velocidade constante durante o resto da viagem, mas depois, de repente e sem aviso, parou a algumas centenas de metros da estação de King's Cross.
- Daqui fala o assistente de bordo - disse uma voz pelo intercomunicador. - Pedimos desculpa pelo atraso do Night Scotsman, mas deveu-se a circunstâncias impossíveis de controlar.
Esperamos desembarcar todos os passageiros dentro de alguns minutos.
Ross só se perguntava como é que Angus conseguira acrescentar outros trinta minutos à viagem. Saiu para o corredor e encontrou-o a tentar acalmar um grupo de passageiros irados.
- Como é que conseguiu, Angus? - sussurrou.
- Parece que há outro comboio à espera na nossa plataforma, e como só deve partir para Durham às nove e cinco, receio que não possamos desembarcar os passageiros muito antes
das nove e quinze. Peço desculpa pelo incómodo, senhor - disse ele em voz mais alta.
- Muito obrigado, Angus.
- De nada, senhor. Oh, não! - disse Angus, correndo para a janela. - É ele.
Ross espreitou pela janela e viu Diego Martinez a correr pela linha em direção à estação. Olhou para o relógio: 8h53.
Segunda-feira de manhã
Cedric tinha entrado no gabinete momentos antes das sete da manhã e começara de imediato a andar de um lado para o outro na sala, enquanto esperava que o telefone tocasse.
Mas ninguém telefonou até às oito. Era Abe Cohen.
- Consegui livrar-me de todas, senhor Hardcastle - disse Cohen. - As poucas que restavam desapareceram em Hong Kong. Sinceramente ninguém consegue perceber porque é que o
preço está tão baixo.
312

- Qual foi a cotação final? - perguntou Cedric.
- Uma libra e oito xelins.
- Não podia ser melhor, Abe. Ross tinha razão, você é simplesmente o maior!
- Obrigado, senhor. Só espero que tivesse algum objetivo em perder este dinheiro todo. - E antes que Cedric pudesse responder, acrescentou: - Vou-me embora para dormir um
bocado.
Cedric olhou para o relógio. A Bolsa ia abrir daí a quarenta e cinco minutos. Bateram suavemente à porta e Sebastian entrou trazendo uma bandeja de café e biscoitos. Sentou-se
do outro lado da secretária do presidente.
- Como é que te saíste? - perguntou Cedric.
- Telefonei a catorze dos principais corretores para lhes dizer que se aparecerem algumas ações da Barrington's no mercado, somos compradores.
- Ótimo - disse Cedric, olhando uma vez mais para o relógio.
- Como Ross não telefonou, ainda devemos ter hipótese. - Bebeu um gole de café, olhando de relance para o relógio de poucos em poucos segundos.
Quando começaram a bater as nove horas numa centena de relógios diferentes por toda a Square Mile, Cedric levantou-se, reconhecendo o hino da City. Sebastian continuou sentado,
a olhar para o telefone, querendo que ele tocasse. Às 9h03, alguém obedeceu à sua ordem. Cedric arrebatou o auscultador, fez malabarismos com ele e quase o deixou cair no
chão.
- Tem a Capeis em linha - disse a sua secretária. - Passo a chamada?
- Imediatamente.
- Bom dia, senhor Hardcastle. Daqui fala David Alexander, da Capeis. Sei que não somos a sua corretora habitual, mas ouvimos dizer que quer comprar ações da Barrington's,
por isso queria dizer-lhe que temos uma grande ordem de venda com instruções do nosso cliente para vender pelo preço à vista quando o mercado abrisse esta manhã. Queria saber
se continua interessado.
- Posso estar - disse Cedric, esperando parecer calmo.
- No entanto, há uma condição associada à venda destas acções - disse Alexander.

313
- E qual é ela? - perguntou Cedric, farto de saber qual era.
- Não estamos autorizados a vender a ninguém que represente a família Barrington ou a família Clifton.
- O meu cliente é do Lincolnshire e posso assegurar-lhe que não tem qualquer ligação passada ou presente com nenhuma dessas famílias.
- Então, terei muito gosto em fazer a transação, senhor. Cedric sentiu-se como um adolescente a tentar fechar o seu primeiro negócio.
- E qual é o preço à vista, senhor Alexander? - perguntou, aliviado pelo facto de o corretor da Capeis não poder ver o suor a escorrer-lhe pela testa.
- Uma libra e nove xelins. Subiram um xelim desde que o mercado abriu.
- Quantas ações está a vender?
- Temos um milhão e duzentas mil, senhor.
- Fico com todas.
- Será que ouvi bem, senhor?
- Com certeza que sim.
- Então, é uma ordem de compra para um milhão e duzentas mil ações da Barrington Shipping ao preço unitário de uma libra e nove xelins. Aceita a transação, senhor?
- Sim, aceito - disse o presidente do Farthings Bank, tentando fazer um tom de voz muito formal.
- O negócio está fechado, senhor. Essas ações estão agora em nome do Farthings Bank. Envio-lhe a papelada para assinar ainda esta manhã. - A linha ficou muda.
Cedric deu saltos e socou o ar como se o Huddersfíeld Town tivesse acabado de ganhar a Taça de Inglaterra. Sebastian teria feito o mesmo, mas o telefone voltou a tocar.
Pegou no auscultador, escutou por um momento e depois passou-o rapidamente a Cedric.
- É David Alexander. Diz que é urgente.

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317

DIEGO MARTINEZ
1964

36
8h53, segunda-feira de manhã
Diego Martinez olhou para o relógio. Não se podia dar ao luxo e esperar muito mais. Olhou para um lado e para o outro do corredor apinhado para se certificar de que não havia
sinal do assistente de bordo e depois puxou a janela para baixo, esticou o braço por fora até chegar ao ++manipulo e abriu a porta. Saltou do comboio e aterrou nos carris.
Alguém gritou:
- Não pode fazer isso!
Não perdeu tempo a dizer que já o tinha feito.
Começou a correr em direção à estação bem iluminada e já devia ter feito uns duzentos metros quando viu a plataforma à sua frente. Não conseguia ver os olhares espantados
dos passageiros que espreitavam pelas janelas das carruagens quando passava por eles a toda a velocidade.
- Deve ser uma questão de vida ou morte - alvitrou um deles.
Diego continuou a correr até chegar à outra ponta da plataforma. Tirou a carteira para fora e pegou no bilhete muito antes de ter chegado à barreira. O revisor olhou para
ele e disse:
- Disseram-me que o Night Scotsman só chegava daqui a quinze minutos, pelo menos.
- Onde é que fica a cabina telefónica mais próxima? - gritou Diego.
- Fica já ali - disse o revisor, apontando para uma fila de cabinas vermelhas. - Não tem como se enganar.
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Diego correu pela gare cheia de gente, tentando ao mesmo tempo tirar um punhado de moedas de um bolso das calças. Parou junto às seis cabinas telefónicas; três estavam ocupadas.
Abriu uma porta e olhou para os trocos, mas não tinha quatro moedas de um dinheiro; faltava-lhe uma.
- Leiam tudo sobre isso!
Deu meia-volta, viu o ardina e começou a correr na sua direção. Foi logo para o início de uma longa fila, entregou meia coroa ao rapaz e disse:
- Preciso de uma moeda de um dinheiro.
- Com certeza, chefe - disse o ardina, que presumiu que ele estava aflito para ir aos lavabos e lhe deu rapidamente uma moeda de um dinheiro.
Diego voltou a correr para as cabinas telefónicas e nem o ouviu dizer "Não se esqueça do troco, senhor" e "Então e o seu jornal?" Abriu uma porta e deparou-se com as palavras
Fora de Serviço. Entrou de rompante na cabina ao lado quando uma mulher atónita estava a abrir a porta. Pegou no telefone, introduziu quatro moedas de um dinheiro na caixa
preta e marcou CITY 416. Passados momentos, ouviu o sinal de chamar.
- Atendam, atendam, atendam! - gritou. Por fim, apareceu uma voz em linha.
- Capei and Company. Em que posso ajudá-lo?
Diego premiu o botão A e ouviu as moedas a cair na caixa.
- Passe-me ao senhor Alexander.
- Qual senhor Alexander, A., D. ou W.?
- Espere um momento - disse Diego. Pousou o auscultador em cima da caixa, pegou na carteira, tirou o cartão do senhor Alexander e voltou a pegar rapidamente no telefone. -
Ainda aí está?
- Sim, senhor.
- David Alexander.
- De momento, não está disponível. Posso passá-lo a outro corretor?
- Não, passe-me imediatamente a David Alexander - exigiu Diego.
- Mas ele está em linha com outro cliente.

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- Então, corte a chamada. Isto é uma emergência.
- Não estou autorizada a interromper as chamadas, senhor.
- Mas é isso que vai fazer, sua estúpida, se ainda quiser ter o seu trabalho amanhã de manhã.
- Quem devo anunciar? - perguntou uma voz trémula.
- Limite-se a passar a chamada! - gritou Diego. Ouviu um estalido.
- Ainda está aí, senhor Hardcastle?
- Não, não está. Daqui fala Diego Martinez, senhor Alexander.
- Ah, bom dia, senhor Martinez. O seu sentido de oportunidade não podia ser melhor.
- Diga-me que não vendeu as ações da Barrington's do meu pai!
- Vendi, sim, mesmo antes de o senhor aparecer na linha. Tenho a certeza de que vai ficar encantado por saber que houve um cliente que comprou a totalidade: um milhão e duzentas
mil. Em circunstâncias normais, era capaz de ter levado duas ou mesmo três semanas a alienar todas elas. E ainda consegui mais um xelim do que a cotação de abertura.
- Vendeu-as por quanto?
- Uma libra e nove xelins. Tenho a ordem de venda à minha frente.
- Mas valiam duas libras e oito xelins quando o mercado fechou na sexta-feira à tarde.
- É verdade, mas parece que houve uma grande movimentação destas ações ao longo do fim de semana. Parti do princípio que deviam saber disso, e essa foi uma das razões para
ter ficado tão satisfeito por me ter livrado de todas elas tão rapidamente.
- Porque é que não tentou contactar o meu pai para o avisar de que o preço das ações tinha caído a pique? - gritou Diego.
- O seu pai deixou claro que não estaria contactável durante o fim de semana e que só regressava a Londres amanhã à noite.
- Mas quando viu que a cotação das ações tinha descido, porque é que não usou o seu bom senso e não esperou até ter falado com ele?
- Tenho as instruções redigidas pelo seu pai à minha frente, senhor Martinez. Não podiam ser mais claras. Toda a sua participação
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na Barrington's devia ser lançada no mercado quando a bolsa abrisse esta manhã.
- Agora, escute, Alexander, e escute com atenção. Estou a dar-lhe ordem para cancelar essa venda e para recuperar as ações.
- Receio que não possa fazer isso, senhor. Quando é acordada uma transação, não há forma de inverter o processo.
- A papelada já foi preenchida?
- Não, senhor, mas estará concluída antes do fecho das operações, esta noite.
- Então, não a preencha. Diga a quem quer que tenha comprado as ações que houve um erro.
- A City não trabalha dessa forma, senhor Martinez. Depois de acordada uma transação, não há maneira de inverter o processo, caso contrário o mercado estaria em agitação permanente.
- Estou a dizer-lhe, Alexander, que vai anular essa venda, senão vou processar a sua companhia por negligência.
- E eu estou a dizer-lhe, senhor Martinez, que se o fizesse ia ter de enfrentar o conselho da Bolsa de Valores e perdia a minha licença de atividade.
Diego mudou de estratégia.
- Essas ações foram compradas por um membro da família Barrington ou Clifton?
- Não, não foram, senhor. Cumprimos à letra as instruções do seu pai.
- Então quem é que as comprou?
- O presidente de um banco do Yorkshire, em nome de um dos seus clientes.
Diego decidiu que estava na altura de experimentar outra abordagem, uma que nunca falhara no passado.
- Se conseguir extraviar essa ordem, senhor Alexander, dou-lhe cem mil libras.
- Se eu fizesse isso, senhor Martinez, não só perderia a minha licença, como ia acabar na cadeia.
- Mas seria em dinheiro vivo, e assim ninguém ficava a saber de nada.
- Fico eu - disse Alexander - e vou relatar esta conversa ao meu pai e ao meu irmão na próxima reunião de sócios. Vou deixar

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clara a minha posição, senhor Martinez. A partir de agora, esta firma não voltará a fazer negócio consigo, nem com qualquer membro da sua família. Bom dia, senhor. A chamada
foi desligada.
- Quer que lhe dê primeiro as boas notícias ou as más notícias?
- Sou um otimista, por isso dê-me as boas.
- Conseguiu! É agora o orgulhoso proprietário de um milhão e duzentas mil ações da Barrington Shipping Company.
- E as más?
- Preciso de um cheque de £1 740 000, mas vai gostar de saber que as ações já subiram quatro xelins desde que as comprou, por isso já conseguiu um bom lucro.
- Estou-lhe muito grato, Cedric. E tal como combinámos, eu cubro quaisquer perdas que tenha sofrido durante o fim de semana. É mais do que justo. Então, o que é que acontece
a seguir?
- Amanhã, vou mandar a Grimsby um dos nossos diretores associados, Sebastian Clifton, com a papelada que tem de assinar. Estando envolvida uma soma tão grande, prefiro não
confiar essa missão aos caprichos do serviço postal.
- Se é o irmão de Jessica, mal posso esperar para o conhecer.
- É, pois. Deve ir ter consigo amanhã, por volta do meio-dia, e depois de ter assinado todos os certificados, ele vai trazê-los para Londres.
- Diga-lhe que, tal como aconteceu consigo, está prestes a ter uma experiência gastronómica: os melhores filetes de peixe com batata frita do mundo, comidos diretamente do
Grimsby Evening Telegrapb de ontem. Pode ter a certeza de que não o vou levar a um restaurante chique com toalha de mesa e pratos.
- Se foi suficientemente bom para mim, será suficientemente bom para ele - disse Cedric. - Fico ansioso por vê-lo na próxima segunda-feira, na assembleia-geral anual.
- Ainda temos vários problemas - disse Sebastian depois de Cedric ter desligado.
- E quais são eles?
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- Embora a cotação das ações da Barrington's já tenha começado a recuperar, não nos podemos esquecer de que a carta de demissão de Fisher vai ser divulgada à imprensa na sexta-feira.
A sugestão de que a companhia pode estar perante uma situação de falência, feita por um membro do conselho de administração, pode fazer com que as ações caiam novamente.
- Essa é uma das razões para ires a Grimsby amanhã - disse Cedric. - Fisher vem ter comigo ao meio-dia, altura em que deves estar a comer os melhores filetes de peixe com
batata frita do mundo, acompanhados de puré de ervilhas.
- E qual é a outra razão? - perguntou Sebastian.
- Preciso que estejas longe daqui quando eu me encontrar com Fisher. A tua presença só ia servir para lembrá-lo de que lado está realmente a minha lealdade.
- Não vai ser fácil fazê-lo cair - avisou Seb - como o meu tio Giles descobriu por mais de uma vez.
- Eu não vou fazê-lo cair - disse Cedric. - Pelo contrário. Tenciono ajudá-lo a manter-se de pé. Há mais algum problema?
- Mais exatamente três: Don Pedro Martinez, Diego Martinez e, em menor escala, Luis Martinez.
- Sei de fonte segura que esses três estão todos acabados. Don Pedro enfrenta uma situação de falência, Diego pode ser preso a qualquer momento por tentativa de suborno e
Luis nem sequer se pode assoar, a menos que seja o pai a dar-lhe o lenço. Não, creio que não faltará muito para esses três senhores fazerem uma viagem só de ida para a Argentina.
- Ainda tenho a sensação de que Don Pedro vai tentar vingar-se antes de partir.
- Não creio que ele se atreva a aproximar-se das famílias Barrington ou Clifton neste momento.
- Não estava a pensar na minha família.
- Não tens de te preocupar comigo - disse Cedric. - Eu sei cuidar de mim.
- Nem no senhor.
- Então, em quem?
- Samantha Sullivan.

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- Não me parece que ele esteja disposto a correr esse risco.
- Martinez não pensa como o senhor...
Segunda-feira à noite
Don Pedro estava tão zangado que levou algum tempo até conseguir falar.
- Como é que eles conseguiram? - exigiu ele saber.
- Quando o mercado fechou na sexta-feira e eu parti para a Escócia - disse Diego -, alguém começou a vender um grande número de ações da Barrington's em Nova Iorque e Los
Angeles, e depois mais ações quando o mercado abriu em Sydney esta manhã, livrando-se finalmente das poucas que lhe restavam em Hong Kong, enquanto estávamos todos a dormir.
- Em todos os sentidos da palavra - disse Don Pedro. Seguiu-se outra longa pausa e, mais uma vez, ninguém pensou em interrompê-lo. - Então, quanto é que eu perdi? - lá acabou
por dizer.
- Mais de um milhão de libras.
- Descobriste quem é que vendeu essas ações? - perguntou Don Pedro. - Até aposto que é a mesma pessoa que comprou as minhas esta manhã a metade do preço.
- Creio que deve ser alguém chamado Hardcastle, que estava em linha quando interrompi David Alexander.
- Cedric Hardcastle - disse Don Pedro. - É um banqueiro do Yorkshire que faz parte do conselho de administração da Barrington's e apoia sempre a presidente. Vai arrepender-se
disto.
- Pai, nós não estamos na Argentina. Perdeu quase tudo, e já sabemos que as autoridades andam à procura de uma desculpa para o deportar. Talvez esteja na altura de esquecer
esta vingança.
Diego anteviu a bofetada, mas nem vacilou.
- Tu não dizes ao teu pai o que é que ele pode e não pode fazer! Vou-me embora quando quiser, e não antes. Estamos entendidos? - Diego disse que sim com a cabeça. - Mais alguma
coisa?
- Não posso ter a certeza absoluta, mas penso que vi Sebastian Clifton na estação de King's Cross quando subi para o comboio, embora ele estivesse bastante longe.
324

- Porque é que não confirmaste?
- Porque o comboio estava quase a partir e...
- Eles até perceberam que não podiam avançar com o seu plano se tu não embarcasses no The Night Scotsman. Espertos! - disse Don Pedro. - Portanto, também deviam ter alguém
no Glenleven a vigiar os nossos movimentos, caso contrário como é que podiam ter sabido que estavas de regresso a Londres?
- Tenho a certeza de que ninguém me seguiu quando saí do hotel. Verifiquei várias vezes.
- Mas alguém devia saber que estavas naquele comboio. É demasiada coincidência que na noite em que tu viajas no The Night Scotsman, este se atrase hora e meia pela primeira
vez em anos. Consegues lembrar-te de alguma coisa de estranho que se tenha passado durante a viagem?
- Houve uma prostituta chamada Kitty que me tentou engatar e depois alguém acionou o alarme...
- Demasiadas coincidências.
- Mais tarde, vi-a a segredar com o chefe dos assistentes de bordo, e ele sorriu e foi-se embora.
- Uma prostituta e um assistente de bordo não conseguiam reter o Night Scotsman durante hora e meia sozinhos. Não, devia estar alguém com verdadeira autoridade nesse comboio,
a puxar os cordelinhos. - Outra longa pausa. - Eu acho que eles perceberam o que estávamos a planear, mas vou tratar de garantir que isso não acontece quando retaliarmos.
Para fazer isso, teremos de estar tão bem organizados quanto eles.
Diego não deu a sua opinião nesta conversa unilateral.
- Quanto dinheiro me resta?
- Cerca de trezentas mil, da última vez que vi - disse Karl.
- E a minha coleção de arte foi posta à venda em Bond Street, ontem à noite. Agnew assegurou-me que é capaz de render um milhão. Por isso, ainda tenho mais do que o suficiente
para os enfrentar. Nunca se esqueçam, não importa quantas pequenas escaramuças se perdem, desde que se ganhe a batalha final.
Diego sentiu que não era o momento certo para lembrar ao pai qual dos dois generais tinha emitido essa opinião em Waterloo.

325
Don Pedro fechou os olhos, recostou-se na cadeira e não disse nada. Mais uma vez, ninguém tentou interromper-lhe os pensamentos. Subitamente, os seus olhos abriram-se e ele
sentou-se muito direito.
- Agora escutem com atenção - disse ele, olhando para o filho mais novo. - Luis, tu ficas responsável por atualizar o ficheiro sobre Sebastian Clifton.
- Pai - começou Diego -, fomos avisados...
- Cala-te! Se não queres fazer parte da minha equipa, podes ir embora agora. - Diego não se mexeu, mas sentiu mais o insulto do que a bofetada. Don Pedro voltou a centrar-se
em Luis. - Quero saber onde mora, onde trabalha e quem são os seus amigos. Achas que consegues?
- Sim, pai - disse Luis.
Diego não tinha dúvidas de que se o irmão tivesse cauda estaria a abaná-la.
- Diego - disse Don Pedro, olhando para o filho mais velho. - Tu vais a Bristol visitar Fisher. Não lhe digas que vais, é melhor apanhá-lo de surpresa. Agora, é ainda mais
importante que ele entregue a carta de demissão à senhora Clifton na sexta-feira de manhã e depois a divulgue à imprensa. Quero que o editor da secção de negócios de cada
jornal nacional receba uma cópia, e espero que Fisher esteja disponível para qualquer jornalista que queira entrevistá-lo. Leva mil libras contigo. Não há nada que deixe Fisher
mais concentrado do que a visão do dinheiro.
- Talvez também o tenham abordado - aventou Diego.
- Então leva duas mil. E Karl - disse, virando-se para o seu aliado de confiança -, guardei o melhor para ti. Marca passagem no comboio noturno para Edimburgo e encontra a
tal prostituta. E quando a encontrares, certifica-te de que lhe dás uma noite que ela nunca esquecerá. Não me importa como é que vais descobrir, mas quero saber quem foi o
responsável pelo comboio ter ficado retido durante hora e meia. Encontramo-nos todos amanhã à noite. Nessa altura, já terei tido oportunidade de ir à galeria Agnew's para
saber como é que está a correr a venda. - Don Pedro ficou calado durante algum tempo, antes de acrescentar: - Tenho a sensação de que vamos precisar de muito dinheiro para
aquilo que tenho em mente.
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37
Terça-feira de manhã
- Tenho uma prenda para ti.
- Deixa-me adivinhar.
- Não, vais ter de esperar para ver.
- Ah, é uma prenda que é preciso esperar para ver.
- Sim, admito que ainda nem sequer a comprei, mas...
- Mas agora que me seduziste, vai ser mais esperar do que ver, certo?
- Vês como percebes? Mas em minha defesa, espero trazê-la hoje da...
- Tiffany?
- Bem, não...
- Asprey?
- Não propriamente.
- Cartier?
- Era a minha segunda escolha.
- E a primeira?
- Bingham.
- Bingham de Bond Street?
- Não, Bingham de Grimsby.
- E a Bingham é famosa pelo quê? Diamantes? Peles? Perfume? - perguntou ela, esperançada.
- Pasta de peixe.
- Um ou dois frascos?

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- Um para começar, pois ainda preciso de ver como é que esta relação evolui.
- Suponho que seja o máximo a que uma vendedora desempregada pode aspirar - disse Samantha enquanto saía da cama. - E pensar que sonhava ser concubina.
- Isso é mais tarde, quando eu for presidente do banco - disse Sebastian, seguindo-a para dentro da casa de banho.
- Posso não estar disposta a esperar tanto tempo - disse Samantha ao mesmo tempo que entrava para o duche. Preparava-se para correr a cortina quando Sebastian se juntou a
ela.
- Não há espaço suficiente para nós os dois - disse ela.
- Alguma vez fizeste amor no duche?
- Espera e verás.
- Major, foi muito amável em arranjar tempo para vir falar comigo.
- Nada disso, Hardcastle. Estava em Londres a tratar de negócios, por isso até calhou bem.
- Quer um café, companheiro?
- Simples, sem açúcar, obrigado - disse Fisher enquanto se sentava do outro lado da secretária do presidente.
Cedric premiu um botão no telefone.
- Miss Clough, dois cafés simples, sem açúcar, e talvez alguns biscoitos. Vivemos tempos emocionantes, não acha, Fisher?
- Está a pensar particularmente em quê?
- No batismo do Buckingham pela rainha-mãe no mês que vem, é claro, e na viagem inaugural que vai levar a companhia para uma nova era.
- Esperemos que sim - disse Fisher. - Embora ainda haja vários obstáculos a ultrapassar para eu ficar totalmente convencido.
- E é precisamente por isso que queria dar-lhe uma palavrinha, companheiro.
Bateram à porta ao de leve e Miss Clough entrou carregando uma bandeja com duas chávenas de café. Pôs uma em frente do major e a outra junto do presidente, com um prato de
bolinhos entre as duas.
328

- Deixe-me dizer desde já o quanto lamento o facto de o senhor Martinez ter decidido vender a participação que tinha na Barrington's. Será que me sabe dizer o que o levou
a tomar essa decisão?
Fisher largou a chávena no pires, derramando algumas gotas.
- Não fazia ideia - tartamudeou.
- Peço desculpa, Alex, parti do princípio de que ele o tinha informado antes de tomar uma decisão tão irreversível.
- Quando é que isso aconteceu?
- Ontem de manhã, momentos depois de a Bolsa de Valores abrir, e foi por isso que eu lhe telefonei. - Fisher parecia uma raposa assarapantada apanhada pelos faróis de um carro
que vinha na sua direção. - É que gostava de discutir um assunto consigo. - Fisher continuou mudo, o que permitiu a Cedric prolongar um pouco mais a sua agonia. - Faço sessenta
e cinco anos em outubro e embora não tencione reformar-me do cargo de presidente do banco, pretendo libertar-me de alguns dos meus interesses externos, entre eles o cargo
de administrador na Barrington's. - Fisher esqueceu-se do café e escutou atentamente as palavras de Cedric. - Com isso em mente, decidi demitir-me do conselho de administração
e dar lugar a um homem mais novo.
- Lamento saber disso - replicou Fisher. - Sempre achei que trazia sabedoria e seriedade às nossas discussões.
- E muito amável, e na verdade era por isso que queria falar consigo. - Fisher sorriu, perguntando-se se seria possível... - Tenho-o observado atentamente ao longo dos últimos
cinco anos, Alex, e aquilo que mais me impressionou foi o seu leal apoio à nossa presidente, sobretudo tendo em conta que também era candidato ao lugar e que ela só o derrotou
por causa do voto de desempate do presidente de saída.
- Nunca devemos deixar os sentimentos pessoais interferir com aquilo que é o melhor para a companhia.
- Não diria melhor, Alex, e é por isso que esperava conseguir persuadi-lo a tomar o meu lugar no conselho de administração, agora que já não representa os interesses do senhor
Martinez.
- E uma oferta muito generosa, Cedric.

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- Não, até é bastante egoísta, pois se aceitasse fazê-lo, isso ajudaria a garantir a estabilidade e continuidade tanto da Barrington's como do Farthings Bank.
- Sim, compreendo.
- Para além das mil libras por ano que recebe atualmente enquanto administrador, o Farthings pagar-lhe-ia outras mil para representar os interesses do banco. No fim de contas,
preciso de ser posto ao corrente depois de cada reunião do conselho, o que exigiria que viesse a Londres e passasse cá a noite. É claro que as despesas seriam cobertas pelo
banco.
- É muito generoso da sua parte, Cedric, mas vou precisar de um tempinho para pensar sobre isso - disse o major, debatendo-se claramente com um problema.
- Claro que sim - disse Cedric, sabendo bem qual era o problema.
- Quando é que precisa de saber qual é a minha decisão?
- No final da semana. Gostava de ter o assunto resolvido antes da assembleia-geral anual na próxima segunda-feira. Inicialmente, tinha pensado em pedir ao meu filho Arnold
que me substituísse, mas isso foi antes de saber que podia estar disponível.
- Eu digo-lhe na sexta-feira.
- Agradeço a gentileza, Alex. Vou escrever imediatamente uma carta a confirmar a oferta e ainda a ponho esta noite no correio.
- Obrigado, Cedric. Pode ter a certeza de que vou ponderá-la devidamente.
- Excelente. Agora, não o quero prender por mais tempo, pois, se bem me lembro, disse que tinha uma reunião em Westminster.
- E tenho mesmo - disse Fisher, levantando-se lentamente do lugar e apertando a mão a Cedric, que o acompanhou à porta.
Cedric voltou para a secretária, sentou-se e começou a escrever a sua carta ao major, perguntando-se se a sua oferta seria mais tentadora do que a que Martinez se preparava
sem dúvida para lhe fazer.
O Rolls-Royce vermelho parou à porta da galeria Agnew's. Don Pedro saiu para o passeio e olhou para a montra, onde viu um retrato
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de corpo inteiro da senhora Kathleen Newton, a bela amante de Tissot Sorriu quando viu o ponto vermelho.
Ficou com um sorriso ainda mais rasgado depois de entrar na galeria. Não foi a visão de tantos quadros e esculturas magníficos que o fizeram sorrir, mas sim a pletora de pontos
vermelhos ao lado deles.
- Posso ajudá-lo, senhor? - perguntou uma mulher de meia-idade.
Don Pedro ficou a pensar o que teria acontecido à bela jovem que o recebera da última vez que visitara a galeria.
- Quero falar com o senhor Agnew.
- Não sei se ele está disponível, neste momento. Talvez eu possa ajudá-lo.
- Para mim, está disponível - disse Don Pedro. - No fim de contas, esta exposição é minha - acrescentou, erguendo os braços como se estivesse a abençoar uma congregação.
Ela afastou-se rapidamente e sem dizer mais nada bateu à porta do gabinete do senhor Agnew e desapareceu lá dentro. Passados momentos, apareceu o proprietário.
- Boa tarde, senhor Martinez - disse ele com alguma rigidez, que Don Pedro atribuiu à frieza tipicamente inglesa.
- Vejo que a venda está a correr bem, mas quanto é que conseguiu arrecadar até agora?
- Se não se importar, vamos para o meu gabinete, onde temos mais privacidade.
Don Pedro seguiu-o através da galeria, contando os pontos vermelhos, mas esperou até a porta do gabinete estar fechada para repetir a pergunta:
- Quanto é que conseguiu arrecadar até agora?
- Um pouco mais de cento e setenta mil libras na noite de abertura, e esta manhã um cavalheiro telefonou para reservar mais duas peças, o Bonnard e um Utrillo, o que fará
esse valor subir à vontade para mais de duzentas mil libras. Também tivemos um pedido de informação sobre o Rafael por parte da National Gallery.
- Ótimo, porque preciso de cem mil libras de imediato.
- Receio que isso não seja possível, senhor Martinez.
- Porquê? O dinheiro é meu.

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- Ando há vários dias a tentar contactá-lo, mas tem estado na
Escócia, a caçar.
- Porque é que não posso ter o meu dinheiro? - exigiu saber
Martinez, agora em tom ameaçador.
- Na sexta-feira passada, tivemos a visita de um tal senhor Ledbury do Midland Bank, St. James's. Estava acompanhado do advogado, que nos deu instruções para pagar o dinheiro
angariado com esta
venda diretamente ao banco.
- Ele não tem autoridade para fazer isso! Esta coleção pertence-me!
- Eles apresentaram documentos legais para mostrar que o senhor tinha assinado a cedência de toda a coleção, com cada peça listada individualmente, como garantia de um empréstimo.
- Mas eu reembolsei esse empréstimo ontem.
- O advogado voltou aqui ontem, mesmo antes da abertura da exposição, com uma ordem do tribunal a impedir-me de transferir o dinheiro para outra pessoa que não o banco. É
meu dever chamar-lhe a atenção, senhor Martinez, para o facto de que não é esta a forma como gostamos de fazer negócio na Agnew's.
- Vou obter uma carta de quitação de imediato. Quando voltar, espero que tenha um cheque de cem mil libras à minha espera.
- Fico ansioso por revê-lo, senhor Martinez.
Don Pedro saiu da galeria sem lhe apertar a mão e sem dizer palavra. Caminhou rapidamente em direção a St. James's, seguido pelo seu Rolis-Royce, alguns metros atrás. Quando
chegou ao banco, entrou e dirigiu-se ao gabinete do gerente antes que alguém tivesse oportunidade de lhe perguntar quem era ou com quem queria falar. Quando chegou ao fim
do corredor, não bateu à porta, entrando de rompante e dando com o senhor Ledbury sentado à sua mesa de trabalho e a ditar para uma secretária.
- Boa tarde, senhor Martinez - disse Ledbury, quase como se estivesse à espera dele.
- Saia - disse Don Pedro apontando para a secretária, que deixou rapidamente a sala sem sequer olhar para o gerente.
- Que brincadeira é esta, Ledbury? Venho agora mesmo da Agnew's e eles recusam-se a entregar-me o dinheiro da venda da minha coleção de arte particular e dizem que é você
o culpado.
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- Temo que a coleção já não seja sua - disse Ledbury - e já não o era desde há algum tempo. É óbvio que se esqueceu que a cedeu ao banco depois de termos aumentado a sua facilidade
de saque a descoberto uma vez mais. - Destrancou a gaveta de cima de um pequeno armário verde e tirou um dossiê para fora.
- E o dinheiro da venda das minhas ações na Barrington's? Renderam mais de três milhões.
- O que ainda o deixa com um descoberto bancário - folheou algumas páginas do dossiê - de £772 450 à hora de fecho das operações, ontem à noite. Para não voltar a passar por
esta situação embaraçosa, deixe-me recordar-lhe que também assinou recentemente uma garantia pessoal, que inclui a sua casa de campo e o número quarenta e quatro em Eaton
Square. E devo avisá-lo de que, caso o produto da venda da sua coleção de arte não seja suficiente para cobrir o seu descoberto bancário atual, vamos perguntar-lhe de qual
dessas propriedades deseja desfazer-se primeiro.
- Não pode fazer isso.
- Posso, senhor Martinez, e farei, se necessário. E da próxima vez que quiser falar comigo - disse Ledbury enquanto se dirigia para a porta - tenha a bondade de marcar uma
hora através da minha secretária. Deixe-me recordar-lhe que isto é um banco, não um casino. - Abriu a porta. - Bom dia, senhor.
Martinez saiu do gabinete do gerente, atravessou o átrio do banco e saiu para a rua, encontrando o seu Rolls-Royce aí estacionado à espera dele. Chegou a pensar se ainda lhe
pertenceria.
- Leva-me para casa - disse ele.
Quando chegaram ao topo de St. James's, o Rolls-Royce virou à esquerda, desceu Piccadilly e passou pela estação de Green Park, de onde saía uma torrente de pessoas. Entre
elas, estava um jovem que atravessou a estrada, virou à esquerda e dirigiu-se a Albemarle Street.
Quando Sebastian entrou na galeria Agnew's pela terceira vez em menos de uma semana, pretendia ficar lá apenas o tempo suficiente para ir buscar o quadro de Jessica. Podia
tê-lo levado quando a polícia o acompanhara de volta à galeria, mas estava demasiado distraído pelo pensamento de Sam trancada numa cela.

333
Desta vez, voltou a distrair-se, não com o pensamento de salvar uma donzela em apuros, mas com a qualidade das obras de arte expostas. Parou para admirar La Madonna de Bogotá,
de Rafael, que estivera na sua posse durante algumas horas, e tentou imaginar como seria passar um cheque de £100 000 e saber que não seria devolvido.
Divertiu-o ver que O Pensador de Rodin estava à venda por £150 000. Lembrava-se muito bem de quando Don Pedro o comprara na Sotheby's por £120 000, um recorde para um Rodin
nessa altura. Mas a verdade é que Don Pedro pensava que a estátua continha oito milhões de libras em notas falsas de cinco libras. Tinha sido o início dos problemas de Sebastian.
- Bem-vindo de volta, senhor Clifton.
- Receio que seja outra vez culpa minha. Esqueci-me de levar o quadro da minha irmã.
- Pois foi. Acabei de pedir à minha assistente para o ir buscar.
- Obrigado, senhor - disse Sebastian ao mesmo tempo que a substituta de Sam aparecia com um embrulho volumoso que entregou ao senhor Agnew. Ele examinou demoradamente a etiqueta,
antes de o entregar a Sebastian.
- Esperemos que não seja um Rembrandt, desta vez - disse Sebastian, incapaz de reprimir um sorriso afetado. Nem o senhor Agnew nem a sua assistente o brindaram com um sorriso.
Na verdade, a única coisa que Agnew disse foi:
- E não se esqueça do nosso acordo.
- Se eu não vender um quadro, mas o der a alguém como presente, será que violo o nosso acordo?
- A quem estava a pensar oferecê-lo?
- A Sam. É a minha forma de pedir desculpa.
- Não tenho nada contra - disse Agnew. - Tal como o senhor, tenho a certeza de que Miss Sullivan nunca consideraria a hipótese de o vender.
- Obrigado, senhor - replicou Sebastian. Depois, olhando para o Rafael, disse: - Um dia, este quadro há de ser meu!
- Espero bem que sim - disse Agnew -, pois essa é a forma como ganhamos o nosso dinheiro.
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Quando Sebastian saiu da galeria, estava uma noite tão agradável que decidiu ir a pé até Pimlico, para poder dar a Sam o seu presente "espera e verás". Enquanto deambulava
por St. James's Park, pensou na visita que fizera naquele dia a Grimsby. Gostava do senhor Bingham. Gostava da sua fábrica. Gostava dos operários. Aquilo que Cedric chamava
de gente a sério com trabalho a sério.
O senhor Bingham tinha levado cerca de cinco minutos para assinar todos os certificados de transferência de ações e depois tinham precisado de mais trinta minutos para devorar
duas doses dos melhores filetes de peixe com batata frita do universo, comidos diretamente do Grimsby Evening Telegraph do dia anterior. Antes de ele se ir embora, o senhor
Bingham tinha-lhe oferecido um frasco de pasta de peixe e um convite para passar a noite em Mablethorpe Hall.
- É muito amável, mas o senhor Hardcastle espera que eu tenha estes certificados de volta à sua secretária à hora do fecho, esta noite.
- Muito bem, mas tenho a sensação de que vamos ver-nos com mais frequência, agora que vou fazer parte do conselho de administração da Barrington's.
- Vai entrar para o conselho de administração, senhor?
- É uma longa história. Conto-lhe tudo quando o conhecer melhor.
Foi nesse momento que Sebastian percebeu que Bob Bingham era o homem misterioso que não podia ser mencionado até o negócio ter sido fechado.
Mal podia esperar para dar o presente a Sam. Quando chegou ao bloco de apartamentos, abriu a porta da entrada com a chave que ela lhe dera naquela manhã.
Um homem escondido na sombra do outro lado da estrada tomou nota do endereço. Como Clifton tinha entrado com a sua própria chave, presumiu que devia ser ali que ele morava.
Ao jantar, ia dizer ao pai quem é que tinha comprado as ações da Barrington's, o nome do banco do Yorkshire que tinha tratado da transação e onde é que Sebastian morava. Até
mesmo o que ele tinha comido ao almoço. Fez sinal a um táxi e pediu ao motorista que o levasse a Eaton Square.

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- Pare! - gritou Luis quando viu o painel. Saltou do táxi, correu até ao ardina e pegou num exemplar do Eondon Evening News. Leu o título Mulher em coma depois de saltar do
Night Scotsman e sorriu antes de voltar para o táxi. Era óbvio que havia outra pessoa que também cumprira as ordens do pai.
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Quarta-feira à noite
O secretário do Gabinete tinha considerado todas as possibilidades e sentia que tinha chegado finalmente à forma perfeita de lidar com os quatro elementos num golpe magistral.
Sir Alan Redmayne acreditava no Estado de direito. No fim de contas, era a base de qualquer democracia. Sempre que lhe perguntavam, Sir Alan concordava com Churchill quanto
à democracia, como forma de governo, ter as suas desvantagens, mas no seu todo continuava a ser a melhor disponível. Mas se tivesse carta-branca, teria optado por uma ditadura
benevolente. O problema era que os ditadores, pela sua própria natureza, não eram pessoas benevolentes. Não se enquadrava na sua descrição de funções. Na sua opinião, a coisa
mais próxima que a Grã-Bretanha tinha de um ditador benevolente era o secretário do Gabinete.
Se estivessem na Argentina, Sir Alan teria ordenado simplesmente ao coronel Scott-Hopkins que matasse Don Pedro Martinez, Diego Martinez, Luis Martinez e, é claro, Karl Lunsdorf,
e depois poderia ter encerrado os seus dossiês. Mas tal como muitos secretários do Gabinete antes dele, teria de arranjar um meio-termo e contentar-se com um rapto, duas deportações
e um homem falido que não teria outra opção senão voltar para a sua terra natal e nunca mais pensar em regressar.
Em circunstâncias normais, Sir Alan teria esperado que a lei seguisse o seu curso. Mas, infelizmente, tinha sido forçado a agir nada mais, nada menos do que pela figura da
rainha-mãe.

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Tinha lido na circular da corte, essa manhã, que Sua Majestade tinha gentilmente aceitado um convite da presidente da Barrington Shipping, a senhora Harry Clifton, para balizar
o Buckingham ao meio-dia de segunda-feira, 21 de setembro, deixando-lhe apenas algumas semanas para levar a cabo o seu plano, pois não tinha dúvidas de que, nesse dia, Don
Pedro Martinez teria em mente alguma coisa bem diferente de uma cerimónia de batismo.
O seu primeiro passo, naquilo que iriam ser alguns dias muito atarefados, foi assegurar-se de que Karl Lunsdorf era eliminado imediatamente da equação. O seu último crime
imperdoável, no The Night Scotsman, era desprezível, mesmo para os seus padrões de vileza. Diego e Luis Martinez podiam esperar pela sua vez, já que ele tinha provas mais
do que suficientes para mandar prender os dois. E estava confiante de que quando os dois filhos fossem libertados sob fiança, enquanto aguardavam pelo julgamento, fugissem
do país numa questão de dias. A polícia receberia instruções para não os deter quando eles aparecessem no aeroporto, pois eles estavam bem cientes de que nunca mais poderiam
voltar à Grã-Bretanha, a menos que estivessem dispostos a enfrentar uma longa sentença de prisão.
Eles podiam esperar. No entanto, Karl Otto Lunsdorf, para usar o nome completo que constava da sua certidão de nascimento, não podia.
Embora fosse claro pela descrição feita pelo chefe dos assistentes de bordo do The Night Scotsman de que Lunsdorf tinha sido responsável por atirar - virou uma página do dossiê
- Miss Kitty Parsons, uma conhecida prostituta, para fora do comboio a meio da noite, não havia hipótese de conseguir um veredito inquestionável contra o antigo oficial das
SS enquanto a pobre mulher continuasse em coma. Apesar disso, as rodas da justiça estavam prestes a pôr-se em movimento.
Sir Alan não se interessava muito por cocktails e embora recebesse uma dúzia de convites por dia para marcar presença em eventos de todo o género, desde a festa ao ar livre
da rainha à Royal Box em Wimbledon, nove em cada dez vezes escrevia a palavra Não no canto superior direito do convite e deixava a sua secretária inventar uma
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desculpa convincente. Porém, quando recebeu um convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros para um beberete para dar as boas-vindas ao novo embaixador israelita, Sir Alan
tinha escrito "Sim, se estiver livre" no canto superior direito.
O secretário do Gabinete não tinha qualquer desejo em especial de estar com o novo embaixador, com quem já se cruzara enquanto membro de várias delegações no passado. No entanto,
iria estar um convidado na festa com quem ele queria ter uma conversa em particular.
Sir Alan saiu do seu gabinete em Downing Street logo depois das seis e foi sem pressas até ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Depois de dar os parabéns ao novo embaixador
e de trocar amabilidades com várias outras pessoas que queriam adulá-lo, movimentou-se com destreza pela sala apinhada, de copo na mão, até ter na mira a sua presa.
Simon Wiesenthal estava a conversar com o grande rabino quando Sir Alan se juntou a eles. Esperou pacientemente que Sir Israel Brodie iniciasse uma conversa com a esposa do
embaixador, antes de virar as costas a toda aquela tagarelice para deixar claro que não queria ser interrompido.
- Doutor Wiesenthal, permita-me que lhe diga o quanto admiro a sua campanha para perseguir e capturar os nazis que estiveram envolvidos no Holocausto. - Wiesenthal fez uma
ligeira vénia. - Gostava de saber - disse o secretário do Gabinete, baixando a voz - se o nome Karl Otto Lunsdorf lhe diz alguma coisa...
- O tenente Lunsdorf era um dos ajudantes de campo mais próximos de Himmler - disse Wiesenthal. - Trabalhava como interrogador das SS no seu pessoal privado. Tenho inúmeros
dossiês dedicados a ele, Sir Alan, mas receio que ele tenha fugido da Alemanha alguns dias antes de os Aliados entrarem em Berlim. A última vez que tive notícias dele estava
a viver em Buenos Aires.
- Creio que vai descobrir que ele está um bocadinho mais perto de casa - sussurrou Sir Alan. Wiesenthal aproximou-se mais, baixou a cabeça e escutou atentamente.
- Obrigado, Sir Alan - disse Wiesenthal depois de o secretário do Gabinete lhe ter transmitido a informação relevante. - Vou começar a trabalhar nisso de imediato.

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- Se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, oficiosamente é claro, sabe onde me encontrar - disse ele ao mesmo tempo que o presidente dos Amigos de Israel se
lhes juntava.
Sir Alan depositou o copo vazio numa bandeja que ia a passar, rejeitou a oferta de uma salsicha num espeto de madeira, deu as boas noites ao novo embaixador e regressou ao
número 10. Acomodou-se para rever uma vez mais o plano traçado, certificando-se de que estava tudo devidamente acautelado, ciente de que o seu maior problema seria o sentido
de oportunidade, sobretudo se quisesse que fossem ambos presos no dia a seguir ao desaparecimento de Lunsdorf.
Quando finalmente terminou, pouco depois da meia-noite, o secretário do Gabinete decidiu que, vistas bem as coisas, teria preferido ainda assim uma ditadura benevolente.
O major Alex Fisher pôs as duas cartas lado a lado, em cima da sua secretária: a carta de demissão do conselho de administração da Barrington's, junto a uma carta de Cedric
Hardcastle que tinha chegado naquela manhã, oferecendo-lhe a hipótese de continuar a ser membro do conselho. Uma transição suave, como Hardcastle a descrevia, com perspetivas
a longo prazo.
Alex continuava dividido enquanto tentava pesar os prós e os contras das duas alternativas. Deveria aceitar a generosa oferta de Cedric e manter o seu lugar no conselho de
administração, com um rendimento de £2000 por ano mais despesas, e a oportunidade de se dedicar a outros interesses?
Por outro lado, se ele se demitisse do conselho de administração, Don Pedro prometera-lhe 5000 libras em dinheiro vivo. No geral, a oferta de Hardcastle era a alternativa
mais aliciante. Mas também tinha de ter em conta que Don Pedro ia querer vingar-se caso ele rompesse o acordo à última hora, como Miss Kitty Parsons recentemente descobrira.
Alguém bateu à porta, o que foi uma surpresa para Alex, pois não estava à espera de ninguém. Ficou ainda mais surpreendido quando abriu e deu de caras com Diego Martinez.
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- Bom dia - disse Alex, como se estivesse à espera dele. - Entre - acrescentou, sem saber o que mais havia de dizer. Levou Diego para a cozinha, pois não queria que ele visse
as duas cartas que tinha no escritório, em cima da secretária. - O que o traz a Bristol? - perguntou e, lembrando-se de que Diego não bebia, encheu uma chaleira com água e
pô-la ao lume.
- O meu pai pediu-me para lhe dar isto - disse Diego, pondo um envelope volumoso em cima da mesa da cozinha. - Não precisa de contar. São as duas mil libras que pediu adiantadas.
Pode ir buscar o resto na segunda-feira, depois de ter entregado a sua carta de demissão.
Alex tomou uma decisão; o medo superou a ganância. Pegou no envelope e enfiou-o num bolso interior, mas não agradeceu.
- O meu pai pediu-me para lhe lembrar que, depois de apresentar a demissão na sexta-feira de manhã, espera que esteja disponível para falar com a imprensa.
- É claro - disse Fisher. - Depois de entregar a carta à senhora Clifton - ainda tinha dificuldade em chamar-lhe presidente - vou enviar os telegramas como combinado, voltar
para casa e sentar-me à secretária, à espera, para atender os telefonemas.
- Ótimo - disse Diego quando a chaleira começou a ferver. - Então, vemo-nos segunda-feira à tarde em Eaton Square, e se a cobertura de imprensa da assembleia-geral anual tiver
sido favorável, ou melhor dizendo desfavorável - sorriu -, recebe as outras três mil.
- Não quer tomar um café?
- Não. Já entreguei o dinheiro e a mensagem do meu pai. Ele só queria ter a certeza de que o senhor não tinha mudado de ideias.
- O que o pode ter levado a pensar que eu faria uma coisa dessas?
- Não faço ideia - disse Diego. - Mas lembre-se - acrescentou, olhando para uma fotografia de Miss Kitty Parsons na primeira página do Telegraph - que se alguma coisa correr
mal, não serei eu a apanhar o próximo comboio para Bristol.
Depois de Diego se ter ido embora, Alex voltou ao escritório, rasgou a carta de Cedric Hardcastle e largou os bocadinhos no cesto

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dos papéis. Não precisava de responder. Hardcastle receberia a mensagem no sábado, quando lesse a carta de demissão na imprensa nacional.
Regalou-se com um almoço no Carwardine's e passou o resto da tarde a regularizar várias dívidas pequenas que contraíra junto de comerciantes locais, algumas das quais já muito
atrasadas. Quando voltou para casa, verificou o envelope e descobriu que ainda tinha 1265 em notas de cinco libras, com mais £3000 a entrar na segunda-feira, se a imprensa
mostrasse interesse suficiente na sua história. Ficou acordado, a ensaiar algumas declarações que contava que deixassem os jornalistas a lamber os lábios. Receio que o Buckingham
se tenha afundado ainda antes de partir na sua viagem inaugural. Nomear uma mulher como presidente foi uma aposta temerária, e não acredito que a companhia venha alguma vez
a recuperar disso. Claro que vendi todas as minhas ações, prefiro sofrer agora uma pequena perda do que ficar mais tarde sem nada.
Na manhã seguinte, depois de uma noite de insónia, Alex telefonou para o gabinete da presidente e marcou uma reunião com ela às dez da manhã de sexta-feira. Passou o resto
do dia a pensar se teria tomado a decisão correta, mas sabia que se voltasse atrás agora, depois de ter aceitado o dinheiro do pirata, a próxima pessoa que lhe bateria à porta
seria Karl, e ele não teria vindo a Bristol para lhe entregar as outras três mil libras.
Apesar disso, Alex começava a pensar que era capaz de ter cometido o maior erro da sua vida. Devia ter pensado melhor. Assim que a sua carta fosse publicada em qualquer jornal,
as hipóteses de alguma vez lhe pedirem para fazer parte de outro conselho de administração eram inexistentes.
Pensou se seria demasiado tarde para mudar de ideias. Se ele contasse tudo a Hardcastle, será que ele lhe daria um adiantamento de mil libras, para poder reembolsar Martinez
na totalidade? Ia telefonar-lhe logo de manhãzinha. Pôs a chaleira ao lume e ligou a rádio. Não estava a prestar muita atenção, até que ouviu o nome Kitty Parsons. Pôs o volume
mais alto e ouviu o locutor dizer:
- Um porta-voz da British Railways confirmou que Miss Parsons faleceu durante a noite, sem ter despertado do coma.
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Quinta-feira de manhã
Percebiam os quatro que era impossível levar a operação por diante, a menos que estivesse a chover. Também sabiam que não valia a pena segui-lo, uma vez que a quinta-feira
era o dia de ir às compras ao Harrods, e a sua rotina nunca variava.
Se estivesse a chover numa quinta-feira, ele deixava a gabardina e o guarda-chuva no bengaleiro da loja no rés do chão. Depois visitava duas secções: a tabacaria, de onde
trazia uma caixa de charutos Montecristo, os preferidos de Don Pedro, e a área alimentar, onde se abastecia de provisões para o fim de semana. Embora tivessem feito uma investigação
minuciosa, mesmo assim tudo tinha de correr exatamente nos tempos previstos. No entanto, tinham uma vantagem: pode-se sempre confiar num alemão no que toca a respeitar um
horário.
Lunsdorf saiu do número 44 de Eaton Square logo depois das dez da manhã. Vestia uma gabardina comprida preta e trazia um guarda-chuva. Olhou para o céu e abriu o guarda-chuva,
depois avançou com ar determinado em direção a Knightsbridge. Não estava dia para andar a ver montras. Na verdade, Lunsdorf já tinha decidido que, depois de ter comprado tudo
o que precisava, se ainda estivesse a chover, ia apanhar um táxi para voltar a Eaton Square. Até para isso eles estavam preparados.
Depois de entrar no Harrods, foi direito ao bengaleiro, onde entregou o guarda-chuva e a gabardina à mulher que estava atrás do balcão e que lhe deu uma pequena ficha numerada
em troca. Depois, seguiu o seu caminho, passando pelas secções de perfumes e joalharia

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antes de parar na tabacaria. Ninguém o seguiu. Depois de ter comprado a habitual caixa de charutos, passou à área alimentar, onde passou quarenta minutos a encher vários sacos
de compras. Voltou ao bengaleiro pouco passava das onze e, espreitando pela janela, viu que estava a chover torrencialmente. Ficou a pensar se o porteiro conseguiria fazer
sinal a um táxi para parar. Pousou os sacos e entregou a ficha metálica à mulher que estava atrás do balcão. Ela desapareceu numa sala recuada e regressou passado um instante
com um guarda-chuva cor-de-rosa de senhora.
- Isso não é meu - disse Lunsdorf.
- Peço imensa desculpa, senhor - disse a empregada, que parecia nervosa e regressou rapidamente à sala nas traseiras. Quando voltou a aparecer, trazia uma gola de raposa.
- Acha que isso tem ar de ser meu? - perguntou Lunsdorf. Ela voltou lá dentro e demorou algum tempo a aparecer, desta
vez com um impermeável amarelo.
- Mas você é completamente estúpida? - gritou Lunsdorf. A empregada corou e ficou pregada ao chão, como que paralisada. Uma mulher mais velha tomou o seu lugar.
- Peço muita desculpa, senhor. Talvez queira entrar e mostrar-me qual é o seu casaco e guarda-chuva - disse ela, levantando a parte de cima do balcão que dividia os clientes
do pessoal. Ele devia ter dado pelo erro dela.
Lunsdorf seguiu-a até à sala das traseiras e só precisou de alguns instantes para ver a gabardina pendurada a meio do bengaleiro. Estava justamente a inclinar-se para recuperar
o guarda-chuva quando sentiu uma pancada na nuca. Os joelhos cederam e, ao cair no chão, saltaram três homens de trás do bengaleiro. O cabo Crann agarrou nos braços de Lunsdorf
e amarrou-lhos rapidamente atrás das costas, enquanto o sargento Roberts lhe enfiava uma mordaça na boca e o capitão Hardey lhe amarrava os tornozelos.
Passado um momento, o coronel Scott-Hopkins apareceu com um casaco de linho verde vestido, a empurrar um grande cesto de verga para roupa suja. Abriu a tampa enquanto os outros
carregavam Lunsdorf lá para dentro. Mesmo com ele dobrado em dois, era mesmo à medida. O capitão Hartley atirou a gabardina e o guarda-chuva lá para dentro e apertou bem as
correias de couro.
344

- Obrigado, Rachel - disse o coronel, ao mesmo tempo que a empregada do bengaleiro levantava o balcão para lhe permitir fazer rolar o cesto até ao chão da loja.
O cabo Crann saiu para Brompton Road à frente deles, com Roberts a apenas um metro de distância. O coronel não parou enquanto fazia deslizar o cesto até uma carrinha do Harrods
que estava estacionada à porta, com as portas de trás abertas. Hartley e Roberts levantaram o cesto, que era mais pesado do que eles estavam à espera, e enfiaram-no na carrinha.
O coronel juntou-se a Crann à frente, enquanto Hartley e Roberts saltavam para a parte de trás e fechavam as portas.
- Toca a andar - disse o coronel.
Crann fez avançar a carrinha até à faixa central e juntou-se ao trânsito matinal que seguia lentamente por Brompton Road em direção à A4. Sabia exatamente para onde ia porque
tinha feito uma simulação no dia anterior, algo em que o coronel insistia sempre.
Quarenta minutos depois, Crann piscou os faróis duas vezes ao aproximar-se da vedação de um aeródromo abandonado. Quase nem precisou de abrandar para o portão se abrir, deixando-o
seguir para a pista onde um avião de carga com a sua insígnia familiar azul e branca os aguardava, com a rampa descida.
Hartley e Roberts tinham aberto as portas de trás da carrinha e saltado para a pista ainda antes de o cabo ter desligado o motor. O cesto da roupa foi tirado para fora da
carrinha, empurrado pela rampa acima e depositado na barriga do avião. Hartley e Roberts saíram calmamente do avião, voltaram a entrar para a carrinha e fecharam rapidamente
as portas.
O coronel tinha vigiado atentamente tudo o que se estava a passar e, graças ao secretário do Gabinete, não ia precisar de explicar a um zeloso funcionário da alfândega o que
estava dentro do cesto ou qual era o seu destino. Voltou para o seu lugar na parte da frente da carrinha. O motor ainda estava a trabalhar e Crann arrancou rapidamente assim
que a porta se fechou.
A carrinha chegou ao portão aberto precisamente ao mesmo tempo que a rampa começava a levantar-se e já estava de volta à estrada principal quando o avião começou a rolar na
pista. Não o viram

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descolar porque iam para leste e o avião ia para sul. Passados quarenta minutos, a carrinha do Harrods estava outra vez no seu lugar, à porta da loja. Toda a operação levara
pouco mais de hora e meia. O homem que fazia habitualmente as entregas estava no passeio, à espera de que lhe devolvessem a carrinha. Estava atrasado, mas ia compensar o tempo
perdido durante o turno da tarde, sem conhecimento do chefe. Crann desceu para o passeio e entregou-lhe as chaves.
- Obrigado, Joseph - disse, apertando a mão ao seu ex-colega do SAS.
Hartley, Crann e Roberts tomaram caminhos diferentes para voltar ao quartel, em Chelsea, ao passo que o coronel Scott-Hopkins voltou ao Harrods e foi direito ao bengaleiro.
As duas empregadas continuavam atrás do balcão.
- Obrigado, Rachel - disse ele enquanto tirava o casaco do Harrods. Dobrou-o muito bem e pô-lo em cima do balcão.
- De nada, coronel - replicou a funcionária mais velha.
- Permita-me que lhe pergunte o que fez com as compras do cavalheiro.
- Rebecca entregou todos os seus sacos nos Perdidos e Achados, que é a política da companhia quando não sabemos se o cliente vai voltar. Mas guardámos isto para si - disse
ela, tirando um pacote de baixo do balcão.
- É muito amável, Rachel - disse ele enquanto ela lhe dava uma caixa de charutos Montecristo.
Quando o avião aterrou, tinha à sua espera um comité de receção que aguardou pacientemente que baixassem a rampa.
Quatro jovens soldados entraram no avião, fizeram rolar o cesto da roupa sem cerimónias pela rampa abaixo e depositaram-no em frente do presidente do comité de receção. Um
oficial deu um passo em frente, desapertou as correias de couro e levantou a tampa, revelando uma figura maltratada e com escoriações, atada de pés e mãos.
- Tire a mordaça e desamarre-o - disse um homem que tinha esperado quase vinte anos por este momento. Não voltou a falar até o homem ter recuperado o suficiente para sair
do cesto para a pista.
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- Nunca nos encontrámos, tenente Lunsdorf - disse Simon Wiesenthal -, mas deixe-me ser o primeiro a dar-lhe as boas-vindas a Israel.
Não apertaram a mão.
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40
Sexta-feira de manhã
Don Pedro ainda estava aturdido. Tinha acontecido tanta coisa em tão pouco tempo.
Fora acordado às cinco da manhã pelas pancadas fortes e persistentes na porta da entrada e ficou desconcertado quando Karl não foi abrir. Presumiu que um dos filhos devia
ter chegado a casa de madrugada e se esquecera novamente da chave. Saiu da cama, vestiu um roupão e desceu a escada, com a intenção de dizer a Diego ou Luis exatamente o que
pensava de o acordarem àquela hora da manhã.
Assim que abriu a porta, meia dúzia de polícias irromperam pela casa, correram pela escada acima e prenderam Diego e Luis, que estavam ambos a dormir nas suas camas. Depois
de os terem autorizado a vestir-se, foram levados numa carrinha da polícia. Porque é que Karl não estava ali para os ajudar? Ou também o teriam prendido?
Don Pedro subiu a escada a correr e abriu a porta do quarto de Karl, mas ninguém dormira na sua cama. Voltou lentamente lá para baixo, foi para o escritório e telefonou para
casa do seu advogado, praguejando e batendo repetidamente com o punho cerrado na secretária enquanto esperava que alguém atendesse.
Uma voz ensonada lá acabou por atender, e escutou atentamente enquanto o seu cliente descrevia de forma incoerente aquilo que tinha acabado de acontecer. O senhor Everard
estava agora desperto, com um pé no chão.
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- Ligo-lhe assim que souber para onde é que os levaram - disse ele - e do que foram acusados. Não diga uma palavra sobre isto a ninguém até ter notícias minhas.
Don Pedro continuou a bater com o punho cerrado na secretária e a gritar obscenidades o mais alto possível, mas ninguém estava a ouvir.
O primeiro telefonema veio do Evening Standard.
- Não tenho comentários a fazer! - berrou Don Pedro, batendo com o telefone ao desligar. Continuou a seguir o conselho do advogado, dando a mesma resposta seca ao Daily Mail,
ao Mirror, ao Express e ao The Times. Nem sequer teria atendido o telefone se não estivesse desesperado por ter notícias de Everard. O advogado acabou por telefonar pouco
depois das oito, a dizer-lhe onde é que Diego e Luis estavam detidos, e depois passou os minutos seguintes a sublinhar a gravidade das acusações.
- Vou requerer a libertação sob fiança para ambos - disse ele -, embora não esteja muito otimista.
- Então e Karl? - exigiu saber Don Pedro. - Disseram-lhe onde está e de que é acusado?
- Negam ter conhecimento do seu paradeiro.
- Continue a procurar - disse Don Pedro. - Alguém deve saber onde é que ele está!
Às nove horas, Alex Fisher vestiu um fato assertoado às risquinhas, pôs a gravata e calçou um par de sapatos pretos novos. Foi lá abaixo ao escritório e leu uma vez mais a
sua carta de demissão, antes de fechar o envelope e de o endereçar à senhora Harry Clifton, Barrington Shipping Company, Bristol.
Pensou no que precisava de fazer ao longo dos próximos dois dias, se queria cumprir o acordo que firmara com Don Pedro e garantir que recebia as outras três mil libras. Primeiro,
tinha de estar nos escritórios da Barrington Shipping às dez horas para entregar a carta à senhora Clifton. A seguir, ia visitar os dois jornais locais, o Bristol Evening
Post e o Bristol Evening World, e dar uma cópia da carta aos seus editores. Não seria a primeira vez que uma carta sua aparecia na primeira página dos jornais.

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A sua próxima paragem seria na estação dos correios, de onde enviaria telegramas para os editores de todos os jornais nacionais, com a simples mensagem: "Major Fisher demite-se
do conselho de administração da Barrington Shipping e pede a demissão da presidente, pois receia que a companhia esteja à beira da falência." Depois, ia voltar para casa e
esperar ao pé do telefone, com as respostas a todas as perguntas mais prováveis já preparadas.
Alex saiu do seu apartamento logo depois das 9h30 e foi de carro até às docas, avançando lentamente por entre o trânsito da hora de ponta. Não estava muito ansioso por dar
a carta à senhora Clifton, mas como um estafeta que tem papéis de divórcio para entregar, ia mostrar-se evasivo e sair de lá rapidamente.
Já tinha decidido chegar com alguns minutos de atraso e deixá-la à espera. Ao passar pelos portões do estaleiro, percebeu de repente que ia sentir muitas saudades daquele
lugar. Ligou o Home Service da BBC para ouvir as principais notícias do dia. A polícia tinha prendido trinta e sete mods e rockers em Brighton e acusara-os de perturbar a
ordem pública, Nelson Mandela começara a cumprir uma pena de prisão perpétua numa cadeia sul-africana e tinham sido presos dois homens no número 44 de Eaton... Desligou o
rádio ao chegar ao seu lugar de estacionamento... número 44 de Eaton...? Voltou a ligá-lo rapidamente, mas a notícia já tinha passado e teve de ouvir mais pormenores sobre
os distúrbios que tinham ocorrido na praia de Brighton entre mods e rockers. Alex culpava o governo por ter abolido o serviço militar obrigatório. - Nelson Mandela, o líder
do ANC, começou a cumprir uma pena de prisão perpétua por sabotagem e conspiração para derrubar o governo da África do Sul.
- Nunca mais vamos ouvir falar desse filho da mãe - disse Alex com convicção.
- A polícia metropolitana entrou de surpresa numa casa em Eaton Square às primeiras horas da madrugada e prendeu dois homens com passaportes argentinos. Devem ser presentes
ainda hoje ao Tribunal de Chelsea...
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Quando Don Pedro saiu do número 44 de Eaton Square pouco depois das 9h30, foi saudado por uma série de flashes que o deixaram quase cego enquanto ele procurava o relativo
anonimato de um táxi.
Passados quinze minutos, quando o táxi chegou ao Tribunal de Chelsea, foi recebido por ainda mais máquinas fotográficas. Abriu caminho por entre uma multidão de repórteres
até ao tribunal número quatro, sem parar para responder a qualquer das suas perguntas.
Quando entrou na sala de audiências, o senhor Everard foi rapidamente ao seu encontro e começou a explicar-lhe o procedimento que estava prestes a ocorrer. Depois, relatou
as acusações de forma pormenorizada, admitindo que não estava nada confiante de que algum deles fosse autorizado a sair sob fiança.
- Alguma notícia sobre Karl?
- Não - sussurrou Everard. - Ninguém o viu ou teve notícias dele desde que saiu para ir ao Harrods, ontem de manhã.
Don Pedro franziu o sobrolho e sentou-se na primeira fila, enquanto Everard voltava para o lugar do advogado de defesa. Na outra ponta da bancada, estava sentado um jovem
imberbe que vestia uma curta toga preta e estava a consultar alguns papéis. Se aquilo era o melhor que a acusação conseguia fazer, Don Pedro sentia-se um bocadinho mais confiante.
Nervoso e exausto, olhou à volta da sala de audiências quase vazia. De um lado, estavam empoleirados meia dúzia de jornalistas, de blocos abertos e canetas a postos, como
uma matilha de cães à espera para se banquetear com uma raposa ferida. Atrás dele, ao fundo da sala, estavam quatro homens que ele conhecia de vista. Desconfiava que todos
eles sabiam exatamente onde é que estava Karl.
Don Pedro focou a sua atenção na parte da frente da sala, onde alguns funcionários menores andavam de um lado para o outro a certificar-se de que estava tudo preparado antes
de entrar a única pessoa que podia declarar aberta a sessão. Quando o relógio bateu as dez horas, um homem alto e magro com uma toga preta comprida entrou na sala de audiências.
Os dois advogados levantaram-se imediatamente do seu lugar na bancada e fizeram uma vénia respeitosa. O magistrado retribuiu o cumprimento antes de se sentar ao centro do
estrado elevado.

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Depois de instalado, olhou demoradamente à volta da sala de audiências. Se ficou surpreendido com o interesse desusado da imprensa na audiência daquela manhã, não o demonstrou.
Fez sinal ao escrivão do tribunal, recostou-se na cadeira e aguardou. Instantes depois, apareceu o primeiro réu, vindo da parte de baixo da sala de audiências, e tomou o seu
lugar no banco próprio. Don Pedro olhou para Luis, já tendo decidido o que seria preciso fazer se o rapaz fosse libertado sob fiança.
- Leia a acusação - disse o magistrado, olhando para o escrivão do tribunal.
O escrivão fez uma vénia, virou-se para enfrentar o réu e disse em voz possante:
- Luis Martinez, é acusado de ter arrombado e entrado numa casa de habitação particular, nomeadamente no apartamento quatro do número doze de Glebe Place, Londres SW3, na
noite de seis de junho de 1964, altura em que destruiu vários bens pertencentes a uma tal Miss Jessica Clifton. Como é que se declara: culpado ou inocente?
- Inocente - murmurou o réu.
O magistrado escreveu a palavra no seu bloco enquanto o advogado de defesa se levantava do lugar.
- Sim, senhor Everard - disse o magistrado.
- Meritíssimo, o meu cliente é um homem de carácter e reputação imaculados e como se trata de um primeiro delito e não tem condenações prévias, vamos naturalmente requerer
a libertação sob fiança.
- Senhor Duffield - disse o magistrado, virando a sua atenção para o jovem na outra ponta da bancada. - Tem alguma objeção ao pedido feito pelo advogado de defesa?
- Não, meritíssimo - respondeu o advogado de acusação, mal se levantando do lugar.
- Então, vou fixar a fiança em mil libras, senhor Everard. - O magistrado tomou outra nota no bloco. - O seu cliente regressa a tribunal para responder pelas acusações dia
vinte e um de outubro, às dez horas. Entendido, senhor Everard?
- Sim, meritíssimo, muito obrigado - disse o advogado, fazendo uma pequena vénia.
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Luis desceu do banco dos réus, sem saber o que fazer a seguir. Everard acenou com a cabeça em direção ao pai, e Luis foi sentar-se ao lado dele na primeira fila. Nenhum deles
falou. Passado um instante apareceu Diego vindo lá de baixo, acompanhado por um polícia. Tomou o seu lugar no banco dos réus e esperou que fosse lida a acusação.
- Diego Martinez, é acusado de ter tentado subornar um corretor da City e, ao fazê-lo, perverter o curso da justiça. Como é que se declara: culpado ou inocente?
- Inocente - disse Diego com firmeza. O senhor Everard levantou-se rapidamente.
- Meritíssimo, este é outro caso de delito primário, sem antecedentes criminais, por isso não hesito em requerer mais uma vez a libertação sob fiança.
O senhor Duffield levantou-se na outra ponta da bancada e mesmo antes de o magistrado lhe perguntar, anunciou:
- A Coroa não tem objeções à libertação sob fiança, neste caso. Everard ficou desconcertado. Porque é que a Coroa não estava a
dar luta? Era tudo demasiado fácil... ou ter-lhe-ia escapado alguma coisa?
- Então, fixo a fiança em duas mil libras - disse o magistrado - e vou transferir este caso para apreciação no Supremo Tribunal. Será fixada uma data para o julgamento quando
se encontrar uma altura adequada no calendário do tribunal.
- Muito obrigado, meritíssimo - disse Everard. Diego desceu do banco dos réus e foi ter com o pai e com o irmão. Sem trocarem uma palavra entre si, abandonaram rapidamente
o tribunal.
Don Pedro e os filhos abriram caminho por entre a horda de fotógrafos para saírem para a rua, sem que nenhum deles respondesse a qualquer das perguntas insistentes dos jornalistas.
Diego fez sinal de paragem a um táxi que ia a passar e continuaram calados enquanto entravam para o banco de trás. Nenhum deles falou até Don Pedro ter fechado a porta do
número 44 de Eaton Square e terem ido todos para o escritório.
Passaram as duas horas seguintes a discutir as opções que lhes restavam. Já passava do meio-dia quando se decidiram por uma linha de ação e concordaram em pô-la em prática
de imediato.

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Alex saltou do carro e quase correu até Barrington House. Apanhou o elevador para o último andar e dirigiu-se rapidamente ao gabinete da presidente. Uma secretária, que estava
claramente à espera dele, levou-o diretamente para lá.
- Peço imensa desculpa pelo atraso, senhora presidente - disse Alex, ligeiramente esbaforido.
- Bom dia, major - disse Emma, sem se levantar da cadeira. - A única coisa que a minha secretária me disse depois do seu telefonema de ontem foi que queria falar comigo para
discutir um assunto pessoal de alguma importância. Naturalmente, fiquei a pensar no que poderia ser.
- Não é nada com que tenha de se preocupar - disse Alex. - Senti apenas que tinha de lhe dizer que, apesar das divergências que tivemos no passado, o conselho de administração
não podia ter tido melhor presidente durante estes tempos difíceis, e que sinto orgulho em ter estado sob a sua alçada.
Emma não respondeu de imediato. Estava a tentar perceber porque é que ele tinha mudado de ideias.
- É verdade que tivemos as nossas divergências no passado, major - disse Emma, continuando sem lhe oferecer uma cadeira -, por isso receio que, futuramente, o conselho de
administração tenha de passar sem si.
- Talvez não - disse Alex com um sorriso cordial. - Pelos vistos, ainda não soube das novidades.
- E quais são elas?
- Cedric Hardcastle pediu-me para ocupar o seu lugar no conselho de administração, por isso nada mudou.
- Então foi o senhor que não soube das novidades. - Pegou numa carta que tinha em cima da secretária. - Cedric vendeu recentemente todas as suas ações na companhia e demitiu-se
do cargo de administrador, por isso já não tem direito a um lugar no conselho.
Alex disse precipitadamente:
- Mas ele disse-me...
- Aceitei a sua demissão com tristeza e vou escrever-lhe para lhe dizer o quanto aprecio o serviço leal e generoso que ele prestou à
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companhia, e como vai ser difícil substituí-lo no conselho. Vou juntar um post scriptum, a dizer que espero que ele possa estar presente na cerimónia de batismo do Buckingham,
assim como possa acompanharmos na viagem inaugural para Nova Iorque.
- Mas... - tentou Alex novamente.
- Ao passo que no seu caso, major Fisher - disse Emma -, como o senhor Martinez também vendeu todas as ações que tinha da companhia, não tem outra hipótese senão apresentar
a sua demissão do cargo de administrador e, ao contrário do que acontece com a de Cedric, terei muito prazer em aceitá-la. A sua intervenção na companhia ao longo dos anos
tem sido vingativa, intrometida e perniciosa, e posso acrescentar que não desejo vê-lo na cerimónia de batismo e que não será seguramente convidado para se juntar a nós na
viagem inaugural. Sinceramente, a companhia ficará muito melhor sem o senhor.
- Mas eu...
- E se a sua carta de demissão não estiver em cima da minha secretária às cinco da tarde de hoje, não me restará outra alternativa senão fazer uma declaração, deixando claro
que já não é membro do conselho de administração.
Don Pedro atravessou a sala até um cofre que já não estava escondido atrás de um quadro, introduziu um código de seis algarismos, rodou o disco e abriu a porta pesada. Tirou
para fora dois passaportes que nunca tinham sido carimbados e um grande maço de notas de cinco libras, que dividiu em partes iguais pelos dois filhos. Logo a seguir às cinco
horas, Diego e Luis saíram separadamente de casa e seguiram em direções diferentes, sabendo que da próxima vez que se encontrassem estariam atrás das grades ou em Buenos Aires.
Don Pedro sentou-se sozinho no seu escritório, a considerar as opções que lhe restavam. As seis horas, ligou a televisão para ver as notícias, esperando sofrer a humilhação
de se ver a ele próprio e aos filhos a sair do tribunal rodeados de jornalistas. Mas a notícia de abertura não veio de Chelsea, mas de Telavive, e não mostrava Diego e Luis,
mas o tenente das SS Karl Lunsdorf, que estava a ser exibido em

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frente das câmaras de televisão envergando um uniforme prisional, com um número pendurado ao pescoço. Don Pedro gritou para o ecrã.
- Ainda não estou acabado, seus filhos da mãe!
Os seus gritos foram interrompidos por fortes pancadas na porta. Olhou para o relógio. Os rapazes tinham saído há menos de uma hora. Já teriam prendido algum deles? Nesse
caso, sabia qual deles tinha mais probabilidade de ter sido. Saiu do escritório, atravessou o vestíbulo e abriu a porta a medo.
- Devia ter seguido o meu conselho, senhor Martinez - disse o coronel Scott-Hopkins. - Mas não o fez, e agora o tenente Lunsdorf vai ser julgado como criminoso de guerra.
Por isso, Telavive não é cidade cuja visita lhe recomende, embora desse uma testemunha de defesa bem interessante. Os seus filhos vão a caminho de Buenos Aires e, para seu
próprio bem, espero que não voltem a pôr os pés neste país, porque se forem suficientemente tolos para o fazer, pode ter a certeza que não vamos fechar os olhos uma segunda
vez. Quanto a si, senhor Martinez, sinceramente, já cá está há tempo demais e permita-me que lhe sugira que também está na altura de ir para casa. Vamos apontar para vinte
e oito dias, está bem? Se não seguir o meu conselho pela segunda vez... bem, esperemos que não nos voltemos a encontrar - acrescentou o coronel, antes de dar meia-volta e
desaparecer na escuridão.
Don Pedro bateu com a porta e voltou para o escritório. Sentou-se à secretária durante mais de uma hora, antes de pegar no telefone e marcar um número que não o tinham deixado
anotar e para o qual só poderia ligar uma vez.
Quando atenderam o telefone ao terceiro toque, não ficou surpreendido quando ninguém falou. A única coisa que Don Pedro disse foi:
- Preciso de um motorista.


Páginas em branco
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HARRY E EMMA
1964

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- Ontem à noite, li o discurso que Joshua Barrington pronunciou na primeira assembleia-geral anual da sua companhia recém-formada, em 1849. A rainha Vitória estava no trono
e o sol nunca se punha no Império Britânico. Ele disse às trinta e sete pessoas presentes em Temperance Hall, em Bristol, que o volume de negócios da Barrington Shipping no
seu primeiro ano foi de £420 10x 4d e que podia declarar um lucro de £33 4x 2d. Prometeu aos acionistas que faria melhor no ano seguinte.
"Hoje, estou a dirigir-me a mais de um milhar de acionistas da Barrington's na assembleia-geral anual, em Colston Hall. Este ano, o nosso volume de negócios foi de £21 422
760 e declarámos um lucro de £691 472. A rainha Isabel II está no trono e, embora já não governemos meio mundo, a Barrington's continua a navegar em alto-mar. Mas, tal como
Sir Joshua, pretendo fazer melhor no ano que vem.
A companhia continua a ganhar a vida a transportar passageiros e bens para todas as partes do globo. Continuamos a negociar de leste a oeste. Resistimos a duas guerras mundiais
e estamos a encontrar o nosso lugar na nova ordem mundial. É claro que devíamos olhar para trás com orgulho para o nosso império colonial, mas ao mesmo tempo estar dispostos
a agarrar rapidamente as oportunidades.
Harry, sentado na primeira fila, ficou divertido ao ver Giles a anotar as palavras da irmã, e ficou a pensar quanto tempo levaria até serem repetidas na Câmara dos Comuns.
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- Uma dessas oportunidades foi agarrada há seis anos pelo meu predecessor, Ross Buchanan, quando, com o apoio do conselho da administração, tomou a decisão de que a Barrington's
devia encomendar a construção de um novo paquete de luxo, o Buckingham, que seria o primeiro barco de uma frota que viria a ser conhecida como Linha Palácio. Apesar de termos
tido de ultrapassar vários obstáculos pelo caminho, estamos agora a poucas semanas de batizar esse barco magnífico.
Virou-se para um grande ecrã que estava atrás dela e, passados segundos, apareceu uma imagem do Buckingham, que foi recebida primeiro de boca aberta e depois com prolongados
aplausos. Emma descontraiu pela primeira vez e olhou de relance para o discurso, deixando os aplausos esmorecer.
- Tenho o prazer de anunciar que Sua Majestade, a rainha Isabel, a rainha-mãe, aceitou batizar o Buckingham quando visitar Avonmouth a vinte e um de setembro. Agora, se procurarem
debaixo dos vossos lugares, vão encontrar uma brochura contendo todos os pormenores acerca deste notável paquete. Mas permitam-me que selecione alguns destaques, que deixo
à vossa consideração.
O conselho de administração escolheu a Harland & Wolff para construir o Buckingham sob a direção do distinto arquiteto naval Rupert Cameron, que trabalhou em conjunto com
os engenheiros navais Sir John Biles & Co., em colaboração com a companhia dinamarquesa Burmeister & Wain. O resultado foi o primeiro barco de propulsão a diesel do mundo.
O Buckingham é um barco com dois motores, com cento e oitenta metros de comprimento e vinte e quatro metros de largura máxima, e pode atingir uma velocidade de trinta e dois
nós. Tem capacidade para acomodar cento e dois passageiros de primeira classe, duzentos e quarenta e dois em segunda classe e trezentos e sessenta em turística. Haverá espaço
disponível no porão para os veículos dos passageiros, assim como para a carga comercial, consoante o destino do navio. A tripulação de quinhentos e setenta homens, juntamente
com o gato do navio, Perseus, estará sob o comando do capitão Nicholas Turnbull da RN.
Deixem-me agora chamar a vossa atenção para uma inovação única que só pode ser desfrutada pelos passageiros que viajem no Buckingham, e que irá ser seguramente a inveja dos
nossos rivais.

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O Buckingham não terá, como todos os outros paquetes têm, convés corrido. Para nós, isso é coisa do passado, pois construímos o primeiro convés superior com piscina e dois
restaurantes à escolha.
O slide que apareceu no ecrã foi recebido com outra salva de palmas.
- Mas não posso fingir - continuou Emma - que construir um paquete desta qualidade não foi caro. Na verdade, a fatura final será um pouco mais de dezoito milhões de libras,
o que, como sabem pelo meu relatório do ano passado, minou fortemente as nossas reservas. No entanto, graças à clarividência de Ross Buchanan, foi redigido um segundo contrato
com a Harland & Wolff para construir um navio igual, o Balmoral, por dezassete milhões de libras, desde que o projeto seja confirmado nos doze meses seguintes ao Buckingham
obter o seu certificado de navegabilidade.
O Buckingham foi-nos entregue há duas semanas, o que nos deixa com cinquenta semanas para decidir se aceitamos ou não essa opção. Por essa altura, temos de decidir se este
vai ser um exemplar único ou o primeiro da frota Palácio. Sinceramente, essa decisão não será tomada pelo conselho de administração, nem sequer pelos acionistas, mas, como
em todos os empreendimentos comerciais, pelo público. Só eles irão decidir o futuro da Linha Palácio.
E isso leva-nos ao meu próximo anúncio: ao meio-dia de hoje, Thomas Cook vai abrir o segundo período de reservas para a viagem inaugural do Buckingham. - Emma fez uma pausa
e olhou para a assistência. - Mas não para o público em geral. Durante os últimos três anos, os acionistas não receberam os dividendos a que estavam acostumados no passado,
por isso decidi aproveitar esta oportunidade para agradecer a vossa lealdade e apoio constantes. Qualquer pessoa que tenha ações há mais de um ano não só terá prioridade na
reserva para a viagem inaugural, que sei que muitos de vós já utilizaram, como também receberá dez por cento de desconto em qualquer viagem que faça futuramente num barco
Barrington.
Os aplausos prolongados que se seguiram permitiram que Emma voltasse a consultar as suas notas.
- Thomas Cook avisou-me para não me entusiasmar demasiado com o grande número de passageiros que já reservou lugar para a
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viagem inaugural. Dizem-me que todas as cabinas estarão vendidas muito antes de o navio levantar ferro, mas que à semelhança do que acontece com o teatro Old Vic, que está
sempre esgotado em qualquer noite de estreia, também nós teremos de confiar nos clientes regulares e repetir a enchente durante um longo período de tempo. Os factos são simples.
Não nos podemos dar ao luxo de ter menos de sessenta por cento de taxa de ocupação, e mesmo esse número apenas significa que conseguimos o equilíbrio financeiro ano após ano.
Setenta por cento de ocupação garantiriam um pequeno lucro, mas precisamos de oitenta por cento se quisermos recuperar o capital investido dentro de dez anos, como Ross Buchanan
sempre planeou. E por essa altura, desconfio que já haverá um convés superior nos navios de todos os nossos concorrentes e nós estaremos à procura de ideias inovadoras para
atrair um público cada vez mais exigente e sofisticado.
Por isso, os próximos doze meses irão decidir o futuro da Barrington's. Fazemos história ou passamos à história? Podem ter a certeza de que os administradores irão trabalhar
incansavelmente em nome dos acionistas que depositaram a sua confiança em nós, para prestar um serviço que seja uma referência no mundo dos paquetes de luxo. Deixem-me terminar
como comecei. Tal como o meu bisavô, pretendo fazer melhor no ano que vem, e no outro a seguir, e assim sucessivamente.
Emma sentou-se e a assistência pôs-se em pé como se fosse uma noite de estreia. Ela fechou os olhos e pensou nas palavras do avô: Se fores suficientemente boa para ser presidente,
o facto de seres mulher não fará qualquer diferença. O almirante Summers inclinou-se e sussurrou:
- Parabéns! - E depois acrescentou: - E as perguntas? Emma saltou do lugar.
- Desculpem, quase me esquecia. É claro que terei todo o prazer em responder às vossas perguntas.
Um homem elegantemente vestido na segunda fila pôs-se rapidamente em pé.
- Mencionou o facto de a cotação das ações ter atingido recentemente um novo máximo, mas pode explicar porque é que nas últimas duas semanas tem havido altos e baixos, o que,
para um leigo como eu, parece inexplicável, para não dizer preocupante?

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- Eu própria não consigo explicar totalmente - admitiu Emma. - Mas posso dizer-lhes que um antigo acionista lançou vinte e dois e meio por cento do capital da companhia no
mercado sem ter a cortesia de me informar, apesar de esse acionista ter um representante no conselho. Felizmente para a Barrington's, o corretor envolvido foi suficientemente
perspicaz para oferecer essas ações a um dos nossos antigos administradores, o senhor Cedric Hardcastle, ele próprio banqueiro. O senhor Hardcastle conseguiu colocar a totalidade
das ações junto de um empresário importante do norte de Inglaterra, que já queria há algum tempo adquirir uma participação substancial da companhia. Isto significou que as
ações só estiveram no mercado durante alguns minutos, provocando uma perturbação mínima, e na verdade passados alguns dias a cotação voltou ao valor máximo anterior.
Emma viu-a levantar-se do lugar no meio da quarta fila, com um chapéu amarelo de abas largas que seria mais apropriado para Ascot, mas Emma continuou a ignorar a mulher, apontando
antes para um homem algumas filas atrás dela.
- O Buckingham só vai fazer a rota transatlântica ou a companhia planeia outros destinos no futuro?
- Boa pergunta - tinha Giles ensinado Emma a dizer, sobretudo quando não o era. - O Buckingham não conseguiria ter lucro se restringíssemos as suas viagens à costa leste dos
Estados Unidos, quanto mais não fosse porque os nossos rivais, sobretudo os americanos, dominam essa rota há quase um século. Não, temos de identificar uma nova geração de
passageiros que não considere que o único objetivo de viajar é simplesmente chegar de A a B. O Buckingham tem de ser como um hotel de luxo flutuante, em que os seus passageiros
dormem à noite, enquanto durante o dia vão visitando países que nunca tinham pensado ver na sua vida. Com isso em mente, o Buckingham fará viagens regulares às Caraíbas e
às Baamas, e durante o verão fará cruzeiros no Mediterrâneo e navegará ao longo da costa italiana. E sabe-se lá que outras partes do mundo surgirão nos próximos vinte anos...
A mulher levantou-se de novo e Emma evitou-a uma vez mais, apontando para outro homem mais à frente.
- Está preocupada com o número de passageiros que opta por viajar de avião em vez de recorrer a paquetes oceânicos? A BOAC,
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por exemplo, diz que consegue pôr uma pessoa em Nova Iorque em menos de oito horas, ao passo que o Buckingham leva pelo menos quatro dias.
- O senhor tem toda a razão - respondeu Emma - e é por isso que a nossa publicidade se concentra numa visão diferente para os nossos passageiros, oferecendo-lhes uma experiência
que eles nunca poderiam esperar ter num avião. Qual é o avião que pode oferecer um teatro, lojas, um cinema, uma biblioteca e restaurantes que servem a melhor gastronomia,
já para não falar num convés superior com uma piscina? A verdade é esta: se tiverem pressa, não reservem uma cabina no Buckingham, pois ele é um palácio flutuante onde vão
querer voltar uma e outra vez. E há outra coisa que posso prometer-vos: quando chegarem a casa, não sofrerão de cansaço devido às diferenças horárias.
A mulher na quarta fila estava outra vez em pé, a acenar.
- Está a tentar evitar-me, senhora presidente? - gritou. Giles pensou reconhecer a voz e olhou para trás, confirmando
os seus piores receios.
- De forma alguma, minha senhora, mas como não é acionista nem jornalista, não lhe dei prioridade. Mas faça o favor de fazer a sua pergunta.
- É verdade que um dos vossos administradores vendeu a sua enorme participação acionista durante o fim de semana, numa tentativa de destruir a companhia?
- Não, Lady Virgínia, não foi isso que aconteceu. Provavelmente, está a pensar nos vinte e dois e meio por cento que Don Pedro Martinez lançou no mercado sem informar o conselho
de administração, mas felizmente, para usar uma expressão moderna, antecipámos a sua jogada.
O riso tomou conta da sala, mas isso não desencorajou Virgínia.
- Se um dos vossos administradores esteve envolvido nessa operação, não deveria demitir-se do conselho?
- Se está a referir-se ao major Fisher, pedi-lhe para se demitir na sexta-feira, quando me veio visitar no meu gabinete, como tenho a certeza de que saberá, Lady Virgínia.
- O que está a insinuar?

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- Que em duas ocasiões distintas, quando o major Fisher a representava a si no conselho de administração, permitiu que ele vendesse todas as suas ações durante um fim de semana,
e depois, após ter conseguido um belo lucro, recomprou-as durante o período de negociação de três semanas. Quando a cotação das ações recuperou e atingiu um novo máximo, levou
a cabo a mesma operação uma segunda vez, conseguindo um lucro ainda maior. Se era sua intenção derrubar a companhia, Lady Virgínia, então fracassou, tal como o senhor Martinez,
e fracassou rotundamente, pois foi derrotada por gente decente que quer que esta companhia seja um sucesso.
A sala encheu-se instantaneamente de aplausos, enquanto Lady Virgínia abria caminho ao longo da fila sobrelotada, sem se importar com os pés que pisava. Quando chegou ao corredor
central, voltou a olhar para o palco e gritou:
- Vai ter notícias do meu advogado.
- Espero bem que sim - disse Emma -, porque assim o major Fisher poderá dizer a um júri quem é que ele representava quando comprou e vendeu as suas ações.
Este golpe de misericórdia recebeu a ovação mais ruidosa do dia. Emma até teve tempo para olhar para a primeira fila e piscar o olho a Cedric Hardcastle.
Passou a hora seguinte a responder a uma série de perguntas, tanto dos acionistas, como dos analistas da City e jornalistas, com uma confiança e autoridade que Harry raramente
presenciara. Depois de ter respondido à última pergunta, encerrou a reunião com as palavras:
- Espero que muitos de vocês me acompanhem na viagem inaugural a Nova Iorque, daqui a dois meses, pois estou confiante de que será uma experiência que nunca esquecerão.
- Creio que podemos garantir isso - sussurrou um homem com um sotaque irlandês que tinha estado sentado ao fundo da sala. Esgueirou-se dali enquanto Emma era aplaudida de
pé.
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- Bom dia. Thomas Cook & Son. Em que posso ajudá-lo?
- Daqui fala Lord Glenarthur. Espero que me possa ajudar a resolver um assunto particular.
- Farei o que puder, senhor.
- Sou amigo das famílias Barrington e Clifton e disse a Harry Clifton que, infelizmente, não poderia acompanhá-los na viagem inaugural do Buckingham para Nova Iorque devido
a compromissos de negócios. Esses compromissos ficaram agora sem efeito e eu pensei que seria divertido não lhes dizer que estou a bordo. Uma espécie de surpresa, se é que
me está a perceber.
- Com certeza, senhor.
- Por isso, estava a ligar para ver se seria possível reservar uma cabina algures perto da família.
- Vou ver o que posso fazer, se fizer a gentileza de ficar em linha por uns momentos. - O homem do outro lado bebeu um gole de Jameson 's e esperou. - Lord Glenarthur, ainda
há duas cabinas de primeira classe disponíveis no convés superior, números três e cinco.
- Gostava de ficar o mais perto possível da família.
- Bem, Sir Giles Barrington está na cabina número dois.
- E Emma?
- Emma?
- Peço desculpa. A senhora Clifton.
- Está na cabina número um.
- Então, fico com a número três. Estou muito grato pela sua ajuda.

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- Foi um prazer, senhor. Espero que faça uma viagem agradável. Posso perguntar-lhe para onde devemos enviar os bilhetes?
- Não, não se incomode. Vou pedir ao meu motorista que os vá buscar.
Don Pedro abriu o cofre que tinha no seu escritório e tirou o dinheiro que lhe restava. Pôs os maços de notas de cinco libras em pilhas de dez mil, até ocuparem cada centímetro
da sua secretária. Voltou a pôr £23 645 no cofre e fechou-o, depois voltou a contar as restantes £250 000 antes de pôr o dinheiro na mochila que eles lhe tinham dado. Sentou-se
à secretária, pegou no jornal da manhã e esperou.
Tinham passado dez dias até o motorista devolver a chamada, dizendo que a operação tinha sido aprovada, mas só se ele estivesse disposto a pagar £500 000. Quando ele questionara
o montante, tinham-lhe feito ver que a operação envolvia riscos consideráveis, pois se algum dos rapazes fosse apanhado, provavelmente iria passar o resto dos seus dias em
Crumlin Road ou pior.
Não se deu ao trabalho de regatear. No fim de contas, não tinha intenção de pagar a segunda tranche, pois duvidava que houvesse muitos simpatizantes do IRA em Buenos Aires.
- Bom dia, Thomas Cook & Son.
- Gostava de reservar uma cabina de primeira classe para a viagem inaugural do Buckingham para Nova Iorque.
- Sim, é claro, minha senhora, vou passar a chamada.
- Reservas em primeira classe, em que posso ajudá-la?
- Daqui fala Lady Virgínia Fenwick. Gostava de reservar uma cabina para a viagem inaugural.
- Pode repetir o seu nome, por favor?
- Lady Virgínia Fenwick - disse ela lentamente, como se estivesse a falar com um estrangeiro.
Seguiu-se um longo silêncio, e Virgínia presumiu que isso significava que o funcionário das reservas estava a verificar a disponibilidade.
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- Lamento imenso, Lady Virgínia, mas infelizmente a primeira classe está completamente esgotada. Quer que passe a chamada para a segunda classe?
- Claro que não! Será que não sabe quem eu sou?
O funcionário gostaria de ter dito que sim, que sabia exatamente quem ela era, porque o seu nome estava afixado no quadro de informações há um mês com instruções claras para
todos os vendedores relativamente à ação a tomar se aquela senhora telefonasse a fazer uma reserva, mas em vez disso manteve-se fiel ao seu guião:
- Lamento imenso, minha senhora, mas não há nada que eu possa fazer.
- Mas eu sou amiga pessoal da presidente da Barrington Shipping - disse Virgínia. - Com certeza que isso tem algum peso, não?
- Claro que sim - replicou o funcionário das reservas. - Ainda temos uma cabina de primeira classe disponível, mas só pode ser libertada por ordem expressa da senhora presidente.
Por isso, se fizer a gentileza de fazer um telefonema à senhora Clifton, eu ponho a cabina em seu nome e liberto-a assim que ela me der essa indicação.
Nunca mais tiveram notícias dela.
Quando Don Pedro ouviu o som de uma buzina, dobrou o jornal, pô-lo em cima da secretária, pegou na mochila e saiu de casa. O motorista levou a mão ao boné e disse:
- Bom dia, senhor. - Só depois é que colocou a mochila na mala do Mercedes.
Don Pedro entrou para o banco de trás, fechou a porta e esperou. Quando o motorista se sentou ao volante, não perguntou a Don Pedro onde queria ir, pois já tinha escolhido
o trajeto. Viraram à esquerda para sair de Eaton Square e rumaram a Hyde Park Corner.
- Presumo que a mochila contenha o montante combinado - disse o motorista ao passarem pelo hospital na esquina de Hyde Park.
- Duzentas e cinquenta mil libras em dinheiro vivo - disse Don Pedro.
- E esperamos que a outra metade seja paga de uma só vez nas vinte e quatro horas seguintes após termos cumprido a nossa parte do acordo.

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- Foi isso que combinei - disse Don Pedro, enquanto pensava nas £23 645 que tinha no cofre do escritório; era todo o dinheiro que possuía. Já nem a casa estava em seu nome.
- Tem noção das consequências, caso não pague a segunda prestação?
- Vocês trataram de mas recordar vezes suficientes - disse Don Pedro enquanto o carro subia Park Lane, sem ultrapassar o limite de velocidade de sessenta quilómetros por hora.
- Em circunstâncias normais, se não pagasse a tempo, matávamos um dos seus filhos, mas como estão ambos em segurança em Buenos Aires e Herr Lunsdorf já não se encontra entre
nós, resta apenas o senhor - disse o motorista enquanto contornava Marble Arch.
Don Pedro ficou calado enquanto desciam pelo outro lado de Park Lane, até pararem num semáforo.
- E se forem vocês a não cumprir a vossa parte do acordo? - exigiu ele saber.
- Então, não terá de pagar as outras duzentas e cinquenta mil, não é verdade? - disse o motorista ao mesmo tempo que paravam à porta do Dorchester.
Um porteiro com uma casaca verde comprida veio apressadamente até ao carro e abriu a porta para Don Pedro sair.
- Preciso de um táxi - disse Don Pedro, enquanto o motorista arrancava e voltava a juntar-se ao trânsito matinal em Park Lane.
- Sim, senhor - disse o porteiro, erguendo um braço e soltando um assobio agudo.
Quando Don Pedro subiu para o banco de trás do táxi e disse "Eaton Square, número quarenta e quatro", o porteiro ficou perplexo. Porque é que o cavalheiro precisava de um
táxi quando já tinha um motorista?
- Thomas Cook & Son, em que posso ajudá-lo?
- Queria reservar quatro cabinas no Buckingbam para a viagem inaugural a Nova Iorque.
- Primeira ou segunda classe?
- Segunda.
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- Vou passar a chamada.
- Bom dia, reservas em segunda classe para o Buckingham.
- Queria reservar quatro cabinas individuais para a viagem para Nova Iorque, a vinte e nove de outubro.
- Pode dar-me os nomes dos passageiros? - O coronel Scott-Hopkins deu o nome dele e dos seus três colegas. - Os bilhetes são trinta e duas libras cada um. Para onde é que
devo enviar a fatura?
Sede do SAS, Quartel de Chelsea, King's Road, Londres, podia ele ter dito, pois eram eles que iam pagar a fatura, mas em vez disso deu a sua morada ao funcionário das reservas.
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- Gostava de começar a reunião de hoje dando as boas-vindas ao senhor Bob Bingham como membro do conselho de administração - disse Emma, - Bob é presidente da Pasta de Peixe
Bingham e, como adquiriu recentemente vinte e dois e meio por cento das ações da Barrington's, não precisa de convencer ninguém de que acredita no futuro da companhia. Também
recebemos demissões de dois outros membros do conselho: do senhor Cedric Hardcastle, cujos conselhos argutos e sensatos nos farão infelizmente muita falta, e do major Fisher,
cuja falta não será tão sentida.
O almirante Summers permitiu-se um sorriso irónico.
- Como só faltam dez dias para o batismo oficial do Buckingham, talvez deva começar por vos pôr ao corrente dos preparativos para a cerimónia. - Emma abriu o dossiê vermelho
que tinha à sua frente e consultou cuidadosamente o horário. - A rainha-mãe chega a Temple Meads no comboio real às nove e trinta e cinco da manhã de vinte e um de setembro.
A sua espera na plataforma estará o governador do condado e cidade de Bristol e o presidente da câmara de Bristol. Sua Majestade será então levada de carro ao Liceu de Bristol,
onde será recebida pelo diretor, que a levará até aos novos laboratórios de ciências da escola, que ela inaugurará às dez e dez. Vai encontrar-se com um grupo selecionado
de alunos e pessoal antes de deixar a escola às onze horas. Depois, será levada a Avonmouth, chegando ao estaleiro às onze e dezassete. - Emma levantou os olhos. - A minha
vida seria tão mais simples se eu soubesse sempre o minuto exato em que vou chegar a qualquer lado... Irei ao encontro de Sua
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Majestade quando chegar a Avonmouth - continuou ela, voltando a olhar para o horário - para lhe dar as boas-vindas em nome da companhia, antes de lhe apresentar o conselho
de administração. Às onze e vinte e nove, irei acompanhá-la à doca norte, onde ela se irá encontrar com o arquiteto do navio, com o nosso engenheiro naval e com o presidente
da Harland & Wolff.
Quando faltarem três minutos para o meio-dia, darei as boas-vindas oficiais à nossa convidada de honra. O meu discurso terá a duração de três minutos, e ao bater da primeira
badalada do meio-dia, Sua Majestade irá batizar o Buckingham da forma tradicional, partindo uma garrafa de champanhe no casco.
- E o que é que acontece se a garrafa não se partir? - perguntou Clive Anscott a rir.
Mais ninguém se riu.
- Não tenho nada aqui sobre isso - disse Emma. - Ao meio-dia e meia, Sua Majestade partirá para a Royal West of England Academy, onde se juntará ao pessoal para almoçar, antes
de inaugurar a sua nova galeria de arte, às três. As quatro, será levada de volta a Temple Meads, na companhia do governador, e subirá a bordo do comboio real, que partirá
para Paddington dez minutos depois de ela ter embarcado.
Emma fechou o dossiê, soltou um suspiro e recebeu uma salva de palmas simuladas dos outros administradores.
- Em criança - acrescentou ela - sempre quis ser princesa, mas depois disto devo dizer-vos que mudei de ideias. - Desta vez, as palmas foram genuínas.
- Como saberemos onde esperam que estejamos num dado momento? - perguntou Andy Dobbs.
- Todos os membros do conselho irão receber uma cópia do horário oficial e Deus ajude a pessoa que não estiver no sítio certo à hora certa. Agora, vou passar para outro assunto
igualmente importante: a viagem inaugural do Buckingham, que como todos vocês sabem terá início no dia vinte e nove de outubro. O conselho de administração vai gostar de saber
que as cabinas estão todas ocupadas e, melhor ainda, que a viagem de regresso também está esgotada.

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- Esgotada é uma descrição interessante - disse Bob Bingham. - Quantos são passageiros pagantes e quantos são convidados?
- Convidados? - repetiu o almirante.
- Passageiros que não pagam os seus bilhetes.
- Bem, há várias pessoas que têm direito...
-... a uma viagem grátis. Não os deixe habituarem-se a isso, é o meu conselho.
- Incluiria os membros do conselho de administração e as suas famílias nessa categoria, senhor Bingham? - perguntou Emma.
- Não na viagem inaugural, mas no futuro certamente, como questão de princípio. Um palácio flutuante é muito apelativo quando não é preciso pagar pela nossa cabina, já para
não falar na comida e bebida.
- Diga-me, senhor Bingham, paga sempre a sua própria pasta de peixe?
- Sempre, almirante. Dessa forma, o meu pessoal não sente que tem direito a amostras grátis para a família e amigos.
- Então, em qualquer viagem futura - disse Emma -, pagarei sempre pela minha cabina e nunca viajarei de forma gratuita enquanto for presidente desta companhia.
Houve um ou dois membros do conselho que se remexeram desconfortavelmente nas suas cadeiras.
- Espero - disse David Dixon - que isso não impeça os Barrington e os Clifton de estarem bem representados nesta viagem histórica.
- A maior parte da minha família irá comigo na viagem - disse Emma -, à exceção da minha irmã Grace, que só poderá estar presente na cerimónia do batismo, uma vez que é a
primeira semana de aulas e terá de regressar imediatamente a Cambridge depois disso.
- E Sir Giles? - perguntou Anscott.
- Isso vai depender de o primeiro-ministro decidir convocar ou não eleições gerais. No entanto, o meu filho Sebastian vai de certeza, com a sua namorada Samantha, mas vão
em segunda classe. E antes que pergunte, senhor Bingham, paguei pelos seus bilhetes.
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- Se é o rapaz que apareceu na minha fábrica há duas semanas, se fosse a si ficava de olhos bem abertos, senhora presidente, porque tenho a sensação de que ele quer o seu
lugar.
- Mas ele só tem vinte e quatro anos - disse Emma.
- Isso não o vai incomodar. Eu fui presidente da Bingham aos vinte e sete.
- Então ainda tenho mais três anos.
- A senhora e Cedric - disse Bob. - Tudo depende de qual dos dois ele decidir substituir.
- Não me parece que Bingham esteja a brincar, senhora presidente - disse o almirante. - Mal posso esperar para conhecer esse rapaz.
- Algum dos antigos administradores foi convidado para fazer a viagem connosco até Nova Iorque? - perguntou Andy Dobbs. - Estava a pensar em Ross Buchanan.
- Sim - disse Emma -, devo admitir que convidei Ross e Jean para irem connosco como convidados da companhia. Isto presumindo que o senhor Bingham aprova.
- Eu não estaria neste conselho de administração se não fosse Ross Buchanan e, depois de Cedric Hardcastle me ter contado aquilo que ele armou no The Night Scotsman, creio
que bem merece essa passagem.
- Não podia estar mais de acordo - disse Jim Knowles. - Mas isso leva a perguntar o que fazemos em relação a Fisher e Hardcastle.
- Não tinha pensado em convidar o major Fisher - disse Emma - e Cedric Hardcastle já me disse que acha que é melhor não estar presente na cerimónia de batismo, depois do ataque
velado que Lady Virgínia lhe fez na assembleia-geral anual.
- Essa mulher foi suficientemente estúpida para cumprir a ameaça de interpor uma ação? - perguntou Dobbs.
- Sim - disse Emma -, alegando difamação e calúnia.
- Calúnia ainda compreendo - disse Dobbs -, mas como é que ela pode alegar difamação?
- Porque eu insisti para que cada palavra da nossa discussão ficasse registada na ata da assembleia-geral anual.

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- Então, esperemos que ela seja suficientemente estúpida para a levar ao Supremo Tribunal.
- Estúpida não é - disse Bingham -, mas é suficientemente arrogante, embora tenha a sensação de que, enquanto Fisher estiver por perto para prestar depoimento, ela não vá
arriscar.
- Podemos voltar ao que estávamos a tratar? - perguntou o almirante. - Já sou capaz de estar morto quando o caso chegar aos tribunais.
Emma riu-se.
- Havia alguma questão em particular que quisesse levantar, almirante?
- Quanto tempo é que se prevê que demore a viagem para Nova Iorque?
- Pouco mais de quatro dias, o que se equipara favoravelmente a qualquer dos nossos rivais.
- Mas o Buckingham está equipado com dois motores de propulsão a diesel, por isso há com certeza uma possibilidade de conseguir a Fita Azul para a travessia mais rápida de
sempre, não?
- Se as condições meteorológicas forem perfeitas, e normalmente são bastante boas nesta altura do ano, temos uma pequena hipótese, mas basta mencionar as palavras Fita Azul
e a primeira coisa em que as pessoas pensam é no Titanic. Por isso, não devemos sugerir sequer essa possibilidade até vermos a Estátua da Liberdade no horizonte.
- Presidente, quantas pessoas é que são esperadas na cerimónia de batismo?
- O chefe da polícia disse-me que podiam ser três mil, ou até mesmo quatro mil.
- E quem é que está encarregado da segurança?
- A polícia é responsável pelo controlo da multidão e pela segurança pública.
- E nós pagamos a fatura.
- Tal como num jogo de futebol - disse Knowles.
- Esperemos que não - disse Emma. - Se não há mais perguntas, gostaria de propor a realização da próxima reunião do conselho na suite Walter Barrington do Buckingham, na viagem
de regresso
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de Nova Iorque. Até lá, fico ansiosa por vê-los a todos aqui, exatamente às dez horas do dia vinte e um.
- Mas isso é mais de uma hora antes de a querida senhora chegar - disse Bob Bingham.
- Vai descobrir que nos levantamos cedo no West Country, senhor Bingham. Quem cedo madruga Deus o ajuda!
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- Sua Majestade, permita-me que lhe apresente a senhora Clifton, presidente da Barrington Shipping - disse o governador.
Emma fez uma vénia e esperou que a rainha-mãe dissesse alguma coisa, uma vez que as notas com as instruções deixavam claro que ninguém devia falar até lhe ser dirigida a palavra
e que nunca se devia fazer qualquer pergunta.
- Como Sir Walter teria gostado deste dia, senhora Clifton! Emma ficou sem fala, pois sabia que o avô só tinha estado uma
única vez com a rainha-mãe e, embora ele se referisse frequentemente à ocasião e até tivesse uma fotografia no gabinete para lembrar toda a gente disso, ela não estava à espera
de que Sua Majestade também se recordasse do encontro.
- Permita-me que lhe apresente o almirante Summers - disse Emma, assumindo o controlo depois do governador -, que integra o conselho de administração da Barrington's há mais
de vinte anos.
- A última vez que nos encontrámos, almirante, mostrou-me gentilmente o seu contratorpedeiro, o HMS Chevron.
- Creio que irá descobrir, minha senhora, que era o contratorpedeiro do rei. Eu estava apenas temporariamente no comando.
- Uma distinção subtil, almirante - disse a rainha-mãe enquanto Emma continuava a apresentar os outros administradores e se perguntava o que é que Sua Majestade iria pensar
do mais recente membro do conselho de administração.
- Senhor Bingham, o senhor foi banido do palácio. - A boca de Bob Bingham abriu-se, mas não saiu nada. - Para ser justa, não foi a sua pessoa, mas sim a sua pasta de peixe.
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- Mas porquê, minha senhora? - perguntou Bob, sem fazer caso das suas notas de instruções.
- Porque o meu neto, o príncipe André, está sempre a enfiar o dedo no frasco, a imitar o rapazinho do rótulo.
Bob não disse mais nada enquanto a rainha-mãe avançava para conhecer o arquiteto do navio.
- Da última vez que nos encontrámos...
Emma olhou para o relógio enquanto a rainha-mãe conversava com o presidente da Harland & Wolff.
- E qual é o seu próximo projeto, senhor Baillie?
- Ainda é altamente confidencial, minha senhora. A única coisa que lhe posso dizer é que as letras "HMS" irão preceder o nome no casco do navio, e que vai passar imenso tempo
debaixo de água.
A rainha-mãe sorriu ao mesmo tempo que o governador a guiava em direção a uma confortável cadeira mesmo atrás da tribuna.
Emma esperou que ela se sentasse, antes de se dirigir à tribuna para pronunciar um discurso que não precisava de notas, porque o sabia de cor. Agarrou-se aos lados do atril,
respirou fundo como Giles a aconselhara a fazer e olhou lá para baixo, para a grande multidão, muito mais do que as quatro mil pessoas que a polícia tinha previsto, que se
tinha calado na expectativa.
- Sua Majestade, esta é a sua terceira visita ao estaleiro da Barrington's. Veio aqui pela primeira vez como nossa rainha, em 1939, quando a companhia comemorou o seu centenário
e o meu avô era presidente. Depois, voltou a visitar-nos em 1942, para ver com os seus próprios olhos os estragos provocados pelos bombardeamentos durante a guerra, e hoje
protagoniza um regresso muito aguardado para lançar à água um paquete com o nome da casa onde tem vivido durante os últimos sessenta anos. A propósito, minha senhora, se alguma
vez precisar de um quarto para passar a noite - as palavras de Emma foram recebidas com gargalhadas calorosas -, temos duzentos e noventa e dois, embora deva salientar que
perdeu a oportunidade de nos acompanhar na viagem inaugural porque já está esgotada.
O riso e as palmas da multidão ajudaram Emma a descontrair e a sentir-se mais confiante.
- E permita-me que acrescente, minha senhora, que a sua presença aqui hoje fez disto uma ocasião histérica...

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Houve um sobressalto que se transformou num silêncio embaraçado. Emma só queria que o chão se abrisse para a engolir, até que a rainha-mãe desatou a rir e toda a gente começou
a dar vivas e a atirar os chapéus ao ar. Emma sentia as faces a arder e levou algum tempo até recuperar o suficiente para dizer:
- É um privilégio, minha senhora, convidá-la a batizar o MV Buckingham.
Emma recuou um passo para permitir que a rainha-mãe tomasse o seu lugar. Este era o momento que ela mais receava. Uma vez, Ross Buchanan tinha-lhe contado um episódio conhecido
em que tudo tinha corrido mal e o navio não só sofrera uma humilhação pública, como tanto a tripulação como o público se haviam recusado a navegar nele, convencidos de que
estava amaldiçoado.
A multidão calou-se uma vez mais e aguardou nervosamente, com o mesmo receio a passar pela cabeça de todos os trabalhadores do estaleiro enquanto fitavam a visita real. Vários
dos mais supersticiosos, incluindo Emma, fizeram figas quando o relógio do estaleiro bateu a primeira badalada do meio-dia e o governador entregou a garrafa de champanhe à
rainha-mãe.
- Batizo este navio com o nome de Buckingham - declarou ela - e faço votos para que ele traga alegria e felicidade a todos quantos nele viajem e para que tenha uma vida longa
e próspera no mar alto.
A rainha-mãe ergueu a garrafa de champanhe, fez uma pequena pausa e depois largou-a. Emma teve vontade de fechar os olhos enquanto a garrafa descrevia um grande arco em direção
ao navio. Quando bateu no casco, a garrafa fez-se em pedaços e as bolhas de champanhe escorreram pelo costado do navio enquanto a multidão soltava o viva mais estrondoso do
dia.
- Não podia ter corrido melhor - disse Giles, enquanto o carro da rainha-mãe saía do estaleiro e desaparecia.
- Eu passava bem sem a ocasião histérica... - disse Emma.
- Não concordo - disse Harry. - A rainha-mãe ficou divertida com o teu pequeno passo em falso, os trabalhadores hão de contar esta história aos netos e, por uma vez, mostraste
que também falhas.
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- És muito querido - disse Emma -, mas ainda temos muito trabalho para fazer antes da viagem inaugural e não me posso dar ao luxo de ter outro momento histérico - acrescentou,
ao mesmo tempo que a irmã ia ter com eles.
- Ainda bem que não perdi isto - disse Grace. - Mas, quando lançares o próximo navio à água, seria possível não escolheres uma altura de aulas? E tenho um conselho para a
minha irmã mais velha: trata de encarar a viagem inaugural como uma celebração, umas férias, e não apenas como mais uma semana no escritório. - Beijou o irmão e a irmã em
ambas as faces. - A propósito - acrescentou -, adorei o momento histérico!
- Ela tem razão - disse Giles enquanto viam Grace afastar-se em direção à paragem de autocarro mais próxima -, deves gozar cada momento, pois devo dizer-te que é isso que
pretendo fazer.
- És capaz de não poder.
- Porquê?
- Por essa altura, já podes ser ministro.
- Antes de poder ser ministro, ainda é preciso garantir o meu lugar no Parlamento e o meu partido ganhar as eleições.
- E quando achas que serão as eleições?
- Se me deitasse a adivinhar, apontaria para algures em outubro, pouco depois das conferências dos partidos. Portanto, vais ver-me muito em Bristol durante as próximas semanas.
- A ti e a Gwyneth, espero.
- Podes apostar, embora tenha esperança de que o bebé nasça durante a campanha. Isso vale uns mil votos, é o que diz Griff.
- És um charlatão, Giles Barrington.
- Não, sou um político a lutar por um lugar decidido por uma escassa maioria de votos e, se ganhar, penso que sou capaz de fazer parte do governo.
-
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Giles ficou agradavelmente surpreendido com a forma civilizada como correu a campanha para as eleições gerais, sobretudo porque Jeremy Fordyce, o seu adversário conservador,
um jovem inteligente da sede do partido, nunca deu a sensação de acreditar realmente que podia ganhar, e porque nunca se envolveu no tipo de práticas ilícitas a que Alex Fisher
recorrera quando era candidato.
Reginald Ellsworthy, o eterno candidato do Partido Liberal, só tinha um objetivo, aumentar a sua votação, e nem mesmo Lady Virgínia conseguiu desferir um golpe, baixo ou não,
possivelmente porque ainda estava a recuperar do knockout que Emma lhe infligira na assembleia-geral anual da Barrington's.
Por isso, ninguém pareceu surpreendido quando o secretário anunciou:
- Eu, o responsável pelo ato eleitoral para o círculo de Bristol Docklands, declaro que o número total de votos para cada um dos candidatos é o seguinte:
Sir Giles Barrington 21114
Senhor Reginald Ellsworthy 4109
Senhor Jeremy Fordyce 17 346
"Por conseguinte, declaro Sir Giles Barrington como o deputado devidamente eleito pelo círculo de Bristol Docklands.
Embora a votação no círculo eleitoral pudesse não ter sido renhida, a decisão quanto a quem deveria governar o país dava a ideia de estar
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em aberto até ao último minuto, para citar a grande personalidade da BBC, Robin Day. Na verdade, só depois do resultado final ter sido declarado em Mulgelrie, às 15h34 do
dia a seguir às eleições é que a nação se começou a preparar para o primeiro governo trabalhista desde o de Clement Attlee, treze anos antes.
Giles viajou para Londres no dia seguinte, mas não antes de ele, Gwyneth e o pequeno Walter Barrington, com apenas cinco semanas, terem feito um périplo pelo distrito eleitoral
para agradecer aos trabalhadores do partido por terem alcançado a maior maioria que Giles alguma vez conseguira.
"Boa sorte para segunda-feira" foi uma frase repetida vezes sem conta enquanto ele viajava pelo distrito eleitoral, pois toda a gente sabia que era nesse dia que o novo primeiro-ministro
ia decidir quem se juntaria a ele à volta da mesa do governo.
Giles passou o fim de semana a ouvir opiniões dos colegas pelo telefone e a ler as colunas de importantes correspondentes políticos, mas a verdade era que só um homem sabia
quem seria convidado, o resto era mera especulação.
Na segunda-feira de manhã, Giles viu na televisão quando Harold Wilson foi levado de carro ao palácio para a rainha lhe perguntar se conseguia formar governo. Passados quarenta
minutos, saiu como primeiro-ministro e foi levado a Downing Street, para poder convidar vinte e dois dos seus colegas para se lhe juntarem como membros do governo.
Giles ficou sentado à mesa do pequeno-almoço, a fingir ler os jornais matutinos quando não estava a olhar fixamente para o telefone, desejando que ele tocasse. Tocou por várias
vezes, mas de todas elas era um membro da família ou um dos seus amigos que queria dar-lhe os parabéns pelo reforço da maioria ou desejar-lhe boa sorte para ser convidado
a integrar o governo. Desocupem a linha, tinha ele vontade de dizer. Como é que o PM me pode ligar se a linha estiver sempre ocupada? E depois o telefonema chegou.
- Daqui fala do PBX do número dez, Sir Giles. O primeiro-ministro queria saber se seria possível vir ter com ele ao número dez às três e meia desta tarde.

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Pode ser que consiga arranjar um buraquinho na agenda, foi o que lhe apeteceu dizer.
- Sim, é claro - disse, e desligou o telefone. Três e meia corresponderia a que lugar na hierarquia?
Se fosse às dez horas, podia ser chanceler do Tesouro, ministro dos Negócios Estrangeiros ou ministro do Interior. Esses cargos já tinham sido preenchidos por Jim Callaghan,
Patrick Gordon Walker e Frank Soskice. Meio-dia: Educação, Michael Stewart, e Emprego, Barbara Castle. Três e meia ficava na fronteira. Faria parte do governo ou esperariam
que cumprisse um período probatório como ministro-adjunto?
Giles teria preparado alguma coisa para almoçar se o telefone tivesse parado de tocar por alguns instantes. Colegas a ligar para lhe dizer qual o cargo com que tinham ficado,
colegas a ligar para dizer que o PM ainda não lhes tinha telefonado, e colegas que queriam saber a que horas é que o PM tinha pedido para o receber. Nenhum deles parecia saber
exatamente o que é que as três e meia significavam.
Como o sol brilhava no rescaldo da vitória trabalhista, Giles decidiu ir a pé até ao número 10. Saiu do seu apartamento em Smith Square logo a seguir às três horas, foi até
ao Embankment e passou pela Câmara dos Lordes e Comuns a caminho de Whitehall. Atravessou a rua quando o Big Ben tocou o quarto de hora e continuou o seu caminho, passando
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth antes de virar para Downing Street. Foi saudado por uma matilha ruidosa de pit bull terriers, presos atrás de barreiras
improvisadas.
- Que cargo espera ocupar? - gritou um deles.
Quem me dera saber, era o que Giles tinha vontade de dizer, ao mesmo tempo que flashes infindáveis o deixavam quase cego.
- Espera fazer parte do governo, Sir Giles? - quis saber outro. Claro que sim, seu idiota! Mas os seus lábios não se mexeram.
- Quanto tempo acha que o governo consegue sobreviver com uma maioria tão pequena?
Não muito, embora não quisesse admiti-lo.
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Continuaram a fazer-lhe perguntas enquanto subia Downing Street, apesar de todos os jornalistas saberem que não iam obter qualquer resposta à entrada e não muito mais do que
um aceno e talvez um sorriso à saída.
Giles estava a cerca de três passos da porta principal quando esta se abriu e ele entrou no número 10 de Downing Street pela primeira vez na vida.
- Bom dia, Sir Giles - disse o secretário do Gabinete, como se nunca estivessem estado juntos antes. - O primeiro-ministro está com um dos seus colegas neste momento, por
isso talvez possa aguardar na antecâmara até ele ficar livre.
Giles percebeu que Sir Alan já sabia qual o cargo que estava prestes a ser-lhe oferecido, mas daquele mandarim impenetrável nem um movimento de sobrancelha saiu antes de seguir
o seu caminho.
Giles sentou-se na pequena antecâmara onde Wellington e Nelson se tinham supostamente sentado, à espera de serem recebidos por William Pitt, o Novo, sem que nenhum deles se
desse conta de quem o outro era. Esfregou as mãos nas pernas das calças, embora soubesse que não ia apertar a mão ao primeiro-ministro, já que, tradicionalmente, os colegas
parlamentares nunca o fazem. A única coisa que batia mais alto do que o seu coração era o relógio por cima da lareira. Finalmente, a porta abriu-se e Sir Alan voltou a aparecer.
A única coisa que ele disse foi:
- O primeiro-ministro vai recebê-lo agora.
Giles pôs-se em pé e iniciou aquilo que é conhecido como a longa caminhada para a forca.
Quando entrou na Sala do Governo, Harold Wilson estava sentado a meio de uma mesa oval rodeada por vinte e duas cadeiras vazias. Assim que viu Giles, levantou-se do seu lugar,
por baixo de um retrato de Robert Peei, e disse:
- Grande resultado em Bristol Docklands, Giles, muito bem!
- Obrigado, primeiro-ministro - disse Giles, revertendo para a tradição de deixar de tratá-lo pelo primeiro nome.
- Venha sentar-se - disse Wilson enquanto enchia o cachimbo. Giles preparava-se para se sentar ao lado do primeiro-ministro
quando este disse:

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- Não, aqui não. Esse é o lugar do George; talvez um dia, mas não hoje. Porque é que não se senta ali? - disse ele, apontando para uma cadeira de costas estofadas a pele verde,
na outra ponta da mesa. - No fim de contas, é aí que se senta o ministro para os Assuntos Europeus todas as quintas-feiras, quando o governo reúne.
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- Pensa só na quantidade de coisas que podem correr mal - disse Emma, ao mesmo tempo que andava de um lado para o outro no quarto.
- Porque é que não te concentras antes na quantidade de coisas que podem correr bem? - disse Harry. - E segue o conselho de Grace, tenta relaxar e tratar esta experiência
como umas férias.
- Tenho tanta pena que ela não venha connosco na viagem!
- Grace nunca iria tirar duas semanas de férias durante um período letivo de oito semanas.
- Parece que Giles consegue.
- Só uma semana - recordou-lhe Harry - e foi muito engenhoso, pois tenciona visitar as Nações Unidas enquanto estiver em Nova Iorque e depois ir a Washington conhecer o seu
homólogo.
- Deixando Gwyneth e o bebé em casa.
- Uma decisão sensata, dadas as circunstâncias. Não seriam umas grandes férias para nenhum deles, com o pequeno Walter a berrar noite e dia.
- Tens a mala feita e estás pronto para partir? - perguntou Emma.
- Sim, senhora presidente, já há algum tempo. Emma riu-se e abraçou-o.
- Às vezes, esqueço-me de te dizer obrigada.
- Não te ponhas com sentimentalismos. Ainda tens uma coisa para fazer, portanto o melhor é irmos andando, não?
Emma parecia desejosa de se ir embora, apesar de isso significar que iriam esperar horas a bordo até o capitão dar ordem para soltar as

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amarras e zarpar para Nova Iorque. Harry admitiu que ainda seria pior se ficassem em casa.
- Olha-me bem para ele! - disse Emma com orgulho quando o carro entrou no cais e o Buckingham apareceu à frente deles.
- Sim, é uma visão verdadeiramente histérica.
- Oh, por favor! - disse Emma. - Será que alguma vez vou conseguir que se esqueçam disso?
- Espero bem que não - disse Harry.
- É tão emocionante - disse Sam quando Sebastian saía da A4 e seguia os sinais para as docas. - Nunca estive num paquete transatlântico.
- E não é um paquete qualquer - disse Sebastian. - Tem convés superior, cinema, dois restaurantes e uma piscina. É mais uma espécie de cidade flutuante.
- Parece estranho ter uma piscina quando estamos rodeados de água.
- Agua, água por todo o lado.
- Outro dos teus poetas ingleses menores? - indagou Sam.
- E vocês têm algum grande poeta americano?
- Temos um que escreveu um poema com que podias aprender qualquer coisa: As alturas alcançadas e mantidas pelos grandes homens não foram logradas num voo repentino. Pelo contrário,
enquanto os seus companheiros dormiam, eles iam subindo penosamente durante a noite.
- Quem escreveu isso? - perguntou Sebastian.
- Quantos dos nossos homens já se encontram a bordo? - perguntou Lord Glenarthur, tentando ser fiel à personagem enquanto o carro saía de Bristol e se dirigia para o porto.
- Três carregadores e dois empregados de mesa, um no restaurante de grelhados, um na segunda classe e um moço de recados.
- Podemos confiar neles para ficarem de boca fechada se forem interrogados ou submetidos a uma grande pressão?
- Dois dos carregadores e um dos empregados de mesa foram escolhidos a dedo. O moço de recados só vai estar a bordo durante
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alguns minutos e, depois de ter entregado as flores, regressa a Belfast a toda a velocidade.
- Depois de nos termos registado, Brendan, vem à minha cabina às nove horas. Por essa altura, a maior parte dos passageiros de primeira classe estará a jantar, o que nos dará
tempo mais do que suficiente para montar o equipamento.
- O problema não é montá-lo - disse Brendan. - O que me preocupa é como é que vamos pôr aquela grande arca a bordo sem ninguém ficar desconfiado.
- Dois dos carregadores sabem a matrícula deste carro - disse o motorista - e vão estar à nossa espera.
- Como é que está o meu sotaque? - perguntou Glenarthur.
- Conseguias enganar-me, mas eu não sou um cavalheiro inglês. E esperemos que não haja ninguém a bordo que tenha conhecido realmente Lord Glenarthur.
- É pouco provável. Ele tem mais de oitenta anos e não é visto em público desde que a mulher morreu, há dez anos.
- Ele não é parente distante dos Barrington? - perguntou Brendan.
- Foi por isso que o escolhi. Se o SAS tiver alguém a bordo, irá consultar o Quem éQuem e presumir que eu faço parte da família.
- E se te cruzares com um membro da família?
- Não me vou cruzar com nenhum deles. Vou sim acabar com todos. - O motorista riu-se. - Bem, diz-me lá como é que entro na minha outra cabina depois de ter premido o botão.
- Dou-te a chave às nove horas. Lembras-te onde fica a casa de banho pública no convés número seis? E aí que vais ter de trocar de roupa quando abandonares a tua cabina.
- Fica ao fundo da sala de estar da primeira classe. A propósito, meu velho, diz-se lavabos e não casa de banho - disse Lord Glenarthur. - Esse é o tipo de erro simples que
pode fazer com que me apanhem. Não te esqueças, este navio é típico da sociedade inglesa. As classes altas não se misturam com os passageiros que viajam em segunda classe
e estes não pensariam em conversar com os que vão em turística. Por isso, é capaz de não ser assim tão fácil contactar um com o outro.

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- Mas eu li que este é o primeiro paquete com um telefone em cada quarto - disse Brendan -, por isso, se houver uma emergência, marca setecentos e doze. Se eu não atender,
o nosso empregado de mesa que está no restaurante de grelhados chama-se Jimmy, e ele...
O coronel Scott-Hopkins não estava a olhar na direção do Buckingham. Ele e os seus colegas estavam a perscrutar a multidão que estava no cais, à procura de algum sinal de
uma presença irlandesa. Até agora, não tinha visto ninguém que reconhecesse. O capitão Hartley e o sargento Roberts, que tinham estado ambos na Irlanda do Norte com o SAS,
também não tinham tido melhor sorte. Foi o cabo Crann quem o viu.
- Às quatro horas, sozinho, atrás da multidão. Não está a olhar para o barco, apenas para os passageiros.
- O que diabo está ele a fazer aqui?
- Talvez o mesmo que nós, a procurar alguém. Mas quem?
- Não sei - disse Scott-Hopkins -, mas, Crann, não o percas de vista e se ele falar com alguém ou tentar subir a bordo, quero saber de imediato.
- Sim, senhor - disse Crann, que começou a abrir caminho por entre a multidão em direção ao seu alvo.
- Às seis horas - disse o capitão Hartley. O coronel mudou o foco da sua atenção.
- Oh, meu Deus, era só o que nos faltava...
- Quando eu sair do carro, Brendan, esgueira-te e parte do princípio de que há gente à tua procura entre a multidão - disse Lord Glenarthur. - E certifica-te de que estás
na minha cabina às nove da noite.
- Acabei de ver Cormac e Declan - disse o motorista. Fez um sinal de luzes e eles apressaram-se a ir ao seu encontro, ignorando vários outros passageiros que precisavam de
ajuda.
- Não saias do carro - disse Glenarthur ao motorista. Foram precisos os dois carregadores para tirar a pesada arca do porta-bagagens e depositá-la num carrinho tão suavemente
como se estivessem
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a lidar com um recém-nascido. Depois de um deles ter fechado a mala do carro, Glenarthur disse:
- Quando regressares a Londres, Kevin, mantém o número quarenta e quatro de Eaton Square debaixo de olho. Agora que Martinez vendeu o Rolls-Royce, tenho a sensação de que
é capaz de se pôr a andar. - Virou-se novamente para Brendan. - Até logo, às nove --acrescentou, e depois saiu do carro e misturou-se com a multidão.
- Quando é que devo entregar os lírios? - sussurrou um jovem que tinha aparecido ao lado de Lord Glenarthur.
- Cerca de trinta minutos antes de o navio soltar amarras. Depois, certifica-te de que não voltamos a pôr-te a vista em cima, a menos que seja em Belfast.
Don Pedro pôs-se atrás da multidão e viu um carro conhecido parar a alguma distância do navio.
Não ficou surpreendido ao ver que o motorista não saía do carro quando um par de carregadores apareceram do nada, abriram a mala e tiraram uma arca pesada para um carrinho
e começaram a empurrá-lo lentamente em direção ao navio. Dois homens, um idoso e outro de trinta e tal anos, que Don Pedro nunca tinha visto antes, supervisionaram a descarga
da bagagem, enquanto conversavam com os carregadores. Don Pedro olhou em volta à procura do outro homem, mas ele já tinha desaparecido no meio da multidão.
Passados instantes, o carro deu meia-volta e afastou-se. Normalmente, os motoristas abrem a porta de trás aos seus passageiros, ajudam a descarregar a bagagem e depois aguardam
por novas instruções. Mas não este, que obviamente não queria ficar por ali tempo suficiente para o reconhecerem, sobretudo com um tão grande contingente policial no cais.
Don Pedro tinha a certeza de que o que quer que o IRA tivesse planeado, era mais provável acontecer durante a viagem do que antes da partida do Buckingham. Quando o carro
desapareceu, Don Pedro juntou-se a uma longa fila e esperou por um táxi. Já não tinha motorista nem carro. Ainda estava a remoer no valor que lhe tinham pago pelo Rolls-Royce,
depois de ter insistido em receber em dinheiro vivo.

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Por fim, lá chegou ao princípio da fila e pediu ao taxista que o levasse à estação de Temple Meads. No comboio de regresso a Paddington, pensou no que tinha planeado para
o dia seguinte. Não tinha intenção de pagar a segunda prestação de £250 000, quanto mais não fosse porque não tinha esse dinheiro. Ainda tinha pouco mais de £23 000 no cofre
e outras quatro mil da venda do Rolls. Pensava que se conseguisse sair de Londres antes de o IRA cumprir a sua parte do acordo, era pouco provável que o seguissem até Buenos
Aires.
- Era ele? - perguntou o coronel.
- Era capaz de ser, mas não tenho a certeza - respondeu Hartley. - Há por aí muitos motoristas com bonés de pala e óculos escuros e quando me consegui aproximar o suficiente
para ver bem, ele já ia em direção ao portão.
- Viste quem é que desceu do carro?
- Olhe à sua volta. Pode ser qualquer um entre as centenas de passageiros que estão a embarcar - disse Hartley, ao mesmo tempo que alguém roçava pelo coronel ao passar.
- Peço imensa desculpa - disse Lord Glenarthur, levantando o chapéu e sorrindo para o coronel antes de subir a rampa e embarcar no navio.
- Bela cabina - disse Sam enquanto saía do duche embrulhada numa toalha. - Pensaram em tudo o que uma rapariga precisa.
- Isso é porque a minha mãe inspecionou todos os quartos.
- Todos? - disse Sam, incrédula.
- Podes crer. É uma pena que ela não tenha pensado em tudo o que um rapaz precisa.
- O que mais podias querer?
- Uma cama de casal, para começar. Não achas que é um bocadinho cedo na nossa relação para dormir em camas separadas?
- Para de te queixar, Seb, basta juntar as duas.
- Quem me dera que fosse assim tão fácil, mas elas estão presas ao chão!
392

- Então porque é que não tiras os colchões - disse ela, falando muito devagarinho -, pões um ao lado do outro e dormimos no chão?
- Também já tentei, e mal há espaço para pôr um no chão, quanto mais dois!
- Se ao menos ganhasses o suficiente para ter uma cabina na primeira classe, isso já não seria problema - disse ela com um suspiro exagerado.
- Quando ganhar para isso, provavelmente já dormimos em camas separadas.
- Nem pensar - disse Sam, deixando cair a toalha no chão.
- Boa noite, senhor, o meu nome é Braithwaite e sou o chefe dos assistentes de bordo neste convés. Permita-me que lhe diga que é um prazer tê-lo a bordo. Se precisar de alguma
coisa, de noite ou de dia, é só agarrar no telefone, marcar cem, e alguém virá de imediato.
- Obrigado, Braithwaite.
- Quer que desfaça as suas malas enquanto estiver a jantar, senhor?
- Não, é muito gentil, mas tive uma viagem muito cansativa desde a Escócia, por isso acho que vou descansar e provavelmente nem vou jantar.
- Como queira, senhor.
- Na verdade - disse Lord Glenarthur, tirando uma nota de cinco libras da carteira -, gostava que garantisse que não sou incomodado antes de amanhã de manhã, às sete, quando
gostaria que me trouxessem um chá e torradas com doce de laranja.
- Pão de centeio ou trigo, senhor?
- Centeio seria ótimo, Braithwaite.
- Vou pôr o sinal Não Incomodar na sua porta e deixá-lo descansar. Boa noite, senhor.
Os quatro encontraram-se na capela do navio pouco depois de se terem registado nas respetivas cabinas.

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- Não me parece que consigamos dormir muito durante os próximos dias - disse Scott-Hopkins. - Depois de ver aquele carro, temos de presumir que há uma célula do IRA a bordo.
- Porque é que o IRA havia de estar interessado no Buckingham, quando têm problemas suficientes no seu país? - perguntou o cabo Crann.
- Porque se conseguissem concretizar um golpe como afundar o Buckingham, isso iria desviar a atenção de toda a gente desses problemas nacionais.
- Com certeza que não está a pensar... - começou Hartley.
- É sempre melhor estarmos à espera do pior cenário possível e presumir que é isso que eles têm em mente.
- Onde é que iam buscar o dinheiro para financiar uma operação como esta?
- Ao homem que viste no cais.
- Mas ele não embarcou e apanhou o comboio de regresso a Londres - disse Roberts.
- E tu embarcavas, se soubesses o que eles tinham planeado?
- Se ele só está interessado nas famílias Barrington e Clifton, isso pelo menos sempre reduz o alvo, pois eles estão todos no mesmo convés.
- Não é verdade - disse Roberts. - Sebastian Clifton e a namorada estão na cabina setecentos e vinte e oito. Também podem ser um alvo.
- Não me parece - disse o coronel. - Se o IRA matasse a filha de um diplomata americano, podem ter a certeza de que quaisquer fundos vindos dos Estados Unidos acabariam de
um dia para o outro. Creio que nos devemos concentrar nas cabinas de primeira classe do convés número um, porque, se eles conseguissem matar a senhora Clifton, juntamente
com um ou dois membros da sua família, o Buckingham não estaria apenas a fazer a sua viagem inaugural, mas também a sua última viagem. Com isso em mente - continuou o coronel
-, enquanto durar a viagem vamos fazer uma patrulha com turnos de quatro horas. Hartley, tu cobres as cabinas de primeira classe até às duas da manhã. A seguir, eu rendo-te
e acordo-te antes das seis. Crann e Roberts podem fazer os mesmos turnos na segunda classe, pois penso que será aí que vamos encontrar a célula.
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- Estamos à procura de quantas pessoas? - perguntou Crann.
- Devem ter pelo menos três ou quatro operacionais a bordo, a fazer-se passar por passageiros ou membros da tripulação. Portanto, se descobrirem alguém que tenham visto nas
ruas da Irlanda do Norte, não será coincidência. E tratem de me avisar de imediato. O que me faz lembrar de outra coisa: descobriram os nomes dos passageiros que reservaram
as últimas duas cabinas de primeira classe no convés número um?
- Sim, senhor - disse Hartley. - O senhor e a senhora Asprey, cabina número cinco.
- A loja onde não deixo a minha mulher entrar, a não ser que seja com outro homem.
- E Lord Glenarthur está na cabina número três. Procurei-o no Quem éQuem. Tem oitenta e quatro anos e era casado com a irmã de Lord Harvey, por isso deve ser tio-avô da presidente.
- Porque é que ele tem um sinal de Não Incomodar na porta? - perguntou o coronel.
- Disse ao comissário que estava exausto depois da longa viagem desde a Escócia.
- A sério? - disse o coronel. - Mesmo assim, é melhor mantê-lo debaixo de olho, embora não imagine que utilidade é que o IRA encontraria num velho de oitenta e quatro anos.
A porta abriu-se e todos se viraram para ver o capelão entrar. Ele sorriu cordialmente para os quatro homens, que estavam ajoelhados a segurar os livros de orações.
- Posso ajudar? - perguntou ele, enquanto percorria a nave lateral em direção a eles.
- Não, obrigado, padre - disse o coronel. - Estávamos mesmo de saída.
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- Preciso de vestir smoking esta noite? - perguntou Harry depois de terem acabado de desfazer as malas.
- Não, o traje recomendado é sempre informal na primeira e última noites.
- E o que é que isso significa, já que parece mudar a cada geração?
- Para ti, fato e gravata.
- Vem alguém jantar connosco? - perguntou Harry enquanto tirava o seu único fato do roupeiro.
- Giles, Seb e Sam, por isso é só família.
- Então a Sam agora é considerada família?
- Seb parece achar que sim.
- Então é um rapaz cheio de sorte. Embora deva confessar que estou ansioso por conhecer melhor Bob Bingham. Espero jantar com ele e com a mulher numa das noites. Como é que
ela se chama?
- Priscilla. Mas aviso-te já que não podiam ser mais diferentes.
- O que queres dizer com isso?
- Não vou dizer nada até a conheceres, e depois podes julgar por ti mesmo.
- Parece intrigante, embora o "aviso-te já" deva ser uma pista. De qualquer forma, já decidi que Bob vai figurar em várias páginas do meu próximo livro.
- Como herói ou vilão?
- Ainda não decidi.
- Qual é o tema? - perguntou Emma enquanto abria a porta do roupeiro.
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- William Warwick e a mulher estão de férias a bordo de um luxuoso paquete.
- E quem assassina quem?
- O pobre marido oprimido da presidente da companhia de navegação assassina a mulher e foge com a cozinheira do navio.
- Mas William Warwick resolveria o crime muito antes de terem aportado, e o marido malvado ia passar o resto da vida na prisão.
- Não, não ia - disse Harry, enquanto escolhia qual das duas gravatas ia usar ao jantar. - Warwick não tem autoridade para o prender a bordo do navio, por isso o marido safa-se.
- Mas se fosse um navio inglês, o marido estaria sujeito à lei inglesa.
- Ah, aí é que está! Por razões fiscais, a embarcação navega com bandeira de conveniência, neste caso Libéria, por isso a única coisa que ele tem de fazer é subornar o chefe
da polícia local e o caso nunca chega a tribunal.
- Brilhante - disse Emma. - Porque é que não pensei nisso? Resolveria todos os meus problemas.
- Estás a dizer que se eu te assassinasse, isso ia resolver todos os teus problemas?
- Não, idiota! Mas não ter de pagar impostos era capaz... Acho que vou levar-te para o conselho de administração.
- Se fizesses isso, matava-te - disse Harry tomando-a nos braços.
- Uma bandeira de conveniência - repetiu Emma. - Pergunto-me como é que o conselho iria reagir a essa ideia. - Tirou dois vestidos do armário e segurou-os no ar. - Qual deles,
o vermelho ou o preto?
- Pensei que tinhas dito que era traje informal.
- Para a presidente, nunca é informal - disse ela, ao mesmo tempo que alguém batia à porta.
- Claro que não - disse Harry. Foi abrir a porta e deparou-se com o chefe dos comissários.
- Boa noite, senhor. Sua Majestade, a rainha Isabel, a rainha-mãe, mandou flores para a senhora presidente - disse Braithwaite, como se fosse coisa que acontecesse todos os
dias.

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- Lírios, sem dúvida - disse Harry.
- Como é que sabias? - perguntou Emma quando um jovem bem constituído entrou no quarto com uma grande jarra de lírios.
- Foram as primeiras flores que o duque de York lhe deu, muito antes de ela se tornar rainha.
- Faça o favor de as pôr em cima da mesa, ao centro da cabina - disse Emma ao jovem, enquanto via o cartão que tinha vindo com as flores. Preparava-se para lhe agradecer,
mas ele já se tinha ido embora.
- O que é que diz o cartão? - perguntou Harry.
- Obrigada por um dia memorável em Bristol. Espero que a viagem inaugural da minha segunda casa seja um sucesso.
- Sabe-a toda! - disse Harry.
- Foi muito atencioso da parte dela - disse Emma. - Não creio que as flores durem muito além de Nova Iorque, Braithwaite, mas gostaria de ficar com a jarra. Uma espécie de
recordação.
- Posso substituir os lírios enquanto estiver em Nova Iorque, senhora presidente.
- É muito amável, Braithwaite. Obrigada.
- Emma disse-me que queres ser o próximo presidente do conselho de administração - disse Giles, sentando-se no bar.
- De que conselho de administração é que a minha mãe estava a falar? - perguntou Sebastian.
- Presumi que fosse do da Barrington's.
- Não, acho que a minha mãe ainda tem muito para dar. Mas se ela me pedisse, era capaz de considerar a possibilidade de fazer parte do conselho.
- É muito atencioso da tua parte - disse Giles enquanto o barman punha um uísque com soda à frente dele.
- Não, estou mais interessado no Farthings.
- Não achas que, com vinte e quatro anos, és capaz de ser um bocadinho novo para ser presidente de um banco?
- Provavelmente tem razão e é por isso que ando a tentar persuadir o senhor Hardcastle a não se reformar antes dos setenta.
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- Mas mesmo assim só terias vinte e nove.
- São mais quatro anos do que o tio tinha quando foi pela primeira vez para o Parlamento.
- É verdade, mas só me tornei ministro aos quarenta e quatro.
- Só porque se juntou ao partido errado. Giles riu-se.
- Talvez ainda acabes no Parlamento, um dia, Seb.
- Se isso acontecer, tio Giles, terá de olhar para o outro lado se quiser ver-me, porque eu estarei sentado nas bancadas opostas. E, de qualquer forma, pretendo fazer fortuna
antes de pensar em pisar esse terreno particularmente escorregadio.
- E quem é esta bela criatura? - perguntou Giles, descendo do seu banco quando Sam se lhes juntou.
- Esta é Sam, a minha namorada - disse Sebastian, incapaz de disfarçar o seu orgulho.
- Podias ter escolhido melhor - disse Giles, sorrindo para ela.
- Eu sei - disse Sam -, mas uma pobre imigrante não pode armar-se em esquisita.
- És americana - disse Giles.
- Sim. Creio que conhece o meu pai, Patrick Sullivan.
- Conheço o Pat, sim senhor, e tenho-o em alta conta. Na verdade, sempre pensei que Londres não passava de um ponto de passagem na sua já brilhante carreira.
- É exatamente o que sinto em relação a Sebastian - disse Sam, dando-lhe a mão. Giles riu-se, ao mesmo tempo que Emma e Harry entravam no restaurante de grelhados.
- Qual é a piada? - perguntou Emma.
- Sam acabou de pôr o vosso filho no seu devido lugar. Era capaz de casar com esta rapariga pelo seu expediente - disse Giles, fazendo uma vénia a Sam.
- Oh, não acho Sebastian nada parecido com Sir Toby Belch - disse Sam. - Agora que penso nisso, ele é mais como Sebastian.
- Eu também era - disse Emma.
- Não - disse Harry. - Também eu era. E não pedia outro dote, para além de mais um truque como este.
- Estou perdido - disse Sebastian.

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- Como disse, Sam, podias ter escolhido melhor. Mas tenho a certeza de que explicas tudo a Sebastian, mais tarde. A propósito, Emma - disse Giles -, que vestido espetacular!
O vermelho favorece-te.
- Obrigada, Giles. Amanhã, vou usar azul, por isso vais ter de pensar noutra deixa.
- Posso arranjar-lhe uma bebida, senhora presidente? - brincou Harry, que estava desesperado por beber um gim tónico.
- Não, obrigada, querido, estou faminta, por isso é melhor sentarmo-nos.
Giles piscou o olho a Harry.
- Quando tinhas doze anos, avisei-te para evitares as mulheres, mas tu preferiste ignorar o meu conselho.
Enquanto se dirigiam para uma mesa ao meio da sala, Emma parou para conversar com Ross e Jean Buchanan.
- Vejo que conseguiu recuperar a sua esposa, Ross. E o carro?
- Quando regressei a Edimburgo, alguns dias mais tarde - disse Ross, levantando-se do lugar -, estava enfiado num parque de veículos rebocados pela polícia. Recuperá-lo custou-me
uma fortuna.
- Não tanto como isto - disse Jean, tocando num colar de pérolas.
- Um presente para me livrar de apuros - explicou Ross.
- E ao mesmo tempo também livrou a companhia de apuros - disse Emma - pelo que lhe estou eternamente grata.
- Não me agradeça - disse Ross -, agradeça a Cedric.
- Quem me dera que ele pudesse ter vindo connosco nesta viagem - disse Emma.
- Estava à espera de um rapaz ou de uma rapariga? - perguntou Sam, enquanto o chefe de mesa lhe puxava uma cadeira.
- Não dei opção a Gwyneth - disse Giles. - Disse-lhe que tinha de ser um rapaz.
- Porquê?
- Puramente por razões práticas. Uma rapariga não pode herdar o título da família. Em Inglaterra, tudo é transmitido pela linha masculina.
400

- Mas que arcaico - disse Sam. - E eu que sempre pensei que os britânicos eram uma raça tão civilizada!
- Não no que toca à primogenitura - disse Giles. Os três homens levantaram-se dos seus lugares quando Emma chegou à mesa.
- Mas a senhora Clifton é a presidente do conselho de administração da Barrington's.
- E temos uma rainha no trono. Mas não te preocupes, Sam, vamos acabar por derrotar esses velhos reacionários.
- Não se o meu partido voltar ao poder - disse Sebastian.
- No dia em que os dinossauros voltarem à terra - disse Giles, olhando para ele.
- Quem disse isso? - perguntou Sam.
- O homem que me derrotou.
Brendan não bateu à porta, limitou-se a rodar a maçaneta e a esgueirar-se lá para dentro, olhando para trás enquanto o fazia, para ter a certeza de que ninguém o tinha visto.
Não queria ter de explicar o que é que um homem jovem da segunda classe estava a fazer no quarto de um par do reino idoso àquela hora da noite. Não que alguém fosse tecer
comentários.
- Há hipótese de sermos interrompidos? - perguntou Brendan depois de ter fechado a porta.
- Ninguém nos irá incomodar antes das sete da manhã, e nessa altura já não haverá ninguém para incomodar.
- Ótimo - disse Brendan. Pôs-se de joelhos, abriu a grande arca, levantou a tampa e estudou a máquina complexa que tinha levado mais de um mês a construir. Passou a meia hora
seguinte a verificar que não havia fios soltos, que cada mostrador estava devidamente programado e que o relógio começava a contar quando se acionava um interruptor. Só quando
comprovou que estava tudo a funcionar na perfeição é que se voltou a levantar.
- Está tudo pronto - disse ele. - Quando é que o queres ativado?
- Três da manhã. E vou precisar de trinta minutos para tirar isto tudo - acrescentou Glenarthur, tocando no seu duplo queixo - e ainda ter tempo suficiente para chegar à minha
outra cabina.

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Brendan regressou à arca e programou o temporizador para as três horas.
- A única coisa que precisas de fazer é acionar o interruptor antes de te ires embora e verificar se o ponteiro dos segundos está a andar.
- Então e o que é que pode correr mal?
- Se os lírios ainda estiverem na cabina dela, nada. Ninguém neste corredor, e provavelmente ninguém no convés por baixo, conseguirá sobreviver. Há quase três quilos de dinamite
enfiados na terra por baixo daquelas flores, muito mais do que precisamos, mas dessa forma temos a certeza de conseguir o nosso dinheiro.
- Tens a minha chave?
- Sim - disse Brendan. - Cabina setecentos e seis. O passaporte novo e o bilhete estão debaixo da almofada.
- Há mais alguma coisa com que me deva preocupar?
- Não. Certifica-te apenas de que o ponteiro dos segundos está a andar antes de te ires embora.
Glenarthur sorriu.
- Vemo-nos em Belfast. E se acabarmos no mesmo barco salva-vidas, ignora-me.
Brendan acenou afirmativamente, foi até à porta e abriu-a lentamente. Espreitou para o corredor. Nem sinal de haver alguém a regressar às cabinas depois de jantar. Caminhou
rapidamente até ao fim do corredor e abriu uma porta que dizia Usar apenas em caso de emergência. Fechou a porta devagarinho atrás de si e desceu os barulhentos degraus metálicos.
Não passou por ninguém na escada. Daí a cerca de cinco horas, aqueles degraus estariam cheios de gente em pânico, a perguntar-se se o barco teria batido num icebergue.
Quando chegou ao convés número sete, abriu a porta de emergência e voltou a espreitar. Ninguém à vista. Percorreu o corredor estreito e voltou à sua cabina. Havia algumas
pessoas a voltar para os seus quartos depois de jantar, mas ninguém mostrou o mínimo interesse nele. Ao longo dos anos, Brendan tinha transformado o anonimato numa forma de
arte. Abriu a porta da sua cabina e depois de estar lá dentro deixou-se cair em cima da cama: o trabalho estava feito. Olhou para o relógio: 21h50. Ia ser uma longa espera.
402

- Alguém entrou à socapa na cabina de Lord Glenarthur pouco depois das nove - disse Hartley -, mas ainda não o vi sair.
- Podia ser o comissário de bordo.
- É pouco provável, coronel, porque havia uma placa de Não incomodar na porta e, de qualquer forma, quem quer que fosse nem sequer bateu. Na verdade, entrou como se fosse
a sua própria cabina.
- Então, é melhor vigiar essa porta e, se alguém sair, certifica-te de que não perdes a pessoa de vista. Vou ter com Crann, na segunda classe, e ver se ele tem alguma coisa
a reportar. Se não tiver, vou tentar dormir umas horinhas. Venho render-te às duas. Se acontecer alguma coisa que te deixe dúvidas, não hesites em acordar-me.
- Então, o que é que tens planeado para nós quando chegarmos a Nova Iorque? - perguntou Sebastian.
- Só vamos estar na Grande Maçã durante trinta e seis horas - respondeu Sam. - Por isso, não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar um minuto que seja. De manhã, vamos visitar
o Metropolitan Museum, seguido de um passeio enérgico por Central Park e depois vamos almoçar ao Sardi's. A tarde, vamos à Frick e à noite o meu pai arranjou-nos dois bilhetes
para Hello, Dolly!, com Carol Channing.
- Então, não há tempo para fazer compras?
- Deixo-te subir e descer a Quinta Avenida, mas só para ver as montras. Tu nem dinheiro tens para uma caixa da Tiffany, quanto mais para aquilo que eu esperaria que pusesses
lá dentro. Mas se quiseres uma recordação da tua visita, vamos ao Macy's na West Thirty-fourth Street, onde podes escolher entre uns mil artigos a menos de um dólar.
- Parece estar dentro das minhas possibilidades. A propósito, o que é a Frick?
- A galeria de arte favorita da tua irmã.
- Mas Jessica nunca visitou Nova Iorque.
- Isso não a impediria de conhecer todos os quadros em todas as salas. Vais ver o seu preferido de todos os tempos.

403
- Vermeer, Rapariga interrompida na sua música.
- Nada mal - disse Sam.
- Mais uma pergunta, antes de apagar a luz. Quem é Sebastian?
- Não é Viola.
- Sam é uma rapariga e tanto, não é? - disse Emma enquanto ela e Harry saíam do restaurante e voltavam a subir a grandiosa escadaria até à sua cabina no convés da primeira
classe.
- E Seb pode agradecer a Jessica por isso - disse Harry, dando-lhe a mão.
- Quem me dera que ela estivesse connosco nesta viagem. Por esta altura, já teria desenhado toda a gente, desde o capitão na sua ponte a Braithwaite, a servir o chá, e até
Perseus.
Harry franziu o sobrolho enquanto percorriam o corredor em silêncio. Não passava um dia sem que ele se recriminasse por não ter contado a Jessica quem era o seu pai.
- Cruzaste-te com o cavalheiro que está na cabina número três? - perguntou Emma, interrompendo-lhe os pensamentos.
- Lord Glenarthur? Não, mas vi o nome dele na lista de passageiros.
- Poderá ser o mesmo Lord Glenarthur que era casado com a minha tia-avó Isobel?
- Possivelmente. Estivemos uma vez com ele no castelo do teu avô, na Escócia. Um homem tão gentil. Já deve ter bem mais de oitenta anos.
- Porque é que ele terá decidido vir na viagem inaugural sem nos dizer nada?
- Provavelmente, não quis incomodar-te. Vamos convidá-lo para jantar amanhã à noite. No fim de contas, é o último elo com aquela geração.
- Boa ideia, meu querido - disse Emma. - Amanhã de manhã, a primeira coisa que vou fazer é escrever-lhe um bilhete e enfiá-lo por baixo da porta. - Harry abriu a porta da
cabina e afastou-se para o lado para a deixar entrar.
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- Estou exausta - disse Emma, inclinando-se para cheirar os lírios. - Não sei como é que a rainha-mãe consegue fazer isto dia sim, dia não.
- É o que ela faz, e é boa nisso, mas aposto que estaria exausta se tentasse ser presidente da Barrington's durante alguns dias.
- Mesmo assim, prefiro o meu trabalho ao dela - disse Emma enquanto tirava o vestido e o pendurava no roupeiro antes de desaparecer na casa de banho.
Harry leu uma vez mais o cartão de SAR, a rainha-mãe. Uma mensagem tão pessoal... Emma já decidira pôr a jarra no seu gabinete quando regressassem a Bristol e enchê-la de
lírios todas as segundas-feiras de manhã. Harry sorriu. E porque não?
Quando Emma saiu da casa de banho, Harry ocupou o lugar dela e fechou a porta atrás de si. Ela despiu o roupão e enfiou-se na cama, demasiado cansada para pensar sequer em
ler umas páginas de O Espião que Saiu do Frio, de um autor novo que Harry lhe recomendara. Apagou a luz da sua mesa de cabeceira e disse "Boa noite, querido", embora soubesse
que Harry não a podia ouvir.
Quando Harry saiu da casa de banho, já ela estava a dormir profundamente. Ele aconchegou-a como se ela fosse uma criança, beijou-lhe a fronte e sussurrou "Boa noite, minha
querida", depois subiu para a sua cama, divertido com o seu suave ronronar. Nunca se teria atrevido a insinuar que ela ressonava.
Ficou acordado, imensamente orgulhoso dela. O lançamento à água não podia ter corrido melhor. Virou-se para o seu lado, presumindo que adormeceria dentro de momentos, mas,
embora sentisse as pálpebras pesadas e estivesse exausto, não conseguia dormir. Havia alguma coisa que não estava bem.
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Don Pedro levantou-se logo a seguir às duas da manhã, e não foi por não conseguir dormir.
Depois de se vestir, encheu um saco de viagem e foi lá abaixo, ao seu escritório. Abriu o cofre, tirou as £23 645 que lhe restavam e pô-las no saco. O banco era agora proprietário
da casa e de todo o seu conteúdo, assim como do mobiliário e equipamentos. Se estavam à espera de que ele pagasse o resto do descoberto bancário, o senhor Ledbury bem podia
viajar até Buenos Aires, onde receberia uma resposta à altura.
Ouviu as primeiras notícias do dia na rádio e não houve menção ao Buckingham. Estava confiante de que conseguiria sair do país muito antes de eles perceberem que tinha desaparecido.
Espreitou pela janela e praguejou quando viu a chuva contínua que ressaltava no passeio, receando levar algum tempo até conseguir arranjar um táxi.
Apagou as luzes, saiu e fechou a porta do número 44 de Eaton Square pela última vez. Olhou para um lado e para o outro da estrada, nada otimista, e ficou encantado quando
viu um táxi que tinha acabado de ligar o sinal livre e que vinha na sua direção. Don Pedro levantou um braço, correu debaixo de chuva e saltou para o banco de trás do táxi.
Ao fechar a porta, ouviu um clique.
- Aeroporto de Londres - disse Don Pedro, afundando-se no banco.
- Não me parece - disse o motorista.
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Havia outro homem, apenas a duas cabinas de distância de Harry, que também estava completamente desperto, mas a verdade é que não estava a tentar adormecer. Preparava-se para
lançar mãos ao trabalho.
Saiu da cama às 2h59, totalmente repousado, totalmente alerta, foi até à grande arca que estava no meio da cabina e levantou a tampa. Hesitou apenas por um momento, e depois
acionou o interruptor conforme as instruções, pondo em andamento um processo que era impossível reverter. Depois de se certificar de que o grande ponteiro preto dos segundos
estava em movimento - 29h59, 29h58 - premiu um botão na parte lateral do seu relógio e baixou a tampa da arca. Depois, pegou no pequeno saco que estava junto à cama e que
continha tudo o que ele precisava, desligou a luz, abriu lentamente a porta da cabina e olhou para o corredor mal iluminado. Esperou um momento até os seus olhos se adaptarem.
Quando teve a certeza que não havia ninguém por perto, saiu para o corredor e fechou a porta sem fazer barulho.
Pôs um pé cautelosamente sobre a alcatifa compacta azul-real e percorreu o corredor em silêncio, de ouvido atento ao mais pequeno barulho estranho. Mas não ouviu nada para
além da suave cadência do motor, à medida que o navio avançava firmemente através de águas mansas. Parou quando chegou ao topo da escadaria. A luz era um bocadinho mais forte
nas escadas, mas não se via vivalma. Ele sabia que a sala de estar da primeira classe ficava um convés mais abaixo e que no seu canto mais afastado havia uma placa discreta
que dizia Homens.
Ninguém passou por ele ao descer a escadaria, mas quando entrou na sala, viu de imediato um homem corpulento refastelado numa cadeira confortável, com as pernas de esguelha,
dando a ideia de ter aproveitado bem as bebidas alcoólicas gratuitas disponibilizadas aos passageiros da primeira classe na primeira noite da viagem inaugural.
Passou pelo passageiro adormecido, que ressonava alegremente e nem se mexeu, e continuou em direção à placa do outro lado da sala. Ao entrar nos lavabos - até já começava
a pensar como eles - acendeu-se uma luz que o apanhou de surpresa. Hesitou por um instante, mas depois lembrou-se de que era apenas mais uma das magníficas

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inovações do navio que vinham mencionadas na brochura lustrosa. Foi até aos lavatórios, pôs o saco em cima da bancada de mármore, correu o fecho e começou a tirar para fora
várias loções, poções e acessórios que iam fazer desaparecer o seu alter-ego: um frasco de óleo, uma navalha, uma tesoura, um pente e um boião de creme facial da Pond's, tudo
isso ia contribuir para descer a cortina sobre a sua atuação em noite de estreia.
Olhou para o relógio. Ainda tinha vinte e sete minutos e três segundos antes da outra cortina se levantar e, por essa altura, faria apenas parte da multidão em pânico. Desenroscou
a tampa do frasco de óleo e molhou o rosto, o pescoço e a testa com ele. Passados uns momentos, sentiu o ardor para que o artista da caracterização o alertara. Retirou devagarinho
a peruca grisalha e rala e colocou-a ao lado do lavatório, parando para se ver ao espelho, satisfeito por recuperar o seu cabelo ruivo e ondulado. A seguir, arrancou as faces
congestionadas como se estivesse a tirar um penso de uma ferida já curada e, finalmente, com a ajuda da tesoura, cortou o duplo queixo de que o caracterizador tanto se orgulhara.
Encheu o lavatório com água quente e esfregou o rosto, fazendo desaparecer todos os sinais de látex, cola ou coloração que continuavam obstinadamente no lugar. Depois de ter
enxugado o rosto, a pele continuava um bocadinho áspera em certos sítios, por isso aplicou uma camada de creme Pond's para completar a transformação.
Liam Doherty olhou-se ao espelho e viu que tinha perdido cinquenta anos em menos de vinte minutos; o sonho de qualquer mulher. Pegou no pente, repôs os caracóis ruivos sobre
a testa e depois enfiou no saco aquilo que restava da fisionomia de Lord Glenarthur e começou a despir os atavios de sua senhoria.
Começou por desabotoar o colarinho branco e engomado da Van Heusen, que lhe tinha deixado uma linha vermelha à volta do pescoço, arrancou a gravata de antigo aluno de Eton
e pô-los dentro do saco. Substituiu a camisa de seda branca por uma de algodão cinzento e por um fino laço de pontas que todos os rapazes em Falis Road agora usavam. Tirou
os suspensórios amarelos, permitindo que as calças cinzentas largas caíssem num monte no chão, juntamente
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com a sua barriga - uma almofada - e depois dobrou-se e desapertou os atacadores dos sapatos de couro preto de Glenarthur, descalçou-os e pô-los dentro do saco. Tirou para
fora um par de calças justas que eram a última moda e não pôde deixar de sorrir enquanto as vestia; sem suspensórios, apenas um cinto fino em pele que tinha comprado em Carnaby
Street quando estava em Londres a fazer outro trabalho Por fim, calçou um par de mocassins em camurça castanha que nunca tinham pisado uma alcatifa de primeira classe. Olhou-se
ao espelho e viu a sua pessoa.
Doherty olhou para o relógio. Tinha onze minutos e quarenta e um segundos para chegar ao porto seguro da sua nova cabina. Não tinha tempo a perder, pois se a bomba explodisse
enquanto ele ainda estivesse na primeira classe, só haveria um suspeito.
Enfiou todas as suas loções e poções novamente no saco, correu o fecho e foi rapidamente até à porta, abriu-a com cuidado e espreitou para a sala de estar. Não se via ninguém
em lado nenhum. Até o homem embriagado tinha desaparecido. Passou apressadamente pela cadeira vazia onde só a marca de um corpo sugeria que alguém tinha estado ali sentado
há pouco tempo.
Doherty atravessou a sala de estar com rapidez em direção à escadaria principal; um passageiro de segunda classe em ambiente de primeira. Só parou quando chegou ao patamar
do terceiro convés, a zona de demarcação. Quando passou por cima da corrente vermelha que dividia os oficiais das outras patentes, descontraiu pela primeira vez; ainda não
estava a salvo, mas estava seguramente fora da zona de combate. Pisou uma alcatifa industrial verde e desceu uma escada mais estreita durante mais quatro lanços até chegar
ao convés onde a sua outra cabina o esperava.
Foi à procura da cabina 706. Tinha acabado de passar pela 726 e 724 quando viu um estróina qualquer a tentar enfiar uma chave na fechadura sem grande sucesso. Seria mesmo
a cabina do homem? Doherty virou a cabeça ao passar por ele, embora o folião não fosse certamente capaz de identificá-lo, nem a ele nem a ninguém, quando o alarme soasse.
Quando chegou à cabina 706, abriu a porta com a chave e entrou. Olhou para o relógio: sete minutos e quarenta e três segundos

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antes de toda a gente acordar, por mais profundo que fosse o seu sono. Foi até à sua cama, levantou a almofada e encontrou um passaporte por estrear e um bilhete novo que
o transformava de Lord Glenarthur em Dave Roscoe, número 47, Napier Drive, Watford. Profissão: pintor e decorador.
Deixou-se cair em cima da cama e olhou para o relógio: seis minutos e dezanove segundos, dezoito, dezassete; tempo mais do que suficiente. Três dos seus companheiros também
estariam completamente despertos, à espera, mas não voltariam a falar uns com os outros até se encontrarem todos no Volunteer em Falis Road para beber umas canecas de Guinness.
Nunca falariam em público acerca daquela noite, pois a sua ausência nos pousos habituais na zona oeste de Belfast teria sido notada e torná-los-ia suspeitos durante meses
a fio, provavelmente anos. Ouviu um baque violento numa porta mais ao fundo do corredor e presumiu que o folião tinha finalmente conseguido entrar.
Seis minutos e vinte e um segundos...
Sempre as mesmas ansiedades quando era preciso esperar. Teria deixado alguma pista que levasse diretamente à sua pessoa? Teria cometido algum erro que fizesse com que a operação
redundasse em fracasso e que o transformasse em motivo de riso quando voltasse ao seu meio? Não ia conseguir descontrair enquanto não estivesse num barco salva-vidas e, melhor
ainda, noutro navio em direção a outro porto.
Cinco minutos e catorze segundos...
Sabia que os seus compatriotas, soldados na mesma causa, estavam tão nervosos quanto ele. A espera era sempre a pior parte, impossível de controlar, pois já não havia nada
que se pudesse fazer.
Quatro minutos e onze segundos...
Pior do que um jogo de futebol quando se está a ganhar um a zero, mas sabemos que o adversário é mais forte e bem capaz de marcar no tempo de descontos. Lembrou-se das instruções
do seu comandante de área: quando o alarme disparar, certifica-te de que estás entre os primeiros a chegar ao convés e a entrar nos salva-vidas, pois amanhã, por esta altura,
vão andar à procura de toda a gente com menos de trinta e cinco anos e com sotaque irlandês, portanto mantenham a boca fechada, rapazes.
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Três minutos e quarenta segundos... trinta e nove...
Olhou para a porta da cabina e imaginou o pior que podia acontecer. A bomba não explodia, a porta abria-se e uma dúzia de polícias, possivelmente mais, entrava de rompante,
agitando os bastões em todas as direções, sem se importar com o número de vezes que o atingiam. Mas a única coisa que ele conseguia ouvir era o trabalhar ritmado do motor
à medida que o Buckingham continuava a sua calma travessia do Atlântico em direção a Nova Iorque. Uma cidade onde nunca chegaria.
Dois minutos e trinta e quatro segundos... trinta e três...
Começou a imaginar como seria quando estivesse de volta a Falis Road. Rapazes de calções iriam levantar os olhos com admiração quando passasse por eles na rua, com a única
ambição de serem como ele quando crescessem. O herói que tinha feito o Buckingham ir pelos ares poucas semanas depois de ter sido batizado pela rainha-mãe. Sem qualquer menção
às vidas inocentes perdidas; não há vidas inocentes quando se acredita numa causa. Na verdade, nunca encontrara nenhum dos passageiros que viajavam nas cabinas dos conveses
superiores. Iria ler tudo sobre eles nos jornais do dia seguinte, e se tivesse feito o seu trabalho como devia ser, o seu nome não seria mencionado.
Um minuto e vinte e dois segundos... vinte e um...
O que é que podia correr mal? Iria o engenho, construído num quarto de um primeiro andar em Dungannon, deixá-lo ficar mal no último minuto? Estaria prestes a sofrer o silêncio
do fracasso?
Sessenta segundos...
Começou a sussurrar cada número.
- Cinquenta e nove, cinquenta e oito, cinquenta e sete, cinquenta e seis...
Seria possível que o homem embriagado que estava refastelado na cadeira da sala de estar tivesse estado o tempo todo à sua espera? Viriam agora a caminho da sua cabina?
- Quarenta e nove, quarenta e oito, quarenta e sete, quarenta e seis...
Teriam os lírios sido substituídos, deitados fora, levados dali? Talvez a senhora Clifton fosse alérgica ao pólen...

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- Trinta e nove, trinta e oito, trinta e sete, trinta e seis... Teriam aberto o quarto de Lord Glenarthur e descoberto a arca aberta?
- Vinte e nove, vinte e oito, vinte e sete, vinte e seis... Estariam já a revistar o navio, à procura do homem que se tinha
esgueirado da casa de banho da sala de estar da primeira classe?
- Dezanove, dezoito, dezassete, dezasseis...
Teriam... agarrou-se à borda da cama, fechou os olhos e começou a contar em voz alta.
- Nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um...
Parou de contar e abriu os olhos. Nada. Só o silêncio arrepiante que se seguia sempre ao fracasso. Inclinou a cabeça e rezou a um Deus em que não acreditava e logo a seguir
ouviu-se uma explosão de uma ferocidade tal que foi projetado contra a parede da cabina como uma folha numa tempestade. Levantou-se cambaleante e sorriu quando ouviu os gritos.
Só gostava de saber quantos passageiros teriam conseguido sobreviver na coberta superior.

 

 

                                                   Jeffrey Archer         

 

 

 

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