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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


CURA FATAL / Robin Cook
CURA FATAL / Robin Cook

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Decidindo abandonar a grande cidade, os jovens médicos David e Angela Wilson mudam-se para uma pequena localidade no estado do Vermont para exercerem medicina no Hospital local. O ritmo mais lento, a vida mais simples e o ar revigorante da montanha deviam ser bons para a filha doente, Nikki. Eles estão convencidos de que encontraram o seu paraíso. Mas o paraíso da família Wilson não tarda a transformar-se num pesadelo, pois David e Angela não só enfrentam uma catástrofe profissional como também se vêm confrontados com uma conspiração sinistra, que inicia-se com a morte de um paciente, após ter sido submetido a uma cirurgia ortopédica e vai entrelaçando-se com outras mortes, estupros e algo que envolve um plano de saúde e o hospital. Enfim, uma obra carregada de suspense, com uma boa trama, envolvendo médicos, pacientes e administradores, burocratas da saúde...

 

 

 

 

DEZESSETE DE FEVEREIRO foi um dia fatídico para Sam Flemming.

Sam considerava-se uma pessoa extremamente afortunada. Como corretor de uma das grandes empresas de Wall Street, tornara-se rico aos vinte e seis anos. Depois, como um jogador que sabia quando parar, recolhera seus ganhos e fora para o Norte, fugindo dos cânions de concreto de Nova York para a idílica Bartlet, em Vermont. Ali começara afazer o que realmente sempre quisera: pintar.

Parte de sua boa sorte fora sempre a saúde. Mas às quatro e meia de 17 de fevereiro alguma coisa estranha começou a acontecer. Numerosas moléculas de água dentro de muitas de suas células começaram a se partir em dois fragmentos: um átomo de hidrogénio relativamente inofensivo e um radical livre hidroxila, altamente reativo e perversamente destrutivo.

Enquanto ocorriam esses eventos ao nível molecular, as defesas celulares de Sam foram ativadas.

Mas especificamente naquele dia essas defesas contra os radicais livres se exauriram depressa;

até mesmo as vitaminas antioxidantes E, C e betacaroteno que ele tomava diligentemente todos os dias não puderam impedir a maré súbita e avassaladora.

Os radicais livres hidroxilas começaram a abocanhar o cerne do corpo de Sam Flemming. Em pouco tempo, as membranas das células afetadas começaram a vazar líquido e eletrólitos. Ao mesmo tempo, algumas das enzimas das células foram partidas e desativadas. Até mesmo muitas moléculas de DNA foram atacadas, e genes específicos foram danificados.

Em sua cama no Hospital Comunitário de Bartlet, Sam permanecia inconsciente da perigosa batalha molecular dentro de suas células. O que ele percebia eram algumas seqüelas: uma elevação da temperatura, alguns distúrbios digestivos e o princípio de uma congestão peitoral.

Quando veio examiná-lo no final daquela tarde, o Doutor Portland notou com alarme e desapontamento a febre. Depois de ouvir-lhe o peito, tentou explicar-lhe que aparentemente houvera uma complicação. Disse que um princípio de pneumonia estava interferindo com a recuperação da cirurgia no quadril, que afora isso vinha correndo bastante bem. Mas Sam tinha começado a ficar apático e ligeiramente desorientado. Não compreendia o relatório do Doutor Portland sobre seu estado. A prescrição de antibióticos e a garantia de uma recuperação rápida não se registraram em seu pensamento. E, pior ainda, os prognósticos do médico se mostraram errados. O antibiótico prescrito não conseguiu interromper o desenvolvimento da infecção. Sam jamais se recuperou suficientemente para apreciar a ironia de sobreviver a dois assaltos em Nova York, à queda de um avião em Westchester County e a um terrível acidente entre quatro veículos na auto-estrada de Nova Jersey somente para morrer de complicações resultantes da queda numa calçada coberta de gelo diante da Loja de Ferragens Staley’s, na Main Street em Bartlet, Vermont.

 

QUINTA-FEIRA - 18 DE MARÇO

Diante dos empregados mais importantes do Hospital Comunitário de Bartlet, Harold Traynor fez uma pausa por tempo suficiente para desfrutar o momento. Ele acabara de pedir silêncio. O grupo reunido - todos os chefes de departamentos - havia se calado em obediência. Todos os olhos estavam grudados nele. A dedicação de Traynor ao seu cargo de chairman da diretoria do hospital era um motivo de orgulho. Ele saboreava esses momentos, quando ficava claro que sua simples presença provocava admiração e reverência.

- Obrigado a todos por terem saído de casa no meio da neve, esta noite. Convoquei esta reunião para deixar claro como a diretoria do hospital está levando a sério o infeliz ataque contra a enfermeira Prudence Huntington no estacionamento de baixo, na semana passada. O fato do estupro ter sido impedido pela chegada súbita de um membro da segurança do hospital não diminui em nada a seriedade do crime.

Traynor fez uma pausa, deixando os olhos pousarem significativamente em Patrick Swegler. O chefe da segurança evitou o olhar acusatório de Traynor. O ataque contra a Srta. Huntington fora o terceiro episódio do mesmo tipo no ano anterior, e Swegler sentia-se, compreensivelmente, responsável.

- Esses ataques devem parar! - Traynor olhou para Nancy Widner, diretora de enfermagem. Todas as três vítimas tinham sido enfermeiras sob sua supervisão.

”A segurança de nosso pessoal é uma questão básica - disse Traynor enquanto seus olhos saltavam de Geraldine Polcari, chefe da nutrição, para Gloria Suarez, chefe do departamento de limpeza. -Conseqüentemente, a diretoria executiva propôs a construção de um prédio-garagem na área do estacionamento de baixo. Ele será ligado diretamente ao prédio principal do hospital e terá iluminação adequada e câmeras de vigilância.

Traynor acenou com a cabeça para Helen Beaton, presidente do hospital. Pegando a deixa, Beaton levantou um pano sobre a mesa de reuniões para revelar uma maquete detalhada do complexo hospitalar existente, além do acréscimo proposto: uma estrutura maciça, de três andares, projetando-se atrás do prédio principal.

Entre exclamações aprovadoras, Traynor caminhou ao redor da mesa para se posicionar perto da maquete. A mesa de reuniões do hospital costumava ser repositório de parafernálias médicas a serem avaliadas para compra. Traynor estendeu a mão para remover um suporte com tubos de ensaio afunilados, de modo que a maquete pudesse ser mais bem observada. Em seguida, examinou a audiência. Todos os olhos estavam grudados na maquete; todo mundo menos Werner Van Slyke, que ficara de pé.

O estacionamento sempre fora um problema no Hospital Comunitário de Bartlet, especialmente quando fazia mau tempo. Traynor sabia que o acréscimo proposto seria bem recebido mesmo antes da seqüência de ataques no estacionamento de baixo. Ficou satisfeito ao ver que sua revelação estava acontecendo com o sucesso que ele previra. A sala reluzia de entusiasmo. Somente o carrancudo Van Slyke, chefe de engenharia e manutenção, continuava impassível.

- Qual é o problema? - perguntou Traynor. - Você não aprova esta proposta?

Van Slyke olhou para Traynor, ainda com a expressão vazia.

- E então? - Traynor sentiu que ficava tenso. Van Slyke tinha uma capacidade especial de irritá-lo. Traynor jamais gostara da natureza lacônica e sem emoção do sujeito.

- Está bom - disse Van Slyke em voz opaca.

Antes que Traynor pudesse responder, a porta da sala de reuniões foi aberta com violência, chocando-se contra o batente preso ao chão. Todos saltaram, especialmente Traynor.

De pé na entrada estava Dennis Hodges, um homem vigoroso e atarracado de setenta anos, com feições grosseiramente esculpidas e pele envelhecida. Seu nariz era róseo e bulboso, os olhos saltados e remelentos. Vestia um paletó de lã verde-escuro sobre calças de veludo cotelê sem vincos. No topo da cabeça tinha um boné de caçador vermelho xadrez, pintalgado de neve. Na mão esquerda, que mantinha erguida, segurava um maço de papéis.

Não havia qualquer dúvida de que Hodges estava irado. Além disso, fedia a álcool. Seus olhos, escuros como cano de espingarda, metralharam as pessoas reunidas, e em seguida miraram Traynor.

- Quero conversar com você sobre alguns de meus ex-pacientes, Traynor. Com você também, Beaton.-Hodges lançou um olhar rápido e enojado para a mulher.-Não sei que tipo de hospital vocês pensam que estão dirigindo aqui, mas posso dizer que não gosto nem um pouco!

- Ah, não! - murmurou Traynor assim que conseguiu se recuperar do aparecimento inesperado de Hodges. Rapidamente a irritação superou seu choque. Um olhar rápido pela sala asseguroulhe que os outros estavam quase tão felizes quanto ele por verem Hodges. - Doutor Hodges - começou Traynor, forçando-se a ser educado. - Acho que dá para notar que estamos no meio de uma reunião. Se nos desculpar...

- Estou me lixando para o que vocês fazem. O que quer que seja, não é tão importante quanto o que estão fazendo com meus pacientes. - Hodges aproximou-se lentamente de Traynor.

Instintivamente, Traynor recuou. O cheiro de uísque era intenso.

- Doutor Hodges - disse Traynor com irritação evidente.-Isto não é hora para interrupções desse tipo. Ficarei satisfeito em marcar uma reunião com você amanhã, para conversarmos sobre suas queixas. Agora, se puder fazer a gentileza de nos deixar e cuidar de seus afazeres...

- Eu quero falar agora! - gritou Hodges. - Não gosto do que você e sua diretoria estão fazendo.

- Escute, seu velho bobo! Baixe a voz! Eu não tenho a menor idéia do que se passa na sua cabeça. Mas vou dizer o que eu e a diretoria estamos fazendo: estamos nos arrebentando para manter este hospital aberto, e não é uma tarefa simples para qualquer hospital hoje em dia. Portanto, não gosto de qualquer alusão em contrário. Agora, seja razoável e deixe-nos prosseguir com a reunião.

- Não vou esperar - insistiu Hodges. - Quero falar com você e Beaton agora mesmo. As bobagens da enfermagem, da nutrição e da limpeza podem esperar. Isto é importante.

- Ah! - disse Nancy Widner. - É bem o seu feitio, Doutor Hodges, entrar feito um louco aqui dentro e sugerir que as questões da enfermagem não são importantes. Pois saiba que...

- Parem! - disse Traynor, estendendo as mãos num gesto conciliatório. - Não vamos começar um quebra-quebra. O fato, Doutor Hodges, é que estamos aqui falando sobre a tentativa de estupro que aconteceu na semana passada. Tenho certeza de que não está sugerindo que um estupro e duas tentativas de estupro feitas por um homem com máscara de esquiador não são importantes.

- São importantes - concordou Hodges. - Mas não tão importantes quanto o que se passa na minha cabeça. Além disso, o problema do estupro é obviamente uma questão interna.

- Espere um segundo. Você está sugerindo que conhece a identidade do estuprador?

- Vamos colocar a coisa do seguinte modo: eu tenho minhas suspeitas- Mas no momento não estou interessado em discuti-las. Estou interessado nestes pacientes. - Para enfatizar o que dizia, Hodges bateu com os papéis sobre a mesa.

Helen Beaton fez uma careta e disse:

- Como ousa entrar aqui como se fosse dono de tudo, dizendo o que é importante e o que não é? Como administrador emérito, esse não é o seu papel.

- Obrigado pelo conselho que não pedi - disse Hodges.

- Certo, certo - Traynor suspirou frustrado. Sua reunião degringolará numa confusão verbal. Ele pegou os papéis de Hodges, colocou-os nas mãos dele e em seguida conduziu-o para fora da sala. A princípio, Hodges resistiu, mas acabou permitindo que o outro o levasse.

- Nós precisamos conversar, Harold - disse Hodges assim que chegaram ao corredor. - Este negócio é sério.

- Tenho certeza de que é. - Traynor tentou parecer sincero. Sabia que acabaria tendo de ouvir as queixas de Hodges. Hodges fora administrador do hospital quando Traynor ainda estava na escola primária. Mantivera o cargo quando a maioria dos médicos não se interessava pela responsabilidade. Nos trinta anos que passara no comando, construíra o Hospital Comunitário de Bartlet a partir de um pequeno hospital rural, transformando-o num verdadeiro centro de atendimento terciário. Fora essa instituição em pleno processo expansivo que ele entregara a Traynor ao deixar o cargo três anos antes.

”Olhe - disse Traynor -, o que quer que esteja se passando em sua cabeça pode esperar até amanhã. Vamos conversar na hora do almoço. Vou providenciar para que Barton Sherwood e o Doutor Delbert Cantor se reunam conosco. Se o que você deseja discutir tem a ver com política, que é o que eu presumo, seria melhor termos também o vice-diretor e o chefe do pessoal médico. Não concorda?

- Acho que sim - admitiu Hodges relutante.

- Então está combinado - disse Traynor em tom apaziguador, ansioso por voltar e salvar o que pudesse da reunião, agora que Hodges estava aplacado. - Vou contactá-los esta noite.

- Eu posso não ser mais o administrador, mas ainda me sinto responsável pelo que acontece aqui. Afinal de contas, se não fosse por mim, você não teria sido indicado para a diretoria, muito menos eleito diretor geral.

- Sei disso - disse Traynor, e em seguida brincou: - Mas não sei se agradeço ou se lhe rogo uma praga por essa honra dúbia.

- Estou preocupado com a possibilidade de ter deixado o poder subir-lhe à cabeça – disse Hodges.

- Que história é essa? O que está querendo dizer com ”poder”? Este cargo não passa de uma dor de cabeça depois da outra.

- Você está dirigindo uma instituição de cem milhões de dólares. E que é o maior empregador nesta parte do estado. Isso significa poder.

Traynor riu nervosamente.

- Ainda assim é uma chateação. E temos sorte de ainda estarmos funcionando. Não preciso lembrá-lo de que nossos dois concorrentes não existem mais. O Hospital Valley fechou, e o Mary Sackler foi transformado numa casa de repouso.

- Continuamos funcionando, mas temo que o pessoal das finanças esteja esquecendo qual é a missão do hospital.

- Ah, besteira! - disse Traynor rispidamente, perdendo um pouco de controle.-Vocês, médicos da antiga, precisam despertar para uma nova realidade. Não é fácil dirigir um hospital no clima atual, com cortes nos custos, planos de saúde particulares e intervenção do governo. Não é mais uma questão de um pequeno lucro acima dos custos, como na sua época. Os tempos mudaram, exigindo novas adaptações e novas estratégias de sobrevivência. Washington está exigindo isso.

Hodges riu zombeteiro:

- Washington certamente não está exigindo o que você e seus seguidores estão fazendo.

- Não estão é o cacete! Isso se chama competição, Dennis. A sobrevivência do mais adaptado e do mais econômico, e não a prestidigitação com os custos, como você costumava fazer.

Traynor parou, notando que estava perdendo a compostura. Enxugou o suor que surgira em sua testa e respirou fundo.

- Escute, Dennis, preciso voltar para a sala de reuniões. Vá para casa, acalme-se, relaxe, durma um pouco. Vamos nos encontrar amanhã e conversar sobre o que o está preocupando, certo?

- Estou meio exausto - admitiu Hodges.

- Sem dúvida que está.

- No almoço, amanhã? Promete? Sem desculpas?

- Prometo - disse Traynor, dando um tapinha de encorajamento nas costas de Hodges. – No restaurante, ao meio-dia em ponto.

Aliviado, Traynor observou seu antigo mentor arrastar-se pelo corredor do hospital com seu característico andar desajeitado, como se tivesse os quadris rígidos. Virando-se para a sala de reuniões, sentiu-se pasmo com o incrível talento que o sujeito tinha para causar tumultos.

Infelizmente, Hodges estava se tornando algo mais além de um simples incômodo. Estava se tornando virtualmente um grande estorvo.

- Será que podemos pôr alguma ordem aqui? - gritou Traynor acima da confusão para a qual retornara. - Desculpem pela interrupção. Infelizmente, o velho doutor Hodges tem uma capacidade especial de aparecer nos momentos mais inoportunos.

- Isso é um eufemismo - disse Barton. - Ele vive irrompendo em minha sala para reclamar que um de seus ex-pacientes não está recebendo o que ele considera um tratamento VIP. Age como se ainda fosse o diretor.

- A comida nunca está do seu agrado - acrescentou Gloria Suarez.

- Ele vai à minha sala mais ou menos uma vez por semana - disse Nancy Widner. - É sempre a mesma reclamação. As enfermeiras não estão atendendo suficientemente rápido aos pedidos de seus ex-pacientes.

- Ele se auto-elegeu representante deles - disse Beaton.

- São as únicas pessoas da cidade que conseguem suportá-lo - completou Nancy.-Praticamente todas as outras acham-no um velho bobo e extravagante.

- Vocês acham que ele sabe qual é a identidade do estuprador? - perguntou Patrick Swegler.

- Meu Deus, não! - disse Nancy. - Ele não passa de um fanfarrão.

- O que o senhor acha, Senhor Traynor? - insistiu Patrick Swegler.

Traynor encolheu os ombros.

- Duvido que ele saiba de alguma coisa, mas sem dúvida vou perguntar-lhe amanhã, no almoço.

- Não invejo esse almoço - disse Beaton.

- Não estou nem um pouco ansioso - admitiu Traynor. - Sempre achei que ele merecia um certo respeito, mas, para ser honesto, minha decisão vem esmorecendo. - Bom, vamos voltar ao assunto do dia. - Logo Traynor conseguiu recolocar a reunião nos trilhos, mas para ele a alegria da noite estava perdida.

Hodges caminhava pelo meio da Main Street. No momento não havia veículos andando em qualquer direção. As escavadeiras ainda não tinham aparecido; cinco centímetros de neve cobriam a cidade, enquanto continuavam a cair mais flocos.

Ele xingou em voz baixa, dando vazão parcial à sua ira nãoaplacada. Agora que estava a caminho de casa, sentiu-se enraivecido por ter permitido que Traynor o dispensasse.

Chegando próximo ao parque da cidade, com seu mirante vazio coberto de neve, Hodges olhou em direção ao norte, para além da igreja metodista. Lá, à distância, seguindo pela Front Street, dava para vislumbrar o prédio principal do hospital. Parou, observando melancolicamente a estrutura.

Uma sensação de mau agouro baixou com um tremor. Havia dedicado sua vida ao hospital, para que ele servisse às pessoas. Mas agora temia que ele não estivesse cumprindo sua missão.

Virando-se, retomou sua caminhada pela Main Street. Enfiou no bolso do casaco os papéis que estava segurando. Seus dedos tinham ficado dormentes. Meio quarteirão depois, parou de novo.

Dessa vez, olhando para as janelas do Iron Horse Inn. Um brilho convidativo e incandescente vazava para a calçada frígida e coberta de neve.

Hodges precisou apenas de um instante de racionalização para decidir que gostaria de outro gole. Afinal de contas, agora que sua esposa Clara passava mais tempo com a família em Boston do que com ele em Bartlet, não era como se ela o estivesse esperando. Certamente havia algumas vantagens em seu virtual afastamento. Hodges sabia que iria gostar do reforço extra para a caminhada de vinte minutos até chegar em casa.

No saguão, bateu a neve de suas botas com solas de borracha e pendurou o casaco num cabide de madeira. O chapéu foi para um escaninho acima. Passando por um balcão vazio, usado para guardar casacos nas festas, Hodges atravessou um pequeno corredor e parou na entrada do bar.

O salão era construído de pinho bruto, que tinha uma aparência de queimado devido aos dois séculos de uso. Uma imensa lareira onde o fogo rugia dominava uma das paredes.

Hodges examinou a sala. De seu ponto de vista, o conjunto de personagens reunidos era insípido, mal lembrando o Cheers, da NBC. Viu Barton Sherwood, presidente do Banco Nacional de Green Mountain e agora, graças a Traynor, WCQ-chairman da diretoria do hospital. Sherwood estava num reservado com Ned Banks, o antipático proprietário da New England Coat Hanger Company.

Em outra mesa, o Doutor Delbert Cantor estava sentado com o Doutor Paul Darnell. A mesa estava coberta por garrafas de cerveja, cestos de batata frita e pratos de queijo. Para Hodges, eles pareciam dois porcos no cocho.

Por um segundo, pensou em pegar os papéis no casaco e fazer com que Sherwood e Cantor conversassem com ele. Mas imediatamente abandonou a idéia. Não estava com energia, e tanto Cantor quanto Darnell davam-lhe engulhos. Cantor, um radiologista, e Darnell, patologista, tinham sofrido quando Hodges conseguira que o hospital assumisse esses departamentos há cinco anos. Certamente não seriam uma audiência receptiva para suas queixas.

No bar estava John MacKenzie, outro que Hoges faria tudo para evitar. Tinha um desentendimento de longa data com ele. John era dono do posto Mobil perto da interestadual, e cuidara dos veículos de Hodges durante muitos anos. Mas da última vez o defeito no carro de Hodges não fora consertado. Hodges tivera de ir até o vendedor em Rutland para fazer o conserto. Conseqüentemente, não pagara a John.

Dois bancos depois de John MacKenzie, Hodges viu Pete Bergan e gemeu por dentro. Pete fora um ”bebé azul”, uma criança que sofria de cianose, e nunca terminara a sexta série.

Aos dezoito anos, abandonara a escola, sustentando-se através de biscates. Hodges conseguira-lhe uma vaga de ajudante do pessoal da limpeza no hospital, mas tivera de concordar com sua demissão quando ele se mostrara muito pouco digno de confiança. Desde então Pete guardava rancor.

Depois de Pete havia uma fila de bancos vazios. E além do bar, descendo um degrau, ficavam duas mesas de bilhar. Música jorrava de uma antiga vitrola automática estilo anos 60, encostada junto à parede mais distante. Ao redor das mesas de bilhar estava reunido um punhado de alunos do Bartlet College, uma pequena instituição de ciências humanas que recentemente passara a aceitar alunos de ambos os sexos.

Por um instante Hodges hesitou junto à entrada, tentando decidir se uma bebida valeria o encontro com qualquer uma dessas pessoas. No final, a lembrança do frio e a antecipação do gosto do scotch impeliram-no para a sala.

Ignorando todo mundo, Hodges foi para a extremidade mais distante do bar e sentou-se num banco vazio. O calor que irradiava da lareira esquentou suas costas. Um copo surgiu à sua frente, e Carleton Harris, o gordo barman, serviu-lhe uma dose de Dewar’s sem gelo.

Carleton e Hodges se conheciam há muito tempo.

- Acho que você vai querer arranjar outro lugar - avisou Carleton.

- Por quê? - perguntou Hodges. Ele tinha ficado satisfeito porque ninguém percebera sua entrada.

Carleton balançou a cabeça na direção de um copo de highball pela metade, sobre o balcão, a dois bancos de distância.

- Nosso destemido chefe de polícia, o Senhor Wayne Robertson, parou para tomar um trago. Está no banheiro dos homens.

- Droga!

- Não diga que não avisei - acrescentou Carleton enquanto ia na direção de vários estudantes que se aproximavam do balcão.

- Inferno! Não adianta correr, dá tudo na mesma - murmurou Hodges consigo mesmo. Se fosse para a outra ponta, teria de encarar John MacKenzie. Decidiu ficar onde estava.

Levantou o copo até os lábios.

Antes que pudesse tomar um gole, sentiu um tapa nas costas. Controlou-se para impedir que o copo batesse contra os dentes e a bebida derramasse.

- Ora, vejam só, o nosso charlatão!

Virando-se, Hodges encarou o rosto inebriado de Wayne Robertson. Robertson tinha quarenta e dois anos e era grandalhão. Houvera um tempo em que fora todo músculos. Agora era metade músculos e metade gordura. O aspecto mais proeminente de seu perfil era o abdome, que praticamente se dobrava sobre a fivela de seu cinto oficial. Robertson ainda estava de uniforme, com revólver e tudo.

- Wayne, você está bêbado - disse Hodges. - Por que não vai para casa dormir? – Em seguida virou-se para o bar e tentou mais uma vez tomar um gole de sua bebida.

- Não há nada me esperando em casa, graças a você. Hodges virou-se lentamente e olhou para Robertson. Os olhos do policial estavam vermelhos, quase tão vermelhos quanto suas bochechas gordas. Seu cabelo louro era cortado curto, no estilo dos anos 50.

- Wayne - começou Hodges -, não vamos passar por tudo de novo. Sua esposa, que Deus a tenha, não era minha paciente. Você está bêbado. Vá para casa.

- Você dirigia aquela droga de hospital.

- Isso não quer dizer que eu fosse responsável por todos os casos, seu palerma. Além disso, já faz dez anos. - Outra vez Hodges tentou virar-se para o outro lado.

- Seu filho da mãe! - rosnou Robert. Estendendo a mão, agarrou a camisa de Hodges pelo colarinho e tentou levantá-lo do banco.

Carleton Harris rodeou o bar com uma rapidez que contrariava seu tamanho e meteu-se entre os dois homens. Abriu a mão de Robertson, livrando o colarinho de Hodges, um dedo de cada vez.

- Vocês dois. Para os seus cantos. Não permitimos boxe aqui no Iron Horse.

Hodges esticou a camisa, indignado, pegou a bebida e foi até a outra extremidade do bar.

Enquanto passava por trás de John MacKenzie, ouviu-o murmurando:

- Caloteiro!

Hodges recusou-se a ser provocado.

- Carleton, você não devia ter interferido - gritou o Doutor Cantor para o barman. – Se Robertson tivesse dado uma surra no velho Hodges, toda a cidade teria comemorado.

O Doutor Cantor e o Doutor Darnell gargalharam com o comentário. Ficaram se encorajando mutuamente até que estavam os dois batendo nos joelhos e engasgando com a cerveja.

Carleton ignorouos enquanto rodeava o balcão para colocar mais uma dose para Barton Sherwood.

- O Doutor Cantor está certo - disse Sherwood alto, para que todo mundo ouvisse. – Da próxima vez que Hodges e Robertson se estranharem, deixe por conta deles.

- Não venha você, também - disse Carleton enquanto misturava destramente a bebida de Sherwood.

- Deixem-me falar sobre o Doutor Hodges - continuou Sherwood em voz alta para que todos ouvissem. - Um bom vizinho, eis o que ele não é. Por um acidente histórico, é dono de uma pequena faixa de terra que separa meus dois sítios. E sabe o que ele fez? Construiu uma cerca gigantesca.

- Claro que construí - gritou Hodges, incapaz de segurar a língua. -Foi o único meio de impedir os seus malditos cavalos de cagarem em toda a minha propriedade.

- Então por que não vende aquilo? - perguntou Sherwood, virando-se para encarar Hodges. - Não tem utilidade para você.

- Não posso. Está no nome da minha mulher.

- Bobagem. Isso não passa de um velho estratagema para proteger seus bens no caso de um julgamento por erro médico. Você mesmo me contou.

- Então talvez você devesse saber da verdade. Eu estava tentando ser diplomático. Não vendo a terra a você porque o desprezo. É mais fácil para seu cérebro de amendoim entender isso?

Sherwood virou-se para o salão e dirigiu-se a todos os presentes:

- Vocês são testemunhas. O Doutor Hodges está admitindo que age por despeito. Isso não é surpresa, claro, e nem é uma atitude cristã.

- Ah, fique quieto! - retrucou Hodges. - É hipocrisia um presidente de banco questionar a ética cristã de outra pessoa, com todas as cobranças de hipoteca que estão na sua consciência. Você tirou famílias de suas casas.

- Isso é diferente - disse Sherwood. - São negócios. Tenho de pensar nos meus acionistas.

- Babaquice! - disse Hodges com um gesto que pretendia encerrar a conversa.

Uma agitação súbita na porta atraiu a atenção de Hodges. Ele virou-se a tempo de ver Traynor e o resto dos participantes da reunião entrarem no bar. Deu para perceber que Traynor não ficou satisfeito ao vê-lo. Hodges encolheu os ombros e virou-se para a sua bebida. Mas não conseguiu deixar de perceber o fato fortuito de que os principais diretores estavam ali: Traynor, Sherwood e Cantor. Agarrando o uísque, escorregou para fora de seu banco e seguiu Traynor até a mesa de Sherwood e Banks. Deu-lhe um tapinha no ombro.

- Que tal conversar agora? Estamos todos aqui.

- Que droga, Hodges! - reagiu Traynor abruptamente. - Quantas vezes preciso lhe dizer? Não quero falar sobre isso esta noite. Vamos conversar amanhã!

- Sobre o que ele quer falar? - perguntou Sherwood.

- Algo sobre alguns de seus antigos pacientes. Eu disse que almoçaríamos com ele amanhã.

- O que está acontecendo? - perguntou o Doutor Cantor, juntando-se ao bate-boca. Havia pressentido sangue, e fora atraído para a mesa como um tubarão pela isca.

- O Doutor Hodges não está satisfeito com o modo como dirigimos o hospital - disse Traynor. - Vamos ter de ouvir sobre isso amanhã.

- Sem dúvida é a mesma velha reclamação - exclamou Sherwood. - Não está sendo dado um tratamento VIP aos seus antigos pacientes.

- Isso é que é gratidão! - disse o Doutor Cantor, interrompendo Hodges, que tentava responder. -

Aqui estamos, doando graciosamente nosso tempo para manter o hospital à tona, e o que recebemos em troca? Somente críticas.

- Graciosamente é o cacete - disse Hodges com escárnio. - Nenhum de vocês me engana. Seu envolvimento não tem nada a ver com caridade. Traynor, você passou a usar o cargo para apoiar sua recém-descoberta grandiosidade. Sherwood, seu interesse nem mesmo é tão sofisticado. É puramente financeiro, já que o hospital é o maior cliente do banco. E o seu, Cantor, é tão simples quanto o dele. Só está interessado no Imaging Center, aquela joint venture com a qual concordei num momento de insanidade. De todas as decisões que tomei como administrador do hospital, é a de que mais me arrependo.

- Na época, achou que era um bom negócio.

- Só porque pensei que era o único meio de atualizar o tomógrafo computadorizado do hospital. Mas isso foi antes de perceber que a máquina se pagaria em menos de um ano. O que, claro, me fez entender que você e os outros radiologistas particulares estavam roubando o dinheiro que o hospital deveria estar recebendo.

- Não estou interessado em reabrir essa batalha antiga - disse o Doutor Cantor.

- Nem eu - concordou Hodges. - Mas o ponto é que há muito pouca, ou nenhuma, caridade em vocês. Sua preocupação é o ganho financeiro, não o bem de seus pacientes ou da comunidade.

- Quem é você para falar? - disse ríspido Trayner. - Dirigiu o hospital como se fosse seu feudo pessoal. E quem vem cuidando da sua casa durante todos estes anos?

- O que você quer dizer? - Hodges hesitou, com o olhar saltando de um para outro dos homens que estavam à sua frente.

- Não é uma pergunta complicada - disse Traynor, impulsionado pela raiva. Ele havia cutucado Hodges com uma faca e agora queria enfiá-la até o cabo.

- Não sei o que minha casa tem a ver com isto – conseguiu dizer Hodges.

Traynor ficou na ponta dos pés para examinar o salão.

- Onde está Van Slyke? - perguntou. - Ele está aqui, em algum lugar.

- Está perto da lareira - disse Sherwood, apontando. Teve de lutar para reprimir um sorriso contente. Essa questão da casa de Hodges o apoquentara durante algum tempo. O único motivo pelo qual nunca o trouxera à tona fora a proibição imposta por Traynor.

Traynor chamou Van Slyke, mas ele pareceu não ouvir. Chamou de novo, desta vez suficientemente alto para que todos no bar ouvissem. A conversa parou. A não ser pela música que emanava da vitrola automática, o salão ficou momentaneamente silencioso.

Van Slyke movimentou-se devagar pelo salão, sentindo-se desconfortável na berlinda. Estava consciente de que a maioria das pessoas olhava para ele. Mas logo elas perderam o interesse e as conversas recomeçaram de onde tinham sido interrompidas.

- Nossa! Você parece que está andando em cima de melaço - disse Traynor para Van Slyke. - Algumas vezes age como se tivesse oitenta anos, e não trinta.

- Desculpe - disse Van Slyke, mantendo sua expressão facial vazia.

- Quero fazer uma pergunta - prosseguiu Traynor.-Quem vem cuidando da casa e da propriedade do Doutor Hodges?

Van Slyke olhou de Traynor para o Doutor Hodges, um sorriso torto encurvando-lhe os lábios. Hodges olhou para o outro lado.

- E então? - perguntou Traynor.

- Nós - disse Van Slyke.

- Seja um pouco mais específico - disse Traynor. – Quem são ”nós”?

- O pessoal da manutenção do hospital - disse Van Slyke, sem afastar os olhos de Hodges. E seu sorriso não mudou.

- Há quanto tempo isso vem acontecendo? - perguntou Traynor.

- Desde antes de eu chegar.

- E vai parar a partir de hoje - disse Traynor. - Compreende?

- Certo - disse Van Slyke.

- Obrigado, Werner. Por que não vai até o balcão e toma uma cerveja enquanto nós terminamos de conversar com o Doutor Hodges?

Slyke voltou para o seu lugar junto à lareira.

- Você conhece o antigo ditado - disse Traynor. - Quem tem telhado de vidro...

- Cale-se! - reagiu Hodges rispidamente. Em seguida começou a dizer alguma coisa, mas interrompeu-se. Saiu do salão aparentando uma ira frustrada, agarrou o casaco e o chapéu e mergulhou na noite cheia de neve. - Velho idiota - murmurou enquanto seguia para o sul, saindo da cidade.

Estava furioso com ele mesmo por permitir que um sujeito pretensioso fizesse descarrilhar momentaneamente sua indignação com o atendimento aos pacientes. Entretanto, era verdade que o serviço de manutenção do hospital cuidava de sua propriedade. Isso começara há anos. A equipe simplesmente aparecera um dia. Hodges nunca pedira o serviço, mas também nunca fizera nada para impedi-lo.

A longa caminhada para casa, na noite gélida, ajudou a amortecer a culpa que Hodges sentia pelo serviço de manutenção. Afinal de contas, isso não tinha nada a ver com o atendimento aos pacientes. Enquanto entrava no caminho que levava à sua casa, cuja neve não fora retirada, resolveu oferecer-se para pagar alguma quantia razoável pelos serviços prestados. Não pretendia deixar que esse caso impedisse seu protesto com relação a questões mais sérias.

Ao chegar à metade do caminho, pôde ver o gramado de baixo. Através da neve que caía, conseguiu vislumbrar a cerca que havia erguido para impedir que os cavalos de Sherwood atravessassem sua propriedade. Jamais venderia o terreno para aquele filho da mãe. Sherwood conseguira o segundo sítio cobrando a hipoteca de uma família cujo chefe fora um dos pacientes de Hodges. Na verdade, era um dos pacientes cujas cópias das fichas de admissão estavam em seu bolso.

Saindo do caminho, Hodges pegou um atalho que rodeava o lago das rãs. Dava para ver que alguns garotos da vizinhança tinham vindo patinar, porque a neve fora retirada de cima do gelo e fora erguida uma meta de hóquei improvisada. Por trás do lago, a casa vazia pairava por entre a escuridão cheia de neve.

Rodeando a construção, Hodges aproximou-se da porta lateral do anexo de madeira, que ligava a casa ao celeiro. Bateu a neve das botas e entrou. Na saleta, tirou o casaco e o chapéu, pendurando-os. Remexendo no bolso do casaco, pegou os papéis que estivera carregando e levou-os para a cozinha.

Depois de colocá-los sobre a mesa da cozinha, foi até a biblioteca pegar uma bebida para substituir a que deixara no bar. Batidas insistentes na porta interromperam-no no meio da sala de jantar.

Hodges olhou espantado para o relógio. Quem poderia estar chamando àquela hora, numa noite assim? Mudando de direção, voltou a atravessar a cozinha e a entrar na saleta dos fundos. Usando a manga da camisa, enxugou a condensação de um dos painéis de vidro da porta. Podia apenas vislumbrar a figura do lado de fora.

- O que será? - murmurou Hodges enquanto destrancava a porta. Abriu-a e disse:

- Considerando tudo, é meio estranho você vir me visitar, especialmente a esta hora.

Hodges encarou o visitante, que não disse nada. A neve redemoinhou ao redor de suas pernas.

- Ah, droga - disse Hodges, encolhendo os ombros. - O que quer que você queira, entre.-

Largou a porta e dirigiu-se para a cozinha.

- Apenas não espere que eu faça o papel do anfitrião hospitaleiro. E feche a porta!

Quando chegou ao degrau que levava ao nível da cozinha, Hodges começou a se virar para se assegurar de que a porta tivesse sido trancada, por causa do mau tempo. Com o canto dos olhos viu alguma coisa vindo em direção à sua cabeça. Num reflexo, encolheu-se.

O movimento súbito salvou-lhe a vida. Uma haste chata de metal passou ao lado de sua cabeça, mas não antes de cortar fundo o seu couro cabeludo. A força do golpe levou a haste de metal à parte de cima de seu ombro, onde fraturou a clavícula. O ímpeto lançou-o para dentro da cozinha.

Hodges colidiu com a mesa da cozinha. Suas mãos agarraram as bordas, mantendo-o de pé. De sua cabeça o sangue jorrava em pequenos jatos pulsantes, caindo sobre os papéis. Hodges virou-se a tempo de ver o atacante aproximar-se com o braço erguido. Na mão enluvada, ele segurava uma haste que parecia um pequeno pé-de-cabra chato.

Quando a arma começou a baixar num segundo golpe, Hodges estendeu a mão e agarrou o braço exposto, impedindo o impacto. Mesmo assim o metal cortou seu couro cabeludo junto à linha dos cabelos. Mais sangue jorrou das artérias rompidas.

Hodges enfiou desesperado as unhas no braço do atacante. Sabia intuitivamente que não poderia largá-lo; tinha de impedir outro golpe.

Por alguns instantes, as duas figuras lutaram. Numa dança da morte, fizeram piruetas pela cozinha, batendo contra as paredes, derrubando cadeiras e quebrando pratos. Sangue pingava indiscriminadamente sobre tudo.

O atacante gritou de dor enquanto libertava o braço do aperto de Hodges. Mais uma vez a haste de aço subiu num apogeu assustador antes de baixar contra o braço erguido de Hodges. Os ossos se partiram como gravetos sob o impacto.

De novo a barra de metal levantou-se sobre Hodges, agora impotente, e desceu com força. Desta vez, o arco do movimento não foi interrompido, e a arma bateu diretamente contra a cabeça desprotegida, quebrando um fragmento agudamente definido do crânio e penetrando fundo no cérebro.

Hodges despencou no chão, misericordiosamente insensível.

 

SÁBADO, 24 DE ABRIL

- ESTAMOS CHEGANDO perto de um rio, ali em cima - disse David Wilson para sua filha Nikki, que estava no banco do passageiro ao seu lado. - Sabe qual é o nome dele?

Nikki virou seus olhos cor de mogno na direção do pai e empurrou para o lado uma mecha de cabelos. David lançou um olhar na direção da filha, e com a ajuda da luz do sol que atravessava o pára-brisa captou alguns raios sutis de amarelo que irradiavam de suas pupilas através das íris. Combinavam com as faixas cor de mel em seus cabelos.

- Os únicos rios que eu conheço são o Mississippi, o Nilo e o Amazonas - disse Nikki. – Como nenhum deles fica na Nova Inglaterra, tenho de dizer que não sei.

Nem David nem sua esposa, Angela, conseguiram reprimir um riso.

- O que é tão engraçado? - reagiu Nikki indignada. David olhou pelo retrovisor e trocou um olhar significativo com Angela. Ambos tinham o mesmo pensamento e falavam dele com freqüência: Nikki costumava parecer mais madura do que o esperado para sua idade cronológica de oito anos. Ao mesmo tempo, eles percebiam que a filha estava amadurecendo mais depressa por causa dos problemas de saúde.

- Por que vocês riram? - insistiu Nikki.

- Pergunte a sua mãe - disse David.

- Não. Eu acho que seu pai é que deve explicar.

- Qual é a de vocês? Isso não é justo. Mas não me importo se vocês riem ou não, porque posso descobrir sozinha o nome do rio.

Nikki pegou um mapa no porta-luvas.

- Estamos na Rodovia 89 - disse David.

- Eu sei! - reagiu Nikki irritada. - Não quero ajuda.

- Desculpe - disse David com um sorriso.

- Está aqui - disse Nikki triunfante, enquanto dobrava o lado do mapa para poder ler as legendas. - É o rio Connecticut. O mesmo nome do estado.

- Certo - disse David. - E ele é a fronteira entre o que e o que?

Nikki voltou a olhar por um instante para o mapa.

- Ele separa Vermont de New Hampshire.

- Certo outra vez. - Em seguida, apontando para a frente, David acrescentou: - E ali está ele.

Ficaram todos quietos enquanto o furgão Volvo azul, de onze anos, atravessava a ponte. Embaixo a água corria para o sul.

- Acho que a neve ainda está derretendo nas montanhas - disse David.

- Nós vamos ver as montanhas? - perguntou Nikki.

- Com certeza. As Green Mountains.

Chegaram ao outro lado da ponte, onde a rodovia gradualmente virava para o noroeste.

- Agora estamos em Vermont? - perguntou Angela.

- Estamos, mamãe! - disse Nikki impaciente.

- Quanto falta até Bartlet?

- Não tenho certeza - disse David. - Talvez uma hora.

Uma hora e quinze minutos depois, o Volvo dos Wilsons passou pela placa que dizia: ”Bem-vindos a Bartlet, Cidade do Bartlet College.”

David soltou o acelerador e o carro reduziu a velocidade. Estavam numa ampla avenida apropriadamente chamada Main Street. Era ladeada por grandes carvalhos. Por trás das árvores havia casas brancas de madeira. A arquitetura era um potpoum colonial e vitoriano.

- Até aqui parece um livro de histórias - observou Angela.

- Algumas dessas casas da Nova Inglaterra parecem pertencer ao Disney World - disse David.

Angela gargalhou.

- Algumas vezes penso que você acha que uma réplica é melhor do que o original.

Em pouco tempo, as casas deram lugar a prédios comerciais e públicos, em sua maioria construídos de tijolos e com decorações vitorianas. Placas de madeira entalhada anunciavam o ano em que cada um fora construído. A maioria das datas era do final do século XIX ou do início do século XX.

- Olhem! Tem um cinema - disse Nikki, apontando para um letreiro gasto que anunciava um filme atual em grandes letras de fôrma. Junto ao cinema ficava a agência dos correios, com uma desgastada bandeira americana balançando à brisa.

- Nós tivemos sorte com o tempo - observou Angela. O céu estava de um azul pálido pontilhado por pequenas nuvens brancas e fofas. A temperatura, por volta dos vinte graus.

- O que é aquilo? - perguntou Nikki. - Parece um bonde sem rodas.

David gargalhou.

- É chamado de diner, uma lanchonete construída como se fosse um carro-restaurante de trem. Era comum nos anos 50.

Nikki estava forçando o corpo contra o cinto de segurança, olhando empolgada através do pára-brisa.

Enquanto se aproximavam do coração da cidade, descobriram vários prédios de granito cinza, significativamente mais imponentes do que as estruturas de tijolos, especialmente o Banco Nacional de Green Mountain, com sua torre do relógio cheia de ressaltos e ameias.

- Aquele prédio realmente parece ter saído do Disney World - disse Nikki.

- Tal pai, tal filha - disse Angela.

Chegaram ao parque da cidade, cuja grama já alcançara uma cor luxuriante, quase de meio de verão. Açafrões, jacintos e narcisos pontilhavam o verde, especialmente ao redor do ostentoso mirante central. David levou o carro para a beira da rua e parou, dizendo:

- Comparado com o trecho de Boston ao redor do Hospital Municipal de Boston, isto aqui parece o céu.

Ao norte do parque havia uma grande igreja branca cujo exterior era bastante simples, a não ser pelo enorme campanário. Era uma torre neogótica, repleta de elaborados arabescos e espiras. O campanário ficava entre colunas que apoiavam arcos pontudos.

- Temos várias horas antes das entrevistas. O que vocês acham que devemos fazer? – perguntou David.

- Por que não damos mais uma volta e depois almoçamos? - propôs Angela.

- Para mim, tudo bem.

David engrenou o carro e continuou pela Main Street. No lado oeste do parque da cidade, passaram pela biblioteca, que, como o banco, era construída de granito cinza. Mas parecia mais uma villa italiana do que um castelo.

Logo depois da biblioteca ficava a escola primária. David seguiu com o carro perto da calçada para que Nikki pudesse olhar. Era um atraente prédio de tijolos da virada do século, com três andares, ligado a uma ala indefinível, de construção mais recente.

- O que você acha? - perguntou David a Nikki.

- É aí que eu estudaria se a gente viesse morar aqui?

- Provavelmente - disse David. - Não imagino que haja mais de uma escola numa cidade deste tamanho.

- É bonita - disse Nikki em tom descomprometido.

Continuando em frente, passaram pela área comercial. E se encontraram no meio do campus do Bartlet College. Os prédios, em sua maioria, eram do mesmo granito cinza que eles viram na cidade e tinham o mesmo estilo. Muitos eram cobertos de hera.

- Bem diferente da Brown University - disse Angela. - Mas é charmoso.

- Às vezes me pergunto como teria sido se eu tivesse freqüentado uma faculdade pequena como essa - disse David.

- Você não teria conhecido a mamãe - sugeriu Nikki. - E eu não estaria aqui.

David riu.

- Você está totalmente certa e eu estou muito feliz por ter ido para Brown.

Fazendo uma volta através do campus, dirigiram-se de novo para o centro da cidade. Atravessaram o Roaring River e descobriram dois moinhos antigos. David explicou a Nikki como a força da água era usada antigamente. Um dos moinhos abrigava agora uma empresa de software, mas sua roda- d’água girava lentamente. Um cartaz anunciava que o outro moinho agora era a New England Coat Hanger Company.

De volta à cidade, David estacionou no parque. Desta vez, todos saíram e caminharam pela Main Street.

- É espantoso, não é? Nada de lixo, nem pichações nem mendigos - disse Angela. - Parece um país diferente.

- O que você acha das pessoas? - perguntou David. Eles vinham passando por pedestres desde que haviam saído do carro.

- Eu diria que parecem reservadas. Mas não inamistosas. David parou junto à Loja de Ferragens Staley’s.

- Vou entrar e perguntar onde podemos comer.

Angela assentiu. Ela e Nikki estavam olhando a vitrine da sapataria ao lado.

David voltou num instante.

- Disseram que o diner é melhor para um lanche rápido, mas que a Iron Horse Inn tem a melhor comida. Voto pelo diner.

- Eu também - disse Nikki.

- Bom, isso resolve as coisas - concordou Angela.

Os três pediram hambúrgueres ao estilo antigo: com pão torrado, cebola crua e um monte de ketchup. Quando terminaram, Angela se desculpou:

- Não há a menor hipótese de eu ir para uma entrevista sem escovar os dentes.

David pegou um punhado de balas de menta depois de pagar a conta.

No caminho de volta para o carro, aproximaram-se de uma mulher que vinha em sua direção com um cãozinho de caça, de pêlo dourado, preso a uma correia.

- Ah, que bonitinho! - exclamou Nikki.

A mulher parou gentilmente para que Nikki pudesse fazer festa no cãozinho.

- Qual é a idade dele? - perguntou Angela.

- Doze semanas - disse a mulher.

- Poderia nos dizer onde fica o Hospital Comunitário de Bartlet? - perguntou David.

- Certamente. Sigam até o parque da cidade. A rua da direita é a Front Street. Ela passa bem na porta do hospital.

Agradeceram à mulher e continuaram a andar. Nikki caminhava de lado, para olhar o cãozinho.

- Ele é uma gracinha - falou. - Se a gente vier morar aqui, eu posso ter um cachorro?

David e Angela trocaram olhares. Ambos sentiam-se tocados. A exigência modesta de Nikki, depois de todos os problemas médicos pelos quais passara, derreteu seus corações.

- Claro que você pode ter um cachorro - disse Angela.

- Você pode até escolher - disse David.

- Bom, então eu quero vir para cá - disse Nikki com convicção. - Nós podemos?

Angela olhou para David, na esperança de que ele respondesse, mas ele fez um gesto indicando que ela abordasse a questão. Angela lutou com a resposta. Não sabia o que dizer.

- É difícil dizer se podemos ou não vir para cá - disse finalmente. - Há muitas coisas que precisamos avaliar.

- Que tipo de coisas? - perguntou Nikki.

- Se eles vão querer a mim e ao seu pai - disse Angela, aliviada por ter conseguido uma explicação simples, enquanto os três voltavam a entrar no carro.

O Hospital Comunitário de Bartlet era grande e mais imponente do que David e Angela haviam esperado, mesmo sabendo que era um centro de referência para uma parte significativa do estado.

A despeito de uma placa que dizia claramente ”Estacionamento nos Fundos”, David se aproximou do meio-fio diante da porta da frente. Parou o carro, mas deixou o motor funcionando.

- É realmente bonito - falou.-Nunca pensei que diria isso de um hospital.

- Que vista! - disse Angela.

O hospital ficava na metade de uma colina ao norte da cidade. Era virado para o sul, e sua fachada estava banhada pela luz brilhante do sol. Logo abaixo de onde estavam, na base da colina, podiam ver toda a cidade. O campanário da igreja metodista era especialmente notável. À distância, as Green Mountains proporcionavam uma borda ornamental para o horizonte.

Angela deu um tapinha no braço de David.

- É melhor a gente entrar. Minha entrevista é dentro de dez minutos.

David engrenou o carro e rodeou o hospital. Havia dois estacionamentos em terraços contíguos, separados por uma fileira de árvores. Encontraram vagas para visitantes junto à entrada dos fundos do hospital, no estacionamento de baixo.

Placas adequadamente localizadas tornaram fácil encontrar os escritórios administrativos, e uma secretária solícita indicou-lhes a sala de Michael Caldwell, diretor médico do Bartlet.

Angela bateu na porta aberta. Dentro, Michael Caldwell levantou os olhos de sua mesa e em seguida ergueu-se para recebê-la. Imediatamente Angela achou-o parecido com David: a pele morena, o porte e a compleição atlética. Também tinha mais ou menos a mesma idade de David, trinta anos, bem como a altura, aproximadamente um metro e oitenta. Seu cabelo, como o de David, tendia a formar uma divisão natural no centro. Mas terminavam aí as semelhanças. As feições de Caldwell eram mais duras do que as de David; seu nariz era aquilino e mais estreito.

- Entre! - disse Caldwell com entusiasmo. - Por favor! Vocês todos.

Rapidamente pegou mais cadeiras.

David olhou para Angela, pedindo orientação. Ela encolheu os ombros. Se Caldwell queria entrevistar toda a família, tudo bem.

Depois de rápidas apresentações, Caldwell voltou para trás da mesa, com a pasta de Angela à sua frente.

- Estive olhando sua requisição, e devo dizer que estou realmente impressionado.

- Obrigada.

- Francamente, não esperava uma patologista. Depois fiquei sabendo que é um campo que vem atraindo cada vez mais mulheres.

- Os horários tendem a ser mais previsíveis - disse Angela. - Torna a prática da medicina mais compatível com a família.

Ela analisou o homem. Seu comentário deixara-a ligeiramente desconfortável, mas estava disposta a adiar qualquer julgamento.

- Pelas cartas de recomendação, sinto que o departamento de patologia do Hospital Municipal de Boston acha que você foi um de seus melhores residentes.

Angela sorriu.

- Tentei dar o máximo.

- E o seu currículo da escola de medicina de Colúmbia é igualmente impressionante. Conseqüentemente, gostaríamos de tê-la aqui no Hospital Comunitário de Bartlet. É simples. Mas talvez você tenha algumas perguntas para mim.

- David também se candidatou para um trabalho em Bartlet - disse Angela.-Numa das maiores empresas de planos de saúde da área: a Comprehensive Medical Vermont.

- Nós a chamamos de CMV - disse Caldwell.-E é a única da região.

- Na carta, dei a entender que minha disponibilidade está contingenciada à aceitação dele - disse Angela. - E vice-versa.

- Estou consciente disso - disse Caldwel. - De fato, tomei a liberdade de contactar a CMV e falar sobre a proposta de David com o gerente regional, Charles Kelley. O escritório regional da CMV fica aqui no nosso prédio ambulatorial. Claro que não posso falar oficialmente por eles, mas, pelo que entendi, não há qualquer problema.

- Vou me encontrar com o Senhor Kelley assim que terminarmos aqui - disse David.

- Perfeito - falou Caldwell. - Assim, Dra. Wilson, o hospital gostaria de oferecer-lhe um cargo de patologista associada. Irá trabalhar com dois outros patologistas em tempo integral. O salário do primeiro ano será de oitenta e dois mil dólares.

Quando Caldwell baixou os olhos para a pasta sobre a mesa, Angela olhou para o lado de David. Oitenta e dois mil dólares pareciam uma fortuna, depois de tantos anos de dívidas e salários magros. David devolveu-lhe um olhar conspirador, obviamente compartilhando os pensamentos dela.

- Também tenho algumas informações em resposta à sua carta com perguntas específicas - disse Caldwell. Por um instante ele hesitou, acrescentando em seguida: -Talvez devamos conversar sobre isso em particular.

- Não é necessário - disse Angela. - Presumo que esteja falando sobre a fibrose cística de Nikki. Ela é uma participante ativa no tratamento, de modo que não há segredos.

- Muito bem - disse Caldwell, e sorriu mansamente para Nikki antes de continuar: - Descobri que há uma paciente com o mesmo problema aqui no Bartlet. Seu nome é Caroline Helmsford. Tem nove anos. Providenciei para que você se encontrasse com o médico dela, o Doutor Bertrand Pilsner. Ele é um dos pediatras da CMV.

- Obrigada por ter-se dado ao trabalho - disse Angela.

- Não tem problema. Obviamente queremos que vocês venham para nossa maravilhosa cidade. Mas confesso que não li sobre esse problema de saúde quando fiz os levantamentos. Talvez haja alguma coisa que eu deva saber para poder ajudar.

Angela olhou para Nikki.

- Por que não explica ao Senhor Caldwell o que é fibrose cística?

- Fibrose cística é uma condição herdada - disse Nikki, num tom sério e ensaiado. - Quando ambos os pais são portadores, há vinte e cinco por cento de possibilidade de que os filhos tenham a doença. Cerca de um em cada dois mil bebês é afetado.

Caldwell assentiu e tentou manter o sorriso. Havia alguma coisa enervante em receber uma aula de uma criança de oito anos.

- O problema principal é com o sistema respiratório - prosseguiu Nikki. -- O muco nos pulmões tende a ficar mais espesso do que nas pessoas normais. Os pulmões têm dificuldade para limpar esse muco, o que leva à congestão e à infecção. Bronquite crônica e pneumonia são as principais preocupações. As condições variam bastante: algumas pessoas são seriamente afetadas; outras, como eu, só precisam se cuidar para não pegar resfriados e fazer a terapia respiratória.

- Muito interessante - disse Caldwell. - Sem dúvida você parece uma profissional. Talvez deva ser médica quando crescer.

- Eu pretendo. Vou estudar medicina respiratória.

Caldwell levantou-se e fez um gesto em direção à porta.

- Que tal vocês, doutores e futura doutora, irem até o prédio ambulatorial encontrar o Doutor Pilsner?

Foi uma pequena caminhada da área administrativa no velho prédio central até o prédio ambulatorial, mais novo. Em alguns minutos atravessaram uma porta corta-fogo, e o piso do corredor mudou de vinil para um carpete elegante.

O Doutor Pilsner estava no meio do seu horário de trabalho da tarde, mas gentilmente recebeu os Wilsons. Sua barba branca e espessa deixava-o parecido com Kris Kringle. Nikki gostou imediatamente quando ele se curvou e apertou sua mão, tratando-a mais como um adulto do que como uma criança.

- Temos um grande terapeuta respiratório aqui no hospital - disse o Doutor Pilsner aos Wilsons. - E estamos bem equipados para o atendimento respiratório. Além disso, eu tive uma bolsa de estudos em medicina respiratória no Children’s, em Boston. Acho que podemos cuidar muito bem de Nikki.

- Nossa! - disse Angela, obviamente impressionada e aliviada. - Sem dúvida alguma, isso é confortador. Desde que foi feito o diagnóstico de Nikki, temos uma consideração especial pelas necessidades dela em todas as nossas decisões.

- E estão certos - disse o Doutor Pilsner. - Bartlet é uma boa escolha, com sua baixa poluição e seu ar puro. Desde que ela não tenha alergia a árvores ou a grama, acho que será um ambiente saudável para a sua filha.

Caldwell levou os Wilsons à sede regional da CMV. Antes de sair, fez com que prometessem voltar à sua sala depois da entrevista de David.

A recepcionista da CMV dirigiu os Wilsons para uma pequena área de espera. Os três mal tiveram tempo de pegar revistas antes que Charles Kelley emergisse de sua sala.

Kelley era um homem grande, pairando uns vinte centímetros acima de David enquanto apertavam as mãos. Tinha o rosto bronzeado, e seu cabelo cor de areia apresentava faixas de louro puro. Vestia um terno de corte meticuloso. Seus modos eram expansivos e entusiasmados, mais próprios de um supervendedor do que de um administrador de uma empresa de saúde.

Como Caldwell, Kelley convidou toda a família Wilson para seu escritório. Foi igualmente cortês.

- Francamente, nós o queremos, David - disse Kelley, batendo o punho fechado sobre a mesa. - Precisamos de você como parte de nossa equipe. Ficamos satisfeitos por ter prestado residência em medicina interna, especialmente num lugar como o Hospital Municipal de Boston. À medida que boa parte da cidade se estende para o campo, descobrimos que precisamos do seu tipo de especialização. Você será uma contribuição valiosa para nossa equipe de atendimento e triagem primária, sem dúvida.

- Fico satisfeito por estarem satisfeitos - disse David encolhendo os ombros embaraçado.

- A CMV está se expandindo rapidamente nesta área de Vermont, especialmente na própria Bartlet - alardeou Kelley. - Assinamos convênios com a fábrica de cabides, com a faculdade e com a empresa de softwares de computador, além de todos os funcionários estaduais e municipais.

- Parece um monopólio - brincou David.

- Preferimos pensar que isso se deve à nossa dedicação para com a qualidade no atendimento e o controle de custos.

- Claro - concordou David.

- Seu salário será de quarenta e um mil no primeiro ano. David assentiu. Tinha certeza de que Angela iria implicar com ele, ainda que os dois soubessem todo o tempo que o salário dela seria maior do que o seu. Por outro lado, eles não esperavam que o dela fosse o dobro.

- Posso mostrar sua futura sala - disse Kelley, ansioso. - Isso dará uma visão melhor de nosso funcionamento e de como será trabalhar aqui.

David olhou para Angela. A abordagem de Kelley era a de um vendedor mais agressivo do que Caldwell.

Para David, a sala parecia um sonho. A vista para o sul, na direção das Green Mountains, era tão perfeita que parecia uma pintura.

David notou quatro pacientes sentados na sala de espera, lendo revistas. Olhou para Kelley em busca de uma explicação.

- Você vai compartilhar esta suíte com o Doutor Randall Portland - explicou Kelley. - Ele é um cirurgião ortopédico. Um bom sujeito, devo acrescentar. Descobrimos que compartilhar recepcionistas e enfermeiras é um modo eficiente de utilizar os recursos. Deixe-me ver se ele está disponível para um alô.

Kelley deu alguns passos e bateu no que David pensara que fosse apenas um espelho. Ele deslizou. Por trás havia uma recepcionista. Kelley falou com ela por um instante antes da divisão espelhada deslizar de novo, fechando-se.

- Ele vai sair num segundo - disse Kelley, voltando para perto dos Wilsons. Em seguida explicou a divisão do consultório. Abrindo uma porta no lado oeste da sala de espera, guiou-os por salas de exame vazias, recém-decoradas. Também levou-os até a sala que seria o consultório particular de David. Tinha a mesma visão fabulosa para o sul, como a sala de espera.

- Alô, todo mundo - disse uma voz. Os Wilsons viraram-se, afastando-se da estupefação junto à janela, para ver um homem jovem, porém de aparência cansada, entrando na sala. Era o Doutor Randall Portland. Kelley apresentou-o a todos, inclusive a Nikki, que apertou sua mão como fizera com o Doutor Pilsner. - Me chame de Randy - disse o Doutor Portland enquanto cumprimentava David.

David sentiu que o sujeito o estava avaliando.

- Joga basquete? - perguntou Randy.

- De vez em quando. Ultimamente não tenho tido muito tempo.

- Espero que fique em Bartlet. Precisamos de mais jogadores aqui. Pelo menos alguém para ficar no meu lugar.

David sorriu.

- Foi bom conhecer vocês. Mas acho que preciso voltar para o trabalho.

- Ele é um sujeito ocupado - explicou Kelley depois que o Doutor Portland saiu. - Atualmente só temos dois ortopedistas. Precisamos de três.

David virou-se outra vez para a vista hipnotizante.

- Bem, o que você diz? - perguntou Kelley.

- Diria que estamos muito impressionados - disse David. E olhou para Angela.

- Vamos ter de pensar um bocado a respeito - disse Angela.

Depois de deixar Charles Kelley, os Wilsons voltaram à sala de Caldwell. Ele insistiu em levar David e Angela num passeio rápido pelo hospital. Nikki foi deixada na creche, atendida por voluntários usando guarda-pós cor-de-rosa.

A primeira parada foi no laboratório. Angela não se surpreendeu ao descobrir que era moderníssimo. Depois de mostrar-lhe a seção de patologia, onde ela faria a maior parte de seu trabalho, Caldwell levou-a para conhecer o chefe do departamento, o Doutor Benjamin Wadley.

O Doutor Wadley era um cavalheiro de aparência distinta, de cabelos prateados, com cinqüenta e poucos anos. Angela ficou imediatamente espantada, pensando em como ele se parecia com o seu pai.

Depois das apresentações, o Doutor Wadley disse que sabia que David e Angela tinham uma filha. Antes que eles pudessem responder, começou a falar empolgado sobre o sistema escolar da cidade.

- Meus filhos realmente se deram bem. Um está agora no Wesleyan, em Connecticut. O outro está terminando o colegial e já foi aceito no Smith College.

Alguns minutos mais tarde, depois de se despedir do Doutor Wadley, Angela puxou David para o lado, enquanto seguiam Caldwell, e sussurrou:

- Notou a semelhança entre o Doutor Wadley e o meu pai?

- Agora que você falou, sim. Ele tem o mesmo tipo de pose e de confiança.

- Eu achei que era evidente.

- Não vamos começar nenhuma transferência histérica - zombou David.

A parada seguinte foi na sala de emergências, seguida pelo Imaging Center. David ficou especialmente impressionado com o recém-adquirido aparelho de ressonância magnética.

- É melhor do que o do Hospital Municipal de Boston - observou. - De onde vem o dinheiro para isso?

- O Imaging Center é umajoint venture entre o hospital e o Doutor Cantor, um dos médicos da equipe - explicou Caldwell. - Eles vivem atualizando o equipamento.

Depois do Imaging Center, David e Angela percorreram o novo prédio de radioterapia, que abrigava um dos mais recentes aceleradores lineares. Dali voltaram ao hospital principal e à nova unidade de tratamento neonatal.

- Não sei o que dizer - admitiu David quando o passeio terminou.

- Tínhamos ouvido dizer que o hospital era bem equipado - disse Angela -, mas isso é muito melhor do que havíamos imaginado.

- Dá para compreender por que temos orgulho dele - disse Caldwell enquanto guiava-os de volta à sua sala. - Tivemos de melhorar significativamente para obter o contrato com a CMV. Foi preciso concorrer com o Hospital Valley e com o Hospital Mary Sackler, em nome da sobrevivência. Felizmente, vencemos.

- Mas todo esse equipamento e essas melhorias custaram uma fortuna - disse David.

- Isso é dizer pouco - concordou Caldwell. - Hoje em dia não é fácil manter um hospital, especialmente nesta época de competição determinada pelo governo. Os lucros estão baixos, os custos crescem. É difícil até mesmo continuar funcionando. - Caldwell entregou a David um envelope pardo. - Aqui estão algumas informações sobre o hospital. Talvez ajudem a convencêlos a vir para cá e aceitar as nossas ofertas de emprego.

- E quanto a moradia? - perguntou Angela como se tivesse pensado na última hora.

- Fico feliz por ter perguntado - disse Caldwell. - Eu deveria ter pedido que fossem até o Banco Nacional de Green Mountain para ver Barton Sherwood. O Senhor Sherwood é vice-chairman da diretoria do hospital. Também é presidente do banco. Ele vai dar a vocês uma idéia sobre o quanto a cidade apoia o hospital.

Depois de resgatar uma relutante Nikki da creche onde estivera se divertindo, os Wilsons voltaram para o parque da cidade e caminharam até o banco. Como fora típico em toda a sua recepção em Bartlet, Barton Sherwood recebeu-os de imediato.

- Suas propostas foram discutidas favoravelmente na última reunião da diretoria executiva - disse Barton Sherwood enquanto voltava a se recostar em sua cadeira e enfiava os polegares nos bolsos do colete. Era um homem magro, com quase sessenta anos, cabelo ralo e um bigode parecido com um risco a lápis. - Esperamos sinceramente que entrem para a família Bartlet. Para encorajá-los, quero que saibam que o Banco Nacional de Green Mountain está preparado para oferecer-lhes hipotecas, de modo que possam comprar uma casa.

David e Angela ficaram perplexos e seus queixos caíram ao mesmo tempo. Nunca, em seus sonhos mais loucos, tinham pensado que poderiam comprar uma casa no primeiro ano após suas residências. Tinham pouco dinheiro guardado e uma montanha de dívidas com o crédito educativo: mais de cento e cinqüenta mil dólares.

Sherwood prosseguiu, falando sobre questões específicas, mas nem David nem Angela conseguiam se concentrar nos detalhes. Só ousaram falar depois de terem voltado para o carro.

- Não consigo acreditar - disse David.

- É quase bom demais para ser verdade - concordou Angela.

- Isso significa que estamos vindo para Bartlet?-perguntou Nikki.

- Vamos ver - disse Angela.

Como David tinha dirigido desde Boston, Angela se ofereceu para guiar de volta. Enquanto ela dirigia, David examinou o envelope com informações que lhes fora entregue por Caldwell.

- Isto é interessante - disse.-Há um recorte do jornal local noticiando a assinatura do contrato entre o Hospital Comunitário de Bartlet e a CMV. Diz que o acordo foi consumado quando a diretoria do hospital, sob a liderança de Harold Traynor, finalmente concordou com a exigência da CMV de proporcionar hospitalização por uma quantia não-especificada de capitação mensal, um método de controle de custos encorajado pelo governo e preferido pelas empresas de planos de saúde.

- É um bom exemplo de como os fornecedores de serviços, como os hospitais e os médicos, estão sendo forçados a fazer concessões - disse Angela.

- Você está certa. Ao aceitar o plano de capitação mensal, o hospital foi forçado a agir como uma companhia de seguros. Eles estão assumindo parte do risco de saúde dos clientes da CMV.

- O que é capitação? - perguntou Nikki.

David virou-se.

- Capitação é quando uma empresa recebe uma certa quantidade de dinheiro por pessoa. Com os planos de saúde geralmente é um pagamento mensal.

Nikki continuava parecendo confusa. David tentou outra vez.

- Sejamos específicos. Digamos que a CMV paga ao Hospital Bartlet mil dólares por mês por cada pessoa que esteja no plano. Se alguém tiver de ser hospitalizado durante aquele mês, por qualquer motivo, a CMV não precisa pagar mais nada. E se ninguém ficar doente naquele mês, o hospital ganha rios de dinheiro. Mas e se todo mundo ficar doente e vier para o hospital? O que você acha que vai acontecer?

- Acho que você continua falando difícil demais para ela - observou Angela.

- Eu entendi - disse Nikki. - Se todo mundo ficar doente, o hospital vai à falência.

David sorriu satisfeito e deu uma cutucada na costela de Angela.

- Ouviu só? - disse triunfante. - Essa é a minha filha!

Algumas horas depois, estavam de volta ao apartamento em Southend. Angela teve sorte de encontrar uma vaga a meio quarteirão do prédio. Gentilmente, David acordou Nikki, que caíra no sono. Juntos, os três caminharam para o prédio e subiram a escada até o quarto andar.

- Epa! - disse Angela, que fora a primeira a chegar ao apartamento.

- Qual é o problema? - perguntou David, olhando por cima do ombro dela.

Angela apontou para a porta. O portal estava quebrado no ponto onde fora enfiado um pé-de-cabra.

David estendeu a mão e empurrou a porta. Ela se abriu sem resistência. Todas as três fechaduras tinham sido quebradas.

David acendeu a luz. O apartamento fora saqueado: mobília virada, o conteúdo de armários e gavetas espalhado no chão.

- Oh, não! - gritou Angela, enquanto lhe vinham lágrimas aos olhos.

- Calma! - disse David. - O que está feito está feito. Não vamos ficar histéricos.

- O que quer dizer com ”não vamos ficar histéricos”? Nossa casa foi arruinada. Levaram a TV.

- Podemos comprar outra - reagiu David, aparentando calma.

Nikki voltou do seu quarto e disse que ele não fora tocado.

- Pelo menos podemos agradecer por isso - disse David.

Angela desapareceu no quarto do casal, enquanto David examinava a cozinha. A não ser por um pote de sorvete quase vazio, derretido sobre a bancada, a cozinha estava intacta.

David pegou o telefone e discou 911. Enquanto ele esperava que a ligação fosse completada, Angela apareceu com lágrimas escorrendo pelo rosto, segurando uma pequena caixa de jóias.

Depois de dar os detalhes à telefonista do 911, David virou-se para Angela. Ela lutava para manter o controle.

- Só não diga nada extremamente racional - conseguiu dizer Angela por entre as lágrimas. - Não diga que podemos comprar mais jóias.

- Certo, certo - disse David em tom conciliador. Angela enxugou o rosto com a manga.

- Voltar e encontrar essa violência em nosso apartamento faz Bartlet parecer muito mais atraente. Agora estou mais do que pronta para deixar essa doença urbana para trás.

- Não tenho nada contra ele pessoalmente-disse o Doutor Randall Portland para a esposa, Arlene, enquanto se levantavam da mesa de jantar. Ela fez um gesto para os filhos, Mark e Allen, ajudarem a limpar a mesa. - Só não quero compartilhar meu consultório com um clínico.

- Por que não? - perguntou Arlene, pegando os pratos com os filhos e jogando os restos de comida na lixeira.

- Porque não quero meus pacientes em pós-operatório compartilhando uma sala de espera com um punhado de doentes. - Randy falou ríspido. Em seguida recolocou a rolha na garrafa de vinho branco e guardou-a na geladeira.

- Ah! - disse Arlene.-Isso dá para entender. Eu temia que fosse alguma richa juvenil entre um cirurgião e um clínico.

- Não seja ridícula.

- Bom, você se lembra de todas as piadas que costumava fazer sobre os clínicos, quando era residente?

- Aquilo era uma gozação saudável. Mas isto é outra coisa. Não quero pessoas infectadas junto de meus pacientes. Pode chamar de superstição. Não me importo. Mas já tive complicações demais com meus pacientes, e isso me deixou deprimido.

- Nós podemos ver televisão? - perguntou Mark. Allen, com seus olhos angelicamente enormes, estava ao seu lado. Tinham sete e seis anos, respectivamente.

- Nós já concordamos que... - começou Arlene, mas logo parou. Era difícil resistir às expressões implorantes dos filhos. Além disso, queria um momento a sós com Randy. -

Certo. Meia hora.

- Oba! - exclamou Mark. Allen fez eco, antes que os dois saíssem correndo para a sala íntima.

Arlene pegou Randy pelo braço e levou-o para a sala de estar. Fez com que ele se sentasse no sofá e acomodou-se numa cadeira em frente.

- Não gosto do jeito como você está falando. Ainda está chateado por causa de Sam Flemming?

- Claro que ainda estou chateado por causa de Sam Flemming - falou Randy irritado. - Não perdi nenhum paciente durante toda a minha residência. Agora perdi três.

- Há coisas que você não pode controlar.

- Nenhum deles deveria ter morrido. Especialmente sob os meus cuidados. Sou apenas um médico de ossos, remexendo nas extremidades das pessoas.

- Pensei que tinha superado a depressão.

- Voltei a ter problemas para dormir - admitiu Randy.

- Talvez devesse ligar para o Doutor Fletcher.

Antes que Randy pudesse responder, o telefone tocou. Arlene deu um salto. Estivera aprendendo a odiar aquele som, especialmente quando Randy tinha pacientes em pós-operatório no hospital. Atendeu ao segundo toque, esperando que fosse uma ligação social. Infelizmente não era. Uma das enfermeiras de serviço no Hospital Comunitário de Bartlet queria falar com o Doutor Portland.

Arlene entregou o fone ao marido. Ele pegou-o relutante e encostou no ouvido. Depois de ouvir por um momento, seu rosto ficou branco. Recolocou lentamente o fone no gancho e levantou os olhos para Arlene.

- É o joelho que operei esta manhã. William Shapiro. Não está passando bem. Não consigo acreditar. Parece a mesma coisa. Desenvolveu uma febre e está desorientado. Provavelmente pneumonia.

Arlene chegou perto do marido, passou os braços ao seu redor e deu-lhe um abraço apertado.

- Sinto muito - falou, sem saber o que dizer.

Randy não respondeu. Nem tentou se mexer durante alguns minutos. Depois soltou silenciosamente os braços de Arlene e foi para a porta dos fundos sem falar nada. Arlene ficou olhando da janela da cozinha enquanto o carro descia pelo caminho e chegava à rua.

Em seguida espreguiçou-se e sacudiu a cabeça. Estava preocupada com o marido, mas não sabia o que fazer.

 

SEGUNDA-FEIRA, 3 DE MAIO

HAROLD TRAYNOR segurou o martelo de juiz, de mogno incrustado com ouro, que comprara na Shreve Crump & Low, em Boston. Estava de pé junto à cabeceira da mesa da biblioteca no Hospital Comunitário de Bartlet. À sua frente encontrava-se a estante de leitura que ele mandara fazer para a sala de reuniões do hospital. Sobre ela estavam as anotações que ele pedira à secretária que datilografasse no início da manhã. Sobre a mesa havia a parafernália médica de sempre, em vários estágios de avaliação por parte da diretoria. Dominando a confusão estava a maquete da garagem proposta.

Traynor checou o relógio. Eram exatamente seis da tarde. Pegando o martelo com a mão direita, bateu-o com força contra a sua base. Atenção aos detalhes e pontualidade eram duas características que ele valorizava particularmente.

- Gostaria de chamar a atenção do Comitê Executivo do Hospital Comunitário de Bartlet - gritou com o máximo de pompa que conseguiu reunir.

Estava vestindo seu melhor terno de risca. Nos pés tinha sapatos com palmilha especial, recém-engraxados, que o faziam parecer mais alto. Ele media apenas um metro e sessenta e nove, e sentia-se traído em questão de estatura. Seus cabelos escuros e ralos estavam perfeitamente cortados e cuidadosamente penteados sobre a parte calva no topo da cabeça.

Traynor gastava muito tempo e esforço preparando-se para as reuniões de diretoria, tanto em termos de conteúdo quanto de sua aparência. Naquele dia fora direto para casa tomar um banho e mudar de roupa depois de uma viagem a Montpelier. Sem tempo a perder, não parara no escritório.

Harold Traynor era advogado em Bartlet, especializado em planejamento estatal e impostos. Também era um empresário com participação em vários empreendimentos comerciais na cidade.

Sentado à sua frente estavam Barton Sherwood, vice-chairman; Helen Beaton, presidente e executiva-chefe do hospital; Richard Arnsworth, tesoureiro; Clyde Robeson, secretário; e o Doutor Delbert Cantor, atual chefe de pessoal.

Seguindo estritamente os procedimentos parlamentares especificados no Robert’s Rules ofOrder, que ele comprara depois de ser eleito chairman, Traynor pediu que Clyde Robeson lesse a minuta da última reunião.

Assim que a minuta foi lida e aprovada, Traynor limpou a garganta preparando-se para seu relatório mensal. Olhou para cada membro de seu comitê executivo, certificando-se de que todos estavam atentos. Estavam, a não ser pelo Doutor Cantor que, tipicamente, parecia entediado limpando as unhas.

- Estamos enfrentando desafios significativos no Hospital Comunitário de Bartlet – começou Traynor. - Como centro de referência, fomos poupados de alguns problemas financeiros dos pequenos hospitais rurais, mas não de todos. Precisaremos trabalhar ainda mais do que no passado para que o hospital sobreviva a esses dias.

”Entretanto, mesmo nestes tempos difíceis há uma luz ocasional. Como, sem dúvida, alguns de vocês ouviram falar, um estimado cliente meu, William Shapiro, faleceu de pneumonia na semana passada, após uma cirurgia no joelho. Apesar de lamentar muito o seu falecimento extemporâneo, estou feliz por anunciar oficialmente que o Senhor Shapiro designou generosamente o hospital como único beneficiário de um seguro de três milhões de dólares.

Um murmúrio de aprovação percorreu os presentes. Traynor ergueu a mão, pedindo silêncio.

- Esse gesto caridoso não poderia ter vindo em hora melhor. Irá retirar-nos do vermelho, ainda que não por muito tempo. A notícia no mês é a descoberta recente de que nossos fundos de amortização para as grandes emissões de títulos estão consideravelmente menores do que os objetivos projetados.

Traynor olhou direto para Sherwood, cujo bigode se contraía nervosamente.

- O fundo precisa ser resguardado - disse Traynor. - Boa parte desses três milhões de dólares terá de se destinar a esse objetivo.

- Não foi culpa minha - interrompeu Sherwood intempestivamente. -Exigiram que eu maximizasse o retorno sobre o fundo de amortização. Isso requeria riscos.

- A mesa não deu a palavra a Barton Sherwood - disse Traynor ríspido.

Por um instante Sherwood pareceu que iria responder, mas continuou em silêncio.

Traynor examinou suas anotações num esforço para se recompor depois da explosão de Sherwood. Ele odiava desordem.

- Graças ao legado do Senhor Shapiro - prosseguiu -, o problema do fundo de amortização não será letal. A questão é impedir que qualquer observador externo fique sabendo da redução. Não podemos nos dar ao luxo de mudar a cotação de nossos títulos. Conseqüentemente, seremos forçados a adiar a emissão de títulos para construir a garagem até que os fundos sejam restaurados. ”Como medida temporária para impedir ataques contra nossas enfermeiras, pedi à nossa executiva-chefe, Helen Beaton, que mandasse instalar iluminação no estacionamento.

Traynor correu o olhar pela sala. De acordo com o Robert’s Rules ofOrder, a questão deveria ser apresentada como uma moção, debatida e votada, mas ninguém se mexeu.

- O último ponto refere-se ao Doutor Dennis Hodges. Como vocês sabem, o Doutor Hodges desapareceu em março último. Na semana passada me reuni com nosso chefe de polícia, Wayne Robertson, para discutir o caso. Não surgiram pistas de seu paradeiro. Se o Doutor Hodges se meteu em encrenca, não há qualquer evidência, ainda que Robertson tenha dado a entender que quanto mais tempo o Doutor Hodges permanecer desaparecido, maiores as probabilidades de que não esteja vivo.

- Aposto que ele ainda está por aí - disse o Doutor Cantor. - Conhecendo aquele filho da mãe, ele provavelmente está na Flórida, morrendo de rir cada vez que pensa em nós, lutando aqui com toda essa baboseira burocrática.

Traynor usou seu martelo.

- Por favor! - ergueu a voz. - Vamos manter alguma ordem!

A expressão de tédio de Cantor transformou-se em desdém, mas ele permaneceu quieto.

Traynor encarou feroz o Doutor Cantor antes de retomar o tema:

- Independentemente dos sentimentos pessoais que tenhamos pelo Doutor Hodges, permanece o fato de que ele representou um papel importantíssimo na história deste hospital. Não fosse por ele, esta instituição seria apenas mais um minúsculo hospital rural. Seu bem-estar merece nossa consideração. Gostaria que o comitê executivo soubesse que a ex-esposa do Doutor Hodges, a Senhora Hodges, decidiu vender sua casa. Ela voltara a morar em Boston há alguns anos. Sua esperança era de que o marido pudesse aparecer, mas, baseada nas conversas que tivera com o Robertson, decidiu cortar suas ligações com Bartlet. Só levanto esse assunto agora porque acho que num futuro próximo a diretoria pode desejar construir um memorial em homenagem à contribuição considerável dada pelo Doutor Hodges ao Hospital Comunitário de Bartlet.

Tendo terminado o discurso, Traynor reuniu suas anotações e passou formalmente a palavra a Helen Beaton, para que ela apresentasse seu relatório mensal de presidente. Beaton levantou-se, empurrando a cadeira para trás. Tinha trinta e poucos anos, o cabelo castanho- avermelhado cortado curto. Seu rosto era largo, não muito diferente do de Traynor. Usava um conjunto azul, formal, acentuado por uma echarpe de seda.

- Este mês conversei com vários grupos da cidade - disse ela. - Meu tópico, em cada uma dessas ocasiões, abordava as necessidades financeiras do hospital. Para mim, foi interessante perceber que a maioria das pessoas geralmente não tinha idéia de nossos problemas, ainda que as questões de saúde estivessem quase sempre no noticiário. O que enfatizei em minhas conversas foi a importância económica do hospital para a cidade e suas imediações. Deixei bastante claro que se o hospital fechasse todos os negócios todos os comerciantes sofreriam. Afinal de contas, o hospital é o maior empregador desta parte do estado. Também lembrei que não existe dotação de impostos para o hospital, e que o levantamento de fundos tem sido e será fundamental para manter as portas abertas.

Beaton fez uma pausa enquanto virava a primeira página de suas anotações.

- Agora, a má notícia - falou, referindo-se a vários gráficos grandes que ilustravam as informações que iria apresentar. Segurou os gráficos diante do peito. - As admissões em abril estiveram vinte por cento acima dos prognósticos. Nosso censo diário esteve oito por cento acima do de março, e o período médio de permanência esteve seis por cento acima. Obviamente, essas são tendências sérias, como tenho certeza de que irá relatar nosso tesoureiro, Richard Arnsworth.

Beaton levantou o último gráfico.

- E finalmente preciso dizer que houve uma queda na utilização da sala de emergência, que, como vocês sabem, não faz parte de nosso acordo de capitação com a CMV. E, para piorar as coisas, a CMV recusou-se a pagar várias de nossas requisições vindas da emergência, dizendo que os sócios violaram as regras da CMV.

- Droga, isso não é culpa do hospital - disse o Doutor Cantor.

- A CMV não quer saber dessas tecnicalidades - disse Beaton. - Em conseqüência, fomos forçados a cobrar direto dos pacientes, e eles estão chateados, o que é compreensível. Amaioria se recusou a pagar, dizendo que procurássemos a CMV.

- O sistema de saúde está se tornando um pesadelo – disse Sherwood.

- Diga isso ao nosso representante em Washington - retrucou Beaton.

- Não vamos desviar o assunto - disse Traynor.

Beaton voltou a olhar para suas anotações e em seguida prosseguiu:

- Os indicadores de qualidade para abril estiveram dentro das expectativas normais. Os relatórios sobre incidentes aconteceram em quantidade menor do que em março, e não foi iniciado nenhum processo sobre erro médico.

- As maravilhas jamais se acabarão - comentou o Senhor Cantor.

- Outras notícias perturbadoras em abril referem-se à agitação sindical – prosseguiu Beaton. - Os setores de nutrição e de limpeza estão sendo visados. Não preciso dizer que a sindicalização aumentaria significativamente nossos problemas financeiros.

- É uma crise depois da outra - disse Sherwood.

- Duas áreas de subutilização-prosseguiu Beaton - são a unidade de tratamento intensivo neonatal e o acelerador linear. Durante o mês de abril, discuti essa questão com a CMV, já que nossos custos fixos para manter essas unidades são altos demais. Enfatizei que foram eles que exigiram esses serviços. A CMV prometeu que procuraria transferir para Bartlet pacientes de áreas que não tenham essas instalações e reembolsar-nos de acordo com o uso.

- Isso me lembra uma coisa - disse Traynor. Como chairman, sentia que tinha o direito de interromper. - Qual é a situação da velha máquina de cobalto-60 que foi substituída pelo acelerador linear? Houve algum inquérito da divisão de licenciamento do estado ou da comissão reguladora nuclear?

- Nem uma palavra - respondeu Beaton. - Informamos a eles que a máquina está para ser vendida a um hospital do governo no Paraguai, e que estamos esperando pela verba.

- Não quero me envolver em nenhuma confusão burocrática por causa daquela máquina - alertou Traynor.

Beaton assentiu e passou para a última página de suas anotações.

- Finalmente, tenho mais uma notícia ruim. Ontem, pouco antes da meia-noite, houve outra tentativa de estupro no estacionamento.

- O quê? - gritou Traynor. - Por que não fui informado disso?

- Só fiquei sabendo esta manhã - explicou Beaton. - Tentei ligar-lhe assim que soube, mas você não estava. Deixei uma mensagem para que me ligasse, mas não tive resposta.

- Passei o dia inteiro em Montpelier - explicou Traynor, sacudindo desanimado a cabeça.-Droga, isso precisa parar. É um pesadelo. Odeio imaginar o que a CMV pensa a respeito.

- Precisamos daquela garagem - disse Beaton.

- A garagem tem de esperar até que possamos lastrear uma emissão de títulos. Quero que a iluminação seja feita rapidamente, compreendeu?

- Já falei com Werner Van Slyke - disse Beaton. - Ele me disse que entrou em contato com o empreiteiro eletricista. Vou ficar em cima para que seja feito o quanto antes.

Traynor deixou-se cair na cadeira e soltou com força o ar dos pulmões.

- Hoje em dia, dirigir um hospital é de deixar qualquer um louco. Por que entrei numa dessas? - Pegou a pauta da reunião, olhou-a e em seguida pediu que Richard Arnsworth, o tesoureiro, fizesse seu relatório.

Answorth levantou-se. Era um sujeito de óculos, preciso, do tipo contabilista, com a voz tão baixa que todos precisavam fazer força para ouvir. Começou falando do balancete que todos haviam recebido no pacote de informações que ele distribuíra naquela manhã.

- O que é imediatamente óbvio – falou - é que as despesas mensais continuam suplantando significativamente os pagamentos de capitação mensal da CMV. De fato, o rombo se expandiu, devido ao aumento nas internações e no período de permanência. Também estamos perdendo dinheiro com os pacientes daMedicare, que não são sócios da CMV, e com todos os indigentes que não têm nenhum plano. A percentagem de pacientes particulares ou dos que têm seguros de indenização padrão é tão minúscula que não podemos controlar os custos de modo a cobrir o prejuízo. ”Como resultado desse prejuízo constante, deteriorou-se o capital disponível. Conseqüentemente, recomendo substituir os investimentos de cento e oitenta dias pelos de trinta.

- Isso já foi providenciado - anunciou Sherwood.

Quando Answorth sentou-se, Traynor pediu uma moção para aprovar o relatório do tesoureiro. Isso foi feito imediatamente, sem qualquer oposição. Em seguida, Traynor virou-se na direção do Doutor Cantor, para que ele fizesse o relatório sobre o pessoal médico.

O Doutor Cantor levantou-se devagar e apoiou os punhos sobre a mesa. Era um homem grande e pesado, de pele oleosa. Diferentemente dos outros, não se baseou em anotações.

- Só duas coisas este mês - falou em tom casual.

Traynor olhou para Beaton e atraiu seu olhar, em seguida sacudiu a cabeça em desgosto. Odiava o comportamento desleixado de Cantor nas reuniões.

- Os anestesiologistas estão todos em pé de guerra - disse o Doutor Cantor. - Mas claro que isso seria de se esperar, agora que foram oficialmente informados de que o hospital estava assumindo o departamento e que receberiam um salário fixo. Sei como eles se sentem, já que passei pela mesma situação na gestão de Hodges.

- Você acha que eles vão abrir um processo? - perguntou Beaton.

- Claro que vão.

- Deixemos que façam isso - disse Traynor. - Foi estabelecido o precedente com a patologia e a radiologia. Não posso acreditar que eles pensem que podem continuar cobrando particularmente quando estamos sob um sistema de capitação. Não faz sentido.

- Foi escolhido um novo gerente de utilização - disse o Doutor Cantor, mudando de assunto. - Seu nome é Peter Chou.

- O Doutor Chou pode causar algum problema para nós? - perguntou Traynor.

- Duvido. Ele nem mesmo queria o cargo.

- Vou me reunir com ele - disse Beaton.

Traynor assentiu.

- E o último item relativo ao pessoal médico - disse o Doutor Cantor - refere-se ao médico 91. Soube que ele não ficou bêbado o mês inteiro.

- Mantenha-o sob vigilância assim mesmo - disse Traynor. - Não vamos nos arriscar. Ele já se mostrou relapso antes.

O Doutor Cantor sentou-se.

Traynor perguntou se havia mais alguma questão. Quando ninguém se moveu, ele pediu uma moção para encerrar o encontro. O Doutor Cantor disse um ansioso ”então vamos”, depois de um sonoro coro de ”sim”. Traynor bateu o martelo e encerrou a reunião.

Traynor e Beaton juntaram lentamente os seus papéis. Todos os outros saíram, dirigindo-se para o Iron Horse Inn. Quando o som da porta externa se fechando atrás do grupo chegou até a sala, os olhos de Traynor encontraram os de Beaton. Largando sua pasta, Traynor rodeou a mesa e abraçou- a apaixonadamente.

Saíram de mãos dadas da sala de reuniões e seguiram pelo corredor até um sofá no escritório de Beaton, como tinham feito tantas vezes. Ali, na semi-escuridão, fizeram um amor frenético, como acontecia há quase um ano depois de cada reunião da diretoria executiva. Era um cenário familiar, e a coisa não demorou. Não se incomodaram em tirar as roupas.

- Achei uma boa reunião - disse Traynor enquanto se arrumavam.

- Concordo. - Beaton acendeu a luz e foi até um espelho de parede. - Gostei do modo como resolveu a questão das luzes para o estacionamento. Evitou debates desnecessários.

- Obrigado - disse Traynor, satisfeito consigo próprio.

- Mas estou preocupada com a situação financeira - admitiu Beaton enquanto restaurava a maquiagem. - O hospital precisa, no mínimo, empatar os custos.

- Você está certa - admitiu Traynor com um suspiro. - Também estou preocupado. Adoraria apertar o pescoço de algumas daquelas pessoas da CMV. É irônico que esse absurdo de ”concorrência administrada” possa nos forçar à falência. Se não tivéssemos concordado com o sistema de capitação, não faríamos o contrato e teríamos de fechar, como o Valley. Agora que concordamos com o sistema, ainda podemos ter de fechar.

- Todos os hospitais estão com problemas - disse Beaton. - Não devemos esquecer isso, ainda que não sirva como consolo.

- Você acha que há alguma chance de podermos renegociar o contrato com a CMV?

Beaton riu desdenhosa.

- Nenhuma.

- Não sei o que fazer. Estamos perdendo dinheiro a despeito do plano FUD, que o Doutor Cantor propôs.

Beaton riu, divertida.

- Temos de alterar essa sigla. Parece ridícula. Que tal mudar de Fator de Utilização Drástica para Sistema de Utilização Drástica? SUD soa melhor do que FUD.

- Eu até gosto de FUD - disse Traynor. - Me faz lembrar que foi idiotice colocar nossa taxa de capitação num valor tão baixo.

- Caldwell e eu tivemos uma idéia que pode ajudar bastante.

- Beaton puxou uma cadeira e sentou-se diante dele.

- Será que não deveríamos ir ao Iron Horse?-disse Traynor. - Não queremos que ninguém suspeite. Esta é uma cidade pequena.

- Só vai levar um instante - prometeu Beaton. - O que Caldwell e eu fizemos foi um brainstorm sobre como os consultores que contratamos chegaram a uma taxa de capitação que se mostrou baixa demais. Nós percebemos que tínhamos dado a eles as estatísticas de hospitalização mandadas pela CMV. O que ninguém lembrou foi que essas estatísticas se baseavam na experiência que a CMV tivera com seu hospital em Rutland.

- Você acha que a CMV deu números fraudulentos?

- Não. Mas como fazem todas as empresas de planos de saúde quando lidam com seus próprios hospitais, a CMV tinha um incentivo econômico para que seus médicos limitassem a hospitalização, uma coisa da qual o público não faz idéia.

- Você está falando de pagamentos aos médicos?

- Exatamente. É um suborno em forma de bonificação. Quanto mais o médico reduz suas taxas de hospitalização, maior o bônus. É muito eficaz. Caldwell e eu achamos que podemos criar um incentivo econômico semelhante aqui no Hospital Comunitário de Bartlet. O único problema é que precisaremos de algum capital inicial. Uma vez que esteja funcionando, o sistema irá se pagar, reduzindo a hospitalização.

- Parece ótimo - disse Traynor entusiasmado. - Vamos fazer isso. Talvez esse tipo de programa, combinado com o FUD, elimine o vermelho.

- Vou acertar uma reunião com Charles Kelley para discutir o assunto - disse Beaton enquanto colocava o casaco.

- Já que estamos no tópico da utilização - disse Beaton enquanto seguiam pelo corredor comprido em direção à saída -, espero ardentemente que não recebamos o Certificado de Necessidade para cirurgias de coração aberto. É fundamental que isso não aconteça. Precisamos que aCMV continue mandando seus pacientes de outros lugares para Boston.

- Concordo totalmente - disse Traynor enquanto abria a porta para Beaton. Os dois saíram do hospital para o estacionamento de baixo. - Esse foi um dos motivos pelos quais estive hoje em Montpelier. Comecei a fazer um lobby negativo por baixo dos panos. - Se recebermos aquele CDN, vamos ficar ainda mais no vermelho.

Os dois chegaram aos seus carros, que estavam estacionados juntos. Antes de entrar, Traynor olhou o estacionamento escuro ao redor, particularmente na direção do grupo de árvores que separava o terraço de baixo do de cima.

- Isto aqui é mais escuro do que eu me lembrava - falou. - Não há a menor segurança. Precisamos daquelas luzes.

- Vou ficar em cima - prometeu ela.

- Que saco! Com tanta coisa importante, ainda temos de nos preocupar com esse maldito estuprador. Quais são os detalhes do último episódio?

- Ocorreu por volta da meia-noite. E dessa vez não foi uma enfermeira. Foi uma das voluntárias, Marjorie Kleber.

- A professora?

- Isso. Desde que ficou doente, ela passou a fazer serviço voluntário nos finais de semana.

- E quanto ao estuprador?

- A mesma descrição: cerca de um e oitenta, usando máscara de esquiador. A Senhora Kleber disse que ele tinha algemas.

- Um estilo interessante - disse Traynor. – Como ela se livrou?

- Foi sorte. O vigia noturno passou por acaso, fazendo a ronda.

- Talvez devêssemos aumentar o pessoal da segurança.

- Não temos dinheiro para isso, lembra?

- Talvez eu devesse conversar com Wayne Robertson e ver se a polícia pode fazer mais alguma coisa.

- Já fiz isso. Mas Robertson não tem homens suficientes para deixar um aqui todas as noites.

- Fico me perguntando se Hodges realmente sabia da identidade do estuprador.

- Você acha que o desaparecimento dele pode ter alguma coisa a ver com as suspeitas?

Traynor encolheu os ombros.

- Não tinha pensado nisso. Acho que é possível. Ele não era do tipo que guardava suas opiniões.

- É um pensamento assustador - disse Beaton.

- De fato. De qualquer modo, quero ser informado imediatamente sobre qualquer ataque. Isso pode ter conseqüências desastrosas para o hospital. E especialmente não quero nenhuma surpresa numa reunião da diretoria executiva. Isso me deixa mal.

- Desculpe, mas eu realmente tentei ligar. De agora em diante vou me certificar de que você seja informado.

- Vejo você no Iron Horse - disse Traynor enquanto entrava no carro e dava a partida.

 

QUINTA-FEIRA, 20 DE MAIO

- PRECISO PEGAR MINHA filha na escola - disse Angela para um de seus colegas de residência, Mark Danforth.

- E essas lâminas?

- O que posso fazer? - respondeu Angela rispidamente. - Preciso pegar minha filha.

- Certo. Não precisa ficar nervosa. Só perguntei. Achei que talvez pudesse ajudar.

- Desculpe. Só estou nervosa. Se você pudesse olhar pelo menos estas aqui, eu ficaria em dívida eterna. - Angela pegou cinco lâminas no suporte.

- Sem problema. - Mark acrescentou as lâminas à sua pilha.

Angela cobriu seu microscópio, juntou suas coisas e disparou para fora do hospital. Mal saíra do estacionamento, viu-se engarrafada no trânsito da hora do rush em Boston.

Quando finalmente chegou à escola, encontrou Nikki sentada, triste, nos degraus da frente. Não era um lugar bonito. A escola estava completamente coberta de pichações e rodeada por um made concreto. A não ser por um grupo de garotos da sexta e da sétima séries jogando basquete atrás de uma alta cerca de arame, não havia nenhuma criança do primeiro grau à vista. Um grupo de adolescentes apáticos, vestidos em roupas ridiculamente grandes, matava o tempo junto ao prédio. Do outro lado da rua ficava o barraco de papelão de um mendigo.

- Desculpe o atraso - disse Angela enquanto Nikki subia no carro e prendia o cinto de segurança.

- Tudo bem. Mas eu fiquei meio apavorada. Aconteceu uma tremenda encrenca na escola hoje. A polícia esteve aqui.

- O que aconteceu?

- Um dos garotos da sexta série estava com um revólver no pátio - disse Nikki calmamente. - Deu um tiro e acabou sendo preso.

- Alguém se machucou?

- Não. - Nikki sacudiu a cabeça.

- Por que ele estava com um revólver?

- Ele vende drogas.

- Sei - disse Angela, tentando manter a compostura tanto quanto a filha. - Como você ficou sabendo disso tudo? Pelas outras crianças?

- Não, eu estava lá - disse Nikki, reprimindo um bocejo. Involuntariamente, Angela apertou mais forte o volante.

A Escola pública fora idéia de David. Os dois tinham passado um aperto para escolher uma para Nikki. Até este episódio, Angela estivera razoavelmente satisfeita. Mas agora sentia-se horrorizada, em parte porque Nikki conseguia falar sobre o incidente de modo tão casual. Era apavorante perceber que a filha via essa história como um evento comum.

- Hoje tivemos uma substituta outra vez - disse Nikki. - E ela não me deixou fazer a drenagem postural dos pulmões depois do lanche.

- Que pena, querida. Está se sentindo congestionada?

- Um pouco. Meu peito chiou um pouco quando vim para fora, mas agora passou.

- Vamos fazer a drenagem assim que chegarmos em casa. E vou ligar de novo para a secretaria da escola. Não sei qual é o problema deles.

Angela sabia qual era o problema: crianças demais e funcionários de menos, e os poucos funcionários estavam sempre mudando.

Angela vivia tendo de ligar para eles sobre a necessidade de Nikki fazer a terapia respiratória.

Enquanto Nikki esperava no carro, Angela estacionou em fila dupla e disparou para a mercearia, em busca de algo para o jantar. Quando voltou, havia uma multa de estacionamento sob o limpador do pára-brisa.

- Eu falei pra moça que você já estava voltando - explicou Nikki. - Mas ela disse ”legal” e deu a multa do mesmo jeito.

Angela xingou entre dentes.

Durante a meia hora seguinte, ficaram rodando pela vizinhança de casa em busca de uma vaga. Justo quando Angela estava para desistir, encontraram.

Depois de colocar as compras na geladeira, Angela e Nikki cuidaram da terapia respiratória.

Em geral, só faziam isso de manhã. Mas em certos dias, principalmente quando havia muita poluição, tinham de fazer mais vezes.

A rotina que haviam estabelecido começava com Angela ouvindo com seu estetoscópio para certificar-se de que Nikki não precisava de um broncodilatador. Depois, usando uma grande cadeira de lona que tinham comprado de segunda mão, Nikki assumia nove posições diferentes, que utilizavam a gravidade para ajudar a drenar áreas específicas dos pulmões.

Enquanto Nikki ficava em cada uma das posições, Angela batia na área do pulmão com a mão em concha. Cada posição demorava de dois a três minutos. Em vinte minutos haviam terminado.

Com a terapia respiratória feita, Nikki começou o dever de casa, enquanto Angela ia para a cozinha minúscula fazer o jantar. Meia hora depois, David chegou. Estava exausto, depois de passar toda a noite anterior atendendo a vários pacientes.

- Que noite! - Ele tentou dar um beijo na bochecha de Nikki, mas ela afastou o rosto, concentrando-se no livro. Estava sentada na mesa da sala de jantar. Seu quarto não era suficientemente grande para ter uma escrivaninha.

David entrou na cozinha e foi afastado do mesmo modo por Angela, ocupada com o jantar.

Recusado por duas vezes, virou-se para a geladeira. Depois de alguma dificuldade em manter a porta aberta enquanto compartilhava com Angela a área minúscula, conseguiu tirar uma cerveja.

- Tivemos dois pacientes de AIDS que chegaram da sala de emergência com praticamente todas as doenças conhecidas - falou. - Além disso, houve dois pacientes com ataques cardíacos. Nem por um momento consegui entrar na sala de descanso, quanto mais dormir.

- Se procura solidariedade, está falando com a pessoa errada - disse Angela enquanto colocava um pouco de macarrão para ferver. - Além disso, está me atrapalhando.

- Você está com excelente humor!-disse David. Em seguida saiu da cozinha e sentou-se num dos bancos junto ao balcão que separava a cozinha da sala de jantar e esperou.

- Meu dia também foi estressante - disse ela. - Tive de deixar trabalho pela metade para poder pegar Nikki na escola. Não acho legal fazer isso todo dia.

- Então é por isso que está histérica? Por ter de pegar Nikki? Pensei que isso tinha sido discutido e decidido. Droga, foi você quem se ofereceu, dizendo que seu horário era muito mais previsível do que o meu.

- Não dá para vocês falarem mais baixo? - disse Nikki. - Estou tentando ler.

- Eu não estou histérica - disse Angela, ríspida, em voz baixa. - Só estou estressada. Não gosto de depender dos outros para fazer meu trabalho. E, além disso, Nikki veio hoje com uma história perturbadora.

- O que foi?

- Pergunte a ela.

David saiu do banco e espremeu-se numa das cadeiras da sala de jantar. Nikki contou-lhe sobre o dia. Angela veio até a sala e começou a arrumar a mesa ao redor dos livros de Nikki.

- Você continua apoiando a escola pública depois de ouvir falar sobre armas e drogas na sexta série? - perguntou.

- As escolas públicas precisam ser apoiadas - disse David. Eu freqüentei uma escola pública.

- Os tempos mudaram - disse Angela.

- Se as pessoas como nós fugirem, as escolas não terão a menor chance.

- Não estou disposta a ser idealista quando se trata da segurança de minha filha.

Com o jantar pronto, eles comeram espaguete marinara e salada, em meio a um silêncio constrangedor. Nikki continuou a ler, ignorando os pais. Angela suspirou alto várias vezes, passando os dedos por entre os cabelos. Parecia à beira das lágrimas. David estava irritado. Depois de trabalhar duro durante trinta e seis horas, não achava que merecesse esse tipo de tratamento.

De súbito, Angela arrastou sua cadeira, pegou o prato e jogou-o na pia. Ele se quebrou, e David e Nikki se assustaram.

- Angela - disse David, lutando para manter a voz sob controle. - Você está sendo exageradamente emocional. Vamos conversar sobre quem pega Nikki. Tem de haver outra solução.

Angela enxugou algumas lágrimas extraviadas no canto dos olhos. Resistiu à tentação de contra-atacar David e dizer que sua auto-imagem de homem racional e parceiro agradável não fazia parte da realidade.

Virou-se de costas para a pia.

- Você sabe - falou. - O verdadeiro problema é que estamos evitando uma decisão sobre o que fazer quando chegar primeiro de julho.

- Não acho que este seja o momento oportuno para discutir o que vamos fazer com o resto de nossas vidas. Estamos exaustos.

- Droga!-Angela voltou à mesa e sentou-se.-Você nunca acha que é a hora certa. O problema é que o tempo está acabando, e não tomar decisão nenhuma é uma espécie de decisão. Primeiro de julho é somente daqui a um mês e meio.

- Certo - disse David, resignado. - Deixe-me pegar minhas listas.

Ele começou a se levantar. Angela segurou-o.

- Não precisamos das suas listas. Temos três escolhas. Estávamos esperando que Nova York respondesse e eles responderam há três dias. Eis nossas opções: podemos ir para Nova York, eu para começar uma bolsa de estudos em medicina legal e você em medicina respiratória; podemos ficar aqui em Boston, onde eu faria medicina legal e você iria para a Escola de Saúde Pública em Harvard; ou podemos ir para Bartlet e começar a trabalhar.

David passou a língua pelo interior da boca. Tentou pensar. Estava atordoado de cansaço. Queria as listas, mas Angela continuava segurando seu braço.

- É meio assustador largar a academia - disse finalmente.

- Concordo totalmente. Somos estudantes há tanto tempo que é difícil pensar em outro tipo de vida.

- É verdade que tivemos pouco tempo para a vida pessoal nos últimos quatro anos - disse ele.

- Em algum momento, a qualidade de vida precisa ser uma questão importante – concordou Angela. - A realidade é que se ficarmos aqui em Boston provavelmente teremos de continuar neste apartamento. Temos dívidas demais.

- Seria mais ou menos a mesma coisa se fôssemos para Nova York.

- A não ser que aceitássemos ajuda de meus pais.

- Nós já evitamos isso no passado. Eles sempre condicionam a ajuda a um monte de coisas.

- Concordo. Outra coisa em que precisamos pensar é a situação de Nikki.

- Eu quero um cachorro - disse Nikki.

- Nikki tem estado bem - disse David.

- Mas há muita poluição aqui e em Nova York. Isso acaba cobrando um preço alto. E eu estou ficando cansada da criminalidade aqui.

- Está dizendo que quer ir para Bartlet?

- Não. Só estou tentando pensar em todas as questões. Mas tenho de admitir que quando ouço falar em armas e drogas na sexta série, Bartlet começa a parecer cada vez melhor.

- Fico me perguntando se lá é tão paradisíaco quanto nos lembramos. Como vamos a tão poucos lugares, talvez tenhamos idealizado demais.

- Há um meio de descobrir - disse Angela.

- Vamos voltar lá! - gritou Nikki.

- certo - disse David. - Hoje é quinta-feira. Que tal no sábado?

- Oba! - gritou Nikki.

 

SEXTA-FEIRA, 21 DE MAIO

TRAYNOR ASSINOU AS CARTAS que havia ditado naquela manhã e empilhou-as cuidadosamente no canto da mesa. Levantou-se ansioso e colocou o casaco. Estava saindo da sala externa de seu escritório, a caminho do almoço no Iron Horse, quando sua secretária, Collette, chamou-o de volta para atender a um telefonema de Tom Baringer.

Murmurando entre dentes, Traynor voltou à sua escrivaninha. Tom era um cliente importante demais para não ser atendido.

- Não vai adivinhar onde estou - disse Tom. - Estou na sala de emergência esperando que o Doutor Portland venha me remendar.

- Meu Deus, o que aconteceu?

- Uma coisa estúpida. Eu estava tirando folhas da minha calha, quando a escada caiu. Quebrei a bacia. Pelo menos foi o que o médico disse aqui na sala de emergência.

- Sinto muito - disse Traynor.

- Ah, podia ter sido pior. Mas obviamente não poderei estar na reunião que marcamos para esta tarde.

- Claro. Havia alguma coisa importante que você desejava discutir?

- Isso pode esperar. Mas, escute, já que estamos falando, que tal dar um toque nas pessoas aqui do hospital? Acho que mereço um tratamento VIP.

- Sem dúvida. Vou cuidar disso pessoalmente. Estou indo almoçar com a presidente do hospital.

- Então aconteceu na hora certa - disse Tom. - Interceda por mim.

Depois de desligar, Traynor mandou a secretária cancelar a reunião com Tom e deixar o horário vago. A folga iria dar-lhe a chance de continuar com os ditados.

Traynor foi o primeiro a chegar para o almoço. Depois de pedir um martíni seco, examinou a sala forrada de madeira. Como era comum ultimamente, ele recebera a melhor mesa, num reservado aconchegante que tinha uma vista particularmente estupenda do Roaring River, que passava por trás do restaurante. O prazer de Traynor aumentou quando ele viu Jeb Wiggins, seu antigo rival, rebento de uma das poucas famílias antigas e ricas de Bartlet, sentado numa mesa muito menos importante. Jeb sempre tratara Traynor com condescendência. O pai de Traynor trabalhara na fábrica de cabides, que naquela época era uma das propriedades do« Wiggins. Traynor adorou a reversão de papéis: agora ele dirigia o maior negócio da cidade.

Helen Beaton e Barton Sherwood chegaram juntos.

- Desculpe por estarmos atrasados - disse Sherwood, segurando a cadeira para Beaton.

Beaton e Sherwood receberam seus drinques de sempre e todos pediram a comida. Assim que o garçom os deixou, Beaton disse:

- Tenho boas notícias. Encontrei Charles Kelley esta manhã e ele não colocou nenhum problema quanto à nossa idéia de instituir um programa de bonificação para os médicos da CMV. Sua única preocupação é se isso iria custar alguma coisa à CMV, o que não acontecerá. Prometeu levar a idéia aos seus chefes, mas não prevejo nenhum problema.

- Maravilhoso - disse Traynor.

- Vamos nos encontrar de novo na segunda - acrescentou Beaton. -Eu gostaria que você participasse da reunião, caso tenha tempo.

- Sem dúvida alguma.

- Agora, tudo de que precisamos é o capital inicial. Por isso me reuni com Barton e acho que resolvemos a questão. - Beaton sacudiu de leve o braço de Sherwood.

Sherwood inclinou-se para a frente e falou, em voz baixa:

- Lembra-se daquele pequeno fundo que criamos com as devoluções da construção do prédio de radioterapia? Eu o depositei nas Bahamas. O que vou fazer é trazê-lo de volta em pequenas quantidades, conforme a necessidade. Também podemos usar uma parte para pagar férias nas Bahamas. É o mais fácil. Podemos até mesmo pagar passagens de avião nas Bahamas.

A comida chegou e ninguém falou até que a garçonete fosse embora.

- Achamos que férias nas Bahamas podem funcionar como o grande prêmio – explicou Beaton. - Pode ser dado ao médico que tenha tido a menor taxa de hospitalização no ano.

- Perfeito - disse Traynor. - Essa idéia está parecendo cada vez melhor.

- É melhor colocá-la em prática o quanto antes - disse Beaton. - Até agora, os números de maio estão piores do que os de abril. As internações são maiores e o prejuízo também.

- Eu tenho boas notícias - disse Sherwood. - O fundo de amortização do hospital voltou ao seu nível projetado com a entrada da doação do seguro. Foi feito de modo que nenhum analista externo irá detectar.

- É uma crise depois da outra - reclamou Traynor. Não estava disposto a dar crédito a Sherwood por solucionar um problema que ele próprio criara.

- Quer que eu prossiga com a questão dos títulos para a construção do estacionamento? - perguntou Sherwood.

- Não. Infelizmente não podemos. Temos de pedir outro voto ao Conselho Municipal. A aprovação deles estava contingenciada à execução imediata do projeto.-Com uma expressão de escárnio, Traynor fez um gesto com a cabeça na direção da mesa vizinha. -

O chefe do Conselho Municipal, Jeb Wiggins, acha que a temporada de turismo pode sair prejudicada se construirmos durante o verão.

- Que coisa chata! - disse Sherwood.

- Eu também tenho boas notícias - acrescentou Traynor. - Acabei de saber esta manhã que nossa CDN para as cirurgias de coração aberto não foi concedida para este ano. Não é terrível?

- Oh, que tragédia! - gargalhou Beaton. - Graças a Deus!

Depois que o café foi servido, Traynor lembrou-se da ligação de Tom Baringer. Passou a informação para Beaton.

- Eu já soube da internação do Senhor Baringer - disse Beaton. -Há algum tempo, programei um arquivo no computador para me alertar quando um paciente assim fosse hospitalizado. Já falei com Caldwell e ele vai cuidar para que o Senhor Baringer receba tratamento VIP. Qual é o valor do fundo?

- Um milhão - disse Traynor. - Não é nada de extraordinário, mas sempre ajuda.

Depois de terminarem o almoço, saíram à luz forte do sol da tarde.

- Como anda a questão da iluminação para o estacionamento? - perguntou Traynor.

- Já está tudo providenciado - disse Beaton. - Há uma semana. Mas decidimos restringir a iluminação ao estacionamento de baixo. O de cima só é usado durante o dia; iluminando apenas o de baixo, economizamos um bocado de dinheiro.

- Parece razoável - disse Traynor.

Perto do Green Mountain National Bank, encontraram Waynei Robertson. Seu chapéu de aba larga estava caído sobre a testa, para proteger os olhos da luz solar. Como proteção extra ele usava óculos escuros espelhados.

- Boa tarde - disse Traynor em tom amigável. Robertson tocou a aba do chapéu num gesto de saudação.

- Alguma novidade no caso de Hodges?-perguntou Traynor.

- Não. Na verdade, estamos pensando em arquivar.

- Não seria prematuro demais?-disse Traynor.-Lembre-se de que o velhote tinha um pendor especial por aparecer quandomenos era esperado.

- E menos desejado - acrescentou Beaton.

- O Doutor Cantor acha que ele está na Flórida - disse Robertson. - Também estou começando a acreditar. Acho que aquele pequeno escândalo sobre o hospital estar cuidando da sua casa deixou-o envergonhado e ele abandonou a cidade.

- Eu achava que ele era mais durão - disse Traynor. - Mas quem sou eu para dizer?

Depois de se despedirem e desejarem bom fim de semana, os quatro voltaram para seus respectivos trabalhos.

Enquanto dirigia colina acima na direção do hospital, Beaton pensou em Traynor e no relacionamento que mantinham. Um ou dois encontros por mês não era exatamente o que ela esperava.

Conhecera Traynor há vários anos, quando ele fora a Boston fazer um curso de reciclagem em direito tributário. Ela trabalhava na cidade como administradora assistente de um dos hospitais de Harvard. A atração fora instantânea e mútua. Passaram juntos uma semana tórrida, depois se encontraram intermitentemente até que ele a chamou para dirigir o hospital em Bartlet. Ela acreditara que os dois iriam viver juntos, mas até agora isso não tinha acontecido. Traynor não obtivera o divórcio, que, segundo ele, era iminente. Beaton sentia que precisava fazer alguma coisa para acertar a situação; só não sabia o quê.

De volta ao hospital, foi direto ao quarto 204, onde esperava encontrar Tom Baringer.

Pretendia certificar-se de que Tom estava confortável. Ele não se encontrava lá. Beaton surpreendeu-se ao descobrir outro paciente: uma mulher chamada Alice Nottingham.

Beaton alisou o queixo, desceu ao primeiro andar e marchou para a sala de Caldwell.

- Onde está Baringer? - perguntou sem rodeios.

- Quarto 204.

- A não ser que tenha feito uma operação para troca de sexo e tenha mudado o nome para Alice, o Senhor Baringer não está no 204.

Caldwell levantou-se de um salto.

- Alguma coisa está errada.

Ele passou por Beaton e foi depressa pelo corredor até o setor de internações. Ali procurou Janice Sperling e perguntou-lhe o que acontecera com Tom Baringer.

- Coloquei-o no 209 - disse Janice.

- Eu disse para colocá-lo no 204.

- Sei disso. Mas depois de falarmos, o 209 ficou disponível. É um quarto maior. Você disse que o Senhor Baringer era um paciente especial. Achei que ele gostaria mais do 209.

- A vista do 204 é melhor, além disso tem uma cama ortopédica - disse Caldwell. - O homem quebrou o quadril. Mude-o de quarto ou troque a cama.

- Certo - falou Janice, revirando os olhos. Algumas pessoas nunca ficavam satisfeitas.

Caldwell foi até a sala de Beaton e enfiou a cabeça pela porta.

- Desculpe por não ter seguido sua ordem neste caso - falou. - Mas isso será retificado imediatamente. Prometo.

Beaton assentiu e voltou ao seu trabalho.

 

SÁBADO, 22 DE MAIO

DAVID AJUSTARA O despertador para cinco e quarenta e cinco, como se fosse um dia normal de trabalho. Às seis e quinze, estava a caminho do hospital. A temperatura já subira para uns vinte e três graus, e o céu estava limpo. Antes das nove, tinha terminado sua ronda e estava a caminho de casa.

- Tudo certo, pessoal - gritou ao entrar no apartamento. - Não quero esperar o dia inteiro. Vamos botar o pé na estrada.

Nikki apareceu na porta do quarto.

- Isso não é justo, papai. A gente estava esperando você.

- Estou brincando - falou David, rindo, enquanto dava um peteleco em Nikki.

Logo saíram. Em pouco tempo, a visão urbana dava lugar aos subúrbios pontilhados de árvores, seguidos por longos trechos de floresta. Quanto mais iam para o norte, mas bela ficava a paisagem, especialmente agora que havia folhas nas árvores.

Quando chegaram a Bartlet, David reduziu a velocidade. Como turistas ansiosos, eles bebiam as paisagens.

- É ainda mais pitoresco do que eu me lembrava - disse Angela.

- Olhem, aquele mesmo cachorrinho! - gritou Nikki, apontando para o outro lado da rua. - Podemos parar?

David levou o carro até uma vaga em diagonal.

- Você está certa - falou. - Estou reconhecendo a mulher.

- E eu estou reconhecendo o cachorro - disse Nikki, abrindo a porta do carro e saindo.

- Espere um segundo - gritou Angela. Em seguida, saiu do carro e pegou a mão de Nikki para atravessar a rua. David foi atrás.

- Olá outra vez - disse a mulher quando Nikki se aproximou. O cãozinho viu Nikki e fez força contra a coleira. Enquanto Nikki se curvava, o cão lambeu seu rosto. Nikki riu, surpresa.

- Não sei se vocês estariam interessados, mas o cão de caça do Senhor Staley teve filhotes há algumas semanas - disse a mulher. - É ali na loja de ferragens, do outro lado da rua.

- Podemos ir ver? - implorou Nikki.

- Por que não? - disse David, e agradeceu à mulher. Voltando a atravessar a rua, os Wilsons entraram na loja de ferragens. Num cercadinho perto da entrada estava Molly, a cadela do Senhor Staley, amamentando cinco filhotes peludos.

- São lindos - gritou Nikki. - Posso fazer carinho neles?

- Não sei - disse David e virou-se procurando algum funcionário, praticamente trombando com o Senhor Staley, que estava logo atrás.

- Claro que ela pode fazer carinho neles - disse o Senhor Staley depois de se apresentar. - Na verdade, eles estão à venda. Eu não preciso nem um pouco de seis retrievers dourados.

Nikki ficou de joelhos e, estendendo a mão dentro do cercadinho, acarinhou um dos filhotes. Ele respondeu agarrando o dedo da” menina como se fosse uma teta. Nikki guinchou de satisfação.

- Pegue-o no colo, se quiser - disse o Senhor Staley. - Ele é o fortão da ninhada.

Nikki pegou o filhote nos braços. O cãozinho acomodou-se contra seu rosto e lambeu seu nariz.

- Adoro ele - disse Nikki.-Gostaria que pudéssemos ficar com o cachorrinho. Podemos? Eu cuido dele.

David forçou-se a reprimir uma inesperada onda de lágrimas. Afastou o olhar e fixou-o em Angela. Ela passou um lenço no canto dos olhos e encarou o marido. Seus olhos se encontraram num instante de compreensão total. O pedido modesto de Nikki afetou-os ainda mais do que na primeira visita a Bartlet. Considerando todas as coisas pelas quais ela passara com sua fibrose cística, não era pedir muito.

- Você está pensando o mesmo que eu?-perguntou David.

- Acho que sim. - As lágrimas de Angela deram lugar a um sorriso. - Isso significaria que poderíamos comprar uma casa.

- Adeus, crimes e poluição - disse ele. David baixou os olhos para Nikki. - Certo. Você pode ter um cachorro. Vamos nos mudar para Bartlet!

O rosto de Nikki se iluminou. Ela abraçou o cãozinho contra o peito enquanto ele lambia seu rosto.

David virou-se para o Senhor Staley e combinou um preço.

- Acho que eles estarão prontos para deixar a mãe dentro de umas quatro semanas – disse o Senhor Staley.

- Vai ser perfeito - disse David.-Viremos para cá no início do mês.

Com alguma dificuldade, Nikki foi separada de seu cãozinho e os Wilsons saíram da loja.

- O que faremos agora? - disse Angela, excitada.

- Vamos celebrar. Vamos almoçar no restaurante.

Alguns minutos mais tarde, estavam sentados a uma mesa forrada, com vista para o rio.

David e Angela pediram vinho branco. Nikki escolheu um suco de uva-do-monte. Todos bateram os copos.

- Gostaria de brindar à nossa chegada ao Jardim do Éden - disse David.

- E eu gostaria de brindar ao início do pagamento de nossas dívidas - disse Angela.

- Tintim! - disse David, e todos beberam.

- Dá para acreditar?-perguntou Angela.-Nossos salários anuais, juntos, vão passar de cento e vinte mil dólares.

David cantou o trecho de uma canção:

- Estamos nadando em dinheiro.

- Acho que vou chamar meu cachorro de Ferrugem – falou Nikki.

- É um nome maravilhoso - concordou David.

- O que você acha de eu ganhar o dobro do seu salário? - implicou Angela.

David tinha consciência de que a farpa viria em algum momento, de modo que estava preparado.

- Você vai estar ganhando isso num laboratório escuro, pavoroso - zombou de volta. – Pelo menos eu estarei vendo gente real, viva, compreensiva.

- Sua delicada masculinidade não vai se sentir ameaçada? - prosseguiu ela.

- Nem um pouco. E é bom saber que, se nos divorciarmos eu é que receberei a pensão.

Angela curvou-se sobre a mesa para dar uma cutucada nas costelas de David.

David devolveu o gesto.

- Além disso - falou -, esse tipo de diferencial não vai durar muito tempo. É o legado de uma era passada. Os patologistas como os cirurgiões e outros especialistas bem remunerados, logo terão de cair na real.

- Quem diz isso?

- Eu digo.

Depois do almoço decidiram ir direto ao hospital informar Caldwell sobre a decisão. Assim que se apresentaram à secretária foram levados imediatamente para a sala.

- Isso é fantástico! - disse Caldwell ao ser informado da decisão. - A CMV já sabe?

- Ainda não - disse David.

- Venham. Vamos dar-lhes a boa notícia.

Charles Kelley ficou igualmente satisfeito com a novidade. Depois de parabenizar David com um aperto de mão, perguntou-lhe quando estaria pronto para atender aos pacientes.

- Imediatamente - disse David sem hesitar. - Dia primeiro de julho.

- Sua residência só termina no dia trinta - disse Kelley. Não quer um tempo para se estabelecer?

- Com as nossas dívidas - falou David -, quanto mais cedo começarmos a trabalhar, melhor.

- Você também pensa assim? - perguntou Caldwell a Angela.

- Sem dúvida.

David perguntou se eles poderiam voltar ao consultório que ele ocuparia. Kelley concordou com satisfação.

Ele parou do lado de fora da sala de espera, fantasiando como ficaria seu nome na porta, sob o do Doutor Randall Portland. Fora um caminho duro e longo desde o momento, na oitava série, em que decidira ser médico. Mas finalmente tinha conseguido.

David abriu a porta e entrou. Seu devaneio rompeu-se quando uma figura vestida com roupas cirúrgicas saltou do sofá da sala de espera.

- O que significa isso? - perguntou o sujeito, irritado. David demorou um instante para reconhecer o Doutor Portland. Em parte devido à surpresa do encontro, mas também porque o Doutor Portland mudara em um mês, desde que David o conhecera. Perdera peso considerável; seus olhos pareciam fundos e o rosto estava magro.

Kelley passou à frente do grupo, reapresentou David a Randall, e em seguida explicou a Randall por que estavam ali. A raiva do Doutor Portland desapareceu. Como um balão que perdesse o ar, ele voltou a cair no sofá. David percebeu que Randall não somente perdera peso como estava pálido.

- Desculpe por ter incomodado - disse David.

- Eu só estava tirando um cochilo - explicou o Doutor Portland. Sua voz parecia chapada. Tão exausta quanto sua aparência.-Tive uma cirurgia esta manhã, e estou cansado.

- Tom Baringer? - perguntou Caldwell. O Doutor Portland confirmou.

- Espero que tenha corrido bem.

- A operação foi boa. Agora precisamos cruzar os dedos para o pós-operatório.

David desculpou-se de novo e em seguida saiu com os outros do consultório.

- Desculpem - disse Kelley.

- O que há de errado com ele? - perguntou David.

- Nada que eu saiba - disse Kelley.

- Ele não parece bem.

- Achei que estava deprimido - disse Angela.

- Ele anda ocupado - admitiu Kelley. - Tenho certeza de que é apenas trabalho demais.

O grupo parou do lado de fora da sala de Kelley.

- Agora que sabemos que vocês vêm - disse Kelley -, há algo que possamos fazer para ajudar?

- Precisamos olhar algumas casas - disse Angela. - Quem o senhor sugere?

- Dorothy Weymouth - disse Caldwell.

- Ele está certo - disse Kelley.

- Ela é de longe a melhor corretora da cidade - acrescentou Caldwell. - Venham à minha sala e usem o telefone.

Meia hora depois, toda a família estava no escritório de Dorothy Weymouth, no segundo andar do prédio que ficava em frente ao diner. Era uma mulher enorme e agradável, metida num vestido sem forma, parecido com uma barraca.

- Devo dizer que estou impressionada - disse Dorothy. Sua voz era surpreendentemente aguda para uma mulher tão grande. - Enquanto vocês estavam vindo do hospital, Barton Sherwood ligou para dizer que está ansioso por ajudá-los. Não acontece com freqüência o presidente do banco ligar antes mesmo de eu encontrar o cliente.

- Não sei exatamente qual é o gosto de vocês - prosseguiu ela, enquanto começava a colocar sobre a mesa fotos de propriedades à venda.-De modo que terão de me ajudar. Vocês acham que vão gostar de uma casa branca, de madeira, na cidade ou uma casa de pedra, isolada no campo? E quanto ao tamanho? É uma consideração importante? Estão planejando ter mais filhos?

David e Angela ficaram tensos com a pergunta sobre mais filhos. Até o nascimento de Nikki, nenhum dos dois suspeitava de que eram portadores do gene da fibrose cística. Era uma realidade que não poderiam ignorar.

Sem perceber que pusera o dedo sobre um nervo exposto, Dorothy prosseguiu apresentando fotos de casas, enquanto mantinha um monólogo contínuo.

- Eis aqui uma propriedade particularmente charmosa, que acaba de ser posta à venda. É uma beleza.

Angela prendeu o fôlego. Pegou a foto. Nikki tentou olhar sobre o seu ombro.

- Gosto muito desta - disse Angela, e entregou a foto a David. Era uma casa de tijolos, estilo georgiano tardio ou federal antigo, com janelas duplas em arco de cada lado de uma porta central. Colunas acaneladas sustentavam um pórtico com um frontão, sobre a porta. Acima do frontão havia uma grande janela paladiana.

- É uma das mais antigas casas de tijolos da região - disse Dorothy. - Foi construída por volta de 1820.

- O que há nos fundos? - perguntou David apontando para a foto.

Dorothy olhou.

- É o antigo silo. Fica atrás da casa, ligado ao celeiro. Não dá para ver o celeiro porque a foto foi tirada da frente da casa, debaixo da colina. A propriedade era uma fazenda de leite, muito lucrativa, pelo que eu soube.

- É linda - disse Angela em tom melancólico.-Mas tenho certeza de que nunca poderíamos pagar por ela.

- Poderiam sim, pelo que Barton Sherwood me contou. Além disso, eu conheço a dona, Clara Hodges, e ela está ansiosa para vender. Tenho certeza de que poderíamos entrar num bom acordo. De qualquer modo, vale a pena dar uma olhada. Vamos pegar mais umas quatro ou cinco e ver.

Orquestrando inteligentemente a ordem das visitas, Dorothy deixou a casa de Hodges para o final. Ela ficava cerca de quatro quilômetros ao sul do centro da cidade, no topo de uma pequena colina. A casa mais próxima estava a uns duzentos metros, pela estrada. Quando entraram no caminho que levava a casa, Nikki viu o lago das rãs e ficou imediatamente apaixonada.

- O lago não é só pitoresco - disse Dorothy. - É ótimo também para patinar no inverno.

Dorothy parou entre a casa e o lago das rãs, ligeiramente de lado. Dali podiam ver a estrutura com o celeiro ligado a ela. Nem Angela nem David disseram uma palavra.

Estavam espantados com o caráter nobre e imponente da casa. Agora percebiam que tinha três andares, e não dois. Dava para ver duas águas-furtadas de cada lado do telhado de ardósia escurecida.

- Tem certeza de que o Senhor Sherwood acha que nós podemos comprar essa casa? - perguntou David.

- Absoluta. Venham, vamos olhar por dentro.

Num estado de quase hipnose, David e Angela seguiram Dorothy num passeio pelo interior da casa. Dorothy continuava seu fluxo contínuo de conversa de corretora, dizendo coisas como: ”Este quarto promete muito” e ”Com um pouquinho de criatividade e trabalho, este quarto vai ficar muito aconchegante”. Qualquer problema, como papel de parede soltando ou caixilhos de janelas apodrecendo, ela minimizava. Os pontos bons, como o tamanho das muitas lareiras e o belo trabalho das cornijas, ela alardeava com um fluxo ininterrupto de superlativos.

David insistiu em olhar tudo. Até mesmo desceram os degraus de granito para o porão, que parecia excepcionalmente úmido e mofado.

- Parece haver um cheiro estranho - disse ele.-Há algum problema de água aqui?

- Não que eu saiba - disse Dorothy. - Mas é um ótimo porão, e grande, Há espaço suficiente para uma oficina, se você for do tipo habilidoso.

Angela reprimiu um risinho, bem como um comentário depreciativo. Quase falou que David tinha dificuldade até para trocar lâmpadas, mas segurou a língua.

- Não tem piso - falou David, curvando-se e raspando um pouco de terra com a unha.

- É chão de terra batida - explicou Dorothy. - É comum em casas mais antigas, como essa. E este porão tem outras características típicas de uma casa do século XIX. – Ela abriu uma pesada porta de madeira.

- Aqui é o antigo depósito de alimentos

Havia prateleiras para conservas e caixas para batatas e maçãs. O cômodo era mal iluminado, com apenas uma lâmpada incandescente.

- É assustador - disse Nikki. - Parece uma masmorra.

- Vai servir para quando seus pais vierem nos visitar - disse David. - Podemos colocá-los aqui.

Angela revirou os olhos.

Depois de mostrar o depósito, Dorothy levou-os para o outro canto do porão e apontou orgulhosamente para um grande freezer horizontal.

- Esta casa tem os métodos antigos e novos de armazenamento de comida.

Antes de deixarem o porão, Dorothy abriu outra porta. Por trás havia mais um lance de degraus de granito que levava a uma porta-alçapão.

- Esta escada leva ao quintal dos fundos. Por isso a lenha está aqui. - Ela apontou para vários feixes de lenha empilhados contra a parede.

A última coisa digna de nota no porão era a enorme fornalha. Quase parecia uma antiga locomotiva a vapor.

- Antes ela usava carvão, mas foi convertida para óleo - continuou explicando, e apontou para um grande tanque de combustível colocado sobre blocos de concreto, no canto oposto àquele onde estava o freezer.

David assentiu, ainda que não soubesse nada sobre fornalhas, independente do que elas usassem como combustível.

Na volta para a escada que levava à cozinha, David sentiu de novo o cheiro de mofo e perguntou sobre o sistema de esgoto.

- Está ótimo - disse Dorothy. - Nós o inspecionamos. A fossa séptica fica a oeste da casa. Posso mostrar o filtro de lixívia, se você quiser.

- Se foi inspecionado, tenho certeza de que está bem - disse David. Ele não tinha a menor idéia do que fosse um filtro de lixívia ou de qual seria sua aparência.

David e Angela pediram que Dorothy os deixasse no Green Mountain National Bank.

Estavam nervosos e excitados ao mesmo tempo. Barton Sherwood recebeu-os quase imediatamente.

- Encontramos uma casa do nosso agrado - disse David.

- Não fico surpreso - disse Sherwood. - Há muitas casas maravilhosas em Bartlet.

- A casa pertence a Clara Hodges - prosseguiu David, entregando ao outro a descrição da propriedade. - O preço que ela está pedindo é duzentos e cinqüenta mil dólares. O que o banco acha?

- É uma casa ótima, eu a conheço bem. - disse Sherwood examinando o papel. - E a localização é fabulosa. Na verdade, fica junto à minha propriedade. Quanto ao preço, acho que é uma pechincha.

- Então o banco concorda com esse preço? - perguntou Angela. Queria ter certeza. Parecia bom demais para ser verdade.

- Claro que vocês vão oferecer menos - disse Sherwood. - Sugiro uma oferta inicial de cento e noventa mil. Mas o banco se dispõe a apoiar a compra até o preço pedido.

Quinze minutos depois, David, Angela e Nikki voltavam ao brilho do sol de Vermont.

Nunca tinham comprado uma casa antes. Era uma decisão monumental. Mas, depois de terem resolvido vir para Bartlet, estavam num clima decisivo.

- E então? - perguntou David.

- Não posso imaginar que consigamos alguma coisa melhor - disse Angela.

- Dá até para ter uma mesa no meu quarto - disse Nikki. David estendeu a mão e tocou o cabelo da filha.

- A casa tem tantos quartos que você pode até ter uma sala de estudos.

- Vamos em frente - disse Angela.

De volta ao escritório de Dorothy, contaram a decisão à satisfeita corretora. Alguns minutos depois, Dorothy estava falando ao telefone com Clara Hodges e, mesmo sendo pouco convencional, foi apalavrado um acordo em duzentos e dez mil dólares.

Enquanto Dorothy preparava os documentos formais, David e Angela trocaram olhares.

Estavam perplexos ao perceber que eram os novos proprietários de uma casa mais fantástica do que poderiam esperar possuir em muitos anos. Entretanto, havia também alguma ansiedade. Sua dívida mais do que duplicara, passando de trezentos e cinqüenta mil dólares.

No final do dia, depois de mais algumas caminhadas entre o escritório de Dorothy e o banco, todos os papéis foram preenchidos, sendo estabelecida uma data para o fechamento do negócio.

- Tenho alguns nomes para indicar a vocês - disse Dorothy quando eles terminaram com a papelada.-Pete Began faz biscates na cidade. Não é o sujeito mais inteligente do mundo, mas trabalha bem. E para a pintura eu costumo recorrer a John Murray. David escreveu os nomes e os números de telefone.

- E se precisarem de alguém para tomar conta de Nikki, minha irmã mais velha, Alice Doherty, adoraria ajudar. Ela perdeu o marido há alguns anos. Além disso, mora perto de vocês.

- É uma dica maravilhosa - disse Angela.-Com nós dois trabalhando, vamos precisar de alguém para ajudar quase todo o dia.

Depois, naquela mesma tarde, David e Angela encontraram o biscateiro e o pintor na casa nova. Combinaram uma limpeza geral e um mínimo de pintura e reparos, para deixar a casa à prova de mau tempo.

Depois de mais uma visita à loja de ferragens para que Nikki pudesse fazer carinho outra vez em Ferrugem e dizer adeus, os Wilsons pegaram a estrada para Boston. Angela dirigiu.

Nem David nem Nikki cochilaram. Estavam todos ligados no que tinham feito e cheios de sonhos com a vida nova que estava para começar.

- O que você achou do Doutor Portland? - perguntou David depois de um período de silêncio.

- O que quer dizer?

- O sujeito não pareceu nem um pouco amigável.

- Acho que nós o acordamos.

- Mesmo assim, a maior parte das pessoas não ficaria tão irritada. Além do mais, ele parecia mais morto do que vivo. Mudou drasticamente em um mês.

- Achei que ele estava muito deprimido.

David encolheu os ombros.

- Agora que penso a respeito, o sujeito não pareceu tão amigável da primeira vez em que o vi. Tudo que ele quis saber era se eu jogava basquete. Ele tem alguma coisa que me deixa desconfortável. Espero que dividir um consultório com ele não se torne um ponto de atrito.

Estava escuro quando chegaram a Boston; tinham parado para jantar no caminho. Quando chegaram ao apartamento, olharam espantados ao redor, surpresos por terem sido capazes de morar durante anos num espaço tão minúsculo e claustrofóbico.

- Este apartamento inteiro caberia na biblioteca da casa nova - comentou Angela.

David e Angela decidiram ligar para os pais, para compartilhar a empolgação. Os pais de David ficaram deliciados. Tendo-se mudado para Amherst, New Hampshire, achavam que Bartlet estava ali pertinho.

- Vamos ver vocês mais vezes - disseram. Os pais de Angela tiveram uma reação diferente.

- É fácil abandonar a vida académica - disse o Doutor Walt Christopher. - Difícil é voltar para ela. Acho que vocês poderiam ter pedido minha opinião antes de tomar uma atitude tão idiota. fale com a sua mãe.

A mãe de Angela entrou na linha e expressou seu desapontamento por Angela e David não terem ido para Nova York.

- Seu pai perdeu um bocado de tempo falando com todo tipo de gente para garantir que vocês tivessem bons cargos aqui. Acho que foi falta de consideração não aproveitarem o esforço que ele fez.

Depois de desligar, Angela virou-se para David.

- Eles nunca foram muito de dar apoio - falou. - Acho que eu não deveria ter esperado que mudassem agora.

 

SEGUNDA-FEIRA, 24 DE MAIO

TRAYNOR CHEGOU CEDO ao hospital para sua reunião da tarde. Em vez de ir direto à sala de Helen Beaton, foi à ala dos pacientes no segundo andar e caminhou até o quarto 209. Depois de respirar fundo para juntar forças, abriu a porta. Ser chairman da diretoria do hospital, não modificava a aversão que Traynor sentia por situações médicas, particularmente quando eram ruins.

Consciente de estar respirando com cuidado na presença de um doente, Traynor moveu-se pelo quarto escuro e se aproximou da grande cama ortopédica. Curvando-se e evitando escrupulosamente tocar em qualquer coisa, olhou para o cliente, Tom Baringer. Tom não parecia bem, e Traynor não queria chegar perto, para não pegar nenhuma doença horrível. O rosto de Tom estava cinzento e sua respiração era dificultosa. Um tubo plástico descia por trás de sua cabeça, levando oxigênio ao nariz. Seus olhos estavam fechados com esparadrapo e um ungüento escorria de entre suas pálpebras.

- Tom - chamou Traynor em voz baixa. Quando não houve resposta, chamou mais alto.

Mas Tom não se moveu.

- Ele não pode responder.

Traynor deu um salto e o sangue fugiu-lhe do rosto. Afora Tom, ele pensava estar sozinho.

- Sua pneumonia não reage ao tratamento - disse irritado o estranho. Estava sentado num canto, envolto em sombras. Traynor não conseguia ver seu rosto. - Está morrendo como os outros.

- Quem é você? - perguntou Traynor. Em seguida enxugou o suor que aparecera subitamente na testa.

O homem levantou-se. Só então Traynor viu que ele usava vestes cirúrgicas, cobertas por um paletó branco.

- Sou o médico do Senhor Baringer, Randy Portland. - Ele avançou até o lado oposto da cama e olhou para o paciente comatoso. -A operação foi um sucesso, mas o paciente está para morrer. Suponho que já tenha ouvido antes uma variação dessa piada.

- Creio que sim - disse Traynor nervoso. O choque pela presença do Doutor Portland estava se transformando numa preocupação ansiosa. Havia algo decididamente estranho com os modos do sujeito. Traynor não sabia o que fazer.

- O quadril foi reparado - disse o Doutor Portland e levantou a barra do lençol para que Traynor visse a sutura. - Nenhum problema. Mas infelizmente foi uma cura fatal. Não há como o Senhor Baringer sair daqui andando. - Portland soltou o lençol e ergueu os olhos desafiadores para Traynor. - Há algo de errado com este hospital. Eu não vou ficar com toda a culpa.

- Doutor Portland - disse Traynor hesitante. - O senhor não está com uma aparência boa. Talvez devesse ver um médico.

O Doutor Portland jogou a cabeça para trás e gargalhou. Mas foil um riso vazio, sem alegria, que terminou tão subitamente quanto começara.

- Talvez o senhor esteja certo. Talvez eu faça isso. - Em seguida virou-se e saiu do quarto.

Traynor sentiu-se atordoado. Olhou para Tom como se esperasse que ele fosse levantar e explicar o comportamento do Doutor Portland. Traynor entendia que os médicos podiam se envolver emocionalmente com a saúde dos pacientes, mas Portland parecia perturbado demais.

Tentou mais uma vez se comunicar com Tom. Reconhecendo a futilidade, recuou para longe da cama e saiu do quarto. Cautelosamente, procurou pelo Doutor Portland. Não o vendo, caminhou depressa até a sala de Beaton. Caldwell e Kelley já estavam lá.

- Vocês todos conhecem o Doutor Portland? - perguntou Traynor enquanto se sentava.

Todos assentiram. Kelley falou:

- É um dos nossos. Um cirurgião ortopédico.

- Acabo de ter um encontro estranho e irritante com ele. Vindo para cá, fui dar uma olhada no meu cliente, Tom Baringer, que está muito mal. O Doutor Portland estava sentado no escuro, num canto do quarto. Eu nem o vi quando entrei. Ele agiu de modo estranho, até mesmo de modo beligerante. Imagino que esteja perturbado com a condição de Tom, mas disse alguma coisa sobre não assumir toda a culpa e que havia algo de errado com o hospital.

- Acho que ele está tenso por causa do excesso de trabalho - disse Kelley. – Precisamos pelo menos de mais um cirurgião ortopédico. Infelizmente, nossos esforços de recrutamento não deram resultado até agora.

- O sujeito me pareceu doente - disse Traynor. - Aconselhei-o a procurar um médico, mas ele riu.

- Vou conversar com ele - prometeu Kelley. - Talvez precise de uma licença. Podemos conseguir um substituto por algumas semanas.

- Bom, chega desse assunto - disse Traynor tentando se compor e assumir o papel de chairman. - Vamos começar a reunião.

- Antes disso, há algo que preciso falar - disse Kelley com um de seus sorrisos de vencedor. -Meus superiores ficaram muito chateados com a negativa do CDN para cirurgias de coração aberto.

- Também ficamos desapontados - disse Traynor nervosamente. Ele não gostava de começar uma reunião com um tema negativo. - Infelizmente, não está nas nossas mãos. Montpelier negou, mesmo eu achando que fizemos um esforço considerável.

- A CMV esperava que o programa de coração aberto já estivesse funcionando. Fazia parte do contrato.

- Fazia parte do contrato, desde que obtivéssemos o CDN - corrigiu Traynor. - Mas não obtivemos. Então vamos olhar o que foi feito. Nós atualizamos o aparelho de ressonância magnética, construímos a UTI neonatal e substituímos a velha máquina de cobalto-60 por um acelerador linear de último tipo. Acho que mostramos uma boa-fé notável, e estamos fazendo isso ao mesmo tempo em que o hospital vem tendo prejuízo.

- Se o hospital está tendo prejuízo, não é preocupação da CMV - disse Kelley. – Sobretudo porque isso provavelmente se deve a pequenas ineficiências administrativas.

- Acho que você está errado - disse Traynor, engolindo a raiva pela insinuação insultuosa de Kelley. Ele odiava ser posto na defensiva, especialmente por esse burocrata jovem e metido a besta. - Acho que a CMV precisa se preocupar por estarmos perdendo dinheiro. Se as coisas ficarem piores, seremos forçados a fechar as portas. Isso seria ruim para todos. Precisamos trabalhar juntos. Não há outra saída.

- Se o Hospital Comunitário de Bartlet falir - disse Kelley -, a CMV fará negócios com outro.

- Isso não é mais tão fácil. Os dois outros hospitais da região não estão mais funcionando para atendimento de casos agudos.

- Isso não será problema - disse Kelley em tom casual. Se for necessário, transportaremos nossos pacientes para o hospital da CMV emRutland.

O coração de Traynor falhou uma batida. A possibilidade da CMV transportar os pacientes nunca lhe ocorrera. Ele esperava que a falta de hospitais nas proximidades lhe desse algum poder de barganha. Aparentemente isso não ocorria.

- Não estou querendo dizer que não pretendo trabalhar com vocês - disse Kelley.-Afinal de contas, temos o mesmo objetivo: a saúde da comunidade. - Ele sorriu de novo, como se quisesse mostrar os dentes brancos e perfeitos.

- O problema é que a taxa de capitação é muito baixa - disse Traynor em tom rude. – As hospitalizações pela CMV estão mais de dez por cento acima das projeções. Não podemos sustentar uma sobrecarga dessas por muito tempo. Precisamos renegociar a taxa de capitação. É isso.

- A taxa de capitação não será renegociada até que termine o contrato - disse Kelley em tom amigável. - O que acham que nós somos? Vocês ofereceram a taxa atual num processo de concorrência. E assinaram o contrato. Então fica como está. O que posso fazer é iniciar negociações para uma taxa de capitação para os serviços de emergência, que ficaram de fora no acordo final.

- Capitar a emergência não é uma coisa que possamos fazer no momento - disse Traynor, sentindo o suor descer pela parte interna dos braços. - Primeiro temos de sair do vermelho.

- Que é o motivo para nossa reunião desta tarde - disse Beaton, falando pela primeira vez. Em seguida apresentou a versão final para o programa de bónus para os médicos da CMV. – Cada médico da CMV responsável pela triagem receberá uma bonificação, desde que o número de dias de internação por sócio permaneça num determinado nível. À medida que o nível cair, o pagamento sobe, e vice-versa.

Kelley riu.

- Para mim, isso parece suborno. Do jeito que os médicos são sensíveis aos incentivos financeiros, isso certamente vai reduzir a hospitalização e as cirurgias.

- Em essência, é o mesmo plano que a CMV tem no hospital de Rutland.

- Se funciona lá, deve funcionar aqui - disse Kelley.-Por mim, não há problema, desde que não custe nada à CMV.

- Será totalmente pago pelo hospital - disse Beaton.

- Vou apresentar a idéia aos meus superiores - disse Kelley. - É só?

- Só - disse Beaton. Kelley ficou de pé.

- Gostaríamos que cuidasse disso o mais rápido possível - disse Traynor. - Estamos com muito vermelho em nosso balancete.

- Vou providenciar hoje mesmo. Tentarei conseguir uma resposta definitiva para amanhã. - Dito isso, Kelley apertou a mão dos outros e saiu da sala.

- Eu diria que as coisas estão correndo de acordo com o previsto - disse Beaton assim que ele saiu.

- Estou me sentindo encorajado - falou Caldwell.

- Não gostei de ele ter sugerido que a administração é incompetente - disse Traynor. – Não gosto dessa atitude provocadora. É ruim termos de lidar com ele.

- O que não gostei de ouvir foi a ameaça de transportar pacientes para Rutland – disse Beaton. - Isso me preocupa. Significa que nosso poder de barganha é menor do que eu pensava.

- Acabo de pensar numa coisa - disse Traynor. - Uma reunião de alto nível, capaz de determinar o destino do hospital, e nenhum médico presente.

- Sinal dos tempos - disse Beaton. - O fardo de lidar com a crise no serviço de saúde caiu sobre nós, administradores.

- Acho que é o equivalente da expressão ”a guerra é muito importante para ficar na mão dos generais”, no mundo médico - disse Traynor.

Todos riram. Foi uma boa tirada para quebrar a tensão.

- E quanto ao Doutor Portland?-perguntou Caldwell. - Deve fazer alguma coisa?

- Não creio que haja alguma coisa a ser feita - disse Beaton - Só tenho ouvido coisas boas a respeito de sua capacidade como cirurgião. Ele certamente não violou nenhuma regra ou regulamento. Acho que teremos de esperar e ver o que a CMV faz.

- Ele não me pareceu bem - reiterou Traynor. - Não sou psiquiatra e não sei como fica alguém que está em vias de um colapso nervoso, mas se eu tivesse de adivinhar, acho que a aparência seria igual à dele.

O ruído do interfone surpreendeu a todos, especialmente Beaton, que deixara instruções explícitas contra interrupções.

- Má notícia - falou depois de desligar. - Tom Baringer morreu.

Os três ficaram quietos. Traynor foi o primeiro a falar:

- Nada como uma morte para lembrar que, apesar dos lucros e prejuízos, um hospital é na verdade um tipo de negócio muito diferente.

- Verdade - disse Beaton.-O difícil do trabalho é que toda a cidade e toda a região tornam-se uma família ampliada. E como em qualquer família grande, há sempre alguém morrendo.

- Qual é a taxa de mortalidade no Hospital Comunitário Bartlet? - perguntou Traynor. -

Nunca me ocorreu perguntar.

- Estamos na média - disse Beaton. - Um ponto a mais, a menos. Na verdade, nosso índice é melhor do que o da maioria dos hospitais-escola nas cidades.

- É um alívio. Por um momento, tive medo de que precisaria me preocupar com mais uma coisa.

- Chega dessa conversa mórbida - disse Caldwell.-Tenho boas notícias. Os dois médicos, marido e mulher, que estivemos recrutando ativamente, decidiram vir para Bartlet. De modo que teremos uma patologista fantasticamente treinada.

- Fico feliz em saber - disse Traynor. - Isso coloca a patologia em dia.

- Eles até compraram a antiga casa de Hodges - acrescentou Caldwell.

- Não me diga! Gosto disso. Há algo maravilhosamente irônico no fato.

Charles Kelley entrou no seu Ferrari, deu partida no motor e apertou o acelerador. A máquina respondeu como a maravilha de engenharia que era, pressionando-o contra o banco enquanto ele acelerava para fora do estacionamento do hospital. Era uma delícia o modo como o carro aderia à estrada e fazia as curvas.

Depois da reunião com o pessoal do Hospital Bartlet, Kelley telefonara diretamente para Duncan Mitchell, achando que era uma boa oportunidade de mostrar presença para o homem que ocupava o pináculo do poder. Duncan Mitchell era executivo-chefe da CMV, bem como de vários outros planos de saúde e empresas administradoras de hospitais no Sul. Convenientemente, a sede geral ficava em Vermont, onde o Senhor Mitchell tinha uma fazenda.

Kelley não sabia o que esperar, e ficara nervoso ao fazer a ligação, mas o executivo-chefe mostrara-se gentil. Apesar de Kelley ter feito o contato enquanto ele se preparava para ir a Washington, Mitchell concordara generosamente em se encontrar com ele do lado de fora do prédio de aviação geral do aeroporto de Burlington

Com o Learjet da CMV em estágio final de abastecimento, Mitchell convidou Kelley para entrar na sua limusine. Ofereceu uma bebida do bar do veículo. Kelley educadamente recusou.

Duncan Mitchell era um homem impressionante. Não era tão alto quanto Kelley, mas emanava uma sensação de poder. Estava meticulosamente vestido com um terno executivo, gravata de seda e abotoaduras de ouro. Os sapatos italianos eram de crocodilo, marrom-escuros.

Kelley se apresentou e fez um breve resumo de sua ligação com a CMV, mencionando que era o diretor regional para a área atendida pelo Hospital Comunitário de Bartlet, para o caso de Mitchell não saber. Mas Mitchell parecia a par da posição de Kelley.

- Eventualmente pretendemos comprar aquele hospital - falou.

- Presumi isso - disse Kelley. - E foi por este motivo que quis conversar diretamente com o senhor.

O Senhor Mitchell tirou uma cigarreira de ouro do bolso do colete e pegou um cigarro. Bateu-o pensativamente contra a superfície da cigarreira.

- Há um bom lucro a ser obtido com esses hospitais rurais - falou. - Mas é preciso uma administração cuidadosa.

- Concordo totalmente.

- Sobre o que você desejava falar?

- Duas coisas. A primeira é com relação a um programa bônus que o hospital quer iniciar, semelhante ao que temos com nossos hospitais. Eles querem reduzir o índice de hospitalização.

- E qual é o outro? - disse Mitchell soprando fumaça para o teto do carro.

- Um de nossos médicos começou a agir de modo estranho, reagindo a complicações pós-operatórias em seus pacientes. E está dizendo coisas como ”não vou assumir a culpa por erros que estejam acontecendo no hospital”.

- Ele tem alguma história de problemas psiquiátricos?

- Não que possamos determinar.

- Com relação ao primeiro item, deixe que façam o programa de bônus. Nesse ponto, o balancete deles não tem importância.

- E quanto ao médico?

- Obviamente, você precisará tomar alguma atitude. Não podemos deixar que esse tipo de comportamento prossiga.

- Alguma sugestão?

- Faça o que for necessário. Deixo os detalhes por sua conta, parte da capacidade de dirigir uma grande organização como a nossa está em saber quando delegar responsabilidade. Este caso é um exemplo.

- Obrigado, Senhor Mitchell. - Kelley parecia satisfeito. Era óbvio que estava recebendo um voto de confiança.

Empolgado, Kelley desceu da limusine e voltou ao seu Ferrari. Enquanto saía do aeroporto, viu rapidamente Mitchell caminhando de seu carro para o Learjet.

- Algum dia - prometeu Kelley -, eu estarei usando aquele avião.

 

QUARTA-FEIRA, 30 DE JUNHO

TANTO o DEPARTAMENTO de medicina interna quanto o de patologia fizeram pequenas cerimônias informais para o grupo que terminava as residências naquele ano.

Depois de pegarem seus diplomas, David e Angela abriram mão das festas programadas para tarde e correram para casa. Era o dia em que deixariam Boston em busca de sua nova casa e de suas novas carreiras em Bartlet Vermont.

- Você está empolgada? - perguntou David a Nikki.

- Estou doida para ver o Ferrugem.

Alugaram uma caminhonete para ajudar na mudança. Foi preciso fazer várias viagens subindo e descendo as escadas para colocar tudo nos dois veículos. Quando finalmente terminaram, Angela entrou no furgão e David pegou a caminhonete. Na primeira metade da viagem, Nikki escolheu ir com o pai.

David aproveitou para conversar com Nikki sobre a escola nova e perguntar se ela sentiria falta dos amigos.

- Vou sentir falta de alguns. Mas de outros, não. De qualquer modo, acho que consigo enfrentar isso.

David sorriu, prometendo que se lembraria de contar a Angela o comentário precoce de Nikki.

Logo ao sul da fronteira de New Hampshire, pararam para o almoço. Ansiosos por chegar a casa nova, comeram depressa.

- Estou me sentindo ótima por deixar essa cidade frenética e cheia de crimes – disse Angela enquanto saíam do restaurante e se aproximavam dos veículos.-Neste momento, nem me importo se nunca mais voltar.

- Não sei - brincou David. - Vou sentir falta de ouvir sirenes, tiros, vidros quebrando e gritos de socorro. A vida no campo vai ser um tédio só.

Nikki e Angela deram-lhe socos de brincadeira.

No resto da viagem, Nikki foi com Angela no furgão.

Enquanto seguiam para o norte o tempo melhorou. Em Boston estava quente, abafado e nevoento. Quando chegaram a Vermont, continuava quente, mas estava claro e muito menos úmido.

Bartlet parecia serena no calor de início de verão. Floreiras adornavam praticamente todas as janelas. Reduzindo a velocidade, a caravana de dois veículos entrou na cidade preguiçosa. Havia poucas pessoas nas ruas. Era como se todos estivessem tirando a sesta.

- Podemos parar para pegar o Ferrugem? - perguntou Nikki enquanto se aproximavam da Loja de Ferragens Staley’s.

- Vamos primeiro ajeitar as coisas - disse Angela.-Temos de construir algum cercadinho para ele, até ele se acostumar a não sujar a casa.

David e Angela dirigiram até a entrada da casa e estacionaram lado a lado. Agora que ela era oficialmente deles, sentiam-se ainda mais espantados do que na visita inicial.

David saiu da caminhonete, os olhos fixos na casa.

- O lugar é fantástico. Mas parece que precisa de mais cuidados do que eu pensei.

Angela foi até David e seguiu o seu olhar. Parte do rendilhado decorativo tinha caído da cornija.

- Não estou preocupada - disse ela.-Não foi à toa que me casei com uma pessoa habilidosa em coisas do lar.

David riu.

- Dá para ver que você vai precisar de muito esforço para aprender a mentir.

- Vou tentar manter a mente aberta - zombou ela.

Com uma chave que haviam recebido pelo correio, abriram a porta da frente e entraram. A casa parecia muito diferente sem os móveis. Quando a tinham visto, antes, estava cheia dos pertences de Hodges.

- Parece um salão de dança - disse David.

- Tem até eco - disse Nikki. Em seguida gritou: - Alô! - e a palavra reverberou.

- É assim que você sabe que chegou ao posto que merecia na vida - disse David imitando um sotaque inglês. - Quando sua casa tem eco.

Lentamente os Wilsons atravessaram ofoyer. Agora que não havia tapetes, seus calcanhares ressoavam no piso de madeira. Tinham esquecido a enormidade da casa nova, especialmente em contraste com o apartamento de Boston. Afora alguns móveis que tinham concordado que Clara poderia deixar - um banco, uma mesa de cozinha -, o lugar estava desnudo. i No hall central, diante da grande escada, pendia um lustre imenso. Havia uma biblioteca e uma mesa de jantar do lado esquerdo, e uma enorme sala de estar do lado direito. Um corredor central levava à espaçosa cozinha que se estendia pela parte de trás da casa. Por trás da cozinha ficava o acréscimo de dois andares de madeira, ligando a casa ao celeiro. Ali havia uma saleta de entrada, várias despensas e uma escada que levava ao segundo pavimento.

Voltando à grande escadaria, os Wilsons subiram ao segundo andar. Havia dois quartos com banheiros, um de cada lado, e uma grande suíte sobre a área da cozinha.

Abrindo uma porta no corredor, junto à suíte principal, subiram ao terceiro andar, onde havia quatro quartos sem aquecimento.

- Não falta lugar para guardar coisas - disse David.

- Qual vai ser o meu quarto? - perguntou Nikki.

- O que você quiser - disse Angela.

- Eu quero o que dá para o lago das rãs.

Desceram ao segundo andar e foram até o quarto que Nikki escolhera. Discutiram sobre o posicionamento dos móveis, inclusive a mesa que ela ainda não tinha.

- Certo, pessoal - ordenou Angela. - Chega de embromação. Hora de descarregar. David prestou continência.

Voltando aos veículos, começaram a trazer os pertences para a casa e a colocá-los nos respectivos cômodos. O sofá, as camas e as pesadas caixas de livros exigiram grande esforço. Ao terminar, David e Angela pararam sob o arco que levava à sala de estar.

- Seria divertido se não fosse tão patético - disse ela. O tapete que no apartamento ia praticamente de parede a parede parecia pouco mais do que um capacho no meio da sala enorme. O sofá, as duas poltronas e a mesa de café pareciam ter sido resgatados de um bazar de caridade.

- Elegância moderada - disse David. - Decoração minimalista. Se estivesse no Architectural Digest, todo mundo tentaria imitar.

- E o Ferrugem? - perguntou Nikki.

- Vamos pegá-lo - disse David. - Você foi legal, e ajudou muito. Quer vir, Angela?

- Não, obrigada. Vou ficar e organizar mais as coisas, especialmente na cozinha.

- Pensei que iríamos comer no restaurante esta noite - disse David.

- Não. Quero comer aqui, na nossa casa nova. Enquanto David e Nikki iam até a cidade, Angela desfez algumas das caixas da cozinha, retirando inclusive os potes, as panelas, os pratos e as bandejas.

Também descobriu como funcionava o fogão e ligou a geladeira.

Nikki voltou carregando o cãozinho adorável, de rosto enrugado e orelhas caídas. Vinha com o animal apertado contra o peito. Ele crescera consideravelmente desde que o tinham visto. Os pés eram do tamanho dos punhos de Nikki.

- Vai virar um cachorrão - disse David. Enquanto Nikki e David preparavam um cercado para o Ferrugem na saleta dos fundos, Angela preparou o jantar para Nikki. A menina não gostou de comer antes dos pais, mas estava muito cansada para reclamar. Depois de ter comido e feito drenagem postural, ela e Ferrugem, ambos exaustos, foram postos para dormir.

- Agora tenho uma surpresinha para você - disse Angela enquanto os dois desciam do quarto de Nikki. Pegou David pela mão e levou-o até a cozinha. Abrindo a geladeira, retirou uma garrafa de Chardonnay.

- Uau! - exclamou David inspecionando o rótulo. - Não é o bagulho que a gente costuma comprar.

- Claro que não - disse Angela. Voltando à geladeira, retirou um prato coberto por uma toalha de papel. Levantou a toalha e expôs dois grossos bifes de vitela.

- Sinto que estamos preparando um festim - disse David.

- Pode acreditar. Salada, alcachofra, arroz integral e vitela. E o melhor Chardonnay que pude comprar.

David preparou a carne numa churrasqueira construída no terraço junto à biblioteca. No momento em que ele entrou em casa, Angela havia posto o resto da comida sobre a mesa da sala de jantar.

A noite baixara suavemente, enchendo a casa de sombras. Na escuridão, o brilho das duas velas que formavam o arranjo de centro de mesa só iluminava a área imediatamente ao redor. A bagunça do resto da casa estava escondida.

Sentaram-se, um em cada cabeceira. Não disseram nada. Simplesmente se olharam enquanto comiam. Ambos haviam passado para uma atmosfera romântica, percebendo que o romance sumira de suas vidas nos últimos anos; as exigências da residência médica e os contínuos problemas de saúde de Nikki obtiveram precedência.

Depois de terminarem de comer, continuaram sentados por muito tempo, encarando-se enquanto a sinfonia de sons de uma noite de verão em Vermont penetrava pelas janelas abertas. As chamas das velas tremiam sensualmente, enquanto o ar limpo e fresco atravessava a sala acariciando seus rostos. Era um momento mágico que os dois queriam saborear.

O desejo mútuo levou-os para o escuro da sala de estar. Caíram no sofá, os lábios se encontrando enquanto os dois se envolviam num abraço cálido. Tiraram as roupas, ajudando-se ansiosos. Com um coro de grilos ao fundo, fizeram amor em sua casa nova.

A manhã trouxe uma confusão em massa. Com o cão latindo para ser alimentado e Nikki gritando que não conseguia encontrar seus jeans favoritos, Angela sentiu que a paciência estava no fim. David não ajudava em nada. Não conseguia encontrar a lista que fizera sobre o que estava em cada uma das dezenas de caixas ainda fechadas.

- Certo, já chega - gritou Angela.-Não quero ouvir mais berros nem latidos.

Por um instante, até Ferrugem ficou quieto.

- Calma, querida - disse David. - Ficar chateada não vai resolver nada.

- E não me diga para não ficar chateada!

- Tudo bem - falou David calmamente. - Vou pegar a baby-sitter.

- Eu não sou um bebé! - gritou Nikki.

- Oh, Deus! - disse Angela com o rosto voltado para o teto. Enquanto David estava fora procurando Alice Doherty, a irmã mais velha de Dorothy Weymouth, Angela conseguiu recuperar o autocontrole. Percebeu que fora um equívoco dizerem aos patrões que estariam dispostos a começar no dia primeiro de julho.- Deveriam ter-se dado alguns dias para se estabelecer.

Alice terminou se mostrando uma dádiva divina. Parecia uma avó, com seu rosto caloroso, seu piscar de olhos e os cabelos brancos. Tinha modos ativos e uma energia surpreendente para uma mulher de setenta e nove anos. Também tinha a compaixão e a paciência que uma criança cronicamente doente e decidida requeria. Melhor que tudo, amou Ferrugem de cara, o que de imediato fez com que Nikki a adorasse.

A primeira coisa que Angela fez foi demonstrar a terapia respiratória de Nikki. Era importante que Alice aprendesse o procedimento, e ela se mostrou uma aluna brilhante.

- Não se preocupem com nada - gritou Alice para David e Angela enquanto eles saíam pela porta dos fundos. Nikki estava segurando Ferrugem e abanava a pata do cachorro para dar adeus.

- Quero ir de bicicleta - anunciou David assim que ele e Angela saíram.

- Está falando sério?

- Absolutamente.

- Faça como quiser - disse Angela subindo no Volvo e dando partida no motor. Acenou para David enquanto descia o longo caminho e virava para a direita, na direção da cidade.

Apesar de ter confiança em sua capacidade profissional, Angela sentiu-se nervosa por começar seu primeiro trabalho de verdade.

Juntando a coragem e lembrando-se de que era natural o nervosismo do primeiro dia, apresentou-se na sala de Michaell Caldwell. Imediatamente Caldwell levou-a para conhecer HelenBeaton, presidente do hospital. Por acaso, Beaton estava em reunião com o Doutor Delbert Cantor, chefe do pessoal médico, mas interrom-peu a reunião para dar as boas-vindas a Angela. Convidou-a para sua sala e apresentou-a ao Doutor Cantor.

Enquanto apertava sua mão, o Doutor Cantor examinou Angela despudoradamente de cima a baixo. Ela escolhera um de seus melhores vestidos de seda para o primeiro dia.

- Minha nossa! - disse ele. - Sem dúvida alguma, não se parece com as poucas garotas que havia na minha turma na escola de medicina. Eram todas umas bruxas. – Em seguida, riu vigorosamente.

Angela sorriu. Sentiu vontade de dizer que sua turma for exatamente o oposto - os poucos homens eram todos uns bruxos -, mas segurou a língua. Instantaneamente achou o Doutor Cantor ofensivo. Sem dúvida ele fazia parte da minoria antiga, que continuava sentindo-se desconfortável com as mulheres na medicina.

- Estamos muito felizes por tê-la na família do Hospital Comunitário de Bartlet – disse Beaton enquanto a acompanhava até a porta.-Tenho certeza de que achará a experiência desafiadora e recompensadora.

Deixando a área de administração, Caldwell levou Angela ao laboratório clínico. Assim que a viu, o Doutor Wadley saltou de sua mesa e até mesmo abraçou-a, como se fossem velhos amigos.

. - Bem-vinda à equipe - disse o Doutor Wadley, com um sorriso caloroso, as mãos ainda agarrando os braços de Angela. - Há semanas venho esperando este dia.

- Vou sair - disse Caldwell a Angela. - Vejo que está em boas mãos.

- Foi um excelente trabalho o recrutamento dessa talentosa patologista - disse Wadley a Caldwell. - Você receberá uma medalha.

Caldwell curvou-se em reverência.

- É um bom sujeito - disse Wadley olhando-o se retirar.

Angela assentiu, mas estava pensando em Wadley. Apesar de mais uma vez achá-lo muito parecido com o pai, agora também tinha consciência das diferenças. O fervor entusiasmado de Wadley era uma boa mudança em relação à reserva altiva do pai. Angela chegou a sentir- se encantada com a demonstração de boas-vindas. Era reconfortante sentir-se tão benquista no primeiro dia.

- Vamos começar pelo começo - disse Wadley esfregando as mãos. Seus olhos verdes brilhavam de excitação infantil. - Deixe-me mostrar sua sala.

Wadley empurrou uma porta que conectava sua sala a uma outra, que parecia ter sido recentemente decorada. Era totalmente branca: as paredes, a mesa, tudo.

- Gosta?

- É maravilhosa.

Wadley apontou para a porta de ligação.

- Vai estar sempre aberta. Literal e figuradamente.

- Maravilhoso - repetiu Angela.

- Agora vamos passear de novo pelo laboratório. Sei que você já viu uma vez, mas quero apresentá-la ao pessoal. - Ele pegou um jaleco branco, comprido e impecável, e vestiu-o.

Nos próximos quinze minutos, Angela conheceu mais gente do que poderia esperar lembrar-se. Depois de circular pelo laboratório, pararam numa sala sem janelas perto da seção de microbiologia. Pertencia ao Doutor Paul Darnell, o outro patologista.

Em contraste com Wadley, Darnell era um sujeito baixo, com a roupa amassada e o jaleco branco manchado aleatoriamente com material usado na preparação de lâminas. Parecia agradável, mas simples e distante, quase a antítese do afável e caloroso Wadley.

Quando terminou o passeio, Wadley levou Angela de volta à sua sala, onde explicou seus deveres e responsabilidades.

- Vou tentar fazer de você uma das melhores patologistas do país - disse, com verdadeiro entusiasmo de mentor.

David gostara imensamente de seu passeio de bicicleta por quase seis quilômetros. O ar limpo e frio da manhã era delicioso, e os pássaros ainda mais abundantes do que ele imaginara. Tinha visto vários beija-flores pelo caminho. Para completar, vislumbrara vários cervos num campo orvalhado logo depois de atravessar o Roaring River.

Ao chegar no prédio ambulatorial, descobriu que era cedo demais. Charles Kelley só apareceu pouco antes das nove.

- Nossa, você está ansioso! - disse Kelley ao ver David folheando revistas na sala de espera da CMV. - Venha.

David acompanhou Kelley até a sua sala, onde preencheu alguns formulários de rotina.

- Você está entrando numa equipe de primeira - disse Kelley enquanto David preenchia os papéis. -Vai adorar isto aqui; instalações ótimas, colegas maravilhosamente treinados. O que mais se pode querer?

- Não consigo pensar em mais nada - admitiu David. Ao terminar com a papelada, e depois de explicar algumas regras básicas, Kelley acompanhou David até sua sala nova. Enquanto Kelley abria a porta do consultório e entrava, David parou para examinar a placa com o seu nome, que já fora colocada no lugar próprio. Ficou surpreso ao ver o nome ”Doutor Kevin Yansen acima do seu.

- É o mesmo consultório? - perguntou em voz baixa depois de chegar perto de Kelley.

Havia seis pacientes na sala de espera.

- O mesmo - disse Kelley. Em seguida bateu no espelho depois que este deslizou, apresentou David à recepcionista que também atenderia ao Doutor Yansen.

- Muito prazer - disse Anne Withington com um sotaque forte do sul de Boston. Estalou seu chiclete e David piscou.

- Venha ver sua sala - disse Kelley. Por sobre o ombro pediu que Anne mandasse o Doutor Yansen procurar o Doutor Wilson numa folga entre dois pacientes.

David sentiu-se confuso. Seguiu Kelley até a sala que fora do Doutor Portland. As paredes haviam sido repintadas de cinza-claro e fora instalado um novo carpete cinza-esverdeado.

- O que acha? - perguntou Kelley, curvando-se.

- Acho ótimo. Para onde foi o Doutor Portland?

Antes que Kelley pudesse responder, o Doutor Yansen apareceu junto à porta e entrou na sala com a mão estendida. Ignorando Kelley, ele se apresentou, pedindo que David o chamasse de Kevin. Em seguida deu-lhe um tapinha nas costas.

- Bem-vindo! É bom tê-lo no esquadrão. Você joga basquete ou tênis?

- Um pouco de cada. Mas nenhum dos dois recentemente.

- Vamos ter de colocá-lo de novo em forma.

- Você é ortopedista? - perguntou David enquanto olhava para o novo colega de consultório. Era um sujeito atarracado, com um rosto de aparência agressiva. Um nariz meio aquilino sustentava óculos grossos. Ele era dez centímetros mais baixo do que David, e perto de Kelley parecia minúsculo.

- Ortopedista? - Kevin riu com desdém. - De jeito nenhum! Estou no extremo oposto do espectro operacional. Sou oftalmologista.

- Onde está o Doutor Portland? Kevin olhou para Kelley.

- Ainda não contou para ele?

- Não tive oportunidade - disse Kelley abrindo os braços, com as palmas para cima. - O Doutor Wilson acaba de chegar.

- O Doutor Portland não está mais conosco - disse Kevin.

- Ele deixou o grupo? - perguntou David.

- Pode-se dizer que sim - disse Kevin com um sorriso torto.

- O Doutor Portland cometeu suicídio em maio - disse Kelley.

- Exatamente aqui, nesta sala - completou Kevin. - Sentado naquela mesa. – Kevin apontou para a mesa; em seguida, imitou um revólver com a mão, o indicador servindo como cano, e apontou-a para a testa. - bann! Deu um tiro na testa, que saiu pela nuca. Por isso, as paredes tiveram de ser pintadas, e o carpete trocado.

David ficou com a boca seca. Olhou para a parede branca por trás da mesa e tentou não imaginar qual seria a aparência dela logo depois do ocorrido.

- Que horrível. Ele era casado?

- Infelizmente - disse o Doutor Yansen, assentindo. - Esposa e dois meninos. Uma verdadeira tragédia. Eu sabia que alguma coisa estava errada. De repente ele parou de jogar basquete nas manhãs de sábado.

- Ele não parecia bem na última vez em que o vi - disse David. - Estava doente? Parecia ter perdido um bocado de peso.

- Deprimido - disse Kelley. David suspirou.

- É, a gente nunca sabe!

- Vamos passar para um assunto mais alegre - disse Kelley depois de limpar a garganta. – Fiz o que você determinou, DoutorWilson. Marcamos pacientes para esta manhã. Está preparado?

- Totalmente.

Kevin desejou boa sorte a David e voltou para uma das salas de exame. Kelley apresentou David a Susan Beardslee, a enfermeira que trabalharia com ele. Susan era uma mulher atraente, por volta dos vinte e cinco anos, com o cabelo escuro cortado curto a emoldurar-lhe o rosto. O que David gostou imediatamente foi de sua personalidade viva e entusiasmada.

- Sua primeira paciente já está na sala de exame - disse Susan, alegre, e em seguida entregou-lhe o prontuário. - Quando precisar de mim, é só tocar a campainha. Vou estar preparando o próximo paciente. - A seguir, desapareceu na segunda sala de exame.

- Acho que é aqui que eu saio - disse Kelley. - Boa sorte, David. Se houver alguma pergunta ou algum problema, é só dar um grito.

David abriu a capa do prontuário e leu o nome: Marjorie Kleber, trinta e nove anos. A reclamação era dor no peito. Ele estava para bater na porta da sala de exame, quando leu o resumo do diagnóstico:

câncer no seio tratado com cirurgia, quimioterapia e radiação. O câncer fora diagnosticado há quatro anos, quando tinha trinta e cinco. Na época da descoberta, o câncer havia se espalhado para os nódulos linfáticos.

David examinou rapidamente o resto do prontuário. Estava meio nervoso, e precisou de um instante para se preparar. Um paciente com câncer que havia desenvolvido metástase - se espa se espalhara do seio para outras áreas do corpo - era um caso sério para se começar uma carreira de médico. Felizmente Marjorie estava bem.

David bateu na porta e entrou. Marjorie Kleber estava sentada pacientemente na mesa de exame, vestida com uma camisola de hospital. Encarou David com olhos grandes e inteligentes. Seu sorriso era do tipo que aquecia o coração.

David se apresentou e estava para perguntar sobre o problema atual quando ela estendeu o braço e segurou uma de suas mãos. Apertou-a e trouxe-a para o peito, na base do pescoço.

- Obrigada por vir para Bartlet - falou. - Nunca saberá o quanto rezei para que alguém como o senhor viesse para cá. Estou felicíssima.

- Estou feliz por ter vindo - disse David em tom hesitante.

- Antes do senhor chegar, eu tinha de esperar quatro semanas para uma consulta – falou enquanto finalmente soltava a mão de David. - Foi assim desde que o sistema de saúde da escola foi passado para a CMV. E cada vez era um médico diferente. Agora me disseram que o senhor vai ser meu médico. É muito reconfortante.

- Sinto-me honrado por ser seu médico - disse David.

- Era assustador ter de esperar quatro semanas para uma consulta. No inverno passado tive uma gripe tão ruim que pensei que fosse pneumonia. Felizmente, quando consegui a consulta, o pior já havia passado.

- Talvez a senhora devesse ter procurado o setor de emergência.

- Gostaria de ter podido. Mas nós não temos direito. Eu fui uma vez, no penúltimo inverno, mas a CMV se recusou a pagar porque era uma gripe. A não ser que o problema seja de vida ou morte, tenho de vir aqui no consultório. Não posso ir para a sala de emergência sem aprovação prévia do médico da CMV. Se eu fizer isso, eles não pagam.

- Mas isso é absurdo - disse David. - Como você pode saber antecipadamente que seu problema não é de vida ou morte?

Marjorie encolheu os ombros.

- Foi a pergunta que eu fiz, mas eles não responderam. Só repetiram a regra. De qualquer modo, estou feliz por ter vindo. Se eu tiver um problema, ligo para o senhor.

- Por favor, faça isso. Agora vamos começar a falar sobre sua saúde. Quem está fazendo o acompanhamento do seu câncer?

- O senhor.

- A senhora não tem um oncologista?

- A CMV não tem oncologista. Vou me consultar rotineira- mente com o senhor e com o Doutor Mieslich, o oncologista, quando o senhor achar necessário. O Doutor Mieslich não é da CMV. Não posso me consultar com ele a não ser que o senhor dê autorização.

David assentiu, reconhecendo que em seu novo trabalho havia realidades sobre as quais demoraria a aprender. Também sabia que teria de passar um tempo considerável estudando em detalhes o prontuário de Marjorie.

Nos próximos quinze minutos, David dedicou-se ao processo de inteirar-se sobre a dor no peito de Marjorie. Enquanto a auscultava durante e entre respirações profundas, perguntou o que ela fazia na escola.

- Sou professora.

- De que série? - David retirou o estetoscópio dos ouvidos e começou os preparativos para um eletrocardiograma.

- Terceira - disse ela, orgulhosa.-Durante vários anos deaulas para a segunda série, mas prefiro a terceira. Nessa fase, as crianças realmente estão desabrochando.

- Minha filha vai começar a terceira série no outono.

- Que maravilha! Então ela vai estar na minha classe.

- Você tem família?

- Claro que sim! Meu marido, Lloyd, trabalha na empresa software. É programador. Temos dois filhos: um menino no segundo grau e uma menina na sexta série.

Meia hora depois, David sentiu-se suficientemente confiant para garantir a Marjorie que sua dor no peito não era séria e que não tinha nada a ver com o coração nem com o câncer, suas preocupações fundamentais. Mais uma vez ela lhe agradeceu profusamente por ter vindo a Bartlet.

David entrou em sua sala particular com um sentimento de exuberância. Se todos os seus pacientes fossem tão calorosos e gratos como Marjorie, ele poderia contar com uma carreira recompensadora em Bartlet. Colocou o prontuário dela sobre a mesa, para estudá-lo mais detalhadamente.

Retirando a pasta do suporte na porta da segunda sala de exames, David examinou o prontuário do segundo paciente. O resumo de diagnóstico dizia: leucemia tratada com quimioterapia maciça.

David gemeu por dentro; outro caso difícil que exigiria mais ”dever de casa”. O nome do paciente era John Tarlow. Um homem de quarenta e oito anos que estava em tratamento nos últimos dois anos e meio.

Entrando na sala, David se apresentou. John Tarlow era um sujeito simpático e amigável, cujo rosto refletia inteligência e calor equivalentes aos de Marjorie. A despeito de sua história complicada, a reclamação de insónia de John era mais fácil e mais rápida de ser enfrentada do que a dor no peito de Marjorie. Depois de uma conversa curta, ficou claro para David que o problema era uma compreensível reação psicológica a uma morte na família. David prescreveu-lhe um remédio para dormir, que com certeza colocaria John de volta em sua rotina.

Depois de terminar a consulta, David juntou o prontuário de John ao de Marjorie, para exame posterior. Em seguida procurou Susan. Encontrou-a no minúsculo laboratório usado para testes simples de rotina.

- Há muitos pacientes de oncologia se tratando aqui? - perguntou hesitante.

David admirava o tipo de gente que optava por trabalhar com oncologia. Ele se conhecia bem demais para saber que não era feito para essa especialidade. Assim, foi com certo abalo que viu que os dois primeiros pacientes da CMV estavam com câncer.

Susan garantiu que havia poucos pacientes desse tipo. David quis acreditar. Ao voltar para pegar o prontuário na caixa da sala de exame número um, sentiu-se mais tranqüilo; o caso era de diabetes.

A manhã de David passou-se rápida e tranqüila. Os pacientes foram um deleite. Todos afáveis, atentos ao que David tinha a dizer e em contraste com os pacientes pouco dóceis que ele atendera durante a residência, ansiosos por seguir suas recomendações.

Além disso, todos mostraram apreciação por sua vinda, não de modo tão fervoroso quanto Marjorie, mas o bastante para que David se sentisse bem com a recepção.

No almoço, encontrou-se com Angela na cafeteria dirigida pelos voluntários. Comendo sanduíches, discutiram a manhã.

- O Doutor Wadley é fantástico - disse Angela. - É muito solícito e interessado em ensinar. Quanto mais o vejo, menos ele lembra meu pai. É muito mais expansivo do que meu pai jamais será; muito mais entusiasmado e cordial. Me deu um abraço quandocheguei esta manhã. Meu pai morreria antes de fazer isso.

David contou a Angela sobre os pacientes que atendera. Ela ficou particularmente tocada ao ouvir sobre a reação de Marjorie Kleber à chegada de David.

- Ela é professora - acrescentou David. - Dá aulas para a terceira série, de modo que será professora de Nikki.

- Que coincidência! Como ela é?

- Parece calorosa, generosa, inteligente. Aposto que é uma professora maravilhosa. O problema é que tem câncer de seio com metástase.

- Puxa!

- Mas está se saindo bem. Não creio que tenha tido nenhuma recorrência, mas não estudei o prontuário em detalhes.

- É uma doença ruim - disse Angela, pensando em quantas vezes ela própria se preocupara com isso.

- A única reclamação que eu tenho até agora é que já há muitos pacientes de oncologia.

- Eu sei que não é o seu trabalho favorito.

- A enfermeira disse que foi coincidência eu ter começado de cara com dois. Vou manter os dedos cruzados.

- Bom, não fique deprimido. Tenho certeza de que sua enfermeira estava certa. - Angela se lembrava bem demais da reação de David à morte de vários pacientes de oncologia quando e iniciara a residência.

- Falando sobre depressão - disse ele. - Ouviu alguma coisa sobre o Doutor Portland?

Angela sacudiu a cabeça.

- Cometeu suicídio. Matou-se com um tiro na mesma sala que eu estou usando.

- Que coisa terrível! Você precisa ficar lá? Talvez possa mudar para outro consultório.

- Não seja ridícula. O que vou dizer a Kelley? Que sou supersticioso com morte e suicídio? Não posso fazer isso. Além do mais, eles repintaram as paredes e puseram carpete novo no chão. -

David encolheu os ombros.

- Vai estar tudo bem.

- Por que ele fez isso?

- Depressão.

- Eu sabia. Sabia que ele estava deprimido. Cheguei a dizer isso, lembra?

- Eu não disse que ele não estava deprimido. Disse que ele parecia doente. De qualquer modo, deve ter se matado logo depois que o encontramos, porque Charles Kelley disse que foi em maio.

- Coitado. Ele tinha família?

- Esposa e dois meninos.

Angela sacudiu a cabeça. O suicídio entre os médicos era um tema que ela conhecia bastante bem. Um de seus colegas residentes tinha se matado.

- Um assunto mais leve - disse David. -- Charles Kelley me contou que há um plano de bônus, recompensando os médicos por manter a hospitalização num nível mínimo. Quanto menos eu hospitalizar, mais recebo. Posso até ganhar uma viagem às Bahamas. Dá para acreditar?

- Já ouvi falar desse tipo de incentivo. É uma manobra usada pelas empresas de planos de saúde para reduzir custos.

David sacudiu a cabeça, incrédulo.

- Algumas realidades desse negócio de ”atendimento administrado” ou ”concorrência administrada” são muito doidas. Pessoalmente, acho isso um insulto.

- Bom, e agora um assunto mais leve de minha parte: o Doutor Wadley convidou-nos para jantar na casa dele esta noite. Eu lhe disse que precisava perguntar a você. O que acha?

- Você quer ir?

- Sei que temos um monte de coisas para fazer em casa, mas acho que devemos ir. Ele está sendo cortês e generoso. Não quero parecer ingrata.

- E Nikki?

- Essa é outra parte da boa notícia. Fiquei sabendo, com um dos técnicos do laboratório, que Barton Sherwood tem uma filha no segundo grau que costuma trabalhar como baby-sitter. Eles são os nossos vizinhos mais próximos. Telefonei para ela, e ela se dispôs a ir.

- Não acha que Nikki vai ficar chateada?

- Já perguntei. Ela disse que não se importa, e que está querendo conhecer Karen Sherwood. Ela é uma das chefes de torcida.

- Então vamos - disse David.

Karen Sherwood chegou logo antes das sete. David convidou-a a entrar. Não dava para imaginar que fosse chefe de torcida. Era uma jovem magra e quieta, que infelizmente se parecia um pouco com o pai. Entretanto, era agradável e intuitiva. Ao ser apresentada a Nikki, foi suficientemente esperta para dizer que gostava de cachorros, especialmente de filhotes. Enquanto David dirigia, Angela terminava de fazer a maquiagem. David podia ver que ela estava tensa, e tentou tranqüilizá-la, dizendo que tudo estaria bem e que ela estava fantástica. Quando chegaram à casa de Wadley, ambos ficaram impressionados. Não era tão grande quanto a deles, mas estava em condições muito melhores, e o gramado era imaculado

- Bem-vindos - disse Wadley, abrindo a porta da frente. O interior da casa era ainda mais impressionante do que o exterior. Cada detalhe fora cuidado. Móveis antigos sobre grossos tapetes orientais. Pinturas pastorais do século XIX adornavam as paredes.

Gertrude Wadley era bastante diferente de seu educado marido, confirmando o ditado ”os opostos se atraem”. Era uma mulher distante e tímida, com pouco a dizer. Parecia submersa pela personalidade do marido.

A filha adolescente, Cassandra, a princípio parecia com a mãe, mas com o correr da noite tornou-se mais expansiva, como o pai.

Mas foi Wadley quem dominou a noite. Pontificou sobre uma variedade de temas. E estava claramente louco por Angela. Num determinado momento, olhou para o céu e agradeceu o destino por ter sido recompensado com uma equipe tão competente, agora que Angela chegara.

- Uma coisa é certa - disse David enquanto voltavam para casa. - O Doutor Wadley está parado na sua. Claro que não posso culpá-lo.

Angela se aconchegou ao marido.

Ao chegar, David acompanhou Karen até em casa, mesmo ela insistindo em que não precisava.

Quando David voltou, Angela recebeu-o na porta, com uma língeríe que não usava desde a lua-de-mel.

- Parece melhor agora que não estou grávida. Não concorda?

- Estava fantástica na época, e está fantástica agora.

Indo furtivamente até a penumbra da sala de estar, deixaram-se cair no sofá. Mais uma vez fizeram amor lenta e carinhosamente. Sem o frenesi da noite anterior, foi ainda mais satisfatório.

Depois de terminar, ficaram abraçados ouvindo a sinfonia de grilos e sapos.

- Fizemos mais amor aqui, nos últimos dois dias, do que nos últimos dois meses em Boston - disse Angela num suspiro.

- Estávamos passando por muita tensão.

- Isso me faz pensar em outro filho.

David movimentou-se de modo a poder ver o perfil de Angela na escuridão.

- Verdade?

- Com uma casa deste tamanho, poderíamos ter um monte - disse ela com um risinho.

- Vamos querer saber se a criança tem fibrose cística. Podemos fazer uma amniocentese.

- Acho que sim - disse Angela sem entusiasmo. - Mas o que faríamos se desse positivo?

- Não sei. É assustador. É difícil saber qual é a coisa certa.

- Bom, como disse Scarlett O’Hara: vamos pensar nisso amanhã.

 

VERÃO EM VERMONT

Os DIAS VIRARAM semanas, e as semanas viraram meses, enquanto o verão prosseguia. O milho branco e doce cresceu até a altura do peito junto à estrada para a casa dos Wilsons, e da porta da frent era possível ouvi-lo sussurrando à brisa da tarde. Tomates gorduchos amadureciam em vermelho profundo na horta junto ao terraço. Maçãs silvestres do tamanho de bolas de golfe começaram a cair da árvore perto do celeiro. Cigarras zumbiam incessantemente: calor de agosto.

O trabalho de David e de Angela continuou estimulante recompensador, à medida que se adaptavam. Cada dia trazia alguma experiência nova que eles compartilhavam entusiasmados em seus jantares.

O apetite de Ferrugem não diminuiu, e o cachorro continuuou uma fonte de espanto, crescendo depressa e com grande exuberância, ficando proporcional ao tamanho dos pés. E, a despeito do seu crescimento, ele mantinha a mesma qualidade adorável de quando era um filhote minúsculo. Todo mundo achava impossível passar por perto sem fazer um carinho na sua cabeça ou coçar por trás uma das orelhas douradas.

Nikki florescia no novo ambiente. Sua condição respiratória permaneceu normal e os pulmões continuaram limpos. Além disso, fez novos amigos. A mais íntima era Caroline Helmsford; Caroline era uma menina pequena, com um ano a mais do que Nikki, e que também sofria de fibrose cística. Com tantas experiências em comum, formaram um laço particularmente forte.

Haviam-se conhecido por acaso. Os Wilsons, embora tivessem ouvido falar de Caroline em sua primeira viagem a Bartlet, não tinham feito qualquer tentativa para contactá-la. As duas meninas se trombaram na mercearia dos pais de Caroline.

Nikki também ficou amiga do filho de Yansen, Arni, que tinha exatamente a mesma idade dela.

Faziam aniversário com apenas uma semana de diferença. Arni era como o pai: baixo, atarracado e agressivo. Os dois passavam horas entrando e saindo do celeiro, sempre com alguma coisa para fazer.

Apesar de adorar seus trabalhos, os Wilsons aproveitavam bem os fins de semana. Nas manhãs de sábado, David acordava junto com o sol e fazia a ronda no hospital, depois jogava basquete com um grupo de médicos, três contra três, no ginásio da escola.

As tardes de sábado e domingo David e Angela dedicavam ao trabalho na casa. Enquanto Angela trabalhava no interior, ocupando-se com cortinas e móveis antigos, David enfrentava projetos externos, como consertar o pórtico ou substituir as calhas. Ele mostrou-se ainda menos habilidoso do que Angela temera. Estava sempre correndo até a Loja de Ferragens Staley’s, em busca de conselhos. Felizmente, o Senhor Staley ficou com pena e lhe deu várias aulas sobre como consertar janelas quebradas, torneiras pingando e interruptores queimados.

No sábado, dia primeiro de agosto, David levantou-se cedo como sempre, fez café e saiu para o hospital. A ronda foi rápida, já que ele só precisava atender a um paciente, John Tarlow, o que tinha leucemia. Como os outros pacientes de oncologia de David, John precisava ser freqüentemente hospitalizado devido a vários problemas. Esta última hospitalização resultara de um abscesso no pescoço. Felizmente estava reagindo bem. David previu que iria lhe dar alta nos próximos dias.

Depois de completar a ronda, David foi de bicicleta até a escola, para o jogo de basquete. Ao entrar no ginásio, descobriu que havia mais gente do que o usual querendo jogar. Quando finalmente entrou no jogo, percebeu que a competição estava mais feroz do que normalmente. O motivo é que ninguém queria perder, já que os perdedores tinham de sair.

David reagiu à competição acirrada jogando com mais vigor. Descendo depois de um rebote, seu cotovelo colidiu solidamente com o nariz de Kevin Yansen.

David parou no meio da corrida e virou-se a tempo de ver Kevin segurando o nariz com as duas mãos. Pingava sangue por entre seus dedos.

- Kevin - gritou David, alarmado. - Você está bem?

- Puta que pariu! - rugiu Kevin por entre as mãos. - Seu babaca!

- Desculpe. - David sentia-se envergonhado pela própria agressividade. - Deixe-me ver - disse, estendendo a mão e tentando afastar as mãos de Kevin do rosto.

- Não toque em mim! - rugiu Kevin.

- Calma, Senhor Agressivo - gritou Trent Yarborough de longe. Trent era cirurgião e um dos melhores jogadores. Havia jogado em Yale. - Deixe-me ver esse narigão. Francamente, fico satisfeito vendo você receber de volta um pouco do seu próprio remédio.

- Vá se foder, Yarborough - disse Kevin baixando as mãos. Sua narina direita pingava sangue. A cartilagem do nariz estava torta para a direita.

Trent aproximou-se para ver melhor.

- Parece que o seu bico quebrou.

- Merda!

- Quer que eu conserte? - perguntou Trent. - Não vou cobrar muito.

- Espero que seu seguro contra erro médico esteja pago - disse Kevin. Em seguida curvou a cabeça para trás e fechou os olhos.

Trent agarrou o nariz de Kevin entre o polegar e a junta do indicador e empurrou-o rapidamente para a posição correta. O estalo fez com que todos - até mesmo o cirurgião - se encolhessem.

Trent deu um passo atrás para examinar seu trabalho.

- Parece melhor do que o original - falou.

David perguntou se poderia levar Kevin para casa, mas Kevin disse que iria sozinho, ainda parecendo com raiva.

Um substituto entrou no jogo, assumindo o lugar de Kevin. Por um instante, David ficou parado olhando a porta por onde Kevin saíra. Em seguida encolheu-se quando alguém lhe deu um tapa nas costas. David virou-se e olhou para o rosto de Trent.

- Não deixe Kevin incomodá-lo - disse Trent. - Que eu saiba, ele já quebrou o nariz de duas pessoas aqui. Kevin não é particularmente um bom esportista, mas afora isso é um sujeito legal.

Relutantemente, David voltou ao jogo.

Quando voltou para casa, Nikki e Angela estavam prontas para sair. Não havia projetos de consertos para aquele sábado, já que tinham sido convidados para passar a noite num lago ali perto. Depois de uma tarde nadando, haveria uma refeição ao ar livre. Os Yansens, os Yarboroughs e os Youngs, os três ” Y”, como eles se chamavam, tinham alugado um chalé no lago durante o mês. Steve Young era obstetra/ginecologista, além de jogador regular de basquete.

- Vamos, papai - disse Nikki impaciente.-Nós já estamos atrasados.

David olhou a hora. Tinha jogado basquete por mais tempo do que o usual. Correu escada acima e entrou no chuveiro. Meia hora depois estavam no carro e a caminho.

O lago era uma jóia verde-esmeralda aninhada num vale luxuriante entre duas montanhas.

Numa delas ficava uma estação de esqui, uma das melhores da região, como David e Angela ficaram sabendo.

O chalé era encantador. Uma estrutura esparramada, com muitos quartos, construída ao redor de uma enorme lareira de pedra. Uma espaçosa varanda ocupava toda a frente da casa, voltada para o lago. Estendendo-se da varanda, havia um grande deque. Um lance de degraus de madeira ligava o deque a um cais em forma de T, que penetrava quinze metros na água.

Imediatamente Nikki juntou-se a Arni Yansen e os dois correram para a floresta, onde Arni estava ansioso por mostrar uma casa na árvore. Angela foi para a cozinha, onde Nancy Yansen, Claii Young e Gayle Yarborough estavam alegres, envolvidas na preparação da comida. David juntou-se aos homens que bebiam cerveja, enquanto olhavam casualmente um jogo dos Red Sox numa portátil.

A tarde passou languidamente, só interrompida pelas pequenas tragédias associadas a oito crianças ativas que tinham a tendênciia comum de tropeçar em pedras, ralar joelhos e ferir os sentimentos das outras. Os Yansens tinham dois filhos; os Youngs, um; e os Yarboroughs, três.

A única falha no dia impecável foi o humor de Kevin. Seus olhos tinham ficado pretos devido ao nariz quebrado. Em mais de uma ocasião, ele gritou com David, chamando-o de desajeitado, acusando-o de atrapalhá-lo constantemente. Por fim, David chamou-o de lado, perplexo por Kevin estar levando aquilo tão a sério.

- Eu me desculpei - disse David. - E peço desculpas de novo. Foi um acidente. Claro que não fiz de propósito.

Kevin olhou David irritado, dando a impressão de que não iria perdoá-lo. Mas em seguida suspirou:

- Tudo bem. Vamos tomar outra cerveja.

Depois do jantar, os adultos sentaram-se ao redor da mesa enorme enquanto as crianças iam até o cais pescar. O céu ainda estava vermelho no oeste, e a cor se refletia na água. Os sapos, grilos e outros insetos haviam começado seu incessante coro noturno. Vaga-lumes pontilhavam as sombras profundas sob as árvores.

A princípio, a conversa foi sobre a beleza do lugar e os benefícios de se morar em Vermont, aonde a maioria das pessoas só ia nas férias curtas. Mas em seguida passaram a falar de medicina, para desgosto das outras três mulheres.

- Prefiro ouvir sobre esportes - reclamou Gayle Yarough. Nancy Yansen e Claire Youg concordaram com veemência.

- É difícil não falar sobre medicina com essa chamada ”reforma” acontecendo – disse Trent. Nem Trent nem Steve eram médicos da CMV. Apesar de estarem tentando formar uma organização de serviços com uma grande companhia de seguros, a BI Shield, não estavam tendo muita sorte. Tinham chegado um pouco tarde. A maioria dos pacientes fora atraída pela CMV, devido ao marketing agressivo e competitivo da empresa.

- Essa coisa toda me deixa deprimido - disse Steve. - Se eu pudesse pensar num meio de me sustentar e à minha família, deixaria a medicina num piscar de olhos.

- Seria um terrível desperdício de sua capacidade - disse Angela.

- Acho que sim - disse Steve,-Mas seria tremendamente melhor do que explodir meus miolos, como você-sabe-quem.

A referência ao Doutor Portland intimidou a todos durante alguns instantes. Foi Angela quem rompeu o silêncio.

- Nunca ouvimos toda a história sobre o Doutor Portland. Tenho de admitir que fiquei curiosa. Eu conheci a coitada da esposa. Obviamente ela está tendo uma enorme dificuldade para enfrentar a morte dele.

- Ela se culpa - disse Gayle Yarborough.

- Só ficamos sabendo que ele estava deprimido - disse David. - Foi devido a alguma coisa específica?

- Na última vez em que jogou basquete, ele estava preocupado com a morte de um de seus pacientes que tinha fraturado o quadril - disse Trent. -Era Sam Flemming, o artista. E acho que ele perdeu alguns outros.

David sentiu um tremor na espinha. A lembrança de sua reação à morte de alguns pacientes, no início da residência, atravessou-o como um calafrio desagradável.

- Nem tenho certeza se ele se matou - disse Kevin de súbito, chocando a todos. Além de reclamar da falta de jeito de David, Kevin tinha falado muito pouco naquele dia. Até mesmo sua esposa Nancy olhou-o como se ele tivesse blasfemado.

- Acho melhor você se explicar - disse Trent.

- Não há muito o que dizer, só que Randy não tinha arma. É um desses detalhes irritantes, que ninguém pôde explicar. Onde foi que ele conseguiu o revólver? Ninguém veio dizer que tinha emprestado a ele. Ele não saiu da cidade. Onde encontrou a arma? No meio da rua? - Kevin deu um riso vazio. - Pensem nisso.

- Ora! - disse Steve.-Ele devia ter o revólver, e ninguém sabia.

- Arlene disse que não sabia de nada a respeito - insistiu Kevin. - Além do mais, ele levou o tiro direto na frente da cabeça com ângulo para baixo. Por isso o cerebelo espirrou na parede. Pessoalmente, nunca ouvi falar de alguém que se matasse assim. Em geral, as pessoas põem o cano na boca, se querem ter certeza de não errar. Outras pessoas atiram no lado da cabeça. É difícil atirar em si próprio na testa, especialmente com uma Magnum de cano longo. - Kevin imitou um revólver com a mão, como fizera no primeiro dia de trabalho de David. Desta vez, quando tentou apontar o revólver direto na testa, fez com que o gesto parecesse particularmente desajeitado.

Gayle estremeceu, sentindo uma súbita náusea. Mesmo sendo casada com um médico, falar sobre sangue deixava-a enjoada.

- Está tentando sugerir que ele foi assassinado?-perguntou Steve.

- Só estou dizendo que não estou pessoalmente convicto de que ele se matou - repetiu Kevin. - A partir daí, qualquer um pode avaliar o que quiser.

O som dos grilos e das pererecas dominou a noite enquantotodos pensavam nos comentários perturbadores de Kevin.

- Bom, eu considero tudo isso papo furado - disse Gayle Yarborough finalmente. - Acho que foi um suicídio covarde, e fico com pena de Arlene e dos dois meninos.

- Concordo - disse Claire Young.

Outro silêncio desconfortável seguiu-se, até ser rompido por Steve:

- E vocês dois? - perguntou ele, olhando para Angela e David, do outro lado da mesa. - O que estão achando de Bartlet? Estão gostando?

David e Angela se entreolharam. Ele falou primeiro:

- Estou gostando imensamente. Adoro a cidade e, como já faço parte da CMV, não tenho de me preocupar com a política médica. Peguei um trabalho grande, talvez um pouco grande de mais. Tenho mais pacientes de oncologia do que imaginava, e mais do que gostaria.

- O que é oncologia? - perguntou Nancy Yansen. Kevin dirigiu à esposa um irritado olhar de descrença.

- Câncer - falou com desdém. - Meu Deus, Nancy, você sabe disso.

- Desculpe - disse Nancy com irritação equivalente.

- Quantos pacientes de oncologia você tem? – perguntou Steve.

David fechou os olhos e pensou por um instante.

- Vejamos. Tenho o John Tarlow com leucemia. Ele está agora no hospital. Mary Ann Schiller tem câncer no ovário. Jonathan Eakins tem câncer de próstata. Há o Donald Anderson, que a princípio se pensava que tivesse câncer do pâncreas; no final, constatou-se que era um adenoma benigno.

- Reconheço esse nome - disse Trent. - Esse paciente passou por um procedimento de Whipple.

- Obrigada por contar - disse Gayle, sarcástica.

- São somente quatro pacientes - disse Steve.

- Há mais. Também tenho Sandra Hascher com melanoma e Marjorie Kleber com câncer no seio.

- Estou impressionado como você guarda todos na memória - disse Claire Young.

- É fácil, já que fiquei amigo de todos. Vejo-os regularmente porque eles têm um bocado de problemas médicos, o que não é surpresa quando consideramos a quantidade de tratamento por que passaram.

- Bom, e qual é o problema? - perguntou Claire.

- O problema é que, agora que fiquei amigo de todos e aceitei a responsabilidade pelo tratamento, temo que eles possam morrer da doença e eu me sinta responsável.

- Sei exatamente o que isso significa - disse Steve. - Não compreendo como alguém pode fazer oncologia. Que Deus os abençoe. Metade dos motivos de eu ter feito obstetrícia está no fato de que geralmente é uma especialidade feliz.

- O mesmo se aplica à oftalmologia - disse Kevin.

- Discordo - disse Angela. - Posso compreender muito bem por que as pessoas fazem oncologia. Tem de ser uma coisa recompensadora, porque as pessoas com doenças potencialmente terminais sentem grandes carências. Com um monte de outras especialidades, você nunca tem certeza se ajudou ou não seus pacientes. Com a oncologia, isso nunca é questionável.

- Conheço Marjorie Kleber muito bem - disse Gayle Yar borough. - Tanto o Júnior quanto o nosso do meio, Chandlerforam alunos dela. É uma mulher maravilhosa. Tem um jeito criativo de fazer com que as crianças se interessem pela leitura, usando aviõezinhos de plástico que se movem num cartaz.

- Gosto de vê-la, sempre que ela aparece para uma consulta - admitiu David.

- E como vai o seu trabalho, Angela? - perguntou Nancy Yansen.

- Não podia ser melhor. O Doutor Wadley, chefe do departamento, tornou-se um verdadeiro mentor. O equipamento é de última geração. Trabalhamos muito, mas não ficamos atolados. Estamos fazendo entre quinhentas e mil biópsias por mês, o que é um número respeitável. Temos uma patologia interessante, porque o hospital Bartlet atua como centro de atendimento terciário. Temos até um laboratório viral, que eu não esperava. De modo que é tudo muito desafiador.

- Já teve algum problema com Charles Kelley? - perguntou Kevin a David.

- Nenhum - disse David com surpresa. - Nós nos damos muito bem. Na verdade, esta semana mesmo encontrei Kelley e o diretor de gerenciamento de qualidade da CMV, que veio de Blington. Os dois me cumprimentaram pelas respostas que os pacientes deram nos formulários de avaliação do tratamento.

- Ah! - Kevin riu,com desdém. - Gerenciamento de qualidade é moleza. Espere até passar pela revisão de utilização. Geralmente leva dois ou três meses. Então você vai me dizer o que acha de Charles Kelley.

- Não estou preocupado. Estou fazendo um trabalho bem cuidadoso. Não estou nem aí para o programa de bónus de hospitalização, e certamente não estou concorrendo ao grande prémio de viagem às Bahamas.

- Eu não me importaria - disse Kevin. - Acho que é bom programa. Por que não pensar duas vezes antes de hospitalizar alguém? Aqui os pacientes obedecem às suas ordens. As pessoas ficam melhor em casa do que no hospital. Se o hospital quiser mandar-me e a Nancy às Bahamas, não vou reclamar.

- A medicina interna é um pouco diferente da oftalmologia - disse David.

- Chega desse papo de medicina - disse Gayle Yarborough.

- Eu estava pensando que deveríamos ter trazido uma fita de O Reencontro. É um ótimo filme para assistir com um grupo assim.

- Pelo menos iria gerar alguma discussão - disse Nancy Yansen. - E seria muito mais estimulante do que esse papo médico.

- Eu não preciso do filme para pensar se deixaria meu marido transar com uma de minhas amigas para que ela pudesse ter um filho - disse Claire Young. - Nem pensar!

- Ora, deixe disso - disse Steve, sentando-se ereto. - Eu não me importaria, especialmente se fosse Gayle. - Ele estendeu a mão e abraçou Gayle. Gayle estava sentada ao seu lado. Ela riu e fingiu que se retorcia em seus braços.

Trent jogou um pouco de cerveja na cabeça de Steve. Steve tentou pegá-la com a língua.

- Teria de ser uma situação desesperada - disse Nancy Yansen. - Além do mais, há sempre o injetor de tempero.

Nos minutos seguintes, todos, menos David e Angela, se dobraram de rir. Depois seguiu-se uma série de piadas pesadas e alusões sexuais. David e Angela mantiveram meios-sorrisos, mas não participaram.

- Esperem um minuto, vocês - disse Nancy Yansen ainda rindo de uma piada de médico especialmente pesada. Ela lutava para se controlar.-Acho que devemos colocar as crianças na cama para podermos dar um mergulho pelados. O que acham?

- Vamos fundo! - disse Trent enquanto batia seu copo de cerveja no de Steve.

David e Angela se entreolharam, imaginando se a sugestão era outra piada. Todos os outros se levantaram e começaram a chamar os filhos, que ainda estavam no cais, pescando em meio à escuridão.

Mais tarde, no quarto, enquanto lavava o rosto na pia presa à parede, Angela reclamou com David, dizendo ter pensado que o grupo regressara de súbito a algum estágio adolescente. Enquanto ela falava, ambos ouviram o restante dos adultos mergulhando no cais, em meio a risinhos, gritos e barulho de água espadanando.

- Parece comportamento de fraternidade universitária - concordou David. - Mas não creio que haja nenhum mal. Não devemos fazer julgamentos.

- Não tenho certeza. O que me preocupa é sentir que estamos num romance de John Updike passado num subúrbio. Todo aquele papo sexual e agora essa exibição me deixam desconfortável. Acho que pode ser um reflexo do tédio. Talvez Bartlet não seja o Édem que pensamos.

- Ah, por favor! - disse David, espantado.-Acho que você está sendo exageradamente crítica e cínica. Eles só têm uma atitud exuberante, divertida e jovem com relação à vida. Talvez nós é que sejamos atrasados.

Angela virou-se da pia, para encarar David. Sua expressão era de surpresa, como se ele fosse um estranho.

- Esteja completamente à vontade para ir pelado lá fora juntar-se à bacanal, se é isso que deseja. Não deixe que eu o impeça

- Não fique tão abalada. Não quero participar. Mas ao mesmo tempo não vejo as coisas tão preto no branco, como aparentemente ocorre com você. Talvez isso faça parte de sua formação católica

- Me recuso a ser provocada - disse Angela, virando-se de novo para a pia.-E especificamente me recuso a ser levada a uma de suas discussões religiosas sem sentido.

- Por mim, tudo bem.

Mais tarde, depois de terem ido para a cama e apagado a luz, os sons de alegria vindo do cais foram substituídos pelos dos sapos e insetos. Estava tão silencioso que eles podiam ouvir a água batendo contra a margem.

- Você acha que eles ainda estão lá fora? - sussurrou Angela.

- Não faço a mínima idéia. Além disso, não me importo.

- O que você achou dos comentários de Kevin sobre o Portland?

- Não sei o que pensar. Para ser sincero, Kevin se transformou numa espécie de mistério para mim. Ele é um sujeito estranho. Nunca vi ninguém ficar tão possesso por levar uma pancada no nariz num jogo de basquete.

- Achei os comentários dele no mínimo perturbadores. Pensar num assassinato em Bartlet, por um segundo que seja, me dá um frio estranho. Estou começando a ter um sentimento incômodo de que vai acontecer alguma coisa ruim, talvez porque estejamos felizes demais.

- É essa sua personalidade histérica - disse David, meio de gozação. - Você está sempre procurando um drama. Isso a deixa pessimista. Acho que estamos felizes porque tomamos a decisão correta.

- Espero que você esteja certo - disse Angela enquanto se aninhava no braço de David.

 

SEGUNDA-FEIRA, 6 DE SETEMBRO

TRAYNOR DIRIGIU SEU Mercedes para fora da estrada e seguiu aos solavancos pelo campo, na direção de uma linha de carros estacionados perto de uma cerca baixa. Durante os meses de verão, o terreno plano por trás da cerca era usado principalmente para feira de artesanato, mas hoje Traynor e sua esposa, Jacqueline, estava ali para o piquenique anual do Hospital Comunitário de Bartlet, em comemoração ao Dia do Trabalho. As festividades haviam começado às nove, com corridas para as crianças.

- Que maneira de arruinar um feriado perfeito - disse Traynor à esposa. - Odeio esses piqueniques.

- Besteira! - reagiu Jacqueline.-Você não me engana nen um segundo. - Ela era uma mulher pequena, ligeiramente gorda, que se vestia de modo exageradamente conservador. Estava usando chapéu branco, luvas brancas e saltos altos, mesmo para uma refeição ao ar livre com milho, mariscos fervidos e lagosta Maine.

- Do que está falando? - perguntou Traynor enquanto parava o carro e desligava a ignição.

- Sei o quanto você adora essas coisas do hospital, de modo que não banque o mártir comigo. Você adora as luzes da ribalta. Representa o papel de Senhor Chairman da Diretoria até o último fio de cabelo.

Traynor olhou indignado para a mulher. Seu casamento era cheio de antagonismos, e sua rotina era contra-atacar, mas ele segurou a língua. Jacqueline estava certa quanto ao piquenique, e ele ficava irritado porque, depois de vinte e um anos de casamento, ela passara a conhecê-lo tão bem.

- E então? - perguntou Jacqueline. - Vamos ou não? Traynor grunhiu e saiu do carro.

Enquanto caminhavam junto à fila de veículos estacionados, Traynor viu Beaton, que acenou e veio ao encontro deles. Ela estava com Wayne Robertson, o chefe de polícia, e imediatamente Traynor suspeitou de que havia algo errado.

- Que conveniente - disse Jaqueline, vendo Beaton se aproximar. - Aí vem uma de suas maiores puxa-sacos.

- Fique quieta, Jacqueline! - rugiu Traynor entre dentes.

- Tenho más notícias - disse Beaton sem preâmbulos.

- Por que você não vai até a barraca e pega um refresco? - sugeriu Traynor a Jacqueline e deu-lhe uma cutucada. Depois de lançar um olhar depreciativo na direção de Beaton, ela se afastou.

- Ela não parece nem um pouco feliz por estar aqui esta manhã - comentou Beaton.

Traynor deu um risinho, para encerrar o assunto.

- Qual é a má notícia?

- Houve outro ataque contra uma enfermeira, a noite passada. Ou melhor, esta manhã. A mulher foi estuprada.

- Droga! - rugiu Traynor. - Foi o mesmo cara?

- Acreditamos que sim - disse Robertson. - A mesma descrição. E também a mesma máscara de esquiador. Desta vez, a arma era um revólver, em vez de uma faca, mas ele continuava com as algemas. Também forçou-a a ir até as árvores, o mesmo que havia feito no passado.

- Eu esperava que a iluminação impedisse isso - disse Traynor.

- Deveria ter impedido - disse Beaton, hesitante.

- O que quer dizer?

- O ataque aconteceu no estacionamento de cima, onde não há luzes. Como você se lembra, nós só iluminamos o de baixo, por economia.

- Quem sabe desse estupro? - perguntou Traynor.

- Não muita gente - disse Beaton. - Decidi entrar em contato com George O’Donald, no Bartlet Sun, e ele concordou em não publicar a notícia. De modo que poderemos ter uma certa folga. Sei que a vítima não vai sair contando por aí.

- Eu gostaria de manter isso o mais longe possível do pessoal da CMV - disse Traynor.

- Acho que isso mostra o quanto precisamos daquela garagem nova.

- Precisamos, mas talvez não a tenhamos. É a minha má notícia para a reunião executiva desta noite. Meu velho padroeiro, Jeb Wiggins, mudou de idéia. Pior, convenceu o Conselho Municipal de que a garagem nova é má idéia. Convenceu a todos de que seria um problema.

- Isso é o fim do projeto? - perguntou Beaton.

- Não é o fim, mas é um golpe. Eu posso colocá-lo de novo em votação, mas depois de uma coisa assim é difícil ressuscitá-lo. Talvez esse estupro, por pior que tenha sido, possa ser o catalisador de que precisamos para que o projeto seja aprovado.

Traynor virou-se para Robertson. Podia ver dois reflexos turvos de si próprio nos óculos espelhados do homem.

- A polícia não pode fazer nada?

- Afora colocar um guarda aqui toda noite - disse Robertsonn -, não há muito que possamos fazer. Já mandei meus homens vasculharem o estacionamento com lanternas, sempre que estiverem na área.

- Onde está o chefe de segurança do hospital, Patrick Swegler? - perguntou Traynor.

- Vou procurá-lo - disse Robertson e afastou-se na direção do lago.

- Está pronta para esta noite? - perguntou Traynor assim que Robertson estava fora do alcance das vozes.

- Está falando da reunião?

- Da reunião depois da reunião - disse Traynor com um sorriso lascivo.

- Não tenho certeza. Precisamos conversar.

- Conversar sobre o quê? - Aquela não era a resposta que Traynor queria ouvir.

- Este não é o momento propício - disse Beaton. Ela já podia ver Patrick Swegler e Wayne Robertson a caminho.

Traynor apoiou-se na cerca. Sentia-se meio fraco. A única coisa com que contava era o afeto de Beaton. Tentou imaginar se ela o estaria enganando, encontrando-se com alguém como aquele imbecil do Charles Kelley. Suspirou; sempre havia algo errado.

Patrick Swegler aproximou-se de Traynor e encarou-o direto nos olhos. Traynor pensava nele como um garoto durão. Havia jogado futebol na Bartlet High School durante o breve período em que o Bartlet dominara sua liga interescolar.

- Não havia muita coisa que pudéssemos fazer - disse Swegler, recusando-se a ficar intimidado com o incidente. - A enfermeira tinha acabado um plantão duplo e não chamou a segurança antes de sair, como recomendamos repetidamente às enfermeiras sempre que saem tarde. Para piorar as coisas, ela havia deixado o carro no estacionamento de cima quando chegou para o turno do dia. Como o senhor sabe, o estacionamento de cima não é iluminado.

- Jesus Cristo! - murmurou Traynor. - Eu deveria estar dirigindo uma organização de muitos milhões de dólares, e preciso me preocupar com os detalhes mais mundanos. Por que ela não chamou a segurança?

- Não me contaram - disse Swegler.

- Se tivermos a garagem nova, o problema acabará - observou Beaton.

- Onde está Werner Van Slyke, o responsável pela engenharia? -perguntou Traynor. - Tragam-no aqui.

- Você sabe mais do que ninguém que o Senhor Van Slyke não comparece a nenhuma das atividades sociais do hospital - disse Beaton.

- Droga, você está certa! Mas quero que diga a ele que desejo ver o estacionamento de cima iluminado como o de baixo; diga para duminar o espaço como se fosse um campo de futebol.

Em seguida, Traynor virou-se para Robertson.

- E por que você ainda não descobriu quem é esse estuprador? Considerando o tamanho da cidade e o número de estupros feitos presumivelmente pela mesma pessoa, acho que você teria pelo menos um suspeito.

- Estamos trabalhando nisso.

- Você não gostaria de ir até a barraca?-perguntou Beaton.

- Por que não? - rugiu Traynor. - Eu gostaria pelo menos de aproveitar alguma coisa disto aqui. - Traynor pegou Beaton pelo braço e foi em direção à comida.

Traynor estava para voltar ao assunto do encontro proposto quando Caldwell e Cantor viram os dois e se aproximaram. Caldwell estava num clima especialmente alegre.

- Acho que vocês já ouviram dizer como o programa bônus está funcionando bem - disse a Traynor. - Os números de agosto são encorajadores.

- Não, não ouvi falar - disse Traynor, virando-se para Beaton.

- É verdade - disse ela. - Esta noite vou apresentar estatísticas. O balancete está bom. As admissões de agosto, pelo CMV, baixaram quatro por cento em relação a agosto passado. Não é muito, mas estamos na direção certa.

- É bom ouvir boas notícias de vez em quando - disse Traynor. - Mas não podemos relaxar.

Estive falando com Arnsi worth na sexta-feira, e ele me alertou que o vermelho vai responder como uma vingança quando os turistas forem embora. Em julho agosto boa parte do censo hospitalar foi composto por pacientes pagantes, e não por sócios da CMV. Agora, depois do Dia do Trabalho, os turistas vão embora. Não podemos nos dar ao luxo de relaxar.

- Acho que devemos reativar nosso controle de utilização estrita-disse Beaton. - É a única esperança de manter a situação até terminar o contrato de capitação.

- Claro que temos de recomeçar - disse Traynor. - Não temos escolha. A propósito, para informação de todos, mudamos oficialmente o nome de FUD para SUD. Agora é ”Sistema Utilização Drástica”.

Todos riram.

-- Devo dizer que fico desapontado - falou Cantor, ainda rindo. - Como arquiteto do plano, eu era parcial com relação ao FUD. - A despeito do verão longo e ensolarado, sua palidez facial mudara muito pouco. A pele de suas pernas surpreendentemente finas era ainda mais branca. Ele estava usando bermudas e meias pretas.

- Eu tenho uma pergunta política - disse Caldwell. - No SUD, qual é o status de uma doença crônica como fibrose cística?

- Não me pergunte - disse Traynor.-Não sou médico. Que diabo é fibrose cística? Quero dizer, já ouvi o termo, mas só isso.

- É uma doença crônica herdada - explicou Cantor. - Causa um bocado de problemas respiratórios e GI.

- GI significa gastrointestinais - explicou Caldwell. - Do sistema digestivo.

- Obrigado - disse Traynor em tom sarcástico. - Eu sei o que significa GI. E quanto à doença? É letal?

- Geralmente - disse Cantor. - Mas com tratamento respiratório intensivo, alguns pacientes podem ter vidas produtivas até os cinqüenta anos.

- Qual é o custo atual por ano? - perguntou Traynor.

- Depois que os problemas respiratórios se estabelecem, pode chegar a mais de vinte mil por ano.

- Santo Deus! Com um custo desses, tem de ser incluída nas considerações de utilização. É uma doença comum?

- Um caso em cada dois mil nascimentos - disse Cantor.

- Oh, que diabo! - Traynor deu de ombros.-É rara demais para causar tanta agitação.

Depois de prometer o comparecimento à reunião da diretoria executiva naquela noite, Caldwell e Cantor seguiram rumos separados. Caldwell dirigiu-se a um jogo de voleibol que estava começando na minúscula praia junto ao lago. Cantor foi em linha reta até o barril de chope.

- Vamos até a comida - disse Traynor.

Mais uma vez eles se dirigiram para o toldo que cobria a fila de churrasqueiras. Todos por quem Traynor passava assentiam ou o cumprimentavam em voz alta. A esposa de Traynor estava certa: ele realmente adorava esse tipo de ocasião pública. Fazia com que se sentisse um rei. Havia se vestido informalmente, mas com decoro: calças feitas sob medida, sapatos com palmilhas e sem meias, e uma camisa de mangas curtas, aberta no pescoço. Ele nunca usava bermudas numa ocasião assim, e estava espantado pelo fato de Cantor se importar tão pouco com a aparência.

Sua felicidade foi embaçada pela aproximação da esposa.

- Divertindo-se, querido? - perguntou ela, sarcástica. - Está parecendo.

- O que eu deveria fazer? Andar de cara amarrada?

- Não vejo por que não. É assim que você fica a maior parte do tempo em casa.

- Acho que vou indo - disse Beaton começando a se afastar. Traynor segurou-a pelo braço.

- Não. Quero saber mais sobre a estatística de agosto, para a reunião desta noite.

- Nesse caso, eu vou indo - disse Jacqueline.-- Na verdade, acho que vou para casa, querido Harold. Comi um pouquinho e falei com as duas pessoas que me interessam. Tenho certeza de que seus muitos colegas ficarão mais do que contentes em lhe dar uma carona.

Traynor e Beaton ficaram olhando Jacqueline se afastar de salto alto através da grama crescida.

- De repente perdi a fome - disse Traynor depois de Já queline ter desaparecido de vista.

- Vamos circular mais um pouco.

Caminharam por perto do lago e olharam algum tempo o jogo de voleibol. Em seguida foram até a área onde jogavam softball.

- Sobre o que você quer falar?-perguntou Traynor, juntando coragem.

- Sobre nós, nosso relacionamento, eu. Meu trabalho é bon Estou gostando. É estimulante. Mas quando você me contratou, deu a entender que nosso relacionamento iria dar em alguma coisa. Falou que estava para se divorciar. Isso não aconteceu. Não quero passar o resto da vida me escondendo. Esses encontros não bastam. Preciso de mais.

Traynor sentiu um suor frio brotando na testa. Com tudo que acontecia no hospital, ele não poderia lidar com aquilo. Não queria interromper seu caso com Helen, mas não havia como enfrentar Jacqueline.

- Pense nisso - disse Beaton. - Mas até que mude alguma coisa, nossos pequenos encontros em minha sala têm de acabar.

Traynor assentiu. No momento, era o melhor que podia fazer. Chegaram ao campo de softball e ficaram olhando sem prestar atenção. Um jogo estava sendo organizado.

- Lá está o Doutor Wadley - disse Beaton. Ela acenou e Wadley acenou de volta. Perto dele estava uma mulher jovem e atraente, de cabelos castanho-escuros, vestida de shorts. Usava um boné de beisebol elegantemente caído de lado.

- Quem é aquela mulher que está com ele? - perguntou Traynor, ansioso para mudar de assunto.

- É nossa mais nova patologista. Angela Wilson. Quer conhecer?

- Acho que seria adequado.

Chegaram perto e Wadley fez as honras. Durante a longa apresentação, elogiou Traynor como o melhor chairman que o hospital já tivera, e Angela como a mais nova e mais brilhante patologista.

- É um enorme prazer conhecê-lo - disse Angela.

Um grito dos outros jogadores levou Angela e Wadley para longe. O jogo estava para começar.

Beaton ficou olhando enquanto Wadley levava Angela à sua posição na segunda base. Ele estava jogando de shortstop.

- O velho doutor Wadley está mudado - comentou Beaton. - Angela Wilson evocou o professor que andava oculto nele. Deu-lhe um novo estímulo na vida. E ele está no sétimo céu desde que ela chegou.

Traynor observou Angela Wilson treinando pegar bolas baixas e jogá-las graciosamente para a primeira base. Dava para entender o interesse de Wadley. Só que, diferentemente de Beaton, ele não o atribuía apenas a um entusiasmo de mentor. Angela Wilson não parecia uma doutora. Pelo menos não como qualquer outra que Traynor já conhecera.

 

OUTONO EM VERMONT

MESMO TENDO PASSADO quatro anos em Boston durante o período de residência, David e Angela não tinham realmente experimentado toda a glória de um outono na Nova Inglaterra. Em Bartlet, era de tirar o fôlego. A cada dia, as cores esplendorosas das folhas tornavam-se mais intensas, como se tentassem ultrapassar os esforços do dia anterior.

Além do apelo visual, o outono trouxe prazeres mais sutis associados à sensação de bem-estar. O ar ficou mais fresco, cristalino e muito mais puro. Havia um sentimento revigorante na atmosfera, que tornava um prazer caminhar de manhã. Cada dia era cheio de energia e excitação; cada noite oferecia um contentamento aconchegante, com os estalidos do fogo na lareira mantendo longe o frio.

Nikki adorou a escola. Marjorie Kleber era sua professora. Como David supôs, era fantástica. Apesar de Nikki ter sempre sido boa aluna, agora se tornou excelente. Esperava ansiosamente as segundas-feiras, para o início de uma nova semana de aulas. Toda noite, tinha um monte de histórias sobre o que aprendera nas aulas.

A amizade de Nikki com Caroline Helmsford cresceu e as duas se tornaram inseparáveis nas atividades depois da escola. Aamizade com Arni também cresceu. Depois de muitas discussões sobre os prós e os contras, Nikki obteve o direito de ir para a escola de bicicleta, desde que ficasse fora das ruas principais. Para ela, era um tipo de liberdade totalmente novo, uma liberdade que ela adorava. No caminho, passava pela casa dos Yansens, e todas as manhãs Arni a esperava. O último quilômetro e meio, os dois percorriam juntos.

A saúde de Nikki continuou boa. O ar frio, seco e limpo parecia terapêutico para seu sistema respiratório. A não ser por sua terapia matutina na cadeira de lona, era quase como se ela não tivesse uma doença crônica. O fato de estar tão bem era fonte de grande conforto para David e Angela.

Um dos grandes acontecimentos do outono foi a chegada dos pais de Angela no final de setembro. Angela sentira muitas dúvidas quanto a convidá-los. O apoio de David fizera pender a balança.

O Doutor Walter Christopher, pai de Angela, teceu elogios reservados a casa e à cidade, mas foi condescendente quanto ao que chamava de ”medicina rural”. Recusou-se teimosamente a visitar o laboratório de Angela, com a desculpa de que passara muito tempo da vida dentro de hospitais.

Bernice Christopher, mãe de Angela, não encontrou nada para elogiar. Achou a casa grande demais e com muitas correntes de ar, especialmente para Nikki. Também era sua opinião que a cor das folhas do Central Park era tão bonita quanto em Bartlet, e que ninguém precisava viajar seis horas de carro para olhar árvores.

O único episódio realmente desconfortável ocorreu no jantar de sábado à noite. Bernice insistiu em beber mais vinho do que devia e, como sempre, ficou de pileque. Então acusou David e sua família de serem a fonte da doença de Nikki.

- Nunca houve fibrose cística do nosso lado - falou.

- Bernice! - cortou o Doutor Christopher.-Demonstrações de ignorância não são bem-vindas.

Seguiu-se um silêncio tenso até que Angela conseguiu conter sua raiva. Em seguida, ela mudou o assunto para a procura de móveis que ela e David estavam fazendo nos antiquários e lojas de usados da redondeza.

Todos ficaram aliviados quando chegou a hora da partida dos Christophers, ao meio-dia de domingo. David, Angela e Nikki postaram-se respeitosamente diante da casa e acenaram até que o carro desapareceu na estrada.

- Me chute da próxima vez em que eu falar em convidá-los - disse Angela. David riu e garantiu que não fora tão ruim.

O magnífico clima de outono continuou até meados de outubro. Apesar de alguns dias frios no final de setembro, o veranico de outono chegou e trouxe dias tão quentes quanto os do verão. Uma combinação auspiciosa de temperatura e umidade preservou as últimas folhas por muito mais tempo do que os nativos de Bartletdiziam ser o usual.

No meio de outubro, numa pausa no jogo de basquete da manhã de sábado, Steve, Kevin e Trent seguraram David num canto.

- Que tal você e sua família virem conosco neste fim de semana? - disse Trent. – Vamos todos para o Waterville Valleem New Hampshire. Gostaríamos que vocês também fossem.

- Diga por que queremos que eles venham - disse Kevin.

- Fique quieto! - disse Trent, dando um cascudo de brincadeira na cabeça de Kevin.

- O verdadeiro motivo é que alugamos uma casa com quatro quartos - insistiu Kevin, afastando-se de Trent.-Esses mãos-fechadas fazem de tudo para reduzir o custo.

- Besteira! - disse Steve - Quanto mais gente, mais divertido.

- Por que vocês vão a New Hampshire?

- Vai ser a última semana com folhas nas árvores, com certeza - disse Trent. – É diferente em New Hampshire. Paisagens mais rústicas. Tem gente que acha que a folhagem lá é ainda mais espetacular.

- Não consigo imaginar que seja mais bonita do que aqui em Bartlet - disse David.

- Waterville é divertido - disse Kevin. - A maioria das pessoas só conhece o lugar para esquiar no inverno. Mas tem tênis, golfe, hipismo e até mesmo uma quadra de basquete. As crianças adoram.

- Vamos lá, David! - disse Steve. - Logo vai chegar o inverno. Você precisa aproveitar o outono o máximo possível. Confie em nós.

- Para mim parece bom. Vou falar com Angela esta noite, e ligo para vocês.

Tendo decidido, o grupo juntou-se aos outros para terminar o jogo de basquete.

Naquela noite, Angela não ficou entusiasmada quando David mencionou o convite. Depois da experiência do fim de semana no lago, e com todo o trabalho a ser feito na casa, David e Angela não tinham participado de muitas atividades sociais. Angela não queria outro fim de semana com piadas e alusões sexuais. A despeito de David achar o contrário, ela continuou a imaginar se os amigos não eram entediados, especialmente as mulheres, e a idéia de ficarem juntos lhe parecia um tanto claustrofóbica.

- Vamos - disse David. - Vai ser divertido. Nós precisamos conhecer melhor a Nova Inglaterra. Como disse Steve, logo vai chegar o inverno, e na maior parte do tempo vamos ficar presos dentro de casa.

- Vai ser caro - disse Angela, tentando encontrar motivos para não ir.

- Vamos, mamãe - disse Nikki. - Arni me disse que Waterville é legal.

- Como pode ser caro? - questionou David. - Vamos dividir o aluguel por quatro. Além disso, pense no nosso salário.

- Pense nas nossas dívidas. Temos duas hipotecas sobre a casa, uma delas cresce sempre, e começamos a pagar o crédito estudantil. E não sei se o carro vai suportar um inverno em Vermont.

- Você está sendo boba. Eu estou cuidando atentamente das nossas finanças, e estamos nos saindo perfeitamente bem. Não é um cruzeiro extravagante. Com quatro famílias dividindo uma casa, não vai ser mais caro do que ficar num camping.

- Vamos, mamãe! - gritou Nikki.

- Certo - disse Angela finalmente. - Eu sei admitir quando perco.

Com o correr da semana, cresceu a empolgação pela viagem. David conseguiu que outro médico da CMV, Dudley Markham, cobrisse o seu plantão. Na quinta-feira à noite eles fizeram as malas para partir na tarde do dia seguinte.

O plano inicial era sair às três horas, mas a dificuldade de retirar cinco médicos do hospital no meio da tarde mostrou-se impossível de ser superada. Só conseguiram partir às seis.

Foram em três veículos. Os Yarboroughs em seu furgão, com os três filhos; os Yansens e os Youngs seguiram juntos no furgão dos Yansens; David, Angela e Nikki foram no Volvo. Poderiam ter-se espremido com os Yarboroughs, mas Angela preferia a independência de contar com seu próprio carro.

A casa era enorme. Além dos quatro quartos, havia um sótão onde as crianças podiam passar a noite em sacos de dormir. Depois da viagem estavam todos cansados. Foram direto para a cama.

Na manhã seguinte, Gayle Yarborough decidiu acordar todo mundo cedo. Marchou pela casa batendo com uma colher de pau no fundo de uma panela, gritando que iriam sair para o café da manhã dentro de meia hora.

Meia hora terminou sendo uma estimativa otimista. Apesar de quatro quartos e um sótão, só havia três banheiros e um lavabo. Tomar banho e fazer barba acabaram resultando num pesadelo em trânsito. Além disso, Nikki tinha de fazer a drenagem postural. Demorou quase uma hora e meia até que o grupo estivesse pronto para sair.

Subindo nos veículos na mesma ordem da noite anterior, saíram do vale com seu círculo de montanhas e entraram na Interestadual 93. Ao passar pelo Desfiladeiro de Franconia, David e Angela foram tomados pela beleza avassaladora das folhagens de outono silhuetadas contra paredões íngremes de granito cinza.

- Estou morrendo de fome - disse Nikki depois de uma hora na estrada.

- Eu também - concordou Angela. - Para onde estamos indo?

- Um lugar chamado Pensão das Panquecas de Polly. Steve me disse que é uma verdadeira instituição aqui no norte de New Hampshire.

Chegando ao restaurante, foram informados de que haveria uma espera de quarenta minutos por uma mesa. Felizmente, quando por fim começaram a comer, todos disseram que tinha valido a pena. As panquecas, ocultas sob um puro xarope de bordo de New Hampshire, eram deliciosas, assim como o bacon defumado e as salsichas.

Depois do desjejum, eles passearam por New Hampshire, olhando as folhas e a paisagem das montanhas. Houve discussões sobre se a folhagem de outono era mais bonita em Vermont ou em New Hampshire. Ninguém venceu. Como disse Angela, era como comparar superlativos.

Enquanto voltavam na direção do Waterville Valley, num trecho de estrada particularmente bonito chamado Kancamagus Highway, David percebeu que altos cirros deslizavam pela vasta abóbada do céu. Quando chegaram a Waterville, as nuvens estavam mais espessas, bloqueando a luz do sol e fazendo com que a temperatura caísse para uns treze graus.

Assim que chegaram a casa, Kevin mostrou-se ansioso por um jogo de ténis. Ninguém estava interessado, mas ele conseguiu convencer David. Depois de dirigir durante boa parte do dia, David achou que algum exercício iria fazer bem.

Kevin era um bom jogador e geralmente vencia David com relativa facilidade. Mas naquela ocasião em especial, ele não estava em sua melhor forma. Para tristeza de Kevin, David começou ganhando.

Com sua natureza altamente competitiva, Kevin se esforçou ainda mais, mas sua veemência só fez com que cometesse mais erros. Começou a ficar com raiva de si próprio e depois de David. Quando David disse que uma bola tinha caído fora, Kevin largou a raquete, numa demonstração de descrença.

- Essa não foi fora! - gritou.

- Foi. - David fez um círculo no saibro com sua raquete ao redor da marca.

Kevin deu a volta na rede para olhar.

- Essa não foi a marca - disse, irritado.

David olhou para seu companheiro de consultório. Dava para ver que o sujeito estava com raiva.

- Certo - falou, esperando aliviar a tensão. - Por que não disputamos o ponto outra vez?

Quando repetiram o ponto e ele venceu de novo, David gritou, para aliviar a atmosfera:

- Não adianta trapacear, viu?

- Vá se foder! - gritou Kevin de volta. - Dê o saque! Qualquer diversão que David pudesse ter com o jogo foi destruída com a atitude do adversário, que ficou cada vez com mais raiva, contestando quase tudo que ele dizia. David sugeriu que parassem, mas o outro insistiu que jogassem até o fim. Fizeram isso e David ganhou.

No caminho de volta a casa, Kevin recusou-se a falar, e David desistiu de manter uma conversa. Alguns pingos fizeram com que os dois se apressassem. Quando chegaram, Kevin entrou num dos banheiros e bateu a porta. Todos olharam para David, que encolheu os ombros.

- Eu ganhei - falou, sentindo-se estranhamente culpado.

A despeito de um fogo alegre na lareira, da boa comida e de uma enorme quantidade de cerveja e vinho, a noite foi prejudicada pelo mau humor de Kevin. Até mesmo Nancy, sua esposa, disse que ele estava agindo como criança. O comentário provocou uma discussão feia entre marido e mulher, que deixou todos com uma sensação desconfortável.

O abatimento de Kevin terminou por se espalhar. Trent e Steve começaram se lamentando de que o número de seus clientes caiu tanto que estavam pensando seriamente em ir embora de Bartlet. A CMV já tinha contratado gente da sua especialidade.

- Vários dos meus ex-pacientes disseram que gostariam de voltar para mim, mas não podem - disse Steve. - Os patrões negociaram o plano de saúde da CMV. Se esses pacientes me procurarem, terão de pagar do próprio bolso. É uma situação ruim.

- Talvez seja melhor vocês se mandarem enquanto podem - disse Kevin, falando pela primeira vez sem que lhe houvessem especificamente dirigido a palavra.

- Esse é um comentário bastante cifrado para exigir uma explicação - disse Trent. – Será que o Doutor Carranca tem alguma informação privilegiada que nós, simples mortais, não conhecemos?

- Você não acreditaria, se eu contasse - disse Kevin, indo em direção à lareira. O brilho das brasas refletidas em seus óculos grossos dava-lhe uma aparência de fantasma sem olhos.

- Experimente contar - encorajou Steve.

David olhou para Angela, para ver o que ela estava achando daquela noite deprimente. Quanto a ele, achava a experiência muito mais perturbadora do que no lago, em agosto. Ele conseguia lidar com piadas e alusões sexuais, mas tinha problemas com hostilidade e mau humor, em especial quando eram expressos abertamente.

- Fiquei sabendo um pouco mais sobre Randy Portland - disse Kevin sem tirar os olhos da lareira. - Mas vocês não acreditariam. Não depois do modo como reagiram à minha sugestão de que talvez não tenha sido suicídio.

- Ora, Kevin! - disse Trent. - Não faça tempestade num copo d’água. Conte o que ficou sabendo.

- Eu almocei com Michael Caldwell. Ele quer que eu participe de uma de suas inumeráveis comissões. Disse que o chairman da diretoria do hospital, Harold Traynor, tivera uma conversa estranha com Portland no dia em que ele morreu. E Traynor contou a Charles Kelley o que fora conversado.

- Vá ao ponto, Yansen - disse Trent.

- Portland disse que havia alguma coisa errada com o hospital.

O queixo de Trent caiu, num horror fingido.

- Há algo de errado com o hospital? Estou chocado, simplesmente chocado. – Trent sacudiu a cabeça. - Pelo amor de Deus, cara, há um monte de coisas erradas com o hospital. Se essa é a conclusão da história, eu não estou exatamente impressionado.

- Houve mais - disse Kevin. - Portland disse a Traynor que não iria assumir a culpa.

Trent olhou para Steve.

- Estou deixando de captar alguma coisa aqui?

- Portland estava se referindo a algum paciente quando fez essa declaração? – perguntou Steve.

- Obviamente - disse Kevin. - Mas é uma coisa sutil demais para um cirurgião como Trent captar. Para mim, está claro que Portland achava que alguma coisa esquisita estava acontecendo com um de seus pacientes. Acho que ele deveria ter mantido a boca fechada. Se o fizesse, ainda estaria por aqui.

- Parece que Portland estava simplesmente ficando paranóico - disse Trent.-Ele já vinha deprimido. Não engulo essa. Você está tentando fazer uma conspiração a partir do nada. De que morreu o paciente de Portland, afinal de contas?

- Pneumonia e choque de endotoxina - disse Steve. Como foi apresentado na reunião para discutir a morte.

- Aí está - disse Trent. - Não há muito mistério numa morte quando há um bocado de bactérias gram-negativas na corrente sangüínea do cadáver. Desculpe, Kevin, mas você não convenceu.

Kevin levantou-se de súbito.

- Por que me importo? - falou erguendo as mãos. - Você são cegos como morcegos. Mas sabem de uma coisa? Não estou nem aí.

Passando por cima de Gayle, que estava deitada no chão dibaixo da lareira, Kevin subiu o lance de degraus até o quarto que ele e Nancy ocupavam. Bateu a porta com força suficiente para estremecer os bibelôs sobre o consolo da lareira.

Todos ficaram olhando o fogo. Ninguém falou. Podia-se ouvir a chuva batendo na clarabóia como se fosse grãos de arroz. Finalmente, Nancy levantou-se e disse que ia dormir.

- Desculpe - disse Trent. - Eu não quis provocar o Kevin.

- Não é culpa sua - disse Nancy. - Ultimamente o Kevin parece um urso bravo. Há uma coisa que ele não contou a vocês. Ele perdeu um paciente há pouco tempo, o que não é uma ocorrência exatamente comum para um oftalmologista.

No dia seguinte, acordaram em meio a um vento forte, névoa pesada e chuva fria. Quando Angela olhou pela janela, gritou chamando David. Temendo alguma catástrofe, David saltou da cama. Olhu para fora, erguendo as pálpebras pesadas. Viu o carro. Viu a chuva.

- O que eu deveria estar vendo? - perguntou, sonolento.

- As árvores. Estão nuas. Não há folhas. Toda a folhagem desapareceu em uma noite!

- Deve ter sido o vento. As janelas chacoalharam a noite inteira. - David tombou na cama e voltou a se enfiar sob o edredom.

Angela ficou junto à janela, hipnotizada pelos restos esqueléticos das árvores.

- Parecem todas mortas - falou. - Não consigo acreditar em tamanha diferença. É difícil não ver como um mau presságio. Faz aumentar aquele sentimento que eu tive, de que alguma coisa ruim está para acontecer.

- É melancolia que sobrou do réquiem que foi a conversa de ontem à noite. Não venha com esse drama mórbido para cima de mim. É cedo demais. Volte, vamos ficar mais um pouco na cama.

O choque seguinte foi a temperatura. Mesmo às nove da manhã, ainda estava por volta de um grau. Era o inverno chegando.

O tempo feio não melhorou o humor geral dos adultos, que acordaram com o mesmo ar taciturno com que tinham ido para a cama. A princípio, as crianças estavam felizes, mas até elas começaram a se afetar com o mau humor dos pais. David e Angela sentiram-se aliviados ao irem embora.

Enquanto viajavam montanha abaixo, David pediu que Angela o lembrasse de nunca mais jogar tênis com Kevin.

- Vocês, homens, conseguem ser tão crianças nos esportes! - exclamou ela.

- Ei - reagiu David. - O problema não fui eu. Foi ele. Ele é competitivo demais. Eu nem queria jogar.

- Não fique tão irritado.

- Fico chateado porque você dá a entender que eu tive culpa.

- Eu não dei a entender nada disso. Só estava fazendo um comentário sobre homens e esportes.

- Certo, desculpe. Acho que estou meio alterado. Ficar perto de gente mal-humorada me deixa doido. Esse não foi o melhor dos fins de semana.

- É um pessoal estranho - disse Angela. - Parecem normais na superfície, mas por baixo não tenho certeza. Pelo menos não vieram com discussões sexuais nem começaram a agir como no lago. Por outro lado, conseguiram trazer à baila outra vez a tragédia do Doutor Portland. Para Kevin, é uma espécie de obsessão.

- Kevin é estranho. É isso que eu vinha tentando dizer. Odeio que me lembrem do suicídio de Portland. Torna um suplício ir para o consultório. Sempre que ele puxa o assunto, não consigo deixar de imaginar como deve ter ficado a parede por trás da minha mesa com sangue e cérebro espirrados.

- David, por favor! - disse Angela em tom cortante. - Si não se preocupa com minha sensibilidade, pense na de Nikki.

David olhou para Nikki pelo retrovisor. Ela estava olhando a frente, sem se mexer.

- Tudo bem, Nikki? - perguntou ele.

- Minha garganta está doendo. Não me sinto bem.

- Oh, não! - Angela virou-se para trás e encarou a filha. Em seguida esticou a mão e colocou-a na sua testa.

- E você insistiu nesta viagem estúpida - murmurou Angela. David começou a se defender, mas mudou de idéia. Não queria começar uma discussão. Já estava suficientemente irritado.

 

SEGUNDA-FEIRA, 18 DE OUTUBRO

NIKKI NÃO PASSOU bem a noite, nem seus pais. Angela estava particularmente aflita. De madrugada, ficou claro que Nikki estava progressivamente mais congestionada. Antes do alvorecer, Angela tentou a drenagem postural de sempre, combinada com percussão.

Quando terminaram, ela ouviu Nikki com o estetoscópio. Escutou roncos, sons que significavam que os canais respiratórios de Nikki estavam se tornando entupidos com muco.

Antes das oito horas, David e Angela ligaram para seus empregos, explicando que chegariam tarde. Enrolando Nikki em múltiplas camadas de roupas, levaram-na ao Doutor Pilsner. Inicialmente, a recepção não foi encorajadora. A recepcionista informou-lhes que o Doutor Pilsner estava com a agenda cheia. Nikki teria de voltar no dia seguinte.

Angela recusou-se a ceder. Disse à recepcionista que ela era a Dra. Wilson, da patologia, e que queria falar com o Doutor Pilsner. A recepcionista desapareceu no interior do consultório.

O próprio Doutor Pilsner apareceu logo depois e se desculpou.

- A garota pensou que vocês eram sócios comuns da CMV - explicou o Doutor Pilsner. - Qual é o problema?

Angela contou ao médico que, durante a noite, uma irritação da garganta levara à congestão, que não reagira à drenagem postural de sempre. O Doutor Pilsner levou Nikki para uma das salas de exames e ouviu o seu peito.

- Definitivamente congestionado - falou removendo o estetoscópio dos ouvidos. Depois, dando um beliscão de leve nabochecha de Nikki, perguntou como ela se sentia.

- Não me sinto bem - disse a menina, com a respiração dificultosa.

- Ela vinha tão bem ultimamente! - disse Angela.

- Vamos fazer com que ela volte ao normal num piscar de olhos - disse o Doutor Pilsner, coçando a barba branca. - Mas acho melhor interná-la. Quero começar com antibiótico intravenoso e terapia respiratória intensiva.

- O que for preciso - disse David. Em seguida, ele acariciou os cabelos de Nikki. Sentia-se culpado por ter insistido no fim de semana em New Hampshire.

Janice Sperling, do departamento de admissão, reconheceu David e Angela. Solidarizou-se com eles pelo que Nikki estava passando.

- Temos um quarto ótimo para você - falou para Nikki. Tem uma linda vista das montanhas.

Nikki assentiu e deixou que Janice lhe pusesse um bracelet plástico de identificação. David checou-o. Era o quarto 204, tinha uma vista particularmente agradável.

Graças a Janice, os procedimentos de internação correram depressa. Em apenas alguns minutos, estavam subindo. Janice levou-os ao quarto 204 e abriu a porta.

- Desculpe - disse Janice confusa. O quarto 204 já estava ocupado; havia uma paciente na cama.

- Senhora Kleber - disse Nikki com surpresa.

- Marjorie?-perguntou David.-O que está fazendo aqui.

- Veja o meu azar - disse ela. - Justo no fim de semana em que o senhor não está, eu tenho problema. Mas o Doutor Markham foi muito gentil.

- Desculpe incomodá-la - disse Janice a Marjorie. - Não entendo por que o computador me deu o quarto 204 quando ele já estava ocupado.

- Não há problema - disse Marjorie. - Eu gosto de companhia.

David disse a Marjorie que voltaria logo. Os Wilsons acompanharam Janice até o posto de enfermagem, onde ela ligou para a admissão.

- Quero me desculpar pela confusão - disse Janice depois da chamada. - Vamos colocar Nikki no quarto 212.

Minutos depois da chegada ao quarto 212, uma equipe de enfermeiras e técnicos apareceu para atender Nikki. Teve início o tratamento com antibióticos e foi marcada hora para o terapeuta respiratório.

Quando tudo estava sob controle, David disse a Nikki que voltaria a vê-la periodicamente durante o dia. Também lhe disse que fizesse tudo que as enfermeiras e os técnicos pedissem. Deu um beijo no rosto de Angela e um na testa de Nikki e saiu.

Em seguida, voltou ao quarto de Marjorie e olhou para a paciente. Ela se tornara uma de suas favoritas naqueles meses. Parecia minúscula na grande cama ortopédica. David pensou que, naquela cama, Nikki praticamente desapareceria.

- Muito bem - falou, fingindo irritação.-Qual é a história?

- Começou na tarde de sexta - disse Marjorie. - Os problemas sempre começam na sexta, quando a gente não quer chamar o médico. Eu não me sentia bem. Na manhã de sábado, minha perna direita começou a doer. Quando liguei para o seu consultório, eles me puseram em contato com o Doutor Markham. Ele me atendeu imediatamente. Disse que eu estava com flebite, e que precisava me internar no hospital para tomar antibióticos.

David examinou Marjorie e confirmou o diagnóstico.

- O senhor acha que era necessário eu me internar no hospital?

- Sem dúvida. Nós não gostamos de correr riscos num caso de flebite. A inflamação nas veias anda par a par com coágulos sangüíneos. Mas sua aparência está boa. Acho que já melhorou.

- Não há dúvida de que melhorei. Estou me sentindo cem vezes melhor do que quando vim no sábado.

Apesar de já estar atrasado para o consultório, David passou mais dez minutos conversando com Marjorie sobre a flebite, para certificar-se de que ela compreendia o problema. Ao terminar, foi para o posto de enfermagem e leu o prontuário. Estava tudo em ordem.

Em seguida, ligou para Dudley Markham, para agradecer-lhe por ter coberto seu plantão no fim de semana e por ter atendido Marjorie.

- Esqueça - disse Dudley. - Eu gostei de Marjorie. Nós conversamos sobre o passado. Elafoi professora do meu mais velho na segunda série.

Antes de sair do posto de enfermagem, David perguntou à enfermeira-chefe, Janet Colburn, por que Marjorie estava numa cama ortopédica.

- Por nada - disse Janet. - Aconteceu de a cama estar lá. No momento, não é necessária em lugar nenhum. Marjorie vai ficcar melhor naquela cama, pode acreditar. Os controles eletrônicos para levantar e baixar a cabeça e os pés nunca se quebram, coisa que não se pode dizer das camas comuns.

David escreveu uma pequena anotação no prontuário de Marjorie para oficializar sua responsabilidade por seu tratamento; em seguida, foi verificar Nikki. Ela estava muito melhor, mesmo terapeuta respiratório não tendo chegado ainda. Sua melhora provavelmente se devia à hidratação através do soro.

Finalmente, David foi até o prédio ambulatorial para começçar a atender seus pacientes. Estava quase uma hora atrasado.

Susan parecia transtornada quando David chegou. Tentou fazer malabarismo com as consultas e cancelar as que pudesse, mas ainda havia várias pessoas esperando. David acalmou-a enquanto entrava no consultório e colocava o jaleco branco. Susan seguiu-o como um sabujo, segurando recados telefônicos e pedidos de consulta.

Com o jaleco branco meio vestido, David parou abruptament de se mexer. Susan parou no meio da frase, vendo-o ficar pálido.

- Qual é o problema? - perguntou, alarmada.

David não se mexeu nem falou. Estava olhando a parede atrás de sua mesa. Para seus olhos cansados e carentes de sono, ela estava manchada de sangue.

- Doutor Wilson! - gritou Susan. - O que foi?

David piscou e a imagem perturbadora desapareceu. Indo até a parede, passou a mão pela superfície lisa, para certificar-se de que fora uma alucinação visual.

David suspirou, espantado com sua própria suscetibilidade. Virou-se de costas para a parede e desculpou-se com Susan.

- Acho que talvez eu tenha visto muitos filmes de terror quando era criança - falou. - Minha imaginação está funcionando demais.

- Acho melhor começarmos a atender os pacientes - disse Susan.

- Concordo.

Atirando-se com vontade ao trabalho, David compensou o tempo perdido. No meio da manhã, já estava em dia. Então fez uma breve interrupção nas consultas para responder a alguns dos recados telefônicos. A primeira pessoa com quem tentou falar foi Charles Kelley.

- Eu estava me perguntando quando você ligaria - disse Kelley, com a voz incomumente profissional. - Estou com um visitante em minha sala. Seu nome é Neal Harper. É do departamento de utilização da CMV, em Burlington. Acho que precisamos resolver uma coisa com você.

- No meio do meu horário de consultas?

- Não vai demorar muito. Eu insisto. Você pode vir até aqui?

David recolocou devagar o fone no gancho. Sentia-se imensamente ansioso, apesar de não saber por quê, como se fosse um adolescente chamado à sala do diretor da escola.

Depois de dizer a Susan aonde estava indo, David saiu. Assim que chegou aos escritórios da CMV, a recepcionista lhe disse que entrasse.

Kelley levantou-se de detrás de sua mesa, parecendo alto e bronzeado como sempre. Mas seus modos eram diferentes. Estava sério, quase duro, muito distante de seu jeito expansivo. Apresentou Neal Harper, um homem magro e preciso, de tez pálida e algumas espinhas. David achou-o a apoteose do burocrata eternamente trancado no escritório, preenchendo formulários.

Sentaram-se todos. Kelley pegou um lápis e ficou brincando com ele nas duas mãos.

- Foram levantadas as estatísticas do seu primeiro trimestre - falou em tom sombrio. – E elas não são boas.

David olhou de um para outro, sentindo-se cada vez mais ansioso.

- Sua produtividade não é satisfatória - prosseguiu Kelley. - Com relação ao número de pacientes por hora, você tem a menor percentagem de toda a CMV. Obviamente, está gastando tempo demais com cada paciente. Para piorar as coisas, você tem o mais alto percentual de pedidos ao laboratório da CMV por paciente. Quanto a pedir consultas fora da comunidade da CMV, você está completamente fora da tabela.

- Eu não sabia que esse tipo de estatística era feito - disse David humildemente.

- E não é só isso - disse Kelley. - Muitos de seus pacientes têm sido atendidos na emergência do Hospital Comunitário de Bartlet, em vez de em seu consultório.

- Isso é compreensível - disse David. - Estou com agenda lotada para duas semanas. Quando alguém liga com problema obviamente agudo, necessitando atenção imediata, mando para a emergência.

- Errado!-rugiu Kelley.-Você não manda pacientes a emergência. Você os atende em seu consultório, desde que estes não estejam à beira da morte

- Mas esse tipo de interrupção vai tumultuar minha agenda. Se eu tiver de atender a emergências, não vou poder atender pacientes marcados.

- Que seja assim - disse Kelley. - Ou então faça com que os supostos pacientes de emergência esperem até que você tenha atendido aos que marcaram consulta. A decisão é sua, mas qualquer que seja, não use a sala de emergência.

- Então para que serve a sala de emergência?

- Não tente bancar o espertinho comigo, Doutor Wilson - disse Kelley. – Você sabe muito bem para que serve a sala de emergência. É para emergências de vida ou morte. E isso me faz lembrá-lo que não sugira que seus pacientes peçam uma ambulância. A CMV não paga por ambulância, a não ser que haja aprovação prévia, e isso só se garante em casos de real ameaça à vida.

- Alguns de meus pacientes vivem sós. Se estiverem doentes...

- Não vamos tornar as coisas mais difíceis do que o necessário - interrompeu Kelley. - A CMV não opera uma linha de ônibus. Isso tudo é bastante simples. Vou deixar claro: você deve aumentar seriamente sua produtividade, deve baixar drasticamente o uso de testes laboratoriais, deve reduzir, ou melhor, parar de usar consultas fora da CMV, e deve manter seus pacientes longe da sala de emergência. Compreende?

David saiu atordoado do escritório da CMV. Estava pasmo. Jamais se considerara extravagante no uso dos recursos médicos. Sempre se orgulhara de priorizar as necessidades dos pacientes. O discurso de Kelley fora no mínimo enervante.

Chegando ao consultório, entrou sentindo-se vacilante. Teve um vislumbre de Kevin desaparecendo com um paciente por trás de uma porta, e lembrou-se de sua profecia quanto à avaliação do departamento de utilização. Kevin acertara no alvo: fora devastador. O que também incomodou David foi que Kelley não fizera uma única referência à qualidade ou à aprovação por parte dos pacientes.

- É melhor correr - disse Susan no instante em que o viu. - Você está de novo atrasado.

No meio da manhã, Angela saiu do laboratório e foi verificar Nikki. Ficou satisfeita ao ver como ela ia bem. O fato de não estar com febre era particularmente encorajador. Também houvera um claro decréscimo subjetivo na congestão de Nikki, depois de uma prolongada visita do terapeuta respiratório. Angela usou o estetoscópio de uma enfermeira para ouvir o peito de Nikki. Ainda havia sons de muco excessivo, mas nem de longe como estivera de manhã cedo.

- Quando vou poder ir para casa?

- Você nem bem chegou aqui! - disse Angela, desgrenhando o cabelo de Nikki.-Mas, se continuar melhorando desse jeito, tenho certeza de que o Doutor Pilsner não vai querer segurar você por muito tempo.

De volta ao laboratório, Angela foi até a seção de microbiologia para verificar a amostra de escarro de Nikki; queria ter certeza de que a lâmina havia sido preparada. Era crucial determinar que bactérias havia no trato respiratório da menina. O técnico garantiu que a lâmina estava pronta.

De volta à sua sala, Angela pendurou o jaleco branco, preparando-se para examinar uma série de lâminas de hematologia. Logo antes de se sentar, percebeu que a porta de ligação entre sua sala e a de Wadley estava escancarada.

Foi até a porta e olhou. Wadley se encontrava diante de um microscópio duplo, usado para ensino. Ele viu-a e acenou para que ela se aproximasse.

- Quero que veja isso - falou.

Angela foi até o microscópio e sentou-se diante do mentor. Seus joelhos praticamente se tocavam sob a mesa. Ela aproximou-se do ocular. Imediatamente reconheceu a amostra como sendo de um tecido de seio.

- Este é um caso complicado - disse Wadley. - A pacient só tem vinte e dois anos. Temos de fazer um diagnóstico, e precisamos ter certeza. Não tenha pressa.-Para enfatizar, ele estende a mão sob a mesa e agarrou a perna de Angela logo acima do joelho.

- Não seja impulsiva quanto à sua impressão. Observe cuidadosamente os dutos.

Os olhos experimentados de Angela começaram a analisar metodicamente a lâmina, mas ela perdeu a concentração. A mão de Wadley continuava em sua coxa. Ele continuou falando, explicando os pontos que achava fundamentais para o diagnóstico. Angela tinha dificuldade em ouvir. O peso da mão fazia com que ela se sentisse tremendamente desconfortável.

Várias vezes Wadley a tinha tocado antes, e ela também tiver ocasião de tocá-lo. Mas sempre dentro de limites sociais aceitáveis, como o contato num braço, ou um tapinha nas costas, ou um abraço exuberante. Até mesmo tinham dado vários abraços comemorativos durante o jogo de softball no piquenique do dia do trabalho. Nunca houvera qualquer implicação de intimidade. Nada como agora, quando a mão dele continuou presa à sua perna, com o polegar do lado interno de sua coxa.

Angela quis mover-se ou afastar a mão, mas não fez nenhuma das duas coisas. Continuou esperando que Wadley percebesse subitamente como ela estava desconfortável e se recolhesse. ”

isso não aconteceu. A mão continuou em sua coxa durante toda a longa explicação sobre o motivo da biópsia precisar ser considerada positiva como câncer.

Finalmente Angela se levantou. Sabia que estava tremendo. Mordeu a língua e voltou para a sua sala.

- Estou pronto para revisar essas lâminas de hematologia assim que você terminar com elas - gritou Wadley.

Fechando a porta entre as duas salas, Angela foi até a sua mesa e afundou na cadeira.

Sentia-se à beira das lágrimas, e apoiou o rosto nas mãos enquanto uma torrente de pensamentos atravessava sua mente. Repassando os eventos dos meses anteriores, lembrou-se de todos os episódios em que Wadley se oferecera para ficar até mais tarde ou examinar lâminas, e todas as vezes em que ele aparecia quando ela tinha alguns momentos livres. Se ela ia até a cafeteria, ele aparecia e sempre ocupava o lugar ao seu lado. E quanto aos toques, agora que ela pensava a respeito, ele nunca deixava passar uma oportunidade.

De repente, todos os esforços de Wadley como mentor e a afeição que vinha demonstrando passavam a ter uma conotação diferente, menos generosa e mais desagradável. Até a conversa recente sobre ir a um congresso de patologia em Miami no mês seguinte fez com que ela se sentisse inquieta.

Baixando as mãos, Angela olhou para a frente. Seráque não estaria reagindo de modo exagerado? Talvez estivesse colocando o episódio acima de sua proporção, ficando tão abalada. Afinal de contas, David sempre a acusava de dramatizar demais. Talvez Wadley não tivesse se dado conta. Talvez ele se encontrasse tão envolvido em seu papel didático que não percebesse o que estava fazendo. Sacudiu a cabeça, irritada. Bem no fundo sabia que não estava reagindo exageradamente.

Ainda se sentia grata pelo tempo e pelo esforço despendidos por Wadley, mas não conseguia esquecer como era ter sua mão na coxa. Era uma coisa tão inadequada! Ele tinha de saber. Tinha de ser deliberado. A questão era o que fazer para acabar com essa familiaridade não-desejada. Afinal de contas, ele era o seu chefe.

No final de seu horário de consultas, David foi até o prédio central do hospital para verificar como estavam Marjorie Kleber e alguns outros pacientes. Vendo que tudo estava bem, ele parou para visitar Nikki.

Sua filha estava se sentindo bem, graças a uma combinação adequada de antibióticos, agentes mucolíticos, broncodilatador hidratação e fisioterapia física. Achava-se recostada numa pilha de travesseiros e segurando um controle remoto de televisão. Assistia a um programa de jogos, passatempo para o qual torcia o nariz quando estava em casa.

- Bem, bem - disse David. - Isso é que é uma mulher preguiçosa!

- Ora, pai! Eu não tenho visto muita televisão. A Senhora Kleber veio até o meu quarto, e eu até fiz muitos deveres de escola.

- Que coisa terrível - disse David com uma consternação improvisada. - Como vai a respiração?

Depois de tantas estadas em hospitais, Niki tinha verdadeira experiência em avaliar sua situação. Os pediatras tinham aprendido a ouvir suas avaliações.

- Boa - disse Nikki. - Ainda um pouco difícil, mas definitivamente melhor.

Angela apareceu junto à porta.

- Parece que cheguei justo na hora para uma reunião de família. - Ela veio e deu um abraço em Nikki e em David. Com Angela sentada de um lado da cama e Davíd do outro, os três conversaram durante meia hora.

- Quero ir para casa - gemeu Nikki quando David e Angela se levantaram para sair.

- Tenho certeza de que sim - disse Angela. - E nós queremos você em casa, mas temos de obedecer às ordens do DOUTOR Pilsner. Vamos falar com ele de manhã.

Depois de acenar um adeus e olhar os pais desaparecendo pélo corredor, Nikki enxugou uma lágrima no canto do olho e pegou controle remoto. Estava acostumada a ficar em hospitais, mas não gostava. A única coisa boa era que podia ver televisão o quanto quisesse, e qualquer tipo de programa, coisa que definitivamente não era possível em casa.

David e Angela não falaram até estarem do lado de fora, sob o toldo que cobria a entrada dos fundos do hospital. Mesmo então a conversa foi mínima. David disse simplesmente que era bobagem os dois se molharem, e em seguida correu até o carro.

No caminho para casa não houve conversas. O único ruído era o som repetitivo e lúgubre dos limpadores de pára-brisa. Cada um achava que o outro estava reagindo a uma combinação da hospitalização de Nikki com o final de semana desapontador e a chuva incessante.

Como para confirmar as suspeitas de David, Angela rompeu o silêncio enquanto eles pegavam o caminho de entrada para a casa, dizendo que uma vista preliminar na cultura do catarro de Nikki sugeriu pseudomonas aeruginosa.

- Não é bom sinal - prosseguiu Angela. - Quando esse tipo de bactéria se estabelece em alguém com fibrose cística, geralmente permanece.

- Não precisa me dizer.

O jantar foi tenso, sem a presença de Nikki. Comeram na mesa da cozinha enquanto a chuva batia contra as janelas. Finalmente, depois de terminarem de comer, Angela conseguiu reunir forças e palavras para descrever o que acontecera entre ela e Wadley.

O queixo de David foi caindo enquanto a história prosseguia. No momento em que Ângela terminou, sua boca estava escancarada de espanto.

- Aquele desgraçado! - disse ele, batendo com a palma da mão na mesa e sacudindo irado a cabeça. - Umas duas vezes me passou pela cabeça que ele estava parecendo apaixonado demais, como no dia do piquenique. Mas me convenci de que estava com um ciúme ridículo. Parece que minha intuição estava certa.

- Não tenho certeza - disse Angela.-Em parte foi por isso que hesitei em contar a você. Não quero que tiremos conclusões apressadas. É uma coisa que me envergonha, além de ser irritante. É injusto as mulheres terem de enfrentar esse tipo de problema.

- É um problema antigo. O assédio sexual sempre aconteceu, especialmente depois que as mulheres passaram a trabalhar fora. Faz parte da medicina há muito tempo, especialmente quando todos os médicos eram homens e só havia mulheres enfermeiras.

- E ainda acontece, a despeito do número cada vez maior de médicas. Você se lembra de algumas babaquices que tive de ouvir de alguns professores da escola de medicina.

David assentiu.

- Lamento que isso tenha acontecido. Sei como você estava satisfeita com o Doutor Wadley. Se quiser, eu pego o carro, vou até à casa dele e dou-lhe um soco no nariz.

Angela sorriu.

- Obrigada pelo apoio.

- Achei que você estivesse quieta esta noite por causa da preocupação com Nikki. Ou com raiva por causa do fim de semana

- O fim de semana já é passado. E Nikki está bem.

- Eu também tive um dia ruim - admitiu finalmente David. Em seguida pegou uma cerveja na geladeira, tomou um gole longo e contou a Angela sobre sua revisão de utilização com Kelley e o sujeito da CMV de Burlington.

- Mas isso é ultrajante! - disse Angela quando David termi nou. - Que petulância falar com você desse jeito! Especialment com o tipo de resposta positiva que você está recebendo dos pacientes.

- Pelo visto, isso não é prioridade - disse David em tom melancólico.

- Está falando sério? Todo mundo sabe que o relacionamento médico-paciente é a pedra fundamental do serviço médico.

- Talvez isso seja passado. A realidade atual é determinada por pessoas como Charles Kelley. Ele faz parte de um novo exército de burocratas da medicina que está sendo criado pela intervenção governamental. De repente, a política e a economia ganha prioridade na arena médica. Acho que a principal preocupação é o resultado do balancete e não o atendimento ao paciente.

Angela sacudiu a cabeça.

- O problema é Washington - disse David.-Cada vez que o governo se envolve seriamente na medicina, parece que estraga tudo. Tenta agradar a todo mundo e termina sem agradar a ninguém. Veja o Medicare e o Medicaid; os dois sistemas são uma porcaria e os dois tiveram um efeito desastroso sobre a medicina em geral.

- O que vai fazer?

- Não sei. Vou tentar conseguir um meio-termo. Vou me preocupar com os problemas quando eles aparecerem e ver o que acontece. E você?

- Também não sei. Continuo com esperança de que esteja errada, de que esteja reagindo exageradamente.

- É possível - disse David em tom gentil. - Afinal de contas, foi a primeira vez que sentiu a coisa assim. E o tempo todo Wadley foi o tipo de pessoa que gosta de contato físico. Como você nunca disse nada até agora, talvez ele pense que você não se importa em ser tocada.

- O que, exatamente, você quer dizer? - perguntou Angela, irritada.

- Nada - disse David rapidamente.-Só estava respondendo ao que você falou.

- Está dizendo que eu provoquei isso?

David segurou o braço de Angela por cima da mesa.

- Calma! Eu estou do seu lado. Não pensei nem por um segundo que você tivesse alguma culpa.

A súbita raiva de Angela desapareceu. Ela percebeu que estava reagindo exageradamente, refletindo suas próprias incertezas. Havia a possibilidade de que, sem saber, estivesse encorajando Wadley. Afinal de contas, queria agradá-lo, como qualquer estudante quereria, especialmente porque se sentia em dívida para com ele, por todo o tempo e esforço que Wadley despendera em seu favor.

- Desculpe - falou. - Só estou muito desgastada.

- Eu também. Vamos para a cama.

 

TERÇA-FEIRA, 19 DE OUTUBRO

PARA DESAPONTAMENTO de David e Angela, continuou chovendo de manhã. Mas em contraste com o tempo triste, Nikki estava animada e se recuperando maravilhosamente. Até mesmo sua alegria havia retornado. A irritação na garganta, pressagiando uma doença longa, desaparecera com os antibióticos. Isso indicava que a possível infecção tinha sido bacteriana e não virótica. Felizmente a menina continuava sem febre.

- Quero ir para casa - repetiu Nikki.

- Nós ainda não falamos com o Doutor Pilsner - lembrou David - Mas vamos falar agora de manhã. Seja paciente.

Depois da visita a Nikki, Angela foi para o laboratório, enquanto David caminhava até o posto de enfermagem para pegar o prontuário de Marjorie. Estava pensando em lhe dar alta. A resposta de Marjorie ao seu cumprimento mostrou que havia alguma cois errada.

- Qual é o problema, Marjorie? - perguntou, sentindo o próprio pulso acelerar. Ela estava letárgica. David encostou a mão na testa e nos braços da paciente. A temperatura da pele estava alta. Ela parecia ter febre.

Marjorie respondeu às perguntas insistentes de David com murmúrios mal compreensíveis. Parecia drogada, se bem que não aparentasse dor. Percebendo que a respiração de Marjorie era um tanto dificultosa, David auscultou cuidadosamente o seu peito. Ouviu fracos sons de congestão. Em seguida verificou a área da flebite e descobriu que estava praticamente curada. Com ansiedade cada vez maior, examinou a paciente por inteiro. Não encontrando nada, voltou ao posto de enfermagem e ordenou uma bateria de testes laboratoriais.

A primeira coisa a voltar do laboratório foi a contagem sangüínea, mas isso só fez aumentar a confusão de David. O nível de células brancas, que estivera adequadamente caindo com a diminuição da flebite, continuara a cair e agora estava no nível mais baixo da percentagem normal.

David coçou a cabeça. A baixa contagem de células brancas parecia contradizer o estado clínico da paciente, o que sugeria o desenvolvimento de uma pneumonia. Levantando-se de junto da mesa, voltou ao quarto de Marjorie e ouviu mais uma vez o seu peito. A congestão incipiente era real.

Voltando ao posto de enfermagem, David ficou pensando no que fazer. Mais testes de laboratório chegaram, mas eram todos normais - até mesmo a radiografia do peito, feita com o aparelho portátil - e não ajudaram em nada. David pensou em pedir algumas consultas, mas, depois da revisão de utilização que tivera na véspera, sentia-se relutante. O problema era que os médicos que poderiam ajudar não faziam parte da CMV.

Em vez de requisitar consultas, David pegou o Physicians’ Desk Reference na estante. Como sua preocupação maior era a possibilidade de ter surgido uma superinfecção por bactéria gramnegativa, procurou um antibiótico específico para esse tipo de eventualidade. Quando encontrou, sentiu-se confiante em que ele cuidaria do problema.

Depois de escrever as ordens apropriadas, inclusive uma para ser chamado imediatamente se houvesse qualquer mudança no estado de Marjorie, David dirigiu-se ao seu consultório.

Era a vez de Angela assumir as seções de biópsia de congelação. Ela sempre achava a tarefa desgastante para os nervos, sabendo que, enquanto trabalhava, o paciente permanecia anestesiado esperando seu veredicto, para ver se a biópsia era cancerosa ou benigna.

As biópsias de congelação eram feitas num pequeno laboratório dentro da suíte de operações. Raramente a sala era visitada pela equipe de cirurgia. Angela trabalhava com concentração intensa, estudando os padrões de células na amostra sob o microscópio.

Não ouviu a porta se abrir silenciosamente atrás dela. Não tinha consciência de alguém na sala até que ele falou.

- E então, doçura, como vão as coisas?

Assustada, Angela moveu a cabeça para trás como se uma porção de adrenalina estivesse penetrando em seu corpo. Com a pulsação ressoando nas têmporas, ela se viu olhando o rosto sorridente de Wadley. Odiava ser chamada de doçura por qualquer pessoa, exceto, talvez, David. E não gostava de ser vigiada.

- Algum problema? - perguntou Wadley.

- Não - respondeu ela em tom cortante.

- Deixe-me dar uma olhada - disse Wadley, indo em direção ao microscópio. - Qual é o caso?

Angela deu seu lugar a Wadley e explicou sucintamente a história. Ele olhou para a lâmina e em seguida se levantou.

Por um instante, os dois falaram sobre a lâmina em jargão dos patologistas. Era aparente que concordavam em que o tumor er benigno, boas-novas para o paciente anestesiado.

- Quero ver você mais tarde na minha sala - disse Wadley e deu uma piscadela.

Angela assentiu, ignorando a piscadela. Virou-se e estava se sentar de novo, quando sentiu a mão de Wadley passar de leve sobre suas nádegas.

- Não trabalhe demais, doçura! - disse ele e saiu da sala. O episódio aconteceu tão depressa que Angela não pôde reagir. Mas sabia que não fora sem querer, e agora tinha certeza de que o apertão do dia anterior não fora um exagero inocente.

Por alguns minutos, ficou sentada no laboratório minúsculo, tremendo de indignação e perplexidade. Perguntou-se se não estaria encorajando essa ousadia súbita. Certamente não mudara seu comportamento nos últimos dias. E o que deveria fazer? Não podia ficar parada, deixando a coisa prosseguir. Seria um convite aberto.

Decidiu que tinha duas possibilidades. Poderia enfrentar Wadley diretamente ou poderia ir ao diretor médico, Michael Caldwell. Mas em seguida pensou no Doutor Cantor, atual chefe de pessoal. Talvez devesse procurá-lo.

Angela suspirou. Nem Caldwell nem Cantor lhe pareciam as autoridades ideais para se procurar num caso de assédio sexual. Os dois eram machões, e Angela lembrou-se de suas atitudes quando os conhecera. Caldwell parecera chocado pelo fato de haver mulheres patologistas, ao passo que Cantor fizera aquela observação ignorante, dizendo que as poucas mulheres na escola de medicina eram ”bruxas”.

Pensou de novo em enfrentar Wadley sozinha, mas não achava uma boa alternativa.

O barulho irritado da campainha do interfone lançou-a de volta à realidade. A estática precedeu a voz da enfermeira-chefe:

- Dra. Wilson. Estão esperando os resultados da biópsia na Sala Três.

Naquela manhã, David achou mais difícil concentrar-se nos problemas dos pacientes do que na tarde anterior. Não apenas continuava perturbado por sua entrevista com Kelley; agora tinha também a piora de Marjorie Kleber para preocupá-lo.

No meio da manhã, atendeu a outro de seus visitantes freqüentes, John Tarlow, o paciente de leucemia. John não tinha marcado hora; David pediu que Susan o colocasse entre duas consultas, como uma semi-emergência, depois de ele ter ligado de manhã. Se fosse no dia anterior, David teria mandado John para a emergência, mas, sentindo-se castrado pelo sermão de Kelley, via-se obrigado a atender ele mesmo o sujeito.

John estava se sentindo mal. Depois de uma refeição com mariscos crus na noite anterior, tivera sérios problemas gastrointestinais, com vômitos e diarréia. Estava desidratado e com fortes cólicas abdominais.

Vendo como John estava mal, e lembrando-se de sua história de leucemia, David hospitalizou-o de imediato. Pediu uma série de testes para tentar determinar a causa dos sintomas. Também iniciou um tratamento com soro, para reidratá-lo. Por enquanto, evitov antibióticos, preferindo esperar até ter alguma idéia do que estava enfrentando. Poderia ser uma infecção bacteriana ou poderia ser meramente uma reação a toxinas: intoxicação alimentar, no vernáculo.

Pouco antes das onze da manhã, Traynor recebeu a má notícia por sua secretária, Collette.

Ela acabara de ser informada pelo telefone de que Jeb Wiggins mais uma vez influenciara o Conselho Municipal. A votação final sobre a garagem, que mais uma vez Traynor conseguira colocar na agenda, fora negativa. Agora provavelmente não haveria como colocá-la de novo em votação antes da primavera.

- Droga! - rugiu Traynor, socando com as duas mãos o tampo da mesa. Collette nem piscou. Estava acostumada às explosões de Traynor. - Eu adoraria agarrar aquele pescoço gordo Wiggins e apertar até ele ficar azul.

Collette saiu discretamente da sala. Traynor ficou andando de um lado para o outro, diante da mesa. A falta de apoio que tinha que enfrentar quando se tratava de dirigir o hospital deixava-o possesso. Ele não conseguia entender como o Conselho Municipal podia ter uma visão tão estreita. Era óbvio que o hospital era a empresa mais importante da cidade. Era igualmente óbvio que o hospital precisava da garagem.

Incapaz de trabalhar, Traynor pegou sua capa de chuva, chapéu e o guarda-chuva e saiu furioso do escritório. Entrando no carro, dirigiu até o hospital. Se não haveria garagem, pelo menos ele inspecionaria pessoalmente a iluminação. Não queria correr risco de mais estupros no estacionamento.

Encontrou Werner Van Slyke em seu cubículo sem janelas. Servia como escritório do departamento de engenharia e manutenção. Traynor nunca se sentira particularmente à vontade junto a Slyke. Ele era quieto demais, solitário demais e um tanto descuidado na aparência. Além disso Traynor achava Van Slyke fisicamente intimidador; era vários centímetros mais alto do que Traynore significativamente mais robusto, com o tipo de musculatura que sugeria o halterofilismo como hobby.

- Quero ver as luzes dos estacionamentos - pediu Traynor.

- Agora? - perguntou Van Slyke, sem erguer o tom de voz do jeito que as pessoas normais fazem ao perguntar. Cada palavra que ele dizia era chapada e arranhava os ouvidos de Traynor.

- Estou com um tempinho livre. Quero me certificar de que a iluminação é adequada.

Van Slyke vestiu um impermeável amarelo e saiu da sala. Fora do hospital, apontou para cada uma das luzes no estacionamento de baixo, indo de um poste ao outro sem fazer qualquer comentário.

Traynor acompanhava-o, debaixo de seu guarda-chuva, assentindo a cada apresentação.

Enquanto seguia Van Slyke, atravessando o pequeno bosque de coníferas e subindo os degraus de madeira que separavam os dois estacionamentos, Traynor perguntou-se o que Van Slyke fazia quando não estava trabalhando. Percebeu que nunca o vira caminhando pela cidade ou fazendo compras. E o sujeito era conhecido por não comparecer às atividades sociais do hospital.

Sentindo-se desconfortável com o silêncio contínuo, Traynor limpou a garganta.

- Como vão as coisas em casa? - perguntou.

- Bem.

- A casa está boa, sem problemas?

- Sim.

Traynor começou a se sentir desafiado a conseguir que Van Slyke respondesse com mais do que simples monossílabos.

- Gosta mais da vida civil do que da Marinha?

Van Slyke encolheu os ombros e começou a apontar para as luzes no estacionamento de cima. Traynor continuou assentindo a cada uma delas. Parecia haver um número suficiente.

Ele fez uma anotação mental para vir alguma noite de carro, com o objetivo de ver como era a iluminação no escuro.

- Parece bom - falou. Começaram a voltar para o hospital.

- Você está cuidando bem do seu dinheiro? - perguntou Traynor.

- Estou.

- Acho que está fazendo um ótimo serviço aqui no hospital, Tenho orgulho de você.

Van Slyke não respondeu. Traynor olhou para o perfil molhado do sujeito, com seu ar denso. Imaginou como Van Slyke podia ser tão sem emoção, mas outra vez percebeu que nunca o entendera, desde que era um garoto. Algumas vezes, Traynor achava difícil acreditar que eram parentes, mas eram. Van Slyke era o único sobrinho de Traynor, filho de sua falecida irmã.

Quando chegaram ao grupo de árvores que separavam os estacionamentos, Traynor parou. Olhou por entre os galhos.

- Por que não há luzes neste caminho?

- Ninguém disse nada sobre luzes no caminho. - Era primeira frase inteira que Van Slyke dizia. Traynor quase ficcou satisfeito.

- Acho que seria bom colocar uma ou duas. Van Slyke assentiu.

- Obrigado por ter vindo comigo - disse Traynor ao se afastar. Estava aliviado por sair de perto. Sempre sentira culpa por ser tão afastado dos parentes, mas Van Slyke era um tremendo enigma. Tinha de admitir que sua irmã não fora exatamente um exemplo de normalidade. Seu nome era Sunny, mas seu estado de ânimo era qualquer coisa, menos ”ensolarado”. Sempre fora quieta, afastada, e sofrera de depressão a maior parte da vida.

Traynor continuava tendo dificuldades para entender porque Sunny se casara com o Doutor Werner Van Slyke, sabendo que o sujeito era um bêbado. O suicídio dela foi o golpe final.

Se ao menos o tivesse procurado, ele teria tentado ajudar.

De qualquer modo, conhecendo os pais de Van Slyke, não era surpresa que ele fosse estranho assim. Entretanto, com seu treinamento como maquinista da Marinha, ele era útil e confiável. Traynor sentia-se satisfeito por ter sugerido que o hospital o contratasse.

Traynor procurou levantar o ânimo, afastando esse tipo de reflexão, e dirigiu-se para a sala de Beaton.

- Tenho más notícias - falou, assim que a secretária Beaton o fez entrar. Contou sobre o voto do Conselho Municipal com relação à garagem.

- Espero que não tenhamos mais ataques - disse Beaton. Ela estava claramente desapontada.

- Eu também. Espero que as luzes sirvam como impedimento. Acabo de dar uma volta pelos estacionamentos. Elas parecem adequadas, menos no caminho entre os dois pátios. Pedi que Van Slyke colocasse mais umas duas ali.

- Sinto não ter feito a iluminação nos dois estacionamentos ao mesmo tempo – disse Beaton.

- Como estão as finanças este mês?

- Eu estava com medo de que perguntasse. Arnsworth me deu ontem os números da quinzena, e eles não são bons. Outubro será definitivamente pior do que setembro, se a segunda quinzena for igual à primeira. O programa de bónus está ajudando, mas as internações pela CMV ainda estão acima do nível projetado. Para piorar as coisas, parece que estamos recebendo pacientes mais graves.

- Suponho que isso significa que temos de colocar mais pressão sobre a nossa utilização - disse Traynor. - O SUD tem de dar resultado. Afora o programa de bónus, estamos sem nada. Não prevejo mais nenhuma doação de seguros num futuro próximo.

- Há mais algumas coisinhas que você deve saber - disse Beaton. - O médico 91 teve uma recaída. Robertson pegou-o bêbado. Estava dirigindo o carro em cima da calçada.

- Acabe com os privilégios dele - disse Traynor sem hesitar. - Médicos alcoolizados já causaram problemas demais na minha vida. - Mais uma vez ele se lembrou do marido da irmã, que não servia para nada.

- O outro problema é que Sophie Stephangelos, a enfermeira-chefe da cirurgia, descobriu um roubo significativo de instrumentos cirúrgicos no decorrer do ano passado. Ela acha que um dos cirurgiões está levando o material.

- E o que virá em seguida? - perguntou Traynor com um suspiro. - As vezes, acho que dirigir um hospital é uma tarefa impossível.

- Ela tem um plano para pegar o culpado - disse Beaton. - Quer uma autorização para levá-lo adiante.

- Sem dúvida nenhuma - disse Traynor. - E, se ela o pegar, vamos fazer dele um exemplo.

Saindo de uma de suas salas de exame, David surpreendeu-se ao ver que a caixa na porta da outra sala estava vazia.

- Nenhum prontuário? - perguntou.

- Você está adiantado - explicou Susan. - Tire uma folga. David aproveitou a oportunidade para dar um pulo no hospital.

A primeira parada foi no quarto de Nikki. Ao entrar, espantou-se por ver Caroline e Arni sentados na cama. De algum modo, as crianças tinham conseguido entrar no hospital sem serem impedidas. Deveriam estar acompanhadas por um adulto.

- O senhor não vai colocar a gente em encrenca, vai, DOUTOR Wilson?-perguntou Caroline. Ela parecia ter muito menos de ( nove anos. Nela a doença atrapalhara o crescimento muito mais que em Nikki. Mais parecia uma criança de sete ou oito anos.

- Não, não vou colocar vocês em encrenca. Mas como conseguiram sair tão cedo da escola?

- Para mim foi fácil - disse Arni com orgulho. - A professora substituta não sabe das coisas. É uma enrolada.

David voltou a atenção para a filha.

- Falei com o Doutor Pilsner, e ele disse que você pode ir para casa esta tarde.

- Legal - disse Nikki, empolgada. - Posso ir à escola amanhã?

- Não sei. Temos de discutir com sua mãe.

Depois de sair do quarto de Nikki, David foi ver John para certificar-se de que ele estava acomodado, tomando soro e que estavam sendo feitos os testes que pedira. John disse que se sentia melhor. David disse-lhe para ser paciente e garantiu que haveria melhoras depois que ele se reidratasse.

Finalmente, David parou no quarto de Marjorie. Esperava que o antibiótico já tivesse melhorado sua situação, mas isso não aconteceu. Na verdade, David chocou-se ao ver como ela havia piorado; estava praticamente em coma.

Em pânico, auscultou-lhe o peito. Havia mais congestão do que antes, mas ainda não era o bastante para explicar seu estado clínico. Correndo de volta ao posto de enfermagem, exigiu saber por que não fora chamado.

- Chamado para quê? - perguntou Janet Colburn. Janet era a enfermeira-chefe.

- Marjorie Kleber - gritou David enquanto prescrevia mais um exame de sangue e outra radiografia do tórax.

Janet consultou várias outras enfermeiras do andar e em seguida disse a David que nenhuma percebera qualquer alteração. Disse que uma das enfermeiras de plantão estivera no quarto há menos de meia hora e não relatara qualquer mudança.

- Isso é impossível - disse David rispidamente enquanto pegava o telefone e começava a fazer ligações. Antes, relutara em pedir outros médicos. Agora estava em pânico, querendo que eles viessem o quanto antes. Chamou o oncologista de Marjorie, Doutor Clark Mieslich, e um especialista em doenças infecciosas, o Doutor Martin Hasselbaum. Nenhum dos dois era da CMV. Além disso, convocou um neurologista chamado Alan Prichard, que fazia parte da CMV.

Todos os três especialistas estavam disponíveis. Quando ouviram o apelo frenético de David e a descrição que ele fez do caso, concordaram em vir imediatamente. Em seguida, David ligou para Susan, alertando-a sobre o que estava acontecendo. Pediu que ela dissesse aos pacientes que aparecessem no consultório que ele se atrasaria.

O oncologista foi o primeiro a chegar, logo seguido pelo especialista em doenças infecciosas e pelo neurologista. Eles examinaram o prontuário e discutiram a situação com David, antes de baixarem em massa sobre Marjorie. Depois de examiná-la atentamente, foram conferenciar no posto de enfermagem. Mal tinham começado a discutir a situação quando veio o desastre.

- Ela parou de respirar - gritou uma enfermeira do quarto de Marjorie. Ela ficara para limpar a bagunça deixada pelos especialistas.

Enquanto David e os outros médicos voltavam correndo, Janet Colburn chamava a equipe de ressuscitação. A equipe chegou em minutos e convergiu para o quarto 204.

Com tanto material humano imediatamente disponível, Marjorie foi rapidamente entubada e posta sob respiração artificial. Isso foi feito com tamanha velocidade que sua taxa cardíaca não alterou. Todos estavam confiantes em que ela só tivera um curto período com baixa de oxigênio. O problema era que não sabiam que ela parara de respirar. Enquanto começavam a discutir as causas possíveis, seu coração subitamente rebentou e em seguida parou. O monitor mostrava uma fantasmagórica linha reta. A equipe de ressuscitação aplicou um choque, na esperança de que o coração voltasse a funcionar, mas não houve resposta. Rapidamente deram outro choque, e quando isso não funcionou, começaram a fazer massagem cardíaca.

Trabalharam freneticamente durante trinta minutos, tentando cada truque em que conseguissem pensar, mas nada funcionava, o coração não reagia nem mesmo a um marcapasso externo. O desânimo instalou-se gradualmente e, por fim, num consenso geral, Marjorie Kleber foi considerada morta.

Enquanto a equipe de ressuscitação desligava seus fios e as enfermeiras começavam a limpar a área, David voltou ao posto de enfermagem com os outros médicos. Estava sentindo-se devastado. Não poderia imaginar uma situação pior. Marjorie viera ao hospital com um problema relativamente pequeno, enquanto ele viajara para se divertir. Agora ela estava morta.

- É terrível - disse o Doutor Mieslich. - Ela era uma pessoa formidável.

- Eu diria que ela até se saiu bem, considerando-se a história do prontuário - disse o Doutor Prichard. - Mas a doença iria mesmo acabar com ela.

- Espere um segundo - disse David. - Você acha que ela morreu do câncer?

- Obviamente - disse o Doutor Mieslich. - Marjorie tinha um câncer disseminado quando a examinei pela primeira vez. Apesar de se sair melhor do que eu teria previsto, era uma mulher doente.

- Mas não havia nenhuma evidência clínica do tumor - disse David.-Os problemas que levaram a esse caso fatal parecem sugerir algum tipo de disfunção no sistema imunológico. Como vocês podem relacionar isso ao câncer?

- O sistema imunológico não controla a respiração ou o coração - disse o Doutor Prichard.

- Mas a contagem de células brancas estava caindo.

- O tumor não estava aparente, isso é verdade - disse o Doutor vlieslich. - Mas se nós a abríssemos, acho que descobriríamos câncer em todo canto, inclusive no cérebro. Lembre-se, ela tinha metástase ampla quando foi originalmente diagnosticada.

David assentiu. Os outros fizeram o mesmo. O Doutor Prichard deu um tapinha nas costas de David.

- Não dá para vencer todas - falou.

David agradeceu aos outros médicos por terem vindo. Todos lhe agradeceram polidamente pela indicação, em seguida tomaram seus caminhos. David ficou sentado na escrivaninha do posto de enfermagem. Sentia-se fraco e desconsolado. Sua tristeza e sua sensação de culpa pela morte de Marjorie eram ainda mais agudas do que ele temera. Tinha passado a conhecê-la muito bem. Para piorar as coisas, ela era a adorada professora de Nikki. Como explicar isso à menina?

- Desculpe incomodar - disse Janet Colburn em voz baixa. -Lloyd Kleber, marido de Marjorie, está aqui. Ele gostaria de falar com o senhor.

David levantou-se. Sentia-se atordoado. Não sabia por quanto tempo estivera sentado no posto de enfermagem. Janet levou-o à sala de espera dos pacientes.

Lloyd Kleber estava olhando a chuva através da janela. David imaginou que ele tivesse uns quarenta e cinco anos. Seus olhos estavam vermelhos de chorar. O coração de David apiedou-se do homem. Ele não somente perdera a esposa; agora também tinha a responsabilidade por dois filhos sem mãe.

- Sinto muito - disse David em tom claudicante.

- Obrigado - disse Loyd, engolindo as lágrimas. - E obrigado por ter cuidado de Marjorie. Ela realmente admirava seu envolvimento.

David assentiu. Tentou dizer coisas que refletissem sua comPaixão. Nunca se sentia adequado em situações assim, mas fez o melhor que pôde.

Finalmente tomou coragem e pediu permissão para fazer uma autópsia. Sabia que era pedir demais, mas estava profundamente perturbado pela rápida deterioração de Marjorie. Queria desesperadamente compreender aquilo.

- Se puder ajudar outras pessoas de algum modo - disse o Senhor Kleber-, tenho certeza que Marjorie gostaria de que fosse feita.

David ficou e conversou com Lloyd Kleber até a chegada de outros membros da família. Em seguida, deixando-os, foi até o laboratório. Encontrou Angela em sua sala. Ela ficou satisfeita ao vê-lo, e disse isso. Em seguida percebeu sua expressão desgastada.

- O que há de errado? - perguntou ansiosa. Levantou-se pegou sua mão.

David contou. Teve de parar várias vezes para se recompor.

- Sinto muito - disse ela, dando-lhe um abraço confortador.

- Isso é que é médico! - zombou ele de si mesmo, lutano contra as lágrimas. - Era de se pensar que eu já estivesse ajustado a esse tipo de coisa.

- A sensibilidade faz parte do seu charme – tranquilizou Angela. - É também o que faz de você um bom médico.

- O Senhor Kleber concordou com uma autópsia. Achei bom porque não tenho a menor idéia do motivo da morte, especialmente por ter ocorrido tão rápida. A respiração parou, e em seguida, parou o coração. Os médicos que consultei acham que foi por causa do câncer. Provavelmente foi. Mas eu gostaria que o Bartlet confirmasse. Você pode cuidar para que isso seja feito?

- Sem dúvida. Mas, por favor, não fique tão deprimido. Não foi culpa sua.

- Vejamos o que mostra a autópsia. E o que vou dizer a Nike?

- Isso vai ser difícil - admitiu Angela.

David voltou ao consultório para tentar atender aos pacientes o mais rapidamente possível. Odiava se atrasar tanto, mas não houvera como evitar. Só tinha conseguido atender a quatro, quando Susan interrompeu-o entre duas salas de exame.

- Desculpe incomodá-lo, mas Charles Kelley está aqui e exige vê-lo imediatamente.

Temendo que a visita de Kelley tivesse algo a ver com a morte de Marjorie, David atravessou o corredor até sua sala. Kelley estava andando de um lado para o outro, impaciente. Interrompeu-se assim que David chegou. David fechou a porta depois de entrar. O rosto de Kelley estava duro e irado.

- Achei o seu comportamento particularmente irritante - disse, partindo para cima de David.

- Do que está falando?

- Ontem mesmo falei com você sobre utilização. Pensei que estivesse claro e que houvesse entendido. E hoje, irresponsavelmente, você pede duas consultas com médicos de fora da CMV para uma paciente terminal. Esse tipo de comportamento sugere que você não tem compreensão do principal problema enfrentado pela medicina atual: despesas desnecessárias e perdulárias.

Com as emoções à flor da pele, David lutou para se controlar.

- Espere um minuto. Eu gostaria que você me dissesse como sabe que as consultas eram desnecessárias.

- Ora, meu caro! - disse Kelley com um movimento petulante de cabeça. - É óbvio. O estado da paciente não se alterou. Ela estava morrendo e morreu. Todo mundo deve morrer em algum momento. Dinheiro e outros recursos não devem ser jogados fora em nome de heroísmo sem esperança.

David encarou os olhos azuis de Kelley. Não sabia o que dizer. Estava perplexo.

Esperando evitar Wadley, Angela procurou o Doutor Paul Darnell em seu cubículo sem janelas, do outro lado do laboratório. A mesa dele estava cheia de cubas com cultura de bactérias. Sua área de interesse especial era a microbiologia.

- Posso falar com você um instante?-disse Angela da porta. Ele acenou para que ela entrasse e recostou-se em sua cadeira giratória.

- Qual é o protocolo para autópsias aqui? Não vi nenhuma desde que cheguei.

- Essa é uma questão que você deve discutir com o Doutor Wadley. É problema de política interna. Desculpe.

Relutantemente, Angela foi até a sala de Wadley.

- O que posso fazer por você, doçura? - Wadley deu o tipo de sorriso que anteriormente Angela via como paternal, mas que agora sabia ser lascivo.

Encolhendo-se ao ser chamada de doçura, Angela engoliu oorgulho e perguntou sobre o procedimento para conseguir uma autópsia.

- Nós não fazemos autópsias. Se for caso de um médico, o corpo vai para Burlington. Autópsias são muito caras e o contrato com a CMV não as inclui.

- E se a família pedir?-perguntou Angela, sabendo que isso não era exatamente verdade no caso de Marjorie Kleber.

- Se eles quiserem gastar oitocentos e noventa dólares, nós damos um jeito. Caso contrário, não fazemos.

Angela assentiu e saiu em seguida. Em vez de voltar ao seu trabalho, foi até o prédio ambulatorial e dirigiu-se ao consultório de David. Ficou espantada com o número de pacientes que esperavam. Todas as cadeiras da sala de espera estavam ocupadas. Haviam algumas pessoas de pé no corredor. Viu David enquanto ele corria de uma sala para outra. Ele estava claramente em frangalhos.

- Não posso fazer autópsia em Marjorie Kleber.

- Por que não?

Angela contou o que Wadley tinha dito.

David sacudiu a cabeça, frustrado, e soltou o ar dos pulmões.

- Minha opinião é que este lugar está escorregando morro abaixo, e depressa. – Em seguida, contou a Angela sobre a opinião de Kelley quanto ao modo como ele tratara o caso de Marjorie.

- Isso é ridículo - disse Angela. Ela estava furiosa. - Quer dizer que ele sugeriu que as consultas eram desnecessárias porque a paciente morreu? Isso é loucura.

- O que eu posso dizer? - David sacudiu a cabeça. Angela não sabia o que dizer. Kelley estava começando a parecer perigosamente desinformado. Angela gostaria de poder conversar mais, mas sabia que David não tinha tempo. Fez um gesto por cima do ombro.

- Você está com o consultório cheio de pacientes. Quando acha que vai terminar?

- Não tenho a menor idéia.

- E se eu levar Nikki para casa e você me ligar quando estiver para sair? Eu poderia voltar e pegá-lo.

- Parece bom.

- Agüente firme, querido. Conversamos mais tarde. Angela voltou ao laboratório e, terminando o trabalho do dia, pegou Nikki e foi para casa. A filha estava em êxtase por sair do hospital. Ela e Ferrugem tiveram um encontro exuberante.

David ligou às sete e quinze. Com Nikki confortavelmente aninhada diante da televisão, Angela voltou ao hospital. Dirigiu devagar. Estava chovendo tanto que os limpadores tinham de lutar para manter o pára-brisa em condições.

- Que noite! - disse David entrando no carro.

- Que dia! - disse Angela, começando a descer a colina na direção da cidade.

Especialmente para você. Como está se sentindo?

- Estou me virando. Foi bom ter tanto trabalho, pelo menos não pensei muito. Mas agora preciso enfrentar a realidade: o que vou dizer a Nikki?

- É só contar a verdade.

- É mais fácil dizer do que fazer. E se ela me perguntar por que Marjorie morreu? O problema é que não sei, nem fisiológica nem metafisicamente.

- Andei pensando mais sobre o que Kelley disse. Parece que ele tem uma incompreensão fundamental sobre o que é básico no atendimento ao paciente.

- Isso é dizer pouco - afirmou David, com um riso curto e sarcástico. - A parte assustadora é que ele está num cargo de supervisão. Os burocratas como Kelley estão se intrometendo na medicina sob o disfarce de reforma no serviço de saúde. Infelizmente, o público não faz a menor idéia.

- Tive outro probleminha com Wadley hoje.

- Aquele cretino! O que ele fez desta vez?

- Me chamou de doçura algumas vezes. E passou a mão nas minhas nádegas.

- Meu Deus, que canalha!

- Realmente vou ter de fazer alguma coisa. Só gostaria de saber o quê.

- Acho que você deveria falar com Cantor. Andei pensando nisso. Pelo menos Cantor é médico e não somente um burocrata dos serviços de saúde.

- O comentário dele sobre as garotas da escola de medicina, como ele disse, não foi muito inspirador.

Chegaram à entrada de carros da casa. Angela parou o mais perto possível da saleta dos fundos. Os dois se prepararam para correr até o abrigo.

- Quando será que essa chuva vai parar?-reclamou David - Está chovendo direto há três dias. «

Assim que entraram, David decidiu acender a lareira para animar a casa, enquanto Ângela esquentava a comida que fizera antes. Descendo até o porão, David percebeu que estava brotando umidade por entre os blocos de granito do alicerce. Junto com a umidade havia o odor mofado que ele sentira ocasionalmente. Enquanto pegava a lenha, consolou-se pensando no chão de terra. Se entrasse uma quantidade significativa de água no porão, ela penetraria na terra e acabaria desaparecendo.

Depois de comer, David juntou-se a Nikki diante da TV. Sempre que ela ficava doente, eles cediam com relação ao tempo que podia dedicar a esse entretenimento. David fingiu interesse pelo programa, enquanto juntava coragem para contar sobre Marjorii. Finalmente, durante um intervalo comercial, passou o braço ao redor da filha.

- Preciso contar uma coisa - disse em tom gentil.

- O quê? - Nikki estava satisfeita, acariciando Ferrugem enrolado no sofá.

- Sua professora, Marjorie Kleber, morreu hoje. Nikki não disse nada durante alguns instantes. Olhou Ferrugem, fingindo estar preocupada com um nó atrás de sua orelha.

- Isso me deixa muito triste - prosseguiu David. - Especialmente porque eu era o médico dela. Tenho certeza que vc também fica chateada.

- Não - disse Nikki rapidamente, sacudindo a cabeça, afastou uma mecha de cabelos da frente dos olhos. Em seguida, olhou para a televisão como se estivesse interessada no comercial.

- Não há problema em ficar triste - disse David, e começou a falar sobre perder pessoas de quem se gosta, quando subitamente Nikki lançou-se para ele, envolvendo-o numa torrente de lágrimas. Ela abraçou-o mais forte do que em qualquer outra ocasião que ele recordasse. David deu-lhe tapinhas nas costas e continuou consolando-a.

Angela apareceu na porta. Ao ver David segurando a filha em soluços, aproximou-se. Empurrando Ferrugem gentilmente para o lado, sentou-se e colocou os braços ao redor de David e Nikki. Os três ficaram juntos, balançando lentamente enquanto a chuva batia contra a janela.

 

QUARTA-FEIRA, 20 DE OUTUBRO

A DESPEITO DOS CONTÍNUOS protestos de Nikki, David e Angela insistiram em que ela ficasse em casa, deixando de ir à escola por mais um dia. Considerando o mau tempo e o fato de que ela ainda estava tomando antibióticos, não havia motivo para arriscar.

Apesar de Nikki não estar tão cooperativa como ocorria geralmente, sua terapia respiratória foi feita com grande diligência. David e Angela auscultaram seu peito e ambos ficaram satisfeitos.

Alice Doherty chegou exatamente na hora que prometera. David e Angela agradeceram por ter alguém tão confiável e convenientemente disponível.

Enquanto os dois entravam no Volvo azul, David reclamou não poder andar de bicicleta a semana inteira. Não estava chovendo tão forte quanto antes, mas as nuvens eram baixas e pesadas, e uma névoa densa se erguia da terra saturada.

Chegaram ao hospital às sete e meia. Enquanto Angela se dirigia ao laboratório, David foi até o andar dos pacientes internos. Quando entrou no quarto de John Tarlow, surpreendeu-se ao ver panos no chão, escadas de pintor e a cama vazia. Prosseguindo até o posto de enfermagem, perguntou pelo paciente.

- O Senhor Tarlow foi removido para o 206 - disse Janeth Colburn.

- Porquê?

- Queriam pintar o quarto. A manutenção apareceu e nos informou. Perguntamos à admissão, e eles disseram para transferir o paciente para o 206.

- Acho isso uma falta de consideração - reclamou David.

- Bom, não coloque a culpa em nós. Converse com a manutenção.

Sentindo-se irritado pelo paciente, David seguiu a sugestão de Janet e foi até a manutenção.

Bateu na porta do escritório de manutenção e engenharia. Dentro, curvado sobre uma mesa, estava um sujeito aproximadamente da sua idade. Vestia uma camisa de trabalho, de sarja esverdeada, amarrotada. O rosto estava áspero com barba de dois dias.

- O que é? - perguntou Van Slyke levantando os olhos de sua agenda. A voz era inerte, e o rosto sem emoção.

- Um de meus pacientes foi trocado de quarto. Quero saber por quê.

- Se está falando do quarto 216, ele está sendo pintado - disse Van Slyke em voz monótona.

- É óbvio que está sendo pintado. O que não é óbvio é por quê.

- Nós temos uma programação.

- Com ou sem programação, acho que os pacientes não devem ser perturbados, especialmente quando estão doentes. E os pacientes que chegam ao hospital invariavelmente estão doentes.

- Fale com Beaton, se está com algum problema - disse Van Slyke, voltando-se de novo para a agenda.

Pasmo com a insolência de Van Slyke, David ficou parado na porta por um instante. Van Slyke ignorou-o. David sacudia a cabeça e em seguida virou-se para ir embora. No caminho de volta ao andar dos pacientes, considerou seriamente o conselho de Van Slyke, de discutir a situação com a presidente do hospital, até que entrou no quarto novo de John Tarlow. De súbito, viu-se diante de um problema maior: o estado de John Tarlow havia piorado.

Os vômitos e a diarréia, que inicialmente tinham sido controlados, reapareceram mais intensos. Além disso, John estava entorpecido, e ao ser acordado mostrou-se apático. David não conseguia entender esses sintomas, já que John recebera soro desde a internação, e claramente não estava desidratado.

David examinou cuidadosamente o paciente, mas não conseguiu encontrar uma explicação para a nítida mudança em seu estado clínico, particularmente em seu estado mental deprimido. A única coisa em que podia pensar era na possibilidade de que John fosse exageradamente sensível ao sonífero que lhe prescrevera, e que lhi deveria ser administrado caso solicitasse.

Correndo de volta ao posto de enfermagem, David pegou o prontuário de John na estante. Examinou desesperadamente informações mandadas do laboratório durante a noite, numa tentativa de compreender o que acontecia e decidir o que fazer em seguida. Em conseqüência da discussão com Kelley no dia anterior, ele estava relutante em requisitar qualquer outra consulta, já que nenhum dos dois médicos que ele queria – o oncologista e o especialista em doenças infecciosas - era da CMV.

David fechou os olhos e esfregou as têmporas. Não achava estar fazendo muitos progressos. Infelizmente, faltava uma peça fundamental de informação: os resultados das culturas de fezes preparadas no dia anterior ainda não tinham chegado. Conseqüentemente David não sabia se estava ou não lidando com uma bactéria. E se estivesse, que tipo de bactéria seria. Pelo lado positivo, havia o fato de que John continuava sem febre.

Redirecionando a atenção para o prontuário, David certificcou-se de que John tinha recebido a medicação para dormir. Achando que ela pudesse ter contribuído para a sua letargia, cancelou-a.

Também requisitou outra cultura de fezes e outra contagem sangüínea. Como requisição final, pediu que a temperatura de John fosse medida a cada hora, junto com a ordem expressa de ser chamado caso ela subisse acima do normal.

Depois de terminar a biópsia programada, Angela saiu do pequeno laboratório de patologia na suíte de cirurgia e foi para a sua sala. A manhã fora produtiva e agradável; conseguira evitar Wadley.

infelizmente sabia que teria de vê-lo em algum momento, e estava preocupada com o comportamento dele. Ainda que se considerasse uma pessoa otimista, tinha medo de que o problema com Wadley não se resolvesse espontaneamente.

Entrando na sala, percebeu de imediato que a porta de ligação com o escritório de Wadley estava aberta. O mais silenciosamente possível, foi até ela e começou a fechá-la.

- Angela! - gritou Wadley, fazendo-a encolher-se. Não percebera o quanto estava tensa. - Venha aqui. Quero mostrar uma coisa fascinante.

Angela suspirou e abriu relutantemente a porta. Wadley estava sentado diante de seu microscópio comum, não o de ensino.

- Venha - gritou ele de novo. Acenou para Angela e deu um tapinha no microscópio. - Dê uma espiada nesta lâmina.

Cautelosamente, Angela avançou pela sala, hesitando a alguns passos de distância. Sentindo sua relutância, Wadley empurrou a cadeira para trás, afastando-se da mesa. Angela parou junto ao microscópio e curvou-se para ajustar as oculares.

Antes que ela pudesse olhar, Wadley curvou-se para a frente e agarrou-a pela cintura. Puxou-a para o colo e travou os braços ao seu redor, gritando:

- Peguei você!

Angela soltou um guincho e lutou para se soltar. A impetuosidade inesperada do contato chocou-a.

Ela estava preocupada com a possibilidade de ele tocá-la sutilmente, e não com violência.

- Me solte! - exigiu irritada, tentando soltar os dedos dele e libertar-se do aperto.

- Não antes de você me deixar contar uma coisa - disse Wadley, rindo.

Angela parou de lutar. Tinha os olhos fechados. Estava tão humilhada quanto furiosa.

- Assim está melhor - disse Wadley.-Tenho boas notícias. A viagem está arranjada. Já consegui até as passagens. Vamos para o congresso de patologia em Miami, em novembro.

Angela abriu os olhos.

- Maravilhoso - falou com o máximo sarcasmo que conseguiu juntar. - Agora me solte!

Wadley liberou-a e Angela pulou do seu colo. Mas assim que ela se levantou, ele conseguiu agarrá-la pelo pulso.

- Vai ser fantástico - disse ele.-O tempo vai estar perfeito.! É a melhor época do ano em Miami. Vamos ficar na praia. Consegui quartos no Fontainebleau.

- Me solte! - exigiu Angela, com os dentes trincados.

- Ei! - Wadley inclinou-se para a frente e olhou-a - Está zangada? Desculpe se a assustei. Só queria fazer uma surpresa. - Em seguida soltou sua mão.

Angela estava fora de si, tamanha a sua raiva. Mordeu o lábio para evitar uma explosão e voltou depressa para a sua sala. Sentindo-se mortificada e aviltada, bateu a porta de ligação.

Em seguida esfregou o rosto com as duas mãos, tentando recuperar algum controle. Estava tremendo com a adrenalina que percorria seu corpo. Levou alguns minutos para se acalmar, para sua respiração voltar ao normal. Assim que conseguiu, pegou o casaco e saiu irritada da sala. Pelo menos o ataque idiota e inadequado de Wadley finalmente a pusera em ação.

Evitando o máximo possível a chuva que caía, saiu correndo do prédio principal do hospital para o Imaging Center. Assim que chegou sob a marquise, passou a andar rapidamente. Ao entrar, foi direto para a sala de Cantor.

Não tendo marcado o encontro antes, teve de esperar quase meia hora antes que o Doutor Delbert Cantor pudesse recebê-la. Enquanto esperava, acalmou-se consideravelmente e até mesmo começou a considerar se não teria alguma culpa pelo comportamento de Wadley. Perguntou-se se não poderia ter previsto, se não foi ingênua demais.

- Entre, entre - disse Cantor em tom agradável. Finalmente pôde recebê-la. Ele havia se levantado de sua escrivaninha desarrumada e viera buscá-la na porta. Precisou remover uma pilha de jornais de radiologia, ainda não abertos, para que ela pudesse se sentar, e ofereceu um refresco. Angela recusou educadamente. Ele sentou-se, cruzou as pernas e os braços e perguntou o que poderia fazer por ela.

Agora que estava cara a cara com o chefe do pessoal médico, Angela não se sentia encorajada. Todas as suas dúvidas com relação ao sujeito e à sua atitude para com as mulheres voltaram em torrente. O rosto dele assumira um meio riso, como se já houvesse decidido que o que quer que estivesse em sua mente feminina era de pouca importância.

- Para mim não é fácil - começou Angela. - De modo que, por favor, seja paciente comigo. Foi difícil vir aqui, mas não sei o que fazer.

Cantor encorajou-a a prosseguir.

- Vim porque estou sendo assediada sexualmente pelo Doutor Wadley.

Cantor descruzou as pernas e curvou-se para a frente. Angela sentiu-se encorajada por ele ao menos se mostrar interessado, mas em seguida percebeu que o meio riso permanecera.

- Há quanto tempo isso vem acontecendo? - perguntou Cantor.

- Provavelmente desde que cheguei - disse Angela, pretendendo elaborar a idéia, mas Cantor interrompeu-a.

- Provavelmente? - perguntou ele, com as sobrancelhas erguidas. - Quer dizer que não tem certeza?

- A princípio não era uma coisa aparente. Achei que ele estivesse agindo como um mentor especialmente entusiasmado, quase um pai. - Em seguida, ela passou a descrever o que acontecera desde o início; como a coisa começara parecendo um problema de limites. - Ele sempre se aproveitou de oportunidades para estar perto de mim e me tocar de um modo que parecesse inocente. Também insistia em me contar problemas familiares, coisa que eu achava inadequada.

- Esse comportamento que você está descrevendo pode estar dentro de uma estrutura de amizade e do papel de mentor.

- Concordo. Por isso não fiz nada. O problema é que a coisa foi adiante.

- Você quer dizer que mudou?

- Definitivamente. Há pouco tempo. - Em seguida, ela descreveu o incidente da mão na coxa, parecendo estranhamente embaraçada enquanto o fazia. Mencionou a mão passando nas suas nádegas e o súbito uso da palavra doçura.

- Pessoalmente não vejo nada de errado com a palavra doçura - disse Cantor. – Costumo usá-la o tempo todo com as garotas ali do Imaging Center.

Angela só pôde ficar olhando para o sujeito, enquanto imaginava o que as mulheres do Imaging Center pensavam do seu comportamento. Sem dúvida estava no lugar errado. Não poderia esperar uma audiência justa por parte de um médico cujas visões sobre as mulheres eram provavelmente mais arcaicas do que as de Wadley. Mesmo assim, achou que deveria terminar o que começara e descreveu o incidente mais recente: Wadley colocando-a no seu colo para anunciar a viagem a Miami.

- Não sei o que dizer sobre tudo isso - disse Cantor assim que ela terminou.-O Doutor Wadley deu a entender que o seu trabalho depende de favores sexuais?

Angela gemeu por dentro, achando que a compreensão que Cantor tinha sobre o assédio sexual estava limitada às circunstâncias mais explícitas.

- Não. O Doutor Wadley nunca deu a entender nada do tipo. acho muito perturbadora essa familiaridade não-desejada. Isso além dos limites da amizade num relacionamento profissional, mesmo do respeito mútuo. Torna o trabalho muito difícil.

- Talvez você esteja reagindo exageradamente. Wadley é um sujeito expansivo. Você mesma disse que ele é entusiasmado. Ao ver a expressão no rosto de Angela, Cantor acrescentou: Bom, é uma possibilidade.

Angela levantou-se. Forçou-se a agradecer-lhe pelo tempo despendido.

- Por nada - disse Cantor enquanto também se levantava. - Mantenha-me informado, jovem senhora. Enquanto isso, prometo que vou falar com o Doutor Wadley assim que tiver uma oportunidade.

Angela assentiu e caminhou para fora do escritório. Enquanto voltava à sua sala, não conseguiu evitar o pensamento de que ter procurado Cantor não iria ajudar em nada. No mínimo, tornara a situação ainda pior.

Durante toda a tarde, David correu para ver John Tarlow sempre que havia uma oportunidade.

Infelizmente, John não melhorou, Mas também não piorou, já que David se certificara de que a aplicação de soro compensasse a perda de líquido com os vómitos e a diarreia. Enquanto entrava no quarto dele, no fim da tarde, para a última visita do dia, tinha a esperança de pelo menos ver a condição mental de John melhorada. Mas isso não aconteceu. John estava tão apático quanto de manhã, talvez até um pouco mais. Pressionado, ainda conseguia dizer seu nome, e sabia que estava no hospital, mas não tinha a menor idéia do mês do ano.

De volta ao posto de enfermagem, David examinou os resultados que tinham chegado do laboratório, e a maioria estava normal. A contagem sangüínea mostrara um certo decréscimo no número de células brancas, mas, com a história de leucemia de John, David não tinha como interpretar essa queda. A cultura de fezes preliminar era negativa para bactérias patológicas.

- Por favor, me liguem se a temperatura do Senhor Tarlow subir ou se seus sintomas gastrointestinais piorarem - pediu às enfermeiras antes de sair do posto.

David e Angela se encontraram na portaria do hospital. Juntos correram até o carro. O tempo estava ficando pior. Não somente continuava chovendo, como tinha ficado muito mais frio.

No caminho de casa, Angela contou a David sobre o último incidente com Wadley e a reação de Cantor à sua reclamação.

David sacudiu a cabeça.

- Do Wadley eu nem quero saber. Ele é um imbecil. Mas esperava mais do Cantor. Especialmente em sua posição de chefe do pessoal médico. Mesmo sendo insensível, é de se esperar que tenha consciência da lei e da responsabilidade do hospital. Você acha que ele passou a última década dormindo e não ouviu falar das decisões legais relativas a assédio sexual?

Angela encolheu os ombros.

- Não quero mais pensar nisso. Como foi o seu dia? Continua pensando na morte de Marjorie?

- Nem tive tempo. Estou com John Tarlow no hospital, e ele está me deixando apavorado.

- O que há?

- O problema é exatamente esse: não sei. É isso que me apavora. Ele está ficando apático, bem parecido com o modo como Marjorie ficou. Está com várias disfunções gastrointestinais. Foi o que o trouxe para o hospital, e vem piorando. Não sei o que está acontecendo, mas meu sexto sentido está tocando todas as campainhas de alarme. Só que não sei o que fazer. Por enquanto só estou tratando dos sintomas.

- É o tipo de história que me deixa satisfeita por ter feito patologia.

Em seguida, David contou a Angela sobre sua visita a Werner Van Slyke.

- O cara foi mais do que grosseiro. Mal me deu atenção. Dá uma idéia da posição dos médicos no novo ambiente hospitalar. Agora o médico é só outro empregado, apenas trabalhando num departamento diferente.

- Fica difícil defender o paciente quando até o departamento de manutenção não faz sua parte.

- É exatamente o que eu acho - disse David.

Quando os dois chegaram em casa, Nikki ficou feliz por vê-los. Passara a maior parte do dia entediada, até que Arni parou em sua casa para contar sobre quem iria dar aulas para eles.

- É um homem - disse Arni a David. - E bem durão.

- Espero que seja um bom professor - disse David e sentiu outra pontada de culpa pelo falecimento de Marjorie.

Enquanto Angela começava a preparar a comida, David levou Arni para casa. Quando David voltou, Nikki foi recebê-lo na porta reclamando.

- Está frio na sala íntima.

David foi até a sala e bateu no aquecedor. Estava quentíssimo. Foi até as portas envidraçadas que levavam ao terraço e certificou-se de que estavam fechadas.

- Onde foi que você sentiu frio? - perguntou.

- Sentada no sofá - disse Nikki. - Venha experimentar. David acompanhou a filha e sentou- se ao seu lado. Imediatamente pôde sentir uma corrente fria na nuca.

- Você está certa - disse ele e verificou as janelas por trás do sofá. - Acho que descobri o que é. - Precisamos colocar janelas de tempestade.

- O que é janela de tempestade?

David lançou-se a uma explicação sobre perda de calor, correntes de convexão, isolamento e janelas de material térmico.

- Você a está confundindo - gritou Angela da cozinha. - Ela só perguntou o que é uma janela de tempestade. Por que não mostra uma?

- Boa idéia - disse David. - Venha. Aproveitamos para pegar lenha.

- Não gosto de vir aqui embaixo - disse Nikki enquanto os dois desciam ao porão.

- Porquê?

- Dá medo.

- Ora, não seja como a sua mãe - zombou David.-Já basta uma mulher histérica na casa.

Havia uma pilha de janelas de tempestade encostadas atrás da escada de granito. David afastou uma delas para que Nikki pudesse ver.

- Parece uma janela comum - disse ela.

- Mas não abre. Ela prende o ar entre esse vidro e o da janela que já existe. O ar serve como isolamento.

Enquanto Nikki inspecionava a janela, David percebeu uma coisa pela primeira vez.

- O que é, papai? - perguntou Nikki, notando que o pai estava distraído.

- Uma coisa que eu nunca tinha percebido antes. - David estendeu a mão e passou pela parede que formava a parte de trás da escada. - São blocos de concreto.

- O que são blocos de concreto?

Preocupado com a descoberta, David ignorou a pergunta de Nikki.

- Vamos afastar as janelas de tempestade. - David levantou a janela que estava segurando e levou-a para a parede do alicerce. Nikki levantou a que estava atrás.

- Essa parede é diferente do resto do porão - disse David depois que a última janela fora removida.-E não parece ser muito antiga. Fico imaginando por que ela está aqui.

- Do que você está falando? - perguntou Nikki.

David mostrou que os degraus eram feitos de granito. Em seguida levou-a para trás da escada e mostrou os blocos. Expliccou que eles deviam estar encobrindo algum tipo de depósito triangular.

- E o que tem nele? David encolheu os ombros.

- Não faço idéia.-Em seguida disse: - Por que não damos uma espiada? Talvez seja um tesouro.

- Verdade?

David pegou a marreta que era usada junto com uma cunha para rachar lenha e trouxe-a para a base da escada.

Exato na hora em que David levantava a marreta, Angela gritou perguntando que travessura eles estavam fazendo. David baixou a marreta e encostou um dedo nos lábios. Em seguida gritou, dizendo que dentro de um minuto subiriam com a lenha.

- Vou estar lá em cima, tomando um banho - gritou Angela - Depois disso vamos jantar.

- Certo - gritou David de volta. Em seguida, disse Nikki: - Ela pode não gostar de saber que a gente arrebentou um pedaço da casa.

Nikki deu um risinho.

David esperou um tempo suficiente para que Angela chegasse ao segundo andar, antes de pegar de novo a marreta. Depois de dizer para Nikki proteger os olhos, arrebentou um pedaço de um bloco perto do alto da parede, criando um pequeno buraco.

- Corra lá em cima e pegue uma lanterna - disse David. O cheiro de mofo saiu do espaço fechado.

Quando Nikki saiu, David usou a marreta para aumentar o buraco. Com um golpe final, um bloco inteiro se soltou e David arrancou-o da parede. Nesse momento, Nikki estava de volta com a lanterna. David pegou-a e olhou para dentro do espaço.

Seu coração pulou dentro do peito. Ele retirou a cabeça dentro do buraco tão depressa que arranhou a nuca na aresta de um bloco.

- O que você viu? - perguntou Nikki, não gostando da expressão no rosto do pai.

- Não é um tesouro. Acho que é melhor você chamar sua mãe. Enquanto Nikki estava longe, David alargou mais ainda o buraco. No momento em que Angela desceu a escada vestida com seu roupão de banho, David tinha desmantelado uma fila inteira de blocos de concreto.

- O que está acontecendo? - perguntou ela. - Você assustou Nikki.

- Dê uma olhadinha. - David entregou-lhe a lanterna e fez um gesto para que ela se aproximasse.

- É melhor não ser uma piada.

- Não é.

- Meu Deus! - A voz de Angela ecoou no pequeno espaço fechado.

- O que é? - perguntou Nikki. - Também quero ver. Angela retirou a cabeça do buraco e olhou para David.

- É um corpo. E obviamente está aí há algum tempo.

- Uma pessoa?-perguntou Nikki, incrédula. - Posso ver? Angela e David quase gritaram:

- Não!

Nikki começou a protestar, mas sua voz não tinha convicção.

- Vamos subir e acender a lareira-disse David. Em seguida, levou Nikki até a pilha de lenha e entregou-lhe um pedaço de madeira. Depois pegou um feixe e começou a levar para cima.

Enquanto Angela ligava para a polícia, David e Nikki acenderam o fogo. Nikki estava cheia de perguntas que David não podia responder.

Meia hora depois, o carro da polícia parava junto à casa dos Wilsons.

Dois policiais tinham atendido ao chamado de Angela.

- Meu nome é Wayne Robertson - disse o mais baixo dos dois. Estava vestido à paisana, com um casaco de sarja de algodão sobre uma camisa de flanela xadrez. Na cabeça trazia um boné de beisebol dos Red Sox. - Sou o chefe de polícia, e este é um dos meus auxiliares, Sherwin Morris.

Sherwin tocou a aba do chapéu. Alto e magro, estava vestido de uniforme. Carregava uma lanterna comprida, do tipo que usa quatro pilhas.

- O policial Morris parou para me pegar depois que a senhora telefonou – explicou Robertson. - Eu não estava de serviço, mas isso parecia importante.

Angela assentiu.

- Aprecio que o senhor tenha vindo.

Angela e David indicaram o caminho. Somente Nikki ficou em cima. Robertson pegou a lanterna com Morris e enfiou a cabeça no buraco.

- Cacete! É o velhote. Robertson encarou os Wilsons.

- Sinto muito isso ter acontecido com vocês. Mas reconheço a vítima, a despeito de ele estar com a aparência pior, depois de tanto tempo. Seu nome é Dennis Hodges. Na verdade, esta casa era dele, como vocês provavelmente sabem.

Os olhos de Angela encontraram os de David, e ele estremeceu. Sua nuca ficou arrepiada.

- Temos de derrubar o resto da parede para poder remover o corpo – prosseguiu Robertson. - Vocês têm alguma restrição quanto a isso?

David disse que não.

- Não é preciso chamar um perito médico? - perguntou Angela. Com seu interesse em medicina legal, sabia que era normal chamar um perito médico em qualquer caso de morte suspeita. Era um caso assim.

Robertson olhou Angela durante alguns instantes, tentando pensar em algo para dizer. Não gostava que ninguém dissesse como fazer seu trabalho, especialmente uma mulher. O único problema é que Angela estava certa. E agora que fora lembrado, não poderia ignorar isso.

- Onde fica o telefone? - perguntou.

- Na cozinha - disse Angela.

Nikki teve de ser arrancada do telefone. Estivera ligando para Caroline e Arni, com a notícia empolgante sobre o encontro de um cadáver no porão.

Assim que o perito médico foi chamado, Robertson e seu colega passaram a remover a parede de blocos de concreto.

David trouxe uma extensão elétrica e uma lâmpada para ajudá-los no trabalho. O acréscimo na iluminação também permitiu uma visão melhor do corpo. Apesar de estar bem preservado, havia alguma esqueletização na parte inferior do rosto. Parte dos maxilares e a maioria dos dentes estavam ostentosamente expostas. A parte superior do rosto parecia surpreendentemente intacta. Os olhos estavam arregalados, de um modo assustador. No centro da testa, junto à raiz dos cabelos, havia uma área afundada, coberta por musgo verde.

- Aquelas coisas no canto parecem sacos de cimento vazios -disse Robertson, que usava o facho da lanterna como apontador. -E ali está a colher de pedreiro. Droga, ele está com tudo aí dentro. Talvez tenha sido suicídio.

David e Angela se entreolharam com o mesmo pensamento: ou Robertson era o pior detetive do mundo ou um devoto do humor negro.

- O que serão esses papéis?-perguntou Robertson, dirigindo a luz para várias folhas espalhadas no fundo do túmulo improvisado.

- Parecem cópias xerox - disse David.

- Olha só - disse Robertson apontando para uma ferramenta parcialmente escondida sob o corpo. Parecia uma alavanca chata.

- O que é? - perguntou David.

- Um pé-de-cabra - disse Robertson. - Uma ferramenta de uso geral, utilizada principalmente em demolição.

Nikki gritou lá de cima, dizendo que o perito médico havia chegado. Angela subiu para recebê-lo.

O Senhor Tracy Cornish era um sujeito magro, de altura mediana, com óculos de aro metálico. Carregava uma maleta de médico antiga, de couro. Angela se apresentou e disse que era patologista no Hospital Comunitário de Bartlet. Perguntou se o Doutor Cornish tinha formação como legista. Ele admitiu que não, e explicou que tinha o cargo de perito médico do distrito como complementação ao serviço no seu consultório.

- Mas venho fazendo isso há um bocado de anos - falou.

- Só perguntei porque tenho interesse em medicina legal - disse Angela. Ela não pretendia embaraçar o sujeito.

Angela levou o Doutor Cornish até o túmulo. Ele ficou de pé, olhando a cena por alguns minutos.

- Interessante - disse por fim. - O corpo está particularmente bem preservado. Há quanto tempo ele havia desaparecido?

- Cerca de oito meses - disse Robertson.

- Isso mostra o que faz um lugar frio e seco - disse o DOUTOR Cornish.-Esse túmulo parece um depósito de alimentos. Está seco mesmo com toda essa chuva.

- Por que os ossos estão aparecendo na mandíbula? - perguntou David.

- Roedores, provavelmente - respondeu o Doutor Cornish enquanto se curvava e abria a maleta.

David estremeceu. Sua boca ficou seca com o pensamento de roedores comendo o cadáver. Olhando para Angela, percebeu que ela estava recebendo essa informação ao pé da letra, fascinada pelos procedimentos.

A primeira coisa que o Doutor Cornish fez foi tirar várias fotografias, inclusive em doses detalhadas. Em seguida, colocou luvas de borracha e começou a retirar os objetos do túmulo, colocando em sacos plásticos destinados a evidências. Quando chegou aos papéis, todos se juntaram para olhar. O Doutor Cornish certificou-se que ninguém os tocasse.

- São partes de registros médicos do Hospital Comunitário de Bartlet - disse David.

- Aposto que essas manchas são sangue - disse o Doutor Cornish, apontando para grandes áreas marrons nos papéis. Colocou todos os papéis num saco plástico, lacrou-o e etiquetou.

Quando todos os objetos tinham sido retirados, o Doutor Cornis voltou sua atenção para o corpo. A primeira coisa que fez foi procurar nos bolsos. Imediatamente encontrou a carteira com dinheiro dentro. Também havia vários cartões de crédito em nome de Dennis Hodges.

- Bom, não foi assalto - disse Robertson.

Em seguida o Doutor Cornish removeu o relógio de Hodges, que ainda funcionava. A hora estava certa.

- Um fabricante de baterias deveria usar isso num daqueles comerciais idiotas - sugeriu Robertson.

Morris gargalhou, até que ninguém mais estava rindo.

Então o Doutor Cornish tirou de sua bolsa a tiracolo um saco para o corpo e pediu que Morris o ajudasse a colocar Hodges dentro.

- Que tal colocar sacos nas mãos dele? - sugeriu Angela. O Doutor Cornish pensou durante um instante e em seguida assentiu.

- Boa idéia.

Depois pegou sacos de papel em sua bolsa e enfiou neles as mãos de Hodges. Feito isso, ele e Morris colocaram o corpo no saco e fecharam o zíper.

Quinze minutos depois, os Wilsons viram o carro de polícia e o furgão do perito fazendo a curva da entrada e desaparecendo na noite.

- Todo mundo com fome? - perguntou Angela. Nikki e David grunhiram.

- Eu também não - admitiu Angela. - Que noite! Foram todos até a sala íntima, onde David avivou o fogo e colocou mais lenha. Nikki virou-se para a televisão. Angela sentou-se para ler.

Às oito horas, os três decidiram que poderiam comer alguma coisa, afinal de contas. Ângela requentou o jantar que tinha feito, enquanto David e Nikki colocavam a mesa.

- Toda família tem um esqueleto no armário - disse David quando estavam pelo meio da refeição. - O nosso simplesmente estava no porão.

- Não acho isso muito engraçado - disse Angela.

Nikki disse que não tinha entendido, e Angela teve de explicar o sentido figurado. Depois de entender, Nikki também não achou engraçado.

David não gostou da descoberta horripilante no porão. Estava particularmente preocupado com o efeito potencial sobre Nikki. Esperava que colocar um pouco de humor na situação poderia aliviar o clima tenso. Mas mesmo ele teve de admitir que a piada era de mau gosto.

Depois do tratamento respiratório de Nikki, foram todos para a cama. Ainda que não servisse como antídoto, dormir parecia a melhor alternativa. Nikki e David estavam com sono, mas Angela não, e enquanto deitava na cama tornou-se tremendamente cônscia de todos os sons que a casa fazia. Nunca tinha percebido o quanto ela era barulhenta, particularmente numa noite com vento e chuva. No fundo do porão, ouvia o aquecedor a óleo funcionando. Havia até mesmo um zumbido intermitente, muito grave, vindo da entrada do aquecimento para o quarto principal.

Uma súbita série de batidas fez com que Angela pulasse, sentando ereta.

- O que foi isso? - sussurrou nervosa e deu uma sacudida em David.

- O que foi o quê?-perguntou David, ainda meio dormindo. Angela disse para ele ouvir. As batidas aconteceram de novo.

- Essas batidas.

- São as venezianas batendo contra a casa. Pelo amor de Deus, acalme-se.

Angela se recostou no travesseiro, mas tinha os olhos arregalados. Estava com menos sono ainda do que quando viera para cama.

- Não gosto do que vem acontecendo por aqui - falou.

David gemeu.

- Verdade - disse Angela. - Não consigo acreditar que tanta coisa tenha mudado em tão poucos dias. Eu estava com medo de que isso acontecesse.

- Está falando especificamente sobre encontrar o corpo Hodges?

- Estou falando de tudo. A mudança no tempo, Wadley me assediando, a morte de Marjorie, Kelley pressionando você, e agora um cadáver no porão.

- Só estamos sendo eficientes - disse David. - Estamos tirando de uma vez todas as coisas ruins do caminho.

- Estou falando sério e...- começou a dizer Angela, mas foi interrompida por um grito de Nikki.

Num átimo, David e Angela estavam fora da cama e disparando pelo corredor central. Entraram no quarto de Nikki. Ela estava sentada na cama, com um olhar perplexo. Ferrugem estava ao lado igualmente confuso.

Fora um pesadelo sobre um fantasma no porão. Angela sentou-se de um lado da cama e David, do outro. Juntos consolaram a filha mesmo não sabendo muito bem o que dizer. O problema é que o pesadelo de Nikki fora uma mistura de sonho e realidade.

David e Angela fizeram o máximo para confortar Nikki. No final, chamaram-na para dormir na cama deles. Nikki concordou e todos voltaram para o quarto principal. Depois de subir na cama eles se acomodaram. Infelizmente, David terminou dormindo na beiradinha, porque convidar Nikki significava convidar Ferrugem também.

 

QUINTA-FEIRA, 21 DE OUTUBRO

O TEMPO NÃO ESTAVA muito melhor na manhã seguinte. A chuva tinha parado, mas baixara um nevoeiro tão denso que era como se estivesse chovendo. Não havia qualquer brecha na pesada cobertura de nuvens e parecia ainda mais frio do que na véspera.

Enquanto Nikki fazia a drenagem postural, o telefone toccou. David atendeu. Considerando a hora da manhã, estava com receio de que a chamada tivesse a ver com John Tarlow. Mas não tinha. Era do escritório do promotor público requisitando permissão para mandar um assistente examinar a cena do crime.

- Quando? - perguntou David.

- Agora seria muito inconveniente? Temos uma pessoa nas imediações.

- Nós estaremos aqui por mais uma hora, mais ou menos.

- Perfeito.

Cumprindo a palavra, uma assistente do promotor público chegou em quinze minutos. Era uma mulher agradável, com cabelos vermelho-fogo. Estava vestida de modo conservador, com um conjunto azul-escuro.

- Desculpe incomodá-los tão cedo - disse a mulher e se apresentou como Elaine Sullivan.

- Tudo bem - disse David segurando a porta aberta.

David levou-a até o porão e acendeu a lâmpada ligada à extensão, para iluminar a tumba vazia. A mulher pegou uma máquina fotográfica e tirou algumas fotos. Em seguida se curvou e passou uma unha no chão do túmulo. Angela desceu a escada e olhou por cima do ombro de David.

- Soube que a polícia municipal esteve aqui ontem à noite - disse Elaine.

- A polícia municipal e o perito médico do distrito - informou David.

- Acho que vou recomendar que sejam chamados os investigadores da polícia estadual, especializados em cenas de crime. Espero que isso não seja um incômodo.

- Acho a idéia boa - disse Angela.-Não creio que a polícia municipal esteja acostumada com investigações de homicídio.

Elaine assentiu, diplomaticamente evitando comentários.

- Temos de ficar aqui quando chegar o pessoal da polícia estadual? - perguntou David.

- Isso é com vocês. Algum investigador pode querer falar com vocês em algum momento. Quanto ao pessoal da cena do crime, porém, eles podem simplesmente aparecer e fazer o serviço.

- Eles virão hoje? - perguntou Angela.

- Virão o mais breve possível. Provavelmente esta manhã.

- Vou dar um jeito para Alice estar aqui - disse Angela.

David assentiu.

Pouco depois da saída da assistente do promotor, os Wilsons também se retiraram. Seria o primeiro dia de Nikki na escola, depois de ter ficado no hospital. Ela estava fora de si, de tanta excitação, e tinha trocado de roupa duas vezes.

Enquanto os pais a levavam até a escola, Nikki não conseguia falar de outra coisa a não ser do cadáver. Quando a deixaram, Angela sugeriu que ela evitasse comentar o incidente, mas sabia que o pedido era inútil: Nikki já tinha contado a Caroline e Arni, e sem dúvida eles já tinham passado a história adiante.

David engrenou o carro e eles partiram para o hospital.

- Estou preocupado com a situação do meu paciente esta manhã - disse ele. - Mesmo não tendo recebido nenhum telefonema.

- E eu estou preocupada em como enfrentar Wadley. Não sei se Cantor falou ou não com ele, mas, de qualquer modo, não vai ser agradável.

Com um beijo de boa sorte, David e Angela se separaram para os respectivos trabalhos.

David foi direto checar John Tarlow. Ao entrar no quarto, percebeu imediatamente que a respiração dele estava dificultosa. Não era bom sinal. David pegou o estetoscópio e deu uma sacudida no ombro de John. Queria que ele se sentasse. John mal reagiu.

O pânico tomou conta de David. Era como se seus piores medos se realizassem.

Rapidamente examinou o enfermo e logo descobriu que John estava desenvolvendo uma pneumonia geral.

David saiu do quarto e correu até o posto de enfermagem, gritando ordens para que John fosse transferido imediatamente para a UTI. As enfermeiras estavam no meio da passagem de plantão.!

- Não pode esperar até a gente terminar a reunião? - perguntou Janet Colburn.

- Não, droga! Quero que o levem imediatamente. E gostaria de saber por que não me chamaram. O Senhor Tarlow desenvolveu pneumonia bilateral.

- Ele estava dormindo confortavelmente na última vez que medi sua temperatura - disse a enfermeira da noite. - Nós deveríamos chamá-lo caso a temperatura dele subisse ou se os sintomas gastrointestinais piorassem. Nenhuma das duas coisas aconteceu.

David pegou o prontuário e abriu-o para ver o gráfico da temperatura. Tinha subido um pouquinho, mas não como ele esperaria depois de ter auscultado o sujeito.

- Vamos levá-lo para a UTI. E quero contagem sangüínea e uma chapa de pulmão.

Com eficiência elogiável, John Tarlow foi transferido para UTI, e logo David começou a olhar os resultados dos exames. A contagem de células brancas, que tinha estado baixa, descera Ainda mais, indicando que o sistema estava assolado pela pneumonia que se desenvolvera. Era o tipo de falta de resposta que se pode esperar de um paciente sob quimioterapia, mas David sabia que John não fazia quimioterapia há meses. Pior de tudo era a radiografia dos pulmões: confirmava uma extensa pneumonia bilateral.

Ajunta médica chegou logo, para examinar o paciente e verificar o prontuário. Ao terminar, afastaram-se da cama. O Doutor Mieslich confirmou que John não fazia nenhuma quimioterapia há bastante tempo.

- Como você explicaria a baixa contagem de células brancas? - perguntou David.

- Não sei dizer. Suponho que esteja relacionada à sua pneumonia. Precisamos de uma amostra de medula para descobrir, mas não recomendo agora, dada a infecção que ele está desenvolvendo. Além do mais, é uma questão acadêmica. Temo que ele esteja moribundo.

Era a última coisa que David desejava ouvir, mesmo tendo começado a esperá-la. Não conseguia acreditar que estava para perder outro paciente em sua breve carreira no Bartlet.

Virou-se para o Doutor Hasselbaum.

O Doutor Hasselbaum foi igualmente insensível e pessimista. Achava que John tinha desenvolvido uma pneumonia maciça com um tipo de bactéria particularmente letal e que, secundariamente, estava sofrendo um choque. Alertou para o fato de a pressão sangüínea de John estar baixa e os rins, funcionando mal.

- Não parece bem. O Senhor Tarlow parece ter defesas fisiológicas muito fracas, indubitavelmente devido à leucemia. Se o tratarmos, teremos de fazê-lo maciçamente. Eu tenho acesso a alguns agentes experimentais criados para ajudar a combater esse tipo de choque de endotoxina. O que você acha?

- Vamos fazer isso - disse David.

- Essas drogas são caras - disse o Doutor Hasselbaum.

- A vida de um homem está na balança.

Uma hora e quinze minutos depois, quando o tratamento fora iniciado e não havia mais nada a fazer, David correu para o consultório. Outra vez, todos os lugares da sala de espera estavam ocupados. Alguns pacientes se encontravam de pé no corredor. Todos estavam chateados, até a recepcionista.

David respirou fundo e mergulhou em suas consultas. Nos intervalos entre os pacientes ligava para a UTI, perguntando sobre o estado de John. Todas as vezes lhe diziam que não havia qualquer mudança.

Além de seus pacientes marcados, várias semi-emergências fizeram aumentar a confusão.

Antes do sermão de Kelley, David teria mandado esses casos para a sala de emergência. Dois desses pacientes eram como velhos amigos: Mary Ann Schiller e Jonathan Eakins.

Apesar de estar meio desconfiado pelo modo como havia progredido o caso de Marjorie Kleber e, agora, o de John Tarlors, David sentiu-se compelido a hospitalizar Mary Ann e Jonathan.

Simplesmente não se sentiu confortável em tratá-los como pacientes ambulatoriais. Maryann apresentava um caso extremamente sério de sinusite e Jonathan estava com uma perturbadora arritimia cardíaca. Entregando-lhes guias de internação, David mandou-os para o hospital.

Duas outras pacientes em semi-emergência eram enfermeiras do turno da noite, do segundo andar.

David as havia encontrado várias vezes, quando fora chamado para emergências no hospital. As duas tinham a mesma reclamação: aparentemente síndromes gripais, consistindo em mal-estar geral, um pouco de febre e contagem de células brancas, além de problemas gastrointestinais, como cólicas, náuseas, vômitos e diarréia. Depois de examiná-las, David mandou-as para casa descansar e prescreveu uma terapia sintomática.

Quando teve um minuto de folga, perguntou à sua enfermeira Susan, se havia um surto de gripe no hospital.

- Que eu saiba, não - disse Susan.

O dia de Angela estava correndo melhor do que ela esperava. Não tivera nenhum entrevero com Wadley. Na verdade, nem mesmo o vira.

No meio da manhã, ligou para o chefe da perícia médica, Doutor Walter Dunsmore, depois de conseguir o seu número na lista de Burlington. Explicou que era patologista no Hospital Comunitário de Bartlet. Continuou falando sobre seu interesse no caso do DOUTOR Hodges. Acrescentou que chegara a pensar em fazer carreira em patologia legal.

Imediatamente o Doutor Dunsmore convidou-a para ir a Burlington um dia desses, visitar as instalações.

- Na verdade, por que não aparece e acompanha a autópsia de Hodges? Gostaria de tê-la aqui, mas devo avisar que, como a maioria dos patologistas legais, sou um professor frustrado.

- Para quando o senhor planeja a autópsia? - Angela achou que se pudesse ser adiada até o sábado, havia chance de ir.

- Está marcada para esta manhã, mas há alguma flexibilidade. Eu poderia fazê-la à tarde.

- É muito generoso de sua parte - disse Angela. - Infelizmente não sei o que meu chefe diria se eu saísse.

- Eu conheço Ben Wadley há anos - disse o Doutor Dunsmore. - Vou ligar para ele e resolver as coisas.

- Não tenho certeza se será uma boa idéia.

- Bobagem! Deixe por minha conta. Estou ansioso para conhecê-la.

Angela ia protestar mais, quando percebeu que o Doutor Dunsmore havia desligado. Colocou o fone no gancho. Não tinha idéia de qual seria a reação de Wadley ao telefonema de Dunsmore, mas imaginou que logo saberia.

Ficou sabendo antes do que esperava. Mal tinha desligado, o telefone tocou de novo.

- Estou preso aqui na sala de cirurgia - disse Wadley em tom gentil.-Acabo de receber um telefonema do chefe da perícia médica. Ele me disse que deseja que você vá assistir a uma autópsia.

- Eu acabei de falar com ele. Não tinha certeza de como o senhor reagiria.

Pela animação de Wadley, era óbvio que Cantor ainda não tinha conversado com ele.

- Acho uma ótima idéia - disse Wadley. - Minha opinião é que sempre que o perito pede um favor, nós fazemos. Não faz mal ficar do lado dele. Nunca se sabe quando vamos precisar de um favor em troca. Acho que você deve ir.

- Obrigada. Eu vou.

Angela desligou e fez uma chamada para David, para contar seus planos. Quando ele atendeu, sua voz parecia tensa e cansada.

- Você não parece bem - disse Angela. - O que há de errado?

- Não pergunte. Conto mais tarde. Agora estou atrasado de novo e os nativos estão inquietos.

Angela falou rapidamente sobre o convite do perito e disse que recebera permissão para ir.

David desejou que se divertisse e em seguida desligou.

Pegando o casaco, Angela saiu do hospital. Antes de partir para Burlington, foi em casa trocar de roupa. Enquanto se aproximava ficou surpresa ao ver um furgão da polícia estadual estacionado em frente. Sem dúvida, os investigadores da cena do crime ainda estavam ali.

Alice Doherty recebeu-a na porta, preocupada de que houvesse algo errado. Ângela tranqüilizou-a de imediato. Em seguida perguntou sobre o pessoal da polícia estadual.

- Foram todos para baixo. Estão lá há horas.

Angela desceu ao porão para falar com os técnicos. Havia três deles. Tinham bloqueado toda a área atrás da escada com fitas de isolamento e iluminado tudo com refletores. Um deles estava usando técnicas avançadas na tentativa de conseguir impressões digitais nas pedras. Outro remexia cuidadosamente a poeira do chão do túmulo. O terceiro usava um instrumento manual, chá luma-light, procurando fibras e marcas latentes. O único que se apresentou era o que trabalhava com impressões digitais. Seu nome era Quillan Reilly.

- Desculpe por estarmos demorando tanto - disse ele.

- Não tem importância.

Angela observou-os trabalhando. Não falavam muito, cada qual absorvido em sua tarefa. Ela estava para sair quando Quillan perguntou se o interior da casa fora repintado nos últimos meses.

- Acho que não - disse Angela. - Nós, certamente, pintamos.

- Bom - disse Quillan. - A senhora se importaria se voltássemos esta noite, para usar um pouco de luminol nas paredes lá em cima?

- O que é luminol?

- É uma substância química usada para encontrar marcas de sangue.

- A casa foi limpa - disse Angela, um tanto ofendida por eles pensarem que algum sangue ainda fosse detectável.

- Mesmo assim, vale a pena olhar - disse Quilllan.

- Bom, se o senhor acha que ajuda. Nós queremos cooperar.

- Obrigado, senhora.

- O que aconteceu com as evidências levadas pelo perito médico? Estão com a polícia local?

- Não, senhora. Estão conosco.

- Certo.

Dez minutos depois, Angela estava a caminho. Em Burlington, encontrou facilmente o escritório do perito médico.

- Estávamos esperando por você - disse o Doutor Dunsmore quando Angela foi levada ao seu escritório moderno e parcamente mobiliado. Ele fez com que ela se sentisse imediatamente à vontade. Até mesmo pediu para chamá-lo de Walt.

Dentro de minutos, Angela estava vestida com roupas cirúrgicas. Enquanto colocava máscara, gorro e óculos, sentiu uma onda de empolgação. Para ela, a sala de autópsia sempre fora uma arena de descobertas.

- Acho que você vai achar que somos muito profissionais aqui - disse Walt assim que eles se encontraram diante da sala de autópsias. - Antigamente, fora das grandes cidades se fazia o tipo de patologia legal que era vista como piada. Este não é mais o caso.

Dennis Hodges se encontrava sobre a mesa de autópsia. As radiografias tiradas já estavam presas à caixa de luz. Walt apresentou o assistente a Angela, explicando que Peter iria auxiliá-los.

Primeiro examinaram as radiografias. A fratura penetrante no topo da testa era certamente um ferimento mortal. Também havia uma fratura linear na nuca. Além disso, havia outras fraturas na clavícula esquerda, no cúbito direito e no rádio esquerdo.

- Não há dúvida de que foi homicídio - disse Walt. - Parece que o coitado do velho travou uma luta tremenda.

- O chefe de polícia local sugeriu suicídio - disse Angela.

- Ele só podia estar brincando.

- Na verdade, não sei. Ele não me impressionou, nem ao meu marido, pela sua capacidade investigativa. É possível que nunca tenha lidado com um homicídio.

- Provavelmente não. Outro problema é que algumas pessoas que cuidam da lei nesses lugares nunca tiveram uma formação muito boa.

Angela descreveu o pé-de-cabra que fora encontrado com corpo. Usando uma régua para determinar o tamanho da fratura penetrante, e depois examinando o próprio ferimento, determinaram que o pé-de-cabra poderia ter sido a arma do crime.

Em seguida voltaram suas atenções para as mãos ensacadas.

- Adorei quando vi os sacos de papel - disse Walt. – Há muito tempo venho tentando convencer meus peritos distritais de usá-los nesse tipo de caso.

Angela assentiu, secretamente satisfeita por ter sugerido isso ao Doutor Cornish na noite anterior.

Walt retirou cuidadosamente as mãos de Hodges de dentro dos sacos e usou uma lente para examinar sob as unhas.

- Há um pouco de material estranho sob algumas delas - disse Walt. Em seguida ele recuou para que Angela pudesse olhar.

- Alguma idéia do que seja?

- Teremos de esperar pelo microscópio - disse Walt, revendo cuidadosamente o material e colocando-o em frascos especiais. Cada um foi etiquetado de acordo com o dedo do qual vinha.

A autópsia propriamente dita ocorreu depressa; foi como se Angela e Walt fizessem parte de uma equipe antiga. Havia patologia suficiente para tornar as coisas interessantes e Walt, como prometera, gostava de seu papel didático. Hodges tinha uma arteriosclerose significativa, um pequeno câncer no pulmão e uma cirrose avançada do fígado.

- Acho que ele gostava de um uísque - disse Walt. Terminada a autópsia, Ângela agradeceu a Walt por sua hospitalidade e pediu para ser informada sobre o caso. Walt encorajara a ligar sempre que quisesse.

No caminho de volta ao hospital, Angela sentia-se melhorque há dias. Fazer a autópsia fora uma boa distração. Estava feliz por Wadley ter permitido que ela fosse.

Ao chegar no estacionamento, não conseguiu encontrar uma vaga na área reservada perto da entrada dos fundos. Teve de colocar o carro no final do estacionamento de cima. Sem guarda-chuva, ficou bastante molhada antes de conseguir entrar.

Foi direto à sua sala. Nem bem pendurara o casaco, quando a porta de ligação para a sala de Wadley foi aberta violentamente. Angela saltou. Wadley estava na passagem. Seu queixo quadrado estava tenso, os olhos estreitados, e seus cabelos brancos, em geral sempre bem penteados, se encontravam revoltos. Parecia furioso. Angela instintivamente deu um passo atrás e olhou para a porta que dava no corredor, pensando em fugir.

Wadley entrou na sala, indo direto até Angela e espremendo-a contra a mesa.

- Eu gostaria de uma explicação - rugiu ele. - Por que foi procurar Cantor, dentre todas as pessoas, com essa história absurda, essas acusações ridículas, doidas e sem base? Assédio sexual? Meu Deus, isso é absurdo.

Wadley parou, encarando Angela. Ela se encolheu, sem saber se deveria dizer alguma coisa. Não queria provocar o sujeito. Estava com medo de que ele lhe batesse.

- Por que não diz alguma coisa? - gritou Wadley.

Em seguida interrompeu seu ímpeto, subitamente percebendo que a porta para o corredor estava escancarada. Do lado de fora, os teclados das secretárias tinham emudecido. Wadley foi até a porta e bateu-a.

- Depois de todo o tempo e todo o esforço que empreguei com você, essa é a recompensa que obtenho - gritou.-Não creio que precise lembrar que você está em fase de experiência aqui. É melhor começar a andar na linha, caso contrário não receberá nenhuma recomendação minha.

Angela assentiu, sem saber o que fazer.

- Não vai dizer nada? - O rosto de Wadley estava a centímetros do de Angela. – Vai ficar aí, só balançando a cabeça?

- Sinto muito por termos chegado a este ponto - disse ela.

- É isso? - berrou Wadley. - Você mancha minha reputação com acusações sem fundamento e é só isso que consegue dizer? isso é calúnia, mulher, e vou lhe dizer uma coisa: eu poderia levá-la aos tribunais.

Tendo dito isso, Wadley girou nos calcanhares, entrou em sua sala e bateu a porta.

Angela soltou o ar dos pulmões enquanto lutava contra as lágrimas. Afundou na cadeira e sacudiu a cabeça. Era uma coisa injusta!

Susan enfiou a cabeça numa das salas de exame e disse a David que estavam ligando da UTI.

Temendo o pior, ele pegou o fone. A enfermeira da UTI disse que o Senhor Tarlow tivera uma parada cardíaca e que a equipe de ressuscitação estava trabalhando com ele.

David bateu o fone. Sentiu o coração saltar no peito e instantaneamente começou a suar frio.

Deixando a enfermeira e a recepcionista em estado de aflição, disparou para a UTI, mas já era tarde. Quando chegou, tudo estava terminado. O médico da sala de emergência, encarregado da equipe de ressuscitação, já tinha declarado John Tarlow como morto.

- É, não tinha jeito-disse o médico.-Os pulmões estavam cheios, os rins arruinados, e ele estava sem pressão sangüínea.

David assentiu, distraído. Olhou para o paciente, enquanto as enfermeiras da UTI desligavam o equipamento e o soro, para em seguida limpar a área. David foi até a bancada principal e sentou-se. Começou a imaginar se levava jeito para a medicina. Tinha problemas com essa parte do trabalho, e a repetição, longe de facilitar as coisas, tornava-as mais difíceis.

Os parentes de Tarlow chegaram e, como a família Kleber, foram compreensivos e gratos.

David aceitou as palavras gentis, sentindo-se um impostor. Não tinha feito nada por John. Nem mesmo sabia por que ele morrera. Sua história de leucemia não fora uma explicação real.

Mesmo sabendo da política do hospital, perguntou à família se poderiam autorizar uma autópsia. Por David, não havia problema em tentar. A família disse que iria pensar.

Deixando a área da UTI, David teve suficiente presença de espírito para checar Mary Ann Schiller e Jonathan Eakins. Queria certificar-se de que estivessem acomodados e com o tratamento iniciado. Queria particularmente ter certeza de que o cardiologista da CMV tinha visitado Eakins.

Infelizmente, descobriu algo que o fez parar. Mary Ann fora posta no quarto 206: o quarto que John Tarlow tinha deixado recentemente. Chegou a pensar em mandar removê-la, mas percebeu que estava sendo irracionalmente supersticioso. O que diria no departamento de internação? Que não queria nenhum paciente de novo no 206? Isso era ridículo.

David checou o soro de Mary Ann. Ela já estava recebendo o antibiótico. Depois de prometer que voltaria mais tarde, foi até o quarto de Jonathan. Ele também estava confortável e relaxado. Um monitor cardíaco fora instalado. Jonathan disse que o cardiologista viria logo.

Quando voltou ao seu consultório, Susan recebeu-o dizendo que Charles Kelley havia ligado.

- Ele quer vê-lo imediatamente. E enfatizou o imediatamente.

- Quantos pacientes estão esperando?

- Muitos - disse Susan. - Tente não demorar.

Com uma sensação de estar carregando o mundo nos ombros, David arrastou-se até o escritório da CMV. Não tinha certeza total do motivo para Charles Kelley querer vê-lo, mas podia adivinhar.

- Não sei o que fazer, David - disse Charles Kelley, assim que David chegou à sua sala, e sacudiu a cabeça.

David ficou maravilhado com a capacidade de interpretação do sujeito. Agora fazia o papel do amigo ferido.

- Tentei ser razoável com você, mas ou você é teimoso ou simplesmente não se importa com a CMV. Justamente um dia depois de eu falar sobre evitar consultas desnecessárias fora da CMV, você faz isso de novo com um paciente terminal. O que vou fazer com você? Compreende que os custos médicos têm de ser levados em conta? Você sabe que existe uma crise neste país?

David assentiu. Isso era verdade.

- Então por que isso é tão difícil? - Kelley começava a Parecer mais irado. - E não é somente a CMV que está chateada desta vez. É o hospital também. Helen Beaton me ligou há pouco, reclamando sobre as drogas caríssimas, de biotecnologia, que você prescreveu para esse paciente à beira da morte. É papo de heroísmo! O cara estava morrendo, até mesmo os outros médicos disseram isso. Ele tinha leucemia há anos. Compreende? É desperdício de dinheiro e de recursos.

Kelley tinha chegado a um tom febril. Seu rosto ficara vermelho. Mas então fez uma pausa e suspirou. Sacudiu a cabeça de novo, como se não soubesse o que fazer.

- Helen Beaton também reclamou que você requisitou autópsia - disse ele numa voz cansada. - As autópsias não fazem parte do contrato com a CMV, e você foi informado disso recentemente. Precisa ser razoável, David. Precisa me ajudar, ou... Kelley parou, deixando a frase incompleta no ar.

- Ou o quê? - David sabia o que Kelley estava sugerindo, mas queria que ele dissesse.

- Gosto de você, David. Mas preciso que me ajude. Tenho superiores a quem preciso prestar contas. Espero que você consiga compreender isso.

David sentiu-se mais deprimido do que nunca enquanto voltava para o consultório. A intrusão de Kelley o irritara, embora, de certo modo, ele tivesse razão. Dinheiro e recursos não deveriam ser jogados fora com pacientes terminais, quando poderiam ser bem gastos em outro lugar. Mas seria este o caso?

Mais confuso e desalentado do que nunca, abriu a porta do consultório. Foi confrontado por uma sala de espera cheia de pacientes infelizes, olhando irritados para os relógios e folheando revistas ruidosamente.

O jantar na casa dos Wilsons foi tenso. Ninguém falou. Estavam todos agitados. Era como se seu Shangri-la fosse assolado por uma tempestade.

Até Nikki tivera um mau dia. Estava chateada com o novo professor, Senhor Hart. As crianças já o tinham apelidado de Senhor Fú. Quando David e Angela chegaram em casa naquela tarde, descreveu-o como um velho cagão. Quando Angela censurou a linguagem, Nikki admitiu que a descrição fora feita por Arni.

O maior problema com o novo professor era que ele não permitira a Nikki avaliar seu nível adequado de exercícios na aula de educação física e nem que ela fizesse drenagem postural. A falta de comunicação levara a um confronto que tinha deixado Nikki constrangida.

Depois do jantar, David disse que era tempo de se alegrarem. Numa tentativa de melhorar a atmosfera, ofereceu-se para acender a lareira. Mas quando desceu ao porão, sofreu o choque de ver fitas amarelas, de isolamento da cena do crime, ao redor da escada do porão. Isso trouxe de volta a imagem horrível do cadáver de Hodges.

Ele pegou a lenha depressa e subiu correndo a escada. Normalmente, não era supersticioso nem se amendrontava fácil, mas nos últimos tempos isso já não correspondia tanto à realidade.

Depois de acender o fogo, David começou a falar entusiasmado sobre o inverno próximo e sobre os esportes que eles praticariam: esquiar, patinar e andar de trenó. Justo quando Angela e Nikki entravam no espírito que ele imaginara, luzes de faróis atravessaram a parede da sala íntima. David foi até a janela.

- É um furgão da polícia estadual. O que será que eles querem?

- Eu tinha esquecido por completo - disse Angela, começando a se levantar. - Quando a perícia esteve aqui, perguntou se poderia vir à noite, para procurar manchas de sangue.

- Manchas de sangue? Hodges foi morto há oito meses.

- Eles disseram que valia a pena tentar.

Os técnicos eram os mesmos três que tinham estado ali de manhã. Angela ficou impressionada com o tamanho da jornada de trabalho deles.

- Nós viajamos um bocado pelo estado - disse Quillan. Angela apresentou Quillan a David.

Quilan parecia ser o encarregado.

- Como funciona esse teste? - perguntou David.

- O luminol reage com qualquer ferro residual do sangue - disse Quillan. - Quando isso acontece, ele fica fluorescente.

- Curioso - disse David, mas continuou cético.

Os técnicos estavam ansiosos para fazer o teste e partir, de modo que Angela e David ficaram fora de seu caminho. Eles começaram na saleta dos fundos, colocando uma câmera num tripé. Em seguida, acenderam todas as luzes.

Borrifaram luminol nas paredes, usando um frasco de sprayí parecido com os de limpa-vidros. O frasco fazia um leve chiado a cada borrifo.

- Aqui tem um pouco - disse Quillan na escuridão. David e Angela curvaram-se para dentro da sala. Na parede havia uma fluorescência leve, em pequenas marcas.

- Não é bastante para uma foto - disse um dos outros técnicos.

Eles circularam pela sala, mas não encontraram outras positivas. Em seguida levaram a máquina fotográfica para a cozinha. Quillan perguntou se as luzes da sala de jantar e do corredor poderiam ser apagadas. Os Wilsons concordaram prontamente.

Os técnicos continuaram com seu trabalho. David, Angela e Nikki esperavam junto à porta.

De repente, partes da parede perto da saleta dos fundos começaram a ficar fluorescentes.

- Está fraco, mas temos um bocado aqui - disse Quillan. Vou continuar borrifando e você abre o obturador da câmera.

- Meu Deus - sussurrou Angela. - Estão a descobrir manchas de sangue na minha cozinha toda!

Os Wilsons podiam ver vagas silhuetas dos homens e ouvi-los enquanto eles se moviam pela cozinha. Aproximaram-se da mesa que fora deixada por Clara Hodges, e que os Wilsons usavam quando comiam na cozinha. De súbito, as pernas da mesa começaram a luzir de um jeito fantasmagórico.

- Acho que é o lugar do crime - disse um dos técnicos. Aqui, perto da mesa.

Os Wilsons ouviram a câmera sendo deslocada, e em seguida o clique alto do obturador se abrindo, seguido por um chiado longo do frasco de spray. Quillan explicou que as manchas de sangue eram tão fracas que o luminol tinha de ser borrifado continuamente.

Depois que os investigadores saíram, os Wilsons voltaram a sala íntima ainda mais deprimidos do que estavam antes. Não houve mais conversas sobre esquiar ou andar de trenó na colina atrás do celeiro.

Angela sentou-se junto à lareira, de costas para o fogo, e ficou olhando David e Nikki, que tinham desmoronado no sofá. Com a família à sua frente, uma poderosa onda protetora varreu Angela. Ela não gostava do que tinha acabado de saber: sua cozinha tinha restos de sangue de um assassinato brutal. Aquele era o cómodo que, de muitas maneiras, ela via como o coração de seu lar, e que ela julgava ter limpado. Agora sabia que fora dessacralizado pela violência. Na mente de Angela, isso era uma ameaça direta à família. De súbito, ela rompeu o silêncio tristonho.

- Talvez devêssemos nos mudar.

- Espere um pouco - disse David. - Sei que você está chateada; todos estamos. Mas não vamos ficar histéricos.

- Eu não estou histérica - contra-atacou Angela.

- Sugerir que temos de nos mudar por causa de um acontecimento infeliz que nada tem a ver conosco, e que ocorreu há quase um ano, não é nem um pouco racional.

- Aconteceu nesta casa.

- Só que esta casa está hipotecada até o telhado. Temos uma primeira e uma segunda hipotecas. Não podemos simplesmente ir embora por causa de um problema emocional.

- Então eu quero trocar as fechaduras. Um assassino esteve aqui.

- A gente nem costuma trancar as portas! - disse David.

- De agora em diante vamos trancar, e quero as fechaduras trocadas.

- Certo - disse David. - Vamos trocar as fechaduras.

Traynor estava num clima péssimo enquanto se dirigia ao Iron Horse Inn. O tempo parecia adequado ao seu temperamento: a chuva tinha voltado numa intensidade quase tropical.

Nem o seu guarda-chuva estava querendo cooperar. Vendo que não conseguia Bbri-lo, xingou e jogou-o no assento de trás. Decidiu que simplesmente teria de dar uma corrida até a porta do restaurante.

Beaton, Caldwell e Sherwood já estavam sentados num reservado. Cantor chegou logo depois. Enquanto os dois se sentavam, Carleton Harris, o garçom, apareceu para anotar os pedidos.

- Obrigado a todos por virem neste tempo inclemente - disse Traynor. - Mas acho que os eventos recentes exigem sessão de emergência.

- Isto não é uma reunião formal da diretoria executiva - reclamou Cantor. - Não vamos ser tão formais.

Traynor franziu a testa. Mesmo numa crise, Cantor insistia em irritá-lo.

- Será que posso continuar? - perguntou Traynor, encarando Cantor.

- Pelo amor de Deus, Harold, vá em frente! - disse Cantor.

- Como todos vocês sabem, o corpo de Hodges apareceu em circunstâncias bastante desagradáveis.

- A história atraiu a atenção da mídia - disse Beaton. Recebeu primeira página do Boston Globe.

- Estou preocupado com o efeito dessa publicidade potencialmente negativa sobre o hospital - disse Traynor. - Os assuntos macabros da morte de Hodges podem atrair ainda mais a imprensa. Aúltima coisa que desejamos é um punhado de repórteres de fora da cidade, fuçando tudo. Graças, em grande parte, a Helen Beaton, pudemos manter nosso estuprador mascarado fora das manchetes. Mas os repórteres da cidade grande podem intrometer-se nesse possível escândalo quando chegarem aqui. Com isso, e com a morte estranha de Hodges, podemos passar uma fase de péssima publicidade.

- Ouvi dizer, pelo pessoal de Burlington, que a morte de Hodges está sendo definitivamente colocada como homicídio - disse Cantor.

- Claro que será colocada como homicídio - rugiu Traynor. - O que mais poderia ser? O corpo do sujeito foi emparedado atrás de blocos de concreto. Para nós, o caso não é se foi homicídio ou não, mas o que podemos fazer para reduzir o impacto sobre a reputação do hospital.

Estou particularmente ansioso em saber como esses eventos irão afetar nosso relacionamento com a CMV.

- Não sei como a morte de Hodges pode ser um problema do hospital - disse Sherwood. - Não é como se nós o tivéssemos matado.

- Hodges dirigiu o hospital durante mais de vinte anos - disse Traynor. - Seu nome está intimamente associado ao Bartlet. Um monte de gente sabe que ele não estava satisfeito com o modo como estávamos levando as coisas.

- Acho que quanto menos o hospital se manifestar, melhor - disse Sherwood.

- Discordo - contrapôs Beaton. - Acho que o hospital deveria divulgar uma declaração lamentando a sua morte e enfatizando a grande dívida para com ele. A declaração deveria incluir condolências à sua família.

- Concordo - disse Cantor. - Ignorar a morte seria estranho.

- Concordo - disse Caldwell. Sherwood encolheu os ombros.

- Se todo mundo acha isso, estou de acordo.

- Alguém falou com Robertson? - perguntou Traynor.

- Eu - disse Beaton. - Ele não tem nenhum suspeito. - Fanfarrão como é, certamente diria, caso tivesse.

- Do jeito que se sentia com relação a Hodges, ele mesmo poderia ser um suspeito - observou Sherwood, rindo.

- Você também - disse Cantor.

- E você também - devolveu Sherwood.

- Isso não é uma disputa - disse Traynor.

- Se fosse, você seriaum dos principais concorrentes - disse Cantor para Traynor. - É de conhecimento geral como você se sentia com relação a Hodges depois que sua irmã cometeu suicídio.

- Calma aí - disse Caldwell. - A questão aqui é que ninguém se importa com quem cometeu o ato.

- Isso pode não ser totalmente verdade - disse Traynor. - A CMV pode se importar. Afinal de contas, esse negócio sórdido reflete mal no hospital e na cidade.

- E é por isso que eu acho que devemos divulgar uma declaração - disse Beaton.

- Alguém gostaria de fazer uma moção para votar?

- Por Deus, Harold, somos só cinco - disse Cantor. – Não temos de seguir um procedimento parlamentar. Diabo, todo mundo concorda!

- Certo - disse Traynor.-Todos concordam em que devemos fazer uma declaração formal como Beaton sugeriu?

Todos assentiram. Traynor olhou para Beaton.

- Acho que isso deve sair do seu departamento.

- Vou gostar de fazer - disse Beaton.

 

SEXTA-FEIRA, 22 DE OUTUBRO

FORA UMA NOITE turbulenta na casa dos Wilsons. Logo depois das duas da madrugada, Nikki começara a gritar de novo e tivera de ser acordada de outro pesadelo terrível. O episódio perturbara todo mundo, mantendo-os acordados durante mais de uma hora. David e Angela se arrependeram de ter deixado Nikki presenciar o trabalho da perícia, achando que isso podia ter contribuído para o seu terror.

Pelo menos o tempo amanheceu claro e luminoso. Depois de cinco dias de chuvas contínuas, o céu estava azul-claro e sem nuvens. Em lugar da chuva havia um frio enorme. A temperatura mergulhara para cinco graus negativos, deixando o chão coberto por uma geada excepcionalmente densa.

Houve pouca conversa enquanto os Wilsons se vestiam e tomavam o café da manhã. Todos evitavam referências ao teste com luminol, apesar de Angela ter se recusado a sentar-se à mesa da cozinha. Ela comeu o cereal de pé, encostada na pia.

Antes de Angela e Nikki saírem, David perguntou a Angela sobre o almoço. Ela disse que iria encontrá-lo na portaria ao meio-dia e meia.

No caminho para a escola, Angela tentou encorajar Nikki a dar mais uma chance ao Senhor Hart.

- É difícil para um professor assumir a turma de outro professor. Especialmente de alguém excepcional como Marjorie.

- Por que papai não conseguiu salvá-la?

- Ele tentou. Mas simplesmente foi impossível. Os médicos só podem fazer uma parte.

Ao chegarem diante da escola, Nikki saltou do carro e estava pronta para entrar, quando Angela chamou-a de volta.

- Você esqueceu a carta.

Angela entregou-lhe uma carta explicando os seus problemas e as suas necessidades.

- Lembre-se, se o Senhor Hart tiver alguma pergunta, deve ligar para mim ou para o Doutor Pilsner.

Angela sentiu-se aliviada ao ver que Wadley não estava nas proximidades quando chegou ao laboratório. Rapidamente mergulhou no trabalho, mas nem bem começara, quando uma das secretárias informou que o chefe da perícia médica estava no telefone.

- Tenho notícias interessantes - disse Walt. - O material que tiramos das unhas do Doutor Hodges era realmente pele.

- Parabéns - disse Angela.

- Já iniciei uma análise de DNA. Não é pele de Hodges. Aposto mil dólares como é do criminoso. Pode se tornar uma evidência fundamental, caso surja algum suspeito.

- O senhor já encontrou esse tipo de evidência antes?

- Sim. Não é raro em lutas mortais encontrar restos da pele do atacante sob as unhas da vítima. Mas tenho de admitir que este caso representa o intervalo mais longo entre o crime e a descoberta do corpo. Se pudermos associar isso a algum suspeito, poderá valer a pena escrever um artigo para uma revista científica.

Angela agradeceu-lhe por mantê-la informada.

- Quase ia esquecendo - disse Walt. -Encontrei uma porção de partículas de carvão nas amostras de pele. É estranho. Como se o assassino tivesse se arranhado numa lareira ou num fogão a lenha durante a luta. De qualquer modo, achei curioso, e isso pode ajudar aos investigadores da cena do crime.

- Temo que isso possa apenas confundi-los - disse Angela. - Ela explicou sobre o teste com luminol feito na noite anterior. As manchas de sangue não estavam perto de uma lareira ou fogão. Talvez o assassino tenha se sujado de carvão antes, em outro lugar.

- Duvido - disse Walter.-Não havia inflamação, só alguns glóbulos vermelhos de sangue. O carvão tinha de ser da mesma época da luta.

- Talvez Hodges tivesse carvão sob as unhas - sugeriu Angela.

- É uma boa idéia. O único problema é que o carvão está igualmente distribuído nas amostras de pele.

- É um mistério. Especialmente porque não combina com o que a perícia encontrou.

- Acontece o mesmo em qualquer mistério - disse Walt. - Para resolver, é necessário ter todos os fatos. Obviamente, estamos perdendo alguma peça crucial de informação.

Depois de ver negada a oportunidade de andar de bicicleta durante toda uma semana, David adorou o passeio de casa ao hospital. Aproveitando o tempo, pegou um caminho ligeiramente mais longo do que o usual, mas muito mais bonito.

A animação proporcionada pelo ar frio e limpo e pela visão dos bosques cobertos de geada clareara a mente de David. Durante alguns minutos, aliviou-se da angústia pelos recentes fracassos médicos. Ao entrar no hospital, sentiu-se melhor do que há vários dias. O primeiro paciente que visitou foi Mary Ann Schiller.

Infelizmente, Mary Ann não estava desperta e alegre. David teve de acordá-la, e enquanto a examinava, ela voltou a cair no sono. Começando a sentir-se um pouco preocupado, David acordou-a de novo. Perguntou qual era a sensação quando ele batia sobre seus pulmões.

Com uma voz sonolenta, ela disse que parecia haver menos desconforto, mas não tinha certeza.

Em seguida, David auscultou seu peito com o estetoscópio, e enquanto ele se concentrava nos sons da respiração, ela mais uma vez caiu no sono. David deixou que ela se recostasse nos travesseiros. Olhou para o rosto pacífico; era um contraste agudo com o estado mental dele. A sonolência era uma coisa alarmante.

David foi até o posto de enfermagem verificar o prontuário de Mary Ann. A princípio, sentiu-se um pouco melhor, vendo que a febre baixa que ela tivera no dia anterior continuava sem mudanças. Mas a apreensão cresceu quando ele leu as anotações das enfermeiras e soube que haviam aparecido sintomas gastrointestinais durante a noite.

David não conseguia avaliar o motivo desses sintomas. Nem tinha certeza de como agir.

Como a sinusite parecia ligeiramente melhor, ele não alterou os antibióticos, mesmo havendo uma pequena possibilidade de que eles estivessem causando os problemas gastrointestinais. Mas e quanto à sonolência? Como precaução cancelou a medicação opcional com sonífero, como fizera com John Tarlow.

Chegando ao quarto de Jonathan Eakins, o estado relativamente animado de David voltou.

Jonathan estava expansivo. Sentia-se melhor, e disse que o monitor cardíaco soltava bipes tão regulares quanto um metrônomo, sem a menor sugestão de irregularidade.

David pegou o estetoscópio e auscultou o peito de Jon. Ficou satisfeito ao constatar que os pulmões estavam perfeitamente limpos. Não se surpreendeu com a melhora rápida do paciente. Na tarde anterior, passara várias horas conversando com o cardiologista sobre o caso.

O cardiologista dera certeza de que não haveriam problemas com o coração.

Os outros pacientes de David que estavam no hospital mostravam-se tão bem quanto Jonathan. Ele conseguiu passar rapidamente de um a outro, até mesmo dando alta a alguns. Ao terminar sua ronda, foi para seu consultório, feliz por chegar cedo. Depois das experiências dos últimos dias, prometera a si mesmo fazer o máximo para não se atrasar de novo.

Enquanto a manhã progredia, David permaneceu agudamente cônscio do tempo gasto com cada paciente. Sabendo que sua produtividade estava sendo monitorada, tentou manter cada consulta num tempo curto. Apesar de não se sentir bem com isso, achava não ter muita escolha. A ameaça implícita de Kelley de demiti-lo tinha-o abalado. Com a dívida que tinham assumido, a família não poderia se dar ao luxo de que ele ficasse sem emprego.

Por ter começado cedo, David pôde manter-se adiantado a manhã inteira. Quando duas enfermeiras do segundo andar ligaram pedindo para serem atendidas como semi-emergências, David pôde recebê-las no momento em que elas chegaram à porta.

Ambas tinham sintomas parecidos com gripe, idênticos aos das duas outras que ele atendera. David tratou-as do mesmo modo: recomendando repouso e terapia sintomática para os problemas gastrointestinais.

Com tempo suficiente para atender a outras questões, David pôde dar um pulo no consultório do Doutor Pilsner. Disse ao pediatra que já estava vendo alguns casos de gripe, e perguntou sobre a vacina contra gripe para Nikki.

- Ela já tomou - disse o Doutor Pilsner. - Ainda não tive nenhum caso de gripe, mas não espero ter para depois começar a vacinar, especialmente os meus pacientes com fibrose cística.

David também quis ouvir sua opinião quanto ao uso de antibióticos profiláticos para Nikki. O pediatra disse que não era a favor. Achava melhor esperar até que o estado de Nikki sugerisse a necessidade deles.

David terminou com seus pacientes da manhã antes do meio-dia, e teve tempo até mesmo para ditar algumas cartas antes de encontrar Angela na portaria do hospital.

- Com um tempo tão bonito, o que você acha de irmos à cidade almoçar no diner? - sugeriu. Ele achava que um pouco de ar fresco seria bom para ambos.

- Eu ia sugerir a mesma coisa. Mas vamos indo. Quero parar na delegacia e descobrir como eles pretendem fazer a investigação do caso Hodges.

- Não acho uma boa idéia.

- Por que não?

- Não tenho muita certeza - admitiu David. - Intuição, acho. E a polícia municipal não me inspirou muita confiança. Para dizer a verdade, tive a impressão de que eles não estão lá muito interessados em investigar o caso.

- É por isso que eu quero ir. Quero ter certeza de que eles sabem que estamos interessados. Vamos, me dê uma força!

- Se você insiste... - disse David com relutância.

Compraram sanduíches de atum e foram comê-los nos degraus do mirante. Apesar da temperatura ter estado abaixo de zero durante a manhã, o sol aquecera o ar até uns agradáveis vinte graus.

Depois de terminar o lanche, foram até a delegacia. Era uma estrutura simples de tijolos, com dois andares, junto ao parque da cidade e logo em frente à biblioteca.

O policial da recepção foi gentil. Depois de uma rápida chamada telefônica, levou David e Angela por um corredor de madeira que rangia até a sala de Wayne Robertson. Robertson convidou a entrar e apressadamente retirou jornais e sacos de biscoitos que estavam sobre duas cadeiras de metal. Quando David e Angela estavam sentados, ele recostou seu traseiro avantajado na mesa também de metal. Cruzou os braços e sorriu. A despeito de haver luz solar direta na sala, o chefe de polícia estava usando óculos espelhados estilo aviador.

- Fico satisfeito por terem aparecido - falou, assim que David e Angela se acomodaram. Ele tinha um ligeiro sotaque parecido com a fala arrastada do Sul. - Sinto muito por ter invadido sua casa. Eu gostaria de me desculpar por ter atrapalhado sua noite.

- Não se desculpe. Nós apreciamos o seu trabalho - disse David.

- O que posso fazer por vocês?

- Viemos oferecer nossa cooperação - disse Angela.

- Bom, só podemos agradecer. - Robertson deu um sorriso largo, revelando dentes quadrados.

- Nós dependemos da comunidade. Sem o seu apoio, não poderíamos realizar nosso trabalho.

- Queremos que o assassinato de Hodges seja resolvido - disse Angela. - Queremos ver o assassino atrás das grades.

- Bom, sem dúvida vocês não estão sozinhos - respondeu Robertson com o sorriso grudado no rosto. - Nós também queremos isso.

- É muito perturbador morar numa casa onde aconteceu um assassinato - disse Angela. - Particularmente se o assassino continua solto. Tenho certeza de que o senhor compreende.

- Totalmente.

- De modo que desejamos saber como ajudar.

- Bom, vejamos - disse Robertson, mostrando sinais de inquietação. Ele hesitou.-Na verdade, não há muito que qualquer pessoa possa fazer.

- O que, exatamente, a polícia está fazendo? - perguntou Angela.

O sorriso desapareceu do rosto de Robertson.

- Estamos trabalhando no caso - disse em tom vago.

- E isso significa o quê? - insistiu Angela.

David começou a se levantar, preocupado com a direção e o tom da conversa, mas Angela não queria ceder.

- Bom, o de sempre - disse Robertson.

- O que é o de sempre? - perguntou Angela.

Robertson estava claramente desconfortável.

- Bom, para dizer a verdade, não estamos fazendo muita coisa agora. Mas quando Hodges desapareceu, trabalhamos dia e noite.

- Fico um pouco surpresa ao ver que o interesse não ressurgiu agora que existe um cadáver. E o perito médico definiu o caso inquestionavelmente como homicídio. Temos um assassino andando pela cidade e quero que alguma coisa seja feita.

- Bom, certamente não queremos desapontá-los - disse Robertson com uma ponta de sarcasmo. - O que, exatamente, vocês desejariam que fosse feito, para que soubéssemos antecipadamente como satisfazê-los?

David começou a dizer alguma coisa, mas Angela fez com que ele se calasse.

- Queremos que vocês façam o que normalmente se faz com um homicídio. Vocês têm a arma do crime. Então procurem digitais, descubram onde foi comprada, esse tipo de coisa. Não deveríamos ter de dizer como fazer a investigação.

- O rastro está meio frio depois de oito meses. E francamente não acho bom vocês virem aqui me dizer como fazer meu trabalho. Eu não vou ao hospital dizer como devem fazer o seu. Além disso, Hodges não era o sujeito mais popular da cidade, e temos de estabelecer prioridades, com o efetivo pequeno de que dispomos. Para sua informação, temos problemas mais prementes agora mesmo, inclusive uma série de estupros.

- A minha opinião é que deve ser feito o básico neste caso - disse Angela.

- E foi feito. Há oito meses.

- E o que vocês descobriram?

- Um monte de coisas - respondeu Robertson rispidamente. - Descobrimos que não houve arrombamento nem roubo, o que agora foi confirmado. Descobrimos que houve alguma luta...

- Alguma luta?-ecoou Angela. - Ontem à noite, a perícia da polícia estadual provou que o assassino caçou o doutor na nossa casa, batendo nele com um pé-de-cabra, espalhando sangue pelas paredes. O Doutor Hodges teve múltiplas fraturas cranianas, uma clavícula fraturada e um braço quebrado. - Angela virou-se para David, levantando as mãos para o alto. - Não posso acreditar!

- Tudo bem, tudo bem - disse David, tentando acalmá-la. Ele temera que ela fizesse uma cena assim. Angela tolerava pouco a incompetência.

- Esse caso precisa ser visto com novos olhos - disse ignorando David. - Hoje recebi um telefonema do perito médico confirmando que a vítima tinha pele do atacante sob as unhas, para imaginar como foi a luta. Agora só precisamos de um suspeito. Os legistas podem fazer o resto.

- Obrigado pela dica - disse Robertson. - E obrigado por ser uma cidadã tão preocupada. Agora, se vocês me desculparem, tenho trabalho a fazer.

Robertson foi até a porta e abriu-a. David praticamente teve que arrastar Angela para fora da sala. Era tudo que ele podia fazer: impedi-la de dizer mais coisas enquanto saía.

- Você ouviu alguma coisa?-perguntou Robertson quando um de seus policiais apareceu.

- Pouca coisa.

- Odeio essa gente da cidade grande. Só porque foram Harvard, ou algum lugar do tipo, acham que sabem de tudo.

Robertson voltou a entrar na sala e fechou a porta. Pegando telefone, apertou um dos botões de ligação automática.

- Desculpe incomodá-lo - disse em tom deferente. - Acho que podemos ter um problema.

- Não ouse me tachar de mulher histérica - disse Angela assim que entrou no carro.

- Atormentar o delegado local desse jeito não é uma coisa racional. Lembre-se, esta é uma cidade pequena. Não devemos fazer inimigos.

- Uma pessoa foi brutalmente assassinada, o corpo foi emparedado em nosso porão e a polícia não parece interessada em descobrir o assassino. Você pretende deixar as coisas como estão?

- Por mais deplorável que tenha sido a morte de Hodges, ela não tem nada a ver conosco. É um problema que deve ser deixado com as autoridades.

- O quê? - gritou Angela. - O sujeito foi espancado até a morte na nossa casa, na nossa cozinha. Estamos envolvidos, quer você admita ou não, e quero descobrir quem fez isso. Não gosto de pensar no assassino andando pela cidade, e vou fazer alguma coisa a respeito. A primeira coisa é descobrir mais sobre Dennis Hodges.

- Acho que você está dramatizando demais e sendo pouco razoável.

- Você já deixou isso claro. Só que não concordo.

Angela estava fervendo de raiva, principalmente de Robertson, mas também se sentia um pouco irritada com David. Queria dizer que David não era o paradigma da racionalidade e da conveniência que pensava ser. Mas segurou a língua.

Chegaram ao estacionamento do hospital. O único espaço disponível ficava longe da entrada. Saíram e começaram a andar.

- Já tenho muito com que me preocupar - disse David. - Não é como se não tivéssemos problemas suficientes.

- Então talvez devêssemos contratar alguém para investigar por nós.

- Você não pode estar falando sério.-David parou de andar. -Não temos dinheiro para jogar fora num absurdo desses.

- Para o caso de você não ter me ouvido, não acho que isso seja absurdo. Repito: há um assassino solto nesta cidade. Alguém que esteve em nossa casa. Talvez já tenhamos nos encontrado com ele. Isso me deixa arrepiada.

- Por favor, Angela. - David voltou a caminhar. - Não estamos lidando com um assassino em série. Não acho tão estranho o assassino não ter sido encontrado. Você nunca leu histórias sobre assassinatos em cidades pequenas, onde nunca aparece o culpado mesmo que todo mundo saiba quem cometeu o crime? É uma espécie de justiça interna, em que as pessoas acham que a vítima recebeu o que merecia. Aparentemente, Hodges não era admirado por todos.

Chegaram ao hospital e pararam logo depois da porta de entrada.

- Não me sinto disposta a concordar com essa tal de justiça interna. Acho que a questão aqui é de responsabilidade social básica. Nossa sociedade tem leis.

- Você é demais. - A despeito de sua exasperação, David sorriu. - Agora está disposta a me dar uma aula sobre responsabilidade social. De vez em quando você consegue ser tão idealista que me deixa doido. Mas eu te amo. - David curvou-se e deu-lhe um beijo no rosto.

- Conversamos mais tarde. Por enquanto acalme-se! Você já tem problemas com Wadley, problemas suficientes para mantê-la ocupada por muito tempo.

Com um aceno final, David saiu para o prédio do ambulatório. Angela observou-o até que ele sumiu na esquina do corredor. Sentiu-se tocada pela súbita mostra de afeição. O fato de ter sido inesperada abrandou seu ânimo.

Alguns minutos depois, contudo, enquanto estava sentada à sua mesa tentando se concentrar, repassou na mente a conversa com Robertson e ficou furiosa de novo. Saiu da sala para procurar Por Darnell. Encontrou-o onde ele sempre estava: curvado sobre pilhas de placas de Petri cheias de bactérias.

- Você morou em Bartlet a vida inteira? - perguntou ela.

- Sim, menos os quatro anos de faculdade, quatro da escola de medicina, quatro de residência e dois na Marinha.

- Eu diria que isso faz de você um nativo.

- O que faz de mim um nativo é o fato dos Darnells viverem aqui há quatro gerações.

Angela aproximou-se e se encostou na mesa.

- Acho que você deve ter ouvido o boato sobre o corpo encontrado em minha casa.

Paul assentiu.

- Isso está me deixando realmente incomodada - disse ela. -- Você se importaria se eu fizesse algumas perguntas?

- De modo nenhum.

- Você conhecia Dennis Hodges?

- Claro que sim.

- Como ele era?

- Era um velho meio doido, de quem pouca gente sente falta. Tinha um dom especial para fazer inimigos.

- Como chegou a administrador do hospital?

- Por falta de opção. Ele assumiu o hospital numa época em que nenhum outro médico queria a responsabilidade. Todos achavam que dirigir o hospital ficava abaixo do status de médico. De modo que Hodges teve carta branca e transformou o lugar numa espécie de estado feudal, associando-se a uma escola de medicina para obter prestígio e registrando-o como um centro médico regional. Ele chegou até mesmo a botar dinheiro do próprio bolso, em tempos de crise. Mas Hodges era o pior diplomata do mundo, e não ligava a mínima para os interesses dos outros quando eles entravam em choque com os interesses do hospital.

- Como quando o hospital assumiu a patologia e a radiologia?

- Exato. Foi uma coisa boa para o hospital, mas criou um bocado de má vontade. Eu tive de fazer um corte enorme nos meus ganhos. Mas minha família queria ficar em Bartlet, de modo que me ajustei. Outras pessoas lutaram contra, e eventualmente tiveram de se mudar. Obviamente Hodges fez um monte de inimigos.

- O Doutor Cantor também ficou.

- Sim, mas porque convenceu Hodges a fazer uma joint venture entre ele e o hospital, para criar um centro de geração de imagens de classe internacional. Cantor acabou se dando bem financeiramente, mas foi uma exceção.

- Acabo de ter uma conversa com Wayne Robertson. Tive a clara impressão de que ele está empurrando com a barriga a investigação do assassinato de Hodges.

- Isso não me surpreende. Não há muita pressão para resolver o caso. A esposa de Hodges mudou-se para Boston, e o casal não estava se dando bem na época da morte. Para todos os efeitos, eles viviam separados nos últimos anos. Além disso, o próprio Robertson poderia ter cometido o crime. Robertson sempre demonstrou ter raiva de Hodges. Chegou mesmo a ter uma discussão com ele na noite em que o velho desapareceu.

- Qual o motivo dessa animosidade entre os dois?

- Robertson culpava Hodges pela morte da esposa.

- Hodges era médico da esposa dele?

- Não. Na época, ele praticamente não trabalhava como médico. Estava dirigindo o hospital em tempo integral. Mas, como diretor, permitiu que o Doutor Werner Van Slyke continuasse trabalhando, mesmo todo mundo sabendo que ele tinha problemas com bebida. Na verdade, Hodges deixou a questão de Van Slyke por conta do departamento médico. Van Slyke fez besteira com apendicite da mulher de Robertson, enquanto estava bêbado. A partir daí, Robertson culpou Hodges. Não foi uma coisa racional, mas geralmente o ódio não é racional.

- Estou começando a sentir que não vai ser fácil descobrir quem matou Hodges.

- Você não tem idéia de como está certa. Há um segundo capítulo no caso Hodges-Van Slyke. Hodges era amigo de Traynor, o atual chairman da diretoria do hospital. A irmã de Traynor era casada com Van Slyke, e quando finalmente Hodges negou privilégios a VanSlyke...

- Certo - disse Angela erguendo a mão. - Estou captando a idéia. Você está me esmagando. Eu não tinha idéia de que essa cidade era tão bizantina.

- É uma cidade pequena. Um bocado de famílias vive aqui há muito tempo. É uma coisa praticamente incestuosa. Mas a questão básica é que havia muita gente que não gostava de Hodges. Assim, quando ele desapareceu, não foram muitos os que se abalaram.

- Mas isso significa que o assassino de Hodges está solto aí. Presumivelmente um sujeito capaz de extrema violência.

- Você provavelmente está certa.

Angela estremeceu.

- Não gosto disso. Esse sujeito esteve em minha casa, talvez muitas vezes. Provavelmente conhece bem a casa.

Paul encolheu os ombros.

- Compreendo como se sente. Eu certamente me sentiria do mesmo jeito. Mas não sei o que você pode fazer a respeito. Se quer saber mais sobre Hodges, vá conversar com Barton Sherwood. Como presidente do banco, ele conhece todo mundo. Conhecia Hodges particularmente bem, já que sempre fez parte da diretoria do hospital, e antes dele o seu pai também fazia parte.

Angela voltou à sua sala e tentou trabalhar de novo, mas continuava sem conseguir se concentrar. Era impossível tirar Hodges da cabeça. Estendeu a mão para o telefone e ligou para Barton Sherwood. Lembrava-se de como ele fora amigável quando tinham comprado a casa.

- Dra. Wilson - disse Sherwood ao atender. - Que bom falar com a senhora. Como estão passando naquela casa maravilhosa?

- Bem, em termos gerais. Mas é sobre isso que eu gostaria de falar com o senhor. Se eu fosse até o banco, o senhor teria alguns minutos para conversar comigo?

- Sem dúvida. Quando quiser.

- Vou agora mesmo - disse Angela.

Depois de dizer às secretárias que voltava logo, Angela pegou o casaco e correu até o carro.

Dez minutos depois, estava sentada no escritório de Sherwood. Parecia ontem mesmo que ela, David e Nikki tinham estado ali, resolvendo a compra de sua primeira casa.

Angela foi direto ao ponto. Descreveu como se sentia desconfortável não só pelo fato de Hodges ter sido assassinado na sua casa, como pela liberdade do assassino. Esperava que Sherwood estivesse disposto a ajudar.

- Ajudar?-perguntou Sherwood, recostado em sua poltrona de couro e com os dois polegares enfiados nos bolsos do colete.

- A polícia local não parece preocupada com a solução do caso. Com sua importância na cidade, uma palavra sua certamente os levará a fazer alguma coisa.

Sherwood inclinou-se para diante. Estava claramente lisonjeado.

- Obrigado por seu voto de confiança, mas realmente não creio que a senhora tenha com que se preocupar. Hodges não foi vítima de uma violência insensata e aleatória, ou de um assassino em série.

- Como é que o senhor sabe? Sabe quem o matou?

- Meu Deus, claro que não! - disse Sherwood nervosamente. - Não quis dar a entender isso.

Eu quis dizer... bem, eu acho que não há motivo para que a senhora e sua família se sintam em risco.

- Há muita gente que sabe quem matou Hodges? - perguntou Angela, lembrando-se da teoria de David sobre justiça interna.

- Oh, não. Pelo menos não creio que haja. Só que o « Hodges era um sujeito impopular, que prejudicou muitas pessoas. Até eu tive problemas com ele. - Sherwood riu nervosamente.

Em seguida passou a contar a Angela sobre a faixa de terra que Hodges cercara, recusando-se a vendê-la e impedindo que Sherwood usasse suas duas propriedades em conjunto.

- O que o senhor está tentando me dizer é que ninguém se importa com quem matou Hodges porque as pessoas não gostavam dele?

- Em essência, sim - admitiu Sherwood.

- Em outras palavras, o que temos aqui é uma conspiração de silêncio.

- Eu não diria isso. É uma situação onde as pessoas acham que foi feita justiça, de modo que ninguém se importa muito se alguém for preso ou não.

- Eu me importo - disse Angela. - O assassinato ocorreu em minha casa. Além disso, hoje em dia não há mais lugar para justiça pelas próprias mãos.

- Normalmente eu seria o primeiro a concordar. Não estou tentando justificar esse caso em termos morais ou legais. Com Hodges era diferente. Acho que a senhora deveria conversar com o Doutor Cantor. Ele poderá dar uma idéia do tipo de animosidade e tumulto que Hodges era capaz de causar. Talvez então a senhora entenda e não julgue tanto.

Angela voltou a subir a colina na direção do hospital, sentindo-se confusa quanto ao que fazer. Não concordava com Sherwod nem por um segundo, e quanto mais ficava sabendo sobre o caso de Hodges, mais queria saber. No entanto, não queria falar com Cantor, não depois da conversa que tivera com ele na véspera.

Ao entrar no hospital, foi direto à seção do laboratório de patologia onde as lâminas eram preparadas. Sua escolha do momento foi perfeita: as lâminas que ela estivera esperando naquela manhã tinham acabado de ficar prontas. Pegando a bandeja, correu de volta à sua sala para começar a trabalhar.

No momento em que entrou, Wadley apareceu na porta de ligação. Como no dia anterior, estava visivelmente perturbado.

- Acabei de chamá-la pelo alto-falante. Onde, diabo, você estava?

- Tive de dar um pulo no banco - disse Angela em tom nervoso. Subitamente suas pernas ficaram fracas. Temia que Wadley estivesse para perder o controle, como no dia anterior.

- Restrinja suas visitas ao banco à hora de almoço. - Ele hesitou um momento, em seguida voltou a entrar em sua sala e bateu a porta.

Angela soltou um suspiro de alívio.

Sherwood não se mexeu da cadeira depois que Angela saiu. Estava tentando decidir o que fazer.

Não podia acreditar que essa mulher estava criando tamanho alarde por causa de Hodges. Esperava não ter dito nada de que pudesse se arrepender mais tarde.

Depois de alguma deliberação, pegou o telefone. Tinha concluído que era melhor não fazer nada, somente passar a informação.

- Acaba de acontecer uma coisa que eu acho que você deveria saber - disse, assim que a ligação se completou. - Acabo de ter uma visita da mais nova contratada da equipe do hospital, e ela está preocupada com o Doutor Hodges...

David terminou de atender ao último paciente do dia, ditou algumas cartas e em seguida correu ao hospital para fazer a ronda da tarde. Temendo o que encontraria, deixou Mary Ann Schiller para o final.

Como suspeitava intuitivamente, ela piorara. A febre baixa subira gradualmente durante a tarde. Agora estava ligeiramente acima de trinta e nove. A febre deixou-o preocupado, principalmente porque subira enquanto a paciente estava tomando antibiótico, mas houve algo que o incomodou ainda mais, o estado mental de Mary Ann.

Naquela manhã, ela estivera sonolenta. Mas agora, enquanto David tentava conversar, ela estava sonolenta e apática. Houvera uma nítida mudança. Não somente era difícil acordá-la e mantê-la desperta, mas, quando acordada, ela não se importava com coisa alguma, e prestava pouca atenção às suas perguntas. Também estava desorientada com relação ao tempo e ao lugar, apesar de ainda saber o próprio nome.

David virou-a de lado e auscultou seu peito. Nesse momento, entrou em pânico. Ouviu um coro de roncos e sons raspados, ela estava desenvolvendo uma pneumonia maciça. Era como John Tarlow de novo.

David correu ao posto de enfermagem, onde prescreveu uma contagem sangüínea e uma radiografia do pulmão. Examinando o prontuário de Mary Ann, não encontrou nada anormal. As anotações das enfermeiras do dia sugeriam que ela estivera bem.

A contagem sangüínea voltou mostrando muito pouca resposta celular à pneumonia, uma situação que lembrava tanto Tarlow quanto Kleber. A radiografia confirmou seu medo: havia uma extensa pneumonia se desenvolvendo nos dois pulmões.

Sentindo-se perdido, David ligou para o Doutor Mieslich, o oncologista, para consultá-lo por telefone. Depois de todos os problemas com Kelley, sentia-se relutante em pedir uma consulta formal, ainda que isso fosse muito melhor.

Sem ter visto a paciente, o Doutor Mieslich pôde ajudar pouco. Confirmou que, na última vez em que vira Mary Ann em seu consultório, não havia qualquer evidência de seu câncer no ovário. Ao mesmo tempo, disse a David que o câncer fora extenso antes de ser tratado, e que ele esperava um reaparecimento.

Enquanto David estava no telefone com o oncologista, a enfermeira apareceu na frente do posto de enfermagem e gritou, dizendo que Mary Ann estava tendo convulsões.

David bateu o telefone e correu para junto da cama. Mary Ann se encontrava nos estertores de um ataque epilético. Suas costas estavam arqueadas, e as pernas e braços batiam ritimicamente contra a cama. Felizmente, o equipamento de soro não tinha sido desativado, e David pôde controlar o ataque rapidamente com medicação intravenosa. Mas, no final da crise, Mary Ann entrou em coma.

Voltando ao posto de enfermagem, David pediu que chamassem o neurologista da CMV, Doutor Alan Prichard, pelo alto-falante. Como estava no hospital fazendo ronda, ele ligou de volta imediatamente. Depois de David contar sobre o ataque e dar um resumo da história de Mary Ann, o Doutor Prichard recomendou a David que pedisse uma tomografia computadorizada ou uma ressonância magnética, dependendo de qual aparelho estivesse disponível. E disse que viria examinar a paciente assim que pudesse.

David mandou Mary Ann ao Imaging Center, para fazer uma ressonância magnética, acompanhada por uma enfermeira, para o caso de ela ter outro ataque. Em seguida ligou de novo para o oncologista, explicou o que acontecera e pediu uma consulta formal. Como fizera com Kleber e Tarlow, também chamou o Doutor Hasselbaum, o especialista em doenças infecciosas.

Não conseguiu evitar a preocupação pelo modo como Kelley reagiria a essas consultas fora da CMV, mas achava que tinha pouca escolha. Não podia permitir que a preocupação com Kelley influenciasse sua decisão, depois do ataque convulsivo. A gravidade do estado de Mary Ann era aparente.

Assim que soube que a ressonância magnética estava pronta, David correu para o Imaging Center. Encontrou o neurologista na sala dos monitores, onde as primeiras imagens estavam sendo processadas. Junto com o Doutor Cantor, observaram silenciosamente os cortes que apareciam. Quando o estudo ficou pronto, David chocou-se ao ver que não havia sinal de tumor gerado por metástase. Ele poderia jurar que um tumor assim era o responsável pelo ataque.

- No momento não posso dizer por que ela teve um ataque - admitiu o Doutor Prichard. - Pode ter sido alguma microembolia, mas só estou especulando.

O oncologista ficou igualmente surpreso com o resultado da ressonância magnética.

- Talvez a lesão seja pequena demais para ser captada pela ressonância - sugeriu.

- Essa máquina tem uma resolução fantástica - disse o DOUTOR Cantor. - Se o tumor era pequeno demais para ela captar, então aschances de que ele tenha causado o ataque epilético são menores.

O especialista em doenças infecciosas foi o único que acrescentar algo específico, mas a notícia não era boa. Ele confirmou o diagnóstico de pneumonia extensa. Também demonstrou que a bactéria envolvida era um organismo do tipo gram-negativo semelhante, porém não idêntico, ao que causara as pneumonias em Kleber e em Tarlow. Pior ainda, ele sugeriu que Mary Ann já estava em choque séptico.

Do Imaging Center, David mandou Mary Ann para a UTI, e insistiu na terapia mais agressiva disponível. Deixou que o especialista em doenças infecciosas cuidasse do regime de antibiótico e passou o tratamento respiratório a um anestesiologista. A respiração de Mary Ann estava tão dificultosa que ela precisava de um respirador artificial.

Depois de ter sido feito tudo que era possível por Mary Ann e de os outros médicos terem partido, David sentiu-se atordoado. O grupo de pacientes de oncologia tinha provocado um desgaste emocional muito maior do que ele temera originalmente. Por fim, saiu da UTI e, só para se certificar, parou de novo para ver Jonathan. Felizmente, ele estava passando muito bem.

- Só tenho uma reclamação - disse Jonathan. - Esta cama é cheia de manias. Algumas vezes, quando aperto o botão, acontece. Não sobe a cabeceira nem a parte dos pés.

- Vou cuidar disso - garantiu David. Sentindo-se grato por um problema de fácil solução, voltou ao posto de enfermagem e mencionou o fato à enfermeira-chefe do turno da noite, Dora Maxfield.

- A dele também? - disse Dora. - Algumas dessas camas antigas vivem quebrando. Mas obrigada por informar. Vou pedir que a manutenção cuide disso agora mesmo.

David saiu do hospital e montou na bicicleta. A temperatura caíra assim que o sol baixara atrás do horizonte, mas ele achou que o frio agia de modo terapêutico.

Ao chegarem casa, encontrou um tumulto de atividades. Nikki estava com Caroline e Arni, e eles corriam pelo andar térreo com Ferrugem perseguindo-os ferozmente. David juntou-se à confusão, adorando ser socado e empurrado por três crianças ativas. Só o riso já valia a punição. Durante alguns minutos, esqueceu-se do hospital.

Quando eram quase sete horas, Angela perguntou se David levaria Caroline e Arni para casa. David concordou satisfeito e Nikki foi junto. Depois de deixar as duas crianças em casa, David aproveitou os momentos a sós com a filha. Primeiro conversaram sobre a escola e o novo professor. Em seguida ele perguntou se ela pensava muito no corpo encontrado no porão.

- Um pouco - disse Nikki.

- E como se sente?

- Nunca mais quero ir no porão.

- Entendo. Ontem à noite, quando fui pegar lenha, eu me senti meio apavorado.

- Está falando sério?

- Sim. Mas eu tenho um pequeno plano, que pode ao mesmo tempo ser divertido e ajudar. Você está interessada?

- Estou! - respondeu Nikki entusiasmada. - O que é?

- Você não pode contar a ninguém.

- Certo.

David contou as linhas gerais do plano enquanto iam para casa.

- O que você acha?-perguntou logo que acabou de contar.

- Acho legal.

- Lembre-se, é um segredo.

- Juro que não conto.

Assim que chegou em casa, David ligou para a UTI, perguntando sobre Mary Ann. Ele ficara chateado porque as enfermeiras que cuidavam dos quartos não haviam percebido a piora nos dois pacientes que tinham morrido. Ao mesmo tempo, reconhecia que os sinais vitais dos pacientes tinham apresentado pouca mudança enquanto o estado clínico deteriorava nitidamente.

- Não houve alteração no estado da Senhora Schiller - disse a enfermeira da UTI. Em seguida, ela deu um relatório geral dos sinais vitais, dos valores mandados pelo laboratório e até mesmo das indicações do aparelho de respiração. O profissionalismo da enfermeira alentou a confiança de que Mary Ann estava recebendo a melhor atenção possível.

Intencionalmente evitando a mesa da cozinha depois da revelação da noite anterior, Angela serviu a comida na sala de jantar. A sala parecia enorme com apenas três pessoas e a mobília tacanha. Mas Angela tentou torná-la mais animada acendendo a lareira e pondo velas sobre a mesa. Nikki reclamou que estava tão escuro que mal conseguia ver a comida.

Depois que acabaram de comer, Nikki pediu para ver sua meia hora de televisão. David e Angela ficaram na mesa.

- Não quer saber como foi minha tarde? - perguntou Angela.

- Claro. Como foi?

- Interessante.

Angela relatou a conversa sobre Dennis Hodges com Paul Darnell e Barton Sherwood. Admitiu que David poderia estar certo ao sugerir que algumas pessoas sabiam quem cometera o crime.

- Obrigado por me dar crédito - disse David. - Mas não fico satisfeito em saber que você anda fazendo perguntas sobre Dennis Hodges.

- Porquê?

- Por vários motivos. Principalmente porque temos outras coisas com as quais nos preocuparmos. Mas, além disso, será que não passou pela sua cabeça que você pode acabar fazendo perguntas ao próprio assassino?

Angela admitiu que não tinha pensado nisso, mas David não estava ouvindo. Olhava fixamente para o fogo.

- Você parece distraído - disse ela. - O que há de errado?

- Outra paciente minha está na UTI, lutando pela vida.

- Sinto muito.

- É outro desastre - disse David. Sua voz falhou, enquanto ele lutava com as emoções. - Tento lidar com isso, mas é difícil. Ela está muito mal. Francamente, estou com medo de que ela me escape como Kleber e Tarlow. Talvez eu não saiba o que venho fazendo. Talvez eu não devesse ser médico.

Angela rodeou a mesa e passou os braços ao redor de David.

- Você é um médico maravilhoso - sussurrou. - Tem um verdadeiro dom. Os pacientes amam você.

- Eles não me amam quando morrem. Quando me sento em minha sala, no mesmo lugar onde o Doutor Portland se matou, começo a pensar que agora sei por que ele fez isso.

Angela sacudiu os ombros de David.

- Não quero ouvir você falar assim. Andou conversando de novo com Kevin Yansen?

- Não sobre Portland. Ele parece ter perdido o interesse no assunto.

- Você está deprimido?

- Um pouco. Mas não perdi o controle.

- Promete que vai me contar, se a coisa ficar difícil?

- Prometo.

- Qual é o problema dessa nova paciente? - perguntou Angela, sentando-se ao lado de David.

- Isso é que é perturbador. Na verdade, não sei. Ela chegou com sinusite, que estava cedendo com antibiótico. Mas depois começou a desenvolver pneumonia por algum motivo desconhecido. Na verdade, primeiro ela ficou sonolenta. Depois ficou apática, e finalmente teve uma convulsão. Pedi consultas com o oncologista, o neurologista e o especialista em doenças infecciosas. Ninguém teve nenhuma idéia brilhante.

- Então você não deveria ser tão duro consigo mesmo.

- Só que eu sou o responsável. Sou o médico dela.

- Eu gostaria de poder ajudar.

- Obrigado - disse David. Em seguida, ele estendeu a mão e apertou o ombro de Angela.-Gosto de sua preocupação, porque sei que você está sendo sincera. Infelizmente, não há nada que você possa fazer, afora entender por que não consigo ficar tão abalado com a morte de Hodges.

- Eu simplesmente não consigo deixar isso de lado - disse Angela.

- Mas pode ser perigoso. Você não sabe contra quem está lutando. Quem matou Hodges não vai gostar de vê-la fuçando aí. Quem sabe o que uma pessoa dessas pode fazer? Veja o que ela fez com Hodges.

Angela olhou para a lareira, hipnotizada pelos carvões em brasa, brilhando no calor intenso. O perigo potencial sobre sua família era a sua motivação para resolver o assassinato de Hodges. Ela não havia considerado que a própria investigação poderia colocá-los em perigo ainda maior.

Entretanto, bastava fechar os olhos e ver o luminol brilhando em sua cozinha, ou lembrar-se das terríveis fraturas na radiografia vista na sala de autópsia, para saber que David tinha razão: uma pessoa capaz daquele tipo de violência não devia ser provocada.

 

SÁBADO, 23 DE OUTUBRO

PREOCUPADO COM MARY Ann, David levantou-se antes do sol. Saiu de casa sem acordar Angela e Nikki, e pegou a bicicleta. Exatamente quando o sol começava a surgir acima do horizonte, ele atravessou o Roaring River. Estava frio como na manhã anterior. Outra geada densa cobria os campos e os galhos nus das árvores com um brilho vítreo.

A chegada de David tão cedo surpreendeu as enfermeiras da UTI. O estado de Mary Ann não mudara significativamente, mas ela desenvolvera uma diarréia um tanto séria. David ficou espantado e grato pelo modo como as enfermeiras cuidaram disso. Era um tributo à compaixão e à dedicação que elas demonstravam.

Revendo desde o início o caso de Mary Ann, David não conseguiu ter qualquer idéia nova. Chegou a ligar para um de seus ex-professores em Boston, que, ele sabia, costumava acordar cedo. Depois de ouvir o caso, o professor se propôs a vir imediatamente. David ficou emocionado com o comprometimento e a generosidade dele.

Enquanto esperava a chegada do professor, fez a ronda para ver seus outros pacientes hospitalizados. Todos estavam passando bem. Pensou em mandar Jonathan Eakins para casa, mas decidiu mantê-lo por mais um dia, só para certificar-se de que sua condição cardíaca se encontrava estável.

Assim que o professor chegou, algumas horas depois, David apresentou Mary Ann como se estivesse de volta ao curso de medicina. O professor ouviu atentamente, examinou Mary An com grande cuidado e em seguida leu o prontuário em detalhes, Mas nem ele teve novas idéias. David levou-o até o carro, agradecendo-lhe profusamente por ter feito a viagem.

Sem mais nada para fazer no hospital, David foi para casa. Vinha evitando o basquete das manhãs de sábado porque continuava ressabiado pelo confronto desagradável com Kevin Yansen no jogo de tênis. Em seu estado emocional precário, David achava que tinha de evitar a competitividade de Kevin por mais uma semana.

Quando chegou em casa, Angela e Nikki estavam acabando de tomar o café da manhã. David zombou, dizendo que elas tinham perdido metade do dia. Enquanto Angela cuidava do tratamento respiratório de Nikki, David desceu ao porão e removeu a fita de isolamento da cena do crime. Em seguida levou algumas janelas de tempestade para o quintal, usando a escada que ligava o porão ao exterior.

Tinha acabado de colocar as janelas do primeiro andar, quando Nikki se aproximou.

- Quando é que nós vamos... - começou Nikki a perguntar. David pôs um dedo nos lábios, pedindo que ela ficasse quieta, enquanto apontava para a janela da cozinha, onde Angela podia ser vista.

- Assim que a gente guardar isso tudo - falou.

David deixou que Nikki o ajudasse a levar para o porão as telas que ele retirara. Sozinho, poderia ter feito tudo mais facilmente, mas Nikki gostava de imaginar que estava ajudando. Deixaram as telas encostadas contra a base da escada, onde originalmente ficavam as janelas de tempestade.

Depois de terminarem, David e Nikki anunciaram a Angela que estavam indo para a cidade, numa missão de compras. Em seguida, saíram, cada um em sua bicicleta. Angela gostou de vê-los, divertindo-se tanto, apesar de se sentir excluída.

Deixada só, começou a se sentir meio nervosa. Percebia o estalo da casa vazia. Tentou mergulhar no livro que estava lendo, mas logo começou a trancar as portas e até as janelas. Chegando à cozinha, não conseguiu impedir que a imaginação cobrisse as paredes com sangue.

- Não posso viver assim - disse em voz alta, percebendo como estava ficando paranóica. – Mas o que vou fazer?

Foi até a mesa da cozinha, cujos pés havia esfregado com o desinfetante mais forte que o Senhor Staley tinha em sua loja. Passou os dedos pela superfície. Imaginou se o luminol continuaria a ficar fluorescente agora que ela limpara a mesa tão bem. Ainda não gostava de pensar no assassino de Hodges solto. Entretanto, levou a sério o aviso de David, de que era perigoso ficar investigando o assassinato.

Indo até a lista telefônica, procurou ”Investigadores Particulares” mas não encontrou nenhum. Em seguida, procurou em ”Detetives” e encontrou uma lista. Na maior parte, eram empresas de segurança, mas também havia alguns indivíduos. Um deles - um tal de Phil Calhoun-era de Rutland, que ficava a pouca distância, de carro.

Antes de ter tempo de reconsiderar, Angela discou o número. Um homem de voz rouca, lenta e deliberada atendeu.

Angela não tinha pensado no que diria. Finalmente gaguejou, falando que queria investigar um assassinato.

- Parece interessante - disse Calhoun.

Angela tentou visualizar o sujeito do outro lado do fio. Julgando pela voz, imaginou um homem de compleição forte, com ombros largos, cabelos escuros e até um bigode.

- Talvez pudéssemos nos encontrar - sugeriu ela.

- A senhora quer que eu vá até aí, ou prefere vir aqui?

Angela pensou por um instante. Não queria que David descobrisse o que ela estava para fazer, pelo menos por enquanto.

- Eu vou até aí - falou.

- Estarei esperando - disse Calhoun depois de dar o endereço.

Angela subiu correndo a escada, trocou de roupa e deixou um bilhete para David e Nikki dizendo:

”Fui às compras.”

O escritório de Calhoun era também sua casa. Ela não teve dificuldade em encontrar. Na entrada de automóveis percebeu qi a pick-up Ford tinha um suporte para rifle atrás da cabine e um adesivo no pára-choque traseiro que dizia: ”Este Veículo SubiU Monte Washington.”

Phil Calhoun convidou-a a entrar na sala e indicou-lhe um sofá puído. Ele estava longe da imagem romântica do detetive particular. Apesar de ser um homem grande, era gordo e consideravelmente mais velho do que ela imaginara pela voz. Angela supôs que tivesse uns sessenta e poucos anos. O rosto era meio pastoso, mas os olhos eram brilhantes. Usava uma camisa de caçador, de xadrez em preto e branco. As calças de algodão eram mantidas por suspensórios pretos. Na cabeça tinha um boné com as palavras “Roscoe Electric” num brasão sobre a aba.

- Importa-se se eu fumar? - perguntou Calhoun, segurando uma caixa de charutos António y Cleopatra.

- A casa é sua - disse Angela.

- E qual é a história desse assassinato? - perguntou Calhoun, recostando-se na cadeira.

Angela deu um resumo do caso.

Para mim parece interessante. Eu adoraria pegar o caso, trabalhando por hora. E quanto a mim, sou um policial estadual aposentado e viúvo. É tudo. Alguma pergunta?

Angela estudou Calhoun enquanto ele fumava casualmente. Era lacónico como a maioria das pessoas da Nova Inglaterra. Parecia franco, uma característica que ela apreciava. Afora isso, não tinha como julgar sua competência, apesar de ser auspicioso o fato de ele ter sido da polícia estadual.

- Por que saiu da força policial? - perguntou.

- Aposentadoria compulsória.

O senhor já trabalhou em algum caso de assassinato?

- Como civil, não.

- Que tipo de casos costuma pegar?

- Problemas conjugais, roubos em lojas, desfalques por garçons, esse tipo de coisa.

- Acha que pode cuidar deste caso?

Sem dúvida. Eu cresci numa cidade pequena de Vermont, parecida com Bartlet. Sou familiarizado com o ambiente; o dia-a-dia; até conheço algumas pessoas de lá. Conheço o tipo de rixa que dura anos e o tipo de gente que se envolve com elas. Sou o homem certo para o trabalho, porque posso fazer perguntas sem chamar a atenção.

Angela voltou para Bartlet perguntando-se se tinha feito a coisa certa ao contratar Phil Calhoun.

Também se perguntou como e quando contaria a David.

Ao chegar em casa, ficou irritada por ver que Nikki estava sozinha. David fora ao hospital verificar o estado de sua paciente. Angela perguntou a Nikki se David tinha pedido a Alice para vir enquanto ele estava fora.

- Não - disse Nikki, despreocupada. - Papai disse que ia voltar logo, e que você provavelmente apareceria antes dele.

Angela decidiu que conversaria sobre isso com David. Sob as atuais circunstâncias, não gostava de ver Nikki sozinha em casa. Mal conseguia acreditar que David tivesse feito uma coisa dessas, e a atitude dele eliminou qualquer reserva que ela sentira ao contratar Phil Calhoun.

Disse a Nikki que queria as portas trancadas, e as duas foram verificá-las. A única aberta era a dos fundos. Enquanto preparava um lanche rápido, perguntou casualmente o que Nikki e o pai tinham feito naquela manhã, mas a menina se recusou a contar.

Quando David retornou, Angela chamou-o de lado para discutir o fato de ter deixado Nikki sozinha. A princípio, David mostrou-se defensivo, mas depois concordou em evitar aquilo no futuro.

Logo David e Nikki estavam tramando de novo, mas Angela ignorou-os. As tardes de sábado eram seu momento preferido. Com pouca oportunidade de cozinhar durante a semana, gostava de passar boa parte do dia folheando os livros de receitas e preparando uma refeição digna de um gourmet. Para ela, era uma experiência terapêutica.

No meio da tarde, tinha o menu planejado. Deixando a cozinha, abriu a porta do porão e começou a descer. Estava a caminho do freezer, em busca de alguns ossos de vitela para fazer caldo de carne, quando percebeu que não fora ao porão desde que os técnicos haviam estado lá. Seus passos diminuíram. Estava um tanto nervosa Por voltar sozinha ao porão, e avaliou a idéia de chamar David para ir junto. Mas percebeu que estava sendo boba. Além disso, não queria assustar Nikki ainda mais.

Desceu o resto da escada e foi na direção dofreezer, que ficava encostado na parede do fundo.

Enquanto caminhava, olhou na direção da antiga tumba de Hodges e sentiu-se aliviada ao ver que David tinha colocado as janelas de tela tapando o buraco.

Estava chegando aofreezer, quando ouviu um som de coisas arrastando atrás dela. Congelou.

Poderia ter jurado que o ruído viera de detrás da escada. Fechou a tampa do freezer antes de se virar lentamente e encarar o porão mal iluminado.

Com horror absoluto, viu as telas começarem a se mexer. Piscou e em seguida olhou de novo, esperando que tivesse sido sua imaginação. Mas logo as telas caíram com um ruído alto e ecoant

Angela tentou gritar, mas não saiu nenhum som. Tentou se mexer, mas não conseguiu. Com grande esforço, terminou por dar um passo, depois outro. Mas só estava a meio caminho da escada quando o rosto parcialmente descarnado de Hodges emergiu da tumba. Em seguida, o homem se arrastou para fora. Parecia desorientado, até ver Angela. Em seguida começou a andar em sua direção, com os braços estendidos.

O terror de Angela transformou-se em movimento. Ela correu até a escada, mas já era tarde. Hodges interceptou-a e agarrou seu braço.

Ao sentir a mão da criatura em seu pulso, Angela teve a voz libertada. Gritou, lutando para se soltar. Em seguida, viu outra criatura emergir da tumba. Menor, mas um monstro exatament com o mesmo rosto. De súbito, Angela percebeu que Hodges estava rindo.

Angela só pôde ficar olhando, perplexa, enquanto David tirava uma máscara de borracha. Nikki, o zumbi menor, retirou uma máscara idêntica do rosto. Os dois estavam rindo histericament

A princípio, Angela sentiu-se envergonhada, mas sua humilhação logo se transformou em fúria. Não havia nada engraçado naquela brincadeira. Ela empurrou David para o lado e subiu correndo a escada.

David e Nikki continuaram a rir, mas logo o riso foi cessado quando perceberam o quanto a haviam assustado.

- Você acha que ela está mesmo furiosa?-perguntou Nikki.

- Acho que sim - disse David. - Acho melhor a gente subir e conversar com ela.

Angela se recusou até mesmo a olhar para eles enquanto se ocupava na cozinha.

- Mas nós estamos nos desculpando - repetiu David pela terceira vez.

- Nós dois, mamãe - insistiu Nikki. Mas tanto ela quanto David tinham de reprimir o riso.

- Nunca imaginamos que você fosse ser enganada, nem por um minuto - disse David, tentando se controlar. - Sério! Achamos que você ia descobrir de cara; era uma coisa tão idiota!

- É, mamãe. A gente achou que você ia adivinhar, porque sábado que vem é o Dia das Bruxas.

Essas vão ser nossas fantasias. Nós até compramos uma máscara igual para você.

- Bem, podem jogar fora - disse Angela.

Nikki baixou a cabeça. Seus olhos se encheram de lágrimas. Angela olhou-a e sua ira se dissolveu.

- Oh, não fique assim. - disse e em seguida puxou Nikki para perto. - Sei que estou reagindo com exagero, mas fiquei realmente apavorada. E não acho que foi engraçado.

Ansioso por começar o que sem dúvida era o caso mais intrigante que já enfrentara desde o início de seu pequeno negócio destinado a suplementar a pensão e o seguro social, Phil Calhoun dirigiu seu carro até Bartlet no meio da tarde. Estacionou a pick-up à sombra da biblioteca de Bartlet e atravessou o gramado até a delegacia.

- Wayne está por aí? - perguntou ao policial de plantão.

O policial simplesmente apontou para o fim do corredor. Estava lendo um exemplar do Bartlet Sun.

Calhoun foi adiante e bateu na porta de Robertson, que estava aberta. Robertson levantou os olhos, sorriu e convidou Phil a entrar.

Robertson inclinou-se para trás na cadeira e aceitou um Antônio y Cleopatra de Calhoun.

- Trabalhando até tarde num tremendo sábado - disse Calhoun. - Deve estar acontecendo um bocado de coisas aqui e Bartlet.

- A droga da burocracia. É um saco. E fica pior a cada ano. – Calhoun assentiu.

- Li no jornal que oDoutor Hodges apareceu.

- É. Causou uma certa agitação, mas já está tudo calmo, foi merecido. O cara era um criador de casos.

- Como assim?

O rosto de Robertson ficou vermelho enquanto mais uma vez, ele soltava sua litania contra o Doutor Dennis Hodges. Admitiu muitas vezes que quase arrebentara o sujeito.

- Pelo visto, Hodges não era o cara mais popular da cidade - disse Calhoun.

Robertson deu um pequeno riso cáustico.

- Muita ação no caso? - perguntou Calhoun casualmente soprando fumaça para o alto.

- Não. A gente se mexeu um pouco quando Hodges desapareceu, mas só para constar. Ninguém se importou muito, mesmo a esposa. Praticamente ex-esposa. Ela se mudara para Boston antes mesmo de Hodges desaparecer.

- E agora? O Boston Globe disse que a polícia estadual está investigando.

- Eles também só estavam fazendo constar. O perito médico ligou para o promotor estadual. O promotor estadual mandou a assistente verificar. Ela ligou para a polícia estadual, que mandou vir a perícia. Mas depois disso o tenente da polícia estadual me ligou. Eu disse que não valia a pena gastar tempo com isso e que cuidaríamos do caso. E como você sabe, melhor do que a maioria das pessoas, num caso assim a polícia estadual pega as informações conosco, a não ser que haja pressão de alguém como o promotor estadual ou algum político. Ora, a polícia estadual tem casos mais importantes para resolver. O mesmo acontece com a gente. Além disso, já se passaram oito meses. O rasto está gelado.

- Em que vocês estão trabalhando atualmente?

- Estamos com uma série de estupros e ataques no estacionamento do hospital.

- Teve alguma sorte em descobrir o culpado?

- Ainda não.

Depois de sair da delegacia, Calhoun andou pela Main Street e parou na livraria. A proprietária, Jane Weincopp, fora amiga de sua esposa. A esposa de Calhoun fora uma grande leitora, especialmente no último ano de vida, quando ficara confinada à cama.

Jane levou Calhoun para o escritório, que era apenas uma mesa minúscula no canto do depósito.

Calhoun disse que só estava de passagem, e depois de um pouco de conversa fiada conseguiu direcionar a discussão para Dennis Hodges.

- A descoberta do corpo certamente foi uma grande notícia em Bartlet - admitiu Jane.

- Fiquei sabendo que ele não era um homem popular. Quem gostaria de acabar com ele?

Jane lançou um olhar estranho para Calhoun.

- Esta é uma visita profissional ou pessoal? - perguntou com um sorriso torto.

- Só curiosidade - disse Calhoun, piscando o olho. - Mas eu gostaria que você não contasse a ninguém.

Meia ”hora depois, Calhoun voltou a sair à luz baça do entardecer, levando consigo uma lista de vinte pessoas que não gostavam de Hodges. Nela estavam incluídos o presidente do banco, o dono do posto Mobil perto da interestadual, o biscateiro retardado da cidade, o chefe de polícia, que Calhoun já tinha encontrado, um punhado de comerciantes e proprietários de lojas e meia dúzia de médicos.

Calhoun ficou surpreso com a extensão da lista, mas não se mostrou infeliz. Afinal de contas, quanto maior a lista, mais horas teria para cobrar da cliente.

Continuando o passeio pela Main Street, parou na Farmácia Harrison’s. O farmacêutico, Harley Strombell, era irmão de um dos colegas de Calhoun na polícia, Wendell Strombell.

Como Jane, Harley não se enganou com a natureza das perguntas de Calhoun, mas prometeu ser discreto. Até mesmo aumentou a lista de Calhoun dando o seu próprio nome, além de Ned Banks, dono da fábrica de cabides New England, Harold Traynor e Helen Beaton, a nova presidente do hospital.

- Por que você não gostava dele? - perguntou Calhoun.

- Era uma coisa pessoal. Hodges não tinha um mínimo trato social. - Harley explicou que tinha uma pequena filial da farmácia no hospital, até que um dia, sem explicação ou aviso Hodges simplesmente o chutara fora. - Sei que era natural um hospital em expansão ter sua própria farmácia no ambulatório - continuou Harley. - Compreendo isso. Mas a coisa foi muito malfeita, graças a Dennis Hodges.

Calhoun saiu da farmácia imaginando o tamanho que sua lista teria antes que ele pudesse começar a levantar suspeitos sérios. Tinha chegado a vinte e cinco nomes, e ainda havia mais alguns contatos em Bartlet que ele poderia checar antes de considerar a lista completa.

Como a maioria das lojas fechava à noite, Calhoun atravessou a rua e foi até o Iron Horse Inn. Era um estabelecimento que guardava muitas lembranças agradáveis para ele. Fora o restaurant favorito de sua esposa para jantares especiais, como aniversários de casamento e nascimento.

Carleton Harris, o garçom, reconheceu Calhoun do outro lado do salão. No momento em que Calhoun chegou ao bar, havia um copo de Wild Turkey esperando por ele. Carleton até mesmo pegou meia caneca de cerveja, para que os dois pudessem brindar.

- Trabalhando em alguma coisa interessante ultimamente? - perguntou Carleton depois de beber seu gole de cerveja.

- Acho que sim - disse Calhoun. Em seguida inclinou-se sobre o bar e Carleton instintivamente fez o mesmo.

Ângela não trocou uma palavra com David e evitou encará-lo enquanto os dois se preparavam para dormir. David achou que ell ainda estava irritada pela brincadeira no porão com as máscaras do Dia das Bruxas. Ele não gostava de mau humor, e queria melhorar o clima.

- Pelo que vejo, ainda está com raiva porque assustamos você. Será que não podemos conversar sobre isso?

- O que o faz achar que estou com raiva? - perguntou Angela em tom inocente.

- Ora, Angela! Você está me dando gelo desde que Nikki foi para a cama.

- Acho que fiquei desapontada por você ter feito uma coisa daquelas sabendo como eu estava perturbada com o cadáver. Achei que você seria mais sensível.

- Eu pedi desculpas. Ainda não consigo acreditar que você não tenha rido no momento em que viu a gente. Nunca me ocorreu que fosse ficar tão apavorada. Além disso, não foi somente uma brincadeira. Eu fiz isso por Nikki.

- O que quer dizer? - perguntou Angela em tom cético.

- Com os pesadelos que ela vinha tendo, achei que tratar o assunto com humor fosse de grande ajuda. Foi um artifício para fazer com que ela fosse ao porão sem se apavorar. E funcionou: ela estava tão concentrada em surpreender você que nem pensou no medo.

- Você poderia ao menos ter me avisado.

- Não achei que fosse preciso. Como eu disse, nunca pensei que você seria enganada. E foi o tom de conspiração que manteve Nikki tão envolvida.

Angela encarou o marido. Dava para ver que ele estava com remorsos e sendo sincero. De súbito ela sentiu mais vergonha do que raiva por ter caído na peça. Largou a escova de dentes, foi até David e deu-lhe um abraço.

- Desculpe por ter-me irritado tanto - falou. - Acho que estou estressada. Eu te amo.

- Eu também te amo. Agora vejo que deveria ter contado o que íamos fazer. Você poderia ter fingido que não sabia. Mas nem pensei. Ando tão distraído ultimamente! Também me sinto muito estressado. Mary Ann Schiller não melhorou. Ela vai morrer, eu sei disso.

- Não fique assim. Nunca se pode ter certeza.

- Não sei. Venha, vamos para a cama.

Enquanto eles terminavam as abluções, David contou a Angela sobre o professor que viera de Boston, e nem mesmo ele conseguira acrescentar nada.

- Você está se sentindo mais deprimido?

- Estou na mesma. Acordei às quatro e quinze esta manhã e não consegui dormir de novo. Fico pensando que há alguma coisa que deixei de perceber com esses pacientes; talvez eles tenham pegado alguma doença viral desconhecida. Mas sinto as mãos amarradas. É muito frustrante ter de pensar em Kelley e na CMV cada vez que peço uma consulta especial. A coisa está ficando tão ruim que eu chego a achar que preciso correr com as consultas, com os diagnósticos.

- Para atender mais pacientes?-perguntou Angela enquanto os dois iam do banheiro para o quarto.

David assentiu.

- Mais pressão da CMV, através de Kelley. Odeio admitir, mas isso significa que tenho de evitar conversas com os pacientes e deixar de responder às suas perguntas. Não é difícil influenciar os pacientes, mas não gosto disso. Imagino se eles não percebem que estão sendo prejudicados. Muitas pistas fundamentais para o diagnnóstico certo vêm do tipo de comentários espontâneos que os pacientes fazem quando você passa algum tempo com eles.

- Eu tenho uma confissão a fazer - disse Angela de súbito.

- De que está falando? - perguntou David deitando-se na cama.

- Também fiz algo hoje sem o seu conhecimento.

- O quê?

Enquanto entrava sob as cobertas, Angela contou a David sobre sua ida a Rutland e a contratação de Phil Calhoun para investigar o assassinato de Hodges.

David encarou-a e em seguida olhou para o outro lado. Não disse nada. Angela soube que ele ficara irritado.

- Pelo menos, aceitei a sua sugestão de que era perigoso para mim investigar o crime. Agora temos um profissional.

- O que faz desse homem um profissional? - perguntou David, voltando a olhar para Angela.

- Ele é aposentado da polícia estadual.

- Eu esperava que você fosse razoável com esse caso Hodges. Contratar um detetive particular é ir um pouco longe demais. É jogar dinheiro fora.

- Não é não, desde que seja uma coisa importante para mim. E deveria ser importante para você, se espera que eu continue morando nesta casa.

David suspirou, apagou o abajur do seu lado e rolou para longe de Angela.

Ela sabia que deveria tê-lo avisado sobre a contratação. Suspirou também e estendeu a mão para o seu abajur. Talvez não tivesse feito a coisa do modo certo, mas continuava confiando em que fora uma boa idéia contratar Calhoun.

Mal as luzes foram apagadas, eles ouviram várias batidas altas, seguidas pelos latidos de Ferrugem.

Angela voltou a acender a luz e levantou-se da cama. David fez o mesmo. Os dois pegaram seus roupões e saíram do quarto. David acendeu a luz do corredor. Ferrugem estava no topo da escada, olhando para a escuridão do andar térreo. Rosnava ferozmente.

- Você verificou se a porta da frente estava trancada? - sussurrou Angela.

- Verifiquei.

David seguiu pelo corredor e deu um tapinha na cabeça de Ferrugem.

- O que foi, amigão?

Ferrugem desceu a escada e começou a latir junto à porta da frente. David seguiu-o. Angela ficou no topo da escada. David destrancou a porta da frente.

- Tenha cuidado - alertou Angela.

- Por que você não coloca uma daquelas máscaras do Dia das Bruxas? - gritou David para ela. - Assim damos um tremendo susto em quem estiver lá fora.

- Pare de brincar. Isso não é engraçado.

David saiu para a varanda segurando a coleira de Ferrugem. O céu escuro estava pontilhado de estrelas. Uma lua em quarto minguante dava luz suficiente para enxergar todo o caminho até a estrada, mas não havia nada incomum.

- Venha, Ferrugem - chamou David enquanto se virava. Ao se aproximar da porta, viu um bilhete datilografado, pregado ao portal. Arrancou-o e leu: ”Cuide da sua vida. Esqueça Hodges.”

Trancando a porta, David subiu a escada e entregou o bilhete a Angela. Ela seguiu-o até o quarto.

- Vou levar isto à polícia - disse Angela.

- Droga, o bilhete pode ter vindo da polícia!

David voltou para a cama e apagou a luz. Angela fez o mesmo. Ferrugem seguiu pelo corredor para juntar-se de novo a Nikki, que evidentemente nem se abalara no sono.

- Agora estou completamente acordado - reclamou David.

- Eu também.

A campainha do telefone fez com que os dois saltassem. David atendeu ao primeiro toque. Angela acendeu a luz e ficou olhando o marido. Ele baixou a cabeça enquanto ouvia. Em seguida desligou o aparelho.

- Mary Ann Schiller teve outra convulsão e morreu. Eu disse que isso ia acontecer.

David levantou uma das mãos para o rosto e cobriu os olhos. Angela se aproximou e envolveu-o com os braços. Percebeu que ele chorava em silêncio.

- Quando será que esse pesadelo vai acabar?-disse ele. Em seguida enxugou os olhos e começou a se vestir.

Angela acompanhou-o até a porta dos fundos. Depois de vê-lo sair, trancou a porta e vigiou enquanto as luzes traseiras do Volvo desciam pelo caminho e desapareciam.

Ao passar da saleta dos fundos para a cozinha, ainda pôde ver na imaginação o brilho fantasmagórico do luminol. Estremeceu. Não gostava de estar sem David naquela casa enorme, à noite.

No hospital, David encontrou pela primeira vez Donald, o marido de Mary Ann. Donald, seu filho adolescente Matt e os pais de Mary Ann estavam na sala de espera perto da UTI, conversando em voz baixa e consolando-se mutuamente. Como acontecera com a família Kleber e com a família Tarlow, eles agradeceram os esforços de David. Ninguém demonstrou qualquer ressentimento ou recriminação.

- Nós a tivemos por mais tempo do que o Doutor Mieslich avaliara - disse Donald. Seus olhos estavam vermelhos e o cabelo desgrenhado, como se ele tivesse estado dormindo. – Ela conseguiu voltar para o trabalho na biblioteca.

David consolou a família, dizendo o que eles queriam ouvir,que ela não tinha sofrido. Mas teve de confessar sua confusão quanto à causa dos ataques convulsivos.

- O senhor não esperava as convulsões? - perguntou Donald.

- De jeito nenhum. Especialmente porque a ressonância magnética foi normal.

Todos assentiram como se tivessem entendido. Depois, no calor do momento, David foi contra as ordens de Kelley e perguntou se a família permitiria uma autópsia. Explicou que isso poderia responder a muitas perguntas.

- Não sei - disse Donald e olhou para os sogros. Eles se mostraram igualmente indecisos.

- Por que não pensam nisso durante a noite? - sugeriu David. - Vamos manter o corpo aqui.

Saindo da UTI, David sentiu-se desanimado. Não foi direto para casa. Encaminhou-se para o posto de enfermagem do segundo andar, em meio à penumbra. A noite estava silenciosa.

Tentando pensar em outras coisas, olhou o prontuário de Jonathan Eakins. Enquanto o examinava, uma das enfermeiras da noite disse que o Senhor Eakins estava acordado, vendo TV. David foi até o quarto dele e enfiou a cabeça pela porta.

- Tudo bem? - perguntou.

- Que médico empenhado! - disse Jonathan com um sorriso. - O senhor deve morar aqui.

- O bipe do seu aparelho continua regular?

- Como um relógio - disse Jonathan. - Quando é que vou para casa?

- Provavelmente hoje. Vejo que trocaram a sua cama.

- Sem dúvida. Parece que não conseguiram consertar a outra. Obrigado por ter pedido a eles. Minhas reclamações não tinham dado resultado.

- Tudo bem - disse David. - Vejo-o amanhã.

David saiu do hospital e entrou no carro. Deu partida no motor mas não engrenou a marcha.

Tivera três mortes inesperadas em uma semana: pacientes que outros médicos vinham mantendo vivos e saudáveis. Não podia deixar de questionar sua competência. Perguntou-se se deveria ter escolhido essa profissão. Talvez aqueles três pacientes estivessem vivos se tivessem outro médico.

Sabia que não poderia ficar a noite inteira no estacionamento do hospital, de modo que finalmente engrenou o carro e foi para casa. Surpreendeu-se ao ver uma luz acesa na sala íntima. Logo que estacionou e saiu do carro, viu Angela na porta dos fundos. segurava um jornal de medicina.

- Tudo bem? - perguntou David. - Por que está de pé?

Ele tirou o casaco e fez um gesto para que Angela fosse na sua frente, para a cozinha.

- Não houve como dormir sem você em casa - disse Angela por sobre o ombro enquanto atravessava a cozinha e entrava no corredor. - Principalmente depois daquele bilhete pregado na porta. E estive pensando. Se você tiver que sair no meio da noite assim, quero ter um revólver aqui.

David estendeu a mão e fez com que Angela parasse.

- Não vamos ter nenhuma arma em casa. Você conhece tão bem quanto eu as estatísticas sobre armas em casa onde existem crianças.

- Essas estatísticas não são para famílias de médicos com uma filha única e inteligente. Além disso, eu me responsabilizo em garantir que Nikki tenha consciência do que é o revólver e do seu potencial.

David soltou a esposa e dirigiu-se para a escada.

- Não tenho energia nem força emocional para discutir.

- Muito bem! - disse Angela acompanhando-o. Depois de subir, David decidiu tomar outro banho. Quando chegou ao quarto, Angela estava lendo seu jornal de patologia, tão desperta quanto ele.

- Ontem à noite, depois do jantar, você falou que queria me ajudar - disse ele. - Lembra?

- Claro que lembro.

- Você pode realizar esse desejo. Há uma hora, perguntei se a família Schiller permitiria uma autópsia. Eles disseram que iriam pensar durante a noite e falariam comigo amanhã.

- Infelizmente, essa decisão não compete à família. O hospital não faz autópsias em pacientes da CMV.

- Mas eu tenho outra idéia. Você podia fazer por conta própria.

Angela avaliou a sugestão.

- Talvez pudesse. Amanhã é domingo, e o laboratório fica fechado, a não ser para análises de emergência.

- Foi exatamente o que pensei.

- Eu poderia ir com você amanhã ao hospital e conversar com a família - disse Angela, animando-se com a idéia.

- Eu gostaria muito. Se você pudesse descobrir algum motivo específico para ela ter morrido, eu me sentiria muito melhor.

 

DOMINGO, 24 DE OUTUBRO

DAVID E ANGELA ESTAVAM exaustos de manhã, mas Nikki descansara bastante. Tinha dormido toda a noite sem nenhum pesadelo e estava ansiosa para começar o dia.

Nos domingos, os Wilsons acordavam cedo para ir à igreja. Depois faziam um lanche no Iron Horse Inn.

Ir à igreja fora idéia de Angela. Sua motivação não era religiosa e sim social. Achava que seria uma boa maneira de se ligar à comunidade de Bartlet. Escolhera a igreja metodista que ficava no parque da cidade. Era de longe a mais popular.

- Temos mesmo de ir? - gemeu David naquela manhã. Estava sentado na beira da cama, tentando se vestir com modos desajeitados. Mais uma vez tinha acordado antes do amanhecer, adespeito de ter dormido tão tarde. Ficara desperto durante horas, e tinha acabado de voltar a dormir quando Nikki e Ferrugem entraram pulando no quarto.

- Nikki vai ficar desapontada se não formos - gritou Angela do banheiro.

David acabou de se vestir com resignação. Meia hora depois, a família entrava no Volvo e ia para a cidade. Sabiam pela experiência que o melhor era estacionar no restaurante e andar atéo parque.

Estacionar perto da igreja era sempre um desastre.

O trânsito aos domingos era tão ruim que tinha de ser supervisionado por um dos policiais.

Naquela manhã, Wayne Robertson estava encarregado do controle de trânsito. Um apito de aço inoxidável se projetava de sua boca.

- Que ótima coincidência! - disse Angela assim que o viu. - Vocês dois ficam aqui.

Disparando antes que David pudesse impedi-la, foi direto ao chefe de polícia segurando o bilhete anônimo.

- Desculpe - falou. - Tenho uma coisa que gostaria que o senhor visse. Isto foi pregado em nossa porta ontem à noite, enquanto estávamos na cama.

Ela entregou o bilhete e em seguida apoiou as mãos nos quadris, esperando uma resposta.

Robertson deixou o apito cair da boca. Ele estava pendurado ao pescoço por um cordão. Em seguida, olhou para o bilhete e entregou-o de volta.

- Eu diria que é uma boa sugestão. Recomendo que siga o conselho.

Angela deu um risinho.

- Não estou pedindo sua opinião sobre o conselho do bilhete. Quero que descubra quem o colocou em nossa porta.

- Muito bem! - disse ele devagar, coçando a nuca. - Não há muita coisa a deduzir, a não ser que foi datilografado numa Smith Corona 1952 com o ”o” minúsculo defeituoso.

Por um instante, Angela começou a reavaliar as habilidades de Robertson. Mas depois percebeu que o policial estava zombando dela.

- Tenho certeza de que fará o máximo para descobrir - falou com um sarcasmo controlado -, mas considerando sua atitude com relação ao assassinato de Hodges, acho que não podemos esperar milagres.

Sons de buzinas e alguns gritos de motoristas frustrados forçaram a atenção de Robertson de volta ao trânsito, que rapidamente havia engarrafado. Enquanto fazia o máximo para resolver a confusão, ele disse:

- Você e sua pequena família são novos em Bartlet. Talvez devessem pensar duas vezes antes de interferir num assunto que não lhes diz respeito. Só vão causar problemas para vocês mesmos.

- Até agora só tive problemas com o senhor - disse Ângela. - E sei que o senhor é uma das pessoas que não lamentam a mort de Hodges. Sei que, equivocadamente, culpou-o pela morte de sua esposa.

Robertson parou de dirigir o trânsito e virou-se para Ângela. Suas bochechas gorduchas tinham ficado completamente vermelhas.

- O que a senhora disse?

Nesse momento, David surgiu entre Angela e Robertson, for çando-a a se afastar. Vinha escutando a conversa de perto, e não gostou da direção que ela tomava.

Angela tentou repetir a declaração, mas David deu-lhe um puxão no braço e sussurrou entre dentes, mandando que ela ficasse quieta. Quando chegou a uma distância razoável, apertou os seus ombros.

- Que diabo aconteceu com você? Está atiçando um sujeito que obviamente tem algum problema de personalidade. Sei que tem um certo pendor para o dramático, mas isso já é forçar a barra.

- Ele estava me ridicularizando - reclamou Angela.

- Pare com isso! Você está parecendo uma criança.

- Ele deveria estar nos protegendo - disse Angela com rispidez. - Deveria manter a lei. Mas não está nem um pouco interessado neste bilhete ameaçador, nem tampouco em quem assassinou Hodges.

- Acalme-se! Você está fazendo um escândalo.

Os olhos de Angela afastaram-se de David e observaram a rua ao redor. Várias pessoas tinham parado no caminho para a igreja. Estavam todas olhando.

Sem graça, Angela colocou o bilhete na bolsa, ajeitou o vestido e pegou a mão de Nikki.

- Venha - falou. - Não vamos nos atrasar.

Depois de recrutar Alice Doherty para tomar conta de Nike e Caroline, David e Angela foram para o hospital. Nikki encontrou Caroline depois do culto e ela fora com eles ao lanche no Iron Horse Inn.

No hospital, David e Angela encontraram Donald Schiller e seus sogros, os Josephsons. Sentaram-se todos nos bancos à direita da entrada, para discutir a autópsia proposta.

- Meu marido pediu a vocês uma permissão para autópsia - disse Angela. - Estou aqui para dizer que serei eu a fazer a autópsia, se vocês concordarem. Como nem o hospital nem a CMV pagam por esse serviço, estou me oferecendo para fazê-lo no meu tempo de folga. Não vai custar nada. E pode render algumas informações importantes.

- É muito generoso de sua parte - disse Donald. - Ainda não tínhamos certeza do que fazer, mas, depois de conversar com a senhora, acho que me sinto bem com relação a isso. – Em seguida Donald olhou para os Josephsons. Eles assentiram.

- Acho que Mary Ann iria querer também, se isso puder ajudar outras pessoas.

- Acho que pode - disse Angela.

David e Angela desceram ao porão para pegar o corpo de Mary Ann no necrotério. Levaram-no para o laboratório e empurraram a maca até a sala de autópsia. A sala não era usada para autópsias há vários anos, e tinha virado um depósito. Os dois tiveram de retirar caixas de cima da antiga mesa de aço inoxidável destinada às autópsias.

David planejara assistir, mas logo Angela percebeu que ele achava difícil lidar com a situação. Não estava acostumado a autópsias, e aquele era o corpo de uma paciente de quem ele tratara até a véspera.

- Por que não vai ver os seus pacientes? - sugeriu Angela quando estava pronta para começar.

- Tem certeza de que pode se virar sozinha?

Angela assentiu.

- Mando chamá-lo quando tiver terminado, e você pode me ajudar a levá-la de novo para baixo.

- Obrigado - disse David. Ao chegar na porta, ele se virou. - Lembre-se, considere a possibilidade de alguma doença viral desconhecida. Tenha cuidado. E, além disso, quero um exame toxicológico completo.

- Porquê?

- Quero me cercar de todas as garantias. Me dê uma força, está bem?

- Deixe comigo - disse Angela em tom animador. - Agora suma daqui!

Angela pegou um bisturi e acenou para que David fosse embora.

David deixou que as portas da sala de autópsia se fechassem antes de tirar o gorro, o jaleco e a máscara que pegara para a necrópsia. Em seguida saiu do laboratório e subiu até o andar dos seus pacientes.

Pretendia dar alta a Jonathan Eakins, especialmente depois que as enfermeiras disseram que o coração dele estava normal. Mas isso foi antes de entrar no seu quarto para dizer “alô”. Em vez de vê-lo animado como de costume, recepcionando-o calorosamente, encontrou-o deprimido. Jonathan disse que se sentia terrível.

Sensibilizado pelos acontecimentos recentes, David ficou ins-tantaneamente com a boca seca. Sentiu um jorro de adrenalina correndo pelo corpo. Com medo de ouvir a resposta, perguntou a Jonathan o que estava errado.

- Tudo - disse Jonathan. Seu rosto estava sem energia, seus olhos sem brilho. Um fio de saliva escorria pelo canto da boca. Comecei tendo cólicas, depois náusea e diarréia. Estou sem apetit e tenho de ficar engolindo o tempo todo.

- O que quer dizer com ficar engolindo? - perguntou David temeroso.

- Minha boca fica se enchendo de saliva. Tenho de engolir ou cuspir.

David tentou desesperadamente colocar esses sintomas em alguma categoria reconhecível. A salivação disparou uma lembrança da escola de medicina. Lembrou-se que era um dos sintomas de envenenamento por mercúrio.

- Você comeu alguma coisa estranha a noite passada?

- Não.

- E como está o seu soro?

- Foi retirado ontem, por recomendação sua.

David ficou em pânico. Afora a salivação, os sintomas de Jonathan se pareciam com os que Marjorie, John e Mary Ann apresentaram antes da rápida deterioração e da morte.

- O que há de errado comigo? - perguntou Jonathan, sentindo a ansiedade de David. - Não é coisa séria, é?

- Eu estava esperando lhe dar alta - disse David, evitando uma resposta direta. - Mas, se está se sentindo tão mal, é melhor ficar mais um dia.

- O senhor é quem sabe - disse Jonathan. - Mas vamos cortar esse mal pela raiz; eu tenho um aniversário de casamento no próximo fim de semana.

David correu até o posto de enfermagem com a cabeça num tumulto. Ficava dizendo a si próprio que aquilo não poderia acontecer de novo. Era impossível. As chances eram pequenas demais.

Deixou-se cair numa cadeira e pegou o prontuário de Jonathan. Examinou-o cuidadosamente, relendo tudo, inclusive todas as anotações das enfermeiras. Observou que, naquela manhã, a temperatura de Jonathan era de trinta e sete graus e meio. Será que isso representava febre? David não sabia; era a faixa limite.

Correndo ao quarto de Jonathan, fez com que ele sentasse na beira da cama, para ouvir seu peito. Os pulmões estavam perfeitamente limpos.

David voltou ao posto de enfermagem, apoiou os cotovelos sobre a bancada e cobriu o rosto com as mãos. Precisava pensar. Não sabia como agir, mas achava que tinha de fazer alguma coisa.

Impulsivamente, estendeu a mão para o telefone. Já sabia da reação que podia esperar de Kelley e da CMV, mas não se importou. Chamou o Doutor Mieslich, o oncologista, e o Doutor Hasselbaum, especialista em doenças infecciosas, e pediu que os dois viessem imediatamente. Disse que acreditava estar com um paciente nos primeiros estágios da mesma condição que havia se mostrado mortal três vezes em três dias.

Enquanto esperava a chegada dos médicos, requisitou uma bateria de testes. Sempre havia a chance de que Jonathan acordasse no dia seguinte sentindo-se bem, mas David achava que não poderia arriscar que o paciente seguisse o mesmo caminho de Marjorie, John e Mary Ann. Seu sexto sentido estava dizendo que Jonathan já se encontrava numa luta mortal, e ultimamente sua intuição não vinha falhando.

O especialista em doenças infecciosas foi o primeiro a chegar. Depois de uma conversa rápida com David, foi ver o paciente. O Doutor Mieslich apareceu em seguida. Trouxe consigo os registros do tratamento de Jonathan, quando este fora seu paciente. O Doutor Mieslich e David repassaram página por página os registros. Quando terminaram, o Doutor Hasselbaum estava acabando de examinar Jonathan. Ele juntou-se a David e ao Doutor Mieslich no posto de enfermagem.

Os três homens tinham apenas começado a discutir o caso, quando David percebeu que os dois médicos estavam olhando sobre seu ombro. David virou-se e viu Kelley agigantando-se sobre ele.

- Doutor Wilson - disse Kelley. - Posso trocar uma palavra com o senhor na sala de espera?

- No momento estou muito ocupado - disse David, virando-se de novo para os médicos.

- Acho que preciso insistir. - Kelley deu um tapinha no ombro de David. David empurrou sua mão. Não gostou de Kelley tê-lo tocado.

- Isso me dará a chance de examinar o paciente - disse o Doutor Mieslich, levantando-se e saindo do posto de enfermagem.

- Vou usar o tempo para anotar minhas observações da consulta - completou o Doutor Hasselbaum. Ele tirou uma caneta do bolso do paletó e pegou o prontuário de Jonathan.

- Certo - disse David levantando-se. - O senhor não vem, Senhor Kelley?

Kelley atravessou o corredor e entrou na sala de espera. Assim que David entrou na sala, Kelley fechou a porta.

- Presumo que conhece a senhora Helen Beaton, presidente do hospital, e o Senhor Michael Caldwell, diretor do serviço médico. - Ele fez um gesto na direção das duas pessoas sentadas no sofá.

- Sim, claro - disse David. Ele se lembrava de Caldwell das entrevistas de Angela, e havia encontrado Beaton em várias atividades do hospital. Aproximou-se e apertou as mãos dos ddois. Nenhum deles se preocupou em levantar.

Kelley sentou-se. David fez o mesmo.

David olhou ansiosamente os rostos ao redor. Esperava problemas vindos de Kelley, achando que essa reunião tinha a ver com a autópsia de Mary Ann Schiller. Imaginou que esse fosse o motivo da presença dos representantes do hospital. Esperava que isso não causasse problemas para Angela.

- Acho que devo ser direto - disse Kelley. - Provavelmente está se perguntando por que reagimos tão depressa ao que você fez com Jonathan Eakins.

David ficou pasmo: como aqueles três poderiam estar ali para conversar sobre Jonathan quando ele estava apenas começando a investigar os sintomas do sujeito?

- Fomos chamados pela coordenadora de utilização da enfermagem - explicou Kelley. - Ela fora alertada pelas enfermeiras do andar, de acordo com instruções prévias. O controle de utilização é vital. Sentimos a necessidade de intervir. Como eu lhe disse antes, você está usando consultas demais, especialmente fora da equipe da CMV.

- E muitos exames de laboratório - disse Beaton.

- E muitos testes de diagnóstico também - completou Caldwell.

David olhou incrédulo para os três administradores. Cada um deles devolveu o olhar de modo impassível. Aquilo era um tribunal em julgamento. Era como a Inquisição. Ele estava sendo julgado por heresia de economia médica, e nenhum dos inquisidores era médico.

- Queremos lembrar-lhe que está lidando com um paciente que foi tratado de câncer de próstata com metástase - disse Kelley.

- Achamos que o senhor já foi muito perdulário com suas prescrições – completou Beaton.

- O senhor tem uma história de uso excessivo de recursos em três pacientes anteriores, que eram claramente terminais - disse Caldwell.

David lutou contra as emoções. Como já estivera questionando a própria competência em razão das três mortes sucessivas, sentia-se vulnerável às críticas dos administradores.

- Meu compromisso é com o paciente - falou em tom humilde. - Não com uma organização ou uma instituição.

- Admiramos a sua filosofia - disse Beaton. - Mas essa filosofia levou à crise econômica no serviço médico. O senhor deve expandir seus horizontes. Temos um compromisso com toda comunidade de pacientes. Nem tudo pode ser feito por todo mundo!, É necessário um julgamento quanto ao uso racional de recursos limitados.

- David, a questão é que seu uso de serviços subsidiário excede em muito as normas desenvolvidas por seus colegas médicos - disse Kelley.

Houve uma pausa. David não tinha certeza do que dizer.

- Minha preocupação com esses casos em particular - falou - é que eu esteja diante de uma doença infecciosa desconhecida. Se for esse o caso, seria desastroso não fazer um diagnóstico.

Os três administradores se entreolharam, para ver quem falaria. Beaton encolheu os ombros e disse:

- Isso está fora de minha área de especialização; sou a primeira a admitir.

- Da minha também - disse Caldwell.

- Mas, por acaso, temos aqui um especialista em doenças infecciosas, e ele é independente - disse Kelley. - Como a CMV já o está pagando, vamos perguntar a sua opinião.

Kelley saiu e voltou com o Doutor Martin Hasselbaum e com o DOUTOR Clark Mieslich. As apresentações foram feitas. Foi perguntado para o Doutor Hasselbaum se achava que os pacientes de David que faleceram poderiam ter sido afetados por alguma doença infecciosa desconhecida.

- Duvido sinceramente - disse o Doutor Hasselbaum. - Não há qualquer evidência de que tenham tido uma doença infecciosa. Todos os três tiveram pneumonia, mas acho que ela foi causada por debilidade generalizada. Em todos os três casos, houve um agente patogênico reconhecido.

Em seguida Kelley perguntou aos dois médicos que tipo de tratamento eles achavam que deveria ser dado a Jonathan Eakins.

- Puramente sintomático - disse o Doutor Mieslich.

Em seguida olhou para o Doutor Hasselbaum.

- Minha recomendação também seria essa - disse o Doutor Hasselbaum.

- Os senhores também viram a longa lista de testes de diagnóstico pedidos pelo Doutor Wilson - disse Kelley. - Acham que algum desses testes é crucial desta vez?

O Doutor Mieslich e o Doutor Hasselbaum se entreolharam. O Doutor Hasselbaum foi o primeiro a falar:

- Se o caso fosse meu, eu esperaria para ver o que acontece. O paciente pode estar bem de manhã.

- Concordo - disse o Doutor Mieslich.

- Bom, então acho que todos concordamos - disse Kelley. - O que o senhor diz, Doutor Wilson?

A reunião terminou entre sorrisos, apertos de mão e aparente amizade. Mas David sentiu-se confuso e humilhado, até mesmo deprimido. Voltou ao posto de enfermagem e cancelou a maioria das prescrições que fizera para Jonathan. Em seguida foi olhar o paciente.

- Obrigado por trazer tanta gente para me examinar - disse Jonathan.

- Como se sente? - perguntou David.

- Não sei. Talvez um pouquinho melhor.

Quando David voltou à sala de autópsia, Angela estava arrumando as coisas. A avaliação de tempo de David fora boa. Ajudou a levar o corpo de Mary Ann de volta para o necrotério.

Percebeu que Angela não estava ansiosa para conversar sobre o que descobrira. Praticamente teve de arrancar as respostas.

- Não descobri muita coisa - admitiu Angela.

- Nada no cérebro?

- No geral estava limpo. Mas precisamos ver o que o microscópio vai mostrar.

- Algum tumor?

- Acho que havia um pequeno no abdome. Também vou ter de esperar o microscópio, para ter certeza.

- Então nenhuma coisa apareceu claramente como causa da morte?

- Ela teve pneumonia.

David assentiu. Já sabia disso.

- Sinto muito por não ter descoberto mais nada.

- Agradeço por ter tentado.

Enquanto iam para casa, Angela percebeu que David estava deprimido. Ele só respondia às perguntas em monossílabos.

- Acho que está chateado porque não descobri muita coisa na autópsia - falou antes de sair do carro.

David suspirou.

- Isso é só uma parte.

- David, você é um médico maravilhoso e talentoso. Por favor, pare de ser tão duro consigo mesmo.

Então David contou sobre ter sido levado por Kelley diante daquele tribunal. Angela ficou lívida.

- Que desplante! - falou. - Administradores de hospitais não devem se envolver nos tratamentos.

- Não sei - disse David. - De certa forma eles estão certos. O custo dos serviços médicos é um problema. Mas é bastante perturbador, quando se trata de coisas específicas num paciente individual. O pior é que os médicos que eu chamei ficaram do lado dos administradores.

No jantar, David descobriu que não tinha fome; simplesmente ficou mexendo a comida no prato. Para piorar as coisas, Nikki reclamou que não estava se sentindo bem.

Às oito horas, Nikki começou a ficar congestionada e Ângela levou-a ao andar de cima, para a terapia respiratória. Ao terminar, encontrou David sentado na sala íntima. A televisão estava ligada, mas ele não tinha olhos para ela; concentrava a atenção no telefone.

- Acho melhor Nikki não ir à escola amanhã - disse Ângela. David não respondeu. Ângela examinou seu rosto. No momento, não soube com quem estava mais preocupada: Nikki ou David. –

 

SEGUNDA-FEIRA, 25 DE OUTUBRO

ASSIM QUE ABRIU OS olhos ao som do despertador, Angela ficou desapontada por não encontrar David ao seu lado. Levantando-se, abriu as cortinas. O céu nublado trazia promessa de chuva.

Desceu para procurar David. Encontrou-o sentado na sala íntima.

- Acordado há muito tempo? - perguntou tentando parecer animada.

- Desde as quatro. Mas não se preocupe. Acho que estou um pouco melhor hoje. – David mostrou-lhe um meio-sorriso.

Apesar de continuar preocupada com David, Angela ficou satisfeita com a condição respiratória de Nikki. Ela acordou sem congestão. E mais uma vez tinha atravessado a noite sem pesadelos. Até Angela teve de admitir que David poderia estar certo quanto aos benefícios da brincadeira idiota com as máscaras do Dia das Bruxas.

Infelizmente, a própria Angela tivera um pesadelo. Um sonho onde vinha da rua, carregando sacos de compras, e encontrava a cozinha coberta de sangue. Mas não era sangue seco. Era sangue fresco, escorrendo pelas paredes e fazendo poças no chão.

Depois do tratamento respiratório, ela auscultou cuidadosamente o peito de Nikki. Estava limpo. Para o prazer da menina, Angela disse que ela poderia ir à escola.

A despeito da possibilidade de chuva, David insistiu em ir de bicicleta para o trabalho.

Angela não tentou demovê-lo. Achava encorajante ele conseguir entusiasmo para isso.

Depois de deixar Nikki, Angela foi para o laboratório, ansiosa por trabalhar. Geralmente as segundas-feiras eram cheias de serviço, já que havia muito trabalho laboratorial do fim de semana. Ao entrar em sua sala, ia pendurar o casaco no cabide quando percebeu Wadley. Ele estava de pé, imóvel, junto à porta de ligação.

- Bom dia - disse Angela, mais uma vez tentando parecer animada. Pendurou o casaco e virou-se para encarar o chefe. Imediatamente ficou claro que ele não estava satisfeito.

- Fiquei sabendo que você fez uma autópsia aqui no laboratório - disse Wadley em tom irritado.

- É verdade. Mas fiz no meu tempo de folga.

- Você pode ter feito no tempo de folga, mas foi no laboratório.

- Foi dito especificamente que as autópsias não são pagas pela CMV - disse ela.

Os olhos frios de Wadley se grudaram em Angela.

- Então permita que eu esclareça um mal-entendido. Nenhuma autópsia deve ser feita neste departamento sem a minha autorização. Eu dirijo o departamento, e não você. Ordenei que os técnicos não processassem as lâminas, as culturas ou as amostras toxicológicas..

Dito isto, Wadley voltou para sua sala e fechou a porta de ligação.

Como sempre, depois de um daqueles confrontos cada vez mais freqüentes, Angela sentiu-se perturbada. Assim que se recompôs, recuperou os espécimes de tecidos, as culturas e as amostras toxicológicas que tirara de Mary Ann. Em seguida, embalou cuidadosamente as culturas e o material toxicológico e mandou-os para o departamento onde estudara, em Boston.

Tinha amigos ali que poderiam processá-los. As amostras de tecido ela guardou, planejando fazer sozinha as lâminas.

David fez a ronda dos pacientes, deixando Jonathan para o fim. Ao entrar no quarto, ficou chocado. A cama estava vazia.

Presumindo que ele fora transferido para outro quarto por algum motivo ridículo, como acontecera com John Tarlow, foi até o posto de enfermagem perguntar onde encontraria Jonathan. Janet Colburn disse que o Senhor Eakíns fora transferido à noite para a UTI, por ordem do médico encarregado da emergência.

David ficou perplexo.

- O Senhor Eakins teve problemas respiratórios e entrou em coma - acrescentou Janet.

- Por que não fui chamado?

- Nós recebemos ordens específicas de não chamá-lo.

- Ordens de quem?

- De Michael Caldwell, o diretor médico do hospital.

- Isso é absurdo... - gritou David. Por que...

- Disseram que, se tivesse alguma pergunta, deveria falar com a Senhora Beaton – disse Janet. - Não nos culpe.

David estava fora de si, em fúria. O diretor médico não tinha o direito de deixar uma ordem assim. David nunca ouvira falar de nada mais absurdo. Já era suficientemente ruim que os administradores estivessem passando por cima dele. Interceder de modo tão direto no atendimento ao paciente parecia uma total violação.

Mas David percebeu que não era com a enfermeira que deveria discutir. Saiu de imediato para ver o paciente. Ao chegar, descobriu que a condição de Jonathan era realmente crítica.

Estava em coma e com respirador artificial, como acontecera tão recentemente com Mary Ann. David auscultou seu peito. Jonathan também estava desenvolvendo pneumonia. Virando o frasco de soro, viu que ele estava recebendo antibiótico intravenoso contínuo.

Foi até o balcão central examinar o prontuário de Jonathan. Rapidamente percebeu que o processo de Jonathan começava a espelhar o dos três pacientes falecidos. Jonathan desenvolvera problemas gastrointestinais, do sistema nervoso central e do sistema sangüíneo.

David pegou o telefone para comunicar-se com Helen Beaton, quando a coordenadora da UTI bateu em seu ombro e entregou-lhe outro telefone. Era Charles Kelley.

- As enfermeiras disseram que você tinha ido à UTI - disse Kelley. - Pedi que me chamassem no momento em que você aparecesse. Queria informar que o caso de Eakins foi transferido para outro médico da CMV.

- Você não pode fazer isso - disse David em tom irritado.

- Calma, Doutor Wilson. Claro que a CMV pode transferir um paciente, e eu fiz isso. Também notifiquei a família e eles concordaram.

- Por quê? - Ao saber que a família também concordava com a mudança, sua voz perdeu boa parte da decisão.

- Sentimos que você estava muito envolvido emocionalmente. Decidimos que era melhor para todos se você fosse afastado. Isso irá dar-lhe uma chance de se acalmar. Sei que andou passando por muita tensão.

David não sabia o que pensar nem o que dizer. Pensou em dizer que a condição de Jonathan piorara exatamente como ele previra, mas decidiu não fazê-lo. Kelley não parecia disposto a considerar o que quer que ele dissesse.

- Não se esqueça do que conversamos ontem - prosseguiu Kelley. - Sei que compreende nosso ponto de vista e que vai pensar a respeito.

David estava indeciso quando desligou. Por um lado, continuava furioso por ter sido unilateralmente afastado do caso. Por outro, havia um elemento de verdade no que Kelley dissera. David precisava olhar suas mãos trêmulas para reconhecer que estava emocionalmente envolvido.

Saiu vacilante da UTI. Nem mesmo olhou para Jonathan ao passar por ele. No corredor, checou o relógio. Ainda era muito cedo para ir ao consultório. Em vez disso, foi até o departamento de registros médicos.

Pegou os prontuários de Marjorie, John e Mary Ann. Sentado no isolamento de uma cabine, reviu cada um deles, examinando todos os registros feitos por conta do hospital. Leu tudo, todas as anotações das enfermeiras, e observou todos os valores laboratoriais e resultados dos testes de diagnóstico.

Ainda avaliava a idéia de uma infecção desconhecida, algo que seus pacientes poderiam ter contraído no hospital. Esse tipo de infecção era chamado de infecção hospitalar. David lera sobre esse tipo de acontecimento em outros hospitais. Todos os seus pacientes tinham tido pneumonia, mas cada caso fora provocado por uma cepa diferente de bactérias. A pneumonia teria de ser resultante de alguma infecção subjacente.

O único elemento comum nos três casos era a história. Cada paciente fora tratado de câncer com várias combinações de cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Das três modalidades, somente a quimioterapia era comum aos três pacientes.

David estava cônscio de que um dos efeitos colaterais da quimioterapia era uma baixa geral da resistência, devido a um sistema imunológico deprimido. Perguntou-se se o fato poderia ter algo a ver com a rápida deterioração que os pacientes haviam experimentado. Entretanto, o oncologista especializado nessas questões dera pouca importância a esse fator comum, já que nos três casos a quimioterapia fora encerrada muito antes da hospitalização. O sistema imunológico dos três pacientes voltara ao normal há muito tempo.

O bipe no cinto de David interrompeu seu pensamento. Ao olhar na tela de cristal líquido, reconheceu o número: era a sala de emergência. Recolocando os prontuários no lugar, David correu escada abaixo.

O paciente era Donald Anderson, outro de seus visitantes freqüentes. O diabetes de Donald se mostrava particularmente difícil de ser regulado. Era a principal fonte de suas freqüentes reclamações. Desta vez não era exceção. Quando entrou na sala de exame, David percebeu de imediato que a contagem de açúcar no sangue de Donald estava fora de controle. Donald estava semicomatoso.

David pediu uma contagem de açúcar no sangue e iniciou um tratamento intravenoso. Enquanto esperava o resultado do laboratório, falou com Shirley Anderson, a esposa de Donald.

- Ele está com problemas há uma semana - reclamou Shirley. - Mas o senhor sabe como ele é teimoso. Recusou-se a vir consultá-lo.

- Acho que vamos precisar interná-lo. Vai demorar alguns dias até colocá-lo num regime novo.

- Eu estava esperando que o senhor fizesse isso. Quando ele fica desse jeito, é difícil cuidar das crianças e das outras coisas.

Quando recebeu os resultados do açúcar no sangue, David ficou surpreso por Donald não estar ainda mais entorpecido. Enquanto ia conversar com Donald, que agora estava lúcido graças ao tratamento intravenoso, David teve uma surpresa. Ao olhar num dos outros cubículos de exame, viu um rosto familiar: era Caroline Helmsfor a amiga de Nikki. O Doutor Pilsner estava junto dela.

David entrou, ficando do outro lado da cama, de frente para o Doutor Pilsner. Caroline fitou-o com olhos implorantes. Cobrindo a parte inferior de seu rosto havia uma máscara plástica de oxigênio. Suas feições estavam abatidas, com um tom ligeiramente azulado. A respiração era dificultosa.

O Doutor Pilsner auscultava seu peito. Sorriu para David ao vê-lo. Quando terminou o exame, puxou David para o lado.

- A coitadinha está passando por um momento difícil - falou.

- O que há de errado?

- O de sempre. Está congestionada e com febre alta.

- Vai interná-la?

- Sem dúvida. Você sabe melhor do que a maioria das pessoas que não podemos nos arriscar com esse tipo de problema.

David assentiu. Ele sabia. Olhou para Caroline, que lutava para respirar. Ela parecia tão minúscula e tão vulnerável na maca enorme! A visão fez com que ele se preocupasse com Nikki. Pela fibrose cística, poderia ser Nikki a pessoa deitada na maca, e não Caroline.

- O chefe da perícia médica quer falar com a senhora - disse uma das secretárias.

Angela pegou o fone.

- Espero que não esteja perturbando você - disse Walt.

- De modo nenhum.

- Recebi algumas novidades sobre a autópsia de Hodges. Ainda está interessada?

- Claro que sim.

- Primeiro, o sujeito tinha uma quantidade significativa de álcool em seu fluido ocular.

- Não sabia que era possível detectar isso depois de tanto tempo.

- Quando se pode conseguir fluido ocular, é fácil. O álcool é razoavelmente estável. Também tivemos confirmação de que o DNA da pele sob as unhas é diferente do dele. De modo que, sem dúvida, é o DNA do assassino.

- E quanto àquelas partículas de carvão na pele? - perguntou Angela. - Teve mais alguma idéia a respeito?

- Para ser honesto, não pensei muito. Mas mudei de idéia quanto a elas serem contemporâneas da luta. Percebi que estavam na derme, e não na epiderme. Deve ter sido algum ferimento antigo, como uma espetadela de lápis no primário. Eu tenho um sinal desses no braço.

- Eu tenho um na palma da mão - disse Angela.

- O motivo para eu não ter feito muita coisa no caso é que não houve pressão do promotor nem da polícia estadual. Infelizmente estou atolado com outros casos em que há pressão considerável.

- Compreendo. Mas ainda estou interessada. De modo que se surgir alguma novidade, por favor, avise-me.

Depois de ter desligado, Angela continuou pensando no caso Hodges, imaginando o que Phil Calhoun estaria fazendo. Não recebera qualquer notícia dele desde que o visitara e pagara o sinal. E pensar em Hodges e Calhoun fez com que se recordasse de como se sentira vulnerável quando David saíra de casa para ir ao hospital durante a noite.

Checando o relógio de pulso, percebeu que estava na hora do almoço. Desligou o microscópio, pegou o casaco e foi até o carro. Tinha dito a David que queria uma arma, e realmente falara sério.

Não havia lojas de artigos esportivos em Bartlet, mas a Loja de Ferragens Staley’s tinha uma linha de armas de fogo. Quando explicou o que desejava, o Senhor Staley mostrou-se instantaneamente solícito. Perguntou quais os motivos para querer comprar uma arma. Quando ela falou em proteção para a casa, ele sugeriu uma espingarda de caça.

Angela demorou menos de quinze minutos para fazer a escolha. Comprou uma espingarda calibre doze. O Senhor Staley ensinou como carregar e descarregar a arma. Teve um cuidado especial ao demonstrar a trava de segurança. Além disso, a arma veio com um manual, que o Sr Staley encorajou-a a ler.

No caminho de volta ao carro, Angela ficou sem graça carregando a arma, mesmo tendo pedido ao Senhor Staley para embrulhá-la em papel manilha; o objeto continuava reconhecível. Ela nunca havia carregado uma arma antes. Na outra mão levava um saco contendo uma caixa de cartuchos.

Com tremendo alívio, colocou a arma no porta-malas do carro. Ao se dirigir para a porta do motorista, olhou para a delegacia, do outro lado do gramado, e hesitou. Desde o confronto com Robertson na manhã anterior, sentia-se culpada. Além disso, sabia que David estava certo; fora besteira tornar o chefe de polícia um inimigo, a despeito de ele ser um tremendo imbecil.

Largando a porta do carro, Angela atravessou o gramado e entrou na delegacia. Robertson concordou em vê-la depois de uma espera de dez minutos.

- Espero não estar incomodando - disse ela.

- Não é incômodo - respondeu ele, assim que Angela entrou na sala.

Angela sentou-se.

- Não quero ocupar muito o seu tempo.

- Sou um funcionário público - disse Robertson num tom descarado.

- Vim me desculpar pelo que houve ontem.

- Bem... - o chefe de polícia fora claramente pego de surpresa.

- Meu comportamento foi inadequado. E peço desculpas porque eu fiquei realmente perturbada pela descoberta daquele cadáver na minha casa.

- Bom, foi gentileza sua vir aqui - disse Robertson, totalmente aturdido. Ele não esperava aquilo.

- Sinto muito por Hodges. Vamos manter o caso aberto e informá-la de qualquer novidade que apareça.

- Apareceu uma coisa esta manhã - disse Ângela. Em seguida contou sobre a possibilidade de o assassino de Hodges ter no braço carvão proveniente de um lápis.

- De um lápis?

- Sim. - Angela levantou-se e estendeu a mão, apontando para uma pequena mancha escura sob a pele.-Algo assim. Ganhei isso na terceira série.

- Ah, sei - Robertson balançou a cabeça, enquanto um sorriso entortava os cantos de sua boca.-Bom, obrigado pela dica.

- Só pensei em passá-la adiante. O perito médico também disse que a pele debaixo das unhas de Hodges era definitivamente do assassino. Ele conseguiu uma impressão de DNA.

- O problema é que essa baboseira supersofisticada de DNA não ajuda muito se não houver um suspeito - disse Robertson.

- Houve uma pequena cidade na Inglaterra que resolveu um estupro usando uma impressão de DNA. Só precisaram fazer um teste de DNA em todas as pessoas da cidade.

- Nossa! Posso imaginar o que a Liga de Liberdades Civis da América diria se eu tentasse fazer isso em Bartlet.

- Não estou sugerindo que tente. Só queria que soubesse sobre o teste de DNA.

- Fico grato - disse Robertson. - E obrigado por ter vindo. Ele ficou de pé quando Angela se levantou para ir embora, e olhou pela janela enquanto ela entrava no carro.

Quando o carro já ia sumindo, Robertson pegou o telefone e apertou um dos botões de ligação automática.

- Você não vai acreditar, mas ela continua em ação. Parece um cachorro com um osso.

Angela sentiu-se um pouco melhor por ter tentado limpar a situação com Robertson. Ao mesmo tempo, não se iludia pensando que poderia mudar as coisas. Intuitivamente sabia que ele não mexeria um dedo para resolver o assassinato de Hodges.

No hospital, todas as vagas de estacionamento reservadas para os médicos perto da porta dos fundos estavam ocupadas. Angela teve de andar em ziguezague pelo estacionamento até encontrar um lugar. Não conseguindo, foi para o estacionamento de cima. Finalmente encontrou uma vaga no canto mais distante. Levou quase cinco minutos para voltar à porta do hospital.

- Hoje não é o meu dia - disse em voz alta enquanto entrava no prédio.

- Mas nem vai dar para ver o edifício-garagem da cidade - disse Traynor no telefone.

Mal conseguia mascarar a frustração Convergi savacom Ned Banks, que se tornara um dos membros do Conselho Municipal no ano anterior.

- Não, não, não - reiterou Traynor - Não vai ficar parecendo uma casamata da Segunda Guerra. Por que não nos reunimos no hospital, e eu lhe mostro a maquete? Acredite, o projeto é bastante atraente. E se o Hospital Comunitário de Bartlet pretende ser o centro de referência do estado, precisamos dela.

Collette, secretária de Traynor, entrou na sala e colocou um cartão de visitas no mata-borrão diante dele. Naquele momento, em que Ned estava falando sobre Bartlet perder o seu charme, Traynor pegou o cartão. Estava escrito: ”Phil Calhoun, Investigador Particular, Satisfação Garantida.”

Traynor cobriu o fone e sussurrou:

- Quem, diabos, é Phil Calhoun? - Collette encolheu os ombros.

- Nunca o vi antes, mas ele diz que conhece o senhor. De qualquer modo, está esperando aí fora. Eu preciso dar um pulo no correio.

Traynor acenou um adeus para a secretária e em seguida leu o cartão de visitas. Enquanto isso, Ned continuava lamentando mudanças recentes em Bartlet, especialmente o condomínio que estava sendo construído perto da interestadual.

- Olhe, Ned, eu preciso desligar - interrompeu Traynor. Realmente espero que pense um pouco nessa garagem. Sei que Wiggins vem falando mal dela, mas é importante para o hospital E, francamente, preciso de todos os votos que puder conseguir.

Traynor desligou o telefone sentindo-se enojado. Não conseguia entender a estreiteza de visão da maioria dos conselheiros. Nenhum deles parecia avaliar o significado econômico do hospital e isso tornava muito mais difícil o seu trabalho como chairman da diretoria.

Enfiou a cabeça pelo vão da porta, para olhar o investigador que ele supostamente conhecia.

Folheando um dos relatórios trimestrais do hospital, havia um sujeito de camisa xadrez preto e branco. Traynor achou-o vagamente familiar, mas não conseguiu situá-lo.

Convidou Calhoun a entrar. Enquanto se cumprimentavam, fez uma varredura na memória, mas continuava em branco. Fez um gesto na direção de uma cadeira. Os dois homens se sentaram.

Somente quando Calhoun mencionou que fora da polícia estadual, a lembrança voltou.

- Agora me lembro - disse Traynor. - O senhor era amigo do irmão de Harley Strombell.

Calhoun assentiu e elogiou a memória de Traynor.

- Nunca esqueço um rosto - vangloriou-se Traynor.

- Queria fazer algumas perguntas sobre o Doutor Hodges - disse Calhoun, indo direto ao ponto.

Traynor segurou nervosamente o martelo de juiz que usava para as reuniões da diretoria.

Não gostava de responder perguntas sobre Hodges, mas temia não fazê-lo. Não queria fazer um estardalhaço sobre o caso. Desejava que toda essa confusão sobre Hodges acabasse.

- Seu interesse é pessoal ou profissional?

- Os dois - disse Calhoun.

- O senhor foi contratado?

- Pode-se dizer que sim.

- Por quem?

- Não tenho autorização para dizer. Como advogado, tenho certeza que o senhor compreende.

- Se espera que eu coopere - disse Traynor -, terá de ser um pouco mais cooperativo.

Calhoun pegou sua caixa de charutos Antônio y Cleopatra e perguntou se podia fumar.

Traynor assentiu. Ofereceu-lhe um, mas Traynor declinou. Calhoun demorou para acender o charuto. Soprou fumaça para o alto e disse em seguida:

- A família está interessada em descobrir quem foi o responsável pelo assassinato brutal do doutor.

- É compreensível. O senhor pode me dar a palavra de que tudo que eu disser será mantido em segredo?

- Totalmente.

- Certo. O que quer perguntar?

- Estou fazendo uma lista das pessoas que não gostavam de Hodges. O senhor tem alguém para acrescentar?

- Metade da cidade - disse Traynor com um riso curto. Mas não me sinto confortável dando nomes.

- Soube que o senhor esteve com Hodges na noite do assassinato.

- Hodges irrompeu numa reunião que estávamos fazendo no hospital. Era um hábito desagradável, no qual ele incorria com freqüência.

- Fiquei sabendo que Hodges estava com raiva.

- Onde o senhor ouviu isso?

- Estive falando com várias pessoas na cidade.

- Hodges tinha raiva o tempo todo. Vivia cronicamente insa tisfeito com o modo como administramos o hospital. Tinha um sentimento de posse em relação à instituição. Além disso, seu pensamento era ultrapassado. Era um médico da velha escola, dirigiu o hospital numa situação em que bastava cobrir os custos. Ele não gostava do novo ambiente de atendimento administrado com concorrência administrada. Simplesmente não compreendia.

- Acho que eu também não entendo muito do assunto - admitiu Calhoun.

- É melhor aprender. Porque a coisa chegou para ficar. Que tipo de plano de saúde o senhor tem?

- CMV - disse Calhoun.

- Pois então. Atendimento administrado. O senhor já faz parte da coisa e nem sabe.

- Fiquei sabendo que quando entrou na reunião do hospital o Doutor Hodges trazia consigo alguns prontuários.

- Partes de prontuários - corrigiu Traynor. - Mas não olhei. Estava planejando almoçar com ele no dia seguinte, para discutir o assunto. Sem dúvida ele estava preocupado com alguns de seus ex-pacientes. Sempre reclamava pelo fato de seus ex-pacientes não receberem tratamento VIP. Falando francamente, ele era um sujeito indigesto.

- O Doutor Hodges incomodava a nova presidente do hospital, Helen Beaton?

- Meu Deus, claro que sim! Ele não hesitava em entrar na sala dela a qualquer hora do dia. Helen Beaton foi provavelmente a pessoa que mais sofreu com o assédio de Hodges. Afinal de contas, ela ocupa o cargo que foi dele. E quem sabia realizar o trabalho melhor do que ele?

- Soube que o senhor topou uma segunda vez com Hodges na noite em que ele invadiu a reunião.

- Infelizmente - disse Traynor. - No restaurante. Depois da maioria das reuniões do hospital, nós vamos ao Inn. Naquela noite Hodges estava lá, bebendo como sempre e beligerante como sempre.

- E ele trocou palavras desagradáveis com Robertson?

- Sem dúvida.

- E com Sherwood?

- Com quem o senhor esteve falando? - perguntou Traynor.

- Com um punhado de pessoas da cidade. Soube que o Doutor Cantor também disse algumas coisas desairosas sobre Hodges.

- Não me lembro. Mas Cantor não gostava de Hodges há anos.

- Porquê?

- Hodges pegou os departamentos de radiologia e patologia para o hospital. Queria ficar com tudo que eles geraram a partir de equipamentos do hospital.

- E quanto ao senhor? Ouvi dizer que também não gostava muito do Doutor Hodges.

- Eu lhe disse: ele não me fazia bem. Já era difícil dirigir o hospital sem sua interferência contínua.

- Me disseram que era uma coisa pessoal. Algo sobre sua irmã.

- Meu Deus, suas fontes são boas - disse Traynor.

- Só fofocas da cidade.

- O senhor está certo. Não é segredo. Minha irmã Sunny cometeu suicídio depois que Hodges retirou as prerrogativas do marido dela no hospital.

- E o senhor culpou Hodges?

- Mais na época do que atualmente. Droga, o marido de Sunny era um bêbado. Hodges devia ter retirado suas prerrogativas antes que ele tivesse chance de causar um verdadeiro mal.

- Só mais uma pergunta. O senhor sabe quem matou o Doutor Hodges?

Traynor riu e depois sacudiu a cabeça.

- Não tenho a mínima idéia e não me importo. A única coisa que me interessa é o efeito que essa morte pode ter sobre o hospital.

Calhoun levantou-se e esmagou o charuto num cinzeiro que estava no canto da mesa de Traynor.

- Faça-me um favor - disse Traynor. - Eu colaborei com o senhor. Não tinha de contar nada. Só peço que não faça estardalhaço com esse caso Hodges. Se descobrir quem foi o assassino, e quiser expor o indivíduo, me informe, para que possamos fazer planos com respeito à publicidade, especialmente se o culpado tiver algo a ver com o hospital. Já estamos com problema de relações públicas numa outra questão. Não queremos ser desviados disso por alguma outra coisa.

- Parece razoável - disse Calhoun.

Depois de ter levado Calhoun até a saída, Traynor voltou à sua mesa, procurou o número de Clara Hodges em Boston e discou.

- Queria fazer uma pergunta - disse ele depois das amenidades usuais. - A senhora conhece um cavalheiro chamado Calhoun?

- Não que eu me lembre - disse Clara. - Por que está perguntando?

- Ele acaba de sair de minha sala. É investigador particular. Veio fazer perguntas sobre Dennis e deu a entender que foi contratado pela família.

- Eu certamente não contratei nenhum investigador particular. E não posso imaginar alguém da família que tenha feito isso especialmente sem que eu soubesse.

- É o que eu temia. Se souber alguma coisa sobre esse sujeito, por favor, me informe.

- Sem dúvida - disse Clara.

Traynor desligou o telefone e suspirou. Tinha a sensação desagradável de que havia mais problemas pela frente. Mesmo do outro lado do túmulo, Hodges era uma praga.

- O senhor tem mais uma paciente - disse Susan enquanto entregava o prontuário a David. - Eu disse a ela que viesse logo. É uma das enfermeiras do segundo andar.

David pegou o prontuário e entrou na sala de exame. A enfermeira era Beverly Hopkins.

David a conhecia vagamente; ela trabalhava no turno da noite.

- Qual é o problema? - perguntou, com um sorriso. Beverly estava sentada na mesa de exames. Era uma mulher alta, magra, com cabelos castanho-claros. Segurava uma bacia que Susan lhe dera, por causa da náusea. Seu rosto estava pálido.

- Desculpe incomodá-lo, Doutor Wilson. Acho que é a gripe. Eu teria ficado em casa, de cama; mas, como o senhor sabe, nós temos ordem de vir saber se podemos tirar folga.

- Não se preocupe - disse David. - Estou aqui para isso. Quais são os seus sintomas?

Os sintomas eram semelhantes aos das outras quatro enfermeiras: mal-estar generalizado, problemas gastrointestinais e febre baixa. David concordou com a avaliação de Beverly. Mandou-a para casa, recomendando repouso, aconselhando-a a beber muito líquido e a tomar aspirina conforme a necessidade.

Depois de terminar o serviço no consultório, David foi ao hospital ver os pacientes.

Enquanto caminhava, começou a pensar no fato de que as únicas pessoas que vira com gripe até agora eram as enfermeiras, e todas as cinco trabalhavam no segundo andar.

Parou de repente. Imaginou se seria coincidência que todas as enfermeiras fossem do segundo andar, o mesmo onde tinham estado todos os seus pacientes que morreram. Claro, noventa por cento dos pacientes iam para o segundo andar. Mas David achou estranho que nenhuma enfermeira da sala de emergência ou da cirurgia aparecesse com gripe.

Recomeçou a caminhar, e enquanto isso seus pensamentos retornaram à possibilidade de seus pacientes terem morrido de uma doença infecciosa contraída no hospital. Os sintomas parecidos com gripe, apresentados pelas enfermeiras, poderiam estar relacionados. Usando uma abordagem dialética, David se fez uma pergunta: e se as enfermeiras, geralmente saudáveis, desenvolvessem uma reação moderada ao serem expostas à doença misteriosa, e os pacientes que tinham feito quimioterapia, conseqüentemente com os sistemas imunológicos um tanto comprometidos, desenvolvessem uma doença fatal e fulminante?

Achou que o raciocínio era válido, mas quando tentou pensar em alguma doença desconhecida que se ajustasse a esse quadro, não conseguiu imaginar nenhuma. A doença teria de afetar o sistema gastrointestinal, o sistema nervoso central e o circulatório E ainda assim ser de difícil diagnóstico até mesmo para um espescialista como o Doutor Martin Hasselbaum.

E quanto a um veneno ambiental?, pensou David, recordando-se do sintoma de salivação excessiva em Jonathan. A queixa fizera David pensar em mercúrio. Mesmo assim, a idéia de algum veneno parecia absurda demais. Como ele se espalharia? Se fosse transmitido pelo ar, muitas pessoas teriam aparecido com os sintomas, mais do que quatro pacientes e cinco enfermeiras. De qualquer modo, porém, um veneno era uma possibilidade. David decidiu guardar qualquer julgamento até receber os resultados toxicológicos de Mary Ann.

Apressando o passo, foi até o segundo andar. Os pacientes que ele deixara estavam bem. Até mesmo Donald não requeria maior atenção, mas apesar disso David ajustou outra vez sua dosagem

Quando terminou a ronda, David desceu ao primeiro andar para procurar Angela no laboratório. Encontrou-a na área de microbiologia tentando resolver um problema com um dos analisadores track.

- Já terminou? - perguntou Angela ao vê-lo.

- Para variar.

- Como vai Eakins?

- Mais tarde eu conto.

Angela olhou-o atentamente.

- Está tudo bem?

- Nem um pouco. Mas não quero falar sobre isso agora.

Angela pediu licença ao técnico de laboratório com o qual estava trabalhando e puxou David de lado.

- Tive uma surpresinha ao chegar aqui de manhã. Wadley subiu nas paredes por eu ter feito a autópsia.

- Sinto muito - disse David.

- Não é culpa sua. Wadley só está sendo mesquinho. Seu ego ficou arranhado. Mas o problema é que se recusou a deixar que qualquer material fosse processado.

- Droga! Eu realmente queria o exame toxicológico.

- Não precisa se preocupar. Mandei o material toxicológico e as culturas para Boston. E eu mesma vou cuidar das lâminas. Na verdade, vou ficar aqui esta noite para fazer isso. Faz o jantar para você e Nikki?

- Será um prazer.

David sentiu-se aliviado ao sair do hospital. Era empolgante andar de bicicleta no ar puro da Nova Inglaterra. Sentiu-se desapontado com o fim do passeio quando chegou.

Depois de mandar Alice para casa, David desfrutou o tempo com Nikki. Enquanto ela fazia o dever de casa, ele preparou uma refeição simples de bife e salada.

Depois do jantar, deu a notícia sobre Caroline.

- Ela está doente mesmo?

- Parecia muito desconfortável quando a vi.

- Quero fazer uma visita a ela amanhã - disse Nikki.

- Eu sei, querida. Mas, lembre-se, você também estava um pouco congestionada ontem à noite. Acho melhor esperarmos até termos certeza do que Caroline tem. Certo?

Nikki assentiu, mas não estava satisfeita.

Depois de Nikki ter ido para a cama, David começou a folhear a seção de doenças infecciosas de um de seus livros de medicina. Não estava procurando nada em particular. Achou que havia uma chance de descobrir algo parecido com a infecção que imaginara naquele dia, mas nada saltou à sua vista.

Antes que se desse conta, David estava acordando com o pesado livro de medicina sobre o colo. Lembranças da escola de medicina, pensou com um risinho. Já fazia algum tempo desde que ele dormira com um livro. Checando o relógio sobre a lareira, surpreendeu-se ao ver que já passava das onze. Angela ainda não estava em casa.

Sentindo-se um tanto ansioso, ligou para o hospital. A telefonista colocou-o em contato com o laboratório.

- O que está acontecendo? - perguntou ao ouvir a voz de Angela. - Só estou demorando mais do que pensei - disse ela. – É demorado colocar os corantes. Me faz admirar os técnicos que normalmente fazem isso. Eu deveria ter ligado para você, mas estou quase terminando. Chego em casa em menos de uma hora.

- Vou estar esperando.

Tinha-se passado mais de uma hora quando Angela terminou completamente. Pegou uma seleção de lâminas e colocou-as numa pasta de metal. Achava que David poderia querer examiná-las. O microscópio de Angela estava em casa, de modo que ele poderia ver, se estivesse interessado.

Angela despediu-se dos técnicos do turno da noite e dirigiu-se para o estacionamento.

Não encontrou o Volvo na área reservada. Por um instant pensou que o carro fora roubado, mas depois lembrou-se de que fora forçada a estacionar no final do estacionamento de cima.

Angela começou a andar num passo rápido, mas logo reduziu o ritmo. Não somente estava carregando uma pasta pesada, como também estava exausta. Na metade do caminho, teve de transferir a pasta para a outra mão.

No estacionamento havia alguns carros do pessoal do turno da noite, mas logo eles ficaram para trás, enquanto Angela se aproximava do caminho que levava ao estacionamento de cima. Percebeu que estava totalmente sozinha. Não havia outras pessoas. O pessoal do turno da tarde já havia partido há muito.

Enquanto chegava perto do caminho, começou a sentir-se inquieta. Não estava acostumada a estar fora de casa numa hhora daquelas, e certamente tinha esperado ver alguém. Nesse momento, pensou ter ouvido alguma coisa atrás. Quando se virou, não viu nada.

Continuando em frente, começou a pensar em animais selvagens. Ouvira dizer que ocasionalmente apareciam ursos pretos na área. Imaginou o que faria se subitamente se visse diante de um urso.

- Você está sendo idiota - falou consigo própria e continuou andando. Tinha de chegar em casa; já passava de meia-noite.

A iluminação do estacionamento de baixo era mais do que adequada. Mas enquanto penetrava no caminho que levava ao estacionamento de cima, Angela teve de parar um instante para ajustar os olhos à escuridão. Não havia luzes no caminho, e as árvores densas dos dois lados formavam uma arcada natural.

O latido de um cão à distância fez com que Angela saltasse. Nervosamente, penetrou mais fundo no túnel de árvores, começando a subir um lance de degraus construído com dormentes de estrada de ferro. Ouviu estalos na floresta e o barulho do vento no alto dos pinheiros. Sentindo-se apavorada, lembrou vividamente o episódio no porão, quando David e Nikki haviam-na assustado, e a lembrança deixou-a ainda mais tensa.

No topo da escada, o caminho nivelou-se e dobrou para a esquerda. Lá adiante, Angela podia ver a luz do estacionamento de cima. Só faltavam uns vinte metros para chegar.

Estava começando a se acalmar, quando um homem pulou das sombras. Veio para cima dela tão de súbito que ela não teve chance de fugir. O sujeito brandia um taco acima da cabeça; seu rosto estava coberto por uma máscara de esquiador escura.

Angela deu um passo atrás, tropeçou numa raiz exposta e caiu. O homem saltou para ela. Ângela gritou e rolou para o lado. Pôde ouvir o barulho do taco batendo contra o chão macio, onde ela estivera segundos antes.

Lutou para ficar de pé. O homem agarrou-a com a mão enluvada, ao mesmo tempo em que começava a erguer o taco outra vez. Angela girou a pasta para cima, batendo-a contra a virilha do homem com toda a força que conseguiu juntar. O homem afrouxou o aperto em seu braço ao mesmo tempo em que gritava de dor.

Com o caminho de volta ao hospital impedido pelo sujeito ofegante, Angela correu para o estacionamento de cima. Correu como nunca, com a força gerada pelo terror, os pés voando sobre o asfalto áspero. Podia ouvir o sujeito atrás, mas não ousava olhar. Correu até o Volvo com um único pensamento: a espingarda.

Largando a pasta no chão, pegou as chaves. Assim que abriu o porta-malas, arrancou o papel manilha da espingarda. Abriu a caixa de cartuchos e apressadamente jogou-os no fundo do porta-malas. Apanhou um deles, enfiou-o na espingarda e forçou-o para a câmara de disparo.

Virou-se, segurando a espingarda ao nível da cintura, mas não havia ninguém ali. O estacionamento estava completamente deserto. O homem não viera atrás dela. O que ouvira foram os sons de seus próprios passos.

- Não pode ser um pouquinho melhor do que isso? - perguntou Robertson. - ”Meio alto”?

Isso não é uma descrição. Como vamos encontrar esse sujeito, se vocês mulheres não conseguem descrevê-lo melhor do que isso?

- Estava escuro - disse Angela, com enorme dificuldade para controlar as emoções. – E aconteceu muito depressa. Além do mais, ele estava usando uma máscara de esquiador.

- E o que, diabo, a senhora estava fazendo entre as árvores depois da meia-noite? Droga, todas vocês, enfermeiras, foram avisadas.

- Eu não sou enfermeira - disse Angela. - Sou médica.

- Minha nossa! - disse Robertson em tom arrogante. - A senhora acha que esse estuprador estava preocupado se a senhora era médica ou enfermeira?

- Quero dizer é que eu não fui avisada. As enfermeiras podem ter sido avisadas, mas ninguém avisou a nós, médicos.

- Bom, a senhora deveria saber - disse Robertson.

- O senhor está tentando dizer que esse ataque, de certa forma, aconteceu por culpa minha?

Robertson ignorou a pergunta.

- Que tipo de taco ele estava usando?

- Não faço idéia. Já disse que estava escuro.

Robertson sacudiu a cabeça e olhou para o seu assistente.

- Você disse que Bill tinha acabado de passar por lá, para fazer a ronda?

- Isso - disse o auxiliar. - Menos de dez minutos antes do incidente, ele tinha feito uma passagem de rotina pelos dois estacionamentos.

- Meu Deus, não sei o que fazer - disse Robertson. Em seguida olhou para Angela e encolheu os ombros. - Se vocês mulheres fossem um pouco mais cooperativas, não teríamos este problema.

- Posso usar o telefone? - perguntou Angela.

Angela ligou para David. Pela voz, percebeu que ele estivera dormindo. Disse que estaria em casa dentro de dez minutos.

- Que horas são? - perguntou David. Depois, olhando para o relógio, respondeu à própria pergunta. - Santo Deus, já passa de uma. O que você está fazendo?

- Conto quando chegar em casa.

Depois de desligar, Angela virou-se para Robertson e perguntou, mal-humorada:

- Posso ir agora?

- Claro - disse Robertson. - Mas se pensar em alguma outra coisa, comunique. Quer que meu assistente a leve para casa?

- Acho que consigo me virar sozinha.

Dez minutos depois, Angela estava abraçando David na porta de casa. David ficara alarmado não somente pela hora, mas pela visão da esposa saindo do carro com uma pasta numa das mãos e uma espingarda na outra. Mas não perguntou sobre a arma. No momento apenas abraçou-a. Ela agarrou-se nele e parecia não querer soltá-lo.

Finalmente, Angela libertou David, tirou o casaco amarrotado e levou a pasta e a espingarda para a sala íntima. David seguiu-a, olhando para a arma. Angela sentou-se no sofá, abraçou os joelhos e levantou os olhos para David.

- Eu gostaria de me acalmar - falou com voz baixa. - Se importa de pegar um copo de vinho para mim?

David aquiesceu de imediato. Enquanto entregava o copo, perguntou se ela gostaria de alguma coisa para comer. Angela sacudiu a cabeça antes de tomar um gole de vinho. Segurava o copo com as duas mãos.

Numa voz controlada, começou a contar sobre o ataque. Mas não foi longe. Suas emoções extravasaram em lágrimas. Durante cinco minutos, não conseguiu falar. David envolveu-a com os braços, dizendo que era culpa dele: nunca deveria ter deixado que ela ficasse trabalhando no hospital até tão tarde.

Por fim, Angela recuperou a compostura. Continuou a história, prendendo as lágrimas.

Quando chegou à parte sobre Robertson tervindo conversar com ela, sua raiva explodiu.

- Não consigo acreditar naquele sujeito!-disse, irritada. - Ele me deixa louca. Agiu como se tivesse sido minha culpa.

- Ele é um idiota.

Angela pegou a pasta e entregou-a a David, enquanto enxugava as lágrimas.

- Todo esse esforço e, afinal de contas, as lâminas não mostraram grande coisa. Não havia nenhum tumor no cérebro. Havia um pouco de inflamação perivascular, mas nada específico. Alguns neurônios pareciam danificados, mas pode ter sido uma mudança pós-morte.

- Nenhum sinal de uma doença infecciosa sistêmica?

Angela sacudiu a cabeça.

- Eu trouxe as lâminas para casa, para o caso de você querer dar uma olhada nelas.

- Estou vendo que arranjou uma espingarda - comentou David.

- E está carregada, tenha cuidado. E não se preocupe. Amanhã vou conversar sobre isso com Nikki.

Um estrondo seguido pelo som de vidro se quebrando fez com que os dois se sentassem empertigados. Ferrugem começou a latir no quarto de Nikki e logo apareceu descendo a escada. David pegòl a espingarda.

- A trava de segurança é logo acima do gatilho - disse Angela.

Com David na frente, os dois atravessaram o escuro da sala de estar. David acendeu a luz.

Quatro vidros da janela da sala estavam quebrados, junto com seus caixilhos. No chão, a pouccos metros de onde eles se encontravam, havia um tijolo. Preso nele estava uma cópia do bilhete que haviam recebido na noite anterior.

- Vou ligar para a polícia - disse Angela. - Isso é demais.

Enquanto esperavam a chegada da polícia, David fez com que Angela se sentasse.

- Hoje você fez alguma coisa relacionada ao caso Hodges?

- Não - disse Angela em tom defensivo. - Bom, eu recebi um telefonema do chefe de perícia médica.

- Conversou sobre Hodges com alguém?

- O nome dele surgiu quando conversei com Robertson.

- Esta noite? - perguntou David, surpreso.

- À tarde. Parei na delegacia para conversar com Robertson, depois de comprar a espingarda.

- Por quê? - perguntou David, perplexo. - Depois do que aconteceu ontem em frente à igreja, fico surpreso que tivesse a coragem de ainda ir procurá-lo.

- Eu queria me desculpar. Mas foi um erro. Robertson não vai fazer nada sobre o assassinato de Hodges.

- Angela - implorou David. - Precisamos parar de mexer com esse caso Hodges. Não vale a pena. Um bilhete na porta é uma coisa; um tijolo atravessando a janela é outra completamente diferente.

Luzes de faróis correram pela parede enquanto um carro da polícia virava no caminho de entrada.

- Pelo menos não é Robertson - disse Angela quando viram o policial que se aproximava.

O homem se apresentou como Bill Morrison. De cara, ficou claro que não estava profundamente interessado em investigar este último incidente na casa dos Wilsons. Só estava fazendo perguntas suficientes para preencher o formulário de ocorrência.

Quando o policial ia se preparando para ir embora, Angela perguntou se ele estava pensando em levar o tijolo.

- Não tinha pensado nisso - disse Bill.

- E as impressões digitais? - perguntou ela.

O olhar de Bill passou de Angela para David, e em seguida voltou para ela. Seu rosto registrou surpresa e confusão.

- Impressões digitais?

- Por que a surpresa? Às vezes é possível conseguir impressões digitais em coisas como pedra e tijolo.

- Bom, não sei se a gente mandaria uma coisa dessas para a polícia estadual.

- Só para garantir, deixe que eu pego um saco – disse Angela.

Ela desapareceu na cozinha e voltou com um saco plástico. Virando-o pelo avesso, abaixou-se e pegou o tijolo. Entregou o saco a Bill.

- Pronto. Agora vocês estão preparados, para o caso de decidirem resolver um crime.

Bill concordou e foi para o carro. Angela e David olharam enquanto ele desaparecia no caminho.

- Estou perdendo a confiança na polícia local - disse David.

- Eu nunca tive.

- Se Robertson foi a única pessoa com quem você falou sobre Hodges hoje, fico pensando quem será responsável por esse tijolo atravessar nossa janela.

- Acha que a polícia pode ter feito isso? - perguntou Ângela.

- Não sei. Não acredito que fossem tão longe, mas isso faz pensar que eles sabem mais do que estão dispostos a dizer. Sem dúvida, esse policial não estava abalado com o incidente.

- Estou começando a achar que esta cidade não é a utopia que pensamos.

David foi até o celeiro e cortou um pedaço de compensado para cobrir o buraco da janela. Quando voltou a casa, Angela estava comendo uma tigela de cereal frio.

- Isso não é bem um jantar - disse ele.

- Estou surpresa de sentir alguma fome.

Ela acompanhou-o à sala de estar e observou-o lutando para abrir a escada de pintor.

- Tem certeza de que deveria estar fazendo isso? - perguntou.

David lançou-lhe um olhar exasperado.

- Você não me contou nada sobre o seu dia - disse Ângela, enquanto David subia na escada.-E Jonathan Eakins? Como está?

- Não sei. Não sou mais o seu médico.

- Por que não?

- Kelley designou outro.

- Ele pode fazer isso?

- Ele fez. - David tentou alinhar o pedaço de compensado e em seguida tirou um prego do bolso.-Aprincípio, fiquei furioso. Agora estou resignado. A parte boa é que não preciso me sentir responsável.

- Mas você vai continuar se sentindo responsável - disse Angela. - Eu o conheço.

David pediu a Angela que lhe passasse o martelo, e tentou pregar o compensado. Na tentativa, outro vidro da janela caiu para fora e se espatifou no chão. O ruído trouxe Ferrugem para fora do quarto de Nikki, latindo no topo da escada.

- Droga! - disse David.

- Talvez devêssemos pensar em ir embora de Bartlet - disse Angela.

- Não podemos simplesmente pegar as coisas e ir. Temos as hipotecas e os contratos. Não somos livres como antes. -

- Mas nada está acontecendo do jeito que esperávamos. Estamos ambos com problemas no trabalho. Eu fui atacada. E essa coisa do Hodges está me deixando doida.

- Você tem de deixar o caso Hodges de lado. Por favor, Angela.

- Não consigo! - disse Angela por entre novas lágrimas. - Agora estou tendo até pesadelos: pesadelos com sangue na cozinha. Cada vez que eu entro lá, penso nisso, e não me sai da cabeça que a pessoa responsável está solta e pode aparecer por aqui quando quiser. Isso não é jeito de viver, sentindo que é preciso ter uma arma em casa.

- Nós não deveríamos ter uma arma - reagiu David.

- Não vou ficar aqui à noite quando você sair para o hospital - disse Angela em tom irritado. - Não sem uma arma.

- É melhor você garantir que Nikki compreenda que não tem permissão de tocar nela.

- Amanhã vou discutir isso com ela.

- Por falar em Nikki - disse David.-Por acaso vi Caroline na sala de emergência. Ela está no hospital, com febre alta e problemas respiratórios.

- Por Deus, não diga! Nikki já sabe?

- Contei-lhe hoje à tarde.

- É alguma coisa contagiosa? Ela esteve com Nikki ontem.

- Ainda não sei. Avisei Nikki de que não pode visitar a amiga” até que saibamos.

- Coitada da Caroline. Ontem ela parecia bem. Meu Deus, espero que Nikki não apareça com a mesma coisa.

- Eu também - disse David. - Angela, nós temos coisas mais importantes em que pensar do que esse absurdo envolvendo o corpo de Hodges. Por favor, deixe isso de lado; pelo bem de Nikki, se não pelo nosso.

- Certo - disse Angela relutantemente. - Vou tentar.

- Graças a Deus. - Em seguida, David olhou para a janela quebrada. - E agora, o que vou fazer com essa bagunça?

- Que tal fita crepe e um saco plástico?

David encarou-a.

- Como é que não pensei nisso?

 

TERÇA-FEIRA, 26 DE OUTUBRO

NEM DAVID NEM ANGELA dormiram bem. Ambos estavam esgotados, mas reagiram de modo diferente. Enquanto Angela teve dificuldade para cair no sono, David acordou muito antes do amanhecer. Ficou pasmo ao ver a hora: quatro da manhã. Sentindo que não dormiria de novo, levantou-se e saiu do quarto na ponta dos pés, cuidando para não perturbar Angela.

No caminho para a sala íntima, parou no topo da escada. Tinha ouvido um barulho no quarto de Nikki e ficou surpreso ao ver a filha aparecendo.

- O que está fazendo de pé? - sussurrou.

- Eu acordei. Estive pensando em Caroline.

David foi até o quarto da filha conversar sobre a amiga. Disse que achava que Caroline já deveria estar bem melhor. Prometeu verificar assim que chegasse ao hospital e ligar para Nikki, para dar a notícia.

Quando Nikki tossiu de um jeito profundo e carregado, David sugeriu que fizessem a drenagem postural. Levaram quase meia hora. David preparou bacon com ovos enquanto Nikki fazia biscoitos fritos. Com o fogo aceso na lareira, a refeição teve uma característica festiva que pareceu um antídoto para seus espíritos perturbados.

Às cinco e meia, David estava montado em sua bicicleta. Chegou ao hospital antes das seis. No caminho fez uma anotação mental para conseguir alguém que consertasse a janela.

Vários dos seus pacientes ainda estavam dormindo, e ele não os perturbou. Repassou os prontuários, planejando examinar os pacientes mais tarde. Ao enfiar a cabeça no quarto de Donald descobriu que ele estava totalmente desperto.

- Estou me sentindo terrível - disse Donald. - Não dormíi a noite inteira.

- Qual é o problema? - perguntou David, sentindo o pulso se acelerar.

Para seu desalento, as queixas eram perturbadoramente familiares: cólica abdominal junto com náusea e diarréia. Além disso, como acontecera com Jonathan, ele reclamava por ter de engolir continuamente.

David tentou ficar calmo. Falou com Donald durante quase meia hora, fazendo perguntas detalhadas sobre cada sintoma, verificando a seqüência em que eles haviam aparecido.

Embora as queixas de Donald sem dúvida fizessem lembrar dos outros pacientes falecidos, havia um aspecto diferente em sua história: ele nunca fizera quimioterapia.

Inicialmente, fora diagnosticado como tendo câncer no pâncreas, mas a cirurgia mostrara que este não era o caso. Donald passara então por uma operação maciça chamada de procedimento de Whipple, que incluía a remoção do pâncreas, partes do estômago e dos intestinos e boa porção de tecido linfático. Ao examinar o tumor, a patologia verificara que era benigno.

Como ele fizera uma cirurgia tão extensa no sistema digestivo, mas não passara por uma quimioterapia que comprometesse seu sistema imunológico, David esperou que suas queixas fossem puramente funcionais, e não anúncios do mesmo mal que afligil os outros pacientes.

Depois de terminar a ronda, David ligou para o departamento de internações, para descobrir o número do quarto de Caroline. No caminho, teve de passar pela UTI. Tentando se precaver para o que poderia descobrir, foi verificar o estado de Jonathan Eakins.

- Jonathan Eakins morreu por volta das três da madrugada. - disse a ocupada enfermeira-chefe. - Foi uma deterioração muito rápida. Nada do que fizemos parecia ajudar. Uma vergonha. Um homem jovem como ele. Isso mostra que a gente nunca sabe quando vai partir desta para outra.

David engoliu em seco. Assentiu, virou-se e deixou a UTI. Mesmo sabendo por dentro que Jonathan iria morrer, a realidade era cruel. David continuava tendo dificuldade para absorver o fato aterrador: perdera quatro pacientes em pouco mais de uma semana.

Para animar, descobriu que Caroline respondera bem ao tratamento com antibióticos intravenosos e terapia respiratória intensiva. A febre desaparecera, sua cor estava rosada e os olhos azuis brilhavam. Ela deu um amplo sorriso no instante em que David apareceu.

- Nikki quer vir visitar você - disse ele.

- Legal. Quando?

- Provavelmente esta tarde.

- Dá para pedir a ela que traga meu livro de leitura e o de ortografia?

David prometeu que pediria.

A primeira coisa que fez ao chegar ao seu consultório foi ligar para casa. Nikki atendeu. David contou que Caroline estava muito melhor, e que Nikki poderia visitá-la naquele dia. Também lembrou o pedido dos livros. Em seguida, pediu que Nikki chamasse a mãe.

- Ela está tomando banho. Peço a ela para ligar para você?

- Não, não precisa. Mas quero que diga uma coisa a ela. Ontem ela trouxe uma arma para casa. É uma espingarda de caça, está encostada no pilar de baixo da escada. Ela deve mostrá-la a você e dizer para não encostar a mão nela. Vai dizer a ela que faça isso?

- Vou, pai.

David pôde imaginar a filha revirando os olhos.

- É sério - disse ele. - Não se esqueça.

Desligando o telefone, David pensou na arma. Não gostava daquilo. Entretanto não iria forçar a barra por enquanto. Mais do que qualquer coisa, queria que Angela desistisse da obsessão com o assassinato de Hodges. Para ele, o tijolo atravessando a janela da frente bastava como aviso.

David decidiu aproveitar essa oportunidade matutina para cuidar da infinita papelada que era forçado a processar por causa das consultas. Enquanto colocava o primeiro formulário sobre a mesa, o telefone tocou. Era uma paciente chamada Sandra Hascher. Uma mulher jovem, com uma história de melanoma que se espalhara para os gânglios linfáticos próximos.

- Não esperava que o senhor mesmo atendesse – disse Sandra.

- No momento, sou o único aqui.

Sandra disse que estava com problemas por causa de um abscesso no dente. O dente fora arrancado, mas a infecção tinhapiorado.

- Desculpe incomodá-lo com isso, mas minha temperatura passa dos trinta e nove graus. Eu deveria procurar a emergência mas da última vez que levei meu filho lá, tive de pagar do próprio bolso. A CMV se recusou a me reembolsar.

- Já ouvi essa história antes - disse David. - Por que não vem agora? Eu a atendo imediatamente.

- Obrigada, já estou indo.

O abscesso era impressionante. Todo o lado do rosto de Sandra estava distorcido pelo inchaço. Além disso, os gânglios linfáticos atrás do maxilar estavam quase do tamanho de uma bola de golfe. David verificou a temperatura. Realmente, estava com trinta e nove e meio.

- Você precisa ficar no hospital - disse ele.

- Não posso. Tenho muito que fazer. E meu filho de dez anos está em casa com catapora.

- Terá de dar um jeito. Não há como eu deixá-la andar por aí com essa bomba-relógio.

David explicou cuidadosamente a anatomia da região, enfatizando como a infecção estava próxima do cérebro.

- Se a infecção penetrar no seu sistema nervoso, estaremos com grandes problemas. Você precisa de tratamento contínuo com antibiótico. Isso não é brincadeira.

- Tudo bem - disse Angela. - O senhor me convenceu.

David ligou para a internação, avisando que Sandra estaria chegando. Em seguida, entregou-lhe uma série de prescrições escritas e despachou-a.

Angela se sentia horrível. Estava exausta. Várias xícaras de café não tinham bastado para reanimá-la. Eram quase três horas quando caíra no sono; e, mesmo assim, não dormira bem. Tivera pesadelos de novo com o cadáver de Hodges, com o estuprador de máscara de esquiador e com o tijolo atravessando a janela.

Quando finalmente acordou, ficou surpresa ao ver que David já saíra para o trabalho.

Enquanto se vestia, arrependeu-se da promessa de tentar esquecer Hodges. Não tinha idéia de como poderia simplesmente ”deixar Hodges de lado” como David sugerira.

Novamente pensou em Phil Calhoun. Ainda não recebera qualquer notícia dele. Imaginou que o mínimo que poderia fazer era verificar. Mesmo se não tivesse descoberto algo significativo, ele poderia pelo menos dizer o que fizera até o momento.

Decidiu ligar para Phil Calhoun, mas só conseguiu ser atendida pela secretária eletrônica. Decidindo não deixar recado, simplesmente desligou.

No andar térreo, encontrou Nikki na sala íntima, lendo um dos livros da escola.

- Muito bem - disse Angela. - Vamos subir para a drenagem postural.

- Já fiz com papai.

- Verdade? E o café da manhã?

- Também tomamos.

- A que horas vocês dois acordaram?

- Umas quatro.

Angela não ficou satisfeita ao saber que David levantara tão cedo. Problemas com o sono costumavam ser um sinal de depressão. Também não gostava da idéia de Nikki acordando tão cedo.

- Como é que o papai estava hoje de manhã? - perguntou Angela enquanto se juntava a Nikki na sala íntima.

- Bem. Ele ligou enquanto você estava no chuveiro. Disse que Caroline está bem e que eu posso fazer uma visita esta tarde.

- É uma notícia ótima.

- Ele também pediu para eu lembrar você sobre uma arma. Ele parecia estranho, como se eu não soubesse o que é uma arma.

- Ele está preocupado - disse Angela.-Não é brincadeira. Armas são um problema quando existem crianças por perto. Muitas crianças são mortas todos os anos por causa de armas em casa. Na maioria das vezes isso acontece com revólveres.

Angela foi até o hall da frente e trouxe a espingarda para a sala íntima. Retirou o cartucho da câmara e mostrou a Nikki como saber se não havia mais alguma ali dentro.

Passou a próxima hora falando da arma com Nikki, deixando que ela a engatilhasse, apertasse o gatilho e até mesmo carregasse e descarregasse. Ao terminarem com a aula, foram para fora do celeiro, e cada uma deu um tiro. Nikki disse que não gostou de atirar porque o ombro doera.

De volta a casa, Angela recomendou a Nikki que não tocasse na arma. Nikki lhe disse que não se preocupasse, pois não queria nada com a espingarda.

Como o tempo estava quente e ensolarado, Nikki quis ir de bicicleta para a escola. Ângela observou enquanto ela partia em direção da cidade. Estava feliz por Nikki se sentir tão bem; pelo menos para Nikki, Bartlet estava sendo um lugar bom.

Pouco depois de Nikki ter saído, Angela fez o mesmo. Ao estacionar na área reservada aos médicos, não resistiu à tentação de examinar o lugar onde fora atacada. Refez os seus passos até o grupo de árvores que separavam os dois estacionamentos e enccontrou suas pegadas na terra lamacenta. Com a ajuda das pegadas, descobriu o lugar onde havia caído. Em seguida descobriu o sulco profundo deixado na terra pelo bastão usado pelo sujeito.

O buraco tinha cerca de dez centímetros de profundidade. Angela colocou os dedos nele e estremeceu. Ainda podia recordar nitidamente a imagem e o som daquele taco zumbindo perto do seu ouvido. Conseguiu até mesmo lembrar-se vagamente do do brilho metal passando.

De súbito, percebeu algo em que não se concentrara antes; o sujeito não tinha hesitado. Se ela não tivesse rolado para fora do caminho, teria sido atingida. O homem não estava tentando estuprá-la, queria machucá-la, talvez até matá-la.

Angela pensou nos ferimentos no crânio de Hodges, que examinara durante a autópsia. Hodges fora atingido por uma haste de metal. Sua cabeça poderia ter ficado como a de Hodges!

Contra todas as suas avaliações, telefonou para Robertson.

- Sei por que a senhora está ligando - disse Robertson em tom irritado -, e pode esquecer isso. Não vou mandar esse tijolo para o laboratório da polícia estadual em busca de impressões digitais. Iriam rir de mim em todo o estado.

- Não estou ligando por causa do tijolo - disse Angela. Contou sobre a idéia de que o ataque fora uma tentativa de assassinato e não de estupro.

Quando terminou, Robertson estava tão quieto que ela teve medo de que ele tivesse desligado.

- Alô? - perguntou por fim.

- Ainda estou aqui - disse Robertson. - Estou pensando. Houve outra pausa. - Não, eu não engulo essa - disse Robertson finalmente. - Esse cara é um estuprador, e não um assassino. Ele já teve oportunidade de matar antes, e não fez isso. Diabo, o cara nem mesmo machucou as mulheres que realmente estuprou.

Angela ficou imaginando se as vítimas dos estupros não se sentiram machucadas, mas não iria discutir isso com Robertson. Simplesmente agradeceu pela atenção e desligou.

- Que imbecil! - falou em voz alta. Tinha sido idiota em pensar que Robertson daria crédito à sua teoria. Entretanto, quanto mais pensava no ataque, mais tinha certeza de que o objetivo não fora estupro. E se tivesse sido uma tentativa de assassinato, teria de ter alguma relação com seu interesse no crime contra Hodges. Talvez o sujeito fosse o assassino de Hodges!

Angela estremeceu. Se estivesse certa, sofrera uma emboscada. A idéia deixou-a em pânico. Independentemente do que fizesse, teria de aparentar que havia desistido do caso.

Imaginou se deveria contar a David suas últimas suspeitas. Ficou indecisa. Por um lado, nunca desejara que houvesse segredos entre eles. Por outro, sabia que ele só usaria o incidente como mais um motivo para que ela desistisse de sondar sobre o assassinato de Hodges. Por enquanto, decidiu que só contaria a Phil Calhoun se e quando ele fizesse contato com ela.

- Vou querer mais um pouco de café - disse Traynor à garçonete, apontando para sua xícara com o cabo do martelo de juiz. Como era hábito, Traynor, Sherwood, Beaton e Caldwell estavam tendo uma reunião durante o café da manhã, antes da reunião mensal da diretoria executiva programada para a próxima noite de segunda-feira. Estavam sentados à mesa favorita de Traynor no Iron Hor Seinn.

- Estou me sentindo encorajada - disse Beaton. – Os números preliminares para a segunda quinzena de outubro são melhores do que os da primeira. Ainda não saímos do atoleiro, mas nossa situação é significativamente melhor do que em outubro.

- Conseguimos colocar uma crise sob controle e logo temos de encarar outra – disse Traynor.-Não acaba nunca. Que história é essa de uma médica sendo atacada ontem à noite?

- Foi logo depois da meia-noite - disse Caldwell. – Era a nova patologista, Ângela Wilson. Ela estava trabalhando até tarde.

- Em que parte do estacionamento isso aconteceu? - perguntou Traynor, e em seguida começou com seu hábito nervoso de bater com o martelo na palma da mão.

- No caminho entre os dois estacionamentos - disse Caldwell.

- Foi colocada a iluminação lá? Caldwell olhou para Beaton.

- Não sei - admitiu ela. - Mas vamos verificar assim que voltarmos. Você ordenou que as luzes fossem colocadas, mas não tenho certeza se isso foi feito.

- É melhor que tenha sido - disse Traynor. Em seguida bateu na mão particularmente com força, e o som percorreu a sala. – Não tive sorte fazendo lobby para a garagem com os conselheiros. Não há como colocar o assunto em votação antes da primavera.

- Eu chequei com o Bartlet Sun - disse Beaton. - Concordaram em manter a tentativa de estupro fora do jornal.

- Pelo menos eles estão do nosso lado - disse Traynor.

- Acho que a lealdade deles é inspirada pelos anúncios que mandamos publicar - observou Beaton.

- Algum assunto novo para ser levado à reunião de diretoria? - perguntou Sherwood.

- Há uma nova batalha sendo fomentada na área clínica - disse Beaton. – Os radiologistas e os neurologistas estão se preparando para uma luta sangrenta, com o objetivo de ver que grupo será oficialmente designado para ler as ressonâncias magnéticas de crânio.

- Você só pode estar brincando - disse Traynor.

- Sério - disse Beaton. - Se lhes dermos as armas, pode ser uma luta de morte. Envolve dólares e egos, uma combinação letal.

- Merda de médicos - disse Traynor em tom de desgosto.

- Não conseguem trabalhar juntos. São uns cavaleiros solitários, se vocês querem saber.

- O que me traz ao médico 91 - disse Beaton. - Ele está planejando processar o hospital por causa de suas prerrogativas.

- Deixe que ele processe - disse Traynor. - Já estou cansado até mesmo dessa insistência do departamento médico, de chamarmos esses ”médicos comprometidos” por um número de código. Diabo, ”médico comprometido” já é um eufemismo.

- São só essas as novidades - disse Beaton. Traynor olhou ao redor da mesa.

- Mais alguma coisa?

- Eu recebi uma visita curiosa ontem à tarde - disse Sherwood. - Um investigador particular chamado Phil Calhoun.

- Ele veio me procurar também.

- O sujeito me deixou nervoso - disse Sherwood. - Fez um monte de perguntas sobre Hodges.

- Comigo foi a mesma coisa - disse Traynor.

- O problema é que ele já parecia saber um bocado de coisas. Relutei em dar qualquer informação, mas também não quis parecer que estava atravancando o caminho.

- Foi exatamente o que senti - disse Traynor.

- Ele não veio me procurar - observou Beaton.

- Quem você acha que o contratou? - perguntou Sherwood.

- Eu lhe perguntei isso - disse Traynor. - Ele deu a entender que foi a família. Presumi que estava falando de Clara, de modo que liguei para ela. Ela disse que não sabia nada sobre Phil Calhoun. Em seguida liguei para Wayne Robertson. Calhoun já tinha estado com ele. Wayne achou que o candidato mais provável é Angela Wilson, nossa nova patologista.

- Faz sentido - disse Sherwood. - Ela veio me procurarperguntando sobre Hodges. Estava muito perturbada porque o corpo dele foi encontrado em sua casa.

- É uma coincidência curiosa - disse Beaton. - Ela certamente está com problemas: primeiro encontra um cadáver em casa, depois passa por uma tentativa de estupro.

- Talvez a tentativa de estupro diminua seu interesse por Hodges - disse Traynor. - Seria irônico uma coisa positiva resultar de algo tão potencialmente negativo.

- E se Phil Calhoun descobrir quem matou Hodges? perguntou Caldwell.

- Poderia ser um problema - disse Traynor. - Mas já se passaram mais de oito meses. Quais são as chances? A pista deve estar completamente fria.

Quando a reunião terminou, Traynor levou Beaton até o carro dela. Perguntou se ela mudara de idéia quanto ao relacionamento dos dois.

- Não. E você?

- Não posso me divorciar de Jacqueline agora. Especialmente com meu filho na faculdade. Mas quando ele sair...

- Ótimo - disse Beaton. - Quando ele sair nós conversamos.

Enquanto dirigia o carro até o hospital, Beaton sacudiu a cabeça, em desânimo.

- Homens! - disse irritada.

Depois de atender o último paciente do dia, David foi até sua sala particular. Nikki estava sentada à mesa, folheando um jornal de medicina. David gostava do fato de ela se interessar pelo assunto. Esperava que, se o interesse persistisse, ela tivesse oportunidade de estudar medicina.

- Já terminou? - perguntou ela.

- Vamos.

Levaram apenas alguns minutos para atravessar a pequena distância até o hospital e subir um lance de escada. Quando entraram no quarto de Caroline, o rosto da menina se iluminou. Estava especialmente feliz porque Nikki se lembrara de trazer os livros que pedira. Caroline era uma ótima aluna, como Nikki.

- Olha o que eu consigo fazer.

Caroline estendeu as mãos, agarrou uma barra acima da cabeça e ergueu-se completamente para fora da cama, com as pernas em ângulo para cima.

David bateu palmas. Era um feito que requeria uma força considerável, mais do que ele imaginaria naqueles braços magros. Caroline estava numa grande cama ortopédica que tinha uma estrutura acima da cabeça. David presumiu que a tinham colocado ali para diversão, já que a menina obviamente estava adorando.

- Vou checar meus pacientes - disse ele e brandiu o indicador na direção de Nikki. - Não vou demorar, e não aterrorizem as enfermeiras, prometem?

- Prometemos - disse Nikki e em seguida riu com Caroline.

David foi direto ao quarto de Donald Anderson. Não estava preocupado com o estado de Donald porque ligara durante todo o dia para ter notícias. Os relatórios tinham sido sempre iguais: o açúcar do sangue estava normal, e os sintomas gastrointestinais haviam diminuído.

- Como está, Donald?-perguntou David assim que chegou junto à cama.

A cama de Donald fora levantada e ele estava reclinado num ângulo de quarenta e cinco graus.

Quando David falou, ele virou lentamente a cabeça para o lado, mas não respondeu.

- Como está se sentindo? - perguntou David erguendo a voz.

Donald murmurou alguma coisa que David não conseguiu entender. David tentou novamente falar com ele, mas logo percebeu que Donald estava desorientado.

David examinou-o cuidadosamente. Auscultou atentamente os pulmões, mas não havia nenhum ruído suspeito, o que indicava que estavam limpos. Indo até o posto de enfermagem, requisitou contagem de açúcar.

Enquanto o exame era processado, David visitou seus outros pacientes. Todos estavam bem, inclusive Sandra. Apesar de estar recebendo antibióticos há menos de doze horas, ela insistia em que a dor no maxilar havia melhorado. Quando David examinou-a,sua impressão foi de que o abscesso estava do mesmo tamanho, mas a melhora nos sintomas era encorajadora. Não mudou o tratamento. Dois outros pacientes estavam tão bem que ele prometeu lhes alta no dia seguinte.

Enquanto acabava de fazer as anotações no prontuário do último paciente, a secretária do andar colocou o resultado do exame de Donald debaixo do seu nariz. Estava normal. David pegou o papel e estudou-o. Não queria que estivesse normal. Queria que explicasse o estado mental de Donald.

Lentamente, voltou ao quarto de Donald, perplexo com o seu estado. A única explicação em que poderia pensar era que a taxa de açúcar no sangue tivera uma subida ou uma descida rápida e logo se corrigira. O problema com essa linha de raciocínio era o estado sensório do paciente, o qual costumava voltar ao normal juntamente com o nível de açúcar.

David continuava avaliando as possibilidades ao entrar de novo no quarto de Donald. Assim que o viu, ficou parado, incrédulo. O rosto de Donald estava de um azul fosco, a cabeça jogada para trás, em hiperextensão. Sangue escuro escorria da boca entreaberta; os lençóis estavam totalmente desarrumados.

O choque inicial logo se transformou em movimento. David alertou às enfermeiras de que houvera uma parada cardíaca e começou uma ressuscitação cardiopulmonar. A equipe de ressuscitação chegou e seguiu sua rotina familiar. Até mesmo o cirurgião de Donald, o Doutor Albert Hillson, apareceu. Ele estava fazendo sua ronda quando ouviu o tumulto.

Logo a tentativa de ressuscitação foi interrompida. Estava certo que Donald sofrera uma convulsão e uma parada respiratória entre os quinze e vinte minutos antes de David encontrá-lo. Tendo-se passado todo esse tempo sem que chegasse oxigênio ao cérebro, não havia esperança. David declarou Donald morto às cinco e quinze. David ficou devastado por perder mais um paciente, mas forçou-se a não demonstrá-lo. Disse que o fato de Donald ter vivido tanto tempo era um tributo ao bom atendimento médico. Ao chegar com os dois filhos pequenos, Shirley Anderson verbalizou o mesmo sentimento.

- Obrigada por ter sido gentil com Donald - disse Shirley enquanto enxugava os olhos. - O senhor era o médico preferido dele.

Depois de ter feito tudo que podia, David foi até o quarto de Caroline pegar Nikki. Sentia-se atordoado. Tudo acontecera rápido demais.

- Pelo menos você sabe por que esse paciente morreu - disse Angela depois de David ter descrito o que acontecera com Donald Anderson. Estavam sentados na sala íntima. Há muito haviam terminado o jantar; Nikki estava em seu quarto fazendo o dever de casa.

- Mas eu não sei - reclamou David. - Tudo aconteceu tão depressa!

- Ei, espere aí. Com os outros pacientes, eu até consigo entender sua confusão. Mas com esse, não. Donald Anderson teve todos os órgãos abdominais rearrumados, se não removidos. Vivia entrando e saindo do seu consultório e do hospital. Você não pode se culpar pela morte dele.

- Não sei mais o que pensar. É verdade, ele estava sempre na beira do precipício, com suas infecções freqüentes e o diabetes. Mas por que uma convulsão?

- O açúcar do sangue dele vivia subindo e descendo. E se houve um ataque? Estou querendo dizer que as possibilidades são infinitas.

O telefone assustou a ambos. David estendeu a mão, num reflexo. Temia que fosse o hospital com outras más notícias. Quando o interlocutor perguntou por Angela, ele sentiu-se aliviado.

Angela imediatamente reconheceu a voz: era Phill Calhoun.

- Desculpe não ter ficado em contato - disse ele. – Estive ocupado, mas agora gostaria de bater um papo.

- Quando?

- Bom, estou sentado aqui no Iron Horse Inn. É só um pulo. Posso ir até aí?

Angela cobriu o telefone com a mão.

- É o investigador particular, Phil Calhoun. Ele quer vir aqui.

- Pensei que tivesse abandonado o caso Hodges.

- Abandonei - disse ela. - Não falei com ninguém.

- E Phil Calhoun?

- Também não falo com ele desde sábado. Mas já paguei uma parte do serviço. Acho que pelo menos poderíamos ouvir o que ele descobriu.

David suspirou resignado.

- Tudo bem.

Quinze minutos mais tarde, quando Phil Calhoun passou pela porta, David tentou imaginar o que ele poderia ter, para que Angela o descrevesse como profissional. Para David, ele parecia qualquer coisa, menos um profissional, com um boné vermelho de beiset virado para trás e uma camisa de flanela. Os sapatos que calçava nem ao menos tinham cadarços.

- Prazer - disse Calhoun apertando a mão de David. Sentaram-se na sala de estar, nos móveis velhos e acanhados que vieram de Boston. A sala enorme tinha um ar de salão de vagabundo com aquela mobília parca e digna de pena. O saco plástico preso à janela não ajudava.

- Bela casa - disse Calhoun olhando ao redor.

- Ainda estamos mobiliando - disse Angela. Em seguida ela perguntou se ele queria beber alguma coisa. Calhoun disse que gostaria de uma cerveja, se ela não se importasse.

Enquanto Angela pegava a cerveja, David continuou a examinar o visitante. Calhoun era mais velho do que ele imaginara. Uma mecha de cabelos grisalhos surgia por baixo do boné vermelho, que Calhoun não fez menção de tirar.

- Se importam se eu fumar?-perguntou Calhoun enquanto pegava seus António Y Cleopatra.

- Desculpe, mas nós nos importamos - disse Ângela, voltando à sala e entregando a cerveja a Calhoun. – Nossa filha tem problemas respiratórios.

- Tudo bem - disse Calhoun em tom afável. - Queria colocar vocês em dia com minhas investigações. Estão indo bem, apesar de exigirem algum esforço. O Doutor Dennis Hodges não era o homem mais popular da cidade. De fato, metade da população parece tê-lo odiado por um motivo ou outro.

- Já sabemos disso - disse David. - Espero que o senhor tenha detalhes mais específicos para justificar o pagamento por hora.

- Por favor, David! - Angela estava surpresa com a grosseria do marido.

- Minha opinião --prosseguiu Calhoun, ignorando o comentário de David - é de que o Doutor Hodges ou não se importava com o que os outros pensavam dele ou tinha alguma incapacidade social. Como um típico cidadão da Nova Inglaterra, ele provavelmente combinava as duas coisas.

Calhoun deu um risinho, e em seguida tomou um gole de cerveja.

- Fiz uma lista dos potenciais suspeitos - prosseguiu. - Ainda não entrevistei todos. Mas a coisa está ficando interessante. Há algo estranho acontecendo aqui. Dá para sentir nos ossos.

- Com quem o senhor conversou? - perguntou David. Ainda havia em sua voz uma rudeza que incomodava Angela, mas ela não disse nada.

- Por enquanto, só com uns poucos.

Calhoun soltou um arroto. Não fez menção de se desculpar ou de cobrir a boca. David olhou para Angela, que fingiu não perceber.

- Falei com alguns figurões do hospital - continuou Calhoun. - O chairman da diretoria, Traynor, e o vice-chairman, Sherwood. Os dois tinham motivo para guardar rancor contra Hodges.

- Espero que planeje conversar com o Doutor Cantor - disse Angela. - Ouvi dizer que ele realmente tinha ódio de Hodges.

- Cantor está na lista. Mas eu queria começar de cima e vir descendo. O motivo do ressentimento de Sherwood envolvia um pedaço de terra. O de Traynor era bem mais pessoal.

Calhoun começou a explicar o triângulo Traynor-Hodges-Van Slyke, concluindo com o suicídio de Sunny Traynor, irmã de Traynor.

- Que história terrível! - disse Angela.

- É como uma novela de TV - concordou Calhoun. - Mas é de se pensar que se Traynor tivesse sentido vontade de fazer alguma coisa contra Hodges, teria feito na época, e não agora. Além disso, Hodges escolheu Traynor para assumir a diretoria do hospital bem depois do suicídio. Duvido que ele tivesse feito isso se Traynor ainda estivesse chateado. E o filho de Van Slyke, Werner, trabalha hoje para o hospital.

- Werner Van Slyke é parente de Traynor? - perguntou David, com surpresa. - Bem que isso cheira a nepotismo.

- Pode ser - disse Calhoun. - Mas Werner Van Slyke, Júnior, tinha um relacionamento amigável de longa data com Hodges. Ele cuidou durante anos da casa dele. Seu cargo no hospital é provavelmente mais em resultado da ação de Hodges do que de Traynor. De qualquer modo, não suspeito de Traynor pelo assassinato.

- Como pode ter certeza? - perguntou Angela. «

- Não tenho certeza de nada, a não ser do assassinato deHodges. A partir daí, só podemos lidar com probabilidades.

- Isso tudo é muito interessante - disse David -, mas o senhor tem algum suspeito, ou pelo menos conseguiu diminuir a lista?

- Ainda não.

- Quanto nós gastamos para chegar até essa encruzilhada de dubiedades? - perguntou David.

- David! - reagiu Angela. - Acho que você está sendo injusto. Afinal, o Senhor Calhoun descobriu um bocado de coisas em pouco tempo. Imagino que a pergunta importante é se ele acredita que o caso é passível de solução.

- Essa eu quero ver - disse David. - Qual é a sua avaliação profissional, Senhor Calhoun?

- Acho que preciso de um charuto. Vocês se importariam se a gente sentasse do lado de fora?

Alguns minutos depois, eles estavam na varanda. Calhoun parecia absolutamente satisfeito com seu charuto e outra cerveja.

- Acho que o caso é definitivamente solucionável - disse ele. Seu rosto largo e pastoso se iluminava intermitentemente enquanto ele dava baforadas no charuto. - Vocês precisam saber uma coisa sobre as pequenas cidades da Nova Inglaterra: são mais parecidas do que diferentes entre si. Conheço essas pessoas e compreendo as suas dinâmicas. Os personagens em geral são os mesmos de cidade para cidade, só diferem os nomes. O que é da conta de uma pessoa é da conta de todo mundo. Em outras palavras, tenho certeza de que algumas pessoas sabem quem é o assassino. O problema é fazer alguém falar. Minha intuição é de que o hospital está envolvido em algum nível, e ninguém quer que ele saia prejudicado. E há uma chance de que isso aconteça, porque Hodges tornou o hospital o trabalho de sua vida.

- Como o senhor conseguiu essas informações até agora?- perguntou Angela. -Eu achava que as pessoas da Nova Inglaterra eram reservadas, relutantes em falar.

- Em geral, isso é verdade. Mas acontece que algumas das pessoas que mais conhecem as fofocas da cidade são minhas amigas: a dona da livraria, o farmacêutico, o garçom e a bibliotecária. Até o momento, eles foram responsáveis pelos meus sucessos. Agora tenho de começar eliminando suspeitos. Mas antes disso preciso fazer uma pergunta: vocês querem que eu continue?

- Não - disse David.

- Espere um minuto - disse Angela. - O senhor disse que o caso é definitivamente solucionável. Quanto tempo acha que isso vai demorar?

- Não muito.

- Isso é vago demais - disse David.

Calhoun levantou o boné e coçou a cabeça.

- Eu diria que dentro de uma semana.

- Isso representa um bocado de dinheiro - contrapôs David.

- Acho que vale a pena - observou Angela.

- Angela! Você disse que ia desistir do caso Hodges.

- E vou. O Senhor Calhoun fará tudo. Não vou falar com ninguém.

- Santo Deus - disse David desanimado enquanto revirava os olhos de exasperação.

- Ora, David, se você espera que eu viva nesta casa, tem de me apoiar nisso.

David hesitou e em seguida pensou num acordo.

- Certo. Vou fazer um trato. Uma semana, e depois chega, independentemente do que acontecer.

- Tudo bem - disse Angela. - Está combinado. - Em seguida, virou-se para Calhoun. -

Agora que temos um limite de tempo, qual é o próximo passo?

- Primeiro vou continuar entrevistando minha lista de suspeitos. Existem dois objetivos principais ao mesmo tempo. Um é refazer o último dia do falecido, presumindo que ele tenha sido morto no dia em que desapareceu. Para isso, quero entrevistar a enfermeira secretária do Doutor Hodges, que trabalhou para ele durante trinta e cinco anos. O segundo objetivo é conseguir cópias dos documentos médicos que foram encontrados com ele.

- Estão sob custódia da polícia estadual - informou Ângela. - O senhor não pode conseguir as cópias, já que fez parte da força estadual?

- Infelizmente, não. A polícia estadual tende a ser tremendamente reservada quando se trata de evidências sob custódia. Sei disso porque trabalhei um tempo na divisão de cena do crime em Burlington. É uma espécie de ”beco sem saída”. A polícia estadual fica com a perícia e as evidências, e não se motiva a gastar muito tempo e esforço nesse tipo de caso porque recebe as informações da polícia local. Se a polícia local não se importa, então a polícia estadual deixa a coisa de lado. Um dos motivos pelos quais a polícia local não se importa é o fato de ela não ter evidência sobre as quais trabalhar.

- Outro motivo é que eles podem estar de algum modo envolvidos - disse Angela.

Em seguida, contou a Calhoun sobre o tijolo lançado pela janela, os bilhetes ameaçadores e a reação da polícia.

- Isso não me surpreende - disse Calhoun. - Robertson está na minha lista. Ele não suportava Hodges.

- Sei disso - concordou Angela. - Me disseram que Robertson culpa Hodges pela morte da esposa.

- Não dou muita importância a essa história – falou Calhoun. - Robertson não é tão estúpido assim. Acho que o triste episódio com sua esposa era só uma desculpa. Para mim, a raiva de Robertson contra Hodges resultava mais do comportamento de Hodges, que, como sabemos, era menos do que diplomático. Aposto meu último dólar que Hodges sabia que Robertson era um fanfarrão e nunca o respeitou. Sinceramente, duvido que Robertson tenha matado Hodges, mas quando estive falando com ele, tive uma sensação engraçada. Ele sabe de alguma coisa que não quis me dizer.

- Pelo modo como a polícia vem empurrando com a barriga, ela tem de estar envolvida – disse Angela.

- Isso me lembra de um caso quando eu estava começando na polícia estadual - disse Calhoun, depois de outra longa baforada no charuto. - Foi também um homicídio numa cidade pequena. Tínhamos certeza de que toda a cidade, inclusive a polícia local, sabia quem era o assassino, e no entanto ninguém o denunciou. Terminamos abandonando o caso. Está sem solução até hoje.

- O que o faz pensar que o caso de Hodges é diferente? - perguntou David.-Não poderia estar acontecendo a mesma coisa aqui?

- Não há a menor chance - disse Calhoun. - No caso sobre o qual falei, o morto era um ladrão e assassino. Hodges é diferente. Há muita gente que o odiava, mas também há um bocado de gente que pensa nele como um dos heróis da cidade. Diabo, esse é o único centro de referência médica fora das grandes cidades, na Nova Inglaterra, e Hodges foi pessoalmente responsável por sua construção. O meio de vida de muita gente depende do que Hodges criou aqui. Não se preocupe, esse caso será resolvido. Não tenho a menor dúvida.

- Como vai conseguir as cópias dos papéis de Hodges, se o senhor mesmo não pode obtê-las? - perguntou Angela.

- A senhora vai ter de conseguir - disse Calhoun.

- Eu?

- Isso não faz parte do trato - disse David.-Ela tem de ficar fora dessa investigação. Não quero que converse com mais ninguém. Especialmente depois de um tijolo atravessar nossa janela.

- Não haverá risco - insistiu Calhoun.

- Por que eu? - perguntou Angela.

- Porque a senhora é médica e empregada do hospital. Se aparecer na divisão de cena do crime em Burlington, com a identificação adequada, e disser que os papéis são necessários para tratar dos pacientes, eles vão fazer as cópias num piscar de olhos. As requisições dos juizes e dos médicos são sempre honradas. Eu sei. Como disse, já trabalhei lá.

- Acho que assim não pode ser muito perigoso: visitar o quartel central da polícia do Estado - disse Angela.-Não é como se eu estivesse participando da investigação.

- Acho que está bem - concordou David.-Desde que não haja qualquer chance de arranjar problemas com a polícia.

- Não há a menor chance - disse Calhoun. - A pior coisa que pode acontecer é eles não darem as cópias.

- Quando será? - perguntou Angela.

- Que tal amanhã? - sugeriu Calhoun.

- Terá de ser na minha hora de almoço.

- Venho pegá-la ao meio-dia na frente do hospital - disse Calhoun. Em seguida ele se levantou, agradecendo pelas cervejas.

Angela se ofereceu para acompanhá-lo até a pick-up, enquanto David voltava para a casa.

- Espero não estar causando problemas entre a senhora e seu marido - disse Calhoun enquanto os dois se aproximavam do veículo.-Ele não parece muito satisfeito com minha investigação.

- Não vai ser problema. Mas teremos de manter o trato: uma semana. - Deve ser tempo suficiente.

- Há outra coisa que eu queria contar - disse Angela, e em seguida explicou a nova teoria sobre o ataque que sofrera.

- Hmmm - disse Calhoun. - Isto está ficando mais interessante do que pensei. É melhor certificar-se duplamente de deixar a investigação por minha conta.

- Pretendo fazer isso.

- Tive o cuidado de não deixar ninguém saber que a senhora me contratou.

- Agradeço a discrição.

- Talvez amanhã eu devesse apanhá-la no estacionamento atrás da biblioteca, em vez de na frente do hospital. Não tem sentido nos arriscarmos.

 

QUARTA-FEIRA, 27 DE OUTUBRO

PARA CONSTERNAÇÃO de David e Angela, Nikki acordou com congestão e uma tosse profunda e carregada. Ambos temeram que ela estivesse com a mesma doença que afligira Caroline por um curto período. David ficou particularmente preocupado, porque fora sua decisão deixar que Nikki visitasse Caroline na tarde anterior.

A despeito da atenção extra com a terapia respiratória da manhã, Nikki não melhorou. Para seu profundo desapontamento, David e Angela decidiram que ela não deveria ir à escola.

Chamaram Alice, que concordou em vir passar o dia.

Já tenso pelos eventos de casa, David se sentia irritadiço ao começar a ronda. Com tantas mortes em pouco tempo, estava com medo de ver os pacientes. Mas as preocupações não tinham motivo. Todos passavam bem. Até mesmo Sandra estava muito melhor.

- O inchaço está diminuindo - disse David enquanto apalpava suavemente a face da mulher.

- Posso sentir - disse ela.

- E sua febre está abaixo de trinta e oito.

- Fico satisfeita. Obrigada. Não vou nem mesmo pressionálo sobre quando devo ter alta.

- Muito inteligente - disse David, gargalhando. - A abordagem indireta costuma ser mais eficaz do que a direta. Mas acho que devemos mantê-la aqui até termos cem por cento de certeza que a infecção está controlada.

- Ah, certo - disse Sandra, fingindo irritação. - Mas se eu tenho de ficar, o senhor pode me fazer um favor?

- Claro.

- Os controles elétricos da minha cama pararam de funcionar! Eu disse às enfermeiras, mas elas alegaram que não podiam fazer nada.

- Vou cuidar disso - prometeu David. - É um problema crónico por aqui. Tentarei resolver agora mesmo. Queremos que você fique o mais confortável possível.

De volta ao posto de enfermagem, David encontrou Janet Colburn e reclamou da situação da cama.

- Realmente não se pode fazer nada? - perguntou.

- Foi o que informou a manutenção, quando reclamamos - disse Janet. - Eu não ia discutir com aquele sujeito. Já é difícel falar com ele. E, francamente, não temos outra cama disponível no momento.

David não acreditava que teria de procurar Van Slyke para tratar de outro detalhe de manutenção. Mas parecia que suas opções em ir perguntar por que a cama não podia ser consertada ou procurar Beaton diretamente... Era uma situação absurda.

Encontrou Van Slyke em sua sala sem janelas.

- Tenho uma paciente lá em cima que está numa cama defeituosa, e disseram que não pode ser consertada - disse David em tom irritado, depois de uma batida rápida na porta. – Qual é o problema?

- O hospital comprou o tipo errado de cama. É um pesadelo para a manutenção.

- Não dá para ser consertada?

- Dá, mas vai quebrar de novo.

- Quero que seja consertada - disse David.

- Vamos consertar, quando chegar a hora. Não me incomode. Tenho coisa mais importante para fazer.

- Por que você é tão grosseiro?

- Olhe só quem está falando! Foi o senhor quem veio aqui embaixo gritar comigo e não o contrário. Se está com algum problema, procure a administração.

- Vou fazer isso.

David virou-se e subiu a escada, pretendendo ir direto à sala de Helen Beaton. Mas no saguão viu o Doutor Pilsner chegando ao hospital, dirigindo-se para a escadaria.

- Bert - chamou David. - Posso falar com você um momento?

O Doutor Pilsner parou.

David se aproximou dele, descreveu a congestão de Nikki e começou a perguntar se ele achava que Nikki deveria tomar antibióticos por via oral. Mas parou no meio da frase. Percebeu que o Doutor Pilsner estava agitado; mal ouvia o que ele estava dizendo.

- Alguma coisa errada? - perguntou.

- Desculpe - disse o Doutor Pilsner. - Estou distraído. Caroline Helsmsford piorou inesperadamente durante a noite. Estive aqui quase o tempo todo. Só fui em casa tomar banho e trocar de roupa.

- O que aconteceu?

- Venha ver você mesmo - disse o Doutor Pilsner e começou a subir a escada. David precisou correr para acompanhá-lo. - Ela está na UTI. Começou com a coisa mais absurda: uma convulsão.

David hesitou em seus passos. Em seguida, teve de correr para acompanhar de novo o pediatra. Não gostava da idéia de Caroline ter tido uma convulsão. Trazia más lembranças dos seus pacientes.

- E depois se desenvolveu rapidamente uma pneumonia - prosseguiu o Doutor Pilsner. - Tentei de tudo. Nada parecia fazer diferença.

Chegaram à UTI. O Doutor Pilsner hesitou, encostando-se à porta. Em seguida, suspirou de exaustão.

- Agora ela está em choque séptico. Estamos precisando manter a pressão sangüínea. Não parece nada bom. Acho que vou perdê-la.

Entraram na UTI. Caroline estava em coma. Um tubo saía de sua boca, preso a um respirador. Seu corpo estava coberto de fios e tubos intravenosos. Monitores registravam a pulsação e a pressão sangüínea. David estremeceu enquanto olhava para a criança naquele estado lamentável. Em sua imaginação, via Nikki no lugar de Caroline, e a imagem deixou-o aterrorizado.

A enfermeira da UTI fez um relatório resumido. Nada havia melhorado desde que o Doutor Pilsner saíra uma hora atrás. Assim que terminou de ser informado, o Doutor Pilsner caminhou com David até o balcão central. David aproveitou a oportunidade para discutir com ele o estado de Nikki. O Doutor Pilsner ouviu e em seguida concordou com a indicação de antibióticos por via oral. Sugeriu o tipo e dosagem.

Antes de sair da UTI, David tentou animar o Doutor Pilsner com uma palavra de encorajamento. Sabia bem demais como o médico se sentia.

Antes de atender aos pacientes do consultório, David ligou para Angela, para falar sobre os antibióticos de Nikki. Em seguida, contou sobre Caroline. Angela levou um choque.

- Você acha que ela vai morrer?

- É o sentimento do Dr, Pilsner.

- Nikki esteve com ela ontem - disse Angela.

- Não precisa me lembrar. Mas Caroline estava muito melhor. Não tinha febre.

- Meu Deus! É uma coisa depois da outra. Dá para pegar antibióticos para Nikki e trazer para casa na hora do almoço?

- Tudo bem.

- Eu vou para Burlington, como foi planejado.

- Vai mesmo?

- Claro. Calhoun ligou para confirmar. Aparentemente ele já falou com o oficial encarregado da divisão de cena do crime, de Burlington.

- Boa viagem - disse David e desligou antes de dizer algo de que pudesse se arrepender.

As prioridades de Angela deixavam-no irritado. Enquanto ele se preocupava loucamente com Caroline e Nikki, ela continuava obcecada com o caso Hodges.

- Agradeço-lhe por ter me recebido - disse Calhoun, sentando-se diante da mesa de Helen Beaton. - Como eu disse à sua secretária, só quero fazer algumas perguntas.

- E eu tenho uma pergunta para o senhor - disse Beaton.

- Quem começa?-perguntou Calhoun e em seguida pegou o maço de charutos. – Posso fumar?

- Não, o senhor não deve fumar. Não se fuma neste hospital. E acho que eu devo fazer minhas perguntas primeiro. A resposta pode afetar a duração desta entrevista.

- Perfeitamente. A senhora começa.

- Quem o contratou?

- Essa é uma pergunta injusta.

- Porquê?

- Porque meus clientes têm direito à privacidade. Agora é minha vez. Eu soube que o Doutor Hodges visitava freqüentemente a sua sala.

- Devo interromper - disse Beaton. - Se os seus clientes preferem guardar a identidade, então não vejo motivo para cooperar com o senhor.

- Tudo bem. Claro que há pessoas que podem se perguntar por que a presidente de um hospital teria problemas em falar sobre seu predecessor. Podem até mesmo começar a pensar que foi a senhora quem matou Hodges.

- Obrigado por ter vindo - disse Beaton. Em seguida se levantou e sorriu. - O senhor não vai me forçar a falar, não sem que eu saiba quem está por trás do seu trabalho. Minha preocupação básica é o hospital. Bom dia, Senhor Calhoun.

Calhoun ficou de pé.

- Tenho a sensação de que irei vê-la de novo.

Calhoun saiu da administração e desceu até o porão. Seu próximo entrevistado era Werner Van Slyke. Encontrou-o na oficina do hospital, substituindo motores elétricos em várias camas.

- Werner Van Slyke? - perguntou Calhoun.

- Sim - respondeu Van Slyke em sua voz monótona.

- Meu nome é Calhoun. Dá para bater um papo?

- Sobre o quê?

- Sobre o Doutor Dennis Hodges.

- Se não se importar que eu continue trabalhando - disse Van Slyke, voltando a atenção para os motores.

- Essas camas costumam dar problema?

- Infelizmente.

- Já que é chefe do departamento, por que você mesmo está fazendo o serviço?

- Quero garantir que seja bem-feito.

Calhoun se afastou da bancada e sentou-se num banco.

- Posso fumar? - perguntou.

- Se quiser.

- Pensei que o hospital era um ambiente onde não se fumava! - disse Calhoun pegando um charuto. Ofereceu um a Van Slyke. Este parou como se estivesse avaliando a idéia. Em seguida pegou um. Calhoun acendeu o de Van Slyke antes do seu.

- Soube que conheceu Hodges muito bem.

- Ele era um pai para mim - disse Van Slyke, tragando charuto com ar de felicidade. - Mais do que o meu próprio pai.

- Fala sério?

- Se não fosse por Hodges, eu nunca teria ido para a faculdade. Ele me arranjou trabalho na sua casa. Eu costumava dormir lá muitas vezes e a gente conversava. Eu tinha um bocado de problemas com meu pai.

- Como assim? - Calhoun estava ansioso para manter Van Slyke falando.

- Meu pai era um bom filho da puta - disse Van Slyke e em seguida tossiu. - Vivia me espancando.

- Porquê?

- Ele ficava bêbado quase toda noite. Costumava bater em mim, e minha mãe não podia fazer nada. Na verdade, ela também apanhava.

- Você conversava com sua mãe? Os dois não se uniam contra seu pai?

- De jeito nenhum! Ela sempre o defendia, dizendo que ele não tinha tido a intenção, depois de ter me arrebentado. Tentou me convencer de que ele me batia porque me amava.

- Não faz sentido.

- Claro que não faz - disse Van Slyke em tom ácido.- E por que cargas-d’água está me fazendo essas perguntas?

- Estou interessado na morte de Hodges.

- Depois de todo esse tempo?

- Por que não? Você não gostaria de descobrir quem o matou?

- E o que eu faria se descobrisse? Mataria o safado? - Van Slyke riu até começar a tossir de novo.

- Você não fuma muito, não é?

Van Slyke balançou a cabeça depois de finalmente controlar a tosse. Seu rosto estava vermelho. Em seguida foi até uma pia beber água. Quando voltou, seu humor estava mudado.

- Acho que já chega desse bate-papo - falou com tom de zombaria. - Estou com um monte de trabalho para fazer. Nem deveria estar mexendo nessas camas.

- Vou indo, então - disse Calhoun depois de se levantar do banco. - É uma regra que eu sigo: nunca fico onde não sou desejado. Mas você se importaria se eu voltasse qualquer hora dessas?

- Vou pensar.

Depois de sair da manutenção, Calhoun rodeou a frente do hospital e foi até o Imaging Center. Entregou um cartão à recepcionista e pediu para falar com o Doutor Cantor.

- O senhor marcou hora?

- Não. Mas, veja, estou aqui para falar sobre o Doutor Hodges.

- Doutor Dennis Hodges? - perguntou a recepcionista, com ar de surpresa.

- Esse mesmo. Vou ficar sentado aqui na sala de espera.

Calhoun observou enquanto a recepcionista ligava para o interior da organização. Estava começando a apreciar a arquitetura e a decoração luxuosa, quando uma mulher com ar de matrona apareceu e pediu que a seguisse.

- O que quer dizer com falar sobre Dennis Hodges? - perguntou Cantor assim que Calhoun atravessou sua porta.

- Exatamente isso - disse Calhoun.

- E por que diabos?

- Posso sentar?

Cantor fez um gesto na direção de uma das cadeiras diante da mesa. Calhoun teve de retirar uma pilha de jornais de medicina e colocá-la no chão. Depois de ter sentado, passou pela rotina de pedir para fumar.

- Contanto que me dê um - disse Cantor. - Desisti do fumo, a não ser quando posso filar.

Assim que os dois tinham acendido os charutos, Calhoun disse que fora contratado para descobrir o assassino de Hodges.

- Acho que não estou a fim de conversar sobre aquele canalha - disse Cantor.

- Posso perguntar por quê?

- Por que eu deveria falar sobre ele?

- Obviamente para levar o assassino à justiça.

- Acho que a justiça já foi cumprida. Apessoa que nos livrou daquela peste deveria receber uma medalha.

- Já tinham me falado sobre o mau juízo que o senhor fazia dele.

- Isso é dizer pouco. Ele era desprezível.

- Poderia dar mais detalhes?

- Ele não se importava com ninguém.

- Está falando das pessoas em geral ou dos outros médicos.

- Principalmente dos médicos, acho. Ele simplesmente não se importava. Tinha uma prioridade, que era o hospital. Mas seu conceito sobre a instituição não se estendia aos médicos que trabalhavam nela. Ele assumiu a radiologia e a patologia, e mandou um bocado de gente pastar. Todos nós queríamos esganá-lo.

- Poderia me dar os nomes?

- Sem dúvida, isso não era segredo. - Em seguida, Cantor contou nos dedos cinco médicos, incluindo ele próprio.

- E o senhor é o único do grupo que ainda está por aqui.

- Sou o único que continua na radiologia. Graças a Deus, tive a premonição de criar este centro de imagens. Paul Darnell também continua aqui. Está na patologia.

- O senhor sabe quem matou Hodges?

Cantor começou a falar, mas logo se interrompeu.

- Sabe de uma coisa? Acabo de perceber que venho dando com a língua nos dentes, a despeito de ter começado a conversa dizendo que não queria falar sobre Hodges.

- A mesma coisa me passou pela cabeça - disse Calhoun. - Acho que o senhor mudou de idéia. Então, que tal dizer: sabe quem matou Hodges?

- Se soubesse, não diria.

Subitamente, Calhoun pegou o relógio de bolso, que estava preso por uma corrente a um dos passadores de sua calça.

- Nossa! - falou, levantando-se. - Desculpe, mas preciso interromper nossa conversa. Nem percebi o tempo passar. Tenho outro compromisso.

Esmagando o charuto num cinzeiro diante do surpreso Cantor, Calhoun saiu correndo da sala. Foi imediatamente para apick-up e dirigiu até a biblioteca. Viu Angela andando pela calçada que levava à entrada.

- Desculpe o atraso - disse Calhoun depois de abrir a porta do passageiro.-Estava me divertindo tanto com o Doutor Cantor que nem percebi o tempo.

- Eu também me atrasei alguns minutos. - Angela subiu na cabine, que cheirava a fumaça velha de charuto.

- Estou curiosa sobre o Doutor Cantor - disse ela.-Ele contou alguma coisa interessante?

- Não foi ele quem matou Hodges. Mas me interessou. O mesmo aconteceu com Beaton. Há alguma coisa acontecendo por aqui, dá para sentir.

Calhoun baixou a janela do lado do motorista.

- Se importa se eu fumar?

- Presumi que fosse este o motivo de irmos no seu carro - disse Angela.

- Achei que deveria pedir permissão.

- Tem certeza de que esta visita à polícia estadual vai dar certo? Quanto mais penso nisso, mais nervosa fico. Afinal de contas, estou de certo modo fazendo uma apresentação mentirosa. Quer dizer, eu trabalho no hospital, mas na verdade não preciso dos papéis para cuidar dos pacientes. Sou uma patologista.

- Não precisa se preocupar, A senhora pode até não dizer nada. Eu já expliquei tudo ao tenente. Ele não criou problema.

- Estou confiando no senhor.

- A senhora não vai se desapontar. Mas tenho uma pergunta. A reação do seu marido ontem à noite ainda me incomoda. Não quero causar problemas entre vocês. O fato é que estou me divertindo mais com este caso do que com qualquer outro desde que deixei a polícia. Se eu baixasse o meu preço por hora, ajudaria?

- Obrigada pela preocupação. Mas tenho certeza de que David não incomodará, desde que mantenhamos o prazo de uma semana.

A despeito do que Calhoun dissera, Angela continuava nervosa enquanto saía da pick-up no quartel-general da polícia do estado em Burlington; mas sua preocupação era desnecessária.

A presença de Calhoun fez com que a operação fosse mais tranqüila do que ela poderia esperar. Calhoun falou tudo que era necessário. O policial encarregado do departamento de evidências não poderia ter sido mais gentil nem mais solícito.

- Já que está com a mão na massa - disse Calhoun -, que tal fazer duas cópias de cada?

- Sem problema - disse o policial, manuseando os originais com as mãos enluvadas.

Calhoun piscou para Angela e sussurrou:

- Desse modo, cada um fica com um conjunto de cópias.

Dez minutos depois, Angela e Calhoun estavam de volta à pick-up.

- Foi uma tranqüilidade - disse Ângela aliviada. Em seguida retirou as cópias do envelope onde o policial as tinha colocado e começou a folheá-las.

- Nunca digo: ”Eu não disse?” - observou Calhoun com um sorriso. - Nunca digo isso. Não. Não sou esse tipo de pessoa.

Angela gargalhou. Estava começando a gostar do humor de Calhoun.

- O que são esses papéis?-perguntou ele olhando por cima dos ombros de Angela.

- São cópias de fichas de internação de oito pacientes.

- Alguma coisa especial?

- Não que eu perceba - disse Angela com desapontamento. - Não parece haver qualquer elemento comum. Idades diferentes, sexos diferentes e diagnósticos diferentes. Há um quadril fraturado, pneumonia, sinusite, dor no peito, dor no quadrante abdominal inferior, flebite, ataque cardíaco e pedra nos rins. Não sei o que você esperava, mas isso parece bastante comum.

Calhoun deu partida na pick-up e entrou no meio do trânsito.

- Não tome decisões apressadas - alertou ele.

Angela voltou a enfiar os papéis no envelope e olhou ao redor. Imediatamente reconheceu onde estavam.

- Espere um segundo - falou. - Pare um momento. Calhoun levou o carro para junto da calçada.

- Estamos perto do escritório do chefe da perícia médica - disse Angela. - Que tal darmos um pulinho até lá? Ele fez a autópsia em Hodges, e uma visita pode deixá-lo um pouquinho mais interessado.

- Por mim, tudo bem. Gostaria de conhecer o sujeito. Fizeram o retorno no meio da rua movimentada. A manobra apavorou Angela e ela fechou os olhos para o trânsito. Calhoun disse que relaxasse. Alguns minutos depois, estavam no prédio da perícia médica. Encontraram Walter Dunsmore numa lanchonete. Angela apresentou Calhoun.

- Que tal comer alguma coisa? - sugeriu Walter. Angela e Calhoun pegaram sanduíches numa máquina e juntaram-se a Walt.

- O Senhor Calhoun está ajudando a investigar o assassinato de Hodges - explicou Angela. - Viemos a Burlington conseguir cópias de algumas evidências. Já que estávamos aqui, pensei em parar para ver se surgiu alguma novidade.

- Acho que não - disse Walt enquanto tentava pensar. - O exame toxicológico voltou e foi negativo, a não ser pelo nível de álcool, do qual já lhe falei. É tudo. Como eu disse, ninguém está dando muita prioridade a este caso.

- Compreendo - disse Angela. - Mais alguma coisa sobre o carvão debaixo da pele?

- Não tive chance de pensar nisso de novo.

Depois de engolirem os sanduíches, Angela disse que precisava voltar a Bartlet, já que estava em seu horário de almoço. Walt encorajou-a a voltar quando quisesse.

A viagem de volta a Bartlet pareceu ainda mais rápida do que a ida. Calhoun deixou Ângela atrás da biblioteca para que ela pegasse o carro.

- Vou ficar em contato - disse ele. - E, lembre-se, fique fora do caso.

- Não se preocupe.

- Angela acenou depois de se sentar atrás do volante. Era quase uma e meia.

De volta à sua sala, Angela colocou as cópias dos papéis de Hodges na gaveta de cima da sua mesa. Queria lembrar-se de levá-las para casa naquela noite. Enquanto vestia o jaleco branco, Wadley abriu a porta de ligação sem se importar em bater.

- Estou procurando por você há quase vinte minutos - disse ele irritado.

- Eu dei uma saída.

- Isso é óbvio. Mandei chamá-la pelo bipe várias vezes.

- Desculpe - disse Angela. - Usei meu horário de almoço para resolver alguns problemas.

- Você ficou na rua mais de uma hora.

- É possível, mas pretendo trabalhar até mais tarde, o que, de qualquer modo, faço normalmente. Além disso, falei com o Doutor Paul Darnell para me dar cobertura no caso de alguma emergência.

- Não gosto que meus patologistas desapareçam no meio do dia.

- Eu não iria demorar. Estou totalmente consciente de minhas responsabilidades e cumpro todas ao pé da letra. Eu não era responsável por biópsias cirúrgicas, que teriam sido a única emerrgência real. Além disso, uma das razões da minha saída era visitar o chefe da perícia médica.

- Você se encontrou com Walt Dunsmore?

- Pode ligar para ele, se duvidar de mim.

Angela percebeu que Wadley abrandara um pouco. Ficou subitamente feliz por ter feito aquela visita de supetão.

- Estou ocupado demais para checar onde você se mete. O fato é que estou preocupado com seu comportamento ultimamente. Devo lembrar-lhe que continua em experiência. Posso garantir que estará acabada se mostrar que é indigna de confiança.

Dito isso, Wadley voltou a passar pela porta de ligação e fechou-a com um estrondo.

Por um instante Angela ficou olhando a porta. Detestava hostilidade aberta. No entanto preferia isso ao assédio sexual de antes. Ficou imaginando se os dois algum dia poderiam desenvolver um relacionamento profissional normal.

Depois de atender o último paciente do consultório, David dirigiu-se com relutância ao hospital para fazer a ronda da tarde. Estava começando a sentir pavor da experiência, temendo o que poderia enfrentar.

Antes de olhar seus pacientes, foi até a UTI verificar o estado de Caroline. A menina estava mal, obviamente moribunda. Encontrou o Doutor Pilsner sentado à escrivaninha da UTI, numa vigília desesperançada. Estava melancólico. David conseguia entender aquilo muito bem.

Saindo da UTI, começou a checar seus pacientes. Sentia-se ansioso cada vez que entrava num quarto, mas ficava aliviado ao descobrir que o paciente estava bem. Ao entrar no quarto de Sandra, porém, a ansiedade continuou: seu estado mental havia deteriorado. Ele ficou pasmo. No seu modo de ver, a mudança fora dramática, ainda que as enfermeiras não se mostrassem impressionadas. Quando David a visitara naquela manhã, ela estava alegre e consciente. Agora se mostrava apática em relação ao que ocorria ao redor e com um fio de saliva escorrendo da boca. Os olhos haviam perdido o brilho. A temperatura, que havia caído, agora estava de novo acima dos trinta e nove graus e meio.

Quando David tentou falar com ela, as respostas foram vagas. A única queixa específica que ele conseguiu perceber foi de cólicas abdominais, um sintoma que lembrava os outros pacientes dos quais tentava esquecer. David sentiu que sua pulsação acelerava. Não acreditava que pudesse tolerar a perda de outro paciente.

De volta ao posto de enfermagem, examinou o prontuário de Sandra. O único fato novo é que ela aparentemente perdera o apetite, fato evidenciado pela anotação feita por uma das enfermeiras, dizendo que ela não almoçara. David checou todos os líquidos que ela tomara por via intravenosa; estava tudo certo. Em seguida, reviu os testes de laboratório; eram todos normais. Estava desesperado em busca de alguma pista que explicasse a mudança no estado mental, mas não havia pistas no prontuário. A única idéia que lhe veio à mente foi a possibilidade de uma meningite - inflamação da membrana que envolve o cérebro - em estado inicial. Fora o medo de uma meningite que o levara a interná-la.

David voltou a examiná-la e, apesar de não conseguir perceber qualquer sinal de meningite, partiu para um teste definitivo. Fez uma punção lombar para obter líquido cérebro-espinhal. Soube imediatamente que o líquido estava normal por causa da transparência, mas mandou-o ao laboratório para ter certeza. O resultado foi normal. Assim como a contagem de açúcar no sangue.

Sandra só não se mostrou apática com relação à dor quando David apalpou seu abscesso. Em função disso, ele acrescentou outro antibiótico ao tratamento. A partir daí, não tinha mais idéias. Sentia-se perdido. Só podia ter esperanças.

David montou na bicicleta e pedalou até em casa. Sabia que estava deprimido. Não desfrutou da viagem. Sentia-se triste por causa de Caroline e preocupado com Sandra. Mas assim que chegou percebeu que não poderia chafurdar na autopiedade. Nikki estava ligeiramente pior do que na hora do almoço, quando ele trouxera seu antibiótico oral. Acongestão piorara e a temperatura chegara a trinta e oito graus.

Telefonou para a UTI e pediu para falar com o Doutor Pilsner. Desculpou-se por perturbá-lo, mas sentia-se obrigado a informar que o antibiótico oral não estava ajudando.

- Vamos aumentar a dose - disse o Doutor Pilsner com voz cansada. - E acho melhor usarmos um agente mucolítico e o broncodilatador junto com a terapia respiratória.

- Alguma mudança com Caroline?

- Nenhuma.

Angela só chegou em casa por volta das sete horas. Depois de checar o estado de Nikki, que estava melhor após uma sessão de terapia respiratória com David, foi tomar uma chuveirada. David acompanhou-a ao banheiro.

- Caroline não melhorou - disse ele enquanto Angela entrava debaixo do chuveiro.

- Morro de pena dos Helmsfords - disse Ângela. – Eles devem estar tristíssimos. Espero ardentemente que Nikki não pegue a mesma coisa.

- Tenho mais uma paciente, Sandra Hascher, que está me apavorando do mesmo jeito que os outros.

Angela enfiou a cabeça para fora do boxe.

- Qual foi o diagnóstico para a internação?

- Abscesso no dente. Que respondeu muito bem ao antibiótico. E então, esta tarde, ela subitamente teve uma mudança no estado mental.

- Ficou desorientada?

- Principalmente apática e vaga. Sei que não parece muito, mas para mim foi uma mudança dramática.

- Meningite?

- Foi a única coisa em que consegui pensar. Mas talvez eu peça uma ressonância magnética amanhã, se ela não melhorar. O problema é que ela me lembra os outros pacientes que morreram.

- Imagino que não pretenda pedir uma junta médica.

- Não, se eu não quiser que ela seja transferida para outro médico. Posso ter problemas até mesmo por pedir a ressonância.

- É um jeito sujo de se fazer medicina.

David não respondeu.

- A viagem a Burlington correu bem - disse Angela.

- Fico feliz - respondeu David sem interesse.

- O único problema foi quando voltei. Wadley está sendo pouco racional. Chegou a me ameaçar de demissão.

- Não! - David estava pasmo. - Isso seria um desastre.

- Não se preocupe. Ele só está falando da boca para fora. Não há hipótese de ele acabar com meu período de experiência logo depois de eu ter reclamado de assédio sexual. Só por isso fico feliz de ter procurado Cantor. A nossa conversa estabeleceu oficialmente a minha reclamação.

- Isso não é muito tranqüilizador. Eu nunca tinha pensado na possibilidade de você ser demitida.

Mais tarde, quando o jantar foi servido, Nikki disse que não estava com fome. Angela fez com que ela se sentasse à mesa assim mesmo, dizendo que poderia comer o que quisesse. Mas durante o jantar, insistiu para que Nikki comesse mais. David disse para não forçá-la. Num instante, David e Angela estavam discutindo sobre a questão, fazendo com que Nikki saísse correndo em prantos.

David e Angela ficaram furiosos, cada um culpando o outro. Por um tempo, nenhum dos dois falou, preferindo ligar a TV e assistir o noticiário em silêncio. Quando chegou a hora de Nikki ir para a cama, Angela disse que cuidaria da terapia respiratória enquanto David arrumava a cozinha.

David mal teve tempo de levar os pratos sujos para a cozinha quando Angela voltou.

- Nikki me fez uma pergunta que não sei como responder. Perguntou se Caroline voltaria logo para casa.

- O que você disse?

- Que não sabia. Ela está se sentindo tão mal que não tive coragem de lhe contar.

- Não olhe para mim. Também não quero contar. Vamos esperar até que essa congestão termine.

- Certo. Vou ver o que posso fazer.

Angela saiu da cozinha e subiu de novo a escada.

Por volta das nove, David ligou para o hospital. Falou por longo tempo com a enfermeira, que continuou insistindo em que o estado de Sandra não havia mudado, pelo menos de modo significativo. Mas a mulher admitiu que ela não havia comido o jantar.

Assim que David desligou o telefone, Angela apareceu vindo da cozinha.

- Gostaria de olhar os papéis que pegamos em Burlington hoje?

- Não estou interessado.

- Obrigada. Você sabe que isso é importante para mim.

- Estou muito preocupado para me importar com isso.

- Eu tenho tempo e energia para ouvir os seus problemas. Você poderia ao menos mostrar a mesma cortesia para comigo.

- Não acho que as duas questões sejam comparáveis.

- Como é que pode dizer isso? Você sabe como eu estou perturbada com todo esse caso do Hodges.

- Não quero encorajá-la. Acho que fui bastante claro a respeito.

- Ah, sem dúvida. Importante é só o que você acha importante.

- Com todas as coisas que estão acontecendo, é espantoso que ainda se fixe em Hodges. Acho que misturou as prioridades. Enquanto vai fazer uma caçada em Burlington, eu fico aqui trazendo antibióticos para a nossa filha, que tem uma amiga morrendo no hospital.

- Não consigo acreditar que esteja dizendo isso! - reagiu Angela rispidamente.

- E, além do mais, não leva a sério a ameaça de Wadley despedi-la. Tudo porque era tão importante ir a Burlington. Vou lhe dizer uma coisa: se você for despedida, será um desastre econômico sem tamanho. E isso não inclui os problemas em que você nos coloca ao levar essa investigação adiante.

- Você se acha muito racional - gritou Angela. - Mas está enganado. Os problemas não são resolvidos simplesmente por negarmos sua existência. Acho que você misturou as prioridades ao não me apoiar quando eu mais preciso. E quanto a Nikki, talvez ela não estivesse doente se você não tivesse permitido que visitasse Caroline antes de sabermos o que a coitada tinha.

- Isso não é justo! - gritou David de volta. Em seguida se conteve. Ele realmente se achava racional e se orgulhava de não perder a cabeça.

O problema é que quanto mais David se controlava, mais emocional Angela ficava, e quanto mais emocional Angela ficava, mais David se controlava. Às onze horas, os dois estavam exaustos e desgastados. Por acordo mútuo, David dormiu no quarto de hóspedes.

 

QUINTA-FEIRA, 28 DE OUTUBRO

A PRINCÍPIO, DAVID não teve idéia de onde se encontrava. Abriu os olhos na escuridão. Tateando o abajur pouco familiar, finalmente conseguiu acendê-lo. Olhou atordoado a mobília ao redor. Demorou quase um minuto para perceber-que estava no quarto de hóspedes. E, assim que percebeu isso, o mal-estar da noite anterior voltou num relâmpago.

Pegou seu relógio de pulso. Eram quinze para as quatro. Ficou deitado de costas no travesseiro, e estremeceu com uma onda de náusea. Logo depois da náusea vieram cólicas, seguidas por surto de diarréia.

Sentindo-se horrível, David arrastou-se do quarto de hóspedes até o banheiro principal, procurando algum remédio para diarréia., Quando finalmente encontrou um frasco, tomou uma dose reforçada. Depois procurou um termômetro e enfiou-o na boca.

Enquanto dava tempo para uma leitura precisa, procurou uma aspirina. Ao fazer isso, percebeu que precisava ficar engolindo tempo todo, como alguns de seus pacientes falecidos.

Olhou para o seu reflexo no espelho, enquanto um novo medo se dava a conhecer. E se tivesse contraído a doença misteriosa que estivera matando seus pacientes? Meu Deus, pensou, eles tiveram os mesmos sintomas que estou manifestando agora. Com dedos trêmulos, retirou o termômetro da boca. Marcava trinta e oito graus. Colocou a língua para fora e examinou-a no espelho. Estava tão pálida quanto seu rosto.

- Calma! - ordenou asperamente a si mesmo. Pegou duas aspirinas e engoliu-as com um copo d’água. Quase imediatamente teve outra cólica e precisou se apoiar na bancada da pia até que ela passasse.

Avaliou seus sintomas de um modo deliberadamente calmo. Eram sintomas parecidos com gripe, como os que vira nas cinco enfermeiras. Não havia motivo para antecipar conclusões histéricas.

Depois de tomar o remédio para diarréia e as aspirinas, David decidiu seguir o mesmo conselho que dera às enfermeiras: voltou para a cama. No momento em que o despertador soou no quarto principal, ele já estava se sentindo melhor.

A princípio, ele e Angela se olharam com ar belicoso. Logo depois caíram um nos braços um do outro. Abraçaram-se durante um minuto inteiro antes que David falasse:

- Trégua? - Angela assentiu.

- Nós dois estamos estressados.

- Além disso, acho que estou com alguma coisa - disse David. Em seguida contou sobre os sintomas de gripe, que o haviam acordado. - A única coisa que continua me incomodando é a salivação excessiva.

- O que quer dizer com salivação excessiva?

- Tenho de ficar engolindo. É como o que se sente antes de vomitar, mas não tão ruim. De qualquer modo, agora está melhor.

- Você esteve com Nikki?

- Ainda não.

Depois de tomarem banho, foram para o quarto de Nikki. Ferrugem recebeu-os alegre.

Nikki demonstrou menos entusiasmo. Estava um pouco mais congestionada, a despeito dos antibióticos orais e do esforço extra na terapia respiratória.

Enquanto Angela preparava o café da manhã, David ligou para o Doutor Pilsner e falou sobre o estado de Nikki.

- Acho que deveria examiná-la agora mesmo -- disse o Doutor Pilsner. - Por que vocês não vêm para a emergência dentro de meia hora?

- Estaremos lá - disse David. - E obrigado pela preocupação.

Estava para desligar quando pensou em perguntar por Caroline.

- Ela morreu. Por volta de três da madrugada. A pressão sangüínea não pôde ser mantida. Pelo menos não sofreu, se bem que isso não sirva de consolo.

A notícia, ainda que esperada, golpeou David profundamente. Sentindo o coração pesado, ele foi à cozinha e contou a Angela.

Angela pareceu que ia irromper em lágrimas, mas em vez disso reagiu:

- Não consigo acreditar que você tenha deixado Nikki visitá-la!

Perplexo com a reprimenda, David contra-atacou:

- Pelo menos, eu vim para casa ontem na hora do almoço, fazer Nikki tomar o antibiótico.

- Depois de dizer isso, sentiu-se culpado por ter permitido que Nikki visitasse Caroline.

David e Angela se entreolharam, lutando com a irritação e medo.

- Desculpe - disse ela finalmente. - Tinha esquecido nossa trégua. é que estou muito preocupada.

- O Doutor Pilsner quer ver Nikki na emergência agora mesmo. Acho melhor a gente ir.

Os dois enrolaram Nikki em cobertores e foram até o carro. Controlaram-se meticulosamente para não dizer qualquer coisa que provocasse o outro. Conheciam bem demais as fraquezas e vulnerabilidades mútuas. Nikki também não disse nada; tossiu na maior parte do caminho.

O Doutor Pilsner estava esperando, e imediatamente levou Nikke para um dos cubículos de exame. David e Angela ficaram de pé, enquanto o Doutor Pilsner examinava Nikki. Ao terminar, ele puxou-os de lado.

- Quero que ela seja internada imediatamente - falou.

- Acha que ela está com pneumonia? - perguntou David.

- Não tenho certeza. Mas é possível. Não quero me arriscar depois do que aconteceu... – Ele não terminou a frase.

- Vou ficar aqui com Nikki - disse Angela a David. - Vá fazer sua ronda.

- Certo. Me chame pelo bipe, se houver algum problema. - David continuava se sentindo mal; o estado de Nikki deixou-o ainda pior. Deu um beijo de adeus na filha, prometendo que viria vê-la durante o dia. Nikki assentiu. Já passara antes por aquela rotina.

David tomou várias aspirinas, que apanhara com uma enfermeira da emergência, e em seguida subiu a escada.

- Como vai a Senhora Hascher? - perguntou a Janet Colburn assim que a viu. Em seguida sentou-se à mesa e pegou os prontuários dos pacientes.

- Não foi dito muita coisa na passagem de plantão - disse Janet. - Acho que nenhuma de nós ainda esteve lá esta manhã. Ficamos ocupadas em levar casos cirúrgicos das sete e trinta para a sala de operações.

David abriu hesitante o prontuário de Sandra. Primeiro olhou o gráfico de temperatura. Não houvera picos de febre. A última vez em que fora medida, estava pouco acima de trinta e oito. Virando a folha de anotações das enfermeiras, leu que Sandra estivera dormindo todas as vezes em que uma enfermeira tinha entrado no quarto.

Soltou um suspiro de alívio. Por enquanto tudo bem. Assim que terminou de ler os prontuários, começou a ver os pacientes. Todos estavam bem, exceto Sandra.

Ao entrar no quarto, encontrou-a ainda dormindo. Chegando junto à cama, olhou para o inchaço no rosto. Parecia não estar diferente. Deu uma leve sacudida no ombro dela, chamando seu nome em voz baixa. Como Sandra não respondeu, David sacudiu-a mais vigorosamente e disse o seu nome em voz mais alta.

Finalmente ela estremeceu, levantando uma das mãos, trêmula, até o rosto. Mal conseguia abrir os olhos. David sacudiu-a outra vez. Os olhos de Sandra se abriram mais um pouco, e ela tentou falar, mas tudo que saiu foi um engrolado desconexo. Estava claramente desorientada.

Tentando permanecer calmo, David tirou um pouco de sangue e mandou-o para o laboratório. Em seguida dedicou-se a um exame detalhado, concentrando-se particularmente nos pulmões e no sistema nervoso.

Ao voltar pouco depois para o posto de enfermagem, David recebeu os resultados do exame de laboratório. Estavam normais, inclusive a contagem sangüínea. O número de glóbulos brancos, que havia se elevado devido ao abscesso no dente, caíra com os antibióticos e continuava baixo, afastando a infecção como causa do estado clínico atual. Em vista disso, o som dos pulmões sugeria uma pneumonia incipiente. David se perguntou de novo sobre uma possível falha na resposta imunológica.

Mais uma vez David se viu diante do mesmo trio de sintomas que afetavam o sistema nervoso central, o sistema gastrointestinal e o sistema sangüíneo ou imunológico. Via um complexo, mas não tinha idéia de qual pudesse ser o fator que poderia estar por trás.

Esforçava-se desesperadamente na tentativa de descobrir o que fazer em seguida. A vida de uma mulher de trinta e quatro anos estava na balança. Tinha medo de chamar algum médico de fora, em parte por causa de Kelley, e em parte porque as juntas anteriores não haviam ajudado nada nos três casos semelhantes. E ter ajunta para Eakins fizera com que David fosse removido do caso. Ele relutava até mesmo em pedir mais testes de diagnóstico ou laboratório, já que nada se mostrara útil para os outros pacientes. Estava perdido.

- Uma convulsão no quarto 216! - gritou uma das enfermeiras, do fundo do corredor.

David saiu correndo. Era o quarto de Sandra.

Sandra estava nos estertores de uma convulsão epiléptica.. Seu corpo se arqueava para trás enquanto os membros se contraíam ritmicamente com tamanha força que toda a cama saltava do chão. David gritou pedindo um tranqüilizante. Num piscar de olhos, o medicamento foi colocado em sua mão. Injetou-o no equipamento de soro de Sandra. Dentro de minutos, as convulsões pararam, deixando o corpo de Sandra imóvel e comatoso.

David olhou para o rosto agora pacífico. Sentiu como se estivesse sendo escarnecido por sua impotência intelectual. Enquanto estivera junto à mesa, indeciso e pensando no que fazer, uma convulsão tomara conta do corpo de Sandra numa demonstração dramática.

David irrompeu num redemoinho de atividade. A raiva substituiu o desespero enquanto ele deixava de lado tudo que estivera refreando. Outra vez ordenou tudo: junta médica, testes de laboratório, radiografia e até mesmo uma ressonância magnética do crânio. Estava determinado a descobrir o que acontecia com Sandra Hascher.

Temendo uma deterioração rápida, também fez arranjos imediatos para transferir Sandra para a UTI. Queria continuar monitorando seus sinais vitais. Não desejava mais nenhuma surpresa.

A transferência ocorreu dentro de uma hora. David ajudou a empurrar Sandra pelo corredor até a UTI. Assim que ela foi retirada da maca, David foi até a mesa da UTI escrever as novas prescrições, mas parou no caminho. Nikki estava numa cama logo diante da mesa central.

David ficou atordoado. Não esperava ver Nikki na UTI. Sua presença aterrorizou-o. O que poderia significar?

Sentiu uma mão em seu ombro. Virou-se e viu o Doutor Pilsner.

- Vejo que ficou perturbado porque sua filha está aqui. Não se assuste, é só uma precaução. Aqui há algumas enfermeiras fabulosamente capazes, acostumadas a cuidar de pacientes com problemas respiratórios.

- Tem certeza de que é necessário? - perguntou David nervoso. Sabia como o ambiente de uma UTI era ruim para a psique dos pacientes.

- É para o bem dela. Não quero me arriscar. Vou tirá-la daqui assim que puder.

- Certo - disse David. Mas continuava ansioso com este último acontecimento.

Antes de escrever as novas prescrições para Sandra, foi conversar com Nikki. Ela estava muito menos preocupada com a UTI do que ele. David sentiu-se aliviado ao ver que sua filha recebia a coisa tão bem.

Voltando a atenção para Sandra Hascher, David sentou-se à mesa da UTI e começou a escrever as ordens. Estava quase terminando, quando o recepcionista da UTI bateu em seu braço.

- Tem um tal de Senhor Kelley na sala de espera, querendo vê-lo.

David sentiu o estômago apertar. Sabia por que Kelley estava ali, mas não estava ansioso por vê-lo, e não foi imediatamente. Terminou de escrever as prescrições e entregou-as à enfermeirachefe. Só então foi encontrar-se com Kelley.

- Estou desapontado - disse Kelley assim que David se aproximou. - A coordenadora de utilização me ligou há alguns minutos...

- Espere um instante! - disse David, irritado, interrompendo Kelley. - Estou com uma paciente na UTI e não tenho tempo a perder com você. Por enquanto fique fora do meu caminho. Mais tarde a gente conversa, está certo?

Por um segundo, David ficou olhando furioso o rosto de Kelley. Em seguida girou e foi saindo da sala.

- Só um minuto, Doutor Wilson - gritou Kelley. - Não vá tão depressa.

David girou e voltou num movimento brusco. Sem qualquer aviso, agarrou Kelley pela gravata e pela frente da camisa e empur- rou-o para trás. Kelley desmoronou numa cadeira. David sacudiu um punho fechado diante do rosto de Kelley.

- Quero você fora daqui - rugiu. - Se não sair, não me responsabilizo pelas conseqüências.

Kelley engoliu em seco, mas não se mexeu.

David girou nos calcanhares e marchou para fora da sala de espera. Assim que ele estava chegando junto à porta, Kelley gritou:

- Vou falar com meus superiores. David virou-se, dizendo:

- Faça isso.

Em seguida continuou andando para dentro da UTI. De volta à mesa, parou. Seu coração estava ribombando. Imaginou o que realmente teria feito se Kelley o tivesse enfrentado.

- Doutor Wilson - chamou o recepcionista.-Estou com o Mieslich no telefone. Ele ligou de volta.

- Meu marido dá aulas na faculdade - explicou Madeline Gannons. - Ele ensina teatro e literatura.

Calhoun estivera olhando as muitas estantes de livros que cobriam as paredes da biblioteca dos Gannons.

- Gostaria de conhecê-lo um dia desses - falou. - Eu leio muitas peças. É meu hobby desde que me aposentei. Especialmente Shakespeare.

- Sobre o que gostaria de conversar comigo? - perguntou Madeline, diplomaticamente mudando de assunto. Pela aparência de Calhoun, ela duvidava que Bernard ficasse muito interessado nele.

- Estou investigando o assassinato do Doutor Dennis Hodges. Como a senhora sabe, o corpo foi encontrado recentemente.

- Foi uma coisa terrível.

- Soube que a senhora trabalhou com ele durante algum tempo.

- Mais de trinta anos.

- Trabalho agradável?

- Tinha seus altos e baixos - admitiu Madeline. - Ele era um homem voluntarioso, que podia ser empedernido e mal-humorado num minuto e compreensível e generoso no outro. Eu gostava e desgostava dele ao mesmo tempo. Mas fiquei arrasada com a notícia de que haviam encontrado seu corpo. No fundo, esperava que ele tivesse se enchido das pessoas e ido para a Flórida. Todo inverno ele costumava falar sobre isso, principalmente nos últimos.

- Sabe quem o matou? - perguntou Calhoun, olhando ao redor em busca de um cinzeiro, sem ver nenhum.

- Não faço a mínima idéia. Mas, tratando-se do Doutor Hodges, há certamente um monte de candidatos.

- Quem, por exemplo?

- Bom, deixe-me voltar atrás - disse Madeline. - Para ser totalmente honesta, não creio que qualquer uma das pessoas que o Doutor Hodges costumava enfurecer tivesse feito mal a ele. Do mesmo modo que o Doutor Hodges jamais cumpriria qualquer das ameaças que verbalizava com tanta freqüência.

- Quem ele ameaçava?

Madeline riu.

- Praticamente todas as pessoas ligadas à atual administração do hospital. Além do chefe de polícia, do presidente do banco local, do dono do posto Mobil. A lista é enorme.

- Por que Hodges estava chateado com a nova administração do hospital?

- Principalmente por causa dos seus pacientes. Ou melhor, de seus ex-pacientes. Ao participar da diretoria, o Doutor Hodges teve reduzido o número de consultas que dava, redução que se renovou quando a CMV entrou em cena. Ele não ficou tão chateado com isso; sabia que o hospital precisava do plano de saúde e estava preparado para reduzir a carga de trabalho. Mas depois seus ex-pàcientes começaram a procurá-lo de novo, reclamando do atendimento que recebiam da CMV. Queriam-no de volta como médico, mas isso não era possível, pois os planos de saúde haviam passado para a CMV.

- Parece que Hodges deveria ter ficado com raiva da CMV - disse Calhoun.

Antes que Madeline pudesse responder, ele perguntou se poderia fumar.

Madeline disse que não, mas ofereceu-se para fazer um café. Calhoun aceitou e os dois foram para cozinha.

- Onde é que eu estava? - perguntou Madeline enquanto colocava água para ferver.

- Eu estava sugerindo que Hodges deveria ter ficado com raiva da CMV.

- Agora me lembro. Ele ficou com raiva da CMV, como também ficou com raiva do hospital por concordar com tudo o que a CMV propunha. E o Doutor Hodges achava que tinha alguma influência sobre o hospital.

- Ele ficou com raiva de alguma coisa específica?

- De um monte de coisas. Por exemplo, o tratamento dado na sala de emergência ou a falta dele. As pessoas não podiam procurar a emergência a não ser que pagassem antecipadamente. Outras pessoas não podiam ir ao hospital quando achavam que precisavam. No dia em que desapareceu, ele estava realmente irritado com a morte de um de seus ex-pacientes. Na verdade, vários de seus ex-pacientes haviam morrido há pouco. Lembro-me disso especificamente porque o Doutor Hodges costumava gritar, dizendo que os médicos da CMV não conseguiam manter seus pacientes vivos. Achava que eles eram incompetentes e que o hospital encobria essa incompetência.

- A senhora consegue lembrar o nome do paciente com quem o Doutor Hodges estava preocupado no dia em que desapareceu?

- Agora o senhor está esperando milagres - disse Madeline enquanto servia o café.

Entregou uma xícara a Calhoun, que colocou nela três colheres cheias de açúcar e grande quantidade de creme.

- Espere um minuto! Eu me lembro-exclamou Madeline subitamente. - Era Clark Davenport. Sem dúvida nenhuma.

Calhoun pegou as cópias que conseguira com Angela em Burlington.

- Aqui está - falou, depois de procurar. - Clark Davenport. Quadril fraturado.

- É. É esse mesmo. O coitado caiu da escada tentando tirar um gato de uma árvore.

- Olhe estes outros nomes - disse Calhoun, entregando os papéis a Madeline. – Algum deles significa alguma coisa para a senhora?

Madeline pegou os papéis e folheou-os.

- Lembro-me de todos eles. Na verdade, esses são os pacientes que eu mencionei: os que tinham deixado o Doutor Hodges irritado. Todos tinham morrido.

- Hmmm. - Calhoun pegou os papéis de volta. - Eu sabia que teria de haver alguma relação.

- O Doutor Hodges também estava chateado com as pessoas do hospital por causa dos ataques no estacionamento - acrescentou Madeline.

- Porquê?

- Ele achava que a administração deveria agir mais. Eles estavam mais preocupados em manter os incidentes fora do noticiário do que em pegar o estuprador. O Doutor Hodges estava convicto de que o estuprador fazia parte da comunidade do hospital.

- Ele tinha alguém específico em mente?

- Ele deu a entender que sim. Mas não me disse quem seria.

- A senhora acha que ele poderia ter contado à esposa?

- É possível.

- Acha que ele disse alguma coisa à pessoa de quem ele suspeitava?

- Não tenho a menor idéia. Mas sei que planejava discutir o problema com Wayne Robertson, embora os dois não se dessem bem. Na verdade, ele planejara ir se encontrar com Robertson no dia em que desapareceu.

- E foi?

- Não. No mesmo dia, ele ficou sabendo que Clark Davenport havia morrido. Em vez de ir procurar Robertson, pediu que eu marcasse um almoço com o Doutor Barry Holster, o radioterapeuta. O motivo de eu me lembrar do nome de Clark Davenport é que me lembro de ter marcado o almoço.

- Por que Hodges estava tão ansioso para ver o Doutor Holster?

- O Doutor Holster tinha terminado há pouco tempo de tratar de Clark Davenport.

Calhoun pousou a xícara sobre a mesa e levantou-se.

- A senhora ajudou maravilhosamente e foi gentilíssima. Agradeço o café e sua excelente memória.

Madeline Gannon ficou ruborizada.

Angela terminou seu trabalho e estava folheando uma publicação sobre laboratórios, logo antes da pausa para o almoço, quando o chefe de perícia médica ligou.

- Fico feliz em encontrá-la - disse Walt.

- Porquê?

- Aconteceu uma coisa extraordinária. E você é a responsável.

- Conte - pediu Angela.

- Foi tudo por causa de sua visita de surpresa ontem. Poderia vir até aqui?

- Quando?

- Agora.

Angela ficou intrigada.

- Pode me dar uma idéia do que se trata?

- Eu preferia mostrar. É realmente uma coisa especial. Vou ter de escrever sobre isso ou pelo menos apresentar no jantar anual do departamento de medicina legal. Gostaria que você visse agora mesmo. Considere como sendo parte de sua formação.

- Eu adoraria ir - disse Angela. - Mas estou preocupada com o Doutor Wadley. Não estamos nos dando muito bem.

- Ah, esqueça Wadley. Eu ligo para ele. Isto é importante.

- Você está tornando difícil a minha recusa.

- Esse é o objetivo - disse Walt.

Angela pegou o casaco. No caminho de saída olhou para a sala de Wadley. Não o viu.

Perguntou às secretárias onde ele estava. Disseram que tinha ido ao Iron Horse Inn para almoçar, e que não voltaria antes das duas.

Ela pediu a Paul Darnell que cobrisse de novo sua saída, para o caso de surgir alguma emergência. Disse que recebera um pedido específico do chefe de perícia médica para ver uma coisa extraordinária.

Antes de sair para Burlington, correu à UTI para verificar o estado de Nikki. Ficou satisfeita ao ver que a filha estava muito melhor e mais alegre.

Chegou em tempo recorde ao escritório do chefe de perícia médica.

- Nossa!-disse Walt quando ela apareceu junto à porta. Em seguida olhou para o relógio e levantou-se para cumprimentá-la. - Que rapidez! Que tipo de carro esporte você dirige?

- Preciso admitir que seu telefonema aguçou minha curiosidade. Fiquei ansiosa para chegar aqui. E na verdade não tenho muito tempo.

- Não vamos precisar de muito tempo. - Walt levou-a até um microscópio colocado sobre uma bancada. - Primeiro quero que você veja isto.

Angela ajustou as oculares e olhou. Viu uma amostra de pele. Em seguida viu pontos negros na derme.

- Sabe o que é? - perguntou Walt.

- Acho que sim. Deve ser a pele que estava sob as unhas de Hodges.

- Precisamente. Está vendo o carvão?

- Estou.

- Certo. Dê uma olhada nisto.

Angela levantou os olhos do microscópio e pegou uma fotografia que Walt lhe mostrou.

- É uma fotomicrografia que obtive com um microscópio de varredura eletrônica - explicou Walt.-Veja que os pontos já não parecem carvão.

Angela estudou a foto. O que Walt estava dizendo era verdade.

- Agora olhe isto. - Walt entregou-lhe um papel impresso. - Este é o resultado de um espectrofotômetro atômico. O que fiz foi diluir os grânulos num solvente ácido e em seguida analisá-los. Não são carvão.

- São o quê?

- Uma mistura de cromo, cobalto, cádmio e mercúrio - disse Walt em tom triunfante.

- Isso é maravilhoso, Walt - disse Angela. Ela estava completamente pasma. - Mas o que significa?

- Fiquei tão perplexo quanto você. Não tinha idéia do que significava. Cheguei apensar que o espectrofotômetro tinha ficado doido, até que subitamente tive uma revelação: é parte de uma tatuagem!

- Tem certeza?

- Absoluta. Esses pigmentos são usados em tatuagem.

No mesmo instante, Ângela compartilhou o entusiasmo de Walt. Com o poder da medicina legal, haviam feito uma descoberta sobre o assassino. Ele tinha uma tatuagem. Não poderia esperar até contar a David e Calhoun.

De volta a Bartlet, correu até a sala de Paul Darnell. Darnell estava esperando por ela.

- Tenho más notícias - disse ele. - Wadley sabe que você saiu da cidade e não está nem um pouco satisfeito.

- Como ele poderia saber? - perguntou Angela. Darnell fòraa única pessoa a quem contara.

- Acho que estava espionando você. É a única explicação que tenho. Ele veio me procurar quinze minutos depois de você sair.

- Pensei que ele tinha ido almoçar.

- Foi o que ele disse a todo mundo. Obviamente não era verdade. Me perguntou diretamente se você tinha saído de Bartlet. Não pude mentir, tive de contar.

- Você disse que eu tinha ido ver o chefe de perícia médica?

- Disse.

- Então deve estar tudo bem. Obrigada por me contar.

- Boa sorte - disse Darnell.

Nem bem Angela tinha voltado à sua sala, uma secretária apareceu para dizer que o Doutor Wadley queria vê-la. Era um mau presságio. Wadley nunca usara um intermediário antes.

Angela encontrou Wadley sentado à mesa. Ele encarou-a com olhos frios.

- Disseram que o senhor queria me ver.

- Realmente - disse Wadley. - Quero informar que você está despedida. Gostaria que juntasse suas coisas e fosse embora. Sua presença é ruim para o moral da comunidade hospitalar.

- Acho difícil acreditar nisso.

- Mesmo assim, é o que é - disse Wadley em tom frio.

- Se o senhor está chateado porque saí no meu horário de almoço, deve saber que fui a Burlington ver o chefe da perícia médica. Ele ligou pedindo que eu fosse lá o mais rápido possível.

- O Doutor Walter Dunsmore não dirige este departamento. Eu dirijo.

- Ele não ligou para o senhor? - Angela sentiu-se desesperada. - Ele disse que ligaria. Estava empolgado por causa de uma coisa que descobriu sobre o corpo encontrado em minha casa. - Rapidamente Angela contou os detalhes, mas Wadley mostrou-se irredutível. - Eu só saí por pouco mais de uma hora - disse Angela.

- Não estou interessado em desculpas. Ontem mesmo eu avisei sobre a mesma coisa. Você preferiu ignorar meus avisos. Demonstrou que é indigna de confiança, desobediente e ingrata.

- Ingrata! - explodiu Angela.-Ingrata por quê? Por causa dos seus avanços lamurientos para cima de mim? Porque não quis ir a Miami para um fim de semana de sol e diversão com o senhor? Pode me despedir, Doutor Wadley, mas eu lhe digo o que vou fazer: vou processá-lo e ao hospital, por assédio sexual.

- Pode tentar, mocinha - rugiu Wadley. - Vão rir de você no tribunal.

Angela saiu da sala de Wadley feito um vendaval. Estava fora de si de tanta raiva. Enquanto passava pela sala de espera, as secretárias rapidamente se dispersaram.

Foi até sua sala e juntou seus pertences. Não havia muita coisa. Todo o equipamento pertencia ao hospital. Depois de amontoar tudo numa bolsa de lona, saiu. Não falou com ninguém, com medo de perder a compostura. Não queria dar a Wadley a satisfação de vê-la chorar.

Pretendia ir direto ao consultório de David, mas mudou de idéia. Depois da recente discussão, tinha medo de como ele reagiria à perda de seu emprego. Não se achava capaz de suportar um confronto no hospital. Assim, foi direto para o carro e rodou sem objetivo pela cidade.

Ao passar pela biblioteca, pisou no freio e deu marcha à ré. Tinha visto a inimitável pick-up de Calhoun no estacionamento.

Estacionou o carro. Tentou imaginar onde Calhoun estaria. Decidiu checar a biblioteca, lembrando-se de que ele dissera que conhecia a bibliotecária.

Encontrou Calhoun lendo num reservado silencioso que dava para o parque da cidade.

- Senhor Calhoun? - sussurrou ela. Calhoun levantou os olhos.

- Que conveniente - falou com um sorriso. - Tenho novidades.

- Eu também tenho novidades. Que tal ir até a minha casa?

- Acho ótimo - disse Calhoun.

Assim que chegou em casa, Angela colocou água para ferver. Enquanto pegava as xícaras e os pratos, a pick-up de Calhoun apareceu na entrada de carros. Quando ele bateu, Ângela gritou, dizendo que a porta estava aberta.

- Café ou chá? - perguntou ela assim que Calhoun entrou na cozinha.

- O mesmo que a senhora estiver tomando. Angela pegou o bule e trouxe o chá e o mel.

- A senhora está chegando um tanto cedo - disse Calhoun.

Depois de ter prendido as emoções desde que saíra da sala de Wadley, a resposta de Angela ao comentário inocente de Calhoun foi avassaladora. Cobriu o rosto e soluçou. Sem saber como agir, Calhoun ficou de pé, imóvel.

Quando as lágrimas de Angela se reduziram a soluços intermitentes, Calhoun se desculpou.

- Desculpe. Não sei o que fiz, mas sinto muito.

Angela foi até ele, pôs os braços ao seu redor e a cabeça em seu ombro coberto pela camisa de lã. Ele abraçou-a também. Quando ela finalmente parou de chorar, Calhoun lhe pediu que contasse o que tinha acontecido.

- Acho que vou tomar um pouco de vinho, em vez de chá - disse ela.

- E eu, uma cerveja.

Sentada à mesa da cozinha, Angela contou que fora despedida. Explicou como as conseqüências seriam terríveis para sua família.

Calhoun mostrou-se um bom ouvinte; tinha um sentimento intuitivo acerca do que dizer. Fez com que Angela se sentisse melhor. Os dois chegaram a conversar sobre as preocupações com relação a Nikki.

Depois de Angela dizer tudo que queria, Calhoun anunciou que fizera alguns progressos na investigação.

- Talvez a senhora não esteja mais interessada - observou ele.

- Estou, claro - garantiu Angela, secando os olhos com uma toalha. - Conte.

- Em primeiro lugar, descobri qual a relação entre os oito pacientes cujas fichas de administração estavam com Hodges. Todos eram seus ex-pacientes, que tinham passado para a CMV e morreram nos meses anteriores ao assassinato de Hodges. Aparentemente, todas as mortes foram uma surpresa para o doutor. Por isso ele estava furioso.

- Ele culpou o hospital ou a CMV?

- Boa pergunta. Pelo que pude descobrir com sua secretária, ele culpava os dois, mas a birra maior era com o hospital. Faz sentido. Hodges ainda via o hospital como sua cria. De modo que estava mais desapontado com as suas falhas.

- Isso ajuda a descobrir quem o matou?

- Provavelmente não. Mas é outra peça do quebra-cabeça. Também descobri mais uma peça: Hodges acreditava conhecer a identidade do estuprador do estacionamento. E mais, achava que o sujeito era ligado ao hospital.

- Vejo onde o senhor quer chegar. Se o estuprador sabia que Hodges suspeitava dele, pode ter matado Hodges. Em outras palavras, o estuprador e o assassino de Hodges podem ser a mesma pessoa.

- Exato. A mesma pessoa que tentou matar a senhora naquela noite.

Angela estremeceu.

- Não me lembre disso.-Em seguida acrescentou: - Hoje descobri uma coisa específica sobre esse sujeito; uma coisa que pode tornar bem mais fácil identificá-lo: ele tem uma tatuagem.

- Como sabe disso?

Angela explicou por que tinha ido a Burlington. Contou para Calhoun que Walter Dunsmore estava absolutamente convicto de que Hodges havia raspado com as unhas parte da tatuagem do assassino.

- Maravilha - disse Calhoun. - Adorei saber disso.

Quando mais uma enfermeira do segundo andar ligou e pediu para ser consultada por causa de gripe, David ficou ansioso por vê-la. Ela ficou surpresa por não precisar descrever os sintomas; David mesmo descreveu-os. Eram os mesmos que ele tinha, apenas mais pronunciados. Os problemas gastrointestinais da enfermeira haviam reagido bem à medicação usual. Sua temperatura estava em trinta e oito e meio.

- A sua salivação aumentou?

- Aumentou - confirmou a enfermeira. - E nunca tive coisa assim antes.

- Nem eu.

Vendo como ela estava se sentindo mal, David ficou grato por seus sintomas terem desaparecido durante o dia. Mandou a enfermeira para casa, aconselhando-a a repousar, beber muito líquido e tomar a medicação antipirética de sua preferência.

Depois de atender ao último paciente, David foi para o hospital.

Durante todo o dia, estivera checando incessantemente Nikki e Sandra, de modo que não esperava surpresas.

Quando entrou na UTI, Nikki viu-o de imediato e acenou. Estava notavelmente melhor.

Reagira aos antibióticos intravenosos e à terapia respiratória. Nem mesmo se incomodara com a agitação da UTI. Mesmo assim, David ficou feliz ao saber que ela seria transferida na manhã seguinte.

O estado de Sandra era exatamente o oposto, seguindo uma queda progressiva. Não chegara a despertar do coma. Os médicos consultados não foram de qualquer ajuda. Hasselbaum disse que ela não tinha qualquer doença infecciosa. O oncologista simplesmente encolheu os ombros e disse que não havia nada a fazer. Insistiu em que ela obtivera um bom resultado no tratamento do melanoma. Já tinham se passado seis anos desde que a lesão primária em sua coxa fora descoberta e em seguida removida junto com alguns nódulos linfáticos malignos.

David sentou-se à mesa da UTI e folheou o prontuário de Sandra. A ressonância magnética do crânio estava normal: nenhum tumor e, sem dúvida, nenhum abscesso cerebral. Ele examinou os testes laboratoriais que tinha pedido. Alguns só chegariam dentro de dias. Ele pedira culturas de todos os líquidos corporais, a despeito do que dissera o especialista em doenças infecciosas. Além disso, pedira análises sofisticadas nesses líquidos corporais, para identificar restos virais através do uso de técnicas biotecnológicas de ponta.

Não tinha idéia do que fazer. A única alternativa possível era conseguir que Sandra fosse transferida para um dos grandes hospitais-escola de Boston. Mas ele sabia que a CMV não levaria a sério uma proposta dessas por causa dos gastos, e não poderia providenciar isso por conta própria.

Enquanto se torturava por causa de Sandra, Charles Kelley entrou na UTI e se aproximou da escrivaninha. Sua visita pegou David de surpresa; geralmente os burocratas da medicina ficavam longe de lugares como a UTI, onde seriam forçados a encarar os doentes críticos. Em geral preferiam ficar em seus escritórios arrumados e pensar nos pacientes como abstrações.

- Espero não estar perturbando - disse Kelley. Seu sorris lustroso havia retornado.

- Ultimamente você me perturbou todas as vezes em que o vi.

- Desculpe - disse Kelley em tom condescendente. - tenho novidades. A partir de agora, seus serviços não são mais necessários.

- Então você acha que pode tirar Sandra Hascher de mim?

- Oh, sem dúvida - disse Kelley com satisfação. Seu sorriso ficou mais largo. - E também todos os outros pacientes. Você está despedido. Não é mais empregado da CMV.

O queixo de David caiu. Ele estava pasmo. Ficou olhando perplexo enquanto Kelley acenava um adeus como se ele fosse uma criança e depois saía da unidade. David saltou da cadeira e correu atrás de Kelley.

- E quanto a todos os pacientes com consultas marcadas? gritou David.

Kelley já estava no meio do corredor.

- Isso é com a CMV, não com você - respondeu sem olhar para trás.

- Essa é a decisão final? - gritou David.-Ou é temporária, dependendo de uma audiência?

- É definitiva, meu amigo. - Com isso ele desapareceu.

David estava atordoado. Não podia acreditar que fora despedido. Entrou cambaleando na sala de espera e desmoronou na mêsma cadeira em que empurrara Kelley naquela manhã.

Sacudiu a cabeça, incrédulo. Seu primeiro trabalho de verdade só durara quatro meses. Começou a considerar as ramificaçções terríveis que sua demissão provocaria na família e começou a tremer. Imaginou como contaria a Angela. Era terrivelmente irônico que ainda na noite passada a tivesse alertado sobre colocar o cargo em perigo. Agora ele é que fora despedido.

De onde estava sentado, subitamente viu Angela entrando na UTI. Por um instante não se mexeu. Tinha medo de encará-la, mas sabia que precisava fazê-lo. Levantou-se da cadeira e seguiu-a. Ela estava junto da cama de Nikki. David se aproximou pelo lado oposto.

Angela assentiu à chegada de David, mas continuou a conversa com Nikki. David e Ângela evitaram se olhar.

- Vou poder ver Caroline quando sair da UTI? - perguntou Nikki.

David e Angela se entreolharam brevemente. Estava claro que nenhum dos dois sabia o que dizer.

- Ela foi embora? - perguntou Nikki.

- Foi - disse Angela.

- Então ela já recebeu alta - gritou Nikki. Seus olhos começaram a se encher de lágrimas. Estava ansiosa para ver a amiga assim que fosse transferida para um quarto comum.

- Talvez Arni queira vir fazer uma visita - sugeriu David.

O desapontamento de Nikki deixou-a mal-humorada e desagradável. David e Angela sabiam que era a UTI cobrando sua cota de tensão. E tinham medo de dizer a verdade sobre Caroline.

Depois de fazerem o possível para animar Nikki, David e Angela saíram da UTI. Mostraram-se cautelosos enquanto saíam do hospital. A conversa se concentrou em Nikki e em como estavam satisfeitos ao ver que seu processo clínico corria tão bem. Ambos estavam certos de que seu estado emocional melhoraria assim que ela fosse transferida para um quarto.

No caminho de casa, Angela dirigiu devagar para manter David à vista na bicicleta. Chegaram ao mesmo tempo. Só depois de estarem sentados na sala íntima, aparentemente para assistir ao noticiário da noite, David limpou a garganta de modo nervoso.

- Tenho notícias muito ruins - falou. - Morro de vergonha, mas fui despedido esta tarde.

David viu o choque ser registrado no rosto de Angela e evitou encará-la.

- Desculpe. Sei que vai ser difícil. Não sei o que dizer. Talvez eu não tenha jeito para ser médico.

- David - disse Angela estendendo o braço e segurando sua mão. - Eu também fui despedida.

David encarou-a.

- Foi? - Ela assentiu.

Ele puxou-a para perto. Quando se afastaram um pouco para se entreolhar de novo, não sabiam se riam ou se choravam.

- Que loucura! -- disse David finalmente.

- Que coincidência! - acrescentou Angela.

Cada um contou os tristes detalhes de suas últimas ações em Bartlet. Angela aproveitou para narrar as descobertas de Walt e seu encontro casual com Calhoun.

- Ele acha que a tatuagem vai ajudar a encontrar o assassino! - disse Angela.

- Isso é bom.

David continuava sem compartilhar o entusiasmo de Angela pelo caso, especialmente depois do novo tumulto em suas vidas.

- Calhoun também tinha uma novidade intrigante - disse Angela. Em seguida explicou a teoria do detetive, de que o estuprador e o assassino de Hodges eram a mesma pessoa.

- Idéia interessante - disse David. Mas seus pensamentos já estavam em outro lugar. Imaginava o que ele e Angela fariam para se sustentar no futuro imediato.

- E você se lembra daqueles formulários de internação que Hodges estava segurando? Calhoun descobriu qual era a relação entre eles. Todos os pacientes morreram e aparentemente todas estas mortes surpreenderam Hodges.

- O que quer dizer com surpreenderam?-perguntou David subitamente interessado.

- Acho que ele não esperava que os pacientes morressem. Tratara deles antes de serem transferidos para a CMV. Calhoun ficou sabendo que Hodges culpou a CMV e o hospital pelas mortes.

- Você tem algum prontuário dos pacientes? - perguntou David.

- Só os diagnósticos de internação. Por quê?

- Ter pacientes que morrem inesperadamente é uma coisa que posso entender – disse David.

Houve uma pausa na conversa enquanto David e Angela permaneciam pasmos com os acontecimentos do dia.

- O que vamos fazer? - perguntou Angela por fim.

- Não sei. Tenho certeza de que teremos de nos mudar. O que vai acontecer com as hipotecas? Imagino se teremos que declarar falência. Tenho de conversar com um advogado. Há também a questão de saber se vamos processar nossos patrões.

- Para mim não há dúvida - disse Angela.-Vou processar por assédio sexual, se não por demissão sem justa causa. Não há como eu deixar aquele nojento do Wadley sair dessa.

- Não sei se processar é o nosso estilo. Talvez devêssemos apenas ir em frente com a vida. Não quero ficar atolado num lamaçal jurídico.

- Não vamos decidir agora.

Mais tarde ligaram para a UTI. Nikki continuava bem. Ainda estava sem febre.

- Podemos ter perdido os empregos - disse David - mas enquanto Nikki estiver bem, podemos ir em frente.

 

SEXTA-FEIRA, 29 DE OUTUBRO

MAIS UMA VEZ, NENHUM dos dois dormiu bem. Como estava se tornando hábito, David acordou muito antes do amanhecer. Apesar de exausto, não se sentiu doente como na manhã anterior.

Sem acordar Angela, desceu para a sala íntima para avaliar a situação financeira. Começou preparando uma lista de coisas para fazer e pessoas para quem ligar, em ordem de prioridade.

Acreditava firmemente que a dificuldade por que passavam exigia calma e pensamento racional.

Angela apareceu junto à porta, vestida de camisola. Tinha um lenço na mão; estivera chorando. Perguntou o que David estava fazendo. Ele explicou, mas ela não ficou impressionada.

- O que vamos fazer? - Novas lágrimas se derramaram dos seus olhos. – Transformamos tudo numa confusão!

David tentou consolá-la mostrando as listas que estava a fazer mas ela empurrou-as para longe, acusando-o de se desligar dos próprios sentimentos.

- Suas listas estúpidas não vão ajudar em nada!

- Suponho que suas lágrimas histéricas vão ajudar muito - contra-atacou David.

Felizmente não deixaram a discussão ir adiante. Ambos sabiam que estavam desgastados. Também sabiam que cada um tinha um jeito de lidar com as crises.

- E então, o que vamos fazer?-perguntou Angela de novo.

- Primeiro vamos ao hospital ver como está Nikki.

- Ótimo. Isso vai me dar chance de conversar com Helen Beaton.

- Vai ser inútil. Você tem certeza de que quer passar por essa tensão emocional?

- Quero ter certeza de que ela saiba de minha queixa de assédio sexual.

Fizeram um desjejum rápido antes de sair. Para ambos era estranho ir ao hospital sem ser para trabalhar. Estacionaram o carro e foram direto à UTI.

Nikki estava bem, ansiosa para sair da unidade. Apesar de ter achado a agitação interessante durante o dia, o turno da noite não fora tão agradável. Ela dormira pouco.

Ao chegar, o Doutor Pilsner confirmou que Nikki estava indo para um quarto comum assim que alguém viesse buscá-la.

- Quando acha que ela vai ter alta? - perguntou Angela.

- Continuando bem como está, ela vai para casa dentro de alguns dias. Quero ter certeza de que não sofra uma recaída.

Enquanto David ficava com Nikki, Angela foi até o escritório de Helen Beaton.

- Você pode ligar para Caroline e pedir que ela pegue meus livros da escola? – perguntou Nikki a David.

- Vou cuidar disso - prometeu ele. Estava sendo evasivo propositadamente. Continuava relutando em contar sobre a morte de Caroline.

David não pôde deixar de perceber que a cama de Sandra na UTI estava agora ocupada por um homem idoso. Passou-se meia hora antes que ele juntasse coragem para ir até o recepcionista da unidade e perguntar sobre ela.

- Sandra Hascher morreu esta manhã, por volta das três horas. - O funcionário falava como se estivesse dando a previsão do tempo; de tão acostumado com a morte, não se abalava.

David não ficou tão inabalado. Gostava de Sandra, e começou a pensar na família dela, particularmente em seus filhos, agora órfãos. David perdera seis pacientes em duas semanas. Imaginou se este seria um recorde no Hospital Comunitário de Bartlet. Talvez a CMV tivesse sido sensata em despedi-lo.

Prometendo a Nikki que voltaria com sua mãe assim que elafosse transferida para um quarto comum, David foi até a adminis- tração esperar Angela.

Mal havia sentado quando Angela saiu feito um furacão da sala da presidente do hospital. Estava lívida. Seus olhos escuros brilhavam, veementes, e seus lábios estavam apertados. Passou por David sem reduzir o ritmo. Ele precisou correr para acompanhá-la.

- Acho que eu não deveria perguntar como foram as coisas - disse David assim que os dois atravessaram a porta para o estacionamento.

- Foi terrível. Ela está apoiando a decisão de Wadley. Quando expliquei que havia assédio sexual por trás de tudo, ela negou que isso tivesse acontecido.

- Como ela poderia negar, quando você já tinha falado Com Cantor?

- Ela disse que perguntou ao Doutor Wadley. E o Doutor Wadley disse que não houve assédio sexual. Na verdade, ele disse que foi o contrário. Contou a Beaton que se houve alguma impropriedade foi porque eu tentei seduzi-lo!

- Uma estratégia comum em quem pratica o assédio. Culpar a vítima. - David sacudiu a cabeça. - Que canalhice!

- Beaton disse que acreditava nele. Que ele era um homem de integridade impecável. Em seguida me acusou de ter inventado essa história para tentar culpá-lo por ele ter rejeitado minhas investidas.

Ao chegar em casa, os dois se deixaram cair nos sofás da sala íntima. Não sabiam o que fazer. Estavam muito deprimidos e confusos para tomar qualquer atitude.

O som de pneus sobre o cascalho da entrada de carros rompeu o silêncio pesado. Era apick-up de Calhoun. Ele parou junto à porta dos fundos. Angela fez com que o homem entrasse.

- Trouxe biscoitos para celebrar o seu primeiro dia de férias - disse Calhoun, passando por Angela e deixando o pacote sobre a mesa da cozinha. - Com um pouquinho de café, estaremos em condições de trabalhar.

David apareceu junto à porta.

- Epa... - Calhoun olhou de David para Angela.

- Tudo bem - disse David. - Eu também estou de férias.

- Fala sério? Ainda bem que eu trouxe um monte de biscoitos. A presença de Calhoun era como um elixir. O café também ajudou. David e Angela chegaram a rir de algumas histórias dos tempos de Calhoun na polícia estadual. Estavam animados quando Calhoun sugeriu que começassem a trabalhar

- Bom - disse ele esfregando as mãos, cheio de expectativa. - O problema se reduziu a encontrar alguém com uma tatuagem danificada e que não gostava de Hodges. Não deve ser tão difícil, numa cidade pequena.

- Há um problema - disse David -Como estamos desempregados, acho que não poderemos pagar-lhe.

- Não diga isso - gemeu Calhoun - Exatamente quando a coisa estava ficando interessante!

- Sentimos muito. Não somente estaremos quebrados em breve, mas obviamente iremos embora de Bartlet. De modo que, entre outras coisas, vamos deixar essa confusão do Hodges para trás.

- Espere um segundo - disse Calhoun. - Não vamos ser tão precipitados. Tenho uma idéia. Vou trabalhar de graça. Que tal? É uma questão de honra e reputação. Além do mais, poderemos ao mesmo tempo estar pegando um estuprador

- É muito generoso de sua parte - disse David. Em seguida ele começou a falar mais alguma coisa, mas Calhoun interrompeu.

- Já comecei a fase seguinte da investigação. Descobri com Carleton, o garçom, que vários policiais da cidade, inclusive Robertson, têm tatuagens. De modo que fui bater um papo casual com Robertson, que ficou satisfeitíssimo em me mostrar sua tatuagem; é um tremendo orgulho para ele. Fica no peito: uma águia de cabeça branca segurando um dístico onde está escrito: ”In God We Trust.” Infelizmente - ou felizmente, dependendo da perspectiva - a tatuagem estava em excelente estado. Mas usei a oportunidade para perguntar sobre o último dia de Hodges. Robertson confirmou o que Madeline Gannon dissera, que Hodges havia planejado se encontrar com ele, e que em seguida cancelou o encontro. De modo que acho que estamos perto de alguma coisa. Clara Hodges pode ser a chave. O casal estava separado na época da morte do doutor, mas ainda se falavam freqüentemente. Acho que o fato de viverem separados melhorou bastante o relacionamento. De qualquer modo, liguei para Clara esta manhã. Ela está esperando por nós. - Calhoun olhou para Angela.

- Pensei que ela estava vivendo em Boston - disse David.

- E está. Achei que Angela e eu... bem... agora, nós três, poderíamos ir até lá.

- Ainda acho que Angela deveria deixar esse negócio de lado, considerando o que aconteceu. Se o senhor quer continuar, é problema seu.

- Talvez não devêssemos ser tão precipitados - disse Angela. - E se Clara puder lançar alguma luz sobre a história dos pacientes que morreram? Ontem à noite você estava interessado nesse aspecto do caso.

- Bom, isso é verdade - admitiu David. Ele estava curioso para saber quantas semelhanças havia entre os pacientes de Hodges, e os seus. Mas não suficientemente curioso para visitar Clara Hodges. Não depois de ter sido despedido.

- Vamos, David - disse Angela. - Vamos. Sinto como se esta cidade houvesse conspirado contra nós, e isso me incomoda. Vamos lutar.

- Angela, você está parecendo ligeiramente descontrolada. Angela pousou a xícara de café e agarrou David pelo braço.

- Com licença - falou para Calhoun e puxou David para a sala íntima. - Não estou descontrolada - começou assim que chegaram fora do alcance dos ouvidos de Calhoun. - Simplesmente gosto da idéia de estar fazendo algo positivo, de ter uma causa a defender. Esta cidade fez pouco-caso de nós, do mesmo modo que empurrou a morte de Hodges para baixo do tapete. Quero saber o que está por trás disso tudo. Depois poderemos sair de cabeça erguida.

- É o seu lado histérico que está falando.

- Por mim você pode chamar do jeito que quiser. Vamos fazer uma última tentativa. Calhoun acha que essa visita a Clara Hodges pode ser a solução. Vamos tentar.

David hesitou. Seu lado racional achava o contrário, mas era difícil resistir aos argumentos de Angela. Por baixo de seu verniz de calma e racionalismo, David estava tão irritado quanto ela.

- Certo - falou. - Vamos. Mas primeiro paramos para ver Nikki.

- Com todo o prazer.-Angela estendeu a mão. David bateu nela sem muita vontade. Em seguida estendeu a sua e Angela bateu nela com uma força surpreendente.

A próxima surpresa de David foi que tiveram de ir na pick-up de Calhoun, para que ele pudesse fumar. Mas, com Calhoun dirigindo, eles puderam saltar na porta da frente do hospital. Calhoun esperou enquanto David e Angela corriam para dentro.

Nikki estava muito mais feliz, agora que saíra da UTI. Sua única reclamação era que fora transferida para uma das camas antigas e, como sempre, os controles não funcionavam. Os pés subiam, mas a cabeça não.

- Você contou às enfermeiras? - perguntou David.

- Contei. Mas elas não disseram quando vão consertar. Não consigo ver televisão com a cabeça deitada.

- Esse problema é freqüente? - perguntou Angela.

- Infelizmente - disse David. Em seguida contou o que Van Slyke tinha dito sobre o hospital ter comprado o tipo errado de cama.-Provavelmente economizaram alguns dólares comprando camas baratas. É o velho ditado: poupar no pouco e gastar no muito.

David deixou Angela com Nikki enquanto procurava Janet Colburn. Ao encontrá-la, perguntou se Van Slyke fora informado sobre a cama de Nikki.

- Foi, mas o senhor conhece Van Slyke.

De volta ao quarto, David garantiu que se a cama não estivesse consertada no final da tarde, ele mesmo cuidaria disso. Angela já tinha dito que David e ela estavam a caminho de Boston, mas que voltariam à tarde. Viriam vê-la assim que estivessem de volta.

Saíram do hospital e entraram na pick-up. Logo estavam se dirigindo para o sul, pela interestadual. David achou a viagem desconfortável por outros motivos além da suspensão ruim da pick-up. Mesmo Calhoun tendo baixado sua janela, a fumaça de charuto redemoinhava dentro da cabine. Quando chegaram ao endereço de Clara Hodges, em Back Bay, seus olhos estavam lacrimejando.

Clara Hodges impressionou David como tendo sido um baita páreo para Dennis Hodges. Era uma mulher de ossos grandes, sólida, com olhos profundos e penetrantes e uma seriedade intirnidadora.

Convidou-os para a sala de estar decorada com pesada mobília vitoriana. Apenas uma pequena quantidade de luz do dia atravessava as pesadas cortinas de veludo. A despeito de ser meio-dia, o lustre e todos os abajures estavam acesos. (

Angela apresentou-se e a David como o casal que havia comprado a casa de Clara, em Bartlet.

- Espero que gostem dela mais do que eu gostava - disse Clara. - Era grande demais e cheia de correntes de ar, especialmente para duas pessoas.

Ofereceu chá, que David tomou com prazer. Não apenas seus olhos estavam queimando por causa da fumaça de dentro da pick up; sua garganta estava ressecada.

- Não posso dizer que estou feliz com esta visita - disse Clara depois de servir o chá.- Fiquei perturbada com aquele fato horrível. Eu tinha acabado de me ajustar ao desaparecimento de Dennis, quando fiquei sabendo que ele tinha sido assassinado.

- Tenho certeza de que a senhora compartilha nosso interesse em levar o assassino à justiça - disse Calhoun.

- Agora não importa. Além do mais, seremos todos arrastados num julgamento horrendo. Eu preferia do jeito que estava: simplesmente não sabendo.

- A senhora tem alguma suspeita sobre quem matou o seu marido? - perguntou Calhoun.

- Existem muitos suspeitos. Vocês precisam entender duas coisas sobre Dennis. Primeiro, ele era um cabeça-dura, o que tornava difícil suportá-lo. Não que ele não tivesse também um lado bom. A segunda coisa sobre Dennis era sua obsessão com o hospital. Ele estava constantemente tendo atritos com a diretoria e com aquela presidente que levaram de Boston. Acho que há uma dúzia de pessoas que podem ter ficado suficientemente irritada para cometer o crime. Entretanto, não consigo imaginar nenhuma delas atacando meu marido. É uma coisa muito suja para ser feita por todos aqueles doutores e burocratas, não acham?

- Pelo que eu soube, o Doutor Hodges achava que conhecia a identidade do estuprador do estacionamento - disse Calhoun. - Essa afirmação tem alguma base?

- Foi o que ele deu a entender - disse Clara.

- Chegou a mencionar algum nome?

- A única coisa que ele disse foi que o estuprador era alguém ligado ao hospital.

- Um empregado?

- Ele não deu detalhes. Foi propositadamente vago. Ele gostava de parecer senhor da verdade. Mas disse que queria falar com o próprio sujeito, achando que poderia fazê-lo parar.

- Meu Deus - disse Calhoun.-Parece uma coisa perigosa. A senhora acha que ele fez isso?

- Não sei. Pode ter feito. Mas aí ele decidiu procurar aquele abominável Wayne Robertson para falar das suspeitas. Tivemos uma discussão horrível por causa disso. Eu não queria que ele fosse, tinha certeza de que ele e Robertson iriam brigar. Robertson sempre teve raiva de Dennis. Eu lhe pedi que contasse as suspeitas por telefone, ou escrevesse uma carta, mas ele não quis saber. Era teimoso demais.

- Isso foi no dia em que ele desapareceu?

- Foi. Mas, no final das contas, Dennis não procurou Robertson. Não por causa de meu conselho, claro. Ele estava muito chateado porque um de seus ex-pacientes havia morrido. Disse que iria almoçar com o Doutor Holster, em vez de se encontrar com Robertson.

- Esse paciente era Clark Davenport?-perguntou Calhoun.

- Sim, era - disse Clara em tom de surpresa.-Como é que o senhor sabia?

- Por que o Doutor Hodges estava tão perturbado com Clark Davenport? - Calhoun ignorou a pergunta de Clara.-Eles eram amigos?

- Conhecidos. Clark era mais um paciente, e Dennis diagnosticara o câncer dele, que o Doutor Holster havia tratado com sucesso. Após o tratamento, Dennis sentiu-se confiante, achando que haviam descoberto o câncer suficientemente cedo. Mas depois a empresa onde Clark trabalhava passou para a CMV, e a próxima coisa que Dennis soube é que Clark estava morto.

- De que ele morreu? - perguntou David subitamente, falando pela primeira vez. Sua voz tinha uma urgência que Angela percebeu de imediato.

- Agora você me pegou. Não lembro. Não sei se cheguei a saber. Mas não foi do câncer. Lembro de Dennis dizer isso.

- O seu marido teve outros pacientes com história médica parecida e que morreram inesperadamente? - perguntou David.

- O que quer dizer com história médica parecida?

- Pessoas com câncer ou com outras doenças sérias.

- Ah, sim. Foram várias. E foram essas mortes que o deixaram tão perturbado. Ele se convenceu de que alguns médicos da CMV eram incompetentes.

David pediu a Angela as cópias das fichas de internação que ela e Calhoun haviam conseguido em Burlington. Enquanto Angela procurava, Calhoun pegou em um de seus bolsos volumosos as cópias que ficaram com ele.

David desdobrou e folheou os papéis. Em seguida entregou-os a Clara.

- Olhe estes nomes. Reconhece algum?

- Preciso pegar os óculos - disse Clara, levantando-se saindo da sala.

- Por que está tão agitado? - sussurrou Angela para David.

- É. Acalme-se, rapaz - disse Calhoun. - Vai perturbar É nossa testemunha, e ela é capaz de começar a esquecer coisas.

- Estou começando a perceber um negócio - disse David. - E não gosto nem um pouco.

Antes que Angela pudesse lhe pedir explicações, Clara voltou com os óculos. Pegou nos papéis e rapidamente folheou-os.

- Reconheço todas essas pessoas - disse ela. - Ouvi seus nomes centenas de vezes e conheci a maioria.

- Fiquei sabendo que todas morreram - disse Calhoun. -” É verdade?

- É. Exatamente como Clark Davenport. Essas são as pessoas cujas mortes perturbaram Dennis. Durante algum tempo, ouvi falar nelas todos os dias.

- Todas as mortes foram inesperadas?-perguntou Calhoun.

- Sim e não - disse Clara. - Quero dizer, inesperado foi o fato de morrerem na época específica em que morreram. Como podem ver por esses papéis, a maioria foi hospitalizada por problemas que geralmente não são fatais. Mas todos haviam lutado contra doenças terminais como câncer, de modo que, em certo sentido, as mortes não foram totalmente inesperadas.

David pegou os papéis de volta. Examinou-os rapidamente, e em seguida voltou a olhar para Clara.

- Deixe-me ver se entendi. Essas fichas de internação se referem ao período em que as pessoas morreram.

- Acredito que sim - disse Clara. - Já faz algum tempo, mas Dennis não desistia. É difícil esquecer.

- E cada um desses pacientes tinha uma doença séria por trás. Como esta mulher aqui, internada por causa de sinusite.

Clara pegou a ficha e olhou o nome.

- Ela tinha câncer no seio. Era do meu grupo da igreja. David pegou o papel com Clara e enrolou-o junto com os outros. Em seguida levantou-se e foi até a janela. Puxando as cortinas, olhou para o Rio Charles, ignorando os outros. Parecia bastante perturbado.

Angela ficou embaraçada com a sua falta de modos, mas era óbvio que Clara não estava se importando. Ela simplesmente serviu mais chá para todos.

- Eu gostaria de fazer algumas perguntas sobre o estuprador - disse Calhoun. - O Doutor Hodges chegou a fazer alguma alusão à sua idade, altura ou detalhes como se tinha ou não uma tatuagem?

- Uma tatuagem?-Um rápido sorriso passou pelo rosto de Clara antes que sua seriedade retornasse. - Não, ele nunca mencionou uma tatuagem.

Com uma rapidez que tomou a todos de surpresa, David retornou da janela.

- Precisamos ir embora - falou.-Precisamos ir imediatamente.

Em seguida correu para a porta e escancarou-a.

- David? - chamou Angela, atônita com o seu comportamento. - Qual é o problema?

- Precisamos voltar imediatamente a Bartlet. - Sua ansiedade estava beirando o pânico. - Venham! - gritou.

Angela e Calhoun despediram-se rapidamente de Clara Hodges, antes de correrem atrás de David. No momento em que Angela e Calhoun chegaram à pick-up, David já estava atrás do volante.

- As chaves - ordenou.

Calhoun encolheu os ombros e entregou-as. David deu partida e gritou:

- Entrem!

Angela entrou primeiro, seguida de Calhoun. Antes que a porta fosse fechada, David pisou no acelerador.

Ninguém falou durante a primeira parte da viagem. David estava concentrado em dirigir. Angela e Calhoun continuavam chocados pela partida súbita e inconveniente.

Além disso ficaram intimidados pela rapidez com que ultrapassavam outros motoristas.

- Acho que é melhor irmos mais devagar - disse Ângela, enquanto David ultrapassava uma longa fila de carros.

- Esta pick-up nunca andou tão rápido - disse Calhoun.

- O que está acontecendo com você, David? - perguntou Angela. - Está agindo de modo estranho.

- Tive uma intuição enquanto estávamos falando com Clara Hodges. Tem a ver com o fato dos pacientes de Hodges que tem doenças potencialmente terminais morrerem inesperadamente.

- Bom, e daí?

- Acho que algum sujeito perturbado no Hospital Comunitário de Bartlet se propôs a fazer uma espécie de eutanásia equivocada.

- O que é eutanásia? - perguntou Calhoun.

- Pode ser traduzido como ”morte serena” – disse Angela.

- Significa ajudar alguém com uma doença terminal a morrer. A idéia é salvá-la do sofrimento.

- Ao ouvir sobre os pacientes de Hodges, percebi que todos os meus seis pacientes que morreram tinham tido doenças terminais. O mesmo aconteceu com os dele. Não sei por que não pensei nisso antes. Como pude ser tão idiota? E a mesma coisa aconteceu com Caroline.

- Quem é Caroline? - perguntou Calhoun.

- Era amiga de nossa filha - explicou Angela. - Tinha fibrose cística, que é uma doença potencialmente terminal. Morreu ontem. - De repente os olhos de Angela se arregalaram. - Oh, não! Nikki! - gritou.

- Agora você sabe por que entrei em pânico - disse David. - Precisamos voltar lá o mais rápido possível.

- O que está acontecendo?-perguntou Calhoun. - Estou deixando de captar alguma coisa. Por que vocês ficaram tão agitados?

- Nikki está no hospital - disse Angela ansiosa.

- Sei disso. Antes de irmos para Boston, levei vocês lá, para visitá-la.

- Ela tem fibrose cística, como Caroline - disse Angela.

- Ah, percebo. Vocês estão preocupados com a possibilidade de sua filha estar na lista dessa pessoa da eutanásia.

- É isso - disse David.

- Seria alguma coisa como aquele caso do tal ”Anjo da Misericórdia” de Long Island? - perguntou Calhoun. - Já faz alguns anos. Era uma enfermeira que matava pessoas com algum tipo de droga.

- Algo do tipo - disse David.-Mas aquele caso envolvia um relaxante muscular. As pessoas paravam de respirar. Era uma coisa bastante direta. Eu não tenho idéia de como meus pacientes foram mortos. Não consigo pensar em nenhuma droga, veneno ou agente infeccioso que causasse os sintomas daqueles pacientes.

- Entendo por que o senhor se preocupa com sua filha - disse Calhoun. – Mas não acha que está sendo meio apressado com essa teoria?

- Ela responde a um monte de perguntas - disse David. - Até me faz pensar no Doutor Portland.

- Por quê?-perguntou Angela. Ela continuava se sentindo desconfortável cada vez que o nome dele era mencionado.

- Lembra-se de Kevin dizendo que o Doutor Portland tinha dito que não iria assumir sozinho a culpa pela morte dos pacientes, e que havia alguma coisa errada com o hospital?

Angela assentiu.

- Ele devia estar suspeitando. Pena que se deixou vencer pela depressão.

- Ele cometeu suicídio - explicou Angela a Calhoun.

- Que desperdício - disse Calhoun. - Depois de tanto estudo.

- A questão é que se alguém está fazendo eutanásia no hospital, quem pode ser? - perguntou David. - Teria de ser alguém com acesso aos pacientes, e alguém com um conhecimento sofisticado de medicina.

- Isso limitaria as hipóteses a um médico ou uma enfermeira, - disse Angela.

- Ou um técnico de laboratório - sugeriu David.

- Acho que vocês estão apressados demais - disse Calhoun. - Não é assim que são feitas as investigações. A gente não inventa uma teoria e em seguida sai disparado a cento e vinte por hora, como estamos fazendo. A maior parte das teorias desmorona quando se conseguem mais fatos. Acho que deveríamos ir mais devagar.

- Não enquanto minha filha estiver correndo risco - disse David acelerando ainda mais a velha pick-up.

- Você acha que Hodges chegou à mesma conclusão? - perguntou Angela.

- Acho que sim. E se foi assim, talvez ele tenha sido morto por isso.

- Ainda acho que foi o estuprador - disse Calhoun.-Mas quem quer que seja, esta investigação é fascinante. Desde que sua filha esteja bem, eu não me divirto tanto há anos.

Quando finalmente chegaram ao hospital, David parou junto à porta da frente. Saltou do carro, com Angela nos calcanhares. Subiram juntos a escadaria principal e correram pelo corredor.

Para supremo alívio, encontraram Nikki perfeitamente feliz, vendo televisão. David pegou- a nos braços e abraçou-a tão apertado que ela começou a reclamar.

- Você vai para casa - disse David e afastou-a para poder olhar seu rosto, especialmente os olhos.

- Quando?

- Agora mesmo - disse Angela e começou a desligar o equipamento de soro.

Naquele momento, uma enfermeira vinha passando pelo corredor. A agitação atraiu sua atenção. Ao ver Angela desconectando o equipamento, ela protestou.

- O que está acontecendo aqui?

- Minha filha está indo para casa - disse David.

- Não há ordens para isso - disse a enfermeira.

- Estou dando a ordem neste instante - disse David.

A enfermeira saiu correndo do quarto. Angela começou ajuntar as roupas de Nikki. David ajudou.

Logo Janet Colburn voltou com várias enfermeiras.

- Doutor Wilson - disse Janet. - O que o senhor está fazendo?

- Acho que dá para perceber - disse David enquanto colocava os brinquedos e os livros de Nikki numa bolsa.

David e Angela estavam com Nikki meio vestida, quando o Doutor Pilsner chegou. Janet havia- o chamado pelo bipe. Ele insistiu para que os dois não retirassem Nikki prematuramente do antibiótico intravenoso ou do terapeuta respiratório do hospital.

- Sinto muito, Doutor Pilsner - disse David. - Mais tarde explico. Agora demoraria demais.

Naquele momento, chegou Helen Beaton. Ela também fora chamada pelas enfermeiras. Estava furiosa.

- Se vocês tirarem essa criança daqui contra a indicação médica, eu iniciarei um processo - explodiu ela.

- Experimente! - disse Angela.

Assim que Nikki estava completamente vestida, eles saíram pelo corredor. A agitação atraíra um punhado de funcionários e pacientes apalermados.

Saíram do hospital e subiram na pick-up. Calhoun dirigiu, com Angela e Nikki na cabine.

David teve de sentar-se na carroceria.

Durante todo o caminho para casa, Nikki questionou sua alta súbita. Estava feliz por sair do hospital, e ao mesmo tempo perplexa com o comportamento dos pais. Mas, ao chegar em casa, ficou excitada demais ao ver Ferrugem, para insistir no questionamento. Depois de ela ter brincado um pouco com Ferrugem, David e Angela colocaram-na na sala íntima e reinstalaram o equipamento de soro. Queriam continuar o tratamento com antibiótico.

Calhoun ficou e participou da melhor forma que pôde. Apedido de Nikki, trouxe lenha do porão e acendeu a lareira. Mas não era sua natureza ficar quieto. Logo iniciou uma discussão com David sobre o motivo do assassinato de Hodges. Calhoun preferia a hipótese do estuprador, enquanto David preferia a do ”Anjo da Misericórdia”.

- Droga! - exclamou Calhoun. - Toda a sua teoria se baseia em pura suposição. Sua filha está bem, graças a Deus, de modo que não existem provas. Pelo menos na minha teoria há o Hodges alardeando quem era o estuprador na frente de um monte de pessoas no mesmo dia em que foi apagado. Não é uma causa e um efeito? E Clara acha que Hodges pode ter tido a ousadia de falar com o próprio sujeito. Tenho certeza de que o estuprador e o assassino são um homem só. Quer apostar?

- Não gosto de fazer apostas. Mas acho que estou certo. Hodges foi espancado até a morte segurando o nome dos pacientes. Isso não poderia ser coincidência.

- E se for a mesma pessoa? - sugeriu Angela. - E se o estuprador for a pessoa responsável pelas mortes dos pacientes e pelo assassinato de Hodges?

A idéia chocou David e Calhoun, lançando-os no silêncio.

- É possível - disse David por fim. - Parece meio louco, mas a esta altura estou preparado para acreditar em qualquer coisa.

- Acho que sim - disse Calhoun.-De qualquer modo, vou atrás da pista da tatuagem. Essa é a chave.

- Eu vou até o departamento de registros médicos - disse David. E talvez faça uma visita ao Doutor Holster. Hodges pode ter dito a ele alguma coisa sobre as suspeitas relativas aos pacientes.

- Certo - concordou Calhoun animado. - Eu faço a minha parte e você faz a sua. Que tal eu voltar mais tarde, para compararmos nossas anotações?

- Parece bom. - David olhou para Angela.

- Por mim, tudo bem. Que tal jantarmos juntos?

- Eu nunca recuso convites para jantar - disse Calhoun.

- Então esteja aqui às sete.

Depois de Calhoun ter saído, David pegou a espingarda e carregou-a com o máximo de cartuchos. Em seguida encostou-a no pilar de baixo da escada.

- Mudou de idéia quanto à espingarda?-perguntou Angela.

- Digamos que me sinto satisfeito por ela estar aqui. Conversou com Nikki sobre isso?

- Sem dúvida. Ela até deu um tiro. Disse que doeu o ombro.

- Não deixe ninguém entrar em casa enquanto estou fora. E mantenha todas as portas fechadas.

- Ei, era eu que queria as portas fechadas, lembra? David pegou a bicicleta. Não queria deixar Angela sem o carro.

Pedalou rapidamente, sem prestar atenção à paisagem. Seu pensamento estava preso à idéia de alguém ter matado seus pacientes. Isso o deixava horrorizado e furioso. Mas, como dissera Calhoun, ele não tinha provas.

Quando chegou ao hospital, o turno do dia estava sendo substituído pelo da tarde. Havia muito movimento. Ninguém prestou atenção a David enquanto ele se dirigia ao departamento de registros médicos.

Sentando-se diante de um terminal, pegou as cópias das páginas que haviam sido enterradas com Hodges. Tinha ficado com elas desde a visita a Clara Hodges. Em seguida chamou o nome de cada paciente e leu sua história. Todos os oito tinham tido doenças terminais, como Clara Hodges dissera.

Depois David leu as anotações feitas durante a estada de cada paciente no hospital na época em que haviam morrido. Em todos os casos, os sintomas eram parecidos com os experimentados pelos seus pacientes: sintomas neurológicos, gastrointestinais e relativos ao sistema sangüíneo ou imunológico.

Em seguida examinou as causas das mortes. Em todos os casos, menos um, a morte resultara de uma combinação de pneumonia avassaladora, septicemia e choque. A exceção foi uma morte decorrente de uma série de convulsões contínuas.

Pondo de lado os papéis de Hodges, David começou a usar o computador do hospital para calcular as taxas anuais de mortalidade relativas às internações. Os resultados pipocaram imediatamente na tela. Num instante ele descobriu que a taxa de mortalidade havia mudado há dois anos, quando passara de uma média de 2,8% para 6,7%. No último ano para o qual havia números disponíveis, a taxa de mortalidade subira para 8,1 %.

Em seguida David estreitou a busca, pedindo a taxa de mortalidade para os pacientes com diagnóstico de câncer, tivesse ou não a morte sido atribuída ao câncer. Embora compreensivelmente mais alta do que a taxa geral de mortalidade, ela mostrava o mesmo acréscimo súbito.

Depois David usou o computador para calcular os diagnósticos anuais de câncer como percentagem das internações. Não viu qualquer mudança súbita nessas estatísticas. Em média, eram praticamente idênticas nos últimos dez anos.

O aumento no percentual de mortes parecia apoiar a teoria de um anjo da misericórdia em atuação. A eutanásia explicaria o fato da incidência relativa dos cânceres permanecer estável enquanto crescia a taxa de mortalidade das pessoas com câncer. A evidência” era indireta, mas não poderia ser ignorada.

David estava para levantar-se, quando pensou em usar o computador para conseguir mais informações. Pediu que ele procurasse as palavras ”tatuagem” ou ”discromia” - termo médico para pigmentação aberrante - em todas as histórias médicas de todas as internações.

Enquanto o computador procurava, David recostou-se, observando a tela.

Demorou quase um minuto, mas finalmente surgiu uma lista. Rapidamente David deletou os casos com causas metabólicas ou médicas para a mudança na pigmentação. No final, restou uma lista de vinte pessoas que haviam sido tratadas no hospital e em cujos registros havia menção de uma tatuagem.

Mais uma vez usando o computador para ligar nome a emprego, descobriu que cinco das pessoas listadas trabalhavam no hospital. Eram listadas, por ordem alfabética, pelo sobrenome: Clyde Devonshire, ( um enfermeiro da sala de emergência; Joe Forbs, da segurança;! Claudette Maurice, do departamento de nutrição; Peter Ullhof, técnico de laboratório; e Werner Van Slyke, da engenharia/manutenção.

David ficou intrigado ao ver dois outros nomes e as respectivas ocupações: Carl Hobson, policial, e Steve Shegwick, membro da segurança do Bartlet College. O resto das pessoas trabalhava em lojas ou na construção.

Imprimiu uma cópia dessas informações. Depois foi embora.

David presumira que sua visita ao departamento de registros médicos houvesse passado despercebida, mas estava errado. Hortense Marshall, uma das profissionais de informática, fora alertada para algumas atividades de David através de um programa de segurança que ela colocara no computador do hospital.

Depois de ter sido alertada, ficou de olho em David. Assim que ele saiu do departamento, ela telefonou para Helen Beaton.

- O Doutor David Wilson esteve nos registros médicos - disse Hortense. – Acabou de sair. Mas enquanto esteve aqui, acessou informações relativas às taxas de mortalidade do hospital.

- O Doutor Wilson conversou com você? - perguntou Beaton.

- Não. Ele usou um dos nossos terminais. Não falou com ninguém.

- Como sabe que ele esteve acessando as taxas de mortalidade?

- O computador me alertou. Depois que a senhora me pediu que informasse sobre qualquer pessoa que pedisse esse tipo de dado, programei o computador para me sinalizar caso alguém tentasse acessar a informação por conta própria.

- Excelente trabalho. Gosto de sua iniciativa. Você será recomendada. Esse tipo de dado não é para conhecimento público. Nós sabemos que as taxas de mortalidade cresceram, depois que nos tornamos uma instalação terciária para a CMV. Eles estão mandando uma proporção mais alta de pacientes em estado crítico.

- Tenho certeza de que isso não ajudaria em nossas relações públicas – disse Hortense.

- A preocupação é essa.

- Eu deveria ter dito alguma coisa ao Doutor Wilson?

- Não, você fez bem. Ele pesquisou mais alguma coisa?

- Ele ficou aqui um bocado de tempo. Mas não tenho idéia do que estava procurando.

- Estou perguntando porque o Doutor Wilson foi suspenso da CMV.

- Eu não sabia disso.

- Aconteceu ontem - disse Beaton. - Você me informa, caso ele volte?

- Sem a menor dúvida.

- Desculpe. Seu nome é Carl Hobson?-Calhoun aproximou-se de um dos policiais uniformizados de Bartlet ao sair do diner, na Main Street.

- Isso mesmo.

- O meu é Phil Calhoun.

- Eu vi o senhor na delegacia. É amigo do chefe.

- É. Wayne e eu nos conhecemos há um tempão. Eu fui da força da polícia estadual, mas me aposentei.

- Bom para o senhor. Agora é só ficar pescando e caçando.

- Acho que sim. Se incomoda se eu fizer uma pergunta pessoal?

- Claro que não - disse Carl com curiosidade.

- O Carleton, do Iron Horse, disse que você tem uma tatuagem. Estive pensando em fazer uma também, e por isso estou ( olhando por aí e fazendo perguntas. Muita gente na cidade fâz tatuagem? „

- Algumas.

- Quando foi que você fez a sua?

- Faz tempo: na época do ginásio - disse Carl com um riso embaraçado. Fomos cinco caras até Portsmouth, New Hampshire, numa noite de sexta-feira, no ano da formatura. Lá tem um bocado de tatuadores. A gente estava de porre.

- E doeu?

- Ah, não lembro. Como disse, estava todo mundo bêbado.

- Todos os cinco continuam na cidade?

- Só quatro. Eu, Steve Shegwick, Clyde Devonshire e Moé Abrams.

- Todos foram tatuado na mesma parte do corpo?

- Não. A maioria foi no bíceps ou no antebraço. Clydf Devonshire foi a exceção. Quis a tatuagem no peito, em cima de cada mamilo.

- Quem tatuou o antebraço?

- Não tenho certeza - admitiu Carl. - Já faz um bocado de tempo. Talvez tenham sido Shegwick e Jay Kaufman. Kaufman é o sujeito que se mudou. Foi para a faculdade em algum lugar de New Jersey.

- Onde fica a sua?

- Vou mostrar - disse Carl. Em seguida ele desabotoou a camisa e puxou a manga. No lado externo de seu braço, perto do ombro, havia um lobo uivando, e a palavra ”lobo” embaixo.

Quando David chegou em casa, depois da visita ao departamento de registros médicos, Nikki tinha começado a sentir-se pior. A princípio só reclamara de cólicas estomacais, mas no final da tarde estava sofrendo de náuseas e aumento da salivação - os mesmos sintomas que David experimentara durante a noite. Também eram os sintomas relatados pelas seis enfermeiras do turno da noite-e, e ainda mais assustador, pelos seis pacientes que haviam morrido.

Às seis e meia, Nikki estava letárgica, depois de várias crises de diarréia, e David morria de preocupação. Sentia-se aterrorizado com a possibilidade de não a terem retirado do hospital suficientemente rápido: o que quer que houvesse matado seus pacientes já fora dado a ela.

Não compartilhou seus sentimentos com Angela. Já era suficientemente ruim ela estar preocupada com os sintomas ostensivos de Nikki, sem precisar acrescentar uma ligação potencial com todos os pacientes que haviam morrido. Assim, David guardou suas preocupações, mas sofria com a possibilidade de uma doença infecciosa do mesmo tipo. Consolou-se com o pensamento de que a sua doença e das enfermeiras fora autolimitada, sugerindo baixa exposição a um agente aéreo. Sua grande esperança era de que, se o responsável fosse esse agente, Nikki também tivesse recebido uma dosagem baixa.

Calhoun chegou exatamente as sete. Segurava numa das mãos um pedaço de papel e na outra uma sacola.

- Consegui mais nove pessoas com tatuagem - falou.

- Eu consegui vinte - disse David. Tentou parecer animado, mas não conseguia tirar Nikki do pensamento.

- Vamos conferir.

Quando juntaram as listas e excluíram os nomes em duplicata, ficaram com uma relação final de vinte e cinco pessoas.

- O jantar está pronto - disse Angela. Ela havia preparado um banquete, para elevar os ânimos e manter-se ocupada. Pediu que David arrumasse a mesa na sala de jantar.

- Eu trouxe vinho - disse Calhoun, abrindo a sacola e retirando duas garrafas de Chianti.

Cinco minutos depois, estavam sentados diante de uma excelente refeição de galinha com queijo de cabra, um dos pratos favoritos de Angela.

- E Nikki? - perguntou Calhoun.

- Ela não está com fome - disse Angela.

- Mas está bem?

- Um probleminha no estômago - disse Angela. - Mas considerando tudo por que passou, era de se esperar. O principal é que está sem febre e com os pulmões perfeitamente limpos.

David encolheu-se, mas não disse nada.

- O que fazemos agora que temos a lista de pessoas tatuadas? - perguntou ela.

- Seguimos dois caminhos - respondeu Calhoun. - Primeiro, verificamos os antecedentes de cada pessoa, por computador. Essa é a parte fácil. Segundo, vou começar a entrevistá-las. Há certas coisas que precisamos descobrir, como a localização de cada uma, a tatuagem de cada pessoa e se elas se incomodam em mostrá-la. A tatuagem que foi arranhada por Hodges deve ser a que está em pior estado, e deve estar localizada em algum ponto onde pudesse ter sido arranhada durante a luta. Se alguém tem um coraçãozinho na nádega, não vamos nos interessar muito.

- Qual a localização que você acha mais promissora? - perguntou Angela.-No antebraço?

- Eu diria que sim. Ou talvez no pulso. Acho que não devemos deixar de lado as costas da mão, embora esse não seja um lugar comum para tatuagens profissionais. A tatuagem que procuramos foi feita por um profissional. Os profissionais são os únicos que usam pigmentos de metais pesados.

- Como podemos checar antecedentes por computador? - perguntou Angela.

- Só precisamos do número do seguro social e da data de nascimento. Talvez possamos conseguir isso com o hospital. - Calhoun olhou para David. David assentiu.-Assim que tivermos essa informação, o resto será fácil. É espantosa a quantidade de informações que podemos conseguir com as centenas de bancos de dados existentes. Há empresas totalmente dedicadas ao serviço de informação. É surpreendente o que se pode obter por uma pequena quantia.

- Quer dizer que essas empresas podem acessar bancos de dados particulares? - perguntou Angela.

- Sem dúvida. A maioria das pessoas não sabe, mas, com um computador e um Modem, pode-se obter uma quantidade espantosa de informações sobre qualquer pessoa.

- Que tipo de informações as pessoas procuram?

- Todo tipo. História financeira, registros criminais, história profissional, história de consumo, uso de telefone, compras pelo correio, anúncios pessoais. É como uma pescaria. Mas surge muita coisa interessante. Sempre surge, mesmo quando se tem um grupo de vinte e cinco pessoas que são ostensivamente as mais normais da comunidade. Você ficaria chocada. E com um grupo de vinte e cinco pessoas com tatuagens, vai ser muito interessante. Elas não vão ser muito ”normais”, pode acreditar.

- Você fazia esse tipo de coisa quando estava na polícia estadual?-perguntou Angela.

- O tempo todo. Sempre que tínhamos um grupo de suspeitos, fazíamos uma verificação de antecedentes por computador, e sempre conseguíamos alguma sujeira. E neste caso, se David está certo e o assassino estiver cometendo eutanásia, não posso imaginar que tipo de coisas podemos encontrar. Ele, ou ela, deve ter alguma esquisitice. Encontraremos outro tipo de cruzada, como salvar animais da carrocinha e ser preso por ter novecentos cães em casa. Garanto que encontraremos um bocado de coisas esquisitas. Vamos precisar de algum fanático por computador que nos ajude a entrar nos bancos de dados.

- Eu tenho um ex-namorado no MIT - disse Angela. - Ele está há anos na faculdade, mas sei que é um gênio em computador.

- Quem é? - perguntou David. Ele não tinha ouvido falar sobre esse antigo namorado.

- Seu nome é Robert Scali - disse Angela. Em seguida ela perguntou a Calhoun: -

Acha que ele poderia nos ajudar?

- Então por que nunca ouvi falar desse cara? - perguntou David.

- Eu não contei a você todos os detalhes da minha vida. Namorei-o durante pouco tempo, quando era caloura em Brown.

- Mas desde então vocês mantiveram contato?

- Nós nos vimos umas duas vezes nos últimos anos.

- Não acredito que esteja ouvindo isso! - disse David.

- Oh, por favor, David - disse Angela, exasperada.-Você está sendo ridículo.

- Acho que provavelmente o Senhor Scali servirá - disse Calhoun. - Se não servir, como eu disse, conheço algumas empresas que ajudariam em troca de uma quantia modesta.

- A esta altura, o melhor é evitar qualquer quantia – disse Angela. Em seguida começou a tirar a mesa.

- Há alguma chance de conseguirmos uma descrição das tatuagens nos registros médicos? - perguntou Calhoun.

- Acho que sim - disse David. - A maioria dos médicos provavelmente iria notá-las num exame físico. Eu certamente as descreveria.

- Tenho certeza de que seria bom priorizarmos a nossa lista - disse Calhoun.-Eu gostaria de entrevistar primeiro os que têm tatuagens nos antebraços e nos pulsos.

- E quanto às pessoas que trabalham no hospital?-perguntou David.

- Vamos começar com essas. Sem dúvida. Também me disseram que Steve Shegwick tem uma tatuagem no antebraço. Gostaria de conversar com ele.

Angela voltou e perguntou quem queria sorvete e café. David recusou, mas Calhoun aceitou ambos. David levantou-se e foi verificar como estava Nikki.

Mais tarde, sentados ao redor da mesa depois do jantar, Angela propôs que organizassem as atividades do dia seguinte.

- Vou começar entrevistando os funcionários do hospital que têm tatuagem – disse Calhoun.-Ainda acho que é melhor eu ser o homem de frente. Não queremos mais tijolos atravessando a sua janela.

- Eu vou voltar aos registros médicos - disse David. - Primeiro os números do seguro social e as datas de nascimento, depois as descrições das tatuagens.

- Eu vou ficar com Nikki - disse Angela.-Depois, quando David conseguir os números do serviço social e as datas de nascimento, dou um pulo até Cambridge.

- Qual é o problema em mandar um fax para ele?-perguntou David.

- Vamos pedir um favor - disse Angela, - Não posso simplesmente mandar um fax.

David encolheu os ombros.

- E quanto ao Doutor Holster, o radioterapeuta? - perguntou Calhoun. - Alguém precisa falar com ele. Eu faria isso, mas acho que um de vocês, da área médica, faria um serviço melhor.

- Ah, sim - disse David. - Eu havia esquecido. Posso procurá-lo amanhã depois de terminar com os registros médicos.

Calhoun arrastou a cadeira para trás e levantou-se. Em seguida deu tapinhas no seu abdômen ligeiramente protuberante.

- Obrigado por um dos melhores jantares que tive nesses últimos tempos. Acho que é hora de levar meu estômago para casa.

- Quando falaremos de novo? - perguntou Angela.

- Assim que tivermos sobre o que falar - disse Calhoun. - E vocês dois devem dormir um pouco. Dá para ver que estão precisando.

 

SÁBADO, 30 DE OUTUBRO

APESAR DE SOFRER COM cólicas abdominais e diarréia durante toda a noite, pela manhã Nikki estava melhor. Ainda não se recuperara totalmente, mas sem dúvida estava se curando, e tinha permanecido sem febre. David se sentia tremendamente aliviado. Nenhum de seus pacientes no hospital mostrara esse tipo de melhora depois do início dos sintomas. Ele confiava em que, dali por diante, o processo de Nikki seria como o dele e das enfermeiras.

Angela acordou deprimida com sua situação profissional. Surpreendeu-se ao ver David tão animado. Agora que Nikki estava muito melhor, ele confessou seus piores temores.

- Você deveria ter me contado - disse ela.

- Não ajudaria em nada.

- Algumas vezes você me deixa com tanta raiva! - censurou-o Angela. Mas em vez de ficar irritada, foi até David e abraçou-o, dizendo o quanto o amava.

O telefone interrompeu o abraço. Era o Doutor Pilsner, querendo saber como estava Nikki. Também queria insistir na continuação do tratamento com antibióticos e da terapia respiratória.

- Vamos fazer quantas vezes você mandar - disse Angela. Ela estava no telefone do quarto enquanto David ouvia na extensão do banheiro.

- Logo explicaremos por que a tiramos de lá com tanta pressa - disse David. - Mas, por enquanto, aceite nossas desculpas. Tirar Nikki do hospital não teve nada a ver com o seu tratamento.

- Minha única preocupação é Nikki - disse o Doutor Pilsner.

- Você será bem-vindo - disse Angela. - E se achar que é necessária uma hospitalização contínua, nós a levaremos para Boston.

- Por enquanto é só me manter informado - falou rapidamente o Doutor Pilsner.

- Ele está irritado - disse David depois de desligarem.

- Não posso culpá-lo. As pessoas devem pensar que somos doidos.

David e Angela ajudaram Nikki em sua terapia respiratória, revezando-se nos tapinhas nas costas enquanto ela ficava nas posições exigidas.

- Posso ir à escola na segunda? - perguntou ela assim que terminaram.

- É possível - disse Angela. - Mas não deve ter muita esperança.

- Não quero me atrasar demais - disse Nikki. - Será que Caroline pode vir aqui e trazer os meus livros da escola?

Angela olhou para David, que estava fazendo festa em Ferrugem na cama de Nikki. Ele devolveu o olhar, e uma comunicação sem palavras se estabeleceu entre os dois. Ambos compreenderam que não poderiam continuar enganando Nikki, não importava o quanto odiassem contar a triste verdade.

- Há uma coisa que precisamos contar sobre Caroline - disse Angela em tom gentil.- Sentimos muitíssimo, mas Caroline se foi.

- Quer dizer que ela morreu?

- Sim.

- Oh... - disse Nikki simplesmente.

Angela olhou para o marido. David encolheu os ombros. Não conseguia pensar em outra coisa para dizer. Sabia que a indiferença de Nikki era uma defesa, semelhante ao modo como reagira à morte de Marjorie. David sentiu a raiva apertar sua garganta ao reconhecer que as duas mortes poderiam ter sido causadas pelo mesmo indivíduo perturbado.

Demorou ainda menos tempo do que no caso de Marjorie que a fachada de Nikki desmoronasse. Angela e David fizeram o possível para consolá-la, e a angústia da menina deixou-os atormentados. Sabiam que era um golpe devastador; não somente Caroline fora uma amiga, mas em toda a sua curta vida, Nikki estava lutando contra a mesma doença da qual ela sofrera.

- Eu também vou morrer? - soluçou Nikki.

- Não - disse Angela. - Você está reagindo maravilhosamente. Caroline teve febre alta. Você não teve febre nenhuma.

Depois de terem acalmado os temores de Nikki, David foi de bicicleta para o hospital.

Assim que chegou, dirigiu-se ao departamento de registros médicos e imediatamente começou a procurar os números do seguro social e as datas de nascimento dos nomes que estavam na lista que ele compilara com Calhoun.

Depois de resolver essa parte, começou a acessar cada registro médico, em busca de descrições das tatuagens. Não tinha ido longe quando alguém bateu em seu ombro. Ele se virou e deu de cara com Helen Beaton. Atrás dela estava Joe Forbs, da segurança.

- Poderia me dizer o que está fazendo?-perguntou Beaton.

- Só estou usando o computador - gaguejou ele.

Não esperava encontrar ninguém da administração, particularmente numa manhã de sábado.

- Pelo que sei, o senhor não trabalha mais para a CMV.

- É verdade, mas...

- Seus privilégios no hospital estão vinculados ao emprego na CMV. Como este não é mais o caso, os privilégios devem ser revistos pela comissão de credenciais. Até que isso aconteça, O senhor não tem direito a acessar o computador. Por favor, pode acompanhar o Doutor Wilson para fora do hospital?-disse Beaton a Joe.

Joe Forbs deu um passo adiante e fez um gesto para que David se levantasse.

David sabia que era inútil protestar. Calmamente, juntou seus papéis, esperando que Beaton não tomasse os documentos. Por sorte, Forbs simplesmente escoltou-o até a porta.

Agora David poderia acrescentar ”expulso fisicamente de um hospital” ao seu breve e ignominioso currículo. Impávido, dirigiu-se à unidade de radioterapia, sediada num prédio ultramoderno projetado pelo mesmo arquiteto que fizera o Imaging Center.

A unidade de radioterapia aproveitava as manhãs de sábado para atender aos pacientes com tratamento prolongado. David teve de esperar meia hora antes que o Doutor Holster pudesse recebê-lo.

O Doutor Holster era cerca de dez anos mais velho que David, mas parecia ter mais do que isso. Os cabelos eram totalmente grisalhos, quase brancos. Apesar de estar ocupado naquela manhã, foi hospitaleiro e ofereceu uma xícara de café.

- E o que posso fazer pelo senhor, Doutor Wilson?

- Para começar, pode me chamar de David. Afora isso, eu gostaria de fazer algumas perguntas sobre o Doutor Hodges.

- É um pedido bastante estranho - disse o Doutor Holster. Em seguida ele encolheu os ombros. - Mas tudo bem. Por que está interessado?

- É uma longa história. Mas, para resumir, tive alguns pacientes que passaram por situações muito parecidas com alguns pacientes do Doutor Hodges. Alguns deles foram tratados pelo senhor.

- Vá em frente - disse o Doutor Holster.

- Antes disso, gostaria de pedir que esta conversa fosse confidencial.

- Agora você está realmente aguçando minha curiosidade. Será confidencial.

- Eu soube que o Doutor Hodges visitou-o no dia em que desapareceu.

- Nós almoçamos juntos, para ser exato.

- Sei que o Doutor Hodges queria conversar sobre um paciente chamado Clark Davenport.

- Correto. Tivemos uma longa discussão sobre o caso, Infelizmente, o Senhor Davenport tinha acabado de morrer. Eu tinha tratado dele, de câncer na próstata, e achamos que com grande sucesso, apenas quatro ou cinco meses antes de seu falecimento. Tanto o Doutor Hodges quanto eu ficamos surpresos e tristes.

- O Doutor Hodges chegou a mencionar exatamente de que morrera o Senhor Davenport?

- Não que eu me lembre. Presumi que tivesse sido uma recorrência do câncer de próstata. Por que pergunta?

- O Senhor Davenport morreu de choque séptico depois de uma série de convulsões epilépticas. Não creio que isso tivesse relação com o câncer.

- Não sei se podemos dizer isso. Parece que ele desenvolveu metástase cerebral.

- A ressonância magnética foi normal. Claro que não houve autópsia, e não podemos ter certeza.

- Pode ter havido tumores múltiplos, pequenos demais para que a ressonância captasse.

- O Doutor Hodges mencionou algo que ele tivesse achado extraordinário ou inesperado no processo hospitalar do Doutor Davenport?

- Somente a sua morte - disse o Doutor Holster.

- Mais alguma coisa foi mencionada durante o almoço?

- Não. Não que eu me lembre. Quando terminamos de comer, perguntei-lhe se gostaria de voltar ao centro de radioterapia e ver a nova máquina que recebemos graças às suas gestões.

- Que máquina é essa?

- Nosso acelerador linear. -O Doutor Holster estava empolgado como um pai orgulhoso. -Temos uma das melhores máquinas que existem. Dennis nunca a tinha visto, apesar de várias vezes ter ficado de aparecer. Então nós demos uma passada aqui e eu a mostrei. Dennis ficou realmente impressionado. Venha, vou mostrar-lhe.

O Doutor Holster estava saindo pela porta antes que David pudesse dar qualquer resposta. Só conseguiu alcançá-lo no meio de um corredor sem janelas. David não estava com muita disposição para ver uma máquina de radioterapia, mas, para ser educado, achava que não tinha escolha. Chegaram à sala de tratamento e se aproximaram de um equipamento de alta tecnologia.

- Aqui está ela - disse orgulhosamente o Doutor Holster enquanto dava um tapinha afetuoso na máquina de aço inoxidável. O acelerador parecia um aparelho de raios X ligado a uma mesa. -Se não fosse o envolvimento do Doutor Hodges com o hospital, nós nunca teríamos essa beleza. Ainda estaríamos usando a velha.

David olhou para o aparato impressionante.

- O que havia de errado com a velha?

- Nada. Só era tecnologia ultrapassada: uma unidade de cobalto-60. Uma máquina de cobalto não pode ser ajustada com tanta precisão quanto um acelerador linear. É um problema físico relativo ao tamanho da fonte de cobalto, que tem cerca de dez centímetros de comprimento. Em razão disso, os raios gama saem em todas as direções e são difíceis de alinhar.

- Sei - disse David, apesar de não ter certeza se sabia. Física nunca fora o seu forte.

- O acelerador linear é muito superior. Ele tem uma pequena abertura de onde se originam os raios. E pode ser programado para energia mais alta. Além disso, a máquina de cobalto exige que a fonte seja trocada mais ou menos a cada cinco anos, já que a meia-vida do cobalto-60 é de cerca de seis anos.

David controlou-se para não bocejar. Esse encontro com o Doutor Holster estava começando a lembrá-lo da escola de medicina.

- Nós ainda temos a máquina de cobalto - disse o Doutor Holster. - Ela está no porão do hospital, esperando para ser vendida ao Paraguai ou Uruguai, não me lembro qual dos dois. É o que a maioria dos hospitais fazem quando passam para um acelerador linear como este: vendem a máquina antiga para um país em desenvolvimento. As máquinas ainda são boas. Na verdade, as máquinas antigas têm a vantagem de raramente deixarem de funcionar, já que sua fonte está sempre emitindo raios gama, vinte e quatro horas por dia, chova ou faça sol.

- Acho que já ocupei demais o seu tempo - disse David. Ele esperava se livrar daquele encontro antes que Holster continuasse por mais meia hora.

- O Doutor Hodges ficou bastante interessado na ocasião. Quando mencionei o fato de que a máquina antiga tinha essa vantagem sobre as novas, seu rosto se iluminou. Ele até quis ver a máquina antiga. E você? Quer dar uma olhada nela?

- Acho que vou ter de recusar. - Ele ficou imaginando como Helen Beaton e Joe Forbs reagiriam se ele voltasse ao hospital tão pouco tempo depois de ter sido expulso.

Alguns minutos depois David estava montado na bicicleta, atravessando o Roaring River a caminho de casa. Sua manhã não fora tão produtiva quanto ele gostaria, mas pelo menos ele conse- guira os números do seguro social e as datas de nascimento.

Enquanto pedalava, seus pensamentos voltaram ao que ficara sabendo sobre o almoço de Hodges com o Doutor Holster. Desejava que Hodges tivesse contado suas suspeitas ao radioterapeuta. Em seguida, lembrou-se da descrição que Holster fizera do rosto de Hodges se iluminando quando ele ficara sabendo que a virtude da máquina de cobalto era raramente parar de funcionar. David imaginou se Hodges realmente havia se interessado ou se Holster estava projetando seu próprio entusiasmo sobre a audiência cativa. David achou que provavelmente a última hipótese era a verdadeira. Holster certamente ficara com a impressão de que até mesmo David se empolgara com a visita ao acelerador linear.

Depois de dormir tarde, Calhoun só voltou a Bartlet no meio da manhã. Enquanto dirigia o carro até a cidade, decidiu atacar em ordem alfabética a lista de funcionários do hospital que tinham tatuagem. Isso colocava Clyde Devonshire em primeiro lugar.

Calhoun parou junto ao diner na Main Street para tomar uma xícara grande de café e dar uma olhada na lista telefónica. Armado com os cinco endereços, partiu para o de Clyde Devonshire, que morava em cima de uma mercearia. Calhoun subiu a escada e apertou a campainha. Quando não houve resposta, apertou de novo.

Desistindo depois de uma terceira tentativa, desceu a escada e entrou na mercearia, onde comprou um pacote de charutos António y Cleopatra.

- Estou procurando Clyde Devonshire - disse a um balconista.

- Saiu cedo. Provavelmente foi trabalhar; ele trabalha em muitos finais de semana. É enfermeiro no hospital.

- A que horas ele costuma voltar?

- Por volta de três e meia ou quatro, a não ser que esteja no turno da tarde.

Ao sair, Calhoun subiu de novo a escada e tocou outra vez a campainha de Devonshire. Não tendo resposta, experimentou a porta. Ela se abriu.

Um dos benefícios de não estar mais na força policial era que não precisava se preocupar com as sutilezas das buscas legais e os possíveis processos. Sem qualquer culpa, entrou e fechou a porta.

O apartamento tinha mobília barata, mas era arrumado. Calhoun viu-se na sala de estar.

Sobre a mesinha de centro descobriu uma pilha de recortes de jornais falando de Jack Kevorkian, o notório ”doutor suicídio” de Michigan. Também havia outros editoriais e artigos sobre auxílio ao suicídio.

Calhoun sorriu ao lembrar-se de ter dito a David e Angela que apareceriam algumas coisas estranhas no grupo de tatuados. Achou que auxílio ao suicídio e eutanásia tinham algumas áreas em comum, e que David poderia gostar de bater um papo com Clyde Devonshire.

Calhoun abriu a porta do quarto. Também era arrumado. Indo até a cómoda, examinou os objetos que estavam em cima, à procura de fotos. Não havia nenhuma. Abrindo o armário, Calhoun viu-se diante de uma coleção de parafernália sadomasoquista, a maioria dos itens em couro preto com rebites de aço inoxidável e correntes. Numa prateleira, havia pilhas de revistas e fitas de vídeo do mesmo estilo.

Ao fechar a porta, Calhoun imaginou o que a pesquisa de antecedentes mostraria sobre aquele sujeito estranho.

Percorrendo o resto do apartamento, continuou procurando fotografias. Esperava encontrar uma de Clyde mostrando suas tatuagens. Havia várias fotos presas com ímãs à porta da geladeira, mas nenhuma delas tinha tatuagens visíveis. Calhoun nem mesmo sabia qual das pessoas fotografadas era Clyde.

Ia voltar à sala de visitas, para examinar a escrivaninha que vira, quando ouviu uma porta batendo lá embaixo e passos na escada.

Por um instante, temeu ser apanhado invadindo o apartamento. Avaliou a hipótese de sair correndo, mas depois, em vez de fugir, foi até a porta da frente e escancarou-a, espantando a pessoa que estava para abri-la pelo outro lado.

- Clyde Devonshire? - perguntou em tom ríspido.

- É. Que diabo está acontecendo aqui?

- Meu nome é Phil Calhoun.-Calhoun estendeu um cartão de visitas. - Estava esperando por você. Entre.

Clyde mudou de mão o embrulho que estava carregando, para pegar o cartão.

- O senhor é investigador?

- Isso. Era da polícia estadual até que o governador decidiu que eu estava muito velho. Por isso passei para a investigação particular. Estive aqui sentado, esperando que você chegasse em casa, para fazer algumas perguntas.

- Puxa, quase me caguei de medo - admitiu Clyde. Em seguida pôs a mão no peito com um suspiro de alívio.-Não estou acostumado a chegar e encontrar alguém no meu apartamento.

- Desculpe. Acho que deveria ter esperado na escada.

- Isso não teria sido confortável. Sente-se. Posso oferecer alguma coisa?

Clyde deixou o pacote sobre o sofá em em seguida foi até a cozinha.

- Tenho café, refrigerante ou...

- Cerveja?

- Sem dúvida - gritou Clyde.

Enquanto Clyde pegava a cerveja na geladeira, Calhoun deu uma olhada no saco de papel pardo que o outro trouxera. Dentro havia vídeos com temas semelhantes ao que Calhoun vira no armário.

Clyde voltou para a sala trazendo duas cervejas. Podia adivinhar que Calhoun olhara dentro do pacote. Colocando as cervejas sobre a mesa de centro, pegou a sacola e cuidadosamente fechou a parte de cima.

- Diversão - explicou ele.

- Percebi.

- Você é careta?

- Hoje em dia não sou mais quase nada. - Calhoun encarou seu anfitrião. Clyde tinha uns trinta anos. Era de estatura mediana e tinha cabelos castanhos. Na aparência, poderia ter sido um bom finalizador no futebol de ginásio.

- Que tipo de pergunta quer fazer? - perguntou Clyde, entregando uma cerveja a Calhoun.

- Você conhecia o Doutor Hodges?

Clyde deu um riso curto e cheio de escárnio.

- Por que, diabo, você investigaria aquela figura detestável do nosso passado remoto?

- Parece que você não gostava muito dele.

- Era um cu-de-ferro filho da puta. Tinha um conceito ultrapassado sobre o papel da enfermagem. Achava que éramos formas de vida inferior destinadas a fazer todo o trabalho sujo e não questionar as ordens dos médicos. Sabe como é, ser visto mas não ouvido. Hodges pareceria ultrapassado até para Clara Barton.

- Quem foi Clara Barton?

- Uma enfermeira dos campos de batalha na guerra civil. Além disso, ela organizou a Cruz Vermelha.

- Você sabe quem matou o Doutor Hodges?

- Não fui eu, se é o que está pensando. Mas se descobrir o cara, me conte. Eu adoraria pagar uma cerveja.

- Você tem uma tatuagem?

- Tenho. Várias.

- Onde?

- Quer ver?

- Quero.

Rindo de orelha a orelha, Clyde desabotoou os punhos e tirou a camisa. Ficou de pé e fez várias poses como se fosse um halterofilista. Em seguida gargalhou. Tinha uma corrente tatuada ao redor de cada pulso, um dragão no braço, perto do ombro, e duas espadas cruzadas nos peitorais, acima de cada mamilo.

- Fiz essas espadas em New Hampshire, na época do ginásio. O resto foi em San Diego.

- Deixe-me ver as tatuagens nos punhos.

- Ah, não - disse Clyde, voltando a colocar a camisa. - Não quero mostrar tudo logo da primeira vez. Se não você não volta.

- Você costuma esquiar?

- Ocasionalmente. - Em seguida acrescentou: - Você ataca por tudo quanto é canto com suas perguntas.

- Tem alguma máscara de esquiador?

- Todo mundo que esquia na Nova Inglaterra tem máscara de esquiador. A não ser que seja masoquista.

Calhoun levantou-se.

- Obrigado pela cerveja. Preciso ir andando.

- Que pena - disse Clyde. - Eu estava começando a me divertir.

Calhoun desceu a escada, saiu do prédio e entrou na pick-up. Estava feliz por deixar o apartamento de Clyde Devonshire. O sujeito era definitivamente incomum, talvez até mesmo excêntrico. A questão era: será que ele poderia ter matado Hodges? Por algun motivo, Calhoun achava que não. Clyde podia ser esquisito, mas parecia sincero.

Entretanto, as correntes tatuadas nos pulsos incomodavam Calhoun, especialmente porque não tivera chance de examiná-las de perto. E ficou pensando no interesse que ele tinha em Kevorkian. Seria uma simples curiosidade ou o interesse sentido por uma espécie de espírito congênere? Por enquanto, Clyde poderia continuar como suspeito. Calhoun estava ansioso para saber o que a verificação de antecedentes mostraria.

Checou sua lista. O nome seguinte era Joe Forbs. O endereço era perto da faculdade, não muito longe da casa dos Gannons.

Na casa de Forbs, uma mulher magra e nervosa, com o cabelo estriado de grisalho, abriu uma fresta da porta quando Calhoun bateu. Calhoun se apresentou e mostrou o cartão. A mulher não ficou impressionada. Fazia mais o estilo da Nova Inglaterra do que Clyde Devonshire: boca fechada e não muito amigável.

- Senhora Forbs? - perguntou ele. A mulher assentiu.

- Joe está em casa?

- Não. O senhor vai ter de voltar mais tarde.

- A que horas?

- Não sei. Cada dia é uma hora diferente.

- A senhora conhecia o Doutor Dennis Hodges?

- Não.

- Pode me dizer onde é que o Senhor Forbs é tatuado?

- O senhor vai ter de voltar depois.

- Ele pratica esqui?

- Sinto muito - disse a Senhora Forbs e fechou a porta. Calhoun ouviu uma série de fechaduras sendo trancadas. Teve a impressão nítida de que ela achava que ele fosse um cobrador.

Voltando à pick-up, Calhoun suspirou. De dois, só conseguira um. Mas não se sentiu desencorajado. Era hora de passar ao próximo nome da lista: Claudette Maurice.

- Ora, vejam! - disse Calhoun assim que estacionou diante da casa de Claudette Maurice.

Era minúscula, parecendo uma casa de bonecas. O que incomodou Calhoun é que as janelas da frente estavam fechadas.

Calhoun foi até a porta da frente e bateu várias vezes, já que não havia campainha. Não houve resposta. Levantando a portinhola da caixa de correio, viu que ela estava quase cheia.

Foi até o vizinho ao lado e obteve uma resposta rápida. Claudete Maurice estava de férias. Fora para o Havaí.

Voltou à pick-up. Agora era um para três. Olhou o nome seguinte: Werner Van Slyke.

Avaliou a hipótese de pular Van Slyke, uma vez que já tinha falado com ele, mas decidiu vê-lo assim mesmo. Na primeira visita, não sabia sobre a tatuagem.

Van Slyke morava na parte sudoeste da cidade, numa avenida calma onde as construções ficavam afastadas da rua. Calhoun parou atrás de uma fila de carros estacionados do outro lado, diante da casa de Van Slyke.

Surpreendentemente, a casa de Van Slyke estava arruinada e precisando muito de uma pintura. Não parecia uma casa ocupada pelo chefe de um departamento de manutenção. Venezianas despedaçadas pendiam em ângulos estranhos de suas janelas. O lugar deixou Calhoun arrepiado.

Calhoun acendeu um Antônio y Cleopatra e olhou para a casa. Em seguida tomou alguns goles do café que trouxera e que estava frio. Não havia sinais de vida dentro ou fora da construção e nenhum veículo na entrada. Calhoun duvidou de que houvesse alguém em casa.

Pensando em dar uma olhada como fizera no apartamento de Clyde Devonshire, saiu da pick-up e atravessou a rua. Quanto mais perto chegava, pior a casa parecia. Havia até mesmo partes podres sob os beirais.

A campainha não funcionou. Calhoun apertou-a repetidamente, mas não ouviu nada. Bateu duas vezes, mas não houve resposta. Saindo da varanda da frente, rodeou a casa.

Nos fundos havia um celeiro que fora convertido em garagem. Calhoun ignorou o celeiro e continuou rodeando, tentando ver pelas janelas. Não era fácil, já que elas estavam imundas. Na parte de trás havia um alçapão preso com um cadeado velho e cheio de ferrugem.

Calhoun imaginou que ele cobrisse a escada para o porão.

De volta à frente da casa, Calhoun subiu de novo os degraus da varanda. Parando junto à porta, olhou ao redor, para certificar-se de que ninguém estava olhando. Em seguida experimentou a porta. Estava destrancada.

Para ter certeza absoluta de que não havia ninguém, bateu de novo, com o máximo de força.

Satisfeito, estendeu outra vez a mão para a maçaneta. Para sua surpresa, a porta abriu sozinha. Calhoun ergueu os olhos. Van Slyke estava encarando-o cheio de suspeitas.

- Que diabo você quer?

Calhoun teve de retirar o charuto de entre os dentes.

- Desculpe incomodá-lo. É que eu estava aqui perto e pensei em dar uma passada. Lembra que eu disse que voltaria? Tenho mais algumas perguntas. O que você acha? A hora é inconveniente?

- Acho que está bem - disse Van Slyke depois de uma pausa. - Mas não tenho muito tempo.

- Eu nunca abuso da hospitalidade.

Beaton precisou bater várias vezes na porta da ante-sala do escritório de Traynor antes de ouvir seus passos enquanto ele vinha abri-la.

- É uma surpresa você aqui - disse Beaton. Traynor trancou a porta depois de fazê-la entrar.

- Tenho gastado muito tempo com as coisas do hospital, preciso vir às noites e nos finais de semana fazer meu serviço.

- Foi difícil encontrar você - disse Beaton acompanhando-o até o escritório particular.

- Como conseguiu?

- Liguei para a sua casa. Perguntei à sua mulher, Jacqueline.

- Ela foi educada? - Traynor sentou-se na sua cadeira. Sobre a mesa estavam empilhados vários documentos e contratos

- Não particularmente.

- Não fico surpreso com isso.

- Tenho de conversar com você sobre o jovem casal que recrutamos na primavera passada. Foi um desastre. Os dois foram despedidos ontem. O marido estava na CMV, e ela trabalhava no nosso departamento de patologia.

- Lembro da mulher - disse Traynor. - Wadley parecia um cachorro no cio rodando em volta dela no piquenique no Dia do Trabalho.

- Isso faz parte do problema. Wadley despediu-a, mas ela apareceu ontem reclamando de assédio sexual, ameaçando processar a instituição. Disse que, antes de ser demitida, registrara um protesto junto a Cantor, fato que Cantor confirmou.

- Wadley tinha motivo para demiti-la?

- De acordo com ele, sim. Ele deixou documentado que ela repetidamente saía da cidade enquanto estava de serviço, mesmo depois de tê-la advertido sobre isso.

- Então não há com que se preocupar. Se ele tiver tido razão para despedi-la, tudo bem. Conheço os velhos juizes que julgariam o caso. Terminariam fazendo um sermão para ela.

- Isso me deixa nervosa. E o marido, o Doutor David Wilson, está tramando alguma coisa. Esta manhã fiz com que ele fosse retirado do departamento de registros médicos. Ontem à tarde ele tinha estado lá, acessando o computador em busca das taxas de mortalidade.

- Por que diabo?

- Não faço idéia.

- Mas você disse que as taxas de mortalidade estão boas. Então que diferença isso faz?

- Todos os hospitais vêem as taxas de mortalidade como informação confidencial. O público em geral não compreende como elas são obtidas. Taxas de mortalidade podem ser um desastre para as relações públicas, coisa de que o Hospital Bartlet certamente não necessita.

- Concordo. De modo que vamos mantê-lo longe dos registros médicos. Não deve ser difícil, já que a CMV o demitiu. Por que ele foi mandado embora?

- Estava continuamente com produtividade baixa. E com a utilização no máximo, particularmente em termos de hospitalização.

- Certamente não sentiremos falta dele. Parece que devemos mandar uma garrafa de uísque para o Kelley, pelo favor.

- Essa família está me deixando preocupada. Ontem eles entraram feito loucos no hospital para retirar a filha, a tal que tem fibrose cística. Arrancaram-na do hospital contra a recomendação médica do pediatra.

- Isso parece esquisito. Como a menina está? Acho que esse é o ponto importante.

- Está bem. Falei com o pediatra. Ela está perfeitamente bem.

- Então qual é a preocupação?

De posse dos números do seguro social e das datas de nascimento, ( Angela foi para Boston. Tinha ligado naquela manhã para Robert Scali, que a estava esperando. Ela não dissera o motivo da ida. Demoraria muito para explicar e pareceria estranho demais.

Encontrou Robert num dos numerosos restaurantes indianos da Praça Central de Cambridge. Assim que Angela entrou, Robert levantou-se de uma das mesas.

Angela beijou-o no rosto e logo entrou no assunto. Disse o que queria e entregou a lista. Ele ficou olhando o papel.

- Então você quer os antecedentes dessas pessoas? - Em seguida curvou-se sobre a mesa. - Esperava que tivesse motivos mais pessoais para ligar tão subitamente. Achei que queria me ver.

Angela sentiu-se imediatamente desconfortável. Nas outras vezes em que tinham se encontrado, Robert nunca sugerira reacender a antiga chama.

Angela decidiu que o melhor era ser direta. Assegurou que tinha um casamento feliz. Contou que viera simplesmente porque precisava de ajuda.

Se Robert ficou frustrado, não demonstrou. Apertou sua mão por cima da mesa.

- Fico feliz em vê-la, não importa o motivo. Vou gostar de ajudar. O que você quer, especificamente?

Angela disse que ficara sabendo ser possível obter um bocado de informações sobre as pessoas através do computador, usando o número do seguro social e a data de nascimento.

Roberto riu daquele jeito rouco e profundo, que Angela recordava nitidamente.

- Você não faz idéia do quanto é possível. Eu poderia conseguir as compras feitas com o cartão Visa de Bill Clinton no último mês, se estivesse realmente disposto a isso.

- Quero descobrir tudo que for possível sobre essas pessoas - disse Angela batendo sobre a lista.

- Dá para ser mais específica?

- Na verdade, não. Quero tudo que for possível. Um amigo meu descreveu esse processo como uma pescaria.

- Quem é esse amigo?

- Bom, não é exatamente um amigo. Mas passei a considerá-lo assim. Seu nome é Phil Calhoun. É um policial aposentado que virou investigador particular. David e eu o contratamos.

Angela foi em frente, dando um pequeno resumo dos acontecimentos em Bartlet. Começou com a descoberta do corpo de Hodges no porão, depois descreveu a pista fascinante da tatuagem e terminou com a teoria de que alguém estava matando pacientes, numa espécie de eutanásia equivocada.

- Meu Deus! - disse Robert quando Angela terminou a história. - Você está esburacando minha imagem romântica da vida pacífica no interior.

- Tem sido um pesadelo.

Robert pegou a lista.

- Vinte e cinco nomes vão render um monte de dados. Espero que esteja preparada. Trouxe um guindaste?

- Estamos particularmente interessados nesses cinco - disse Angela, apontando o nome das pessoas que trabalhavam no hospital, e explicou por quê.

- Parece divertido. A informação mais rápida é a financeira, já que existem várias nos bancos de dados que podemos acessar facilmente. Num instante teremos informações sobre cartões de crédito, contas bancárias, transferências de dinheiro e dívidas. A partir daí fica mais difícil.

- Qual deve ser o próximo passo?

- Acho que o mais imediato seria o seguro social. É mais difícil invadir os bancos de dados deles. Mas não é impossível, especialmente porque tenho um amigo aqui no MIT que está convenientemente trabalhando em segurança de bancos de dados para vários órgãos do governo.

- Acha que ele vai ajudar?

- Peter Fong? Claro que sim, se eu pedir. Para quando você quer isso?

- Para ontem - disse Angela com um sorriso.

- É disso que eu sempre gostei em você. Essa veemência mcomum. Venha. Vamos ver Peter Fong.

O escritório de Peter ficava oculto no fundo do quarto andar de um prédio pintado de creme no meio do campus do MIT.

Parecia menos um escritório do que um laboratório de eletrônica. Estava cheio de computadores, tubos de raios catódicos, telas de cristal líquido, fios, gravadores e outras parafernálias eletrônicas que Angela não pôde identificar.

Peter Fong era um enérgico asiático-americano com olhos ainda mais escuros que os de Robert. Para Angela, ficou imediatamente óbvio que os dois eram excelentes amigos.

Robert entregou a lista a Peter e disse o que eles queriam. Peter coçou a cabeça e pensou no pedido.

- Concordo que o seguro social é o melhor lugar para começarmos. Mas um banco de dados do FBI também seria uma boa idéia.

- Isso é possível? - perguntou Angela. O mundo da informação por computador era novidade para ela.

- Você vai ver - disse Peter. - Tenho uma colega em Washington chamada Gloria Ramirez. Trabalhei com ela nesse projeto de segurança de bancos de dados. Ela tem linha com as duas organizações.

Peter usou um editor de textos para digitar o que queria. Em seguida colocou o texto no fax.

- Geralmente nos comunicamos por fax, mas neste caso ela vai responder por computador. Com essa quantidade de dados, será mais rápido.

Dentro de minutos, havia dados jorrando direto no disco rígido. Peter colocou parte do material na tela.

Angela olhou por sobre o ombro de Peter. Era uma parte do registro do seguro social de Joe Forbs, indicando os trabalhos que ele tivera ultimamente, junto com os pagamentos do seguro social. Angela ficou impressionada. Também ficou consternada com a facilidade em conseguir esse tipo de informação.

Peter ativou sua impressora a laser, que começou a cuspir páginas e mais páginas de dados. Robert aproximou-se e pegou uma folha. Angela juntou-se a ele. Era o arquivo do seguro social de Werner Van Slyke.

- Interessante - disse ela. - Ele esteve na Marinha. Foi lá provavelmente que conseguiu a tatuagem.

- Muitos sujeitos que se alistam se tatuam como parte de um rito de passagem - disse Robert.

Angela ficou ainda mais surpresa a seguir, quando começaram a chegar os registros criminais em outra impressora. Peter teve de ativar uma segunda máquina, já que a primeira continuava ocupada com o seguro social.

Angela não esperava muitos registros criminais, já que Bartlet era uma cidade tão pequena e calma. Mas, como tantas outras coisas relativas a Bartlet, sua suposição estava errada. O item mais significativo, para ela, foi a descoberta de que Clyde Devonshire fora preso e condenado por estupro seis anos antes. O incidente acontecera em Norfolk, Virgínia, e ele cumprira dois anos na penitenciária estadual.

- Parece um sujeito encantador para se ter numa cidade pequena - disse Robert, sarcástico.

- Ele trabalha na emergência do hospital - disse Angela. - Fico imaginando se alguém sabe sobre seus antecedentes.

Robert voltou à outra impressora e folheou os papéis até encontrar as informações sobre Clyde Devonshire.

- Ele também esteve na Marinha - gritou Robert para Angela, que estava hipnotizada pelo material criminológico que continuava chegando. - Na verdade, as datas parecem indicar que ele era da Marinha quando foi preso por estupro.

Angela foi até onde estava Robert, para olhar por sobre seu ombro.

- Olhe para isso - disse ele apontando para a seqüência de datas. - Há vários hiatos na história do seguro social, depois que o Senhor Devonshire saiu da prisão. Já vi registros assim antes. Esses vazios sugerem que ele cumpriu mais penas ou que estava usando nomes falsos.

- Santo Deus! Phil Calhoun disse que ficaríamos surpresos com o que iria aparecer. Sem dúvida estava certo.

Meia hora depois, Angela e Robert saíram do escritório de Peter com várias caixas cheias de papel de computador. Dirigiram-se ao escritório de Robert.

O espaço de trabalho de Robert se parecia com o de Peter, em termos de equipamento. A única diferença significativa era que Robert tinha uma janela dando para o Rio Charles.

- Vamos conseguir algumas informações financeiras – disse ele enquanto se sentava diante de um dos terminais.

Em pouco tempo começavam a surgir dados na tela, como setivesse sido feito um furo numa represa.

Assim que as impressoras de Robert começaram a operar, páginas voaram para as bandejas com uma velocidade surpreendente.

- Estou pasma - admitiu Angela.-Nunca pensei que tanta informação pessoal pudesse ser obtida com tamanha facilidade.

- Só de brincadeira, vamos ver o que conseguimos sobre você - disse Robert. - Qual é o número do seu seguro social?

- Não, obrigada. Sabendo o tamanho da minha dívida, seria muito deprimente.

- Esta noite vou tentar conseguir mais material sobre os seus suspeitos. Algumas vezes, é mais fácil à noite, quando há menos tráfego eletrônico.

- Muitíssimo obrigada - agradeceu Angela enquanto tentava pegar as duas caixas de material.

- Acho melhor eu dar uma mãozinha - disse Robert.

Assim que o material estava no porta-malas, Angela deu um longo abraço em Robert.

- Obrigada de novo - disse e apertou-o com mais força. - Foi bom ver você.

Robert acenou enquanto Angela se distanciava. Ela observou a figura afastar-se no retrovisor. Fora bom vê-lo, a não ser pelo breve momento de desconforto assim que chegara. Agora estava ansiosa para mostrar todo esse material a David e Calhoun.

- Cheguei! - gritou Angela entrando pela porta dos fundos. Não ouvindo resposta, voltou para pegar a segunda caixa de informações. Ao retornar, a casa continuava silenciosa. Com um crescente sentimento de inquietação, ela atravessou a cozinha e a sala de jantar, a caminho da escada. Ficou espantada ao ver David lendo na sala íntima.

- Por que não me respondeu?

- Você disse que tinha chegado - disse David. - Não achei que isso exigisse resposta.

- Qual é o problema? - perguntou ela.

- Nada. Como foi o dia com o seu antigo namorado?

- Ah, então é isso? David encolheu os ombros.

- Para mim, é estranho você ter mantido silêncio sobre esse sujeito durante os últimos quatro anos em que moramos em Boston.

- David!-disse Angela com um toque de exasperação. Em seguida, aproximou-se e lançou-se no colo dele, envolvendo o seu pescoço com os braços. - Não quis fazer segredo sobre Robert. Se fosse assim, acha que teria falado nele agora? Não sabe que eu amo você e mais ninguém? - E beijou-o no nariz.

- Palavra?

- Palavra. Como está Nikki?

- Está bem. Cochilando. Ainda continua terrivelmente sentida por causa de Caroline. Mas fisicamente está ótima. E você, como foi?

- Você não vai acreditar. Venha!

Angela arrastou David até a cozinha e mostrou as caixas. Ele pegou algumas páginas e olhou.

- Você está certa. Não posso acreditar. Vamos demorar horas para ver tudo.

- É bom estarmos desempregados. Pelo menos temos bastante tempo.

- Fico feliz ao vê-la outra vez bem-humorada.

Fizeram juntos o jantar. Quando Nikki acordou, juntou-se a eles, apesar de ser difícil para ela se locomover, já que continuava com o equipamento intravenoso. Antes de se sentarem para comer, David ligou para o Doutor Pilsner. Juntos, decidiram que o soro de Nikki poderia ser retirado. Os antibióticos seriam tomados por via oral.

Durante o jantar, Angela falou sobre a necessidade de informarem aos pais sobre a sua situação profissional em Bartlet. Ambos estavam relutantes.

- Não sei por que está preocupada - questionou David. - Sua mãe e seu pai provavelmente vão comemorar. Eles nunca quiseram que viéssemos para cá.

- Esse é o problema. Vou subir pelas paredes quando eles começarem com o velho ”eu não disse?”.

Depois do jantar, enquanto Nikki assistia à televisão, David e Angela começaram a tarefa de examinar os dados obtidos por computador. David ficou cada vez mais espantado e pasmo com a riqueza de material acessível aos fanáticos da computação.

- Vamos levar dias - reclamou ele.

- Talvez devêssemos nos concentrar nos que têm ligações com o hospital. São só cinco.

- Boa idéia.

Como Angela, David achou as informações criminais as mais provocadoras. Ficou particularmente abalado pelas notícias de que Clyde Devonshire não somente cumprira pena por estupro, como também fora preso em Michigan por rondar a casa de Jack Kevorkian. Suicídio assistido e eutanásia compartilhavam algumas justificativas filosóficas. Imaginou se Clyde Devonshire não poderia ser o ”anjo da misericórdia”.

- Isto é interessante - disse Angela, que estava examinando o material do seguro social. - Todas essas cinco pessoas fizeram serviço militar, inclusive Claudette Maurice. É uma coincidência.

- Talvez seja por isso que todos têm tatuagens.

Angela assentiu. Lembrou-se do comentário de Robert sobre as tatuagens serem ritos de passagem.

Depois de ajudar Nikki em sua terapia respiratória, os dois a puseram na cama. Em seguida voltaram para baixo e trouxeram os impressos para a sala íntima. Começaram a folheá-los de novo, criando uma pilha separada para cada um dos funcionários do hospital.

- Eu esperava que Calhoun já houvesse telefonado - disse Angela. - Fiquei ansiosa para ter a opinião dele sobre essas informações, especialmente as referentes a Clyde Devonshire.

- Calhoun é um sujeito independente. Ele disse que ligaria quando tivesse algo para contar.

- Vou ligar para ele - disse Angela. - Nós temos coisas para contar.

Angela só conseguiu contato com a secretária eletrônica. Não deixou recado.

- Uma das coisas que me deixa surpreso - disse David quando Angela desligou - é a freqüência com que essas pessoas mudaram de emprego. - David estava examinando os dados do seguro social.

Angela aproximou-se e olhou por sobre seu ombro. Subitamente estendeu a mão e pegou um papel que David estava para colocar na pilha de Van Slyke.

- Olhe isto - disse ela, apontando para uma informação. - Van Slyke esteve na Marinha durante vinte e um meses.

- E daí?

- Não é incomum? Eu achava que o tempo mais curto na Marinha eram três anos.

- Eu não sabia.

- Vamos olhar o registro militar de Devonshire - disse ela folheando a pilha de Devonshire até encontrar a página desejada.

- Ele ficou quatro anos e meio.

- Meu Deus! - exclamou David.-Escute só isto: Joe Forbs declarou falência pessoal três vezes. Com esse tipo de história, como será que consegue um cartão de crédito? Mas ele tem. De cada vez, ele conseguiu todos os cartões novos em outra instituição.

Espantoso.

Às onze horas, David estava lutando para manter os olhos abertos.

Acho que preciso ir para a cama - disse, largando sobre a mesa os papéis que estava segurando.

Eu estava esperando que dissesse isso. Também estou exausta.

Subiram lado a lado, sentindo-se satisfeitos por terem conseguido tanto num só dia. Mas talvez não tivessem dormido tão bem se fizessem alguma idéia da tempestade que seu trabalho havia desencadeado.

 

DOMINGO, 31 DE OUTUBRO

O DIA DAS BRUXAS amanheceu claro e frio, com geada nas caretas de abóboras colocadas nas varandas e janelas. Nikki acordou sentindo-se fisicamente normal, e com a atmosfera festiva do feriado até mesmo seu humor melhorou bastante. Durante a semana, Angela fizera um estoque de doces e frutas para as crianças que batessem na porta.

Angela não sentiu interesse em ir à igreja. A idéia de tentar se adaptar à comunidade de Bartlet perdera a atratividade. David se ofereceu para levar todos ao Iron Horse Iin para o desjejum, mesmo eles não tendo ido à igreja, mas Angela preferiu ficar em casa.

Depois do desjejum, Nikki começou a se agitar, querendo pedir doces na vizinhança. Mas Angela não se entusiasmou. Estava preocupada em deixar Nikki sair no frio depois do último surto de congestão. Como concessão mútua, mandou David à cidade tentar comprar uma abóbora enquanto Nikki a ajudava a preparar a casa para as crianças que aparecessem na porta.

Angela fez com que Nikki enchesse uma grande saladeira até a borda com pequenas barras de chocolate. Nikki levou-a até o hall de entrada e colocou-a na mesa junto à porta.

Em seguida, Angela pediu a Nikki que começasse a fazer enfeites de papel colorido. Com Nikki feliz e ocupada, ela ligou para Robert Scali em Cambridge.

- Gostei de você ter ligado - disse Robert assim que ouviu a voz de Angela. – Consegui alguns dos dados financeiros que prometi.

- Agradeço seu empenho. Mas tenho outro pedido. Dá para conseguir registros militares?

- Agora você está forçando a barra. É muito mais difícil penetrar nos bancos de dados militares, como você pode imaginar. Acho que posso conseguir algumas informações gerais, mas duvido que consiga qualquer coisa confidencial, a não ser que a colega de Peter também tenha linha com o Pentágono. Mas duvido muito.

- Compreendo. Você disse exatamente o que eu pensei que diria.

- Não vamos desistir imediatamente. Vou consultar Peter. Ligo de volta dentro de alguns minutos.

Angela desligou e foi ver como Nikki estava se saindo. Ela havia cortado uma grande lua cor de laranja e agora estava recortando a silhueta de uma bruxa montada numa vassoura.

Angela ficou impressionada: nem ela nem David tinham talento artístico.

David retornou com uma abóbora enorme. Nikki ficou empolgada. Angela ajudou a espalhar jornais sobre a mesa da cozinha. Logo David e Nikki estavam absorvidos na tarefa de esculpir uma careta na abóbora. Angela ficou ajudando até que o telefone tocou. Era Robert ligando de volta.

- Más notícias - disse ele. - Gloria não pode ajudar com material do Pentágono. Mas eu pude conseguir algumas informações básicas. Vou mandar junto com este material fínanceiro adicional. Qual o número do seu fax?

- Nós não temos fax - disse Angela, sentindo-se culpada, como se ela e David não tivessem chegado aos anos noventa.

- Mas têm Modem no computador?

- Nós nem temos computador, só o videogame de Nikki. Mas vou imaginar um jeito de pegar o material. Enquanto isso, dá para dizer por que Van Slyke só ficou na Marinha durante vinte e quatro meses?

Houve uma pausa. Angela pôde ouvir Robert folheando os papéis.

- Aqui está - disse ele finalmente. - Van Slyke teve dispensa médica.

- Diz qual o motivo?

- Acho que não. Mas há algumas coisas interessantes aqui. Van Slyke foi para a escola de submarinos em New London, Connecticut, e depois para a escola de energia nuclear. Ele era um tripulante de submarino.

- Por que isso é interessante?

- Nem todo mundo vai para os submarinos - disse Robert. -Diz aqui que ele foi designado para o U.S.S. Kamehameha, perto de Guam.

- Que tipo de serviço Clyde Devonshire fez na Marinha?

Houve mais som de papel sendo folheado.

- Ele era marinheiro - disse Robert. Em seguida acrescentou: - Meu Deus, olhe só que coincidência!

- O quê? - perguntou Angela. Era frustrante não estar com os papéis na mão.

- Devonshire também teve dispensa médica. Tendo cumprido pena por estupro, eu imaginaria que fosse outra coisa.

- Isso parece ainda mais interessante do que Van Slyke ter ido para uma escola de submarinos - disse Angela.

Depois de agradecer de novo o empenho de Robert, Angela desligou. De volta à cozinha, onde David e Nikki estavam dando os toques finais na cara grotesca da abóbora, Ângela disse que Robert tinha mais material para eles, e que ela queria pegar. Também disse o que ficou sabendo sobre Devonshire e Van Slyke.

- Então os dois tiveram dispensa médica - disse David. Era óbvio que ele estava preocupado.

- O que você acha? - perguntou David a Nikki quando os dois se afastaram para observar o trabalho.

- Acho que está demais - disse Nikki. - Podemos colocar uma vela dentro?

- Sem dúvida.

- Você me ouviu, David?-perguntou Angela.

- Claro que sim.

David entregou uma vela a Nikki.

- Gostaria que pudéssemos descobrir os motivos para essas dispensas médicas – disse Angela.

- Aposto que sei como podemos - falou David. - É só conseguir alguém da Administração de Veteranos para pegar a informação nos bancos de dados. Eles certamente têm isso registrado.

- Boa idéia. Tem alguma sugestão sobre a pessoa a quem podemos pedir?

- Tenho uma pessoa na AV de Boston.

- Acha que ele faria esse favor para nós?

- Não é ele, é ela.

David mandou Nikki escavar uma pequena depressão dentro da abóbora, para prender a vela. Ela não estava conseguindo manter a vela de pé.

- Então, quem é essa amiga?-perguntou Angela.-Como você a conheceu?

- É uma oftalmologista - respondeu David, ainda supervisionando os esforços de Nikki para estabilizar a vela dentro da abóbora.

- Eu não me referi à especialidade dela. Como você a conheceu?

- Nós fizemos o segundo grau juntos. Namoramos no último ano.

- Há quanto tempo ela está na área de Boston? E qual é o nome dela? - Duas pessoas podem brincar desse jogo de ciúmes.

- O nome é Nicole Lungstrom. Ela veio para Boston no fim do ano passado.

- Nunca ouvi você falar dela antes. Como sabe que ela veio para a cidade?

- Ela ligou para mim, no hospital.-David deu um tapinha de parabéns em Nikki quando a vela finalmente se estabilizou. Nikki correu para pegar fósforos. David voltou sua atenção para Angela.

- Então você esteve com ela depois que ela veio para Boston?

- Almoçamos uma vez, e só. Eu disse que era melhor a gente não se ver porque ela tinha esperanças românticas. Nós nos separamos como amigos.

- Sério?

- Sério.

- Acha que se você ligar, aparecendo do nada, ela vai ajudar?

- Para dizer a verdade, duvido. Se quisermos aproveitar o cargo dela na AV, acho que eu devo ir lá. Não há como ligar e pedir que ela viole regras confidenciais pelo telefone. Além disso, é melhor explicar pessoalmente toda essa história sórdida.

- Quando você iria?

- Hoje. Primeiro ligo para ver se ela está disponível. Depois vou. Posso até parar no MIT e pegar o material com o Robert. O que você acha?

Angela mordeu a parte interna do lábio enquanto pensava. Ficou surpresa ao sentir tamanho ciúme. Agora sabia como David se sentia. Sacudiu a cabeça e suspirou.

- Ligue para ela.

Enquanto Angela limpava a bagunça deixada pela abóbora, David foi até a sala íntima e ligou para Nicole Lungstrom. Angela pôde ouvir trechos da conversa, mesmo tentando não fazê-lo. Incomodou-a que David parecesse tão animado. Alguns minutos depois, ele voltou para a cozinha.

- Está tudo resolvido - disse David. - Nicole está me esperando dentro de duas horas. Por sorte, ela está de plantão no hospital.

- Ela é loura? - perguntou Angela.

- É.

- Era o que eu temia.

Nikki acendeu a vela dentro da abóbora e David levou-a para a varanda da frente. Deixou Nikki decidir onde deveria ficar.

- Está legal - disse Nikki assim que a abóbora foi posicionada.

De volta a casa, David pediu que Angela ligasse para Robert Scali, dizendo que ele passaria para pegar o material. Enquanto subia para se preparar para a viagem a Boston, Ângela telefonou.

- Vai ser interessante - disse Robert assim que Angela explicou o motivo da ligação.

Angela não soube como responder. Simplesmente agradeceu mais uma vez pela ajuda e desligou. Em seguida tentou ligar para Calhoun. Mais uma vez só encontrou a secretária eletrônica.

David desceu vestido com seu blazer azul e calças cinza. Estava bonito.

- Precisava ir tão arrumado? - perguntou ela.

- Eu estou indo ao hospital da AV. Não vou de jeans e camiseta.

- Tentei outra vez ligar para Calhoun. Continua sem ninguém em casa. Ele deve ter chegado tarde e saído cedo. Está realmente envolvido na investigação.

- Você deixou recado?

- Não.

- Por que não?

- Odeio secretárias eletrônicas. Além do mais, ele deve saber que nós queremos notícias.

- Acho que você deveria deixar um recado.

- O que devemos fazer se não tivermos notícias dele até a noite? Ir à polícia?

- Não sei. A idéia de procurar Robertson por qualquer motivo não me empolga.

Depois de observar David saindo de carro, Angela voltou toda a atenção para Nikki. Mais do que qualquer coisa, queria que a filha aproveitasse o dia.

Motivado mais pela curiosidade do que por qualquer outra coisa, David foi primeiro encontrar-se com Robert Scali. Esperando que o sujeito tivesse cara de cu-de-ferro, ficou de crista baixa ao ver que Robert era um homem bonito, de rosto bronzeado e porte atlético.

Para piorar as coisas, parecia genuinamente boa pessoa.

Cumprimentaram-se. David percebeu que Robert também o estava medindo.

- Quero agradecer pela ajuda - disse David.

- Para que servem os amigos? - Robert passou-lhe outra caixa cheia de informações.

- Há uma coisa nova, na parte financeira, que eu queria mencionar - disse Robert. - Descobri que Werner Van Slyke abriu várias contas bancárias novas no ano passado, viajando para Albany e aqui para Boston. Eu não tinha conseguido essa informação ontem porque estava mais preocupado com cartões de crédito e dívidas.

- Isso é estranho. É muito dinheiro?

- Menos de dez mil em cada conta, provavelmente para evitar a obrigatoriedade que os bancos têm de informar sobre movimentos acima desse valor.

- Mesmo assim, é muito dinheiro para um cara que dirige o departamento de manutenção de um hospital comunitário.

- Hoje em dia, isso provavelmente significa que o sujeito está transando com drogas. Mas se for isso, ele não deveria estar colocando o dinheiro no banco. Deveria estar escondendo debaixo do colchão. É a norma.

- Alguns de meus pacientes jovens contaram que é fácil conseguir maconha no ginásio local - explicou David.

- Pois então. Além de tudo que estão resolvendo, talvez você e Angela possam fazer sua parte para ajudar a livrar a América das drogas.

David riu e agradeceu outra vez a ajuda de Robert.

- Avisem quando aparecerem na cidade - pediu Robert. - Há um ótimo restaurante aqui em Cambridge, chamado Anago Bistro. Já fica valendo o convite.

- Sem dúvida - disse David enquanto acenava. No caminho para o carro, duvidou se iria sentir-se confortável com os três juntos.

Depois de colocar a caixa no porta-malas, David atravessou o Rio Charles e pegou aFenway. Demorou apenas vinte minutos para chegar ao hospital da AV; na tarde de sábado havia pouco trânsito.

Caminhando até o hospital, David pensou em como era irônico o modo como as vidas podiam se cruzar depois de anos de separação. Ele tinha namorado Nicole Lungstrom durante quase um ano. Mas depois da formatura do segundo grau fora para a Costa Oeste cursar a faculdade, a escola de medicina e fazer residência. Num determinado momento, fora informado por amigos que ela casara. Quando Nicole telefonara, no ano anterior, ficara sabendo que ela se divorciara.

Pediu que chamassem Nicole pelo bipe e esperou-a no saguão. Quando ela apareceu e os dois se cumprimentaram, ambos ficaram sem jeito. Rapidamente David veio a saber que havia outro homem na vida de Nicole. Ficou satisfeito e começou a relaxar.

Para que tivessem privacidade, Nicole levou-o até a sala dos médicos. Assim que chegaram, ele contou toda a desastrosa história da estada em Bartlet. Em seguida disse o que queria.

- O que você acha? - perguntou David. - Dá para ver se esse tipo de informação está disponível?

- Isso vai ficar só entre nós?

- Dou minha palavra de honra. A não ser Angela, claro.

- Presumi isso - disse Nicole. Ela avaliou a situação durante alguns minutos e em seguida assentiu. - Certo. Se alguém está matando pacientes, acho que o fim justifica os meios, pelo menos neste caso.

David entregou a Nicole a pequena lista de pessoas: Devonshire, Van Slyke, Forbs, Ullhof e Maurice.

- Achei que só estava interessado em dois - disse Nicole.

- Sabemos que essas cinco pessoas estiveram no serviço militar. E as cinco têm tatuagens. Seria bom verificar todas.

Usando os números do seguro social e as datas de nascimento, Nicole obteve os números das identidades militares de cada pessoa. Em seguida começou a pedir os registros. Houve uma surpresa imediata. Forbes e Ullhof também tiveram dispensas médicas. Somente Maurice saíra normalmente.

Os diagnósticos para a dispensa de Forbs e Ullhof eram comuns. Forbs fora dispensado por problemas crônicos de coluna, enquanto Ullhof saíra por prostatite crônica não-específica.

As dispensas de Van Slyke e Devonshire não tinham sido tão inócuas. A de Van Slyke foi a mais complicada. Nicole teve de passar página após página de material.

Van Slyke fora dispensado com um diagnóstico psiquiátrico de ”desordem esquizo-afetiva acrescida de mania e forte imaginação paranóica quando submetido a tensão...”

- Meu Deus - disse David.-Não sei se entendo isso. Você entende?

- Sou oftalmologista. Mas acho que a tradução é que o sujeito é esquizofrênico com um grande componente maníaco.

David olhou para Nicole e ergueu as sobrancelhas.

- Parece que você sabe mais do que eu. Estou impressionado.

- Eu me interessei por psiquiatria numa certa época. Esse tal de Van Slyke parece o tipo de pessoa de quem eu manteria distância. Mas, com toda a sua perturbação mental, olhe a formação que ele teve: cursou até a escola de energia nuclear. Ouvi dizer que é um lugar muito rigoroso.

Nicole continuou fazendo o material passar na tela.

- Espere. - Pondo a mão no ombro de Nicole, David apontou para uma passagem que descrevia um incidente em que Van Slyke tivera um colapso psicológico enquanto participava de uma patrulha num submarino nuclear. Na época, ele trabalhava como auxiliar de maquinista nuclear no departamento de engenharia.

David leu em voz alta:

- ”Durante a primeira metade da patrulha, a mania do paciente esteve aparente e progressiva. Ele exibiu um crescente mau humor que levou a avaliações erradas e a sentimentos de hostilidade, beligerância e, em última instância, persistentes pensamentos paranóicos, achando que estava sendo ridicularizado pelo resto da tripulação e afetado pelos computadores e pela radiação. Sua paranóia chegou a um clímax quando atacou o capitão e teve de ser contido.”

- Que coisa! - disse Nicole. - Espero não topar com ele na clínica.

- Ele não é tão pirado como isso faz parecer. Cheguei a falar com ele em várias ocasiões. Não é sociável nem amigável, mas faz o seu trabalho.

- Eu diria que ele é uma bomba-relógio.

- Ficar paranóico com radiação num submarino nuclear não é tanta loucura. Se eu tivesse de ficar num submarino nuclear, iria subir pelas paredes só de estar perto de um reator.

- Há mais coisas aqui - disse Nicole e leu em voz alta: - ”Van Slyke tem uma história de pessoa solitária. Foi criado por um pai agressivo e alcoólatra e por uma mãe medrosa e lamurienta. O nome de solteira da mãe era Traynor.”

- Já ouvi parte da história - disse David.-Harold Traynor, o tio do sujeito, é chairman da diretoria do hospital.

- Há outra coisa interessante. - Nicole leu em voz alta: - ”O paciente mostrou tendência a idealizar certas figuras de autoridade, e em seguida a se voltar contra elas à menor provocação, real ou imaginária. Esse padrão de comportamento ocorreu tanto antes de entrar para o serviço militar quanto no período em que esteve na Marinha. - Nicole ergueu os olhos para David. - Eu certamente não gostaria de ser chefe desse cara.

Passando para Devonshire, encontraram menos material, mas quase tão interessante quanto o anterior e até mais significativo para David. Clyde Devonshire fora tratado de doenças sexualmente transmissíveis em San Diego, em várias ocasiões. Também tivera um surto de hepatite B. Finalmente apresentando resultado positivo num teste de HIV.

- Isso pode ser realmente importante - disse David batendo na tela do computador e fazendo referência ao vírus da AIDS. - O fato de Clyde Devonshire ter uma doença potencialmente terminal pode ser a chave.

- Espero ter ajudado - disse Nicole.

- Eu poderia conseguir cópias desses registros?

- Isso pode demorar um pouco. O departamento de registros médicos fecha aos domingos. Preciso de uma chave para ter acesso a uma impressora.

- Eu espero. Mas primeiro gostaria de usar o telefone.

Depois de muita reclamação e algumas lágrimas, Nikki finalmente aceitou o fato de que não seria bom para ela sair pela vizinhança pedindo doces. O dia que começara tão claro tinha ficado cinzento. Havia uma nítida ameaça de chuva. Mesmo assim, Nikki vestiu sua fantasia medonha e divertiu-se enormemente indo até a porta e assustando o punhado de crianças que aparecera.

Angela ainda odiava aquela fantasia, mas não disse nada. Não iria estragar a diversão de Nikki.

Enquanto Nikki espreitava junto à porta, esperando outras crianças, Angela tentou mais uma vez se comunicar com Calhoun. De novo foi atendida pela secretária eletrônica. À tarde havia deixado um recado, como David sugerira, mas Calhoun não ligou de volta.

Angela começou a se preocupar. Olhando através da janela para as nuvens escuras que se acumulavam, começou a se preocupar também com David. Embora ele houvesse ligado há várias horas para dizer que se atrasaria um pouco, ela achou que ele já deveria ter chegado.

Meia hora depois, Nikki já pensava em desistir. Estava ficando tarde para que viessem mais crianças. Ninguém aparecia há algum tempo.

Angela estava pensando em fazer o jantar quando a campainha tocou. Nikki já tinha subido para tomar banho, de modo que Angela foi até a porta da frente. Enquanto passava perto da mesa do hall, pegou a tigela cheia de chocolates. Através da janela lateral vislumbrou um homem com cabeça de réptil.

Destrancou a porta, abriu-a e começou a dizer algo sobre a fantasia incrível, quando percebeu que o homem não estava acompanhado por nenhuma criança.

Antes que ela pudesse reagir, ele entrou na sala, agarrou-a pelo pescoço com o braço esquerdo e imobilizou-a. Sua mão direita, enluvada, cobriu a boca de Angela, impedindo um grito. Angela deixou a tigela de chocolate cair no chão de mármore, onde ela se espatifou em centenas de pedaços.

Lutou em vão com o sujeito, tentando desesperadamente se libertar. Mas ele era forte, e prendeu-a com um aperto que parecia de um torno. Os únicos ruídos que ela conseguia fazer eram grunhidos abafados.

- Quieta, senão eu te mato! - disse o homem numa voz rouca e meio sussurrada. Em seguida deu um repelão vigoroso na cabeça de Angela; uma dor súbita atravessou suas costas. Ela parou de lutar.

O sujeito olhou a sala ao redor e esticou-se para ver o corredor na direção da cozinha.

- Onde está o seu marido?

Angela não podia responder. Estava começando a se sentir tonta, como se fosse desmaiar.

- Vou soltar você - rugiu o sujeito. - Se gritar, eu te dou um tiro, entendeu? - Ele deu outro repelão na cabeça de Angela, provocando lágrimas de dor.

Como prometera, o sujeito soltou-a. Ela deu um passo atrás, desequilibrando-se, mas se controlou. Seu coração havia disparado. Sabia que Nikki estava lá em cima na banheira.

Ferrugem, infelizmente, se encontrava no celeiro. Ele se mostrara inconveniente com as crianças fantasiadas.

Angela olhou para o atacante. Sua máscara de réptil era grotesca. As escamas pareciam quase reais. Uma língua vermelha e bifurcada pendia da boca cheia de dentes serrilhados.

Angela tentou pensar. O que deveria fazer? O que poderia fazer? Percebeu que o homem tinha um revólver na mão. «

- Meu marido não está em casa - conseguiu finalmente dizer. Sua voz estava rouca. A chave de braço tinha comprimido sua garganta.

- E sua filha doente?

- Saiu para pedir doces com amigos.

- Quando seu marido vai voltar?

Angela hesitou, sem saber o que era melhor dizer. O sujeito agarrou o seu braço e deu um puxão. A unha do polegar enterrou em sua carne.

- Eu fiz uma pergunta.

- Logo - conseguiu dizer Angela.

- Bom. Vamos esperar. Enquanto isso, vamos dar uma olhada na casa e garantir que você não está mentindo.

- Eu não iria mentir - disse Angela enquanto era empurrada para a sala íntima.

Nikki não estava na banheira. Já saíra há algum tempo. Quando a campainha tocara ela correra para acabar de se vestir e colocar a máscara. Esperava descer a escada antes que as crianças tivessem ido embora. Queria ver as fantasias e surpreendê-los com a sua. Tinha acabado de chegar ao topo da escada quando a tigela se espatifara, fazendo-a parar. Ficara olhando impotente enquanto a mãe lutava com um sujeito que usava máscara de serpente.

Depois do choque inicial, disparou pelo corredor até o quarto principal e pegou o telefone.

Mas não ouviu som para discar. Alinha estava muda. Voltando pelo corredor, espreitou pela borda da escada, justo a tempo de ver sua mãe e o homem desaparecendo na sala íntima.

Avançando até o topo da escada, olhou para baixo. Aespingarda estava encostada no balaústre inferior.

Teve de pular para trás, escondendo-se, quando Angela e o homem-réptil reapareceram saindo da sala íntima. Podia ouvir seus passos esmagando os cacos de vidro da tigela.

Depois os passos pararam. Nikki só pôde ouvir as vozes abafadas.

Forçou-se a espreitar de novo pela borda da escada. Viu a mãe e o homem reaparecerem brevemente, saindo da sala de estar, antes de desaparecerem pelo corredor central na direção da cozinha.

Inclinou-se para a frente e outra vez olhou na direção da espingarda. Ainda estava lá. Nikki começou a descer, mas, por mais devagar que andasse, cada degrau estalava sob seus escassos trinta e dois quilos.

Estava apenas na metade quando ouviu Angela e o homem voltando pelo corredor. Em pânico, voltou a correr escada acima, chegando até o meio do corredor. Parou, pretendendo voltar ao topo da escada e depois descer assim que fosse seguro. Mas, para seu horror, a mãe e o homem começaram a subir a escada.

Nikki correu pelo resto do corredor e entrou no quarto principal. Enfiou-se num dos closets. Na parte de trás havia uma segunda porta que dava num pequeno corredor que se ligava ao celeiro, levando a vários cómodos que serviam como depósito. No fim do corredor havia uma estreita escada em espiral que descia até a saleta dos fundos.

Nikki correu escada abaixo, depois entrou na cozinha e passou pelo corredor do térreo, chegando finalmente ao hall. Agarrou a espingarda. Checou para ver se havia um cartucho no pente, como a mãe lhe ensinara. Havia. Soltou a trava de segurança.

A excitação de Nikki logo se transformou em confusão. Agora que estava com a espingarda, não sabia o que fazer. Sua mãe explicara que a arma soltava bolotas de chumbo num arco amplo, Não precisava mirar com muito cuidado; ela acertaria qualquer coisa para a qual fosse apontada. O problema era a mãe. Nikki não queria acertá-la.

Teve pouco tempo para avaliar seu dilema. Quase imediatamente ouviu o intruso marchando com a mãe pelo corredor de cima e descendo a escada principal. Recuou na direção da cozinha. Não sabia se deveria se esconder ou correr para procurar um dos vizinhos.

Antes que pudesse decidir, sua mãe apareceu no hall, tropeçando nos últimos degraus. Aparentemente fora empurrada. Logo atrás estava o homem-réptil. Diante dos olhos de Nikki, o homem deu outro empurrão cruel em Angela, lançando-a através da arcada que levava à sala de visitas. Na mão direita ele tinha um revólver.

O homem foi atrás de sua mãe. Estava a cerca de seis metros de Nikki, que segurava a espingarda junto ao peito. Ela estava com a mão esquerda ao redor do cano, e a direita envolvendo a coronha, com o dedo no gatilho.

O intruso virou-se brevemente para encarar Nikki enquanto andava, e de repente pareceu tomar uma decisão. Começou a levantar o revólver na direção dela. Nikki fechou os olhos e apertou o gatilho.

No corredor estreito, o som do tiro foi horrendo. O coice lançou Nikki para trás, e mesmo assim ela continuou teimosamente agarrada à espingarda. Recuperando o equilíbrio, usou toda a força para engatilhar a arma. Seus ouvidos zumbiam, ela não conseguiu ouvir o clique mecânico da espingarda quando outro cartucho entrou na posição e o vazio foi ejetado.

De súbito, Angela apareceu no meio da fumaça, vindo da direção da cozinha.

Imediatamente depois do tiro, ela correra da sala para a cozinha, dobrando e voltando pelo corredor principal. Arrancou a espingarda da mão de Nikki, que ficou feliz em entregá-la.

Vindo da sala íntima, ouviram o som de uma porta se abrindo, e depois o silêncio.

- Você está bem? - sussurrou Angela para Nikki.

- Acho que sim.

Angela ajudou Nikki a ficar de pé, e depois fez um gesto para que ela a seguisse. Lentamente, avançaram pelo hall. Atravessaram o arco que dava na sala de estar, vendo os danos causados pelo tiro. Várias bolotas de chumbo estavam encravadas na lateral do arco.

O resto da carga acabara com mais quatro vidros da janela da sala de estar. A mesma que fora danificada pelo tijolo.

Em seguida rodearam a base da escada, tentando evitar os vidros quebrados. Enquanto se aproximavam do arco que levava à sala íntima, sentiram uma corrente de ar frio. Angela manteve a espingarda apontada diante do corpo. Entrando na sala ao mesmo tempo, as duas viram a fonte da corrente de ar: uma das portas de balcão, que davam para o terraço, estava aberta, balançando devagar com a brisa suave.

Com Nikki agarrada em um dos passadores de cinto de Angela, as duas avançaram na direção da porta. Olharam para a linha escura das árvores que faziam o limite da propriedade. Por alguns instantes, ficaram absolutamente imóveis, tentando ouvir qualquer som. Tudo que escutaram foi o latido distante de um cão, seguido pela resposta de Ferrugem no celeiro. Não havia ninguém à vista.

Angela trancou a porta. Ainda agarrando a espingarda numa das mãos, curvou-se e abraçou Nikki com toda a força.

- Você é uma heroína - falou. - Espere até eu contar ao seu pai.

- Eu não sabia o que fazer. Não quis acertar a janela.

- A janela não importa. Você foi maravilhosa.

Angela foi até o telefone e surpreendeu-se ao ver que estava mudo.

- O do seu quarto também não está funcionando - disse Nikki. Angela estremeceu. O intruso tivera primeiro o trabalho de cortar o fio. Ela odiava pensar no que poderia ter acontecido se não fosse Nikki.

- Precisamos ter certeza de que o homem não está mais aqui - disse ela. - Venha, vamos dar uma busca na casa.

Juntas atravessaram a sala de jantar e a cozinha. Checaram a saleta dos fundos e as duas pequenas despensas. Voltaram à cozinha e seguiram pelo corredor até o hall.

Enquanto Angela pensava se deveria checar o andar de cima, a campainha tocou. As duas saltaram.

Olhando pelas janelas que ficavam ao lado da porta, Angela e Nikki viram um grupo de crianças vestidas de bruxas e fantasmas, paradas na varanda.

David virou na entrada de carros. Ficou surpreso ao ver todas as luzes da casa acesas. Em seguida viu um grupo de adolescentes saltar da varanda, correr pelo gramado e desaparecer na direção das árvores.

Parou o carro. Podia ver que a porta da frente estava toda suja de ovos. As janelas estavam emporcalhadas e a cabeça de abóbora fora esmagada. Chegou a pensar em correr atrás dos moleques, mas decidiu que eram mínimas as chances de encontrá-los no escuro.

- Moleques desgraçados! - praguejou em voz alta. Em seguida percebeu que mais uma parte da janela da sala de estar fora quebrada. - Minha nossa! Isso está indo longe demais.

Saiu do carro e foi até a porta da frente. O lugar estava uma bagunça. Tomates e ovos haviam sido jogados contra as paredes.

Somente quando encontrou os vidros quebrados e os doces espalhados no chão do hall, David ficou realmente preocupado. Sentindo um medo súbito pela família, gritou por Angela e Nikki.

Quase imediatamente, as duas apareceram no topo da escada. Angela estava segurando a espingarda. Nikki começou a chorar e correu escada abaixo até os braços de David.

- Ele estava com um revólver. - Nikki conseguiu dizer por entre soluços.

- Quem estava com um revólver? - perguntou David com alarme crescente. - O que aconteceu?

Angela desceu parte da escada e sentou-se.

- Tivemos um visitante.

- Quem?

- Não sei. Estava usando uma máscara de Dia das Bruxas e tinha um revólver.

- Meu Deus! Nunca deveria ter deixado vocês sozinhas.

- Não foi culpa sua. Mas você está mais atrasado do que disse quando ligou.

- Foi mais demorado do que pensei, para conseguir cópias dos registros médicos. Tentei ligar enquanto vinha, mas o telefone estava sempre ocupado. Quando chequei com a telefonista, fiquei sabendo que estava com defeito.

- Acho que o fio foi cortado. Provavelmente pelo intruso.

- Você chamou a polícia?

- Como íamos chamar a polícia sem telefone? - disse Angela rispidamente.

- Desculpe, eu não estou raciocinando.

- A única coisa que fizemos depois que ele fugiu foi nos esconder lá em cima. Ficamos com pavor de que ele voltasse.

- Onde está Ferrugem?

- Coloquei-o no celeiro, porque ele ficava agitado demais com as crianças que apareciam na porta.

- Vou buscar o telefone celular no carro e aproveito para pegar Ferrugem - disse David dando um último aperto no ombro de Nikki.

Do lado de fora, viu o mesmo grupo de adolescentes correndo.

- É melhor ficarem longe daqui! - gritou David para a noite. Angela e Nikki estavam esperando na cozinha quando ele voltou com o telefone e com Ferrugem.

- Há uma matilha de adolescentes lá fora - disse David. - Fizeram uma tremenda bagunça na varanda da frente.

- Acho que foi porque não atendemos à campainha - explicou Angela.-Eles ficaram sem doces. Por isso resolveram pregar uma peça. Pode acreditar, comparado com o que enfrentamos, isso não é nada.

- Não foi bem assim: eles quebraram mais alguns vidros da janela da sala.

- Foi Nikki quem quebrou a janela - disse Angela, pegando a filha e abraçando-a.-Ela é nossa heroína. - Em seguida contou exatamente o que havia acontecido.

David mal pôde acreditar no perigo pelo qual sua família passara. Quando pensou no que poderia ter acontecido... Não suportou pensar nas possibilidades horríveis. Quando outra saraivada de ovos se chocou contra a porta da frente, sua raiva explodiu. De volta ao hall, escancarou a porta, pretendendo agarrar alguns garotos. Angela segurou-o. Nikki agarrou Ferrugem.

- Eles não têm importância - disse Angela com lágrimas nos olhos.

Vendo que sua mulher estava para desmoronar, David fechou a porta. Não teve dúvidas quanto às prioridades. Consolou Angela da melhor maneira que pôde. Sabia que não resolveria nada correndo atrás dos garotos; estaria somente liberando a raiva, numa tentativa de diminuir sua culpa.

Puxou Nikki para perto e foi sentar-se com as duas no sofá da sala íntima. Assim que Angela se acalmou, usou o telefone celular para chamar a polícia. Enquanto esperava que chegassem, xingou-se por ter deixado Angela e Nikki sozinhas.

- Também é culpa minha - disse Angela. - Eu deveria ter previsto que estávamos correndo perigo. - Em seguida ela admitiu que a tentativa de estupro fora possivelmente um atentado contra a sua vida. Disse que havia contado isso a Calhoun e que ele concordara com a hipótese.

- Por que não me contou? - perguntou David.

- Eu deveria ter contado. Desculpe.

- No mínimo estamos aprendendo que não devemos guardar segredo um do outro. E Calhoun? Teve notícias dele?

- Não. Deixei um recado, como você sugeriu. O que vamos fazer?

- Não sei. - David levantou-se. - Enquanto isso, vamos olhar aquela janela quebrada.

A polícia não estava com pressa. Levou quase quarenta e cinco minutos para chegar. Para a mortificação de David e Angela, o próprio Robertson apareceu, totalmente uniformizado. Estava acompanhado por um auxiliar, Carl Hobson.

Enquanto atravessava a porta da frente, Robertson olhou a bagunça na varanda e percebeu a janela quebrada. Estava segurando uma prancheta.

- Vocês tiveram um probleminha? - perguntou.

- Não foi um probleminha - disse Angela. - Um problemão. -Em seguida, descreveu o que acontecera desde o momento em que o homem tinha aparecido até a chegada de David.

Robertson, obviamente, estava com pouca paciência para a história de Angela. Ficou se mexendo, impaciente e revirando os olhos na direção do auxiliar, enquanto ela explicava tudo que acontecera.

- Bom, e a senhora tem certeza de que era um revólver de verdade?

- Claro que era! - respondeu Angela exasperada.

- Talvez fosse um revólver de brinquedo, parte de uma fantasia. Tem certeza de que não era apenas uma brincadeira de Dia das Bruxas? - Ele piscou para Hobson.

- Só um minutinho - David intrometeu-se na conversa. - Não gosto do que estou ouvindo. Tenho a nítida impressão de que você não está levando isto a sério. O cara tinha um revólver. Aconteceu uma violência aqui. Droga, uma parte da janela chegou a ser quebrada.

- Não grite comigo - disse Robertson. - Sua bondosa esposa já admitiu que sua querida filha atirou na janela, e não no pretenso invasor. E vou lhe dizer outra coisa: há uma lei contra atirar com uma espingarda dentro dos limites da cidade, a não ser que isso seja feito nas imediações do depósito de lixo.

- Saia já da minha casa! - rugiu David.

- Com todo o prazer - disse Robertson, fazendo um gesto para que Hobson o acompanhasse. Junto à porta, ele parou. - Deixem-me dar um conselho a vocês. Vocês não são uma família popular nesta cidade, e a coisa pode ficar muito pior se atirarem em alguma criança inocente que venha pedir um doce. Que Deus os ajude se tiverem atirado em algum garoto.

David correu até a porta e bateu-a atrás de Robertson assim que o imbecil passou por ela.

- Cretino! Bom, não temos mais nenhuma ilusão quanto à polícia local. Não podemos esperar nenhuma ajuda deles.

Angela abraçou o próprio corpo e lutou contra novas lágrimas.

- Que confusão - disse, sacudindo a cabeça. David aproximou-se para consolá-la.

Também precisou acalmar Nikki, que estava chocada pela discussão ríspida entre seu pai e o chefe de polícia.

- Você acha que devemos ficar aqui esta noite?

- Para onde podemos ir a esta hora? - indagou David. - Acho que devemos ficar. Podemos garantir que não apareça nenhuma visita.

- Acho que você está certo - concordou Angela num suspiro. - Sei que não estou raciocinando direito. Nunca fiquei tão perturbada.

- Está com fome? - perguntou David. Angela encolheu os ombros.

- Não. Mas eu tinha começado a preparar a janta antes que isso tudo acontecesse.

- Bom, eu estou morrendo de fome - disse David. - Não almocei.

- Certo. Nikki e eu vamos preparar alguma coisa.

David ligou para a companhia telefônica e disse que o telefone estava com defeito. Quando mencionou que era médico, eles concordaram em mandar um técnico o quanto antes. Em seguida, foi até o celeiro e pegou uma gambiarra com lâmpadas. Quando terminou o trabalho, todo o exterior da casa estava brilhantemente iluminado.

O técnico da telefônica chegou enquanto eles estavam comendo. Rapidamente viu que o problema estava do lado de fora; o fio fora cortado no ponto em que entrava na casa.

Enquanto o técnico trabalhava, os Wilsons continuaram o jantar.

- Odeio o Dia das Bruxas - disse o técnico quando chegou à porta e anunciou que o telefone estava consertado. David agradeceu-lhe por ter vindo num domingo à noite.

Depois do jantar, David partiu para outras medidas de segurança. Primeiro pregou tábuas sobre parte da janela da sala de visitas. Em seguida percorreu todas as portas e janelas, certificando-se de que estavam fechadas.

Apesar de ter sido exasperante, a visita da polícia teve um efeito benéfico. Depois de sua chegada, os adolescentes desistiram da campanha. Aparentemente, a visão do carro tinha bastado para assustá-los. Às nove da noite, os Wilsons se reuniram no quarto de Nikki para fazer a terapia respiratória.

Depois que Nikki foi dormir, David e Angela foram à sala íntima examinar o material que ele trouxera de Boston. Como segurança adicional, David encorajou Ferrugem a sair do quarto de Nikki, onde ele costumava dormir, e a ficar com eles na sala íntima. Queria aproveitar a audição sensível do cachorro. Também manteve a espingarda à mão.

- Sabe o que eu acho? - perguntou Angela assim que David abriu o envelope que continha os registros médicos. - Acho que o sujeito que veio aqui é a mesma pessoa que está por trás das eutanásias e do assassinato de Hodges. Estou convicta. É a única coisa que faz sentido.

- Concordo. E acho que o melhor candidato é Clyde Devonshire. Leia isto.

David entregou a Angela os registros de Devonshire. Ela examinou-os rapidamente.

- Minha nossa! - disse Angela ao chegar perto do final. - Ele é HIV positivo.

David assentiu.

- Significa que tem uma doença potencialmente terminal. Acho que temos um sério suspeito, especialmente quando você combina a condição do HIV com os outros fatos, como o de ser preso perto da casa de Jack Kevorkian. Obviamente ele tem um forte interesse por auxílio ao suicídio. Quem sabe? Esse interesse pode se estender para a eutanásia. Ele é enfermeiro, de modo que tem o conhecimento médico, e trabalha no hospital, o que lhe dá acesso a qualquer área. E, se isso não bastasse, ele tem uma história de estupro. Pode ser o estuprador com máscara de esquiador.

Angela assentiu, mas estava perturbada.

- O único problema com isso é que é completamente circunstancial. Você conheceria Clyde Devonshire se o visse?

- Não - admitiu David.

- Imagino se conseguiríamos identificá-lo pela altura ou pelo som da voz. Duvido. Nunca teria certeza completa.

- Bom, vamos em frente. O próximo candidato é Werner Van Slyke. Dê uma olhada na história dele.-David entregou a Angela o registro de Van Slyke. Era consideravelmente mais grosso que o de Devonshire.

- Nossa! - exclamou Angela ao terminar. - Quanta coisa a gente não conhece sobre as pessoas!

- O que você acha dele como suspeito?

- É uma história psiquiátrica interessante. Mas não acho que seja ele. Desordem esquizo-afetiva aliada a mania e paranóia não é a mesma coisa que psicose anti-social.

- Mas não é preciso ser anti-social para ter idéias equivocadas sobre eutanásia.

- É verdade. Mas só porque uma pessoa tem doença mental, isso não significa que seja criminosa. Se Van Slyke tivesse uma história criminosa, ou de comportamento violento, seria diferente. Mas, como não tem, não creio que seja um candidato tão forte a suspeito. Além do mais, ele pode saber sobre submarinos nucleares, mas não tem conhecimento sofisticado de medicina. Como poderia estar matando pacientes empregando um método que nem você pode detectar, se não tiver uma formação especializada de medicina?

- Concordo. Mas veja este material que peguei hoje com Robert.

David entregou a Angela a lista das várias contas bancárias de Van Slyke em Albany e Boston.

- Onde será que ele está conseguindo esse dinheiro? Acha que tem a ver com as coisas que estão nos preocupando?

David encolheu os ombros.

- É uma boa pergunta. Robert acha que não. Ele sugeriu que Van Slyke está traficando drogas. Nós sabemos que existe maconha na cidade, de modo que é possível.

Angela assentiu.

- Se não for isso, é um mau presságio - disse David.

- Porquê?

- Suponhamos que Van Slyke seja o assassino dessas pessoas. Se ele não estiver vendendo drogas, pode estar sendo pago por cada morte.

- Que idéia horrorosa! Mas, se fosse esse o caso, estaríamos de volta à estaca zero. Continuaríamos sem saber quem está por trás. Quem estaria pagando e por quê?

- Continuo achando que estamos diante de um assassino misericordioso equivocado - disse David. - Todas as vítimas tinham doenças potencialmente fatais.

- Acho que estamos especulando muito. Temos informações demais e estamos forçando a barra para colocá-las na mesma teoria. Provavelmente a maior parte dessas informações está relacionada.

- Você deve estar certa. Mas acabo de ter uma idéia. Se fôssemos determinar que Van Slyke é o culpado, seus problemas psicológicos poderiam agir em nosso favor.

- O que quer dizer?

- Van Slyke teve um colapso psicológico sob tensão, durante uma patrulha submarina. Eu também poderia ter tido. De qualquer modo, quando ele sofreu esse colapso psicológico, teve sintomas paranóicos e voltou-se contra as figuras de autoridade. A história dele indica que isso já acontecera antes. Se nós o apertássemos, tenho certeza de que ele ficaria tenso. Então poderíamos incentivar sua paranóia contra a pessoa que o estiver pagando. Tudo que precisaríamos dizer é que essa ”figura de autoridade” está planejando deixá-lo sozinho com a culpa caso algo dê errado. E já que estamos falando com ele, obviamente as coisas estão dando errado.

Angela dardejou uma expressão de descrença.

- Algumas vezes você me espanta. Especialmente por se achar tão racional. Essa é a idéia mais tortuosa e ridícula que já ouvi. A história de Van Slyke documenta mania e beligerância. E você está sugerindo que pode, com segurança, incitar a paranóia esquizofrênica desse sujeito? Absurdo! Ele vai explodir em violência, que seria dirigida contra todo mundo, particularmente contra você.

- Foi só uma idéia - disse David em tom defensivo.

- Bom, não vou nem considerar. É especulativa e teórica demais.

- Certo - disse David para acalmá-la - O próximo candidato é Peter Ullhof.

Obviamente, ele tem treinamento médico. O fato de ter sido preso por causa do aborto sugere que tem sentimentos fortes quanto às questões morais na medicina. Mas afora isso há muito pouca coisa.

- EJoeForbs?

- A única coisa que o torna suspeito é sua incapacidade de cuidar das finanças pessoais.

- E a última pessoa, Claudette Maurice?

- Está limpa. Só fico curioso é em saber onde ela tem a tatuagem.

- Estou exausta - disse Angela, largando os papéis sobre a mesinha de centro. – Talvez depois de uma boa noite de sono a gente tenha alguma idéia.

 

SEGUNDA-FEIRA, 1 DE NOVEMBRO

NIKKI DESPERTOU NO meio da noite com outro pesadelo e terminou indo para o quarto dos pais. David e Angela dormiram inquietos. Até Ferrugem parecia incapaz de dormir bem, grunhindo e latindo em várias ocasiões. De cada vez, David saltou da cama e agarrou a espingarda. Mas em todas elas era alarme falso.

A única coisa boa na manhã seguinte foi a saúde de Nikki. Os pulmões estavam completamente limpos. Mesmo assim, os Wilsons sequer consideraram a hipótese de mandá-la à escola.

Tentaram telefonar de novo para Calhoun, mas a secretária eletrônica atendeu com a mesma mensagem. Debateram sobre ligar para a polícia, falando do investigador, mas não conseguiram se decidir. Admitiram que não conheciam Calhoun tão bem, que seu comportamento era excêntrico e que provavelmente estavam tirando conclusões apressadas. Além disso, relutavam em ligar para a polícia local por causa das experiências que haviam tido, particularmente na noite anterior.

- A única coisa que sei de fato é que não quero passar outra noite nesta casa - disse Angela. - Talvez devêssemos fazer as malas e deixar esta cidade com suas manias e segredos.

- Se estamos pensando nisso, o melhor é eu ligar para Sherwood - disse David.

- Faça isso. Estou falando sério quanto a não passar outra noite aqui.

David telefonou para o banco, marcando uma reunião com o presidente. O único horário vago era às três da tarde. Apesar de ter preferido mais cedo, David concordou.

- Realmente deveríamos conversar com um advogado - disse Angela.

- Certo. Vamos ligar para Joe Cox.

Joe era um velho amigo do casal. Também era um dos advogados mais astutos de Boston. Quando ligou para o escritório, Angela ficou sabendo que ele não estava; passaria o dia inteiro no tribunal. Ela deixou um recado, dizendo que ligaria de novo.

- Onde vamos passar a noite? - perguntou ela, desligando o telefone.

- Nossos amigos mais íntimos na cidade são os Yansens. E isso não representa grande coisa. Não tenho mantido contato social com Kevin desde aquele ridículo jogo de tênis, e não quero ligar para ele agora. - David suspirou. - Acho que posso ligar para os meus pais.

- Eu estava com medo de sugerir isso - disse Angela. David ligou para Amherst, New Hampshire, e perguntou à mãe se eles poderiam passar alguns dias lá. Explicou que estavam tendo algumas dificuldades com a casa. A mãe de David adorou. Não haveria nenhum problema. Disse que estava ansiosa pela chegada deles.

Angela tentou de novo ligar para Calhoun, mas não teve sorte. Em seguida sugeriu que fossem até a casa dele em Rutland; não era tão longe. David concordou, e os três subiram no Volvo e partiram.

- Lá está - disse Angela enquanto se aproximavam da casa de Calhoun.

David parou na vaga diante da entrada da garagem. Ficaram imediatamente desapontados. Esperavam ser tranqüilizados, mas não foram. Era óbvio que não havia ninguém em casa. Jornais dos dois últimos dias se acumulavam na porta da frente.

No caminho de volta a Bartlet, conversaram sobre o investigador e ficaram ainda mais indecisos.

Angela mencionou que, depois de havê-lo contratado, ele não fizera contato durante vários dias.

Finalmente decidiram esperar mais um dia. Se não conseguissem encontrá-lo dentro de vinte e quatro horas, iriam à polícia.

Ao chegarem em casa, Angela começou a fazer as malas para a estada na casa dos pais de David. Nikki ajudou. Enquanto elas estavam ocupadas, David pegou a lista telefônica e procurou os endereços dos cinco funcionários tatuados. Depois de escrevê-los, subiu para o segundo andar e disse a Angela que iria passar diante das casas, só para checar como eles viviam.

- Não quero que você vá a lugar nenhum - disse ela em tom sério.

- Por que não? - Ele ficou surpreso com a reação de Angela.

- Em primeiro lugar, não quero ficar aqui sozinha. Em segundo, sabemos agora que esse caso é perigoso. Não quero você rondando a casa de um possível assassino.

- Certo. Seu primeiro motivo já basta. Não precisava dar dois. Não pensei que você fosse ficar nervosa sozinha a esta hora da manhã. E quanto ao perigo, essas pessoas provavelmente estão no trabalho.

- Isso não é o bastante. Por que não dá uma mãozinha levando as coisas para o carro?

Era quase meio-dia quando terminaram. Depois de se certificarem de que todas as portas da casa estavam fechadas, subiram no Volvo. Ferrugem entrou ao lado de Nikki.

A mãe de David, Jeannie Wilson, recebeu-os calorosamente e fez com que logo se sentissem em casa. O pai, Albert, estava fora, numa pescaria, e só estaria de volta à tarde.

Depois de levar tudo para a casa, Angela desmoronou na cama forrada com um edredom, no quarto de hóspedes.

- Estou exausta! Poderia dormir em um segundo.

- Por que não dorme? Não precisamos voltar os dois para conversar com Sherwood.

- Você não se incomoda?

- Nem um pouco. - David puxou a ponta do edredom e encorajou Angela a se enfiar debaixo dele. Enquanto fechava a porta, ouviu-a aconselhando-o a dirigir com cuidado, mas a voz já estava cheia de sono.

David disse a Nikki e à sua mãe que Angela estava cochilando. Sugeriu que Nikki fizesse o mesmo, mas ela já estava ocupada fazendo biscoitos com a avó. Explicando que tinha um compromisso em Bartlet, David saiu.

Chegou à cidade com quarenta e cinco minutos de folga. Parou na beira da rua para pegar a lista de funcionários do hospital que tinham tatuagem e seus endereços. O que ficava mais perto era o de Clyde Devonshire. Sentindo-se meio culpado, David engrenou o carro e partiu para o endereço de Clyde. Racionalizou a decisão, dizendo-se que os temores de Angela eram infundados. Além do mais, não iria fazer nada, só queria olhar.

Ficou surpreso ao encontrar uma mercearia no endereço de Devonshire. Estacionou diante do prédio, saiu e entrou na loja. Enquanto pagava por uma caixinha de suco de laranja, perguntou a um dos balconistas se conhecia Clyde Devonshire.

- Sem dúvida. Ele mora no sobrado.

- Você o conhece bem?

- Mais ou menos. Ele costuma vir aqui.

- Fiquei sabendo que ele tem uma tatuagem.

O sujeito riu.

- Clyde tem um monte de tatuagens.

- Onde elas ficam? - perguntou David sentindo-se ligeiramente embaraçado.

- Ele tem correntes tatuadas ao redor dos pulsos - disse o segundo balconista. - É como se estivesse amarrado.

O primeiro balconista riu de novo, só que mais intensamente.

David sorriu. Não tinha captado a graça, mas queria ser gentil. Pelo menos descobrira que Clyde tinha tatuagens num ponto em que podiam ser danificadas por uma luta.

- Ele também tem uma tatuagem no braço, perto do ombro - disse o primeiro balconista. - E outras no peito.

David agradeceu e saiu da loja. Foi até o lado do prédio e viu a porta da escada. Por um breve instante pensou em experimentá-la, mas decidiu não fazê-lo. Devia isso a Angela.

De volta ao carro, sentou-se atrás do volante e verificou as horas. Ainda tinha vinte minutos antes do encontro com Sherwood: tempo para mais um endereço. O mais próximo era o de Van Slyke.

Em alguns minutos estava na rua de Van Slyke. Reduziu a velocidade para verificar os números nas caixas de correspondência. De repente, pisou no freio. Estava perto de uma pick-up verde muito parecida com a de Calhoun.

Dando marcha à ré, estacionou o Volvo logo atrás da pick-up. No pára-choque traseiro havia um adesivo dizendo: ”Este Veículo Subiu o Monte Washington.” Tinha de ser a de Calhoun.

David desceu do carro e olhou dentro da cabine da pick-up. Sobre o porta-luvas havia um copo plástico sujo de café. O cinzeiro estava cheio de guimbas de charuto. David reconheceu o estofamento e o purificador de ar pendurado no retrovisor. Sem dúvida, era a pick-up de Calhoun.

Esticou as costas e olhou a rua. Não havia nenhuma caixa de correio diante da casa, mas, de onde estava, ele podia ver o endereço pintado no espelho do degrau da varanda: Apple Tree Lane, 66.O endereço de Van Slyke.

Atravessou a rua para olhar mais de perto. A casa precisava terrivelmente de reparos e pintura. Era até difícil saber qual teria sido a cor original. Parecia cinza, mas havia um tom esverdeado sugerindo que já tivera um tom oliva-claro.

Não havia sinais de vida. Mal parecia que a casa tivesse sido ocupada, a não ser pelas marcas de pneu no cascalho da entrada de carros.

David foi até a garagem e olhou dentro. Estava vazia.

Em seguida voltou à frente da casa. Depois de verificar se não havia ninguém observando, experimentou a porta. Estava destrancada, e abriu com uma simples virada na maçaneta.

Ele empurrou-a devagar; as dobradiças enferrujadas gemeram.

Pronto para fugir à menor provocação, olhou para dentro. A mobília que ele podia ver estava coberta de poeira e teias de aranha. Inspirando profundamente, David gritou, para verificar se havia alguém em casa.

Se havia, ninguém respondeu. Ele pôs-se a ouvir, mas a casa estava quieta.

Sentindo uma ânsia de fugir, David forçou-se a atravessar o portal. O silêncio da casa envolveu-o como um manto. Seu coração havia disparado. Não queria estar ali, mas precisava descobrir o que acontecera a Calhoun.

Gritou de novo, e outra vez ninguém respondeu. Estava para chamar pela terceira vez, quando a porta atrás dele fechou-se com estrondo. David quase morreu de medo.

Experimentando um temor irracional de que a porta estivesse trancada, abriu-a freneticamente. Segurou-a aberta com um cabo de guarda-chuva cheio de poeira. Não queria se sentir fechado.

Depois de se recompor da melhor forma possível, percorreu o andar térreo. Foi rapidamente de um cômodo a outro até chegar à cozinha. Ali parou. Sobre a mesa havia um cinzeiro. Nele estava a guimba de um charuto António y Cleopatra. Atrás da mesa havia uma porta que levava ao porão.

David se aproximou da abertura e olhou para a escuridão total lá embaixo. Ao lado do portal havia um interruptor. Ele experimentou-o. Uma luz anêmica subiu pela escada.

Respirando fundo, ele começou a descer. Parou no meio do caminho e deixou o olhar varrer o porão atulhado. Estava cheio de móveis velhos, caixas, uma caldeira e uma confusão de ferramentas e lixo. David percebeu que o chão era de terra, como o da sua casa, mas perto da fornalha havia uma laje de concreto.

Continuou a descer, e depois foi até o concreto. Curvando-se, examinou-o cuidadosamente.

A laje ainda estava escura de umidade. David colocou a mão sobre ela, para ter certeza.

Estremeceu. Por ele, já tinha visto o bastante para ir à polícia. Só não ia perder tempo em procurar a polícia local. Planejava chamar diretamente a polícia do estado. Chegando ao topo da escada, parou. Tinha ouvido o som de pneus no cascalho da entrada. Um carro havia parado junto a casa.

Por um segundo, David congelou, sem saber o que fazer. Tinha pouco tempo para decidir;

logo ouviu a porta do carro abrindo e em seguida sendo batida, depois foram passos no cascalho.

Entrou em pânico. Fechou a porta do porão e rapidamente desceu a escada. Confiava que houvesse outra saída do porão, algum tipo de escada dos fundos, levando para fora da casa.

Na parte de trás do porão havia várias portas. David não perdeu tempo e foi até lá.

Aprimeira tinha uma lingüeta para cadeado, solta. O mais silenciosamente possível, ele a abriu. Atrás ficava uma despensa iluminada por uma única lâmpada de poucos watts.

Ouvindo passos acima, David foi rapidamente até a segunda porta. Deu um puxão na maçaneta, mas a porta não se mexeu. Fez mais força. Finalmente ela abriu uma fresta, rigidamente, como se não fosse mexida há anos.

Atrás da porta estava o que David procurava: um lance de degraus de concreto levando a portas inclinadas, tipo alçapão. Agora estava no escuro, a não ser por uma fresta de luz entrando por entre as duas portas quase horizontais acima dele.

David engatinhou escada acima e se enroscou logo debaixo das portas. Parou para escutar.

Não ouviu nada. Colocou as mãos nas portas e empurrou. Conseguiu erguê-las uns dois centímetros; estavam trancadas por fora com um cadeado.

Deixando as portas baixarem silenciosamente, David tentou manter-se calmo. Sua pulsação martelava nas têmporas. Sabia que estava numa arapuca. A única esperança era não ser descoberto. Mas a próxima coisa que ouviu foi a porta do porão se abrindo, seguida por passos pesados na escada.

Ficou agachado na escuridão e prendeu o fôlego.

Os passos chegaram mais perto, e então a porta de seu esconderijo foi escancarada. David viu-se encarando o rosto frenético de Werner Van Slyke.

O pânico de Van Slyke parecia superar o de David. Ele agia como se tivesse acabado de tomar uma dose cavalar de anfetaminas. As pálpebras estavam arregaladas, fazendo com que os olhos saltassem das órbitas, sem piscar. As pupilas estavam tão dilatadas que pareciam não ter íris. Gotas de suor escorriam pela testa. Todo o seu corpo tremia, particularmente os braços. Na mão direita segurava um revólver, que ele apontou para o rosto de David.

Por alguns instantes, nenhum dos dois se mexeu. David tentou freneticamente pensar num motivo possível para sua presença ali, mas não conseguiu. Só podia pensar no cano do revólver apontado para ele. Com os tremores de Van Slyke ficando cada vez piores, David temia que o revólver disparasse acidentalmente.

Percebeu que Van Slyke estava para ter um ataque agudo de ansiedade, provavelmente provocado pela descoberta de David em sua casa. Lembrando-se da história psiquiátrica do sujeito, considerava que havia uma chance de Van Slyke ter uma crise psicótica naquele instante.

Pensou em mencionar a pick-up de Calhoun como explicação para sua presença, mas rapidamente decidiu em contrário. Quem saberia o que se passara entre Van Slyke e o investigador particular? Mencionar Calhoun poderia simplesmente exacerbar o estado psicótico do sujeito.

David decidiu que o melhor era tentar agir como amigo, reconhecer que Van Slyke tinha problemas, admitir que ele estava sob tensão, dizer que compreendia o que ele estava sofrendo, dizer que era médico e que queria ajudar.

Infelizmente Van Slyke deu pouca chance a David de colocar o plano em prática. Sem qualquer palavra, estendeu a mão, agarrou-o pelo paletó e puxou-o rudemente para o porão.

Levado pela força de Van Slyke, David foi de cabeça, chocando-se contra uma pilha de caixas de papel.

- Levanta! - gritou Van Slyke. Sua voz ecoou no porão. David levantou-se com dificuldade.

Van Slyke estava tremendo tanto que parecia ter convulsões.

- Vá para a despensa! - gritou.

- Acalme-se - falou David pela primeira vez. Tentando soar como um terapeuta, disse que compreendia que Van Slyke estava perturbado.

Van Slyke respondeu atirando indiscriminadamente. Balas zumbiram junto à cabeça de David e ricochetearam no porão até se incrustarem no piso do andar térreo, na escada e em uma das portas.

David saltou para dentro da despensa e encolheu-se contra a parede do fundo, aterrorizado com o que Van Slyke poderia fazer em seguida. Agora tinha convicção de que o sujeito estava num surto psicótico agudo.

Van Slyke bateu a pesada porta de madeira com tanta força que caiu uma chuva de reboco sobre a cabeça de David. Ele não se mexeu. Podia ouvir Van Slyke movendo-se pelo porão.

Em seguida ouviu a lingüeta da porta da despensa raspando sobre a argola, e um cadeado sendo colocado. Depois ouviu o clique do cadeado.

Após alguns minutos de silêncio, David se levantou. Olhou a cela ao redor. A única fonte de luz era uma lâmpada pendurada do teto pelo fio. O cômodo era feito de grandes blocos de granito. Numa das paredes havia caixas cheias de frutas que pareciam mumificadas. Outra tinha prateleiras cheias de vidros de conserva que iam até o teto.

David foi até a porta e encostou o ouvido. Não escutou nada. Olhando a porta mais de perto, viu arranhões recentes. Era como se alguém houvesse desesperadamente tentado abrir caminho para fora.

Sabia que era inútil, mas tinha de tentar: encostou o ombro na porta e empurrou-a. Ela não se moveu. Não obtendo resultado, David começou a fazer uma volta completa pelo cômodo, quando a luz se apagou, lançando-o na escuridão absoluta.

Sherwood chamou a secretária pelo interfone e perguntou para que horas estava marcada a reunião com David Wilson.

- Três horas - disse Sharon.

- Que horas são?-Sherwood estava olhando para o relógio de bolso que tirara do colete.

- Três e quinze.

- Foi o que pensei. Nenhum sinal dele?

- Não, senhor.

- Se ele aparecer, diga que terá de marcar outra hora. E traga a pauta da reunião de hoje da diretoria executiva do hospital.

Sherwood tirou o dedo do botão do interfone. Irritava-o o fato de David se atrasar para uma reunião que ele próprio marcara. Para Sherwood, era um esnobismo deliberado, já que a pontualidade era uma virtude básica em um sistema de valores.

Levantou o telefone e ligou para Harold Traynor. Antes de ficar em dia com o material da reunião executiva, queria ter certeza de que ela não fora cancelada. Isso acontecera uma vez em 1981 e Sherwood ainda não se recuperara do fato.

- Às seis horas - disse Traynor. - Como foi marcado. Vamos juntos, a pé? Está uma tarde bonita, e não teremos muitas outras assim até o próximo verão.

- Encontro você na porta do banco - disse Sherwood. - Parece que está de bom humor.

- Foi um bom dia. Acabo de ter notícias de minha nêmesis, Jeb Wiggins. Ele cedeu. Vai apoiar a garagem, afinal de contas. Devemos ter a aprovação do conselho no final do mês. Sherwood sorriu. Era realmente uma boa notícia.

- Devo colocar junto a questão das ações? - perguntou.

- Sem dúvida. Precisamos ir em frente com isso. Recebi uma ligação do empreiteiro agora mesmo, querendo saber se há chance de colocar o concreto antes do inverno.

Sharon entrou no escritório de Sherwood e entregou a pauta da reunião.

- Há mais notícias boas - disse Traynor.-Beaton me ligou esta manhã para dizer que o balancete do hospital parece bem melhor do que pensávamos. Outubro não foi tão ruim como tínhamos previsto.

- Este mês são só boas notícias - disse Sherwood.

- Bom, eu não iria tão longe. Beaton também me ligou há pouco para dizer que Van Slyke não apareceu.

- Nem telefonou?

- Não. Claro, ele não tem telefone, de modo que isso não é de espantar. Acho que vou ter de dar um pulo lá, depois da reunião executiva. O problema é que odeio ir à casa dele. Me deixa deprimido.

Tão inesperadamente quanto apagara, a luz acendeu de novo. David pôde ouvir os passos de Van Slyke descendo a escada do porão, acompanhado pelo clangor intermitente de metal contra metal. Depois disso David ouviu o barulho de coisas caindo no chão de terra.

Depois de outra viagem para cima e para baixo, David escutou Van Slyke largando uma coisa particularmente pesada. Numa terceira viagem, houve o mesmo ruído surdo que David pôde sentir tanto quanto ouvir. Quase parecia um corpo batendo contra a terra socada, e David sentiu-se estremecer.

Aproveitando a luz, David explorou a despensa em busca de outra saída, mas, como suspeitava, não havia.

Subitamente ouviu o cadeado abrindo e a lingüeta sendo puxada. Preparou-se para o que vinha, enquanto a porta era aberta.

David inspirou fundo ao ver Van Slyke. Ele parecia ainda mais agitado do que anteriormente. Seu cabelo escuro e crespo não estava mais penteado; agora estava arrepiado como se ele tivesse levado um choque elétrico. As pupilas continuavam totalmente dilatadas e o rosto se encontrava coberto de suor. Ele retirara a camisa verde, de trabalho, e usava uma camiseta suja, por fora da calça.

De imediato David percebeu como ele era forte e rapidamente afastou a possibilidade de tentar dominá-lo. Também percebeu que Van Slyke tinha uma tatuagem de uma bandeira americana segura por uma águia de cabeça branca no antebraço direito. Uma fina cicatriz de cerca de cinco centímetros desfigurava o desenho. Nesse momento David percebeu que Van Slyke era provavelmente o assassino de Hodges.

- Para fora! - gritou Van Slyke junto com uma fiada de palavrões. Acenou com o revólver, de modo imprudente, lançando um frio pela espinha de David, que ficou aterrorizado com a possibilidade de Van Slyke recomeçar a atirar ao acaso.

Obedeceu ao comando e saiu rapidamente da despensa. Foi andando de lado, o tempo todo mantendo o outro em sua linha de visão. Van Slyke fez um gesto irritado para que ele continuasse em direção à fornalha.

- Pare!-ordenou Van Slyke depois de David ter andado uns seis metros. Em seguida apontou para o chão.

David olhou para baixo. Junto aos seus pés havia uma picareta e uma pá. Ali perto ficava a laje de concreto novo.

- Quero que você cave - gritou Van Slyke.-Aí onde está. Com medo de hesitar um segundo, David curvou-se e levantou a picareta. Avaliou a hipótese de usá-la como arma, mas, como se estivesse lendo sua mente, Van Slyke deu um passo atrás, ficando fora do seu alcance. David não ousaria arriscar-se a se lançar contra ele.

David percebeu sacos de cimento e areia no chão, e achou que fosse o ruído dos sacos caindo que ele ouvira da despensa.

Golpeou a picareta. Para sua surpresa, ela cavou uns meros cinco centímetros no chão compactado. Ele continuou batendo várias vezes, mas só conseguiu soltar uma pequena quantidade de terra. Largou a picaeta e pegou a pá, para retirar a terra. Em sua mente não havia qualquer dúvida do que Van Slyke queria fazer com ele. Estava fazendo com que ele cavasse a própria sepultura. Imaginou se Calhoun tinha passado pela mesma provação.

Sabia que a única esperança era fazer com que Van Slyke falasse.

- Quanto eu devo cavar? - perguntou enquanto trocava a picareta pela pá.

- Quero um buraco grande. Como um buraco de rosca. Quero ela inteira. Quero que minha mãe me dê a rosca inteira.

David engoliu em seco. A psiquiatria não fora o seu forte na escola de medicina, mas até ele reconhecia que o que estava ouvindo era chamado de ”afrouxamento de associações”, sintoma de esquizofrenia aguda.

- Sua mãe te dava muitas roscas? - perguntou David. Estava com dificuldade de encontrar palavras, mas queria desesperadamente manter Van Slyke falando.

Van Slyke olhou para David como se estivesse surpreso com sua presença ali.

- Minha mãe cometeu suicídio. Ela se matou.

Em seguida ele chocou David gargalhando feito louco.

Mentalmente, David anotou outro sintoma esquizofrênico. Podia recordar-se de que esse era eufemisticamente chamado de ”afeto inadequado”. Recordou outro dos componentes principais da doença de Van Slyke: paranóia.

- Cave mais depressa! - gritou Van Slyke subitamente, como se estivesse acordando de um pequeno transe.

David cavou mais rápido, mas não desistiu da tentativa de manter Van Slyke falando. Perguntou como ele estava se sentindo. Perguntou o que estava pensando. Mas não obteve resposta. Era como se Van Slyke tivesse ficado totalmente concentrado. Até mesmo seu rosto ficara sem expressão.

- Você está ouvindo vozes? - perguntou David, tentando outra abordagem. Deu mais vários golpes de picareta. Quando Van Slyke não respondeu, David olhou-o. Seu rosto não estava mais inexpressivo; mudara para um ar de surpresa. Os olhos se estreitaram, e depois seus tremores ficaram mais aparentes.

David parou de cavar e estudou Van Slyke. A mudança em sua expressão era espantosa.

- O que as vozes estão dizendo? - perguntou David.

- Nada! - gritou Van Slyke.

- Essas vozes são como as que você ouvia na Marinha?

Os ombros de Van Slyke se afrouxaram.

- Como você sabe sobre a Marinha? E como sabe das vozes? David podia detectar a paranóia na voz de Van Slyke, e sentiu-se encorajado. Estava rompendo a casca do sujeito.

- Eu sei um bocado de coisas sobre você. Sei o que andou fazendo. Mas quero ajudá-lo. Não sou como os outros. É por isso que estou aqui. Sou médico. Estou preocupado com você.

Van Slyke não falou. Simplesmente encarou-o e David prosseguiu.

- Você parece muito perturbado. Está perturbado por causa dos pacientes.

Van Slyke pareceu perder o fôlego, como se tivesse recebido um soco.

- Que pacientes?

David engoliu em seco outra vez. Sabia que estava assumindo riscos. Podia ouvir os avisos de Angela no fundo da mente. Mas não tinha escolha. Precisava blefar.

- Estou falando sobre os pacientes que você vem ajudando a morrer.

- Eles iam morrer de qualquer jeito! - gritou Van Slyke. David sentiu um frio na espinha. Então fora Van Slyke.

- Eu não os matei - falou Van Slyke abruptamente. - Foram eles. Eles apertaram o botão, não eu.

- O que quer dizer?

- Foram as ondas de rádio.

David assentiu e tentou sorrir compreensivamente, a despeito de sua ansiedade. Estava claro que agora lidava com as alucinações de um esquizofrênico paranóico.

- As ondas de rádio estão dizendo a você o que fazer?

A expressão de Van Slyke mudou de novo. Agora ele olhava para David como se este estivesse enlouquecido.

- Claro que não - disse com escárnio. Mas em seguida a raiva retornou. - Como você soube sobre a Marinha?

- Eu já disse, sei um bocado de coisas sobre você. E quero ajudá-lo. Por isso estou aqui. Mas não posso ajudar a não ser que saiba tudo. Quero saber quem são ”eles”. Está falando das vozes que ouve?

- Pensei que você tinha dito que sabia muita coisa a meu respeito.

- E sei. Mas não sei quem está mandando você matar pessoas, nem como está fazendo isso. Pensei que as vozes estivessem mandando. É verdade?

- Fique quieto e cave!

Dizendo isso, Van Slyke apontou o revólver para a esquerda de David e puxou o gatilho. A bala cravou-se na porta da despensa, que rangeu nas dobradiças.

Rapidamente David voltou a cavar. A mania de Van Slyke aterrorizava-o. Mas depois de mais algumas pás de terra, David arriscou-se a conversar de novo. Queria recuperar a credibilidade impressionando Van Slyke com a quantidade de informações que possuía.

- Sei que você está sendo pago pelo que faz. Sei até que está colocando o dinheiro em bancos em Albany e Boston. Só não sei quem está pagando. Quem é, Werner?

Van Slyke respondeu grunhindo. David ergueu os olhos a tempo de vê-lo fazendo uma careta e segurando a cabeça com as duas mãos. Estava cobrindo os ouvidos, como se tentasse protegêlos contra sons dolorosos.

- As vozes estão ficando mais altas? - perguntou David. Temendo que Van Slyke não o escutasse com as mãos sobre os ouvidos, praticamente gritou a pergunta.

Van Slyke assentiu. Seus olhos começaram a dardejar loucamente pelo porão, como se procurasse um meio de escapar. Enquanto Van Slyke estava distraído, David agarrou a pá, medindo a distância entre os dois, imaginando se conseguiria acertá-lo e, nesse caso, se o acertaria com força suficiente para eliminar a ameaça do revólver.

Mas logo desapareceu qualquer chance que ele tivesse enquanto Van Slyke esteve momentaneamente preocupado. O pânico de Van Slyke diminuiu e seus olhos voltaram a focalizar David.

- Quem é, quem está falando com você?-perguntou David tentando manter a pressão.

- São os computadores e a radiação, como na Marinha! - gritou Van Slyke.

- Mas você não está na Marinha. Não está num submarino no Pacífico. Está em Bartlet, Vermont, no porão da sua casa. Não existem computadores nem radiação.

- Como você sabe tanta coisa? - novamente Van Slyke exigiu saber. Novamente seu medo se transformava em raiva.

- Quero ajudá-lo - disse David. - Posso ver que você está perturbado e que está sofrendo. Deve se sentir culpado. Sei que você matou o Doutor Hodges.

O queixo de Van Slyke caiu. David perguntou-se se teria ido longe demais. Sentia que evocara uma forte paranóia em Van Slyke. Só esperava que a raiva do outro não se dirigisse contra ele, como Angela temera. David sabia que deveria levar a conversa de volta para o tema de quem estava pagando pelas mortes. A questão era como.

- Eles pagaram para você matar o Doutor Hodges? Van Slyke riu com escárnio.

- Isso mostra o quanto você sabe. Eles não tiveram nada a ver com Hodges. Eu fiz aquilo porque Hodges ficou contra mim, dizendo que eu estava atacando mulheres no estacionamento do hospital. Mas eu não estava. Ele disse que ia contar a todo mundo, a não ser que eu abandonasse o hospital. Mas eu mostrei a ele.

Outra vez o rosto de Van Slyke ficou inexpressivo. Antes que David pudesse perguntar se ele estava ouvindo vozes, Van Slyke sacudiu a cabeça. Em seguida comportou-se como se estivesse acordando de um sono profundo. Esfregou os olhos e olhou para David, como se estivesse surpreso por vê-lo de pé segurando uma pá. Mas essa confusão logo se transformou em raiva. Ele levantou o revólver, apontando direto para os olhos de David.

- Eu mandei cavar!

David apressou-se em obedecer. Mesmo assim, esperou que fosse levar o tiro. Quando os tiros não vieram, David ficou nervoso, pensando no que fazer em seguida. Sua abordagem não estava funcionando. Estava deixando Van Slyke tenso, mas não o bastante, ou talvez não do modo correto.

- Já conversei com o sujeito que está pagando você - disse David depois de alguns minutos cavando freneticamente. - Esse é um dos motivos pelos quais sei tanta coisa. Ele me disse tudo, de modo que não importa se você me contar ou não.

- Não! - gritou Van Slyke.

- Ah, sim. Ele também me contou uma coisa que você deveria saber. Disse que se Phil Calhoun ficasse com suspeitas, você levaria a culpa por tudo.

- Como você soube sobre Phil Calhoun?- Novamente Van Slyke começou a tremer.

- Eu disse que sei o que está acontecendo. A coisa toda está para desmoronar. Assim que seu financiador ficar sabendo sobre Phil Calhoun, tudo estará acabado. E ele não se importa com você, Van Slyke. Acha que você é um nada. Mas eu me importo. Eu sei que você está sofrendo. Deixe-me ajudá-lo. Não deixe esse cara usá-lo como um trouxa. Você não significa nada para ele. Ele quer que você saia machucado. Eles querem que você sofra.

- Cale a boca! - gritou Van Slyke.

- O cara que está usando você contou tudo a um bocado de gente, Van Slyke. Não apenas a mim. E todos morreram de rir ao saberem que Van Slyke levará a culpa de tudo.

- Cale a boca! - gritou Van Slyke outra vez. Em seguida correu até David e encostou o cano da arma em sua testa.

David congelou, enquanto olhava vesgo para o revólver. Largou a pá, que caiu no chão.

- Volte para a despensa - gritou Van Slyke, mantendo a ponta do revólver encostado em sua pele.

David ficou aterrorizado com a possibilidade da arma disparar a qualquer segundo. Van Slyke estava numa agitação frenética, à beira do pânico absoluto.

Van Slyke o empurrou, de costas, até a despensa. Só então recolheu o revólver. Antes que David pudesse reiterar o desejo de ajudá-lo, a pesada porta foi batida em sua cara e trancada outra vez.

David pôde ouvir Van Slyke correndo pelo porão, chocando-se contra objetos. Ouviu seus passos pesados na escada. Ouviu a porta do porão ser fechada com força. Então a luz apagou.

David ficou totalmente imóvel, forçando-se a escutar. Ouviu muito longe o som de um carro ligando e depois se afastando rapidamente. E então restaram apenas o silêncio e as batidas do seu coração.

Ele ficou imóvel na escuridão total, pensando no que havia desencadeado. Van Slyke saíra da casa num estado de psicose maníaca aguda. David não tinha idéia de para onde ele estava indo, nem do que lhe passava pela cabeça. Mas o que quer que fosse não era bom.

Sentiu lágrimas brotando nos olhos. Certamente conseguira evocar a paranóia psicótica do sujeito, mas o resultado não era o que havia esperado. Queria ter ficado amigo de Van Slyke, fazendo-o contar seus problemas. Também queria livrar-se ao mesmo tempo. Em vez disso, continuava prisioneiro e soltara um louco na cidade. A única fonte de consolo era que Angela e Nikki estavam seguras em Amherst.

Lutando para controlar as emoções, David começou a soluçar, enquanto atacava em vão a porta da despensa. Chocou várias vezes seu ombro contra ela, gritando para que alguém o libertasse. Até que conseguiu recuperar um pouco de controle. Interrompeu os golpes autodestrutivos contra a porta. Depois parou de chorar. Pensou no Volvo azul e na pick-up de Calhoun. Eram sua única esperança.

Com medo e resignado, sentou-se no chão de terra para esperar o retorno de Van Slyke.

 

SEGUNDA-FEIRA, primeiro DE NOVEMBRO, MAIS TARDE

ANGELA DORMIU MUITO mais do que planejara. Quando acordou, por volta das quatro e meia, ficou surpresa ao saber que David não havia voltado nem telefonado. Sentiu uma ponta de preocupação, porém rejeitou-a. Mas enquanto o tempo se arrastava até as cinco horas, sua preocupação foi crescendo a cada minuto.

Finalmente, pegou o telefone e ligou para o Green Mountain National Bank. Mas só conseguiu ser atendida por uma gravação dizendo que o horário do banco ia de nove às quatro e meia. Frustrada, desligou. Ficou imaginando por que David não ligara do telefone celular. Isso não era coisa dele. Certamente saberia que ela começaria a se preocupar se ele se atrasasse.

Em seguida telefonou para o Hospital Comunitário de Bartlet. Pediu que a ligassem com a recepção e perguntou por David. Disseram que o Doutor Wilson não fora visto o dia inteiro.

Finalmente tentou sua casa em Bartlet. Não havia nenhum outro lugar em que pudesse pensar. Mas depois de deixar o telefone tocando dez vezes, desistiu.

Recolocando o fone no gancho pela terceira vez, imaginou se David teria, afinal de contas, decidido bancar o detetive. A possibilidade só a deixou mais preocupada.

Foi até a cozinha e perguntou à sogra se ela poderia emprestar o carro.

- Claro que sim - respondeu Jeannie. - Aonde você vai?

- Voltar a Bartlet. Deixei algumas coisas na casa.

- Quero ir também - disse Nikki.

- Acho melhor você ficar aqui.

- Não - disse Nikki. - Eu vou.

Angela forçou-se a sorrir para Jeannie antes de se aproximar de Nikki. Pegou a filha pelo braço e puxou-a até a outra sala.

- Nikki, eu quero que você fique.

- Tenho medo de ficar aqui sozinha - disse Nikki, irrompendo em lágrimas.

Angela sentiu-se numa posição difícil. Preferia que Nikki ficasse com a avó, mas não tinha tempo para discutir. Nem queria explicar à sogra por que seria melhor que Nikki ficasse. No final, desistiu.

Já eram quase seis horas quando Angela e Nikki entraram em Bartlet. Ainda estava claro, mas logo a noite cairia. Alguns carros já estavam de faróis acesos.

Angela só tinha um plano muito vago, que consistia principalmente em encontrar o Volvo.

O primeiro lugar onde queria procurar era o banco, e enquanto se aproximava da instituição viu Barton Sherwood e Harold Traynor caminhando em direção ao parque. Parou perto do meio-fio e saltou do carro. Mandou que Nikki esperasse.

- Desculpem - disse ela assim que chegou perto dos dois homens.

Sherwood e Traynor viraram-se.

- Desculpem incomodá-los. Estou procurando meu marido.

- Não tenho idéia de onde seu marido está - disse Sherwood em tom irritado.-Ele faltou a uma reunião esta tarde. Nem mesmo telefonou.

- Sinto muito - disse Angela.

Sherwood tocou a aba do chapéu e afastou-se junto com Traynor.

Angela correu de volta ao carro. Agora estava convencida de que algo ruim acontecera.

- Onde está o papai? - perguntou Nikki.

- Gostaria de saber.

Angela fez um retorno rápido no meio da Main Street e os pneus do carro cantaram.

Nikki esticou a mão e agarrou-se ao painel. Sentira que a mãe estava perturbada, e agora tinha certeza.

- Tudo vai ficar bem - disse Angela.

Acelerou na direção de casa, esperando ver o Volvo estacionado perto da porta dos fundos. Talvez a essa hora David já estivesse lá. Mas assim que chegou à entrada de carros ficou desapontada. Não havia nenhum Volvo.

Parou junto a casa. Um rápido olhar lhe revelou que estava exatamente como a haviam deixado, mas ela queria ter certeza.

- Fique no carro - disse a Nikki. - Só vou demorar um segundo.

Angela entrou e chamou David, mas não houve resposta. Andando rapidamente pela casa, verificou se a cama do quarto principal tinha sido mexida. Não tinha. No caminho de volta, descendo a escada, viu a espingarda. Agarrou-a e checou o pente. Havia quatro cartuchos.

Com a espingarda na mão, foi até a sala íntima e pegou a lista telefônica. Procurou e copiou os endereços de Devonshire, Forbs, Maurice, Van Slyke e Ulhoff. Segurando a lista e a espingarda, voltou ao carro.

- Você está dirigindo feito uma doida, mamãe - disse Nikki enquanto Ângela deixava marcas de pneus na estrada.

Angela reduziu um pouco e mandou Nikki relaxar. O problema é que ela estava ainda mais ansiosa do que Nikki poderia sentir.

O primeiro endereço era uma mercearia. Angela entrou no estacionamento e parou.

Nikki olhou para a loja e depois para a mãe.

- O que estamos fazendo aqui?

- Não tenho certeza. Procure o Volvo.

- Não está aqui.

- Estou vendo, querida.

Angela engrenou o carro e seguiu para o próximo endereço. Era a casa de Forbs. Reduziu a velocidade enquanto se aproximavam. As luzes estavam acesas, mas não havia nenhum Volvo.

Desapontada, Angela deu nova partida no motor e afastou-se.

- Você continua dirigindo mal, mamãe.

- Desculpe - disse Angela e reduziu. Enquanto fazia isso, percebeu que segurava o volante com tanta força que seus dedos estavam insensíveis.

A próxima casa era a de Maurice. Angela reduziu, mas imediatamente notou que ela estava fechada e sem qualquer sinal de vida. Acelerou.

Alguns minutos depois, quando entrava na rua de Van Slyke, percebeu imediatamente o Volvo. Nikki também viu. Foi um raio de esperança. Angela parou diretamente atrás do outro carro, desligou a chave e saltou.

Enquanto se aproximava, viu a pick-up de Calhoun na frente. Olhou dentro dos dois veículos. Na pick-up de Calhoun notou um copo de plástico sujo de café. Parecia estar ali há vários dias.

Angela olhou a casa de Van Slyke, do outro lado da rua. Não havia nenhuma luz acesa, o que aumentou o seu alarme.

Correndo de volta ao carro, pegou a espingarda. Nikki começou a sair, mas Angela gritou mandando que ela ficasse onde estava. O tom de sua voz fez com que Nikki soubesse que não havia argumentação possível.

Angela atravessou a rua segurando a espingarda. Enquanto subia os degraus da varanda, imaginou se deveria ir direto à polícia. Havia alguma coisa terrivelmente errada, sem dúvida. Mas que ajuda poderia esperar da polícia? Além disso, estava preocupada com o fator tempo.

Tentou tocar a campainha, mas ela não funcionava. Bateu na porta. Não obtendo resposta, experimentou abri-la. Estava destrancada. Empurrou-a e cuidadosamente olhou para dentro. Então, o mais alto possível, gritou o nome de David.

David ouviu o grito. Empertigou-se. Estivera encostado numa caixa cheia de maçãs secas.

O som viera de uma distância tão grande, e era tão fraco, que a princípio ele se perguntara se era real. Pensou que poderia estar tendo alucinações. Mas em seguida ouviu de novo.

Dessa vez soube que era real e soube que era Angela. Saltou de pé, na escuridão absoluta, e gritou o nome dela. Mas o som morreu no espaço confinado, isolado pelo chão de terra. Em seguida tentou gritar de novo, mas estava claro que não adiantava, a não ser que Ângela estivesse no porão.

Tateando nas prateleiras, pegou um vidro de conserva. Levou-o até a porta e bateu com ele contra a madeira. Mas o som não era tão alto quanto esperava.

Então David escutou o que achava serem os passos de Angela em algum lugar lá em cima.

Mudando de tática, jogou o vidro de conserva contra o teto. Cobriu a cabeça com as mãos e fechou os olhos enquanto o vidro se chocava contra a madeira do piso superior.

Tateando de volta até as prateleiras, tentou subir nelas, para bater diretamente no teto com os punhos. Mas só tinha batido uma vez quando a prateleira cedeu. A prateleira e todos os vidros caíram no chão, juntamente com David.

Angela sentia-se frenética e desencorajada. Rapidamente percorreu o primeiro andar daquela casa imunda, acendendo todas as luzes que pôde. Infelizmente não encontrou qualquer evidência de David ou Calhoun, a não ser uma guimba de charuto na cozinha, que poderia ter sido do investigador.

Estava para subir ao andar de cima quando pensou em Nikki. Preocupada, foi correndo até o carro. Nikki estava ansiosa, mas bem. Angela disse que só demoraria mais um pouquinho.

Nikki pediu que ela se apressasse, porque estava apavorada de ficar sozinha.

Angela correu de volta a casa e subiu a escada. Segurava a espingarda com as duas mãos.

Quando chegou ao andar de cima, parou e escutou. Pensou ter ouvido alguma coisa, mas o som não se repetiu. Continuou andando.

O andar de cima era ainda mais sujo do que o de baixo. Tinha um cheiro peculiar, de mofo, como se ninguém subisse ali há anos. Gigantescas teias de aranha pendiam do teto. No hall de cima, Angela gritou o nome de David várias vezes, mas depois de cada grito só havia o silêncio.

Estava para descer, quando percebeu uma coisa num aparador junto à escada. Era uma máscara de borracha, moldada para parecer um réptil. A máscara que o intruso estivera usando na noite anterior!

Tremendo, Angela começou a descer a escada. No meio do caminho parou para ouvir. Mais uma vez pensou ter escutado alguma coisa. Pareciam batidas distantes. Decidiu descobrir a origem do som. Na base da escada parou de novo. Pensou ter ouvido o ruído vindo da direção da cozinha. Entrou no cômodo. O som estava definitivamente mais alto. Abaixando-se, encostou o ouvido no chão. Então ouviu as batidas nítidas. Gritou o nome de David. Com o ouvido ainda encostado no chão, escutou fracamente a resposta, chamando-a pelo nome. Correu para a escada do porão.

Encontrou a luz e começou a descer, ainda agarrando a espingarda. Começou a ouvir a voz de David mais claramente, mas ela ainda soava abafada.

Assim que chegou ao porão, gritou de novo o nome dele. Lágrimas saltaram em seus olhos ao ouvir a resposta. Abrindo caminho em meio à confusão, Angela seguiu o som da voz. Havia duas portas. David batia com tanta força que Angela soube imediatamente atrás de qual ele se encontrava. Mas havia um problema: a porta estava trancada com um cadeado.

Angela gritou, dizendo que sabia onde ele estava. Encostando a espingarda na parede, procurou uma ferramenta adequada no porão. Logo seus olhos pousaram na picareta.

Girando-a num arco pequeno, bateu no cadeado várias vezes, mas não obteve resultado. Em seguida, experimentou uma técnica diferente: enfiou a ponta da ferramenta atrás da lingüeta e usou-a como alavanca.

Apertando com toda a força, Angela conseguiu arrancar a lingüeta junto com os parafusos.

Em seguida abriu a porta.

David saiu depressa e abraçou-a.

- Graças a Deus você veio! Van Slyke é quem está por trás de tudo. Ele matou os pacientes e Hodges. Neste exato minuto encontra-se num surto psicótico e está armado.

Precisamos sair daqui.

Antes que começassem a descer, David encostou uma das mãos no braço de Angela e apontou para a laje de cimento perto do buraco que estivera cavando.

- Acho que Calhoun está aí debaixo.

Angela ficou boquiaberta.

- Vamos! - disse David empurrando-a. Começaram a subir a escada.

- Não fiquei sabendo quem está pagando a Van Slyke - disse ele enquanto subiam. - Mas está claro que isso vem acontecendo. Também não descobri como Van Slyke conseguiu matar os pacientes.

- E Van Slyke é o sujeito que esteve lá em casa ontem à noite - disse Angela.-Encontrei a máscara de réptil no andar de cima.

Enquanto David e Angela chegavam à cozinha, luzes de faróis subitamente encheram o cômodo, passando sobre seus rostos aterrorizados.

- Oh, meu Deus - sussurrou David. - Ele voltou.

- Eu acendi um monte de luzes - disse Angela. - Ele vai saber que há algo errado.

Angela colocou a espingarda na mão de David. Ele agarrou-a com as palmas suadas.

Ouviram a porta do carro fechar e depois passos pesados no caminho de cascalho.

David fez um gesto para que Angela recuasse pela porta do porão. Seguiu-a e fechou parcialmente a porta. Deixou uma fresta para que pudesse ver a cozinha.

Os passos chegaram à porta dos fundos e depois pararam abruptamente.

Por alguns momentos aterrorizantes, não houve qualquer som. David e Angela prenderam o fôlego. Imaginaram que Van Slyke estaria pensando nas luzes.

Depois, para sua surpresa, os passos recuaram. Os dois ficaram atentos até que não puderam mais ouvi-los.

- Para onde ele foi? - sussurrou Angela.

- Gostaria de saber. Não gosto de não saber onde ele está. Ele conhece este lugar muito bem. Pode pegar a gente por trás.

Angela virou-se e olhou para baixo. A idéia de Van Slyke saltando de repente na direção deles fez sua pele se arrepiar.

Por alguns minutos ficaram imóveis, forçando-se a ouvir qualquer ruído. A casa estava num silêncio fantasmagórico. Finalmente David empurrou a porta. Voltando cuidadosamente para a cozinha, fez um gesto para que Angela o seguisse.

- Talvez não fosse Van Slyke - sussurrou ela.

- Só podia ser - sussurrou David de volta.

- Vamos dar o fora. Acho que se eu ficar aqui muito tempo, Nikki vai sair do carro.

- O quê? - sussurrou David. - Nikki está aqui?

- Não pude deixá-la com a sua mãe. Ela insistiu em vir comigo. Não pude brigar com ela. E não havia tempo para explicar a situação a sua mãe.

- Oh, meu Deus - sussurrou David. - E se Van Slyke viu Nikki?

- Acha que ele pode ter visto?

David fez um gesto para que Angela o seguisse. Foram até a porta dos fundos, abrindo-a o mais silenciosamente possível. Estava completamente escuro do lado de fora. O carro de Van Slyke estava a uns seis metros, mas o sujeito não se encontrava visível.

David indicou a Angela que ficasse onde estava. Correu até o carro de Van Slyke, mantendo a espingarda pronta. Olhou pela janela do passageiro, para o caso de Van Slyke estar escondido, mas não estava. David acenou para que Angela se juntasse a ele.

- Vamos evitar o cascalho do caminho - disse David. - É muito barulhento. Onde você estacionou?

- Atrás de você.

David foi andando, com Angela seguindo-o. Assim que chegaram à rua, seus temores se concretizaram. À luz da lâmpada de um poste, junto à pick-up de Calhoun, puderam ver a silhueta de Van Slyke no assento do motorista do Cherokee da mãe de David. Nikki estava ao lado.

- Oh, não! - disse Angela andando impulsivamente. David segurou-a. Os dois se entreolharam horrorizados.

- Precisamos pensar - disse ele. Em seguida, voltou a olhar para o Cherokee. Achou que poderia morrer de tensão.

- Acha que ele está armado? - perguntou Angela.

- Eu sei que ele está armado.

- Talvez devêssemos procurar ajuda.

- Demoraria demais. Além disso, Robertson e seu pessoal não saberiam lidar com uma situação dessas, mesmo que nos levassem a sério. Precisamos cuidar disso sozinhos. Temos de afastar Nikki o suficiente para que possamos usar a espingarda em caso de necessidade.

Durante alguns momentos angustiantes, eles simplesmente olharam para o carro.

- Me dê as chaves - disse David. - Estou preocupado que ele tenha trancado as portas.

- Estão no carro.

- Oh, não! Ele pode simplesmente ir embora com Nikki.

- Meu Deus! - sussurrou Angela.

- Isso está cada vez pior. Mas você percebeu que, durante todo o tempo em que estamos aqui, Van Slyke não se mexeu? A última vez em que o vi, ele estava numa agitação constante, incapaz de parar um momento.

- Sei o que quer dizer. A impressão é de que eles estão conversando.

- Se Van Slyke não estiver olhando, podemos nos esconder atrás do carro - disse David. -

Depois você pode ir para um lado e eu para o outro. Vamos abrir ao mesmo tempo as duas portas da frente. Você pega Nikki e eu aponto a espingarda para Van Slyke.

- Meu Deus! - gemeu Angela. - Você não acha que isso é arriscar demais?

- Tem uma idéia melhor? Precisamos tirá-la de lá antes que ele parta com ela.

- Certo - concordou Angela, relutante.

Depois de atravessar a rua a uma boa distância do Cherokee, David e Angela se aproximaram do carro por trás. Ficaram agachados enquanto se moviam, esperando não ser detectados. Terminaram por chegar atrás do carro e se esconderam à sua sombra.

- Primeiro vou ver se as portas estão destrancadas - sussurrou David.

Angela assentiu e pegou a espingarda.

David se arrastou junto ao lado do motorista até ficar perto da porta de trás. Erguendo-se devagar, viu que nenhuma das portas estava trancada.

- Pelo menos alguma coisa está a nosso favor - sussurrou Angela assim que ele voltou e contou a boa notícia.

- Certo - sussurrou David. - Está pronta?

Angela agarrou o braço dele.

- Espere. Quanto mais penso no seu plano, menos gosto. Não acho que devemos ir por lados opostos. Acho que devemos ir os dois até a porta dela. Você abre a porta e eu a puxo.

David pensou um instante e em seguida concordou. A idéia principal era arrancar Nikki de Van Slyke. Com o plano de Angela, havia maior chance de sucesso. O problema era como lidar com Van Slyke assim que Nikki estivesse em segurança.

- Certo - sussurrou David. - Quando eu der o sinal, nós vamos.

Angela assentiu.

David pegou a espingarda com Angela e segurou-a na mão esquerda. Passou por trás dela, até ficar do lado direito do carro. Lentamente rodeou o carro e começou a se arrastar, segurando a espingarda contra o peito. Quando chegou perto da porta de trás, virou-se para certificar-se de que Angela vinha atrás.

Preparou-se para saltar para a frente, colocando o pé sob o corpo. Mas antes que pudesse dar o sinal para Angela, a porta se abriu e Nikki se inclinou, olhando para trás. Ficou espantada ao ver o rosto de David tão perto.

- O que vocês dois estão fazendo? - perguntou ela.

David saltou para a frente e abriu totalmente a porta. Nikki perdeu o equilíbrio e caiu do carro. Angela saltou para a frente a agarrou-a, arrastando-a para a grama. Nikki gritou de susto e dor. David apontou a espingarda para Van Slyke. Estava totalmente preparado para puxar o gatilho, em caso de necessidade. Mas Van Slyke não estava armado. Não tentou fugir. Nem mesmo se mexeu.

Limitou-se a olhar para David com a expressão completamente vazia.

Cautelosamente, David se aproximou mais um pouco. Van Slyke continuou sentado e calmo, com as mãos no colo. Não parecia o psicótico agitado que ele vira há menos de uma hora.

- O que está acontecendo? - gritou Nikki. - Por que me puxou com tanta força? Você machucou minha perna.

- Desculpe - disse Angela. - Eu me preocupei com você. O homem que estava ao seu lado é o mesmo que esteve ontem à noite na nossa casa, com uma máscara de réptil.

- Não pode ser - disse Nikki enxugando as lágrimas. - O Senhor Van Slyke disse que deveria ficar conversando comigo até que você voltasse.

- Sobre o que estavam conversando?

- Ele estava me contando sobre quando tinha a minha idade. Dizendo como era maravilhoso.

- A infância do Senhor Van Slyke não foi nem um pouco maravilhosa - disse David, ainda vigiando atentamente Van Slyke, que não se movera. Mantendo a espingarda apontada direto para o peito dele, David inclinou-se para o carro, querendo olhar mais de perto. Van Slyke continuava encarando-o sem qualquer expressão.

- Você está bem? - perguntou David. Ele não sabia o que fazer.

- Estou - disse Van Slyke num tom monótono e calmo. - Meu pai me levava ao cinema o tempo todo, sempre que eu queria.

- Não se mexa - ordenou David. Mantendo a espingarda apontada, rodeou a frente do carro e abriu a porta do lado do motorista. Van Slyke não se mexeu, mas manteve o olhar fixo em David.

- Onde está o revólver?

- Sumiu, evaporou - disse Van Slyke.

David agarrou-o pelo braço e retirou-o do carro. Angela gritou para que David tivesse cuidado.

Ouvira o que Van Slyke tinha dito. Ele continuava obviamente em surto psicótico.

David virou Van Slyke de costas e empurrou-o contra o carro. Em seguida revistou-o. Não encontrou o revólver.

- O que você fez com a arma?

- Não preciso mais dela.

David examinou o rosto calmo de Van Slyke. As pupilas não estavam mais dilatadas. A transformação era notável.

- O que está havendo, Van Slyke?

- Vendo? - disse Van Slyke. - Vendo tudo, vendo e compro.

- Van Slyke! - gritou David. - O que aconteceu com você? Onde esteve? E as vozes que ouviu? Ainda as está ouvindo?

- Está perdendo seu tempo - disse Angela. Ela e Nikki tinham vindo até a frente do carro. -

Estou dizendo, ele está em surto psicótico agudo.

- Chega de vozes - disse Van Slyke. - Fiz elas pararem.

- Acho que devemos chamar a polícia - disse Angela. - E não estou falando dos palhaços locais. Falo da polícia estadual. Seu telefone celular está no carro?

- Como você calou as vozes? - perguntou David a Van Slyke.

- Cuidei delas.

- O que quer dizer com cuidou delas? - David tinha medo do que Van Slyke queria dizer.

- Eles não vão poder me usar como trouxa.

- O que quer dizer com ”eles”?

- A diretoria. Toda a diretoria.

- David! - disse Angela impaciente. - E a polícia? Quero tirar Nikki daqui. Ele está dizendo absurdos.

- Não estou tão certo disso.

- Bom, então o que ele quer dizer com a diretoria?

- Acho que está falando da diretoria do hospital.

- Diretoria pastelaria fuzilaria funilaria - disse Van Slyke com um sorriso. Era a primeira vez que sua expressão se modificava desde que o tinham visto no carro.

- David, esse cara não está ligado na realidade - disse Angela. - E você insiste em conversar com ele?

- Está falando da diretoria do hospital? - perguntou David.

-É.

- Certo. Vai ficar tudo bem - disse David. Mas ele continuava tentando se acalmar mais do que qualquer outra coisa. Em seguida perguntou: - Você atirou em alguém?

Van Slyke gargalhou.

- Não, não atirei em ninguém. Só coloquei a fonte na mesa de reuniões.

- O que ele quer dizer com fonte? - perguntou Angela.

- Não faço idéia.

- Fonte monte ponte conte - disse Van Slyke ainda rindo. Sentindo-se frustrado, David agarrou Van Slyke pela frente da camisa e sacudiu-o, perguntando o que ele tinha feito.

- Coloquei a fonte na mesa, perto da maquete da garagem. E estou feliz por ter feito isso. Não sou trouxa de ninguém. O único problema é que me queimei.

- Onde?

- Nas mãos - disse Van Slyke, estendendo as mãos para que David pudesse olhá-las.

- Estão queimadas? - perguntou Angela.

- Acho que não. Estão ligeiramente vermelhas, mas para mim parecem normais.

- O que ele diz não faz sentido - disse Angela. - Talvez esteja tendo alucinações.

David assentiu, distraído. Subitamente seus pensamentos foram para outro lugar.

- Estou cansado - disse Van Slyke. - Quero ir para casa ver meus pais.

David empurrou-o. Van Slyke atravessou a rua e entrou no seu quintal. Angela olhou para David. Não esperava que ele deixasse Van Slyke ir embora.

- O que está fazendo? - perguntou ela. - Não deveríamos chamar a polícia?

David assentiu de novo. Olhou para Van Slyke, enquanto sua mente começava a juntar tudo: seus pacientes, os sintomas e as mortes.

- Van Slyke é um caso perdido - disse Angela. - Está agindo como se tivesse passado por um tratamento de eletrochoque.

- Entre no carro - disse David.

- O que foi? - perguntou Angela. Ela não havia gostado do seu tom de voz.

- Simplesmente entre no carro! - gritou David. - Depressa! - Em seguida ele sentou atrás do volante do Cherokee.

- E Van Slyke?

- Não há tempo para Van Slyke. Além disso, ele não vai a lugar nenhum. Venha, depressa!

Angela colocou Nikki no banco de trás e subiu ao lado de David. David já havia dado a partida no carro. Antes que Angela pudesse fechar a porta, ele estava dando marcha à ré. Em seguida fez um retorno rápido e acelerou pela rua.

- O que está acontecendo agora? - perguntou Nikki

- Aonde estamos indo? - perguntou Angela.

- Ao hospital.

- Você está dirigindo mal que nem a mamãe - disse Nikki ao pai.

- Por que ao hospital? - perguntou Angela, virando-se para trás e dando um tapinha no joelho de Nikki, para tranqüilizá-la.

- De repente tudo começou a fazer sentido. E agora estou com uma premonição terrível.

- Do que está falando?

- Acho que sei do que Van Slyke estava falando quando se referiu à ”fonte”.

- Pensei que era um blablablá esquizofrênico. Ele estava fazendo associações aleatórias, falou fonte, monte, ponte e conte. Era só algaravia.

- Ele podia estar fazendo associações, mas não acho que estivesse dizendo qualquer absurdo quando disse fonte. Não quando falou sobre colocá-la na mesa de conferência que tinha a maquete da garagem. É específico demais.

- Bom, de que você acha que ele estava falando?

- Acho que tinha a ver com radiação. Acho que era disso que Van Slyke estava falando quando disse que tinha queimado as mãos.

- Ora, vamos! Você está parecendo tão doido quanto ele. Lembre-se de que a paranóia de Van Slyke no submarino nuclear tinha a ver com radiação, de modo que qualquer conversa semelhante tem mais a ver com a volta de sua esquizofrenia do que qualquer outra coisa.

- Espero que esteja certa. Mas fiquei preocupado. O treinamento de Van Slyke na Marinha envolveu propulsão nuclear. Ou seja, mover um navio com um reator nuclear. E reatores nucleares significam radiação. Ele foi treinado como técnico nuclear, de modo que sabe coisas sobre materiais nucleares e o que eles são capazes de provocar.

- Bom, o que você está dizendo faz sentido. Mas falar sobre uma fonte e ter uma fonte são duas coisas completamente diferentes. As pessoas não conseguem material radiativo por aí. Há um controle do governo. Por isso existe a Comissão Reguladora Nuclear.

- Há uma velha unidade de radioterapia no porão do hospital. É uma máquina de cobalto-60 que Traynor espera vender a um país sul-americano. Ela tem uma fonte.

- Não gosto disso nem um pouco - admitiu Angela.

- Também não gosto. E pense nos sintomas que os pacientes tiveram. Podiam ser causados por radiação, especialmente se eles tivessem sido submetidos a doses maciças. É uma possibilidade horrenda, mas se ajusta aos fatos. Na época, nem cheguei a pensar em radiação.

- Nunca pensei em radiação quando fiz a autópsia em Mary Ann Schiller. Mas agora que estou pensando, pode ter sido. Radiação não é uma coisa que se considere, a não ser que haja uma história de exposição. As mudanças patológicas não são específicas.

- É exatamente o que estou querendo dizer. Até as enfermeiras com sintomas parecidos com gripe podiam estar sofrendo de um baixo nível de radiação. E até...

- Oh, não! - exclamou Angela, imediatamente captando a linha de pensamento de David.

David assentiu.

- Exatamente. Até Nikki.

- Até Nikki o quê? - perguntou Nikki no banco de trás. Ela não estivera prestando atenção à conversa, até que ouviu seu nome.

Angela virou-se.

- Só estávamos dizendo que você teve sintomas parecidos com gripe, como as enfermeiras.

- E papai também.

- Eu também - concordou David. Chegaram ao estacionamento do hospital e pararam.

- Qual é o plano? - perguntou Angela.

- Precisamos de um contador Geiger. Deve haver um no Centro de Radioterapia, para que eles obtenham o certificado. Vou procurar um zelador que nos deixe entrar. Por que não vai com Nikki para o saguão?

David encontrou Ronnie, um dos zeladores que ele conhecia vagamente. Ronnie ficou felicíssimo em ajudar um dos médicos, especialmente porque isso o afastava do trabalho de limpar o corredor do porão. David deixou de mencionar que fora despedido da CMV e que seus privilégios no hospital haviam sido suspensos.

Com Ronnie atrás, David foi até o saguão e encontrou Angela. Nikki descobrira uma TV e estava contente por enquanto. David lhe disse que não saísse do saguão; ela prometeu.

Angela e David foram até o Centro de Radioterapia. Levaram apenas quinze minutos para achar um contador Geiger.

De volta ao prédio principal, encontraram-se com Ronnie no porão. Ele demorara alguns minutos para encontrar a chave da velha unidade de radioterapia.

- Ninguém vem aqui com muita freqüência - explicou, enquanto deixava os Wilsons entrar.

Aunidade consistia em três cômodos: uma ante-sala que servira como área de recepção, um escritório interno e uma sala de tratamento. A sala estava vazia, a não ser pela velha unidade de radioterapia. A máquina parecia um aparelho de raios X ligado a uma mesa para o paciente deitar.

David colocou o contador Geiger sobre a mesa e ligou-o. A agulha mal se mexeu no mostrador. Não havia leitura acima do ruído de fundo, mesmo na escala mais sensível.

- Onde é que fica a fonte, dentro dessa coisa? - perguntou Angela.

- Acho que é na ligação entre o braço de tratamento e esta coluna de suporte.

David levantou o contador Geiger e posicionou-o onde achava que devia se localizar a fonte. Continuou não havendo leitura.

- O fato de não haver leitura não significa necessariamente alguma coisa - disse Angela. - Tenho certeza de que ela é bem isolada.

David assentiu. Foi para trás da máquina e experimentou o contador Geiger. Continuou sem leitura.

- Ora, ora - disse Angela. - David, venha cá e veja isto. David juntou-se a Angela perto do braço de tratamento. Ela apontou para um painel de acesso preso por quatro parafusos. Os parafusos haviam sido afrouxados.

David pegou uma cadeira na sala de recepção. Colocou-a debaixo do braço de tratamento. Subindo na cadeira, conseguiu alcançar o painel. Desapertou os quatro parafusos, removeu o painel e entregou tudo a Ronnie.

Por trás do painel descobriu uma placa metálica circular, presa por oito parafusos com borboletas. Pediu que Angela lhe passasse o contador Geiger. Empurrou-o para dentro da máquina e experimentou novamente a radiação. Não houve nenhuma.

David moveu o contador Geiger para o lado, enfiou a mão e segurou um dos parafusos.

Para sua consternação, ele estava frouxo. Checou os oito. Todos estavam frouxos. Começou a removêlos, entregando-os um a um para Angela.

- Tem certeza de que deve fazer isso? - perguntou ela. A despeito das leituras, ela continuava preocupada com a radiação, bem como com as questionáveis habilidades manuais de David.

- Precisamos ter certeza - disse David enquanto removia o último parafuso. Em seguida levantou a pesada cobertura de metal e entregou-a a Ronnie. Olhou através de uma longa cavidade cilíndrica com cerca de onze centímetros de diâmetro. Parecia o cano de uma arma gigantesca. Sem lanterna, só podia ver a uma curta distância. - Tenho certeza de que não dá para ver o braço de tratamento assim. Deve haver um plugue que age como freio para interromper a fonte quando ela é afastada da posição de tratamento.

Só para ter cem por cento de certeza, David enfiou o contador Geiger no cano do braço de tratamento. Não houve leitura acima do ruído de fundo.

David desceu da cadeira.

- A fonte não está lá. Sumiu.

- O que vamos fazer?

- Que horas são?

- Sete e quinze - disse Ronnie.

- Vamos pegar aventais de chumbo na radiologia - disse David. - Depois faremos o que pudermos.

Saíram da velha unidade de radioterapia e foram direto para o Imaging Center. Não precisavam de Ronnie para abrir o Imaging Center, já que ele ficava aberto para as radiografias de emergência, mas David pediu que ele viesse para ajudar a carregar os aventais. Ronnie não sabia o que estava acontecendo, mas dava para ver que era sério. Estava ansioso por ser o mais solícito possível.

O técnico em radiologia suspeitou do pedido de aventais de chumbo, mas decidiu que, como David só iria levá-los até o hospital ao lado, não haveria problema. Além disso, não estava acostumado a contradizer médicos. Entregou a David, Angela e Ronnie nove aventais de chumbo, além de um par de luvas de chumbo usadas para radioscopia. David continuava segurando o contador Geiger.

Sentindo o peso da carga, os três voltaram ao hospital. Receberam olhares estranhos dos funcionários e visitantes enquanto subiam ao segundo andar, mas ninguém tentou impedi- los.

- Certo - disse David assim que chegaram à porta da sala de reuniões. Estava praticamente sem fôlego.-Ponham tudo aqui. - Ele deixou no chão os aventais que estava carregando. Angela e Ronnie fizeram o mesmo.

David experimentou de novo o contador Geiger. Imediatamente a agulha saltou para a direita.

- Jesus Cristo! - disse ele. - Não podemos obter prova melhor do que esta.

David agradeceu a Ronnie e dispensou-o. Em seguida explicou a Angela o que achava que deveriam fazer. Colocou as luvas de chumbo e pegou três aventais. Segurou um deles nas mãos, enquanto colocava os outros dois sobre os ombros. Angela pegou quatro.

David abriu a porta e entrou na sala de reuniões, com Angela logo atrás. Traynor, que fora interrompido no meio de uma frase, encarou David com ar furioso. Os presentes - Sherwood, Beaton, Cantor, Caldwell, Arnsworth e Robeson - viraram-se para ver a origem daquela interrupção brusca. Assim que os membros da reunião começaram a murmurar, Traynor bateu com seu martelo, gritando por ordem.

Examinando a mesa de reuniões, David identificou imediatamente a fonte. Era um cilindro com cerca de trinta centímetros de comprimento, cujo diâmetro equivalia à abertura do braço de tratamento que ele examinara há alguns minutos. Havia vários anéis de Teflon incrustados em sua circunferência. No topo havia um pino de trava. O cilindro estava de pé, perto da maquete da garagem, como Van Slyke indicara.

David partiu em direção ao cilindro, segurando um avental de chumbo com as duas mãos.

- Pare! - gritou Traynor.

Antes que David pudesse chegar ao cilindro, Caldwell saltou e agarrou-o na altura do peito.

- Que diabo você está fazendo? - gritou Caldwell.

- Estou tentando salvar vocês antes que seja tarde demais!

- Soltem-no! -gritou Angela.

- Do que estão falando? - exigiu Traynor. David moveu a cabeça na direção do cilindro.

- Acho que vocês estão fazendo uma reunião ao redor de uma fonte de cobalto-60.

Cantor saltou de pé; sua cadeira caiu para trás.

- Eu vi essa coisa - gritou. - Fiquei imaginando o que seria. - Sem dizer mais nada, ele se virou e saiu correndo da sala.

Perplexo, Caldwell afrouxou o aperto. Imediatamente David curvou-se sobre a mesa e agarrou o cilindro de latão com as mãos enluvadas. Em seguida enrolou-o em um dos aventais de chumbo. Depois enrolou o avental em outro, e este em mais outro. Fez o mesmo com os aventais que Angela estava carregando, enquanto ela saía da sala de reuniões para pegar os outros. Estava ansioso para cobrir o cilindro com o máximo possível de camadas de chumbo.

Enquanto David enrolava o último avental de chumbo no embrulho, Angela ligou contador Geiger.

- Não acredito em você - disse Traynor, rompendo um silêncio chocado. Mas sua voz carecia de convicção. A súbita partida de Cantor o irritara.

- Não é hora para discutir - disse David. - É melhor todo mundo sair daqui. Todos vocês foram expostos a quantidades sérias de radiação. Aconselho-os a chamarem os seus médicos.

Traynor e os outros trocaram olhares nervosos. Logo explodiu o pânico, enquanto alguns diretores, e logo todo o resto, inclusive Traynor, corriam da sala.

David terminou com o último avental e pegou o contador Geiger. Ligando-o, ficou assombrado ao ver que ainda registrava uma quantidade significativa de radiação.

- Vamos sair daqui - disse ele.-É tudo que podemos fazer. Deixando sobre a mesa o cilindro enrolado em aventais, os dois saíram da sala de reuniões, fechando as portas. Novamente David experimentou o contador Geiger. Como esperava, a radiação caíra dramaticamente.

- Se não entrarem na sala, ninguém vai se prejudicar esta noite.

Os dois dirigiram-se ao saguão, para pegar Nikki. Logo antes de chegarem, David parou.

- Você acha que Nikki ficaria bem se esperasse mais alguns minutos? - perguntou.

- Diante da TV, ela fica bem durante uma semana. Por quê?

- Acho que sei como os pacientes foram irradiados - disse David, levando Angela na direção dos quartos.

Meia hora depois, pegaram Nikki e saíram para o estacionamento do hospital. Foram com o Cherokee de volta para a casa de Van Slyke, para pegar o Volvo.

- Você acha que ele pode fazer mal a alguém esta noite? - perguntou David, indicando a casa de Van Slyke.

- Não.

- É o que acho também. E a última coisa que quero fazer é entrar lá. Vamos para a casa dos meus pais. Estou exausto.

David saiu do carro.

- Eu acompanho você - falou.

- Ligue para a sua mãe - disse Angela. - Tenho certeza que ela está louca de preocupação.

David entrou no Volvo e ligou-o. Olhou para a pick-up de Calhoun e sacudiu tristemente a cabeça.

Assim que chegaram à estrada principal, David pegou o telefone celular. Antes de chamar a mãe, ligou para a polícia estadual. Fazendo contato com um policial de plantão, explicou que queria informar um problema muito sério, que incluía assassinato e radiação mortal no Hospital Comunitário de Bartlet.

 

Quatro Meses Depois

DAVID SABIA QUE ESTAVA atrasado quando parou junto de uma casa modesta na Glenwood Avenue, em Leonia, Nova Jersey. Saltou do carro e subiu correndo os degraus da frente.

- Sabe que horas são? - perguntou Angela, seguindo-o até o quarto. - Você deveria estar em casa à uma, e já são duas. Se eu pude chegar na hora, acho que você também poderia.

- Desculpe - disse David enquanto trocava rapidamente de roupa. - Tive um paciente que precisou de tempo extra. - E suspirou. - Pelo menos agora tenho liberdade de gastar mais tempo com um paciente quando acho necessário.

- Está tudo muito bem, mas nós temos um compromisso. E foi você quem escolheu a hora.

- Onde está Nikki?

- Na varanda de trás. Foi ver a equipe do 60 Minutos arrumar o material.

David vestiu uma camisa recém-lavada e abotoou-se.

- Desculpe - disse Angela. - Acho que estou ansiosa com essa coisa de televisão. Você acha que devemos fazer isso?

- Eu também estou nervoso - disse David enquanto escolhia uma gravata. - De modo que, se você quiser cancelar, para mim está bem.

- Bom, nós deixamos as coisas claras com nossos chefes.

- E todo mundo garantiu que isso não iria nos prejudicar. E nós dois achamos que o público deve saber.

Angela parou para pensar a respeito.

- Certo - falou enfim. - Vamos.

David ajeitou a gravata, penteou o cabelo e colocou um paletó. Angela olhou-se no espelho.

Quando os dois sentiram que estavam prontos, desceram a escada e foram para a varanda de trás, piscando sob as luzes fortes.

Apesar de estarem nervosos, num instante Ed Bradley deixouos à vontade. Começou a entrevista casualmente, fazendo-os relaxar, sabendo que precisaria editar bastante, como sempre. Começou a perguntar o que estavam fazendo atualmente.

- Estou com uma bolsa de estudos em patologia legal - disse Angela.

- Eu estou trabalhando com um grupo grande no Centro Médico Presbiteriano de Colúmbia - disse David. - Temos contrato com várias organizações de planos de saúde.

- Gostam de seus trabalhos?

- Sim - disse David.

- Estamos gratos por podermos recolocar a vida em ordem - disse Angela.-Durante algum tempo ela esteve muito confusa.

- Soube que vocês passaram por uma experiência difícil em Bartlet, Vermont.

David e Angela riram nervosamente.

- Foi um pesadelo - disse ela.

- Como começou?

David e Angela se entreolharam, inseguros sobre quem começaria.

- Por que não começa você, David? - perguntou Bradley.

- Minha parte começou quando vários pacientes começaram a morrer inesperadamente. Eram pacientes com passado de doenças sérias, como câncer.

David olhou para Angela.

- Para mim, foi quando comecei a ser assediada sexualmente por meu superior - disse ela.- Depois descobrimos o cadáver de uma vítima de homicídio emparedado sob os degraus da escada do nosso porão. Era o Doutor Dennis Hodges. Ele tinha sido administrador do hospital durante vários anos.

Com suas perguntas inteligentes, Ed Bradley foi puxando toda a história sórdida.

- Essas mortes inesperadas dos pacientes foram causadas por eutanásia? - perguntou ele a David.

- Foi o que pensamos inicialmente. Mas aquelas pessoas estavam sendo assassinadas não por alguma piedade equivocada, mas para melhorar o resultado do balancete do hospital. Os pacientes com doenças potencialmente terminais usam muito as instalações hospitalares. Isso se traduz em custos altos. Assim, para eliminar esses gastos, os pacientes eram eliminados.

- Em outras palavras, toda a motivação para o caso era económica - disse Bradley.

- Exatamente - respondeu David. - O hospital estava perdendo dinheiro e eles precisavam fazer alguma coisa para tirá-lo do vermelho. Essa era a solução.

- Por que o hospital estava perdendo dinheiro?

- O hospital foi forçado a trabalhar pelo sistema de capitação - explicou David.-Isso significava fornecer hospitalização para a maior empresa de planos de saúde da área por um preço mensal fixo para cada associado. Infelizmente o hospital aliviara a utilização a um custo muito baixo. O dinheiro que entrava era muito menor do que o que saía.

- Mas por que o hospital concordou com o sistema de capitação?

- Como eu disse, ele foi forçado. Isso tem a ver com a nova concorrência na medicina. Mas não é uma concorrência verdadeira. Nesse caso, a empresa de planos de saúde ditava os termos. O hospital teria de aceitar a capitação, se quisesse concorrer pelos serviços da empresa. Não havia escolha.

Bradley assentiu enquanto consultava suas anotações. Em seguida voltou a olhar para Angela.

- O novo administrador do Hospital Comunitário de Bartlet diz que as suas alegações são, nas palavras dele, ”puro lixo”.

- Ouvimos dizer - observou David.

- O mesmo administrador disse que se algum paciente foi assassinado, isso deveu-se ao trabalho de um único indivíduo enlouquecido.

- Também ouvimos isso.

- Mas vocês não concordam?

- Não.

- Como os pacientes morriam? - perguntou Bradley.

- De radiação em todo o corpo - disse Angela. - Eles recebiam doses maciças de raios gama de uma fonte de cobalto-60.

- Não é o mesmo material usado para tratar com sucesso alguns tipos de tumor?

- Em áreas muito definidas e em doses cuidadosamente controladas - explicou Angela. – Os pacientes de David estavam recebendo uma exposição descontrolada e em todo o corpo.

- Como a radiação era administrada?

- Uma cama ortopédica recebeu uma caixa de chumbo isolada - disse Angela. - Ela ficava presa sob a cama e continha a fonte. A caixa tinha uma janela acionada por controle remoto, operada através de ondas de rádio por um abridor de porta de garagem. Sempre que a janela era aberta, o paciente era irradiado através da cama. O mesmo acontecia com algumas enfermeiras que tratavam dos pacientes.

- E vocês dois viram essa cama?

David e Angela assentiram.

- Depois de termos descoberto e isolado a fonte da melhor maneira possível - explicou David -, tentei imaginar como meus pacientes haviam sido irradiados. Lembrei que muitos deles tinham estado em camas defeituosas. Eles terminaram sendo transferidos para uma cama ortopédica. Então, depois de sairmos da sala de reuniões, fomos procurar uma cama ortopédica especial. E a encontramos na oficina de manutenção.

- E agora vocês afirmam que essa cama foi destruída.

- A cama nunca mais foi vista depois daquela noite - disse Angela.

- E vocês acham que a comissão executiva do hospital era responsável?

- Pelo menos alguns deles. Certamente o chairman da diretoria, a presidente e o chefe do pessoal médico. Acreditamos que a operação foi planejada pelo chefe do pessoal médico. Ele era a única pessoa com a formação necessária para imaginar um esquema tão diabólico e eficaz. Se não tivesse sido usado com tanta freqüência, não seria descoberto.

- Infelizmente, nenhuma dessas pessoas pode se defender - disse Ed Bradley. - Todas morreram de séria contaminação radiativa, a despeito de algumas medidas heróicas para salvá-las.

- Infelizmente - disse David.

- Se eles estavam tão doentes, como conseguiram destruir a cama?

- A não ser que a radiação seja tão grande que mate imediatamente, há um período variável de latência antes do surgimento dos sintomas. Nesse caso, haveria tempo suficiente para se livrar da cama.

- Há algum modo de comprovar essas alegações?-perguntou Bradley.

- Nós dois vimos a cama - disse David.

- Mais alguma coisa?

- Nós encontramos a fonte - disse Angela.

- Vocês encontraram a fonte. É verdade. Mas foi na sala de reuniões, e não junto de algum paciente.

- Werner Van Slyke confessou tudo a nós dois - disse David.

- Werner Van Slyke é o homem que vocês acreditam que tenha realizado a operação.

- Correto - disse David. - Ele teve treinamento nuclear na Marinha, de modo que sabia alguma coisa sobre manusear materiais radiativos.

- É o mesmo Werner Van Slyke que é esquizofrênico e que agora está hospitalizado com séria doença de radiação - disse Bradley. - É também o mesmo Werner Van Slyke que está em surto psicótico desde a noite em que a comissão executiva do hospital recebeu a radiação, que se recusa a falar com qualquer pessoa e que está para morrer.

- É ele - admitiu David.

- Não precisamos dizer que ele não é a testemunha mais confiável. Vocês têm mais alguma prova?

- Eu tratei de várias enfermeiras com sintomas fracos de radiação - disse David. – Todas estiveram junto de meus pacientes.

- Mas na época você achou que elas tinham gripe. E não há como provar que não era isso.

- É verdade - admitiu David. Bradley virou-se para Angela.

- A senhora autopsiou uma das pacientes do seu marido?

Angela assentiu.

- Suspeitou de doença causada por radiação, depois da autópsia? E, em caso contrário, por que não suspeitou?

- Não suspeitei porque ela morreu muito depressa para manifestar os sintomas que sugeririam radiação. Ela recebera tanta radiação que o seu sistema nervoso central foi afetado ao nível molecular. Se tivesse recebido menos radiação, poderia ter vivido o suficiente para desenvolver úlceras no trato digestivo. Nesse caso, eu poderia ter acrescentado a radiação ao diagnóstico diferencial.

- O que estão me dizendo é que nenhum dos dois tem qualquer prova concludente – disse Bradley.

- Acho que é verdade - disse David relutante.

- Por que nenhum dos dois foi chamado para testemunhar?

- Sabemos que houve alguns processos civis - disse Angela.

- Mas rapidamente foram feitos acordos fora do tribunal. Não houve acusações de crime.

- Com o tipo de acusação que vocês fizeram, é incrível que não tenha havido acusações criminais - disse Ed Bradley. - Por que vocês acham que isso aconteceu?

Angela e David se entreolharam. Finalmente ele falou:

- Basicamente, acreditamos que haja dois motivos. Primeiro, achamos que todo mundo está com medo desse caso. Se tudo viesse a público, provavelmente o hospital seria fechado e isso seria desastroso para a comunidade. O hospital injeta um bocado de dinheiro na cidade, emprega um monte de gente e atende à população. Depois, há o fato de que, neste caso, os culpados foram, de certo modo, punidos. Van Slyke cuidou disso ao colocar o cilindro de cobalto-60 na mesa de reuniões.

- Isso pode explicar por que não houve nenhuma reação local - disse Bradley.-Mas e ao nível estadual? E quanto ao promotor estadual?

- Ao nível nacional esse episódio chama a atenção para o direcionamento da reforma do sistema de saúde - disse Angela.

- Se essa história fosse divulgada, as pessoas poderiam começar a reavaliar o caminho que parecemos estar tomando. Boas decisões empresariais nem sempre equivalem a boas decisões médicas. O atendimento ao paciente decai quando os responsáveis estão muito preocupados com o balancete. Nossa experiência no Hospital Comunitário de Bartlet pode ser um exemplo extremo de burocratas médicos que perdem as estribeiras. E no entanto isso aconteceu. Pode acontecer de novo.

- Correm boatos de que vocês podem lucrar com esse tema - disse Bradley.

Mais uma vez David e Angela trocaram olhares nervosos.

- Ofereceram-nos uma grande soma em dinheiro para fazerem um filme para a TV - admitiu David.

- E vão aceitar?

- Ainda não decidimos - disse David.

- Estão tentados a aceitar?

- Claro que sim - disse Angela. - Estamos com uma montanha de dívidas do crédito educativo e possuímos uma casa em Bartlet que não conseguimos vender. Além disso, nossa filha tem problemas de saúde que podem gerar necessidades especiais.

Ed Bradley sorriu para Nikki, que imediatamente sorriu de volta.

- Ouvi dizer que você foi uma heroína neste caso - disse ele.

- Eu dei um tiro de espingarda num homem que estava brigando com minha mãe. Mas acertei foi na janela.

Bradley riu.

- Eu certamente manteria distância de sua mãe.

Todos riram.

- Tenho certeza de que os dois sabem que há pessoas afirmando que vocês inventaram toda essa história para ganhar dinheiro com a TV e vingar-se do hospital e da empresa de planos de saúde, que despediram os dois.

- Tenho certeza de que as pessoas que não querem a divulgação da história verdadeira farão de tudo para nos desacreditar. Mas eles não deveriam culpar o mensageiro pela má notícia - disse Angela.

- E quanto à série de estupros no estacionamento do hospital? Fazia parte dessa história?

- Não - disse Angela. - Num determinado momento, achamos que fazia. O detetive particular que perdeu a vida investigando conosco também pensava assim. Mas estávamos errados. A única acusação decorrente de todo esse episódio foi contra Clyde Devonshire, um enfermeiro da emergência. Testes de DNA provaram que ele foi responsável por pelo menos dois dos estupros.

- Vocês aprenderam alguma coisa com essa experiência?

David e Angela disseram sim simultaneamente. Angela falou primeiro:

- Aprendi que, já que o atendimento médico mudou, médicos e pacientes devem estar a par de todas as regras de qualquer plano destinado a cortar custos, de modo a poderem tomar as decisões adequadas. Os pacientes são vulneráveis demais.

- Eu aprendi que é perigoso deixar burocratas e financistas interferirem na relação médico-paciente - disse David.

- Parece que vocês dois são contrários à reforma no sistema de saúde.

- Pelo contrário - disse Angela. - Achamos que a reforma no sistema de saúde é extremamente necessária.

- Achamos que é necessária - disse David.-Mas estamos preocupados. Só não queremos que ela seja uma cura fatal, como a velha piada que diz que a operação foi um sucesso, mas o paciente morreu. O sistema antigo favorecia a superutilização através de incentivos econômicos. Por exemplo, recompensando o cirurgião pela quantidade de operações que ele realizava. Quanto mais apêndices ou amígdalas ele removia, mais dinheiro ganhava. Não queremos passar para o extremo oposto, usando incentivos econômicos para subutilizar. Em muitos planos de saúde, os médicos estão recebendo bônus para não hospitalizar ou não fazer algum tratamento específico.

- As necessidades do paciente é que devem determinar o nível e o tipo de tratamento -disse Angela.

- Exatamente - concordou David.

- Corta - disse Bradley.

O operador de câmera afastou-se do equipamento e se espreguiçou.

- Foi fantástico - disse Bradley. - Há bastante material e o ponto ideal para interromper. Foi um papo ótimo. Meu trabalho seria muito mais fácil se todas as pessoas que eu entrevistasse fossem tão articuladas quanto vocês.

- É gentileza sua - disse Angela.

- Agora, deixem-me perguntar se vocês acham que todo o comitê executivo estava envolvido - disse Bradley.

- Provavelmente a maioria deles - disse David. - Todos tinham alguma coisa a ganhar se o hospital prosperasse e muito a perder caso ele fechasse. O envolvimento da diretoria não era tão altruísta como a maioria das pessoas gostaria de pensar, principalmente o do Doutor Cantor, chefe do pessoal. Seu Imaging Center teria acabado se o hospital tivesse prejuízos.

- Droga! - disse Bradley depois de folhear suas anotações. - Esqueci de perguntar sobre Sam Flemming e Tom Baringer. - Ele chamou o cameraman e disse que queria gravar mais um pouco.

David e Angela ficaram perplexos. Esses nomes não lhes eram familiares.

Assim que o cameraman disse que a fita estava rodando, Ed Bradley virou-se para David e Angela e perguntou sobre os dois homens. Ambos disseram que não conseguiam situar os nomes.

- Foram duas pessoas que morreram no Hospital Comunitário de Bartlet com exatamente os mesmos sintomas dos pacientes de David. Eram pacientes do Doutor Portland.

- Nesse caso não iríamos saber nada sobre eles - disse David. - Morreram antes que começássemos a trabalhar no hospital; o próprio Doutor Portland suicidou-se pouco antes de mudarmos para a cidade.

- O que eu queria perguntar é se vocês acreditam que essas pessoas podem ter morrido de doença causada por radiação, como alegam ter acontecido com os seus pacientes.

- Se os sintomas eram do mesmo tipo, grau e estrutura temporal, eu diria que sim – disse David.

- Isso é interessante - disse Bradley. - Nenhuma dessas duas pessoas tinha tido doenças terminais ou qualquer problema médico a não ser o que causara a internação. Mas ambos possuíam seguros de vários milhões de dólares, dos quais o hospital era o único beneficiário.

- Não é de espantar que o Doutor Portland tenha ficado deprimido - disse Angela.

- Vocês fariam algum comentário a respeito?

- Se eles receberam radiação, o motivo foi ainda mais diretamente econômico do que nos outros casos - disse David. - E sem dúvida tornaria o nosso caso muito mais convincente.

- Se os corpos fossem exumados - perguntou Bradley -, poderia ser determinado inequivocamente se eles morreram de radiação?

- Não creio - disse Angela. - O máximo que se poderia dizer é que os restos indicariam exposição à radiação.

- Uma última pergunta - disse Bradley. - Vocês estão felizes?

- Acho que ainda não ousamos nos fazer essa pergunta - disse David. –Certamente estamos mais felizes do que nos últimos meses e satisfeitos por estarmos trabalhando. Também nos sentimos gratos por Nikki estar tão bem.

- Depois de tudo por que passamos, vai demorar um pouco para deixar isso para trás - disse Angela.

- Acho que estamos felizes - disse Nikki.-Eu vou ter um irmão. Nós vamos ganhar um neném.

Bradley ergueu as sobrancelhas.

- É verdade?

- Sem dúvida - disse David.

Angela apenas sorriu.

 

 

                                                                  Robin Cook

 

 

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